Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O DON TRANQUILO
4º Volume / Segunda Parte
Mandou-me chamar uma, duas vezes, e eu vi que nada tinha a esperar da sua benevolência. Deu ordem ao chefe do pelotão para me pôr a fazer guardas e quartos de sentinela fora da minha vez e as chatices choviam-me de todos os lados. Aquela besta tornava-me a vida impossível. Tanto a mim como àqueles dois 'que estavam comigo quando o prendemos. Os tipos aguentaram, aguentaram, até que por fim me chamaram de parte e disseram: “Temos que o matar, de contrário nunca mais nos deixa em paz.” Eu pensei e resolvi falar antes ao comandante do Regimento, porque a minha consciência não me consentia que o matasse assim. No momento em que o prendemos poderíamos tê-lo liquidado. Mas depois não conseguia erguer a mão contra ele. Quando a minha mulher degola uma galinha, volto sempre a cara para o lado. Agora tratava-se de um homem...
- Mas sempre acabaste por o matar? - interrompeu de novo Grigóri.
- Espera lá, já vais saber tudo. bom, contei a coisa ao comandante do Regimento e ele, pondo-se a rir, disse-me: “Não deves zangar-te, Zikov; tu bateste-lhe. Ele tem razão em querer impor a disciplina. É um bom oficial que sabe quais são os seus deveres.” Eu fui-me embora e pensei: “Se é bom oficial, que lhe preste, mas eu cá é que não me sujeito a servir no mesmo esquadrão que ele.” Pedi que me mudassem mas não me atenderam. Então resolvi pôr-me ao fresco. Mas como? Tinham-nos mandado descansar oito dias na retaguarda e mais uma vez o diabo me tentou Disse comigo: “Não tenho outra maneira de me safar senão ver se apanho para aí uma moléstia. Então irei para a ambulância e entretanto começa a retirada. Era isso que eu esperava E fiz então o que nunca tinha feito até ali: pus-me a andar atrás das mulheres e a procurar aquelas que tinham ar menos sadio. Mas como havia de acertar? As que têm a moléstia não o trazem escrito na cara. Vá-se lá saber!
Prokhor, depois de cuspir raivosamente, apurou o ouvido para ver se a mulher lá vinha.
Grigóri tapou a boca com a mão para esconder um sorriso e inquiriu, com os olhos brilhantes e piscos de riso:
- E conseguiste alguma coisa?
Prokhor voltou para ele os olhos lacrimejantes. O seu olhar era triste e tranquilo como o de um cão velho, no fim da vida.
Após um curto silêncio, prosseguiu:
- Julgas que é fácil? Quando a gente não precisa a coisa acontece, mas agora, parecia de propósito, não havia meio. Era de chorar de raiva.
Grigóri voltara o rosto e ria-se à socapa. Depois tirou a mão da cara e perguntou, numa voz entrecortada:
- Não me deixes ficar na dúvida por mais tempo, pelo amor de Deus! Conseguiste ou não?
- Claro, a ti dá-te vontade de rir - disse Prokhor, ofendido.
- É fácil fazer troça da desgraça alheia.
- Mas eu não estou a fazer troça. E depois?
- Depois, comecei a andar à volta da rapariga da casa onde estava hospedado. Uma gaja dos seus quarenta anos, talvez um pouco menos. Tinha a cara cheia de borbulhas e um aspecto... que Deus nos acuda! Os vizinhos tinham-me dito que ela ia muitas vezes ao médico, de há uns tempos para cá. “Com esta”, disse comigo, “apanho a moléstia com certeza.” E vá de começar a arrastar-lhe a asa como um franganote, a fazer peito e a dizer-lhe baboseiras nem sei onde ia buscar aquele paleio.
Prokhor, sorrindo com ar contrafeito, parecia divertido ao recordar o que se passara então.
- Prometi-lhe casamento e disse-lhe toda a casta de idiotices...
- E com isto acabei por conseguir levá-la, convencera-a, e já a tinha pronta a cair, quando ela se pôs a choramingar. Eu então declarei-lhe: “Se é por teres a moléstia, não te rales, tanto melhor.” Estava cheio de medo. Era noite escura e podia vir alguém ao palheiro onde nós estávamos, se se ouvisse lá fora o barulho. “Não grites, pelo amor de Deus! Ainda que estejas com a moléstia, nada receies, aceitarei tudo por teu amor.” Ela vai então e declarou-me: “Eu cá não tenho doença nenhuma Sou uma menina honesta e sinto medo, é por isso que estou a chorar.” Talvez não acredites, Grigóri Panteleiévitch, mas quando ela me disse aquilo fiquei coberto de suores frios. “Senhor Jesus”, disse comigo. “Isto é que se chama ter gato! Só me faltava mais esta!. “ Fiquei desvairado e perguntei-lhe: “Ó minha maldita, então porque ias tu tanta vez ao médico? Porque enganavas tu as pessoas?” “Fui ao médico”, disse-me ela, “para ele me dar uma pomada contra as borbulhas que tenho na cara.” Eu apertei as mãos na cabeça e gritei-lhe: “Põe-te a andar daqui para fora, estupor, malvada bruxa! Se és uma menina honesta, não quero nada contigo nem faço tenções de casar “
Prokhor cuspiu mais uma vez com raiva, prosseguindo sem entusiasmo:
- Todos os meus esforços tinham sido vãos. Entrei em casa, peguei na trouxa e, nessa mesma noite, mudei de poiso. Houve no entanto uns tipos que me informaram e acabei por a apanhar de uma viúva. Mas desta vez disse-o claramente: “Tens a moléstia?” . “É uma coisa leve”, respondeu ela. “Para mim basta. Também não preciso de nenhuma arroba dela.” Dei-lhe vinte rublos pelo serviço e no dia seguinte já podia admirar os resultados. Corri à ambulância e de lá mandaram-me para casa.
- E vieste sem o cavalo.
- Como, sem o cavalo? Trouxe o cavalo e todo o meu equipamento. Mandaram-mo à ambulância. Mas preciso que me aconselhes a respeito de uma coisa. Que hei-de eu dizer à minha mulher? Será melhor ir dormir esta noite a tua casa?
- Isso não! Dorme aqui e diz-lhe que estás ferido. Não tens uma ligadura?
- Tenho uma na minha caixa de pensos individual.
- Então porque esperas?
- Ela não vai acreditar declarou Prokhor, desconsolado.
Mas apesar disso ergueu-se. Vasculhou dentro do saco e depois entrou no quarto, dizendo de lá sem elevar a voz:
- Se ela vier dá-lhe conversa que eu já lá vou.
Enquanto ia enrolando um cigarro, Grigóri pensava na viagem. “Vamos fazer uma atrelagem de dois cavalos” decidiu. “É melhor partirmos à noite para a minha gente não ver que eu levo a Akciútka. De qualquer maneira, acabam sempre por vir a sabê-lo...”
- Ainda não acabei de te contar a história do chefe de esquadrão.
Prokhor saiu do quarto a coxear e sentou-se à mesa.
- Os nossos mataram-no no dia seguinte à minha chegada à ambulância.
- Não me digas!
- Juro-te. Durante um combate. Atiraram-lhe pelas costas, e pronto. Ao cabo e ao resto, agarrei este mal sem necessidade. É uma chatice.
- E nunca apanharam o culpado? - inquiriu distraidamente
Grigóri, todo entregue aos seus planos de viagem.
- Era mesmo boa altura para o procurarem! com toda aquela confusão ninguém tinha tempo para pensar nisso. Mas onde se meteria a minha mulher? Acabamos por já nem ter ontade da vodka. Quando tencionas partir?
- Amanhã.
- Não poderíamos esperar mais um dia?
- Para quê?
- Para eu me ver livre dos piolhos. Não faço gosto nenhum em os levar na viagem.
- Podes catá-los pelo caminho. A situação não nos permite esperas. Os vermelhos estão a dois dias de marcha de Viochénsskaia.
- Partimos de manhã?
- Não, à noitinha. Basta chegarmos a Karguínsskaia a horas de lá pernoitarmos.
- E os vermelhos não nos alcançam?
- Temos de estar alerta. Queria dizer-te uma coisa... Tenciono levar comigo a Akcínia Astakhov. Não tens nada contra isso?
- Que queres que eu te diga? Podes até levar duas Akcínias se te apetecer... Mas para os cavalos é peso de mais.
- Ela não pesa muito.
- E é pouco prático viajar com uma mulher. Mas para que a queres tu levar? Nós os dois não teríamos problemas.
Prokhor suspirou e disse, desviando os olhos:
- Eu já sabia que ias querer levá-la. Continuas a fazer de rapazinho... Ah, Grigóri Panteleiévitch, andas há muito a provocar o castigo!
- Não tens nada com isso. E não digas à tua mulher.
- Já alguma vez lhe falei nisto até hoje? Devias ter um bocado de consciência. E a quem deixa ela a casa?
Ouviram-se passos no vestíbulo e a dona da casa entrou. Via-se neve a brilhar sobre o seu xaile cinzento e macio.
- Está a nevar? - inquiriu Prokhor, enquanto tirava dois copinhos do armário Arranjaste alguma coisa?
A mulher, de faces muito vermelhas, tirou do seio duas garrafas embaciadas que poisou sobre a mesa.
- Ora aqui temos nós uma ajuda para a viagem! - disseProkhor bem-humorado.
Depois de cheirar a aguardente, comentou:
- De primeira qualidade. E forte como o diabo!
Grigóri emborcou dois cálices e retirou-se, alegando estar cansado.
Ora bem, isto é o fim da guerra. Os vermelhos apertaram-nos tanto que agora vamos recuar até ao mar e em breve teremos o cu de molho na água salgada disse Prokhor quando acabaram de subir a colina.
Tatársski ficara em baixo, envolta em fumo azulado. O sol punha-se atrás da fímbria nevada e cor-de-rosa do horizonte. A neve estalava debaixo dos patins. Os cavalos seguiam a passo. Grigóri seguia recostado nas selas, na parte de trás do trenó. Akcínia, sentada ao lado dele, ia envolta numa peliça do Don, debruada a lontra. Os seus olhos negros brilhavam sob o xaile branco e peludo Grigóri contemplava-a de esguelha; via-lhe a face delicadamente rosada pelo gelo, as sobrancelhas negras e espessas, os globos dos olhos com reflexos azulados sob as pestanas curvas cobertas de geada. Akcínia observava com curiosidade a estepe crivada de montículos de neve, a estrada reluzente pela passagem constante dos patins dos trenós, os horizontes longínquos afogados em trevas. Tudo era novo e insólito, tudo atraía a atenção de quem, como ela, estava habituada a ficar em casa. De tempos a tempos, baixava os olhos e, sentindo sobre as pestanas a agradável sensação do gelo, sorria ao pensar na maneira estranha como se viera a concretizar o seu velho sonho: partir, um dia, com Grigóri, para longe de Tatársski, essa terra maldita onde tanto sofrera, onde metade da sua vida não passara de uma tortura contínua ao lado de um marido que não amava, onde tudo para ela estava cheio de recordações penosas e obcecantes. Sorria, sentindo em todo o corpo a presença de Grigóri, e já não pensava no preço por que pagara essa felicidade, nem no futuro envolto na mesma escuridão dos horizontes da estepe que a atraíam ao longe.
Prokhor, voltando por acaso a cabeça, vislumbrou um sorriso fremente nos lábios de Akcínia, vermelhos e inflamados pelo frio. E disse-lhe, de mau humor:
- Porque vais tu com os dentes à mostra? Pareces uma noiva, contente por deixar a casa dos pais.
- E parece-te que não tenho razões para estar contente? - respondeu Akcínia numa voz sonora.
- Realmente, é caso para isso... Que mulher estúpida! Nem sequer sabemos como terminará este passeio. Não rias antes de tempo. Esconde os dentes.
- Não me pode suceder nada pior do que aquilo por que tenho passado.
- Sinto náuseas só de olhar para vocês... – declarou Prokhor, brandindo o chicote por cima dos cavalos.
- Então volta a cara e mete um dedo na boca – aconselhou Akcínia, rindo.
- Mais uma asneira que estás a dizer. Achas que tenho de ir até ao mar com um dedo na boca? Isso é muito fácil...
- Mas porque diabo sentes tu náuseas?
- Era melhor que te calasses. Onde está o teu marido? Agarras-te a um estranho e vais com ele para casa do diabo. E se o Stepane regressar à aldeia?
- Escuta, Prochka. Era melhor que não te metesses na nossa vida. Não ganhas nada com isso.
- Não me meto na vossa vida. Quero lá saber! Mas já não posso dar a minha opinião? Ou sou obrigado a servir-vos de cocheiro e a limitar-me a conversar com os cavalos? Achas isso bem? Quer te zangues, quer não, Akcínia, eu digo que tu precisavas de uma boa coça de marmeleiro. Quanto ao que eu ganho com isso ou deixo de ganhar, é comigo. A minha felicidade é de uma espécie que não me faz cantar nem me deixa dormir...
- Vá! Vá! Malditos! Só sabem andar a passo, malandros!
Grigóri, que os escutara a sorrir, disse num tom conciliador:
- Não comecem a discutir logo no princípio da viagem. Temos um longo caminho a percorrer. Há tempo para tudo. Porque estás tu a chateá-la, Prokhor?
- Eu não a chateio respondeu Prokhor, furioso. Ela é que fazia melhor se estivesse calada. Acho que não há nada neste mundo pior do que as mulheres. São coisa ruim. Se estivesse na minha mão, acabava-lhes com a raça. Não as gramo.
- Porque estás tu a rir? É feio gozar com o mal dos outros. Pega lá as rédeas, vou caminhar um bocado.
Prokhor seguiu a pé durante um bocado e depois voltou a instalar-se no trenó, mas sem reatar a conversa.
Passaram a noite em Karguínsskaia. No dia seguinte pela manhã, no fim do almoço, puseram-se a caminho, e à noite haviam percorrido já umas sessenta verstás.
Passavam para o Sul enormes cortejos de refugiados. À medida que se afastavam do território da stanitsa de Viochénsskaia, ia-se tornando mais difícil descobrir um sítio para passar a noite. Nos arredores de Morozovskaia, encontraram as primeiras unidades cossacas. Passavam grupos de trinta a quarenta cavaleiros, a procissão dos carros estendia-se interminavelmente.
À noite, nas aldeias, todas as casas estavam ocupadas e nem sequer havia lugar para recolher os cavalos. Depois de haver procurado muito tempo em vão, Grigóri foi obrigado a passar a noite num telheiro, numa colónia tauridiana. Pela manhã, os fatos molhados pela neve estavam gelados e estalavam ao menor movimento. Grigóri, Akcínia e Prokhor quase não haviam cerrado os olhos durante toda a noite, e só aqueceram de madrugada, quando acenderam uma fogueira de palha no pátio.
Akcínia alvitrou timidamente:
- Gricha, se passássemos o dia aqui? Tivemos frio toda a noite e quase não dormimos. Podíamos descansar agora um pouco.
Grigóri concordou. Descobriu a custo um canto livre.
Os comboios de refugiados tinham partido de madrugada, mas ficara ali um hospital de campanha que transportava mais de cem feridos e doentes com o tifo, que se demoravam também um dia
Num compartimento exíguo, dormiam dez cossacos sobre o chão de terra suja. Prokhor foi buscar uma manta e um saco de provisões, calafetou a porta com palha, puxou pelos pés de um velho que dormia pesadamente, dizendo com uma amabilidade rude:
- Deita-te, Akcínia. Estás desfigurada de cansaço.
À noite, a aldeia encheu-se de novo. Até de madrugada, arderam fogueiras nas ruas, ouviram-se vozes de homem, relinchos de cavalos e o ranger dos trenós. Aos primeiros clarões do dia, Grigóri, acordando Prokhor, murmurou-lhe:
- Vai atrelar os cavalos, temos de partir.
- Porquê tão cedo? - inquiriu Prokhor a bocejar.
- Escuta.
Prokhor ergueu a cabeça que repousava na almofada da sela e ouviu o troar surdo e longínquo do canhão.
Levantaram-se, comeram um pouco de toucinho e saíram da aldeia já desperta. Nas ruas, alinhavam-se filas de trenós, as pessoas afadigavam-se, um gritava no escuro com uma voz rouca:
- Isso não! Enterrem-nos vocês. Se fôssemos abrir uma cova para seis homens sairíamos daqui ao meio dia!
- Não temos obrigação nenhuma de os enterrar – respondeu uma voz calma.
- Pois eu garanto que quem os enterra são vocês! - gritava a voz roufenha. - E se não quiserem fazê-lo ficam com eles aí a apodrecer. A mim tanto se me dá.
- Mas, senhor doutor, se tivéssemos de enterrar todos os que morrem aqui, não fazíamos mais nada. Não poderiam ao menos levá-los?
- Vai para o diabo, meu estúpido! Achas que vou entregar o meu hospital aos vermelhos por tua causa?
Grigóri fez um desvio para evitar os trenós que obstruíam a rua e disse:
- Ninguém quer os mortos...
- Nem com os vivos as pessoas se importam, quanto mais com os mortos... - acrescentou Prokhor.
Todas as stanitsas ao norte da região do Don estavam em marcha para o Sul. Inúmeros cortejos de refugiados atravessavam a via férrea de Tsaritsine-Likhaia, aproximando-se de Manitch. Desde que andava em viagem, havia uma semana, Grigóri tentava continuamente saber notícias dos homens de Tatársski, mas ninguém dera por eles nas aldeias por onde passava. Pelos vistos, haviam seguido pela esquerda, em direcção a Oblivsskaia, através das aldeias cossacas, sempre a evitarem as colónias ucranianas. Só ao cabo de treze dias encontrou o rasto dos homens da sua terra. Depois de atravessar o caminho-de-ferro numa aldeia, veio a saber que um cossaco da stanitsa de Viochénsskaia, atacado de tifo, se encontrava na casa ao lado. Grigóri quis saber donde ele vinha. Penetrando no edifício baixo, deparou com o velho Obnizov deitado no chão. Soube por ele que os homens de Tatársski tinham saído dali na antevéspera, que muitos haviam contraído o tifo, tendo dois deles morrido pelo caminho, e que ele próprio, Obnizov, fora deixado ali a seu pedido
- Se escapar desta e os camaradas vermelhos me pouparem a vida, cá me arranjarei para regressar à terra. De contrário, morrerei aqui. Morrer aqui ou lá, tanto faz. Nunca é uma coisa agradável... - declarou o velho, ao despedir-se de Grigóri.
Este pedira notícias do pai, mas o velho Obnizov nada lhe soube dizer, pois viera num dos últimos trenós do cortejo e não voltara a ver Pantelei Prokófievitch desde a aldeia de Malakhóvsski.
Na paragem seguinte, Grigóri teve mais sorte: na primeira casa onde se apresentou estavam cossacos seus conhecidos, da aldeia de Verkhné-Tchirsski. Apertaram-se um pouco e Grigóri instalou-se junto ao fogão. Havia ali uma dezena de refugiados em monte no chão, dos quais três tinham o tifo e um estava gelado.
Os cossacos haviam preparado para a ceia uma kacha de milho com toucinho e ofereceram-na cordialmente a Grigóri e aos seus companheiros de viagem. Prokhor e Grigóri comeram com apetite. Akcínia recusou.
- Não tens fome? - inquiriu Prokhor, que há já alguns dias mudara de atitude para com ela, passando a tratá-la com simpatia, embora um pouco bruscamente.
- Estou enjoada.
Pôs o lenço e saiu para o pátio.
- Ela estará doente? - perguntou Prokhor a Grigóri.
- Talvez.
Grigóri, afastando o prato cheio, saiu também.
Akcínia estava de pé, junto ao alpendre, a comprimir o peito com a mão. Grigóri, abraçando-a, perguntou-lhe, inquieto:
- Que tens tu, Ksiúcha?
- Estou agoniada e dói-me a cabeça.
- Vem cá para dentro e deita-te.
- Entra tu que eu já vou.
Falava numa voz surda, átona, e os seus gestos eram lentos. Grigóri observou-a atentamente quando ela entrou na sala aquecida, reparando no rubor febril das suas faces e no brilho suspeito dos olhos. Sentiu o coração apertado: Akcínia estava por certo doente. Recordou-se de que já na véspera ela se queixara de arrepios e vertigens. Transpirara muito pela madrugada, tinha até os caracóis do pescoço encharcados como acontece depois do banho. Notara isso pela manhã ao acordar e mantivera muito tempo os olhos fixos em Akcínia adormecida, sem fazer um gesto para a não acordar.
Akcínia suportara corajosamente as privações da viagem.
Chegava mesmo a animar Prokhor, que dizia muitas vezes: “Que porcaria de guerra! Só queria saber quem a inventou. Andamos, andamos todo o dia e, chega-se à noite, não há lugar onde se fique. Não sabemos mesmo até onde teremos de ir assim de jornada.” Mas nesse dia a própria Akcínia não aguentou mais. À noite, quando se deitou, Grigóri julgou ouvi-la chorar.
- Que tens tu? - perguntou em voz baixa. - Sentes-te mal?
- Estou doente. Que havemos de fazer? Vais-me abandonar?
- Que estupidez! Como poderia eu abandonar-te? Não chores. Apanhaste frio pelo caminho e agora estás assustada.
- Grichenka, estou com o tifo.
- Não digas asneiras. Não há provas nenhumas disso. Tens a testa fresca disse Grigóri para a tranquilizar. Mas no seu foro íntimo estava persuadido de que Akcínia apanhara o tifo exantemático e perguntava a si próprio o que faria se ela de facto contraísse uma doença grave.
- Oh, como é duro viajar assim! - murmurou Akcínia apertando-se contra Grigóri. Olha para toda esta gente a dormir em monte. Estamos comidos de piolhos, Gricha! E eu não consigo arranjar-me em parte nenhuma, há homens por todo o lado... Ontem entrei numa granja, despi-me, e calcula tu o que estava na minha camisa! Meu Deus, nunca vi nada tão horroroso. Só de pensar nisso sinto náuseas, não consigo comer nada... Viste ontem aquele velho que dormia no banco, o que ele tinha em cima? Até a túnica fervilhava de piolhos.
- Não penses nessas coisas. Fazes mal em estar sempre a falar no mesmo. Piolhos são piolhos. No exército já nem fazemos caso deles murmurou Grigóri, um pouco irritado.
- Sinto comichões pelo corpo.
- Andamos todos assim, não há nada a fazer. Paciência. Quando chegarmos a Ekaterinodar lavar-nos-emos.
- De nada serve mudar de roupa. Eles vão devorar-nos, Gricha!
- Dorme. Amanhã temos de partir muito cedo.
Grigóri ficou muito tempo sem conseguir adormecer.
Akcínia também estava acordada. Teve soluços, cobriu a cabeça com a aba da peliça, voltou-se e tornou a voltar-se, suspirando, e só adormeceu quando por fim Grigóri se virou para ela e a envolveu nos braços. A meio da noite Grigóri foi acordado por uma violenta pancada na porta. Alguém tentava arrombá-la e uma voz potente gritava:
- Abrem ou não abrem? Vamos arrombar a porta. Estão a dormir, corja de patifes?
O dono da casa, um cossaco velho e pacífico, saindo para o vestíbulo, inquiriu:
- Quem é? Que me querem? Se é para passar a noite não tenho lugar, está tudo à cunha, já ninguém se pode mexer.
- Abre, já te disse! - gritaram lá de fora.
Cinco cossacos abriram a porta até trás e enfiaram-se pela casa dentro.
- Quem é que está a pernoitar aqui? inquiriu um deles, negro de frio, movendo com dificuldade os lábios dormentes.
- Refugiados. E vocês quem são?
Sem dar resposta, um dos homens penetrou no quarto e exclamou:
- Eh, vocês aí! Raspem-se! Ponham-se imediatamente a andar daqui para fora! Estão a chegar tropas. De pé! De pé! E sem demora! Toca a andar.
- Quem és tu, para berrares assim? - disse Grigóri numa voz rouca de sono, levantando-se com lentidão.
- Já te vou mostrar quem sou.
O cossaco deu um passo para Grigóri. À luz pálida do candeeiro de petróleo o cano de um revólver brilhou na mão do homem.
- És muito despachado, pelo que vejo... - disse Grigóri num tom insinuante. Deixa cá ver esse 'brinquedo.
Num gesto rápido agarrou no pulso do homem e apertou-o tanto que o outro, soltando um grito, abriu os dedos. O revólver caiu sobre o cobertor com um ruído surdo. Grigóri empurrou o homem, baixou-se rapidamente e, apanhando o revólver, meteu-o no bolso. Disse tranquilamente:
- Agora já podemos conversar. Qual é o teu regimento? Quantos tipos tão descarados como tu é que aí estão?
O cossaco, que voltara a si da surpresa, gritou:
- Eh rapazes! Venham cá!
Grigóri foi até à porta e disse, encostado à ombreira:
- Sou tenente no Décimo Nono Regimento do Don. Vamos lá a ter calma. Nada de gritos. Quem está para aí a rosnar? Porque se mostram vocês tão belicosos, caros compatriotas? Quem pretendem vocês expulsar daqui e com que direito? Vamos! Todos para a rua!
- E porque gritas tu também? - respondeu um dos cossacos com voz forte. Estamos fartos de ver tenentes como tu. Queres então que vamos dormir no pátio? Ponham-se a andar. Deram-nos uma ordem: expulsar todos os refugiados. Percebeste? De nada te serve pores-te para aí a esganiçar avoz! Estamos fartos de conhecer os tipos como tu!
Grigóri, aproximando-se do que falara, murmurou-lhe entre dentes:
- Ainda não os conheceste todos, os tipos como eu. Queres que te faça em dois, meu imbecil? Olha que sou muito capaz disso. Não recues. Este revólver não é meu, tirei-o a um dos teus colegas. Olha, vai restituir-lho e tratem de se raspar daqui para fora antes que eu me zangue. Se se demoram arranco-vos a pele.
Grigóri fez dar uma reviravolta ao cossaco, empurrando-o pela porta fora.
- Vamos pregar-lhe uma coça? - inquiriu pensativamente um cossaco alto, com o rosto escondido por um capuz de pêlo de camelo.
Estava atrás de Grigóri, a olhá-lo atentamente, ora num pé ora noutro, fazendo ranger as botas de feltro com solas de cabedal.
Grigóri voltou-se para ele com os punhos cerrados, de cabeça perdida, mas o cossaco, erguendo a mão, disse amigavelmente:
- Escute vossa Nobreza, ou lá quem quer que é. Calma, nada de ameaças. Vamos embora para não armarmos sarilho. Mas nesta altura convém não pisar muito os calos aos cossacos. Aproxima-se uma época tão grave como a de 1917. Se acaso algum dia lhe saírem pela frente alguns tipos esturrados, fazem-no em fanicos num abrir e fechar de olhos. Vê-se que é um oficial corajoso e quando o oiço falar vejo que é dos nossos lados, mas cuidado, pois pode arranjar algum sarilho...
Aquele a quem Grigóri tirara o revólver disse, furioso:
- Acaba lá com o sermão. Vamos experimentar a casa ao lado.
Foi o primeiro a dirigir-se para a porta. Ao passar junto de Grigóri, declarou pesaroso:
- Não queremos discutir consigo, senhor oficial, senão dávamos-lhes a conta...
Grigóri franziu desdenhosamente os lábios:
- Tu é que me davas a conta? Vai, vai lá embora antes que eu te deite as calças abaixo. Tu é que me davas a conta! Que pena eu ter-te restituído o revólver! Gajos como tu não deviam trazer revólveres, mas sim pentes de pentear carneiros.
- Ora, rapazes, ele que vá para o diabo! Não lhe toquem que cheira mal exclamou com um riso bonacheirão um dos cossacos que não tomara parte na conversa.
Os soldados saíram para o vestíbulo com grande estrépito, arrastando as botas geladas. Grigóri ordenou severamente ao dono da casa:
- Não voltes a abrir a porta. Se alguém bater acabará por se ir embora. De contrário, chama-me
Os homens de Verkhné-Tchirsski, despertados pelo barulho, trocaram reflexões a meia voz:
- A disciplina foi-se ao ar - declarou um velho com um suspiro desolado. - Como eles falaram a um oficial, os filhos da mãe!... Se se fizesse uma coisa destas, no meu tempo, ia tudo parar à cadeia!
- Se fosse só palavreado ainda não era o pior. Mas o que eles queriam era barulho. Um até disse: “Vamos dar-lhe uma coça?” Foi aquele alto, de capuz. Estão na verdade indisciplinados de todo, os malandros.
- E tu perdoas-lhe, Grigóri Panteleiévitch? - inquiriu um dos cossacos.
Grigóri escutava a conversa com um sorriso sem maldade, enquanto se envolvia no capote. Disse por fim:
- Que é que vocês querem! Eles estão separados de tudo e não obedecem a ninguém. Andam em bandos, não têm comandante. Onde está o juiz ou o chefe deles? O chefe é o mais forte. Provavelmente não resta um único oficial do seu regimento. Já tenho encontrado mais esquadrões como este, sem rei nem roque. Vamos mas é dormir!
Akcínia disse baixinho:
- Porque discutiste com eles, Gricha? Não discutas com gente desta, pelo amor de Deus. Podem matar-te, são loucos furiosos.
- Dorme, dorme. Amanhã temos de acordar cedo. Mas como é que te sentes? Não estás melhor?
- Sempre a mesma coisa.
- Dói-te a cabeça?
- Dói. Acho que não serei capaz de me levantar...
Grigóri pôs a mão na testa de Akcínia e suspirou:
- Estás quente como o lume. bom, não tem importância, não te aflijas. És uma mulher forte, vais safar-te desta.
Akcínia não respondeu. Morria de sede. Foi diversas vezes à cozinha beber uma água tépida e nauseabunda. Depois, vencendo a agonia e as vertigens, voltava a deitar-se em cima da manta.
Durante a noite apresentaram-se ainda mais quatro grupos à procura de alojamento. Batiam, abriam as persianas, tamborilavam nos vidros e só se iam embora depois de o dono da casa, instruído por Grigóri, ter gritado lá de dentro:
- Ponham-se a andar. Aqui está alojado o Estado-Maior da brigada.
De manhã cedo, Prokhor e Grigóri atrelaram os cavalos.
Akcínia vestiu-se com grande custo e saiu. Nascia o sol. Um fumo acinzentado subia das chaminés para o céu azul. Iluminada de baixo pelo sol, uma pequena nuvem rosada flutuava lá no alto. Uma geada espessa cobria as cercas e os telhados. Os cavalos fumegavam.
Grigóri, depois de ajudar Akcínia a subir para o trenó, perguntou-lhe.
- Queres deitar-te? Ias mais comodamente.
Ela acenou que sim, fitando Grigóri com silenciosa gratidão quando este lhe embrulhou os pés cuidadosamente. Depois fechou os olhos.
Ao meio-dia, ao fazerem alto, para dar de comer aos cavalos, na povoação de Novo-Mikhailovsski, situada a umas duas verstás da estrada principal, ela já não foi capaz de se levantar e descer do trenó. Grigóri deu-lhe o braço para a ajudar e fê-la entrar numa casa onde a deitou numa cama amavelmente oferecida pela proprietária.
- Sentes-te muito mal, minha querida? - inquiriu ele, curvado para o rosto lívido de Akcínia.
Esta, abrindo os olhos a custo, lançou-lhe um olhar velado e voltou a cair numa espécie de torpor. Grigóri tirou-lhe o xaile com as mãos a tremer. As faces de Akcínia estavam frias como a neve, mas tinha a testa a escaldar e o suor formava nela gotinhas geladas. A noite perdeu os sentidos. Pouco antes tinha pedido de beber e murmurara:
- Só água Ma, água de neve.
Após um momento de silêncio, proferira distintamente:
- Chamem o Gricha.
- Estou aqui. Que queres tu, Akcínia?
Grigóri pegara-lhe na mão e acariciava-a, tímida e desajeitadamente:
- Não me abandones, Grichenka.
- Não te abandono. Onde foste tu buscar isso?
- Não me abandones numa terra estranha. vou morrer aqui.
Prokhor deu-lhe água. Akcínia comprimiu avidamente os lábios ressequidos contra o bordo do púcaro de cobre, engoliu algumas gotas e depois deixou cair a cabeça, gemendo, sobre o travesseiro. Dali a cinco minutos, começava a delirar. Grigóri, sentado à cabeceira, distinguiu algumas palavras: “É preciso fazer a barrela... dêem-me cá o anil... muito cedo...”
As suas frases confusas tornaram-se num murmúrio indistinto.
Prokhor, a sacudir a cabeça, declarou em tom de censura:
- Eu bem te disse que a não trouxesses. Que havemos de fazer agora, hem? Juro-te que isto é castigo! Onde vamos passar a noite? Estás surdo, ou quê? Estou a perguntar-te: ficamos aqui ou seguimos para diante?
Grigóri não respondeu. Estava sentado, de cabeça baixa, com os olhos fitos no rosto branco de Akcínia. A dona da casa, uma excelente mulher, muito amável, disse, indicando Akcínia com os olhos.
- É a mulher deste senhor oficial? Tem filhos?
- Têm filhos, têm tudo! Só 'lhes falta terem sorte! - resmungou Prokhor.
Grigóri saiu para o pátio, ficou-se a fumar durante muito tempo, estendido no trenó. Tinha de deixar Akcínia naquela terra. Se prosseguisse a viagem morreria. Grigóri via-o claramente. Entrou e foi sentar-se junto da cama.
- Então? Passamos a noite aqui ou quê? – inquiriu Prokhor.
- Passamos, sim. E talvez o dia de amanhã.
Dali a pouco chegou o dono da casa, um camponês enfezado, de olhos vivos e fugidios. Martelando o solo com a perna de pau (fora amputado pela altura do joelho), caminhou alegremente até à mesa, largou a peliça e depois olhou sem benevolência para Prokhor.
- Com que então temos visitas? Donde vêem eles?
E, sem esperar pela resposta, ordenou à mulher:
- Dá-me depressa alguma coisa que se coma. Estou com uma fome canina.
Comeu avidamente durante muito tempo. O seu olhar inquiridor poisava-se muitas vezes sobre Prokhor e Akcínia, que estava deitada e imóvel. Grigóri saiu do quarto e deu-lhe as boas-tardes.
O outro correspondeu com um movimento da cabeça e inquiriu:
- Isto é a retirada?
- É, sim.
- Acabou-se a guerra, Vossa Nobreza?
- Assim parece.
- Aquela é sua mulher? - perguntou o dono da casa indicando Akcínia com um gesto.
- É.
- Porque a deitaste na nossa cama? Agora onde havemos de dormir?
- Está doente, Vânia, tive dó dela.
- Dó! Não podemos ter dó de toda a gente. Eles são tantos! Vai causar-nos incómodos, Vossa Nobreza...
Com a mão sobre o peito e num tom de súplica que lhe não era habitual, Grigóri disse, dirigindo-se aos donos da casa:
- Meus amigos, ajudem-me nesta desgraça, pelo amor de Deus. Não posso levá-la para mais longe, senão morre. Permitam-me que a deixe em vossa casa. Pagarei o que me pedirem pelos vossos cuidados e ficar-vos-ei grato por toda a vida... Não recuseis, peço-vos...
O homem começou por recusar categoricamente, a pretexto de que não teriam tempo para tratar da enferma, que ela lhes causaria um grande incómodo. Por fim, quando acabou de jantar, disse:
- Claro que ninguém a trataria de graça. Quanto tenciona dar pelo nosso trabalho?
Grigóri tirou do bolso todo o dinheiro que tinha e entregou-lho.
O outro pegou no maço das notas do Don, contou-as, humedecendo os dedos com saliva, inquirindo:
- Dez rublos de Nicolau, não tem por aí?
- Não.
- Mas talvez tenha rublos Kerénsski? Estes pouco valem.
- Não, não tenho rublos Kerénsski. Quer ficar com o meu cavalo?
O dono da casa reflectiu demoradamente, acabando por dizer num tom sonhador:
- Não... Claro que gostaria de ficar com o cavalo. Para nós, camponeses, um cavalo seria da maior utilidade, mas numa altura destas, se não fossem os brancos, eram os vermelhos que viriam tirar-mo e não poderia utilizar-me dele. Tenho uma eguazita coxa e já estou sempre a tremer com receio de que ma levem.
Ficou um momento pensativo, acrescentando, como que a justificar-se:
- Não vá julgar que sou tão interesseiro como isso, Deus me defenda! Mas pense Vossa Nobreza que ela vai ficar pelo menos um mês de cama, ou talvez mais. E serão precisas muitas coisas para a alimentar: pão, leite, um ovo de vez em quando, carne, e tudo isso custa dinheiro, não é verdade? Ainda é preciso lavar-lhe a roupa, prepará-la, etc., etc.... A minha mulher já tinha bastante que fazer com a casa e agora mais isto. Um trabalhão. Vamos, não seja avarento, dê mais qualquer coisinha. Eu sou um inválido, não tenho uma perna. Como quer que ganhe a minha vida, que trabalhe? Vivemos daquilo que Deus nos dá e muitas vezes comemos o pão que o diabo amassou...
Grigóri, sentindo subir dentro de si uma cólera surda, declarou:
- Eu não sou avarento, meu amigo. Já te dei todo o dinheiro que tinha. Passarei sem ele. Mas que mais queres tu?
- Diz que me deu todo o dinheiro? tornou o dono da casa com um sorriso desconfiado. A ganhar como ganha deve ter ainda os alforges cheios.
- Diz lá com franqueza -, exclamou Grigóri, empalidecendo, - ficas ou não com a doente?
- Não fico, já que o senhor é tão agarrado. Não temos razão nenhuma para ficarmos com ela respondeu o outro com uma voz descontente. E depois, a coisa não é tão simples como parece. Trata-se da mulher de um oficial, os vizinhos acabam por sabê-lo e, quando chegarem os camaradas vermelhos, se forem informados disso, vão chatear-nos... Não. Se assim é, fique lá com ela. Talvez algum dos meus vizinhos queira tomar conta da senhora.
Restituiu o dinheiro a Grigóri com visível relutância e, tirando a bolsa do tabaco, começou a enrolar um cigarro.
Grigóri vestiu o capote e disse a Prokhor:
- Fica tu junto dela que eu vou procurar outro alojamento.
Já tinha a mão no trinco da porta quando o dono da casa o reteve:
- Espere Vossa Nobreza. Porquê tanta pressa? Julga que não tenho dó desta pobre mulher? Tenho até muita pena dela e, como fui soldado, respeito a sua patente. Mas não poderia acrescentar mais qualquer coisa em dinheiro?
Foi então que Prokhor explodiu, vermelho de indignação:
- Que queres tu que ele acrescente, meu lagarto coxo? Devíamos cortar-te a outra perna, era o que nós devíamos fazer. Grigóri Panteleiévitch, deixa-me castigá-lo como a um cão. Depois pegamos em Akcínia e vamos embora daqui. E que o diabo o leve, malandro!
O dono da casa escutou sem interromper este discurso entrecortado de Prokhor. Disse por fim:
- Fazem mal em me insultar, senhores militares. Isto é um assunto que se deve tratar amigavelmente e não há razão para dizermos disparates uns aos outros nem para nos zangarmos.
- Porque estás a atacar-me, cossaco? Eu falei em dinheiro?
- Não era a isso que me referia. Mas pensei que talvez tivessem algumas armas que me pudessem ceder, por exemplo, uma espingarda, um revólver, sei lá... Para vocês tanto faz, mas para nós, nos tempos que vão correndo, isso vale uma fortuna. Faz falta uma arma em casa. Era isso o que eu queria dizer.
- Dêem-me o dinheiro que aí têm, acrescentando-lhe uma espingarda e arruma-se o caso! Deixe ficar a sua doente que nós trataremos dela como se pertencesse à família. Dou-lhe a minha palavra de honra!
Grigóri, depois de olhar para Prokhor, disse calmamente:
- Dá-lhe lá a minha espingarda e alguns cartuchos, depois atrela os cavalos. Akcínia ficará aqui... Que Deus me ajude, mas não posso sujeitá-la a morrer pelo caminho.
Os dias passavam, cinzentos e tristonhos. Desde que deixara Akcínia, Grigóri perdera todo o interesse pelo que o rodeava.
De manhã subia para o trenó e avançava através da estepe ilimitada, coberta de neve. À noite, arranjava um canto para descansar e adormecia. Isto repetia-se diariamente. O que se passava na frente em retirada para o Sul não lhe despertava interesse. Compreendia que a verdadeira resistência, a resistência a sério, acabara de uma vez. Que a maioria dos cossacos havia esgotado o desejo de defender as stanitsas, que os exércitos brancos, como tudo dava a entender, terminavam a sua última campanha e que, não tendo conseguido manterem-se no Don, também não conseguiriam aguentar-se no Kúbano... não conseguiriam aguentar-se no Kúbano...
A guerra chegara ao fim e o desenlace aproximava-se, irremediável.
Os cossacos do Kúbano abandonavam a frente aos milhares, regressando a suas casas. Os cossacos do Don já não resistiam mais. Sangrado pelos combates e pelo tifo, privado de três quartos do seu efectivo, o Exército Voluntário já não se encontrava em estado de fazer frente ao ímpeto do Exército Vermelho, cada vez mais estimulado pelos êxitos alcançados.
Corria o boato de que a população do Kúbano se achava indignada com as ferozes represálias exercidas pelo general Dénikine contra os membros da Rada do Kúbano, que se preparava uma insurreição contra o Exército Voluntário e que estavam já em curso as negociações com os representantes do Exército Vermelho para se dar livre trânsito às tropas soviéticas a caminho do Cáucaso. Afirmava-se com insistência que as stanitsas do Kúbano e do Terek manifestavam uma atitude verdadeiramente hostil em face dos Voluntários e que se dera uma grande batalha nos arredores de Korenóvsskaia, entre uma divisão do Don e soldados de infantaria do Kúbano.
Em cada paragem, Grigóri escutava atentamente as conversas, dia a dia mais convencido da derrota inevitável e definitiva dos brancos. Apesar de tudo, de quando em quando, renascia-lhe uma vaga esperança: o perigo obrigaria as forças brancas, desmoralizadas, pulverizadas, hostis umas às outras, a unirem-se, a resistirem, repelindo o avanço vitorioso das tropas vermelhas.
Porém a rendição de Rostov fez-lhe perder essa esperança, e acolheu desconfiado a notícia de que os vermelhos teriam começado a recuar perto de Bataíssk, ao cabo de renhidos combates. Farto de inacção, gostaria de se juntar a qualquer unidade militar, mas, quando participou este desejo a Prokhor, este protestou energicamente:
- Deves ter perdido a cabeça por completo, Grigóri Panteleiévitch declarou indignado. Que necessidade temos nós de nos metermos nesse inferno? A coisa está morta, bem vês. Para que havemos de nos sacrificar para nada? Enquanto nos não agarrarem e nos obrigarem a ir à força, tratemos de fugir o mais possível do perigo Que ideia a tua! Não, devemos bater em retirada pacificamente, como se fôssemos velhos. Já tivemos a nossa conta de guerras, cinco anos dela, eu e tu. Achas que fui apanhar um esquentamento para voltar a combater? Não, muito obrigado! Estou tão farto desta guerra que sinto vontade de vomitar só de pensar nisso. Se queres, vai tu sozinho, cá por mim não estou pelos ajustes. Darei baixa ao hospital, já não posso mais.
Grigóri respondeu-lhe após um prolongado silêncio:
- Como queiras. Vamos até ao Kúbano e lá se verá.
Prokhor seguia um sistema: em cada povoação ia procurar o oficial da saúde e pedia-lhe comprimidos e um unguento, mas mostrava pouco empenho em se tratar, e quando Grigóri lhe perguntava por que motivo, depois de engolir um comprimido, enterrava os restantes na neve com os pés. Prokhor explicava-lhe que não queria curar-se da doença mas sim atenuá-la: assim, no caso de uma inspecção médica, ser-lhe-ia mais fácil evitar a partida para a frente. Um belo dia, na stanitsa de Velikokniajesskaia, um cossaco experiente aconselhou-o a tratar-se com caldo de pernas de pato. Dali em diante, todas as vezes que entrava numa aldeia ou numa stanitsa, perguntava ao primeiro aldeão que encontrava:
- Diga-me uma coisa, por favor, por aqui criam-se patos?
E quando o homem, surpreendido, respondia que não, explicando que não havia água naquelas paragens para poderem criar patos, Prokhor resmungava entre dentes: “Vocês vivem como autênticos selvagens. Aposto que nunca na vida ouviram grasnar um pato. Pategos!” Depois, acrescentava para Grigóri, em tom amargo: “Isto não pode ser! Devemo-nos ter cruzado com um pope no caminho. Tudo nos corre mal! Se aqui houvesse patos, eu comprava já um, fosse por que preço fosse, ou então roubava-o, isso ainda seria melhor. Mas estou cada vez mais doente. A princípio até achava graça, desde que não me impedisse de dormir pelo caminho, mas agora é um verdadeiro castigo. Não me aguento no trenó!”
Visto Grigóri nada fazer para o consolar, Prokhor, calando-se, ficava longas horas sem falar, desconsolado e tristonho.
Esses dias de viagem afiguravam-se a Grigóri terrivelmente longos e mais longas ainda as intermináveis noites de Inverno.
Sobrava-lhe o tempo para reflectir acerca do presente e recordar o passado. Revia continuamente os anos volvidos, de consequências tão estranhas e funestas. Sentado no trenó, a fixar com os olhos velados a extensão nevada da estepe, envolta num silêncio de morte, ou então durante a noite, estendido, de olhos fechados e dentes cerrados, num compartimento exíguo, cheio de gente e asfixiante, pensava em Akcínia doente, sem dar acordo de si, abandonada numa aldeia perdida, e na família que deixara em Tatársski... Lá longe, no Don, reinava o poder dos sovietes, e Grigóri perguntava muitas vezes a si próprio com angústia: “Irão eles realmente perseguir a minha mãe e Duniachka por minha causa?” Mas logo se tranquilizava ao recordar os relatos ouvidos mais de uma vez durante a viagem: afirmava-se que os vermelhos avançavam em paz e tratavam correctamente a população das stanitsas ocupadas. A sua angústia extinguia-se pouco a pouco, e achava absurda, inverosímil, sem fundamento a ideia de que a mãe pudesse vir a sofrer por causa dele. A lembrança dos filhos enchia-lhe por momentos o coração de tristeza. Temia que não soubessem livrá-los do tifo. Ao mesmo tempo, sentia que, depois da morte de Natalia, nenhum desgosto o poderia ferir mais, apesar do muito amor que lhes dedicava...
