Biblio VT
O DISCIPULO / Parte 2
Series & Trilogias Literarias
LÁ FORA ESTAVA uma noite de Verão perfeita, ainda luminosa e quente, mas como era costume os reclusos da ala de segurança faziam os seus preparativos nocturnos. Alguns já haviam entrado nas celas, mas outros ainda se encontravam sentados na sala de convívio. As portas fechavam-se às dezanove horas. Os reclusos consideraram que era muito cedo quando os informaram de que as actividades nocturnas iriam ser encurtadas em duas horas, mas os seus protestos foram em vão.
Edward era sempre o último a ir ao lavabo. Porém, naquela noite não estava sozinho: tinha a companhia do recém-chegado que ainda não aprendera as rotinas da ala e chegara às dezoito horas e quarenta e cinco minutos durante dois dias seguidos. O seu comportamento irritava Edward, que já decidira que, assim que tivesse oportunidade, iria esclarecer que a casa de banho era sua, e só sua, àquela hora especí?ca. Os veteranos já o sabiam e saíam silenciosamente antes de ele chegar. Hinde estava em pé diante do espelho, a lavar suavemente o rosto. No lavabo havia uma dúzia de lavatórios frente a um espelho inquebrável que cobria a parede de azulejos. Do outro lado, um pouco mais adiante, situavam-se os chuveiros e os sanitários. Edward contemplou o seu rosto molhado e nem sequer olhou para os dois guardas quando estes passaram.
– Fecho de portas daqui a quinze minutos – bradaram, antes de irem à sala comum entregar a mesma mensagem. Todas as noites acontecia exactamente o mesmo, e Edward já nem se dava ao trabalho de os ouvir. As rotinas estavam impregnadas no seu corpo, quase até ao segundo, e já não precisava de relógio. Sabia exactamente quando ia acordar, comer, ler, defecar, caminhar, conversar e lavar-se. O único aspecto positivo era que a rotina idêntica de todos os dias lhe dava tempo para se concentrar no que era importante, signi?cativo, e não no quotidiano; nessa altura já o vivia em piloto automático.
Hinde pegou na sua máquina de barbear preta. Era uma das poucas coisas a que ainda tinha uma grande aversão. Queria barbear-se adequadamente, mas na ala de segurança qualquer tipo de lâmina estava fora de questão. Ansiava pelo dia em que sentiria de novo a lâmina a?ada contra a sua pele. Isso seria liberdade. Pegar em algo a?ado. Provavelmente, era por isso que mais ansiava. Pela lâmina de metal na sua mão.
Ligou a máquina de barbear.
Pelo espelho viu os funcionários desligarem o televisor montado na parede e acenarem aos três homens, sentados nos sofás da sala de convívio, para lhes indicarem que estava na hora. Eram os três do costume. Levantaram-se sem protestar e partiram pelo corredor comprido em direcção às celas. Atrás deles ?cava o único acesso para entrar ou sair daquela ala; ouviu o estalido da fechadura quando a equipa das limpezas chegou. À mesma hora de sempre. Os reclusos limpavam as suas próprias celas, mas a limpeza das áreas comuns fora contratada no exterior. Às Limpezas LS. Há muito tempo os presos também limpavam essas áreas, mas deixaram de o fazer há dez anos após uma violenta disputa acerca de quem, na verdade, devia fazer o quê. Dois dos prisioneiros ?caram seriamente feridos. Desde então o trabalho continuara a ser efectuado por uma ?rma de limpezas, mas sempre após o fecho das portas. O fulano das limpezas, um homem alto e magro dos seus trinta anos, entrou a empurrar um grande carrinho de metal com todo o equipamento; acenou aos guardas enquanto empurrava o carrinho pelo corredor. Estes cumprimentaram-no alegremente; já o conheciam. Há alguns anos que fazia a limpeza do local.
O homem empurrou o carrinho para dentro da casa de banho, por onde geralmente começava. Manteve-se de pé a uma distância respeitável, à espera que Edward e o novo recluso saíssem. Tudo de acordo com a rotina. Todos os reclusos deviam estar dentro das celas, com as portas trancadas, antes que se pudesse começar a limpeza. Os guardas chegaram cerca de um minuto depois. Olharam para os homens que estavam na casa de banho.
– Vamos lá, vocês os dois, está na hora.
– Ainda são só dezoito horas e cinquenta e oito minutos. – Hinde passou calmamente a mão pelo queixo recém-barbeado. Sabia ao certo que horas eram. Ainda não se dignara olhar para os guardas.
– Como sabe? Não tem relógio.
– Estou errado?
Edward vislumbrou um movimento no espelho quando um dos guardas olhou para o seu relógio.
– Menos conversa e mais acção.
O que signi?cava que tinha razão. Edward sorriu para si mesmo. Dezoito horas e cinquenta e oito minutos. Restava pouco mais de um minuto. Guardou a máquina de barbear dentro da bolsa castanha para os artigos de higiene, correu o fecho e enxaguou o rosto uma última vez. Para sua irritação, o novo recluso ainda estava ali, em pé, sem dar qualquer sinal de se ir embora. Edward detestava as pessoas que não acatavam os horários. Os guardas iriam chamá-lo de novo a qualquer instante, mas Edward antecipou-se-lhes. Virou-se para trás e saiu da casa de banho com a água a pingar-lhe do rosto. Caminhou até ao carrinho e acenou ao homem das limpezas.
– Boa noite, Ralph.
– Boa noite.
– Como está o tempo lá fora?
– Na mesma como ontem. Quente.
Edward olhou para a pilha de toalhas de papel com que Ralph em breve iria encher os suportes de plástico branco da casa de banho.
– Não se importa que leve algumas toalhas de papel?
Ralph fez um gesto de indiferença.
– Claro que não.
Edward inclinou-se para a frente e pegou nas três primeiras toalhas. Ao mesmo tempo, os guardas deram um passo em frente. A sua atenção estava concentrada no novo recluso. Não a de Edward.
Dezoito horas e cinquenta e nove minutos.
– Vamos lá, você tem um minuto!
Empertigaram-se, fazendo-se imponentes à entrada da porta só para mostrarem quem mandava. Edward ignorou-os por completo. Já ia a caminho da sua cela.
Dezoito horas, cinquenta e nove minutos e trinta segundos.
Atrás de si ouviu os guardas entrarem na casa de banho. Esperava que dessem algo em que pensar ao fulano que estava lá dentro. Algo que o magoasse. A dor era a melhor maneira de aprender, sabia-o por experiência própria. Nada era mais e?caz do que a dor. Mas estavam Suécia. Naquele país não havia coragem para explorar a dor. Provavelmente não passaria de uma mera advertência, um recreio encurtado ou a retirada de outro privilégio. Hinde receava ter de ser ele a lidar com o novo fulano. Os guardas não o iriam conseguir. Convenceu-se ainda mais quando os ouviu iniciarem uma discussão barulhenta. Entrou na cela com as três toalhas de papel.
Sincronização perfeita.
Dezanove horas.
A porta fechou-se atrás dele.
Edward sentou-se na cama e pousou cuidadosamente as toalhas de papel em cima da mesa-de-cabeceira. Adorava aquele momento em que as rotinas de Lövhaga eram substituídas pelas suas. Em que o tempo passava a ser seu. Dali a duas horas iria começar. Lentamente, pegou na toalha de papel que estava no meio e abriu-a, com muita expectativa. No lado de dentro, por baixo do vinco, alguém escrevera a lápis «5325 3398 4771».
Doze números que representavam a liberdade.
A ÚLTIMA COISA na sua lista era contactar com Trolle e dizer-lhe que parasse com as investigações. Sebastian ligara-lhe do trabalho e mais tarde do seu telemóvel, mas não recebera notícias durante todo o dia. Naquele momento deixou o telefone tocar uma e outra vez. Começava a ?car preocupado. A simples ideia de que, mais cedo ou mais tarde, Torkel pudesse entrar em contacto com o seu antigo colega fazia-lhe gelar o sangue. E isso iria acontecer. Apesar de tudo, Trolle Hermansson fora um dos melhores agentes envolvidos no caso Hinde durante a década de 1990. Torkel respeitava-o sob muitos aspectos. Não como pessoa, pois eram demasiado diferentes, mas como pro?ssional. Independentemente do que se pensasse a respeito de Trolle, não se podia negar o facto de que obtinha sempre resultados. E Torkel iria querer falar com ele. Em particular se a investigação continuasse num impasse. Era esse o segredo de um bom trabalho policial. Ia-se virando uma pedra a seguir à outra, estabeleciam-se prioridades, começava-se por aqueles que pareciam estar mais intimamente ligados à investigação e, em seguida, ia-se alargando o círculo. Cada vez mais longe do centro, até se terem percorrido todas as possibilidades. Depois começava-se tudo de novo. Talvez Trolle não fosse o melhor exemplo mas, à medida que o tempo ia passando, um bom agente da polícia chegaria à conclusão de que talvez valesse a pena ter uma conversa com ele, e Torkel era um bom agente. Um dos melhores, na verdade. A determinada altura a pedra de Trolle acabaria por ser virada. Quando isso acontecesse todos os diques podiam romper-se de repente, o que Sebastian tentara esconder podia brotar em torrente e tudo seria destruído.
Porque não se podia con?ar em Trolle Hermansson.
Após mais uma chamada não atendida, Sebastian decidiu ir ter com ele. Lá porque não atendia o telefone, não signi?cava necessariamente que não estava em casa. Sebastian saltou para dentro de um táxi. Agora fazia menos calor, e abriu a janela para deixar entrar algum ar fresco. Viu as pessoas a passearem com a roupa de Verão; de facto, nas noites quentes a cidade ganhava vida. Todos pareciam muito jovens e felizes, andavam em grupos de dois ou mais. Durante o Verão o que acontecia aos idosos, aos solitários e aos deprimidos?, pensou enquanto olhava para eles.
Estava quase a chegar quando avistou Trolle no passeio, do outro lado da rua. Vestia um grande casaco preto, pelo que era difícil não reparar nele. A maioria das pessoas que Sebastian vira pelo caminho não tinha casacos ou blusões vestidos, e quem os usava optara por cores claras e tecidos leves. Trolle parecia equipado para o pior Inverno de que havia memória. Sebastian pediu ao motorista que parasse e en?ou-lhe na mão algumas notas de cem coroas. Saltou do táxi e correu em direção a Trolle, que virou para a Ekholmsvägen e desapareceu de vista algumas centenas de metros mais adiante. Parecia ir a caminho de casa. Sebastian correu atrás dele. Há bastante tempo que não esforçava tanto o coração e as pernas, e aquela sensação de frescura que sentira no táxi já desaparecera há muito. Estava a suar e a bufar quando dobrou a esquina para a Ekholmsvägen e viu Trolle a entrar na porta do seu prédio. Sebastian parou para recuperar o fôlego. Já sabia onde Trolle se encontrava e, de um ponto de vista puramente táctico, sentia que provavelmente era melhor não aparecer com um aspecto suado e desesperado. Esperou mais alguns minutos e depois caminhou até ao bloco de apartamentos.
Trolle abriu a porta ao ?m de apenas dois toques de campainha. Parecia muito mais fresco do que da última vez que se encontraram, mas por trás dele o apartamento continuava escuro e emanava para as escadas o mesmo cheiro ligeiramente desagradável.
– Vi que me ligaste. Ia telefonar-te agora – começou ele, e surpreendeu Sebastian quando segurou a porta aberta convidando-o a entrar.
– Precisamos de conversar.
– Evidentemente. Tenho a certeza de que nove chamadas não atendidas devem signi?car algo.
Sebastian tentou mostrar um sorriso desarmante enquanto observava aquele espaço pequeno e escuro que o rodeava. Havia jornais, roupa e desarrumação por toda a parte. Os estores estavam corridos, não havia cortinas e as paredes estavam completamente nuas. Cheirava a cigarros, a sujidade e a lixo rançoso. Trolle levou-o para a sala de estar. O televisor estava ligado, com o volume muito baixo; a única iluminação provinha de um qualquer programa de culinária em que participavam celebridades. O mobiliário era composto por um sofá, onde parecia que Trolle dormia, e uma mesa de vidro que outrora deve ter custado uma boa maquia mas de momento servia como zona de despejos para garrafas de vinho, caixas de pizza e um cinzeiro a transbordar. O tecto por cima do sofá estava engordurado e amarelado devido à nicotina.
Trolle virou-se para Sebastian, reparou na sua expressão crítica e abriu os braços.
– Bem-vindo ao meu mundo. Em tempos morei numa casa branca de dois pisos situada num subúrbio pretensioso. Agora vivo assim. A vida está cheia de surpresas, não achas? – Trolle abanou a cabeça e olhou em redor, depois foi até ao sofá e empurrou os lençóis encardidos para o lado. – Senta-te. Encontrei uma coisa para ti. Bom material. – Mostrou um sorriso que só podia ser descrito como malicioso. – Realmente bom material.
Sebastian permaneceu em pé e abanou a cabeça.
– Já não quero isso. Vim cá dizer-te para parares de investigar.
– Lê isto primeiro. Antes de decidires. – Trolle baixou-se e pegou numa sacola branca de supermercado cheia com o que pareciam ser papéis. Estendeu-a a Sebastian. – Ora aí tens.
– Não quero. Livra-te disso.
– Em todo o caso lê, só te irá demorar cerca de meia hora. É tempo bem gasto.
Com relutância, Sebastian pegou na sacola. Provavelmente só pesava algumas centenas de gramas, mas na sua mão pareceu consideravelmente mais pesada.
– Está bem. Mas agora tens de parar. Vou dar-te o dinheiro, e depois tens de me prometer que nunca contarás a ninguém o que te pedi para fazeres. Nunca nos encontrámos sequer.
Apesar da obscuridade, Sebastian viu um brilho nos olhos de Trolle. Um lampejo de interesse. Aquilo não podia augurar nada de bom.
– E quem mo iria perguntar? – Trolle olhou para ele com curiosidade. – O que se passa, Sebastian?
– Nada. Só quero que me prometas que não contarás nada.
– Não há problema. – Trolle encolheu os ombros. – Mas tu conheces-me. As promessas não signi?cam nada.
– Eu pago-te o dobro.
Trolle abanou a cabeça e afastou-se de Sebastian com um suspiro desabrido.
– Eu ajudei-te e agora queres comprar o meu silêncio? Quem julgas que eu sou? Pensei que éramos amigos.
– Se somos amigos, promete-me apenas que ?carás calado. E que manténs a tua palavra – contrapôs Sebastian com amargura.
– Porque é que em vez disso não me contas a verdade?
– Se alguém o vier a saber, para mim será um desastre total. Total. – Sebastian ?tou com uma expressão implorante o olhar implacável de Trolle.
– Porquê? Quem é ela, essa Vanja? Porque andas a segui-la? Quem vai começar a fazer perguntas? Quero saber. – Pela primeira vez, Trolle parecia sincero. – Depois, paro. Mas antes, não.
Sebastian olhou para ele. Estava tramado sob todos os pontos de vista. Se lhe mentisse, tudo iria acabar em desastre. Provavelmente Trolle iria falar com Vanja por pura perversidade. Se lhe dissesse a verdade, sentia que jamais ?caria a salvo. Mas, pelo menos, isso dar-lhe-ia mais algum tempo.
– Então como vai ser?
Sebastian pensou freneticamente. A verdade já podia estar dentro da sacola de plástico branco. Talvez Trolle já soubesse. Se Sebastian lhe mentisse, a situação podia piorar. Decidiu-se.
– Ela é minha ?lha. A Vanja é minha ?lha.
Percebeu de imediato que Trolle não sabia.
Mas como já nada mais tinha a esconder, contou tudo a Trolle.
Tudo.
Quando terminou, sentiu uma espécie de paz. Sentiu-se mais leve. Tal como a sacola de plástico. Os segredos haviam-no sobrecarregado mais do que se apercebera.
Trolle olhou para ele em silêncio.
– Caramba – disse, por ?m.
Afundou-se no sofá. Parecia que estava a pensar. Levantou os olhos para Sebastian. O seu tom de voz mudara por completo; a entoação jocosa desaparecera.
– O que vais fazer?
– Não sei.
– Creio que terás de abdicar dela. Pára o que andas a fazer. A situação só pode acabar mal.
Houve uma sinceridade nas palavras de Trolle que Sebastian realmente apreciou. Fez um gesto de concordância com a cabeça.
– Provavelmente tens razão.
– Olha para mim – continuou Trolle. – Eu não desisti. Não quis dar ouvidos a ninguém. – Calou-se e olhou para uma fotogra?a emoldurada que estava pousada no peitoril da janela. Dois rapazinhos e uma menina e, no meio, uma mulher riscada com tinta preta. – Agora apenas me resta uma fotogra?a deles.
Sebastian não falou. Ostentava uma expressão simpática quando olhou para Trolle.
– Se lutares demasiado, destróis o que tens – disse Trolle em voz baixa, quase para si próprio.
Sebastian aproximou-se e foi sentar-se ao lado dele. Ponderou por uns instantes se devia mencionar que havia uma diferença entre seguir alguém à distância e tentar incriminar o novo namorado da ex-mulher por posse de drogas duras ou sequestrar os ?lhos, mas conteve-se. Trolle baixara a guarda. Não iria gostar que Sebastian explorasse a situação.
– Não falei com mais ninguém a respeito disto – disse-lhe.
– Compreendo.
O que Trolle fez a seguir surpreendeu Sebastian. Pegou na mão dele. Agarrou-lha num aperto terno, reconfortante, íntimo. Olharam um para o outro. Depois, Trolle pôs-se em pé num salto, com o seu pesado corpo novamente repleto de energia.
– Se alguém anda a seguir-te, como dizes, então acabaste de o conduzir a Anna Eriksson.
Tornou-se óbvio assim que Trolle lho disse, e no entanto Sebastian não pensara nisso. Quando Torkel lhe dissera que talvez devesse tentar avisar algumas das mulheres com quem dormira, pensara nuns telefonemas, claro. Mas após a conversa com Ursula, por um motivo que Sebastian desconhecia, decidira visitá-las pessoalmente. De certa forma, parecera-lhe ser o mínimo que podia fazer. Nem lhe passara pela cabeça que alguém ainda o seguisse. Após quase ter sido atropelado pelo Ford azul à porta da Riksmord, praticamente descartara essa ideia. O homem fora descoberto, exposto, aquilo acabara. Nunca lhe ocorrera que o seu perseguidor pudesse continuar, provavelmente num carro diferente.
– Achas? Mas eu já avisei a Anna. Ela tenciona sair da cidade.
– Foi isso que foste lá fazer esta noite?
– Tu viste-me?
Trolle assentiu, mas estava a pensar em algo mais.
– Também vi outra pessoa. Na altura nem pensei nisso; reparei por acaso. Mas agora dizes-me que andas a ser seguido...
Trolle não completou a frase.
Sebastian começou a sentir-se ansioso.
– Em quê? Em que é que não pensaste?
Trolle empalidecera.
– Das duas vezes em que ambos estivemos lá, vi um homem sentado dentro de um Ford Focus azul. Pensei que estivesse à espera de alguém.
Sebastian deu um pulo.
– É ele. É ele que anda a seguir-me.
– Esta noite também lá estava. Mas num carro diferente – um calhambeque japonês prateado.
– Qual era o aspecto dele?
– É difícil dizer. Estava com óculos de sol.
– E tinha um boné?
Trolle confirrmou com a cabeça.
Saíram à pressa para a rua à procura de um táxi. Sebastian queria ir directo a Storskärsgatan, mas Trolle insistiu que primeiro deviam certi?car-se de que não eram seguidos. Embora não conseguissem ver qualquer carro prateado, não deviam tomar nada como garantido. Encontraram um táxi e pularam para o banco detrás. Trolle foi dando instruções ao motorista, alterando o destino, fazendo-o ir aqui e acolá, e quando chegaram ao centro da cidade insistiu para que usassem tanto quanto possível os corredores exclusivos para autocarros e táxis. Olhava constantemente para trás e só ?cou satisfeito ao ?m de meia hora.
Estavam sozinhos.
Por ?m, dirigiu o táxi para a Karlaplan e percorreram a pé o último trecho.
A Storskärsgatan estava deserta. No parque um homem caminhava com um cão, a curta distância, mas ia na direcção oposta.
Trolle virou-se para Sebastian.
– Fica aqui. Ele vai reconhecer-te.
Sebastian quis protestar mas não sabia como, por isso não falou. Levantou os olhos para o apartamento onde sabia que Anna e Valdemar moravam. Havia nas janelas um brilho acolhedor mas não viu ninguém. Como podia ele ter trazido o perigo para ali? Era um idiota!
– Estás a compreender?
Sebastian acenou com a cabeça, sem tirar os olhos do apartamento. Trolle tinha um ar calmo. Os seus olhos faíscavam; Sebastian jamais o vira tão vivo, tão concentrado.
– Também irei verificar lá em cima, prometo – disse Trolle.
Sebastian retirou-se para as sombras, junto a um dos edifícios da esquina, e ?cou a vê-lo afastar-se; estava contente por ter con?ado no seu antigo colega. Trolle caminhou devagar ao longo da ruela. Parecia que saíra para um passeio nocturno, mas Sebastian percebeu que veri?cava cuidadosamente cada carro por que passava. Sebastian olhou de novo para o apartamento. De repente, sentiu o peso da sacola na mão esquerda. Trolle recusara-se a aceitá-la de volta, e Sebastian não tivera outra alternativa a não ser trazê-la consigo.
Era estranho como as circunstâncias podiam mudar tão depressa. Poucos dias antes o único objectivo de Sebastian era ferir as duas pessoas que moravam ali em cima. Naquele momento queria salvá-las. Avistou um caixote do lixo a poucos metros de distância, e estava prestes a ir lá deitar a sacola quando viu Trolle vir ao seu encontro, desta vez pelo outro lado da rua. Passeava e falava ao telemóvel, mas continuava a veri?car todos os carros. Quando chegou mais perto, Sebastian conseguiu aperceber-se de excertos da conversa.
– Eu compreendo e, se estás satisfeita com a tua pensão, então... Está bem, obrigado. Adeus. – Terminou a chamada e guardou o telemóvel no bolso enquanto passava por Sebastian.
– Anda lá, não vamos ?car aqui.
Sebastian juntou-se rapidamente a ele. Viraram para a Valhallavägen.
– Ela está em casa. Valdemar também lá está.
– O que vamos fazer?
– Nós não vamos fazer nada. Tu vais para casa. Eu ?co de olho nas coisas por aqui.
– Mas...
– Nada de mas, Sebastian. – Trolle parou e aproximou-se dele. Colocou as mãos nos ombros de Sebastian. – Con?a em mim. Estou aqui por ti, Sebastian. Vamos resolver isto juntos. Podes telefonar-me a qualquer hora.
Deu uma palmadinha de encorajamento nos ombros de Sebastian e virou-lhe as costas. Encaminhou-se de novo para a Storskärsgatan. Sebastian permaneceu no mesmo local. Os seus sentimentos em relação ao homem que se afastava eram um misto de con?ança e de algo que se abeirava do amor. Normalmente não se permitia sentir tais emoções por ninguém. Não ele. Não Sebastian. Sempre fora capaz de se governar sozinho. Mas agora já não.
Ficaria eternamente grato a Trolle. Seria amigo dele, e desta vez de uma maneira adequada.
Foi para casa. Sentia-se completamente exausto; despiu o casaco e as calças e atirou-se para cima da cama. Não deitou fora a sacola. Não se decidira a fazê-lo. Apercebeu-se de que era muito pesada. Deixou-a ao lado da cama.
Nem olhou para o interior.
Não naquela noite.
Ainda não.
TORKEL ESTAVA SENTADO na cozinha com Yvonne. Recusara um copo de vinho mas aceitara uma cerveja enquanto Yvonne continuava a fazer as malas para a viagem a Gotland no dia seguinte. Ela e as meninas alugaram uma pequena cabana no lado ocidental da ilha durante uma semana, e à última da hora as raparigas decidiram que em casa de Torkel havia coisas que precisavam absolutamente de levar. Ele fora a casa, recolhera os tais artigos essenciais dentro de um saco e trouxera -os.
– A que horas apanham o barco? – perguntou ele, bebendo um pouco de cerveja.
– Nove e meia.
– Precisam de boleia?
– O Kristo?er leva-nos.
Torkel assentiu. Claro que ele as levava.
– Ele vai ter convosco enquanto lá estiverem?
– Não, porque perguntas?
– Perguntei por perguntar.
Yvonne fez uma breve pausa na tarefa e olhou para ele com curiosidade.
– As meninas falaram acerca dele?
– Não.
Torkel tentou recordar se as ?lhas haviam sequer mencionado o nome de Kristo?er enquanto estiveram juntos, mas não conseguiu lembrar-se de uma única ocasião. Na verdade, não falavam muito acerca dele. Não tanto quanto ele desejaria. Talvez não fosse de estranhar. Quando se divorciaram, ele e Yvonne optaram por uma custódia partilhada sem sequer precisarem de discutir o assunto, mas as meninas passavam muito mais tempo com Yvonne do que com ele. O seu emprego impossibilitava-o de cumprir um horário rigoroso a cada duas semanas. Andava frequentemente por fora e, quando estava em casa, nem sempre convinha às meninas ?carem com ele. Agora consideravam viver com Yvonne em «casa»; quando se encontravam com ele era «a casa do papá». Yvonne estava mais próxima das meninas do que ele. Isso era um pouco doloroso, não o podia negar.
– A Vilma pensou que saí mais cedo da festa de aniversário dela por esse motivo – prosseguiu Torkel –, mas expliquei-lhe que era o trabalho.
– Queres dizer que ela pensou que te foste embora porque o Kristo?er está cá?
– Sim. Creio que teve medo que eu achasse estranho.
Por um momento pareceu que Yvonne ia perguntar-lhe «E achaste?», mas em vez disso retomou a tarefa.
– Então, como vão as coisas contigo? – perguntou-lhe num tom de voz deliberadamente casual. Se queria saber o que ele pensava acerca do seu novo relacionamento, não o demonstrou no tom de voz.
– Mais ou menos. Encontrámos uma ligação entre as vítimas mas recrutei de novo o Sebastian, portanto está tudo um pouco difícil.
– Não foi isso que eu quis dizer. – Parou o que estava a fazer e olhou para ele. – Já conheceste alguém?
Torkel pensou no assunto. A pergunta era a mesma que a sua ?lha lhe ?zera alguns dias antes. Mas daquela vez tratava-se de Yvonne. A resposta podia ser diferente. Ele podia dizer-lhe a verdade.
– Não sei. Há uma pessoa com quem estou de vez em quando. É casada.
– E ela vai deixá-lo?
– Julgo que não.
– E isso vai resultar?
– Não sei. Provavelmente, não.
Yvonne limitou-se a abanar a cabeça. Por instantes Torkel pensou que gostava de falar daquele assunto com mais profundidade. De lhe contar como por vezes se sentia sozinho. Como gostava que a relação com Ursula se transformasse em algo mais. Não havia muitas pessoas a quem pudesse falar do tema. Nenhuma, na verdade. Mas o momento passara. Yvonne mudou de assunto e conversaram mais um pouco acerca do quotidiano e da viagem. Torkel terminou a sua cerveja. Ao ?m de um quarto de hora levantou-se, despediu-se das meninas, desejou a todas uma boa viagem e, a seguir, foi para casa.
Lá fora ainda estava calor, embora já passasse das dez horas da noite. Torkel desfrutou da caminhada até ao seu apartamento vazio. Passeou devagar. Pensou se devia ir beber outra cerveja a algum lado que ?casse em caminho. Retardar o regresso a casa. Estava perdido nos seus pensamentos quando, de repente, uma porta abriu-se para o passeio e quase colidiu com a pessoa que apareceu. Uma pessoa que reconheceu.
– Micke! Olá.
– Olá. Como estás. Olá... – Micke parecia surpreendido. Os seus olhos deambularam de um lado para outro, como se não conseguisse localizar o homem que estava à sua frente apesar de se ter encontrado com Torkel por várias vezes.
– Então, encontraste o caminho para Söder[14] – disse Torkel numa tentativa de ser humorado.
– Vim visitar uma pessoa amiga. – Micke acenou para a porta que acabara de se fechar atrás dele. – Assistir ao jogo.
– Ah sim, que jogo foi?
– Hum, um qualquer... Na verdade nem sei, não lhe prestámos muita atenção.
– Claro.
Silêncio. Micke tentava olhar para além de Torkel. Para outro sítio qualquer menos para ele.
– Bom, é melhor ir para casa.
– Está bem. Dá os meus cumprimentos à Ursula.
– Serão entregues. Adeus.
Micke afastou-se. Torkel ?cou a vê-lo; seria da sua imaginação ou Micke mostrara-se um pouco tenso? Sentiu o estômago a contrair -se.
Será que Micke sabia?
Será que ele sabia que Torkel andava a dormir com a sua esposa? Nesse caso de certeza que o teria confrontado, pensou Torkel. Ficaria furioso. Ou, pelo menos, visivelmente hostil. Mas parecera sobretudo pouco à vontade. Devia haver outro motivo para Micke ter tanta pressa em se afastar. Não tinha nada a ver com ele e Ursula. Convencido de que estava certo, Torkel prosseguiu o seu caminho. Havia um restaurante na esquina e as mesas no exterior estavam ocupadas. Ia tomar a tal outra cerveja. Se calhar também comeria algo. Não tinha pressa de chegar a outro lugar. A?nal, ninguém o esperava.
COMO SEMPRE, EDWARD trabalhou até à uma da manhã. Era essa a sua rotina. Isso dava-lhe uma boas quatro horas. Duzentos e quarenta minutos de tempo só para si próprio, sem perturbações. O silêncio da cela era libertador. Só se ouvia o zumbido do computador portátil, um modelo mais antigo que tinha uma ventoinha bastante ruidosa, mas fora aprovado pelas instâncias superiores porque não possuía modem nem rede sem ?os. Era incapaz de comunicar com o mundo exterior. Era. Pretérito imperfeito. Uma boa ideia que ?cara plasmada no documento acerca da política relativa à supervisão dos criminosos mas que se tornara redundante no dia em que a banda larga móvel ?cara disponível em toda a parte sob a forma de um pequeno dispositivo oval de plástico, associado a um cartão do tipo só-paga-o-que-consome e a uma porta USB. Bastava um código de doze dígitos e, de repente, tinha acesso ao mundo inteiro.
O dia em que o modem foi entregue furtivamente a Edward e ele se ligou ao mundo exterior pela primeira vez foi o melhor da sua vida ou, pelo menos, o melhor desde que estava fechado em Lövhaga. Antes de ser privado da sua liberdade passara muitas horas felizes. Mas isso fora numa outra época. Antes daquela. Edward dividia a vida em antes e depois. Era uma boa maneira de encarar a sua existência. Antes e depois das principais mudanças que afectam toda a vida.
Antes e depois da mãe.
Antes e depois de Sebastian Bergman.
Antes e depois de Lövhaga.
Antes e depois do modem.
Quando passou a dispor do modem, aqueles duzentos e quarenta minutos todas as noites tornaram-se extremamente produtivos e enriquecedores. Só o usava após o fecho das portas, e mesmo assim nem sempre. Por uma questão de hábito, apenas acedia à rede entre as vinte e uma horas e a uma da manhã. Durante esse período o risco de uma súbita revista às celas era mínimo. Hinde simplesmente não conseguia entender como era possível que isso acontecesse. Na verdade, as regras estipulavam que todas as inspecções não anunciadas às celas deviam ser irregulares, inesperadas e impossíveis de prever. E, no entanto, nunca ocorriam entre as vinte e uma horas e as seis da manhã. Ou, pelo menos, nos últimos seis anos fora assim. A razão para um procedimento tão imbecil, compreendera ele rapidamente, eram os mesmos cortes orçamentais que haviam levado à antecipação da hora do fecho das portas. Costumava ser às vinte e uma horas e passou para as dezanove. O número de guardas prisionais durante o dia fora reduzido; antigamente eram mais e costumavam trabalhar até às nove da noite. Agora o turno da noite entrava ao serviço às dezanove horas. A ?m de poupar ainda mais dinheiro, o número de funcionários nocturnos, que já era pequeno, fora reduzido, o que signi?cava que as inspecções de surpresa estavam efectivamente fora de questão. Enquanto não chegasse o dia em que um indivíduo sensato detectasse a anomalia e reorganizasse a escala de serviço ou aumentasse o número de funcionários do turno da noite, a situação permaneceria na mesma.
Todas as noites escondia o pequeno pedaço de plástico na abertura de ventilação por trás da sua cama. Conseguira desaparafusar a grade com o cabo de uma colher de café. Usando a mesma colher, antes da chegada do modem passara longas noites a furar um pequeno espaço no interior do buraco, na parede de tijolos à esquerda da abertura. Depois transformara aquele espaço num compartimento secreto, adaptando-lhe uma tampa ?na que combinava com a cor dos tijolos e que podia colocar à frente. Desse modo, mesmo que alguém abrisse a ventilação, contra todas as expectativas não havia nada para ver.
Presentemente demorava, em média, dois minutos a tirar daí o seu pequeno e adorado modem branco. Naquela noite foi um pouco mais rápido porque se sentia muito inspirado. Acedeu à Internet e, como de costume, começou por aquela que desde há muito tempo era a sua página inicial.
A fygorh.se.
Tinha novo material à sua espera. Realmente adorava a Internet. Encontrava-se lá tudo se realmente se quisesse. Quando se sabia o que, ou quem, procurar. Quando se dispunha de duzentos e quarenta minutos todos os dias.
Todas as semanas.
Todos os anos.
LÁ FORA a escuridão caía, mas o apartamento estava cheio de luz. Quando Ralph chegara a casa vindo do trabalho cumprira meticulosamente o ritual, e agora todas as luzes estavam acesas. Relatara as actividades da noite e naquele momento encontrava-se sentado na grande mesa branca da sala de estar esparsamente mobilada. A única coisa que tinha diante de si era a pasta preta. Começara de novo a classi?car os recortes da imprensa. Trabalhava com calma e método. Sentia-se, simultaneamente, exaltado e exasperado pelas suas necessidades. Gostava de sentir o poder dos grandes títulos, o apelo das imagens a preto e branco, mas ao mesmo tempo ?cava irritado com o facto de, em certa medida, parecerem ter um efeito adverso na sua disciplina. Normalmente não se comportava como uma criança numa loja de guloseimas. Passara muito tempo a aprender a reprimir as suas necessidades e impulsos mas a pressão interna era imensa. Atribuía-o ao facto de não ainda ter encontrado o sistema de arquivamento ideal. O ritual perfeito.
Recortar, reunir, colocar o resto dos jornais no saco de reciclagem; essa parte era muito satisfatória. No entanto, o resto – guardar no envelope, guardar na gaveta – tinha os seus defeitos. Teria de o modi?car. Melhorar.
Queria vê -los, segurá -los, tocar -lhes.
Comprara uma pasta. Primeiro pensara em arquivar tudo apenas por datas; cada dia teria a sua própria bolsa. Porém, mais tarde decidira que cada jornal devia ter a sua própria secção, para que fosse mais fácil seguir o curso dos acontecimentos segundo o ponto de vista de uma publicação especí?ca. Contudo, faltava algo. Algo não estava bem. Naquela noite iria reorganizar o material de novo, desta vez de acordo com o tamanho. Primeiro as páginas inteiras, em seguida os três quartos de página e assim por diante, em ordem decrescente. Descobriu, para seu deleite, que o tamanho mais pequeno correspondia a um quarto de página. Era evidente que estava em destaque nas notícias.
Que signi?cava algo.
Que reparavam nele.
Ficou satisfeito com o novo sistema; pareceu-lhe bom. Fechou a pasta e pôs-se em pé. Começava a ?car cheia. Havia cada vez mais jornais a escreverem mais artigos e mais extensos. No dia seguinte iria comprar uma pasta nova. Ou, se calhar, duas. Decerto uma que fosse mais so?sticada. Já não era apropriado guardar a sua colecção de recortes naquelas pastas vulgares, baratas. Precisava de melhorar o nível. De demonstrar o seu valor a si próprio e ao Mestre.
De ter orgulho.
Foi à casa de banho fazer os preparativos para a noite. Virou ao contrário a pequena ampulheta que estava ?xada à parede. Encontrara-a numa pequena loja de antiguidades do bairro Söder, ali na cidade. A ampulheta propriamente dita estava presa a um pedaço de madeira azul e no topo deste podia ler-se: «Durante dois minutos inteiros a areia irá cair – escova bem os dentes todos e ?cas pronto para viver!» O auxiliar perfeito para facilitar e conservar o poder dos rituais. Escovou minuciosamente os dentes até o último grão de areia se ter escoado e, como sempre, terminou com ?o dental. Usava-o de manhã e à noite; gostava de ter a boca realmente limpa. Adorava sentir o sabor a sangue nas gengivas, e puxava o ?o branco para trás e para a frente cinco vezes por entre cada dente, até ?car ensanguentado em vários sítios. Enxaguava a boca e observava a água cor de sangue que cuspia para o lavatório. Enxaguava e cuspia de novo. Menos sangue daquela vez, mas uma coloração tenuemente avermelhada na água que se escoava pelo ralo. Não sabia se ?cava menos vermelha à terceira enxaguadela. Nunca o fazia mais de duas vezes.
Ouviu um breve apito no computador portátil que estava no seu quarto. Ralph soube de imediato o que signi?cava. Uma nova mensagem do Mestre. O computador alertava-o sempre que surgia alguma actualização na fygorh.se. Na verdade, não lhe apetecia ir a correr para o quarto; queria lavar-se primeiro.
O Mestre pregava paciência. Devia lembrar-se disso, pensou. Acarinhar o lugar interior onde as coisas se faziam na ordem correcta.
Os rituais.
Os fundamentos.
Molhou as mãos na água corrente, premiu duas vezes o dispensador de sabão, fez espuma esfregando as mãos seis vezes em cada direcção e, a seguir, enxaguou-as com igual número de fricções por baixo da torneira. Depois, lavou o rosto com o mesmo grau de meticulosidade, enxaguou-se de acordo com o ritual e concluiu com o creme hidratante.
Ficou então pronto para o Mestre.
A mensagem era breve e concisa. Uma nova tarefa.
Ele não tinha autorização para escolher. Mas isso não importava. O Mestre escolhera a mesma.
Anna Eriksson.
Era a próxima.
Era a número cinco.
TROLLE DORMIRA APENAS quatro horas quando o despertador o acordou. Apesar disso, sentiu-se surpreendentemente expedito e levantou-se logo do sofá. Pareceu-lhe estranho; costumava dormir pelo menos nove horas por noite e, quando acordava, sentia-se signi?cativamente mais cansado do que antes. Abriu as cortinas e olhou para o sol matinal, que já estava quente. Há muito que não se levantava antes das seis. Em tempos ?zera-o todos os dias. Quando havia um cão que era preciso ir passear e crianças para levar à creche e à escola. Uma esposa com quem ir de carro para o emprego. Tudo o que na época não parecia ser a vida mas, na verdade, tinha-o sido.
Aquelas coisas de que só se sentia a falta após terem desaparecido.
Trolle não se deu ao trabalho de acender o seu cigarro da manhã; em vez disso, foi ver o que havia no frigorí?co. Estava, como já suspeitava, praticamente vazio. Bebeu o resto do leite directamente do pacote e decidiu ir comprar o pequeno-almoço à loja de conveniência. Precisava de se manter em forma. De ser sensato em relação à sua dieta e ao sono. Não sabia durante quanto tempo a sua colaboração seria necessária, mas o sono depressa poderia vir a transformar-se num bem escasso. O desa?o era manter-se desperto enquanto combatia o tédio que se instalava sempre que havia operações de vigilância demoradas; era fácil dormitar naquelas circunstâncias. E não haveria ninguém para o substituir.
Daquela vez estava completamente sozinho.
Por esse motivo, fora para casa à uma e meia da manhã. No apartamento de Anna Eriksson já todas as luzes se haviam apagado horas antes e, após re?ectir cuidadosamente sobre o assunto, Trolle chegara à conclusão de que as probabilidades de o assassino atacar a meio da noite quando o marido estava em casa eram muito menores do que as de um ataque na manhã seguinte, quando Valdemar já tivesse saído. Até ao momento todos os homicídios haviam ocorrido quando a mulher se encontrava sozinha, e Trolle não via motivo para que esse elemento especí?co se alterasse. No entanto, era apenas uma aferição de risco, não uma ciência exacta, e nem sequer informara Sebastian da sua decisão. Sebastian jamais aceitaria o risco; o seu vínculo emocional àquele caso era demasiado forte e insistiria para que Trolle ?casse lá o tempo todo. Contudo, Trolle precisava de conservar as suas forças. Iria precisar delas naquele dia, e a qualquer momento seria forçado a tomar decisões difíceis, sem constrangimentos emocionais, baseando-se numa avaliação do risco aceitável.
Também precisava de arranjar algum equipamento: um carro e uma arma. Alugara um carro através da Internet e tentara apoderar-se de uma pistola. Correra tudo muito bem; o Rogge iria tentar arranjar-lhe uma durante o dia. Porém, como Trolle não queria estar completamente desarmado, regressou à cozinha, pegou numa cadeira, abriu o armário por cima do frigorí?co e vasculhou por trás de vários pacotes já antigos de macarrão. Encontrou o que procurava. Uma arma de atordoamento envolta num saco de plástico. Uma Taser 2 preta que comprara pela Internet há alguns anos. Veri?cou se funcionava; acendeu-se uma luz entre os pólos e guardou-a no bolso do casaco com alguma satisfação, sabendo que era mais e?caz do que as pessoas suspeitavam. Experimentara-a certa noite num indivíduo bem constituído, que caiu no chão como uma árvore abatida assim que aquilo o atingiu no pescoço. Trolle decidiu comprar novas baterias de lítio logo que tivesse oportunidade, só por precaução, mas de momento as que tinha serviriam.
Saiu de casa. Pelo caminho comprou um café grande e um bolo. Apanhou um táxi para a empresa de aluguer de automóveis, que ?cava no caminho para a cidade; abria às seis e meia. Primeiro deram-lhe um Nissan Micra branco, mas trocou-o por outro, azul-escuro. O branco dava muito nas vistas. Não queria ser visto. Parou numa garagem e abasteceu-se de cigarros, dextrose, água e biscoitos. Provavelmente o dia iria ser longo, e não sabia ao certo quando teria oportunidade de comprar mais provisões.
Às sete e um quarto estava posicionado à porta do apartamento Eriksson/Lithner; ou seja, dez minutos antes da hora a que Valdemar geralmente saía de casa para apanhar o metropolitano até ao emprego. Encontrou um lugar de estacionamento com boa visibilidade para o edifício, empurrou o assento o mais para trás possível e instalou-se. Percebeu que durante a manhã ainda nem sequer pensara em álcool. Era uma boa sensação, e comemorou bebendo um pouco de água directamente da garrafa.
Quinze minutos mais tarde, Valdemar saiu do edifício; vestia um fato e caminhava de um modo apressado. Supostamente ia a caminho do trabalho. Pelo que Trolle já observara costumava vestir um fato quando ia trabalhar, e a rapidez com que se movia sugeria que estava atrasado. Não tardou a desaparecer de vista. Anna ?cara sozinha, assumiu. Iria assegurar-se de que assim continuaria. Sebastian dissera-lhe que ela tencionava sair de Estocolmo; a responsabilidade de Trolle era garantir que o faria em segurança. Olhou para os outros carros estacionados, à procura de algum sinal de movimento. Não viu nada. Pegou no seu telemóvel.
ANNA ERIKSSON TIROU a mala para fora. Ficara acordada até ao alvorecer. Fora-lhe impossível dormir. Toda aquela situação era tão absurda que, na realidade, nem sabia o que pensar. No entanto, agora sabia que algumas coisas eram verdadeiras. Corria perigo. Na verdade, não compreendera por completo a situação, mas percebera claramente que era séria, tanto pelo rosto pálido e suplicante de Sebastian como, mais tarde, pelos breves comentários da ?lha acerca dos assassinatos.
Anna telefonara a Vanja cerca de uma hora após Sebastian ter saído porque não tinha a certeza se o que ele lhe contara era verdade. A?nal, podia ter os seus próprios motivos para a querer tirar do caminho. Não o sabia.
Vanja estava enervada. Não podia conversar durante muito tempo. Anna ?ngiu-se preocupada com o que lera no jornal. Tentou extrair o máximo possível de Vanja sem lhe revelar o verdadeiro motivo do seu telefonema. Não conseguiu muito. A con?dencialidade policial e a capacidade de separar o trabalho da vida doméstica eram importantes para Vanja e apegava-se rigidamente a ambas.
Contudo, o que Anna descobriu deixou-a aterrorizada.
Sim, Sebastian estava de novo a trabalhar com a Riksmord.
– Eu nem percebo porque o autorizam a permanecer por cá – dissera Vanja.
– Certamente que ele não está envolvido, pois não?
– Está, sim. Não posso dizer-te como. De qualquer modo, não irias acreditar em mim. Ninguém iria acreditar em mim.
Portanto, era verdade. Anna tentara concluir a chamada sem demonstrar à ?lha o seu súbito pânico.
Ninguém iria acreditar em mim.
Anna acreditava nela.
Anna sabia.
Anna telefonara logo a seguir para a mãe. Inventara uma história. A mãe ?cara surpreeendida, mas contente por ir visitá-la.
A seguir, o emprego. Explicara que precisava de tirar algum tempo para si. Problemas de família, dissera. Não fazia mal. Era popular no emprego e mostraram-se mais preocupados com ela do que com a questão da sua ausência.
Ela tranquilizou-os. Não era nada de grave – apenas algo que precisava de resolver com a mãe idosa – mas poderia demorar algum tempo.
Depois, emalara roupa su?ciente para uma semana. Telefonara a Valdemar e pedira-lhe que viesse directamente para casa. Não queria ?car sozinha. Dissera-lhe que a mãe não se sentia muito bem e que achava melhor ?car com ela por uns tempos. Ele sugeriu acompanhá-la, mas ela dissuadira-o. Era a sua mãe, e há muito que não passavam algum tempo juntas. Não se tratava de algo grave. Na verdade, era mais ou menos um motivo para se afastar do emprego e ir visitá-la durante uns tempos... Ele engoliu a mentira sem sequer se aperceber.
Provavelmente porque ela era boa a mentir. Muito boa. Pensou quando teria começado. Costumava considerar a honestidade muito importante.
Mas isso era quando a verdade não magoava.
Tantas vezes quisera contar a verdade a Vanja.
Tantas vezes estivera prestes a fazê-lo.
Contudo, a mentira, que começara por ser um dispositivo de protecção conveniente, fora alimentada por milhares de minúsculas mentiras descaradas até que se transformara em realidade.
Desde o início, Valdemar quisera contar a verdade a Vanja quando já tinha idade su?ciente para entender, mas Anna continuara a adiar o assunto. Adiara constantemente a revelação, durante semanas, meses, anos, até o peso da verdade se tornar tão grande que iria esmagar tudo. Até ser, muito simplesmente, tarde de mais.
– Tu és o único pai de que a Vanja precisa – dissera por ?m ao marido, e o assunto ?cara por ali. Tinham-se tornado muito próximos, Vanja e Valdemar. Seria por ele ter feito um esforço adicional? Seria para que nunca ninguém pusesse em causa o seu empenho, o seu amor? Fosse o que fosse, dera resultado. Vanja amava mais Valdemar do que Anna. Mais do que qualquer outra pessoa.
Eles complementavam-se um ao outro na perfeição. Ao longo do tempo, Valdemar desistira de protestar e tornara-se cúmplice. Porque amava Vanja como se fosse a sua própria ?lha.
Mas um dia, há alguns meses, ele aparecera à sua porta. O Sebastian Bergman.
Com algumas cartas de um tempo muito longínquo.
Ela dissera-lhe que não e fechara a porta. Esperava que ele simplesmente desaparecesse.
O que não aconteceu.
Estivera em Västerås a trabalhar com Vanja, descobrira Anna. E agora trabalhava de novo com ela.
Vanja detestava-o intensamente. Esse era o único aspecto positivo e o que continuava a proteger a verdade. Tudo o resto era puro caos. Anna tinha um segredo dentro do segredo. Só ela sabia que Sebastian era pai de Vanja. Sempre ocultara essa informação de Valdemar.
Tentara protegê -lo.
Ou talvez não tivesse con?ado nele.
Valdemar não era como ela. Tinha mais problemas com os mentirosos. Por isso, a única vez que lhe perguntara quem era o pai, ela respondera-lhe que era irrelevante. Que não tencionava dizê-lo a quem quer que fosse e, se isso constituía um problema para ele, entre ambos, deviam colocar um ponto ?nal na relação ali e naquele instante.
Ele ?cara. Nunca mais voltara a perguntar.
Era um bom homem.
Melhor do que ela merecia.
Agora ela podia estar a correr perigo de morte e, mesmo assim, tivera de mentir. Talvez o merecesse. Talvez fosse assim que tudo iria acabar.
O telefone tocou. O som fez Anna dar um salto. Outra chamada comercial, daquela vez para tentar vender um pacote de serviços de banda larga. Disse rapidamente que não e desligou o telefone. Pensou ter reconhecido a voz. Do dia anterior. O homem que telefonara já muito tarde e queria falar sobre pensões. Ela imobilizou-se. Teria realmente reconhecido a voz? Sentiu-se gelar, pegou de novo no aparelho e olhou para o ecrã, para ver se mostrava o número de quem lhe telefonara.
Privado.
Tanto naquele momento como no dia anterior.
Isso signi?cava alguma coisa? Sem dúvida que estava apenas a ser paranóica. Mas não conseguia afastar a sensação de que havia algo naquela voz. Soara-lhe do mesmo modo de ambas as vezes: bastante idosa, fatigada, ligeiramente rouca, nada parecida com o modo como em geral soavam as vozes dos agentes comerciais. Normalmente pareciam jovens, a?rmativos, ansiosos por oferecer algo. Aquele não. Queria algo mais. Desistira com muita facilidade. Como se o facto de ela ter atendido o telefone já lhe bastasse. Como se ?casse satisfeito por saber que estava em casa.
Ansiosa, foi até à janela e olhou para a rua. Não viu nada. Mas o que devia procurar? Foi até à porta da frente e trancou a fechadura embutida que tinha sete trancas. Deixou a chave na porta.
Decidiu acabar de fazer as malas e chamar um táxi.
O melhor era ir logo para a estação.
RALPH PASSARA os últimos dez minutos a tentar encontrar um lugar para estacionar. Passou de carro na Storskärsgatan, através da De Geersgatan, um par de vezes durante a sua busca. A primeira era um beco e a segunda uma rua de sentido único, pelo que tinha de dar uma grande volta pela Värtavägen para conseguir regressar. Detestava o facto de dar a entender que conduzia às voltas por ali. O mesmo carro prateado a passar uma e outra vez podia atrair a atenção de algum vizinho intrometido. E, no entanto, não tinha outra alternativa. Precisava do carro. De preferência, estacionado tão perto quanto possível. Isso fazia-o sentir-se menos exposto. Signi?cava que havia menos tempo durante o qual poderia ser identi?cado. Era essa a vantagem das zonas residenciais; estacionar não constituía um problema. Em geral, aquele novo alvo parecia muito mais trabalhoso do que os três primeiros. Ele tivera menos tempo para observar. Conseguira registar as suas actividades durante vários dias, mas os resultados limitados de que dispunha naquele momento sugeriam que a altura mais segura era de manhã, entre as sete e trinta e as oito e trinta, após o marido ter saído e antes de ela andar duas paragens de autocarro ou ir a pé até ao lar de idosos onde trabalhava.
Ao mesmo tempo, sentia-se com mais coragem. Melhor. Mais forte. Antes da primeira fora dominado várias vezes pelos nervos e abortara a missão devido a pequenos contratempos: a janela de um vizinho aberta, um ciclista a passar exactamente quando estava a sair do carro, uma criança a começar a chorar algures. Váras vezes perdera simplesmente a coragem e fora para casa.
Mas quando chegara à número três tudo começara a tornar-se mais fácil e com esta última, a tal Willén, já começara a improvisar, a ser mais ousado. Sempre de acordo com as orientações prescritas, claro, mas permitira que a situação seguisse o seu rumo, con?ara nos seus instintos. Fora uma sensação de libertação, que o ?zera sentir ainda mais que estava à altura da tarefa. Agora era um homem experiente. Um homem com poder. Numa missão que poucas pessoas realizariam tão bem quanto ele. Caso alguma o conseguisse fazer.
Muitos dos pormenores eram, na verdade, um desa?o maior do que poderia ter imaginado quando ainda não passavam de fantasias em progresso. A primeira vez que cortara a garganta sentira-se enjoado. O som da pele a ser dilacerada fora estranho e inesperadamente carnudo, e o sangue que de lá jorrara era tão quente e pegajoso que, por uns instantes, entrou em pânico. Mas começara a habituar-se. Desenvolveu as suas aptidões. A última vez até se atrevera a ?tá-la enquanto a vida dela a abandonava. Uma sensação poderosa. Se houvesse um Deus, coisa de que muito duvidava, provavelmente era assim que olhava para nós. Um ser liberto daquelas emoções impetuosas que nos turvam o juízo. Seria como observar os estertores de morte de uma formiga. Interessante. Mas não mais do que isso. Não passava de uma pessoa; o ritual e a tarefa eram mais importantes do que toda a humanidade.
O aspecto que lhe causava mais problemas ainda era o elemento sexual. Sabia que precisava de fazer aquilo. Tinha de o fazer. Era uma parte do ritual. Contudo, não gostava. Para dizer a verdade, mal conseguia fazê-lo. Considerava-o exigente e repulsivo. Era-lhe difícil manter a erecção. Demasiados ruídos, muita di?culdade na penetração. Nem sequer gostava de mulheres. Tinham demasiadas curvas, seios e traseiros ?ácidos e odores característicos.
Em seu redor.
Em cima dele.
Dentro dele.
Essa parte desconcentrava-o. Não gostava de estar perto de alguém. Não daquela maneira. De modo nenhum. No entanto, não podia deixar de o fazer. Seria fazer batota. Uma derrota. Não conseguir seguir os passos do Mestre.
Virou para a De Geersgatan pela terceira vez, mas não encontrou lugar para estacionar. Começava a ?car preocupado com as horas. Já devia estar no interior do apartamento e a meio do serviço. Fora a um daqueles grandes armazéns de bricolage na periferia da cidade, um dos que abriam às seis da manhã, e comprara um fato-macaco branco. Precisava de uma desculpa para entrar no apartamento dela, e aparecer por lá como o pintor que ia tratar das escadas parecera-lhe uma boa ideia. Também comprara algumas latas de tinta barata e um boné que pudesse puxar para baixo de maneira a cobrir-lhe o rosto. Deveria resultar.
Trolle reparara nele quando passara no local pela segunda vez. Era o mesmo carro, o que já havia visto. Japonês, prateado. O condutor usava óculos escuros e boné. Parecia andar à procura de um lugar para estacionar. Perto da Storskärsgatan. Trolle pousou a garrafa de água e, instintivamente, levou a mão ao bolso. A Taser estava lá. Tirou-a para fora. O plástico preto estava quente e era reconfortante senti-la na mão. A sua pulsação acelerou e tentou recapitular as opções de que dispunha. Uma era chamar a polícia. Nunca tivera quaisquer problemas com Torkel. Pelo contrário; ao longo do seu declínio e queda, Torkel nunca ?zera juízos a seu respeito. Não concordara com tudo o que Trolle ?zera, mas isso di?cilmente seria surpreendente. Certas coisas não passaram de uma loucura completa. Apesar disso, Trolle sempre se sentira apoiado pelo seu colega. Nunca mais se viram mas a culpa não era de Torkel. Fora Trolle quem se retirara; porém, no fundo, ?cara convencido de que continuavam a respeitar-se um ao outro.
No entanto, um telefonema para Torkel iria colocar Sebastian numa posição difícil.
Porque vira o homem à porta do bloco de apartamentos onde morava a mãe de Vanja?
E o que estava Trolle a fazer por lá?
Na realidade, não queria fazer mal a Sebastian. Não naquela altura, quando sabia como eram parecidos. Se resolvesse a questão, seria quase como se pudesse expiar os seus próprios erros.
Mas, fosse como fosse que olhasse para as coisas, o segredo de Sebastian ?caria em perigo. Tinha de intervir. Limitar-se a afugentar o homem implicaria que este iria fugir e outras mulheres ?cariam em risco. Trolle precisava de agir. Tinha de o eliminar. E, a seguir, elaborar um plano.
Cabia-lhe a ele.
E só a ele.
A situação estava a saber-lhe muito bem. Melhor do que desde há muito, muito tempo.
O carro passou por uma terceira vez e Trolle decidiu-se. Era ele quem tinha todos os trunfos. O homem do carro prateado não sabia da sua existência. O elemento surpresa estava, portanto, do seu lado. Ligou o carro e afastou-se lentamente poucos minutos depois. Estacionou ilegalmente num cruzamento alguns metros mais abaixo, na De Geersgatan.
Saiu do carro e voltou para trás a pé.
Agora havia um lugar de estacionamento disponível para quem andasse à procura.
Estava convencido de que iria ser ocupado pelo homem do Toyota.
Ralph viu o lugar quando ainda estava na Värtavägen. Era perfeito. Apenas a uns trinta metros da entrada do prédio dela. Mas se não tivesse sorte alguém o ocuparia, por isso acelerou e passou pelos semáforos da Valhallavägen quando estes estavam quase a ?car vermelhos. Uma rápida curva à direita, depois novamente à direita. Abrandou; não queria atrair atenções desnecessárias. O lugar ainda estava vago. Estacionou com cuidado. Olhou em redor. Tudo calmo e tranquilo. Irritava-o estar atrasado; já eram quase oito horas. Apalpou a faca Mora que trazia à cintura.[15] Não era a que iria usar mais tarde; a faca de trinchar estava embrulhada, como de costume, dentro do respectivo saco de plástico, no interior do saco de desporto. Contudo, uma faca mais pequena era útil ao princípio. Logo que a porta se abria. Uma mão a tapar a boca, uma faca na garganta. Espanto e medo de morte. Normalmente resultava. Achou que o fato-macaco de pintor era um bom disfarce porque podia transportar a faca às claras. Os operários usavam sempre uma faca.
Desapertou o cinto de segurança e estava prestes a sair do carro quando a porta do passageiro se abriu e alguém entrou. Um idoso. Com um aspecto desgrenhado, cabelo grisalho comprido e um grande casaco preto. Porém, os seus olhos faíscavam. Queria algo. Empunhava um objecto de plástico preto que parecia uma lanterna quebrada.
– Acabou – disse o homem, tentando comprimir aquele objecto esquisito contra o pescoço de Ralph. Ouviu uma crepitação eléctrica e um leve estalido; ergueu o braço direito num movimento re?exo e conseguiu desviar o braço do atacante. O idoso não foi tão lesto quanto Ralph. Aquela coisa preta que fazia barulho embateu no apoio de cabeça do banco e, de repente, percebeu do que se tratava.
As luzinhas azuis.
O zumbido eléctrico.
Era uma arma de atordoamento.
Com uma força renovada, tentou empurrar o braço do homem contra as costas do assento.
Trolle praguejou; estava prestes a fazer uma tentativa para libertar o braço quando o homem alto e magro lhe deu um soco com a mão esquerda. O golpe acertou-lhe na boca; na verdade não o magoou, só o deixou ainda mais furioso. Percebeu que a sua tentativa para neutralizar de surpresa o condutor do carro prateado falhara por completo e, de repente, encontrava-se numa posição extremamente vulnerável. Não estava em condições de se envolver num combate corpo a corpo. Tinha de acabar tudo rapidamente. Deu-lhe dois socos de seguida com a sua própria mão esquerda; um dos golpes falhou, o outro acertou na bochecha do homem. Ele gemeu e a sua cabeça tombou um pouco para a frente.
Trolle conseguiu libertar a mão direita e comprimiu-a contra o corpo do homem. Já bastava. Não podia lutar dentro daquele carro de merda. Apertou o gatilho de novo e esperou que a Taser cumprisse a sua função. Pelo canto do olho, viu o braço esquerdo do homem lançar-se em direcção à sua barriga. Tentou bloquear o golpe, mas falhou. Não importava, em todo o caso aquilo não tardaria a acabar.
O golpe do homem acertou primeiro. Foi incrivelmente doloroso. Tão doloroso que Trolle perdeu as forças por momentos e a Taser caiu-lhe inutilmente das mãos.
Como acontecera aquilo?
A dor explodiu quando o homem voltou a atacar. Tudo começou a ?car negro e Trolle percebeu o que se passava.
O homem não estava a socá-lo.
Estava a esfaqueá-lo.
E fê-lo de novo.
De repente, toda a parte inferior do corpo de Trolle ?cou quente e húmida. Sentia-se prestes a perder a consciência mas conseguiu olhar para a mão do homem. Empunhava um objecto e algo brotava da barriga de Trolle.
O primeiro era uma faca.
O segundo, os seus próprios intestinos.
A última coisa que viu foi a faca a entrar de novo.
Ralph viu o sangue e os intestinos brotarem e pousarem no colo do homem. Pareceu-lhe bizarro mas continuou a apunhalá-lo. Precisava de ter a certeza. O idoso no banco do passageiro soltou um som rouco prolongado e depois, de súbito, ?cou em completo silêncio. Por ?m, tombou lentamente para a frente por cima do painel de instrumentos. Ralph suspendeu o ataque mas manteve-se em estado de alerta. Um único movimento do intruso e recomeçaria. Porém, ele não se mexeu. O silêncio dentro do carro era palpável. As mangas do seu fato-macaco branco estavam manchadas de sangue. O carro cheirava a sangue e a intestinos.
O seu espírito partiu à des?lada.
O que acontecera? Quem era o homem morto sentado ao seu lado? Iria aparecer mais alguém? Olhou em redor, ansioso, mas a rua parecia deserta. Ninguém se dirigia para o seu carro nem lhe prestava a mínima atenção. O idoso di?cilmente podia ser um agente da polícia. Eles não usavam uma Taser numa situação daquelas. Usavam armas a sério. No entanto, de alguma maneira a sua identidade, ou pelo menos os seus planos, tornara-se conhecida. Porque o homem morto não estava sentado no seu carro apenas por acaso.
– Acabou – dissera-lhe. Não era o que se dizia quando se ia roubar alguém. Dizia-se quando se tinha a intenção de fazer parar alguém. O Mestre tinha razão. Ele cometera algum descuido. Denunciara-se. Talvez Sebastian Bergman estivesse por trás daquilo. Talvez fosse um adversário mais digno do que Ralph pensara. Percebera que Ralph o seguia. Correra na sua direcção à porta da sede da polícia. Talvez a troca de carro não tivesse sido su?ciente.
Contudo, isso ainda não fazia sentido.
Se Sebastian tivesse algo a ver com o facto de estar um homem morto sentado dentro do seu carro, então o homem devia ser agente da polícia. Sebastian trabalhava com eles. E devia haver mais. Muitos mais. Ele era de prioridade máxima. Era o caso mais importante em que andavam a trabalhar. Sendo assim, onde estavam os outros?
Não conseguiu realmente encontrar quaisquer respostas.
Ralph olhou ansiosamente em seu redor uma vez mais. Viu um movimento no prédio onde devia estar naquele momento. Um táxi a parar. Deslizou para baixo para se esconder. Viu Anna Eriksson sair pela porta principal carregando uma mala. Ela entrou no táxi. Devia segui-la mas percebeu que lhe iria ser impossível. Tinha de trocar de roupa. Desfazer-se de um corpo. Livrar-se do carro.
Falhara.
Deixara o Mestre desapontado.
Teria de enfrentar as consequências.
VANJA JÁ ESTAVA mal-humorada quando chegou à sede. Para dizer a verdade, na noite anterior fora para a cama irritada e naquela manhã acordara furiosa.
Ainda nem eram sete e meia mas já estava a ter um dia terrível.
Como se não bastasse não chegarem a lado algum com aquele caso, o que achava incrivelmente frustrante, Sebastian Bergman continuava a ter um papel activo na investigação. Ela simplesmente não conseguia entender porquê. Como podia alguém que tivera um relacionamento com as quatro vítimas ter autorização para continuar a integrar o círculo mais restrito? Mesmo que Torkel tivesse razão quando a?rmava que, agora que Edward Hinde captara a sua atenção, o envolvimento de Sebastian podia evitar mais homicídios, isso continuava a ser completamente indefensável. Se viesse a saber-se, Torkel estaria acabado. Nem mesmo ele conseguiria sobreviver à tempestade mediática. Mas não foi a única coisa que a deixou de mau humor. O que realmente a enfurecia era que parecia que Torkel dava prioridade a Sebastian acima de todos no seio da equipa. Ele não era assim tão fantástico, foda-se. Além disso, bulia-lhe com os nervos. Quando estava por perto ela não conseguia descontrair-se. Ficava a olhar para ela de uma maneira esquisita. Sentia-se como se estivesse a ser observada. Ele tinha um efeito adverso sobre o seu trabalho. Odiava -o.
