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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O DOMINIO DO LOBO / Patricia Briggs
O DOMINIO DO LOBO / Patricia Briggs

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Ela o observou de seu esconderijo, como já havia feito em duas ocasiões anteriores. Nas duas primeiras vezes ele estava cortando lenha, mas hoje, após uma forte nevasca, daquelas comuns no meio de dezembro, ele estava tirando a neve da entrada. Hoje era o dia em que ela o pegaria.
Com o coração na boca, ela observou enquanto ele limpava a neve com uma violência cuidadosamente controlada. Cada movimento era exatamente igual ao anterior. Cada movimento da pá era exatamente paralelo aos movimentos anteriores. E em seu controle feroz, ela viu sua raiva, contida apenas pela vontade dele – como uma bomba improvisada.
Agachada e respirando cuidadosamente para que ele não a visse, ela pensou em como iria fazer aquilo. Por trás e o mais rapidamente possível, sem dar tempo para que ele reagiss – foi o que ela pensou. Um rápido movimento e tudo estaria acabado – isso se ela não perdesse a coragem, como havia acontecido nas duas vezes anteriores.
Algo lhe dizia que tinha que ser hoje, que ela não teria uma quarta oportunidade. Ele era cauteloso e disciplinado – e se não estivesse tão irritado, certamente seus sentidos agudos de lobisomem teriam descoberto o esconderijo dela na neve, debaixo dos pinheiros que ladeavam o seu jardim da frente.
Ela tremeu, ansiosa com aquilo que havia planejado: uma emboscada. Isso era sinônimo de fraqueza e algo covarde de se fazer, mas era a única forma de conseguir pegá-lo. E precisava ser feito logo, porque era apenas uma questão de tempo antes que ele perdesse o controle que o mantinha limpando a neve em um ritmo constante enquanto o lobo se enfurecia dentro dele. E quando o seu controle falhasse, pessoas iriam morrer.
Era perigoso. Ele podia ser muito rápido. Se falhasse, ele poderia matá-la. Ela tinha que confiar em seus reflexos de lobo e ter a certeza de que eles dariam conta do recado.
Era necessário fazê-lo.
Sua resolução deu-lhe forças. Seria hoje.

 

 


 

 