Numa aldeia da região de Salassk, Grigóri e Prokhor fizeram uma paragem de quatro dias, a fim de darem repouso aos cavalos Durante esse tempo conversaram diversas vezes acerca do que iriam fazer. Logo no dia da chegada, Prokhor perguntou:
- Achas que os nossos aguentarão a frente até ao Kúbano?
- Não sei. Mas que te interessa isso?
- Ah! Tens cada uma! Porque me interessa? É que, por este andar, vão empurrar-nos para as terras dos pagãos, dos turcos, talvez, e então vais ver!
- Eu cá não sou o Dénikine, não me perguntes para que lado nos vão empurrar retorquiu Grigóri, descontente.
- Perguntei isto porque ouvi dizer que vamos recomeçar a defender-nos no Kúbano e que na Primavera regressaríamos à nossa terra.
- Quem é que vai defender-se? - inquiriu Grigóri, sorrindo.
- Os cossacos e os cadetes, ora essa! Quem queres tu que seja?
- Só dizes tolices. Deves estar parvo de todo! Não vês o que se está passando à nossa volta? Cada um só pensa em fugir o mais depressa possível. Então quem é que se vai defender?
- Está bem, meu caro, reconheço perfeitamente que estamos em maus lençóis, mas não posso acreditar... - suspirou Prokhor. Bem, mas, suponhamos que somos obrigados a levantar ferro para terras estranhas ou a rastejar como cobras, então que farias tu?
- E tu?
- Olha, quanto a mim, para onde tu fores vou eu. Não quero ficar sozinho se os outros se forem embora.
- É também isso o que eu penso. Já que estamos reduzidos à condição de ovelhas, temos de marchar atrás dos carneiros...
- Sim, mas os carneiros às vezes 'lembram-se de ir para casa do diabo... Não, fora de brincadeira. Estou a falar a sério.
- Deixa-me em paz, por favor. Depois se verá. Para que havemos de ferver em pouca água?
- Bom, assim seja. Já não te pergunto mais nada - declarou Prokhor.
Mas no dia seguinte, quando estava a escovar os cavalos, voltou à carga.
- Já ouviste falar nos verdes? perguntou prudentemente, fingindo examinar o cabo de uma forquilha.
- Já. Porquê?
- Quem diabo são esses tais verdes? De que lado estão eles?
- Do lado dos vermelhos.
- Então porque lhes chamam verdes?
- Sei lá! Andam escondidos nos bosques, deve ser por isso.
- E se tu e eu nos fizéssemos verdes? - propôs timidamente Prokhor, após um momento de reflexão.
- Isso não me agrada...
- Mas se não há outra maneira de voltarmos para casa senão tornarmo-nos verdes. Cá por mim tanto se me dá ser verde ou azul, quero lá saber! Ou mesmo amarelo, cor de gema de ovo. Sou capaz de me pintar de qualquer cor desde que ela seja contra a guerra e permita aos soldados voltarem para as suas terras...
- Tem paciência. Talvez as coisas acabem por se resolver - aconselhou Grigóri.
Nos fins de Janeiro, num dia de névoa e degelo, Grigóri e Prokhor chegaram à povoação de Belaia Glina. Encontravam-se ali amontoados uns quinze mil refugiados, grande número dos quais atacados de tifo. Grupos de cossacos, de capote ou peliça curta, percorriam as ruas em busca de alojamento e de pasto para os cavalos. Passavam na estrada cavaleiros e trenós. Nos pátios, em frente das manjedoiras, dezenas de cavalos estafados ruminavam tristemente a palha. Trenós, viaturas militares e caixões de artilharia jaziam abandonados nas ruas e vielas.
Ao passar, Prokhor avistou preso a uma estaca um grande cavalo baio. Disse:
- Olha, é o cavalo do meu compadre Andriuchka. Devem estar aqui pessoas da nossa terra.
Saltou prontamente do trenó e foi informar-se. Dali a poucos minutos Andrei Topolskov, compadre e vizinho de Prokhor, saía da casa com o capote pelos ombros. Acompanhado de Prokhor, aproximando-se lentamente do trenó, estendeu a Grigóri a mão negra que tresandava a suor de cavalo.
- Vieste com a gente da nossa aldeia? - inquiriu Grigóri
- Vim, sofremos juntos a nossa miséria.
- Então que tal foi a viagem?
- Como podes calcular. Todas as manhãs temos de abandonar alguns homens e cavalos
- E o meu pai? Está de saúde?
Evitando olhar para Grigóri, Topolskov suspirou:
- As coisas correm mal, Grigóri Panteleiévitch. Tenho más notícias para te dar . Podes rezar pelo teu pai. Ontem à noite deu a alma a Deus, morreu
- Enterraram-no? - perguntou Grigóri empalidecendo.
- Não to sei dizer. Hoje não fui lá. Vem, vou mostrar-te a casa É ali, compadre, a quarta, à direita, a contar da esquina.
Ao chegarem em frente de uma vasta casa com tecto de colmo, Prokhor deteve os cavalos junto da cerca, mas Topolskov aconselhou-o a entrar no pátio.
- Também aqui estamos muito apertados, somos uns vinte, mas vocês talvez ainda caibam disse ele, saltando do trenó para abrir o portão.
Grigóri foi o primeiro a penetrar no compartimento bem aquecido. Havia pessoas da aldeia que ele conhecia sentadas ou deitadas no chão. Algumas delas estavam consertando o calçado ou os arreios. Três homens, entre os quais o velho Beskhlebnov, companheiro de viagem de Pantelei Prokófievitch, achavam-se sentados à mesa, a comer sopa. Todos se ergueram à chegada de Grigóri, respondendo em coro ao breve cumprimento deste
- Onde está o meu pai? - perguntou Grigóri enquanto tirava o boné, a olhar em redor.
- Sucedeu uma desgraça... Pantelei Prokófievitch já não pertence a este mundo - respondeu baixinho Beskhlebnov.
Limpou a boca à manga do blusão, poisou a colher e persignou-se.
- Faleceu ontem, Deus o tenha em descanso!
- Já sei. Enterraram-no?
- Ainda não. Tencionávamos fazê-lo hoje. Pusemo-lo num quarto frio. Vem cá.
Beskhlebnov abriu a porta do quarto ao lado e disse, como que a desculpar-se:
- Os cossacos não quiseram dormir no mesmo quarto do morto. Cheira muito mal e também ele está melhor sozinho...
Os donos da casa não puseram aqui aquecimento.
Cheirava ali a semente de cânhamo e a ratos. Um canto da casa estava ocupado com milho e cânhamo. Em cima de um banco, viam-se gamelas de farinha e taças de manteiga.
Pantelei Prokófievitch estava estendido no meio do quarto, em cima de uma manta. Grigóri afastou Beskhlebnov, entrou e deteve-se em frente do pai.
- Esteve doente quinze dias - murmurou Beskhlebnov a meia voz. O tifo atacou-o quando ainda se encontrava em Michenka. Era seu destino vir morrer aqui... É assim a vida...
Grigóri curvou-se para ver o pai. A doença alterara as feições daquele rosto familiar, transformando-as por completo, a ponto de as tornar irreconhecíveis. Uma barba emaranhada e branca cobria as faces pálidas de Pantelei Prokófievitch. Os bigodes caíam-lhe sobre a boca metida para dentro.
Tinha os olhos semicerrados e as pupilas azuis haviam já perdido o brilho. Um lenço de seda vermelha segurava a maxila inferior do velho e os pêlos brancos frisados da barba pareciam ainda mais prateados sobre o tecido escarlate.
Grigóri ajoelhou-se, a observar atentamente, pela última vez, aquele rosto amado, mas uma coisa o fez de súbito estremecer de nojo e pavor: sobre a pele cinzenta e lívida de Pantelei Prokófievitch, nas rugas e nas cavidades dos olhos, rastejavam piolhos, formando uma película viva e movediça que fervilhava por entre a barba e as sobrancelhas, amontoando-se numa placa cinzenta sobre a gola alta do blusão...
Grigóri, ajudado por dois cossacos, cavou à picareta uma tumba na terra gelada, dura como o ferro. Prokhor fabricou o melhor que pôde um caixão com restos de tábuas.
Ao cair da noite, levaram Pantelei Prokófievitch e enterraram-no naquela terra estranha de Stavropol. Uma hora depois, no momento em que se acendiam as luzes na aldeia, Grigóri deixava Belaia Glina em direcção de Novopokróvsskada.
Na stanitsa de Korenóvsskaia, Grigóri sentiu-se mal. Prokhor perdeu metade de um dia à procura de médico, acabando por encontrar um que pertencia ao exército, meio -bêbado, que a custo conseguiu trazer consigo. Sem despir o capote, o médico, depois de examinar Grigóri, tomou-lhe o pulso, declarando:
- Uma recaída do tifo. Aconselho-o a interromper a viagem, tenente, se não quer morrer pelo caminho.
- E fico à espera dos vermelhos? - disse Grigóri com um sorriso amarelo.
- Oh! Os vermelhos ainda vêm longe! Mas aproximam-se...
- É possível. Mas faz melhor em ficar. Dos dois males, eu escolheria esse, que é o menor.
- Não, hei-de partir como puder - declarou resolutamente Grigóri, a vestir o capote. - Pode dar-me algum remédio?
- Vá-se embora, isso é lá consigo. Era meu dever aconselhá-lo, mas faça como quiser. Quanto a remédios, o melhor é o repouso e os cuidados com a alimentação. Poderia receitar-lhe qualquer coisa, mas a minha farmácia foi evacuada e só tenho clorofórmio, iodo e álcool.
- Então dê-me álcool.
- Com todo o gosto. De qualquer maneira o senhor vai morrer pelo caminho, o álcool não evita nada. A sua ordenança que venha comigo, vou dar-lhe mil gramas. Sou caridoso...
O médico levou a mão à pala do boné e saiu com um passo vacilante.
Prokhor voltou com o álcool, descobriu algures uma carroça desconjuntada para dois cavalos, atrelou-os e veio anunciar com amarga ironia:
- A carruagem está às ordens. Vossa Nobreza!
Recomeçaram os dias intermináveis e tristonhos.
Vinda dos contrafortes das montanhas, a Primavera precoce chegava ao Kúbano. A neve derretia por toda a parte sobre a estepe; ficavam a descoberto placas de terra negra, de um brilho gorduroso; os riachos faziam ouvir as suas vozes argentinas e os horizontes azulados apareciam já iluminados pela luz primaveril. O vasto céu do Kúbano tornara-se mais profundo, mais azul e mais quente.
Dois dias depois, os trigos do Inverno surgiam ao sol, uma névoa branca flutuava sobre os campos. Os cavalos patinhavam nos caminhos libertos da neve, enterravam-se até aos jarretes na lama, atolavam-se nas pequenas depressões do terreno, esticavam a espinha, cobriam-se de suor. Como bom proprietário, Prokhor atara-lhes as caudas e caminhava muitas vezes ao lado deles, soltando a custo os pés da lama, resmungando:
- Isto não é lama, é pez, palavra de honra! Os amimais não têm tempo de secar de um atoleiro para o outro.
Grigóri guardava silêncio, deitado no carro, friorentamente envolto no capote. Mas Prokhor, aborrecendo-se de seguir calado, puxava Grigóri pelos pés ou pela manga. Dizia:
- É peganhenta a valer, esta lama! Desce e vem ver. Que triste ideia, essa de adoecer!
- Vai para o diabo! - resmungava Grigóri, numa voz quase inaudível.
Sempre que se cruzava com alguém, Prokhor perguntava:
- Lá para diante a lama é mais espessa ou é como aqui?
Davam-lhe uma resposta qualquer, e Prokhor, satisfeito por haver trocado uma palavra com outro ser vivo, caminhava algum tempo em silêncio, parando muitas vezes os cavalos para limpar a fronte coberta de grossas gotas de transpiração. Quando eram ultrapassados por alguns cavaleiros, Prokhor desesperado, fazia-os parar, cumprimentava-os, perguntava-lhes para onde iam, donde eram, e terminava dizendo:
- Fazem mal em irem mais para diante. Porquê? Ora, porque há muita lama, pelo menos foi isso o que me disseram várias pessoas com quem me cruzei. Parece que os cavalos se enterram até à barriga, que as rodas não giram e que os peões mais baixos caem e se afogam. Os patifes mentem, mas eu não. Por que motivo prosseguimos? Porque não podemos fazer outra coisa. Levo aqui um bispo doente que não pode de modo algum ficar com os vermelhos...
A maior parte dos cavaleiros insultava Prokhor, sem animosidade, porém alguns olhavam-no atentamente e, antes de se afastarem, diziam:
- Então os idiotas também abandonam o Don? Na tua stanitsa são todos como tu?
Ou outras coisas no mesmo género, não menos vexatórias.
Um cossaco do Kúbano, que se deixara distanciar dos homens da sua stanitsa, vermelho de raiva pelo facto de Prokhor o ter retardado com a sua conversa estúpida, quis dar-lhe uma chicotada na cara, mas Prokhor, saltando para dentro da carroça com uma agilidade surpreendente, tirou a carabina debaixo da manta e poisou-a nos joelhos. O homem do Kúbano afastou-se, a proferir pragas obscenas, enquanto Prokhor ria a bandeiras despregadas, gritando-lhe:
- Aqui não estamos em Tsaritssine, aqui não podes esconder-te num campo de milho. Charlatão? Eh! Volta cá, meu alma de cântaro! Vais-te embora? Pega na cauda do teu manto e esconde-te com ele na lama! Fechaste as asas, meu abutre! Maricas! Se eu tivesse um cartucho podre era para ti. Deita fora o chicote! Ouviste?
Meio maluco de tédio e de ociosidade, Prokhor distraía-se como podia.
Quanto a Grigóri, desde o dia em que adoecera, vivia como em sonhos. Perdia por momentos os sentidos e depois voltava a si. Foi num momento desses, ao sair de um prolongado torpor, que Prokhor um dia, curvando-se para ele, perguntou-lhe, a fitar com piedade os seus olhos turvos:
- Ainda estás vivo?
O sol resplandecia por cima deles. Bandos de patos-marrecos de asas escuras passavam, grasnando, no azul imenso do céu, ora em turbilhão, ora alongando-se numa extensa linha irregular de um negro aveludado. Um cheiro capitoso subia da terra aquecida, da erva nova. com a respiração opressa, Grigóri aspirava sofregamente o ar primaveril. A voz de Prokhor mal lhe chegava aos ouvidos de tudo o que o rodeava se lhe afigurava irreal, incrivelmente reduzido, remoto. Lá ao longe, rugia o canhoneio, abafado pela distância. Ali perto rangiam em cadência as rodas de ferro, os cavalos sacudiam-se e relinchavam, ouviam-se vozes de homens; pairava no ar um forte cheiro a pão cozido, a feno, a suor de cavalo. Tudo isso chegava, como se viesse de outro mundo, à consciência obscurecida de Grigóri. Num supremo esforço de vontade tentava ouvir a voz de Prokhor. Por fim, compreendeu que Prokhor lhe estava perguntando:
- Queres leite?
Mal podendo mover a língua, Grigóri humedeceu os lábios secos, sentindo correr na boca um líquido frio e espesso cujo paladar desenxabido lhe era familiar. Após algumas goladas, cerrou os dentes. Prokhor, depois de rolhar a garrafa, curvou-se de novo para Grigóri, e este adivinhou mais do que ouviu, pelo movimento dos lábios gretados, a pergunta que o outro lhe fez:
- Talvez seja melhor deixar-te na próxima stanitsa. Isto será muito duro para ti?
O rosto de Grigóri traduziu sofrimento e inquietação.
Mais uma vez puxou pelas forças, murmurando:
- Continua, enquanto eu não morrer...
Percebendo no rosto de Prokhor que este o compreendera, fechou os olhos, tranquilizado, e aceitou o torpor como um alívio, mergulhando nas trevas espessas do esquecimento, a fugir deste mundo ruidoso e gritante...
De todo o caminho que percorreu até à stanitsa Abinsskaia, Grigóri apenas viria a recordar-se de uma coisa: numa noite muito escura, acordara com um frio intenso que o trespassava todo. Vários grupos de viaturas avançavam na estrada.
A avaliar pelo rugido surdo e contínuo das rodas e pelo barulho das vozes, o cortejo devia ser enorme. A carroça de Grigóri seguia no meio, com os cavalos a passo. Prokhor dava estalidos com os lábios e gritava de tempos a tempos numa voz rouca: “Então! Então! Meus amigos!”, e agitava o chicote.
Grigóri ouvia o sibilar leve do chicote de coiro, sentia os encontrões dos cavalos contra a boleia, depois o esforço destes a puxarem os tirantes quando a carroça avançava mais depressa. Por vezes, a ponta do timão tocava no carro da frente.
Grigóri, puxando com dificuldade uma das abas do capote, deitou-se de costas. No céu negro, o vento empurrava para o Sul nuvens compactas e esfarrapadas De longe em longe, uma estrela amarela e isolada brilhava por instantes num pequeno espaço livre, depois as trevas espessas envolviam de novo a estepe, o vento soprava melancolicamente nos fios telegráficos, uma chuva rara e miúda como uma poeira de pérolas caía sobre a terra.
Ao lado direito da estrada, começou a desfilar uma coluna de cavalaria. Grigóri ouviu o tilintar cadenciado e contínuo do equipamento cossaco bem ajustado e o tropear surdo, e também cadenciado, de uma multidão de ferraduras sobre a lama.
Já tinham passado dois esquadrões e o barulho prosseguia.
Tratava-se sem dúvida de um regimento completo. De súbito, lá para diante, sobre a estepe emudecida, uma voz máscula e um pouco rude elevou-se como um pássaro:
Nas margens do rio Kama,
Na estepe de Saratov...
Algumas centenas de vozes repetiram num coro poderoso a velha canção cossaca, e de repente, dominando-as a todas, brotou uma voz de tenor com uma força e uma beleza admiráveis. Cobrindo as vozes de baixo que diminuíam de volume, o tenor pungente tremulava ainda, algures na escuridão, quando o primeiro cantor retomou a melodia:
Viviam como homens livres,
os cossacos do Don,
das Grebenas e do laike...
Grigóri sentiu qualquer coisa a quebrar-se dentro de si. O seu corpo foi sacudido por soluços e subiu-lhe um espasmo à garganta. Engolindo as lágrimas, aguardou avidamente que o primeiro cantor recomeçasse, e então murmurou com ele estas palavras que lhe eram familiares desde a adolescência:
Ermak era o seu atamane,
Ermak, filho de Timóteo;
Astachka era o seu capitão,
Astachka, filho de Lourenço...
Mal se fizera ouvir a canção, calaram-se as conversas dos cossacos de um carro para o outro, cessaram os incitamentos aos cavalos, e o cortejo de mil e uma viaturas prosseguiu o avanço no meio de um silêncio profundo e atento; e quando o primeiro cantor, destacando cada palavra, começava uma nova estrofe, apenas se ouvia o barulho das rodas e o tropear dos cavalos sobre a lama. Então, a velha melodia que vinha do fundo dos séculos ecoava sozinha sobre a estepe negra.
Em palavras simples e sem malícia, evocava os livres antepassados cossacos que outrora se batiam intrepidamente contra os exércitos do tsar; que percorriam o Don e o Volga em leves embarcações piratas; que pilhavam os barcos do tzar enfeitados com a águia; que rapinavam os mercadores, os boiardes e os voivodas; e que haviam submetido a longínqua Sibéria... Os seus descendentes ouviam tudo isto no meio de um silêncio triste, eles, que batiam vergonhosamente em retirada, vencidos numa guerra sem glória contra o povo russo...
O regimento acabara de passar. Os cantores já iam longe do cortejo. Porém os carros seguiram muito tempo no meio de um silêncio mágico. Deixara de se ouvir o ruído das vozes e o apelo lançado aos cavalos fatigados. Do fundo da escuridão, o canto escorria e ampliava-se, vasto como as cheias do Don.
Todos tinham na ideia um só pensamento:
Eis que o Verão vai passando, o Verão escaldante;
E o Inverno aproxima-se, o Inverno gelado.
Sim, meus irmãos, como havemos de resistir ao Inverno?
Iríamos para o laike, mas o caminho é longo,
E nas margens do Volga chamam-nos ladrões.
Iríamos para o Kazan, mas aí habita o tzar,
Ivane o Terrível, Ivane Vassilievitch...
Já se não ouvia o coro, mas a voz do tenor flutuava ainda, esvaía-se para de novo se elevar. E todos a escutavam no mesmo silêncio atento e desolado... Além desta, uma outra impressão se gravara ainda, como um sonho, na memória de Grigóri: recuperara os sentidos num quarto aquecido; sem abrir os olhos, sentia em todo o corpo a agradável frescura dos lençóis lavados; um cheiro acre a medicamentos impressionava-lhe as narinas. Julgou primeiro encontrar-se num hospital, mas ouviu, no quarto ao lado, uma grande explosão de risos masculinos, um ruído de loiça, algumas vozes avinhadas. Julgou reconhecer uma que dizia:
- Ora isso é que se chama um tipo inteligente! Se tivessem procurado a nossa unidade tê-los-íamos ajudado. Vá, bebe, não estiques tanto os beiços.
Prokhor retorquia, na sua voz lamentosa de bêbado:
- Mas, Santo Deus! Como podia eu adivinhar? Julgas que foi coisa fácil servir-lhe de ama? Eu mastigava-lhe a comida como se se tratasse de uma criancinha, dava-lhe o leite, assim Deus me ajude. Palavra de honra que lhe mastigava o pão e lho metia na boca! Tinha de lhe descerrar os dentes com a ponta do sabre... E, uma vez, ia a deitar--lhe o leite pela boca abaixo, ele engasgou-se, quase ia morrendo... Ninguém pode fazer uma pequena ideia!
- Deste-lhe banho ontem?
- Dei-lhe banho, cortei-lhe os cabelos à escovinha, gastei todo o meu dinheiro para lhe comprar leite... Quanto ao dinheiro, quero lá saber! Mas, quando tinha de mastigar e fazer passar os alimentos da minha boca para a dele... pensas que era fácil? Se me dizes o contrário, dou-te um murro nas trombas sem me importar com a tua patente!
Prokhor entrou no quarto de Grigóri acompanhado de Kharlampi Ermakov, de Petro Bogatíriov, que vinha encarnado como uma beterraba e usava um barrete de caracul deitado para a nuca, de Platan Riabtchikov e de mais dois cossacos desconhecidos.
- Abriu os olhos! - berrou com selvajaria Ermakov, correndo para Grigóri com passos incertos.
Platone Riabtehikov, muito alegre, com gestos exuberantes, ria e chorava, agitando uma garrafa:
- Gricha! Meu irmão! Recordas-te das nossas pândegas no Tchir? Lembras-te como lutámos? Para onde foi a nossa valentia! O que eles fizeram de nós, esses generais? E onde foi parar o nosso exército? Raios os partam! Estás a voltar a ti? Bebe uma pinga, que te faz bem. É álcool puro!
- Até que enfim te encontramos! murmurava Ermakov.
Os seus olhos negros e reluzentes brilhavam de alegria. Deixou-se cair pesadamente sobre a cama que cedeu.
- Onde estamos nós? - perguntou Grigóri numa voz muito fraca, enquanto voltava a custo os olhos para examinar as caras conhecidas dos cossacos.
- Ekaterinodar acaba de ser ocupada. Não tarda que tenhamos de fugir para mais longe. Bebe, Grigóri Panteleiévitch!
- O nosso valentão! Levanta-te, pelas almas! Não quero ver-te deitado - disse Riabtchikov, deixando-se cair aos pés de Grigóri.
Porém Bogatíriov, que parecia menos bêbado do que os outros, pegou-lhe pela cintura, ergueu-o sem esforço e colocou-o delicadamente no chão.
- Sabes porque estamos todos tão contentes? Primeiro porque já ninguém podia mais com tristezas e depois porque os nossos cossacos arranjaram-se bem à custa dos outros... Pilharam um armazém de aguardente para que este não fosse parar às mãos dos vermelhos... Só queria que visses... Não se pode imaginar o que foi... Começaram por dar tiros numa cisterna... Furaram-na toda e a aguardente começou a sair pelos buracos. Lembrava um passador e os gajos punham-se a aparar com os chapéus, com baldes, com garrafas, ou até com as duas mãos, e bebiam ali mesmo... Passaram a fio de sabre dois voluntários que guardavam o armazém, entraram lá dentro e foi um bodo aos pobres! Vi um pequeno cossaco trepar para cima de uma cisterna. Queria tirar de lá a aguardente com um balde dos cavalos, mas caiu lá dentro e afogou-se. O chão era de cimento e não tardou que ficássemos inundados até aos joelhos. Os tipos baixavam-se e bebiam de cócoras, como os cavalos no rio, depois iam deitar-se... Dava vontade de rir e de chorar ao mesmo tempo. Então também nos servimos. Não queríamos muito, apenas tirámos um barril de cinco litros que trouxemos a rebolar até aqui. E foi quanto bastou. Bebemos até fartar. Seja como for, o Don tranquilo ardeu. Platone ia-se afogando. Atiraram-no ao chão e já começavam a espezinhá-lo, sem que ele se levantasse, pois bebera umas pingas e estava que nem um cacho. Tive um trabalhão para o tirar dali...
Tresandavam todos a álcool, a cebola e a tabaco. Grigóri sentia uma ligeira náusea, uma vertigem. Sorriu, contrafeito, e fechou os olhos.
Ficou uma semana em Ekaterinodar, em casa de um médico conhecido de Bogatíriov. Ia-se restabelecendo pouco a pouco. Por fim estava já “em vias de cura”, como dizia Prokhor, e montou pela primeira vez a cavalo, desde o início da retirada, na stanitsa Abinsskaia.
Novorossiissk estava a ser evacuada. Os barcos transportavam para a Turquia os ricaços, os proprietários de bens de raiz, as famílias dos generais e os políticos influentes. Os embarques sucediam-se dia e noite. Os alunos oficiais trabalhavam nas equipas de carregadores e atulhavam os porões de bagagens militares, malas e caixotes -pertencentes aos refugiados de categoria.
O Exército Voluntário, que se adiantara aos cossacos do Don e do Kúbano, chegando primeiro a Novorossiissk, começara a embarcar nos navios de carga. O seu Estado-Maior tomara a precaução de se instalar a bordo do dreadnought inglês Emperor of India. Combatia-se nos arredores de Tonnelnaia.
Dezenas de milhares de refugiados enchiam as ruas da cidade. Continuavam a afluir tropas. Nos cais, a multidão era indescritível. Os cavalos abandonados vagueavam em manadas, aos milhares, pelas encostas calcárias das montanhas vizinhas. As ruas que conduziam aos cais estavam juncadas de selas de cossacos, de equipamento, de bagagens militares. Já ninguém precisava delas. Corriam boatos na cidade de que só embarcaria o Exército Voluntário; os cossacos do Don e do Kúbano partiriam em ordem de marcha para a Geórgia.
Na manhã de 25 de Março, Grigóri e Platone Riabtchikov dirigiram-se aos cais para averiguar se o Segundo Corpo do Don embarcaria ou não, pois na véspera espalhara-se entre os cossacos a notícia de que o general Dénikine ordenava a transferência para a Crimeia de todos os cossacos do Don que tivessem conservado os seus armamentos e cavalos.
O cais fora invadido pelos kalmuks do distrito de Salsk.
Estes não só haviam trazido as suas manadas de cavalos e camelos do Mumitch e do Sal, como tinham transportado até ao mar as guaritas de madeira em que viviam. Respirando um intenso fedor a sebo de carneiro, Grigóri e Riabtchikov chegaram junto da prancha de embarque de um grande barco de transporte, o qual se encontrava guardado por um posto reforçado de oficiais da Divisão Markov. Um grupo de artilheiros do Don aguardava o embarque. Haviam instalado canhões à popa, cobertos por panais de caqui. Grigóri, que a custo abrira caminho através da multidão, perguntou a um jovem alferes de bigodes pretos:
- Que bateria é esta, cossaco?
O alferes, atravessando para ele os olhos, respondeu de má catadura:
- A Trigésima Sexta.
- De Karguínsskaia?
- Sim, meu tenente.
- Quem comanda o embarque?
- Aquele que está ali encostado à amurada. É coronel.
Riabtchikov puxou Grigóri pela manga e disse, furioso:
- Vamos embora, que os leve o diabo! Aqui não arranjaremos nada. Enquanto se combatia, precisavam de nós, mas agora estão-se nas tintas...
O alferes sorriu e piscou o olho aos artilheiros que formavam bicha:
- Vocês, artilheiros, estão cheios de sorte. Nem sequer estes senhores oficiais têm licença de embarcar.
O coronel que fiscalizava o embarque caminhava num passo ágil pela prancha. Um funcionário careca, envergando uma peliça cara toda aberta, seguia-o aos tropeções, apertando contra o peito, com um ar lamentável, o seu gorro de lontra.
Enquanto falava, os seus olhos de míope, no rosto alagado em suor, tinham uma expressão de tal modo suplicante que o coronel lhe voltou as costas, cada vez mais irritado e berrou:
- Já lhe disse. Deixe-me em paz, senão obrigo-o a desembarcar.
- O senhor está louco! Como quer que levemos a sua tralha? É cego, ou quê? Vamos, largue-me! Não percebe? Sim, vá-se queixar, ao próprio general Denikine se quiser. Já lhe declarei que não posso. Não posso! Não percebe russo?
Ao passar em frente de Grigóri, este barrou-lhe o caminho, fez a continência e inquiriu, muito comovido:
- Os oficiais podem ter alguma esperança de embarcar?
- Neste barco não. Não há espaço.
- Então em qual?
- Informe-se na repartição de refugiados.
- Já lá fomos. Ninguém sabe nada.
- Pois eu também não, não sei nada, deixe-me passar.
- Mas vocês embarcaram a Trigésima Sexta Bateria. Por que motivo não há lugar para nós?
- Já lhe disse que me deixe passar. Não sou nenhuma agência de informações.
O coronel tentava afastar suavemente Grigóri, mas este firmava-se bem nas pernas. Nos seus olhos começaram a cintilar faíscas azuladas.
- Agora já não precisa de nós? Mas antes precisava. Tire daí a mão. Não consegue afastar-me.
O coronel fitou Grigóri, olhando depois para trás de si.
Dois soldados do Corpo Markov, de pé na prancha, tinham cruzado as baionetas e continham a custo a multidão. O coronel perguntou numa voz cansada, a desviar os olhos:
- A que unidade pertencem vocês?
- Eu, ao Décimo Nono do Don, os outros a diversos regimentos.
- Quantos são?
- Uns doze.
- Não posso. Não tenho lugar.
Riáhtchikov viu estremecer as narinas de Grigóri, enquanto ia dizendo a meia voz:
- Não te faças caro, meu estupor, meu piolho emboscado!
- Deixa-nos passar imediatamente, senão...
“O Gricha vai dar-lhe uma sabrada”, pensou Riabtchikov com prazer malévolo. Mas viu os dois soldados do corpo Markov abrirem passagem à coronhada entre a turba para virem em socorro do coronel. E tocou na manga de Grigóri.
- Deixa lá, Panteleiévitch. Vamos embora.
- Você é um idiota. E terá de responder pela sua atitude - declarou o coronel que empalidecera.
Dirigindo-se aos dois soldados de Markov, disse, apontando para Grigóri:
- Meus senhores, tratem de acalmar esse epiléptico. Precisamos de manter a ordem, seja por que processo for. Tenho assuntos urgentes a tratar com o comandante da praça e estou para aqui a ouvir as amabilidades destes...
E voltou as costas a Grigóri.
Um dos soldados de Markov, muito alto, com galões de tenente no blusão azul e um bigodinho impecavelmente aparado à inglesa, aproximou-se.
- Que deseja? Porque está a perturbar a ordem?
- Um lugar neste barco, é o que eu desejo.
- Onde está a sua unidade?
- Não sei.
- Os seus documentos?
A segunda sentinela, um jovem de boca mole e lunetas, murmurou com uma vozinha desafinada:
- Temos de o levar ao corpo da guarda. Não percas tempo, Vissotzki.
O tenente leu com atenção os documentos de Grigóri e restituiu-lhos.
- Procurem a vossa unidade. Aconselho-os a irem-se embora daqui para não retardarem a partida. Temos ordem de prender, sem olhar a patentes, todos aqueles que derem provas de indisciplina e perturbarem o embarque.
O tenente, cerrando duramente os lábios, esperou uns segundos e, a enviesar os olhos para Riabtchikov, disse a meia voz, todo curvado para Grigóri:
- O que vos posso aconselhar é que se entendam com o comandante da Trigésima Sexta Bateria e que se ponham na bicha: assim têm possibilidades de embarcar.
Riabtchikov, que ouvira o segredar do tenente, exclamou num tom satisfeito:
- Vai ter com o Katrguine. Cá por mim, irei já avisar os rapazes. Além do saco, que mais queres levar de bagagem?
Pelo caminho cruzaram-se com um cossaco natural de Semianovsski, que conheciam. Transportava uma enorme carroça em direcção ao porto, carregada de pão e coberta por um oleado. Riabtchikov interpelou-o:
- Olá, Fiódor! Para onde levas isso?
- Olá, Platone! Olá, Grigóri Panteleiévitch! Vivam! Isto é o pão que nós fornecemos ao nosso regimento para a viagem.Custou-nos bastante a cozer, mas sem ele só teríamos couves de salmoura para comermos pelo caminho...
Grigóri aproximou-se da carroça:
- O teu pão vai pesado ou contado?
- Contado? Que ideia! O quê, vocês querem pão?
- Queremos.
- Então levem!
- Quantos?
- Aqueles que puderem. Temos que baste.
Riabtchikov viu com espanto Grigóri apoderar-se sucessivamente de vários pães grandes. Não podendo conter-se, inquiriu:
- Porque diabo queres tantos?
- Porque sim respondeu secamente Grigóri.
Pediu dois sacos ao cossaco, meteu lá os pães e, depois de se despedir, ordenou a Riabtehikov:
- Toma, leva tu.
- Não me digas que fazes tenção de passar aqui o Inverno! - disse ironicamente Riabtehikov, já de saco às costas.
- Não são para mim.
- Então para quem?
- Para o meu cavalo.
Espantado, Riabtehikov atirou com o saco ao chão.
- Estás a brincar?
- Não, falo a sério.
- Mas então... que ideia foi essa, Panteleiévitch? Queres ficar, pelos vistos?
- Isso mesmo Vá, pega no saco, vamos. Tenho de dar de comer ao cavalo, anda a roer o freio. vou precisar do animal, não faço tenção de servir na infantaria...
Riabtehikov manteve-se calado até casa. Fazia ruídos com a garganta e mudava o saco de um ombro para o outro. Ao chegarem ao portão, inquiriu:
-Vais dizer aos rapazes? E, sem esperar pela resposta, acrescentou, com um laivo de ressentimento na voz: - Sempre tens cada ideia?... Então e que vai ser de nós?
- Façam como quiserem - respondeu Grigóri com fingida indiferença. Ninguém nos quer levar, não cabemos nos barcos... paciência. Precisamos deles para alguma coisa? Temos o direito de nos impor? Ficamos, tentaremos a sorte. Mas entra, raio! Que ficas tu para aí a fazer, especado ao portão? Não hei-de ficar especado depois de ouvir coisas semelhantes?
- Nem vejo o portão! Foi uma marretada que tu me deste na cabeça, Gricha. Estou meio atordoado. E eu que dizia cá com os meus botões: “Para que diabo quererá ele tanto pão?”
- Quando a rapaziada souber vai ficar meia doida...
- E tu, não queres ficar?
- Eu? Livra! - retorquiu Riabtchikov, assarapantado.
- Pensa bem.
- Já pensei. Parto sem hesitar, desde que haja lugares vagos. Inscrevo-me na bateria de Karguínsskaia e embarco.
- Fazes mal.
- Tu é que o dizes. Eu cá, amiguinho, trato de salvar a pele. Não tenho vontade nenhuma de experimentar os sabres dos vermelhos.
- Pensa bem, Platone. O caso é sério...
- Não me digas mais nada. Vou-me já embora.
- Bem, seja como quiseres. Não tento convencer-te - retorquiu Grigóri de mau humor. E foi ele o primeiro a começar a subir os degraus.
Nem Ermakov, nem Prokhor, nem Bogatíriov estava em casa. A dona desta, uma velha arménia corcunda, declarou que os cossacos tinham saído, prometendo voltar em breve. Sem despir o capote, Grigóri cortou um pão em fatias e dirigiu-se ao telheiro onde estavam os cavalos. Dividiu o pão em duas rações, deu uma ao seu cavalo, outra ao de Prokhor, e acabava de pegar nos baldes para ir buscar água, quando Riabtchikov surgiu à entrada, escondendo cuidadosamente um bocado de pão nas abas do capote. O cavalo deste, ao ouvir o dono aproximar-se, soltou um breve relincho. Riabtchikov passou em silêncio junto de Grigóri, que sorria discretamente, colocou o pão na manjedoira e disse, sem olhar para Grigóri:
- Não te rias, por favor. Assim como assim, também tenho de dar de comer ao meu cavalo . Julgas que me ia embora sem custo? Tinha de fazer um grande esforço para entrar naquele maldito barco, palavra de honra. Foi o medo que me fez falar É que a gente só tem uma cabeça. Queira Deus que ma não cortem, não me nasceria outra daqui até ao Outono.
Prokhor e os outros só voltaram ao cair da noite. Ermakov trazia uma enorme garrafa de aguardente e Prokhor um saco cheio de frascos hermeticamente fechados, contendo um líquido amarelado e turvo.
- Aqui está o fruto do nosso trabalho. Já chega para esta noite gabou-se Ermakov, mostrando a garrafa. - E explicou: - Foi um médico, que nos pediu para ajudarmos a transportar medicamentos no cais, que nos deu isto. Os carregadores tinham-se recusado a trabalhar, só lá estavam alunos da escola do exército. O doutor pagou-nos o trabalho com álcool. Os frascos, quem os roubou foi o Prokhor. Diabos me levem se estou a mentir.
- Mas que têm eles dentro? - inquiriu Riabtchikov com curiosidade.
- Isso, meu anjinho, é coisa ainda mais fina do que o álcool.
Prokhor, depois de agitar um dos frascos, observou-o contra a luz. Através do vidro, o líquido espesso fazia bolhas e Prokhor concluiu satisfeito:
- É vinho estrangeiro, o que há de mais caro. Dá-se só aos doentes. Foi o que me disse um oficial que sabia inglês. Assim que estivermos a bordo vamos beber uns copos para nos consolar e cantaremos A nossa querida Pátria. Havemos de beber até chegarmos à Crimeia e depois atiramos com os frascos ao mar.
- Despacha-te a embarcar. O navio espera por ti. “Onde está esse herói dos heróis, esse Prokhor Zikov?”, dizem eles. “Não podemos partir sem ele!” declarou Riabtchikov, trocista.
Calou-se um instante e depois prosseguiu, apontando com o dedo amarelo de nicotina para Grigóri:
- Aquele já não quer ir, e eu também não.
- Não é possível! - exclamou Prokhor, quase deixando cair a garrafa com o espanto.
- Que quer isto dizer? Que história é essa? - inquiriu Ermakov, de má catadura, olhando fixamente Grigóri.
- Resolvemos não partir.
- Porquê?
- Porque não temos lugar.
- Não temos hoje, mas teremos amanhã - declarou com segurança Bogatíriov.
- Foste ao cais?
- Fui, e então?
- Viste o que lá se passa?
- Claro!
- Claro, claro! Se viste, nem vale a pena falar nisso. Só nos queriam levar a nós, a mim e ao Riabtchikov, e com muito custo. Mesmo assim tínhamos de ingressar na bateria de Karguínsskaia. Foi um voluntário que nos informou. De contrário seria impossível.
- E essa bateria ainda não embarcou? - inquiriu vivamente Bogatíriov.
Ao saber que os artilheiros estavam ainda na bicha, começou logo a fazer os preparativos: meteu na mochila a roupa, umas calças para mudar, um casaco, um pão, e despediu-se.
- Fica, Petro! - aconselhou Ermakov. - É melhor não nos separarmos.
Bogatíriov estendeu-lhe em silêncio a mão húmida, fez pela última vez a continência e, já da soleira da porta, disse:
- Adeus, rapazes! Se Deus quiser ainda nos voltaremos a ver!
E partiu correndo.
Depois disto ficou a pairar na casa um silêncio penoso.
Ermakov foi à cozinha pedir quatro copos, encheu-os em silêncio, pôs sobre a mesa uma grande chaleira de cobre cheia de agua fria. Sempre calado, cortou algumas fatias de toucinho, sentou-se, olhou para os pés com ar absorto, depois bebeu pelo bico da chaleira, e disse numa voz de cana rachada:
- No Kúbano, a água tresanda a petróleo. Porque será?
Ninguém lhe respondeu. Riabtchikov limpava com um farrapo limpo o sabre coberto de humidade. Grigóri vasculhava na mochila e Prokhor contemplava, distraído, através da janela, as vertentes nuas das montanhas onde vagueavam rebanhos de cabras.
- Sentem-se, vamos beber.
Ermakov engoliu logo sem parar meio copo de álcool, seguido de um golo de água e, enquanto mastigava um bocado de toucinho cor-de-rosa, declarou, fitando em Grigóri os olhos subitamente risonhos:
- Será que os camaradas vermelhos nos vão cortar a cabeça?
- Não hão-de matar toda a gente. Devem ficar milhares e milhares de pessoas por aqui - respondeu Grigóri.
- Não é toda a gente que me preocupa, é a minha própria pele... - respondeu, rindo, Ermakov.
Depois de beberem copiosamente, a conversa tornou-se mais animada. Ao cabo de um certo tempo, viram surgir Bogatíriov, aborrecido, sorumbático, negro de frio. Atirou para o chão um monte de fardas inglesas novas em folha e começou a despir o capote sem dizer nada.
- Bem aparecido seja! - exclamou perfidamente Prokhor, inclinando-se.
Bogatíriov lançou-lhe um olhar furibundo e disse, suspirando:
- Nem que mo pedissem de joelhos, esses Denikines e outros filhos da puta como ele, não embarcaria. Meti-me na bicha, fiquei gelado como um cão, e tudo para nada. Cortaram a bicha mesmo à minha frente. Só faltavam dois. Um ainda passou, mas o outro não. Metade da bateria ficou em terra.
- Que quer isto dizer, hem?
- É para saberes como te ligam pouca importância! – exclamou Ermakov, a rir às gargalhadas. Serviu a Bogatíriov um copo cheio a deitar fora. Toma, afoga a tua mágoa, a não ser que esperes que eles te venham buscar. Olha pela janela, aquele não é o general Rangel que vem à tua procura?
Bogatíriov bebia em silêncio. Não estava para graças. Ermakov e Riabtchikov, já bastante toldados, tinham embebedado a velhota, dona da casa, e preparavam-se para irem buscar um acordeonista.
- Dirijam-se antes à estação - aconselhou Bogatíriov. - Estão lá a descarregar os vagões, há um cheio de peças de vestuário.
- Para que queremos nós vestuário? - berrou Ermakov.
- Bastam-nos os capotes que tu trouxeste. De qualquer forma eles tirar-nos-ão tudo o que for a mais. Petro! Hé, animal! Estamos resolvidos a passar-nos para os vermelhos, ouviste? Somos cossacos ou não? Se os vermelhos nos quiserem, colocar-nos-emos às suas ordens. Somos cossacos do Don. Puros-sangues sem mistura. O nosso ofício é matar com os sabres. Já me viste dar uma sabrada? Sou capaz de cortar um talo de couve em cima da tua cabeça. Põe-te ali para eu experimentar. Ah! Estás a fraquejar? Nós não queremos saber quem são aqueles que passamos a fio de sabre. O que nos interessa é combater. Não é verdade, Melekhov?
- Deixa-me em paz! - disse Grigóri, repelindo-o com um gesto de fadiga.
Enviesando os olhos injectados de sangue, Ermakov procurava deitar a mão ao sabre poisado sobre uma arca. Bogatíriov afastava-o sem cólera, dizendo:
- Está lá quieto, grande herói, senão tenho de te acalmar com um murro. Bebe sossegado. És oficial, caramba!
- Estou-me nas tintas para a patente. Preciso tanto dela como da primeira camisa que vesti. Não me fales nisso. Estamos amigos em igualdade, não é assim? Queres que te corte os galões? Pétia, meu amiguinho, espera, espera que eu...
- Ainda não chegou a altura, não temos pressa - dizia Bogatíriov, repelindo o companheiro, que dava mostras de grande excitação.
Estiveram a beber até de madrugada. À noitinha, haviam chegado outros cossacos desconhecidos. Um destes trazia um acordeão. Ermakov dançou à cossaca até cair exausto. Arrastaram-no para junto da arca e ele adormeceu logo ali no chão, de pernas abertas e cabeça deitada para trás. Aquela melancólica orgia durou até de manhã. “Eu sou de Kumchatsskaia... mesmo da stanitsa. Tínhamos bois tão grandes que não se lhe chegava aos cornos. E cavalos do tamanho de leões. Agora, o que é que nos resta? Uma cadela pelada. E não tarda que morra, não temos que lhe dar...” dizia, entre soluços de 'bêbado, um cossaco velho. Um homem do Kúbano, com uma tcherkesska rasgada, pedira ao acordeonista que tocasse uma naursskaia. E deslizava, de braços abertos, como se vê nas gravuras, com tal ligeireza que as suas botas de montanhês mal tocavam no chão gasto e sujo.
À meia-noite, um dos cossacos foi buscar, sabe-se lá onde, duas bilhas de barro de gargalo estreito. Ostentavam uns rótulos negros e meio podres, rolhas lacradas com chumbos que saíam para fora da cera encarnada. Prokhor esteve muito tempo com uma delas na mão. O esforço que fazia para decifrar a inscrição da etiqueta em língua estrangeira obrigava-o a mover a custo os lábios. Ermakov, que acordara, tirou-lhe a bilha das mãos, poisou-a no chão e puxou do sabre. Prokhor mal teve tempo de dar por ela, e já o outro cortava o gargalo da bilha com um golpe oblíquo, gritando: “Apresentem os copos!”