E no dia anterior acabara por ter de ir a Södertälje, uma viagem que se revelara uma completa perda de tempo.
Também detestara Södertälje.
Depois, quando pedira a Billy uma pequena ajuda, o que lhe respondeu? «Faz isso sozinha.» Mas que raio era aquilo? Desde quando se respondia a um pedido de ajuda no seio da equipa com um «faz isso sozinha»?
De regresso ao apartamento após o inútil passeio até Södertälje, que ainda por cima lhe custara uma centena de coroas, tomara um duche, preparara chá e sanduíches e ?cara a olhar distraidamente para a televisão. Não se sentaria à mesa da cozinha com os seus apontamentos acerca do caso, como costumava fazer. Iria descontrair. Relaxar.
Não conseguiu fazê-lo.
De?nitivamente, não conseguiu fazê-lo após Anna lhe ter telefonado, muito tarde, para dizer que a avó estava doente e que ia até lá fazer-lhe companhia durante alguns dias. Claro que Vanja quisera saber o que se passava com a avó, mas dissera-lhe que não era nada de grave. No entanto, se não era grave porque ia Anna pedir dispensa no emprego para ir até lá? Anna estava a esconder-lhe a verdade. Tal como ?zera quando Valdemar adoecera. Mantivera o silêncio acerca dos resultados dos exames, minimizando a importância da situação. Vanja fora obrigada a ir ter com o pai para descobrir o que na realidade se passava. Ele contara-lhe tudo. Anna mentira-lhe. Vanja não ?cara nada contente. É certo que, provavelmente, Anna só estava a tentar proteger a ?lha mas, fossem quais fossem os seus motivos, as mentiras não as haviam propriamente aproximado. E já havia alguma distância entre ambas; tratava a mãe por Anna, mas chamava pai a Valdemar. Isso queria dizer algo.
O facto de não gostar das mentiras na relação entre ambas era algo que, mais cedo ou mais tarde, Vanja teria de discutir com Anna. Na noite anterior, ao telefone, apetecera-lhe dizer que ia com a mãe visitar a avó. Contudo, não podia tirar uma licença no emprego. Não naquele momento. Não podia largar o trabalho quando há mais de um mês que não chegavam a conclusão alguma. Não, isso não era inteiramente verdade; já tinham feito alguns progressos. Encontraram a ligação a Hinde. Mas não tinha permissão para seguir essa pista. Quem o faria seria Sebastian. Torkel já tomara a sua decisão.
Maldito Torkel.
Maldito Sebastian.
Maldito tudo.
Desligara a televisão e saíra para a rua. Inicialmente apenas para uma caminhada. Para apanhar algum ar fresco, desanuviar o espírito, cansar-se. Mas depois entrara no bar do seu bairro quando por lá passara. Bebera uma cerveja e, a seguir, mais algumas. Juntara-se a uns fulanos e foram para outro sítio. Esbarrara em pessoas que conhecia. Bebera mais algumas cervejas. E depois alguém começara a pedir cálices de bebidas espirituosas. Pode ter sido ela. Por instantes pensara em levar um dos fulanos para casa, mas acabara por resistir à tentação. Só chegara à cama muito depois das duas. Completamente embriagada. Bêbada, a bem dizer. Não era de todo seu costume.
O despertador tocara à hora habitual. E naquele momento, após pouco mais de quatro horas de sono ébrio, estava no trabalho. Mais mal-humorada do que ressacada, o que não era, decerto, uma boa combinação.
Sentou-se à secretária e ligou o computador. Começou a procurar Rodriguez. Encontrou-o, mas não havia nada sobre onde, ou quando, se envolvera no acidente que o deixara numa cadeira de rodas. Teria de continuar a procurar. Contudo, primeiro precisava de café. A cafeína e um analgésico fariam maravilhas. Entrou no refeitório do pessoal, tirou uma caneca do armário por cima do lava-louças, preparou um cappuccino e regressou à secretária. Abriu a gaveta de cima e tirou uma caixa de Ipren. Engoliu um comprimido com um gole de café. Estava prestes a retomar o trabalho, para começar a alargar a sua pesquisa, quando Billy entrou. Trazia a alça da sacola cruzada sobre o peito e um capacete de ciclismo. Billy tinha uma bicicleta com vinte e quatro mudanças. Feita do mesmo material que uma nave espacial ou algo do género. Alta tecnologia. Claro. A de Vanja só tinha três mudanças. Nunca a usava.
– Olá, como vão as coisas? – perguntou Billy enquanto pousava o saco em cima da sua secretária.
– Tudo bem – respondeu Vanja sem levantar os olhos. Esforçou-se por se mostar muito concentrada a ?m de evitar mais conversa. Não deu resultado.
– O que estás a fazer? – quis saber Billy, que contornou a secretária para dar uma olhada. Ele estava com calor, reparou. O suor escorria-lhe pelo rosto e pelo pescoço. Inclinou a cabeça para o lado e enxugou-se com a manga da T-shirt.
– Estou a tentar averiguar quando é que o Rodriguez foi parar a uma cadeira de rodas.
Billy sentiu uma ligeira pontada. A verdade era que, se Vanja não estivesse já ali, Billy teria começado o dia a procurar a informação que ela pretendia. Maya achava que ele se saíra muito bem no dia anterior. Contudo, embora gostasse de fazer ?nca-pé de vez em quando para que as pessoas deixassem de ter ideias feitas a seu respeito, sentira-se culpado durante o resto do serão.
– Onde estás a procurar?
– Porquê? – Vanja levantou os olhos do ecrã e ?tou-o. – Queres ajudar?
Billy hesitou. Aquela situação era nova. Vanja não estava a pedir-lhe ajuda. Perguntava-lhe se a queria ajudar. Billy escolheu a opção segura e retribuiu com a sua própria pergunta.
– Precisas de ajuda?
– Não.
Vanja virou-se para o computador e começou a bater nas teclas. Billy deixou-se ?car por momentos, sem saber o que fazer a seguir. Ela estava de mau humor, quanto a isso não havia dúvidas. Provavelmente, por causa dele. E com alguma razão. Devia limitar-se a deixá-la em paz, esperando que aquilo lhe passasse? Decidiu que nesse dia seria um pouco mais simpático para com Vanja do que o habitual. Não gostava que ?cassem zangados.
– Apetece-te um café? – De certeza que uma pequena baforada no cachimbo da paz não iria fazer mal.
– Já fui buscar, obrigado. – Apontou para o seu cappuccino.
Billy acenou para si mesmo. Devia ter reparado. Ainda lhe restava outra oferta de paz. Uma mão estendida que sabia que ela iria aceitar.
– Ela chama-se Maya.
– Quem é que se chama Maya?
– A rapariga. A rapariga do teatro... A minha namorada.
Vanja levantou os olhos como se estivesse à espera de mais. Billy não tinha nada a acrescentar. Preparara-se para uma catadupa de perguntas. Decidira responder a todas, excepto referir o que Maya fazia. Após a conversa telefónica do dia anterior, Vanja iria somar imediatamente dois mais dois e Maya ?caria exposta. Merda, quando é que a situação se tornara tão difícil? Vanja continuava a olhar para ele com uma expressão encorajadora. Começou a sentir-se um pouco estúpido. Como se tivesse falado por gabarolice.
– É só porque... Achei que talvez quisesses saber...
– Está bem. – Vanja regressou ao seu computador. Não tinha qualquer interesse pelas namoradas dele. Estava realmente de mau humor. A?nal, talvez o único motivo não fosse ele.
– Pronto, bom, vou tomar um duche rápido.
– Está bem.
Billy ?cou ali, em pé, durante mais uns segundos e depois saiu do escritório.
Iria ser um dia difícil.
EDWARD ESTAVA SENTADO na biblioteca.
Para uma instituição relativamente pequena, Lövhaga tinha uma grande biblioteca. Provavelmente por uma série de razões. O elevado nível de supervisão que os reclusos exigiam. O desejo de reforçar o desenvolvimento intelectual dos reclusos, de os fazer crescer como pessoas. A crença de que, como que por magia, os livros e o conhecimento os iriam tornar melhores. E, claro, aquilo que estava por detrás da maioria dos edifícios construídos pelo Homem: o interesse próprio. Quanto mais impressionante fosse a biblioteca e em maior número os reclusos que regularmente ali passavam o tempo a melhorar, melhor era a classi?cação que a instituição conseguia alcançar nos relatórios internos. A lógica era deprimentemente simples: uma biblioteca impressionante equivalia a uma liderança especializada e proactiva.
Hinde testemunhara os resultados dessa lógica após o grande motim das limpezas. Poucos meses depois a biblioteca fora ampliada de forma signi?cativa e ganhara um piso superior onde a tónica eram as humanidades. Como se os futuros tumultos entre os reclusos oriundos da antiga Jugoslávia, que sofriam de stress pós-traumático e haviam sido condenados por repetidos crimes de violência, pudessem ser prevenidos através da aquisição da História do Renascimento em doze volumes ou de alguns escritos sobre ?loso?a e história das ideias.
Existia uma variedade de não ?cção e de romances, mas era preciso procurar muito até se encontrar o verdadeiro tesouro. Isso tomara algum tempo a Edward, mas naquele momento estava sentado no piso de cima, como de costume, a ler um dos seus livros favoritos. Era um relato pormenorizado da marcha de Napoleão através dos Alpes italianos em 1797. Naquela época, Napoleão acabara de ser nomeado general e fora enviado a toda a pressa para defender os aliados da França contra a dinastia dos Habsburgos. Foi durante essas batalhas gloriosas que demonstrou a habilidade estratégica que o conduziria até ao coração da História. Edward já lera o livro muitas vezes, mas não por causa das descrições das tropas, das batalhas, dos problemas com as provisões ou da política que estava por detrás de tudo. Não, a meio do livro havia um capítulo que se destinava a oferecer uma visão mais aprofundada de Napoleão enquanto pessoa e que se ocupava sobretudo da sua relação com a mãe, Letizia Bonaparte.
Uma mãe forte.
Uma mãe dominadora.
Hinde sentiu que tinha descoberto o segredo de Napoleão nesse capítulo. Percebeu que aquele rapazinho queria alcançar muita coisa por um único motivo: Letizia. Ela deve ter sido uma mulher com quem era difícil lidar.
Edward deixou Letizia por um momento e olhou em redor. Sabia que passavam dois ou três minutos do meio-dia e não tardaria a haver uma mudança de turno na biblioteca. O guarda do andar superior desceu para o pequeno balcão de atendimento situado junto à entrada, no piso térreo; sairia da biblioteca com o seu colega assim que viessem rendê-los. O substituto deles chegava sempre sozinho e ?cava no piso térreo, que era maior e mais movimentado. Quando o segundo guarda chegava, dez minutos depois, um deles subia ao piso superior.
Hinde pousou o livro. Deslocou cuidadosamente a cadeira para mais perto do corrimão a ?m de obter a melhor visão possível do que acontecia lá em baixo.
Como de costume, Hinde estava sozinho no piso superior. Os outros reclusos já não subiam até lá, pelo menos enquanto Edward por ali estivesse. Mantinham-se obedientemente no piso térreo. Era assim desde há muito tempo e, por vezes, parecia que a administração gastara milhões e construíra todo aquele piso superior para uso exclusivo de uma única pessoa.
Era uma sensação maravilhosa.
Após a faustosa inauguração foram necessárias algumas semanas de esforço intensivo até que os outros percebessem por inteiro as regras não escritas. Naquela época, Edward fora muito auxiliado pelo seu bem constituído amigo Roland Johansson; sentia saudades de ter Roland ao seu lado. Roland tinha uma capacidade única para persuadir os outros. Era completamente destemido e nunca se deixava travar por banalidades como a empatia ou a compaixão. Ao mesmo tempo, demonstrara ter por Edward a lealdade de um soldado e sempre estivera ao seu lado, apoiando-o em silêncio. Roland não falava muito, mas Edward trabalhou-o a pouco e pouco até encontrar maneira de aceder a ele através da sua infância e da série de traições que o haviam formado. Pais alcoólicos. Lares adoptivos um após outro. Perturbação e insegurança. Contacto com o crime e as drogas desde muito cedo. A habitual confusão sórdida que se aplicava a noventa por cento das pessoas com quem, infelizmente, era forçado a conviver de momento. Contudo, a diferença entre Roland e os outros era que Roland era inteligente. Extremamente inteligente. Hinde percebera-o quase de imediato e testara-lhe o QI com a ajuda de um dos livros da biblioteca. Roland atingira 172 na escala de Stanford-Binet: apenas 0,0001 por cento da população tinha pontuação superior a 176. Hinde con?rmara o facto usando a escala de Wechsler e obtivera aproximadamente o mesmo resultado. Roland Johansson era único e, para Edward, representava uma dádiva divina. Um rapaz desprezado, talentoso, temperado como o aço por uma vida dura e pessoas que constantemente o desapontavam. Alguém que nunca tinha sido visto como o que realmente era. Até ter conhecido Edward. O estímulo mental substituíra a variedade química, e Edward começara a treiná-lo para o seu futuro papel. Após ser libertado, Roland mantivera um per?l discreto. Nenhum crime nem drogas. Ficara à espera do sinal. O tratamento de Edward fora mais e?caz do que vinte anos de esforços inaptos por parte da sociedade. Dera a Roland uma identidade, uma crença em si próprio. O que era melhor do que todos os livros do mundo, por mais volumes que tivessem. Edward estava satisfeito por ter do lado de fora um cúmplice ?el mas sentia a sua falta naquele local, em parte porque a amizade entre ambos se tornara importante e também porque a sua posição de poder em Lövhaga ?cara enfraquecida sem Roland. Por isso, Edward fora obrigado a apoiar-se em Igor, o triplo homicida. Igor tinha a mesma e?cácia em matéria de músculo mas, infelizmente, era bipolar, o que signi?cava que não se podia con?ar nele.
Edward viu o guarda da rendição entrar no piso inferior da biblioteca; ligeiramente mais tarde do que o costume, mas dentro da margem de erro. Parou e trocou algumas palavras com os colegas. Os três riram de algo e, em seguida, com uma palmadinha de despedida no ombro, os outros dois saíram para almoçar. Cruzaram-se à porta com um funcionário das limpezas de fato-macaco azul que empurrava o carrinho a caminho da biblioteca. Cumprimentaram-no. O homem das limpezas retribuiu a saudação. Era Ralph. À hora certa. Como sempre. Edward viu Ralph parar para uma breve conversa com o guarda que acabara de se instalar atrás da secretária. Hinde deslizou então até junto do elevador. Pôs-se atrás das estantes, ?ngindo que procurava um livro em particular, mas o guarda lá em baixo nem reparou nele. Catorze anos sem incidentes haviam feito com que se sentissem seguros. Mimados.
– Vou começar pelo andar de cima – ouviu Ralph dizer.
– Comece por onde quiser – respondeu o guarda com calma.
Hinde ouviu Ralph empurrar rapidamente o carro para o elevador e premir o botão. As portas abriram-se de imediato e Ralph entrou com o carrinho.
Dispunham de aproximadamente nove minutos até chegar o segundo guarda e um deles subir ao piso superior. Era muito raro encontrarem-se daquela maneira; só em casos excepcionais, se realmente precisassem de falar. Quando a Internet não servia. Tratava-se de uma medida de segurança que Edward havia introduzido. Era de extrema importância que os seus encontros não fossem demasiado regulares. Nunca deviam seguir um padrão em que os guardas pudessem reparar para não levantarem suspeitas. Porém, naquele dia precisavam de conversar. Ralph enviara uma mensagem preocupante através da fygorh.se. Alguém andava atrás deles. Tinha morrido um homem. Um homem que Hinde conhecia, pelo menos a julgar pela carta de condução que Ralph encontrara com ele.
Trolle Hermansson.
Um dos agentes da polícia daquela abafada sala de interrogatório. Naquela altura era inspector. O mais agressivo dos três que encontrara com mais frequência durante o intenso interrogatório.
Já não era agente da polícia.
Por isso, o que estava a fazer à porta do apartamento de Anna Eriksson?
Devia ter algo a ver com Sebastian. Naquela época, Sebastian, Trolle e Torkel Höglund é que estiveram na sala de interrogatório. Às vezes revezavam-se. Mas era sempre um dos três. E agora um deles estava morto. Deixara de ser agente da polícia. Devia ter algo a ver com Sebastian Bergman. Só ele envolveria um antigo aliado. Devia trabalhar por conta própria. Se os outros elementos da Riksmord soubessem da existência de Ralph, teriam enviado a unidade de operações especiais. Não um ex-polícia idoso. Um ex-polícia idoso e sozinho.
Edward posicionou-se junto da estante situada mais perto do elevador. Ralph empurrou o carrinho para fora e entalou-o entre as portas do elevador, de modo a impedir que estas se fechassem. Em seguida, pegou num espanador e passou para o outro lado da prateleira, frente a Edward. Fez alguns movimentos bruscos com o espanador. Estava a cochichar mas mal conseguia esconder a sua agitação.
– Coloquei o corpo na mala do carro como você disse.
– Óptimo.
– O carro está em Ulvsunda, na zona industrial. Bryggerivägen. Mas não consigo perceber como é que ele me encontrou.
Edward desviou dois livros de maneira a poder olhar para o seu discípulo. Fitou-o com ?rmeza.
– Deves ter sido descuidado. Alguém te seguiu.
Ralph acenou com a cabeça, envergonhado. Olhou para o chão.
Hinde prosseguiu:
– E Anna Eriksson? O que aconteceu com ela?
– Foi-se embora.
Edward abanou a cabeça.
– Ia ser a próxima, não era?
– Sim.
– O que é que eu sempre disse? Planeamento. Paciência. Determinação. Tudo o resto conduz à negligência e à derrota. Agora estamos a perder – entendes isso?
Ralph não se atreveu a encará-lo. Estava muito envergonhado. A força que sentia quando mexia nos recortes de jornal desvanecera -se.
– Mas porque não estava lá a polícia? – perguntou em voz baixa. – Não compreendo. Porquê um velho qualquer?
– Porque a polícia não sabe.
– O que quer dizer?
– Talvez alguém suspeitasse que podias atacar. Naquele sítio especí?co. Mas não a polícia.
– Quem?
– Quem achas que poderia ser?
– O Sebastian Bergman?
Edward acenou com a cabeça.
– Tem de ser ele. Mas por qualquer razão não quis dizer aos colegas que a Anna Eriksson poderia ser a próxima vítima. Porquê?
– Não sei.
– Nem eu. Ainda não. Mas temos de descobrir.
– Não compreendo... – Ralph atreveu-se a ?tar o Mestre, que acolheu o seu olhar com uma expressão de absoluto desprezo.
– Claro que não compreendes. Mas pensa. Tu disseste que ele andou a segui-la. Durante muito tempo.
– Quem? – Ralph estava confuso.
– Vanja Lithner. A ?lha da Anna Eriksson. – Edward calou-se. Ralph ainda não percebera. Obviamente. Idiota. Contudo, Edward começava a entender cada vez mais. A solução para o mistério estava em Vanja. A loura em cujos seios quisera tocar. Não ligara muita importância à sua visita a Lövhaga uns dias antes. Mas depois descobrira que Sebastian andara a segui-la. Porquê? Porque andara ele a seguir uma agente da Riksmord durante semanas, meses, até ser incorporado na investigação? Aquilo tinha de ser relevante. A sensação de que era importante tornou-se mais forte quando pensou de novo nos acontecimentos na sala de visitas. Sebastian sentira necessidade de a proteger. Isso não se adequava a Sebastian Bergman. Por regra, limitava ao mínimo os seus relacionamentos com as outras pessoas. Não se preocupava de todo com elas. No entanto, preocupava-se com Vanja. Porquê? Edward tinha de começar a pesquisar, a explorar. A sondar.
Ralph estava ali parado em silêncio, olhando nervosamente à sua volta.
– Não faz mal, temos muito tempo. – Edward mostrou-lhe um sorriso tranquilizador. – Quero que vás para casa e investigues toda a família. Quando é que Anna conheceu Valdemar? Quando nasceu Vanja? Quero saber tudo. Os seus amigos. Em que universidade andou. Tudo.
Ralph aquiesceu. Continuava a não entender mas sentia-se aliviado por Edward já não exalar desprezo.
– Está bem.
– Hoje. Já. Diz-lhes que não te sentes bem e vai para casa.
Ralph anuiu ansiosamente; temera que aquele fracasso signi?casse o seu ?m. De que tudo o que iniciara viesse simplesmente a desaparecer. Se desmoronasse. Seria o pior que lhe poderia acontecer. Porque ele já a saboreara. A vida real.
– E a seguir diz-me qual é a próxima? – brotou-lhe, de súbito, da boca para fora.
Aquela pergunta inesperada irritou Edward. Teria perdido o controlo sobre o verme que via à sua frente? Dera tudo àquele pateta anormal. Criara-o. E agora tentava negociar. Iria mostrar-lhe como era. Mas não ainda. Por enquanto precisava dele. Até perceber. Até ter a certeza. Portanto, em vez disso sorriu-lhe calorosamente.
– Tu és muito importante para mim, Ralph. Eu preciso de ti. Podes ter outra, se quiseres. Desde que resolvas isto primeiro.
Ralph acalmou-se de imediato. Compreendeu que, provavelmente, tinha ido longe de mais. Que pedira de mais.
– Desculpe. Eu só queria...
– Eu sei o que tu queres. És aplicado. Mas lembra-te: paciência.
Ralph assentiu, obedientemente.
– Vou ?car à espera do teu relatório – disse Edward, e a seguir virou-lhe as costas e regressou à sua mesa, a Letizia Bonaparte e ao ?lho.
Ralph en?ou o carrinho no elevador e desceu.
O segundo guarda chegou menos de um minuto depois.
Sincronização perfeita.
JENNIFER HOLMGREN BOCEJOU.
Não porque estivesse cansada nem devido à falta de oxigénio. Sentia-se apenas muito aborrecida, ali em pé no meio do relvado que ia dar ao lago Lejondal. Estava de frente não apenas para o líder da equipa de buscas da polícia, que recapitulava os pontos-chave, mas também para uma grande casa amarela de dois pisos que tinha uma enorme varanda com vista para o lago. Ao seu lado estavam vários agentes da polícia, a maioria de Sigtuna, tal como ela. Jennifer reprimiu um bocejo e recapitulou em silêncio os pontos que precisava de recordar.
Lukas Ryd.
Seis anos.
Desaparecido há várias horas. Três, pensava a sua mãe. Mais, julgava o pai. Em todo o caso, Lukas não estava na cama, nem em qualquer outro local da casa, quando os pais acordaram nessa manhã, cerca de três horas antes. Foram para a cama à meia-noite e meia, pelo que na verdade o garoto pode ter estado fora durante toda a noite. Ninguém sabia. Quando acordaram as portas estavam fechadas. Fechadas, não trancadas.
Jennifer sentiu que começava a suar dentro do seu uniforme. O Sol atingia-a impiedosamente nas costas. Aquela era a sua primeira pessoa desaparecida. Após quatro períodos lectivos na academia de formação da polícia, era o segundo mês como estagiária em Sigtuna. A vila não se poderia chamar uma central do crime. Havia muito para fazer, esse não era o problema. Ela veri?cara as estatísticas. Ao longo de 2009 a taxa de criminalidade em Sigtuna fora mais elevada do que a média em todo o país: 19 579 crimes participados por 100 000 habitantes. A média nacional era de 10 436. Porém, mesmo assim não parecia o lugar mais excitante da Suécia para se ser agente da polícia. E Jennifer queria excitação. Obviamente que queria dar o seu contributo à sociedade e ajudar as pessoas, mas esse não foi o principal motivo por que se alistou na polícia. Quando se candidatou já havia atenuado os seus sonhos de acção e de excitação e revelou uma visão mais madura e realista da pro?ssão, mas durante todo o curso de formação sempre se destacou nas actividades que eram ?sicamente exigentes e/ou envolviam algum tipo de combate corpo a corpo ou o uso de armas. Não houve muito disso desde que chegou a Sigtuna. Mandara parar condutores em excesso de velocidade na zona de trinta quilómetros por hora à porta de uma escola. Tratara de participações por arrombamento, danos criminais, furtos e pequenas agressões. Fizera testes fortuitos de alcoolemia, ?cara sentada na recepção e despachara mais passaportes do que imaginara ser possível.
Trabalho policial, absolutamente.
Acção e excitação, não tanto.
Dois meses que pareciam ter sido dois anos. Foi por isso que sentiu uma pequena vaga de excitação quando ouviu falar, pela primeira vez, de Lukas Ryd. Um rapazinho. Desaparecido. Podia ter sido sequestrado. Acalentara silenciosamente essa esperança até terem chegado ao local e determinado os factos.
Faltava a pequena mochila de Lukas com o urso Bamse. Também desapareceram duas latas de Coca-Cola e um pacote de bolachas com letras.
O miúdo fugira de casa.
Ou talvez nem sequer fosse tão emocionante.
Acordara, apetecera-lhe ir fazer um piquenique e não quisera acordar os pais.
Tão vulgar. Tão banal. Tão aborrecido.
Jennifer Holmgren sabia que aquela atitude provavelmente era errada, mas pronto! Ele regressaria a casa quando sentisse demasiado frio ou estivesse muito aborrecido.
A menos que se tivesse perdido, claro. Havia muita ?oresta para aqueles lados. Mas naquela época do ano esse pensamento também não produzia exactamente uma descarga de adrenalina. No que dizia respeito à temperatura, encontrá-lo não era uma questão urgente. Restavam as pedreiras e os lagos. Jennifer pensou nisso logo que viu o jardim. O rapaz podia ter deambulado até ao lago e caído, mas como a família não possuía um pontão e o lago não tinha marés, caso se tivesse afogado devia estar na água pouco profunda.
Foi atribuída a Jennifer uma área de busca situada a um quilómetro de distância. Uma pequena faixa de ?oresta do outro lado da estrada principal. Sentiu de novo uma ténue palpitação de esperança. Havia descartado a ideia de um sequestro planeado. Os pais não pareciam nadar em dinheiro, apesar da casa relativamente grande com vista para o lago, mas se tivesse havido um rapto aleatório algures na estrada principal? Um rapazinho a caminhar ao longo da vala. Um velho seboso. Um pedó?lo.
Não que ela quisesse a criança doente ou a desejasse morta. De todo que não. Na verdade, esperava que nada lhe tivesse acontecido. Mas um pouco de acção, um pouco de excitação... Uma denúncia acerca de um veículo suspeito, a busca a concentrar-se gradualmente, a descoberta, a intervenção, a detenção.
Fora por esse motivo que se alistara na polícia. Não para poder ir fazer uma caminhada pela ?oresta num dia quente de Verão, à procura de um miúdo qualquer a quem apeteceu um lanche. Assim, mais valia ter sido assistente na sala de aula de uma creche. Estava a ser injusta porque eles não perdiam miúdos. Bom, não com frequência, mas o princípio era que...
Começou a caminhar ao longo do trilho da floresta. De acordo com o mapa, parecia terminar numa exploração de saibro ou algo de semelhante. Talvez Lukas tivesse ?cado preso na gravilha. Trepou a um dos montes e as pedras soltas começaram a deslizar sob os seus pés. A escorregar. Quanto mais se tentava apoiar, mais se afundava. Isso podia acontecer numa exploração de saibro? Ela não o sabia, mas a ideia de agarrar heroicamente a mão minúscula, a única coisa a sobressair naquele imenso vale de cascalho, de puxar o rapaz para fora, limpar-lhe a boca e instilar-lhe vida enquanto os colegas dela ?nalmente chegavam... Estugou o passo. Espreitou distraidamente entre as árvores de ambos os lados. Os pais pensavam que ele estava vestido com umas calças de algodão azul e uma T-shirt amarela, com uma camisa de manga curta de xadrez azul por cima. Em todo o caso, fora o que vestira no dia anterior. Como uma pequena bandeira da Suécia a correr pela ?oresta. De repente, Jennifer pensou porque teria o garoto fugido de casa. Caso não se tratasse apenas de uma criança de seis anos a quem apetecera uma pequena aventura, claro. Teria fugido por algum motivo? Quando era mais nova Jennifer enfurecera-se com os pais várias vezes, quem não o fez, mas nunca fugira de casa. Podia haver algo de excitante naquele caso? Se encontrasse o menino, podia insistir com ele para obter informações. Ele só tinha seis anos. Nessa idade as crianças ainda sentiam medo da polícia, não era?
Jennifer chegou à exploração de saibro. Estava com sede. Encharcada em suor. As moscas zumbiam em seu redor. Os outros contactavam via rádio com regularidade. Na verdade, não percebia o motivo de se fazerem relatórios a cada cinco minutos só para dizer que não se encontrara nada; decerto teria sido melhor se tivessem combinado que quem encontrasse o menino gritava.
Em todo o caso, não o encontrara. Estava prestes a voltar para trás quando vislumbrou um re?exo metálico atrás da pilha de cascalho um pouco mais à frente, junto à ?oresta. Franziu os olhos e protegeu-os do sol com a mão. Avistou um pára-brisas e um farol dianteiro quebrado. Um carro. Parecia um local estranho para se estacionar um carro. Muito estranho. Suspeito.
Uma prostituta que levara um cliente para ali?
Alguém a tra?car drogas?
Um corpo que tivesse sido abandonado?
Jennifer desapertou o coldre e aproximou-se lentamente do veículo.
BILLY TOMARA DUCHE e fora buscar um café. Olhou para Vanja quando regressou ao escritório mas, como ela nem sequer levantou os olhos quando transpôs a porta, decidiu não a incomodar de novo. Esperava que não lhe guardasse rancor; na verdade, nem sabia se era ou não capaz de o fazer. Tanto quanto se conseguia lembrar, nunca se haviam zangado. Discordavam, discutiam, mas nunca se zangavam. Decidiu deixar tudo como estava por uns tempos e depois, se acontecesse o pior, mais tarde apenas teria de lhe pedir desculpas. Não era o ?m do mundo.
Sentou-se em frente ao computador, acedeu ao sistema, colocou os auscultadores e iniciou o Spotify no telemóvel enquanto abria um documento de texto. Escrevera-o na noite anterior, quando não conseguira dormir. Tratava-se apenas de uma série de tópicos, uma maneira de estruturar os seus pensamentos. Era o caso, desde o início até à data. Ideias e teorias. Nunca tentara trabalhar daquela maneira; só queria ver se aquilo o levaria a algum lugar. Recostou-se para trás e observou o que tinha escrito.
Uma das possibilidades era que alguém andava a matar as antigas amantes de Sebastian e a imitar Hinde enquanto o fazia, sem que existisse qualquer ligação entre o assassino e Hinde. Podia não passar de uma ideia que um lunático tivera a ?m de conseguir vingar-se de Sebastian.
Altamente improvável.
Porque Hinde estava de algum modo envolvido naqueles homicídios. Sebastian parecia ter a certeza e Vanja também tivera a nítida sensação de que era esse o caso após se ter encontrado com Hinde. Por isso, provavelmente podiam partir do princípio de que Hinde estava envolvido.
Mas não podia ter sido ele próprio a cometer os homicídios. Isso estava completamente fora de questão. Nesse caso, tanto quanto Billy conseguia perceber, restavam duas alternativas.
A primeira era que Hinde tivesse pedido a alguém para o fazer. A determinada altura. Alguém com quem só se encontrara uma vez. Dissera a essa pessoa que queria que todas as vítimas tivessem algo em comum, explicara-lhe o quê e, posteriormente, o assassino agira completamente sozinho. Andara a seguir Sebastian e fora desse modo que encontrara Annette.
Possível, mas não realmente credível.
O ponto de discórdia era que o assassino se desviara do seu modus operandi no caso do homicídio de Annette. As mulheres do passado de Sebastian eram subitamente preteridas em favor da sua conquista mais recente. Porquê? Se se considerasse a ideia de que Hinde lhe fornecera uma lista das mulheres relevantes, o imitador ter-se-á realmente desviado dessa lista? Começado a improvisar?
Era de novo possível, mas não credível.
A única alternativa que restava era que Hinde falava constantemente com o assassino. Que de alguma forma conseguiam trocar informações. Com o homicídio de Annette Willén tornara-se claro para Billy que tinha de ser esse o caso. O assassino seguira Sebastian, vira Annette e contara a Hinde, que dera ordem para a matar. Ou, por assim dizer, Hinde atribuíra ao assassino a tarefa de encontrar uma mulher mais recente. Para que a ligação a Sebastian fosse evidente.
Credível mas, infelizmente, impossível.
Porque Hinde não tinha contacto com o mundo exterior. Ou tinha? Billy já falara com Victor Bäckman em Lövhaga e recebera os pormenores acerca da actividade de Hinde na Internet ao longo dos últimos dias. Tencionava começar por aí. Era possível que alguém tivesse inserido informação codi?cada nas páginas visitadas por Hinde – um código que só Hinde poderia interpretar. Como num velho ?lme de espionagem.
Mas se assim fosse, como respondia? Não podia usar salas de conversação, comentar ou enviar fosse o que fosse a partir dos computadores da biblioteca. Isso signi?cava que apenas restava uma alternativa...
Alguém deu um palmadinha no ombro de Billy. Era Torkel. Retirou os auscultadores.
– Podemos começar? – perguntou Torkel.
Billy pegou numa pilha de papéis em cima da secretária, levantou-se e saiu da sala. Vanja ?cou no mesmo local e fechou os olhos com força durante alguns segundos. Massajou a testa com o dedo indicador e o polegar. O analgésico não ajudara. Abriu a gaveta e tomou outro comprimido. Engoliu-o com o café, que já nem sequer estava morno, e saiu para o corredor, onde quase esbarrou em Ursula. Sebastian arrastava-se pesadamente alguns passos mais atrás. Vanja ignorou-o.
– Bom-dia – disse ela a Ursula.
– Olá. Estás com um ar cansado.
Vanja assentiu enquanto tentava encontrar uma resposta adequada. Realmente não lhe queria dizer que apanhara uma bebedeira a meio da semana. Optou por uma explicação mais aceitável para as suas olheiras escuras. Preocupação.
– A minha avó está doente.
– Oh, lamento muito – disse Ursula com simpatia. – Nada de grave, espero?
– Não. A Anna foi visitá-la. Tenho a certeza de que há-de telefonar...
Sebastian sorriu para si mesmo. Anna tinha partido. Saíra da cidade. Menos um assunto com que se preocupar. Pensara muito nisso. Naquilo que ?zera. No que devia ter feito. Naquilo que iria fazer. Se tivesse cometido um erro e, provavelmente, conduzido o assassino até ao apartamento de Anna, o melhor seria colocar lá dois agentes à espera do perpetrador. Metê-los à socapa lá dentro. Deixar Valdemar sair para parecer que Anna ?cava sozinha em casa, e depois esperar que o imitador aparecesse. Isso seria o melhor, o mais correcto, mas era impossível. Como poderia Sebastian dizer que receava que Anna pudesse ser a próxima quando as vítimas só tinham uma coisa em comum? Estava fora de questão. Teria de depender de Trolle. Que não atendia o telefone. Não atendera durante toda a manhã. Isso era um motivo de preocupação. Sebastian pegou no seu telemóvel e tentou ligar de novo a Trolle enquanto seguia os outros até à Sala. Nenhuma resposta.
– Sebastian... – Torkel lançava-lhe um olhar sugestivo. – Estamos prontos para começar.
Sebastian guardou o telemóvel no bolso com um suspiro.
Vanja estendeu a mão para uma das garrafas de água que estavam no meio da mesa; abriu-a e bebeu avidamente.
– Muito bem – começou Torkel. – Uma rápida actualização. Vanja, queres começar?
Vanja engoliu à pressa o resto da água, tossindo ligeiramente.
– Consegui eliminar o Rodriguez do furto da viatura. O Focus azul foi roubado dois dias após ter atravessado a E4 sem ver para onde ia. Aparentemente, bêbado que nem um cacho.
– Mais alguma coisa?
– No que respeita ao Rodriguez, não. Nada indica que esteja de alguma forma envolvido.
Torkel assentiu. Uma possível pista que se transformara num beco sem saída. Havia imensos naquela investigação. Demasiados. Virou-se para Billy.
– Billy?
Billy endireitou-se na cadeira e prosseguiu mais ou menos os seus pensamentos em voz alta a partir do ponto em que fora interrompido.
– Acho que alguém o está a ajudar.
– Parabéns, Einstein. – Sebastian juntou as mãos num lento aplauso. – É óbvio que alguém o está a ajudar, não é?
– Não me re?ro aos homicídios. Re?ro-me às informações. Aos contactos. Acho que tem ajuda dentro de Lövhaga.
Todos se inclinaram para a frente. Interessados. Concentrados. Aquela sugestão não era revolucionária – já tinham andado a farejar essa ideia – mas Billy podia ter uma nova perspectiva. Uma perspectiva que conduzisse a algum lugar.
– Con?rmei junto do Victor Bäckman, que é o responsável pela segurança – continuou Billy. – Nenhum dos reclusos da ala de segurança está autorizado a comunicar através dos computadores. No entanto, dois deles têm autorização para usar o telefone. Os telefonemas ?cam gravados; tenho aqui as transcrições.
Pegou em cinco conjuntos, de cerca de quinze páginas cada, e distribuiu-os pelos colegas.
– Nomes, endereços, números de telefone. Não são muitos. Um deles normalmente telefona à namorada. O outro, à mãe. Há excepções, mas nada de regular. Mas devíamos conversar com elas. Com as pessoas a quem eles telefonam, quero dizer.
– Absolutamente. – Torkel levantou os olhos da lista que acabara de receber. – Vanja, podes tratar disso?
Vanja teve de fazer um verdadeiro esforço para mostrar que não se sentia surpreendida. O mundo fora virado ao contrário. Billy estava a meio de um longo discurso acerca do caso, a falar sobretudo dos aspectos mais técnicos, é certo, mas mesmo assim. Era ele quem liderava. E ela teria de arranjar alguns agentes fardados que fossem falar com as pessoas da lista que ele lhes dera. A sua dor de cabeça estava a piorar.
– Claro – disse ela baixinho, olhando para a mesa.
– Mais alguma coisa? – Torkel continuou a olhar para Billy.
– Se não for um dos reclusos, pode ser alguém que lá trabalha. Pedi as listas do pessoal e vou compará-las com tudo o que já temos.
– Suponho que nenhum dos guardas de Lövhaga tem cadastro?
Billy encolheu os ombros.
– Vocês disseram que o Hinde é manipulador. Ele anda a comunicar com alguém. Eu sei...
– Como podes ter a certeza?
Sebastian de novo. Desta vez, com uma curiosidade genuína.
Billy recapitulou o seu raciocínio: o quarto homicídio fora diferente.
Sebastian assentiu. Era muito invulgar um assassino em série alterar o seu modus operandi, mas um imitador fazê-lo era quase impensável. A menos que Hinde tivesse encontrado uma personalidade fraca que conseguisse controlar. Alguém para quem o homicídio fosse menos importante do que agradar a Hinde. Não era impossível. Tudo o que precisavam de fazer era localizá-lo. Aparentemente, Torkel tinha chegado à mesma conclusão.
– Veri?ca o pessoal. Arranja ajuda se precisares. Bom trabalho, Billy. – Virou-se para Ursula, que abriu os braços num gesto eloquente.
– No que respeita à matéria forense temos tanto hoje como ontem. Ou tão pouco quanto isso, dependendo de como se quiser ver o assunto.
Torkel assentiu, recolheu o material que trouxera consigo e os papéis que lhe haviam sido entregues durante a reunião e preparou-se para dar a sessão por terminada.
– E quanto ao Sebastian? Não vamos ouvir o contributo dele? – Vanja sentiu que tinha de descarregar o mau humor e a dor de cabeça em alguém. E quem melhor do que Sebastian Bergman? Inclinou-se para a frente e olhou para ele com um olhar desa?ador. – Qual a tua contribuição? Além de manteres as calças vestidas, espero.
O telefone de Torkel tocou antes de ter tempo para comentar a fúria de Vanja. Optou por atender, sabendo que Sebastian era perfeitamente capaz de cuidar de si próprio.
Sebastian olhou com calma para Vanja. Devia dizer-lhe que, na realidade, tentara avisar algumas das suas antigas amantes? Que ?zera o possível para evitar uma repetição? Que estava destinado a ?car sentado ao telefone para tentar contactar várias outras? Não. Em parte porque iriam querer saber quem tinha avisado e, por outro lado, porque pensariam que era incrivelmente estúpido começar a visitar essas mulheres quando alguém ainda podia andar a segui-las. Contudo, também não tencionava aturar mais tretas. Ficara muito abalado com o que acontecera e Vanja tirara proveito disso. Nenhuma simpatia, apenas desprezo. Naquele momento não lhe importava quem ela era; estava na hora de Sebastian Bergman se erguer de novo.
– De facto, mantive as calças vestidas. Podia ter aberto a braguilha e batido uma punheta, mas suponho que com isso não terias qualquer problema?
Vanja lançou-lhe um olhar viperino e abanou a cabeça quase com enfado.
– Odeio -te.
– Eu sei.
Torkel terminou a chamada e virou-se para o grupo, sem dar qualquer indicação de ter ouvido o último diálogo.
– Encontraram um carro. Incendiado. É, ou era, um Ford Focus azul.
– Onde?
Vanja, Billy e Ursula puseram-se em pé de imediato.
– Uma exploração de saibro em Bro. Já tenho as indicações.
– Vamos lá.
BILLY PAROU JUNTO à exploração de saibro atrás do jipe de Ursula. Desligou o motor e ?cou ali sentado por uns momentos. Viu Ursula sair, abrir o porta-bagagens e tirar o equipamento guardado em dois grandes sacos. Vanja estava sentada ao lado dele com os óculos de sol. Tinha a cabeça apoiada contra o encosto de cabeça e uma respiração calma e regular.
Quando desceram para o parque de estacionamento ela atirara-lhe as chaves.
– Conduz tu.
Desde então não voltara a falar. Nem uma palavra. Ele conduziu para fora da cidade e rumaram para norte em silêncio. Quando já tinham percorrido um pouco da E18, ele perguntou-lhe se se importava que ligasse o rádio. Não respondeu. Ele sintonizou a The Voice.[16] Snoop Dogg. Como ela não protestou, assumiu que adormecera. Logo a seguir a Bro virou à direita para a 269 e, com a ajuda do GPS, encontrou o caminho para a estrada secundária que conduzia à exploração de saibro situada perto de Lövsta. E ali estavam. Abanou-lhe suavemente o ombro.
– Acorda, já chegámos.
– Estou acordada. – Vanja endireitou-se e espreguiçou-se.
Saíram do carro e caminharam em direcção ao Ford carbonizado. O ar estava pesado entre os montes de cascalho e os insectos zumbiam por todo o lado. Vanja calculou que a temperatura devia rondar os quarenta e cinco graus. Uma agente fardada, com cerca de vinte e cinco anos, encontrava-se postada do lado de fora da área que estava a ser isolada. Vanja aproximou-se dela enquanto Billy prosseguia em direcção ao carro.
– Jennifer Holmgren – disse a agente, estendendo a mão.
– Vanja Lithner, da Riksmord. Foi você quem encontrou o carro?
– Sim.
Vanja olhou para o Ford Focus. Ou para o que restava deste. Só era possível dizer-se que fora azul pelos poucos locais que não haviam sido atingidos pelo fogo. Fora isso, tinha um tom de cinzento-calcinado. Os pneus e os pára-choques derreteram, bem como todo o interior. As portas e o tejadilho incharam com o calor. Os vidros partiram-se. O porta-bagagens estava aberto e faltava-lhe a capota. Talvez algo tivesse explodido no motor. Se fosse esse o caso, Ursula não tardaria a dizer-lhes. Ela andava por ali a tirar fotogra?as de todos os ângulos possíveis.
Vanja virou-se de novo para Jennifer.
– Você mexeu em alguma coisa?
– Sim, abri o porta-bagagens.
– Porquê?
Desde que Jennifer reportara a sua descoberta e lhe fora dito que permanecesse onde estava e esperasse pela Riksmord, meditava no facto de a verdadeira razão para ter aberto o porta-bagagens – a de que esperava encontrar um cadáver devido a algum tipo de transacção entre bandos criminosos – não ser propriamente adequada. Percebera que a Riksmord devia achar que procurar a vítima de uma execução numa ensolarada exploração de saibro dos arredores de Sigtuna era, na melhor das hipóteses, uma ideia completamente estúpida e, na pior, um mau comportamento pro?ssional. Apesar de, alguns anos antes, terem sido encontrados dois corpos no porta-bagagens de um carro em chamas na E6, em Halland. Nessa época, Jennifer teria dado tudo para estar no carro-patrulha que foi o primeiro a chegar ao local... Agora o porta-bagagens estava vazio, mas enquanto esperava lembrou-se de uma razão muito melhor para explicar porque o tinha aberto.
– Nós andávamos à procura de um menino de seis anos que desapareceu. Só quis ter a certeza de que não se escondeu aí dentro ou algo do género. Está muito calor – acrescentou.
Vanja, da Riksmord, concordou. Com um aceno que deu a entender a Jennifer que a sua explicação não apenas fora aceite, mas até a deixara um pouco impressionada.
– Nada mais? – quis saber Vanja.
– Não. Porque estão interessados neste carro? Tem a ver com algo?
Vanja olhou para a colega fardada. Não havia dúvidas quanto ao tom da sua voz: uma antecipação que raiava a excitação.
– Já encontraram a criança? – perguntou, esquivando-se à pergunta.
– Qual criança?
– A tal que vocês andavam a procurar.
– Não. Ainda não.
– Nesse caso, acho que deviam continuar a procurá-la. – Vanja passou por baixo da ?ta da polícia e foi ter com Ursula e Billy.
Jennifer ?cou a olhar para ela. A Riksmord. Era aí que ela devia estar. Assim que terminasse aquele estágio em Sigtuna, iria apresentar a sua candidatura. Que idade teria aquela Vanja? Uns trinta, talvez. Cinco anos de diferença. E não parecia propriamente nova no cargo. Se o conseguia, Jennifer também o conseguiria. E iria conseguir. Contudo, antes de mais teria de encontrar Lukas Ryd. Havia uma zona perto dali que era conhecida na localidade como Marchland e lhe parecia promissora.
Vanja foi até ao carro carbonizado e olhou para o interior. Uma confusão total de plástico derretido, cabos queimados e metal retorcido. Ursula continuava a tirar fotogra?as, mas normalmente conseguia fazer uma rápida avaliação dos elementos mais importantes do local do crime. Vanja endireitou-se.
– Alguma coisa?
– Uma substância in?amável muito potente. Nenhum sinal de que houvesse alguém no carro. – Ursula baixou a câmara e olhou para Vanja por cima do tejadilho. – Não quero antecipar nada mas não alimentes muitas esperanças.
Vanja suspirou. As placas de matrícula estavam queimadas e irreconhecíveis, era impossível lê-las a olho nu. Nem sequer sabiam se era o Ford que procuravam. Podiam estar a desperdiçar tempo precioso ali porque alguém não quisera dar-se ao trabalho de levar uma velha carripana para a sucata.
– Vou dar uma volta pelo trilho para ver se consigo encontrar algo. – Era óbvio que Billy pensava mais ou menos o mesmo. Ali não havia muito para fazer. Pelo menos de momento.
– Como o quê?
– Não sei. Algo. Qualquer coisa. Não precisamos de ?car todos aqui a olhar.
Ele afastou-se do carro, passou por baixo da ?ta e pôs-se a caminho. Vanja ?cou onde estava. Pensando bem, tinha sido um pouco precipitado irem os três para ali a correr, mas estavam muito desesperados por qualquer avanço. Precisavam realmente de algo e depositaram esperanças. Mas ali não havia grande coisa. Nenhuma possibilidade de encontrar pegadas. Nenhumas testemunhas. Nenhumas câmaras de vigilância. Ursula iria tratar do carro. Então, que mais havia para fazer? Não valia a pena estarem todos ali parados a olhar, como disse Billy. Porém, alguém tinha de o fazer e, aparentemente, essa era a sua função. Caramba, estava calor.
Billy caminhou ao longo do trilho, examinando a área circundante enquanto avançava. Na verdade, não sabia o que devia procurar nem o que esperava encontrar. Com sorte, o perpetrador teria cometido algum erro. Pode não ter contado com o facto de eles serem chamados ao local. Talvez tivesse deitado fora uma lata de gasolina vazia que os pudesse levar a uma estação de serviço que tivesse câmaras de vigilância... Seria o ideal, sem dúvida, mas revistar o trilho da ?oresta era pelo menos melhor do que ?car a olhar para um carro incendiado ao lado de uma Vanja mal -humorada.
Andara cerca de oitocentos metros sem encontrar nada e quase chegara à estrada principal. Uma centena de metros mais adiante, do lado esquerdo, junto ao cruzamento, havia uma casa isolada feita de madeira pintada de vermelho, com beirais e janelas brancas. Sólidos alicerces de pedra. Telhado de duas águas íngreme. Dois carros na entrada. Um triciclo e brinquedos no jardim. De?nitivamente, ali morava alguém. Merecia uma visita. Billy encaminhou-se para a casa, mas ainda só tinha dado alguns passos quando ouviu um restolhar nas árvores atrás dele, do lado direito. Virou-se para trás e, instintivamente, levou a mão à arma, mas descontraiu-se quando viu uma mulher com cerca de quarenta anos vir na sua direcção com um cão pela trela. Uma espécie de setter. Castanho. Com o pêlo comprido. Cheio de calor. Língua pendurada como se fosse uma gravata.
– Você é da polícia? – perguntou a mulher quando subiu para a estrada, a poucos metros de distância de Billy. O cão estava ofegante e esticava a trela, queria ir cumprimentá-lo.
– Sou.
– Porque estão vocês aqui? Tenho visto agentes durante todo o dia. – A mulher e o cão aproximaram-se de Billy, que se inclinou e acariciou a cabeça do animal excitado.
– Alguns andam à procura de uma criança que desapareceu.
– Quem é que desapareceu?
– Não sei. Um menino das redondezas. Eu estou aqui porque encontraram um carro carbonizado lá ao fundo, na exploração de saibro.
– Compreendo.
– Você mora aqui perto? – perguntou Billy, endireitando-se. O cão começava a mostrar demasiado interesse pelas suas mãos e lambia-as como um doido. Falta de sal, pensou Billy.
– Moro ali. – A mulher apontou para a casa vermelha no cruzamento.
– Como se chama?
– Carina Torstensson.
– Eu chamo-me Billy Rosén. Sabe alguma coisa acerca disto?
– Do carro?
– Sim.
– Não.
– Ele veio aqui parar algures entre as dez horas da manhã de ontem e... – Billy calou-se. Na verdade, não sabiam quando o carro fora trazido para a exploração de saibro. Como já estava frio isso excluía as últimas dez horas, mas podia ter sido deixado no local a qualquer hora. Encolheu os ombros. – ... algures durante a noite. Não viu nada de anormal durante esse período?
Carina já estava a abanar a cabeça.
Billy fez uma última tentativa.
– Talvez quando andou a passear o cão... Reparou noutro carro? Em alguém que realmente não parecesse ser daqui?
– Encontrei um homem quando andava a apanhar cogumelos. – O abanar da cabeça foi substituído por um aceno pensativo. – Isso foi ontem.
Billy respirou fundo. Finalmente! Alguém que tinha visto algo. Até ao momento não passava do raio de um fantasma, mas Carina Torstensson vira alguém.
Quando andava a apanhar cogumelos. No calor do pino do Verão.
Em Julho...
Carina reparou na sua expressão de dúvida.
– Os cantarelos começaram agora a aparecer. O tempo está um pouco seco de momento, mas como o ?m da Primavera foi bastante húmido há alguns... – Ergueu os olhos para o céu azul límpido. – Mas é claro que mais alguma chuva não faria mal.
– Esse homem que encontrou... – Billy decidiu não a mandar logo embora e retomou o assunto em causa.
– Ele vinha lá de cima. – Fez um gesto por cima do ombro com o polegar.
– Da exploração de saibro?
– Sim.
– Lembra-se de como era o aspecto dele? – Billy sacou de uma caneta e de um bloco de notas e abriu-o numa página em branco.
– Alto. Não estava vestido para a ?oresta. Blusão de cabedal. Cabelo comprido apanhado num rabo-de-cavalo. Uma grande cicatriz por cima de um olho.
Billy parou de escrever. Uma grande cicatriz. Como Roland Johansson.
– Era no olho esquerdo? A cicatriz chegava-lhe à bochecha? – Billy usou a caneta para lhe mostrar no próprio rosto o que queria dizer. A mulher acenou com a cabeça. Billy tomou nota.
– Viu para onde ele foi? Alguém o veio buscar?
– Não, ele apanhou o autocarro.
– Qual autocarro?
– O 557. Para Kungsängen. Parte dali. – Apontou para a estrada principal e Billy avistou uma paragem de autocarro a cerca de cinquenta metros da casa de Carina.
– Lembra-se a que horas foi? – Estava quase a conter a respiração. Se conseguissem de?nir uma hora podiam encontrar o autocarro, o motorista e um possível destino. Carina ?cou a pensar.
– Meio-dia e um quarto, meio-dia e vinte. Ele deve ter apanhado o do meio-dia e vinte e seis minutos.
– Obrigado! – Billy teve de reprimir o impulso de lhe dar um abraço. – Obrigado! – Guardou o bloco de notas e começou a correr.
Não teve de correr até muito longe. Após algumas centenas de metros, encontrou Vanja no carro. Abrandou até se aproximar dele e baixou o vidro enquanto ele recuperava o fôlego.
– Onde vais? – perguntou-lhe.
– A Ursula ?ca muito bem sozinha lá atrás; nós não estamos a fazer nada de útil.
– Está bem... – Billy entrou e apertou o cinto de segurança enquanto Vanja seguia caminho. – O Roland Johansson esteve aqui.
Vanja olhou para ele, e Billy sentiu o carro a abrandar quando reduziu instintivamente a velocidade. Surpreendida.
– O fulano que esteve em Lövhaga ao mesmo tempo que o Hinde?
– Sim.
– Como sabes?
– Encontrei uma mulher que mora junto ao cruzamento. – Apontou para a casa vermelha, pela qual estavam prestes a passar. – Ela viu-o aqui. Ontem.
– Tu saíste dali para entrevistar testemunhas?
Billy ?cou sem palavras. Esperava muitas perguntas por parte de Vanja. Acerca do caso. Acerca de Johansson e da testemunha. Em vez disso, ela estava a pensar porque saiu da exploração de saibro e tinha na voz um tom de crítica.
– Não, fui veri?car o trilho e deparei com ela.
– E ?zeste-lhe perguntas sobre o carro?
Billy suspirou. A informação que tinha era uma boa notícia.
Uma grande notícia.
Provavelmente, uma notícia crucial.
Tenta pôr as tuas prioridades em ordem, pensou.
– Não, eu ia apenas a caminhar pela estrada. – Billy fez os possíveis por não se irritar, mas apercebeu-se do cuidado exagerado que pôs na sua explicação. – Ela andava a passear o cão, perguntou-me o que estávamos a fazer aqui, eu contei-lhe, e, a seguir, disse-me que tinha visto um homem com uma cicatriz enorme que vinha da exploração de saibro à hora certa. O que devia fazer? Pedir-lhe para não dizer nada até tu chegares para também ouvires?
– Oh, não, de qualquer maneira parece que hoje em dia consegues fazer tudo sozinho.
Vanja virou à esquerda para a estrada principal e acelerou. Mais críticas. Porquê, ao certo? Francamente, não conseguia entender o que ?zera de errado. Recusara-se a ajudá-la numa pesquisa mas não passara disso. Ele era ambicioso; queria progredir. Mudar. Decidiu encarar o problema de frente.
– O que se passa contigo?
Vanja não lhe respondeu; em vez disso, deu a entender que se concentrava na estrada.
– Quando não faço exactamente o que tu dizes, ou faço por minha própria iniciativa, perdes a cabeça – persistiu Billy. – Sentes -te ameaçada?
– Porquê? – Um tom sardónico na sua voz. Como se tivesse reprimido uma risada perante uma ideia ridícula.
Billy endireitou-se no banco.
– Por mim – disse bruscamente. – Estás com medo que venha a ser melhor do que tu, ou quê?
Daquela vez não se deu ao trabalho de se conter; soltou uma risada curta e áspera.
– Oh, sim. Absolutamente. Eu percebi logo.
O seu olhar continuava ?xo na estrada. Billy pensou ter detectado um pequeno sorriso no canto da sua boca, mas não tinha a certeza. Porém, não havia dúvidas quanto à ironia na sua resposta.
– O que queres dizer com isso? – Daquela vez não tentou disfarçar a sua irritação. Porque deveria fazê-lo? Estava furioso.
– Com o quê?
– Com esse tom de voz e esse «Oh, sim. Absolutamente. Eu percebi logo».
Vanja não lhe respondeu de imediato. Havia uma série de opções. Podia ?car calada, ignorar a pergunta dele. Podia serená-lo, pedir-lhe desculpa se tivesse sido rude, dizer-lhe que não fora essa a sua intenção.
Ou podia dizer-lhe a verdade.
– Queria dizer que não tenho medo de que venhas a ser melhor do que eu.
– E porque não?
– Porque isso nunca vai acontecer.
Billy recostou-se no banco. Podia ter continuado a perguntar-lhe «porquê?» e «porque não?» durante mais algum tempo, mas com que ?to? Vanja esclarecera perfeitamente o que pensava acerca dele como polícia. Não havia mais nada a dizer. Vanja era, obviamente, da mesma opinião.
Prosseguiram a viagem em silêncio.
QUANDO ENTROU na auto-estrada e pisou o acelerador, Haraldsson percebeu que iria chegar muito atrasado ao emprego. Embora, na verdade, isso não importasse. A?nal, não precisava de picar o relógio de ponto. O patrão era ele. Estavam em Julho. Podia desfrutar do horário ?exível. Antecipadamente, por assim dizer.
O despertador tocara à hora habitual mas Jenny rebolara, sonolentamente, para o seu lado da cama e aconchegara-se por baixo dos cobertores. En?ara a cabeça no espaço entre o pescoço e o ombro dele, colocara o braço à sua volta. A gravidez ainda não era muito perceptível mas Haraldsson pensou ter sentido a sua barriga, ligeiramente arredondada, contra o seu corpo. Dentro dela havia uma vida. O ?lho de ambos. Metade dele, metade dela. Contudo, esperava que a criança se parecesse mais com Jenny: uns setenta/trinta, talvez. Ela era tão bonita. Em todos os sentidos. Calorosa, ponderada, sagaz, divertida. Era tudo quanto havia de bom. Por vezes, ele simplesmente não conseguia acreditar na sua sorte. Amava-a muito.
Dissera-lho. Naquela manhã. Ela respondera abraçando-o ainda com mais força. Uma coisa levara à outra. Fizeram amor. A seguir, disse-lho de novo.
– Amo -te.
– Eu também te amo.
– Tenho uma surpresa para amanhã.
– Chiu... – Ela pousara-lhe um dedo nos lábios. – Não digas mais nada. Não quero saber.
No dia seguinte seria o quinto aniversário do casamento. Ele tinha o dia todo planeado. Primeiro iria servir-lhe o pequeno-almoço na cama: chá, torradas com geleia de framboesa e queijo, ovos mexidos e bacon estaladiço, melão com morangos cobertos de chocolate. No dia seguinte também chegaria atrasado ao emprego, percebeu. Ao ?nal do dia, quando Jenny estivesse no trabalho, alguém iria buscá-la de carro e levá-la a uma estância de luxo para fazer uma série de tratamentos de beleza. Ao mesmo tempo, alguns homens iriam lá a casa plantar uma macieira no jardim. Uma Ingrid Marie. Jenny gostava das maçãs ligeiramente ácidas, e na creche disseram que uma Ingrid Marie seria perfeita. Além disso, era um nome bonito. Se tivessem uma ?lha, poderiam chamar-lhe Ingrid Marie. Ingrid Marie Haraldsson. Ele estava realmente animado quanto ao dia seguinte.
Cinco anos.
Madeira.
E ela iria receber uma árvore. Uma árvore da qual poderiam colher maçãs nos anos vindouros. Floresceria todas as Primaveras, e no Outono podiam apanhar as folhas juntos antes de a primeira neve começar a cair. A Ingrid Marie e os seus irmãos e irmãs poderiam trepá-la. Se tivessem cuidado, claro. No seu espírito, Haraldsson conseguiu ver-se, e a Jenny, sentados à sombra da macieira quando já eram mais velhos. Idosos. Os ?lhos e netos a visitá-los. Levariam para casa sacos de fruta e fariam geleias e sumos. A menos que já tivessem levado rebentos da árvore para plantarem nos seus próprios quintais, como é evidente. Aquele era um presente que lhes traria benefícios e alegria para o resto da sua vida em comum. Um presente de amor. Jenny ?caria encantada.
No entanto, não era tudo. À noite iria lá a casa um chefe de cozinha. Servir-lhes-ia uma refeição de três pratos com vinho e, em seguida, limparia a cozinha. Tudo o que Jenny e Haraldsson tinham de fazer era relaxar. Pensarem um no outro.
Nada poderia dar errado.
O seu telemóvel tocou. Ao som dos Abba. «Ring Ring.» Olhou para o ecrã antes de atender. Trabalho. O que era desta vez?
– Haraldsson.
– Onde está você? – Era Annika. A sua assistente pessoal. Mentalmente, tomou nota de que devia ter uma conversinha com ela. Algo parecia estar um pouco errado no relacionamento entre ambos. Pensou ter sido encorajador quando elogiara a iniciativa dela. Aquela coisa de lhe ir buscar o café à cafetaria, por exemplo. Fizera questão de lho mencionar e de sugerir que podia continuar a fazê-lo.
– Vou a caminho. Quer alguma coisa?
– Hoje tem a reunião mensal com os psicólogos.
Merda, tinha-se esquecido. O governador e a equipa médica reuniam-se na última quarta-feira de cada mês. Haraldsson tencionara adiá-la, e fora por isso que não a apontara na sua agenda. Queria estar um pouco mais familiarizado com o assunto antes de se encontrar com eles pela primeira vez, mas não chegara a remarcar a reunião. Agora, provavelmente era tarde de mais.
– Onde é?
– Aqui. Dentro de vinte minutos.
Haraldsson olhou para o relógio. Demoraria, pelo menos, meia hora a lá chegar.
– Nesse caso, chegarei aí com tempo de sobra – disse, terminando a chamada. Annika diria a todos que vinha a caminho e chegaria a horas. Tinha meia hora para encontrar um motivo para o seu atraso. Provavelmente, o mais fácil seria algo que tivesse a ver com o trânsito. Obras na estrada, talvez. Uma faixa de rodagem fechada. Longas ?las. Apresentaria as suas desculpas mas, como é evidente, era impossível prever aquelas situações. Ninguém se daria ao trabalho de veri?car. Ligou o rádio e pisou no acelerador.
BILLY E VANJA estavam sentados na cantina da estação de autocarros à espera de Mahmoud Kazemi, que conduzira o veículo em causa no dia anterior. A mulher com quem falaram na recepção dissera-lhes que regressaria dentro de dez minutos e que faria uma pausa de um quarto de hora. Billy perguntara o que aconteceria se precisassem de falar com ele durante mais de um quarto de hora e informaram-nos de que, nesse caso, teriam de viajar com ele no autocarro. O autocarro não se podia atrasar e, naquele momento, não havia qualquer possibilidade de organizar uma rendição ou um motorista substituto. Billy decidiu que a entrevista não demoraria mais de um quarto de hora. Não fazia ideia do que Vanja pensava. Não voltaram a falar desde aquela conversa no carro.
A mulher da recepção levou-os para a cantina. Um espaço funcional. Não muito usado nem muito novo. Sentar, fazer uma pausa, comer. Nada que tentasse os funcionários a fazerem uma pausa maior do que o necessário. Havia no ar uma mescla de cheiro a suor e a fritos.
Billy sentou-se numa das mesas enquanto Vanja foi até à máquina de café.
– Queres um?
– Não, obrigado.
Vanja encolheu os ombros e ?cou à espera, de costas para ele, enquanto a máquina enchia um copo de papel. Depois regressou e sentou-se ao seu lado, provavelmente porque seria muito estranho se estivessem sentados em mesas separadas quando Mahmoud chegasse. Bebeu o seu café em silêncio e Billy não falou.
Um homem dos seus quarenta anos apareceu à porta. Talvez um metro e oitenta e cinco de altura. Cabelo escuro, bigode, olhos castanhos que se ?xaram neles com um certo nervosismo.
– Disseram-me que queriam falar comigo. – Mahmoud apontou o polegar num vago movimento para trás a ?m de indicar quem eram «eles». Vanja pensou que estaria a referir-se à mulher da recepção.
– Mahmoud Kazemi? – perguntou Vanja, pondo-se em pé. Billy fez o mesmo.
– Sim. Do que se trata?
– Vanja Lithner e Billy Rosén da Riksmord. – Mostraram-lhe a identi?cação; Mahmoud olhou para os cartões sem interesse. – Gostaríamos de lhe fazer algumas perguntas acerca do seu turno de ontem.