Charles ouviu o veículo utilitário, mas não levantou a cabeça.
Ele tinha desligado o celular e continuou a ignorar a voz fria de seu pai em sua cabeça até que ela fosse embora. Não havia ninguém que vivesse perto dele na estrada da montanha
coberta de neve – e por isso o veículo era apenas o próximo passo na determinação de seu pai em fazer com que Charles cumprisse suas ordens.
– Olá, Chefe.
Era Robert, um lobo novo enviado para a alcateia de Aspen Creek pelo seu próprio Alfa devido à sua falta de controle. Algumas vezes o Marrok podia ajudar; em outras, tinha
apenas que limpar a bagunça. Se Robert não pudesse aprender disciplina, provavelmente caberia a Charles a tarefa de eliminá-lo. Se Robert não aprendesse boas maneiras, o trabalho
de eliminação não incomodaria Charles tanto quanto deveria.
O fato de Bran ter enviado Robert para entregar sua mensagem mostrou a Charles o quanto seu pai estava furioso.
– Chefe! – o homem nem sequer se dera ao trabalho de sair do carro. Não havia muitas pessoas a quem Charles tivesse concedido a liberdade de chamá-lo por outro nome que não
fosse o seu mesmo, e esse filhote não era uma delas.
Charles parou de escavar a neve e olhou para o outro lobo, deixando-o ver com quem ele estava brincando. O homem parou de sorrir, empalideceu e abaixou os olhos instantaneamente;
seu coração acelerado fez as grandes veias de seu pescoço pulsarem com o medo repentino.
Charles sentiu-se mesquinho. E ficou ressentido com isso, com a sua mesquinhez e a violenta raiva que havia causado essa sensação. Dentro dele o irmão lobo farejava a fraqueza
de Robert e gostava disso. O estresse provocado por desafiar o Marrok, seu Alfa, deixava o irmão lobo sedento de sangue. O sangue de Robert serviria.
– Eu... ah.
Charles ficou calado. Deixe o tolo se virar sozinho, pensou. Ele abaixou as pálpebras e viu o homem se contorcer um pouco mais. O cheiro do medo agradava o irmão lobo – e
ao mesmo tempo fazia Charles sentir um pouco de enjoo. Normalmente ele e o irmão lobo viviam em melhor harmonia – ou talvez o problema real fosse Charles também querer matar
alguém.
– O Marrok quer ver você.
Charles esperou por um longo minuto, sabendo como aquele tempo pareceria longo para o garoto de recados de seu pai.
– É só isso?
– Sim, senhor.
Aquele “senhor” era bem diferente do “Olá, Chefe”.
– Diga a ele que eu irei depois que minha calçada estiver limpa – disse Charles, voltando ao trabalho.
Após retirar um pouco de neve com a pá, Charles ouviu o veículo utilitário virar na estrada estreita. O veículo rodou, depois conseguiu tração e foi no sentido da casa do
Marrok, derrapando de um lado para o outro devido à pressa de Robert de fugir dali. O irmão lobo estava presunçosamente satisfeito; Charles tentou não ficar. Ele sabia que
não devia provocar seu pai desafiando suas ordens – principalmente na frente de um lobo que precisava de orientação, como Robert. Mas Charles precisava de tempo.
Ele precisava de um autocontrole melhor antes de enfrentar o Marrok novamente; necessitava de um controle real que lhe permitisse expor sua argumentação de forma lógica e
explicar por que o Marrok estava equivocado – em vez de simplesmente se desentender com ele da maneira como havia acontecido nas últimas quatro vezes em que Charles havia
falado com o Marrok. Não era a primeira vez que ele desejava ter uma melhor capacidade de se comunicar. Seu irmão conseguia, algumas vezes, mudar o pensamento do Marrok –
mas Charles nunca fora capaz disso. Dessa vez, Charles sabia que seu pai estava errado, e por pensar em tudo isso, ficou de mau humor.
Charles se concentrou na neve e respirou fundo o ar frio – e de repente alguma coisa pesada caiu sobre seus ombros, derrubando-o de bruços na neve. Dentes afiados e uma boca
quente tocaram o seu pescoço e o largaram tão rapidamente quanto o peso que o havia derrubado.
Sem se mexer, ele entreabriu os olhos e viu o lobo negro de olhos azuis celestes encarando-o de forma desconfiada... Sua cauda balançava timidamente, e as patas dançavam na
neve. Suas garras se estendiam e se retraíam como as de um gato excitado.
Foi como se algo estalasse dentro do irmão lobo, desligando a ira que se agitava em seu interior nas últimas duas semanas. O alívio que Charles sentiu foi o suficiente para
que sua cabeça novamente caísse para trás na neve. Somente ela (e apenas com ela) o irmão lobo se acalmava totalmente. Somente algumas semanas não haviam sido suficientes
para que ele se acostumasse com esse milagre – ou para evitar que Charles chegasse ao ponto de ter que pedir a ajuda dela às vezes. O que obviamente era o motivo pelo qual
ela planejara essa emboscada.
Quando Charles estivesse disposto, explicaria a ela como foi perigoso atacá-lo sem aviso, embora o irmão lobo aparentemente soubesse com certeza quem o havia atacado. Afinal,
ele havia permitido que ambos fossem derrubados na neve.
O frio era agradável contra o rosto de Charles, que percebeu a neve ranger sob os pés dela.
Ela fez um som ansioso, prova de que não havia notado que Charles já a tinha observado. Um nariz frio tocou sua orelha, e ele controlou-se para não reagir. Fingindo-se de
morto com o rosto enterrado na neve, Charles sorriu.
O nariz frio se afastou, e ele esperou que ela voltasse ao seu alcance, fazendo seu corpo permanecer inerte e sem vida. Ela o empurrou com as patas, e Charles deixou seu corpo
rolar – mas quando ela mordeu suas costas, não pôde fazer outra coisa senão afastar-se com um som agudo.
Fingir-se de morto era inútil depois disso, por isso ele se virou e se agachou.
Ela saiu do seu alcance rapidamente e se virou para observá-lo. Ele sabia que ela não conseguiria ver simplesmente nada em seu rosto – ele tinha muita prática no controle
de todas as suas expressões.
Mas ela viu algo que a fez agachar a metade da frente de seu corpo e soltar o maxilar inferior em um convidativo sorriso de lobo – um convite universal para brincar. Charles
rolou para a frente e ela soltou um ganido de excitação.
Eles lutaram por toda a frente do quintal – fazendo uma bagunça em sua calçada bem-cuidada e transformando a neve intocada em um campo de batalha com pegadas e marcas de corpos.
Charles permaneceu como humano para equilibrar as diferenças –o irmão lobo ultrapassava o peso dela em trinta ou trinta e cinco quilos, mas sua forma humana tinha quase o
mesmo peso que ela. Além disso, ela não estava usando as garras ou dentes contra a sua pele vulnerável.
Charles riu de seus falsos rosnados quando ela o prendeu no chão e se dirigiu ao seu estômago – e depois riu novamente com o nariz gelado enfiado sob seu casaco e camisa,
fazendo mais cócegas que quaisquer dedos nos pontos sensíveis da lateral de seu abdome.
Ele teve o cuidado de não derrubá-la e nem segurá-la ou machucá-la, nem que fosse por acidente. O modo como ela estava se arriscando era uma declaração de confiança que o
agradava imensamente, mas Charles nunca deixava o irmão lobo esquecer que ela não os conhecia direito e tinha mais razões que a maioria para temê-lo, a ele e ao que ele era:
um lobo macho e dominante.
Charles ouviu o carro chegando. Ele podia ter parado a brincadeira, mas o irmão lobo não estava com nenhuma vontade de enfrentar uma batalha verdadeira naquele momento. Por
isso, ele agarrou a pata traseira dela e puxou-a enquanto rolava para fora do alcance de suas presas brilhantes.
Ele também ignorou o forte odor de raiva de seu pai – um odor que desapareceu abruptamente.
Anna estava alheia à presença do pai de Charles. Bran era mesmo capaz disso; desaparecia nas sombras como se fosse apenas mais um humano, e não o Marrok. Toda a atenção dela
estava em Charles – fazendo o irmão lobo envaidecer-se ao perceber que, para Anna, até mesmo o Marrok vinha em segundo lugar. Isso preocupava Charles porque, sem treinamento
para usar os sentidos de lobo, algum dia ela poderia não perceber um perigo mortal. O irmão lobo estava certo de que eles poderiam protegê-la e afastou a preocupação de Charles,
arrastando-o de volta para a brincadeira.
Ele ouviu seu pai suspirar e tirar a roupa, enquanto Anna saía correndo e Charles a perseguia por toda a volta da casa. Anna usou as árvores nos fundos como barreira para
mantê-lo afastado quando ele chegava muito perto. Suas quatro patas com garras davam-lhe mais tração que as botas dele, e assim ela podia correr entre as árvores mais rápido
que Charles.
Por fim, ele a expulsou das árvores, e Anna correu novamente ao redor da casa com ele em seu encalço. Ela dobrou a esquina do jardim da frente e congelou ao ver o pai de Charles,
em forma de lobo, esperando por eles.
Charles fez o que pôde para não atingi-la como um meio de campo, mas mesmo assim derrubou Anna enquanto mudava sua corrida para um deslizar sobre o chão úmido.
Antes que pudesse verificar se ela estava bem, um míssil prateado já estava sobre ele, e a luta toda mudou abruptamente. Charles havia mantido um controle quase total durante
a ação enquanto eram somente Anna e ele, mas com o seu pai presente foi forçado a aplicar seriamente os músculos, a velocidade e o cérebro para evitar que os dois lobos, o
preto e o prata, fizessem com que ele comesse neve.
No final, Charles deitou de costas, com Anna sobre suas pernas e as presas de seu pai tocando os lados do seu pescoço em uma ameaça simulada.
– Tudo bem – disse ele, relaxando o corpo em sinal de rendição. – Tudo bem. Eu desisto.
As palavras significavam mais do que um fim para a brincadeira. Charles tentara mas, no final, a palavra do Alfa era a lei. O que quer que tivesse que acontecer, aconteceria.
Assim, ele se submeteu tão facilmente ao domínio de seu pai quanto qualquer filhote na alcateia faria.
O Marrok ergueu a cabeça e libertou o peito de Charles. Ele espirrou e sacudiu a neve enquanto Charles se sentava e livrava as pernas do corpo de Anna.
– Obrigado – disse-lhe Charles, ao que ela retribuiu com um sorriso feliz. Ele recolheu as roupas do capô do carro de seu pai e abriu a porta da casa, enquanto Anna saltava
para a sala e corria pelo corredor até o quarto. Já dentro de casa, Charles jogou a roupa de seu pai no banheiro, e quando ele seguiu os dois, fechou a porta atrás da cauda
de ponta branca.
Charles já havia preparado chocolate quente e sopa quando seu pai apareceu; seu rosto estava avermelhado pelo esforço da transformação – e seus olhos eram cor-de-avelã e humanos,
mais uma vez.
Charles e o pai não eram muito parecidos. Charles havia puxado o lado nativo Salish1 de sua mãe, e Bran era totalmente galês, com cabelos cor-de-areia e feições proeminentes
que normalmente davam uma falsa impressão de seriedade, o que no momento não estava em evidência de forma alguma. Apesar da brincadeira, Bran não parecia particularmente feliz.
Charles não se preocupou em falar. Afinal de contas, não tinha nada a dizer. Seu avô frequentemente dizia que Charles tentava arduamente mover as árvores enquanto um homem
mais sábio as contornaria. Seu avô fora um curandeiro que gostava de falar por metáforas – e geralmente estava certo.
Ele entregou uma xícara de chocolate quente a seu pai.
– Sua esposa me ligou na noite passada – a voz de Bran era rouca.
– Ah.
Ele não sabia disso. Anna devia ter feito isso enquanto Charles estava fora tentando superar suas frustrações.
– Ela me disse que eu não estava ouvindo o que você estava dizendo – disse o pai de Charles. – Eu disse a ela que ouvi você me dizer muito claramente que eu era um idiota
por ir a Seattle para me reunir com a delegação europeia – assim como a maior parte do restante da alcateia.
Diplomático; esse sou eu, pensou Charles, que concluiu que saborear o seu chocolate era melhor do que abrir a boca.
– E eu perguntei a ele se você tinha o hábito de discutir sem uma boa razão – disse Anna despreocupadamente, enquanto passava pelo Marrok e roçava em Charles. Ela estava usando
o suéter marrom favorito de Charles; nela, o suéter descia até a metade das coxas, cobrindo suas formas em algodão chocolate. O irmão lobo gostava de ver Anna usando as roupas
de Charles.
Anna deveria estar parecendo uma refugiada, mas de alguma maneira não parecia. A cor do suéter fazia a pele dela ficar parecida com porcelana e destacava o brilho de seus
cabelos castanhos claros, além de enfatizar suas sardas – o que Charles adorava.
Anna pulou sobre o balcão e ronronou feliz enquanto saboreava o chocolate que Charles havia feito para ela.
– E então ela desligou – falou seu pai resmungando.
– Mmm... – disse Anna. Charles não sabia se ela estava respondendo ao chocolate quente ou ao seu pai.
– E ela se recusou a pegar o telefone quando retornei a ligação – disse o Marrok; Charles percebeu que seu pai não estava satisfeito.
Não é tão confortável ter alguém por perto que não o obedece instantaneamente, não é mesmo, meu velho?, pensou Charles, exatamente quando seu pai o olhava nos olhos.
A risada súbita de Bran mostrou a Charles que seu pai não estava realmente chateado.
– Frustrante – arriscou Charles.
– Ele gritou comigo – disse Anna serenamente, tocando sua testa. O Marrok podia falar com quaisquer de seus lobos mentalmente, embora não pudesse ler suas mentes por mais
que parecesse que era isso que estava fazendo. Ele era apenas excepcional em ler pessoas.
– Eu o ignorei e ele acabou indo embora.
– Não é divertido lutar com alguém que não revida – disse Charles.
– Sem alguém para discutir, eu sabia que ele teria de pensar no que eu havia dito – disse Anna, satisfeita consigo mesma. – Mesmo se fosse para encontrar as palavras certas
e me silenciar da próxima vez que falasse comigo.
Anna sequer tinha atingido um quarto de século e estava com Charles a menos de um mês, mas já estava fazendo com que todos se ajustassem a ela. O irmão lobo estava satisfeito
com a companheira que havia encontrado para eles.
Charles largou seu copo e cruzou os braços sobre o peito. Ele sabia que assim pareceria intimidador, e essa era a sua intenção. Mas quando Anna se inclinou para longe dele,
apenas um pouco, ele baixou os braços, enfiou os polegares em seus jeans e fez os seus ombros relaxarem.
Além disso, quando se dirigiu a Anna, sua voz saiu mais suave do que Charles desejava:
– Manipular Bran tende a ser um tiro pela culatra. Eu não recomendo isso.
Contudo, seu pai esfregou a boca e suspirou alto.
– Então – disse ele. – Por que você acha que seria desastroso ir a Seattle?
Charles respondeu a seu pai, esquecendo totalmente sua vontade de parar de brigar com ele sobre a decisão de ir a Seattle.
– A Fera está vindo e você me pergunta isso?
– Quem? – perguntou Anna.
– Jean Chastel, a Fera de Gévaudan – disse-lhe Charles. – Ele gosta de comer suas presas – e suas presas são quase sempre humanas.
– Ele parou com isso – disse Bran friamente.
– Por favor – retrucou Charles – não fale algo para mim no qual você mesmo não acredita... Isso cheira perigosamente a uma mentira. A Fera foi forçada a parar de matar abertamente,
mas um tigre não muda as suas listras. Ele ainda está fazendo isso. Você sabe disso tão bem quanto eu.
Charles poderia ter apontado outras coisas como, por exemplo, a preferência de Jean por carne humana – quanto mais nova melhor. Mas Anna já experimentara o que acontecia quando
um lobisomem se transformava em um monstro. Charles não queria ser aquele que iria contar a Anna que existiam feras piores lá fora que seu antigo Alfa e a sua companheira.
Seu pai sabia o que Jean Chastel era.
Bran concordou em parte.
– Sim. É quase certeza que ainda faz isso. Mas eu não sou um humano indefeso, ele não vai me matar – disse Bran, olhando para Charles com os olhos semicerrados. – Disso você
já sabe. Então, por que você acha que será perigoso?
Ele estava certo. Mas mesmo tirando a Fera da equação, Charles ainda se sentia mal ao pensar que seu pai iria. A Fera representava o perigo mais óbvio, provável.
– Eu simplesmente sei – disse Charles finalmente. – Mas é sua decisão.
Charles sentiu um nó na barriga, antecipando como ficaria ruim a situação.
– Você ainda não tem uma razão lógica.
– Não.
Charles forçou seu corpo a aceitar a derrota e manteve os olhos voltados para o chão; seu pai olhava para fora pela pequena janela, onde as montanhas estavam envoltas no inverno
branco.
– Sua mãe fazia isso – disse ele. – Ela fazia uma declaração sem qualquer base real, e eu tinha apenas que aceitar suas palavras.
Anna estava olhando para Bran com uma expectativa brilhante.
Bran sorriu para ela, e depois ergueu o copo em direção às montanhas.
– Eu aprendi da forma mais difícil que ela normalmente estava certa. Frustrante não chega nem perto de expressar isso.
– Então... – disse ele, voltando sua atenção para Charles. – Eles já estão a caminho. Eu não posso cancelar tudo agora, e isso precisa ser feito. Anunciar para o mundo real
que existem lobisomens irá afetar tanto os lobos europeus quanto nós aqui na América do Norte – e talvez nós seremos os mais afetados. Eles merecem a chance de serem ouvidos
e serem informados a respeito de nossas razões para fazer isso. Essa informação deveria vir de mim, mas você seria um substituto aceitável. Entretanto, isso causará algum
desconforto, e você terá que lidar com isso.
Um alívio profundo atingiu Charles tão abruptamente que o fez encostar-se à bancada com uma súbita fraqueza, como se toda a sensação de desastre total que o consumia tivesse
abandonado o seu ser. Charles olhou para sua companheira.
– Meu avô teria adorado conhecê-la – disse Charles, com uma voz rouca. – Ele teria chamado você de “Aquela que Move as Árvores para Fora de seu Caminho”.
Anna parecia perdida, mas seu pai riu. Ele havia conhecido o velho curandeiro também.
– Ele me chamava de “Aquele que Deve Bater contra as Árvores” – explicou Charles, em um rompante de honestidade, que veio como uma necessidade de fazer sua companheira saber
quem ele era; por isso, continuou. – Ou, algumas vezes, de “Águia que Corre”.
– Águia que Corre? – disse Anna, confusa, franzindo a testa para ele. – O que há de errado nisso?
– Muito estúpida para voar – murmurou seu pai, com um pequeno sorriso. – Aquele velho tinha uma língua ferina – ferina e inteligente, então o apelido pegava até ele arranjar
outro.
Bran inclinou a cabeça para Charles.
– Mas você era muito jovem na época, e eu não sou um objeto tão sólido quanto uma árvore. Você se sentiria melhor se...
Anna pigarreou incisivamente.
Seu pai sorriu para ela.
– E se você e Anna fossem no meu lugar?
– Sim – disse Charles, fazendo uma pausa.
Havia alguma coisa a mais, mas a casa tinha coisas modernas demais para que os espíritos falassem claramente com ele. Normalmente isso era uma coisa boa. Às vezes, quando
eles ficavam muito exigentes, Charles se recolhia ao escritório, onde os computadores e eletrônicos os mantinham totalmente fora. Ainda assim, alguma coisa nele estava respirando
mais facilmente, agora que seu pai havia concordado em não ir.
– Não é seguro, mas é melhor. Quando você quer que estejamos em Seattle?
DOIS
– Eu amo Seattle.
Krissy envolveu-se com os braços em um abraço solitário e rodopiou em círculos. Ela olhou para o alto com um sorriso bem treinado de menina inocente, e seu amante sorriu-lhe
de volta.
Ele estendeu a mão e acariciou um pequeno cacho dourado atrás de sua orelha.
– Vamos nos mudar para cá, princesa? Eu poderia comprar para você um apartamento com vista para o mar.
Ela pensou um pouco, mas finalmente sacudiu a cabeça.
– Eu sentiria falta de Nova York, você sabe que eu sentiria. Em nenhum lugar se faz compras como lá.
– Tudo bem – disse ele; sua voz era um ronronar indulgente. – Mas podemos voltar aqui e brincar de vez em quando, se você quiser.
Krissy olhou para o alto e deixou que a chuva entrasse em sua boca, como um bote rápido de um morcego que captura um inseto em pleno voo.
– Podemos brincar agora?
– O trabalho vem antes da diversão – disse Hannah, a desmancha-prazeres. Ela fora a companheira de Ivan antes de Krissy. O lugar de Hannah no coração e na cama de Ivan fora
tomado por Krissy, e isso a deixava furiosa.
– Ivan – pediu Krissy, apoiando suas mãos nos ombros dele e puxando-o para baixo para que ela pudesse lamber seus lábios. – Não podemos brincar agora? Nós não temos que trabalhar
hoje à noite, temos?
Ele deixou que Krissy beijasse sua boca, e quando levantou a cabeça, seus olhos ardiam.
– Hannah, leve os outros para o hotel e contate nosso contratante. Krissy e eu encontraremos vocês em algumas horas.
i
Estava chovendo novamente, mas Jody fora criado em Eugene, onde chovia apenas uma vez por ano – de janeiro a dezembro, literalmente. Além disso, ele era de Peixes; a água
era o seu elemento.
Ele ergueu o rosto e deixou que a chuva lavasse seu rosto. O ensaio tinha sido mais longo do que o normal e o sol havia se posto antes que ele saísse. A música estava boa
essa noite; todos haviam sentido. Jody tirou as baquetas do bolso traseiro e tocou no ar um ritmo que somente ele podia ouvir. Havia algo que ele precisava mudar no último
movimento...
Jody foi para casa pelo caminho mais curto – uma ruela escura e pouco mais larga que um carro e meio. Não era tarde, mas não havia ninguém nas redondezas exceto um velho e
uma garota que aparentava ter uns dezesseis anos. Ambos estavam encharcados, e correram em sua direção.
– Desculpe-me – disse o homem –, nós não somos daqui e aparentemente nos perdemos. Você saberia nos informar onde fica o restaurante mais próximo?
O casaco de lã que ele vestia parecia caro, e o homem tinha no pulso um relógio de ouro brilhante que parecia custar uma fortuna. Quando eles se aproximaram, ficou claro que
havia mais de uma geração entre o velho cavalheiro e a garota, que talvez fosse sua neta. Jody também percebeu que ela usava saltos tão altos que faziam seus pés parecerem
miúdos.
Ela o flagrou olhando, divertindo-se com sua admiração. Jody não pôde fazer nada a não ser sorrir de volta. Ela colocou a mão em seu pulso e disse:
– Nós precisamos de comida.
Seu sorriso alargou-se um pouco mais, e Jody viu presas.
Era estranho, pois ela não parecia pertencer a grupos como aqueles dos quais sua ex-namorada passara a fazer parte, onde todos usavam presas e jogavam aquele jogo idiota –
não o D&D, que era bacana... mas algo a ver com vampiros.
Essa garota usava um rabo de cavalo e parecia mais com a Britney Spears do que com a Vampirella. Seus sapatos eram rosa-choque, e nenhuma peça de seu vestuário era preta.
Jody não gostou nada de sentir sua garganta se fechar de medo por causa das presas de acrílico.
– Há um lugar a poucos quarteirões daqui – disse ele, torcendo o braço levemente para que ela enfim o soltasse. – A cozinha é italiana, e eles fazem um ótimo molho vermelho.
Ela lambeu os lábios e não soltou seu braço.
– Eu amo molho vermelho.
– Olha – disse ele, enquanto puxava seu braço para se livrar das mãos dela –, corta essa. Isso não tem graça.
– Não – disse o homem, que de alguma maneira se posicionara às suas costas enquanto Jody falava com a garota. – Não tem graça nenhuma.
Depois disso, Jody sentiu uma dor cortante no pescoço.
– Onde encontramos um lugar mais reservado? – perguntou o homem velho após alguns instantes. – Um lugar onde possamos brincar um pouco juntos sem que alguém nos veja?
Respondendo à pergunta, Jody levou seus novos amigos para um lugar no Sound a alguns quilômetros, onde ele sabia que ninguém os incomodaria.
– Bom – disse o homem. – Muito bom.
A garota cerrou os olhos e sorriu.
– O barulho do tráfego vai abafar os gritos.
O homem inclinou-se e levou sua boca à orelha de Jody.
– Você pode ficar com medo agora.
Jody ficou com medo por um longo, longo tempo, até que finalmente jogaram seu corpo no mar para os peixes.
i
– As pedras vão mantê-lo submerso por tempo suficiente para que a causa da morte não possa ser identificada – disse Ivan.
– Eu ainda acho que devíamos deixá-lo nu, pendurado em uma árvore, como aquela garota em Siracusa.
Ivan esfregou o topo da cabeça dela.
– Cara criança – disse ele, suspirando. – Aquele foi um caso especial; era uma mensagem para o pai dela. Esse aqui foi apenas diversão, e se deixarmos que os humanos idiotas
saibam que o matamos, isso iria interferir com os negócios.
Krissy olhou para as baquetas ensanguentadas e suspirou, atirando-as na água no mesmo lugar onde haviam jogado o corpo.
– E nada pode interferir com os negócios.
– Os negócios garantem um teto sobre nossas cabeças e nos permitem viajar quando queremos – disse-lhe Ivan. – Você precisa lavar seu rosto, princesa, e colocar suas roupas
novamente.
i
O suntuoso pico da montanha atravessava a névoa branca e reinava com grande esplendor sobre o céu suave, fazendo Anna perder o fôlego. Ela concluiu que aquele era o Monte
Reinier, apesar dos seus escassos conhecimentos da geografia das Cascades. Uma vastidão de montanhas se espalhava abaixo deles, mas essa era muito mais alta do que os vários
picos baixos abaixo dela. Gradualmente, outros picos majestosos se revelaram a distância, escondidos pelas nuvens.
– Ei, Charles?
As montanhas estavam do lado do lugar do piloto. Anna inclinou-se na direção de Charles o máximo que pôde sem tocá-lo – afinal, era ele quem estava pilotando o avião, e ela
não queria distraí-lo.
– Sim?
Os dois estavam usando fones de ouvido que protegiam seus ouvidos sensíveis do ruído do motor e transmitiam suas vozes por rádio. Com o fone no ouvido, a voz dele era baixa
o suficiente para fazer o alto-falante em sua orelha vibrar, mesmo com o volume no mínimo.
– Quantos aviões a alcateia possui, afinal?
Esse era o segundo em que ela voava.
– Apenas o Learjet – disse ele. – Se você se inclinar mais vai acabar se estrangulando... Este Cessna é meu.
Ele possuía um avião? Quando Anna começava a pensar que o conhecia, outra novidade aparecia. Ela sabia que Charles administrava as finanças da alcateia – e que a mesma não
corria o risco de ficar sem dinheiro por um bom tempo. Anna também estava ciente de que a situação financeira de Charles era estável, embora eles não tivessem realmente falado
sobre isso. Ser o dono de um avião era algo completamente diferente de ter estabilidade financeira, assim como o Monte Reinier estava em uma categoria muito diferente se comparado
com os morros de Illinois que ela conhecia.
– Não estamos a serviço da alcateia? Por que então viemos nesse avião?
– O jato da alcateia precisa de uma pista de 1.800 metros para aterrissar – disse Charles. – Isso significa usar a pista de Boeing Field ou Sea-Tac, e eu não quero o governo
nos rastreando a semana toda.
– O governo segue você?
Anna visualizou uma rápida cena em um quadro de desenho animado em que Charles passeava com homens de terno preto rastejando atrás dele, tentando sem sucesso não serem vistos.
Ele assentiu com a cabeça.
– Podemos ser um segredo para o resto do mundo – mas as pessoas erradas sabem quem somos.
E era exatamente por isso que o Marrok decidira que estava na hora de apresentar os lobisomens ao público.
– Então as pessoas erradas estão nos seguindo?
Ele deu um leve sorriso lupino.
– Apenas quando eu quero que sigam.
Anna pensou naquele sorriso e concluiu que gostava disso nele.
– Então, onde vamos aterrissar?
– Em uma pista particular que pertence à alcateia da Emerald City. Fica aproximadamente a quarenta quilômetros de Seattle.
O avião adernou, descendo rapidamente, fazendo o estômago de Anna embrulhar. Ela segurou nos braços da poltrona e riu quando Charles nivelou novamente a aeronave.
– Eu realmente gosto de voar.
Ele inclinou a cabeça e olhou para Anna por sobre as lentes dos óculos escuros por um momento. Depois, sua boca se contorceu e ele voltou sua atenção para o painel de instrumentos.
O avião inclinou-se para a esquerda.
Anna esperou que ele o endireitasse, mas eles continuaram girando para a esquerda até ficar de cabeça para baixo, e assim continuaram suavemente até que estivessem nivelados
novamente.
Enquanto Anna ria, Charles disse:
– Esse avião não foi feito para acrobacias, mas o parafuso é uma manobra de apenas 1G.
Ele girou o avião para o outro lado e disse:
– Muito bem executado.
E assim continuou dançando com o avião pelo céu.
Anna estava sem fôlego, e seu diafragma doía de tanto rir depois que o avião estava novamente em voo nivelado. Ela olhou para Charles, que nem sequer estava sorrindo. Era
como se ele estivesse voando e desenhando formas sobre campos cultivados.
Charles detestava aviões tanto quanto qualquer outra tecnologia moderna. Ele lhe havia dito isso. Mas mesmo assim possuía um – e ainda por cima sabia perfeitamente como voar
com ele. Quando Charles dirigia sua caminhonete, era cuidadoso e controlado, mas de repente decidiu pilotar o Cessna dessa forma alucinada... Ele a estava distraindo ou estava
apenas se divertindo?
Uma mulher deveria conhecer melhor seu companheiro. Quando o vínculo que unia os dois se revelara, Anna acreditou que o conheceria. Mas sua habilidade inicial para senti-lo
havia esmaecido, soterrada por suas defesas e pelo autocontrole dele. Ela podia sentir a ligação entre eles – forte, brilhante e impenetrável. Anna se perguntou se ele sentia
o mesmo ou se podia decifrá-la por inteiro quando bem entendesse.
– Aqui é Sierra Alfa Novembro Um Oito Oito Três Vitor solicitando permissão para pouso – disse ele. Anna demorou um pouco para perceber que ele não estava falando com ela,
e sim com a base.
– Prossiga, senhor. Quero dizer, vá em frente Oito Três Vitor – disse a voz de um estranho. – Bem vindo ao território da alcateia da Emerald City, senhor.
Charles desceu abruptamente através das nuvens e entre montanhas cobertas de neve até o vale verdejante abaixo deles. Antes que Anna percebesse que ali havia uma pista de
pouso, as rodas do avião já haviam tocado o solo com suavidade.
O lugar onde aterrissaram parecia tão remoto quanto Aspen Creek. Embora houvesse neve cem metros acima dos sopés das montanhas, a planície onde aterrissaram era tão verde
que parecia uma paisagem de verão. Era ainda mais verdejante; exceto pela pista em si e pelo hangar, a terra era totalmente coberta de árvores e arbustos.
Pessoas correram do hangar em direção ao avião enquanto Charles se livrava dos fones de ouvido e do cinto de segurança.
Nesse momento, Anna sentiu que Charles se afastou dela, enfraquecendo dolorosamente a força do vínculo entre eles. Se ele a tivesse avisado antes, ela teria ficado quieta:
três anos em sua antiga alcateia a ensinaram a controlar a dor. Foi a surpresa que fez com que um ganido escapasse de sua garganta.
Charles tirou os óculos escuros e olhou para Anna com espanto. A compreensão do momento fez com que seus olhos se arregalassem.
– Eu nunca pensei...
Ele virou a cabeça e disse, mas não diretamente para ela:
– Tudo bem, tudo bem...
E o colapso doloroso do vínculo entre eles parou.
Com olhos de lobo, Charles se inclinou em sua direção e tocou-a na face.
– Desculpe-me. Eu não queria manter você do lado de fora. Eu só...
Ele parou, parecendo estar sem palavras.
– Vestindo sua armadura? – sugeriu Anna. – Tudo bem, é que eu não estava esperando por isso. Faça o que tiver que fazer.
Mas Charles não fez nada ofensivo. Olhando para os homens que se aproximavam, disse:
– Esses não são inimigos. Ao menos não dessa vez.
Ele levantou-se de seu assento antes que Anna pudesse dizer qualquer coisa. E o que eu poderia fazer se fossem?, pensou ela. Charles se fechou de um jeito que parecia querer
matar alguém mesmo, e isso significava que ele não gostava muito daquelas pessoas. Assim, ele não hesitaria em fazer o que precisasse ser feito, o que fez Anna pensar que,
afinal, sabia algo a respeito do seu parceiro.
Ela saiu atrás dele, seguindo-o para fora do avião e para a presença de lobos desconhecidos, ainda tentando decidir se isso a tranquilizava ou a preocupava ainda mais.
– Que bom que conseguiu, senhor – disse o lobo que estava no comando. Anna ainda se assustava com a sua capacidade de saber quem estava no comando apenas observando os movimentos
e posturas sutis do corpo. Pessoas reais – humanos normais – não precisavam saber quem era o primeiro e quem era o último.
– Nós estávamos acompanhando o voo pelo radar, e o Jim – disse ele, apontando um dos seus lobos – achou que vocês estavam com algum problema, porque a velocidade do avião
estava muito irregular.
Charles permaneceu com uma expressão neutra, e Anna se perguntava como aquelas acrobacias teriam sido registradas no radar.
– Não tivemos problema algum – disse ele.
O outro lobo limpou a garganta e abaixou os olhos.
– Bem. Eu sou Ian Garner, da alcateia da Emerald City, e estou aqui para ajudá-lo em tudo o que precisar.
Enquanto Charles e os demais lobos descarregavam a bagagem e conversavam sobre os cuidados com o avião e onde ele seria guardado, Anna ficou um pouco afastada. Ela não estava
tão nervosa com a presença de estranhos como esperava – e demorou algum tempo até que ela percebesse por quê.
Ian tinha uma posição central na alcateia e era o líder aqui. Assim, Anna concluiu que esse grupo não era formado por lobos próximos ao Alfa da alcateia, e nem sequer estavam
perto dos mais dominantes. Esses eram lobos que não desafiariam o instinto de um macho dominante de colocá-los em seus lugares. Angus Hopper, o Alfa da alcateia da Emerald
City, era um homem esperto. Não que ele tivesse que se preocupar com o controle de Charles, mas jogar com cautela era sempre a manobra mais inteligente.
Angus não agira dessa forma porque machos dominantes desconhecidos amedrontariam Anna, e uma parte dela era grata por isso.
Em breve, quando as reuniões começassem, haveria machos dominantes suficientes para sufocar qualquer um. Os lobos da Europa eram líderes de suas regiões; alguns deles estavam
no poder há séculos. Ninguém a machucaria, não enquanto estivesse com Charles. Ela sabia disso, mas aquele medo de lobisomens machos havia sido imposto a ela durante anos
de maus-tratos, e Anna levaria mais do que um ou dois meses para conseguir dominá-lo.
– Eles cuidarão do avião – disse Ian. Ele então pegou a mala mais próxima, e com um ombro caído e um sinal de deferência feito com a cabeça em vez das palavras, convidou-os
a segui-lo por um caminho calçado de pedras através das árvores. Charles pegou sua própria mala e aguardou que Anna andasse à frente dele.
Quando todos estavam andando, o lobo da Emerald City começou a falar rápida e ininterruptamente, o que poderia ter disfarçado a ansiedade que sentia se alguém que fosse inteiramente
humano observasse a cena; Charles fazia isso com as pessoas, até mesmo em sua própria alcateia, e Anna achava que nem mesmo seu pai sabia o quanto isso o incomodava.
– Angus está trabalhando – disse o lobo. – Ele disse que vocês têm livre acesso à casa.
Anna lembrou-se de ter visto de relance uma casa durante a aterrissagem, mas ao nível do solo ela ficava muito bem camuflada pelas árvores. Devia ser para lá que estavam indo.
– Vocês podem usar à vontade tudo o que gente tem aqui, mas a alcateia agora só tem um Land Cruiser novo e um Corolla que já viu dias melhores. Angus disse que vocês podem
usar a BMW dele, se preferirem.
– Nós ficaremos com o Corolla – disse Charles. – E nos hospedaremos em um hotel na cidade. Aqui é muito longe, e prefiro ter acesso mais rápido ao local da reunião.
– Ele imaginou que vocês pensariam dessa forma. Angus os convidou para ficar com ele em seu apartamento na cidade.
– Não será necessário – disse Charles. Anna não sabia dizer se Charles notara a expressão aborrecida do outro homem, mas era mais provável que ele simplesmente não se importasse
com isso.
A alcateia da Emerald City era a anfitriã da reunião, e o fato de Charles recusar a hospitalidade dava a impressão de que ele não os considerava como aliados. Charles preferia
ficar independente – afastado das pessoas que poderia vir a ter que matar. Charles era o assassino e justiceiro de seu pai, e aquela responsabilidade impiedosa afetava todas
as suas decisões. Ele não costumava se esforçar para fazer amigos entre os lobisomens, nem mesmo em sua própria alcateia. Charles se sentia mais confortável sozinho.
Mas isso não significava que Anna não pudesse suavizar as coisas um pouco.
– Nós agradecemos sua oferta – disse Anna, dirigindo-se a Ian. – Mas nos tornamos companheiros há pouco tempo e...
Ela não teve que fazer nenhum esforço para corar enquanto sua voz diminuía. E assim, qualquer coisa que o pudesse ter ofendido foi ofuscada pelo seu interesse.
– Então é verdade?
Ian olhou para Charles e então rapidamente desviou o olhar.
– Eu já tinha ouvido falar a respeito.
– Chocante, eu sei – murmurou Charles.
O outro lobo olhou para Charles com preocupação; receoso demais para entender a piada.
– Ele adora fazer piadinhas – disse Anna, tentando ajudar.
A expressão do lobo da Emerald City se suavizou em profunda descrença.
Charles percebeu e sorriu para ela. Foi uma pena Ian não ter visto a expressão de sua companheira, mas a face de granito que Charles mantinha em público se restabeleceu antes
que o outro lobo olhasse para ele.
– Ok – disse Ian. Ele limpou a garganta e mudou de assunto. – Bem... Angus pediu para avisá-los que as únicas pessoas que ainda estamos aguardando são os russos e os franceses.
Ele imaginou que você se interessaria em saber que o Alfa britânico veio sozinho com a companheira dele. Nós saberemos quando os russos chegarem aqui – eles vão ficar em um
apartamento que pertence à companhia de Angus.
– Companhia de Angus? – perguntou Anna. Eles haviam arrumado as malas com certa pressa, e Anna não teve tempo de perguntar a Charles o que eles iriam realmente fazer ali.
– Angus tem uma empresa de alta tecnologia – explicou Charles. – Eles desenvolvem programas que fazem outras empresas funcionarem. Nós usaremos suas instalações durante essa
semana; ele deu aos funcionários férias de Natal antecipadas.
– Eu pensei que os lobos franceses já haviam chegado. Chastel vai querer checar seus campos de caça antes que as presas cheguem – disse Charles, dessa vez dirigindo-se a Ian.
– Eles não deram entrada ainda no hotel que reservaram.
Charles balançou a cabeça.
– Diga a Angus que Chastel jamais se hospedaria em um hotel; muito público. Ele teria alugado uma casa, algum lugar agradável. Ele já está aqui, provavelmente há uma semana
ou duas.
Charles costumava dizer que não era bom com pessoas, que não as compreendia... e talvez isso fosse verdade. Mas ele entendia muito bem de predadores.
As árvores se tornaram mais escassas, e uma casa emergiu da floresta. Como a casa de Bran, esta fora construída para tirar vantagem do relevo natural; e de fato, as árvores
escondiam uma boa parte de seu tamanho. A companhia de Angus devia ser realmente lucrativa.
– Angus disse que os franceses é que causarão mais problemas – disse Ian.
– Não subestime os russos – disse Charles. – Mas Angus provavelmente está certo. Jean é poderoso, assustador e, ainda por cima, louco de pedra. Ele gosta de matar, especialmente
se a presa for fraca e assustada – a vida dele não se encaixa nas regras que estamos criando para apresentar nossa espécie para o mundo.
– Angus disse que Jean Chastel será o mais votado, justamente por ser o mais temido pelos demais.
Charles sorriu como um lobo, com seus olhos frios e claros.
– Isso não é uma democracia: não há votos. Não para isso. Os europeus não terão direito a opinar sobre se contaremos ou não ao mundo a respeito de nossa existência. Eu estou
aqui para ouvir suas preocupações e decidir sobre o que podemos fazer para ajudá-los a mitigar o impacto de vir a público.
– Isso não parece com o que eu ouvi das delegações europeias que chegaram.
Ian fora cauteloso para não soar como se estivesse discordando de Charles.
– E quanto aos lobisomens asiáticos? – perguntou Anna. – E quanto aos africanos e australianos? E os sul-americanos?
– Eles não são importantes – disse Ian, desviando-se da questão.
– Eles são importantes – disse Charles suavemente. – Fizemos outro tipo de contato com eles.
O cheiro ácido do medo entrou pelo nariz de Anna; havia um tom de ameaça na voz de Charles quando ele pensou que o outro lobo havia tentado passar à sua frente – e Ian havia
percebido claramente. Ela franziu a testa para Charles.
– Pare de aterrorizá-lo. Essas são coisas das quais eu deveria estar informada. Conte-me sobre os lobisomens não europeus.
Charles levantou uma sobrancelha para ela, mas respondeu prontamente.
– Lobisomens são um tipo de monstro europeu, e nós temos nos dado muito bem nessa parte do Novo Mundo também. Há alguns de nós na África e uns poucos na Ásia, onde há outros
monstros que não nos apreciam muito. Há duas alcateias na Austrália, cerca de quarenta lobos. Ambos os Alfas foram informados sobre os nossos planos, e nenhum deles apresentou
objeções. Bran até mesmo discutiu sobre suas intenções com os lobos sul-americanos. Eles ficaram menos satisfeitos – mas assim como os europeus, eles não têm que dar opinião
sobre o que meu pai faz ou deixa de fazer. Ao contrário dos europeus, eles sabem. Nós oferecemos a eles o mesmo tipo de ajuda que estamos oferecendo aos europeus, e eles ficaram
satisfeitos com isso. Eles foram convidados, mas decidiram não comparecer.
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O velho e surrado Corolla possuía um câmbio manual de quatro marchas com uma embreagem sensível, o que mantinha a atenção de Anna totalmente focada na direção até que estivessem
na rodovia interestadual em direção à cidade.
– Ok – disse ela. – Eu preciso entender isso um pouco melhor. Eu deveria ter feito mais perguntas, mas tudo aconteceu rápido demais. O Alfa britânico, por ter vindo sozinho,
está querendo dizer que pode lidar por conta própria com tudo o que lhe acontecer?
Charles assentiu.
– Há algumas diferenças e animosidades entre Arthur Madden, o Alfa britânico, e Angus – disse Charles, e após fazer uma pausa, continuou. – Na verdade, eu acho que há alguma
animosidade entre Arthur e o meu pai também. Se isso se transformar em um problema, posso ligar para o meu pai e descobrir do que se trata. Meu pai diz que Arthur é o único
Alfa que se irá se opor a Chastel – e isso é uma boa coisa. Nós precisaremos de todas as vantagens que pudermos.
Charles parecia... não exatamente preocupado. Intrigado. A luta dessa semana, concluiu Anna, seria uma luta diferente; sem presas e sangue, mas uma batalha de intelectos.
Todos esses líderes dominantes... a maioria dos Alfas no mesmo ambiente. Discutindo. Talvez não fosse uma maneira tão diferente de lutar. Mas no momento, tudo o que ela estava
fazendo era dirigir sem ter a menor ideia de aonde estavam indo.
– Nós estamos indo para o hotel?
– Sim – disse Charles, mostrando-lhe o caminho.
Porém, assim que saíram da rodovia e entraram nas ruas do centro de Seattle, Charles acrescentou:
– Vamos fazer algo antes. Por que não vamos ver Dana, a Fae que concordou em organizar essa bagunça?
Como seu pai, talvez Charles estivesse lendo sua mente.
– Ela não é apenas uma espécie de embaixadora das Nações Unidas, uma anfitriã graciosa que auxilia Angus... É ela que vai manter esse encontro civilizado e evitar que tenhamos
que pagar para que manchas de sangue sejam removidas dos carpetes de Angus. Eu tenho um presente do meu pai para dar a ela; em agradecimento por sua ajuda, estamos pagando
a ela uma pequena fortuna.
– Eu não sabia nada sobre essa Fae.
Anna jamais vira um Fae antes – e pelo o que sabia, ninguém que ela conhecera era um. Ela sentiu um arrepio de excitamento, e apertou com força o volante do carro.
– Bran trouxe uma Fae para um encontro de lobisomens?
– Era necessário ter alguém neutro aqui para garantir que a violência não saia do controle.
Anna pensou nos lobos que conhecera: a violência sempre saía do controle. Ela tentou imaginar alguém que pudesse controlar isso: e podia ser Bran, Charles... – mas eles teriam
que fazê-lo usando ainda mais violência.
– Ela pode fazer isso?
– Sim, claro. E mais importante ainda: todos sabem disso.
– Que tipo de Fae ela é? Dana não é um nome alemão? Eu pensei que a maioria delas fosse de origem britânica, ou seja, irlandesa, escocesa ou gaulesa.
– A maioria das Faes que vemos nos Estados Unidos é do norte da Europa: são celtas, alemãs e francesas, ou originárias da Cornualha ou Inglaterra. Dana não é seu nome verdadeiro.
Ela tem usado o nome Dana Shea por cerca de uma década, uma variação de Daoine Sidhe. Muitos dos Faes mais velhos e algumas bruxas jamais usam seus nomes verdadeiros. Se os
Faes possuírem algo por um tempo tão longo, isso pode acabar desenvolvendo um poder sobre elas e ser usado pelos seus inimigos, do mesmo modo que mechas de cabelo e lascas
de unhas.
– E você sabe qual é o seu nome verdadeiro? Ou que tipo de Fae ela é?
– Eu não sei. E acho que nem mesmo meu pai sabe. Eu sei que ela é um Lorde Cinzento, um dos tipos mais poderosos; eles dominam todos os Faes, da mesma maneira que meu pai
domina os lobos... – disse Charles, olhando para Anna de relance. – Mas isso se meu pai estivesse mais para um assassino em série psicótico. Mesmo assim, eu sei muito bem
que tipo de Fae ela é. Quando a encontrarmos, converse um pouco com ela e depois me diga o que achou.
Anna deu um suspiro meio exasperado.
– E o que eu ganho se estiver certa?
Os olhos dele brilharam com a força do lobo que espreitava em seu interior, e a fome em sua voz lhe disse exatamente o que ele queria dizer quando falou:
– O mesmo que vai ganhar se estiver errada.
Anna esperou sentir o medo e a excitação que sempre a acometiam quando pensava em sexo – mas não sentiu nada, além de uma leve reviravolta em seu estômago. Em menos de um
mês, ele fizera várias incursões aos problemas que ela experimentava nessa área.
– Ótimo – disse-lhe Anna.
Charles sorriu para ela e relaxou contra o encosto do assento.
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As rodovias de Seattle eram muito mais íngremes que as de Chicago. As estradas passavam por sobre a água, serpenteavam entre morros e passavam sob eles, onde várias casas
se acomodavam, parecendo não se incomodar com os milhares de carros que passavam por baixo delas. Além do odor dos carros, pairava no ar um cheiro de sal e maresia do Puget
Sound e de vários outros lagos e lagoas salgados. O céu cinzento vazava aqui e acolá, porém não o suficiente para acionar os limpadores de para-brisa no máximo; mesmo assim,
a água ainda ficava acumulada nos vidros.
Seguindo as indicações de Charles, Anna saiu da estrada e logo estava dirigindo pelo tráfego de uma estrada mais vagarosa que ficava em uma parte de Seattle parecida com uma
pequena cidade na Grã-Bretanha. O lugar parecia velho, era exótico e bonito; além disso, tinha personalidade. Uma série de docas com botes e casas-barco se enfileiravam pela
água à direita do carro, enquanto à esquerda prédios estreitos se amontoavam nas encostas de um morro que se tornava mais e mais íngreme conforme ela dirigia.
Havia uma enorme ponte prateada cruzando a água e a estrada por onde ela estava dirigindo, levando a uma região mais alta do morro. O nome da estrada que seguia sob a ponte
fez com que Anna desacelerasse bruscamente, para poder enxergar melhor a placa e ter certeza do que estava lendo.
– “Troll”?
– O quê? – exclamou Charles, que estava observando a água mas virou-se para olhar para ela.
– Há uma rua por aqui com o nome de troll?
Ele sorriu, dizendo:
– Eu havia me esquecido completamente. Por que você não pega esse caminho morro acima?
Anna manobrou o carro para seguir a estrada, e por um momento achou que a decisão foi um erro, pois o pequeno carro azul começou a fazer um tremendo esforço para vencer a
ladeira, que era ainda mais íngreme do que parecera. A estrada era estreita e claustrofóbica, tendo a ponte como teto e as colunas de sua estrutura como paredes em ambos os
lados.
A direção prendia tanto sua atenção que Anna só foi perceber aquilo quando a estrada em que estavam terminava em uma outra, ao pé de um morro. A ponte desembocava no topo
do morro, e no espaço entre a estrada e a ponte havia alguma coisa gigantesca de cócoras.
Sem consultar Charles, ela parou.
Havia uma escultura em cimento representando um humanoide monstruoso saindo da areia: era o troll da ponte. Na escultura, um dos olhos era coberto por cabelos esvoaçantes
enquanto o outro olhava ao longe, por sobre a cabeça de Anna, mirando a imensidão da água ao sopé do morro que haviam subido. Uma de suas mãos, que repousava sobre um Fusca
de verdade, era grande o suficiente para engolir o carro. A frente do Fusca estava sob as barbas do troll como se estivesse buscando refúgio.
Anna saiu do carro devagar e caminhou através da estrada, com Charles ao seu lado. A estátua havia sido pichada recentemente, e o verde e rosa-choque apenas evidenciavam a
estranheza da criatura. As mãos da criatura tinham unhas e rugas. Flores verdes e rosas seguiam os contornos do para-choque do Fusca, e na janela de trás – cujo vidro estava
coberto de cimento – alguém havia escrito “recém-casados”.
Anna teve uma leve sensação de estarem sendo observados. Acima do troll, no ponto onde a ponte encontrava o morro, três ou quatros pessoas os observavam com cautela. Um homem
abandonou o jornal que estava lendo e desceu na direção deles.
Ele era um pouco mais alto que a média, embora se curvasse para aparentar ser mais baixo. O homem usava um velho avental de lona totalmente salpicado de sujeira, e um par
desencontrado de tênis Nike adornava seus pés. O pé direito tinha um buraco no dedão, e o esquerdo, uma abertura ao longo do calcanhar, expondo os pés imundos sem meia. Os
jeans que usava eram novos e duros, embora tão sujos quanto o avental. Anna percebeu que ele usava várias camadas de camisas – uma de flanela vermelha sobre outra camisa de
xadrez amarelo com botões, que quase conseguia esconder uma camiseta branca suja.
Anna percebeu a presença do homem, mas com Charles ao seu lado ele não representava nenhuma ameaça – e ela estava mais interessada no troll. Assim, ela deixou que Charles
lidasse com ele enquanto subia na traseira do Fusca e daí para o braço da criatura, até que conseguisse tocar seu enorme nariz.
– Gostou do meu pequeno troll? – perguntou o estranho, com uma voz tão rouca como a de alguém que fumou mais de um maço por dia durante anos. Mas ele não tinha cheiro de cigarros;
Anna pôde perceber que o seu cheiro era de terra, mágico, acre, com um toque almiscarado de predador.
– Ele era real? – perguntou Anna, segura de onde estava, perto de Charles.
O estranho olhou para ela e riu, expondo seus dentes podres e enegrecidos, porém tão afiados quanto a pungência do seu cheiro.
– Bem, não. Pode sê que o artista viu alguma coisa que num podia vê, filhote-de-lobo – respondeu o homem, dando um pequeno tapa no braço de cimento em que Anna estava. Ela
deu um passo para trás, cautelosa, ao que ele continuou. – Mas ele fez foi construir um amigo pra mim, e assim ficamos tudo feliz. Até mesmo o Lorde Cinzento, ela achou divertido.
Num me machucou muito porque eu vi e não contei nada pra ela.
Faes podiam esconder quem realmente eram. Podiam aparentar ser como qualquer pessoa. Mas a fome que transparecia nos olhos do estranho quando ele olhava para Anna era tão
imortal quanto ela, e muito mais antiga.
Seu lobo não gostara dele, e Anna franziu os olhos e deixou que ele a ouvisse rosnar. O estranho deveria saber que ela não era nenhuma presa.
Ele riu novamente e deu um tapa na coxa com a mão coberta por uma gasta luva de dedos cortados.
– Se eu me esquecê de mim e dar uma mordida – disse ele, rangendo os dentes; na escuridão sob a ponte, Anna viu a faísca quando eles se tocaram –, ela me mastiga e me joga
pros polvos gigantes que vivem por aí... ela faz isso mesmo.
Aquele pensamento parecia diverti-lo, e ele continuou:
– Mas acho que por um pedaço suculento de carne de lobo vale a pena.
– Troll! – disse Charles.
Charles estava se divertindo tanto com Anna que se esquecera da ameaça real; por isso, colocou-se em seu lugar, deu a volta, sentou-se e sibilou.
Charles pegou um dos brincos de ouro que usava e atirou para a criatura, que o agarrou com as mãos em uma velocidade sobre-humana.
– Pegue seu pedágio e vá, Ancião – disse Charles.
– Ei Jer! Deixe essas pessoas em paz ou a polícia vai tirar a gente daqui. Você sabe que sim! – disse uma voz fina e preocupada vinda do alto do morro.
O troll disfarçado de humano levou o pedaço de ouro às narinas e cheirou-o. Seu rosto se contorceu e seus olhos rodopiaram, emitindo uma estranha luz azulada, até que se acalmaram
e pareceram apenas olhos novamente.
– Pedágio! – disse ele. – Pedágio.
– Jerry?
– Sem problema, Bill – gritou ele para seus amigos – ou antes seus companheiros de quarto ou companheiros de ponte, que eram mais humanos que ele.
– Só tô dando um boa tarde!
Ele olhou para Charles, e por um momento seu rosto expressou uma estranha nobreza, enquanto suas costas e seus ombros se endireitaram, corrigindo sua postura. Em uma voz clara
e sem nenhum sotaque ele disse:
– Um conselho pelo seu pagamento: não confie na Fae.
Ele riu novamente, tornando-se novamente o homem que os havia cumprimentado quando chegaram, e escalou de volta o barranco sob a ponte.
Charles não disse nada, mas Anna desceu de onde estava e seguiu-o de volta para o carro.
– Os trolls são realmente tão grandes quanto aquela estátua? – perguntou Anna, enquanto afivelava o cinto de segurança.
– Eu não sei – respondeu Charles, que sorriu do olhar assustado com que ela o olhava. – Eu não sei tudo. Nunca vi um troll em sua verdadeira forma.
Anna ligou o carro enquanto Charles continuava.
– Paga-se um pedágio para cruzar a ponte dele... Mas nós não cruzamos a ponte.
– Mas invadimos o espaço dele. Pareceu-me apropriado.
– E o que você acha do aviso que ele nos deu?
Charles sorriu novamente, divertindo-se; seu rosto iluminou-se.
– Você sabe o que dizem por aí: não confie nas Faes.
Aquele era um conselho bem comum. É uma das coisas mais antigas que as pessoas dizem e o ponto culminante de várias histórias sobre esses seres.
– Tudo bem. Especialmente na parte de não confiar em Faes, eu acho. Para onde agora?
– Desça novamente a estrada do troll. Vê aquelas docas lá embaixo? Dana mora em uma casa-barco aos pés do troll.
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Charles só visitara Dana em sua casa apenas uma vez, mas ele não teve problemas em encontrá-la novamente; de alguma forma, ela sempre se destacava.
Havia quatro docas. Três delas estavam lotadas de barcos de vários tipos, presos ali. A quarta tinha apenas um. Uma casa-barco de dois andares que parecia a miniatura de uma
mansão vitoriana completa, com babados de todas as cores do pôr do sol sobre o mar: azul e laranja, amarelo e vermelho.
Dana levava a ideia de se esconder em plena luz do dia a um nível mais elevado. Nenhum dos seus vizinhos, à exceção de outras Faes, sabiam quem ela era. Dana era tão poderosa
que podia escolher entre se expor ou não, e ela escolhera permanecer em segredo.
Charles também era poderoso. Mas ele não tinha escolha.
– É isso? – perguntou Anna. – Parece exatamente com o lugar onde uma fada moraria.
– Espere até ver o interior – disse ele.
Por cerca de dois séculos Charles tinha andado por aí com certa felicidade... ou pelo menos contente, seguindo um caminho determinado. Sua vida sempre fora dirigida pela servidão
ao seu Alfa (que além de ser seu pai era também o Marrok), de qualquer maneira que fosse requisitada.
Quando seu pai lhe contou o que pretendia, disse a Charles que precisaria de lobos que pudessem mostrar ao público o que era um lobisomem, lobos em quem Bran pudesse confiar,
que não iriam colocar tudo a perder em público, e Charles concordara em ser um deles. Não que uma recusa sua tivesse importância; no final, um lobo obedecia ao seu Alfa ou
era morto por ele. E Charles tinha certeza absoluta (o que o deixava contente) de que jamais seria capaz de derrotar seu pai.
Mas isso fora antes de conhecer Anna. Agora sua vida girava em torno dela e da necessidade de mantê-la protegida. Embora Charles concordasse com seu pai sobre a melhor forma
de agir, ele e o irmão lobo estavam preocupados, pois protegê-la e apresentar-se ao público como um lobisomem não eram conceitos compatíveis.
Nessa semana, ele não podia deixar transparecer seus reais sentimentos sobre isso. Era necessário que os lobos viessem a público. Ele sabia disso.
Mas agora havia Anna, e ela mudara as coisas.
– Devemos ver se ela está em casa? – perguntou Anna, segura no seu lugar em terra firme, ainda examinando a casa-barco.
Dana, sem dúvida, já sabia que eles estavam lá. Charles sentira um sopro de magia em sua pele enquanto caminhavam pela sua doca, mas ela aguardaria até que se apresentassem
apropriadamente.
Dana, La Belle Dame Sans Merci, já conduzira esse tipo de negócio para seu pai no passado. Ela seria muito bem paga, mas tratando-se de uma Fae, era uma boa política trazer
um presente extra no lugar de um “obrigado”. Dizer essas palavras podia ser algo perigoso, já que algumas Faes as interpretavam como a admissão de uma obrigação. O Marrok
não era o único a trazer-lhe um presente, mas o dele devia ser maior do que a soma de todos os outros. Ainda assim, Charles poderia entregá-lo para Dana na primeira reunião
em vez de ter que fazer uma viagem especial para isso.
Seu pai sugerira que Dana poderia gostar de uma visita sua antes da reunião – e que Anna poderia gostar também. Assim, ali estavam eles: Charles, que carregava uma pequena
pintura embrulhada sob o braço, e Anna, uns poucos passos à frente dele, que acabara de descobrir que uma doca flutuante também balançava.
Anna olhou para Charles com um ar de felicidade quando ele a seguiu na passarela de madeira encharcada de água.
– Isso é divertido – disse ela, virando-se em um passo de corrida e dando duas cambalhotas, como uma garotinha do ginásio no recreio. Charles parou onde estava, e um surto
de emoção contendo desejo, amor e medo emergiu de tal forma que ele não sabia como controlá-lo, apesar de toda a sua idade.
– O quê? – perguntou ela, um pouco sem fôlego depois de sua ginástica. Ela tirou os cabelos revoltos do rosto e olhou para ele com seriedade. – Há algo errado?
Charles não podia dizer a ela que estava com medo por não saber o que faria se algo acontecesse com ela, assim como não conseguia admitir que sua reação repentina e inesperada
trouxera o irmão lobo à tona. Ela o deixava sem equilíbrio; seu controle – algo que ele conseguia manter sem qualquer esforço depois de anos de prática – agora era, na melhor
das hipóteses, irregular. Severamente ele tentou manter o irmão lobo sob seu domínio e reassumir o controle.
Anna estremeceu, e levou as mãos à cabeça.
– Sabe, se você não quer que eu saiba o que está sentindo, você pode se distrair. Machuca quando você me bloqueia.
Charles não percebera que estava bloqueando Anna. E não queria magoá-la. Ele então começou a se abrir, enquanto o irmão lobo tomava conta e revelava os dois de uma vez. Era
como um homem abrindo um guarda-chuva que estivera guardado por anos. Algumas partes rangiam e chiavam, espalhando poeira – outras estalavam devido ao alongamento repentino,
ameaçando quebrar.
Ele se sentiu nu – um pouco mais que isso. Como se tivesse arrancado a própria pele e estivesse ali em pé, em carne viva, esperando com os nervos expostos a próxima rajada
de vento gelado. Tudo o que ele era, tudo o que fora estava ali, exposto à luz do dia, onde jamais deveria ter sido visto. Nem por ele mesmo.
Houve uma pausa, um breve momento, e então ele sentiu.
Havia muitas lembranças, coisas que Charles vira e fizera. Dor e prazer e tristeza; tudo ali como se estivesse acontecendo agora – era demais, muita coisa; ele não conseguia
respirar...
E Anna estava lá, abraçando-o e liberando a mola que o mantinha aberto, permitindo que seus pensamentos e sentimentos voltassem para os lugares privados – mas já não ficariam
tão escondidos quanto estavam. Charles esperou que a dor o atingisse, mas ela se dissipou ao som da música que Anna cantarolava para ele.
Suas proteções, as muralhas que Charles mantinha entre ele e o mundo estavam erguidas novamente, mas agora Anna estava em seu interior. Era uma sensação estranha, mas não
havia dor; era como se alguém houvesse puxado um tapete sob seus pés. Havia uma intimidade infernal, assustadora e milagrosa. Ele estava se acostumando a se sentir assim quando
ela estava por perto.
O rosto de Anna estava pressionado contra seu peito, e seus braços estavam ao redor dele, enquanto ela cantarolava músicas de Brahms em um tom doce e suave.
Charles acariciou seus cabelos e beijou o topo de sua cabeça.
– Desculpe-me; e obrigado. O irmão lobo tende a ser um pouco literal, e ele não gosta de vê-la magoada – disse ele, e percebeu que sorria, embora ainda estivesse tonto. –
Brahms?
Ela deu uma risada incerta e se afastou para poder olhá-lo nos olhos.
– Desculpe, eu entrei em pânico; e música é algo que me ajuda a manter o foco... seja o que for que eu vá fazer. Música relaxante. E a canção de ninar me pareceu apropriada.
Você está bem?
– Ótimo – disse ele, já percebendo que estava mentindo; por isso, corrigiu-se. – Eu ficarei bem.
Realmente sua vida dera uma forte guinada. O fato de ter uma parceira estava tirando Charles e seu lobo do jogo – e ele não pretendia reclamar. Charles sorriu para si mesmo.
Além disso tudo, Anna cantava canções de ninar para ele – e ele gostava...
Charles finalmente conseguiu manter-se em pé, evitando um mergulho acidental na água gelada enquanto segurava o presente de seu pai para Dana.
– Vamos visitar a Fae? – perguntou ele educadamente, como se não tivesse tido nenhum tipo de epifania, ou quase-colapso metafísico... Charles não tinha palavras para descrever.
– Mas é claro! – disse Anna, segurando a mão livre de Charles, que percebeu que o toque de sua pele era ainda melhor que seu abraço, porque assim era a sua carne tocando a
dele.
O irmão lobo soltou um grunhido de contentamento e acalmou-se, apesar de sentir-se infeliz ao se aproximar da Fae. De qualquer Fae. Elas não eram da alcateia e jamais seriam.
Pessoalmente, Charles gostava tanto desta como de qualquer outra Fae, mas quando o assunto era Dana, ele e o irmão lobo concordavam em discordar.
i
O barco tinha uma porta, exatamente como qualquer casa de verdade. Anna aguardou enquanto Charles batia à porta. Ela usou os cílios para disfarçar a intensidade com que olhava
para ele. O autocontrole de Charles era tão bom que Anna não havia percebido que havia algo errado até olhar para ele depois de dar as cambalhotas e ver seus olhos dourados
e selvagens – e foi aí que ela o sentira, completamente. Era informação demais para processar, imagens demais para ver, e tudo o que ela pôde perceber foi a dor que ele sentia.
Nesse momento, Charles estava reconstruindo as muralhas entre eles. Anna nem mesmo sabia se ele estava agindo assim de propósito ou não.
Ele pareceu estar totalmente recomposto agora, mas mesmo assim Anna deixou sua mão nas costas de Charles, enfiada sob seu casaco, e dessa forma pôde sentir seus músculos,
agora relaxados sob o toque de seus dedos.
Entre os cheiros de maresia, vegetação e cidade, Anna podia perceber traços de aguarrás – mas ninguém veio recebê-los.
Assim, Charles abriu a porta e colocou a cabeça no interior da casa.
– Dana? Meu pai nos enviou para trazer-lhe um presente.
Parecia que o mundo inteiro parara com interesse; mas a Fae não disse nada.
– Dana?
Quando o som da voz dela chegou até eles, pareceu vir por sobre suas cabeças.
– Um presente?
Anna olhou para o alto e viu que havia uma janela aberta no segundo andar.
– Foi o que ele me disse – afirmou ele.
Anna podia ver que Charles gostava daquela Fae pelo calor em sua voz. Porém, ela não estava preparada para isso; afinal, ele gostava de tão poucas pessoas... O lobo de Anna,
trazido à tona pelo que ocorrera nas docas, agitou-se de forma possessiva, protetora.
– Traga aqui então, caro garoto. Estou aqui em cima, no estúdio, e não quero espalhar tinta pela casa toda.
Caro garoto?, pensou Anna, franzindo os olhos. O afeto parecia ser mútuo.
Ele a segurou pela mão distraidamente. O lobo de Anna acalmou-se com o toque dele, enquanto o seguia por uma porta lateral. Charles parecia conhecer o caminho, ou talvez estivesse
apenas seguindo o cheiro pungente de aguarrás.
Anna olhou a casa à sua volta enquanto o seguia. Havia várias pinturas de borboletas e mariposas cobrindo o hall. Os cômodos de ambos os lados eram pequenos e aconchegantes,
decorados em tons de rosa, roxo e azul – como se uma equipe de animadores da Disney tivesse passado por ali para construir uma autêntica casa de contos de fadas. Um dos cômodos
abrigava uma cascata artificial que borbulhava alucinadamente.
Uma cama de casal ocupava o espaço restante. O ambiente tinha cheiro de água salgada e o mesmo cheiro estranho que ela sentira quando falavam com o troll... talvez esse fosse
o cheiro de uma Fae.
O hall levava a uma cozinha acolhedora e a uma escada estreita iluminada por claraboias e repleta de flores em vários potes em tons de rosa, azul-claro e lavanda. No topo
ficava um amplo salão com um dos lados transparentes, todo de vidro, onde havia vista para a água. No centro do salão ou estufa, ou seja lá o que fosse, estava a Fae.
Sua pele era pálida, em forte contraste com seus cabelos espessos que chegavam até seus quadris em cachos cor de mogno.
Seu rosto estava tão crispado pela concentração que parecia... bonitinho. Dana tinha um corpo delgado e dedos longos, que estavam naquele momento atraentemente salpicados
de tinta enquanto brincavam com um pequeno pincel. Seus olhos eram de um azul profundo, como a cor de um lago sob o sol forte do verão, e sua boca era carnuda e vermelha...
E ela era alta, tão alta quanto Charles – e ele era um homem alto, com mais de um 1,80 m.
Fora o cabelo, ela não se parecia em nada com o que Anna havia imaginado. Havia rugas nas laterais dos seus olhos, e seu rosto estava em algum lugar entre a maturidade e a
velhice. Ela usava uma camiseta cinza que tinha menos tinta do que suas mãos, e shorts de ginástica que revelavam pernas musculosas, mais endurecidas pela idade do que pela
rigidez da juventude.
Na sua frente havia um cavalete sobre o qual se apoiava uma tela enorme, que Anna não podia ver porque estava voltada para o outro lado.
– Dana! – disse Charles em voz alta.
Anna não queria aquela mulher olhando para seu companheiro – o que não fazia sentido, já que a Fae não era bonita e sequer estava prestando atenção em Charles. Aquilo devia
ser alguma reação tardia ao que ocorrera há pouco nas docas.
Ou talvez fosse o “caro garoto”.
A mão de Anna havia encontrado novamente seu caminho sob a jaqueta de Charles, e ela agarrou a grossa camisa de seda que ele usava tentando não grunhir – ou puxá-lo para fora
dali.
Dana Shea tirou os olhos da tela e sorriu. Era um sorriso radiante que continha toda a alegria de uma mãe quando vê o filho pela primeira vez ou o triunfo de um garoto quando
acerta pela primeira vez uma bola de beisebol com um bastão. Era caloroso, íntimo e inocente; e era direcionado a Charles.
– Dana – a voz de Charles era áspera. – Pare com isso.
Um olhar magoado surgiu em seu rosto.
– Essa magia não funciona comigo – continuou ele, dirigindo-se à feiticeira. Ele estava começando a soar como se estivesse realmente zangado. – E não pense que a gentileza
de meu pai significa que você pode tomar liberdades comigo.
Anna fechou os olhos. Aquilo era um feitiço. Ela respirou pelo nariz, deixando que o forte cheiro de aguarrás e o próprio cheiro de Charles clareassem sua mente. Era um feitiço,
mas ela não acreditava que fosse direcionado a Charles, não precisamente. Dana conhecia Charles; ela saberia das suas defesas contra magia.
Anna sabia do que se tratava – um desafio. A Fae não era um lobisomem, mas era dominante em seu próprio território. E talvez ela considerasse Charles parte do seu território.
Como ele certamente fora algum dia.
Anna concluiu que tinha sido isso que seu lobo sentira. Essa mulher havia dormido com Charles. Anna supôs que no decorrer de mais de duzentos anos ele devia ter feito sexo
com várias mulheres. Mas Dana não fôra companheira de Charles.
Depois de respirar profundamente mais uma vez, Anna apoiou sua testa contra o braço de Charles e pensou em como o cheiro dele a fazia se sentir, lembrando-se também do som
de sua risada e do troar de sua voz em sua cama à noite. Ela não estava buscando paixão, embora houvesse um bocado disso, mas sim a profunda clareza e foco que Charles lhe
proporcionava – o que ela também lhe dava em retorno, algo que apenas Anna podia dar a ele: paz.
Os músculos dele relaxaram ao toque de sua testa, e ele se curvou para acariciar com os lábios os cabelos de Anna. Ela abriu os olhos e encarou o olhar da Fae.
– Ele é meu – disse Anna, com firmeza.
A Fae deu um sorriso lento.
– Eu estou vendo – e continuou, olhando para Charles. – Você compreende o impulso. Eu não poderia resistir à tentação de testá-la. Eu ouvi falar muito sobre a cadelinha que
capturou o velho cão em uma armadilha.
– Cuidado – avisou Charles. – Isso está perto demais de ser uma mentira.
A feiticeira levantou uma sobrancelha ao se sentir ofendida.
– Você não me quer – disse ele. – Não seja uma tremenda egoísta, como o cão de Esopo.
Dana empinou o nariz e voltou a pintar, quase virando as costas para os dois.
– Esopo. Eu estou experimentando Tristão e Isolda, Romeu e Julieta, e você me vem com essa velharia grega.
– Eu presumo que Dana esteja ocupada. Podemos voltar amanhã com o presente do Marrok – disse Charles, sem, no entanto, fazer qualquer menção de sair.
A Fae suspirou.
– Você sabe do que eu mais gosto em você e também mais odeio? Você nunca aprendeu a brincar direito. Eu sou a mulher velha abandonada cujo antigo flerte encontrou uma mulher
mais jovem e bonita. Você deveria estar embaraçado por seu novo amor saber sobre nós. E você – disse Dana, olhando para Anna. – Eu esperava mais de você, afinal, você é a
mulher dele. Deveria estar pelo menos zangada por ele não tê-la alertado sobre o fato de termos sido amantes.
Anna olhou-a com frieza, lembrando-se de que tinham vindo até ali para fazer uma visita agradável a alguém que os ajudaria a cumprir sua tarefa, e por isso não disse “não
vale a pena ficar zangada por sua causa”. Em vez disso, ela simplesmente disse:
– Ele é meu agora.
Dana riu.
– Você deve servir, afinal. Além do mais, eu receava que Charles encontrasse alguém que sempre fizesse as coisas do seu jeito, e isso seria terrível para ele. Basta ver o
que a união do pai dele com aquela fashionista chorona fez a Bran.
A Fae começou a estender uma de suas mãos, mas depois disse com um olhar pesaroso:
– Eu a cumprimentaria, porém iria sujá-la de tinta. Eu sou conhecida aqui como Dana Shea, e você deve ser a companheira de Charles, Anna Cornick, que antes era Anna Latham,
de Chicago.
Anna, lembrando-se do que Charles dissera a ela sobre nomes verdadeiros, sentiu-se um pouco desconfortável com a notável precisão com que aquela mulher a conhecia.
– Eu não sou a única – continuou Dana – a ficar curiosa sobre a mulher que conseguiu domar nosso velho lobo. Então esteja preparada para muita rudeza por parte das mulheres
– e aqui a voz dela tornou-se mais séria ao dar um aviso a Charles – e flertes por parte dos homens.
– Você já ouviu alguma coisa a respeito disso? – perguntou-lhe Charles.
Dana sacudiu a cabeça.
– Não, mas eu conheço os homens, e conheço os lobos. Nenhum deles é dominante o suficiente para enfrentá-lo cara a cara, mas verão Anna como uma fraqueza. Quando seu pai escolheu
ficar em casa, deu a eles uma oportunidade para desafiá-lo. Você não é um Alfa – e todos estão ressentidos por ter de ouvir o que você tem a dizer.
Ela pegou um trapo ensopado com o removedor e limpou as mãos.
– Agora vou parar de repreender você, e vocês podem vir até aqui e ver o que eu pintei.
TRÊS
Mulher corajosa, pensou Anna; nos hostiliza dessa maneira e depois mostra algo que é importante para ela. Nada no rosto de Dana mostrava que a opinião deles era importante
para ela – mas Anna podia ver isso na linguagem corporal da Fae.
Anna não sabia o que esperar, mas ficou sem fôlego ao ver o quadro pela primeira vez. Ele havia sido executado com arte, em requintados detalhes, cores e texturas. A pintura
mostrava uma jovem mulher robusta, de cabelo avermelhado e pele clara, com a cabeça encostada a uma parede pintada de branco, olhando fixamente para alguém ou algo fora do
quadro. Uma flor amarela, delicada e de fina textura, era segura por mãos que na verdade não se pareciam com mãos.
As cores estavam erradas, mais brilhantes – mas havia algo de familiar na curva da face da mulher e no formato de seu ombro.
– Parece ter sido pintado por um dos velhos mestres holandeses – disse Anna.
– Vermeer – concordou Charles. – Mas eu nunca tinha visto esse.
A Fae suspirou e foi até uma mesa. Ela começou a limpar seus pincéis com movimentos rápidos e quase frenéticos.
– Ninguém o viu, não desde que ele pereceu em um incêndio alguns séculos atrás. E ninguém o verá, porque que esse não é aquele quadro.
Dana então olhou para Anna.
– Vermeer. Sim. O que a mulher está olhando?
E foi então que Anna percebeu um ser alienígena sob toda aquela aura mágica... Era uma criatura estranha e... reconhecível. Ela lembrou-se do que o troll disse: “ela não me
machucou muito”. Essa mulher era um predador, um predador de primeira linha.
Desconfortável sob aquele olhar estranho, Anna balançou a cabeça.
– Eu não sei.
Dana fez um gesto ríspido com a mão.
– Você não está olhando para ele.
Era verdade. Anna olhou para a mulher no quadro, que olhou de volta para ela com seus claros olhos azuis, vários tons mais claros do que os de Dana. A única resposta que lhe
ocorreu foi estúpida, mas Anna falou mesmo assim.
– Alguém aqui nessa sala?
Os ombros de Dana caíram e ela se virou para Charles.
– Não. Você vê? Quando Vermeer terminou o original, trouxe um camponês das ruas para dentro de casa – e até mesmo o tolo ignorante conseguiu vê-lo. Os alunos de Vermeer, os