Não foram precisos muitos minutos para beberem todo aquele vinho espesso e acre, de aroma estranho. Depois de o provar, Riabtchikov ficou a dar estalos com a língua, encantado, e a murmurar: “Isto não é vinho, é o Santíssimo Sacramento!
- É um vinho para aqueles que vão morrer, e não para todos, somente para aqueles que nunca jogaram as cartas, que nunca tomaram rapé, que nunca tocaram numa mulher... Um vinho para bispos, pois então!” Foi nessa altura que Prokhor se lembrou de que tinha no seu saco o tal vinho medicinal.
- Espera aí, Platone, não o gabes antes de tempo. Tenho ali um vinhito ainda melhor. Este é uma merda, mas aquele que eu descobri no depósito militar, isso é que é uma pinga! Cheira a incenso e a mel, ou melhor ainda! Não é de bispo, mas digo-te na verdade que é um néctar de tzar. Noutros tempos era o tzar que o bebia, hoje chegou a nossa vez afirmava todo fanfarrão, enquanto abria um dos frascos.
Ávido de beber, Riabtehikov engoliu de uma vez meio copo do líquido espesso, de um amarelo sujo, mas, empalidecendo de súbito, começou a piscar os olhos:
- Isto não é vinho, é fenol! rouquejou ele.
Atirou com fúria o resto para o peitilho da camisa de Prokhor e saiu a cambalear.
- Ele mente, o patife! Isto é vinho, um vinho inglês. De primeira qualidade. Não acreditem, meus irmãos! - berrou Prokhor, esforçando-se por cobrir o tumulto das vozes avinhadas.
Emborcou um copo de uma vez e ficou ainda mais pálido do que Riabtchikov.
- Então? - perguntou Ermakov, de narinas dilatadas, a fixar intensamente os olhos torvos de Prokhor. - Que tal é esse vinho dos tzares? É seco? É doce? Responde, miserável, ou quebro-te o frasco na pinha!
Prokhor abanava a cabeça, sofria em silêncio. Depois deu um arroto, saltou lestamente e correu na peugada de Riabtchikov. Ermakov, a rebentar de riso, dirigiu uma piscadela cúmplice a Grigóri, e foi também para o pátio. Voltou ao cabo de um minuto. As suas gargalhadas cobriam todas as vozes.
- Que é isso? - inquiriu Grigóri, numa voz cansada. -Porque relinchas assim, meu idiota? Que é que se passa?
- Ah, meu caro! Se tu os visses! Viraram-se do avesso.
- Sabes o que eles beberam?
- O que foi?
- Unguento inglês contra os piolhos!
- Estás doido!
- Juro-te! Também eu pensei primeiro que fosse vinho, mas perguntei ao médico: “Que é isto, senhor doutor?” “É um remédio”, respondeu ele “Será por acaso um remédio contra todas as moléstias? Pode tomar-se com vinho?” “Deus o livre!” - exclamou ele. “Foram os Aliados que nos mandaram aquilo contra os piolhos. É um remédio para uso externo, não se pode engolir.”
- Então porque não lhes disseste, malandro?
- Faz-lhes bem, àqueles idiotas! Devem purificar-se antes de se renderem. Aquilo não mata, está descansado.
Ermakov limpava as lágrimas que lhe vinham aos olhos à força de rir, e acrescentou, com certo prazer malévolo:
- É a maneira de beberem menos. Já nem dão tempo a que uma pessoa pegue num copo. Devemos dar uma lição àqueles alambazados. Já nem sequer sabem esperar. Vamos beber à saúde da nossa derrota, queres?
Pouco antes da aurora, Grigóri saiu para o alpendre, enrolou um cigarro com os dedos trémulos e ficou ali muito tempo, encostado à parede húmida de nevoeiro.
Lá dentro, os gritos dos bêbados, os soluços do acordeão e os assobios alegres não esmoreciam; os tacões dos dançarinos martelavam infatigavelmente o chão... O vento trazia do porto o uivar contínuo e grave das sereias dos barcos. Nos cais, as vozes dos homens misturavam-se num zumbido compacto cortado pelas ordens gritadas, pelos relinchos dos cavalos, pelos silvos das locomotivas. Combatia-se para os lados da stanitsa de Tonnelnaia. O canhoneio rugia surdamente; mal se ouvia, nos intervalos, o crepitar das metralhadoras. Um foguetão subiu muito alto, num deslumbramento de luzes, por detrás do desfiladeiro de Markotsski. Durante alguns segundos, foi possível distinguir, no meio de um clarão verde e fantomático, os dorsos corcovados das montanhas que logo foram de novo cobertas pela escuridão da noite de Março. E então as salvas de artilharia recomeçaram, mais nítidas e frequentes, quase contínuas.
Soprava do mar um vento salgado, espesso e frio, que trazia um odor de terras estrangeiras e desconhecidas. Mas, afinal, tudo, não só o vento, era estranho e desconhecido para os cossacos do Don naquela cidade marítima e enfadonha, varrida por correntes de ar. Os homens passavam o tempo no molhe, numa multidão compacta, à espera do embarque...
Ondas verdes e espumosas batiam contra o cais. Um sol frio contemplava a terra através das nuvens. Na doca fumegavam torpedeiros ingleses e franceses. Um dreadnought, qual colosso cinzento, dominava todo o porto. Por cima dele desdobrava-se uma nuvem de fumo negro. Reinava nos cais um silêncio sinistro. No lugar onde antes se baloiçara, sobre as ondas, um navio de carga preso à amarra, viam-se agora flutuar selas de oficiais, malas, cobertores, peliças, cadeiras forradas de duche vermelha, um verdadeiro bricabraque atirado da ponte no momento da partida precipitada...
Grigóri dirigiu-se ao cais logo pela manhã. Depois de confiar o seu cavalo a Prokhor, vagueou muito tempo pelo meio da multidão, em busca de caras conhecidas, a escutar conversas desconexas, e inquietas. Mesmo à sua vista, um velho oficial reformado, a quem haviam recusado a passagem queimou os miolos com um tiro em frente da prancha de embarque do Sviastolav.
Alguns momentos antes, esse coronel, um homenzinho baixo e activo, com as faces cobertas de pêlos brancos, os olhos papudos molhados de lágrimas, agarrara pela bandoleira o chefe das sentinelas; gaguejava de forma lamentável, assoava-se e limpava com um lenço sujo os bigodes amarelos do tabaco, os olhos e os lábios trémulos. Depois, num repente, decidira-se...
Imediatamente um cossaco ágil veio tirar da mão ainda quente do morto o browning de níquel cintilante. O cadáver, envolto num capote de oficial cinzento-claro, foi empurrado com o pé, como se fosse uma trave, para junto de um monte de caixotes. Depois, o sussurrar da multidão tornou-se ainda mais forte sobre a prancha, os empurrões da bicha mais violentos, as vozes roucas dos homens desesperados mais furiosas.
Quando o último barco começou a oscilar, afastando-se do cais, rebentaram entre a multidão soluços de mulheres, gritos histéricos, pragas... Ainda não se extinguira o breve mugido da sereia e já um jovem kalmuk, de barrete de pele de raposa, se atirava à água, desatando a nadar na esteira do barco. Aquele não se conteve suspirou um cossaco.
- Vê-se mesmo que não podia ficar - declarou um outro, mesmo ao lado de Grigóri. Deve tê-las feito boas aos vermelhos....
Grigóri, de dentes cerrados, via nadar o kalmuk. Os braços deste erguiam-se com intervalos cada vez mais espaçados, os seus ombros submergiam-se. A farda, cheia de água, arrastava-o para o fundo. Uma vaga, arrebatando-lhe o barrete de pele, levou-o para longe.
- Vai afogar-se, o maldito! - declarou num tom compadecido um velho de bechmet.
Grigóri, voltando-se bruscamente, foi direito ao cavalo.
Prokhor conversava animadamente com Riabtchikov e Bogatíriov, que acabavam de chegar a galope. Ao ver Grigóri, Riabtchikov agitou-se na sela, esporeou o cavalo e gritou, impaciente:
- Despacha-te, Panteleiévitch!
E, sem esperar que Grigóri se aproximasse, berrou de longe:
- Vamos embora daqui enquanto é tempo. Somos uns cinquenta cossacos e queremos ir todos para Guelendjik e dalipara a Geórgia. Que dizes?
Grigóri ia-se aproximando, de mãos profundamente enterradas nos bolsos do capote, a empurrar com os ombros os cossacos agrupados sem motivo no cais.
- Vens ou não vens? - inquiriu Riabtchikov, que acabara por se acercar dele.
- Não, não vou.
- Juntou-se a nós um tenente-coronel. Ele sabe o caminho e disse-nos: “Sou capaz de vos levar com os olhos fechados até Tiflis”. Anda, Gricha. Dali podemos ir até à terra dos turcos, queres? Temos de nos safar de qualquer forma. Aproxima-se o fim e tu ficas para aí como um peixe adormecido...
- Não, não irei.
Grigóri, tomando as rédeas das mãos de Prokhor, saltou pesadamente para a sela, como um velho.
- Não, não irei. Isso de nada serve. E depois já é tarde, olha...
Riabtchikov voltou-se. com fúria e desespero, amarfanhou e rasgou a dragona do sabre: as montanhas regurgitavam de filas de atiradores vermelhos. As metralhadoras principiaram a crepitar febrilmente junto às fábricas de cimento. Os comboios blindados faziam fogo sobre os artilheiros. O primeiro obus veio rebentar junto ao moinho Aslanidi.
- Voltemos para casa, rapazes. Venham comigo! - ordenou alegremente Grigóri. Endireitara-se na sela.
Riabtchikov, agarrando na rédea do cavalo de Grigóri, gritou assustado:
- Não faças isso. Fiquemos aqui. A morte é bela para aqueles que morrem juntos...
- Anda daí, caramba! Quem fala em morrer?
Grigóri quis ainda dizer qualquer coisa, mas a sua voz foi coberta por um rugido de trovoada que vinha das bandas do mar. O dreadnought inglês, o Emperor of India, ao abandonar as costas da Rússia aliada, acabava de virar de 'bordo e lançava uma salva de obuses com as suas peças de doze polegadas.
A fim de proteger os barcos que largavam da baía, flagelava as fileiras de vermelhos e de verdes que avançavam pelos arredores da cidade, depois dirigiu o fogo para o desfiladeiro onde haviam surgido as baterias vermelhas. Os obuses voavam com um silvo de ave de rapina por cima das cabeças dos cossacos amontoados no cais.
Enquanto esticava as rédeas para impedir que o seu cavalo ajoelhasse, Bogatíriov gritava por entre o troar do canhoneio:
- Ladram com força, os canhões ingleses! Mas estão a enfurecer os vermelhos sem proveito nenhum. Aqueles tiros não têm qualquer utilidade, é só barulho...
- Podem enfurecê-los à vontade. Para nós é a mesma coisa disse Grigóri sorrindo.
Fustigou o cavalo e seguiu rua fora.
Ao chegar à esquina, surgiram ao seu encontro seis cavaleiros a galope, de sabres desembainhados. O primeiro trazia no peito uma fita vermelha, que parecia uma ferida sangrenta.
Durante dois dias soprou do sul um vento morno. A última neve desapareceu dos campos. As torrentes primaveris cobertas de espuma deixaram de rugir; as ravinas e os rios da estepe acalmaram. Na madrugada do terceiro dia, o vento cessou. Sobre a estepe amontoavam-se espessas nuvens, a humidade veio pratear os tufos de junco do ano anterior, uma névoa esbranquiçada, impenetrável, afogou os túmulos, as ravinas, as stanitsas, os campanários, os cimos dos choupos erguidos em pirâmide para o céu. E a Primavera azul instalou-se na vasta estepe do Don.
Certa manhã enevoada, Akcínia veio até ao alpendre, pela primeira vez desde que estava melhor, e ficou um longo momento de pé, estonteada com a suavidade inebriante do ar fresco da Primavera. Vencendo a náusea e a vertigem, aproximou-se do poço do jardim e, poisando o balde no chão, sentou-se na borda do muro.
O mundo pareceu-lhe mudado, maravilhosamente novo e atraente. Observava em redor, de olhos brilhantes, a brincar com as pregas da saia, como uma rapariguinha. O horizonte velado pela névoa, as macieiras, o jardim molhado pela água do degelo, a cerca húmida e, atrás desta, o caminho em que os regos do ano anterior se haviam cavado profundamente, tudo se lhe afigurava de uma beleza nunca vista, tudo resplandescia aos seus olhos revestido de cores suaves e intensas, como se estivesse iluminado pelo sol.
O azul glacial de um farrapo do firmamento que se avistava por entre as nuvens cegou-a; o cheiro da palha apodrecida e da terra negra, gelada, era--lhe tão familiar e agradável que respirou profundamente, sorrindo de leve; o canto sem malícia de uma toutinegra fez brotar dentro dela uma tristeza inconsciente. Aquele canto, ali, longe da sua terra, arrancou-lhe dos olhos duas lágrimas rebeldes. Toda entregue ao prazer da vida reencontrada, sem pensar em nada, Akcínia experimentava um desejo intenso de tocar com as mãos em tudo, de examinar tudo. Sentia vontade de apalpar a groselheira negra de humidade, de comprimir a face contra o ramo da macieira coberta de veludo azulado, de saltar a vedação arruinada e correr sobre a lama através dos campos, para além da larga ravina até o verde fabuloso das sementeiras do Outono, que se esvaía no horizonte enevoado...
Durante alguns dias, Akcínia esperou que Grigóri aparecesse de um momento para o outro, mas veio a saber pelos vizinhos de passagem que a guerra não terminara, que muitos cossacos haviam embarcado em Novorossiissk com destino à Crimeia e que aqueles que não tinham conseguido partir se encontravam ou no Exército Vermelho ou nas minas.
Ao cabo de uma semana, tomou a firme decisão de regressar a casa, tendo tido a sorte de encontrar logo um companheiro de viagem: certa noite, um velhote entrou na casa sem bater e, depois de cumprimentar em silêncio, começou a desabotoar o capote sujo, rebentado nas costuras, que lembrava um saco a cair-lhe dos ombros.
- Então, tiozinho, instalas-te sem dares os bons-dias? - disse o dono da casa, a observar com espanto o intruso.
O outro despiu rapidamente o capote, sacudiu-o na soleira, pendurou-o cuidadosamente, dizendo então com um sorriso, a alisar a barbicha grisalha e curta:
- Perdoa-me pelo amor de Deus, caro amigo, mas os tempos que correm ensinaram-me uma coisa: é que se deve primeiro despir o capote e só depois pedir guarida, de contrário mandam-nos embora. As pessoas, hoje em dia, tornaram-se grosseiras e não gostam de receber visitas...
- Onde queres tu que te alojemos? Bem vês que estamos todos apertados disse o dono da casa num tom mais suave.
- A mim basta-me um cantinho. Olha, aqui, na soleira da porta, enrosco-me e adormeço.
- Quem és tu, tiozinho? És refugiado? inquiriu a dona da casa
- Sim, é isso mesmo, sou um refugiado. Corri Seca e Meca, fui até ao mar e agora regresso devagarinho. Estou exausto... respondeu o velho, que gostava de conversar, agachando-se junto à porta.
- Mas quem és? Onde é a tua terra? - perguntou por sua vez o dono da casa.
O velho tirou do bolso uma grande tesoura de alfaiate, fê-la girar nas mãos, e disse, sempre a sorrir:
- Aqui estão os meus documentos, a minha ordem de missão desde Novorossiissk. Mas não sou natural daqui, pertenço à stanitsa de Viochénsskaia. É para lá que me dirijo agora, depois de ter provado a água salgada do mar! Eu também sou de Viochénsskaia, tiozinho! - exclamou Akcínia, vermelha de alegria.
- Vejam lá como são as coisas! - retorquiu o velhote.
- Onde uma pessoa vem encontrar uma conterrânea! A verdade é que, nos tempos que correm, isso nada tem de extraordinário. Nós agora somos uma espécie de judeus errantes, espalhados por toda a terra. No Kúbano, por exemplo, atiramos um pau a um cão e acertamos num cossaco. Há-os por todo o lado, não se podem contar, e, debaixo da terra, ainda há mais. Meus amigos, durante a retirada, vi coisas que ninguém pode imaginar. Esta desgraça que a gente suporta não se descreve! Ainda ontem estive numa estação do caminho-de-ferro. Na minha frente, havia uma mulher com muito bom ar que usava óculos. E tinha posto os óculos para catar os piolhos que se passeavam tranquilamente por cima dela. Ela apanhava-os com as unhas e fazia uma careta como se estivesse a trincar uma maçã madura. Começou a esborrachar os malditos dos piolhos, fazendo cada vez mais caretas, a ponto de ficar com a cara toda de esguelha, de tal modo lhe repugnava o que estava fazendo. E quando eu penso que há tipos que matam um homem sem pestanejar, sem a menor contracção! Vi um sujeito na minha frente passar a sabre três kalmuks. No fim, limpou o sabre à crina do cavalo, acendeu um cigarro, veio ter comigo e disse: “Então, velhinho, não arregales tanto os olhos. Queres que também te corte a cabeça?” “Que estás tu a dizer, meu filho” respondi eu. “Deus te guarde! Se me cortas a cabeça, como hei-de eu comer pão?” O homem pôs-se a rir e foi-se embora.
- Matar um homem, para quem está habituado a isso, custa menos do que esborrachar um piolho. O valor de um homem baixou muito desde o princípio da revolução - declarou o dono da casa com um ar profundo.
- Isso é uma grande verdade - concordou o outro. - O homem não é nenhum animal, habitua-se a tudo. Então eu perguntei à tal dama: “Quem é a senhora? Pela cara não parece ter nascido de gente humilde.” Ela, olhando para mim, debulhou-se em lágrimas: “Sou a mulher do general-major Gretchikhine”. E eu disse de mim para mim, apesar do teu general e do teu major, tens tantos piolhos como pulgas há no pêlo de um gato ranhoso. E declarei-lhe: “Vossa Excelência desculpe, mas se continua a matar os piolhos por esse processo tem que fazer até à festa da Intercessão. Além de que vai partir as unhas todas. Esborrache-os de uma vez!” “Assim?” perguntou ela. Então aconselhei: “Dispa o fato, e estenda-o sobre uma coisa dura. e passe-lhe por cima uma garrafa.” Nisto a generala deu um pulo e foi esconder-se atrás de um reservatório. Depois vi-a a rebolar uma garrafa sobre a camisa, com tanta força como se nunca tivesse feito outra coisa na vida. Estive muito tempo a observá-la e depois disse comigo: O bom Deus faz tudo com fartura. Mandou estes bichinhos morder as pessoas da alta dizendo lá consigo que era justo eles chuparem também sangue doce, e não apenas o dos trabalhadores...O bom Deus não é nenhum parvo. Ele lá sabe o que faz. E às vezes regula tão bem as coisas que a gente não tem nada a dizer-lhe...
Sempre a tagarelar, vendo que os donos da casa o escutavam com a maior atenção, o alfaiate deu a entender habilmente que, embora ainda tivesse outras histórias para contar, a fome lhe estava a fazer sono.
Depois da ceia, quando se instalava para dormir, disse a Akcínia:
- Então, cara conterrânea, contas ficar aqui ainda muito tempo?
- Estou morta por regressar à terra, avozinho.
- Então vamos juntos, sempre é mais agradável.
Akcínia aceitou com entusiasmo e, na manhã seguinte, depois de se despedirem dos donos da casa, deixaram a povoação de Novo-Mikhailovsski, perdida na estepe.
Ao cabo de doze dias, chegaram de noite à stanitsa de Miliutinsskaia. Conseguiram dormida numa grande casa de aspecto confortável. Na manhã seguinte, o companheiro de Akcínia resolveu ficar ali uma semana para descansar e tratar os pés feridos pela caminhada. Não podia ir mais longe e havia trabalho de costura para ele fazer naquela casa. O velho, que sofrera com a falta do trabalho, instalou-se com entusiasmo perto de uma janela, tirou da algibeira a tesoura e os óculos presos a uma fita, começando logo a descoser umas farpelas velhas.
Quando Akcínia se despediu dele, o maroto, o farsante, abençoou-a; os seus olhos encheram-se de lágrimas inesperadas que se apressou a enxugar, e disse, com a sua costumada ironia:
- A miséria não é boa companheira, mas aproxima as pessoas... Já te sinto a falta. Pronto, não há remédio. Vai sozinha, minha filha, o teu companheiro ficou de repente manco das duas pernas. Parece que lhe deram pão de cevada a comer... Podemos confessar que andamos bem os dois nestes últimos dias. Bem de mais, até, para os meus setenta anos. Se tiveres ocasião, diz à minha mulher que o seu pombinho cinzento está vivo e são. Apanhou vários encontrões, mas não morreu, e que ficou pelo caminho a fazer calças para esta boa gente. Há-de chegar a casa quando menos o esperarem. Informa-a de que este velho idiota bateu em retirada e que agora regressa a casa, sem contudo fazer ideia do dia da chegada...
Akcínia demorou-se ainda uns dias pelo caminho. De Bokóvsskaia, chegou a Tatársski num carro que seguia o itinerário. Certa noite, já tarde, entrou pelo portão aberto do seu pátio, lançou um olhar à herdade dos Melekhov, e logo uma onda de soluços lhe subiu à garganta, abafando-a...
Na cozinha deserta, onde flutuava o odor das casas desabitadas, chorou todas as suas lágrimas amargas de mulher, há muito retidas. Depois desceu ao Don para ir buscar água, acendeu o fogão e sentou-se diante da mesa, com as mãos sobre os joelhos. Mergulhada nos seus pensamentos, não ouviu ranger a porta, e só deu conta de si quando Ilínitchna, que entrara, lhe disse em voz baixa:
- Olá, boa noite, vizinha. Andaste muito tempo perdida longe da nossa terra...
Akcínia olhou-a, assustada, levantou-se:
- Porque olhas para mim sem dizeres nada? Será que trazes más notícias? - disse Ilínitchna. E aproximou-se lentamente da mesa, indo sentar-se na ponta do banco, sem despregar os olhos ansiosos do rosto de Akcínia.
- Não. Porque havemos de falar em más notícias?... Não contava consigo. Estava a pensar noutras coisas e não a senti entrar...declarou Akcínia, perturbada.
- Emagreceste, só trazes a pele e o osso.
- Tive o tifo...
- E o nosso Grigóri... como vai ele?... Ou vocês separaram-se? Ele está vivo?
Akcínia contou em poucas palavras o que se passara. Ilínitchna escutou-a sem proferir palavra. Por fim, inquiriu:
- Quando te deixou ele não estava doente?
- Não, não estava doente.
- E não voltaste a saber nada dele?
- Não.
Ilínitchna soltou um suspiro de alívio.
- Bem, obrigada pelas tuas boas palavras. É que aqui, na aldeia, dizem coisas dele...
- Que coisas? . perguntou Akcínia numa voz quase imperceptível.
- Coisas... tolices... Não podemos dar ouvidos a tudo quanto se diz. De todos os homens da aldeia, só regressou o Vanka Beskhlebnov. Viu o Gricha doente em Ekaterinodar. Quanto aos outros, não acredito no que dizem.
- Mas que dizem eles, tiazinha?
- Ouvimos contar que um cossaco de Singuine afirmava que os vermelhos haviam morto o Gricha na cidade de Novorossiissk. Fui a pé a Singuine (o meu coração de mãe não tinha descanso) e falei com esse cossaco. Ele negou o que dissera. Afirma que nada sabia, nada vira. Também corre o boato de terem prendido o Gricha e que ele teria morrido com o tifo...
Ilínitchna, baixando os olhos, ficou muito tempo calada, a contemplar as suas pesadas mãos nodosas. O rosto flácido da velha estava calmo, de lábios severamente apertados. De repente, as suas faces morenas tomaram um tom de cereja e as suas pálpebras começaram a tremer. Fitando Akcínia com os olhos secos e escaldantes, disse numa voz rouca:
- Mas eu não acredito. Não é possível eu ter perdido o meu último filho. Deus não podia castigar-me assim... Pouco tempo me resta para viver, mas já tive mais do que a minha conta de sofrimentos... O Gricha está vivo. O meu coração nada adivinha, isso prova que o meu querido está vivo.
Akcínia voltou-se sem responder.
A cozinha permaneceu muito tempo em silêncio, depois o vento escancarou a porta do vestíbulo e ouviu-se o mugido surdo da cheia entre os choupos, na outra margem do Don, e os apelos inquietos dos patos selvagens sobre a água.
Akcínia fechou a porta e foi encostar-se ao fogão.
- Não se inquiete por causa dele, tiazinha disse em voz baixa. Acha que a doença pode vencer um organismo daqueles? Ele é forte. Forte como o ferro. Os homens como ele não morrem. Fez toda a viagem sem luvas, com um frio de rachar...
- E ele lembra-se dos filhos? - perguntou Ilínitchna em voz sumida.
- Lembrava-se de si e dos filhos. Eles estão bons?
-Sim, estão bons. Não lhes tem faltado nada. Mas o nosso Pantelei Prokófievitch morreu durante a retirada. Ficámos sós...
Akcínia persignou-se em silêncio, intimamente surpreendida pela calma com que a velha anunciara a morte do marido.
Ilínitchna ergueu-se com esforço, apoiada à mesa.
- Estou a demorar-me e já é noite lá fora.
- Fique, tiazinha.
-A Duniachka está só, tenho de ir embora.
Enquanto compunha o lenço da cabeça, observou a cozinha e franziu o nariz.
- O fogão deita fumo. Devias ter deixado aqui alguém quando te foste embora. Bem, adeus.
Já com a mão no trinco da porta, disse sem olhar para trás:
- Quando estiveres instalada, passa lá por casa, vem visitar-nos. Se souberes notícias do Grigóri diz-nos...
Desse dia em diante, as relações entre as mulheres da família Melekhov e Akcínia modificaram-se totalmente. A sua preocupação comum pela sorte de Grigóri aproximara-as, estabelecera entre elas como que um laço. Na manhã seguinte, Duniachka, ao ver Akcínia no pátio, chamou-a e foi até à cerca; abraçando os ombros magros de Akcínia, dirigiu-lhe um sorriso franco e acariciador.
- Oh, como emagreceste, Ksiúcha, só tens ossos!
- Não havia de emagrecer, com aquela vida - respondeu Akcínia sorrindo, a contemplar com secreta inveja o rosto da rapariga, de faces vermelhas, a respirar saúde e beleza.
- A minha mãe veio ontem a tua casa? – perguntou Duniachka, falando baixo sem saber porquê.
- Veio sim.
- Foi o que eu pensei, que ela tinha ido a tua casa.
- Pediu-te notícias do Gricha?
- Pediu.
- E não chorou?
- Não. É muito dura.
Duniachka olhou confiadamente para Akcínia:
- Antes chorasse. Para ela seria menos duro. Sabes, Ksiúcha, anda esquisita desde o Inverno, não parece a mesma. Quando soube o que acontecera ao pai, julguei que o coração lhe parava, tive muito medo, mas não verteu uma lágrima. Disse apenas: “Deus guarde a sua alma! Já não sofre mais, o meu querido.” E não voltou a falar a ninguém até à noite. Eu bem tentava dizer-lhe uma palavra de vez em quando, mas ela fazia-me sinal com a mão e calava-se. O que eu sofri nesse dia! À noite, quando acabei de tratar dos animais, ao voltar ao pátio, perguntei-lhe: “Mãe, cozinhamos alguma coisa para comermos logo?” Recobrando ânimo, tornou a falar...
Duniachka suspirou e disse, olhando pensativamente para além de Akcínia:
- O nosso Grigóri morreu? É verdade o que dizem?
- Não sei, minha querida.
Duniachka suspirou ainda mais fundo, com os olhos enviesados, a perscrutar Akcínia:
- A minha mãe está ralada de desgostos. Só lhe chama o “meu queridinho”. Não acredita que ele já não pertence a este mundo. E, sabes tu, Ksiúcha, se ela souber que Grigóri morreu de verdade, não resiste ao desgosto. Já não lhe interessa a vida, o que a prende é o Grigóri. Até para os netos se mostra menos meiga e no trabalho deixa cair tudo das mãos... Imagina tu, quatro mortos na família no espaço de um ano...
Compadecida, Akcínia curvou-se sobre a cerca para abraçar Duniachka e beijá-la com força na cara.
- Tens que entreter a tua mãe com qualquer coisa, minha querida. Não a podes deixar entregue ao desgosto.
- Mas entretê-la com quê?
Duniachka limpou os olhos à ponta do lenço e disse:
- Vem a nossa casa para conversares com ela. Isso há-de fazer-lhe bem. Não há motivo para te afastares de nós.
- Hei-de ir, hei-de ir sem falta.
- Amanhã vou para o campo. Juntamo-nos com a mulher do Anikuchka, tencionamos semear pelo menos duas deciatinas de trigo. E tu, semeias alguma coisa?
- Semear o quê? - respondeu Akcínia sorrindo tristemente.
- Não tenho onde semear nada, e depois, para quê? Para mim pouco me basta e hei-de arranjar-me.
- E do teu Stepane, tens notícias?
- Não - respondeu com indiferença Akcínia. E acrescentou sem querer: - Nem tenho saudades.
Esta confissão involuntária perturbou-a, acrescentando muito depressa para esconder a confusão:
- Adeus, minha pequena, tenho de ir arrumar umas coisas lá em casa.
Duniachka, fazendo de conta que não reparara na atrapalhação de Akcínia, disse, a desviar os olhos:
- Espera aí, quero dizer-te uma coisa. Não gostarias de nos vir ajudar? A terra está a ficar seca de mais, tenho receio de que não consigamos fazer nada dela, e só restam dois homens em toda a aldeia, mesmo assim inválidos.
Akcínia concordou prontamente, e Duniachka, toda satisfeita, foi fazer os preparativos.
Afadigou-se durante todo o dia: com a ajuda da mulher de Anikuchka, joeirou o trigo, consertou o melhor que pôde os arreios, untou as rodas da carroça, compôs o semeador.
À noite encheu um lenço de trigo joeirado, dirigiu-se ao cemitério e espalhou-o sobre as campas queridas de Petro, de Natalia e de Daria, para atrair os pássaros pela manhã. Na sua simplicidade de criança, acreditava que os mortos, ouvindo o alegre chilrear das aves, se sentiriam contentes.
Só perto do romper do dia é que o silêncio voltou a reinar nas terras do Don. A água marulhava suavemente na floresta invadida, lavando as copas verde-pálido dos choupos, baloiçando a compasso os tufos afogados das moitas de carvalhos e de álamos jovens; as cabeleiras dos arbustos dobrados pela corrente rumorejavam nos pântanos a transbordar; nas terras inundadas, nas enseadas perdidas onde a água, a reflectir a luz crepuscular do céu estrelado, permanecia imóvel e como que embruxada, os patos anões, quase sem fazerem barulho, chamavam uns pelos outros, as abequinhas faziam ouvir o seu assobiar sonolento, de quando em quando soavam as trombetas argentinas dos cisnes de passagem, instalados nos lameiros para pernoitar. Por vezes, um peixe vagabundo saltava na escuridão; uma vaga irisada espraiava-se ao longe sobre as águas palhetadas de cintilações de oiro; um pássaro angustiado soltava um grito de apelo. E de novo o silêncio envolvia o Don.
De madrugada, porém, quando os contrafortes barrentos das colinas mal começavam a ruborizar-se, levantava-se um vento, forte e poderoso, soprando contra a corrente. Amontoavam-se então sobre o Don vagas de uma ságena de altura, a água cachoava furiosamente na floresta, as árvores oscilavam gemendo.
O vento uivava durante todo o dia, só se acalmando alta noite.
Este tempo durou vários dias.
Uma bruma lilás veio instalar-se por cima da estepe.
A terra secava, a erva parava de crescer, os regos feitos no Outono rachavam. A terra esboroava-se de hora a hora e os campos de Tatársski encontravam-se quase desertos. Na aldeia tinham ficado apenas alguns velhos de idade muito avançada.
Os homens que haviam regressado após a retirada estavam meio gelados, doentes e incapazes de trabalhar; somente as mulheres e alguns adolescentes labutavam nos campos. Na aldeia vazia o vento levantava nuvens de poeira, fazia bater as portadas, levantava em redemoinhos o colmo por cima dos telheiros.
“Este ano ficaremos sem pão”, declaravam os velhos. “Só há mulheres nos campos, em cada três herdades só uma semeia as suas terras. O chão morto não produzirá nada...”
No dia seguinte à sua partida para os campos, ao pôr doSol, Akcínia, que fora levar os bois a beber ao charco, avistou no aterro o pequeno Obnizov, de dez anos de idade, segurando pela rédea um cavalo selado. O animal agitava os beiços, das suas ventas de veludo cinzento caíam gotículas de água, e o jovem cavaleiro, agora apeado, divertia-se a lançar ao charco torrões de barro gelado e a ver os círculos que se formavam à superfície.
- Que vieste fazer aqui, Vaniatka? - disse-lhe Akcínia.
- Vim trazer o farnel à minha mãe.
- E como vão as coisas na aldeia?
- Vão bem. Esta noite o tio Guerassomo apanhou uma carpa enorme numa rede. E o Fiódor Melnikov voltou da retirada.
Erguendo-se nos bicos dos pés, o garoto agarrou na rédea e, deitando a mão a um punhado de crinas, saltou para a sela com uma agilidade diabólica. Afastou-se do charco a passo, como um proprietário tranquilo, mas em seguida, após se ter voltado para olhar Akcínia, desatou a galopar com tanta pressa que a sua camisa azul desbotada se lhe enfunava nas costas como um balão.
Enquanto os bois bebiam, Akcínia deitou-se na margem e tomou a decisão de ir à aldeia. Melnikov era um antigo soldado, devia saber qualquer coisa acerca de Grigóri. Trouxe os bois para o acampamento e declarou a Duniachka:
- Vou à aldeia, volto amanhã cedo.
- Tens lá que fazer?
- Tenho.
No dia seguinte pela manhã, Akcínia estava de volta, no momento em que Duniachka atrelava os bois; Akcínia aproximou-se a agitar uma varinha com um ar descuidado, mas trazia os sobrolhos franzidos e uma prega de amargura ao canto da boca.
- Melnikov Fiódor regressou. Fui perguntar-lhe notícias do Grigóri. Não sabe nada disse muito depressa. Depois, voltando-se, foi direita à semeadora.
Depois das sementeiras, Akcínia entregou-se a alguns trabalhos domésticos: semeou melancias, caiou a casa, consertou sozinha, o melhor que pôde, com restos de colmo, o tecto dos currais. Tinha os dias ocupados pelo trabalho, porém a inquietação que sentia pela vida de Grigóri não lhe deixava um instante de sossego. Pensava em Stepane com repugnância; sem saber porquê, tinha o pressentimento de que este não voltaria; no entanto, sempre que um cossaco regressava, perguntava-lhe logo: “Viste o meu Stepane?” E só depois, pouco a pouco e com prudência, procurava obter algumas notícias de Grigóri. A ligação de ambos era conhecida em toda a aldeia.
As comadres mais ávidas de mexericos haviam cessado de falar neles, no entanto Akcínia envergonhava-se de dar a perceber os seus sentimentos. Contudo, quando chegava um soldado de poucas falas que não se referia a Grigóri, ela inquiria, piscando muito os olhos, visivelmente confusa: “E o nosso vizinho, Grigóri Panteleiévitch, não o encontraste por acaso? A mãe dele anda muito preocupada, já não pode mais...”
Nem um único cossaco de Tatársski voltara a ver Grigóri nem Stepane depois da rendição do Exército do Don, em Novorossiissk.
Só nos fins do mês de Junho é que um companheiro de armas de Stepane, natural da aldeia de Kolundaevsski, depois de atravessar o Don, veio visitar Akcínia e lhe disse:
- O Stepane partiu para a Crimeia, isso posso eu garantir-te. Vi-o eu próprio embarcar. Era tanta gente que marchavam uns por cima dos outros.
Akcínia interrogou-o acerca de Grigóri e ele respondeu evasivamente:
- Vi-o no cais e trazia os galões. Mas depois não voltei a pôr-lhe a vista em cima. Embarcaram muitos oficiais com destino a Moscovo. A estas horas sabe-se lá onde ele pára...
Uma semana depois, Prokhor Zikov regressava, ferido, a Tatársski, transportado num carro civil da estação de caminho-de-ferro de Milerovo. Ao saber isto, Akcínia largou a vaca que estava mungindo, levou o vitelo para junto desta e depois dirigiu-se a toda a pressa para a herdade dos Zikov. Ia quase a correr, compondo o lenço pelo caminho. “Prokhor deve saber qualquer coisa. E se ele me diz que o Grigóri morreu? Que será de mim?” Pensava ela pelo caminho. E de momento a momento abrandava o passo, a comprimir o peito com uma das mãos, temendo a horrível notícia.
Prokhor recebeu-a na sala grande, arvorando um sorriso aberto, enquanto escondia atrás das costas o coto do braço esquerdo.
- Viva, companheira de desgraça! Viva! com que então estás curada! E nós a pensarmos que tinhas dado a alma ao Criador nessa aldeola longínqua!... Ah, estiveste a bater a bota! . O tifo não é nenhuma brincadeira, hem?... Cá por mim, estás a ver o que me fizeram, esses malditos dos polacos brancos! Era só amassar-lhes as ventas, danados!
Prokhor mostrava a manga vazia, com um nó na ponta.
- Quando a minha mulher viu isto desatou a berrar, mas eu disse-lhe: “Não grites, idiota. Há outros a quem cortaram a cabeça, e esses não se queixam. Que importa lá a mão! Para já, arranja-se uma de pau. Essa, ao menos, não arrefece e, se a gente se corta, não deita sangue. É pena, minha filha, que não me tenham ensinado a fazer tudo com uma só mão. Já não posso abotoar as calças, imagina. Vim desde Kiev até casa com a braguilha aberta. Uma vergonha! Tens de desculpar se me vires descomposto. Vamos, entra e senta-te. Vamos conversando enquanto a minha mulher não chega. Mandei-a buscar aguardente. O marido chega da guerra sem uma das mãos e aquela maldita não tem nada em casa para o receber. Vocês são todas as mesmas, quando vêem o marido pelas costas. Já vos conheço as manhas, suas bruxas!
- Queria que me dissesses...
- Já sei, já sei, vou dizer-te. Vais ver de que maneira ele me disse que te apresentasse os seus cumprimentos...
E Prokhor fez uma reverência cómica. Ao erguer a cabeça, arqueou as sobrancelhas de espanto:
- Então que é isso? Porque estás tu a chorar, idiota? Vocês as mulheres são todas umas parvas, umas cabeças no ar. Se morremos, choram. Se estamos vivos, choram também. Assoa-te, assoa-te, não estejas para aí a fungar. Garanto-te que ele está vivo e de boa saúde. Tem mesmo bebido como um odre. Em Novorossiissk, entrámos ambos para o Exército de Cavalaria do camarada Budionny, na Décima Quarta Divisão. O nosso Grigóri Panteleiévitch assumiu o comando de um esquadrão. E, como podes calcular, fiquei junto dele. Partimos para Kiev em formação de marcha. Ah, minha filha, demos-lhe uma tal coça, a esses malditos polacos brancos! Pelo caminho, Grigóri ia-me dizendo: “Já matei com o meu sabre alemães e várias raças de austríacos. Será que os polacos têm a cabeça mais dura do que eles? Acho que me custaria mais abatê-los se fossem tipos da nossa terra, russos... Que pensas tu?” E piscava-me o olho a sorrir. Modificou-se muito depois que entrou para o Exército Vermelho. Engordou como um cavalo castrado. Mesmo assim íamos jogando a bulha... Um dia cheguei junto dele e disse-lhe, em ar de brincadeira: “São alturas de descansares um pouco, Vossa Nobreza, camarada Melekhov.” Ele deitou-me uns olhos furibundos e respondeu: “Acaba lá com essas brincadeiras, ou ainda te arrependes.” À noite mandou-me chamar já nem sei para quê, e vou eu e tenho a triste ideia de repetir a graça e de lhe chamar “Vossa Nobreza”... O tipo agarra na pistola. Estava branco que nem um lençol e de dentes arreganhados como um lobo tem dentes que nunca mais acabavam, pelo menos assim parece. Eu montei a cavalo e raspei-me! Por pouco me não matava, o estupor.
- Talvez venha aí de licença... - alvitrou Akcínia.
Prokhor interrompeu-a:
- Não contes com isso! Garantiu-me: “Hei-de servir até ter resgatado todos os meus antigos pecados.” E é isso mesmo que ele vai fazer, podes ter a certeza... Uma vez, junto de uma pequena aldeola, levou-nos ao assalto e eu vi-o com os meus olhos passar a sabre quatro ulanos. O tipo é meio canhoto e por isso apanhava-os pelos dois lados. Depois do combate, o próprio Budionny lhe veio apertar a mão diante das tropas e todo o esquadrão recebeu também um voto de agradecimento. Ora aí tens os feitos do teu Grigóri.
Akcínia escutava como que tomada de uma certa embriaguez...
Só voltou a si diante do portão dos Melekhov. Duniachka, que estava a coar o leite no vestíbulo, disse-lhe sem erguer a cabeça:
- Vens buscar o teu fermento? Esqueci-me de to levar como tinha prometido.
Porém, ao reparar nos olhos de Akcínia, deslumbrados e húmidos de lágrimas, compreendeu tudo sem precisar de explicações.
Comprimindo o rosto escaldante contra o ombro de Duniachka, Akcínia murmurava, ofegante de alegria:
- Ele está vivo e de boa saúde... Manda-nos muitas saudades...
- Anda, anda, vai dizer à tua mãe...
No princípio do Verão regressaram a Tatársski uns trinta cossacos, daqueles que haviam acompanhado a retirada. Eram, na sua maioria, homens das antigas classes, porém os cossacos jovens e de meia-idade, com excepção dos doentes e dos feridos, continuavam ausentes. Parte deles encontrava-se a servir no Exército Vermelho, outros na Crimeia, nos exércitos de Wrangel, onde se preparavam para uma nova campanha sobre o Don.
Cerca de metade de todos os participantes na retirada haviam ficado para sempre em terra estrangeira: uns vitimados pelo tifo, outros mortos no decurso dos últimos combates no Kúbano; alguns, depois de se terem afastado do caminho, ficaram gelados na estepe, para além de Manitch; dois homens capturados pelos vermelhos-verdes foram dados como desaparecidos...
Em Tatársski, muitos cossacos faltavam à chamada.
As mulheres passavam os dias esperando na maior inquietação e todas as vezes que iam ao encontro das vacas, no regresso das pastagens, ficavam por largo tempo imóveis, com a mão em pala sobre os olhos, a perscrutar a estrada larga, velada pela bruma roxa da tarde, na esperança de ver surgir algum retardatário.
Quando um pai de família, há muito esperado, regressava a casa, andrajoso, magro e coberto de piolhos, reinava uma agitação alegre e confusa: aquecia-se água para lavar o viajante negro de porcaria, as crianças espreitavam o menor gesto do pai, a ver quem lhe prestava mais serviços, a dona da casa não cabia em si de felicidade: ora corria a pôr a mesa, ora se precipitava para a arca a buscar-lhe roupa lavada. Mas a verdade é que a roupa não estava cosida e os seus dedos trémulos não conseguiam enfiar a linha no buraco da agulha... Nesses momentos felizes até o cão de guarda, que reconhecera ao longe o dono e o fora esperar lambendo-lhe as mãos, era autorizado a penetrar dentro de casa: as crianças podiam quebrar a loiça ou entornar o leite sem que ninguém as repreendesse, tudo lhes era desculpado... Ainda o dono da casa não acabara de tomar banho e de vestir roupa lavada, já a casa se enchia de mulheres que vinham informar-se do destino dos seus parentes e bebiam as palavras do recém-vindo com avidez e receio.
Dentro em breve, porém, uma ou outra saía lá para fora, a comprimir com as palmas das mãos o rosto banhado em lágrimas, e partia rua abaixo às cegas, a tropeçar. E numa das pequenas casas da aldeia ficava mais uma viúva a chorar o seu defunto, enquanto as vozes das crianças a acompanhavam baixinho. Assim se passavam os dias em Tatársski: a alegria, ao penetrar numa casa, deixava outras entregues à dor e ao desespero.
No dia seguinte, o recém-chegado, rejuvenescido e com a barba feita, erguia-se ao romper da aurora, examinava a herdade para se dar conta dos trabalhos que havia a executar. E punha mãos à obra logo no fim do almoço. A rabiça gemia alegremente na terra, o machado batia debaixo do telheiro, ao frio, como que a proclamar o regresso das mãos ávidas e experientes ao labor da casa. Porém naquelas onde chegara a notícia da morte de um pai ou de um marido reinava um silêncio opaco que cobria a casa e o pátio. A mãe permanecia deitada, em silêncio, esmagada pela dor, e os órfãos agrupavam-se à sua volta, amadurecidos pelo desgosto.
Assim que sabia do regresso de mais um homem da aldeia, Ilínitchna dizia:
- Quando regressará o nosso querido? Os outros voltam, mas ele não dá notícias.
- Não deixam vir os novos. Não sabe isso, minha mãe? - respondia Duniachka irritada. - Qual não deixam? E o Tikhone Guerassimov? Tem menos um ano do que o Gricha.
- Mas esse foi ferido, mãe.
- Qual ferido, qual carapuça! Ainda ontem o vi na forja, a caminhar como se não tivesse nada. Aquilo não é ferida nem é nada.
- Mas foi ferido e agora está curado.
- E o nosso, nunca foi ferido, não? Tem o corpo todo coberto de cicatrizes; então tu achas que não precisa de se recompor?
Duniachka tentava provar a Ilínitchna que não podia alimentar a esperança de ver tão cedo Grigóri, mas isso não era coisa fácil.
- Cala-te, idiota! ordenava ela à filha. Sei mais do que tu, és nova de mais para me dares lições. Eu digo que ele volta e há-de voltar. Gira, gira, não posso perder tempo contigo.
