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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O DIÁRIO SECRETO DE LAURA PALMER / Jennifer Lynch
O DIÁRIO SECRETO DE LAURA PALMER / Jennifer Lynch

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

Chamo-me Laura Palmer e há uns escassos três minutos fiz, oficialmente, doze anos! Estamos a 22 de Julho de 1984 e tive um dia óptimo! Foste o último presente que abri e mal consegui esperar até subir as escadas e começar a contar-te tudo sobre mim e a minha família. Passarás a ser o meu melhor confidente. Prometo dizer-te tudo o que acontece, tudo o que sinto, tudo o que desejo. E tudo o que me vier à cabeça. Há algumas coisas que não posso dizer a qualquer pessoa. Prometo dizer-te essas coisas a ti.

De qualquer maneira, quando esta manhã desci para tomar o pequeno-almoço, vi que a minha mãe tinha pendurado serpentinas por toda a casa e até mesmo o meu pai pôs um chapéu festivo e deu uns acordes de cometa. Julguei que a Donna e eu não íamos parar de rir!

Oh! A Donna é a minha melhor amiga neste mundo. O seu apelido é Hayward e o pai, o Dr. Hayward, assistiu ao meu parto, há doze anos. Mal posso acreditar que, finalmente, me saí bem. A minha mãe chorou, quando estávamos à mesa, ao dizer que não tardarei a tornar-me uma mulher adulta. Sim, claro. Ainda vão passar uns anos antes que me venha sequer o período, sei muito bem. Está doida, se acha que vou tornar-me adulta num abrir e fechar de olhos, especialmente se continuar a oferecer-me pelúcias no meu aniversário!

O dia de hoje correu tal como eu desejava, apenas com a Donna, a minha mãe e o meu pai presentes. E, evidentemente, o Júpiter, o meu gato. Ao pequeno-almoço, tivemos tarte de maçã, o meu doce favorito, com imenso molho de caramelo e muita torrada.

A Donna ofereceu-me a blusa que eu vi na montra dos Armazéns Horne e sei que a comprou com a sua mesada, pois há muito tempo que andava a poupá-la, sem me explicar porquê. É a blusa mais bonita que vi na minha vida! É de seda branca com rosinhas bordadas, mas não em excesso de forma a torná-la pirosa. Um brinco! Para o aniversário da Donna, também vou arranjar-lhe qualquer coisa de muito especial.

A minha prima Madeline, Maddy como diminutivo, vem visitar-nos amanhã e fica uma semana connosco. Ela, a Donna e eu vamos construir um forte na mata e acampar, se a minha mãe nos deixar. Sei que o meu pai nos dará licença. Uma noite sonhei que o meu pai nos levou para uma casa no meio da mata e o meu quarto tinha uma árvore enorme do lado de fora da janela, onde duas aves canoras tinham feito um ninho.

Volto daqui a uns minutos, Diário. O meu pai está a chamar-me do fundo das escadas. Diz que tem uma surpresa para mim. Conto-te tudo quando regressar!

                                   Um beijo, Laura.

 

 

 

 

QUERIDO DIÁRIO,

22 DE JULHO DE 1984, MAIS TARDE

Nem vais acreditar no que aconteceu! Desci as escadas e o meu pai mandou-me entrar e à minha mãe no automóvel, e recomendou que não fizéssemos perguntas até chegarmos ao lugar onde íamos. A minha mãe não parou, obviamente, de fazer perguntas durante todo o caminho. Não liguei, por achar que o meu pai acabaria por deixar escapar qualquer coisa, mas enganei-me. Limitei-me a ficar muito quieta para saborear a surpresa. Adivinhei, mal parámos junto aos estábulos de Broken Circle. O meu pai comprou-me um pónei! É tão bonito, Diário, muito mais do que alguma vez poderia ter sonhado. As cores são entre o castanho-canela e o castanho-escuro e tem uns olhos grandes e meigos. A minha mãe nem acreditava e começou a perguntar ao meu pai como tinha conseguido preparar tudo, sem que ninguém soubesse. O meu pai respondeu que teria estragado a surpresa se ela estivesse a par, e tem razão!

 

A minha mãe quase teve um ataque de coração, quando me viu por baixo das patas do pónei, a tentar descobrir se ele era macho ou fêmea. Bastou-me uma olhadela para verificar que era um macho. Como nunca vi um igual. A minha mãe não conhece tão bem a sua filhinha como julga, hein?

 

Voltando ao meu pónei, resolvi que lhe chamaria Troy, como o pónei do álbum de fotografias de Mrs. Larkin. O Zippy, que trabalha nos estábulos, prometeu que me fazia uma placa com o nome de TROY em maiúsculas e a pendurava mesmo em frente dele para que todos soubessem o nome, quando o vissem. O Troy ainda é novo de mais para ser montado, mas, daqui a dois meses, já poderei cavalgá-lo e correr pelos

campos! Hoje, passeei-o a pé e alimentei-o com cenouras (o meu pai trouxe-as connosco no porta-bagagens) e um cubo de açúcar que o Zippy me deu. O Troy adorou. Antes de o deixar, sussurrei-lhe junto à orelha quente e macia que o visitaria amanhã e que escreveria tudo sobre ele no meu diário. Estou ansiosa por o mostrar a Donna. Quase me esquecia! A Maddy também irá vê-lo!

 

No caminho para casa, de volta dos estábulos, o meu pai lembrou que o Troy e eu passamos a ter o mesmo aniversário, porque quando se oferece um pónei de presente a alguém que goste dele, partilham tudo desde essa altura. Portanto, um feliz aniversário para ti também, Troy!

 

Ainda bem que não sei de onde ele vem, pois, assim, é quase como se o Céu o tivesse enviado apenas para mim.

 

De qualquer maneira, Diário, amanhã vai ser um dia em cheio e esta noite vou dormir muito bem, a sonhar com o Troy e com o tempo que iremos passar juntos. Sou a rapariguinha mais feliz deste mundo.

 

Um beijo, Laura.

  1. S. Espero que o BOB não apareça esta noite.

 

QUERIDO DIÁRIO,

23 DE JULHO DE 1984

A noite vai adiantada e não consigo dormir. Tive pesadelos, uns atrás dos outros e, por fim, optei por não dormir. Imagino que a Maddy vai sentir-se cansada da viagem até aqui e amanhã quererá tirar uma sesta e, assim, poderei fazer o mesmo. Talvez que se o céu estiver mais claro enquanto durmo os meus sonhos não sejam tão escuros.

 

Um deles foi horrível. Acordei a chorar e tive medo de que a minha mãe entrasse no quarto se me ouvisse e, neste momento, quero estar sozinha, o que ela não compreenderia. Sempre que não consigo dormir ou tenho pesadelos, como esta noite, ela aparece e canta-me a Waltzing Matilda. Não é que não queira que ela me cante, mas aquele estranho homem apareceu-me no sonho a cantar esta canção com a voz da minha mãe e assustou-me tanto que mal consegui mexer-me.

 

No sonho, eu ia a atravessar a mata junto a Pearl Lakes e soprava um vento muito forte, mas só à minha volta. Era quente. O vento. E a uns seis metros de mim, estava este homem de cabelo comprido e mãos enormes e calejadas. Eram mãos muito grosseiras e estendeu-as na minha direcção enquanto cantava. A barba dele não se agitava com o vento, porque só havia vento à minha volta. Tinha as unhas dos polegares negras como carvão e movia-os em círculo, à medida que as mãos se aproximavam mais de mim. Continuei a avançar para ele, embora fosse isso o que menos queria, tanto era o medo que sentia.

 

"Tenho o teu gato", dizia-me o homem e o Júpiter correu para lá dele e desapareceu na mata, como uma manchinha branca num pedaço de papel preto. Ele continuava a cantar e tentei dizer-lhe que queria ir para casa e que o Júpiter fosse comigo, mas não conseguia falar. Depois, ele levantou as mãos no ar, muito, muito alto, como se estivesse a ficar maior e mais alto a cada minuto que passava e, à medida que as mãos se erguiam, senti que o vento à minha volta parava e tudo ficava em silêncio. Pensei que ia largar-me porque conseguia ler-me os pensamentos, pelo menos assim parecia. E, portanto, quando parou o vento com as mãos daquela maneira, julguei que ia soltar-me, deixar-me voltar para casa.

 

Depois, tive de olhar para baixo porque havia este calor entre as minhas pernas, não um calor agradável e morno, mas quente. Queimava-me e tive, por isso, de abrir as pernas para que arrefecessem. Para que deixassem de me queimar, de estar tão quentes. E elas começaram a abrir-se por si, como se fossem separar-se do meu corpo, e pensei: "you morrer assim e como é que alguém irá compreender que tentei manter as pernas fechadas, mas que elas ardiam e me era impossível?" E depois o homem fitou-me, fez aquele sorriso horrível e, com a voz da minha mãe, cantou: "You'll come a 'waltzing Matilda with me..." E tentei, novamente, falar mas não consegui e tentei mexer-me, mas também não consegui, e ele disse: "Estás em casa, Laura." E acordei.

 

Por vezes, quando estou a sonhar, sinto-me encurralada aqui e muito assustada. No entanto, agora, ao ler o que acabei de escrever, não me parece tão assustador. Talvez, a partir deste momento, comece a escrever todos os meus sonhos, a fim de perder o medo.

 

Uma noite, no ano passado, tive um sonho tão horrível que, durante todo o dia seguinte, na escola, fui incapaz de trabalhar. A Donna pensou que eu estava a ficar doida, porque de cada vez que me chamava ou me to- cava no ombro, na aula, para me passar um bilhete, eu dava um salto na carteira. Não estava a ficar doida como a Nadine Hurley, mas só que ainda me sentia como se continuasse num sonho. Não me recordo, de facto, dele, mas apenas sei que, no sonho, estava metida em grandes sarilhos, pois não tinha passado naquele estranho teste em que se tem de ajudar um certo número de pessoas a atravessar o rio num barco, e eu era incapaz, pois só queria nadar ou coisa no género e, por isso, mandaram alguém perseguir-me para me tocar de maneiras más e vergonhosas. Esqueci-me do resto e acho que não perco nada com isso.

 

Estou tão cansada de esperar para ser adulta. Um dia destes vai acontecer e serei a única pessoa a fazer-me sentir bem ou mal por tudo o que fizer.

 

Falarei contigo, amanhã. Estou a ficar bastante cansada.

 

Laura.

 

QUERIDO DIÁRIO,

23 DE JULHO DE 1984

A prima Maddy deve estar a chegar a qualquer momento. O meu pai foi buscá-la sozinho à estação, porque a minha mãe não o deixou acordar-me. Dormi até há uns quinze minutos. Nada de sonhos, à excepção de que a minha mãe disse que me ouviu a chamá-la e, em seguida, piei como uma coruja! Sinto-me tão envergonhada. Ela garantiu que entrou no meu quarto e eu estava meia adormecida, mas que piei novamente e, depois, conta ela, dei uma risada, mudei de posição e voltei a adormecer. Espero que não fale disto a ninguém. Ela conta sempre histórias destas quando temos jantares com os Haywards, ou coisas do género. Começa sempre com: "A Laura fez algo de querido e estranhíssimo..." E sei que o momento chegou.

 

Como numa noite em que contou diante de todos que eu tivera uma crise de sonambulismo e uma noite entrara na cozinha, antes dela se ir deitar. Despi toda a roupa, metia-a dentro do forno e regressei à cama. Agora, sempre que chego perto do fogão, na casa dos Haywards, quando a Donna e eu ajudamos a preparar o jantar, Mrs. Hayward pergunta, por brincadeira, se me apercebo ou não de que o fogão é um fogão e não uma máquina de lavar.

 

A minha mãe tinha bebido na noite em que contou isto e, por isso, perdoo-lhe. Mas se disser a alguém que piei, you morrer. Acho que nunca chega a altura em que os pais deixam de ser uma fonte de constante embaraço para os filhos. Os meus não constituem excepção.

 

Talvez que se eu deixasse de fazer coisas estúpidas durante o sono, ela não tivesse nada que contar às pessoas.

 

Mais tarde, escrevo mais.

 

Laura (piu, piu).

 

 

QUERIDO DIÁRIO,

27 DE JULHO DE 1984

Tenho tanto para te contar. Estas palavras chegam-te de dentro de um forte que a Donna, a Maddy e eu construímos. O meu pai e a minha mãe acederam com a condição de não nos afastarmos das traseiras da casa. Servimo-nos da madeira que Ed Hurley nos deu e o meu pai pregou tudo com o martelo. A Donna diz que se surgir uma tempestade será o nosso fim, mas tenho a sensação de que se aguentaria, independentemente do que pudesse acontecer.

 

A Maddy está tão bonita. Tem dezasseis anos e invejo tanto a vida dela! Quem me dera ter dezasseis anos! Tem um namorado, onde mora, do qual já está com saudades e ele telefonou há pouco para cá, só para se certificar de que tudo correra bem. O meu pai troçou dela por se mostrar tão melada ao telefone, mas a Maddy não ligou. A Donna acha que quando tiver um namorado fixo, terá provavelmente quarenta anos e estará a ficar surda. Respondi-lhe que era doida, porque os rapazes já se interessam por nós as duas e que apenas somos espertas de mais para sair com eles. Interrogo-me como será quando alguém, que não os meus pais, me ame e se ele telefonará quando eu viajar, só para se certificar de que estou bem.

 

De qualquer maneira, fomos todas visitar o Troy aos estábulos, escovámo-lo e demos-lhe comida. Tanto a Donna como a Maddy disseram que nunca tinham visto um pónei tão bonito em toda a vida. Pergunto a mim mesma o que fiz para o merecer. Há anos que a Donna quer ter um pónei e o pai nunca lhe comprou nenhum. Interrogo-me sobre quanto tempo o Troy irá viver e se o chorarei para sempre, quando ele morrer.

 

A Donna acabou de ler o que escrevi sobre o Trqy e diz que eu penso de mais em coisas tristes e que se me mantiver assim, quem sabe o que acontecerá. A Donna não sabe tudo o que eu sei. Por vezes, é-me impossível deixar de evitar pensamentos tristes. Por vezes, eles são as coisas mais importantes no meu cérebro.

 

A minha mãe embrulhou algumas sanduíches e dois termos. Um cheio de leite e gelado. O outro com chocolate quente. A Maddy não beberá mais do que um copo do chocolate quente, porque diz que lhe faz borbulhas. Não lhe consigo descobrir uma só borbulha na cara. Há três anos que lhe veio o período e diz que é apenas um pesadelo. Provoca acne, cãibras e fica-se cansada e irritada enquanto dura. Óptimo! Mais uma coisa para me preocupar. A minha mãe foi menstruada com a minha idade e espero bem que isso não signifique que também eu o seja este ano. Agora que a Maddy me fez a descrição, não estou mesmo nada interessada.

 

Todas nós estamos a comer sanduíches, a beber leite e a escrever nos nossos diários. O da Maddy é tão volumoso e cheio! O da Donna está mais cheio do que o meu, mas eu you tornar-te maior do que o da Maddy. Agrada-me a ideia de conservar todos os meus pensamentos juntos num lugar, como se fosse um cérebro, que é possível observar. Pendurámos uma lanterna no cimo do forte para que a luz chegue cá abaixo e todas possamos ver. Recebíamos alguma luz das janelas da casa, mas tapámo-la, pois todas concordámos em que estragava a sensação de que estávamos sozinhas na mata. Todos os cobertores e a comida já nos fazem sentir como se estivéssemos exactamente onde estamos. No quintal! A Maddy diz que trouxe um maço de cigarros e que, mais tarde, quando o meu pai e a minha mãe estiverem a dormir, podemos experimentar um, se quisermos. Diz que estão velhos porque os tem há meses, mas não lhes tocou com medo de que os pais os descobrissem. Talvez experimente um. A Donna diz que não quer e Maddy e eu respondemos que não a forçaríamos porque as amigas verdadeiras não fazem esse tipo de coisas. Mas aposto contigo que consigo levar a Donna a fumar um, se a olhar da maneira indicada. Aposto contigo.

 

Mais tarde.

Estou de volta.

Temos rido tanto, que nos dói a barriga. A Maddy estava a descrever como beija o namorado com a língua e pôs-nos doidas, a mim e à Donna. A Donna fez uma careta e disse que não lhe agradava a ideia de beijar com a língua, e eu fingi pensar o mesmo... mas, honestamente, Diário, ao ouvir como se faz, senti uma impressão muito estranha e engraçada no estômago. Diferente de... deixa lá. Tive a impressão de que poderia gostar de beijar com a língua e you experimentar com um rapaz de que goste, assim que puder. A Maddy disse que, a princípio, teve medo, mas há um ano que o faz e gosta. Contei-lhes sobre o mês passado, quando estive com febre e entrei no quarto dos meus pais e os vi nus, com o meu pai por cima. Saí do quarto e a minha mãe foi ver-me, minutos depois, com aspirinas e uma 7-Up. Nunca me disse uma palavra sobre o assunto. A Donna garante que eles estavam, sem dúvida, a fazer sexo e eu já o sabia, mas não pareciam gostar. Pareciam apenas mover-se muito devagar e sem mesmo olharem, verdadeiramente, um para o outro.

 

A Maddy acha que foi, provavelmente, "apenas uma rápida". Bah! Os meus pais a fazerem sexo. Que coisa vulgar! Sei que foi de onde vim, mas pouco me importa se não voltar a ver a cena. Prometo neste mesmo instante que se e quando fizer sexo, será muito mais divertido.

 

bom. A minha mãe e o meu pai vieram desejar-nos boa noite e informar a Donna de que os pais telefonaram e disseram que ela não teria de ir à igreja, amanhã, para poder dormir connosco. Todas nos sentimos satisfeitas com a notícia.

 

O meu pai obrigou-nos a fechar os olhos e a abrir as mãos e meteu-nos uma tablette de chocolate em cada uma delas e disse-nos que não contássemos à minha mãe. Depois, apareceu a minha mãe, estendeu-me um saquinho e avisou-me: "Não digas ao teu pai." Havia mais três tablettes de chocolate no saco! A Maddy limitou-se a olhar para o saco e suspirou. "Borbulhas", foi o seu único comentário. No entanto, abriu as duas e todas metemos as tablettes na boca e tentámos cantar o Row, Row, Row Your Boat com a boca cheia. A Donna comentou que o chocolate mastigado parecia uma coisa que o Troy nos deixaria, e todas tivemos de o cuspir.

 

A Maddy contou uma história bastante boa, de terror, sobre uma família que se ausenta para passar a noite e, ao regressar, encontra pessoas escondidas dentro de casa à espera de os matar a todos. Houve ainda mais coisas, mas não estou muito certa se quero recordar-me disso. Mais tarde. Não quero alimentar os meus sonhos. A Donna saiu do forte para mijar e a Maddy contou-me que também andava com pesadelos. Disse que não queria falar deles na frente da Donna, porque talvez ela não compreendesse. Afirma que tem tido sonhos comigo na mata. A Donna voltou e a Maddy não disse mais nada. Pergunto a mim mesma se a Maddy viu o homem de cabelo comprido? Ou o vento? A Maddy escreve poemas no seu diário, porque diz que, por vezes, são mais divertidos de escrever do que a velha conversa fiada de sempre e que, no caso de alguma vez alguém dar uma espreitadela no nosso diário, podem não compreender tudo, se estiver íem poesia. Tentarei isso amanhã.

 

Mais tarde.

Ah, ah! Disse-te que conseguia que a Donna experimentasse fumar um cigarro. A Maddy tirou o maço de cigarros para fora e acendeu um deles, passando-mo depois para que o experimentasse. Gosto de deitar o fumo pela boca. É como se um espírito saísse de dentro de mim, um espírito dançarino, esvoaçante e esbelto. Como se eu fosse uma mulher adulta com gente à minha volta, olhando-me como se quisessem ser eu. A própria Donna disse que eu parecia uma pessoa crescida, quando fumava. Nem sequer engoli o fumo e, por isso, pergunto-me como seria se o fizesse.

 

A Donna era a seguinte e, antes que pudesse recusar, limitei-me a dizer: "Ainda bem que experimentei, e não serei obrigada a fazê-lo de novo, se não quiser." Assim, ela pegou-lhe e lançou algumas nuvens de fumo no forte. Também ficava bem a fumar, mas assustou-se, engoliu um pouco de fumo e começou a tossir bastante alto e, assim, apagámos o cigarro e arejámos o forte a toda a pressa, para o caso da minha mãe e do meu pai acordarem. Acho que um dia destes you comprar um maço de cigarros e guardá-los-ei como a Maddy fez. Não you ser apanhada, nem coisa que se pareça. Sou muito cuidadosa.

 

Bom. Agora, vamos deitar-nos e todas nós estamos a assinar os diários. Boa noite para ti. Acho que tu e eu seremos excelentes companheiros.

 

Um beijo, Laura.

 

QUERIDO DIÁRIO,

Aqui está um poema.

29 DE JULHO DE 1984

 

Sob a luz da minha janela ele pode olhar-me,

 

Mas eu só o vejo quando se aproxima,

 

Respirando, com um sorriso, para a minha janela.

 

Ele vem buscar-me

 

Para girar, girar comigo.

 

Vem cá para fora brincar. Vem brincar.

 

Fica quieta. Fica quieta. Fica quieta.

 

Pequenos refrões e pequenas canções,

 

Pedaços da floresta no meu cabelo e na roupa.

 

Às vezes vejo-o perto de mim

 

Quando sei que não pode estar.

 

Às vezes sinto-o perto de mim

 

E sei que é algo só para suportar.

 

Quando grito

 

Ninguém me pode ouvir.

 

Quando sussurro, ele pensa que as palavras

 

São apenas para ele.

 

A minha vozinha soando na garganta.

 

Penso sempre que devo ter feito qualquer coisa,

 

Ou que há qualquer coisa a fazer.

 

Mas ninguém, ninguém vem ajudar,

 

Diz ele,

 

Uma rapariguinha como tu.

 

QUERIDO DIÁRIO,

30 DE JULHO DE 1984

A Maddy trouxe um monte de roupas e obrigou-me a experimentá-las todas na frente do espelho. Apercebeu-se de que eu me sentia deprimida com qualquer coisa... julgo. Algumas das roupas são muito bonitas. Gostei de como me fizeram sentir. Especialmente a minissaia e os saltos altos, fazendo conjunto com esta camisola branca macia.

 

A Maddy disse que eu ficava parecida com a Audrey Horne. Ela é filha do Benjamin Home, o homem para quem o meu pai trabalha. Benjamin é muito, muito rico. Audrey é uma rapariga bonita, mas calma e, por vezes, má. O pai não lhe presta muita atenção e talvez seja por isso que ela se comporta assim. No entanto, ele sempre se mostrou muito amável para comigo, toda a minha vida. De cada vez que há uma festa ou uma reunião no Great Northern, Benjamin senta-me no colo ou no joelho e canta-me baixinho ao ouvido. Às vezes sinto-me muito mal por causa da Audrey, pois quando ela o vê a cantar-me, decerto fica triste, porque sai, frequentemente, a correr da sala e só volta quando a mãe a obriga. Mas há outras alturas em que me sinto quase bem quando ela desaparece. Como se fosse eu o centro das atenções e mais importante para ele do que a própria filha. Sei que não estou a ser boazinha, mas apenas honesta.

 

Para ser muito honesta, acho que também me agradou o meu aspecto, quando vesti a roupa da Maddy. Algo se formou dentro de mim como uma bola. Como uma pessoa se sente num carrocei quando ainda não está habituada às subidas e descidas. Aposto que se me vestisse todo o tempo assim as coisas seriam muito diferentes.

 

Mais tarde, a Maddy e eu fomos passear mas vestidas, obviamente, com os nossos jeans e T-shirts. Em Twin Peaks não se vêem muitos saltos altos nem minissaias, excepto quando há cartazes espalhados por todo o lado, anunciando qualquer baile ou festival. Andámos até ao Easter Park e sentámo-nos um bocado no mirante. A Maddy disse que a vida lhe corre bem em casa, "com excepção do barulho incrível que os meus pais fazem por vezes". Fiz questão de citar aqui as suas palavras exactas por achar que não podiam ser mais adequadas. Disse que há muitas coisas na vida, acha ela, que ao princípio não parecem certas e depois nos habituamos.

 

Talvez eu devesse começar a pensar assim. Talvez devesse ser uma pessoa melhor e deixar de pensar todo o tempo no que me acontece. Espero que muito em breve seja capaz de me livrar de todas as coisas que tanto me preocupam. Coisas que ainda só consigo descrever em pedaços. Se me tornar uma pessoa melhor e me esforçar cada vez mais todos os dias, talvez tudo isto dê resultado.

 

Um beijo, Laura.

 

30 DE JULHO DE 1984, MAIS TARDE

 

Um dia, crescer será mais fácil

 

Lá bem no fundo de mim há montículos de mulher a

 

[surgir,

 

Para olhar o céu, Para olhar o Sol e a Lua, E as estrelinhas no escuro das mãos de um homem.

 

Às vezes, de manhã,

 

Olharei para lá de mim.

 

Avistarei montes e vales a formar-se,

 

Pensando nos rios que correm debaixo.

 

Por fora

 

Estou a desabrochar,

 

Por dentro estou seca.

 

Se, ao menos, pudesse entender

 

A razão do meu choro.

 

Se, ao menos, pudesse deter

 

Este medo de sonhar que estou a morrer.

 

QUERIDO DIÁRIO,

2 DE AGOSTO DE 1984

Há muito tempo que não escrevia, o que muito lamento. A Maddy foi-se embora há três dias e sinto-me muito assustada por causa de algo que não compreendo.

 

Aconteceu uma coisa boa. A meio da noite passada, invadiu-me a mais maravilhosa das sensações. Como que qualquer coisa quente no meu peito e quente no meio das pernas. Pareceu que todo o meu corpo se soltou de dentro para fora e senti-me como se pudesse flutuar. Acho que tive um desses orgasmos durante o sono. É tão terrível e embaraçoso escrever isto, mas ao mesmo tempo agradável.

 

Logo a seguir, tive esta fantasia de que um rapaz entrava no meu quarto, metia a mão por baixo da camisa de noite e me tocava suavemente. Sussurrou-me coisas agradáveis e meigas e disse que eu tinha de ficar muito quieta ou se ia embora. Depois, puxou-me até ao fundo da cama pelos pés e, quando os meus joelhos estavam dobrados para lá da beira do colchão, obrigou-me a fechar os olhos e senti que ele me abria, mais e mais, e tive de olhar para o que estava a acontecer e, quando o fiz, ele desapareceu. Mas olhei para a minha barriga e vi que estava grávida. Ele estava dentro de mim, mas tinha o tamanho de um bebé. Desejava que não tivesse acabado desta maneira. Não sei por que é que o meu cérebro o fez.

 

Gostei mais quando ele estava a puxar-me com meiguice e controlando as coisas.

 

Laura.

 

QUERIDO DIÁRIO,

7 DE AGOSTO DE 1984

Hoje passei a tarde com o Troy, a limpá-lo, a escová-lo e a dar-lhe de comer. Senti-me fascinada pela maneira como parece compreender como me sinto. Encostou o focinho de encontro a mim, prolongadamente, enquanto lhe escovava a crina e a cabeça e, quando me sentei num canto do estábulo, baixou a cabeça e deixei-o respirar junto do meu pescoço e do meu rosto. Pergunto a mim mesma se as pessoas se apaixonam profundamente pelos cavalos como me acontece, no meu caso, ou se erro quando penso e sinto estas coisas.

 

Quem me dera que a Donna estivesse aqui. Gostava também que a Maddy estivesse aqui. you telefonar à Donna para saber se ela pode vir para conversarmos ou coisa assim. Talvez possa ser eu a ir até lá. Talvez fosse ainda melhor ideia. Às vezes, o meu quarto é o melhor sítio do mundo e, outras, apenas um lugar, cujas paredes se apertam e me asfixiam.

 

Interrogo-me sobre se será assim quando se morre... por asfixia. Ou como dizem que se passa quando se está na igreja. Que se flutua, cada vez mais alto, até Jesus nos ver e nos pegar na mão. Não sei muito bem se quero estar próximo de Jesus quando morrer. Podia cometer um erro, mesmo que fosse muito pequeno, e entristecê-lo. Não conheço o bastante sobre ele para saber o que pode irritá-lo. Claro que a Bíblia diz que ele perdoa e morreu pelos meus pecados e ama toda a gente, independentemente das suas faltas... mas toda a gente diz que eu sou a filha ideal, a rapariga mais feliz do mundo, e sem problemas. E isto não é, de forma alguma, verdade. Portanto, como hei-de saber se Jesus é, realmente, como eu? Assustado e mau algumas vezes, embora a maioria das pessoas possa nem sequer saber como e quando? Serei provavelmente um presente para Satã, se não tiver cuidado. Algumas vezes, quando tenho de ver o Bob, penso que estou com Satã e que nunca me escaparei da mata, a tempo de voltar a ser aquela Laura boa, verdadeira e pura.

 

Por vezes, penso que a vida seria muito mas fácil se não tivéssemos de pensar em sermos rapazes ou raparigas, homens ou mulheres, velhos ou jovens, gordos ou magros... se todos pudéssemos apenas ter a certeza de que somos iguais. Talvez nos aborrecêssemos, mas o perigo de vida e de morte desapareceria...

 

Voltarei, depois de telefonar à Donna.

 

A Donna disse que gostaria que pudéssemos fazer qualquer coisa esta noite, mas parece que hoje é a "noite da família" em casa dela. Acho que ficaremos só eu e tu, Diário. Talvez possamos ir até à mata daqui a pouco e fumar um dos cigarros, que a Maddy me deixou. Ainda restam quatro e escondi-os, cuidadosamente, na coluna da cama. É o meu esconderijo para as notas da escola que não quero que a minha mãe descubra, quando anda por aqui a limpar... a meter o nariz essas coisas de mães, como sabes. Amo-a, mas ela nem sempre compreende o que tento dizer-lhe. Provavelmente teria um ataque de coração, se soubesse de todas as coisas que se passam dentro da minha cabeça. De qualquer maneira, a maçaneta sai e há um buraco. O meu pai chamar-lhe-ia uma "cavidade". Tem cerca de dez centímetros de profundidade e é o esconderijo perfeito. Nem mesmo se adivinha que a maçaneta possa tirar-se, desde que haja a tira de uma mala ou uma camisola a cobrir a coluna da cama.

 

Portanto, talvez possamos sair, apenas tu e eu, com uma lanterna e um cigarro e conversarmos um com o outro. Sei que tu, mais do que a própria Donna, és capaz de guardar um segredo. Jamais conseguiria falar com a minha mãe de todas estas coisas sobre sexo em que penso. Receio que se deixar escapar uma palavra, Deus me possa ouvir, ou alguém descubra como sou má e digam... Ninguém mais tem alguma vez esses pensamentos!

 

Aposto que não. Aposto que nunca conseguirei encontrar o homem que quero, porque quando nos tentarmos beijar ou acariciar, ele pensará que sou doida, perversa e estranha. Espero que não seja esta a verdade. Sentiria uma tristeza tão profunda, se fosse assim. Como poderia deixar de pensar como penso? Não posso impedir a minha mente de desejar ter pensamentos destes. Os pensamentos que me aquecem o corpo, fazendo com que o peito se erga e baixe, se encha de ar e o liberte, como o fazem nos livros e no cinema, mas mesmo assim diferentes, porque nunca revelam as minhas fantasias.

 

Agora, you descer as escadas para jantar. Quem me dera que também coubesses na coluna da cama. De momento, you colar-te com ííta-cola por detrás do meu quadro de lembranças. Espero que não caias!

 

Mais tarde, Laura.

 

Bom, DIÁRIO,

11 DE AGOSTO DE 1984

Cá estamos nós. A cerca de um quilómetro e meio de casa, mesmo antes do escurecer. Os meses de Verão parecem tornar a mata menos perigosa, até mais tarde. Está calor ao ar livre e tu e eu estamos sentados, juntos e encostados ao tronco de uma grande árvore. Um abeto-douglas. O meu favorito e da Donna. Quando ergo os olhos, é como se a árvore me embalasse.

 

Acho que you fumar o tal cigarro. Trouxe uma soda para poder meter as cinzas e a beata na lata, a fim de não deitar fogo a toda a cidade de T. P. Às vezes, na escola, chamamos T. P. a Twin Peaks. O mundo limpa o rabo com T. P. O Bobby Briggs não se cansa de o dizer. E depois puxa os cabelos a todas as raparigas e arrota-nos junto da cara. Gosta, evidentemente, de todas nós. Um dia, quando eu estava no Double R., depois do liceu, veio atrás de mim e puxou-me os cabelos com muita força.

 

A Norma piscou-me o olho e perguntou se já tínhamos marcado a data do casamento. Está doida se pensa que me you aproximar dele. Nenhum dos rapazes de quem me aproximar me puxará o cabelo assim... acho que me puxará o cabelo, como o fazem nas minhas fantasias. Com toda a mão, fechando lentamente o punho na nuca, e aproximando-me a cara para me beijar com a língua.

 

Interrogo-me sobre se todos os pénis serão como o do meu pai. Ainda vejo a minha mãe a tentar cobri-lo com o lençol naquela noite. Fez-me lembrar qualquer coisa em carne viva. Qualquer coisa que poderia ser bom, dali a momentos, ou tinha sido, antes de alguém lhe puxar a pele, tornando-a toda rosa e estranha. Talvez, algum dia, veja um mais bonito. Espero que sim, céus. Não ficarei ali deitada, como a minha mãe. Como um peixe no cais, tentando aprender a respirar fora de água. Pequenos arquejos e um resfolgar, e nada mais. Se encontrar o homem certo, talvez me sinta à vontade para me comportar da maneira que acho que as raparigas devem comportar-se quando estão com alguém. Metade controladas e metade... não sei a palavra. Talvez esteja a ficar demasiado ordinária. Morreria pura e simplesmente, se alguém lesse o que escrevi.

 

As corujas começaram a piar. Uma delas está mesmo por cima de mim, na árvore... Há algo de estranho nela. Sei que é uma coruja-macho e sinto que me observa. De cada vez que ergo os olhos para ela, move a cabeça como se se apressasse a evitar-me. Pergunto a mim mesma se sabe o que tenho estado a escrever. Céus! Faria bem melhor em começar a ser uma boa rapariguinha. Neste mesmo instante. Talvez ela seja uma ave como a daquela história que li. Este pássaro enorme podia levantar voo e pousar no ombro de alguém, mostrando-se muito meigo, mas pondo-se, em seguida, a ler os pensamentos da pessoa. Se ela estivesse com maus pensamentos, a ave começaria a debicar-lhe os olhos e as orelhas, para que na cabeça da pessoa somente passasse a haver lugar para assuntos bons e honestos em vez de maus e ordinários.

 

Algumas vezes, penso em voar. Interrogo-me sobre se, algumas vezes, os pássaros pensam em ir para o liceu ou em trabalhar. Em ter fatos e vestidos, em vez das penas com que sonhamos. Eu voaria mesmo por cima de Twin Peaks e para lá dela. Nunca mais regressaria, se não fosse obrigada.

 

Escreverei um poema e depois voltarei a casa.

 

Dentro de mim há algo

Que ninguém sabe,

Como um segredo.

Por vezes, aprisiona-me

E mergulho

Na mais profunda escuridão.

Este segredo diz-me

Que nunca mais crescerei,

Nunca rirei com amigos,

Nunca serei quem deveria ser, se revelar

O seu nome.

Não sei dizer se é real,

Ou apenas um dos meus sonhos,

Pois quando me toca

Afasto-me a flutuar.

Não há lágrimas,

Nem gritos.

Vejo-me envolta

Num pesadelo de mãos

E de dedos

E de vozinhas abafadas na mata.

Tão errado

Tão belo

Tão mau.

Tão Laura.

 

Tenho de ir para casa. Agora está demasiado escuro. Este não é um lugar bom para mim neste momento.

 

Laura.

 

QUERIDO DIÁRIO,

16 DE AGOSTO DE 1984

Nunca na minha vida me senti tão confusa como agora. São exactamente cinco e meia da manhã e mal consigo agarrar nesta caneta, de tanto que tremo. Voltei a estar na mata. Perdida. Mas fui levada. Acho que sou uma pessoa muito má. Amanhã you começar um novo tipo de vida. Não voltarei a ter maus pensamentos, não pensarei mais em sexo. Talvez ele deixe de aparecer, se me esforçar mais por ser boa. Talvez possa ser como a Donna. Ela é boa. Eu sou má.

 

Laura.

  1. S. Prometo, prometo, prometo ser boa!

 

QUERIDO DIÁRIO,

31 DE AGOSTO DE 1984

Há montes de tempo que não te escrevo, porque tenho andado a esforçar-me tanto por ser feliz e boa, e sempre à volta das pessoas, que nunca estou só para pensar nas coisas erradas. Mas hoje, tenho de escrever-te, para te contar as novidades.

 

Chegou-me o período. Não é de maneira alguma como eu pensava. As aulas começam na próxima semana e agora caiu-me isto em cima. Esta manhã, ia a sair da cama e vi o sangue. Chamei pela minha mãe e ela fez, como era de esperar, uma tempestade num copo de água. Chamou o meu pai, apesar de eu lhe ter dito que não contasse a ninguém. E agora é muito provável que toda a gente do Great Northern já saiba. Eu apenas queria uns malditos pensos ou coisa assim e ela tinha de se pôr com toda aquela treta de que agora sou uma mulher e tudo o mais. De acordo. De acordo. É, de facto, algo especial. Mas isto apenas pode piorar as coisas, se não tiver cuidado. Agora, estou de cama com dores.

 

A minha mãe mudou a televisão para o meu quarto, o que foi simpático, e tenho um saco de água quente na barriga e toneladas de aspirinas na mesa-de-cabeceira. A televisão não me interessa muito e por isso volto a ficar a sós com pensamentos estranhos sobre a vida e... outras coisas. Julgo que o que sai de dentro de mim era a fonte de vida de um outro ser e sinto-me satisfeita por não haver ninguém dentro de mim neste momento. Pelo menos, não uma criança.

 

Por vezes, penso que existe alguém no meu interior, mas essa é uma outra parte mais estranha de mim. Por vezes, vejo-a no espelho. Ignoro se irei querer ter filhos. Acontece algo aos pais, ou às pessoas que se tornam pais. Acho que se esquecem de que também eles já foram crianças e que há alturas em que certas coisas podem envergonhar ou perturbar os seus filhos, mas decidiram meramente esquecer ou ignorar o facto. Quando a noite vai adiantada, acontecem-me demasiadas coisas más e, por isso, não seria provavelmente uma boa mãe. Isto entristece-me por dentro.

 

Uma coisa dá-me alegria. O Júpiter está ao meu lado na cama e a ronronar baixinho. Como tu, também ele nunca me criticaria.

 

Laura.

 

QUERIDO DIÁRIO,

l DE SETEMBRO DE 1984

Doem-se os seios, o que é quase ridículo, dado serem tão pequenos. Confesso que estão maiores do que na semana anterior e, indubitavelmente, mais bonitos. Sempre duros nos biquinhos róseos. Mas como me doem, Deus do Céu!

 

A minha mãe apareceu há pouco e tivemos, de facto, uma conversa simpática. Disse-lhe que preferia que não tivesse falado da minha menstruação ao meu pai e ela pediu-me desculpa, mas acrescentou que só o fez porque sabia como ele ficaria orgulhoso por a sua íilhinha se estar a transformar numa mulher. Mudou-me a água do saco e massajou-me demoradamente a barriga. Não precisámos de trocar uma palavra sequer durante um bom pedaço de tempo e, mesmo assim, senti como se tivéssemos continuado a falar.

 

Depois disso, meteu-se dentro da cama comigo durante perto de uma hora e deixou-me adormecer no seu ombro. Quando acordei, bebemos uma soda a meias e, pela primeira vez, desde há muito, senti como se estivéssemos, na realidade, muito próximas.

 

Espero conseguir dormir toda a noite, hoje.

 

Um beijo, Laura.