O homem acenou com a cabeça e sentaram-se. Vanja empurrou uma fotogra?a de Roland Johansson por cima da mesa, na direcção de Mahmoud.
– Reconhece este homem?
Mahmoud pegou na fotogra?a e observou-a com atenção.
– Talvez...
Vanja sentiu-se um pouco impaciente. Roland Johansson, com o rosto cortado ao meio, parecia membro do clube dos Hells Angels. Quem o tivesse visto, lembrar-se-ia dele. Como poderia Kazemi ter dúvidas? Podia não ter certezas em relação às horas, mas devia saber se o vira ou não.
– Ele pode ter entrado ontem no seu autocarro – disse Billy com solicitude. – Para os lados de Lövsta.
– Lövsta...
– Entre Stentorp e Mariedal.
Mahmoud levantou os olhos da fotogra?a e ?tou Billy com uma expressão ligeiramente enfadada.
– Eu sei onde é. Conduzo o autocarro até lá.
– Desculpe.
A sala ?cou em silêncio. Vanja bebeu o seu café.
Mahmoud Kazemi examinou a fotografia durante mais algum tempo e, em seguida, pousou-a na mesa e acenou a cabeça com ?rmeza.
– De facto, ele entrou lá. Lembro-me porque cheirava mal.
– Cheirava a quê? – quis saber Vanja.
– A fumo. Como se tivesse estado a queimar algo.
Vanja acenou em jeito de encorajamento enquanto pensava se algumas pessoas dispunham de uma memória melhor para odores do que para o que viam. Não conseguia acreditar que o motorista do autocarro não tivesse reconhecido Roland Johansson assim que olhou para o retrato.
– Lembra-se onde saiu ele?
– Em Brunna.
– Já o tinha visto em Lövsta? – perguntou ela.
– Não.
– Tem a certeza?
– Não, mas acho que me lembraria dele. Com essa grande cicatriz.
Vanja optou por não comentar; tinham conseguido o que queriam.
Vanja e Billy agradeceram a Mahmoud o auxílio e deixaram-lhe o seu número de telefone para o caso de se lembrar de algo mais. Saíram da estação de autocarros e caminharam de volta para o carro sem falar. Mahmoud levara-os a Brunna. Tinham uma hora e um local. Com um pouco de sorte, as novas pistas não terminariam por aí. Iam voltar para a sede e prosseguir o trabalho.
Outra viagem de carro.
O mesmo silêncio ensurdecedor.
SEBASTIAN NÃO CONSEGUIA decidir qual das sensações era mais forte.
A barriga cheia, o cansaço ou a raiva impotente.
Após Vanja, Billy e Ursula terem partido, ele passara quase uma hora a deambular pelas instalações. Bebera demasiado café. Tentara reunir energias para fazer o que se propusera fazer.
Os tais telefonemas.
Por ?m, não conseguira adiar aquilo durante mais tempo. Fora para a Sala. Fechara a porta. Ali deixá-lo-iam em paz; aquele espaço só era usado pela equipa da Riksmord. A equipa da qual ainda fazia parte. Chegara o momento de o provar. De fazer algo. De fazer o que pudesse.
Começara por se sentar, com caneta e papel, a torturar o cérebro. Por onde devia começar? Não podia, de maneira alguma, voltar atrás uns dez ou vinte anos. Não se lembrava delas. As coisas eram mesmo assim. Não se lembrava dos seus nomes, do aspecto, onde moravam, quem eram. O facto de o assassino ter procurado Annette Willén não signi?cava necessariamente que queria certi?car-se de que a Riksmord estabelecia a ligação com Sebastian. Poderia muito bem dar-se o caso de Hinde, estando Sebastian convencido que, de algum modo, ele estava por trás de tudo, simplesmente não ter conseguido encontrar outras mulheres do seu passado e, por isso, foi obrigado a recorrer a alguém mais recente.
Assim, ele próprio concentrou-se nesse aspecto.
Ainda continuavam a ser muitas.
E ainda era difícil.
Ao ?m de uma hora apontara seis nomes no seu bloco. Seis mulheres com quem havia dormido desde que regressara de Västerås, no ?nal de Abril. Em Estocolmo ou, pelo menos, não muito longe. Seis mulheres de cujos nomes realmente se lembrava. Ou cinco. Acerca de uma delas só tinha um primeiro nome e uma vaga noção da zona da cidade onde morava, e apenas da zona da cidade no que dizia respeito à sétima. Com a ajuda do computador conseguiu encontrar os seus números de telefone – era algo que nunca lhes pedia quando as conhecia. Se lho quisessem dar aceitava, mas deitava logo fora o pedaço de papel.
Puxou o bloco para si e respirou fundo. Lembrou-se então de um motivo para adiar aquelas conversas difíceis por mais um pouco. Trolle. Ainda não tinha falado com Trolle. Tentou o número dele. Não atendeu. Deixou-lhe a sua quinta ou sexta mensagem. Pegou de novo no bloco e encetou a tarefa.
Aquilo acabou por se revelar uma aula prática de futilidade. Uma das mulheres que atenderam insistiu que marcara o número errado. Nunca se conheceram, disse-lhe. Duas recusaram-se a falar com ele quando lhes explicou quem era. Desligaram simplesmente o telefone e, quando ligou de novo, não atenderam. Uma delas ouviu-o mas, quando chegou a altura de lhe explicar a situação, de lhe contar o que acontecera, Sebastian perdeu a coragem. Não podia ser ele a dizer-lhes que as suas vidas corriam perigo. Não pelo telefone. Por isso, acabou por fazer uma vaga advertência para que tivesse cuidado. Para que não deixasse entrar desconhecidos em casa. Deve ter parecido completamente incoerente e um pouco doido. Perto do ?nal da conversa, a mulher perguntara-lhe o que, na realidade, pretendia. Ele desligara o telefone e nem sequer tentara contactar o último nome da lista.
Não o podia fazer pelo telefone.
Simplesmente, não conseguia.
Mas também não podia ir visitá-las pessoalmente.
Não havia nada que pudesse fazer.
Que contributo dera ele?, perguntara Vanja. A resposta era simples e deprimente. Nenhum. Tinha de falar de novo com Hinde. Era aí que estava a solução. Era aí que encontraria algo com que pudesse trabalhar, algo que conseguisse entender. Tinha de falar com Hinde.
Recostou-se na cadeira e esticou as pernas por baixo da mesa. Fechou os olhos.
Estava cansado. Na noite anterior, após toda aquela preocupação com Anna, não conseguira sossegar. Matutara na ideia de voltar atrás e ir fazer companhia a Trolle, mas decidira que não. Fora para a cama e ?cara a olhar ociosamente para o televisor até adormecer, cerca das duas e meia.
O sonho despertara-o antes das cinco. Com a mão direita muito contraída. As unhas tinham-lhe perfurado a pele em dois sítios, de onde escorria sangue. Endireitara os dedos e sentira a cãibra atenuar lentamente. Deixara-se ?car por um bocado, a pensar se devia convidar o sonho a voltar. Às vezes fazia-o. Permitia que este voltasse. Apesar de tudo, desfrutava de cada instante daquele sentimento de amor autêntico que o sonho continha e transmitia.
Às vezes precisava disso.
Precisava de sentir Sabine. Perto de si. De ter a pequena mão dela na sua. De recordar o seu cheiro. A maneira como corria para a água com as suas pernitas agitadas. De ouvir a voz dela.
– Papá, eu também quero um daqueles. – As últimas palavras que lhe dissera quando vira outra menina a brincar com um gol?nho insu?ável.
Precisava de sentir o seu peso quando a levava ao colo. Das mãos suaves dela nas suas faces hirsutas e aquecidas pelo sol. De ouvir o seu riso sempre que ele dava algum passo em falso.
Até que chegava o barulho.
O bramido.
A onda. Que lha iria arrebatar. Para sempre.
A porta da Sala abriu-se e Vanja, Billy e Torkel entraram. Sebastian sobressaltou-se e quase escorregou da cadeira.
– Estavas a dormir? – perguntou Torkel, sem qualquer indício de sorriso, enquanto puxava uma cadeira e se sentava.
– Estava a tentar – respondeu Sebastian, sentando-se direito. Olhou para o relógio. Passara um quarto de hora. Ainda não se sentia muito bem.
– O que andaste a fazer para estares tão cansado? – De alguma forma Vanja conseguiu incluir na sua pergunta a resposta «nada, como de costume», e por isso Sebastian nem se deu ao trabalho de responder.
– Onde está Ursula? – perguntou ele em vez disso. Supôs que estivessem prestes a iniciar alguma reunião.
– Ainda está na exploração de saibro, presumo – disse Torkel. – Não tive notícias dela.
Virou-se para Billy e Vanja, que estavam sentados do outro lado da mesa em silêncio. Eles entreolharam-se mas nenhum se mostrou particularmente interessado em falar.
– Fala tu – disse Billy secamente, recostando-se para trás na cadeira. Foi quase como se ?zesse questão disso.
– Porquê?
– Provavelmente, é melhor.
Sebastian observou-os com um interesse cada vez maior. Nessa manhã, aqueles dois não tinham andado apenas a trabalhar lá fora, isso era evidente. Acontecera algo mais. Apesar do breve diálogo, era impossível não reparar na atmosfera gélida que se instalara entre ambos. Interessante.
Vanja encolheu os ombros e recapitulou rapidamente o que aconteceu desde que saíram da sede. O carro na exploração de saibro, a testemunha, Roland Johansson, o motorista do autocarro, Brunna.
– Fomos con?rmar em Brunna. – Billy interveio sem que lho pedissem. – Não mora lá nenhum Roland Johansson, nem ninguém com esse nome reencaminhou para aí o seu correio.
– Mas ontem participaram o furto de um carro. – Vanja retomou a palavra. – Um Toyota Auris prateado. E a hora corresponde.
– É esse! – disse Sebastian abruptamente. Um pouco alto de mais, e também com algum entusiasmo a mais, percebeu quando todos se viraram para ele e o ?taram.
– Como sabes? – Vanja exprimiu em palavras o que os três estavam a pensar; Sebastian apercebeu-se.
Praguejou entredentes. Sabia-o porque Trolle lhe dissera que a pessoa que o seguia conduzia um carro japonês prateado. Sabia-o porque Trolle o vira à porta do prédio onde Anna Eriksson morava. No entanto, o que sabia e o que podia dizer-lhes eram duas coisas completamente diferentes. Não lhes podia contar nada a respeito de Trolle e de Anna. Nem havia uma justi?cação plausível para ele ter ?cado a saber que o Toyota estava relacionado com a investigação.
Os outros continuaram a olhar para ele, aguardando uma resposta.
– Não sei – disse Sebastian em voz baixa. Pigarreou. Se quisesse safar-se daquela situação a voz não o podia denunciar. – Eu não sei, como é óbvio – repetiu. – Foi só... um pressentimento.
– Um pressentimento? Desde quando prestas atenção aos pressentimentos?
A pergunta de Torkel justi?cava-se. Ele conhecia Sebastian melhor do que qualquer outra pessoa presente na Sala. Sabia que ele podia avançar teorias e hipóteses, algumas delas incorrectas, como mais tarde se viria a descobrir, mas sempre solidamente fundamentadas em factos. Possíveis, credíveis. Ao longo de todos os anos em que Torkel trabalhara com ele, Sebastian nunca aventara uma hipótese que se baseasse num pressentimento.
Sebastian encolheu os ombros.
– Roland saiu do autocarro em Brunna, o carro foi roubado aí, Roland está de alguma forma envolvido em tudo. Tudo se encaixa. As coisas... encaixam-se.
Silêncio. Vanja abanou a cabeça. Billy estava mesmo à frente dele e olhava-o ?xamente; quase parecia que nem sequer estivera a ouvir. A expressão de Torkel evidenciava que considerava que Sebastian estava a dizer disparates e, aparentemente, ?cara a pensar se haveria alguma razão para o fazer. Sebastian preparava-se para elaborar melhor a sua explicação quando Torkel pareceu perder o interesse nele e, em vez disso, virou-se para Vanja e Billy.
– É uma coincidência que não podemos ignorar. Lancem um alerta para o Toyota – acenou para Billy.
– Já está feito – disse Billy com um rápido olhar para Vanja.
– Óptimo. Eu falei com Fabian Fridell, o agente de ligação do Roland Johansson em Gotemburgo.
– E o que disse ele? – Sebastian ?ngiu-se mais interessado do que realmente estava. Faria tudo para compensar a sua reacção ao Toyota prateado.
– Já não vê o Johansson há alguns dias.
– O que signi?ca isso? – perguntou Vanja. – Dois dias? Uma semana?
– O nosso amigo Fabian foi extremamente vago nesse ponto.
– Alguém o ameaçou.
Não era uma pergunta.
– É essa a sensação que tenho – disse Torkel com um aceno de cabeça.
O silêncio instalou-se de novo enquanto os que estavam à volta da mesa matutavam naquela ideia. Billy foi o único que resumiu o que todos pensavam.
– Portanto, o Roland Johansson está envolvido de alguma maneira mas as provas forenses dos locais do crime eliminam-no enquanto perpetrador e tem um álibi para o segundo e o terceiro homicídios.
– Por outro lado, o álibi dele é o Fridell – interveio Vanja. – Se o Fridell foi ameaçado, isso poderá ser mentira.
Billy abanou a cabeça.
– Con?rmei com outras pessoas que ?zeram a viagem para Skåne. O Roland Johansson esteve, de certeza, lá.
– Então andamos a procurar mais do que uma pessoa – concluiu Torkel.
– Mas quem está à frente tudo é o Hinde – disse Sebastian, ávido de garantir que não se iriam desorientar tendo em conta as novas informações. – Eu sei que é.
– Tu sabes? – disse Vanja com um sorriso irritante. – Ou é só... um pressentimento?
– Cala-te. Tu também sabes que é ele. Todos os que estão nesta sala sabem-no. – Sebastian levantou-se e começou a caminhar de um lado para outro. – Nunca conheci o Roland Johansson. Não há qualquer razão para se querer vingar de mim. Porém, ele está ligado ao Hinde. Tudo está ligado ao Hinde. – Parou e virou-se para Torkel. – O que se passa com o meu pedido para uma visita?
– Da última vez demorou dois dias.
– Já lhes disseste que é urgente? Que é importante?
– O que achas? – Torkel falou para Billy e Vanja. – O que vamos fazer a seguir?
– Enviei agentes fardados para falarem com os destinatários dos tais telefonemas feitos a partir de Lövhaga – respondeu Vanja. – Devemos ter notícias em breve.
– Reparei que, entretanto, chegou a lista de todos os funcionários da ala de segurança – disse Billy. – Vou já começar a tratar disso.
Sebastian percebeu que Torkel olhava para ele. Por instantes não conseguiu entender o que se passava, mas depois percebeu que estavam à espera de que ele também respondesse à pergunta.
– Vou continuar o que estava a fazer – conseguiu dizer.
Ninguém lhe perguntou o que era. A reunião chegou ao ?m. Sebastian foi o último a sair da sala. Portanto, agora andavam à procura de um Toyota prateado. E de Roland Johansson. Trolle já sabia do Toyota, mas era preciso dizer-lhe que havia outra pessoa envolvida. Isso podia ser importante.
Sebastian ligou para o número de Trolle quando ia a sair.
Continuava a não atender.
ELE QUEBRARA a sua própria regra, que era a de só usar o computador após o recolher. Logo a seguir ao almoço fechara a porta da cela e ligara-se rapidamente à Internet. Devia ?car a salvo durante meia hora. Tinha mesmo de o fazer. Precisava de con?rmar as suas suspeitas. Quando leu o correio enviado por Ralph, foi como se o tempo tivesse parado; ?cou sentado, frente ao computador, a olhar para aquilo. Não sabia se tinham decorrido cinco, dez ou vinte minutos. Não importava. Já podiam con?scar-lhe o computador.
Sabia tudo o que precisava de saber.
Anna Eriksson casara-se com Valdemar Lithner dezoito meses após o nascimento de Vanja. Ele andava na universidade de Gotemburgo durante o Outono, quando Anna engravidou. Nada sugeria que a conhecesse sequer nessa época. Quando Vanja nasceu, estava a fazer um estágio em Essex. Que pai o faria? Só se mudara para Estocolmo quando Vanja tinha seis meses.
E depois havia a certidão de nascimento que Ralph conseguira encontrar.
Pai desconhecido, conforme dizia. Duas palavras simples. Que mulher declararia isso para se casar com o mesmo homem dezoito meses mais tarde? Era impensável.
O mais provável era que Anna soubesse exactamente quem era o pai mas que ele não quisesse assumir a responsabilidade. Um homem que passara simplesmente de uma mulher para outra. Um homem que se livrara de Anna e fora para os EUA porque era o que queria fazer.
Sebastian Bergman.
Isso atribuiria sentido ao facto de andar a seguir Vanja, observando-a à distância sem se atrever a mostrar-se. E à sua necessidade de a proteger aquando do seu encontro recente.
As provas circunstanciais eram fortes mas tinha de ter a certeza. Não se podia enganar. Precisava de saber se Anna Eriksson e Sebastian Bergman já se conheciam. Se tiveram algum relacionamento em 1979. Como Anna Eriksson não fora aluna da Universidade de Estocolmo, não era de todo simples. Contudo, Ralph encontrara uma ligação entre os dois. E no Facebook, ainda por cima.
Hinde nem conseguia acreditar na quantidade de informação que algumas pessoas disponibilizavam. E de muito bom grado. Com as con?gurações de segurança mínimas, o que signi?cava que qualquer um podia entrar e começar a rebuscar tudo. Karin Letander era uma dessas pessoas. Fora aluna de Sebastian em 1979 e adorava publicar fotogra?as do passado, quando ela e os amigos eram jovens e bonitos. Foram os dias mais felizes da sua vida, segundo dizia. Toda a sua pasta de fotogra?as, que era substancial, estava acessível a quem visitasse a página. Incluindo Ralph. Para tornar as coisas ainda mais fáceis, Karin ordenara as suas fotogra?as por ano e despendera bastante tempo a redigir pequenos comentários banais por baixo de cada uma. Para quem procurasse a verdade, aquilo era uma autêntica mina de ouro.
A pasta de 1979 continha cinco fotogra?as.
A mais importante fora tirada durante o que parecia ser uma festa na Suécia. Mostrava Karin, Sebastian e uma mulher que Hinde não reconheceu. Anna Eriksson. Todos sorriam para a câmara, e a mão de Sebastian estava pousada no ombro da mulher. A legenda dizia: «Festa de Outono na uni. Anna Eriksson também lá estava. O que lhe aconteceu?»
Sim, o que lhe aconteceu?
Bom, agora havia uma pessoa que sabia. Acabara de encontrar a peça ?nal do quebra-cabeças que transformava uma suspeita incómoda em verdade.
Tudo se encaixava. Ela deve ter engravidado no início do Outono de 1979. Talvez tivesse até algo a ver com aquela festa.
Levantou-se. Por mais que tentasse, não conseguia ?car quieto. A fenda que andara a procurar transformara-se numa ?ssura tão profunda como um abismo. Su?cientemente grande para possibilidades incríveis. Feitos grandiosos. A vingança perfeita. Aquilo pusera-lhe a cabeça a andar à roda e todo o plano alterara -se radicalmente.
Incluindo o seu próprio papel.
Vanja Lithner era ?lha de Sebastian.
Isso era agora perfeitamente claro para ele. Fora um dos melhores dias da sua vida, um momento verdadeiramente decisivo.
Antes de ter sabido de Vanja.
Depois de ter sabido de Vanja.
E precisava de Edward. Só de Edward, de mais ninguém.
Ralph tornara-se um empecilho. Fora útil durante todo o percurso. A informação que acabara de fornecer era crucial. No entanto, continuava a não passar de um pequeno verme que não tinha coragem para olhar Hinde de frente. Um rapazinho com um corpo alongado que recentemente começara a tentar assumir um papel que não seria capaz de desempenhar. Hinde apercebeu-se da presunção cada vez maior de Ralph quando, subitamente, descobriu que as hiperligações e as citações relativas à última vaga de homicídios tinham sido abundantemente inseridas na fygorh.se, entre todo o material seleccionado ao acaso. Havia algo em cada página.
A atenção mediática nunca fora importante para Hinde. Era banal, unidimensional e não lhe dava uma satisfação autêntica. Mas causara efeito em Ralph. Ele tornara-se como um adolescente que desejava ser visto. Proactivo. Em busca de reconhecimento. Decerto que isso era uma progressão natural, e Edward sempre soube que iria ocorrer uma mudança. Porém, a rapidez da transformação de Ralph surpreendeu-o. Costumava ajoelhar-se perante Edward, mas agora adorava outro deus: as luzes da ribalta.
Recordou o primeiro encontro entre ambos. Ralph conseguira murmurar que lera tudo o que fora escrito acerca de Hinde. Sentia que eram semelhantes. Que tinham muito em comum. Hinde, educadamente, incentivara conversas posteriores. O homem alto e magro que tinha perante si mostrara sinais tão evidentes de uma debilidade submissa que Hinde percebera de imediato como seria fácil de levar. Nessa altura, não sabia para onde. Mas começara desde logo a trabalhar em Ralph e o resultado superara todas as suas expectativas. Ralph falara a Hinde acerca da sua mãe doente – obviamente, era o que tinham em comum. Hinde pensara fugazmente em punir Ralph de imediato por ter dito que a sua mãe era doente, mas refreara-se. A oportunidade de administrar castigos estava sempre presente, ao passo que a oportunidade de manipular alguém exactamente como se pretendia era muitíssimo mais difícil de encontrar. Ralph falara acerca do seu «avô», da cabana e das pessoas que usavam máscaras de animais. Outro aspecto que tinham em comum. Os abusos. Edward deixara-o falar. Ralph jamais compreenderia que, por mais que tivessem em comum, isso seria sempre ofuscado pelas diferenças entre ambos.
Ao longo de toda a sua vida, Ralph nunca ?zera o que queria.
Hinde sempre seguiu o seu próprio caminho.
Contudo, ao mesmo tempo, Ralph andava lá fora. Era um dos seus representantes no mundo real. A sua fonte de informação para o grandioso plano.
Inestimável a curto prazo.
Mas a longo prazo – iminentemente substituível.
Foi nesse momento que lhe surgiu. A ideia. Com uma clareza evidente, Hinde viu o uso perfeito para aquele verme. O lugar onde alguém que se dispunha a vergar-se, e a vergar-se cada vez mais, podia ser mais útil na nova paisagem que Edward via à sua frente. Era perfeito. Só precisava de o fazer da maneira certa. A que causasse maior dor a Sebastian.
Começou por atribuir outra tarefa a Ralph.
Não lhe restavam muitas.
Pretendia guardar uma para si próprio.
Por isso, teria de ser Ellinor Bergkvist.
PLANEAMENTO. PACIÊNCIA. DETERMINAÇÃO.
Naquele momento, as três palavras mais importantes para ele. Daquela vez não se podia permitir que algo corresse mal. A faca de cozinha comprida, a camisa de dormir e as meias de nylon já se encontravam muito bem arrumadas dentro do saco preto que aguardava no corredor. A comida e a bebida dentro da sacola pousada ao lado. A câmara digital estava dentro do bolso, tal como o pequeno e a?adíssimo canivete de montanha Leatherman. Vestira um pólo azul e umas calças beges. A mesma roupa que usara para os primeiros quatro homicídios. Bem vestido, mas anónimo. Quando fora eliminar Anna Eriksson, usara um disfarce pela primeira vez. Sentira que precisava dele. O seu tempo de planeamento fora mínimo e precisava de atacar numa determinada altura. Ela não vivia sozinha e podia ter sido avisada. Precisava de ter a certeza de que o deixaria entrar. Daí o disfarce. Desviara-se do ritual. Seguira-se a punição. O homem gordo aparecera.
Ralph fora ao barbeiro da esquina logo que recebeu através da fygorh.se o nome de Ellinor. Não queria cortar o cabelo. Cortava o cabelo exactamente a cada noventa e um dias. Rituais. Só pretendia um penteado diferente, o que já era bastante assustador. Trocara o boné por outro no mesmo estilo mas com uma cor diferente; en?ara-o no bolso detrás e, em vez de os usar, pendurara os óculos de sol no colarinho aberto da sua camisa. Pelo menos, trazia-os consigo. Não estava a quebrar o ritual. Apenas a modi?cá-lo.
Olhou-se no espelho da casa de banho e detestou o seu aspecto. Passou as mãos pelo cabelo bem penteado, ao qual não estava habituado. Pareceu-lhe estranhamente pegajoso e grosso. A cabeleireira dissera-lhe que era um produto qualquer que lhe permitiria alisar o cabelo para trás. Por precaução, convencera-o a comprar dois frascos. Sorriu para o espelho e admirou o seu novo visual. Tentou gostar dele. Disse a si próprio que mais parecia um daqueles fulanos elegantes que paravam nas imediações da Stureplan do que o homem alto e magro a quem ninguém prestava atenção. E que aquilo era uma melhoria. Não era. Mas fazia-se tudo por uma boa causa. Daquela vez nada poderia correr mal. Nada. O homem que idolatrava perdoara-lhe e dera-lhe outra oportunidade. Porque isso era importante para Ralph. O Mestre preocupava-se com os seus sentimentos. Nunca ninguém o ?zera e ele não tencionava trair a sua con?ança. Se isso implicava pequenas alterações naquilo que vestia, e porventura um novo penteado, tratava-se de pequenos sacrifícios quando comparados com a conjuntura geral. O importante era que, a partir daquele momento, tudo corresse bem. Era óbvio que precisava de ser mais cuidadoso.
Não fazia ideia de quanto ou quão pouco os que andavam no seu encalço sabiam mas, quanto mais horas passavam desde que aquele homem morrera no carro, mais seguro se sentia. Se conhecessem a sua identidade, àquela hora já lhe teriam vindo bater à porta. Não haveria qualquer operação de vigilância. Viriam imediatamente à sua procura.
O Mestre eliminara quatro. Ele ia a caminho da quinta. Dentro em breve estaria a fazer história. Essa ideia ajudou-o a recompor-se. A assumir o controlo de si mesmo e dos seus sentimentos. A perceber como era importante que se mantivesse calmo.
Lá fora estava um pouco mais fresco do que durante a última semana, e caminhou rapidamente em direcção à estação do metropolitano, que ?cava a uns dez minutos de distância.
Não gostava de ter de recorrer a outro meio de transporte mas não se atrevia a usar o seu próprio Polo verde. Estacionara o Toyota prateado em Ulvsunda, conforme as instruções, mas na sua curta mensagem o Mestre não dissera nada a respeito de um novo carro. Não sabia como, mas era o único que tinha acesso a carros roubados. Ralph limitava-se a receber instruções sobre onde os devia ir buscar e deixar. Havia outra pessoa que tratava dessas questões; Ralph não tinha interesse em saber quem era. Sabia que o Mestre tinha várias pessoas a trabalharem para si. No entanto, como daquela vez não houve qualquer referência a um novo carro, teria de ir a Vasastan e regressar no metropolitano. Pelo caminho, entrou numa loja de ?ores. Comprou vinte rosas vermelhas e pediu à ?orista que ?zesse um ramalhete romântico, acompanhado de um pequeno cartão. Escreveu uma mensagem simples: «Perdoa-me. Beijos, Sebastian.» Gostou daquilo. Pareceu-lhe bom relacionar Sebastian ainda mais claramente com a mulher que morreria em breve. Ralph decidiu que deixaria o ramalhete com o cartão em cima da mesa da cozinha, de modo a que a polícia o encontrasse. Gostaria de ver as suas expressões quando encontrassem um cadáver no quarto e um ramo de ?ores romântico na cozinha.
Convenceu-se de que fazia tudo de acordo com o ritual. Deixava sempre pistas atrás de si. Aquela era apenas mais uma pista. De um modo diferente. Sabia que o Mestre iria apreciar o gesto.
Ralph pagou as ?ores e saiu de novo para a luz do Sol. Devia parecer um homem apaixonado, pensou. Um fulano simpático que comprara um ramo de rosas vermelhas para a mulher que acabara de conhecer. Removeu o autocolante que estava preso num dos caules: Florista Västertorp.
Pistas, sim.
Mas só as que ele optava por deixar.
Isso é que era planeamento.
ELLINOR BERGKVIST PASSARA o dia a fazer várias coisas diferentes. Telefonara para o emprego e arranjara maneira de gozar a folga que lhe era devida. Regara todas as plantas do seu apartamento e pedira à viúva Lindell, do terceiro andar, que lhes deitasse uma olhadela enquanto estivesse fora. Frau Lindell convencera-a a ?car para beber um café e comer bolos, e sentaram-se a conversar durante quase uma hora. Fora muito agradável mas, ao ?m de um certo tempo, Ellinor pensou que ainda tinha muitos assuntos para resolver em casa.
Não se podia largar tudo de repente por um homem, por mais maravilhoso que ele fosse. Havia que ter a certeza de que a casa ?cava em ordem. Principalmente se uma vizinha lá fosse enquanto estava fora.
Por isso, fez mais uma limpeza meticulosa ao apartamento. Aspirou, espanou, limpou as superfícies. Lavou as janelas. Mudou os lençóis e compôs as almofadas do sofá. Esvaziou o frigorí?co e decidiu levar todas as plantas para a varanda, a ?m de evitar que frau Lindell fosse a qualquer outro sítio.
Quando terminou, sentou-se no sofá com um pequeno copo do seu conhaque favorito. Tinha aquela garrafa há vários anos e só bebia um cálice em ocasiões especiais. Viera de um pequeno produtor, era caro mas bom. Fazia-a sentir-se especial e requintada num mundo de recompensas modestas. Um mundo que não sabia obter prazer como ela.
Viver como ela.
Amar como ela.
Os dias haviam sido intensos desde que Sebastian Bergman entrara de rompante na sua vida. Ela necessitava de algum tempo para si própria e os seus pensamentos antes de seguir caminho. Bebeu devagar e deixou-se ?car ali sentada.
Um pouco de tempo para si própria. Naquele momento.
Antes que a sua vida prosseguisse.
Ralph saiu do metropolitano em Odenplan. Não sabia ao certo se realmente aquela era a estação mais próxima da Västmannagatan porque não viajava na linha verde com muita frequência, mas no mapa fora isso que lhe parecera. Não saíram muitos passageiros para a plataforma e ele emergiu rapidamente das profundezas. Atravessou a estrada principal e rumou a oeste. A Västmannagatan devia ?car a poucos quarteirões de distância. Nunca tinha ido lá a pé. Enquanto caminhava, pensava em como devia proceder. Pegou no seu telemóvel e ligou para o número de Ellinor. Ela atendeu ao terceiro toque.
– Ellinor Bergkvist.
Ralph desligou imediatamente. Estava em casa. Sabia que ela morava sozinha no apartamento e conseguira apoderar-se do código de entrada da porta principal do edifício um dia após a primeira visita de Sebastian, quando ajudara uma senhora idosa a entrar, portanto, pelo menos o primeiro obstáculo estava ultrapassado. Contudo, a seguir iria ter de improvisar. Tal como no caso de Anna Eriksson o planeamento era inadequado, o que o incomodava. Porém, a alternativa era mantê-la sob vigilância durante semanas ou, pelo menos, vários dias, e ele sabia que já não havia tempo para o fazer. Tinham passado a outra fase. Tudo deveria acontecer mais depressa. Tanto as decisões como as acções. Ele precisava de conseguir aguentar. Iria aguentar. Agora tinha experiência. Estava prestes a fazer história. Era o homem inofensivo que fazia as entregas da ?orista e trazia um presente. Que mulher não lhe abriria a porta?
«Perdoa-me. Beijos, Sebastian.»
Sorriu ao pensar no seu plano.
Chegou à porta da frente e ao seu destino ?nal, mas continuou a andar sem parar. Subiu até ao pequeno parque e sentou-se durante algum tempo num dos bancos verde-escuros. Olhou em redor. Tanto quanto conseguia ver, ninguém na vizinhança. Ninguém lhe prestava qualquer atenção ou à porta do prédio. Um camião do lixo passou vagarosamente mas desapareceu ao dobrar a esquina. Ralph levantou-se, segurando o ramo de modo a que este lhe cobrisse a maior parte do rosto.
Voltou para trás lentamente. Não muito depressa. Não devia mostrar-se nervoso. Não podia dar nas vistas.
Não devia ser mais do que um ramo de rosas.
Um presente de amor que ia a caminho de uma mulher.
O código era 1439. Con?rmou-o por duas vezes no seu telemóvel, onde o apontara por precaução.
1439. Correcto.
A porta abriu-se sozinha. Possuía um mecanismo automático para facilitar a vida aos idosos e às pessoas que empurravam carrinhos de bebé. Ele não gostou disso. Tornara a sua entrada demasiado grandiosa, demasiado teatral, como se estivesse a entrar num palco. Avançou rapidamente para o grande átrio da entrada e deixou-se ?car ali durante algum tempo, ?ngindo procurar um nome na lista de residentes, embora soubesse exactamente onde ela morava. No quarto piso. Três vizinhos. A porta automática fechou-se atrás dele e o silêncio no interior do edifício aliviou-o quando o som do trânsito esmoreceu. Naquele local, no meio do bonito átrio branco com estátuas ornamentadas de inspiração grega em estilo neoclássico, sentiu-se invisível. As rosas adequavam -se.
Vermelhas e brancas.
As cores do amor e da inocência.
Era poético que a morte chegasse daquela maneira.
Decidiu subir no elevador. Logo que chegasse ao quarto andar deixaria a porta de dentro aberta para que o elevador não pudesse mover-se, e quem precisasse de entrar ou sair do prédio teria de usar as escadas. Isso permitir-lhe-ia ouvir se alguém vinha a subir ou a descer e dar-lhe-ia tempo para agir. A?nal, tudo poderia vir a decidir-se em segundos.
Como o elevador não estava no átrio, premiu o botão preto e gasto situado por cima da palavra CHAMAR. A maquinaria ganhou vida com um surdo ruído mecânico. Espreitou o alto do poço através do portão preto e viu que o elevador estava no quarto ou quinto piso. Começou a descer com uma lentidão irritante.
O momento crítico seria entre a altura em que ela lhe abrisse a porta e quando ele já estivesse dentro do apartamento, com a porta fechada e a mulher sob controlo. Tinha de o fazer em poucos segundos e o mais silenciosamente possível. A acústica das escadas ampli?caria todos os sons. Sacou do canivete Leatherman. Abriu-o e escondeu-o na mão direita, por trás das rosas.
Ellinor caminhou pelo apartamento uma última vez. Decidiu deixar a porta da varanda um pouco aberta para a casa não cheirar a abafado quando frau Lindell lá fosse. Se Ellinor a conhecia tão bem quanto julgava, iria lá nessa mesma noite. Correu o ferrolho de maneira a que a porta da varanda continuasse trancada, mas com uma pequena fresta. A seguir, sentiu-se contente. O apartamento estava em perfeita ordem.
Abriu a porta da frente e saiu, com as chaves na mão. Trancou a porta atrás de si. Viu o elevador passar pelo seu piso e continuar a descer. Típico. Se tivesse saído um minuto antes, podia tê-lo apanhado. Agora teria de esperar. Puxou para junto do elevador a sua pequena mala com rodas, que adquirira com desconto para funcionários. Gostava da mala. Era, ao mesmo tempo, prática e moderna. O elevador prosseguiu a sua lenta descida. Na última reunião de moradores discutira-se a sua renovação, mas o assunto fora adiado. Aquele estilo aberto, à moda antiga, era encantador, com a porta de grades e a madeira escura, mas de um ponto de vista prático deixava muito a desejar. Ellinor e outros vizinhos sugeriram um modelo que fosse mais rápido, mais moderno. Um daqueles em que bastava premir o botão e aguardar. Com aquele era preciso esperar que parasse antes de o premir.
Ralph contraiu-se quando ouviu uma porta a abrir-se mais acima. Não percebeu ao certo de que piso veio o som. Podia descartar desde logo o primeiro andar, foi mais acima, mas devido à acústica era impossível ser-se mais preciso. Escutou com atenção, mas só conseguia ouvir o zumbido do elevador. Esperou por um som de passos nas escadas, mas não o ouviu. Portanto, a pessoa em questão provavelmente estava à espera do elevador. Tal como ele. Tinha de manter a calma. Ergueu um pouco o ramo, para se tornar apenas um corpo cujo rosto estava oculto pelas rosas, e apertou a faca na mão. Por ?m, o elevador chegou; deteve-se com um pequeno e surdo baque, seguido de um sonoro estalido metálico do mecanismo de bloqueio. Ele abriu a porta o mais silenciosamente possível mas, na verdade, não sabia o que fazer. Existiam duas opções: abortar ou subir.
Optou pela última. Sempre poderia abortar numa fase posterior. Primeiro que tudo, obrigaria a pessoa que estava lá em cima a agir. Manteria a porta aberta para que o elevador não saísse dali. O edifício estava em silêncio. Até se conseguiria ouvir um al?nete a cair.
Decorreu cerca de um minuto. Ralph teve tempo para pensar muitas vezes nas suas alternativas. Demasiadas vezes. A?nal, talvez fosse melhor abortar a missão. Regressar dali a algum tempo, começar tudo de novo. Estava prestes a soltar a porta do elevador e a ir-se embora quando ouviu a pessoa lá em cima começar a descer. Os passos eram rápidos e pareciam aproximar-se depressa. A decisão foi instantânea. Não havia como voltar atrás. Entrou no elevador.
Ellinor estava irritada. Aquilo era mesmo típico. Na verdade, não tinha nada contra o uso das escadas – fazer exercício era bom –, mas o problema era a mala. A mala era um pouco pesada para carregar durante todo o caminho. E depois havia aquele artigo que lera, no qual se a?rmava claramente que descer as escadas não era bom para a saúde. Aparentemente, fazia mal aos joelhos. Andar a pé era bené?co, mas deviam evitar-se as descidas. Só que naquele momento não tinha escolha. Já não podia esperar mais. Para sua irritação, o elevador começou a mover-se quando ia a meio do caminho para o terceiro andar. Por instantes, pensou em voltar para trás e subir. Por outro lado, era melhor continuar a descer; podia apanhar o elevador no piso de baixo se parasse lá. Desceu os últimos degraus e pôs-se junto à porta do elevador. Com um pouco de sorte poderia ser Robert Andersson, do terceiro andar. Normalmente chegava a casa por volta daquela hora. Por ?m, o elevador assomou e ela afastou-se para deixar sair Robert. No entanto, não era Robert mas um homem mais alto. Ela viu umas calças beges, um pólo azul e um grande ramo de rosas que lhe cobria o rosto. E o elevador não parou, continuou a subir. Ellinor sorriu para si mesma. Alguém lá em cima iria receber um bonito ramalhete. O amor deu-lhe energias renovadas e decidiu continuar a descer as escadas. Não podia ?car ali parada o dia inteiro, à espera do elevador.
Outra vez não. Outra vez não. Outra vez não.
Instintivamente, pensou em premir o botão de paragem de emergência. Contudo, quando estava prestes a passar do pensamento à acção, encontrava-se meio metro acima do terceiro andar e acabaria por ?car preso naquele local, entre dois pisos. Através das portas do elevador viu Ellinor a descer as escadas. A afastar-se dele. Fizera demasiadas alterações ao ritual. Ela estava a escapar-lhe. De repente, o potente e doce perfume das rosas deu-lhe voltas ao estômago. Quando chegou ao quarto andar, abriu a porta e começou a correr. Não quis saber das cautelas. Daquela vez não podia falhar. Se para isso tivesse de correr grandes riscos, então que assim fosse. Como iria lidar com o ritual era um problema que resolveria mais tarde. Primeiro tinha de se apoderar dela. De repente, percebeu que não conseguia ouvir o som dos seus passos devido ao ruído que os seus próprios pés faziam. Parou por momentos e não tardou a vê-la. Ela não podia estar longe. Um andar mais abaixo. Começou de novo a descer.
O segundo andar ?cou para trás. No lanço seguinte, tentou galgar dois degraus de cada vez mas teve problemas com o equilíbrio. Era difícil com o saco de desporto, a sacola de plástico e as ?ores. Quase escorregou, usou o corrimão para se amparar e recuperou o domínio. Quando chegou ao primeiro piso deitou fora as rosas e continuou a correr. Finalmente, chegou ao elegante átrio da entrada onde momentos antes começara.
Encontrava -se vazio.
A porta estava aberta, por isso ela devia ter acabado de sair. Escondeu a faca na palma da mão e correu para o exterior. Ela devia estar perto. Muito perto.
Lá estava ela. Caminhava em direcção a Norra Bantorget. A uns oito, dez metros de distância. Sozinha no passeio, mas havia sempre carros a passar. Um pouco mais à frente, avistou duas mães a empurrarem carrinhos de bebé. Era-lhe impossível fazer o que quer que fosse. Teria de se limitar a continuar a segui-la. Tentar encontrar uma oportunidade melhor, assegurar-se de que não a perdia de vista.
Recuperou o fôlego e percebeu que estava a suar imenso. Abrandou o passo e fechou cuidadosamente a faca. Guardou-a no bolso. Deixou que ela ganhasse alguma distância.
Paciência. Determinação.
Era do que precisava naquele momento.
Conseguia vê-la. E não iria deixá-la fugir.
Ela pertencia -lhe.
Ellinor tentava apanhar um táxi. Normalmente havia sempre um ou dois parados à porta do hotel em Norra Bantorget, por isso encaminhou-se nessa direção. Não costumava viajar de táxi com muita frequência. Gostava de andar a pé, sobretudo quando o tempo estava bom. Se aquele fosse um dia normal, teria feito todo o caminho a pé. Mas era um dia especial; tinha um destino onde queria chegar o mais rapidamente possível.
Um táxi aproximava-se na sua direcção; parecia estar livre e ergueu de imediato o braço para o chamar. Ficou encantada quando o táxi travou e parou mesmo à sua frente. Pegou na mala e entrou. A curta distância avistou um homem alto a olhar para ela; foi para o meio da estrada após terem passado por ele. Parecia que também andava à procura de um táxi, pensou enquanto olhava para trás e reparava que ele tentava mandar parar um que seguia na direcção oposta; o carro não parou. Ela sorriu. Tivera muita sorte por apanhar aquele.
De?nitivamente, era o seu dia de sorte.
Pediu ao condutor que a levasse a Östermalm.
Para amar.
SEBASTIAN BERGMAN TELEFONARA para Trolle durante todo o dia. A sua inquietação aumentara a cada chamada não atendida. Não tardariam a passar mais de dezasseis horas desde que se separaram à porta do bloco de apartamentos de Anna Eriksson. Nunca estiveram tão próximos como naquele momento, e o entusiasmo de Sebastian aumentava ainda mais a sua ansiedade. Sobretudo porque Anna estava a salvo. No mínimo, Trolle devia tê-lo informado desse facto. Fora esse o principal motivo para a presença do seu antigo colega à porta do apartamento dela.
Para a proteger.
Para proteger Vanja.
Para proteger o segredo.
Porém, além de continuar a ligar para o número de Trolle, Sebastian não sabia que mais poderia fazer.
Para desanuviar o espírito concentrou-se na sua próxima reunião com Hinde. Exceptuando isso, não tinha qualquer utilidade enquanto membro da equipa. Vanja tinha toda a razão. Decidiu ir procurar Torkel. Precisava de marcar o encontro com Hinde o mais depressa possível. Edward Hinde era a chave. A antiga repugnância de Sebastian desaparecera e desejava muito confrontar-se com Hinde a sós, sem ter de se preocupar com Vanja. Iria vencer o próximo encontro. Iria desferir-lhe um golpe fatal.
Torkel não estava no gabinete. De acordo com a sua secretária, encontrava-se numa reunião com a direcção no piso de cima. Sebastian subiu um lanço de escada batendo com os pés, e abeirou-se da janela da grande sala de reuniões que usavam. Torkel estava sentado com outras pessoas. Eram, obviamente, as altas patentes. Alguns até ostentavam aqueles estúpidos uniformes brancos com dragonas douradas. Sebastian detestava agentes da polícia com dragonas douradas. Mantinham-se tão afastados quanto possível do autêntico trabalho policial. Nunca se aproximavam de algum local do crime; só apareciam na televisão ou numa ou outra sala de conferências com uma garrafa de água mineral à sua frente. Tal como naquele momento. Sebastian sentou-se no chão, junto à janela. Torkel não o vira. Ou, pelo menos, não dera mostras de o ter visto. A frustração de Sebastian aumentou e, ao ?m de quinze minutos ali sentado, não se conseguiu conter por mais tempo. Levantou-se e abriu a porta da sala de conferências.
– B’tarde. Vocês estão aí sentados a tentar resolver o assassinato do Olof Palme?[17]
A sala ?cou em silêncio e todos olharam para ele. Havia um ou outro rosto conhecido de antigamente, mas Sebastian não reconheceu a maioria. No entanto, a única pessoa que conhecia bem levantou -se.
– Sebastian, a porta estava fechada por uma razão – disse Torkel, contendo a raiva na sua voz. – Nós estamos em reunião.
– Estou a ver. Mas preciso de ir falar com o Hinde. Hoje. Não podemos esperar mais.
– A autorização de visita ainda não chegou. Estou a fazer o possível para a apressar.
– Faz mais do que o possível. Resolve o assunto.
– Não vamos falar sobre isso agora, Sebastian. – Torkel olhou à sua volta, em jeito de desculpa, e virou-se novamente para Sebastian. – Gostaria que saísses, por favor.
– Se eu tiver a autorização de visita desapareço imediatamente. Prometo.
Sebastian olhou para o grupo de pessoas sentadas à mesa. A maioria enfrentou o seu olhar com uma mistura de surpresa e de desprezo. Percebeu que fora completamente despropositado, mas já não conseguia alinhar com aquelas estúpidas regras deles. Havia vidas em risco. Não apenas a sua.
– Tenho a certeza de que os teus amigos bem vestidos querem resolver este caso antes que ele corte a garganta a uma quinta vítima. Eu sou a chave.
Viu os olhos de Torkel relampejarem. Tornou-se óbvio que fora longe de mais. Uma mulher sentada à direita de Torkel pôs-se em pé, lenta e deliberadamente. Sebastian reconheceu-a como a chefe nacional da polícia.
– Creio que não nos conhecemos – disse num tom de voz capaz de provocar queimaduras devido à frieza. Era um modo civilizado de lhe perguntar: «Quem diabo é você?»
– Não, de facto não – respondeu Sebastian, exibindo o seu sorriso mais triunfante. – Mas se conseguir ajudar-me a obter a tal autorização de visita, poderá ter essa oportunidade.
Torkel avançou até Sebastian e agarrou-o pelo braço.
– Desculpem-me. Eu volto já.
Arrastou Sebastian para fora e fechou a porta atrás de si.
– O que estás a fazer, foda-se? Perdeste o juízo? Queres que te expulse?
– Porque é que está a demorar tanto tempo? O Haraldsson está a fazer-se difícil?
– Não faço ideia! Isso não interessa nada! Nós só temos de esperar. Como não és agente da polícia, demora algum tempo. Se não gostas, podes ir-te já embora daqui.
– Oh, pois claro. Podes ameaçar-me tanto quanto quiseres. Sou a única pessoa capaz de pôr ?m aos homicídios. E tu sabes disso.
– Não há dúvida de que os teus conhecimentos e as tuas inestimáveis ideias foram uma grande ajuda até agora.
– Na realidade, o sarcasmo não é a tua especialidade.
Houve um curto silêncio. Torkel tinha a respiração pesada.
– Está bem, vou dizer-te isto de outro modo. Vai para casa. Tu sais-me muito caro.
– Eu trabalho de graça.
– Não me referia ao dinheiro.
Sebastian enfrentou o olhar de Torkel e engoliu o comentário que tinha na ponta da língua.
– Assim que a autorização de visita chegar eu informo-te. – Torkel abriu a porta e retomou a reunião. Sebastian ouviu-o pedir desculpas antes de a porta se fechar e a voz de Torkel se transformar num murmúrio indistinto.
Por instantes, Sebastian teve vontade de entrar de novo na sala. E de ser ainda mais ridículo.
Mas essa atitude teria sido excessiva. Muito excessiva.
Ele já causara estragos su?cientes.
Por uma vez, fez o que Torkel lhe disse e foi para casa.
Demorou algum tempo. Primeiro teve de veri?car se alguém o seguia. Sobretudo um Toyota prateado, mas olhava com um certo grau de suspeição para todos os carros que passavam ou estavam estacionados junto ao passeio. Espreitava para dentro de todos. O assassino trocara de automóvel uma vez e podia fazê-lo de novo. Foi para casa aos ziguezagues, andou às voltas e demorou muito tempo. Só quando ?cou absolutamente convencido de que ninguém o seguia é que entrou pela porta principal do seu prédio de apartamentos em Grev Magnigatan. Subiu as escadas, entrou e foi para o quarto, sentar-se na cama.
A ansiedade por andar a ser seguido. Os segredos. As desonestidades. Trolle. As mulheres. Vanja. Tudo exercia um certo efeito nele, fazendo-o agir de um modo irracional, e se continuasse a fazê-lo corria o risco de não ser autorizado a encontrar-se com Hinde. Tinha consciência de que uma organização como o serviço policial só estava preparada para aceitar os con?itos sem consequências até um certo nível.
Deitou-se na cama. Fechou os olhos e tentou alhear-se. O apartamento estava silencioso e calmo. Era bom estar ali deitado. Tentou respirar com calma e meditar, como Lily lhe ensinara uma vez.
Respirações profundas. Regulares. Lentas. Encontrar a tranquilidade.
Ele amava muito Lily. A memória dela vinha sempre atrás da imagem de Sabine, com uns contornos mais suaves e mais ténues, mas estava sempre lá como uma sombra. Sabia a que se devia a sua presença em segundo lugar. Era porque ele estava envergonhado. Largara a sua ?lha. Perdera-a para o mar.
De súbito, os sentimentos de perda dominaram-no e as respirações regulares foram substituídas de imediato pela respiração irregular da a?ição. Sentia-se perseguido. Por si próprio e pelas suas memórias. Jamais se conseguiria livrar destas.
Quando se sentou, viu as alças de plástico da sacola de Trolle a saírem debaixo da cama. A prova de quem ele realmente era também se encontrava ali. Meio escondidos debaixo da cama estavam aqueles documentos, encomendados e pagos por ele, que poderiam manchar os pais de Vanja. Na realidade, que mal lhe ?zeram? Nenhum. Anna apenas tentara proteger a ?lha de um homem que era capaz de tudo. Valdemar não sabia de nada, dissera-lhe Anna. O que era, sem dúvida, verdade. No entanto, embora estivessem ambos inocentes, queria magoá-los, castigá-los. Nem sequer eram eles os seus verdadeiros adversários. Esse papel cabia-lhe a ele, e só a ele.
O seu pior inimigo era ele próprio.
Lentamente, pegou no saco que estava no chão. Devia queimá-lo. Destruí-lo. Não tinha qualquer direito sobre as vidas deles. Mal tinha direito à sua própria vida. Se ao menos soubesse onde podia encontrar alguns fósforos. Talvez na cozinha. Foi até lá e começou pelas gavetas. Talheres na de cima. Vários utensílios de cozinha na segunda. Nada de fósforos. Na terceira, pegas para tachos e individuais que nunca usava. De repente, a campainha tocou. Olhou para o corredor com surpresa. Não conseguia lembrar-se da última vez em que isso acontecera. Provavelmente era alguém que queria vender-lhe algo. Ou as Testemunhas de Jeová. A campainha tocou novamente. Decidiu ignorá-la; estava ocupado e não queria dar-se ao trabalho de se livrar deles. Porém, depois ouviu a voz do lado de fora.
– Sebastian. Abre a porta. Eu sei que estás aí.
Era ela. Ellinor Bergkvist. Aquilo não podia estar a acontecer. Que estava ela a fazer ali?
– Vá lá, Sebastian, abre esta porta!
Ela tocou de novo à campainha. Daquela vez durante mais tempo. Era persistente. Sabia que ele estava ali dentro? Com Ellinor isso não parecia impossível. Mais uma campainhada.
– Sebastian!
Com uma imprecação, Sebastian saiu da cozinha, atirou o saco de plástico para baixo da cama quando passou pelo quarto de hóspedes, avançou até ao vestíbulo e abriu a porta. Tentou mostrar-se o mais irritado possível. Não era difícil. Não com Ellinor Bergkvist no patamar. Trazia uma mala de viagem preta e sorria para ele com alegria e expectativa.
– Aqui estou eu – foi a primeira coisa que disse. Tão inequívoca quanto o seu sorriso.
A resposta dele foi igualmente inequívoca.
– Mas que raio estás aqui a fazer?
– Acho que sabes. – Ergueu a mão como se quisesse tocar-lhe, porventura acariciar-lhe a face. Instintivamente, Sebastian deu um passo para trás. Ellinor continuou a sorrir para ele. – Podes levar a minha mala?
Sebastian abanou a cabeça.
– Eu pedi-te que saísses da cidade durante algum tempo. Até que o assassino fosse capturado. – Fitou-a com uma expressão séria. – Não compreendes? Corres perigo.
A reacção dela foi pegar na mala e empurrá-lo para poder entrar no vestíbulo. Ele deixou-a passar. Ou, para ser mais preciso, não teve tempo de a impedir. Ellinor tinha talento para o apanhar de surpresa. Ela pousou a mala.
– Estou mesmo em perigo? – Deu um passo em frente e fechou a porta atrás de si. Virou-se de frente para ele. Chegou-se muito perto. Com aqueles olhos verdes aos quais ele achava ser muito difícil resistir. – Ou és tu que me queres aqui?
Estendeu de novo a mão para lhe tocar. Daquela vez ele deixou-a. Na verdade, nem sabia porquê. Havia algo em Ellinor que não conseguia de?nir. Sentiu-lhe o hálito. Doce e fresco, como se tivesse acabado de chupar um caramelo. Sempre pronta.
– Tal como eu te quero? – prosseguiu ela enquanto lhe acariciava a face, o pescoço, lhe en?ava a mão dentro da camisa. Ele sentiu-se irritado e excitado ao mesmo tempo. Conhecera muitas mulheres, mas nunca ninguém como ela. Não se limitava a ouvi-lo. Fosse o que fosse que ele lhe dissesse, ela transformava-o em algo mais. Em algo de positivo. Para si própria. Era o epicentro de um universo que só a ela pertencia.
Ele tentou de novo.
– O que eu te disse era verdade. Não inventei.
– Eu acredito em ti – disse Ellinor, num tom provocador que sugeria exactamente o contrário. – Mas já agora mais vale ?car aqui contigo do que sozinha no quarto de um hotel qualquer. – Pegou na mão dele e colocou-a sobre o seu seio. – Assim é muito mais agradável e aconchegante.
Sebastian tentou pôr os pensamentos em ordem. Ellinor dava sinais evidentes de ter tendência para o assédio. A mão dada naquela primeira noite, as ?ores e o telefonema no dia do seu nome, a maneira como interpretara o seu aviso. Podia não estar doente no sentido clínico do termo mas, de?nitivamente, a sua ligação com Sebastian não era saudável. Tinha de a pôr dali para fora.
– Nós só ?zemos amor em minha casa – sussurrou-lhe Ellinor ao ouvido.
– Não ?zemos amor em lugar algum. Fodemos.
– Não comeces a estragar tudo com palavras feias. – Mordeu-lhe suavemente o lóbulo da orelha. Cheirava a sabonete. A pele dela era macia e quente, e ele deixou que a sua mão deslizasse para cima, sobre o seio dela, lhe contornasse a parte detrás do pescoço, a garganta. Tinha de explicar-lhe que, na realidade, não inventara tudo aquilo como um esquema maluco para que ela se mudasse para sua casa. Dizer-lhe que precisava de o ouvir. De compreender que ele estava a falar a sério.
Mas se era o que queria, porque estava ele ali de pé e continuava a comportar-se daquela maneira no corredor? Porque a puxava mais para si e a levava para o seu quarto? A culpa era daqueles olhos verdes.
A culpa era de ambos.
Porque havia algo nela.
Superava sempre a resistência dele.
Ficou deitado na cama após ela ter inspeccionado o apartamento. Na verdade, há muito tempo que não se sentia tão descontraído. Desde Lily, nunca mais estivera na cama com alguém no apartamento. Jogara sempre no campo do adversário. Surpreendentemente, não sentia qualquer culpa. A habitual angústia pós-coito primou pela ausência. Com relutância, percebeu que estava ali deitado a ouvir Ellinor enquanto deambulava pela casa. Parecia feliz. Ele sorriu enquanto ouvia as suas alegres exclamações acerca do número de assoalhadas e respectivas possibilidades.
– Mas que grande sala! Isto daria uma sala de jantar maravilhosa!
Pelo menos não o ?zeram na cama que partilhara com Lily, pensou. E aquele sítio nunca fora o verdadeiro lar deles. Passaram muito tempo ali mas, depois de se casarem, mudaram-se para Colónia.
– Tu até tens uma biblioteca!
Com efeito, havia algo de especial naquela mulher que explorava as divisões que actualmente nunca utilizava. Era fascinante de uma maneira que ele não conseguia verdadeiramente de?nir. Por mais ?rmeza com que a afastasse, ela continuava a regressar. Como uma bola saltitante que absorvesse a energia do seu impulso. Não era o que tinha em mente quando fora à palestra sobre Jussi Björling e a conhecera. Por outro lado, muito do que aconteceu desde então foi, no mínimo, inesperado. Coisas nas quais, na verdade, conseguiu não pensar durante algum tempo. Independentemente do que se pudesse dizer acerca de Ellinor, um facto era inegável: afastava o espírito dele de tudo o resto.
Ao ?m de alguns minutos, ela regressou. Tinha vestido a camisa dele sem a abotoar. O seu cabelo ruivo reluzia e parecia uma mulher num ?lme francês. Feminina e irresistível. Até parecia que tinha visto o mesmo ?lme. En?ou-se na cama, dobrou as pernas por baixo dele e ?tou-o.
– Esta casa é enorme.
– Eu sei.
– Porque não a usas toda?
– É para ti.
Os olhos dela brilharam, como os de uma criança na véspera de Natal.
– A sério?
– Não, mas diga eu o que disser, em qualquer caso é isso que irás ouvir.
Ela deu-lhe uma cotovelada na brincadeira, ignorando, como de costume, os seus comentários maldosos. Nunca pareciam ter qualquer efeito nela.
– Vamos pôr esta casa em ordem, prometo-te.
– Nós não vamos pôr nada em ordem. Podes ?car aqui por alguns dias mas depois tens de te ir embora.
– Claro. Fazemos isso devagar. Se não me quiseres aqui, vou-me já embora. – Encavalitou-se nele e beijou-o na boca.
Ela deve ter visto o mesmo ?lme.
– Pronto, está bem. Não quero que mores aqui.
Ela sorriu perante a tentativa dele. Nem estava a ouvi-lo.
– Mas porque não? Tu estás preocupado comigo, já mo disseste. Se ?car cá, podes estar sempre de olho em mim. E tu precisas de mim.
– Eu não preciso de ninguém.
– Não mintas, querido. Tu precisas de alguém. É tão óbvio que até um cego o vê.
Ele ?cou sem saber o que dizer. Ela tinha razão. De facto, precisava de alguém mas não dela. Certamente não dela. Ela não esperou pela resposta; foi para a cozinha preparar café para ambos. Ele ?cou deitado na cama, a ouvi-la. Ela assobiava enquanto procurava o café.
Nunca ninguém ?zera aquilo antes.
Mas isso não era o pior.
O pior era que, no fundo, ele gostava.
– O EDWARD HINDE quer falar consigo.
Annika en?ou a cabeça pela porta de Haraldsson. Ele levantou os olhos do ?cheiro que estava a ler, sentado numa das duas poltronas da sala. «Lövhaga 2014, Visões e Objectivos», lia-se na capa. Haraldsson apenas ia na página dois daquele documento de trinta páginas e, em cima da mesa, à sua frente, estava um bloco de notas no qual apontava as frases que não entendia e as áreas em que precisava de adquirir mais conhecimentos e informação de fundo. Até ao momento já preenchera quase meia página. Vinte e cinco por cento do texto era praticamente incompreensível. Por isso, ?cou muito satisfeito por ter a oportunidade de pôr tudo aquilo de lado e dedicar a sua atenção a assuntos mais importantes.
– Ah, quer?
– Sim, um dos guardas telefonou. O mais depressa possível.
– Eu vou já para lá.
Haraldsson quase pulou da poltrona e saiu do gabinete. Até que en?m. Já por diversas vezes quisera ir à ala de segurança. Aparecer por lá. No entanto, era arriscado. Não devia mostrar-se demasiado ansioso, mas também não queria perder o contacto. Perder a proximidade que existia entre ambos. Mas agora Hinde dera o primeiro passo. Tomara a iniciativa. Isso era um bom sinal. Haraldsson acalentara a esperança de que poderiam encontrar-se em breve. Já não conseguia atrasar por mais tempo a autorização de visita à Riksmord. Não os podia impedir de fazerem uma entrevista. Mas Haraldsson queria ter a oportunidade de chegar lá primeiro. Para resolver o caso. Imagine-se que Hinde lhe dava algo de crucial. Imagine-se que, no dia seguinte, não só comemorava o seu aniversário de casamento como também lia no jornal matutino que aquele assassino em série, que andara a aterrorizar Estocolmo, fora capturado. Talvez viesse lá escrito que, segundo fontes não identi?cadas, as peças fulcrais do quebra-cabeças tinham sido fornecidas pelo pessoal de Lövhaga. Na melhor das hipóteses, iriam mencionar o seu nome. Na véspera o Expressen estabelecera a ligação entre Edward Hinde e os recentes homicídios. Não sugeriu que Hinde estava envolvido, mas era óbvio que alguém divulgara o facto de existirem semelhanças no modus operandi. Nesse dia insistiam na perspectiva da imitação, lera Haraldsson na Internet. As vítimas dos anos noventa eram de novo notícia de primeira página. Também havia um destaque acerca de Hinde, uma rápida recapitulação de tudo o que acontecera naquela época.
O assassino fora capturado e a pessoa responsável pela resolução do caso trabalhava em Lövhaga, onde Hinde estava encarcerado.
Iria de ser uma coisa importantíssima.
Ainda estava a sorrir quando entrou na cela de Edward Hinde.
– Você parece contente. – Como de costume, Edward estava sentado na cama, de costas contra a parede, com os joelhos encolhidos. – Aconteceu alguma coisa boa?
A cadeira da escrivaninha tinha sido puxada para fora e estava virada de frente para a cama. Haraldsson sentou-se. Na verdade, não podia começar a falar-lhe das suas esperanças acerca daquele encontro entre ambos e, ao mesmo tempo, queria manter Hinde de bom humor; ele parecia gostar da conversa ?ada que mantinham. E Haraldsson tinha vários motivos para se sentir contente.
– Amanhã é o aniversário do nosso casamento. Meu e de Jenny.
Isso fez-lhe lembrar que... Haraldsson olhou rapidamente em redor, para ver se encontrava algures a fotogra?a da sua esposa. Não parecia estar à vista. Ainda bem. E se algum dos funcionários visse uma fotogra?a da esposa do director a?xada na parede da cela de Hinde?
– Que bonito – disse Hinde. – Quantos anos?
– Cinco.
– Madeira.
– É curioso você saber isso! Nem toda a gente o sabe. – Haraldsson ?cara genuinamente impressionado. Pesquisara o tema no Google há vários meses.
– Você iria ?car surpreendido com a quantidade de coisas que eu sei – disse-lhe Edward, percebendo que se mostrara mais presunçoso do que pretendia.
– Você devia ir a um daqueles concursos de perguntas na televisão.
– Pois... mas creio que isso não vai acontecer.
– Não.
Hinde olhou para ele, divertido, quando Haraldsson se calou. Um plano para o futuro começara a ganhar forma. Para que fosse absolutamente infalível, precisava de vários artigos. Thomas Haraldsson podia fornecer-lhe a maior parte. Os seus duzentos e quarenta minutos no computador naquela noite fornecer-lhe-iam o resto. Edward já sabia que no dia seguinte era o aniversário de casamento de Haraldsson. Tal como sabia, desde há muito, que o novo director fora agente da polícia. Quando tomou conhecimento que Lövhaga iria mudar de liderança, fez uma pesquisa minuciosa. Se Haraldsson não tivesse falado do aniversário de casamento por sua própria iniciativa, Hinde teria tentado conduzir a conversa nessa direcção. Agora já não precisava de o fazer.
– Então, como vai comemorar? – perguntou com um sincero interesse na sua voz. – O seu aniversário de casamento – apressou-se a esclarecer.
– Pequeno-almoço na cama para começar o dia, a seguir já falei com a chefe dela no emprego e arranjei maneira de a dispensarem por algumas horas. Irão buscá-la de carro antes do almoço e passará a tarde numas termas de luxo.
– Onde trabalha ela?
– É uma empresa chamada BDO; são contabilistas. Depois teremos um jantar especial à noite.
– Portanto, vai ser um dia cheio de prazeres especiais.
– E ela também vai receber uma macieira. Uma Ingrid Marie. Para o nosso jardim.
– Você é muito atencioso.
– Ela merece.