que estavam lá no dia em que o pintor o terminou, o chamaram daquilo que o camponês dissera ao Mestre: Ela Olha Para o Amor. Vermeer o chamou de Mulher com Flor Amarela ou
algo prosaico, como ele preferia.
Anna olhou para o quadro novamente, e quanto mais ela olhava para ele, mais parecia que algo estava errado. Não é que era ruim – não se podia negar a habilidade que havia
reproduzido a textura exuberante da pele, do cabelo e do tecido do vestido de mulher –, mas observar a pintura dava a mesma sensação de ouvir um desses programas de computador
que tocam partituras: habilidade técnica perfeita... mas sem alma.
– Não sei muito sobre quadros – disse Anna, desculpando-se.
Dana balançou a cabeça e deu um sorriso triste para Anna; o predador alienígena já havia desaparecido.
– Não, está tudo bem. Meu povo é amaldiçoado com o amor pelas coisas bonitas, sem a capacidade de criá-las – disse ela, enxugando as mãos. – Não todas as Faes, obviamente.
Mas muitos de nós que estão profundamente mergulhados na magia abdicam de capacidades criativas de todos os tipos. Ah, bem...
– Dragões são assim – disse Charles obscuramente.
Ele conhecera um dragão? Anna deu-lhe um olhar interessado. Charles sorriu um pouco, mas sua atenção estava na Fae, que havia parado de lavar os pincéis.
– Os dragões também não conseguem criar?
Ele encolheu os ombros.
– Isso é o que meu pai diz. Na maioria das vezes ele só diz coisas que sabe ser verdade.
Ela sorriu, e foi como se o sol aparecesse.
– Ser como os dragões não é algo tão ruim assim. Eu vi somente um deles – estava “explorando”, segundo ele me disse, não lembro bem. Não tivemos uma conversa, exatamente,
mas ele era... como o Vermeer. Uma obra de arte.
Charles inclinou a cabeça.
– Exatamente.
Dana inclinou a cabeça da mesma maneira e olhou para Charles; dessa vez, realmente olhou para ele.
– Você é o assassino do Marrok. Rude. Perigoso.
– É verdade – disse Charles.
Anna achou interessante o fato de que a Fae achava a expressão “rude” mais notável do que “perigoso”.
– Isso me atraiu em você – disse-lhe Dana. – Eu pensei que conhecia você muito bem. Mas nunca soube que você também podia ser gentil.
Ela colocou as mãos nos ombros de Charles, e com um sorriso para Anna, beijou-o na face. Anna podia sentir o pulso da magia que Dana enviou sobre Charles na forma de um manto
ou rede. A magia não deu certo e escorregou pelo seu alvo, mas mesmo Anna, que não havia sido o foco de Dana, podia sentir a fascinação e desejo que emanavam dali.
– Veja só – disse ela, olhando para Anna. – Uma freira não teria sido mais circunspecta... Mas, você não disse que trouxe algo para mim?
Ela não estava mentindo. Ou se estivesse, Anna não saberia dizer – e pelo que ela sabia, as Faes não podiam mentir. A magia poderia ter sido involuntária; talvez isso acontecesse
o tempo todo, e a Fae nem notava mais.
Charles não parecia ter sido afetado, mas era difícil de dizer. Seu rosto mostrava a máscara pública usual. Nem mesmo o vínculo que tinha com ele ajudou Anna, pois a conexão
entre eles não lhe disse nada. Mas certamente não era possível que uma Fae com uma magia como aquela o beijasse e ele não sentisse nada... Nada de afeto, admiração ou luxúria?
Voluntária ou não, a magia da Fae havia sido direcionada a ele, enquanto apenas uma sombra da mesma tocara em Anna – que nunca em sua vida se sentira atraída por outra mulher.
Anna tocou Charles de leve no braço. Ele não havia conseguido reconstruir suas barreiras contra ela, porque de repente Anna soube exatamente o que Charles sentia em relação
a Dana Shea – cautela. Não desejo ou medo, mas respeito cauteloso – de um predador para outro em território neutro, talvez. E havia também o irmão lobo...
Ela já ouvira lobisomens falando como se eles e os lobos com quem compartilhavam suas peles fossem a mesma coisa. Alguns lobisomens não tinham características lupinas, mesmo
em forma de lobo, tampouco o temperamento desagradável e aquela necessidade de matar coisas que corriam deles. Além disso, com exceção da luta que travou para manter sua sanidade
nos primeiros meses após a Transformação, Anna não havia pensado muito sobre isso.
Charles, às vezes, falava sobre seu lobo como se ele fosse um ser separado que compartilhava seu corpo: o irmão lobo.
Pela primeira vez, o que talvez surgiu a partir daquele momento estranhamente assustador lá fora, quando ela sentira tudo o que Charles era – o que foi muita coisa para ser
absorvida ou testemunhada –, Anna pôde sentir o lobo dentro do companheiro, assim como o irmão lobo também pôde senti-la. Anna percebeu duas almas distintas.
Companheira, o lobo lhe disse, mas não sem gentileza. Saia de nossa mente, para podermos lidar com a-que-não-é-da-família.
A-que-não-é-da-família não fora a única coisa que Anna ouvira junto com aquele nome. Poderosa, cruel, assassina. Ordeira. Supercivilizada. Inimigo respeitado. A voz do irmão
lobo era mais clara em sua cabeça, e era até mesmo mais clara que a voz do Marrok. Além disso, o Marrok usava palavras, mas o irmão lobo não era tolhido por algo tão humano
assim.
Anna tirou a mão do braço de Charles como se ele a tivesse queimado, e olhou para seus dedos. O ombro de Charles tocou-a em um conforto silencioso, um gesto casual que a mulher
Fae provavelmente não havia notado. Ou era educada demais para comentar.
Mais tarde, murmurou baixinho o irmão lobo; Anna ficou novamente sozinha em sua cabeça. Sozinha com os restos de seu ciúme e um pouco de mágoa, causados pela rejeição do irmão
lobo. Saber que ela não deveria sentir nenhuma das duas coisas não ajudava em nada.
Charles pegou o pacote que trouxera e o entregou a Dana.
As sobrancelhas de Dana levantaram-se.
– Papel de embrulho e barbante?
Ele encolheu os ombros.
– Meu pai entregou-me assim.
A Fae balançou a cabeça e abriu uma gaveta de uma escrivaninha feita de madeira de bordo bird’s-eye, tirando de lá uma tesoura delicada feita de prata esterlina. Depois que
ela colocou o pacote no topo da escrivaninha, cortou a corda e abriu-o.
E foi então que a coisa alienígena que Anna havia vislumbrado anteriormente voltou com toda a força. Dana não se moveu, nem mesmo piscou, mas o presságio de algo preencheu
o espaço onde eles estavam... Cada músculo, cada pelo no corpo de Anna avisou-lhe para fugir.
Ela olhou para Charles. A atenção dele estava direcionada à Fae, mas ele não estava com medo. Será que ele não sentia nada? Ou estava confiante de que a ameaça de Dana era
algo com o qual ele podia lidar? Em todo o caso, a calma de Charles acabou ajudando Anna a reconquistar sua própria. Ela esperou para ver o que havia causado uma reação tão
forte.
Mesmo antes de Dana abrir o pacote, era óbvio que ele continha um quadro. Não era grande. Vinte e cinco a trinta centímetros, emoldurado em carvalho alguns tons mais escuro
do que a madeira de bordo da mesa. Era uma cena marítima.
– Meu pai pediu para lhe dizer que era isso o que ele lembrava – disse Charles. – Que poderia ter errado um ou dois detalhes, mas achava que não.
– Eu não sabia que o Marrok pintava.
A voz de Dana estava... mais grave, de alguma forma. Profunda e áspera de velhice. Suas mãos tremiam quando ela tocou a pintura. O poder da Fae que Anna havia sentido tão
fortemente poucos instantes atrás havia desaparecido como se nunca tivesse existido.
– Ele não pinta – disse Charles, balançando a cabeça. – Mas temos um artista em nossa alcateia, e ele tem um dom para pintar as palavras de outras pessoas – e meu pai é muito
bom com palavras.
– Eu não sabia que seu pai já havia estado lá.
A Fae parecia ... perdida.
Charles deu de ombros.
– Você sabe como meu pai é. Ninguém nota sua presença, a menos que ele queira. E ele é um bardo. Ele vai a toda parte.
Dana levantou a cabeça. Seus olhos estavam inchados e seu nariz vermelho, embora nenhuma lágrima tivesse corrido por sua face. Ela parecia muito humana.
– Como ele soube?
Charles levantou ambas as mãos.
– Quem pode dizer como ele sabe dessas coisas? Ele achou que isso iria agradá-la.
Dana olhou para ele novamente, e Anna não sabia dizer se ela estava satisfeita ou não. Impressionada ela estava, com certeza. Chocada.
– Meu lar. Ele se foi há muito tempo, destruído por magia e pela geologia; a fonte secou há muitos séculos. O local onde ele ficava é uma rua de uma cidade que tem o nome
de uma centena de outras ruas em centenas de outras cidades. Eu pensei que toda a lembrança dele estivesse perdida.
Ela tocou o quadro da mesma forma que Anna tocava em Charles: de leve, com medo de sentir dor, mas incapaz de resistir ao seu encanto.
Dana o inclinou para que eles pudessem vê-lo melhor. Anna viu a margem de um lago; um lago profundo o suficiente para tomar a cor do céu e escurecer o azul até ficar quase
negro. O trabalho de arte era mais simples do que o quadro no qual Dana estivera trabalhando, e a tela era muito menor. Mas em traços simples, o artista havia capturado uma
qualidade espiritual que transformara o pequeno quadro em uma janela para um lugar estranho. Um lugar que não parecia ser acolhedor para Anna – mas que de alguma forma combinava
com o olhar alienígena que ela havia vislumbrado nos olhos de Dana.
– Diga a seu pai – disse Dana, voltando sua atenção para o quadro – que verei se posso dar um presente de igual valor a ele. E que se eu não conseguir, peço desculpas.
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– Bem... – disse Anna, quando eles já estavam voltando. – Isso foi... perturbador.
– Você não gostou dela?
Anna olhou para ele, e então voltou sua atenção novamente para a rua. Quando o feitiço da Fae a tocara, Anna queria gostar dela, ficar a seus pés e esperar por migalhas de
sua bondade. Durante o resto do tempo, o que ela queria era matar a Fae por flertar com Charles – por ter dormido com ele.
Ela queria se arrastar para dentro de um buraco escuro para que nunca mais perturbasse o irmão lobo de Charles com sua presença novamente – o que ela sabia ser uma bobagem.
Ele não a havia rejeitado. Não de verdade. Mas Anna havia sentido uma significativa indiferença em sua repreensão. Em todo o caso, a atenção dele estava voltada para Dana...
Dana era uma Fae, um Lorde Cinzento, confiante e poderosa... Não uma mulher de 23 anos com metade de uma educação universitária, que não sabia, mesmo depois de três anos sendo
um lobisomem, um quarto do que deveria saber sobre isso. Ela não era uma companheira adequada para Charles.
Anna não podia falar com Charles sobre nenhuma dessas coisas sem parecer uma estúpida – uma idiota complicada, extremamente carente e estúpida. Felizmente, ela podia responder
a pergunta dele sem trair o que realmente a incomodara na visita à Fae.
– Em Chicago, no jardim zoológico de Brookfield, há uma casa de répteis. Eu fui até lá em um passeio da escola uma vez, quando era criança. Lá tem uma mamba verde. É a cobra
mais bonita que já vi; não é chamativa, apenas tem uma cor indescritivelmente verde – e ao mesmo tempo é tão venenosa que se alguém for picado por ela geralmente não há tempo
de administrar um antídoto.
– Você acha que ela é bonita? – disse Charles, pensando a respeito. – Ela é interessante de se olhar, eu diria, mas não bonita. Poucos Faes são bonitos quando usam seus encantamentos.
Beleza não se mistura muito bem com isso. E os Faes, como nós, passaram muito tempo aprendendo a se esconder das pessoas.
Anna olhou para a frente.
– Ela é bonita. Peculiar. Em uma sala cheia de estrelas de cinema, todos olhariam primeiro para ela.
Charles a estava observando intensamente; Anna podia senti-lo, mesmo que seus olhos estivessem ocupados com o trânsito.
– Isso é dominância – disse ele. – Não beleza.
– Não?
Ela ultrapassou dois garotos em uma Ferrari, e eles se sentiram ofendidos por causa disso, roncando os motores atrás dela até que estivessem tão perto que Anna pôde notar
que um deles deveria ter se barbeado melhor.
– A beleza nem sempre é fácil. Pense em Paganini, por exemplo.
– Isso é música.
– Você sabe o que quero dizer.
Charles não continuou a conversa de uma forma fácil e agradável, e Anna gostou da forma como ele levava em consideração o que ela estava falando, sem simplesmente encorajá-la
a continuar falando.
– Eu já a vi sem aquela aura – disse Charles finalmente. – Talvez isso tenha me impedido de ver detalhes mais sutis. Quando nos tornamos amantes, eu o fiz porque a achei interessante.
Charles observava a companheira para ver sua reação.
Naquela manhã, Anna teria dito a ele exatamente como se sentia ao ouvi-lo descrever uma ex-amante. Mas algo a impedia desde que teve aquele pequeno vislumbre dele, nu e cru,
embora ela tivesse se esforçado para não olhar. Ninguém deveria ficar completamente nu diante de outra pessoa. Mas ela havia notado algo... inesperado. Anna sabia quem ela
era e quem ele era. Não que ela não se valorizasse; Anna conhecia o seu valor. Mas Charles... ele era uma força da natureza.
E temia que Anna não pudesse ser capaz de ver quem ele era e amá-lo – porque Charles se olhava no espelho e via somente o assassino. Era por isso que ele mantinha o vínculo
entre eles tão unido. Charles a amava demais, e não esperava que Anna o amasse em retorno. Ele estava apenas esperando que ela percebesse isso.
Ela se sentia aterrorizada – como se tivesse recebido um delicado e valioso enfeite de vidro, que com qualquer movimento errado poderia quebrar. Anna se sentia como se esse
enfeite devesse ter sido entregue a mãos mais fortes e capazes, de forma a não ser prejudicado – não que ela não tivesse mostrado a Dana quem era a companheira de Charles
com rapidez suficiente.
Vendo que Anna não dizia nada, Charles continuou.
– Ela me tomou como amante porque, como sabia que sua capacidade de fazer alguém desejá-la não funcionava comigo, estava curiosa para saber como seria o sexo sem jogar um
encanto em seu parceiro.
Anna bufou.
– Tenho certeza de que a embalagem não a incomodou muito.
Charles deu um suspiro.
– Contei isso da forma errada, não foi? Eu lhe devo um pedido de desculpas.
Anna olhou para ele.
– Eu não queria trazer à tona essa velha história – mas também não impedi a tempo suficiente. E também... palavras nem sempre são meu melhor meio de comunicação. Quero deixar
algo bem claro: não houve nada entre nós a não ser apreciação mútua – e isso aconteceu há um século ou mais.
– Está tudo bem – disse ela. – Eu entendo.
Humor, pensou ela, é o melhor caminho. Humor irônico.
– Na sua longa existência, você já deve ter tido várias amantes, e posso recriminá-lo por todas...
Uma mão quente fechou-se sobre o seu joelho, e uma voz quente e sem palavras (era o irmão lobo) envolveu-a quando Charles disse:
– Eu gostei hoje quando você deixou claro para ela quem era minha companheira – disse Charles, hesitando um momento. – Acho que o fato de você ser capaz de falar sobre ela
sem ficar com ciúmes feriu meus sentimentos.
Anna tirou a mão direita do volante e correu a mão pelo braço dele:
– Você precisa checar o seu nariz, Kemo Sabe.
Se ele podia ser honesto, ela também podia.
– Não gosto de ver você falando sobre Dana. Eu queria arrancar o rosto dela quando ela beijou você. E quando o irmão lobo me empurrou para longe eu...
– Ele não quis dizer isso dessa forma.
A mão livre de Charles bateu na moldura da porta.
– Ele não é... não é capaz de subterfúgios, nem mesmo para facilitar as coisas. Ele é muito direto.
Os garotos da Ferrari ainda estavam grudados atrás deles, e ela freou uma vez para alertá-los.
Direto era a palavra certa, pensou Anna.
– Bem, acho que isso explica tudo então.
Mas isso não a incomodava mais. Não fora a explicação de Charles que a acalmara, mas a maneira como ela sentira a concordância direta do irmão lobo com o prazer de Charles
pela forma como Anna enfrentara Dana no próprio barco da Fae e deixara claro que ela era a companheira de Charles. Em todo caso, Anna não conseguia absorver tudo. Ela não
poderia arrancar muito de Charles agora – mas o irmão lobo, ao que parecia, estava disposto a ser mais comunicativo.
– Vocês dois têm muito mais em comum do que simplesmente o mesmo corpo – disse ela.
Charles começou a rir e deslizou no assento.
– Acho que sim, para o bem ou para o mal, não é? Ele não gosta de Faes, nem mesmo de Dana. E ele... ainda estamos nos ajustando a ter você como companheira. Nós protegemos
nossa alcateia, nosso trabalho sempre foi esse. Protegemos especialmente os submissos, que são o coração da alcateia.
– E ele... você se sente como se eu fosse supersubmissa – disse ela. Anna era um Ômega, e não uma submissa. Mas Ômegas tinham mais ou menos a mesma finalidade na alcateia.
Os lobos dominantes podiam realmente relaxar perto dela, porque sabiam que Anna nunca iria desafiá-los – não porque ela não podia, mas porque não desejava fazê-lo. Ômegas
não se preocupavam com sua posição na alcateia; apenas se preocupavam com ela.
– Você é nossa – disse Charles, de forma inequívoca, sem um traço de humor. –Minha e do irmão lobo. Você é nossa para ser mantida segura. Dana é muitas coisas, mas segura
ela não é. Você estava nos distraindo, e se tivéssemos falado com você por muito tempo, ela teria percebido e ficado ofendida. Não é difícil ofender a maioria das Faes, e
Dana não é uma exceção.
– A reação dela ao quadro que Bran lhe enviou foi estranha – disse Anna.
– Foi uma reação poderosa – concordou Charles. – Mas não teria adiantado lhe dar um presente menos importante do que os outros presentes que serão dados a ela durante essa
conferência. Cair nas boas graças de uma Fae é uma dança interessante, e deixo a cargo de meu pai saber exatamente onde pisar.
– O Vermeer... Por que ela o copiou em vez de pintar algo de sua própria criação?
– Os quadros dela são... piores. Você se lembra das pinturas de palhaços tristes? Ou você é muito jovem? Eles estavam em toda parte por algum tempo. Cores brilhantes e sem
expressão. Vazios.
Anna estremeceu.
– Meu dentista tinha quadros desse tipo no consultório todo.
– É isso – disse Charles.
– Talvez ela devesse pintar paisagens – sugeriu Anna. – O plano de fundo do Vermeer estava muito bom.
– Sugeri isso uma vez, mas ela não ficou interessada. Dana quer pintar coisas de que realmente gosta, como amantes e sonhadores.
– Você acha que a alcateia tem um bom seguro de automóvel? – perguntou Anna, olhando no espelho retrovisor novamente.
Charles olhou para trás e apertou os olhos.
A Ferrari desacelerou de repente.
– Caramba – disse Anna. – É muito útil ter você por perto.
– Obrigado.
Enquanto dirigia em meio ao tráfego, Anna pensou em Dana com um pouco mais de boa vontade do que anteriormente.
Qual seria a sensação de amar a música como ela amava e não ser capaz de cantar ou tocar? Ou pior, ser proficiente, mas nunca cruzar a linha entre um conjunto de notas, tom
e ritmo e a verdadeira música? Saber que faltava apenas um toque mínimo para chegar lá, mas não ter ideia de como transformar a correção mecânica em poder e beleza verdadeiros.
Anna conhecera algumas pessoas assim na faculdade. Algumas delas tinham feito a transição, outras não.
Ela havia cursado música na Universidade Northwestern, antes que sua Transformação a forçasse a desistir. Seu instrumento principal era o violoncelo.
O primeiro violinista no quarteto onde ela havia tocado era um mestre preciso da técnica, tão bom que chegava a enganar os professores, levando-os a pensar que estava tocando
música. Um prodígio e tanto.
Anna achava que ele era indiferente a isso, até a noite em que, depois de uma apresentação, todos tinham ido a um bar local para comemorar o concerto tomando uma cerveja.
Os outros estavam dançando, mas Anna ficou na mesa com ele, preocupada com a determinação dele em beber o bar todo, pois habitualmente o violinista declarava-se o motorista
da vez e tomava apenas chá gelado ou café.
– Anna – dissera ele, olhando para o líquido âmbar em seu copo, como se esse contivesse a sabedoria do mundo. – Eu não a engano, não é? Os outros – continuara ele, acenando
com a mão vagamente para indicar os camaradas ausentes – pensam que eu sou tudo isso, mas você sabe a verdade, não é...
– Sei o quê? – perguntou ela.
Ele se inclinou para a frente, cheirando a cerveja e cigarros.
– Você sabe que eu sou uma fraude. Eu posso sentir a fera dentro de mim, gritando para sair. E se eu a deixar sair, ela me levará à grandeza, passando até por cima de mim.
– Então por que não libertá-la?
Anna ainda não era um lobisomem naquela época. O mundo era um lugar suave, os monstros ficavam trancados de forma segura em seus armários, e ela era corajosa em sua ignorância.
Os olhos dele eram velhos e cansados, e a voz estava um pouco engrolada:
– Porque aí todo mundo iria ver...
– Ver o quê?
– Eu.
Para ser um grande artista, é necessário expor sua alma, e algumas coisas devem ser deixadas em segurança no escuro. Por algum tempo, depois que havia sido transformada à
força, Anna havia abandonado a música, e não apenas porque fora obrigada a vender seu violoncelo.
– Anna?
Ouvindo isso, Anna mudou as mãos de posição no volante.
– Só estava pensando em Dana e na razão de ela não conseguir pintar como gostaria – disse Anna, hesitando um pouco antes de continuar. – Eu me pergunto se é porque ela não
tem alma, como algumas religiões dizem. Ou se é porque o que está dentro dela deixa-a assustada demais para que ela o exponha.
i
Charles havia escolhido o hotel porque queria que Anna ficasse confortável. Havia lugares mais chiques no centro de Seattle – joias brilhantes de aço e vidro.
E ele tinha dinheiro para isso.
Em outras cidades, a empresa do Marrok até mesmo possuía alguns, e eles tinham investimentos robustos em alguns outros. Mas Charles se lembrava de como ela havia ficado intimidada
quando vira sua casa algumas semanas atrás, que não era extravagante ou particularmente grande; por isso, achou que ela ficaria mais confortável nesse hotel que, além disso,
era também o seu favorito.
Às vezes, Charles ficava constrangido. Essa necessidade de mostrar a Anna as coisas das quais gostava, na esperança de que ela fosse amá-las também, incomodava um pouco. Ele
estava velho demais para satisfazer os próprios caprichos dessa maneira, seja mostrando-se no avião ou levando-a a esse hotel. Algum dia, Charles teria que contar a Anna sobre
a carteira de investimentos que havia feito para ela. Mas ele era um velho caçador e sabia melhor do que ninguém como não assustar a presa. Ele iria esperar até que ela estivesse
mais confortável – com ele, com a alcateia e tudo mais.
Anna parou na frente da calçada e ele pôde sentir seu estresse quando o manobrista veio tirar as chaves dela. Anna abraçou a si mesma enquanto Charles dava seu nome e entregava
ao jovem uma gorjeta por não parecer surpreso pelo Toyota maltratado.
O rapaz pegou a bagagem e ainda estava observando Anna, que estava olhando para os pés. Ela recusou a ajuda, pois se sentiria melhor sem ninguém para atendê-los.
Charles achou que talvez devesse ter escolhido algum lugar mais impessoal. Algum lugar onde ela fosse capaz de estacionar o próprio carro, onde ninguém ofereceria ajuda...
Talvez ela ainda estivesse chateada pela tentativa de Dana de deixá-la com ciúmes. Ou talvez ela estivesse preocupada com o irmão lobo.
O irmão lobo de Charles nunca havia falado com ninguém daquele jeito, a não ser com ele. Nem mesmo com seu pai. Talvez isso a tivesse perturbado... Ou talvez fosse a forma
pela qual o irmão lobo se abrira com ela fora da casa da Fae.
Charles estava se perguntando se Anna havia visto algo que a enojara, ou a assustara. Talvez a distância que ela havia colocado entre eles quando saíram da casa de Dana não
tivesse absolutamente nada a ver com ciúmes.
Charles não estava acostumado com a montanha-russa emocional na qual estava desde que a conhecera. Era uma boa coisa o fato de ela ser um Ômega e poder acalmar todos ao seu
redor – e não um dominante. O irmão lobo já estava nervoso, e somente quando ela o tocava ou quando estava feliz é que Charles tinha controle completo.
Eles precisavam conversar, mas não em público.
O hotel era antigo: tijolo em vez de aço, e onze andares, não trinta. Mas era luxuoso ao estilo do velho mundo, decorado com um capricho que agradava Charles: o objetivo da
decoração era mesmo esse, e não impressionar. Era um estilo art déco com influências mediterrâneas. Quando entrou no saguão, Anna – que ainda estava quieta – parou perto da
porta. Ela olhou para cima, para a árvore de Natal decorada com enormes laços de tecido marrom, roxo escuro e prata em vez das lâmpadas. A árvore era arrematada ainda com
um laço verde e dourado ainda maior no topo.
Anna sorriu para Charles e tomou-lhe o braço. Ele tinha escolhido bem; ele podia perceber que ela tinha adorado. Seu irmão lobo se deliciou com a satisfação de agradar sua
companheira.
O quarto deles ficava no sétimo andar, algo que o irmão lobo desaprovava. Ele preferia ter a opção de usar as janelas como uma segunda saída conveniente e não ter de utilizar
uma rota de fuga arriscada caso necessário. Mas Charles preferia um quarto mais inacessível à entrada de visitantes inesperados, e o lobo havia cedido nesse ponto.
O elevador se abriu, e na frente deles havia um espelho para fazer a sala parecer maior e mais clara – e um peixinho dourado em um aquário transparente sobre uma pequena mesa.
– Um peixinho dourado? – perguntou ela.
– Criaturas resistentes, os peixinhos dourados – disse ele.
Ela riu.
– Não vou nem discutir. Eu conheci alguém que resgatou um peixinho dourado de uma república de estudantes. Ele estava morando em uma tigela de cerveja. Mas por que um peixinho
dourado em um hotel?
Charles encolheu os ombros.
– Nunca perguntei. Mas se você vier sozinho, eles colocam um peixinho no seu quarto para lhe fazer companhia.
Porém, ele não disse a Anna que esta seria a primeira vez em que não teria um peixinho dourado em seu quarto.
Charles estava sozinho há muito tempo, apesar da alcateia e apesar das amantes que tivera (e que o tiveram). Ele precisava ser assim porque, como dissera Dana, era o braço
exterminador de seu pai. Charles precisava estar só: conhecidos eram mais fáceis de matar do que amigos.
Só que agora ele não estava sozinho. Charles adorava isso, e se deliciava com essa nova situação, embora às vezes ficasse meio convencido de que a ligação entre eles significava
a sua morte. Por Anna, ele destruiria o mundo.
Mas provavelmente não chegaria a esse ponto.
Charles abriu a porta do quarto e esperou enquanto ela explorava seu novo território.
Anna vagou pelo quarto, tocando a mesa e o sofá na sala de estar. Depois, puxou levemente um cordão com borlas pendurado nas cortinas de tapeçaria que separavam o quarto do
resto.
– Parece um cenário do filme O Sheik – disse Anna. – Completo, com papel de parede listrado imitando os lados da barraca e o divisor de tecido da tenda. Legal.
Ela se sentou na cama e gemeu.
– Eu poderia me acostumar com isso.
Anna olhou para Charles com seus olhos quentes e castanhos e disse:
– Eu acho que temos que conversar.
O fato de concordar com ela não evitou que Charles sentisse um frio no estômago. Conversar não era sua especialidade.
Anna deslizou para trás e sentou-se com as pernas cruzadas sobre o outro lado da cama, batendo no colchão ao lado dela.
– Eu não vou morder – disse ela.
– Ah, é?
Anna sorriu para ele, e de repente tudo estava certo com o seu mundo; sim, Charles estava bem arrumado...
– Se eu morder, pelo menos vou me assegurar de que você goste.
Charles deixou sua bagagem na frente do banheiro, bloqueando a porta para o corredor, e o irmão lobo nem sequer se opôs à obstrução entre eles e a rota de fuga. O calor que
emanava de Anna o atraía como uma lareira no inverno, e não havia escapatória para ele ou seu irmão de carne. E nenhum deles se importava.
Ele tirou sua jaqueta de couro e deixou que ela caísse no chão. Depois, sentou-se na cama e tirou as botas. Charles ouviu os tênis de Anna caírem no chão quando se estendeu
na cama ao lado dela, sem contudo olhar para seu rosto. Conversar. Ela dissera “conversar”. Ele faria isso melhor se olhasse para a parede.
Charles esperou que ela falasse. Se ele começasse a fazer as perguntas que queria fazer, Anna não poderia perguntar-lhe o que ela precisava saber. Era algo que Charles tinha
aprendido há muito tempo observando os lobos menos dominantes.
Depois de um tempo, Anna desabou na cama ao lado dele. Charles fechou os olhos e deixou que o cheiro dela o envolvesse.
– Essa coisa de vínculo é tão estranha para você como é para mim? – disse ela, em voz baixa. – Às vezes isso é esmagador, e eu gostaria de desligá-lo, muito embora me machuque
quando faço isso. E quando ele é mais fraco, eu sinto falta da intimidade de saber o que você está sentindo.
– Sim – concordou Charles. – Eu não estou acostumado a compartilhar minha vida com ninguém, exceto com o irmão lobo.
Mas Anna era sua companheira, pensou Charles. Ela havia passado por maus bocados, e precisava de tudo o que ele pudesse dar a ela. Assim, mesmo sendo difícil, Charles usou
as palavras para dizer a Anna tudo o que era capaz de dizer.
– Eu não me importo com o que o irmão lobo pensa de mim. Você... Eu me importo. É... difícil.
Anna se moveu até que sua respiração tocasse a parte de trás do pescoço de Charles. Muito calmamente, ela disse:
– Você já desejou que não tivesse acontecido?
Nesse momento, Charles se sentou e se virou para ela, examinando seu rosto para ver o que ela queria dizer com a pergunta. Seu movimento súbito a fez estremecer, e se a cama
não fosse tão grande, Anna teria caído em seu esforço para ficar longe dele.
Charles fechou os olhos e se controlou. Não havia inimigos aqui para matar.
– Nunca – disse ele, com absoluta sinceridade, esperando que ela percebesse isso em sua voz. – Nunca vou me arrepender. Se você pudesse ver a minha vida antes de você entrar
nela, você não faria essa pergunta.
Charles sentiu o calor que emanava dela, assim como sentiu o cheiro de sua proximidade antes que Anna o tocasse.
– Eu lhe trago um monte de problemas. Provavelmente vou trazer mais antes de terminarmos.
Charles abriu os olhos e deixou-se afogar no cheiro e na presença de Anna; ele beijou uma sarda que enfeitava o seu rosto, e depois outra, que ficava ao lado do nariz – e
ainda mais uma, logo acima do lábio.
– Faz muito tempo que meu irmão Samuel diz que eu preciso de algo que me chacoalhe.
Anna o beijou – uma ocorrência rara o suficiente para que ele ficasse perfeitamente imóvel e saboreasse o beijo como o presente de confiança que era. Ela havia sido torturada
por monstros, e eles às vezes ainda tinham algum domínio sobre ela.
De repente, Anna afastou-se.
– Se continuarmos assim, não haverá qualquer conversa.
Ótimo, pensou Charles. Mas ele sabia que havia coisas sobre as quais ela ainda precisava conversar, e por isso se deitou e fez um travesseiro com as mãos, embora houvesse
pelo menos três camadas de travesseiros na cama.
– Eu ainda me sinto como se estivéssemos fazendo algo errado – disse ela. – Que esse vínculo entre nós deveria ser muito mais do que estamos permitindo que seja.
– Não há nada de errado entre nós – disse-lhe Charles.
Anna bufou mostrando frustração, e Charles supôs que essa não era a resposta que ela estava buscando; por isso, tentou novamente.
– Nós temos tempo, amor. Enquanto tivermos o cuidado de colocar nossos pés no caminho que queremos seguir, teremos muito tempo para fazer isso direito.
Charles podia sentir Anna concentrar sua atenção nele.
– Tudo bem – disse ela finalmente. – Eu posso viver com isso. Isso quer dizer que eu posso falar quando achar que você está andando na direção errada?
Charles sorriu.
– E você consegue evitar isso?
– Não há nada de errado entre nós... – Anna repetiu suas palavras com mais satisfação. – Isso significa que sim, não é?
Charles olhou para ela novamente.
– Isso significa que sim. Certo.
– E você está tão confuso sobre isso como eu estou?
Parecia importante para ela que eles estivessem em pé de igualdade. Mas Charles não podia mentir para ela.
– Não. Confuso de forma diferente, eu acho. E, possivelmente, mais confuso. Você não teve quase duzentos anos para decidir quem você é e quem você não é, quando todas aquelas
mudanças –
Charles parou abruptamente, dando de ombros.
Ele não estava acostumado com todos aqueles sentimentos. Charles havia banido todos os sentimentos e desejos de sua metade humana para algum lugar onde não interferissem com
as coisas que ele tinha que fazer. Agora eles estavam todos de volta, e ele não sabia como lidar com eles – além disso, não era suficientemente estúpido para pensar que eles
permitiriam ser banidos de novo.
– Diversamente confuso – disse ela. – Tudo bem. Tudo bem.
Anna estendeu a mão e tocou-lhe o braço, acariciando-o com um dedo. – Quando toquei em você hoje... era como se você tivesse duas almas em um só corpo. É assim que eu sou?
– Anna – disse-lhe Charles. – Você é o que você é. O irmão lobo e eu... Você sabe que eu nasci lobisomem e não fui transformado. Isso deixou algumas diferenças, eu acho. Para
ser funcional, a maioria dos lobisomens tem que tornar seu lobo obediente, quase completamente subserviente. Depois de algum tempo, o espírito do lobo é reduzido a uma parte
do espírito do homem. Uma parte que não pensa, que é violenta, cheia de instintos e desejos, mas sem pensamentos verdadeiros.
Charles olhou para a mão pálida de Anna sobre a camisa de seda verde que ele estava usando.
– Eu não sou o meu avô, para ver dentro do coração dos homens. Eu não sei se o que eu disse é verdade. É só o que eu vi e senti. O irmão lobo e eu chegamos a um acordo diferente.
Em situações onde eu sou mais capaz, ele me permite controle total – e eu lhe faço o mesmo favor.
– Duas almas – disse ela.
– Não – disse Charles, balançando a cabeça. – Uma alma, um homem, dois espíritos. Nós somos um, irmão lobo e eu. Inseparáveis. Se ele morresse, eu também morreria.
– Eu prejudiquei meu lobo?
Charles rolou na cama para ficar mais próximo dela, atraído por sua preocupação.
– Isso não é algo a ser lamentado. É simplesmente a sobrevivência. Mas se isso ajuda, eu acho que você e seu lobo chegaram a um acordo diferente – disse ele, sorrindo.
– Eu acho que é por isso que o irmão lobo escolheu você em primeiro lugar, antes que nós tivéssemos uma oportunidade de dizer “olá” um para o outro. Temos um equilíbrio: você
comigo, seu lobo com o meu. Ela é tímida, a menos que você seja ameaçada, mas seu lobo está sempre lá.
Anna fechou a mão sobre o braço dele.
– Tudo bem. Posso lidar com isso melhor do que com as alternativas.
– Você precisa de mais conversa? – perguntou ele. O toque de Anna fazia sua voz ficar rouca.
QUATRO
Antes que Anna pudesse responder Charles, o celular dele tocou. Não era o toque de Bran – e se eles estivessem em casa, ele teria deixado a secretária eletrônica atender.
Mas eles não estavam em casa. Charles estava ali para fazer um trabalho, e isso significava atender chamadas em horários inconvenientes. Então, ele agarrou seu casaco do chão
e tirou o celular do bolso.
– Charles – disse ele.
A resposta foi uma avalanche de palavras em francês do sul, tão rápido que ele só entendeu uma palavra a cada quatro. Mas isso foi o suficiente.
– Estou indo – disse ele, e desligou enquanto o outro lobo ainda estava falando. – Você entendeu isso? – perguntou ele, colocando as botas.
Anna colocou os sapatos.
– Eu não falo francês.
– Os lobos espanhóis estavam comendo em um restaurante e Jean Chastel decidiu levar seus lobos lá. As coisas estão ficando feias e, para piorar, o Alfa britânico está lá também.
– Quem telefonou?
– Michel, um dos outros Alfas franceses – que será punido se Jean ficar sabendo. Imagino que nosso informante tenha ligado do banheiro dos homens. Felizmente, ele vai tomar
as devidas precauções para se proteger – disse Charles, enquanto vestia o casaco. – Seattle é uma cidade grande. É difícil imaginar que três facções de lobisomens acabaram
no mesmo restaurante, ao mesmo tempo. Se eu descobrir que alguém planejou isso, cabeças vão rolar.
– Se o restaurante for o Bubba’s Basement Barbeque, pode ter sido um acidente – disse Anna, colocando seu próprio casaco. – Pelo menos cinco membros da alcateia – incluindo
seu pai e Asil – me disseram para obrigar você a me levar até lá. O restaurante é aparentemente famoso por suas intermináveis e infinitamente boas costelas. Asil me disse
que nunca tinha estado lá, mas que sua reputação era boa o suficiente para ter se espalhado por todas as alcateias da Europa.
Charles olhou para ela, pensativo.
– As pessoas costumam falar com você... – disse ele. – Isso pode ser útil.
i
Aparentemente, eles iriam correndo até o restaurante. Anna estava contente por estar usando seus tênis na colina molhada e íngreme à medida que desciam.
Charles, com sua agilidade felina, escorregou e deslizou na chuva torrencial. Suas botas de cowboy tinham a sola escorregadia, embora Anna não achasse que isso realmente o
retardava muito. Ambos correram em silêncio, mas ela podia sentir a atenção que eles estavam atraindo. Na cidade, as pessoas prestam atenção quando você corre, pois isso significa
que você é ou o predador, ou a presa.
Anna se preocupou com isso por um momento, mas avaliação de risco era algo que ela deixava a cargo de Charles. Ela não conhecia os lobos envolvidos – ou a que distância eles
exatamente estavam do restaurante. Charles facilmente manteve a velocidade dos dois dentro dos limites humanos, e por isso Anna concluiu que ele de alguma forma estava considerando
a atenção que estavam atraindo.
Ela gostava de correr com ele. Sem Charles, algo dentro dela sempre se preocupava com a possibilidade de ela virar a presa. Anna não conseguia imaginar Charles sendo a presa
de ninguém.
Depois de alguns quarteirões, ele desacelerou para uma caminhada rápida, e eles voltaram para uma rua paralela ao Sound. Como no Lago Michigan em Chicago, sua cidade natal,
Anna sentiu que a água do canal tinha uma presença, um peso que ela podia sentir, mesmo que não tivesse sido capaz de vê-la enquanto espreitava entre edifícios e ruas.
Um sinal de néon vermelho proclamando “Bubba’s Basement, o melhor churrasco em Seattle” tinha uma seta que apontava para uma escadaria ampla logo abaixo, que terminava no
porão de algo que poderia ter sido algum tipo de edifício de escritórios ou banco, pois tinha aquela aparência neutra e luxuosa desses tipos de construções.
Charles abriu um dos lados da entrada de porta dupla, liberando a combinação inebriante de carne, molho de churrasco e café. O restaurante era fracamente iluminado, e como
Anna pôde ver de relance, estava bem cheio. Havia um ar carregado no ambiente, como o peso de uma tempestade, e era tão forte que Anna achou que mesmo os seres humanos poderiam
senti-lo.
Charles cheirou o ar e virou à esquerda, contornando uma parede coberta de plantas através de uma porta vaivém, entrando em uma sala separada do resto do lugar. Um cartaz
discreto acima da porta dizia que a sala podia ser reservada para grupos grandes por uma pequena taxa e podia comportar até sessenta pessoas. Quando Anna seguiu Charles pela
porta, notou que havia apenas um quarto desse número na sala naquele momento – mas mesmo se fosse quatro vezes maior, o espaço não teria sido grande o suficiente para eles.
Alfas não se misturam bem entre si. Anna se perguntou se todos eles haviam se reunido ali com um propósito, ou se algum garçom equivocado havia decidido manter todos os clientes
potencialmente problemáticos em um só lugar.
Alguém tinha feito um esforço apressado para arrumar um espaço para brigar, já que algumas mesas estavam viradas de lado e encostadas à parede, e as cadeiras haviam sido jogadas
por ali de forma aleatória.
– Você não tem a coragem de um vira-lata mestiço – disse um dos homens em pé no centro da sala, com calma deliberação. Ele tinha um sotaque, mas era tão leve que Anna não
conseguiu identificar imediatamente.
Charles olhou para Anna e depois para a porta pela qual ela acabara de passar. Anna entendeu. Esse assunto era privado, e eles não precisavam de nenhum visitante inesperado
para complicar as coisas ainda mais. Assim, Anna fechou a porta e encostou-se nela.
Aquela porta também serviria como rota rápida de fuga, com tantos lobos dominantes ali... Mesmo junto de Charles, Anna não podia deixar de lembrar o que os lobos dominantes
em sua primeira alcateia tinham feito com ela. Além disso, seu batimento cardíaco aumentou, porém ela não entrou em pânico. Não ainda. Mas também não estava confortável.
A sala parecia-se uma reconstituição de uma cena do filme Amor, Sublime Amor – ou, mesmo que com adereços e roupas ligeiramente diferentes, uma cena de Sem Lei e Sem Alma.
Quatro homens em pé de um lado da sala, seis no outro. Um homem estava a poucos passos dos dois grupos, pronto para lutar. O nível de testosterona era tão alto que Anna se
espantou com o fato de isso não ter acionado os sprinklers no teto.
Havia ainda um décimo terceiro homem sentado no canto da sala. Ele estava de costas para a parede e limpava as mãos com uma pequena toalha úmida. Foi ele quem percebeu a entrada
de Charles primeiro e inclinou a cabeça em uma saudação casual.
– Ah – disse ele, com um lindo sotaque próprio da alta classe britânica –, eu estava me perguntando quando a cavalaria iria chegar. É bom ver você, Charles. Pelo menos os
russos não estão aqui, hein? Ou os turcos.
A ação interrompeu-se por um momento, quando todos perceberam que um novo jogador havia entrado no jogo.
– Você sempre consegue ver o lado bom das coisas – disse um homem de pele escura no grupo maior. – Sempre gostei disso em você, Arthur.
Pelo sotaque daquele último, Anna percebeu que ele e os lobos que o acompanhavam eram os espanhóis. Isso significava que aquele homem que estava atirando insultos não poderia
ser outro exceto Jean Chastel, a Fera de Gévaudan.
Chastel não era exatamente bonito, mas havia um poder em suas características e na forma como ele se portava que fazia o primeiro Alfa de Anna, Leo, parecer um filhote não
totalmente crescido. Ele dava a impressão, como a maioria dos Alfas que Anna conhecia, de ocupar mais espaço na sala do que deveria, como se fosse mais pesado do que deveria
ser, tanto física quanto metafisicamente.
Ele estava ciente da presença de Charles, mas seus olhos pálidos permaneceram firmes em seu oponente. Chastel não era nem alto nem baixo; tinha uma constituição magra. Seu
cabelo era comprido e castanho, chegando até os seus ombros. Sua barba era bem mais escura do que seu cabelo e era aparada bem curta. Mas os detalhes físicos não importavam
tanto quanto a força de quem e do que ele era.
O adversário de Chastel não tinha nenhuma chance contra ele, e o espanhol sabia disso. Anna podia ver isso em sua postura, na maneira como ele não olhava nos olhos do francês.
Ela podia sentir o cheiro do seu medo.
– Sérgio, mi amigo – disse o espanhol moreno que tinha falado antes. – Acalme-se. A luta acabou. Charles está aqui.
O oponente espanhol não havia notado a chegada de Charles, e seu olhar espantado quase foi sua ruína. O braço direito de Jean Chastel foi em direção a ele, e teria se conectado
com o pescoço de seu oponente se Charles já não estivesse em ação – como se ele soubesse o que Chastel iria fazer antes mesmo do próprio Chastel.
Charles interceptou o golpe e empurrou o lobo francês para o lado, usando o impulso do outro para atirá-lo em direção ao seu próprio grupo.
Charles deu um rápido olhar para os lobos espanhóis, o que fez com que eles dessem um passo para trás; depois disso, ele voltou sua atenção para o primeiro lobo.
– Tolos – rosnou Charles. – Este é um local público. Não permitirei que vocês perturbem a paz enquanto forem convidados no território da alcateia da Emerald City.
– Você não vai permitir, filhote? – murmurou o francês, que se recuperou rapidamente do impacto não planejado com a ajuda de seus lobos. Ele puxou as mangas da camisa de botões
e mangas longas para baixo, em um gesto que parecia mais habitual do que efetivo. – Ouvi dizer que o velho lobo havia enviado seu filhote para nosso deleite, mas pensei que
era apenas um boato.
Havia algo abjeto na postura do resto dos lobos franceses que dizia a Anna que nenhum deles estava gostando do que seu líder estava fazendo, e que aqueles lobos estavam seguindo
Jean Chastel por medo. Isso não os tornava menos perigosos – talvez até mais. Seu lobo reconheceu um Alfa em cada um deles, e todos estavam com medo.
Sob toda a violência e atitude na sala, havia uma subcorrente de medo que vinha dela, do espanhol e dos lobos franceses, e tão espessa que Anna espirrou com o cheiro dela,
chamando atenção indesejada. Os olhos de Jean Chastel viraram-se para ela, e Anna não desviou os seus, apesar da violência que prometiam. Aqui, pensou ela, aqui está um monstro
pior do que o troll debaixo da ponte. Chastel cheirava como o Mal.
– Ah – disse ele, soando quase gentil. – Outra história que eu havia considerado inverídica. Então você encontrou um Ômega para você, mestiço. Bonita criança. Tão suave e
delicada – continuou Chastel, lambendo os lábios. – Aposto que ela é um bocado saborosa.
– Você nunca irá descobrir, Chastel – disse Charles suavemente. – Recue ou vá embora.
– Tenho uma terceira opção – sussurrou Chastel. – Acho que posso lidar com ela.
Anna percebeu que isso não teria nenhum resultado positivo, e tamanha era sua tensão que pressionava suas costas contra a tranca da porta do bar. Charles podia até ter aliados
entre os espanhóis, e talvez o lobo britânico também fosse um. Mas, mesmo assim, se eles entrassem na briga, mostrariam que Charles era fraco. Anna tinha fé ilimitada na capacidade
de Charles para limpar o chão com o lobo francês, mas mesmo isso seria um certo tipo de derrota. Este era um local público – uma luta significaria polícia e um tipo de exposição
completamente diferente daquela que Bran queria.
Talvez ela pudesse ajudar a resolver isso. Anna vinha trabalhando com Asil, um velho lobo em sua nova alcateia, para tentar chegar a alguma compreensão de suas habilidades.
A companheira morta de Asil tinha sido um Ômega assim como Anna, e por isso Asil sabia algo sobre como suas habilidades funcionavam – o que era mais do que qualquer um sabia.
Mesmo Bran, o Marrok, tinha apenas uma vaga ideia. Com a ajuda de Asil, ela tinha conseguido fazer algumas coisas interessantes.
Nesse intervalo, Charles não disse nada a Chastel. Ele somente ficou parado, com os braços soltos ao lado do corpo, jogando seu peso sobre os calcanhares, enquanto esperava
que Chastel tomasse uma decisão.
Somente a presença de Charles permitia a Anna colocar seu medo de lado – Charles, seu lobo e a porta.
Ela imaginou um lugar em sua mente, nas profundezas de uma floresta, onde a neve cobria levemente o chão e sua respiração congelava no ar. Era tranquilo lá, e seguro. Pacífico.
Um riacho cheio de trutas gordas corria sob uma fina camada de gelo fosco. Em sua mente, Anna seguiu uma truta enquanto ela deslizava através da água, uma sombra prata que
se movimentava rapidamente.
Quando a imagem estava clara e perfeita em sua mente, Anna empurrou a sensação para fora.
Seu poder atingiu primeiro o lobo britânico; ela percebeu isso pelo relaxamento de seus ombros. O lobo percebeu o que Anna estava fazendo, e depois de levantar uma sobrancelha
para ela, pegou sua xícara de café (ou talvez estivesse bebendo chá – afinal, os ingleses sempre bebiam chá) e tomou um gole dela. Alguns dos espanhóis começaram a respirar
mais devagar, e a tensão na sala desceu um nível inteiro.
De repente, Charles virou-se para Anna e rosnou. Para ela. Os olhos de seu companheiro estavam puramente dourados e brilhantes.
Nesse momento, Anna se viu sozinha em uma sala cheia de lobos dominantes, sob uma atmosfera de violência. Os cheiros eram tão familiares que seu corpo momentaneamente sentiu
dores fantasmas, antigas feridas, e ela teve dificuldade para respirar.
Assim, Anna fugiu pela porta que estava segurando, antes que seu terror cego se tornasse a isca, causando uma orgia de violência. Ela já tinha visto isso acontecer, mas nunca
em um lugar público.
O francês disse algo rude quando a porta se fechou atrás dela, mas Anna não estava prestando atenção. O pânico, puro e simples, tornava difícil a respiração, enquanto seu
condicionamento tentava dominar seu senso comum.
Anna precisava encontrar outra coisa na qual pudesse se concentrar, e então olhou ao seu redor. Os fregueses no restaurante principal ainda estavam estranhamente quietos,
e o número de pessoas ali era muito menor do que antes. A maioria deles estava olhando para baixo, o que Anna concluiu ser uma reação involuntária à presença de tantos Alfas.
Até mesmo os seres humanos podiam senti-la, embora felizmente não soubessem o que os estava deixando tão inquietos.
Mesmo que todos eles estivessem na sala ao lado, Anna podia sentir o peso de sua presença, da mesma forma como sentia o peso do Sound. Enquanto Charles estava ao seu lado,
Anna tinha sido capaz de afastar essa terrível atmosfera – mas agora isso a estava afetando. O som de seu coração bateu alto em seus ouvidos.
Mas naquele momento os lobos estavam do outro lado da porta, e Charles não iria deixar que a tocassem.
Anna parou em frente à porta que dava para fora, e percebeu que poderia voltar para seu quarto de hotel e esperar. A cidade à noite não oferecia perigo a ela – todos os caras
perigosos estavam ali mesmo. Mas isso seria covardia. E Charles teria uma impressão errada.
Afastando-se de toda aquela situação e do primeiro impulso de fugir do ataque, Anna descobriu o motivo pelo qual Charles rosnara para ela: ele precisava impedi-la. Charles
não podia se dar ao luxo de deixá-la acalmar o irmão lobo.
Charles podia ser naturalmente mais dominante, mas era o único lobo na sala que não era o Alfa de uma alcateia. Anna sabia que havia lobos menos dominantes que viriam à conferência,
mas nenhum deles estava aqui.
Por isso, a presença de muitos Alfas colocava Charles em uma posição ruim. Eles tinham que ter medo dele; tinham que saber que iriam ser mortos se atacassem Charles, ou sentiriam
a fraqueza nele e o atacariam juntos, como uma matilha de lobos derrubando um caribu. Procedendo daquela maneira, Anna estava tirando a vantagem de Charles.
Enquanto observava o local, Anna notou que havia um piano gasto em um pequeno palco no canto da sala, que a atraía como um oásis no deserto. Se encontrasse algo para pensar
que não fossem as velhas lembranças de dor e humilhação, ela podia esperar pela conclusão de tudo aquilo. Assim, Anna chamou a atenção de uma garçonete que passava e perguntou:
– Você se importa se eu tocar?
A garçonete, parecendo um pouco estressada, parou a meio-passo e encolheu os ombros.
– Tudo bem, mas se você não tocar bem, o cozinheiro pode sair e pedir-lhe para parar. Ele é bem rigoroso com isso, pois a multidão pode começar a vaiar. É quase uma tradição.
– Obrigada.
A garçonete olhou ao redor da sala.
– Toque uma música alegre, se você puder. Alguém precisa animar esse lugar.
O instrumento era um piano de armário antigo que já era velho há um bom tempo. Alguém o havia pintado de preto, mas a pintura havia desbotado e adquirido um tom de cinza fosco,
arranhado nos cantos, e além disso havia várias iniciais gravadas no instrumento. A maioria das bordas das teclas de marfim estava quebrada, e a tecla do Mi maior parecia
estar um pouco mais elevada do que o resto.
Como devia tocar algo alegre, Anna tocou o tema da Vila Sésamo. O piano tinha um som muito melhor do que parecia, como se tivesse sido – e estava – afinado. Ela prosseguiu
com Maple Leaf Rag, uma das duas peças de ragtime que todo estudante de piano do segundo ano aprendia. O piano não era o seu instrumento, mas após seis anos de aulas, Anna
até que era competente.
A sensação de animação e a melodia um tanto fácil da peça a deixava com vontade de tocar muito rápido, mas Anna se lembrou do discurso retórico favorito de um dos seus professores,
que dizia que “o ritmo do ragtime não é rápido”. Por isso, Anna disciplinou os dedos para manter um ritmo constante, e o fato de ela estar um pouco sem prática também a ajudava
a tocar esse ritmo.
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Charles observou Anna sair da sala e percebeu que havia jogado sua relação com ela de volta ao ponto inicial. Mas se ele não a tivesse impedido, teria sido desastroso. Mesmo
assim, não podia se deixar distrair, nem por Anna e nem pela possibilidade real de que ele tivesse destruído algo entre eles.
A maioria das companheiras ficaria irritada por ter sido admoestada na frente dos outros. Mas a maioria das companheiras não tinha sido brutalizada quando tentaram dominá-las.
Anna não tinha sido dominada, não de verdade.
Entretanto, Charles não podia correr riscos: se Anna acalmasse o irmão lobo de Charles antes de afetar a Fera com seu poder, isso seria muito perigoso. A agressividade do
irmão lobo, sua vontade de matar, era a única arma que Charles tinha para controlar a situação.
Completamente cansado de Chastel, embora ele estivesse na sua presença há menos de vinte e cinco minutos, Charles chamou o irmão lobo para tomar o centro do palco, pois sabia
que ele não se incomodaria em ter de lidar com o lobo francês. As negociações, do seu ponto de vista, haviam terminado no momento em que ele tivera que rosnar para Anna. Ou
talvez quando Chastel chamou Anna de “coisa bonitinha”, como se ela não fosse ninguém.
– É melhor não falar sobre a minha companheira – disse-lhe Charles, com uma voz suave. O irmão lobo não se preocupava nem um pouco com política. Chastel obrigou Charles a
magoar Anna – e ele não se incomodaria nem um pouco em matá-lo aqui e agora.
Chastel ergueu o lábio superior – mas não conseguiu dizer nada, confrontado com o irmão lobo como estava. Ficaram ali, olho no olho, por quatro segundos. Então Chastel baixou
os olhos, pegou seu casaco, e saiu da sala intempestivamente.
Charles o acompanhou para fora, com a intenção de seguir a Fera para se certificar de que ele não iria seguir a péssima ideia de ir atrás de Anna. Charles deu dois passos
para dentro do restaurante principal antes de parar, e apenas observou Chastel sair do edifício, pois viu que Anna não tinha ido embora ainda.
Charles havia determinado que ela possivelmente estaria a meio caminho do hotel naquele momento. Em vez disso, Anna estava sentada em uma banqueta curta que balançava sob
seu corpo, tocando o piano maltratado de costas para ele e para o resto das pessoas na sala. A melodia que ela estava tocando não era complexa, mas era alegre. Familiar. Ele
franziu a testa, mas não conseguiu identificá-la, apenas reconhecendo que era algum tipo de música para crianças.
Automaticamente, Charles observou o local para verificar a presença de possíveis ameaças e não achou nenhuma. As únicas pessoas ali eram humanas, e enquanto ele olhava, eles
foram relaxando com a música. Alguém riu e outra pessoa pediu mais costelas.
Anna não tinha ido embora. E isso significava que Charles poderia limpar a bagunça que Chastel havia deixado para trás. Ele levaria apenas alguns minutos, e depois poderia
voltar aqui e protegê-la... Charles parou e respirou fundo. O irmão lobo achava que podia corrigir isso salvando-a de algum perigo – ele não entendia muito bem as mulheres.
Para Charles, o fato de Anna ainda estar ali era um sinal de esperança, indicando que, assim como o irmão lobo, talvez ele não compreendesse as mulheres tão bem como achava.
Anna olhou para a plateia e viu que o silêncio incomum do restaurante havia se dissipado um pouco. Como também não tinha ouvido qualquer barulho repentino significando luta,
achou que talvez Charles já tivesse tudo sob controle. Ela precisava de algo mais moderno a seguir, algo apropriado para a multidão para a qual estava tocando, formada por
pessoas de meia-idade em sua maioria – o que geralmente significava Elton John ou Billy Joel, ambos pianistas que também podiam cantar. Então, transformou as últimas notas
de Maple Leaf no início de Downeaster Alexa, de Billy Joel. Não era exatamente uma “melodia feliz”, mas era linda.
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Charles não demorou muito para resolver a questão com os outros lobos. Sem Chastel para encorajá-los e pressioná-los, ninguém estava interessado em uma luta pública.
Charles pediu comida para todos – a especialidade da casa eram as costelas ilimitadas, a um custo fixo por pessoa –, e perguntou se eles esperariam alguns minutos para que
ele se certificasse de que sua companheira estava bem. Os lobos franceses estavam um pouco inquietos, sabendo que Chastel notaria quanto tempo eles haviam ficado por ali sem
ele, mas ninguém se opôs. Alfas entendiam a necessidade de cuidar dos membros de sua própria alcateia.
Anna estava tocando uma peça melódica. Sem a letra, ele demorou um pouco para identificar a música. Charles era fã de Billy Joel, mas Downeaster Alexa não era uma de suas
músicas favoritas. Ela lhe lembrava muito de certas pessoas que ele tinha conhecido, pessoas que haviam deixado as mudanças trazidas pelo tempo destruir suas vidas. A música
lhe falava dos nomes dos mortos, enviando arrepios de lembranças que deviam ser esquecidas – mas mesmo assim era bonita.
As mãos de Anna se arqueavam graciosamente sobre as teclas gastas e traziam a música e mais alguma coisa para dentro da sala. Era sutil, mas ele podia sentir essa “coisa a
mais” nas conversas e na forma como um velho senhor, que estava curvado sobre o prato, vagarosamente se endireitou na cadeira, com os olhos brilhantes, enquanto sussurrava
algo para o homem jovem e alto ao seu lado. O homem jovem respondeu algo em voz baixa e o velho sacudiu a cabeça.
– Vá pedir a ela – disse ele; sua voz era tranquila, mas foi alta o suficiente para que Charles pudesse ouvir suas palavras por sobre a música. – Eu aposto que uma garota
que sabe tocar o ragtime direito conhece mais algumas canções dos velhos tempos.
– Ela está ali sozinha, vovô. Eu vou assustá-la. Tia Molly...
– Não. Não. Molly não vai fazer isso. Ela não quer que eu faça algo embaraçoso – ou que eu me canse. Você pode fazer isso. Agora.
E o frágil e velho homem praticamente empurrou o jovem para fora de sua cadeira.
Charles sorriu. Isso estava certo. Frequentemente as pessoas entendiam tudo errado, tratando os mais velhos como crianças, pessoas que deviam ser mimadas e ignoradas. Ele
sabia que não era assim, e o homem alto também. Os Mais Velhos estavam mais perto do Criador de Todas as Coisas, e deviam ser atendidos quando pediam alguma coisa.
Ele ficou um pouco tenso quando o homem alto caminhou por entre os clientes até chegar perto de sua Anna. Mas não havia ameaça na linguagem corporal do humano. Charles achava
que o homem alto havia passado muito tempo tentando parecer menos letal do que alguém que se movia como um lutador e era quinze centímetros mais alto que a maioria das pessoas.
Charles se solidarizava – embora tivesse aprendido a tirar vantagem do efeito que tinha sobre as pessoas, em vez de disfarçá-lo.
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Antes que tivesse realmente terminado, Anna notou que ao seu lado havia um homem alto em pé, com uma expressão infeliz no rosto e os ombros caídos, tentando não parecer assustador.
Anna achou que ele até estava se saindo bem – mas em partes.
O homem tinha uma cicatriz no queixo e mais algumas nos nós dos dedos, e Anna achou que ele era uns três centímetros mais alto do que Charles. Talvez se ainda fosse humana,
poderia ter se preocupado, mas Anna sabia pela postura dele que o homem não era uma ameaça para ela. A linguagem corporal das pessoas raramente engana.
Ele obviamente estava esperando para falar com ela; assim, quando Anna acabou de tocar a última parte da canção, ela parou. Por alguma razão ela não estava no clima para músicas
alegres, por isso a interrupção foi até bem-vinda.
Algumas pessoas perceberam que ela havia acabado e começaram a bater palmas. As outras pararam de comer e seguiram o exemplo, voltando às suas refeições logo em seguida.
– Desculpe-me, senhorita. Meu avô quer saber se você pode tocar Mr. Bojangles, e se você não se importaria se ele cantasse com você.
– Não há problema – disse ela, sorrindo para ele e mantendo os ombros livres de tensão para que o homem soubesse que ela não estava com medo dele.
Bojangles já tinha sido cantada por muita gente, mas o esbelto homem de idade apoiado em sua bengala, que se levantou e andou até o piano, se parecia muito com as últimas
fotos que ela havia visto de Sammy Davis Jr., que gravou sua versão favorita da canção – até mesmo no tom de sua pele escura.
Ele começou a falar, e Anna percebeu que sua voz era muito mais poderosa do que seu corpo frágil.
– Vou cantar algo para vocês – disse ele, dirigindo-se à audiência; todos na sala levantaram os olhos de seus pratos. Era aquele tipo de voz. Ele fez uma pausa, saboreando
o momento.
– Vocês terão de me perdoar, pois eu não danço mais.
Anna esperou até que os risos que ele instigara diminuíssem antes de começar a tocar.
Normalmente, quando ela tocava uma música com alguém que não conhecia, especialmente se fosse uma música que ela conhecia bem, havia uma corrida louca para fazer sua versão
se ajustar à percepção da outra pessoa de como a música deveria ser. Mas, exceto pelo início, aquilo foi mágico.
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A princípio, Charles ficou um pouco preocupado quando o senhor perdeu a deixa, preocupando-se mais quando Anna começou de novo – e ainda uma terceira vez, fechando os olhos
quando ele começou a cantar no momento errado.
Mas Anna conseguiu contornar a situação tocando a canção da forma mais inteligente do que qualquer coisa que ela já havia tocado antes naquela sala, e ele soube que ela era
melhor ao piano do que ele havia pensado, julgando pelas peças de música que ela escolhera.
A voz daquele senhor era perfeita. Ele, o piano surrado e a doce presença de Anna combinaram-se em um daqueles raros momentos em que o desempenho e a música se misturam para
se tornar algo mais.
Bojangles era uma canção que demorava algum tempo para chegar onde queria chegar, mostrando as imagens da vida de um homem velho. O alcoolismo, a prisão, a morte de um amigo
querido, nenhuma dessas coisas derrotara o Sr. Bojangles, que mesmo em sua hora mais desesperadora ainda demonstrava alegria e era capaz de dançar para seu companheiro de
prisão.
Ele pulou tão alto...
Era a canção de um guerreiro. Uma canção de triunfo.
E no final, apesar do que falara antes, o velho homem havia dado alguns passos suaves de dança. Seus movimentos eram rígidos devido a articulações doloridas e músculos que
eram menos poderosos do que costumavam ser. Mas ainda graciosos e cheios de alegria.
Ele soltou uma gargalhada... ele soltou uma gargalhada...
Quando Anna terminou com um floreio, o velho fez uma mesura, e ela também.
– Obrigada – disse ela. – Foi realmente divertido.
Ele tomou a mão dela em suas próprias mãos envelhecidas e afagou-as.
– Obrigado, minha querida. Você trouxe de volta os bons e velhos tempos. Estou até com vergonha de dizer quão velhos. Você fez este homem feliz no aniversário dele. Quando
você tiver oitenta e seis anos, espero que alguém a faça feliz em seu aniversário também.
E isso fez com ele recebesse outra rodada de aplausos e gritos de “bis”. O velho sacudiu a cabeça, conversou um pouco com Anna e então sorriu quando ela assentiu com a cabeça.
– Acabamos de descobrir que nós dois gostamos de canções antigas – disse ele. – Exceto que para mim não são antigas.
E ele começou a cantar You’re Nobody ‘til Somebody Loves You, uma canção que Charles não ouvia há quarenta anos ou mais. Anna acompanhou-o ao piano depois de algumas notas
e deixou a voz treinada do velho liderar a dança.
Quando eles terminaram, a sala explodiu em aplausos. Charles chamou a atenção de uma garçonete e entregou-lhe o seu cartão de crédito, dizendo a ela que gostaria de pagar
pela refeição do velho senhor e de sua família – em apreço pela música. Ela sorriu, pegou o cartão, e saiu da sala.
O velho senhor pegou a mão de Anna e a levou a fazer outra mesura. Ele beijou sua mão e depois deixou seu neto escoltá-lo de volta para sua mesa em triunfo. Sua família ficou
em torno dele, agitados e cheios de amor como deveriam, enquanto ele se sentava como um rei e recebia sua adoração.
Anna abaixou a tampa de proteção sobre as teclas e olhou para cima. Charles estava lá. Ela hesitou, e o fato de Anna ter medo dele fez seu coração doer. Mas ela levantou o
queixo, mostrando os olhos ainda cheios da música, e caminhou até ele.
– Obrigado – disse-lhe Charles, antes que Anna pudesse dizer qualquer coisa. Ele não tinha certeza se estava lhe agradecendo por sair da sala quando ele pedira, por permanecer
no restaurante em vez de deixá-lo ou pela música, uma lembrança de que a vida não girava somente em torno dos lobisomens. A vida tinha a ver também com os seres humanos com
quem eles compartilhavam o país.
A garçonete, que estava voltando com seu cartão, ouviu o que ele havia dito.
– Obrigada, também, querida – disse ela, dirigindo-se a Anna. – Estava bastante sombrio aqui quando você começou. Parecia um funeral.
Olhando para Charles, a garçonete continuou:
– Está tudo acertado. Você quer ficar anônimo, certo?
– Sim – disse ele. – É melhor assim, você não acha?
Ela sorriu para ele e depois para Anna, antes de se afastar.
– Sinto muito – disse Charles.
Anna deu-lhe um olhar estranho e sábio.
– Não se preocupe. Tudo bem?
Charles não sabia. Isso dependia principalmente dela. Mas ele sabia que não era o que ela queria dizer. Anna estava perguntando sobre os lobos na sala ao lado, por isso ele
deu de ombros.
– Na maior parte. Chastel sempre vai ser um problema. Talvez, fazendo-o recuar agora, ele seja obrigado a jogar limpo. Às vezes funciona assim.
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A música tinha ajudado – e geralmente ajudava mesmo. Fazer as pessoas felizes ajudava ainda mais. Quando Anna olhou para cima e viu Charles esperando por ela com um pequeno
sorriso em seu rosto, isso ajudou ainda mais. Isso significava que ninguém havia morrido, que ela não havia feito nada de muito errado – e que ele não estava zangado com ela.
Charles a acompanhou até a outra seção, onde os lobos estavam aguardando Charles. Chastel tinha ido embora. Anna não havia percebido sua partida, mas deveria ter percebido,
mesmo estando de costas para a porta externa e com a música sob seus dedos. Era perigoso não perceber coisas assim.
As mesas tinham sido movidas de novo até que havia uma longa mesa no meio da sala. Havia três grandes pratos de comida sobre ela, um cheio e dois quase vazios.
Porém, os lobos não haviam se tornado os melhores amigos exatamente. Os lobos espanhóis estavam sentados de um lado da mesa. Os franceses do outro. O lobo britânico estava
a uma das cabeceiras da mesa, e havia dois lugares vagos na outra cabeceira.
– Pareceu um desperdício vir até aqui e não experimentar a comida – murmurou Charles, com uma das mãos pousada de leve na parte inferior das costas de Anna. Ela não podia
ver seu rosto porque Charles estava logo atrás dela, mas Anna percebeu o impacto de seu olhar na sala cheia de Alfas, deixando claro que eles acreditavam que Charles era o
maior e mais perigoso lobo do local.
A maioria deles parecia contente com isso. Os lobos não se preocupavam com coisas que não podiam mudar – a única exceção, ela pensou, parecia ser o Alfa britânico. Algo o
estava deixando infeliz, com certeza. Mas mesmo assim o Alfa manteve os olhos voltados para baixo enquanto Charles olhava para ele.
– Senhores, minha companheira e esposa, Anna Latham Cornick, Ômega da alcateia de Aspen Creek – disse Charles, levantando a mão e colocando-a sobre o ombro da companheira.
– Com sua permissão, monsieur – disse um dos lobos franceses. Ele tinha um sotaque duplo: era francês com toques britânicos. – Talvez pudéssemos nos apresentar e, em seguida,
partir. Ficamos aqui por tempo suficiente para comer, e não podemos demorar muito mais tempo. Chastel não é o nosso Marrok, não como Bran é para esses lobos aqui, mas ele
pode tornar nossa vida extremamente desconfortável.
– Claro.
O francês começou a apresentar os seus compatriotas em tons apressados, e à medida que os apresentava, eles inclinavam suas cabeças. Ao final, ele completou:
– E eu sou Michel Girard.
– Estou ansiosa para conversarmos com mais tempo – disse Anna.
– Eu também – disse ele, sorrindo com os olhos cansados. – Até amanhã.
E partiram.
– Anna, este é Arthur Madden, Mestre das Ilhas – o equivalente britânico do Marrok.
– Prazer em conhecê-lo, senhor – disse ela. Anna concluiu que ele não era somente um Alfa, ou não apenas um Alfa.
– Encantado – disse Arthur, enquanto se erguia de seu lugar à mesa e vinha beijar-lhe a mão. – Sinto confessar, embora Chastel não esteja aqui para me repreender, que estou
aqui por mais tempo do que estava planejando. Minha esposa está esperando por mim, e preciso ir até ela. Gostaria, no entanto, de fazer um convite antes de sair. Eu tenho
um apartamento no Bairro Universitário, e seria um prazer receber vocês dois para o jantar amanhã.
Anna olhou para Charles. Madden tinha tão claramente excluído os espanhóis que ela se sentiu embaraçada, e se dissesse alguma coisa talvez tornaria as coisas piores.
– Obrigado – disse Charles. – Vamos discutir isso, e eu lhe aviso.
Arthur sorriu, e Anna percebeu que ele era um homem bonito. Ela não havia prestado atenção a isso até então.
– Está certo.
Arthur olhou para os espanhóis.
– Meu controle não é bom o suficiente, meus senhores, para ter mais de um dominante de cada vez no meu território. Sinto muito.
– No hay de qué – disse graciosamente o homem de pele escura, o líder de facto dos lobos espanhóis. – Nós entendemos, é claro.
Assim, Arthur saiu. Anna percebeu que enquanto ele saía a sala inteira tinha ficado em silêncio, ouvindo. Quando a porta do restaurante na outra sala abriu-se e depois se
fechou, pareceu que o mundo inteiro havia relaxado.
Sérgio, o lobo que havia enfrentado Chastel, jogou um osso em seu prato.
– Idiota pomposo – disse ele.
– Idiota pomposo astuto – disse Charles.
– Idiota pomposo astuto e iludido – disse o homem de pele escura. – Você já decidiu como vai nos apresentar? Que tal por idade? – continuou, olhando para Anna. – Charles sabe
tudo sobre nós e, provavelmente, sobre os franceses também. Sabe tudo, esse seu companheiro.
Anna entendeu que aquele era um desafio menos grave, embora não menos importante, do que a luta entre Charles e Chastel. “Somos importantes para você?” – era isso o que o
espanhol queria dizer.
– Se eu conseguir, você paga a gorjeta.
Charles estava bastante relaxado, como Anna jamais o vira.
– Tudo bem.
– Sérgio del Fino – disse Charles. O homem a quem ele se dirigiu levantou-se, colocou a mão sobre o coração, e se inclinou.
Charles apresentou todos os outros sem errar nenhum até chegar aos dois últimos: o homem de pele escura e um ruivo. Fez uma pausa e, em seguida, indicou primeiro o homem moreno
com uma inclinação de cabeça, e depois o ruivo:
– Hussan Ibn Hussan. Pedro Herrera.
Hussan sorriu.
– Errado. Eu sou mais velho do que Pedro.
Pedro sorriu mais ainda.
– Hijo, eu vi você nascer. Eu não sabia que Charles sabia disso.
Charles abaixou a cabeça, sem baixar os olhos.
– Asil deixou escapar.
Hussan deu um tapa na perna.
– Acho que fui traído. Diga-me que meu pai não lhe disse para fazer isso comigo.
Charles sorriu.
– Você é filho de Asil? – perguntou Anna. Agora que ela estava prestando atenção, o seu tom de pele era quase tão escuro quanto o de seu mentor de habilidades Ômega, e o nariz
era o mesmo.
– Tenho essa honra – concordou Hussan.
– Ibn Hussan? Meu árabe é quase inexistente, mas você não deveria ser então Ibn Asil? – perguntou Sérgio.
– Hussan é o nome de meu pai. Mas por um longo tempo ele tem usado Asil – explicou Hussan, com um encolher de ombros. – Ele é velho. Pode fazer o que quiser.
Hussan deu um sorriso amargo e continuou.
– E normalmente faz. Como está meu pai? Ele ainda está chateado comigo porque me recusei a matá-lo quando ele pediu, e não responde aos meus telefonemas ou cartas. Então parei
de ligar e escrever.
– Ele está bem – disse Anna. – Melhor.
Charles sorriu um pouco.
– Ele provavelmente vai atender seus telefonemas agora.
Hussan inclinou a cabeça.
– Alguma coisa aconteceu?
– Sim – disse Charles, puxando uma cadeira para uma parte da mesa que estava limpa e oferecendo-a a Anna. – Se não começarmos a comer, esses diabos vão comer tudo sozinhos,
e teremos que esperar a próxima rodada.
Anna sentou-se, e Charles empurrou sua cadeira antes de sentar no seu lugar. Ele podia parecer casual, mas ainda estava agindo de maneira formal. Talvez porque esses eram
em sua maioria lobos mais velhos, que esperariam que Charles a tratasse dessa maneira. Ela não tinha certeza se gostava, mas estava disposta a deixar as coisas acontecerem.
Pelo menos na maior parte do tempo. Anna usou um pegador e jogou uma porção dupla de costelas no prato: ela não comia há bastante tempo.
– Asil vai ficar bem – disse ela. – A menos que ele irrite demais o Marrok.
Anna olhou para cima e percebeu que Hussan estava olhando para ela.
– Foi você – disse ele. – Ômega. Você o salvou.
Ela balançou a cabeça.
– Pergunte a ele.
– Asil vai dizer-lhe que foi ela – disse Charles. – Anna vai dizer-lhe que não foi. Ainda assim, ele vai ficar bem por mais um século ou mais – tão bem quanto está agora.
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Eles caminharam de volta para o hotel. Ainda estava chovendo, mas Anna nunca se preocupava com água – e Charles parecia ter a mesma atitude. Eles caminharam lado a lado, sem
se tocar.
– Vamos aceitar o convite para jantar com Arthur Madden? – perguntou Anna.
– Se você quiser. Angus programou alguns entretenimentos para a noite seguinte, mas amanhã tudo bem.
– Nossa visita vai se transformar em algum tipo de problema diplomático?
Charles fez um gesto impaciente.