 

QUERIDO DIÁRIO,

9 DE SETEMBRO DE 1984

Descobri uma coisa a meu respeito. Lembras-te daquela noite em que te disse que acordei com aquela sensação maravilhosa? bom! Há um lugar especial no meu corpo que permite que me sinta assim as vezes que me apetecer. Um lugar quente e maravilhoso, onde tudo o mais se derrete, e sou livre de me sentir apenas bem. O meu secreto botãozinho vermelho. É todo meu. Por fim, algo que me levará juntamente com as minhas fantasias. Posso fazê-lo na cama, muito suavemente, com o dedo, o que é óptimo. Posso fazê-lo na banheira com água quente, a correr da torneira. (Ignorava como um banho pode ser tão agradável!) Ou no chuveiro, com um pequeno jacto de água vindo de cima. Mexo-me, salto e, por vezes, tenho de agarrar numa almofada e tapar a cabeça para que tudo fique escuro e ninguém me ouça a fazer pequenos barulhos. É, afinal, um segredo e, quer esteja certo ou errado, sinto-me muito bem quando acontece e ninguém precisa de o conhecer, excepto tu, querido Diário.

 

Foi uma semana e pêras com a chegada da minha menstruação e agora esta descoberta doce como o mel. Agora, estou a começar a sentir-me uma mulher e, qualquer dia, muito em breve, talvez partilhe isto com alguém especial.

 

Boa noite! Boa noite! Boa noite!

 

Laura.

 

  1. S. Espero do fundo do coração que não esteja a fazer qualquer coisa de errado, ao acariciar-me. Espero que seja uma coisa que todas as raparigas fazem e não venha a ser castigada por isso, mais tarde.

 

15 DE SETEMBRO DE 1984

À pessoa que invadiu a minha privacidade

Custa-me a acreditar na desconfiança que sinto em relação à minha família e aos meus amigos. Tenho a certeza de que o meu diário foi tirado do sítio e lido por alguém, talvez por várias pessoas. Durante muito tempo não voltarei a escrever neste diário, se é que mais alguma vez o farei. Estragaste a minha confiança e a minha segurança. Odeio-te por isso, quem quer que sejas!

 

Escrevi nestas páginas coisas por vezes demasiado assustadoras ou demasiado embaraçosas até mesmo para serem relidas por mim... Confio em que estas páginas apenas sejam viradas por mim e só quando o desejar. Há muitas coisas que me magoam e confundem. Necessito das minhas páginas privadas para olhar o meu espírito de fora de mim, empurrá-lo.

 

Peco-lhe que se afaste deste diário. Falo a sério.

 

Laura.

 

QUERIDO DIÁRIO,

3 DE OUTUBRO DE 1985

Depois de terem passado mais de doze meses, decidi recomeçar a falar-te. Descobri um esconderijo que não you referir para o caso de te encontrarem fora dele e alguém metediço desejar saber o teu paradeiro.

 

Sei que não tiveste culpa de que alguém te tivesse encontrado e resolvido bisbilhotar, mas demorei muito tempo a sentir-me com segurança bastante para voltar a escrever nas tuas páginas. Muitas, muitas coisas aconteceram desde que ouviste falar de mim pela última vez e muitas destas coisas provaram que os meus pensamentos quanto ao mundo ser, na maioria dos aspectos, um lugar cruel e triste são verdadeiros e foram confirmados.

 

Não confio em ninguém e só raramente em mim própria.

 

Na maioria das manhãs, tardes e noites, debato-me com o que é certo e errado. Não compreendo se estou a ser castigada por algo de errado que fiz, algo de que não me recordo, ou se acontece o mesmo a toda a gente e eu sou apenas demasiado estúpida para o compreender.

 

Em primeiro lugar, descobri que não foi o meu pai que me ofereceu o Troy. Foi Benjamin Home. Os detalhes não são importantes, mas digamos apenas que escutei a Audrey a discutir com o pai sobre o assunto, quando eu estava no Great Northern, de visita ao Johnny. O Johnny é o irmão de Audrey, o outro filho de Benjamin. Johnny é atrasado. É mais velho do que eu, mas tem a mentalidade de uma criança. Pelo menos, é essa a opinião dos médicos.

 

Por vezes, penso que ele optou por não se mexer, já que há alturas em que é muito mais interessante escutar apenas as pessoas em vez de conversar com elas. Ele nunca fala, excepto para dizer "Sim" ou "índio". Adora índios. Usa sempre uma fita na cabeça. É feita de belíssimas penas coloridas e tiras pintadas de cabedal. Aos seus olhos, o mundo é uma estranha mistura de felicidade e sofrimento, e acho que compreendo melhor o Johnny do que muitas outras pessoas. Talvez pudesse descobrir uma forma de passar mais tempo com ele. Deixam-no frequentemente sozinho.

 

Sinto-me contente que o Troy seja o meu pónei e gosto de o montar, de passear com ele e de o observar a pastar. Agora, porém, sinto-me um tanto estranha em relação ao meu pai. Como se ele fosse um homem menos honesto, ao afirmar que o Troy se tratava de um presente dele. Talvez o Benjamin tivesse desejado que fosse assim, ignoro. Mas de qualquer maneira agora estou um pouco mais intrigada com o Benjamin e sinto que lhe devo mais do que ao meu pai.

 

Chego a pensar que preferia não ter recebido um pónei para mim, pois, assim, continuaria a respeitar o meu pai e Benjamin seria apenas o Benjamin. E o pior é que a Audrey e eu não voltaremos provavelmente a dar-nos bem. Sinto-me um pouco triste no meu íntimo por ser a causadora de tudo isto. E também me dá a sensação de poder. Por que é que estas coisas me acontecem?

 

Quando penso em todos os homens que conheço no mundo, sabes, acho que o Dr. Hayward tem sido o mais afectuoso para mim. É um homem generoso e bom e faz-me sempre um meigo sorriso espontâneo ou compreensivo, ou qualquer outra coisa que consegue preencher, de qualquer forma, o vazio, que sinto no meu ínámo. Há treze anos, pôs-me no mundo e segurou no meu corpinho, por momentos. Nas minhas fantasias, imagino esse instante como um dos mais calorosos que existiram na minha vida. Amo-o por me ter segurado, aquele bebezinho assustado que despertava para o ar e a luz, e por me levar a acreditar, sem uma palavra, que voltaria a fazê-lo, se eu alguma vez precisasse disso.

 

Recorda-me alguém que não me importaria de ver todos os dias da minha vida. A ternura de um avô, no interior da mão amiga de um pai.

 

Voltarei depois do jantar. Tenho montes de outras novidades.

 

Beijos, Laura.

 

QUERIDO DIÁRIO

3 DE OUTUBRO DE 1985, MAIS TARDE

Esta noite o jantar era bom. Um dos meus pratos favoritos: batatas recheadas cobertas de molho branco e acompanhadas de legumes. Tenho de começar rapidamente a mudar os meus hábitos de comida, ou corro o risco de inchar como um balão. A minha mãe esta noite fez-me um prato especial, porque sabe que ainda estou triste, por causa do Júpiter. Ela e o meu pai comeram galinha.

 

O Júpiter é outra das notícias que tenho a dar-te. Estava habituado a ir lá para fora e brincar no quintal. Não está murado, mas ele nunca se afastou. Acho que era demasiado esperto para deixar uma casa, onde o amavam tanto e o alimentavam tão bem. Embora não te tenha escrito muito a seu respeito, ele era uma das coisas mais especiais deste mundo para mim, sempre meigo e manso. Sempre me amou, fosse qual fosse o meu aspecto e sem se importar com o que eu fizera de bem ou de mal nesse dia.

 

Muitas vezes, nas noites em que eu não conseguia dormir, brincávamos os dois, lá em baixo, com uma bola de fio, à luz do candeeiro de parede. Depois, banqueteávamo-nos com gelado na cozinha. Ele era um verdadeiro fã da baunilha. A casa estava escura e nós andávamos de um lado para o outro, até o sono nos envolver, horas depois de já termos desistido de dormir. Ainda conservo uma fotografia, que o meu pai me tirou e ao Júpiter no sofá da sala de estar depois de uma dessas noites. Não tínhamos subido ao andar de cima, mas ficado a dormir no sofá.

 

Dei a fotografia do Júpiter ao xerife Truman para que ele pudesse afixá-la no posto da Polícia. Espero que descubram quem atropelou o Júpiter. Sei que provavelmente se tratou de um acidente, pois, uns minutos antes disso acontecer, ele tinha encontrado um ratinho ou coisa parecida... Não prestei muita atenção, mas ele perseguiu-a como uma flecha e foi atropelado na estrada. A minha mãe ouviu o ruído e gritou-me que ficasse onde estava, até saber o que acontecera. No entanto, às vezes, a minha mãe e eu pensamos o mesmo, temos os mesmos sonhos e ela não é tão estúpida que acreditasse que eu ficaria no meu quarto, quando soubesse. Portanto, fiz ouvidos de mercador e saí para o ver; ainda continuou a respirar uns momentos, deitando sangue pelos olhos e pela barriga.

 

Não consigo acreditar que alguém possa ter atropelado um gato assim, a meio do dia, sem dizer a ninguém. Sem pensar em parar e ir até à casa mais próxima para contar o que acontecera. A minha mãe ouviu o guinchar dos travões do carro e o meu pai diz que tem pena de não ter estado em casa, pois talvez pudesse reconhecer o tipo de carro que o atropelou, apenas pelo som. Duvido, mas foi um pensamento simpático.

 

Agora, está enterrado lá fora. Um bom amigo desaparecido, quando tanto estimo os poucos que tenho. Quem me dera que alguém tivesse morrido em vez do Júpiter.

 

Para ser franca contigo, como sempre acontece, há muitas pessoas em Twin Peaks que gostam de mim. Montes delas sabem o meu nome e, sobretudo no liceu, sinto-me bastante popular. O único problema é que não conheço, de facto, nenhuma destas pessoas, da mesma maneira que elas pensam conhecer-me. E acho que posso afirmar que não me conhecem nada. A Donna é a que melhor me conhece.

 

Mas, mesmo assim, tenho medo de lhe contar algumas das minhas fantasias e pesadelos, porque às vezes ela é boa e compreensiva e outras vezes solta uma gargalhada e falta-me a coragem para lhe perguntar o que a leva a achar estas coisas divertidas. Portanto, sinto-me de novo mal e fecho-me durante muito tempo. Gosto muito da Donna, mas, às vezes, receio que ela se afaste de mim, caso soubesse como sou de facto por dentro. Preta como breu e ensopada de sonhos de grandes homens e das diferentes maneiras como podiam agarrar-me e ter-me sob controlo. Uma bela princesa que julga que foi salva da torre, mas descobre que o homem que a leva não está ali para a proteger, mas apenas para a penetrar até ao mais fundo das entranhas. Para a montar como se ela fosse um animal, rir-se dela e obrigá-la a fechar os olhos e a escutar, enquanto lhe descreve o que faz. Passo a passo. Espero que este não seja um mau pensamento.

 

Um beijo, Laura.

 

QUERIDO DIÁRIO,

12 DE OUTUBRO DE 1985

Uma destas noites, experimentei um cigarro de marijuana. A Donna e eu dormimos na casa dela, os seus pais saíram com os meus e foram ao Great Northern a uma festa organizada por Benjamin. A Donna e eu não tínhamos vontade nenhuma de aparecer. Sobretudo eu por causa da Audrey. Convenci a Donna a irmos nas nossas bicicletas até à Book House para conhecermos gente nova. Demorei uma eternidade a convencê-la de que não diria a ninguém e que voltaríamos antes dos nossos pais. Por fim, ela acedeu, pois temos andado com um tédio de morte sempre com as mesmas caras por perto.

 

Tínhamos chegado há uma meia hora quando aqueles tipos, o Josh, o Tim e outro, de que não me lembro o nome, se aproximaram. Eu estava a fumar um cigarro que roubei do balcão da recepção, um dia, no Great Northern, quando trouxe um livro de histórias de índios ao Johnny.

 

Julgaram que éramos mais velhas, porque uma de nós estava a.fumar. Portanto, o Josh aproximou-se com o Tim e o outro tipo. Disseram que eram do Canadá e disso não havia dúvida, pois usavam constantemente o "hein". "Querem um cigarro melhor, hein?" O Tim simpatizou logo com a Donna, o que a entusiasmou um pouco, dado os três parecerem andar pelos vinte. Nenhum deles me atraiu particularmente. Pareciam bons rapazes. Sentia-me bastante segura, mas não excitada... percebes o que quero dizer?

 

Bom, respondi que queria experimentar um cigarro melhor e a Donna e eu seguimo-los até às traseiras da Book House para o fazer. A Donna inventou uma história complicada de que estávamos apenas de visita a Twin Peaks naquela noite e tínhamos de apanhar o autocarro da excursão, dali a menos de uma hora. Disse que andávamos numa excursão chamada "Uma Volta pela Rata". Acho que acreditaram nela, porque se apressaram a acender esta coisa. O Josh disse que talvez não nos fizesse efeito da primeira vez, mas a Donna e eu provámos-lhe que se enganava. Ele disse que tínhamos de "Puxar bem, hein?". E fizemo-lo... Seis vezes! Foi um espanto, Diário. Sentimo-nos descontraídas, quentes e um pouco... sexy.

 

Eu tratava a Donna por "Trisha" e ela chamava-me "Bernice" (para o caso deles voltarem e perguntarem por nós... por qualquer motivo. Não queríamos que ninguém viesse a saber). Assim, começámos a rir como eu nunca rira até então. Todas as coisas que via me punham histérica de riso. Tudo estava toldado e pouco firme, como se estivesse a observar o mundo através do fundo de um copo de água vazio. Corria um vento quente de Verão e as árvores cheiravam tão bem.

 

O Tim trouxe-nos uma chávena de café com chocolate e sentámo-nos os cinco a falar de tudo, como se o nosso universo se reduzisse talvez a um fiozinho de algodão, que um enorme gigante não notara na camisola e, qualquer dia, muito em breve, quem poderia saber se este grande gigante nos iria enxotar ou deitar dentro de um balde, onde nos afogaríamos. A Donna disse que talvez o nosso conceito de centenas de anos fosse apenas uma fracção de segundo para este gigante e que dali a pouco qualquer coisa teria de acontecer, pois por quanto tempo é que alguém consegue ter uma camisola vestida?

 

Todos simpatizámos com a ideia de poderem existir outros pequenos universos ou "borbotes" nesta camisola e pensámos que um dia gostaríamos de conhecer algumas pessoas destes lugares diferentes, desde que fossem amáveis. Chegava-nos o som da música da Road House e levantei-me para dançar um pouco. Há muito que não me sentia tão bem, flutuando no ar quente da noite e com aquele calor nas entranhas.

 

A Donna chegou mesmo a dançar comigo uns minutos, até que se apercebeu de que tínhamos de ir apanhar... O NOSSO AUTOCARRO DA EXCURSÃO! Tivemos de mentir e dissemos que alugáramos as bicicletas nos Perdidos e Achados do posto do xerife, mas acho que os rapazes não engoliram a história. Foram simpáticos em não nos dizerem isso, se é que o sabiam. Talvez este facto também lhes aumentasse a excitação nessa noite. Ou talvez não, pois eram mais velhos e tinham já passado provavelmente noites muito mais excitantes do que esta.

 

Quando voltámos para casa nas bicicletas, vimo-nos obrigadas a parar, várias vezes, devido aos ataques de riso. Depois senti um desejo tão grande de bolos e leite que achava que morreria se não o satisfizesse e a Donna concordou, sem hesitar, que tínhamos de comer qualquer coisa doce. Disse que havia tarte em casa, mas não era isso o que nos apetecia. Portanto, esvaziámos os bolsos e fomos ao Pegue-e-Pague para arranjar de comer e de beber. Comprámos tanta coisa, que tivemos de regressar a pé, com as bicicletas pela mão, para que cada uma de nós levasse um saco. Durante todo o caminho de volta, ficámos paranóicas, tal como os rapazes nos tinham avisado, pois tínhamos os olhos raiados de sangue e queríamos chegar antes dos nossos pais.

 

A sorte estava do nosso lado, pois no momento exacto em que íamos a entrar em casa, o Dr. Hayward telefonou a avisar que demorariam um pouco mais, porque Benjamin ia mostrar uns slides ou coisa parecida. Graças a Deus! Subimos as escadas a correr e pusemos gotas nos olhos, depois ligámos a aparelhagem de som e comemos, dançámos e rimos e, quando todos regressaram, dormíamos profundamente.

 

Sei que as drogas são uma coisa má, mas começo a ter a sensação de que gosto de ser assim. Tipo má.

 

Mais, amanhã, Laura.

 

QUERIDO DIÁRIO,

20 DE OUTUBRO DE 1985

Pouco mais passou de uma semana e tenho mais novidades. Desculpa não ter escrito, mas tem andado tudo num reboliço por aqui... bom, pelo menos, aqui dentro de mim. A casa mantém-se exactamente na mesma. Mais irritante do que qualquer outra coisa. Às vezes sinto-me tão sufocada, céus, como se não pudesse tirar este esgar do rosto, sem que todos me saltassem em cima.

 

Pergunto a mim mesma se a dor, não a que se sente quando o nosso gato é morto ou uma tia nos morre, mas aquela com que se tem de viver... pode alguma vez ser uma amiga? Interrogo-me sobre a possibilidade da dor como uma sombra ou uma companheira...

 

De qualquer maneira, a novidade é estranha. Estou um pouco nervosa por ter gostado tanto do perigo que corri, mas you contar-te tudo e libertar este peso do peito. Talvez seja como nos meus sonhos, menos difíceis de compreender se os vir escritos no papel. Aqui vai.

 

Na noite da última sexta-feira, anteontem, a Donna e eu voltámos à Book House por volta das quatro da tarde. Acho que fomos com a esperança de que o Josh, o Tim e o amigo deles estivessem de novo lá e pudéssemos ficar nas nuvens com outro daqueles curiosos cigarros. Vestimo-nos bem, mas sem querermos dar nas vistas, pois conhecemos quase toda a gente na cidade e não queríamos que fossem falar de nós aos nossos pais. Levávamos, porém, saias bastante mais curtas e justas do que a maioria das pessoas aprovaria, com excepção, obviamente, dos rapazes. E pusemos um pouco de maquilhagem que a mãe da Donna, Mrs. Hayward, lhe dera como presente de Páscoa, porque a Donna quis experimentar pintar-se e a mãe quis que ela tivesse o seu próprio estojo.

 

Chegámos, pois, à Book House e só lá estava o Big Jake Morrissey. É o indivíduo que chefia este sítio. Acho que devo falar-te um pouco dele, para que possas imaginar onde me encontrava. É um café frequentado, na maioria, por rapazes as raparigas podem entrar , mas é mais um pouso dos rapazes. Há livros por todo o lado nas mesas e nas prateleiras, que ligam as três paredes até às traseiras. Cheira a cigarros, after-shave e café. Há sempre café feito. E desta vez, ao entrar, reparei numa fotografia do homem perfeito para as minhas fantasias! Claro que não mencionei uma palavra, mas é perfeito. De aspecto rude e duro, mas com olhos de cachorrinho e uma pele macia.

 

A fotografia mostra-o em jeans e com um blusão de cabedal, com um livro na mão e, sentado na moto, a ler. Estou apaixonada! Éramos, portanto, as únicas clientes e Jake ofereceu-nos café e disse que as pessoas deviam estar a aparecer e que talvez fosse melhor que nos puséssemos a andar quando começassem a entrar, sobretudo por estarmos vestidas daquela maneira. Falou meio a brincar, meio a sério quando nos perguntou: "Será que vocês andam à procura de sarilhos com rapazes?"

 

A Donna ficou muito corada e limitou-se a dar a resposta que eu daria à minha mãe ou ao meu pai se eles viessem a saber. "Viemos apenas passear numa de brincadeira. Só queremos divertir-nos e não arranjar problemas." Ele compreendeu ou melhor "engoliu" e saímos depois de acabarmos de beber o café. Mas antes ainda disse a Jake que, há cerca de uma semana, três rapazes canadianos muito simpáticos tinham estado ali e ajudado a Donna e a mim a mudar os pneus furados das nossas bicicletas, depois de termos passado por cima de vidros de garrafas partidas, que há sempre diante da Road House. Acrescentei que se os visse ao Josh, ao Tim e ao outro rapaz de cabelo louro lhes dissesse que queríamos agradecer-lhes com uma chávena de café ou coisa parecida. Disse também que estaríamos provavelmente nas traseiras, a conversar, para o caso deles aparecerem. Jake prometeu que transmitia a mensagem, no caso de os ver.

 

E sabes que mais? Eles apareceram mesmo. O Jake deve ter-lhes dado o recado direitinho, pois vieram ter connosco a rir e ralhando-nos por lhes termos mentido antes. A Donna foi bastante rápida e esperta ao responder que "queríamos ter a certeza se vocês eram fixes, antes de vos dizer quem éramos".

 

Todos disseram que estávamos muito bonitas e descobri que o terceiro rapaz se chamava Rick e têm todos vinte e dois anos! Dissemos que a nossa idade não tinha importância e não nos impediria de nos divertirmos, desde que estivéssemos em casa às dez. Se tudo desse até mais tarde, teríamos de telefonar. O Josh disse que tinha álcool e que se conhecêssemos qualquer sítio onde fazer uma fogueira na mata, poderíamos ir até lá e organizar uma pequena festa. Nesta altura, deviam ser mais ou menos cinco e meia da tarde.

 

Desta vez eles tinham trazido uma carrinha em vez das bicicletas e, assim, a Donna e eu subimos para a parte de trás aberta e dissemos-lhes que atravessassem a Lucky Highway 21, e se dirigissem à mata, que ficava para lá da Low Town. Ambas achámos que estaríamos mais seguras ali e que se acontecesse alguma coisa, eu podia dizer que me tinha perdido com a Donna, que fôramos dar um passeio ou coisa parecida e perdido a noção de onde estávamos. Imaginei que tudo ia correr bem, fosse lá como fosse. Estes rapazes pareciam bastante simpáticos e, portanto, confiámos neles uma segunda vez.

 

Chegámos a um sítio onde havia um ribeiro e quase nenhumas agulhas de pinheiro e, assim, uma fogueira seria uma boa ideia. O Tim e o Rick começaram à procura de material de queima, enquanto o Josh abria esta garrafa de... acho que era gim o que ele trazia. O álcool que a Donna e eu alguma vez tínhamos provado fora uma taça de champanhe, uma taça na festa de aniversário do Dr. Hayward, no ano passado. Tratava-se de uma experiência nova em folha para ambas. A Donna parecia excitada, mas também nervosa. Eu estava apenas excitada e fui a primeira a provar um gole da bebida, depois do Josh. Passámos a garrafa à volta... até ela ficar vazia.

 

A Donna e eu ficámos bastante tocadas quase de imediato. O Rick não parava de dizer: "Elas estão bêbadas, meu."

 

Tanto eu como a Donna tivemos de mijar e, portanto, afastámo-nos cerca de um metro da fogueira e agachámo-nos atrás de uma árvore. Durante uns momentos, sentimo-nos bastante assustadas. Muito mesmo. Não sabíamos como agir e não deixávamos de pensar que dizíamos coisas estúpidas, parecíamos novas de mais ou coisa parecida.

 

Quando me levantei, sentia a cabeça muito leve. Pensei para mini própria: "Agora é tarde de mais, já estás bêbada e é melhor que te divirtas e não esqueças de prestar atenção às horas!" A Donna concordou que o melhor seria deixarmos correr a maré e mantermo-nos juntas, para o caso de voltarmos a sentir medo.

 

O Tim ligou o rádio da carrinha e perguntei se seria estúpido dançar um bocado, porque a canção me agradava. Os três responderam que achavam bem e a Donna deixou-se ficar sentada a contemplar a fogueira. O Tim aproximou-se, sentou-se ao lado dela e murmurou-lhe qualquer coisa ao ouvido. Ela abriu muito os olhos, soltou uma gargalhada e depois descontraiu-se. Acho que ele a fez sentir-se bem ou bonita ou outra coisa qualquer. Tenho de me lembrar de lhe perguntar o que é que ele lhe sussurrou.

 

Eu estava, portanto, a dançar e o Josh e o Rick não desviavam os olhos... e eu sentia-me bastante à vontade ou confiante, ou as duas coisas, e pus-me a dançar de uma forma mais sexy. Como tinha praticado sozinha, no meu quarto, diante do espelho. Movia as ancas em círculo e mexia os braços devagar, tocando, por vezes, nas ancas como se gostasse de me acariciar.

 

Raios! A minha mãe está a chamar-me lá de baixo para a ajudar a lavar a louça. Volto já. Tenho muito mais para te contar!

 

Um beijo, Laura.

 

Cá estou novamente, Diário. Desculpa ter parado.

 

Portanto, estava a dançar e a Donna viu o que eu fazia e fitou-me como se eu tivesse endoidecido. Olhou à volta e penso que quis chamar a atenção ou coisa parecida, pois consultou o relógio e sugeriu: "Vamos mergulhar nuas!"

 

Só isto deve chegar para te dar uma ideia de como a Donna estava embriagada. Todos ficaram silenciosos e limitaram-se a escutar a música uns segundos, após o que disseram: "Claro. Tudo bem."

 

Portanto, a Donna e eu tirámos as roupas... todas. Estivemos quase a deixar as cuecas, mas ambas receámos que nos achassem umas rapariguinhas estúpidas. Estavam todos sentados no ribeiro, com as costas apoiadas às rochas, quando voltámos até junto da fogueira. O ribeiro tem provavelmente um metro e pouco de altura no sítio mais fundo. Portanto, eles estavam sentados dentro de água e nós pousámos a roupa no chão e ficámos uns momentos de pé, junto do fogo. Quando começámos a avançar na direcção da água, o Josh disse: "Parem. Aí. Um minuto só."

 

E obedecemos. E depois de ficarmos um minuto ali à espera, ele disse ao Tim e ao Rick: "Já alguma vez na vossa vida viram coisa mais bonita do que estas duas raparigas?" Ambos soltaram estalidos com a língua, como se também apreciassem. A Donna e eu avançámos um pouco, quando nos apercebemos de que eles nos olhavam assim... assim tão de perto, sabes? O Tim disse: "Reparem nas sombras que o fogo lhes desenha na pele." Donna e eu fitámo-nos e depois voltámos a olhá-los. Mal os distinguíamos, porque nós estávamos muito próximo da luz e eles no escuro, dentro de água. O Rick disse: "Venham para a água connosco, por favor." E fomos.

 

Foi tudo tão surpreendente. A forma como eles ficaram, quando nos aproximámos debaixo de água, macios e escorregadios. Era como se estivesse a sonhar, pois nunca tinha sentido nada de tão bom e parecido com as minhas fantasias. Todos eles tinham... uns duros... acho que you chamar-lhes caralhos, porque pénis soa a uma palavra, que apenas se lê nos livros de educação sexual. Portanto, todos estavam tesos.

 

E eu disse (principalmente porque sabia que a Donna estava mais assustada do que eu com tudo isto): "Vamos fazer uma festa esta noite... podemos todos voltar a casa com aquela agradável sensação de desejarmos mais do que aquilo que aconteceu?... A Donna e eu não vamos deixar que cheguem até ao fim."

 

Quando as palavras me saíram da boca, nem conseguia acreditar no que acabara de dizer. Quem estava a falar? O que é que eu, Laura Palmer com treze anos fazia ali na mata com três rapazes nus e nove anos mais velhos do que eu?

 

Todos concordaram, mas o Josh disse: "Podemos, pelo menos, tocar-vos e talvez receber um beijo?" A Donna olhou-me da mesma maneira que me olhara há um ano, quando a Maddy estava a falar de beijos. Respondi-lhes que não me importava, mas que a Donna sim e não podiam obrigá-la. Algo me diz, agora, ao recordar o que se passou, que os rapazes nunca tinham estado tão excitados antes. Acho que não fariam nada de mal, mesmo que lhes tivéssemos pedido, porque estavam tão assustados como nós. Foi uma noite tão pessoal e estranha. Foi como se a mata nos levasse a agir daquela forma louca, como se as árvores e o facto de ter escurecido nos levasse a esquecer tudo o mais que existia. Eram oito e meia e somente nos restava cerca de uma hora até termos de regressar a casa.

 

Pus-me de joelhos no ribeiro em frente do Josh e molhei o cabelo. Em seguida, olhei-o e disse: "Podes tocar-Ihes, se quiseres. Não me importo." Ele agiu bastante devagar e colocou as mãos nos meus seios, que aumentaram bastante para a minha idade, penso, e pesou-os uns segundos, como se estivesse surpreendido. Senti-me como se me encontrasse no topo do mundo. Estava a endoidecer este rapaz de vinte e dois anos! Ele tocou-lhes, depois tocou-me nos mamilos e era-me difícil não lhe dizer como me sabia bem, por isso ri.

 

O Tim pôs-se a tocar nos seios da Donna e ela limitou-se a observá-lo em silêncio. O Rick não tinha ninguém com quem estar e, portanto, disse-lhe: "Também podes tocar-me... mas lembra-te que todos fizemos um acordo... certo?" Ele acenou com a cabeça e rastejou pela água na minha direcção, e colocou a boca no meu mamilo. Tive de fechar os olhos para que não me saltassem da cabeça. Era uma sensação tão incrível! Não conseguia deixar de pensar no rapaz da fotografia de Book House e ainda que isto pareça estranho, you mesmo assim dizê-lo.

 

Tive o pensamento sexy de que ele se aninhava dentro de mim. Como se nas minhas entranhas houvesse todo o calor e alimento de que ele precisava... este rapaz mais velho, precisando de mim. Senti-me forte e quase como se estivesse a oferecer-lhes uma fantasia. O Josh pousou a boca no meu outro mamilo e o Tim e a Donna afastaram-se um pouco de nós, dentro de água, e puseram-se a conversar. Depois, a Donna saiu lá para fora com o Tim, vestiu-se e sentou-se junto da fogueira... continuando a conversar. Não me importei ou não consegui importar-me. Não ia parar nada disto até ser obrigada, pois era um momento bom de mais para o estragar.

 

Sussurrei ao Josh e ao Rick que me apetecia que um deles me beijasse, com ternura e devagar... e que talvez o outro pudesse continuar a acariciar-me, como já estavam a fazê-lo. O Rick disse que o Josh podia dar-me um beijo, desde que também ele recebesse um depois ou coisa parecida.

 

Portanto, o Josh inclinou-se para mim, aproximou-se bastante e antes de me beijar, disse: "com meiguice, certo?" E eu respondi que sim. "Meigo e prolongado..." E ele abriu a boca e eu abri a minha e as nossas línguas começaram a mover-se juntas, como se desejássemos mais e mais... mas sem pressa, muito devagar... tão suavemente e devagar. E o Rick sugava-me os mamilos e produzia ruídos como se tivesse fome e recebesse comida, ou como se estivesse a comer gelado e fosse uma coisa deliciosa. O que quer que ele sentisse, eu sentia-me dez vezes melhor do que ele dava a entender, acredita.

 

Enquanto tudo isto acontecia, mergulhei num sonho, ignoro durante quanto tempo e era como se nada de mau alguma vez me tivesse acontecido. Tudo desapareceu e deixei, subitamente, de me importar se voltaria a ver Donna, a minha mãe, o meu pai, qualquer outra pessoa... alguma vez na vida. Esta quente impressão de me sentir necessária, desejada e especial, como se fosse um tesouro... era tudo o que queria sentir para sempre. Não tinha idade, não existia o tempo, nem os trabalhos escolares, nem problemas ou obrigações domésticas que me preocupassem ou me trouxessem de volta à pequena Laura. Eu era um ser sem idade e tudo aquilo que estes dois rapazes desejavam. Era uma parte dos sonhos deles!

 

O Rick começou por sua vez a beijar-me e mostrou-se igualmente meigo e suave, mas beijava de uma forma diferente. Movia a língua e os lábios de forma diferente e parava para me dar pequenas mordidelas muito ao de leve nos lábios, como que para me arreliar.

 

Sei que estou a escrever sem parar, Diário, mas tenho de contar a alguém, e, embora a Donna estivesse ali, não estava como eu. Não estava preparada para aquilo, nem para receber estas sensações. Não que haja algo de errado com ela, mas a Donna está mais interessada em ser boa... completamente. Quanto a mim, acho que sou boa, o melhor que me é possível, e talvez mais do que a maioria das pessoas, mas há muito que precisava de esquecer algumas coisas... e esta era uma solução espantosa.

 

Nada mais aconteceu no ribeiro, à excepção de ter tocado em ambos entre as pernas. Fui tão meiga para eles como o foram comigo e achei uma maravilha vê-los tão tesos e que aquela rigidez flutuasse na água... algo que eu podia sentir sem ver. Exactamente como o desejava. Era capaz de desejar mais, mas também de me contentar com o que tinha.

 

O Tini e a Donna trocaram números de telefone, enquanto eu me vestia e a minha única preocupação nesse momento era a de me sentir realmente embriagada e um pouco agoniada. Acho que a Donna também sentia o mesmo, porque o Tim disse: "Talvez devêssemos ajudá-las a vomitar para que isso não aconteça quando chegarem a casa... a Donna está preocupada sobre o que vai explicar aos pais."

 

Quase nem conseguia acreditar no sangue-frio destes rapazes. Não disseram nenhuma piada, nem nos fizeram sentir como se fôssemos um zero ao lado deles. Sei que não o somos, mas era agradável, sobretudo no estado em que nos encontrávamos, não ouvir nada do género. O Rick disse que havia pastilha elástica no porta-luvas da carrinha e que, se quiséssemos, nos podíamos servir. Tentei imaginar a nossa figura, se chegássemos a casa tontas e embriagadas. A ideia de vomitar não me agradava, mas o Tini sugeriu que podia ajudar-nos a ficar sóbrias, portanto a Donna e eu afastámo-nos e metemos os dedos na garganta. E provocámos o vómito. Foi horrível, mas senti-me melhor e a Donna disse que agora lhe era mais fácil andar. Eu disse que talvez fosse melhor pormo-nos a caminho e que, se eles não se importassem, nos podiam deixar a um quarteirão de cada uma das casas? Achei que a viagem de carrinha e o ar fresco também nos ajudariam.

 

Espera um segundo, Diário... a minha mãe quer um beijo de boas-noites.

 

Tudo bem. Estou de volta. Ela não te viu, graças aos céus.

 

Depois da boleia dos rapazes, saltámos para fora das traseiras da carrinha e o Tim beijou a mão de Donna num gesto muito romântico e o Rick e o Josh disseram que tinham gostado de a conhecer. Dirigi-me à cabina do condutor onde estava o Josh e preparava-me para lhe agradecer... e acho que dizer-lhe o que quer que me saísse pela boca... mas ele deteve-me. (Um calafrio percorreu-me a espinha!) Pousou-me um dedo nos lábios e disse: "Acho que nunca mais te esquecerei, Laura." E sorriu e o Rick disse: "Obrigado por teres confiado em nós desta forma." Arrancaram e a Donna e eu quase chorámos.

 

Estávamos a um quarteirão da casa da Donna e cada uma de nós meteu outro bocado de pastilha elástica na boca e ensaiámos a nossa história. Estivemos na mata, a conversar. Estivemos a inventar histórias e a falar dos sonhos que tínhamos e... do futuro.

 

A Donna disse que não lhe parecia estar a mentir, pois fora o que ela e o Tim tinham feito. Beijaram-se várias vezes e, pouco antes de entrarmos na sua casa, a Donna confessou que tinha realmente gostado.

 

Resolvi que não contaríamos nada do que tínhamos feito enquanto nos ausentáramos, excepto se alguém nos perguntasse. Já ouvi pessoas desfazerem-se em explicações e dar a sensação de estarem a mentir ou a esconder qualquer coisa, o que seria o nosso caso.

 

Os pais da Donna estavam adormecidos no sofá quando entrámos e escapulimo-nos, sem ruído, até ao quarto dela. Lavámos os dentes e passámos a escova pelos cabelos e abraçámo-nos, antes de descer as escadas. Não pronunciámos uma só palavra. Apenas trocámos aquele abraço. Acho que foi a nossa maneira de dizermos que era o nosso segredo, que continuávamos amigas e que estávamos bem. Estávamos em casa e estávamos bem.

 

A Donna acordou o pai e disse que tínhamos estado à espera que ele acordasse, pois ele parecia tão calmo, adormecido, com a cabeça encostada ao ombro de Mrs. Hayward. Ele ofereceu-se para me levar a casa e, assim, telefonei à minha mãe e ela disse que nem sequer se apercebera das horas, pois estava a ler um livro óptimo. Acrescentou que o meu pai já estava deitado, e que esperaria por mim, a pé.

 

Não me sinto culpada pelo que aconteceu, mas julgo que isso se deve apenas a ninguém estar preocupado e ao facto dos rapazes terem sido o máximo. Não consigo deixar de me sentir um pouco triste por dentro ao tomar consciência de que tudo acabou. Esta noite passou e sou novamente a Laura. Treze anos de idade e a menina dos olhos do meu pai. É com expectativa e sem revolta que anseio por ser mais velha e independente, sem ter de dar contas a ninguém, excepto a mim própria.

 

Deus abençoe a minha mãe, o meu pai, o Troy, o Júpiter paz à sua alma! e os rapazes, o Josh, o Tim e o Rick. Obrigada, meu Deus, por me teres dado estas poucas horas de... ÊXTASE.

 

Mais, em breve, L.

 

  1. S. Sinto como se de cada vez que penso nesta noite a modificasse um pouco. Os rapazes vão-me tratando com mais dureza. Torno-me mais provocante e obrigo-os a dizerem-me o que sentem, quando me tocam. Obrigo-os a dizerem-me o que tudo isto representa para eles. Ignoro por que a modifiquei... gostei do que aconteceu, mas quando a revivo na minha cabeça, obrigo-os a fazerem-me coisas um pouco mais proibidas. Agrada-me esta sensação, gosto que eles sintam mais do que eu.

 

QUERIDO DIÁRIO,

10 DE NOVEMBRO DE 1985

Na noite passada, coisa que não me acontecia há montes de tempo, dormi a noite inteira. Ao acordar, nem sequer me lembrava dos sonhos que tinha tido, se é que tive alguns. Sei que dizem que se sonha sempre, mas costumo lembrar-me dos meus sonhos. De qualquer maneira, estava a escovar o Troy nos estábulos quando me ocorreu, de repente, uma morada: 1400 River Road. Tinha sonhado com ela. Senti, de imediato, que tinha de ir lá, tinha de descobrir este lugar e saber do que se tratava. Resolvi que telefonaria à minha mãe dos estábulos, dizer-lhe que ia passear com o Troy e não me demoraria.

 

Fazia uma vaga ideia onde se situava 1400 River Road, mas perguntei ao Zippy para me certificar. Ele disse que não ficava muito longe, mas que não havia muito que ver por essas bandas. Respondi-lhe que me apetecia dar um passeio com o Troy até um sítio onde não estivera antes. Não queria contar-lhe que sonhara com esta morada e tinha de descobrir se ela existia. Receava que ele me olhasse com estranheza e ignorava, além disso, porque me sentia tão impelida a fazê-lo.

 

com tudo o que estava a acontecer, achei que seria melhor não abrir a boca. Guardar segredo como em relação a tantas outras coisas. O Zippy disse que não me esquecesse de virar à esquerda quando a estrada de cascalho se bifurcasse, porque senão iria parar a um caminho alcatroado, o que seria mau para os cascos e ferraduras do Troy. Prometi e lá nos afastámos.

 

Tinha a cabeça a estourar com tantos pensamentos e fui ao ponto de chorar um pouco, porque me pus a recordar Josh, Tim e Rick e que provavelmente não voltaria a vê-los. Pensei que a Donna ainda não me tinha telefonado hoje e senti-me preocupada se ela estaria a pensar que eu era suja ou má ou coisa parecida e invadiu-me um enorme desejo de lhe falar. Espero que ela não deixe de gostar de mim.

 

Não sei o que faria se isso acontecesse. Portanto, continuava a ver esta morada na minha cabeça, sempre que chegava ao fim de um pensamento, fosse ele qual fosse, e vi-me depois diante deste antigo e abandonado posto de gasolina. Desmontei e prendi o Troy à cerca que ainda não foi deitada abaixo e forma um arco por cima das bombas. Aquela com os cartazes a indicarem qual o tipo de gasolina. A relva estava crescida e deixei-o pastar, enquanto eu dava uma vista de olhos.