– Estou certo de que sim.
Os dois homens calaram-se de novo, mas o silêncio não foi de modo algum embaraçante ou constrangedor. De repente, Haraldsson percebeu que quase se sentia feliz por estar ali sentado. Surpreendia-o como era agradável conversar com Hinde. Ele ouvia-o. Ouvia-o realmente. Além de Jenny, Haraldsson não se lembrava de ninguém que conhecesse e se mostrasse tão genuinamente interessado e tão... encorajador. Contudo, embora tivesse conseguido estabelecer uma ligação autêntica com Hinde, não podia esquecer-se do objectivo da sua visita.
– Como estou certo de que compreenderá, tenho algumas perguntas às quais gostaria que me respondesse. – Esperava não ter sido demasiado directo. Demasiado insistente. Não queria dar a entender a Hinde de que apenas se encontravam para que Haraldsson o pudesse usar.
Tornou-se evidente que isso não constituía um problema; Hinde tirou as pernas de cima da cama e inclinou-se para a frente.
– Excelente, porque há algumas coisas que eu gostava de ter. – Edward esboçou um sorriso desarmante e abriu as mãos. – É uma situação em que toda a gente ganha.
– Sim – disse Haraldsson enquanto lhe retribuía o sorriso, convencido de que era ele quem mais tinha a ganhar. E Hinde concordaria com isso. Porque também era ele quem mais tinha a perder.
Duas coisas.
Ficou a saber que Hinde queria duas coisas, nenhuma das quais Haraldsson tinha consigo. Nem conseguia obtê-las dentro de Lövhaga, pelo menos sem atrair uma série de perguntas indesejáveis. Por isso saiu da cela, regressou ao seu escritório e disse a Annika que ia sair por um bocado. Levou o carro e foi até ao pequeno centro comercial.
Duas coisas. Duas visitas rápidas a duas lojas. No caminho de regresso olhou para as compras, em cima do banco do passageiro, e tentou descobrir para que Hinde queria aquilo. Também começou a pensar se não seria errado e pouco ético entregar-lhas. Decidiu que não. Ambas eram produtos completamente inócuos. Não era o mesmo que dar a Hinde acesso a armas ou algo do género. Uma delas era um medicamento vulgar que se comprava ao balcão sem receita médica. A outra, um legume. Provavelmente, um tubérculo. Haraldsson não tinha a certeza.
Parou no seu lugar de estacionamento privado, pegou nos sacos e foi directo à ala de segurança. Teve de se conter para não começar a correr. Sentia-se como se estivesse a poucos minutos da resolução. Ponderara cuidadosamente o que iria perguntar a Hinde. Era evidente que naquele dia poderia fazer-lhe duas perguntas. Isso devia ser su?ciente.
Os guardas abriram-lhe a porta da ala de segurança e um deles acompanhou-o até à cela de Hinde. Haraldsson en?ara os dois sacos pequenos por baixo do seu blusão ?no; não valia a pena despertar a curiosidade para o que ia entregar a um assassino em série condenado. Hinde ainda se encontrava sentado na cama, onde Haraldsson o deixara. Esperou até que a porta estivesse bem fechada e, depois, quebrou o silêncio.
– Conseguiu?
Haraldsson tirou os sacos de dentro do blusão e en?ou a mão num deles. Aproximou-se da cama e, lentamente, quase dramaticamente, pousou o frasco do supermercado na mesa-de-cabeceira. Hinde olhou para o objecto e acenou com a cabeça.
– O que me quer perguntar?
– Você sabe quem matou aquelas quatro mulheres?
– Sei.
– Quem foi?
Hinde fechou os olhos e respirou fundo. Tentou disfarçar o seu desapontamento. Como era aquilo possível? Haraldsson tivera tempo de sobra para se preparar para aquele encontro. Tivera a oportunidade de fazer a maioria das perguntas. Então, porque não perguntou «Quem matou as quatro mulheres?» logo à primeira? Hinde sabia a resposta. O novo governador apenas con?rmava a opinião de Hinde acerca das pessoas que trabalhavam no sistema prisional. Não era uma área que atraísse os cérebros mais brilhantes da sociedade. Pelo menos no que dizia respeito àqueles que podiam sair ao ?m do dia de trabalho. Hinde soltou um pequeno suspiro. Aquilo era demasiado fácil. Não havia desa?o. Uma maçada.
– «Quem» é outra pergunta – disse, com uma clareza quase exagerada.
Haraldsson praguejou em silêncio. A situação não estava a correr conforme o planeado. A primeira pergunta devia fornecer-lhe um nome e a segunda, um local onde a polícia – assim que Haraldsson a avisasse – poderia encontrar o assassino. Fora demasiado ansioso. Naquele momento só iria obter um nome. Mas seria o bastante. Era mais do que a Riksmord tinha. Continuava a ser uma informação crucial. Continuaria a ser ele quem iria resolver o caso.
Haraldsson tirou o saco da farmácia do blusão. Não sabia muito acerca do conteúdo do frasco. Nunca usara aquilo. Parecia um pouco nojento. Hesitou por instantes, com o saco na mão. De certa forma, a sensação foi a mesma de quando lhe entregou a fotogra?a de Jenny: um desconforto miudinho por fazer algo de errado. Por estar a cometer um erro. Tomou uma decisão rápida e atirou o frasco a Hinde.
– Quem as matou?
Silêncio. Hinde examinou cuidadosamente o pequeno frasco antes de olhar para Haraldsson. Parecia querer demorar a resposta, como o júri de um drama judicial. Para aumentar a tensão.
– Um homem que eu conheço – disse, por ?m.
– Isso não é uma resposta. – Houve um desapontamento quase infantil na voz de Haraldsson. Como se tivesse cinco anos e abrisse um pacote de doces ao sábado só para descobrir que estava cheio de legumes.
Hinde encolheu os ombros.
– Não posso ser responsabilizado pelo facto de você fazer as perguntas erradas.
– Perguntei-lhe quem era.
– Devia ter-me perguntado qual o nome dele.
Silêncio. Deliberadamente, Hinde inclinou-se para a frente e pousou o frasco na mesa-de-cabeceira. Haraldsson acompanhou o movimento com os olhos. Fixou o olhar no pequeno frasco. Talvez devesse retirar-lho. Deus sabia que Hinde não o merecera. Claro que Haraldsson formulara mal a sua primeira pergunta, mas Hinde simplesmente esquivara-se à segunda.
– Há outra coisa que eu queria.
Haraldsson desviou o olhar. Um pedido, uma pergunta. Não era demasiado tarde para sair dali como vencedor.
– E o que é?
– Amanhã quero telefonar à Vanja Lithner da Riksmord.
– Porquê?
– Quero falar com ela.
– Está bem. Qual é o nome do homem que matou aquelas quatro mulheres? – Haraldsson mal conseguia manter-se sentado e quieto na cadeira. Agora estava muito próximo.
Edward abanou lentamente a cabeça.
– Você não tem direito a mais respostas.
– Eu concordei que você pode telefonar à Vanja Lithner, não foi? – E pronto, Haraldsson não conseguiu ?car sentado por mais tempo. Levantou-se e deu um passo em direcção à cama. – Isso vale outra resposta.
– Mas você perguntou-me porque é que eu lhe queria telefonar. E eu respondi-lhe. Contei-lhe a verdade.
Haraldsson parou de repente, desanimado. Aquele seu «porquê?» surgiu por puro re?exo. Nem sequer se tratava de uma pergunta. Era óbvio que Hinde queria falar com ela, caso contrário não lhe teria pedido permissão para telefonar. Aquela não contava. Hinde estava a fazer batota. Mas Haraldsson podia dar-lhe guerra sempre que necessário. Naquele momento acabaram-se as subtilezas.
– Pode esquecer o telefonema – disse-lhe, reforçando as palavras com um dedo apontado para Hinde –, a menos que me dê um nome.
– Não quebre uma promessa que fez, Thomas. Comigo não.
De repente, Haraldsson viu um Hinde diferente, embora não tivesse movido um músculo nem levantado a voz. O olhar dele ensombrara-se. Havia uma intensidade nas suas palavras que Haraldsson nunca ouvira. O seu tom de voz era ameaçador.
Perigo de morte.
Haraldsson teve a sensação de que a última coisa que as quatro mulheres assassinadas por Hinde viram antes de morrerem foi aquele homem ali sentado à sua frente. Aproximou-se da porta.
– Eu voltarei.
– Você é sempre bem-vindo.
O velho Hinde regressou quando se inclinou com calma para a frente e, com destreza, fez desaparecer o frasco e o boião na sua cama, longe da vista. A metamorfose foi tão repentina que Haraldsson nem percebeu ao certo se a vira realmente acontecer, mas uma olhadela à pele arrepiada no seu antebraço con?rmou-o.
– Você terá o seu nome – disse Hinde em voz baixa. – Quando ?zer uma última coisa.
– O quê? – Haraldsson também estava a sussurrar.
– Diga que sim.
– A quê?
– Você irá entender quando e a quê. Diga apenas que sim. Depois respondo-lhe a outra pergunta.
Com um último olhar breve a Hinde, Haraldsson saiu da cela. Aquilo não correra de acordo com o plano. De todo que não. Mas tinha outra oportunidade. Dizer que sim. O que quereria Hinde dizer com aquilo? O que queria ele da Vanja Lithner? O que iria fazer com as coisas que Haraldsson lhe entregou? Eram muitas perguntas. Demasiadas para que Haraldsson se conseguisse concentrar em «Lövhaga 2014, Visões e Objectivos».
Decidiu aproveitar de novo a ?exibilidade do horário e ir para casa. Para junto de Jenny.
SEBASTIAN ACORDOU às cinco. Dormira melhor do que o esperado. Como sempre o sonho despertara-o, mas faltava-lhe um pouco daquele poder devastador que por vezes possuía. Descontraiu a mão direita e espreguiçou-se com cuidado. Ela estava deitada ao seu lado.
Deslizou para fora da cama e vestiu as cuecas. Foi ver se o jornal já tinha chegado. As portas dos outros quartos estavam todas abertas. Tal como ela as deixara. Com uma certa relutância, fechou-as. Há vários anos que não entrava dentro de três daqueles quartos e, por isso, não conseguiu evitar dar-lhes uma rápida olhadela antes de fechar as portas. Realmente era um belo apartamento quando se olhava para ele com outros olhos. Com os olhos dela. Sobretudo quando a luz baixa da manhã entrava através das grandes janelas. No entanto, as portas abertas e os quartos a que davam acesso pertenciam a uma outra vida. A uma vida que não queria que lhe recordassem. O facto de Ellinor ter entrado ali à força já fora su?ciente como mudança. O resto da sua vida permaneceria incólume e intacto.
Na noite anterior conversaram acerca de tudo o que era possível. Ele e Ellinor. Na cozinha. Ela falou-lhe de Harald, o seu ex-marido, que um dia chegou a casa e lhe anunciou que queria o divórcio. Assim, de repente. Porque tinha conhecido outra pessoa. Obviamente que foi muitíssimo doloroso. Fê-lo duvidar de si própria, disse ela. Isso aconteceu há alguns anos. Durante algum tempo experimentou os encontros pela Internet mas não conheceu ninguém. Era muito difícil. E ele? Porque estava sozinho? Sebastian conseguiu esquivar-se e?cazmente à pergunta. Deixou-a fazer a maior parte da conversa enquanto ?cou ali sentado, com a caneca de café, a ouvir os seus disparates banais e as análises acerca do sexo e dos relacionamentos num tom de revista feminina. Estranhamente, e como era habitual suceder-lhe, não odiou cada palavra que ela proferia. Porventura sentia-se enfraquecido e deprimido por causa de tudo o que acontecera mas, independentemente de como olhasse para as coisas, chegava sempre à mesma conclusão.
Gostava de tê-la ali.
Ela ria muito, mantinha uma conversa normal e amena e não se incomodava muito com ele. Era estranho ter por perto uma pessoa que não ?cava realmente afectada com os seus comentários sarcásticos. Isso fazia com que ele não se sentisse forçado a continuar. Ela era divertida. Trouxera a vida banal, quotidiana, para o seu apartamento. Ele não sabia ao certo se queria ter algo a ver com aquilo, mas era uma diversão. Uma novidade.
Pousou o jornal da manhã em cima da mesa, pegou no telemóvel e ligou a Trolle. Continuava a não atender. A ansiedade regressou. Porque não respondia ele? Devia ter acontecido algo. De repente, sentiu um estranho desejo de se en?ar outra vez na cama com Ellinor. Na realidade, de premir o botão de pausa. De ignorar tudo. Percebeu de imediato o que ela representava para ele. Alguém a quem se podia agarrar quando tudo se tornava difícil. Que ?cava sempre contente por vê-lo. Que esquecia os comentários desagradáveis que lhe fazia.
Percebeu com claramente porque não se sentia culpado quando pensava em Lily.
Ellinor era como um animal de estimação.
Algumas pessoas tinham um cachorro, mas ele acabara por ?car com Ellinor Bergkvist.
Satisfeito por ter de?nido a relação de ambos, fez o café e leu o jornal. Foi à loja de conveniência da esquina e comprou pequeno-almoço para os dois e almoço para Ellinor. Não queria que ela tivesse de sair para ir comprar comida; queria que ?casse em casa por uma questão de precaução.
Quando regressou ela estava sentada na cozinha, vestida com a sua camisa.
– Oh, foste à rua comprar o pequeno-almoço para nós! És um querido.
Ele começou a desembrulhar a comida.
– Não quero que vás à rua. Tens de ?car no apartamento.
– Tu não estás a exagerar um bocadinho? – Aproximou-se e beijou-o na bochecha e depois, com um pulo, sentou-se em cima da bancada. – Quero dizer, eu não vou desaparecer se sair à rua por um bocadinho.
Sebastian suspirou. Não tinha forças para discutir com ela.
– Não podes limitar-te a fazer o que eu digo, por favor? Por favor.
– Absolutamente. Mas nesse caso tens de fazer algumas compras para o jantar quando vieres para casa. Vou fazer-te uma lista. – Saltou para o chão. – Tens caneta e papel?
Sebastian apontou para uma das gavetas por baixo da bancada onde ela estivera sentada. Ellinor abriu-a e tirou uma caneta preta e um pequeno bloco de notas. Sentou-se à mesa e começou a escrever.
– Massa, bife, salada, chalotas, açúcar mascavado, vinagre balsâmico, caldo de vitela, farinha de milho. Diz-me se tens alguma destas coisas. – Fez uma pausa. – Tens manteiga, suponho? E quanto a vinho tinto?
– Eu não bebo.
Ellinor levantou os olhos da lista com uma expressão de surpresa.
– Mesmo nada?
– Não, álcool não.
– Porque não?
Havia razões. Alguns anos antes ele passara vários meses a tentar evitar o sonho com a ajuda da bebida e, além de tudo o resto, quase se transformara em alcoólico. Era uma pessoa com uma personalidade susceptível a adquirir vícios. Tinha problemas quando se tratava de estabelecer limites. Nada que ela precisasse de saber.
– Não bebo – respondeu com um encolher de ombros.
– Mas se passares por algum sítio podes trazer uma garrafa de tinto para o molho? Não te importas se beber um copo?
– Não.
– Preferes comer batatas ou massa?
– Tanto me faz.
– Está bem. Há alguma sobremesa que te agrade mais?
– Não.
– Nesse caso, eu decido.
Ela continuou a escrever. Ele continuou a tomar o pequeno-almoço. A normalidade e a vida quotidiana. Em toda a sua vida, nunca tinha feito compras com uma lista. Mas também nunca conhecera alguém como Ellinor.
SEBASTIAN DECIDIRA ANDAR a pé; caminhou pela cidade até Kronoberg e chegou à Riksmord antes dos outros. Ficou sentado na Sala à espera deles. Pegou no telefone e ligou para o mesmo número que já tentara inúmeras vezes. Apesar de continuar a não haver qualquer resposta por parte de Trolle, isso não deu azo a tanta ansiedade no seu corpo. Após o pequeno-almoço fora de novo para a cama com Ellinor. De um ponto de vista puramente sexual, davam-se extremamente bem. Aquilo não era amor. Decerto que não. Mas era algo. O amor magoava. Aquilo não.
Antes de sair, Ellinor dera-lhe uma camisa limpa e pedira-lhe que se barbeasse devidamente. A vida era estranha. Recentemente, o seu percurso fora tão intenso que dentro em breve nada conseguiria surpreendê-lo. Contudo, precisava de encontrar Trolle. A questão era como o fazer. Podia pedir ajuda a Billy? Não precisava de lhe contar toda a verdade, mas podia dizer ao colega que foi encontrar-se com Trolle quando percebeu que andava a ser seguido. Pedir ajuda a um velho amigo não pareceria muito rebuscado. Em geral, Billy era muito bom a guardar segredos e, de momento, o relacionamento dele com Vanja parecia um pouco tenso, pelo que seria pouco provável que houvesse alguma fuga de informação por aquele lado. Era óbvio que Billy começara a tentar subir na hierarquia e que Vanja se opunha. Ela jamais o admitiria, claro, mas para Sebastian era evidente que ela achava que Billy começava a mostrar-se mais importante do que era. Um grupo trabalhava sempre melhor quando todos aceitavam o seu papel e não punham em causa o papel dos outros. Foi por isso que ele nunca conseguiu integrar-se num grupo; pôr tudo em causa era o que dava alento à sua vida. Ficara realmente impressionado com Billy, que revelara ser um agente da polícia muito bom. Em Västerås ele também ajudara discretamente Sebastian a localizar Anna Eriksson e a descobrir o seu endereço. Podia ser um aliado útil para procurar Trolle. Sebastian tencionava ir até casa de Trolle após a reunião da manhã. Se não descobrisse nada, iria falar com Billy. Satisfeito com o seu plano, foi buscar um café à máquina do refeitório. Pôs as ideias em ordem e prometeu a si mesmo que não se iria zangar com Vanja nem com Torkel. Precisava de proteger a sua presença no seio da equipa, de ser mais cooperante e menos con?ituoso.
Trinta minutos e duas chávenas de café mais tarde, os outros entraram em grupo. Quase não olharam para ele, embora vestisse uma camisa lavada. As duas mulheres não reparariam nisso, quanto mais os homens.
Ursula foi a primeira a falar, virando-se para os outros quando pousou em cima da mesa a pasta que trazia consigo.
– Começo eu? Tenho o relatório da autópsia à Annette Willén.
– Prossegue – disse Torkel.
Ursula expôs várias fotogra?as ampliadas do corpo nu e mutilado de Annette. A ferida da garganta ?cou escancarada para eles. Foi a primeira vez que Sebastian a viu morta e isso afectou-o mais do que esperava. Teve di?culdade em dar o salto emocional entre a imagem que conhecia dela em vida, com aquele seu vestido, calorosa e desesperada por amor, e o aspecto que tinha nas fotogra?as. Ursula mostrou outra ampliação da garganta cortada.
– Traqueia e artéria carótida cortadas. Um golpe e um movimento forte para fora. Exactamente como nas outras.
– Ela terá sofrido muito?
Ursula olhou para Sebastian. Não havia dúvida de que a sua pergunta lhe viera do coração. Respondeu-lhe sem qualquer vestígio de empatia.
– Foi muito rápido. Ela sufocou antes de sangrar até a morte, por isso o ?m sobreveio rapidamente. De um modo relativamente rápido.
Sebastian não respondeu. Pareceu ainda mais pálido. Ursula virou-se para os outros. Ele merecia sofrer.
– É difícil determinar a hora exacta do ataque. Ela ?cou ali deitada e exposta à luz do Sol. Mas se Sebastian a deixou às cinco, então de certeza que o assassino apareceu pouco depois. A estimativa preliminar é entre as cinco e as dez da manhã.
– Então ele seguiu Sebastian até ao apartamento dela?
– Essa suposição é razoável. Sobretudo porque agora sabemos que Sebastian andava a ser seguido.
A sala ?cou em silêncio, um silêncio evocado pela proximidade entre Sebastian e o assassino. Sebastian procurou febrilmente alguma memória daquela manhã fatídica. Terá visto alguém? Algo? Encontrara alguém nas escadas? Ouvira a porta de um carro bater e virara-se para olhar? Vislumbrara alguma coisa? Mas não encontrou nada.
– Eu não vi ninguém mas, por outro lado, também não andava atento a isso.
– Pois não, imagino que só querias fugir dali o mais depressa possível. Os pequenos-almoços confortáveis não parecem ser do teu agrado – disse Vanja acidamente.
Sebastian baixou o olhar. Não queria responder. Não iria responder. Não se meteria naquilo outra vez. Cooperação e não confronto.
Torkel intrometeu-se na conversa.
– Agora que já reduzimos o horizonte temporal, vamos enviar alguns agentes fardados para fazerem novos inquéritos porta-a-porta. Um dos vizinhos pode ter visto alguém por lá.
– De preferência perto de um Ford Focus azul – interveio Billy.
– Como estamos em relação aos carros? – perguntou Torkel.
– Não soubemos mais nada acerca do Focus e o Toyota passou por uma série de portagens; a mais recente foi ontem de manhã...
Bateram à porta e entrou um jovem agente que parecia nervoso.
– Desculpem, mas não há uma chamada para si, Vanja. Parece que é importante.
– Vai ter de esperar, estamos a meio de uma reunião.
– É de Lövhaga. Edward Hinde...
Todos ?caram hirtos. Por instantes, pensaram ter ouvido mal.
– Tem a certeza? – perguntou Vanja, mostrando-se duvidosa. – Edward Hinde?
– Foi isso que ele disse.
Vanja puxou para junto de si o telefone, que estava em cima da mesa.
– Trans?ra a chamada, por favor.
O jovem agente virou rapidamente as costas e saiu da sala. Vanja inclinou-se para a frente, à espera da chamada. Os outros também se aproximaram. Foi como se aquele objecto de plástico de cor creme, pousado em cima da mesa, se tivesse tornado o centro de gravidade da sala, atraindo-os a todos na sua direcção. Billy pôs-se ao lado de Vanja, com uma mão em cima do botão de alta-voz; ao mesmo tempo, com a outra mão colocou o seu telemóvel ao lado do altifalante. Todos aguardaram em silêncio. Apenas Sebastian permaneceu imóvel, a uma certa distância. Tentava freneticamente compreender o que estava a acontecer. Porque estava Hinde ao telefone? Qual seria o objectivo da sua chamada? Devia tentar impedi-lo? Instintivamente, sentia que aquilo não augurava nada de bom. Como de costume, Hinde tinha algum avanço sobre eles.
Ele agia.
Eles reagiam.
Nunca era ao contrário.
O som do telefone fez todos darem um salto, embora já o esperassem. Billy premiu em simultâneo o botão de alta-voz e a função de gravação do seu telemóvel. Do altifalante brotou um ligeiro rumor. Havia alguém na outra extremidade da linha. De repente, Hinde estava ali com eles. Inconscientemente, Vanja inclinou-se ainda mais para a frente, como se tentasse ouvir se ele estava realmente ali, no silêncio.
– Vanja Lithner...
A resposta chegou com rapidez e clareza.
– Fala Edward Hinde. Não sei se se lembra de mim.
De?nitivamente, era ele. A voz bem modulada. Calmo, concentrado, e por detrás desse autodomínio a certeza de que era ele quem detinha a vantagem. Tratava-se, obviamente, da sua jogada seguinte. Sebastian conseguiu imaginá-lo na sua mente. O sorriso, os olhos frios e aquosos, o auscultador levantado perto da boca.
Vanja tentou mostrar-se igualmente serena.
– Lembro-me, sim.
– Como está? – O tom de Hinde era descontraído, intimista. Como se telefonasse a uma velha amiga para uma pequena conversa.
– O que deseja? – perguntou Vanja quase num silvo. – Porque me está a telefonar?
Ouviram Edward rir em voz alta.
– Vanja, este é o meu primeiro telefonema desde há muito, muito tempo. Não podemos demorar um pouco?
– Pensei que você não tinha autorização para telefonar.
– Eles abriram uma excepção.
– Porquê?
Sebastian deu um passo em direcção a Vanja. Perguntava o mesmo a si próprio. Alguém em Lövhaga ?zera um acordo com Hinde. E, sem dúvida, levara a pior. Sentia que aquela conversa devia acabar de imediato. O tom de voz de Hinde era demasiado jocoso, muito familiar. Demasiado satisfeito. Havia ali algo que assustou terrivelmente Sebastian. Aquela era a sua ?lha a conversar com um homem que sempre tivera um plano. Que sempre o pusera em prática. Torkel viu que Sebastian estava prestes a avançar e deteve-o com um olhar penetrante. Sebastian hesitou. O seu mandato estava mais fraco que nunca. Perdera a con?ança de Torkel. Lançou um olhar suplicante ao seu chefe temporário, mas Torkel abanou a cabeça. Entretanto, a conversa prosseguia.
– Tenho informações que você devia conhecer.
– Estou a ouvir.
– Só você. Porque presumo que, neste momento, os outros nos estão a ouvir.
Vanja olhou para Torkel com um ar interrogador, que lhe acenou rapidamente em resposta. De certeza que Edward sabia que Vanja jamais atenderia a chamada sozinha, e mentir-lhe parecia ser um risco maior.
– Exactamente.
– As informações que pretendo transmitir-lhe são apenas para os seus ouvidos. Mas talvez você não esteja autorizada a visitar -me de novo.
– Porque diz isso?
– O Sebastian parecia protegê-la muito. Era quase como se ele achasse que não conseguia lidar comigo sozinha. Ele está aí?
Sebastian respondeu sem pedir autorização a Torkel. Colocou-se ao lado de Vanja.
– Estou aqui. O que quer você?
– A Vanja pode vir ter uma pequena conversa comigo, não pode? Por favor?
– Porquê? Se tem alguma coisa a dizer-lhe, pode dizer já.
– Não. Só à Vanja. Cara a cara.
– Nunca – ouviu-se Sebastian a dizer.
Mas já era tarde de mais. Ouviu-se um estalido quando alguém pousou o auscultador no descanso e o rumor desapareceu. A ligação fora interrompida. Hinde fora-se embora. Vanja pôs-se em pé, mostrando uma expressão de determinação no rosto. Sebastian percebeu imediatamente onde ela ia.
– Não, Vanja. Não faças isso. Não vás.
Ela olhou-o de soslaio.
– Porquê?
– Ele não te vai dar nada. Só quer atenção. Eu conheço o Edward Hinde.
– Espera aí um pouco. Nós suspeitamos que ele está envolvido. Ele telefona e oferece informações. E devemos ignorá-lo?
– Sim.
Sebastian ?tou-a com um olhar suplicante. Como se ?zesse alguma diferença. Sentia que tudo se escoava entre os seus dedos, mas tinha de lutar. Sabia que não podia desistir, quaisquer que fossem as circunstâncias. Outra vez não. Vanja não devia ir até lá. De maneira alguma.
– É porque ele não telefonou para ti? É esse o problema? O facto de me poder querer dizer alguma coisa?! – Vanja enfrentou o olhar dele, completamente pronta para a batalha.
– Não – é perigoso!
– Mas de que raio estás tu a falar? Eu sei cuidar de mim. – Virou-se para Torkel à procura de auxílio. Ele fez-lhe a vontade de imediato. Ela quase foi apanhada de surpresa.
– Podes ir. Já agora, é melhor descobrirmos o que ele pretende.
– E quanto à autorização de visita?
– Eu resolvo isso.
– Ah, então agora consegues resolver isso – murmurou Sebastian.
Torkel ?ngiu que não tinha ouvido.
– Posso equipar-te com um microfone – sugeriu Billy, encaminhando -se para a porta.
Vanja deteve -o.
– Não. Se ele descobrir pode ?car calado.
– Em qualquer caso, ele não vai dizer nada de importante – disse Sebastian, decidido a não desistir. – Vai começar com rodeios. A dizer imensas baboseiras... Mentiras.
Vanja interrompeu Sebastian.
– Nesse caso, vocês os dois têm mesmo alguma coisa em comum.
– Vanja...
Sebastian ?cou a olhar para ela enquanto caminhava em direcção à porta. Estava aterrorizado; ela ia ter com Hinde. Com o monstro. Não podia desistir; as últimas palavras que lhe dirigiu foram um débil apelo.
– Ao menos, deixa-me ir contigo.
A resposta dela não foi de todo simpática. Nem sequer olhou para ele.
– Desculpa, não foste convidado. – Depois de proferir estas palavras, saiu.
De repente, Sebastian teve a sensação de que não voltaria a vê-la. De que todos os seus esforços para chegar junto dela foram em vão. Deixou-se cair numa cadeira. Os outros olharam para ele, sem compreenderem. Já sabiam como Sebastian era egocêntrico, mas mesmo assim a sua reacção àquela situação parecia extrema. Para Torkel, aquela foi a gota de água. Sebastian tinha realmente perdido o juízo. Parecia encarar o facto de Vanja ir visitar Hinde sozinha como uma espécie de derrota pessoal. Lembrava-lhe um pouco o momento em que Sebastian lhe contou que dormira com todas as mulheres que haviam sido assassinadas. Torkel vira nos olhos dele a mesma mistura de pânico e de tristeza. Isso fora compreensível na altura, mas naquele momento não. Era simplesmente inaceitável. A mera ideia de querer impedir que Vanja, a melhor agente da polícia da equipa, fosse obter informações ultrapassava todos os limites concebíveis, independentemente do facto de achar que ela não o conseguiria ou pensar que o escolhido devia ter sido ele.
Sebastian ?tou-os, em particular a Torkel; apercebeu-se da incompreensão nos seus olhares mas não tinha forças para lhes explicar. Em todo o caso, nunca seriam capazes de entender toda a situação; era demasiado complexa. Sebastian ?cou hirto. E se fosse essa a explicação? E se Hinde soubesse? Virou-se para Ursula.
– Podes emprestar-me o teu carro?
Ela abanou a cabeça.
– Não, Sebastian.
– Não me emprestas a merda do carro?!
Ursula olhou espantada para Torkel, que também abanou a cabeça.
– Já chega, Sebastian.
Sebastian estava furioso.
– Não é para mim. Dá-me as chaves!
– Sebastian, não podemos continuar assim – começou Torkel.
– Está bem! Óptimo! – interrompeu Sebastian. – Expulsa-me daqui para fora! Não me interessa! Mas dá-me as chaves do carro, porra!
Após outro olhar para Torkel, que lhe respondeu com um encolher de ombros resignado, Ursula en?ou a mão na sua bolsa, que estava pendurada na parte detrás da cadeira. Procurou as chaves do carro e atirou-as a Sebastian.
Ele saiu da sala quase a correr.
Tinha de encontrar uma maneira de parar Vanja.
Só não sabia como.
Atravessou a correr o espaço aberto do escritório, que normalmente era um oásis de calma. Os que estavam aí a trabalhar olharam para ele com curiosidade, mas não se importou. A sua esperança era que ela tivesse de esperar por um dos elevadores para descer até ao parque de estacionamento e que conseguisse alcançá-la se fosse pelas escadas. Junto à porta de saída do escritório colidiu com duas mulheres que tinham ido buscar café à rua. Uma delas deixou cair o seu, mas Sebastian nem parou e abriu a porta desabridamente. Os seus pés voaram pelas escadas abaixo e foi contando os andares enquanto descia. Terceiro, segundo, primeiro; havia dois pisos de estacionamento e esperava que Vanja tivesse estacionado no lugar habitual, no piso superior. Abriu a pesada porta de metal cinzento. Correu por entre os carros. O parque de estacionamento estava quase completo. Ouviu um motor começar a trabalhar a curta distância e correu na sua direcção. Foi então que a viu. Estava a arrancar e dirigia-se para a Fridhemsplan.
– Vanja! Espera!
Provavelmente, não o viu. Ou limitou-se a ignorá-lo. Em qualquer caso, seguira caminho. Viu o carro desaparecer. Olhou à sua volta. Percebeu que não sabia qual era o carro que Ursula conduzia. Nem onde o estacionara. Olhou para a chave que tinha na mão. Um Volvo. Correu, premindo o botão da chave de ignição preta na esperança de que as luzes de um dos carros piscassem e lhe indicassem o caminho. Não teve sorte. Correu pelo parque de estacionamento premindo o botão repetidamente. Ao ?m de algum tempo, ouviu o clique. O carro estava numa das extremidades, o mais longe possível da saída, e respondeu à sua busca insistente com umas piscadelas tranquilizadoras. Correu na sua direcção, abriu a porta e entrou. Por instantes, atrapalhou-se com a chave antes de conseguir ligar o carro.
Pé a fundo, pneus a guinchar enquanto dava meia-volta.
Ainda não tinha um plano.
A não ser conduzir o mais depressa possível.
Para a obrigar a parar.
A MANHÃ de Haraldsson fora tudo o que ele esperara.
O despertador tocou às seis e vinte e levantou-se de imediato. Jenny dormia profundamente no seu lado da cama. Ele fechou a porta do quarto sem fazer barulho, vestiu uma T-shirt e umas calças de treino e desceu para o piso inferior. A sensação que teve quando foi à casa de banho fez-lhe lembrar o que costumava sentir em criança na altura do Natal e nos dias de aniversário: uma felicidade esfuziante por saber que tinha à sua frente um dia completamente perfeito. Usou a sanita, tomou um duche rápido e, a seguir, foi para a cozinha. Começou por derreter uma barra de chocolate dentro de uma tigela em cima de uma panela com água a ferver e, depois, mergulhou os morangos que comprara no dia anterior a caminho de casa. Colocou-os num prato, para que o chocolate solidi?casse, e foi buscar a torradeira e a frigideira. Torradas e fritos. Pão e toucinho fumado. Cortou o melão. Partiu quatro ovos, misturou o leite e derreteu manteiga na frigideira. Fez mais torradas. Ligou a chaleira e colocou um saquinho de chá numa caneca. Foi ao frigorí?co buscar queijo e geleia de framboesa. Dispôs tudo no maior tabuleiro que havia em casa. Sentindo-se muito satisfeito consigo mesmo, veri?cou se estava tudo bem. Por ?m, foi ao carro e abriu o porta-luvas. Retirou uma pequena caixa vermelha. Um anel. De ouro, com um diamante e dois rubis. Não tinha oferecido um presente a Jenny na manhã seguinte ao casamento. Na verdade, nem sabia que era suposto fazê-lo. As amigas de Jenny e as colegas dele ?caram muito surpreendidas quando souberam que Jenny não recebera nada. Ou, como lhe dissera Margareta da polícia de Västerås: «Então a Jenny acabou por não ?car com nada depois da sua noite de núpcias.» Como se o facto de ter ganho Thomas Haraldsson como marido não contasse. Jenny nunca se referira ao assunto. Nunca proferira uma palavra de desapontamento nem dera a entender que sentira a falta da tradicional prenda. Porém, naquele momento iria receber o seu presente. Cinco anos depois. Mas era melhor tarde do que nunca.
Haraldsson correu de novo para dentro de casa e colocou a pequena caixa vermelha em cima do tabuleiro. Perfeito. Pegou no tabuleiro e subiu as escadas.
Quando entrou, ela já estava acordada. Sorriu para ele.
Ele amava-a muito.
– Feliz aniversário, querida – disse-lhe, pousando o tabuleiro no chão antes de se inclinar para a beijar. Ela passou os braços em volta do seu pescoço e puxou-o para mais perto de si.
– Feliz aniversário para ti também.
– Preparei-te o pequeno-almoço.
– Eu sei, ouvi-te. – Beijou-o.
Ele pegou no tabuleiro enquanto ela compunha as almofadas e as encostava contra a parede. Sentaram-se na cama lado a lado e tomaram o pequeno-almoço. Ele levou-lhe os morangos à boca. Ela adorou o anel.
Tal como ele esperava, chegou atrasado ao emprego.
Annika já lá estava quando chegou. Claro.
– Desculpe-me o atraso – disse Haraldsson quando entrou no gabinete dela, a assobiar. – É o meu aniversário de casamento.
Como era evidente, não precisava de pedir desculpa a Annika; era apenas um pretexto para referir o facto de que tinha algo para comemorar. Queria que todos o soubessem. Annika mostrou-se moderadamente interessada.
– Compreendo. Parabéns.
– Obrigado.
– O Victor telefonou há pouco – continuou Annika. – Ele enviou-lhe uma mensagem por correio electrónico e gostaria de ter uma resposta o mais depressa possível.
– O que dizia?
– Pode lê-la – disse Annika, acenando a cabeça na direcção do gabinete de Haraldsson. – No seu computador – acrescentou, por precaução.
– Não pode imprimi-la? Seria mais rápido; o meu computador ainda não está ligado.
– Está bem.
– Óptimo – pode trazer-ma, por favor?
Sem esperar por uma resposta, entrou no seu gabinete, despiu o casaco e sentou-se atrás da secretária. Ligou o computador e pegou em «Lövhaga 2014, Visões e Objectivos». Só teve tempo para abrir a pasta antes de Annika bater à porta, entrar e lhe entregar a sua mensagem impressa.
– Obrigado.
Haraldsson pôs a pasta para um lado e leu a mensagem.
Caro Thomas,
Em relação ao telefonema de Edward Hinde, que aprovou ontem. (Já agora, isso é algo que teremos de discutir; eu preferia ser consultado sempre que as normas de segurança de um recluso forem alteradas.) Aparentemente, o telefonema desta manhã signi?ca que a Riksmord vem cá falar com ele mais ao ?m do dia. Isso não constitui um problema pela minha parte mas, como de costume, terá de ser você a aprovar uma autorização de visita.
Atenciosamente,
Victor Bäckman
Thomas leu de novo a mensagem. Hinde telefonara a Vanja Lithner e agora ela vinha a Lövhaga. Hoje.
Isso não lhe parecia bem.
Não lhe parecia nada bem.
Haraldsson levantou-se e saiu à pressa do seu gabinete.
Edward Hinde estava sentado no seu habitual lugar de leitura, no piso superior da biblioteca, quando ouviu passos a subirem as escadas. Foi dominado por uma onda de irritação. Seria o novo recluso? Se fosse, iria ter uma conversinha com Igor num futuro muito próximo, para que Igor pudesse explicar ao novo fulano que existiam regras que tinham de ser seguidas. As regras dele.
Mas não era o novo fulano. Era Haraldsson. Edward fechou o livro sobre Napoleão e pô-lo de parte. Haraldsson acenou para o guarda que estava em pé um pouco mais adiante, puxou uma cadeira e sentou-se à frente de Edward. Inclinou-se por cima da mesa, com uma expressão de ansiedade no rosto.
– Eu quero estar lá – sussurrou ele.
Edward não percebeu se foi por estarem numa biblioteca ou para o guarda não os ouvir. Não importava.
– Estar onde? – perguntou Hinde com toda a honestidade.
– Eu quero estar lá quando você falar com a Vanja Lithner.
– Não me parece.
– Não é negociável. Eu vou estar lá. – Haraldsson enfatizou a sua a?rmação quase batendo com o punho na mesa. Deteve-se a cerca de um centímetro da superfície. Porque estavam numa biblioteca, assumiu Hinde. Não havia uma verdadeira razão para que Haraldsson se preocupasse por o guarda ouvir uma pancada vinda da direcção deles.
– Não me parece – repetiu Hinde calmamente.
– Nesse caso, não irei autorizar que você se encontre com ela.
O olhar de Edward escureceu, mas Haraldsson estava preparado para esse facto. Tinha o seu raciocínio a postos.
– Nunca lhe prometi que o autorizaria a vê-la – anunciou com uma certa presunção. – Eu disse-lhe que podia fazer uma chamada telefónica e não que poderia vê-la. Isso vai custar-lhe uma resposta.
No seu espírito, Hinde viu-se levantar-se, inclinar-se rapidamente para a frente, agarrar na cabeça de Haraldsson e bater com ela em cima da mesa. Antes que o director ou o guarda tivessem tempo para reagir, viu-se contornar a mesa, agarrar de novo na cabeça de Haraldsson, colocar-lhe as palmas das mãos nas têmporas e torcer-lha. Ouviu o som do seu pescoço a partir -se.
Por mais tentadora que aquela imagem pudesse ser, não o iria fazer. Mesmo assim, estava na hora de mostrar quem mandava ali.
– Você parece ser um homem ambicioso, Thomas – disse ele em voz baixa, mas com uma intensidade que fazia com que cada sílaba atingisse o alvo. – Corrija-me se estiver enganado, mas creio que este emprego signi?ca muito para si.
Haraldsson acenou com a cabeça, pouco confortável com o rumo que aquela conversa estava a tomar.
– Eu tenho os seus... presentes na minha cela – prosseguiu Hinde. – Como irá explicar à administração que me trouxe coisas à socapa cá para dentro?
– Negarei isso.
– E alguém irá acreditar em si?
– Hão-de acreditar mais em mim do que em si.
Edward permaneceu imóvel, excepto as suas sobrancelhas, que se ergueram de um modo interrogador.
– A sério?
– Sim. – Haraldsson ?tou aqueles olhos escuros, penetrantes, e desejou ter tanta certeza quanto a que pensava ter demonstrado.
– Então, se eu revelar o nosso pequeno acordo, o facto de lhe dizer tudo o que sei em troca das coisas que quero, eles vão acreditar em si e não em mim.
– Sim. – Haraldsson percebeu pela voz dele que o seu desejo não se realizara.
– E como vai explicar os objectos que tenho? – perguntou Hinde num tom de voz perfeitamente banal, que contrastou fortemente com a intensidade do seu olhar.
– Foram-lhe dados por outra pessoa qualquer.
– E você está preparado para apostar nisso toda a sua carreira?
Haraldsson ?cou sentado, em silêncio. Sentia-se como um jogador de xadrez a quem só restava o rei, enquanto o seu oponente subitamente conquistara outra rainha.
– Se não acreditarem em si, não se tratará apenas de perder o seu emprego. Poderá estar atrás das grades quando o bebé chegar.
Haraldsson pôs-se em pé e desceu as escadas sem dizer uma palavra. Edward sorriu. O plano estava a progredir muito bem.
Haraldsson regressou desabridamente ao seu gabinete. Aquilo não tinha corrido de acordo com o plano. Agora teria de aprovar a autorização de visita. Hinde iria encontrar-se com Vanja Lithner sem ele. Mas ele iria assegurar-se de que falava com Vanja logo a seguir. Obrigá-la-ia a dizer-lhe o que apurara durante o encontro. Podia fazê-lo. Era a sua instituição. As suas regras.
Por momentos, acarinhou a ideia de ir à cela de Hinde procurar a fotogra?a de Jenny, o boião e o frasco. Mas que motivo poderia apresentar se alguém o encontrasse na cela vazia? Uma revista fortuita. Nunca seria ele próprio a fazê-lo. Não era essa a sua função. Iria parecer suspeito. E se não encontrasse os objectos? Não, o melhor era permitir que Hinde tivesse o seu encontro e, em seguida, extrair informações de Vanja. Não se tratava de uma situação ideal, mas o importante era o que iria fazer com a informação que recolhesse. Vanja teria de reportar a Torkel. Ele podia dirigir-se imediatamente às instâncias superiores. Ainda havia esperança.
O dia ainda podia ser completamente perfeito.
ESTAVAM À ESPERA DELA.
O guarda abriu o portão logo que a viu. Só havia uma maneira de entrar em Lövhaga, que era passando pelo pequeno posto de segurança. Nas duas primeiras visitas tivera de mostrar a identi?cação à janela, mas daquela vez reconheceram-na e acenaram-lhe que entrasse de imediato. Caminhou pelo carreiro em direcção ao edifício principal, passando a cerca alta encimada por arame farpado. Do outro lado estava a secção aberta. Viu alguns dos reclusos sentados cá fora, a desfrutarem do sol no pátio de exercícios. Como era óbvio, fazia demasiado calor para jogar futebol; estavam posto em tronco nu, a relaxar. Um deles sentou-se mais direito a ?m de olhar para ela.
– Vens visitar-me? – gritou-lhe, contraindo os músculos.
– Isso querias tu! – respondeu-lhe ela, e continuou até ao segundo portão que havia na segunda vedação, que também estava encimada com arame farpado. Era a barreira que separava a ala de segurança dos outros edifícios. Daquela vez o guarda insistiu em ver a sua identi?cação e teve de lhe entregar a arma. Mas também ele estava à sua espera.
– Foi rápida – disse-lhe o guarda. – Eles disseram que, provavelmente, não chegaria antes do meio-dia.
– Havia muito pouco trânsito.
– Haraldsson pediu-me que a levasse logo para dentro.
– Ele não vai lá estar, pois não? – Não conseguiu disfarçar o desagrado perante tal ideia.
– Não, mas pediu-me que o informasse assim que chegasse. – O guarda trancou a arma dela dentro do cofre cinzento, tirou a chave e chamou o colega através do rádio. – A visitante de Edward Hinde chegou.
Vanja agradeceu-lhe com um aceno e foi esperar na zona de gravilha do lado de fora do posto de segurança. Ao ?m de alguns minutos, um outro guarda veio buscá-la. Conduziu-a até uma enorme porta reforçada e abriu-lha. Passaram por mais duas portas de segurança, viraram à esquerda para um corredor e subiram alguns degraus. Não pareciam encaminhar-se para a mesma sala da última vez, embora tivesse di?culdade em saber ao certo; o interior de Lövhaga tinha o mesmo aspecto em toda a parte. Um azul-claro institucional e má iluminação. Por ?m, o guarda parou.
– Espere aqui. Como está sozinha, precisamos de ter a certeza de que ele ?ca devidamente imobilizado antes de entrar.
Vanja assentiu, mas uma parte de si desejava saber se teriam as mesmas preocupações de segurança caso ela fosse um homem. Provavelmente, não. Mas talvez não fosse de surpreender. De certeza que Hinde tinha uma relação especial com as mulheres. Apesar de estar convencida de que era capaz de cuidar de si mesma, sentiu-se grata. Respeitava o perigo, embora jamais admitisse a alguém que se sentia um pouco nervosa. Entrou numa pequena sala de espera e sentou-se num sofá. A sala era escura e abafada; a única luz provinha de uma pequena janela gradeada mais acima. Recostou-se no sofá rijo. Tentou acalmar os nervos. Naquele dia, tudo acontecera com extrema rapidez. A reunião que fora interrompida por Hinde e a viagem veloz e inesperada até Lövhaga. E, além disso, o comportamento de Sebastian. Passara realmente das marcas e parecia ter perdido o juízo por completo. Torkel telefonara-lhe alguns minutos após ela ter saído para lhe dizer que Sebastian partira no seu encalço com o carro de Ursula. Vanja acendera o seu pirilampo azul e, felizmente, não vira qualquer sinal do carro de Ursula no espelho retrovisor.
Sentia-se contente por Sebastian não ?car com eles por muito mais tempo. Era o único aspecto positivo daquela situação. Compreendia que Sebastian estivesse extremamente enervado com o que sucedera. Por mais frio e emocionalmente perturbado que pudesse ser, era óbvio que aquilo tivera um impacto signi?cativo nele. Mas continuava a ser uma loucura permitir-lhe que se mantivesse perto da investigação. Ela nunca conseguiria entender porque Torkel, que continuava a respeitar, o defendera durante tanto tempo. Porém, não conhecera Sebastian nos seus dias de glória. Devia ser por isso. Ela nunca o vira no seu melhor. Porque Torkel não era um idiota qualquer. Exceptuando aquele erro de juízo, era o melhor chefe que ela jamais tivera e decidiu não atribuir grande importância ao que acontecera. Na verdade, em tempos o livro de Sebastian impressionara-a. Portanto, ele tivera algo. Mas já não tinha. E Torkel também já se apercebera disso.
Finalmente.
Devia concentrar-se em impedir os homicídios e refazer o seu relacionamento com Billy. Tinha saudades dele. A nova namorada de Billy podia ter algo a ver com o facto de ele já não se contentar apenas em lidar com os aspectos técnicos da investigação, que era no que ela e o resto da equipa o usavam? Talvez esse ponto de vista não fosse irrazoável. Vanja sempre o tomara por garantido e nem sempre lhe pedira a opinião. Ao mesmo tempo, eram sempre honestos um com o outro. Essa era a parte que ela realmente não compreendia. Porque estava aquilo a acontecer naquele momento? Porque se sentia ele descontente e porque não lhe dissera? Vanja acreditava e esperava que tivessem esse tipo de relacionamento. Era óbvio que não. Decidiu ter uma conversa a sério com ele assim que tivesse oportunidade.
Ouviu uma porta abrir-se e saiu para dar uma olhadela. O guarda regressava.
– Ele já está pronto.
Ela seguiu-o, sentindo-se tensa. Endireitou os ombros e tentou parecer o mais descontraída possível. Só se encontrara com Hinde uma única vez, mas havia algo que compreendera claramente. Ele via através das pessoas. Sabia lê-las. Ela não podia entrar ali mostrando-se nervosa ou tensa.
Bastava-lhe arranjar uma maneira de o iludir.
Aquela sala era diferente. Mais pequena do que a que usaram na primeira vez. Sem janelas. Paredes azuis-claras sujas, iguais às do corredor. Parecia uma cela que já não era usada. Duas cadeiras e uma mesa ao meio, nada mais. Hinde estava sentado de costas para ela, com as mãos e os pés acorrentados à resistente mesa de metal que, por sua vez, estava aparafusada ao chão. A polícia jamais seria autorizada a ir tão longe com alguém que estivesse sob a sua custódia. No mínimo, o advogado do suspeito garantiria isso. Mas naquele local não havia advogados. Isso era Lövhaga. E aquela não era uma entrevista normal. As medidas de segurança rigorosas deviam ser algo em que Haraldsson provavelmente insistiu para que o encontro pudesse ter lugar. Começou a pensar como Hinde o terá conseguido num espaço de tempo tão curto. Sebastian ainda não recebera a sua autorização de visita. Portanto, Hinde deve ter dado qualquer coisa a Haraldsson. A ideia de Haraldsson conseguir in?uenciar a investigação de alguma maneira não era agradável.
Hinde permaneceu imóvel, embora naquela altura já devesse ter consciência da sua presença na sala. O único som era o que provinha das correntes brilhantes que chocalhavam sempre que ele mexia um pouco as mãos.
O guarda entregou a Vanja uma pequena caixa preta com um botão vermelho.
– É o alarme de pânico. Eu estou do lado de fora. Quando tiver terminado, bata à porta. – Vanja aceitou o alarme e olhou para ele com algum cepticismo. O guarda sorriu. – É só para prevenir. De acordo com as regras, na verdade devia ter vindo acompanhada. E Haraldsson quer falar consigo logo a seguir. Ele pretende um relatório.
– Claro. – Assentiu com um gesto de cabeça, embora não tivesse intenção de oferecer algo a Haraldsson. Só quando soubesse mais acerca do seu papel naquilo tudo.
O guarda fechou a porta com ?rmeza atrás de si.
Vanja olhou de novo para as costas imóveis de Hinde.
– Aqui estou eu – disse.
Ele respondeu sem se virar.
– Eu sei.
Vanja caminhou em redor da mesa, mantendo a distância. Confrontou o olhar dele pela primeira vez. Ele ?tou-a com um sorriso amigável, como se estivesse sentado num restaurante com uma chávena de café e não algemado a uma mesa dentro de uma sala trancada.
– Estou muito contente por ter vindo. Por favor, sente-se. – Acenou para a cadeira à sua frente.
Ela ignorou -o.
– O que quer você?
– Eu não mordo.
– O que quer você?
– Uma pequena conversa. Já não vejo muitas mulheres. Por isso, sempre que há oportunidade pelo menos tenho de tentar. Você faria o mesmo se estivesse no meu lugar.
– Eu nunca poderia estar no seu lugar.
– Eu não sou tão terrível como o Sebastian diz. Há razões para tudo.
Vanja deu um passo para se aproximar dele e ergueu a voz.
– Não vim aqui para uma pequena conversa. Vim porque você disse que tinha algo para me contar. Mas parece que tudo não passou de uma treta.
Virou-lhe as costas e caminhou de volta para a porta. Ergueu a mão para chamar o guarda.
– Vai arrepender-se se o ?zer.
– Porquê?
– Porque eu sei quem matou aquelas mulheres.
Vanja baixou a mão e virou-se de frente para ele.
– Como é que sabe?
– Descobrem-se coisas por aqui.
– Tretas.
– Você sabe que eu sei. – Pela primeira vez, Hinde virou-se e olhou directamente para ela. – Você viu-o nos meus olhos da última vez que cá esteve.
Vanja contraiu-se. Estava apenas a tentar adivinhar ou apercebeu-se realmente de alguma espécie de reacção dela durante a visita anterior? Ter-se-á apercebido daquilo que ela interpretou como uma intuição? Se assim fosse, então era melhor a ler as pessoas do que alguém que ela já tivesse conhecido. Melhor e mais perigoso.
– Se se apercebeu disso da última vez que aqui estivemos, porque não o disse?
– Não tinha a certeza. Agora tenho.
– Como assim?
– Falei com a pessoa em questão. Trabalha aqui. Confessou-mo. Na verdade, gabou-se. Eu sou um ídolo para ele. Consegue imaginar?
– Não. Como se chama?
– Antes de mais, há algo que gostava de saber a seu respeito. Algo pessoal. Você parece-se mais com a sua mãe ou com o seu pai?
– Não tenciono falar consigo acerca de assuntos pessoais.
– É só uma pergunta.
– Mas que raio de pergunta é essa?
Vanja caminhou de novo em redor dele. Ele seguiu-a com o olhar. O sorriso desaparecera. A expressão dele continuava a ser amigável mas era, ao mesmo tempo, terrivelmente incómoda. Sentia que estava a tentar penetrar na sua cabeça. Lê-la. Examiná -la.
– Estou apenas interessado, só isso. Eu parecia-me mais com a minha mãe segundo as pessoas diziam quando era pequeno.
Vanja abanou a cabeça.
– Com o meu pai, creio. Quem é o assassino?
Hinde olhou para ela e depois fechou os olhos. No seu espírito, afastou-se deliberadamente daquele local por momentos e respirou fundo. Visualizou o homem. O pai dela. Tentou ver a ininterrupta ?liação genética entre o homem que odiava e a sua ?lha, que estava em pé junto dele naquela sala. Tinha de tomar uma decisão. Devia contar-lhe? Expor o pequeno segredo sórdido que quase se tornava demasiado óbvio quando o conhecíamos? Ela tinha os seus olhos. A mesma energia irrequieta. Só lhe apetecia despojá-la disso. Fazê-la vergar. Desonrá-la. Teve de se lembrar que só com vagar e constância se ganhava a corrida.
Planeamento. Paciência. Determinação.
As pedras angulares.
– Concordo – disse ele com um ar sonhador, abrindo os olhos. – Também acho que você se parece mais com o seu pai.
– Última oportunidade e, a seguir, vou-me embora. Dê-me um nome.
Hinde assentiu para si mesmo e inclinou-se para a frente.
– Eu não estava só a querer irritar o Sebastian quando disse que queria tocar em si – disse com uma voz calma, sugestiva.
Vanja estava acima dele, com os braços cruzados.
– Você nunca me irá tocar.
– Talvez não. No entanto, tenho algo que você quer. Pela minha experiência, as pessoas estão dispostas a fazer muito para conseguirem o que querem. Você não concorda?
Ele abriu a mão direita, que até esse momento estivera cerrada. Na palma da mão tinha um pequeno pedaço de papel, cuidadosamente dobrado, que não era maior do que uma unha.
– Aqui está ele. A pouco mais de um metro de si. – Sorriu de novo para ela.
De súbito, ele inclinou-se com uma velocidade fulgurante e apanhou o pedaço de papel com a boca. Endireitou-se e mostrou-lhe o bilhete, ?rmemente preso entre os dentes da frente.
– Vou demorar dois segundos a engoli-lo – disse por entre os dentes cerrados. – Depois terá desaparecido para sempre e não lhe direi nem mais uma palavra. Continuo a não poder tocar em si?
Vanja continuava ali em pé, com os braços cruzados, os olhos ?xos no pequeno pedaço de papel.
– Nas mamas não. Só no seu cabelo – continuou Hinde. – Não é um grande sacrifício para si, pois não?
Abriu deliberadamente a mão esquerda e ergueu-a na sua direcção. A mão elevou-se alguns centímetros até a corrente a travar. Os dedos dele moveram-se depressa, sedutoramente.
– Por favor, Vanja. Coloque aqui o seu cabelo.
Vanja não sabia o que fazer. Poderia aquele pedaço de papel fornecer realmente a resposta que há tanto tempo procuravam? Ou seria apenas um truque? Sebastian advertira-a para não entrar nos jogos de Hinde, um conselho que na realidade se sentia inclinada a seguir.
– Como sei que você não está a mentir?
– Eu cumpro sempre as minhas promessas. Você já devia sabê-lo se tivesse feito os trabalhos de casa. A escolha é sua.
Mostrou-lhe um grande sorriso, com o bilhete claramente visível, os dedos da mão esquerda ainda a acenarem de um modo brincalhão.
Vanja tentou analisar a situação rapidamente. Que era extrema em todos os sentidos. O risco de que não passasse de uma armadilha era considerável mas, ao mesmo tempo, não podia deixar de sentir que Hinde lhe dizia a verdade. Não percebia como aquilo podia conduzir a uma simples situação de sequestro. Hinde estava ?rmemente acorrentado. Ela tinha o alarme de pânico. O mal-estar que sentira ao princípio estava agora temperado por uma estranha curiosidade, quase imprudente. Se lhe virasse as costas e se fosse embora, poderia arrepender-se para sempre. Porque se a solução estivesse naquele pequeno pedaço de papel que Hinde tinha entre os dentes, então valeria a pena. Se Hinde estivesse a dizer a verdade, ela não apenas poderia salvar a vida de futuras vítimas como seria a única pessoa que conseguira obter informações cruciais junto de Edward Hinde. Sozinha. Só ela. Mais ninguém. Daí em diante, a presença de Sebastian na equipa seria supér?ua. Se ela conseguisse resolver o caso, porque iriam precisar novamente de Sebastian Bergman?
Deslocou o polegar esquerdo para cima do botão de alarme. Demoraria uma fracção de segundo a premi-lo. O guarda tardaria, porventura, uns trinta segundos até entrar na sala. Hinde não podia estender a mão direita até ao outro lado da mesa para a agarrar. Uma mão apenas. Ela conseguiria afastar-se facilmente. Podia perder um tufo de cabelo, mas conseguiria fazê-lo. Iria expor-se a um grau de risco relativamente baixo durante mais ou menos um minuto.
Decidiu entrar no jogo. Inclinou-se lentamente para a frente e manteve-se o mais longe possível de Hinde, embora deixando que lhe tocasse nas pontas do cabelo com a mão esquerda caso se esticasse até onde as correntes lho permitiam. Ouviu o chocalho de metal pouco antes de os seus dedos lhe tocarem no cabelo louro. Fitou-o nos olhos. O que era aquilo que conseguia ver?
Antecipação?
Felicidade?
Os dedos dele acariciaram suavemente o cabelo macio e sedoso. Era mais ?no do que imaginara. Parecia mais leve na sua mão. Sentiu o cheiro a champô frutado. Inclinou-se um pouco para conseguir aspirar aquele aroma. De repente, desejou que ela estivesse acorrentada à mesa e não ele. Desejou ter maior liberdade de movimentos para a poder sentir. Como devia ser. Ficou mais excitado do que esperava, e teve de se esforçar para disfarçar os sentimentos. A mãe dele também tinha o cabelo louro. Mais comprido do que o de Vanja. Mas não era tão macio. Aquele cabelo dava-lhe vontade de o puxar. Com força. Mas não podia ter tudo. De momento, não.
Planeamento. Paciência. Determinação.
Naquele momento, bastava. Com relutância, retirou a mão e cuspiu o pedaço de papel, que aterrou no meio da mesa. A sua expressão foi a mais gentil possível quando olhou para ela.
– Está a ver, eu cumpro as minhas promessas. – Recostou-se para trás e baixou a mão para lhe mostrar que terminara. Vanja endireitou-se e pegou no bilhete. Sem o desdobrar, dirigiu-se para a porta.
– Até à próxima, Vanja.
– Duvido muito. – Bateu na porta. – Já terminei aqui!
O guarda abriu a porta ao ?m de alguns segundos e ela saiu da pequena sala. Hinde permaneceu sentado, imóvel; ainda se lembrava do cheiro dela.
Eu cumpro sempre as minhas promessas, pensou.
Até à próxima, Vanja.
Como não queria que o guarda visse o bilhete, perguntou-lhe onde eram os sanitários. As instalações para visitantes situavam-se no piso de cima, no que parecia ser uma área meramente administrativa. As cores deprimentes eram as mesmas que em qualquer outro sítio de Lövhaga, mas pelo menos os sanitários haviam sido limpos há pouco tempo.
Vanja sentou-se em cima do tampo da sanita e desdobrou o pedaço de papel. Havia um nome, escrito a lápis em letras maiúsculas: RALPH SVENSSON.
Pensou reconhecê-lo. O apelido talvez não. Mas aquele Ralph, com ph no ?m. Já o lera algures. Mas onde? Pegou no telemóvel e ligou a quem podia saber. Billy. Ele atendeu quase de imediato.
– Olá. Podes veri?car-me um nome? Ralph Svensson. Ralph com ph. Se não te importares? – acrescentou.
– Foi o Hinde quem te deu esse nome?
Billy não deu mostras de ter ouvido aquela ressalva ?nal que ela acrescentara. Ouviu-o teclar.
– Ele diz que é o assassino. Julgo reconhecer o nome de algum sítio.
– Eu também. Espera aí.
Billy calou-se. As batidas prosseguiram. Os dedos de Vanja tamborilavam nervosamente enquanto aguardava que ele regressasse à linha. A questão era saber até que ponto aquela indicação seria ?ável, mas de momento não podia preocupar-se com esse assunto. A prioridade era investigá-la minuciosamente. Descobrirem tudo o que pudessem acerca de Ralph Svensson. Billy voltou à linha. Ela percebeu logo que estava entusiasmado.
– Ele não é funcionário mas faz parte da lista das pessoas que têm um passe para entrar em Lövhaga. Trabalha para uma empresa de limpezas, a Limpezas LS. Já o investigámos mas não descobrimos nada a seu respeito.
– Descobre tudo o que puderes. Eu telefono-te do carro. Avisa o Torkel.
Ela terminou a chamada e pôs-se em pé. Puxou o autoclismo e, antes de sair, lavou as mãos por uma questão de precaução. O guarda estava postado a curta distância e tentou atrair-lhe a atenção de imediato.
– Tudo pronto?
– Absolutamente. Tenho de ir.
– E quanto ao Haraldsson? Eu já lhe disse que íamos a caminho.
– Diga-lhe que pode telefonar para a Riksmord se for importante. Já estou atrasada.
Vanja partiu em direcção ao que pensava ser a saída. Já não tinha mais tempo para idiotas.
Billy telefonou-lhe antes de ter tempo de recuperar a sua arma. Falou rapidamente e ela conseguiu ouvir Torkel ao fundo.
– O Torkel quer saber até que ponto isto é ?ável. Achas que temos motivos razoáveis para colocar o Svensson sob custódia?
– Não sei até que ponto é ?ável. O Hinde deu-me um nome. Não conseguiste encontrar nada?
– Na verdade, não. Nascido em 1976. Mora em Västertorp. Não tem cadastro. Trabalha para as Limpezas LS há sete anos. Falei com o chefe dele, que só lhe tece elogios. A única pista possível é que no ano passado lhe propuseram um trabalho de limpeza num hospital mais perto de casa, com uma remuneração superior e um horário melhor, mas recusou. Disse que estava contente em Lövhaga.
– Ele está cá agora?
– Não. Está de baixa por doença desde ontem à hora do almoço.
Vanja assentiu e virou-se de costas para que o guarda, atarefado com o cofre, não a ouvisse.
– Ele teve acesso à ala do Hinde?
– Sim, trabalhou tanto na secção aberta como na ala de segurança.
– Isso devia ser su?ciente. Ele foi indiciado como suspeito e temos provas de um possível contacto.
Ouviu Billy a falar com Torkel. Não tardou a voltar à linha.
– O Torkel está agora mesmo a falar com o procurador acerca de uma busca em casa do Svensson. Ele precisa de saber exactamente o que o Hinde te disse.
– Não falou muito. Só disse que este tal Ralph lho confessou. Gabou-se dos homicídios. Aparentemente, o Hinde é um ídolo para ele.
– Talvez o Hinde esteja apenas a tentar tramá-lo.
– Talvez. Mas eu acho que é ele. Não creio que o Hinde me estivesse a mentir.
– Mais alguma coisa?
– Não.
Havia certos pormenores que mais ninguém precisava de saber. Os pormenores do seu encontro com Hinde encaixavam-se de?nitivamente nessa categoria. O modo como ela adquirira a informação. Em todo o caso, isso não teria qualquer in?uência para que eles conseguissem, ou não, obter um mandado de busca.
– Porque está ele a ajudar-nos? Disse-to? – quis saber Billy.
Vanja manteve-se calada por uns momentos. Ficara tão empolgada pelo facto de Hinde ter falado com eles que ignorara por completo a pergunta inteiramente justi?cada de se saber porque o ?zera.
– Não. Será porque é um cidadão cumpridor da lei?