– Como eu continuo a dizer a eles – isso não é uma negociação. Concordamos em ouvir suas reclamações e irei falar sobre elas. Mas meu pai está determinado. Se ele tiver uma
chance de nos apresentar sob uma luz favorável, tornaremos nossa existência pública imediatamente. Não importa se alguns se ofenderem ou sentirem que estamos favorecendo alguns
em detrimento de outros. Nós não estamos cortejando ninguém.
Anna ficou em silêncio.
Finalmente, Charles disse:
– Arthur pode ser encantador às vezes, e também é interessante.
Charles olhou para o rosto de Anna e depois de volta para a rua.
– Ele diz a todos que é Arthur. O rei Arthur, renascido.
– O quê?
– Ele fala sério. Ele honestamente acredita que é aquele Arthur.
– Sério?
– Sério. Antes de sua Transformação, ele era um arqueólogo amador – a família dele não tem sangue real, mas era nobre e rica o suficiente naquela época para que ele não precisasse
de um emprego de verdade. Isso também significava que ele não precisava ter nenhum treinamento para exercer o seu hobby. Ele afirma que, pouco depois de sua Transformação,
ele encontrou a Excalibur em uma escavação, e quando a pegou em suas mãos foi possuído pelo espírito de Arthur.
Charles encolheu os ombros, e continuou:
– Depois, ele começou a dominar todas as alcateias na Grã-Bretanha. Primeiro ele matou todos os Alfas, mas viu que combinar as alcateias criava seu próprio conjunto de problemas.
Então ele baseou seu governo no de meu pai – disse Charles, sorrindo. – Meu pai está convencido de que foi a decisão dele em usar Marrok como título que fez Arthur declarar-se
como o Arthur. Afinal de contas, Sir Marrok era apenas um cavaleiro do Rei Arthur.
– Então, seu pai acha que ele está fingindo? Como somente ele pode fazer isso sem que todos os outros também sintam o cheiro da mentira?
– Meu pai pode mentir tão bem que ninguém, exceto Samuel e eu, é capaz de descobrir – disse Charles, olhando para Anna; era a primeira vez que ele a olhava no rosto desde
que tinham saído do restaurante. – Não conte a ninguém, isso é um segredo.
– Qual a idade de Arthur?
Charles sorriu.
– Você quer dizer nesta vida? Acho que ele foi transformado logo depois da Primeira Guerra. Arthur é velho o suficiente para ser capaz de fazer os mesmo truques que um lobo
velho como meu pai faz. Meu pai diz que o segredo é convencer a si mesmo de que você não está mentindo.
– Então pode ser que ele apenas acredite no que está falando com todas as forças?
– Arthur provavelmente trouxe a Excalibur. Ele geralmente a mantém por perto. Ele pode mostrá-la a você, se você pedir.
– Sério?
– De verdade.
Anna enfiou a mão no braço de Charles.
– Isso pode ser divertido.
– Vou telefonar a ele, então.
Eles andaram mais a metade de um quarteirão em silêncio íntimo.
– Eu a assustei no restaurante – disse ele.
– Eu quase causei sua morte – respondeu Anna, sem elevar o tom de voz – Obrigada por me parar antes que eu estragasse tudo.
Ele parou de repente, puxando-a para perto.
– Você entendeu.
– Não naquele exato momento – admitiu ela. – Reagi primeiro, e isso realmente me deixou chateada. Justamente nas situações em que prometo a mim mesma não ser uma covarde,
acabo fugindo logo em seguida.
Charles começou a andar novamente.
– Você não é uma covarde. Uma covarde nunca teria sobrevivido ao que você sobreviveu.
Mas ele disse isso distraidamente, como se estivesse pensando em outra coisa.
– Você sabe que eu não iria machucá-la.
Charles não disse aquilo como se acreditasse. Ela apertou seu braço com mais força.
– Eu sei. Meus instintos são meio malucos às vezes, mas sei que você nunca iria me machucar.
Charles olhou para ela, em um longo olhar pensativo.
Anna ergueu o queixo e disse:
– Eu disse que sei você nunca iria me machucar.
Então ela teve que modificar a frase, de forma que ele sentisse a verdade absoluta da mesma.
– De propósito.
Isso ainda não era forte o suficiente. E tudo o que uma pessoa faz tem que ter um propósito. Ainda não estava perfeito.
– Você sempre tem cuidado com o que faz. Comigo.
– Pare – disse Charles; seus ombros estavam tremendo e seus olhos dançavam. – Por favor. Acredito em você. Mas no próximo minuto, você vai se convencer a não confiar mais
em mim.
Depois de terem caminhado mais um pouco, ele disse:
– A noite está linda.
Anna olhou para a chuva e as ruas da cidade, ainda barulhentas com o trânsito. Ela gostava do jeito como as luzes brilhavam na tempestade. Os barulhos da cidade eram tão familiares
e bem-vindos quanto os barulhos de sua cidade natal. Anna achou que Charles não pudesse achar aquela paisagem urbana bonita. Ela sorriu para a noite.
CINCO
– Estamos preocupados com os inocentes – disse o lobo russo no púlpito. Ostensivamente, ele estava falando para a multidão, mas suas palavras eram para Charles. Ele falava
em inglês, o que era ótimo porque o pouco russo que Charles sabia não era confiável para assuntos sérios, e ele estava sendo distraído por Anna, que estava sentada, muito
quieta, ao lado dele.
– Nós somos fortes – disse o russo – e nós podemos proteger a nós mesmos. Mas temos companheiros e companheiras que são seres humanos, famílias que são humanas. Eles vão sofrer,
e isso não pode ser tolerado.
Havia algo incongruente sobre o local onde eles estavam: um auditório elegante com adornos de carvalho, forrados em tecidos de várias tonalidades de cinza acastanhada, discreto
e caro. Um lugar onde Angus caçava os CEOs de grandes empresas e os capturava com imagens do poder que sua tecnologia poderia lhes dar. Os homens e mulheres que ocupavam os
lugares nessa manhã eram um tipo diferente de predador. Podiam estar vestidos com suas melhores roupas, mas os atuais ocupantes desses agradáveis lugares faziam os CEOs parecerem
filhotes de cachorro.
– Se você não pode proteger sua própria família, você merece perdê-los – comentou Chastel, sentado na parte de trás do auditório. Ele não falou aquilo em voz alta, mas em
uma sala projetada para aumentar o som e povoada por lobisomens com audição aguçada, isso não era necessário.
Charles esperou. Como era sua vez de falar, o lobo russo olhou para ele para impor disciplina. Mas isso não era trabalho de Charles. Não dessa vez. O irmão lobo estava confiante
de que seria muito em breve: eles disciplinariam Chastel, e o sangue correria. Mas aqui, nessa sala, isso era trabalho de outra pessoa.
A manhã do primeiro dia do encontro era um momento muito bom para uma demonstração.
– Jean Chastel – disse Dana. – Você não vai falar de novo nessa sala até que seja sua vez de fazê-lo.
Charles foi provavelmente o único no auditório que não ficou surpreso quando o lobo francês deu um sorriso escarninho e abriu a boca para dizer algo para a Fae – e não conseguiu.
No território de Chastel, com sua alcateia para apoiá-lo, ela não teria sido capaz de jogar um encantamento sobre ele tão facilmente. Mas esse era o território de Dana (uma
das razões pelas quais o Marrok decidira realizar essas negociações em Seattle). Chastel tinha apenas uma coleção de Alfas infelizes que não compartilhavam seu poder com ele,
não importa quão intimidados estivessem, pois a Fera nunca deixaria que eles se aproximassem dele. Chastel não era o Marrok.
Contudo, ele poderia ser – e esse era um pensamento assustador. Existira um governante europeu equivalente ao pai de Charles uma vez.
Foi após a Peste Negra... Charles não tinha idade suficiente para ter estado lá, mas Bran e Samuel tinham. Foi horrível. Desumanizante. Especialmente para aqueles que não
eram mais verdadeiramente humanos. Tantas mortes, tantas vidas perdidas. Alguém viu os escritos na parede, e soube que a humanidade se recuperaria – e começou a procurar os
monstros que se alimentavam dos moribundos. Assim, o primeiro Marrok foi criado. Ele não era chamado de Marrok – isso tinha sido uma decisão de Bran no Novo Mundo –, mas era
isso o que ele era. Tornado Alfa de todos os Alfas e, pelo poder adquirido, capaz de derrotar qualquer outro. Ou deveria ter sido assim.
Chastel o havia assassinado – e a qualquer um depois dele que tentasse restabelecer a dominação. Ele poderia ter se transformado em tal líder, mas não queria isso. Ele não
queria a responsabilidade. Chastel só queria a liberdade de matar e continuar matando quando quisesse.
Arthur Madden, o Mestre das Ilhas, era o equivalente mais próximo de um Marrok que Chastel havia permitido na Europa – principalmente porque Chastel não considerava as Ilhas
Britânicas uma ameaça.
Mesmo com tanto poder, atualmente Chastel cometia seus assassinatos de forma mais discreta do que quando foi transformado. E Charles achava que isso era porque havia uma só
pessoa no planeta que a Fera temia: seu pai. Ele dissera a Chastel que não queria mais ouvir falar sobre monstros devastando a França. E isso tinha acontecido alguns séculos
atrás.
Por isso, Charles não ficaria surpreso ao descobrir que Chastel não se importava nem um pouco com o fato de o Marrok querer tornar pública a existência dos lobisomens. Chastel
quase tinha feito isso séculos atrás. Charles concluíra que a razão mais provável da presença de Chastel nessa reunião era a possibilidade de uma chance de derrotar o Marrok,
a qual ele não teria.
Pelo menos assim ele ficaria quieto por enquanto.
Charles virou a cabeça para Dana e acenou em apreciação. Ela parecia mais comum do que o habitual hoje. Dana havia colocado dez quilos a mais nos quadris e tirado doze centímetros
de sua altura; ela usava um terno caro (mas sem atrativos) e calçava sapatos de professora. Charles se perguntou se ela não havia feito isso para ver se conseguia que algum
dos lobos a desafiasse – ou, como Anna havia dito, para desviar a atenção de sua outra aparência, demasiado distinta e bela.
– Tiro certeiro, Tex – murmurou a bruxa da alcateia da Emerald City, em uma voz que, apesar de toda a sua suavidade, chegava até a multidão. Ela e seu companheiro estavam
atrás da mesinha onde Charles e Anna estavam sentados – eram guardas de honra.
A bruxa era uma mulher pequena. Ela era a companheira de um dos principais lobos de Angus, Tom Franklin: um homem calmo, com uma cicatriz no rosto. Ele estava tão infeliz
com o fato de sua companheira estar ali na sala quanto Charles estava por Anna, embora por razões completamente diferentes. A bruxa era cega, e isso significava – pelo menos
para seu companheiro – que ela era vulnerável.
Normalmente isso não teria sido um problema para Tom. Charles sabia que ele era durão, mas um segundo em comando não seria capaz de proteger sua companheira nessa multidão.
Em outras circunstâncias, Charles teria certeza de que uma bruxa poderia proteger a si mesma, mas o cheiro dessa lhe dizia que ela era limpa e pura. Bruxas brancas não eram
tão poderosas quanto suas contrapartes negras.
Charles queria sua companheira fora dessa sala. Ele tentou se concentrar no lobo russo e na continuação da sua fala, agora que a interrupção havia sido eliminada. Mas muito
de sua atenção estava voltada para Anna.
Ela começara bem. Anna havia se sentado perto dele e prestado atenção. Mas havia mais de cinquenta Alfas no pequeno auditório. Cinquenta Alfas, algumas de suas companheiras
e um punhado de lobos menores: mais de uma centena ao todo – e a maioria deles estava mais interessada em ver o lobo Ômega de Charles do que prestar atenção em quem estava
falando. E sob o peso de todos aqueles olhos, Anna estava tremendo.
Vou matar todos, sussurrou o irmão lobo, eles a assustaram.
Charles olhou para Anna, mas dessa vez ela não ouviu o irmão lobo como ouvira anteriormente: Charles empurrou o que ele dizia para o fundo de sua mente, como um mistério que
poderia ou não ser resolvido.
Com exceção do impulso protetor do irmão lobo, não eram Anna que o estava preocupando, não diretamente. Ela era durona, e aguentaria algumas horas de estresse – e ele garantiria
que seria apenas isso. O problema eram os lobos.
Dos lobos mais próximos a Anna, quase todos os machos (e algumas fêmeas também) estavam começando a se concentrar totalmente nela. Suas qualidades de Ômega estavam atraindo
seu instinto de proteção, e esses lobos eram Alfas e dominantes, em quem o instinto de proteger era primordial. Alguns deles sabiam o que estava acontecendo, e alguns deles
até o porquê daquilo. Arthur olhou-o nos olhos e sorriu. Maldito, pensou Charles; o lobo britânico estava gostando daquilo.
O russo terminou seus comentários e colocou o pé direito de volta no lugar, virando o corpo em direção a Charles e convidando-o a falar de suas preocupações, sem pedir isso
verbalmente.
Charles se levantou. Ele poderia ter tomado o púlpito e o microfone que o lobo russo indicara, mas isso deixaria Anna sozinha (com o segundo em comando da alcateia da Emerald
City, sua bruxa e Dana para protegê-la), e o irmão lobo se opunha inteiramente a isso.
O fato de o auditório ser pequeno e as orelhas dos lobisomens serem muito grandes, como as de seus primos dos contos de fadas, foi uma coisa boa naquele momento.
– Eu entendo você – disse Charles, projetando a voz para levar suas palavras até a fileira de trás. – Você está certo em ter preocupações. Quase três décadas atrás, no ano
que os Fae vieram a público anunciar sua existência, três dos nossos lobos relataram ter sido contatados por agências governamentais anônimas, que os ameaçaram com a exposição
caso eles não cooperassem. Foi dito a um dos lobos que sua família estava em perigo.
– Nesse ano, quarenta e dois de nossos lobos foram contatados – por agências do governo, por países estrangeiros e por pelo menos três diferentes organizações terroristas.
Em muitos casos, entes queridos e familiares foram ameaçados ou mantidos sob ameaças. Meu pai cuida de seus lobos, e teve de lidar com a situação. Para isso, usou dinheiro,
poder e influência em sua maior parte, embora várias pessoas tenham morrido.
Charles mesmo havia matado duas delas.
– Mas no final só há uma maneira de lidar com chantagem – nesse momento, ele fez uma pausa e olhou para os lobos. – Devemos trazer nossos segredos à tona, e eles não terão
mais munição. E teremos que manter a maré da opinião pública a nosso favor quando o fizermos. Só então estaremos verdadeiramente seguros.
Charles virou seu olhar para o lobo russo, que fez a gentileza de abaixar o olhar imediatamente.
– Não estou dizendo que é a solução perfeita – apenas que é a melhor solução disponível para nós.
Primeiro dia, pensou ele, devo seguir o roteiro. Charles havia oferecido a primeira das propostas que eles haviam sugerido para os lobos europeus.
– Nós planejamos fazer com que a opinião pública mantenha o governo sob controle, forçando-os a ser no mínimo prudentes em suas negociações. Meu pai está ciente de que a opinião
pública é uma arma muito maior aqui nos Estados Unidos do que em alguns países onde os governos são menos responsáveis perante os seus cidadãos. À luz desse fato, meu pai
sugere uma proposta: ele permitirá que, nos próximos cinco anos, qualquer lobo que queira imigrar possa vir para cá sem maiores problemas.
Isso era uma grande concessão. Normalmente, as imigrações só eram autorizadas depois de muita negociação.
– Além disso, ele está disposto a considerar a imigração de alcateias inteiras.
Agora Charles tinha a atenção da plateia. Ele se certificou de não estar olhando diretamente para os lobos franceses, que tinham a melhor razão para quererem sair de onde
estavam. Alcateias se mudavam somente para territórios abertos ou territórios que haviam sido tomados à força por um processo de extermínio.
– Haverá condições a serem cumpridas. Os lobos devem se apresentar ao Marrok e concordar com as regras pelas quais vivemos aqui, em seu território. Devem concordar em ir para
onde lhes for ordenado. Em troca, receberão os benefícios que todos os lobos de meu pai recebem – proteção e auxílio.
Charles olhou para o grande relógio na parte de trás da sala e observou com algum alívio que o seu relógio interno estava correto. Eram onze horas, e ainda era cedo para uma
pausa para o almoço, mas não tão absurdamente cedo.
O lobo russo voltou para o microfone.
– Tivemos esses recrutadores de que você fala entre nós também. Infelizmente, a nossa resposta nem sempre resultou em mortes apenas do lado inimigo. Não tenho tanta certeza
quanto o Marrok ou você de que a melhor resposta é vir a público, mas... considerando a oferta generosa de realocação, estamos dispostos a reconhecer que revelar nossa existência
para os humanos seria uma solução para muitas coisas.
Ele se curvou para Charles e curvou-se ainda mais para a Fae.
Quando o russo se sentou no meio de seus compatriotas, Charles disse:
– Nosso anfitrião mandou trazer comida. Vamos fazer uma pausa para o almoço.
Charles segurou o companheiro da bruxa pela manga quando esse ia se dirigindo para alguma missão, provavelmente algo a ver com o almoço.
– Tom, fique aqui por um instante com sua companheira, por favor.
De seu lugar perto da porta, Angus olhou para a mão de Charles. Um bom Alfa protege os membros de sua alcateia. Charles tirou a mão do braço de Tom e acenou para Angus, para
lhe mostrar que não tinha nenhuma intenção de causar mal ao lobo. Tom viu o que estava acontecendo e fez um gesto que pareceu ter mais efeito sobre Angus do que as garantias
de Charles.
– Não houve tempo para apresentações essa manhã – disse Charles, quando finalmente se viram sozinhos. – Anna, este é Tom Franklin, o segundo em comando de Angus, e sua companheira.
Sinto muito, você não foi apresentada a mim.
– Moira – disse a bruxa. Os óculos escuros que ela usava tornavam sua expressão difícil de interpretar, mas o nariz de Charles lhe disse que ser apresentada ao exterminador
do Marrok não a deixava assustada. Isso não era muito comum, mas havia o fato de que ela também não podia enxergá-lo. – Prazer em conhecer vocês dois.
– E essa é minha Anna – disse Charles, olhando para Tom em seguida. – Há lobos dominantes demais e ela se sentiu um tanto... – não era bem “assustada” o que Charles queria
dizer, por isso encontrou uma palavra melhor e a utilizou. – Ela se sentiu um tanto sufocada essa manhã.
Anna ficou rígida ao seu lado.
Foi Tom que o salvou.
– É um prazer conhecê-la. Com os diabos, eu também fiquei um pouco sufocado. Quem não ficaria?
– Mas você não é um Ômega – disse-lhe Charles. – Tom, você provavelmente não notaria...
A bruxa o interrompeu.
– Porque ele estava muito preocupado com a possibilidade de eu me sentir “sufocada” também – disse Moira, cutucando Tom com o ombro – por todos aqueles überlobos. Como não
sou prejudicada por impulsos masculinos superprotetores, eu pude prestar atenção a outras coisas. No final, todos estavam concentrados em Anna, não estavam?
Charles sentiu sua sobrancelha rastejar para cima quando ele olhou para a bruxa.
– Ei – disse Moira, dando de ombros. – Eu sou cega, não deficiente sensorial.
– Eu estou causando problemas para você – disse Anna. – Sinto muito. Eu vou tentar...
Sob o olhar dele, sua voz sumiu.
– Não – disse Charles, falando baixinho – se desculpe pelo que foi feito a você. Se fosse você o problema, eu não teria preocupações. Você ficaria aqui e não vacilaria se
a própria Fera saltasse babando em seu rosto. Sua coragem não está em dúvida.
A bruxa franziu os lábios e disse:
– Uau. Essa foi boa.
Depois de dar uma olhada avaliadora para Charles, Anna voltou-se para Moira e disse, com a voz séria:
– Ele marcou uns pontos, isso é certo – depois continuou, olhando de volta para Charles. – Então qual é o problema, se não sou eu?
– Ômega – disse Charles, dirigindo-se a ela formalmente –, é privilégio dos dominantes proteger nossos entes submissos, o coração de nossas alcateias. Alfas sentem esse desejo
de proteger ainda mais fortemente. Um Ômega faz esse desejo surgir como o mais forte de todos.
Anna acenou com a cabeça, confusa. Charles concluiu que ela já sabia disso. Ela simplesmente não conseguia ver o que isso tinha a ver com a situação. Anna estava muito acostumada
a olhar para os lobos dominantes como ameaças.
– Querida – disse a bruxa –, enquanto você estava lá tremendo por causa de todos aqueles lobos desagradáveis olhando para você, eles estavam tentando descobrir por que você
estava chateada e quem eles precisavam matar por você.
– Opa – disse Anna, quando compreendeu o alcance do problema. – Eu... – Anna hesitou, e Charles a viu engolir seu pedido de desculpas. – Eu preciso ir, então, não é? Posso
voltar para o hotel.
– Bem – disse Charles, também se desculpando. – Eu receio que isso não vá funcionar.
– Por que não? – sorriu Anna, continuando maliciosamente. – Você não está alugando o quarto durante o dia, está? Deixando suas ex-namoradas lá?
Charles não precisou se inclinar muito para tocar o topo da cabeça de Anna com o queixo. Colocar a boca perto do seu ouvido exigiu só um pouco mais de inclinação.
– Porque o irmão lobo passou a manhã inteira agitado, também.
Charles se afastou e deixou o lobo aparecer, apenas o suficiente para que Anna pudesse vê-lo em seus olhos.
– Se você ficasse em nosso quarto de hotel, eu nunca conseguiria fazer qualquer coisa aqui por causa da agitação dele – continuou ele, olhando para Tom. – Você não estava
se saindo muito bem também.
O segundo em comando de Angus começou a sorrir.
– Você quer que Moira e eu levemos sua mulher para passear?
– Se Angus permitir.
Tom pegou um telefone celular.
– Não acho que ele fará qualquer objeção.
Charles estreitou os olhos para Anna.
– Isso também é de extrema importância: os cartões de crédito estão com você. Eu quero que você os use.
Charles viu a recusa no rosto dela – Anna ainda não se sentia parte dele ainda... ou melhor, parte deles. Para Anna, o dinheiro de Charles não era dela.
Anna era independente, e passara pelo menos os últimos três anos sem quase nenhum dinheiro para se alimentar. Dinheiro era algo importante para ela – e gastar o de outra pessoa,
uma tarefa quase impossível.
– Você precisa de roupas de todos os tipos. O que compramos para você em Aspen Creek não é o suficiente para esse local. Seu status como minha esposa significa que você precisa
de roupas para ocasiões formais. Vestidos, sapatos e todos os enfeites.
Anna ainda estava se sentindo rebelde, mas enfraquecia cada vez mais.
Tom largou o telefone.
– O chefe diz que tudo bem.
– E se você comprar os presentes de Natal – continuou Charles –, não vou precisar fazer isso.
Anna sorriu de repente, e Charles viu que tinha vencido.
– Tudo bem. Ok, tudo bem. Quais são os limites?
Tom levantou uma sobrancelha – todos sabiam que Charles cuidava das finanças do Marrok... e que era muito bom nisso, também.
Charles inclinou a cabeça.
– Se você decidir comprar uma Mercedes, terá que usar ambos os cartões. Vá. Conquiste o centro comercial de Seattle, para que eu não precise fazer isso.
– Banida... – suspirou Anna, mas não conseguia esconder o humor que suavizava sua expressão enquanto pegava sua jaqueta e bolsa. Mas Charles levou seu comentário a sério.
– Não permanentemente – disse ele. – Vamos apresentá-la a Arthur mais adequadamente essa noite. Você conhecerá Tom e Moira melhor até o final do dia. Eu acho que se nós a
mantivermos fora do auditório hoje, tudo vai se resolver.
– Angus convidou a todos para ir ao nosso campo de caça amanhã à noite – disse Tom.
Charles assentiu.
– Isso vai ser menos formal, e todo mundo vai prestar atenção nos caçadores. Dê-lhes uma chance de observá-la sem ficar olhando fixamente para eles, e vice-versa.
– Onde você caça? – perguntou Anna, dirigindo-se a Tom. – Perto da pista de pouso?
Tom balançou a cabeça.
– Angus tem alguns armazéns.
– É interessante – disse Moira. – Ele transformou aquilo em um labirinto –túneis, vários andares e paredes pela metade que podem ser movidas para mudar tudo. Você vai se divertir.
– O que vamos caçar? – a voz de Anna havia perdido a tensão do estresse.
– Um tesouro. O que é exatamente será uma surpresa. Colocamos coisas em todos os lugares do armazém ontem – disse Tom, olhando para baixo. – Lobos comem rápido. Se vamos sair,
precisamos sair agora.
Anna deu um beijo tímido no rosto de Charles e então caminhou para fora da sala sem olhar para trás. Mas quando chegou à porta, Anna beijou a palma da mão e soprou-lhe um
beijo à vista dos curiosos que tiveram a coragem ou descortesia de permanecer no auditório depois que Charles os dispensara.
E apesar (ou por causa) da sua audiência, ele agarrou o beijo no ar e levou a mão ao coração. O sorriso de Anna desapareceu, e a expressão nos olhos dela iria alimentá-lo
por uma semana. As expressões nos rostos dos lobos que conheciam Charles, ou sua reputação, iriam fazê-lo rir, assim que ninguém estivesse olhando. Mantê-los impressionados
também não era uma coisa ruim.
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Anna achou que os cartões que Charles lhe dera possivelmente já haviam feito um buraco em sua bolsa devido ao calor da fricção... Eles já tinham deixado uma parte das compras
no hotel e haviam acabado de completar mais uma rodada.
– Estamos a meio caminho entre o hotel e o escritório de Angus – disse ela. – Que caminho devemos tomar?
– Vou levá-la de volta para Charles – disse Tom.
– Se você vai jantar com aquele britânico metido, você precisa se preparar – aconselhou Moira, passando por cima de Tom. – Vá para o hotel e comece a se arrumar. Você tem
um celular, e o seu companheiro também. Se ele não sabe onde encontrá-la, ele pode ligar.
Anna olhou para Tom, e viu que ele deu de ombros – a expressão em seu rosto não era tão humilde quanto suas palavras:
– Se você acha que eu vou discutir com ela, pode achar outra coisa.
Moira bateu-lhe com o quadril.
– Oooh... Você tem tanto medo de mim.
O grande lobo assustador sorriu, a boca um pouco repuxada pela cicatriz no rosto.
– Isso é verdade. Nada além da verdade.
De brincadeira, Tom esfregou o topo da cabeça de sua companheira, e então manteve a mão onde estava para que ela pudesse ficar fora do seu alcance quando tentasse bater nele.
Depois da primeira hora, Anna não estava mais nervosa perto dele. Tom pacientemente as levava de uma loja para outra. Ela tinha ouvido falar de Pike Place Market durante anos,
e no início não tinha ficado impressionada. Parecia apenas mais um grande bazar – mas com frutas e peixe fresco.
Em seguida, Moira começou a levá-la a todos os cantos, em pequenas lojas e em pequenas barracas – para uma mulher cega, ela era uma compradora e tanto. E Tom estava sempre
no lugar certo para colocar o braço para guiá-la e murmurar avisos em voz baixa enquanto eles desviavam de outros clientes e caminhavam sobre o piso irregular.
Tom era consultado sobre forma e cor, enquanto Moira apreciava tecidos com as pontas dos dedos e barganhava com os lojistas. Como resultado, Anna conseguiu comprar o básico
de todo um guarda-roupa por menos do que havia gasto em alguns pares de jeans quando estava no colégio. Quando a barraca não aceitava crédito, Tom pagava, a despeito dos protestos
de Anna.
– Acalme-se. Charles tem crédito – disse ele. Essa última frase pareceu diverti-lo.
Anna também adquirira uma enorme quantidade de presentes de Natal, conforme Charles havia pedido. No ano passado ela tinha ficado com medo (e também sem dinheiro) para enviar
presentes para o pai e o irmão. Mas nesse ano, ela e Charles tinham a família de Anna e toda a família de Charles (e mais alguns outros...) para quem comprar presentes.
A conferência estaria terminada até o Natal – Anna tinha a impressão de que algum incidente havia atrapalhado o calendário do Marrok. Charles tinha viajado por alguns dias
e voltara ainda mais sombrio do que o habitual. Ele não tinha oferecido nenhuma informação sobre onde tinha ido ou o que tinha feito, e Anna ficara muito intimidada por seu
silêncio opressivo para perguntar. Foi no dia seguinte que o Marrok começou a planejar essa cúpula – e foi aí que Charles e ele haviam começado a brigar por causa disso.
Anna encontrou um par de pequenos brincos em forma de argola de ouro com pedaços redondos de âmbar bruto para Charles – que deveriam substituir aqueles que Charles havia dado
ao troll. Na mesma loja, Anna se rendeu e comprou um par para ela mesma, maior e mais barato. Ela se sentiu culpada por isso, mas talvez conseguisse pagar a Charles por eles.
Eles foram mais baratos do que teriam sido se fossem comprados em Chicago.
Depois disso, Anna saiu de uma pequena loja como a orgulhosa dona de três camisas de seda – e então seu olhar foi atraído pela vitrine de uma loja algumas portas adiante.
– O quê? – disse Moira, em um tom urgente. – O que é, Tom?
– Uma colcha de retalhos, eu acho – resmungou ele. – Puxa, Moira, se vocês duas forem comprar mais alguma coisa, eu vou ter que ajudar a carregar as coisas – e isso fará de
mim um péssimo guarda.
A colcha era enfeitada com faixas estreitas de tecido vermelho e verde, a cor dos antigos cobertores Pendleton. No interior, havia quatro quadrados e uma seção central redonda.
Os painéis quadrados eram cenas abstratas mostrando a mesma montanha: os dois painéis na parte de cima mostravam a montanha durante dias de primavera e verão, e os dois painéis
na parte de baixo mostravam-na em noites de outono e inverno. O painel central era de um verde mosqueado com a silhueta em vermelho de um lobo uivando. Enquanto isso, Moira
dizia a Tom:
– Não acho que encontraríamos algo pior do que um batedor de carteira aqui. Eu confio em você para lidar com um deles, enquanto segura algumas sacolas em um braço...
Moira tocou o ombro de Anna.
– O que você está fazendo aqui? Entre e compre logo a colcha. Tom, como ela é?
Anna olhou para o preço em uma etiqueta discreta presa à borda da colcha e engoliu em seco.
Depois disso, eles voltaram para o hotel, e Anna era a orgulhosa nova proprietária de três... três colchas de retalhos. Uma para o pai dela, uma para o Marrok, e uma para
Charles – exatamente a que ela tinha visto na janela.
– Você pode colocá-las na cama – disse Tom, em um tom de voz divertido. – Elas não vão quebrar ou fugir.
– Estou em choque – disse Anna. – Com exceção da primeira vez que vi Charles, acho que nunca cobicei tanto alguma coisa.
Mas Tom, pelo menos, saberia que ela não estava dizendo toda a verdade, e por isso Anna acrescentou:
– Tudo bem que teve aquele violoncelo na loja de instrumentos musicais em Chicago, que custava mais do que a maioria dos carros e valeria cada centavo.
– E ela continuou encontrando mais colchas – disse Moira, evidentemente se divertindo.
– Não consegui me controlar – disse Anna, mais ou menos brincando; na verdade, ela ainda estava chocada com a possessividade absoluta que sentia. Sorte que ela havia parado
no número três. – Talvez eu comece a fazer colchas de retalhos.
– Você costura? – perguntou Moira.
– Ainda não – disse Anna, ouvindo a determinação em sua voz. – O que você acha? Será que sou capaz de encontrar alguém para me mostrar como fazer isso lá em Aspen Creek?
Tom riu.
– Anna, eu acho que Charles voaria com você para a Inglaterra duas vezes por semana se você quisesse que ele a levasse. Você provavelmente vai encontrar alguém mais perto
para lhe ensinar a fazer isso.
A declaração dele deu a Anna uma sensação estranha. Ela tocou o pacote que havia embrulhado para Charles, e depois se virou com um sorriso quando Moira disse que eles precisavam
se mexer pois ainda havia muitos sapatos para serem comprados, e o dia estava correndo.
Anna fechou a porta do quarto de hotel atrás deles e tentou lidar com aquela revelação; ela estava bastante segura de que Tom estava certo.
Foi só quando eles estavam parados na frente dos elevadores que Anna encontrou seu equilíbrio. Então Charles voaria com ela para a Inglaterra se ela lhe pedisse... Mas isso
não era muito chocante, afinal: Anna já havia escalado uma montanha congelada (enterrada nas profundezas do inverno de Montana) junto com Charles... Isso de certa forma os
tornava iguais.
– Ei – disse Moira, estalando os dedos na frente do nariz de Anna. – Sapatos, lembra?
A porta do elevador se abriu.
– Desculpe – disse ela. – Tive uma revelação aqui...
– Ah – exclamou Moira, parecendo considerar isso por um momento. – Não. Sapatos são mais importantes. Especialmente se você quiser aquele britânico esnobe comendo na sua mão.
E assim Anna preparou-se e partiu para uma segunda etapa da maratona de compras. Escurecia cedo no início do inverno, mesmo que estivesse só chovendo. Quando Moira já havia
rodado bastante (e Tom já reclamava dos pés dormentes), ela finalmente cedeu e disse que eles poderiam voltar. Anna já tinha seus sapatos, e seus cabelos já estavam aparados
e penteados.
A bruxa insistiu com firmeza para que eles fossem para o hotel, e não para o auditório.
Moira inclinou-se para Tom como se ela precisasse ver o rosto de Anna quando ela fizesse seu pronunciamento final.
– Homens não se importam em se vestir para o jantar. Homens se barbeiam, colocam uma gravata e pronto! Isso já está bom. Mulhe...
Eles saíram da escuridão da escadaria de um apartamento localizado em um porão, e traziam um feitiço de silêncio e sombras com eles, com o qual ficaram escondidos dos sentidos
agudos de Tom, bem como das capacidades sensoriais menos bem-treinadas de Anna... Atingiram Tom primeiro, mas não com muita força. Anna ouviu o arquejo de Tom, mas antes que
ela pudesse ver o que havia acontecido com ele, um braço delicado e forte como o aço enrolou-se em torno de sua garganta.
A magia moveu-se e ficou ao redor de todos eles; era uma magia familiar, utilizada por alcateias para esconder brigas ou mortes ou qualquer outra coisa que os lobos não quisessem
que o resto do mundo ficasse sabendo. Mas os agressores não cheiravam como lobos.
Enquanto Anna lutava para libertar sua garganta, ela viu um de seus atacantes, uma mulher, correr em direção à bruxa como um jogador de futebol americano, derrubando-a para
fora da calçada, na rua.
Um grito curto ecoou, e um corpo caiu no pavimento perto de Tom. Anna não podia vê-lo, mas sabia que o grito não podia ser de Tom; ele nunca teria feito um som tão estridente
assim. A atacante de Moira deixou de lado a bruxa cega para ajudar os outros com Tom.
– Linda Anna – sussurrava sua agressora, lambendo sua garganta. Ela não era humana: nenhum ser humano poderia ter imobilizado Anna tão facilmente – ou imobilizado Tom, seja
lá em que número fossem. – Venha comigo, garotinha, e os outros vão sobreviver.
Passado o choque imediato do ataque, Anna chutou e quebrou o joelho do inimigo. Ela não era uma “garotinha” – era um lobisomem.
A mulher gritou em seu ouvido – um grito forte e estridente que ensurdeceu e feriu o ouvido de Anna, fazendo com que ela fosse para a calçada a fim de escapar dele. Mãos duras
enterraram-se em seus ombros, preparando-se para arrastá-la para algum lugar. Anna torceu-se e contorceu-se, conseguindo atingir a mandíbula da mulher com seu calcanhar. Isso
fez o barulho parar.
Foi então que seu lobo assumiu o controle. Sem usar a forma física do lobo, mas ainda na forma humana, Anna já havia ensinado à mulher o que ela deveria saber de antemão –
que ser Ômega não significava ser um capacho. Não queria dizer fraca. Significava ser forte o suficiente para fazer exatamente o que tinha de fazer a fim de triunfar, não
importando se isso significasse submissão na presença de lobos dominantes ou deixar o inimigo em pedaços.
Anna estava muito longe do controle para determinar exatamente quando foi que entendeu o que os havia atacado – eram vampiros. Mas lembrou-se das lições de Asil sobre como
matá-los. Quando viu o vampiro dividido em dois pedaços – o corpo a seus pés e a cabeça um pouco mais perto de Moira, que gritava em fúria incoerente –, seu lobo soltou um
bufo de satisfação e deixou Anna assumir novamente. Assim, ela pôde ouvir o que o lobo não tinha ouvido.
O que Moira estava gritando era:
– Droga, digam-me o que eles são! Tom. Tom. Anna!
E enquanto pulava em direção à pilha de corpos que devia estar sobre Tom, Anna disse a ela:
– Vampiros.
Moira não a ouviu, e então Anna arrancou o braço do vampiro que ela estava tentando tirar de cima de Tom e gritou:
– Vampiros, Moira. Vampiros!
E de repente a luz explodiu em torno deles, quente e brilhante – e os vampiros que Anna e Tom ainda não haviam matado pararam de lutar e correram. O vampiro de Anna agarrou
seu braço caído do chão antes de também sair correndo atrás dos outros. Anna deu um passo na direção deles, e então se forçou a parar.
Havia ainda quatro vampiros, o que provavelmente era demais para Anna – e ela não podia abandonar os seus amigos caídos.
– Tom?
– Ele está vivo – disse Anna, após um rápido mas completo exame, feito a um metro e meio de distância. – Mas ele vai precisar de algum tempo antes de estar pronto para acreditar
que não somos o inimigo.
Anna se ajoelhou ao lado da bruxa e perguntou:
– Você está bem?
– Estou bem... Tudo bem. Mas que droga foi isso...
Moira estava sangrando, Anna podia sentir o cheiro, mas não era muito sangue. Ela viu os cortes em seus joelhos e cotovelos, mas nada horrível. O “horrível” ali não tinha
nada a ver com o ataque dos vampiros.
Os óculos de Moira foram derrubados no chão, e assim Anna pôde ver o que Moira escondia por trás deles. Um de seus olhos tinha cicatrizes inacreditáveis, como se alguém o
tivesse arrancado com uma mão com garras. O outro era murcho como uma uva-passa, e tinha um tom branco e amarelado de aspecto doentio.
Sem uma palavra, Anna encontrou os óculos escuros – que não estavam quebrados – e colocou-os na mão de Moira. As mãos da bruxa tremiam quando ela os colocou de volta em seu
rosto, mas depois ela se acalmou.
Anna entendia sobre feitiços de proteção e a forma estranha que eles às vezes tomavam.
– Ele vai ficar bem – disse Anna, feliz por Moira não poder ver como Tom estava. Dessa forma seria mais fácil convencê-la de que ele ficaria bem. Lobisomens eram durões.
– Você pode nos proteger para não sermos vistos? Os vampiros estavam fazendo isso, ou alguém estava, parecia magia de alcateia. Agora que eles fugiram, o feitiço desapareceu.
Anna não sabia o suficiente sobre magia de alcateia para fazer isso sozinha. Além disso, precisaria da sua (nova) alcateia – mas ela estava em Aspen Creek, a dois estados
de distância.
– Eu posso fazer isso por algum tempo, mas você tem que me dizer se está funcionando – disse Moira, soando mais como a mulher obstinada com quem Anna havia passado o dia e
menos como a bruxa assustadora.
Anna olhou ao redor, mas os corpos decapitados dos vampiros haviam se transformado em cinzas por causa da morte completa, ou devido à luz do sol de Moira – ela não sabia muito
sobre vampiros.
– Isso vai funcionar – disse Tom, mas não fez qualquer esforço para se mover. Sua voz ainda era um rosnado, e seus olhos brilhavam amarelos na escuridão. – Anna, meu celular
está em pedaços, e Moira não tem um porque não gosta deles... Você precisa pedir ajuda – eu não vou conseguir andar por alguns dias.
Lobos dominantes não lidavam bem com lesões desse tipo – essas que os deixavam vulneráveis. A alcateia de Angus deveria ter a mesma configuração da maioria delas. Angus claramente
estava acima de todos, e depois haveria mais dois ou três perto do topo – e o resto estaria pronto para intervir quando necessário. Um dos braços de Tom estava quebrado, e
Anna tinha certeza de que havia outros ferimentos não imediatamente óbvios.
– Há um curandeiro por aqui, certo? – perguntou Anna.
– Alan Choo – disse Tom. – Mas ligue para Charles e diga-lhe para enviar...
Percebendo que ele não iria se mover, Anna virou-se para Moira, que havia seguido a voz de Tom até que pudesse tocá-lo. Julgando pela sua expressão, os vampiros tiveram até
sorte de estarem mortos, sem contar aqueles que fugiram...
– Moira, fale-me sobre Alan Choo. Ele é dominante o bastante?
– Ele não é – disse Tom, parecendo irritado. – Ele não pode mantê-la a salvo.
Um momento antes, Anna estava entorpecida e tremendo com os efeitos secundários da luta. Mas quando entendeu as palavras de Tom, ficou furiosa quase que imediatamente: Tom
iria se colocar em perigo por causa dela. Mais uma vez. Porque era Anna quem os vampiros estavam caçando.
Ela evocou seu poder e disse:
– Eu mesma me manterei a salvo.
Como Anna viu que Tom não diria nada em resposta a isso, disse para a bruxa:
– Moira, você tem o número de Alan Choo?
– Dê-me seu celular e eu mesma ligo para ele – disse Moira, com uma voz estranha.
Anna entregou o aparelho a Moira e virou-se para lidar com o companheiro da bruxa, e encontrou-o olhando para ela com um pequeno sorriso.
– Com mil demônios, mulher... Ninguém havia me colocado em meu lugar de uma forma tão perfeita desde a última vez que Charles fez isso. É melhor ligar para ele. Seu companheiro
vai estar se perguntando por que você usou o poder dele dessa maneira.
Qual maneira?, pensou Anna, mas concluiu que não parecia adequado dizer a Tom que ela não tinha a menor ideia do que ele estava falando: Anna havia aprendido muito sobre revelar
fraquezas, e não iria revelar nada a Tom, mesmo ele sendo um amigo.
– Ele vai ter que esperar – disse Anna, dirigindo-se à bruxa em seguida. – Moira, diga ao Sr. Choo para nos encontrar no hotel.
– E como vamos chegar ao hotel sem ajuda? – perguntou Tom. Ele tentou sentar-se e não conseguiu. – Droga. Eu não vou conseguir ir a lugar nenhum por uns tempos.
Anna esperou até que Moira tivesse acabado de falar com seu médico e pegou o telefone de volta. Depois disso, ela respondeu a pergunta de Tom:
– Sua companheira vai nos manter invisíveis e eu vou carregar você de volta para o hotel.
Ao ver o rosto espantado de Moira, Anna revirou os olhos – antes de se lembrar que a bruxa não podia vê-la.
– Ei, eu sou um lobisomem... Eu posso não ter o físico de um homem forte, mas consigo carregar Tom até o hotel, sem problemas.
Tom relaxou um pouco.
– Nós não temos nenhuma fêmea aqui, e você é bem magra. Eu esqueci – disse ele; Anna dirigiu-lhe um olhar, e Tom deu um leve sorriso. – Desculpe.
Eles não estavam muito longe do hotel, mas Anna achou a distância superior a cem quilômetros. Tom não era leve – lobisomens são mais densos que os seres humanos, e além disso
ela ficava se preocupando com os sons de dor que ele fazia, mesmo com todo o cuidado que ela tinha. A certa altura, Tom parou de fazer os sons, o que era pior. E lembrar-se
de avisar Moira sobre meios-fios e calçadas quebradas era mais difícil do que Tom havia feito parecer.
Entretanto, justamente quando estava pronta para desistir, Anna olhou para cima e viu o hotel.
O celular dela tocou. Um grupo de pessoas que saía do restaurante ao lado do hotel deu tapinhas nos bolsos e pareceu confuso, por isso Anna achou que talvez o feitiço de Moira
estivesse enfraquecendo.
Como as mãos de Anna estavam ocupadas, foi Moira quem tirou o telefone do casaco de Anna e silenciou o celular. Tom havia desmaiado já há algum tempo, e Anna estava preocupada
com uma possível uma trilha de sangue pelo caminho – mas não havia nada a fazer.
Anna estabelecera um plano de ação durante o caminho de volta. Ela chamaria Charles e explicaria a situação. Considerando o que ela sabia sobre hierarquia de alcateia e do
perigo que Tom (um dominante ferido) representava, certamente Charles também serviria.
– Porta – sussurrou Anna. A bruxa tirou os dedos do seu ombro e levou-os até a porta de vidro, deixando-a aberta enquanto Anna entrava cuidadosamente com seu fardo ferido.
– Está ventando hoje à noite – comentou alguém no lobby, enquanto a porta se fechava atrás deles.
Por sorte não havia ninguém no salão perto dos elevadores – ou no andar de Anna, quando o elevador parou. Ela precisou colocar Tom no chão para encontrar a chave magnética
do quarto. Anna o deixou no corredor e Moira ficou ao lado dele, murmurando baixinho, enquanto ela tirava os lençóis da cama e a forrava com toalhas para absorver o sangue.
Erguer Tom novamente iria consumir um tempo que eles não tinham. Ele estava semiconsciente e defensivo, e Anna não estava nada calma. Finalmente, ela simplesmente o levantou.
Se ele a mordesse, Anna ainda teria tempo de levá-lo para dentro e fechar a porta. Contudo, Tom estava muito mal para causar qualquer dano mais sério – como o dano que os
vampiros haviam feito de propósito, por exemplo. Além disso, Anna descobriu que estava disposta a correr esse risco.
Mas ele não a mordeu no caminho até a cama. Moira fechou a porta, e ambas deram um suspiro de alívio. O telefone de Anna tocou pela segunda vez. Moira colocou-o em suas mãos
sangrentas.
Era Charles.
– Anna?
Sua voz era sombria e urgente – e assim que Anna a ouviu, pôde sentir Charles correndo pelas ruas escuras, bem como o pânico e a raiva que cresciam por trás dela, como uma
maré escura de violência.
– Estou bem – disse ela, mas depois percebeu que não estava totalmente certa de que isso era verdade. No calor da batalha, Anna não havia sentido dor – mas tinha levado alguns
bons socos – e também dado alguns. Ela realmente não se lembrava, mas seus nós dos dedos estavam doloridos, assim como seu ombro direito, e parecia que seu estômago não estava
muito feliz com ela também. Felizmente, Anna não havia prestado atenção até depois de dizer a ele.
– O curandeiro de Angus telefonou a ele para dizer que tinha sido convocado para o nosso quarto de hotel – disse Charles. – Imediatamente depois que senti você utilizando
meu poder.
Anna lembrou-se do poder que ela havia evocado para fechar a boca de Tom – e a convicção dele de que Charles iria sentir aquilo. Leah, a companheira do Marrok, às vezes usava
a influência de Bran, mesmo quando ele não estava presente. Evidentemente, Anna podia fazer a mesma coisa.
– Sim, é isso mesmo.
Anna olhou em volta e respirou fundo. Ela se lembrou de que o feitiço de ocultação que um dos vampiros havia usado também surtira alguns efeitos estranhos sobre os combatentes,
reforçando a necessidade de sigilo. Ela deveria ter chamado Charles imediatamente.
– Eu gostaria que você viesse aqui também – disse Anna; na verdade, ela gostaria muito. – E talvez Angus, mas ninguém mais. Tom está bem ferido.
– Ferido o suficiente para que o resto da alcateia precise ficar longe – disse Charles friamente.
A percepção anterior da presença de Charles havia desaparecido com sua urgência, mas Anna não tinha certeza se devia confiar naquela frieza. A substituição da violência pela
calma tinha sido muito rápida.
– Certo – respondeu ela, embora não respondesse uma pergunta de verdade. – Moira e eu o trouxemos de volta para cá, mas não percebi o quanto ele estava sangrando. Provavelmente
há um rastro de sangue...
– Não – disse Moira firmemente, embora estivesse tão branca quanto o lençol sobre o qual estava sentada – note-se que tão branca quanto o lençol era originariamente, porque
no momento ambos estavam cobertos de sangue. – Eu dei um jeito no sangue.
Anna tinha aprendido o suficiente sobre feitiçaria para saber que não queria saber de mais nada. A fera em alerta dentro dela aceitou, provisoriamente, que estavam seguros.
– Você ouviu isso?
– Ouvi.
– Estamos a salvo no quarto. Tom não está mortalmente ferido, acho que não... – disse Anna, percebendo que a sala abruptamente ficou com um cheiro diferente. – Ele está se
transformando.
– É a melhor coisa que ele pode fazer, se puder – disse Charles. – Fique longe dele. Moira deve ser capaz de mantê-lo calmo o suficiente para que seja seguro ficar por perto.
Estou chegando, e vou telefonar para Angus e dizer-lhe que se ele valoriza o seu segundo em comando, é melhor manter o resto da alcateia longe dele. Estarei aí em alguns minutos,
e você pode me contar a história toda depois.
O telefone parou de fazer barulho, e Anna concluiu que Charles tinha terminado a chamada.
– Você já ficou perto de Tom antes enquanto ele se transformava? – perguntou Anna suavemente, dirigindo-se a Moira.
– Sim – disse a bruxa.
– Bom – disse Anna, deixando-se afundar na cadeira em frente à cama. – Basta ficar quieta. Vai demorar um pouco mais dessa vez – e para um lobisomem, transformar-se enquanto
está machucado é realmente uma droga. Tom vai estar extremamente mal-humorado quando terminar. Talvez não pareça ser ele mesmo, não por algum tempo. Dê-lhe algum tempo antes
de tocá-lo. Ele provavelmente vai mostrar a você quando puder suportar.
– Eles quase nos mataram – disse Moira. – Se eu os tivesse visto...
– Aquela explosão de luz foi impressionante – disse-lhe Anna. – Na próxima vez que nós formos atacados por vampiros, eu vou me esconder atrás de você e gritar o que eles são
no seu ouvido – continuou Anna, fazendo uma pausa antes de completar. – Foi uma coisa boa que você estivesse conosco. Nós teríamos perdido a luta se estivéssemos sozinhos.
Alguém sabia muito a respeito de Tom.
Ela lembrou-se da pilha de vampiros que tentavam matá-lo, praticamente ignorando Anna e Moira.
– Mas eles se esqueceram de você.
– Por que os vampiros nos atacariam? – perguntou Moira. – Quer dizer, eu sei que eles não são amigáveis, mas são práticos. Atacar a companheira de Charles não é nada prático.
– Alguém os pagou para fazer isso, eu acho – disse Anna, em tom de voz cansado. – Alguém que tinha muita certeza de que podia e manteria Charles longe deles. Alguém que sabia
que estaríamos fazendo compras hoje.
Anna olhou para suas mãos, enquanto Tom rosnava e chiava com a dificuldade da transformação. Depois, disse lentamente:
– Alguém que pôde dar a eles magia de alcateia para disfarçar o ruído e os corpos até que eles tivessem terminado.
– Você acha que um dos lobisomens está por trás disso?
– Eu não sei.
Mas Anna receava que sim.
Tom completou sua transformação. Sua respiração vinha em arquejos ásperos e gemidos de dor. Seu pelo era castanho chocolate, exceto por uma cicatriz prateada em torno de seu
focinho, e ele era quase tão grande quanto Charles em forma de lobo – e seu companheiro já era um lobo muito grande.
Moira estendeu a mão e tocou o pescoço de Tom, fazendo o lobo pular e Anna ficar em pé. Mas antes que ela fizesse qualquer coisa estúpida, o lobo se acalmou novamente, colocando
a cabeça no colo de Moira.
Alguém bateu à porta, e não era Charles.
SEIS
Charles forçou-se a andar. Não havia pressa. Tom teria sido um problema sob outras circunstâncias. Mas sua companheira estava lá para mantê-lo sob controle. E mesmo louco
de dor e fraqueza, Tom não faria mal a um Ômega.
Charles estava perdendo o equilíbrio: era culpa de Anna. Ele não estava acostumado a entrar em pânico, e isso o deixava no limite.
Havia pouquíssimas pessoas com quem ele se importaria o suficiente para entrar em pânico – e a maioria delas estava morta há muito tempo, e para sempre distante da necessidade
de sua ajuda. Charles normalmente confiava em seu pai e seu irmão Samuel quando o assunto era cuidarem de si mesmos.
Já Anna o deixava vulnerável.
Ela havia dito que estava bem, e não estava mentindo. Charles ouvira o estresse da sobrevivência em sua voz, mas ela estava segura por enquanto. E Tom precisaria de calma
para lidar com seus ferimentos, não de um lobo cheio de adrenalina que não era um membro de sua alcateia. Mas mesmo em um ritmo lento e constante, o irmão lobo lutava contra
seu controle, cada vez mais (e não menos) perturbado.
A metade humana também não estava se sentindo muito diferente. Alguém havia tentado ferir sua Anna, e Charles não estava lá para impedir isso.
Um jovem caminhando na direção oposta virou a cabeça e olhou para Charles, baixando rapidamente o rosto quando os seus olhos encontraram os seus. Só foi aí que Charles percebeu
que estava rosnando baixinho.
Ele parou, respirou profundamente e hesitou, como se o ar que tivesse respirado lhe dissesse algo... incomum. Algo estava faltando ali. Algo como a concentração normal dos
cheiros de uma cidade.
Charles estava em uma ampla faixa de calçada que estava tão limpa como no dia em que fora construída. O fato de não haver lixo visível não era muito estranho; não em Seattle,
onde a chuva lavava as calçadas regularmente. Mas nenhum lixo, nenhum cheiro, nada, isso era estranho. Estranho o suficiente para lhe permitir adiar a necessidade frenética
de encontrar Anna e assegurar-se de que ela estava bem, mesmo que apenas pelo tempo suficiente para pensar.
A bruxa de Tom resolveu o problema do rastro de sangue, conforme ela mesmo disse, e Charles estava disposto a apostar que estava olhando para os resultados: um trecho de calçada
dois tons mais brancos do que o resto do cimento no entorno. Ainda era uma trilha para quem quisesse segui-la – mas ele supôs que uma mulher cega não poderia saber disso.
E isso já era muito melhor do que sangue, o que teria enviado um grupo de policiais humanos até o hotel.
Ele poderia seguir a trilha até o hotel – ou poderia caçar. Charles ficou muito quieto e consultou o irmão lobo. Em seguida, eles se afastaram do hotel.
Sim, disse o irmão lobo, em acordo com sua metade humana.
Sangue e carne seriam bem-vindos. Anna esperaria por eles. Ela estaria segura com Angus por alguns minutos. O Alfa tinha ido para o hotel de carro.
Portanto, havia tempo para se alimentar. Charles e o irmão lobo poderiam se livrar da raiva, e ambos seriam capazes de recuperar o equilíbrio.
Não demorou muito (apenas algumas quadras) até que a calçada, alvejada de forma não natural, retornasse ao seu estado normalmente sujo. Apesar da chuva, o cheiro de Anna pairava
no ar.
Já estava completamente escuro, embora a hora não fosse adiantada; Charles concluiu que era um pouco depois das seis. Vinte minutos se passaram desde que Anna utilizara o
seu poder, e quinze desde que Charles falou com ela. As sombras não estavam tão escuras, mas estava suficientemente escuro para que um monte de coisas desagradáveis pudessem
sair à caça.
Charles voltou para o espaço limpo e olhou em volta. Ali havia um pedaço escurecido de pano, molhado e sujo, uma sacola de plástico rasgado que continha dois pares de sapatos
femininos e um outro sapato rosa brilhante (que estava queimado), jogado a vários metros de distância. Depois de uma breve investigação do resíduo da magia da bruxa, Charles
sentiu cheiro de vampiro.
Vampiros em Seattle atacando lobos. Charles considerou a questão – e cerrou os punhos com o pensamento de sua Anna lutando contra sanguessugas.
O pano não tinha cheiro de nada, já o sapato rosa solitário não foi tão completamente limpo pelo feitiço de limpeza da bruxa. Quando Charles o levou até o nariz, ele cheirava
levemente a carne queimada e vampiro.
Os outros quatro sapatos eram novos e cheiravam a couro, corante e, levemente, a Anna. Um par era de salto baixo, e o outro, de couro vermelho e salto alto, do tipo que as
mulheres usavam para seduzir os homens.
Charles não se importava com sapatos, e suspeitava que a maioria dos homens também não. Com sapatos, sem sapatos, ele não se importava. Sem roupas era o melhor; embora nas
últimas semanas ele tivesse começado a pensar que uma mulher vestida com as roupas pessoais dele ocupasse um digno segundo lugar.
Mesmo sorrindo ao pensar em Anna vestindo seu suéter, ele não diminuiu a velocidade da caçada. Charles acompanhou o resíduo do feitiço da bruxa até encontrar a trilha que
os vampiros haviam deixado – não tinha sido difícil, pois pelo menos um deles estava sangrando muito. Ele deixou seu nariz trabalhar, e fez o sorriso sumir de seu rosto.
Charles anteriormente achou que era um só vampiro, ou talvez dois. Mas seu nariz agora lhe dizia que havia mais do que isso. Ele identificou seis cheiros individuais. Seis
vampiros atrás de sua Anna.
Por isso, ele questionou a honestidade de Anna ao dizer que estava tudo bem. O sapato rosa quebrou em sua mão, e Charles o deixou cair. Ele novamente começou a rosnar enquanto
seguia o cheiro dos vampiros até um estacionamento – garagem número 46.
Charles usou quatro minutos e um pouco de intimidação – o que não foi nada difícil, já que estava naquele estado –, e descobriu que a garagem tinha sido paga por seis meses,
mas ocupada só de vez em quando.
Não havia como dizer se os vampiros estavam ligados à pessoa que alugara o espaço ou se haviam simplesmente encontrado um espaço vazio para usar. Charles estava mais inclinado
a suspeitar da última hipótese. Eles não estavam pensando em ficar lá por muito tempo, e os carros eram verificados a cada duas horas.
– Sim – disse o homem, que na verdade não era muito mais velho do que um garoto. Como não estava olhando diretamente para Charles naquele momento, este pôde se acalmar um
pouco. – Eles saíram daqui como se estivessem indo apagar algum incêndio. Eu me lembro porque era uma minivan, uma Dodge azul; não é o tipo de veículo com o qual você anda
pela cidade. Eu não vi quando eles chegaram, mas fiz a verificação do veículo quando comecei a trabalhar hoje à noite. Eu não me lembro de uma minivan, com exceção do carro
da Sra. Sullivan que já estava estacionado aqui quando fiz a verificação.
Charles não estava preocupado com isso. Truques mentais que funcionam em seres humanos estavam entre os dons mais comuns dos vampiros. Se eles tivessem dito ao atendente para
não se lembrar, ele não se lembraria.
– Fale-me sobre a minivan.
– Três homens e uma mulher. Todos eles pareciam ser do FBI, sabe? Roupas caras e sóbrias – disse o homem, olhando para Charles. – Você é um policial ou algo assim? Você não
deveria me mostrar alguma identificação?
– Ou algo assim – murmurou Charles; o atendente empalideceu e desviou o olhar. Gentilmente, Charles agradeceu o homem pelas informações e saiu.
Ele poderia ter obtido imagens dos rostos dos vampiros ao checar as câmeras, mas não havia necessidade de traumatizar o jovem ainda mais – Charles já tinha guardado o cheiro
deles, e não iria esquecer. Se não fosse hoje, iria encontrá-los mais cedo ou mais tarde – o mundo não era tão grande para um homem que vivia para sempre. Quando ele finalmente
os encontrasse, Charles faria com que eles se lembrassem dessa noite.
Quando chegou ao lugar onde o ataque ocorrera, Charles parou e colocou os sapatos novos de Anna na sacola plástica e a levou com ele. Não houve sangue nem carne no fim dessa
caçada, e o irmão lobo não estava satisfeito. Nem um pouco.
Quando ele chegou ao hotel, Charles já havia recuperado uma aparência de controle. Teria que ser o suficiente.
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Angus estava sentado no chão, em frente ao quarto de Charles e Anna, lendo um jornal. Ele não parecia grande coisa como guardião, mas não havia muitos outros lobos que Charles
preferiria ver guardando a porta de sua companheira. Poucos seriam capazes de passar pelo velho lobo que governava Seattle.
– Algo interessante no jornal? – perguntou Charles educadamente.
– Na verdade, não.
Angus dobrou o jornal de volta à sua forma original com precisão econômica, e em seguida, levantou-se. Ele manteve seu rosto virado para baixo. O Alfa da alcateia da Emerald
City não era lento para perceber as coisas. Charles podia estar usando sua máscara de indiferença no rosto – mas qualquer lobo que se prezasse cheiraria a frustração de uma
caçada não consumada a seis metros de distância.
– Sua companheira estava receosa de permitir a entrada de qualquer pessoa antes que você chegasse aqui. Com Tom praticamente apagado, e Moira...
– Sem magia suficiente para acender uma vela – terminou Anna, abrindo a porta. – E sinto muito, não sei distinguir Angus de Adam; sei que fomos apresentados, mas conheci muita
gente nova essa manhã. E acho que o ataque foi planejado pela nossa espécie. Abrir a porta só porque alguém dizia ser Angus não me pareceu inteligente.
Charles deu-lhe um olhar incisivo – ele tinha sentido o cheiro de vampiros, e mais nada. Havia um lobisomem envolvido também? Mais uma vez, Charles manteve o predador nele
sob controle.
Charles precisava de algumas respostas. E tinha que se certificar de que ela não adivinhasse como era difícil para ele aparentar estar calmo e sereno. Afortunadamente, Anna
ainda estava aprendendo a prestar atenção ao seu nariz.
– Como não havia ameaça urgente de perigo, agi de acordo com minha sabedoria e esperei aqui até que alguém que ela conhecesse melhor aparecesse – disse Angus, parecendo bastante
satisfeito com Anna.
– Anna – disse Charles, ignorando a necessidade de inspecioná-la mais de perto para ter certeza de que ela estava bem. – Este é Angus, Alfa da alcateia da Emerald City. Ele
jamais, sob quaisquer circunstâncias, atrairia Tom a uma armadilha para enfrentar um bando de vampiros.
Angus deu a Charles um olhar penetrante enquanto Anna examinava-o, e Charles tentou refrear seus instintos possessivos. Ela estava apenas avaliando Angus. O Alfa era apenas
uns cinco centímetros mais alto que Anna e não pesava muito mais que ela. Angus também era magro e ágil, e seus cabelos louros e olhos escuros lhe davam uma beleza casual
que ele usava impiedosamente. As pessoas que não o conheciam subestimavam Angus o tempo todo, e essa foi provavelmente uma das razões pelas quais ele ficou tão satisfeito
com a cautela de Anna – a outra era saber que Anna tinha tomado para si a tarefa de proteger um de seus lobos.
Mas Anna conhecia Bran, que era ainda melhor do que Angus em ser subestimado – Bran fazia isso de propósito.
– Sinto muito se ofendi você.
As desculpas de Anna eram sinceras.
– Sem problemas – disse Angus. – Eu pareço ofendido? Vamos todos entrar, e você pode nos dizer o que aconteceu, então vamos ver o que pode ser feito. Vampiros, hein?
Anna se afastou da porta. O cheiro de sua ansiedade e o fedor do medo recente permeavam o quarto. Seus lábios crisparam-se quando ela mesma sentiu o cheiro.
– Desculpem-me – disse ela. Sua camisa estava coberta de sangue, e o ar da sala estava impregnado com a crueza dos ferimentos abertos.
Não é o sangue dela, disse-lhe o irmão lobo, com fome. Mas poderia ter sido. Charles não podia dizer se esse último pensamento foi dele ou do irmão lobo – e talvez fosse dos
dois. Isso não ajudava o seu controle: ele estava com muita dificuldade em manter a calma.
Charles tinha que manter distância somente até conseguir se acalmar e se concentrar. Ele permitiu que Angus passasse entre Anna e ele, e como viu que isso não enfureceu o
irmão lobo, Charles deu um profundo suspiro de alívio e permitiu-se examinar Anna.
Suas sardas se destacavam em suas faces pálidas, mas o cheiro de seu medo não era fresco. Angus não a havia amedrontado, ela estava simplesmente sendo cautelosa. O irmão lobo
aquietou-se, mas só um pouco.
– Aqui – disse-lhe Charles, entregando-lhe a sacola de sapatos.
Anna olhou para a sacola sem expressão, antes de seu rosto se iluminar em um sorriso:
– Você é sobrenatural, Charles. Absolutamente sobrenatural.
Ela abriu o armário e jogou os sapatos sobre uma pilha de sacolas que não estavam lá naquela manhã. Havia também um par de vestidos ainda cobertos com plástico pendurados
ao lado dos roupões de banho do hotel. Ela fora fazer compras e voltara uma vez antes de serem atacados. Os vampiros poderiam ter esperado e observado o hotel, para depois
seguirem os três.
Um rosnado baixo na sala trouxe a atenção de Charles de volta para a tarefa a ser feita. A pequena bruxa, ainda usando os óculos escuros, estava enrolada no travesseiro gigante
na cabeceira da cama. Se Anna estava pálida, o rosto da bruxa parecia giz branco sob a cor escura como tinta do seu cabelo curto; além disso, Moira parecia magra, como se
tivesse perdido cinco quilos desde a última vez em que Charles a tinha visto.
Olhando para a impressão deixada na colcha, Charles percebeu que o lobo marrom que era Tom estava deitado na frente de sua bruxa antes que eles chegassem, mas a invasão dos
outros lobos fez com que ele se levantasse. Uma de suas pernas dianteiras estava visivelmente torta e devia estar doendo – mas isso não o impedira de se levantar.
Charles colocou as mãos nos ombros de Anna antes que ela pudesse ficar entre Angus e Tom, e colocou suas costas contra ele.
– Não – disse-lhe Charles. – Está tudo bem. Angus pode dar um jeito nisso.
Havia Alfas com os quais Charles poderia se preocupar, mas Angus tinha sido um Alfa por um longo tempo, e sabia o que estava vendo ali: um lobo protegendo sua companheira
de uma ameaça desconhecida. Não um desafio.
Com uma voz fria que continha mais do que um pouco de comando, Angus disse:
– Tom. Nenhum dano à sua companheira. Nenhum dano.
Angus podia não ser um homem grande, mas sua voz, quando ele optava por usá-la, era poderosa o suficiente para ressuscitar os mortos.
Os lábios do lobo se curvaram, mostrando presas impressionantes, e ele rosnou novamente.
– Quieto – disse Angus, colocando muita energia na palavra.
E o lobo imediatamente deitou-se sobre a barriga; sua respiração ficou áspera enquanto ele lidava com a sua relutância em permitir que outros ficassem perto de sua companheira
enquanto ele estava ferido e atendia a exigência de seu Alfa por obediência.
– Tom?
A bruxa parecia perdida, e Charles se perguntou se ela tinha alguma ideia do que estava acontecendo. Era difícil ser cego e impotente em um mundo de monstros.
– Ele está bem – disse Anna, dirigindo-se a Moira. – Está apenas protegendo você. Tom sabe que não pode protegê-la agora – e ainda não teve tempo de se recuperar dessa transformação
árdua. Ele está machucado e não é capaz de pensar com clareza. Todos vão dar a ele um minuto para se acalmar agora.
Esperta, pensou Charles, com um sorriso secreto. Anna passara aquela informação a Angus como se estivesse apenas falando com Moira, de forma que ele não pensasse que Anna
estava tentando lhe dizer o que fazer. Mas depois ela estragou tudo quando ordenou a todos, incluindo Charles, que deixassem Tom em paz. O brilho branco dos dentes de Angus
mostrou que ele também havia entendido, mas havia escolhido ver o lado divertido da situação.
– Vamos fazer exatamente isso – disse Angus, sentando-se no braço da poltrona mais próxima da janela. – Alan ligou enquanto eu estava no corredor. Ele está a cerca de cinco
minutos daqui. Enquanto esperamos por ele e por Tom, por que alguém não me conta o que machucou meu lobo?
– Vampiros. Seis. Eles caçavam como uma alcateia – disse Anna, olhando de relance para Charles em seguida.
– Você quer dizer que eles pareciam ter caçado juntos antes – disse ele. Charles sabia que sua fachada de calma estava no lugar porque o aceno de cabeça dela foi comum.
– Exatamente – disse Anna. – Eles não atrapalhavam uns aos outros, nem mesmo quando cinco deles atacaram Tom depois que derrubaram Moira. Eles estavam na escadaria de um apartamento
de porão e escondidos por um feitiço de sombras. Senti cheiro de magia de lobo – a menos que os vampiros tenham acesso à mesma coisa. Se Moira não tivesse invocado seu sol,
estaríamos mortos.
Cinco contra um era difícil, especialmente com um velho lobo astuto como Tom, que sabia como maximizar as fraquezas dos outros. E ainda por cima um feitiço de sombras... Anna
estava certa, isso parecia uma alcateia caçando – exceto pelo fato de que eles estavam lidando com vampiros.
– Há feitiços vampirescos que conseguem imitar os nossos – disse Angus. – Tom tem idade suficiente para saber a diferença. Quando ele puder pensar de novo, podemos perguntar.
Foi isso que a fez pensar que eles foram enviados por um lobo?
Anna acenou com a cabeça, mas Moira disse:
– Vampiros não atacam lobos tão despreocupadamente, pelo menos não nessa cidade. Eles estavam tentando raptar Anna – e o que um vampiro iria querer com a companheira de Charles?
Angus sorriu friamente. Os lobos em Seattle ocupavam a posição de superioridade há décadas.
– Se o grupo de vampiros daqui estivesse mantendo a companheira de Charles cativa, eles a escoltariam de volta com guardas armados e poliriam as unhas dela antes de entregá-la
a mim, sem que um só fio de cabelo de Anna estivesse fora do lugar. Vou certamente ligar para o Mestre deles, mas eu suspeito que esses são intrusos. O Mestre daqui deve saber
sobre eles – e se assim for, talvez ele tenha alguns nomes para mim.
– Um deles era uma mulher que usava um sapato tamanho 36 – disse Charles. – Mas eu acho que ela não vai ser mais um problema para ninguém.
A parte de Moira na história o incomodava. Ela salvara Anna, mas...
Charles franziu a testa.
– Bruxa, eu nunca ouvi falar de uma bruxa branca que pudesse conjurar luz solar. Isso não é nem mesmo algo que a bruxaria deveria ser capaz de conjurar – bruxos lidam com
a mente e o corpo, não com os elementos.
– Eu não conjurei a luz do sol – retrucou Moira; Charles percebeu que ela estava respondendo seu tom de voz, e não as suas palavras. – Só fiz os corpos dos vampiros acreditarem
nele – mesmo os corpos dos mortos – continuou ela, mexendo os dedos. – Sssst, e eles se transformaram em pó ou fugiram.
– Isso é um bocado de magia... Vampiros já têm alguma resistência, e depois você ainda fez a sua trilha desaparecer por mais de um quilômetro.
– Ela é uma bruxa branca – retrucou Angus.
Moira sorriu ferozmente.
– Eu sou uma mutante, tudo bem. Pobre pequena bruxa branca cega...
– Sacrifícios – disse Charles lentamente. – É assim que as bruxas obtêm seu poder. Na maioria das vezes, pela perda do sangue e da carne de outras pessoas, mas dizem que uma
das razões pelas quais bruxas têm familiares é a possibilidade de usá-los como um sacrifício maior; e não é apenas a morte do animal, mas a morte de algo que a bruxa tem de
mais caro.
– Você acha que eu mato gatinhos para alimentar meus feitiços?
Moira disse isso com uma voz desagradável, e apesar da suspeita de que nem tudo aquilo era verdade, o irmão lobo a aprovava.
Charles não podia deixar de investigar porque era a segurança de Anna que estava em jogo – mas a aprovação do irmão lobo lhe deu uma pausa para pensar. Podia haver uma resposta
diferente.
– Eu sempre ouvi dizer que o autossacrifício – o que acontece quando a bruxa usa seu próprio sangue para alimentar um feitiço – tem algum poder, mas é difícil trabalhar com
isso.
A bruxa tirou os óculos e Charles viu que seu palpite estava correto. Um olho havia sido atingido por magia. Charles tinha visto resultados semelhantes antes, e não era algo
do qual iria esquecer logo. O olho era branco e enrugado, como se algo o tivesse sugado até secá-lo. O estrago já havia acontecido há muito tempo, porque não havia nenhum
cheiro associado ao acidente – e naquela ocasião o cheiro da magia deve ter se impregnado em Moira por um bom tempo. O outro olho tinha sido destruído de forma mais mundana,
embora tão dolorosamente quanto e provavelmente há tanto tempo quanto o outro.
Curiosamente, Angus enrijeceu, como se não soubesse disso, e Anna não teve qualquer reação. Aliás, ela não teve nenhuma reação ao ver o rosto de Moira – na verdade, Anna estava
reagindo mesmo à atitude de Charles. Ela não estava nem um pouco feliz com a maneira como ele estava atacando a bruxa.
Após Moira sentir que ele pôde olhar à vontade, colocou os óculos de volta. Tom olhou para Charles com inteligentes olhos amarelos que prometiam vingança, e Anna parecia menos
contente ainda com Charles.
– Eu não conheço Moira – disse Charles, dirigindo-se ao lobo de Tom e compreendendo melhor sua reação. – Eu sei que nunca ouvi falar de uma bruxa branca que pudesse fazer
o que ela fez. Se uma bruxa negra está se fingindo de branca... primeiro, o embuste implicaria que ela é inimiga. E segundo – continuou Charles, dando um pequeno sorriso para
o lobo –, nunca encontrei uma bruxa que pudesse esconder sua natureza de mim.
– Quase fomos mortos por uma bruxa negra algumas semanas atrás – disse Anna, embora Charles pudesse ver que ela ainda estava irritada com ele. – Ela nos deixou um pouco nervosos.
Moira estendeu a mão, tocando o flanco de Tom, e deixou os dedos correrem para baixo sobre sua cauda, que ela puxou de brincadeira.
– Está tudo bem, Tom. Esses são os mocinhos. Mesmo que ele esteja sendo rude.
Ela virou a cabeça para Charles.
– Muito bem. Eu nunca ouvi falar de uma bruxa branca que pudesse fazer o que posso também. E não sei como isso aconteceu exatamente. Posso entender sua cautela.
– Sinto muito se tive que ser duro – disse Charles honestamente.
– Tenho certeza de que vou encontrar uma maneira de retribuir o favor – disse ela, mostrando os dentes em um sorriso branco. – Pelo menos você não disse “eca!” e saiu correndo,
gritando.
A raiva quente causada pelo ataque dos vampiros acalmou-se um pouco mais fundo em suas entranhas, e Charles deixou um pouco disso vazar para sua voz.
– Espero que você tenha transformado quem fez isso em um porco.
Moira ficou imóvel, e Charles concluiu que ela estava surpresa com sua reação.
– Os covardes não merecem coisa melhor – disse Angus.
A bruxa obviamente não queria qualquer apoio nesse quesito também. Havia tantos que sentiam repulsa por suas cicatrizes?
Mas o que ela poderia ter dito teve que esperar, pois naquele momento alguém bateu timidamente à porta.
– É Alan – disse o intruso. – Alguém pode me deixar entrar?
No exato minuto em que o lobo submisso da alcateia da Emerald City entrou pela porta, Charles sentiu-se mais estável.
Alan Choo era um chinês legítimo, e assim era sua natureza: delicado e inesperadamente forte, como uma lâmina benfeita.
Exceto quando estava sozinho com Anna, Charles passara toda sua vida com o irmão lobo enfurecido dentro de si, andando e rosnando contra as armadilhas da civilização que eles
eram obrigados a suportar. Isso é o que significava ser dominante e pronto para matar qualquer coisa que ameaçava aqueles sob sua proteção. Matar a qualquer momento.
Hoje fora pior do que o habitual. O irmão lobo estava no limite, e Charles estava fazendo um grande esforço para garantir que ninguém soubesse o quanto ele estava se empenhando
para manter o controle. Charles achou que ter mais dois outros lobos dominantes em seu quarto (lobos que não pertenciam à sua alcateia) com ele e sua companheira era só uma
pequena adição.
Mas isso foi antes de Alan Choo entrar na sala. Ele não era um Ômega como Anna, mas era um lobo submisso, e sabia como lidar com lobisomens enfurecidos. De alguma forma, sua
presença no quarto fez a balança pender, e a presença dele e de Anna acalmaram a todos, incluindo Charles.
Charles sentou-se na cadeira da mesinha, no lado oposto a Angus, e fez isso mais para liberar espaço para Choo trabalhar do que por vontade de sentar-se. Porém, ser capaz