 

Quando dei a volta e fiquei mesmo em frente do posto, avistei a Mulher do Tronco, de pé, sem se mexer, com o seu tronco, mesmo por baixo da tabuleta de madeira, que indicava 1400 River Road. Ela sorriu-me e apercebi-me de que já lhe vira o rosto no meu sonho. Não trocámos palavra durante muito tempo. Limitámo-nos a fitar-nos, com um sorriso. Não me sentia desconfortável, mas apenas bastante curiosa quanto à minha presença ali e, enquanto me ocupava com este pensamento, ela dirigiu-me a palavra.

 

"Sei que sentes curiosidade por este lugar e a meu respeito", disse-me. Esbocei um aceno de concordância. "Sonhei que devia, supostamente, encontrar-me aqui contigo para que passássemos algum tempo juntas", continuou. Senti um aperto no estômago e abri a boca de espanto. "Algumas vezes sonho como as outras pessoas", disse ela calmamente. "Acontece. É tudo."

 

Nunca me tinha apercebido de que Margaret, a Mulher do Tronco, era tão simpática. Sentámo-nos juntas na relva, na parte da frente do posto, e ela disse-me que sabia muitas coisas a meu respeito, coisas especiais.

 

Disse que não devia preocupar-me tanto. Que se prestasse atenção ao que me rodeava, estas coisas especiais surgiriam.

 

Tocava, frequentemente, no tronco e mantinha-se silenciosa, enquanto se debruçava sobre ele para o escutar. E sorria muito, como se se sentisse divertida e satisfeita. Por vezes, dizia ao tronco que não queria ouvir falar dessas coisas agora. Que não era a melhor altura.

 

Da última vez que isto aconteceu, virou-se para mim e sussurrou: "Muitas coisas não são o que parecem."

 

Desviou os olhos e quando me fixou de novo tinha uma expressão diferente no rosto, como se se sentisse aliviada por ainda estarmos sós. Disse que sabia que eu andara a sonhar em ser uma mulher e que era bom, pois isso sempre acontece às jovenzinhas. Em seguida, as suas palavras tornaram-se confusas... disse muitas coisas sobre a mata e tentei escutar atentamente, pois confiava nela e pensei que talvez ela soubesse algo que me ajudasse. Muita da conversa pareceu-me treta. Lembro-me e por isso you escrevê-la, mas ignoro o que significa. Talvez venha a compreender mais tarde. O que compreendi fez-me sentir tão bem no meu íntimo, como se desta vez não estivesse a ser má e pudesse continuar a esperar as coisas sem receio de estar a comportar-me com egoísmo!

 

Aqui ficam algumas das coisas que ela me disse. Disse que, por vezes, a mata é um sítio para se aprender sobre as coisas e sobre nós próprios. Outras vezes, a mata é um lugar para estarem outras criaturas, que não nós. Disse que algumas vezes as pessoas vão acampar e aprendem coisas que não deviam. Por vezes, as crianças são a presa... acho que foram estas as suas palavras. E que mais... tentei tanto recordar-me de tudo. Oh! Disse-me que estaria vigilante e que um dia as pessoas descobrirão que ela vê coisas e se recorda delas.

 

Acrescentou que é importante recordar coisas que vemos e sentimos. Por vezes, as corujas são grandes. Sim, aqui está algo de que me esquecera por completo. Por vezes, as corujas são grandes. Espero que isto não signifique que a minha mãe tenha falado daquele "sonho da coruja", que eu tive. Não me parece, mas só assim é que isto faz sentido. Espero compreender tudo isto muito em breve. De qualquer maneira, ficámos ali a conversar, e ouvi-a a cantarolar uma canção que nunca tinha ouvido antes, mas de que gostei muito. Fez-me sentir segura e acho que era precisamente isso o que ela estava a tentar. Lamento que as pessoas a achem estranha e esquisita. Não é nada disso.

 

Consegui ler-lhe no olhar que algo a tinha magoado, mas apenas comecei a entender, depois da minha mãe me contar, quando cheguei a casa. Disse-me que Margaret (a Mulher do Tronco) tinha um marido que era bombeiro. Morreu a combater um fogo e a minha mãe disse que foi uma coisa horrível, porque ele tropeçou numa raiz ou coisa assim e caiu de cabeça nos carvões em brasa, e morreu queimado, a começar pela cara. Tinham casado há pouco quando ele morreu e desde então a Margaret tem-se mantido muito calma e guardando a dor para si própria. A minha mãe acrescentou que ela só passou a ter este tronco depois do marido morrer.

 

Eu desconhecia tudo isto, quando estava ali com ela no 1400 River Road, mas acho que também não era importante. Disse-lhe que a considerava uma pessoa muito simpática e especial e que me sentia contente por ter prestado atenção ao meu sonho, pois não desejava ter perdido a oportunidade de lhe falar. Acrescentei que esperava que ela tivesse razão quanto a haver coisas especiais na minha vida e que tenciono procurá-las, pois desejo que a minha vida seja boa.

 

Em seguida, contei-lhe algo que espero que ela nunca venha a repetir. Nem sequer esperava dizê-lo e, para te falar francamente, ignoro como me saiu. Disse-lhe que às vezes acontecem coisas que ninguém sabe. Acontecem na mata, quando está muito escuro. Disse-lhe que, por vezes, nem sequer tenho a certeza de que estas coisas sejam reais e, outras vezes, acho que são mais reais do que o nascer do Sol de manhã e que essa ideia me assustava muito. Recordo-me de que quando acabei, ela desviou os olhos. Julguei que tinha dito qualquer coisa que a perturbara. Apertou muito o tronco de encontro ao peito, depois voltou a fitar-me e disse que eu era uma rapariga bonita e que muitas pessoas iriam amar-me.

 

Espero mesmo que muitas pessoas me amem na vida. Algum dia alguém irá amar-me como os rapazes o fizeram, ou ainda mais. Pergunto a mim própria onde estará agora essa pessoa e se ela estará a interrogar-se sobre onde eu estou, qual o meu aspecto e quando, finalmente, nos conheceremos. Pergunto a mim própria se a Margaret alguma vez pensou no sexo como eu.

 

De regresso a casa, tentei cantarolar a canção que ela me entoara baixinho, mas fui incapaz de me lembrar. Sentia-me muito bem por dentro quando me afastei da River Road e esta sensação acompanhou-me durante todo o caminho de volta aos estábulos, de volta a casa no carro com a minha mãe, e ainda agora é forte. Espero que neste momento a Margaret não se sinta só. Espero que se sinta tão feliz como eu. Desejava poder ter-lhe dito que a sua vida seria feliz. É pena que eu nada tivesse para ela.

 

Mais tarde, Laura.

 

  1. S. A Donna ainda não voltou a telefonar-me.

 

13 DE NOVEMBRO DE 1985

 

Escutando a mata

Acho que nas árvores vivem almas,

Almas que crescem e se transformam

Dentro de cada folha, tão calmas,

Uma memória de instantes, que mais ninguém viu

Mas nenhuma pessoa as escuta,

Ninguém se dá ao trabalho de pensar

Que as árvores possam ver o que acontece

Que o seu agitar

Seja um indício de que querem falar.

Podem ter tentado sussurrar

Na palma da mão de alguém

A sua memória da rapariguinha,

De como há um novo buraco dentro dela

E uma outra e mais pequena boca.

Mas ninguém acredita nem quer saber

Que talvez

A árvore possa conhecer

Que algo se passou de muito errado

Que ela queira falar da tristeza

Observada durante tantas noites.

Acho que o mundo

Devia mergulhar bem fundo na mata

E escutar com a máxima atenção

As vozes das folhas,

Ver os pormenores, as pequenas marcas

De passos e por vezes manchas,

Devia ver que as folhas

Têm formato de lágrimas,

Devia estudar o desenho das agulhas caídas,

Talvez existam pistas no chão

Que possam levar o mundo a descobrir

Aquele que cavou

O buraco.

 

É tarde e ele apareceu esta noite. Não sei se a Mulher do Tronco estava a falar da verdadeira Laura Palmer.

 

QUERIDO DIÁRIO,

20 DE NOVEMBRO DE 1985

Acabei de ter um sonho que me leva a acreditar que não conseguirei voltar a pregar olho esta noite.

 

Estava num quarto. Um quarto vazio e sentia-me muito mal por ele estar vazio. Achava que a culpa era minha por nada haver nele. Estava acocorada a um dos cantos do quarto e fitava aquele sítio no outro extremo do quarto, pois sabia que algo iria aparecer ali muito em breve.

 

Um minuto depois, comecei a sentir um frio enorme. E julguei que vira qualquer coisa, mas desapareceu. Depois, desviei o olhar. Estava a tentar descobrir a porta que dava para o outro quarto e era a saída deste e queria ver se havia alguma mobília nele. Sentia-me muito mal por causa de qualquer coisa e queria ajustar tudo para deixar de me sentir tão... culpada. Acho que era isso o que me sentia. Culpada.

 

Virei-me para olhar através do quarto e havia um rato enorme ali sentado. No sonho, sabia que ele me perseguia e queria arrancar-me o pé com uma dentada. Fiquei tão assustada! Vi-o aproximar-se cada vez mais e tentei pensar numa forma de o fazer parar, ou num sítio para onde pudesse fugir, mas não havia um lugar para onde ir ou algo que pudesse fazer!

 

Sei que podes achar engraçado, mas era tudo tão assustador. Sentei-me muito quieta e tentei conservar os pés bem junto do corpo para que o rato não conseguisse chegar ao meu pé. Era-me impossível deixar de imaginar como seria horrível quando ele fechasse os maxilares no meu tornozelo e me mordesse. Não queria ter essa sensação, nem queria que o rato se aproximasse. "Não te aproximes!" Continuava a pensar na dor que teria... E, portanto, no sonho, pois sabia que ele apenas desejava o meu pé, fui eu a arrancá-lo com os dentes!

 

Quando acordei, mal conseguia respirar. Estava tão assustada! Ainda consigo ver o rato e acho que ele me perseguia porque havia algo de errado com o quarto, ou eu estava a ser punida por alguma coisa. Mas estava com mais receio ainda dos dentes do rato e de quanto iriam magoar-me... Portanto, resolvi que seria eu a magoar-me, antes que ele o fizesse. Embora não compreendesse por que é que o rato queria magoar-me, sabia apenas que teria eu de o fazer, ou ele o faria.

 

Não gostei nada deste sonho. Por favor, Diário, sei que podes achar-me idiota, mas não me julgues como os outros podiam julgar-me, se me ouvissem contar-Ihes este sonho. Espero nunca mais voltar a ter um sonho destes. Nem mesmo quero saber o que ele significa, ou se tenho a certeza de que desejo recordá-lo. Resolverei isso amanhã, quando o escuro tiver desaparecido e as coisas são mais fáceis de ver quando nos perseguem.

 

Irrita-me não ser capaz de ir ter com a minha mãe e falar-lhe disto. Receio que ela se ria e depois talvez o conte a toda a gente e me envergonhe. Tenho tanto medo de que as pessoas se riam de mim. you tentar parecer-me mais com a Donna. Serei boa e farei tudo o que penso ser capaz de fazer. Desta forma, nada haverá que alguém possa descobrir e troçar de mim. Nada haverá que possam acusar-me de que procedi mal.

 

Aposto que o que fiz com a Donna e os rapazes é a causa disto tudo. Nem sequer consigo pensar direito para decidir se uma sensação valeu a outra. Algo tem de estar na origem de noites como esta. Tentarei ser melhor. Deixarei de fazer coisas que só as raparigas mais velhas deviam fazer. Não deixarei que ninguém me magoe, como no sonho. Serei eu a magoar-me, primeiro. Conheço os sítios mais sensíveis. Magoar-me-ei a partir de agora, desde que tudo isto pare!!!

 

Quem me dera poder falar com a minha mãe.

 

Laura.

 

QUERIDO DIÁRIO,

16 DE DEZEMBRO DE 1985

Não sei se continuarei a escrever-te durante uns tempos. Acabei de ter um outro sonho. Devo ter adormecido, enquanto aguardava o nascer do Sol.

 

Ignoro porquê, mas vi-te continuamente a aparecer e a desaparecer no colo das pessoas. Nos seus assentos, ao jantar, quando iam até à máquina de discos. Na capota dos carros, quando iam dar uma volta. Tentava recuperar-te, mas fugias-me sempre. Ias contar a toda a gente o que estava dentro de ti.

 

Algumas pessoas leram o que estava escrito aqui e essas pessoas transformaram-se em ratos. Queriam levar-me como o BOB o faz. Acho que até compreender melhor as coisas, não devíamos falar. Não sei porque sonhei isto, mas tenho medo de mais para o desafiar.

 

Se tal não fizer desaparecer os pesadelos, o fogo, as cordas e as finas lâminas de aço... Talvez deva ceder-lhes. Talvez seja o que me estava destinado. Talvez deva ser apenas paciente e deixar de lutar para que tudo se afaste.

 

Odeio despedir-me de um bom ouvinte como tu. No entanto, sinto que devo fazê-lo, até descobrir se andas, seja lá como for, a falar com pessoas, sem que eu o saiba.

 

Estarei a endoidecer? Desejo que as férias acabem e as aulas recomecem para ter alguma coisa que me mantenha ocupada. Olho para outras raparigas que conheço, outras raparigas que observo, e todas elas sorriem como eu. Será que, por dentro, começam a perder tudo o que sabem? Terão deixado de confiar em si próprias e em todos os que as rodeiam? Não permitas, por favor, que venha a descobrir que sou a única ao cimo da terra com este sofrimento.

 

Laura.

 

QUERIDO DIÁRIO,

23 DE ABRIL DE 1986

Há muito tempo que não te escrevo. As aulas são óptimas, mas quase as considero demasiado fáceis. Não chegam para me afastar o pensamento dos rapazes ou das fantasias. A Donna e eu discutimos várias vezes este ano, pois ela acha que a trato de uma forma diferente e deixei de ser a amiga que era. Detesto chorar, mas por que é que isso me acontece tantas vezes nos últimos tempos? Apenas me tenho esforçado por ser boa e não falar demasiado, nem pôr-me com divagações, por julgar que isso aborrecia as pessoas e fazia com que me acontecessem coisas más.

 

Agora, a Donna está furiosa porque não lhe dou a conhecer o que realmente sinto, pois tenho medo! E não posso confessar-lhe que tenho medo, porque ela me obrigaria a confessar o motivo. E nunca poderei dizer-lhe. Nem sequer me tenho acariciado onde sei, porque isso diz respeito ao sexo e decidi que deixaria de pensar nele... o que é tão difícil!!!

 

Odeio-me e odeio a minha vida! O meu pai tem andado muito ocupado com o Benjamim e o seu trabalho no Great Northern e começo a sentir-me como a Audrey deve sentir-se quando o pai me dispensa mais tempo e atenções do que a ela. Agora, acontece o contrário e estou a tentar ser boa e a fazer que tudo isto pare, e esta atitude somente contribuiu para me tirar o apetite e o sono! Quero deixar de me sentir assim. Se a situação se mantiver, sei que algo de terrível acontecerá.

 

Na noite passada, sonhei que tinha cavado um buraco no quintal para abrir um poço, pois estava a tentar ajudar-nos por meio da água e achava que seria óptimo construir um poço para a família. A minha mãe adorou a ideia e fez um grande sorriso. Mas quando, mais tarde, no sonho, foi até lá fora, eu estava a enterrar-me no buraco, tentando matar-me. Apercebeu-se de que lhe tinha mentido, o que muito a perturbou. Precipitou-se para me deter e gritei que não queria acordar a meio da noite, rodeada de folhas por todos os lados. Queria ser uma árvore, a fim de poder escutar os problemas que havia na mata. E, subitamente, fiquei enterrada. Mas estava dentro de qualquer coisa que não era um buraco sujo.

 

A minha mãe apareceu imediatamente no quarto e perguntou-me se me sentia bem e respondi-lhe que estava óptima. Andava apenas com pesadelos sobre a mata, nada mais. A expressão do seu rosto mudou de triste para desesperada. Em seguida e infelizmente, pôs-se a falar de algo que eu não queria ouvir! Começou a falar-me de pássaros e abelhas, contracepção, de bebés e de toda essa treta de que os meus sonhos faziam parte do meu corpo em mutação e talvez apenas necessitasse da resposta a algumas perguntas.

 

E durante todo o tempo em que esteve a falar, eu pensava noutras coisas.

 

Tive de pensar em flores, rostos sorridentes e qualquer outra coisa... camiões enormes cheios de madeira serrada, pássaros e em Donna, Donna, Donna... apenas coisas boas. Não ouças, não ouças essa voz a falar-te de tudo o que se assemelhava a pequenas chaves para as portas e quartos onde, supostamente, eu não deveria estar! Como era possível que isto estivesse a acontecer-me? Não parou durante perto de uma hora e quase me vi obrigada a agarrar na minha própria mão... apetecia-me bater-lhe, dar cabo daquele rosto sorridente e compreensivo e gritar: "Como é que o fazes? O que aconteceu a essa parte de mim?"

 

Queres saber o que mais me assusta? A única coisa que as pessoas pensam agora a meu respeito é que estou a atravessar a fase da adolescência! Todos continuam a ver a sorridente Laura Palmer. A rapariguinha com notas óptimas, cabelo perfeito e dedinhos perfeitos que, por vezes, a meio da noite, deseja aproximar-se do espelho para estrangular o causador das suas divagações, cujo reflexo avista!

 

Hoje you visitar a Donna e conversar com ela. Falarei o melhor que me for possível. Não tenho trabalhos de casa e já acabei dois projectos extras. Já organizei o grupo de debate da juventude. Continuo a rezar, mas nunca me senti pior em toda a minha vida. Começo a pensar que alguns momentos bons, no meio de quilómetros e épocas de instantes maus, é melhor do que nada de bom. Espero que a Donna ainda queira ser minha amiga.

 

Se puder, contar-te-ei o que se passa com a Donna.

 

Até breve, Laura.

 

24 DE ABRIL DE 1986

 

Algo ocorreu-me mesmo agora...

Uma recordação de saltitar

Eu era uma miúda de olhos erguidos para ele

Antes dele me ordenar que me deitasse

Ou dissesse coisas

Antes dele afirmar

Que era coisa má falar

Que tínhamos um segredo

Antes dele começar a virar-me as entranhas

com as suas patas imundas

Antes de me sentar no pequeno monte

Que costumávamos descer a saltitar

De mãos dadas,

Falando do que víamos.

Ele indicava-me o que devia ver

Mas eu não conseguia.

Tenho vindo a cegar,

Penso,

Desde que deixámos de descer e saltitar.

 

Quero que me deixem em paz, tal como às outras pessoas. Quero saber coisas deste macio vestido branco, que usarei como os outros.

 

Quero esquecer as coisas de que, subitamente, me recordo... Algo de muito mau está a acontecer... Por que é que me acontece a mim?

 

Acho que é real! Acho que é real!

 

Depois de visitar a Donna, talvez possa falar-te do que estou a lembrar-me. Tinha esquecido tanta coisa... mas ignoro se o melhor será saber ou não saber coisa nenhuma.

 

Continua a ser minha amiga, Donna, por favor!

 

QUERIDO DIÁRIO,

21 DE JUNHO DE 1986

Ontem, passei o dia com a Donna. Durante muito tempo, ela nem sequer me dirigiu a palavra. Quando comecei a chorar, saí da casa dela a correr e assim continuei. Fiquei tão contente quando ela veio atrás de mim e também a chorar. Contei-lhe o máximo que me era possível. Que me preocupava em ser boa, porque andava a ter sonhos maus, sonhos muito maus, e não estava a brincar ao dizer-lhe que não conseguia dormir nada. Disse-lhe que desejava que pudéssemos falar da noite passada com os rapazes no ribeiro, mas parece-me sempre que ela me odeia ou coisa parecida, ou que terei um sonho mau e pensarei que o que me aconteceu foi mau. Disse-lhe que precisava de ouvir o que ela pensava dessa noite. Precisava de saber se ela acha que deveríamos ser ambas castigadas, ou apenas eu, pois fui mais longe... precisava mesmo de saber!

 

A Donna respondeu-me que tinha medo de que eu não lhe falasse por me sentir zangada por ela não ter ido tão longe com os rapazes como eu e que tivesse deixado de gostar dela por esse motivo! Perguntei-lhe como era possível que pensasse assim, depois daquele abraço que trocáramos no fim da noite e ainda me recordo daquele abraço como um dos mais afectuosos e melhores momentos de toda a noite! Disse-lhe que estava apenas muito confusa e que na maior parte do tempo ignorava se devia apreciar tudo aquilo, como fora o caso, ou se devia ter-me sentido mal!

 

Donna afirmou que apenas saíra de dentro de água, por não saber se o que sentia estava certo, apesar dos rapazes serem simpáticos. E depois chorou e olhou-me de uma forma muito estranha e disse uma coisa que me fez sentir realmente muito esquisita. Disse que outra das razões por que não participara mais foi por lhe parecer que eu estava demasiado à vontade e ela ignorava o que fazer ou como fazer. Queria que lhe dissesse se eu agira naturalmente ou se andara a encontrar-me com um rapaz e lhe escondera a verdade.

 

Durante muito tempo fui incapaz de lhe responder. Acho que não sabia o que dizer. O que pretendia significar com aquele "demasiado à vontade"? Disse-lhe que me recordava de me sentir sexy e muito feliz por eles terem gostado de mim e me desejarem, mas metade da iniciativa, senão mais, partiu dos rapazes e não de mim.

 

Além disso, nessa noite estávamos embriagadas e parecera-me tão bom fazer coisas sobre as quais me interrogara durante tanto tempo... Cortou-me a palavra com a afirmação de que também ela pensava assim nos rapazes. Perguntei-lhe como é que ela pensava neles, o que faziam quando ela sonhava com eles e respondeu-me que a levavam a dançar, ou iam esperá-la à saída das aulas e a deixavam andar nos seus carros. Disse que pensava em estar com rapazes mais velhos que a tratassem como uma princesa e, à noite, vinham até esta grande e bonita cama e deitavam-se ao seu lado, conversavam e beijavam-na e, por vezes, faziam amor.

 

Acrescentou que lhe desagradava ir tão longe, pois lhe parecia demasiado vulgar, em comparação com o resto da fantasia. Embora pense no sexo, insistiu. Mas no tipo de sexo que avança com todo o vagar, como nos romances cor-de-rosa. Diz que o vê como que em câmara lenta e consegue ouvir música a tocar e eles rolam, ela e o rapaz, muito lentamente, devagar, até a ideia se desvanecer. Disse que esperava que as minhas fantasias fossem tão sexy como as dela.

 

Oh, céus, Diário! Tudo correu tão bem, até falarmos disto! Vi-me obrigada a dizer que as minhas fantasias eram exactamente iguais e que nunca nos devíamos ter zangado e acrescentei que lamentava se a magoara. Que devia ter sido mais franca com ela e estava apenas preocupada que ela tivesse começado a odiar-me por ir tão longe nessa noite. Respondeu que me achava muito corajosa e que se me sentia bem, devia pensar em tudo como uma coisa boa. E as fantasias que ela tem! Quase caí redonda ao ouvir como todas eram puras, ternas e suaves. Por que é que ela não pensa como eu? Tinha tanta esperança de que tivéssemos os mesmos pensamentos... estava dependente disso.

 

Sei que falava verdade pela maneira como me contou e por ter ficado embaraçada ao mencionar este rapaz, que se metia na cama com ela. É tão pura, que nem consigo acreditar. Acho que as vezes em que tenho de ir até à mata, de noite, me envenenaram.

 

Aposto que seria como a Donna, se ainda saltitasse por entre as árvores, em vez do... que agora acontece. Mas... não desejo, de forma alguma, o que agora acontece! Desejo coisas que me façam sentir sexy t brincalhona, coisas que não me ponham todo o trabalho em cima, coisas como alguém tentar agradar-me, em vez de ser sempre eu a tentar fazer alguém feliz.

 

Gostava que houvesse um lugar onde se pudesse ir ter com alguém que nos respondesse a todas as perguntas e nos dissesse se estávamos ou não a agir bem. Como poderei saber, se nem sequer consigo falar, realmente, das coisas? Continuo a repetir-me sem cessar. Movo-me em círculo e chegou a altura de parar.

 

A Donna e eu continuamos amigas e ainda gosto dela, mas as coisas parecem-me diferentes. Sou incapaz de pensar como ela ou mesmo tentar fazê-lo. Pensarei no que sinto e tentarei levar as pessoas a ver as coisas como eu. Quem me dera ter um cigarro de marijuana neste momento. Há anos, anos e anos que não me rio.

 

Obrigada, por me escutares.

 

Laura.

 

QUERIDO DIÁRIO,

22 DE JUNHO DE 1986

Vou apenas escrever, sem me deter a pensar demasiado e talvez assim me recorde melhor. Acordei mesmo agora: são quatro horas e doze minutos da manhã.

 

Não me lembro de quando tudo começou, mas ele sempre teve cabelo comprido. Sabe tudo a meu respeito e sabe melhor como me assustar do que qualquer dos outros sonhos que te contei.

 

A princípio, começou por brincar comigo. Perseguiamo-nos um ao outro pela mata e ele encontrava-me sempre... mas eu nunca o descobria. Aparecia-me por detrás e agarrava-me pelos cabelos, e perguntava-me o nome. Dizia-lhe que me chamava Laura Palmer e ele soltava-me, obrigava-me a girar e ria.

 

Quando penso nisto, chego à conclusão de que ele não estava a brincar como devia. Era muito mau para mim e passava o tempo a assustar-me. Penso que gosta de me ver assustada. Faz-me sempre sentir assim, quando me leva com ele. Gosta de me envergonhar, puxando-me as cuequinhas para baixo e metendo-me os dedos lá dentro, bem lá no fundo. Quando sabe que está a magoar-me, tira-os e cheira a mão. Repete que eu cheiro a coisas más. Grita bem alto para as árvores que eu cheiro, sou suja e que nem sequer sabe por que gosta de mim. Diz que se eu não estivesse sempre a suplicar-lhe para vir, não voltaria a aparecer.

 

Nunca lhe suplico que venha. Nunca. Desejo vê-lo bem longe daqui. Juro.

 

Quando comecei a ficar mais velha, dizia-me coisas sobre mim própria que eu ignorava. Não me parece que tivesse falado verdade. Acho que estava a mentir-me e inventava à medida que avançava. Sabia sempre exactamente o que me assustava e o que dizer para me fazer chorar. Depois agarrava-me no pescoço... e apertava-mo. Apertava-me o pescoço com força, até eu deixar de chorar. Soltava-me uns momentos antes de eu desmaiar... julgo que desmaiava... algumas vezes isso ainda me acontece. Sinto um zumbido e tudo fica escuro, a cabeça começa a andar-me à roda e tenho de parar de chorar ou ele continua a apertar-me o pescoço.

 

Por vezes, pergunta: "Como é isso aí por baixo?... Como é isso aí, Laura Palmer?" Pronuncia sempre o nome todo, como se dessa maneira se afastasse de mim, mas é o que faz de todas as outras. Havia veses em que eu regressava a casa a sangrar. Sangrava e não podia contar a ninguém, e, assim, sentava-me a noite inteira na casa de banho, sozinha e à espera que o sangue deixasse de correr. Outras vezes cortava-me no meio das pernas e outras por dentro da boca. Sempre cortes muito pequenos, centenas de cortes muito pequenos. Na casa de banho, tinha de me servir de uma lanterna, se não os meus pais podiam acordar e ver luz e ainda me meteria em sarilhos piores.

 

Algumas noites, punha-me toda peganhenta. Esfregava-se muito depressa e dizia que eu tinha de agarrar aquilo tudo peganhento junto dos olhos e recitar este pequeno poema, enquanto lambia as mãos até as limpar.

 

Só me recordo de um pedaço. Há muito tempo que isto do peganhento não acontece. Obrigava-me a dizer:

 

A pequena cabrona Está muito arrependida A pequena cabrona Bebe-te toda.

 

(Não me recordo de mais nada, excepto da última frase.)

 

Nesta semente existe, realmente, a morte.

 

Quando está comigo, quer que eu goste. Quer que diga que estou suja e tenho cheiro. Devia ser atirada ao rio para ficar limpa.

 

Tenho tanto cuidado para cheirar sempre bem. Lavo-me sempre entre as pernas e quando me deito mudo sempre de cuequinhas para o caso dele me obrigar a acompanhá-lo. Preocupo-me sempre que ele venha buscar-me e eu não tenha mudado de cuecas. Ele diz que tenho sorte por perder tempo comigo. Diz que é o único homem que alguma vez desejará tocar-me.

 

Aproxima-se da janela e vejo-o. Vejo-o sempre e ele sorri sempre como se fôssemos passar uns bons momentos juntos. Sinto a tentação de pedir ajuda aos meus pais, mas tenho medo do que poderia acontecer. Não posso deixar que alguém saiba o que se passa. Se deixar de o ver, talvez se canse de mim e desapareça. Talvez se parasse de o combater, lutar contra ele, nunca mais me visitasse. Se não tivesse medo, se ao menos não tivesse medo...

 

Nunca pensei assim sobre ele antes.

 

Espero que se Deus existir, compreenda que estou a tentar manter-me limpa e se estiver a submeter-me a um teste, descubra maneira de o passar. Aposto que é um teste. Aposto que Deus quer que eu prove que consigo aceitar ordens e que não tenho medo de morrer e ir, talvez, com ele. Talvez o BOB conheça Deus e seja por isso que sabe sempre como me sinto por dentro. Deus deve dizer-lhe o que há-de fazer-me. Talvez Deus não queira que eu tenha medo de ser suja. Se não tiver medo, levar-me-á até ao Céu.

 

Assim espero.

 

QUERIDO DIÁRIO,

25 DE JULHO DE 1986

Tenho-me esforçado imenso por não ter medo.

 

Tenho-me encontrado com um rapaz de que te falei uma vez. Nessa altura, não gostava dele, mas agora acho que é a pessoa indicada para mim. Recorda-me muito aquele rapaz da fotografia da parede da Book House. Veste-se da mesma forma, mas não tem uma moto. Tenho, agora, catorze anos. Não deixei que ninguém festejasse o meu aniversário. Obriguei a minha mãe a prometer que não faria planos. Disse-lhe à mesa da cozinha, um dia antes, que tinha de pensar muito na minha vida. Desejava pura e simplesmente passar o dia de anos sozinha. Queria caminhar sozinha e talvez ir passear com o Troy. Tive o cuidado de lhe vincar que não era minha intenção magoá-la, mas apenas precisava de passar algum tempo sozinha. Protestou bastante e não se cansava de repetir por que é que não podia escolher o dia a seguir para estar só. Acabei por lhe responder que me sentia confusa e queria voltar a casa, no dia do meu aniversário, com tudo esclarecido na minha cabeça. Garanti-lhe que não tencionava afastar-me muito de casa. Prometi-lhe que no ano seguinte e no outro, doces dezasseis anos, daria uma festa.

 

Portanto, passei o dia de anos sozinha, fui até onde costumo ir com o BOB. Estava escuro e tudo me pareceu um sonho horrível, até avistar um pedaço de corda por detrás do tronco da sua árvore favorita. Um calafrio percorreu-me o corpo, mas dominei-me. Tentei examinar a árvore com cuidado, descobrir algo que me explicasse o que o levara a escolher este lugar, esta árvore. Não havia nada. Certifiquei-me de que estava sozinha, antes de fazer o que tinha planeado.

 

Examinei as redondezas muito atentamente e quando não me restaram dúvidas de que estava só, tirei um cigarro de marijuana do bolso. Obriguei o Bobby a arranjar-me um. Queria partilhá-lo comigo, mas recusei. Talvez pudéssemos fumar juntos, mais tarde. Fumei muito devagar e comecei a pensar em sexo. Em homens, todo o tipo de homens, dentro de mim.

 

Tentei pensar em coisas de que o BOB gostasse. Tirei um par de cuequinhas do bolso e esfreguei-as na árvore.

 

Vestira-as um pouco antes de sair de casa para vir até aqui e, portanto, sabia que o meu cheiro seria forte... deixei de ter medo de poder cheirar mal. Acho que cheiro como é próprio de uma rapariga.

 

Quando ponho as cuequinhas debaixo do nariz e aspiro o odor, imagino uma rapariga na minha frente e de como um homem desejaria tocar-lhe. Aproximar-se. O BOB chama-lhe "ratinha". Quero tocar-lhe, ouves-me, BOB? "Quando as cheiro não sinto medo", disse para mim própria. Disse-o bem alto, muitas vezes, enquanto estava ali, a fumar e a pensar em todo o tipo de maneiras de tocar o Bobby... nas coisas que gostava de o obrigar a fazer. Pensei em tudo o que pudesse chamar o BOB. Acho que ele estava ali, mas escondido.

 

Fiquei, assim, muito pedrada e mergulhei na sujidade, esfregando-me nas folhas e nas agulhas de pinheiro do chão e ergui os olhos para a enorme árvore. Queria que a árvore me observasse e memorizasse o rosto da nova rapariguinha, que viera deitar-se ali. A antiga desapareceu. Teve de fugir. Apenas me sirvo por vezes da sua voz; é muito mais fácil conseguir o que desejo, quando falo meigamente e como uma miúda. Despi a roupa e comecei a acariciar os seios, lambendo os dedos e humedecendo depois os mamilos com a saliva. Descrevi círculos, como os rapazes o fazem com a língua.

 

Emiti ruídos, quando me soube bem. Gritei bem alto, quando os belisquei com força e os pus vermelhos.

 

O vento começou a levantar-se e sentia-o agora roçar no meu peito descoberto e lembro-me de dizer: "Oooh, o que quer que isto seja, gosto... Sim... Gosto muito." Comecei a sentir-me molhada dentro das cuequinhas... portanto, pus-me toda nua e falei alto com o BOB, enquanto acariciava o meu botão secreto. Disse: "BOB... Bobby... A Laura tem aqui um docinho para ti... bom, lavado e... uhmmmm... aposto que também sabe bem... Vem, BOB... vem e brinca..." O vento continuou a soprar, mas nunca vi o BOB.

 

Vim-me como nunca me acontecera antes. O meu corpo estremecia convulsivamente e tive de me agarrar à árvore, arrancar a casca num sítio, agarrar-me de novo, escavar com as unhas... e depois tudo abrandou. Sentia-me tão quente com a marijuana e o meu pequeno espectáculo ali na mata, que quase dormi uma sesta, ali no chão, nua. Mas não podia fazê-lo. Ganhei esta parada. Ele não aparecera. Pouco importa ser de dia ou de noite. Provei-lhe que não tinha medo. Acariciei-me debaixo da sua árvore. Chamei-o e meti-o a ridículo. you passar neste teste... Verás. Se o BOB quer vulgaridade, apenas preciso de algum tempo. Posso ser a rapariga má que ele deseja.

 

Ao sair dos bosques, quase morri quando uma coruja surgiu a voar em círculos baixos, do nada. Senti-lhe o poder das asas quando passou ao meu lado como uma flecha. Pensei na Mulher do Tronco. Numa coisa que me disse: "Muitas coisas não são o que parecem."

 

Isto costumava, aparentemente, assustar-me. Este lugar, o mínimo pensamento em me tocar e gozar, assustava-me. Deixou de ser assim. Este lugar que visitei não é o que parecia. Vejo, agora, que é um lugar escuro, mas gosto dele. Acolho-o. Não o combaterei, mesmo que se esgueire até bem dentro de mim e me corte. Descobri luz e prazer no meio deste horror. Ainda não terminei o meu plano.

 

Voltarei, BOB. Voltarei para me abrir e fechar-me à tua volta, como nunca pensaste que seria capaz. Voltarei.

 

Laura.

 

QUERIDO DIÁRIO,

3 DE AGOSTO DE 1986

Apenas para te encher um pouco mais, conto-te que passei o resto do dia com o Troy nos estábulos. O facto de estar perto dele descontraiu-me e regressei a casa mais tarde, sentindo-me muito forte e renovada por dentro. Não alimentei pensamentos de que era má ou estava a agir mal, fazendo isto. Ia deixar de ser magoada e atormentada por este homem. Um homem de que apenas conheço o primeiro nome. Ignoro onde ele vive, ou de onde vem. Mas conseguirei que volte. Um jogo de tortura deixa de ter graça, se a vítima grita por mais.

 

Isto passou-se há quase duas semanas... não, talvez uma semana. Tenho-me concentrado muito ultimamente. Encontrar-me com o Bobby Briggs é divertido. Está onde quero que ele esteja, com tudo o que quero que traga. Ainda ontem, decidi que ele já esperara demasiado tempo para estar comigo da forma que desejava. Também eu começava a cansar-me daquela cena das carícias e de regressar a casa com a impressão de que me tinham enfiado uma rolha, que tapara tudo aquilo que eu quisera soltar. Tinha, no entanto, de o levar a acreditar que era a jovenzinha de catorze anos que aparento...

 

A minha mãe e o meu pai ausentaram-se durante toda a tarde e disse-lhes que estaria fora quase tanto tempo como eles, mas que queria ajudar a preparar o jantar nessa noite, e, portanto, não voltaria depois das seis e meia. O rosto da minha mãe resplandeceu ante estas palavras. Tenho de manter os meus pais felizes.Tenho de continuar a amá-los, como seria de esperar da sua fiIhinha. Tenho de aguentar o que não escolhi, mas muito simplesmente recebi. Duas vidas. Duas vidas muito diferentes.

 

A Laura mais indecente tinha um encontro com Bobby Briggs na Low Town. Ele disse que conhecia um celeiro abandonado, onde ninguém nos descobriria. Agradou-me a ideia de que o teria a sós num lugar onde poderia pô-lo louco. Durante uns momentos, senti-me nervosa, pois apercebi-me, subitamente, de que este não era o BOB que eu odiava, mas o jovem Bobby, que se fazia de valente diante da sorridente Laura Palmer e perguntava se ela lhe pertenceria. Mas de qualquer maneira, tocaria a música que ele precisava. Sabia que ele estava consciente de que eu nunca fizera amor com um rapaz até então... Sabia que seria diferente com alguém que se importasse comigo... Sabia que isto poderia arrastar-me de volta aos meus treze anos, quando aprendi a amar as mãos de um homem num ribeiro, pela noite dentro, e chorei por ele se ter ido embora tão depressa. Não podia deixar que isso viesse ao de cima. Sabia que tinha de ser forte. Podia ser que o BOB estivesse a observar-me agora... em qualquer momento. Não podia apaixonar-me... e muito menos expressá-lo.

 

Bobby foi um encanto e percebi que estava nervoso, porque as palavras não lhe saíam naturalmente e o cobertor, que trazia nas traseiras da bicicleta, não se abriu quando se esforçou, diligentemente, por o estender.

 

Isto enervou-o imenso, porque eu balançava uma garrafa de vodca, uma garrafa pequena para dois, e um cigarro de marijuana (um pedaço de erva) entre os dedos e não tinha o equilíbrio desejado, o que me obrigou a cair de joelhos para não partir nada.

 

Saiu-se muito mal, mas dei a volta de forma a que ele se achasse mais um herói do que um idiota. Não foi nenhuma destas coisas, mas deixei que me ajudasse a pôr-me de pé e me amparasse com os braços. Apenas pensava em como podia beber um gole e fumar uma passa para me descontrair. As coisas ocorrem-me com muito mais facilidade quando estou solta e me sinto confiante. Um dos motivos que me leva a gostar mais do Bobby é que ele me arranja erva, sempre que quero... consegue que um amigo nos compre álcool, sempre que quero. Gosto desta sensação, desta espécie de devoção. Gosto da forma como ele se movimenta, com pequenas ondas formando-se no seu interior, quando me debruço mais e lhe digo: "Não consigo esperar, mas prolonguemos o momento." Do seu sorriso imediato e da prontidão com que me deixa tomar as rédeas do gozo.