– Isso não parece muito provável, pois não?
– É importante?
– Talvez não.
– Se o assunto tiver alguma relevância haveremos de descobrir. – Virou-se para o guarda, pegou na arma e en?ou-a no coldre. – Telefona-me quando o mandado de busca chegar. Agora vou regressar a Estocolmo.
Terminou a chamada e agradeceu ao guarda o seu auxílio. Ele apontou para a porta grande.
– Está lá fora um homem que perguntou por si. Ele não tem autorização de visita.
Vanja sabia quem era.
Por instantes, pensou que realmente preferia Haraldsson.
Havia idiotas, e depois havia idiotas.
Sebastian estava em pé ao lado do carro de Ursula, a olhar para os muros altos e para os edifícios encardidos. Estacionara do lado de fora do portão principal, o mais perto da berma da estrada que conseguiu. Fora esse o seu compromisso. Os funcionários tinham ido lá fora e tivera uma discussão acalorada com eles. Alegavam que estava a impedir o movimento de trânsito para entrar e sair de Lövhaga, e que não só não dispunha de uma identi?cação policial, como também não tinha autorização de visita. Então, Sebastian observou que eles eram uns burocratas desmiolados e insistiu que precisava de entrar. Ao ?m de alguns minutos de gritaria acabaram por abanar as cabeças e voltaram para dentro, deixando-o ali.
Caminhou nervosamente para trás e para a frente atravessando a estrada. Pontapeou a gravilha da berma devido à frustração. Colheu dentes-de-leão e, com o polegar, separou as corolas dos caules, tal como costumava fazer quando era criança. Precisava de afastar os pensamentos acerca da absurda burocracia de Lövhaga envolvendo-se em simples acções físicas e, acima de tudo, tinha de reprimir a ansiedade em relação a Vanja. Aqueles idiotas por trás da cerca nem sequer lhe con?rmaram se ela estava lá, embora tivesse avistado o seu carro. Permitiram que ?casse onde estava, mas não mais que isso. Naquele momento, era como o resto da sua vida. Encontrava-se atolado numa terra erma onde já ninguém se dava sequer ao trabalho de lutar com ele.
Estava a deslizar para longe do centro dos acontecimentos. Juntar-se à investigação devia ter-lhe permitido aproximar-se de Vanja. Arranjar uma vida. Talvez até resolver o caso, embora ao princípio esse não fosse o seu verdadeiro motivo. Mas tudo acontecera antes de Hinde. Antes de aquilo se transformar num con?ito pessoal. Antes de todas as portas começaram a fechar-se na sua cara. Porque não foi apenas o portão de aço que dava acesso a Lövhaga que se fechou para ele. Telefonara a Torkel a partir do carro esperando, de alguma forma, conseguir persuadi-lo a fazer parar Vanja. Ele não atendera. Não retribuíra a chamada. Billy também não. E a culpa era sua; fora ele quem conseguira virar todos contra si. Por mais que o quisesse, não podia culpar mais ninguém. Ao mesmo tempo, a sua ansiedade quanto ao perigo que Vanja podia correr tinha diminuído. Ela era sensata e não correria riscos desnecessários. Hinde não se interessava por algo tão banal como um mero cenário de sequestro de uma refém. Não, ele tinha sempre planos maiores. A única questão era quais seriam esses planos.
Hinde sabia a verdade. Sebastian pressentia-o. Fora por esse motivo que requerera autorização para falar com Vanja.
Iria dizer -lhe?
Ou isso também era demasiado banal para ele?
Sebastian detestava não o saber. Começou de novo a caminhar de um lado para outro. Passou pelo portão e espreitou o interior. De repente, avistou Vanja. Ela atravessava apressadamente o pátio em direcção ao seu carro. Devia chamá-la? Acenar-lhe? Ficar ali parado? O que sabia ela? Viu-a olhar na sua direcção, mas não mostrou qualquer reacção. Ele não passava uma lufada de ar fresco. A falta de interesse dela animou-o.
Ela não sabia.
Se o soubesse, havia fúria ou repulsa no seu olhar e não uma indiferença total. Em circunstâncias normais talvez não fosse motivo para celebração, mas naquela situação era o melhor desfecho possível. Percebeu que estava a sorrir para si mesmo. Um grande sorriso, na verdade.
Ela não conseguia acreditar no que via enquanto conduzia em direcção ao portão. Ele estava realmente ali parado a bloquear a estrada com um sorriso de desdém no seu rosto? Baixou o vidro da janela e debruçou-se para fora.
– Desculpa, estás a impedir-me o caminho.
– Quero falar contigo – aventurou-se.
– Mas eu não quero falar contigo.
Parou o carro a poucos centímetros de distância. Ele nem se atreveu a mexer-se; se o ?zesse, provavelmente ela limitar-se-ia a acelerar e a desaparecer.
– Preciso de saber. O que queria o Hinde?
– Deu-me o nome do assassino.
O pequeno sorriso que até aí bailara nos lábios de Sebastian desapareceu imediatamente. Não esperava aquilo.
– O quê? O que queres dizer?
– Ele disse que sabe quem é o assassino. Aparentemente, é alguém chamado Ralph Svensson. Faz limpezas aqui em Lövhaga. Sabemos que ele teve oportunidade para falar com o Hinde.
– E tu acreditas no Hinde?
– Não tenho motivos para não acreditar. Nós seguimos todas as pistas, não é?
– Porque haveria ele de te contar isso?
– A verdadeira pergunta é porque não te contou a ti? Quero dizer, supostamente tu é que és o perito. O único que sabia como fazê -lo falar.
Ela não conseguiu disfarçar o prazer malicioso na sua voz. Nem sequer tentou. Sem pensar, Sebastian caminhou até junto dela.
– E ele não teve nada a ver com o caso? Acreditas realmente nisso?
– Eu sou uma agente da polícia. Não tenho opinião. Investigo. Com licença.
Pisou no acelerador, os pneus aderiram à estrada com um guincho e o carro avançou. Ele saltou instintivamente para o lado e ?cou a vê-la a afastar-se.
Fora de novo deixado para trás.
Começava a habituar-se à situação.
ENQUANTO IA no carro a caminho de Västertorp, onde Ralph Svensson morava, Torkel recebeu autorização para uma busca ao seu apartamento. Após uma longa conversa ao telefone, Gunnar Hallén, o procurador, dera ?nalmente a sua aprovação. Havia fortes evidências circunstanciais mas, na verdade, o problema era a avaliação do testemunho de Hinde. O facto de ele ter sido condenado a prisão perpétua não era propriamente uma ajuda em relação à sua credibilidade. Fora necessária muita persuasão por parte de Torkel, mas sabia que Hallén acabaria por dar a sua permissão quando tudo dependesse disso. Era o tipo de caso de grande notoriedade que se tornava absolutamente crucial em termos de perspectivas de carreira. Fazer buscas a uma propriedade com motivos mais ou menos insu?cientes era melhor do que não agir de todo.
Torkel pedira a Billy que organizasse uma equipa de resposta de emergência para arrombar a porta em caso de necessidade e, pouco depois, entrara no carro com ele. Queria estar no local, pronto a entrar em acção logo que lhe dissessem que o podia fazer. Não havia tempo a perder com a logística e o transporte. Vanja iria ter com eles a Västertorp o mais depressa possível. Nem sequer se deu ao trabalho de telefonar a Sebastian.
Billy estacionou na área de manobra por detrás de uma série de edifícios de apartamentos vermelhos que datavam da década de 1950. A casa de Ralph Svensson situava-se três centenas de metros mais adiante, no cimo de uma colina próxima do pequeno centro, que há muito tempo tivera a sua época áurea. Billy falou com o líder da equipa de resposta de emergência, que lhe prometeu que chegariam dentro de cinco minutos. A seguir, telefonou a Ursula e disse-lhe onde tinham estacionado.
Torkel pôs-se a caminhar por ali, contemplando os arredores frondosos e os blocos independentes de apartamentos. A brisa quente trazia consigo o cheiro a comida e o som de música que saíam das janelas abertas. Ouviu risos algures. Um grupo de crianças gritava enquanto andavam de bicicleta em redor de um caixotão de areia perto dali.
Billy abriu o porta-bagagens e tirou um colete à prova de bala que começou a vestir.
Torkel olhou para ele com um ar interrogador.
– Vamos deixar os especialistas entrarem primeiro.
– Eu quero estar lá. O caso é nosso.
– Sim, pois é. Não precisamos de arrombar as portas para o provar.
– Está bem. Então vou apenas como observador.
Torkel abanou a cabeça. Não havia dúvidas de que Billy mudara durante as últimas semanas. Antigamente ?cava muito satisfeito por desempenhar o papel de segundo violino e apoiar Torkel e Vanja no aspecto tecnológico dos casos. Agora queria entrar num apartamento com a arma na mão.
– Vamos fazer como sempre – disse Torkel com ?rmeza. – Eles detêm o suspeito. Depois, nós entramos em acção.
Billy acenou com a cabeça mas não despiu o colete. Parecia um adolescente rebelde.
Torkel caminhou até junto dele e pousou-lhe uma mão no ombro.
– Aconteceu alguma coisa? Tenho a sensação de que há alguma... – procurou a palavra apropriada – ... fricção na equipa. Sobretudo entre ti e Vanja.
Billy não respondeu. Torkel manteve a mão onde estava.
– Precisas de falar comigo acerca do assunto. Nós somos uma equipa mas, de momento, nem sempre é o que parece.
– Achas que sou um bom agente da polícia? – Billy olhou candidamente para Torkel. Era a primeira vez que Torkel se lembrava de ver Billy referir-se a si próprio com o mínimo laivo de incerteza.
– Se não fosses não estarias a trabalhar comigo – respondeu Torkel.
Billy assentiu.
– Mas se somos uma equipa, porque nos tratam de maneira diferente?
– Porque somos diferentes – disse Torkel, como se fosse a coisa mais óbvia do mundo. – Temos forças diferentes, fraquezas diferentes. Complementamo-nos uns aos outros.
– E a Vanja é a melhor agente da polícia.
– Eu não disse isso.
– Está bem, mas se a Vanja tivesse vestido este colete e quisesse ir para ali como observadora tê-la-ias impedido?
Torkel estava prestes a responder-lhe com o mais do que evidente «sim» que tinha na ponta da língua quando hesitou ao perceber que, a?nal, talvez Billy tivesse razão. Na realidade, teria sido tão ?rme com Vanja? Provavelmente, não. Porque ela era melhor agente da polícia? Provavelmente.
Não lhe respondeu.
E isso bastou como resposta.
RALPH ACABARA de se sentar frente ao computador e começara a aceder à fygorh.se. Ia enviar uma mensagem ao Mestre. Confessar-lhe o seu fracasso. Na véspera ?cara à espera do lado de fora da porta do prédio de Ellinor até escurecer, na esperança de que ela regressasse. Não regressara.
Quando chegou a casa estava exausto. Seguira a sua rotina habitual e acendera todas as luzes por ordem. Depois, parara. Atrapalhado. O saco de desporto e a comida. O que lhes devia fazer? Infelizmente, parecia que iria ter de inventar um ritual para quando falhasse. Pensou nisso durante algum tempo, depois chegou à conclusão de que o curso de acção melhor e mais natural seria fazer o ritual da preparação mas na ordem inversa. Retirou da sacola a garrafa de cloro e guardou-a de novo no armário por baixo do lava-louças, pôs a comida e a bebida no frigorí?co, a seguir dobrou a sacola e guardou-a no armário das limpezas. Foi para o quarto. Tirou para fora as meias de nylon e a camisa de dormir e colocou-as na gaveta de cima. A seguir, parou. Na verdade, devia colocar o saco de desporto naquele espaço entre a roupa, mas nesse caso o que faria com a faca? Não fora usada mas, devido a todos os reveses dos últimos dias, a sua necessidade de seguir as regras à letra parecia ser muito maior. Decidiu levar o saco para a cozinha. Quando lá chegou, retirou a faca, enxaguou-a e lavou-a, secou-a e colocou-a dentro do saco de desporto num saco de plástico novo com capacidade para três litros. Atirou o antigo para dentro do armário por baixo do lava-louças e regressou ao quarto. Já podia guardar o saco de desporto na primeira gaveta e fechá-la. Tudo feito.
Caiu na cama, exausto. O quarto estava luminoso e quente; as lâmpadas de cem watts em cada canto eliminavam as sombras, todos os vestígios da terrível escuridão, e acalmaram-no.
Dormira cerca de duas horas. Acordara daquele sono sem sonhos e tentara prosseguir. Passara a manhã à procura de Ellinor Bergkvist. Ela não estava no emprego e recusaram-se a dizer-lhe quando pensavam que estaria de volta. Tentara telefonar para a Taxi Stockholm para perguntar se o podiam informar onde é que o táxi com a matrícula JXU346 deixara a mulher que apanhara no dia anterior em Västmannagatan, por volta das dezasseis horas. Não era o género de informação que estivessem dispostos a fornecer daquela maneira e, quando lhe perguntaram quem falava, ele desligou. Não a tinha encontrado. Havia falhado.
Ralph digitou o seu nome de utilizador e a palavra-passe. Havia uma mensagem. Vinda do Mestre. Enviada durante a noite.
A mensagem era breve e concisa.
«Agora, tu és eu.»
Era tudo o que dizia. Ralph levantou-se e pôs-se a caminhar em redor da sala, confuso mas, ao mesmo tempo, um pouco entusiasmado. Fora elevado ao estatuto de igual. Não havia outra maneira de o interpretar. Sentiu um clarão interior; não esperava de todo aquilo.
Mas o que signi?cava? Iria deixar de receber ordens do Mestre? Devia agir inteiramente por sua própria iniciativa? Evoluir segundo o seu próprio ímpeto?
Estava perdido nas suas especulações quando ouviu algo que se assemelhou a uma pequena explosão na porta da frente. Segundos depois, umas ?guras vestidas de preto, que usavam capacetes e empunhavam o que pareciam armas de fogo automáticas apontadas para ele, entraram de rompante.
– Polícia! Deite-se no chão! – gritaram. Com uma velocidade fulgurante, Ralph lançou-se ao computador, agarrou nele e atirou-o contra a parede. Por todo o lado voaram fragmentos de componentes de plástico e electrónicos. Correu para a frente e espezinhou os restos do computador até chegarem uns homens corpulentos que o seguraram no chão. Nem sequer se debateu quando lhe dobraram os braços para trás e lhe colocaram as algemas. Olhou para o computador partido à sua frente. Protegera o Mestre.
Eles foram brutos. Mas não importava. Na verdade, Ralph foi subitamente tomado por uma sensação de calma. Essa sensação aumentou quando outras ?guras vestidas de preto entraram no quarto e o levaram para fora do apartamento. Iniciara a fase seguinte, e naquele momento entendia a importância da mensagem do Mestre.
Agora tu és eu.
Com efeito, era.
VANJA CHEGOU ao local quando a equipa de resposta de emergência se preparava para sair com Ralph Svensson. Do seu carro vira-os levarem para a traseira da viatura um homem alto e magro, vestido com um pólo e calças cinzentas. Ele nem se debatia, permanecia imóvel enquanto quatro agentes o transportavam. Vanja ?cou a vê-los desaparecerem e depois saiu do carro. Bateu com a porta e caminhou até ao edifício de apartamentos. Estava zangada e a visão de Billy, vestido com um colete à prova de bala a sorrir-lhe da entrada, não foi propriamente uma ajuda.
– Apanhámo-lo, Vanja. É ele.
– Porque não esperaram por mim? – Caminhou até junto dele. – A pista era minha. Eu consegui que ele me dissesse o nome.
O sorriso de Billy desapareceu de imediato, sendo substituído por uma frieza que ela já conhecia.
– Fala com o Torkel. A decisão foi dele.
Foi-se embora. Deixou-a ali especada. Ela avistou Torkel por perto, com o líder da equipa de resposta de emergência. Estavam embrenhados numa conversa profunda e o outro agente gesticulava. Pareciam recapitular a operação. Vanja começou a dirigir-se para eles mas mudou de ideias. Não tinha forças para guerrear também com Torkel. E a decisão dele fora a mais acertada. Ela teria feito o mesmo se lhe competisse escolher. O que importava era agir rapidamente e não saber quem ?zera o quê.
O lado pro?ssional das coisas não passava de um aspecto. O outro era pessoal e estava relacionado com a posição dela no seio da equipa, com os papéis de todo eles e a distribuição de responsabilidades. Antes daquele caso tudo isso era muito claro e evidente. Ela viu Torkel e o outro agente trocarem um aperto de mãos e despedirem-se.
– Bom trabalho, Vanja – bradou Torkel quando se encaminhou para ela.
– Obrigado. Até que ponto temos a certeza de que é ele?
– A Ursula está agora lá dentro. Vai fazer a sua própria avaliação preliminar para evitar qualquer risco de contaminação, mas o local parece uma mina de ouro.
– A sério?
Torkel assentiu com um gesto sereno. Parecia descontraído, e Vanja percebeu que já se convencera de que tinham apanhado o homem certo. Sentiu alguma da sua irritação a desvanecer-se; o facto merecia ser comemorado. Era provável que tivessem acabado de resolver o caso.
– Dez camisas de dormir idênticas, meias de nylon, uma pasta de couro cheia de recortes de imprensa acerca dos homicídios – continuou Torkel. – Uma faca que parece corresponder à dos ferimentos. E uma parede coberta de fotogra?as das vítimas.
– Mas isso é estupendo – disse Vanja; estava espantada. Seria realmente tão fácil relacionar Ralph Svensson com os homicídios?
– Absolutamente, e ela ainda agora começou. O ADN vai demorar um ou dois dias, pelo menos para um resultado preliminar.
Vanja fez acenou com a cabeça e trocaram um olhar que se abeirava da afeição. Ambos sentiam o peso daquele momento. Estava um dia bonito. O Sol brilhava para além da longa sombra projectada pelo edifício onde se encontravam e fazia a relva parecer macia e convidativa. Era como se estivessem a caminhar para a luz do Sol. Para longe das sombras em que se encontraram durante tanto tempo.
– Lamento que o tenhamos apanhado sem ti – disse-lhe Torkel amavelmente. – Mas não podíamos esperar.
– Eu compreendo – disse ela, sem hesitar. – Foi uma boa decisão.
Billy veio ter com eles. Já despira o colete à prova de bala.
– A Ursula disse que ainda irá demorar algumas horas, pelo menos até podermos entrar.
Os outros dois abanaram a cabeça mas não falaram. Ficaram os três ali, em silêncio, a contemplar a luz do Sol e a verdura.
Como uma equipa.
Como antigamente.
O som do telemóvel de Billy interrompeu o silêncio. Era a sua nova namorada, perceberam os outros pela suavidade da voz dele. Afastou-se para discutir os planos que tinham para essa noite.
Torkel virou-se para Vanja.
– O Hallén vai querer convocar uma conferência de imprensa hoje à tarde. Eu gostava que estivesses lá.
– Mas normalmente és tu quem lida com isso – disse ela, surpreendida.
– Eu sei, mas quero que sejas tu a fazê-lo. Foi graças a ti que resolvemos o caso.
Ela sorriu para ele. Sabia exactamente porque se candidatara para ir trabalhar com Torkel Höglund e a Riksmord. Porque ele era um bom chefe. Porque ele entendia as pessoas. Percebia que todos precisavam de se sentir envolvidos.
SEBASTIAN CHEGARA à sede da polícia cerca da uma da tarde. Procurara Torkel e os outros. Ninguém sabia dizer-lhe onde estavam. Por ?m, um dos agentes uniformizados, que costumava cumprimentar, disse-lhe que tinham saído para uma operação. Aparentemente no Sul de Estocolmo e correu bem. Frustrado, Sebastian telefonara a todos os membros da equipa. Começara por Torkel e a partir daí foi descendo. Nenhum deles atendeu. Teve uma ideia e dirigiu-se ao centro de detenção provisória, situado ao lado da sede, para ver se conseguia encontrar algum deles por lá. Talvez tivessem ido prender o tal Ralph Svensson, cujo nome Hinde dera a Vanja por qualquer motivo inexplicável. Não estava lá ninguém. Nem ninguém disposto a dizer-lhe se viriam a caminho. Encontrava-se de novo na terra de ninguém.
Saiu para a rua. Subiu a Fridhemsplan e passou pela entrada vigiada até chegar ao parque de estacionamento subterrâneo. Sabia que, provavelmente, iriam usá-lo quando regressassem. Sentou-se na relva, perto da entrada, e esperou. O guarda olhou para ele com descon?ança a partir da sua cabina, mas não lhe disse nada. Sebastian estava numa zona pública e não ?zera nada de ilegal. Era um homem de meia-idade, com um casaco amarrotado, que ao ?m de algum tempo se deitou na relva crescida. Para o guarda da Securitas devia parecer um alcoólico que ia a caminho do parque Kronoberg mas perdera o ímpeto e se deixara cair no primeiro pedaço de relva que encontrara. Só lhe faltava a garrafa.
Sentia-se completamente inútil. Um diploma de primeira classe, anos de estudos avançados em instituições que incluíam a Academia do FBI em Quantico, nos EUA, um autor dos mais vendidos, um dos principais psicólogos criminais do serviço policial sueco durante vários anos e, no entanto, a única esperança que lhe restava era que os outros passassem por acaso ali e, como que por magia, pudesse voltar a fazer parte da investigação. Era esse o seu único plano, a única solução que conseguira extrair da sua enorme bagagem de conhecimentos. Manter-se no activo.
O seu telemóvel tocou. Agarrou-o avidamente. Podia ser um deles. Não era. Reconheceu o número do qual nunca lhe ligaram.
Era o seu número de casa.
Atendeu.
Era Ellinor. Claro.
Pensou descarregar a sua frustração nela, gritar com ela, deixá-la sentir a sua dor. Mas parecia tão feliz que não conseguiu fazê -lo.
– Desculpa, querido, eu sei que quando alguém nos telefona para o trabalho isso pode criar di?culdades. Mas estou um pouco preocupada por poderes estar zangado comigo.
– Porquê?
– Porque eu saí do apartamento.
– Porque ?zeste isso? – A raiva dele transformou-se em ansiedade. Talvez sem justi?cação. Se a operação fora um sucesso, se era de Ralph que eles andavam à procura, então a ameaça fora eliminada. Ela podia ir para casa. Sair de lá. Ele podia correr com ela.
– Bom... Na verdade não saí do edifício.
– O quê? Então, onde foste?
– Fui visitar os vizinhos. Achei que me devia apresentar.
Sebastian ?cou sem palavras. Toda a negatividade que sentira desde o início, de súbito foi substituída por uma estranha sensação de que, no que respeitava a Ellinor, ele faria sempre parte de um universo paralelo. Os dois eram fundamental e totalmente incompatíveis. Não tinham nada em comum. Não havia maneira de alguma vez poderem manter um relacionamento.
– Eu não tenho nada a ver com os meus vizinhos – disse ele laconicamente.
– Pois não, foi isso mesmo que eles disseram. Mostraram-se muito curiosos a teu respeito. Em todo o caso, precisas de fazer mais algumas compras. Temos de acrescentar coisas à lista.
– Não estou a entender. – Soergueu-se e sentou-se na relva.
– Não te zangues, mas convidei o nosso vizinho do lado para jantar. O Jan-Åke. A família dele está fora. Ele é médico, tal como tu.
– Eu não sou médico. Sou psicólogo.
– Portanto, tens de estar em casa às cinco – prosseguiu Ellinor como se não tivesse ouvido a correcção – e telefona-me quando estiveres na loja. Vai ser óptimo. Ou estás zangado?
Sebastian tentou ?car irritado, procurou as palavras que a iriam magoar tanto que ela simplesmente se limitaria a desaparecer. Mas não conseguiu encontrá-las. Eram difíceis de apanhar. O mundo dela era muito mais suave. Muito mais amável. No mundo dela, ele valia alguma coisa.
– Eu estou a fazer isto porque te amo, tu sabes, não sabes? Não podes viver como um eremita quando tens um apartamento tão bonito. Eu não o tolero. Voltas às cinco?
– Sim.
– Beijinho, beijinho.
– Beijinho, beijinho – ouviu-se a responder. A seguir, ela desligou.
Pôs-se em pé, sentindo-se confuso. Jantar com um vizinho a quem nem sequer falava há vinte anos. Mas não era o pior. O pior era que ele ?cara realmente a ansiar pelo jantar. Um bocadinho. Havia um lugar onde ele continuava a ser o centro das atenções. Um lugar onde ainda era desejado.
Um lugar que não tinha desde há muito tempo.
Um lar.
Ocupado por uma mulher muito estranha, é certo, mas mesmo assim. Um lar.
O PROCURADOR HALLÉN estava tão empolgado que, por um momento, esqueceu-se de como se fazia o nó da gravata. Queria optar pelo nó francês que raramente usava e, ao ?m de algumas tentativas, lá conseguiu. Telefonara à esposa para lhe pedir que gravasse os noticiários da SVT e da TV 4. Com alguma sorte até poderia haver uma emissão especial, mas ele não tinha qualquer controlo sobre isso; só podia esperar que tudo corresse pelo melhor. No que lhe dizia respeito, a grande questão – se detiveram a pessoa certa ou não – já fora respondida. As evidências iniciais eram esmagadoras. Talvez devessem ter esperado pelos resultados da investigação forense, mas isso não era realista. A notícia da detenção acabaria por ser divulgada e a conferência de imprensa iria colocar um ponto ?nal à propagação de boatos. E também mostrar resultados.
Torkel Höglund e Vanja Lithner chegaram, trazendo fotogra?as tiradas no apartamento do suspeito. Eram terríveis e perturbadoras. O homem tinha uma parede cheia de fotogra?as com trinta e seis retratos de cada vítima, excepto da primeira mulher; dessa só havia trinta e quatro imagens. Hallén sentiu um ligeiro mal-estar quando olhou para as fotogra?as. As mulheres vivas, amarradas, vestidas com uma camisa de dormir. A poucos segundos da morte.
– É ele – disse Hallén, e depois olhou para longe, para a pequena sala de conferências mais ao fundo. – Não preciso de ver mais nada.
Desceram para a sala de imprensa do primeiro andar. Antes de aí chegarem, perceberam que a conferência de imprensa teria uma boa assistência. Na rua havia carros de exteriores de todos os principais canais de televisão, e na recepção uma ?la de jornalistas aguardava para entrar.
Hallén virou-se para Torkel.
– Eu faço uma breve introdução, você recapitula o curso dos acontecimentos e, a seguir, respondemos às perguntas em conjunto, se estiver de acordo.
– Muito bem.
Hallén atirou os ombros para trás e abriu caminho por entre aquele mar de jornalistas curiosos. Vanja sorriu enquanto observava como o procurador se deslocava à frente deles. Acenava com a cabeça em jeito de reconhecimento para aquela multidão de rostos, completamente desconhecidos para ela. Sabia que Torkel detestava aqueles eventos. Era óbvio pela sua linguagem corporal. Os ombros curvados. O queixo praticamente encostado ao peito. Provavelmente também conhecia a maioria daquelas pessoas mas não cumprimentava ninguém. Todo o seu corpo indicava que pretendia acabar com tudo o mais depressa possível a ?m de poder regressar ao trabalho. Pelo seu lado, Vanja sentia-se cada vez mais excitada. Podia vir a gostar daquilo, percebeu. Com um pouco de sorte, aquela podia não ser a única ocasião em que estivesse envolvida. Se Billy ia começar a tentar reposicionar-se no seio da equipa, talvez ela também pudesse mudar.
Reparou que Sebastian estava por perto, em pé. Mostrava uma expressão fatigada e resignada. Aguardava-os junto à entrada do parque de estacionamento quando regressaram de Västertorp. Ficara a olhar para eles quando os viu no carro. Ao princípio Vanja esperara que Torkel o ignorasse, mas o seu chefe não era tão pueril quanto ela. Tinham parado, Torkel abrira a porta do carro e informara brevemente Sebastian de que haviam prendido Ralph Svensson e iriam realizar uma conferência de imprensa dentro em breve. Sebastian estava convidado a assistir se estivesse interessado em saber os pormenores. Depois fechou a porta do carro e entraram no parque.
Ele podia não ser tão pueril. Mas era e?caz. Vanja percebeu que não queria Torkel contra ela. Nunca.
RALPH OLHOU em redor da pequena cela. Então, aquele era o aspecto do interior do centro de detenção preventiva de Kronoberg. Passara muitas vezes ali à porta e imaginara como seria. Naquele momento, já sabia. Uma cama, uma mesa e uma cadeira, uma retrete. O mobiliário era de pinho claro e as paredes tinham duas cores, amarelo na parte de baixo e cinzento-claro na parte de cima. Talvez não parecesse grande coisa ao mundo exterior, mas por dentro ele fervilhava de entusiasmo. Visto da rua, havia algo de ameaçador naquele edifício anónimo que parecia um fortim, situado no meio de Kungsholmen. O exterior não revelava quaisquer segredos, era apenas uma parede que ocultava as histórias do interior. Mas quando se estava lá dentro podia-se senti-las. As memórias que impregnavam as paredes.
Noutros tempos, foi para aquele local que trouxeram o Mestre. Ralph não sabia que cela ele ocupou. Mas não importava. Estava a seguir as pisadas do Mestre.
Pediram-lhe que se despisse e os guardas deram-lhe a roupa cinzenta regulamentar, feita de algodão desbotado. Veri?caram-lhe a boca e o orifício anal em busca de quaisquer substâncias ilegais. Fizeram-no tomar um duche. Ele adorou. Sabia que aquela abordagem dura, meticulosa, só podia signi?car uma coisa.
Temiam -no.
Ele era importante.
Era alguém.
Podia ver isso nos seus olhos, ouvia-o na maneira como falavam com ele. Já tinham começado a inspeccioná-lo a cada cinco minutos através do pequeno postigo na porta de aço. Ou estavam com medo que se pudesse suicidar, ou eram simplesmente curiosos. Isso não tinha qualquer signi?cado para ele. Apreciava a sua curiosidade e o suicídio não era algo que tivesse sequer considerado. Seria uma derrota. Fora naquele local que tudo começara. A verdadeira competição. Não tardariam a chegar, a abrir a porta e a levá-lo para o seu primeiro interrogatório. Sem dúvida que demoraria um dia ou mais. Foi o que aconteceu com o Mestre quando ali esteve. Queriam estar completamente preparados e confrontar o suspeito com provas irrefutáveis. Fazerem-no perder o equilíbrio de imediato. Mas ele estava pronto. Só havia algo pelo qual ansiava desesperadamente. Que fosse Sebastian Bergman a sentar-se diante dele na sala de interrogatório. Imagine-se. Conhecer o mesmo homem que o próprio Mestre conhecera.
Iriam dançar juntos, ele e Sebastian. E esperava que fosse durante muito tempo. Como no duelo que Sebastian e Hinde outrora travaram.
Ralph sorriu para si mesmo. Chegara muito longe. Aprendera a lidar com o sangue, com a faca, com os gritos. Naquele momento ia aprender a enfrentar realmente o seu adversário. De repente, sentiu-se excitado como nunca se sentira em toda a sua vida.
Sexualmente.
O seu corpo estava verdadeiramente a palpitar e era-lhe difícil permanecer sentado e quieto. Tocou no pénis. Estava teso. Não lhe importava que o observassem através da porta. Ele só pensava numa coisa. Se Sebastian não estivesse sentado à sua frente na sala de interrogatório, ?caria muito desapontado.
Em vários sentidos.
A CONFERÊNCIA de imprensa tinha começado. O rumor barulhento das conversas parou assim que o procurador deu início à sua introdução. Sebastian posicionara-se o mais perto possível da porta. Recapitulou as suas opções. Era óbvio que fora afastado do caso. Ao mesmo tempo, estava mais convencido do que nunca de que as pessoas ali em cima, no cimo do pódio, não viam o cenário completo. A ideia de Hinde se contentar com a situação era impensável. Não estava na sua natureza.
O promotor terminou o seu discurso um pouco vago, que pareceu incidir sobretudo em destacar a acção decisiva empreendida por ele próprio e pelo Ministério Público. Torkel tomou a palavra. Como sempre, foi directo ao assunto. Como se desejasse sair dali o mais depressa possível.
– Às doze horas e quarenta e cinco minutos de hoje detivemos o homem que suspeitamos ser responsável pela série de brutais homicídios de mulheres em Estocolmo e arredores. Foi colocado sob custódia em sua casa, onde também apreendemos o que julgamos serem provas vitais da culpabilidade do suspeito.
Sebastian viu Vanja endireitar-se para olhar para os representantes da imprensa ali reunidos. O seu olhar cruzou-se com o dele. Não se desviou. Aquele era, obviamente, um momento de que ela se recordaria. A sua ?lha. Na realidade, era como ele, tal como ele fora nos seus dias de glória. Um olhar possante que se tornava mais orgulhoso quando tinha mais pessoas à sua frente. Ele compreendia o que ela estava a sentir. Melhor do que ela alguma vez o saberia. A única que devia falar era ela. Não Torkel. Ela nascera para aquilo. Um dia viria a ter essa oportunidade. A questão era se ele estaria lá para a ouvir. Mesmo sabendo que estavam errados, ou que pelo menos se recusavam a ver o cenário completo, não podia deixar de sentir um certo orgulho por ela. Na realidade, eram muito parecidos.
– Encontrámos a arma, vestígios de sangue e uma série de objectos que podem estar directamente ligados aos crimes. Também temos ADN que foi recolhido nos locais dos crimes e será agora comparado com o do suspeito – prosseguiu Torkel.
Um dos jornalistas mais perspicazes pôs-se em pé. Parecia que não conseguia esperar mais. Sebastian reconheceu-o como um dos repórteres mais experientes do Expressen. Como se chamava ele – Weber?
– O que tem a dizer acerca dos rumores de que Edward Hinde pode estar envolvido nos homicídios? – perguntou abruptamente.
Torkel inclinou-se para o microfone e falou com tanta clareza quanto possível.
– Não quero antecipar-me à investigação mas, de momento, estamos a actuar no pressuposto de que o agressor agiu sozinho. No entanto, podemos con?rmar que se inspirou nos anteriores crimes de Edward Hinde.
Aquela resposta suscitou uma enxurrada de perguntas. Os outros jornalistas apegaram-se ao mesmo tema.
Hinde. Hinde. Hinde.
Não havia dúvida de que aquele seria o tema das melhores manchetes. Um imitador. Inspirado pelo grande Edward Hinde. Era assim que todos queriam que fosse.
Claro e simples.
Contudo, nunca era tão simples. Tanto Sebastian como Edward Hinde sabiam-no.
Sebastian já ouvira o su?ciente. Não estava interessado em simpli?cações. Foi-se embora dali. Vanja quase nem olhara na direcção dele. Percebeu que tinha de descobrir a verdade por si próprio. Descobrir a verdadeira razão de Edward Hinde lhes ter fornecido o nome do assassino naquele momento especí?co.
A Riksmord e os meios de comunicação social ?cariam satisfeitos com Ralph Svensson.
Ele não.
A MANHÃ FORA tal e qual como ela havia imaginado.
O despertador de Thomas tocara às seis e vinte. Ele levantara-se de imediato. Ela ?ngiu estar a dormir até ele ter fechado a porta do quarto sem fazer barulho. Jenny espreguiçou-se na cama. Cinco anos. Casados. Estavam juntos há mais de oito. Nunca foram infelizes, mas ela achava que nunca haviam sido tão felizes como naquela altura. Sabia que, em grande parte, isso se devia à gravidez. À gravidez e ao novo emprego de Thomas. Ele não gostava do emprego anterior. Ou melhor, gostou enquanto não arranjaram uma nova chefe. A Kerstin Hanser. Ela assumira o cargo que Thomas tinha a certeza de conseguir. O trabalho signi?cava muito para o seu marido.
Ele queria ser o melhor.
Queria que os outros percebessem que ele era o melhor.
Por vezes Jenny tinha a sensação de que o motivo por que tão poucas pessoas pareciam chegar à mesma conclusão era porque Thomas simplesmente não era o melhor. Talvez nem sequer fosse muito bom em todas as ocasiões. Não havia nada de errado na sua ambição, mas por vezes complicava a vida sem necessidade. Tentava disfarçar os seus defeitos e imperfeições, os quais, paradoxalmente, se tornavam cada vez mais evidentes à medida que se esforçava por os ocultar. Mas tornara-se muito melhor a baixar as suas defesas. A partilhar os seus sentimentos. Pelo menos, em casa. Não sabia como ele era no seu novo emprego, mas o facto de o ter arranjado já fora uma dádiva dos céus. Antigamente sentia-se inadaptado, tanto no trabalho como em casa. A desilusão que sentiram por não conseguirem gerar um ?lho havia-os corroído. Corroera a sua relação. Não que ela alguma vez tivesse duvidado de que conseguiria engravidar.
Depois, ele foi baleado. No peito, se alguém lho perguntasse. No ombro, caso se perguntasse a qualquer outra pessoa. Mas onde quer que a bala lhe tivesse acertado, aquele episódio fora um sinal de alerta. Para ambos. Fizera-os compreender o que era importante. Podia parecer banal mas, em todo o caso, era verdade.
O trabalho era importante mas não era tudo.
As crianças eram importantes mas havia sempre a possibilidade da adopção.
Os dois, juntos – isso era insubstituível.
De momento estavam de novo bem encaminhados. Mais do que isso. Ela sentia-se feliz e tinha a certeza de que Thomas também era feliz. Ouvia-o a labutar na cozinha. Para ser franca, sabia exactamente qual ia ser a ementa do pequeno-almoço. Em todos os aniversários e em todos os aniversários de casamento era exactamente o mesmo. Não havia nada de mal nisso – ela gostava de ovos mexidos, de toucinho fumado, de torradas com geleia de framboesa, de melão e de morangos com cobertura de chocolate, mas não era propriamente uma surpresa. Thomas só muito raramente a surpreendia. Podia tê-lo feito naquele dia se ela não tivesse ido procurar um cartão de memória que pensou ter deixado no carro. O cartão não estava lá, mas encontrou uma pequena caixa vermelha que só podia conter uma peça de joalharia. Mais concretamente, um anel. Um bonito anel. Ela fingiria que ficava surpreendida mas a sua felicidade seria genuína.
Ouviu Thomas sair – provavelmente para ir buscar o anel – e voltar a entrar. Depois ouviu-o subir as escadas. Decidiu não ?ngir que estava a dormir. A porta abriu-se e ela sorriu para ele.
Amava -o muito.
Ela chegou tarde ao emprego.
Não era o ?m do mundo. Trabalhara no escritório durante toda a semana. Havia muito para fazer, mas sentia que era mais e?ciente ali do que quando andava por fora a visitar clientes, onde por vezes o aspecto social parecia ocupar mais tempo do que o trabalho propriamente dito. Também estava um pouco atrasada com os estudos. A data do exame do nível superior de contabilidade aproximava-se. O plano era tornar-se contabilista diplomada. De momento, o que possuía era um certi?cado, o que não signi?cava grande coisa. Se conseguisse passar naquele exame podia ter mais oportunidades e um salário melhor. No entanto, nessa noite não iria ter tempo para estudar. Tinha a certeza de que Thomas reservara uma mesa no Karlsson på Taket. Normalmente fazia-o.
Os pensamentos dela foram interrompidos por alguém que bateu na porta do escritório, que estava entreaberta. Ela levantou os olhos e viu um homem vestido com um uniforme de motorista de táxi.
– Jenny Haraldsson?
– Sim?
– Venho buscá-la.
– Desculpe?
– Venho buscá-la – repetiu o homem à entrada da porta.
Jenny olhou para a sua agenda, que estava aberta em cima da secretária. Nada marcado para aquele dia, além de uma nota no topo a assinalar que era o seu aniversário de casamento.
– Deve haver algum engano... – Olhou de novo para o homem. – E para onde pretende levar-me?
– Julgo que é uma surpresa. – O homem exibiu um grande sorriso.
Tudo se esclareceu quando ela ouviu o som de risos prazenteiros atrás de si. Veronica e Amelia, a sua chefe e a sua colega, apareceram à porta.
– Vocês sabiam disto? – perguntou-lhes Jenny.
– Veio um pouco mais cedo do que eu esperava – disse Veronica, olhando para o seu dispendioso relógio de pulso. – Mas sim, eu já sabia.
– Eu também – disse Amelia. – E estou cheia de inveja!
– Para onde vou? – Jenny sentiu um formigar de antecipação.
– Nós não diremos uma palavra. – Veronica adoptou uma expressão séria. – Vai-te embora, diverte-te e vemo-nos amanhã.
– Vou só terminar isto e pegar nas minhas coisas – disse Jenny ao motorista.
Quase correu de volta para a sua secretária. Foram buscá-la ao emprego. E ela não fazia a mínima ideia do motivo. Daquela vez, Thomas esforçara-se. Salvou e fechou rapidamente o documento em que estivera a trabalhar. Diverte-te, dissera-lhe Veronica. Na Primavera anterior en?aram-lhes na porta de casa um folheto das Termas Hasslö. Jenny dissera que aquilo tinha muito bom aspecto e que gostaria de ir lá. Thomas ter-se-á lembrado disso? Iria cruzar os dedos. Jenny pegou no casaco e na bolsa. Aquele poderia ser o seu melhor aniversário de casamento de sempre.
– Estou pronta.
– Então, vamos lá! – disse o motorista, indicando com um gesto largo que devia ir à frente. Ele sorriu-lhe de novo. Devia fazê-lo mais vezes, pensou Jenny. Atenuava-lhe um pouco a dureza das feições e desviava a atenção daquela feia cicatriz vermelha que lhe atravessava o olho esquerdo.
Saíram juntos do escritório.
SEBASTIAN FICARA a saber o endereço de Ralph Svensson por intermédio de um dos agentes que estavam à porta da conferência de imprensa. Era óbvio que ainda não fora expulso do caso a título o?cial pois o agente, que reconheceu Sebastian de Liljeholmen e do homicídio de Annette Willén, fez-lhe de bom grado uma rápida súmula dos acontecimentos.
Estivera envolvido na operação do apartamento de Svensson, mas na verdade não tinha nada de substancial para relatar. Tudo acontecera muito depressa. O objectivo era tirar de lá o alvo o mais rapidamente possível. Tudo acontecera como planeado, com excepção do facto de Svensson ter conseguido atirar o seu computador contra a parede, destruindo-o. Foi levado sob custódia e, tanto quanto o agente sabia, ainda não tinha sido interrogado.
Por momentos, Sebastian pensou em tentar marcar uma entrevista com Ralph mas descartou a ideia. Ninguém seria autorizado a aceder ao suspeito sem a permissão de Torkel; era a prática comum. A probabilidade de Torkel aprovar uma reunião entre Sebastian e Ralph Svensson era quase nula.
Em vez disso, apanhou um táxi para Västertorp. Com alguma sorte, pelo menos poderia entrar no apartamento e, provavelmente, descobrir algo. Um carro-patrulha estava parado à porta, mas não havia nenhum guarda à entrada do prédio. Subiu as escadas mas, quando chegou ao andar de Svensson, foi travado por um agente corpulento.
Foi necessária uma razoável dose de pedinchice e de persuasão e, ao ?m de um certo tempo, Ursula apareceu à porta com o seu vestuário de protecção imaculadamente branco. Olhou para ele com surpresa.
– O que estás a fazer aqui?
– Pensei que podia vir dar uma olhadela por aí. Se já terminaste.
Ela abanou a cabeça.
– Neste momento nem sequer sei qual é a tua posição em relação à investigação. Ainda continuas connosco?
Sebastian encolheu os ombros.
– Não sei. – Estava a ser honesto; era a única maneira de conviver com Ursula. – Mas o que eu quero é resolver o caso, sabes bem. Só que tenho uma opinião diferente acerca do modo de proceder.
– Tu tens opiniões sobre a maioria das coisas, nem é preciso dizê-lo, mas normalmente és melhor. Muito melhor.
– Lamento muito.
– A culpa não é tua. Devíamos ter-te expulsado logo que estabeleceste a ligação entre ti e as vítimas – disse ela, secamente.
– Posso entrar? Em geral consigo detectar coisas que podem ser úteis. Prometo não tocar em nada.
Ela ?tou-o. Havia algo em Sebastian que era muito comovente. Ele perdera a sua ?rmeza habitual e caíra de borco diante deles. Nunca o tinha visto tão fraco. Procurou-lhe os olhos fatigados, pretendendo perscrutar-lhos.
– Se me responderes a uma pergunta.
– Qual é?
– Entra lá.
Ela acenou para o agente, que se afastou para o lado deixando Sebastian entrar no apartamento. Era luminoso e estava esparsamente mobilado. A cozinha situava-se do lado esquerdo e dava a impressão de raramente ser usada. A sala de estar abria-se à direita, depois do vestíbulo; o mobiliário consistia apenas num sofá e numa mesa grande. Em cima da mesa estava uma lanterna. Grandes candeeiros de pé em toda a parte. Fazia calor, sobretudo devido à ausência de quaisquer cortinas ou persianas, o que permitia que o sol entrasse em cheio. Sebastian seguiu Ursula até ao quarto.
– Ele gostava mesmo das coisas limpas e arrumadas. Está tudo em perfeita ordem. – Abriu a gaveta de cima e mostrou-lhe uma pilha de camisas de noite azuis-claras bem dobradas, ao lado de embalagens de meias de nylon ainda por estrear. – Sinistro, não é?
Sebastian concordou.
Ursula prosseguiu.
– Se olhares ali para dentro até ?cas com o estômago às voltas.
Indicou-lhe uma porta que parecia de um quarto de vestir ou de uma pequena arrecadação. Sebastian começou a dirigir-se para lá, mas ela deteve-o.
– Calça isto. – Entregou-lhe um par de protectores de plástico para o calçado. Ele baixou-se e colocou-os por cima dos sapatos pretos. Ela deu-lhe um par de luvas esterilizadas. – E isto.
– Então, qual era a tua pergunta?
– Porque dormiste com a minha irmã?
Olhou para ela com um ar pasmado. Podia ter passado cem anos a tentar adivinhar o que lhe queria perguntar que nunca se teria lembrado daquilo.
– Sempre quis saber – acrescentou ela.
A Barbro. Há tanto tempo. Porquê? O que deveria dizer? O que poderia dizer? Nada. Abanou a cabeça.
– Creio que não posso responder à tua pergunta.
Ursula assentiu para si mesma.
– Está bem. Estou só a tentar encontrar uma maneira de te perdoar.
– Porquê?
– Porque tenho a sensação de que precisas.
Os seus olhos encontraram-se. Fixaram-se. Ela conhecia-o bem.
– Mas posso estar enganada – disse ela com ligeireza. – Dá uma olhada por aí, se quiseres.
Virou-lhe as costas e voltou para a cozinha. Ele ?cou a vê-la afastar-se mas ainda não sabia o que dizer. Independentemente do que lhe dissesse iria magoá-la, e não era o que queria.
Abriu a porta que Ursula lhe indicara. No interior, o espaço era pequeno. Uma bancada ao longo de uma parede com uma impressora em cima. Caixas de papel fotográ?co. Um painel de contraplacado ?xado na outra parede. Sebastian foi até lá. Quatro maços de fotogra?a estavam pendurados em grandes molas e marcados a ponta de feltro grosso com os números 1, 2, 3 e 4 mais acima. Quando Sebastian chegou mais perto, percebeu o que as fotogra?as mostravam. As suas mulheres. As quatro. Aterrorizadas. Fotografadas a partir daquela que seria mais bem descrita como a perspectiva de um deus, com o fotógrafo a olhar para elas de cima. A dizer-lhes exactamente o que fazer. Sebastian calçou as luvas e pegou no maço assinalado com o número três. Katharina Granlund. Nua e a chorar na primeira imagem. Morta, a olhar ?xamente em frente, na última. Folheou os outros maços. Rapidamente. Não queria enredar-se nos pormenores. A última fotogra?a era sempre a mesma. A da faca que lhes cortara as gargantas. Sebastian sentiu-se agoniado. Quis fugir dali o mais rápido possível. Como se a sua fuga pudesse desfazer o que já estava feito. Contudo, permaneceu onde estava. Colocou as fotogra?as no lugar. Desviou o olhar. Ouviu Ursula na cozinha. Ela tinha razão. Mas também estava errada. Como podia ele ser perdoado após aquelas fotogra?as?
Regressou ao quarto, sobretudo para se afastar do horror. O pequeno quarto assemelhava-se muito ao resto do apartamento. A única diferença era a descorada cama de solteiro, muito bem feita. A mesma profusão de candeeiros de pé. A lanterna em cima da mesa-de-cabeceira. A mesma luz. No entanto, depois daquelas fotogra?as na parede, a luz não passava de uma mentira. Aquele era o apartamento mais escuro em que alguma vez estivera. Espreitou o interior do único roupeiro. Camisas e calças perfeitamente engomadas, alinhadas. Por baixo, em cestos de arame, estavam baterias e lanternas organizadas com uma precisão militar. Noutros cestos mais abaixo havia peúgas e cuecas.
Ralph Svensson dava mais importância às lanternas do que à roupa interior. O facto de ter uma espécie de perturbação obsessivo-compulsiva estava para além de qualquer dúvida. A verdadeira questão era quantos diagnósticos lhe poderiam ser feitos. Caso alguém se desse a esse trabalho. Sebastian já não estava interessado.
Pegou numa das lanternas maiores. Premiu o botão de borracha preta. A lanterna acendeu-se de imediato. Pilhas novas. Pronta para a acção. Pronta para propagar a luz à sua volta. Quando estava prestes a colocá-la no mesmo sítio, avistou algo que ?cara por baixo da lanterna. Oculto. Parecia uma carta de condução. Pegou nela com todo o cuidado e virou-a.
Viu o retrato de Trolle Hermansson à sua frente. O arrepio gélido dentro de si foi instantâneo. Tal como a dor. Teve de olhar de novo. De ler as palavras. Várias vezes. E de cada vez lia sempre Carl Trolle Hermansson.
Era por isso que ele não atendia o telefone.
Era por isso que ele não estava em casa.
Encontrara a pessoa que andava a seguir Sebastian. Talvez até tivesse salvo Anna. Mas pagara-o com a sua vida.
Não havia outra explicação. Por que outro motivo estaria a carta de condução de Trolle ali, naquele que era o mais sinistro de todos os apartamentos?
Mais uma vez, Sebastian perdera.
Tudo em que tocava era-lhe arrancado das mãos. De uma forma brutal e violenta. Era essa a verdade. A única verdade que se tornava repetidamente evidente para ele. Durante muito tempo tentara combatê-la, mantê-la longe de si. Culpara toda a gente excepto ele próprio. Deus, a sua mãe, o seu pai, Anna, Vanja – na realidade todos, excepto a única pessoa verdadeiramente responsável. Porque naquele momento só havia uma pessoa que carregava a culpa. Arrumou a lanterna com cuidado e en?ou a carta de condução no bolso.
Tudo acabara.
Ele desistia.
De súbito, ela estava atrás de si.
– Ele também tinha um computador. O Billy vai veri?cá-lo. Como o atirou contra a parede, deve haver algo lá dentro.
Ele não respondeu. Ela virou-lhe as costas para retomar o seu trabalho.
– Ursula?
Ela não respondeu, mas parou.
– Acho que preciso mesmo de perdão. Mas não sei como isso poderá alguma vez ser possível.
– Nem eu, Sebastian. Mas os que sabem destas coisas dizem que, em geral, a honestidade funciona melhor.
Ela saiu da sala.
Ele não disse mais nada.
No entanto, sentia a carta de condução de Trolle no bolso. O fardo da culpa nos seus ombros.
Jamais seria capaz de receber perdão.
Jamais.
Estava sentado em cima de uma pedra, à porta do prédio de apartamentos, quando eles pararam ao lado do carro-patrulha. Permanecera ali sentado uma boa meia hora, sem se mexer. A segurar a carta de condução na mão, como se isso pudesse mitigar-lhe a dor. Eles saíram e caminharam em direcção ao prédio. Vanja à frente, seguida por Torkel. Estavam a meio de uma discussão e conversavam animadamente. Como se ele não estivesse ali. O que era verdade, claro. Ele realmente já não estava ali.
Vanja parecia orgulhosa da sua primeira aparição televisiva.
– A Anna viu-me no noticiário. Telefonou-me de casa da avó.
– Como está a tua avó? – perguntou simpaticamente Torkel quando chegou junto dela. – Ouvi dizer que não anda a passar muito bem.
Sebastian pôs-se lentamente em pé e guardou de novo a carta de condução no bolso. Em vez desta, pegou no seu cartão de identi?cação da polícia. Foi ao encontro deles.
– Está muito melhor. A Anna vai voltar para casa – respondeu Vanja.
– Fico contente por o saber.
Só então pareceram reparar no homem que caminhava na sua direcção. Pararam e esperaram por ele, em silêncio. Nenhuma emoção aparente. Como se estivessem a deparar com uma memória que já haviam colocado atrás das costas.
Sebastian postou-se diante deles.
– Precisamos de conversar – disse Torkel.
A intenção de Sebastian era facilitar-lhes a situação. Entregou-lhe o cartão de identi?cação que lhe haviam dado no início da semana.
– Agora vou para casa.
– Está bem. – Torkel pegou no cartão e acenou ao seu antigo colega e amigo.
– Lamento imenso por tudo.
– Pelo menos, apanhámo-lo – disse Torkel. Não estava com disposição para quezílias.
Sebastian também não. Mas tinha de os avisar, embora quase de certeza não lhe dessem ouvidos.
– O Hinde ainda não acabou – espero que o percebas.
– Que mais pode ele fazer? – ouviu Vanja dizer.
– Não sei. Mas ele ainda não terminou. – Sebastian en?ou as mãos nos bolsos. Sentiu a carta de condução de Trolle. – Mas eu já. O problema agora é vosso.
Quis começar a andar, para se ir embora, mas não conseguiu fazê-lo. Provavelmente aquele era o seu último momento com Vanja. Nunca mais voltaria a segui-la. O sonho chegara ao fm. Porque não passara disso. Um sonho. Aquela era a única despedida que alguma vez teria. Os últimos minutos com a ?lha que, na verdade, nunca fora sua.
A ?lha que ele tanto quisera.
Disse-lhe, quase num sussurro:
– Tem cuidado. Promete-me que vais ter cuidado.
Ela não conseguiu de todo entender a sua expressão triste.
– Tu pensas mesmo que não foi o Ralph?
– Não, não. Mas sabes o que me preocupa?
– O facto de não teres sido tu a resolver o caso? – A voz dela foi cortante como uma faca. Ainda estava enredada no con?ito que ele já deixara para trás.
– Não. O facto de te recusares a ver que é Edward quem está por trás de tudo. Ele nunca irá desistir. Nunca.
Afastou -se.
Não foi uma grande despedida.
Mas era tudo o que ele teria.
RALPH SVENSSON.
Um dos homens das limpezas. Tão próximo e, porém, completamente fora do alcance. O dia ?cara arruinado para Haraldsson. Nem sequer a perspectiva do jantar com Jenny conseguia animá-lo. A Riksmord devia ter obtido o nome através de Hinde. Foram prender Ralph pouco mais de uma hora após Vanja Lithner ter saído de Lövhaga. Sem falarem com ele. Embora aquela tivesse sido uma das condições para que ela fosse autorizada a encontrar-se com Hinde. Ela tinha quebrado um acordo. Já devia estar prevenido. Não se podia mesmo con?ar em ninguém que trabalhasse para a Riksmord. Estavam constantemente a deixá-lo desapontado. O que lhe terá Vanja oferecido para que ele desse imediatamente um nome? Haraldsson elaborara um relacionamento, provara que estava disposto a trabalhar com Hinde, dera mostras disso. O que tinha ela que ele não possuía? A resposta era óbvia, mas de certeza que eles não teriam... Ela não podia ter concordado com... É certo que ?caram sozinhos na sala de entrevistas, mas mesmo assim. Ela não parecia ser desse tipo. O aviso de que tinha uma chamada interrompeu-lhe os pensamentos. Eram os Abba. Pegou no telemóvel e olhou para o ecrã. Um número que ele não reconhecia.
– Thomas Haraldsson.
– Boa-tarde, aqui fala dos Táxis Västerås – ouviu uma voz masculina a dizer. – O senhor pediu-nos um táxi para hoje.
Haraldsson franziu a testa. Estariam a telefonar-lhe para con?rmar a marcação? Parecia ser um pouco tarde para o fazer. Olhou para o relógio. Àquela hora deviam estar a ir buscar Jenny.
– Isso mesmo – disse ele com cautela.
– Estamos no endereço de recolha mas não está cá ninguém.
– Não está aí ninguém? – Haraldsson pensou que o homem queria dizer que Jenny não se encontrava no local. Qualquer outra coisa parecia altamente improvável. A empresa não era muito grande, mas de certeza devia estar lá alguém.
Por isso, naturalmente, a pergunta seguinte foi:
– Você está no local certo?
– Engelbrektsgatan, número 6. As colegas dela disseram que veio cá outro motorista buscá-la mais cedo.
– Então vocês enviaram dois motoristas?
– Não, é por isso que estou a ligar-lhe. Reservou um táxi diferente?
– Não.
Haraldsson não entendia nada do que estava a acontecer. Era evidente que algo correra mal. Era-lhe muito di?cil acreditar que o facto se pudesse dever a ele. O dia fora meticulosamente planeado. O motorista passou-o a Veronica, que lhe disse exactamente o mesmo. Um homem fora buscar Jenny cerca de uma hora antes. Vestia um uniforme de motorista de táxi. Era um fulano grande, com um rabo-de-cavalo e uma cicatriz por cima de um dos olhos. Ele até tinha dito, em tom de brincadeira, que se tratava de uma surpresa, por isso deve ter sido o táxi que Thomas reservara.
Haraldsson terminou a chamada sem ?car a saber mais do que antes. A empresa de táxis deve ter feito alguma trapalhada, mas nesse caso onde estava Jenny? Procurou o seu nome na lista de contactos e ligou-lhe para o telemóvel. Não atendeu. Quando ouviu o correio de voz, deixou uma mensagem a pedir-lhe que lhe ligasse. Terminou a chamada. Telefonou para casa. O atendedor automático disparou. Deixou a mesma mensagem, porventura com mais ansiedade na voz. Desligou. Pensou por instantes e voltou para a sua secretária. Abriu o navegador de Internet e procurou no Google o nome das termas. Encontrou o número e telefonou-lhes. Daquela vez, pelo menos atenderam. Jenny Haraldsson não aparecera. Porém, ainda faltavam quinze minutos para a hora da marcação; deviam telefonar-lhe quando ela chegasse? Sim, respondeu Haraldsson. Deviam.
Recostou-se na cadeira. Na verdade não estava preocupado, mas era raro ela não atender o telemóvel. Deixou o seu espírito deambular, tentando encontrar algum ?o que eventualmente pudesse conduzir a uma explicação para o que acontecera. Para o paradeiro dela.
O homem que fora buscar Jenny sabia que era uma surpresa, dissera Veronica. Não havia muitas pessoas que o soubessem. Nem sequer os Táxis Västerås, ocorreu-lhe. Limitara-se a marcar um táxi para a ir buscar ao emprego. Nunca lhes dissera que a pessoa que iam buscar não sabia do que se tratava. A única pessoa com quem falara da surpresa fora com Veronica, para que Jenny pudesse ter a tarde livre. Era a única que sabia.
Ela e Edward Hinde.
Sentiu -se gelar.
Poderia Hinde ter algo a ver com aquilo? Parecia impossível. Inacreditável. Ele e Hinde tinham trabalhado juntos. Hinde recebera tudo o que lhe pedira. Se havia alguém que devesse estar insatisfeito com o resultado daquelas conversas, era Haraldsson. Porque haveria Hinde de se aproximar de Jenny? Era verdade que demonstrara um certo interesse por ela. Pedira para ?car com a sua fotogra?a. Contudo, Hinde estava em segurança atrás das grades. Mesmo que Hinde andasse a trabalhar com Ralph Svensson no exterior, como os da Riksmord pareciam acreditar, também ele estava sob custódia. A Riksmord prendera-o quase uma hora antes de o misterioso motorista ter ido buscar Jenny.
Por um breve instante, entreteve-se com a ideia de confrontar Hinde mas decidiu não o fazer. Em primeiro lugar, era impensável que Hinde pudesse ter algo a ver com o desaparecimento de Jenny. Possível, corrigiu-se ele. Com o possível desaparecimento. Provavelmente havia uma explicação perfeitamente natural para o que acontecera.
Em segundo lugar, os seus confrontos directos com Hinde acabaram por ?car muito aquém do sucesso.
Haraldsson repeliu os pensamentos assustadores. Estava a ser paranóico. Passara demasiado tempo com Edward Hinde. Aquele homem horrível conseguira bulir-lhe com os nervos. Tentou de novo o telemóvel de Jenny. Ouviu-o tocar, ninguém atendeu, correio de voz. Haraldsson não conseguia livrar-se da sensação de que algo estava errado. Pegou de novo na pasta «Visões e Objectivos» mas pousou-a de imediato. Abriu a sua caixa de correio electrónico. Tinha uma série de mensagens que precisavam de resposta mas não conseguiu concentrar-se.
Alguém a fora buscar.
Ela foi com essa pessoa e desapareceu.
Não podia ?car simplesmente ali sentado e continuar como se nada tivesse acontecido. Embora tivesse quase a certeza de que nada aconteceu.
Haraldsson saiu do seu gabinete e de Lövhaga e foi para casa.
EDWARD HINDE ESTAVA sentado na sua cama com as pernas cruzadas. Os olhos fechados. Respiração calma, constante.
Concentrado.
Composto.
Focado em si mesmo.
Logo que ouvira espalharem-se pela ala os primeiros rumores acerca de Ralph, lançara mãos à obra. Fizera saber junto de um dos guardas que não se sentia bem e que, por isso, ia voltar para a sua cela a ?m de descansar. Quando aí chegou, fechou ?rmemente a porta atrás de si, en?ou-se debaixo da cama e começou logo a desapertar a tampa do orifício de ventilação. Trabalhou com rapidez, com a consciência de que aquele era o ponto mais fraco do seu plano. Era muito improvável que outro recluso entrasse ali sem ser convidado mas, se tal acontecesse, não passaria de uma distracção, nada mais. Porém, se um guarda abrisse a porta seria o ?m de tudo. A tensão da situação auxiliou-o. Nunca removera a tampa em tão pouco tempo. Estendeu a mão e pegou no garfo que roubara na cantina no dia anterior, juntamente com o boião que Thomas Haraldsson lhe trouxe.
Setecentos e cinquenta gramas de beterraba em conserva.
Hinde colocou de novo a tampa, mas não a aparafusou. Levantou-se, en?ou o garfo na peúga e o boião de beterraba por baixo da camisola. Aquele era o próximo empreendimento de risco. Mesmo que mantivesse as mãos em concha à volta da barriga, como se tivesse dores, um olhar atento podia detectar o boião. Mas tinha de arriscar. Ligeiramente vergado, saiu da cela e correu para os sanitários.
Mãos à volta da barriga. Passos rápidos, miudinhos. Um homem em apuros.
Uma vez dentro de um cubículo da retrete, retirou o boião e colocou-o na berma do lavatório. Tirou do dispensador um grosso maço de toalhas de papel e espalhou-as por cima do tampo da sanita. A seguir, abriu o frasco, apanhou várias fatias com o garfo e deixou-as escorrer antes de as colocar em cima das toalhas de papel e começar a amassá-las meticulosamente. Quando já não tinha mais nada para amassar, apanhou tudo com o garfo e emborcou-o. A seguir, repetiu o processo até o frasco estar vazio. Perto do ?nal, tornou-se bastante difícil. Setecentos e cinquenta gramas de beterraba eram mais do que ele pensava. Antes de sair da retrete pegou no boião e engoliu o líquido que restava. Depois, lavou o frasco, en?ou-o de novo por baixo da camisola, guardou o garfo dentro da peúga e regressou à sua cela. Daquela vez não se deu ao trabalho de esconder o boião, e pousou-o simplesmente em cima da escrivaninha. Sentou-se na cama, dobrou as pernas por baixo do corpo e fechou os olhos.
Planeamento. Paciência. Determinação.
Estava sentado na cama há cerca de uma hora. Roland Johansson já devia ter completado a sua missão em Västerås. Estava pronto para o próximo trabalho. Chegara a hora da fase dois.
Lenta e deliberadamente, Hinde endireitou as pernas e levantou-se, apenas para se en?ar outra vez por baixo da cama e retirar o frasco que Haraldsson lhe dera.
Ipecacuanha.
Duzentos e cinquenta mililitros.
Desenroscou a tampa e bebeu o conteúdo do frasco em duas goladas. O sabor não era bom. Mas isso não importava; não o iria manter no estômago durante muito tempo. Antes de sair da cela, decidiu esconder o frasco vazio e o boião de beterraba no respiradouro. Seria estúpido falhar só porque tinha sido preguiçoso e descuidado. No entanto, apercebeu-se de que não teria tempo para aparafusar a tampa. O seu estômago estava gorgolhar. Saiu para a sala de convívio, ainda com as mãos em concha à sua frente. Tinha os maxilares cerrados e sentiu que começava realmente a transpirar. Parou a meio da sala.
