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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O DOMADOR DE LEÕES - P.2 / Camilla Läckberg
O DOMADOR DE LEÕES - P.2 / Camilla Läckberg

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

TERESE TINHA TELEFONADO a toda a gente que lhe ocorrera. Aos escassos parentes de Lasse, quase todos afastados. Aos velhos amigos de bebedeira, aos amigos mais recentes, aos ex-colegas, aos membros da congregação cujo nome conhecia.

 

Os remorsos provocavam-lhe náuseas. No dia anterior, quando preparava bolos de canela na cozinha, sentiu algo que se assemelhava a alegria só de pensar na decisão de o deixar. Não se preocupou até às sete e meia da tarde, quando viu que não voltava para casa para jantar e não atendia o telemóvel. Lasse entrava e saía quando queria e, habitualmente, quando não estava em casa, estava na igreja. Mas desta vez isso não aconteceu. Não o tinham visto na igreja durante todo o dia, o que a deixava bastante preocupada. Porque Lasse não tinha outro sítio para onde ir.

 

O carro também não se encontrava lá. Terese pediu o do vizinho emprestado e passou metade da noite à procura de Lasse, embora a Polícia lhe tivesse dito que trataria do assunto no dia seguinte. Afinal, Lasse era adulto e podia ter-se ido embora voluntariamente. Mas Terese não podia continuar em casa, morta de preocupação e sem fazer nada. Enquanto Tyra ficava com os meninos, percorreu todos os recantos de Fjällbacka e foi mesmo a Kville, onde ficava a sede da congregação, mas não viu o Volvo Combi vermelho em parte nenhuma. Pelo menos, a Polícia levara o seu telefonema a sério, graças a Deus. Talvez por o agente ter ouvido o pânico com que lhe dera parte do desaparecimento. Mesmo nos períodos em que bebia mais, Lasse acabava sempre por voltar para casa à noite. E há muito que não tocava numa gota de álcool.

 

 

 

 

O agente que foi a casa de Terese para falar com ela fez perguntas sobre a bebida, como era de esperar. Era uma cidade pequena e toda a gente conhecia o passado de Lasse. Terese assegurou-lhe com firmeza que Lasse não voltara a beber. Mas, pensando bem, sim, tinha notado alguma alteração nos últimos meses. Não era apenas a obsessão pela religião, havia algo mais. De vez em quando apanhara-o a sorrir com satisfação para si mesmo, como se guardasse um segredo fantástico, alguma coisa que não queria que Terese descobrisse.

 

Não sabia como explicar algo tão vago à Polícia, pois até a ela lhe parecia um disparate. Mesmo assim, de repente, viu tudo com clareza: Lasse tinha um segredo. E o que Terese mais temia naquela manhã, enquanto a luz do sol afugentava a escuridão da cozinha, era a certeza de que esse segredo o levara pelo caminho errado.

 

Marta orientava Valiant pelo caminho do bosque. Um bando de pássaros levantou voo, assustado, quando passaram por eles, e Valiant reagiu, trotando para fora do bosque com nervosismo. Marta apercebeu-se de que o animal queria galopar, mas obrigou-o a seguir a passo naquela manhã agradável. Estava frio, mas Marta não o sentia. O corpo do animal aquecia-a, além disso, sabia que devia usar várias camadas de roupa e assim vestida podia montar ao ar livre durante várias horas, mesmo no inverno.

 

O treino de Molly no dia anterior tinha corrido bem. A filha continuava a evoluir como cavaleira e, na verdade, Marta sentia-se ligeiramente orgulhosa. De resto, era sempre Jonas quem fazia alarde da filha, mas talvez fosse tão óbvio de onde vinha aquele talento que era como se a elogiasse a ela.

 

Esporeou Valiant e saboreou a sensação quando o cavalo começou a mover-se mais depressa. Nunca se sentia tão livre como quando montava um cavalo. Era como se durante o resto do tempo estivesse a representar um papel e apenas fosse ela própria no relacionamento com o animal.

 

A morte de Victoria tinha mudado tudo. Sentia-o no ambiente da escola de equitação, sentia-o em casa e até mesmo em Einar e em Helga. As raparigas andavam taciturnas e amedrontadas. Logo após o minuto de silêncio, algumas dirigiram-se ao picadeiro. Ela e Jonas levaram umas quantas no carro. Permaneceram em silêncio no banco traseiro, sem falar, sem rir, sem as discussões do costume. E a rivalidade entre elas parecia ter piorado. Brigavam pelos cavalos, lutavam pela atenção de Marta e fulminavam Molly com olhares que transbordavam inveja por saberem que a sua posição nunca estaria ameaçada.

 

Era um espetáculo fascinante. Às vezes não conseguia resistir à tentação de o fomentar. Permitia que alguma montasse repetidamente um dos cavalos preferidos, durante duas ou três aulas dedicava mais tempo do que necessário a uma delas e ignorava as outras... E funcionava sempre. Surgiam logo as intrigas e o descontentamento começava a borbulhar. Marta observava os olhares, os grupinhos e isso divertia-a. Era facílimo tirar proveito da insegurança daquelas miúdas e prever as suas reações.

 

Sempre tivera aquela capacidade, e talvez por isso tivesse achado tudo tão insuportável quando a filha era pequena. As crianças pequenas são imprevisíveis e não se conseguia fazer com que se adaptassem aos nossos desejos tão facilmente. Em vez disso, Marta fora forçada a adaptar-se às necessidades de Molly. De repente, a filha queria dormir ou comer, ou então desatava a chorar sem qualquer motivo lógico. Realmente, ser mãe não era pera doce. À medida que Molly crescia, era mais fácil controlá-la, prever as suas reações e atitudes. E quando descobriu o talento que tinha para os cavalos, começou a ter outro tipo de relacionamento com ela. Como se fossem realmente da mesma família e Molly não fosse um ser estranho que um dia tinha estado alojado nas suas entranhas.

 

Valiant já galopava, veloz e feliz. Marta conhecia tão bem o caminho que se atreveu a deixar o animal ir tão depressa como queria. Um ramo ou outro obrigavam-na a baixar a cabeça e, às vezes, quando passavam com um som retumbante, caíam-lhes em cima punhados de neve. Os flocos redemoinhavam em torno dos cascos, e cavaleira e cavalo pareciam estar a cortar o vento sobre as nuvens. Marta arfava e sentia o esforço de cada músculo. As pessoas que não montavam pensavam que aquilo não era mais do que ir calmamente sentado no dorso de um cavalo. Não sabiam que montar fazia trabalhar todos os músculos. Depois de uma boa corrida, Marta costumava sentir um cansaço maravilhoso.

 

Naquela manhã, Jonas saíra por causa de uma urgência. O telemóvel estava ligado vinte e quatro horas por dia e tinham-lhe telefonado de uma das quintas das redondezas pouco antes das cinco. Uma vaca que estava muito mal. Alguns minutos depois, Jonas já estava vestido e sentado ao volante. Marta despertou ao ouvir o telemóvel e ficou em silêncio na penumbra a observar Jonas de costas enquanto se vestia. Depois de tantos anos juntos e de a conhecer tão bem, continuava a sentir vergonha diante de Marta. Viverem juntos nem sempre era fácil. Tinham as suas desavenças e havia momentos em que ela sentia vontade de lhe gritar e de lhe bater, tal era a frustração. Mas a certeza de que tinham sido feitos um para o outro persistia sempre.

 

Houve um tempo em que receou o pior. Nunca o reconheceu, nem sequer queria pensar nisso, mas a cavalo, quando a liberdade permitia que o corpo e os sentidos se descontraíssem, era invadida por aqueles pensamentos. Tinham estado a ponto de perder tudo: a relação, a existência, a lealdade e a união que sentiam desde que se viram pela primeira vez.

 

Havia um toque de loucura naquele amor. Tinha as margens carbonizadas por aquele fogo sempre ardente e ambos sabiam como mantê-lo vivo. Haviam explorado o seu amor de todas as maneiras possíveis, tinham-no levado ao limite para ver se aguentava. E aguentara. Só uma vez estivera prestes a quebrar-se. Porém, no último momento, tudo se resolveu e voltou ao normal. O perigo passou e Marta decidiu pensar o menos possível naquilo. Era o melhor.

 

Esporeou um pouco mais Valiant e, quase sem ruído, atravessaram o bosque a toda a velocidade. Em direção ao nada, em direção a tudo.

 

Patrik sentou-se na cozinha e aceitou de bom grado o café que Erica lhe oferecia. O jantar romântico da noite anterior teve um final dececionante quando Terese Hansson telefonou, preocupadíssima com Lasse, o marido. Patrik foi ter com Terese e esteve a falar com ela. Quando regressou a casa, Erica já se deitara e não havia vestígios do jantar. Tinha deixado a cozinha reluzente, provavelmente de raiva por Kristina e Gunnar irem tomar café lá a casa no domingo.

 

Olhou de relance para o quadro encostado à parede. Estava ali há um ano, pelo menos, e ninguém o pendurava. Se não tratasse de o fazer, Bob o Construtor não tardaria a aparecer de martelo na mão. Patrik sabia que era infantil, mas não lhe agradava nada a ideia de haver outro homem a consertar as coisas lá em casa. Devia ser ele a fazê-lo ou, pelo menos, pagar a alguém para o fazer, acrescentou rapidamente, consciente das suas limitações em termos de bricolage.

 

– Esquece o quadro – disse Erica, sorrindo. Era como se lhe tivesse lido a mente. – Posso tirá-lo daí se não quiseres que outra pessoa o pendure.

 

Por um momento, Patrik ponderou se havia de aceitar ou não a proposta, mas depois sentiu-se ridículo.

 

– Não, deixa-o estar. Já tive mais do que tempo para o pendurar na parede e não o pendurei, assim como há uma série de coisas que já devia ter feito e não fiz. Por isso vou conter-me e fazer cara alegre se alguém me der uma ajuda.

 

– Bem, não és a única pessoa que podia ter pendurado o quadro e consertado o resto. Eu também sei manejar um martelo. Mas temos dado prioridade a outras coisas. Ao trabalho, aos filhos, até a nós, acho eu. Portanto, que diferença faz um quadro por pendurar?

 

Erica sentou-se sobre os joelhos de Patrik e abraçou-o. Patrik fechou os olhos e inspirou com prazer aquele cheiro de que não se cansava. Claro que a vida quotidiana tinha feito o seu trabalho e destruído a paixão voraz do princípio, mas na sua opinião tinha sido substituída por algo melhor. Um amor agradável, firme e forte, e havia momentos em que sentia a mesma atração por Erica tal como naqueles tempos de paixão. Só que agora acontecia mais espaçadamente, o que, quem sabe, fora a forma encontrada pela natureza para tentar que a humanidade fizesse algo útil em vez de passar o dia na cama.

 

– Ontem estava cheia de planos... – Erica mordiscou-lhe o lábio.

 

Apesar de estar completamente desfeito depois do trabalho intenso dos últimos dias e de uma noite em que lhe custara conciliar o sono, Patrik sentiu que uma parte dele reagia.

 

– Ah, sim... Pois, e eu... – começou a dizer.

 

– Que estão a fazer? – perguntou uma voz vinda da porta, e ambos se sobressaltaram, embaraçados. Era óbvio que, numa casa cheia de crianças pequenas, não podiam estar para ali a apalpar-se como se não fosse nada.

 

– Nada, estávamos a dar um beijinho – disse Erica, levantando-se.

 

– Blhec, que nojo – disse Maja, desatando a correr de volta para o quarto.

 

Erica serviu-se de um café.

 

– Daqui a dez anos já não vai pensar assim.

 

– Pois, nem fales nisso. – Patrik estremeceu de terror. Se pudesse, pararia o tempo para que Maja nunca se tornasse adolescente.

 

– Que vais fazer agora? – perguntou Erica, bebendo um pouco de café encostada à bancada. Patrik bebeu uns quantos goles antes de responder. A cafeína mal surtia efeito na sua fadiga.

 

– Acabo de falar com a Terese, e o Lasse continua desaparecido. Ela passou a noite preocupada com ele e parece-me que é altura de intervir.

 

– Nenhuma teoria acerca do que possa ter acontecido?

 

– Não, nem por isso. Mas a Terese disse-me que nos últimos meses tem notado alguma coisa estranha nele, algo diferente, embora não saiba dizer exatamente o quê.

 

– Não faz ideia? A maior parte das mulheres consegue cheirar se há uma amante, problemas de jogo...

 

Patrik abanou a cabeça.

 

– Não, mas vamos fazer uma ronda de perguntas entre os conhecidos dele e pedi ao Malte, o gerente do banco, que me disponibilize os extratos da conta para ver se fez algum pagamento ou alguma compra que explique onde se meteu. O Malte disse-me que ia já dar um salto ao banco para tratar disso. – Patrik olhou para o relógio. Eram quase nove da manhã e a luz começava a aparecer no horizonte. Detestava o inverno, com aquelas noites intermináveis.

 

– Uma das vantagens de viver numa cidade tão pequena é que o gerente pode «dar um salto ao banco» na maior das calmas.

 

– Sim, felizmente isso simplifica o processo. E espero que nos dê alguma pista. Segundo a Terese, é o Lasse que trata das finanças da família.

 

– Vão verificar se pagou alguma coisa com o cartão de crédito ou se levantou algum dinheiro de um Multibanco desde que desapareceu, certo? Talvez se tenha fartado e decidido apanhar o primeiro avião para Ibiza. Já agora, também deviam dar uma vista de olhos aos voos. Não seria a primeira vez que um pai de família desempregado foge do rame-rame diário.

 

– Podes crer, a mim já me passou pela cabeça muitas vezes... E nem sequer estou desempregado. – Patrik sorriu e ganhou uma palmada no ombro.

 

– Não eras capaz! Tu, à solta em Magaluf a beber shots com miúdas.

 

– Adormeceria, mal bebesse o primeiro. E telefonava aos pais para irem recolher as respetivas filhas.

 

Erica deu uma risada.

 

– Um ponto para ti. Mesmo assim vai dar uma olhadela aos voos, nunca se sabe. Nem toda a gente está tão cansada como tu ou tem o teu sentido ético.

 

– Já pedi ao Gösta para tratar disso e o Malte vai dar-me as informações sobre os eventuais pagamentos com cartão e levantamentos. Além disso, assim que pudermos, vamos verificar as chamadas que fez e recebeu, como é lógico. Por isso podes estar descansada, tenho tudo sob controlo – disse, piscando-lhe o olho. – Quais são os teus planos para hoje?

 

– A Kristina e o Gunnar vêm cá mais logo. E, a menos que tenhas alguma coisa contra, pensava deixar os miúdos com eles enquanto trabalho um pouco. Estou mesmo com vontade de avançar. Senão, não vou conseguir descobrir porque é que a Laila se interessou tanto pelos desaparecimentos. Se encontrar a ligação, pode ser que acabe finalmente por contar-me o que aconteceu quando o Vladek foi assassinado. Tenho sempre a sensação de que quer contar-me alguma coisa, mas que não sabe como ou não se atreve.

 

A luz da manhã já inundava a cozinha. O cabelo louro de Erica resplandecia contra a janela e Patrik pensou de novo que amava muito a mulher. Ainda mais em momentos como aquele, em que irradiava entusiasmo e paixão pelo seu trabalho.

 

– Além disso, o facto de ter levado o carro indica que o Lasse já não está por estas bandas – disse Erica, mudando de assunto.

 

– Talvez. A Terese tem andado à procura dele, mas há muitos sítios onde pode ter deixado o carro. Algum caminho no meio do bosque, por exemplo. Ou, se o tiver estacionado na garagem de alguma quinta, não será fácil de encontrar. Esperemos que a população colabore, assim será mais fácil encontrá-lo, se é que ainda está na região.

 

– Que carro é?

 

Patrik levantou-se depois de terminar o café.

 

– Um Volvo Combi vermelho.

 

– Como aquele? – perguntou Erica, apontando para o grande parque de estacionamento que havia junto à praia, em frente à casa.

 

Patrik olhou na direção assinalada pelo dedo de Erica. Ficou boquiaberto. Ali estava ele, o carro de Lasse.

 

Gösta desligou o telefone. Malte ligara a informá-lo de que tinha acabado de enviar um fax para a esquadra com a documentação do banco, por isso levantou-se para o ir buscar. Ainda achava estranho que alguém pudesse enfiar um papel numa máquina e que esse mesmo papel aparecesse noutra máquina instalada noutro sítio como que por magia.

 

Soltou um grande bocejo. Gostava de ter ficado a molengar na cama um pouco mais. Teria mesmo tirado o domingo de folga, mas a situação não permitia tais luxos. Aos poucos, os documentos foram aparecendo e, quando parecia que já não havia mais, juntou-os e dirigiu-se à cozinha. Era mais agradável do que o seu gabinete.

 

– Queres que te dê uma ajuda? – perguntou Annika, que se encontrava já sentada à mesa da cozinha.

 

– Sim, agradeço. – Gösta dividiu o maço de documentos ao meio e entregou-lhe uma metade.

 

– Que disse o Malte acerca da utilização do cartão?

 

– Que há dois dias que o Lasse não o utiliza e que também não fez nenhum levantamento num Multibanco.

 

– Está bem. Sondei as companhias aéreas, como me pediste. Mas não parece provável que o Lasse tenha ido para o estrangeiro sem utilizar o cartão, a menos que tivesse bastante dinheiro com ele.

 

Gösta começou a folhear os documentos que estavam em cima da mesa.

 

– Bem, podemos ver nos extratos se levantou alguma quantia considerável nos últimos dias.

 

– A verdade é que não pareciam ter margem de manobra para isso – salientou Annika.

 

– Não, claro, o Lasse estava desempregado e não creio que a Terese ganhe muito. O mais certo era andarem mal de finanças. Ou não... – disse Gösta, espantado ao ver as cifras que tinha à frente.

 

– Que foi? – Annika inclinou-se para ver a que se referia Gösta. Este virou o documento na direção da secretária e assinalou a última linha do extrato.

 

– Esta agora! – disse Annika, espantada.

 

– Há cinquenta mil coroas22 nesta conta.

 

– Como raio podem ter tanto dinheiro? – Gösta examinou rapidamente os lançamentos do extrato bancário. – Há bastantes depósitos. Em dinheiro, ao que parece. Cinco mil coroas de cada vez, uma vez por mês.

 

– Deve ter sido o Lasse quem fez os depósitos, uma vez que era ele o responsável pelas finanças da família.

 

– Sim, sem dúvida. Mas teremos de perguntar à Terese.

 

– Onde terá ido buscar este dinheiro? Ao jogo?

 

Gösta tamborilava na mesa.

 

– Nunca ouvi dizer que o Lasse jogava, não me parece. Teremos de inspecionar o computador dele para ver se jogava pela Internet. Mas, nesse caso, é óbvio que nos extratos deviam constar depósitos realizados por alguma empresa de apostas. Também podem ser pagamentos por algum trabalho que fez, algo pouco honesto que não tenha podido contar à Terese.

 

– Isso não te parece um pouco rebuscado? – Annika franziu a testa.

 

– Tendo em conta que desapareceu, não. Além disso, a Terese diz ser possível que o Lasse lhe estivesse a esconder alguma coisa.

 

– Bem, não vai ser fácil descobrir de que trabalho se trata. É impossível localizar a fonte desse dinheiro.

 

– Claro, primeiro temos de descobrir quem lhe terá encomendado o trabalho. Depois podemos investigar a conta dessa pessoa e ver se se há levantamentos das mesmas quantias.

 

Gösta reviu todas as cifras, os óculos na ponta do nariz, mas não encontrou nada de anormal. Sem contar com os depósitos em dinheiro, a família mal conseguia sustentar-se até ao fim do mês. Gösta reparou que pareciam controlar muito os gastos.

 

– É um bocado preocupante ter desaparecido sem ter levantado nenhum desse dinheiro – comentou Annika.

 

– Sim, também acho. Não augura nada de bom.

 

Ouviu-se um telemóvel a tocar na cozinha. Gösta pegou no seu, viu no ecrã que era Patrik e atendeu imediatamente.

 

– Olá. O quê? Onde? Okay, vamos já para aí.

 

Desligou, levantou-se e guardou o telemóvel.

 

– O carro de Lasse está em Sälvik. E há sangue na praia.

 

Annika assentiu lentamente. Não parecia surpreendida.

 

Tyra observava a mãe da porta da cozinha. Ficava com o coração partido ao vê-la tão preocupada. Estava para ali, como que paralisada, sentada na cozinha desde que voltara para casa depois de ter passado praticamente toda a noite à procura de Lasse.

 

– Mãe – disse Tyra, mas não obteve qualquer reação. – Mãe!

 

Terese olhou para cima.

 

– Diz, minha querida?

 

Tyra aproximou-se de Terese, sentou-se ao seu lado e deu-lhe a mão. Ainda estava fria.

 

– Como estão os miúdos? – perguntou Terese.

 

– Estão bem. Foram brincar para casa do Arvid. Ouve, mãe...

 

– Sim, desculpa, querias dizer-me alguma coisa. – Terese pestanejou com cansaço. Mal conseguia manter os olhos abertos.

 

– Queria mostrar-te uma coisa, anda.

 

– Ah, sim? – Terese ergueu-se e seguiu Tyra até à sala de estar.

 

– Descobri isto há algum tempo. E não tenho... Não sabia se havia ou não de contar-te.

 

– O quê? – Terese olhou-a com ar desconfiado. – Tem alguma coisa que ver com Lasse? Porque, se tiver, tens de contar-me imediatamente.

 

Tyra assentiu devagar. Depois ganhou coragem.

 

– O Lasse tem duas bíblias, mas só lê uma delas. Achava estranho porque é que nunca utilizava a outra. E um dia resolvi folheá-la. – Tyra tirou uma das bíblias da prateleira e abriu-a. – Olha.

 

O interior era oco; era um esconderijo.

 

– Que é isto...? – disse Terese.

 

– Descobri este esconderijo há alguns meses e, de vez em quando, vinha cá ver. Às vezes havia dinheiro e era sempre a mesma quantia. Cinco mil coroas.

 

– Não percebo. Onde é que o Lasse foi desencantar tanto dinheiro? E porque é que o escondia?

 

Tyra abanou a cabeça. Sentiu formar-se um nó no estômago.

 

– Não sei, mas devia ter-te contado. E se lhe aconteceu alguma coisa que tem que ver com o dinheiro? A culpa é minha, porque se eu te tivesse dito, podia ser que... – Tyra não conseguiu conter as lágrimas.

 

Terese deu-lhe um abraço e confortou a filha, acariciando-a.

 

– A culpa não é tua, compreendo perfeitamente que não tenhas dito nada. Eu tinha a sensação de que o Lasse me estava a esconder alguma coisa e de certeza que tem que ver com esse dinheiro, mas ninguém poderia prever o que ia acontecer. E nós nem sequer sabemos se realmente aconteceu alguma coisa. Pode ter tido uma recaída e estar para aí caído nalgum lado, bêbedo. Se for isso, a Polícia não tarda a encontrá-lo.

 

– Nem tu acreditas nisso, mãe... – soluçou Tyra, apoiando-se no ombro de Terese.

 

– Então, então, não sabemos nada e é um disparate estarmos para aqui a especular. Vou já telefonar à polícia e contar-lhes do dinheiro, para ver se isso os ajuda a descobrir alguma coisa. E ninguém te vai recriminar por nada. Foste leal ao Lasse, não querias causar-lhe problemas sem necessidade e isso parece-me a atitude correta. Estamos combinadas? – Terese envolveu-lhe o rosto entre as mãos.

 

Tyra tinha as faces a arder e a frescura das mãos da mãe soube-lhe bem. Terese beijou-a na testa e foi telefonar. Tyra ficou sozinha a limpar as lágrimas. Depois foi atrás da mãe. Mas ainda não tinha chegado à cozinha quando a ouviu gritar.

 

 

Mellberg olhou para o fundo do buraco da borda do cais.

 

– Bem, já o encontrámos.

 

– Ainda não sabemos se é ele – disse Patrik. Estava a alguns passos de distância do local, aguardando a chegada dos técnicos. Mellberg, por seu lado, não se preocupara com isso.

 

– O carro do Lasse está estacionado lá em cima. E aqui há sangue. É claro como a água, mataram-no e atiraram-no para este buraco. Não creio que o voltemos a ver até tornar a emergir na primavera. – Mellberg deu mais alguns passos em direção à borda do cais e Patrik mordeu a língua.

 

– Torbjörn vem a caminho, seria bom andarmos o mínimo possível por aí até chegar – disse em tom suplicante.

 

– Não precisa de me dizer isso. Sei perfeitamente como mover-me num local de crime – disse Mellberg. – Julgo que você ainda nem era nascido quando levei a cabo a minha primeira investigação, por isso devia mostrar algum respeito por...

 

Mellberg deu um passo atrás e, quando se apercebeu de que tinha o pé no ar, trocou a expressão altiva por outra de surpresa. Com um grande estrondo, o superintendente caiu dentro do buraco e arrastou consigo mais um pedaço de gelo.

 

– Nãooo! – gritou Patrik, desatando a correu na direção de Mellberg.

 

Por pouco não teve um ataque de pânico quando se deu conta de que não havia nenhuma boia salva-vidas ou qualquer outra ferramenta em redor, por isso ponderou a possibilidade de se lançar no gelo e tentar içar Mellberg. Porém, quando estava prestes a fazê-lo, o chefe conseguiu agarrar-se ao corrimão das escadas e subir pelos seus próprios meios.

 

– Porra, está mesmo fria! – Ofegante, Mellberg deixou-se cair nas pranchas cobertas de neve. Patrik observava pesarosamente aquele desastre. Torbjörn seria um milagreiro se conseguisse encontrar alguma coisa útil naquele local de crime depois de Mellberg lhe ter passado por cima.

 

– Venha, Bertil, tem de se aquecer. Venha para minha casa – disse, e puxou Mellberg para o ajudar a levantar-se. Pelo canto do olho viu Gösta e Martin a correrem para a praia enquanto ia empurrando Mellberg.

 

– Mas que...? – Gösta olhava com perplexidade para o chefe que, encharcado, passou por ele a tiritar antes de começar a subir a encosta íngreme que conduzia ao parque de estacionamento e à casa de Patrik.

 

– Não digam nada – suspirou Patrik. – Esperem que Torbjörn e a sua equipa cheguem. E avisem-nos de que o local do crime não está nas melhores condições. Terão sorte se conseguirem encontrar uma pista que seja.

 

 

Jonas tocou cuidadosamente à campainha. Nunca tinha estado em casa de Terese e teve de verificar a morada na Internet.

 

– Olá, Jonas. – Tyra ficou surpreendida ao abrir a porta, mas convidou-o a entrar.

 

– A tua mãe está?

 

Tyra assentiu e apontou para o interior da habitação. Jonas olhou em redor. Estava tudo limpo e o ambiente era acolhedor, despretensioso, tal como imaginara. Entrou na cozinha.

 

– Olá. – Constatou que Terese também ficara surpreendida ao vê-lo. – Só queria saber como tu e a Tyra estavam. Sei que há muito tempo que não nos vemos, mas as raparigas da escola de equitação contaram-me o que aconteceu ao Lasse. Disseram-me que estava desaparecido.

 

– Já não está. – Terese tinha os olhos inchados de tanto chorar e falava com voz sumida num tom monótono.

 

– Encontraram-no?

 

– Não, só encontraram o carro. Mas o mais provável é que esteja morto.

 

– A sério? Não queres chamar cá alguém? Se quiseres, eu posso tratar disso, não sei, um pastor, algum amigo... – Jonas sabia que os pais de Terese tinham morrido há alguns anos e também sabia que não tinha irmãos.

 

– Obrigada, a Tyra está comigo. E os miúdos estão em casa de uns amigos. Ainda não sabem de nada.

 

– Okay. – Jonas deixou-se ficar na cozinha sem saber o que fazer. – Preferes que me vá embora? Claro que devem querer ficar sozinhas.

 

– Não, deixa-te estar – disse Terese, apontando para a cafeteira. – Há café e tenho leite no frigorífico. Lembro-me de que tomavas o café com leite, não era?

 

Jonas sorriu.

 

– Tens boa memória – disse, servindo-se de uma chávena e deitando café noutra para Terese. Depois sentou-se à frente dela.

 

– A polícia tem ideia do que poderá ter acontecido?

 

– Não. E também não quiseram adiantar-me muito pelo telefone. Apenas que tinham motivos para acreditar que Lasse está morto.

 

– É costume comunicarem a morte de um familiar por telefone?

 

– Não, eu tinha ligado ao Patrik Hedström por... por outro assunto. E percebi pela voz dele que tinha acontecido alguma coisa; por isso, acho que se sentiu compelido a dizer-me. Mas claro que iam mandar cá um agente.

 

– Como está a Tyra a reagir?

 

Terese demorou algum tempo a responder.

 

– Bem, digamos que o Lasse e a Tyra não eram muito ligados – acabou por responder. – Nos anos em que era alcoólico estava sempre ausente e depois foi meter-se numa coisa que às vezes ainda nos parecia mais estranha.

 

– Parece-te que o que aconteceu pode ter algo que ver com esse novo interesse do Lasse? Ou estará antes relacionado com os velhos hábitos?

 

Terese olhou-o, intrigada.

 

– Como assim?

 

– Então, algum desentendimento na congregação. Ou então retomou o contacto com os amigos de bebedeira e meteu-se em alguma coisa ilegal, não sei. Alguém que lhe quisesse mal...

 

– Não, custa-me a crer que tenha voltado ao mundo da bebida. Diga-se o que se disser, a igreja mantinha-o afastado do álcool. E nunca lhe ouvi uma palavra negativa que fosse sobre qualquer pessoa da congregação. Só lhe davam amor e perdão, como ele estava sempre a dizer. – Terese deixou escapar um soluço. – Mas eu não lhe tinha perdoado. Tinha decidido deixá-lo, mas agora que partiu tenho saudades dele. – Não conseguiu continuar a conter o choro e Jonas deu-lhe um guardanapo de papel que tirou do suporte que havia em cima da mesa. Terese limpou as faces.

 

– Mãe? Estás bem? – Tyra apareceu à porta e olhava para a mãe com ar preocupado.

 

Terese respondeu-lhe entre lágrimas com um sorriso forçado.

 

– Sim, filha, não te preocupes, está tudo bem.

 

– Bem, talvez não tenha sido muito boa ideia ter vindo – disse Jonas. – Mas pensei que talvez pudesse ajudar...

 

– Foste muito simpático, foi um gesto muito bonito – disse-lhe Terese.

 

Nesse momento, alguém bateu à porta e ambos se sobressaltaram. A campainha produzira um som estridente e voltou a tocar enquanto Tyra ia abrir a porta. Ao ouvir que alguém entrava na cozinha, Jonas virou-se para olhar e deparou-se com outra cara surpreendida.

 

– Olá, Gösta – disse apressadamente. – Estava mesmo de saída. – Jonas levantou-se e olhou para Terese. – Se houver alguma coisa que eu possa fazer, diz-me. Basta ligares-me.

 

Terese respondeu-lhe com um olhar eloquente e agradeceu-lhe.

 

Quando Jonas se dirigia à porta, sentiu uma mão no braço. Baixinho, para Terese não ouvir, Gösta disse:

 

– Preciso de falar consigo sobre uma coisa. Passo em sua casa quando me tiver despachado daqui.

 

Jonas assentiu. A garganta secou-lhe. O tom de Gösta não lhe agradara.

 

Erica não conseguia deixar de pensar em Peter, o menino com quem a mãe de Laila ficou e que depois desapareceu. Porque terá acolhido Peter e não a irmã? E o rapaz ter-se-á ido embora voluntariamente depois da morte da avó?

 

Havia demasiadas interrogações em torno da figura de Peter e já era altura de esclarecer pelo menos algumas delas. Erica folheou o bloco até chegar às páginas com os contactos de todos os envolvidos. Tentava sempre ser muito metódica e anotá-los na mesma página. O único problema era aquela letra, que às vezes nem ela própria conseguia decifrar.

 

Do rés do chão veio o riso alegre dos filhos, que brincavam com Gunnar. Apesar de o conhecerem há muito pouco tempo, gostavam do amigo da avó, como Maja lhe chamava. As crianças estavam bem; por isso, Erica podia trabalhar um pouco de consciência tranquila.

 

O olhar deteve-se na janela. Tinha visto Mellberg chegar de carro, travar em derrapagem e depois sair e dirigir-se meio a correr à praia. Mas, por mais que esticasse o pescoço, não conseguia ver a beira-mar e tinham-lhe dado ordens estritas para se manter longe do local enquanto Patrik não chegasse a casa e lhe contasse o que tinham encontrado lá em baixo.

 

Voltou a concentrar-se no bloco de notas. Junto ao nome da irmã de Laila rabiscara um número de telefone de Espanha. Esticou o braço em busca do telemóvel enquanto semicerrava os olhos para decifrar o que tinha escrito. O último número era sete ou um? Suspirou e pensou que, no pior dos casos, teria de fazer várias tentativas. Decidiu tentar primeiro o sete e marcou o número.

 

Ouviu-se um sinal abafado. O tom de chamada era diferente quando se ligava para o estrangeiro e Erica sempre se interrogara por que seria.

 

– Estou? – respondeu uma voz masculina em espanhol.

 

– Hello. I would like to speak to Agneta, please. Is she at home? – perguntou Erica. Na escola tinha estudado francês como segunda língua, pelo que o seu conhecimento de espanhol era inexistente.

 

– May I ask who is calling? – perguntou o homem num inglês perfeito.

 

– My name is Erica Falck – disse e, hesitando por um instante, acrescentou: – I’m calling about your sister23.

 

Fez-se um longo silêncio do outro lado da linha. Então, a voz abandonou o inglês e disse com algum sotaque:

 

– Sou o Stefan, o filho da Agneta. Não me parece que a minha mãe queira falar sobre a Laila. Perderam o contacto há muitos anos.

 

– Eu sei, a Laila disse-me. Mas, para mim, seria muito importante falar com a sua mãe. Pode dizer-lhe que é sobre o Peter. – Novo silêncio. Era capaz de sentir a aversão através da linha telefónica. – Nunca se questiona como está a família que tem na Suécia? – perguntou Erica, incapaz de se conter.

 

– Que família? – disse Stefan. – Na Suécia só resta a Laila e eu nunca sequer a vi em pessoa. A minha mãe já se tinha mudado para Espanha quando nasci, por isso não temos qualquer contacto com esse ramo da família. E acho que a minha mãe prefere assim.

 

– Seja como for, não se importava de perguntar à sua mãe se pode falar comigo? – ouviu-se a implorar ao jovem.

 

– Está bem, mas não tenha muitas esperanças.

 

Stefan pousou o telefone na mesa e Erica ouviu-o discutir com alguém entre sussurros. Pensou que a pessoa falava bem sueco. Tinha um sotaque muito suave e muito agradável, no qual se distinguia o ténue cecear que sabia existir no espanhol.

 

– Pode falar uns minutos com a minha mãe. Vou passar-lha.

 

Erica estremeceu ao voltar a ouvir a voz de Stefan, embrenhada como estava nas suas reflexões linguísticas.

 

– Estou? – disse uma voz de mulher.

 

Erica concentrou-se e apresentou-se brevemente, disse-lhe que estava a escrever um livro sobre o caso da irmã e que lhe agradeceria muito se a deixasse fazer-lhe algumas perguntas.

 

– Não sei em que posso contribuir para o seu livro. Eu e a Laila interrompemos o nosso relacionamento há muitos anos e não sei nada acerca dela nem da família. Mesmo que quisesse, não poderia ajudá-la.

 

– A Laila diz exatamente o mesmo, mas as perguntas que eu queria fazer-lhe são sobre o Peter e esperava que me pudesse dizer alguma coisa.

 

– Ah, o que quer saber? – perguntou resignadamente Agneta.

 

– Bem, um dos factos que me intrigam é a vossa mãe não ter ficado também a tomar conta da Louise, apenas do Peter. Não teria sido mais natural que a avó tivesse ficado com os dois netos, em vez de os separar? Louise foi parar a uma família de acolhimento.

 

– É que a Louise precisava de... cuidados especiais. E a minha mãe não podia dar-lhos.

 

– Sim, mas o que tinha Louise de tão especial? Foi por ter ficado muito traumatizada? E nunca suspeitaram de que o Vladek maltratava a família? A sua mãe vivia aqui, em Fjällbacka; por isso, penso que deve ter imaginado que alguma coisa não batia certo, não é? – As perguntas brotavam-lhe dos lábios como uma torrente e, num primeiro momento, não ouviu nada mais do que silêncio do outro lado.

 

– Não quero mesmo falar acerca disto. Aconteceu há muitos anos. Foi uma época má e prefiro pô-la para trás das costas. – A voz de Agneta soava fraca e entrecortada através da ligação telefónica. – A nossa mãe fez o que pôde para proteger o Peter, é o que posso dizer.

 

– E a Louise? Porque não a protegeu também?

 

– Era o Vladek quem se encarregava da Louise.

 

– Porque era rapariga e por isso lhe calhou a pior parte? Porque é que lhe chamava, simplesmente, a Rapariga? Será que o Vladek odiava as mulheres e tratava melhor o filho? Laila também apresentava ferimentos... – Erica continuou a bombardeá-la com perguntas, receosa de que, a qualquer momento, Agneta terminasse a conversa.

 

– Era... complicado. Não posso responder às suas perguntas. E não tenho nada mais a dizer.

 

Agneta parecia estar prestes a desligar e Erica apressou-se a mudar de assunto.

 

– Compreendo que seja doloroso falar acerca de tudo isto, mas o que lhe parece que aconteceu quando a sua mãe morreu? De acordo com o relatório da Polícia, houve um assalto violento. Eu li-o e falei com o agente responsável pela investigação. Mas pergunto-me se é possível. Parece muita coincidência terem ocorrido dois homicídios na mesma família, embora com um intervalo tão grande entre os dois.

 

– Pode ter acontecido. Houve um assalto, tal como a Polícia constatou. Alguém, provavelmente várias pessoas, entrou na casa durante a noite. A minha mãe acordou, os ladrões ficaram nervosos e espancaram-na até à morte.

 

– Com um atiçador?

 

– Sim, julgo que, com a pressa, deve ter sido o que estava mais à mão.

 

– Não havia impressões digitais, nenhum vestígio, nada. Deviam ser uns ladrões muito cuidadosos. Mas é um bocado estranho que, apesar de serem tão cuidadosos e de terem planeado tudo tão bem, tenham ficado nervosos quando a dona da casa acordou.

 

– A Polícia não estranhou. Até tinham a teoria de que o Peter estava envolvido, mas depois descartaram-na completamente.

 

– E, depois, o Peter desapareceu. Qual é a sua opinião sobre o que aconteceu?

 

– Quem sabe? Neste momento pode estar nalguma ilha das Caraíbas. É uma ideia reconfortante. Mas não me parece. Julgo que não conseguia suportar o trauma da infância nem o facto de outra pessoa de quem gostava ter sido assassinada.

 

– Quer dizer... Quer dizer que, na sua opinião, o Peter suicidou-se?

 

– Sim – disse Agneta. – Infelizmente, acredito que tenha sido isso que aconteceu, embora deseje estar enganada. Bem, desculpe, mas não tenho mais tempo. O Stefan e a mulher estão mesmo a sair e eu vou ficar a tomar conta dos filhos deles.

 

– Só mais uma pergunta – implorou Erica. – Como era a sua relação com a sua irmã? Davam-se bem? – Queria terminar com uma pergunta neutra para que Agneta não se recusasse a falar com ela se voltasse a telefonar-lhe.

 

– Não – respondeu Agneta depois de uma longa pausa. – Éramos muito diferentes e não tínhamos muito em comum. E eu não queria envolver-me na vida da Laila e nos caminhos que seguiu. Nenhum dos suecos com quem me relaciono por cá sabe que eu sou irmã da Laila e preferia que continuasse assim. Por isso, não quero que escreva sobre mim nem quero que conte a ninguém que conversámos uma com a outra, nem sequer a Laila.

 

– Prometo – disse Erica. – Uma última pergunta: a Laila tem recortado e guardado todas as notícias que têm saído nos jornais sobre raparigas que desapareceram na Suécia nos últimos dois anos. Uma delas aqui, em Fjällbacka. Apareceu esta semana, mas foi atropelada por um carro e morreu. No entanto, apresentava ferimentos graves provocados durante o tempo em que a mantiveram presa. Tem alguma ideia do motivo pelo qual a Laila poderá estar interessada em tais casos? – Erica calou-se; só se ouvia a respiração de Agneta.

 

– Não – respondeu ela laconicamente, afastando-se imediatamente do telefone e gritando algo em espanhol. – Tenho de ir tomar conta dos meus netos. Mas, como disse, não quero que me relacione com este assunto de forma alguma.

 

Erica voltou a garantir a Agneta que não a nomearia e desligou a chamada.

 

Ia passar a limpo o que tinha acabado de rabiscar quando se ouviu um borburinho vindo da entrada. Levantou-se apressadamente da cadeira, saiu a correr do escritório e olhou por cima do corrimão das escadas que conduziam ao rés do chão.

 

– Mas que raio...? – disse, e continuou a correr. Patrik estava lá em baixo, a despir a roupa a um Bertil Mellberg irado, com os lábios roxos e a tremer de frio.

 

Martin entrou na esquadra e bateu com os pés no chão para sacudir a neve das botas. Quando passou diante da receção, Annika olhou por cima das armações de plástico dos óculos para trabalhar ao computador.

 

– Como correu?

 

– Hum, mais ou menos como corre sempre que Mellberg está presente.

 

Ao ver o olhar interrogativo de Annika, Martin contou-lhe, com a calma possível, as aventuras de Mellberg.

 

– Meu Deus! – Annika abanava a cabeça. – Aquele homem nunca deixa de nos surpreender. Que disse o Torbjörn?

 

– Que, infelizmente, não vai ser fácil conseguir pegadas nem nada do género depois de o Bertil ter andado a passear pelo local do crime. Mas conseguiu uma amostra de sangue. Vai compará-lo com o ADN dos filhos, assim saberemos se é do Lasse.

 

– Bem, já é alguma coisa. Achas que o Lasse está morto? – perguntou Annika.

 

– Havia muito sangue no cais e também no gelo ao lado do buraco, mas nenhum rasto de sangue ia do mar até terra, por isso, o mais provável é que o sangue seja do Lasse.

 

– É uma tristeza. – Os olhos de Annika encheram-se de lágrimas. Sempre fora muito sensível e, desde que ela e Lennart, o marido, adotaram uma menina chinesa, tornara-se ainda mais sensível às desgraças.

 

– Sim, nunca pensámos que fosse acabar tão mal. Pensei que o íamos encontrar caído para aí algures, perdido de bêbedo.

 

– Que destino terrível. Pobre família. – Annika ficou em silêncio por um momento, mas depois acalmou-se. – É verdade, consegui localizar todos os investigadores que iriam participar na tal reunião a realizar em Gotemburgo. Passei a informação ao Patrik e, claro, ao Mellberg. O que é que tu e o Gösta vão fazer? Também vão participar?

 

Martin tinha começado a transpirar por causa do aquecimento e despiu o blusão. Ao passar a mão pelo cabelo ruivo, sentiu-a húmida.

 

– Eu até gostava. E julgo que o Gösta também, mas não podemos deixar a esquadra deserta. Sobretudo agora que também temos um homicídio para investigar.

 

– Parece-me uma atitude sensata. E, por falar em coisas sensatas, a Paula está outra vez lá em baixo, no arquivo. Podias ir ver se está tudo bem com ela?

 

– Claro, vou já – disse Martin, mas antes passou pelo gabinete para deixar os agasalhos.

 

Chegado à cave, descobriu que a porta do arquivo estava aberta, mas bateu discretamente algumas vezes, porque Paula parecia completamente embrenhada no conteúdo das caixas que tinha no chão.

 

– Ainda não te rendeste? – perguntou Martin quando entrou no arquivo.

 

Paula ergueu os olhos e pôs uma pasta de lado.