 

Era, afinal, a primeira vez, que eu iniciava uma experiência sexual com interesse e afecto, um pouco controlada. Sabia que ele assumiria o comando, mal sentisse que lho permitia. Mas, de momento, para que continuasse a trazer-me pequenos presentes, queria que sentisse que valia a pena... que não tinha escolhido um peixe morto, como prometi que jamais o seria.

 

Uma hora depois, após me ter entretido o bastante com os seus lábios e lhe ter dado ocasionalmente uma passa ou vodca, estava pronta e disse-lhe que se deitasse de costas e imaginasse o que lhe apetecesse. Disse-Ihe que construísse um sonho dentro da cabeça e deixasse que a imaginação me seguisse. Chegara o momento para ele e ambos o sabíamos. Recebi-o todo em mim e surgiu-me uma imagem da mão de BOB enquanto o fazia... enquanto me colocava a mão nele... e, depois, vi-me de volta ao celeiro. Abrandei, descobri o ritmo que lhe agradava, mantive a língua em movimento e deixei que saísse e entrasse, seguindo os ruídos que ele fazia, os gemidos... ouvindo-o meigamente, certificando-me de que o mantinha onde ele desejava estar.

 

Desta vez não era a altura para o titilar e privá-lo do gozo. Veio-se como sonho que os homens o fazem... com um jorro depois de uma longa ascensão pelas entranhas, chegando ao cimo com uma expressão de surpresa e medo... gratidão. Um sorriso.

 

Passámos cerca de uma hora agarrados um ao outro, até que aconteceu e ele se esgueirou para o interior. Abri os olhos e observei-o, enquanto ele mantinha os dele fechados. Afastei a memória, o desejo de tudo isto. Sentir-me assim teria sido tão fácil e, no entanto, não podia deixar que a força me abandonasse.

 

Movíamo-nos juntos e verifiquei que tudo se tornava mais fácil e conseguia, de facto, gozar, se fechasse os olhos. Podia mover-me com ele, rolar e pôr-me em cima, colocar as suas mãos onde gosto de as sentir. Ele é tão bom para mim, sem pronunciar uma só palavra. Quis que ele soubesse como era maravilhoso, estar assim abraçada, sem querer sair, apenas desejando cada vez mais de mim! Rolámos, unimos movimentos e apenas nos separámos horas mais tarde, quando era impossível continuarmos.

 

Sentia-me realmente satisfeita, como se todos os anos de tormento e chicotadas emocionais se tivessem libertado. A barra de ferro, que imaginava estar a aguentar-se direita, estava a flectir, transformando-se em carne e flacidez. A tensão e a ansiedade que senti durante tanto tempo, sobre como seria quando alguém realmente me desejasse! Não porque quisessem que chorasse ou morresse lentamente de uma tristeza, a que me era impossível dar um nome. Alguém que se interessasse pelo que eu sentia e quisesse ter a certeza de que fora bom. Senti-me como me devia sentir, como todas as raparigas se deviam sentir... mas era incapaz de esquecer que havia outros mundos em que pensar. Outros momentos. Um despertar brusco às horas mais remotas da noite. Um homem junto da minha janela, sorrindo... propondo um desafio, ao agitar uma luva negra. Mantive-me deitada, a interrogar-me sobre se ele voltaria em breve ou se pela minha simples decisão de que já não me assustava, estava, de alguma maneira, eliminado.

 

Não podia continuar a agarrar-me a sonhos destes. E, de repente, surgiu um terrível problema. Um terrível e triste problema, que tive de enfrentar sem a emoção que tanto desejava oferecer! Da boca de Bobby saíram, lentamente, palavras de amor e depois confissões. Pouco depois, promessas de lealdade e felicidade eternas.

 

"Laura, Laura, não posso permitir que ouças isto. Limita-te a vê-lo mexer os lábios e não o ouças", continuava a repetir para mim própria. No entanto, o Bobby falava a sério. E ele era, afinal, o rapaz que me tinha admirado durante anos, que me puxara pelas tranças enquanto as usei, e fez questão de passar ao meu lado, pelo menos uma vez, no átrio do liceu ou de encontrar os meus olhos nas aulas. Sorrir, como se se tratasse de um cruzar de olhos ocasional.

 

Sabia que ele planeara isto. Mas a Laura que correspondera ao seu amor, a rapariguinha que esperara tão ansiosamente que ele fosse atrás dela quando chegasse a altura, não pode ir lá para fora brincar. Está, no interior, a descansar. Bem dentro, enroscada na metade mais corajosa de si. Aquela que acha este rapaz satisfatório, claro, mas sem mais interesse do que isso. Não existe força nele... nenhum desafio. Mantê-lo-ei dentro de mim, guardá-lo-ei para ela, quando ela puder voltar em segurança. Estas palavras de amor são, contudo, demasiado reais, demasiado inocentes. Este rapaz, tão jovem, é apenas um mensageiro para a Laura, que vive agora neste lugar.

 

Vi-me obrigada a fazer algo cruel. Algo que possivelmente o levaria a rever toda a ideia que fizera de Laurã. Tinha de a ver como algo que nunca julgara existir. Tive de troçar dele. A sério. De me rir, até o brilho dos seus olhos desaparecer. Tive de o abater, sem permitir que parecesse tão atraente à mesma jovem Laura, que o BOB quer. Aquela que tenho a certeza que espera. Para me salvar, tive de me rir na cara de um rapaz, que, agora, pode nunca mais voltar a ser tão leal.

 

Tive de o fazer! Por que é que me magoa tanto defender-me? Onde parava este amor, quando eu estava, de joelhos, a implorá-lo? Raios. Sei que o magoei... Espero que algum dia ele venha a compreender o motivo. Jamais esmagarei alguém como fui esmagada. Se tivesse sido eu o alvo da troça, ignoro se conseguiria voltar a recompor-me, se alguma vez me aproximaria novamente de alguém com o mínimo elogio que fosse, pois a recordação da troça ainda soaria aos meus ouvidos.

 

Sinto-me outra vez envergonhada e confusa pelas coisas que me acontecem. Será uma partida que o BOB está a pregar-me? Um outro teste? Arruinar a minha hipótese de amor com o rapaz indicado, forçando-me a humilhá-lo como o fiz, e ter-me tornado agora mais fria e mais amarga por causa das suas cicatrizes?... Será que o Bobby vai recompor-se e compreender que não o fiz intencionalmente? Ou fui atraída a destruir um romance que me protegeria, pelo menos, durante o dia?

 

O que quer a vida de mim? O que fiz e o que you fazer, agora? Apenas desejava parar a dor e não começar a espalhá-la dentro de mim.

 

Estou a pensar... estou a pensar.

 

Tudo o que tinha de ser feito, foi feito. Se se trata de algo que o BOB fez, então apenas lhe darei uma vitória surpreendente, se mostrar qualquer pena... qualquer remorso. Não posso importar-me. Tenho de acreditar que o Bobby voltará, a abanar a cauda. Se isso não acontecer, exercitarei o assobio a que responde. Permitirei que o rapaz conquiste a minha atenção para lá do prazer do celeiro, para lá dos beijos que apenas dou quando sinto e não por dar. Tornar-me-ei uma profissional da ausência de sensações.

 

Descobrirei uma forma de o conseguir. Não posso desistir. Nem sequer acredito que o que estou a viver seja real. Estou perdida. Perdida. No entanto, uma Laura mais forte e manipuladora está a levantar a cabeça e a abrir-se a todas as ameaças e diversões somente jogadas no escuro.

 

Quando descobrir quem ele é, you denunciá-lo a todos!

 

A uma Nova Força, Laura

 

QUERIDO DIÁRIO,

3 DE AGOSTO DE 1986

Passa um pouco das dez horas da noite daquela desgraça com o Bobby Briggs. Sinto-me admirada ao escrever que ele telefonou ainda não há quinze minutos e... com um chorrilho de palavras, que mais pareciam ensaiadas do que sentidas, desculpou-se por ter recitado todas aquelas juras de amor, quando talvez isso não me agradasse num rapaz. Que talvez eu desejasse alguém que tivesse de ser domado um pouco, antes de tudo aquilo sair... Acrescentou que fora sincero, mas que errara ao expressá-lo tão depressa.

 

Tudo aquilo me soou como se as palavras tivessem sito todas escolhidas de um dicionário e foi-me impossível deixar de desejar, por instantes, estar morta. Aqui estava ele a desculpar-se por algo que eu e, tenho a certeza, certas raparigas de qualquer lado, mesmo fora de Peaks, sonham ouvir da boca de um rapaz. Ele escolheu as palavras com cuidado, tentou provar que, mesmo horas depois do seu orgasmo, continua apaixonado. Um outro milagre... e o que é que eu faço? Sou obrigada a manter-me silenciosa do outro lado do fio, a abafar palavras de amor do meu coração, apenas com medo de que tudo isto seja parte de um esquema pensado para me empurrar, sem travões, pela estrada da loucura.

 

Sou prisioneira de uma parte de mim que odeio. Uma parte rígida e masculina de mim, que veio à superfície para lutar, após pequenas recordações e cicatrizes saírem do meu íntimo com uma rapidez tão racional quanto assustadora, e luto para salvar a Laura que desejo poder voltar a ser. Aquela que todos julgam que ainda existe. Eu, com um vestido leve, o cabelo ao vento e um sorriso desenhado no rosto, pelo medo doloroso de que um homem possa visitar-me a qualquer momento desta noite e tente matar-me.

 

QUERIDO DIÁRIO,

4 DE AGOSTO DE 1986, 3 30 HORAS DA MANHÃ

Ocorre-me, agora, que decidi entrar no jogo. Depois de o ter repetido vezes sem conta, invade-me, finalmente, a via da resolução de me juntar a ele com o simples propósito de combater. Juntar-me à escuridão, agarrar-me, talvez, ao pouco espírito de luta que me resta e utilizá-lo como a força que ele sempre deveria ter constituído.

 

Ah, a justiça da vida. Neste momento especial em que uma mão, visível ou verbal, esvoaça sobre a minha cabeça e grita "Pára", ela está a morrer! Esta criança está a morrer, sem um único traço de segurança que todos os outros parecem afastar, como se fosse indesejável.

 

Procurei cuidadosamente e descobri um espaço dentro de mim que me diz que é quase tarde de mais, os meus olhos não são os de uma jovem de quinze anos, mas os olhos de alguém que teve medo de examinar o que a rodeia e questionar as coisas mais simples. O meu espírito, continua ele, não é o espírito de uma jovem, que imagina a vida como uma série de camisolas quentes, enquanto o frio passa ao seu lado.

 

Avisa-me de que o espírito em que vivo pertence a alguém que sabe demasiado da vida e de como ela termina, na maioria das vezes, sem aviso. Como nos aplica golpes, como nos incita a sonhar quando de facto é inútil. Consegue detectar que há um plano neste planeta que se me destina. Este espírito sabe.

 

A realidade de que é impossível escolher os acontecimentos de um dia ou mesmo de um instante surge, quando, mesmo antes de se abrir os olhos para ver a luz do dia pela primeira vez, alguém misterioso e dotado de um imenso poder diabólico nos escolhe. Agita um caleidoscópio com vários tipos de risadas e dedica-se a um simples jogo de escolha.

 

Laura.

 

QUERIDO DIÁRIO,

6 DE AGOSTO DE 1986, 4.47 HORAS DA MANHÃ

Não posso render-me ao sono, pois tenho de ver o BOB, quando ele aparecer através da janela. Tenho de estar preparada.

 

Tenho pensado muito na minha vida. Estou a ficar mais velha, sem a minha permissão. Acho que quando ele vier buscar-me, ou sairei de casa e regressarei magoada, embora satisfeita pela morte brutal de um inimigo, ou nunca mais voltarei. E admitirei, silenciosamente, na morte que ignorava a força ou a vontade do meu visitante.

 

De momento, estou meio atordoada, meio em carne viva. Uma rapariga que ainda consegue levantar-se todas as manhãs e sair do lugar que, nos últimos tempos, só quando forçada recorda que se chama casa. Como se nada passasse mais despercebido do que o rasto de sangue deixado atrás de mim, quando saio.

 

Tenho a certeza de que o BOB conhece todos os meus movimentos. Que este horror que se intitula um homem, se senta lá no alto quando o Sol brilha, ou talvez se enrosque lá em baixo. Pouco importa. Vigia-me com uns olhos que penetram até ao fundo, detectando cada mancha de dúvida, sentindo cada batida do meu coração quando um rapaz passa ao meu lado, cada um dos beijos de uma mãe, que desconhece a enorme distância a que se situa agora o quarto da filha.

 

Todos os dias tento memorizar o rosto, que me devolve o olhar do espelho. Imagino que me porei a milhas se o comparar com o que resta de mim e que sonho muitas vezes que não tardarão a descobrir.

 

Sinto uma raiva tão grande e a urgência de atacar o céu, de chamar mentiroso ao vento por nunca se mostrar. Uma urgência de gritar contra os dois que permitiram o meu nascimento. Gritos de socorro a qualquer pessoa que os ouça. Gritar na rua que há falta de milagres na própria mãe Natureza. A sua divindade é uma mentira.

 

Fui levada para uma floresta cheia de árvores. Verificou-se de todas as vezes uma cirurgia de uma estranha e indescritível natureza. O sangue jorra. A mãe Natureza não eliminou este mal, nem abriu a sua mata, de forma a deixar escapar um grito de socorro. Em vez disso, acolhe este homem e mantém-no a salvo da descoberta, a salvo da luz do dia. Ele sabe que o planeta não o atraiçoará. Esta luz virá e ficará, partindo meramente para voltar à hora prevista. Ele tem uma garantia. O hábito do Universo, exigindo, vantajosamente, uma adaptação de doze horas dos dois hemisférios.

 

A sua hora é a noite, a hora em que a salvação é menos viável e quando a maioria dos que têm esperanças puras, sonhos e recordações de sacudirem os balouços se encontram profundamente adormecidos. com os olhos movendo-se depressa por baixo das pálpebras. Sem nada verem.

 

Nunca há um barulho que perturbe os que dormem no quarto ao lado. Tão-pouco o mundo pende um pouco a meu favor, fazendo uma votação e provocando o abrir de uns olhos... que vejam o homem... que vejam a forma como os seus olhos não desfitam a imagem do meu rosto, distorcida num grito. Não há qualquer explicação para o motivo por que me escolheu, nem mesmo se tem um plano final.

 

Só me resta esperar. Manter os meus olhos cansados abertos com a energia de um lutador. Um combate para se ver quem é de facto o mais sombrio. Quem, quando forçado a ver o outro lado, sobreviverá realmente?

 

Estou sentada, aguardando a sua chegada, mantendo-me acordada com o pensamento de que me acostumarei muito mais facilmente ao escuro do que ele à luz.

 

Laura.

 

QUERIDO DIÁRIO,

10 DE SETEMBRO DE 1986

Aqui fica o meu espírito e a sua recordação. Bem como uma característica de que o inimigo se encontra demasiado privado: a consciência. "Culpa" é apenas uma palavra que ele usa para me silenciar. Não tem a mínima consideração pela mortalidade, nem qualquer preocupação pelo risco.

 

Como poderia um tal intruso recear a morte ou a possibilidade de prisão e continuar a aproximar-se tão regularmente da minha casa, servir-se da minha janela como algo de familiar?

 

Troça de mim ao entrar vestido com a roupa de uma pessoa que poderia ser o melhor amigo. Um vizinho. Um caixeiro-viajante, que se faz eventualmente convidado, e vai ao ponto de pedir um café, antes de se dissolver na fantasia diurna que por vezes é?

 

Será que dos seus planos faz parte sentar-se a conversar, antes de arrancar a filha única da casa, do seu quarto e tratá-la como uma cobaia?

 

Ou estou a dar-lhe vida através do sonho e a matar-me aos poucos, ou ele falou da suas visitas aos meus pais e ofereceu, a troco da segurança deles, a continuação da suas visitas sem hipótese de interrupção. Passariam muito simplesmente ignoradas. Correio desinteressante, algures na casa. Penso que decerto me ouvem quando sou conduzida até lá fora. É possível que não se importem?

 

Laura.

 

QUERIDO DIÁRIO,

II DE SETEMBRO DE 1986, 2.20 HORAS DA MANHÃ

Não consigo deixar ficar claro até que ponto me perturba o facto de não constituir qualquer ameaça para ele.

 

Está demasiado a salvo com a ideia de que terá sempre acesso à minha casa e pode sair sem ser incomodado, e sem ruído. No escuro, sabe que conseguirá agarrar-me o pulso com força bastante para me silenciar e levar-me, como uma criança arrasta uma boneca, até um lugar onde está certo de que ninguém me encontrará. Sabe isto porque o lugar fica a quilómetros de qualquer outra luz excepto a que por vezes emana tão nitidamente da minha memória, dos seus lábios e olhos, a própria luz que me foi roubada. A rapariga que, desde que se consegue lembrar, fez um paciente esforço para tolerar e manter o segredo do próprio homem que quer roubar-lhe a inocência, sem jamais lhe permitir que amadureça, sem jamais lhe conceder as alegrias da maturidade. A fase com que esta rapariguinha sonhou desde que aprendeu a pular, a correr e a sorrir à mínima brisa, que a titilava. Ela foi dando mais e mais de si, de uma forma altruísta, esvaziando o delicado cesto da alma que tinha dentro dela.

 

Espero dentro em breve chamá-lo à minha janela.

 

Receio que ele esteja à espera de que me canse de todas estas noites gastas a escrever. Estes momentos em que saio e entro desta parte de mim que, desta vez, tem em mente abrir a janela e estender, voluntariamente, a mão. A parte de mim que duvida que algo exista, de facto, e que, por conseguinte, nada há a temer do lado de fora desta janela e encontro-me, assim, disposta a arriscar-me a ir até ao lugar habitual, sem luta. Eu que detesto um ruído ou uma palmada com força na nuca, não causarei a mínima transformação nos passos. A parte de mim que ensaiou os gritos de pedidos de mais e mais cortes, mais penetrações, mais insultos e ameaças e planeou prossegui-los, até que o seu apetite diminua antes de se tornar insaciável. O animal paralisado diante do cano da sua pistola, suplicando para ele preencher espaço na sua parede.

 

Afasta o medo. Programa-te. Haverá dor, mas nenhuma pior do que qualquer outra antes. Agarra-te à imagem da casa, da cama e do seu cheiro quente, enquanto te esfregas, esfregas, esfregas. A casa espera-te, como sempre aconteceu.

 

Brinca com ele, à semelhança do que faz contigo. Aceita que és má, suja e ordinária, e devias ser lançada aos lobos como carne estragada, e nunca deverás parir filhos, pois quem sabe os rostos por detrás dos quais ficariam aprisionados, desde o nascimento até à morte... Lembra-te de esquecer. Deixa uma abertura com o tamanho suficiente para aceitar o peso do seu corpo com ódio e métodos de submissão, que apenas se aplicam às partes emocionais de cada um, as mais importantes e insubstituíveis de todas.

 

Acredita que ele está somente intrigado pelo medo que provoca, a falta de interesse que mostras pela vida, quando volta a deixar-te em casa. A maneira como finge tocar à campainha, como troça de ti, da tua vida, das tuas esperanças, da tua mais privada insegurança, como te observa a lutares com o sentimento de que és indigna de entrar na casa onde deste os primeiros passos, sente como te observa a reteres uma lágrima, mesmo antes de te escorrer dos olhos se se procura, ele desaparece.

 

Como se se tratasse de uma religião, entoei cânticos de inspiração para mim. Gemi, escarneci, quase desejei que ele aparecesse e tal não aconteceu. Tenho uma dor de cabeça incrível só de tentar pensar nas suas fraquezas, quando, na realidade, nem sequer comecei a conhecê-las. Talvez esteja totalmente errada ao considerar que a sua lascívia se deve ao medo da sua vítima especial... Devo confessar-te, com toda a franqueza, que estou cansada de tentar esclarecer a situação e acho que se não adormecer rapidamente começarei a ver o BOB por todo o lado. Isto, será que preciso de dizer, não me conviria nada de momento.

 

Estou sozinha aqui e acabo por pensar no Bobby, que sei que me abraçaria de uma forma que não consigo imaginar mais ninguém capaz de o fazer.

 

Tem cuidado, Laura.

 

QUERIDO DIÁRIO,

l DE OUTUBRO DE 1986

Desculpa ter estado sem escrever, mas aconteceu um montão de coisas. Esta noite, quando comecei a despir-me para me meter na cama, o Bobby Briggs aproximou-se da minha janela. Uma visão bela e de sonho que me pôs nas nuvens. Diz-me que há uma festa a que não podemos faltar, em Sparkwood. Um amigo dele, o Leo do qual julgo que ouvi falar no ambiente de coscuvilhice que tantas vezes me apanha , vai dar uma festa. Avisei-o de que somente pensara a sério em me enroscar com ele e confessei-lhe que andava a perder mais sono do que o desejado para ser sociável.

 

Prometeu-me que não haveria problema em estar acordada, pois tinha um novo presente que queria que eu experimentasse e que, algumas vezes, dispensa por completo a necessidade de sono.

 

Estou fora da janela, Diário. Chiu!

 

Conto-te tudo, quando regressar. Estou a esconder-te... cautela com o BOB... por vezes ele vem tarde.

 

Laura.

 

  1. S. Acabou de me ocorrer que o nome de BOB é, em si, um aviso...

 

  1. BATALHA
  2. DE
  3. BOB

 

QUERIDO DIÁRIO,

3 DE OUTUBRO DE 1986

Não sei por onde começar! Voltei a casa na tarde do dia seguinte sem um único molestamento dos cães de guarda: a minha mãe e o meu pai. Mal me afastara da casa, quando me apercebi que estava a dirigir-me para lá da parte alta da cidade, para uma festa cheia de pessoas, pelo menos de seis a dez anos mais velhas... e pensava que regressaria ao nascer do Sol? Nunca na vida! Para já nem falar dos speeds que Bobby tinha para mim algures... pelo menos pensava ser essa a situação antes de chegarmos a casa do Leo... sou culpada do juízo errado do ano sobre ele.

 

De qualquer maneira, tenho primeiro de falar-te da teia complicada que teci, sem que um fio estivesse fora do lugar ou fosse posto em causa, quando cheguei a casa, perto das seis da tarde do dia seguinte. Preciso acrescentar que passei agora para uma grande privação de sono? Três dias e quatro noites... e tendo em consideração o presente que ainda me deram à porta antes de me vir embora, poderia ficar a pé até ao próximo mês, perdendo quilos, uns atrás dos outros, sem sofrer... (3,250 kg desde o último dia em que dormi). Descobri que seja qual for a droga que tomar, quanto menos durmo, menos como.

 

O bilhete dizia uma coisa simples e directa. Ignora-o se te aborrecer, mas acho que senti satisfação e alegria por atirar poeira para os olhos dos "velhos" (como o Bobby diz).

 

Mãe, são quase cinco da manhã e é em vão que tentei voltar a adormecer. Depois de quase duas horas de esforços, lembrei-me, de repente, da clareira onde passei a outra tarde. O Troy gostou tanto de pastar por lá e acho que um cobertor e um livro serão o cenário indicado para a distância que acho que preciso de sentir. Não de ti, mãe! É quase como se estivesse a ouvir-te a achares que tem algo a ver contigo, mas não o faças. Refiro-me apenas a querer estar longe das pessoas. Apenas umas horas com o meu pónei, o Troy, e talvez uma sesta na casa da Nancy Drew ou coisa parecida. Peço-te que não te preocupes. Telefonarei antes das seis, caso não esteja em casa a essa hora.

 

Um beijo, Laura.

 

Passei toda a noite na festa mais louca de sempre e a minha mãe estava calmamente em casa, imaginando-me absorta com as frases de um bom livro, enroscada, confortavelmente, na relva. Preciso de levar o Troy a passear esta noite... seja como for... merda... Só agora pensei nele. Espero que o Zippy não telefone a propor levar o Troy a sair... raios. Volto já. Tenho de dar uma apitadela para os estábulos.

 

Portanto, o Bobby tinha pedido emprestado a carrinha ao tio para essa noite e desde que nos afastássemos da 21 não corríamos o risco de nos mandarem parar... Bobby sem carta de condução... eu sem dormir e com uma mentira das grandes aos meus pais?... Estás a ver?

 

E partimos com a música aos berros e despropositada para os anos da carrinha... tive a sensação de que tudo daria certo. A forma como as folhas das árvores se agitavam, a velocidade da carrinha, a música, a minha coragem quando comecei a despir-me e a enfiar o meu presente de aniversário, enviado VIA AÉREA, pela prima Maddy. Cheguei a contar-te que, na semana passada, lhe falei durante quase uma hora? bom, este vestido é de morte, justo ao corpo, e com um soutien no sítio do peito que, permitia, se se quisesse, manter os seios bem salientes em vez de caídos, como acontece com a maioria dos vestidos. O Bobby quase nos matou, quando só falhou um choque com uma árvore por meio centímetro. Disse que teria valido a pena morrer com os meus olhos "Fixos nuns seios tão suaves como os teus". Não te soa a uma canção country ou coisa parecida? "Fixos nuns seios tão suaves como os teus."

 

O Bobby levou-me até um dos lados da carrinha, antes de entrarmos na casa. Beijou-me e depois acrescentou que era importante que eu soubesse que o Leo, é um tipo porreiro, divertido, e que sabe conversar. Em seguida, abanou a cabeça com um drástico "Não". Quis saber o que raio é que ele pretendia dizer, ou seja, o que acontecia se eu fizesse o que ele recusava com o "Não"? O Bobby voltou-se no preciso instante em que transpúnhamos a ombreira da porta e respondeu: "Esta noite não é importante. Tenho quase a certeza de que te manterás comigo... mas nunca fodas esse tipo. Ele está metido numa estranha merda, esse Leo, minha..." Acenei com a cabeça e fiquei de imediato, sem dúvida, intrigada com a frase "numa estranha merda" no seu contexto sexual. O Bobby foi buscar-me uma cerveja, suponho, e o Leo aproximou-se. Merda... estava mesmo ali.

 

Ambos o soubemos e ele disse: "Laura Palmer... quem diria? Da última vez que te vi, a velha Dwayne Milford estava a oferecer-te uma placa, ou coisa do género... qualquer prémio que ganhaste?..." Tive de o interromper.

 

"Melhor aproveitamento/Cinco anos consecutivos."

 

Perguntou-me se tinha provas de qualidade e garanti-lhe que provas não me faltavam, mas que estava prestes a adormecer e a morrer de sede ao mesmo tempó. Chamou o Bobby e fiquei contente, pois apercebi-me de que estava a entrar num quarto, com avisos e tudo.

 

(Aguenta aí. Tenho umas coisas a fazer... Estou quase a contar-te uma coisa incrível. Aguenta aí.) Estou, portanto, neste quarto com o Leo e o Bobby e, no preciso instante em que vamos passar o tubo do sniff, abre-se a porta de uma casa de banho. Uma casa de banho independente do quarto... e a Ronnette Pulaski apareceu, dando a sensação de ter desistido da comida enlatada e começado a cuidar bastante de todas as partes do corpo, excepto do nariz. Estava bastante pedrada e só pela maneira como o Leo acenou a cabeça na sua direcção e lhe fez um cumprimento rápido, levou-me a acreditar que isto era normal.

 

Queres ouvir uma coisa curiosa... até agora ainda não ficara bem claro na minha cabeça, mas quando ia até ao lugar onde o BOB me leva... e dizia que, por vezes, costumava cheirar as minhas cuecas e desejava pôr a cabeça entre as pernas de uma rapariga e prová-la... (Céus, por vezes, parece-me certo dizer, outras não consigo!) bom, de facto e no momento apenas pensara na Ronnette, pois ela era a única rapariga, à excepção de Donna, que vira nua... estávamos juntas numa festa de convívio há talvez uns dois anos e éramos as únicas que tínhamos de trocar de roupa a meio do programa... e, portanto, mudámos... e sorrimos uma para a outra... acho que me senti atraída por ela... pelos seus olhos, que pareciam tristes e frios. Gostei do seu corpo... de qualquer maneira, era estranho vê-la assim, ali. Não faço ideia do que ela pensa a meu respeito... duvido que seja oportuno perguntar. Apenas preciso de acrescentar que correm boatos de que Ronnette e eu nos "vemos" sempre que temos oportunidade. A minha mãe teria de ser mandada para os Haywards, senão mesmo para o hospital, e o meu pai certamente pensaria que estávamos a conversar de um novo jogo... quem sabe? Quem quer saber!!!

 

Céus, estou tão pedrada, que não consigo impedir-me de escrever, como que mil palavras por minuto. Espero para teu bem que isto esteja legível, porque, Deus sabe, não estou em estado de abrandar. Esta é a droga por que esperei toda a minha vida! Sinto-me forte, confiante, sexy, inteligente, com uma frieza do caraças, devo dizer, e nem uma única pessoa na noite passada se referiu à minha idade. Consigo aguentar as rédeas... Senti as vibrações mal entrámos.

 

Sabia que ia ser uma festa assim, como o Bobby disse. Tudo a foder como loucos pelos cantos. O Leo observava com praticamente cem por cento de concentração e o Bobby e eu tivemos de ir ver também.

 

Raios! Havia aquela franguinha, deitada e com a saia puxada para cima e apostava que ninguém conseguiria pô-la nas nuvens... e seriam cem dólares para quem ganhasse.

 

Lembra-te bem de que eu estava na festa há bastante tempo e, nesse instante, numa de calma e em simultâneo ligada à corrente... Passei os olhos por todos e a minha expressão devia ser elucidativa, pois o Bobby puxou-me um pouco para trás pelo braço e respondi-Ihe que queria experimentar, caso ele não se sentisse incomodado, e ele limitou-se a fitar-me como se eu já não fosse mudar de ideias... portanto... nem me parece que lhe passasse pela cabeça que eu fosse tomar isso em consideração...

 

Perguntei se podia falar ao ouvido dela em particular... antes de tomar uma decisão, e ela respondeu que adoraria ouvir a minha voz bem perto... portanto, debrucei-me e disse: "you fazer com que te sintas mesmo bem... Já perdeste os cem dólares..."

 

Levantei a cabeça por momentos e quis saber se ela estava descontraída. Respondeu que a invadia uma estranha sensação de que eu sabia o que estava a fazer... ajeitei-a melhor no sofá e beijei-a, ao de leve, nos lábios...

 

Antes mesmo de eu lhe ter tocado, ela quis que soubesse o seu nome... respondi que lhe chamaria o que ela precisava de ouvir. Ela começava a excitar-me, o que não estava nas minhas previsões... mas ajudou, pois houve um unir de sensações, como que um clique.

 

Afastei-lhe as pernas e disse-lhe que era bonita e se o sabia. Ela acenou com a cabeça. Disse-lhe que não conseguia ouvir o que me dissera e gritou: "Sim!" Sorri... "Sim, o quê?", insisti. "Não te ouvi..."

 

Respirou fundo, levou os dedos à boca e os rapazes, que estavam por detrás dela, puseram-se a gritar: "Sim."

 

Ouvi que alguém, no fundo da sala, deixava cair o corpo e dizia: "Merda, meu, esta rapariga vai levá-la a fazê-lo... ela até lhe pede, meu..."

 

Sabia que ela queria dizer coisas que não era. Certifiquei-me de que ela tinha de pedir, gritar qualquer coisa... Sabia que ela queria ouvir que... para que os homens presentes o ouvissem. Disse-lhe que todos a olhavam. Disse-lhe que todos podiam sentir e prová-la com os olhos... alguns homens esfregavam as mãos para limpar o suor. Sabia que estava a acontecer para ela, que apenas tinha de a manter em segurança... ela desejava-o muito e disse-lhe que era bonita. Pum! Começou a agarrar-me... a puxar-me os cabelos... a gritar: "Laura, Laura... Céus, o que me fazes sentir..."

 

Este tipo enorme estava a tentar abrir caminho e disse-lhe que se afastasse uns minutos... ele estava pouco disposto a obedecer, mas depois apercebeu-se de como a rapariga precisava apenas de um momento para si.

 

Pegou-me na mão e disse: "Há quase dois anos que não conseguia fazer isto... gostaria que voltasses aqui, se não te pus a milhas com o susto."

 

Ocorreu-me que era a altura apropriada para lhe dizer que também eu estava um pouco excitada... talvez pelos beijos ternos... Este tipo aproximou-se de mim e olhou-me fixamente.

 

"Miúda", começou e interrompeu-se. "Tinha mesmo de vir aqui olhar-te, ver a tua pele." Sorriu. "Nunca vi tantos homens deixarem de a olhar como se ela fosse um zero, para desejarem estar no teu lugar."

 

Respondi-lhe que ainda bem que gostara... Não fora minha intenção interromper esta festa como o fizera... Era-me difícil acreditar que o fizera... Acho que estou um tanto fora de mim... Acho que eles se foram embora porque eu fui...

 

"Ninguém se afastou mais do que o relvado com a tua imagem a pairar-lhes na cabeça", retorquiu, com um sorriso. "Voltam, mal tiverem dado à bomba."

 

A mulher conseguiu, por fim, levantar-se do sofá, aproximou-se e beijou-me no peito, no sítio onde o vestido tinha um decote...

 

Desejava que eu ficasse a saber que tinha uma dívida para comigo, caso os nossos caminhos se cruzassem de novo...

 

O Leo informou-me de que animei a sua festa e que os rapazes falarão muito tempo disto...

 

E a propósito de uma maneira estranha de conhecer gente...

 

Tenho de visitar o Leo muito em breve e saber quantos dos meus pensamentos o impressionam... Talvez ele faça algumas daquelas coisas estranhas de que o Bobby me avisou... Aposto que, de qualquer maneira, esta noite afugentei o Bobby... Não consigo perceber o que me deu, mas desejava aquilo... queria experimentar e assim foi.

 

Pouco me interessa quanto estou flashada ou estava... Foi óptimo fazer aquilo tudo... Podes apostar que tenciono repetir.

 

Laura.

 

DIÁRIO

14 DE DEZEMBRO DE 1986

Na noite passada sonhei com o BOB. Não foi de forma alguma agradável mas, na minha opinião, um pouco doentio, dado odiar a forma como me estragou... me fez sentir terrível e má por desejar amor ou afecto... Arruinou todo o meu orgulho e amor-próprio por um tempo infindo... Eu apenas conseguia ser bonita e meiga porque ser bonita e meiga era fácil... e com boas notas escolares melhor ainda. Ninguém me desejava... nem sequer podia dar a entender que sabia o que era sexo.

 

Estragou-me a vida, pois não? Quero dizer, no sonho, aproximou-se da janela da casa do Leo e viu-me. No sonho foi tudo muito mais indecente do que a realidade a noite passada. Ele continuou a insistir nesta minha imagem sem cessar.

 

E depois estava junto da árvore e dizia:

 

"NÃO TERIAS SIDO CAPAZ DE FAZER NADA DAQUILO SE EU NÃO EXISTISSE."

 

Respondi-lhe que estava errado. Disse-lhe que aprendi tudo o que ele viu quando estava sozinha, para que pudesse fazer alguma coisa que me levasse a sentir bem e conseguisse curar as feridas que ele abria.

 

Ele disse:

 

"AH, SIM? ENTÃO POR QUE É QUE QUERES QUE

O LEO TE AMARRE E TE COMA ASSIM, FAÇA DE TI A SUA ESCRAVA... SEI QUE O QUERES... EXACTAMENTE COMO TE ENSINEI, MINHA CABRA, VI-TE A ACARICIARES-TE... ESTAVAS A PENSAR NO INDECENTE DO LEO E NÃO NO BONZINHO DO BOBBY QUE CHORA DEPOIS DE TER SIDO FODIDO POR UMA PUTA COMO TU."

 

E acordei... Envergonhada. Horrorizada. Culpabilizada. E imaginei-o, de súbito, na minha frente, aos pés da cama.

 

"ESQUECESTE, LAURA. SEI TUDO, VEJO TUDO, you ONDE QUERO... PODIA FALAR-TE MAIS DO QUE JULGAS SEREM SEGREDOS DO QUE TU PRÓPRIA CONSEGUIRIAS DIZER A TI MESMA! DEIXASTE CAIR AS DEFESAS, NÃO FOI, DESTE-ME UM TEMPINHO DE FÉRIAS DAQUELE TEU FEDOR... DEPOIS TIVESTE DE CHAMAR-ME DE VOLTA... PUTA RANÇOSA! POR VEZES, TRATAS-ME BASTANTE MAL QUANDO ESCREVES, NÃO É! TEREMOS DE TRATAR DISSO. FAZER com QUE ME AMES COMO DANTES. RECORDO-ME DISSO... E TU TAMBÉM EM BREVE"

 

E depois desapareceu. Preciso de fazer algo que seja certo e bom. Hoje!

 

Quem é ele, foda-se, e por que me odeia tanto?

 

Quero morrer e esquecer tudo o resto. Não consigo aguentar mais. Quando começo a sentir-me bem, há sempre alguém que me faz sentir suja. Depois, há alguém que me beija e volto a sentir-me desejada e excitada.

 

Preciso saber se o que faço está certo. Não posso deixar que seja o BOB quem me levou a desejar que, por vezes, me amarrem.

 

Nem sequer desejo ser magoada. Nunca o desejei. Apenas quero jogar aqueles jogos em que, por vezes, tenho de dizer palavras sujas, mas não indecentes como o BOB pensa e, se for punida, que o seja com sexo e não com dor.

 

Não é o BOB quem me mete estas ideias na cabeça. Não permitirei que seja ele. Estes pensamentos são muito meus.

 

Receio ser incapaz de começar e acabar outra experiência sexual, sem sentir medo de que ele apareça e conte mentiras a toda a gente a meu respeito.

 

Se alguém que me ama ler isto, daqui a uns anos, que tente, por favor, não me odiar. Apenas sinto o que sinto. Não magoo mais ninguém, nem tão-pouco o desejo. Todos os dias tento ser melhor, da forma como acho que as pessoas desejam ver uma rapariga como eu.

 

Mas eu sou a Laura. Estou triste. Estou novamente triste, céus! Porquê? Falta-me o riso e um dia passado com os meus amigos, que não se importam com o que penso a altas horas da noite. Eles não me odeiam por, algumas vezes, sonhar quando a noite vai adiantada, com a mão entre as pernas, envergonhada e tão desejosa de que a minha outra mão puxasse muito simplesmente o gatilho.

 

Proíbo-te, BOB, que venhas visitar-me mais alguma vez, em sonho ou na realidade. Não és bem-vindo. Odeio-te.

 

Sinto-me tão só, Laura.

 

QUERIDO DIÁRIO,

10 DE JANEIRO DE 1987

Tentei falar com o meu pai ao pequeno-almoço e ele limitou-se a ficar sentado, esboçando trejeitos, como se não tivesse tempo para pensamentos fora da rotina. Não tivesse tempo para os estupores dos sonhos de suicídio que a sua própria filha tem. Nenhum dos meus pais está disposto a falar comigo... O que é tudo isto? Algum sonho?

 

O meu pai despiu toda a roupa e gritou: "É um sonho... Descontrai-te, sim, foda-se?... A tua mãe viu fotografias tuas a lamber as partes privadas de outras mulheres. E parecia óbvio nessas fotografias que estavas a gostar. É verdade?"

 

Nunca estive tão assustada como neste momento.

 

Nem sequer me apercebi de que estava a dormir, quando isto foi escrito... estava mesmo?

 

Merda! Isto é estranho de mais. Um pouco estranho de mais.

 

O BOB esteve aqui? O BOB esteve dentro...

 

Não pensarei no assunto.

 

QUERIDO DIÁRIO,

3 DE FEVEREIRO DE 1987

Não há cocaína. Desapareceu. Odeio a forma como me sinto... como se tivesse estado num aspirador, o meu corpo tivesse sido violado, todos os meus pensamentos, os meus sonhos, as imagens que tenho da minha mãe e do meu pai são, agora, imagens terríveis e depressivas que não consigo deter... Oh, se ela alguma vez soubesse as coisas que têm acontecido.

 

Interrogo-me sobre se alguém me acreditaria se contasse tudo o que sei a respeito dele... Podia arranjar maneira da Polícia lhe fazer uma espera quando ele aparecesse, só que ele o saberia como sabe tudo o que se passa na minha cabeça. Serve-se da minha mente como de um brinquedo. Algo que ele remexe com as patas. you ser obrigada a contar a toda a gente e fazer com que me acreditem. E dizer-lhes...