Estava na hora do espectáculo!
Quando sentiu os primeiros indícios de que o seu estômago começava a contrair-se com cãibras, deixou-se cair no chão. Aos gritos. Todos os que estavam na sala pararam de repente, a olhar para ele. Hinde agarrou-se à barriga e contorceu-se no chão. Respirou fundo para poder gritar de novo, mas antes de conseguir emitir um som o conteúdo do seu estômago brotou numa violenta cascata de vómito. Os reclusos que estavam mais perto dele saltaram para o lado com nojo. Os guardas que começaram a andar na sua direcção quando ele caiu pararam, sem saberem ao certo o que fazer. Era um facto bem conhecido que a equipa de segurança sabia muito pouco acerca das maleitas físicas. Hinde contava com isso, e naquele dia os guardas que estavam de plantão não o decepcionaram. Não faziam a menor ideia do que deviam fazer. Tal como ele planeara. Vomitou novamente. Com os olhos cheios de lágrimas, e para sua imensa satisfação, Hinde viu que o que vomitava era espesso e tinha uma coloração quase negra. A consistência certa, a cor certa. A beterraba teve tempo de reagir com os ácidos estomacais e a maior parte da coloração vermelha desapareceu. A menos que se cheirasse aquilo de muito perto, seria impossível distingui-lo de uma hemorragia interna. Hinde calculou que ninguém iria querer en?ar o nariz na substância que dele jorrava pela terceira vez, com uma violência ligeiramente menor do que antes. Um dos guardas falava no intercomunicador, a solicitar ajuda, enquanto o outro parecia pensar em como chegar junto Hinde sem pisar o conteúdo das suas entranhas. As cãibras começaram a atenuar. Hinde respirou pelo nariz e engoliu algum do vómito que aí ?cara preso. Sabia a beterraba e a ipecacuanha. Dobrou-se ao meio e, antes de mudar de táctica, gritou de dor uma vez mais; começou a rebolar de um lado para outro e a choramingar de impotência. Um dos guardas aproximou-se dele, agachou-se e pousou-lhe gentilmente uma mão no ombro. Hinde tossiu, debatendo-se com o que parecia ser uma dor aguda.
– Ajude-me – lamuriou-se debilmente. – Por favor, ajude-me.
– Vamos ajudá-lo – disse o guarda.
Mal sabia ele como tinha razão.
HARALDSSON CHEGOU a casa em tempo recorde. Quebrou todos os limites de velocidade e regras de trânsito que se podia imaginar. A sua ansiedade aumentou, instigando-o. Parou à porta de casa com uma travagem a fundo, desligou o motor e saltou para fora.
Da estância termal entraram em contacto com ele. Uma mulher diferente daquela com quem falara. Jenny Haraldsson não apareceu. Ele sabia se ela estava apenas atrasada ou se...? Ele disse-lhe a verdade; achava que não iria aparecer. A mulher informou-o, num tom de lamento, que teria de pagar setenta e cinco por cento da tarifa por o cancelamento ter sido tão tardio. Não lhe importava. Uma despesa desnecessária era o menor dos seus problemas. Destrancou a porta da frente e entrou.
– Jenny!
Silêncio. Sem descalçar os sapatos, avançou pelo corredor.
– Jenny! Estás aí?
O mesmo silêncio. Passou rapidamente pela sala, entrou na cozinha, olhou para a divisão que servia de quarto de hóspedes e de sala de costura. Abriu as portas da despensa e da casa de banho.
Vazia.
Silenciosa.
Voltou para o corredor e subiu as escadas. A poucos degraus do cimo, parou. Estranha a maneira como o cérebro funcionava. Ele não pensava em nada. O medo afastara tudo o resto para o lado. Mas então, de repente, lembrou-se. Hinde e os quatro homicídios na década de noventa. Todos exactamente idênticos. O imitador, Ralph Svensson. «O Tarado do Verão.» Daquela vez, também quatro mulheres. Lera acerca do assunto. Um modus operandi idêntico.
Amarradas. Violadas. Com as gargantas cortadas.
Em casa.
Nos seus quartos.
Haraldsson olhou para cima. Para o quarto. O quarto que era seu e de Jenny. Onde eles tomaram o pequeno-almoço e ?zeram amor nessa manhã. A porta estava fechada. Normalmente não ?cava fechada. Porque haveriam de o fazer se não havia mais ninguém em casa? Um pequeno ruído quebrou o silêncio, e Haraldsson percebeu que veio de lá. Um pequeno gemido de dor. E de medo. Teve de obrigar-se a continuar a subir as escadas. Degrau a degrau. Quando chegou ao cimo, agarrou-se à última parte do corrimão para não cair para trás. Não conseguia tirar os olhos daquela porta fechada. Não conseguia afastá-la do seu espírito. Principalmente naquela época, no pino do Verão, se a porta ?casse fechada durante todo o dia, à noite o quarto estaria demasiado quente para se dormir lá. Ela não a fechara. Porque haveria de o fazer? Respirou fundo e, lentamente, expirou pela boca antes de conseguir avançar. Deu um pulo quando ouviu os Abba. Era o seu telemóvel. Pegou nele sem olhar para o ecrã.
– Haraldsson.
Esperava que fosse ela. Ouvir a sua voz a dizer-lhe que estava tudo bem, que houvera apenas um mal-entendido disparatado.
– Fala Victor Bäckman – ouviu ele do outro lado. Não era ela. Nada estava bem. A decepção apoderou-se dele, e teve de recorrer a todas as suas forças para se manter em pé. Não conseguia falar mas não foi preciso. Victor prosseguiu logo o seu discurso. – O Edward Hinde caiu no meio da sala de convívio; vomitou uma grande quantidade de sangue.
– O quê?
– Ele parece estar realmente muito mal. Não podemos tratar dele aqui. Um problema qualquer de estômago, penso.
– Está bem... – Haraldsson ouvia o que Victor dizia mas, na realidade, não conseguia entender porque lhe contavam aquilo naquele momento. Ainda sentia di?culdade em processar a informação.
– A ambulância chega dentro em breve, é por isso que lhe estou a telefonar. Você precisa de aprovar uma transferência para o hospital.
– Preciso?
– Sim. Vamos transferi-lo?
Como se viesse de nenhures, ocorreu-lhe um outro pensamento.
Uma imagem.
Uma memória.
Hinde está sentado na cama da sua cela. Haraldsson está de pé, à porta. A pele dos antebraços arrepiada. A voz calma de Hinde.
– Diga que sim.
– A quê?
– Você saberá quando e para quê. Diga apenas que sim.
– Ainda está aí? – perguntou-lhe Victor ao ouvido.
– O quê? Sim.
– Vamos transferi-lo? Sim ou não?
– Diga apenas que sim.
Haraldsson tentou compreender o signi?cado do que acabara de ouvir, a ligação que acabara de estabelecer. Hinde sabia que ia ?car doente. Sabia que aquela conversa viria a ter lugar. Que a pergunta seria feita. Deve ter sabido. Mas como? Estaria apenas a ?ngir – ou tinha algo a ver com o que Haraldsson lhe dera? Beterraba e um frasco da farmácia. Com um nome qualquer sul-americano, ao que parecia. Icacaca... qualquer coisa. Porquê uma doença, verdadeira ou não? Porque ele queria ser transferido. Sair. Fugir. Devia avisar Victor? Informá-lo das suas suspeitas?
– Diga apenas que sim.
Sem qualquer intuito de aviso, de tentativa para impedir que algo acontecesse. Fora uma simples exortação para dizer uma palavra. Dar o seu consentimento. Obedecer às ordens. Ele tentou, mas não conseguiu concentrar-se nas consequências. Não lhe era possível sopesar os prós e os contras. Tudo era um caos. A porta do quarto estava fechada. Deu os derradeiros passos. Tinha de saber.
– Thomas? Está aí?
Haraldsson colocou a mão na maçaneta da porta. Respirou fundo. Fechou os olhos. Orou a um Deus no qual nem sequer acreditava. Com uma breve exalação, abriu a porta. Rapidamente, como se arrancasse um penso. Preparado para o pior mas, ao mesmo tempo, completamente impreparado.
O quarto estava vazio.
Jenny continuava apenas desaparecida.
– Sim – disse ele. Aquilo soou-lhe como um rouco coaxar.
– O que disse? – perguntou Victor.
Haraldsson pigarreou.
– Sim – repetiu ele num tom de voz mais ?rme. – Trans?ram -no.
– Muito bem. Onde está você? Vem para cá mais tarde?
Haraldsson desligou a chamada. Guardou de novo o telemóvel no bolso. Ficou em pé, à porta do seu quarto vazio, e começou a chorar.
ANTES DE TERMINAR o dia, Ursula achou que precisava de con?rmar junto do SKL, o laboratório nacional forense em Linköping, se as duas embalagens esterilizadas que continham as amostras de ADN do apartamento já tinham chegado. Foram enviadas por correio especial algumas horas antes, e o plano era que Torkel pudesse fazer uso de um relatório preliminar quando interrogasse Svensson no dia seguinte. Conseguiu falar com o chefe da patologia forense, Walter Steen, que a tranquilizou. Tudo estava a correr bem, o SKL já começara a trabalhar e ele assegurar-se-ia de que lhe entregariam as informações necessárias no dia seguinte. Para Ursula, era o su?ciente; já conhecia Steen há algum tempo e era um homem de palavra. Satisfeita, saiu do abafado apartamento de Ralph Svensson. O turno de rendição acabara de chegar e trocou umas breves palavras com os dois novos agentes que ?caram nas escadas, realçando que ninguém, a não ser ela, tinha autorização para entrar ali, pelo menos sem a sua permissão. Deixou-lhes o seu número de casa e do telemóvel por precaução e desceu as escadas. Fora um dia incrivelmente intenso e sentia-se fatigada de corpo e alma. Parou do lado de fora da porta principal e, por uns momentos, desfrutou o cheiro estival da relva quente. Apesar do cansaço, estava contente. O apartamento revelara-se uma autêntica arca do tesouro e vira-se forçada a estabelecer prioridades em vez de se envolver numa busca meticulosa. Ainda lhe restavam muitas horas de trabalho, mas estava convencida de que já tinham provas su?cientes para garantir que Ralph Svensson seria sentenciado pelos quatro homicídios, com ou sem con?ssão. Era esse o verdadeiro objectivo dela: encontrar provas tão fortes que o relato do próprio suspeito deixaria de ter tanto peso. Era então que ela sabia que ?zera um bom trabalho – quando a verdade se tornava objectiva e mensurável.
Partiu em direcção ao seu carro, pensando hesitantemente se devia telefonar a Torkel. Ele e Vanja ligaram-lhe após a conferência de imprensa. Devem ter encontrado Sebastian à saída, porque a primeira coisa que Torkel lhe disse foi que Sebastian estava fora do caso. Vanja pareceu especialmente aliviada. Fervilhava de energia e cuspiu algumas observações breves e brutais acerca daquele homem impossível que ela tanto detestava. A própria Ursula sentia-se mais triste do que nunca. Não porque pensasse que daquela vez Sebastian contribuíra com algo, mas recordava-se dele nos velhos tempos, quando possuía um poder incrível, inato. Aquele homem que saíra do apartamento de Ralph Svensson com os ombros encurvados não era o mesmo homem. Ninguém devia ter de decair tanto. Tão intensamente. Nem mesmo Sebastian Bergman. Por isso, ela jamais poderia partilhar a alegria de Vanja.
Antes de sair, Torkel permanecera no vestíbulo por um momento. Ela reconhecera-lhe o brilho nos olhos de outras ocasiões semelhantes em que andavam fora em trabalho. Aquele brilho aparecia-lhe sempre que faziam um grande progresso numa investigação; era como se de alguma forma pudessem apegar-se àquele momento quando estavam juntos.
Mas ela não iria permitir que o mesmo acontecesse daquela vez. De certo modo, não lhe parecia correcto. Sem saber porquê, era completamente diferente quando estavam noutra cidade. Não era tão sério. Naquele momento era decerto mais tentador, mas também um pouco sórdido. E, além disso, havia o Mikael.
Entrou no carro e dirigiu-se para a cidade sem saber muito bem para onde ia. Talvez tivessem combinado que voltaria para a sede, mas na verdade não lhe apetecia fazê-lo. Decidiu ir para casa.
Mikael estava lá. Estava sentado no sofá quando ela entrou.
– Pareces cansado – comentou.
Ele abanou a cabeça em jeito de resposta e levantou-se.
– Café?
– Por favor.
Foi à cozinha e ligou a máquina de café, enquanto Ursula se sentava ao lado da janela aberta. Lá fora a quietude era beatí?ca, e gostou de o ouvir atarefado na divisão adjacente. Tomara a decisão certa. Regras eram regras e, só porque as quebrávamos uma vez, não signi?cava que tivéssemos de fazê-lo de novo. Ela tinha de admitir que havia em Mikael algo que a acalmava. Podia não ser a pessoa mais apaixonada do mundo mas tinha sempre tempo para ela. Isso era de imenso valor.
– Ouvi na rádio que vocês prenderam alguém – disse ele da cozinha.
– Sim, passei toda a tarde no apartamento do suspeito.
– Encontraste alguma coisa?
– Montes de coisas. Ele é culpado.
– Ainda bem.
Mikael regressou à sala de estar.
– Senta-te aqui – disse-lhe ela, batendo no lugar do sofá ao seu lado, mas ele abanou a cabeça.
– Agora não. Precisamos de conversar.
Ela foi apanhada de surpresa. Endireitou-se e olhou para ele. Não era frequente que Mikael quisesse falar ou esperasse que o ouvisse.
– Aconteceu alguma coisa à Bella?
– Não tem nada a ver com Bella. É acerca de nós.
Ficou hirta. De certo modo, a sua voz estava diferente. Como se tivesse ensaiado o que ia dizer. Como se andasse a preparar-se há muito tempo.
– Conheci outra pessoa e quero ser honesto contigo.
Ao princípio não entendeu o que ele lhe estava a dizer. Por ?m teve de perguntar, embora suspeitasse que já sabia a resposta.
– Realmente não estou a perceber; estás a dizer-me que conheceste outra pessoa?
– Sim. Mas de momento não nos encontramos. Penso que não seria justo para ela. Nem para ti.
Ela ?tou-o, muito admirada.
– Tu estiveste com outra pessoa e agora tudo acabou?
– Eu não estive com outra pessoa. Vimo-nos algumas vezes e de momento as coisas acalmaram. Por enquanto. Queria falar contigo primeiro.
Ela ?cou ali sentada, sem palavras. Não sabia o que fazer a seguir. A raiva teria sido a opção mais simples. Dura e cortante. Porém, não a conseguiu sentir. Na verdade, não conseguiu sentir nada.
– Ursula, ultimamente esforcei-me mesmo, com a viagem a Paris e tudo isso. Mas já não tenho mais forças. Lamento muito. A culpa é minha.
Culpa dele.
Se ao menos fosse tão simples.
A AMBULÂNCIA de Uppsala entrou em Lövhaga precisamente dezoito minutos após a chamada para os serviços de emergência. Fatima Olsson saltou para fora e contornou o veículo para ir à parte detrás buscar a maca. Estava contente por terem chegado. Durante o caminho para o hospital iria viajar atrás com o paciente, o que signi?cava que não precisava de se sentar ao lado de Kenneth Hammarén. Não gostava dele. Pela simples razão de que ele não gostava dela. Não sabia porquê. Talvez fosse por ela ter nascido no Iraque ou por ter mais quali?cações – ela era uma enfermeira dos cuidados intensivos e ele, paramédico – e ser, portanto, mais bem paga, ou por ser mulher. Podia tratar-se de uma combinação das três razões ou haver outra completamente diferente. Não lho perguntara. Andava há duas semanas com ele e tencionava ir falar com o seu chefe logo que tivesse oportunidade, para lhe perguntar se de futuro podia trabalhar com outra pessoa. Ele era razoavelmente bom no que fazia mas era mal-humorado e sempre negativo em relação a ela. Aproveitava todas as oportunidades para implicar com ela, para a corrigir ou criticar o que fazia. Isso só acontecia com ela. Já o vira com outras pessoas e a sua atitude fora completamente diferente. Era, de certeza, ela. Ele simplesmente não gostava dela.
Kenneth saiu, sempre trinta segundos depois para não ter de a ajudar. Fatima colocou o saco de emergência em cima do carrinho, deixando as portas detrás da ambulância abertas – a?nal, estavam dentro do perímetro da prisão –, e pôs-se a caminho da ala de segurança onde um guarda os esperava à porta. Como de costume Kenneth foi à frente, cinco metros à sua frente.
A sala de convívio estava vazia, à excepção de Hinde que continuava deitado no chão. Um dos guardas colocara-lhe uma almofada por baixo da cabeça. Os outros presos regressaram às suas celas. Fatima avaliou rapidamente a situação. Homem de meia-idade. Vómitos violentos, consistência de borras de café. Dor no estômago, a julgar pela posição em que estava deitado. Provavelmente uma úlcera hemorrágica. De certeza uma hemorragia interna. Fatima baixou-se.
– Olá, está a ouvir-me?
O homem deitado no chão abriu os olhos e acenou debilmente.
– Chamo-me Fatima; pode dizer-me o que aconteceu?
– Tive uma dor de barriga e a seguir... – A voz pareceu faltar-lhe. Fez um gesto vago e amplo em direcção ao chão coberto de vómito.
Fatima assentiu.
– Ainda tem dores?
– Sim, mas está um bocadinho melhor.
– Tem de vir connosco.
Ela lançou um olhar desa?ador a Kenneth e trabalharam juntos, em silêncio, para colocar o homem na maca e amarrá-lo. Ele não pesava muito. Parecia muito fraco. Certamente teriam de usar a sirene no caminho de regresso.
O guarda, que ?cara sentado junto do homem, acompanhou-os pelo corredor até à ambulância que os esperava. Ele e Fatima colocaram o paciente na ambulância sem qualquer ajuda de Kenneth e, quando Fatima começou a fechar as portas, o guarda preparou-se para entrar.
– O que está a fazer?
– Eu vou convosco.
Edward continuava ali deitado, a ouvi-los com interesse. Aquela era a parte do plano sobre a qual tinha menos controlo. Não fazia ideia de quais eram as normas quando era preciso acompanhar um recluso que tinha de ser transferido para o hospital. Quantos guardas? Estariam armados? Dentro da ala de segurança apenas usavam bastões e Tasers. Durante uma transferência seria diferente? Haveria um carro a segui-los? Dois? Iriam esperar por uma escolta policial? Ele não fazia ideia.
Ouviu o guarda explicar a Fatima quem era Edward Hinde e que estava absolutamente fora de questão que a ambulância saísse dali sem supervisão. O guarda, que estava mesmo à sua frente, iria viajar na parte detrás com Hinde e Fatima, e vinha a caminho um seu colega que ?caria ao lado do condutor. Dois, portanto. Separados e, provavelmente, armados. Mesmo assim, isso não devia causar quaisquer problemas. Pelo menos não se falava de ?car à espera da polícia.
O outro guarda chegou a correr e entrou directamente para a frente. O colega saltou para a parte detrás e Fatima indicou-lhe onde se devia sentar. Fecharam as portas. Fatima bateu duas vezes no painel de vidro fosco que os separava do compartimento do condutor e a ambulância arrancou. Ao ?m de apenas alguns metros, ligaram a sirene. Hinde sentiu a tensão acumular-se dentro de si. Até àquele momento tudo correra exactamente conforme planeado, mas a parte mais difícil e mais arriscada da operação estava para vir.
Fatima falou com ele.
– Você é alérgico a alguma medicação?
– Não.
– Perdeu uma grande quantidade de líquidos e de sais, por isso vou colocar-lhe uma solução salina por intravenosa.
Ela virou-se para trás na ambulância que balouçava, abriu uma gaveta e, com movimentos destros, retirou um saco de ?uido que pendurou num gancho por cima de Edward. Em seguida levantou-se, abriu um armário mais alto e tirou uma pequena cânula. Sentou-se ao lado dele enquanto, ao mesmo tempo, aplicava uma compressa num distribuidor que continha anti-séptico. Comprimiu rapidamente o quadrado húmido contra a dobra do braço dele.
– Vai sentir uma picada aguda. – Com habilidade, inseriu a cânula, prendeu-a com adesivo, endireitou o tubo que saía da bolsa e ?xou-o na cânula. Depois inclinou-se para a frente a ?m de abrir o gotejamento. Os seios dela ?caram mesmo à frente dos olhos de Hinde. Ele pensou em Vanja. A solução salina começou a correr-lhe para a veia.
– Pronto, preciso realmente de lhe fazer algumas perguntas. Acha que consegue responder?
Edward acenou com a cabeça e sorriu com bravura. Fatima retribuiu-lhe o sorriso.
– Então, qual é o número do seu BI?
Não teve tempo para lhe responder; a ambulância travou bruscamente e, a seguir, parou por completo. Através da divisória apenas conseguiu ouvir o condutor praguejar. Ficou ali deitado, a?ito. Claro que podia ter sido um motorista descuidado que os tivesse forçado a parar, mas também podia ser o início da sua etapa ?nal rumo à liberdade. Viu o guarda ?car hirto, em alerta máximo, enquanto Fatima lhe pedia desculpas pela travagem brusca. Edward procurou em seu redor alguma espécie de arma. De preferência, uma faca ou algo semelhante. Nada. Além disso, estava preso à maca. Não podia ajudar. Tudo o que podia fazer era esperar.
Kenneth praguejou de novo e apitou. Alguém devia ser o dono daquele Saab vermelho que ?cara tão descuidadamente estacionado no lado esquerdo da estrada, impossibilitando a sua passagem. Ainda por cima, logo a seguir a uma curva. Idiota. Fora uma pura sorte terem reagido tão depressa, caso contrário teriam chocado em cheio contra ele. Kenneth apitou outra vez. Onde estava o maldito idiota que era o dono do maldito carro? Não podia estar muito longe. E, nesse caso, devia ter ouvido a sirene. Devia ter visto a luz azul. Era o costume. Faltavam só duzentos metros para chegarem à estrada principal, onde teria conseguido passar pela berma. Naquela estradazinha estúpida não havia qualquer hipótese. Uma vedação de um lado do Saab. Do outro lado, uma vala profunda. Apitou de novo.
O homem sentado ao seu lado parecia nervoso. Estava sempre a olhar em redor. Com a mão apoiada numa arma qualquer de atordoamento que trazia à cintura.
– O que se passa? – perguntou Kenneth.
– Não sei. Consegue fazer marcha-atrás?
Kenneth encolheu os ombros e engrenou a marcha-atrás. Viu o homem sentado ao seu lado tirar o rádio do cinto e levá-lo à boca.
Foi então que o mundo explodiu.
De repente, ouviram na parte detrás da ambulância, acima da sirene, o som de dois tiros e de vidros a partirem-se. Parecia estar tudo a acontecer ao mesmo tempo. Uma sombra passou a voar pela janela de vidro fosco e salpicou-a com algo. Algo escuro. Que ?cou a escorrer pelo vidro. O guarda sentado ao lado de Edward pôs-se em pé com um salto. Fatima gritou, tapou os ouvidos com os antebraços, apertou as mãos por trás do pescoço e inclinou-se para a frente. Ela viveu numa zona de guerra, pensou Hinde ao ver a sua reacção. Deixou-se ?car ali deitado a contemplar o caos que eclodira em poucos segundos. Ouviu três pancadas fortes contra um dos lados da ambulância.
O que está a acontecer? – gritou Fatima.
O guarda tinha a Taser na mão, mas ninguém a quem pudesse apontá-la. Edward permaneceu imóvel. Não tencionava atrair desnecessariamente as atenções sobre si próprio.
De repente, a sirene calou-se. Em vez de um ruído constante em fundo, agora havia um silêncio total. Um silêncio preocupante. O guarda virou a cabeça, pondo-se à escuta dos ruídos provenientes do exterior. Nada. Fatima endireitou-se lentamente e olhou para o guarda, muito espantada.
– O que se passa? – sussurrou ela.
– Alguém está a tentar tirá-lo daqui – respondeu o guarda, ainda em alerta total.
Quase como que para con?rmar a sua a?rmação, a porta traseira abriu-se com estrondo. Foram disparados mais dois tiros. A primeira bala atravessou-lhe o tecido mole logo abaixo das costelas, saiu-lhe pelas costas e quebrou o vidro fosco. A segunda atingiu-o a meio do peito. O guarda caiu para o chão. Fatima gritou. Roland Johansson abriu a outra porta para a conseguir ver e apontou-lhe a arma.
– Não – disse Edward laconicamente.
Roland baixou a arma e entrou no espaço acanhado, que pareceu encolher ainda mais com aquele homem enorme lá dentro. Em silêncio, começou a desapertar as ?velas de Edward. Quando Edward ?cou liberto, sentou-se. O que realmente queria fazer era correr dali para fora. Dar saltos no ar. Teve de recorrer a toda a sua força de vontade para evitar perder o controlo. Agora estava muito perto. Olhou para o gotejamento de solução salina. Estendeu a mão e soltou-o do gancho.
– Vou levar isto comigo.
Nenhuma reacção. Fatima estava em choque. Balouçava para a frente e para trás, observando o espaço. Roland estendeu o braço para amparar Edward quando ele saiu da maca e desceu da ambulância. Ainda estava debilitado devido à sua pequena actuação na sala de convívio. Caminharam lentamente por um dos lados da ambulância. Pararam a meio.
– Você vai ?car bem?
– Sim. Obrigado.
Edward encostou-se ao veículo. Roland deu-lhe uma palmadinha no ombro e foi abrir a porta do lado do passageiro. Sem esforço aparente, puxou para fora o guarda que estava caído e imóvel. Uma ferida aberta na garganta, logo abaixo do queixo, e outra por baixo da clavícula, percebeu Edward quando Roland passou por ele arrastando o guarda para as portas detrás. Vivo, mas não por muito tempo. Ouviu Fatima gritar quando Roland praticamente atirou o guarda moribundo para a parte detrás da ambulância. Edward fechou os olhos.
Roland deu a volta pelo outro lado. Quando alvejou o guarda o condutor tentou fugir a correr, mas não conseguiu afastar-se com rapidez su?ciente. Roland apanhou-o, agarrou-o e bateu três vezes com a cabeça dele contra o lado da ambulância. Naquele momento pegou no condutor inconsciente, atirou-o para a parte detrás juntamente com os outros e entrou atrás dele. Ignorou os guardas. Um estava morto, o outro a morrer. Soltou as algemas dos seus cintos e virou o condutor. Prendeu-lhe as mãos atrás das costas e, a seguir, virou-se para Fatima, que continuava sentada na cadeira ao lado da maca.
– É a sua vez.
Fatima sacudiu a cabeça, incapaz de se mexer. Roland aproximou-se dela, puxou-a para fora da cadeira e empurrou-a para o chão, junto dos outros. Ela não ofereceu resistência quando lhe prendeu as mãos atrás das costas. Ele pegou num cobertor, saiu e passou por Edward antes de chegar à porta do passageiro. Começou a varrer os estilhaços de vidro que enxameavam o compartimento do condutor. Quando se livrou da maioria, estendeu o cobertor em cima do banco do passageiro e depois ajudou Edward a sentar-se com a sua intravenosa. Antes de fechar a porta partiu o resto do vidro para dar a ideia que a janela estava aberta e não quebrada. Com Edward já instalado, foi ao Saab vermelho e tirou do banco traseiro um rolo de ?ta adesiva. Regressou à ambulância e aos quatro ocupantes da parte detrás. Amarrou os tornozelos do condutor e da mulher, só por precaução... Roland terminou passando a ?ta duas vezes à volta da cabeça deles, para lhes tapar a boca. Saltou para fora, fechou as portas, entrou para o lugar do condutor e rodou a chave. Tudo aquilo demorou menos de cinco minutos. Ninguém os viu. Nada se mexia. Nenhumas sirenes se aproximavam. Apenas se ouviam os sons da ?oresta.
Arrancaram. Edward olhou para o espelho retrovisor e viu o Saab vermelho ?car cada vez mais pequeno. Estavam a deixá-lo para trás. A deixá-lo. Tal como ele deixava Lövhaga atrás de si. A deixava.
Naquele momento já podia, e iria, começar a olhar para o futuro.
Roland ia a conduzir um pouco acima do limite de velocidade. Edward tinha quase a certeza de que aquela estrada não era prioritária para a polícia em matéria de controlos de velocidade, pelo menos no caso dos veículos de resposta de emergência, mas era estúpido correr semelhante risco. Um encontro com as autoridades não seria a melhor ideia por uma série de razões. Iriam fazer-lhes perguntas acerca da janela partida. Havia manchas de sangue no compartimento do condutor. Roland não estava vestido com a roupa apropriada. Um polícia atento repararia em tudo isso. Bom, resolveriam o assunto se fosse preciso.
Estava um belo dia. Tons verdes do Verão por toda a parte. Edward quase se sentiu tonto quando contemplou a extensa paisagem que ondulava em seu redor. Tanto espaço. Agora que tinha uma perspectiva diferente, os últimos catorze anos pareciam ainda mais limitados e enclausurados. Podia ver o que lhe fora negado. Deliciava-se com cada nova visão que surgia ao longo da estrada sinuosa. O vento arrepelava-lhe o cabelo ?no através da janela partida. Fechou novamente os olhos. Respirou fundo. Deixou-se descontrair. O ar parecia mais leve. Diferente. Cada vez que respirava, tornava-se mais forte. Era o que se sentia quando se respirava como um homem livre. Roland abrandou. Edward abriu os olhos. Tinham chegado à E18. Daí a meia hora estariam em Estocolmo. Virou-se para Roland.
– Tens um telemóvel?
Roland en?ou a mão no bolso e passou-lhe o seu telemóvel. Edward marcou um número que memorizara e esperou que atendessem.
HARALDSSON ESTAVA em pé junto à janela do quarto. Ficara ali especado desde que abrira a porta e encontrara o quarto vazio. Caminhara até à janela, passando pela cama de casal desfeita. Que mais poderia ele fazer? Procurar Jenny? Onde? Não fazia ideia. Estava rigorosamente paralisado.
O medo, o terror, Jenny, o emprego.
No jardim, os homens que tinham vindo plantar a macieira já estavam a trabalhar. Ele vira-os chegar. Observara-os a caminharem pelo jardim. A apontarem e a conversarem. Concordaram sobre o melhor local e começaram a medir e a cavar. Foram buscar sacos de estrume. Era apenas um dia de trabalho vulgar. Vidas vulgares, a poucos metros de distância dele. Uma realidade que fazia sentido.
Era-lhe difícil pensar com clareza. O que poderia fazer? Não podia envolver-se. Não se devia envolver. Jenny desaparecera. Ele estava envolvido. Mas isso não signi?cava que alguém tinha de o saber. Por favor, não deixes acontecer nada à Jenny. Os seus pensamentos pulavam e saltavam como uma agulha sobre um velho disco de vinil riscado.
Hinde estava a ser transferido. Provavelmente, já saíra de Lövhaga. Ele queria ser transferido. Algo iria acontecer. O quê? Haraldsson devia alertar a polícia? / salto /
Isso salvaria Jenny? Jenny tinha desaparecido. / salto /
Que motivo poderia ele dar para falar com a polícia? Não podia dizer de maneira alguma que ?zera alguns recados a Hinde e que, devido a um deles, Hinde fora autorizado a sair da prisão. Isso não seria apenas acabar com a carreira. Seria um delito passível de punição. / salto /
Jenny. Onde estava ela? Ela simplesmente não podia estar morta. O que faria ele? Como poderia viver sem ela? / salto /
Hinde não saíra de Lövhaga e Ralph já havia sido detido quando Jenny desapareceu. O que signi?cava aquilo? Que Hinde estava em contacto com mais de uma pessoa no exterior? / salto /
A Ingrid Marie não podia ter um papá na prisão. / salto /
Devia contar a alguém? Podia dizer a alguém? Que motivo daria ele para as suas suspeitas? Talvez o Hinde estivesse realmente doente. Talvez tivesse ido para o hospital. Nesse caso, um aviso de que aquilo podia ser uma tentativa de fuga pareceria, no mínimo, estranho. E se ele achava que podia estar a preparar algo do género, porque dera autorização para a transferência? / salto /
«Eu nunca matei uma mulher grávida.» / salto /
O que aconteceria se ele falasse com a polícia?
O que aconteceria se o não ?zesse?
O seu telemóvel tocou de novo. Quando o tirou do bolso, Haraldsson sentiu o coração bater mais depressa, com esperança. Era um número que não reconhecia. Não era Jenny. Mesmo assim, atendeu.
– Haraldsson.
– Daqui fala Edward Hinde.
O espírito de Haraldsson ?cou completamente em branco. Foi como se todos os pensamentos que anteriormente se acumulavam na sua cabeça tivessem sido soprados para longe.
– De onde está você a ligar? – foi a única coisa que se lembrou de dizer.
– Isso não interessa. Você fez o que eu lhe pedi, por isso pode fazer a sua pergunta.
Haraldsson ouviu cada palavra. Ouviu, mas não entendeu.
– O quê?
– Eu mantenho as minhas promessas, Thomas. Você disse que sim, que era o que eu queria, e por isso vou responder a uma pergunta.
– O que é que você...
– Espere aí, Thomas – interrompeu Edward. Haraldsson parou imediatamente de falar. – Eu não estou a dizer-lhe o que deve fazer – prosseguiu Edward brandamente – mas, se estivesse no seu lugar, perguntaria: «Onde está a minha esposa?»
Haraldsson fechou os olhos e viu luzes a piscarem. Receou desmaiar. Não podia fazê-lo. Se desmaiasse, nunca viria a saber. Escorreram-lhe lágrimas silenciosas pelas faces.
– Onde está a minha mulher?
A voz dele aguentou-se à justa. Hinde começou a contar-lhe.
TODAS AS JANELAS do apartamento estavam completamente abertas.
Porém, a casa continuava quente.
Húmida.
Abafada.
Vanja estava sentada no sofá, a saltitar de canal em canal. Era dolorosamente evidente que nenhum canal transmitia os seus melhores programas àquela hora do dia. Desligou o televisor, atirou para o lado o controlo remoto e pegou nos suplementos especiais que haviam sido publicados nos dois jornais vespertinos. O Expressen trazia dez páginas sobre a detenção de Ralph Svensson, com um exclusivo na primeira página ilustrada com uma grande fotogra?a dele. Desmascarado sob o título que surgia em manchete: O ROSTO DO TARADO DO VERÃO. No cimo da página lia-se «A polícia suspeita que seja este» em letras muito mais pequenas. Pelo que Vanja sabia, Ralph ainda nem sequer fora constituído arguido mas já começava a ser fustigado pela imprensa. Restringir a publicação de nomes e de fotogra?as era algo que naquela época estava fora de moda. A identi?cação precoce dos suspeitos era «do interesse público». Isso implicava que ninguém se dispunha a pagar por uma fotogra?a onde os rostos surgissem esbatidos. Além de ela própria achar que não era ético, por vezes também lhes di?cultava o trabalho. As acareações de identidade passavam subitamente a ter muito menos valor quando o rosto do suspeito já aparecera de olhos arregalados em todas as primeiras páginas.
O retrato que vinha no Expressen era o do passaporte de Ralph; não era particularmente lisonjeiro. Ele aparentava um ar tão louco como qualquer outra pessoa na sua fotogra?a de passaporte. No interior do jornal vinha exposta toda a história da sua vida. A doença da mãe, o facto de o pai se ter casado novamente, a nova mãe, os amáveis parentes dela, as mudanças de um lugar para outro, o dinheiro, a escola, o emprego. Tinham localizado alguns colegas de escola que se lembravam de Ralph Svensson como uma pessoa calada e introvertida. Um bocadito estranho. Era difícil conhecê-lo. Passava a maior parte do tempo sozinho. Isso pode ter sido verdade, Vanja não fazia ideia, mas começou a pensar se o jornal teria obtido a mesma resposta por parte deles caso lhes tivessem telefonado a dizer que Ralph Svensson ganhara o Prémio Nobel e não que era suspeito de homicídios em série. Aquilo adequava-se à imagem. O lobo solitário. O recluso. O excêntrico. Vanja achou que os antigos colegas de escola, que quase de certeza não pensaram em Ralph durante os últimos vinte anos, se haviam simplesmente vergado ao peso das expectativas. Após a exposição de toda a vida de Ralph, que deixava de lado quaisquer possíveis sonhos, esperanças, desejos e outras distracções que pudessem humanizá-lo, o jornal tinha outra tanta informação acerca de Edward Hinde. Os jornalistas estavam com sorte: como Ralph era um imitador, podiam reimprimir as notícias de 1996. Vanja não conseguiu decidir-se a lê-las. Largou o jornal e foi à cozinha beber um copo de água. Passava um pouco das seis e meia. O Sol só começaria a pôr-se daí a duas horas, mas pelo menos a temperatura exterior começava a ?car suportável. Uma brisa amena entrou em casa através da janela aberta.
Ela sentia-se inquieta.
Normalmente era dominada por um agradável cansaço quando chegavam ao ?m de uma investigação, como se o corpo e o cérebro conseguissem por ?m relaxar após semanas de tensão. Costumava sentir-se feliz por encomendar uma pizza, beber um pouco de vinho a mais e repousar no sofá. Porém, daquela vez não.
Estava convicta de que tinham prendido o homem certo. Sebastian Bergman fora completamente ultrapassado, o que também era positivo. Não imaginava como conseguiria ele arranjar maneira de lá entrar outra vez. Torkel deixara bem claro que já bastava, e até Sebastian parecera ter chegado à mesma conclusão. Sim, levando tudo em consideração, fora um trabalho bem feito. Um dia bom. Mas, então, porque não conseguia ela relaxar?
Porque as coisas não estavam bem entre si e Billy. Agora que o caso entrava numa fase menos frenética, podia concentrar-se nos defeitos daquele relacionamento. Desde que lhe dissera, no carro, que era melhor agente policial do que ele, a relação ?cara tensa. Não era surpreendente. Já o estava, para ser honesta consigo mesma, mas após aquele comentário venenoso que ela proferira no carro passara à guerra aberta.
Pelo menos era o que lhe parecia. Fora ele quem começara o que estava a acontecer entre eles, mas ela agravara a situação com as suas observações parvas e teria de lhe pôr um ?m. Não podia continuar como estava; Billy era muito importante para ela. Àquele ritmo um deles acabaria por pedir para sair da equipa, o que era a última coisa que ela queria. Precisava de fazer com que a situação voltasse ao normal. Regressou à sala e pegou no seu telemóvel.
Maya abriu o forno e tirou o lombo de porco gratinado. Billy retirou do lume o prato de cuscuz e legumes salteados. Iam jantar mais cedo. Como ele ?cara com a noite livre, decidiram ir ao teatro. A ideia original não fora dele, mas tomaram a decisão em conjunto. Billy nunca ouvira falar daquela companhia; segundo Maya, era um grupo de teatro inglês chamado Spymonkey que iria actuar durante quatro noites ao longo dessa semana. Teatro de comédia física, dissera ela.
Billy não conseguia imaginar.
– Uma espécie de cruzamento entre os Monty Python e Samuel Beckett.
Pronto, uma referência que ele entendia. Gostava dos Monty Python. Pelo menos, de algumas coisas. De tudo não. Era um pouco datado. Mas era justo que fosse ela a decidir o que iam fazer. Da última vez ele escolhera ir ao cinema e, além disso, andara a trabalhar até tão tarde que mal se conseguiram ver. Ele podia aturar duas horas de comédia física britânica se isso signi?casse estar com ela. Serviu um copo de vinho para cada um e sentou-se à mesa. Os seus hábitos alimentares melhoraram muito desde que conhecia Maya. Gostava disso. Gostava de imensas coisas a respeito de Maya. De tudo, na verdade. O seu telemóvel tocou e Billy olhou para o ecrã. Era Vanja.
– Tenho de atender.
– Está bem. Não te demores.
Billy foi para a outra sala. Não contara a Maya a conversa que tivera com Vanja no carro. Gostava de ambas e desejava que elas gostassem uma da outra. As possibilidades de isso vir a ocorrer ?cariam signi?cativamente reduzidas se Maya soubesse daquele diálogo que já causara tantos estragos. Sentou-se no sofá quando atendeu a chamada.
– Olá, sou eu – disse Vanja.
– Eu sei.
– O que estás a fazer?
Billy pensou rapidamente. Como deveria lidar com a situação? Dizer-lhe tanto quanto possível a verdade, decidiu ele.
– Íamos agora começar jantar.
– Tu e a Maya? – Havia uma pitada de antipatia no modo como ela proferiu o nome? Não terá enfatizado um pouco de mais aquele y? Mayyyya. Ou estava apenas a imaginar coisas? A procurar problemas? Possivelmente.
– Sim. Eu e a Maya. – Olhou para a cozinha, onde Maya provava o vinho. Estava nitidamente à espera que ele regressasse para começar a comer. – Já está na mesa; queres alguma coisa? – Billy fazia os possíveis para não se mostrar demasiado avesso à conversa.
– Queres vir fazer uma corrida?
– Agora?
Ele não esperava aquela pergunta. Não pensou que ela quisesse a sua companhia.
– Daqui a pouco. Depois de comeres. Agora já não está tanto calor lá fora.
– Não sei...
– Pensei que podíamos ter uma pequena conversa. Acerca de nós.
Billy não lhe respondeu logo. Ali estava. O primeiro passo. Vanja dera-o. Billy olhou de novo para a cozinha. Maya olhou para ele e sorriu-lhe, mas ao mesmo tempo a sua mão formou uma boca que falava e falava. Ele retribuiu-lhe o sorriso e revirou os olhos para indicar que a pessoa do outro lado era muito tagarela, enquanto analisava rapidamente no seu espírito as opções disponíveis. Apetecia-lhe ir correr. E decerto queria falar com Vanja. Acerca do seu relacionamento. Mas não teria tempo para o fazer e ir ao teatro. Não lhe apetecia ir ao teatro, mas queria estar com Maya. Queria beber vinho e passar tempo com a sua namorada. Teria de fazer uma escolha. Ele e Vanja haveriam de resolver os seus problemas, tinha a certeza. Sabia-o. Mas não naquela noite. Ia escolher Maya e Vanja teria simplesmente de aceitar esse facto.
– Lamento muito – disse-lhe ele, com sinceridade. – Mas não posso.
– Então o que vais fazer?
Ela pareceu desapontada? Daquela vez não achou que isso se devesse à sua imaginação.
– Vamos sair. Para ver uma peça.
– Uma peça?
Ele percebeu o aspecto que aquilo devia ter. Vanja conhecia as opiniões dele acerca do teatro. Em vez dela, tinha escolhido o pior de que se poderia lembrar. Era esse o aspecto que aquilo tinha. Mas não era bem assim. Ele podia estar a escolher Maya em vez dela mas não lho queria dizer.
– Sim, já reservámos os bilhetes há imenso tempo. – Tinha reservado os bilhetes há menos de uma hora mas era altura de abandonar a verdade. De salvar o que podia ser salvo.
– Está bem. Fica para outra vez.
– Sim.
– Divirtam-se. Cumprimentos à Maya.
– Serão entregues. Ouve, eu realmente quero que nós... – Ela já tinha desligado. Billy pensou fugazmente se devia telefonar-lhe e concluir a frase. Decidiu deixar tudo como estava mas no dia seguinte, no trabalho, iria de certeza abordar a questão. Se não fosse trabalhar, telefonava-lhe; por vezes ela tirava um dia de folga após terem feito uma detenção.
Billy voltou para a cozinha.
– Quem era? – perguntou Maya enquanto começava a comer. De facto, tinha ?cado à espera dele.
– A Vanja.
– O que queria ela?
– Nada.
Sentou-se e pegou no seu copo de vinho. Não era verdade. Não era o que Vanja queria, era o que recebera.
NÃO FOI de todo daquela maneira que ele imaginou o seu aniversário de casamento. De todo que não.
Após o telefonema de Edward Hinde, Haraldsson correu para o carro e introduziu as coordenadas do GPS. O mapa surgiu rapidamente. Passar por Surahammar e Ramnäs, virar à esquerda, entrar na ?oresta, descer em direcção ao lago Öje. Ele perguntara se Jenny ainda estava viva mas não recebera qualquer resposta. Essa era a segunda pergunta; só podia a fazer uma, dissera Hinde, e terminara a chamada.
Enquanto conduzia, Haraldsson dizia a si próprio que não havia razão para que Hinde lhe dissesse onde estava Jenny a menos que ele a pudesse salvar. O passo mais lógico seria libertá-la; ela já cumprira o seu papel como meio de exercer pressão sobre Haraldsson. Não haveria mais nada a ganhar se a magoassem. Mas por mais que tentasse convencer-se disso, lá no fundo estava sempre presente a noção de que Hinde não agia logicamente, não precisava de razões. Fora por isso que ?cara sentado em Lövhaga durante catorze anos.
Ele era um psicopata.
Haraldsson seguiu o GPS. As estradas foram-se tornando cada vez mais estreitas, a ?oresta cada vez mais densa. Depois avistou água entre as árvores e o caminho chegou ao ?m. Estacionou ao lado de um enorme rododendro e saiu do carro. Era uma moradia de Verão. Construída na encosta que descia até ao lago. Há muitos anos, sem dúvida; actualmente, ninguém conseguiria obter licença para construir tão perto da margem. Caminhou até à casa e tentou abrir a porta. Estava trancada. Espreitou para dentro através de uma janela. A cozinha. Era evidente que não havia água nem electricidade; viu um fogão a lenha e uns alguidares virados ao contrário em cima do pequeno escorredor. Não havia torneiras, somente um grande balde de metal e uma concha pousada num banquinho ao lado. Pitoresco, mas vazio.
– Jenny! – gritou ele.
Ninguém respondeu.
Haraldsson continuou a contornar a casa, olhando através de todas as janelas. Nada. Parou e olhou em redor. O jardim não era muito grande mas formava um cenário bonito. Relva nos três lados. Uma rede de badminton montada no que descia até ao lago. Mobiliário de jardim e um mastro de bandeira noutro. Por aqueles lados alguém apreciava a boa vida.
– Jenny!
Algures acima do lago, um pássaro respondeu-lhe. Haraldsson sentia o seu pânico aumentar. A curta distância havia uma latrina exterior, à beira da ?oresta; foi veri?car, mas também estava vazia. Com excepção de uma nuvem de moscas a zumbirem. Fechou a porta e decidiu ir arrombar a casa quando reparou num outeiro invulgarmente arredondado por trás do mastro. Entre os arbustos de mirtilo passava um carreiro que seguia para lá. Grandes pedras erguiam-se entre as ervas altas e a turfa dos lados. Era uma cave para armazenar víveres. Haraldsson apressou-se a chegar ao local. Quando se aproximou, ouviu um som ténue de pancadas. Parou. Seria verdade ou era apenas a sua imaginação? Não, estava mesmo alguém a bater. No interior daquela cave subterrânea. O som não era muito alto, mas mesmo assim ouvia-se. Haraldsson aproximou-se em poucos segundos. O som tornou-se mais alto à medida que as esperanças dele aumentavam.
– Jenny!
Correu em redor do pequeno outeiro e deu por si frente a uma grande porta de madeira escura. Rodou a chave e abriu-a. Havia uma espécie de saguão, com aproximadamente um metro de comprimento, e a seguir outra porta. O barulho era sonoro e forte. Ela estava viva. No passado aquelas grossas paredes de pedra ?zeram um bom trabalho a abafar o som, mas naquele momento ouvia-o com nitidez. Havia uma chave na fechadura. Haraldsson rodou-a e abriu a porta.
Jenny estava em pé lá dentro, a esfregar os olhos devido à súbita claridade. Apressou-se a abraçá-la.
Com força.
Ela agarrou-se a ele.
Durante muito tempo.
No carro e já a caminho de casa, de início ela não falou. Assustara-se, claro. Aterrorizada. Só quando o táxi virou para baixo, em direcção àquela moradia, é que percebeu que havia algo de errado. O homem grande pegou na bolsa dela e obrigou-a a sair do carro e a entrar na cave subterrânea. Ela nem conseguia pensar devidamente. Mas agora que estava a salvo, os seus pensamentos suscitavam perguntas. Precisava de compreender. Haraldsson detestava mentir-lhe, mas naquele momento tudo era demasiado incerto para que ele pudesse contar-lhe pelo menos uma versão higiénica da verdade. Em vez disso, explicou-lhe que falara com os seus antigos colegas da polícia quando recebera o telefonema do verdadeiro motorista de táxi e que, aparentemente, existia uma quadrilha que se especializara em ir buscar as pessoas ao local de trabalho e sequestrá-las. A polícia acreditava que, provavelmente, acederam sub-repticiamente aos computadores da empresa de táxis para descobrirem quais os veículos que haviam sido reservados.
Jenny pareceu ?car satisfeita com a explicação dele.
Sem dúvida que mais tarde haveria outras perguntas, quando tudo tivesse acalmado, mas nessa altura ele já saberia qual o resultado dos acontecimentos daquele dia e conseguiria adaptar as suas respostas em conformidade. Para já, iam para casa.
Sentia-se muito feliz por ela estar ilesa.
Ainda mal tinham entrado pela porta e já Victor estava de novo ao telefone. Enervado. Desesperado. A ambulância que transportava Hinde não chegara a Uppsala. O hospital não conseguira contactar a tripulação. Lövhaga não conseguia falar com os guardas que acompanharam Hinde. Haraldsson tinha de ir para lá.
Ele tentou esquivar-se, mas Victor deixou claro que se tratava de uma situação que exigia a presença do director. Disse a Jenny tinha de ir trabalhar. Na verdade, não lhe restava outra opção. Devia levá-la de carro para casa de uma das suas amigas caso não quisesse ?car sozinha? Não, ela queria ?car com ele. Encaminharam-se de novo para o carro, juntos.
Jenny manteve-se calada durante a maior parte do caminho até Lövhaga. Provavelmente rememorava os acontecimentos do dia. Isso agradou a Haraldsson. Ele precisava de pensar nos cenários possíveis, de planear como deveria lidar com a situação que surgira.
Chegara o momento de controlar os danos.
Em nenhuma circunstância alguém poderia descobrir que ele tivera algo a ver com o que se passara.
Para o seu bem. Para o bem de Jenny. Para o bem de todos.
Começou por Jenny. Ninguém sabia que ela estivera desaparecida. Ah, sim, as raparigas do escritório, mas mais ninguém. O que elas sabiam nunca chegaria ao conhecimento da administração de Lövhaga, pelo que Jenny não constituía um risco. Mesmo que ela contasse a sua experiência desagradável a alguém na prisão, ninguém a iria relacionar com a fuga de Hinde. Conferido!
Próxima pergunta: devia tentar recuperar o boião de beterraba e o frasco da farmácia?
Era arriscado. Se os encontrassem, decerto suporiam que Ralph Svensson lhos levara à socapa. Não iriam procurar impressões digitais naqueles objectos, pois não? Não quando já tinham um suspeito que estivera em contacto com Hinde durante muito tempo. Claro que todos pensariam que foi Ralph quem o ajudou. O melhor a fazer seria, provavelmente, manter-se bem longe da cela de Hinde.
Ou devia ter uma abordagem diferente?
Podia demonstrar iniciativa através de uma revista à cela. Para «encontrar» aqueles objectos. Isso explicaria a presença das suas impressões digitais se houvesse alguma investigação posterior. Se assim fosse, em todo o caso não estariam lá as impressões digitais de Ralph. Ah, mas os homens das limpezas usavam luvas, não era...
Os seus pensamentos foram interrompidos quando o telefone tocou. Era o chefe de cozinha, que já chegara lá a casa. Onde estavam eles? Haraldsson suspirou; esquecera-se completamente do jantar. Explicou-lhe que tinha surgido uma emergência e, infelizmente, não poderiam provar as delícias culinárias dessa noite. O chefe ?cou compreensivelmente arrasado. Haraldsson teria de pagar tudo. A comida, o vinho, as despesas com a sua deslocação, os seus honorários. Era só para Haraldsson ?car a saber. Ele não protestou; limitou-se a pedir-lhe desculpa e terminou a chamada.
– Quem era? – quis saber Jenny.
– Era o chefe de cozinha; ia lá a casa fazer-nos o jantar. – Era bom poder dizer a verdade de vez em quando sem que fosse preciso pensar e adaptar-se.
– Então tu planeaste tudo?
– Sim, mas nada correu como planeei. Tenho realmente muita pena.
– Bom, a culpa não é tua.
– Pois não, mas mesmo assim...
– Tu és uma estrela.
Ela encostou-se a ele e beijou-o na face. Ele sorriu, mas na sua cabeça já estava a rever novamente as questões essenciais.
Sim, podia tratar do frasco e do boião, mas se alguém revistasse a cela e encontrasse a fotogra?a de Jenny? Como haveria de o explicar? Quase ansiava que Hinde a tivesse levado consigo. Mas quando apanhassem Hinde, se o apanhassem, e encontrassem com ele uma fotogra?a da esposa do director da prisão... Poderia simplesmente ?ngir-se surpreendido. Perguntar como diabo Hinde conseguira apoderar-se dela. Continuaria a ser um mistério...
Quando chegaram, Victor Bäckman estava à espera deles no parque de estacionamento. Ficou surpreendido ao ver Jenny, mas Haraldsson explicou-lhe que era o seu aniversário de casamento e que queriam estar juntos. Victor engoliu a patranha. Tinha assuntos mais importantes com que se preocupar. Caminharam todos em direcção ao edifício.
– Revistámos a cela dele. Encontrámos um boião de beterraba vazio e um frasco de emético – ipecacuanha. Também vazio.
– Onde os conseguiu obter? – perguntou Haraldsson, do modo mais natural possível.
– O Ralph deve ter-lhos dado.
– Espero que você tenha razão. – Haraldsson fez um gesto de assentimento, muito aliviado.
– Mas o pior não é isso. – Victor parecia extremamente perturbado. – Encontrámos um modem.
– O que signi?ca isso?
– Ele teve contacto ilimitado com o mundo exterior. Estamos agora a revistar-lhe o computador para tentar ver se existe algo sobre a fuga. Mas como está protegido por palavra-passe, poderá demorar um pouco.
Haraldsson quase nem ouviu a última parte. Contacto com o mundo exterior. Decerto que isso podia ser usado para explicar uma série de factos, caso fosse necessário. O desmazelo era de Victor. O erro era de Victor. Não seu. Parecia que tudo iria ?car bem. Não se atreveu a perguntar pela fotogra?a. Provavelmente não a encontraram, caso contrário Victor ter-lho-ia referido.
De repente, percebeu que o chefe da segurança parara e parecia estar à espera de uma resposta.
– Como?
– Eu disse que o hospital ainda não conseguiu localizar a ambulância. O que fazemos?
– Entramos em contacto com a polícia e dizemos-lhes que temos uma possível tentativa de fuga. – Haraldsson ?cou impressionado com a autoridade da sua voz, com a maneira como assumira o comando da situação. Não haveria mais erros. Victor fez um aceno de concordância e foram os dois para o bloco administrativo.
Não tardou muito para que os jornalistas mais atentos, que já andavam interessado em Lövhaga, ?cassem a saber que alguém tinha fugido. Às vezes a força policial vazava como um coador. Também estabeleceram a ligação com a ambulância desaparecida e montaram o circo. Haraldsson escondeu-se e esquivou-se durante algum tempo, mas percebeu que seria melhor falar com eles de modo a poder controlar o que se dizia. Emitiu uma ordem para que todas as perguntas dos meios de comunicação social fossem encaminhadas para ele. Foi como abrir as comportas.
O telefone nunca mais parou. Annika estava sempre a transferir-lhe chamadas, uma após outra.
Várias pessoas a telefonarem-lhe.
As mesmas respostas.
Sim, era verdade que estava desaparecida uma ambulância que tinha ido buscar um paciente a Lövhaga.
Sim, havia uma série de aspectos que sugeriam que poderia ser uma tentativa de fuga, mas ainda era muito cedo para se fazer uma a?rmação de?nitiva.
Não, ele não tinha qualquer intenção de lhes dizer quem estava na ambulância.
Todos lhe perguntavam se era Hinde.
Desligou. Curiosamente, o telefone não voltou a tocar. Levantou-se e foi até junto de Jenny, que estava sentada numa das poltronas. Ela tinha ido ao refeitório buscar uma caneca de café e um sanduíche, mas ainda nem comera metade. Que aniversário de casamento aquele. Ainda assim, poderiam celebrar noutro dia.
O importante era que estavam juntos. Ele nunca vivera tantos altos e baixos emocionais como naquele dia. Mas lidara muito bem com a situação. Iria continuar a fazê-lo. O pior já passara.
– Como estás? – Agachou-se à sua frente e afastou-lhe suavemente do rosto uma madeixa de cabelo.
– Tenho estado aqui sentada a pensar.
– Eu compreendo... – Haraldsson pegou-lhe na mão e apertou-lha. – Talvez precises de falar com alguém acerca do que aconteceu. Com um pro?ssional.
Jenny anuiu com uma expressão um pouco distante.
– Querido?
– Sim?
– Como é que tu soubeste onde eu estava?
Haraldsson ?cou hirto.
A?nal, talvez o pior ainda não tivesse passado.
CHEGARA A CASA mais cedo do que o combinado. Quando estava em Östermalmstorg lembrara-se de que tinha prometido a Ellinor que faria algumas compras para o jantar. Quem lho recordou foi, provavelmente, o homem que ia à sua frente e carregava dois sacos. Ao princípio sentira-se inclinado a esquecer tudo; jantar com Ellinor e um vizinho que ele nem sequer conhecia parecia-lhe absolutamente ridículo. Como uma peça de um quebra-cabeças que não se encaixava em lugar algum. No entanto, quanto mais tentava afastar esse pensamento, mais persistente este se tornava.
Havia algo de libertador na simplicidade da situação. Uma lista de compras e uma cesta para colocar as coisas lá dentro. Fazer compras ao lado de outras pessoas como se ele fosse simplesmente um indivíduo normal, que funcionava. Como se tivesse algo por que ansiar.
Foi ao mercado Saluhallen[18] e começou a fazer compras como nunca o havia feito. Bifes do lombo, batatas novas, legumes, fruta e cerca de uma dúzia de queijos para a sobremesa. Provou o salame e o prosciutto italiano e decidiu comprar ambos. Pegou em manjericão e funcho. Comprou um patê francês com um sabor divinal. Café topo de gama, acabado de moer. Não lhe apetecia parar de fazer compras. Todos aqueles sabores abriam possibilidades para algo que nunca experimentara. Na loja de bebidas comprou champanhe, vinho branco, vinho tinto, uísque e conhaque. Pensou em comprar um porto vintage mas já não tinha mãos nem sacos de plástico para tanto. Durante o caminho para casa teve de parar e pousar os sacos no chão por várias vezes, para não os deixar cair quando os seus dedos ?cavam dormentes.
Ellinor correu ao seu encontro e abraçou-o antes de ele ter sequer conseguido pousar as compras no chão. A sua alegria ao vê-lo foi irresistível. Roçou-se contra ele. Cheirava deliciosamente bem. O seu cabelo ruivo era macio e os lábios, encostados aos dele, ainda mais macios. Abraçou-a com força. Só lhe apetecia perder-se nela, naquelas risadas adoráveis. Ficaram no vestíbulo durante bastante tempo. Ela soltou-o primeiro, mas manteve uma mão pousada na parte detrás do pescoço dele. Olhou para os sacos que estavam no chão.
– Quanto é que gastaste?
– Imenso. Nem me dei ao trabalho de olhar para a lista.
Ela riu.
– Tu és doido. – Beijou-o de novo na boca. – Tive saudades tuas. Todo o dia.
– Também tive saudades tuas. – Nesse momento ele percebeu que não estava a mentir. Talvez não tivesse sentido realmente a falta dela. Não, dela não. Mas da direcção em que ela o estava a levar. Fora disso que sentira a falta. Desde há muito tempo. Ela levou alguns sacos para a cozinha. Ele ?cou a vê-la. Era como se, subitamente, se encontrasse num desvio que seguia numa direcção diferente e nunca mais quisesse regressar à pista principal. Nunca mais.
Ela regressou, sorrindo para ele.
– Compraste coisas tão boas.
– Obrigado.
– Queres ir para a cama ou bebemos uma taça de champanhe primeiro?
– Eu não bebo.
– Nem sequer champanhe?
– Não.
– Que chato! – Ela mostrou-lhe um sorriso dengoso. – Nesse caso, só há uma opção.
Empurrou para trás os seus longos cabelos e olhou para ele com aquela expressão que considerava ser muito difícil resistir. Por instantes, ?cou perdido naquela promessa de intimidade, de proximidade. Mas depois surpreendeu-se a si próprio.
– Não devíamos tratar do jantar primeiro? Quero dizer, tu convidaste o nosso vizinho a vir cá.
Ela olhou para ele com um desapontamento exagerado.
– Como eu estava a dizer – que chato! – Deu meia-volta e regressou à cozinha. Ele foi atrás para a ajudar a arrumar as compras.
No mínimo, ?cara surpreendido com a sua decisão.
Dar prioridade ao vizinho e não ao sexo.
Isso era algo novo para ele.
Ela decidiu o menu. Os dotes culinários dele eram limitados e dedicou-se a lavar e a cortar os legumes. Ela ia conversando enquanto tratava da carne: acerca dos seus planos para o apartamento, do clima de Verão, do facto de estar preocupada com as suas plantas. Pensava se as devia levar para ali. Na maior parte do tempo Sebastian limitava-se a ouvir – não necessariamente o que ela dizia, mas o som da sua voz. Não entrou em qualquer discussão. Ela era um pouco como a taça de champanhe que tinha ao seu lado: espumante e deliciosa, mas melhor quando só se bebia um gole.
– Importas-te que ligue o rádio? – perguntou ela.
Ele nem sabia que tinha um rádio. Onde estava?
– Claro que não.
– Adoro ouvir música quando estou a fazer isto. E quando estou a trabalhar contigo. – Ela ligou o pequeno rádio que estava em cima da prateleira das especiarias. Ele tentou lembrar-se de como fora parar ao seu apartamento mas não conseguiu encontrar uma resposta. O som de uma exuberante secção de cordas que entoava uma canção de amor encheu a cozinha. Ele quase começou a sorrir. Ela nem sequer era champanhe vulgar. Era champanhe rosé. Aquele que antigamente sempre evitara. Olhava-o com desdém.
– É a Radio Smooth – respondeu. – A minha estação favorita.
– A minha também – disse-lhe ele, embora tivesse acabado de descobrir que havia uma estação de rádio com um nome tão estúpido.
Ellinor foi ao quarto de hóspedes durante alguns minutos enquanto Sebastian empilhava a salada numa tigela. Pensou se teria tempero. Decerto não o tinha comprado. Era típico. Fizera tenções de comprar aquele dispendioso vinagre balsâmico mas esquecera-se após a visita à secção dos queijos. Ellinor regressou.
– Andei a fazer uma limpeza e encontrei isto. Parece que está cheio de documentos importantes. Onde devo pô-los? – Segurava a sacola que Trolle lhe entregara. Na mão dela parecia leve como uma pena. Quando ele a trouxe para casa era mais pesada.
Muito mais pesada.
De repente, viu Trolle no seu espírito. Aquele sorriso reconfortante antes de ele desaparecer ao virar da esquina pela última vez. Viu-se a si próprio, ali em pé, com o saco na mão. A poucos metros de distância da Storskärsgatan e de Trolle, que desaparecera. Fora apenas há dois dias; fora há uma vida. O desvio unira-se de repente à via principal.
Só demorara um segundo.
Eram muito próximos, aqueles dois mundos. Moviam-se ao longo de linhas paralelas. Bastava um saco de plástico cheio de culpa. Ele engoliu em seco e baixou os olhos para a tigela de salada. Queria regressar ao champanhe rosé.
– É só lixo; podes deitar isso fora – disse o mais despreocupadamente que conseguiu.
– Tens a certeza? Não quero deitar fora nada que possa ser importante.
– Tenho a certeza absoluta. – Sorriu para enfatizar que o conteúdo do saco não tinha realmente importância para ele.
Ela anuiu e saiu novamente da cozinha, cantarolando ao som da música. Ele começou a cortar o tomate. Se fosse ele a decidir, a música do rádio e a mulher que cantarolava no quarto ao lado nunca iriam desaparecer. Continuariam simplesmente a construir a ilusão de uma vida. Mas não lhe cabia a ele decidir.
Não era assim que tudo funcionava.
A melodia chegou ao ?m e alguém anunciou que queria emprestar-lhe dinheiro até ao dia do pagamento. A seguir, estava na hora do noticiário.
A ilusão foi destruída.
Ao longo da via principal trovejava de novo.