 

– Já vi que não vou encontrar nada, mas pelo menos fiquei um bocado sozinha. Quem diria que um recém-nascido dava tanto trabalho? Com Leo foi tudo completamente diferente.

 

Paula fez menção de se levantar e Martin deu-lhe a mão.

 

– Sim, já tinha percebido que a Lisa é um pouco especial. Deves tê-la deixado com a Johanna, não é?

 

Paula abanou a cabeça.

 

– A Johanna levou o Leo. Iam andar de trenó, por isso, a Lisa ficou em casa com a avó. – Paula respirou fundo e endireitou as costas. – Então e que tal vos correram as coisas? Disseram-me que encontraram o carro do Lasse e que havia sangue no local.

 

Martin contou-lhe o que acabara de dizer a Annika, falando-lhe do sangue no buraco e do banho involuntário de Mellberg.

 

– Estás a gozar! Como é possível ser tão estúpido? – Paula olhava para Martin, perplexa. – Mas o Bertil está bem? – perguntou depois, e Martin sorriu para dentro ao ver que, apesar de tudo, Paula se preocupava com Mellberg. Sabia quanto o superintendente gostava do filho de Paula e de Johanna, e o homem tinha qualquer coisa que fazia com que as pessoas se afeiçoassem a ele, apesar das complicações que estava sempre a arranjar.

 

– Sim, sim, não lhe aconteceu nada. Agora está a descongelar em casa do Patrik.

 

– Bem, a verdade é que, tratando-se do Bertil, acontece sempre alguma coisa. – Paula sorriu. – Quando chegaste, estava a pensar fazer uma pausa. Estão a doer-me muito as costas por ter estado sentada no chão. Fazes-me companhia?

 

Já iam a subir as escadas a caminho da cozinha quando Martin se deteve e disse:

 

– Vou num instante ao meu gabinete. Tenho de ver uma coisa.

 

– Okay, vou contigo – disse Paula, começando a andar atrás do colega.

 

Martin vasculhou por entre os papéis e Paula pôs-se a olhar para a prateleira enquanto observava o colega pelo canto do olho. Como era costume, a secretária de Martin estava um caos.

 

– Tens saudades do trabalho, não é? – perguntou Martin.

 

– Podes crer. – Paula inclinou a cabeça de lado para ler os títulos. – Ouve, leste estes livros todos? Livros sobre psicologia, técnicas de criminologia, caramba, até tens aqui... – Paula interrompeu-se a meio da frase e olhou para a coleção de livros que Martin tinha impecavelmente ordenada na prateleira.

 

– Sou mesmo tonta. Não foi no arquivo que vi aquela história da língua, foi ali – Paula apontou para os livros e Martin virou-se, olhando com surpresa para a estante. Seria possível?

 

Gösta entrou no pátio da escola de equitação. Era sempre difícil falar com os familiares das vítimas. Além disso, naquele caso, não era capaz de afirmar taxativamente que Lasse morrera. Havia indícios evidentes de que algo lhe acontecera e havia grandes probabilidades de já não estar vivo, mas Terese teria de continuar na incerteza durante mais algum tempo.

 

Estranhou ver Jonas em casa de Terese. Que teria lá ido fazer? Além disso, percebeu que ficara preocupado quando lhe disse que queria falar com ele. E isso era bom. Se Jonas estava nervoso, mais fácil seria para Gösta levá-lo a confessar. Ou, pelo menos, era isso que a experiência lhe dizia.

 

– Toc, toc – disse em voz alta, ao mesmo tempo que batia à porta de casa de Jonas e de Marta. Tinha esperança de conseguir falar a sós com Jonas, por isso, se Marta e a filha estivessem em casa, ia propor-lhe que fossem até ao consultório.

 

Jonas abriu-lhe a porta. Tinha o rosto ensombrado, como uma película cinzenta, que Gösta não lhe tinha visto antes.

 

– Está sozinho? Queria falar consigo sobre um assunto.

 

Fez-se silêncio durante alguns segundos enquanto Gösta esperava nas escadas. Em seguida, Jonas convidou-o a entrar com um gesto resignado, como se já soubesse o que o agente queria. E talvez assim fosse. Devia saber que era apenas uma questão de tempo até que aquilo chegasse aos ouvidos da Polícia.

 

– Entre – disse. – Estou sozinho.

 

Gösta olhou em redor. Tinham decorado a casa sem sensibilidade nem carinho e não ficara nada acolhedora. Era a primeira vez que ia a casa da família Persson e não sabia o que esperava encontrar, mas pensara que as pessoas bonitas viviam em ambientes bonitos.

 

– O que aconteceu ao Lasse é horrível – afirmou Jonas, gesticulando em direção ao sofá.

 

Gösta sentou-se.

 

– Sim, e nunca é agradável dar notícias destas. A propósito, porque é que estava em casa da Terese?

 

– Há muitos anos, fomos namorados. Desde então perdemos o contacto, mas quando soube que o Lasse tinha desaparecido, pensei que talvez houvesse alguma forma de ajudar. A filha da Terese frequenta a escola de equitação e ficou muito perturbada com o que aconteceu à Victoria. Só queria que soubessem que podem contar comigo, agora que estão a sofrer tanto.

 

– Compreendo – respondeu Gösta. Depois ficaram em silêncio. Apercebendo-se de que Jonas esperava tensamente pelo que tinha para lhe dizer, acrescentou: – Ora bem, queria fazer-lhe uma pergunta acerca da Victoria. Queria saber como era a vossa relação.

 

– Certo – afirmou Jonas, hesitante. – Não há muito a dizer sobre isso. A Victoria era uma das alunas da Marta. Uma das raparigas que estão sempre na escola de equitação – acrescentou, retirando uma partícula invisível das calças de ganga.

 

– Pelo que ouvi, essa não é toda a verdade – disse Gösta sem desviar o olhar de Jonas.

 

– Como assim?

 

– O Jonas fuma?

 

Jonas olhou para Gösta e franziu a testa.

 

– Porque pergunta? Não, não fumo.

 

– Muito bem. Voltemos à Victoria. Chegou aos meus ouvidos que tinham... uma relação mais íntima.

 

– Quem lhe disse isso? Eu só falava com ela. Se calhasse encontrá-la no estábulo, talvez trocássemos algumas palavras, tal como acontece com as outras raparigas.

 

– Conversámos com o Ricky, o irmão da Victoria, que nos disse, sem qualquer hesitação, que a Victoria e o Jonas tinham uma relação íntima. No mesmo dia em que Victoria desapareceu, o Ricky viu-vos a discutir à entrada da escola de equitação. Qual foi o motivo da discussão?

 

Jonas abanou a cabeça com veemência.

 

– Nem sequer me lembro de termos conversado nesse dia. Seja como for, de certeza que não foi uma discussão. Às vezes, quando fazem alguma coisa que não devem nos estábulos, chamo a atenção das raparigas, e com certeza que foi algo do género. Nem sempre gostam que lhes chame a atenção. Estamos a falar de adolescentes, não é verdade?

 

– Sim, mas se não me engano, acabou de afirmar que só tinha contacto com as raparigas no estábulo – disse Gösta, recostando-se no sofá.

 

– Claro que tenho algum contacto com elas. Afinal de contas sou coproprietário da escola de equitação, apesar de ser a Marta a geri-la. Às vezes dou uma ajuda em aspetos práticos e, quando vejo que há alguma coisa que não está bem, digo, como é lógico.

 

Gösta refletia. Teria Ricky exagerado o que viu? No entanto, embora não tenha sido uma discussão, Jonas deveria lembrar-se do facto em si.

 

– Tenha ou não sido uma discussão, o Ricky diz que lhe pediu satisfações. Viu-vos ao longe, aproximou-se a correr, desatou a gritar com ambos e, depois de a Victoria se ter ido embora, continuou a gritar só consigo. A sério que não se lembra de nada?

 

– Pois não, não sei realmente onde terá o irmão da Victoria ido buscar isso...

 

Gösta apercebeu-se de que não conseguiria nada, por isso decidiu avançar por outro caminho, embora não tivesse ficado minimamente convencido com a resposta de Jonas. Porque haveria Ricky de ter mentido, afirmando que confrontara Jonas?

 

– Além disso, a Victoria tinha recebido cartas ameaçadoras, que indicavam que mantinha efetivamente um relacionamento com alguém – disse.

 

– Cartas? – Jonas olhou para o agente com ar de estar a ser assaltado por um turbilhão de pensamentos.

 

– Sim, cartas anónimas que lhe enviavam para casa.

 

Jonas parecia genuinamente surpreendido. Mas claro que isso não significava nada. Não era a primeira vez que Gösta se deixava enganar pela aparência de honestidade.

 

– Não sei nada sobre nenhuma carta anónima. E repito que não tinha nenhuma relação com a Victoria. Para começar, sou casado. E feliz no casamento, por sinal. Além disso, a Victoria era uma criança. O Ricky está redondamente enganado.

 

– Bem, muito obrigado pelo tempo que me dispensou – disse Gösta enquanto se levantava. – Como deve compreender, temos de levar a sério este género de informações, e vamos investigar mais aprofundadamente, assim como verificar o que outras pessoas possam ter a dizer sobre isto.

 

– Não pode andar para aí a perguntar uma coisa dessas, pois não? – Jonas também se pôs de pé. – Sabe como são as pessoas por estes lados. Basta que lhes façam a pergunta para acreditarem que é verdade. Não percebe que vão espalhar-se rumores de consequências desastrosas para a escola de equitação? Isto é um mal-entendido, uma mentira. Por amor de Deus, a Victoria tinha a idade da minha filha. Afinal, por quem me tomam? – Jonas tinha o rosto desfigurado pela raiva e não a expressão afável e sorridente que o caracterizava.

 

– Prometo-lhe que seremos discretos – disse Gösta.

 

Jonas passou a mão pelo cabelo.

 

– Discretos, diz você? Isto é um absurdo!

 

Gösta dirigiu-se ao vestíbulo e, quando abriu a porta, deu de caras com Marta, que estava mesmo ali, nas escadas. Teve um sobressalto.

 

– Olá – disse Marta. – Você por aqui?

 

– Bem... estava a verificar alguns pormenores com Jonas, só isso.

 

– Gösta queria fazer-me mais algumas perguntas sobre o assalto! – gritou Jonas da sala de estar.

 

Gösta assentiu.

 

– Sim, algumas coisas que me esqueci de perguntar no outro dia.

 

– Muito bem. É verdade, que horror, já soube aquilo do Lasse – disse Marta. – Como está a Terese? O Jonas disse que, apesar de tudo, parecia bastante calma.

 

– Bem... – Gösta não sabia o que havia de responder.

 

– Que aconteceu? O Jonas disse-me que encontraram o carro do Lasse.

 

– Infelizmente, não posso falar sobre uma investigação em curso – afirmou Gösta, saindo de casa. – Desculpe, tenho de voltar para a esquadra.

 

Segurou o corrimão enquanto descia as escadas. Na sua idade, corria o risco de não voltar a levantar-se se escorregasse e caísse no chão.

 

– Se pudermos ajudar em alguma coisa, digam-nos! – gritou Marta nas costas de Gösta enquanto o velho agente se dirigia ao carro.

 

Gösta respondeu acenando com a mão. Antes de se sentar no carro olhou para a casa, onde Marta e Jonas se perfilavam como sombras do lado de lá da janela da sala de estar. No fundo, tinha a certeza de que Jonas tinha mentido sobre a discussão e talvez também acerca do relacionamento com Victoria. Havia algo que soava a falso na sua declaração, mas não seria fácil demonstrá-lo.

 

22 Cerca de 5305 euros. Uma coroa sueca vale cerca de 0,106 euros. (N. do T.)

23 Em inglês no original: «Olá. Gostaria de falar com Agneta, por favor. Ela está em casa?»; «Posso saber quem fala?» e «Estou a ligar por causa da sua irmã». (N. do T.)

 

UDDEVALLA, 1973

VLADEK ERA CADA VEZ MAIS IMPREVISÍVEL. A CARPINTARIA FALIRA E PASSAVA OS DIAS EM CASA COMO UM ANIMAL ENJAULADO. FALAVA MUITO SOBRE A SUA ANTIGA VIDA, O CIRCO E A FAMÍLIA. ERA CAPAZ DE PASSAR HORAS A FALAR DAQUELES ASSUNTOS E TODA A FAMÍLIA O OUVIA.

ÀS VEZES, LAILA FECHAVA OS OLHOS E TENTAVA IMAGINAR TUDO O QUE VLADEK CONTAVA. OS SONS, OS CHEIROS, AS CORES, TODAS AS PESSOAS QUE DESCREVIA COM AMOR E SAUDADE. DOÍA-LHE OUVI-LO FALAR DE UMA NOSTALGIA ATRAVÉS DA QUAL SE VISLUMBRAVA O DESESPERO.

AO MESMO TEMPO, AQUELES MOMENTOS PROPORCIONAVAM A LAILA ALGUM ALÍVIO, AINDA QUE TEMPORÁRIO. POR ALGUMA RAZÃO, TUDO SE APAZIGUAVA E O CAOS CESSAVA. TODOS SE SENTAVAM A OUVIR VLADEK COMO SE ESTIVESSEM EM TRANSE, DEIXANDO-SE ENFEITIÇAR PELAS SUAS HISTÓRIAS, QUE DAVAM A LAILA UMA OPORTUNIDADE PARA DESCANSAR.

TUDO O QUE VLADEK DESCREVIA SOAVA COMO SAÍDO DO MUNDO DE FANTASIA DOS CONTOS FANTÁSTICOS. FALAVA DE HOMENS CAPAZES DE CAMINHAR POR UMA CORDA ESTICADA A GRANDE ALTURA ACIMA DO SOLO, DE PRINCESAS DE CIRCO CAPAZES DE FAZER O PINO SOBRE O DORSO DE UM CAVALO, DE PALHAÇOS QUE FAZIAM TODA A GENTE RIR QUANDO LANÇAVAM ÁGUA UNS AOS OUTROS, DE ZEBRAS E ELEFANTES QUE FAZIAM COISAS DAS QUAIS NINGUÉM OS TERIA JULGADO CAPAZES.

E, ACIMA DE TUDO, FALAVA DOS LEÕES. ANIMAIS PERIGOSOS E FORTES QUE LHE OBEDECIAM ATÉ QUANDO PESTANEJAVA. ANIMAIS QUE TREINARA DESDE QUE ERAM FILHOTES E QUE FAZIAM O QUE LHES PEDIA NA PISTA ENQUANTO O PÚBLICO CONTINHA A RESPIRAÇÃO E ESPERAVA QUE AQUELAS FERAS SE LANÇASSEM SOBRE ELE A QUALQUER MOMENTO E O ESQUARTEJASSEM VIVO.

HORA APÓS HORA, VLADEK FALAVA-LHES DAS PESSOAS E DOS ANIMAIS DO CIRCO; DA SUA FAMÍLIA, QUE TINHA PERMITIDO QUE A EMOÇÃO E A MAGIA PERMANECESSEM VIVAS DURANTE GERAÇÕES. PORÉM, QUANDO VLADEK PARAVA DE FALAR, DEVOLVIA-A A UMA REALIDADE QUE TERIA PREFERIDO ESQUECER COMPLETAMENTE.

O PIOR ERA A INCERTEZA. ERA COMO SE UM LEÃO FAMINTO ANDASSE DE UM LADO PARA O OUTRO À ESPERA DA PRÓXIMA PRESA. AS AGRESSÕES E OS ATAQUES ERAM SEMPRE INESPERADOS, VINHAM SEMPRE DE UMA DIREÇÃO DIFERENTE DA QUE LAILA ESPERAVA. E, COMO ESTAVA CADA VEZ MAIS CANSADA, CADA VEZ BAIXAVA MAIS A GUARDA.

 

– VALHA-ME DEUS, QUE ESTÃO A FAZER? – Anna riu-se com gosto ao ouvir o que tinha acontecido a Mellberg, que acabara por conseguir aquecer-se e pôde ir com Patrik para a esquadra. Olhou com curiosidade para Gunnar, que Erica tinha descrito ao telefone com todos os pormenores. Teve boa impressão dele quando ele lhes abriu a porta e cumprimentou primeiro as crianças. Agora, Adrian estava, radiante, a ajudá-lo a pendurar um quadro na cozinha.

 

– Então e como estão? – perguntou num tom mais sério. – Aquilo do Lasse é terrível. Fazem alguma ideia do que poderá ter acontecido?

 

– Acabam de encontrá-lo. Quer dizer, encontraram o carro e o que parece ter sido o palco de um homicídio. Os mergulhadores estão a caminho, mas a questão é saber se vão conseguir encontrar o cadáver ou se terá sido arrastado pela corrente.

 

– Levei as miúdas ao picadeiro e a Tyra estava lá. Muito simpática. E a Terese também parece ser boa pessoa, embora só tenha falado com ela uma vez. Coitadas...

 

Olhou para os bolos de canela que Kristina tinha acabado de pôr na mesa, mas não tinha apetite nem vontade de comer doces.

 

– Ouve lá, tu andas a comer como deve ser? – perguntou Erica em tom severo. Desde pequenas que Erica fazia mais de mãe de Anna do que de irmã mais velha e não conseguia abandonar completamente aquele papel. Mas Anna tinha deixado de oferecer resistência. Sem as atenções de Erica não teria tido forças para ultrapassar todas as dificuldades da vida. A sua querida irmã estivera sempre a seu lado nos bons e nos maus momentos e, nessas alturas, só conseguia sentir-se feliz em casa e esquecer um pouco os remorsos.

 

– Estás com má cara – prosseguiu Erica, e Anna sorriu sem entusiasmo.

 

– Estou bem, mas a verdade é que ultimamente tenho andado uma desgraça. Calculo que seja psicológico, mas nem por isso tenho mais apetite.

 

Kristina mantinha-se atarefada frente à bancada da cozinha, embora Erica lhe tivesse perguntado várias vezes por que não se sentava. Virou-se e examinou atentamente Anna.

 

– Sim, a Erica tem razão. A Anna está com má cara. Devia comer e cuidar melhor de si. Em momentos de crise é essencial comer como deve ser e dormir bem. Tem comprimidos para dormir? Se não tem, posso dar-lhe alguns dos meus. Sem dormir, nada funciona, acho que isso é mais do que óbvio.

 

– Obrigada, é muito atencioso da sua parte, mas não tenho nenhuma dificuldade em conciliar o sono.

 

Era mentira. Anna passava quase todas as noites às voltas na cama, olhando para o teto e tentando impedir que as memórias aflorassem. Mas não queria cair na armadilha dos comprimidos e tentar acalmar com químicos uma angústia cuja causa era ela própria. Talvez tenha havido uma certa dose de autoflagelação naquela atitude, ou um desejo de purgar os pecados.

 

– Não sei se acredito em ti, mas não te vou estar para aqui a massacrar... – disse Erica, mas Anna sabia que era precisamente o que a irmã pretendia fazer. Esticou o braço em busca de um bolo de canela para a tranquilizar e Erica fez o mesmo.

 

– Isso, come, que no inverno dá jeito ter uma camada extra de gordura – disse Anna com um gesto de encorajamento.

 

– Então, então – disse Erica, apontando-lhe com um bolo de canela e fazendo menção de o lançar à irmã.

 

– Por amor de Deus, vocês não têm cura... – Kristina suspirou e começou a limpar o frigorífico. Erica parecia querer impedi-la, mas compreendeu que não poderia ganhar aquela batalha.

 

– É verdade, como está a correr o livro? – perguntou Anna, esforçando-se por engolir um bocado de bolo, que mais não fez do que crescer-lhe na boca.

 

– Não sei. Há tantas coisas estranhas neste caso que não sei por onde começar.

 

– Conta – pediu Anna, que bebeu um gole de café para ver se assim conseguia livrar-se da bola de farinha que se formara na boca. Boquiaberta, ficou a ouvir Erica pô-la a par dos acontecimentos dos últimos dias.

 

– Não sei como, mas tenho a impressão de que a história da Laila está relacionada com o desaparecimento das raparigas. Caso contrário, porque iria a Laila guardar todos aqueles recortes? E porque é que concordou encontrar-se comigo no primeiro dia em que os jornais escreveram sobre o desaparecimento da Victoria?

 

– Não, de certeza que há uma ligação. Laila sabe alguma coisa que não quer contar-nos. Ou então quer, mas é como se não pudesse. Acho que é por isso que acabou finalmente por concordar encontrar-se comigo, para ter alguém com quem desabafar. Mas não consegui fazer com que se sinta suficientemente segura para contar-me o seu segredo. – Erica passou a mão pelo cabelo num gesto de frustração.

 

– Que horror, é um milagre que metade do que está aqui dentro não tenha rastejado cá para fora – disse Kristina com a cabeça enfiada no frigorífico. Erica olhou para Anna como que a dizer que não pensava reagir a provocações e que, em vez disso, se limitaria a aceitar aquela intervenção de salvamento.

 

– Talvez tenhas de investigar mais por conta própria – sugeriu Anna. Já desistira de qualquer tentativa de engolir o bolo de canela e só estava a beber café.

 

– Eu sei, mas enquanto a Laila não disser nada, é impossível. Todos os envolvidos já desapareceram. A Louise morreu, tal como a mãe da Laila. O Peter está desaparecido e é provável que também esteja morto. A irmã da Laila não parece saber nada. Não há ninguém com quem possa conversar, já que tudo aconteceu dentro daquelas quatro paredes.

 

– Como morreu a Louise?

 

– Afogada. Ela e outra rapariga, que tinha sido acolhida pela mesma família, um dia foram tomar banho ao mar e nunca mais voltaram para casa. Encontraram a roupa delas em cima de uma rocha, mas os cadáveres nunca apareceram.

 

– Falaste com a família de acolhimento? – perguntou Kristina por detrás da porta do frigorífico. Erica teve um sobressalto.

 

– Bem, não, por acaso não me ocorreu. Não, o casal que a acolheu não tinha nenhuma relação com o que aconteceu à família Kowalski.

 

– Mas pode ser que a Louise lhes tenha contado ou a uma das outras crianças que o casal acolhia.

 

– Sim, realmente... – disse Erica. De repente, sentiu-se um bocado tonta ao constatar que tivera de ser a sogra a sugerir algo tão óbvio.

 

– A mim parece-me que a Kristina teve uma excelente ideia – apressou-se a dizer Anna. – Onde vivem?

 

– Em Hamburgsund, por isso podia ir lá falar com eles, claro.

 

– Nós ficamos com os miúdos, podes ir lá agora – disse Kristina.

 

Anna concordou.

 

– Sim, eu também posso ficar um bocado. Os primos adoram estar juntos e eu não tenho pressa de voltar para casa.

 

– De certeza? – Erica já se tinha levantado. – Mas acho que era melhor telefonar-lhes primeiro para ver se não há problema que apareça, não é?

 

– Anda, vai lá – disse Anna, encorajando-a com a mão. – De certeza que arranjo alguma coisa para fazer nesta casa, com a confusão que para aqui vai...

 

Erica agradeceu-lhe o comentário com um gesto inequívoco do dedo médio.

 

Patrik estava à frente do quadro branco da cozinha. Havia demasiadas pontas soltas e sentia a necessidade de estruturar tudo o que era preciso fazer. Queria chegar à reunião em Gotemburgo devidamente preparado e, na sua ausência, deviam prosseguir com a investigação da provável morte de Lasse. Estava tenso e disse a si próprio que devia descontrair os ombros e respirar fundo. Tinha apanhado um susto dois anos antes, quando o corpo lhe enviou um sinal e teve um colapso. Passara a ser um sinal de alarme e, de vez em quando, por mais que gostasse do seu trabalho, a energia esgotava-se.

 

– Enfrentamos duas investigações – disse. – E pensei que podíamos começar pelo Lasse – prosseguiu, escrevendo «LASSE» em letras maiúsculas, que sublinhou.

 

– Estive a falar com o Torbjörn, que fez o que pôde – informou Martin.

 

– Sim, vamos ver o que conseguem descobrir... – Patrik tinha dificuldade em controlar-se ao pensar como o chefe tinha contaminado o local do crime.

 

Por sorte tinha ido para casa, enfiar-se na cama; por isso, pelo menos naquele dia, não poderia continuar a sabotar a investigação.

 

– A Terese deu-nos autorização para tirarmos uma amostra de sangue do filho mais velho. Quando a tivermos, o laboratório poderá compará-lo com o sangue recolhido no cais – acrescentou Martin.

 

– Ótimo. Não podemos garantir que seja o sangue do Lasse que vamos encontrar, mas sugiro que, por agora, partamos do princípio de que o Lasse foi morto ali, junto ao cais.

 

– Concordo – disse Gösta.

 

Patrik olhou para os outros, estavam todos de acordo.

 

– Pedi ao Torbjörn para examinar igualmente o carro do Lasse – disse Martin. – Para o caso de o Lasse e o seu assassino terem chegado juntos ao local do crime. Os técnicos também registaram algumas marcas de pneus lá em cima, no parque de estacionamento. Era bom verificá-las para as comparar, caso seja preciso provar que esteve lá alguém.

 

– Bem pensado – disse Patrik. – Ainda não nos enviaram as listas de chamadas para o telemóvel do Lasse, mas tivemos melhor sorte com o banco, não foi, Gösta?

 

Gösta aclarou a garganta.

 

– Sim, a Annika e eu revimos os extratos bancários do Lasse, que tem feito depósitos de cinco mil coroas. E, de acordo com a Terese, a filha encontrou um esconderijo em casa onde o Lasse guardava cinco mil coroas de vez em quando. Suponho que as punha lá enquanto não tinha oportunidade de as depositar no banco.

 

– E a Terese fazia alguma ideia de onde o Lasse conseguia o dinheiro? – perguntou Martin.

 

– Não. E julgo que estava a dizer a verdade.

 

– A Terese suspeitava de que o Lasse lhe escondia alguma coisa – disse Patrik. – O que temos de descobrir é de onde veio o dinheiro e que serviço prestava para o receber.

 

– O facto de ser uma quantia tão redonda e sempre a mesma poderá indiciar chantagem, não? – perguntou Paula da entrada da cozinha.

 

Annika tinha-lhe perguntado se não preferia sentar-se à mesa com eles, mas Paula disse-lhe que devia estar perto da porta para sair imediatamente se Lisa acordasse e Rita a chamasse.

 

– Como assim? – perguntou Gösta.

 

– Se fosse dinheiro de jogo, por exemplo, as quantias não seriam sempre iguais. O mesmo poderia dizer-se no caso de ser dinheiro de algum trabalho extra, que lhe pagassem à hora, porque o mais provável era que os montantes não fossem fixos. No caso de chantagem, no entanto, seria mais lógico que lhe pagassem o mesmo regularmente.

 

– Talvez a Paula tenha razão – disse Gösta. – É possível que o Lasse estivesse a chantagear alguém e que essa pessoa se tenha fartado.

 

– A questão é descobrir do que se tratava. Parece que a família não sabe de nada, por isso precisamos de expandir o círculo e falar com os conhecidos do Lasse para ver se alguém está a par de alguma coisa. – Patrik refletiu por um momento e acrescentou: – Também teremos de perguntar aos vizinhos, que são os meus, claro, nas casas da estrada que conduz a Sälvik. Verifiquem se viram algum carro dirigir-se à zona de banhos do cais. Nesta época do ano há pouco trânsito, mas nunca faltam pessoas curiosas por detrás das cortinas.

 

Anotou as tarefas no quadro. Era preciso distribuí-las; porém, de momento, o mais urgente era pôr por escrito tudo o que havia para fazer.

 

– Okay, vamos então a casa da Victoria. Amanhã teremos uma reunião conjunta em Gotemburgo, com todos os envolvidos. Ah, Annika, obrigado por teres organizado tudo.

 

– De nada. Não deu muito trabalho. Toda a gente se mostrou interessada. Aliás, até se interrogavam porque é que isto nunca tinha ocorrido a ninguém.

 

– Mais vale tarde do que nunca. Que novidades temos?

 

– Bem – disse Gösta –, para mim, o mais interessante é que, segundo o Ricky, o irmão da Victoria, ela teve um relacionamento com o Jonas Persson.

 

– Além do Ricky, houve mais alguém a confirmar essa informação? – perguntou Martin. – E que disse o Jonas?

 

– Não, mais ninguém. E o Jonas nega, claro. Mas creio que não está a dizer a verdade. Estava a pensar fazer algumas perguntas às raparigas da escola de equitação. Não se consegue manter completamente em segredo esse género de coisas.

 

– Também falaste com a mulher do Jonas? – perguntou Patrik.

 

– Prefiro evitar fazê-lo até sabermos mais. Se se verificasse que afinal não era verdade, ia ser uma chatice das grandes.

 

– Sim, claro, tens razão. Mas, mais cedo ou mais tarde, teremos de falar com ela.

 

Paula tossiu para chamar a atenção.

 

– Desculpem, mas não percebo muito bem que interesse tem isso para a investigação. Estamos à procura de alguém que também raptou raparigas noutras partes da Suécia, não apenas aqui, certo?

 

– Sim, mas repara – disse Patrik –, se o Jonas não tivesse álibi para o dia do desaparecimento da Victoria, poderia ter sido ele o responsável, tal como qualquer outra pessoa, não? Mas também pode acontecer que a rapariga não tivesse nenhum relacionamento com ele e sim com outra pessoa, ou seja, quem a levou. O que temos de descobrir é como é que a Victoria entrou em contacto com quem a raptou, que aspeto da vida dela a tornava vulnerável. Pode ser qualquer coisa. E sabemos que alguém estava a vigiar a casa. Se foi o raptor, podia estar a vigiá-la há já algum tempo, o que significa que pode ter feito o mesmo com as outras raparigas. É possível que haja alguma coisa na vida privada da Victoria que tenha feito com que a escolhessem.

 

– Além disso, a Victoria recebeu algumas cartas com mensagens nada agradáveis – disse Gösta, virando-se para Paula. – O Ricky encontrou-as, mas infelizmente livrou-se delas. Receava que os pais dessem com elas.

 

– Sim, claro – disse Paula. – Tem a sua lógica.

 

– Como está a questão da ponta do cigarro? – perguntou Martin.

 

– Ainda não sabemos nada – respondeu Patrik. – E, para que possa ser útil, precisamos do ADN de alguém com quem compará-la. Que mais temos? – perguntou, olhando em redor. Tinha a sensação de que as perguntas nasciam.

 

Ao ver Paula, lembrou-se repentinamente de que a colega e Martin tinham referido que queriam dizer-lhe algo na reunião. Na verdade, Martin estava impacientíssimo e Patrik fez-lhe sinal para que começasse.

 

– Ora bem – disse Martin –, a Paula fartou-se de dizer que havia alguma coisa nos ferimentos da Victoria, ou melhor, naquela questão da língua cortada, que lhe era familiar.

 

– Sim, daí as horas que passou no arquivo. – Patrik começou a ficar curioso ao ver Paula corar.

 

– Sim, mas estava enganada. O que eu procurava não estava no arquivo, embora soubesse que o tinha visto algures.

 

Paula levantou-se e pôs-se ao lado de Patrik, para que os colegas não tivessem de estar a virar a cabeça na direção da porta.

 

– E pensavas que tinha sido numa investigação antiga – disse Patrik, com esperança de que Paula não demorasse muito mais a ir direta ao assunto.

 

– Exatamente. No gabinete do Martin, quando olhei para os livros dele, percebi. Era sobre um caso que eu lera na História Criminal Nórdica.

 

Patrik sentiu o pulso acelerar.

 

– Continua – disse.

 

– Há vinte e sete anos, em maio, num sábado à noite, a jovem Ingela Eriksson, recém-casada, desapareceu de sua casa em Hultsfred. Tinha apenas dezanove anos e o marido rapidamente se tornou suspeito, uma vez que já antes fora acusado de maltratar não só várias ex-namoradas, como a Ingela. A polícia mobilizou-se em força e o desaparecimento da jovem recebeu muita atenção por parte dos média porque, naquela época, os vespertinos escreviam muito sobre violência sexual. Depois, a Ingela foi encontrada morta numa zona arborizada por detrás da casa do casal, o que se tornou na prova decisiva contra o marido. Constataram que já estava morta há algum tempo, mas o corpo encontrava-se em tão bom estado que se podia ver que a Ingela tinha sido brutalmente torturada. O marido foi condenado pelo homicídio, mas nunca deixou de afirmar que era inocente até ter morrido na prisão, cinco anos mais tarde. Foi morto por outro preso numa luta relacionada com uma dívida de jogo.

 

– E qual é a ligação? – perguntou Patrik, embora já adivinhasse o que ia ouvir.

 

Paula abriu o livro que tinha na mão e assinalou a passagem que descrevia os ferimentos de Ingela. Patrik olhou para baixo e leu-a. Eram exatamente os mesmos ferimentos apresentados por Victoria.

 

– O que é? – Gösta arrebatou-lhe o livro das mãos e leu rapidamente. – C’um caraças!

 

– Sim, no mínimo – disse Patrik. – Parece que estamos a lidar com um assassino que está ativo há muito mais tempo do que pensávamos.

 

– Ou então é um imitador – aventou Martin.

 

Ficaram todos sem palavras.

 

 

Helga olhou de soslaio para Jonas, sentado na cozinha. No andar de cima, ouvia Einar protestar e grunhir na cama.

 

– Que queria a Polícia?

 

– Nada, o Gösta queria fazer-me uma pergunta – respondeu Jonas, passando a mão pelo rosto.

 

Helga sentiu um nó no estômago. A preocupação tinha vindo a aumentar nos últimos meses e a ansiedade já era tal que quase lhe faltava o ar.

 

– Mas o quê? – insistiu.

 

– Nada de especial. Um pormenor sobre o assalto.

 

O tom áspero do filho magoou-a. Jonas não costumava ser tão frio. Embora fosse verdade que tinham um acordo e que havia certas coisas das quais não falavam, Jonas nunca tinha empregado aquele tom com ela. Helga olhou para as mãos. Estavam enrugadas e gretadas, as costas cheias de manchas. Eram as mãos de uma velha, as mãos da sua mãe. Quando teriam ficado assim? Não tinha pensado nisso até àquele momento, ali, na cozinha, enquanto o mundo que tão cuidadosamente construíra começava lentamente a desmoronar. Não podia deixar que isso acontecesse.

 

– Como está a Molly? – perguntou, mudando de assunto. Mal conseguia esconder o desgosto. Jonas não permitia a mais pequena crítica à filha, porém, às vezes, Helga sentia uma vontade terrível de passar um raspanete àquela rapariga tão mimada, fazer-lhe entender a sorte que tinha, como era privilegiada.

 

– Bem – respondeu Jonas. – Já está com melhor cara.

 

Helga sentiu uma pontada no coração. Sabia que não era razoável ter ciúmes de Molly, mas não tinha dúvida de que gostaria que Jonas olhasse para ela com o mesmo amor com que olhava para a filha.

 

– No sábado tem competição – disse ele, evitando o olhar da mãe.

 

– E vão mesmo? – perguntou Helga em tom suplicante.

 

– A Marta e eu concordámos.

 

– Marta isto, Marta aquilo! Quem me dera que nunca se tivessem conhecido. Devias ter ficado com a Terese. Era uma boa rapariga. E tudo teria sido diferente.

 

Jonas olhou para a mãe, estupefacto. Nunca a ouvira levantar a voz. Pelo menos desde miúdo. Helga sabia que devia estar calada e continuar a viver do mesmo modo que lhe permitira suportar todos aqueles anos, mas era como se uma força estranha se tivesse apoderado dela.

 

– A Marta destruiu-te a vida! Meteu-se na nossa família e alimentou-se como um parasita à tua custa, à nossa custa, ela...

 

Zás! A bofetada silenciou-a e Helga levou a mão à face. Doía-lhe muito e os olhos encheram-se de lágrimas. Não só por causa da dor. Sabia que tinha ultrapassado um limite e que não havia volta a dar.

 

Sem sequer olhar para a mãe, Jonas saiu da cozinha e, quando Helga ouviu a porta bater, soube que não podia dar-se ao luxo de continuar calada. Isso acabara.

 

 

– Vá lá, meninas, mais atenção! – A irritação propagava-se pela escola de equitação. As raparigas estavam tensas e isso era o que Marta queria. Sem receio, não aprenderiam nada de nada.

 

– Que estás a fazer, Tindra? – perguntou, olhando para a rapariga loura que estava a tentar saltar um dos obstáculos.

 

– Fanta não quer. Não para de morder o freio.

 

– Quem manda és tu, não é o cavalo. Não te esqueças disso.

 

Marta interrogava-se quantas vezes lhes teria dito aquilo. Olhou para Molly, que mantinha Scirocco completamente sob controlo. Não estava nada mal. Apesar de tudo, até estavam bem preparadas.

 

Nesse momento, Fanta ofereceu resistência pela terceira vez e Marta começou a perder a paciência.

 

– Não percebo o que se está a passar hoje. Se não se concentrarem, acabo já a aula – viu com satisfação as raparigas ficarem brancas como a cal. Abrandaram um pouco, dirigiram-se ao centro e pararam à frente de Marta.

 

Uma das raparigas tossiu um pouco.

 

– Desculpe, mas soubemos o que aconteceu ao pai da Tyra... Quer dizer, ao padrasto.

 

Portanto, aquela era a explicação para as alunas estarem tão nervosas. Devia ter imaginado, mas assim que entrava na escola de equitação, Marta esquecia o resto do mundo. Era como se todos os pensamentos e todas as memórias fossem anulados. Ficava apenas o cheiro dos cavalos, os ruídos que produziam, o respeito com que os animais a recebiam, um respeito muito maior do que o que lhe mostravam os seres humanos. E, acima de tudo, aquelas raparigas.

 

– O que aconteceu é terrível e compreendo perfeitamente que estejam tristes pela Tyra, mas esse assunto não é chamado para esta aula. Se não conseguem parar de pensar em tudo o que não está a acontecer aqui neste momento, podem desmontar e ir-se embora.

 

– A mim não me custa nada concentrar-me. Não viste quando saltámos o obstáculo mais alto? – perguntou Molly.

 

As outras raparigas não conseguiram evitar olhar para o céu. A filha de Marta não fazia absolutamente nenhuma ideia do que se podia dizer e do que apenas se podia pensar, era mais do que óbvio. Marta, porém, tinha sempre dominado aquela arte. As palavras, uma vez pronunciadas, não podiam ser retiradas; uma falsa impressão era difícil de remediar e não entendia como é que Molly podia ter tão pouco tato.

 

– E queres uma medalha ou quê? – perguntou Marta.

 

Molly ficou tristonha e Marta apercebeu-se de que as outras raparigas tentavam ocultar o seu contentamento. E isso era exatamente o que Marta queria. Molly nunca seria uma verdadeira vencedora se não nutrisse um certo desejo de vingança. Era isso que Jonas não compreendia. Fazia-lhe todas as vontades e mimava-a, dando assim cabo das hipóteses de a filha se tornar uma sobrevivente.

 

– Estou a pensar que é melhor mudares um bocado de cavalo, Molly. Já vamos ver se o treino te continua a correr bem ou se o mérito é do animal.

 

Parecia que Molly ia protestar, mas conteve-se. Claro que ainda estava a pensar na competição em que não pudera participar e não queria perder a oportunidade de participar na próxima. De momento, os pais tinham o poder de decidir por ela e Marta sabia-o.

 

– Marta? – virou-se ao ouvir a voz de Jonas vinda das bancadas. Fez-lhe um gesto para que se aproximasse e Marta apressou-se ao ver a expressão facial de Jonas.

 

– Continuem, meninas, já volto – disse às raparigas e subiu as escadas em direção a Jonas.

 

– Temos de falar sobre um assunto – disse Jonas enquanto esfregava uma mão.

 

– Não podemos deixar isso para mais logo? Estou a dar uma aula – disse Marta, embora soubesse pela cara de Jonas qual seria a resposta.

 

– Não, tem de ser agora.

 

Saíram da pista. Nas suas costas, Marta ouvia o barulho dos cavalos.

 

 

Erica virou em frente à cafetaria de Hamburgsund. O caminho desde Fjällbacka era muito bonito e tinha desfrutado de algum tempo de silêncio no carro. Quando telefonou aos Wallander a explicar-lhes o motivo da visita, a princípio hesitaram. Conversaram um com o outro durante uns segundos enquanto Erica esperava ao telefone, ouvindo o murmurar sumido. Acabaram por concordar encontrar-se com ela. Não em casa, mas num café do centro.

 

Viu-os mal entrou e aproximou-se rapidamente da sua mesa. O casal levantou-se e cumprimentou-a, um pouco envergonhado. Tony, o marido, era alto e forte, tinha tatuagens enormes na parte de dentro dos braços e vestia uma camisa de xadrez e calças de trabalho azuis. Por seu lado, a mulher, Berit, era muito baixa, embora fosse musculosa e forte, e tinha o rosto curtido.

 

– Oh, já pediram. E eu que estava a pensar convidar-vos... – disse Erica, apontando para as chávenas de café. Ao lado estava um prato com dois bolos de maçapão meio comidos.

 

– Sim, chegámos um pouco antes do tempo – disse Tony. – E não há necessidade de nos convidar.

 

– Mas de certeza que lhe apetece um café, porque não vai pedir um? – sugeriu Berit em tom amigável.

 

Erica gostou instintivamente daquelas pessoas. «Autênticas», foi a primeira palavra que lhe ocorreu para as descrever. Aproximou-se da caixa, pediu um café e um bolo com creme e foi sentar-se com eles.

 

– Já agora, porque é que quiseram que nos encontrássemos aqui? Podia ter ido de carro a vossa casa, assim era menos uma viagem que faziam – disse Erica, dando uma dentada no bolo de creme, que tinha um sabor delicioso a pastelaria acabada de fazer.

 

– Bem, pensámos que não era adequado – respondeu Berit, olhando para a toalha de mesa. – Temos a casa toda desarrumada, está um caos... Não podíamos convidar uma pessoa como a Erica com a casa naquele estado.

 

– Mas porquê? – perguntou Erica. Agora era a sua vez de se sentir mal. Detestava a sensação de ser tratada de forma diferente, como se fosse mais do que os outros apenas porque de vez em quando aparecia na televisão e nos jornais.

 

– Que queria saber sobre a Louise? – perguntou Tony, dando-lhe a oportunidade de ultrapassar aquela situação embaraçosa.

 

Erica olhou para Tony com alívio e, antes de responder, bebeu um gole de café. Era forte e muito saboroso.

 

– Ora bem, a primeira coisa que gostaria de saber é porque acolheram Louise e não o irmão, que ficou com a avó.

 

Berit e Tony entreolharam-se para ver quem respondia à pergunta. Acabou por ser Berit a fazê-lo.

 

– A verdade é que nunca soubemos ao certo porque é que a avó não ficou com os dois netos. Talvez fosse demasiado trabalho para ela. Além disso, a Louise tinha tido pior sorte do que o irmão. Seja como for, telefonaram-nos da câmara municipal a avisar que uma menina com cerca de sete anos precisava urgentemente de um novo lar e que tinha sofrido um trauma. Trouxeram-na diretamente do hospital e, depois, a assistente social deu-nos mais pormenores acerca das circunstâncias.

 

– Como estava a Louise quando chegou a vossa casa?

 

Tony cruzou as mãos sobre a mesa e inclinou-se. Olhou fixamente para um ponto distante, como se tivesse viajado no tempo até ao dia em que tinham acolhido Louise.

 

– Estava tão delgada que parecia um palito e tinha o corpo todo cheio de hematomas e de feridas. Mas no hospital tinham-na lavado e tinham-lhe cortado o cabelo, por isso não tinha um aspeto tão selvagem como nas fotografias que lhe tiraram quando a encontraram.

 

– Era muito bonita, lindíssima – disse Berit.

 

Tony assentiu.

 

– Sim, realmente estaria a mentir se dissesse o contrário, mas a Louise precisava de comer um pouco mais e recuperar física e psicologicamente.

 

– E como era a personalidade dela?

 

– Era tranquila. Demorámos vários meses a conseguir extrair-lhe alguma coisa. Passava os dias a observar-nos sem dizer nada.