 

"DIZER-LHES O QUÊ, LAURA PALMER? DIZER-LHES QUE TE LEVO COMIGO E NUNCA PROTESTAS? NUNCA PEDES SOCORRO? DIZER-LHES QUE ME VÊS E OS OUTROS NÃO? NINGUÉM TE ACREDITARÁ, LAURA PALMER... SOU DEMASIADO PRUDENTE."

 

Deus do Céu... voltou a acontecer... Ele entrou na página... não era nada disto o que estava a tentar escrever! Assusta-me terrivelmente saber que o BOB arranjou forma de penetrar nas páginas do meu diário, como se incutisse as palavras no meu cérebro, com o espaço de segundos necessários para me levar a pensar que são minhas.

 

Há algo que possa conseguir-te, BOB... alguma coisa da família em troca

 

"CONCORDO. FECHAREI NEGÓCIO."

 

Quem será?

 

"NÃO POSSO DIZER, com TODAS ESTAS COISAS... POSSO MUDAR DE OPINIÃO."

 

...Era o que pensava.

 

DIÁRIO,

2 DE ABRIL DE 1987

Preciso urgentemente de coca ou não me safarei.

 

Tenho de contactar com o Bobby. Onde é que ele está, quando preciso dele, foda-se! Mas que situação porreira! Aqui estou eu, Laura Palmer, uma estudante premiada, cidadã modelo de Twin Peaks... e viciei-me no que acabei de começar.

 

Não estou preparada para isto... Continuo a ter medo que o BOB esteja à espera.

 

Se estiver nos bosques, virá buscar-me agora, pois, diabos me levem, se não estou a planear snifar uma boa e grande linha pelo nariz, dentro de meia hora. Uma enorme linha branca que chama pelo meu nome, como um amante o faria. Quem me dera que o BOB negociasse. Se o fizer, tentarei encontrar a pessoa e avisá-la contra "O HOMEM QUE PODE ESGUEIRAR-SE E ENTRAR E SAIR DE NÓS COMO UMA BRISA EM QUE NINGUÉM REPARA E DEPOIS TREPAR E ENFIAR UM PUNHO NO ESPAÇO DA MULHER, QUE TANTO PARECE AGRADAR-TE, LAURA PALMER... NÃO DEVIAS DESEJAR COISAS... NÃO CONSEGUIRÁS O QUE DESEJAS, CERTIFICAR-ME-EI DISSO.

LEMBRA-TE, LAURA PALMER, DE QUE POSSO MANIPULAR O TEU CONSCIENTE, DE FORMA A QUE APENAS SINTAS O QUE QUERO QUE SINTAS. NÃO TE SINTAS A MORRER, LAURA PALMER... NÃO TE SINTAS PRESTES A ENTREGARES-TE DE NOVO A MIM. ACEITA-ME DE VOLTA E NÃO CAUSAREI UM TERRÍVEL ACIDENTE, MAIS TARDE, HOJE. SE ALGUÉM SAIR MAGOADO, BEM PODES SORRIR com A CERTEZA DE QUE A CULPA É TODA TUA. EGOÍSTA, TOXICÓMANA, LÉSBICA!"

 

Vai-te foder!

 

Talvez que se for a casa do Leo para arranjar coca, posso arrumar toda esta merda e recuperar a liberdade.

 

A minha privacidade mental, toda ela. you recuperá-la. Pertence-me. Apenas preciso de um pouco de coca... Preciso de uma viagem para longe daqui... foda-se! you caminhar. you descer as escadas e sair pela porta da frente, como se nada se passasse. Arranjarei coca e tudo ficará melhor. Serei capaz de pensar. you até à casa do Leo e tudo ficará como deve ser. you levar-te comigo, Diário...

 

Laura.

 

QUERIDO DIÁRIO,

2 DE ABRIL DE 1987

O Leo estava com companhia feminina e não eram capazes de chegar à porta.

 

Oh, céus... dinheiro... merda! Talvez ele me dê a coca e possa pagar-lhe mais tarde ou... espera, ele vem a sair de casa.

 

Falaremos daqui a pouco, L.

 

Espero que o Leo seja justo com o preço da coca. Espero. Espero.

 

2 DE ABRIL DE 1987

 

De volta e feliz da casa de Leo:

 

Ele arranjou e é da boa. Deu-me urna quarta para snifar... e a minha cabeça está de novo a organizar-se no meio dos arquivos mentais... sinto o sangue a correr nas veias... disse ao Leo que não estava dependente, mas que não dormia há tanto tempo... Espera!

 

O BOB desapareceu. Não o sinto por perto. Talvez porque a coca me bateu bem. Talvez esteja louca e o imagine... Não, foda-se! Apenas sou louca se acreditar que ele apenas existe na minha imaginação... ele é real. Sei que é real. Não poderia, nem inventaria algo de tão diabólico como o homem de quem falo.

 

Começo a tornar-me, realmente, naquilo que o BOB disse que me tornaria. Uma rapariga decadente, abusada, indigna, perdida, que gosta de sexo e de drogas, porque estão sempre aqui, fazendo-me sentir tão pedrada quanto o espero... sem surpresas. Não consegues perceber que estás a matar-me, BOB? É esse o objectivo?

 

Tenho saudades de há um ano, quando mal conseguia lembrar-me de qualquer coisa... apenas sabia que em certas noites, ao regressar a casa, chorava bastante, e me escondia por detrás da porta da casa de banho, envergonhada. Lembro-me do que me dizias, meu grande merdas! Sei que me cortaste, quando eu era muito jovem, por várias vezes, e me disseste que estava metida em grandes sarilhos, porque tinha sangrado. Dizias-me que as crianças boas não sangram por entre as pernas. Dizias-me que eu não era filha de Deus! Houve alguma coisa em que optaste por me deixares sentir que era normal? Cresci contigo sempre aqui, mostrando-me as provas do meu sangue e natureza más. Eras essa voz... filho da mãe.

 

O Leo precisa de me ver por causa de dinheiro... Espero que esta transacção decorra suavemente, sem dor e em silêncio. Disse ao Leo que se o Bobby aparecer, preciso de falar urgentemente com ele...

 

Temos de descobrir outro passador apenas para esta noite... Foi a última dose pura, com excepção do stock pessoal do Leo. E é mesmo isso, pessoal. Se não tivesse tanta merda dentro da cabeça, não precisava de mais do que isto para a noite, mas preciso. Tenho de a arranjar. E tudo o que me resta agora, meu. A linha branca que me ocorre tão apropriadamente quando sigo por uma auto-estrada, ou vejo uma tempestade de neve ou o pó-de-talco de bebé na merda da minha própria casa, como se troçasse de mim.

 

Espero que consigamos arranjar mais. Depois destes últimos dias sem dormir, este maldito negócio do BOB... não consigo adormecer. É perigoso de mais.

 

"E DAÍ, LAURA PALMER? HÁ DOIS OU TRÊS DIAS QUE COMEÇASTE A SNIFAR.. ÉS UMA CABRA BARALHADA... CONTINUO AQUI."

 

Foda-se, BOB! Sou, portanto, o que sempre me disseste que eu era. Uma cabra, suja, ordinária e sem personalidade, que fode as pessoas para pagar a droga. Ganhaste. Alimentaste-me de dor, quando eu não a tinha e quando a tive, disseste-me que a culpa era minha... Acho que és o homem mais repugnante, diabólico e conivente que entrou na minha vida, para a qual não tinhas convite. Que raio queres tu? Troças porque nunca tiveste ninguém mais forte do que tu com quem discutir... Se conquistares alguém do género, então concor-

 

darei que ganhaste. Irei mesmo ao ponto de te seguir. Sem protestos.

 

Laura Palmer acredita que és uma fraude.

 

QUERIDO DIÁRIO,

24 DE JUNHO DE 1987

A noite vai adiantada e nem me preocupo em ver as horas ou avisar alguém de onde estou, ou se me encontro bem. Não me dou ao trabalho de pensar nisso. Não quero saber mais nada de mim, de ninguém... fui penetrada por demasiadas mentiras, à semelhança de balas que provocaram buracos... sangrando devagar. Só muitos anos mais tarde me aperceberia. Começaria a sentir a fraqueza. Cairia no mundo da droga. No mundo do sexo para ostentação e poder. Devido à força que pensava desejar, fui ter com as pessoas erradas.

 

A parte de mim com capacidade de decidir quanto ao que está certo ou errada foi roubada. Uma decisão minha dura apenas um momento, antes de me pôr a duvidar e a insultar-me por alguma vez pensar ser capaz de preferir o bem ao mal... Há muito que devia ter aprendido como te recordar. Talvez me pudesse ter esquivado a alguns momentos muito maus... sonhos muito maus e várias centenas de tentativas desesperadas para recuperar o melhor de mim. Aquilo que te acolheu. Aquilo a que deves toda uma vida.

 

Espero que tenhas conseguido o que necessitavas. Agora, deixei de poder ter coisas boas. Desconheço o caminho para a responsabilidade, como era meu hábito. É tão simples descer...

 

Mandei o Troy embora. Libertei-o com algumas chicotadas no flanco (um método que me fez correr durante algum tempo, como deves recordar-te, BOB).

 

Ele partiu. Não o mereço, nem ele merece uma vida que começa e acaba todos os dias numa pequena caixa quadrada. Uma recordação, se quiseres, de que não se é livre, mas se tem dono.

 

Libertei o pónei. Uma das últimas coisas que desejaria, antes de me lembrar de toda a tua... merda. Seja como for, deixou de ser importante.

 

Espero que o Troy compreenda por que o obriguei a deixar-me.

 

Receio tanto que tudo aquilo em que toco corra o risco de contacto com o BOB. Investigarei a morte... não te preocupes. Sinto que estás a decidir como e quando. Filho da mãe.

 

Laura

 

QUERIDO DIÁRIO,

12 DE NOVEMBRO DE 1987

Espero que Deus leia isto.

 

Bem precisava de ajuda.

 

É sem dúvida o fim da minha vida, o fim da crença que tenho em mim... da confiança... desapareceu tudo! O Leo e o Bobby vieram buscar-me aos estábulos, pois mal conseguia dar um passo. O Bobby disse que telefonara para minha casa e informara que ia levar-me a um jantar surpresa... que regressaríamos tarde.

 

Foi uma atitude terna e leal da sua parte, devo confessar. Tal como disse ao Leo e ao Bobby, do assento de trás, enquanto mudava de roupa (mais um obrigada ao Bobby por ter pedido roupa emprestada à Donna, que diz ao Bobby que se preocupa comigo). Neste ponto admito surpresas, não que duvide da lealdade da Donna ou da sua amizade, mas porque agora acredito demasiado no BOB. Informei os dois de que me sentia preocupada. Que tinha bons motivos para não me ausentar de um sítio durante a noite inteira. Disse que estava tão preocupada que, se todos estivéssemos de acordo, poderíamos dar meia volta e esquecer a coca até amanhã. O Bobby riu-se de mim e o Leo deu-me uma palmadinha na mão, como se eu fosse algo de giro, algo que repetia a mesma mensagem com voz estridente, sem que fosse necessário puxar um fio nas minhas costas. "Não me parece que isto seja muito seguro."

 

Passámos pela Mill Town e avançámos pela Low Town. Nunca vi uma noite tão escura. Nem rasto da Lua no céu. Este facto chegou a preocupar o próprio Leo, que, tenho a certeza, cuidará bem de mim, até me ir embora. Tudo o que preciso neste momento é de pó, ou dinheiro para o comprar. A minha amiguinha branca. Uma outra mentira, mas a esta, pelo menos, encarei-a bem de frente e disse que, de qualquer maneira, acreditaria. A felicidade momentânea é preferível a ir deixando que os amigos, a família, os amantes se apercebam, de uma forma assustadora, a quão pouca distância me encontro da autodestruição. Avaliar a distância deixou de poder ser exacto, garanto.

 

Seguimos até uma estrada estreita, sem qualquer sinalização, mas partimos do princípio de que era a estrada certa, pois não se via outra num raio de quilómetros. O Bobby manteve-se ali sentado, antes de descer com a carrinha na direcção da casa. O Leo deu-lhe uma cotovelada e disse: "Vamos lá, Bobby." Também me esforcei por lhe chamar a atenção, mas a verdade é que ele estava mesmo noutro mundo. O seu rosto parecia saído do filme No Limiar da Realidade.

 

Mal voltou a si, o Bobby disparou pela estrada e, na nossa frente, havia apenas a escuridão que, supostamente, albergava uma casa. E que, segundo eu esperava, abarrotava, à obscenidade, de cocaína e de uma bebida rápida, se eu forçasse um sorriso... "Mostra os dentes", pensei.

 

O Leo fitou-me como se, por instantes, achasse um erro estar aqui, nestas condições, sem conhecer ninguém e com os bolsos a abarrotar de notas. Deixei-me escorregar pelo assento e calei-me, apercebendo-me, de súbito, como era ridículo mudar de roupa... A maneira como me visto somente causa sarilhos na Low Town, numa hora escura, ainda não noticiada pelos jornais ou pela rádio. Nem sequer estão a informar de que há falha de corrente.

 

"Interrogo-me sobre o tempo que a Polícia demoraria a chegar aqui, depois de um telefonema?"

 

O Bobby meteu a mão no bolso do casaco, de onde tirou o revólver do pai. A arma emitiu um ligeiro brilho e disse-lhe que ele estava marado dos miolos por andar com aquela coisa. Agora, tinha a certeza absoluta de que o meu mal não era uma dor de estômago, mas um nó instintivo nas entranhas, que me levava a desejar que fizéssemos meia volta e regressássemos como se tivéssemos o diabo atrás, até casa.

 

O carro nem deu meia volta, nem abrandou. A estrada não mostrava sinais de vida, não se via qualquer casa na frente, nem o estupor de uma criatura... bom, talvez uma ou duas... o que constituía mais uma boa razão para fazermos uma surtida silenciosa, enquanto ainda tínhamos hipótese de fugirmos juntos.

 

O Bobby carregou a fundo nos travões, sem qualquer motivo aparente. A carrinha descreveu dois piões e a poeira levantou-se e começou a brilhar à luz dos faróis. Por fim, parámos. "Julguei ver alguém...", disse o Bobby. "Não quis passar-lhe por cima." Saímos todos e movemo-nos, devagar, na escuridão.

 

De súbito, alguém me agarrou por detrás e começou a estrangular-me. "Não acredito que vá morrer assim", pensei. "...Na Low Town, durante uma avaria eléctrica, que ninguém sequer admitirá ter acontecido, enquanto tento comprar droga, cocaína para ser mais específica, e nenhum destes dois fortes e robustos homens, que tenho como companheiros, se dá conta de que estão a estrangular-me!" Pensei que era mesmo isso... Tinha comprado esta maldita quinta. Em dinheiro. À vista.

 

O aperto afrouxou, uma névoa formou-se-me diante dos olhos e perdi a consciência.

 

Acordei na casa deste passador e com uma dor de cabeça que julguei ser um aneurisma. O Bobby e o Leo entraram na sala e o Bobby sentou-se, obedientemente, numa cadeira ao meu lado, mostrou-se preocupado com a minha cabeça e o seu cuidado fez-me lembrar como tudo acontecera. E retorqui (com bastante sarcasmo, devo acrescentar): "De quem foi esta brilhante ideia de me apertar o pescoço, até me fazer desmaiar?"

 

Ninguém respondeu.

 

"Nesse caso, presumo que é assim que vocês, rapazes, se encontram com as miúdas, aqui na Low Town?" De novo o silêncio. "Mas que chique!"

 

O mais gordo dos quatro peraltas tirou uma arma de dentro da camisa e apontou-ma. Olhei-o como se ele estivesse a passar um pouco as margens... pois um "Cala o bico!" ou "Vai-te foder!" teriam sido entendidos na perfeição. Engatilhou o cabrão do revólver e encostou-mo à cara.

 

"Desculpa, querida... Não posso ter a certeza de que todos os que põem um vestido sejam raparigas." Fitou-me e passou os lábios pela arma. "Bonitas maminhas."

 

"Eu sei." Só que a sua explicação, quanto a estrangular-me, continuava a não fazer sentido. As suas desculpas foram aceites e proferidas, com bastante seriedade, a um buraco permanente na cabeça. Estendi-lhe a mão e agradeci-lhe por não me ter dado um tiro. O que, realmente, me estragaria a noite. Seguiu-se uma pausa... e nenhum aperto de mão.

 

Devagar e parecendo satisfeito, repuxou os cantos da boca para cima e finalizou a actuação com um gelado esgar tipo "Vai morrer longe" e que eu já tinha visto antes. Sabia que o negócio fora ao ar. Man tive-me vigilante e seguidora da etiqueta do silêncio, devido aos quatro revólveres, que descobriram lugares bastante importantes da minha cara onde assentar os canos.

 

O frio metal. Um arrepio na nuca. Assustador. Podes chamar-me doida, mas as armas causam-me sempre uma hiperventilação e o desejo de respirar grandes quantidades de ar puro.

 

Disse-lhes que ia até à carrinha. Continuava a pensar que uma das armas se iria disparar e direita a mim. Tinha de apanhar ar, o que se me tornava mais difícil do que o habitual, devido ao nó que sentia na garganta. Além de que as balas me assustam e apostaria bom dinheiro em como magoam quando se enterram na carne a alta velocidade.

 

Tive uma súbita percepção de pessoas com fardas militares, alinhadas como pesadelos congelados a toda a volta da casa. Um dos soldados aproximou-se da janela do meu lado e encolhi-me toda, porque estava um gelo incrível e me sentia assustada.

 

"Alguma vez pensas em morrer?", perguntou com uma das expressões mais severas, que eu alguma vez tinha visto.

 

"Numa situação como esta, não. Não, sir." Olhou-me como se eu tivesse feito com que a sua promoção chegasse uns dias antes do que estava previsto. "Deve querer descer da carrinha. Faça favor, miss, convidou.

 

"Vai dar-me um tiro ou coisa parecida?" "Roubaram uma quantidade bastante elevada de cocaína da casa. Pensei que talvez lhe agradasse mostrar-me que a carrinha está limpa e que podemos fechar negócio... segundo as normas."

 

Saí e julguei que fosse desfazer-me em pedacinhos de osso, tão assustada me sentia. "Tudo bem?"

 

"Na ponta da minha espingarda, tudo muito bem mesmo."

 

Era impossível mexer-me.

 

"Não está com muito espírito de festa, certo?" "Não. Não me apetecia realmente ir a festa nenhuma, sir."

 

"Pode voltar para o banco de trás e descontrair-se." "O que está a passar-se na casa, neste momento?" "Acho que os rapazes estão sentados a discutir se devem estourar-lhes os miolos ou mandá-los de volta à cidade pelo caminho por onde vieram", respondeu, com um encolher de ombros.

 

"Oh! Sinto-me muito mais descontraída. Obrigada."

 

Tive de ficar sentada na merda daquela carrinha durante quase quarenta minutos, à espera de saber se o Bobby e o Leo obtinham permissão de regressar a casa em forma sólida, preferencialmente à líquida. Por fim, saíram pela porta da frente da casa, dando palmadas nas costas destes touros e rindo como se fossem regressar. "Porreiro", pensei. "Estou para aqui prestes a levar um tiro por tirar um quilo de cocaína (enfiei-o, cuidadosamente, por baixo do vestido, que ainda parecia justo ao corpo e me isentava do roubo) e recebo como agradecimento o regresso à carrinha, a passo de caracol. É um exemplo de machos dominados."

 

E, em seguida, os olhos de Bobby fitaram-me com uma expressão do mais puro medo e um aviso: "Cuidado!" Disparos de armas começaram a ouvir-se como se a NRA tivesse aceite partidários totalmente cegos. As pessoas alvejavam-se à doida sem fazer pontaria... paranóicas, e tão pedradas, que se fossem atingidas apenas se dariam conta, algures, no dia seguinte.

 

Escorreguei para o banco do condutor e virei-me na direcção do sítio onde o Leo se escondia, desarmado, rezando como um louco, e afastámo-nos, a acelerar, pela estrada de volta à cidade.

 

E, depois, chegou a minha vez de dar o aviso com o olhar que significava: "Oh, merda!" Quando íamos a meio da estrada, olhei pelo retrovisor e vi outra pessoa na parte traseira da carrinha com o Leo e o Leo estava a perder algo de terrível. O Bobby puxou da arma e com a mão que tinha livre içou-se para fora pela janela do lado e disse ao tipo que tinha dois segundos para desaparecer ou morrer. Tinha de se apressar com a escolha...

 

O tipo sentou-se e o Bobby alvejou-o no peito a uma distância de noventa centímetros ou talvez um metro. A velocidade da bala atirou o tipo em voo das traseiras da carrinha para o chão. "Arranca, raios. Segue/", gritou-me o Bobby.

 

Mal pisámos, de novo, a estrada alcatroada, o Bobby desceu para o interior da cabina, sem largar a arma, como se estivesse pronto a disparar.

 

O Bobby não pronunciou palavra durante todo o caminho até a casa. O Leo continuava sentado atrás, agradecendo a Deus pelo milagre. Interroguei-me sobre se haveria um montão de sangue nas traseiras da carrinha e se o homem estaria morto...

 

Na casa do Leo, entrei e perguntei-lhe se estávamos sós. Respondeu que sim e, então, tirei o quilo de cocaína debaixo da saia, envolta no plástico novinho em folha. "Um bom trabalho para uma amadora como eu", pensei. Pedi desculpa ao Bobby por ter sido provavelmente a causadora de que o homem extra se escondesse lá atrás.

 

No entanto, fui revistada e o tipo disse que eu estava limpa. Pensei que tivessem desistido, a julgar pela maneira como todos trocavam abraços ao saírem da casa.

 

"Estavam a dizer-nos muito simpaticamente e baixinho", disse o Leo, "como iriam descobrir-nos e arrancar-nos os genitais, centímetro por centímetro... com uma faca se a bimba que nos acompanhava estivesse sentada em cima de um quilo da cocaína deles e que não demoraria muito sem dispensarmos os hospitais e irmos directamente para o Inferno."

 

Sentei-me uns momentos a pensar na palavra "bimba".

 

"Lamento o que se passou, rapazes", disse. "Não o teria feito, se não achasse que vocês estavam em pulgas por isto."

 

Nem ponta de resposta.

 

"Fui eu a sugerir que desistíssemos, recordam-se?"

 

Um sorriso na cara de ambos.

 

"Arranjaste uma festa de arromba com este saco", replicou o Leo com um aceno de cabeça na direcção do quilo de coca.

 

"Um par tipo Bonnie e Clyde", comentou Bobby, virando-se e olhando-me com súbito orgulho.

 

Este drama acabou, mas estava outro para acontecer. Decidimos, obviamente, começar a snifar o pó pelo nariz em quantidades nunca dantes aceites pelo corpo humano. Se as balas não nos tinham morto, a montanha de cocaína iria fazê-lo em segundos.

 

Sentíamo-nos altamente. Precisava de sair. Queria comprar comida no Pegue-e-Pague. Nenhum deles pensaria sequer em se levantar. Mantinham-se de olhos na televisão e gozavam ainda mais a emoção macha de estarem sentados diante de uma montanha de cocaína, com três palhas saídas de um buraco no cimo do saco.

 

Os dois fitaram-me com olhos de cachorro e as pupilas dilatadas e perguntaram: "Importas-te se ficarmos por aqui?" Senti-me um tanto chateada com o Bobby por ele não se oferecer para acompanhar a sua namorada, a própria que arriscara a vida, por menos valor que tivesse de momento, para lhe garantir uma pedrada daquelas.

 

Mandei-os foder em pensamento e resolvi que podia cobrir os dois quarteirões até à loja, sem começar com os suores ou entrar na quebra.

 

Arranquei e, ao passar junto das outras duas únicas casas, reparei numa revista caída no chão da carrinha e que me passara despercebida. Fleshworld Magazine.

 

A minha cabeça desengatou! Uma revista que talvez pudesse ensinar-me algo que nunca pensara por mim...

 

Encostei à berma da estrada e, antes de sair da carrinha para ver o que atingira, vi-me há quatro anos atrás. Uma miúda acordada pelo barulho, saiu disparada pela porta da frente e começou a abrandar a corrida ao avistar o animal na estrada.

 

Olhou-o e deu mais um passo, mas sem se aproximar mais do que uns cinco metros, como que para se proteger da realidade.

 

Virei-me e vi o Júpiter. Um gato semelhante ao que eu considerava o melhor amigo, antes de um drogado como eu ter aparecido e, sem pensar, mostrar mais interesse pelas histórias de uma revista porno do que pelo que poderia atravessar a estrada.

 

Foi-me impossível reter as lágrimas. O choro tornou-se convulsivo. Anos mais tarde, era eu a pessoa que tanto odiara por ter afastado o gato de mim, quando mais precisava da sua companhia. Garanti à miúda que faria tudo o que ela achasse melhor. Se quisesse um outro gato, teria o maior gosto em comprar-lhe um... Ela olhou-me e tentou animar-me! O gato dela está morto na estrada por causa das minhas fantasias sexuais e ela está a tentar com que me sinta melhor.

 

Deu a volta à carrinha, do lado de onde me debruçava. Sentia-me incapaz de a encarar.

 

Invadia-me uma vergonha tão grande, que mal me conseguia mexer.

 

"Não chore, por favor."

 

Deus do Céu! Até a voz parecia a minha.

 

"Por que está tão triste? Não queria que se sentisse assim."

 

Pousei os olhos nela e vi algo que tanta falta me fazia. Uma vontade tão grande de perdoar. Um coração de ouro. Esta miúda tinha capacidade de amar os Estados Unidos em peso, sem permitir que ninguém se sentisse só.

 

"Quando era da tua idade, tinha um gato muito parecido com o teu. Chamava-lhe Júpiter e era talvez o meu melhor amigo. Alguém o atropelou na estrada, ouvi o ruído e saí de casa a correr para o ajudar. Lembro-me de que fiquei tão surpreendida pela maneira rápida... como a morte decide que tem fome."

 

Por momentos, apenas se ouvia o vento. Não pronunciámos uma palavra.

 

"Perdoou à pessoa que lhe atropelou o seu gato?", perguntou ela, fitando-me.

 

Acocorei-me ao seu lado e disse-lhe que o Júpiter tinha sido morto por alguém que o atropelara e fugira. "Imaginei que ele estava no Céu, mas senti-lhe tanto a falta... e perdoei-lhe que tivesse morrido, mas acho que nunca me esqueci de que alguém atropelou o meu gato e nem sequer parou para pedir desculpas."

 

Estendeu-me a mão e a camisa de noite de flanela fez-me sorrir. "Chamo-me Danielle", disse ela e apertou-me a mão com força.

 

"Chamo-me Laura Palmer." Dei-lhe um abraço e ela envolveu-me nos seus braços, com calor. "Tenho muito gosto em conhecer-te, Danielle", disse-lhe. "É preciso ser uma pessoa muito especial para perdoar tão facilmente."

 

Manteve a minha mão na dela por uns momentos e, depois de pensar muito cuidadosamente no que ia a dizer, ergueu os olhos na minha direcção e respondeu: "Quando ouvi o ruído, preocupou-me que o gato pudesse ter ficado magoado... Mas saí de casa e vi-a e estava a chorar mais do que eu, porque se lembrou do seu gato e ficou com pena de ter magoado este. Por que havia de querer que se sentisse mal pelo que fez? Acho-a simpática, Laura Palmer."

 

"E eu acho-te o máximo dos máximos, um doce coberto de açúcar." Olhei na direcção do gato e depois voltei a fitá-la.

 

"A minha mãe vem apanhá-lo."

 

Mais do que qualquer pessoa que conhecera, desde há séculos, a pequena Danielle fez-me sentir que ainda há uma oportunidade para que tudo dê certo. Começo mesmo a pensar que um novo gato seria uma boa ideia...

 

Acabei de me recordar que pus o meu pónei em liberdade. Espero não o ter mandado para um lugar onde possam atropelá-lo ou não o tratar como merece. Acho que devia ter pensado nisso, antes de me ter deixado arrastar pelo drama de libertar o meu cavalo, para que ele se fosse embora e fizesse o que lhe apetecesse... sozinho.

 

Céus, estarei a estragar as minhas notas de bom comportamento esta semana? Mas que sombrios acontecimentos, semelhantes a presságios, estes! Porquê?

 

Será suposto que volte à vida real e arranje um emprego? Ou continuo a estar condenada a morrer? Apenas sei que estou a levar a carrinha de volta e you trocar as drogas por um passeio até casa que me ponha sóbria. Talvez a minha mãe me prepare um chocolate quente e eu possa apagar os acontecimentos desta noite e estar apenas com ela.

 

you devolver a carrinha e regressar já a casa. Irei a pé. Apenas quero chegar a casa.

 

Escrevo-te quando chegarmos lá.

 

QUERIDO DIÁRIO,

13 DE NOVEMBRO DE 1987

Estou em casa. É cedo. O Leo e o Bobby não ficaram muito satisfeitos por eu querer ir para casa. O Leo tinha decidido que seria uma noite de coisas novas "e fora do vulgar". O Bobby estava de facto, muito, muito pedrado e julgo que o Leo lhe tinha dito que, supostamente, ele devia convencer-me a alinhar com o que Leo quisesse, pois nunca o vira tão preocupado em manter-me onde quer que fosse. Os constantes olhares que trocava com o Leo levaram-me a pensar que o Bobby se sentia culpado, ou talvez hesitante quanto a dever ou não meter-me nisto. Acenando com o queijo diante do rato... um ratinho de cabelos louros e muito assustado. Estás a ver a armadilha? Vê-la? Vai. Era isto o que querias, lembras-te?

 

O Leo sacudiu a cabeça, quando lhes disse que resolvera que queria ir-me embora, que acontecera uma coisa que me fazia sentir... interrompi-me. Deixei a frase a meio, pois apercebi-me, subitamente, que nenhum dos dois estava em posição sequer de fingir que se preocupavam com qualquer gato atravessado na estrada. Talvez o animal ainda lá estivesse por terra... ou como eu o imaginava, enquanto conduzia devagar, com os faróis apagados, de regresso ao fundo da rua. Vi-lhe os olhos vidrados e fixos na visão de uma mãe, provavelmente cansada e interrogando-se sobre se a filha estaria bem. Interrogando-se, ao mesmo tempo que erguia o corpo do animal, se a morte parava ali. Talvez pensasse no trabalho a fazer na manhã seguinte, pensasse em deter-se ali na estrada... tão cansada, sempre cansada.

 

Acho que estou a ver-me ao espelho. Estou cansada. Sou eu que pergunto se a morte é apenas a imagem gelada que temos do corpo do animal? As cinzas do avô serão apenas um meio mais fácil de fazer com que ele caiba dentro de uma urna? Já que ele é apenas um corpo, por que não decorar os restos?

 

Quando morrer, acho que me enterrarão. Espero que tenham enterrado o gato. Pensei em ficar ali para ajudar, mas tudo estava ainda demasiado próximo. O corpo ali, como uma mensagem.

 

Talvez as mortes na estrada sejam mais do que o que parecem. Mensagens como a desta noite... ou exemplos aos quais nunca prestamos atenção. É mesmo assim. Silêncio. Privacidade eterna. Esta noite não queria ficar com os rapazes. Queria ir para casa, dormir na minha cama, voltar a ser uma miúda. Fingir uma doença ou cólicas e pedir à minha mãe que tratasse de mim, me lesse A Bela Adormecida ou O Pequeno Polegar, bebendo o café, em pequenos goles, enquanto vira as páginas e me observa.

 

Era isto o que eu queria, mas sabia que acabaria por ficar na casa. Escapar-me cedo, antes do nascer do dia... vencer o despertador por segundos. Despir-me e enfiar-me na cama. Sabia que te contaria o que aconteceu. Simplesmente. com uma caneta, sem qualquer som. As palavras têm-me sido estranhas nestes últimos dias. As minhas não têm passado de mentiras de enfiada. Segue-se outra para ajudar a manter viva a mentira anterior... a mante-la real. As palavras do Bobby têm-se assemelhado a pequenas facadas. Sei que não é sua intenção magoar-me, mas a sua surpresa pelo meu comportamento da noite passada, a diferença que detecta quando fico pedrada... e têm sido muitas vezes. Diz que não lhe passava pela cabeça que eu fosse tão selvagem por dentro. Penso que quer dizer que não lhe passava pela cabeça que eu fosse tão má. Nunca conheceu a Laura Palmer como a mata, as árvores, a terra a conhecem. Muitas vezes abalada e furiosa, ameaçada, paralisada, incapaz de fugir. Ou nunca quis conhecer. A Laura Palmer foi informada de que merece a dor e um tipo de intimidade de que a maioria das pessoas não fala nem pensa, porque acham ser errado. Laura Palmer? Ela nasceu sem poder de escolha. Disseram-Ihe, muito baixinho, uma noite, há muito tempo, que ou gostaria ou teria de ser morta.

 

Fiquei na casa. O Leo queria que eu tomasse uma bebida. Que me descontraísse. Disse que me queria da forma como me comportara. Disse que lhe tinha prometido e que tomaria providências para que eu estivesse em casa a tempo... ninguém saberia. Ajoelhou-se na minha frente e agarrou-me, com força, nos pulsos. Pensei no BOB e fechei os olhos. Devo ter feito uma careta, emitido um som, qualquer coisa, porque ele disse: "Eu sabia. Sabia que isto mexia contigo." Mudou a pressão para as mãos, mas de uma forma mais terna. "Óptimo. Sabia que ias compreender. Eu vi." Ouvi o Bobby levantar-se da cadeira e ouvi o Leo detê-lo. "Senta-te, Bobby. Agora a Laura vai buscar-te uma bebida. Abrirá os olhos e tomaremos uma bebida juntos."

 

Abri os olhos devagar. O Leo deixou-me as mãos pousadas no colo. Levantei-me e fui à cozinha buscar a bebida ao Bobby. Ouvia-os a falar na outra divisão. Começaram a discutir por qualquer motivo. Acho que por minha causa e os planos para a noite. Sempre que eles discutiam, ficava com dores na cabeça e nos ouvidos. Não queria mais conversas do género. Fui até onde eles estavam sentados e disse-lhes que se calassem. Queria que eles se calassem. Faria ou diria o que quer que os "jogos" desta noite exigissem. Não precisavam de discutir. Queria divertir-me. Queria estar pedrada. Pedrada como eles estavam. Queria esquecer o que tinha acontecido na estrada.

 

O Bobby foi ter comigo à cozinha e disse-me que eu tivera sorte em não apanhar um estalo do Leo por o mandar calar na sua própria casa. Respondi-lhe que não era sorte. Sabia que o Leo gostava de mim. Se ele alguma vez me batesse, faria parte do acordo.

 

O Bobby disse que gostava que saíssemos só os dois, na próxima semana. Sentia saudades de estar com a Laura. Odiei-o por me dizer aquilo. Apeteceu-me esbofeteá-lo, mas respondi-lhe, em vez disso, que a Laura não me fazia falta nenhuma. Avisei-o de que talvez não voltasse a vê-la.

 

Bebemos durante muito tempo, ali sentados, fazendo linhas com a coca e observando o Leo. Ignorava para o quê, mas sabia que tinha de estar preparada. Ele podia ser simpático ou não. Não passei o tempo de olhos no Bobby. Certifiquei-me de que ele me via com o Leo. Desagradava-me que o Bobby sentisse saudades da meiga Laura. Não posso acordá-la, agora. Ela não gosta de noites assim. Não desejaria brincar. Eu sim. Precisava de ser alguém diferente dela... Tinha de afastar o que quer que atraísse o BOB até à minha janela. Afastar o odor da inocência. Tomei uma decisão. Disse-lhes que queria sair, ir até à mata. O Leo pareceu satisfeito e sorriu ao Bobby. Ele pousou os olhos nos meus e esboçou um aceno na direcção do meu copo vazio. "Estás a sentir-te numa boa?" Respondi-lhe que sim, mas que não queria continuar ali dentro. A luz não me agradava. Disse-lhe que facilitava demasiado as coisas.

 

Comecei a embalar alguma coca para a mata, e o Leo fitou-me como se eu estivesse a roubar. "Escuta", disse-lhe, "fui eu que roubei o pó, certo? Sou eu quem vai oferecer-te a noite e... não quero começar a sentir-me na ressaca, quando estiver na mata." Disse que estava só a observar-me. Disse que devia descontrair-me. Depois aproximou-se muito. Disse que gostava quando eu resistia, mas que tal seria inviável na mata.

 

Imaginei-me, de súbito, no escuro, com os braços girando, girando à minha volta e o Leo e o Bobby a observar-me, enquanto girava... Depois, um sonho, em câmara lenta, do Leo, com os olhos salientes, satisfeito, os lábios entreabertos, e as mãos unindo-se uma e outra vez, enquanto aplaudia, devagar, a minha exibição.

 

Antes de sairmos, o Bobby apareceu da casa de banho e disse que tinha concluído que se sentia cansado e não queria estar por perto. Disse que sabia que, de qualquer maneira, aquela noite me pertencia e ao Leo. Disse que talvez me telefonasse dentro de dias. O Leo sorriu, quando o Bobby bateu com a porta da frente.

 

"O Bobby é um rapaz esperto."

 

Concordei com um aceno de cabeça mas, por dentro, apetecia-me matar o Bobby por me fazer sentir mal. Ele desejava que a Laura, meiga e pura, corresse atrás dele, regressasse a casa na sua companhia, a pé e de mão dada. Fez-me desejá-la por momentos. Não era seguro. Ele não compreendia como isso era arriscado para todos nós, em especial no sítio. A mata precisava de me ver esta noite. Precisava de ver como cresci e no que me tornei. Depois pode dizer ao BOB que se mantenha longe de mim. Ele pensará que o que tinha a fazer comigo acabou.

 

O Leo aproximou-se, enfiou a mão pela minha blusa dentro, fixou-me e tacteou-me o mamilo com o dedo. Sem permitir que o desfitasse, disse: "Não vais sentir-Ihe a falta, nem a de ninguém."

 

Libertou-me o olhar e as minhas pernas quase cederam. "Leva-me para qualquer lado, faz-me esquecer." Procurei o braço dele para conseguir retomar o equilíbrio. Ele disse que tinha algo em mente. Acrescentou que podia causar-me medo, mas tudo correria bem. Disse que se depois desta noite continuasse a gostar de mim, podíamos começar a andar juntos. Queria primeiro ver-me, a sós, esta noite.

 

Perguntou-me se gostava que me metessem medo.

 

Respondi que, por vezes, acontecem coisas assustadoras, mas desaparecem de manhã. Disse-lhe que desejava ficar mesmo em brasa, que precisava sentir isso. Há muito que não o sentia. Andara ocupada em dar aos outros essa sensação.

 

Quando saímos de casa, tapou-me os olhos com uma venda. "Sentes o escuro?", sussurrou.

 

Respondi-lhe que sim.

 

"Muito bem", disse ele. "you levar-te através dele. Exactamente como querias. Guiar-te-ei para que possas acompanhar-me, até te mandar parar."

 

Começámos a andar e, enquanto o fazíamos, sentia as árvores muito próximo sobre a minha cabeça, apercebi-me do vento, revoluteando devagar até se amainar, incapaz de voltar ao céu... Ouvia a respiração do Leo. Sentia a mão dele, nas minhas costas, com força. Queria dizer-lhe que começava a ter aquela impressão no estômago. A que nos solta e nos leva a desejar coisas?... Mas ele não me deixava falar. Disse que se encarregaria da conversa, até precisar de saber qualquer coisa de mim. Tinha a certeza, continuou, de que saberia o que eu sentia, sem sequer me ouvir dizê-lo.

 

Pareceu-me que decorrera muito tempo, antes dele parar. E, como ignorava o que fazer, aguardei. Pelas suas instruções. Quando, por fim, parámos, ouvi-o começar a descrever círculos à minha volta, com passos abafados pelas agulhas de pinheiro, que cobriam o chão. Sentia-lhe os olhos, como se fossem mãos, para cima e para baixo, apalpando uma curva e depois outra. Parou nas minhas costas.