Ao princípio ele nem sequer ouviu o que a mulher da rádio estava a dizer. Algo acerca de uma ambulância desaparecida. Mas depois veio a palavra que o fez largar a faca. Lövhaga. Virou-se de frente para o rádio. Escutou como nunca o havia feito. Desaparecera uma ambulância após sair de Lövhaga. Ia transferir um paciente. De momento, a polícia não tinha mais informações. A mulher que lia o noticiário passou ao assunto seguinte, mas por essa altura já Sebastian estava no corredor com o telemóvel na mão. Com as mãos a tremer, procurou o número de Lövhaga. Estava na lista das chamadas mais recentes. A seguir ao de Trolle. Telefonara para lá nessa manhã, quando estava parado do lado de fora a tentar entrar para falar com Vanja. Ellinor veio para o corredor, querendo saber o que se passava. Parecia um pouco preocupada.
– Aconteceu alguma coisa?
– Cala a boca!
Ela pareceu ofendida, mas ele não se preocupou. Deixara de se interessar pela sua banal efervescência e tagarelice. A assistente pessoal de Haraldsson atendeu; ele reconheceu-lhe a voz. Parecia cansada. Também não se importou. Exigiu falar com Thomas Haraldsson. Era importante. Era acerca da ambulância desaparecida. Haveria graves consequências se ela não lho passasse de imediato. Ela fez-lhe a vontade. Ouviu tocar o telefone de Haraldsson. Mal olhou para Ellinor, que lhe virou as costas e regressou à cozinha. Daquela vez não ?ngia desapontamento. Mantinha a cabeça inclinada, como se o seu comportamento exagerado pudesse fazê-lo mudar de ideias.
Haraldsson atendeu ao ?m de três toques. Parecia cansado, sem energia, como se tivesse ?cado preso nas frases feitas que tantas vezes repetira.
– Thomas Haraldsson. Em que posso ajudá-lo?
– Sebastian Bergman. Da Riksmord. Quem estava na ambulância desaparecida?
– Decidimos não divulgar essa informação – foi a resposta. – Por uma questão de protecção do nosso...
Sebastian interrompeu -o.
– Vou perguntar-lhe só mais uma vez. Depois vou destruir a sua vida. Como bem sabe, eu conheço o homem que é responsável pela Riksmord. Você quer que lhe diga quem mais conheço?
Haraldsson não respondeu.
Sebastian fez a pergunta, embora já soubesse a resposta.
– Foi o Hinde, não foi?
– Sim.
– E quando é que estava a pensar dizer-nos isso? – Terminou a chamada sem esperar pela resposta de Haraldsson. Ainda não sabia exactamente quando a ambulância desaparecera e Hinde se escapulira, mas devia ter sido há algum tempo pois, caso contrário, não teriam acabado de o anunciar na rádio. Sebastian tinha a sensação de que as notícias demoravam muito tempo a chegar à Radio Smooth. Hinde tinha um bom avanço.
E havia algo de que Sebastian tinha a certeza: iria tirar o máximo proveito daquilo.
Tinha de falar com Vanja. De imediato.
ELA ADORAVA CORRER. De Inverno e de Verão. Tal como a maioria das suas amigas, já experimentara inúmeros programas e tipos de exercício, desde a bicicleta ao ioga. Porém, regressava sempre à corrida. Dava-lhe mais energia, mais tempo para pensar. Era como se tanto o ritmo dos seus pés como o da sua respiração lhe limpassem e revigorassem o cérebro. Também não era o género de pessoa que gostava de fazer exercício em grupo. Preferia desa?ar-se a si própria. Naquela noite tencionava fazer uma corrida demorada. Seguir pelo percurso circular que efectuava quando tinha mais tempo. Talvez até desse a volta duas vezes.
No dia seguinte iriam fazer os primeiros interrogatórios a Ralph Svensson. Torkel queria que ela estivesse presente em todas as sessões. Só estavam à espera da análise preliminar do ADN. Torkel gostava de ter na mão todos os trunfos possíveis antes de começar.
Correu através de Lidingövägen e daí desceu para Storängsbotten. O seu objectivo era a ?oresta, Lill-Jansskogen, e os caminhos bem iluminados que a atravessavam. Para Vanja, não havia nada melhor do que correr na ?oresta. A calma, os aromas e os cheiros da natureza tornavam a experiência mais poderosa e o chão era mais macio, o que implicava menor desgaste nas suas articulações. Estava precisamente a aumentar a velocidade quando sentiu o telemóvel a vibrar dentro do seu bolso. Nem sempre o levava consigo. Normalmente queria que a deixassem em paz, mas com tudo aquilo que acontecera sentia que devia estar disponível a todo o momento. Primeiro pensou em ignorá-lo. Acabara de estabilizar a respiração, duas curtas inalações seguidas por uma longa exalação, e teria preferido não parar. Mas podia ser Billy. Talvez ele tivesse mudado de ideias acerca de ir correr com ela. Esse seria o ?nal de dia perfeito. Parou e sacou do telemóvel. Viu o nome da pessoa que estava a ligar-lhe. Era um número que não chegara a apagar.
Sebastian Bergman.
Guardou de novo o telemóvel no bolso.
Ele podia telefonar-lhe sempre que quisesse.
Ela nunca iria atender.
Sebastian telefonou a Vanja três vezes seguidas. Das duas primeiras ela não atendeu, e à terceira rejeitou a chamada. Ellinor regressou ao corredor com o seu copo de champanhe, olhando para ele com ternura. Tentando fazer as pazes.
– Vamos continuar o jantar?
A resposta dele foi abrir a porta e sair do apartamento sem sequer olhar para ela. Bateu com a porta atrás de si e o som ecoou nas escadas, em silêncio. Estava de novo sozinho no mundo real. Onde Edward Hinde se encontrava. Em liberdade.
Enquanto descia, ligou a Torkel. Daquela vez Torkel atendeu de imediato, mas o seu tom de voz não foi propriamente amigável.
– O que queres tu agora?
Sebastian parou.
– Ouve-me, Torkel. O Hinde fugiu.
– De que raio estás tu a falar?
– Tens de con?ar em mim. Penso que ele anda atrás da Vanja.
– Porque andaria ele atrás da Vanja? O que te leva a pensar que fugiu?
Sebastian sentia a sua frustração a aumentar a cada segundo que passava. Também sentia pânico, à espera de o dilacerar, mas conseguiu mantê-lo afastado. Precisava de se mostrar racional e não de entrar em pânico, caso contrário Torkel jamais iria acreditar nele. E Torkel tinha de acreditar nele. Cada minuto podia ser importante.
– Eu não penso que ele fugiu. Eu sei que ele fugiu. Telefonei para Lövhaga. Tens aí um televisor?
– Tenho.
– Veri?ca o serviço de texto. A notícia deve estar lá. Há uma ambulância desaparecida; estavam a transferir um paciente de Lövhaga. Esse paciente era o Hinde.
A seriedade da voz de Sebastian atingiu Torkel. Ele ligou o televisor com o controlo remoto e seleccionou a SVT1. Texto. A notícia estava em destaque.
– Não dizem que era o Hinde.
– Telefona àquele grandessíssimo idiota do Haraldsson se não acreditas em mim. – Sebastian começou de novo a descer as escadas. Precisava de sentir que se dirigia para algum lugar. Que fazia algo.
– Eu acredito em ti, eu acredito em ti – mas porque andaria ele atrás da Vanja? Não compreendo. Os outros homicídios visavam-te a ti. Porque andaria atrás dela?
Sebastian respirou fundo. Tinham chegado à fronteira que ele nunca quisera transpor, mas guardar o assunto só para si estava a tornar-se cada vez mais impossível.
Aquilo que ele sabia.
Aquilo que, muito provavelmente, Hinde também sabia.
A verdade.
– Tu tens de acreditar em mim – foi tudo o que conseguiu dizer-lhe. – Por favor, Torkel, con?a em mim. Telefona-lhe. Ela não atende as minhas chamadas.
– Tu dormiste com ela?
– Oh, por favor! Não, pelo amor de Deus! Mas eu apercebi-me quando esteve junto da Vanja. Ela despertou algo nele. Eu estava lá. Ele percebeu que nós éramos colegas. Para ele, é o su?ciente.
Torkel pensou por instantes. A?nal, talvez não fosse loucura. Sebastian tinha razão; ela estivera a sós com Hinde.
Talvez a situação implicasse um risco maior do que ele suspeitara. Um risco que, de?nitivamente, não estava disposto a correr.
– Vou já telefonar-lhe. Encontramo-nos na sede.
A linha ?cou muda. Torkel já ia a caminho. Sebastian saiu para a rua, procurando desesperadamente um táxi.
Vanja subiu a correr a colina mais longa do percurso. Encurtou a passada e esforçou-se mais, mantendo a velocidade e a respiração. Duas curtas inalações, uma exalação mais longa. O ar bem no fundo do seu diafragma. Estava a sair-se bem. Ela sentia-se forte. Concentrou-se deliberadamente na respiração quando chegou ao cume do outeiro. Veri?cou o monitor da pulsação; oitenta e oito por cento da sua máxima frequência cardíaca estimada. O telemóvel tocou de novo. Daquela vez nem sequer se deu ao trabalho de o tirar do bolso. Continuou a correr. O telemóvel continuou a tocar. Vê se percebes a deixa, pensou quando o som ?nalmente parou.
Alongou a passada, mantendo o ritmo da respiração enquanto impulsionava as pernas. Esforçou-se mais ainda, até noventa por cento da sua máxima frequência cardíaca estimada. Era demasiado cedo para acelerar. Ainda lhe faltavam percorrer mais de quatro quilómetros. Abrandou um pouco. Dois para dentro, um para fora.
O percurso atravessava um trilho da ?oresta. Olhou para o lado e viu um carro estacionado junto a uma pilha de madeira. Um Toyota prateado. O pisca do lado direito estava ligado. Já dera alguns passos quando percebeu o que tinha visto. Diminuiu a velocidade e parou. Inclinou-se com as mãos apoiadas nos joelhos durante alguns segundos e, a seguir, endireitou-se rapidamente. Demasiado ansiosa para esperar. Colocou as mãos nos quadris e esticou o peito para fora. Controlou a respiração enquanto voltava para trás. Aí estava ele. Pelo que conseguia perceber, o motor não estava a trabalhar. Ninguém nas proximidades.
WTF 766.
Era o carro que fora roubado em Brunna. Ela lembrava-se da matrícula porque ouvira Billy a conversar com um colega se era possível circular na Suécia um carro com WTF na placa de matrícula. Uma conversa que teria tido com ela se a sua relação fosse normal. O colega sabia que havia carros com LOL, e por isso achava que também devia haver com WTF. A autoridade de licenciamento de veículos não tinha a mínima possibilidade de se manter a par do mundo em rápida mutação das abreviaturas na Internet.
Vanja caminhou ao longo da pista em direcção ao carro. Usou a sua braçadeira para limpar o suor que lhe escorria pela testa. Esfregou o rosto contra o ombro. Uns insectos curiosos começaram a zumbir em seu redor, atraídos pela transpiração e pelo calor que dela emanavam.
O carro estava vazio. Ela pôs as mãos em pala por cima dos olhos quando espreitou para dentro da janela. Algo escuro escorrera pelo assento e para o chão. Sangue, provavelmente. Com alguma hesitação, tentou abrir a porta. Não trazia luvas consigo. Estava trancada. Passou para o lado direito e espreitou a parte detrás. Nada. Estava prestes a pegar no telemóvel e a participar o caso quando reparou em algo.
O cheiro. O fedor. Inconfundível.
Vanja deslocou-se para a traseira do carro e aproximou-se do porta-bagagens. Na verdade, nem precisava de o abrir. Sabia o que iria encontrar. Não quem, mas o quê.
Cediço. Adocicado e, porém, acre ao mesmo tempo. Ligeiramente metálico.
O cheiro de um cadáver.
Experimentou o puxador, esperando que o porta-bagagens também estivesse trancado. Não estava. Abriu-se com um estalido e Vanja virou-se rapidamente para trás, levando a mão à boca. Após controlar o re?exo de vómito, virou-se de novo para o local. Conteve a respiração, inalando apenas pela boca.
Era um homem. Idoso. Inchado. Entumescido. Verde-azulado. Um ?uido ?no, vermelho-acastanhado, escoava-se das bolhas que haviam rebentado. O ?uido da decomposição escorria-lhe da boca e das narinas. Todo ele dava impressão de humidade, quase de orvalho. Vanja fechou o porta-bagagens e recuou alguns passos enquanto pegava no telemóvel.
Reparou que a última chamada não fora de Sebastian mas de Torkel.
Ouviu um estalido atrás de si. Rodou sobre si própria, em alerta total. Um homem enorme estava parado a seis ou sete metros de distância. Nariz partido, cabelo apanhado num rabo-de-cavalo, uma cicatriz vermelha que lhe atravessava o olho esquerdo e descia pela face. Roland Johansson. Devia estar escondido atrás da pilha de madeira. Aproximara-se sem que ela o ouvisse. Lentamente, Vanja começou a andar para trás. Roland caminhou na sua direcção. Sem qualquer urgência. Mantendo a distância. Ao ?m de poucos passos, Vanja sentiu o carro contra a parte detrás das suas coxas. Olhou rapidamente para baixo, depois de novo para Roland. A adrenalina aumentou. O seu coração latejava enquanto deslizava ao longo do carro, até deixar de o sentir atrás de si. Mais um passo para a direita. Já estava no meio da pista. Nada atrás de si lhe impedia o caminho.
Roland Johansson. Grande. Forte.
Ela nunca seria capaz de o derrotar num combate corpo a corpo. No entanto, podia correr mais que ele. Ele continuou a avançar. Deu um passo em frente. Vanja deu um passo para trás. Calma. Controlada. Tendo o cuidado de ver onde colocava o pé. Não podia tropeçar – isso seria o ?m de tudo. Manteve a distância. Pronta para se virar e correr. Explodir. Ele nunca conseguiria transpor os sete metros de distância que havia entre eles. Não tinha hipótese. Ela seria capaz de o fazer.
Roland parou.
Agora! Vanja virou-se e impeliu o pé esquerdo com toda a força que conseguiu. Começou a correr...
... e sentiu de imediato uma dor que lhe queimava o peito, que se espalhava por todo o corpo. O seu pé direito, que devia impulsioná-la para a frente, tremeu impotentemente, sem conseguir aderir à gravilha. Os seus joelhos cederam. Ouviu um grito ao longe e, enquanto o chão se aproximava na sua direcção, percebeu que o grito saíra de si. A queda deve ter doído, mas ela não sentiu qualquer dor. Não se assemelhava à agonia inicial que ainda lhe percorria o corpo. As pedras minúsculas comprimiram-se contra o seu rosto enquanto ?cou ali deitada, a tremer. Por entre as lágrimas, avistou uma ?gura que se aproximava. Pestanejou. Com força. Não percebeu se aquela acção foi ou não deliberada. O corpo continuava a recusar-se a obedecer-lhe. Conseguiu ver com nitidez durante alguns segundos. No entanto, não acreditava no que via.
Era impensável. Impossível.
Era Edward Hinde.
Com uma Taser.
SEBASTIAN ABRIU a porta de vidro e entrou a correr na sede da polícia. Como não tinha um passe, só conseguiu chegar até à mulher da recepção. Por mais que ele gritasse, ela recusou-se a deixá-lo entrar. E Torkel ainda não tinha chegado. Telefonara a Sebastian poucos minutos após a primeira conversa entre ambos para lhe dizer que Vanja também não atendia as suas chamadas. Daquela vez parecera signi?cativamente mais preocupado, e disse que ia telefonar a Billy para ver se ele sabia onde estava Vanja. Torkel já vinha a caminho da sede.
Isso fora há dez minutos.
Sebastian correu de novo para a rua; desde que estivesse em movimento, tudo era menos doloroso. Pegou no telemóvel e foi andando em direcção à Hantverkargatan enquanto esperava que Torkel atendesse. Avistou Torkel dentro do carro a curta distância; desligou o telemóvel e correu para o carro de cor escura, acenando e gritando o nome de Torkel. Os transeuntes viraram-se para trás, mas ele não se importou. Torkel deve tê-lo visto; o carro travou e fez inversão de marcha logo a seguir aos semáforos, antes de acelerar e vir ao seu encontro. Parou mesmo à frente de Sebastian e Torkel saltou para fora.
– O Billy acha que ela foi fazer uma corrida. Foi o que ela lhe disse.
– Normalmente ela vai correr por trás do Real Instituto de Tecnologia.
– Tens a certeza?
– Tenho. Creio que ela referiu isso uma vez – acrescentou Sebastian.
Sabia exactamente onde ela ia correr, claro. Seguira-a várias vezes. Não durante todo o percurso, mas até ao ponto onde ela começava e terminava o circuito. Provavelmente terá optado pelo percurso mais longo; fazia-o sempre que tinha tempo. Se ele a seguira, então talvez Ralph tivesse feito o mesmo. Perseguir o perseguidor. Nesse caso, Hinde também poderia saber.
Sebastian ?cara parado por demasiado tempo; o pânico regressara.
– Temos de a encontrar! – gritou ele. Abriu de rompante a porta do passageiro enquanto Torkel o tentava acalmar.
– O Billy já vem a caminho. Estamos só à espera dele. Como já foi correr com ela algumas vezes, pode ter informações mais precisas.
Sebastian suspirou; na verdade, não queria esperar. Mas o conhecimento que Billy tinha do circuito tornaria tudo mais fácil.
– Então, onde está ele?
– Há-de chegar a qualquer instante. – Torkel olhou para ele com uma expressão séria.
– Manda já uma equipa para lá.
Torkel aquiesceu e fez um telefonema. Sebastian só queria sair dali. Estava a tremer, mas tentava não o mostrar. Enquanto Torkel convocava patrulhas para Lill-Jansskogen, apontou para uma ?gura que se aproximava deles numa bicicleta. Era Billy. Parecia ciente da urgência da situação; pedalava furiosamente. Sebastian e Torkel foram ao seu encontro; Billy arquejava.
– Precisamos de nos pôr a caminho. Vais tu a conduzir, Billy.
Correram de volta para o carro. Quando estavam a entrar no veículo, um dos telemóveis tocou. A vibração informou Sebastian que era o seu. Pegou nele e virou-se para os outros.
– Esperem aí.
Olhou para o ecrã. Era o número que ele tanto ansiava ver. Soltou um longo suspiro.
– É a Vanja.
Atendeu imediatamente.
– Onde estás?
A voz do outro lado não era a de Vanja.
– Sebastian.
Era de Edward Hinde.
Torkel e Billy viram o rosto de Sebastian a ?car lívido.
– O que quer você?
De repente, os outros perceberam com quem estava a falar. Mais ninguém lhe teria provocado aquela reacção.
Hinde falava com o tom de voz de quem se considerava vencedor.
– Julgo que o sabe melhor do que ninguém. Quando é que estava a pensar informá-la?
Sebastian virou as costas para os outros. Queria esconder os seus sentimentos. Não suportava estar no centro das atenções quando a sua vida se desmoronava.
– À primeira vista vocês não são particularmente parecidos, mas agora que tenho oportunidade irei examiná-la mais de perto.
– Se você lhe tocar, eu mato-o!
– Isso é realmente o melhor que consegue fazer? Você está mesmo destreinado, Sebastian. Costumava ser uma alegria ouvir o modo como explicava as coisas. Mas acabei por perceber que hoje em dia não é tão perspicaz.
Através do telemóvel, Sebastian conseguiu sentir o prazer de Hinde. Fora por aquilo que esperara durante todos aqueles anos.
– Cale-se. Estou farto dos seus jogos. Não toque em Vanja!
– Você parou-me ao ?m de quatro homicídios e eu parei o Ralph ao ?m de quatro homicídios. Não lhe parece que há algo de poético? Estamos a ?car cada vez mais parecidos, você e eu.
– Eu não assassino mulheres.
– Não, você só as fode. Mas as suas mulheres são tão descartáveis como as minhas. Todas elas são apenas... objectos. Você simplesmente ainda não teve coragem de ir até ao ?m. Iria gostar...
Sebastian quase desmaiou. A mera ideia de Vanja se encontrar nas mãos do homem que estava do outro lado era-lhe insuportável.
– Seu sacana tarado...
Não conseguiria atingir Hinde daquele modo. Sebastian podia chamar-lhe tudo o que quisesse. Todos os nomes que tivesse no seu vocabulário. Isso não tinha qualquer signi?cado; eram meras palavras. De momento, quem detinha todos os trunfos era Hinde.
– Por falar em ir até ao ?m... Você consegue lidar com a perda de mais uma ?lha?
Sebastian teve de fazer um verdadeiro esforço para segurar o telemóvel. O que na verdade lhe apetecia era deixá-lo cair, e cair no chão juntamente com este. Duas ?lhas. Ambas mortas. Que motivo teria ele para viver?
Depois deixou de ouvir Hinde e a ligação foi interrompida. Sebastian olhou para Billy e Torkel, que estavam quase tão pálidos quanto ele.
– O Hinde apanhou-a. Ele quer que eu o encontre.
Era disso que se tratava.
Não se tratava de ele exercer a sua vingança através dos outros.
O que ele pretendia era uma vingança genuína. Hinde andava atrás da vida de Sebastian.
Naquele instante, nesse momento em particular, era algo que Sebastian estava disposto a aceitar. Se ao menos conseguisse encontrá -lo.
Olhou para Torkel.
– Preciso de falar com o Ralph.
Torkel tirou do bolso o passe de Sebastian e entregou-lho.
– Vamos.
LEMBROU-SE DAS BORBOLETAS cor de enxofre da sua infância. Adoravam o prado atrás da casa. Quando era pequeno conseguiu capturar algumas. Colocava-as dentro de um copo virado ao contrário e ?cava a observá-las com interesse enquanto tentavam escapar. Às vezes deixava-as morrer, presas no interior do copo. Outras, arrancava-lhes as asas e via-as a rastejarem em círculos até acabarem por ?car paradas, deitadas de costas. Na verdade, não importava qual o método que escolhia. O que ele queria observar era a luta. A luta pela sobrevivência, apesar de o resultado já estar determinado. Essa tinha sido uma constante ao longo da sua vida, encontrar o momento em que a vítima pára de se debater e simplesmente aceita o inevitável. Poucas pessoas o conseguiam.
Continuou a dirigir-se para a casa. Desde há muito que ninguém lá ia. Era uma boa sensação. As janelas partidas e a fachada de madeira apodrecida adequavam-se perfeitamente ao cenário que transportara dentro de si durante tanto tempo.
Acerca do qual fantasiara.
Sonhara.
Naquele momento, ?nalmente, iria tornar-se realidade. Depois daquilo seria difícil inventar uma fantasia melhor para concretizar. Porque realmente ela era ?lha dele. Já não havia dúvidas acerca disso. A reacção de Sebastian ao telemóvel dissipara o último resquício de incerteza.
Roland levara-a do carro para dentro da casa. Ela era forte e continuara a debater-se, apesar do saco en?ado na cabeça e das ataduras à volta dos braços e das pernas. À entrada da porta ?cara tensa como uma mola de aço, e Edward percebera que Roland estava a pensar bater-lhe com a cabeça contra a pesada ombreira da porta para a acalmar. Conseguira impedi-lo. Usara novamente a Taser, encostando-a à parte detrás do pescoço dela para que todo o seu corpo ?casse primeiramente rígido e, depois, se tornasse ?ácido nos braços de Roland. Não queria que ela se magoasse durante o transporte. Devia estar tão pura e bonita quanto possível. Sem escoriações nem contusões.
Os dois levaram a velha cama com armação de metal para o quarto grande. Ficara muito contente quando Roland lhe dissera que ainda se encontrava ali. O papel de parede estava a descolar-se das paredes, mas reconheceu o padrão azul em ?or-de-lis que ainda era visível aqui e acolá. O quarto cheirava a mofo e a bolor, mas teria de servir. Não era nada que algumas velas perfumadas não pudessem resolver. Estenderam o colchão ?no que Roland levou para lá. Amarraram com ?rmeza as pernas dela à armação da cama e veri?caram se ?cou bem presa. Estava suada da luta, e Hinde acariciou-lhe a pele quente num gesto reconfortante. Depois saíram para irem buscar o resto das coisas ao carro.
Roland estacionara o Toyota junto ao portão. Estava uma noite quente e caminharam em silêncio através da relva que começara a amarelecer devido à falta de chuva nas últimas semanas. Sentia-se sempre muito seguro quando caminhava ao lado do corpulento Roland. Tivera saudades dele, mas naquele momento tudo estava bem outra vez. Quando chegaram ao carro, Roland tirou para fora o grande caixote castanho que viera em cima do banco detrás durante todo o caminho. Parecia ser bastante pesado. Edward olhou para o seu amigo.
– Trouxeste tudo? – perguntou-lhe.
– Sim, mas é melhor con?rmar para termos a certeza.
Hinde abanou a cabeça.
– Eu con?o em ti.
Pegou no caixote e pousou-o no chão. Virou-se para Roland, que estava a tirar o seu casaco do carro e a preparar-se para regressar à casa. Edward fê-lo parar.
– É aqui que nos separamos. Agora é comigo. Livra-te do carro, está bem? Deixa o corpo no porta-bagagens.
Roland anuiu. Estendeu a mão e trocaram um cumprimento de despedida.
– Tem cuidado, Roland.
– Assim farei.
Também deu um abraço a Roland. Entre amigos. Roland saltou para dentro do veículo prateado, engrenou a primeira velocidade e arrancou. Hinde ?cou a observar o carro enquanto este se dirigia para as árvores das proximidades. O início da noite ?zera a ?oresta ?car mais escura e o carro não tardou a perder-se de vista. O som do motor esmoreceu e o silêncio imperou.
Não havia ali ninguém a não ser ele e Vanja.
Com um pouco de sorte, Sebastian também não tardaria a chegar.
Pegou no pesado caixote e caminhou de volta para a casa em ruínas. Tinha muito para fazer.
A SALA ERA pequena. Tinha um cheiro abafado. A pó e a suor. O sistema de ventilação era antigo e a temperatura andava perto dos trinta graus. Sebastian agradeceu silenciosamente ao arquitecto o facto de aquela divisão não ter janelas. Se a luz do Sol ali entrasse, seria insuportável. Torkel e Sebastian estavam sentados lado a lado, com Ralph Svensson à sua frente. Vestido com a anónima roupa regulamentar do centro de prisão preventiva. Ombros caídos. O seu olhar pairou entre um e outro, e por ?m recaiu em Torkel.
– Eu só falo com ele. Mais ninguém. – Ralph acenou com a cabeça em direcção a Sebastian.
– Essa decisão não é sua.
– Muito bem.
Ralph calou-se. Cruzou as mãos por cima da barriga. Deixou cair o queixo para o peito. Torkel suspirou. Não tencionava deixar que o protocolo obstasse a algum possível resultado. Ralph era uma ligação a Hinde, que se apoderara da sua colega e amiga. Não havia tempo para nada a não ser a abordagem que conduzisse ao sucesso no menor tempo possível. Torkel empurrou a sua cadeira para trás e levantou-se. Pousou uma mão no ombro de Sebastian antes de sair da sala sem dizer uma palavra.
Logo que a porta se fechou atrás dele, Ralph ergueu a cabeça e enfrentou o olhar de Sebastian. Sentou-se direito, colocou os antebraços em cima da mesa e inclinou-se para a frente. Sebastian manteve-se calado, à espera. Ralph perscrutou-o com o olhar. Era algo que havia herdado de Hinde, mas Sebastian duvidava que Ralph possuísse muito mais do que isso. No entanto, podia entrar no jogo durante algum tempo. Aquele jogo de silêncios que estava a decorrer convinha-lhe. Dava-lhe tempo para pôr as ideias em ordem. Para pôr os sentimentos de lado. Suprimir a sua ansiedade. Tornar-se emotivo não ajudaria Vanja. Precisava de reencontrar o Sebastian que existira em tempos.
Gélido. Flexível. Analítico.
O homem que podia fazer a diferença.
– Sebastian Bergman. Finalmente encontramo-nos. – Ralph rompeu o silêncio com um comentário que revelava um certo fascínio pelo seu adversário. Estava grato por aquele encontro. Isso dava uma certa vantagem a Sebastian. Svensson não era certamente do mesmo nível que Hinde.
– Como está? – perguntou Sebastian, mantendo um tom de voz neutro, não respondendo sequer à observação inicial de Ralph com um sorriso de reconhecimento.
– O que quer você dizer?
Sebastian encolheu os ombros.
– É uma pergunta simples. Como está?
– Porque quer saber?
Sebastian não o queria saber de todo, mas os anos haviam-lhe ensinado que era uma excelente pergunta para começar. Em toda a sua simplicidade, revelava mais acerca do adversário do que se poderia imaginar. Neste caso, a relutância em responder podia indicar que Ralph não estava habituado a que alguém lhe perguntasse como se sentia. Ficava desconfortável. Ou talvez quem lhe perguntava isso não se preocupasse com a resposta e, portanto, era desnecessário saber o que responder. Também podia indicar que Ralph tivera más experiências quando se expusera emocionalmente e que demasiada abertura conduzira a uma espécie de punição. Sebastian não se deu ao incómodo de tentar averiguar. Avançou com rapidez e tentou uma abordagem diferente. Ligeiramente provocadora.
– Qual é a sensação de não passar de um peão no jogo de Edward?
– É uma boa sensação. Melhor do que ser-se apenas o Ralph.
Sebastian digeriu a informação.
Melhor do que ser-se apenas o Ralph.
Personalidade fraca. Inadaptado. A ideia de que ele fora ter com Hinde e se limitara a confessar era um puro disparate, claro. Nunca, nem num milhão de anos, aquele homem que estava à sua frente teria uma ideia tão impressionante. Jamais faria algo semelhante. Sebastian ?caria surpreendido se ele tivesse sucesso em algum aspecto da sua vida. No entanto, não havia dúvida de que idolatrava Hinde. Os recortes dos jornais que encontraram no apartamento de Ralph contavam a sua própria história.
Aprovação e reconhecimento.
Hinde dera-lhe ambas as coisas, o que tornaria mais difícil a Sebastian conseguir o que queria. Mais difícil, mas não impossível. Tudo o que tinha de fazer era abrir uma ?ssura entre eles.
– Você sabe como é que o encontrámos?
– Sei.
– Sabe quem nos deu o seu nome?
– Sim, já me disseram.
– Deve ser uma sensação estranha, a de sermos traídos por alguém em quem con?amos.
– Se o Mestre tem um plano e isto faz parte dele, então... – Ralph abriu os braços, com as palmas das mãos viradas para cima. Se não se soubesse que ele tinha morto quatro mulheres, quase se pensaria que se tratava de uma alma piedosa. – Eu sou apenas um homem simples que tenta seguir os passos de um grande homem – prosseguiu ele.
Sebastian levantou-se e começou a andar em redor da saleta abafada. O tempo ia passando rapidamente. Tinha de fazer um grande esforço para não deixar transparecer o nervosismo. Não havia atalhos. Ele sabia-o.
– Eu julgo que você é mais do que isso. Foi por esse motivo que o Edward garantiu que viria aqui parar.
– Está a elogiar-me?
– Você não merece?
– Tenho de agradecer ao Mestre por tudo o que sou. E você também, já agora.
– Ah, sim? De que maneira?
– Os seus livros. Aquelas palavras são as dele. Foram as acções dele que lhe deram o sucesso. E o meu. Ele é um grande homem.
Sebastian ouviu atentamente. Havia um ligeiro laivo de recitação. Como se as palavras tivessem sido aprendidas de cor. Um mantra. Em tempos fora verdade, mas naquele momento talvez houvesse um motivo para pôr essas palavras em causa. Ou ele estava apenas a ouvir o que queria?
– Quer você dizer, portanto, que nós somos apenas arraia-miúda? Cá para mim, isso é muito irritante.
– A diferença entre nós é que você acha que pode estar à altura ele. Eu sei que não posso. – Ralph acenou para si próprio como se tivesse acabado de chegar a uma conclusão importante. – É isso que ele nos quer mostrar. O nosso lugar no inferno a que chamamos as nossas vidas.
Sebastian ignorou a retórica e foi directo ao cerne da questão. O que se quer fazer quando se está na base da hierarquia? Quer -se subir.
– Mas você saiu do seu lugar. – Sebastian colocou as mãos em cima da mesa e inclinou-se para Ralph. – Você evoluiu. Você está mais do que à altura dele.
Aprovação e reconhecimento.
Pareceu dar resultado. Ralph inclinou a cabeça para um lado. Não estava apenas a ouvir. Ouvia e pensava. Com alguma sorte, estaria também a reavaliar.
– Não acha interessante que o Edward nos tenha dado o seu nome exactamente quando você estava prestes a ultrapassá-lo? – continuou Sebastian.
– Eu não vejo as coisas assim...
Talvez não as visse assim até ao momento, mas a ideia estava certamente a ganhar raízes. Sebastian prosseguiu na mesma via, sentindo que isso o levaria a algum lugar.
Aprovação e reconhecimento.
– É assim que Edward as vê – disse ele com ?rmeza. – Ele só o denunciou por uma única razão. Tinha medo de que você se tornasse maior que ele.
Sebastian reparou que Ralph se sentava ainda mais direito. Ia crescendo a cada palavra. A cada constatação.
– Eu não penso assim.
Oh, mas pensas, disse Sebastian para si mesmo. Podes ser um psicopata puro-sangue mas não tens muito controlo na tua linguagem corporal.
A ?ssura estava feita e agora tinha de a alargar. Sem lhe permitir que tivesse tempo para pensar. Alargar a fenda na couraça dele.
– Pergunte-me. De quem tinha eu medo, de Edward ou de si? Quem estava presente no meu espírito o tempo todo? Pense na questão.
As palavras brotaram-lhe dos lábios. Não precisava de descobrir o que deveria dizer, não precisava de considerar a melhor maneira de expor as coisas. Era a verdade, e sabia-lhe bem poder enunciá-la ?nalmente. Falar do medo que tivera. De como se sentira mal. Só não podia esquecer-se de controlar a raiva. Alimentar o ego de Ralph.
Inclinou-se ainda mais para ele, agora quase a sussurrar.
– Você foi o único que me fez mal. Fez-me passar noites sem dormir. Fez-me duvidar de mim. Você era a estrela. Era aquele que andava a viver a vida. Escreviam sobre quem? De quem é que toda a gente na cidade tinha medo? Quem estava no centro das atenções?
– Ainda estou.
– Só por mais algum tempo. Você está aqui en?ado enquanto o Edward anda lá fora com a batuta na mão.
Ralph olhou para ele com uma expressão de surpresa total. Sebastian já tinha pensado se Ralph estaria ao corrente dos planos de Edward. Teve então a resposta, sem fazer sequer a pergunta.
– O que quer você dizer com lá fora? Ele fugiu?
– Sim.
Sebastian ?cou a ver Ralph tentar processar a informação. Tirar algum sentido dela. Não conseguiu.
– Você não o sabia? Ele não lhe disse?
Ralph não respondeu. Não precisava. O desapontamento estava estampado no seu rosto.
– É óbvio que ele não queria que você soubesse – prosseguiu Sebastian, insistindo nesse ponto para se certi?car de que Ralph não perdia um único matiz da traição de Hinde e para impedir que ele encontrasse alguma explicação para o que acontecera. – O que ele queria era tirar-lhe o poder. Quero dizer, quem tem medo de si agora?
Ralph olhou para ele com uma expressão confusa. Sebastian sentiu que estava pronto a ser conquistado.
– Mas você pode manter o seu poder – disse ele, com toda a calma e serenidade que conseguiu. – Assuma o controlo sobre a pessoa que andou a controlá-lo. O discípulo torna-se o Mestre. Não foi o que você sempre quis? Ser como Edward Hinde?
– Eu já sou melhor do que o Edward.
«Edward», registou Sebastian com satisfação. Daquela vez não era «o Mestre».
Ralph franziu a boca com determinação.
– Eu matei cinco. – Um tom de desa?o na sua voz.
Sebastian sentiu frio. Cinco? Outra mulher? Havia uma que eles não tinham encontrado? Como podia ter-lhes escapado? Quem era?
– Houve aquele homem gordo – explicou Ralph ao ver que Sebastian não o entendera.
Trolle. Trolle estava morto. No seu íntimo já o sabia, mas mesmo assim a con?rmação atingiu-o como um golpe. Fechou os olhos. Tinha de se manter concentrado. Já estava a penetrar. Derrubara várias defesas. Começara a trespassar a couraça. Não era o momento de ?car emotivo. Trolle estava morto. Isso não era propriamente uma novidade. Viver com esse facto. Triunfar sobre Ralph.
– Esse não conta.
– Porque não?
– Esse não foi planeado. – Sebastian percebeu que andava a pisar gelo ?no, mas naquela fase esperava já saber o su?ciente acerca de Ralph para que a estratégia desse resultado. – Não é difícil matar uma pessoa qualquer na rua – disse-lhe. – Qualquer idiota pode fazê-lo.
– Foi dentro do carro – disse Ralph, pensativo.
– O quê?
– Eu esfaqueei-o dentro do carro. Mas compreendo o que você quer dizer. Ele não fazia parte do ritual.
– E você é melhor do que isso.
Ralph contemplou Sebastian com um certo ardor no seu olhar. Edward dissera-lhe que eles eram parecidos, Ralph e Sebastian. E tinha razão. Tanto um como outro viam-no. Como aquilo que ele era. Como a pessoa que ele era. Ele tinha alguma importância. Mas Edward enganara-o. Atraiçoara-o pelas costas.
Sebastian enfrentou com um sorriso o olhar quase de admiração de Ralph. A exaltação começara a espalhar-se pelo seu corpo. Ele penetrara. Atingira aquele núcleo de insegurança que clamava por aprovação. Agora, tudo o que tinha a fazer era acolhê -lo.
– Como se sente? Teve de absorver muita coisa.
– Estranhamente, sinto-me forte. – Ralph calou-se, ?cou a pensar e depois acenou para si mesmo. Com um ar digno.
– E é. Você é um adversário de mérito. Só precisa de decidir de quem. É assim que alguém se torna vencedor.
– Quer dizer que eu devia enfrentá-lo?
– Você é melhor do que ele. – Sebastian respirou fundo. Tinham chegado ao ponto culminante. Naquela fase já não podia fazer mais trabalho de sapa. Precisava de chegar a algum lado. Cada minuto podia ser crucial para Vanja. – Preciso da sua ajuda.
A expressão de Ralph foi de puro espanto.
– Você quer que eu o ajude?
– É a única maneira. Sem mim, você não consegue enfrentar o Hinde. Acabará por não ser mais do que uma nota de rodapé nos livros de História enquanto o Edward continua a viver.
– O que quer que eu faça?
Sebastian teve de fazer um autêntico esforço para não se desmanchar a rir. Nem sequer devia sorrir. Caramba, ele era mesmo bom! Sabia-lhe bem estar de volta.
– Responda a uma pergunta.
– Está bem.
– Se Edward não puder ir a casa de uma vítima, em vez disso para onde as leva?
– Você sabe quem é?
– Sei.
– Ele já as apanhou?
– Já.
– Mas você não sabe onde estão?
– Não.
Ralph sorriu e abanou a cabeça. Recuperara o controlo. Talvez um pouco de mais. Sebastian pressentiu que dentro em pouco Ralph não escolheria um só adversário, mas quereria desa?á-los a ambos. Tinha de acelerar tudo continuando a mostrar-se adequadamente obsequioso.
– Devia ler o seu livro.
– Qual deles?
– O primeiro. Página cento e doze. – Ralph estava de novo a sorrir. Ria baixinho para si mesmo.
– Está a escapar-me algo? – quis saber Sebastian, embora já estivesse a encaminhar-se para fora da sala.
– É o número de emergência: 112. O número para onde se telefona quando se precisa de ajuda. Gosto do simbolismo, só isso.
Sebastian nem se deu ao trabalho de comentar. Saiu da sala, esperando nunca mais ter um motivo para regressar.
– O QUE DISSE ELE?
Torkel encontrou-se com Sebastian do lado de fora da porta e acompanhou-o ao longo do corredor.
– Tens aqui algum exemplar dos meus livros?
– Quais livros?
– Os que eu escrevi. Há algum aqui?
– No meu gabinete.
Sebastian estugou o passo, abriu a porta ao fundo do corredor e começou a subir as escadas, dois degraus de cada vez. O elevador teria sido mais rápido, mas precisava de se mexer. A energia percorria-lhe o corpo como uma força física e Torkel esforçava-se para manter o mesmo ritmo.
– Alguma novidade acerca da Vanja? – perguntou-lhe Sebastian por cima do ombro.
– Não. Fizemos uma busca na pista de corrida em Lill-Jansskogen. Nada – ofegou Torkel. – Encontrámos a ambulância. Dois mortos e dois feridos. De certeza que ele teve ajuda.
– O Roland Johansson.
– Possivelmente. É provável.
Sebastian continuou a subir as escadas sem abrandar.
– Porque precisas dos teus livros? O que disse ele?
Torkel arfou pesadamente entre as frases. Sebastian não respondeu. Continuou a subir. Até ele já se sentia um pouco esbaforido.
– Sebastian, responde-me!
A voz de Torkel quase atingiu o ponto de ruptura. Sebastian parou. O seu antigo colega estava fora de si com a preocupação. Evidentemente. Ele merecia as poucas respostas que Sebastian lhe podia fornecer.
– Ele disse que estava lá escrito o local o Hinde se encontra.
– Nos teus livros?
– Num deles, sim.
– Bem, foste tu quem o escreveu, não te lembras?
Naquele momento, Sebastian não se deu ao trabalho de lhe responder. Se se lembrasse, não teria corrido pelas escadas acima. Teria começado por dizê-lo a Torkel. A ansiedade impedia-os de pensar com clareza. Continuou a andar, com Torkel logo atrás.
Assim que chegaram ao gabinete de Torkel, Sebastian foi direito à estante. Reconheceu de imediato a lombada castanha com as letras a amarelo. Tirou o primeiro volume. O título era Ele Parecia sempre muito Simpático, com o subtítulo Edward Hinde – Assassino em Série. A citação era de um homem que trabalhara com Edward durante três anos. Tal como todas as outras pessoas com quem Sebastian falara no decurso da sua pesquisa, o colega dele nem por um momento suspeitara que houvesse algo de dúbio em Hinde. O que não era de surpreender. Edward Hinde era um indivíduo extremamente manipulador, hábil a camu?ar a sua personalidade. A maioria das pessoas só via o que ele queria.
– Sabes onde procurar? – perguntou Torkel com avidez.
– Sim. Só um minuto.
Sebastian encontrou rapidamente a página certa e começou a ler.
Para um assassino em série com a necessidade de estrutura que Edward sente, é extremamente importante a escolha do local em que o crime tem lugar. Este não é escolhido sobretudo pela sua situação geográ?ca. A distância a partir de casa, a facilidade de ir e sair do local e as possíveis rotas de fuga têm todas menos importância do que o valor simbólico...
Saltou para a parte inferior da página.
A decisão de atacar no ambiente doméstico da vítima não é sobretudo uma questão de controlo; em todos os casos, a primeira ocasião em que ele esteve no interior da casa ou do apartamento foi aquela em que cometeu o homicídio. A principal razão para a escolha do local de crime é, na verdade, o sentimento de segurança. Poderá parecer contraditório a?rmar-se que ele se sentia seguro num local que visitava pela primeira vez, mas num sítio onde a mulher não espera ser atacada o risco de resistência ou de fuga é reduzido...
Sebastian continuou a percorrer a página.
– Aqui.
Se for impossível levar a cabo o homicídio em casa da vítima, o cenário mais provável é que ele venha a abortar a missão. Como último recurso, Hinde a?rma que poderia imaginar tentar recriar ou, melhor ainda, revisitar um dos lugares que tivesse signi?cado mais para si. Por exemplo, o lugar onde as suas fantasias começaram ou onde teve início a série de homicídios.
Sebastian fechou o livro.
– Onde teve início a série de homicídios – repetiu Torkel. – Onde foi o primeiro crime?
– Não me lembro do endereço exacto, mas foi a sul da cidade. Em Västberga ou Midsommarkransen, um desses sítios.
– O Billy consegue descobri-lo.
Torkel saiu do gabinete para ir procurar Billy. Sebastian foi atrás dele.
– As fantasias devem ter começado em casa – disse ele. – Após a morte da mãe. Quando os abusos começaram.
Fitou o olhar de Torkel. A antecipação e a tensão eram quase palpáveis.
– Ele foi criado em Märsta.
A MÃE de Edward, So?e Hinde, vivera em casa dos pais até morrer. Era uma quinta isolada, não muito longe de Rickeby, a norte de Märsta. Tinha sido aí que Edward fora criado. Sebastian visitara a casa por duas vezes enquanto escrevia o seu primeiro livro no ?nal da década de 1990. Já nessa época estava desocupada e abandonada.
Ele e Torkel estavam sentados num dos carros da frente da unidade de operações especiais, que aceleravam rumo a norte, ao longo da E4, com as luzes azuis a piscar. O resto do destacamento vinha atrás, em duas grandes carrinhas da polícia. Torkel e o líder da equipa discutiam tácticas com um mapa à sua frente. A polícia local de Märsta já isolara os caminhos de entrada e saída da propriedade, mas Torkel decidira que os elementos da equipa de operações especiais deviam ser os únicos a entrar na casa. Eles é que tinham o treino e o equipamento; a polícia de Märsta serviria como unidade de reserva. Era uma operação complicada. A casa propriamente dita era bastante isolada, o que era bom, mas havia descampados a toda a volta e ser-lhes-ia difícil aproximarem-se sem serem detectados. O facto de a refém ser uma agente da polícia aumentava a pressão sobre todos eles. Não que ocasiões como aquela estivessem alguma vez isentas de tensão, mas de certa forma seria pior se tudo corresse mal quando a vida de uma colega estava em perigo.
Sebastian manteve-se calado durante a maior parte da viagem. Tentara fornecer de memória o máximo de informações possível, mas não eram muitas. A casa era grande, lembrava-se ele. Dois pisos. Degradada. O que recordava com mais nitidez era o espaço por baixo das escadas onde Edward ?cava fechado quando era criança. Nunca o esqueceria. Frio e tosco, com uma única lâmpada pendurada no tecto. O soalho de madeira áspera e o fedor a urina rançosa. Quanto mais pensava naquele lugar escuro, mais aterrorizado ?cava. A mera ideia de Vanja estar na antiga casa de Edward era-lhe insuportável.
Quando chegaram a Upplands Väsby, Billy telefonou. Tinha encontrado nos arquivos o endereço da casa de Midsommarkransen e ia a caminho com outra equipa. Prometeu reportar assim que soubesse mais.
Portanto, agora havia duas equipas. Com o mesmo objectivo. Salvar Vanja. Torkel levantou os olhos do mapa.
– Achas que ela está em Märsta?
Sebastian acenou com cabeça.
– A casa dos pais dele seria mais importante do que a cena do primeiro homicídio. Daria azo a mais fantasias.
Sebastian calou-se e olhou para fora da janela. Por instantes, Torkel pensou em fazer-lhe mais perguntas, mas depois percebeu que não tinha forças. Não queria saber demasiado acerca da maneira como Hinde pensava. Não os pormenores, em todo o caso. Sebastian podia guardá-los só para si. Tudo o que lhe interessava era encontrar Vanja.
O líder da equipa de operações especiais inclinou-se para ele.
– Chegaremos dentro de vinte minutos. No máximo.
Torkel assentiu.
Tudo estava prestes a começar.
HINDE ESTAVA em pé no quarto a olhar para ela. Des?zera os atilhos que lhe prendiam as pernas e despira-lhe as calças de treino. Ela tinha umas pernas fortes, e ele des?zera um atilho de cada vez por precaução, mas permaneceu imóvel. Não tinha a certeza se estava ou não consciente por baixo do saco. Tocou-lhe nas pernas quentes, nuas. Olhou para as cuecas pretas, visíveis logo abaixo da camisola interior cinzenta. Desfrutou o momento.
Em seguida, foi ao caixote que tinha colocado no meio da sala.
Abriu-o e, de um modo reverente, retirou a camisa de dormir que estava no topo. Era feita de algodão macio e nunca fora usada. Tinha quase o mesmo padrão da original. O que a sua mãe costumava usar já não se fazia, e Ralph procurara loja após loja até encontrar aquele, que fora aprovado pelo próprio Hinde. As ?ores azuis eram ligeiramente mais pequenas mas causavam-lhe a mesma sensação do que aquelas que ele usara na década de 1990.
Sacudiu algumas vezes a camisa de dormir para a arejar e, a seguir, estendeu-a aos pés da cama. Foi de novo ao caixote e tirou as meias de nylon e a faca de trinchar recentemente adquirida. Avistou a comida e a bebida que estavam por baixo. Daí a pouco iria arrumar tudo. Primeiro queria aprontá-la. Colocou as meias de nylon ao lado da camisa de dormir, depois retirou a faca da embalagem. Passou o polegar pelo gume. Estava muito a?ada e pareceu-lhe bem equilibrada na mão. A lâmina era feita com cem camadas alternadas de aço duro e macio e conseguia cortar quase tudo.
De repente, ela mexeu-se. Não muito, mas o su?ciente para ele concluir que estava consciente. Chegara a hora da próxima etapa, o que implicaria um risco.
Queria que fosse ela própria a vestir a camisa de dormir. Talvez não voluntariamente, mas queria vê-la a fazê-lo.
Começou por lhe prender o pé esquerdo com um novo atilho. Houve alguma resistência, mas ele agiu com ?rmeza e o trabalho não tardou a ?car concluído. Decidiu usar as meias de nylon mais tarde. Essa seria a segunda fase. Foi sentar-se ao lado dela na cama. As velhas molas protestaram e pareceram-lhe confortáveis e amaciadas pela idade. Mas isso não tinha qualquer signi?cado. Ela não iria dormir naquela cama.
Hinde pegou na faca e cortou a corda que ?xava o saco castanho na cabeça e na parte superior do seu corpo. Agarrou o fundo do saco e puxou-o com um movimento brusco. Agora podia ver o rosto de Vanja e o seu cabelo louro. Estava consciente. Olhou para ela com interesse. A ?ta adesiva prateada ?rmemente colada na sua boca distorcia-lhe um pouco a forma do rosto, mas era bonita. Tinha o cabelo desgrenhado e o rosto ruborizado pelos esforços. Contudo, os seus olhos chispavam.
– Olá, Vanja – cumprimentou. – Eu disse-lhe que nos encontraríamos de novo.
Ela emitiu um som irritado como resposta, e ele viu que olhava em redor para tentar descobrir onde se encontrava. Inclinou-se e acariciou-lhe o cabelo, tentando delicadamente alisá-lo e compô-lo. Ela tentou sacudir-lhe a mão, atirando a cabeça para trás e para a frente. Ele agarrou-lhe o cabelo para a impedir de se mover. Aproximou-se ainda mais.
– O que nós vamos fazer é isto. – Levantou a faca de maneira a que a ponta a?ada tocasse na garganta dela. Comprimiu-a com força contra a superfície macia por baixo do queixo, logo acima da traqueia. Viu que ela se contraía com ansiedade.
– Vou libertar-te os braços mas, se tentares algo, eu uso isto. Sabes bem que sou capaz de o fazer.
Ela não respondeu.
– Abana a cabeça se compreendes.
Ela não se moveu um milímetro. Limitou-se a olhar para ele.
Ele mostrou-lhe um sorriso carinhoso.
Aquela iria ser uma boa batalha.
Estava a gostar cada vez mais dela.
SEBASTIAN VIU os agentes da polícia a deslocarem-se pela ?oresta à sua frente, agachados. A unidade de operações especiais dividira-se em três equipas. Uma delas aproximar-se-ia a partir da ?oresta vinda de leste, com Sebastian e Torkel a rastejarem atrás deles. Outra viria do lago a norte, e a sua principal tarefa era cortar a rota de fuga e servir de reforço. A equipa que se aproximava vinda de ocidente iria realmente entrar na casa. Teriam de rastejar através das ervas altas até ao ponto de partida para que ninguém os detectasse a partir da casa, mas teriam o sol poente atrás de si, o que signi?cava que, de qualquer modo, seria muito difícil avistá-los. O ponto crítico seriam os últimos vinte metros, onde ?cariam mais visíveis a partir da casa; teriam de correr para o objectivo a descoberto mas, dada a natureza crítica da situação, não havia uma opção melhor. O líder da unidade estava com o grupo ocidental e mantinha-se em contacto com os outros via rádio. Concordara que Torkel e Sebastian acompanhassem a equipa oriental até ao celeiro em ruínas, situado à beira do prado, e esperassem aí. Isso permitir-lhes-ia uma boa visão geral do edifício principal. A equipa oriental prosseguiria depois até à vala, em frente ao celeiro, e só sairia de lá quando o primeiro grupo tivesse entrado, armado com granadas de atordoamento que seriam lançadas para várias salas a ?m de neutralizar Hinde. Na verdade, as granadas eram inofensivas mas rebentavam com um clarão ofuscante e um grande estrondo, que atordoaria e ensurdeceria temporariamente qualquer pessoa que estivesse na sala. A esperança era que isso lhes desse tempo su?ciente para impedir que Hinde magoasse Vanja.
Estavam talvez a uns vinte metros do celeiro quando Sebastian alcançou o cimo de uma encosta e por ?m avistou a casa. Parou e agachou-se. Parecia em pior estado do que da última vez que ali estivera. O jardim estava coberto de ervas e as janelas escancaradas e vazias, tendo ?cado sem vidros há muito. Parte da fachada desaparecera e a casa parecia completamente desolada. Lembrou-se de que o município local tentara vendê-la em leilão, mas era óbvio que ninguém se interessara. Ao que parecia, a casa de um assassino em série não era exactamente uma propriedade muito procurada.
Sebastian viu o grupo do norte deslocar-se e colocar-se em posição. Olhou para o local onde devia estar o grupo principal, mas não conseguiu vê-los. Isso era bom. Se não conseguia vê-los, então talvez Hinde também não os visse. Uma parte de si queria estar junto deles, mas Torkel fora muito claro. Sebastian só permaneceria ali no papel de observador. E nada mais. Aquele trabalho era para pro?ssionais, não para amadores.
VANJA ESPEROU QUE Hinde lhe removesse os atilhos dos pulsos. Tentou surpreendê-lo com um golpe impetuoso, mas ele evitou-a habilmente ao recuar com rapidez. Ela tentara. Ele não esperava outra coisa. Ela esbracejou mais algumas vezes, mas depois Hinde avançou e bateu-lhe com força na têmpora várias vezes com o cabo da faca. Ela caiu de novo em cima da cama, com todo o lado esquerdo da cabeça a latejar de dor. Sentia-se quente, quase como se estivesse a sangrar. Ergueu os braços para o rosto a ?m de se proteger da dor.
– Eu posso ser meigo ou bruto – disse Hinde. – A decisão é tua.
Não, a decisão é tua, pensou ela. Sabia que Hinde não hesitaria em matá-la. Mas os seus olhos, cheios de entusiasmo e de expectativa, diziam-lhe que estava a divertir-se. Queria percorrer todas as partes do ritual com ela. O facto de lhe ter pedido para lhe tocar no cabelo em Lövhaga já ?zera parte do que estava a acontecer naquele momento, percebeu. Sebastian sempre tivera razão. Houve um motivo para que Hinde pedisse para se encontrar com ela a sós. Queria aproximar-se dela. Tocar-lhe. E ela deixara-o fazê-lo. Na altura, pensou que era um pequeno preço a pagar pelo nome de Ralph. Já não pensava o mesmo.
Encontrar-se num futuro local de crime como previsível vítima era uma sensação horrenda. Conhecer o signi?cado dos pormenores era terrível. Nada lhe escapava. As meias de nylon aos seus pés. A camisa de dormir estendida ao fundo da cama. A faca que ele empunhava.
As outras mulheres tiveram a vantagem de não saberem tudo o que ia acontecer.
Mas ela sabia.
Ela conhecia cada passo do ritual.
Ao mesmo tempo, isso dava-lhe uma pequena esperança. De certo modo, o tempo estava do seu lado. Quanto mais tempo conseguisse ?car viva, mais tempo teriam aqueles que andavam à sua procura. Porque eles andavam à sua procura. Ela sabia-o. Procuravam Edward Hinde em toda a parte. Ele já não era um assassino desconhecido. Não era alguém que pudesse escapar de Lövhaga sem passar a ser um homem procurado.
Eles andavam à procura. Eles andavam à procura.
Pelo menos, era o que tinha de dizer a si mesma.
De repente, Hinde puxou-a para uma posição sentada e arrancou-lhe a camisola e o sutiã desportivo. O ataque surgira de nenhures. Ele queria começar. Agora ela só tinha as cuecas vestidas. Odiava o facto de o seu primeiro instinto ser o de proteger os seios, o que só a enfraquecia. Por isso, baixou os braços e deixou que olhasse para ela. A?nal, tratava-se apenas do seu corpo. Era pela sua vida que estava a lutar. Ele atirou-lhe a camisa de dormir. Aterrou em cima do joelho dela.
– Veste isso.
Ela olhou para a peça de roupa. Portanto, era assim que acontecia. As outras vestiram a camisa de dormir voluntariamente.
– Gostavas de saber uma coisa que vos escapou, incluindo a Sebastian? Sempre me espantou como foi possível. Contudo, suponho que seja por se tratar do mais subestimado dos cinco sentidos.
Ela ?tou-o com o rosto inexpressivo.
– Também não contei ao Ralph. Mas daqui a pouco vais saber, Vanja. Daqui a pouco não teremos mais segredos um para o outro.
Ele atravessou o quarto e tirou algo de um caixote que estava no meio do chão. Regressou trazendo na mão um frasco pequeno, anguloso. Sorriu para ela e esguichou-o várias vezes por cima do seu corpo nu. Ela sentiu a névoa do perfume atingir-lhe a garganta.
– O preferido da minha mãe.
Era um cheiro forte.
Ela reconheceu -o.
Chanel No. 5.
O TRÁFEGO VIA rádio aumentara durante os últimos minutos. Em primeiro lugar, a equipa do norte con?rmara que já estava em posição. Ao ?m de algum tempo, a equipa que estava à frente de Torkel e de Sebastian emitira a mesma mensagem. Os dois homens estavam em pé junto a uma das paredes mais pequenas do celeiro, a partir da qual tinham a melhor vista da casa; esta parecia tão desolada quanto antes. O silêncio era quase ensurdecedor. Já nem sequer as moscas zumbiam. Os nervos de Sebastian atingiram o ponto de ruptura. Sentia todo o seu corpo quente e suado. Estava habituado a locais de crime, a interrogar suspeitos, a proferir palestras. Não àquilo.
Sentia-se completamente impotente. Era toda a sua vida que estava em jogo, mas ele assistia aos acontecimentos a partir da galeria.
– Eles vão entrar – disse Torkel, enquanto Sebastian via seis ?guras vestidas de negro saírem para fora das ervas altas a uma curta distância da casa. Restavam apenas aqueles críticos vinte metros. Corriam o mais rápido que podiam, sem perderem o controlo. O equipamento deles estava ?xado ao corpo, para que o único som que se ouvisse do grupo fosse o ténue restolhar das ervas que pisavam com as botas pretas.
Sebastian manteve os olhos ?xos na casa, procurando febrilmente algum sinal de movimento em cada janela aberta. Até ao momento, nada. Não sabia se achava isso reconfortante ou não.
Os primeiros membros da equipa chegaram à casa e encostaram-se rapidamente contra a parede junto à porta da frente. Os outros juntaram-se a eles. Um colocou-se junto à grande janela do piso térreo. Dois outros sacaram das granadas e rastejaram em direcção à porta. Sebastian viu um capacete subir e descer na vala situada à frente deles; a equipa oriental parecia igualmente inquieta e ansiosa.
Quando já todos os que cercavam a casa tinham alcançado os locais que lhes haviam sido atribuídos, tudo funcionou como uma máquina bem oleada. Sebastian viu os dois primeiros abrirem a porta e cada um deles lançar uma granada para o interior. Os que estavam junto às janelas ?zeram o mesmo. Houve um breve silêncio, seguido por quatro rebentamentos quase simultâneos. As janelas ?caram iluminadas com as explosões e a equipa apressou-se a entrar. Ao mesmo tempo, os homens que estavam na vala saltaram de lá para fora e começaram a correr, movendo-se ainda mais depressa, como se tal fosse possível. Sebastian saiu do celeiro. Ouviu mais explosões na casa e começou a sair fumo branco por várias das janelas quebradas. Percebeu que a operação estava a correr mal.
Ele era o único que devia estar dentro da casa.
Ele era o único que Hinde esperava.
De repente, começou a correr o mais depressa que conseguiu. Ouviu Torkel gritar atrás de si.
– Sebastian, mas que raio estás tu a fazer?
Limitou-se a correr.
As suas pernas aceleraram por cima da relva. Tropeçou na vala mas recuperou logo o equilíbrio. Aumentou ainda mais a velocidade, correndo como nunca. Um dos agentes da segunda equipa viu-o e fez-lhe um gesto para parar.
Sebastian ignorou-o. Precisava de encontrar a ?lha.
Chegou à porta da frente e irrompeu na escuridão da casa. Havia uma espessa nuvem de fumo e o ar estava pejado de cheiro a magnésio e a outros metais. Ele arfava tanto que tinha di?culdade em respirar. Obrigou-se a chegar à arrecadação por baixo das escadas. Foi o primeiro lugar em que pensou, mas deteve-se quando viu aparecer um dos agentes.
– Há alguma coisa aí dentro?
O homem abanou a cabeça.
– Não, está vazia. Você não devia estar aqui.
– Estava alguma comida aí dentro?
– O quê?
Ouviu mais explosões no piso superior e apressou-se a subir as escadas. O quarto que fora ocupado pela mãe de Hinde ?cava lá em cima e, provavelmente, era aí que eles estavam.
Lá em cima estava mais escuro e havia ainda mais fumo. Foi-lhe difícil orientar-se, e não tardou a não fazer ideia de onde se encontrava. Começou a tossir devido ao fumo, mas tentou mover-se na direcção em que pensava que devia ?car o quarto. Havia lixo no chão e tropeçou nalgumas tábuas soltas. Esfolou as mãos mas pôs-se de novo em pé, rapidamente. Estava a perder tempo.
Estava a perder Vanja.
Quando entrou a correr no quarto, esbarrou numa ?gura junto à porta. Deu um salto para trás, mas era o líder da unidade de operações especiais.
– Que raio está você a fazer aqui?
– Onde está ela?
O outro homem abanou a cabeça.
– O local está vazio. Não há aqui ninguém.
Sebastian olhou para ele.
– O quê?
– Não há aqui ninguém. Absolutamente ninguém.
ESTAVAM REUNIDOS no exterior da casa. Torkel estava postado com o líder da unidade de operações especiais em frente aos outros agentes. Tinham veri?cado a casa duas e três vezes. Nada. Sebastian fora revistar pessoalmente a arrecadação por baixo das escadas. Regressara agitado e pedira uma lanterna emprestada a um dos agentes para, pelo menos, ter alguma luz. Cheirava ao mesmo que antes. Pior, talvez. No entanto, além de algumas latas de cerveja espalhadas no chão, estava vazia. Não havia comida no local onde, há muito tempo, o jovem Edward Hinde costumava guardar as suas provisões secretas. Sebastian não necessitava de mais provas. Hinde nunca iria omitir aquele pormenor em particular. O esconderijo da comida era a única segurança que ele conhecia. Sob muitos aspectos, fora o que lhe dera coragem para levar a cabo os seus crimes. Sebastian estava convencido de que, onde quer que Vanja estivesse, haveria comida bem arrumada dentro de um pequeno quarto com fechadura. Permaneceria no local até ao dia em que a encontrasse.
Provavelmente morta.
Tendo em conta a velocidade a que, de momento, as buscas evoluíam.
Ralph mentira. Daquela vez Sebastian iria esquecer os jogos subtis e certi?car-se de que obtinha a resposta certa.
Olhou para Torkel e para os outros agentes com uma frustração cada vez maior. Não conseguia entender o que estava a demorar tanto tempo. Precisavam de sair dali.
Por ?m, pareceram ter terminado. Torkel caminhou na sua direcção, com o telemóvel encostado à orelha.
– É o Billy – murmurou ele para Sebastian. Após alguns momentos, olhou para Sebastian e abanou a cabeça. – Ele não encontrou nada.
– Posso dar-lhe uma palavrinha?
Torkel passou-lhe o telemóvel. Billy parecia enervado e exausto.
– É como eu disse. Há uma família a morar na casa de Midsommarkransen. Estavam a ter uma grande reunião familiar, com as avós e os avôs e toda a gente. Não há maneira de ele poder estar lá.
– Então e agora?
– Estou a voltar para o escritório. Vou começar a veri?car o computador do Ralph. A?nal, esse é o meu ponto forte.
Billy desligou sem se despedir. Sebastian devolveu o telemóvel a Torkel e dirigiu-se para o mesmo carro em que ali chegara, mas o líder da unidade de operações especiais fê-lo parar quando já ia a entrar no veículo. Depois daquele seu comportamento durante a operação, podia viajar com os outros. Sebastian não tinha forças para discutir; limitou-se a abanar a cabeça, com um ar cansado, perante aquela ridícula noção de castigo, e foi para o carro que estava atrás. Aquelas pessoas pareciam estar sempre a errar nas suas prioridades. Detestava-as. Entrou para o banco detrás. Ninguém se sentou ao seu lado. Não se importou. Em todo o caso, não lhe apetecia falar com ninguém.