A velha esperava o filho com uma impaciência tremenda e falava dele a toda a hora. Sempre que Michatka lhe desobedecia, ralhava logo: “Espera aí, meu guedelhudo! Quando o teu pai voltar faz-te as contas! Verás a tareia que levas!” Sempre que passava na rua uma carroça com arreios novos, ela suspirava, não se contendo sem dizer: “Vê-se logo que o dono da casa regressou, está tudo consertado. E o nosso, quem lhe proíbe de vir até cá?” Ela que nunca gostara do fumo do tabaco e que sempre expulsara da cozinha os fumadores, modificara a sua opinião nos últimos tempos: “Vai chamar o Prokhor e diz-lhe que venha até aqui fumar um cigarro. Nesta casa cheira a cadáver. Quando o Gricha voltar, ao menos teremos um cheiro vivo, um cheiro cossaco...” Todos os dias, ao cozinhar, preparava qualquer coisa a mais e no fim das refeições metia no forno uma panela de sopa de couves. Quando Duniachka lhe perguntou um dia porque fazia ela isso, respondeu, admirada: “Era o que faltava que o não fizesse! O nosso soldado pode voltar de um momento para o outro e assim terá sempre que comer, é só o tempo de o pôr ao lume. Porque ele há-de vir cheio de fome, aposto . “ Doutra vez, ao voltar do meloal, Duniachka viu, pendurado num prego da cozinha, um velho capote de Grigóri e um boné antigo com a tarja desbotada.
Dirigiu à mãe um olhar interrogador, e esta sorriu-lhe com um ar triste e lamentoso: “Fui eu que tirei aquilo da arca, Duniachka. Quando a gente vem de fora e dá com os olhos nele sempre ficamos mais animadas... É como se ele já cá estivesse...”
Duniachka, que acabara por odiar estes discursos sem fim acerca de Grigóri, um dia não pôde mais:
- Ainda não está farta de falar sempre na mesma coisa, minha mãe? Acaba por cansar toda a gente! Sempre o Gricha, o Gricha, não se ouve outra coisa...
- Como havia eu de me fartar de falar do meu filho? Quando um dia os tiveres hás-de saber como é... – respondeu baixinho Ilínitchna.
Depois disto levou para o seu quarto o capote e o boné de Grigóri e ficou uns dias sem se referir ao filho. Mas, pouco antes de começar o corte dos fenos, disse a Duniachka:
- Tu zangas-te se eu falo no Gricha, mas como iremos arranjar-nos sem ele? Já pensaste nisso, minha palerma? Vamos começar a ceifa e não temos ninguém que nos ajeite o cabo de um ancinho. Está tudo desmazelado, não podemos fazer nada. As ferramentas choram pelo dono...
Duniachka ficou calada. Via bem que os assuntos da lavoura não interessavam grandemente a velha e que tudo aquilo era um pretexto para recordar o filho e aliviar o espírito.
Ilínitchna estava de novo cheia de angústia e não conseguia ocultá-lo. À noite, não quis comer e, quando Duniachka lhe perguntou se estava doente, retorquiu de mau humor:
- Sinto-me velha... E o meu coração sofre por causa do Gricha... Sofre tanto que nada me dá gosto e os meus olhos mal podem ver a luz...
Mas não seria Grigóri quem iria tomar conta da herdade dos Melekhovs...
Pouco antes de começarem os trabalhos dos fenos, Michka Kochevói regressou da frente. Depois de uma noite passada com primos afastados, chegou pela manhã a casa dos Melekhovs.
Ilínitchna estava a cozinhar quando ele bateu respeitosamente à porta. Como não recebesse resposta, foi entrando e, enquanto tirava o seu velho boné de soldado, sorriu para Ilínitchna.
- Bons dias, tia Ilínitchna. Não me esperavas?
- Bons dias. Que tenho eu a ver contigo para estar à tua espera? - respondeu duramente a velha, lançando um olhar de indiferença para o rosto de Michka, aquele rosto que ela tanto odiava.
Nada perturbado pelo acolhimento, Michka observou:
- Não se trata disso. Sempre nos conhecemos.
- E nunca passámos daí.
- Nem é preciso mais para eu a vir cumprimentar. Não julgue que quero instalar-me aqui.
- Era o que mais faltava - retorquiu Ilínitchna, voltando aos seus cozinhados sem ligar mais importância a Michka.
Este não a escutava. Observou atentamente a cozinha e prosseguiu:
- Vim visitar-vos e saber como passam de saúde... Há mais de um ano que nos não vemos.
- Pois olha que não sentimos a tua falta - resmungou Ilínitchna, agitando os tachos sobre o brasido.
Duniachka, que andava a arrumar o quarto, empalidecera ao ouvir a voz de Michka, juntando as mãos sem dizer palavra.
Imóvel, sentada num banco, escutava a conversa da cozinha.
Ora lhe subia às faces um rubor intenso, ora empalidecia tanto que a aresta do nariz ficava sublinhada por uma risca branca.
Ouviu o passo pesado de Michka na cozinha, em seguida o ranger de uma cadeira e o riscar de um fósforo. O cheiro do cigarro invadiu o quarto.
- Ouvi dizer que o velho tinha morrido.
- É verdade.
- E o Grigóri?
Após um longo silêncio, Ilínitchna respondeu, com visível má vontade:
- Anda a combater ao lado dos vermelhos. Traz no boné a mesma estrela que tu.
- Devia ter feito isso há mais tempo.
- Ele é que sabe.
Michka então perguntou, com uma nota de inquietação na voz:
- E Evdókia Panteleiévna?
- Anda a arrumar a casa. Tu madrugaste muito. As pessoas bem educadas não fazem visitas a estas horas.
- Talvez eu não seja bem educado. Estava aborrecido e vim até cá. Temos de passar o tempo de alguma maneira.
- Ah! Olha, Mikhail, vê se não me irritas!...
- O que é que te irrita, tiazinha?
- Aquilo que estás a fazer.
- Mas o que estou a fazer?
- A falares assim.
Duniachka ouviu Michka soltar um profundo suspiro. Não se conteve mais. Compôs a saia e entrou na cozinha. Michka estava sentado junto da janela, pálido, quase irreconhecível de tão magro, a acabar de fumar um cigarro. Os seus olhos baços animaram-se, o rosto cobriu-se-lhe de um rubor quase imperceptível ao ver Duniachka. Erguendo-se à pressa, disse numa voz rouca:
- Olha, bom dia!
- Bom dia! - respondeu num sopro Duniachka.
- Vai buscar água - ordenou logo Ilínitchna, lançando à filha um rápido olhar.
Michka esperou pacientemente o regresso de Duniachka.
Ilínitchna continuava calada e Duniachka também. Por fim o rapaz apagou a ponta do cigarro entre os dedos e disse:
- Que tem você contra mim, tiazinha? Atravessei-me alguma vez no seu caminho, ou quê?
Ilínitchna voltou-se, toda abespinhada:
- Como é possível que a tua consciência te deixe entrar na nossa casa, meu desavergonhado Ainda o perguntas, assassino?
- Assassino, eu?
- Um verdadeiro assassino, sim! Quem matou o Petro? Não foste tu?
- Fui.
- Então? Então o que és tu? E vens aqui... sentas-te aqui como se...
Faltou-lhe o ar, calou-se, mas logo se recompôs e prosseguiu:
- Eu sou a mãe dele, não é verdade? Como te atreves a olhar para mim com esses olhos?
Michka empalideceu muito. Já esperava por aquela conversa.
Gaguejando ligeiramente de emoção, declarou:
- Não tenho motivos para não olhar para si. Se o Petro me tivesse apanhado, que me teria ele feito? Acha que me daria um beijo na testa? Matava-me também. Não foi para fazermos festas uns aos outros que nos encontramos no alto da colina. A guerra é a guerra.
- E o nosso compadre Korchunov? Matar um homem pacífico também é guerra?
- E então? - inquiriu Michka com espanto. - Claro que é guerra. Eu bem os conheço, esses tais homens pacíficos. Ficam nas suas casas, com os bolsos a abarrotar de dinheiro e fazem pior do que os outros no campo de batalha... Mesmo os sujeitos como o avô Grichaka, instigavam os cossacos contra nós. Foi por causa deles que esta guerra começou. Quem fazia propaganda contra nós? Eram eles, os pacíficos. E chamas-me assassino a mim... Nem sabes o que dizes. Dantes eu não era capaz de degolar um cordeiro ou um leitão, e sei mesmo que não conseguiria fazê-lo. Para esses animais não tenho força nas mãos. Quando os matavam diante de mim, tapava os ouvidos e fugia fosse para onde fosse para não ouvir nem ver.
- Mas quando foi do nosso compadre...
- E você a dar-lhe com o vosso compadre! – interrompeu Michka irritado. Fez tanta falta como uma viola num enterro. Eu bem lhe disse para sair de casa. Ele não quis, não arredou pé. Tenho uma gana a essa malandragem... Não sou capaz de matar um animal, a não ser que esteja irritado, assim talvez, mas, quando se trata de bestas como o seu compadre, desculpe, mato quantos for preciso. Esses são inimigos, não andam a fazer nada neste mundo e para eles a minha mão é dura.
- É por seres tão duro que ficaste seco de todo – observou perfidamente Ilínitchna. É a tua consciência que te rói...
- Olha agora! - respondeu Michka com um sorriso cândido. A minha consciência a doer-me por causa de um traste velho como o avô Grichaka! Estive com as febres, fiquei arrasado de todo, de contrário teriam que se haver comigo, mãezinha...
- Qual mãezinha! - explodiu Ilínitchna. - Vai chamar mãe a uma cadela
- Não seja dura para mim - avisou Michka com ar sinistro, numa voz surda e a piscar os olhos. - Não prometo aguentar-te tudo. Afirmo-te uma vez para sempre, tiazinha: não me queiras mal por causa do Petro. O culpado foi ele.
- És um assassino. Um assassino. Vai-te embora daqui, não te posso ver! - repetia obstinadamente Ilínitchna.
Michka acendeu outro cigarro com toda a calma e disse:
- O seu compadre, o Mitri Korchunov, não é um assassino também? E o Grigóri? Não falas do teu filho, mas esse é que é um assassino a valer, disso não há dúvidas.
- Não digas asneiras!
- Eu não digo asneiras. Então, no teu entender, que é ele? Quantos dos nossos não matou ele? Sabes? É assim mesmo Se queres dar esse nome a todos aqueles que andam na guerra, minha tia, então somos todos assassinos. O ponto é saber-se por que motivo se é assassino e quem são aqueles que assassinamos respondeu sentenciosamente Michka.
Ilínitchna não respondeu, mas, ao ver que Michka não pensava em ir-se embora, declarou severamente:
- Basta! Não tenho tempo para perder contigo e o melhor que tens a fazer é ires-te embora para tua casa.
- Cá por mim possuo tantas casas como uma lebre tem de tocas - retorquiu Michka sorrindo. E levantou-se.
Era preciso muito mais do que uma conversa deste género para obrigar Michka a desistir. Não era sensível ao ponto de ligar importância ao palavreado de uma velha irritada. Sabia que Duniachka o amava; quanto ao resto, incluindo a velhota, estava-se nas tintas.
Voltou no dia seguinte de manhã, deu os bons-dias e sentou-se à janela, a seguir com os olhos todos os movimentos de Duniachka.
- Interessas-te muito agora pela nossa saúde - atirou-lhe Ilínitchna de passagem, sem responder ao cumprimento do rapaz.
Duniachka, fazendo-se muito vermelha, lançou à mãe um olhar furibundo e baixou os olhos sem dizer palavra. Michka retorquiu, sorrindo:
- Não é por tua causa que aqui venho, tia Ilínitchna. Fazes mal em te zangar.
- Seria melhor que esquecesses o caminho da nossa casa.
- Para onde havia então eu de ir? - respondeu Michka, que se tornara sério de repente. Graças ao seu compadre Mitri, estou só como o olho na cara de um cegueta e não posso viver numa casa vazia como um lobo solitário. Quer tu queiras quer não, hei-de vir para tua casa concluiu ele, sentando-se mais confortavelmente, de pernas alargadas.
Ilínitchna fitou-o com atenção. Não seria tão fácil como isso pôr na rua aquele rapaz. A silhueta dobrada de Michka, a sua cabeça curva, os lábios duramente cerrados, tudo indicava uma obstinação de toiro.
Logo que ele se foi embora, Ilínitchna mandou as crianças para o pátio e disse a Duniachka:
- Ele não deve voltar a pôr aqui os pés. Percebeste?
Duniachka fitou a mãe sem pestanejar. Qualquer coisa que era exclusiva dos Melekhovs perpassou num instante nos seus olhos apertados pela cólera. Declarou, por fim, destacando bem as palavras como se fossem dentadas.
- Não. Ele há-de vir. E não será a mãe que o impede. Ele há-de vir.
Sem poder conter-se mais, escondeu a cara no avental e correu para o vestíbulo.
Ilínitchna ficou com falta de ar. Sentando-se à janela, permaneceu ali por muito tempo, a abanar a cabeça e a fitar, sem a ver, a orla de artemísias ao fundo da estepe, prateadas pelo sol, a separarem a terra do céu.
Pouco antes da noite, Duniachka e a mãe, ainda não reconciliadas, estavam a consertar em silêncio a cerca arruinada do pomar perto do Don, quando Michka veio ter com elas. Tirou a enxada das mãos de Duniachka e disse:
- Não estás a cavar bastante fundo. Se vier uma rajada de vento, a cerca vai de novo ao chão.
Fez uns buracos mais profundos para as estacas, ajudou a levantar a cerca, fixou os paus e foi-se embora. No dia seguinte de manhã, veio encostar ao alpendre dos Melekhovs dois cabos de ancinho aparelhados de fresco e mais um de forquilha. Depois de dar os bons-dias a Ilínitchna, perguntou muito interessado:
- Vocês não pensam em ir cortar a erva nos prados? Já toda a gente partiu para a outra margem do Don.
Ilínitchna manteve-se calada e foi Duniachka quem respondeu em vez da mãe:
- Não temos as coisas preparadas para atravessar. A nossa barca ficou no telheiro desde o Outono e está toda ressequida.
- Deviam tê-la levado para a água na Primavera – disse Michka em tom de censura. - Talvez seja preciso calafetá-la. Sem barca não poderão fazer nada.
Duniachka olhou para a mãe com um ar submisso e interrogador. Ilínitchna batia massa em silêncio, fingindo que a conversa não lhe dizia respeito.
- Tens cânhamo? - inquiriu Michka com um leve sorriso.
Duniachka foi à arrecadação e trouxe um braçado de cânhamo.
Cerca do meio-dia, tendo terminado o conserto da barca, Michka entrou na cozinha.
- Bem, pus a barca na água. Agora temos de esperar que a madeira inche. Amarrei-a a uma estaca, de contrário alguém pode roubá-la.
E inquiriu de inovo:
- E quanto ao feno, tiazinha? Quer que a ajude? Assim como assim, neste momento, não tenho nada que fazer.
- Pergunta-lho a ela - respondeu Ilínitchna com um gesto de cabeça na direcção de Duniachka.
- Estou a perguntar à dona da casa.
- Pelos vistos aqui já não sou eu a dona da casa.
Duniachka, desatando a chorar, foi para o quarto.
- Nesse caso tenho de a ajudar, - declarou resolutamente Michka, depois de ter afinado a garganta. - Onde tem as ferramentas de carpinteiro? vou fazer um ancinho, o velho já não presta.
Foi para o telheiro e pôs-se a talhar os dentes de um ancinho. O pequeno Michatka começou a cirandar à volta dele e, fitando-o nos olhos, pediu com um ar suplicante:
- Tio Mikhail, faz-me um ancinho pequenino. Não tenho ninguém que me faça um. A avó não é capaz nem a tia. Só tu é que sabes.
- Vou fazer-te um, meu amiguinho. vou fazer-te um, mas agora foge lá para trás, se não queres apanhar com as aparas nos olhos. E sorria, espantado: “O que ele é de parecido, o mafarrico... É a cara chapada do pai: os olhos, as sobrancelhas, até o jeito de erguer o lábio de cima... Coisa bem feita!”
Começou a fabricar um ancinho de criança, mas não pôde acabá-lo: os seus lábios começaram a ficar azulados, apareceu-lhe no rosto uma expressão ao mesmo tempo maldosa e humilde; deixou de assobiar, poisou a faca e teve um calafrio.
Mikhail Grigóritch, meu irmão de nome, vai buscar-me um saco de serapilheira, quero deitar-me declarou.
- Porquê? inquiriu Michatka.
- Estou a ficar doente.
- Com quê?
- Ah, tu és um chato, um palerma!... Estou doente, acabou-se, vai buscar o que te pedi.
- E o meu ancinho?
- Acabo-o depois.
Um violento calafrio sacudiu-lhe o corpo. Batia os dentes.
Estendeu-se em cima do saco que Michatka lhe trouxera, tirou o boné e tapou com ele a cara.
- Ficaste já doente? - perguntou tristemente Michatka.
- É isso mesmo, fiquei doente.
- Porque tremes tu?
- É da febre.
- E porque bates os dentes?
Por baixo do boné, Michka deitou os olhos para o seu pequeno homónimo cheio de curiosidade e esboçou um sorriso, deixando de responder. Michatka observou-o, assustado, e correu para casa.
- Avó! O tio Mikhail está deitado debaixo do telheiro, todo a tremer, até dá saltos.
Ilínitchna foi ver a janela. Voltando para junto da mesa, deixou-se ficar muito tempo calada e pensativa...
- Porque não dizes nada, avó? - perguntou Michatka, impaciente, puxando-lhe a manga da blusa.
Ilínitchna, voltando-se, disse com rudeza:
- Pega num cobertor, meu pequeno, e leva-o àquele maldito para ele se cobrir. Está com a febre, aquilo é uma doença. Serás capaz de lhe levar o cobertor?
Voltando para junto da janela, olhou para o pátio e acrescentou à pressa:
- Espera, espera aí, não vás, já não é preciso.
Duniachka estava a cobrir Michka com a sua peliça de pele de carneiro, toda curvada, a falar-lhe...
Depois de passar o acesso de febre, Michka andou atarefado até ao cair da noite nos preparativos para o corte dos fenos. Ficara muito fraco, com os gestos fatigados e pouco firmes. Mesmo assim fez o ancinho para Michatka.
À noite, Ilínitchna pôs a mesa para a ceia, mandou sentar as crianças e disse, sem olhar para Duniachka:
- Vai chamá-lo... diz-lhe que venha... cear.
Michka sentou-se à mesa sem se benzer, curvado pela fadiga. Via-se-lhe o esgotamento no rosto amarelo, em que o suor seco punha manchas sujas. Tremia-lhe a mão quando levava a colher à boca. Comia pouco e sem apetite, olhando em torno de quando em quando, com indiferença. Porém Ilínitchna observou que os olhos baços do “assassino” se aqueciam e iluminavam quando os poisava sobre o pequeno Michatka, despontando por vezes neles uma fugidia centelha de admiração e ternura. Quando esta se apagava, ficava a flutuar-lhe ao canto dos lábios um sorriso quase imperceptível. Depois, desviando os olhos, de novo se lhe espalhava no rosto, como se fosse uma sombra, a antiga indiferença embrutecida.
Ilínitchna pôs-se a observar Michka à socapa e só então reparou como ele emagrecera com a doença. Os arcos das clavículas avultavam sob o blusão cinzento de poeira, os ombros largos, angulosos da magreza, estavam curvados e salientes e a maçã-de-adão, coberta de pêlos arruivados, causava estranheza naquele peito fino de criança... Quanto mais Ilínitchna observava o vulto esgalgado do “assassino”, o seu rosto de cera, menos se sentia à vontade, como se estivesse dividida por dentro. E de repente surgiu no seu coração uma piedade inesperada por aquele homem que odiava, aquela piedade pungente das mães, que faz vergar as mulheres mais fortes. Incapaz de vencer esse sentimento novo, estendeu a Michka uma tigela de leite cheia a deitar fora e disse-lhe:
- Vê se comes alguma coisa, pelo amor de Deus! Estás tão magro que uma pessoa se sente mal só de olhar para ti... És um belo partido, não haja dúvida
Na aldeia, as más-línguas começavam já a falar de Kochevói e de Duniachka. Uma mulher, ao encontrar a rapariga no embarcadoiro, disse com mal disfarçada malícia: “Vocês tomaram o Mikhail ao vosso serviço? Parece que ele agora passa a vida lá em casa...”
A todas as tentativas de persuasão da filha, Ilínitchna respondia sempre a mesma coisa: “Escusas de insistir, nunca te deixarei casar com ele. Não vos dou a minha bênção.”
Até que, por fim, Duniachka declarou que iria viver com Michka, começando logo a preparar as suas coisas; só então Ilínitchna mudou de táctica:
- Pensa no que vais fazer! - exclamou assustada. - Que será de mim, sozinha com as crianças? Vamos morrer?
- Como quiser, minha mãe, mas não estou resolvida a servir de escárnio a toda a gente -, respondeu baixinho Duniachka, continuando a tirar da arca o seu enxoval de noiva.
Ilínitchna ficou por muito tempo a mover os lábios em silêncio, depois dirigiu-se ao canto de honra, a arrastar com dificuldade as pernas.
- Então, minha filhinha - murmurou ela, pegando num ícone -, já que é essa a tua ideia, casa com ele e que Deus te abençoe.
Duniachka pôs-se humildemente de joelhos, enquanto Ilínitchna a abençoava com voz trémula:
- Já a minha mãe me abençoou com este ícone... Ah! Se o teu pai te visse agora!... Lembras-te do que ele dizia daquele com quem te vais casar? Só Deus sabe o que isto me custa .
Voltou-se em silêncio e saiu para o vestíbulo.
Apesar de todos os esforços de Michka para a fazer renunciar à cerimónia religiosa, a obstinada rapariga manteve-se firme. Michka foi obrigado a ceder, de má vontade. Vociferando contra toda a gente, preparou-se para a cerimónia como quem vai para o suplício. O pope Vissarione uniu-os de noite na igreja deserta. Após a cerimónia, felicitou os recém-casados, dizendo num tom edificante:
- Pois é, jovem camarada soviético, a vida é assim: no ano passado tu queimaste a minha casa, deitaste-lhe fogo, por assim dizer com as tuas próprias mãos, e hoje celebro o teu casamento . Nunca cuspas na água, como é costume dizer-se, porque ainda podes vir a ter sede. Não importa, estou contente por teres encontrado de novo o caminho da Igreja de Cristo.
Michka não aguentou mais. Guardara silêncio na igreja enquanto durara a cerimónia, envergonhado com a sua falta de carácter e indignado contra si próprio; neste momento, porém, olhou de viés para o pope e respondeu em voz baixa, para que Duniachka o não ouvisse:
- Tu andavas fugido nessa altura, cachorro. Foi pena, porque senão tinha-te queimado juntamente com a casa. Percebeste?
Embasbacado perante esta inesperada saída, o pope fitou Michka com os olhos piscos, mas o rapaz, puxando pela manga da noiva, disse severamente: “Vamos embora!”, e saiu em seguida a bater com as botas de soldado.
Nessa boda triste não se cantaram canções nem se bebeu aguardente. Prokhor Zikov, que assistira na qualidade de padrinho, queixou-se demoradamente junto de Akcínia, no dia seguinte, cuspindo repetidas vezes para o chão:
- Ah, rapariga! Que boda tão esquisita! Na igreja, o Mikhail disse tais disparates ao pope que o velho ficou de cara à banda. E a ceia, sabes o que era? Frango assado e leite. Podiam ao menos ter oferecido uma gotinha de aguardente, os malandros! Se o Grigóri Panteleiévitch soubesse como foi o casamento da irmã! Até apertava as mãos na cabeça. Não, cachopa, isto é o fim do mundo! Nunca mais ninguém me apanha num destes casamentos à moderna! Uma pessoa diverte-se mais num casamento de cachorros: esses, ao menos, arrancam pêlo uns aos outros e fazem barulho, ao passo que aqui, nem barulho, nem bebedeira, diabos os levem, estupores! Podes não acreditar, mas cá a mim fez-me tal impressão aquela boda que nem preguei olho em toda a noite. Passei o tempo a coçar-me, como se me tivessem enfiado um punhado de pulgas dentro da camisa...
Desde o dia em que Kochevói veio instalar-se na herdade dos Melekhovs, tudo se modificou: tratou logo de consertar a cerca, trouxe o feno da estepe e ergueu ele próprio um palheiro com mão de mestre; à espera do recolhimento, limpou a eira, reparou o carro da palha e as foices da segadora, bem como a velha tarara, e consertou os arreios, pois esperava trocar a junta dos bois por um cavalo. “Até faz dó obrigar aqueles dois desgraçados a avançar sobre as pernas cambadas.”
Descobrira por acaso, na arrecadação, um balde de alvaiade e outro de tinta azul; e logo resolveu pintar as janelas, já negras de velhice. Assim, o olhar azul dos caixilhos conferiu à herdade dos Melekhovs um ar de juventude...
Michka revelava-se um patrão consciencioso. Apesar da doença, trabalhava sem descanso. Duniachka ajudava-o em tudo.
A rapariga, que embelezara nitidamente em poucos dias de vida conjugal, parecia ter alargado nas ancas e nos ombros.
Algo de novo surgira na expressão dos seus olhos e no caminhar, até na maneira de compor os cabelos. Perdera o antigo ar desajeitado, aquela vivacidade, aquela veemência de criança. Calma e sorridente, contemplava o marido com olhos apaixonados e nada mais via além dele. O amor jovem é sempre cego...
Ilínitchna sentia de dia para dia aproximar-se a solidão.
Estava agora a mais naquela casa onde passara quase a vida inteira. Duniachka e o marido trabalhavam como se estivessem a construir o ninho num lugar vago. Não lhe pediam conselho para nada, não queriam saber a sua opinião quando empreendiam fosse o que fosse. Nunca tinham para ela uma palavra amável. Apenas quando se sentavam à mesa trocavam com a velha frases insignificantes e depois Ilínitchna ficava de novo só com os seus tristes pensamentos. A felicidade da filha não a regozijava; tornava-se-lhe penosa a presença de um estranho em casa o genro continuava a ser para ela um estranho. Até a própria vida lhe pesava. No espaço de um ano, perdera tantos seres queridos que passara a viver aniquilada pelo sofrimento, envelhecida e miserável. Tantos desgostos se haviam abatido sobre ela! Era de mais, na verdade! Já não tinha força para resistir e abandonava-se a um pensamento supersticioso: a morte que tantas vezes visitara a família iria em breve transpor de novo a soleira da porta dos Melekhovs.
Resignada perante o casamento de Duniachka, Ilínitchna só desejava uma coisa: ver o regresso de Grigóri, mostrar-lhe os filhos, depois fechar os olhos para sempre. Sofrera o suficiente durante a sua longa vida para ter agora direito ao repouso.
Os longos dias de Verão escoavam-se, intermináveis. Mas os seus raios escaldantes não aqueciam Ilínitchna. Ficava-se durante muito tempo sentada no alpendre, imóvel, ao sol, indiferente a tudo o que se passava à sua volta. Deixara de ser a dona de casa activa e diligente de outrora. Não sentia vontade de fazer nada. Já nada tinha sentido, tudo dali em diante se lhe afigurava inútil e sem valor; e depois também lhe faltavam as forças para trabalhar como noutros tempos. Muitas vezes, ao contemplar as mãos estragadas por anos de labuta, dizia consigo: “Trabalharam muito as minhas pobres mãos... já é tempo de descansarem... Já vivi bastante... Se ao menos pudesse ainda voltar a ver o Grigóri...”
Só de uma vez, e por pouco tempo, reencontrou a sua antiga alegria de viver. Prokhor, ao regressar da stanitsa, passando pela herdade dos Melekhov, gritou de longe:
- Dás-me um copo, tia Ilínitchna? Trago-te uma carta do teu filho.
A velha empalideceu. Uma carta significava decerto nova infelicidade. Prokhor leu a missiva, que era muito curta, e constava, até meio, das saudações à família. No fim, Grigóri anunciava, num pós-escrito, a sua intenção de vir de licença no Outono. Durante um longo momento, Ilínitchna ficou muda de alegria. Pelo seu rosto moreno, ao longo das profundas rugas que lhe cavavam as faces, rolavam pequenas lágrimas, miúdas como pérolas. Baixara a cabeça e limpava-as ora à manga da blusa, ora com a palma da mão rugosa, mas elas continuavam a correr-lhe pelo rosto, caindo no avental que ficava salpicado como se se tratasse de pingos de uma chuva cerrada e quente. Prokhor, não só apreciava pouco o choro das mulheres, como até o detestava. Fez uma careta e disse com visível irritação:
- Devias ter apanhado sol a mais na cabeça, tiazinha! A quantidade de água que vocês, mulheres, têm dentro do corpo! . A coisa é para rir, não é para chorar. bom, vou-me embora! Adeus! Não estou para te aturar!
Ilínitchna, dominando-se, deteve-o:
- Uma boa notícia destas, meu amigo... que queres tu?...
- Espera, vais beber qualquer coisa... - balbuciou ela à toa, tirando da arca uma garrafa de aguardente que aí guardava havia muito.
Prokhor sentou-se, a alisar o bigode.
- Acompanhas-me num copo, para festejar a notícia? - inquiriu ele.
E pensou logo com inquietação: “Ora bolas, lá falei eu de mais! Se calhar a velha vai beber metade da garrafa e ela não está assim tão cheia como isso...”
Ilínitchna, porém, recusou. Dobrando a carta com precaução, poisou-a na prateleira dos ícones. Depois, como se tivesse mudado de ideias, voltou a pegar-lhe, conservando-a um momento nas mãos. Em seguida meteu-a no seio e comprimiu-a de encontro ao coração.
Ao regressar do campo, Duniachka leu demoradamente a carta, sorriu e suspirou:
- Ah! Oxalá que ele volte depressa! A mãe mudou tanto que nem parece a mesma.
Ilínitchna tirou-lhe ciosamente a carta das mãos, escondeu-a de novo no seio, e disse a sorrir, de olhos piscos e brilhantes:
- Mudei tanto que até os cães já não ladram quando eu passo. Mas o meu queridinho ainda se lembra da sua mãe. Vês como ele nos escreve: a mim, diz-me: Ilínitchna... mando-te muitas saudades... assim como para os meus queridos filhos e também não se esquece de ti... Mas de que estás a rir? És uma palerma, Duniachka, uma verdadeira palerma.
- Então já não me posso sorrir, minha mãe? Onde vai com tanta pressa?
- Vou à horta, arrancar batatas.
- Eu posso fazer isso amanhã, fique antes em casa. Umas vezes diz que está muito doente e de um momento para o outro fica cheia de força.
- Não, deixa-me ir... estou tão contente que me apetece estar sozinha confessou Ilínitchna, compondo o lenço com um gesto juvenil.
A caminho da horta, passou por casa de Akcínia. Primeiro, por uma questão de conveniência, falou de coisas sem importância.
Depois tirou a carta do seio:
- Ele escreveu-nos uma cartinha, quis dar essa alegria à sua mãe. Promete vir de licença. Olha, vizinha, lê, tenho muito gosto em a ouvir outra vez.
A partir desse dia, Akcínia teve muitas oportunidades de voltar a ler a carta. Ilínitchna vinha visitá-la todas as noites, pegava no envelope amarelo, cuidadosamente envolvido num lenço, e pedia-lhe, suspirando:
- Lê lá, Akciúchka. O meu coração anda hoje tão negro. Sonhei com ele e vi-o pequenino, como no tempo em que andava na escola...
Com o tempo, as linhas, escritas a lápis de tinta, esborrataram-se e muitas palavras tornaram-se ilegíveis, mas Akcínia não se atrapalhava lera a carta tantas vezes, que já a sabia de cor. Mais tarde, quando o papel ficou em farrapos, Akcínia recitava-a ainda até ao fim sem se enganar.
Dali a uns quinze dias Ilínitchna sentiu-se mal. Duniachka andava a malhar o trigo e a mãe não quis desviá-la do trabalho, mas não conseguiu cozinhar.
- Hoje não me levanto da cama, tens de te arranjar como puderes.
- Que é que lhe dói, minha mãe?
Ilínitchna, alisando as pregas da sua velha blusa, respondeu sem erguer os olhos:
- Dói-me tudo. É como se estivesse partida por dentro Quando era nova, às vezes o teu pai, com uma fúria, dava-me uma tareia . Tinha uns punhos de ferro... Eu ficava como morta durante uma semana. Agora é o mesmo: dói-me tudo, como se tivesse apanhado uma tareia...
- Será melhor mandarmos o Mikhail chamar o médico?
- Para quê? Daqui a pouco levanto-me.
Efectivamente, levantou-se no dia seguinte, andou a cirandar no pátio, mas à tarde voltou a deitar-se. Tinha a cara um pouco inchada e umas manchas edematosas por baixo dos olhos. Várias vezes, durante a noite, inteiriçou os braços para tentar erguer um pouco a cabeça do travesseiro: estava ofegante e faltava-lhe o ar. Depois a crise passou e ela pôde manter-se deitada de costas e até levantar-se. Passou alguns dias numa espécie de desprendimento calmo, em repouso Sentia-se bem sozinha; quando Akcínia vinha saber notícias dela, respondia em poucas palavras e soltava um suspiro de alívio ao vê-la partir. Agradava-lhe que as crianças passassem a maior parte do tempo no pátio e que Duniachka raramente estivesse em casa para não vir a toda a hora incomodá-la com toda a casta de perguntas A compaixão, as consolações dos outros, não lhe serviam de nada. Dali em diante só experimentava um imperioso desejo de solidão, pois queria recordar-se de muitas coisas.
De olhos semicerrados, ficava horas e horas sem se mexer; apenas os seus dedos inchados brincavam com as rugas das cobertas, enquanto a sua vida inteira lhe passava diante dos olhos.
Coisa estranha, como fora curta e pobre essa vida, sobrecarregada de coisas penosas e tristes que mais valia não recordar.
A maioria das vezes, o pensamento voava-lhe para Grigóri.
Talvez porque nunca cessara de rezar por ele desde o princípio da guerra e porque ele era tudo quanto a prendia à vida. Ou então porque a angústia que lhe havia causado a perda do marido e do filho mais velho se havia atenuado, diminuído.
Em todo o caso, poucas vezes pensava nos mortos; estes apareciam-lhe como que através de uma névoa cinzenta. Lembrava sem prazer a mocidade, os anos de casada. Tudo isso era inútil, já ia longe, não lhe trazia qualquer prazer ou alívio. Quanto às recordações mais recentes, não lhe diziam respeito. E, de súbito, “o pequeno” erguia-se na sua memória com uma nitidez quase tangível. Porém o coração da velha desatava logo a bater mais depressa. Depois vinha a falta de ar, o seu rosto ficava negro e permanecia inconsciente durante um bom bocado. Mas assim que recobrava os sentidos pensava logo nele outra vez.
Era o seu último filho, não podia esquecê-lo...
Certo dia ficou deitada no quarto. Lá fora brilhava o sol do meio-dia. Longe, nos limites do firmamento, as nuvens brancas, empurradas pelo vento, flutuavam, majestosas, no azul ofuscante. O silêncio era quebrado apenas pelo canto monótono e sonolento dos gafanhotos. Junto à janela, no pátio, ainda havia alguma erva que escapara do sol, a qual crescia junto aos alicerces da casa: milha, erva moleirinha e grama; era aí que os gafanhotos tinham encontrado refúgio e cantavam desalmadamente, Ilínitchna começou a ouvir aquela música incessante, a respirar o odor a erva queimada pelo sol que penetrava no quarto, e de súbito julgou ver a estepe no mês de Agosto, toda abrasada pelo sol, os caules doirados do trigo, o céu velado de bruma acinzentada...
Avistava distintamente os bois a pastarem na valeta onde crescia a artemísia, uma carroça com o toldo esticado por cima, ouvia o canto estridente dos grilos, aspirava o cheiro agridoce do absinto. Via-se a si própria, bonita, jovem e esbelta... a caminhar à pressa para o acampamento. O colmo estalava debaixo dos seus pés, picava--lhe as pernas nuas; o vento escaldante queimava-lhe as costas, secando-lhe a blusa húmida de suor, metida para dentro da saia. Sentia o rosto afogueado e o afluxo de sangue fazia-lhe zumbidos nos ouvidos. com o braço dobrado, segurava os seios pesados, cheios de leite; de súbito, ouvia os gritos entrecortados de uma criancinha e apressava o passo, enquanto ia desapertando a blusa pelo caminho.
Os seus lábios secos tremem e sorriem enquanto tira do berço preso à carroça o pequeno Gricha muito moreninho.
A segurar com os dentes o cordão da cruz, todo encharcado em suor, dá-lhe à pressa a mama, e murmura sem descerrar os dentes: “Meu queridinho! Meu menino! A tua mãe ia-te deixando morrer de fome!...” Gricha continua a soluçar com um ar zangado e agarra no mamilo com os dentitos cruéis. Um homem novo, de bigodes pretos, o pai de Grichka, está de pé, ao lado dela, aguçando a foice. Ela mantém os olhos baixos, mas vê-lhe o sorriso e os globos azulados dos olhos maliciosos... O calor oprime-a, o suor escorre-lhe da testa e faz-lhe cócegas nas faces, o dia vai-se tornando cada vez mais escuro...
Voltou a si. Passando a mão pelo rosto molhado de lágrimas, ficou muito tempo dominada por uma crise terrível.
De quando em quando, soçobrava num torpor inconsciente.
À noite, quando Duniachka e o marido já estavam a dormir, reuniu o resto das forças e saiu para o pátio. Akcínia, que andara até àquela hora tardia a perseguir uma vaca tresmalhada do rebanho, acabava de regressar a casa; viu Ilítschna dirigir-se em passos lentos para a eira, a cambalear: “Que irá ela fazer, assim doente?” pensou, admirada, Akcínia, que foi sem fazer barulho até à vedação da eira dos Melekhovs para espreitar. Brilhava a lua cheia. Da estepe, soprava um ventinho fresco. Uma meda de palha projectava uma sombra espessa sobre a eira nua, aplanada pelos cilindros de pedra. Ilínitchna, de pé, agarrada com ambas as mãos à cerca, contemplava ao longe a estrela inacessível de uma fogueira acesa pelos ceifeiros.
Akcínia distinguia-lhe claramente o rosto entumecido, iluminado pelo luar, com a madeixa dos cabelos brancos a escapar-se por baixo” do xale negro.
Ilínitchna ficou muito tempo a olhar a estepe, e por fim murmurou baixinho, como se estivesse alguém perto dela:
- Grichenka! Meu menino!
Calou-se um momento, tornando numa voz mais baixa e mais surda:
- Meu queridinho!...
Akcínia desatou a tremer, tomada por uma angústia, um terror incompreensível. Afastou-se da cerca e entrou em casa.
Nessa noite, Ilínitchna percebeu que ia morrer em breve, que tinha a morte à cabeceira. De madrugada, tirou da arca a camisa de Grigóri, dobrada, e pô-la debaixo do travesseiro; preparou também o fato que havia de vestir depois de morta.
Pela manhã, Duniachka veio, como de costume, saber notícias da mãe. Ilínitchna tirou debaixo do travesseiro a camisa de Grigóri, cuidadosamente dobrada, e entregou-lha em silêncio.
- Que é isso? inquiriu Duniachka espantada.
- É uma camisa do Gricha... Dá-a ao teu marido, ele que a vista... A dele está toda velha... aposto... apodrecida pelo suor... - disse Ilínitchna numa voz quase inaudível.
Duniachka avistou sobre a arca a saia preta da mãe, a camisa e os chinelos de pano, aquilo que se veste aos mortos para a última viagem. Empalideceu.
- Para que arranjou tudo isto, minha mãe? Guarde essa roupa, pelo amor de Deus! Que ideia! Ainda é muito cedo para pensar na morte.
- Não, são mais do que horas... - murmurou Ilínitchna.
- Chegou a minha vez... Cuida das crianças, trata delas até ao regresso do Grigóri... Eu, está claro, já não viverei até lá... não, não viverei até lá...
Para que Duniachka não lhe visse as lágrimas, Ilínitchna voltou a cara para a parede e cobriu-a com um lenço.
Morreu três dias depois. As mulheres da sua idade amortalharam-na e deitaram-na sobre a mesa do quarto. À noite, Akcínia veio despedir-se da defunta. Mal reconheceu naquele rosto severo e embelezado pela morte as feições da altiva e valente Ilínitchna. Ao tocar com os lábios a testa fria e amarela da morta, Akcínia reparou na madeixa de cabelos grisalhos que saía para fora do lenço branco e naquela orelha redonda e miúda como a de uma criança.
Com o consentimento de Duniachka, Akcínia levou as crianças para sua casa. Deu-lhes de comer. Estavam caladas e tão assustadas com esta nova morte que Akcínia as deitou na sua cama. Experimentava uma sensação estranha ao apertar nos braços, um de cada lado, os filhos do homem que amava. Pôs-se a contar-lhes a meia voz as histórias que ouvira na infância, no intuito de as distrair e afastar-lhes a ideia da avó morta.
Baixinho, numa voz cantante, recitou-lhes a história do pobre orfãozinho chamado Vânia:
Sobre as vossas asas
Ó cisnes e patos,
Levai-me, levai-me!
Levai-me voando
Ao país que eu amo,
Meu país natal...
Antes de terminar a história, a respiração das crianças tornou-se regular. Michatka estava deitado à borda da cama, apoiando a cara com força no ombro de Akcínia. com um movimento do ombro, esta endireitou a cabeça tombada da criança e de repente sentiu o coração trespassado por uma angústia cruel, como que um nó na garganta. Desatou a chorar convulsivamente, com amargura; os soluços sacudiam-na toda, mas nem sequer podia enxugar as lágrimas, porque as crianças dormiam nos seus braços e não queria acordá-las.
Tudo levava a crer que Kochevói, após a morte de Ilínitchna, ao ficar senhor da casa e independente, redobraria de zelo a fim de incentivar ao máximo a sua exploração agrícola, mas nada disso se verificou: trabalhava cada vez com menos vontade, saía muito e ficava até tarde a fumar no alpendre, todo entregue aos seus pensamentos. A Duniachka não podiam passar despercebidas as alterações que o marido sofrera ultimamente. Ele, que até ali se entregava todo ao trabalho, abandonava agora o machado ou a enxada, sem qualquer motivo, e ia sentar-se a descansar. O mesmo acontecia no campo, quando andava a semear o centeio do Outono: lavrava dois regos, depois parava os bois, enrolava um cigarro e ficava muito tempo sentado no solo lavrado, a fumar, de testa franzida.
Duniachka, que herdara o sentido prático do pai, pensava, inquieta: “Isto foi sol de pouca dura... Ou ele está doente, ou então é um preguiçoso. com um homem destes vou ver-me atrapalhada. Nem parece estar a trabalhar por sua conta: passa metade do dia a fumar e a outra a coçar-se, para trabalhar é que nunca há tempo... Tenho de conversar com ele, calmamente, para o não irritar, de contrário, se isto assim continua, não tarda que estejamos a pedir esmola...”
Até que um dia Duniachka disse-lhe a medo:
- Estás muito mudado, Michka. Pioraste da doença?
- Da doença? Qual doença? Não é preciso uma pessoa estar doente para se chatear de morte aqui nesta terra - respondeu Michka, irritado.
Tocou os bois e partiu atrás da semeadora.
Duniachka julgou pouco oportuno prosseguir as investigações, ao cabo e ao resto, as mulheres não têm que se meter a dar conselhos aos maridos. A conversa ficou por ali.
Mas enganava-se. O único motivo que impedia Michka de trabalhar com o zelo habitual era a convicção, dia a dia mais arraigada em si. de que viera instalar-se prematuramente na aldeia. “Comecei a trabalhar cedo de mais, adiantei-me...”, pensava ele, despeitado, ao ler as notícias da frente no jornal do distrito ou ao escutar, à noite, as narrativas dos cossacos vermelhos desmobilizados. Mas, sobretudo, alarmava-o o estado de espírito da gente da terra: alguns afirmavam abertamente que o poder dos sovietes caducaria antes do Inverno, que Wrangel, tendo conseguido sair de Taurídia, vinha já a aproximar-se de Rostov, que os Aliados haviam desembarcado um enorme contingente de tropas em Novorossiissk... Corriam na aldeia os boatos mais extravagantes. Os cossacos regressados dos campos de internamento e das minas tinham tido tempo de comer até se fartarem em suas casas durante o Verão e mantinham-se distantes, bebiam aguardente a noite inteira, reuniam-se em toda a espécie de conciliábulos e, ao encontrarem Michka, perguntavam-lhe com fingida indiferença: “Tu, que lês os jornais, Kochevói, conta lá o que se diz. Achas que o Wrangel está tramado? E é certo ou não que os Aliados começam a avançar cá para os nossos lados?”
Num sábado, Michka recebeu a visita de Prokhor Zikov.
Michka acabava de regressar dos campos e estava a lavar-se no alpendre. Duniachka despejava-lhe água com uma bilha sobre as mãos e contemplava, sorrindo, o pescoço magro e cabeludo do marido. Depois de os cumprimentar, Prokhor, sentando-se no último degrau do alpendre, disse:
- Não sabem nada do Grigóri Panteleiévitch?
- Não - respondeu Duniachka. - Não tem escrito.
Michka acabara de limpar a cara e as mãos. Olhou a direito para Prokhor e inquiriu muito sério:
- Sentes a falta dele?
Prokhor suspirou, a compor a manga vazia da camisa.
- É natural. Andamos sempre juntos na guerra.
- E gostarias de voltar à mesma vida.
- Qual vida?
- À guerra.
- Nós os dois já nos fartamos de combater.
- E eu a pensar que estavas morto por voltar ao serviço - prosseguiu Michka, sempre sem sorrir. E, para começares, desejarias combater o poder dos Sovietes...
- Aí é que te enganas, Mikhail - retorquiu Prokhor num tom ofendido.
- O quê? Estou enganado? Tenho ouvido dizer muitas coisas na aldeia.
- Mas eu cá disse alguma coisa? Onde é que ouviste uma coisa dessas?
- Não foi a ti que eu ouvi essas coisas, mas a outros como tu e como o Grigóri. Estão todos mortos pelo regresso dos “vossos”.
- Mas não é desses “nossos” que eu estou à espera. Cá para mim são todos iguais.
- Pois isso é que é mau, o facto de considerares todos iguais. Entra, não te zangues, eu estava a brincar.