 

"És capaz de guardar um segredo, miúda?"

 

Hesitei sobre se devia responder.

 

"Não tenhas medo. Responde."

 

"Sim. Sou capaz de guardar um segredo."

 

Comecei, de repente, a sentir e a cheirar o mesmo forte almíscar da mata. Conheço-o bem. Comecei a sentir o meu medo a ganhar terreno e tive de abanar a cabeça, libertar-me... combatê-lo. Recordar-me do que era tudo isto.

 

"O segredo consiste em que, por vezes, neste sítio, ouço vozes. Por vezes, apercebo-me de que não estou só."

 

"E que vozes ouves?"

 

"Vozes que desconheço... Mas, por vezes, quando fico muito quieto, descubro que sou capaz de sentir estas pessoas à minha volta. Ouço-as a falarem de mim, mas se tentasse vê-las, com toda a certeza fugiriam."

 

"E agora? Ouves algumas vozes?"

 

"Acho que as ouço vagamente. Vindo nesta direcção. Isso assusta-te?"

 

"Não me parece. Não..." Estava preparada para ver aparecer uma leva de camionistas que iniciassem qualquer tipo de estranho ritual... Senti-me, de repente, muito exposta. Interroguei-me sobre quantas pessoas estariam a caminho.

 

"you ajudar-te a sentares-te. Aqui."

 

Leo sentou-me e apercebi-me de que me encontrava numa cadeira bastante confortável, no meio da mata. Que lugar era este? Alguma vez o teria visto durante o dia? Começou a soar música. Sons estranhos de água e algo que não conseguia situar... e um tambor... baixo.

 

Sentia-a no peito. Soava bastante alto, para me impedir, subitamente, de saber, através do som, se alguém estava próximo de mim ou não.

 

Ouvi num sussurro: "Espera aqui... descontrai-te. Goza!"

 

Não estou muito certa de conseguir descrever-te as cinco horas que se seguiram. A música continuava, num ritmo que me fazia flutuar e desejar um pouco mais de tudo. Mais das mãos que subitamente me tocaram, lábios macios ao longo do pescoço, mãos no meu peito, coxas e rosto. Vozes aos meus ouvidos sussurrando muito próximo... afastando-se.

 

Acho que havia três mulheres diferentes e, pelo menos, quatro homens, incluindo o Leo. Estava amarrada à cadeira com uma corda que me unia as mãos, quase a ponto de me sentir desconfortável, o que sabia fazer parte do jogo e do plano. Cada uma e todas as fantasias que possam imaginar-se a horas adiantadas da noite, com excepção daquelas com animais de herdade, foi praticada em, comigo, ou para mim. Era como se tivesse sido engolida por um sonho, perfeito até ao detalhe. A minha única responsabilidade era a de manter a venda e conceder a cada pessoa a sua oportunidade de se aproximar e estar comigo.

 

Ouvia-os, aos outros que esperavam em fila para me ver. Meras vozes na mata, cujos corpos se transformavam em imagens que conseguia ouvir, ver através dos sons que emitiam... tudo se tornara tão palpável. Consegui ouvi-los a noite toda, enquanto se excitavam uns aos outros, a ponto de pequenos estremecimentos internos, biliões de pequenas ondas de luz, água e electricidade, as atravessaram. Todos reagiam com uma estranha alegria e surpresa... uma sede quando um deles atingia o clímax. Até eu, que me mantinha sentada afastada deles, como numa montra (mais trofeu do que uma excentricidade), sentia prazer naqueles sons em redor dos meus pés.

 

Estas pessoas, todas de várias idades, passavam noites na mata, esquecendo nomes e histórias, servindo-se apenas das suas mais básicas emoções e apetites para serem agarrados, apalpados, desejados, e completamente aceites, independentemente do seu aspecto, das pessoas com quem trabalhavam, iriam trabalhar ou estudar nas manhãs seguintes. Reinava um ambiente de trevas, estranho e, por vezes, quase embriagador. Flutuava com a cabeça pesada no meio deste escuro. A energia era tão forte, que quase sentia a atmosfera dividir-se, apartar-se lentamente, para me permitir mover. Cada um e todos os nervos do meu corpo tinham algo a dizer... um grito escondido na pele, constante e muito mais intenso do que o habitual, pois não conseguia senti-lo formar-se.

 

Iria jurar que houve vezes em que me senti bastante receptiva para sentir as impressões digitais dos que me tocavam. Vê-los pela forma como os sentia através da pele... cada padrão semelhante a rastos de luz por detrás dos meus olhos.

 

Quando voltei a poder usar os meus próprios olhos, a imagem foi a da minha casa. A luz que a banhava, mesmo antes do nascer do Sol... uma névoa amarelada de luz, ainda a combater a sombra que não findara a sua estada.

 

Demorei um minuto a focar as coisas. O Leo estava sentado ao meu lado, no seu camião. Disse que se ia embora e que a mulher deveria regressar, dali a pouco, a casa. Para nos podermos encontrar de novo, teríamos de planear tudo cuidadosamente. Tinha-me esquecido da mulher dele: Shelley. Bastante bonita. Trabalha como empregada de mesa com a Norma na Double R. Disse-lhe, mesmo assim, que me telefonasse. Ele respondeu que tinha algumas coisas de que eu iria precisar enquanto estivesse longe de mim.

 

Estendeu-me uma mochila a rebentar pelas costuras. Avisou-me que a abrisse apenas quando estivesse só. Beijou-me, ficou a ver-me entrar pela porta da frente e arrancou.

 

Enquanto subia as escadas, imaginei que a minha mãe acordava... e me perguntava que tal fora a orgia.

 

SABER QUE NÃO CONSEGUES IMPRESSIONAR-ME... NÃO ME INTERESSA O QUE FAZES com OS TEUS AMIGUINHOS DA COCA. TODOS VOCÊS PARECIAM RIDÍCULOS. FOI O QUE OUVI."

 

Sai da minha cabeça. Já!

 

"NEM PENSES."

 

Deixa-me em paz, cabrão perverso. Como te atreves? Não te quero aqui! Desaparece! Desaparece! Estou cansada de passar o tempo a aceitar-te... Odeio-te. Desaparece!

 

"ISSO NÃO TE COMPETE, LAURA PALMER. DEVIAS VIGIAR ESSE TEU EU. QUASE INACREDITÁVEL."

 

Vai-te foder!

 

"AS LÁGRIMAS TAMBÉM NÃO VÃO IMPEDIR-ME DE FICAR.

SOU IMUNE AO RAIO DAS TUAS CHORAMINGUICES EMOCIONAIS E ADOLESCENTES DE PUTA LÉSBICA E À AUTOPIEDADE.

SOU O QUE DE MELHOR EXISTE NA TUA VIDA."

 

Não és nada. Não é verdade.

 

"AH, NÃO?"

 

Pára de me mentires. Tenho coisas melhores na vida do que tu. Sei muito bem.

 

"AH,   SIM? DIZ-ME UMA."

 

Os meus pais.

 

"NÃO ESTEJAS TÃO CERTA. NÃO ME IMPEDIRAM DE CHEGAR ATÉ TI, CERTO? NENHUM DELES TE FALA COMO COSTUMAVA. HÁ MUITO QUE DEIXARAM DE SE PREOCUPAR. SUPORTAM-TE.

NADA MAIS. EU SOU MELHOR."

 

A Donna.

 

"A "MELHOR AMIGA" com QUEM NUNCA CONVERSAS? A QUE DEIXASTE PELO CAMINHO, EM TROCA DAS DROGAS? ESTÁS MUITO ENGANADA."

 

Tenho-me a mim. A mim. Sou melhor do que tu!

 

"NÃO. SOU EU QUE TE TENHO. PERTENCES-ME. NÃO FAZES NADA SEM A MINHA PERMISSÃO. DIRIJO A TUA VIDA E MANIPULO-TE COMO QUERO."

 

Não!

 

"CONTINUO AQUI."

 

Não és real! Recuso-me a acreditar que és real. Apenas te imagino... Faço-te... you parar! Terás de ir embora, se eu deixar de acreditar.

 

"VOLTA A TENTAR. HÁ ANOS E ANOS QUE AQUI ESTOU. A TUA CRENÇA NÃO SERVE DE NADA. A TUA OPINIÃO NÃO É NADA, PENSA BEM. VÊ SÓ A TUA VIDA. ANDAS POR AÍ A FODER com AS PESSOAS. SEMPRE DROGADA. NÃO TARDAS A FAZER DEZASSEIS ANOS. A TUA VIDA É UMA MERDA E AINDA NEM DEZASSEIS ANOS TENS. OLHA PARA O ESPELHO E VÊ POR TI. NÃO ÉS NADA."

 

O que... o que queres?

 

"QUERO-TE A TI."

 

Porquê? Para quê?

 

"POR GOZO. DIVIRTO-ME A OBSERVAR COMO COMBATES A VERDADE."

 

Que raio de verdade?

 

"A TUA VIDA NÃO VALE UM CHAVO PARA NINGUÉM, INCLUINDO TU PRÓPRIA. FAÇO-TE UM GRANDE FAVOR. ENSINO -TE. DEVES-ME A TUA LEALDADE. DEVES-ME TUDO."

 

Não te devo nada.

 

"SOU A MELHOR COISA DA TUA VIDA."

 

 

Adeus!

 

"ESTAREI AQUI."

 

Vai-te foder!

 

"É O QUE ME FARÁS,   EM BREVE."

 

Pára.

 

"ATÉ À VISTA,   NO ESCURO...   LAURA PALMER."

 

Vai-te foder! Vai-te foder! Vai-te foder!

 

Mantém-te bem longe de mim, desta vez. Existes na minha cabeça. Ninguém mais te vê, nem te ouve, portanto, tens de existir na minha cabeça. Nunca mais permitirei que entres neste quarto. Nunca mais. Não passas de uma ideia. És o meu medo. És apenas a representação do meu medo infantil da mata!

 

Estás a ver? Não consegues voltar, certo?

 

Não tens poder, se eu não to der... Desta vez you manter-te afastado. Esta é a minha vida! A minha! Não há lugar para ti nela... Ah, ah!

 

Tenho trabalho. Tenho de recuperar o sono. Estás morto. Nem sequer como recordação existes.

 

Laura.

 

  1. S.   "VIGIA A JANELA,   LAURA PALMER."

 

QUERIDO DIÁRIO,

15 DE DEZEMBRO DE 1987

Desculpa ter passado tanto tempo sem te escrever, mas ando com imenso trabalho! Há um monte de coisas que desconheces!

 

Antes de mais, resolvi fazer um acordo com os Hornes. Quando estive lá da última vez, o Johnny pareceu-me sem alegria e negligenciado. Triste. Propus-lhes, assim, ocupar-me do Johnny três vezes por semana, passar, pelo menos, uma hora, uma hora e meia com ele, a ler, falar, etc., a troco de uma pequena quantia em dinheiro, semanalmente. Adoraram a ideia e concordaram em pagar-me $50 por semana em dinheiro, $200 por mês.

 

O dinheiro dá-me uma grande ajuda para a coca, mas o melhor de tudo é estar com o Johnny, que gosta de mim, independentemente do que faço quando não estou a seu lado. Não me magoa, nem troça de mim, não quer dormir comigo, nem amarrar-me, cortar-me, ou fazer qualquer dos outros milhões de coisas que sinto que todos os outros querem a maior parte do tempo... Sempre a tocar-me e a levar algo de mim, sempre desejando mais, mais e mais.

 

Tudo o que o Johnny quer de mim é que lhe leia. A Bela Adormecida é a sua história favorita. Gosta de encostar a cabeça no meu colo, de olhos erguidos para mim, enquanto lhe leio. De vez em quando paramos para examinar as gravuras e por vezes tenho de explicar-lhe as gravuras, bem como partes da história, de uma forma que o Johnny as entenda melhor. Ele deixa transparecer, com frequência, uma expressão confusa, e perdida, como se tivesse medo de não entender tudo. Paro sempre que o vejo assim e revejo a matéria com ele.

 

Muitas tardes, vamos para o relvado em frente da casa e brincamos com o seu arco e flecha. O Johnny tem aqueles búfalos de borracha, contra os quais dispara do outro lado do quintal. Fica tão contente. Faz um sorriso tão bonito quando lhes acerta. É a sua pedrada. É uma cena estranhíssima. O Johnny no relvado, a relva de um verde ofuscante debaixo das suas mocassinas, a seta esticada no arco no momento em que o retesa, sorrindo. Solta-o após uns minutos de concentração. A seta parece mover-se a uma velocidade inferior à do real, o Johnny baixa os braços, ergue-se nos bicos dos pés e espera... Um tiro certeiro. Mesmo em cheio. Atira-se ao ar, e põe-se aos saltos. Depois vira-se para mim e mostra aquele sorriso de excitação.

 

"índio!", exclama.

 

Felicito-o pela pontaria e encorajo-o a que continue. Parece aceder sempre com gosto. Tenho de fazer uma série de linhas à volta do Johnny, ou, melhor, na casa de banho... tantas vezes quantas necessárias.

 

É horrível quando perco a paciência com ele. Aconteceu-me uma vez e senti-me de rastos, até ter a certeza de que ele esquecera o incidente ou me perdoara.

 

Não you entrar em pormenores, porque o meu comportamento foi horrível de mais. Para não estar com mais rodeios, fiz, na verdade, o raio de uma imitação convincente do BOB. Foi cruel. Nunca me senti pior. Dei o meu melhor para lhe pedir desculpa e explicar, mal aquilo aconteceu. Queria que ele entendesse que me apercebera do que estava a fazer e tinha parado.

 

Raspei o máximo que podia dos frascos que tinha no fundo da bolsa, para ficar pedrada. Podia pensar. Só. Apenas se torna difícil quando não tenho droga. É esse o motivo por que eu e o Bobby nos vemos tão inocentemente e com tanta frequência. Mas tu nada sabes disto, pois não? bom, aguenta aí.

 

Tenho de abrir a maçaneta da coluna da cama... e fazer umas linhas, antes que a minha mãe apareça e me diga que tenho de limpar os pratos, despejar o lixo, etc. Merda! Nem consigo acreditar como a minha vida se torna diferente, quando saio pela porta da frente desta casa.

 

Voltarei, assim que puder.

 

Laura.

 

QUERIDO DIÁRIO,

16 DE DEZEMBRO DE 1987

Desculpa estar a escrever-te um dia depois, mas a minha mãe e eu tivemos uma conversa na cozinha, enquanto eu lavava os pratos e passaram-se cerca de quatro horas nisto. O meu pai regressou a casa e juntou-se-nos durante uns quarenta e cinco minutos, antes de se ir deitar cedo.

 

Presumo que o Benjamin o tem forçado a trabalhar no duro em qualquer novo projecto. O meu pai limita-se a revirar os olhos, quando a minha mãe e eu lhe perguntamos como correm as coisas.

 

Por vezes, penso que a minha mãe e eu podíamos ser as melhores das amigas. De vez em quando, fito-a bem no fundo dos olhos e interrogo-me se a minha mãe alguma vez sentiu o mesmo que eu?... Pressinto que ela compreenderia algumas das minhas experiências, só que provém de uma família e de uma geração que não gosta, na realidade, de falar de coisas que as façam sentir-se pouco à vontade.

 

Talvez o BOB a faça sentir-se pouco à vontade. Talvez o meu pai também conheça o BOB, mas a minha mãe não permite que falemos sobre ele, porque todos ficamos... tão perturbados?... Não sei.

 

De qualquer maneira, acho que tivemos uma conversa agradável, pois sei que ela estava muito feliz, quando subiu para se ir deitar. Ainda fiquei um pouco cá em baixo e depois saí lá para fora e pus-me a observar a parede, por onde o BOB sempre trepa para chegar à minha janela. É espantoso como ainda não se matou ou, pelo menos, caiu.

 

Nas noites em que me esgueirei, precisei sempre de ajuda para descer. Interrogo-me sobre se poderia arranjar uma maneira de o fazer cair?... De qualquer forma, conseguiria sempre chegar cá acima e continuo a querer que o Bobby Briggs me entregue a minha dose através da janela... e dar uma rápida enquanto os meus pais estão a dormir ou fora de casa.

 

Era a este ponto que eu queria voltar. Bobby Briggs. Encontramo-nos como todos os outros rapazes e raparigas que andam a estudar. É estranho. Agora, encontro-me mais vezes com a Donna e ela anda com o Mike. Acho que está feliz, mas os dois fazem-me lembrar o anúncio de uma pastilha elástica ou coisa do género. "Felicidade e ambição, desporto e estudo, viva, viva, viva!"

 

Na semana passada tomei uma quarta inteira de coca, enquanto tentava bater-me com um hamburger na companhia deles, depois do cinema. O Bobby e eu não comemos. O Bobby tinha comido uma tonelada de merdas no cinema e eu estava demasiado alta para conseguir sequer olhar para a comida. A Donna encheu-se e sabia que iria pagar por isso com os fechos e as costuras da saia, quando se levantasse na manhã seguinte. Aposto que engordou uns dois quilos e meio. O Mike é um porco. Enfardou batatas fritas e hamburgers, como se não fosse preciso engolir ou coisa no género, juro!

 

Também me desagrada a forma como o Mike olha a Donna. Preocupo-me com ela, porque o acho um idiota chapado... considerando-se um ser superior com aquele casaco com letras e que não larga. Merda! Quero lá saber! A Donna é uma rapariga esperta. Não acredito que o Dr. Hayward não lhe tenha dado uma palavra.

 

Portanto, a razão por que me encontro com o Bobby, you ao cinema, janto com ele, estudo na sua casa, you até ao mirante e beijo-o, porque vamos no carro do pai até Pearl's Lake, etc., deve-se a que ele acabou por concordar em começar a vender cocaína para o Leo. Por mim. Andava à espera que ele dissesse que sim, mas o Bobby queria que lhe prometesse que me comportaria de novo como a sua namorada. É isso pois o que faço. Quando quero ou quando não tenho pó. Gosto a sério do Bobby, mas ele nunca entenderia o que, por vezes, me acontece.

 

O motivo por que you às orgias na casa do Leo, a razão por que deixo que ele por vezes me amarre e me bata... o motivo, para além de um estranho gozo, é porque me sinto como se pertencesse a lugares sombrios como esses. Pertenço a homens pedantes que não passam, afinal, de bebés chorões. Ponho-os a ridículo e não tardam a chamar-me "mãezinha", a enterrar a cabeça no meu colo, chorando a dor que sentem... e depois tenho de lhes dizer o que hão-de fazer. É assim que gostam. Pertenço ao meio deles. Assim deve ser, ou não seria tão boa nisto.

 

Digo-lhes o que hão-de fazer-me. Ordeno-lhes que o façam. E quando o fazem, quando começa a ser bom e posso dizer-lhes que se estão de facto a esforçar, começo a descrever-lhes o que sinto. Como são maravilhosos. Como são "bons rapazes, tão bons rapazes". Digo-lhes que a mamã se sente feliz. Eles adoram. Uma criança e um homem num único ser.

 

Todos eles, estes amigos do Leo e do Jacques (tenho de falar-te dele!), são muito simpáticos comigo. Se alguma vez precisasse de ajuda, acredito que estariam presentes. Não sei. Já me enganei antes.

 

Portanto, o Bobby vende coca pela cidade e o Leo vende a quantidade habitual a pessoas do outro lado da fronteira, mesmo no Canadá. Consigo sempre, pelo menos, umas quartas de graça e de cada vez que me encontro com o Leo, ele enche-me a bala de plástico ou um frasco, se tenho um à mão.

 

O Bobby ganha bom dinheiro e todos ficam felizes.

 

É esse o objectivo da vida, certo? A única coisa que me chateia é que, no outro dia, quando fui com o Bobby levantar o dinheiro da droga ao meu cofre do banco (não ia guardar milhares de dólares na coluna da cama!), ele disse-me que o Mike ia começar a ajudá-lo a vender.

 

Atirei-me ao ar e disse-lhe que se o fizesse e o Mike alguma vez contasse à Donna , nunca, mas nunca mais voltaria a dirigir-lhe a palavra. A Donna diria ao pai. Tenho a certeza. Seria incapaz de enfrentar a situação. O Dr. Hayward desapontado a meu respeito... uma coisa que decerto iria matar-me.

 

O Bobby respondeu que ainda não estava assente. Mas de qualquer maneira obriguei-o a prometer e ele fê-lo.

 

Depois, fomos até à árvore onde está enterrada a bola de futebol vazia, perto da casa do Leo. O dinheiro e as drogas são trocados por meio desta bola de futebol enterrada. O Leo troça sempre do Bobby pela sua escolha dos esconderijos. Chama-lhe "o herói do futebol". Mas o Bobby é mesmo um herói do futebol. Pelo menos, é o que o consideram no liceu.

 

O Jacques disse que também jogara futebol, até ter descoberto que não era preciso andar aos encontrões a um bando de calmeirões para se ganhar bom dinheiro. O Jacques vive no meio da mata, numa cabana, com a sua gralha, o Waldo. O Waldo fala e aprendeu o meu nome sem dificuldade. Jacques, Jacques Renault trabalha do outro lado da fronteira, algures num casino. É um tipo alto e gordo, mas, às vezes, consegue, realmente, excitar-me. É também o tipo de bebé-homem adulto, excepto o conhecer bastante melhor o corpo da mulher

 

lhe bastar dizer "Mostra-me, miúda... mostra-me", para eu me pôr logo ao rubro.

 

O Waldo repetiu quase tudo o que dissemos durante a noite inteira, até ao romper da manhã. No caminho de regresso a casa, ainda tinha nos ouvidos a voz do Waldo: "Mostra-me... Mostra-me... Miúda... Miúda..." Foi nesta manhã que me apercebi de que as orgias com o Leo se realizavam em frente da cabana do Jacques. Havia a cadeira... sentei-me nela um minuto e soube.

 

Voltarei a escrever muito em breve. Tenho planos para a noite.

 

QUERIDO DIÁRIO,

21 DE DEZEMBRO DE 1987

O Natal está quase à porta. Ando à procura de um outro emprego, um que me pague com cheque de quinze em quinze dias... Um bom dinheirinho. A minha mãe começa a preocupar-se por eu comer tão pouco nos últimos tempos. Mas eu adoro. Juro que dantes nunca gostei do meu corpo. Continuo a ter uns belos seios e ancas vincadas, mas desapareceu o antigo pneu de gordura. Nenhum dos rapazes, que tenho visto ultimamente, poupou elogios ao meu corpo.

 

Preciso de um emprego para ter mais dinheiro e também poder dizer à minha mãe que comi enquanto estive a trabalhar. É-me impossível continuar a forçar o jantar pela garganta, como tenho feito.

 

Numa noite destas, o Leo e o Jacques deram-me uns números da Fleshworld Magazine. Folheei-a, imitei algumas poses para eles, dancei, fiz algumas coisas para mim... e deixei-os observarem-me até os três nos virmos ao mesmo tempo.

 

Sei que te pareço suja, mas estou apenas a fazer aquilo a que me habituei repentinamente... montar um espectáculo para ser visto por outras pessoas, enquanto, dentro da minha cabeça, crio um sonho. Uma audiência completa, pelo menos cem pessoas. (Faço isto porque quanto mais pessoas houver, mais fixe me parece e não uma coisa má ou às escondidas.) Todas as pessoas, homens e mulheres, observam-me. Observam como me mexo, como emito pequenos sons, quando começo a sentir-me em brasa por dentro... sonho com um homem ou com uma mulher, por vezes, os dois... e como os vejo na primeira fila, a mais calma de todas. Digamos que se trata de um homem em face da descrição.

 

Desço, portanto, até junto da assistência e estou vestida com roupa preta e transparente, pego-lhe na mão e obrigo-o a subir ao palco comigo. Ele não quer, mas prometo-lhe que não o envergonharei nem magoarei. Acredita-me e ficamos sob os holofotes.

 

Sussurro a todos que acho este homem bonito e digo-Ihes porquê. Descrevo-o, de forma a que ele se sinta, ao mesmo tempo, confiante e excitado. Agora, os espectadores gostam tanto dele como eu. Costumo mudar o sonho de cada vez, mas termina sempre comigo e com o parceiro escolhido a fazermos amor diante de todos. Por vezes, fico em brasa, quando penso que o BOB me verá neste sonho e perceberá que deveria, finalmente, libertar-me.

 

Tenho, portanto, estas revistas e as pessoas mandam as suas fantasias por carta e, por vezes, elas são publicadas. Informei disto o Leo e o Jacques na noite em que mas deram e divertimo-nos com várias das fantasias que, por vezes, me invadem. Ambos disseram que eu devia mandar uma delas para a revista, talvez mais do que uma... e ver se consigo que as publiquem. Disseram que se isso acontecesse, criarão a fantasia publicada, exactamente como eu a tiver escrito. Exactamente como eu a desejar.

 

Acho que o farei. Agrada-me a ideia de uma noite especial, planeada de antemão, tudo para Laura Palmer.

 

Talvez também escreva aqui a fantasia, para que saibas exactamente o que será planeado, se ela for publicada. Pensarei no assunto.

 

Algumas das fotografias das revistas são tão... sujas. Quase demasiado para mim, mas percebo por que é que algumas pessoas se excitam com elas. Trata-se, na maioria, de fotografias sobre pessoas em algum lugar ou com outra que é, na totalidade, imaginada. Não existe amanhã nem ontem. Nem horas, nem minutos, nem regras, nem pais ou manhãs, ou qualquer motivo de preocupação. Gosto deste aspecto, mas algumas das fotografias mostram mulheres a serem raptadas e levadas por estes homens. Estas não fazem, realmente, muito o meu género, pois por qualquer razão... ignoro qual, recordam-me demasiado as visitas do BOB. As mulheres são excessivamente jovens, inocentes ou coisa parecida.

 

Gosto de ser levada por alguém, mas gosto que me arreliem um pouco e me ofereçam pequenos sonhos e ideias. Não me agradam medos, mentiras ou gritos e estas fotografias dão essa noção. O escuro no sexo, tudo bem, desde que seja um escuro estranho e misterioso e não as trevas do Inferno, de pesadelos ou da morte.

 

Esta treta não me agrada. Gosto do bom material.

 

Muito próximo da indecência, mas brincando com ela, sem lhe pegar na mão, nem chafurdar.

 

Amanhã tenho de ir comprar os presentes de Natal, Deus do Céu. Não faço a mínima ideia do que hei-de oferecer. Suponho que é mau desejar que me dêem coca no Natal... Uma tonelada de macia neve branca derramada sobre o meu corpo.

 

Mais tarde, Laura.

 

QUERIDO DIÁRIO,

23 DE DEZEMBRO DE 1987

Lembras-te da noite em que o Leo, o Bobby e eu fomos até à Low Town comprar coca? Lembras-te? De que roubei o quilo de droga, a situação ficou feia e tivemos de fugir porque todos desataram aos tiros? Acabei de ter um sonho sobre tudo isso.

 

Nem sequer tinha ainda pensado no facto de que o Bobby matou, provavelmente, aquele tipo quando o atingiu, que eu vi e não me importei! Acho que me limitei a pensar que estava a sonhar ou coisa assim, mas sei que era mentira, uma grande mentira.

 

Tinha telefonado ao Bobby e falei-lhe do assunto durante um minuto. A princípio, ele parecia porreiro e tentámos sussurrar e falar do assunto ao mesmo tempo, para que ninguém pudesse ouvir-nos... e ele começou a chorar, julgo. Não posso ter a certeza, mas penso que talvez também ele tenha mentido a si próprio, como eu. Acho que nenhum de nós se apercebeu, realmente, do que fizéramos.

 

Estava ao telefone do meu quarto, fixando a coluna da cama, enquanto o Bobby se mantinha silencioso do outro lado do fio. Acho que já me passei por causa da coca, mas não consigo parar. É a única coisa, para além do Johnny Home e de todo o tipo de sexo, que me tem aguentado... Pergunto a mim própria se o sonho quer dizer que you para o Inferno. Eu e o Bobby no Inferno, lado a lado, a tomar coca com o Diabo. Sei que não tem graça. Não tem mesmo graça nenhuma.

 

No sonho, o tipo que o Bobby alvejou levantou-se depois da bala lhe ter atravessado o peito e disse que a morte lhe tinha dado sessenta segundos para nos informar sobre o nosso futuro.

 

"Tu aí com a arma", disse, "põe-te em guarda. Os que morrem desta forma memorizam o rosto de quem os matou e falam à Morte desse rosto. A Morte vem à tua procura. Leva-te os amigos ou um pai. A Morte leva-te o que lhe permitiste. Matar é apenas uma maneira de apertar a mão da Morte e dizer-lhe: 'O que é meu, é teu'."

 

No sonho, o Bobby olhou-me e voltou, em seguida, a fitar o tipo que alvejou. O tipo disse: "Vigia bem essa tua namorada. Alguém cá em baixo está a guardar-lhe um lugar."

 

E acabou.

 

Falei do sonho ao Bobby e ele respondeu que tinha de ir sair. Não disse onde, mas apenas que tinha de desligar e sair.

 

Comprei ao Bobby um par das suas botas favoritas para o Natal. São caras, mas tinha poupado bastante, acredita ou não, das minhas sessões com o Johnny. Acho que comecei a sentir que era errado servir-me desse dinheiro para comprar coca. Nos últimos tempos, não tenho precisado de gastar porque o Jacques e o Leo têm-se encarregado de me pedrar, para jogarmos aqueles jogos.

 

Deixei mesmo de precisar de lhes telefonar, pois o Jacques telefona-me e, se a minha mãe ou o meu pai atendem, diz que volta a contactar por causa de qualquer anúncio de emprego a que respondi. Sei sempre que me espera uma noite selvagem, quando a minha mãe diz que a chamada é para mim... "Um senhor que está a telefonar por causa da tua resposta a um emprego."

 

Devia mesmo arranjar um emprego a sério. Qualquer coisa que me permita arranjar-me um pouco, estar pedrada, bonita e paga.

 

Diário, espero que o meu sonho não tenha passado da recordação de um pesadelo e que, se o homem da Low Town estiver morto, se encontre em qualquer sítio agradável ou, pelo menos, sem sofrer. Receio que se ele estiver a sofrer agora, a Morte arranje maneira de me guardar um lugar. A Morte deixaria provavelmente que o BOB ocupasse esse lugar. Não quero pensar nisso.

 

Vou tomar um duche e fazer chispas. Tenho de acabar o presente de Natal para a Donna. Falei-te dele? Não, acho que não... não vejo nenhuma referência acima. bom. Comecei a achar que devia fazer algo adequado a uma boa amiga e queria dar-lhe uma coisa que pudesse tirar-lhe da cabeça a ideia de que estou a meter-me em grandes sarilhos. É essa agora a minha função.

 

Telefonei ao Dr. Hayward, conversei um bocado com ele e convenci-o a passar-me, às escondidas, o blusão de ganga da Donna, quando a filha não estiver em casa. Fui às lojas de bugigangas da cidade e comprei todos os botões, remendos e pedaços bordados das cores que lhe agradam. Passei as últimas noites a pregar tudo isto no casaco, em bonitos desenhos. Sei que há séculos que ela o queria fazer e, assim, espero que goste. Preciso de impedir que se preocupe comigo. Só causa sarilhos.

 

Até logo, Diário.

 

Um beijo, Laura.

 

QUERIDO DIÁRIO,

23 DE DEZEMBRO DE 1987

Acabei de coser o casaco da Donna e são agora quatro e vinte da manhã. Não tenho sono e estou a pensar ir até casa do Jacques ou do Leo arranjar pó ou talvez o Jacques tenha um daqueles Valliums, que me deu na semana passada. Foi de arromba. Talvez lhe telefone primeiro. Não quero atravessar a mata, sem um bom motivo.

 

Volto já, L.

 

Cá estou de novo e ainda bem que não me pus a caminho antes de telefonar. Não tenho a certeza se te falei da noite em que me perdi e senti tanto medo na mata sombria que me sentei e não parei de chorar, até haver luz suficiente para descobrir o caminho de casa. Tinham-me oferecido boleia, mas receei que o meu pai chegasse tarde a casa e eu parasse com o Leo ou com o Jacques, no preciso instante em que ele fosse a entrar. Ele gosta da sua filhinha como ela era dantes... talvez ainda o seja... Não.

 

De qualquer maneira, falei primeiro com o Leo e ele disse que tinha saudades minhas. A Shelley estava de volta do funeral da tia e a herança, que ele pensava que ela ia receber, não chegou. Talvez se veja obrigada a regressar dentro de uma semana, pois a tia deixou-lhe uma porção de tralha.

 

Perguntou-me se tinha enviado a minha fantasia para a revista. Respondi que estava a pensar trabalhá-la, mas precisava de assentar um pouco. O Leo soltou uma risada e disse que o Jacques queria falar-me.

 

O Jacques veio ao telefone e pedi-lhe desculpa por telefonar a esta hora. Respondeu que ficaria zangado se não o tivesse feito e chamou-me a sua "miúda querida" e eu sorri, mas não pronunciei palavra.

 

Acrescentou que o Leo lhe contara o motivo do meu telefonema, mas que já estava preparado para que isso acontecesse. Disse-me que escondera um dos meus presentes de Natal no soutien, que eu usara na outra noite, o branco, com enfeites.

 

Pedi-lhe que esperasse uns momentos até ir ver, mas respondeu que o Leo precisava do telefone.

 

A Shelley estava à espera da chamada dele, algures numa estação de camiões, fora do estado. Acho que de momento ele não a quer por perto. Desliguei e procurei o meu soutien na gaveta.

 

O branco, com enfeites, é um dos favoritos do Jacques. Tem uma armação em arame e torna os meus seios realmente bonitos. Descobri, portanto, o soutien... graças a Deus que não tivera tempo de o lavar à mão!

 

Dentro da almofada de tecido, encontrei um embruIhinho do tamanho de um maço de cigarros, mas mais fino. Que sorte a minha mãe não ter descoberto isto! Ao abri-lo, verifiquei que o invólucro era uma página dobrada e arrancada ao Fleshworld Magazine mostrando um tipo com um físico semelhante ao do Jacques, ajoelhado em frente de uma rapariga loura e muito bonita. Acho que ela era a rapariga mais bonita que eu vira naquela revista. Na fotografia, esta rapariga estava praticamente despida com um papagaio no ombro e o homem beijava-lhe os pés, como se a adorasse. No fundo da página, Jacques escrevera: "Pensando em ti, miúda imaginativa."

 

No interior havia quatro Valliums, dois charros, um quarto de grama de coca e um tubo de prata, novinho em folha e reluzente. Fiquei tão excitada que quase me esqueci das horas e ouvi a minha mãe chamar-me para saber se me sentia bem.

 

Apaguei todas as luzes do quarto, excepto uma, voltei a meter o pacotinho no soutien e enfiei-o por baixo da cama. Coloquei o casaco da Donna em cima dos joelhos e fingi que tinha adormecido.

 

Momentos depois, a minha mãe entrou, acordou-me suavemente e disse-me que me metesse na cama. Fui brilhante no papel de filha inocente e cheia de sono. Beijei-a, murmurei umas palavras e, depois dela sair, esperei uns quarenta minutos, antes de sair da cama. Levei todas as coisas para cima da colcha e brinquei no escuro, até achar seguro colocar uma toalha por baixo da porta e voltar a acender a luz. Servi-me apenas da lâmpada de presença por a achar mais sexy do que a outra, mais intensa, sobre a minha cabeça.

 

Mergulhei numa profunda, feliz, pensada, vulgar e mesmo assim inocente fantasia. Terei de contar mais coisas depois... agora, sinto-me sonhadora... Tomei dois Valliums, outra linha de coca e fumei metade de um charro. Passei-me, mas diabos me levem se não me sinto a flashar.

 

Acho que you folhear uns números da Fleshworld Magazine antes do dia nascer. Contar-te-ei a fantasia que acabou de me surgir, ou outra que as revistas me inspirarem.

 

Boa noite, boa noite, L.

 

QUERIDO DIÁRIO,

VÉSPERA DO NATAL DE 1987

Estou no mirante, tentando afastar o som das canções de Natal. A minha mãe tem estado a tocá-las a manhã inteira, mas com a minha cabeça no estado em que se encontrava, era-me difícil aguentar aquilo. O meu pai apanhou-me quando ia a sair e pediu uma dança com a sua rapariga favorita. Há anos que eu e o meu pai não dançávamos, acho.

 

Recordações de festas no Great Northern, com a névoa de fitas, cristais e bufete encheram-me a cabeça, tais como as via, enquanto o meu pai e eu dançávamos em círculo. Ele obrigava-me a girar, de forma a quase sentir uma impressão agradável no estômago e ambos ríamos à gargalhada.

 

A dança desta manhã passou-se na sala de estar. As luzes da árvore de Natal já estavam acesas para que a minha mãe pudesse cozinhar dentro do verdadeiro espírito da época e observei todo aquele vermelho, verde, azul e branco passarem junto a mim. Tinha os olhos fixos nos do meu pai para não me sentir tonta e vi que os dele se iluminavam, após o que uma lágrima se formou e caiu devagar pela face. Abrandou o ritmo e apertou-me com muita força, como se receasse alguma coisa.

 

A minha mãe apareceu vinda da cozinha e disse que o facto de ver o meu pai e eu abraçados em frente da árvore de Natal foi o melhor presente que podia desejar.

 

Tantas coisas estranhas que acontecem na vida! Na minha vida, quero dizer. Poucas horas antes daquela dança, eu estava no meu quarto profundamente mergulhada num mundo muito, muito diverso. Espero nunca me ver obrigada a uma escolha entre os dois. Cada um deles torna-me feliz por razões diferentes.

 

Vim até aqui para escrever a minha fantasia, mas agora está quase excessivamente fria e bela para que' pense nela. Pelo menos, neste instante.

 

Vou até ao Double R para beber um café quente. Talvez consiga um privado.

 

Até já, L.

 

QUERIDO DIÁRIO,  

VÉSPERA DO NATAL DE 1987, MAIS TARDE

Quando entrei aqui, no Double R Diner, a Norma serviu-me imediatamente um café. Perfeito. Disse-lhe que queria escrever umas coisas sossegada, um trabalho para o liceu e que ia, portanto, para um privado, lá atrás, em vez de me sentar no balcão.

 

Antes de ocupar o lugar, peguei na chávena de café pousada no balcão e reparei numa mulher de idade avançada sentada e muito quieta, dois bancos mais adiante. Tinha o rosto enterrado num livro com o título Shroud of Innocence. Virou a página, completamente absorta na história. Verifiquei pelo tabuleiro que tinha comido uma tarte de cereja e se preparava para tomar um café.

 

Olhei para Norma, que sorriu, e sacudi a cabeça como se quisesse expressar admiração. Uma senhora idosa, simpática e de rosto bondoso, a jantar uma tarte e a beber café, enquanto lia um bom livro. Fui até ao privado, lá ao fundo, e instalei-me confortavelmente. Preparava-me para entrar na fantasia contigo mas... a Shelley Johnson apareceu da divisão nas traseiras.

 

A mulher do Leo é mais bonita do que me recordava. Observei-a. Estudei-lhe cuidadosamente o corpo enquanto se movia, o sorriso, a voz. Vi-me, de súbito, a oscilar entre uma sensação do mais competitivo e a de que não tinha qualquer hipótese por comparação. Em seguida, ouvi-a fazer um comentário sobre o Leo à Norma. Algo sobre que o Leo nunca está em casa e quando está só quer despachar-se. Tinha ganho. Senti-me uma cabra por pensar assim, mas de facto há algum tempo que o faço com ele... "E continuarei, se não o fizeres", pensei.

 

Sabia que não era isso o que ela queria dizer, mas não podia sentir pena dela ou não conseguiria voltar a ver o Leo. Não aguentaria.

 

Observei a mulher de idade a descer do balcão e a tentar atravessar a sala. Era óbvio que tinha dificuldade e cheguei a pensar, uns minutos, que devia levantar-me e ir ajudá-la... mas a Shelley encarregou-se disso.

 

A Norma aproximou-se com mais café e contou que a velhota aparece muitas vezes, mas tem dificuldade em mexer-se. Que as muletas a ajudam, mas tropeça constantemente, como decerto pude ver.