de sentar-se com outros lobos na sala já era um avanço.
Anna deu uma rápida olhada ao redor, e Charles pôde perceber que ela também sentira a calma reinando de novo na sala. Anna olhou-o nos olhos e deu-lhe um sorriso rápido, sentando-se
no braço da cadeira.
– Ele está machucado por minha causa – disse Anna, dirigindo-se a Choo.
Charles balançou a cabeça e disse-lhe a verdade como ele a via.
– Não é sua culpa alguém ter decidido raptar você. Tom fez o trabalho dele, não se sinta culpada.
– Caramba, Tom, o que você andou fazendo por aí?
As palavras de Choo podiam ser casuais, mas suas mãos eram cuidadosas enquanto lidavam com o lobo ferido.
Tom permitiu que Alan endireitasse sua perna sem emitir um grunhido de dor – a pequena bruxa já fazia barulho suficiente para os dois.
– Droga, droga – murmurou ela, enquanto Alan trabalhava. – Com somente um pouco mais de poder, eu poderia evitar que você sentisse dor. Sinto muito. Sinto muito.
Finalmente, Angus (e logo Angus, que não se importava com ninguém que não fosse um lobo...) disse:
– Chega, Moira. É apenas um pouco de dor. Vai durar apenas um momento e não vale a agitação. Seria muito pior se você não estivesse com eles – seis vampiros são mais do que
suficiente para acabar com dois lobos e qualquer outra bruxa que eu já tenha visto. Se você não tivesse usado a sua magia naquela hora, ninguém estaria preocupado com uma
coisa pequena como uma perna quebrada. Chega.
Houve uma aspereza na última palavra que fez a bruxa se calar, e Tom reagiu dirigindo um olhar atravessado ao seu Alfa. Angus levantou uma sobrancelha, e Tom baixou o olhar.
Angus revirou os olhos.
– Deus me livre de pombinhos – disse ele, e seu olhar pousou sobre Charles e Anna.
Eles não estavam abraçados: Anna não era de abraçar. Charles tinha a sensação de que se a vida tivesse sido justa com ela, Anna teria gostado de fazer isso – e talvez em alguns
anos ela acabaria gostando. Mas por enquanto Charles estava grato por ela não se acovardar cada vez que ele a tocava.
Ainda assim, Anna estava sentada perto o suficiente para que o velho Alfa sorrisse.
– Todos vocês, pombinhos – disse ele. – Isso atrapalha, e eu não sou paciente por natureza. – Você – disse ele, apontando o dedo para Anna; Charles ergueu-se e ficou em pé
entre eles.
Foi puro reflexo, mas talvez Charles não estivesse tão relaxado quanto pensara.
Angus baixou o dedo, mas terminou a frase.
– Diga-me o que aconteceu. Eu quero mais detalhes.
– Os americanos nativos não gostam de dedos apontados para eles – observou Choo silenciosamente enquanto colocava uma atadura ao redor da costela de Tom para que ela pudesse
curar-se corretamente. – Bruxas índias, skinwalkers e similares usam o gesto para jogar feitiços e causar doenças.
Angus ergueu as mãos para cima e caiu sentado em sua cadeira.
– Ah, pelo amor de Deus. Não sou uma bruxa. Não jogo pragas – só quero saber o que diabos aconteceu essa noite.
Angus parecia frustrado e ofendido, mas todos os lobos na sala sabiam a verdade: ele estava com medo de Charles. Angus não demonstrara medo em ocasiões anteriores, não até
olhar nos olhos do irmão lobo e ver a ameaça de morte. Angus era um Alfa já de certa idade e detinha o poder, mas não havia dúvida quanto a quem era mais dominante.
Contudo, não houve ameaça por parte de Angus. Charles sabia disso, mas teve que fazer um grande esforço para sentar-se novamente. Se a retirada rápida de Angus não tivesse
satisfeito o irmão lobo, sangue teria sido derramado.
Charles sentou-se lentamente e levantou a mão para colocá-la sobre o joelho de Anna, deixando que o contato o acalmasse.
– Bem – disse Anna animadamente –, isso foi mesmo interessante!
Anna esticou-se e colocou a mão no ombro de Charles, como se precisasse de ajuda para se equilibrar no braço da poltrona. Os dois eram os únicos que sabiam que o toque de
Anna o ajudaria a encontrar o equilíbrio enquanto ela distraía os outros com suas palavras.
– Tudo bem. O que aconteceu... – disse Anna, respirando fundo. – Tom e Moira me levaram a Pike Street e nós nos enchemos de pacotes, tantos quantos conseguimos carregar, e
então os trouxemos até aqui. Eu comprei tudo que precisava, exceto sapatos, por isso Moira me levou à sua loja de sapatos favorita a alguns quilômetros de distância. Estávamos
voltando quando eles saltaram sobre nós. Nenhum aviso, nenhum som, nenhum cheiro: eles simplesmente caíram sobre nós.
Uma mão fria pousou sobre a mão de Charles que estava sobre o joelho de Anna. Ela não estava calma como parecia. Charles virou a palma da mão para cima e segurou os dedos
dela em seu aperto quente.
– Quatro deles atacaram Tom, um deles atingiu Moira, e o outro me agarrou. Eu matei o meu agressor – havia um rosnado de satisfação debaixo do estresse em sua voz, e Charles
apertou a mão dela. Sua companheira era durona. – Naquele momento, Tom havia matado um de seus atacantes, e o que estava atacando Moira decidiu que ela não era uma ameaça
e foi ajudar os outros com Tom. Eu também ia me atirar na briga quando meu cérebro conseguiu interpretar o que eu ouvia e finalmente percebi que Moira estava tentando descobrir
o que estava nos atacando.
Anna olhou para a pequena bruxa com um sorriso.
– Lembro-me de ter pensado “a pobrezinha não pode ver o que está nos atacando. Isso deve ser assustador para ela”. Foi aí que eu disse a Moira o que estava nos atacando, e
quase fomos cegados pela luz solar. Os vampiros mortos queimaram e os outros fugiram. Chamamos Alan, e eu carreguei Tom e trouxe Moira até aqui enquanto ela limpava a trilha
atrás de nós e nos mantinha escondidos.
A bruxa, acariciando Tom levemente com os dedos hábeis, encarou Anna com uma expressão inocente, e ela riu:
– Pobre pequena bruxa cega, uma ova. Uma equipe de demolição de uma só mulher. Eles nunca vão saber o que os atingiu.
– Você acha que há um lobo por trás disso – disse Charles.
Anna olhou para ele, e como agora a história tinha sido colocada para fora, ela hesitou em responder.
– Instinto – disse ela. – Frequentemente está certo.
A boca de Anna relaxou:
– Sim. Eu acho que há um lobo – continuou, fechando os olhos enquanto refletia sobre isso. – O ataque parecia um ataque de alcateia. O lema parecia esconder-se e contar com
pessoas suficientes para fazer o trabalho facilmente. Mas eles não sabiam sobre Moira, ou a subestimaram – acrescentou Anna, olhando para Charles e dando um pequeno sorriso.
– E a mim. Eles concentraram seu primeiro ataque sobre o mais forte de nós – tática de lobisomem. E queriam me levar com eles. O que um vampiro iria querer comigo?
– Eram lobos.
Charles tentou senti-los, mas os espíritos ficaram em silêncio, como habitualmente ficavam na cidade. Ou em qualquer outra vez que pudessem ser úteis.
– Então, o que você acha, Angus? Poderia ter sido Chastel? Nós tivemos uma altercação na noite passada, e ele estava com raiva suficiente para matar alguém.
Angus estava deliberadamente esparramado na cadeira, mostrando como estava relaxado na presença de Charles.
– O francês é uma fera. Uma fera poderosa, mas é viciado em matar. Ele não mandaria ninguém. Ele não iria querer que alguém derramasse o sangue com o qual ele poderia se banquetear.
– Então, quem você acha?
Angus franziu a testa, irritado.
– Eu não conheço a maioria deles muito bem. Poderíamos interrogá-los – isso se quiséssemos começar uma guerra. Os europeus são nervosinhos quando se trata de sua honra. Em
todo o caso, se o que eles queriam era apenas um lobo Ômega, é melhor ligar para os italianos e avisá-los para manter o deles por perto.
Charles levantou as sobrancelhas.
– Eu sabia que eles tinham um, mas não que o haviam trazido aqui – disse ele, olhando para Anna em seguida. – Se eu achasse que ele seria útil para você, teria lhe contado
sobre ele, mas ele é um lobo há menos de um ano ou algo assim, e sabe menos do que você sobre ser um lobo, muito menos sobre ser um Ômega. Asil, cuja companheira era um Ômega,
é um professor muito melhor – e não diga a ele que eu disse isso.
Angus voltou sua atenção para Anna.
– Ele é um jovem alemão, na verdade, que estava esquiando nos Alpes italianos e teve uma queda feia. O homem da equipe de resgate que o encontrou era um lobisomem, e se sentiu
obrigado a salvá-lo da forma que podia.
– Transformando-o em um lobisomem – disse Anna.
Charles assentiu.
– E os alemães ficaram furiosos quando os italianos afirmaram que ele pertencia a eles.
– Uma batalha por custódia, de fato – disse Angus. – Acho que é por isso que os italianos o trouxeram – para esfregar nos narizes dos alemães o fato de ele ter escolhido ficar
com eles.
Charles estava observando o interesse no rosto de Anna. Sim, pensou ele, você não está sozinha. Ele mesmo já deveria ter pensado nisso antes, mas iria dar um jeito para que
ela se encontrasse com o jovem Ômega alemão.
– Talvez seja isso – disse Moira, pensativa. – Todo mundo na alcateia vem falando sobre isso – desculpe, Anna. Mas a maioria deles estava mais interessada em você do que em
todos os lobos estranhos que estavam chegando. Talvez seja alguém que quer um Ômega.
– Eu conheci alguém assim uma vez – disse Anna friamente. – É melhor avisar os italianos mesmo.
– Sim – disse Angus, dando um olhar divertido para Charles quando Anna deu-lhe outra ordem.
– Não se esqueça de que você tem um jantar para o qual deve se preparar – disse Moira.
Charles olhou para a bruxa, e ele não foi o único. Ela sorriu para todos eles:
– Nós não sabemos exatamente o que eles estavam tentando fazer. Provavelmente estavam tentando sequestrar Anna. Mas há uma chance menor de que eles não quisessem que você
conhecesse melhor Arthur da Grã-Bretanha.
– Além disso – disse Angus –, por que dar-lhes o poder de mudar seus planos quando não houve nenhum dano permanente?
Sim, Charles começava a perceber. Essa era uma lógica que ele podia aceitar. Ele não tinha vontade de sair e socializar nem mesmo quando as coisas iam bem – e esse ataque
o havia deixado com vontade de pegar sua companheira e escondê-la em algum lugar seguro.
– Vou arranjar outro quarto – disse ele. – Tom e Moira podem ficar aqui até que ele esteja curado, e usar o serviço de quarto.
– Vou ficar aqui também – disse Angus. – Até que Tom possa cuidar de si mesmo.
Charles olhou para o Alfa e percebeu que ele não era único a sentir-se protetor.
– Ótimo – disse ele, saindo para tomar as providências logo em seguida.
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Um suspiro coletivo de alívio atravessou a sala quando Charles saiu, mas ninguém disse nada até que a campainha do elevador fosse ouvida ao longe, através das paredes.
Anna sabia que Charles tinha esse efeito nas pessoas, mas ela não tinha visto ou sentido qualquer problema hoje à noite. Exceto pelo incidente do dedo apontado.
– Bem – disse Angus, e Tom ganiu. – Há uma razão pela qual Bran o utiliza para assustar os malfeitores. Acho que todos nós a vimos essa noite.
– Vimos o quê? – perguntou Moira.
– Exatamente – disse Alan Choo, que estava guardando as coisas na maleta que trouxera. – Angus apontou o dedo e eu nem sequer o vi se movendo. Ele simplesmente se moveu. E
já estava em pé entre sua companheira e Angus.
E então ele começou a falar algumas frases em chinês.
Anna descobriu que não gostava do medo que eles sentiam de Charles. Isso o magoava, embora ele aceitasse o fato. Mesmo que fosse mais seguro para ele, aquilo não era bom.
Angus balançou a cabeça.
– Você viu as caras de alguns dos lobos quando ele falou com eles hoje? Acho que eles nem sequer sabiam que ele podia falar – e muito menos ser tão sensato quanto ele foi.
Foi como se um tubarão começasse a falar o inglês do rei da Inglaterra.
Tom levantou a cabeça e olhou para Angus. Alan interrompeu seus resmungos em chinês a fim de olhar para o seu Alfa.
– Inglês da rainha, não há mais um rei – disse Anna, com mais rispidez do que havia planejado. – E não há nada de errado com Charles.
– Com certeza não há – concordou Angus. – Eu pensei isso comigo mesmo: “bem, ele está conduzindo uma reunião como todos os outros. Talvez os outros boatos sobre ele sejam
exagerados, também”. Mas eles não eram. Nem um pouco. Eu não gostaria de enfrentar esse homem a garras e presas.
Anna o interrompeu rispidamente e disse:
– Se você não calar a boca pode ser que nunca tenha que se preocupar com isso.
Ao ouvir isso, Angus recostou-se na cadeira e sorriu para ela com satisfação.
– Bem, veja só – disse ele, em um tom de voz completamente diferente. – Talvez eu não precise.
Ela não havia entendido aquilo, e então percebeu ao olhar para Tom e Alan Choo. Anna havia tomado a surpresa de Tom por concordância, mas na verdade Angus a estava testando.
– Por que o teste? – perguntou ela.
Angus deu de ombros.
– Conheço Charles há muito tempo. Eu o vi transformar-se de um menino quieto na arma que o pai dele precisava – que nós precisávamos. Somente porque eu entendo a necessidade,
não significa que eu não a lamente. Eu só queria me certificar de que você fosse capaz de enxergar o homem por trás do assassino.
– Então você o irritou de propósito?
O sorriso de Angus aumentou.
– A história do dedo apontado? Quando ele já estava com sede de sangue fresco porque você estava em perigo, e ainda mais depois de sua caça sem nenhum resultado? Eu pareço
tão estúpido? Não, aquilo foi apenas um acidente.
Anna olhou para o braço da cadeira e esfregou uma mancha levemente com a ponta do dedo. Agora que decidira testá-lo, Anna podia sentir o cheiro da sinceridade de Angus. Ele
tinha ficado preocupado com Charles, preocupado com a possibilidade de que ela o machucasse.
– Eu sabia que as pessoas tinham medo dele – disse ela. – Você realmente acha que eles acreditam que há algo errado com Charles?
Angus inclinou a cabeça, mas foi Alan quem falou.
– Algo estranho, sim. Não que ele seja exatamente louco, mas... diferente. O assassino sem alma de seu pai, fiel ao Marrok e a mais ninguém. Cada palavra que sai de sua boca
foi colocada lá pelo Marrok, como o boneco de um ventríloquo, só que mais assustador.
Anna pensou na briga entre Charles e seu pai, a qual Charles efetivamente vencera, e abriu a boca para comentar – mas depois a fechou novamente: se isso era o que as pessoas
pensavam, era porque Charles assim o desejava.
– Charles faz isso deliberadamente – disse-lhe Angus, observando-a atentamente. Anna esperava não ter se traído, mas as palavras do Alfa, tão próximas do seu pensamento, levaram-na
à conclusão de que provavelmente tinha deixado transparecer algo.
Angus bateu no braço da poltrona com os dedos impacientes.
– Se os outros lobos estiverem todos com medo dele, não serão estúpidos e não o forçarão a matá-los. E eles estão certos, saibam disso ou não. Há algo estranho, você não notou?
O lobo de Charles está completamente fora de controle. Isso deveria ter transformado Charles em um assassino irracional, mas isso não aconteceu.
O irmão lobo..., pensou Anna.
– Por que você acha que é assim? – perguntou Choo.
Angus levantou uma sobrancelha e olhou para ela, como se achasse que Anna poderia fornecer uma explicação.
Havia um lobo responsável pelo ataque a eles essa noite. Anna realmente não acreditava que Angus era o inimigo. Ele podia até ser amigo de Charles, de acordo com o seu nariz,
mas ela não iria compartilhar considerações pessoais sobre seu companheiro – mesmo que as tivesse – com Angus da alcateia da Emerald City.
Anna olhou para ele e relaxou sentada no braço da poltrona de Charles, esperando até ele voltar.
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Fúria.
Ele estava enfurecido.
Charles estava bem até chegar à recepção. Ele havia se concentrado na tarefa presente – que era conseguir um segundo quarto –, e tudo ficara bem até que ele voltou para o
elevador e considerou novamente o ataque a Anna. Charles achava que poderia ser capaz de analisar a história de Anna e encontrar algo novo, alguma dica sobre o porquê do ataque
ou sobre quem tinha feito isso.
O controle que ele sempre tivera com facilidade parecia estar derretendo. Charles viu os números dos andares aumentarem, e notou que eles pareciam avançar a um ritmo violentamente
rápido, justamente quando ele tinha muito no que pensar.
Dois.
Tom quase morrera. Se Charles tivesse enviado Anna com qualquer outro dos lobos de Angus – e ele poderia ter feito isso –, ele a teria perdido.
Três.
Seis vampiros.
Quatro.
Se a bruxa de Tom fosse o que aparentava, Anna teria sido levada.
Cinco.
Se Charles a prendesse perto dele, iria perdê-la. Anna não era submissa, não precisava de seus cuidados. Não dessa forma. Ela precisava que Charles a apoiasse e a deixasse
livre.
Seis.
E se ele iria fazer isso, teria que controlar seu temperamento. O temperamento do irmão lobo. Não só agora, hoje – mas para sempre. Frear sua necessidade de mantê-la segura,
para que ele pudesse mantê-la feliz.
Sete.
Hoje, porém, Anna não sairia de perto dele novamente.
A porta do elevador se abriu.
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Arthur Madden mexeu nisso e naquilo, movendo os arranjos da mesa para mais longe da borda e depois os empurrando para mais perto.
– Querido – disse sua companheira, divertida –, o que você está fazendo? Ele pode ser o filho do Marrok, mas você é o governante das Ilhas Britânicas. Você o supera em hierarquia;
não há necessidade de ficar nervoso.
Ela não entendia. Mas ele estava acostumado com isso. Sua esposa era humana, e havia muita coisa que ela não entendia. Arthur não a culpava por isso. Ele não queria explicar
que Charles era dominante e que, mesmo contando com a força de todos os seus lobos, Arthur recuaria com não mais do que um olhar de Charles. Isso significava que ele precisava
de todas as suas defesas. Significava que o jantar tinha de ser perfeito.
E Arthur podia confiar em sua companheira para fazer tudo ficar perfeito.
– Você está certa, é claro – disse ele. – É totalmente tolo de minha parte me incomodar tanto com isso.
Ela deslizou sob o braço dele, tão esbelta quanto a garota com quem ele se casara quarenta anos antes. Arthur ainda a amava tanto quanto na época do casamento, mas sua idade
o entristecia. Quando eles saíam para jantar agora, as pessoas pensavam que eles eram colegas de trabalho ou mãe e filho. Quando ela era jovem e bonita, ele nunca havia pensado
no envelhecimento dela, e ela também não.
Sua esposa cheirava a rosas.
– Tudo vai dar certo – disse ela. – Eu me encarregarei de divertir a companheira dele e você pode contar a ele suas histórias.
Arthur beijou o cabelo louro-saxão dela, mantido delicadamente tingido com a cor natural da época em que ele a conhecera.
– E como você vai fazer isso?
– Eu vou mostrar-lhe meus bordados e conversar com ela sobre coisas de garotas.
Arthur se virou e olhou para si mesmo, observando de relance a esposa no enorme espelho dourado logo na entrada da casa. Ele usava uma camisa de seda dourada que dava a seu
cabelo um profundo tom vermelho-dourado; seus olhos eram azuis, e as calças pretas que ele usava poderiam ter sido as mesmas calças que ele usara em seu casamento, tantas
décadas atrás.
A camisa azul-escura de Sunny tinha longas mangas esvoaçantes que mostravam a força de seus braços sem trair a maneira como sua pele demonstrava sua idade. Havia uma suavidade
sob seu queixo e rugas de expressão ao redor dos olhos. Sua Sunny gostava de rir.
Ela estava morrendo um dia de cada vez. Segundo Arthur, ainda iria demorar muito (seriam décadas); sua pele ficaria cada vez mais flácida, e seus músculos, enfraquecidos e
frouxos. E ele era obrigado a ver isso acontecer.
Sunny viu a expressão dele no espelho.
– Você está lindo, como sempre – disse ela, abraçando o braço que se cruzava sobre seus ombros, acima de seus seios.
– Amo você – sussurrou Arthur no ouvido de Sunny, esfregando o nariz em seu cabelo perfeito, fechando os olhos para sentir o perfume precioso que emanava dela.
Sunny esperou até que Arthur abrisse os olhos para que ela pudesse olhar no espelho e fixar o olhar nele. Então, ela sorriu o enorme sorriso que lhe dera o apelido de “Sunny”:
– Eu sei.
SETE
Eles estavam atrasados. Sunny parou de tentar conter a impaciência do marido e se sentou em um dos dois sofás idênticos estilo Queen Anne para observá-lo.
Arthur era magnífico. Ele desprezava a comparação, mas ela sempre pensara nele mais como um leão do que como um lobo enquanto ele estava em sua forma humana. Mesmo quando
estava em sua forma de quatro patas, Arthur era castanho-dourado.
Ele estava em pé naquele momento, olhando pela janela com os braços cruzados atrás das costas, dando a Sunny uma bela visão de sua parte traseira. Ela nunca dissera a ele,
claro, porque ele não iria gostar – mas ela sempre adorara aquela parte.
Sunny ainda não conseguia acreditar que o havia conquistado, nem mesmo depois de todos esses anos. Arthur era tudo que ela sempre quis: rico, poderoso, honrado e bem-educado.
Além disso, ele era o filho mais jovem de um barão, mas não podia reclamar o título – não agora, depois de tanto tempo; afinal, se ele fosse um ser humano, já deveria estar
morto. Arthur era inteligente e doce – e ainda lhe trazia flores sem absolutamente nenhum motivo além do desejo que ela as recebesse. Sunny gostava de viajar, e ele não podia
– por ser quem e o que ele era. Mas Arthur lhe permitia a liberdade de viajar sozinha.
Ela ainda adorava o traseiro dele.
Sunny escondeu o seu sorriso e tentou parecer séria quando Arthur se virou para ela. Ele franziu a testa, e ela piscou para ele inocentemente. Sunny aprendera há muito tempo
que havia algumas piadas que ela não podia compartilhar, e não adiantava tentar.
Finalmente, em uma voz mal-humorada, ele disse:
– Vou lá para cima trabalhar um pouco. Se eles chegarem, diga-lhes que estou ocupado.
E então subiu as escadas.
Sunny olhou para o delicado Rolex de ouro em seu pulso e balançou a cabeça. Eles estavam cinco minutos atrasados; paciência nunca tinha sido um dom de Arthur. Ela pegou o
livro que havia trazido consigo – um mistério situado em Barbados, seu lugar favorito – e começou a ler.
A batida na porta foi suave, mas não tão suave que Arthur não pudesse ouvir. Ao ver que mesmo assim ele não desceu as escadas, Sunny deixou seu livro de lado e levantou-se.
Ele logo sairia do ataque de mau humor. Ela conhecia seu homem: Arthur não conseguia ignorar uma plateia por muito tempo. Até lá, caberia a ela fazer seus convidados se sentirem
bem-vindos.
Nervosa, ela alisou a blusa. Sunny tinha ouvido histórias sobre Charles Cornick, o exterminador do Marrok, mas nunca o encontrara. Ela esperava que sua companheira fosse amigável.
Quando a batida soou uma segunda vez, ela abriu a porta – e engoliu seu sorriso.
O homem que estava à sua porta era grande. Não apenas alto, mas largo. Obviamente, era nativo americano, com sua pele escura e olhos negros. Seu rosto era sereno, e ela não
conseguia analisá-lo em absoluto, mas percebeu que ele trazia consigo um ar de severidade, como um manto escuro ao seu redor.
Nada que ela não esperasse a partir das descrições de Arthur – e de seu nervosismo –; nada inesperado, exceto que Charles Cornick era bonito. Não para os padrões ocidentais,
talvez, com suas feições largas e planas e os brincos de âmbar que usava – um lobisomem com as orelhas furadas?
Um homem até poderia não notar a atração de todos os músculos e a pele morena e quente, mas Sunny podia apostar que ele nunca atravessava uma sala sem atrair o olhar de cada
mulher no recinto.
Confusa, Sunny tirou os olhos de cima dele e encontrou os olhos da mulher que estava ao seu lado.
Anna Cornick era aproximadamente uns dois centímetros mais alta do que Sunny, o que ainda a tornava um pouco menor que a média. Ela era magra, quase magra demais, embora a
carne naquele corpo fosse de músculos rígidos. Seu cabelo era castanho cor de uísque e caía em cachos suaves até os ombros. Sardas espalhavam-se por suas maçãs do rosto, e
seus olhos eram de um marrom dourado claro. Ela usava uma camisa branca com uma saia de seda, que batia um pouco acima dos tornozelos. Anna não era bonita de acordo com os
padrões convencionais, mas não deixava de ser atraente, também.
Ela parecia cansada, e em comparação com seu exótico companheiro, menos sofisticada. Enquanto Sunny tinha essas impressões, Anna deu um sorriso triste, com uma expressão que
identificava a desconfortavelmente forte e relutante admiração de Sunny por Charles e expressava simpatia pela outra mulher presa ao fascínio que ele exercia.
Era uma expressão afetuosa, e depois dela Sunny sentiu toda a agitação que Charles Cornick havia causado a seus nervos se acalmar. Assim, ela pôde voltar ao papel familiar
de anfitriã.
– Olá – disse ela, com um grande sorriso (mais fácil de exibir agora do que há um momento antes). – Bem-vindos.
Ela se afastou e os convidou a entrar.
– Eu sou Eleanor, a companheira de Arthur – vocês podem me chamar de Sunny, todo mundo me chama assim. Vocês devem ser Charles e Anna.
– É bom conhecer você, Sunny – disse Anna, tomando-lhe a mão em um aperto forte. Como seu companheiro não disse nada de imediato, Anna bateu-lhe com o ombro.
Charles olhou para ela e Anna levantou as sobrancelhas para ele – nesse momento, Sunny pôde reconhecer um olhar que ela mesma utilizava quando lidava com um certo macho dominante
que nem sempre seguia as regras da civilização.
– Essa é uma boa expressão – disse Sunny, dirigindo-se a Anna. – Embora minha experiência mostre que elevar apenas uma sobrancelha é mais eficaz. Se isso não funcionar, eu
descobri que é melhor apenas ignorá-los até que decidam se acalmar. Por que vocês não entram? Eu trarei alguma coisa para vocês beberem. Arthur descerá em um minuto. Posso
pegar um uísque ou conhaque? Temos também um vinho branco muito bom.
Anna deu-lhe um sorriso e a seguiu, enquanto seu companheiro gentilmente fechava a porta atrás deles.
– Ignorá-lo funciona para você? Eu o cutuco até que ele se mexa. Você tem água? Nada de álcool para mim essa noite – estou dirigindo. Pode ser que não me afete mais, mas se
eu for parada, não quero estar cheirando a álcool.
– Ele permite que você dirija? – perguntou Sunny, surpresa e com um pouco de ciúmes. – A última vez que eu dirigi com Arthur no carro foi no dia em que o conheci. Eu estava
dirigindo o carro do meu pai até Devon, e o carro dele estava parado no acostamento com dois pneus furados...
– Eu não gosto de dirigir – disse Charles. – Conhaque seria bom, obrigado.
Sua voz era tão deliciosa quanto o resto dele. Profunda e lenta, com uma pitada de galês e mais alguma coisa alterando o sotaque norte-americano habitual.
Perturbada (porque nunca se sentira assim perto de qualquer um dos lobisomens que Arthur trouxera para sua casa antes), Sunny usou as palavras de Charles como desculpa e foi
até o bar no canto da sala, onde começou a preparar bebidas para seus convidados.
Não que Sunny nunca tivesse olhado para outro homem, mas ela nunca havia se sentido tão... segura. Era uma reação inesperada a um homem que ela sabia que era perigoso, e isso
a desconcertava.
Sunny pegou o frasco de vidro lapidado que comprara há alguns anos em Veneza – e Anna a ajudou a colocá-lo no balcão.
– Eu sei – disse a outra mulher suavemente. – Está tudo bem. Você deveria ver como é quando o Marrok entra em uma sala cheia de lobos estranhos. Ele vai se acalmar em um momento,
e você não vai sentir isso tão intensamente.
Ela olhou para seu companheiro e, em seguida, tirou a tampa do frasco. O cheiro de bom conhaque emanou da garrafa.
– Ele teve um dia ruim, e isso torna tudo pior.
Sunny pegou uma taça de conhaque no armário embaixo do bar e entregou a Anna.
– O que aconteceu?
Anna sorriu e deu de ombros enquanto despejava o conhaque na taça.
– É o de sempre, só que agora em outro lugar.
Parecia que ela estava evitando falar no assunto.
– Ele não gosta de cidades mais do que gosta de dirigir, ou de telefones celulares ou aviões ou de...
– ...que as pessoas falem dele como se ele não estivesse presente – rosnou o lobisomem, como se estivesse sendo obrigado a falar.
Quando Arthur falava daquele jeito, Sunny sabia que era melhor deixá-lo sozinho. Mas a companheira de Charles apenas sorriu para ele.
– Venha aqui pegar o seu conhaque; como é que você consegue tomar isso? Eu nunca consegui beber esse negócio, mesmo quando o álcool era o objetivo. E pare de assustar nossa
anfitriã.
Charles respirou fundo; Sunny percebeu que, afinal, ele era apenas um homem exasperado em pé no meio da sua sala de estar. Charles veio até onde elas estavam e pegou o copo
que sua esposa lhe entregou, e então voltou sua atenção para Sunny.
– As minhas desculpas – disse ele. Sunny notou que e a voz dele não fez seus batimentos cardíacos acelerarem. – Como Anna lhe disse, eu estou meio perturbado essa noite. Mas
não há motivos para descontar isso em você.
Dizer que seu pedido de desculpas era desnecessário pareceu errado, então Sunny disse a segunda melhor coisa.
– Desculpas aceitas.
Anna estava olhando ao redor da sala.
– Isso se parece mais com um lar do que um lugar que se aluga para algumas semanas; você tem um gosto e tanto.
Sunny entregou-lhe uma garrafa de água gelada do suprimento na geladeira.
– Ah, Arthur possui alguns lugares espalhados por aí. Ele não vem aqui frequentemente, mas ele comprou para mim em nosso trigésimo aniversário. Eu costumo vir aqui no verão
e ficar um mês. Arthur não gosta de viajar, mas ele sabe que eu gosto.
Sunny teve dificuldade em parar de falar. Escondendo a testa franzida atrás de um sorriso amigável, ela pegou uma garrafa gelada de seu vinho branco favorito. Ela nunca tagarelava
assim. Sunny estava acostumada a guardar segredos. Não que suas viagens ou esse condomínio fossem segredos, exatamente. Ainda assim, ela não tinha a intenção de falar sobre
eles.
Ela foi salva pelo rangido das escadas enquanto Arthur descia rapidamente por elas.
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Anna observou o lobo-rei britânico descendo as escadas.
– Vocês estavam atrasados – disse ele, como se fosse uma saudação. – Eu fiquei preocupado pensando que algo pudesse ter acontecido.
– Não, nada disso – disse Anna alegremente.
Eles tinham conversado sobre o que iriam dizer sobre o ataque, e finalmente chegaram à conclusão que a melhor coisa seria alertar o Alfa do outro Ômega e ficarem quietos.
O ataque não tinha nada a ver com ninguém mais – e Charles dissera que não era bom dar ideias aos outros. Por isso, Anna assumiria a culpa pela hora da chegada; ninguém iria
acreditar que Charles chegaria tarde para qualquer coisa.
– Levei um pouco mais de tempo para me vestir. Sinto muito.
Sunny serviu uma segunda taça de conhaque para Arthur – outro lobisomem que bebia, apesar de não ser capaz de se beneficiar dos efeitos do álcool. A companheira de Arthur
serviu-se de um copo de vinho.
– Creio que o jantar estará pronto em cerca de meia hora – disse Arthur. – Nesse meio tempo, eu achei que vocês poderiam estar interessados em ver minha coleção.
– Coleção? – perguntou Anna.
– O que eu tenho aqui não é muito valioso – explicou Arthur. – Nem historicamente significativo. Nós não passamos muito tempo nesse lugar, e mesmo com a segurança, não confio
muito... Ainda assim, eu tenho algumas coisas interessantes.
– Você trouxe Excalibur? – perguntou Charles.
A sobrancelha de Arthur elevou-se elegantemente em sua testa enquanto ele sorria um pouco.
– Nunca vou a lugar algum sem ela.
– Isso não é um pouco problemático? – perguntou Anna. – Voar internacionalmente com uma espada?
– Meus voos são particulares – disse ele.
– É claro – murmurou Anna, com uma autodirigida zombaria à sua súbita elevação ao nível dos ricos e importantes. – Todos voam, não é?
– Pobre plebeia – murmurou Charles. Anna teve certeza de que era a única a detectar o humor em sua voz, porque tanto Arthur quanto Sunny pareciam surpresos.
– Arthur tem problemas com viagens em aviões comerciais – disse Sunny, apressando-se em explicar.
– Sinto muito.
Anna deu a Charles um olhar de “ajude-me”. Ela não conseguia pensar em outra coisa para dizer que não tornasse a situação ainda pior.
Charles veio em seu resgate.
– A primeira alcateia de Anna era... conturbada e muito pobre. Estamos casados há menos de um mês, e ela teve que se ajustar a muitas coisas.
– Viver muito tempo não significa que você será rico – disse Arthur, com um olhar de compreensão. – Mas não faz mal nenhum.
– Investimentos de longo prazo dão um novo significado ao termo “juros compostos” – acrescentou Sunny.
– Conte-me sobre sua coleção – disse Anna, um pouco desesperada. E então, porque não podia evitar seu interesse, continuou: – Sobre Excalibur.
– Eu costumava ser um arqueólogo – explicou Arthur. – E era estritamente amador, o que era aceitável para o meu pai de uma forma que uma profissão qualquer não teria sido
para ninguém... Escavações não eram tão bem regulamentadas na época, e eu estava escavando as fundações de um assentamento antigo na Cornualha convenientemente situado na
propriedade dos pais de um colega de escola quando a encontrei. Então, simplesmente desenterrei-a.
Arthur não parecia louco – nem parecia se importar com as perguntas. Mas se Anna achasse que eles estivessem realmente falando sobre “a” Excalibur, ela ficaria realmente fascinada
pela história...
– Como você soube que era a Excalibur o que você encontrou?
Arthur sorriu para ela.
– Diga-me, minha cara, você acredita em reencarnação?
Não, ela não acreditava. Mas essa não era a resposta educada.
– Nunca ouvi um argumento que me convencesse disso.
O sorriso dele se alargou.
– Acho que basta dizer que eu acredito, e que acredito que sou o Rei que Foi e o que Será, que voltará na época de maior necessidade – continuou Arthur, piscando para Anna.
– Eu não insisto para que os outros concordem com as minhas excentricidades.
Ao devolver o sorriso do lobo britânico, Anna considerou que somente reveria sua posição sobre o assunto se as pessoas se lembrassem de terem sido ajudantes de cozinha ou
fazendeiros que morreram de uma causa nada mais interessante do que velhice. Ela se lembrou do que seu pai havia secamente observado uma vez: “Se catorze pessoas acreditam
que foram Cleópatra em uma vida anterior, isso significa que Cleópatra tinha transtorno de personalidade múltipla?”.
Depois desse breve diálogo, Arthur levou-os até o seu salão do tesouro – aquele cômodo provavelmente havia sido destinado a ser um escritório, ou um pequeno quarto. Três tapeçarias,
achatadas entre folhas claras de alguma coisa que poderia ter sido vidro ou acrílico, estavam penduradas na parede. Havia dois expositores encostados na parede.
– Essa não é uma boa coleção – disse ele. – Essas peças ficam aqui o ano todo, então não posso arriscar e colocar aqui qualquer coisa realmente valiosa. Meus artefatos mais
valiosos não saem de minha casa na Cornualha. Adquiri todas essas peças nos Estados Unidos. Essa tapeçaria é do século XV e, como muitas, tem um tema religioso. Vocês podem
ver Santo Estêvão sendo crucificado – de cabeça para baixo, como manda a tradição.
Anna olhou para a figura que estava de cabeça para baixo: havia um halo ao redor de sua cabeça, e sangue escorrendo de suas mãos.
– Alegre – observou ela.
Arthur sorriu.
– Também não é minha favorita.
A segunda tapeçaria mostrava uma mulher costurando, sentada em um banco sob uma árvore, com um grande pássaro pousado bem acima de sua cabeça. As cores eram desbotadas, mas
ficavam mais brilhantes à medida que os fios se enterravam abaixo da superfície. Essa peça já foi muito mais colorida do que é agora, pensou Anna.
– Essa é escocesa... – disse Arthur; sua voz soava desaprovadora. – Século XIII, mais ou menos.
– São uns bárbaros, aqueles escoceses... – disse Charles, divertido. – Meu pai galês diz exatamente a mesma coisa.
Arthur riu.
– Tudo bem, você me pegou. Acho que não importa quanto tempo eu viva, eu ainda serei, em alguns aspectos, um homem do meu tempo, não? Assim como você, velho amigo. Esta tapeçaria
está em excepcionalmente boas condições, já que esteve em museus e coleções por cerca de duzentos anos, e fora bem cuidada até mesmo antes disso.
Arthur andou em volta e fez um gesto extravagante em direção à última e menor tapeçaria.
– A terceira é a minha favorita das três. Provavelmente também é do século XV; eu a comprei na Califórnia, de uma coleção particular. Está bem gasta, e foi costurada a um
tecido de musselina não ácido para estabilizá-la. Estão todas hermeticamente seladas, protegidas do clima.
Arthur estava certo, a obra estava gasta. Apenas uma seção de sessenta centímetros quadrados havia sobrevivido. A tapeçaria mostrava um cavaleiro montando um cavalo que galopava
com as quatro patas fora do chão; sua boca estava levemente aberta. Ele tinha uma espada em uma das mãos, levantada em um ângulo um pouco maior que 45 graus.
Arthur tocou o revestimento claro sobre a figura com dedos delicados.
– Como vocês podem ver, ela mostra Arthur lutando com Excalibur.
Anna não podia ver a razão daquele comentário, até que deu uma boa olhada na espada. Da palavra que havia sido costurada na lâmina havia apenas três letras. Um “x”, um “k”
e um “u”. Ela teve que admitir a si mesma que não conseguia pensar em muitas outras palavras com aquelas letras em particular bordadas em uma espada.
– Ele parece muito infeliz – comentou Anna. – Imagino o que ele estava perseguindo.
– Poderia ser qualquer coisa – disse Arthur. – Ele era o Campeão da Inglaterra e lutou com dragões e outras feras, além de também defender a sua terra natal dos saxões.
O primeiro expositor continha vários artefatos romanos. Anna suspeitou que alguns deles foram adquiridos de forma ilegal. Mas talvez não houvesse problema em remover uma pedra
da Muralha de Adriano se fora o próprio Arthur quem a tivesse originalmente coletado...
O segundo expositor mostrava uma cota de malha coberta com uma túnica azul brilhante adornada com um brasão mostrando três coroas de prata.
– Isso é uma réplica – disse Sunny. – Embora seu valor seja de vários milhares de dólares. O pano foi tecido de acordo com os métodos tradicionais e tingido com corantes vegetais
naturais. O fio de prata é prata verdadeira, e a cota de malha é feita à mão.
– É o brasão de armas do Rei Arthur, ou pelo menos o que ele deve ter usado em seu escudo – continuou ela, tocando o expositor.
– O brasão de armas de Arthur – disse Anna, cética. Ela duvidava que o Arthur verdadeiro tivesse usado cota de malha; talvez o Mestre britânico tivesse lido Le Morte d’Arthur
por mais vezes que o recomendavelmente saudável.
Sunny acenou com a cabeça.
– Do Rei Arthur, não do meu Arthur. Mas o meu Arthur não quis usar o brasão de armas de sua própria família –
– Um porco – disse Arthur sobre o ombro de Sunny.
– Um javali – disse Sunny, imperturbável. – Ainda há alguns membros de sua família que poderiam reconhecê-lo... um primo mais novo e sua irmã caçula.
– Que vai fazer 84 anos, nesse próximo mês de maio – disse Arthur, com carinho evidente. – Eu a visitaria, mas ela ainda é afiada como uma navalha e pratica tiro a distância
sem precisar de óculos. Então, escolhi o brasão de armas do Rei.
A última palavra soava como se estivesse em letras maiúsculas implícitas, como se nunca tivesse havido outro rei.
– Não havia brasões na época de Arthur – disse Charles. – Arthur não viveu no século VI d.C.?
– Ou em V d.C. – concordou Arthur. – O herói da batalha do Monte Badon, que ocorreu em 518 ou algo assim. A heráldica e todos os seus adornos vieram muito mais tarde. Ainda
assim, há uma tradição, e eu mandei fazer isso tudo por um pouco de diversão também.
Seus olhos eram sonhadores. Anna se perguntou se ele não usava e brincava com a espada que havia desenterrado quando não havia ninguém por perto para vê-lo.
O irmão mais velho de Anna costumava esgueirar-se para a sala à noite e tirar a antiga espada da cavalaria da Guerra Civil norte-americana pendurada por seu pai na parede
sobre a lareira, para lutar contra inimigos invisíveis. E uma vez (foi memorável) ele lutou contra sua irmã, a quem ele havia armado com uma vassoura. Anna havia levado dezesseis
pontos – e ele ganhara um nariz quebrado. Os homens, pensou ela, sorrindo internamente, têm um desejo ardente por coisas longas, pontiagudas, e afiadas.
– Agora, a pièce de résistance – continuou Arthur, fazendo uma pausa. – Sempre acho que as pessoas ficam desapontadas com Excalibur. Acho que é por causa de todos aqueles
filmes. Isso não é um adereço, é uma arma feita para matar.
Ele então ficou de joelhos, moveu o carpete e tirou uma parte do piso de madeira; debaixo dele havia um cofre. Arthur colocou a mão aberta sobre o cofre, e depois de um momento,
soou um bipe e o cofre abriu em um movimento lento e constante. Dentro dele, havia uma caixa estreita de madeira com pouco menos de um metro de comprimento.
Arthur colocou a caixa em cima da mesa do expositor. Ela era linda: uma mistura artesanal de madeiras claras e escuras.
Depois, ele abriu as travas que mantinham a caixa fechada e tirou a tampa.
E então Anna entendeu por que um homem podia achar que aquilo era Excalibur. Ela se assemelhava à espada de cavalaria de seu pai como um jaguar a um leão – ambos predadores
muito eficazes.
A Excalibur de Arthur era mais curta e mais larga que a espada de seu pai – e era afiada em ambos os lados. A lâmina era escura no centro, onde era indentada, e Anna pôde
reconhecer alguns padrões no aço que o faziam parecer aço de Damasco – e talvez fosse. As bordas eram lisas e brilhantes, entretanto, paralelas umas às outras na maior parte
do comprimento da lâmina. A empunhadura era feita de aço e, em comparação com todas as representações da espada Excalibur em filmes e séries de TV que Arthur havia mencionado,
era bastante utilitária – e curta. Era uma espada feita para ser empunhada com uma só mão, uma espada para matar.
– Havia aço no século VI? – perguntou ela.
– Havia espadas de aço, em alguns lugares, pelo menos mil anos antes disso – respondeu Arthur. – Espadas de aço de Toledo foram mencionadas pelos romanos no século I a.C.
– Ela é... – disse Anna, interrompendo-se. Ela ia dizer bela, mas isso não era correto. A espada de seu pai era longa e graciosa, uma arma projetada para ser tanto bela como
funcional. Mas essa era diferente. – Poderosa.
– Não há pedras preciosas, nem partes em ouro ou brilhantes – disse Arthur, parecendo satisfeito. – Ela não precisa disso.
O impulso de tocá-la era forte, mas Anna manteve as mãos atrás das costas.
– A espada não era a única arma que Arthur carregava – disse Arthur, com a voz ardente de paixão. – Só a mais famosa. Havia a Espada na Pedra, que reconheceu Arthur como o
rei legítimo. Esta também é provavelmente a espada conhecida como Clarent, que era usada para atribuir autoridade – tais como conferir a alguém o título de rei ou outro título
de nobreza. Alguns dos primeiros contos galeses mencionam o punhal, Carnwennen, com o qual ele matou a Bruxa Muito Negra.
Uma campainha soou. Sunny soltou um gritinho, consultou o relógio e saiu correndo da sala, dizendo em voz alta algo sobre timers e pratos queimados.
– A sua companheira é adorável – disse Charles.
– Ela é – disse Arthur. – Ela me traz alegria – continuou ele, tocando o punho da espada.
– Excalibur tem mais de 1500 anos de idade, e vai ficar comigo por mais 1500 anos. Minha Sunny... – disse Arthur, engolindo em seco. – Minha Sunny está morrendo lentamente
a cada dia.
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Já era tarde quando eles partiram. Para alívio de Anna, a noite passara em sua maior parte sem qualquer incidente. Ela ficara preocupada com a perspectiva de que o humor inicial
de Charles continuasse, mas ele fora perfeitamente civilizado durante o jantar.
Charles não falara muito, mas quando as histórias de Arthur sobre o Rei Arthur acabaram, ele conseguiu fazer o lobo britânico falar sobre as dificuldades que as CCTVs – as
câmeras de segurança que a Grã-Bretanha estava instalando em todos os lugares, para ficar de olho em seus cidadãos – estavam causando aos lobisomens.
– Bem – disse Anna, ao se aproximarem do Toyota maltratado – isso foi quase civilizado –
De repente, um homem que estava sentado atrás dos arbustos levantou-se um pouco rigidamente. Anna reconheceu o cheiro dele um momento depois e engoliu o som que ia fazer.
– Michel – disse Charles.
Anna o conhecera no restaurante na noite passada, mas sem os outros ao seu redor, ela podia entendê-lo melhor. Era um Alfa, mas não muito dominante. Em sua antiga alcateia,
a alcateia de Chicago, Michel poderia ter ficado a meio caminho do topo, mas não mais do que isso. Seu rosto fora golpeado e os hematomas nos olhos mostravam que alguém havia
quebrado seu nariz. Ele estava cicatrizando, mas para alguns isso acontecia mais lentamente do que para outros. Michel não conseguira ficar em posição totalmente ereta e tinha
um braço sobre o estômago.
– Charles – disse ele, em voz baixa. – A Fera levou meu celular, e eu não tive outra forma de entrar em contato com você.
– O que você precisa?
O francês balançou a cabeça.
– Vim para lhe dar um aviso. Sua companheira, ele a quer. Você está me entendendo? Ele mata mulheres e inocentes – e marcou Anna como sua vítima. Ele está sedento por ela.
Você deve mantê-la fora de seu caminho, se puder.
– Obrigado pelo seu aviso – disse-lhe Charles. – Venha, nós lhe daremos uma carona a qualquer lugar que você precise.
Porém, o lobo francês deu um passo para trás:
– Não. Se eu voltar com seu cheiro em mim, ele vai me matar.
– Mas não se você tiver o meu cheiro – disse Arthur.
Anna não escutou ele se aproximar, mas nenhum dos outros lobos parecia surpreso.
– Eu o encontrei ferido ao lado da estrada – continuou Arthur, olhando para a rua que ficava no fim da entrada da garagem. – Que vergonha, Jean, você deveria cuidar melhor
de seus lobos – disse ele, fazendo um som suave entre os dentes.
– Quando eu terminar com ele, Jean estará tão furioso comigo que irá esquecer-se de ferir Michel – disse Arthur.
– Ele odeia você, também – disse-lhe Michel, advertindo o outro Alfa, embora sua aceitação do plano ficasse evidente em seu rosto.
– Ele sempre me odiou. Não tenho medo dele – disse Arthur; ninguém ali lhe disse que aquilo era obviamente uma mentira; até mesmo Anna sabia que ele estava com medo.
Arthur olhou para Charles e disse:
– Vocês vão para o hotel. Vou alimentá-lo com algo sangrento para ajudá-lo a cicatrizar. Depois vou levá-lo de volta são e salvo ao seu covil.
Com um forte aceno de cabeça, Charles rodeou o carro para chegar no lado do passageiro. Anna abriu a porta, e então disse:
– Diziam que o Rei Arthur era um homem corajoso, também.
Arthur tinha medo, mas cuidou do lobo mais fraco e menos dominante, mesmo sabendo que Michel também era um Alfa.
– Um homem bom, o nosso Arthur – disse Charles suavemente, enquanto Anna dava a ré em direção à rua. – Mesmo que ele seja um pouco louco, quando sopra o vento norte-noroeste;
como Hamlet. Pelo menos o vento geralmente sopra para o sul.
Shakespeare...
– Ele geralmente sabe distinguir um falcão de um serrote? – disse Anna, para que Charles soubesse que ela reconhecera sua citação. – Você não acredita que ele seja Arthur?
Ele sorriu um pouco.
– A maioria dos velhos lobos tem obsessão por alguma coisa. Para o nosso monarca britânico, essa obsessão é o Rei Arthur. Uma loucura relativamente benigna. Eu a prefiro muito
mais que a de Chastel.
– Arthur não é tão velho quanto você – disse Anna.
Ela estava certa disso.
– Não. Mas ele é velho o suficiente.
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Anna não estava fazendo beicinho; não mesmo. Ela sugou o lábio inferior, cruzou as pernas e mexeu os dedos dos pés. Anna concordara em esperar em algum lugar seguro durante
a próxima rodada de reuniões. Charles não queria correr o risco de mandá-la sair por conta própria novamente – e ela não queria arriscar a vida de ninguém. Na última vez em
que os visitou, Anna viu que Tom ficaria bem, apesar de ainda se sentir rígido e dolorido de manhã – Moira ainda estava dormindo, exausta.
Anna tentara novamente se sentar ao lado de Charles e relaxar, mas havia tantos estranhos olhando para ela...
Por isso, ela fez um sinal para Angus, que a levara para o seu próprio escritório, seu santuário privado, um piso acima do auditório. Em seguida, Angus fechou a porta, depois
de ter dito a Anna para que ela a trancasse. Trancada, a porta de aço provavelmente não iria impedir a entrada de um lobisomem determinado, mas isso lhe daria tempo para usar
seu celular e pedir ajuda.
O escritório de Angus estava longe de ser um purgatório. Havia uma TV e um sofá, além da mesa e de sua ridiculamente luxuosa cadeira de escritório. Havia também revistas,
mas Anna havia trazido um livro para ler.
Assim, por que ela estaria sentada na confortabilíssima cadeira de couro de Angus sem fazer beicinho?
Não havia nenhuma razão.
Alguém bateu à porta.
– Quem é? – disse ela.
– Angus. Eu tenho um convidado para você. Ric, o Ômega dos italianos.
Anna destrancou a porta e a abriu uma fresta de aproximadamente doze centímetros. Uma cabeça loira com uma barba curta vermelha enfiou-se na abertura estreita.
– Presto. Seu entretenimento chegou.
O lobo entrou na sala e fechou a porta atrás dele.
– Domesticado e seguro, a seu dispor.
A voz dele evocava tanto a Grã-Bretanha quanto a Alemanha.
– Francamente falando – disse-lhe Anna –, eu teria dado as boas-vindas a um bando de inimigos para fazê-los em pedaços; é entediante aqui.
– Ai de mim, não sou um vilão – disse ele, em grande estilo, pegando um punhado de nozes da tigela na mesa de Angus. – Embora eu pudesse ser, se você quisesse – continuou
ele, mexendo as sobrancelhas. – Seu companheiro decidiu que meus amigos italianos e os alemães se acalmariam um pouco mais sem a minha presença. Embora ele não tivesse dito
exatamente isso – disse-lhe o Ômega, sorrindo. – Acredito que suas palavras foram “Ômega. Caia fora.” Angus concluiu que ele falava dessa sala aqui.
Ric inclinou a cabeça para o lado, como se isso lhe desse uma visão diferente de Anna.
– Você é o primeiro Ômega que conheço.
– Eu posso dizer o mesmo – concordou Anna. – Eu pensei que você fosse alemão.
Ric balançou a cabeça e foi até a janela.
– Austríaco.
De repente, a escolha dele em se juntar aos italianos passou a fazer muito mais sentido. Ele deve ter lido isso no rosto de Anna porque começou a rir.
– Sim, os italianos são muito mais efervescentes e alegres do que os alemães. Mesmo os lobisomens – disse ele, pensando por um segundo, antes de acrescentar: – Talvez especialmente
os lobisomens.
– Por que os austríacos não quiseram você? – perguntou ela.
O rosto dele ficou sério.
– Não há mais nenhuma alcateia austríaca. Havia apenas duas, e há quatro anos Chastel ficou entediado e caçou os dois Alfas. Ele... – o outro lobo respirou fundo, mas continuou.
– Mas isso não é conversa para hoje. Então, eu poderia ser italiano ou alemão. E eu escolhi os italianos. Meu Alfa diz que se os alemães soubessem o quanto eu falo ficariam
felizes com minha decisão.
– Seu inglês é muito bom – disse Anna, sentando-se na cadeira de Angus. Ela era giratória, e assim Anna conseguia acompanhar a exploração da sala que Ric fazia sem ter que
ficar andando ao lado dele.
O lobo virou as costas para a janela para que pudesse olhar para ela, ou para que ela pudesse olhar para ele. Ric levou as duas mãos ao peito, em um gesto exibicionista que
parecia muito italiano para ela – não que ela tivesse conhecido muitos italianos.
– Erudito – disse ele. – Esse sou eu. Quase terminei meu doutorado em psicologia antes da minha Transformação. Por isso sei falar inglês, e meu italiano está ficando muito
melhor. E um amigo francês me diz que um dia, se eu treinar mais, não estarei mais lisonjeando a mim mesmo quando disser que sei falar um pouco de francês.
Ric sentou-se no parapeito da janela, que era grande o suficiente para servir como um assento muito bom.
– Meu Alfa diz que faz pouco tempo que você é lobisomem.
– Três anos.
– Isso é dois anos e seis meses a mais do que eu. Só você pode me dizer exatamente o que é um Ômega – algo que o pessoal não conseguiu de jeito nenhum me explicar satisfatoriamente.
Eu gostaria de algo mais do que “você nos faz felizes”, que é o melhor que conseguiram até agora. Minhas namoradas é que dizem isso, e é bom, não é? A maioria dos lobos na
minha alcateia são homens, e eu não jogo nesse time; essas coisas que eles dizem não soam muito bem para mim. “Você nos traz alegria” é pior ainda, então parei de perguntar.
Eu preciso saber mais, o que você acha?
Seu olhar triste era tão exagerado que ela não pôde deixar de rir.
– Que desconcertante.
Anna tentou imaginar o que Charles faria se outro homem viesse até ele e dissesse: “Você me traz alegria”.
– Eu não sei tanto assim – confessou Anna. – Meu professor é um homem que foi casado com uma Ômega por alguns séculos – até a morte dela. O problema é que não há muitos de
nós. Não somos tão raros na população humana, mas raramente somos transformados.
Nesse momento, Anna considerou Sunny, pensando na hipótese de que ela poderia ser um Ômega humano ou talvez apenas muito submisso.
– Mesmo lobisomens enfurecidos raramente atacam seres humanos Ômega, e eu sei que mesmo que o Ômega deseje ser transformado, é difícil encontrar um lobo disposto a fazê-lo.
– Então eu entendo – disse ele. – Eu tive um acidente de esqui e por sorte um amigo, membro da patrulha de esqui, conseguiu me encontrar. Ele era um lobisomem – um segredo
que ele havia guardado até ali, durante todo o tempo em que fomos amigos. Eu estava morrendo, e ele me transformou para tentar me salvar.
Ric deu um sorriso de lábios apertados, e continuou:
– Eu, eu pensei que era porque éramos amigos, mas ele disse a seu Alfa que sabia que eu era um Ômega e isso seria um tesouro para a alcateia. O Alfa aceitou suas palavras
como verdade e não o puniu por me transformar sem permissão.
– Ele ainda é seu amigo?
Ric suspirou e balançou para trás; o movimento fez a sua cabeça bater contra a janela com um baque surdo.
– Sim.
– Então, talvez ele só tenha dito ao Alfa a verdade que ele precisava. Uma pessoa muitas vezes tem mais de uma razão para fazer algo – particularmente algo tão grande assim,
como transformar um ser humano mortal em um lobo imortal.
Algo no rosto dele relaxou, e o Ômega acenou com a cabeça uma vez.
– Exatamente. Eu não tinha pensado nisso dessa forma.
Ric lhe deu um rápido olhar sob os cílios.
– Sinceramente, eu não havia notado como isso me incomodava até falar sobre isso com você aqui. Como você foi transformada?
Ela desviou o olhar.
– Sinto muito – disse ele.
Anna percebeu que, de repente, Ric já estava muito mais perto dela do que estava antes: ele havia abandonado o seu lugar na janela, e agora estava agachado em cima da mesa.
Com base na velocidade com que mudara de posição, ela concluiu que Ric devia ter pulado de onde estava.
– Foi ruim? – disse ele suavemente. – Você não precisa me contar.
Ric então sentou-se, deslizando uma perna debaixo da outra para descansar o peso do corpo sobre o quadril.
– Para muitos, não é bom discutir sobre isso.
– Um lobo louco é capaz de atacar qualquer coisa – disse-lhe Anna, com uma voz rouca. Se ela fechasse os olhos, sabia que veria o rosto de Justin, e por isso ela os deixou
abertos. – A companheira de um Alfa de Chicago estava ficando louca, e ele achou que um Ômega iria ajudá-la a manter o controle. Assim, ele me encontrou. Como não conseguiu
forçar a si mesmo a me ferir, achou um lobo louco por sangue, desequilibrado, e o enviou atrás de mim –
Justin a caçara, e toda aquela brutalidade, parte necessária de uma Transformação, havia se tornado especialmente lenta nas mãos dele.
– Acho que não fui a primeira que ele tentou transformar. Mas os outros, com os quais ele falhou, morreram.
Ric olhou nos olhos dela, e seus próprios olhos estavam atentos.
– Dureza.
Anna encolheu os ombros com uma indiferença na qual não esperava que ele acreditasse. Mas ela não queria chorar no ombro dele: embora suspeitasse que Ric não se importaria
com isso, sabia que Charles certamente se importaria.
Ela sorriu, e o sorriso era genuíno.
– As coisas estão muito melhores agora. Charles chegou como um cavaleiro branco e me resgatou.
Ric devolveu o sorriso.
– Eu conheci Charles. Um cavaleiro branco muito assustador.
Ela assentiu com a cabeça.
– Sim. Mas isso era exatamente o que eu precisava. Então você quer saber mais sobre ser um Ômega?
– Sim, bitte.2 Sei que eu estou em último lugar na alcateia, mas em que eu sou diferente dos lobos submissos?
– Eles disseram que você estava em último lugar?
Ric apoiou o queixo na perna que estava na vertical.
– Não exatamente.
– Ótimo. Porque você não está. Você está fora da estrutura da alcateia. Você é o único que pode desafiar o Alfa – disse Anna, hesitando um pouco. – Bom, isso não significa
que ele vai deixá-lo fazer isso... mas um lobo submisso, mesmo um lobo que é muito menos dominante do que o Alfa, teria dificuldade em enfrentá-lo. A maioria dos lobisomens
tem um...
Anna lutou para encontrar uma explicação exata, mas por fim decidiu não se preocupar com isso. Ric era um lobisomem, ele entenderia.
– Enfim, eles têm um medidor interno que lhes diz se um lobo é dominante em relação a eles ou não. Porém, se o medidor não mostrar isso imediatamente, eles costumam brigar.
– Isso eu já vi – disse ele.
– Certo, então. Isso é algo que você e eu não temos. Quero dizer, eu ainda consigo identificar, mesmo entre os seres humanos, quem está no comando e quem não está. Mas isso
não tem nada a ver com a relação deles comigo.
– Ja – disse ele, jogando a cabeça para cima e batendo na mesa. – Eu achava que havia algo errado comigo, por que eu não sinto isso; eu não tenho a necessidade de abaixar
os olhos ou curvar a cabeça.
– Eles provavelmente nem sequer pensaram em lhe contar – disse-lhe Anna. Além disso, é mais seguro abaixar os olhos perto dos lobos mais dominantes.
Ric respirou fundo e se inclinou para frente.
– Eu pensei que eles tinham problemas em ferir Ômegas como você e eu.
Anna se afastou.
– Sim, é verdade, mas sempre há aqueles que são loucos.
– Isaac, meu Alfa, disse-me que havia um problema, ontem. Eu percebi, mas não consegui entender. Ele disse que algo havia assustado você, e cada lobo naquela sala estava pronto
para defendê-la – e todos eles estavam olhando para os lobos ao seu redor para ver quem era o problema. Isso também tem a ver com ser Ômega?
Anna suspirou.
– Eu lhe contei alguma coisa sobre a minha primeira alcateia; pois bem, isso me deixou com alguns problemas. Quando há lobos dominantes demais, eu me transformo em uma covarde.
O que você sabe sobre a diferença entre os lobos dominantes e os submissos?
Ric encolheu os ombros.
– Eles não me dizem nada. Esses lobos... Eles não falam muito. Certamente eles vão dizer a você que eu falo o tempo todo. Ou talvez você tenha notado. Como podemos resolver
as coisas, se não falamos? Falar é útil. Mas eu observo também. Os lobos dominantes lutam uns com os outros e cuidam dos lobos submissos. Aliás, os submissos... Eles não são
uma ameaça, e o que precisam mesmo é de proteção. É necessário cuidar desses lobos, e uma presença reconfortante é algo necessário para eles.
– Alguém me explicou isso em palavras muito simples. Os instintos dos lobos dominantes – disse Anna, aprofundando a sua voz para assemelhá-la a um barítono passável ao introduzir
o conceito de seu “professor”; porém, não conseguiu imitar muito bem o sotaque de Asil – lhes dizem para proteger com violência e controlar seu meio ambiente. Eles estão prontos
para matar. Quanto mais dominante o lobo, mais rápido ele é para matar. Lobos menos dominantes cedem a autoridade de proteger ao lobo mais dominante. Um Alfa é o controlador
por excelência, pronto para matar qualquer um que ameace sua alcateia. Ele protege o mais fraco dos fortes e não tolera desafios à sua vontade. Há mais coisas, relacionadas
à magia, mas o mais importante é isso aí.
– Sim – disse ele. – Eu já vi isso.
– Os lobos submissos são os lobos mais amáveis, mais gentis. Eles não têm o instinto de matar. Isso não significa que eles não matarão sob as circunstâncias certas, mas sim
que matar não é sua primeira resposta para todo problema. Eles não precisam controlar todos ao seu redor. Com um lobo submisso, um lobo dominante pode relaxar, pois o lobo
menor não é uma ameaça.
– Tudo bem. Estou acompanhando.
– Um lobo Ômega é um lobo Alfa que é extremamente zen.
Houve uma pequena pausa enquanto Ric absorvia a ideia. Ela agarrou um punhado de nozes e viu que apanhara um monte de castanhas do Pará e um amendoim. Angus, evidentemente,
não gostava de castanhas do Pará.
Finalmente, Ric disse lentamente:
– Um lobo Alfa é o mais dominante na alcateia, os mais propensos à violência.
Anna balançou a cabeça.
– Ninguém se mete com ele, e seu trabalho é proteger sua alcateia. Ninguém se mete com Ômegas também, e nosso trabalho também é proteger nossas alcateias, até delas mesmas.
A parte zen deve-se ao fato de que não precisamos matar ninguém para fazer as coisas de nosso jeito.
– Alfa – disse ele novamente, como se tentasse apreender mais a explicação dela. Havia um toque áspero por trás de sua voz. Até mesmo um pouco de raiva.
– Sim, somos como Alfas – disse Anna, comendo mais uma castanha do Pará, embora preferisse amêndoas. – Menos na parte da violência – e também da magia; a nossa é diferente.
Com a nossa magia, fazemos a nossa alcateia feliz.
Ric sorriu para ela.
– Enquanto um Alfa pode obter força e até mesmo magia de toda a alcateia, o Marrok – e essa é apenas uma pequena parte do que o torna assustador – pode obtê-la de todos os
seus Alfas. Eu acho que nós não podemos fazer nada parecido. Mas por outro lado não somos obrigados a escutar os “grandes lobos malvados” mandarem em nós. Ser um Ômega não
significa ser um fraco.
Nesse momento, Anna percebeu que Ric podia ficar quieto às vezes, porque ele inclinou a cabeça em direção ao teto e pensou por cerca de dez minutos, tempo suficiente para
que Anna tivesse tempo para pensar sobre o que havia lhe dito. Ela não tinha agido como um Alfa zen; estava agindo como um lobo submisso... Mas não, mesmo um lobo submisso
não costumava colocar o rabo entre as pernas ao primeiro sinal de um lobo dominante, como ela vinha fazendo. Anna havia matado um vampiro, e isso quando já havia matado uma
bruxa tão assustadora a ponto de ter obrigado Asil a fugir e se esconder por duzentos anos. Asil, o Mouro, cujo nome era sussurrado com temor (ou às vezes com um rosnado)
onde quer que fosse.
Irritada, Anna pegou seu livro e olhou para a página.
– Anna – disse ele finalmente.
– Sim?
– Eu gostaria de ensinar à minha alcateia essa sua verdade. Que eu não sou uma criança, um brinquedo que eles podem achar conveniente. Como se eu fosse um lobo über-submisso...
Eles devem me ver como o lobo zen que eu sou.
Lobo zen. Isso tinha um apelo maior do que “Ômega”.
– E como você vai fazer isso?
Ric sorriu para ela; seu rosto se iluminava com um ar travesso.
– Eu tenho uma ideia. Hoje à noite vai haver uma festa, não é? E depois disso, uma caçada. Qualquer um que não seja um lobo submisso pode juntar-se à caçada. Essa exclusão
é para a proteção dos submissos, com tantos dominantes por perto. Qualquer um. Então, acho que eu deveria ir caçar.
OITO
Charles se sentia mais confortável quando estava sozinho ou, se isso não fosse possível, junto com sua alcateia na floresta. Ficar falando durante horas em um auditório lotado
não estava em nenhuma das listas de coisas que ele gostava – ou coisas nas quais ele era bom. Pelo menos ninguém morrera. Ainda.
Os alemães haviam sossegado assim que o Ômega dos italianos saíra batendo o pé com a dignidade ofendida. Os italianos, por sua vez, haviam feito um bom trabalho ao dissimular
sua satisfação e ir diretamente aos negócios. Os acordos haviam sido estabelecidos, após muita discussão.
Por volta de duas da tarde, Charles e a delegação da Finlândia estavam finalmente conseguindo chegar a um acordo, complicado ainda mais devido a questões de tradução. Os finlandeses
haviam declarado que não tinham nenhum membro que falasse inglês. Charles não falava finlandês. Assim, eles haviam traduzido a conversa com a ajuda de um lobo dinamarquês
que falava finlandês e espanhol, e de um espanhol que falava inglês. Charles suspeitava que isso era um subterfúgio para dar-lhes tempo para pensar – e ele não tinha objeções
a isso.
Charles havia concordado em conceder um empréstimo sem juros aos finlandeses para uso em publicidade positiva, bancado pelo braço beneficente da empresa do Marrok – embora
Charles em pessoa fosse o responsável pela distribuição e o interessado em obter resultados com o dinheiro emprestado. Ainda assim, aquele era um bom negócio.
Os finlandeses não eram os únicos sorrindo quando as discussões terminaram. Todos vinham acompanhando de perto as negociações (muitos deles até mesmo tomando notas), até que
finalmente decidiram acreditar que o Marrok não tinha intenção de deixá-los em uma situação difícil e estava disposto a assinar contratos legais que poderiam ser levados aos
tribunais, assim como os contratos estabelecidos por qualquer outra pessoa: um benefício no qual nenhum dos lobos ali havia pensado até hoje. Gradualmente, ao longo do dia,
um espírito de otimismo cauteloso havia começado a se espalhar entre os lobos.
– Estamos de acordo? – perguntou Charles, dirigindo-se ao homem que tinha agido como o líder finlandês.
Enquanto a tradução fazia seu caminho através das barreiras linguísticas – e o finlandês já começava a acenar com a cabeça –, Jean Chastel se levantou e disse:
– Não.
Antes de continuar, o lobo francês esperou até que o finlandês se sentasse lentamente, pois este tinha levantado no meio das negociações.
– Não vamos aceitar dinheiro por essa traição de todos os tratados que assinamos com o Marrok, nos quais ele concorda em manter o nariz fora de nossos negócios.
Dizendo isso, ele desgraçadamente abriu uma pasta lisa e começou a tirar papéis de dentro dela, além de pergaminhos de pele de cordeiro que pareciam ser mais velhos que Chastel
e eram antigos o suficiente para ter somente cheiro de poeira, e não do material de que eram feitos.
– Nós não precisamos do dinheiro do Marrok. Não estamos sob sua “proteção”. Ele não tem jurisdição em nossos territórios.
Havia um ar de triunfo sombrio no rosto de Chastel. Os lobos franceses – incluindo Michel, com todos seus ferimentos – pareciam estar lhe dando apoio. Eles não tinham escolha.
O silêncio invadiu a sala; uma quietude desconfortável reinava enquanto todos se concentravam em Chastel. A Fera não podia impedir o Marrok de tornar pública a existência
dos lobos. Mas ele podia evitar que o Marrok ajudasse os lobos europeus a lidar com a situação – e no final, isso poderia ser desastroso para todos.
Chastel governava o continente europeu como queria, e acabara de marcá-lo como seu território, deixando a Charles a escolha de aceitar sua reivindicação ou desafiá-lo abertamente.
– Sim – disse Dana, com uma voz maternal. – Obrigado por isso, monsieur. Nós o ouvimos.
A Fae sorriu simpática para Chastel, e em seguida levantou os olhos para o resto dos lobos.
– Em nome da alcateia da Emerald City, faço um convite a todos vocês que se reuniram em Seattle para essa conferência. Como parte de nossa hospitalidade, organizamos uma caçada
hoje à noite no próprio território de caça da alcateia. Não haverá sangue – o Marrok pediu-me para que eu lhes desse as suas desculpas. Como haverá mais do que uma alcateia
caçando, a ausência de sangue vai diminuir a ameaça de violência...
Charles podia não se sentir confortável ou ser particularmente bom ao falar em público, mas Dana era. Quando seu pai escolheu a Fae como moderadora, Charles ficou preocupado
com a escolha, pois Dana não conhecia os lobos. Seu pai somente sorriu e disse: “Ela conhece os homens”. Tinha toda a razão.
Todos já haviam sido informados sobre a caçada. Dana estava roubando de Chastel sua notoriedade e seu poder, e todos sabiam disso. Sem ela, Chastel poderia ter acabado com
a reunião, deixando para Charles – e, quem sabe, para Arthur também, mas isso apenas em teoria – a decisão de enfrentá-lo ou recuar e deixá-lo vencer a corrida.
E se eles o tivessem desafiado e matado, Dana seria obrigada a destruí-los. Charles não tinha certeza se ela conseguiria caso ele e Arthur trabalhassem juntos. Mas ele não
tinha como saber se iria trabalhar em conjunto com Arthur; às vezes era muito difícil prever suas ações.
Além disso, nada teria funcionado se Dana já não tivesse se mostrado mais poderosa do que Chastel diante de todos. O francês deixou que ela assumisse porque tinha medo de
desafiá-la. E enquanto Dana dava a todos as informações que eles já sabiam – havia já uma semana que Charles mandara um e-mail a todos com os pormenores da caçada –, todos
os lobos na sala entenderam o que ela estava fazendo.
Chastel se levantou e saiu da sala, deixando os seus papéis para trás. Angus deu um passo para o lado e bloqueou a porta.
Era uma coisa imprudente de se fazer. Se Chastel não quisesse se lembrar de que Angus estava sob a proteção do Marrok, a vida de Angus poderia estar perdida. E talvez (apenas
talvez) ele estivesse mesmo contando com isso. Se Chastel derramasse sangue primeiro... Mas o francês manteve a calma. Por pouco.
– Madame? – perguntou Angus suavemente.
A Fera virou a cabeça em direção à Fae.
– Preciso de ar fresco. Algo está fedendo aqui.
Os sorrisos de Dana eram armas, mesmo quando eram gentis.
– É claro – disse ela. – Saia.
Angus afastou-se e abriu a porta para ele.
E assim a Fera recuou. Mas recuou de forma triunfante: nenhum dos lobos estrangeiros iria desafiar o direito de Chastel de tomar essa decisão por eles. Além disso, depois
que o Marrok revelasse a existência dos lobisomens (o que iria repercutir também na Europa), o fracasso dos lobos europeus em convencer a população humana de que eles não
eram uma ameaça iria ter um impacto no próprio território do Marrok.
Charles não pôde evitar a ideia de que as coisas teriam sido diferentes se Bran estivesse ali.
i
Angus tinha mais de uma centena de canais na sua TV: canais de esportes, canais de notícias, canais de comédia, canais de desenho animado, canais de ciência e cerca de cinquenta
canais de compras. A única coisa que Anna e Ric aguentaram assistir foi uma maratona de South Park.
As crianças estavam sendo perseguidas pelos alunos Nazgûl da quinta série – e de repente o canal mudou para um comercial sobre produtos para aumentar os dotes sexuais masculinos.
– Então – disse Anna, para tirar a atenção de ambos do sorriso tolo no rosto do homem na TV –, por que você acha que entrar na caçada será útil?
O homem deve ter incomodado Ric também, porque ele deu um pulo do sofá e desligou a televisão antes de voltar à mesa novamente.
– Eu acho que o meu Alfa não entende a diferença entre submisso e Ômega. Agora que eu entendo, eu gostaria que ele soubesse também. Acho que a caçada vai ajudar – um jogo
onde eu posso enfrentar os dominantes com impunidade.
– Você acha que daria certo? Charles simplesmente me estrangularia e acabaria com tudo de uma vez.
Ric se inclinou para trás e acenou com as mãos.
– Ei, sou um psicólogo! Ou quase. É claro que não sei. Acredito que isso vai me ajudar – e acho que a participação na caçada irá ajudá-la com esse problema que você tem com
os lobos dominantes.
– Seria como jogar uma criança que tem medo de água na parte funda da piscina, esperando que ela nade ou afunde?
Ele sorriu.
– Nada tão drástico assim. Eu acho que se você tiver algo para fazer, não vai ter tanto medo; seria alguma tarefa, como encontrar essa isca que a dama Fae e Angus esconderam
no campo de caça da alcateia. E se você não tiver medo, eles não irão ficar pressionando você. E caso você comece a se preocupar com eles, justamente nesse momento, como num
passe de mágica – continuou Ric, estalando os dedos –, todos já vão estar ao seu redor, caçando com você, e vai parecer bobagem ter medo.
Anna olhou para ele. Ela se lembrou que Charles tinha sugerido algo parecido, embora não tivesse a intenção de que ela participasse de verdade.
– O oceano. É como jogar uma criança de dois anos no oceano. Com tubarões.
Ric riu novamente.
– Veja só. Eu sou um lobo há pouco tempo, mas eu sei observar. Meu orientador na uni – universidade, para vocês – diz que sou um gênio. Eu lhe darei o número dele, e ele irá
dizer a você.
O lobo fez uma pausa e depois sorriu um pouco timidamente.
– É claro que ele também vai lhe dizer que morri tragicamente em um acidente de esqui. De qualquer forma, isso significa: você deveria me ouvir.
– Nós lobos somos mais adaptáveis do que éramos quando humanos. O lobo sempre vive no presente, não se preocupa com o passado ou o futuro. Seu lobo vai evitar que você entre
em pânico. A caçada dará a seu lobo a ajuda necessária. No final, você ficará melhor, porque seu irmão lobo vai ajudá-la.
– A menos que eles realmente me matem.
– Sem sangue – disse Ric. – Está nas regras. Você viu como aquela fada fez a Fera calar a boca ontem, ou isso aconteceu depois que você saiu?
– Antes – disse Anna. – E eles preferem a forma Fae. Uma fada é um tipo específico de Fae cuja forma verdadeira tem trinta centímetros de altura – e tenho quase certeza que
Dana não é uma delas.
– E ela estará lá para manter as coisas sob controle: os lobos vão se comportar.
Anna sabia que Charles não ficaria feliz se ela decidisse participar da caçada. Acidentes acontecem. Especialmente quando são de propósito. Charles tinha inimigos, e não adiantaria
nada para ela ser vingada depois de morta. Anna não queria que Charles ficasse infeliz por causa dela.
– Veja – disse Ric, com seriedade. – Isaac, meu Alfa, estará nessa caçada, também. Acho que ele irá concordar em ser seu guarda-costas junto comigo. Ninguém mais estará trabalhando