Prokhor subiu de má catadura os degraus do alpendre, entrou no vestíbulo e disse:
- Não me agradam essas brincadeiras, meu caro... O passado é para se esquecer. Já paguei bem caro esse passado.
- Um passado destes não se pode esquecer – declarou Michka, sentando-se à mesa. - Anda, senta-te e ceia connosco.
- Obrigado. É certo que nem tudo se pode esquecer. Por exemplo, esta mão que perdi. Bem gostaria de me esquecer dela, mas qual! Lembro-me a toda a hora.
Duniachka declarou, enquanto ia pondo a mesa, sem olhar para o marido:
- Então no teu entender, quem andou com os brancos nunca mais merece perdão.
- Pois que julgas tu?
- Eu julgava que quem fica a olhar o passado merece que lhe arranquem os olhos.
- Sim, talvez seja isso o que diz o Evangelho – observou friamente Michka. - Mas para mim um homem é sempre responsável por aquilo que faz.
- O governo nada diz a esse respeito - replicou Duniachka, com toda a calma.
Não tinha o menor desejo de discutir com o marido na presença de um estranho, mas estava ressentida com ele por ter feito troça de Prokhor de uma maneira que se lhe afigurara fora de propósito e pela hostilidade manifestada contra Grigóri.
- O governo nada diz. Não é contigo que ele vai discutir o caso. Mas aqueles que serviram com os brancos têm de prestar contas perante a lei soviética.
Prokhor meteu-se na conversa:
- Então, pelos vistos, eu também tenho de prestar contas?
- Tu não passas de um vitelo: comes e voltas para o estábulo! Às ordenanças ninguém pede contas. Mas o Grigóri, quando regressar, não escapa. Havemos de fazer-lhe perguntas acerca da insurreição.
- Queres dizer que também tu lhe queres fazer perguntas? - inquiriu Duniachka com os olhos brilhantes, enquanto poisava uma tigela na mesa.
- Quero - respondeu tranquilamente Michka.
- Isso não te compete a ti... Já deve haver bastantes inquiridores sem ser preciso que lá metas o nariz. Ele reabilitou-se entrando para o Exército Vermelho...
A voz de Duniachka tremia. Sentou-se à mesa, a torcer com os dedos o folho do avental. Como se não desse pela agitação da mulher, Michka prosseguiu, sempre muito calmo:
- Mas a mim interessa-me fazer-lhe perguntas. Quanto à reabilitação, temos muito tempo de pensar nisso... É preciso esperar... É preciso ver como ele a conquistou, de que maneira. Fez correr muito sangue dos nossos. É preciso ver o que é que pesa mais na balança...
Era o primeiro desentendimento de ambos desde que viviam em comum. Na cozinha, ficou a pairar um silêncio incómodo.
Michka bebia o leite sem dizer nada. De quando em quando, limpava os beiços ao guardanapo. Prokhor fumava, a olhar para Duniachka; depois começou a falar no trabalho da herdade e demorou-se ali ainda coisa de meia hora. Antes de partir, anunciou:
- O Kirill Gromov regressou. Sabias?
- Não. Donde vem ele?
- Esteve com os vermelhos. Andou também na Primeira Divisão de Cavalaria.
- Era ele que andava com o Mamontov?
- Sim, era ele.
- Que grande soldado! observou Michka, sorrindo.
- Olá se era! Na pilhagem, foi sempre o primeiro. Nenhum tinha a mão mais ligeira
- Parece que costumava acabar os prisioneiros à sabrada sem dó nem piedade. Era capaz de matar um homem só por causa das botas. Logo que um tipo morria, tirava-lhe o calçado.
- Pelo menos é isso o que se diz -, confirmou Prokhor.
- A esse também se deve perdoar? - perguntou Michka com um ar sorna. - Deus perdoou aos seus inimigos, segundo se diz, e recomendou que fizéssemos o mesmo, não é verdade?
- Bem, isto é... Mas que querias tu fazer-lhe?
- O que queria eu fazer-lhe?...
Michka semicerrou os olhos.
- Queria fazer-lhe uma coisa que lhe tirasse a alma do corpo. De resto ele não escapará. Em Viochénsskaia, temos a Tcheka do Don que há-de fazer-lhe as contas.
Prokhor, sorrindo, disse:
- É bem certo que quem torto nasce nunca se endireita.
. Ele também trouxe objectos roubados ao Exército Vermelho. A mulher dele gabou-se à minha de que o marido lhe trouxera um casaco de senhora, diversos vestidos e toda a espécie deobjectos. Andava na Brigada Malassk; é dali que ele regressa. Deve ter desertado, não há outra explicação. Traz consigo as armas.
- Que armas? - quis saber Michka.
- Está-se mesmo a ver: uma carabina de cano curto... hum... uma pistola e talvez mais qualquer coisa.
- Não sabes se ele se foi apresentar ao Soviete?
Prokhor, desatando a rir, fez um gesto de negação.
- Nem que o atassem com uma corda, ninguém o arrastaria até lá. A meu ver, desertou. E vai fugir de casa, se não for hoje, é amanhã. O Kirill, esse, sim, vê-se bem que tenciona voltar a combater. E tu censuras-me por isso. Não, meu caro. Estou farto da guerra, farto até aos olhos.
Prokhor foi-se embora. Pouco tempo depois, Michka saiu para o pátio. Duniachka tinha dado de comer às crianças e preparava-se para ir para a cama quando ele entrou. Trazia nas mãos um objecto envolto numa serapilheira.
- Por onde tens andado? - inquiriu Duniachka, azeda.
- Fui buscar o meu dote - respondeu Michka com um sorriso amável.
Desembrulhou a espingarda, um cinto guarnecido de cartuchos, uma pistola e duas granadas de mão. Poisou tudo sobre o banco e despejou um pouco de petróleo num pires.
- Onde foste buscar isso? - perguntou Duniachka indicando as armas com um movimento das sobrancelhas.
- São minhas. Trouxe-as da frente.
- Onde as tinhas guardado?
- Onde as guardei não interessa. Ninguém lhes tocou.
- És um homem de segredos... Nunca me disseste nada. Nem sequer és franco com a tua mulher?
Michka sorriu com uma indiferença fingida e respondeu, esforçando-se visivelmente por ser amável:
- Que necessidade tinhas tu de o saber, minha pequena Duniachka? Isto não são assuntos de mulheres. Vale mais que estas coisas fiquem aqui, podem ser precisas.
- Mas porque as trazes para dentro de casa? Tu, que respeitas a lei, tu, que sabes tanto... Não achas que isso é proibido?
Michka, cerrando o sobrolho, declarou:
- Minha idiota! Quando o Kiriuchka Gromov traz armas para casa, isso pode prejudicar o poder dos Sovietes, mas se for eu a trazê-las só estou a proteger o poder dos Sovietes, compreendes? Tu não sabes o que dizes. Deita-te e dorme.
Tinha chegado à única conclusão justa aos seus olhos: se os fugitivos brancos regressavam com armas, ele tinha de estar de atalaia. Limpou cuidadosamente a espingarda e a pistola e no dia seguinte de madrugada partiu para Viochénsskaia.
Enquanto lhe ia metendo o farnel no saco, Duniachka murmurou com amargura e despeito:
- Continuas a ter segredos para mim. Diz ao menos se te demoras muito tempo e o que vais lá fazer. Isto assim não é vida, que raio! Vais-te embora e ninguém te arranca uma palavra!...
- Afinal és o meu marido ou um vagabundo de passagem?
- Vou a Viochénsskaia, à comissão, que queres que te diga mais? Quando voltar, saberás o resto.
Desceu até ao Don e, segurando o saco com a mão, meteu-se no barco e alcançou rapidamente a outra margem. Em Viochénsskaia, Michka fez uma visita à comissão médica. O doutor disse-lhe:
- Não podes servir nas fileiras do Exército Vermelho, caro camarada. A malária deu cabo de ti. Tens de te tratar, senão estás liquidado. O Exército Vermelho não tem lugar para homens nesse estado.
- Então quais são os homens de que ele precisa? Combati durante dois anos e agora não me querem?
- Eles querem acima de tudo homens saudáveis. Quando estiveres curado podes voltar ao serviço. com esta receita podes ir buscar quinino à farmácia.
- Sim... compreendo...
Michka voltou a envergar o blusão como um cavalo rebelde que recusa a coleira: não conseguia enfiar a cabeça pela abertura do pescoço; só abotoou as calças já na rua e dirigiu-se logo para o comité do distrito do partido.
Regressou a Tatársski com o título de presidente do comité revolucionário da aldeia. Depois de haver saudado rapidamente a mulher, declarou:
- Ora bem. Agora é que vamos ver como é!
- A que propósito dizes isso? - perguntou Duniachka, espantada.
- Sempre a propósito do mesmo.
- Mas de quê?
- Nomearam-me presidente, percebes?
Duniachka uniu dolorosamente as mãos. Quis falar, porém Michka não a escutava: ajustava ao espelho o boldrié sobre o blusão militar já desbotado e partiu a caminho do Soviete.
Desde o Inverno que o presidente do comité revolucionário era o velho Mikheiev. Estava meio cego e ainda por cima surdo. Pesava-lhe o cargo e ouviu com alegria a notícia da substituição.
- Toma lá os papéis, meu rapaz. Leva-os, pelo amor de Deus, disse, sem ocultar o contentamento. Persignava-se e esfregava a as mãos. vou fazer oitenta anos e nunca na vida tive a responsabilidade de nada. Só faltava agora meter-me em sarilhos nesta idade... Isso é bom para vocês, os novos, quanto a mim... Numa altura em que devia estar a rezar as contas, fazem-me presidente...
Michka lançou uma rápida vista de olhos pelos ofícios e pelas ordens enviadas pelo comité revolucionário da stanitsa e perguntou:
- Onde está o secretário?
- Hem?
- Estou a perguntar-te pelo secretário, caramba!
- O secretário? Anda a semear o centeio. Só aqui vem uma vez por semana, diabos o levem! Às vezes chegam papéis da stanitsa que é preciso ler, mas nem que andem à caça dele como cães, ninguém lhe deita a mão. Olha, está aqui um papel importante que chegou há que tempos e que era preciso ler-se. Eu cá não sei uma letra, isso não é comigo. Já me custa a escrever o meu nome, agora ler não sei patavina. Só aprendi a pôr o selo.
Michka examinava, de testa franzida, a sala miserável do comité revolucionário, ornamentada apenas com um velho cartaz pintalgado das moscas.
O velho estava tão contente com esta demissão inesperada que se atreveu a dizer um gracejo: declarou a Michka, ao entregar-lhe o selo branco envolto num trapo:
- Aqui está toda a riqueza da aldeia. Dinheiro, é coisa que não há. Quanto ao bastão de atamane, isso não existe sob o poder dos sovietes. Se quiseres, posso oferecer-te a minha bengala.
E entregou a Michka, com um sorriso desdentado, uma bengala fina, polida pelo uso.
Kochevói, porém, não estava disposto a brincar. Olhou uma vez mais para a sala do comité revolucionário, lamentável na sua miséria, cerrou o sobrolho e disse, suspirando:
- Digamos que me transmitiste os poderes, avozinho. Agora vai à tua vida e deixa-me em paz.
Indicava com os olhos a porta, numa atitude bem clara. Depois sentou-se à secretária, de cotovelos afastados, e ficou assim por muito tempo, sozinho, de maxilares apertados.
- Santo Deus, que idiota ele fora enquanto estivera entretido a lavrar a terra sem levantar cabeça nem escutar o que se passava à sua volta!... Louco de raiva contra si próprio e contra tudo o que estava sucedendo, ergueu-se, ajustou o blusão e disse, sempre de dentes cerrados, olhando ao longe:
- Agora, meus meninos, é que lhes vou ensinar o que é o poder dos sovietes!
Fechou solidamente a porta a cadeado e atravessou a praça de regresso a casa. Perto da igreja, encontrou um dos rapazes Obnizov, fez um cumprimento de cabeça distraído e passou à frente; mas logo se voltou, iluminado por uma ideia súbita:
- Eh, Andriuchka! Espera aí!
O adolescente aproximou-se com timidez e Michka estendeu-lhe a mão como a um homem, dizendo:
- Onde vais tu? Para aqueles lados? Tens alguma coisa a Fazer? Queria pedir-te um favor. Andaste na escola? Estudaste durante alguns anos? Ora escuta. Sabes o que é trabalho de escrituração?
- Que espécie de trabalho?
- Oh, o trivial. Expedir ordens, recibos, sabes o que isso é?
- De que estás tu a falar, camarada Kochevói?
- Estou a falar-te dos papéis que há nos escritórios. Sabes o que eu quero dizer, não? Enviar ofícios e muitas outas coisas. - Michka agitou os dedos e disse com dureza, sem esperar pela resposta. - Se não sabes, aprendes Agora eu é que sou o presidente do comité revolucionário desta aldeia. Tu és um rapazinho instruído e nomeio-te meu secretário. Vai para a sede do comité e toma conta dos papéis que lá estão sobre a mesa, que eu volto já. Percebeste?
- Camarada Kochevói!
Michka fez um gesto de impaciência:
. Depois falaremos Agora vai ocupar o teu lugar.
Afastou-se lentamente, rua abaixo, num passo regular. Em casa, vestiu umas calças novas, meteu a pistola no bolso e disse à mulher, enquanto punha o boné diante do espelho:
- Vou sair em serviço. Se alguém vier perguntar pelo presidente diz que não me demoro.
O cargo de presidente tem as suas exigências.
Michka caminhava devagar, com ares importantes; a sua atitude era tão estranha que alguns homens da aldeia, ao cruzarem-se com ele, ficaram-se a segui-lo com os olhos, sorrindo. Prokhor Zikov, ao encontrá-lo na viela, recuou até à paliçada e inquiriu, com irónica deferência:
- Que mosca te mordeu, Mikhail? Andas a fazer de janota num dia de semana e caminhas como se estivesses na parada... Queres casar-te outra vez?
- Eu cá me entendo respondeu Michka. E cerrou os lábios com um ar entendido.
Junto ao portão da herdade dos Gromoves, tirou do bolso a onça de tabaco e, sem parar, observou atentamente o vasto pátio, as dependências, as janelas da casa.
A mãe de Kirill Gromov ia a sair do vestíbulo. Toda curvada para trás, transportava nos braços um alguidar cheio de pedaços de abóbora menina. Michka, depois de a cumprimentar respeitosamente, avançou para o alpendre.
- O Kirill está em casa, tiazinha?
- Está, está. Entra -, respondeu a velha, afastando-se para lhe dar passagem.
Michka, entrando no vestíbulo escuro, procurou às apalpadelas o fecho da porta.
Kirill veio ele próprio abrir a porta da sala grande e recuou um passo. Bem barbeado, sorridente e um pouco ébrio, fitou Michka de cima abaixo, com um olhar breve e inquiridor.
Disse, sem cerimónia:
- Cá está outro antigo soldado! Entra, Kochevói, senta-te. Estamos a beber uns copitos...
- Vivam! À vossa saúde!
Michka apertou a mão do dono da casa e olhou os outros que estavam sentados à mesa.
Viu logo que a sua visita não era considerada oportuna.
Um cossaco de ombros largos que ele não conhecia, refastelado no lugar de honra, lançando a Kirill um olhar rápido, arredou o copo. Um parente afastado dos Korchunov, Sémione Atvatkine, sentado na outra ponta da mesa, fez-se carrancudo ao ver Michka e desviou os olhos.
Kirill convidou Michka a sentar-se.
- Obrigado.
- Anda, senta-te, não nos desconsideres. Bebe um copo.
Michka sentou-se. Ao receber um copo de aguardente das mãos do dono da casa, disse com um aceno de cabeça:
- Pelo teu regresso, Kirill Ivanovitch!
- Obrigado. E tu, há muito que deixaste o exército?
- Há muito, é verdade. Já tive tempo de retomar os velhos hábitos.
- De retomar os velhos hábitos e também de te casares, segundo ouvi dizer! Mas estás a perder tempo, esvazia o copo!
- Não me apetece. Preciso de te falar acerca de um assunto.
- Oh, agora não! Deixa-te de brincadeiras. Hoje não trato de negócios. Divirto-me com os meus amigos. Se tens algum assunto a tratar, volta amanhã.
Michka, erguendo-se, disse com um sorriso calmo:
- Não é coisa complicada, mas sim urgente. Vem cá fora um minuto.
Kirill, alisando o bigode cuidadosamente retorcido, ficou um momento calado e depois ergueu-se.
- Não podes dizer-me aqui do que se trata? Porque havemos de deixar os outros sozinhos?
- Não, vamos lá para fora - insistiu Michka num tom comedido mas firme.
- Sai lá com ele, para que discutes? - disse o cossaco dos ombros largos que Michka não conhecia.
Kirill dirigiu-se de má vontade para a cozinha e murmurou para a mulher que estava ocupada junto ao fogão:
- Vai-te embora, Katerina.
Sentando-se num banco, perguntou secamente:
- De que se trata?
- Há quanto tempo voltaste para casa?
- O quê?
- Pergunto-te há quanto tempo voltaste.
- Há três dias, creio eu.
- Já passaste pelo comité revolucionário?
- Não, ainda lá não fui.
- E fazes tenção de te apresentar em Viochénsskaia, no comissariado militar?
- Porque raio me fazes tu tantas perguntas? Se vens tratar de negócios então fala.
- É o que estou fazendo.
- Então vai para o diabo! Quem te julgas tu, para te dar contas da minha vida?
- Sou o presidente do comité revolucionário. Mostra-me o certificado do teu batalhão.
- Ah! Então é isso! - exclamou Kirill. E fitou um olhar penetrante e sem sombra de embriaguez nas pupilas de Michka.
- Põe-te lá fora!
- Já vou. Dá-me o teu certificado.
- Vou hoje ao Soviete e levo-o.
- Dá-mo imediatamente.
- Tenho-o guardado.
- Vai buscá-lo.
- Não, agora não vou. Volta para casa, Michka, senão temos sarilho.
- Não tenho medo de sarilhos...
Michka meteu a mão no bolso direito.
- Veste-te.
- Basta, Mikhail. E previno-te que não me toques...
- Vem comigo, já te disse.
- Para onde?
- Para o comité.
- Não quero.
Kirill empalidecera, mas mantinha um sorriso amável.
Michka voltou bruscamente o corpo para a esquerda, tirou o revólver do bolso e armou-o.
- Vens daí ou não? - perguntou baixinho.
Sem responder, Kirill deu um passo na direcção da sala comum. Michka, interceptando-lhe o caminho, indicou com os olhos a porta do vestíbulo
- Rapazes! - gritou Kirill com uma falsa desenvoltura. - Parece que vou ser preso! Acabem de beber a vodka sem mim!
A porta da sala grande abriu-se de par em par. Akmwatkine fez menção de sair, mas, ao ver a pistola apontada para ele, recuou muito depressa para trás da ombreira.
- Avança! - ordenou Michka a Kirill.
Este começou a andar num passo vagaroso, poisou com moleza a mão no fecho da porta, mas de súbito deu um salto até ao fundo do vestíbulo; bateu com força a porta da rua e saltou do alpendre. Enquanto atravessava o pátio, na direcção da horta, a correr todo curvado, Michka disparou duas vezes sobre ele, mas sem conseguir acertar-lhe. Poisando o cano da arma no braço esquerdo dobrado, com as pernas bem alargadas, Michka apontou com cuidado. Ao terceiro tiro Kirill tropeçou, mas, erguendo-se logo, pulou lestamente a cerca. Michka saltou do alpendre a correr, perseguido por uma detonação que vinha de dentro de casa. A bala foi bater na frente dele, sobre a parede caiada do telheiro, arrancando um pedaço de estuque e salpicando o chão de falhas de pedra cinzenta.
Kirill corria com ligeireza. A sua figura curvada aparecia e desaparecia entre as copas verdes do pomar. Michka saltou a cerca, deitou-se no chão, disparando dois tiros sobre o fugitivo. Depois voltou-se para a casa, cuja porta ficara aberta. A mãe de Kirill encontrava-se no patamar, com a mão em pala sobre os olhos, a observar o quintal. “Devia tê-lo abatido logo sem discutir”, pensou Michka com indiferença. Ficou ainda alguns instantes deitado, junto à cerca, a fitar a casa. Depois limpou com um gesto maquinal a lama que se lhe colara aos joelhos das calças. Erguendo-se por fim, saltou vagarosamente a cerca e encaminhou-se para casa, levando na mão a arma com o cano voltado para baixo.
Atvatkine e o cossaco desconhecido que Kochevói vira ao chegar a casa de Gromov tinham fugido ao mesmo tempo de Kirill Nessa noite desapareceram ainda da aldeia mais dois cossacos. Um pequeno destacamento da Tcheka do Don chegou a Tatársski, vindo de Viochénsskaia. Foram presos alguns cossacos, e quatro soldados, que haviam abandonado os seus batalhões sem documentos, foram mandados para Viochénsskaia, sendo incorporados na companhia disciplinar.
Kochevói passava o dia inteiro no comité revolucionário; só regressava a casa ao cair da noite; poisava a espingarda carregada junto da cama, metia o revólver debaixo do travesseiro e deitava-se vestido. Três dias depois do incidente com Kirill, disse para Duniachka:
- Vamos dormir para o vestíbulo.
- Porquê, não me dirás? - inquiriu Duniachka.
- Eles podem disparar pela janela. A nossa cama fica junto da janela.
Duniachka mudou a cama para o vestíbulo sem dizer palavra. À noite perguntou:
- Pelos vistos vamos começar a viver como lebres na toca? E no Inverno, continuamos a dormir no vestíbulo?
- O Inverno ainda não chegou. Para já continuamos a dormir aqui.
- Até quando vai durar esse “para já?”
- Até eu deitar a mão ao Kirill.
- E julgas que ele se vai meter na boca do lobo?
- Acabará por vir - retorquiu Michka com segurança.
Mas enganava-se: Kirill Gromov, que se escondera na outra margem do Don com os companheiros, atravessou para a margem direita quando soube que Makhno se aproximava e foi para a stanitsa de Krasnókutsskaia, onde se anunciava a chegada dos destacamentos percursores do grupo de Makhno. Ao voltar durante a noite à aldeia, encontrou por acaso Prokhor Zikov, a quem encarregou de dar muitos cumprimentos seus a Kochevói, dizendo-lhe ao mesmo tempo que não deixaria de o ir visitar qualquer dia. Na manhã seguinte, Prokhor contou a Michka o encontro que tivera e a sua conversa com Kirill.
- Bem, ele que venha. Conseguiu escapar uma vez, mas da próxima não se sairá tão bem como da primeira. Graças a ele, fiquei sabendo como devo tratar esses tipos.
De facto, Makhno já apareceu nas fronteiras do distrito do Alto Don. Junto à aldeia de Konkov, esmagou, após um breve combate o destacamento que Viochénsskaia enviara contra ele. Mas não conseguiu alcançar a capital do distrito e avançou na direcção da Milerovo. Cortou a via férrea e partiu em direcção de Starobelsk. Os guardas brancos cossacos mais assanhados juntaram-se a ele, mas a maior parte dos outros ficou em suas casas à espera.
Kochevói continuava a viver com todas as cautelas, atento a tudo quanto se passava na aldeia. Porém a vida em Tatársski nada tinha de agradável. Os cossacos criticavam constantemente o poder dos Sovietes, acusando-o de todas as privações que estavam sofrendo. O pequeno armazém da única sociedade de consumo, criada recentemente, não tinha quase nada. Faltavam os géneros de primeira necessidade, tais como açúcar, sabão, sal, petróleo, óleo lubrificante. Nas prateleiras nuas expunham-se apenas alguns maços de cigarros Aslomov, demasiado caros, e artigos de quinquilharia que podiam ficar meses e meses sem encontrar quem os quisesse.
À noite, em lugar de petróleo, queimavam-se pires de manteiga ou de banha derretida. O tabaco caseiro, cultivado nas hortas, substituía o tabaco grosso. Como não havia fósforos, toda a gente se servia de pederneira e de isqueiros fabricados à pressa pelos serralheiros. Fervia-se a acendalha em água com cinzas de girassol, para que esta se incendiasse mais depressa, mas, por falta de hábito, tornava-se difícil fazer lume. Por mais de uma vez, ao regressar à noite do comité revolucionário, Michka viu na rua um grupo de fumadores a tentarem tirar faíscas de uma pederneira, enquanto iam resmungando: “Poder dos Sovietes, dá-nos lume!” Finalmente, um deles tinha a sorte de conseguir que se inflamasse uma centelha; então sopravam todos sobre a chama e depois, com os cigarros acesos, acocoravam-se a contar as novidades. Esvaziaram a sacristia de todos os registos e, após terem fumado as folhas, faziam cigarros com tudo o que encontravam nas casas, incluindo velhos livros da escola, até os livros de orações dos velhos.
Prokhor Zikov, que visitava muitas vezes a casa dos Melekhovs, tentando que Michka lhe desse papel, lamentava-se:
- A minha mulher tinha muitos jornais colados na tampa da arca. Já lhos fumei todos. Tínhamos o Novo Testamento, que era um livro santo, e fumei-o igualmente. Também já fumei o Velho Testamento e foi pena os santinhos não terem escrito mais testamentos. A minha mulher tinha lá um livro de orações com os nomes de toda a família, vivos e defuntos, e eu fumei-o. Terei agora de secar folhas de couve ou de visco para me servirem de papel? Não, Mikhail, arranja-te como quiseres, mas dá-me um jornal. Durante a guerra, na frente alemã, troquei muitas vezes a minha ração de pão por um quarto de tabaco.
Nesse Outono, a vida não era pois agradável em Tatársski...
As rodas das charretes chiavam, por falta de lubrificação, os arreios e o calçado secavam à míngua de graxa, porém o pior era a falta de sal. Por cinco libras de sal, as pessoas de Tatársski trocavam um carneiro gordo, regressando a casa a amaldiçoaro poder dos Sovietes. O maldito sal causou graves aborrecimentos a Michka... Certo dia, os velhos da aldeia chegaram ao Soviete, cumprimentaram com respeito o presidente tirando os bonés e sentaram-se nos bancos.
Um deles disse:
- Não temos sal, senhor presidente.
- A senhoria já não se usa rectificou Michka.
- Desculpa, é do hábito... Podemos viver sem chamar senhores uns aos outros, mas não podemos viver sem sal.
- Mas então que pretendem vocês?
- Tu é que és o presidente, arranja-te como puderes, mas dá-nos sal. Não conseguimos trazer do Manitch o sal suficiente em carros de bois.
- Enviei para o distrito um relatório acerca disso. Já estão informados. Vão mandá-lo em breve.
- Isso é o que tu dizes - murmurou um dos velhos, de olhos pregados no chão.
Michka, fazendo-se muito vermelho, levantou-se. Estava rubro de cólera e virou os bolsos do avesso.
- Não tenho sal, estás a ver. Não tenho nenhum nem o posso inventar. Perceberam, seus velhos?
- Então para onde foi ele? - perguntou após um minuto de silêncio o velho Tchumakov, o cegueta, passeando pela assistência o seu olho único, espantado. Dantes, com o governo antigo, não havia problemas, tínhamos sal aos montes. Hoje não nos dão uma pitada...
- O nosso governo não tem culpa disso – respondeu Michka num tom mais calmo. O único culpado disto é o governo anterior, o dos cadetes, o vosso. Por causa dele é que ficamos arruinados a ponto de não se conseguir arranjar sal. Todas as vias férreas ficaram destruídas. O mesmo aconteceu aos vagões
Michka fez uma longa arenga aos velhos para lhes demonstrar como os brancos, durante a retirada, haviam destruído os bens do Estado, fazendo as oficinas ir pelos ares, incendiando os armazéns. Algumas daquelas coisas que estava dizendo vira-as com os seus próprios olhos durante a guerra; outras, ouvira-as contar; o resto, inventava, com o fito de desviar o descontentamento geral do seu querido poder dos Sovietes.
A fim de colocar este ao abrigo das censuras, mentia com toda a calma, usava de manhas e pensava lá com os seus botões: “Não faz mal a ninguém se eu exagerar um pouco no que digo acerca desses patifes. Seja como for, eles são uns malandros, isto não os prejudica e a nós ajuda-nos bastante...”
- Então vocês julgam que os burgueses nasceram ontem, ou quê? Não são nenhuns burros. Abarbataram todas as reservas de açúcar e de sal, milhares e milhares de pudes, que antes haviam levado para a Crimeia, e aí meteram tudo em barcos e foram vendê-los nos outros países - afirmava Michka com os olhos brilhantes.
- E levaram também todo o óleo de lubrificação? - perguntou o cegueta, num tom desconfiado.
- Julgas que o iam deixar para ti, avozinho? Podes ter a certeza que não se preocupam nada contigo, nem com todo o povo dos trabalhadores. Arranjam facilmente quem lho queira comprar. Se pudessem, tinham levado tudo para fazerem com que o povo morresse de fome.
- Isso é assim mesmo, não há dúvida - confirmou um dos velhos. Os ricos são todos uns comilões. - Sempre assim foi. Quem mais tem mais quer. Havia um comerciante em Viochénsskaia que, na altura da primeira retirada, meteu tudo quanto era dele dentro de carros, até ao último fio. Entretanto, os vermelhos aproximavam-se e ele não arredava pé, andava de peliça pela casa toda a arrancar os pregos com uma torquez. “Não quero que eles fiquem nem com um prego dos meus.” Já vêem que não admira que eles tenham levado o óleo.
- Isso tudo pode ser verdade, mas que vamos nós fazer sem sal? - inquiriu por fim o velho Matsaiev num tom bonacheirão.
- Os nossos operários vão dentro em breve recomeçar a extrair o sal. Entretanto, podemos mandar alguns carros buscá-lo ao Manitch - aconselhou prudentemente Michka.
- As pessoas não querem lá ir. Os kalmuks fazem estragos lá por essas bandas, não deixam tirar o sal das salinas, roubam os bois à mão armada. Conheço um homem que lá foi e só lhe deixaram o chicote. Durante a noite, para lá de Velikokniajesskaia, viu chegar três Kalmuks armados que lhe levaram os 'bois e lhe disseram apontando-lhe ao pescoço: “Cala-te, se não queres morrer de morte macaca...” Como podemos nós lá ir assim?
- Temos de esperar suspirou Tchumakov.
Michka lá conseguiu, o melhor que pôde desembaraçar-se dos velhos, mas, ao regressar a casa, teve uma violenta discussão com Duniachka, também a propósito do sal. Fosse como fosse, as coisas não andavam a correr lá muito bem entre os dois...
Tudo começara naquele dia memorável em que Prokhor se referira a Grigóri e a zanga que se seguira nunca mais se dissipara. Certa noite, à ceia, Michka declarou:
- Esta sopa não tem sal, mulher! Umas vezes tem de menos outras de mais...
- Sal a mais, nos dias que vão correndo e com o governo que temos, não é possível. Sabes quanto nos resta por junto?
- Quanto?
- Dois punhados.
- A coisa está má! suspirou Michka.
- Os homens previdentes foram com carros ao Manitch, no Verão, buscar sal, mas tu nunca arranjaste tempo para pensar nisso. - declarou Duniachka em tom de censura.
- E como querias tu que eu lá fosse? Atrelar-te a ti à carroça logo no primeiro ano de casados parecia mal. E os nossos boizitos não valem nada...
- Guarda lá as brincadeiras para outra ocasião. Quando tiveres que comer tudo completamente insonso então brinca.
- Mas que tens tu contra mim? Falando a sério, onde queres que eu vá buscar sal? Vocês, mulheres, sempre têm muita graça! Não posso vomitá-lo para to dar, esse maldito sal! Se não há, paciência!
- Os outros também foram ao Manitch com os seus bois e agora nada lhes falta do que é preciso, ao passo que nós continuamos a comer tudo amargo e insonso...
- Havemos de nos arranjar de qualquer maneira, Dunia. Vamos receber sal dentro em breve. É coisa que não falta, no nosso país.
- Vocês ao menos têm de tudo!
- Vocês, quem?
- Vocês, os vermelhos.
- Mas então tu, o que és?
- Sabes bem o que eu sou. Vocês gabavam-se e tornavam a gabar-se de que tinham tudo com fartura, que todos iam viver no meio da riqueza e da igualdade: afinal, nem sequer temos sal para deitar na sopa
Michka, dirigindo à mulher um olhar assustado, empalideceu.
- Que estás tu para aí a dizer, Dunia? Vê lá como falas!
Dunia, porém, tomara o freio nos dentes: também ela estava pálida de indignação e cólera, e prosseguiu aos berros:
- Vejo como falo? Porque estás tu a arregalar-me os olhos? Diz-me lá, senhor presidente: não sabes que há para aí gente com as gengivas a incharem por causa da falta de sal? Sabes o que as pessoas estão a comer para substituir o sal? Cavam as terras salgadas, vão à colina de Netchaiev e deitam terra de lá na sopa... Nunca ouviste dizer isto?
- Vamos, não grites. Sei tudo isso... E depois?
- Não há depois - respondeu Duniachka, juntando as mãos.
- Temos de suportar.
- Então suporta-o tu!
- É o que eu faço. Mas... mas... És mesmo da raça dos Melekhovs!
- E como é ela, a raça dos Melekhovs?
- É contra-revolucionária - respondeu Michka em voz surda, erguendo-se da mesa.
De olhos pregados no chão, sem fitar a mulher, disse-lhe com os lábios a tremer ligeiramente:
- Se tornas a falar assim, deixo de viver contigo, garanto-te!
- Falas como uma inimiga...
Duniachka quis objectar qualquer coisa, porém Michka, de olhos desvairados, ergueu o punho:
- Cala-te! ordenou numa voz abafada.
Duniachka fitou-o sem temor, não ocultando a curiosidade; ao cabo de alguns instantes, declarou numa voz calma e bem disposta:
- Pronto, acabou-se, porque diabo falamos nós no sal?... Passa-se sem ele e pronto!
Após ter estado calada um momento, acrescentou, com aquele sorriso tranquilo de que Michka tanto gostava:
- Não te zangues, Michka. Se os homens fossem zangar-se por tudo quanto dizem as mulheres, era um nunca acabar. O que a gente diz quando se zanga!... O que é que queres beber, leite coalhado ou xarope?
Apesar de muito nova, Duniachka possuía uma grande experiência e sabia quando devia manter-se na sua, durante uma questão, ou quando era melhor ceder...
Dali a quinze dias chegou uma carta de Grigóri a dizer que fora ferido na frente de Wrangel e que seria desmobilizado, provavelmente, logo que estivesse bom. Duniachka informou o marido do conteúdo da carta, perguntando-lhe:
- Quando ele voltar, Michka, que havemos de fazer?
- Vamos para minha casa. Ele que fique a viver aqui. Dividimos os bens.
- Não seria possível vivermos todos juntos? Ele decerto que vai buscar a Akcínia.
- Ainda que fosse possível eu é que não queria viver com ele debaixo do mesmo tecto, declarou severamente Michka.
Duniachka ergueu as sobrancelhas com surpresa:
- Porquê, Michka?
- Sabes bem porquê.
- Por ele ter combatido ao lado dos brancos?
- Precisamente.
- Tu não gostas dele... Mas vocês dantes eram amigos.
- Era o que mais faltava... eu gostar dele! Fomos amigos, mas ele deixou de o ser.
Duniachka estava a dobar. A dobadoira gemia continuamente, mas o fio quebrou-se. Duniachka parou a roda e disse, enquanto torcia o fio, sem olhar para o marido:
- Quando ele voltar, que é que lhe vão fazer, por ter estado com os cossacos?
- Será julgado no tribunal.
- E qual será a pena?
- Sei lá! Não sou juiz.
- Podem condená-lo à morte?
Michka olhou para a cama onde dormiam Michatka e Poliúchka, escutou-lhes a respiração regular e respondeu baixando a voz.
- Podem.
Duniachka não fez mais perguntas. No dia seguinte pela manhã, quando acabou de ordenhar a vaca, dirigiu-se a casa de Akcínia.
- Trago-te boas notícias. O Grichka vai regressar.
Akcínia poisou sobre o lume a marmita cheia de água e levou as mãos ao peito. Ao ver-lhe o rosto corar, Duniachka acrescentou:
- Mas não te alegres antes de tempo. O meu marido diz que ele não escapa do tribunal. E sabe Deus a que pena vai ser condenado.
Um relâmpago de angústia perpassou nos olhos húmidos e brilhantes de Akcínia:
- Porquê? inquiriu bruscamente, sem forças para apagar dos lábios o sorriso que aí se instalara.
- Por causa da insurreição... e do resto.
- Isso é tudo mentira. Ninguém vai julgá-lo. O teu Mikhail não sabe nada! Ou julga-se um profeta!
- Talvez não saiba, com efeito respondeu Duniachka.
E acrescentou passado um momento, a reprimir um soluço:
- Ele não gosta nada do meu irmãozinho... e isso aflige-me tanto... tanto... que nem podes calcular. E ainda por cima ele foi ferido mais uma vez!... Que triste vida!
- O que é preciso é que ele venha. Levamos as crianças e vamos esconder-nos em qualquer parte disse Akcínia, angustiada.
Tirou o lenço sem necessidade e voltou a colocá-lo na cabeça. Afastou inutilmente a loiça em cima da mesa, incapaz de dominar a emoção que a assaltara.
Sentou-se no banco, alisou sobre os joelhos as pregas do avental desbotado, e Duniachka, vendo-lhe as mãos a tremer, sentindo a garganta apertada, desejou estar sozinha para poder chorar.
- A mãe já não chegou a vê-lo... - disse baixinho. - Bem, tenho de ir aquecer o forno.
No vestíbulo, Akcínia abraçou-a desajeitadamente pelo pescoço e depois beijou-lhe a mão.
- Estás contente? - perguntou-lhe Duniachka numa voz sumida.
- Estou um bocadinho... só um bocadinho... - respondeu Akcínia com um sorriso trémulo, a esconder as lágrimas que lhe subiam aos olhos.
Na estação de Milerovo, Grigóri teve direito a um carro civil, dada a sua qualidade de comandante vermelho desmobilizado. Durante a viagem, foi mudando de cavalos em todas as povoações ucranianas e, no espaço de vinte e quatro horas, chegou à fronteira do distrito do Alto-Don. Na primeira aldeia cossaca, o presidente do comité revolucionário, um jovem soldado vermelho desmobilizado havia pouco, disse-lhe:
- Daqui em diante tem de seguir puxado a bois. Só temos um cavalo em toda a aldeia e mesmo assim só anda com três patas. Os nossos cavalos ficaram todos no Kúbano, durante a retirada.
- Talvez eu consiga mesmo assim chegar a casa com esse cavalo que tu dizes? - perguntou Grigóri a tamborilar com os dedos sobre a mesa e a fitar com os olhos risonhos o presidente, que era um pândego.
- Não consegue, nem que levasse uma semana. Mas não se aflija. Temos bois magníficos, que andam bem e, de qualquer maneira, tínhamos sempre de mandar um carro a Viochénsskaia levar fio telegráfico que aqui ficou retido desde a guerra. Por isso não precisará de mudar de carro pelo caminho. Vai neste até sua casa.
O presidente, piscando a pálpebra esquerda, acrescentou sorrindo, com uma expressão maliciosa:
- Vamos dar-lhe os nossos melhores bois e, como cocheiro, uma jovem viúva... Temos aqui uma destas lascas... não se pode desejar melhor. Junto dela, nem dará pelo caminho. Já fui soldado e sei o que isso é... sei o que falta aos militares...
Grigóri não respondeu. Reflectia. Esperar que aparecesse um carro no mesmo sentido seria uma loucura. E o percurso era demasiado longo para se fazer a pé. Mais valia aceitar os bois.
Dali a uma hora chegava a carripana: uma velha charrette com as rodas a chiar. O compartimento do feno estava espatifado e por isso o pasto espalhava-se por todos os lados. “Esta também andou na guerra”, pensou Grigóri, observando, desconsolado, a pobre equipagem. A condutora caminhava ao lado dos bois, agitando o chicote. Era de facto muito bonita e bem feita. Os seios enormes, desproporcionados, alteravam-lhe um pouco a silhueta e uma cicatriz em diagonal sobre o queixo redondo conferia-lhe uma expressão de quem possuía uma triste experiência da vida, fazendo parecer mais velho aquele rosto corado e moreno, salpicado na base do nariz de sardas castanhas do tamanho de grãos de painço.
Encarquilhou os olhos enquanto compunha o lenço a fitar atentamente Grigóri, e perguntou:
- És tu que vens comigo, não?
Grigóri desceu os degraus a abotoar o capote:
- Sim, sou eu. Já carregaste o fio telefónico?
- Era o que mais faltava, ser eu a carregá-lo! - exclamou a cossaca numa voz sonora. Passo a vida na estrada ou a trabalhar! Quem julgam eles que eu sou? Os tipos que o carreguem, esse maldito fio, de contrário ponho-me a andar com o carro leve!
Arrastou os rolos de fio até à charrette e discutiu em voz alta, mas sem azedume, com o presidente; de quando em quando, enviesava um olhar curioso para Grigóri. O presidente ria sem parar e contemplava a jovem viúva com sincera admiração. Por vezes, piscava o olho a Grigóri, como quem diz: “Isto é que são mulheres! Aposto que não esperavas encontrar uma coisa destas cá na terra!”
Para além da aldeia, estendia-se até muito longe a estepe do Outono, escura e ressequida. Uma torrente de fumo acinzentado, vindo das terras lavradas, atravessava a estrada. Os lavradores andavam a queimar as ervas daninhas em tufos secos ou longas fibras amarelecidas. O cheiro a fumo acordou em Grigóri tristes recordações: também ele, outrora, costumava lavrar no Outono lá para o interior da estepe; à noite, contemplava o céu negro, salpicado de estrelas, prestava atenção aos apelos dos bandos de patos que voavam lá no alto... Começou a agitar-se na sua cama de feno, lançando um olhar de lado para a condutora.
- Que idade tens, pequena?
- Vou nos sessenta - respondeu ela com garridice, de olhos risonhos.
- Não, a sério.
- Vinte e um.
- E já és viúva?
- Já.
- Que fizeste ao teu marido.
- Morreu na guerra.
- Há muito tempo?
- Há dois anos.
- Durante a insurreição?
- Depois. No princípio do Outono.
- Então como vives tu?
- Cá se vai indo.
- O marido faz-te falta?
Ela fitou-o com atenção, tapou a boca com o lenço para esconder um sorriso. Falou em voz baixa, com uma entoação diferente:
- O trabalho não me dá tempo para pensar nisso.
- Mas não te faz falta não teres marido?
- Vivo com a minha sogra. Temos muito trabalho na herdade
- Como consegues tu passar sem marido?
A rapariga voltou-se para Grigóri. Um súbito rubor velou-lhe as sardas e nos seus olhos acenderam-se e apagaram-se centelhas fulvas:
- A que propósito me perguntas isso?
- A propósito de nada.
Ela tirou o lenço da boca e declarou num tom arrastado:
- Ora, não me falta nada! Há muita gente boa por esse mundo fora .
Calou-se um instante e prosseguiu:
- Não tive tempo de gozar a vida com o meu marido. Só estivemos juntos um mês e levaram-no logo para o exército. Arranjo-me como posso sem ele. Agora, as coisas correm melhor. Os rapazes regressaram à aldeia, mas dantes era uma vida dura. Anda, Carriço, anda! Pois é assim, meu soldado. A vida é isto.
Grigóri não respondeu. Na realidade não lhe apetecia nada conversar naquele tom brincalhão e já estava arrependido de ter começado.
Os bois, gordos e bem alimentados, avançavam sempre no mesmo passo lento e regular. Um deles quebrara um corno e este crescera torto, atravessado na testa. Grigóri seguia estendido na charrette, apoiado aos cotovelos, de olhos semicerrados.
Pôs-se a pensar nos bois com que trabalhara em criança, e mais tarde, já homem. Eram todos diferentes uns dos outros, na cor da pele, na compleição, no carácter, até na forma dos cornos. Havia outrora um boi na herdade dos Melekhovs que, como este, partira um corno. Era mau e rancoroso, olhava sempre de viés, arregalando os olhos cujos globos se mostravam raiados de sangue; se alguém se aproximava dele por trás, dava coices; na época das grandes sementeiras, quando se deixavam os animais na pastagem durante a noite, ele conseguia regressar sempre à herdade e outras vezes fazia ainda pior ia esconder-se na floresta ou numa ravina distante. Grigóri teve muitas vezes de percorrer a estepe a cavalo durante dias inteiros, e só quando já perdera a esperança de o encontrar é que o descobria de súbito no fundo de uma ravina, dentro de um maciço impenetrável de espinheiro negro ou então à sombra de uma macieira brava e ramalhuda. Aquele maldito, esse boi mocho, aprendera a soltar a soga; de noite levantava com o chifre a corda que segurava o portão da cerca, saía lá para fora, atravessava o Don e ia vadiar para a planície. Nesses tempos, causara grandes aborrecimentos e preocupações a Grigóri...
- Como é esse teu boi do corno torcido? É manso?
- É. Porque perguntas?
- Por nada.
- É uma boa resposta, se não tens mais nada para me dizer respondeu a condutora rindo.
Grigóri não lhe deu troco. Sentia prazer em recordar o passado, a vida tranquila, o trabalho, tudo quanto era estranho à guerra, a esta guerra que se arrastava há sete anos e se lhe tornara intolerável; só de pensar nela, ao recordar qualquer dos seus episódios, sentia uma náusea pungente, uma surda irritação.
Não voltaria a combater. Estava farto. Regressaria a casa para se entregar ao trabalho e viver com os filhos, em companhia de Akcínia. Quando estava na frente, tomara a resolução de ir buscar Akcínia para casa a fim de que esta lhe tomasse conta das crianças e estivesse sempre junto dele. Precisava de tomar finalmente uma decisão, e quanto mais cedo melhor.
Grigóri sonhava deliciado com o dia em que trocaria o capote e as botas pelas enormes tamancas de lavrador, em que enfiaria as grossas meias de lã por dentro das calças tufadas à moda cossaca; vestiria por cima do blusão quente um capote feito em casa e sairia para o campo. Como seria bom pegar nas mãos da charrua e caminhar, seguir o sulco molhado, aspirando avidamente o cheiro húmido da terra lavrada, o aroma acre da erva cortada pela rabiça. Nas terras estranhas, a terra e a erva têm um cheiro diferente. Mais de uma vez, na Polónia, na Ucrânia ou na Crimeia, esfregara na palma da mão uma haste de absinto cinzento e cheirara o perfume, pensando com tristeza: “Não, não é isto, não é a mesma coisa...”