 

A Norma disse que há muitos cidadãos de idade em Twin Peaks, que não têm ninguém que trate deles. Não têm sítio para onde ir... a não ser para Montana. A maior parte prefere ficar aqui. É mais sossegado. A maioria é feliz.

 

Comecei a dar voltas ao problema na cabeça. Um problema a resolver. Faria mais do que ajudar a mulher a chegar à porta! A competitiva Laura. Há muito que não sentia isto, desde a escola. Sentia-me ansiosa por descobrir maneira de ajudar os cidadãos idosos que a Norma referira.

 

Deixei um bilhete à Norma, quando paguei a conta. Escrevi-lhe que queria falar mais com ela sobre a ajuda a dar àquela gente... que me telefonasse quando tivesse ocasião.

 

you tentar apanhar boleia para casa de Johnny com o Ed Hurley. Avisto-o do lado de fora da montra. Espero que seja o caminho dele.

 

Falamos em breve, Laura.

 

  1. S. A véspera de Natal vai adiantada. Conto-te mais depois, mas ao jantar ouvi falar do "telefonema perturbado" da Norma.

 

Quando estava com o Johnny, ouvi o Benjamin falar com o xerife ou coisa parecida. Soube toda a história depois, porque Benjamin estava muito perturbado com o assunto.

 

Sei que a Norma não poderá telefonar-me imediatamente porque o Hank, o marido, que, de facto, nunca me impressionou, matou um homem na auto-estrada, a altas horas da noite passada, quando regressava pela Lucky 21, vindo da fronteira, julgo.

 

De qualquer maneira, ele vai cumprir uma pena por homicídio involuntário ao volante de um automóvel! Sinto-me contente que ele fique afastado por uns tempos. A Norma parece sempre tão perturbada por ele. Sinto pena da Norma. Nenhuma do Hank.

 

QUERIDO DIÁRIO,

3 DE JANEIRO DE 1988

O Natal foi interessante. O meu pai tirou três dias de férias e, sem o saber, dificultou-me imenso apanhar uma pedrada. Tive de fingir dores pré-menstruais, para ele me deixar em paz e eu poder ir para o meu quarto e ficar só.

 

Quando ia a subir as escadas, parei a ouvir o meu pai dizer: "Mas é Ano Novo... estou de férias... porque é que ela quer estar só?"

 

A minha mãe respondeu naquele torn bondoso e entendido que eu era uma adolescente. "Os pais são como uma praga para os adolescentes, Leland... Podemos considerar-nos com sorte por ela ter passado este tempo connosco. Na véspera de Ano Novo apenas saiu três horas e voltou antes da meia-noite para festejar na nossa companhia."

 

A minha mãe estava a fazer-me um jeitão e prossegui caminho até ao meu quarto para ter um pouco de privacidade e uma bem merecida linha.

 

Uma linha cura todas as feridas.

 

O Bobby e eu passámos, realmente, uma excelente véspera de Ano Novo, como disse a minha mãe, durante três horas. Das oito e meia às onze e meia da noite. Fomos até ao campo de golfe, onde cerca de mais trinta casais tinham o mesmo plano: agarrar um cobertor, e na droga preferida (o álcool saiu vencedor, embora o Bobby e eu fumássemos um charro), enroscar-se na relva e observar as estrelas.

 

Estávamos longe dos outros, mas à distância suficiente para, enquanto fumávamos o charro, ouvirmos os outros casais tomar resoluções de Ano Novo e a expressar desejos, olhando as estrelas sobre as nossas cabeças.

 

O Bobby virou-se de lado e pôs-me o charro na boca. Dei uma passa e lembro-me de pensar: "Ele vai dizer-me algo de sério aqui... sinto." Ele deu uma passa rápida, travou o fumo, olhou para cima, exalou... voltou a fitar-me.

 

"Laura?"

 

"Sim, Bobby?" Sentia-me quente e bem. Adoro erva.

 

"Laura, lamento que as coisas sejam como são algumas vezes... entre nós. Quero dizer, gostava que ambos fôssemos, não sei..."

 

"Então, Bobby! Estava a ouvir-te. Continua."

 

"Não posso falar por ti, mas às vezes sinto que tu e eu estamos tão próximos. Mesmo quando não dormimos juntos. Estamos próximos, é só..."

 

Virei-me para o meu lado e apoiei a cabeça na mão. Há séculos que não dialogávamos. Também estávamos janados.

 

"Continua. Estou de acordo."

 

"Outras vezes... não sei que raio se passa. É como se levasse a minha vida... a vida de Bobby Briggs... mas não me afecta como deveria. Estás a ver?"

 

Queria compreender e, portanto, dei uma ajuda.

 

"Queres dizer, como se houvesse uma parte de ti que vai às aulas, faz os deveres de casa, trabalha num part-time, mas a outra parte, aquela que sente as coisas e se preocupa com elas está dentro de ti, algures, adormecida?"

 

"Sim... sim, andas lá por perto. Mas há qualquer coisa que me escapa."

 

Ofereceu-me o final do charro. Decidi aceitar e fumá-lo, enquanto ele agarrava a ponta nos dedos. Adoro o cheiro da pele do Bobby. Dei a última passa e ele continuou:

 

"Pensava que talvez tu e eu estejamos juntos, porque é onde devíamos estar. Isto faz sentido?"

 

Esbocei um aceno afirmativo. Sabia onde ele queria chegar.

 

"Só não quero que estejamos juntos por um acordo que fizemos por causa de... quero dizer do Leo e de toda a neve à volta da casa dele. Por vezes, acho que isso não interessa, e outras, penso que se tivesses de escolher entre a neve e eu... bom, acho que perderia."

 

Baixei os olhos para o cobertor, onde estávamos sentados. Tentei ver o padrão no escuro, mas somente divisava as sombras vagas dos rectângulos vermelhos e pretos, onde sabia estar sentada. Comecei a puxar a lã com nervosismo. Por fim, senti-me capaz de o fitar.

 

Respondi que, algumas vezes, optaria pela coca, mas outras escolheria a coca em relação a quem quer que fosse. Acrescentei que não queria magoá-lo, nem a mais ninguém. Apenas sinto que, por vezes, sou melhor companhia somente para mim, dado o que está a acontecer na minha vida, do que sou ou seria para outra pessoa.

 

Disse-me que era talvez capaz de entender, mas queria saber se eu achava que o problema estava na coca.

 

Retorqui, com toda a calma, que comecei de facto a gostar de coca, porque não me obrigava a pensar "no problema". Acrescentei que gostava da erva pelo .mesmo motivo.

 

Recordo-me de dizer: "Não posso dizer-te nada, Bobby. Nada de nada. Compreendo se quiseres deixar-me por causa disto, mas não posso contar-te, nem a ti, nem a ninguém." Sabia que a coca era um problema, mas nada em comparação com o BOB.

 

Deixou-se ficar muito tempo, sem pronunciar palavra. Em seguida, beijou-me. Beijou-me demoradamente e quando parou, olhou-me, disse que eu também nada conhecia dos seus problemas e que tentaria compreender-me, sempre que não me apetecesse pular de alegria. Algo do género. Acrescentou que sentia que pertencíamós um ao outro, pelo menos neste momento era o que sentia.

 

As coisas correram de modo estranho no resto da noite. Não que tivessem sido estranhas no mau sentido, mas apenas diferentes de quando o Bobby e eu costumávamos estar juntos. Estivemos deitados horas e depois, afirmo isto com toda a honestidade, fizemos amor.

 

Nada de jogos, controlo o ego, maus pensamentos ou pensamentos sobre outra coisa, para alem do que estava a acontecer. Foi espantoso. Ambos concordámos.

 

Nesse momento soube que amava o Bobby e sei que o amo, agora. Apenas me interrogo sobre se posso permitir deixar-me arrebatar por estes sentimentos puros, sem arranjar sarilhos com o BOB.

 

Por que é que tenho sempre, sempre, de pôr em causa a minha vida e os meus sentimentos? Por que não posso somente amá-lo, discutir com ele, beijá-lo, etc., sem me preocupar que you morrer por causa disso?

 

Por que é que as outras raparigas têm vidas felizes? Por que é que não posso muito simplesmente contar-lhe a verdade?

 

"NÃO SABES A VERDADE."

 

Estás aqui.

 

"MUITO ESPERTINHA."

 

O que queres?

 

"APENAS DAR UMA OLHADA."

 

Óptimo. Estou aqui. Já verificaste. Agora, vai-te embora.

 

"VI LUZ HÁ SEIS NOITES NO TEU QUARTO."

 

Tal como qualquer outra pessoa que descesse a rua.

 

"LAURA PALMER...   SÊ AMÁVEL."

 

Foi coisa que nunca me ensinaste.

 

"AMÁVEL. DEFINIÇÃO: NÃO SEJAS INDELICADA."

 

Cheguei a um ponto em que deixei de me importar, BOB. Faz o que precisas fazer.

 

"NÃO PRECISO DE NADA."

 

Mas que maravilha. Agora, sai da minha cabeça.

 

"QUERO COISAS."

 

Não consigo ouvir-te.

 

"AMBOS SABEMOS QUE CONSEGUES."

 

Diário, estou aqui sozinha no meu quarto, sozinha. Tive um dia óptimo e, agora, estou sentada na cama, em cima dos cobertores, a escrever-te. Sei que posso controlar isto. Sei que "POSSO VER o BOB PORQUE ELE É REAL. UMA VERDADEIRA AMEAÇA PARA TI, LAURA PALMER. PARA TODOS OS QUE TE RODEIAM. SÊ AMÁVEL. MOSTRÃ-TE CONTENTE POR ME VERES".

 

Nunca!

 

"DESTA MANEIRA SÓ PIORAS AS COISAS."

 

É impossível. Piores não podem ficar. Sai da minha cabeça, foda-se!

 

"GOSTO   DE   ESTAR   AQUI.   TALVEZ   FIQUE   UNS   TEMPOS."

 

Porreiro!

 

"SÊ AMÁVEL."

 

Amável? Céus, BOB! És mesmo tu? Que maravilha teres entrado na minha cabeça. A porta está sempre aberta, sabes? Por que não vamos dar um passeio até à mata, BOB? Anda. Vamos dar um passeio. Podes escolher o jogo do dia. O que será... sexo?

 

"NÃO.   ÉS SUJA."

 

Enganas-te.

 

"TENTA OUTRA VEZ,   LAURA PALMER."

 

Não vales o esforço.

 

"TENHO UMA MENSAGEM."

 

Uma mensagem de...?

 

"UM HOMEM MORTO."

 

Estou louca! Não és real. É muito simples. Preciso de consultar um médico, porque estou a imaginar tudo isto.

 

Tenho tudo sob controlo. Acalmar. Tenho de me acalmar.

 

"MENSAGEM: UM LUGAR ESTÁ RESERVADO PARA TI... LAURA PALMER."

 

Pára!

 

"VOLTO EM BREVE."

 

Vês? Existes na minha cabeça. És o único que conhece os pormenores do meu sonho da morte. Nem sequer o Bobby os conhece.

 

O BOB não é real.

 

Laura.

 

7 DE JANEIRO DE 1988

 

Aos olhos do visitante

Sou algo de constante

Uma presa fácil

Por mais vezes

Que me ataquem

E me enviem para o ninho

A sangrar

Eu fico.

Sou a tola mais chapada

Uma falha no ciclo da vida

Uma criatura sem qualquer

Respeito

Pela vida

Por si própria

Pelo seu inimigo

Que se ergue sem cessar

No seu caminho.

Eu fico.

 

Não tenho respeito Pelo inimigo Pelo ninho Pela árvore Pela presa. Aguardo Sem escolha

Enfrento a sua ameaça De que leva esta criança Para a oferecer à Morte.

 

QUERIDO DIÁRIO,

20 DE JANEIRO DE 1988

Tenho algumas boas notícias.

 

Hoje, passei a tarde com o Johnny. Ele estava de muito bom humor e achei que o tempo se apresentava demasiado revigorante e maravilhoso para que ficássemos em casa.

 

Saímos para o relvado da frente, o que é uma vasta extensão de relva verde e flores cuidadas, durante todo o ano, por um grupo de homens e mulheres de polegares, dedos, e tudo o mais verde. É o lugar ideal para se passar uma tarde de sábado. Costumo visitar o Johnny às segundas, quartas e sextas, mas parece que um especialista veio examiná-lo hoje e o Benjamin perguntou-me se me importaria de trocar.

 

Aqui entre nós, Diário, hoje era muito melhor para mim. Ontem, pela segunda vez, fiz gazeta às aulas. Passei todo o dia a arrumar o quarto, a reorganizar as coisas. A minha mãe e o meu pai estiveram fora até às seis da tarde num seminário qualquer.

 

Mudei um pouco a mobília e comprei uma fechadura para a porta do meu quarto. Foi fácil montá-la por se tratar apenas de uma fechadura com corrente. Alguns parafusos depois e tinha ganho privacidade. Se ao menos tudo na vida fosse assim tão simples. Não perguntei à minha mãe ou ao meu pai se a ideia lhes desagradava e, portanto, escolhi a corrente, imaginando que eles pensarão que apenas quero o quarto fechado quando estiver aqui. O que não é o caso, mas de momento e até pensar num motivo que ambos aprovem e não questionem... já está.

 

Folheei alguns dos números mais recentes da Fleshworld Magazine e descobri que chegou a altura de lhes dar a conhecer uma das minhas fantasias. Há um concurso que se realiza apenas uma vez por mês e se chama "A Fantasia do Mês". O vencedor recebe $200. O anonimato é permitido, embora se exija uma morada para a correspondência. O meu cofre permite-me seis semanas grátis de utilização de uma caixa postal. Irei lá ainda hoje, mais tarde, e encarregar-me-ei do assunto, julgo. Não há problema em concorrer, desde que me sirva de um nome diferente.

 

Hoje, precisei de começar de novo. O tempo que passei com o Johnny foi maravilhoso e, atrevo-me a dizer, quase espiritual. Deitámo-nos de barriga para baixo e os rostos virados um para o outro, enquanto ele me pedia que lhe contasse histórias em série.

 

Sempre que acabava uma, ele aplaudia e dizia: "História!"

 

Não queria que lhe lesse. Queria a realidade. Experiências de vida. O primeiro pensamento que me ocorreu foi: é impossível! Não posso contar-lhe nenhuma das minhas histórias! No entanto, acabei por me aperceber de que não só tinha algumas histórias decentes, como estava a esquecer-me do coeficiente intelectual do Johnny. Podia ter-lhe recitado a lista de compras de mercearia como quem conta uma história, que ele se levantaria para me aplaudir. Queria sentir-se incluído numa discussão face a face, qualquer interacção. Que lhe falassem, de preferência a falar.

 

Consegui deixar-me de autopiedade e recordar alguns dos momentos mais felizes da minha vida, bem como alguns dos mais tristes. Cada uma das histórias ajudou-me tanto quanto ao Johnny. Tive a chance de me aperceber de como mantivera a felicidade à distância e de como lhe sentia a falta.

 

Como deves imaginar, aproveitei-me basicamente da oportunidade para despejar palavriado sobre alguém, com ou sem história, sem interrupção. Nada de perguntas, comentários ou juízos sobre quem eu era, ou para onde iria quando morresse. O Johnny é simplesmente o melhor ouvinte que há por perto.

 

Senti-me muito revigorada e mesmo divertida, graças à inocente mímica do Johnny naquela conversa. Acenava constantemente com a cabeça, como se compreendesse... sorrindo quando eu sorria e ante a menção da palavra "fim", aplicava toda a sua energia a aplaudir-me.

 

Por volta das duas e meia, Mrs. Home, que me surpreendeu por não lhe ver sacos na mão nem um bilhete de avião na boca, chamou-nos aos dois para almoçar. Quando olhei para o relógio, fiquei admirada ao ver que tinham passado quase três horas e meia.

 

Antes de conseguir levantar-me, o Johnny pegou-me nas mãos e ofereceu-me o maior sorriso de sempre. Fechou os olhos, voltou a abri-los e pronunciou a sua primeira frase: "Amo-te, Laura!"

 

Poderia ter continuado a falar-lhe sobre como tudo foi maravilhoso, tanto por causa do salto incrível que ele deu em frente, como para mim. Foi o melhor elogio que alguma vez me fizeram.

 

Depois do almoço fui abrir a minha caixa postal. Tenho de pensar muito cuidadosamente nesta fantasia. Talvez não a escreva aqui nas tuas páginas, pois excepto se for publicada, não me aconteceu realmente. Verdade?

 

Mais, em breve, Laura.

 

QUERIDO DIÁRIO,

l DE FEVEREIRO DE 1988

Tenho andado com as minhas experiências sexuais à volta na cabeça e resolvi que é importante olhar pelo menos para as iniciais de todas as pessoas com quem estive. B.

 

  1. B. L. J. R. P.
  2. C. L. T. T. R. D. M. J.
  3. D. M. M. R. M.
  4. G. G. N. G. P. D. L. M. R. M. F. R. D.
  5. T. O. K. M. Y. S. R.
  6. N. M. D. J. H. M. F. C. S.
  7. G. D. L. D.

 

  1. H. E vários desconhecidos invisíveis lá fora, junto da cabana.

 

  1. P. S. M. T. G. L. J. S. M. V. L.
  2. S.
  3. M. J.
  4. W. N. M. S. R. D. D.
  5. C. H. P.
  6. E.

 

QUERIDO DIÁRIO,

9 DE FEVEREIRO DE 1988

Algo de muito estranho aconteceu.

 

Na noite passada, escapuli-me de casa para ir ter com o Leo e o Jacques à cabana. A Ronnette também estaria supostamente lá e sentia-me bastante excitada por ir vê-la. Além de que há séculos que não falava de certas coisas com uma rapariga. A Donna era muito simplesmente incapaz de entender isto. Precisava de conversa de mulheres.

 

Pus-me a caminho, mas depois resolvi que estava demasiado impaciente (um erro dos grandes) e dirigi-me para a auto-estrada 21 na esperança de apanhar uma boleia que me levasse até junto da cabana, a uns dois quilómetros ou coisa parecida.

 

Decorreram uns quinze minutos, antes de avistar um enorme camião, semelhante ao do Leo, a descer a estrada. Estendi o polegar e o camião parou obviamente e a porta abriu-se. No interior da cabina estavam quatro camionistas muito bêbados e muito drogados que, pelo que consegui entender, tinham estado a beber na cidade. Um deles ofereceu-me uma cerveja e aceitei. Não, de facto, porque me apetecesse, mas porque senti um medo repentino de os irritar.

 

Indiquei-lhes onde precisava que me deixassem e um pouco antes da paragem mencionada, acabei a cerveja e comecei a arrancar nervosamente o rótulo da garrafa. Apercebi-me de que não íamos parar.

 

Disse ao motorista que ele ia a passar o lugar da "minha descida" e ele respondeu que eu sabia perfeitamente ao que me arriscava a pedir boleia àquela hora da noite com um corpo como o meu, metida naqueles jeans e com aquela T-shirt.

 

Juro que não estava "metida" na roupa, Diário. O meu único erro foi o de não seguir pelo trilho da mata e dirigir-me sozinha à auto-estrada. Foi um erro de palmatória... mas não pensei.

 

Atravessámos Twin Peaks até um velho e pequeno motel que, a julgar pelo estado de abandono, era difícil de acreditar que estivesse aberto e com dono. Inútil será dizer que estes tipos já tinham dois quartos e me transportaram, literalmente, para o primeiro. Fixei o número do quarto: 207. Para o caso de precisar de ajuda, ficaria a saber onde me encontrava. Nada me garantia que viesse a sair dali inteira.

 

Todos se mostraram incrivelmente desordeiros. Gritavam a plenos pulmões e expressavam-se numa linguagem vulgar. Por momentos, julguei que poderia pôr-me de pé sem ninguém notar e correr mais do que aqueles estupores de bêbados.

 

Agi com o cuidado exigido pelas circunstâncias, mas mal tentei pôr-me de pé, três dos quatro tipos deitaram-me a mão.

 

"Onde julgas que vais, franguinha?"

 

"Ei! Que tal tu e eu irmos até ao quarto ao lado e dançarmos um pouco a sós?", sugeriu o mais feio de todos. Sabia que se não agisse rapidamente, se não fizesse algo para controlar a situação à minha maneira, se tornariam violentos e, com toda a probabilidade, me violariam. Tomei consciência de que talvez não me escapasse dali com vida. Estava horrorizada.

 

"Escutem... vocês todos", disse, forçando um sorriso.

 

Um dos tipos olhou-me como se eu tivesse endoidecido por estar a tomar aquelas "liberdades". Estava, contudo, interessado no que eu tinha a dizer, porque os mandou calar a todos e reunirem-se à volta da cadeira, onde eu me encontrava.

 

Forcei mais um sorriso e continuei:

 

"Escutem. Se todos quiserem brincar esta noite... e sabem a que me refiro... então façamo-lo como deve ser, certo?"

 

Um dos indivíduos, o que estava coberto de tatuagens, subiu para cima da cadeira e pôs-se aos pontapés. Cinco ou seis vezes. Tentei não parecer tão dorida quanto estava na realidade. Dobrou-se, aproximando o rosto barbudo e senti-lhe o hálito fedorento.

 

"Cuidado com as palavras, miúda, porque na minha terra, uma merda como tu jamais se atreveria a dizer a um tipo que ele não era homem para fazer um trabalhinho melhor que todos os outros."

 

"Não era minha intenção duvidar da sua experiência. Vejo que sim, só pela maneira como se mexe."

 

Céus! Eram todos tão horríveis. A minha língua tremia, nervosa e mentindo. Eu era tão estúpida!

 

Outro dos indivíduos, o mais novo e o único que mostrava alguma consideração por mim, sugeriu que ouvissem o que eu tinha para dizer.

 

Consegui endireitar-me na cadeira e fitei-os a todos, com cuidado. Pensei: "Vai em frente. Ou te deitas ao trabalho, ou eles acabam provavelmente por te violar e matar. Não podes deixar que gente como esta te tire a vida. Finge que alinhas, Laura."

 

"Muito bem. Nada tenho contra a bebida, drogas ou sexo, tudo em doses moderadas. Não me oponho a fazer coisas estranhas, a ser maternal ou tornar-me uma miúda... mais do que uma miúda até e tão pouco me oponho a fazer um espectáculo a solo para todos."

 

Ouviram-se arrotos e as cabeças acenaram. Oito olhos arregalados com um brilho selvagem.

 

"Acho que todos vocês apreciarão à grande o meu espectáculo... irei mesmo ao ponto de inventar coisas novas para vocês, carícias novas... e se se lembrarem de algo que queiram que eu faça, aproximem-se e sussurrem ao meu ouvido. Entrarei no jogo. Mas tenho um negócio a propor: apanho uma boleia para a cidade e saio daqui tal como entrei. Nada de violência."

 

Um dos tipos decidiu que era macho de mais para isto e ameaçou:

 

"Arranco-te a cabeça com um estalo se me der na mona, cabra."

 

Reuni a coragem suficiente para me inclinar para ele e aparentar confiança.

 

"Se lhe der na mona arranca-me a cabeça com um estalo, como disse, é porque não fiz o meu... trabalho", arrisquei, engolindo em seco. "Pode chamar-me cabra e tudo o que quiser, mas primeiro tentemos dar-nos bem... certo?"

 

Levei mais quarenta minutos a convencê-los a assistir ao meu espectáculo e a fazê-los parar com aquele comportamento e com os gritos. Por fim, ofereci a cada um um Vallium para porem na cerveja e disse-lhes que se sentassem no sofá, bebessem a cerveja e eu começaria.

 

Nunca me sentira tão assustada. Tinha de esquecer os pesadelos, esquecer as ultrapassagens à justa numa carrinha a toda a velocidade por uma estrada molhada, esquecer mesmo o BOB, simplesmente porque eram quatro para uma. E cada um deles com força bastante para me comerem o corpo, como um petisco antes do almoço. Todos se sentaram na cama, excepto um, que mandei vigiar a porta, para que ninguém pensasse que estava a planear fugir. Puxei uma cadeira para o meio do quarto. Uma cadeira de madeira, com um espaldar alto... quase perfeita de mais. Dirigi-me a cada um dos cantos do quarto e apaguei as luzes.

 

Comecei a despir-me devagar e, sempre que tirava uma peça de roupa, memorizava para onde a tinha atirado a fim de (caso eles perdessem a consciência como eu tinha planeado) poder vestir-me rapidamente e pirar-me.

 

Pus-me a falar comigo. Imaginei que estava numa muito alta para poder descontrair-me. Tinha um medo danado que um deles me saltasse para cima e dissesse: "Estás feita, miúda", mas isso não aconteceu.

 

Iniciei, devagar, a rotina da "jovenzinha perdida na mata"... um jogo favorito do Leo e do Jacques, já que consigo tornar-me a "mãezinha", num abrir e fechar de olhos.

 

Rezava para que conseguisse mante-los intrigados o tempo suficiente para observar as pálpebras a ficarem pesadas. Aproximei-me do homem que estava junto da porta, talvez o pior de todos e pousei-lhe a mão, que estava surpreendentemente descontraída, no meu peito, começando a falar-lhe num sussurro.

 

Passaram uns bons quinze minutos, enquanto ele me apalpava e alinhava de facto naquela conversa e sentia-o começar a ceder, tal como o Jacques. Um deles mostrou-se egoísta e perguntou:

 

"Ei, e o pessoal aqui?"

 

"Não se preocupem, rapazes, chego para todos. Nunca me aborreço e seria impossível esquecer quem está neste quarto."

 

Tinha de os manter a todos satisfeitos. Girei a cadeira e pedi ao homem junto a mim que se ajoelhasse. Disse-lho num torn meigo para que não parecesse uma ameaça e comecei a dançar. Percorri o quarto todo... e prestei atenção a todos... admirando tudo o que era deles... mentindo... (nenhum deles perdera a consciência!).

 

Por fim, regressei à cadeira. A seguir, começou a parte mais quente do espectáculo... uma rotina ordinária e vulgar, durante a qual todos se inclinaram para diante e me observaram, enquanto gozava. Continuei o jogo e esmerei-me... prolonguei-o.

 

Fiz tudo o que me veio à cabeça para os intoxicar física e emocionalmente. Todos pareciam cansados, mas continuavam em estado de aplaudir e assobiar.

 

Em resumo, isto continuou até três dos quatro tipos se passarem e me restar um. Era alto e gordo, com uma barba de três dias e olhos cavados. Disse-me que o enfeitiçava.

 

Perguntou-me se queria ir para o outro quarto. Disse-me que tinha a chave. Aproximei-me e sugeri:

 

"Que tal o camião? Podemos fazê-lo lá?"

 

"Claro. As costas são tuas, querida."

 

Agarrei, portanto, no que pude da minha roupa menos as meias e o soutien e arrisquei-me a sair para a noite, tentando pensar numa forma de me escapulir deste lugar... o mais depressa possível. Precisava de sair. Pedrar-me. Chegar a casa.

 

Sentei-me no banco do condutor e chamei-o com um beicinho de mimo. Ele esgueirou-se, rapidamente, nos assentos forrados de vinilo. Enterrou-se no meu peito e pensei: "Linda menina, Laura, procura a garrafa com a mão... isso mesmo! Não te movas depressa de mais, distrai-o e bate-lhe!"

 

Atingi o tipo na cabeça com a garrafa e o sangue jorrou. Estava a sangrar por todo o lado. Saltei para fora do camião e comecei a correr... seminua! Queria afastar-me para bem longe, antes que se apercebessem do que eu fizera.

 

Dirigi-me à cabana do Jacques, esperando que ele e o Leo ainda lá estivessem com a Ronnette.

 

Quando cheguei, sentia-me muito perturbada, emocionalmente desfeita. Rompi em lágrimas e caí de joelhos, no chão. A Ronnette aproximou-se e ajudou-me a sentar no divã. Não conseguia parar de chorar! Sentia até vergonha de me descontrolar daquela maneira... sentia-me a pessoa mais suja ao cimo da terra! O BOB tinha razão, tinha tanta razão!

 

Agarrei no braço da Ronnette e ouvi-a dizer: "Ela está coberta de sangue. Vamos limpá-la. Vai ficar perturbada com este sangue todo no corpo!"

 

Depois, apenas me recordo de acordar na minha cama, com um bilhete no punho cerrado.

 

"Querida Laura:

 

Tentámos acalmar-te o melhor que pudemos, mas estavas histérica... e pedias sem cessar para ir para casa. Acho que ninguém nos ouviu entrar, mas se fores apanhada, conta-lhes o que aconteceu.

 

Tudo está bem, agora. Sei que te assustaste... Talvez possamos encontrar-nos daqui a uns dias e falarmos ou coisa assim, certo?

 

Ronnette."

 

Aqui tens, portanto, a minha noite.

 

Decerto pensas que aprendi a lição, mas por qualquer motivo não posso.

 

Fui mesmo ao ponto de pensar ao acordar esta manhã em como podia ter feito um espectáculo melhor para aqueles sacanas! A minha cabeça remói o assunto sem cessar, como um disco riscado, à excepção de que melhoro as coisas, me sinto mais descontraída... digo coisas mais sabidas. Vejo-me mesmo a pensar em ir procurá-los!

 

Devo estar a endoidecer... estes pensamentos estão completamente errados! Toda eu estou errada!

 

Falo-te mais tarde, Laura.

 

QUERIDO DIÁRIO,

4 DE MARÇO DE 1988

Ontem passei o dia com a Donna e concluí que já nada temos para dizer uma à outra. Falamos, claro, e ela mantém o diálogo, mas durante todo o tempo em que estivemos juntas, só pensava em ir-me embora da casa. Sentia aquelas puras e perfeitas paredes a apertar-me.

 

A Donna levou-me para o quarto e fechou a porta para me sussurrar que, muito em breve, ela e o Mike vão chegar a vias de facto. Andam a planear o acontecimento... na quinta à noite? Não me lembro.

 

Portanto, ela conta-me isto e devo replicar: "Mas tens a certeza de que é isso o que queres, Donna?"

 

Suponho, assim, que a Donna se está a dar bastante bem com o melhor amigo do Bobby, o Mike. Lembras-te dele? O do anúncio da pastilha elástica? Só me resta acrescentar que espero que ele seja bom para a Donna. Sempre o achei um idiota... mas não tenho de fodê-lo, certo?

 

Diverte-te, Donna. Laura.

 

QUERIDO DIÁRIO,

10 DE MARÇO DE 1988

Estava aqui no quarto a pensar no Bobby. Talvez não devesse ter-lhe contado o que se passou com os camionistas, pois desde essa altura que não me dirige a palavra.

 

Falei abertamente, como ele e eu combináramos na véspera de Ano Novo. Queríamos ser honestos... dissemos que estávamos apaixonados... apenas fiz o que fiz para sair de lá com vida.

 

O Benjamin Home acabou de telefonar. A minha mãe gritou do fundo das escadas que era para mini e que Benjamin Home estava ao telefone. A minha primeira pergunta, antes mesmo de o cumprimentar, foi: "O Johnny está bem? O que aconteceu?"

 

Respondeu que devia sentar-me um minuto. Sabia que o meu pai estava em casa, a minha mãe estava bem... o Johnny estava bem... Do que se tratava?

 

Informou-me que o Troy fora encontrado, esta manhã, no trilho junto à fronteira. Tinha a perna partida e três dos cascos arrancados... para não mencionar o facto de se encontrar a morrer à fome. Não fora capaz de encontrar comida. Benjamin acrescentou que estava certo de se tratar do Troy por causa do ferro do Broken Circle.

 

O Benjamin disse que observara a polícia da fronteira a abatê-lo. Dois tiros na cabeça. Disse que parecia que alguém o soltara. Prometeu-me ao telefone que descobriria essa pessoa horrível e os faria pagar pelo que tinham feito a um cavalo tão bonito e jovem.

 

Desliguei.

 

Olhei em redor. E tudo ficou cinzento, preto, cinzento, preto... sou tão má. Para onde quer que me volte, algo me indica que sou uma pessoa diabólica, e má... Como pude fazer uma coisa destas ao Troy?

 

Se não fosse tão cabrona e horrível, podia ter saído neste preciso minuto e montá-lo. Iríamos os dois pelos campos, onde podíamos ter sobrevivido juntos, de qualquer maneira.

 

Não consigo acreditar no que está a acontecer-me e à minha vida! Como é que um dia pode ser tão inacreditavelmente valioso e outro um pesadelo... um sonho obscuro que me leva a pensar em morrer... neste preciso instante.

 

QUERIDO DIÁRIO,

7 DE ABRIL DE 1988

Não só me agrada o meu emprego na secção de perfumaria, como adoro trabalhar com alguém tão racional como a Ronnette. Compreende sempre que estou na ressaca e não me espicaça nestas alturas.

 

O Bobby voltou a falar-me e encontramo-nos com bastante regularidade, talvez duas vezes por semana; no máximo, ou como média, digamos cinco vezes por mês. No entanto, costumávamos ver-nos todos os dias. Agora, no liceu, pouco andamos nos intervalos. E o mais engraçado é que, neste semestre, o corpo estudantil nos elegeu como "o melhor par".

 

Acho que gostamos muito um do outro, mas nos tornámos objecto de conveniência e conforto mútuo, sem o amor nem as atenções que dantes existiam. Drogamo-nos frequentemente juntos, na maioria das vezes na casa do Leo ou junto a Pearl Lakes.

 

Sempre que nos drogamos na casa do Leo, em especial nos últimos tempos, o Bobby presta mais atenção à Shelley do que ao Leo ou a mim.

 

Suponho que vão ter uma ligação... se é que já não se encontram em segredo. Na outra noite, comentei isto com o Leo, o que foi, decididamente, um erro da minha parte. Quem me dera ser capaz de atribuir sempre as coisas estúpidas, que me saem pela boca, à coca que me sobe pelo nariz, mas não tenho essa sorte. Vi-me obrigada a suplicar-lhe que se acalmasse. Nunca assistira a uma tão súbita explosão de violência.

 

Não duvido um momento que seja do temperamento irascível do Leo, mas preocupou-me aquela imensa raiva num breve espaço de tempo. Espero que o Bobby e a Shelley tenham uma relação... não me agrada, de forma alguma, a ideia de ficar só, mas podiam acontecer coisas piores e acho que o Bobby e a Shelley estão bem um para o outro. Poderei afirmar que o Leo Johnson e a Laura Palmer são feitos da mesma fibra...? Seja como for, apenas quero vincar que o Leo e eu dormimos mais vezes do que o Bobby e eu, e sei que se passa o mesmo com o Leo e a Shelley.

 

Por que é que escolhemos quem escolhemos? Evitando a solidão a qualquer preço... escolhendo um parceiro pelo horário de trabalho, o ordenado ou as suas capacidades no quarto são bons motivos, caso se tenha a sorte de encontrar um indivíduo assim, mas que também seja amável.

 

O Bobby pareceu-me indicado. Estava aqui. Era esperto, popular, filho de boas famílias... e jurou-me amor vezes sem conto, até se aperceber, finalmente, de que agora me é impossível amar. Apaixonar-se corresponde a erguer uma bandeira branca diante o inimigo e dizer: "Desistimos, estamos apaixonados, o amor é rendição."

 

Apenas o poderei fazer quando tiver a certeza de que o BOB está realmente morto. Até existir um cadáver em que eu possa dar os pontapés que me apetecer. Céus! Espero que esse dia chegue em breve.

 

Laura.

 

QUERIDO DIÁRIO,

10 DE ABRIL DE 1988

Hoje fui aos Armazéns Horne para a minha entrevista de apresentação, embora já lá esteja a trabalhar há mais de um mês. Acho que esperava aprender mais do que sei.

 

Mr. Battis, o gerente do armazém, recorda-me um fruto enorme, algo a apodrecer lentamente... O que está a fazer aqui e quando se irá embora? Pobre tipo.

 

Mr. Battis sente-se tão culpado por foder as "amigas do patrão", que nunca sai das proximidades do balcão da perfumaria. Sinto como se me espiasse uma sanguessuga, que nunca me permitirá uma snifadela, nem uma palmada no rabo da Ronnette.

 

Lembro-me de que nesse dia me senti intimidada com o gabinete de Benjamin: o tamanho da sala, o número das luzes dos telefones piscando sem cessar, o seu aspecto, o tamanho do sofá, e... ah...

 

Nesse dia, o Benjamin informou-me: "Alguém do pessoal vai telefonar-te para casa para marcar uma entrevista de apresentação muito em breve, Laura."

 

A sorte não foi por aí além: Mr. Battis é um ser balofo e mais velho e menos distinto do que eu imaginara e ainda menos interessante para ter por perto. Seja como for, you ter de lhe dizer muito em breve que chateia mais do que ajuda toda a gente e que, pessoalmente, estou cansada de forçar sorrisos dirigidos à sua cara ridícula e à sua falta de humor.

 

Tenho a certeza de parecer sacana, mas adquiri direitos. Trabalho no duro e há alturas em que o copo transborda.

 

Estou no intervalo: "VOLTO DENTRO DE QUINZE MINUTOS." Preciso de um cigarro e de uma linha.

 

Voltei. Quando ia a sair da casa de banho das senhoras, avistei a Donna a aproximar-me do meu balcão. Raios, exactamente quando me sentia melhor. Pôs-se logo a tagarelar sobre a viagem que vai fazer fora da cidade para sondar universidades e de como terá saudades do Mike.

 

"Quanto custa este frasquinho, aqui?"

 

Fiquei feliz em vê-la, mas ao mesmo tempo não. Perturbou-me que se sentisse tão feliz com o Mike, não que desejasse que ele a maltratasse, mas, por lá no fundo, querer que gostasse mais de mim, ou precisasse mais da minha companhia do que da dele. Ao ver os meus pensamentos escritos é que me apercebo de como sou egoísta, em particular por ter deixado de lhe telefonar. Deixámos, realmente, de ser verdadeiras amigas.

 

Acho que somos como todas as outras pessoas. Prometemos que qualquer coisa é para sempre, quando, na realidade, somente dura enquanto não nos cansarmos.

 

Quando a vi afastar-se e transpor a porta, foi como se partisse para sempre.

 

Laura.

 

QUERIDO DIÁRIO,

21 DE ABRIL DE 1988

A Ronnette acabou de me telefonar do emprego a dizer que, embora seja o meu dia de folga, só terá ajuda à noite e precisa de gente no balcão... se me importava de ir.

 

Por outras palavras, diz a toda a gente aí em casa que vais trabalhar até tarde. Há uma festa particular com o Leo e o Jacques na cabana da mata.

 

A Ronnette e eu inventámos códigos para coisas e sítios específicos.

 

"Preciso da tua ajuda já" significa "Preciso de uma dose de coca, tens alguma?" ou "Precisam de ajuda no balcão, agora", significa "Não há coca na cabana, traz a que tiveres".

 

Portanto, a Ronnette e eu fomos até lá e, no caminho, tentei convencê-la de que nunca seria reconhecida, nem apalpada mas incrivelmente rica se "o" fizesse comigo. Este "o" significava mandar fotografias dela para a Fleshworld Magazine. Disse-lhe que escrevesse um pequeno anúncio, indicando que enviaria vídeos pornos, gravações, cuequinhas e fotografias mediante um preço baixo... etc., etc. Que arranjasse um cofre e inventasse um nome e uma história falsa podíamos mesmo convencer o Jacques a tirar-nos as fotografias esta noite.

 

Há algumas horas que estávamos a beber na cabana, quando disse ao Jacques que queria fotos a cores minhas.

 

Os reposteiros vermelhos das janelas eram um fundo com dimensões suficientes e a cor era bastante ténue para que eu posasse como queria. Venderia um milhão de cópias.

 

O Jacques e Leo ficaram excitados com o que eu estava a fazer. Descobri uma nova forma de os excitar.

 

A Ronnette viu-me em acção e decidiu que, afinal, talvez fosse uma boa ideia.

 

Até breve, Laura.

 

QUERIDO DIÁRIO,

22 DE JULHO DE 1988

Felizes dezasseis anos para mim...

 

Tudo me parece um sonho, um sonho mau e muito triste, sobre uma rapariguinha que, durante toda a existência, sonhara com a sua vida aos felizes dezasseis anos.