Após alguns minutos de viagem e de terem chegado à estrada principal, de repente o seu telemóvel vibrou; ainda o mantinha em silêncio desde a operação. Tirou-o para fora e descobriu que acabara de receber uma mensagem multimédia. Nunca recebera uma antes. O remetente era um número que não reconheceu. Respirou fundo. O medo fez o seu estômago contrair-se e, de súbito, ?cou com a garganta seca. A mensagem seria dolorosa. Respirou fundo uma vez mais e abriu-a.
Era uma imagem acompanhada por uma breve mensagem. A imagem drenou-lhe toda a cor que ainda lhe restava no rosto. Uma Vanja nua estava sentada com uma camisa de dormir caída em cima do joelho. Olhava para a câmara com uma expressão suplicante no rosto. Ele reconheceu o mesmo estilo da parede de fotogra?as que havia no apartamento de Ralph. A pessoa fotografada de cima para baixo, a pele nua, o medo. Olhou para fora da janela para manter a compostura. Tentou apagar aquela imagem do seu cérebro. Quando sentiu que recuperara o controlo, leu a curta mensagem por baixo da fotogra?a.
– A primeira fotogra?a das minhas trinta e seis. Onde está você?
Fechou rapidamente a imagem e olhou de novo para fora da janela. Sentiu-se mal mas conseguiu não o demonstrar.
Agora cabia-lhe a ele. E não àquela gente de uniforme sentada à sua volta.
Era daquela maneira que Hinde queria.
Era daquela maneira que iria ser.
RALPH ESTAVA DEITADO no catre da sua cela escura, sem se mexer e a olhar para o tecto, quando ouviu passos rápidos no corredor. Os passos pararam à sua porta e o postigo de segurança abriu-se quando alguém inseriu uma chave na fechadura.
– Você está a tentar enganar-me? – berrou Sebastian. Directo ao assunto. Não havia tempo para frases bem-educadas. – Eu pensei que conhecia o Edward mas acho que era só conversa.
Ralph sentou-se rapidamente, animado ao ver o rosto de Sebastian no estreito postigo.
– Ele não estava lá?
A porta abriu-se, Sebastian empurrou o guarda e entrou na cela. A expressão do seu rosto era su?ciente como resposta.
– Onde é que você foi? – perguntou Ralph.
– A Märsta.
Ralph desfez-se num sorriso, abanando a cabeça.
– Não foi aí que tudo começou.
– O Edward é como um cão raivoso. Ele pode ter decidido que tudo «começou» em qualquer lugar que lhe apeteça, foda-se.
– Mas não decidiu. Eu sei exactamente onde ele está.
Era isso mesmo que Sebastian queria ouvir. Esperava tirar proveito da admissão do seu fracasso, que desse a Ralph oportunidade para brilhar, mas tudo acontecera em tempo recorde. Agora o que precisava de fazer era selar o negócio.
– Onde? Onde está ele?
– Eu posso mostrar-lhe.
Sebastian franziu a testa. Havia algo na voz de Ralph que o fez perceber que ele não estava para ali a falar de um mapa.
– O que quer você dizer com isso de me mostrar?
– Eu vou lá consigo.
– Não.
Talvez tenha sido severo. Viu o entusiasmo de Ralph desvanecer-se um pouco, mas não valia a pena insistir num beco sem saída. A ideia de levar Ralph a qualquer lado estava fora de questão.
– Você disse que eu era como o Edward – disse Ralph, levantando-se. A sua voz adquirira um tom duro que não possuía anteriormente. – Ou melhor, na verdade. Ele nunca o ajudaria sem receber algo em troca. Eu quero estar lá.
– Quando o prendermos?
Ralph apontou um dedo esguio a Sebastian.
– Você pode prendê-lo. – Apontou o dedo para si próprio. – Eu conseguirei a minha quinta mulher. Serei maior que o Edward. O maior.
Daquela vez havia na voz dele algo de onírico e o seu olhar estava ?xado num qualquer ponto distante. Sebastian mal podia acreditar no que ouvia. A situação estava para além da insanidade. Será que Ralph acreditava seriamente que seria autorizado a ir com Sebastian e a cometer um homicídio?
Ralph ?xou de novo o seu olhar em Sebastian.
– Você não é o único que vai ?car a ganhar.
Evidentemente. Era o que Sebastian receara. Tanto ele como Hinde eram agora seus adversários. Todos eram adversários de Ralph.
O telemóvel de Sebastian apitou.
Outra mensagem multimédia.
A segunda fotogra?a.
Sebastian olhou em frente. Respirar fundo. Pensar na situação. Descobriu, surpreendentemente depressa, que não havia muito em que pensar e chamou o guarda de plantão que ?cara à sua espera no corredor.
– Ele vem comigo. – Sebastian acenou na direcção de Ralph, que exibia um sorriso expectante, seguro da vitória. O guarda entrou na cela e Ralph virou-se obedientemente, com as mãos atrás das costas. Foi algemado e levado para fora da cela, depois o guarda entregou Ralph e as chaves a Sebastian. Avançaram juntos pelo corredor.
Ralph estava enganado.
Sebastian era o único que iria ?car a ganhar.
A qualquer preço.
Desceram no elevador. Nenhum deles falou. Ralph ainda mantinha um ar presunçoso quando Sebastian o tirou para fora do elevador e abriu uma porta de metal. Uma longa galeria estendia-se à sua frente. Corriam tubos ao longo do tecto, assinalados com etiquetas verdes e amarelas. Paredes nuas, além das luzes em forma de hemisférios brancos espaçadas a cada cinco metros de ambos os lados. Sebastian empurrou Ralph para o corredor. Os seus passos ecoaram no chão nu de cimento.
– Para onde estamos a ir? – quis saber Ralph.
– Para o parque de estacionamento.
Após cerca de vinte metros, Sebastian parou diante de uma porta branca com dois puxadores grandes, ambos virados para cima e para a esquerda. As palavras SALA DE SEGURANÇA estavam pintadas no meio da porta, tendo por baixo um aviso a indicar que no interior se podiam acomodar, no máximo, sessenta pessoas.
– Espere...
Ralph parou; Sebastian rodou os puxadores para a direita, abriu a porta e as dobradiças chiaram. Tacteou em redor e encontrou os interruptores da luz, a seguir agarrou o braço de Ralph.
– O que está você a fazer? Porque vamos para aí?
Ralph resistiu, mas Sebastian praticamente arrastou-o para dentro da sala e até junto de um radiador que estava ?xado à parede em frente à porta. Pegou na chave das algemas, libertou uma das mãos de Ralph, fê-lo rodar um quarto de volta e prendeu uma das algemas ao radiador.
– O que está você a fazer?
– O Edward é bom. Mas ele esteve preso em Lövhaga durante catorze anos porque fui eu quem o colocou lá...
Sebastian caminhou de volta para a porta e saiu da sala de segurança. Ralph olhou em redor, com nervosismo. Ouviu os passos de Sebastian ecoarem ao longo do corredor. A sala estava pintada de branco. Havia dois bancos corridos ?xados numa parede, mas além disso estava vazia. Sebastian apareceu, carregando uma velha cadeira de madeira.
– ... e isso signi?ca que eu sou melhor – disse ele, concluindo a frase.
Pousou a cadeira no chão, do lado de dentro da porta.
– Você pode ser melhor do que o Edward mas está algemado a um radiador...
Sebastian virou-se e fechou a porta. A sala vazia ampli?cou o som quando a pesada porta de metal se fechou e Sebastian rodou os dois puxadores. Ralph engoliu em seco. Estavam trancados ali dentro. Não lhe agradou.
– Portanto, o melhor sou eu.
Sebastian não parecia ter pressa; caminhou lentamente até junto de Ralph. Aproximou-se e ?cou muito perto dele. Ralph sentiu di?culdade em ?tá-lo. Aquilo não parecia bom. Aquilo não parecia nada bom.
– Mas sabe o que eu não sou? – Sebastian nem se deu ao incómodo de esperar por uma resposta. – Não sou um agente da polícia. O que signi?ca que posso fazer isto.
De repente, e sem qualquer aviso, deu uma cabeçada em Ralph. A sua pontaria foi perfeita. A testa dele embateu com estrondo em cheio no nariz de Ralph. Ouviu-se algo a esmagar e começou a sair-lhe sangue das narinas. Ralph soltou um grito e caiu no chão. Sebastian caminhou calmamente para junto da cadeira e sentou-se. Viu Ralph levar a mão livre ao nariz e olhar para o sangue, como se não conseguisse entender o que brotava deste. Bater em Ralph não deu prazer a Sebastian. No entanto, foi uma maneira rápida e e?caz de o fazer perceber que Sebastian era capaz de qualquer coisa. Pareceu dar resultado. Ralph continuava a olhar para o sangue com uma expressão de puro espanto no rosto e lágrimas nos olhos. Sebastian inclinou-se para a frente, apoiando os braços em cima dos joelhos e juntando as mãos.
– Eu sou muito bom a formar uma impressão acerca de uma pessoa quando vejo como ela vive. Fui ao seu apartamento.
Ralph ?cou ali sentado a inspirar constantemente pelo nariz para tentar conter o ?uxo de sangue, o que signi?cava que em vez disso tinha de o engolir. Respirava com di?culdade. Ofegava. Na realidade, não queria perder. Tinha tomado o poder. Não iria deixar que Sebastian lho retirasse. Não permitiria que isso acontecesse. Estava mais forte do que alguma vez o fora.
– É uma questão de detectar os padrões – continuou Sebastian. – Nas pequenas coisas. Uma questão de ver as ligações. No seu apartamento não havia cortinas. Nem sequer no quarto. Você tinha uma lanterna na casa de banho. Outra ao lado da cama. Uma em cada quarto, a bem dizer. Uma caixa cheia de fusíveis, baterias, lâmpadas de substituição.
Fez uma pausa para dar mais ênfase.
– Eu diria que você não gosta do escuro.
O olhar que obteve de Ralph con?rmou-lhe que estava certo.
– O que acontece no escuro, Ralph? Quem vem ter consigo no escuro? De que tem você tanto medo?
– De nada... – proferiu, quase num sussurro.
– Então não se importa que eu desligue as luzes?
Sebastian levantou-se e estendeu a mão para o duplo interruptor na parede. Ralph não respondeu. Engoliu em seco enquanto os seus olhos percorriam a sala. Sebastian pensou ter visto gotas de suor surgirem-lhe na testa. A sala não estava quente.
– Por favor, eu sei onde ele está – implorou Ralph.
– Eu acredito em si. Mas como já disse ao Edward, estou farto de andar a brincar com psicopatas.
– Eu não estou a brincar.
– Não posso correr esse risco.
Sebastian desligou um dos interruptores. Uma ?leira de luzes apagou-se. Ralph gritou.
– Vai ?car tão escuro aqui que nem saberá se tem os olhos abertos ou fechados – disse-lhe Sebastian em voz baixa.
Tal como era lá, pensou Ralph. Como era na cave. Com eles.
Começou a tremer, puxando a algema. Começou a hiperventilar. Sebastian hesitou. A reacção de Ralph fora mais forte do que ele poderia ter imaginado. Obviamente, ?cara aterrorizado. Mas Sebastian tinha de prosseguir. Evocou mentalmente uma imagem de Annette Willén. Se não fosse su?ciente, tinha as fotogra?as de Vanja no telemóvel.
Era su?ciente.
Apagou as luzes.
Ralph engasgou-se e conteve a respiração. Encostou-se contra a parede e enrolou-se numa bola, tornando-se o mais pequeno possível. Tentou manter-se calado mas conseguia ouvir que, sempre que exalava, choramingava impotentemente. Aquilo era uma faixa de luz ou uma memória visual no seu cérebro sobrecarregado? Era o som da porta a abrir-se? Sim, era. Eles entravam à socapa. Nus. Tinham-no encontrado. As pessoas das máscaras de animais. Os animais com forma humana. Estavam a respirar. A cochichar.
– Acenda a luz. Por favor... acenda a luz.
Um ?no raio de luz brilhou-lhe no rosto. Era a luz do telemóvel de Sebastian. Ralph virou-se para esta, tentando absorvê-la o máximo possível. As pessoas-animais estavam à espera nas sombras em seu redor. Balouçavam de um lado para outro. Dançavam com passos peculiares, silenciosos. Esperavam que a escuridão o engolisse de novo para se poderem aproximar.
À volta dele.
Em cima dele.
Dentro dele.
– Onde está Edward? – perguntou Sebastian, invisível atrás da luz.
Apagou a lanterna.
– Apagado.
A escuridão. A engoli-lo.
– Aceso.
A luz voltou.
– Apagado.
Desapareceu de novo.
– Aceso. Qual é que você prefere?
Ralph não conseguia responder. Apenas arfar.
– Apagado.
Ralph continha a respiração. Havia um silêncio total na escuridão. Com excepção dos sussurros. Os passos suaves. O movimento dos corpos nus. Ele não estava sozinho. Nunca sozinho.
– Sebastian...
Nenhuma resposta. Algo agarrou-lhe a perna. Ralph soltou um rugido de angústia. Foi desviado para trás.
Para o passado.
Para eles.
Aquilo atingiu-o com toda a força. Foi mais do que uma memória. Sentiu-lhe o cheiro. O sabor. Conseguiu ouvir os sons. Eles estavam ali. A tocar-lhe. Eram selvagens. Passara-se muito tempo. Aquilo nunca iria acabar. Tentou afastá-los. Virou-se, contorcendo-se e esperneando. Sentiu uma dor dilacerante quando a pele em redor do seu pulso se rasgou. Bateu com a cabeça no radiador. Puxou as algemas de novo e sentiu algo estalar no seu pulso. Não importava. Ele já não conseguia gritar mais.
A luz acendeu-se. Ele ficou banhado em luz. Uma luz branca, benfazeja, que vinha do tecto. Sebastian aproximou-se dele. Ralph sorriu-lhe com gratidão.
– Onde é que começou, Ralph? Onde estão eles?
Ele queria dizer-lho. Queria gritar-lho tão alto quanto pudesse. Mas tudo o que conseguiu proferir foi um murmúrio gaguejante. Sebastian baixou-se.
– Åk -er -s -st...
Sebastian baixou-se ainda mais. Ficou com o hálito quente de Ralph encostado ao seu ouvido. Naquele momento não passava de um sussurro. Ouviu e endireitou-se.
– Obrigado.
O que poderia ele dizer? Aquele não era o seu momento de maior orgulho. Mas já dissera muitas vezes que faria tudo o que pudesse para trazer a sua ?lha de volta. O mesmo se aplicava naquele caso: faria tudo para evitar perder outra ?lha.
Caminhou para a porta. Destrancou-a e abriu-a. Virou-se para trás e olhou para Ralph, caído no chão. Tinha sangue no rosto e a escorrer-lhe pelos braços, o cabelo colado à testa, o olhar vago e arregalado.
O telemóvel de Sebastian apitou.
Era a terceira imagem.
Apagou as luzes e saiu da sala.
NADA. NADA. NADA.
Quando regressaram de Märsta, Torkel enviara carros aos outros três locais do crime dos anos noventa. Só por uma questão de precaução. Fosse o que fosse que acontecesse, ninguém poderia dizer que ele não ?zera tudo o que podia – muito menos ele próprio. Por isso, também enviara carros a Bromma, a Nynäshamn, a Tumba e a Liljeholmen, onde ocorreram os últimos quatro homicídios. Na verdade, não pensava que Hinde fosse para lá; esses locais pertenciam a Ralph. No entanto, Torkel teria enviado carros-patrulha para todo o mundo se julgasse que isso poderia salvar Vanja. Uma agente da polícia raptada por um assassino em série que fugira da prisão e sofria de um distúrbio neurótico de cariz sexual. Ninguém esperava que ele tratasse o caso como um desaparecimento normal, e ele não fazia qualquer tentativa nesse sentido. Requerera os recursos de que julgava necessitar e, além disso, muitos colegas que estavam de folga apresentaram-se voluntariamente para perguntarem se havia alguma coisa que pudessem fazer. O esforço era imenso, mas até ao momento não conduzira a lugar algum. Todos os carros que ele enviara já tinham feito o relatório.
Nada. Nada. Nada.
Torkel pensou o que fazer a seguir. A coisa melhor e mais próxima de que ainda dispunham era o Ralph. Não importava o que ele queria; haveria de falar com Torkel. Se soubesse alguma coisa, Torkel iria extorquir-lha. Saiu do gabinete e foi até à ala de detenção. A cela de Ralph estava vazia. Foi procurar um dos guardas.
– Onde está o Ralph Svensson?
– O seu colega veio buscá-lo há cerca de uma hora.
Torkel nem sequer precisou de lhe perguntar quem foi o colega. Não vira Sebastian desde que regressara de Märsta. Ele saltara para fora do carro e desaparecera assim que chegaram. Há cerca de uma hora. Torkel pegou no seu telemóvel. Sebastian atendeu de imediato.
– Sim?
– Onde diabos está o Ralph?
– Acalma-te. Está numa sala de segurança na galeria. Pode ser boa ideia ir lá alguém acender-lhe as luzes.
Torkel soltou um longo suspiro. Estava disposto a tudo para extrair qualquer informação que Ralph pudesse ter, mas sabia que Sebastian se preparara para ir mais longe. Demasiado longe, provavelmente. Por instantes, Torkel imaginara Sebastian a retirar do edifício um suposto assassino em série.
– Onde estás tu? – perguntou-lhe.
Pelo breve silêncio que se seguiu percebeu imediatamente que não iria gostar da resposta.
– Não posso dizer-to agora.
Aquilo só podia signi?car uma coisa. Ele estava prestes a ir mesmo demasiado longe, foda-se, e ainda mais além.
– Tu sabes onde está o Edward – a?rmou Torkel categoricamente.
– Sim.
– Dá-me um endereço. Fica onde estás e espera por nós.
– Não.
– Sebastian, pelo amor de Deus! Faz o que te digo!
– Desta vez não.
Desta vez não, pensou Torkel. Como se ele alguma vez tivesse feito o que Torkel lhe dizia. O que alguém lhe dizia. Receber ordens não era um dos pontos fortes de Sebastian Bergman.
– Tu não podes ir lá sozinho. – Torkel fez uma última tentativa para argumentar com ele. Para encontrar os botões que tinham de ser premidos. Para chegar até ele. – Tu podes ser suicida, mas pensa na Vanja.
– É exactamente isso que estou a fazer.
Sebastian calou-se. Torkel não sabia o que fazer. Implorar, rogar, perder a paciência? Tudo seria igualmente ine?caz.
– Lamento muito, Torkel, mas agora isto é entre mim e o Hinde.
Sebastian desligou a chamada. Os faróis do carro iluminaram o letreiro para Åkers Styckebruk que tinha uma seta a apontar para a direita. Sebastian ligou o pisca e virou nessa direcção.
O que quer que acontecesse, não tardaria a acabar.
Torkel teve de se conter para não atirar o telemóvel ao chão. Idiota do caralho. O Sebastian, claro, mas também se aplicava a si próprio. Devia tê-lo expulso dali para fora. Não o devia ter recrutado. Não de novo. De maneira alguma. Será que ele nunca aprendia?
Antes de sair, disse ao guarda de plantão onde poderia encontrar Ralph Svensson. Pediu-lhe que o fosse buscar e o levasse para uma sala de interrogatório. Ele iria lá ter daí a cinco minutos. Antes disso tinha de mobilizar todo o pessoal disponível para encontrar Sebastian. Ele devia ter levado um carro; com alguma sorte, conseguiriam localizá-lo através do GPS. Caso contrário, iriam descobrir o carro que levara e lançariam um alerta em toda a área com a marca, o modelo e a matrícula. O guarda de plantão telefonou-lhe de volta quando Torkel estava a entrar no seu gabinete. Encontraram Ralph Svensson mas não estava em condições de ser interrogado. Estava praticamente catatónico. Não respondia quando lhe tocavam nem quando falavam com ele. Ferira-se ou magoara-se. Tinha ferimentos no rosto e na cabeça. O pulso partido. Ia a caminho do hospital.
Torkel praguejou entredentes. Que raio ?zera Sebastian? Agredira um suspeito. Ele não iria safar-se com aquilo. Torkel garantiria pessoalmente que não se iria safar.
– Torkel. – Ouviu a voz de Billy à entrada e virou-se para trás.
– O que é agora?
– Encontrei algo. No computador do Ralph.
Billy estivera a trabalhar sem parar desde que regressara da casa em Midsommarkransen, em parte porque queria realmente dar o seu contributo e também porque o ajudava a não pensar no que teria acontecido se tivesse ido fazer uma corrida com Vanja. Se lhe tivesse dito que sim. Se tivesse sido o amigo que devia ser. Torkel puxara-o para um lado e dissera-lhe que se estivessem juntos em Lill-Jansskogen provavelmente não teria sobrevivido – ou isso, ou teriam de se preocupar com o sequestro de dois agentes. Billy acenara com a cabeça, concordara em absoluto, parecia-lhe ser mais do que provável, mas também era possível que estivessem ambos ali sentados se ele não lhe tivesse dito que não. Também era provável que tivessem apanhado Hinde. Ele sabia que era errado e contraproducente pensar daquela maneira, mas sentia-se culpado. Tinha apenas de fazer tudo o que pudesse para tentar encontrar Vanja antes que fosse tarde de mais. Todos os que trabalhavam no caso sabiam que ela ia morrer, mas ninguém o exprimia em palavras. A única questão era saberem de quanto tempo dispunham. No pior cenário já era tarde de mais, e eram esses os pensamentos que ele precisava de afastar com o trabalho. Eram completamente debilitantes. Por isso, embrenhara-se no disco rígido dani?cado do computador de Ralph e os seus esforços produziram resultados.
Torkel foi até à secretária de Billy e inclinou-se para olhar para o monitor.
– Eles têm comunicado através desta página da fygorh.se num programa de conversação. Consegui recuperar partes da conversa entre ambos.
– Vai directo ao assunto. – Torkel estava impaciente. Não queria saber como Billy chegara lá, apenas o que encontrara.
Billy apontou para o ecrã.
– Aqui... Ralph está a falar de um pavilhão de caça na ?oresta onde ele e o avô costumavam ir. É bastante incoerente, tem uma série de coisas acerca de pessoas que se parecem com animais e...
– Está bem, está bem. E é aí que eles estão? – inquiriu Torkel.
– Não, mas há uma resposta de Edward, uma resposta bastante longa sobre a importância de não esquecer. Ele fala de um tio em cuja casa ele e a mãe costumavam ?car durante o Verão, quando era pequeno. Aparentemente, esse tio nunca tocou no Hinde, mas a mãe dele saiu de lá muito mal. Ele relaciona isso com as suas próprias experiências, o facto de ela ter ?cado avariada. Repara. – Billy apontou para uma linha mais abaixo no ecrã.
«Eu julgo que foi aí que tudo começou.»
– Sabemos onde ?ca?
– Fui investigar a mãe do Hinde e encontrei o irmão dela. Morava em Åkers Styckebruk. Já morreu.
– Tens algum endereço?
– Claro.
Uma nota autocolante com o endereço escrito teria bastado, pensou Torkel, mas sabia o que Billy estava a tentar fazer. A compensar a culpa que sentia. A mostrar que trabalhara com a?nco. Que ?zera tudo o que podia. Torkel compreendia inteiramente como ele se sentia. Deu uma palmada no ombro do seu jovem colega.
– Bom trabalho.
Torkel já tinha a unidade de operações especiais ao telefone antes de sair do gabinete.
AO PRINCÍPIO não percebeu o que estava ele a fazer ali, em pé, com o telemóvel na mão. Aquilo acontecera muito depressa. Mas quando baixou o telemóvel, lhe sorriu e lhe disse para vestir a camisa de dormir, compreendeu que tinha usado a câmara. Já devia ter percebido. Não se apercebera porque era um telemóvel e não uma câmara normal. Olhou para ele com uma expressão furiosa. Teria de ser ele próprio a vestir-lhe a camisa de dormir. Não havia nada que ele pudesse fazer para a obrigar a fazê-lo voluntariamente. Sabia que a série de imagens da vítima fazia parte da fantasia dele, e as que vira no apartamento de Ralph começavam todas exactamente da mesma maneira. A mulher nua e exposta, tal como ela. A próxima seria uma fotogra?a sua com a camisa de dormir já vestida.
Ele iria demorar algum tempo a tirar esse retrato. Ela assegurar-se-ia de que demoraria.
Abanou a cabeça e virou-se de costas para ele. Ele obrigou-a a deitar-se na cama, ameaçando-a com a faca e a Taser. Tentou resistir o su?ciente, prolongando a luta sem que ele considerasse necessário usar alguma das armas. Era um número de equilibrismo difícil; tinha de se contorcer e de resistir o mais possível enquanto, ao mesmo tempo, lhe dava a impressão de estar prestes a atingir o seu objectivo, de no ?nal vir a ser o vencedor, para que ele não decidisse pô-la fora de combate.
Algo para ganhar tempo.
Então, de repente, sentiu aquilo. Algo duro e a?ado que saía do colchão, no lado direito da cama. Arranhara-lhe a mão. Ele começara a en?ar-lhe a camisa de dormir por cima do rosto e ela atirara-se para a direita tão longe quanto possível, tentando afastar-se dele. Tentou olhar para o objecto a?ado, para ver o que seria, mas do lugar onde estava deitada era impossível; o ângulo não era o melhor e a camisa de dormir quase lhe cobria os olhos. Em vez disso, tentou apalpá-lo com a mão. Não conseguiu localizá-lo; não conseguia alcançar a beira da cama com a mão direita. Decidiu começar a esbracejar novamente, daquela vez com o ?to de colocar a mão mais perto do objecto a?ado. Começou com um rugido silencioso, contraindo o corpo de maneira a que este ?casse rígido como uma tábua. Isso pareceu desequilibrá-lo por momentos. Ela atirou-se para a direita, de modo a que sua mão chegasse mais adiante; os seus dedos tactearam a beira do colchão, procurando febrilmente o objecto a?ado. Esperava que este se soltasse. Hinde empurrava-a de novo para baixo, tentando ganhar controlo. Deixou que ele levasse a melhor, mas agarrou-se com força à beira da cama com a mão direita. Deu resultado. Deixou que ele começasse a vestir-lhe a camisa de dormir enquanto os seus dedos prosseguiam a busca. Ouviu a camisa de dormir rasgar-se quando lha puxou sobre a cabeça e ela se debateu com o braço esquerdo. De repente, encontrou o que procurava. Era algo metálico, a?ado e duro. Soltou-o durante a luta mas já sabia mais ou menos onde estava, e conseguiu apoderar-se dele novamente. Parecia ser uma mola partida e estava solta. Puxou-a com o polegar e o dedo indicador, mas não saía. Mudou então de táctica e começou a dobrá-la para trás e para a frente, a ?m de lhe enfraquecer a base. Para trás e para a frente. O mais depressa que conseguia.
A mola desprendeu-se e ela escondeu-a na mão com uma rapidez fulgurante.
Deixou que ele lhe en?asse devidamente a camisa de dormir por cima da cabeça para se poder concentrar no que estava a fazer. Funcionou. Ele olhava para ela com raiva quando pegou de novo na faca.
– Vou usar esta – disse-lhe.
Ela assentiu com a cabeça. Deixou que ele ganhasse. Cedeu. Sentou-se e vestiu a camisa de dormir, escondendo a mola partida na mão direita fechada. Quando a camisa lhe deslizou pelo corpo, deixou cair a mola entre as pernas, cobrindo-a com o tecido. Sentiu-a contra a sua coxa como um objecto ligeiramente frio e a?ado, minúsculo e irritante.
Era tudo menos isso.
Era esperança.
Hinde tirou outra fotogra?a dela. Depois, aproximou-se e cortou o atilho que lhe prendia a perna esquerda à cama.
– Vira-te. – Vanja sabia o que vinha a seguir. Ele queria que se deitasse de barriga para baixo. Primeiro pensou em não cooperar, mas depois percebeu que se o ?zesse sozinha tinha mais possibilidades de agarrar a mola. Colocou a perna esquerda por cima da perna direita, comprimindo a mola entre as coxas, depois rolou a parte superior do corpo. Gritou de dor quando o atilho que lhe prendia a perna direita penetrou na sua carne, mas sentiu a mola acompanhar o movimento quando se deitou de bruços.
Hinde montou-se sobre as pernas dela e começou a amarrar-lhe as mãos atrás das costas com uma meia de nylon. Veri?cou cuidadosamente o nó. Agora que ela estava ali deitada, pronta para a próxima fase, parecia ter abrandado. Levantou-se e foi colocar-se em pé ao fundo da cama. Agarrou-a pelo pé esquerdo e con?rmou se tinha as pernas bem abertas antes de lhe amarrar o tornozelo à cama com outra meia. Fez-lhe o mesmo ao tornozelo direito, e depois cortou o atilho. Satisfeito com o seu trabalho, regressou ao caixote. Ela viu-o tirar de lá vários objectos por ordem. Reconheceu-os. Era a sua provisão de comida e de bebida. Ele desapareceu, indo provavelmente para uma pequena arrecadação com fechadura.
Ela começou a levantar a camisa de dormir por cima das coxas para se conseguir apoderar da pequena mola.
Esperava que ele ?casse longe dali por um bocado. Ela precisava de tempo.
A estrada de terra por onde conduzia estava coberta de ervas e raramente era usada. Descrevia curvas e contracurvas através da ?oresta, que mais à frente deu lugar a descampados de ambos os lados. A curta distância avistou o que parecia ser uma casa. Os faróis de halogéneo iluminavam a erva alta à frente do carro e sentia-se como se estivesse a conduzir através de um mar de erva seca, amarelada. A luz re?ectia-se contra ele, tornando difícil descortinar mais do que os escuros contornos da casa.
Depressa chegou a uma cerca que contornava uma improvisada área de manobra. Parou, desligou o motor, saiu do carro e esperou que os seus olhos se habituassem à escuridão. Olhou para a casa. Parecia deserta; não se viam luzes acesas.
Saltou com cuidado por cima da cerca. O edifício que se recortava contra o céu nocturno era agora muito mais nítido. Estaria talvez a uns cem metros de distância. Era grande, mas de modo algum convidativo. A luz da lua lançava um brilho azulado sobre o telhado e a fachada, e ao ?m de um certo tempo conseguiu discernir os buracos escuros que já tinham sido janelas. Começou a andar. Julgou entrever o ténue e tremeluzente brilho de velas; era como se, subitamente, o negrume do interior adquirisse um tom alaranjado de tempos a tempos e umas sombras ténues, quase imperceptíveis, esvoaçassem nos parapeitos e nas paredes. Agora sabia que estava no sítio certo.
Continuou a andar.
As ervas altas sussurravam a cada passo que dava em direcção ao seu destino.
Se tivesse sorte, conseguiria trocar a sua vida pela dela.
Se não tivesse sorte, naquela noite tanto ele como Vanja chegariam ao ?m das suas vidas.
Vanja conseguira puxar a camisa de dormir para cima e arquear as costas o su?ciente para en?ar as mãos atadas entre as coxas e apoderar-se da mola. Esta estava de novo escondida na sua mão direita. Só podia serrar a meia de nylon quando Hinde não se encontrava no quarto. O que não acontecia com a frequência su?ciente. Ele saíra por momentos para ir acender velas, mas além disso estava ali o tempo todo. Parecia esperar alguém. Era como se o ritual, que fora tão importante ao princípio, tivesse agora uma importância secundária. Passava a maior parte do tempo a andar para trás e para a frente, a escutar.
Vanja teve a sensação de que já não era ela a personagem principal. De que estava ali deitada por uma razão diferente. Mas isso não lhe interessava. Tomava consciência de como a mola que tinha na palma da mão era a?ada enquanto esperava que ele desaparecesse de novo para poder continuar. Até ao momento os esforços dela não tinham produzido resultados visíveis. As suas mãos continuavam bem amarradas; também começavam a ?car frias e dormentes por causa do ?uxo de sangue reduzido. O que mais a preocupava era que sentia os músculos cada vez mais fatigados. A questão era saber durante quanto tempo seria capaz de continuar.
Se ao menos ele saísse do quarto.
Mas continuava ali, em pé. Completamente imóvel.
Sebastian espreitou para o interior através da janela partida, ao lado da porta da frente, e deu por si a olhar para o que outrora deveria ter sido a cozinha. Estava imunda, com gra?tos em todas as paredes. Alguém arrancara o móvel do lava-louças. Um velho fogão a lenha do início do século anterior estava a um canto, iluminado pelo luar. Sebastian apercebeu-se do ténue brilho das velas, provavelmente vindo do quarto ao lado. Escutou com atenção, mas não ouviu qualquer som. Caminhou até à porta, que estava entreaberta. Havia cacos de vidro espalhados no chão à frente desta. Endireitou as costas.
Estava na hora de anunciar a sua presença.
A porta rangeu estridentemente quando a abriu e penetrou no corredor escuro, estreito.
– Edward, aqui estou – bradou ele, e a seguir parou, à espera de uma reacção. Nada. A casa permaneceu tão silenciosa como dantes.
Era óbvio que Hinde ainda não estava pronto para se mostrar.
Sebastian virou à esquerda e encontrou-se na cozinha que vira pelo lado de fora. Metade do soalho desabara e teve de caminhar à volta do buraco negro que havia no meio da divisão. Sentiu um cheiro a ranço, a mofo, e encaminhou-se para a luz tremeluzente do quarto ao lado. Era grande e imponente, e provavelmente noutros tempos fora a sala de jantar. Uma grande marca preta no chão de madeira clara assinalava o local onde outrora houve um tapete, e o papel de parede começara a enfolar e a soltar-se com o tempo. Parecia-lhe que a parede adquirira braços e que estes se estendiam para si. Uma única vela acesa apoiada na própria cera estava ?xada em cima de um velho radiador de metal ornamentado. Havia duas portas. Imediatamente à sua frente situava-se uma outra sala grande, que formava uma espécie de suite com aquela na qual se encontrava. À direita, um corredor conduzia ao interior da casa. Avistou outra luz tremeluzente nessa direcção. Talvez devesse seguir as velas.
Em todo o caso, foi o que decidiu fazer.
Ela ouviu a voz. Ao princípio não conseguiu localizá-la. Ou melhor, não conseguiu atribuir sentido àquela voz naquele contexto.
Virou-se para olhar para Hinde e percebeu que os seus ouvidos não a tinham enganado. O rosto dele reluzia de antecipação. Era desta voz que Hinde estava à espera. Desde há muito, muito tempo.
Ele pegou na faca e esgueirou-se para fora do quarto. Ela viu-o ir-se embora, esquecendo-se por instantes da mola a?ada que tinha na mão.
O que estava Sebastian a fazer ali? Porque chamara ele por Hinde?
Aquilo não podia ser verdade. Sebastian nunca fazia nada por ninguém, a não ser por si próprio. Era assim que ele trabalhava. Ela sabia-o.
E, no entanto, estava ali.
Sebastian acabara de explorar o piso térreo. Estava vazio, exceptuando mais algumas velas e algum lixo antigo. Regressou às escadas, perscrutou a escuridão e pôs-se à escuta. Chamou novamente.
– Olá!
Continuou sem resposta.
Começou a subir as escadas. Quando ia a meio, avistou o brilho de outra vela. Já começava a ?car farto daquele jogo. Chamou de novo, desta vez ainda mais alto.
– Edward, eu sei que você está aí.
Continuou a avançar. Alguns dos degraus estavam podres e teve de os evitar. Quando chegou ao cimo, viu que estava no início de um corredor. Havia portas de ambos os lados e outra ao fundo. Estavam todas fechadas.
Abriu a primeira porta. Como as janelas tinham sido entaipadas, estava escuro como breu. Empurrou a porta toda para trás, para deixar entrar a pouca luz do corredor, e entrou. A divisão parecia vazia, além de uma velha escrivaninha a um canto. Nada mais.
Estava prestes a sair dessa sala quando ouviu um leve ruído atrás de si, na escuridão. Rodou sobre si mesmo, mas era tarde de mais. Sentiu a respiração de Hinde no rosto e a faca encostada à garganta. Tentou descontrair-se e deixou que Hinde o empurrasse contra a parede malcheirosa e húmida.
– Tenho estado à espera disto – sibilou Edward.
Encontrava-se tão perto que Sebastian conseguia sentir a sua excitação. Tentou manter-se calmo. A faca estava a?ada. Se Hinde a pressionasse com um pouco mais de força, trespassar-lhe-ia a pele.
– Tenho estado à sua espera, mas agora está na hora de começar.
Sebastian enfrentou o olhar de Hinde. Os olhos dele reluziam, apesar de haver pouca luz no quarto.
Ela estava viva. Vanja ainda estava viva.
– Deixe-a ir – tentou ele dizer com toda a convicção possível. – Isto é entre você e eu.
Hinde sorriu. O olhar no seu rosto dizia tudo. Um aceno de cabeça só con?rmou os piores receios de Sebastian.
– Não. Quero que você assista. A?nal de contas, gosta de me estudar. Achei que seria bom para si ter um lugar na primeira ?la.
Sebastian esforçou-se por manter a compostura.
– Deixe-a ir. Leve-me a mim em vez dela.
– Em vez dela? Nunca. Os dois, talvez.
De repente, virou Sebastian de modo a ?car postado atrás dele, ainda com a faca encostada à garganta. Empurrou Sebastian para sair para o corredor.
– Agora quem manda aqui sou eu – disse ele.
Para realçar a sua a?rmação empurrou a faca para cima, di?cultando a respiração a Sebastian. Continuou a empurrá-lo até ao fundo do corredor. Cada vez mais perto da porta. Sebastian percebeu que era para ali que se dirigiam. O quarto situado atrás daquela porta era o objectivo deles.
Embora soubesse que era absolutamente inútil, Sebastian não o conseguiu evitar.
Implorou.
Não podia perdê-la.
– Por favor, leve-me a mim em vez dela. Por favor.
– É muito nobre da sua parte. Mas sem dúvida que deverá ter os seus motivos – foi a resposta.
Chegaram à porta. Hinde empurrou-a e abriu-a com a mão livre.
– Aqui estamos nós – gritou num tom trocista.
Demorou um segundo até que Sebastian e Hinde percebessem o signi?cado do que viam.
A cama estava vazia. Umas meias de nylon rasgadas ocupavam o sítio onde Vanja estivera. Hinde ?cou tão surpreendido que soltou um pouco Sebastian, que reagiu com uma rapidez fulgurante; afastou a faca para longe e conseguiu libertar-se.
Virou-se para Hinde, que ainda estava sem palavras.
– As coisas não estão a correr de acordo com o plano?
Desapontado e furioso, Hinde desferiu-lhe um golpe com a faca. Sebastian passou para trás da cama. Embora soubesse que se encontrava numa situação muito perigosa, não pôde deixar de sentir uma onda de alegria. Aparentemente, Vanja tinha fugido. Isso era o mais importante. Ele estava disposto a dar a sua vida por ela quando entrara na casa, e continuava a ser esse o caso.
Hinde fez outro movimento impetuoso com a faca e Sebastian recuou para o canto do quarto. Dentro em pouco não teria nenhum lugar para onde ir. Procurou freneticamente algo que pudesse usar para se proteger, mas não havia nada. Quanto mais tempo ele conseguisse aguentar, maior avanço teria Vanja. Tentou passar por cima da cama, mas tropeçou e caiu em cima desta. Hinde aproximou-se num instante e, apesar de Sebastian ter esperneado na sua direcção, conseguiu cravar-lhe a faca na barriga da perna. A dor foi excruciante. Sebastian agarrou-se à cabeceira da cama com as duas mãos e tentou colocar-se longe de Hinde. Viu o seu sangue a escorrer da ferida na perna.
Hinde parou e, em silêncio, olhou para Sebastian, que se içava para o canto arrastando a perna. De repente, sentiu-se contente por demorar o seu tempo.
– Talvez as coisas não tenham corrido inteiramente de acordo com o plano. Mas, pelo menos, tenho-o a si. – Começou a andar lentamente na direcção de Sebastian. Retomou a sua compostura gélida quando baixou os olhos para o homem que sangrava ao canto. Ergueu a faca.
Sebastian olhou para ele. Não tinha para onde ir e preparou-se para o inevitável.
Viu a lâmina da faca cintilar no ar. Sentiu uma dor terrível na barriga. Hinde puxou a faca e ergueu-a de novo. Daquela vez apontou mais acima.
– Uma facada por cada ano que passei em Lövhaga, acho eu. Só faltam doze.
Sebastian começava a perder a consciência mas esforçava-se por permanecer acordado. Conseguiu cuspir uma resposta.
– Vanja está a salvo – disse, com um derradeiro sorriso. Hinde estava furioso quando voltou a erguer a faca.
Foi então que Sebastian a viu de repente. Vinha a voar pelo quarto com algo na mão.
Ela devia ter fugido. Não devia estar ali.
Não.
Hinde apercebeu-se do movimento atrás de si no último instante e virou-se para trás. Viu a Taser na mão dela e conseguiu agachar-se antes de a disparar contra ele. Virou a faca ao contrário e, com o cabo, assestou um duro golpe na cabeça dela. Vanja largou a Taser e caiu no chão. Hinde lançou-se sobre ela. Ela debateu-se, mas ele golpeou-a novamente. Depois parou e contemplou o seu corpo ?ácido. Sorriu para Sebastian.
– É a isto que eu chamo amor. Ela voltou.
Sebastian começou a rastejar na direcção deles com as últimas reservas das suas forças. Tinha a camisa e as calças cobertas de sangue. Arrastava a perna por cima do sangue.
– Não faça isso. Não.
A expressão de Hinde era de pura satisfação.
– Você vai perdoar-me, mas vou passar directamente para o ?nal. – Olhou para Vanja, agarrou-a pelo cabelo e puxou-lhe a cabeça para trás, expondo-lhe a garganta. – Observe com atenção, Sebastian. Esta é a última coisa que irá ver.
Sebastian já não conseguia sentir a dor. Não sentia nada. Rastejou e rastejou, mas parecia que só conseguia mover-se um milímetro de cada vez.
Tudo terminaria a qualquer instante.
Quando Hinde ergueu a faca, de repente ouviu-se uma voz vinda da porta.
Sebastian pensou que parecia Billy que estava ali em pé.
O Billy. Que estava ele ali a fazer?
Ouviu um tiro e viu Hinde cair para trás.
A seguir, tudo ?cou escuro.
SEBASTIAN NÃO SE lembrava da ambulância, da sua chegada ao hospital ou da operação. De nada. A primeira coisa de que tomou consciência após ter visto Hinde cair para trás, foi de abrir os olhos quando recobrou os sentidos. Os seus ferimentos eram muito dolorosos, e um médico excessivamente entusiástico dizia-lhe que tivera uma sorte incrível antes de entrar em pormenores acerca das lesões que ele realmente sofrera e que as consequências poderiam ter sido muito mais graves. Sebastian deixou de ouvir.
Estava vivo e iria recuperar; era tudo o que precisava de saber.
Fizeram-lhe os exames habituais. Depois, Vanja e Torkel entraram. Perguntaram-lhe como se sentia. Preencheram as lacunas desde o esfaqueamento até ao momento.
– Tiveste de aturar muita merda? – perguntou Sebastian a Torkel, que parecia exausto. Provavelmente não tinha dormido.
– Ainda não. Mas o dia ainda está a começar.
– Desculpa.
– Hei-de sobreviver. – Torkel encolheu os ombros. – A Vanja está bem, apanhámos o Ralph Svensson e o Roland Johansson, e o Hinde está morto. Tu sabes como tudo funciona no serviço policial. A maneira como se chega lá realmente não interessa. O que conta é o resultado.
– Então apanharam o Roland?
– Sim, noutro carro roubado quando voltava para Gotemburgo. – Torkel calou-se; parecia pensar se devia prosseguir. – E lembras-te do Trolle Hermansson? – perguntou com um tom de voz mais atenuado.
Sebastian acomodou-se na cama. Não esperava que o nome de Trolle surgisse. Não naquele momento. Quando tudo acabara. Quando já estava a salvo. E Torkel parecia muito sério.
– Sim?
– Encontrámos o corpo dele. No Toyota.
– Foda -se.
Torkel abanou a cabeça com um ar cansado.
– Ele devia andar a trabalhar em vigilância privada ou algo do género. Não fazia ideia daquilo em que se estava a meter.
Sebastian assentiu debilmente. Isso era verdade. Trolle não fazia ideia daquilo em que se estava a meter quando decidiu ajudar Sebastian.
– Pobre sacana.
– Sim...
Não havia muito mais para dizer. O caso estava encerrado. Fora tudo o que tiveram em comum daquela vez. Provavelmente, passaria bastante tempo até voltarem a ver-se. Tanto Sebastian como Torkel sabiam-no.
– Tenho de voltar ao gabinete para concluir as coisas – disse Torkel, acenando vagamente na direcção da porta. Virou-se para Vanja. – Queres uma boleia?
– Vou ?car aqui por um bocado.
– Está bem. Tem cuidado, Sebastian. Vemo-nos em breve.
Uma frase feita.
Que não signi?cava nada.
Torkel saiu do quarto, fechando a porta atrás de si. Vanja foi buscar uma cadeira; Sebastian olhou para ela com curiosidade quando se sentou ao lado da cama.
– Queria agradecer-te.
– Não é preciso.
– Eu ouvi-te. No patamar. Ofereceste-te para ?car no meu lugar.
– Sim.
– Porquê?
Sebastian encolheu os ombros. Sentiu dor. Fez uma careta.
– Porque gosto de atacar em força como um cavaleiro de armadura reluzente.
Vanja sorriu e pôs-se em pé. Debruçou-se e deu-lhe um grande abraço.
– Obrigado – sussurrou ela.
Sebastian não conseguiu responder. Não quis. Queria imobilizar aquele momento para sempre. Fora por aquilo que ele ansiara. Durante meses. Durante mais tempo ainda, para ser franco. Quanto tempo passara desde que alguém lhe demonstrara uma afeição genuína? Havia a Ellinor, sim, mas ela era... A Ellinor. Retribuiu o abraço de Vanja. Demorou-se um pouco a fazê-lo, mas ela não pareceu importar-se.
Continuava a sorrir para ele quando se sentou de novo.
Sebastian exalou o ar tão devagar quanto conseguiu. O abraço fora muito doloroso mas valera bem a pena.
– Então o que vais fazer agora? – perguntou Vanja.
– Reparaste naquela enfermeira um pouco mais velha que...
Ela deu-lhe um empurrão. Isso também doeu. Ele pensou se haveria algo que pudesse fazer sem que lhe doesse.
– Eu queria dizer em matéria de trabalho.
– Não sei.
Vanja acenou de um modo compreensivo e olhou para as suas mãos e, a seguir, para ele com uma expressão muito sincera.
– Eu não me importaria de trabalhar contigo novamente.
– A sério?
– Sim.
– Isso signi?ca muito para mim.
Susteve o olhar dela, na esperança de que ela visse que estava a ser sincero.
O telemóvel de Vanja tocou. O momento, caso tivesse existido algum, desapareceu. Ela tirou o telemóvel do bolso e olhou para o ecrã.
– Preciso de atender.
Afastou-se da cama por momentos e atendeu.
– Olá, pai... Não, estou no hospital. A visitar o Sebastian... Sim, esse Sebastian.
Lançou-lhe um breve sorriso. Ele retribuiu. Pelo menos, esperava que fosse isso que estava a fazer. Havia tantas emoções.
Alegria, tristeza, orgulho, dor.
– Sim, eu estava lá – continuou Vanja. – É uma história demorada. Posso ligar-te mais tarde?... Está bem. Eu também te amo.
Terminou a chamada e guardou o telemóvel.
– Era o meu pai. Viu na Internet a notícia acerca do Hinde.
– Ele não sabe o que aconteceu?
– Não, e não sei ao certo até que ponto devo contar-lhe. Ele preocupa-se comigo. Quero protegê-lo. A ele e à Anna.
Devia ser coisa de família, pensou Sebastian. Aquele desejo de proteger os mais próximos e os entes queridos das verdades desagradáveis. Tal como ele.
– Vou deixar-te descansar um pouco – disse Vanja, pondo-se em pé. Pegou na cadeira e arrumou-a.
– Ele tem sorte por te ter. O teu pai – disse Sebastian nas costas dela.
– Tenho sorte por tê-lo a ele. Ele é o melhor.
– Estou certo que sim.
Vanja dirigiu-se para a porta. Parou, com a mão em cima do puxador. Como se estivesse um pouco relutante em partir.
– Pronto, vou-me embora. Cuida de ti.
– Tu também.
Ele viu-a ir-se embora. Não com raiva. Não após uma acesa troca de palavras. Não após uma discussão. Tomou uma decisão. Fosse o que fosse que Trolle pudesse ter desenterrado a respeito de Valdemar, nunca o iria usar. Nem sequer iria olhar para os papéis para descobrir o que Valdemar ?zera. Logo que chegasse a casa iria queimar o conteúdo da sacola. O segredo de Valdemar morreria com Trolle.
Virou-se para o outro lado. Doeu-lhe. Claro. Olhou para fora da janela. Passava um pouco das cinco da manhã. O Sol erguera-se há cerca de meia hora e ainda não emitia calor. Mas iria estar um dia bonito.
Ela perguntara-lhe o que ia fazer.
Sabia o que não ia fazer.
Não ia ser o pai dela. Nunca. Ia parar de tentar. Se jogasse bem os seus trunfos, poderia ?car perto dela. Ser aceite. Não amado, mas talvez apreciado.
Isso era su?cientemente bom.
Como não tinha na sua vida muitas coisas que fossem boas, seria estúpido desperdiçar esta.
Tudo correria bem.
Ele sentia -o.
Tudo haveria de correr bem.
BILLY COMEÇOU a trabalhar cedo; foi o primeiro a chegar. Como Maya passara a noite na sua própria casa, não havia uma verdadeira razão para ele ?car na cama. Em todo o caso, não tinha dormido bem.
Disparara sobre um homem.
Matara -o.
Não tivera escolha, ninguém precisava de lho dizer, embora tanto Vanja como Torkel o tivessem referido logo a seguir. Billy estava absolutamente convencido de que Hinde teria morto Vanja se não tivesse disparado sobre ele. Teria sido necessário matá-lo? Era impossível dizer. Mesmo um Hinde ferido não teria precisado de mais do que um segundo para in?igir graves ferimentos em Vanja. Ferimentos fatais. Billy não podia correr esse risco.
Ele e Vanja conversaram brevemente enquanto ela estava à espera da ambulância. A primeira levara Sebastian.
Esclareceram as coisas.
Um sequestro e um tiroteio fatal revelaram-se muito e?cazes como modo de resolver o con?ito.
De repente, tudo o resto parecera relativamente mesquinho.
Desprovido de importância, de fácil resolução.
Sentou-se frente ao computador e iniciou o disco rígido dani?cado de Ralph. Não que houvesse mesmo necessidade disso. Já tinham tudo o que precisavam acerca do Ralph Svensson: impressões digitais, ADN, vestígios de sangue das vítimas, as meias de nylon e a colecção de recortes de imprensa, para não falar de uma con?ssão. Ninguém iria procurar algo que Billy conseguisse recuperar do computador de Ralph a ?m de assegurar uma condenação.
Ele não o fazia para o caso.
Fazia-o para si próprio.
Tal como sucedera quando andava preocupado com Vanja, o trabalho era a melhor maneira de suprimir aqueles pensamentos indesejáveis. Os pensamentos acerca do tiroteio. Acerca do facto de ter eliminado uma vida. Além disso, era nisto que ele era bom. Era isto que gostava de fazer. Era aqui que estava o desa?o. Onde ele obtinha resultados. Maya podia dizer o que quisesse, mas estas habilidades é que os haviam levado a Hinde. E a salvar Vanja.
Billy chegara à parte da conversa em que Hinde dizia a Ralph que estava na hora de passar da fantasia à execução. Hinde dera a Ralph os nomes das suas vítimas. Uma a uma. Maria Lie. Jeanette Jansson Nyberg. Katharina Granlund. Dera-lhe os nomes e os endereços delas.
Entretanto, Ralph reportara-lhe as recentes conquistas de Sebastian, incluindo Annette Willén. Nessa ocasião a resposta de Hinde fora quase imediata. Ela devia morrer naquele mesmo dia. Para que a ligação a Sebastian fosse cristalina. Era uma sensação estranha, a de ler aquelas linhas breves, precisas, sabendo que tinham conduzido à morte de quatro mulheres.
Continuou a ler.
Havia um nome que ele reconheceu.
Anna Eriksson.
Essa não era a...?
Em Västerås, Sebastian pedira a Billy que o ajudasse a encontrar um endereço. De alguém chamado Anna Eriksson. O mesmo nome. É certo que era um nome bastante vulgar, mas mesmo assim parecia coincidência a mais. Billy encontrara o endereço para Sebastian; ora, onde é que o pôs?
Minimizou a janela do disco rígido de Ralph e seleccionou a pasta «Västerås» a partir do ambiente de trabalho. Abriu-a e seleccionou o arquivo que continha todas as pontas soltas que não conseguiu relacionar com nada em particular. Incluindo o tal endereço.
Storskärsgatan, número 12.
Fez uma pesquisa na Eniro.[19] Descobriu que Anna Eriksson morava lá com Valdemar Lithner.
Lithner.
Espera aí.
A mãe de Vanja chamava-se Anna.
A Anna Eriksson de Sebastian era a mãe de Vanja?
Todas as peças do quebra-cabeças estavam expostas à sua frente, mas não conseguia ver a imagem completa. Abordou o problema de forma metódica. Começou pelo princípio.
Sebastian andara à procura de alguém chamado Anna Eriksson.
Veio a saber que ela morava em Storskärsgatan.
Anna Eriksson era a mãe de Vanja.
Ralph reportara a Anna Eriksson do número 12 de Storskärsgatan como uma possível vítima.
Isso signi?cava que Sebastian tinha dormido com ela? Devia signi?car, com certeza. Em dada altura, pelo menos.
Sebastian e a mãe de Vanja.
Seria por isso que Vanja tinha tanta aversão a Sebastian?
Billy recostou-se, convencido de que havia algo mais ali. Porque andara Sebastian à procura de Anna quando estava em Västerås? Se soubesse que ela era a mãe de Vanja, decerto podia ter perguntado a Vanja por ela? Mas não o ?zera. O que signi?cava isso? Ele não sabia ou não quisera perguntar a Vanja?
Instintivamente, Billy achou que devia parar por ali. Talvez devesse mesmo apagar a informação que acabara de descobrir relativa a Anna Eriksson. A?nal, ninguém iria precisar dela. Matutou no assunto durante algum tempo. No ?m, a sua curiosidade acabou por levar a melhor. Copiou as páginas relevantes para o seu computador e apagou-as do disco rígido de Ralph.
Estava tudo na Internet – era isso que as pessoas diziam. Billy sabia que era verdade. E logo que a investigação interna começasse, ele teria todo o tempo do mundo. Porque seria ele o investigado. Não apenas havia sacado a sua arma e disparado um tiro, como o tiro fora fatal. A sua conduta seria examinada e ele inocentado de qualquer irregularidade. E enquanto estava à espera teria o seu pequeno projecto.
ELLINOR ACORDOU POUCO antes das seis. Sebastian não estava em casa. Aparentemente, ?cou fora a noite toda. O seu lado da cama estava intacto. Ellinor deixou-se ?car. Na verdade, não precisava de se levantar; tirara a semana de folga no emprego e ninguém estava à sua espera.
Mas ela esperava alguém.
Estendeu a mão para a mesa-de-cabeceira e pegou no seu telemóvel. Ligou para o telemóvel de Sebastian. Ele não atendeu. Na noite anterior também não atendera. A última vez que tentara ligar-lhe fora depois da uma hora da manhã. Onde estava ele? O que andaria a fazer? Como não havia maneira de conseguir adormecer de novo, levantou-se, vestiu uma das camisas dele e foi à cozinha. Encheu o jarro eléctrico e ligou-o. Preparou duas sanduíches substanciais com queijo em creme e tomate enquanto esperava que a água fervesse. Preparou uma caneca de chá e foi buscar o jornal ao vestíbulo antes de se sentar com o seu pequeno-almoço. Olhou para fora da janela e deu por si a contemplar os algerozes do edifício da frente. Não conhecia Sebastian há muito tempo, mas não parecia ser o tipo de homem que trabalhava durante toda a noite. Então, onde estava? Porque não lhe telefonara nem atendera quando ela lhe ligara?
Estaria com outra mulher?
Ele falara ao telemóvel sobre alguém chamado Hinde antes de desaparecer na noite anterior. Ou falara com alguém chamado Hinde. Seria um apelido? Seria uma mulher?
Talvez fosse alguém que estava a precisar de uma conversa amigável, explicativa, acerca de quem pertencia a quem e de como era errado tentar roubar uma pessoa que pertencia a outrem. O seu ex-marido fora in?el. Deixara-a.
Agora estava morto.
Mas quando ela pensava nos últimos dois dias, aquilo realmente não fazia sentido. Sebastian fora muito persistente; ?zera um autêntico esforço para que ela ?casse com ele. Decerto não iria enganá-la assim que se mudasse ali para casa, quando tivesse conseguido o que queria? Até ao momento fora muito amoroso.
O homem perfeito.
Ela julgara-o demasiado depressa. Estava um pouco envergonhada de si própria. Haveria de compensá-lo quando chegasse a casa. Podia haver outras razões para o seu súbito afastamento e ausência durante a noite. Tinha de haver outras razões. Rememorou os acontecimentos da noite anterior enquanto a sua caneca de chá, intacta, esfriava. Ele parecia muito enervado quando saiu, disso tinha a certeza. Talvez tivesse problemas no trabalho ou na sua vida particular. Obviamente que desejava que ele falasse com ela se tivesse algo a incomodá-lo, mas alguns homens insistiam em ser estóicos e em lidar com tudo sozinhos. Era-lhes terrivelmente difícil pedir ajuda. Mas ele nem precisava de a pedir a Ellinor. Ela ajudá-lo-ia de qualquer maneira, se ao menos soubesse como.
Começou a recapitular sistematicamente tudo o que haviam feito juntos no dia anterior. Houve algum momento em que agiu de forma diferente? Tentou esconder algo?
Lembrou-se da sacola de supermercado que encontrara. Pensava que continha documentos importantes, mas quando o inquiriu ?cara calado. Na verdade, permanecera calado durante algum tempo. Parecia muito pensativo e mostrara-se um pouco entristecido. Como se o conteúdo da sacola fosse um fardo para ele, como se estivesse a pensar se devia partilhá-lo com ela. Talvez tivesse perguntado a si mesmo se tinha algum direito de a arrastar para os seus problemas, mas depois decidira que não. Pedira-lhe que deitasse fora o saco. Num tom de voz casual. Como se aquilo não signi?casse nada para ele. Mesmo nada. Montara um disfarce. Através do qual ela conseguia agora ver. Ele quisera protegê-la. Teriam de falar acerca do assunto quando ele regressasse. Ela não precisava de protecção. Era muito mais competente do que ele julgava. Mas adorava o facto de ele ter tentado.
Com um pequeno sorriso nos lábios, foi ao quarto buscar a sacola. Afastou para o lado o pequeno-almoço intacto e começou a despejar o seu conteúdo em cima da mesa.
Quarenta e cinco minutos mais tarde, tinha lido cada palavra.
Duas vezes.
Tudo aquilo dizia respeito a alguém chamado Valdemar Lithner. Ele ?zera uma série de disparates. Coisas ilegais, pelo que ela conseguia entender. Isso fazia sentido; às vezes Sebastian trabalhava com a polícia. Aquele Lithner seria alguém que eles iam capturar? Alguém que eles tinham andado a investigar e agora haviam passado toda a informação a Sebastian para que ele pudesse trabalhar numa avaliação psicológica do suspeito? Num «per?l»? Poderia muito bem ser.
Mas, nesse caso, porque lhe pedira ele para deitar fora o conteúdo da sacola?
Talvez aquilo simplesmente não se aguentasse em tribunal. Talvez não fosse su?ciente para pôr Valdemar Lithner sob custódia, prendê-lo ou lá o que era que eles faziam.
Mas se a explicação era essa, porque parecia Sebastian estar enervado com tudo aquilo? Porque não lhe contara simplesmente a verdade? Porque não lhe explicara do que se tratava nem o motivo por que já não valia a pena guardá-lo por mais tempo?
Não, isso não fazia sentido. Evidentemente que Ellinor não possuía formação jurídica, mas estava certa de que os papéis que tinha à sua frente seriam su?cientes para colocar Valdemar atrás das grades durante bastante tempo.
Portanto, devia ser outra coisa.
Será que este Lithner sabia que estava em apuros? Teria ele ameaçado Sebastian e os outros agentes, forçando-os a abandonarem o caso? Ela pensava que no dia anterior o tinha ouvido dizer «Hinde» ao telemóvel, mas também poderia ter sido «Lithner». Os nomes tinham um som parecido e não ouvira com muita atenção. E se tivesse acontecido algo a Sebastian? Era por isso que ele não voltara para casa? Interrompeu-se bruscamente. Ellinor Bergkvist não era uma mulher que se deixasse levar pela imaginação. Entre os documentos estava um pedaço de papel com um nome e um número de telemóvel; presumivelmente fora aquele homem que reunira tudo aquilo. Pegou no seu telemóvel. Não faria mal algum averiguar um pouco mais. Conhecer os factos iria tranquilizá -la.
Um homem atendeu quase de imediato.
– Sim?
– Bom dia – disse Ellinor. – Eu gostaria de falar com Trolle Hermansson.
– Quem fala? – quis saber o homem.
– O meu nome é Ellinor. Trabalho nos grandes armazéns Åhléns. Os artigos que Trolle encomendou já chegaram.
Não pôde deixar de sorrir. Aquilo era emocionante! Sebastian ?caria orgulhoso dela. Era quase como uma agente da polícia a sério.
Houve um silêncio do outro lado.
– Estou? Com quem estou a falar? – perguntou Ellinor.
– Daqui é a polícia.
– Trolle está aí?
Silêncio. Ela teve a sensação de que o homem hesitava. Tentava tomar uma decisão.
– Ele morreu.
Não estava à espera daquilo.
– Compreendo... Quando morreu?
– Há poucos dias. Por isso, acho que ninguém irá levantar o que ele encomendou.
– Não, claro que não. Obrigada. As minhas condolências – disse ela, terminando a chamada. Não se sentia nem um pouco mais calma. Muito pelo contrário. O homem que reunira a maioria daquele material que tinha à sua frente estava morto. E Sebastian dissera-lhe que destruísse tudo. Parecia que Valdemar Lithner nunca iria ser chamado a responder pelas suas transgressões. A menos que ela ajudasse Sebastian, claro.
Se Valdemar Lithner andava a ameaçar o seu homem, ela tinha de agir.
Era o mínimo que podia fazer.
Notas
[1] Arlanda é o aeroporto de Estocolmo, situado no município de Sigtuna. (N. do T.)
[2] Zona da província da Escânia, no Sul da Suécia, reputada pela sua beleza natural. (N. do T.)
[3] Bairro do centro de Estocolmo. (N. do T.)
[4] Centro cultural da Arbetarnas Blidningsförbund (Associação Educativa dos Trabalhadores), fundada em 1912. (N. do T.)
[5] Jussi Björling (1911-1960) foi um tenor sueco, reputado como um dos grandes cantores de ópera do século XX. (N. do T.)
[6] Um dos portos de Estocolmo, também conhecido pelo nome de Vertahamnen. (N. do T.)
[7] Universidade Técnica Chalmers, sediada em Gotemburgo. (N. do T.)
[8] Cidade da província da Escânia, no Sul da Suécia. (N. do T.)
[9] Grande parque situado em Östermalm, Estocolmo. (N. do T.)
[10] Subúrbio no Sudoeste de Estocolmo. (N. do T.)
[11] Auto-estrada que vai de Solna a Estocolmo, onde atravessa a zona ocidental da cidade. (N. do T.)
[12] Empresa sueca que abrange vários ramos de actividade – venda de veículos, aluguer de veículos e postos de abastecimento de combustível. (N. do T.)
[13] As duas ilhas Essingen (Lilla e Stora) estão situadas no Centro de Estocolmo e ambas são atravessadas pela E4. (N. do T.)
[14] Trata-se de uma referência a Södermalm, bairro do Sul de Estocolmo que abrange a ilha com o mesmo nome. (N. do T.)
[15] Conhecida marca escandinava de facas de mato. (N. do T.)
[16] Estação europeia de rádio e televisão que opera nos países escandinavos, bem como na Dinamarca e na Bulgária. (N. do T.)
[17] O primeiro-ministro sueco Olof Palme foi morto a tiro à saída de um cinema em Estocolmo, a 28 de Fevereiro de 1986, e até hoje o seu assassino não foi descoberto. (N. do T.)
[18] O mercado tradicional do bairro de Östermalm, inaugurado em 1888. (N. do T.)
[19] Empresa sueca responsável pelo motor de pesquisa homónimo [eniro.se]. (N. do T.)
Michael Hjort e Hans Rosenfeldt
O melhor da literatura para todos os gostos e idades