A condutora aborrecia-se. Tinha vontade de conversar. Deixou de incitar os bois e sentou-se confortavelmente. Enquanto puxava pelas franjas negras do chicote, observou demoradamente Grigóri, à socapa, viu-lhe o rosto fechado e os olhos baixos. “Ele ainda não é velho, mas já tem cabelos brancos. É tão esquisito”, pensava ela, sempre a franzir os olhos. “Porque será? Parece cansado, como se fosse a puxar um carro... Não é desajeitado. O que tem é o cabelo e o bigode quase todo branco. Mas não é feio. Em que pensará? Primeiro parecia querer meter-se comigo, mas não voltou a dizer nada e fez-me aquela pergunta acerca do boi. Talvez não saiba de que assunto há-de falar. Ou será tímido? Não tem cara disso. Os seus olhos são duros. Não há dúvida de que é um belo cossaco, mas esquisito. Pois então fica para aí calado, meu estafermo, com essas costas todas curvadas. Não preciso de ti. Também sei manter-me calada. Deves estar impaciente por ver a tua mulher. Pois então fica para aí!”
Encostando-se à borda do carro, começou a cantarolar baixinho.
Grigóri ergueu a cabeça e olhou para o sol. A tarde ia ainda no princípio. A sombra de um cardo do ano anterior, que fazia sentinela à beira do caminho, projectava uma sombra de meio passo apenas. Não deviam ser mais de duas horas.
Sobre a estepe pesava como que um silêncio de morte.
O sol dava pouco calor. Um vento leve agitava sem ruído a erva escura e queimada. Não se ouvia o canto dos pássaros nem o bufar dos ratos do trigo. No céu pálido e frio não pairavam falcões nem águias. Só uma vez a estrada foi atravessada por uma sombra cinzenta; antes mesmo de erguer a cabeça Grigóri ouviu um pesado bater de asas: uma abetarda de um cinzento-claro, cuja plumagem forrada de branco brilhava à luz, passou, indo poisar perto de um túmulo distante, no ponto em que a ravina, onde não dava o sol, se ia perder no roxo crepuscular do horizonte. Grigóri só havia observado aquela calma profunda nos fins do Outono, na época em que julgamos ouvir sobre a erva seca o roçagar dos cardos rolantes empurrados pelo vento para longe, muito longe, através da estepe.
Parecia-lhe que nunca mais veriam o fim da estrada. Esta serpenteava por entre as colinas num declive suave, descia aos vales, erguia-se de novo até às cumeadas. E, a perder de vista, desdobrava-se a profunda estepe coberta de erva. Grigóri sentiu-se tomado de admiração perante um pequeno bordo que crescera na encosta de uma ravina. As suas folhas, queimadas pelos primeiros gelos, luziam com um brilho purpúreo, como brasas cobertas de cinza.
- Como te chamas? - perguntou em voz baixa a condutora, tocando com o cabo do chicote no ombro de Grigóri.
Este, estremecendo, voltou-se. A rapariga tinha desviado os olhos.
- Grigóri. E tu?
- Eu não me chamo nada.
- Fazias melhor em estares calada.
- Estou farta de ir calada. Há meio dia que não falo, até sinto a boca seca. Porque vais tu tão triste, tio Grichka?
- E porque havia de estar alegre?
- Regressas a casa, devias ir contente.
- Já passei a idade de andar contente.
- Não pareces velho. Mas porque tens os cabelos brancos? Ainda és novo.
- Tu queres saber tudo.... Se calhar foi por ter tido uma vida boa de mais, está-se mesmo a ver.
- És casado, tio Gricha?
- Sou. E tu deves tratar de te casar quanto mais depressa melhor.
- Depressa, porquê?
- Porque és muito descarada.
- E isso é mau?
- Às vezes é. Conheci uma que era descarada como tu e também viúva. Desatou a andar por aí e tanto se divertiu que começou a ficar sem o nariz...
- Oh, meu Deus! Que horror! - exclamou a rapariga com fingido pânico. E acrescentou logo num tom prático: - Nós, viúvas, somos assim. Quem não se arrisca não petisca.
Grigóri olhou para ela. Ria em silêncio, sem descerrar os dentes miúdos e brancos. Tremia-lhe o lábio superior, todo arreganhado, os seus olhos luziam sob as pestanas descidas. Grigóri, começando a sorrir, poisou a mão sobre o joelho quente e redondo da rapariga.
- Pobre pequena declarou num tom compadecido. Tão novinha e já levaste tantos encontrões da vida.
De repente, toda a alegria a abandonou. Repeliu com aspereza a mão de Grigóri, cerrou o sobrolho e corou tanto que as sardas desapareceram.
- Vai lá lamentar a tua mulher quando chegares a casa. Cá por mim não preciso de ajuda para me queixar.
- Espera, não te zangues!
- Vai para o diabo!
- Disse isto porque me fazes pena.
- Quero lá saber da tua pena!
Pôs-se a praguejar como um homem, via-se que estava habituada a isso, e os seus olhos negros faiscavam.
Grigóri, erguendo as sobrancelhas, resmungou, atrapalhado:
- Não tens papas na língua, caramba! És completamente louca!
- E tu? És um santo de capote piolhoso! Já vos conheço a todos! Casa-te, e mais isto e mais aquilo. Há muito tempo que te tornaste assim ajuizado?
- Não, não foi há muito tempo - respondeu Grigóri sorrindo.
- Então porque me pregas sermões? Bem basta a minha sogra.
- Bem, acabou-se. Porque te enfureces assim, idiota? Disse aquilo por dizer -, declarou Grigóri, para a acalmar. Olha, enquanto conversávamos, deixámos sair os bois para fora do caminho.
Instalou-se confortavelmente, lançou à viúva um olhar furtivo e viu-lhe lágrimas nos olhos. “Que chatice! As mulheres são todas assim...”, pensava ele com uma sensação de aborrecimento e despeito.
Não tardou a adormecer, deitado de costas, com uma aba do capote a cobrir-lhe a cara. Acordou ao cair da noite. As pálidas estrelas da tarde brilhavam no céu e sentia-se um perfume a feno, fresco e suave.
- Temos de dar de comer aos bois - disse a rapariga.
- Está bem. Então paramos.
Grigóri foi desatrelar os bois. Tirou do saco uma lata de conserva de carne e pão, depois juntou um molho de palhas secas e acendeu uma fogueira perto da charrette.
- Anda, vem cear, não fiques zangada.
A rapariga agachou-se perto do lume, tirou da sacola um pão e um pedaço de gordura cor de ferrugem. Enquanto comiam falaram pouco, mas sem animosidade. Depois a viúva foi deitar-se dentro do carro. Grigóri juntou ao lume uns bocados de bosta seca para que ele se não apagasse e estendeu-se no chão, como no acampamento. Ficou muito tempo ali deitado, com a cabeça em cima do saco. Olhava o céu cintilante de estrelas e pensava continuamente nos filhos e em Akcínia. Por fim, adormeceu de leve. Despertou-o uma voz insinuante:
- Estás a dormir, soldado? Estás a dormir ou não?
Ele ergueu a cabeça. A sua companheira de viagem, apoiada num cotovelo, curvava-se toda para fora da charrette. A cara dela, iluminada de baixo para cima pelo clarão moribundo da fogueira, tinha um ar fresco e manhoso, os dentes dela e a orla de renda do lenço pareciam de uma brancura deslumbrante. Sorria como se nada se tivesse passado, e disse, com as pestanas a tremerem:
- Receio que apanhes frio aí. A terra está gelada. Se tiveres frio vem para o pé de mim. Tenho uma peliça muito quentinha. Queres vir?
Grigóri, depois de reflectir um momento, respondeu suspirando:
- Obrigado, pequena, mas não quero. Ah! Se fosse aqui há um ano ou dois... Não tenhas medo, aqui junto do lume não apanho frio.
Ela suspirou também.
- Bom, seja como quiseres.
E cobriu a cabeça com a peliça.
Ao cabo de um certo tempo, Grigóri levantou-se e reuniu as suas bagagens. Tinha decidido ir a pé para chegar a Tatársski de madrugada. Um chefe militar que volta da guerra não entra na sua aldeia num carro de bois. A quantas troças e comentários daria lugar o seu regresso com semelhante equipagem!
Acordou a companheira:
- Eu sigo a pé. Tu não tens medo de ficar sozinha na estepe?
- Não, não sou medrosa e há uma aldeia aqui perto. Mas que tens tu para estares com tanta pressa?
- Tenho aquilo que tu podes calcular. Então adeus e não leves a mal.
Grigóri seguiu estrada fora com a gola do capote levantada.
O primeiro floco de neve caiu-lhe nas pestanas. O vento soprava agora do norte e no seu hábito frio Grigóri julgou reconhecer o cheiro querido da neve.
Michka Kochevói regressou à noite da stanitsa. Duniachka viu-o através da janela chegar ao portão. Pôs logo o xale pelos ombros e saiu para o pátio.
- O Gricha veio esta manhã - disse ela ao chegar à entrada, observando o marido com inquietação.
- Deves estar muito contente -, retorquiu Michka num tom reservado, ligeiramente trocista.
Entrou na cozinha com os lábios muito apertados. Os músculos das faces agitavam-se-lhe sob a pele. Poliúchka, que a tia ataviara com um fato novo, estava ao colo de Grigóri. Este, depois de a pôr no chão com carinho, foi ao encontro do cunhado, estendendo-lhe, a sorrir, a mão grande e morena. Quis abraçar Michka, mas, vendo-lhe os olhos frios e hostis, absteve-se.
- Olá, Michka!
- Bons dias!
- Há muito tempo que não nos víamos. Tenho a impressão que isso foi há cem anos.
- Sim... há muito tempo. Muito folgo em te ver.
- Obrigado. Fazemos agora parte da mesma família, ao que parece.
- Assim é... Mas tens sangue na cara!
- Não é nada. Cortei-me ao fazer a barba, com a pressa.
Sentaram-se à mesa e observaram-se em silêncio, com uma sensação de cerimonioso mal-estar. Tinham muitas coisas a dizer um ao outro, mas de momento isso não era possível. Michka, dominando-se, começou a falar calmamente da quinta e das mudanças ocorridas na aldeia.
Grigóri olhava, através da janela, a terra coberta pela primeira neve azulada, os ramos nus das macieiras. Não fora assim que imaginara o primeiro encontro com Michka...
Este não tardou a sair. No vestíbulo, afiou cuidadosamente uma faca na pedra de amolar e disse a Duniachka:
- Vou chamar alguém para nos matar um carneiro. É preciso dar um festim ao dono da casa. Vai comprar aguardente.
- Ou antes, corre a casa do Prokhor, e diz-lhe que desenterre a sua aguardente. Ele pode fazer isso melhor do que tu. E convida-o para cear.
Duniachka, radiante de alegria, olhou com reconhecimento para o marido, sem dizer nada “Talvez tudo venha a correr bem... Agora que a guerra acabou, que nos poderá separar? Se ao menos Deus permitisse que eles fossem razoáveis!”, pensava ela, cheia de esperança, a caminho da casa de Prokhor.
Dali a menos de uma hora, chegava Prokhor, todo esbaforido:
- Grigóri Panteleiévitch!... Meu bom amigo!... Nunca julguei, não posso crer que tenha chegado finalmente este dia... exclamava ele, numa voz alta e dramática.
Tropeçou nos degraus e por pouco não quebrava a bilha da aguardente, do tamanho de um balde.
Ao abraçar Grigóri, desatou aos soluços. Limpou os olhos com o punho e alisou o bigode molhado de lágrimas. Grigóri sentiu umas cócegas na garganta, mas conteve-se, e deu uma grande palmada nas costas da sua fiel ordenança, enquanto pronunciava algumas frases sem nexo:
- Ora muito bem... cá estamos... sinto-me contente por te ver, Prokhor, muito contente. Mas que raio é isso, homem? Estás com a lágrima no olho? Tens as juntas mal unidas ou são os parafusos desapertados? E o teu braço? A tua mulher ainda te não arrancou o outro?
Prokhor assoou-se ruidosamente e despiu a peliça.
- Eu e a minha mulher, neste momento, somos dois pombinhos. O meu outro braço está inteiro, como vês. E aquele que os polacos me levaram começa a nascer outra vez, podes acreditar! Dentro de um ano já devo ter dedos - declarou ele com a sua alegria natural, agitando a manga da camisa.
A guerra habituara-os a ocultar sentimentos atrás de umsorriso e a salgar tanto a linguagem como o pão. Grigóri prosseguiu no mesmo tom de gracejo:
- Então como tens passado, meu velho chibo? Ainda saltas?
- Salto devagar, como os velhos.
- Não apanhaste mais nenhuma maleita, na minha ausência?
- Qual maleita?
- Como aquela do ano passado, não percebes?
- Panteleiévitch! Nem falar nisso é bom! Como queres que eu me dê a esse luxo? E depois, só com uma mão, não consigo agarrar nada. Agora é a tua vez. És novo e livre... A mim só me resta oferecer o meu instrumento à patroa e ela que se sirva dele como pincel para pintar as panelas...
Contemplaram-se longamente como dois bons camaradas de trincheira que eram, rindo, felizes, por se voltarem a encontrar.
- Voltaste de todo?
- Sim, definitivamente.
- Qual é a tua patente?
- Fui segundo-comandante.
- Porque te deixaram vir tão cedo?
Grigóri, carregando a expressão, respondeu com secura:
- Já não me queriam.
- Porquê?
- Sei lá. Talvez por causa do meu passado.
- Mas tu apresentaste-te à comissão de depuração que fazia a escolha dos oficiais na Secção Especial Depois disto não se fala mais do passado.
- Não é o bastante.
- Onde está o Mikhail?
- No pátio. Foi recolher o gado.
Prokhor, aproximando-se, baixou a voz:
- O Platone Riabtchikov foi fuzilado há um mês.
- Que dizes tu?
- Digo a verdade.
A porta do vestíbulo chiou.
- Voltaremos a falar disto - murmurou Prokhor. E prosseguiuem voz alta: - Então, camarada; comandante, vamos a uma pinga? Isto é que é um dia! Vamos chamar o Mikhail? Anda, vai.
Duniachka pôs a mesa. Não sabia o que fazer para se tornar agradável ao irmão. Colocou-lhe nos joelhos um guardanapo limpo, ofereceu-lhe melancia salgada dentro de um prato, limpou-lhe o copo pelo menos cinco vezes... Grigóri observou, sorrindo, que ela não o tratava por “tu”.
À mesa, Michka começou por manter um silêncio obstinado.
- Escutava com atenção tudo quanto - dizia Grigóri, bebia pouco e de má vontade. Em contrapartida, Prokhor esvaziava copos uns atrás dos outros, cada vez mais corado, e passava o punho sobre os bigodes loiros.
Depois de ter dado de comer às crianças e de as haver deitado, Duniachka colocou sobre a mesa uma grande travessa de carneiro cozido e murmurou para Grigóri:
- Vou chamar a Akcínia, irmãozinho. Achas bem?
Grigóri respondeu com um gesto de cabeça. Afigurara-se-lhe que ninguém dera pelo estado de tensão e de expectativa que o dominara durante toda a tarde, mas Duniachka vira-o estremecer a cada ruído e prestar atenção enquanto olhava para a porta. Na verdade, nada escapava àqueles olhos penetrantes.
- E o Terechtchenka, aquele tipo do Kúbano, ainda comanda um pelotão? - inquiriu Prokhor, sem largar o copo, como se receasse que lho tirassem.
- Foi morto em Liov.
- Ah, Deus o tenha em descanso. Era um bom cavaleiro - declarou Prokhor, persignando-se à pressa enquanto bebia um trago, sem reparar no sorriso pérfido de Michka. - E o outro, aquele que tinha um nome muito esquisito! O que estava na ala direita, ah, caramba, como raio se chamava ele? Era Mai-Boroda? Um ucraniano, com cara de bolacha, muito patusco, que tinha cortado em dois um oficial polaco em Brody? Esse ainda estará vivo?
- Está vivo e são. Mudaram-no agora para o esquadrão de metralhadoras.
- E o teu cavalo, a quem o deste?
- Já não era o mesmo.
- Mas aquele da estrela branca, que fizeste dele?
- Foi morto por um estilhaço de obus.
- Em combate?
- Foi numa aldeola, no auge da luta. Ficou ferido e morreu
- Ah! Que pena. Aquilo é que era um animal!
Prokhor, depois de suspirar, emborcou outra vez o copo.
Ouviu-se o estalido do trinco no vestíbulo e Grigóri sobressaltou-se. Akcínia, surgindo à porta, deu as boas noites quase em surdina. Depois tirou o lenço. Respirava com dificuldade e não despregava de Grigóri os olhos brilhantes, muito abertos. Sentou-se à mesa, ao lado de Duniachka. Minúsculos flocos de neve começavam a derreter-se sobre as suas pestanas e no seu rosto pálido. Semicerrou os olhos e, passando a mão pela cara, suspirou profundamente. Após ter conseguido dominar-se, fitou Grigóri com os olhos profundos, afogados de emoção.
- Ksiúcha! Companheira de desgraça! Fizemos juntos a retirada, fomos ambos mordidos pelos piolhos. Bem sei que te abandonámos no Kúbano, mas que podíamos nós fazer? - disse Prokhor, entregando-lhe um copo, depois de ter derramado aguardente sobre a mesa. - Bebe à saúde de Grigóri Panteleiévitch. Dá-lhe as boas-vindas. Eu bem te dizia que ele havia de regressar inteirinho, e ele aí está, aí o tens! Olha como vem belo!
Grigóri, apontando para Prokhor, declarou, a rir-se:
- Já tem a sua conta vizinha, não faças caso.
Akcínia inclinou a cabeça diante de Grigóri e de Duniachka e mal ergueu o copo, com receio de que lhe vissem a mão a tremer.
- À tua saúde, Grigóri Panteleiévitch. À tua também, Duniachka.
- E nós agora, à saúde de quem havemos de beber? Do teu desgosto? - exclamou Prokhor, rindo às gargalhadas, enquanto dava uma cotovelada em Michka.
Akcínia corou violentamente. Os pequenos lóbulos das suas orelhas tingiram-se de cor-de-rosa translúcido, mas respondeu, lançando a Prokhor um olhar duro e severo:
- Eu... bebo à minha alegria... à grande alegria que sinto!
Prokhor, sentindo-se desarmado e comovido com a franqueza dela, disse:
- Emborca-me esse copo até ao fim! Tu falas sem cerimónias.
- É como quem me mata ver desperdiçar alguma gota no fundo dos copos.
Akcínia demorou-se pouco, apenas o tempo que lhe pareceu justificado pelas circunstâncias. Enquanto ali esteve, limitou-se a lançar ao seu bem-amado alguns olhares furtivos. Teimava em fitar os outros, evitando encarar Grigóri, pois não conseguia fingir-se indiferente e não desejava dar a perceber os seus sentimentos aos que a rodeavam. Somente à saída teve para ele um olhar franco, cheio de amor e submissão. Nada mais, para Grigóri porém isso bastou. Foi lá fora acompanhá-la. Prokhor, muito bêbado, gritou ao vê-los sair:
- Não te demores, olha que nós bebemos o resto!
No vestíbulo, Grigóri beijou demoradamente a testa de Akcínia.
- Então, Ksiúcha?
- Não há tempo agora para contar nada... Apareces amanhã?
- Apareço.
Akcínia correu para casa, como se tivesse ali à sua espera algo de importante. Só abrandou o passo em frente do portão. Subiu com cautela os degraus mal seguros. Tinha pressa de se encontrar sozinha com os seus pensamentos, com essa felicidade inesperada.
Tirou o lenço, despiu a blusa e foi para o quarto sem acender o candeeiro. A claridade lilás da noite entrava pela janela cujas portadas tinham ficado abertas. Atrás do fogão cantava um grilo. Por hábito, Akcínia olhou de passagem para o espelho, embora a escuridão a impedisse de ver a sua imagem. Compôs os cabelos, alisou no peito as pregas da camisa de musselina, depois, encaminhando-se para a janela, deixou-secair, exausta, sobre o banco.
Quantas vezes vira desiludidas as suas esperanças e os seus sonhos! Talvez por isso agora esta alegria recente lhe ressuscitava a velha angústia. Qual seria a sua vida dali em diante? Que lhe reservaria o futuro? Esta felicidade de mulher, esta amarga ventura que lhe sorria chegava talvez demasiado tarde.
Esgotada pelas emoções da noite, deixou-se ficar muito tempo ali, com a face junto ao vidro frio, coberto de gelo. O seu olhar tranquilo, um pouco triste, perdia-se na escuridão apenas quebrada pela brancura da neve.
Grigóri, voltando a sentar-se à mesa, serviu-se de um copo de aguardente que bebeu de um trago.
- É boa? - inquiriu Prokhor.
- Esta é das antigas, palavra de honra! - declarou Prokhor com convicção, beijando Michka. - Destas coisas, Michka, tu não percebes nada, és mesmo um anjinho, mas eu cá, em bebidas sou especialista. Já provei tudo em matéria de licores e de vinhos! Há um que nem nos dá tempo a tirar a rolha: a espuma salta do gargalo como um cão raivoso.
- Juro por Deus que isto não é mentira. Na Polónia, quando rompemos a frente e limpámos o sebo aos polacos brancos sob as ordens de Sémione Mikhailovitch (Refere-se a Budionny), apoderámo-nos, na passagem, dos domínios de um proprietário de terras. Era uma casa de andares, o gado andava à solta na cerca, na capoeira via-se toda a espécie de criação. Até havia um lugar para a gente escarrar! Numa palavra, o gajo vivia como um rei. Quando o nosso pelotão chegou a cavalo à propriedade, o dono estava precisamente a banquetear-se com os oficiais e não contavam connosco. Passámo-los todos a fio de sabre no jardim e na varanda, só escapou um, que fizemos prisioneiro. Um oficial importante. Quando o apanhámos, os bigodes descaíram-lhe e encolheu-se todo com medo. Mandámos chamar com urgência Grigóri Panteleiévitch ao Estado-Maior. Ficámos senhores da casa, penetrámos nas salas do andar de baixo e deparámos com uma mesa enorme, guarnecida com tudo o que se possa imaginar. Ficámos de boca aberta, mas com um medo terrível de nos aproximarmos dela, embora estivéssemos todos a morrer de fome. O quê!, dizíamos nós. Se aquilo estivesse envenenado? O nosso prisioneiro tinha cara de patife. Então ordenámos-lhe: “Come!” Ele comeu De má vontade, mas lá foi comendo. “Bebe!” E ele bebeu. Obrigámo-lo a comer um grande bocado de cada prato e a beber um copo de cada garrafa. O tipo inchava a olhos vistos. Enquanto ele ia comendo, a nós crescia-nos a água na boca. Depois de vermos que ele não morrera, desatámos também a comer. Comemos e bebemos vinho espumoso até tocar com o dedo. Então o oficial começou a esvaziar-se por cima e por baixo. Pronto, estamos quilhados! O gajo comeu de propósito a comida envenenada para nos apanhar. Aproximámo-nos dele com os sabres, mas ele defendia-se com os pés e com as mãos: “Meus senhores, isto aconteceu-me por ter comido de mais, mas não tenham medo que era tudo bom.” Então recomeçámos a beber. Bastava carregar-se na rolha para ela sair como um tiro e a espuma saltava que até fazia impressão. Por causa desse vinho caí eu do cavalo abaixo três vezes nessa noite. Assim que me punham na sela, bumba, ia parar ao chão, como se fosse derrubado pelo vento. Se eu conseguisse beber um copo ou dois daquilo todos os dias em jejum tenho a certeza de que chegava aos cem anos. Assim não sei se conseguirei. Isto que a gente aqui tem não é vinho, é um veneno. Esta porcaria mata gente...
Prokhor indicava a bilha da aguardente com um gesto da cabeça... e voltava a encher o copo até aos bordos.
Duniachka foi para o quarto dormir com as crianças e Prokhor levantou-se dali a pouco. A cambalear, deitou a peliça pelas costas e disse:
- Não vale a pena eu levar a bilha. Não gosto de andar com ela vazia na mão... Se chego a casa neste estado, a minha patroa dá cabo de mim. Ela é fresca! Não sei onde vai buscar tanta maldade. Assim que eu bebo uns copos, chama-me, por exemplo, “cão bêbado e maneta” e outras coisas mais. Eu, com bons modos, tento chamá-la à razão, dizendo: “Ó minha estúpida, onde é que já se viu um cão bêbado, e ainda por cima maneta? É coisa que não existe.” Mas, logo que eu respondo a um insulto, ela atira-me outro, e assim por diante, até de madrugada... Às vezes fico tão farto de a ouvir que vou dormir para o telheiro. Outras, se entro um bocado tonto e ela não me diz nada, também não consigo dormir, palavra de honra! Então sou eu que começo, e ela atira-se a mim a ponto de eu ficar doido. Aquela mulher é o diabo, ninguém se pode livrar dela. Temos de a deixar desabafar, porque no fim ainda trabalha com mais ardor. É ou não verdade o que digo? bom, vou-me embora. Adeus. E se eu passasse a noite no estábulo em vez de ir aturá-la?
- Achas que és capaz de ir até casa? - perguntou Gri gori rindo.
- De gatas, talvez, mas hei-de lá chegar! Ou eu não seja um cossaco. Até me ofendes ao perguntar uma coisa dessas!
- Bem, nesse caso, boa viagem!
Grigóri acompanhou-o ao portão, voltando depois para a cozinha.
- Então vamos conversar, Mikhail?
- Vamos.
Sentaram-se um diante do outro, separados pela mesa, e ficaram calados. Por fim, Grigóri começou:
- Há qualquer coisa entre nós... Vejo na tua cara que tens seja o que for contra mim. Aborrece-te que eu tenha voltado para casa? Ou enganei-me?
- Não te enganaste. Aborrece-me que tenhas voltado.
- Porquê?
- É mais uma preocupação.
-Tenciono bastar-me a mim próprio.
- Não me refiro a isso.
- Então que queres dizer?
- Somos inimigos...
- Fomos...
- Ainda somos e seremos.
- Não percebo. Porquê?
- Não és digno de confiança.
- Isso não é verdade. Enganas-te.
- Não, não me engano. Porque é que te desmobilizaram neste momento? Responde com franqueza.
- Não sei.
- Sabes sim senhor, mas não o queres dizer. Não tinham confiança em ti. Foi isso?
- Se não confiassem em mim não me tinham dado o comando de um esquadrão.
- Isso foi nos primeiros tempos, mas, se não te quiseram no exército, a coisa é clara, meu amigo!
- E tu, confias em mim? - perguntou Grigóri, olhando-o fixamente.
- Não. Quem não quer ser lobo não lhe veste a pele.
- Bebeste de mais, Mikhail.
- Deixa-te disso, estou tão sóbrio como tu. Não confiaram em ti lá na frente e nem aqui confiaremos, disso podes estar certo.
Grigóri não respondeu. Pegou com gestos cansados num pedaço de pepino salgado que tinha no prato e trincou-o, depois cuspiu-o.
- A minha mulher contou-te o que aconteceu ao Kiriuchka Gromov? perguntou Michka.
- Contou.
- O regresso dele também não me agradou nada. Assim que tive conhecimento disso fui logo...
Grigóri, empalidecendo, arregalou os olhos de fúria:
- O quê? Então eu para ti sou como o Kiriuchka Gromov?
- Não grites. Em que és tu melhor do que ele?
- Bem sabes que .
- Não quero saber nada. Já sei tudo há muito tempo.
- Depois há-de regressar o Mitka Korchunov e também o hei-de gramar, não? Seria melhor que nenhum de vocês tivesse voltado a pôr os pés na aldeia.
- Seria melhor para ti?
- Para mim e para eles, para a sua tranquilidade.
- Não me podes comparar a esses dois.
- Já te expliquei, Grigóri, e não deves levar a mal, que não és melhor do que eles. Até talvez sejas pior, mais perigoso.
- Como? Que estás tu para aí a dizer?
- Eles fazem parte do rebanho, ao passo que tu dirigiste a insurreição.
- Não fui eu quem dirigiu nada, apenas comandei uma divisão.
- E foi pouco?
- Se é pouco ou muito, não é disso que se trata... Se os guardas vermelhos não tivessem querido matar-me durante uma bebedeira colectiva nunca eu teria feito parte da insurreição.
- Se não fosses oficial, ninguém te teria tocado.
- E se não me houvessem feito soldado nunca teria sido oficial... Mas isso é uma história muito comprida...
- Comprida e chata.
- Não são alturas de ta repetir, é muito tarde.
Puseram-se os dois a fumar em silêncio. Michka fez cair a cinza do cigarro com a unha e prosseguiu:
- Conheço os teus feitos, falaram-me deles. Mataste muitos dos nossos. É por isso que não consigo olhar para ti a direito... não consigo esquecer.
Grigóri sorriu:
- Tens boa memória. Mataste o meu irmão Petro, mas eu não falo nisso... Se fôssemos a lembrar-nos de tudo, viveríamos como lobos.
- Pois, sim, senhor, matei-o, não digo o contrário. Se te tivesse apanhado nesse momento, tinha-te feito o mesmo.
- Pois eu, quando o Ivane Alekceiévitch foi feito prisioneiro em Usst-Kopérsskaia, vim a correr por aí fora com medo que tu... Vejo agora que fiz mal em proceder assim nesse dia.
- Tens muito bom coração! Gostava de ver o que me farias se os cadetes estivessem no Poder e vocês a vencerem. Fazias-me em postas, estou convencido disso. Tu, que hoje te mostras tão amável.
- Talvez outros te fizessem em postas. Eu nunca sujaria as minhas mãos contigo.
- Nesse ponto somos muito diferentes... Nunca me importaria de sujar as mãos com um inimigo e mesmo hoje sou capaz de cumprir o meu dever sem vacilar.
Michka despejou nos copos o resto da aguardente e disse:
- Bebes mais um copo?
- Bebo. Ainda não bebemos o suficiente para conversarmos deste assunto .
Esvaziaram os copos em silêncio. Grigóri apoiava o peito sobre a mesa e fitava Michka de olhos piscos, a torcer o bigode.
- Ao cabo e ao resto, que receias tu, Mikhail? Que eu torne a revoltar-me contra o poder dos Sovietes?
- Não receio nada, mas afirmo-te que, se houver ensejo, tu voltas-te para o outro lado.
- Posso voltar-me para os polacos, é isso que temes? Houve uma unidade inteira que se passou para o lado deles.
- E tu não tiveste tempo?
- Não quis. Estou farto de guerra. Não quero mais lutar por ninguém. Não posso mais. Estou farto de tudo. da revolução e da contra-revolução. Tudo isso... tudo isso que vá para o inferno. Quero viver com os meus filhos e trabalhar na herdade, nada mais. Podes acreditar em mim, Mikhail, falo-te com o coração nas mãos.
Porém nenhuma profissão de fé tinha o condão de convencer Michka. Grigóri, compreendendo isso, calou-se. Sentiu de repente um amargo despeito contra si próprio. Porque queria ele justificar-se, apresentar provas? Para quê continuar aquela conversa, ouvir os sermões avinhados de Michka? Que fosse tudo para o diabo! Ergueu-se.
- Já discutimos de mais. Não chegámos a nenhuma conclusão.
- Só te garanto uma coisa: nunca mais lutarei contra o poder dos Sovietes, a não ser que me ataquem. Se assim for, defender-me-ei. Seja como for, não oferecerei a minha cabeça pelai insurreição, tal como Platone Riabtchikov.
- Que queres tu dizer com isso?
- Aquilo que disse. Se tiverem em conta o meu serviço no Exército Vermelho e os ferimentos que lá recebi, estou pronto a responder pela insurreição. Mas se é para ser fuzilado, peço perdão, mas não vou nisso.
Michka teve um sorriso de desprezo:
- Falas como te convém. O tribunal revolucionário e a Tcheka não te perguntarão o que queres ou não queres, não discutirão contigo. Se fores culpado, dar-te-ão a conta. Os pecados velhos pagam-se caro.
- Bem, nesse caso, veremos.
- Veremos, é isso mesmo.
Grigóri tirou o cinto, despiu a camisa e começou a descalçar as botas, resmungando.
- Vamos fazer partilhas? - inquiriu, observando atentamente a sola descosida de uma das botas.
- As partilhas têm pouco que fazer. vou arranjar a minha casa e instalar-me-ei lá.
- Acho bem, vale mais separarmo-nos. Nunca conseguiremos
- Entendermo-mos.
- Isso é verdade concordou Michka.
- Nunca pensei que fizesses essa ideia de mim... bom, está bem...
- Falei-te com toda a franqueza. Disse-te o que pensava.
- Quando vais a Viochénsskaia?
- Logo que puder, um destes dias.
- “Logo que puder”, não. Deves ir já amanhã.
- Caminhei mais de quarenta verstás. Tenho os pés em sangue. Amanhã quero descansar. vou registar-me depois de amanhã.
- A lei manda que as pessoas se registem sem demora.
- Vai lá amanhã.
- Preciso de um dia de repouso. Não irei amanhã.
- Então vai para o diabo. Não respondo por ti.
- Que malandro me saíste, Mikhail! - exclamou Grigóri, contemplando com espanto o rosto feroz do seu amigo de outrora.
- Proíbo-te que me insultes. Não estou habituado a isso - retorquiu Michka. Tomando fôlego, ergueu a voz: - Tens de acabar com esses modos de oficial. Vais lá amanhã e, se não fores de vontade, obrigo-te a ir debaixo de escolta. Percebeste?
- Agora já percebi tudo... - disse Grigóri.
- Pronto, afinal de contas tudo se estava a passar como devia ser. Porque seria ele recebido doutra forma, ele, Grigóri?
- Por que imaginara ele que a sua curta e honesta passagem pelo Exército Vermelho apagaria 'todos os seus pecados de outrora? Mikhail talvez tivesse razão ao afirmar que nem tudo é perdoável. E que as faltas antigas se pagam muito caro.
Começou a sonhar: via uma vasta estepe e um regimento disposto para o ataque. Já se ouvia ao longe o grito prolongado: “Es... quadrão...” Lembrou-se nessa altura de que as correias da sela estavam frouxas. Apoiou fortemente o pé no estribo esquerdo e a sela escorregou debaixo dele... Tomado de vergonha e terror, saltou para o chão a fim de apertar as correias, nesse momento ouviu o tropear da cavalaria que surgira de súbito e se afastava já impetuosamente.
O regimento partira sem ele para o ataque...
Grigóri, voltando-se, despertou com o gemido rouco que ele próprio soltara.
Lá fora, através da janela, o dia começava a romper.
Fora decerto o vento que abrira uma das portadas durante a noite e um vidro que escapara à geada deixava ver o círculo verde-acinzentado da Lua que empalidecia. Às apalpadelas, Grigóri procurou a bolsa do tabaco e acendeu um cigarro.
O coração batia-lhe ainda apressada e ruidosamente. Deitou-se de costas e sorriu: “Que estupidez de sonho! Falhar o combate!...” Naquela hora em que rompia a madrugada, mal diria ele que partiria ainda mais do que uma vez para o ataque, tanto na realidade como em sonhos.
Duniachka levantou-se cedo para ir ordenhar as vacas.
Grigóri passeava-se de um lado para o outro na cozinha, sem fazer barulho, a tossir. Duniachka estendeu uma manta sobre as crianças, vestiu-se à pressa e saiu para a cozinha. Grigóri estava a abotoar o capote.
- Onde vais tão cedo, irmãozinho?
- Vou dar uma volta pela aldeia.
- Almoça primeiro, vais depois... Voltas para o almoço? Posso acender já o fogão.
- Não esperes por mim. Devo demorar-me.
Saiu para a rua. Começara nessa manhã um leve degelo. Soprava do Sul um vento húmido e quente. A neve misturada com terra colava-se aos tacões das botas. Grigóri, dirigindo-se ao centro da aldeia, olhava tudo com atenção como se não fosse dali, a observar as casas e as granjas que conhecia desde a infância. As ruínas das habitações e das lojas carbonizadas a que Michka Kochevói deitara fogo no ano anterior destacavam-se a negro em redor da praça; a cerca da igreja, semi-destruída, apresentava brechas enormes. “Foram lá buscar tijolos para consertar os fogões”, pensou Grigóri com indiferença.
A igreja erguia-se como dantes, enraizada na terra. O tecto, que há muito não fora pintado, estava castanho de ferrugem. As paredes tinham manchas negras e nos lugares onde caíra o estuque aparecia o vermelho-vivo dos tijolos à mostra. As ruas encontravam-se desertas. Junto ao poço, viu duas mulheres ensonadas que, após o terem cumprimentado como se ele fosse estranho à terra, ficaram paradas lá atrás a segui-lo com os olhos, durante muito tempo.
“Tenho que ir visitar as sepulturas da minha mãe e da Natalia”, pensou Grigóri. E meteu pela viela que conduzia ao cemitério. Mas logo se deteve. Sentia o coração apertado, já estava bastante deprimido sem isso, portanto resolveu ir lá noutra altura. Dirigiu-se pois a casa de Prokhor. “A elas tanto lhes faz agora que eu vá visitá-las como não. Estão em paz. Tudo acabou. Há neve sobre os túmulos. Debaixo da terra deve estar muito frio... A vida delas passou como um sonho. Encontram-se lá todos: a minha mãe, a minha mulher, o Petro e a Daria... estão em família, deitados lado a lado. Só o pai ficou noutra terra. Deve aborrecer-se no meio de estranhos...” E Grigóri, deixando de olhar em volta, caminhava a fitar a neve branca, levemente molhada pelo degelo, e mole, tão mole que apenas estalava debaixo dos pés. Depois pôs-se a pensar nos filhos. Tinham-se tornado reservados, silenciosos, já não eram como no tempo da mãe.
A morte mostrara-se demasiado ávida e eles tinham medo.
Porque é que Poliúchka chorara na véspera ao vê-lo? As crianças não choram quando reencontram os pais. Em que pensara ela? E porquê aquele lampejo de terror quando ele a tomara nos braços? Talvez, julgando que o pai, por ter morrido, nunca mais voltasse, se houvesse assustado. Em todo o caso Grigóri não cometera nenhuma falta para com os filhos. Era preciso recomendar a Akcínia para cuidar deles e se esforçar na medida do possível por substituir a mãe...
Habituar-se-iam sem dúvida a ela. Era uma mulher boa e meiga. Havia de estimar os filhos por amor dele.
Sempre pensamentos amargos e penosos... As coisas não eram assim tão fáceis nem a vida tão simples como poderia parecer a Grigóri algum tempo atrás. Na sua louca e pueril ingenuidade, julgara que bastaria regressar a casa e trocar o capote por um casaco para que tudo corresse bem: ninguém lhe diria nada, ninguém lhe dirigiria qualquer censura, tudo se arranjaria por si e ele viveria dali em diante como um camponês pacífico, um bom pai de família. Não, a realidade não era assim tão simples.
Abriu cautelosamente a cancela do pátio dos Zikov, presa apenas por um gonzo. Prokhor, calçando botas de feltro já gastas e com um barrete enterrado até às orelhas, dirigiu-se ao alpendre, a baloiçar sem cuidados um balde vazio. Gotas de leite tombavam invisíveis sobre a neve.
- Dormiste bem, camarada comandante?
- Dormi, graças a Deus.
- São alturas de bebermos um copo para refrescar as ideias, senão ficamos com a cabeça tão vazia como este balde.
- Sim, acho uma boa ideia. Mas porque trazes o balde vazio? Tu é que tiraste o leite à vaca?
Prokhor, com um gesto da cabeça, fez deslizar o barrete para a nuca e só então Grigóri se apercebeu da expressão dele, anormalmente sombria.
- Se não fosse eu, quem havia de o tirar, não me dirás? Pois fui eu mesmo, maldito bicho, oxalá ao menos que ela não fique doente da barriga!...
Prokhor atirou com o balde ao chão com fúria e disse, secamente:
- Vamos para dentro de casa.
- Onde está a tua mulher? - inquiriu Grigóri com um ar indeciso.
- Comeu-a o diabo com molho de kvas. Saiu antes de romper o dia, fez a trouxa e disse que ia buscar ameixas a Krajilinsski. Quando voltei de tua casa, deu-me uma destas descomposturas! Insultou-me de alto a baixo e depois levantou-se num rompante e disse: “Vou buscar ameixas. As noras do Matsaiev também vão e eu acompanho-as.” Eu disse comigo: “Tanto se me dá que vás buscar ameixas como peras.” Acendi o fogão e fui ordenhar a vaca. O resultado foi o que viste. Achas que é fácil ordenhar uma vaca só com uma mão?
- Devias arranjar uma mulher para te fazer isso, meu palerma.
- Palerma é o carneiro que mama na mãe até ao Outono.
- Eu cá não sou assim. Pensei que era capaz de me arranjar sozinho. Mas depois... Deslizei de gatas para debaixo da vaca e vai daí a maldita começou a mexer as patas. Tirei o barrete para a não assustar, mas de nada valeu. Quando acabei de lhe tirar o leite, tinha a camisa toda encharcada. Vou a pegar no balde e ela prega-me um coice. Virei-me de pernas para o ar e o balde também. Vê tu que lindo trabalho! Aquilo não é uma vaca, é um diabo com cornos. Cuspi-lhe no focinho e vim-me embora. Tenho de passar sem leite. Vamos beber uma pinga para aquecer?
- Tens alguma coisa que se beba?
- Só uma garrafa. Um verdadeiro tesoiro.
- É quanto basta.
- Anda, entra. Vou fazer uma omeleta? Não demoro mais do que um minuto.
Grigóri partiu toucinho às fatias e ajudou Prokhor a reanimar o lume na lareira. Ficaram a contemplar em silêncio o toucinho rosado a derreter e a deslizar dentro da frigideira.
Prokhor foi buscar atrás dos ícones uma garrafa poeirenta.
- É ali que eu escondo as minhas coisas por causa da mulher explicou laconicamente.
Puseram-se a comer e a beber na sala aquecida, enquanto conversavam a meia voz.
A quem, se não fosse a Prokhor, poderia Grigóri dar parte dos seus mais secretos pensamentos? Estava sentado à mesa, com as pernas compridas e musculosas uma para cada lado e falava na sua voz de baixo, rouca e velada:
- No exército, passava o tempo todo a pensar no dia em que havia de voltar à terra e esquecer toda aquela porcaria. Andei perto de sete anos sem sair de cima do cavalo! Sonho quase todas as noites a mesma coisa: ou mato um homem ou ele me mata a mim... Mas afigura-se-me, Prokhor, que as coisas não vão correr como eu desejo... Serão outros que vão lavrar a terra e cuidar dela...
- Conversaste ontem com o Mikhail?
- Conversei e desconversei.
- Que te disse ele?
Grigóri cruzou os polegares.
- Vê lá tu em que deu a nossa amizade. Censura-me por ter combatido ao lado dos brancos, pensa que sou um inimigo oculto do novo regime e que escondo uma faca na algibeira. Tem medo que eu ande a forjar uma insurreição. Mas se ele soubesse a que ponto eu estou farto disso, o idiota!
- Disse-me o mesmo a mim.
Grigóri sorriu tristemente.
- Um dia, na Ucrânia, quando marchávamos sobre a Polónia, um ucraniano pediu-me armas para defender a sua aldeia. Não podiam fazer nada contra os bandos que os pilhavam e degolavam o gado. O comandante do regimento disse-lhe (eu fui testemunha): “Se eu vos der armas vocês vão reunir-se aos bandos.” Então o ucraniano riu-se e retorquiu: “Experimente dar-nos armas e verá que não deixaremos entrar ninguém na nossa aldeia, nem os bandidos, nem vocês.” Pois eu agora penso mais ou menos como o ucraniano: se fosse possível não deixar entrar em Tatársski nem brancos nem vermelhos, acho que seria o ideal. Para mim, valem todos o mesmo: o meu cunhado Mitka Korchunov não é melhor do que o Michka Kochevói que me julga partidário dos brancos, a ponto de não poder passar sem eles. Que estupidez! Partidário dos brancos, imagina! Ainda há pouco, quando voltamos da Crimeia, bati-me com um oficial de Komilov, um coronelzito esperto, de bigode cortado à inglesa, só dois riscos por baixo do nariz ranhoso. Limpei-lhe o sebo e isso desanuviou-me bastante. Ficou só com metade da cabeça e metade do boné, o desgraçado coronel, e a sua insígnia branca foi pelos ares . Isto é que é ser partidário dos brancos. Deram-me água pela barba, os estupores. O título de oficial, ganhei-o com o meu sangue, mas no meio dos meus camaradas eu era como um melro branco. Os malandros nunca me consideraram um homem, nunca se dignaram estender-me a mão, e depois disto ou ainda havia de estar por eles? Que vão para o raio que os parta! Só de me referir a eles fico enjoado. Como havia eu de estar do seu lado? Quanto a esforçar-me por fazer regressar qualquer general, tal como o Fitzkhalaurov, já tentei esse género de coisa, mas fartei-me ao cabo de um ano. Acabou-se, não tenho ilusões e a experiência saiu-me bastante cara.
Prokhor molhou o pão na gordura quente e disse:
- Não vai haver mais insurreições. Primeiro porque já não restam muitos cossacos e aqueles que escaparam saiu-lhes cara a lição. Depois de tanto sangue perdido, tornaram-se tão pacatos e sossegados que ninguém os arrastaria para uma insurreição nem que os levassem de rastos. E depois as pessoas estão sedentas de viver em paz. Só queria que visses como todos trabalharam este Verão: fizeram medas de feno, recolheram o trigo até ao último grão, rabujam mas lá vão lavrando e semeando como se cada qual fizesse tenção de viver cem anos. Não, nem sequer vale a pena falar-se de insurreição.
- É uma idiotice. No entanto, só Deus sabe o que lhes poderá passar pela cabeça, aos cossacos...
- Mas que é que lhes pode passar pela cabeça? Porque dizes isso?
- Os nossos vizinhos é que combinaram a coisa.
- Qual coisa?
- Isto: rebentou uma insurreição no Governo de Vorónej, para lá de Bogutchar.
- Tretas!
- Quais tretas! Soube-o ontem por um miliciano meu conhecido. Parece que vão mandar gente para lá.