 

Céus, Diário! Tinha imagens tão maravilhosas do rapaz que iria amar-me, sem jamais sair do meu lado. De como as minhas amigas e eu iríamos no meu carro novo até à praia despir-nos-íamos até ficarmos em biquini e meter-nos-íamos na água. Eu teria um corpo perfeito, a família e o lar perfeitos uma estudante exemplar, que ajuda a pagar os estudos e ganha o seu dinheiro.

 

Desejava o meu pónei, um gato e talvez um cão. A Donna Hayward estaria ao meu lado, com um vestido branco de enfeites e os nossos namorados iriam buscar-nos à porta da frente. Os nossos pais gostavam deles, porque tínhamos os pais perfeitos.

 

Tudo o que escrevi atrás era o meu sonho até à chegada do pesadelo. Não estava, obviamente, a pensar que teria todos estes momentos "de perfeição" na minha vida, mas continuava a acalentar sonhos, a esperar que tudo fosse possível.

 

Não consigo expressar-te quanto uma fantasia é especial e preciosa... não lhe senti a falta até ela desaparecer. A sua ausência tornou-me fria, paranóica, antipática e disponível a todo o tipo de coisas horríveis.

 

O essencial da verdade já conheces. Os doces dezasseis anos não são o que eu julgava serem.

 

O Bobby Briggs e eu resolvemos que descansaríamos um pouco um do outro. Acho que ele tem uma ligação com a Shelley, mas pouco interessa. Não consigo amar o Bobby como ele merece e sinto-me morta por dentro ao confessá-lo.

 

Não me encontro lado a lado com a Donna Hayward. Algo nos aconteceu, crescemos juntas, mas, de repente, eu cresci longe dela... alguns acontecimentos tornaram-me mais velha e mais amarga.

 

Vejo que a considerei erradamente uma idiota por ela nunca ter conhecido a amargura ninguém lhe aparecer, a altas horas, na mata para lhe garantir que não havia esperança. Não. Essa foi a minha vida.

 

Não tenho um carro novo em folha. Os meus pais emprestaram-me o deles. Para que me serviria um na cidade de Twin Peaks não é, na realidade, necessário.

 

Esforço-me por trabalhar no duro, mas tenho de fazer algo mais. Tenho de batalhar mais para redimir todos os meus pecados... as minhas pedradas de cocaína, dia e noite, meses a fio. Sou uma toxicómana e forcei o Bobby a vender drogas, ameaçando deixá-lo, se discordasse. Sei agora que ele jamais me aceitaria de volta. De qualquer maneira, não o mereço. O duro e atraente exterior com um coração de ouro... o homem das minhas fantasias. Tenho de deixar a coca.

 

E o sexo! Mais do que uma jovem da minha idade deveria conhecer. Muito mais. O sexo que se vai tornando mais, cada vez mais, sombrio e é mais um acto de vingança do que de amor.

 

Por vezes, gosto de ir para a cama com mulheres, pois sei exactamente como lhes dar gozo e sinto um tal poder!

 

Anseio todo o tempo por este tipo de força, que serve de mais uma justificação para a cocaína. Receio muitas vezes que todos os meus actos me mandem direita para o Inferno.

 

Tive um pónei. Um belo pónei. Troy. com uma crina de um belo castanho. E volto a culpar-me... embora possam existir circunstâncias na minha vida que me levem a acreditar que fiz o que devia. Não interessa. Soltei-o, envolto nos meus próprios sonhos de liberdade. Bati-lhe nos flancos, com força. Observei-o a afastar-se... e acho que ele olhou uma vez para trás, mas virei as costas. Já sentia, de qualquer forma, o que lhe aconteceria por minha causa.

 

Encontraram-no sem comida nem cascos, com uma perna partida, no trilho junto à fronteira. Benjamin Horne assistiu, em silêncio, aos dois disparos que lhe atingiram o cérebro.

 

Transformei-me numa ladra, tal como o visitante BOB. Uma ladra de orgulho, esperança e confiança...

 

O meu gato... não you dissecar o assunto. Já me chega de tristeza só de pensar nele.

 

Tenho de ir embora.

 

Mais tarde, Laura.

 

QUERIDO DIÁRIO,

22 DE JULHO DE 1988

Basta de falar no passado e de como remoo sem cessar os erros do presente.

 

Tenho algumas notícias que se assemelham a receber uma bofetada. Estou grávida. Grávida de sete semanas e meia. Ninguém sabe, excepto eu e as mulheres da clínica (hoje pedi o carro emprestado para ir consultar um médico e ter a certeza). Tenho a certeza. Neste momento soam tantas vozes na minha cabeça...

 

Desde a noite passada que não faço uma linha de coca parece-me uma eternidade. Como desejava que toda a minha vida fosse um sonho. Um imenso e estranho sonho com muitas tramas e ligações verdadeiras, mas uh! uh! Não pode ser assim a vida de Laura Palmer... Esforço-me tanto por agir bem! Porquê?

 

Não faço ideia de quem é o pai desta criança! Hoje não posso chorar mais, porque faço dezasseis anos e todos vão querer saber porque me sinto tão triste. Não you contar a ninguém.

 

Laura.

 

QUERIDO DIÁRIO,

2 DE AGOSTO DE 1988

Passou uma semana inteira, desde que o BOB veio visitar-me. Estou tão insensível que, no outro dia, me ocorreu que desejava que ele aparecesse e me cortasse, como era seu hábito. Que apagasse esta cadeia de pensamentos uma e outra vez, fazendo-me simplesmente sangrar. Claro que ele não se atreveria a aparecer, se eu o desejasse.

 

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Nestes dias penso na morte como uma companheira que anseio encontrar.

 

Adeus, Laura.

 

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"MINHA CABRA."

 

Estás aí, Bob?

 

"SEMPRE."

 

Por que é que não me levas agora, não me tiras a vida... agora.

 

"FÁCIL DE MAIS."

 

Uma ova! Estou a endoidecer! Não consigo continuar a viver assim! Sai imediatamente da minha maldita cabeça, sai da minha vida, da minha casa, dos meus sonhos... ou mata-me!

 

"TIRAS A GRAÇA A TUDO."

 

Então, eu estava certa desde o começo. Sempre tiveste intenção de me matar.

 

"POR VEZES, A VIDA É O QUE ACONTECE ANTES DA MORTE. DESEJAVA VER O QUE PODIA FAZER-SE."

 

Sou uma cobaia.

 

"SIM. DISSESTE-O UMA VEZ."

 

Nunca tive oportunidade...

 

"CLARO QUE TENS."

 

Não te acredito.

 

"NEM NINGUÉM. POR ISSO ESTÁS... A CAIR."

 

A cair...?

 

"NO ESCURO. ÓPTIMO, NÃO É?"

 

Não.

 

NÃO?

 

Já te disse! Odeio isto! Odeio-me e a tudo o que me rodeia.

 

"QUE PENA!"

 

És real, Bob?

 

"PARA TI, SOU A ÚNICA REALIDADE QUE EXISTE."

 

Mas...

 

"CONTINUAS A VOLTAR. PASSAS O TEMPO A DIZER QUE VAIS DEIXAR DE FAZER COISAS MÁS... NUNCA DEIXAS."

 

Quando vieste ter comigo pela primeira vez, eu não fazia coisas más! Era uma miudinha! Não era nada... era toda pureza... era feliz!

 

"INCORRECTO."

 

Podia continuar a falar contigo para sempre, e nada aprenderia.

 

"É SEMPRE MAIS DIFlCIL COMUNICAR com ALGUÉM QUE POSSUI SABEDORIA. É O FOGO. TENS DE ATRAVESSÁ-LO."

 

Não quero ouvir falar em fogo.

 

"ENTÃO, NÃO QUERES A RESPOSTA."

 

Quem és tu... realmente?

 

"SOU O QUE TEMES QUE EU PUDESSE SER."

 

Basta. Compreendo. Basta. Tenho de me ir embora. Tenho de ir embora, já. Por favor... Desaparece.

 

"FELIZES ÚLTIMOS DIAS, PEQUENA LAURA."

 

Endoideci. Durante uns tempos não falarei contigo.

 

QUERIDO DIÁRIO,

10 DE AGOSTO DE 1988

É-me difícil contar isto, sem parecer que estou com pena de mim, embora se trate apenas de meia verdade. Durou somente uns momentos e, no entanto, ouvi todo o tipo de sons, palavras junto a mim... a vida rodando sobre os calcanhares e afastando-se numa corrida.

 

O médico apareceu, com as mãos enormes já metidas em luvas de borracha, os olhos tão estéreis como a divisão e os utensílios aqui usados.

 

Apertou-me a mão. A luva de borracha fez-me recordar algo, seria o BOB?

 

Os últimos e breves momentos com o bebé foram os mais difíceis que alguma vez suportei. Que tipo de decisão estava a tomar? De quem era esta criança?

 

O médico ergueu os braços no ar e resmungou: "Malditas mangas." Depois, enrolou as mangas e pôs-se ao trabalho.

 

Máquinas começaram a chiar. A enfermeira presente pegou-me na mão. Sorriu e o médico inclinou-se entre as minhas pernas afastadas e manteve-se, assim, um momento, fitou-me e avisou: "Vai ser um tanto desconfortável."

 

E, assim, fechei os olhos e agarrei na mão da enfermeira. Desejei que, fosse quem fosse este filho, pudesse regressar na altura certa.

 

Quando houver um casamento. Uma união de que tenhas nascido e não de que sejas responsável. Tu, criança, devias ser uma dádiva para os que estão preparados e não um fardo como tantas outras antes de ti. Volta, criança, quando eu própria já não for uma criança.

 

QUERIDO DIÁRIO,

10 DE AGOSTO DE 1988

Chorei durante o caminho de volta da clínica e pensei em todas as coisas que me tinham acontecido ou que tinha deixado que me acontecessem, nos últimos meses. Quem me dera que a Maddy estivesse aqui comigo. Quase lhe telefonei a pedir que viesse, mas decidi não o fazer.

 

A minha única verdadeira sensação de contentamento deveu-se ao facto de que hoje, à uma da manhã, completam-se dezanove dias que estou sóbria. Não tomei coca.

 

Tem sido muito mais difícil do que pensei que o fosse. Algumas vezes e, por uma questão de puro hábito, ainda you espreitar na coluna da cama se existe um panfleto que conservo nesse espaço.

 

A propósito, esqueci-me de te contar que a Norma me telefonou há uns dias e nos vamos encontrar amanhã, para discutir a minha ideia de ajudar os velhos de Twin Peaks. Espero que tudo dê certo, na medida em que poderia beneficiar, tanto a cidade como a minha sobriedade.

 

Ao chegar a casa, tomei consciência das dores horríveis que sentia. Julguei que seria incapaz de subir as escadas até ao meu quarto. A minha mãe veio imediatamente ter comigo e perguntou:

 

"Então, que tal correu?"

 

"A entrevista foi óptima, mãe."

 

Agarrei-me com força ao corrimão e disse-lhe que ia deitar-me cedo. Senti-lhe o peso do olhar, enquanto subia, degrau a degrau.

 

Quando cheguei ao cimo das escadas, a minha mãe chamou-me e informou-me que tivera um telefonema da prima Maddy. Estaquei, horrorizada. A Maddy ouvira o meu apelo.

 

Nesse mesmo momento, tive consciência do olhar da minha mãe ciúme puro, fixo nas minhas costas.

 

Tenho de descansar.

 

Laura.

 

QUERIDO DIÁRIO,

16 DE AGOSTO DE 1988, 3.15 HORAS DA MANHÃ

Há bastante tempo que não nos encontrávamos a estas horas da noite.

 

A sobriedade é uma merda. Nunca me senti tão paranóica como nestes últimos dias. Sinto-me como se tivesse perdido todos os meus amigos, porque estou sóbria.

 

A Ronnette e eu já não falamos como costumávamos, especialmente no trabalho, e deixei de ser informada das festas que se realizam na cabana.

 

O Bobby nunca me telefona. Sou eu que lhe telefono! Como isto é estranho! Parece passar bem sem mim, o que me faz sentir que todos vão notar e deixarão de se dar comigo. Pergunto a mim mesma se serei aquela má influência de que o BOB sempre me acusa!

 

A minha sobriedade significa que acabaria completamente só? Até mesmo o meu novo amigo Harold Smith.

 

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QUERIDO DIÁRIO,

20 DE AGOSTO DE 1988, 5.20 HORAS DA MANHÃ

Está muito escuro no meu quarto neste momento e estou a escrever-te apenas com a luz de presença.

 

Não quero que ninguém saiba que estou acordada. Sinto-me tão assustada.

 

Acabei de ter um pesadelo e agora estou toda a suar e com dificuldade em respirar. No sonho, toda a gente deste mundo tomava drogas, mas eu tinha-as deixado. Ignoro porquê... talvez me fizesse sentir melhor. Talvez pensasse que era o que devia fazer.

 

Mal parara, tornei-me invisível. Vi-me no vazio a flutuar sobre Twin Peaks... atravessando o liceu... Ninguém me notou, nem uma só pessoa! Corri para uma sala de aulas e vi a Donna. Aproximei-me e gritei-lhe no rosto, mas não me ouviu. O Bobby e a Shelley caminhavam na minha direcção no átrio. Falavam um com o outro e avançaram através de mim! Avistei o Leo e o Jacques junto ao bebedouro. Nem mesmo eles me viram!

 

Era-me impossível chamar a atenção de quem quer que fosse, ou levá-los a acreditar que eu tinha importância, pois, aos seus olhos, não tinha. Não podiam ver-me, porque eu estava sóbria.

 

Todo o sonho me pareceu tão real. Senti-me tão só.

 

Quando ergui os olhos para verificar se a luz do corredor estava acesa, do lado de fora da janela, fitando-me e rindo (com as palavras e o riso abafados pelo vidro da janela) estava o BOB! Filho da mãe!

 

Vi-lhe o rosto do outro lado do quarto, iluminado pela claridade alaranjada da minha luz de presença. Apenas um caixilho de vidro nos separava. Continuou a rir e depois esgueirou-se devagar através do rectângulo que é a minha janela. Fui incapaz de descansar até ao nascer do Sol e a janela receber a luz que o impede de voltar.

 

Um beijo, Laura.

 

QUERIDO DIÁRIO,

20 DE AGOSTO DE 1988, MAIS TARDE

Mr. Battis tinha-me pedido que fosse ter com ele ao gabinete às cinco e meia. Às cinco e quinze disse à Ronnette onde ia, mas que voltaria, logo que possível, para a ajudar a desempacotar os novos produtos.

 

Fiquei sozinha. Deixaram-me, uns minutos, sozinha, no gabinete do Battis. Sentei-me na cadeira diante da sua secretária.

 

Quando Mr. Battis entrou, examinou-me de relance e sorriu. Eu sabia que lhe agradava, mas agora tornava-se mais óbvio.

 

Mr. Battis avançou dois passos na direcção da janela e olhou através das cortinas.

 

"Algo me diz que estás à procura de melhor emprego..."

 

"Sim." Cruzei as pernas. "É verdade."

 

"Acho que temos o emprego que te convém", prosseguiu, sem deixar de olhar lá para fora.

 

"E que emprego seria esse, Mr. Battis?", perguntei.

 

"Uma anfitriã... com quarto."

 

"Uma anfitriã?..."

 

"Sabe dançar, Miss Palmer?"

 

"Sei fazer um monte de coisas, Amory."

 

"Então, pode ganhar muito dinheiro."

 

Mr. Battis marcou-me um encontro aqui para o próximo sábado e acrescentou que (com a Ronnette) iríamos a um sítio do outro lado da fronteira chamado One-Eyed Jack's.

 

Agradeci-lhe e saí do gabinete. Enquanto percorria o caminho de regresso ao balcão da perfumaria, decidi que a sobriedade não me convinha.

 

A Ronnette prometeu que me encobriria. Levei o tubo dela para o quarto de arrumações. Tomei uma dose, virei-me para sair e avistei o BOB, acocorado a um canto, sorrindo vitoriosamente.

 

Um novo jogo, Laura.

 

QUERIDO DIÁRIO,

23 DE AGOSTO DE 1988

Sinto-me muito melhor com a cocaína de volta à minha vida!

 

Tenho estado para te contar o meu encontro com a Norma. Andara a pensar na melhor maneira de ajudar os idosos, que têm dificuldade em sair de casa.

 

Podia entregar refeições à gente idosa da área, que não conseguissem sair de casa para comer uma refeição quente. Indiquei-lhe que o nome da operação poderia ser "Refeições à Porta".

 

A Norma adorou a ideia e garantiu que faria alguns telefonemas a pessoas da Câmara e talvez do hospital. Desta maneira, era bem provável que encontrássemos os melhores recipientes, sem ter de andar muito a pé. A Norma concordou em fornecer as refeições, duas vezes por dia, quatro por semana. com lucros a meias. O meu trabalho consiste em entregá-las à porta e talvez recupere alguma confiança... Ou estou confiante? Ou estou tão pedrada com a coca que já nem sei?

 

Portanto, hoje, fui buscar duas refeições à cantina.

 

Estava a ajudar a Norma a tirar a comida do fogão, quando a Josie Packard entrou.

 

Ela e a Norma trocaram algumas breves palavras e a Josie pareceu ficar um tanto perturbada e excitada. Norma chamou-me de lado e explicou que a Josie andava novamente com problemas na serração por causa do seu mau inglês... Verifiquei que se sentia embaraçada com isso.

 

Disse-lhe que adoraria dar-lhe lições de inglês, se ela quisesse.

 

A Norma sorriu e deu-me uma palmadinha no ombro.

 

"Ficaria muito contente por lhe pagar os seus serviços", replicou a Josie, dando um passo em frente.

 

Apertei-lhe a mão e comunicou-me que o seu primeiro dia disponível era na próxima segunda-feira, de manhã... Respondi que para mim era óptimo. Iria visitá-la na segunda.

 

Saí da cantina com as refeições. Tinha de as entregar e ir ter com o Johnny Home dali a quarenta e cinco minutos.

 

Dirigi-me, primeiro, ao apartamento de Mrs. Tremond. Deixei o tabuleiro na porta da frente, junto com um bilhete adequado e o pedido de uma chave da casa para meu uso.

 

O Harold Smith era a minha segunda entrega. Penso que já te contei que ele é um homem muito interessante, muito atraente. Foi, ao que consta, um horticultor. Por qualquer motivo que não consegue lembrar-se acordou, uma manhã, como agoráfobo. Acredita que a morte está do lado de fora da porta e que a altas horas da noite o chama como um pássaro estranho.

 

Convidou-me a entrar, mas eu já estava atrasada e, portanto, respondi que aceitaria numa outra altura.

 

Quando cheguei a casa dos Hornes, estavam prontos para sair. Desejei-lhes que se divertissem e garanti-lhes que não se preocupassem, pois o Johnny e eu ficaríamos muito bem.

 

Convenci o Bobby a vir deixar-me uma dose de coca, e o Johnny e eu passámos a noite a ler os seus livros de histórias e a comer gelados.

 

Mais tarde, Loura.

 

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QUERIDO DIÁRIO,

31 DE AGOSTO DE 1988

Acabei de reler o que escrevi ontem e senti-me, repentinamente, muito envergonhada. A jovem, que recebeu este diário no seu décimo segundo aniversário, há anos que está morta e eu, que ocupei o seu lugar, nada mais fiz do que troçar dos sonhos que outrora a envolveram. Tenho dezasseis anos, sou dependente da cocaína, uma prostituta que fode com os empregados do pai, para nem falar da metade da cidade com quem se deita e a única diferença em relação à semana anterior é a de que, agora, sou paga por isso. A minha vida é aquilo que a outra pessoa no quarto deseja que seja.

 

Por conseguinte, quando estou só, a minha vida é um zero.

 

Na noite passada, sonhei que estava no exterior da cabana do Jacques na mata e tentava descobrir uma forma de entrar. Não havia porta da frente, apenas uma janela, idêntica à do meu quarto. Olhei através da janela e avistei o Waldo, a voar de um lado para o outro, muito, muito devagar. Era como se se movesse em câmara lenta, mas apercebia-me de que se encontrava em pânico. Gritava "Laura, Laura..." como que a avisar-me... E, de súbito, o BOB recortou-se no rectângulo da janela e agarrou o Waldo nas mãos. O BOB virou-se com um sorriso na minha direcção e, com um apertão no pescoço do Waldo, matou-o.

 

Recuei, afastando-me para longe da janela e fugi a correr, o mais depressa que as pernas me permitiam. Mas para onde quer que me voltasse a casa estava sempre diante de mim e o BOB cada vez mais próximo de conseguir saltar pela janela.

 

Ajoelhei-me. Rodeava-me um silêncio total. Ergui os olhos e, a uns dez metros de distância, avistei uma coruja gigantesca. Ainda agora, quando relembro o que se passou, continuo sem certezas. "Era um amigo ou um inimigo?"

 

Fitámo-nos durante muito tempo. Senti como se ela quisesse dizer-me alguma coisa, mas não o fez.

 

Acordei, esperando que o que a Mulher do Tronco dissera "Por vezes, as corujas são grandes" se referisse a esta noite e quisesse significar que algo de bom ia acontecer-me. Agora, que estou a trabalhar no One-Eyed Jack, bem precisava de um bom presságio. Tomarei tudo em consideração, como a Mulher do Tronco me disse que o faria. Desconfio que esta será uma das muitas coisas a que deverei estar atenta.

 

Laura.

 

  1. S. Acho que para garantir a minha privacidade, necessitarei de começar um segundo diário, um que se for encontrado, forneça ao intruso "a Laura" que todos julgam existir dentro de mim.

 

Terei de passar algum tempo a encher as páginas. Pergunto a mim mesma se a vida é algo que consigo inventar.

 

QUERIDO DIÁRIO,

13 DE NOVEMBRO DE 1988

Estive na casa dos Homes a tomar conta do Johnny. Um dos médicos dele, o Dr. Lawrence Jacoby, veio juntar-se-nos para fazer pontaria a uns búfalos de borracha.

 

Tomei consciência imediata da atracção de Lawrence por mim, não que fosse essa a questão, mas sim de onde a sua atracção provinha.

 

Apaixonara-se pelas "duas Lauras", motivo exacto que me levava a desejar tão desesperadamente a morte. O que considerava uma maldição, era para ele encantador e honesto. Não troçou do meu sofrimento. Aceitou-o.

 

Portanto, o Dr. Jacoby e eu começámos a encontrar-nos em segredo no seu consultório. Ele limita-se a deixar-me falar e, por vezes, tento chocá-lo com os pormenores do meu eu mais sombrio, mas ele continua a aceitá-los, a aceitar-me, admitindo sempre que, antes de tudo, a minha parte mais pura jamais queria fazê-lo. Sei que talvez isto possa parecer muito perverso e doentio, mas, por vezes, quase me sinto consumida pelo ódio que lhe voto, pois jamais se virou para mim, a fim de confirmar o meu receio mais profundo de que esteja a tornar-me como o BOB, má.

 

Talvez tudo seja como ele o afirma: esqueci-me, muito simplesmente, de como ser amada.

 

Laura.

 

QUERIDO DIÁRIO,

13 DE JANEIRO DE 1989

Não te tenho escrito, porque o Dr. Jacoby ofereceu-me um bonito gravador cor-de-rosa-vivo como presente de Natal. Disse que talvez falar para ele pudesse ajudar-me. Envio-lhe as cassetes, depois de eu própria as ter escutado. Acho que apesar de continuar a sentir-me muito triste ao escutar as cassetes e tudo o que está gravado, recebo uma ajuda ao sentir que os problemas ali narrados não me pertencem.

 

Apetecia-me escrever-te mais vezes, mas com todo o meu trabalho e o outro diário, que tenho de manter "agradavelmente em dia", pouco tempo me resta para ser honesta como sou contigo.

 

Escreverei mais, quando puder.

 

Laura.

 

QUERIDO DIÁRIO,

27 DE MARÇO DE 1989

Há semanas que andava a prometer passar alguns bons momentos com o Harold e, finalmente, hoje, consegui fazê-lo.

 

O apartamento dele é pequeno e está a abarrotar de livros, desde o lavatório à parte de cima do frigorífico. Penso que ele se vê obrigado a ler todas estas histórias, dado tão raramente ter histórias próprias.

 

Por vezes, gosto de brincar com o Harold. Gosto da forma como fica pendente de todas as palavras, sempre que lhe descrevo algumas das minhas aventuras. Em particular as do One-Eyed Jack (onde, a propósito, Jack trabalha a dar as cartas no vinte-e-um). As minhas histórias excitam o Harold. Sei que é assim. E, no entanto, reage quase violentamente e mostra receio quando faço qualquer avanço na sua direcção, por pequeno que seja. Adoro a ternura de Harold e, na maior parte do tempo, sinto-me lindamente quando estou com ele e penso nele. No entanto, há vezes em que me detesto mais do que possas imaginar pela excitação que me invade, sempre que vejo o rosto assustado do Harold e que deve ser o mesmo que o BOB vê quando olha para mim. A presa, sem saída possível... tão humilhada... transformada em boneco. Cada vez me apercebo melhor e julgo que o BOB também, ao visitar-me, de que nos últimos tempos não consigo magoar nem ser magoada.

 

Laura.

 

QUERIDO DIÁRIO,

4 DE JUNHO DE 1989

Há uns tempos que ando a dar lições de inglês à Josie e ela denota muito poucos sinais de progresso ou esforços de progresso. Sei que a Josie era bailarina e prostituta em Hong Kong, quando o Andrew se apaixonou por ela e lhe salvou a vida, trazendo-a para aqui há seis anos, e acho que ela mantém mais desse estilo de vida do que a maioria das pessoas tem consciência. Encara as nossas lições como um tipo de sedução mal executada e quanto mais me dou com ela, menos a respeito. Não que me irrite. É algo diferente... Fala muito do Bobby e vejo que tem ciúmes dele. Faz demasiadas insinuações às minhas experiências sexuais, levando-me a acreditar que é mais sombria e obscura do que a cidade a julga. Pobre xerife Truman.

 

Laura.

 

  1. S. Fico doente por, cada vez que faço algo de bom, acabar sempre perdoa a expressão por sair fodida.

 

QUERIDO DIÁRIO,

6 DE AGOSTO DE 1989

Nessa semana, a Norma encarregara-se praticamente de todas as entregas, mas pediu-me se eu podia tratar de Mr. Penderghast, pois precisava de ir, nessa tarde, visitar o marido Hank, à prisão. Respondi-lhe que o faria com muito gosto.

 

Tenho dezasseis chaves no meu porta-chaves, para além das cinco que me pertencem. Divago, frequentemente, sobre o acesso fantástico que tenho a casas que não são minhas. Compreendo muito bem a emoção que um ladrão deve sentir ao entrar num apartamento e poder decidir, subitamente, que tudo o que o rodeia lhe pertence.

 

Mr. Penderghast é dos idosos mais francos e bondosos a quem faço entregas. Meti a chave na porta e entrei sem ruído. Ouvia a televisão ligada no quarto e anunciei a minha chegada em voz alta.

 

Ele não respondeu.

 

Quando o descobri, estava atrás da porta do quarto, com as mãos crispadas à volta da maçaneta, como se a tivesse utilizado na sua tentativa de se mover pela casa. Para um homem tão terno, achei uma vergonha que ele morresse com aquela expressão combativa. A expressão do olhar e o esgar da boca indicaram-me que ele se sentira abandonado e atraiçoado pelos amigos. Esperei quase uma hora, antes de telefonar a pedir uma ambulância. Sentei-me ao lado dele a observá-lo, muito calmo, agarrando na morte.

 

Não me parece que aquela hora me tivesse dito algo que eu não imaginasse já, mas o facto de estar ali, naquele silêncio, forneceu-me a esperança de que, pelo menos, não haja guerras depois da morte.

 

Vi a morte com mais frequência do que a vida. Por vezes, até os mais gastos clichés se aplicam à realidade. Acho que estou apenas a viver a minha vida para morrer.

 

Laura.

 

QUERIDO DIÁRIO,

5 DE OUTUBRO DE 1989

Na noite passada, a meio do meu turno no One-Eyed Jack, saí do quarto e fui ao gabinete. Queria servir-me da casa de banho de lá, pois tem uma fechadura. Sentia-me tão deprimida, que precisava de mais do que uma dose, precisava de algumas grossas linhas... Ao sair da casa de banho, servi-me da outra porta, que dá para o quarto da Blackie. Ela estava na cama com um garrote no braço a chutar heroína. Posso ser doida, mas não enfio aquela merda no braço. É uma droga idiota.

 

A Blackie inclinou a cabeça para trás, tendo, obviamente, começado a sentir o efeito.

 

"Vim aqui buscar o meu dinheiro", disse-lhe sem rodeios.

 

"Vais recebê-lo esta noite", respondeu eufórica e num torn um tanto protector.

 

"Disse-me o mesmo na noite passada", repliquei, fazendo uma pausa. "Talvez que se deixasse de enfiar essa merda no braço, não se esquecesse do que promete."

 

A Blackie levantou-se, ajustando-se ao chuto e comentou que estava farta do meu comportamento de miúda e aconselhou-me a crescer. Acrescentou ainda que achava que eu devia deixar de "brincar na neve"... que os clientes começavam a notar. Respondi-lhe que era ridículo, que os clientes apenas tinham notado melhor sexo e melhor serviço do que alguma vez haviam tido.

 

"Mas ainda não me foderam", retorquiu a Blackie.

 

Após uma pausa propositada, respondi:

 

"Oh, mas julguei que fodê-la fosse um castigo para os que..."

 

A Blackie interrompeu-me, esbofeteando-me em pleno rosto. Olhou-me bem de frente e declarou:

 

"Vou ensinar-te uma ou duas coisas sobre o que é foder, agora mesmo."

 

Sorri como o BOB faria e pensei: "Serei eu a dar a lição."

 

Quando deixei a Blackie, ela ficou no chão, nua, à excepção das jóias, e humilhada porque eu tinha sido capaz de assumir todo o controlo da situação e de lhe mostrar coisas que ela nunca julgara possíveis. Levei-a até um lugar muito escuro e erótico... mas deixei-a lá, sozinha.

 

Ao abrir a porta, a Blackie atirou-me com o final e o único trunfo que possuía.

 

"Tem cuidado com o uso da cocaína, Laura. Pode custar-te o despedimento."

 

Soube imediatamente que aquela seria a minha última noite no One-Eyed Jack.

 

Laura.

 

  1. S. you ter de contar a toda a gente sobre o Benjamin.

 

QUERIDO DIÁRIO,

10 DE OUTUBRO DE 1989

Telefonei à Josie e informei-a de que nessa noite só poderia dar-lhe a lição às dez. Respondeu que por ela não tinha importância e estaria à minha espera.

 

Nessa noite aproveitei-me do facto de alguém me desejar com tanta intensidade. E vi-me, no entanto e como sempre, a dar instruções ao meu par, de como dar-me prazer. Esta experiência particular deixou-me uma sensação de vazio e raiva e de falta de respeito por qualquer outra pessoa da cidade.

 

Laura.

 

  1. S. No caminho de volta da casa da Josie, tive uma visão horrível da pequena Danielle a correr na minha direcção, para explicar que o BOB andara a visitá-la. Tinha-lhe dito que eu o enviara. Apercebi-me de que o BOB há mais de uma semana que não me visitara... Espero que isto tenha sido uma visão e não um presságio. Talvez devesse avisar a Danielle...

 

QUERIDO DIÁRIO,

31 DE OUTUBRO DE 1989

É o Dia das Bruxas. Não é preciso máscara.

 

A irmã da Blackie, a Nancy, do One-Eyed Jack, trouxe-me as roupas e o dinheiro, que me deviam, metidos numa abóbora de plástico. Perguntou-me se podia falar-me lá fora uns momentos porque

 

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QUERIDO DIÁRIO,

SEM DATA

Passei a tarde com o Dr. Jacoby no seu consultório. Quis ver-me e analisar o que lhe dissera nas minhas cassetes. Queria saber mais sobre o James Hurley e o facto de eu ter falado em deixar de me drogar por causa dele. Disse-lhe que o James era uma pessoa que eu conhecera há muito tempo, embora superficialmente. Acrescentei que me apaixonara pela sua pureza e a ideia de que, se tivesse força bastante, poderia permitir que o James me arrancasse a este escuro. Disse-lhe que era uma relação secreta, apenas porque eu o desejara assim. A Donna sabe. No entanto, somos os três amigos no liceu e, portanto, sei que não contará ao Bobby.

 

Disse ao Dr. Jacoby como os últimos tempos haviam sido duros com tudo a cair-me em cima e que, por fim, fiquei com a certeza de que o James era a minha última oportunidade de luz.

 

Sinto-me uma fraude, prossegui, apesar de ter sido eleita "Rainha dos Caloiros". Tinha uma tal história por detrás do sorriso tanto nas fotografias como no jogo de futebol! Ainda sentia as mãos e as bocas dos homens com que estivera horas antes da fotografia ser tirada. Confessei que levara as mesmas cuequinhas para o caso do BOB aparecer. Disse-lhe que era como se o liceu, a cidade e o mundo estivessem a troçar de mim com aquela eleição... Como podiam deixar de ver que eu estava a ser devorada pela dor? Como se atreviam a usar-me como diversão e a pedir-me que sorrisse vezes sem conto!

 

No jogo, Bobby foi o herói que desejava, mas da bancada eu mal o distinguia no campo. Tudo parecia distante e nublado, como se o sangue que me fervilhava na cabeça abafasse todos os sons, excepto as batidas do coração e a respiração que pareciam esforçadas e irregulares.

 

Disse-lhe que andava a ter pesadelos terríveis. Todos eles sobre a mata, os caminhos, a árvore, pegadas, os pios de uma coruja... Sentia a morte nestes sonhos e também sentia volúpia. Volúpia como a que conhecera quando era uma coisa nova, sem nada de cansativo ou desgastante nem necessidade de violência para que se tornasse melhor.

 

Tive um sonho, o pior, sobre água. No sonho, eu estava de pé, à beira da água, e o céu apresentava-se muito escuro mas, reflectido na superfície da água, havia o céu cheio de nuvens brancas e com uma tonalidade azul-escura. Recordo-me de pensar no sonho que se mergulhasse e nadasse a distância suficiente, poderia atingir um outro mundo, que não estava cheio de tanta maldade... de tanto ódio. Quando mergulhei, lembro-me de ter nadado metade do comprimento do lago... acho que era um lago, mas fui puxada por uma mão, que me agarrou no pulso e me levou para o fundo, cada vez mais para o fundo. Disse-lhe que achava que aquela mão era do BOB.

 

Contei ao Dr. Jacoby que o meu último encontro com o Leo e o Jacques não fora muito agradável. Todos começáramos por nos divertir e eles tinham-me amarrado nesta cadeira, mas invadiu-me esta sensação de claustrofobia... de restrição. Comecei a entrar em pânico e a hiperventilar e tentei explicar-lhes o que estava a acontecer, mas tinha dificuldade em falar e ninguém percebeu que era algo de grave. Comecei a sentir a cabeça muito leve e a luz incidia nos meus olhos e consegui, finalmente, gritar-lhes que parassem. Isto não estava bem... eu não estava bem. Tínhamo-nos entregues a um dos nossos jogos, mais frequentes e em que me encontro presa numa cabana muito, muito longe de qualquer possibilidade de ajuda e em que sou uma virgem e eles são homens que foram enviados de um lugar estranho e erótico para me tirarem a virgindade e me castigarem por lhes resistir. E, assim, o Leo ouviu-me dizer que isto não estava certo, mas julgou que fazia parte do jogo e exclamou: "Ah, com que então a virgenzinha sente-se assustada?" E tudo continuou e comecei a balouçar na cadeira para diante e para trás e acho que tanto o Leo como o Jacques estavam mesmo excitados e o Leo excedeu-se um pouco e bateu-me com força... com demasiada força. Os meus ouvidos zumbiram. Comecei a chorar. Foi só nessa altura que o Jacques disse: "Espera um minuto, ela não está bem!" Desamarraram-me e corri até casa, sem pronunciar uma palavra.

 

A bofetada do Leo deixara-me uma feia nódoa negra na cara. Tive de dizer aos meus pais que arranjara esta horrível marca arroxeada quando transportava um tabuleiro com a refeição do apartamento do Harold.

 

Disse ao Dr. Jacoby que tinha saudades da Donna e que esperava que ela e a Ronnette gostassem uma da outra. Desejava que todas pudéssemos ser amigas, para não ter de esconder nada de ninguém.

 

Contei-lhe da minha ida à casa de Harold na semana passada, com uma pedrada das grandes e que o assustara. E que depois, basicamente por ele não poder deixar a casa, o forçara a fazer sexo comigo.

 

Disse ao Dr. Jacoby que depois chorei horas a fio porque me sentia tão mal. O Harold demorou quase uma hora a dirigir-me a palavra, porque o assustara na sua própria casa, o seu único refúgio. E depois contei ao Dr. Jacoby que metade do tempo detestara o que fazia e, na outra metade, me sentira forte e quente entre as pernas.

 

à saída da casa do Harold, o neto de Mrs. Tremond, Pierre, viu-me, aproximou-se de mim, tirou-me uma moeda de ouro da orelha e afastou-se.

 

Disse-lhe que o BOB se estava a aproximar muito e que me esforçava tanto quanto me era possível por escrever sobre ele e descobrir o que ele era, antes que pudesse apanhar-me. Tinha escrito tanto sobre ele no meu diário em poemas e sonhos e, de cada vez que o fazia, via-o na minha janela ou sentia-o aproximar-se mais, mas não tinha a certeza se se tratava de uma paranóia... eu apenas desejava ser normal. Somente quero ser como todas as outras pessoas. Quero deixar de ter cuidado com quem falo, por alguém poder odiar-me, se conhecer a verdade a meu respeito, se souber como sou suja. E como de qualquer forma, não me recordo, peço todos os dias para ser tratada assim. Acontece sempre, portanto, deve ser algo que não me apercebo que digo, ou algo que penso. Disse-lhe que fui ao meu cofre e, ao avistar o dinheiro da droga lá dentro, imaginei que pegava nele e fugia para sempre. Mas não o merecia. Merecia ficar aqui. Tinha feito algo de muito errado. Sentia uma dor no coração, mas sabia que tinha de ficar.

 

Levei para casa todas as respostas do meu anúncio na Fleshworld Magazine e mantive-me de pé, toda a noite, a meter fotografias minhas e das minhas cuequinhas em envelopes... e contei-lhe como tivera de tomar doses reforçadas de coca para não me ir abaixo nem chorar, pois não queria que ninguém ouvisse os meus gritos, porque de qualquer maneira não se importavam. Nunca se importaram.

 

Um beijo, Laura.

 

PÁGINA ARRANCADA

(como foi encontrada)

 

PÁGINA ARRANCADA

(como foi encontrada)

 

QUERIDO DIÁRIO,

SEM DATA

Sei quem ele é. Sei exactamente quem e o que é o BOB, e tenho de dizer a toda a gente. Tenho de dizer a toda a gente e fazer com que acreditem.

 

Alguém arrancou páginas ao meu diário, páginas que talvez me ajudem a compreender... páginas com os meus poemas, páginas de escrita, páginas privadas.

 

Tenho tanto medo da morte.

 

Tenho tanto medo que ninguém me acredite até depois de ter ocupado o lugar que receio me tenha sido reservado nas trevas. Por favor, não me odeies. Nunca desejei ver os montículos nem o fogo. Nunca tive intenção de o ver ou deixá-lo entrar em mim.

 

Por favor, Diário, ajuda-me a explicar a toda a gente que não desejei tornar-me no que me tornei. Não desejei ter certas recordações e percepções dele. Só fiz o que qualquer de nós pode fazer em qualquer situação...

 

O melhor que consegui.

 

Um beijo, Laura.

 

  1. S. you dar-te a guardar ao Harold. Espero voltar a ver-te. Não consigo ficar mais tempo sóbria. Não consigo mesmo. Tenho de ficar insensível.

 

O QUE ATRÁS SE DISSE FOI A ÚLTIMA COISA ESCRITA POR LAURA.

ENCONTRARAM-NA MORTA DIAS DEPOIS. 

 

                                                                                Jennifer Lynch

 

 

                                         

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