em conjunto. Você consegue imaginar Alfas cooperando uns com os outros? Nós três, juntos, temos uma chance melhor de vencer. E ainda podemos manter você segura.
– Duas pessoas se machucaram tentando me defender, ontem – disse Anna. E isso aconteceu durante uma saída para fazer compras.
– Alguém tentou machucar você?
Anna sabia que Charles tinha ligado para o Alfa de Ric na noite anterior para avisá-lo sobre a possibilidade de que os vampiros tivessem eleito Anna como alvo, justamente
por ela ser um Ômega – e não porque era a companheira de Charles. Aparentemente, Ric decidira não transmitir a notícia.
– Você deveria saber disso – disse ela, e depois contou a ele do ataque.
– Somos vistos como fracos – disse Ric sombriamente, depois de ouvir a história.
Como já haviam acabado com as nozes e também com o almoço entregue por dois dos lobos de Angus, eles encontraram um esconderijo secreto que continha embalagens de frutas secas
para caminhadas. Ric vasculhou um dos pacotes e tirou alguns pedaços de pêssego seco: ele jogou os pedaços no ar e pegou tudo com a boca antes que começassem a cair, em duas
rápidas abocanhadas.
– Talvez não sejam apenas os meus lobos que precisam saber, mas todos os outros também. Não é seguro em nosso mundo ser visto como fraco. Isso faz de nós presas.
– Se o seu Alfa não olhasse para você como uma espécie de lobo supersubmisso, já teria lhe contado sobre a ameaça dos vampiros, e você teria ficado alerta para o perigo –
concordou Anna.
Ric atirou-lhe alguns chips de banana, e ela os agarrou no ar sem as mãos também; ele a saudou por isso.
– Na minha opinião, essa é uma maneira muito ruim de proteger até mesmo os mais submissos. Afinal, eles não são crianças, são lobisomens.
Ric fechou os olhos, jogou outro chip para o ar e o abocanhou.
– Você diz que somos como lobos submissos que não obedecem. Gostaria de saber se há lobos dominantes que não protegem?
– Sim.
Anna olhou para cima, mas Ric precisou se virar para ver Chastel parado no umbral da porta.
– Eles nos chamam de Feras – disse ele, sorrindo para Anna. Seus olhos estavam famintos. – Você tem medo de mim, garotinha?
A presença de Ric era indiferente, considerando o modo como Chastel não estava prestando atenção nele. O foco dele estava em Anna, e nela pousavam seus olhos grandes e dourados.
Um leve rubor nas faces mostrou a ela que Chastel estava excitado – ele se parecia exatamente com Justin, o lobo que a havia transformado, antes de –
Anna engoliu aquele pensamento. Esse homem estava procurando uma presa. E ela não seria um brinquedo para ele. Nem para ninguém. Nunca mais.
Ela então convocou seu lobo, não tanto para iniciar a Transformação, mas para emprestar a sua coragem e deixá-la repousar sobre seus ossos. Quando Anna teve certeza de que
seus joelhos não iriam tremer, ela levantou-se da cadeira, enquanto o silêncio ganhava peso, como uma tempestade que se avizinha. Anna levou algum tempo antes de responder
– ele tinha a paciência de um bom caçador.
– Você é o único que deve ter medo – disse ela finalmente, deixando que sua voz resoluta levasse a mensagem que ela queria lhe dar: Anna não tinha medo dele. Mas justamente
por ela ter medo dele, Anna não poderia lhe dizer que não, e essa era a verdade em suas palavras.
– Se você me tocar, Charles vai caçá-lo e comer sua medula, enquanto você ainda estiver vivo para gritar.
Anna utilizou suas duas aulas de teatro e fez sua boca abrir-se em um sorriso.
– Eu ficarei feliz em assistir – disse ela, lambendo os lábios.
O sorriso sumiu do rosto de Chastel, e ele rosnou.
Anna não era mais impotente, não como era em Chicago quando Justin a caçara, ou mais tarde, quando a alcateia a forçara a fazer a vontade dele. Aqui, a única outra pessoa
na sala era Ric – e ele ajudaria Anna, não Chastel. A Fera a venceria, provavelmente a ambos. Mas ela iria machucá-lo – e depois Charles cuidaria do resto. Seu lobo aprovava
a ideia, e o medo desapareceu, deixando Anna equilibrada sobre os calcanhares e pronta para sangue e morte.
Havia apenas o agora, entre essa respiração e a próxima – e isso não deixava espaço para medo.
– Sua vampira era adorável. Ela morreu rápido demais – continuou Anna, imitando o movimento que usara para quebrar o pescoço da mulher. – Espero que você seja melhor do que
ela.
– Minha vampira? – disse Chastel, rejeitando as palavras dela com um movimento impaciente de mão. – Você é uma tola, e seu companheiro é um bruto, desprovido de inteligência.
Não é nada além do cachorro de estimação do pai dele, que pega e mata quando ordenado.
Anna deixou o sorriso aumentar.
– É isso o que você acha? Como você é tolo.
Com a mão que o francês não podia ver, Ric gesticulou abruptamente para Anna, tentando dissuadi-la de provocar a Fera. Ela sabia que aquilo era estúpido, mas Ric não podia
saber que a outra alternativa que ela tinha era ficar encolhida em um canto. Por isso, ela o provocava.
– Salope – rosnou Chastel.
Anna sabia o que aquilo significava em francês, e respondeu:
– Obrigada.
E de repente, sem que ela tivesse visto ou ouvido, Charles estava lá, parado logo atrás de Chastel.
– Cuidado com quem você chama de cadela, Jean, mon cher – disse ele, com uma voz inacreditavelmente calma para a situação. – Alguém pode achar que é um insulto.
Chastel virou-se, dando as costas a Anna para enfrentar o mais perigoso.
– Ah, aqui está ele. Sua mulher me diz que você vai me caçar e comer minha medula, enquanto eu ainda estiver vivo.
– Ela disse?
Charles olhou para Anna, e ela viu a aprovação em seu rosto. Anna duvidava que alguém mais pudesse ter visto qualquer coisa. Quando Charles continuou, sua voz era uma carícia,
apenas para ela.
– Gostaria disso, querida?
Anna colocou as mãos entrelaçadas sob o queixo, na melhor pose de estrela de cinema mudo.
– Só se eu puder assistir.
Charles riu, e ao final da risada, rodeou Chastel, usando o movimento para colocar-se entre Anna e o francês – e ele já não estava mais rindo, em absoluto.
– Saia.
Anna não podia ver o rosto de seu companheiro, mas viu Chastel recuar e abaixar os olhos. Suas mãos se crisparam em punhos fechados, mas isso não o impediu de dar um passo
atrás. Praguejando baixo, Chastel se virou e em seguida se afastou dali.
Charles inclinou a cabeça, obviamente para ouvir a partida de Chastel.
– Enquanto ele ainda estiver vivo? – disse ele.
– As mulheres são o sexo sanguinário – disse Ric tristemente. – Ficamos com a reputação, mas é somente porque as mulheres ficam atrás de nós, dizendo “Mate-o. Esmague-o”.
Anna achou que já estava na hora das apresentações formais.
– Charles, este é Ric – desculpe, eu não sei o seu sobrenome.
Ric pulou da mesa, onde estivera agachado e pronto para atacar se necessário, e estendeu a mão.
– Postinger. Heinrich Postinger.
Charles apertou a mão dele.
– Sou Charles Cornick.
Ric olhou para Anna.
– Seu desafio foi admirável, mas não é a coisa mais brilhante que já vi alguém fazer. Ele virá atrás de você agora. Ele tem que fazer isso.
– Ric é psicólogo – explicou Anna.
– Ele viria atrás dela, não importa o que ela fizesse – disse Charles.
Anna sorriu.
– Há uma certa satisfação em saber que mereço, não é? Melhor do que pensar que ele está vindo atrás de mim porque eu corri como uma covarde.
Charles a beijou.
– Sim – disse ele, afastando a boca da dela. – É verdade, não é? Tenho de voltar – todos ainda estão no auditório esperando por mim. Você poderia trancar a porta dessa vez,
por favor? Não é bom a porta ficar aberta para que qualquer um possa entrar, Ó Mulher-que-Não-é-Covarde.
– Claro – respondeu Anna, e com uma súbita explosão de confiança, levantou-se na ponta dos pés e beijou o queixo de Charles, o que era o máximo que ela podia alcançar. Ele
não a ajudou, mas seus olhos estavam sorrindo quando ela terminou.
– Ótimo – disse Charles, embora tenha deixado deliberadamente no ar se ele estava se referindo ao beijo ou ao seu acordo para trancar a porta.
Charles já havia chegado à porta quando Anna se lembrou de que havia algo que ele precisava saber.
– Chastel não sabia nada sobre os vampiros.
Charles olhou para ela, e então Anna continuou:
– Eu disse a ele que havia matado um de seus vampiros, e ele não tinha ideia do que eu estava falando.
– Chastel não é um bom suspeito de ligação com os vampiros – disse Charles. – Mas é bom saber com certeza.
Depois disso, Charles sorriu para ela e deu um aceno para Ric, saindo do escritório e fechando a porta atrás dele. Anna esperou um momento.
– Anna.
A voz de Charles atravessou a porta de metal, bem como seu tom de exasperação.
Anna sorriu para Ric e virou o ferrolho, e só então Charles bateu na porta e saiu. Ela não podia ouvi-lo, mas podia sentir que ele se afastava dela.
Anna se sentia bem por ter se defendido de Chastel, mesmo que fosse só com palavras. Ela estava cansada de ter medo de sua própria sombra – e durante algum tempo, não tivera
medo de nada. Anna havia realmente gostado disso.
Com a supervisão da Fae durante a caçada, para não mencionar Charles, que iria ficar observando (ele não iria se juntar à caçada pois era um dos anfitriões, assim como Angus),
Anna estaria mais segura lá do que jamais estaria, mesmo rodeada por Alfas desconhecidos.
Ela virou-se para Ric.
– Se o seu Alfa concordar em ajudar a bancar o guarda-costas, eu adoraria participar da caçada hoje à noite.
Ele concordou com a cabeça.
– Perguntarei a ele.
i
Sunny franziu a testa para a unha que quebrara ao pegar o elevador até a garagem. Arthur estava ocupado com os negócios dos lobisomens hoje à noite, então ela aproveitara
a oportunidade para jantar com alguns amigos.
Ela não tinha amigos íntimos do sexo feminino; iria ser difícil não dizer a uma amiga a verdadeira razão de seu marido parecer tão jovem, declarando que ele, na verdade, é
um lobisomem. E as amizades que duram muito tempo tendem a perceber coisas, como o fato de seu marido não envelhecer em absoluto. Assim, Sunny tinha apartamentos em várias
cidades, e quando havia morado em um lugar, indo e vindo, durante uma década ou algo assim, ela partia e ia para algum lugar onde ninguém a conhecia. Sunny escrevia cartas
ou e-mails por alguns meses, e depois deixava a amizade se dissipar.
Ela conhecia as mulheres com quem tinha saído para jantar já há alguns anos. Eram amigas ocasionais que gostavam de sair sem o marido ou namorado de vez em quando e falar
sobre coisas de mulher. Sunny as conhecera na academia, e elas não compartilhavam interesses verdadeiros, mas eram inteligentes e engraçadas, e em um nível superficial todas
tinham uma boa conversa. Elas faziam Sunny sentir-se conectada, e não tão sozinha.
Entretanto, Sunny havia saído antes da sobremesa, porque poderia começar a se sentir tentada. O restaurante que elas tinham escolhido era famoso justamente por seu exótico
cheesecake, e ela não havia mantido aquele corpo permitindo-se provar uma comida que poderia gostar demais – e além do mais, ela havia notado que já estava ficando escuro.
Arthur não gostava quando ela ficava fora até muito tarde, pois se preocupava com ela.
O elevador se abriu próximo ao nível da garagem onde estava o seu carro. A luz ao lado do elevador estava apagada. Sunny correu através da escuridão até a luz mais próxima,
sentindo-se boba por sua ansiedade.
Alguém do outro lado da garagem estava discutindo com a namorada. Nenhum dos dois estava muito chateado. Provavelmente preliminares, pensou ela. Arthur e ela faziam isso,
e Sunny o reconheceu pelo tom de voz.
Ela olhou naquela direção, mas não pôde ver o casal, pois um utilitário esportivo estava no caminho. Antes que ela pudesse ter uma visão clara, o som de portas de carro fechando
cortou o som da discussão. Um motor de carro foi ligado, e um Porsche prata passou por ela. Suas luzes a cegaram momentaneamente.
Sunny deixou cair as chaves e começou a se ajoelhar para pegá-las. Porém, a mão de alguém chegou lá primeiro.
– Permita-me.
O homem era mais alto que seu Arthur, embora não tão largo nos ombros. Por um minuto ela ficou preocupada, como qualquer mulher sozinha em uma garagem com um estranho ficaria.
Mas então Sunny viu o corte do casaco de lã: bandidos não usam casacos caros e camisas de linho branco.
– Obrigada – disse Sunny, enquanto pegava as chaves estendidas para ela por uma mão coberta por uma luva de couro.
– De nada – disse ele. – Perdoe-me a pergunta – mas o que uma mulher linda como você está fazendo aqui sozinha?
Parte dela se envaideceu sob a óbvia admiração dele – Sunny sabia que seu envelhecimento deixava Arthur angustiado. A apreciação sincera nos olhos de um homem bonito acalmou
a ferida que crescia em seu coração. Aquele homem parecia ser alguns anos mais velho que ela, e seus modos eram galantes.
– Eu estava jantando com amigos – disse-lhe Sunny. – Meu marido está esperando por mim.
– Ah.
O homem abriu os dedos como se estivesse segurando algo precioso que precisasse soltar. O movimento foi tão habilmente executado que ela teve certeza de que ele era um ator
ou talvez um bailarino.
– Eu deveria saber que uma mulher tão bonita não poderia ser desimpedida – mas um homem vive de esperança. Seu sotaque é encantador – você é britânica?
– Sim. E meu marido também. Obrigada pelas chaves e pelo elogio.
Sunny sorriu para ele e se dirigiu para o carro com passos rápidos, dando a entender que, embora apreciasse a sua admiração, não estava disponível. O sorriso ficou em seu
rosto, cordial, logo que ela virou de costas para ele.
Sunny apertou o botão do alarme e abriu a porta, mas uma mão fechou-se em torno de sua boca.
– Perdoe-me o pequeno flerte inofensivo – disse a voz do homem junto de seu ouvido. – Pareceu-me uma pequena gentileza que eu poderia fazer. Lamento que sua morte não será
tão gentil. O meu empregador falhou comigo, e por isso já não preciso seguir as suas instruções tão explicitamente. Meus amigos estão tristes, e uma pequena brincadeira vai
fazer com que eles se sintam muito melhor.
Sunny gritou, mas o ruído tênue que escapou da mão dele não iria chegar muito longe. Sua mão livre acariciava o rosto dela enquanto ele sussurrava, e sua respiração cheirava
a hortelã-pimenta.
– Farei com que seu marido saiba que você não flertou comigo. Que você foi fiel a ele até a morte. Será que isso irá confortá-lo, o que acha?
O homem era forte. Ele controlava a luta dela para se libertar sem esforço, embora Sunny se exercitasse todos os dias. Lobisomem. Provavelmente ele era um dos lobisomens.
– Venham, meus filhos – disse ele, e Sunny percebeu que o homem não estava sozinho. Ela ouviu pessoas se movendo por trás deles, mas a única que ela pôde ver foi a mulher
que pulou no teto do seu carro. Uma mulher bonita com cabelos cor de mel, presos em um rabo de cavalo.
– Podemos brincar com o nosso jantar? – perguntou a mulher, e o terror fez os joelhos de Sunny cederem. A mulher tinha presas.
Não eram lobisomens. Eram vampiros.
Seu captor dirigiu-se à vampira e disse:
– Vamos ver se ela é a companheira dele ou apenas sua esposa, Hannah.
– Então isso quer dizer sim.
A voz veio da esquerda, mas Sunny não conseguiu ver o homem que havia falado. Mas ela sentiu quando ele puxou seu braço e enterrou suas presas na parte interna de seu cotovelo.
Doeu bastante.
i
O campo de caça da alcateia da Emerald City ficava em um distrito de armazéns que tinha visto melhores dias. Os armazéns que ficavam mais perto da água estavam iluminados
e, embora não estivessem cheios de gente, obviamente ainda continham pessoas suficientes. À medida que se afastavam do mar, os armazéns ficavam cada vez menos prósperos.
Seguindo as instruções de Charles, Anna continuou pela estrada de asfalto maltratado até chegar a um par de grandes edifícios cercados por uma cerca de arame de quase quatro
metros de altura, hospitaleiramente encimada por arame farpado.
Parecia que ninguém havia feito nada de industrioso em toda a propriedade há cinquenta anos – e nenhum dos outros armazéns na área próxima parecia estar ocupado. Somando-se
ao ar geral de má conservação, um dos edifícios não tinha uma parte do telhado de metal.
As pessoas que estavam no portão devem ter reconhecido o carro, porque abriram imediatamente para que Anna entrasse. Enquanto ela dirigia para perto dos armazéns, os edifícios
pareciam ficar cada vez maiores, e quando Anna passou entre eles, viu que as construções encobriam quase inteiramente o céu noturno, até que sobrasse apenas uma faixa estreita
com a lua do caçador visível: era apenas uma pequena lasca de prata no céu acima deles.
Havia trinta ou quarenta carros estacionados em um espaço grande o suficiente para acomodar uma centena. A maioria deles estava estacionada ao lado do maior dos dois armazéns,
por isso Anna estacionou ali também.
– Você está quieta hoje – disse Charles.
Anna olhou para as mãos e apertou o volante, diminuindo a força quando ele começou a ranger.
Ela pretendia manter silêncio sobre sua participação na caçada, mas à medida que a hora se aproximava, fazer isso com Charles na frente de todos parecia cada vez mais estúpido.
– Eu tenho uma ideia e você não vai gostar.
Charles olhou para ela por um longo tempo, o suficiente para que ela finalmente olhasse para ele também.
– Eu sou dominante – disse-lhe Charles (como se Anna já não soubesse). – E isso significa que por instinto devo cuidar daqueles que me pertencem.
Anna olhou para Charles, sustentando o seu olhar, e lentamente percebeu que ele gostava do fato de que ela conseguisse fazer isso – o que também a agradava.
– Você quer participar da caçada.
– Sim.
Anna esperava que Charles fosse proibi-la imediatamente, e para sua surpresa percebeu que parte dela estava contando com isso para usar como desculpa e se safar.
Em vez disso, Charles simplesmente perguntou:
– Por quê?
– Porque Ric acha que isso pode me ajudar com esse... – ela baixou os olhos e, então, levantou-os novamente e firmou a voz. – Com esse medo infundado que me deixou tremendo
em meu lugar ontem, quando o auditório encheu-se de Alfas, estavam prontos a matar uns aos outros para me proteger. Isso fez com que eu me sentisse estúpida e fraca. Fiquei
menos assustada quando Chastel entrou no escritório de Angus, e ali eu tinha muito mais razões para ficar assustada.
Com os olhos dourados em fogo, Charles disse em uma voz que era mais baixa e mais áspera do que o seu tom habitual:
– É porque você lutou com Justin uma vez, mas sua alcateia a agarrou e a segurou para ele.
Anna acenou, sacudindo a cabeça. Não tinha sido apenas para Justin, e não tinha sido apenas uma vez – mas ela não iria contar a ele sobre isso, não com o irmão lobo espreitando
por trás dos olhos dele.
– Como Ric acha que isso vai ajudar?
– Porque eu vou estar concentrada na caçada. Ele acha que o meu lobo vai ajudar, que ela vai me impedir de entrar em pânico.
– Ele é um psicólogo?
Anna não pôde deixar de sorrir.
– Quase, diz ele. Mas não se preocupe, seu orientador acha que ele é um gênio.
– Eu não posso participar da caçada – disse ele severamente. – Se eu ganhasse, seria um desastre político. Se eu perdesse, seria pior. Se você caçar, há aqueles que irão caçar
você em vez do prêmio. Porque você é minha companheira e porque você é um Ômega.
– Chastel.
– Chastel não é o único inimigo que meu pai tem aqui, e eu mesmo tenho alguns.
– Eu realmente pensei sobre essa possibilidade. Ric está caçando essa noite. Ele diz que vai ficar de olho em mim, e acha que seu Alfa – alguém chamado Isaac – concordará
em ficar também.
Charles balançou a cabeça e abriu a porta.
– Charles?
Ele se curvou e olhou para trás para dentro do carro.
– Posso participar da caçada?
Suas sobrancelhas se ergueram.
– Isso nunca foi decisão minha. Você avaliou os benefícios e os possíveis problemas. Cabe a você decidir – disse ele, fechando a porta.
Anna soltou o cinto e saiu do carro.
– Então o que aconteceu com o “eu sou dominante e protejo aqueles que me pertencem”?
Charles encostou-se na parte da frente do carro.
– Se isso fosse beneficiar você, eu mataria todos os lobos aqui. Mas há coisas que você precisa fazer – e a meu ver, interferir com isso não é proteção. A melhor forma de
proteger você é encorajá-la a ser capaz de proteger a si mesma.
Charles lhe deu um súbito sorriso triste.
– Admito que isso não me deixa feliz. Mas com Dana e eu observando, e com Ric e seu Alfa no campo, você estará tão segura quanto possível em uma caçada cheia de lobos dominantes.
Você matou um vampiro e uma bruxa – você não é impotente.
Anna endireitou os ombros, e a confiança de Charles emprestou-lhe coragem. Ela caminhou até onde ele estava e abraçou o companheiro, enterrando o rosto no calor doce de seu
peito. Charles usava uma de suas camisas de flanela favoritas por cima de uma camiseta simples vermelha; o algodão era suave contra a pele de Anna.
– Você é um homem notável, Charles Cornick.
Charles passou os braços em volta dos ombros de Anna e colocou seu queixo no topo da cabeça dela.
– Eu sei – confidenciou levemente. – E sou muitas vezes subestimado por aqueles que não me conhecem.
Anna cutucou-o com um dedo e olhou para ele.
– E engraçado, embora eu ache que essa é outra faceta de seu caráter que não é apreciada, ainda mais frequentemente do que a sua notabilidade.
– Algumas pessoas nem percebem – disse ele, com uma voz falsamente triste.
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A sala principal do maior armazém tinha mais de seis metros de altura, e era grande o suficiente para abrigar todos os lobos que haviam escolhido caçar e ainda deixar espaço
para duas vezes mais. O resto dos lobos – a grande maioria – estava em pé sobre uma plataforma de três metros acima deles. Todos ainda estavam em forma humana. Uma parede
da sala estava coberta com monitores de tela plana desligados.
Dana ficou no centro da plataforma elevada e começou a falar.
– A regra é que não haverá derramamento de sangue – uma regra que vou aplicar. As paredes e o piso dessas construções e a terra abaixo delas irão me dizer se houver sangue.
Vocês irão começar a caçada como humanos, e transformarem-se quando o sino for tocado. Há três sacos de couro aqui, escondidos há vários dias; cada um contém um punhado de
linguiça de porco – e em um deles também há um anel de rubi-estrela de dois quilates fornecido pelo Marrok.
Quando ela acabou de falar, os monitores foram ligados para mostrar a mão de uma mulher segurando um anel em sua palma. O desenho do anel era simples o suficiente para que
ele pudesse ser usado por um homem ou uma mulher – era a gema que tornava o anel belo. O rubi era de um vermelho profundo semitranslúcido, com uma estrela que era quase branca.
Era belo e, sem dúvida, valioso. Anna tinha certeza de que ali, em pé sobre o chão de madeira, não havia ninguém interessado pelo prêmio. A caça era tudo o que importava.
Quantas vezes um Alfa teria a chance de confrontar-se com outros Alfas sem se preocupar com nenhum risco para aqueles que deviam manter seguros?
Angus falou enquanto o anel ainda estava em exibição.
– Nosso campo de caça abrange ambos os edifícios, que se interligam através de camadas de túneis subterrâneos. Esse edifício tem entre duas a seis camadas de labirintos acima
do solo, e o outro, de três e quatro. Ambos têm três andares de porão, ainda das estruturas originais, e mais dois abaixo deles, acrescentados por nós. Os três sacos estão
escondidos aqui, e um contém o anel.
Anna olhou para as pessoas ao seu redor. Chastel estava lá, e ela reconheceu Michel e vários dos lobos espanhóis que conhecera no restaurante. Arthur, porém, estava logo atrás
de Dana, com os que haviam escolhido não caçar.
As instruções de Angus continuaram.
– Se um de vocês encontrar um saco, traga-o aqui. As regras são “achou, é seu” – nada de roubar. Qualquer lobo carregando um saco é intocável. Temos monitores e pessoas escondidas,
e Dana colocou um pouco de magia Fae extra nos sacos para assegurar essa regra. Qualquer um que interfira com um lobo que estiver carregando um saco será eliminado da competição,
e o saco retornará àquele que o achou. Vocês não serão capazes de abri-los – Dana se assegurou disso. Quando os três sacos estiverem aqui, soaremos um alarme que todos poderão
ouvir em qualquer lugar no campo de caça. Vocês devem então voltar para cá, e quando todos estiverem aqui, Dana abrirá os sacos e o vencedor será anunciado.
Depois de Angus ter realizado uma breve sessão de perguntas e respostas, foi a vez de Charles. Ele olhou primeiro para Anna e depois para Ric e seu Alfa, que estavam ao lado
dela.
– A caçada – disse ele – começou.
Houve um barulho metálico, as luzes se apagaram, e Anna já havia tirado a blusa pela metade antes que a última luz fosse apagada. Na parede, os monitores trocaram a imagem
do anel de rubi para uma tela preta com letras vermelhas pequenas no canto direito inferior de cada um, que abruptamente forneciam a única luz na sala.
Roupas foram rasgadas e sons suaves e cheios de dor ecoaram enquanto dezenas de lobisomens começaram a Transformação de humano em algo mais. Rindo, sem fôlego, Anna tirou
as calças e sapatos, meias e roupas íntimas antes de começar sua própria Transformação.
Fragmentos de agonia se espalharam por ela, começando na base da sua espinha e subindo em espirais até seus dedos das mãos e pés. Barulhos molhados anunciaram a reformulação
de articulações e ossos enquanto seu lobo deslizava sobre sua pele. Garras e dentes, músculos e pelo – faixas molhadas deslizaram pelo seu rosto enquanto os olhos se enchiam
de água. A força surgiu como a chegada de uma maré, e Anna então se apoiou sobre as quatro patas, com um grunhido de esforço.
A sala estava cheia demais para que ela identificasse qualquer cheiro, e seus olhos ficaram cegos com a última onda de dor, branca e incandescente. Anna ficou em pé tremendo,
e então jogou a cabeça para trás e uivou.
Sozinha.
Anna foi a primeira a completar a Transformação – deve ter sido um presente do irmão lobo de Charles e o vínculo da sua união, que eles compartilhavam. Ela nunca tinha sido
capaz de se transformar tão rápido. Anna poderia ter começado sua caçada, mas Ric e seu Alfa ainda estavam presos na Transformação. Por isso, ela se colocou acima deles, pronta
para protegê-los se eles precisassem.
Sozinhos e aos pares, outros lobos ergueram-se. Quando eles chegavam muito perto dela, Anna exibia suas presas, e eles a deixavam em paz.
O Alfa de Ric, Isaac, levantou-se, e agora era um lobo todo branco, apenas um pouco maior do que Anna. Ambos esperaram por Ric, que terminou poucos minutos depois. Ele balançou-se
nas patas como um cordeiro recém-nascido quando ficou em pé, ainda não experiente o suficiente para esperar que o cérebro e os músculos se reconectassem. Anna colocou seu
ombro contra Ric e deixou que ele se apoiasse no seu corpo.
Em sua forma humana, Ric era de altura e constituição médias – e talvez até um pouco magro. Seu lobo, porém, era de grande porte, certamente maior do que ela ou Isaac. No
escuro, Anna conseguia ver formas, mas não cores. O lobo era mais escuro do que o seu Alfa, mas vários tons mais claro do que ela. Anna não conseguia dizer se ele era cinza,
marrom ou vermelho.
Ric sacudiu-se como se estivesse molhado, e como se isso fosse um sinal, seu Alfa avançou, seguido por Anna e Ric. Eles correram através de um corredor e desceram por uma
escada estreita que os levou cada vez mais para baixo; o cheiro de ar fresco mudou para um cheiro acre, de ar mofado e bolorento.
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Após um minuto ou dois aquela escuridão negra como o Estige transformou-se em algo mais palpável para a visão de lobo de Charles. Um buraco no teto deixava entrar um pouco
de luz das estrelas, e os monitores começaram a mostrar sombras laranjas, vermelhas e douradas enquanto os lobos passavam pelas câmeras infravermelhas espalhadas pelo labirinto
e iluminavam a grande sala com o calor de seus corpos.
Mesmo sem que pudesse vê-la ainda, Charles foi informado pelo irmão lobo que Anna já completara a Transformação. A primeira a fazê-lo, pensou Charles. Ele achou que Anna sairia
correndo imediatamente, mas ela havia esperado.
Pelos seus guarda-costas, disse o irmão lobo, com aprovação. Ele não estava feliz com o fato de Anna participar da caçada enquanto eles estavam presos ali, com os lobos que
optaram por não ir, e não estava especialmente satisfeito por perder a caçada em si – particularmente com Chastel lá fora em algum lugar. Apenas o fato de saber que Anna tinha
aliados na caçada havia mantido o irmão lobo sob controle.
Gemidos de dor tornaram-se uivos acompanhados do som de garras escavando madeira quando os últimos lobos entraram na caçada e, finalmente, o silêncio desceu sobre a sala.
Charles ouviu um barulho e um clique – e um feixe de luzes ofuscantes iluminou o lugar onde ele estava.
– As luzes ainda estão apagadas em todos os outros lugares – disse Angus. – Vai demorar algum tempo até que possamos ver qualquer um deles novamente, e podemos muito bem ficar
confortáveis agora. Venham, meus lobos estão colocando mesas e cadeiras no piso principal, onde poderemos assistir a ação.
Demorou um pouco, mas a maioria dos observadores aprendeu o truque de identificar amigos e inimigos sob a luz infravermelha. Ouviam-se gargalhadas quando armadilhas eram deflagradas
e lobos caíam na água, no lixo ou em pedaços de isopor para embalagem. Redes caíam inesperadamente, e uma delas, destinada a um só lobo, apanhou seis de uma vez só. Quando
eles acabaram com ela, não havia um pedaço maior do que vinte centímetros de comprimento.
– É assim que se mata uma rede indefesa – disse Arthur secamente; sua voz nitidamente inglesa ecoava sobre a multidão.
Charles estava na parte de trás. Ele mantinha os braços cruzados e seus olhos acompanhavam a imagem de calor de três lobos, enquanto eles saíam de um monitor apenas para reaparecer
no próximo.
Arthur ficou em pé de repente e cambaleou, derrubando a mesa perto dele. Os ocupantes viraram-se para ele com rosnados de surpresa, mas Arthur pareceu não notá-los.
– Sunny? – disse ele, sua voz falhando como a voz de um adolescente.
Os lobos que haviam sido derrubados silenciaram seus protestos. E quando os olhos de Arthur reviraram-se e ele caiu ao chão, um deles o segurou antes que seu corpo atingisse
as pranchas de madeira do chão.
NOVE
Qual o caminho? Qual o caminho?, perguntava-se Anna. Sua língua estava pendurada para fora a fim de absorver o frescor do ar; ela decidira deixar os outros escolherem. Sua
respiração cantou para fora de sua garganta, e a exultação a fez tremer.
A caçada.
Não importava que a canção da lua fosse apenas uma pequena centelha em seu coração, ou que o prêmio fosse um saco de carne de porco que já estava estragando há dois dias e
podia ou não conter um anel dentro. Pela primeira vez, Anna amou a caçada, mesmo sem ter Charles ali, correndo ao lado dela.
Porque nós estamos com você, disse-lhe o irmão lobo de Charles. Isso é o que significa sermos companheiros. Você nunca estará sozinha. Nunca, enquanto vivermos.
Bom, disse-lhe Anna.
Os três lobos seguiram a pista do cheiro de Angus por um longo tempo antes que ele terminasse em uma nota colocada na frente da luz de uma pequena bateria de emergência. Ela
dizia: “Eu não escondi nenhum deles – Angus”. Eles não eram os primeiros a chegar lá; Anna podia sentir o cheiro de vários outros lobos – e outro lobo apareceu exatamente
quando eles estavam saindo.
Depois disso, Ric identificou outro cheiro – presumivelmente pertencente a outro lobo da alcateia de Angus, embora Anna não o reconhecesse. E ela estava colada na cauda dele
quando o Alfa de Ric jogou seu peso contra ela e a fez tropeçar lateralmente contra a parede, enquanto uma rede descia e enrolava Ric, transformando-o em um pacote bem embalado.
Com as suas mandíbulas e as de Isaac, eles demoraram apenas um momento para tirá-lo de lá – depois de o provocarem um pouco. Cinco voltas depois eles encontraram um lobo pendurado
de cabeça para baixo pendendo de um poste alto que chegava até o teto aberto, cerca de quatro andares acima de suas cabeças.
Isaac fez um barulho na garganta que parecia solidário mas, provavelmente, não era. O lobo preso rosnou quando eles o deixaram para trás, e por um tempo o Alfa de Ric pareceu
extremamente feliz com isso.
Anna identificou o cheiro de Moira e levou-os através de um túnel com não mais que sessenta centímetros de largura, tão apertado que fez Isaac ficar muito descontente – Ric
teve de rastejar sobre a sua barriga para se espremer através do túnel.
O túnel despejou-os em uma câmara pequena, quase sem ar. Eles já tossiam com grande desconforto quando Ric conseguiu destruir a parede de madeira que media 0,60 por 1,80 m,
coberta por uma forração à prova de umidade que havia mantido o ar do lado de fora. Anna e Ric tiveram que arrastar Isaac pela nuca até um lugar com um ar melhor – embora
tivesse um cheiro forte (não no bom sentido) e estagnado.
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– Alguém aqui tem o número do telefone celular da companheira de Arthur? – rosnou Charles. Como ninguém respondeu, ele pegou seu próprio celular e ligou para seu pai.
– Qual o problema? – perguntou Bran, respondendo ao primeiro toque.
– É isso o que estamos tentando descobrir. Você tem o número do telefone celular de Sunny... da companheira de Arthur aqui em Seattle?
– Sim, dê-me um segundo.
Como havia dito, Bran voltou rapidamente e leu o número para Charles.
– Ligo para você quando souber o que aconteceu – disse Charles, desligando o celular.
Charles ligou, mas dada a angústia de Arthur, não ficou surpreso ao ver que Sunny não atendia. Então ele ligou para outro número.
– Eu preciso saber onde esse telefone celular está, 360-555-1834, e quero a localização do GPS e um endereço para ele, se houver.
Charles não se preocupou em esperar por uma resposta; apenas desligou.
Arthur estava pálido e suava, sua pele era fria ao toque. Seu corpo se contraiu, mas ele permaneceu inconsciente.
Levaria algum tempo até que o especialista de Charles pudesse rastrear o telefone. Invadir um sistema sem deixar rastros levava tempo. Ele mesmo poderia ter feito isso, se
tivesse um computador, acesso à internet e alguns dias, mas o seu especialista era melhor. E o tempo não era amigo de Sunny.
Vinte minutos se passaram, talvez vinte e cinco, antes que seu telefone tocasse.
– Charles?
– Sim?
Esse telefone está a cerca de 400 metros de onde você está, e não está se movendo.
Ele olhou para Angus.
– Eu tenho que verificar isso. Você vai vigiá-la para mim?
O Alfa da Emerald City assentiu:
– Eu, minha alcateia, Isaac, seu Ômega e a Fae, todos nós vamos vigiá-la.
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Eles encontraram Sunny do lado de fora da cerca, a noventa metros do portão trancado: nua, espancada e morta. Apenas no caso de eles não encontrarem o corpo, um Jaguar azul-celeste
que Charles presumiu ser o carro dela estava parado a alguns metros do corpo, com a porta do lado do motorista escancarada.
O corpo de Sunny ainda estava quente, e seus olhos estavam abertos, nublados pela morte.
Um espírito estava ajoelhado ao lado dela, um dos seres da floresta. Charles raramente os via, embora soubesse quando eles estavam por perto. As mãos esguias do espírito acariciavam
a bochecha de Sunny, enquanto ele arrulhava para ela – e assim Charles soube que Sunny ainda estava viva quando eles a jogaram ali. O espírito era tímido, e distanciou-se
quando os outros homens, que não notavam sua presença, rodearam o corpo. Ele passou roçando em Charles, que sentiu o pesar do espírito em seu próprio.
Pobrezinha, disse-lhe o espírito. Ela estava tão assustada, tão assustada. Sozinha. Ela estava totalmente sozinha.
Distraído, Charles quase não se lembrou de impedir que os outros a tocassem.
– Deixem-me identificar o cheiro – disse ele. – Assim, reconhecerei seu assassino.
Não adiantaria nada perguntar ao espírito. Eles lhe diziam o que queriam, quer Charles quisesse ouvi-los ou não.
Os outros lobos se afastaram, e ele colocou o nariz entre o pescoço e a mandíbula, onde o cheiro permaneceria. Sem muita surpresa, Charles pôde sentir o cheiro de um tipo
de inimigo familiar: quantas coisas mais poderiam estar correndo por aí na noite, atacando lobisomens e seus entes queridos?
Charles não a tocou enquanto se movia de um ponto de pulso para o outro. Nos lugares onde os vampiros sugaram seu alimento, a carne estava rasgada, mas não houvera tempo para
contusões. E eles haviam se alimentado por toda parte do corpo.
Ele cheirou o medo, o sofrimento dela, e foi sua testemunha. Charles foi cuidadoso, certificando-se de que ninguém havia sido adicionado ao grupo de caça. Mas não houve surpresas:
havia apenas os quatro vampiros que tinham atacado Anna.
O irmão lobo ficou louco quando entendeu que o corpo caído ali poderia ser o de sua Anna.
Charles fechou os olhos e forçou seu corpo a se acalmar. Dedos longos e frios acariciaram seu rosto, e o espírito cantou para o lobo, o que também não ajudava. O que um espírito
da floresta estava fazendo ali, no meio da cidade, ele não sabia – e assim Charles aproveitou a distração que esse novo mistério oferecia.
Ele abriu os olhos e olhou em volta. Havia um grande número de armazéns abandonados nas proximidades – e arbustos de amora-silvestre, a erva daninha infame do Noroeste do
Pacífico, estavam tomando conta dos estacionamentos vazios, criando um santuário para aqueles que não se importavam com seus espinhos.
Um mistério a menos. Charles deixou o som de uma das canções de seu avô percorrer sua cabeça, trazendo clareza e paz, apesar do espírito que o tocava e acariciava. Se ele
estivesse sozinho, teria espantado o espírito para longe – o irmão lobo não gostava de ser tocado por ninguém, exceto Anna. Mas ali ninguém mais podia ver o espírito, e a
reputação de sua estranheza já era bem grande. Charles não precisava deixar os outros saberem que ele também via coisas que ninguém mais via.
Quando estava razoavelmente certo de que o irmão lobo iria lhe permitir comportar-se de maneira civilizada, Charles se levantou.
– Vampiros – disse ele. – Leve-a até o armazém para Arthur.
Isso não ajudaria o lobo britânico – exceto como confirmação de que Sunny não estava mais nas mãos dos vampiros.
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Frustrada, Anna olhou para o saco pendurado seis metros acima de suas cabeças em um dos postes longos que ocasionalmente perfuravam o teto daquele nível – após o quase desastre
com o quarto sem ar, Anna tinha certeza de que os postes eram úteis.
Enquanto Anna olhava para o poste, um lobo arrebatou a vitória para fora de seu alcance.
Estava escuro demais para ter certeza de quem era, mesmo se ela conhecesse todos os outros lobos em sua forma peluda. O lobo saltou de uma abertura um andar acima do saco,
arrebatou o prêmio e desapareceu em outra abertura um piso abaixo, ainda assim bem acima da cabeça de Anna. Assistir impotente enquanto seu prêmio era roubado debaixo de...
bem, acima de seus narizes, era enlouquecedor.
Isaac bufou em desgosto.
De repente, o irmão lobo de Charles estava em volta dela: sua ansiedade, seu medo e seu amor fizeram com que ela cambaleasse contra Isaac – o que o irmão lobo não gostou nem
um pouco.
Alguma coisa estava errada. Mas quando Anna perguntou, o irmão lobo não pôde ou não quis contar a ela.
Anna tinha que chegar até Charles. Agora. O problema era que ela não sabia exatamente como voltar – sim, ela poderia ter recuado, mas eles já tinham andado por todo o lugar,
e Anna teria de passar pelo túnel estreito novamente.
Se ela pudesse ir para cima seria um bom caminho.
Anna estava correndo a toda velocidade quando um lobo branco passou na frente dela. Um segundo lobo estava bem atrás dela – eram Isaac e Ric.
Foi Isaac que encontrou o primeiro lance de escadas que davam no andar superior. Eles saíram no piso térreo do armazém menor, e quando foram até a porta, um lobisomem em forma
humana os parou.
– Se vocês cruzarem a porta exterior, estarão oficialmente fora da caçada – disse ele.
O lobo Alfa encarou friamente o homem, fazendo com que ele abaixasse os olhos e levantasse as mãos enquanto recuava.
– Só estou dizendo o que me falaram, cara. Se você for lá fora, estará fora dos limites.
Os três lobos passaram correndo por ele e saíram para o ar fresco. Agora que estavam à luz do pátio, Anna percebeu que Ric tinha pelo cinza. Ele bufou de prazer ao deixar
o labirinto subterrâneo para trás. Anna respirou fundo e sentiu o cheiro – vampiro.
Ela parou bruscamente e examinou os arredores para ver se o inimigo estava ali. Por fim, Anna o viu em pé do outro lado da cerca de arame, a noventa metros de distância.
Anna demorou um momento para que seus olhos ligassem o homem impecavelmente vestido ao assassino cruel que ela havia visto da última vez, sentado em cima de Tom. Mas o seu
nariz já tinha feito a ligação. Ela tinha dado dois grandes passos quando atingiu o flanco do lobo branco, que ficara na frente dela para impedi-la, focando sua atenção igualmente
no vampiro.
O homem morto riu e fez um sinal com a mão. Uma minivan azul veio até ele, e o vampiro entrou nela. O veículo saiu antes que ele terminasse de fechar a porta.
Isaac rosnou baixo em seu peito, o que soava como um eco do barulho que Anna também estava fazendo. Ele certamente sabia o que aquele homem era. Ric olhou para ambos com um
olhar perplexo de quem nada sabia, mas isso era normal: Anna nunca havia encontrado vampiros antes do dia anterior.
Não parecia haver muito sentido em ficar por ali, então Anna se virou e foi em direção à sala principal do armazém maior, onde as luzes estavam acesas. A presença do irmão
lobo do companheiro doía em seu peito.
Dentro do armazém, todos os lobos que tinham ficado em forma humana estavam reunidos em um grupo coeso, voltado para o interior. Havia muitos deles para que seu nariz lhe
dissesse qualquer coisa.
Todas as roupas tinham sido empurradas contra a parede, e Anna levou algum tempo para encontrar as suas. Quando ela finalmente havia separado suas peças, Charles a encontrou.
Seus olhos estavam pregados na reunião no centro da sala, e uma rigidez estranha em seu corpo que a preocupava.
Anna se transformou de novo, e seu corpo protestou ainda mais contra a transformação do que quando havia tomado a forma de lobo. Ela, como todos os lobos, havia sido bem treinada
para não fazer muito barulho enquanto se transformava, mas, com os diabos, isso doía.
– Ai, ai, ai... – sussurrou ela, enquanto suas mãos lenta, dolorosa e relutantemente retomavam a forma inteiramente humana. Anna colocou as mãos debaixo dos braços e apertou;
a pressão ajudava a suportar a dor. Toda transformação era diferente, mas ela odiava aquelas em que as mãos eram a última coisa a se tornar humana. Há muito nervos em uma
mão, e todos eles doíam. Ela se sentiu tonta.
Charles rosnou por causa da dor de Anna.
Ela olhou para cima, mas não havia ninguém próximo a eles. Ric e seu Alfa ainda estavam presos na Transformação do outro lado da pilha de roupa. Anna olhou para ele e deixou
seu corpo crescer ainda mais. Os olhos de Charles estavam amarelos, e o canto de sua boca se contraiu duas vezes, como se ele tivesse um tique nervoso.
– Charles? – disse Anna, com a voz rouca por causa da mudança.
– Sunny está morta.
A voz dele era gutural, e ela sabia que ele estava à beira de alguma coisa.
Anna ficou preocupada com isso pela metade de um segundo antes que as palavras dele fizessem sentido.
– A Sunny de Arthur?
Charles balançou a cabeça um centímetro, com os olhos fixos em seu rosto.
– Vampiros. Nós encontramos o corpo dela do lado de fora dos portões.
E os vampiros haviam se escondido, esperando que os lobos encontrassem Sunny... Quando ele – o vampiro de terno – viu Anna, fez questão de se certificar de que ela também
o visse. Mas olhando para aqueles olhos selvagens dourados, Anna decidiu que isso era algo que ela diria a Charles depois de algum tempo. Os vampiros já tinham ido embora,
e ela tinha o número da placa, mas não importava: a van provavelmente era alugada.
Um lobo uivou, um grito selvagem e triste, e meia dúzia de vozes juntaram-se ao lamento musical para mostrar a sua simpatia por alguém que havia perdido sua companheira –
todos os sons vinham de gargantas humanas.
Charles estendeu a mão, e Anna deixou que ele a puxasse para cima. Ela estava um pouco rígida ainda – e Charles parecia precisar de algo para fazer.
Ele usou o corpo para protegê-la da vista de qualquer um no resto da sala, como se soubesse que Anna na verdade não gostava de ficar nua na frente de um bando de estranhos.
A maioria dos lobos se acostumava com isso no primeiro ano da Transformação; para Anna, ainda era um esforço. Não era uma questão de pudor, mas a necessidade de estar vestida
era um resquício da ilusão de segurança que Anna tinha ao achar que assim desviaria a atenção dos machos da sua primeira alcateia.
Anna pegou suas roupas e vestiu-as tão rapidamente quanto pôde, enfiando os pés em seus tênis enquanto colocava as meias nos bolsos.
– Arthur está bem? – perguntou ela.
Charles fechou os olhos e puxou-a para ele, pressionando o nariz na curva de seu pescoço, respirando como um corredor de maratona.
– Não – disse ele. – E nem eu.
Sua pele doía, seus ossos doíam, e ela queria ser abraçada tanto quanto uma pessoa que adormeceu na praia por quatro horas sem protetor solar gostaria de ser abraçada. Mas
como viu que Charles precisava dela, Anna relaxou contra o corpo dele.
Sunny tinha sido morta por vampiros.
– Sunny teria sido um Ômega se fosse transformada.
Anna fizera uma declaração, mas quis que aquilo soasse como uma pergunta.
– Sim.
Anna estremeceu, e o abraço dele ficou mais apertado. Sua pele sensível pela Transformação protestou, e seus músculos doloridos se queixaram, mas seu lobo queria se enterrar
dentro dele para mantê-lo seguro.
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Anna estava ali, ela estava segura. Charles deixou a realidade dela e do seu cheiro afastar a necessidade de fazer algo sangrar.
Charles a estava segurando com muita força, ele sabia disso. Assim como sabia que Anna precisava de tempo para se recuperar, e que ele não podia dar isso a ela. O som de sua
dor enquanto ela se transformava mexeu com o lobo de novo. O irmão lobo queria sangue ou sexo, e ele não iria ter nem um, nem outro. Sem sangue – e sem sexo, não até que ele
se acalmasse o bastante. O irmão lobo não iria machucar Anna, mas poderia assustá-la.
Abraçar Anna era a segunda melhor alternativa. Gradualmente, à medida que ela relaxava contra ele, o irmão lobo consentia em se acalmar. Demoraria um longo tempo ainda antes
que ele se acalmasse o suficiente para ceder novamente a Charles o controle total. Era muito fácil ver a agonia de Arthur e entender que ela poderia ter sido sua.
Os ataques eram estranhos. Estavam muito concentrados nas coisas erradas, nas pessoas erradas, para ter algum significado. O ataque a Anna poderia ter sido uma tentativa de
sequestrá-la para resgate ou como refém. Mas a morte de Sunny não tinha nenhum propósito, e a morte de Anna também não teria propósito algum. Charles não conseguia entender
por que Ômegas seriam os alvos dos ataques – especialmente por que um deles não era um lobo. Talvez eles estivessem pensando em atacar as companheiras de dois dos três lobos
mais poderosos ou dominantes na conferência. Qual seria o propósito disso, e especialmente agora, considerando que as negociações haviam alcançado tudo o que podiam?
Charles não conseguia ver aquilo que os vampiros, ou quem os contratara, estavam querendo. Nada parecia se encaixar.
Ômega.
Anna lhe dissera que os vampiros estariam trabalhando para um lobo. A experiência pessoal com o inimigo deu à companheira instintos robustos, e ele confiava em sua intuição
– o irmão lobo confiava, e isso era bom o suficiente para Charles.
Seja qual fosse o objetivo final, Charles poderia pensar em pelo menos uma razão pela qual um lobo poderia contratar alguém para matar Sunny e atacar Anna. Um lobo, especialmente
um lobo dominante, teria dificuldades em deliberadamente ferir um Ômega, mesmo um Ômega humano.
Talvez até mesmo Chastel não fosse capaz de fazê-lo.
Charles forçou-se a soltar Anna e deu um passo atrás para dar-lhe algum espaço. Ele tentou ignorar o alívio na postura do corpo dela – não era uma reação a ele. Era a sensação
da Transformação ainda perdurando na sua carne que a fazia querer ficar sozinha.
– Vocês são os primeiros a voltar – disse Charles. – O que a trouxe de volta tão cedo?
Anna deu-lhe um olhar estranho.
– O seu irmão lobo disse que você precisava de mim aqui.
Ele não tinha ideia do que dizer a respeito isso. Será que ele deveria admitir que não tinha ideia do que o irmão lobo andara fazendo? Isso a preocuparia? Antes que ele pudesse
tomar uma decisão, Dana se afastou do grupo em torno de Arthur e se aproximou de Charles.
– Há alguma preocupação com a sanidade mental de Arthur – murmurou suavemente a Fae, assim que chegou perto deles.
E não havia outros lobos ali que teriam a menor chance de controlar Arthur caso ele perdesse o controle; foi isso o que Dana queria dizer. Eles precisavam de Charles para
ficar de olho nele.
– Estou indo – disse Charles.
– Eu vou também – disse Anna. – Não vou atrapalhar, certo?
Charles não a queria perto dos outros lobos. Havia muitos deles. Se todos a atacassem, não haveria nenhuma maneira de protegê-la.
Mas um lobo Ômega poderia ser útil.
– Obrigado – disse-lhe Charles, enquanto discutia em silêncio com o irmão lobo. – Isso vai ajudar.
Arthur estava sentado no chão, segurando sua companheira nos braços e sussurrando para ela, enquanto os outros faziam uma vigília cuidadosa. Seu rosto estava cheio de lágrimas
e o nariz escorrendo.
– Minha Sunny, minha menina ensolarada.
Ele olhou para cima, e seus olhos voltaram-se para Charles.
– Ela se foi.
– Sim – disse Charles.
– Vampiros fizeram isso – sussurrou ele. Então ele gritou, e sua voz ecoou na grande sala. – Eles a machucaram!
– Eu sei. Vou encontrá-los.
– Mate-os.
O rosto de Arthur estava devastado, quase irreconhecível em seu pesar e raiva. Em sua dor.
– Eu o farei.
Arthur apertou ainda mais sua mulher, colocando a cabeça dela em seu ombro.
– Ela odiava envelhecer – disse ele, balançando-a. – Agora ela não irá mais envelhecer. Minha pobre Sunny.
Angus disse para Charles, embora não fizesse nenhum esforço para abaixar a voz:
– Ele vai sobreviver. Se a loucura fosse dominá-lo, já teria acontecido. Sendo assim, é melhor remover nossos presos e feridos do local de caça – antes de continuar, Angus
olhou para Arthur por um momento. – Arthur, você nos deixaria levá-lo pra casa? Os outros estarão aqui em breve, recém-saídos de uma caçada...
Um cadáver com cheiro de medo e de dor provavelmente não iria causar um frenesi em nenhum daqueles lobos. Mas não havia motivo para arriscar.
– Sim.
Arthur levantou-se, com a esposa em seus braços. Charles achou que Angus tinha se antecipado ao declarar que Arthur estava bem. Ele cambaleou um pouco e parecia chocado –
ainda assim, seria melhor levá-lo para longe da caçada.
Mas ele não podia ir sozinho. Arthur não tinha trazido ninguém de sua alcateia – uma declaração de força e, talvez, de confiança, que em contrapartida o deixara sozinho em
um país estrangeiro com sua esposa morta.
Angus olhou nos olhos de Charles brevemente, talvez vendo o pânico neles – Charles não tinha condições de confortar Arthur naquela noite. Oferecer conforto não era algo no
qual ele era muito bom, mesmo em seu melhor dia.
O Alfa da Emerald City olhou por cima do ombro para um de seus lobos.
– Mande alguém encontrar Alan Choo. Traga-me Tom.
Ele olhou para Charles, não por tempo suficiente para ser um desafio, apenas o suficiente para indicar que ele estava falando com ele quando disse:
– Os primos de Alan possuem uma funerária. Sua família cuida de nossos mortos, eles sabem quem somos, e podem ajudar Arthur agora. E se Tom e sua bruxa podem lutar contra
um bando de vampiros, eles devem ser capazes de cuidar de Arthur.
– Você me chamou, Angus? Eu estava do lado de fora.
O andar geralmente suave de Tom ainda estava um pouco rígido – a única coisa que demonstrava que ele ainda não estava totalmente recuperado da luta. Seu olhar calmo observou
o lobisomem perturbado e o cadáver de Sunny.
– Já entendi. Você enviou alguém para buscar Alan, também?
– Sim. Junte mais uns dois membros da alcateia, sua bruxa, e Alan, que ele estará aqui daqui a pouco, e veja se pode acomodar Arthur para passar a noite em sua casa.
Charles pegou a carteira e tirou um dos cartões de Arthur – ele tinha dois, um era de seu pai, e o outro foi recebido de Arthur em pessoa.
– Esse é o lugar onde ele está morando em Seattle. Alguém deveria levar o carro de sua esposa de volta para a casa deles também. É o Jaguar azul estacionado do lado de dentro
do portão. Só não sei o que Arthur dirigiu para chegar aqui.
– Eu sei – disse Tom, pegando o cartão. – Pode deixar comigo.
E em poucos minutos, Tom havia tirado de lá Arthur, o corpo de Sunny e mais um punhado de lobos de Angus, tão habilmente quanto um cirurgião.
O primeiro vencedor da caçada entrou na sala, exatamente quando a porta se fechou atrás de Tom. Charles olhou em volta para procurar Anna e encontrou-a falando com Ric e Isaac,
com o rosto solene.
Nesse momento era melhor que Anna falasse com eles do que com Charles. O que ele queria mesmo era levá-la embora, voar para casa, onde os vampiros e quem quer que estivesse
por trás deles nunca seriam capazes de chegar. Trancá-la em casa e trancar a porta.
Sim, era melhor que ele não falasse com ela ainda.
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O lobo que entrou ali estava carregando o saco que os três quase haviam conseguido pegar. Anna reconhecia o cheiro do saco e das mãos de Moira sobre ele, mesmo em sua forma
humana. O lobo que o levava parou em frente ao seu grupo, e ela identificou o cheiro. Esse era o lobo que eles haviam encontrado preso na rede no início da caçada.
– Sim, caro Valentin – disse Isaac. – Vejo que você conseguiu. Parabéns.
Sob o sarcasmo cortante, Anna ouviu o divertimento relutante de Isaac.
– Leve-o para longe daqui, ele cheira mal.
O cheiro de carne de porco estragada era um pouco avassalador.
O lobo sorriu com o prêmio na boca e caminhou até onde Dana e Angus esperavam por ele. O saco foi tomado e identificado com um marcador.
– Então as conversações estão condenadas – disse Anna, continuando a conversa que o lobo havia interrompido. Charles não tinha contado a ela sobre o que ocorrera hoje, e talvez
não tivesse admitido a derrota ainda – mas Isaac parecia bastante convencido dela.
Isaac deu de ombros.
– Tudo é possível – exceto desafiar Chastel abertamente. Acho que todos irão para casa sem aceitar nada que o Marrok ofereceu.
O Alfa sorriu para Anna, embora houvesse um ar sombrio em sua expressão.
– Então eles vão ligar para o Marrok e fazer acordos silenciosos. Nada tão bom quanto o que poderíamos fazer abertamente – mas talvez, apenas talvez, isso será o suficiente
para nossa sobrevivência.
– Por que ninguém vai atrás de Chastel?
– Porque ele é tão bom quanto ele alega. Os campos da Europa são sepulturas para um bom número de nossos mortos que tentaram matar a Fera. Talvez o Marrok possa derrotá-lo
– mas no próprio território de Chastel, eu não apostaria no Marrok. Aqui, talvez... – avaliou ele, encolhendo os ombros. – Mas o Marrok não está aqui, e não acho que Charles
seja páreo para ele.
– Ele fez Chastel recuar – disse Anna. – Duas vezes.
– Quando Chastel caça, você não tem a chance de enfrentá-lo.
O rosto de Isaac era sombrio.
– Não é assim que ele caça suas presas, a menos que sejam crianças ou mulheres humanas – continuou ele, olhando para Anna. – Nos primeiros cem anos em que viveu, sabemos que
ele matou trezentas pessoas, provavelmente mais. Muitos, mas muitos deles ele levou em plena luz do dia na frente dos amigos e familiares das vítimas. Eles atiraram e bateram
nele, e nada aconteceu.
– No final do século XVIII, Chastel concentrou suas caçadas em Gévaudan, na França. As coisas ficaram tão ruins lá que os camponeses deixaram de arar seus campos. Assustados,
os nobres organizaram grupos de caça, contratando caçadores, e mataram todos os lobos na região – e muitos lobisomens também. O rei da França já estava pronto para entrar
em ação, mas a história conta que um homem chamado Jean Chastel, cuja esposa havia acabado de ser morta pela Fera, pegou um mosquete com balas de prata feitas a partir de
uma cruz derretida. A cruz tinha sido abençoada pelo padre da aldeia três vezes, e Chastel saiu com um pequeno grupo para caçar o animal. A grande Fera apareceu diante deles,
e Chastel atirou uma vez e matou-a – e assim conta-se que morreu a Fera de Gévaudan.
– Mas o que realmente aconteceu?
– O Marrok aconteceu – disse Ric.
– Ele ainda não era o Marrok – corrigiu Isaac. – A história que eu acho mais provável é a que conta que Bran Cornick caçou e conseguiu encurralar a Fera, e lhe disse que,
a menos que pusesse um fim naquela matança, Chastel seria entregue às bruxas – antes de continuar, Isaac sorriu um pouco. – As bruxas eram mais poderosas na época – e teriam
gostado muito de ter um lobisomem para torturar e obter sangue, carne e pelo para suas magias. Chastel tinha cem anos – e Bran era... bom, Bran era Bran. Foi uma ameaça muito
boa, naquela época. Agora Chastel é mais forte do que era então, mais inteligente, também – e odeia Bran como qualquer dominante odeia aquele que o humilha.
– Então Chastel está fazendo isso para se vingar de Bran?
Isaac balançou a cabeça.
– Há muitas razões, eu acho. Essa é uma delas. Assim como o que ele falou sobre manter o Marrok fora de seu território.
– A morte de Sunny muda alguma coisa?
Anna ainda estava tentando achar uma razão para a morte da mulher, mas não conseguia encontrar.
Outro lobo entrou, cansado e mancando – mas tinha conseguido trazer o saco na boca. Ele não prestou atenção a eles, e somente Anna pareceu notá-lo.
Isaac deu de ombros à pergunta de Anna.
– No mínimo, é mais um problema a ser resolvido. Arthur é visto como o maior partidário de Charles: o único de nós longe o suficiente da Fera para arriscar sua inimizade.
Não tenho certeza de que isso seja verdade, exceto no sentido de “o inimigo do meu inimigo é meu amigo”. Cabe notar que Arthur e Bran também não veem muitas coisas com os
mesmos olhos. Entretanto, isso não importa; Arthur não servirá para nada nas próximas semanas depois desses acontecimentos. Perder a companheira é...
Seu rosto contorceu-se um pouco, e com esforço Isaac conseguiu retomar a usual expressão bem-humorada.
– Ele não será capaz de ajudar Charles, isso é certo.
O primeiro lobo vitorioso já havia se transformado de volta em humano e, nu, estava procurando suas roupas na pilha. Isso lembrou Anna de que ela ainda estava com as meias
nos bolsos de suas calças jeans, e seus pés estavam desconfortáveis. Ela tirou os sapatos e colocou as meias nos pés, onde deveriam estar.
Anna estava ajoelhada para amarrar seus sapatos quando o terceiro vencedor entrou na sala. Ela nunca tinha visto a sua forma de lobo antes, mas seu cheiro disse-lhe exatamente
quem ele era: Chastel.
Assim que ele entrou na sala, alguém disparou o alarme e o armazém todo ecoou com um zumbido baixo por cinco segundos. Em seguida, houve novamente um zumbido que durou cinco
segundos: era o sinal de que o terceiro saco havia sido encontrado.
Anna mal ouviu. Chastel era o maior lobisomem que ela já tinha visto. Ric era maior do que a média, e Charles era maior do que ele, mas Chastel fazia ambos parecerem filhotes
meio crescidos. Ele parecia um são-bernardo em uma sala cheia de pastores alemães – o valor discrepante na estatística. Seu pelo era manchado em vários tons de castanho: a
cor perfeita para se camuflar em uma floresta.
A Fera encarou Anna com olhos amarelos e insanos, e ela se afastou, atingindo Isaac, que a amparou com uma mão em seus ombros e a colocou em pé. Chastel trotou da porta que
havia atravessado até o lugar onde Anna estava com seus companheiros de caçada.
Chastel parou na frente dela e deixou o saco cair no chão, dando um passo atrás – um convite.
– Tenho um companheiro – disse ela.
Ric estava certo sobre a participação dela na caçada, como percebeu. Anna estava na sala com todos aqueles lobos e não sentira nenhum medo. Ali, onde Chastel estava, e onde
seus amigos estavam – embora fossem novos amigos –, Anna não tinha medo.
– E não quero nada de você – continuou ela.
O lobo francês abriu a boca e deixou a língua pender enquanto sorria para ela – o desgraçado era assustador. Chastel pegou o saco novamente. Em seguida, ele deu um passo atrás
deles, e depois se virou e investiu contra Anna, deixando cair o saco no chão para liberar as mandíbulas. Ele foi rápido, muito rápido. Ela se jogou para trás e bateu em Isaac,
que estava parado ali, sem se mexer.
Mas Anna não teve a chance de sair do caminho da Fera, e ela esperou que suas presas se fincassem nela. O sangue afluiu à sua cabeça, e ela teve tempo para compreender que
Chastel iria matá-la. Na frente de todos esses lobos, ele ia matá-la, e ninguém seria capaz de fazer nada sobre isso até que fosse tarde demais.
E Anna não estava com medo. Ela nunca teve medo da morte – era estar indefesa o que a deixava assustada.
Chastel parou o próprio ataque, afastando-se no último momento e fechando as mandíbulas a poucos centímetros da garganta de Anna, a qual ele poderia ter atingido com as duas
patas da frente no chão. Já era tarde demais quando Isaac jogou-se para trás, puxando-a com ele. Chastel lhes deu um olhar satisfeito, e voltou para recuperar seu saco – e
foi aí que o irmão lobo o pegou de surpresa.
O ataque foi rápido e silencioso; Anna estava tão surpresa quanto Chastel. Ela não tinha visto Charles se mover – e não havia sentido sua Transformação em lobo.
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Chastel rosnou e grunhiu, mas Charles estava totalmente silencioso e ainda mais assustador por causa isso. Havia uma intensidade no seu ataque que faltava na investida de
Chastel: Charles estava se preparando para matá-lo, e Chastel ainda estava tentando descobrir o que estava acontecendo.
Anna já havia visto Charles lutar antes, mas ele estivera exausto e ferido nessas situações (ou relutante) e, na maioria das vezes, ainda em sua forma humana. O irmão lobo
na ofensiva era algo completamente diferente. Não havia inteligência e nenhuma ciência em sua forma de lutar.
Os outros lobos recuaram, abrindo espaço para a luta. Não houve gritos estridentes ou comentários. As testemunhas, como Charles, ficaram quietos, atentos, enquanto os lobos
que estavam lutando mostravam as garras e as presas. Isso não era um jogo, e ninguém o tratou como tal.
Se a diferença de tamanho preocupava Charles, Anna não percebeu. Quando Chastel ficou pronto para a batalha, a luta já não era tão unilateral como havia sido a princípio –
e foi brutal. O pelo tornava difícil dizer a gravidade de seus ferimentos, mas ambos estavam ensanguentados. Quando se afastaram e ficaram em pé, de cabeça baixa e dentes
arreganhados, o sangue pingou de seus corpos e fez pequenas poças no chão de madeira.
Chastel mergulhou sob Charles e tentou fincar os dentes em sua perna. Antes que a mordida do lobo francês estivesse bem firme, Charles sacudiu a perna para a frente, torcendo-se
como um contorcionista no Cirque du Soleil, e enterrou as presas no nariz de Chastel. Do lugar em que estava, Anna pôde ouvir o barulho.
Chastel esqueceu-se de tudo, e só queria libertar o focinho das presas de Charles, por isso libertou a perna traseira do oponente e tentou puxar, empurrar e sacudir – qualquer
coisa para libertar-se do outro lobo. O irmão lobo de Charles agarrava-se a ele como um buldogue, enquanto o esforço do lobo francês tornava-se cada vez mais débil, até que
seus olhos se fecharam e seu corpo estremeceu, impotente.
Algo tentou desviar a atenção de Anna para longe de Charles. Um suave olhe para cá, olhe para cá surgiu de dentro dela – mas Anna estava ocupada tentando avaliar os ferimentos
do companheiro.
Angus deu um passo à frente.
– Deixe-o ir, Charles.
O irmão lobo virou a cabeça – levando o grande corpo imóvel de Chastel com ele. Charles olhou nos olhos de Angus e rosnou. O Alfa empalideceu e deu meia dúzia de passos para
trás até chocar-se com Dana. Ela observava a luta, e parecia estar satisfeita com que via.
Arrepios percorreram a espinha de Anna quando ela olhou para a Fae que supostamente deveria manter a ordem. Sim, aqui. Olhe. Olhe. Ela quer machucá-lo, sussurrou o lobo de
Anna.
A intenção estava escrita no corpo da Fae, e não em sua face, que mostrava apenas preocupação. Mas seu corpo a traía, a flexão ansiosa dos dedos, uma mudança no equilíbrio
do peso do corpo – Dana estava pronta para avançar e matar. Uma caçada estava em andamento, e para a Fae, Charles era o anel de rubi-estrela no final dela.
O lobo de Anna continuou: nós a impediremos. Ninguém machuca quem nos pertence.
– Sim – sussurrou Anna.
Foi aí que Dana finalmente falou:
– Charles Cornick, você quebrou a paz desse lugar. Liberte-o.
O irmão lobo nem mesmo olhou para ela. Do que ela o havia chamado? Ela-Que-Não-É-Família pensava que mandava nele no lugar que pertencia aos lobisomens... Anna quase podia
tocar os pensamentos de Dana observando sua linguagem corporal. Chastel tentou lutar novamente, mas o lobo de Charles enterrou os dentes ainda mais profundamente a fim de
aumentar seu apoio. Após um momento, o lobo francês ficou imóvel novamente.
Anna não tinha nenhum problema com a morte de Chastel – já as consequências para Charles eram outra questão totalmente diferente. Se ela achasse que Charles iria lutar contra
a Fae, teria ficado menos preocupada. Mas seu companheiro era, no fundo de seu coração, um homem que acreditava na ordem. Se Chastel morresse porque estava tentando aterrorizar
Anna e a Fae decidisse chamar isso de quebra da trégua, Charles poderia concordar. Anna não sabia o que a Fae faria com ele, e não tinha a intenção de descobrir.
Ela se afastou das mãos de Isaac.
– Charles, deixe-o ir – disse Anna, caminhando para o meio da área deserta. Ela quase se dirigiu a ele como irmão lobo, mas de alguma forma isso pareceu muito íntimo, muito
privado para ser compartilhado.
Era certamente o irmão lobo, e não Charles, quem se voltou para olhar para ela, com os olhos vidrados de raiva. Anna tentou abrir a conexão entre eles ainda mais, mas Charles
estava se mantendo à parte – tentando protegê-la de quem ele era.
Ela foi até ele e bateu-lhe no nariz, ignorando a raiva que, finalmente, fez o irmão lobo rosnar a plenos pulmões e com raiva.
– Abra.
Anna não tinha medo, mas aquele rosnado e o cheiro de sangue (e outras coisas mais) trouxeram muitas coisas à sua mente. Ela lembrou-se de quando o sangue e o desespero haviam
sido dela.
Suas mãos tremiam, e ela estava respirando pelo nariz como um cavalo de corrida no final do derby de Kentucky. Mas mesmo assim Anna enfiou o dedo polegar na boca do lobo e
puxou. O canino do irmão lobo deslizou ao longo da parte lateral de sua mão, cortando-a.
Assim que provou o sangue de Anna, o irmão lobo abriu a boca e deixou cair a sua presa, deixando a cabeça do outro lobo bater no chão. Ele recuou violentamente para longe
dela. Anna não sabia se Chastel estava vivo ou morto – e não conseguia importar-se com isso, mas sabia que isso seria importante no minuto seguinte. Agora, toda a sua atenção
estava concentrada no irmão lobo.
O lobo vermelho, que era tanto o irmão lobo quanto Charles, olhou nos olhos de Anna, e ela percebeu que ele entendia apenas uma coisa de todas as coisas que poderia ter visto
nela. Anna estava morrendo de medo – da Fae, do sangue e da raiva, assim como da sua própria audácia –, mas tudo o que o lobo enxergou foi o medo, e não as razões para ele.
O irmão lobo a olhou nos olhos por mais um momento, e então trotou para fora da recém-aberta porta (a qual ninguém estava segurando), que da mesma forma bateu atrás dele assim
que o lobo saiu.
– Atrás dele – disse Dana, em uma voz que era cortante como vidro. – Ele foi o primeiro a derramar sangue.
Sua voz deu impulso aos homens que até ali tinham sido observadores imóveis, e eles começaram andar em direção à porta.
– Parem – disse Anna. E de repente ela fez algo que nunca tinha feito, não daquela maneira. Porém, seu lobo sabia como fazê-lo: Anna já havia usado o poder de Charles para
se transformar mais rapidamente do que jamais conseguira, e agora usou o poder para colocar força em sua voz:
– Parem.
Os lobos, sobre dois pés ou quatro patas, já se moviam às ordens de Dana, mas pararam onde estavam e se viraram para olhar para Anna.
A Fae também se virou para ela, e sua voz tinha poder, assim como a voz de Anna teve.
– Ele derramou sangue primeiro. Eu sou Fae, não posso mentir. Minha palavra é que aquele que derramou sangue durante a caçada seria punido: sangue por sangue. As paredes gritam
para que a minha palavra seja cumprida.
Dana fixou os olhos em Anna, mas tocou Angus, que estava nas proximidades.
– Liam Angus Magnusson, filho de Margaret Hooper, filho de Thomas Magnusson. Pelo seu verdadeiro nome, eu lhe digo para me buscar Charles Cornick.
Angus deu um passo em direção à porta.
– Não – disse Anna, e seu lobo deu poder à palavra.
Angus virou-se para Anna com um sorriso lento no rosto.
– Sim, minha senhora – disse ele. Seu sorriso cresceu. – Você está esquecendo algo, Dana Shea. A caçada já havia terminado. As campainhas soaram antes que Charles atacasse,
e a regra do sangue não valia mais.
O rosto de Dana congelou, e por um instante Anna leu em seus olhos o desejo pela morte de Charles, pela morte de qualquer um. Um desejo que rivalizava com qualquer coisa que
ela já havia visto em um lobisomem. Mas a Fae recuperou o controle e alisou as mãos sobre o casaco, como se esse estivesse amassado.
– Ah. Você tem razão.
– Chastel ameaçou Anna, a companheira de Charles – continuou Angus rapidamente. – Fora da caçada, isso é algo que justifica o ataque sob as nossas leis.
Ele estava certo. Anna tinha ficado tão preocupada com o que aconteceria com Charles que não havia se afastado o suficiente para ver toda a verdade. Mesmo que Chastel não
a tivesse machucado, a ameaça fora suficiente para justificar o ataque de Charles ali, no calor da hora. Charles podia não se sentir assim – mas os lobos sim –, e isso era
o suficiente para forçar Dana Shea a mudar sua posição.
– Mas não até a morte – justificou Dana.
– Ele não está morto – retrucou Ric, que se ajoelhou ao lado do lobo francês caído junto com Michel, o Alfa francês. Alguém, talvez Michel, murmurou:
– Mas é uma pena.
Angus caminhou até o lobo no chão e deu uma boa olhada.
– Ele não está nem mesmo gravemente ferido – disse ele, soando um pouco desapontado. – Charles apenas o deixou sem ar; ele vai ficar bem em poucos minutos, exceto pelo seu
nariz, bem machucado.
– Bom – disse Anna, passando por Angus e Dana. Ela parou na porta.
– Terminem aqui – disse ela. – Eu vou falar com Charles.
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Charles não tinha ido até o portão, como Anna esperava.
Anna não tinha muita experiência com rastreamento, e precisava de neve para praticar a maioria das coisas que sabia. O cascalho a teria derrotado se a sua caça não estivesse
sangrando como um porco. Era impossível perder a trilha que ia exatamente em direção oposta ao portão. Todo aquele sangue a preocupou, e ela aumentou o ritmo. O cascalho virou
lama – e lama não era uma má alternativa à neve. Charles tinha patas grandes, e suas garras afundavam profundamente enquanto ele ia em direção à água que rodeava o distrito
onde os armazéns ficavam.
Ele não tinha corrido – o rastro parecia mais um trotar firme, o que deu a Anna a esperança de que ele não estivesse gravemente ferido, apesar de todo aquele sangue. Seus
rastros a levaram até a cerca na parte de trás das instalações. Eram 3,5 m de cerca de arame farpado – e mesmo ferido, Charles havia conseguido saltar sobre ela. Anna não
tinha certeza se teria conseguido, mesmo na forma de lobo. E ela não se transformaria de novo, não tão cedo, a menos que tivesse de fazê-lo. Em vinte minutos, talvez. Mas
ela não ia esperar tanto tempo.
Havia algo de errado no olhar do irmão lobo. Algo louco... insano. Enquanto Anna contemplava a cerca, lembrou-se de um desafio que Charles havia lhe proposto enquanto eles
iam visitar Dana Shea pela primeira vez. Ambos haviam esquecido disso.
– Que tipo de Fae é Dana Shea? – murmurou Anna para si mesma enquanto procurava um caminho através da cerca.
Dana era forte o suficiente para assustar um troll, e certamente forte o bastante para ser um Lorde Cinzento – embora Anna não tivesse uma ideia real do poder que isso representava.
Era algo que comia pessoas – a fome que a Fae havia mostrado era inconfundivelmente predatória. Algo a ver com água – ela vivia em um barco e ainda tinha uma fonte de água
e uma lagoa dentro da casa-barco.
La Belle Dame Sans Merci. A Bela Dama sem Piedade, que atraía os homens ao seu rio ou córrego e os afogava, levando-os a acreditar em algo que não existia.
Levando-os a acreditar em algo que não existia...
Charles havia se mostrado imune àquele encantamento de desejo da Fae. Mas provavelmente ele não era imune a toda a sua magia.
Charles estava nervoso aquela noite. Mas ele era esperto, tinha o raciocínio rápido – e atacara depois que Chastel havia se retirado. Isso fora muito atípico. Anna tinha se
preocupado com as consequências daquilo – pensando em como Charles se sentiria sobre suas ações. Anna não havia parado para pensar que se preocupara porque as ações de Charles
haviam sido muito fora do comum.
Seu companheiro sabia mais coisas sobre Dana – ele mesmo lhe dissera isso –, e Bran presumivelmente sabia até mais do que Charles. Anna iria perguntar a ele sobre isso, e
contaria a Charles o que havia visto no rosto de Dana – assim que ela conseguisse encontrá-lo.