 

– Não dizia nada de nada? – Erica ponderou se devia ou não tomar notas, mas decidiu que seria melhor ouvir com atenção e, em seguida, escrever tudo de memória. Às vezes, as nuances escapavam-lhe quando tomava notas ao mesmo tempo que falava com os entrevistados.

 

– Bem, uma ou outra palavra. Obrigada, sede, cansada... Coisas assim.

 

– Mas com a Tess falava – interrompeu Berit.

 

– Com a Tess? A outra menina que vivia convosco?

 

– Sim, a Tess e a Louise deram-se logo muito bem – explicou Tony. – Através da parede ouvíamo-las falar à noite. Por isso, julgo que não queria era falar connosco. A Louise nunca fazia nada que não quisesse fazer.

 

– Como assim? Era desobediente?

 

– Bem, não propriamente, de certa forma era boa menina – Tony coçou a calva. – Não sei bem como descrevê-lo – acrescentou, olhando para Berit com ar indeciso.

 

– Nunca era mal-educada connosco, mas se lhe pedíssemos para fazer alguma coisa que não queria fazer, virava-nos as costas e ia-se embora. E, por mais que lhe ralhássemos, ignorava-nos, pura e simplesmente. Por outro lado, não era fácil ser-se tão exigente como se deveria ser com alguém que passou o que a Louise tinha passado.

 

– Sim, coitada, era de partir o coração. – Tony pôs um olhar triste. – Que género de pessoa tem coragem de tratar assim uma menina?

 

– Depois ficou mais faladora? Contou-vos alguma coisa acerca dos pais ou do que aconteceu?

 

– Sim, cada vez nos contava mais pormenores – disse Berit. – Embora nunca se tenha tornado propriamente faladora. A Louise raramente dizia algo por iniciativa própria. Respondia quando se dirigiam a ela, mas evitava olhar nos olhos as pessoas com quem falava e nunca se abriu connosco. Talvez tenha contado mais acerca do que aconteceu à Tess. Realmente não me surpreenderia. Era como se as duas estivessem a viver no seu próprio mundo.

 

– Como foi o passado da Tess? Porque acabou a viver com uma família de acolhimento? – Erica engoliu o que restava do bolo.

 

– Ficou órfã e tinha tido uma infância horrível – respondeu Tony. – Pelo que sabemos, nunca conheceu o pai. A mãe era toxicodependente e morreu de overdose. A Tess chegou a nossa casa pouco antes da Louise. Tinham a mesma idade e quase pareciam irmãs. Alegrava-nos tanto pensarmos que se tinham uma à outra... Ambas nos ajudavam muito com os animais, o que nos dava muito jeito. Tivemos alguns anos de azar, com vários animais doentes e mais algumas coisas que correram mal na quinta. Um par de mãos dispostas a ajudar valia o seu peso em ouro, e tanto eu como a Berit pensamos que o trabalho é uma boa maneira de curar a alma. – Tony apertou a mão da mulher. Trocaram um sorriso e Erica enterneceu-se ao constatar que, apesar dos muitos anos que já tinham passado juntos, unia-os um amor quotidiano, mas intenso. Era assim que queria que funcionassem as coisas entre ela e Patrik, e era nisso que acreditava que a relação de ambos acabaria por se tornar.

 

– Também brincavam muito – acrescentou Berit.

 

– Sim, claro, o circo – disse Tony, e os olhos iluminaram-se com a recordação. – Era a distração preferida delas, brincar aos circos. O pai da Louise era artista de circo e de certeza que isso pôs a imaginação das meninas a trabalhar. Construíram uma pequena pista no barracão e dedicavam-se a fazer todo o tipo de truques. Uma vez entrei e surpreendi aquelas malucas a tentar equilibrar-se numa corda que tinham esticado. É verdade que havia palha por baixo, mas podiam ter-se magoado a sério, por isso tivemos de as proibir de o fazer. Lembras-te disso, Tony, de elas quererem andar na corda bamba?

 

– Se lembro. Às vezes tinham cada ideia... E gostavam muito de animais. Lembro-me de uma vez em que uma das nossas vacas ficou doente e elas passaram a noite acordadas até o animal acabar por morrer ao amanhecer.

 

– Nunca lhes causaram problemas?

 

– Não, nenhuma das duas. Tivemos outras crianças que iam e vinham, e essas sim, eram problemáticas. A Louise e a Tess portavam-se bem. Às vezes tinha a sensação de que estavam um pouco alheadas da realidade e nunca chegámos a tornar-nos íntimos delas, mas pareciam estar bem e sentir-se seguras connosco. Até dormiam juntas. Quando as ia ver, estavam sempre a dormir abraçadas. – Berit sorriu.

 

– A avó da Louise ia vê-la?

 

– Sim, foi uma vez. Julgo que a Louise tinha dez anos na altura... – disse, e depois olhou para o marido, que confirmou a informação.

 

– Como foi a visita? Que aconteceu?

 

– Foi... – Berit olhou novamente para Tony, que encolheu os ombros e continuou no seu lugar.

 

– Não aconteceu nada de especial. Ficaram na cozinha e a Louise não disse uma palavra. A avó também não falou muito. Praticamente limitaram-se a olhar uma para a outra o tempo todo. E, se bem me lembro, a Tess andava de um lado para o outro à entrada da cozinha, um pouco mal-humorada. A avó da Louise insistiu em encontrar-se a sós com ela, mas eu fiz questão de estar presente. A Louise já estava há três anos em nossa casa. Éramos responsáveis por ela e eu não fazia ideia de como reagiria ao ver a avó. Aquela visita devia trazer-lhe más recordações, mas a verdade é que não se notou nada. Ficaram simplesmente para ali sentadas. Para lhe ser franca, não sei porque é que aquela mulher lá foi.

 

– O Peter não estava com ela?

 

– O Peter? – perguntou Tony. – Refere-se ao irmão mais novo da Louise? Não, só apareceu a avó.

 

– E a Laila? Alguma vez telefonou para falar com a Louise?

 

– Não – respondeu Berit. – Nunca soubemos nada dela. Na verdade, não consigo perceber porquê. Como podia ser tão fria a ponto de nem sequer se interessar em saber como estava a própria filha?

 

– E a Louise, alguma vez perguntou por ela?

 

– Não, nunca. Já lhe disse que nunca falava do passado e nós também não a pressionávamos. Estávamos em contacto com um psicólogo infantil que nos recomendou que a deixássemos falar ao seu ritmo. Claro que fazíamos algumas perguntas, mas era só para sabermos como estava.

 

Erica assentiu e aqueceu as mãos na chávena de café. Sempre que alguém abria a porta da cafetaria, entrava um vento que lhe gelava os ossos.

 

– Que aconteceu depois do dia em que desapareceram? – perguntou num tom discreto.

 

– Tem frio? Se quiser empresto-lhe o meu casaco – disse Berit, e Erica apercebeu-se de que aquele casal tinha aberto as portas de sua casa a muitas crianças ao longo de todos aqueles anos. Ambos pareciam ser excelentes pessoas.

 

– Não, obrigada, não é preciso – respondeu Erica. – Acham que têm forças para falar sobre esse dia?

 

– Sim, já passaram tantos anos... – respondeu Tony.

 

Erica percebeu que ficaram tristes ao recordar aquele fatídico dia de verão. Tinha lido o que aconteceu nos relatórios da Polícia, mas era muito diferente ouvi-lo da boca das pessoas que o tinham vivido.

 

– Foi numa quarta-feira de julho. Bem, o dia da semana não tem qualquer importância, claro... – A voz de Tony sumiu-se e Berit pôs-lhe a mão no braço. O marido aclarou a garganta antes de continuar. – As meninas disseram que iam dar um mergulho. Nós não nos preocupámos minimamente, porque costumavam ir nadar sozinhas. Às vezes passavam o dia inteiro fora, mas voltavam sempre para casa à tarde, quando começavam a ter fome. Mas naquele dia não foi isso que aconteceu. Esperámos horas por elas, mas nunca mais chegavam. Por volta das oito da noite começámos a perceber que tinha acontecido alguma coisa. Fomos procurá-las e, como não as encontrámos, chamámos a Polícia. Tivemos de esperar pela manhã seguinte e então as roupas delas apareceram numas rochas.

 

– Quem as encontrou? Os senhores ou a Polícia?

 

– A Polícia tinha organizado uma busca e foi um dos voluntários que as encontrou. – Berit deixou escapar um soluço.

 

– Devem ter sido levadas pela corrente, que é muito forte naquela zona. Nunca encontraram os cadáveres... Uma tragédia horrível – Tony baixou os olhos e podia sentir-se como aquele acontecimento os afetara a ambos.

 

– Que aconteceu depois? – Erica sentiu um aperto no coração só de imaginar as raparigas a lutar contra as ondas.

 

– A Polícia investigou o sucedido e concluiu que se tratou de um acidente. Nós... Enfim, sentimo-nos culpados durante muito tempo. Mas, no fundo, as meninas já tinham quinze anos e, em geral, sabiam tomar conta de si próprias. Com o tempo, apercebemo-nos de que a culpa não foi nossa. Ninguém podia ter previsto o que ia acontecer. Aquelas duas meninas haviam passado muito tempo presas e nós deixámo-las andar em liberdade desde que foram viver para nossa casa.

 

– Muito sensato – disse Erica, perguntando a si própria se os filhos adotivos que passaram pela casa de Berit e de Tony estariam conscientes da sorte que tiveram.

 

Levantou-se e apertou-lhes as mãos.

 

– Obrigada por terem aceitado falar comigo. Agradeço-vos muito o tempo que perderam e lamento ter-vos despertado algumas memórias dolorosas.

 

– Bem, também nos trouxe algumas recordações maravilhosas – disse Berit, dando um aperto de mão carinhoso a Erica. – Tivemos a sorte de tomar conta de muitas crianças ao longo dos anos e todas deixaram a sua marca. A Tess e a Louise foram especiais e não as esquecemos.

 

Era tão grande o silêncio que reinava na casa... Dir-se-ia preenchida pelo vazio deixado por Victoria e era como se esse vazio também os preenchesse e ameaçasse rebentá-los por dentro.

 

Faziam tentativas desajeitadas para partilhar a dor, começavam a falar de Victoria, mas interrompiam-se a meio da frase e deixavam as palavras a pairar no ar. Como é que a vida poderia voltar a ser como era?

 

Ricky sabia que era uma questão de tempo até a Polícia lhes voltar a bater à porta. Gösta já o tinha feito, para verificar pela segunda vez se não tinham visto alguém suspeito nas imediações pouco antes do desaparecimento de Victoria. Parece que lhes tinham comunicado que alguém andava a vigiar a casa nessa altura. Ricky compreendia que também queriam falar com os pais e perguntar-lhes se estavam a par da relação entre Victoria e Jonas, ou das cartas que tinha encontrado. De certa forma, seria um alívio. Fora um tormento carregar sozinho aquele segredo no meio de toda aquela dor, consciente de que os pais não sabiam tudo.

 

– Passas-me as batatas? – O pai estendeu a mão sem olhar para ele, e Ricky entregou-lhe a panela.

 

As conversas limitavam-se àquilo: a assuntos do dia a dia.

 

– Queres cenouras? – Helena passou-lhas. As mãos de ambos roçaram uma na outra e a mãe deu um salto como se se tivesse queimado. A dor era tal que nem suportavam tocar-se.

 

Contemplou os pais à sua frente, sentados à mesa da cozinha. A mãe preparara o jantar, mas sem ânimo, e tinha um sabor tão insípido como aparentava. Comeram em silêncio, cada um pensando para si. A Polícia não tardaria a quebrar o silêncio e Ricky sabia que tinha de contar tudo. Ganhou impulso.

 

– Tenho de vos contar uma coisa. É sobre a Victoria...

 

Os pais pararam de repente, em pleno movimento, e levantaram os olhos. Encararam-no como há muito não faziam. O coração começou a martelar-lhe o peito, a boca secou-lhe, mas Ricky obrigou-se a prosseguir. E falou-lhes de Jonas, da discussão na escola, de como Victoria se tinha ido embora a correr naquele dia, das cartas que tinha encontrado, daquelas palavras e daqueles insultos tão desagradáveis.

 

Os pais ouviram-no atentamente e depois a mãe baixou os olhos. Mas Ricky podia ver que havia neles um brilho estranho. Demorou apenas um instante a compreender o que aquilo significava.

 

A mãe já sabia.

 

– Mas então não matou a mulher, pois não? Ou matou? – Rita franzia a testa enquanto ouvia Paula atentamente.

 

– Condenaram-no pelo homicídio, mas afirmou sempre a sua inocência. Não consegui encontrar ninguém que tenha trabalhado nesse caso, mas enviaram-me por fax parte do material da investigação e li alguns artigos de jornal. E, de facto, as provas não passavam de provas indiciárias24.

 

Paula andava de um lado para o outro na cozinha a tentar acalmar Lisa enquanto falava. Nesses momentos, a bebé ficava calmíssima, mas isso mudaria assim que Paula resolvesse parar. Perguntou-se quando tinha sido a última vez que comera sentada.

 

Johanna lançou-lhe um olhar e Paula pensou para si que talvez fosse a vez dela de passear a menina. Nada indicava que estivesse mais apta para essa função pelo simples facto de a ter trazido ao mundo.

 

– Já te disse para te sentares! – rugiu Johanna a Leo, que insistia em levantar-se na cadeira entre colheradas.

 

– Valha-me Deus, se eu estivesse sempre a levantar-me durante a refeição estaria uma verdadeira sílfide – constatou Mellberg, piscando o olho a Leo.

 

Johanna suspirou.

 

– Bertil, por favor, tem de estar sempre a dar-lhe força? Já é suficientemente difícil educá-lo sem o Bertil a incentivá-lo.

 

– Então, então, que importância tem a criança fazer um pouco de exercício entre colheradas? Todos devíamos fazer o mesmo. Vejam. – Mellberg comeu uma garfada, levantou-se, sentou-se e repetiu a operação. Leo ria a bom rir.

 

– Porque é que não lhe diz nada? – Johanna virou-se para Rita com ar suplicante.

 

Paula sentiu um formigueiro no estômago. Sabia que Johanna ficaria furiosa, mas acabou por não conseguir conter mais o riso. Desatou a rir até ficar com lágrimas nos olhos e quase julgou ver Lisa também a rir-se. Rita também não se conteve e, encorajados pela reação do público, Leo e Mellberg começaram a sentar-se e a levantar-se ao mesmo tempo.

 

– Que terei eu feito noutra vida para calhar com uma gente destas? – Johanna suspirou, embora também começasse a ficar contagiada pelas gargalhadas. – Bem, bem, façam o que quiserem. Seja como for, já não tenho esperança de que essa criança alguma vez se comporte como um adulto. – Entre sorrisos, inclinou-se e deu a Leo um beijo na bochecha.

 

– Quero saber mais sobre esse homicídio – disse Rita quando os risos acalmaram. – Se não havia provas, porque é que o condenaram? Na Suécia não se mandam as pessoas para a prisão por coisas que não fizeram, pois não?

 

Paula sorriu perante a ingenuidade da mãe. Desde que tinham vindo do Chile, nos anos 70, Rita começara a nutrir pela Suécia uma adoração da qual o país nem sempre era digno. Além disso, adotara as tradições suecas com uma paixão tal que até os Democratas do país a teriam achado exagerada. Habitualmente, Rita preparava pratos típicos do seu país, mas no solstício de verão, por exemplo, era difícil encontrar no frigorífico outra coisa que não fosse arenque.

 

– Bem, já te disse que havia provas, ou seja, coisas que apontavam para que fosse ele o culpado, mas que não... Como posso explicar-te isto...?

 

Mellberg aclarou a garganta.

 

– «Prova indiciária» é um termo jurídico que se refere a determinadas circunstâncias menos sólidas do que um facto, mas que podem levar à condenação ou à absolvição de uma pessoa acusada de um crime.

 

Paula olhou para o chefe, perplexa. A última coisa que esperava era uma resposta àquela pergunta. E muito menos uma resposta sensata.

 

– Exatamente. E, neste caso, podemos dizer que o passado do marido da Ingela influenciou negativamente a sentença. Os seus antigos colegas, e também as amigas da Ingela, declararam que ele era agressivo. Como se isso não bastasse, maltratara várias vezes a Ingela e já ameaçara matá-la. Uma vez que, além disso, não tinha álibi para o dia em que ela desapareceu e o cadáver foi encontrado no bosque perto da casa deles... Enfim, toda a gente achou que tudo era muito claro.

 

– E agora têm dúvidas? – perguntou Johanna enquanto limpava a boca ao Leo.

 

– Ainda é cedo para dizer. Mas os ferimentos são muito originais. E, durante anos, houve muitas vozes que se levantaram em defesa do marido da Ingela, vozes que asseguravam que ele dizia a verdade. Que afirmavam que, enquanto a Polícia se recusava a investigar outras possibilidades, havia um assassino à solta.

 

– E não pode ter sido alguém que ouviu falar do caso e está agora a fazer o mesmo? – perguntou Rita.

 

– Claro. Foi precisamente o que Martin disse na reunião. Já passaram quase trinta anos desde que a Ingela foi assassinada e o mais lógico é estarmos a lidar com alguém que imita esse caso e não com o mesmo assassino que, de repente, se pôs outra vez a matar. – Paula olhou de relance para Lisa. Parecia estar a dormir profundamente, por isso foi sentar-se à mesa. Teria de comer com a bebé nos braços.

 

– Bem, vale a pena investigar isso mais a fundo – disse Mellberg, voltando a servir-se. – Esta noite estava a pensar ler o material da investigação para poder expô-lo amanhã na reunião de Gotemburgo.

 

Paula abafou um suspiro. Tinha a certeza de que Mellberg iria reivindicar os louros da sua descoberta.

 

Patrik cruzou a porta e ficou atónito.

 

– Chamámos a empresa de limpezas? Não, claro, quem cá esteve foi a minha mãe e Bob o Construtor – disse, beijando Erica na face. – Vá, conta lá. O que é que consertaram e arrumaram enquanto estive fora?

 

– Acho que não vais querer saber – disse Erica, e dirigiu-se à cozinha, onde já começara a preparar o jantar.

 

– Foi assim tão grave? – Patrik sentou-se com um suspiro e os filhos apareceram a correr, atirando-se a ele para o abraçar. Mas desapareceram tão rapidamente como tinham chegado. A série infantil Bolibompa estava a começar na televisão. – Quando é que o dragão verde começou a ser mais famoso do que eu? – perguntou com um meio sorriso.

 

– Não foi há muito tempo – respondeu Erica, que se inclinou para o beijar nos lábios. – Mas está descansado que, no que me diz respeito, continuas a ser tu o meu preferido.

 

– A seguir ao Brad Pitt, não é?

 

– Lamento muito, mas esse jamais conseguirás suplantar. – Piscou-lhe o olho e abriu o armário para tirar os copos. Patrik levantou-se para a ajudar a pôr a mesa.

 

– Bem, como está a correr a investigação? Já fizeram algum progresso?

 

Patrik abanou a cabeça.

 

– Não, ainda não. Os resultados do laboratório demoram a chegar. A única coisa que descobrimos é que, aparentemente, alguém pagava periodicamente cinco mil coroas ao Lasse.

 

– Chantagem?

 

Patrik assentiu.

 

– Sim, por enquanto é a nossa teoria. Estamos a tentar não nos cingir apenas a essa hipótese, mas parece bastante plausível que o Lasse estivesse a chantagear alguém que acabou por se fartar do jogo. A questão é saber quem. Por enquanto não fazemos a mais pequena ideia.

 

– E como te parece que vai correr a reunião de amanhã? – Erica mexeu a caçarola que estava no fogão.

 

– Acho que estamos bem preparados. Além disso, hoje, a Paula desenvolveu uma nova teoria. Pode haver uma ligação a um caso de há vinte anos. A Ingela Eriksson, aquela mulher que foi assassinada em Hultsfred.

 

– Aquela que o marido torturou até à morte? – Erica virou-se e olhou para Patrik, intrigada. – Que tem esse caso que ver com o vosso?

 

– Sim, é verdade, tinha-me esquecido que sabes um pouco da história criminal da Suécia; mas então deves lembrar-te de como foi torturada, não é?

 

– Bem, não, só sei que quem a matou a deixou no bosque perto da casa onde moravam. Vá lá, diz-me lá qual é a ligação. – Erica não era capaz de esconder a curiosidade.

 

– A Victoria apresentava exatamente os mesmos ferimentos que a Ingela Eriksson.

 

Fez-se silêncio durante alguns segundos.

 

– Estás a gozar – disse por fim Erica.

 

– Infelizmente, não. – Patrik cheirou o ar. – Que é o jantar?

 

– Peixe guisado. – Erica começou a servir a comida nas tigelas, mas percebia-se que estava a pensar noutra coisa. – Das duas, uma: ou o marido era inocente e agora estamos perante o mesmo criminoso, ou então trata-se de um imitador que copiou o modus operandi do assassino. Mas também pode ser pura coincidência.

 

– Não acredito em coincidências.

 

Erica sentou-se à mesa.

 

– Nem eu. Vais expor essa teoria na reunião de amanhã?

 

– Sim, tenho aqui cópias do material da investigação. E o Mellberg disse que também lhe ia dar uma vista de olhos.

 

– Vão os dois a Gotemburgo? – Erica provou cautelosamente o guisado.

 

– Sim, vamos sair muito cedo. A reunião começa às dez.

 

– Espero que consigam descobrir alguma coisa. – Erica olhou ansiosamente para Patrik. – Estás cansado. Sei que é muito importante resolverem o caso rapidamente, mas tens de ter cuidado contigo.

 

– Sim, realmente estou cansado, mas sei até onde posso ir. Por falar em cansaço, como correram ontem as coisas com a Anna?

 

Erica pareceu refletir por um momento na resposta.

 

– Sinceramente não sei. Tenho a sensação de que não há comunicação. É como se a minha irmã se tivesse barricado no sentimento de culpa, e não sei como trazê-la de volta à realidade.

 

– Talvez não te caiba a ti fazê-lo – disse Patrik, embora soubesse que Erica não faria caso das suas palavras.

 

– Vou falar com o Dan – disse, deixando claro que dava por terminada a conversa sobre Anna. – Patrik percebeu a deixa e não fez mais perguntas. A preocupação de Erica com a irmã deixava-a muito angustiada; quando quisesse falar sobre isso, fá-lo-ia, sem dúvida. Até lá, continuaria a pensar sozinha no assunto. – Acho que vou precisar de um psicólogo, não tarda – acrescentou Erica, servindo mais guisado.

 

– A sério? Que foi que a minha mãe fez desta vez?

 

– Desta vez, a Kristina está completamente inocente. Não só vou precisar urgentemente de um psicólogo como muito provavelmente que me apaguem também a memória depois de ter visto o Mellberg quase nu esta manhã.

 

Patrik não conseguiu conter-se. Soltou uma gargalhada tão forte que a comida lhe entrou pelo nariz.

 

– Bem, nenhum de nós vai esquecer essa visão. E como a ideia é partilharmos as alegrias e as tristezas... tenta esquecer-te disso quando estivermos na cama e fica resolvido.

 

Erica olhou para o marido com ar horrorizado.

 

24 Ou «circunstancial», na terminologia anglo-saxónica. (N. do T.)

 

UDDEVALLA, 1974

OS LIMITES DA NORMALIDADE COMEÇAVAM A ESBATER-SE. LAILA VIA-O E COMPREENDIA-O, MAS NÃO CONSEGUIA RESISTIR À TENTAÇÃO E, DE VEZ EM QUANDO, RENDIA-SE À VONTADE DE VLADEK. SABIA QUE AQUILO ESTAVA ERRADO, MAS ÀS VEZES, POR UM TEMPO, GOSTAVA DE SE ILUDIR E FINGIR QUE LEVAVAM UMA VIDA NORMAL.

AS HISTÓRIAS DE VLADEK CONTINUAVAM A ENFEITIÇÁ-LOS. MISTURAVAM O INSÓLITO COM O QUOTIDIANO, O TERRÍVEL COM O FANTÁSTICO. COSTUMAVAM SENTAR-SE À MESA DA COZINHA APENAS COM UMA LUZINHA LIGADA. NA PENUMBRA ERA MAIS FÁCIL ENTRAR NAS HISTÓRIAS DELE. PODIAM OUVIR O BARULHO DOS APLAUSOS; VIAM OS EQUILIBRISTAS A FLUTUAR LÁ EM CIMA, QUASE COLADOS AO TETO; RIAM-SE DOS PALHAÇOS E DAS SUAS GRAÇAS; EMOCIONAVAM-SE COM A PRINCESA DO CIRCO QUE, COM GRAÇA E FORÇA, SE EQUILIBRAVA SOBRE O CAVALO DECORADO COM PLUMAS E LANTEJOULAS, E DAVA VOLTAS E MAIS VOLTAS À PISTA. MAS, SOBRETUDO, VIAM VLADEK COM O LEÃO NA JAULA. VIAM-NO ALI, FORTE E ORGULHOSO DO SEU PODER SOBRE AQUELES ANIMAIS SELVAGENS. E NÃO PORQUE TINHA UM CHICOTE NA MÃO, COMO AS PESSOAS PENSAVAM, MAS PORQUE OS LEÕES GOSTAVAM DELE E O RESPEITAVAM. CONFIAVAM NELE, POR ISSO OBEDECIAM ÀS SUAS ORDENS.

O PRINCIPAL TRUQUE DE VLADEK, O SEU GRANDE FINAL, ERA QUANDO, COM ABSOLUTO DESPREZO PELA MORTE, ENFIAVA A CABEÇA NAS MANDÍBULAS DE UM DOS LEÕES. NAQUELE MOMENTO, O PÚBLICO FICAVA EM SILÊNCIO, OPRIMIDO, ACREDITANDO QUE ERA VERDADE. O TRUQUE DO FOGO TAMBÉM ERA IMPRESSIONANTE. QUANDO DESLIGAVAM AS LUZES NA JAULA, CRESCIA A TENSÃO ENTRE OS ESPECTADORES. SÓ DE PENSAR NOS ANIMAIS QUE HAVIA LÁ DENTRO, NAQUELES ANIMAIS QUE VIAM NO ESCURO E QUE TALVEZ OS ENCARASSEM COMO PRESAS, DAVAM A MÃO A QUEM QUER QUE ESTIVESSE SENTADO AO LADO. ENTÃO, DE REPENTE, AROS DE FOGO QUE HIPNOTIZAVAM COM AS SUAS CHAMAS ILUMINAVAM A ESCURIDÃO. E OS LEÕES VENCIAM O SEU MEDO DO FOGO E SALTAVAM GRACIOSAMENTE PELOS AROS, PORQUE TINHAM CONFIANÇA NO SEU DOMADOR, QUE LHES PEDIA PARA FAZEREM O TRUQUE.

ENQUANTO ESTAVA ALI SENTADA A OUVIR, LAILA DESEJAVA QUE ALGO ILUMINASSE A SUA PRÓPRIA ESCURIDÃO. DESEJAVA PODER VOLTAR A CONFIAR EM ALGUÉM.

 

AS RUAS ESTAVAM DESERTAS, enquanto Helga percorria Fjällbacka naquela manhã fria. No verão, a cidadezinha vibrava de animação. As lojas estavam abertas, os restaurantes, cheios; no porto, os barcos quase se imobilizavam em filas apertadas e um mar de gente deambulava por todo o lado. Agora, no inverno, não se ouvia o mais pequeno ruído. Tudo estava fechado a sete chaves e era como se Fjällbacka hibernasse, à espera do próximo verão. Mas Helga sempre gostara mais das estações calmas. A casa também ficava mais tranquila nessas alturas. No verão, Einar costumava voltar para casa bêbado e muitíssimo mais irritado.

 

Desde que adoeceu que era diferente, claro. A sua única arma eram as palavras, mas já não podia magoá-la. Ninguém podia, exceto Jonas. O filho conhecia-lhe os pontos fracos e sabia quando estava mais vulnerável. O absurdo era que apenas queria protegê-lo. Não importava que Jonas já fosse um adulto dos pés à cabeça, alto e forte. Continuava a precisar dela e ela defendê-lo-ia de qualquer perigo.

 

Deixou para trás a Praça Ingrid Bergman e ergueu a cabeça para contemplar aquele mar de gelo. Adorava o arquipélago. O pai era pescador e Helga acompanhou-o muitas vezes no barco. Mas tudo isso acabou quando casou com Einar. O marido era homem de terra e nunca se habituou à natureza caprichosa do mar. «Se o mar fosse um meio adequado para o homem, teríamos nascido com brânquias», estava sempre a grunhir. Jonas também nunca tinha tido interesse pelos barcos; por isso, Helga não navegava desde os dezassete anos, apesar de viver num arquipélago tão bonito.

 

Pela primeira vez em muito tempo sentiu como uma pontada o desejo de fazer-se ao mar. Mas isso não teria sido possível, mesmo que tivesse um barco: a camada de gelo era demasiado espessa e os poucos barcos que tinham sido arrastados para terra estavam congelados no porto. Nisso assemelhavam-se a ela. Era assim que se sentira durante todos aqueles anos: tão perto do seu elemento natural, porém, incapaz de deixar a sua prisão.

 

Sobreviveu graças a Jonas. O amor que sentia pelo filho era tão forte que tudo o resto empalidecia. Toda a vida estivera preparada para se interpor entre Jonas e o comboio desgovernado que estava prestes a atropelá-lo. Estava preparada e não tinha a mais pequena dúvida. Tudo o que fazia por Jonas dava-lhe alegria.

 

Deteve-se e contemplou o busto de Ingrid Bergman. Tinha estado ali com Jonas quando foi apresentado. Nesse dia também apresentaram uma nova variedade de rosa que tinham cultivado em sua memória. Jonas estava expectante. Os filhos de Ingrid iam participar, assim como a namorada do filho, Carolina do Mónaco. Jonas tinha aquela idade em que o mundo está cheio de cavaleiros e dragões, príncipes e princesas. De certeza que teria preferido ver um cavaleiro, mas uma princesa também servia. Era muito enternecedor ver o entusiasmo com que se preparava para participar no grande acontecimento. Penteou-se com gel e colheu flores do jardim: dicentra e campainhas, que acabaram muito mirradas nas suas mãos suadas antes de chegarem à praça. Como era de esperar, Einar zombara impiedosamente do filho; porém, daquela vez, Jonas ignorou-o. Só pensava que ia ver uma verdadeira princesa.

 

Helga ainda se lembrava da expressão de surpresa e de desapontamento do filho quando lhe apontou Carolina do Mónaco. Jonas olhou para ela a tremer e disse:

 

– Mas, mamã, é uma senhora igual às outras.

 

Naquela tarde, depois de chegar a casa, Helga foi dar com todos os livros de histórias nas traseiras da casa, para onde Jonas os tinha atirado. Nunca conseguiu lidar bem com as deceções.

 

Respirou fundo, deu meia-volta e começou a fazer o caminho de regresso a casa. Tinha a responsabilidade de remediar todas as deceções. As grandes e as pequenas.

 

O inspetor da Polícia Judiciária, Palle Viking, que fora nomeado presidente da reunião, aclarou a garganta antes de começar.

 

– Bem-vindos a Gotemburgo. Queria agradecer-vos pela excelente colaboração que temos mantido até agora. Alguns podem pensar que esta reunião devia ter sido realizada antes, mas todos sabemos como o trabalho entre os distritos policiais pode ser lento e ineficaz. Mas talvez este seja o momento certo – olhou para baixo e acrescentou: – Que o cadáver de Victoria Hallberg tenha aparecido e naquele estado é uma tragédia, claro. Porém, ao mesmo tempo, dá-nos uma ideia do que pode ter acontecido às outras raparigas e, portanto, fornece-nos informações que podem permitir-nos avançar na investigação.

 

– Ele fala sempre assim? – sussurrou Mellberg.

 

Patrik assentiu.

 

– Começou tarde os estudos policiais, mas fez uma carreira meteórica. Dizem que é muito bom. Antes dedicava-se à investigação filosófica.

 

Mellberg ficou embasbacado.

 

– Esta agora. Mas o nome deve ser falso, não?

 

– Nada disso. Aliás, assenta-lhe como uma luva.

 

– Sim, lá isso é verdade, parece aquele... Como é que se chama o tipo, aquele sueco que lutou contra o Rocky...

 

– Agora que fala nisso... – Patrik sorriu. Mellberg tinha razão. Palle Viking era um sósia do ator Dolph Lundgren.

 

Mellberg inclinou-se para lhe sussurrar outra vez ao ouvido, mas Patrik fez-lhe sinal para que se calasse:

 

– É melhor ouvirmos.

 

Entretanto, Palle Viking tinha continuado a sua introdução.

 

– Parece-me que o melhor é fazermos uma ronda em que cada um possa expor em que ponto se encontra a sua investigação. Já trocámos anteriormente a maior parte dos dados, mas preparei uns dossiês com um resumo atualizado do caso. Também vou dar-vos cópias dos vídeos das conversas com os familiares. Foi uma excelente iniciativa. Obrigado, Tage. – Palle fez sinal com a cabeça a um homem baixo, entroncado e de bigode farto que era o responsável pela investigação do desaparecimento de Sandra Andersson.

 

Começaram a pressentir que havia realmente uma ligação com o desaparecimento de Jennifer Backlin, ocorrida seis meses depois do de Sandra, e Tage recomendou à Polícia de Falster que seguisse o seu exemplo e filmasse as conversas com os familiares. A ideia era poderem relatar ponderadamente as suas observações a respeito do desaparecimento. Além disso, em casa das raparigas, os investigadores poderiam esboçar uma ideia mais clara de quem era a vítima. A partir desse momento, todos fizeram o mesmo e iam agora ver as gravações das outras esquadras.

 

Na parede estava pendurado um mapa da Suécia de grandes dimensões onde tinham sido assinalados os locais dos raptos de cada uma das raparigas. Embora tenha feito o mesmo em Tanum, Patrik semicerrou os olhos, tentando pela enésima vez distinguir algum tipo de padrão, mas não conseguiu estabelecer qualquer ligação entre as localidades, exceto que todas se situavam no sudoeste e no centro da Suécia. Não havia nenhuma marca no mapa no leste do país nem a norte de Västerås.

 

– Começas tu, Tage? – perguntou Palle ao investigador de Strömsholm, que se levantou e se foi pôr no topo da mesa, ocupando o lugar de Palle.

 

Um a um, todos foram expondo os diferentes aspetos da sua investigação. Patrik concluiu que não havia novas ideias nem novos caminhos. Todos sofriam da mesma falta de informação da qual Patrik e Mellberg já estavam a par pelo material que tinham visto. Patrik apercebeu-se de que não era o único a reagir assim, porque o entusiasmo na sala esmorecera bastante.

 

Mellberg ficou para o fim, uma vez que Victoria tinha sido a última rapariga a desaparecer. Patrik podia ver pelo canto do olho que o chefe estava ansioso por protagonismo. Desejava ardentemente que Mellberg estivesse à altura da tarefa e que tivesse feito razoavelmente bem os trabalhos de casa.

 

– Muitíssimo bom dia a todos! – começou Mellberg, incapaz de compreender o ambiente ou de agir de forma adequada, como era seu hábito.

 

Os participantes responderam com um murmúrio disperso. «Valha-me Deus», pensou Patrik. «Como é que isto vai correr?» Mas, para sua surpresa, Mellberg fez uma apresentação rigorosa da sua investigação e das teorias de Gerhard Struwer sobre o assunto. Às vezes, o superintendente até parecia competente. Patrik conteve a respiração quando percebeu que Mellberg estava prestes a abordar o que seria uma novidade para os outros polícias.

 

– Em Tanumshede somos famosos por realizar o trabalho policial com a máxima eficiência – disse, e Patrik teve de se conter para não resfolegar. Os outros não pareciam ter a mesma capacidade de controlo e um até soltou uma gargalhada. – Um dos nossos agentes descobriu uma ligação entre o caso de Victoria Hallberg e outro muito mais antigo. – Mellberg fez uma pausa dramática à espera da reação que, de facto, não tardou: todos se endireitaram nas suas cadeiras. – Alguém se lembra do homicídio de Ingela Eriksson, em Hultsfred?

 

Vários agentes assentiram e um deles, de Västerås, disse:

 

– Sim, o cadáver de Ingela foi encontrado no bosque por detrás da casa dela, tinha sido torturada e assassinada. O marido foi condenado, embora tenha negado tudo.

 

Mellberg assentiu.

 

– Morreu na prisão alguns anos mais tarde. O caso foi baseado em provas indiciárias e há motivos para acreditar que, afinal, estava inocente. Segundo afirmava, estava sozinho em casa na noite em que a mulher desapareceu. Ingela tinha-lhe dito que ia visitar uma amiga, mas, de acordo com essa amiga, não foi isso que aconteceu. Em qualquer caso, o marido não tinha álibi e não havia testemunhas que pudessem corroborar a alegação de que a mulher tinha estado em casa naquele mesmo dia, horas antes. De acordo com o marido, receberam a visita de um homem que respondeu a um anúncio que ele e Ingela tinham posto, mas a Polícia não conseguiu localizá-lo. Como o marido tinha antecedentes de maus-tratos a mulheres, incluindo a sua, os agentes concentraram imediatamente a atenção nele, sem muito interesse em investigar outras pistas.

 

– Mas que ligação é que isso tem com os desaparecimentos? – perguntou o colega de Västerås. – Esse caso aconteceu pelo menos há trinta anos, não foi?

 

– Vinte e sete. Mas acontece que... – começou a dizer Mellberg, que fez outra pausa dramática para que o estava prestes a dizer causasse o maior impacto possível – ... Ingela Eriksson tinha exatamente os mesmos ferimentos que Victoria Hallberg.

 

Fez-se um longo silêncio.

 

– Pode tratar-se de um imitador? – perguntou por fim Tage, o agente de Strömsholm.

 

– É uma possibilidade.

 

– Não é mais provável que se trate do mesmo assassino? Mas porque passaram tantos anos entre um caso e o outro? – Tage olhou para os colegas e vários assentiram.

 

– Sim – disse Palle, e virou-se um pouco na cadeira giratória para poder ser ouvido por todos. – Ou então, a pessoa em questão não cometeu nenhum outro crime durante todos estes anos por outras razões. Por exemplo, pode ter estado na prisão ou a viver no estrangeiro. E podem ter-nos escapado outras vítimas. Na Suécia desaparecem seis mil pessoas por ano, entre elas muitas raparigas cujo caso não tenha qualquer ligação com este. Ou seja, também temos de considerar a possibilidade de se tratar do mesmo assassino. Mas – Palle ergueu um dedo – não podemos dar como adquirido que exista uma ligação. Não poderia tratar-se de mero acaso?

 

– Os ferimentos são idênticos – objetou Mellberg. – Até ao mais ínfimo pormenor. Pode ler os documentos, trouxemos cópias para todos.

 

– Fazemos uma pausa para os ler? – propôs Palle Viking.

 

Todos se levantaram e, cada um com a sua cópia, contornaram Mellberg e começaram a fazer-lhe perguntas. Toda aquela atenção fazia o superintendente resplandecer como um sol.

 

Patrik ergueu uma sobrancelha. Mellberg não se tinha atribuído o mérito da descoberta, o que o surpreendeu. Até Bertil tinha os seus bons momentos. Claro que deverá ter pensado no motivo de ali estarem. Ou seja, quatro raparigas desaparecidas, uma delas, morta.

 

Marta levantara-se cedo, como era costume. O trabalho nos estábulos não podia esperar. Jonas, por sua vez, tinha-se levantado ainda mais cedo para ir tratar um cavalo que estava com cólicas fortes numa das quintas da região. Bocejou. Tinham ficado a conversar até tarde e tinha dormido muito pouco.

 

Ouviu um zumbido no telemóvel, tirou-o do bolso e olhou para o ecrã. Helga queria convidá-la a ela e a Molly para tomar café. De certeza que tinha estado a espiar pela janela, vira que Molly já tinha voltado da escola e queria saber porquê. A verdade era que Molly tinha dito que lhe doía a barriga e, por uma vez, Marta tinha fingido engolir aquela mentira tão patética.

 

– Molly, a avó convidou-nos para tomar café.

 

– Temos mesmo de ir? – ouviu-se a voz de Molly dizer de uma das cavalariças.

 

– Sim, temos de ir. Anda.

 

– Mas dói-me a barriga – protestou Molly.

 

Marta suspirou.

 

– Se podes estar nos estábulos com dor de barriga, também podes ir beber café com a avó. Vá, quanto mais cedo formos, mais depressa nos despachamos. Jonas e a avó estiveram a discutir ontem, por isso vai ficar contente se passarmos algum tempo com ela.

 

– Tinha pensado preparar Scirocco e montar um bocado. – Molly saiu cabisbaixa da estrebaria.

 

– Com dor de barriga? – perguntou Marta, recebendo de volta um olhar irritado. – Mas não te preocupes, vais ter tempo para montar. Tomamos um café rápido com a avó e depois podes treinar calmamente da parte da tarde. Hoje só começo as aulas às cinco.

 

– Pronto, está bem – resmungou Molly.

 

Enquanto cruzavam o pátio, Marta ia cerrando os punhos. Molly tinha encontrado tudo feito. Não fazia ideia do que era uma infância difícil, o que significava ter de cuidar de si própria. Às vezes tinha vontade de mostrar àquela menina mimada como as coisas podiam ser quando uma pessoa não tinha tudo tão facilitado como ela.

 

– Já cá estamos. – Marta entrou em casa da sogra sem bater.

 

– Entrem e sentem-se. Fiz um bolo e tenho chá para as duas. – Helga virou-se quando entraram na cozinha. Era a imagem da avó por excelência, com o avental sujo de farinha amarrado à cintura e o cabelo cinzento como uma nuvem a emoldurar-lhe o rosto.

 

– Chá? – Molly torceu o nariz. – Eu queria café.

 

– Sim, eu também prefiro café – disse Marta, sentando-se à mesa.

 

– Desculpem, acabou-se-me o café. Não tive tempo de ir às compras. Ponham-lhe uma colherada de mel, assim fica mais saboroso – disse, apontando para um frasco que estava em cima da mesa.

 

Marta estendeu a mão para o mel e pôs uma boa colherada no chá.

 

– Ouvi dizer que vais competir outra vez, não é? – perguntou Helga.

 

Molly bebeu um gole do chá quente.

 

– Sim, como no último sábado não pude ir, desta vez tenho mesmo de participar.

 

– Pois, claro. – Helga estendeu-lhes a bandeja com o bolo. – De certeza que vais sair-te bem. E os teus pais vão contigo, não é?

 

– Sim, claro.

 

– Não sei como tens energia para andar sempre assim, de um lado para o outro – disse Helga, que olhou para Marta e suspirou. – Mas é assim que deve ser. Os pais têm de apoiar os filhos.

 

Marta olhou-a com desconfiança. Helga nunca era tão animadora.

 

– Sim, é isso mesmo. E o treino tem corrido muito bem. Acho que temos boas hipóteses.

 

O rosto de Molly iluminou-se sem querer. A mãe não costumava elogiar-lhe o talento.

 

– Sim, tens muito jeito, Molly. Bem, têm as duas – disse Helga com um sorriso. – Quando eu era criança sonhava montar a cavalo, mas nunca calhou. E depois conheci o Einar e...

 

O sorriso extinguiu-se-lhe no rosto. Marta observou-a em silêncio enquanto mexia o chá. Einar era capaz de dar cabo do sorriso de qualquer pessoa, sabia-o bem.

 

– Como é que tu e o avô se conheceram? – perguntou Molly, e Marta ficou surpreendida pelo súbito interesse da filha por alguém que não fosse ela própria.

 

– Num baile em Fjällbacka. Na altura, o teu avô era muito bonito.

 

– A sério? – perguntou Molly com espanto. Mal se lembrava do avô sem a cadeira de rodas.

 

– Sim, e o teu pai é muito parecido com ele. Espera, vou mostrar-te uma fotografia. – Helga levantou-se e foi à sala. Regressou com um álbum que folheou até encontrar a fotografia que procurava.