- Lá, para onde?
- Para Moraastirchtchiina, para Sukhoi Donetz, para Passeka, para Staraáa e para Novada aKalitva e não sei para onde mais. Diz ele que é uma grande insurreição.
- Porque não me disseste isso ontem, meu patife?
- Não quis falar diante do Michka. E depois não tenho gosto nenhum em conversar nesses assuntos. Só queria nunca mais na vida ouvir falar em tais histórias - respondeu Prokhor, aborrecido.
Grigóri ficou carrancudo. Após um longo momento de reflexão, declarou:
- É uma má notícia.
- Não te preocupes. Isso é lá com os ucranianos. Quando estiverem fartos de insurreição que se lixem. Mas a nós, que é que isso interessa? Cá por mim, estou-me nas tintas.
- Mas isso vem-me complicar a vida.
- Porquê?
- Ora, porquê! Se as autoridades do distrito tiverem a meu respeito a mesma opinião do Kochevói, vão pôr-me nas grelhas. Se houver uma insurreição nas vizinhanças, eu, sendo antigo oficial, antigo... Estás a ver?
Prokhor, deixando de mastigar, pôs-se a reflectir. Não vira ainda as coisas por esse lado. A embriaguez dificultava-lhe o raciocínio.
- Porque voltaste tu para cá, Panteleiévitch? - inquiriu embaraçado.
Grigóri fez uma careta de contrariedade e não respondeu. Repeliu com a mão o copo que Prokhor lhe oferecia e declarou num tom resoluto:
- Não bebo mais.
- Só um copito? Bebe, Grigóri Panteleiévitch, bebe até ficares toldado. Nesta vida é tudo o que nos resta.
- Embebeda-te tu sozinho. Eu já sinto a cabeça pesada. Tenho que ir hoje a Viochénsskaia para me registar.
Prokhor fitou-o atentamente. O rosto de Grigóri, tostado pelo sol e pelo vento, tornara-se de um vermelho-escuro até à raiz dos cabelos penteados para trás e só aí se via a brancura baça da pele. Estava calmo, ele, o soldado que vira tantas coisas durante a guerra, o homem que, através dos infortúnios, ficara ligado a Prokhor. Sob as pálpebras um pouco inflamadas, os seus olhos mostravam-se severos, turvos e fatigados.
- Não tens medo... de que eles te prendam?
Grigóri respondeu com franqueza:
- Pois isso é que eu receio, meu caro. Nunca fui preso e temo a cadeia mais do que a morte. Mas, pelos vistos, é o que me espera.
- Fizeste mal em voltar - declarou Prokhor, compadecido.
- E para onde querias tu que eu fosse?
- Escondias-te algures, na cidade, à espera que as coisas acalmassem e só então regressavas.
Grigóri fez um gesto de despeito e desatou a rir:
- Nada me aborrece mais do que ficar à espera de ver em que param as modas. Que havia eu de fazer, longe dos meus filhos?
- Ora deixa-te de lérias! Eles passaram bem sem ti até agora. Ah, esquecia-me de te dizer: os teus patrões, em casa de quem estiveste com a Akcínia, antes da guerra, morreram ambos.
- Os Listnítsski?
- Esses mesmos. O meu compadre Zakhar fez a retirada como ordenança do Listnítsski filho e foi ele quem me contou.
- O velho morreu com o tifo em Morozovskaia, o rapaz foi até Ekaterinodar, e aí a mulher meteu-se com o general Pokrovsski. Ele não aguentou a coisa e suicidou-se.
- Que a terra lhes seja leve - murmurou Grigóri com indiferença. - Tenho pena quando morrem boas pessoas, mas gente desta não a lamento.
Levantando-se, enfiou o capote e disse pensativo, já com a mão no trinco da porta:
- Gente dessa, como o jovem Listnítsski ou o Kochevói, podem ir todos para o diabo. Mas tenho de confessar que os invejava... Para eles, foi sempre tudo claro; seguiram desde o princípio uma linha recta, tinham um objectivo na vida, ao passo que eu desde 1917 que ando aos ziguezagues, vacilo como um bêbado... Afastei-me dos brancos, não me pus ao lado dos vermelhos, ando à deriva, como um bocado de bosta à tona da água... Vês tu, Prokhor, eu devia ter continuado no Exército Vermelho, não há dúvida, e talvez que então as coisas se arranjassem. Sabes que a princípio servi de boa vontade o poder dos Sovietes, e só depois de tudo se ter complicado... Junto dos brancos, no estado-maior, eu era um estranho, sempre desconfiaram de mim, não podia ser doutro modo: um camponês, um cossaco inculto... Não pertencia à família, eles não confiavam em mim... Depois, com os vermelhos, passou-se a mesma coisa. Eu cá não sou cego. Via bem como o comissário e os comunistas do esquadrão olhavam para mim... Em combate tinham-me sempre debaixo de olho, vigiavam todos os meus passos, certamente dizendo consigo: “Este branco, este sacana, este oficial cossaco, se ele nos prega alguma partida!” Eu bem via tudo isso e sentia o coração gelado. Nos últimos tempos não podia aguentar tanta desconfiança. O calor acaba por fazer rebentar as próprias pedras. Preferi que eles me desmobilizassem. Mais valia acabar de uma vez.
Tossiu em surdina, ficou um momento calado e depois prosseguiu numa voz diferente, sem olhar para Prokhor:
- Obrigado pelo almoço. Vou-me embora. Trata de ti. Se eu voltar esta noite passo por cá. Guarda a garrafa, senão a tua mulher quando voltar quebra-ta nas costas.
Prokhor acompanhou-o até à porta. Já no vestíbulo, murmurou:
- Atenção, Panteleiévitch. Não te deixes agarrar!
- Eu sei! - respondeu simplesmente Grigóri.
Não voltou a casa. Desceu até ao Don. Desprendendo um barco, afastou-o com as mãos e, após ter arrancado uma estaca de uma cerca, quebrou o gelo da margem e dirigiu-se ao outro lado do rio.
Sobre o Don, as ondas verde-escuras que o vento fazia escumar rolavam para Oeste. Junto das margens onde a água era mais calma, as vagas partiam o gelo mole e transparente, agitavam as madeixas de seda verde das algas. O ruído cristalino dos pedaços de gelo a chocarem uns contra os outros enchia o espaço acima da margem. Os calhaus murmuravam docemente sob a carícia da água, porém, no meio do rio, onde a corrente era mais forte e regular, Grigóri apenas ouvia o marulhar surdo, o fervilhar das vagas esmagando-se contra a borda esquerda do barco e o rumor profundo, incansável do vento na floresta da margem.
Grigóri puxou o barco até meio para fora de água e, acocorando-se, descalçou as botas. Depois de desapertar as grevas para caminhar mais livremente, enrolou-as com todo o cuidado.
Era meio-dia quando chegou a Viochénsskaia.
No comissariado do distrito, havia muita gente e muito barulho. Os telefones tocavam, batiam portas, entravam e saíam homens armados, ouvia-se o crepitar seco das máquinas de escrever. No corredor, uns vinte soldados vermelhos, reunidos em volta de um homenzinho envolto numa peliça curta, falavam e riam com animação. No momento em que Grigóri passava, saíram dois soldados de uma sala afastada empurrando uma metralhadora. As rodas pequenas martelavam de leve as tábuas carcomidas do soalho. Um dos homens, alto e forte, gritou de brincadeira: “Arreda! Isto é a companhia punitiva! Olha que te esborracho!”
“Parece-me que eles se preparam de facto para intervir contra a insurreição”, disse consigo Grigóri.
Não o fizeram esperar muito tempo. O secretário do comissariado militar tomou rapidamente nota dos documentos que Grigóri lhe apresentava e disse:
- Dirija-se ao gabinete político (Designação dos órgãos de distrito da Tcheka em 1920 e 1921) da Tcheka do Don. Na sua qualidade de antigo oficial, deve apresentar-se lá.
- Está bem respondeu Grigóri, levando a mão à pala do boné, sem trair a comoção que sentia.
Na praça, deteve-se, perplexo. Tinha de ir ao gabinete político, mas todo o seu ser se opunha dolorosamente a isso.
“Vão prender-me”, segredava-lhe uma voz interior. Tremia de medo e revolta. Encontrava-se junto do recreio da escola e contemplava avidamente a terra coberta de estrume, via-se já de mãos atadas a descer a escada suja de uma cave, imaginava o homem atrás dele a segurar o cabo rugoso de um revólver.
Grigóri cerrou os punhos, fitando as suas veias azuis e inflamadas.
- Iriam ficar presas essas mãos? Todo o sangue lhe subiu ao rosto. Não, não iria hoje. Amanhã, talvez. Mas hoje regressaria à aldeia, passaria o dia com os filhos, veria Akcínia e voltaria no dia seguinte de manhã a Viochénsskaia... Maldito pé que tanto lhe doía ao caminhar! Só ficaria um dia em casa e havia de voltar ali, havia de voltar, com certeza. Amanhã, seja o que Deus quiser. Mas hoje, não!
- Aaaaih! Melekhov! Há quantos anos, há quantos Invernos...
Grigóri voltou-se. O homem que se acercava dele era Iakov Fômine, o camarada de regimento de Petro, antigo comandante do 28.º Regimento insurrecto do Exército do Don. Já não era o Fômine de outrora, o cossaco indolente e desmazelado que Grigóri conhecera. No espaço de dois anos, mudara de maneira impressionante: muito desenvolto, envergava um capote de cavaleiro assertoado; os bigodes castanhos, bem tratados, erguiam-se com atrevimento; a sua figura, o andar ostensivamente marcial, o sorriso satisfeito, tudo revelava que tinha a consciência de ser um homem superior e de um estofo diferente dos outros.
- Que te traz por cá? - inquiriu, apertando a mão a Grigóri e fitando-o de frente com os seus olhos azuis, afastados um do outro.
- Fui desmobilizado. Vim apresentar-me ao comité militar...
- Há muito que regressaste?
- Só ontem.
- Lembro-me muitas vezes do teu irmão, do Petro Panteleiévitch. Um bom cossaco, que morreu estupidamente... Éramos grandes amigos. Ah! Melekhov, não devias ter participado na insurreição do ano passado. Fizeste mal!
Era preciso dizer qualquer coisa e Grigóri respondeu:
- Sim, os cossacos fizeram mal...
- Em que unidade estavas tu?
- Na primeira de Cavalaria.
- E que função desempenhavas?
- Comandante de esquadrão.
- Tem piada! Também eu, 'neste momento, estou a comandar um esquadrão. Temos aqui em Viochénsskaia o nosso próprio esquadrão da guarda.
Lançando um olhar em redor, baixou a voz:
- Escuta, vamos caminhar um bocado juntos. Está sempre gente a passar, não se pode discutir em sossego.
Seguiram rua fora. Fômine perguntou a Grigóri, observando-o pelo rabo do olho:
- Tencionas ficar em tua casa?
- Para onde queres tu que eu vá? Fico em minha casa, pois.
- Vais cultivar as terras?
- Vou.
Fômine, abanando a cabeça com um ar compadecido, suspirou:
- Escolheste mal a altura, Melekhov, muito mal... Nunca devias ter regressado a casa antes de um ano ou dois.
- Porquê?
Fômine segurou-lhe no cotovelo e murmurou, curvando-se ligeiramente para ele:
- O distrito não está calmo. Os cossacos encontram-se muito descontentes com as imposições alimentares (Trata-se do sistema conhecido pelo nome de prodrazviorstka: entrega obrigatória e distribuição dos produtos agrícolas. Este sistema, instituído pelo governo soviético em Janeiro de 1919, pretendia remediar as dificuldades de abastecimento dos centros industriais e do Exército Vermelho. Foi a época chamada do comunismo de guerra.). Surgiu uma insurreição no distrito de Bogutchar. Partimos hoje para a desfazer. Fazias melhor em te pôr ao fresco, o mais rapidamente possível, meu caro. Eu e o Petro fomos bons amigos. É por isso que te dou este conselho: põe-te a andar daqui.
- Não tenho para onde ir.
- Atenção! O gabinete político começa a prender os oficiais. Esta semana trouxeram três alferes de Duidarevka e um de Rochetovka. Da outra margem do Don chegam aos montes.Principiaram também a ocupar-se dos simples cossacos, dos soldados rasos. Resolve-te, Grigóri Panteleiévitch.
- Agradeço-te o conselho, mas não vou para lado nenhum - teimou Grigóri.
- Isso é lá contigo.
Fômine começou a falar da situação no distrito, das suas relações com as autoridades locais e com o comandante militar que se chamava Chakaieiv. Grigóri escutava-o, distraído, todo entregue aos seus próprios pensamentos. Na terceira encruzilhada, Fômine deteve-se.
- Adeus, tenho que fazer.
Levou a mão ao barrete do Kúbano, despediu-se friamente de Grigóri e seguiu rua adiante, muito direito, com uma gravidade cómica, fazendo estalar o boldrié.
Grigóri seguiu-o com os olhos e depois voltou-se. Ao subir as escadas de pedra da casa onde se instalara o gabinete político, pensava: “Acabemos com isto de uma vez. Não vale a pena estar com mais demoras. Já que soubeste fazer o mal, agora aguenta as consequências!”
Cerca das oito horas da manhã, Akcínia amontoou as brasas no fogão e sentou-se no banco a limpar o rosto vermelho, alagado em suor. Erguera-se de madrugada para acabar mais cedo com a cozinha. Preparara macarrão, um frango, crepes, e metera no forno bolachas copiosamente regadas com natas, pois sabia que Grigóri gostava delas bem cozidas e arranjara aquela (refeição festiva pensando que o seu bem-amado viria jantar com ela.
Estava cheia de vontade de ir a casa dos Melekhovs com um pretexto qualquer e de se demorar nem que fosse só um minuto, para ver Grigóri. Não podia suportar a ideia de ele estar ali, a dois passos, sem poder avistá-lo. Mas, dominando este desejo, deixou-se ficar em casa. Já passara para ela a idade de proceder levianamente.
Depois de ter lavado as mãos e a cara com mais cuidado do que nunca, vestiu uma camisa lavada e um saiote de entremeio. Ficou muito tempo a hesitar diante da arca aberta: que iria vestir mais? Não era conveniente alindar-se num dia de semana; também não queria andar com os fatos do uso. Sem saber que partido tomar, Akcínia remexia com um ar amuado nas saias bem passadas a ferro. Finalmente escolheu uma azul-escuro e uma blusa azul-celeste com renda preta, que raramente vestia. Era o que tinha de melhor. Afinal de contas pouco lhe importava o que diria a vizinhança. Embora fosse dia de semana para os outros, -para ela era um dia de festa. Vestindo-se rapidamente, dirigiu-se ao espelho. Perpassou-lhe pelos lábios um sorriso de espanto: uns olhos juvenis, onde brilhava uma chamazinha, contemplavam-na com alegria e curiosidade.
Akcínia examinou atenta e severamente o seu rosto e soltou um suspiro de alívio. Não, a sua beleza ainda não murchara por completo! Qualquer homem se deteria para a ver e a seguiria com olhos admirativos.
Enquanto compunha a saia diante do espelho, disse em voz alta: “Tem cautela, Grigóri Panteleiévitch!...” E, sentindo-se corar, soltou um riso calmo e abafado. Isso não a impedia de encontrar nas têmporas alguns cabelos brancos e de os arrancar. Grigóri não devia ver nada que revelasse a idade de Akcínia. Para ele queria manter-se tão jovem como sete anos atrás.
Até ao meio-dia conservou-se de má vontade dentro de casa, mas após a hora do almoço não aguentou mais. Deitou pelos ombros o xale branco de pêlo de cabra e dirigiu-se a casa dos Melekhovs. Duniachka estava sozinha. Akcínia deu-lhe os bons-dias e inquiriu:
- Ainda não jantaste?
- Como queres que jante a horas com estes vagabundos? O meu marido está no Soviete e o Gricha foi à stanitsa. Dei de comer às crianças e estou à espera deles.
Aparentemente calma, sem um gesto que lhe traísse a preocupação, Akcínia disse:
- E eu pensava que estavam todos em casa. Quando é que o Gricha... o Grigóri Panteleiévitch deve regressar? Ainda hoje?
Duniachka envolveu num olhar breve a vizinha toda endomingada e respondeu num murmúrio:
- Foi apresentar-se.
- Mas quando prometeu voltar?
Brilharam lágrimas nos olhos de Duniachka; declarou num tom de censura, tropeçando nas palavras:
- Olha, escolheste bem o momento... para te pores bonita... Mas o que tu não sabes é que ele talvez não volte.
- Como, não volte?!
- O Mikhail diz que ele vai ficar preso na stanitsa...
Duniachka verteu algumas lágrimas de raiva e exclamou, limpando os olhos à manga:
- Maldita vida! Quando acabará tudo isto? Desde que ele partiu ninguém atura as crianças. Andam sempre agarradas a mim: “Para onde foi o pai? Quando é que ele volta?” Eu é que sei? Mandei-os para o pátio mas também estou aflita... Maldita vida! Não há um momento de sossego, uma pessoa desespera!...
- Se ele não voltar antes da noite, amanhã vou à stanitsa para saber o que se passa - declarou Akcínia no mesmo tom indiferente que adoptaria se se tratasse de uma coisa sem importância que não provocasse qualquer espécie de emoção.
Surpreendida com aquela tranquilidade, Duniachka suspirou:
- Agora vejo bem que não vale a pena esperar por ele. Foi uma desgraça ele ter voltado.
- Neste momento ainda não se pode saber nada. Não chores, as crianças vão desconfiar... Adeus.
Grigóri regressou alta noite. Demorou-se apenas um momento em casa e foi ter com Akcínia. A angústia em que passara todo aquele dia atenuou um pouco a satisfação de o ver de novo. Akcínia experimentara à noite uma emoção semelhante à que sentia no fim de um dia inteiro de trabalho exaustivo. Esmagada, morta de fadiga pela prolongada espera, deitara-se sobre a cama e passara pelo sono, mas o ruído de passos por baixo da janela, fizera-a erguer-se com uma vivacidade juvenil.
- Porque não me disseste que ias a Viochénsskaia? - interrogou ela, enquanto o beijava e lhe desapertava o capote.
- Não tive tempo, estava cheio de pressa.
- E nós, eu e a Duniachka, o que nós chorámos, cada uma no seu canto, a pensar que não voltarias.
Grigóri sorriu discretamente.
- Não, a coisa não correu tão mal como isso. - E acrescentou: - Até ver.
Aproximando-se da mesa a coxear, sentou-se. A porta escancarada deixava ver o quarto, a enorme cama no canto, a arca com as ferragens de reflexos acobreados. Tudo continuava como no tempo em que ele ali vinha na ausência de Stepane; não descobria quase nenhuma modificação, como se o tempo tivesse passado à margem da casa sem lá penetrar; até o cheiro de outrora permanecia: o mesmo perfume inebriante a cânhamo fresco, ao soalho lavado há pouco, um odor apenas perceptível a alecrim seco. Parecia ter sido ontem que Grigóri dali saíra de madrugada; há tanto tempo, na realidade.
Abafou um suspiro e pôs-se a enrolar um cigarro sem pressas, mas os dedos tremiam-lhe e espalhou tabaco sobre os joelhos.
Akcínia punha rapidamente a mesa. Tinha de aquecer de novo o macarrão. Ofegante, um pouco pálida, foi buscar cavacos ao telheiro e avivou o lume. Enquanto soprava às brasas incandescentes que largavam faúlhas, ia observando Grigóri que fumava em silêncio, com as costas abauladas.
- Como correram as coisas por lá? Ficou tudo arranjado?
- O melhor possível.
- Onde foi a Duniachka buscar essa ideia de que poderias ser preso? Fiquei morta de medo. Foi o Mikhail que lhe meteu isso na cabeça. Ele é que inventou tudo, está a chamar a desgraça para cima de mim.
Akcínia aproximou-se da mesa e Grigóri pegou-lhe na mão.
- Sabes? disse ele erguendo a cabeça até encontrar os olhos dela. O meu caso não está bem encaminhado. Eu próprio, ao entrar naquele gabinete político, dizia comigo que não voltaria a sair de lá. Seja como for, comandei um esquadrão durante a insurreição com o posto de tenente... Agora, os tipos como eu são bem espremidos.
- Que te disseram eles?
- Deram-me um questionário para preencher, um papel onde tinha que referir todas as minhas actividades. Mas as letras não são o meu forte. Nunca escrevi tanto na vida. Durante duas horas contei todo o meu passado. Depois vieram dois homens que me interrogaram acerca da insurreição. Nada tenho a dizer contra eles, foram correctos. O mais velho perguntou se eu queria chá. Infelizmente com sacarina, disse ele. E eu pensava comigo: “Qual chá, qual carapuça, desde que eu saia inteiro das vossas mãos!”
Grigóri, após um silêncio, acrescentou num tom vexado, como se se tratasse de outra pessoa:
- Sentia-me tão tímido pelo facto de ter de responder pelos meus actos... tão cobarde.
Estava fulo consigo mesmo por haver receado ir a Viochénsskaia, pela sua falta de ânimo para dominar aquele medo. A inutilidade de tais receios fazia-lhe redobrar a irritação. Agora toda essa história se lhe afigurava ridícula e vergonhosa. Só pensara nisso durante todo o caminho e era talvez por esse motivo que agora troçava de si próprio e exagerava as suas impressões.
Akcínia escutara-o atentamente. Retirou devagarinho as mãos e voltou para junto do fogão. Enquanto atiçava o lume inquiriu:
- E agora?
- Dentro de oito dias tenho de lá voltar para me visarem os documentos.
- Pensas que acabarão por te prender?
- Desconfio bem que sim, mais cedo ou mais tarde.
- Que havemos de fazer, Gricha?
- Não sei. Falaremos disso depois. Tens água? Queria lavar-me.
Quando se sentaram à mesa para cear, Akcínia reencontrou aquela felicidade plena que sentira pela manhã. Grigóri estava ali, a seu lado; podia contemplá-lo até querer, sem se preocupar com as pessoas que poderiam observá-los, podia dizer-lhe com os olhos tudo o que quisesse, sem se esconder, sem sentir vergonha. Meu Deus, as saudades que sentira dele, como o seu corpo sofrera com a falta daquelas mãos enormes, tão pouco acariciadoras! Quase não tocou na comida.
Ligeiramente curvada para a frente, devorava Grigóri com os olhos. Enquanto ele mastigava vorazmente, ela acariciava com o olhar embaciado o seu rosto, o pescoço tostado pelo sol e apertado na gola alta do blusão, os ombros largos, as mãos inertes sobre a mesa... Respirava sofregamente o seu cheiro acre, que tão bem conhecia, que tanto amava, aquele cheiro a suor e a tabaco. Só pelo cheiro seria capaz de conhecer Grigóri entre um milhar de outros homens... Tinha as faces vermelhas e escaldantes, o coração batia-lhe rápido. Nessa noite foi incapaz de desempenhar o papel de dona de casa diligente. Só via Grigóri. Ele, por seu lado, nada pedia; cortou sozinho o pão, procurou com os olhos e encontrou o saleiro sobre a chaminé, servia-se pela segunda vez de macarrão.
- Estou com uma fome de lobo - declarou sorrindo, como que a desculpar-se. - Não comi nada desde manhã.
Estas palavras vieram recordar a Akcínia os seus deveres. Ergueu-se, apressada:
- Onde tenho eu a cabeça? Já me esquecia das bolachas e dos crepes. Come o frango, peço-te, come, meu querido... Vou buscar o resto.
Mas com que vagares de mastigava! com que aplicação!
Parecia que não comera havia uma semana. Não era preciso oferecer-lhe. Akcínia esperou com paciência, mas por fim não resistiu mais: sentou-se ao lado dele, puxou-lhe a cabeça com a mão esquerda, com a direita pegou num guardanapo limpo, bordado, e limpou os lábios e o queixo sujos de gordura do seu bem-amado. Depois comprimiu os lábios contra os dele, fechando os olhos com tanta força que viu surgir do escuro centelhas cor de fogo.
No fundo, o ser humano precisa de muito pouco para ser feliz. Ao menos, naquela noite, Akcínia foi verdadeiramente feliz.
Grigóri não sentia prazer nenhum em se encontrar com Michka Kochevói. As relações entre ambos haviam-se definido logo no primeiro dia, não tinham assunto e, de resto, de que valia conversarem? Pelos vistos, Mikhail também não sentia qualquer prazer em se encontrar com Grigóri. Contratara dois carpinteiros que restauraram rapidamente a sua casinha, substituíram as empenas meio apodrecidas, abateram e construíram uma parede em ruínas, colocaram lintéis novos, novos caixilhos, novas portas.
Depois do seu regresso de Viochénsskaia, Grigóri passou pelo comité revolucionário da aldeia, apresentou a Michka os documentos visados pelo comissariado militar e saiu sem se despedir. Instalou-se em casa de Akcínia, levando consigo os filhos e alguns objectos que lhe pertenciam. Ao vê-lo partir para a sua nova residência, Duniachka desatou em soluços:
- Meu irmãozinho, não me queiras mal, não tenho culpa nenhuma disse ela fitando-o com uns olhos suplicantes.
- Porque havia de querer-te mal, Dunia? Não, que ideia! - respondeu Grigóri para a acalmar. - Virás visitar-nos... Sou a única pessoa de família que te resta, sempre fui teu amigo e continuo a sê-lo. Quanto ao teu marido, isso é outro caso. Mas eu e tu ficaremos bons amigos.
- Vamos deixar a casa em breve, não te preocupes.
- Nada disso! - interrompeu Grigóri com irritação. - Podem lá ficar até à Primavera. A mim não me faz diferença. Há lugar à vontade em casa da Akcínia, tanto para mim como para as crianças.
- Vais casar com ela, Gricha?
- Temos tempo - retorquiu Grigóri.
- Casa-te com ela, meu irmão. É uma boa mulher – declarou resolutamente Duniachka. - A nossa falecida mãe dizia que devias tomá-la por esposa. Nos últimos tempos passou a gostar dela, antes de morrer ia muitas vezes a sua casa.
- Parece que pretendes convencer-me - disse Grigóri, sorrindo. - Mas com quem querias tu que eu me casasse? com a velha Andrónikha, por exemplo?
Andrónikha era a mulher mais velha da aldeia, passara havia muito dos cem anos. Duniachka desatou a rir ao lembrar-se da figura encarquilhada da velha, toda curvada para o chão.
- O que tu vais buscar, meu irmãozinho! Estava só a querer saber. Não dizes nada, por isso é que te perguntei.
- Se há alguém que eu convidaria para a boda, essa pessoa serias tu.
Grigóri deu uma palmada a brincar nas costas da irmã e deixou sem desgosto a casa paterna.
A falar verdade, era-lhe indiferente viver aqui ou ali, desde que se sentisse tranquilo. Mas era precisamente essa tranquilidade que lhe faltava... Passou alguns dias numa ociosidade doentia. Tentou fazer alguns arranjos na herdade de Akcínia, mas de todas as vezes se lhe afigurou que não era capaz de executar nada. Nada lhe despertava interesse. Atormentava-o uma penosa indecisão, impedindo-o de viver; nem por um instante o abandonava a ideia de que podiam prendê-lo isso na melhor das hipóteses ou até mesmo fuzilá-lo.
Quando Akcínia acordava de noite, via que ele não dormia. Estava quase sempre deitado de costas, com os braços cruzados por trás da cabeça, a fitar na escuridão os olhos duros e frios. Akcínia sabia em que ele estava a pensar. Não podia ajudá-lo em coisa alguma. Ela própria sofria por o ver assim atormentado, desconfiava de que as suas esperanças de vida em comum ficariam mais uma vez desiludidas. Queria que ele resolvesse o caso sozinho. Uma noite, no entanto, ao ver a seu lado a estrela vermelha do cigarro, disse-lhe:
- Gricha, tu nunca dormes... Talvez fizesses melhor em sair da aldeia por uns tempos. Ou então irmos os dois esconder-nos....
Grigóri tapou cuidadosamente com a manta os pés de Akcínia e respondeu de má vontade:
- Vou pensar nisso. Dorme.
- Depois voltaríamos quando tudo estivesse mais calmo, queres?
De novo ele deu uma resposta vaga, como se nem por sombras imaginasse o que iria fazer:
- Veremos como correm as coisas. Dorme, Ksiúcha.
Poisou terna e delicadamente os lábios no ombro dela, na sua pele nua, fresca como seda.
Na realidade, já tomara uma decisão: não voltaria a Viochénsskaia. O homem do gabinete político esperá-lo-ia em vão, aquele que o recebera da última vez, sentado à mesa, com o capote pelos ombros, que se espreguiçava até lhe estalarem os ossos, a ouvi-lo a ele, Grigóri, descrever a insurreição. Não haveria mais relatórios. Acabara-se.
No dia em que o convocassem para comparecer no gabinete político, Grigóri abandonaria a aldeia, por muito tempo, se fosse necessário. Para onde iria? Ignorava-o ainda, mas resolvera firmemente ir-se embora. Não estava disposto a morrer nem a ser preso. Fizera a sua escolha, mas não queria falar dela prematuramente a Akcínia. Para quê envenenar os últimos dias que passaria na companhia dela? Estes já não eram mesmo assim muito alegres. Esperaria pelo derradeiro minuto. Ela que dormisse tranquila, com o rosto escondido no ombro dele. Nas últimas noites ela afirmara muitas vezes: “Gosto tanto de dormir debaixo da tua asa!” Que dormisse em paz. Já não seria por muito tempo, pobrezita, que poderia apertar-se de encontro a ele...
Grigóri ocupava-se todas as manhãs dos filhos, depois deambulava sem objectivo pela aldeia. No meio das pessoas, sentia-se mais satisfeito.
Um dia, Prokhor convidou-o para uma reunião em casa de Nikita Melnikov, para beberem na companhia de alguns jovens cossacos com quem fizera a tropa. Grigóri recusou categoricamente. Sabia, através das pessoas da aldeia, que todos se encontravam descontentes com a imposição alimentar e que uma conversa de bêbados não podia deixar de versar esse assunto. Não estando disposto a atrair suspeitas sobre si, evitava falar de política mesmo com gente de confiança. De política estava ele farto, já lhe causara suficientes preocupações. A prudência nunca era de mais, pois as entregas de trigo faziam-se com irregularidade, e três velhos, presos como reféns, tinham sido enviados para Viochénsskaia, escoltados por dois homens dos destacamentos de reabastecimento.
No dia seguinte, junto do armazém da única sociedade de consumo, Grigóri avistou Zakhar Kramskov, um antigo artilheiro que regressara havia pouco do Exército Vermelho. Estava a cair de bêbado e vacilava ao caminhar. Ao chegar porém junto de Grigóri, abotoou todos os botões do blusão manchado de barro e disse numa voz rouca:
- Viva, Grigóri Panteleiévitch!
- Olá - disse Grigóri, ao apertar a pata enorme do artilheiro, que era maciço e forte como um choupo.
- Lembras-te de mim?
- Com certeza.
- Recordas-te, no ano passado, em Bokóvsskaia, quando a nossa bateria veio em teu auxílio? Se não fôssemos nós, a tua cavalaria passava um mau bocado. Aquilo é que foi uma razia nos vermelhos! Primeiro, os obuses, depois os shrapnels. Era eu o atirador da primeira peça. Eu! - repetiu Zakhar, batendo uma punhada sonora no peito largo.
Grigóri olhou em volta; perto deles, alguns cossacos que ouviam a conversa, observavam-nos. Os cantos da boca começaram a tremer-lhe e um esgar de raiva descobriu-lhe os dentes brancos.
- Estás bêbado disse a meia voz sem descerrar os dentes.
- Vai dormir e não digas asneiras.
- Não estou nada bêbado - exclamou o artilheiro que, no entanto, se encontrava bastante toldado. - Só se estiver bêbado de desgosto. Voltei para casa, mas isto não se aguenta. Que puta de vida! Não serve para os cossacos, que afinal de contas já nem há cossacos. Quarenta pudes de trigo, foi quanto os gajos me levaram. Que significa isto? Acaso foram eles que o semearam para mo virem tirar? Saberão ao menos como se cria o trigo?
Fitava Grigóri com os olhitos estúpidos, injectados de sangue. De repente, vacilando, abraçou Grigóri com as suas patas de urso, soprando-lhe para a cara um hálito forte a aguardente.
- Porque usas tu agora calças sem bandas? Passaste a ser lavrador? Isso não pode ser! Ah, meu rico Grigóri Panteleiévitch, temos de pegar outra vez nas armas. Diremos como no ano passado: abaixo a comuna, viva o poder dos Sovietes!
Grigóri, repelindo-o violentamente, murmurou:
- Vai para casa, bêbado de um raio! Sabes o que estás a dizer?
Kramskov estendeu os braços com os dedos muito afastados, amarelecidos pelo tabaco, e tartamudeou:
- Se disse alguma coisa de mal, desculpa. Desculpa-me, por favor, mas estou a falar a sério, como se falasse com o meu chefe... Sou capaz de lho repetir, ao pai do meu regimento: temos de pegar outra vez em armas.
Grigóri voltou-lhe as costas sem responder, atravessou a praça e foi para casa. Aquele estúpido encontro preocupou-o durante todo o dia. Recordava os gritos de bêbado de Kramskov, a silenciosa aprovação, os sorrisos dos cossacos. E pensava: “Não, tenho de me ir embora o mais depressa possível! Aqui não me espera nada de bom .”
Devia apresentar-se no sábado em Viochénsskaia. Dentro de três dias deixaria pois a sua terra natal... Mas o destino decidiu que as coisas se passassem de outra maneira: na quinta-feira à noite, quando estava para se ir deitar, bateram à porta com força. Akcínia dirigiu-se ao vestíbulo. Grigóri ouviu-a perguntar: “Quem é?” Não percebeu a resposta. Vagamente inquieto, ergueu-se da cama e foi à janela.. O trinco estalou no vestíbulo. Duniachka foi a primeira a entrar. Grigóri viu-lhe o rosto pálido e, sem fazer perguntas, pegou no boné e no capote que estavam sobre o banco.
- Meu irmãozinho...
- O que foi? - inquiriu ele em voz baixa, enfiando as mangas do capote.
Duniachka falou muito depressa, ofegante:
- Meu irmãozinho, tens de fugir imediatamente. Estão em nossa casa quatro cavaleiros que vieram da stanitsa. Ouvi-os falar em voz baixa... no quarto... O Mikhail diz que deves ser preso Está a falar-lhes a teu respeito... Vai-te embora!
Grigóri, avançando rapidamente para ela, abraçou-a e beijou-a com força na face.
- Obrigado, irmãzinha. Vai-te para casa, senão podem reparar que saíste. Adeus.
Voltou-se para Akcínia:
- Arranja-me pão. Não quero um inteiro, basta metade.
Terminara pois aquela existência pacífica. Grigóri reencontrara os seus gestos de combatente, rápidos mas seguros; foi ao quarto, beijou com precaução os filhos adormecidos e apertou Akcínia contra o peito.
- Adeus! Em breve mandarei notícias. Prokhor virá transmitir-tas.
- Toma conta dos meninos. Fecha a porta. Se te perguntarem por mim, diz que fui para Viochénsskaia. Bem, adeus, não te aflijas, Ksiúcha.
Ao beijá-la, sentiu nos lábios a água quente e Salgada das lágrimas da mulher. Não tinha tempo para ouvir nem para acalmar as frases impotentes e desconexas de Akcínia. Desprendeu-se delicadamente dos braços que o envolviam, foi até ao vestíbulo, escutou um instante e abriu de repente a porta que dava para o exterior. O vento frio do Don fustigou-lhe o rosto. Fechou os olhos um momento para se habituar à escuridão.
Akcínia ouviu primeiro a neve a estalar debaixo dos pés de Grigóri. Cada passo dele repercutia-se como uma punhalada no seu peito. Depois disto tudo foi silêncio, com excepção do vento na floresta, na outra margem do Don. Akcínia, apurando o ouvido, tentava ainda escutar qualquer coisa além do vento. Mas não distinguia nada. Sentiu frio. Voltando à cozinha, apagou o candeeiro.
No fim do Outono de 1920, quando se organizaram os destacamentos de abastecimento com o objectivo de pôr cobro à insuficiência das remessas de trigo impostas pelo sistema da imposição alimentar, verificou-se uma surda fermentação entre os habitantes cossacos do Don. Pequenos bandos armados começaram, a surgir nas stanitsas do Alto-Don, Chouilinsskaia, Kazánsskaia, Migulinsskaia, Mechkovsskaia, Viochénsskaia, Elánsskaia, Stachtohovsskaia e algumas outras. Era a resposta da parte abastada da população cossaca à criação dos destacamentos de abastecimento, ao reforço das medidas tomadas pelo poder dos Sovietes para a efectivação da imposição alimentar.
Tais bandos eram formados por uns cinco a vinte homens, na sua maioria cossacos, que haviam sido outrora guardas brancos activos. Havia entre eles sargentos, alferes e tenentes do antigo Exército do Don, que tinham servido em 1918 e 1919 nos destacamentos punitivos e haviam conseguido escapar à mobilização de Setembro, insurrectos célebres pelas suas façanhas guerreiras e pelas suas execuções de prisioneiros vermelhos quando da insurreição no distrito do Alto Don, numa palavra, gente que nada tinha a ver com o poder dos Sovietes. Atacavam os destacamentos de abastecimento, faziam voltar para trás os comboios de trigo que se dirigiam para os locais de armazenamento, matavam os comunistas e os cossacos sem partido, fiéis ao poder dos Sovietes.
A eliminação destes bandos fora confiada ao batalhão de guarda do distrito do Alto-Don, acantonado em Viochénsskaia e na aldeia de Bázki. Porém todas as tentativas de destruição desses grupos disseminados pelo vasto território do distrito foram infrutuosas, em primeiro lugar porque a população local simpatizava com os bandidos, fornecia-lhes comestíveis e informações acerca dos movimentos das unidades vermelhas e subtraía-os à perseguição; em segundo lugar, porque o chefe do batalhão, de nome Kapárine, ex-capitão do estado-maior do exército imperial, antigo S. R., não desejava a destruição das forças contra-revolucionárias que acabavam de surgir no Alto-Don e tentava obstar a isso por todos os meios possíveis. Apenas de tempos a tempos ainda sob a pressão do presidente do comité de distrito do partido empreendia algumas rápidas surtidas, mas logo regressava, alegando que não podia dispersar as suas forças, correndo assim o risco desnecessário de privar Viochénsskaia, os seus serviços e os seus entrepostos da necessária protecção. O batalhão, composto de cerca de quatrocentos homens e catorze metralhadoras, fazia vida de guarnição: os soldados vermelhos guardavam os prisioneiros, acarretavam água, cortavam árvores na floresta e executavam certas tarefas, como seja a colheita de nozes-de-galha para o fabrico de tinta de escrever. Desta maneira, o batalhão fornecia a todos os gabinetes do distrito lenha e tinta, enquanto o número dos pequenos bandos ia aumentando a olhos vistos. Foi preciso verificar-se uma forte insurreição no governo de Vorónej e nos territórios do distrito de Bogutchar, limítrofe do distrito do Alto-Don, para se pôr termo, ainda que de má vontade, à formação de reservas de lenha e de tinta de escrever. O batalhão, com o seu efectivo de três companhias e a sua secção de metralhadoras, foi enviado contra essa insurreição por ordem do comandante-chefe das tropas da Região do Don, juntamente com o primeiro batalhão do 12.º Regimento de abastecimento e dois pequenos destacamentos de barragem.
Durante um combate nas imediações de Sukhoi Donetz, o esquadrão de Viochénsskaia, sob o comando de Iakov Fômine, atacou de flanco as linhas insurrectas, derrotando-as.
Dispersou e passou a fio de sabre uns cento e setenta homens no decurso das operações de perseguição e apenas perdeu três combatentes.
Com raras excepções, o esquadrão compunha-se de cossacos naturais das stanitsas do Alto-Don que não deixaram de cumprir as velhas tradições cossacas: após o combate, e não obstante o protesto de dois chefes do esquadrão, metade dos homens trocou os seus velhos capotes e os casacos usados pelas belas peliças curtas de pele de carneiro curtida tiradas aos insurrectos.
Alguns dias após o esmagamento dos insurrectos, o esquadrão foi enviado para a stanitsa de Kazánsskaia. Ali, para repousar dos horrores da guerra, Fômine divertiu-se o mais que pôde. Conquistador inveterado, amável e folgazão, desaparecia durante noites inteiras e só regressava a penates um pouco antes da aurora. Quando os soldados, a quem tratava tu-cá-tu-lá, o viam na rua, de botas a luzir, diziam com uma piscadela de olho:
- Aí vai o nosso garanhão ter com as mulheres. Só lhe poremos a vista em cima de manhã.
Às escondidas do comissário e do instrutor político, Fômine percorria os aquartelamentos dos cossacos que conhecia melhor para lhes dizer onde havia aguardente ou qualquer hipótese de patuscada. Isso sucedeu mais do que uma vez. Mas, começando a sentir-se neurasténico, em breve se tornou intratável, e quase esqueceu as distracções que o divertiam pouco tempo antes. Deixou de limpar à noite com o mesmo zelo as botas altas, já não fazia a barba todos os dias. Continuava, é certo, a conviver de tempos a tempos com os cossacos da sua aldeia que serviam no esquadrão, passava um bocado a beber com eles, mas pouco falava.
Esta modificação no comportamento de Fômine coincidiu com uma informação trazida de Viochénsskaia pelo comandante do destacamento; o gabinete político da Tcheka do Don anunciara laconicamente que o batalhão da guarda acantonado no distrito vizinho de Usst-Medvéditsskaia se tinha revoltado sob o comando do chefe de batalhão Vakuline.
Vakuline era um camarada de regimento de Fômine, um grande amigo deste. Juntos haviam feito parte do corpo de exército de Mironov, tinham marchado ombro a ombro de Saransk até ao Don, e ambos haviam deposto também as armas quando a cavalaria de Budionny cercara o corpo de exército amotinado de Mironov. E as suas relações de amizade tinham-se mantido. Ainda há pouco, no princípio de Setembro, Vakuline viera a Viochénsskaia queixar-se ao seu velho amigo “da arbitrariedade dos comissários que arruínam os lavradores com a imposição alimentar e conduzem o país à derrota”. No seu foro íntimo, Fômine estava de acordo com as queixas de Vakuline, mas teve a prudência de não abandonar aquela manha que, aos olhos dos outros, passara muitas vezes por inteligência. Era sempre cauteloso, nunca se adiantava nem dizia às primeiras sim nem não. Mas, pouco tempo depois de tomar conhecimento da revolta do batalhão de Vakuline, abandonou a sua prudência habitual. Certa noite, antes da partida do esquadrão para Viochénsskaia, houve assembleia na residência do chefe de pelotão Aferov. Apareceu um enorme barril de aguardente. A conversa estava animada. Fômine, que fazia parte do grupo, escutava e bebia sem dizer nada. A certa altura, porém, um dos homens começou a falar no ataque de Sukhoi Donetz, e então Fômine interrompeu-o, a torcer o bigode com um ar pensativo:
- Pois é, rapazes. Nós trespassámos com os sabres bastantes ucranianos, mas oxalá não tenhamos também muito em breve motivos de queixa... Que diremos nós, ao chegar a Viochénsskaia, se os destacamentos de abastecimento tiverem rapinado todo o trigo das nossas famílias? Em Kazánsskaia, eles não estão bem vistos, esses tais destacamentos de abastecimento. Não deixaram um só grão nos celeiros.
Fez-se um grande silêncio. Fômine, depois de olhar para os companheiros, acrescentou com um sorriso forçado:
- Eu disse isto por dizer... Cuidado com a língua; nunca se sabe quais podem vir a ser as consequências de uma brincadeira.
Após o regresso do esquadrão a Viochénsskaia, Fômine, acompanhado de meio pelotão de soldados vermelhos, dirigiu-se a Rubejni, a sua aldeia. Não querendo entrar a cavalo no pátio da herdade que lhe pertencia, apeou-se ao portão e entregou as rédeas a um soldado. Dirigiu-se a pé para casa.
Cumprimentou friamente a mulher com um aceno de cabeça, fez uma profunda vénia diante da velha mãe, pegou-lhe respeitosamente na mão e foi dar um beijo aos filhos.
- Onde está o pai? - inquiriu, já sentado num tamborete, com o sabre entre os joelhos.
- Foi ao moinho - respondeu a velha.
Olhando para o filho, acrescentou severamente:
- Tira o boné, meu selvagem! Então agora sentas-te diante dos ícones de boné na cabeça? Ah, Iakov, vais acabar mal!...
Fômine sorriu de má vontade, tirou o boné do Kúbano, mas não despiu o capote.
- Porque não despes o capote?
- Vim aqui numa fugida para vos ver. O meu serviço não me dá tempo para mais.
- Nós já sabemos o que é, esse teu serviço... - tornou severamente a velha, aludindo assim à vida debochada do filho e às suas paródias com as mulheres de Viochénsskaia. - Há
muito que estamos informados de tudo, aqui em Rubejni.
Prematuramente envelhecida, pálida e de aspecto tímido, a mulher de Fômine, lançando um olhar apavorado à sogra, voltou-se para o fogão. A fim de agradar ao marido, para lhe conquistar as boas graças e lhe merecer um olhar de aprovação, pegou num farrapo da lareira e começou a limpar a lama espessa que se colava às botas de Fômine.
- Tens umas ricas botas, lacha... Mas estão todas sujas... Vou limpar-tas murmurou quase em segredo, sem erguer a cabeça, agachada aos pés do marido.
Há muito que ele não vivia com ela e nada mais sentia por aquela mulher que amara na juventude, além de piedade e de um certo desprezo. Mas ela continuando a amá-lo, esperava secretamente que ele voltasse para ela. Perdoava-lhe tudo.
Durante longos anos, dirigira a herdade, criara os filhos, esforçara-se por satisfazer os caprichos da sogra. Todo o peso dos trabalhos agrícolas lhe caía em cima dos ombros magros. Esse trabalho superior às suas forças e a doença que a atacara depois do segundo parto minavam-lhe a saúde de ano para ano. Tinha o rosto murcho. A velhice precoce cobrira-lhe as faces com uma teia de rugas. Lia-se-lhe nos olhos a humildade assustadados animais inteligentes atacados de doença. Não se dava conta da rapidez com que envelhecera, não via como a saúde a abandonava de dia para dia, a toda a hora esperava qualquer coisae, sempre que voltava a encontrar-se com o marido, contemplava-o com uma admiração e uma timidez apaixonadas...