Anna foi até a estaca mais próxima da cerca e puxou o arame até arrebentar todos os grampos de fixação que seguravam a cerca. Em seguida, puxou a cerca para cima, sentindo
o esforço em seus ombros e bíceps. Não era algo que um ser humano de seu tamanho pudesse ter feito: havia alguns benefícios em ser um lobisomem. Quando ela havia terminado,
na cerca havia um buraco grande o suficiente para que ela pudesse rastejar por ali – ela teria de se lembrar de dizer a Angus que ele precisaria consertar sua cerca.
Anna seguiu o rastro de Charles sem se apressar, porque viu que ele não estava com pressa. Ela não sabia o que iria encontrar ao final da trilha, mas tinha certeza que seria
melhor se ela não o encontrasse cedo demais. Ou tarde demais.
Havia muitas perguntas. Será que Charles já esperava a caçada ordenada tão rapidamente por Dana? Estaria ele pronto para enfrentar dúzias dos lobos mais durões que a Europa
tinha a oferecer? Será que ele sabia que Angus viria atrás dele? Ou mesmo Dana? Charles havia sentido algo quando Anna utilizou seu poder para parar a mulher Fae? Será que
ele podia sentir que Anna estava ali indo atrás dele? O vínculo entre os dois estava forte e cheio de tensão, mas isso era tudo o que Anna conseguia sentir através dele.
Exceto por uma coisa... Anna descobriu que à medida que pensava sobre isso, a informação de onde ele estava vinha mais fácil. Charles estava dando liberdade ao vínculo entre
eles, sem escondê-lo com tanta força. Anna parou ao pensar nisso. Era isso o que ele estava fazendo antes? Escondendo-se dela?
Charles não era um homem violento por natureza. Anna sabia disso; ela mesma havia sentido a bondade dele. Porém, ele havia se transformado no homem que seu pai precisava,
seu matador de estimação, seu braço armado. Charles era muito, muito bom no que fazia.
Mas o irmão lobo sentia desejo de sangue e carne. Seu próprio lobo não tinha esse tipo de desejo: era uma das diferenças de ser um Ômega. Anna se lembrou de uma ocasião em
que eles pararam na frente da casa de seu pai, quando o lugar recendia a sangue e dor. Charles havia lhe perguntado sobre o cheiro que ela havia sentido, e dissera-lhe que,
caso ela não fosse um Ômega, teria ficado com fome ao farejar o sangue.
Charles ficara com fome naquela ocasião, embora não tivesse lhe dito isso.
Em sua forma de lobo, Anna podia comer carne crua e gostar. Mas quando estava em sua forma humana, sangue cheirava a sangue, não a comida.
Anna começou a andar novamente e notou que Charles estava indo ladeira abaixo, em direção ao... Ela apertou os olhos e não foi capaz de descobrir se era o Sound, ou apenas
mais um dos lagos de água salgada que estavam em todo lugar para onde ela olhava ali em Seattle. Anna não havia pensado em perguntar isso a Charles enquanto eles se dirigiam
para cá; ela estava preocupada com a caçada.
Havia um caminho estreito ao lado de um córrego de água doce igualmente estreito, que deslizava através dos arbustos de amoras-silvestres, agora despidos de bagas e cheios
de folhas mortas e espinhos. O caminho era de lama e prendia os sapatos de Anna, quase arrancando-os de seus pés, enquanto ameaçava desabar totalmente e jogá-la no riacho.
As impressões das patas de Charles eram profundas nos lugares onde ele havia parado para beber água. O sangramento o deixava sedento, ela sabia disso. O rastro de sangue estava
cada vez menos fácil de seguir. Anna esperava que isso significasse que os ferimentos de Charles já estivessem cicatrizando. Os lobos mais dominantes cicatrizavam mais rápido
– a menos que os ferimentos fossem combinados com prata, exaustão ou magia.
Anna simplesmente não podia deixar de se preocupar com ele.
Assim, foi com grande alívio que ela chegou até a praia (um trecho de terra rochosa, úmida e fria), e viu Charles chacoalhando-se. Ele estivera na água, limpando-se do sangue.
– Você é corajoso – disse-lhe Anna. – É difícil descrever com palavras o quanto essa água está fria.
Porém, Anna nunca tivera motivo para duvidar da coragem de Charles.
Olhos cor de âmbar observaram Anna enquanto ela deslizava para baixo nos últimos três metros de declive, com mais graça do que o esperado; porém, ela tropeçou quando seus
tênis obtiveram mais tração nas pedras pequenas da praia.
– Então – disse Anna ao irmão lobo –, temos algumas coisas sobre o que conversar quando você estiver pronto. Mas estamos seguros o suficiente por enquanto. Deixei Angus no
comando, lá no armazém.
Fora mesmo Anna quem tinha feito isso? Talvez Angus tivesse deixado a si mesmo no comando, lá no armazém...
As pedras eram altas e secas somente em uma faixa de cerca de quinze centímetros de largura. Anna olhou para os sapatos enlameados e, decidindo que não havia como deixá-los
em pior estado, afundou os pés em aproximadamente quinze centímetros de água gelada. O ar a abandonou em um chiado assustado.
– Muito frio – disse Anna, começando a andar pela costa, pois seu corpo não queria ficar parado.
DEZ
Charles ficou onde estava. A água gelada cobria suas patas inteiramente e alguns centímetros a mais. Ele estivera esperando pelo esquadrão dos capangas, e em vez disso a beleza
viera até ele. Isso o deixava estranhamente indefeso.
Anna caminhou ao longo da costa, e seus sapatos enlameados patinhavam na água que cobria as pedras. Acima deles, além deles e em ambos os lados, inúmeras docas estendiam-se
na água negra. Alguns homens estavam carregando um navio quatro ou cinco docas abaixo, e Charles podia ouvi-los falando no ritmo grunhido que os trabalhadores têm. Eles estavam
longe o suficiente para não conseguirem ver uma mulher e seu enorme cão caminhando ao longo da borda da água.
Charles achou que Anna estava ficando muito longe dele, e portanto a seguiu, andando atrás dela para ter certeza de sua segurança. Charles não havia matado a Fera, que a ameaçara
(um rosnado cresceu em seu peito com esse pensamento). Ele deveria ter matado Chastel. Deveria ter arrancado sua cabeça para que ele deixasse de prejudicar os fracos e desamparados.
E não machucar sua Anna. Não importava o fato de que ela estivesse provando não ser fraca nem impotente.
O irmão lobo cheirou o ar, mas o cheiro dos outros lobos estava distante. À frente dele, Anna tinha encontrado um tronco trazido pelas águas, agora um trono para sua dama.
Mas primeiro, ela teve que escalá-lo.
Charles andou em torno do tronco, certificando-se de que ficaria estável – e achou difícil vencer a distância entre eles.
Anna já tinha visto Charles em ação, já o vira matar, e não havia se afastado dele mesmo assim. Mas aquilo tinha sido diferente, Charles sabia disso. Aquilo não tinha sido
provocado – mas essa não era a palavra exata. Certamente também não tinha sido necessário.
Chastel tinha apreço demais à sua própria pele para tentar qualquer coisa no meio de uma alcateia de lobos inimigos. Ele não a teria machucado, não ali. Porém, nada disso
tinha importância para Charles; tudo o que ele podia ver eram aquelas presas enterradas na garganta de Ana, e ele do outro lado do edifício, quando já seria tarde demais.
Charles olhou para ela, apenas para se certificar de que sua visão não havia se realizado. Anna havia encontrado um lugar confortável e se estendera sobre ele. Seu rosto estava
inclinado em direção a Charles, e descansava em seu braço estendido.
Anna havia dito que queria conversar sobre algumas coisas. Ela não parecia irritada ou decepcionada – o que seria pior.
E havia coisas que ele precisava saber, pois ali não havia dúzias de lobos para levá-lo de volta (e ele pôde ouvir Dana pedir sua cabeça), os quais Charles estivera esperando.
Além disso, Anna dissera que havia deixado Angus no comando – embora ele esperasse que isso tivesse algo a ver com o uso do seu poder, que ele sentiu logo depois que saíra
do armazém.
Se o irmão lobo não estivesse à frente, ele teria simplesmente esperado que os outros lobos o atacassem no armazém, seguindo as ordens de Dana. Mas o irmão lobo havia exigido
a chance de escolher o campo de batalha. Isso significava ir até a praia, de forma que a água profunda às suas costas o impedisse de ficar rodeado – lobisomens não sabem nadar,
eles afundam.
E o elemento de Dana era a água doce, não a salgada.
Mas Anna havia sabotado seus planos de batalha. Eles não iriam vir atrás dele – e era Angus, não Dana, quem estava no comando. Anna estava sozinha sobre o tronco de madeira,
observando-o com o canto dos olhos enquanto ele andava para lá e para cá.
Charles se manteve distante por mais algum tempo. Enquanto estivesse em forma de lobo e Anna estivesse longe dele, não conseguiriam conversar... mas o que ela iria lhe dizer?
Que estava enojada pelo ataque dele a Chastel? Que Charles a havia assustado? Ou, possivelmente pior, que ela havia gostado do que vira? Anna não dizia nada dessas coisas,
e Charles a conhecia bem o suficiente para entender isso.
Assim, sem pensar muito, ele se aproximou dela como lobo, e não como homem. Anna sentou-se e deu pancadinhas no tronco, indicando que Charles se sentasse ao seu lado. Ele
então pulou sobre o tronco, e Anna o abraçou. Seus dedos longos brincaram com as orelhas dele e com os pontos sensíveis em sua face.
Anna se inclinou sobre ele, dizendo:
– Amo você.
Era disso que ele precisava. Charles respirou profundamente e se transformou. Ela se afastou, dando-lhe espaço.
– Por que você não precisa de quatro dúzias de camisetas vermelhas ou azuis e cinquenta pares de botas? – perguntou Anna, quando ele acabou. – E você acha que esse negócio
de vínculo poderia funcionar bem o suficiente para que quando eu me transformasse de volta em humana pudesse estar já vestida, assim como você, e não nua em pelo?
Charles olhou para si mesmo: totalmente vestido, como sempre. Nenhum outro lobisomem do qual já ouvira falar era capaz de transformar-se assim, já vestido. Ele não sabia se
isso era magia de lobisomem ou um pouco de magia de seu avô xamã. Charles só sabia que isso havia começado a acontecer quando ele tinha catorze ou quinze anos, e a nudez pública
era considerada uma vergonha na tribo de sua mãe. Naquela época, era pele de cervo – Charles ainda podia fazer isso, caso se concentrasse.
Charles virou-se para que pudesse olhá-la de frente, detendo-se longamente em sua face sorridente. Ele tomou seu rosto em suas mãos e beijou-a como se ela pudesse preenchê-lo.
Anna abriu a boca e deixou que ele entrasse, acolhendo-o com toques suaves e pequenos sons. Eles não estavam juntos há tempo suficiente para que os toques mais básicos tivessem
se transformado em rotina, mas Charles achava que jamais poderia considerar os beijos dela triviais, assim como o toque de sua língua, dentes e lábios.
Quando ele se afastou, deixou seu rosto ficar contra o dela, enquanto dizia:
– Eu não sei. Teremos de ver – contar as camisetas vermelhas, talvez.
– Por que vermelho? – perguntou ela. – Por que não verde ou azul dessa vez? Já vi você fazer uma azul. Você escolhe?
Charles riu, e precisava disso: as pequenas intimidades que ele nunca tivera antes de Anna.
– Não sei. Ninguém nunca perguntou e nunca prestei atenção.
Anna colocou a boca contra a orelha dele, e a sensação da respiração dela em sua orelha certamente o fez prestar atenção.
– Aposto que pensaram. Só estavam com medo demais do grande lobo mau para perguntar.
Ele riu de novo, e o alívio da presença dela – não apenas do Ômega, mas de sua Anna – tornava o riso necessário, qualquer que fosse a desculpa.
Anna se afastou, e seus olhos ainda estavam brilhando.
– Dana é uma Fae da água, não é? Daquelas que atraem os homens para a água e os afogam.
– Sim.
– E como ela fez aquilo? Foi uma compulsão? Ou foi algum tipo de manipulação?
Charles não conseguiu ver nada na face dela.
– Não sei. Por que você pergunta?
– Você não é de perder o controle assim – não sem um melhor planejamento. E Chastel. Qual a idade dele? O modus operandi dele geralmente é mais sutil do que foi hoje à noite,
não é? Ele caça criancinhas e mulheres na presença de pessoas fracas demais para machucá-lo. Ele nunca antagonizaria você desse jeito, não quando você teria uma justificativa
para atacá-lo cara a cara.
Na presença de Anna, o irmão lobo acalmou-se, satisfeito. Assim, Charles pôde pensar mais claramente e considerar os acontecimentos esquisitos daquela noite.
– Não é bem verdade. Ele é descuidado, às vezes – e não é covarde, na verdade. Chastel gosta de jogar jogos: o ataque a você teria sido fatal se ele assim o quisesse – esse
é bem o estilo da Fera de Gévaudan.
Porém, Charles tinha que admitir que Anna estava certa sobre o comportamento estranho do francês.
– Mas naquele momento em que ele deixou o saco – o seu próprio prêmio – cair a seus pés, bem, aquilo não foi muito normal – disse Charles, pensando por um momento antes de
continuar. – Diria até mesmo que foi romântico. Não sei se Chastel já teve uma companheira. Ele mata mulheres, na maior parte das vezes. Crianças, também. É como se a fragilidade
delas despertasse o que há de pior nele.
– Quando eu estava com Ric no escritório de Angus, Chastel disse que era o oposto de um Ômega. Era todo violência, e sem nada dos instintos protetores.
Charles sentiu suas sobrancelhas levantarem-se.
– Isso é bastante significativo – disse Charles. – Eu o chamaria de sociopata. Meu pai o chama de o Mal.
– O Mal soa bem para mim – murmurou Anna.
Ela brincava com a casca da árvore: a maior parte havia apodrecido por ter ficado imersa na água e virtualmente se dissolvia entre seus dedos.
– Mas a coisa com o saco não foi típica de Chastel – disse Charles. – E... aquilo que eu fiz não foi normal, também. Não daquele jeito. Era como se ele tivesse mesmo feito
aquilo que ameaçara, como se Chastel realmente tivesse rasgado sua garganta, muito embora eu soubesse muito bem que ele não a havia tocado. Você acha que a Fae teve algo a
ver com isso?
– Acho que vi a sede de sangue no corpo dela quando você atacou Chastel. E a primeira coisa a sair dos lábios de Dana foi uma acusação – de algo que você não havia feito.
Essa Fae estúpida não se lembrou que, quando os alarmes soaram, a caçada havia acabado.
As unhas de Anna se enterraram na árvore como se ela tivesse garras, e sua voz era áspera.
– Ela queria você como presa.
Subitamente, Charles soube que a razão pela qual Dana não o havia capturado estava sentada ali naquele tronco, sentada ao seu lado. Sua Anna não parecia ser um páreo duro,
não com seu rosto sardento e um corpo que ainda precisava ganhar uns cinco quilos, mesmo estando consideravelmente mais forte do que quando Charles a vira pela primeira vez.
Mas Anna era mais forte do que um sapato de couro velho, e cuidava do que era dela.
– Dana não sabia com quem estava se metendo – murmurou ele, enfeitiçado e maravilhado ao mesmo tempo.
– Com certeza – disse Anna. – Ela estava caçando hoje à noite, e não sei quem era sua presa inicial... pode ser a mesma coisa que acontece quando um dominante chega a uma
nova alcateia e procura o brutamontes mais desagradável para lutar, procurando tomar seu lugar. Não sei se isso foi algo planejado ou se simplesmente aconteceu.
Charles sentiu um cheiro e virou a cabeça.
– Angus – disse ele, enquanto o outro lobo andava até eles.
– Deixei você sentir meu cheiro – disse o outro lobo defensivamente.
– Obrigado – disse Charles, mas decidindo que isso não era o suficiente, já que Angus ainda parecia inquieto ao interrompê-los. – Muito obrigado. O que você sabe mais?
O lobo estivera ali por algum tempo, e provavelmente teria voltado sem ser visto e sem dizer uma palavra se não tivesse nada com que contribuir para a conversa.
– Ouvi algumas coisas – disse Angus. – Anna está certa. Senti gosto de magia trabalhando, mas não percebi o que ela havia feito até você atacar Chastel. Dana tentou obrigar
você a matar Chastel.
– Achei que eles não pudessem fazer isso.
– Obviamente, não é impossível – disse Charles. – E não sei por que eles não o fazem. Apenas sei que não costumam fazer isso. Nunca. Eles não podem quebrar sua palavra e não
podem mentir. Não podem é o que sempre ouvi. Sempre. Mas ela o fez.
– Pergunte ao Marrok – sugeriu Angus.
Charles estendeu a mão para o celular, e depois parou.
– Sem celular... – disse Anna.
Ela deu uma risadinha.
– Todas essas camisetas vermelhas e nada de celular? Também estou sem o meu, deixei no carro.
Angus deu o dele a Charles.
– Camisetas vermelhas? Eu preciso saber disso?
– Provavelmente não – disse-lhe Charles, enquanto discava e encostava o telefone na orelha.
Seu pai atendeu a ligação, e Charles então contou toda a história ao velho bardo. Bran ouviu tudo sem fazer nenhum comentário. Quando Charles acabou, houve uma pequena pausa
enquanto seu pai considerava tudo o que queria discutir.
– Seis vampiros caçando juntos – disse ele finalmente.
Não era uma pergunta, mas Charles respondeu de qualquer forma.
– Sim.
– Verei o que encontro sobre isso. Já houve algumas histórias – vou examiná-las mais de perto. Parecem ser mercenários: assassinos de aluguel. Angus não tem problemas com
os vampiros de Seattle há muito tempo, e Tom os teria reconhecido se eles fossem daí. Vampiros em uma minivan sugerem carro alugado para mim...
– Eu tenho o número da placa – disse Anna. – Mas também acho que era um carro alugado; eles estavam em uma minivan americana com menos de cinco anos.
Anna falou três letras e três números.
O bom de fazer chamadas telefônicas quando lobisomens de ouvidos argutos estavam por perto era que todas as chamadas acabavam se transformando em verdadeiras teleconferências,
quer a pessoa ao telefone quisesse ou não. Pelo menos Charles não precisaria repetir tudo o que fora dito.
Charles ouviu o barulho da caneta correndo sobre o papel enquanto seu pai escrevia o número da placa da minivan em um pedaço de papel.
– Vou verificar – disse ele, depois que terminou de escrever –, mas suspeito que ela esteja certa. Nós os encontraremos mais rápido através de outros métodos. Você acha que
eles foram treinados por um lobisomem?
– Eles lutavam como uma alcateia – disse Anna. – Faziam suas escolhas como uma alcateia de lobos faria. E usaram magia que parecia magia de alcateia.
– Essa foi a avaliação de Tom, também – disse Angus. – Tom já participou de algumas lutas, e pode usar a magia da alcateia como poucos de nós.
Houve outra pausa, e naquele tom de voz agradável que alertava a todos que o conheciam que a coisa ia ficar feia, o Marrok disse:
– Você pode provar que Dana causou a luta?
Charles olhou para Anna.
Ela balançou a cabeça.
– Não. Você tinha que ter estado lá.
– É isso mesmo – disse Angus. – Eu mesmo estava vendo, e duvido que alguém ali poderia reconhecer o que vira. Dana iria me enviar atrás de Charles depois que me recusei a
ir. Ela enfeitiçou-me com o meu nome verdadeiro. Ninguém me chama por esse nome há quase cem anos – e uma centena de anos atrás eu não era ninguém. Não era Alfa naquela época,
nem mesmo estava neste país. Seria interessante saber como ela descobriu o meu nome de nascimento. Eu duvido que haja dez pessoas que saibam meu nome verdadeiro depois de
todo esse tempo.
– Ela disse o seu nome verdadeiro e você não seguiu as ordens dela?
Angus jogou a cabeça para trás e riu.
– Por Deus no céu, Bran, dei uma primeira olhada nessa coisinha assustada que é a sua nora, tremendo nas botas em um auditório cheio de predadores, e pensei que seu filho
havia encontrado um metamorfo que se transformava em coelho.
– Obrigada – disse Anna, com um tom desagradável na voz.
Nem um pouco intimidado, Angus sorriu para ela. Mas quando ele falou, dirigiu-se a Bran.
– Pensei que ela não valia o que pesava. Mas isso foi antes de Anna matar um vampiro e colocar aquela velha fada em seu lugar. Lá estava eu, enfeitiçado pela Fae, e de repente
Anna me disse: “Pare!”. E com os diabos, eu tive de fazer o que ela mandou, com compulsão ou sem compulsão de Fae. Ela quebrou o feitiço de Dana como se você mesmo o tivesse
feito.
– Você devia ter visto quando ela matou a bruxa algumas semanas atrás – disse Bran afavelmente. – Asil já estava fugindo daquela bruxa há duzentos anos, e a “coelhinha” do
meu filho a matou enquanto ainda estava na sua forma humana, armada com nada além de uma faca.
– Asil? – perguntou Angus, compreensivelmente surpreso – Asil, o Mouro?
– Esse mesmo – disse Charles.
– De repente não me sinto mais desconfortável por ter sido salvo por um coelho – disse Angus alegremente.
Anna apertou os olhos em direção a ele.
– Mais um comentário sobre coelhos e você vai se arrepender.
O Marrok falou durante o silêncio que se seguiu à ameaça de Anna.
– Se eu for aí, agora –
– Não – disse Charles, em uma rejeição instantânea.
Bran suspirou.
– Você notou o “se”, não notou?
Como não havia resposta para isso, Charles apenas esperou.
Satisfeito ao ver que seu filho fora devidamente colocado em seu lugar, Bran disse:
– Acho que minha presença não iria ajudar nesse momento. Certamente não faria diferença para as negociações. Chastel fez exatamente o que pretendia – e nós vamos contornar
esse problema.
– Sinto muito, senhor – disse Charles.
– Em absoluto. Não teria feito diferença se eu estivesse aí. Até que um dos europeus decida livrar o mundo de Chastel, teremos que contorná-lo. Teria sido bastante... inesperado
se ele tivesse jogado no nosso time.
– Ele não é anti-Ômega – disse Anna. – Ele é anti-Marrok.
Charles explicou a referência, e seu pai riu alegremente. Algumas pessoas podiam pensar que isso significava que ele não estivesse zangado – e estariam erradas.
– Acho que ambas as definições estão corretas.
– Por que você não o elimina? – perguntou Angus subitamente.
– Não é minha obrigação – respondeu Bran. E depois continuou, provando que já havia pensado nisso. – Assim eu teria a Europa para cuidar, também. Posso assegurar-lhes que
meu prato já está cheio demais. Não preciso de mais nada para fazer. Você está procurando emprego, Angus?
– Com os diabos, não.
O líder da alcateia da Emerald City sorriu agradecido.
– Eu também não poderia derrotar Chastel. Já seu filho é um desgraçado briguento e desagradável. Já o vi lutar de cabeça fria antes – mas você deveria vê-lo quando está furioso.
Demorou um total de dois minutos para jogar Chastel no chão.
– As lutas de Charles são sempre rápidas – disse Bran. – A maioria das lutas sérias é. Nós não somos gatos para brincar com nossa comida.
Charles ouviu o pai respirar profundamente ao mudar de assunto.
– Então. Seu trabalho, Charles, a meu ver, é encontrar os vampiros que mataram nossa pobre Sunny. Eliminá-los e descobrir quem os contratou. Conduza os seus negócios como
de costume amanhã – e entenda que ninguém pode concordar em aceitar ajuda, mas eles vão ouvir o que você tem a dizer. E nós vamos ajudá-los como pudermos. Essa é a única maneira
de dar isso a entender. E impeça Dana de obrigar você a matar alguém que não queira.
– Ela quebrou sua palavra – disse Anna.
– Nós não podemos provar isso – respondeu Bran.
– O que acontece quando uma Fae falta com a palavra? – perguntou Charles. – Tudo o que já ouvi é que eles não fazem isso.
– Eu não tenho a menor ideia – disse seu pai. – Eu não sou Fae – e não temos nada para acusar a Fae de guardar segredos. Eu nunca soube de uma Fae que quebrasse sua palavra,
mas dobrá-la e torcê-la como um pretzel, aí é outra coisa. Quebrá-la, nunca. Eu teria esperado que um relâmpago a atingisse do alto. Como isso não aconteceu, o seu palpite
é tão bom quanto o meu.
Bran fez uma pausa.
– Tenha cuidado. E você já pode ir pensando em usar o seu crucifixo e encontrar algo que funcione para Anna. Não é infalível, mas é útil quando se está lidando com vampiros.
Bran desligou.
– Estou meio desapontada, sabia? – disse Anna pensativamente. – Pensei que ele sabia tudo.
– Nem tudo – disse Charles. – Ele apenas é muito bom em passar essa impressão.
– E na arte do improviso também. Embora eu nunca realmente tenha visto isso em ação – disse Angus, fazendo uma breve pausa. – Bom, talvez ele poderia ser o relâmpago que mencionou.
Espero estar lá para ver isso.
Charles bocejou.
– Então, amanhã temos mais uma reunião. Eu vou usar algumas das coisas mais criativas que meu pai separou para o último dia, e depois... talvez um fim precoce para as negociações,
que são inúteis agora.
– A morte de Sunny... – disse Anna. – Bom, parece errado deixar a sua morte ser útil para nós, mas a morte de Sunny seria uma boa razão para terminar as reuniões mais cedo.
Angus assentiu.
– Ninguém será enganado por isso – eles sabem o que Chastel fez –, mas isso vai livrar a nossa cara.
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Anna enfiou-se debaixo dele e resmungou quando Charles riu ao sentir os dedos de seus pés gelados enfiaram-se em lugares onde dedos frios nunca deveriam tocar um macho adulto.
Ele rolou até ficar em cima dela, e ela suspirou feliz, com seus olhos levemente abertos e azuis brilhantes na escuridão do quarto do hotel.
– Bem, olá – murmurou ele, dirigindo-se ao lobo de Anna. – Lobisomens –informou Charles solenemente – têm sangue quente. Sangue muito quente. Nós não ficamos com frio e enfiamos
os dedos das mãos e dos pés gelados em lugares onde coisas frias não devem ir.
Ela piscou para ele um par de vezes.
– Quente – disse ela, com uma voz rouca.
– Sim – respondeu ele. – Mas você poderia ter puxado o cobertor, antes de ficar com frio.
Ela arqueou-se no colchão e beijou-o com força, segurando o queixo dele nas mãos.
Enquanto Charles a beijava, rolou novamente até que ela ficasse por cima. O lobo de Anna às vezes fazia coisas com as quais Anna não se sentia confortável, por isso ele aprendera
a fazer adaptações para isso – e uma das coisas era se certificar de que, a menos que Anna estivesse no comando, ela ficasse sempre por cima. Se Anna acordasse debaixo dele,
era bem provável que ela entrasse em pânico.
Charles não conseguia se comunicar com o lobo de Anna do jeito que ele – e Anna – podia falar com seu irmão lobo. Ela tendia a aparecer quando Anna estava dormindo e, geralmente,
se comunicava com frases de uma só palavra.
Ela mordeu sua orelha, puxando os brincos de âmbar que Anna havia comprado para ele.
– Com mais carinho – disse ele. – Eu gosto desses brincos.
Charles ergueu as mãos até a parte mais baixa de suas costas, e ela se arqueou contra ele com um som feliz. Ele a deixou brincar como ela queria por um tempo antes de pegar
suas mãos.
– Ei, senhora lobo – disse ele, sem fôlego. – Precisamos acordar a sua outra metade antes de levarmos isso mais longe.
Ele realmente não sabia até que ponto Anna estava consciente do que o seu lobo fazia em momentos como esse – se ela estava participando ou ainda dormindo. Mas não parecia
certo fazer qualquer coisa mais séria a menos que Charles tivesse certeza de que Anna sabia o que seu lobo estava fazendo.
Ela olhou para ele, e Charles viu a mudança acontecer, somente nos olhos dela. Olhos incrivelmente azuis aqueceram-se até tomar a tonalidade marrom no espaço de tempo de algumas
batidas de coração. Anna não pareceu surpresa ao encontrar-se apoiada em cima dele, apenas sorriu e flexionou as mãos em seus ombros.
– Tudo bem? – perguntou ele.
Em resposta, ela mexeu os quadris e pressionou o corpo para baixo. Charles gemeu com o movimento inesperadamente agressivo. O lobo de Anna costumava fazer coisas assim – já
Anna geralmente era mais comedida. Ela imprimiu um ritmo forte e rápido, e Charles a deixou fazer o que ela queria.
– Vou apenas deitar e pensar na Inglaterra – bufou ele, esperando que ela risse.
Mas o tiro saiu pela culatra, porque Anna se ergueu – e então parou, segurando os quadris de Charles para baixo ao colocar seus pés sobre as coxas dele.
– Se você está pensando na Inglaterra – disse ela – eu não devo estar fazendo isso direito.
E então ela fez algumas coisas que desligaram a metade direita do cérebro dele.
Depois, Anna ficou deitada sobre ele como um cobertor com cheiro doce – com a diferença de que cobertores não costumavam dar beijos no lado do pescoço.
– Você se lembra de quando lhe contei que você era minha companheira e você respondeu dizendo que não gostava de sexo? – disse Charles.
Ela riu do tom presunçoso dele.
– Eu pensei que seria justo avisá-lo.
– Coelhos gostam de sexo – disse ele suavemente.
Anna sentou-se e beliscou o nariz dele.
– Eu vou lhe mostrar o coelho. Eu sei os lugares onde você sente cócegas.
Nesse momento, alguém bateu à porta; era um som rápido e urgente.
– Sou eu, Angus. Deixe-me entrar.
Anna guinchou e mergulhou para fora da cama, colocando as roupas da noite anterior. Charles vestiu a calça jeans e caminhou até a porta. Era um pouco depois das duas da manhã
– algo urgente deveria ter acontecido. Especialmente por que Angus não havia telefonado.
Assim que Anna estava decentemente coberta, Charles abriu a porta e convidou Angus a entrar. O outro lobo hesitou à porta, mas não fez nenhum comentário sobre o que Charles
e Anna estavam fazendo – embora mesmo um nariz humano sentiria o cheiro.
– Trouxe alguma coisa para acordar. Pegue um – disse Angus.
Ele trazia um porta-copos, com quatro xícaras fumegantes: dois chocolates, dois cafés.
Charles pegou um chocolate, e Anna, que normalmente bebia chocolate com ele, de repente pegou o café.
– Preciso acordar – disse ela. Charles deve ter parecido surpreso.
Angus colocou o porta-copos sobre a mesa e sentou-se, com o outro café na mão.
– Chastel está morto – disse ele categoricamente.
– Pensei que seus ferimentos não eram suficientes para matá-lo.
Charles realmente não conseguia se lembrar dos ferimentos que provocara em Chastel.
– Não foi por causa da luta.
Angus tomou um gole de café.
– Alguém atirou nele com chumbo grosso de prata e então... Parece que o fatiaram. Bateram muito em Michel, pobre desgraçado. Você o conhece? Fratura no crânio, mandíbula quebrada,
costelas quebradas, e outros traumas. Vai demorar um pouco antes que ele possa contar alguma coisa a alguém.
– Quem o matou?
– Esse é o problema; o seu cheiro é o único presente, além do cheiro do próprio Chastel e do cheiro de Michel.
– Ele esteve comigo a noite toda – disse Anna, indignada.
Charles deu um sorriso satisfeito.
– Eu não o matei, nem tive responsabilidade sobre isso.
Angus assentiu sombriamente.
– Percebi isso. Mas precisava que você me dissesse.
– Fatiar uma pessoa leva tempo – disse Charles, mas achou que isso era algo que ele não deveria admitir saber. – Eram profissionais?
– Eu não conseguiria fatiar um porco tão bem – disse Angus. – E eu trabalhei como açougueiro durante vinte anos – continuou ele, hesitando um pouco; finalmente, Angus se sentou
na cadeira. – Olhe, eu sei que não foi você. Esse não é... o seu estilo de matar. Quem fez isso é completamente louco. Você o teria apenas rasgado em pedaços e acabado com
ele. Mas aquela Fae... ela não consegue reconhecer a verdade quando a ouve. Não como nós conseguimos – os Faes não aceitam a nossa palavra, não a acham boa o suficiente.
Ele parecia um pouco amargo.
– Assim que Dana receber as notícias, ela virá atrás de você, pois escapou de suas garras antes.
Angus deu um pequeno aceno de cabeça para Anna.
– Eu vi, também, quando ela se concentrou em Charles como sua presa. Sem considerar a verdade, você parece bem culpado. A luta. A interferência de Chastel na conferência.
A perseguição dele à sua companheira. Tom trabalhou como policial durante a maior parte de sua vida, e disse que o que ela tem contra você iria levá-lo preso em tribunais
humanos – e provavelmente, você seria condenado.
Angus levantou os olhos para Charles, que o permitiu.
– Ela não tem que convencer a nós ou ao seu pai, lembre-se disso. A única autoridade maior entre os Faes são os Lordes Cinzentos – e as provas que eles vão procurar serão
boas o suficiente para os tribunais humanos – disse Angus, tomando um grande gole do seu café em seguida. – A palavra dela. E ela é um Lorde Cinzento. Ela colocará todos os
Faes dos Estados Unidos atrás de você. Se você resistir, se seu pai resistir – e você sabe que ele vai fazer isso –, seria guerra.
– Ela faria isso? – perguntou Anna.
– Sim – disse Angus, sem hesitação.
– Então temos que descobrir quem matou Chastel antes que Dana descubra que ele está morto – disse Charles, como se isso não fosse nada demais.
– Certo.
– Chame seus subordinados e diga-lhes para cancelar o show de hoje – disse Charles. – A morte da companheira de Arthur é uma desculpa boa o suficiente para agora. Precisamos
dar uma olhada no local da morte de Chastel, e depois eu vou falar com Michel.
i
Angus era um bom guia, e parava nos semáforos amarelos para que Anna, seguindo seu carro no Corolla surrado, não precisasse cruzar semáforos vermelhos ou arriscasse se perder
dele.
Angus dissera a eles que os lobos franceses estavam em uma residência particular, alugada no distrito Queen Anne, um bairro de casas bem-cuidadas na encosta de um morro, não
muito distante do hotel deles.
Anna viu a casa antes de Angus ligar o pisca-alerta. Era completamente moderna e destacava-se de seus vizinhos mais tradicionais, como um polegar ferido. E a razão pela qual
ela sabia que essa era a casa certa era a presença do lobisomem bebendo cerveja na varanda da frente.
Ian, o lobo que os havia encontrado na pista de pouso, estava sentado em uma cadeira de balanço de metal com uma lata na mão. Anna concluiu que a cerveja era para disfarçar.
Estava frio o suficiente para que um homem sentado em sua varanda às duas e meia da manhã fosse algo estranho, e ainda por cima durante horas,– assim, a lata de cerveja tornava
tudo um pouco menos... notável. Como se ele tivesse sido expulso e esperasse permissão para entrar novamente.
Anna seguiu o carro de Angus e estacionou no caminho da garagem, e não na rua. Foi uma manobra apertada – já havia dois carros estacionados ali – mas o Corolla era um carro
pequeno.
Anna abriu a porta e sentiu o cheiro de sangue. Ela olhou para Charles, mas ele não mostrou qualquer sinal de ter percebido. A fome de carne crua não era nada novo para ele.
Charles sabia aquilo que era e, geralmente, era capaz de aceitar isso bem o suficiente para que ele e o irmão lobo pudessem trabalhar juntos de uma maneira que nenhum outro
lobo conseguiria.
No topo das escadas, Ian segurou a porta da frente aberta, enquanto ficava de lado, protegendo-se tanto quanto possível do cheiro de assassinato. Ele manteve a atenção firme
em seu Alfa.
– Senhor – disse ele. – Ninguém entrou desde que você saiu. Temos guardas na frente e atrás como você pediu. Os outros franceses estão hospedados no hotel como você pediu.
– Ótimo.
– Sim, senhor.
Ian parecia um pouco estressado. Impulsivamente, Anna tocou sua mão.
Ele respirou profundamente algumas vezes e olhou para ela.
Angus bateu-lhe no rosto carinhosamente.
– Lobo Ômega, meu rapaz. Disseminar a paz e a felicidade; é o que eles fazem.
Angus fez um gesto, e Anna soltou Ian e seguiu Charles para dentro da casa.
– Se Dana planejou isso, ela já sabe – disse Anna, quando a porta se fechou atrás deles.
– Sim – disse Charles. – Ainda assim, não há sentido em contar a Dana o que ela não sabe.
Charles parou no corredor e olhou para Anna.
– Você entende melhor as pessoas do que eu. Você acha que Dana contrataria vampiros? Você acha que os vampiros poderiam estar operando por conta própria?
Anna achou que Charles estava se subestimando, mas mesmo assim colocou seus instintos para trabalhar.
– Ela é um Lorde Cinzento. Ela gosta de jogos, ela... ela tem prazer em mostrar que não possui nada de especial. O que provavelmente significa que, sem a ilusão, ela é horrivelmente
feia ou surpreendentemente estonteante.
Anna fechou os olhos, tentando encaixar as peças.
– Ela jamais contrataria um vampiro. Dana não confiaria os seus segredos a eles.
Isso estava certo.
– Ela... ela não se importaria em ordenar a alguém para fazer seu trabalho sujo, mas não por dinheiro, acho que não. Alguém que lhe deva algo – subordinados Fae, talvez. Chantagem.
Mas não mercenários.
– Concordo – disse Charles.
– Bom, em relação aos vampiros... Quando eles vieram atrás de nós, não havia nenhuma emoção, nenhum envolvimento pessoal. Estavam apenas fazendo um trabalho. Mas então nós
matamos dois deles, o que tornou isso algo pessoal, certo? Então, quando eles mataram Sunny, eles a machucaram e a deixaram lá para... para ficarem quites com os lobisomens.
– Angus? – perguntou Charles. – Dana vive aqui. Você deve conhecê-la melhor do que nós.
– Eu não entendo as mulheres de jeito nenhum – desmentiu Angus. – Adicione a isso o fato de essa ser uma Fae, e assim você pode me considerar fora disso.
Houve uma pequena pausa antes que ele continuasse.
– Mas acho que a Coelhinha entendeu tudo. Isso sobre os vampiros, também.
– Anna – disse Charles suavemente antes que Anna pudesse protestar. – Não Coelhinha.
Angus inclinou a cabeça.
– Um termo respeitoso – disse ele. – Isso é tudo. Anna.
– Por favor – disse Charles, mas não se deteve nisso e simplesmente passou à próxima questão. – De alguma forma, os vampiros conseguem esconder seu cheiro de nós. Conseguem
nos manter longe dos lugares onde dormem durante o dia.
Angus ficou imóvel.
– Você acha que foi uma ação dos vampiros? Quatro vampiros contra Chastel e Michel?
– A Fera já estava bem machucada.
Charles geralmente evitava dizer os nomes dos mortos, e referir-se a eles por um apelido aparentemente não tinha muitos problemas.
– Michel... ele é muito menos dominante do que o seu Tom. Seu coração está no lugar certo, mas ele não é um guerreiro. Caso contrário, a Fera o teria matado há muito tempo.
Onde estava o resto dos lobos franceses?
– Em uma festa numa lan house, a noite toda.
– Festa em uma lan house? – disse Anna; ela sabia mais ou menos o que era. – Isso não é uma festa onde os nerds se encontram e jogam o mesmo jogo juntos em um monte de computadores?
Angus assentiu.
– Alan achou que poderia ser interessante deixá-los descarregar a sua agressividade sem realmente matar ninguém – disse ele, fazendo uma pausa. – E ninguém realmente fez isso
– não lá, pelo menos. De qualquer forma, ele e alguns membros da sua família, vários da minha alcateia e talvez algum dos espanhóis também se encarregaram de organizar uma
festa na lan house com algum jogo de tiro onde você pode ser o atirador.
– Quem saberia que haveria apenas dois lobos aqui? – perguntou Anna.
– Qualquer um que lesse as listas de assinaturas – que estão em nosso site semiprivado na internet. Isso significa todos da minha alcateia e qualquer um dos lobos que vieram
para a conferência, pelo menos os que se deram ao trabalho de olhar os materiais de boas-vindas que oferecemos.
– Se nossos vampiros estiverem trabalhando para um de nós – ponderou Charles –, eles poderiam ter sabido.
– Se são os vampiros, eles estão se movendo muito rápido – observou Anna. Ela percebeu que todos estavam tentando evitar avançar em direção à casa e chegarem mais perto do
cheiro de sangue. – Tom, Moira e eu fomos atacados anteontem; Sunny, ontem – e mais tarde, ainda na noite passada, foi a vez de Chastel.
Anna não queria ver o cadáver e chegar perto da evidência de toda aquela dor e morte. Porém, ela percebeu que talvez os outros estivessem lutando exatamente a batalha oposta,
atraídos por tudo aquilo.
– São assassinos com múltiplos alvos, e matam o mais rápido que podem – sugeriu Angus. – Atacam antes que o inimigo tenha uma chance de se preparar e atacar de volta. Trabalham
como pequenas abelhas atarefadas.
– A questão é: o que eles estão fazendo? E por quê? – disse Charles, parecendo pensativo, como se estivesse falando sobre um jogo de xadrez em vez de discutir um assassinato
em uma pequena e agradável sala de estar que cheirava a morte. – E Dana é parte disso? Ou ela é um assunto completamente separado?
Charles olhou para Anna.
– Você pode ficar aqui.
– Mas você quer que eu vá lá – retrucou Anna. Ela sabia que estava certa, e se surpreendeu com aquilo.
– Você vê as coisas de uma perspectiva diferente – disse Charles. – Angus e eu podemos decifrar a batalha. Você nos conta sobre a pessoa. Quem estamos caçando e o que essa
pessoa está tentando realizar – continuou ele, com um sorriso apertado.
– Você consegue ver as coisas e o motivo pelo qual as pessoas fazem essas coisas. Vampiros que agem como lobos. Eu quero que você fique aqui, mas tenho medo que talvez seja
necessário ter você lá.
Ela respirou fundo.
– Ok. Mas se eu vomitar, eu vou culpar você.
– Concedido.
Anna se inclinou para amarrar seus tênis e teve um vislumbre do rosto de Angus.
– Ele é muito protetor – disse Anna. – Mas de uma forma muito nietzschiana, algo como “aquilo que não nos mata nos torna mais fortes”. Bom, pelo menos não há seis metros de
neve aqui.
Charles riu.
Mas ninguém estava sorrindo quando finalmente entraram na sala.
Sangue encharcava o tapete, e as paredes estavam pulverizadas com ele. O cadáver já estava ali há bastante tempo; em poucas horas iria começar a cheirar mal. As paredes pareciam
marrons, e não vermelhas. Anna não olhou para os dois montes de carne, ossos e partes do corpo. Um pequeno passo de cada vez. O que todo aquele sangue queria lhe dizer?
– Quem teria pensado que o velho tinha tanto sangue dentro dele – murmurou Anna.
– Eu pensei que você fizesse citações em latim – disse Charles.
– Não posso fazer citações de Shakespeare em latim – disse Anna, pensando um pouco sobre aquilo, pois ainda não precisava olhar mais de perto o que estava na sala. – Cui bono,
então. Quem se beneficia com isso?
– Não acho que isso tenha relação com dinheiro – disse Angus. – Ou não apenas dinheiro. Pode ser amor, também. Sunny, talvez – mas Chastel?
Anna andou por toda a sala, e o tapete parecia lama molhada sob seus pés, exatamente como o tapete no apartamento dos seus amigos depois que um barril de chope havia sido
destruído lá dentro (alguma pessoa brilhante tentara abri-lo com uma chave de fenda e um martelo quando a torneira emperrara).
Ela soube onde Michel estivera porque havia um lugar ali contornado pelo sangue, no formato de um homem.
E depois, lá estava o corpo... ou os pedaços dele. Anna se obrigou a olhar. A vida de Charles poderia depender de descobrir quem havia feito isso. Ela não podia se dar ao
luxo de ser melindrosa.
Mãos, pés e cabeça (que se parecia muito mais com uma escultura de cera para um filme de terror do que algo que costumava repousar sobre os ombros e falar) estavam no topo
da pilha. A face estava voltada para a porta por onde eles haviam entrado, e havia uma mão de cada lado; os pés estavam mais separados. O resto da pilha era de entranhas e
ossos.
Um quadrado de tecido – era impossível dizer com o que ele inicialmente se parecia, mas Anna tinha certeza que aquilo já tinha sido uma toalha de mesa, considerando-se o formato
– estava aberto no chão ao lado da pilha maior. No quadrado de pano estavam pilhas de carne cortadas como bifes e duas pilhas de costelas, como se alguém estivesse planejando
um churrasco.
Por que o sangue a estava incomodando?
– Eu não conheço vampiros – disse ela, falando rápido para que sua mandíbula não vibrasse. – Mas eu li Drácula quando estava no colégio. Será que eles desperdiçariam todo
esse sangue? Ou fizeram isso de propósito? Quem eles querem assustar, e por quê?
– Não – disse Charles subitamente. – Eles não desperdiçariam o sangue. Não sem uma boa razão. Você está certa, isso foi deliberado. Tentaram fazer isso parecer a ação de um
assassino em série. Isso está tudo errado, não é como os vampiros agem. Um vampiro que deixasse vítimas como essa teria sido morto antes que ele – ou ela – fizesse isso uma
segunda vez. Eles não podem se dar ao luxo de atrair a atenção humana tanto quanto nós.
– Isso foi planejado para causar um grande efeito. Um grande esforço.
Charles olhou para as partes do corpo e sorriu com satisfação.
– Muito esforço, aparentemente.
Ele indicou com o braço o que restara de Chastel.
– Eles queriam nos enganar. Temos um corpo morto – e há muita carne ali, cerca de vinte quilos. Aposto que vamos encontrar alguma carne de açougue no meio da carne, e há mais
do que o francês sob os miúdos. Carne sobre os ossos. Eles realmente não tiveram tempo de fazer um trabalho completo. Eles só tinham que fazer algo que parecesse bom para
o público.
– Quem é o público? – perguntou Angus.
– Não somos nós – disse Anna. – Podemos dizer que isso é realmente terrível, mas não para lobos – a não ser essa aqui – que saem todas as noites de lua cheia e costumam caçar:
nesse caso, não há nada de horrível em sangue e carne.
Anna não iria mencionar que Angus estava tendo dificuldade em tirar os olhos da pilha de bifes.
– Especialmente quando a vítima é alguém como Jean Chastel. Aposto que os lobos franceses se sentiram mal por Michel, mas pensaram “já vai tarde” quando viram Chastel. Você
acha que isso é para o público? Para forçar o Marrok a não tornar nossa existência pública? Ou é para a Fae, que não tem ideia do açougueiro que Chastel era? Para reforçar
o horror da morte, para que a caçada por Charles pareça justa?
– Você soa como uma psicóloga – disse Angus.
Anna balançou a cabeça.
– Não. Ômega errado: Ric é o psicólogo. Eu simplesmente assisto TV e leio um monte de mistérios forenses. Eu me sentiria muito pior com essa cena se fosse Sunny ali. Se forem
mesmo os vampiros – e como eu não consigo sentir o cheiro de ninguém aqui, exceto o de Charles, Michel e Chastel, devem ser eles –, então há uma razão para que eles tenham
feito isso com Chastel... e outra para Sunny.
– Sunny era pessoal – disse Charles. – Você não se aproximou para ver o corpo, sentir o cheiro. Eles a assustaram e a sangraram lentamente. Ela sentiu dor e sofreu. Qualquer
lobisomem que chegasse perto de seu corpo saberia disso. Eles queriam que soubéssemos que ela sofreu. Isso é apenas... horrível. Mas não é sincero. É encenado.
Charles olhou para Anna e deu-lhe um aceno solene.
– Além disso, foi feito para alguém que não é como nós – e esperamos que esse alguém ainda não tenha visto nada ainda.
– Então precisamos começar a limpar isso agora – disse Angus. Ele pegou o celular e usou a discagem rápida.
– Você diz a seu pai que ele vai financiar essa: a nossa bruxa é cara. Tom?
– Sim? – respondeu Tom; a voz de seu segundo estava abafada, como se ele estivesse falando baixo de modo a não perturbar quem quer que estivesse com ele.
– Traga uma equipe de limpeza – completa e rápida – e sua bruxa. Sim, nós vamos pagá-la por essa, ou o Marrok dessa vez, e diga a ela para cobrar caro. Traga-os para o lugar
onde Chastel está, e eu lhe conto mais quando você chegar aqui. E sim, alguém finalmente matou o desgraçado.
Angus desligou o telefone e Anna percebeu, com um toque de diversão, que Tom não havia dito uma única palavra depois de atender o telefone. Angus era um Alfa que sabia que
sua palavra seria obedecida.
– Açougueiro – disse Charles, pensativo. – Talvez isso não seja somente um show. Os vampiros não queriam fazer isso, mas estão sob as ordens de alguém.
Ele olhou para Anna.
– Acho que você está certa novamente... Mas também acho que isso foi simbólico. Um fim de açougueiro para a Fera. Não foi por raiva – porque nesse caso a pessoa por trás disso
tudo teria feito isso com as próprias mãos. Mas há alguma ligação entre Chastel e o homem que planejou essa cena.
Anna lembrou-se de algo que o Marrok havia dito.
– Talvez o assassino não quisesse tomar o lugar de Chastel na hierarquia europeia. Eles esperariam por isso, não é? O lobisomem que matasse Chastel teria de intervir e assumir
– tornar-se o Marrok da Europa. Mesmo que não tivesse sido depois de um desafio apropriado.
Charles sorriu um pouco, o que não era adequado, não naquela sala pelo menos – mas ele era um lobisomem há muito tempo e, provavelmente, não tinha mais reações humanas à violência
como Anna tinha.
– Você me salvou de um destino pior do que imaginava quando me impediu de matá-lo antes. Não tenho nenhum desejo de fazer o trabalho de meu pai.
– Eu tenho mais uma pergunta – disse Anna, dando uma última olhada ao redor da sala. Ela precisava sair de lá. Talvez se o lobo estivesse no comando naquele momento, ela não
iria se incomodar tanto, mas seus olhos ficavam olhando para a cabeça de Chastel – e seus olhos mortos olhavam direto para ela.
– Sim?
– Por que deixaram Michel vivo?
– Acho que não planejavam isso – disse Angus. – Talvez pensaram que ele já estivesse morto. Ele está mal – mas ele é esperto e está acostumado a fingir estar mais machucado
do que realmente está.
Anna sabia tudo sobre isso. Se eles pensassem que haviam quebrado ossos na primeira vez, às vezes não a atingiam uma segunda vez.
– É isso – disse ela, movendo-se cegamente para fora da sala. – Isso é tudo que posso fazer.
Anna correu para o banheiro pelo qual eles tinham passado ao entrar na sala. O café não esteve em seu estômago tempo suficiente para aquilo chegar a ter um gosto ruim. Pelo
menos ela não tinha comido nada ainda.
Ela pegou uma toalha limpa e molhou-a com água fria. Quando terminou, Anna limpou as solas dos seus sapatos. Eles eram de couro e tinham sido comprados há apenas algumas semanas,
e o sangue não havia ficado muito tempo neles. A maior parte dele saiu.
ONZE
Michel estava mal. Ou quase morto. E ele não ia contar nada a ninguém tão cedo. Alan o colocara em uma cama de hospital dentro de uma jaula no porão de sua casa, a uma distância
de vinte minutos da casa onde o cadáver de Chastel estava. A jaula era necessária porque lobisomens gravemente feridos, quando não atendidos por lobos mais dominantes, tendiam
a ser violentos.
Charles concluiu que provavelmente não adiantaria nada falar com Michel até que ele tivesse um ou dois dias para cicatrizar. Ele iria falar com Michel no dia seguinte, acompanhado
de um dos outros lobos franceses.
Anna parecia doente e cansada – na verdade, enjoada. Ela tinha razão. O horror da cena não significava nada para ele, e provavelmente para Angus também não. Se os cortes tivessem
sido feitos enquanto Chastel ainda estava vivo, talvez isso o tivesse incomodado mais. Mas se fosse alguém com quem ele se importava, ou alguém que ele deveria proteger, teria
sido diferente.
Porém, Anna era jovem, e apesar de seus difíceis primeiros anos como lobisomem, ela não tinha visto muita coisa ainda – e por isso não tinha fome ao olhar para o local do
assassinato...
– Angus, vamos voltar para o hotel e dormir mais algumas horas. Você pode me ligar quando a limpeza tiver acabado?
Angus – ao telefone novamente – acenou com a cabeça, e Charles tocou Anna no ombro para fazê-la andar.
– Eu pensei que íamos falar com Michel – disse Anna.
– Hoje não. Vamos dar-lhe algum tempo para se recuperar. Estou satisfeito com a ideia de que isso foi obra dos vampiros. Não fui eu. E não vejo como Michel poderia ter feito
isso. Mesmo que ele pudesse ter derrotado um Chastel já ferido, o que eu realmente não acho uma possibilidade, seria impossível para um homem gravemente ferido dispender o
tempo e esforço necessários para pintar um quadro como aquele. Isso foi feito com frieza, profissionalmente: obra de vampiros.
Anna parou.
– Por que a sala tinha seu cheiro?
Charles a empurrou para a frente novamente.
– Eu não sei. Angus, você pode verificar, por favor?
Angus assentiu com a cabeça sem interromper sua conversa.
Ela deu um passo e parou novamente.
– E quem ganhou a caçada?
– É importante?
– Talvez. Se Chastel estava com o anel de rubi, e Dana teve acesso a ele... Faes podem colocar feitiços em objetos, certo?
Charles olhou e viu que Angus ainda estava escutando a conversa deles.
– Espere um minuto – disse ele, interrompendo a conversa com a pessoa do outro lado da linha. – Valentin venceu. O lobo alemão.
Anna disse:
– Merda...
Angus nunca tinha ouvido alguém usar essa expressão com tanto sentimento.
Anna lhe deu um sorriso cansado.
– Valentin pegou o saco de nós. Nós quase conseguimos.
– Ele tirou de você e dos italianos? – perguntou Charles apreciativamente. – Isso vai agradar Valentin – uma certa desforra após o Ômega ter decidido ficar com a alcateia
de Isaac.
– Portanto, não há nenhuma joia impregnada de magia Fae envolvida – disse Anna.
– Parece que não.
Charles guiou Anna pela porta da frente e saiu para o frio da noite... ou o início de manhã.
Ian saudou-os com a sua lata de cerveja quando eles saíam, e Charles enfiou Anna no banco do passageiro.
Ela estava cansada o suficiente para demorar alguns quarteirões antes de dizer:
– Ei! Por que você está dirigindo?
– Porque você está tão cansada que sua língua está enrolando – disse-lhe Charles. – Feche os olhos, eu volto dirigindo.
i
– Quanto tempo podemos dormir? – perguntou Anna, tirando as roupas antes que a porta do hotel estivesse completamente fechada atrás deles.
– Até a hora em que precisaremos levantar – disse Charles.
Ele também estava cansado, mas pegou as roupas dela e as jogou em cima de uma mala antes de fazer o mesmo com as suas peças. Ele ficou de cuecas, como sempre fazia agora:
aquilo parecia tornar as coisas um pouco mais fáceis para Anna.
Charles se juntou a ela na cama, deitando de barriga para baixo e quase gemendo com o prazer do relaxamento. Eram quatro da manhã, mas com as cortinas fechadas eles teriam
quatro ou cinco horas de sono – enquanto Angus não tivesse nada a informar.
Anna estava deitada do outro lado da cama, deixando sessenta centímetros de colchão frio entre eles. Charles sabia que ela cairia no sono e depois, gradualmente, se moveria
até ficar encostada nele. Aí, finalmente, Charles poderia dormir também.
– Charles? – disse ela.
– Hum?
Anna se virou, mas como estava com a cabeça baixa, Charles não podia dizer se ela se virara para longe ou em direção a ele. Havia uma insegurança em sua voz, e o irmão lobo,
velho caçador sagaz, dissera-lhe para manter a cabeça baixa e seu corpo relaxado enquanto suas presas vinham até eles.
– Isso incomoda você? – sussurrou ela.
Charles considerou todas as coisas que podiam lhe estar incomodando, mas não conseguiu chegar a uma resposta adequada àquela situação.
– O que me incomodaria?
– Hoje à noite.
Pausa.
– Eu. Meu lobo.
E então ela não disse mais nada.
Foi o suficiente. Anna estava falando sobre como fizeram amor naquela noite. Como responder? Eu a aceito de qualquer maneira que você venha até mim – que tal agora?, não pareceu
uma resposta bastante certa.
– Isso incomoda você? – perguntou Charles.
Um baque surdo – “tum, tum, tum” – e uma vibração sutil disseram-lhe que Anna estava tamborilando os dedos sobre a cama, que chacoalhou quando ela ficou sentada. Charles virou
a cabeça para que pudesse abrir um olho e olhar para ela.
Anna estava nua. Ela fizera alguns daqueles movimentos para que pudesse retirar a última peça de roupa. Enquanto ele a observava, Anna estendeu a mão, inclinou-se para a frente
e tocou-lhe as costas nuas. Anna apenas manteve a mão lá. Enquanto ela ficava assim, sua pulsação acelerou até que Charles pudesse vê-la batendo no pescoço – e não era de
paixão.
– Pensamentos ruins? – perguntou ele.
Anna assentiu com a cabeça.
– Acabou. Terminou. Acabou há muito tempo. Por que isso ainda tem esse poder?
A mão sobre a pele dele se crispou e afastou-se, e depois tornou a pousar onde estivera, com os dedos abertos.
Palavras. Charles não era bom com elas. Mas ele ia tentar.
– Ainda não acabou em sua cabeça. E está tudo bem, Anna. Não espere que isso desapareça tão rápido assim. É como... como a prata que ficou na minha ferida. Ela precisa infeccionar
para ser removida, e às vezes isso dói mais do que a ferida original.
– Se eu deixar o lobo entrar – disse ela, um pouco amargamente – não será uma luta em absoluto.
– O lobo é emoção: necessidades e o agora – concordou ele. – Ela não se preocupa com o passado, desde que isso não afete o presente.
– Ela sabe que você não vai nos machucar – disse Anna, parecendo frustrada. – Eu sei, também, mas isso não ajuda. Ela pode estender a mão e tomar o que quiser.
Charles rolou, movendo-se devagar para não assustá-la. Quando terminou, ele estava trinta centímetros mais perto dela e conseguia olhar para Anna sem causar um torcicolo no
pescoço.
– E você me quer?
Anna havia retirado a mão que estava sobre Charles quando este se movera, e agora estava sentada de costas para ele, rígida e dura. Algo começou a se transformar nela...
– Não o seu lobo – disse ele. – Você me quer? Ou é somente o lobo?
Será que Anna estava apenas fazendo o melhor que podia para viver com a criatura dentro dela? Para dar a ela o que seu lobo queria? Era isso que seu pai fazia com sua companheira:
de lobo para lobo, eles eram próximos como qualquer casal de companheiros – mas de homem para mulher... eles não se encaixavam. Charles não queria isso para Anna.
Ele não achava que Anna não gostava dele, e não pensava também que tudo entre eles acontecia apenas porque o lobo queria. Mas mesmo a possibilidade de que isso fosse verdade
era extremamente dolorosa.
– Eu quero você – disse-lhe Anna, com um polegar em seu peito. – Eu quero.
Então ela lhe deu um pequeno sorriso triste.
– Ela também.
Charles então voltou para sua pergunta original; era muito importante para ele saber a resposta daquela pergunta.
– Você fica incomodada quando o lobo é quem inicia a nossa vida amorosa?
Anna baixou os olhos, mas não devido a qualquer desejo de se submeter; era mais um impulso humano para esconder o que sentia.
– Não é do jeito que você está dizendo – disse ela finalmente.
– E como é que eu estou dizendo?
Anna lhe deu um olhar exasperado.
– Eu não estou brincando, Anna – disse-lhe Charles, encarando a companheira mesmo quando ela tentava abaixar seus olhos. – Eu preciso saber como lidar com isso. Eu preciso
saber mais.
– Você está perguntando se eu estou totalmente disposta a ter relações sexuais quando ela começa as coisas.
Sua voz era baixa devido ao constrangimento que coloria suas maçãs do rosto.
– É isso que estou perguntando.
Anna engoliu em seco.
– Sim.
E então disse, em um ritmo rápido, como um balão esvaziando:
– Acho que eu mesma tenho a ideia em primeiro lugar.
O alívio o invadiu. Ele precisava ajudá-la com aquilo, de qualquer jeito.
– Então. Você fica incomodada quando ela inicia o ato sexual da maneira que você quis dizer?
Anna deu uma pequena risada.
– Desculpe. Mas isso soa meio bobo colocado dessa maneira.
Ela baixou a cabeça e em seguida levantou-a, jogando o cabelo para trás e mostrando o rosto brilhante com o embaraço e o calor.
– Fico incomodada porque ela pode fazer isso sem mim. Mas não posso tocar você – pele contra pele – sem uma pequena ajuda dela.
– Ah – disse ele. – Então vamos tentar algumas brincadeiras e ver se, com a minha cooperação, e não com a dela, você pode obter resultados positivos.
Anna piscou para ele.
– O quê? São quatro da manhã. Você tem que dizer frases curtas que façam mais sentido.
Charles estava deitado de costas, levantando o queixo em uma pose submissa que ele nunca oferecera a ninguém antes, só ao seu pai.
– Aqui estou – disse ele. – Preso.
Charles bateu as mãos como se seus pulsos estivessem amarrados ao colchão e mexeu os pés.
– O que você vai fazer comigo?
i
Anna olhou para ele. Submisso? Charles? Mas a garganta nua ainda estava lá. Nenhuma ameaça. Ele não poderia ter colocado aquilo em palavras, porque ela já acreditava nas suas
palavras quando Charles dizia que nunca iria machucá-la. Mas seu corpo estava dizendo a mesma coisa – e nisso Anna confiava até os ossos.
Por causa dessa confiança, Anna foi capaz de se aproximar dele, até que seus joelhos colidiram contra o corpo de Charles. Ela colocou o nariz contra a sua garganta e ele se
mexeu para lhe dar mais espaço, mesmo quando ela abriu a boca e deixou seus dentes descansarem contra sua pele.
Sob a sua língua, a pulsação dele começou a acelerar. Mas não de medo – Anna podia cheirar a excitação dele, e o convite puro e imaculado daquele cheiro liberou algo dentro
dela, fazendo-a gemer de prazer. Anna lambeu a parte lateral do pescoço de Charles, apreciando o sabor do sal e do homem, apreciando a liberdade que ele havia lhe dado para
que ela pudesse tocar e provar ao seu prazer.
Anna demorou todo o tempo que quis; seus toques eram tímidos, a princípio. Ela sentia-se como... como se estivesse violando a privacidade de Charles. Intrometendo-se.
Subitamente, ela se lembrou de algo.
– Alguém me disse que você não gosta de ser tocado – disse Anna. Ela não conseguia se lembrar de quem lhe havia dito isso. Asil, talvez.
O peito dele ergueu-se da cama, seguindo os dedos de Anna à medida que ela começava a levantá-los. Incerta, ela deixou as mãos onde estavam, e ele teve que fazer um esforço
para mantê-los em cima dele.
– Em geral, não – admitiu Charles, parecendo um pouco sem fôlego. – Mas amo o seu toque. Toque-me a qualquer hora. Em qualquer parte. Em qualquer lugar.
Charles estava sendo sincero e honesto, e Anna teve uma súbita visão de Charles conversando com seu pai enquanto ela estava com as mãos em lugares inadequados.
Ela ia compartilhar a visão com ele, mas então deu uma boa olhada em seu rosto e percebeu que ele estava sendo sincero ao dizer o que tinha dito – e o impulso de rir sumiu
tão rapidamente como tinha aparecido. Deliberadamente, Charles empurrou mais o corpo, usando os músculos de suas costas e pressionando as mãos dela contra ele, porque estava
mantendo as mãos e os pés onde estavam antes.
– Toque-me – disse ele. – Eu gosto disso.
O coração de Anna batia tão forte que ela podia ouvi-lo – era um pouco de medo, também. Mas havia algo de importante e poderoso em ter Charles à sua mercê. Ele cumpriu sua
palavra. Não importaria o que ela fizesse: suas mãos e seus pés ficariam onde estavam.
i
Algo vibrou sob a cabeça dela.
Era uma sensação tão estranha que Anna, ainda semiacordada, tentou descobrir o que era. Seus ouvidos lhe disseram que havia um motor de carro em algum lugar por perto, e ela
tentou descobrir como havia se transportado da cama para um carro sem notar.
E então ela sentiu o cheiro dos vampiros.
– Ela acordou, Ivan – disse uma voz de mulher.
Anna abriu os olhos e viu o vampiro que havia atacado Moira. A mulher sorriu para ela.
– Veja bem – disse ela –, eu não gostava de Krissy. Ela era uma putinha metida. Mas Ivan tinha uma queda por ela – e ele não gosta de você de jeito nenhum. Então seja uma
boa cachorrinha e não teremos problemas, Ok?
Anna não quis nem responder. Ela estava nua, e suas mãos e pés, acorrentados. Ela estava presa em algum lugar que só podia ser a parte traseira da minivan azul que os vampiros
vinham utilizando. Eles haviam removido os bancos traseiros e instalado ganchos, aos quais eles haviam acorrentado Anna. Eles iriam pagar uma nota para a empresa de aluguel
quando devolvessem a minivan. Ela tinha certeza de que mesmo o seguro do aluguel não iria cobrir coisas como perfurar o piso do carro e instalar ganchos.
A mulher-vampiro estava encostada contra uma das grandes portas de correr. Seus pés estavam pressionados contra o flanco de Anna. Ao seu lado estava um homem que aparentava
uns 45 anos, mas ele era um vampiro. Ele provavelmente tinha 45 anos há muito tempo.
Perguntas borbulharam na ponta de sua língua: O que vocês querem comigo? Como você conseguiu me tirar do hotel? O que vocês fizeram com Charles?
Charles não teria simplesmente deixado que a levassem. Anna fechou os olhos e sentiu a extremidade do seu vínculo de companheiros – e estava exatamente como quando o irmão
lobo não o estava mantendo aberto. O que quer que tivesse acontecido, Charles estava bem.
A última coisa de que ela se lembrava era de estar se inclinando para saborear a pele da barriga de Charles. Não se deve mostrar fraqueza ao inimigo. Portanto, ela escolheu
a pergunta com cuidado.
– Quem contratou vocês?
A mulher sorriu exibindo um conjunto de dentes.
– Isso não faz parte do meu show – disse ela. – Tudo o que sei é o que tenho que fazer. Vamos encaixotá-la e despachá-la através do mar brilhante em um avião. Não lhe causaremos
nenhum dano se você não nos causar nenhum problema.
Seu sorriso ficou maior.
– Mas é claro que, se você nos der problemas, teremos de machucá-la. Diversão, diversão, diversão!
Do outro lado do mar. Isso soava como a Europa para Anna. Um dos lobos resolvera raptá-la? Será que eles achavam que Charles não poderia encontrá-la fora do país? Se achavam,
então eles estavam errados. Ainda assim, para início de conversa seria mais fácil para todos se ela não fosse.
Anna tentou se levantar, usando os grandes músculos das costas e coxas para fazer força. As algemas de metal cortaram sua pele, mas ela ignorou a dor. O que quer que fosse,
suas mãos estavam acorrentadas a algo duro, mas o gancho ligado a seus pés começou a entortar, o piso abaixo dela levantando-se.
– Diabos! – o homem que estivera sentado aos seus pés olhou para a frente do carro. – Eu lhe disse que não havia um bom lugar para prender as correntes nesse maldito carro
alugado.
– Atire nela – disse o motorista.
Anna não conseguiu erguer e mover a cabeça o suficiente para ver quem estava dirigindo, mas apostava que era o homem que ela tinha visto no armazém. Uma espingarda foi jogada
para trás, atirada por alguém no banco do passageiro da frente. O vampiro que Anna podia ver a apanhou e atirou nela a cerca de três metros de distância, atingindo-a no ombro.
i
Charles sentou-se e agarrou a cabeça dolorida. Levou um momento para receber a mensagem frenética do irmão lobo. Ela se foi. Eles a pegaram. Não pude me mover. Não consegui
detê-los. Não consegui acordá-lo. Acorde!
Anna?
Ela se fora, indiscutivelmente. Não havia ninguém ao lado dele na cama.
O quarto cheirava a vampiros e ar da noite, e ambos os cheiros vinham da janela quebrada. Ele vestiu seu jeans rapidamente e pegou os sapatos e as meias, porque não machucar
os pés o ajudaria a alcançá-los mais rápido.
No sétimo andar teria sido impossível fazer aquilo, mas o segundo quarto que Charles tinha obtido para eles ficava no quinto: assim, ele pulou da janela quebrada e pousou
sobre os pés, rolando para suavizar a queda. Charles finalmente ficou em pé; seus ombros e joelhos estavam doloridos, mas funcionais.
Charles podia ser capaz de rastreá-los, mesmo na cidade – mas havia uma maneira melhor. Ele abriu livremente o vínculo entre ele e Anna.
A primeira coisa que descobriu foi que ela não estava longe, mas estava se movendo rapidamente. E estava ferida – provavelmente o fato de ela ter sido ferida fora o que lhe
permitira quebrar o feitiço que o deixara inconsciente. Charles sentiu os últimos traços do feitiço ainda tentando dominá-lo – desperto e consciente, ele foi capaz de dissipar
a magia. Aquilo era feitiçaria pura. Enquanto o resto dele estava concentrado na busca de Anna, uma pequena parte notou que os vampiros pareciam ter acesso a uma grande quantidade
de magia, de lobos e de bruxas também.
Charles fechou o vínculo com sua companheira até que não pudesse mais sentir a sua dor, e tudo o que sobrou foi uma direção. Se não fizesse isso, ficaria distraído pela preocupação
e pelas coisas que ele não poderia modificar até que chegasse lá, e não seria capaz de funcionar eficazmente. Primeiro, encontrá-los.
Ele correu.
O problema de rastrear alguém (no caso, Anna) em grandes cidades – especialmente Seattle, com aqueles canais por todo o lugar – não era apenas saber onde ela estava, mas para
onde eles a estavam levando.
Para o sul, pensou ele, descendo de forma imprudente pelo morro. O que ficava ao sul? Beacon Hill, West Seattle, Kent, Renton, Tacoma. A maioria dos lobos estava hospedada
perto do centro da cidade, mas ele achou que os italianos poderiam estar em algum lugar em West Seattle.
Aeroporto. O irmão lobo foi bastante claro e positivo. Talvez ele tivesse recebido algo de Anna que Charles não havia percebido.
Sea-Tac – aproximadamente a 24 km do hotel. Ele podia correr mais rápido em forma de lobo, mas iria perder tempo, e alguém poderia vê-los na estrada. E mesmo que conseguissem
chegar até lá, nem mesmo o irmão lobo conseguiria acompanhar o veículo na rodovia. Charles teria que roubar um carro – e iria mesmo fazer isso. Mas isso deixaria Anna nas
mãos dos vampiros por mais tempo. Assim, ele escolheu tentar pegá-los agora.
Mesmo na forma humana ele corria mais rápido que um carro nas ruas da cidade. Os vampiros não iriam querer atrair a atenção da polícia; não com uma mulher ferida em seu veículo.
Eles obedeceriam aos limites de velocidade e semáforos.
Charles estava chegando perto.
Ainda estava escuro, e não havia muito mais tráfego do que havia quando Charles dirigiu de volta para o hotel. Ele estimou que não seriam mais do que cinco da manhã; não tinha
ficado inconsciente por muito tempo.
Eles haviam parado à sua frente. Charles podia ver as luzes traseiras de uma minivan não mais do que a um quarteirão de distância, parada em um sinal vermelho.
Ele se concentrou no semáforo e manteve o sinal vermelho usando a sua vontade. Não era algo que já tivesse feito antes, e Charles não tinha certeza se aquilo iria funcionar
na cidade. Mas o semáforo permaneceu vermelho por todo o tempo enquanto ele corria pelo quarteirão, até mesmo quando ele se lançou pela janela traseira da minivan.
Charles caiu em cima de um dos vampiros. Sem premeditação ou planejamento, ele arrancou a cabeça do vampiro e atirou-a no banco do motorista, para aumentar a confusão. Um
já fora. Faltavam três. Ao lado de seu joelho havia algo longo e duro. Ele agarrou o objeto.
– Atire nele!
O motorista estava começando a se virar para trás, mas como não havia muito espaço entre os assentos dianteiros, isso o atrasou, e assim Charles teve tempo para lidar com
o último vampiro no assento de trás. O passageiro da frente abriu a porta e pulou para fora. Ele estava fugindo, ou planejando entrar pela porta lateral. De qualquer maneira,
uma pequena janela de oportunidade foi dada a Charles quando ele se deparou com apenas um vampiro.
A mulher estava gritando algo sobre a espingarda, quando Charles percebeu que a coisa que ele pegara do chão para usar como uma arma era de fato uma espingarda. Ele enterrou
o cano da espingarda na caixa torácica da mulher-vampiro, empurrando-a até jogá-la na rua através da janela lateral. Ela não estava morta, mas também não iria a lugar nenhum
assim. Dois já tinham ido. Faltavam mais dois.
Anna ofegou quando o motorista, escalando os bancos da frente, pisou sobre ela.
Dentro da minivan, Charles tinha a vantagem. O pequeno espaço diminuiu um pouco sua velocidade, mas ali dentro os vampiros, geralmente mais rápidos e mais ágeis, sofreriam
mais com a falta de espaço.
Porém, ficar dentro da van significaria deixar Anna, acorrentada ao chão, em perigo. Assim, Charles agarrou o vampiro, sentindo a dor de ser agarrado de volta, e pulou para
fora da porta do lado do passageiro quando o quarto vampiro a abriu. A imprevisibilidade do movimento deixou o motorista em desvantagem, e Charles foi capaz de usar um grande
impulso para dar um salto em vez de desperdiçar a sua força contra o motorista.
Os dois atingiram mortalmente o vampiro do lado de fora, e ele deixou cair o bastão que estava carregando – era do tamanho de uma bengala ou bastão de combate. Porém, Charles
não teve tempo para decidir o que era – ele nunca tinha visto um vampiro carregando uma arma ser tão facilmente desarmado. Mas também não se queixava da estupidez do outro.
Charles soltou seu prisioneiro, e ao jogá-lo para o lado da van, conseguiu se soltar também. Ele pegou o bastão e estaqueou o vampiro caído bem abaixo da caixa torácica, atravessando
o coração. Um lobisomem não precisa de uma estaca afiada; algo contundente funcionava muito bem.
Isso deixava apenas um.
Charles girou para olhar a minivan – e viu somente chapas metálicas destruídas. Ele cheirou o ar, tentando localizar o outro – e ouviu alguém fugir. Para se certificar de
que era o motorista que estava correndo, e não algum ser humano aterrorizado que havia visto a carnificina, Charles rodeou a van, mas não teve nenhuma dúvida quando viu a
velocidade sobre-humana do motorista.
– Não me deixe.
Charles olhou para a vampira com a espingarda enfiada no peito.
– O nascer do sol – disse ela, enquanto algo escuro e úmido formava bolhas ao redor do cano da arma – não vai demorar muito... Mate-me. Por favor.
Como Anna estava machucada, Charles não tinha o desejo de se preocupar em interrogá-la, e também não queria deixá-la viver como uma possível ameaça. Ele acedeu ao seu desejo
e também cuidou do outro vampiro depois que havia terminado com ela.
Menos de quatro minutos depois que Charles pulara a janela, os três corpos decapitados e suas cabeças já estavam enfiados na parte traseira da van.
Com o fim do perigo imediato, ele verificou o estado de Anna. Ela estava falando com ele, mas o irmão lobo estava mais interessado em ver o que a estava machucando tanto.
Charles não tinha as ferramentas ou a paciência para lidar com as algemas, mas as correntes estalaram quando ele usou o cano da espingarda como alavanca.
Assim que a libertou, Anna tentou se sentar e fez um som de dor. Ela fora atingida no ombro de perto; o tiro mal tinha tido a chance de espalhar-se. Era uma arma de baixo
calibre. Chumbo. Eles não queriam vê-la morta, apenas incapacitada. Mas isso não queria dizer que Anna não pudesse morrer devido às consequências.
– Estou bem – disse-lhe Anna por várias vezes, tentando tranquilizá-lo.
Não era verdade.
– Shh – disse Charles. – Fique quieta.
Seu telefone celular ainda estava no bolso das calças – e estava funcionando. Ele ligou para Angus.
– Onde está Choo? – perguntou ele, assim que o outro lobo respondeu. – Anna foi baleada.
– Anna levou um tiro?
– Estou com três vampiros mortos em uma minivan azul que parece que esteve em vários acidentes essa manhã. E eles atiraram em Anna. Preciso de Alan Choo. Ele está com Michel?
Charles queria que ele não estivesse. A casa de Angus era em Issaquah. Ele precisava de ajuda para Anna mais cedo do que isso.
– A companheira de um dos lobos franceses é uma enfermeira. Eles voltaram para casa com Michel. Alan está na casa de Arthur no University District.
– Eu sei onde é a casa de Arthur.
– Direi aos vampiros locais que temos uma limpeza para eles, e eles vão cuidar dos corpos e da van. Vou ligar para Alan e dizer-lhe para esperar você. Você precisa de mais