 

– Olha, aqui está o avô na flor da idade – disse Helga num tom estranhamente amargo.

 

– Ena! Era muito giro. E é mesmo muito parecido com o meu pai. – Molly examinou a fotografia. – Quantos anos tinha?

 

Helga refletiu durante alguns segundos.

 

– Julgo que devia ter uns trinta e cinco.

 

– E que carro é este? Era vosso? – perguntou Molly, apontando para o carro ao qual Einar estava encostado.

 

– Não, era um dos muitos carros que o Einar comprava para consertar. Um Amazon que ficou uma maravilha. Enfim, pode ter muitos defeitos, mas de mecânica percebia ele – novamente aquele tom de amargura... Marta voltou a olhá-la com espanto enquanto tomava o chá adoçado com mel.

 

– Gostava de ter conhecido o avô antes de adoecer – disse Molly.

 

Helga assentiu.

 

– Sim, eu compreendo. Mas a tua mãe conheceu-o, podes perguntar-lhe coisas sobre ele.

 

– Nunca tinha pensado nisso, sempre vi o avô como aquele velho mal-humorado do andar de cima – disse Molly com a franqueza dos adolescentes.

 

– «Aquele velho mal-humorado do andar de cima.» Por acaso é uma das melhores descrições dele que já ouvi. – Helga desatou a rir.

 

Marta também sorriu. A sogra estava mesmo estranha. Por uma série de razões mais ou menos óbvias, nunca se tinham dado bem. Mas naquele dia, Helga não parecia tão simplória como era costume e Marta estava a gostar da mudança. Bem, de certeza que não tardaria a voltar ao que era. Marta comeu um bocado de bolo. Aquela visita de cortesia estava quase terminada.

 

Na casa reinava um silêncio indescritível. As crianças estavam no infantário, Patrik em Gotemburgo. O que significava que podia trabalhar tranquilamente. Tinha mudado o trabalho do pequeno escritório no andar de cima para o chão da sala de estar, onde havia papéis espalhados por toda a parte. O mais recente complemento à montanha de documentos era uma cópia do processo do homicídio de Ingela Eriksson. Implicou um árduo esforço de persuasão, mas finalmente conseguiu obter uma cópia dos documentos que Patrik ia levar para a reunião em Gotemburgo. Tinha lido atentamente o processo, mais do que uma vez. Na verdade, eram muitas e assustadoras as semelhanças com os ferimentos de Victoria.

 

Também leu todas as notas dos encontros com Laila, das conversas com a irmã, com os pais adotivos de Louise e com o pessoal da instituição. Várias horas de conversas que relera para tentar compreender o que aconteceu no dia em que Vladek Kowalski foi assassinado. E agora, além disso, também para tentar descobrir a possível ligação entre esse homicídio e o desaparecimento de cinco adolescentes.

 

Erica levantou-se e tentou abarcar com o olhar o material que tinha à sua frente. O que seria que Laila lhe queria comunicar, mas que, por alguma razão, não tinha coragem de verbalizar? De acordo com o pessoal, durante todos aqueles anos, Laila não tivera nenhum contacto com alguém de fora da instituição. Nunca recebeu visitas, nem telefonemas, nem...

 

Erica teve um sobressalto. Esquecera-se de verificar se Laila tinha recebido cartas pelo correio. Que falha incrível. Marcou o número da prisão psiquiátrica, que agora já sabia de cor.

 

– Olá, fala Erica Falck.

 

A vigilante, que a tinha reconhecido, cumprimentou-a.

 

– Olá, Erica, sou eu, a Tina. Estava a pensar vir cá hoje?

 

– Não, hoje não, só queria verificar uma coisa. Sabe se Laila recebeu alguma correspondência durante estes anos? Ou se enviou alguma carta?

 

– Sim, recebeu vários postais. E, se não me engano, também recebeu algumas cartas.

 

– Ah, sim? – disse Erica. Não estava à espera daquilo. – E sabe de quem?

 

– Não, mas talvez alguém de cá saiba. Seja como for, os postais não tinham nada escrito. E a Laila não os queria.

 

– Como assim?

 

– Pelo que sei, nem sequer queria tocar-lhes. Pediu-nos para os deitarmos fora. Mas guardámo-los para o caso de mudar de ideias.

 

– Então quer dizer que ainda os têm? – Erica não conseguia esconder o nervosismo. – Será que eu podia dar-lhes uma vista de olhos?

 

Tina confirmou que não via inconveniente e Erica desligou, completamente desconcertada. Aquilo devia significar alguma coisa. Mas não fazia a mais pequena ideia do que seria.

 

Gösta coçava o cabelo grisalho. A esquadra estava muito solitária. Não havia ninguém além dele e de Annika. Mellberg e Patrik estavam em Gotemburgo e Martin tinha ido a Sälvik questionar os residentes das vivendas perto do cais. Os mergulhadores ainda não tinham encontrado o cadáver, mas de certeza que isso era normal tendo em conta as condições meteorológicas. Tinha falado com alguns conhecidos de Lasse, mas ninguém sabia nada do dinheiro. E agora estava para ali a pensar se devia ir Kville conversar com os líderes da paróquia de Lasse.

 

Estava prestes a levantar-se quando o telefone tocou. Lançou-se sobre o aparelho. Era Pedersen.

 

– Okay, que rapidez. E a que conclusão chegou?

 

Gösta ouviu atentamente durante alguns minutos.

 

– A sério? – disse passado algum tempo. Depois de fazer mais algumas perguntas, desligou o telefone e deixou-se ficar sentado por um momento. Não parava de dar voltas à cabeça sem saber como proceder em relação ao que acabara de descobrir. Mas começava a vislumbrar uma possível teoria.

 

Vestiu o blusão e passou meio a correr à frente de Annika, que estava na receção.

 

– Vou a Fjällbacka.

 

– Que vais lá fazer? – gritou-lhe Annika enquanto o agente se afastava. Mas Gösta já estava do lado de fora da porta. Contar-lhe-ia mais tarde.

 

A viagem entre Tanumshede e Fjällbacka durava apenas quinze ou vinte minutos, embora lhe estivessem a parecer eternos. Perguntava a si próprio se devia ter telefonado a Patrik para o pôr ao corrente das conclusões de Pedersen, mas concluiu que não havia necessidade de interromper a reunião. Era melhor ser ele a tratar daquilo, assim teria algo novo para apresentar quando Patrik e Mellberg regressassem. Agora era importante ter iniciativa. E era perfeitamente capaz de lidar com isso.

 

Quando chegou à quinta, bateu à porta da casa de Jonas e de Marta e, passado algum tempo, Jonas abriu-a, estremunhado.

 

– Acordei-o? – Gösta consultou o relógio. Era uma da tarde.

 

– Tive uma urgência muito cedo e estou a tentar recuperar um pouco o sono perdido, mas entre. Afinal já estou acordado, não é? – Jonas fez uma tentativa de alisar o cabelo com a mão.

 

Gösta seguiu-o até à cozinha e sentou-se, embora Jonas não o tenha convidado a fazê-lo. Decidiu ir direto ao assunto.

 

– Conhecia bem o Lasse?

 

– Na verdade, quase posso dizer que não o conhecia de todo. Cumprimentei-o algumas vezes quando vinha buscar a Tyra ao picadeiro, mas pouco mais.

 

– Acontece que tenho motivos para acreditar que isso não é verdade – afirmou Gösta.

 

Jonas continuava de pé e olhava-o agora com irritação.

 

– Começo a ficar um pouco farto. Pode-se saber o que pretende?

 

– Acho que o Lasse estava ao corrente da sua relação com a Victoria. E que o estava a chantagear.

 

Jonas ficou perplexo.

 

– Não pode estar a falar a sério!

 

A surpresa de Jonas parecia genuína e, por um momento, Gösta duvidou da teoria que tinha desenvolvido depois da conversa com Pedersen. Mas não tardou a afastar as dúvidas. Tinha de ser assim e não ia ser muito difícil prová-lo.

 

– Não acha que é preferível dizer a verdade? Vamos verificar as chamadas do seu telemóvel e os movimentos da sua conta e depois acabaremos por concluir que realmente se dava com o Lasse e que levantava dinheiro periodicamente para lhe pagar. Se nos disser a verdade, poupa-nos esse trabalho.

 

– Saia daqui! – disse Jonas, apontando para a porta. – Já chega.

 

– Vamos pôr tudo em pratos limpos, Jonas... – prosseguiu Gösta. – Diga-me, foi o que aconteceu? O Lasse começou a pedir-lhe mais dinheiro? Fartou-se das exigências dele e por isso matou-o?

 

– Quero que saia daqui imediatamente – disse friamente Jonas. Acompanhou Gösta à porta e quase o atirou para a rua.

 

– Eu sei que tenho razão – insistiu Gösta já no alpendre.

 

– Engana-se. Em primeiro lugar, eu não tinha nenhuma relação com a Victoria; em segundo, a Terese disse-me que o Lasse tinha desaparecido entre a manhã de sábado e a madrugada de domingo e eu tenho um álibi para todo esse período. Por isso, da próxima vez que nos encontrarmos, quero que me peça desculpa. E, se algum dos seus colegas mo perguntar, informo-o acerca do meu álibi. Mas a si não o farei.

 

Jonas fechou a porta e Gösta sentiu as dúvidas voltarem. E se estivesse enganado, apesar de tudo encaixar tão bem? Mas talvez acabasse por se provar que tinha razão. Precisava de fazer mais uma visita. A seguir faria exatamente o que tinha dito a Jonas: verificaria os extratos bancários e as chamadas, que confirmariam claramente a sua teoria. Depois, Jonas que falasse à vontade do tal álibi.

 

Já não devia demorar. Laila pressentia que ia aparecer mais um postal a qualquer momento. Tinha começado a recebê-los repentinamente há dois anos e já tinham chegado quatro. Poucos dias depois de receber cada postal, chegava uma carta com um recorte de jornal. Nos postais não havia nada escrito, mas acabara por perceber a mensagem.

 

Os postais assustavam-na e tinha pedido ao pessoal que os deitasse fora. No entanto, conservara os recortes. Cada vez que os tirava do esconderijo, esperava compreender algo mais daquela ameaça que já não lhe era apenas dirigida a si.

 

Deixou-se cair na cama, exausta. Dentro de pouco tempo voltaria a ter uma daquelas sessões de terapia absurdas. Dormira mal naquela noite, tivera pesadelos com Vladek e com a Rapariga. Era difícil compreender como tinham chegado àquilo, como paulatinamente o anormal se tornara normal. Começaram a mudar aos poucos até que acabaram por deixar de se reconhecer um ao outro.

 

– Já pode vir, Laila – chamou Ulla na direção da porta entreaberta. Laila levantou-se a custo. À medida que os dias passavam, acusava mais a fadiga. Os pesadelos, a espera, as recordações de como a vida, lenta mas inexoravelmente, descarrilara. Amava-o tanto... O passado dele era tão diferente... nunca imaginara poder conhecer alguém como ele. Mas tinham-se casado. Parecera-lhe a coisa mais natural do mundo, até que o mal tomou o poder e arruinou tudo.

 

– Não vem, Laila? – ouviu perguntar a voz de Ulla.

 

Laila forçou-se a mover as pernas. Sentia-se como se estivesse a caminhar sobre a água. Até agora, o medo tinha-a impedido de falar ou de agir. E continuava assustada. Apavorada. Mas o destino das raparigas comovera-a tanto, que não podia continuar calada por muito mais tempo. Envergonhava-se da sua cobardia, de ter permitido que o mal reclamasse tantas vidas inocentes. Encontrar-se com Erica fora um bom começo, pelo menos, e talvez esses encontros por fim a levassem a revelar a verdade. Pensava no que tinha ouvido uma vez, que o bater das asas de uma borboleta num lugar podia provocar uma tempestade noutro ponto do planeta. Talvez fosse isso que estava prestes a acontecer.

 

– Laila?

 

– Vou já – disse com um suspiro.

 

O medo arranhava-lhe a pele e para onde quer que olhasse só via coisas horríveis. No chão havia serpentes de olhos brilhantes que se enroscavam, torrentes de aranhas e de baratas percorriam as paredes. Gritava com todas as suas forças e o eco formava um coro assustador. Lutava para escapar àqueles animais, mas algo a retinha e, quanto mais puxava, mais dor sentia. Ouvia vozes que a chamavam ao longe, cada vez mais alto, e tentava mover-se na direção da voz que a convocava, mas uma vez mais algo a retinha e a dor multiplicava ainda mais o medo.

 

– Molly! – A voz atravessou-lhe os gritos, e era como se de repente tudo tivesse parado. Continuaram a repetir o seu nome, agora num tom mais baixo e mais calmo e viu que os insetos se desintegravam e desapareciam como se nunca lá tivessem estado.

 

– Estás a delirar – disse Marta, cuja voz lhe soou com toda a clareza.

 

Molly semicerrou os olhos e tentou focar a visão. Sentia-se zonza e não compreendia uma palavra que fosse. Onde se teriam metido as serpentes e as baratas? Estavam ali, tinha-as visto com os próprios olhos.

 

– Ouve. Nada do que vês é real.

 

– Está bem – disse Molly com a boca seca e, uma vez mais, tentou mover-se em direção ao sítio de onde vinha a voz de Marta.

 

– Oh, estou amarrada. – Pontapeou o ar, mas não conseguiu libertar-se. Estava escuro como breu em seu redor e compreendeu que Marta tinha razão. Aqueles bichos não podiam ser reais, porque não poderia tê-los visto no escuro. Mas tinha a sensação de que as paredes se aproximavam cada vez mais dela e faltava-lhe ar nos pulmões. Ouvia a própria respiração, entrecortada e superficial.

 

– Acalma-te, Molly – disse Marta com aquele tom severo; o mesmo que punha sempre em sentido as raparigas da escola de equitação. E também estava a funcionar naquele momento. Molly esforçou-se por respirar mais devagar. Passado algum tempo, o medo começou desaparecer e os pulmões encheram-se de oxigénio.

 

– Temos de manter a calma. Senão, não vamos conseguir sair desta situação.

 

– O que é...? Onde estamos? – Molly conseguiu agachar-se e passou as mãos pela perna. Tinha um aro metálico no tornozelo e, depois de tatear, sentiu os elos pesados de uma corrente. Em vão, começou a puxá-los enquanto gritava na escuridão.

 

– Cala-te! Assim não vais conseguir libertar-te.

 

Marta estava a falar-lhe num tom taxativo e resoluto, porém, daquela vez, não conseguiu esconder o medo, que foi crescendo até Molly ter finalmente compreendido o óbvio. Calou-se imediatamente e sussurrou no escuro:

 

– Quem levou a Victoria também nos apanhou?

 

Esperou pela resposta de Marta, que não veio. E foi aquele silêncio que aterrorizou Molly, mais do que qualquer outra coisa.

 

Almoçaram na cantina da esquadra e, quando voltaram a reunir-se, estavam satisfeitos e algo sonolentos. Patrik mexeu-se um pouco para despertar. Andava a dormir muito pouco ultimamente e sentia o cansaço no corpo como um fardo.

 

– Bem, vamos continuar – disse Palle Viking, apontando para o mapa. – A extensão geográfica onde ocorreram os desaparecimentos é diminuta, mas ninguém conseguiu encontrar uma ligação entre os diferentes locais. Quanto às raparigas, têm várias semelhanças: a aparência, o passado... Mas não conseguimos encontrar um denominador comum; ou seja, não partilhavam nenhum interesse nem nenhuma atividade, como participar no mesmo fórum online ou alguma coisa do género. Além disso, também há algumas diferenças e a mais flagrante é o caso da Minna Wahlberg, como assinalou esta manhã a Polícia de Tanum. Como é lógico, em Gotemburgo fizemos tudo ao nosso alcance para saber se houve mais gente a ver o tal carro branco, mas, como sabemos, o resultado foi nulo.

 

– A pergunta que se impõe é: porque é que o criminoso terá sido tão descuidado precisamente neste caso? – disse Patrik e todos os olhos se voltaram para ele. – Nos outros raptos não deixou uma única pista. Se partirmos do pressuposto de que o raptor da Minna era o condutor do carro branco, porque na verdade não o sabemos. De qualquer forma, segundo Gerhard Struwer, que já referimos, devíamos concentrar-nos nos aspetos em que o criminoso se desvia do seu modo de atuar.

 

– Concordo. Uma teoria que temos ponderado é a possibilidade de o assassino conhecer e ter alguma relação com a Minna. Já questionámos várias pessoas conhecidas da Minna, mas acho que valia a pena continuar a tentar.

 

Todos apoiaram a proposta de Palle com um murmúrio de assentimento.

 

– É verdade, há rumores de que a sua mulher também foi falar com a mãe da Minna.

 

Ouviram-se risos e Patrik sentiu-se corar.

 

– Sim, eu e o meu colega, o Martin Molin, fomos falar com a mãe da Minna, e a Erica, a minha mulher... Bem, também estava lá. – Patrik apercebeu-se de como aquela desculpa soava absurda.

 

Mellberg resfolegou.

 

– Não percebo como é que essa mulher...

 

– Está tudo no relatório – apressou-se Patrik a dizer numa tentativa de silenciar o chefe. Apontou para os documentos que já todos tinham. – Quer dizer, a visita da minha mulher não é aí referida, mas...

 

Mais risadas. Patrik suspirou para dentro. Adorava Erica, mas às vezes a mulher punha-o em situações extremamente embaraçosas.

 

– Com o vosso relatório, de certeza que será suficiente – disse Palle, sorrindo antes de voltar a ficar sério. – Mas também há rumores de que a Erica é uma mulher inteligente, por isso tens de nos dizer se descobriu alguma coisa que nos tenha escapado.

 

– Bem, como é óbvio, falei com ela sobre isso e não me parece que tenha descoberto muito mais do que nós.

 

– Seja como for, fale outra vez com ela, por favor. Temos de descobrir o que distingue o caso da Minna.

 

– Okay, eu falo com a Erica – disse Patrik.

 

Passaram as horas seguintes a examinar todos os casos de todos os pontos de vista possíveis e impossíveis. Surgiram teorias, deram mil voltas a cada um dos dados, tomaram nota de todas as linhas de investigação possíveis e distribuíram-nas pelos distritos policiais. Acolhiam ideias aparentemente descabidas com o mesmo espírito aberto com que aceitavam as mais sensatas. Todos queriam encontrar alguma pista que lhes permitisse avançar. Todos sentiam a mesma impotência por não terem encontrado as raparigas. Em todos os distritos havia memórias das conversas com os familiares, da tristeza, do desespero, da preocupação e do horror de não saberem o que se passara. E o desespero fora ainda maior quando Victoria apareceu e se aperceberam de que as suas filhas poderiam ter sofrido o mesmo destino.

 

No final do dia era um grupo abatido, mas determinado, que desmobilizava para regressar a casa e continuar a investigação. Tinham sobre os ombros o destino de quatro raparigas que continuavam desaparecidas.

 

A quinta estava morta.

 

Quando Erica chegou, o ambiente na prisão psiquiátrica era de acalmia. Cumprimentou o pessoal e, depois de se fazer anunciar e de se registar na receção, deixaram-na entrar na sala de pessoal. Enquanto esperava, voltou a repreender-se por aquela negligência. Não gostava de cometer erros daqueles.

 

– Olá, Erica. – Tina entrou e fechou a porta. Levava na mão alguns postais presos com um elástico que pousou na mesa à frente de Erica. – Aqui estão.

 

– Posso vê-los?

 

Tina assentiu e Erica estendeu a mão e retirou o elástico. De repente lembrou-se das impressões digitais, mas logo se apercebeu de que o postal já passara por tantas mãos, que há muito tinham desaparecido todos os vestígios que pudessem ter interesse.

 

Havia quatro postais. Erica colocou-os com a face para cima. Eram todos de Espanha.

 

– Quando recebeu o último?

 

– Deixe cá ver... talvez há três ou quatro meses.

 

– E a Laila nunca disse nada sobre eles nem sobre quem os poderá ter enviado?

 

– Nem uma palavra. Mas fica muito nervosa e, depois de os receber, passa sempre vários dias muito alterada.

 

– E não quer ficar com eles?

 

– Não, diz-nos sempre para os deitarmos fora.

 

– Isso não vos parece estranho?

 

– Bem, sim... – respondeu Tina, insegura. – Talvez seja por isso que os guardamos.

 

Erica observou aquela divisão árida e impessoal enquanto refletia. A única tentativa de a tornar um pouco mais agradável era a iúca murcha num vaso no parapeito da janela.

 

– Não costumamos utilizar esta sala – afirmou Tina com um meio sorriso.

 

– Sim, eu compreendo – disse Erica, voltando a concentrar-se nos postais. Virou-os ao contrário. Tal como Tina lhe dissera, estavam em branco e tudo o que se lia era o nome de Laila e a morada da prisão psiquiátrica escrita a esferográfica azul. Cada um tinha o carimbo de uma cidade diferente; porém, que Erica soubesse, nenhuma estava relacionada com Laila.

 

Porquê Espanha? Teriam sido enviados pela irmã de Laila? Mas se assim fosse, porquê? Não parecia provável, uma vez que todos os carimbos eram da Suécia. Erica interrogou-se se devia pedir a Patrik que verificasse as viagens de Agneta. Talvez as duas irmãs tivessem tido mais contacto do que Laila dera a entender. Ou talvez aquilo não tivesse nada que ver com Agneta...

 

– Quer perguntar por eles a Laila? Posso ver se ela quer recebê-la... – disse Tina.

 

Erica refletiu por um momento, observou a iúca murcha e, por fim, abanou a cabeça.

 

– Obrigada, mas prefiro pensar um bocado primeiro para ver se consigo descobrir o que isto significa.

 

– Então boa sorte – disse Tina, levantando-se.

 

Erica sorriu. Sim, bem precisava de sorte.

 

– Posso levar os postais?

 

Tina hesitou durante alguns segundos.

 

– Tudo bem, mas prometa-me que os devolve quando acabar.

 

– Prometido – disse Erica, guardando-os na mala. Nada era impossível. Havia uma ligação, algures, e não ia desistir enquanto não a encontrasse.

 

Gösta perguntava a si próprio se, apesar de tudo, não devia esperar que Patrik regressasse, mas tinha a sensação de que não havia tempo a perder. Decidiu confiar no instinto e continuar com base no que sabia.

 

Annika telefonara-lhe a dizer que fora para casa um pouco mais cedo porque a filha estava doente, por isso, o que devia mesmo fazer era regressar à esquadra e defender o forte. Mas Martin não tardaria a regressar, tinha a certeza, portanto, pensou melhor e continuou a conduzir até Sumpan.

 

Ricky abriu-lhe a porta e convidou-o a entrar. Quando ia a caminho, Gösta enviara-lhe uma mensagem para o telemóvel para se certificar de que estavam em casa e, quando entrou na sala, apercebeu-se da tensão no ar.

 

– Tem alguma notícia? – perguntou Markus.

 

Gösta viu que havia uma centelha de esperança nos olhos do pai de Victoria. Não de encontrar a filha, mas de obter uma explicação e de poder ter alguma paz. Para Gösta era muito difícil ter de os dececionar.

 

– Não. Ou pelo menos, ao que sabemos, nada que se relacione com a morte da Victoria. Mas há uma circunstância um pouco estranha relacionada com o outro caso que estamos a tentar solucionar.

 

– O caso do Lasse? – perguntou Helena.

 

Gösta assentiu.

 

– Descobrimos uma ligação entre a Victoria e o Lasse. Que tem que ver com outra circunstância da qual nos inteirámos recentemente. E que é um tanto delicada.

 

Pigarreou um pouco, sem saber muito bem como abordar aquele assunto. Os três esperaram em silêncio e Gösta viu perfeitamente a angústia refletida no olhar de Ricky, os remorsos com os quais teria certamente de viver para o resto dos seus dias.

 

– Não encontrámos o cadáver do Lasse, mas perto do carro dele havia vestígios de sangue. Enviámo-los para o laboratório e constatou-se que realmente são dele.

 

– Certo – exclamou Markus. – Mas que tem isso que ver com a Victoria?

 

– Bem, como sabem, suspeitamos de que alguém andava a vigiar a vossa casa. No jardim do vizinho foi encontrada uma ponta de cigarro que também enviámos para o laboratório – afirmou Gösta, consciente de que estava a aproximar-se do assunto que, na verdade, teria preferido evitar. – Acontece que, por iniciativa própria, os peritos forenses compararam o sangue do cais com o ADN da ponta de cigarro, e coincidem. Por outras palavras, era o Lasse quem estava a vigiar a Victoria e provavelmente também era ele quem lhe enviava aquelas cartas desagradáveis de que Ricky nos falou.

 

– Sim, também nos falou delas – disse Helena, que lançou um olhar a Ricky.

 

– Lamento ter-me livrado das cartas – sussurrou Ricky. – Não queria que as vissem...

 

– Não te preocupes com isso agora – disse Gösta. – Já não importa. Seja como for, estamos a trabalhar na hipótese de o Lasse andar a chantagear alguém que teria acabado por se fartar e decidido matá-lo. E eu tenho uma teoria sobre quem possa ser.

 

– Desculpe, não percebi – disse Helena. – Que tem isso que ver com a Victoria?

 

– Sim, e porque é que o Lasse andava a vigiá-la? – perguntou Markus. – Que tinha a Victoria que ver com essa história de o Lasse estar a chantagear alguém? Explique-se, por favor.

 

Gösta suspirou e respirou fundo.

 

– Julgo que o Lasse andava a chantagear o Jonas Persson por saber que ele tinha um caso com uma rapariga muito mais nova do que ele. Com a Victoria.

 

Por fim tinha-o dito e sentiu-se aliviado por ter tirado aquele peso dos ombros. Prendeu a respiração enquanto esperava a reação dos pais de Victoria. Mas esta não foi de todo a que esperava. Helena ergueu os olhos e fitou-o com firmeza. Então sorriu-lhe com tristeza.

 

– Receio que esteja confundido, Gösta.

 

Para surpresa de Dan, Anna tinha-se oferecido para levar as filhas de ambos à equitação. Precisava de sair de casa e de apanhar ar fresco, e nem a presença dos cavalos conseguiu dissuadi-la. Estremeceu de frio e apertou melhor o blusão. Além de todos os problemas que já tinha, as náuseas tinham piorado e começou a convencer-se de que estava a chocar a gastrenterite que grassava na escola. Até agora tinha-a conseguido manter ao largo com dez grãos de pimenta branca, mas tinha a certeza de que em breve estaria a vomitar com a cabeça enfiada num balde.

 

Diante do estábulo, algumas raparigas tiritavam. Emma e Lisen desataram a correr na direção delas e Anna seguiu-as.

 

– Olá, porque estão cá fora?

 

– A Marta ainda não chegou – disse uma rapariga alta e morena. – E nunca se atrasa.

 

– De certeza que deve estar a chegar.

 

– Mas a Molly também devia estar cá para dar uma ajuda – disse a rapariga alta. As outras assentiram. Era obviamente a líder do grupo.

 

– Já telefonaram para casa dela? – perguntou Anna, olhando na direção da casa. Não havia luz, mas parecia estar alguém lá dentro.

 

– Não, nem nos passou pela cabeça. – A rapariga parecia horrorizada só de pensar naquilo.

 

– Bem, então eu vou lá. Esperem aqui.

 

Anna atravessou o pátio em passo apressado em direção à casa de Jonas e de Marta. As náuseas não melhoraram com os saltos e teve de se agarrar ao corrimão para subir os degraus do alpendre. Chamou duas vezes antes de Jonas abrir a porta. Estava a limpar as mãos a um pano de cozinha e, a julgar pelo cheiro, preparava o jantar.

 

– Olá – disse com ar admirado.

 

Anna aclarou um pouco a garganta.

 

– Olá. A Marta e a Molly estão cá?

 

– Não, julgo que estão na escola de equitação – Jonas olhou para o relógio. – A Marta tem uma aula daqui a pouco e penso que a Molly ia ajudá-la.

 

Anna abanou a cabeça.

 

– Mas não apareceram. Onde acha que podem estar?

 

– Não faço ideia – disse Jonas, pensativo. – Não as vejo desde esta manhã bem cedo, porque fui chamado para uma urgência e quando voltei não estava cá ninguém. Fiquei por cá algum tempo e depois fui para o consultório. Presumi que estavam no estábulo. A Molly tem uma competição importante em breve, por isso supus que estivessem a treinar. E o carro está aqui... – Jonas apontou para o Toyota estacionado à frente da casa.

 

Anna assentiu.

 

– Então, o que fazemos? As miúdas estão à espera.

 

– Vou ligar-lhe para o telemóvel – disse Jonas, dando meia-volta.

 

Esticou o braço para o telemóvel que estava na consola do vestíbulo e marcou um número.

 

– Ninguém atende. Que estranho. A Marta anda sempre com ele. – Jonas começava a ficar preocupado. – Também vou ligar à minha mãe, pode ser que saiba alguma coisa.

 

Jonas ligou e Anna ouviu-o a explicar a situação à mãe e, ao mesmo tempo, a tentar tranquilizá-la, afirmando que não havia qualquer problema, que estava tudo bem. Terminou a conversa dizendo-lhe «adeus» várias vezes.

 

– Já se sabe como são as mães – disse com um sorriso. – É mais fácil fazer um porco voar do que uma mãe desligar o telefone.

 

– Ah, pois – disse Anna, como se soubesse o que Jonas queria dizer, quando na verdade a mãe quase nunca lhes tinha telefonado, a ela ou a Erica.

 

– Parece que foram tomar café com ela de manhã, mas depois não as voltou a ver. A Molly hoje faltou à escola porque lhe doía a barriga, mas parece que estavam a pensar ir treinar a seguir ao meio-dia.

 

Jonas vestiu um casaco.

 

– Vou consigo procurá-las. Não podem estar muito longe.

 

Procuraram muito bem no pátio, viram no velho barracão, na escola de equitação e, por fim, na sala de reuniões. Não havia qualquer vestígio de Molly e de Marta.

 

As raparigas tinham entrado no estábulo e ouviam-se as suas vozes a falarem entre si e também com os cavalos.

 

– Bem, vamos esperar um bocado – disse Anna. – Se não aparecerem, vamos para casa. Pode ter havido algum mal-entendido com as horas.

 

– Sim, deve ter sido isso – disse Jonas, embora a dúvida lhe tenha ressoado na voz. – Mas vou dar mais uma volta. Não desistam já.

 

– Claro – disse Anna, entrando no estábulo. Ia tentar manter-se a uma distância segura dos animais.

 

Iam a caminho de casa. Patrik insistira em ser ele a conduzir porque seria bom para descontrair.

 

– Foi um dia muito preenchido – disse. – Também foi produtivo, mas esperava termos conseguido alguma coisa mais concreta de tudo isto, pensava que íamos fazer uma descoberta ou assim.

 

– E vamos fazer, mais para a frente – disse Mellberg com um entusiasmo pouco frequente. De certeza que ainda durava a adrenalina de toda a atenção que lhe tinham dispensado enquanto lhes falava do caso Ingela Eriksson. Aquilo ia durar-lhe semanas, pensou Patrik. Mas também compreendia que deviam manter o ânimo; na reunião que iam ter no dia seguinte não podiam transmitir a sensação de estarem num beco sem saída.

 

– Talvez tenha razão, talvez a reunião de Gotemburgo acabe por nos conduzir a algo de concreto. O Palle vai destacar mais agentes para reverem o caso da Ingela Eriksson e, se todos colaborarmos, talvez consigamos descobrir o que se afasta do padrão no caso do desaparecimento da Minna Wahlberg.

 

Patrik carregou um pouco mais no acelerador. Mal podia esperar para chegar a casa, digerir tudo e talvez comentar com Erica. A mulher tinha jeito para estruturar aquilo em que ele só via o caos, e ninguém o ajudava tanto como ela quando se tratava de ordenar as suas ideias erráticas.

 

Além disso, Patrik tinha pensado pedir-lhe um favor. E não tencionava falar nisso a Mellberg, que era quem mais protestava por causa do mau hábito que Erica tinha de interferir nas investigações. Embora o próprio Patrik às vezes se zangasse com Erica, era inegável que a mulher tinha a capacidade de descobrir pontos de vista diferentes quando chegava a altura de analisar as situações. Palle pedira-lhe que aproveitasse essa capacidade. Além disso, de certa forma, Erica já estava envolvida no caso, tendo em conta que encontrara uma ligação entre Laila e o desaparecimento das raparigas. Patrik tinha ponderado se devia ou não mencioná-lo na reunião, mas depois decidiu que não o faria. Primeiro queria saber mais; caso contrário, havia o risco de que aquilo os distraísse e interferisse na investigação, em vez de contribuir para a fazer avançar. Erica não descobrira nada que apoiasse essa tese, mas Patrik sabia por experiência própria que, quando a mulher tinha um pressentimento, valia a pena dar-lhe ouvidos. Na verdade, raramente se enganava, o que por vezes podia ser extremamente irritante, embora muitíssimo útil. E, por isso, Patrik pensava pedir-lhe que ouvisse as conversas gravadas. Ainda tinham em mãos o desafio de encontrar um denominador comum entre as raparigas e talvez Erica conseguisse detetar algo que lhes tivesse passado despercebido a todos.

 

– Tinha em mente que podíamos encontrar-nos amanhã às oito para rever tudo – disse. – E estava a pensar pedir à Paula para estar presente, se ela puder.

 

No carro reinava o silêncio e Patrik tentava concentrar-se na condução. O asfalto estava demasiado escorregadio para o seu gosto.

 

– O que lhe parece, Bertil? – acrescentou ao ver que o chefe não reagia. – Podia perguntar à Paula se vê algum inconveniente em ir até à esquadra amanhã?

 

Um sonoro ronco foi a resposta que obteve. Olhou para o lugar do morto. Sim, senhor, Mellberg tinha mesmo adormecido. Devia estar exausto depois de um longo dia de trabalho. Por falta de hábito, sem dúvida.

 

FJÄLLBACKA, 1975

A SITUAÇÃO TORNARA-SE INSUSTENTÁVEL. AS PERGUNTAS DOS VIZINHOS E DAS AUTORIDADES COMEÇAVAM A SER DEMASIADAS E APERCEBERAM-SE DE QUE NÃO PODIAM CONTINUAR A MORAR ALI. DEPOIS DE AGNETA TER IDO VIVER PARA ESPANHA, A MÃE DE LAILA COMEÇOU A TELEFONAR-LHES CADA VEZ COM MAIS FREQUÊNCIA. SENTIA-SE SOZINHA E, QUANDO LHES FALOU DE UMA CASA QUE ESTAVA A SER VENDIDA A UM PREÇO EXCELENTE NOS ARREDORES DE FJÄLLBACKA, FOI FÁCIL TOMAR A DECISÃO. IAM VOLTAR A MUDAR-SE PARA LÁ.

LAILA SABIA QUE ERA UMA LOUCURA, QUE ERA PERIGOSO FICAR DEMASIADO PERTO DA MÃE. AINDA ASSIM, A CHAMA DA ESPERANÇA ACENDEU-SE DENTRO DELA E PENSOU QUE TALVEZ A MÃE OS PUDESSE AJUDAR, E QUE TUDO SERIA MAIS FÁCIL SE NA NOVA CASA, QUE FICAVA UM POUCO ISOLADA E LONGE DE VIZINHOS CURIOSOS, OS DEIXASSEM EM PAZ.

MAS A CHAMA DA ESPERANÇA NÃO TARDOU A EXTINGUIR-SE. A PACIÊNCIA DE VLADEK ESGOTAVA-SE E AS DISCUSSÕES SUCEDIAM-SE. DO QUE OS UNIRA UM DIA NÃO HAVIA QUALQUER VESTÍGIO.

NO DIA ANTERIOR, A MÃE APARECEU DE REPENTE LÁ EM CASA. TINHA A PREOCUPAÇÃO ESTAMPADA NO ROSTO E, NUM PRIMEIRO MOMENTO, LAILA TEVE VONTADE DE LANÇAR-SE NOS SEUS BRAÇOS, SER OUTRA VEZ PEQUENA E CHORAR COMO UMA CRIANÇA. ENTÃO SENTIU A MÃO DE VLADEK NO OMBRO, APERCEBEU-SE DA FORÇA CRUEL QUE POSSUÍA E A VONTADE PASSOU-LHE. COM TODA A CALMA DO MUNDO, VLADEK DISSE-LHE O QUE TINHA DE SER DITO, POR MAIS MAGOADA QUE A MÃE FICASSE AO OUVI-LO.

A MULHER DEU-SE POR VENCIDA E, QUANDO LAILA A OBSERVOU A DIRIGIR-SE PARA O CARRO COM OS OMBROS CURVADOS, DESEJOU CHAMÁ-LA AOS GRITOS, DIZER-LHE QUE A AMAVA, QUE PRECISAVA DELA. MAS AS PALAVRAS FICARAM-LHE CONGELADAS NA GARGANTA.

ÀS VEZES PERGUNTAVA-SE COMO PODIA TER SIDO INGÉNUA AO PONTO DE ACREDITAR QUE A MUDANÇA IA ALTERAR ALGUMA COISA. O PROBLEMA ERA DELES E NINGUÉM PODIA AJUDÁ-LOS. ESTAVAM SOZINHOS. E NÃO PODIA DEIXAR QUE A MÃE ENTRASSE NO INFERNO EM QUE VIVIAM.

ÀS VEZES ACONCHEGAVA-SE AO LADO DE VLADEK À NOITE E RECORDAVA OS PRIMEIROS ANOS, QUANDO DORMIAM ASSIM. TODAS AS NOITES DORMIAM ABRAÇADOS, EMBORA TIVESSEM CALOR POR CAUSA DO EDREDÃO. AGORA, LAILA JÁ NÃO DORMIA. PASSAVA AS NOITES ACORDADA AO LADO DE VLADEK, A OUVIR O SEU RESSONAR SUAVE E A SUA RESPIRAÇÃO. E A VER COMO ESTREMECIA A SONHAR E COMO OS OLHOS SE MOVIAM SEM DESCANSO DEBAIXO DAS PÁLPEBRAS.

 

LÁ FORA ESTAVA A NEVAR e Einar seguia como que hipnotizado a queda silenciosa dos flocos. No rés do chão ouviam-se os ruídos de sempre, os mesmos que ouvia dia após dia nos últimos anos: Helga, a andar de um lado para o outro na cozinha; o barulho do aspirador; o tilintar do serviço de porcelana ao ser colocado na máquina de lavar. As tarefas de limpeza sempiternas a que Helga dedicara toda a vida.

 

Caramba, como desprezava aquele ser fraco e miserável. Odiava as mulheres desde sempre. A mãe tinha sido a primeira e as outras não tardaram. A mãe odiou-o desde o primeiro momento, tentou cortar-lhe as asas, impedi-lo de ser ele mesmo. Mas há muito que estava enterrada.

 

Morreu de enfarte quando Einar tinha doze anos. Viu-a morrer e era uma das melhores recordações da sua vida. Guardava-a como um tesouro e apenas a saboreava em ocasiões especiais. Nesses momentos lembrava-se de cada pormenor como se alguém estivesse a exibir um filme: como a mãe levara a mão ao peito, como o rosto se distorcera de dor e de surpresa enquanto ia escorregando para o chão... Einar não pediu ajuda, mas ajoelhou-se ao seu lado para não perder um só dos seus gestos. Atentamente, examinou o rosto da mãe, que primeiro ficou rígido e, em seguida, adquiriu uma tonalidade cada vez mais azul por falta de oxigénio quando o coração parou de bater.

 

Anos antes, Einar quase tinha uma ereção quando pensava no tormento da mãe e no poder que sentira ter sobre a sua vida. Einar gostaria que isso também lhe acontecesse atualmente, mas o corpo negava-lhe esse prazer. Nenhuma das suas memórias conseguia proporcionar-lhe aquela sensação tão agradável do sangue a bombear-lhe lá em baixo. Agora, o único prazer que tinha era torturar Helga.

 

Respirou fundo.

 

– Helga! Helgaaa!

 

O ruído cessou no rés do chão. De certeza que Helga tinha deixado escapar um suspiro e Einar ficou divertido quando pensou nisso. Então ouviu passos nas escadas e não tardou a vê-la entrar.

 

– O saco precisa de ser mudado outra vez. – Ele próprio o tinha soltado para que começasse a pingar antes de chamar a mulher. Sabia que Helga sabia, e isso fazia parte do jogo, saber que, apesar disso, ela não tinha alternativa. Nunca teria casado com uma mulher que pensasse que tinha alternativas ou mesmo vontade própria. O homem era muito superior em tudo, ao passo que a única missão da mulher era ter filhos. Mas Helga nem disso fora capaz.

 

– Eu sei que o saco não se solta sozinho – disse Helga como se lhe tivesse lido a mente.

 

Einar não disse nada, limitando-se a olhar para a mulher. Não queria saber o que Helga pensava; fosse como fosse, teria de limpá-lo.

 

– Quem é que ligou? – perguntou.

 

– O Jonas. A perguntar pela Molly e pela Marta. – Com movimentos mais bruscos do que era habitual, Helga desabotoou-lhe a camisa.

 

– Ah sim, então porquê? – perguntou Einar, resistindo ao impulso de lhe dar uma boa bofetada.

 

Tinha saudades da capacidade de a controlar com a sua força, de fazer com que baixasse os olhos com ameaças mudas, de moldá-la, de que Helga se submetesse. Mas nunca permitiria que a mulher o controlasse. O corpo traíra-o; porém, mentalmente continuava a ser mais forte do que ela.

 

– Não as encontraram na escola de equitação. Umas raparigas que tinham aula estavam à espera, mas nem a Molly nem a Marta apareceram.

 

– É assim tão difícil fazer uma coisa como deve ser? – perguntou Einar, que estremeceu ao sentir um beliscão. – Que merda é que estás a fazer?

 

– Desculpa, foi sem querer – disse Helga. Faltava-lhe o tom submisso a que Einar estava habituado, mas decidiu deixar aquilo passar. Sentia-se mais cansado do que era habitual.

 

– Então e onde é que elas se meteram?

 

– Como queres que saiba? – respondeu Helga, que em seguida foi buscar água à casa de banho.

 

Einar estava surpreendido. Não era de todo aceitável que Helga lhe falasse naquele tom.

 

– Quando foi a última vez que o Jonas as viu? – gritou Einar, e ouviu a voz de Helga ao responder entrecortada pelo ruído da água a cair na bacia.

 

– Hoje de manhã, muito cedo. Estavam a dormir quando foi a uma urgência na quinta dos Leandersson. Mas esta manhã passaram por cá e não me falaram de ir a algum lado em especial. E o carro continua ali.

 

– Bem, então não devem estar longe. – Einar observou-a atentamente quando Helga regressou da casa de banho com a bacia cheia de água e um pano. – Mas a Marta deve compreender que não pode faltar assim às aulas. Claro que o Jonas se está a sair bem na profissão, mas não é assim que vão ficar ricos. – Fechou os olhos e ficou satisfeito ao sentir a água quente, assim como a sensação de limpeza.

 

– Eles lá se arranjam – disse Helga, torcendo o pano.

 

– Nem pensem que lhes vou emprestar dinheiro.

 

Einar levantara a voz só de pensar em abrir mão do dinheiro que tinha acumulado com tanto esforço e cuja existência Helga desconhecia. Ao longo dos anos tinha conseguido juntar uma boa maquia. Era bom no que fazia e as suas distrações preferidas não eram excessivamente caras. A ideia era que aquele dinheiro fosse um dia para Jonas, mas Einar temia que o filho, num acesso de generosidade, desse uma parte à mãe. Jonas era como ele, mas também tinha um lado fraco, que herdara de Helga. Einar não compreendia e preocupava-se com aquela faceta do filho.

 

– Já estou limpo? – perguntou depois de Helga lhe ter vestido uma camisa lavada e abotoado os botões com os dedos marcados por muitos anos de trabalho doméstico.

 

– Sim, até à próxima vez que te apetecer soltar o saco.

 

Levantou-se e ficou a olhar para o marido, que sentiu um formigueiro de irritação sob a pele. Que se passava com aquela mulher? Era como se estivesse a ver um inseto à lupa. Tinha o olhar frio, como que a examiná-lo e a avaliá-lo. E, acima de tudo, não havia qualquer vestígio de medo nos seus olhos.

 

Pela primeira vez em muitos anos, Einar experimentou algo que lhe desagradava profundamente: insegurança. Estava em desvantagem e sabia que deveria restabelecer a relação de poder entre os dois.

 

– Diz ao Jonas que venha cá – ordenou tão amargamente quanto podia. Mas Helga não respondeu. Continuou a olhar para ele sem reagir.

 

Molly tinha tanto frio que batia os dentes. Os olhos tinham-se habituado à escuridão e distinguia Marta como uma sombra. Tinha vontade de chegar-se a ela e aquecer-se um pouco, mas algo a detinha. A mesma coisa que sempre a detivera.

 

Sabia que Marta não gostava dela. Sabia-o desde que se conseguia lembrar e, na verdade, nunca tivera saudades do seu amor. Como é possível perder algo que nunca se teve? Além disso, Jonas estivera sempre presente. Era Jonas quem lhe sacudia a terra das feridas quando Molly caía a andar de bicicleta, quem afugentava os monstros debaixo da cama e a tapava à noite antes de dormir. Jonas perguntava-lhe pelos trabalhos de casa, explicava-lhe tudo o que sabia sobre os planetas e o sistema solar, e era ele quem sabia e podia tudo.

 

Molly nunca compreendeu porque é que Jonas vivia tão obcecado por Marta. Às vezes, quando estavam sentados à mesa da cozinha, via-os trocar olhares, via os seus olhos famintos. O que via Jonas? Que vira nela da primeira vez, naquele encontro de que tanto ouvira falar?

 

– Tenho frio – disse, observando a figura imóvel que se destacava no escuro. Marta não disse nada e Molly deixou escapar um soluço. – O que aconteceu? Porque estamos aqui? Onde estamos?

 

Não conseguia parar de fazer perguntas. Atropelavam-se-lhe no cérebro e a incerteza misturava-se com o medo. Voltou a puxar a corrente. Começara a formar-se uma ferida no tornozelo e fez um esgar de dor.

 

– Deixa isso, não vais conseguir soltar-te – disse Marta.

 

– Mas não podemos desistir assim sem mais nem menos, pois não? – Só para a contrariar, Molly voltou a puxar, mas a dor que sentiu imediatamente na perna castigou os seus esforços.

 

– Quem disse que vamos desistir? – A voz de Marta soou tranquila no escuro. Como conseguia manter aquela calma? A calma, em vez de a contagiar, assustava-a ainda mais e Molly sentiu que o pânico se apoderava dela.

 

– Socorroooo! – gritou, e o grito ecoou pelas paredes. – Estamos aqui! Socorroooo! – O eco dos gritos deu lugar a um silêncio ensurdecedor.

 

– Para lá com isso. Não adianta – disse Marta com a mesma calma fria de há pouco.

 

Molly tinha vontade de lhe bater e de a arranhar, de lhe puxar o cabelo, de a pontapear, qualquer coisa só para ver outra reação que não aquela serenidade arrepiante.

 

– Vão acabar por nos ajudar – disse por fim Marta. – Mas temos de esperar. Há que não perder o controlo. Está calada que vai correr tudo bem.

 

Molly não compreendia a que se estava Marta a referir. O que acabara de dizer parecia-lhe uma loucura. Quem é que as ia encontrar ali? Mas o medo não tardou a desaparecer. Conhecia Marta o suficiente para saber que, se dizia que alguém ia ajudá-las, era isso que ia acontecer. Sentou-se com as costas apoiadas na parede e pousou a cabeça nos joelhos. Ia fazer o que Marta lhe dizia.

 

– Bem, estou mesmo cansado. – Patrik passou a mão sobre o rosto. Mal acabara de entrar quando Gösta lhe ligou, certamente para que o pusesse a par de como a reunião tinha corrido; porém, depois de hesitar por um momento, decidiu ignorar o telemóvel. Se fosse alguma coisa urgente teriam de ir buscá-lo a casa. Em momentos como aquele não era capaz de pensar em mais do que uma coisa e tudo o que queria era rever o caso tranquilamente com Erica.

 

– Hoje à noite devias tentar descansar e mais nada – disse Erica.

 

Patrik sorriu. Já lhe tinha visto na expressão que ela tinha algo para lhe contar.

 

– Não, queria que me ajudasses num assunto – disse, e entrou na sala para cumprimentar os filhos. Eles aproximaram-se os três de Patrik e abraçaram-no à vez. Era uma das muitas facetas maravilhosas de se ter filhos: depois de um dia fora de casa, recebiam-nos como se tivéssemos dado a volta ao mundo.

 

– Okay, muito bem. – Patrik sentiu que Erica dizia aquilo com alívio. Perguntava-se o que quereria contar-lhe, mas primeiro precisava de comer alguma coisa.

 

Meia hora mais tarde, já tinha jantado e estava pronto para ouvir o que a mulher, tão ansiosamente, tinha para lhe transmitir.

 

– Hoje de manhã reparei que me tinha esquecido de esclarecer um facto muito importante – começou Erica a dizer, sentando-se à frente de Patrik. – Já tinha verificado se a Laila tinha recebido visitas ou chamadas telefónicas, e não recebeu nenhuma.

 

– Sim, lembro-me de me teres dito isso. – Patrik observou-a ao brilho das velas que ardiam sobre a mesa. Era mesmo bonita. Era como se às vezes se esquecesse, como se estivesse tão habituado a vê-la que já não reagia. Devia dizer-lhe isso com mais frequência, e dizer-lhe coisas bonitas, embora soubesse que Erica estava satisfeita com os momentos da vida quotidiana, as noites no sofá, com a cabeça apoiada no seu ombro, os jantares de sexta-feira, boa comida e um copo de vinho, as conversas na cama antes de adormecerem... Em suma, tudo o que Patrik também gostava na sua vida.

 

– Desculpa, o que estavas a dizer? – Apercebeu-se de que estava há algum tempo absorto nos seus pensamentos. Estava tão cansado que tinha dificuldade em concentrar-se.

 

– Então, que me tinha esquecido de uma das formas de as pessoas contactarem umas com as outras. Uma estupidez da minha parte, mas felizmente acabei por o recordar.

 

– Desembucha, amor! – disse Patrik em tom provocatório.

 

– Sim, claro. O correio. Esqueci-me de verificar se a Laila tinha enviado ou recebido alguma carta.

 

– Tendo em conta o teu estado de ansiedade, presumo que tenhas descoberto alguma coisa, certo?

 

Erica assentiu com entusiasmo.

 

– Sim, mas não sei o que significa. Espera, vou mostrar-te.

 

Erica levantou-se e dirigiu-se ao vestíbulo em busca da mala. Retirou dela alguns postais e pô-los em cima da mesa da cozinha.

 

– A Laila recebeu-os, mas não os quis e pediu ao pessoal do hospital que os deitasse fora. O que, felizmente, não fizeram. Como vês, todos têm paisagens de Espanha.

 

– Quem os enviou?

 

– Não faço ideia. Têm carimbos de diferentes partes da Suécia e não me ocorre nenhuma ligação entre eles.

 

– Que diz a Laila dos postais? – Patrik foi-os passando e lendo os carimbos, que eram azuis.

 

– Não falei com a Laila acerca dos postais. Primeiro quero tentar encontrar o fio condutor.

 

– Tens alguma teoria?

 

– Não. Tenho vindo a pensar nisso desde que mos deram. Mas, além de Espanha, não há outro denominador comum.

 

– A Laila não tinha uma irmã que vivia em Espanha?

 

Erica assentiu e observou um dos postais. Um toureiro a agitar uma capa cor-de-rosa em frente de um touro agressivo.

 

– Sim, mas parece ser verdade que não se falaram durante todos estes anos. Além disso, os postais têm carimbos da Suécia e não de Espanha.

 

Patrik franziu a testa e tentou outra abordagem para encontrar uma ligação.

 

– Assinalaste as cidades num mapa?

 

– Não, não tinha pensado nisso. Anda, vamos ver no mapa que tenho no escritório.

 

Saiu da cozinha com os postais na mão. Patrik levantou-se e seguiu-a com passos cansados.

 

Já no escritório, Erica virou um dos postais, olhou para o carimbo do correio e, em seguida, para o mapa. Quando encontrou a cidade que procurava, pôs uma cruz ao lado do nome e fez o mesmo com os outros três postais. Patrik observava-a em silêncio, encostado à ombreira da porta com os braços cruzados. Do rés do chão ouviam-se na televisão os gritos do pai de Emil de Lönneberga25, que o perseguia para que fosse para o alpendre.

 

– Já está! – Erica deu um passo atrás e olhou para o mapa com ar crítico. Tinha assinalado a vermelho as cidades onde as raparigas tinham desaparecido e estava agora a marcar a azul os lugares de onde tinham sido enviados os postais. – Bem, continuo sem perceber nada.

 

Patrik entrou no escritório e pôs-se ao lado de Erica.

 

– Também não vejo nenhum padrão.

 

– E hoje, na reunião, não disseram nada que nos possa ajudar? – perguntou Erica sem tirar os olhos do mapa.

 

– Nada de nada – respondeu Patrik, encolhendo os ombros com resignação. – Mas, enfim, já que estás tão envolvida, posso contar-te o que dissemos. Pode ser que te lembres de alguma coisa que nos tenha passado. Anda, vamos conversar lá para baixo.

 

Patrik dirigiu-se às escadas e começou a descer enquanto continuava a falar com Erica por cima do ombro.

 

– Como te estava a dizer, tinha pensado pedir-te ajuda numa tarefa. Todos os distritos policiais filmaram as conversas com as famílias das raparigas e temos cópias de todo o material. Antes só tínhamos as transcrições. Portanto, gostava que visses comigo essas gravações para me dizeres o que te for ocorrendo.

 

Erica seguia atrás de Patrik e pôs-lhe uma mão no ombro.

 

– Sim, claro. Podemos fazer isso depois de os miúdos adormecerem. Mas primeiro conta-me o que disseram hoje para eu ficar a par de tudo.

 

Sentaram-se outra vez na cozinha e Patrik interrogou-se se não seria boa ideia ver o que estava no congelador em matéria de gelados.

 

– O colega de Gotemburgo queria que me contasses outra vez a tua conversa com a mãe da Minna. Temos todos a sensação de que o caso dela é diferente e qualquer coisa que te ocorra, por mais insignificante que possa parecer, pode ajudar.

 

– Claro, mas eu contei-te logo depois de falar com ela e agora já não tenho tudo tão presente.

 

– Conta-me tudo aquilo de que te lembres – insistiu Patrik, que ficou contentíssimo ao constatar que Erica se dirigira ao frigorífico e trazia agora uma embalagem de gelado Ben & Jerry. Às vezes perguntava a si próprio se os casais não aprenderiam a ler os pensamentos um do outro após algum tempo de convivência.

 

– Olha, olha, com que então a comer gelado! – Maja entrou na cozinha e ficou a olhar para os dois com ar furioso. – É muito injusto!

 

Patrik viu a filha a encher o peito de ar e soube logo o que aí vinha.

 

– Anton, Noel! A mamã e o papá estão a comer gelado e não nos disseram nada.

 

Patrik suspirou e levantou-se. Foi buscar uma grande embalagem de gelado e três taças e começou a servir os filhos. Havia que saber quando desistir.

 

Acabara de encher a terceira taça e já estava ansioso por se servir de uma boa dose de Chocolate fudge brownie quando bateram à porta. Insistentemente.

 

– Mas o que é isto? – olhou para Erica e foi abrir a porta. Ali estava Martin, o rosto tenso.

 

– Pode saber-se por que raio não atendes o telemóvel? Andámos doidos à tua procura!

 

– Mas o que aconteceu? – perguntou Patrik, com um nó no estômago.

 

Martin olhou para ele muito sério.

 

– Jonas Persson telefonou. A Molly e a Marta desapareceram.

 

Patrik ouviu Erica conter a respiração por detrás dele.

 

Jonas estava sentado no sofá da sala e sentia a preocupação a aumentar. Não conseguia perceber o que estava ali a fazer a Polícia. Não deviam estar lá fora à procura delas? Cambada de idiotas incompetentes.

 

Como se lhe conseguisse ler a mente, Patrik Hedström aproximou-se dele e pôs-lhe a mão no ombro.

 

– Vamos fazer uma busca nas imediações da quinta, mas para entrarmos no bosque temos de esperar até que haja luz do dia. Precisamos que nos ajude a fazer uma lista dos amigos da Marta e da Molly. Talvez possa começar a telefonar a todos eles, não?

 

– Já telefonei a toda a gente que me veio à cabeça.

 

– Sim, mas seja como for, faça a lista. Pode haver nomes que não lhe tenham ocorrido. Também tinha pensado ir falar com a sua mãe, pode ser que ela se lembre de mais alguma coisa que tenham dito sobre o que iam fazer depois do meio-dia. A Marta tem uma agenda? E a Molly? Nestas alturas, qualquer pormenor pode ser útil.

 

– A Marta utiliza a agenda do telemóvel e suponho que anda com ele, embora não atenda os meus telefonemas. Nunca sai de casa sem o telemóvel. O de Molly está aqui, no quarto dela. E realmente não sei se tem alguma agenda. – Jonas abanou a cabeça. Bem vistas as coisas, que sabia afinal da vida de Molly? Que sabia da filha?

 

– Okay – disse Patrik, voltando a pôr-lhe a mão no ombro. Jonas ficou surpreendido por aquele gesto resultar tão bem. Aquela mão transmitia alguma tranquilidade.

 

– Posso ir convosco a casa da minha mãe? – Jonas levantou-se para deixar claro que, na realidade, não se tratava de uma pergunta. – Ela fica muito nervosa e está preocupadíssima com o que aconteceu.

 

– Sim, sim – disse Patrik, dirigindo-se à porta.

 

Jonas seguiu-os e ambos atravessaram silenciosamente o pátio a caminho da casa de Einar. Jonas deu umas passadas rápidas, adiantou-se a Patrik escadas acima e abriu a porta.

 

– Sou eu, mãe. E a Polícia, que quer fazer-te algumas perguntas.

 

Helga apareceu no corredor.

 

– A Polícia? Que quer a Polícia? Aconteceu-lhes alguma coisa?

 

– Não há nenhuma novidade – disse Patrik. – Viemos cá porque a Marta e a Molly continuam desaparecidas e o Jonas não conseguiu localizá-las. Mas estas coisas acabam quase sempre por revelar-se mal-entendidos. De certeza que estão em casa de uma amiga e se esqueceram de os avisar.

 

Helga pareceu descontrair-se um pouco e assentiu brevemente.

 

– Sim, deve ser isso. Não compreendo é porque é que se tinha de incomodar a Polícia com isto. Já devem ter trabalho de sobra.

 

Afastou-se e dirigiu-se à cozinha, onde continuou a pôr os pratos na máquina de lavar louça.

 

– Senta-te, mãe – disse Jonas.

 

A preocupação ia aumentando. Para Jonas, aquilo não encaixava de todo. Onde estariam? Revira mentalmente as conversas que tivera com Marta nos últimos dias. Não houvera nada que lhe indicasse que havia algum problema. Ao mesmo tempo, lá estava o medo, o mesmo que sentira desde o primeiro encontro de ambos: o medo e a convicção de que, um dia, Marta ia abandoná-lo. Isso assustava-o mais do que qualquer outra coisa no mundo. A perfeição estava condenada a sucumbir. Era preciso alterar o equilíbrio. Essa era a filosofia que tinha abraçado. Como pôde chegar a pensar que ficaria de fora, que não se lhe aplicariam as mesmas regras?

 

– Quanto tempo estiveram em sua casa? – Patrik fazia as perguntas num tom suave e Jonas ouvia-as com os olhos fechados, tal como as respostas. Podia ouvir pelo tom de voz que a mãe não gostava da situação em que se encontrava. Jonas sabia que Helga acreditava que deviam ter resolvido o assunto sem envolver a Polícia. Naquela família resolviam os assuntos sozinhos.

 

– Não tinham planos, apenas que iam treinar mais tarde. – Helga olhou para o teto enquanto pensava, um hábito que Jonas lhe conhecia desde sempre. Todos aqueles gestos familiares, tudo o que se repetia uma e outra vez, num ciclo eterno. Aceitara formar parte desse ciclo e Marta também. Mas, sem ela, não queria nem podia. Sem ela, nada faria sentido.

 

– Não comentaram se iam a casa de alguém? Ou se iam fazer algum recado? – prosseguiu Patrik.

 

Helga abanou a cabeça.

 

– Não. Se assim fosse teriam levado o carro, porque a Marta era muito comodista.

 

– Era? – disse Jonas, apercebendo-se do tom esganiçado com que o dissera. – Quis dizer «é», não foi?

 

Patrik olhou-o, surpreendido. Jonas apoiou os cotovelos na mesa e repousou a cabeça nas mãos.

 

– Peço desculpa, estou acordado desde as quatro da manhã e tenho os sonos trocados. Não é costume da Marta faltar à escola, muito menos sem avisar.

 

– De certeza que devem estar a chegar e a Marta vai ficar furiosa quando souber a confusão que arranjaste – disse Helga para o confortar, mas num tom que Patrik não conseguiu de todo interpretar.

 

Jonas gostaria de acreditar naquilo, mas era como se toda a sua razão se opusesse a essa ideia. Que aconteceria se a mulher e a filha desaparecessem? Nunca seria capaz de explicar a ninguém o tipo de unidade que ele e Marta formavam, que os dois eram como um só ser. Que respiravam em uníssono desde o dia em que se conheceram. Molly era sangue do seu sangue, porém, sem Marta, não era nada.

 

– Tenho de ir à casa de banho – disse antes de se levantar.

 

– Vai ver que a sua mãe tem razão – disse Patrik enquanto Jonas se afastava.

 

Jonas não disse nada. Na verdade, não precisava de ir à casa de banho, mas antes de alguns minutos para conseguir acalmar-se, para que não percebessem que tudo estava prestes a desmoronar-se.

 

No andar de cima ouviam-se os gemidos e os suspiros do pai. Sem dúvida que estava a queixar-se mais alto do que o normal só porque tinha ouvido vozes lá em baixo. Mas Jonas não tencionava subir. Numa altura daquelas, Einar era a última pessoa à face da Terra que lhe apetecia ver. Quando se aproximava do pai sentia um calor escaldante, como se estivesse perto de um incêndio. Foi sempre assim. Helga tinha tentado ser o frio entre os dois, mas falhara rotundamente. Agora só restavam algumas brasas e Jonas não sabia quanto tempo poderia continuar a ajudar o pai a mantê-las vivas. Quanto tempo o devia fazer.

 

Entrou na casa de banho e encostou a testa ao espelho. Sentiu uma frescura agradável e as faces a arder. Fechou os olhos e as imagens passaram a toda a velocidade, todas as recordações da vida que partilhara com Marta. Fungou e baixou-se para cortar uma tira de papel higiénico, mas já não havia, restando apenas o rolo de papelão. Do outro lado da porta ouvia-se o rumor de vozes vindo da cozinha, misturado com os ruídos de Einar no andar de cima. Agachou-se e abriu o armário da casa de banho onde Helga guardava o papel higiénico.

 

Ficou a olhar para a pilha de rolos. Entre eles havia algo escondido. De início não percebeu o que era. Mas então, de repente, compreendeu tudo.

 

Erica tinha-se oferecido para ajudar nas buscas, mas Patrik lembrou-lhe o óbvio: alguém tinha de ficar em casa com os filhos. Relutantemente, Erica deu-lhe razão e pensou que, nesse caso, passaria a tarde a ver as gravações das conversas com os familiares das raparigas desaparecidas. Estavam no vestíbulo, num saco, mas Erica sabia por experiência própria que não podia sentar-se a vê-las antes de os filhos estarem a dormir nas suas caminhas. Por isso, adiou a ideia das gravações e sentou-se no sofá com as crianças.

 

Tinha posto outro filme de Emil e sorriu com as suas travessuras. Chegou-se mais aos filhos, mas era difícil, uma vez que só tinha dois lados e eles eram três, e todos queriam sentar-se ao lado dela... Por fim, sentou Anton no colo e, assim, Maja podia sentar-se de um lado e Noel do outro. Encostaram-se os dois à mãe e Erica sentiu uma imensa gratidão por tudo o que vida lhe dera. Pensou em Laila e perguntou a si própria se alguma vez teria sentido o mesmo pelos filhos. Os seus atos indicavam o contrário.

 

Enquanto Emil entornava sopa de arando na cara da Sr.a Petrell, sentiu que os miúdos iam relaxando e, por fim, ouviu o som inconfundível das suas respirações enquanto dormiam. Libertou-se da montanha de crianças, levou os filhos para cima à vez e deitou-os. Ficou alguns segundos no quarto dos gémeos, vendo aquelas cabeças louras na almofada, tão confiantes, tão felizes, tão inconscientes do mal que havia no mundo. Depois saiu silenciosamente do quarto e dirigiu-se ao vestíbulo em busca das gravações e voltou a sentar-se no sofá. Observou os DVD cuidadosamente rotulados e decidiu vê-los pela ordem pela qual as que as raparigas tinham desaparecido.

 

Sentiu uma pontada de compaixão no estômago ao ver a família de Sandra Andersson, os rostos devastados enquanto tentavam responder à Polícia, o desejo de ajudar e, ao mesmo tempo, o tormento que lhes provocavam as perguntas. Havia algumas que a Polícia repetia uma e outra vez e, embora Erica percebesse o motivo, não podia deixar de compreender a frustração da família por não ser capaz de lhes responder.

 

Continuou com a segunda gravação e depois com a terceira, tentando manter os olhos abertos e os sentidos alerta. Começou a sentir-se dominada pelo desânimo ao ver que não conseguia captar aquela sensação indefinível que procurava. Compreendia que, ao pedir-lhe ajuda, Patrik estava a tentar a sua sorte, mas que na verdade não acreditava que a mulher encontrasse o que quer que fosse. No entanto, albergara a esperança de vir a ter aquele rasgo de génio que lhe permitiria ver tudo com clareza e que faria com que as peças encaixassem de repente. Já tinha acontecido e sabia que poderia voltar a acontecer, porém, naquele caso, apenas via famílias destroçadas e angustiadas com uma data de perguntas sem resposta.

 

Desligou o DVD. O sofrimento que se refletia nos olhos daqueles pais tinha-se-lhe enfiado debaixo da pele. A sua dor irradiava do ecrã da televisão, via-se nos gestos, nas vozes, que de vez em quando quebravam enquanto tentavam conter as lágrimas. Não tinha forças para continuar a ver, por isso decidiu telefonar à irmã para conversar um pouco.

 

Anna parecia cansada. Erica ficou surpreendida ao ouvir que estava na escola de equitação quando descobriram que Marta e Molly tinham desaparecido. Por seu lado, contou a Anna que a Polícia já estava a tratar do assunto. Depois conversaram sobre os últimos desenvolvimentos, falaram da vida quotidiana que, apesar de tudo, seguia o seu curso. Não perguntou a Anna como estava. Naquela noite, mais do que nunca, não tinha forças para ouvir a irmã mentir, dizendo estar tudo bem, por isso deixou-a continuar a falar e a fingir que tudo corria sobre rodas.

 

– E tu, como estás? – perguntou Anna.

 

Erica não sabia como expressá-lo com exatidão. Disse-lhe o que estava a fazer, tentando ao mesmo tempo evitar entrar em sentimentalismos.

 

– É tão estranho ver aquelas gravações... É como partilhar a dor daquelas famílias, senti-la e, pelo menos em certa medida, compreender como deve ser terrível passar por uma coisa daquelas. Ao mesmo tempo, não posso deixar de sentir um alívio enorme ao pensar que os meus filhos estão a dormir descansados e seguros nas suas caminhas.

 

– Sim, podes crer, graças a Deus que está tudo bem com os nossos filhos. Sem eles, não sei como teria resistido. Só é pena que...

 

Anna deixou a frase a meio, mas Erica sabia o que a irmã queria dizer: que devia haver mais um filho.

 

– Tenho de desligar – disse Anna, e Erica teve vontade de lhe perguntar se Dan lhe dissera que lhe tinha telefonado de manhã. Mas não o fez. Seria melhor esperar e deixá-los fazer as coisas ao seu próprio ritmo.

 

Quando se despediram, depois de desligar, Erica levantou-se e pôs o DVD que se seguia. Era a conversa com a mãe de Minna e reconheceu no ecrã o apartamento que visitara há alguns dias. Também reconheceu a expressão de desalento no rosto de Nettan. Tal como os outros pais, também ela tentava responder às perguntas da Polícia, igualmente ansiosa por colaborar, mas Nettan era muito diferente dos membros das outras famílias, tão bem arranjados e aprumados, quase demasiado. Nettan tinha o cabelo baço e despenteado, e usava o mesmo casaco velho que envergava quando Erica a foi visitar. Além disso, não parou de fumar durante toda a conversa e Erica ouviu os polícias tossirem de vez em quando por causa do fumo.

 

Em larga medida, formulavam as mesmas perguntas que ela própria fizera, o que a ajudou a refrescar a memória para mais tarde poder contar tudo outra vez a Patrik. A grande diferença era que tinha podido folhear os álbuns de fotografias e, graças a isso, tivera a oportunidade de forjar uma imagem mais pessoal de Minna e de Nettan. A Polícia, por seu lado, não parecia ter-se preocupado com esse lado pessoal. A Erica, no entanto, o que mais interessava num caso eram as pessoas envolvidas e afetadas. Como seria a sua vida privada, como seriam os seus relacionamentos? Que recordações tinham? Adorava ver os álbuns de fotografias, observar as festas e a vida quotidiana através do olho humano que estava por detrás da objetiva. Era a pessoa que tirava a fotografia quem escolhia o motivo e o mais interessante de tudo era examinar como queria relatar a sua vida.

 

No caso de Nettan, era evidente a importância que atribuía aos diferentes homens que iam e vinham. O desejo de ter uma família, um marido e um pai para Minna, era evidente em cada página. As fotografias de Minna aos ombros de um homem, Nettan a tomar banhos de sol na praia na companhia de outro, das duas com o último namorado de Nettan à frente de um carro carregado com as esperanças de umas férias maravilhosas. Tudo isso era importante para Erica, embora a Polícia não o tenha achado relevante.

 

Voltou a mudar de DVD. Naquele, apareciam os pais e o irmão de Victoria. Mas Erica também não encontrou nele nada que lhe chamasse a atenção. Olhou para o relógio. Oito horas. De certeza que Patrik ia chegar tarde, se é que chegaria a vir para casa. Sentia-se muito desperta, por isso decidiu ver todas as gravações de novo, prestando ainda mais atenção.

 

Um par de horas mais tarde, tinha terminado, concluiu que não tinha descoberto nada de novo e decidiu ir deitar-se. Não fazia sentido esperar por Patrik acordada; nem sequer lhe tinha telefonado, por isso devia estar ocupadíssimo. Teria dado qualquer coisa para saber o que estava a acontecer, mas tantos anos a viver com um polícia tinham-lhe ensinado que, às vezes, a única opção era conter a curiosidade e esperar pacientemente. E aquele era um desses momentos.

 

Cansada e com a cabeça cheia de impressões depois de ter assistido às gravações, Erica tapou-se até ao queixo. Tanto ela como Patrik adoravam dormir sem aquecimento e o quarto estava sempre ligeiramente frio, por isso sabia ainda melhor estar debaixo do edredão. Sentiu quase imediatamente o torpor a apoderar-se dela e, naquela terra de ninguém entre o sono e a vigília, o cérebro continuou a visualizar as imagens dos filmes. Iam aparecendo desordenadamente para logo serem substituídas por outras novas. O corpo pesava-lhe cada vez mais e, quando começou a cair no sono, o fluxo de imagens passou com mais lentidão. O projetor do cérebro deteve-se numa imagem. Erica ficou imediatamente desperta.

 

Na esquadra reinava uma atividade febril. Patrik tinha planeado convocar uma reunião de emergência para coordenar as buscas para encontrar Molly e Marta, mas o trabalho já estava em marcha. Gösta, Martin e Annika tinham-se empenhado a fundo e estavam a contactar amigos e conhecidos, as colegas de Molly, as raparigas da escola de equitação e outras que apareciam na lista que Jonas lhes fornecera. Esses nomes conduziam-nos a outros que não possuíam, porém, até ao momento, não tinham falado com ninguém que soubesse onde se tinham metido Molly e a mãe. Já começava a ser tão tarde que havia cada vez menos razões lógicas que explicassem a ausência de ambas.

 

Patrik seguiu pelo corredor até à cozinha. Quando passou pelo gabinete de Gösta, viu pelo canto do olho o colega dar um salto na cadeira.

 

– Ei, espera!

 

Patrik estacou.

 

– Que foi?

 

Gösta aproximou-se dele com as faces coradas.

 

– Sabes, hoje aconteceu uma coisa quando estavas fora. Não quis falar acerca disso enquanto estávamos em casa do Jonas, mas o Pedersen ligou. O sangue no cais era do Lasse.

 

– Ou seja, o que pensávamos.

 

– Sim, mas há mais.

 

– Então e que mais é que o Pedersen descobriu? – perguntou Patrik sem perder a calma.

 

– O Pedersen lembrou-se de comparar o sangue com o ADN da ponta de cigarro que enviámos para análise. Estás a ver, aquela que eu encontrei no jardim da vizinha da Victoria.

 

– E...? – Patrik ficara tenso.

 

– Coincidem – disse Gösta, que ficou a aguardar a reação de Patrik com ar triunfante.

 

– Queres dizer que era o Lasse que estava lá a vigiá-la? – Ficou a olhar para Gösta, atordoado, a tentar juntar todas as peças soltas. – Era o Lasse que estava a espiar a Victoria?

 

– Sim. E de certeza que também foi o autor daquelas cartas ameaçadoras. Mas, infelizmente, nunca o saberemos, porque o Ricky deitou-as fora.

 

– Quer dizer que o Lasse estava a chantagear alguém que tinha uma relação com a Victoria, relação essa de que o Lasse estava ao corrente – disse Patrik, pensando em voz alta. – Alguém que estava interessado em manter isso em segredo e que não se importava sequer de pagar para o conseguir.

 

Gösta assentiu.

 

– Tal como eu pensava.

 

– Quer dizer que foi o Jonas? – perguntou Patrik.

 

– Também fiquei convencido disso, mas o Ricky estava enganado.

 

Patrik ouviu Gösta atentamente e percebeu que se esfumavam todas as suspeitas que tivera até àquele momento.

 

– Temos de dizer aos outros. Avisas o Martin? Eu vou ligar à Annika.

 

Poucos minutos mais tarde, estavam todos na cozinha. Do lado de fora da janela era noite cerrada e a neve caía lentamente. Martin estava a fazer café.

 

– Onde raio está o Mellberg? – perguntou Patrik.

 

– Esteve aqui um bocado, mas depois foi jantar. De certeza que adormeceu no sofá – respondeu Annika.

 

– Okay, teremos de continuar sem ele. – A adrenalina deixou-o acelerado. Por mais irritante que fosse o facto de Mellberg encontrar sempre maneira de se esquivar, Patrik estava consciente de que trabalhariam melhor sem ele.

 

– O que aconteceu? – perguntou Martin.

 

– Temos novas informações que podem ser relevantes para encontrar a Molly e a Marta. – Patrik ouviu o tom bombástico da sua resposta, mas aquilo costumava acontecer-lhe em situações graves como aquela. – Podes contar-nos o que descobriste, Gösta?

 

Gösta aclarou a garganta e explicou como tinham chegado à conclusão de que só podia ter sido Lasse quem tinha estado a vigiar Victoria.

 

– Descobriu por acaso que a Victoria estava a ter um caso com alguém. E, como o Lasse deve ter pensado que essa relação era moralmente reprovável, começou a enviar cartas ameaçadoras ao mesmo tempo que dava início à chantagem.

 

– Então não terá também sido o Lasse que raptou a Victoria? – perguntou Martin.

 

– É uma teoria, mas o Lasse não encaixa no perfil que Struwer descreveu e custa-me a crer que possa ter feito uma coisa dessas – disse Patrik.

 

– Mas quem é que o Lasse estava a chantagear? – perguntou Annika. – Só podia ser o Jonas, não é? Uma vez que a Victoria estava com ele, claro.

 

– Sim, essa também foi a conclusão que eu tirei. Mas... – Gösta fez uma pausa dramática e Patrik viu que o colega estava satisfeito por ter captado a atenção de todos.

 

– Mas não era ele – disse Patrik, fazendo sinal a Gösta para que prosseguisse.

 

– Como todos sabem, o Ricky pensou que a irmã andava com o Jonas, mas a mãe da Victoria conhecia-lhe uma faceta ignorada pelos demais. A Victoria não gostava de rapazes.

 

– O quê?! – exclamou Martin, erguendo-se na cadeira. – Mas como é possível que mais ninguém soubesse? Isso não foi falado quando conversámos com as amigas e as colegas. E como é que a mãe dela sabia?

 

– Então, descobriu, coisas de mães. Parece que viu qualquer coisa num dia em que a Victoria levou uma amiga lá a casa. E depois conversou com ela sobre o assunto, para que a Victoria soubesse que podia falar abertamente em família. Mas a Victoria ficou muito nervosa e pediu-lhe para não contar nada, nem ao Ricky nem ao pai.

 

– Claro que para ela era difícil – disse Annika. – Não deve ser nada fácil assumir isso, muito menos naquela idade e numa pequena cidade como Fjällbacka.

 

– Sim, claro. Mas a minha teoria é que a Victoria ficou muito nervosa porque, na altura, tinha um relacionamento com uma pessoa que os pais não aprovariam. – Gösta esticou o braço em busca do copo.

 

– Mas com quem? – perguntou Annika.

 

Martin franziu a testa.

 

– Era a Marta? Isso pode explicar a discussão daquele dia entre o Jonas e a Victoria. Talvez fosse a Marta.

 

Gösta assentiu.

 

– Isso significa que o Jonas sabia, de certeza.

 

– Ou seja, podemos supor que o Lasse chantageava a Marta. E que a Marta se fartou de lhe pagar e o matou? Ou que o Jonas ficou tão furioso por saber que se encarregou pessoalmente do assunto? Ou haverá uma terceira possibilidade que nos escapa? – Martin coçava a nuca, pensativo.

 

– Não, acredito mais em qualquer uma das duas primeiras opções – disse Patrik, olhando para Gösta, que concordou.

 

– Nesse caso, temos de falar novamente com o Jonas – afirmou Martin. – E não terão a Marta e a Molly sido levadas pela mesma pessoa que raptou as outras raparigas? Não terá a Marta levado a Molly, não terá fugido para escapar à acusação de homicídio? Pode ser que o Jonas saiba onde estão, não é? Talvez esteja a fazer teatro.

 

– Nesse caso é um ator magnífico... – começou a dizer Patrik, mas foi interrompido por passos que se aproximavam pelo corredor. Surpreendido, viu a mulher entrar na sala.

 

– Olá – disse Erica. – Estava aberta, por isso entrei.

 

Patrik encarou-a, perplexo.

 

– Que estás aqui a fazer? E onde estão os miúdos?

 

– Telefonei à Anna e pedi-lhe para ficar com eles.

 

– Mas porquê? – perguntou Patrik. Mas depois lembrou-se de que, em abono da verdade, tinha pedido um favor a Erica. Teria descoberto alguma coisa? Perguntou-lhe com o olhar. E Erica assentiu.

 

– Encontrei o denominador comum entre as raparigas. E acho que sei porque é que a Minna se afasta do padrão.

 

 

A hora de se deitar era o momento do dia que Laila mais detestava. Na escuridão da noite, caía-lhe em cima a vida, tudo aquilo que conseguia inibir durante o dia. À noite, o mal conseguia alcançá-la novamente. Sabia que estava lá fora, algures, que era tão real como as paredes do quarto e como aquele colchão demasiado duro em que estava deitada.

 

Laila tinha os olhos cravados no teto. O quarto estava completamente às escuras e, mesmo antes de adormecer, sentia-se por vezes como se estivesse a flutuar no espaço e aquele vazio negro ameaçasse engoli-la.

 

Era tão estranho imaginar que Vladek estava morto... Ainda lhe custava compreendê-lo. Ainda podia ouvir os sons do dia em que se conheceram: risos alegres, a música dos carrosséis, ruídos de animais completamente novos para ela... E os cheiros eram tão intensos agora como então: pipocas, serradura, relva e suor. Mas a memória mais forte era a da voz dele. Preencheu-lhe o coração mesmo antes de o ter visto. Quando os olhares de ambos se encontraram, Laila teve uma certeza que, um segundo mais tarde, também viu nos olhos de Vladek.

 

Tentou recordar-se se alguma vez pressentira a desgraça à qual aquele encontro a conduziria, mas não lhe ocorria nada. Pertenciam a mundos completamente diferentes, viviam vidas muito diferentes e claro que tiveram de ultrapassar algumas dificuldades, mas ninguém poderia ter previsto a catástrofe que os esperava. Nem mesmo Krystyna, a adivinha do circo. Ela, que tudo via, estaria cega naquele momento? Ou viu tudo, mas preferiu acreditar que estava enganada perante um amor como o deles?

 

Na altura, nada lhes parecia impossível. Nada lhes parecia mal, nem sequer estranho. Apenas lhes importava criar um futuro em comum; e a vida fê-los acreditar que iam conseguir. Talvez por isso a desilusão que sobreveio tenha sido maior, e por isso tenham enfrentado o que aconteceu de maneira injustificável. Laila soube desde o início que aquela atitude não era a correta, mas o instinto de sobrevivência impôs-se à razão. Fosse como fosse, era tarde de mais para se arrepender. Tudo o que podia fazer era continuar para ali, deitada no escuro, a repensar os seus erros.

 

Jonas ficou surpreendido por estar tão calmo. Preparou tudo tranquilamente. Havia muitos anos de recordações por onde escolher, e queria escolher bem, porque depois de ter partido não haveria volta a dar. Além disso, achava que não havia pressa. A incerteza era o combustível da ansiedade, mas agora que sabia onde Marta estava, podia fazer planos com uma frieza que lhe permitiria manter o cérebro desperto e lúcido.

 

Sentado de cócoras, semicerrou os olhos na obscuridade. Fundira-se uma lâmpada e não tinha tido tempo de a substituir. Aquele descuido irritava-o. Era preciso estar sempre preparado, ter sempre tudo em ordem. Tudo, para evitar qualquer erro.

 

Quando se levantou, bateu com a cabeça no ponto mais baixo do teto. Praguejou e, por um instante, permitiu-se uma pausa para aspirar conscientemente o ar. Conservavam tantas recordações daquele sítio... Mas as recordações não tinham de estar associadas a um lugar, poderiam revivê-las uma e outra vez. Tocou na mala. Se os momentos maravilhosos tivessem peso, seria impossível erguê-la. No entanto, sentia-a leve como uma pluma, o que o surpreendeu.

 

Subiu os degraus com grande cautela. Devia tentar não deixar cair a mala. Continha não só a sua vida, mas uma vida partilhada em perfeita harmonia.

 

Até àquele momento, seguira os passos de outro. Continuara algo que já estava em andamento, sem imprimir uma marca própria. Mas era a sua vez de avançar e de deixar o passado para trás. Não tinha medo, pelo contrário. De repente, viu tudo com enorme clareza. Sempre tivera o poder de mudar as circunstâncias, de romper com o passado e de construir algo próprio e melhor.

 

Era uma ideia vertiginosa e, uma vez lá fora, fechou os olhos e respirou o ar frio da noite. Sentiu que o chão se mexia sob os pés e esticou os braços para conservar o equilíbrio. Ficou assim durante algum tempo. Depois baixou os braços e abriu lentamente os olhos.

 

De repente teve uma ideia e dirigiu-se aos estábulos. Empurrou a porta pesada, acendeu a luz e deixou a mala com aquele conteúdo tão precioso encostada à parede. Depois abriu as cavalariças e libertou os animais. Soltou as cabeçadas e, um a um, os cavalos foram saindo, admirados. Pararam no pátio, farejando o ar, e relincharam antes de começarem a afastar-se na noite, abanando as caudas. Jonas sorriu quando os viu desaparecer na escuridão. Poderiam desfrutar de alguns minutos de liberdade antes de voltarem a apanhá-los. Ele, por seu lado, estava a caminho de uma nova liberdade, e não pensava deixar-se apanhar.

 

Era uma paz e uma bênção estar naquela casa da sua infância acompanhada pelos filhos que dormiam no andar de cima. Aquelas paredes não ecoavam culpas. Havia apenas memórias de uma infância que, graças a Erica, a irmã, e a Tore, o pai, fora feliz e segura. Anna já nem sequer sentia tristeza nem raiva pela estranha frieza da mãe. Já conheciam a explicação e, desde então, Anna apenas sentia compaixão, por a mãe ter testemunhado atrocidades que a impediram de amar as filhas. Acreditava que, apesar de tudo, a mãe gostara delas, simplesmente não fora capaz de demonstrar o seu amor. Esperava que Elsy as estivesse a observar do céu e que soubesse que elas a compreendiam, que lhe tinham perdoado e que a amavam.

 

Levantou-se do sofá e começou a pôr um pouco de ordem na sala de estar. Era surpreendente como tudo estava limpo e sorriu ao pensar em Kristina e em Bob o Construtor. As sogras eram mesmo uma classe à parte. A mãe de Dan era quase o oposto de Kristina, quase demasiado discreta, e pedia sempre desculpa por incomodar sempre que ia lá a casa. A questão era saber qual dos dois tipos era melhor. Provavelmente, com as sogras passava-se o mesmo que com os filhos: era preciso aceitá-los tal como eram. E uma mulher escolhia o marido, mas não a sogra.

 

Ana escolhera Dan do fundo do coração e depois tinha-o traído. Só de pensar no que fizera ficava com náuseas. Desatou a correr para a casa de banho e sentiu o estômago virar-se do avesso quando vomitou o jantar.

 

Passou a boca por água. Tinha a testa coberta de suor e lavou o rosto. Com a água ainda a escorrer, viu-se ao espelho. Quase se espantou ao ver o desespero cru que os olhos refletiam. Era aquilo que Dan via todos os dias? Era por isso que não suportava olhar-lhe para a cara?

 

Bateram à porta e Anna teve um sobressalto. Quem se lembraria de ir a casa de Patrik e de Erica àquela hora? Limpou o rosto à pressa antes de abrir. E ali estava Dan.

 

– O que estás aqui a fazer? – perguntou, surpreendida. Sentiu-se imediatamente invadida pelo terror. – Os miúdos? Aconteceu-lhes alguma coisa?

 

Dan abanou a cabeça.

 

– Não, calma, está tudo bem. É que queria falar contigo e não podia esperar, por isso pedi à Belinda para ficar um bocado com os miúdos. – A filha mais velha de Dan já não morava lá em casa, mas às vezes fazia de babysitter dos irmãos mais novos e estes ficavam todos contentes. – Mas não posso ficar muito tempo.

 

– Está bem. – Anna ficou a olhar para Dan, que a olhou nos olhos.

 

– Posso entrar? Se ficar aqui fora ainda congelo.

 

– Sim, claro, desculpa – disse Anna em tom cortês, como se se tratasse de um estranho, deixando o marido entrar.

 

Portanto, era assim que tudo acabava. Dan não queria falar sobre o assunto em casa, com os filhos a pular à volta deles e rodeados de todas as belas recordações que, apesar de tudo, partilhavam. E, embora Anna tivesse começado a sentir que, independentemente do desenlace, aquele momento angustiante devia acontecer o mais depressa possível, era como se todo o seu ser protestasse aos gritos ao pensar que estava prestes a perder o bem mais precioso que tinha: o grande amor da sua vida.