alguém?
– Não – disse Charles, desligando.
Ele não gostou de deixar Anna na parte de trás da van com os vampiros mortos, mas movê-la para o banco da frente só iria machucá-la ainda mais, e uma mulher nua e sangrando
chamaria ainda mais atenção do que as janelas quebradas e os amassados.
– Você fica aí – disse-lhe Charles. – Eu tenho que dirigir. Não vai demorar muito.
Anna assentiu com a cabeça, fechando os olhos.
– Sabia que você viria – disse ela. – Eu só não queria que você tivesse que atravessar o oceano para me encontrar.
– Ainda bem que sou rápido – disse ele.
Anna sorriu, ainda com os olhos fechados.
– Ainda bem.
Charles teve problemas para fechar a porta lateral, pois fora danificada e não queria encaixar no trinco. Após uma tentativa fracassada de dobrar a porta traseira à sua forma
original, Charles se abaixou para dentro da van e pegou um largo cinto de um dos corpos. Ele abriu a janela do passageiro da frente e puxou a porta até fechá-la tanto quanto
possível, prendendo-a na porta da frente com o cinto.
Os vampiros tinham deixado a van ligada com as chaves na ignição. Charles entrou, e quando engatou a marcha, a luz ficou verde.
– Charles? – chamou Anna; sua voz era tensa. – Você pode falar comigo? São esses vampiros mortos. Parece que vão se mover a qualquer instante.
– Eles estão mesmo mortos – disse ele. – Mas podemos conversar.
Charles temia ter que arrumar um tópico para a conversa – quando tudo o que queria fazer era matar alguma outra coisa. Mas Anna veio em seu socorro.
– Será que o nosso Arthur realmente poderia ser o Rei Arthur?
– Meu pai diz que o verdadeiro Arthur foi um estrategista notável, um guerreiro inspirador e um homem extremamente prático, que teria rido com as histórias do Rei Arthur,
o cavalheirismo, a busca do Santo Graal e a coisa toda. Ele também disse que havia uma dama branca, mas ela não tinha qualquer semelhança com Gwenevere como mostrada em Camelot.
Nimue, a fada Morgana e Merlin existiam de fato, mas não como são retratados. Nada de Lancelot. Não havia Távola Redonda. Só um monte de homens desesperados tentando manter
os anglo-saxões fora de sua terra natal. Ele diz que a história real é melhor do que aquela que toda a gente sabe, mas não tão romântica.
Charles olhou para Anna, mas não sabia se ela estava melhor ou pior.
– Ele nunca conta as histórias verdadeiras.
– Então, Arthur, o lobisomem...
– Gosta de reclamar sobre como Lancelot estragou tudo – disse Charles secamente. – Se ele é mesmo a reencarnação de Arthur, isso tem pouca semelhança com a realidade. Mas
por outro lado, há alguma desavença entre meu pai e Arthur, eles cordialmente não gostam um do outro. Você tem que levar isso em conta.
– Arthur não parece não gostar de você – disse Anna.
– Nós nos demos bem, aqui.
– Reencarnação?
Charles encolheu os ombros.
– Eu nunca vi nenhuma evidência de que é real. Mas nunca vi nada que desmentisse também. Acredito que a vida após a morte é melhor do que o que temos aqui, e que seria necessário
algo extraordinário para tornar alguém disposto a voltar.
– E sobre a espada?
– Velha, mas meu pai diz que não é Excalibur. Ou se é, ela perdeu toda a magia que a tornou Excalibur.
– Havia uma Excalibur, então?
– Assim diz meu pai. Foi o resultado de uma barganha com os Faes, pois eles não estavam mais felizes com os anglo-saxões do que os seres humanos nativos estavam. Arthur está
certo ao dizer que Excalibur não era a única arma. Havia uma lança e um punhal, também.
Durante alguns quarteirões, Anna ficou em silêncio, e então disse com uma voz acentuadamente mais fraca:
– Seu pai é velho o suficiente para ter conhecido o Rei Arthur?
Charles não tinha visto nenhuma evidência de sangramento intenso, mas talvez não tivesse verificado bem o suficiente. Ele pisou no acelerador.
– Você pode perguntar isso a meu pai, talvez ele responda a você. Ele nunca me respondeu.
Alan e algumas pessoas que Charles não conhecia estavam esperando por ele do lado de fora quando ele entrou no caminho da garagem da casa de Arthur. Assim que Charles saiu
da van, percebeu que os estranhos não eram da alcateia de Angus.
– Vampiros – disse ele.
– Para cuidar da bagunça – explicou Alan. – Onde está Anna?
Charles abriu a porta de correr que ainda funcionava. Alan enfiou a cabeça lá dentro.
– E aí, Alan – disse Anna.
– Você levou um tiro – disse ele, depois de um exame completo.
– Opa.
Ele riu.
– Você vai ficar bem – disse ele, antes de se dirigir para as pessoas atrás dele. – Tragam-na para dentro, e vamos tirar essas coisas dela.
Charles a pegou no colo tão cuidadosamente quanto possível. Alan segurou a porta da frente aberta, e Charles passou por ele e parou.
Arthur estava entre ele e o resto da casa. O lobo britânico parecia horrível: seus olhos estavam ocos e a cor de sua pele era de diferentes tons de cinza.
Em qualquer outro momento, como um dominante que entrava no território de outro dominante, Charles teria jogado os jogos necessários com Arthur, mas Anna estava sangrando
em seus braços.
– Onde você quer que eu a coloque? – disse ele, e isso foi a maior concessão que Charles conseguiu fazer.
– Venha.
A voz de Arthur estava cansada e tensa, mas não desprovida de boas-vindas. Talvez Charles tivesse interpretado mal sua linguagem corporal.
Ele se virou e conduziu o caminho.
– Há um quarto de hóspedes aqui. No andar de cima pode ser mais seguro, mas Sunny... Sunny está no quarto do andar de cima.
O quarto cheirava a Alan Choo, que evidentemente havia dormido ali naquela noite. Arthur puxou as cobertas da cama para que Charles pudesse colocar Anna sobre ela.
– Angus disse que foram os vampiros – disse Arthur.
Lembrando que Arthur tinha o direito de saber, Charles explicou brevemente. Ele puxou os cobertores por cima dela até que apenas os ferimentos no seu ombro ficassem expostos.
– Pena que um fugiu – disse Arthur.
– Ivan – disse Anna.
Charles achara que ela estava inconsciente, pois estava muito quieta.
– Ivan é o seu nome.
Charles desviou o olhar de Anna por um momento, e depois olhou para Arthur.
– Ele pode correr, mas eu vou encontrá-lo.
Arthur cobriu os olhos com seus cílios em vez de abaixá-los, mas Charles não se importou.
– Sim. Avise-me quando você o pegar.
– Farei isso.
– Você acha que eles são mercenários contratados, não é? – disse Arthur, olhando pela janela para a escuridão antes do amanhecer. – Você descobriu para quem eles estavam trabalhando
ou por que eles mataram a minha Sunny?
– Não. Eu não estava com disposição para discutir as coisas – disse Charles. – Talvez Anna...
– Não – murmurou Anna. – Não era um lobisomem daqui. Não era Angus ou alguém da sua alcateia. Nem... – ela olhou para Arthur e não mencionou o nome de Dana – Nem ninguém daqui.
Alguém de fora do país. Eles queriam me levar para o exterior.
– Isso não faz qualquer sentido – disse Alan, entrando na sala com uma bandeja que continha diversos instrumentos cirúrgicos. – Matar Sunny, tentar sequestrar Anna, matar
Chastel. Não há um padrão.
– Faz sentido para alguém – disse Arthur. – Se não há nada mais que eu possa fazer?
– Não – disse Charles. A presença de Arthur na mesma sala que Anna, ferida como estava, era um teste para sua paciência. – Obrigado.
Arthur deu um leve sorriso.
– Se precisar de alguma coisa pode me chamar.
E então ele os deixou sozinhos.
– Tenho morfina – disse Alan, dirigindo-se a Anna. – Mas os lobos têm reações diferentes a ela. Para alguns ela não ajuda em nada. Para outros, é pior do que inútil: não para
a dor e não deixa que eles se preparem para isso também.
– Sem morfina – disse Anna. – Simplesmente tire essas coisas de mim.
Alan olhou para Charles.
– Vou segurá-la para você – disse ele, deslizando por trás de Anna para que a parte superior de seu corpo apoiasse o corpo dela, pois isso lhe permitiria um maior controle.
Charles podia ser um lobisomem, mas Anna também era, e um bem forte.
– Tente relaxar – disse-lhe Alan.
Alan também sentou-se na cama, virando-se até ficar cara a cara com Anna. Ele colocou a bandeja sobre o criado-mudo e uma tigela perto do quadril, e com um par de fórceps
de pontas afiadas começou a remover as primeiras balas com facilidade.
– Você viu? – disse Anna, com os olhos fechados.
– Viu o quê? – perguntou Charles.
– O vampiro de um braço só. O que será que ele fez com o outro?
– Não sei.
Charles beijou o topo da cabeça de Anna.
Anna não lutou contra ele enquanto Alan tirava mais balas superficiais e não se moveu – até que ele teve de escavar mais profundamente.
DOZE
Anna estava suando e xingando – e Charles mesmo estava pronto para ser amarrado e quase precisando ser contido. Já Alan tinha nervos de aço, pois mesmo com Charles rosnando
suas mãos ainda permaneciam firmes. Finalmente, Alan deixou o fórceps cair na tigela.
– Ok – disse ele. – Ainda há um pouco de chumbo aí. Posso sentir o cheiro, mas com os diabos, acho que não consigo encontrá-lo. Pelo menos não é prata. Uma máquina de raios-X
seria capaz de localizar o resto.
– Temos uma dessas em Aspen Creek – disse Charles.
– Ou vocês podem esperar até que o chumbo seja naturalmente eliminado. Não há muita coisa – acho que não há o suficiente para deixá-la doente.
– O meu voto vai para a segunda opção – disse Anna; sua pele luminosa estava esverdeada, e havia círculos escuros ao redor de seus olhos. – Chega de escavar, por favor.
Charles saiu de trás dela.
– Você vai mudar de ideia quando isso começar a infeccionar – previu Charles. – Mas você pode esperar, se quiser.
– Farei isso – bufou Anna, indignada. – Infeccionar. Que lindo pensamento.
Ele beijou-a levemente, e em seguida deu uma boa olhada nas algemas que tinham usado em Anna.
– Eu posso arrombá-las – disse Charles –, se Artur tiver as ferramentas certas por aí.
– Vá procurá-las – disse Anna. – Se eu vou infeccionar, eu gostaria de fazê-lo confortavelmente. E essas coisas não são confortáveis. Além disso, são bregas.
Charles estava sorrindo quando saiu do quarto, fechando a porta atrás dele. Enquanto ela estava sofrendo e precisava da ajuda dele, Charles não tinha nem pensado sobre sua
nudez. Mas agora não queria Arthur entrando e vendo sua Anna daquele jeito, por isso fechara a porta.
A casa estava escura, e Charles achou que Arthur pudesse ter ido para a cama – o amanhecer ainda estava um pouco longe. Ele não ia dormir novamente, não na casa de Arthur
– e também não ia a lugar nenhum até que Anna tivesse cicatrizado um pouco.
Ele foi até a cozinha e abriu as gavetas para ver se conseguia encontrar algo de útil.
– Charles? – era a voz de Arthur. Ela vinha do quarto onde ele guardava seus tesouros.
– Sim – respondeu ele. – Estou procurando algo para tirar as algemas de Anna. Você tem uma chave micha por aí, ou algo do tipo?
– Provavelmente tenho algo que vai funcionar – disse Arthur.
Charles parou de procurar dentro da gaveta da cozinha, levantando a cabeça. Havia algo estranho com a voz do outro homem.
Talvez não fosse nada. Talvez. Charles tirou uma faca de carne do conjunto de facas e colocou-a no bolso da calça jeans.
– Isso seria ótimo.
Ele teve o cuidado de manter sua voz neutra, portanto Arthur não teria qualquer razão para pensar que Charles havia notado algo de diferente.
– Anna é durona, vai ficar bem – mas eu quero tirar aquelas coisas dela.
Charles se moveu sem pressa pela sala escura... e sentiu o cheiro persistente de Sunny no sofá mais próximo dele.
Coitada da mulher. Charles não a conhecia bem o bastante para sentir algo mais do que pena. Não era de se admirar que Arthur estivesse daquele jeito. Estranhamente, a simpatia
que Charles sentia por Arthur era muito mais sincera do que qualquer luto que pudesse sentir por Sunny.
Ele tentou não pensar em como aquela noite poderia ser pior: Anna – eles queriam sequestrá-la. Não matá-la.
O fato de a terem levado o deixou com raiva, tanta raiva que nem mesmo matando três deles Charles conseguiu se acalmar – e nem o irmão lobo.
Se eles a tivessem matado... Charles teria se juntado a ela. Ele parou, porque não havia pensado nisso antes. Mas isso particularmente não o incomodava. Se ela morresse, ele
a seguiria. Assim como Charles a teria seguido para onde quer que eles tivessem planejado levá-la, caso tivessem sido bem-sucedidos. Ela era sua, e ele, dela.
– Charles?
Seu telefone tocou.
– Já vou. Angus está ligando.
Ele pegou o telefone:
– Sim?
– Sua Anna estava certa. Cerca de uma hora atrás, quinze minutos após a equipe de limpeza deixar o lugar onde Chastel foi morto, o lugar ficou cheio de policiais. Alguém ligou
para a polícia e relatou gritos, cachorros latindo, tiros, e o diabo a quatro. Eles trouxeram luminol – aquela coisa que brilha na presença de sangue. Devemos muito a Moira,
porque eles não encontraram nada. A última bruxa que tivemos nunca teria sido capaz de limpar as coisas tão bem. A polícia ainda está demolindo o lugar – mas eles estão sendo
mais gentis.
– A armadilha fechou-se tarde demais – disse Charles, ciente de que Arthur estava escutando.
– Sim – disse Angus, fazendo um breve silêncio antes de continuar. – E o seu cheiro? Moira encontrou roupas em uma das... bem, na confusão de partes do corpo. O melhor que
podemos imaginar é que alguém pegou as roupas que você usou para a caçada, as arrastou pela sala e jogou-as por ali.
– Foi algo deliberado.
– Com certeza. E nem mesmo a Fae pode culpar você por isso, agora. Eu sei que você saiu da área de caça com um conjunto de roupas completamente diferente.
– Bom.
– Outra notícia interessante... sabe aquela van? Os vampiros locais que estavam fazendo a limpeza reconheceram o bastão que você enfiou em um dos bandidos. Ela o chamou de
“apanhador de feitiços”.
Charles fez uma careta.
– Apanhador de feitiços?
– Feitiçaria de vampiros, aparentemente. Muito secreta – os vampiros aqui realmente não querem problemas com seu pai para terem nos contado a respeito disso. Apenas alguns
vampiros podem fazê-lo, e cobram muito por um desses. Se a nossa equipe de vampiros forasteiros eram mercenários, eles eram bem-sucedidos e caros para serem capazes de comprar
uma coisa dessas. Aparentemente, esse bastão pode absorver até quatro feitiços, e a pessoa com a qual ele está sintonizado pode usá-lo para lançá-los, mesmo que essa pessoa
não seja normalmente capaz de lidar com magia.
– Isso explicaria o feitiço das sombras e o Não-Olhe-Para-Mim que os vampiros usaram quando atacaram Anna a primeira vez. E quando eles sequestraram Anna enquanto estávamos
no quarto de hotel, também devem ter usado o apanhador de feitiços para nos colocar para dormir com um feitiço do sono.
– A primeira coisa a lembrar é que o apanhador só pode absorver feitiços que são dados a ele voluntariamente pelo lançador de feitiços. Isso significa que um lobo lhes deu
o feitiço das sombras e o Não-Olhe-Para-Mim.
– Confirmando a teoria de Anna – disse Charles. Ele estava andando. Havia muitas coisas das quais ele não gostava nos telefones celulares, mas não se enroscar em fios era
definitivamente um benefício.
– Anna está bem?
– Ela vai ficar bem, assim que alguns pedaços de chumbo infeccionem e saiam. Eu vou arrombar algumas fechaduras para que ela não tenha que explicar a sua escolha interessante
de joias.
Arthur estava encostado no batente da porta de sua sala do tesouro, não fazendo nenhum esforço para fingir que não estava escutando.
– Bom – disse Angus, limpando a garganta. – Você foi ótimo, filho.
O “filho” fez Charles sorrir. Ele era algumas décadas mais velho do que Angus.
– Eu acho que sim. Anna – ela me completa.
– Diga isso a ela – aconselhou Angus, de bom humor. – As mulheres gostam de ouvir os seus homens ficarem sem saber o que falar.
– Farei isso – disse Charles, desligando o telefone.
– Equipe de limpeza? – perguntou Arthur.
Depois de ouvir isso, Charles percebeu que havia várias coisas que Arthur não sabia.
– Chastel foi morto ontem à noite de uma forma particularmente sangrenta, e isso exigiu uma ação rápida.
– Foi você quem o matou?
– Não. Vampiros.
– Ah – disse Arthur, desviando o olhar. – Chastel. Estranho pensar que ele está finalmente morto. Não poderia ter acontecido com uma pessoa melhor.
Ele olhou para trás e deu a Charles um sorriso sem graça.
– E acho que aconteceu, não é? Pobre Sunny – continuou ele, esfregando o rosto e escondendo-o por um minuto. – Desculpe. Desculpe. Então Chastel exigiu uma equipe de limpeza?
Charles considerou oferecer sua simpatia mas decidiu que não iria ajudar.
– Anna sugeriu que o assassinato foi tão sangrento, especialmente considerando que foram vampiros que o mataram, que...
– Vampiros mataram Chastel? Você tem certeza?
Charles assentiu.
– Irônico, considerando a quantidade de lobos que teriam adorado matá-lo.
– Quem chamou a polícia? Os vampiros?
Charles deu de ombros.
– Não sabemos, mas isso foi feito com certo atraso. Deveriam chamar a polícia para encontrar a cena em toda sua glória...
Talvez para evitar que seu pai tornasse pública a existência dos lobisomens. Talvez para manter os lobos longe da cena, de forma que quem quer que tivesse tentado incriminar
Charles teria mais facilidade. Sem acesso ao local do assassinato, os lobisomens poderiam nunca ter determinado como o cheiro de Charles aparecera em um lugar onde ele nunca
estivera.
– Porém, eles nos deram muito tempo. Não vão encontrar nada agora.
– Acho que não. Angus é extremamente eficiente.
– E seu segundo em comando é policial durante o dia. Tom sabe o que eles estão procurando e como evitar que eles encontrem.
Charles fez uma pausa.
Ele vislumbrou Arthur contratando alguém para matar outra pessoa por ele. Mas descartou a suspeita. Sunny tinha sido morta. Um lobo nunca iria matar sua própria companheira.
Mesmo assim, Charles cedeu ao impulso de jogar uma isca.
– Quem chamou a polícia estava algumas horas atrasado. Isso poderia ter funcionado se essa pessoa tivesse chamado a polícia logo depois que o trabalho foi feito – disse ele,
balançando a cabeça. – É isso que está me incomodando, eu acho. A incompetência de tudo isso. Os lobos são, em geral, melhores caçadores. Os vampiros fizeram uma tentativa
de sequestrar Anna, imediatamente antes de virmos aqui para o jantar, aliás. Eles falharam, e perderam dois de seu grupo por causa disso. Michel, um dos lobisomens franceses,
estava com Chastel quando ele foi morto. E eles o deixaram lá para morrer. Ele vai sobreviver, e em alguns dias vai nos dizer exatamente o que os vampiros disseram quando
os atacaram. Talvez eles tenham falado sobre quem os contratou.
– Contratou?
– Eles são profissionais. Contratados para vir a Seattle e fazer pelo menos três coisas – continuou Charles, marcando em seus dedos os acontecimentos. – Sequestrar Anna. Matar
Sunny. E matar Chastel – tornando sua morte horrível e sangrenta, algo que gritaria “monstro” para a polícia.
Charles cantarolava pensativamente para si mesmo.
– Não foram os vampiros os incompetentes. Se eles soubessem o que estavam enfrentando, quando tentaram sequestrar Anna na primeira vez, teriam conseguido. Alguém subestimou
a escolta que eu enviei com Anna. Pensaram que o único que seria um problema era o segundo de Angus, Tom. A morte de Chastel foi... magistral. Qualquer ser humano que tivesse
visto a cena, ou pelo menos as fotos dela, iria se lembrar para o resto de sua vida. Mas a pessoa que deveria chamar a polícia foi muito lenta.
Charles estava observando Arthur com o canto do olho. O rosto do lobo não mostrava nada, exceto um interesse educado. O seu corpo, por outro lado, havia se enrijecido de raiva
enquanto Charles falava.
– Diria incompetente – disse ele novamente.
Charles viu o punho de Arthur se crispar.
Arthur.
Seu pai havia suspeitado da morte de um Alfa que tinha sido morto recentemente em Londres. Homem durão e muito dominante, decapitado em um acidente de carro. Isso também poderia
ter sido deliberadamente arranjado.
Charles voltou a andar, ignorando Arthur como se ele não estivesse lá, para que ele não soubesse que já havia se traído.
Eliminar Chastel fazia sentido. Chastel era uma ameaça para Arthur, e o impedia de se expandir para a Europa. Sua morte deixava um vácuo enorme de poder – e Arthur não teria
tido nenhuma chance em uma luta justa contra Chastel. Ele não poderia simplesmente assassiná-lo e deixar o assassinato em aberto, porém, se os outros lobos soubessem que Arthur
havia matado Chastel de forma covarde, eles nunca o teriam seguido. Arthur não era Bran, ele não era forte o suficiente para governar um continente com base em seu próprio
poder – ele precisava que os outros lobos fossem súditos dispostos. Arthur precisaria culpar alguém pela morte de Chastel.
Charles não achava que Arthur se importava em tornar pública a existência dos lobisomens. Ele era precisamente o tipo carismático de lobo que Bran planejava introduzir ao
público em primeiro lugar. Mas fazer o assassinato de Chastel parecer algo projetado para atrair a atenção humana era uma forma de enviar a suspeita para outro lugar. Havia
vários lobos descontentes com os planos de seu pai. De qualquer forma, Bran não acreditaria que Charles tivesse mesmo matado Chastel – e por isso Arthur precisava de um vilão
sem nome em quem Bran pudesse colocar a culpa. Alguém que contratara os vampiros e, em seguida, desaparecera convenientemente.
Aquela coisa toda sobre uma morte de açougueiro... era Arthur fazendo uma observação. Chastel era um bárbaro – Arthur claramente era superior a ele. Mas Arthur não queria
ver as semelhanças. Em sua mente, um bruto que matava por prazer era incivilizado. Arthur não matava por prazer.
Chastel governava matando todos os que desafiavam sua posição e aterrorizando o resto. Já Arthur tinha começado por matar os Alfas na Grã-Bretanha, depois parara. Ou encontrara
uma forma melhor de se desfazer dos lobos que o desafiavam. Bran poderia entender melhor. Para Charles, Arthur e Chastel eram apenas dois lados da mesma moeda – toda aquela
necessidade de poder e nenhuma necessidade de cuidar do que era deles. Arthur não veria isso dessa forma, embora talvez precisasse deixar isso mais claro com o método brutal
utilizado para descartar o corpo de Chastel.
Sunny.
Se a razão para a contratação dos vampiros era a dificuldade de um lobisomem atacar um Ômega, contratá-los para matar sua própria companheira, também um Ômega, ou quase isso,
teria sido imperativo.
E de repente a tentativa de sequestro de Anna fez muito mais sentido. Arthur não era o único lobisomem a ter seu próprio jato, mas tinha um. E Anna era o que Sunny poderia
ter sido. Ômega. Valorizada não tanto por causa de quem ela era – mas pelo que todos pensariam que ela era. Um troféu. E, ao contrário de Sunny, ela viveria para sempre. Sunny
tinha ficado velha, como acontecia com os humanos. A dor de Arthur em relação a isso era genuína. Então, ele havia planejado sua morte para poupá-la do sofrimento. Com base
nas reações de Arthur no armazém, Charles começou a achar que o lobo britânico havia subestimado a dor da morte de Sunny. Ele esperava que sim.
Casualmente, Charles pegou o telefone e configurou-o para mensagem de texto.
– Esqueci de atualizar meu pai – disse ele. – Ele deve estar tomando o café da manhã agora e não gosta que o interrompam. Vou mandar uma mensagem de texto a ele sobre os acontecimentos
de hoje à noite, e ele pode me ligar depois quando quiser.
Não haveria mentiras para Arthur ouvir. Charles deixou a mensagem de texto bem simples. É ARTHUR.
Ele manteve o telefone inclinado longe de Arthur para que ele pensasse que Charles ainda estava mandando mensagens de texto para Bran, mas em vez disso ele digitou uma mensagem
para Angus. NÃO LIGUE. ENVIE AJUDA AQUI. ARTHUR É O CULPADO. Ele considerou a mensagem um pouco melodramática, mas era curta e simples, e era impossível que Angus a interpretasse
mal. Charles pressionou o botão ENVIAR.
Ele podia lidar com Arthur. Arthur não era lobo suficiente para lidar com Chastel. Mas Anna e Alan Choo estavam ali, e precisavam dele para que Charles os deixassem tão seguros
quanto possível – e isso significava pedir ajuda.
– Você estava procurando um kit de arrombamento – disse Arthur.
– Sim.
– Eu tenho alguns lá dentro – disse Arthur, inclinando a cabeça para indicar a sua sala do tesouro. – Eu estava arrumando as malas – não vou voltar aqui.
Charles seguiu-o até a sala. Parecia que Arthur estivera fazendo exatamente o que dissera. As tapeçarias estavam fora da parede, fixadas em quadros de 2 X 4 m para que ficassem
estáveis e fossem colocadas dentro de caixotes de madeira compensada, daqueles que os museus utilizavam para o transporte de obras de arte. Uma pequena caixa de madeira já
tinha sido selada. A única coisa que faltava era a caixa que continha a espada.
– Eu entendo o resto – disse Charles, correndo os dedos sobre a madeira que protegia a velha espada. – Mas como você subornou Dana para fazê-la quebrar sua palavra?
Charles olhou para cima e viu que Arthur ficara totalmente imóvel. O lobo britânico mudara sutilmente, e perdera a aura de tristeza quase que inteiramente.
– Da mesma forma que consegui que os vampiros fizessem o que eu queria. Oferecendo a ela algo que desejava.
Arthur sorriu.
– Mesmo isso não teria dado certo se você não a tivesse irritado.
– E como eu fiz isso?
Assim que Charles fez a pergunta, lembrou-se da reação extrema de Dana ao quadro que seu pai lhe enviara. Aquele lugar tinha sido dela, mas estava perdido, e o pai de Charles
quis presenteá-la com uma lembrança, mas talvez Dana tenha interpretado o presente como um insulto.
Arthur levantou os braços teatralmente.
– Como eu deveria saber? É fácil ofender uma Fae. Quanto ao que eu ofereci a ela – concluiu ele, apontando para a caixa da espada.
– Isso não é Excalibur – disse Charles. – Quando ela descobrir que você não a tem, ela vai ficar... ofendida.
Arthur passou os dedos suavemente sobre a caixa – e fez um pedaço escuro de madeira deslizar, abrindo-a um pouco.
– Há algo a ser dito sobre esconder coisas em plena vista.
A espada que Arthur removeu do compartimento escondido não era a que estivera em exibição, embora se parecesse muito com ela. Ambas eram armas de luta, e não adereços de filmes.
Assim que aquela espada escondida saiu da caixa, o cabelo na parte de trás do pescoço de Charles chamou sua atenção.
Excalibur ou não, não havia como negar que a espada na mão de Arthur era uma lâmina Fae: ele podia sentir sua magia sob sua pele, podia sentir aquele cheiro.
Arthur era um espadachim, Charles sabia disso. Ele estudara esgrima e tinha recebido o mesmo tipo de treinamento marcial que o próprio Charles tivera. O equilíbrio de Arthur
era bom, e sua empunhadura – nem muito apertada, nem muito solta – mostrava que sua formação não havia sido desperdiçada.
Charles não estava preocupado com espadas, já aquela espada... Charles provavelmente já era um homem morto. Mas Angus estava vindo com a ajuda. Ajuda suficiente para que,
mesmo com a espada, Anna pudesse estar segura. Tudo o que ele tinha a fazer era adiar aquilo o maior tempo possível. E Arthur sempre tinha adorado um teatro.
– Anna não irá com você – disse Charles. – Ela não vai ficar ao seu lado. Ela vai esperar até que você desvie a atenção dela por um momento, e então vai arrancar suas tripas.
Arthur sorriu.
– Você realmente não acredita em reencarnação, não é? Ou destino. Eu vim aqui para matar Chastel e seu pai. Para Chastel eu tinha uma resposta. Para seu pai, eu precisava
de mais.
– Por que o meu pai?
Arthur olhou para Charles como se ele fosse estúpido.
– Porque eu sou ele, é claro. O Rei Arthur. É meu destino ser o Grande Rei.
Ele está totalmente louco, pensou Charles.
– Mas meu pai não veio.
– Não – concordou Arthur. – O destino é uma coisa estranha. Você sabe exatamente quem é Dana?
– Obviamente você vai me dizer – disse Charles secamente.
– Gostaria de saber se o seu pai sabe. Isso é o que quero dizer com destino – eu, que fui Arthur, iria encontrar Nimue, a Dama do Lago, aqui. Eu sabia já há algumas décadas
que ela estava aqui em Seattle – na primeira vez que a vi, na verdade. Eu sabia que chegaria uma hora em que isso seria importante – então eu comprei essa casa para Sunny.
Charles viu que obviamente não seria difícil manter Arthur falando sozinho.
O sorriso dele ficou dissimulado.
– Não encontrei Excalibur em um sítio arqueológico – embora fosse isso que eu estava fazendo naquela época. Em Cambridge, fiz amizade com um garoto cuja família era da antiga
nobreza menor da Cornualha. Ele convidou-me para ir à sua casa no Natal. Eu descobri que eles tinham guardado um tesouro há tantas gerações que já haviam esquecido tudo sobre
ele. Fui eu o responsável por encontrá-la novamente. Ela estava escondida sob a laje na casa das carruagens. A espada na pedra, por assim dizer.
Arthur riu de sua própria esperteza.
– A irmã mais velha do garoto parecia-se o suficiente com Dana para ser sua irmã gêmea.
Com a mão livre, ele esfregou o polegar sobre seus dois primeiros dedos:
– Um pouco de pesquisa, e conjecturas tornam-se conhecimento; quando vi Dana, soube que tinha algo perfeito com o qual poderia suborná-la – continuou Arthur, balançando a
espada com cuidado. – Dana não tinha ideia de que a espada não estava descansando debaixo da pedra onde ela a havia colocado, até que eu a mostrei para ela – uma fotografia.
Eu não sou estúpido.
– Eu discordaria disso – disse Charles. – Você fez tantas coisas estúpidas que eu poderia escolher. Mas tentar levar vantagem de um Lorde Cinzento é a mais estúpida de todas.
Você nunca teve qualquer intenção de dar-lhe a espada.
Arthur balançou a cabeça, concordando educadamente.
– O primeiro negócio teria sido honesto. Excalibur não é a única coisa que descobri lá. Eu tinha também outras armas. Ofereci-lhe o punhal. Ela se recusou – e acredito que
deixou claro que iria me caçar “até os confins da terra”. Eu a conheço, se é que você me entende, mas ela não me conhece. Não acredita que sou Arthur.
Charles sabia de qual Arthur ele estava falando.
– Mas meu pai não veio.
– Não, você veio. E ela veio com você.
– Ela?
– Gwenevere. Minha dama branca.
E então Arthur provou que não era tão estúpido quanto Charles havia começado a acreditar. Sem demonstrar o movimento que iria fazer, nem mesmo como um sopro, e enquanto Charles
ainda estava absorvendo a ideia de que Arthur queria Anna pois achava que ela era dele, Arthur o atingiu.
A espada em seu estômago não doeu, apenas roubou a força de Charles. Sua capacidade de se mover.
Charles ouviu Anna gritar, mas sua atenção estava no frio gelado que o estava envolvendo.
Quando suas pernas se dobraram sob ele, Arthur o seguiu.
– Uma luta rápida – disse Arthur –, é o melhor tipo de luta. Eu conheço você. Quando vi que seu pai não viria, eu fiquei muito decepcionado. Mas quando eu a vi... vi minha
Gwenevere, eu sabia – continuou Arthur, fazendo uma careta. – Ela era minha, e você a tinha, como antes. Eu poderia até ter matado você de forma limpa. Mas eu quero que você
sofra. Lancelot.
– Lancelot não existiu, seu tolo.
Por um momento, Charles pensou que fora ele que dissera essas palavras, pois havia pensado nelas com muita força. Mas a voz era de uma mulher.
Dana.
Arthur puxou a espada para fora do corpo de Charles e cambaleou para trás até recuperar o equilíbrio. Assim que o aço deixou o seu corpo, o frio dissipou-se. Charles colocou
uma mão no abdome para estancar o sangramento. A espada não tinha atravessado seu corpo – Arthur queria que ele sofresse. Se Charles pudesse evitar o sangramento até a morte,
o irmão lobo poderia curá-los. O ferimento era pequeno o suficiente para cicatrizar rápido.
Aço afiado, disse o irmão lobo, corta melhor, dói menos, cicatriza mais rápido.
Charles deu um puxão na magia da alcateia e recebeu uma recompensa em troca. Ele não era o Alfa, mas seu pai podia conceder-lhe ajuda se desejasse. E Bran era um líder generoso.
A dor desapareceu. No entanto, não havia necessidade de anunciar que ele não estava morrendo. Ainda não. Charles continuou no chão, fora do caminho. Não prestem atenção em
mim, eu não sou uma ameaça; Charles podia tornar-se menos perceptível se precisasse, embora não tão bem quanto Bran – seu pai tinha uma técnica aperfeiçoada. Bran gostava
de dizer que é mais fácil passar despercebido quando todos estão concentrados em outra coisa.
– Dê-me a espada – disse ela.
– Ela é minha – disse Arthur, agarrando a espada mais firme e colocando a ponta para cima em uma posição de guarda. – Minha desde o início. Ela passou para a minha mão da
sua – e quando morri, não fui eu quem a devolveu.
Dana moveu-se até ficar no campo de visão de Charles. Ela havia se livrado daquela aura mágica – ou adotado uma nova. Ela não tinha exatamente mudado, mas Dana havia se tornado
algo mais. E Anna estava certa, ela era fascinante. Charles viu isso com bom olhos, pois era algo que deveria tomar a atenção de Arthur.
Charles moveu sua mão, e como o sangue não correu, afastou a camisa e olhou para a crosta do ferimento: era demasiado recente para que ele pudesse se mover ainda, mas poderia
em breve.
– Você a roubou – disse Dana, com a voz baixa e feroz. – Ela não é sua. Nunca foi sua. O Rei pode de fato retornar, assim foi anunciado. Mas ele não é você. Nunca foi você.
Você não é Arthur.
– Não espero que você me reconheça – disse Arthur. – E nosso negócio acabou. Chastel não matou Charles, como você prometeu. E quando Charles derrotou o francês, você não conseguiu
encontrar outra maneira de matá-lo, de matar Charles. Você falhou. Eu não lhe devo nada.
Dana levantou a mão.
– Caladbog. Caledfwych. Excalibur. Eu a entreguei nas mãos de grandes homens, guerreiros, todos eles heróis. Suas mãos a profanam. Um covarde que contrata suas mortes e mata
aqueles que são melhores, mais inteligentes, mais fortes do que ele.
– Você não pode tirá-la de mim – disse Arthur. – A não ser que você mate Charles. E você não pode me prejudicar, enquanto Charles ainda estiver vivo. Eu sei como funcionam
as barganhas com os Fae.
Eu não estaria tão confiante se eu fosse você, Arthur, pensou Charles. Pensei que meu pai tinha feito um negócio com ela e veja o que aconteceu conosco. Excalibur significava
mais para ela do que sua palavra, e ainda significa.
– Tudo bem – disse ela, estendendo uma mão.
Depois disso, Charles teve a experiência muito estranha de ver a si mesmo caindo no chão, enquanto ele sentava e observava. Porém, isso foi melhor do que a breve visão que
ele teve da sua própria morte em seguida.
– Você não pode matar assim – disse Arthur.
Sua voz mostrava um medo repentino. Arthur levantou a espada entre Dana e ele, como se a lâmina pudesse manter a mágica Fae longe – e se a espada fosse Excalibur de verdade,
aquilo parecia ser quase certo – e possivelmente era.
Enquanto ficava em pé, Charles teve que concordar com Arthur. Dana não podia matar assim – mas podia criar ilusões de morte quando quisesse. O ferimento de Charles ainda estava
dolorido, mas era improvável que abrisse e levasse Charles a sangrar até a morte quando ele se moveu.
– Não posso? – perguntou Dana. – O que você sabe dos Fae? Não tanto quanto você acredita, eu acho. Se o negócio estiver concluído, dê-me a espada.
Enquanto ela mantinha Arthur ocupado, Charles foi lentamente até o mostruário. A espada que estava lá não era Excalibur, mas era uma boa espada. Na verdade era uma réplica,
criada há muito tempo para proteger a original. Charles rasgou a caixa e pegou a espada, com a intenção de usá-la para a finalidade com a qual tinha sido forjada.
Arthur virou-se para ver o que era o barulho e, pelo seu rosto, podia ver Charles agora – ou o barulho havia rompido as ilusões, ou Dana as deixara cair.
– Arthur Madden – disse Charles formalmente. – Pelo assassinato de inocentes no território do Marrok, você foi considerado culpado e condenado à morte.
Charles não precisava dizer mais nada; Arthur levantou a espada e veio em direção a ele.
Arthur podia ter anos de treino em artes marciais – mas Charles havia sido treinado por seu pai, um homem que tinha realmente usado uma espada como essa para manter-se vivo.
Charles era mais forte e mais rápido, e Arthur tinha medo dele.
Contudo, Charles nunca tinha usado uma espada em um combate real antes.
Lembre-se, a memória da voz de seu pai ecoou em seus ouvidos, lobos não são humanos. Se você se envolver em uma luta de espadas com outro lobo e bater com toda a força na
outra lâmina, você vai destruir a sua espada. Se você precisa preservar a sua arma, desvie os golpes e ataque o corpo, não o metal.
A voz de seu irmão entrou na conversa para ajudar. Desviar é melhor do que bloquear – menos arriscado.
Assim, Charles escapou do primeiro golpe de Arthur. Ele manteve ambos os pés no chão – projetando sua imagem sobre a madeira. Pequenos passos lhe permitiram atacar com maior
equilíbrio e mudar de direção mais rápido.
A sala era pequena. As espadas eram curtas. Isso significava que havia pouca chance de desviar, e a luta acontecia de perto.
– Você está morto – disse Arthur. – Eu matei você.
– Você me apunhalou com aço e regozijou-se exageradamente – murmurou Charles, mantendo seu pensamento em poupar sua espada ao bloquear os golpes lateralmente, afastar-se e
girar, deixando Arthur fazer o trabalho naquele momento. O lobo britânico ficava visivelmente enervado quando não atingia nada, e assim Charles concentrou-se em não ficar
parado quando a espada de Arthur serpenteava em sua direção.
– Eu cicatrizo muito rápido de pequenos ferimentos como aquele.
Não havia necessidade de mencionar a magia da alcateia – que Arthur sorvesse o medo.
Charles estava ciente da presença de Dana. Ela havia se distanciado da luta até ficar do lado de fora da sala. Ele havia tomado a decisão de comando de ignorá-la. Ela não
era um aliado, não mais – mas se Charles vencesse a luta, a vantagem seria dela. Charles não se importaria se ela ficasse com Excalibur. Ela podia ter quebrado sua palavra,
mas ele e – o mais importante – a sua companheira não tinham sido diretamente afetados por ela. O irmão lobo estava levemente inclinado a considerá-la um pouco responsável
pelo ferimento de Anna, mas tudo o que Dana poderia ter feito para evitar o caso seria falar com ele sobre Arthur.
Arthur estava perdendo a luta. Os ataques precisos e ensaiados tornaram-se aleatórios e sem foco. Charles intensificou seu ritmo. Não mais apenas esquivando-se ou intercalando
com bloqueios intermitentes: ele também começou a atacar. Dois golpes da esquerda, uma volta e um bloqueio; direita, esquerda, direita, abaixar uma vez e novamente – movimentos
praticados e aperfeiçoados durante anos –, porém ele não podia esquecer que a espada de Arthur provavelmente era menos propensa a danos. Finalmente, Arthur não conseguiu bloquear
completamente um ataque, e uma longa linha vermelha apareceu em seu peito.
A dor dele, ou talvez o medo, emprestou uma súbita impulsão ao seu golpe de retorno, e ele bateu de frente com a outra lâmina, quebrando a espada de Charles. Ele deixou que
a energia do golpe de Arthur fizesse com que ele girasse e pudesse se abaixar próximo ao lado esquerdo desarmado de Arthur. Charles então rolou para trás, tirando a faca de
carne da parte de trás da calça. Com toda a força que conseguiu reunir, Charles esfaqueou Arthur na coluna vertebral, exatamente onde ela se conectava ao crânio. E a faca,
um instrumento caro e bem feito, deslizou por entre o osso, através dos discos mais macios, e cortou a medula espinhal.
Arthur caiu para a frente, e sua espada rolou para longe de suas mãos.
– Eu... – disse Arthur, antes de perder a capacidade de falar.
Charles pegou a lâmina Fae e cortou o pescoço do lobo britânico completamente. Então, com a lâmina na mão, olhou para Dana.
– Você sabia que ele ia matar sua companheira? – perguntou ele.
Ela sorriu se desculpando.
– Ele tinha a espada como refém.
– Não é uma resposta – disse ele. – Mas acho que a vida de um ser humano não importa, não para você. Também, elas são tão breves. Qual o valor da vida dela? Ou de Chastel
– ele era um monstro, certo? Qual o valor de suas vidas quando medidas em contraste com uma espada como essa?
– Sarcasmo não combina com você – disse Dana, com dignidade.
– Não – disse Charles. – Acho que não. Ele a contratou para matar o meu pai?
Ela assentiu com a cabeça.
– Eu me recusei até que ele me ofereceu Excalibur. Ela foi confiada a mim, ela é a razão da minha existência, e esse tolo a tinha encontrado.
– E meu pai não veio.
Enquanto tivesse a espada, Dana iria falar com ele, e Charles queria saber exatamente o que ela havia feito para que depois pudesse informar seu pai.
– Não. Eu sabia que Bran não vivia – os elementos me disseram isso. Mas eu tinha que encontrar uma razão para aquele tolo me trazer Excalibur. Sua fortaleza na Cornualha é
guardada contra Faes; eu precisava que ele a trouxesse aqui. Eu não pretendia fazer nenhum negócio com Arthur – apenas pegar a espada de volta.
– Você teria matado o meu pai para isso?
– Não se ele ficasse em Montana. E ele ficou, não foi? Mas então você escolheu vir em seu lugar e trouxe algo que Arthur queria mais do que a morte de seu pai. Eu deveria
encontrar uma maneira de Chastel matar você. Isso teria resultado em duas coisas: Chastel não estaria em sua melhor forma quando os assassinos de Arthur viessem até ele, e
sua companheira ficaria livre para Arthur com a sua morte, Charles.
Charles deu um profundo suspiro. Ele não tinha motivos para acusá-la de qualquer delito. Dana não havia matado ninguém, nenhum sangue fora derramado por ela, nem mesmo o de
Arthur. A intenção não era o suficiente para que Charles agisse contra ela, nem mesmo o fato de que ele não gostava de sua bússola moral.
Subitamente, Charles percebeu que queria apenas um banho, e urgente, para se livrar do sangue, do suor e das ações sujas daquela noite. Ele abriu a mão até segurar o punho
da espada com dois dedos somente, e estendeu Excalibur para ela.
– Ela é sua – disse Charles, admitindo o furto. – Cuide melhor dela dessa vez.
Dana a pegou com a mão esquerda, e os nós dos seus dedos ficaram esbranquiçados enquanto ela suspirava como uma amante finalmente satisfeita. Ela estendeu a mão direita para
Charles.
– Sem ressentimentos?
Ele olhou para a mão e não sentiu vontade de apertá-la. Charles tinha uma grande quantidade de ressentimentos.
– Por favor – disse ela.
Charles finalmente pegou na mão dela.
– Meu pai vai conversar com você sobre isso. Você quebrou a palavra que deu a ele.
Sua mão apertou a de Charles, e Dana olhou para baixo.
– Eu sei. Eu sei. E isso não pode acontecer. Ninguém deve saber. Se ninguém souber, tudo ficará bem. Você entende.
De repente, pela segunda vez naquela noite, Charles encontrou-se de joelhos e com uma ideia muito pequena de como isso tinha acontecido. Ele olhou para sua mão, ainda na mão
de Dana – formas azuis insinuavam-se em seu braço, vindos da mão dela.
Quando ele caiu totalmente de lado, a dor começou, mas Charles não conseguia abrir a boca.
– Se você fosse humano, já estaria morto – disse Dana. Ela afastou uma mecha de cabelo que havia escapado de sua trança para longe de sua face.
– Isso vai demorar mais tempo, mas não deixa vestígios que possam ser seguidos. Seu pai vai suspeitar, sem dúvida, mas enquanto ninguém souber sobre a minha participação,
tudo vai ficar bem.
Ela se inclinou e beijou-o na face.
– Gosto de você, Charles. Eu nunca teria feito uma barganha com Arthur para matar você, mas devo sua morte a seu pai. Ele me fez recordar do que nunca poderei reaver – apenas
retornei o favor a ele, como prometi que faria.
O irmão lobo rosnou, mas a dor os manteve imóveis.
i
– Diga a ela que estamos a cerca de catorze minutos – disse Angus, logo que atendeu o telefone. – E, por mais tentador que seja, não vou ficar dirigindo aleatoriamente em
torno do quarteirão, por isso acho que da próxima vez que ela obrigar você a ligar, estaremos a cerca de treze minutos.
Alan estava segurando seu telefone para se certificar de que Anna estava ouvindo.
– Sim, senhor – disse ele, terminando a chamada.
Anna sabia que deveria pedir desculpas, mas isso estava além da sua capacidade. Quando eles haviam percebido que aquele barulho, alguns minutos depois que Charles fechara
a porta, era um mecanismo de travamento e que a sala onde estavam era um lugar seguro o bastante para prender lobisomens (como aqueles que Anna já tinha visto antes), viram
também que o telefone de Alan não funcionava. Eles haviam levado algum tempo para encontrar a estúpida caixa preta que impedia o celular de Alan de funcionar – um disruptor.
Quando eles ligaram para Angus, ele já estava a caminho, alertado por uma mensagem de texto de Charles. O Marrok estava a cerca de trinta minutos de Seattle. Bran tivera um
mau pressentimento, e como Charles não respondera seu telefonema, ele havia subido a bordo do jato rumo a Seattle.
Anna considerou que, nesse ritmo, Bran chegaria antes de Angus. O ruído – identificado por Alan como uma luta de espadas – já havia parado há dez minutos, e oito minutos se
passaram desde que Charles havia fechado seu vínculo com Anna, e com tanta força que tudo o que ela podia dizer era que ele estava por perto e não estava se movendo.
Seus ferimentos estavam cicatrizados, embora houvesse algumas partes que coçavam e alguns lugares doloridos. Anna pegou um lençol e enrolou-o como um vestido improvisado.
Enquanto ela andava, as correntes curtas que pendiam de seus pulsos e tornozelos faziam sons alegres e irritantes. Eles provavelmente irritavam Alan ainda mais, mas ele não
disse nada.
Dezesseis minutos depois de sua última chamada, a porta foi destrancada.
– Desculpe – disse Tom. – Tivemos um pouco de trabalho para encontrar a fechadura eletrônica – estava na sala com o corpo de Arthur.
– Charles?
– Moira está cuidando dele – disse Tom.
Anna encontrou Charles deitado de lado na sala de troféus de Arthur, em meio a pedaços de aço, sangue e entranhas. Moira estava ajoelhada ao lado dele com ambas as mãos sobre
seus ombros nus.
– Eu o estabilizei agora, mas não vai durar muito. Alguém colocou uma maldição mortal nele. Charles está lutando contra ela, e estou ajudando.
Anna olhou para seu rosto. Ele não estava inconsciente, e todos os músculos do seu corpo estavam rígidos; as veias destacavam-se como se ele estivesse levantando pesos.
– Como paramos isso? – perguntou Anna, não reconhecendo sua própria voz. Ela sabia o suficiente sobre magia para manter as mãos longe dele.
– Descubra quem colocou a maldição sobre Charles e faça esse alguém remover isso – disse Moira. – Ou mate-o.
– Você sabe dizer quem fez isso?
Moira sacudiu a cabeça.
– Essa é nova para mim. Não posso nem dizer se é bruxaria, magia Fae ou algum tipo de truque de lobisomem – está muito enredada com a magia dele. E a magia dele é algo que
nunca encontrei antes.
– A mãe dele era filha de um xamã – disse Angus.
– E o pai dele nasceu bruxo – disse Anna, sem considerar se isso era algo que Bran gostaria que soubessem. O fato de ter um pai que nascera bruxo significava que Charles tinha
muito mais magia do que a média dos lobisomens – talvez isso ajudasse Moira a mantê-lo vivo.
Anna olhou ao redor, tentando entender o que poderia ter acontecido para que pudesse descobrir como corrigi-lo: havia uma espada quebrada, uma faca de cozinha e o corpo morto
de Arthur. Magia... os vampiros tinham sido capazes de usar magia, e faltava um vampiro. Ou poderia ter sido a mulher Fae.
– Quanto tempo? – perguntou Anna.
– Até que eu não consiga mais segurar isso – disse-lhe a bruxa. – Uma hora. Talvez duas.
– O Marrok está vindo.
A voz de Angus era sombria
– Se alguém pode corrigir isso, é ele.
Houvera apenas uma luta naquela sala. Charles e Arthur. Quem quer que tivesse derrotado Charles era alguém que o tinha apanhado de surpresa. Algo que o vampiro nunca teria
conseguido.
Anna precisava pensar. Precisava encontrar quem estava prejudicando Charles e matá-los.
– Se Charles estava certo quando lhe enviou esse texto e Arthur era o vilão, então Arthur mandou matá-la – disse Anna. – Sua própria companheira.
– Ou a pessoa que enfeitiçou Charles – disse Angus.
Anna olhou para o corte limpo que havia no pescoço de Arthur. Estilo de execução, o estilo de Charles. Ela não discutiu com Angus, mas seu lobo estava certo: Arthur havia
matado sua esposa.
– Vou ver se consigo encontrar algumas roupas.
– Você e Sunny são aproximadamente do mesmo tamanho – disse Angus. – Acho que ela não se importaria se você pegasse algumas roupas.
Anna seguiu o cheiro da morte até o quarto de Sunny. Ignorando o corpo estendido na cama, ela foi até a cômoda e pegou um par de calças de agasalho rosa brilhante e uma camiseta.
Depois de se vestir, ela colocou as meias e os tênis de Sunny, que para sua alegria serviram como uma luva.
Anna foi em direção à porta, parou e olhou para a mulher morta.
– Meu marido deu um jeito em seu assassino.
Sunny abriu a boca e respirou. Anna congelou.
A mulher morta disse:
– Anna Latham Cornick, companheira de Charles Cornick, Ômega da alcateia de Aspen Creek. Loba. Irmã. Filha. Amante. Amada.
Os olhos de Sunny se abriram, enevoados e mortos, e sua cabeça virou-se até que ela olhou diretamente para Anna.
– Ela que foi Nimue, a Dama do Lago, e agora é Dana Shea, quebrou sua fé, faltou com sua palavra. Ela deve ser punida, e você foi escolhida como o instrumento de nossa justiça.
Nós lhe damos o dom de Encontrar, e isso.
A mão de Sunny ergueu-se, e nela havia um punhal com uma lâmina alguns centímetros maior que seu antebraço. O punho era de osso ou marfim, era difícil dizer.
– Pegue Carnwennen como o meio. A vida do seu companheiro como o motivo. Nosso geas como o custo. Amor verdadeiro como sua recompensa. Lembre-a da Caçada Selvagem.
Anna não fez nenhum movimento para tocar o punhal.
– Quem são vocês?
– Somos os Lordes Cinzentos. A que faz os mortos falarem é aquela que leva os mortos dos campos de batalha.
O corpo de Sunny estremeceu, e o punhal caiu de sua mão sobre a cama.
– Depressa, ou ele vai morrer, e você terá apenas justiça e vingança como suas únicas recompensas.
Os olhos de Sunny se fecharam, e seu corpo era mais uma vez apenas um corpo. Anna chegou perto do corpo e tirou o punhal; parte dela esperava que Sunny agarrasse seu pulso.
Mas nada aconteceu até que ela tocou o punhal.
Depois disso, a magia curvou sua mão, primeiro aquecendo sua pele ali onde ela tocava o punhal e, em seguida, resfriando-a. O dom de Encontrar, os Lordes Cinzentos tinham
dito, e uma recompensa de amor verdadeiro.
– Onde está Dana Shea? – disse Anna. E então ela soube.
TREZE
Anna desceu as escadas em dois saltos e correu para fora da porta, passando por Tom e ignorando o grito de Angus. Correndo em meio aos carros estacionados na rua, ela foi
em direção à água. Claro que Dana teria ido em direção à água.
– Aonde você vai? – perguntou Tom, correndo ao lado dela.
– Carnwennen, o meio – disse Anna, mostrando-lhe o punhal.
Tom tropeçou uma vez, mas conseguiu alcançá-la.
– Magia Fae – disse ele.
– Os Lordes Cinzentos – concordou Anna. – Carnwennen, o meio. Justiça, a causa. Amor verdadeiro, a recompensa. Seu geas, o custo.
– Essa já era... – disse ele, puxando o celular. – Sim, Angus. Os Faes falaram com ela. O que eu entendi é que eles estão enviando Anna atrás de Dana – não consigo imaginar
que eles se importassem com o vampiro que escapou, e ele é o único outro jogador nesse jogo. Ela está falando umas coisas sem nexo, mas me parece que prometeram a ela que
vão salvar Charles.
– Fique com ela. Ajude-a, se puder.
Angus parecia frustrado.
– Ele vai me matar se algo acontecer a ela.
– Charles? – perguntou Anna, através daquele quase transe que a mantinha correndo para longe dele.
– Sim, ele também, embora eu estivesse falando de Bran.
Anna fez um som impaciente.
– Charles ainda está conosco – disse Angus. – Moira diz que se foi Dana quem realmente fez isso, provavelmente a sua morte irá interromper o feitiço. Mas Faes são difíceis
de matar.
– Ah, mas eu acho que o punhal que deram a Anna vai matar uma Fae sim – disse Tom. – Cheira muito a magia. E tem um nome. Coisas Faes que têm um nome normalmente matam qualquer
coisa. Vocês conhecem um punhal chamado – Carnwellen?
Angus repetiu a pergunta para a única na casa de Arthur que não podia simplesmente ouvir a conversa toda.
– Moira, você conhece um punhal chamado Carnwellen?
– Carn-wennen? – guinchou Moira.
– Provavelmente. Tom disse errado.
– Carnwennen era o punhal do Rei Arthur. “Pequeno Punho Branco”, é o que significa. Arthur usou-o para caçar a Bruxa Muito Negra.
– O punhal tem um cabo branco – observou Tom. – Não parece tão pequeno para mim. É quase do tamanho do seu antebraço, e é quase o suficiente para ser uma espada curta em vez
de um punhal.
– Não poderia ter sido muito pequeno – disse Moira, quando a resposta de Tom foi repetida para ela. – O Rei Arthur supostamente cortou a bruxa ao meio com ele.
Anna viu Tom olhar para o punhal novamente.
– Sim – disse ele. – Acho que ele está à altura de algo assim.
– Mantenham-se seguros – disse-lhes Angus.
– Lembre-se – disse Moira, com urgência. – Nunca confie em Faes.
Anna franziu a testa.
– O troll nos disse isso.
– Disse o quê? – perguntou Tom.
Mas Anna estava mais preocupada em encontrar Dana do que em repetir o que dissera. Uma trilha pavimentada saía da estrada, e Tom pegou seu braço, puxando-a para obrigá-la
a parar.
– Anna, estamos indo para o barco da Dana?
– Eu não sei – disse ela, apontando com o dedo.
– Por ali.
– Poderíamos estar de carro, não? – disse Tom, fechando o telefone celular com uma mão e colocando-o em um bolso.
Ele estava errado.
– Não, sem carro.
– Suas sobrancelhas abaixaram.
– Claro que não. Magia de Fae, não é? Ferro frio.
Tom deu uma boa olhada nas algemas no pulso dela.
– Eu acho que essas algemas vão lhe manter segura.
– Eu tenho que ir – disse ela, com bastante força – Agora.
– Essa é a Trilha Burke-Gilman – disse Tom. – Se você está indo para o barco da Dana, é melhor saber que essa trilha passa direto pela sua doca. É uma rota mais direta do
que correr pela estrada – e estaremos muito menos propensos a atrair olhares com aquela coisa. Não há muitas pessoas do lado de fora fazendo jogging no meio do inverno a essa
hora da manhã.
Assim, Tom deixou que ela seguisse e decidisse o melhor caminho.
Anna correu pela trilha, esticando as pernas e deixando a caçada levá-la. A Caçada Selvagem. Era de manhã cedo, mas a escuridão ainda os vigiava, a escuridão e a pequena lasca
de lua. Era quase a hora do lado escuro da lua, mas ainda havia luz para caçar aquela noite.
i
Eles estavam quase no cais quando os geas se dissiparam. Anna podia ver o barco de Dana – mas foi capaz de forçar as pernas a andar. Quando Tom diminuiu a velocidade, parar
completamente não foi uma coisa tão difícil. Anna notou que as algemas estavam fazendo o seu trabalho, pois parecia que as mãos e os pés haviam voltado para seu controle antes
de qualquer outra parte do seu corpo.
– Tom? – perguntou Anna, ofegante.
– Todos os louvores à Virgem Mãe – disse ele. – Você está de volta.
– Magia – disse ela.
– Certo. O que aconteceu com você?
Anna contou tudo, falando mais rápido à medida que sua língua voltava a funcionar direito.
– Cadáveres falando, hein? – disse ele. – Desagradável.
Depois disso, ele ligou para Moira e Anna, contando a história para a bruxa – e, presumivelmente, todos os lobisomens se reuniram em torno do telefone.
– Ela que leva os mortos...
Moira parecia exausta.
– Essa seria provavelmente uma das Morrigan. Babd ou talvez Nemain, Macha eu acho que não. Desculpe, vocês não precisam disso. Tira a minha concentração. Eles querem que você
mate Dana. Por quê?
– Ela quebrou sua palavra – disse Angus. – Agora ela tem que ser um exemplo. Eu não gosto da ideia de usar Anna para fazê-lo.
– A Caçada Selvagem – disse Anna. – Eles chamaram de a Caçada Selvagem, acho que é isso o que eles disseram. Algumas das palavras eram um pouco difíceis de interpretar. Parecia
que era uma caçada somente para mim.
– Eles enviaram um lobo preso na forma humana com um punhal – embora enfeitiçado – atrás de uma mulher que é um Lorde Cinzento – disse Angus pesadamente, para quem quer que
estivesse ouvindo – ou talvez apenas para si mesmo. – Eu não acho que era para ela ter sucesso.
Ela é Nimue, a Dama do Lago. O irmão lobo falou com Anna em palavras claras, pela primeira vez. Sua voz soava como a de Charles, mas não muito, e trovejou através de seu vínculo.
Depois das palavras, ele acrescentou uma enxurrada de informações que não continham palavras, como a dor que ele tentara manter longe dela – não a escondendo, mas protegendo-a
dela – e como o punhal era parte de um tesouro roubado por Arthur – o qual incluía Excalibur, que Dana agora tinha. Havia também a preocupação e o comando – Anna devia voltar
ao apartamento de Arthur e aguardar o Marrok. Devia ficar longe de Dana. Ele achava que Anna estava sendo usada para devolver o punhal a Dana, para que esse fosse guardado
por ela.
Ele achava que ela era apenas um aviso, feito para ser destruído depois que entregasse sua mensagem.
E assim o irmão lobo fora embora de novo – e o vínculo pareceu... mais fraco.
– Nunca confie na Fae – disse Anna. Ela acreditava no irmão lobo. Mas Anna era a única que o tinha ouvido – graças a Deus, ou não a deixariam fazer o que ela precisava.
– Moira. Como está Charles?
– Não está bem.
Anna sabia, havia sentido quando o irmão lobo se comunicara com ela.
– Quanto tempo ele tem?
– Eu posso ajudar por, talvez, mais quinze minutos – e então será só uma questão de tempo. Charles está sentindo muita dor, eu acho, e isso não ajuda.
– Se ele... – Anna teve que respirar fundo e tentar novamente. – Se ele tivesse morrido antes de você chegar aí, você teria sido capaz de dizer o que o matou? Que era uma
maldição de morte? Que uma Fae havia jogado a maldição sobre ele?
– Não – disse Moira. – Eu não sei dizer quem colocou isso sobre ele agora. Se ele estivesse morto, provavelmente ninguém poderia dizer com certeza que tinha sido magia que
o matou. Se Charles não estivesse lutando contra ela –
– E Dana não tinha como saber que Angus e eu sabíamos que ela havia quebrado sua palavra para Bran. Ela achava que Charles seria o único...
Anna estava falando sozinha.
– A que distância está o Marrok?
Ela nem mesmo tinha certeza de que Bran poderia ajudar. Anna havia aprendido que ele não era infalível, apenas assustador.
– Ele vai pousar no Sea-Tac em dez minutos.
– Não há tempo suficiente – disse Anna, terminando a chamada.
– O que você está planejando? – perguntou Tom.
– Eu acho que “planejar” é um nome muito cerebral para isso – disse Anna. – Estou apenas indo em frente, essa é a realidade. Mas acho que essa é a única chance de Charles.
Isso podia significar sua morte. Mas Charles estava morrendo.
O telefone tocou.
Tom olhou para ele.
– Angus. Ele pode nos dizer para continuar ou não.
– E se ele não disser?
Tom desligou o telefone.
– Nós vamos juntos ou você me quer como guarda-costas?
Anna pensou sobre isso.
– Ela gosta de homens. Eu acho que será melhor se você vir comigo – disse Anna, olhando novamente para Tom. – Mas empreste-me o seu casaco.
As pessoas subestimavam Anna o tempo todo. Talvez os Lordes Cinzentos fizessem isso também. A água era negra debaixo do cais flutuante, e Anna não tinha nenhum desejo de brincar.
Ela bateu na porta, feliz por ter Tom por perto.
– Quem é?
A voz de Dana soou como se ela estivesse de pé ao lado deles.
– Você sabe quem é – disse Anna, não se preocupando em levantar a voz; Dana podia ouvi-la. – Eu tenho algo para você. Um presente, um aviso – depende de você.
– Estou no estúdio.
A porta se abriu.
Anna seguiu pelo caminho através do barco e subiu as escadas até o estúdio.
As luzes estavam acesas, e se não fosse por tudo aquilo, a cena seria muito parecida com a primeira vez que Anna esteve lá. Dana estava trabalhando em um quadro que Anna não
conseguia ver. O quadro enviado pelo Marrok estava do lado esquerdo, pendurado na parede, sozinho. Uma espada estava encostada casualmente contra a mesma parede, porém mais
perto do lado oposto da sala do que do centro. Ela se parecia muito com a espada que Arthur havia mostrado a Anna, a qual ele alegava ser Excalibur. Pelo que o irmão lobo
dissera a ela, essa provavelmente era a espada real. Sua duplicata estava toda quebrada na sala do tesouro de Arthur, destruída ao defender seu companheiro.
– Os Lordes Cinzentos me enviaram aqui para tentar matá-la – disse Anna à mulher Fae, que não tinha tirado os olhos de seu quadro.
– Já o irmão lobo acha que sou um mensageiro – continuou Anna –, enviado aqui para avisá-la que, se você fizer isso de novo, a Caçada Selvagem será enviada contra você. Ele
acredita que fui enviada para trazer-lhe o seu presente. E para que você me matasse – concluiu Anna, dando um suspiro profundo. – E eu acho que ele está certo.
A Fae olhou por cima de seu quadro. Ela estava linda. Não era uma beleza fria e perfeita, mas impressionante. Essa era uma mulher que deveria ser terrível em sua ira e feroz
na batalha. Anna sentiu o mesmo fascínio por Dana que tinha sentido na primeira vez que a vira.
Anna respirou fundo e fechou sua mão direita sobre a algema de aço em seu pulso esquerdo. Quando olhou novamente, Dana ainda estava bonita, mas Anna não se sentia como se
estivesse sendo sugada por sua beleza.
Dana sorriu, como se a luta de Anna a divertisse.
– Quem é o irmão lobo?
– Um amigo.
Anna não queria dar a Dana qualquer coisa que ela pudesse usar.
– Eu deveria vir aqui e atacá-la – mas eles não contaram com o pequeno presente que os vampiros de Arthur me deixaram. Ela mostrou a Dana uma das algemas em seu pulso e balançou
um pé para fazê-las tilintarem.
– O fracasso deles me deixou com poucas opções, e você também ficou sem muitas alternativas. Se eu a tivesse atacado, e você tivesse me matado... você estaria em poder deles,
não é?
– Eu sou um Lorde Cinzento – eu não respondo a ninguém.
– Quando Charles morrer, quando você me matar – o Marrok vai caçá-la. Você será forçada a morrer ou a deixar esse continente. Voltar para a Europa. Ficar sob o jugo deles.
Os lábios de Dana ficaram apertados de raiva – e o nariz de Anna lhe disse que nela havia um fio de medo.
– Você disse que me trouxe um presente?
Anna percebeu que Dana estava apenas tentando mudar de assunto. Mas era Anna quem estava no controle da conversa.
– Você não sabia – disse ela, tentando, com algum esforço, parecer relativamente simpática –, quando amaldiçoou Charles, que todos nós já estávamos cientes de que você quebrara
sua palavra de proteger os lobos que participavam dessa conferência, não é? Eu vi, Angus viu – e contamos a Bran e Charles. Não é o suficiente para uma acusação, mas mais
do que o necessário para que, se Charles morresse de causas não naturais, Bran se concentrasse em você.
A Fae pousou o pincel e o usou como desculpa para desviar o olhar. Mas Anna podia dizer muito mais pelo seu cheiro do que pela sua expressão. O cheiro de pânico era um velho
amigo. Ela não estava com medo de Anna. Estava com medo do Marrok – e talvez isso fosse o suficiente.
Anna caminhou em torno da pintura, até ficar a apenas meio metro de Dana.
– Nimue, Dama do Lago – disse Anna, chamando a parte dela que acalmava e consolava. – Retire a maldição do meu marido. Dou minha palavra de que nenhuma parte de sua trapaça
será revelada.
E pelo menos a minha palavra é boa, pensou Anna, mas não disse isso.
– O Marrok não vai caçá-la, nem expulsá-la de suas terras.
A Fae olhou para a pintura sobre o cavalete. Anna observou casualmente que Picasso era uma escolha mais sábia do que Vermeer. Nem mesmo os especialistas concordavam sobre
o que Picasso estava tentando dizer com seus quadros. Ninguém poderia dizer a Dana se ela tinha feito a coisa errada.
– Não – disse Dana; sua voz estava cheia de raiva. Ela levantou a mão e apontou para a pintura, não a dela, mas a que estava na parede – o presente do Marrok. – Eu não sinto
dor assim há mil anos. Olhe o que ele fez comigo. Toda vez que eu olho para ele me sinto como no dia em que tive de deixá-lo... Jurei perante vocês dois que eu iria retribuir
da mesma forma. Que ele iria pagar, e pagar da mesma forma que eu – com a mesma tristeza. Eu perdi meu lar, ele perde seu filho. Eu voltarei para a Europa e ele –
Anna esfaqueou-a com o punhal que tinha escondido no casaco de Tom. Sob as costelas e através do coração – exatamente como sua série forense favorita da TV havia lhe ensinado.
Os olhos da Fae piscaram surpresos apenas por um instante, antes que ficassem completamente vazios.
– “Não” era a resposta errada – informou Anna.
– Não se mova – disse Tom, usando a espada apoiada contra a parede.
Anna puxou o punhal para fora do corpo de Dana e limpou-o com um pano que ela deixava sobre a pequena mesa com suas pinturas. Ela tentava não pensar no que havia acabado de
acontecer. E falhou miseravelmente.
– São seis corpos decapitados nessa viagem – disse ela, odiando o tremor de sua voz. – E não estou contando os primeiros dois vampiros que matamos – porque seus corpos viraram
poeira. Seis é um pouco demais, não acha?
– Talvez ela tivesse permanecido morta só com o seu golpe – disse-lhe Tom. – Eu não sei muito sobre matar fadas. Aço frio parece ser o truque – e aquele punhal tinha um bocado
disso, um bom ferro frio e afiado. Mas pode apostar que eu não quero correr o risco de encontrar Dana novamente depois disso. Portanto não houve nenhum mal em nos certificarmos.
– Será que você... você poderia ligar?
Será que Anna tinha conseguido matá-la a tempo? Aquilo havia funcionado? Será que Charles estava morrendo enquanto ela estava aqui?
Tom pegou o pano ensanguentado e limpou também a espada, com poucos e eficientes movimentos. Então ele a entregou a Anna e pegou o seu celular.
– Olá Moira – disse ele. – Como está Charles?
– Melhor – disse Moira, parecendo meio morta pelo seu tom de voz. – Nada bem. Nada bem mesmo. Mas a maldição se dissipou há alguns minutos. Ele vai se recuperar.
– Isso é o que acontece quando um Ômega vai negociar – comentou Angus. – Nem mesmo uma Fae pode ficar contra um Ômega.
Tom olhou para o corpo de Dana. – Então é isso – disse ele. – Embora eu não ache que ninguém esperasse exatamente esse resultado.
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O troll, disfarçado como uma pessoa normal, estava esperando por eles do lado de fora da porta. Ele estava encostado no barco, fumando um cigarro e olhando para os pés.
Tom ficou à frente de Anna.
– Bem – disse o troll, com voz suave. – Eu acho que isso mostrou a eles. Ninguém nem pensou que você seria capaz, Senhora. Principalmente aquela lá.
Ele inclinou a cabeça para o barco.
– Ela ia matar o meu companheiro.
O troll assentiu.
– E você também, parecia. Ela devia de sabê que algumas pessoas encaram coisas como matar os companheiros como muito sério, é sim.
Ele apagou o cigarro com o polegar e jogou-o na água.
– Eu tenho que tomar conta...
Anna rodeou Tom e estendeu o punhal em uma mão e a espada em outra.
– Elas não são minhas – disse ele – Eu não as quero.
O troll recuou, e teve que dar alguns passos estranhos para não cair na água.
– Não me empurre essas coisas, não. Não me empurre. Eu tenho que tomar conta do corpo. Vou fazer com que a Dona Dana Shea não seja encontrada.
Ele parecia mais calmo depois que Anna deixou suas mãos caírem e desistiu de segurar as armas.
– Está melhor, assim, é sim. Agora eu vou pedir a vocês para vigiarem isso aí um pouco mais. Alguém virá para coletá-los mais tarde. Outra pessoa.
E caso Anna ainda não tivesse entendido, ele disse:
– Outra pessoa que não eu.
– Tudo bem – disse Anna. – De acordo.
O troll tirou o casaco velho que estava usando.
– Pode acontecer de você querê embrulhar as coisas aqui. Vai manter tudo fora das vista. Um pouco de magia... e um monte de material.
Anna reprimiu um obrigado. Tom, que pegou o casaco, não parecia ter o mesmo problema.
– Eu farei com que o casaco seja devolvido a quem quer que venha pegar as armas – disse ele. – Talvez eles possam devolvê-lo.
O troll assentiu com a cabeça e entrou no barco.
– Troll – disse Tom, pensativo, batendo duas vezes no lado do barco com os nós dos dedos. – Eu acho que não precisava ter cortado a cabeça, mesmo. Bon appetit.
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Eles estavam a meio caminho de volta (embora Anna estivesse completamente exausta e sua estimativa da distância pudesse estar bastante errada), quando ela notou um carro caro
mas anônimo roncando o motor na junção entre a estrada onde estavam e um cruzamento.
– Eu também estou vendo – disse Tom, movendo-se entre ela e o carro.
Bastante consciente do que estava carregando, Anna não protestou. Ela não queria a espada – mas havia várias pessoas que não deveriam ficar com a espada. Como o vampiro que
havia escapado.
Ela recuou uns quatro metros e deixou Tom assumir a liderança. Se a espada fosse ao menos uma arma. Ela sabia usar uma arma.
A porta de trás do carro abriu e Bran saiu.
Tom não parecia aliviado.
Anna começou andar no que parecia um trote, mas que se tornou uma corrida.
– Isso é bom, muito bom. Tom, apresento-lhe Bran Cornick, o Marrok. Bran, esse é Tom. Eu não me lembro do sobrenome dele, mas ele salvou a minha vida.
– Tom Franklin – disse Bran. – Obrigado. Anna... – disse ele, balançando a cabeça – Faltam-me palavras.
– Aqui – disse ela, empurrando o casaco com a espada e o punhal para Bran. – Você fica com isso. Eu não quero essas coisas. Alguém deve vir e pegá-las mais tarde.
– Ah – disse ele, olhando para o material maltratado. – Seattle não é o lugar onde eu esperaria encontrar esses objetos.
Ele parecia saber o que estava segurando mesmo com o material ainda embrulhado.
Tom sorriu.
– Seattle é uma cidade com certo... estilo. Nunca se sabe o que você vai encontrar quando vem visitá-la. Boa comida, pessoas amigáveis, antigas armas lendárias. Sempre alguma
coisa diferente.
– Entrem no carro – disse Bran. – Todos eles estão a caminho da casa de Angus.
– Charles?
Anna não pôde evitar a ansiedade.
– Ele queria vir comigo – disse Bran. – Mas eu falei a ele que teria de esperar até que pudesse caminhar com seus próprios esforços. Charles irá até Angus também, isso se
já não estiver lá.
Ele entrou no carro e Anna deslizou para o lado dele, deixando o assento da janela para Tom.
Bran lançou um olhar divertido a ela.
– Ele não estava feliz comigo. Ou com você também. É possível que Charles grite com você, porque ele ficou um bocado assustado dessa vez.
– Parece injusto para mim – disse Anna, embora isso não a chateasse. – Eu arrisco o meu pescoço para salvá-lo, e ele grita comigo – completou ela.
Porém, Charles estava vivo, e ele poderia gritar com ela o quanto ele quisesse.
– Se você ficar incomodada, apenas chore algumas lágrimas – murmurou Tom. – Ele vai calar a boca. Funciona para Moira.
– Arthur está morto, Dana está morta. Cinco dos seis vampiros estão mortos – disse Anna. – Restou apenas um vilão.
– Não temos que nos preocupar com o vampiro que escapou – disse Bran – Os vampiros daqui o encontrarão e tomarão conta dele. Aparentemente, eles enviarão a prova para Angus.
– Bom – disse Tom.
Anna considerou isso inapropriado. “Bom” era a palavra errada. “Bom” não deveria ser aplicado a corpos decapitados e pessoas mortas. Mas ela não tinha uma palavra melhor.
Anna tinha que perguntar.
– Bran? Você não poderia ter feito alguma coisa para impedir a Fae de matar Charles? Eu deveria ter esperado por você?
Eu matei desnecessariamente? – completou Anna, em pensamento
Ele deve ter ouvido suas preocupações não ditas.
– Nos tribunais humanos, a menor das acusações contra Dana teria sido conspiração para cometer assassinato. Charles confirmou que ela sabia que Arthur planejava matar Sunny.
E Jean Chastel. E Charles. Ela mesma estava matando Charles. Isso é tentativa de assassinato – disse Bran, balançando a cabeça.
– Não lamente a morte dela.
– Ela era a Dama do Lago – disse Anna, em voz baixa.
– E o fato de ser famosa deveria torná-la imune às consequências de seus atos?
Ele puxou a cabeça de Anna em sua direção e a beijou na testa.
– Ego te absolvo. Aí está um pouco de latim para você, minha querida. Eu a absolvo de sua culpa. Você agiu bem. A única forma que eu poderia usar para impedi-la era a mesma
que você usou. E eu teria chegado tarde demais.
– De duobus malis, minus est semper eligendum – murmurou ela. – Sua morte foi o mal menor.
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Charles estava sentado no esplendor solitário de um sofá enorme na espaçosa sala de estar de Angus – enquanto as outras dez ou doze pessoas presentes se acomodavam do outro
lado da sala.
Anna observava a cena.
– Ok – disse ela. – Quem será que está sendo um resmungão...
Charles olhou para a companheira. Anna concluiu que, por um olhar como esse, teria feito muito mais que matar. Ele deu um tapinha no sofá para que ela se sentasse ao seu lado,
mas em vez disso Anna se aninhou em seu colo.
– Eu tive uma noite realmente ruim – disse ela. – Há alguma chance de dormirmos um pouco?
Charles beijou-a, um longo e envolvente beijo que não tinha misericórdia. Quando ele terminou, Anna lambeu os lábios e disse, em uma voz sem fôlego:
– Isso significa não?
– Eu mataria dragões por você – disse-lhe Charles. – Suspeito que achar um quarto vazio será mais fácil.
Ela se afastou um pouco, o suficiente para que pudesse olhar para o rosto dele.
– Dragões... tá. Bem, eu matei a Dama do Lago por você, senhor.
Charles colocou o rosto dela entre as mãos.
– Sinto muito, Anna.
Te absolve, realmente, pensou ela. Sentindo o calor de Charles e sua carne inegavelmente quente e viva, Anna poderia matar a Fae novamente por ele.
– Eu não sinto – disse ela. – Eu te amo.
Angus suspirou.
– Pombinhos – disse ele.

 

 


1 Grupo de nativos norte-americanos que habitam a Colônia Britânica (Canadá) e noroeste dos Estados Unidos (N.T.).
2 “Por favor”, em alemão (N.T.).

 

 

                                                   Patricia Briggs         

 

 

 

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