 

Pesarosa, dirigiu-se à sala e sentou-se à espera do inevitável. Depois começou a pensar nos aspetos práticos. Erica e Patrik não veriam nenhuma objeção a que ela e os filhos ficassem no quarto de hóspedes até encontrarem um apartamento. Amanhã iria buscar os bens imprescindíveis, sem mais demoras. Uma vez tomada a decisão, era melhor mudar-se de imediato e de certeza que seria um alívio para Dan ver que partiam sem demoras. Tal como ela, devia estar farto de a ver e de conviver com os seus remorsos.

 

Sentiu uma pontada de dor quando Dan entrou na sala. Viu como passava a mão pelo cabelo com um gesto cansado e pensou uma vez mais como era bonito. Não teria qualquer dificuldade em encontrar outra. Havia muitas mulheres em Fjällbacka que estavam de olho nele e... Anna forçou-se a pensar noutro assunto. Era-lhe muito doloroso imaginar Dan nos braços de outra. Não era capaz de ser tão generosa.

 

– Anna... – disse Dan, sentando-se ao lado dela.

 

Anna apercebeu-se de que lhe custava pronunciar as palavras e, pela enésima vez, teve vontade de gritar «Desculpa, desculpa, desculpa!», mas sabia que era tarde de mais. Baixou os olhos e disse num fio de voz:

 

– Eu compreendo. Não precisas de dizer nada. Vou pedir ao Patrik e à Erica que nos deixem morar aqui durante uns tempos, podemos mudar-nos lá de casa com o indispensável já amanhã, depois irei buscar o resto das nossas coisas.

 

Dan olhou para Anna com ar desolado.

 

– Queres deixar-me?

 

Anna franziu a testa.

 

– Não, pensei que tinhas vindo cá dizer-me que o querias fazer. Não queres acabar? – Anna prendeu a respiração enquanto esperava pela resposta. Os ouvidos zumbiam e o coração martelava-lhe o peito, movido por uma esperança renovada.

 

O rosto de Dan expressava tantos sentimentos ao mesmo tempo que Anna tinha dificuldade em interpretá-lo.

 

– Anna, meu amor, tentei pensar em acabar tudo contigo, mas não consigo. A Erica ligou-me hoje de manhã... E, bem, graças a ela compreendi que tenho de fazer alguma coisa se não quiser perder-te. Não te prometo que vá ser fácil nem que tudo vá passar de repente, mas não consigo imaginar a vida sem ti. E quero ter uma vida boa contigo. Acho que perdemos o pé durante um tempo, mas ainda cá estamos, temo-nos um ao outro, e é assim que quero que continuemos.

 

Dan pegou com as duas mãos na de Ana e levou-a à face. Anna sentiu a barba na palma da mão e interrogou-se quantas vezes acariciara aquela pele áspera com a barba por fazer.

 

– Mas tu estás a tremer – disse Dan, apertando-lhe a mão com um pouco mais de força. – Estás disposta a tentar? Queres mesmo que fiquemos juntos?

 

– Sim – respondeu Anna. – Sim, Dan, quero mesmo.

 

25 Emil Svensson é a personagem principal de uma série de histórias infantis escritas entre 1963 e 1997 por Astrid Lindgren (1907-2002), a criadora de Pippi das Meias Altas. (N. do T.)

 

FJÄLLBACKA, 1975

AQUILO QUE MAIS A ASSUSTAVA ERAM AS FACAS. AFIADAS E RELUZENTES, VIA-AS REPENTINAMENTE EM SÍTIOS AOS QUAIS NÃO PERTENCIAM. A PRINCÍPIO IA-AS RECOLHENDO E LIMITAVA-SE A GUARDÁ-LAS NA GAVETA DA COZINHA, NA ESPERANÇA DE QUE AQUILO NÃO FOSSE MAIS DO QUE O CÉREBRO EXAUSTO A PREGAR-LHE PARTIDAS. MAS NÃO TARDAVAM A REAPARECER: AO LADO DA CAMA, NA GAVETA, DEBAIXO DA ROUPA INTERIOR, NA MESA DA SALA. COMO NATUREZAS-MORTAS MACABRAS, LÁ ESTAVAM AS FACAS, E LAILA NÃO COMPREENDIA O QUE SIGNIFICAVAM. NÃO QUERIA COMPREENDER.

UMA NOITE, SENTADA À MESA DA COZINHA, VIU DE REPENTE UMA FERIDA NO BRAÇO. A FACADA TINHA ACONTECIDO COMO QUE POR MAGIA E A DOR SURPREENDEU-A. O SANGUE JORRAVA, VERMELHÍSSIMO, DAQUELA FERIDA E LAILA OBSERVOU-A, ADMIRADA, POR UM INSTANTE, ANTES DE CORRER PARA O LAVA-LOUÇAS EM BUSCA DE UM PANO DE COZINHA QUE PUDESSE UTILIZAR PARA ESTANCAR A HEMORRAGIA.

A FERIDA DEMOROU A SARAR. INFETOU E, QUANDO A LAVAVA, ARDIA-LHE TANTO QUE LAILA TINHA DE MORDER O LÁBIO PARA NÃO GRITAR. NA VERDADE, DEVIA LEVAR PONTOS, MAS LAILA ENFAIXOU-A E UNIU-A COMO PÔDE COM FITA ADESIVA. TINHAM DECIDIDO NÃO IR AO MÉDICO A FJÄLLBACKA.

LAILA PRESSENTIA QUE NÃO FORA A ÚLTIMA VEZ. PODIA HAVER TRANQUILIDADE DURANTE UNS DIAS, MAS A TEMPESTADE NÃO TARDAVA, DANDO LUGAR A UMA RAIVA E A UM ÓDIO TAIS QUE DIFICILMENTE PODERIAM SER DESCRITOS POR PALAVRAS. A IMPOTÊNCIA PARALISAVA-A. DE ONDE VINHA AQUELA MALDADE? SUSPEITAVA QUE NUNCA OBTERIA UMA RESPOSTA ÀQUELA PERGUNTA. SUSPEITAVA QUE A VERDADE ERA MUITO SIMPLES: NÃO HAVIA RESPOSTA.

 

NA COZINHA REINAVA UM SILÊNCIO ABSOLUTO. Todos olhavam com expectativa para Erica, que continuava de pé, embora tanto Gösta como Martin lhe tivessem oferecido o lugar. Estava tão nervosa e elétrica, que não conseguiria ficar quieta na cadeira.

 

– O Patrik pediu-me para dar uma vista de olhos a isto – disse, apontando para o saco cheio de DVD que pousara no chão.

 

– Sim, habitualmente, a Erica consegue apanhar coisas que nos escapam – disse Patrik como que a desculpar-se, embora ninguém parecesse ter qualquer objeção.

 

– Da primeira vez não vi nada digno de nota, mas da segunda...

 

– Sim? – perguntou Gösta sem desviar os olhos de Erica.

 

– Dessa vez apercebi-me de que o denominador comum não tinha realmente que ver com as raparigas, mas antes com os irmãos.

 

– Como assim? – perguntou Martin. – É verdade que todas as raparigas tinham irmãs mais novas menos a Minna e a Victoria, mas que tem isso que ver com os desaparecimentos?

 

– Não sei exatamente qual é a ligação, mas todas as irmãs foram filmadas nos seus quartos e nas paredes de todas havia diplomas e prémios daqueles que se ganham em competições equestres. Todas montam a cavalo. Como a Victoria. Embora a Victoria não competisse.

 

Fez-se novamente silêncio. Apenas se ouvia a máquina de café a borbulhar enquanto Erica via como todos tentavam encaixar as peças.

 

– Então e a Minna? – perguntou Gösta. – A Minna não tinha nenhum irmão mais novo. E não montava a cavalo.

 

– Pois não – disse Erica. – E por isso julgo que a Minna não é uma das vítimas do criminoso. Nem sequer sabemos ao certo se foi raptada. Ou morta.

 

– Então onde está? – perguntou Martin.

 

– Não sei. Mas tinha pensado telefonar à mãe dela amanhã. Tenho uma teoria.

 

– Está bem, mas que conclusão podemos tirar do facto de as irmãs mais novas das raparigas montarem a cavalo? – perguntou Gösta, intrigado. – Além da Victoria, nenhuma das raparigas desapareceu perto de uma escola de equitação ou de uma competição.

 

– Não, mas talvez o criminoso tenha interesse nesses lugares e tenha visto as raparigas enquanto viam as irmãs a montar, não sei. Pensei que podíamos verificar as datas dos desaparecimentos para ver se coincidem com alguma competição que se tenha realizado nas diferentes localidades.

 

– E nenhuma das famílias teria mencionado isso? – perguntou Annika enquanto ajeitava os óculos, que haviam deslizado até à ponta do nariz. – Quer dizer, deveriam ter comentado ter assistido a uma competição no mesmo dia em que a filha desaparecera, não?

 

– Certamente não relacionaram isso com o desaparecimento. Toda a atenção se concentrou nas raparigas, nas amizades e nos interesses que tinham, a que atividades se dedicavam nos tempos livres e essas coisas. Ninguém pensou nas irmãs mais novas.

 

– Merda! – exclamou Patrik

 

Erica olhou para o marido.

 

– Que foi?

 

– O Jonas. Apareceu várias vezes nesta investigação, por diferentes motivos: a ketamina, a discussão com a Victoria, a suposta relação com a rapariga, a infidelidade da Marta, a chantagem... E o Jonas vai sempre com a filha às competições. Terá sido o Jonas quem fez isto tudo?

 

– Tinha um álibi perfeito para a data do desaparecimento da Victoria – frisou Gösta.

 

Patrik suspirou.

 

– Sim, eu sei. Mas, teremos de o rever mais a fundo, agora que há tanta coisa a apontar para ele. Annika, podias tentar descobrir se houve competições naquelas datas? E se a Molly Persson aparece na lista de participantes?

 

– Claro – disse Annika. – Vou ver o que consigo encontrar.

 

– Nesse caso, pode ser que aquilo não tenha sido nenhum assalto – disse Gösta.

 

– Sim, claro, Jonas pode ter comunicado o assalto precisamente para desviar as suspeitas se a Victoria aparecesse. Mas, além da questão do álibi, há mais algumas. Como raptava as raparigas se a Molly e a Marta iam com ele? Onde as mantinha presas? E onde estão agora?

 

– Talvez no mesmo sítio onde a Molly e a Marta se encontram neste momento – aventou Martin. – Talvez tenham descoberto o que o Jonas andava a fazer...

 

Patrik assentiu.

 

– Sim, não é impossível. Temos de examinar outra vez a casa e o resto da quinta. Tendo em conta o sítio onde a Victoria apareceu, pode ser que tenha estado lá presa. Vamos ter de voltar lá.

 

– Não devíamos esperar até termos um mandado? – perguntou Gösta.

 

– Devíamos, mas não temos tempo. A vida da Molly e da Marta podem estar em risco.

 

Patrik aproximou-se de Erica e ficou a olhar para a mulher durante algum tempo. Depois inclinou-se e deu-lhe um beijo intenso, não se importando que houvesse tantos espectadores.

 

– Bom trabalho, amor.

 

Helga olhava o vazio pela janela do lugar do morto. Aquilo começava cada vez mais a parecer uma verdadeira tempestade de neve das que havia antigamente.

 

– O que vamos fazer agora? – perguntou.

 

Jonas não respondeu, nem Helga estava à espera de uma resposta.

 

– Onde é que eu errei? – disse, virando-se para o filho. – Tinha tantas esperanças em ti...

 

O estado do piso obrigava-o a concentrar-se completamente na estrada, por isso, Jonas respondeu sem olhar para Helga.

 

– Não erraste, mãe. De maneira nenhuma.

 

Aquela resposta deveria tê-la alegrado, ou pelo menos tranquilizado. No entanto, Helga ainda ficou mais nervosa. Que poderia ter feito, se tivesse sabido?

 

– Não podias fazer nada – disse Jonas como se lhe tivesse lido a mente. – Eu não sou como tu. Não sou como mais ninguém. Sou... diferente.

 

Aquele tom de voz não traía nenhum sentimento e Helga estremeceu.

 

– Eu amava-te. Espero que compreendas. E ainda te amo.

 

– Eu sei – disse Jonas com voz calma, inclinou-se para a frente e perscrutou os remoinhos de neve. Os limpa-para-brisas varriam o vidro, mas não conseguiam lidar com toda aquela neve. Moviam-se tão devagar que lhe parecia que se arrastavam.

 

– És feliz? – Helga não sabia de onde viera aquela pergunta, mas era sincera. Será que o filho alguma vez fora feliz?

 

– Até agora, a minha vida tem sido melhor do que a da maioria das pessoas – disse Jonas, sorrindo.

 

E aquele sorriso fê-la ficar com pele de galinha. Mas realmente era verdade. Jonas tinha tido uma vida melhor do que a sua, que passara reprimida e aterrorizada por uma verdade que não queria ver.

 

– Talvez sejamos nós a ter razão e vocês a estarem enganados. Nunca te passou isso pela cabeça? – acrescentou.

 

Helga não compreendia em absoluto o que Jonas queria dizer e refletiu durante uns segundos. Quando julgou ter entendido a pergunta, ficou muito triste.

 

– Não, Jonas. Não me parece que seja eu a estar enganada.

 

– Porque não? Acabaste agora de demonstrar que não somos assim tão diferentes.

 

Helga fez uma careta perante aquela ideia e tentou defender-se daquela verdade que talvez as palavras de Jonas encerrassem.

 

– Uma mãe defender o filho é um dos instintos mais naturais do mundo. Não há nada mais natural. Tudo o resto é... contranatura.

 

– É? – Pela primeira vez, Jonas virou-se para olhar para a mãe. – Discordo.

 

– Porque não me dizes ao menos o que iremos fazer quando chegarmos? – Helga tentou ver quanto faltava, mas a neve que caía com intensidade e a escuridão impossibilitavam-no.

 

– Vais ver assim que chegarmos – disse Jonas. Do outro lado da janela, a neve continuava a cair.

 

Erica estava de muito mau humor quando entrou em casa. A alegria de ter contribuído para a investigação deu lugar a um grande desencanto quando soube que não poderia acompanhá-los até à quinta. Tentou convencer Patrik por todos os meios, mas o marido mostrou-se inflexível e Erica não teve alternativa senão ir para casa. Agora passaria a noite acordada a pensar no que estaria a acontecer.

 

Anna foi recebê-la.

 

– Olá, como correram as coisas com os miúdos? – Erica olhou para a irmã com surpresa. – Bem, estás com um ar radiante. Aconteceu alguma coisa?

 

– Sim, o Dan esteve cá. Obrigada, ainda bem que falaste com ele – vestiu o casaco e calçou as botas. – Talvez corra tudo bem, mas amanhã conto-te. – Beijou a irmã na face antes de sair para enfrentar a tempestade.

 

– Conduz com cuidado, a estrada está muito escorregadia! – gritou Erica enquanto Anna se afastava. Depois fechou a porta para impedir que entrasse mais neve.

 

Sorriu para si mesma. E se a situação da irmã acabasse por se resolver? Com Dan e Anna no pensamento, dirigiu-se ao quarto em busca de um casaco. Em seguida foi espreitar os filhos. Dormiam os três pacificamente e Erica encaminhou-se para o escritório. Ficou durante algum tempo a olhar para o mapa. Devia ir dormir, mas continuava obcecada pelas marcas azuis. Podia jurar que, de alguma forma, estavam relacionados com tudo o resto, mas como? Porque teria Laila guardado os recortes acerca das raparigas? Qual era o vínculo que unia aqueles acontecimentos? E porque é que Ingela Eriksson e Victoria apresentavam os mesmos ferimentos? Havia tantas pontas soltas... Ao mesmo tempo, tinha a sensação de que a resposta estava mesmo à frente do nariz, simplesmente não era capaz de a encontrar.

 

Frustrada, ligou o computador e sentou-se à secretária. Tudo o que podia fazer era rever o material que reunira. Não conseguia dormir, por isso mais valia fazer algo útil.

 

Páginas e mais páginas de notas. Estava contente por ter adquirido o hábito de as passar a limpo para o computador. Caso contrário, seria incapaz de compreender aqueles gatafunhos.

 

Laila. No centro de tudo estava Laila, qual esfinge: silenciosa e insondável. Laila tinha as respostas, mas limitava-se a contemplar em silêncio a vida e tudo o que a rodeava. Estaria a proteger alguém? Se assim fosse, quem? E porquê? E porque é que não queria falar sobre o que acontecera naquele dia fatídico?

 

Começou a ler todas as transcrições das conversas com Laila. A princípio estava mais tranquila. As notas dos primeiros encontros eram muito escassas e recordava-se de como fora estranho estar ali com alguém que mal dizia uma palavra.

 

Mas quando Erica perguntou pelos filhos, Laila começou a abrir-se. Evitava dizer o que quer que fosse sobre a pobre criança, por isso, era quase tudo sobre Peter. Enquanto continuava a ler, lembrou-se da atmosfera da sala de visitas, assim como do rosto de Laila quando falava do filho. Nessas alturas, o olhar iluminava-se, mas também ficava repleto de saudade e de tristeza. Era impossível não reconhecer o amor que sentia por aquele filho. Descrevia as faces ternas, o riso, a timidez, aquele cecear quando Peter começara a falar, aquela franja loura que estava sempre a cair-lhe para os olhos, aquele...

 

Erica levantou-se e releu o último parágrafo. Voltou a lê-lo, fechou os olhos e pôs-se a pensar durante algum tempo. E, de repente, viu tudo com clareza. Uma das peças que lhe faltavam acabara de encaixar. Era algo arrojado, é verdade, mas suficiente para vislumbrar um quadro completo. Teve vontade de telefonar a Patrik, mas decidiu esperar. Ainda não estava inteiramente segura. E só havia uma maneira de se certificar de que tinha razão. Só Laila poderia confirmar as suas suspeitas.

 

Patrik sentiu a tensão no ar quando saiu do carro no pátio que se espraiava à frente da casa de Jonas e de Marta. Conseguiriam finalmente a resposta a todas as suas perguntas? De certa forma, aquela ideia apavorava-o. Se a verdade era tão cruel quanto se temia, não seria fácil para eles ou para as famílias das raparigas. Mas, durante os anos que passara na Polícia, Patrik tinha aprendido que, apesar de tudo, a certeza era melhor do que a incerteza.

 

– Primeiro vamos procurar o Jonas! – gritou para os colegas no meio do vendaval. – Gösta, tu leva-lo para a esquadra para ser interrogado; Eu e o Martin vamos revistar a casa e os outros edifícios.

 

Encolhidos para se protegerem do vento, subiram os degraus que conduziam ao alpendre e bateram à porta, mas ninguém abriu. O carro não se encontrava ali e era improvável que Jonas estivesse a dormir com Molly e Marta desaparecidas; por isso, depois da segunda tentativa, Patrik rodou a maçaneta com cautela. A porta não estava trancada.

 

– Vamos entrar – disse, e os colegas seguiram-no.

 

Estava tudo às escuras. Respirava-se silêncio e não tardaram a descobrir que não estava ninguém em casa.

 

– Proponho que revistemos todos os edifícios rapidamente para sabermos quanto antes se a Marta e a Molly cá estão. Depois regressamos e inspecionamos tudo mais aprofundadamente. O Torbjörn está alerta para o caso de precisarmos da sua equipa.

 

– Está bem. – Gösta percorreu a sala com os olhos. – Só gostava de saber onde se terá metido o Jonas...

 

– Talvez esteja à procura delas – disse Patrik. – A menos que, como estávamos a dizer, saiba onde estão.

 

Saíram e Patrik apoiou-se ao corrimão para não escorregar nas escadas, onde havia uma espessa camada de neve acabada de cair. Olhou em volta. Depois de refletir por alguns segundos, decidiu esperar antes de bater à porta de Helga e de Einar. Ficariam ainda mais nervosos e era melhor procurar calmamente nos outros edifícios.

 

– Vamos começar pelo estábulo e depois vamos ao consultório do Jonas.

 

– Olha, a porta está aberta – disse Martin, e avançou em direção ao comprido edifício do estábulo.

 

Ouviam-se portas a bater e, pouco a pouco, foram entrando um atrás do outro no estábulo mergulhado em silêncio. Martin percorreu o corredor, procurando nas cavalariças.

 

– Está vazio.

 

Patrik sentiu um nó a formar-se no estômago. Alguma coisa não batia certo. E se tinham tido o criminoso debaixo do nariz? E se tivesse estado sempre ali, no seu distrito, e fosse tarde de mais?

 

– Parece que sim. Telefonaste ao Palle? – perguntou Gösta.

 

Patrik assentiu.

 

– Sim, já está ao corrente. Estão preparados para o caso de precisarmos de reforços.

 

– Ótimo – disse Gösta, abrindo a porta que dava para o picadeiro. – Isto também está vazio.

 

Entretanto, Martin, que tinha ido dar uma vista de olhos à sala de reuniões e ao palheiro, voltou a entrar no estábulo.

 

– Bem, então, vamos ao consultório do Jonas – disse Patrik.

 

Saiu para o ar frio do pátio, com Gösta e Martin no encalço. Sentiam os flocos de neve como pregos nas faces enquanto corriam para a casa.

 

Gösta tentou abrir a porta.

 

– Está trancada.

 

Lançou um olhar interrogativo a Patrik, que assentiu. E, com satisfação indisfarçável, Gösta recuou dois passos, ganhou impulso e deu-lhe um pontapé. Repetiu a manobra algumas vezes até que a porta se abriu de par em par. Tendo em conta os medicamentos que ali havia, não podia dizer-se que o local estivesse bem protegido contra possíveis assaltos e Patrik não conseguiu ocultar um sorriso: não era todos os dias que tinha oportunidade de ver Gösta a praticar kung-fu.

 

O consultório era pequeno e demoraram pouco tempo a revistá-lo. Não havia qualquer sinal de Jonas e tudo estava limpo e arrumado. Exceto o armário dos medicamentos, que estava aberto e tinha várias prateleiras vazias.

 

Gösta deu uma vista de olhos ao interior.

 

– Parece que levou um bom carregamento.

 

– Merda! – bramou Patrik. A ideia de Jonas ter fugido com a ketamina e com os medicamentos que faltavam inquietava-o profundamente. – Terá drogado a mulher e a filha para as levar?

 

– Sacana, louco... – Gösta abanava a cabeça. – Como podia parecer tão normal? Isso é quase o mais desagradável de tudo, o facto de Jonas ser uma pessoa tão... agradável.

 

– Os psicopatas podem enganar qualquer pessoa – disse Patrik, voltando a sair para a escuridão da noite depois de ter dado nova vista de olhos ao consultório.

 

Martin seguia-o a tiritar.

 

– Aonde vamos agora? A casa dos pais de Jonas ou ao barracão?

 

– Ao barracão – respondeu Patrik.

 

Correram tão depressa quanto puderam pelo chão escorregadio do pátio.

 

– Devíamos ter trazido lanternas – disse Patrik quando entraram no barracão. Estava tão escuro que mal conseguiam distinguir os carros que havia no interior.

 

– Sim, ou então podemos ligar a luz – disse Martin, puxando um cordão que havia junto à parede.

 

Uma luz ténue e fantasmagórica iluminou a grande área do barracão. Aqui e ali entrava alguma neve pelas rachas das paredes, mas a atmosfera estava um pouco mais quente do que no exterior, uma vez que o barracão estava protegido do vento.

 

Martin estremeceu.

 

– Parece um ferro-velho.

 

– Não digas isso, estes carros são verdadeiras preciosidades. Com um pouco de carinho e alguns cuidados, podem tornar-se verdadeiras joias – disse Gösta, passando a mão pelo capô de um Buick num gesto sonhador.

 

Começou a passear entre os veículos enquanto ia olhando para eles. Patrik e Martin fizeram o mesmo e, passado algum tempo, constataram que também não havia nada ali. Patrik começou a sentir-se desanimado. Talvez devessem pedir de imediato um mandado de busca e captura contra Jonas. Ali não estava, a não ser que se tivesse escondido em casa dos pais. Mas Patrik não acreditava nisso. Quase de certeza que só lá estavam Helga e Einar.

 

– Vamos ter de acordar os pais de Jonas – disse Patrik, e desligou a luz, puxando o cordão sujo que servia de interruptor.

 

– O que é que podemos revelar? – perguntou Martin.

 

Patrik refletiu por um momento. Não era uma pergunta vã. Como dizer a uns pais que o filho era provavelmente um psicopata que tinha raptado e torturado várias jovens? Na Escola Superior de Polícia não lhe tinham ensinado a fazer isso.

 

– Vamos vendo – disse por fim. – Eles sabem que estamos à procura da Marta e da Molly e, agora, o Jonas também desapareceu.

 

Voltaram a atravessar o pátio açoitado pelo vento. Patrik bateu à porta com golpes decididos e retumbantes. Ao ver que não havia qualquer reação, bateu novamente. No primeiro andar ligou-se uma luz, talvez no quarto. Mas ninguém descia para abrir a porta.

 

– Entramos? – perguntou Martin.

 

Patrik tentou abrir a porta. Estava aberta. Muitas vezes, o trabalho da Polícia era facilitado pelo facto de, nas povoações pequenas, as pessoas nem sempre trancarem as portas. Entrou no vestíbulo.

 

– Está alguém? – gritou.

 

– Mas quem diabo está aí? – perguntou uma voz irritada no primeiro andar.

 

Então compreenderam o que se passava: Einar estava sozinho em casa, por isso ninguém abrira a porta.

 

– Somos da Polícia. Vamos subir. – Com um gesto, Patrik indicou a Gösta que o seguisse, enquanto dizia a Martin em voz baixa: – Dá uma vista de olhos por aí enquanto nós falamos com o Einar.

 

– Onde estará a Helga? – perguntou Martin.

 

Patrik abanou a cabeça. Estava a pensar nisso mesmo. Onde estaria Helga?

 

– Teremos de perguntar ao Einar – respondeu, apressando-se escadas acima.

 

– Que pensam que estão a fazer? Tirar uma pessoa da cama a meio da noite! – rosnou Einar meio sentado na cama e estremunhado, com o cabelo desalinhado e vestindo apenas uns boxers e uma T-shirt.

 

Patrik não lhe respondeu.

 

– Onde está a Helga?

 

– A dormir ali dentro! – Einar apontou para a porta fechada do outro lado do corredor.

 

Gösta aproximou-se da porta e abriu-a, olhou para dentro do quarto e abanou a cabeça.

 

– Não está aqui ninguém. E a cama está feita.

 

– Mas que raio! Então onde é que se meteram? Helgaaaa! – rugiu Einar, cujo rosto começou a ficar vermelho.

 

Patrik observou-o atentamente.

 

– Quer dizer que não sabe onde está a Helga?

 

– Não, claro, se soubesse tinha-lhe dito. Porque andará a cirandar por aí a estas horas? – Um fio de saliva escorreu-lhe pela comissura dos lábios e caiu-lhe no peito.

 

– Talvez tenha ido procurar a Marta e a Molly – sugeriu Patrik.

 

Einar resfolegou.

 

– Essa história é um disparate pegado. Elas vão aparecer quando menos se espera, vai ver. Não me surpreenderia se a Marta se tivesse chateado com alguma coisa que o Jonas fez ou deixou de fazer e tenha fugido com a Molly para o castigar. Enfim, essas criancices que dão às mulheres. – As palavras de Einar estavam carregadas de desprezo e Patrik sentiu uma vontade enorme de lhe dizer o que pensava.

 

– Bem, portanto não sabe onde está a Helga, pois não? – repetiu com toda a paciência que conseguiu convocar. – E também não sabe onde estão a Molly e a Marta, pois não?

 

– Já disse que não! – rugiu Einar, dando uma palmada na colcha.

 

– E o Jonas?

 

– Ah, mas o Jonas também desapareceu? Não, não sei onde está. – Einar ergueu os olhos para o céu, mas Patrik reparou que olhava sub-repticiamente pela janela.

 

Repentinamente apoderou-se dele uma sensação de calma, como se tivesse acabado de entrar no olho do furacão. Virou-se para Gösta.

 

– Acho que temos de voltar a revistar o barracão.

 

Tresandava a mofo e o cheiro a humidade enchia-lhe o nariz. Molly sentia-se prestes a asfixiar e engolia em seco para se livrar do sabor rançoso que lhe impregnava a boca. Era difícil manter a calma, como Marta queria.

 

– Porque é que estamos aqui? – perguntou pela enésima vez na escuridão.

 

Dessa vez também não obteve resposta.

 

– Não desperdices a energia – disse por fim Marta.

 

– Mas estamos presas! Alguém nos trancou aqui. Deve ser a mesma pessoa que raptou a Victoria, e já sabemos o que lhe aconteceu. Não consigo perceber como é que não tens medo.

 

Molly deu-se conta da debilidade da sua voz e repousou a cabeça nos joelhos, soluçando. A corrente esticou-se, por isso aproximou-se um pouco da parede para que a grilheta não lhe magoasse o tornozelo.

 

– Não serve de nada – assegurou Marta, igualmente pela enésima vez.

 

– Então que vamos fazer? – Molly puxou a corrente. – Vamos morrer à fome e apodrecer aqui dentro!

 

– Não sejas tão dramática. Hão de vir ajudar-nos.

 

– Como é que podes ter tanta certeza? Não apareceu ninguém durante este tempo todo.

 

– Acredito que isto vai resolver-se. E não sou uma menina mimada que está habituada a que lhe deem tudo de bandeja – afirmou Marta com desdém.

 

Molly começou a chorar em silêncio. Embora soubesse que Marta não gostava dela, não conseguia compreender como é que, numa situação tão horrível, era capaz de mostrar tamanha falta de sentimentos.

 

– Não devia ter dito aquilo – emendou rapidamente Marta num tom mais suave. – Mas não adianta gritar e maldizer a vida. É melhor pouparmos energia enquanto não vêm ajudar-nos.

 

Molly ficou em silêncio, um pouco mais calma. Era o mais parecido com um pedido de desculpas que podia sair da boca de Marta.

 

Ficaram assim durante algum tempo, até que Molly se encheu de coragem.

 

– Porque é que nunca gostaste de mim? – disse em voz baixa. Há muito que lhe queria fazer aquela pergunta, mas nunca se atrevera. Agora, a coberto da escuridão, não tinha tanto medo.

 

– Isto de ser mãe nunca fez o meu género.

 

Molly conseguia imaginar perfeitamente Marta a encolher os ombros, naquele seu gesto tão característico.

 

– Mas então porque quiseste ter filhos?

 

– Porque o teu pai queria. Queria ver um prolongamento de si próprio na sua descendência.

 

– Ou seja, na verdade, o pai queria um filho, não era? – Molly ficou surpreendida com a sua audácia. Todas as perguntas que tinha guardado no seu interior como pequenas caixas muito bem embrulhadas tinham começado a aflorar. E formulava-as sem se sentir mal, como se não tivessem que ver com ela. Apenas queria saber as respostas.

 

– Julgo que sim, antes de tu nasceres. Mas depois viu-te e aquilo passou-lhe.

 

– Bem, que alívio! – exclamou ironicamente Molly, embora sem autocomiseração: as coisas eram como eram.

 

– Fiz tudo o que pude, mas não fui feita para ter filhos.

 

Era curioso que a primeira conversa séria que alguma vez tinham tido estivesse a acontecer quando talvez fosse tarde de mais, mas já não havia qualquer motivo para continuar a esconder nada de nada. Aliás, talvez fosse precisamente daquilo que precisavam para pararem de fingir.

 

– Como podes ter tanta certeza de que alguém virá salvar-nos? – Molly tinha cada vez mais frio e sentia a bexiga inchada. A ideia de ter de urinar ali mesmo, no chão, enchia-a de pânico.

 

– Tenho – disse Marta. E, como que para fundamentar a sua resposta, ouviu-se o ruído de uma porta a abrir-se.

 

Molly colou-se à parede.

 

– E se for ele? E se vem fazer-nos mal?

 

– Acalma-te – disse Marta. E, pela primeira vez desde que acordou naquela escuridão compacta, Molly sentiu o calor da mão de Marta no braço.

 

Martin e Gösta estavam paralisados numa das extremidades da divisão.

 

Não sabiam como lidar com aquela maldade incompreensível que os encarava.

 

– Valha-nos Deus! – disse Gösta pela enésima vez.

 

Martin pensou que não poderia estar mais de acordo: «Valha-nos Deus.»

 

Nenhum dos dois acreditou em Patrik quando este saiu do quarto de Einar a dizer que havia alguma coisa no barracão. Mas ajudaram-no a voltar a procurar, dessa vez mais aprofundadamente, e quando encontraram o alçapão no chão, debaixo de um dos carros, engoliram as objeções. Ansioso por encontrar Molly e Marta, Patrik abriu o alçapão e desceu apressadamente as escadas que conduziam à cave escura. Quase não havia luz e Patrik não conseguia distinguir nada, verificando, no entanto, que não estava lá ninguém, e que tinham de chamar os técnicos forenses. Até à sua chegada, deveriam esperar no barracão.

 

Agora Torbjörn e a sua equipa já tinham chegado, e tinham iluminado a cave com focos, como no teatro. Depois de terem recolhido impressões digitais das escadas e pegadas de parte do chão, Patrik pôde descer juntamente com Gösta e Martin.

 

Martin ouviu Gösta conter a respiração ao chegar e ficou chocado com a visão que os aguardava. As paredes nuas e o chão de terra batida, o colchão imundo, cujas manchas eram, com toda a probabilidade, sangue seco. No centro da divisão havia um barrote vertical com duas grossas cordas amarradas, também impregnadas de sangue. Ali em baixo, o ar era tão denso que custava a respirar e sentia-se um certo cheiro a podre.

 

A voz de Torbjörn arrancou-o àqueles pensamentos assustadores em que estava imerso.

 

– Aqui esteve alguma coisa, talvez o tripé de uma máquina fotográfica.

 

– Quer dizer que alguém filmou o que quer que aqui tenha acontecido? – Patrik esticou um pouco o pescoço para ver o ponto para onde Torbjörn estava a apontar.

 

– Eu diria que sim. Não encontraram gravações?

 

– Não – Patrik abanou a cabeça. – Mas talvez estejam ali.

 

Dirigiu-se a uma estante empoeirada que havia numa das paredes. Martin seguiu-o. Numa das prateleiras via-se uma zona sem pó e, ao lado, uma caixa de DVD vazia.

 

– Deve ter vindo cá buscar os discos – disse Martin. – A questão é saber para onde os levou.

 

– Sim, e também não sabemos se a Molly e a Marta estão com ele.

 

Martin começou a sentir que aquele ambiente repugnante lhe consumia as forças.

 

– Onde raio estarão?

 

– Não faço ideia – disse Patrik. – Mas temos de encontrá-lo. E a elas também.

 

Martin viu como cerrava os maxilares para conseguir conter-se.

 

– Achas que haverá...? – não concluiu a pergunta.

 

– Não sei. Não sei nada.

 

O tom resignado de Patrik fez com que Martin quase se fosse abaixo, mas compreendia o colega. Era verdade que tinham feito progressos decisivos na investigação, mas não tinham conseguido o mais importante: localizar Molly e Marta. E, dado o que tinham encontrado ali, estavam perante uma pessoa terrivelmente doente.

 

– Venham ver isto! – gritou-lhes Torbjörn do barracão.

 

– Vamos já! – respondeu Patrik.

 

Os três voltaram a subir as escadas.

 

– Tinha razão – disse Torbjörn a Patrik enquanto este se aproximava a grandes passadas da outra extremidade do barracão, onde tinham estacionado o reboque para os cavalos. Era mais amplo e mais estável do que muitos outros que Martin tinha visto na estrada e, observado de perto, parecia desnecessariamente grande para quem, como era o caso da família Persson, viajava apenas com um cavalo.

 

– Vejam, este reboque foi transformado. Neste lado, onde não vai o cavalo, elevaram o chão de modo a que por baixo haja espaço suficiente para alojar uma pessoa não muito corpulenta. Alguém devia ter visto isto, certo? Mas claro que por cima havia palha e tanto a mãe como a filha deviam ter outras coisas em que pensar.

 

– Como raio...? – disse Gösta, olhando espantado para Patrik.

 

– Estava precisamente a perguntar-me como é que o Jonas transportaria as raparigas até aqui. No carro teria sido impossível, já que a Molly e a Marta iam com ele, portanto, o reboque para os cavalos era a única alternativa.

 

– Sim, claro. – Martin sentia-se completamente idiota por não ter pensado naquilo, mas tudo acontecera tão depressa que mal tinha sido capaz de o assimilar. Os pormenores foram surgindo mais tarde, quando a imagem do que aconteceu começou a tornar-se mais nítida.

 

– Recolham todas as provas possíveis que demonstrem que as raparigas estiveram aqui – disse Patrik. – Vamos precisar de tudo o que encontrarmos. O Jonas deve ser um tipo muito astuto para não ter levantado a mais pequena suspeita.

 

– Yes, sir – disse Torbjörn sem sorrir.

 

Ninguém estava com disposição para piadas e Martin até tinha vontade de chorar.

 

Chorar por causa da maldade de algumas pessoas, pelo facto de poderem viver tão perto de nós e, ao abrigo de uma normalidade fictícia, cometer atos horrendos.

 

Agachou-se e olhou para o interior do espaço vazio que havia no reboque. Lá fora estava escuro e a luz do barracão não tinha muita potência, porém, graças aos focos, via-se muito bem.

 

– Imagina o que deve ser acordar ali dentro – Martin sentiu uma pressão claustrofóbica no peito.

 

– O mais certo era viajarem adormecidas. Em parte, por razões práticas, para poder transportá-las mais facilmente, mas também para que nem a Molly nem a Marta ouvissem nada.

 

– Levava a filha com ele quando raptava raparigas da idade dela – constatou Gösta. Estava uns metros atrás dos dois colegas, com os braços cruzados e o olhar de quem não consegue acreditar no que está a ver.

 

– Temos de encontrar os filmes – disse Patrik.

 

– E o Jonas – acrescentou Martin. – Será que percebeu que estávamos prestes a denunciá-lo e fugiu para o estrangeiro? Mas, nesse caso, onde estão a Marta e a Molly? E a Helga, claro.

 

Patrik abanou a cabeça. Com o rosto devastado pelo cansaço, olhou para a abertura no reboque.

 

– Não sei – disse por fim.

 

 

– Bem, finalmente chegaste – disse Marta quando se ligou a luz e ouviu os passos que se aproximavam escadas abaixo.

 

– Vim o mais depressa que pude – Jonas inclinou-se e abraçou-a. Como sempre, sentiu que se fundiam num só ser.

 

– Jonas! – gritou Molly, mas o pai não se mexeu. Por fim, libertou-se de Marta e virou-se para a filha.

 

– Calma, já vos tiro as correntes.

 

Molly começou a chorar histericamente. Marta só teve vontade de lhe pregar uma boa bofetada. Não estava contente? Jonas ia soltá-las, tal como estava a pedir aos berros há horas. Ela, por seu lado, não tinha estado minimamente preocupada. Sabia que Jonas acabaria por encontrá-las.

 

– O que está aqui a fazer a avó? – perguntou Molly a tremer.

 

Marta olhou Jonas nos olhos. Já tinha pensado naquela hipótese enquanto esperavam no escuro. Aquele chá tão doce que Helga lhes oferecera... Como tudo se apagou de repente... Que a sogra tivesse conseguido enfiá-las no carro e depois levá-las até ali abaixo era impressionante. Mas as mulheres eram mais fortes do que se pensava e anos de trabalho na quinta deviam tê-la fortalecido.

 

– A avó tinha de vir. Ela tem as chaves, não é? – Jonas estendeu a mão para a mãe, que esperava por detrás dele.

 

– Não podia ser de outra forma, como deves compreender. A Polícia andava atrás de ti e eu tive de desviar a atenção deles para que parecesses menos suspeito.

 

– Estavas a sacrificar a minha mulher e a minha filha – disse Jonas.

 

Depois de alguma hesitação, Helga enfiou a mão no bolso e tirou duas chaves. Jonas tentou uma delas na fechadura das grilhetas de Marta. Não servia. A outra chave abriu-as com um clique. Marta esfregou os tornozelos.

 

– Bolas, isto dói – disse com uma careta. Os olhos cruzaram-se com os de Helga e ficou satisfeita ao vislumbrar o medo refletido nos seus olhos.

 

Jonas aproximou-se de Molly e agachou-se. Teve dificuldade em introduzir a chave, porque Molly se agarrou a ele, soluçando-lhe no ombro.

 

– Não é tua – disse calmamente Helga.

 

Marta ficou a olhar fixamente para a sogra. Teve vontade de se atirar a Helga e de a fazer calar-se, mas manteve-se calma e expectante em relação ao que poderia acontecer.

 

– O quê? – Jonas virou-se e libertou-se do abraço de Molly antes de lhe ter aberto as grilhetas.

 

– A Molly não é tua filha. – Helga não conseguia esconder o prazer que lhe dava proferir aquelas palavras em voz alta.

 

– Isso é mentira! – Jonas levantou-se.

 

– Pergunta-lhe e verás – Helga apontou para Marta. – Não és obrigado a acreditar em mim, mas pergunta-lhe.

 

Marta sopesou rapidamente todas as saídas possíveis. Como um raio, ocorreram-lhe diferentes estratégias e mentiras, mas era inútil. Podia mentir a qualquer pessoa sem pestanejar e sem que ninguém questionasse o que dizia, mas com Jonas era diferente. Era verdade que tinha tido de viver com aquela mentira durante quinze anos, mas ali e agora não conseguiria mentir-lhe.

 

– Não é certo – disse sem desviar os olhos de Helga. – Pode ser a filha de Jonas.

 

Helga resfolegou com desdém.

 

– Olha que eu sei contar. Molly foi concebida durante as duas semanas em que Jonas esteve fora a fazer um curso.

 

– O quê? Quando? – perguntou Jonas, olhando para a mãe e para Marta.

 

Molly estava em silêncio e também olhava com espanto para os três adultos.

 

– Como foi que descobriu? – perguntou Marta, levantando-se. – Ninguém sabia disso.

 

– Vi-vos – disse Helga. – Vi-vos no barracão.

 

– Então viu que eu me opus, não foi? Deve ter visto que ele me violou, não foi?

 

– Como se isso tivesse importância! – Helga virou-se para Jonas. – O teu pai foi para a cama com a tua mulher enquanto estavas fora; Einar é o pai de Molly.

 

– Diz-me que não é verdade – pediu Jonas, e Marta sentiu uma pontada de irritação ao vê-lo tão perturbado. Que importava? Era uma questão de tempo até Einar abusar dela, Jonas deveria tê-lo percebido. Depois de tudo o que tinha acontecido, devia conhecer o próprio pai. Claro que tinha tido o azar de ficar grávida, mas Jonas nunca pôs nada em causa, nem sequer contou pelos dedos. Afinal de contas, é apenas veterinário... Limitou-se a aceitar Molly como sua.

 

– Helga está a dizer a verdade. Tu estavas em viagem e o teu pai não conseguiu resistir à tentação. Mas não devias estar tão surpreendido.

 

Olhou para Molly, que continuava sentada em silêncio de olhos muito abertos. Lentamente, os olhos da rapariga foram-se enchendo de lágrimas.

 

– Para de choramingar. Já tens idade suficiente para saber a verdade. O melhor seria nunca teres sabido, claro. Mas a vida é assim. Que pensas fazer, Jonas? Vais castigar-me porque o teu pai me violou? Eu não disse nada para bem de todos.

 

– Estás doente – disse Helga, entrelaçando as mãos.

 

– Eu estou doente? – Marta sentiu o riso a borbulhar-lhe no interior. – Seja como for, diria que uma pessoa se torna igual àqueles com quem vive. A Helga também não parece estar no seu juízo perfeito, tendo em conta o que fez – apontou para as grilhetas que ainda cingiam Molly.

 

Jonas permaneceu calado sem deixar de olhar para ela, e Molly aferrou-se-lhe à perna.

 

– Por favor, tira-me isto. Tenho medo.

 

Jonas deu um passo em frente e obrigou-a a soltar-se. Molly soluçava, angustiada, com os braços estendidos na sua direção.

 

– Não sei do que estão a falar, mas eu tenho medo. Soltem-me!

 

Jonas aproximou-se de Marta, que observou aquele rosto que estava tão perto do seu. Depois sentiu a mão dele na face. A unidade não fora quebrada. Continuava a existir e existiria para sempre.

 

– Tu não tiveste culpa – disse Jonas. – Não tiveste culpa de nada.

 

Deixou-se ficar assim durante algum tempo, com a mão no rosto da mulher. Marta sentiu a força que irradiava, a mesma força selvagem e indomável que, instintivamente, soube que Jonas possuía desde o dia em que o conheceu.

 

– Temos muito que fazer – disse Jonas, olhando-a nos olhos.

 

Marta assentiu.

 

– Sim, muito.

 

Pela primeira vez em muito tempo, Anna tinha dormido tão profundamente que nem se lembrava de ter sonhado. Quando conseguira adormecer, claro. Passara horas a conversar com Dan e tinham decidido deixar que as feridas sarassem, embora isso demorasse. Decidiram continuar juntos.

 

Deitou-se de lado e esticou o braço. Ali estava Dan que, em vez de lhe virar as costas, lhe levou a mão ao peito. Anna sorriu quando sentiu o calor a espalhar-se-lhe por todo o corpo, dos dedos dos pés à barriga e... Levantou-se apressadamente e voou para a casa de banho, onde chegou mesmo a tempo de levantar a tampa da sanita antes de vomitar.

 

– Estás bem, amor? – disse Dan da entrada da casa de banho com ar preocupado. Apesar de estar numa situação patética, os olhos de Anna encheram-se de lágrimas de pura felicidade por o companheiro lhe ter chamado «amor».

 

– Acho que estou com uma gastrenterite ou alguma coisa assim. Tenho andado com náuseas. – Anna levantou-se a tremer, abriu a torneira e lavou a boca. Ainda sentia o sabor a vómito, por isso pôs pasta na escova e começou a lavar os dentes.

 

Dan foi pôr-se por detrás dela e olhou-a pelo espelho.

 

– Há quanto tempo?

 

– Não sei, há umas duas semanas, mais ou menos. É como se a gastrenterite não passasse – disse com a escova de dentes na boca. Então sentiu a mão de Dan no ombro.

 

– Mas os sintomas da gastrenterite não são esses, pois não? Não pensaste noutra possibilidade? – Os olhos de ambos encontraram-se e Anna parou de escovar os dentes. Cuspiu a pasta e olhou-o fixamente.

 

– Quando foi a última vez que tiveste o período? – perguntou.

 

Anna tentou lembrar-se.

 

– Bem... há algum tempo. Claro que pensei que era por causa de todo este stresse... Achas que...? Foi só uma vez.

 

– Como sabes, uma vez pode ser mais do que suficiente. – Dan sorriu e pôs-lhe a mão no rosto. – Não seria maravilhoso se fosse verdade?

 

– Sim – respondeu Anna, e sentiu os olhos marejarem-se de lágrimas. – Sim, seria maravilhoso.

 

– Queres que eu vá à farmácia comprar um teste de gravidez?

 

Anna assentiu. Não queria alimentar esperanças, não fosse tratar-se de uma mera gastrenterite.

 

– Está bem, então vou lá agora mesmo. – Dan beijou-a na face.

 

Anna sentou-se na cama à espera, tentando detetar algum sintoma. Sim, realmente, o peito parecia-lhe um pouco sensível e inchado, assim como a barriga. Seria possível que houvesse uma vida a crescer dentro daquela paisagem árida que se tornara o seu corpo? Se assim fosse, prometia que nunca daria nada por adquirido, que nunca mais arriscaria perder algo tão raro e tão valioso.

 

Dan entrou ofegante no quarto e arrancou-a às suas cogitações.

 

– Aqui está – disse, e entregou-lhe o saco da farmácia.

 

Com mãos trémulas, Anna abriu a embalagem, olhou para o teste com ar de pânico e entrou na casa de banho. Sentou-se na sanita e colocou a tira entre as pernas, tentando centrá-la bem. Depois pousou-a no lavatório e lavou as mãos. Ainda tremiam e não conseguia desviar o olhar do quadradinho que lhe diria se o seu futuro ia mudar. Se, uma vez mais, poderiam dar as boas-vindas a uma nova vida.

 

Ouviu a porta abrir-se. Dan entrou, pôs-se por detrás dela e abraçou-a. Juntos, fixaram a tira. E esperaram.

 

Erica só conseguira dormir algumas horas e a custo. Desejava ter saído imediatamente, mas sabia que, por não ter telefonado com antecedência, não poderia encontrar-se com Laila antes das dez, no mínimo. Além disso, tinha de levar os filhos ao infantário.

 

Esticou-se na cama. Estava tão cansada que se sentia rígida e lenta. Apalpou o espaço vazio ao seu lado. Patrik ainda não tinha chegado a casa e perguntou-se o que teria acontecido na quinta, se tinham encontrado Molly e Marta e que teria dito Jonas. Mas não queria incomodá-lo por telefone, embora também tivesse algo para lhe contar. Esperava que Patrik valorizasse a sua contribuição. Às vezes, o marido irritava-se quando se intrometia no trabalho dele, mas era só porque se preocupava e, daquela vez, tinha-lhe pedido ajuda. Além disso, não havia qualquer risco de que lhe acontecesse alguma coisa. Tudo o que ia fazer era falar com Laila; depois poderia passar todos os dados a Patrik, que poderia utilizá-los na investigação.

 

Ainda em camisa de noite e com o cabelo revolto, Erica saiu do quarto e desceu as escadas. Ter um pouco de tempo para si e tomar um café antes de os filhos acordarem era um luxo. Levara alguns documentos para ler. Era importante ir bem preparada para a visita. Mas não tinha avançado muito na leitura quando ouviu gritos no primeiro andar. Suspirou, levantou-se e voltou a subir as escadas para ir tratar dos filhos, que tinham sempre demasiada energia.

 

Depois de ter levado a cabo todas as tarefas matinais e de ter deixado os filhos no infantário, Erica ainda tinha algum tempo livre, por isso pensou que podia voltar a verificar alguns pormenores. Dirigiu-se ao escritório e colocou-se novamente à frente do mapa. Esteve assim durante algum tempo, sem ver qualquer padrão. Depois revirou os olhos e desatou a rir. Como é que não tinha visto aquilo antes... Era tão simples.

 

Esticou o braço para pegar no telefone e ligou para a esquadra para falar com Annika. Quando desligou, cinco minutos mais tarde, estava mais confiante do que nunca de que o seu palpite estava certo.

 

A imagem era cada vez mais clara e se, além disso, lhe contasse o que tinha descoberto no dia anterior, Laila não poderia permanecer calada. Desta vez teria de lhe contar toda a história.

 

Com esperança renovada, saiu e sentou-se ao volante. Antes de arrancar, certificou-se uma vez mais de que levava os postais. Ia precisar deles para conseguir que Laila desvelasse os segredos que guardava há tantos anos.

 

Chegada à prisão psiquiátrica, anunciou-se ao guarda.

 

– Olá, gostava de falar com Laila Kowalska. Não marquei nenhum encontro para hoje, mas será que podia perguntar-lhe se ela não quer receber-me? Diga-lhe que queria falar com ela sobre os postais.

 

Erica conteve a respiração enquanto esperava diante das grades do portão. Então ouviu um zumbido, a porta abriu-se e entrou no edifício com o coração a martelar-lhe o peito. A adrenalina percorria-lhe o sangue e a respiração acelerou e tornou-se superficial, por isso respirou fundo várias vezes para se acalmar. Já não se tratava apenas de um velho caso de homicídio, mas sim de cinco raparigas raptadas.

 

– Que quer? – perguntou Laila quando Erica entrou na sala de visitas. Recebeu-a de costas, olhando pela janela.

 

– Vi os postais – respondeu Erica ao sentar-se.

 

Retirou-os da mala e pousou-os em cima da mesa.

 

Laila não se mexeu, o sol batia-lhe no cabelo e, como estava muito curto, notava-se claramente o couro cabeludo.

 

– Não deviam tê-los guardado. Pedi-lhes especificamente para se desfazerem deles – não parecia irritada, antes resignada, e Erica pensou ter ouvido um certo tom de alívio.

 

– Bem, mas não os deitaram fora. E acho que a Laila sabe quem os enviou. E porquê.

 

– Já calculava que, mais cedo ou mais tarde, ia descobrir alguma coisa. No fundo, era o que eu esperava. – Laila virou-se e afundou-se na sua cadeira à frente de Erica. Olhou para baixo e começou a observar as mãos, que estavam entrelaçadas sobre a mesa.

 

– Não se atrevia a contar porque os postais eram ameaças veladas. Continham uma mensagem que só a Laila compreendia. Estou enganada?

 

– Não, mas quem acreditaria em mim? – Laila estremeceu, as mãos tremiam-lhe ligeiramente. – Tive de proteger o que me resta. A única coisa que ainda tem algum significado.

 

Ergueu o olhar e observou Erica com os olhos azul-gelo.

 

– A Erica sabe, não é?

 

– Que o Peter está vivo e que pode estar em perigo? Que é o Peter quem a Laila está a proteger? Sim, já imaginava. E acho que você e a sua irmã têm muito mais contacto do que a Laila desejou que acreditássemos. Que a inimizade entre ambas é uma cortina de fumo atrás da qual escondem que foi ela quem ficou a tomar conta do Peter quando a vossa mãe morreu.

 

– Como é que soube? – perguntou Laila.

 

Erica sorriu.

 

– Numa das nossas conversas, mencionou que o Peter ceceava e, quando telefonei à sua irmã, atendeu um rapaz que disse que era filho dela. E esse rapaz também ceceava. De início pensei tratar-se do sotaque espanhol. Demorei algum tempo a relacionar as coisas e, obviamente, não tinha provas.

 

– Como soava?

 

Erica sentiu uma pontada no coração quando se apercebeu de que Laila tinha passado todos aqueles anos sem ver o filho e sem falar com ele. Num impulso, deu-lhe a mão.

 

– Tinha uma voz agradável e simpática. Ao fundo ouviam-se as vozes dos filhos.

 

Laila assentiu e não retirou a mão. Os olhos humedeceram-se e Erica viu que estava a lutar para conter as lágrimas.

 

– Que aconteceu quando teve de fugir?

 

– Chegou a casa e encontrou a minha mãe morta, a avó dele. Compreendeu quem tinha feito aquilo e que ele próprio também corria perigo. Então entrou em contacto com a minha irmã, que o ajudou a ir para Espanha. E cuidou dele como se fosse filho dela.

 

– Mas como conseguiu aguentar-se todos estes anos sem documentos de identificação? – perguntou Erica.

 

– O marido da Agneta tem um alto cargo na política. Não sei como, mas conseguiu-lhe nova documentação a atestar que Peter era filho da minha irmã.

 

– Compreendeu a ligação entre os carimbos dos postais? – perguntou Erica.

 

Laila olhou-a, surpreendida, e retirou a mão.

 

– Não, nem sequer pensei neles. Só sei que, sempre que uma rapariga desaparecia, enviavam-me um postal; e eu sabia, porque alguns dias depois recebia uma carta com o recorte de jornal.

 

– Ah, sim? E de onde lhe enviavam as cartas? – Erica não conseguia esconder a surpresa. Desconhecia aquilo.

 

– Não faço ideia. Não havia remetente e eu deitava sempre os envelopes fora. Mas a morada não era escrita à mão, vinha num rótulo, como nos postais. Como deve compreender, fiquei muitíssimo assustada. Percebi que tinham descoberto o Peter e que o meu filho poderia ser o próximo. Não podia interpretar de outro modo a imagem dos postais.

 

– Compreendo. Mas como interpretava os recortes? – Erica olhava para Laila cheia de curiosidade.

 

– Como eu disse, só via uma alternativa. A Rapariga estava viva e queria vingar-se tirando-me o Peter. Os recortes eram uma maneira de me dizer até onde era capaz de ir.

 

– Há quanto tempo sabe que a sua filha continua viva? – perguntou Erica baixinho, mas o eco das suas palavras ressoou pela sala.

 

Laila cravou nela os olhos azul-gelo, onde Erica viu refletidos todos aqueles anos de segredos, de dor, de perda e de raiva.

 

– Desde que matou a minha mãe – respondeu Laila.

 

– Mas porque é que ela fez isso? – Erica não tomava notas, limitava-se a ouvir. Não era o momento certo para recolher material para o livro. Nem sequer sabia se seria capaz de escrevê-lo.

 

– Quem sabe? – Laila encolheu os ombros. – Vingança? Porque lhe apeteceu e porque tirava prazer disso? Nunca compreendi o que lhe passava pela cabeça. Era um ser estranho que não funcionava como as outras pessoas.

 

– Quando é que percebeu que alguma coisa não batia certo?

 

– Logo, quase desde o início. As mães sabem quando algo não bate certo. Ainda assim, nunca... – Laila virou a cabeça, mas Erica conseguiu observar a dor na sua expressão.

 

– Mas porquê...? – Erica não sabia como expressar-se. Era difícil formular aquelas perguntas, e as respostas seriam, sem dúvida, difíceis de compreender.

 

– Não fizemos bem. Eu sei. Mas não fazíamos a mais pequena ideia de como lidar com aquilo. E o Vladek vinha de um mundo cujos costumes e ideias eram muito diferentes. – Olhou para Erica com ar suplicante. – O Vladek era um bom homem, mas teve de enfrentar algo que estava para além dele. E eu não fiz nada para o deter. Tudo foi de mal a pior, a ignorância e o medo apoderaram-se de nós e reconheço que, no fim, cheguei a odiá-la. Eu odiava a minha própria filha. – Laila deixou escapar um soluço.

 

– Como é que se sentiu quando se apercebeu de que a sua filha ainda estava viva? – perguntou Erica.

 

– Chorei quando me disseram que tinha morrido. Acredite, chorei. Embora estivesse mais a chorar a filha que nunca tive. – Laila olhou Erica nos olhos e respirou fundo. – Mas chorei ainda mais quando compreendi que, apesar de tudo, estava viva e tinha matado a minha mãe. Tudo o que podia desejar era que não me tirasse também o Peter.

 

– Sabe onde ela está?

 

Laila abanou veementemente a cabeça.

 

– Não. Para mim é apenas uma sombra maligna que pulula por aí. – Em seguida, Laila semicerrou os olhos. – Mas a Erica sabe, não sabe?

 

– Não tenho a certeza, mas tenho as minhas suspeitas.

 

Erica espalhou os postais sobre a mesa, todos virados para baixo.

 

– Veja, os carimbos destes postais dizem que foram todos enviados de uma zona que vai desde uma das localidades em que desapareceu uma das raparigas até Fjällbacka. Apercebi-me disso porque marquei todas as localidades num mapa da Suécia.

 

Laila observou os postais e assentiu.

 

– Certo, mas o que significa isso?

 

Erica apercebeu-se de que começara pelo fim.

 

– Sabe, a Polícia acaba de descobrir que, precisamente no dia em que as raparigas foram raptadas, havia uma competição hípica na respetiva localidade. Como a Victoria desapareceu quando estava a caminho de casa depois de deixar a escola do Jonas e da Marta, estes dois sempre estiveram presentes na investigação. Depois de se descobrir que as competições eram o denominador comum, e depois de me ter apercebido daquilo dos carimbos, comecei a interrogar-me...

 

– Sobre o quê? – disse Laila, contendo a respiração.

 

– Já lhe digo, mas antes quero saber o que aconteceu no dia em que o Vladek morreu.

 

Primeiro houve um longo silêncio. E depois Laila começou a falar.

 

FJÄLLBACKA, 1975

ERA UM DIA COMO OUTRO QUALQUER, REPLETO DE ESCURIDÃO E DE DESESPERO. LAILA PASSARA OUTRA NOITE SEM DORMIR E OS MINUTOS TINHAM AVANÇADO MUITO LENTAMENTE ATÉ AO AMANHECER.

A RAPARIGA TINHA PASSADO A NOITE NA CAVE. JÁ ULTRAPASSARA A DOR DE TÊ-LA LÁ EM BAIXO. TODA A IDEIA DE A PROTEGER, DE QUE UMA MÃE TINHA O DEVER DE FAZER QUALQUER COISA PELO SEU FILHO, DERA LUGAR AO ALÍVIO DE NÃO TER DE VIVER ATERRORIZADA. ERA PETER QUE LAILA DEVIA PROTEGER.

JÁ NEM SE PREOCUPAVA COM OS SEUS FERIMENTOS. A RAPARIGA PODIA FAZER COM ELA O QUE QUISESSE. MAS A ESCURIDÃO QUE LHE ENSOMBRAVA O OLHAR QUANDO CONSEGUIA CAUSAR DOR ERA DEMASIADO ATERRADORA PARA IGNORÁ-LA E ÀS VEZES MAGOAVA PETER QUANDO EXPLODIA NUM ACESSO INESPERADO. PETER AINDA NÃO SABIA DEFENDER-SE E, UMA VEZ, ELA DESLOCOU-LHE O BRAÇO. A QUEIXAR-SE E ATERRORIZADO, O FILHO APARECEU A CORRER COM O BRAÇO ENCOSTADO AO CORPO, E TIVERAM DE IR AO HOSPITAL. NO DIA SEGUINTE ENCONTROU AS FACAS DEBAIXO DA CAMA DE PETER.

DEPOIS DISSO, VLADEK CRUZOU A LINHA, DEFINITIVAMENTE. DE REPENTE, A CORRENTE NA CAVE FICOU PRONTA. LAILA NÃO O TINHA OUVIDO A TRABALHAR DURANTE A NOITE, NÃO TINHA REPARADO QUE DESCOBRIRA UMA MANEIRA DE CONSEGUIREM DORMIR EM SEGURANÇA À NOITE E DE FICAREM EM PAZ DURANTE O DIA. ERA A ÚNICA SOLUÇÃO, DIZIA VLADEK. NÃO BASTAVA TRANCÁ-LA NO QUARTO, TINHA DE COMPREENDER QUE O QUE FAZIA ESTAVA MAL. NÃO PODIAM CONFRONTAR AQUELA RAIVA, AQUELES ACESSOS CAPRICHOSOS, IMPOSSÍVEIS DE PREVER. QUANTO MAIS CRESCIA EM FORÇA E EM TAMANHO, PIORES SERIAM OS FERIMENTOS. EMBORA SOUBESSE QUE AQUILO ERA UMA LOUCURA, LAILA NÃO TEVE FORÇAS PARA O CONTRARIAR.

A PRINCÍPIO, A RAPARIGA PROTESTAVA. GRITAVA, BATIA-LHE E ARRANHAVA-LHE A CARA QUANDO VLADEK A LEVAVA PARA A CAVE E A ACORRENTAVA COM AS GRILHETAS. VLADEK LIMPAVA AS FERIDAS E CURAVA-AS COMO PODIA. DIZIA AOS CLIENTES QUE TINHA SIDO O GATO. NINGUÉM O QUESTIONAVA.

POR FIM, ELA ACABOU POR SE RESIGNAR E JÁ NÃO OFERECIA RESISTÊNCIA. DEIXAVA-SE ACORRENTAR COM AR APÁTICO. SE A DEIXASSEM NA CAVE POR MUITO TEMPO, PUNHAM-LHE COMIDA E ÁGUA, COMO SE DE UM ANIMAL SE TRATASSE. PORQUE, ENQUANTO SE SATISFIZESSE A ASSISTIR AO SOFRIMENTO ALHEIO, ENQUANTO SE SENTISSE FASCINADA PERANTE A VISÃO DO SANGUE E PELA AGUDEZA DOS GRITOS, TINHAM DE CONTROLÁ-LA COMO A UM ANIMAL. QUANDO NÃO ESTAVA NA CAVE OU NO QUARTO, UM DELES DEDICAVA-SE A VIGIÁ-LA, NORMALMENTE, VLADEK. A RAPARIGA ERA PEQUENA, MAS FORTE E RÁPIDA, E VLADEK NÃO CONFIAVA EM LAILA PARA A CONTROLAR. NEM ELA PRÓPRIA ACHAVA QUE O CONSEGUIRIA. POR ISSO, ERA QUASE SEMPRE VLADEK QUEM SE ENCARREGAVA DELA ENQUANTO LAILA CUIDAVA DE PETER.

PORÉM, NAQUELA MANHÃ, TUDO CORREU MAL. VLADEK TAMBÉM DORMIRA MUITO POUCO. ERA NOITE LUA CHEIA E TINHA PASSADO AS HORAS ACORDADO AO SEU LADO, OLHANDO PARA O TETO. QUANDO FINALMENTE SE LEVANTARAM, ESTAVA IRRITÁVEL E TINHA A CABEÇA À RODA POR CAUSA DO CANSAÇO. ALÉM DISSO, ACABARA-SE-LHES O LEITE E, UMA VEZ QUE PETER SE RECUSAVA A TOMAR OUTRA COISA AO PEQUENO-ALMOÇO ALÉM DE PAPA, PÔ-LO NO CARRO E FOI AO SUPERMERCADO.

MEIA HORA MAIS TARDE, ESTAVAM DE VOLTA. COM PETER NOS BRAÇOS, LAILA APRESSOU-SE A ENTRAR EM CASA. O RAPAZINHO ESTAVA HÁ ALGUM TEMPO À ESPERA DO PEQUENO-ALMOÇO E TINHA FOME.

TINHA ACABADO DE ENTRAR QUANDO SE APERCEBEU DE QUE ACONTECERA ALGUMA COISA. REINAVA UM SILÊNCIO ESTRANHO NA CASA E LAILA CHAMOU VLADEK, QUE NÃO RESPONDEU. POUSOU PETER NO CHÃO E LEVOU UM DEDO AOS LÁBIOS PARA DIZER AO FILHO QUE ESTIVESSE CALADO. O RAPAZINHO OLHOU PARA LAILA COM AR PREOCUPADO, MAS OBEDECEU.

COM PASSOS FURTIVOS, LAILA DIRIGIU-SE À COZINHA. ESTAVA DESERTA E OS RESTOS DO PEQUENO-ALMOÇO ESTAVAM EM CIMA DA MESA: A TIGELA DE VLADEK E A TIGELA DA RAPARIGA.

ENTÃO OUVIU VOZES NA SALA DE ESTAR. UMA VOZ DE CRIANÇA CLARA E MONÓTONA REPETIA INCESSANTEMENTE UMA SUCESSÃO DE FRASES. LAILA TENTOU PERCEBER O QUE DIZIA. CAVALOS, LEÕES, FOGO... AS HISTÓRIAS DO CIRCO COM QUE QUE VLADEK OS FASCINAVA.

LAILA DIRIGIU-SE MUITO DEVAGAR À SALA DE ESTAR. A CERTEZA DO QUE A AGUARDAVA DILACERAVA-A POR DENTRO. HESITOU ANTES DE DAR OS ÚLTIMOS PASSOS, NÃO QUERIA VÊ-LO, MAS NÃO HAVIA VOLTA A DAR.

– VLADEK? – SUSSURROU, MAS SABIA QUE SERIA EM VÃO.

CONTINUOU ATÉ AO SOFÁ E NÃO FOI POSSÍVEL CONTER O GRITO. SAIU-LHE DO ESTÔMAGO, DOS PULMÕES, DO CORAÇÃO E ENCHEU A SALA.

A RAPARIGA SORRIU QUASE COM ORGULHO. NÃO PARECEU REAGIR AO BARULHO, MAS INCLINOU A CABEÇA E OLHOU-A QUASE COMO SE SE ALIMENTASSE DO SEU TORMENTO. ESTAVA FELIZ. PELA PRIMEIRA VEZ, LAILA VIU A FELICIDADE NOS OLHOS DA FILHA.

– O QUE FIZESTE? – A VOZ MAL LHE SAÍA DO CORPO, AVANÇOU E ACARICIOU AS FACES DE VLADEK COM AS MÃOS. OS OLHOS FITAVAM O TETO, DESORBITADOS E CEGOS, E LAILA RECORDOU AQUELE DIA NO CIRCO QUANDO OS OLHOS DOS DOIS SE ENCONTRARAM E AMBOS COMPREENDERAM QUE A VIDA IA DAR UMA VOLTA A PARTIR DAQUELE MOMENTO. SE TIVESSEM SABIDO O QUE IA ACONTECER, TERIAM IDO CADA UM PARA SEU LADO PARA CONTINUAREM A VIVER AS SUAS VIDAS COMO SERIA DE ESPERAR QUE FIZESSEM. TERIA SIDO O MELHOR. DESSA FORMA NÃO TERIAM CRIADO JUNTOS AQUELA CRUELDADE.

– EU É QUE FIZ ISTO – DISSE A RAPARIGA.

LAILA ERGUEU OS OLHOS E OBSERVOU A FILHA, SENTADA NO BRAÇO DO SOFÁ. TINHA A CAMISOLA ENCHARCADA DE SANGUE E O CABELO CASTANHO COMPRIDO EMARANHADO SOBRE OS OMBROS. PARECIA A CRIA DE UM TROLL. A RAIVA QUE DEVIA TER SENTIDO ENQUANTO CRAVAVA UMA E OUTRA VEZ A FACA NO PAI JÁ SE ESFUMARA E AGORA PARECIA CALMA E DÓCIL. SATISFEITA.

LAILA VOLTOU A OLHAR PARA VLADEK, O HOMEM QUE AMARA. NO PEITO VIAM-SE AS FACADAS E UM CORTE PROFUNDO ATRAVESSAVA-LHE A GARGANTA, COMO SE USASSE UM LENÇO VERMELHO.

– ADORMECEU. – A RAPARIGA ENCOLHEU OS JOELHOS, JUNTOU-OS AO TRONCO E REPOUSOU A CABEÇA NELES.

– PORQUE FIZESTE ISTO? – PERGUNTOU LAILA, MAS A RAPARIGA LIMITOU-SE A ENCOLHER OS OMBROS.

LAILA VIROU-SE AO OUVIR UM BARULHO POR DETRÁS DELA. PETER TINHA ENTRADO NA SALA E, COM O TERROR ESTAMPADO NOS OLHOS, FITAVA VLADEK E A RAPARIGA.

A IRMÃ DEVOLVEU-LHE O OLHAR.

– TENS DE ME SALVAR – DISSE.

LAILA SENTIU-SE ENREGELAR ATÉ À MEDULA. A RAPARIGA ESTAVA A FALAR COM ELA. E LAILA TENTOU CONVENCER-SE DE QUE NÃO PASSAVA DE UMA CRIANÇA. NO ENTANTO, SABIA DO QUE A FILHA ERA CAPAZ. NA VERDADE, SEMPRE O SOUBERA. POR ISSO COMPREENDEU O QUE AQUELAS PALAVRAS SIGNIFICAVAM. E QUE ISSO ERA PRECISAMENTE O QUE TINHA DE FAZER: TINHA DE SALVÁ-LA.

LEVANTOU-SE.

– ANDA, VAMOS LAVAR O SANGUE. DEPOIS VOU TER DE TE ACORRENTAR, COMO O PAPÁ COSTUMAVA FAZER.

A RAPARIGA SORRIU. DEPOIS ACENOU COM A CABEÇA E SEGUIU A MÃE.

 

MELLBERG BRILHAVA como a estrela da manhã quando entrou na cozinha da esquadra.

 

– Bem, vocês estão de rastos!

 

Patrik olhou para o chefe, indignado.

 

– Passámos a noite em branco, a trabalhar.

 

Pestanejou várias vezes para se livrar de um cisco. Mal conseguia manter os olhos abertos depois de ter passado a noite toda sem dormir, mas resumiu a Mellberg o que acontecera e o que tinham descoberto na quinta. O chefe sentou-se numa das cadeiras duras da cozinha.

 

– Parece que o caso está mais do que encerrado.

 

– Bem, nada disto nos levou aonde esperávamos. – Patrik rodava a chávena de café. – Ainda há muitas pontas soltas. A Marta e a Molly continuam desaparecidas, aparentemente a Helga também, e sabe-se lá onde se terá metido o Jonas. E a ligação com o homicídio da Ingela Eriksson é muito vaga. Embora possamos ter quase a certeza de que o Jonas foi o raptor de quatro das raparigas que desapareceram nestes últimos anos, era apenas uma criança quando assassinaram a Ingela. E depois há o homicídio do Lasse Hansson. Se a Victoria tinha um relacionamento com a Marta, terá sido ela quem o matou, mas como? Ou talvez tenha contado ao Jonas da chantagem e este se tenha encarregado do assunto pessoalmente?

 

Mellberg esteve prestes a dizer algo por diversas vezes, mas Patrik interrompeu-o sempre. Por fim, aclarou a garganta com expressão satisfeita e afirmou:

 

– Julgo que encontrei uma ligação entre o caso da Ingela Eriksson e da Victoria Hansson, além dos ferimentos, claro. O Jonas não é o culpado. Ou melhor, em parte, talvez seja.

 

– O quê? – Patrik endireitou-se na cadeira e de repente sentiu-se completamente desperto. Seria possível que Mellberg tivesse realmente tido alguma ideia?

 

– Ontem à noite estive a ler novamente o material da investigação. Lembram-se de o marido da Ingela Eriksson ter dito que nesse mesmo dia tinham recebido a visita de um tipo que tinha respondido a um anúncio?

 

– Sim... – respondeu Patrik, que tinha vontade de se aproximar de Mellberg e arrancar-lhe as palavras da boca.

 

– Era um anúncio de um carro. O indivíduo queria comprar um carro velho. Para o restaurar. Já deve ter adivinhado em quem estou a pensar.

 

Patrik visualizou a imagem do barracão onde tinham passado várias horas naquela noite.

 

– Einar? – perguntou com incredulidade.

 

Sentiu que a engrenagem começava a mover-se lentamente e pouco a pouco uma teoria começou tomar forma. Uma teoria horrível, mas não completamente inverosímil. Por fim, Patrik levantou-se.

 

– Vou falar com os outros. Temos de regressar à quinta. – Já não sentia o mais leve vestígio de cansaço no corpo.

 

Erica conduzia pela estrada que ainda não tinha sido limpa depois do nevão noturno. O mais certo era ir demasiado depressa, mas era difícil concentrar-se na condução. Só conseguia pensar no que Laila lhe tinha revelado e no facto de Louise estar viva.

 

Tentara telefonar a Patrik para lhe contar o que descobrira, mas o marido não atendia. Frustradíssima, tentou ordenar as ideias sem a ajuda dele, mas havia uma que se impunha a todas as outras: Molly estava em perigo se estivesse com Louise. Ou com Marta, como atualmente se autointitulava. Erica perguntava a si própria porque teria escolhido aquele nome e como é que ela e Jonas se tinham conhecido. Qual era a probabilidade de duas pessoas com uma disfunção daquelas acabarem juntas? Era verdade que havia vários exemplos históricos de casais homicidas: Myra Hindley e Ian Brady, Fred e Rosemary West, Karla Homolka e Paul Bernardo26... Mas isso não o tornava menos assustador.

 

De repente, Erica pensou que talvez Patrik e os colegas já tivessem encontrado Molly e Marta, mas disse a si mesma que tal não era provável. Nesse caso, mesmo que à pressa, ter-lhe-ia telefonado a contar, tinha a certeza. Ou seja, as duas mulheres não estavam na quinta. Onde estariam?

 

Deixou para trás o acesso norte a Fjällbacka em direção a Mörhult e foi abrandando nas curvas mais apertadas, onde a estrada descia em direção às fileiras de cabanas de pesca recém-construídas. Cruzar-se ali com um carro que viesse em sentido contrário não era o mais desejável. Revia vezes sem conta os pormenores da história de Laila acerca daquele dia fatídico, do que acontecera naquela casa solitária. Afinal, tinha sido uma casa dos horrores antes de as pessoas terem começado a chamar-lhe assim e antes de saberem a verdade.

 

Erica travou. O carro derrapou e o coração começou a bater-lhe desenfreadamente enquanto lutava para recuperar o controlo. Depois bateu com o punho no volante. Como podia ser tão estúpida? Voltou a carregar no acelerador, passou pelo hotel e restaurante Richters, localizado na antiga fábrica de conservas, e teve de se controlar para não conduzir como uma louca pelas ruas de Fjällbacka, que eram demasiado estreitas, embora estivessem desertas por ser inverno. Uma vez fora da cidade, atreveu-se a voltar a acelerar um pouco, mas disse a si própria para ter calma, dado o estado do piso.

 

Sem tirar os olhos da estrada, telefonou novamente a Patrik. Sem resposta. Tentou igualmente falar com Gösta e com Martin, mas também não atenderam. Deviam estar ocupados com alguma coisa importante e Erica dava tudo para saber o que era. Depois de hesitar alguns minutos, marcou novamente o número de Patrik e deixou uma mensagem no gravador de chamadas em que brevemente lhe dizia o que tinha descoberto e para onde se dirigia. De certeza que ia ficar irritadíssimo, mas Erica não tinha alternativa. Se tivesse razão, não agir poderia ter consequências catastróficas. E iria ter cuidado. Afinal de contas, tinha aprendido alguma coisa com os anos. Tinha de pensar nos filhos, não devia correr nenhum risco.

 

Estacionou a alguma distância para que não se ouvisse o motor e aproximou-se furtivamente da casa. Parecia completamente deserta, mas havia marcas de pneus recentes na neve, portanto, alguém estivera ali há pouco tempo. Abriu a porta o mais silenciosamente possível. Pôs-se à escuta. A princípio não ouviu nada, mas depois começou a distinguir um leve ruído. Parecia vir de baixo, e assemelhava-se a um pedido de ajuda.

 

Todos os pensamentos que albergara acerca de ter cuidado esfumaram-se instantaneamente. Desatou a correr na direção da porta da cave e abriu-a.

 

– Olá? Quem está aí? – Ouviu o pavor ressoar na própria voz, que parecia a voz de uma idosa, e tentou lembrar-se onde tinha visto um interruptor.

 

– Sou Erica Falck – disse. – Quem está aqui?

 

– Sou eu. – Ouviu-se uma voz, provavelmente a de Molly, completamente apavorada. – E também está aqui a minha avó.

 

– Tem calma. Vou ver se encontro o interruptor – disse Erica, e amaldiçoou-se interiormente até que, por fim, deu com ele. Rodou-o, aliviada, e rezou para que a lâmpada ainda funcionasse. Quando a lâmpada se acendeu, Erica fechou instintivamente os olhos até se habituarem à luz penetrante e, já na cave, viu duas figuras sentadas e encolhidas junto à parede. Ambas protegiam os olhos com as mãos.

 

– Meu Deus! – exclamou Erica, descendo apressadamente as escadas íngremes. Precipitou-se sobre Molly, que se agarrou a ela a soluçar. Erica deixou-a extravasar, deixou-a chorar durante um instante abraçada a ela, mas depois afastou-se um pouco.

 

– O que aconteceu? Onde estão os teus pais?

 

– Não sei, é tudo muito estranho... – balbuciou Molly.

 

Erica olhou para as grilhetas que pendiam da grossa corrente, eram as mesmas que vira na visita anterior à cave. Era a mesma corrente que, há muitos anos, prendera Louise àquela parede. Virou-se para a outra mulher e observou-a com expressão compassiva. Tinha o rosto sujo e sulcado por rugas profundas.

 

– Sabem se há por aqui alguma chave com que possa tirar-vos as grilhetas?

 

– A chave das minhas está aqui. – Helga apontou para um banco que havia na parede oposta. – Se me soltar, posso ajudá-la a encontrar a chave das da Molly. Não é a mesma e não vi onde foi parar.

 

Erica ficou impressionada com a calma da idosa e levantou-se para ir buscar a chave. Por detrás dela, Molly soluçava sem parar, resmungando algo que Erica não compreendia. Aproximou-se de Helga de chave na mão e inclinou-se para abrir as grilhetas.

 

– O que aconteceu? Onde estão o Jonas e a Marta? Foram eles que vos acorrentaram? Meu Deus, como puderam fazer isto à própria filha?

 

Palrava nervosamente e sem parar enquanto tentava abrir a fechadura. Mas, de repente, calou-se. Estava a falar dos pais de Molly. Fossem quem fossem e independentemente do que tivessem feito, continuavam a ser os pais da rapariga.

 

– Não te preocupes, a Polícia vai encontrá-los – disse em voz baixa. – O que o seu filho vos fez, a si e à Molly, é horrível, mas garanto-lhe que o vão apanhar. Tenho informações suficientes para que ele e a mulher nunca mais saiam da prisão.

 

A fechadura abriu-se, Erica levantou-se e sacudiu o pó dos joelhos. Depois estendeu a mão para ajudar Helga a pôr-se de pé.

 

– Bem, vamos ver se encontramos a outra chave – disse.

 

A avó de Molly observava-a com um olhar que Erica não conseguia interpretar, e uma sensação de mal-estar começou a revolver-lhe o estômago. Depois de alguns momentos de silêncio constrangedor, Helga inclinou a cabeça e disse calmamente:

 

– O Jonas é meu filho. Lamento muito, mas não posso permitir que lhe destrua a vida.

 

Com uma velocidade inesperada, a mulher agachou-se, pegou numa pá que estava no chão e ergueu-a no ar. A última coisa que Erica ouviu foi o grito de Molly a ecoar pelas paredes. E depois ficou tudo escuro.

 

Era uma sensação estranha, regressar à quinta de dia depois de ali ter passado várias horas à luz de uns focos que tinham revelado coisas que nenhum ser vivo devia ver. Estava tudo envolto numa calma silenciosa. Tinham recuperado todos os cavalos, mas, em vez de os devolverem aos estábulos, tinham-nos deixado nas quintas das proximidades para que os vizinhos tratassem deles. Como os donos não estavam, era a única solução.

 

– Claro que é tarde de mais para dizer isto, mas, agora que sabemos, talvez devêssemos ter vigiado este sítio – disse Gösta enquanto atravessavam o pátio deserto.

 

– Era exatamente no que eu estava a pensar – disse Mellberg.

 

Patrik assentiu. Sim, era fácil opinar depois de constatar o que tinha acontecido, mas Gösta tinha razão. Havia marcas de pneus recentes na direção da casa de Einar e de Helga, assim como outras também recentes no sentido inverso. No entanto, não havia pegadas nem marcas de pneus em torno da casa de Marta e de Jonas. Talvez pensassem que a Polícia tinha deixado alguém a vigiá-la. Patrik sentia um mal-estar crescente. Tendo em conta a teoria inexplicável que começavam a seguir, era impossível saber qual seria a próxima surpresa.

 

Martin abriu a porta e entrou.

 

Não disseram nada, mas entraram na casa em silêncio e olharam cautelosamente em redor, embora reinasse nas divisões uma espécie de vazio que dizia a Patrik que todos tinham partido. Esse seria o próximo problema, tentar localizar as quatro pessoas que continuavam desaparecidas, algumas voluntariamente, outras contra a sua vontade. Esperava que estivessem todos ainda vivos, mas não podia garanti-lo.

 

– Okay, o Martin e eu vamos lá acima – disse. – Os outros ficam aqui para o caso de, contra todas as probabilidades, alguém aparecer.

 

À medida que subiam os degraus, Patrik estava cada vez mais convencido de que havia algo que não batia certo e era como se todo o seu ser se opusesse ao que ia encontrar no andar de cima. Mas os pés continuaram a mexer-se.

 

– Chiu – disse, e estendeu a mão para deter Martin, que ia ultrapassá-lo. – Mais vale prevenir.

 

Sacou a pistola e destravou-a. Martin seguiu-lhe o exemplo. Com as armas em punho, subiram o último lanço de escadas. Os primeiros quartos que davam para o patamar estavam todos vazios, por isso continuaram até aos quartos dos fundos.

 

– Merda! – Patrik baixou a arma. O cérebro registou o que via, mas não conseguia processá-lo.

 

– Mas que merda... – repetiu Martin por detrás dele. Depois deu um passo atrás e Patrik ouviu-o a vomitar no corredor.

 

– Não vamos entrar – Patrik parara à porta e contemplava dali a cena macabra à sua frente. Einar estava meio sentado. Tinha os tocos das pernas estendidos sobre a cama, os braços pendiam-lhe de ambos os lados e, junto ao corpo, havia uma seringa, que Patrik calculou ter contido ketamina. As órbitas observavam-nos, vazias e ensanguentadas. Aquilo parecia ter sido feito apressadamente e o ácido jorrara-lhe pelas faces e pelo peito, causando queimaduras à sua passagem. Alguns fios de sangue tinham-lhe escorrido dos ouvidos e a boca era uma careta pegajosa e sangrenta.

 

À esquerda da cama havia uma televisão ligada e, até àquele momento, Patrik não se tinha apercebido do que estava a passar no ecrã. Apontou silenciosamente para o aparelho e ouviu Martin a engolir em seco por detrás dele.

 

– Que raio é isto? – perguntou.

 

– Julgo que encontrámos alguns dos filmes que faltavam na cave do barracão.

 

26 Casais de serial killers famosos. Hindley e Brady, britânicos, violaram e mataram três homens e duas mulheres entre 1963 e 1965. Os West, igualmente britânicos, torturaram e assassinaram pelo menos dez mulheres nos anos 70 e 80 do século passado. O casal Homolka e Bernardo violou e assassinou três mulheres entre 1991 e 1992, uma das quais irmã de Homolka. (N. do T.)

 

HAMBURGSUND, 1981

ESTAVA TÃO FARTA DAS SUAS PERGUNTAS... BERIT E TONY ESTAVAM CONSTANTEMENTE A PERGUNTAR-LHE COMO ESTAVA E SE ESTAVA TRISTE. NÃO SABIA O QUE RESPONDER NEM O QUE BERIT E TONY QUERIAM OUVIR, POR ISSO NÃO DIZIA NADA.

E MANTINHA A CALMA. APESAR DE TER PASSADO TANTAS HORAS NA CAVE, ONDE FORA FORÇADA A COMER DE UMA BACIA, COMO UM ANIMAL, SABIA QUE A «MAMû E O «PAPÁ» A PROTEGERIAM. MAS BERIT E TONY NÃO, ENVIÁ-LA-IAM PARA UMA INSTITUIÇÃO QUALQUER SE NÃO SE PORTASSE COMO DEVIA E LOUISE QUERIA FICAR ALI. NÃO POR GOSTAR DOS WALLANDER NEM DA QUINTA, MAS PORQUE QUERIA ESTAR COM TESS.

DERAM-SE BEM DESDE O PRIMEIRO MOMENTO. ERAM MUITO PARECIDAS. E TINHA APRENDIDO TANTO COM TESS... JÁ PASSARA SEIS ANOS NA QUINTA E, ÀS VEZES, CUSTAVA-LHE CONTER A RAIVA. ESTAVA MORTINHA POR VER A DOR NOS OLHOS DE OUTRA PESSOA E TINHA SAUDADES DA SENSAÇÃO DE PODER; PORÉM, COM A AJUDA DE TESS, APRENDEU A REPRIMIR OS IMPULSOS E A ESCONDER-SE POR DETRÁS DE UMA MÁSCARA DE NORMALIDADE.

QUANDO O DESEJO SE TORNAVA DEMASIADO INTENSO, TINHAM OS ANIMAIS. MAS TENTAVAM SEMPRE DAR A ENTENDER QUE AS FERIDAS TINHAM OCORRIDO DE OUTRA FORMA. BERIT E TONY NUNCA SUSPEITARAM DE NADA. LIMITAVAM-SE A LAMENTAR O SEU AZAR E NÃO COMPREENDIAM QUE TESS E LOUISE TINHAM FICADO COM A VACA QUANDO ESTAVA DOENTE PORQUE GOSTAVAM DE VÊ-LA SOFRER E DE COMO A CHAMA DA VIDA SE IA EXTINGUINDO DOS SEUS OLHOS. NÃO PASSAVAM DE UNS INGÉNUOS E DE UNS TONTOS.

TESS TINHA MUITO MAIS JEITO PARA SE FUNDIR COM O QUE A RODEAVA E NÃO CHAMAR A ATENÇÃO. À NOITE, SUSSURRAVA SOBRE O FOGO, SOBRE A EUFORIA ABSOLUTA DE VER ALGUÉM ARDER. DIZIA QUE ERA CAPAZ DE APRISIONAR ESSE PRAZER NO PUNHO E APERTAR COM FORÇA ATÉ QUE NÃO HOUVESSE O MAIS PEQUENO RISCO DE A DESCOBRIREM SE O SOLTASSE.

AQUILO DE QUE MAIS GOSTAVA ERA DAS NOITES. PARTILHAVA A CAMA COM TESS DESDE O PRIMEIRO DIA. A PRINCÍPIO POR CAUSA DO CALOR E DA SENSAÇÃO DE SEGURANÇA, PORÉM, GRADUALMENTE, FOI SURGINDO OUTRA COISA. UM ESTREMECIMENTO QUE SE PROPAGAVA PELO CORPO QUANDO SE ROÇAVAM DEBAIXO DAS COBERTAS. COM ALGUMA RESERVA, COMEÇARAM A EXPLORAR-SE UMA À OUTRA, A DEIXAR QUE OS DEDOS PERCORRESSEM FORMAS DESCONHECIDAS ATÉ ACABAREM POR CONHECER CADA MILÍMETRO DOS SEUS CORPOS.

NÃO SABIA COMO DESCREVER AQUILO. SERIA AMOR? LOUISE NUNCA AMARA NINGUÉM, DE CERTEZA ABSOLUTA, E TAMBÉM NUNCA SENTIRA ÓDIO. A MÃE ACHAVA QUE SIM, MAS NÃO ERA VERDADE. NÃO ERA CAPAZ DE SENTIR ÓDIO, APENAS INDIFERENÇA PELO QUE OS OUTROS CONSIDERAVAM IMPORTANTE NA VIDA. TESS, PELO CONTRÁRIO, SABIA ODIAR. ÀS VEZES VIA COMO O ÓDIO LHE ARDIA NO OLHAR, PODIA OUVIR-LHO NA VOZ QUANDO FALAVA COM DESPREZO DAS PESSOAS QUE AS PREJUDICAVAM. E FAZIA MUITAS PERGUNTAS: SOBRE O SEU PAI, A SUA MÃE E O SEU IRMÃO MAIS NOVO. E SOBRE A AVÓ. DEPOIS DA VISITA DA AVÓ, PASSOU SEMANAS A FALAR DELA, A PERGUNTAR SE ERA UMA DAQUELAS PESSOAS QUE MERECIAM UM CASTIGO. NA VERDADE, LOUISE NÃO COMPREENDIA A RAIVA. NÃO ODIAVA NINGUÉM DA SUA FAMÍLIA, SIMPLESMENTE NÃO LHE INTERESSAVAM. TINHAM DEIXADO DE EXISTIR NO PRECISO MOMENTO EM QUE FORA VIVER COM TONY E COM BERIT. OS OUTROS ERAM O SEU PASSADO. TESS ERA O SEU FUTURO.

DA VIDA PASSADA APENAS QUERIA RECORDAR AS HISTÓRIAS QUE O PAI LHE CONTARA SOBRE O CIRCO. TODOS AQUELES NOMES, AS CIDADES E OS PAÍSES, TODOS OS ANIMAIS E TRUQUES, OS CHEIROS, OS SONS E AS CORES QUE CONVERTIAM O CIRCO NA MAGIA DE UM FOGO-DE-ARTIFÍCIO. TESS ADORAVA OUVIR AQUELAS HISTÓRIAS. QUERIA OUVI-LAS TODAS AS NOITES E CHEGAVA MESMO A FAZER PERGUNTAS SOBRE AS PESSOAS DO CIRCO, SOBRE COMO VIVIAM, O QUE DIZIAM... E OUVIA AS RESPOSTAS TREMENDO DE EXPECTATIVA.

QUANTO MAIS CONHECIAM OS CORPOS UMA DA OUTRA, MAIS COISAS QUERIA CONTAR-LHE. QUERIA QUE TESS FOSSE FELIZ, E AS HISTÓRIAS DO PAI ERAM ALGO QUE LOUISE PODIA OFERECER-LHE.

NAQUELA ALTURA, TODA A SUA EXISTÊNCIA GIRAVA EM TORNO DE TESS E COMPREENDIA QUE SE COMPORTAVA CADA VEZ MAIS COMO UM ANIMAL. TESS EXPLICAVA-LHE COMO AS COISAS FUNCIONAVAM NA VIDA REAL. NUNCA DEVIAM SER FRACAS NEM DEIXAR-SE DOMINAR POR AQUILO QUE TINHAM DENTRO DELAS. TINHAM DE APRENDER A ESPERAR PELO MOMENTO CERTO; TINHAM DE APRENDER A AUTOCONTROLAR-SE. ERA DIFÍCIL, MAS LOUISE PRATICAVA E A RECOMPENSA ERA PODER DORMIR TODAS AS NOITES NO COLO DE TESS E SENTIR COMO O CALOR DELA SE PROPAGAVA POR TODO O SEU CORPO, SENTIR OS DEDOS DELA SOBRE A PELE, A RESPIRAÇÃO DELA NO SEU CABELO.

TESS ERA TUDO. TESS ERA O MUNDO.

 

ALI ESTAVAM, COM AQUELE FRIO, no meio do pátio, a respirar tanto ar fresco quanto podiam. Torbjörn estava lá dentro. Patrik tinha-o chamado com os olhos ainda cravados no ecrã da televisão. Depois obrigou-se a continuar a olhar desde a entrada.

 

– Há quanto tempo achas que anda a fazer isto? – perguntou Martin.

 

– Teremos de ver todos os filmes que tinha e compará-los com os relatos de desaparecimentos que tenhamos nos registos. Mas parece que já foi há muitos anos. Talvez também possamos determiná-lo através das idades que Jonas tinha quando fez os filmes.

 

– Realmente, obrigar o filho a observar e a filmar... Achas que também o obrigou a participar?

 

– Parece que não, mas talvez possamos ver isso noutros filmes. Mas é certo que Jonas o imitou mais tarde.

 

– E com a ajuda da Marta – disse Martin, abanando a cabeça como se não pudesse acreditar. – Loucos de merda!

 

– Nunca me passaria pela cabeça que a Marta pudesse estar envolvida neste caso – disse Patrik. – Mas se assim é, começo a estar cada vez mais preocupado com a Molly. Seriam capazes de fazer mal à própria filha?

 

– Não faço ideia – disse Martin. – Sabes uma coisa? Pensava que conhecia minimamente as pessoas, mas isto está a mostrar-me que, afinal, ando a milhas. Em condições normais, dir-te-ia que não, que não fariam mal à própria filha, mas desta gente acho que se pode esperar qualquer coisa.

 

Patrik apercebeu-se de que tinham as mesmas imagens na retina. Aquelas gravações cheias de grão, com cortes e manchas, armazenadas em DVD, mas filmadas com um equipamento antigo. Einar era alto e forte, mesmo bonito. Estava na divisão que havia debaixo do barracão, aquela divisão que era impossível de encontrar a menos que se estivesse à procura dela, o que não tinha acontecido em todos aqueles anos. O que fazia com aquelas raparigas, por enquanto sem nome, era indescritível, tal como o olhar que lançava à câmara. Os gritos das raparigas misturavam-se com o tom monótono e calmo das instruções que dava ao filho para filmá-lo. Um adolescente desajeitado que veriam transformar-se em adulto nos restantes filmes, suspeitava Patrik. E, em algum momento, também veriam uma jovem Marta.

 

Mas o que levara Jonas a perpetuar a herança repugnante que o pai lhe deixara? Quando acontecera uma coisa daquelas? E como é que Marta acabara envolvida naquele mundo aterrorizador que pai e filho tinham construído? Se não os encontrassem, nunca poderiam esclarecê-lo. Além disso, Patrik perguntava-se se Helga sabia de tudo aquilo. E onde estaria agora?

 

Deu uma vista de olhos ao telemóvel. Três chamadas perdidas de Erica e uma mensagem de voz. Com um mau pressentimento, marcou o número do gravador de chamadas e ouviu a mensagem. Soltou um palavrão tão alto que Martin se sobressaltou.

 

– Vai buscar o Gösta. Acho que sei onde estão. A Erica está com eles.

 

Patrik já desatara a correr na direção do carro e Martin seguiu-o enquanto chamava Gösta aos berros. O velho agente tinha dobrado a esquina da casa para urinar nas traseiras.

 

– Que aconteceu? – perguntou Gösta a correr na direção dos colegas.

 

– A Marta é a Louise! – disse Patrik, olhando para trás por cima do ombro.

 

– O quê?

 

Patrik abriu a porta do condutor de rompante e Martin e Gösta entraram no carro.

 

– A Erica foi encontrar-se com a Laila esta manhã. A Marta é a Louise, a menina que foi acorrentada na cave. Toda a gente pensava que morrera afogada acidentalmente, mas está viva e é a Marta. Não sei os pormenores, mas se a Erica diz que é assim, por alguma coisa é. A Erica também acredita que a Marta e a Molly estão na casa de infância da Marta, e foi até lá, por isso não podemos perder tempo.

 

O carro derrapou ao arrancar e virou para sair do pátio. Martin olhava para o colega sem compreender nada, mas Patrik não queria saber.

 

– És mesmo estúpida! – murmurou Patrik entredentes. – Desculpa, amor – acrescentou logo a seguir. Não queria insultar a mulher, que adorava, mas estava tão assustado que não conseguia controlar a raiva.

 

– Cuidado! – gritou Gösta quando o carro derrapou para um lado da estrada.

 

Patrik abrandou, mas o que realmente queria era carregar a fundo no acelerador. A preocupação devorava-o por dentro como um animal selvagem.

 

– Não devíamos dizer ao Bertil aonde vamos? – perguntou Martin.

 

Patrik praguejou para dentro. Sim, era verdade, tinham deixado Mellberg na quinta. Estava com Torbjörn, a «colaborar na investigação pericial» quando se tinham ido embora. Sem dúvida que já devia estar a enlouquecer Torbjörn e a sua equipa.

 

– Sim, telefona-lhe – disse Patrik sem desviar o olhar da estrada.

 

Martin obedeceu e, depois de uma breve troca de palavras, desligou a chamada.

 

– Diz que já vai.

 

– Bem, espero que não ponha a pata na poça.

 

Tinham tomado o desvio para a casa e Patrik cerrou os dentes ainda com mais força quando viu o Volvo Combi estacionado a alguma distância. Erica devia tê-lo deixado ali para que não o descobrissem. Isso não o tranquilizou minimamente.

 

– Vamos levar o carro até à porta – disse, e ninguém se opôs.

 

Parou repentinamente frente à casa abandonada e entrou no pátio como uma seta sem esperar por Gösta e Martin. Mas, quando cruzava a porta, os colegas já estavam nos seus calcanhares.

 

– Chiu – disse, levando o dedo aos lábios.

 

A porta da cave estava fechada, mas algo lhe dizia que o mais lógico era começar as buscas por ali, uma vez que, como pensava, seria o lugar ao qual Louise gostaria de regressar. Abriu a porta, que, felizmente, não rangeu. Mas quando pôs o pé no primeiro degrau, este ressoou com estrondo e Patrik ouviu um grito vindo de baixo:

 

– Socorro! Socooorro!

 

Desceu as escadas a correr e ouviu que Martin e Gösta o seguiam. Uma única lâmpada iluminava a divisão e Patrik parou abruptamente perante o que os seus olhos viam. Molly balançava-se para a frente e para trás, a abraçar os joelhos, a gritar estridentemente e a olhar para eles com os olhos muito abertos. Erica estava no chão, deitada de bruços, e parecia estar a sangrar da ferida que tinha na cabeça.

 

Patrik lançou-se sobre a mulher, o coração a martelar-lhe o peito, pôs-lhe o dedo no pescoço em busca da pulsação. Ao ver que estava quente e que respirava, sentiu um alívio imenso e constatou que o sangue vinha de um corte na sobrancelha.

 

Erica abriu lentamente os olhos e disse com um gemido:

 

– Helga...

 

Patrik virou-se para Molly, que Gösta e Martin estavam a ajudar a levantar. Tentavam livrá-la da grossa corrente e Patrik apercebeu-se então de que Erica também estava acorrentada.

 

– Onde está a tua avó? – perguntou.

 

– Foi-se embora, mas não saiu há muito tempo.

 

Patrik franziu a testa. Deviam tê-la visto a caminho da casa.

 

– A avó bateu na Erica – acrescentou Molly a tremer.

 

Patrik observou a ferida da mulher. Podia ter sido muito pior. E se Erica não tivesse deixado uma mensagem a dizer-lhe aonde ia, nunca lhe teria ocorrido procurar ali. Teriam morrido as duas à fome trancadas naquela cave.

 

Levantou-se e sacou o telemóvel. Havia pouca rede, mas era suficiente para fazer a chamada. Deu as instruções pertinentes, terminou o telefonema e foi ter com Gösta e com Martin, que tinham encontrado a chave das grilhetas de Molly.

 

– Pedi ao Mellberg que esteja atento e que a detenha se a vir.

 

– Porque é que a Helga terá batido na Erica? – perguntou Gösta enquanto tranquilizava Molly, acariciando-lhe desajeitadamente as costas.

 

– Para proteger o Jonas. – Erica sentou-se com um gemido e levou a mão à cabeça. – Meu Deus, estou a sangrar muito – disse, olhando para os dedos.

 

– Não é uma ferida profunda – disse secamente Patrik. Agora que lhe tinha passado a preocupação, ia dar-lhe um valente raspanete.

 

– Encontraram o Jonas e a Marta? – Erica cambaleou, mas soltou um palavrão quando sentiu as grilhetas no tornozelo. – Mas que porcaria!

 

– Julgo que a ideia era deixar-te morrer aqui em baixo – disse Patrik. Olhou em redor em busca de uma chave. Na verdade, tinha vontade de a deixar ali um bocado, e talvez afinal tivesse mesmo de ser assim. Não havia sinal de nenhuma chave, por isso teria de esperar até que alguém pudesse cortar a corrente.

 

– Não, não os encontrámos. – Patrik não queria contar-lhe o que tinham descoberto na quinta e que certamente fora lá deixado por Jonas e por Marta. Não enquanto Molly estivesse presente. Ali estava agora, a soluçar abraçada a Gösta, com a cabeça apoiada no peito do agente.

 

– Tenho a sensação de que não vamos voltar a vê-los – disse Erica, mas então olhou para Molly e calou-se.

 

O telemóvel tocou e Patrik atendeu. Era Mellberg. Escutou por um momento e, com o chefe ainda em linha, informou os restantes, movendo apenas os lábios:

 

– Encontrou a Helga.

 

Depois ouviu durante mais algum tempo, até que, com alguma dificuldade, conseguiu interromper a torrente triunfal de Mellberg.

 

– Parece que se cruzou com a Helga na estrada. Vão a caminho da esquadra.

 

– Têm de encontrar o Jonas e a Marta. Estão... Estão doentes – disse Erica em voz baixa para Molly não a ouvir.

 

– Eu sei – sussurrou Patrik, que já não conseguia conter o desejo de abraçar a mulher. Meu Deus, que teria feito se a tivesse perdido? Se os filhos tivessem ficado sem ela? Afastou-a um pouco e declarou com ar grave: – Já emitimos a ordem de busca e avisámos os aeroportos e os postos fronteiriços. Amanhã, os jornais da tarde vão publicar as fotografias deles. Não vão escapar.

 

– Ótimo – disse Erica. Rodeou Patrik com os braços e cruzou as mãos em torno do pescoço do marido. – Mas agora tenta, por favor, que me tirem estas grilhetas.

 

FJÄLLBACKA, 1983

QUANDO VIU OS CARTAZES A ANUNCIAR QUE O CIRKUS GIGANTUS IA A FJÄLLBACKA, NÃO PENSOU DUAS VEZES. O CORAÇÃO BATIA-LHE DESCOMPASSADAMENTE NO PEITO. ERA UM SINAL. O CIRCO TORNARA-SE UMA PARTE DELA. SABIA COMO CHEIRAVA E COMO SOAVA, E ERA COMO SE CONHECESSE AS PESSOAS E OS ANIMAIS QUE O POVOAVAM. TINHAM JOGADO ÀQUELE JOGO UMA INFINIDADE DE VEZES. ELA ERA A PRINCESA QUE CONSEGUIA FAZER COM QUE OS CAVALOS LHE OBEDECESSEM POR ENTRE OS APLAUSOS E OS ASSOBIOS DA PLATEIA.

GOSTAVA QUE PUDESSEM TER IDO JUNTOS, E ASSIM TERIA SIDO SE AS COISAS NÃO TIVESSEM CORRIDO TÃO MAL. MAS TEVE DE IR SOZINHA.

A FAMÍLIA DE VLADEK RECEBEU-A DE BRAÇOS ABERTOS. ACOLHERAM-NA COMO A UMA FILHA. DISSERAM QUE TINHAM PENSADO IR À PROCURA DE VLADEK, MAS ELA CONTOU-LHES QUE VLADEK TINHA MORRIDO DE ATAQUE CARDÍACO. NINGUÉM FICOU SURPREENDIDO, NÃO ERA O PRIMEIRO MEMBRO DA FAMÍLIA QUE TINHA PROBLEMAS DE CORAÇÃO. SABIA QUE TINHA TIDO SORTE, MAS HAVIA O RISCO DE QUE ALGUM HABITANTE DE FJÄLLBACKA COMEÇASSE A FALAR SOBRE VLADEK E REVELASSE O QUE NA REALIDADE ACONTECERA. PASSOU TRÊS DIAS ENERVADÍSSIMA, DIAS QUE LHE PARECERAM ETERNOS, ATÉ QUE O CIRCO FEZ AS MALAS E PARTIU DE FJÄLLBACKA. ENTÃO SENTIU-SE SEGURA.

NAQUELE TEMPO, NÃO TINHA MAIS DE QUINZE ANOS, E TAMBÉM LHE TINHAM PERGUNTADO PELA MÃE E CRITICARAM-NA POR TER PROCEDIDO MAL AO TER-SE IDO EMBORA, DEIXANDO-A SOZINHA. BAIXOU A CABEÇA E CONSEGUIU ATÉ VERTER UMA PEQUENA LÁGRIMA. E DISSE-LHES QUE NÃO, QUE LAILA TINHA MORRIDO DE CANCRO HÁ MUITOS ANOS. A CUNHADA DE VLADEK PÔS-LHE UMA MÃO OSSUDA NO ROSTO E LIMPOU-LHE AS LÁGRIMAS DE CROCODILO. E, PURA E SIMPLESMENTE, PARARAM DE LHE FAZER PERGUNTAS, INDICARAM-LHE ONDE PODIA DORMIR E DERAM-LHE ROUPAS E COMIDA. NUNCA PENSOU QUE FOSSE TÃO SIMPLES, MAS NÃO TARDOU A CONVERTER-SE NUM MEMBRO DA FAMÍLIA. PARA ELES, OS LAÇOS DE SANGUE ERAM O PRINCIPAL.

ESPEROU DUAS SEMANAS E DEPOIS FOI FALAR COM O IRMÃO DE VLADEK E DISSE-LHE QUE QUERIA APRENDER ALGUMA COISA E FAZER PARTE DO CIRCO, PARA PERPETUAR O LEGADO DA FAMÍLIA. AQUILO ENCHEU-O DE SATISFAÇÃO, ASSIM COMO A TODOS OS OUTROS, TAL COMO ELA ESPERARA, E SUGERIU-LHES QUE A DEIXASSEM AJUDAR COM OS CAVALOS. QUERIA SER COMO PAULINA, A BONITA JOVEM QUE EM CADA SESSÃO APRESENTAVA OS SEUS MALABARISMOS E OS SEUS TRUQUES NO DORSO DOS CAVALOS, RESPLANDECENTE NO SEU VESTIDO DE LENTEJOULAS.

COMEÇOU ENTÃO A TRABALHAR COMO ASSISTENTE DE PAULINA. PASSAVA TODAS AS HORAS ACORDADA EM TORNO DOS CAVALOS, A OBSERVAR OS TREINOS DE PAULINA, QUE A DETESTOU DESDE O PRIMEIRO MOMENTO. MAS, COMO NÃO FAZIA PARTE DA FAMÍLIA, E DEPOIS DE UMA CONVERSA COM O IRMÃO DE VLADEK, COMEÇOU A ENSINÁ-LA, EMBORA COM RELUTÂNCIA. REVELOU-SE UMA EXCELENTE ALUNA. COMPREENDIA OS CAVALOS E OS ANIMAIS COMPREENDIAM-NA. NÃO DEMOROU MAIS DE UM ANO A APRENDER O ESSENCIAL E, PASSADOS DOIS, ERA TÃO BOA COMO PAULINA. POR ISSO, QUANDO SE DEU O ACIDENTE, PÔDE SUBSTITUÍ-LA.

NINGUÉM VIU, PORÉM, UMA MANHÃ, PAULINA FOI ENCONTRADA MORTA NO MEIO DOS CAVALOS. ASSUMIRAM QUE TERIA CAÍDO E BATIDO COM A CABEÇA, OU QUE UM DOS CAVALOS LHE TERIA DADO UM COICE FATAL. PARA O CIRCO ERA UMA CATÁSTROFE, PORÉM, FELIZMENTE, ELA PÔS CALMAMENTE UM DOS BELOS VESTIDOS DE PAULINA E A SESSÃO DAQUELA NOITE REALIZOU-SE COMO SE NADA TIVESSE ACONTECIDO. A PARTIR DAÍ, FICOU ENCARREGADA DO NÚMERO QUE ANTERIORMENTE ERA APRESENTADO POR PAULINA.

PASSOU TRÊS ANOS A VIAJAR COM O CIRCO. NUM MUNDO ONDE O ESTRANHO E O FANTÁSTICO CONVIVIAM, NINGUÉM SE DEU CONTA DE QUE ERA DIFERENTE. PARA ALGUÉM COMO ELA ERA O LUGAR CERTO. MAS O CIRCO JÁ TINHA ACABADO, TINHA DE VOLTAR. NO DIA SEGUINTE, O CIRKUS GIGANTUS REGRESSARIA A FJÄLLBACKA, E ESTAVA NA ALTURA DE ENFRENTAR O QUE TANTO TIVERA DE ADIAR. DERA-SE AO LUXO DE SE TORNAR OUTRA PESSOA, DE SER UMA PRINCESA DO CIRCO QUE, MONTADA NUM CAVALO BRANCO, RELUZIA ENTRE PLUMAS E BRILHANTES. VIVERA NUM MUNDO DE FANTASIA. E AGORA DEVIA REGRESSAR À REALIDADE.

 

– VOU BUSCAR O CORREIO – anunciou Patrik, enfiando os pés num par de botas. Nos últimos dias, ele e Erica mal se tinham visto. Os interrogatórios e o acompanhamento do caso tinham-no mantido ocupado de manhã à noite, a ele e aos colegas. Por fim, na sexta-feira, tirara a manhã de folga.

 

– Caramba, está mesmo muito frio! – disse quando voltou a entrar. – Esta noite deve ter caído pelo menos um metro de neve.

 

– Sim, parece que nunca mais acaba. – Erica, que estava sentada à mesa da cozinha, lançou-lhe um sorriso cansado.

 

Patrik sentou-se à frente da mulher e começou a folhear os envelopes. Erica tinha a cabeça apoiada nas mãos e parecia absorta nos seus pensamentos. Patrik deixou a pilha de envelopes em cima da mesa e observou-a com preocupação.

 

– Ei, como vai isso?

 

– Não sei bem. Acima de tudo, não tenho a certeza de como hei de continuar o livro. Se é que o vou escrever. Agora, a história tem uma espécie de continuação.

 

– Mas a Laila quer que o escrevas, não é?

 

– Sim, creio que a publicação do livro deve ser uma espécie de medida de segurança para Laila. Marta não será capaz de cá voltar se as pessoas souberem quem é e o que fez.

 

– E não haverá o risco de surtir o efeito oposto? – perguntou Patrik em tom reservado. Não queria dizer a Erica o que devia fazer, mas não gostava da ideia de que a mulher escrevesse um livro sobre pessoas tão repletas de maldade como Jonas e Marta. E se depois quisessem vingar-se dela?

 

– Não, acho que a Laila tem razão. E no fundo, sei que tenho de acabar o livro. Não vale a pena ficares preocupado – disse Erica, olhando-o com ar resoluto. – Confia em mim.

 

– Neles é que não confio. Não fazemos a mais pequena ideia de onde estão. – Não conseguia esconder a preocupação que lhe ressoava na voz.

 

– Mas não me parece que se atrevam a aparecer por cá, além de que não têm motivos para voltar.

 

– Tirando uma filha – disse Patrik.

 

– Sim, mas não querem saber da Molly. Acho que a Marta nunca se importou e o interesse do Jonas desapareceu quando soube que não era filha dele.

 

– A questão é saber onde se terão metido. Parece incrível que tenham conseguido deixar o país, uma vez que emitimos de imediato o alerta para todo o território nacional.

 

– Não sei mesmo – disse Erica, abrindo um dos muitos envelopes com janela. – A Laila parece receosa de que a Marta e o Jonas possam ter ido a Espanha procurar o Peter.

 

Patrik assentiu.

 

– E eu compreendo a preocupação dela, embora pense que continuam na Suécia e que, mais cedo ou mais tarde, os vamos apanhar. E então terão muito pelo que responder. Já conseguimos identificar várias raparigas das gravações. Tanto as que Einar raptou como as vítimas do Jonas e da Marta.

 

– Não consigo perceber como é que conseguem passar horas sentados a ver esses filmes.

 

– Sim, é nojento.

 

Patrik recordou as imagens. Tinha a certeza de que ficariam gravadas para sempre como uma recordação do mal que o ser humano é capaz de engendrar.

 

– Porque achas que raptaram a Victoria? – perguntou Patrik. – Correram um risco enorme.

 

Erica ficou em silêncio por um momento. Não havia nenhuma resposta óbvia. Jonas e Marta estavam desaparecidos e, embora os filmes mostrassem os seus crimes, não revelavam os motivos.

 

– Julgo que a Marta se apaixonou pela Victoria, mas quando o Jonas descobriu o relacionamento das duas ficou claro a quem era leal. Talvez a Victoria se tenha convertido numa espécie de vítima do Jonas, uma maneira de a Marta lhe pedir desculpa.

 

– Devíamos ter percebido muito antes que a Marta estava envolvida – disse Patrik. – Deve ter sido ela quem raptou a Victoria.

 

– Mas como é que podiam suspeitar? Os atos e os motivos desta gente são impossíveis de compreender. Ontem tentei falar disto com a Laila, mas também não conseguiu dar-me uma explicação sobre o comportamento da Marta.

 

– Sim, claro, mas não consigo deixar de me sentir culpado. Independentemente do resto, quero tentar compreender porque é que as coisas são como são. Por exemplo, porque é que o Jonas e a Marta quiseram seguir o exemplo de Einar? Porque infligiram às vítimas as mesmas mutilações macabras? – Patrik engoliu em seco. Sentiu náuseas ao recordar as gravações.

 

Erica continuava a refletir.

 

– Suponho que a loucura do Jonas se foi forjando durante a infância, quando o Einar o obrigava a filmar as agressões. E a Marta, ou Louise, também tinha ficado traumatizada com o que viveu quando era criança. Se o que Gerhard Struwer disse é verdade, tratava-se de uma necessidade de controlar. Einar parecia gostar de manter as raparigas prisioneiras, à exceção de Ingela Eriksson e talvez mais alguma que desconheçamos. Ao transformá-las em bonecas sem vontade própria, satisfazia alguma necessidade mórbida, uma necessidade que transmitiu a Jonas, que por sua vez iniciou a Marta. Talvez o seu relacionamento se alimentasse do poder que tinham sobre as raparigas.

 

– Caramba, que ideia terrível! – Patrik engoliu em seco para conter as náuseas.

 

– E o que diz a Helga? – perguntou Erica. – Sabia de tudo?

 

– A Helga recusa-se a falar. Diz que está disposta a assumir o seu castigo, que nunca encontraremos o Jonas. Mas eu considero que sabia e preferiu fechar os olhos. De alguma forma, também era uma vítima.

 

– Sim, a verdade é que teve de viver num inferno todos estes anos. Mas, embora soubesse e visse qual era a sua verdadeira natureza, o Jonas é filho dela, e ela gosta dele.

 

Patrik suspirou.

 

– Todos esses «se» e todos os «talvez»... É frustrante não termos ainda todas as respostas. Termos de continuar a especular. Mas tens mesmo a certeza de que a Marta é Louise Kowalska?

 

– Sim, tenho. Não consigo explicar-to de forma lógica, mas vi-o claramente quando me apercebi de que a Marta e o Jonas levavam as raparigas às competições e que só podiam ser eles quem enviava os postais e os recortes a Laila. Quem, além da Louise, tinha razão para odiar e ameaçar Laila? A idade da Marta coincide com a da Louise. Além disso, a Laila confirmou as minhas suposições, porque há algum tempo que suspeitava que a Louise estava viva e que queria matá-la a ela e ao Peter.

 

Patrik olhou muito sério para Erica.

 

– Gostava de ter a mesma intuição que tu, mas agradecia-te que deixasses de segui-la cegamente. Felizmente que, pelo menos desta vez, tiveste a presença de espírito de deixar uma mensagem no gravador a dizer aonde ias. – Patrik estremeceu só de pensar no que poderia ter acontecido se Erica tivesse ficado a sangrar naquela cave gelada da Casa dos Horrores.

 

– O que interessa é que acabou por correr tudo bem. – Erica escolheu um envelope do monte, abriu-o com um dedo e tirou uma fatura. – Caramba, esta de a Helga estar disposta a sacrificar a Marta e a Molly para salvar o filho é forte.

 

– Sim, mas já se sabe como é o amor de mãe – disse Patrik.

 

– A propósito... – O rosto de Erica iluminou-se. – Estive outra vez a conversar com a Nettan e parece que ela e a Minna estão a tentar entender-se outra vez.

 

Patrik sorriu.

 

– Grande sorte teres-te lembrado daquilo do carro.

 

– Sim, odeio-me por não ter pensado nisso quando vi a foto no álbum.

 

– O estranho é a Nettan não ter relacionado as coisas. Tanto o Palle como eu lhe perguntámos pelo carro branco.

 

– Eu sei e quando lhe liguei ficou irritada. Disse-me que, se conhecesse alguém com um carro assim, teria dito. Mas quando mencionei que me lembrava de uma foto de Johan, o ex-marido dela, à frente de um carro branco, ficou petrificada. Depois disse que era impossível que a Minna tivesse entrado de livre vontade no carro dele, que não havia mais ninguém no mundo que o detestasse tanto.

 

– Nunca se sabe o que vai na cabeça de uma filha adolescente – disse Patrik.

 

– É uma grande verdade. Mas quem poderia imaginar que a Minna se iria apaixonar pelo ex-namorado da mãe, com quem estava sempre a discutir? E que, além disso, ia ficar grávida e fugir com ele porque tinha medo de que a Nettan se zangasse?

 

– Pois, realmente não é a primeira coisa que nos ocorre.

 

– Seja como for, a Nettan prometeu ajudar a Minna e o neto. Estão as duas furiosas com esse tal Johan, um sacana que parece ter-se fartado da Minna quando a barriga lhe começou a crescer. E acho que a Nettan ficou tão aliviada quando encontrou Minna sã e salva na cabana do Johan, que vai fazer todos os possíveis para que as coisas corram bem.

 

– Vá lá, pelo menos, no meio de todo este horror, aconteceu alguma coisa positiva – disse Patrik.

 

– Sim, e, em breve, a Laila vai voltar a encontrar o filho. Mais de vinte anos depois... A última vez que conversámos, disse-me que o Peter a irá visitar à prisão psiquiátrica e que, se eu quiser, posso conhecê-lo.

 

Os olhos de Erica brilhavam de alegria e Patrik sentiu-se feliz ao ver o entusiasmo da mulher. Estava contentíssima por ter ajudado Laila. Patrik, por seu lado, só queria pôr aquele caso para trás das costas o mais depressa possível. Estava saturado de tanta maldade e de tanta escuridão.

 

– Que bom que o Dan e a Anna venham cá jantar esta noite – disse para mudar de assunto.

 

– Pois, é ótimo terem decidido tentar voltar a entender-se. Além disso, a Anna disse-me que tem uma boa notícia para nos dar. Fico doida com isto: se começa a contar-me uma coisa tem de acabar, não é? Mas não me deu hipótese, aconselhou-me a ter paciência até logo à noite...

 

Erica folheou as cartas que tinham ficado por abrir. A maioria eram contas, mas no fundo do maço havia um envelope branco mais grosso com um aspeto muito mais elegante do que os da companhia telefónica ou da seguradora.

 

– Que será isto? Parece quase um convite do casamento. – Levantou-se e foi buscar uma faca para o abrir. No interior havia um bonito cartão com duas alianças douradas no verso. – Conhecemos alguém que vai casar?

 

– Que eu saiba, não – respondeu Patrik. – Quase todos os nossos amigos estão casados há muito tempo.

 

Erica abriu o cartão.

 

– Não posso... – disse, olhando para Patrik.

 

– Então? – Patrik tirou-lhe o cartão das mãos e depois leu-o em voz alta com um tom incrédulo: – «Temos o prazer de convidar para o enlace matrimonial entre Kristina Hedström e Gunnar Zetterlund.»

 

Olhou para Erica e depois novamente para o convite.

 

– É uma brincadeira? – disse, virando o cartão.

 

– Não parece. – Erica deu uma risadinha. – É muito, mas mesmo muito ternurento...!

 

– Mas se os dois são... velhos – disse Patrik, tentando esquecer a imagem da mãe vestida de branco e com um véu.

 

– Então, não sejas assim. – Erica levantou-se e beijou-o na face. – Vai ser ótimo. Teremos o nosso próprio Bob o Construtor. Não ficará nada por consertar nesta casa e o mais certo é querer ampliá-la, por isso ficará duas vezes maior.

 

– Que horror! – disse Patrik, mas não conseguiu evitar uma gargalhada. Porque Erica tinha razão. Na verdade, desejava à mãe toda a felicidade do mundo e era excelente que tivesse encontrado o amor no outono dos seus dias. Só precisava de algum tempo para se habituar à ideia.

 

– Meu Deus, às vezes és tão infantil... – disse Erica, despenteando-o. – Ainda bem que também és muito giro.

 

– Obrigado, igualmente – retorquiu Patrik com um sorriso.

 

Decidiu que faria por pôr de lado tudo o que estivesse relacionado com Victoria e com as outras raparigas. Já não havia nada que pudesse fazer por elas. Em casa, no entanto, tinha a mulher e os filhos, que precisavam dele e lhe davam todo o carinho. Não havia nada que quisesse mudar na sua vida. Nada de nada.

 

Ainda não faziam ideia de para onde iam, mas não estava preocupada. As pessoas como ela e Jonas davam sempre a volta por cima. Para eles não havia fronteiras nem obstáculos.

 

Já tinha começado a vida duas vezes. A última na casa abandonada, onde conhecera Jonas. Estava a dormir e, quando abriu os olhos, tinha à sua frente um rapaz desconhecido a observá-la. Enquanto olhavam um para o outro souberam que eram iguais. Ambos viram a escuridão que havia na alma do outro.

 

Foi levada a Fjällbacka por uma espécie de força irresistível. Quando viajava com o circo, toda a Europa era a sua casa, mas sabia que tinha de regressar. Nunca sentira nada tão intenso e, quando finalmente voltou, lá estava Jonas à sua espera.

 

Era o seu destino e, na penumbra da casa, Jonas contou-lhe tudo. Falou-lhe da divisão que havia debaixo do barracão, do que o pai lá fazia com as raparigas de quem ninguém tinha saudades, de que ninguém sentia falta. Raparigas que não tinham qualquer valor.

 

Depois de terem decidido continuar o legado de Einar, quiseram, ao contrário dele, raptar raparigas de quem outros teriam saudades, raparigas amadas pelos seus. Decidiram criar uma marioneta, uma boneca indefesa, a partir de alguém que fora importante para outras pessoas, para que o prazer fosse maior. Talvez isso tenha sido a sua ruína, mas não poderiam tê-lo feito de outra forma.

 

Não tinha medo do desconhecido. Significava simplesmente que teriam de criar novos mundos noutros lugares. Enquanto se tivessem um ao outro nada mais importava. Quando conheceu Jonas transformou-se em Marta. A sua igual, a sua alma gémea.

 

Jonas preenchia-lhe os sentidos e toda a sua existência. Ainda assim, não pôde resistir a Victoria. Estranho. Ela, que estava sempre consciente da importância do autocontrolo e que nunca se deixava levar pelas paixões... Mas não era estúpida. Compreendeu que o poder de atração que Victoria exercia, nascia da sua semelhança com uma pessoa que, em tempos, fora parte dela, que ainda o era. Inconscientemente, Victoria tinha despertado recordações antigas e não pôde prescindir dela. Queria tê-los aos dois, Victoria e Jonas.

 

Foi um erro ceder à tentação de voltar a tocar na pele de uma rapariga, porque lhe lembrou um amor que tinha perdido. Passado algum tempo, tomou consciência de que aquilo era insustentável e, além disso, tinha começado a fartar-se. Afinal, as diferenças eram mais do que as semelhanças. Por isso deu-a a Jonas. Ele perdoou-a e foi como se o seu amor por ela tivesse crescido graças ao que puderam partilhar depois.

 

Foi imperdoável não fechar bem o alçapão naquela noite. Estavam a ser um pouco descuidados, deixavam-na andar livremente lá por baixo, mas claro que nunca imaginaram que conseguisse subir as escadas, sair do barracão e depois atravessar o bosque a pé. Tinham subestimado Victoria e corrido um grande risco ao permitir que a morte se aproximasse tanto dos dois. Custou-lhes caro, mas nenhum deles viu isso como o fim de nada. Pelo contrário, era antes um princípio. Uma nova vida. Para ela, a terceira.

 

A primeira vez foi num daqueles dias de verão em que temos a sensação de que o sangue nos está a ferver por causa do calor. Ela e Louise decidiram ir nadar e foi ela quem propôs afastarem-se um pouco da praia e saltarem das rochas para a água.

 

Contaram até três e saltaram juntas, de mãos dadas. Sentiram cócegas no estômago com a velocidade da queda e uma frescura deliciosa ao entrar em contacto com a água. Mas, um momento depois, foi como se um par de braços fortes e robustos a agarrasse e arrastasse para o fundo. A água cobriu-lhe a cabeça enquanto lutava contra a corrente com todas as suas forças.

 

Quando conseguiu pôr novamente a cabeça à tona da água começou a nadar em direção à praia, mas era como nadar em alcatrão. Foi avançando muito lentamente e tentou virar a cabeça, mas não via Louise. Sentia os pulmões destroçados e não conseguia gritar. No cérebro só tinha um pensamento: chegar a terra.

 

De repente, a corrente abrandou e cada braçada permitiu-lhe avançar um pouco mais. Ao cabo de alguns minutos alcançou a margem. Ficou para ali deitada, de barriga para baixo, os pés na água e a cara na areia. Quando recuperou o fôlego levantou-se a custo e olhou em redor. Chamou por Louise, gritou em direção ao mar, mas não obteve resposta. Fazendo uma pala com a mão, percorreu com o olhar a superfície da água. Então subiu a correr a rocha de onde tinham saltado. Corria de um lado para o outro à procura dela e a chamá-la em voz alta, cada vez mais desesperada. Acabou por se deixar cair na rocha e sentou-se à espera durante horas. Talvez devesse ir pedir ajuda, mas assim ficariam com os planos arruinados. Louise não aparecia e era melhor ir-se embora sozinha do que ter de desistir daquela ideia.

 

Deixou tudo na rocha. As roupas e os pertences das duas. Emprestara a Louise o fato de banho preferido, um azul, e de alguma forma estava feliz por a amiga o ter levado com ela para as profundezas. Como um presente.

 

Com o mar por detrás, afastou-se dali. Roubou algumas roupas que havia no estendal de uma casa e encaminhou-se com passo firme para o lugar onde sabia que estava o seu futuro. Por via das dúvidas atravessou o bosque, por isso só chegou a Fjällbacka à noite. Quando viu o circo ao longe, quando viu as cores alegres e ouviu a algaraviada, o murmúrio das pessoas e a música, tudo lhe pareceu estranhamente familiar. Tinha chegado a casa.

 

Naquele dia transformou-se em Louise. Na pessoa que tinha feito aquilo que tanto desejava, que vira o sangue a jorrar do corpo de outra pessoa, que tinha visto apagar-se a chama da vida. Ouvira com inveja as histórias do circo, da vida de Vladek como domador de leões. Parecia-lhe tão exótico em comparação com o seu passado triste e sujo... Queria ser Louise, queria ter as suas origens.

 

Sentiu o ódio de Louise por Peter e por Laila. Ela contara-lhe tudo. Que a mãe assumira a culpa pelo homicídio, que a avó quisera ficar com o filho de que tanto gostavam, mas não quisera saber de Louise. E, embora Louise não lho tenha pedido, ia vingá-la. O ódio cresceu como uma chama fria e fez o que tinha a fazer.

 

Foi assim que se dirigiu a casa de Louise, a sua casa, e aí conheceu Jonas. Era Tess. Era Louise. Era Marta. Era a outra metade de Jonas. E ainda não tinha acabado. O futuro diria quem seria a partir de agora.

 

Sorriu a Jonas, que conduzia aquele carro roubado. Eram livres e corajosos, eram fortes. Eram leões impossíveis de domar.

 

Tinham passado vários meses desde que Laila vira Peter pela primeira vez em todos aqueles anos. Ainda recordava a sensação de quando ele entrara na sala de visitas. Era tão bonito... E parecia-se muito com o pai, embora fosse mais elegante, como ela.

 

Também ficou contente por poder por fim encontrar Agneta. Sempre foram muito unidas, mas não tiveram outro remédio senão viver separadas. E a irmã dera-lhe o melhor presente que se pode imaginar: acolhera-lhe o filho debaixo da sua asa e dera-lhe um lar, uma família. Com eles vivera em segurança, pelo menos enquanto Laila manteve tudo em segredo.

 

Agora já não tinha de continuar calada. Era tão libertador... Ainda demoraria algum tempo, mas a sua história seria contada. Como a da Rapariga. Não se atrevia a acreditar que Peter estivesse completamente seguro, mas a Polícia procurava a Rapariga em toda a parte; porém, inteligente como era, não iria atrás de Peter numa altura daquelas.

 

Consultou o coração para ver se sentia alguma coisa pela filha, aquela criatura que, apesar de tudo, era sangue do seu sangue. Mas não, a filha era um ser estranho desde o início. A Rapariga não era uma parte dela e de Vladek, ao contrário de Peter.

 

Talvez agora pudesse sair daquela prisão, se conseguisse fazê-los ver que a sua história era verdadeira. Na verdade, não sabia se queria ou não. Tinha passado ali encerrada tantos anos da sua vida que já lhe era indiferente. O mais importante era poder reatar o contacto com Peter, que o filho pudesse ir vê-la de vez em quando e, um dia, quem sabe, levar os filhos. Isso bastava para que valesse a pena viver a vida.

 

Uma batida discreta distraiu-a daqueles pensamentos tão animadores.

 

– Entre! – disse Laila com um sorriso nos lábios.

 

A porta abriu-se e Tina entrou. Manteve-se em silêncio por um momento.

 

– Sim? – perguntou por fim Laila.

 

Tina segurava algo e, quando Laila olhou para baixo para ver o que era, sentiu o sorriso morrer.

 

– Enviaram-lhe um postal – disse Tina.

 

A mão tremia-lhe incontrolavelmente quando segurou o postal, onde não havia qualquer mensagem, apenas a sua direção e um carimbo azul dos correios. Virou-o. Um toureiro a espetar um touro.

 

Laila ficou em silêncio por alguns segundos. Depois soltou um grito das profundezas da garganta.

 

 

                                                                                                    Camilla Läckberg

 

 

 

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