Fômine observava do alto aquele dorso lamentavelmente curvo da mulher, as omoplatas magras, salientes por baixo da blusa, as grandes mãos trémulas ocupadas a tirar-lhe a lama das botas. E pensava: “Estás bonita, não haja dúvida! Quando penso que dormi com este estupor!... A verdade é que tem envelhecido muito... Que velha ela está!”
- Já chega. Assim como assim, vou sujá-las outra vez - declarou com irritação, libertando as pernas das mãos da mulher.
Esta levantou-se com esforço. Um leve rubor tingira-lhe as faces pálidas. Havia tanto amor e dedicação nos olhos húmidos erguidos para o marido, que este, voltando-se inquiriu da mãe:
- Como vai isto por cá?
- Na forma do costume - respondeu a velha com um ar casmurro.
- O destacamento de abastecimento veio até à aldeia?
- Só de cá saíram ontem, para irem a Nijné-Krivsskaia.
- Levaram-nos trigo?
- Levaram, sim. Quanto, Daviduchka?
Um adolescente de catorze anos, tal qual o pai, com os mesmos olhos azuis muito afastados, respondeu:
- O avô é que lá estava, ele é que sabe. Dez sacos, creio eu.
- A-a-ah!
Fômine, erguendo-se, lançou ao filho um olhar breve e ajustou o cinto.
Um pouco pálido, inquiriu:
- Vocês disseram-lhes a quem pertencia o trigo?
A velha encolheu os ombros e sorriu com uma certa alegria malévola:
- Eles importam-se lá contigo! O chefe declarou: “Todos, sem excepção, devem entregar o excesso de trigo. Tanto se me dá que sejam Fômines como não. O próprio presidente do distrito também tem de entregar o dele.” E com isto desataram a remexer nas nossas tulhas.
- Vou entender-me com eles, minha mãe. Vou entender-me com eles - declarou Fômine com voz surda. E saiu.
Depois desta visita a casa, tratou de se informar cuidadosamente acerca do estado de espírito dos seus soldados, convencendo-se sem grande trabalho de que eles se encontravam na sua maioria descontentes com a imposição alimentar. As suas mulheres e os outros parentes, próximos ou afastados, vinham visitá-los. Contavam as buscas efectuadas pelos destacamentos de abastecimento, que levavam o trigo todo, deixando apenas à justa o necessário para se comer e semear. Até que, em fins de Janeiro, no decorrer de uma assembleia de guarnição em Bázki, os homens intervieram durante o discurso do comissário Chakhaiev. Das fileiras ergueram-se exclamações:
- Mandem passear os destacamentos de abastecimento!
- Já é tempo de isto acabar!
- Abaixo os comissários de abastecimento!
A isto respondiam os soldados vermelhos da companhia da guarda:
- Contra-revolucionários!
- Dissolução dos esquadrões de patifes!
A reunião foi demorada e tempestuosa.
Um dos poucos comunistas da guarnição declarou a Fômine, indignado:
- Tens de intervir, camarada Fômine? Estás a ver o lindo trabalho que fazem os teus homens?
Fômine sorriu imperceptivelmente atrás do bigode:
- Eu cá por mim não tenho partido. Achas que me escutariam?
Absteve-se de tomar a palavra e saiu antes do fim da reunião, acompanhado pelo chefe de batalhão Kapárine. No caminho que os levava até Viochénsskaia puseram-se a conversar acerca da nova situação, e em breve descobriram que falavam a mesma língua. Uma semana depois, ambos a sós em casa de Fômine, Kapárine afirmava:
- Ou fazemos alguma coisa agora, ou nunca mais. Tens de te convencer disto, Iakov Efímitch. É preciso aproveitar a maré, que agora nos é favorável. Os cossacos estão connosco. A tua autoridade é grande no distrito. O estado de espírito da população não pode ser melhor. Porque não dizes nada? Resolve-te.
- Não preciso de resolver nada - proferiu lentamente Fômine, destacando as palavras. Está tudo resolvido. Resta-nos fazer um bom plano para que tudo se passe sem complicações, sem encrencas. Isso é que temos de combinar.
A amizade suspeita de Fômine e de Kapárine não passou despercebida. Alguns comunistas do batalhão puseram-se a observá-los, dando parte das suas desconfianças a Artemiev, chefe do gabinete político da Tcheka do Don, e ao comissário militar Chakhaiev.
- Gato escaldado tem medo da água fria - declarou Artemiev, rindo-se. - Esse Kapárine é um poltrão, vocês estão a vê-lo a empreender seja o que for? Quanto ao Fômine, teremos que o vigiar, há muito que o trazemos debaixo de olho, mas também ele, muito me admiraria que se arrisque a tomar qualquer iniciativa. São tudo disparates concluiu muito senhor de si.
Mas era demasiado tarde para intervir: os conjurados tinham tido tempo de combinar tudo. O motim estava previsto para o dia 12 de Março, às oito da manhã. Assentara-se que nesse dia Fômine faria sair o esquadrão com todo o seu armamento, depois atacaria de improviso o pelotão de metralhadoras acantonado nas imediações da stanitsa, apoderar-se-ia das metralhadoras e ajudaria em seguida a companhia punitiva a “depurar” a administração do distrito.
Kapárine, receando não ter o apoio de todo o batalhão, expôs as suas dúvidas a Fômine, que, após tê-lo escutado atentamente, declarou:
- Desde que nos apoderemos das metralhadoras, ser-nos-á fácil acalmar imediatamente o batalhão...
A minuciosa vigilância exercida sobre Fômine e Kapárine não deu qualquer resultado. Estes só se encontravam em serviço, e mesmo assim raramente. Apenas uma vez, nos fins de Fevereiro, uma patrulha os viu juntos na rua, de noite. Fômine levava pela rédea o cavalo selado e Kapárine caminhava junto dele. Ao serem interpelados, Kapárine gritou: “Amigos!” Dirigiam-se a casa de Kapárine. Fômine prendeu o cavalo à balaustrada do alpendre. Não acenderam a luz. Eram quatro da manhã quando Fômine, saindo, montou a cavalo e se dirigiu para casa. Foi tudo quanto puderam descobrir.
Em telegrama cifrado dirigido ao comandante-chefe da região do Don, Chakhaiev deu parte das suas desconfianças no que respeitava a Fômine e a Kapárine. Dali a dias, recebia uma resposta sancionando antecipadamente a demissão e a prisão dos dois oficiais. Ao reunir o gabinete do comité do distrito, este resolveu que Fômine seria avisado, por uma ordem do comissariado militar, de que devia dirigir-se a Novotcherkassk, pondo-se à disposição do comandante-chefe, após ter sido convidado a entregar o comando do esquadrão ao seu ajudante Ovtchinnikov; nesse mesmo dia, o esquadrão seria enviado para Kazánsskaia sob o pretexto de que aparecera um bando para esses lados, procedendo-se à prisão dos dois conjurados na noite seguinte.
A ordem de afastar o esquadrão da stanitsa fora ditada pelo receio de que rebentasse um motim ao ser anunciada a prisão de Fômine. O comunista Tkaitcfaenko, que comandava a segunda companhia do batalhão de guanda, foi encarregado de prevenir os comandantes de batalhão e os chefes de pelotão da possibilidade de um motim e também de pôr de prevenção a companhia e o pelotão de metralhadoras que se encontrava na stanitsa.
No dia seguinte pela manhã, Fômine recebeu a ordem prevista.
- Bom, está bem. Leva o esquadrão, Ovtchinnikov. Eu vou a Novotcherkassk - respondeu ele tranquilamente. Queres ver os documentos?
O chefe de pelotão Ovtchinnikov, um homem sem partido, não desconfiava de nada. Mergulhou na leitura dos papéis.
Fômine aproveitou logo o ensejo para escrever a Kapárine um bilhete nestes termos: “É preciso agir imediatamente. Fui transferido. Prepara-te.” Entregou o bilhete à ordenança, no vestíbulo, segredando-lhe:
- Mete isto dentro da boca. Vais a passo, a passo, percebeste? A casa de Kapárine. Se te fizerem parar no caminho engoles o papel. Entrega-o a Kapárine e voltas aqui imediatamente.
Entretanto, Ovtchinnikov, tendo recebido ordem de intervir em Kazánsskaia, formara o esquadrão na praça da igreja. Fômine aproximou-se dele a cavalo.
- Deixa-me despedir do meu esquadrão.
- Pois sim, mas despacha-te, não nos atrases.
Fômine foi colocar-se diante do esquadrão e, ao mesmo tempo que dominava o cavalo impaciente, dirigiu-se aos homens nos seguintes termos:
- Vocês todos conhecem-me, camaradas. Sabem que lutei sempre e sempre estive convosco. Mas já não posso calar-me mais, agora que estão espoliando o povo cossaco e os lavradores. Foi por causa disto que me transferiram. Sei perfeitamente o que me vão fazer e é por isso que quero despedir-me de vocês...
O rumor e os gritos do esquadrão interromperam por um momento o discurso de Fômine. Este, erguendo-se sobre os estribos, prosseguiu, numa voz ainda mais forte:
- Se quiserem acabar com a pilhagem expulsem daqui o destacamento de abastecimento, partam a cara aos comissários de abastecimento e aos outros, tais como Murzov e Chakhaiev. Vieram até nós através do Don...
O tumulto abafou-lhe as últimas palavras. Aguardou um momento, comandando depois com um timbre sonoro:
- Formar a três, à direita, à direita!
O esquadrão executou docilmente a manobra. Ovtchinnikov chegou a galope, espantado.
- Onde vais tu, camarada Fômine?
O outro respondeu num tom irónico:
- Vamos dar a volta à igreja...
Só então Ovtchinnikov tomou consciência do que acabava de se passar. Afastou-se da coluna; o instrutor político, o ajudante do comissário e um dos soldados foram os únicos a imitá-lo. Tinham recuado uns duzentos metros quando Fômine se apercebeu da ausência deles. Obrigando o cavalo a dar meia volta, gritou:
- Ovtchinnikov, alto!
Os quatro cavaleiros passaram ao galope. As patas dos cavalos levantavam para todos os lados pastas de neve derretida. Fômine ordenou:
- Peguem nas armas! Prendam Ovtchinnikov. Primeiro pelotão, agarrem-no!
Seguiu-se uma fuzilaria desordenada. Dezasseis homens do primeiro pelotão precipitaram-se atrás de Ovtchinnikov. Entretanto, Fômine dividia o esquadrão em dois grupos: mandou o primeiro, comandado pelo chefe do terceiro pelotão, desarmar os homens das metralhadoras; ele próprio, neste meio tempo, conduzia o outro ao acantonamento da companhia de guarda, ao fundo da stanitsa, nas antigas coudelarias, do lado do Norte.
O primeiro grupo, disparando para o ar e agitando os sabres, partiu pela rua principal. Após haver sabrado pelo caminho quatro comunistas, os amotinados puseram-se rapidamente em linha na extremidade da stanitsa e lançaram-se, sem um grito, sobre os vermelhos do pelotão das metralhadoras, que haviam saído para a rua.
O alojamento destes situava-se um pouco à parte, separado das últimas casas da stanitsa por uns cem edifícios. Ao apanharem em cheio com o fogo das metralhadoras, os amotinados deram meia volta. Três deles foram derrubados pelas balas. Fracassara assim a tentativa de apanhar desprevenidos os homens das metralhadoras. Os revoltosos não fizeram segunda tentativa. O comandante do terceiro pelotão, Tchumakov, conduziu o seu grupo para um local seguro; sem descer do cavalo, oculto atrás da esquina de uma granja de pedra, depois de ter observado atentamente o inimigo, declarou:
- Bem, trazem duas maxims.
Limpou com o boné a testa alagada em suor, dizendo em seguida aos soldados:
- Vamos embora, rapazes... Fômine, se quiser, que venha ele buscar as metralhadoras. Quantos mortos deixámos sobre a neve? Três? Está bem, ele que venha, se quiser.
Ao ouvir os primeiros tiros do lado leste, o comandante da companhia, Tkatchenko, saindo do seu alojamento, correra para a caserna, a vestir-se pelo caminho. Cerca de trinta soldados vermelhos encontravam-se já em frente do edifício, todos em fila. Acolheram Tkatchenko com perguntas inquietas:
- Quem disparou?
- Que é que se passa?
Sem responder, o comandante mandou formar o resto dos homens que acabavam de chegar do interior da caserna. Alguns comunistas, empregados da administração do distrito, que haviam ali chegado ao mesmo tempo que ele, alinharam também
Ouviam-se tiros isolados por toda a stanitsa. Uma granada de mão rebentou algures, a oeste. Vendo uns cinquenta cavaleiros dirigir-se a galope para os lados da caserna, de sabres desembainhados, Tkatchenko puxou devagar pelo revólver. Não teve necessidade de dar qualquer ordem: todas as conversas haviam cessado de repente e os soldados vermelhos metiam as espingardas à cara.
- Mas aqueles são dos nossos! Olhem, é o camarada Kapárine, o nosso chefe de batalhão! exclamou um deles.
Os cavaleiros que desembocavam de uma rua, curvando-se todos ao mesmo tempo sobre os pescoços das montadas, avançaram para a caserna.
- Prendam-nos! - berrou Tkatchenko.
Reboou uma salva de tiros, que lhe cobriu a voz. A uns cem passos da fila cerrada dos cavaleiros vermelhos tombaram quatro homens; os outros, dando meia volta, dispersaram-se em todas as direcções. Atrás deles crepitavam tiros. Um dos cavaleiros, que parecia ter recebido apenas um ferimento leve, caiu do cavalo, mas sem largar a rédea. Foi arrastado durante umas cem ságenas pelo animal a galope, depois pôs-se de pé, agarrou-se ao estribo, em seguida ao arção, montando novamente. Sempre a disparar com fúria, após ter dado a volta a toda a brida, desapareceu na viela mais próxima.
Os homens do primeiro pelotão regressaram à stanitsa sem haverem conseguido apanhar Ovtchinnikov. Os esforços para deitarem a mão ao comissário militar também não deram resultado. Não se encontrava, nem no comissariado, onde já não havia ninguém, nem na sua residência. Ao ouvir o ruído da fuzilaria, correra para o Don, alcançara a floresta, atravessando o gelo, e dali dirigira-se à aldeia de Bázki. No dia seguinte, estava a cinquenta verstás de Viochénsskaia, na sta nitsa de Usst-Kopérsskaia.
A maior parte dos militantes de certa categoria conseguiram esconder-se a tempo. As buscas não eram isentas de perigo, pois os soldados vermelhos do pelotão de metralhadoras, tendo avançado até ao centro da stanitsa, dominavam com o seu fogo todas as ruas que conduziam à praça principal.
Os homens do esquadrão, desistindo das perseguições, desceram ao Don e regressaram a galope à praça da igreja, donde haviam partido os perseguidores de Ovtchinnikov. Em breve todos os homens de Fômine se encontravam ali reunidos.
Reconstituíram-se as fileiras. Fômine mandou pôr sentinelas e ordenou aos outros que regressassem aos seus aquartelamentos, sem no entanto desaparelharem os cavalos.
Em seguida, Fômine e Kapárine reuniram-se com os chefes de pelotão numa casa que ficava no limite da stanitsa.
- Está tudo perdido! - exclamou Kapárine, deixando-se cair num banco, desesperado e sem forças.
- Sim, não tomamos a stanitsa. O que quer dizer que não poderemos manter-nos aqui - disse baixinho Fômine.
- Temos de percorrer todo o distrito, Iakov Efímitch. Que podemos nós recear por agora? Seja como for, só se morre uma vez. Basta-nos revoltar os cossacos e a stanitsa é nossa alvitrou Tchumakov.
Fômine, depois de o ter fitado em silêncio, voltou-se para Kapárine:
- Está cansado, Vossa Nobreza? Assoa-me esse nariz. Já que estamos no carro, temos de seguir viagem. Começámos isto juntos e juntos temos de continuar... Na tua opinião, que devemos fazer? Sair da stanitsa ou tentar ainda outro golpe?
Tchumakov declarou com brutalidade:
- Se mais alguém quiser tentar, que o faça. Quanto a mim, não estou para ir ao encontro das metralhadoras. É trabalho inútil.
- Não te estou a pedir conselhos, cala a boca! - disse Fômine, fitando Tchumakov, o qual baixou os olhos.
Após um curto silêncio, Kapárine retomou a palavra:
- Sim, claro, agora é absurdo teimar. Eles têm superioridade em armamento. Catorze metralhadoras e nós nem uma. São mais do que nós... Precisamos de sair daqui para fazer com que os cossacos se juntem a nós. Até que os outros venham a receber reforços, temos tempo de estender a insurreição a todo o distrito. É a nossa única esperança. A única.
Fômine ficou muito tempo calado. Por fim disse:
- Bem, não podemos fazer outra coisa. Vocês, os Chefes de pelotão, tratem imediatamente de verificar o equipamento e de contar os cartuchos de cada homem! É rigorosamente proibido desperdiçá-los. O primeiro que desobedecer, sou eu próprio que o racho com o sabre! Transmitam a ordem.
Calou-se um momento, batendo em seguida uma punhada raivosa sobre a mesa:
- Ah! Aquelas metralhadoras! Foi culpa tua, Tchumakov. Bastavam quatro! Agora vão-nos expulsar da stanitsa, isso é mais do que certo... bom, dispersem-se. Passaremos a noite aqui se não vierem incomodar-nos, e partiremos de madrugada, para darmos uma voltinha pelo distrito...
A noite foi calma. Os insurrectos encontravam-se num dos extremos de Viochénsskaia; no outro, estava a companhia de guarda, na qual se haviam incorporado os comunistas e os membros das juventudes comunistas. Os adversários estavam apenas separados por duas ruas, mas nenhum deles se arriscou a um ataque nocturno.
Pela manhã, o esquadrão amotinado abandonou a stanitsa sem combate, partindo na direcção do sudoeste.
Grigóri, depois de partir, passou primeiro três semanas na aldeia de Verkhné-Krivsskoi, no território da stanitsa Elánsskaia, em casa de um camarada do regimento. Depois, seguiu para Gorbatovsski, ficando mais de um mês em casa de um parente afastado de Akcínia.
Passava os dias na sala grande e só saía à noite. Sentia-se prisioneiro, morria de aborrecimento e ociosidade. Atormentava-o o desejo de regressar para ver os filhos e Akcínia.
Muitas vezes, durante as noites de insónia, envergava o capote com a firme resolução de ir a Tatársski, mas mudava sempre de ideias. Então, despindo-se, deixava-se cair sobre a cama a gemer, tapando o rosto com as mãos. Por fim, aquela vida tornou-se-lhe intolerável. O dono da casa, tio de Akcínia,embora tivesse pena dele, não podia albergar eternamente semelhante hóspede. Um dia, depois da ceia, Grigóri, que voltara para o quarto, ouviu a dona da casa dizer ao marido, numa vozinha rancorosa:
- Quando acabará isto?
- Isto, o quê? A que te referes? - perguntou a voz surda do homem.
- Quando é que te desembaraças deste parasita?
- Cala-te!
- Não me calo, não senhor. Já quase não temos para nós e tu manténs em tua casa este diabo corcunda, todos os dias lhe dás de comer. Até quando vai isto durar, pergunto eu? Arriscamos a cabeça e os nossos filhos ficarão órfãos.
- Cala-te, Avdótia.
- Não me calarei, não senhor! Nós temos filhos. Apenas nos restam vinte pudes de trigo e tu alimentas este parasita na nossa casa! Que é ele para ti? Teu irmão? Teu parceiro? Ou teu compadre? Ele pertence à família da mão esquerda e tu recebe-lo, dás-lhe de comer e de beber. Ah! Meu diabo careca!
- Cala-te, não me digas nada, senão amanhã vou ao Soviete, e digo que flor tu tens aqui.
No dia seguinte, o dono da casa, entrando no quarto de Grigóri, disse, de olhos postos no soalho:
- Grigóri Panteleiévitch, aceita isto como quiseres, mas não é possível continuares em minha casa... Respeito-te, conheci o teu falecido pai, e também o respeitava, mas agora tornou-se muito difícil para mim continuar a receber-te como hóspede... Depois, tenho medo de que as autoridades ouçam falar de ti. Vai para onde quiseres. Eu cá tenho família. Não estou disposto a arriscar a cabeça por ti. Perdoa-me, pelo amor de Deus, mas tens de nos deixar...
- Está bem - respondeu simplesmente Grigóri. - Obrigado por tudo. Eu próprio também vejo que sou um encargo, mas para onde queres tu que eu vá? Todos os caminhos me estão vedados.
- Vai para onde quiseres.
- Compreendo, partirei hoje mesmo. E obrigado, Artamon Vassilievitch, obrigado por tudo.
- De nada. Não me agradeças.
- Nunca esquecerei o que fizeste por mim. Talvez nos tornemos a encontrar um dia.
Comovido, o outro deu-lhe uma palmada no ombro.
- Não falemos mais nisso. Por mim podias cá ficar ainda dois meses, mas a patroa não quer, rala-me todos os dias, a maldita. Eu sou cossaco e tu também, Grigóri Panteleiévitch. Ambos somos contra o poder dos Sovietes e eu quero ajudar-te. Vai até à aldeia de Iagódny, tenho lá um parente que é capaz de te receber. Diz-lhe que é o Artamon quem lhe pede para te tratar como se fosses seu filho, que te sustente e te conserve enquanto puder. Depois farei contas com ele. Mas vai-te daqui hoje. Não posso conservar-te mais tempo, a minha mulher dá cabo de mim e receio que o Soviete venha a saber qualquer coisa... Foste nosso hóspede até hoje, Grigóri Panteleiévitch, mas acabou-se. Também eu estou a defender a minha cabeça...
Nessa noite, já tarde, Grigóri saiu da aldeia. Não alcançara ainda o moinho de vento, na colina, quando surgiram três cavaleiros, como se nascessem das entranhas da terra, que o mandaram parar.
- Alto! Filho de uma cadela! Quem és tu?
Grigóri sentiu o coração estremecer. Parou, sem dizer palavra Seria insensato pensar em fugir. Não havia ali qualquer buraco, qualquer moita. Não o deixariam dar dois passos.
- És comunista! Arreda, filho da puta! Vamos, despacha-te.
Outro homem, que se aproximou a cavalo, ordenou:
- Mãos ao ar! Tira-me essas mãos das algibeiras! SenãoCorto-te a cabeça!
Grigóri tirou as mãos dos bolsos do capote sem dizer nada: não compreendia ainda claramente o que lhe sucedera nem por quem fora detido. E inquiriu:
- Para onde me levam?
- Para a aldeia. Voltas para trás.
Um dos cavaleiros escoltou-o até à aldeia. Os dois outros, atravessando o prado, partiram a galope em direcção à estrada.
Grigóri caminhava em silêncio. Ao chegar à estrada, atrasou o passo e disse:
- Diz lá, meu velho, quem são vocês?
- Somos ortodoxos.
- Eu cá também não sou velho crente.
- Então alegra-te.
- Onde é que me levas?
- À presença do chefe. Caminha, monte de esterco, senão...
O cavaleiro empurrou de leve Grigóri com a ponta do sabre. Este sentiu o aço frio e aguçado tocar-lhe no pescoço, entre a gola do capote e o boné, e o terror, logo seguido de uma cólera cega, apoderou-se dele como um fogacho. Levantando a gola, voltou um pouco a cabeça e disse entre dentes:
- Deixa-te de asneiras. Ouviste? Olha que eu tiro-te a arma...
- Caminha, malandro, nada de discussões. Sempre queria ver-te a tirar-me a arma! Põe as mãos atrás das costas!
Grigóri deu dois passos em silêncio e prosseguiu:
- Estou calado. Mas tu não berres! Que raio!...
- Não te ponhas a olhar para os lados.
- É o que eu faço. Não olho para lado nenhum.
- Cala-te! Anda mais depressa.
- Talvez queiras que vá a trote? - exclamou Grigóri, sacudindo os flocos de neve das pestanas.
O cavaleiro, sem responder, tocou o cavalo. O peitoral deste, molhado de suor e humidade, veio encostar-se a Grigóri; mesmo ao lado das suas pernas, a pata do cavalo esmagou a neve derretida com um ruído de sucção.
- Mais devagar? - disse Grigóri, apoiando a mão na crina do animal.
O cavaleiro, erguendo o sabre à altura da cabeça de Grigóri, disse em voz baixa:
- Caminha, estupor, e não discutas, senão ficas aqui mesmo. Para isso tenho eu a mão leve! Cala-te, nem mais uma palavra!
Guardaram silêncio até à aldeia. O cavaleiro deteve a montada em frente do primeiro pátio e disse:
- Entra aí, nesse portão.
Grigóri obedeceu. Avistou ao fundo do pátio uma casa vasta, com telhado de zinco. Debaixo do telheiro, alguns cavalos sacudiam-se e ruminavam. Ao lado do alpendre encontravam-se uma meia dúzia de homens armados. O cavaleiro embainhou o sabre e disse, enquanto se apeava:
- Sobe os degraus e entra em casa, na primeira porta à esquerda. Não olhes em volta, quantas vezes é preciso dizer-to? Ou tenho de te meter isso à força na cabeça, no fígado ou no baço?
Grigóri subiu lentamente os degraus. Um homem, envergando um capote comprido de cavaleiro e com o boné do exército vermelho, inquiriu:
- Um prisioneiro, aposto?
- Sim, um prisioneiro - respondeu de má catadura a voz roufenha já bem conhecida de Grigóri. Apanhámo-lo perto do moinho de vento.
- É secretário de célula ou coisa parecida?
- Sabe-se lá. Um patife qualquer, mas de que espécie, éo que vamos ver daqui a bocado.
“Ou isto é um bando de revoltosos ou então trata-se da Tcheka de Viochénsskaia e estão a fazer comédia. Deixei-me apanhar, como um autêntico idiota”, pensava Grigóri, deitando olhadelas para o vestíbulo no intuito de se orientar.
A primeira pessoa que viu ao abrir a porta foi Fômine.
Estava sentado a uma mesa, no meio de muitos homens fardados, que Grigóri não conhecia. Os capotes e as peliças curtas amontoavam-se sobre a cama, as carabinas estavam ensarilhadas junto de um banco atravancado de sabres, cartuchos, mochilas, coldres. Aqueles homens, os capotes, todo o equipamento, exalavam um cheiro intenso a suor de cavalo.
Grigóri, tirando o boné, disse a meia voz:
- Bons dias.
- Melekhov! É bem caso para se dizer: o mundo é pequeno.
- Cá nos encontramos todos! Donde vens? Senta-te, põe-te à vontade.
Fômine ergueu-se da mesa e foi direito a Grigóri, de mão estendida.
- Que fazes tu por aqui?
- Vim tratar de umas coisas.
- De umas coisas? Isto é um bocado longe da tua terra...
Fômine examinava Grigóri com um ar inquiridor.
- Diz a verdade, andas fugido, não?
- Andava, sim -, replicou Grigóri com um sorriso contrafeito
- Onde foi que a minha gente te deitou a mão?
- Perto da aldeia.
- Para onde ias tu?
- Seguia a direito.
Fômine, voltando a fitar Grigóri nos olhos, sorriu:
- Pensas que te apanhámos para te mandar para Viochénsskaia, não é? Nada disso, meu caro. Esse caminho está cortado para nós... Não tenhas medo. Não estamos ao serviço do poder dos Sovietes. Desentendemo-nos...
- Divorciámo-nos - acrescentou um velho cossaco de voz profunda que fumava junto ao fogão.
Um dos homens que estavam sentados à mesa desatou a rir alto.
- Não te contaram nada a meu respeito? – inquiriu Fômine.
- Não.
- Pois bem, senta-te à mesa, vamos conversar. Tragam sopa de couve e carne para o nosso convidado!
Grigóri não acreditava uma palavra do que dizia Fômine.
Pálido e crispado, despiu o capote e sentou-se à mesa. Apetecia-lhe fumar, mas recordou-se de que se lhe acabara o tabaco há dois dias.
- Tens alguma coisa que se fume? - perguntou, voltando-se para Fômine.
Este ofereceu-lhe amavelmente uma cigarreira de coiro.
Não lhe passando despercebida a leve tremura dos dedos de Grigóri ao pegar no cigarro, sorriu sob o bigode ruivo e frisado.
- Revoltámo-nos contra o poder dos sovietes. Somos pelo povo contra os comissários e a imposição alimentar. Chegou agora a nossa vez, percebes, Melekhov?
Grigóri continuava calado. Acendeu o cigarro e puxou algumas fumaças rápidas. A cabeça andava-lhe ligeiramente à roda e subiu-lhe à garganta uma náusea. Andava a comer mal havia um mês e só agora sentia quanto enfraquecera ultimamente. Apagou o cigarro e desatou a comer avidamente. Fômine relatou em poucas palavras a história da insurreição, os primeiros dias de vagabundagem através do distrito chamava àquilo, pomposamente, o seu “raid”. Grigóri ouvia-o em silêncio, sempre a mastigar pão e carne de carneiro mal cozida.
- Mas escuta lá! Deves ter emagrecido lá onde quer que estavas observou Fômine com um sorriso bonacheirão.
Grigóri, com soluços por ter comido de mais, gaguejou:
- Não estive propriamente em família.
- Isso vê-se logo. Anda, come, enquanto tiveres vontade. Não faças cerimónia.
- Obrigado. Agora queria fumar...
Grigóri pegou num cigarro, dirigiu-se à panela de ferro colocada sobre o banco e tirou água. Era gelada, um bocado salobra. Entontecido pela refeição, emborcou dois grandes copos e depois pôs-se a fumar, deliciado.
- Os cossacos não nos vêem com grande simpatia – prosseguiu Fômine, sentando-se ao lado dele. - Passaram-nas boas, durante a insurreição.. Porém há alguns voluntários. Vieram reunir-se a nós uns quarenta homens. Mas não é isso que basta. Precisamos de levantar todo o distrito e que os distritos vizinhos nos ajudem; o Khopr e Usst-Medvéditsskaia. Só então poderemos impor-nos ao poder dos Sovietes.
Falava-se muito alto em volta da mesa. Grigóri, enquanto escutava Fômine, ia observando à socapa os companheiros deste. Nem um só rosto seu conhecido. Continuava a não acreditar em Fômine; pensava que o outro estava usando de manha; por isso mantinha um silêncio prudente. Mas era-lhe igualmente impossível continuar a calar-se.
- Se falas a sério, camarada Fômine, diz-me o que pretendes.
- Fazer uma nova guerra? - inquiriu esforçando-se por combater a sonolência que o assaltava.
- Já te expliquei.
- Derrubar o poder?
- Isso mesmo.
- E o que vais tu pôr no lugar deles?
- O nosso. O poder cossaco.
- Os atamanes?
- Ora, os atamanes! Temos tempo de falar disso. O poder que instituiremos é aquele que o povo escolher. Mas vai levar tempo. Quanto a mim, não tenho opinião política. Sou um homem de guerra. A minha tarefa é suprimir os comissários e os comunistas. Quanto ao poder, fala com Kapárine, o meu chefe de Estado-Maior. Esse é que é um homem com ideia, um tipo instruído.
Fômine, curvando-se para a frente, murmurou:
- Antigo capitão do Estado-Maior do Exército Imperial. Um sábio. Neste momento está a dormir no quarto grande. Encontra-se um pouco adoentado, falta de hábito, sem dúvida. Temos feito grandes marchas.
Ouviu-se de súbito um alarido no átrio, um arrastar de pés, um gemido, depois este grito abafado: “Chega-lhe na cara!”
As conversas em volta da mesa calaram-se todas ao mesmo tempo. Fômine lançou um olhar inquieto para a porta que se abrira até atrás. Um vapor esbranquiçado penetrou no compartimento, junto ao chão. Um homem alto, em cabelo, vestido de caqui e com botas de feltro cinzento, entrou, impelido por um encontrão sonoro nas costas, deu alguns passos aos tropeções e foi bater violentamente com o ombro numa saliência do fogão. Do átrio, alguém exclamou alegremente, antes de fechar a porta com estrondo:
- Mais um!
Fômine, erguendo-se, compôs o cinto do blusão.
- O que és tu? - perguntou com autoridade.
O homem, ofegante, passou a mão pelos cabelos, tentou mover as omoplatas e fez um esgar de dor. A contusão que recebera na coluna vertebral fora produzida sem dúvida por qualquer coisa dura, talvez uma coronha.
- Porque não falas? Perdeste a língua? O que és tu, já te perguntei?
- Sou do Exército Vermelho.
- De que unidade?
- Décimo segundo regimento. Abastecimento.
- Ah, ah! Boa caçada! - disse, sorrindo, um dos que se encontravam em volta da mesa.
Fômine prosseguiu:
- Que fazias tu aqui?
- Era do destacamento de barragem... Tinham-nos mandado para aqui...
- Estou a perceber. Quantos estavam na aldeia?
- Catorze.
- Onde se encontram os outros?
O soldado vermelho, sem responder, apenas abriu a custo os lábios. Na sua garganta começou a borbulhar qualquer coisa e escorreu-lhe um fio de sangue do canto da boca até ao queixo. Limpou os lábios, olhando para a palma da mão, passou-a sobre as calças.
- Foi aquele malandro... um dos seus homens... furou-me os pulmões... declarou numa voz gorgolejante, a engolir o sangue.
- Não tenhas medo, nós vamos tratar-te da saúde - declarou num tom irónico um cossaco entroncado, erguendo-se da mesa, enquanto piscava o olho à assistência.
- Onde estão os outros? - repetiu Fômine.
- Foram com o carro na direcção de Elánsskaia.
- Donde és tu? De que terra és natural?
O vermelho olhou para Fômine com os seus olhos azuis, brilhantes de febre, cuspiu sangue coalhado e respondeu em voz baixa, agora lenta e audível:
- Do governo de Pskov.
- Pskov, Moscovo, já conhecemos esses tipos... - disse Fômine ironicamente. - Vieste de longe, meu rapaz, para tirar o pão dos outros... bom, acabou-se a conversa. Que havemos de fazer de ti?
- Deixar-me ir embora.
- Resolves logo tudo! Mas talvez te deixe partir, afinal de contas, que dizem vocês, rapazes?
Fômine voltara-se para os outros e sorria atrás do bigode.
Grigóri, ao observar atentamente o que se passava, viu um sorriso cúmplice e disfarçado nos rostos morenos e tisnados de todos aqueles homens.
- Podíamos tê-lo ao nosso serviço durante um mês ou dois e em seguida mandávamo-lo ir ter com a mulher - disse um deles.
- Talvez queiras ficar a combater connosco, de verdade. - disse Fômine, esforçando-se por esconder o sorriso. - Dávamos-te um cavalo, uma sela e, em lugar dessas botas de feltro, umas novas de cano largo... Os vossos chefes trazem-vos mal equipados. Então isso é que é calçado? Nesta altura do degelo, com botas de feltro! Vais ficar connosco, hem?
- Ele é um camponês, nunca montou a cavalo na sua vida - balbuciou um dos cossacos, fazendo a voz fininha como a de um palhaço.
O homem continuava calado. Encostado ao fogão, olhava em torno com os seus olhos claros e luminosos. De tempos a tempos, fazia um esgar de dor e entreabria a boca, como se lhe custasse a respirar.
- Ficas connosco ou não? inquiriu Fômine.
- E quem são vocês?
- Nós?
Fômine, erguendo as sobrancelhas, alisou o bigode.
- Nós combatemos pelo povo trabalhador. Somos contra o jugo dos comissários e dos comunistas, é isso que nós somos.
Grigóri viu surgir um sorriso no rosto do soldado vermelho.
- Ah, é isso... E eu que perguntava a mim próprio: quem será esta gente?
O prisioneiro sorria, descobrindo os dentes avermelhados pelo sangue. Parecia surpreendido com a novidade, mas qualquer coisa na sua voz fez arrebitar a orelha a todos os circunstantes.
- Então vocês segundo dizem, estão a lutar pelo povo?
- Pois, pois. Mas, para nós, não passam de bandidos. E querem que fique convosco? Não, só a brincar!
- Pelo que vejo também tu gostas de brincar... - disse Fômine de olhos semicerrados. E acrescentou num tom breve: - És comunista?
- Que ideia! Não tenho partido.
- Quem tal diria!
- Palavra de honra, não tenho partido.
Fômine, depois de aguçar o pigarro, voltou-se para a mesa:
- Tchumakov! Despacha-o!
- Não me devem matar. Eu não fiz nada - disse baixinho o soldado vermelho.
Ninguém lhe respondeu. Tchumakov, muito elegante e espadaúdo, vestido com um colete de cabedal de proveniência inglesa, ergueu-se sem pressas, passou a mão pelos cabelos castanhos que já de si eram lisos.
- Estou a ficar farto destes trabalhos - declarou, apelando para toda a sua coragem.
Foi procurar o sabre entre os outros amontoados no banco e experimentou-lhe o fio com o dedo.
- Escusas de fazer o trabalho sozinho - aconselhou Fômine.
- Pede aos tipos lá de fora que te ajudem.
Tchumakov olhou friamente o vermelho, da cabeça aos pés, e disse:
- Passa à frente, meu lindo.
O outro afastou-se vagarosamente do fogão, todo curvado, dirigindo-se para a porta, a deixar atrás de si, no soalho, as marcas das botas molhadas.
- Antes de entrares, podias ter limpo os pés. Deixas tudo sujo de lama... És um porcalhão, camarada declarou Tchumakov, com fingida irritação, seguindo atrás do prisioneiro.
- Diz que o levem para a viela ou para a granja. Perto da casa, não. Os donos podem não gostar! - gritou Fômine nas costas deles.
Aproximou-se de Grigóri, que ocupava o lugar a seu lado.
- Justiça rápida, hem?
- Sim, rápida respondeu Grigóri, evitando encontrar-lhe os olhos.
Fômine suspirou.
- Não há remédio. Na hora presente não podemos fazer outra coisa.
Quis ainda prosseguir, mas ouviu-se um barulho de passos no alpendre, alguém gritou, estalou um tiro isolado.
- Que raio é isto? exclamou Fômine com irritação.
Um dos homens que estava sentado à mesa, levantando-se de um pulo, foi abrir a porta com um pontapé.
- Que foi isso? gritou para o escuro.
Tchumakov, entrando, explicou animadamente:
- O tipo é vivaço! Malandro! Saltou do patamar e deitou a correr pelos campos fora. Foi preciso dar-lhe um tiro. Os rapazes vão agora acabar com ele...
- Diz que o tirem do pátio e o levem para a viela.
- Foi o que fiz, Iakov Efímovitch.
Seguiu-se um momento de silêncio. Depois alguém perguntou, a reprimir um bocejo:
- Como está o tempo, Tchumakov? Mais desanuviado?
- Ainda há nuvens.
- Se chove, a última neve vai derreter.
- Que raio de interesse tens tu nisso?
- Interessa-me porque não estou disposto a patinhar na lama.
Grigóri, aproximando-se da cama, tirou o boné.
- Onde vais tu? inquiriu Fômine.
- Arejar um bocado
Grigóri saiu para o alpendre. A Lua, que acabava de surgir de trás de uma nuvem, brilhava frouxamente. O pátio vasto, o telhado das dependências, as copas nuas e triangulares dos choupos erguidos para o céu, os cavalos presos às estacas, debaixo das mantas, tudo estava envolto na luz azulada e transparente da noite. A poucas ságenas do alpendre, o soldado abatido jazia com a cabeça deitada numa poça de água do degelo, com reflexos baços. Três cossacos curvavam-se sobre ele, afadigados, a falarem em voz baixa.
- Ainda respira, caramba! - disse um deles, despeitado.
- Ah, meu estúpido, é assim que se dá o golpe de misericórdia? Eu bem te disse que lhe batesses na cabeça. Eh, sua besta!
Um cossaco de voz rouca aquele mesmo que escoltara Grigóri respondeu:
- Está quase a acabar. Teve um soluço, é o fim... Mas levanta-lhe a cabeça, assim não consigo despi-lo. Agarra-o pelo cabelo. Agora segura-o bem!
Ouviu-se um barulho de ventosa na água. Um dos homens ergueu-se. O da voz rouca, que estava acocorado, tirou o colete do moribundo, sempre a resmungar. Após um momento de silêncio, disse:
- Tenho a mão leve de mais, por isso é que ele ainda não acabou. Acontecia o mesmo em minha casa, às vezes, quando matava um porco... Atenção, não o deixes cair, caramba!...
- Sim, acontecia o mesmo quando eu matava um porco lá em casa. Cortava-lhe as goelas de um lado ao outro e o malandro, levantando-se, deitava a correr pelo pátio fora. E a coisa demorava muito tempo. Continuava a correr e a bufar, todo a escorrer sangue. Já não respirava, mas continuava vivo. Tudo por causa de eu ter a mão leve. Pronto, deixa-o cair... Ainda respira? Então, rapaz?! Mas eu fui até ao osso...
O terceiro cossaco desdobrou o casaco tirado ao vermelho e disse:
- Sujaste de sangue todo este lado... Até se pega às mãos, raio! Que porcaria!
- Isso tira-se. Não é como a gordura - respondeu calmamente o da voz rouca, acocorando-se de novo. - Isso sai quando o lavares. Não tem importância.
- Que estás tu a fazer? Também lhe queres tirar as calças? - perguntou o primeiro, descontente.
O outro respondeu com brutalidade:
- Se tens pressa, vai tratar dos cavalos. Cá nos arranjaremos sem ti. Não vamos deixar tudo isto!
Grigóri, voltando bruscamente as costas, entrou em casa. Fômine acolheu-o com um olhar rápido e penetrante. Depois ergueu-se.
- Vamos conversar para a sala grande. Aqui há muito barulho
A sala grande, muito aquecida, cheirava a ratos e a semente de cânhamo. Sobre a cama dormia um homenzinho com um casaco de caqui, de braços e pernas esticados. Tinha os cabelos ralos em desalinho, cobertos de penas e penugem. Apoiava o rosto numa travesseira suja, sem fronha. Um candeeiro de suspensão iluminava-lhe o rosto pálido, com a barba por fazer
Fômine acordou-o e disse:
- Levanta-te, Kapárine. Temos visitas. Um dos nossos. É o Grigóri Melekhov, antigo tenente.
Kapárine pôs os pés no chão e, depois de esfregar a cara, levantou-se e estendeu a mão a Grigóri com um leve cumprimento de cabeça:
- Muito prazer. Capitão do Estado-Maior Kapárine.
Fômine ofereceu amavelmente uma cadeira a Grigóri e ele próprio foi sentar-se sobre a arca. Ao ver a expressão de Grigóri, percebera sem dúvida que a execução sumária do soldado vermelho lhe causara uma impressão desagradável. Disse:
- Não vás imaginar que somos assim tão duros comtodos. A verdade é que este animal fazia parte de um destacamento de abastecimento. A esses e aos comissários não os poupamos. Para os outros somos tolerantes. Olha, ainda ontem apanhámos três milicianos: ficámos-lhe com os cavalos, as selas e o armamento, mas a eles mandámo-los embora. De que nos serviria matá-los?
Grigóri não respondeu. Reflectia, com as mãos poisadas sobre os joelhos, e a voz de Fômine chegava-lhe como que em sonhos.
- Entretanto, vai-se combatendo - prosseguiu Fômine. - Não abandonamos a ideia de fazer um levantamento dos cossacos. O poder dos Sovietes não se aguenta. Dizem que há guerra por todos os lados. Grassam insurreições pelo país inteiro, na Sibéria, na Ucrânia e até mesmo em Petrogrado. A frota revoltou-se na fortaleza, como é que se chama...
- Cronstadt - disse Kapárine.
Grigóri, erguendo a cabeça, fitou Fômine com os olhos vagos, sem o ver, depois voltou-se para Kapárine.
- Toma lá um cigarro -, disse Fômine estendendo-lhe a cigarreira. - Vês que eles já estão em Petrogrado e agora avançam sobre Moscovo. É por toda a parte a mesma coisa. Não são alturas de nos deixarmos adormecer. Vamos revoltar os cossacos, derrubaremos o poder dos Sovietes e então, se os cadetes nos ajudarem, tudo correrá bem. Como são pessoas instruídas, se eles formarem um governo, apoiá-los-emos.
Calou-se, inquirindo em seguida:
- Que pensas disto, Melekhov: se os cadetes regressarem do mar Negro e nos juntarmos a eles, achas que levarão em conta o facto de termos sido os primeiros a revoltar a retaguarda? Kapárine entende que isso não oferece dúvidas, queeles terão isso em conta. Decerto não vão culpar-me por ter retirado da frente o vigésimo oitavo exército e por haver servido durante dois tristes anos o poder dos Sovietes.
“É aí que tu queres chegar. Estúpido e bazófia. .”, pensou Grigóri. E deixou escapar um sorriso. Fômine esperava uma resposta. A questão, pelos vistos, era para ele muito importante.
Grigóri disse, contrariado:
- O caso é melindroso.
- Pois é, pois é aprovou Fômine. Eu digo isto por dizer. Depois se verá. De momento é preciso agir, aniquilar os comunistas na retaguarda. Não é difícil, basta fazer-lhes a vida negra. Eles meteram a sua pobre infantaria nas viaturas e julgam poder apanhar-nos com isso... Pois que experimentem! Antes que a cavalaria vermelha se vá reunir a eles já nós demos uma reviravolta a todo o distrito.
Grigóri olhava de novo na sua frente. Kapárine, depois de pedir desculpa, voltou a deitar-se.
- Estou muito cansado. Fazemos marchas incríveis – declarou com um sorriso constrangido.
- Também nós estamos fatigados. São alturas de ir descansar - propôs Fômine
Levantando-se, foi poisar a manápula no ombro de Grigóri.
- Fizeste bem em escutar os meus conselhos, Melekhov, naquele dia em Viochénsskaia. Se não tivesses fugido, estavas frito a estas horas. Encontravas-te decerto enterrado debaixo das dunas, com as unhas a apodrecer... Isso é claro como água. Então que resolves? Diz, para nos irmos deitar.
- Que queres tu que eu diga?
- Se ficas ou não connosco. Não vais passar a vida inteira a esconder-te dos outros.
Grigóri já esperava por aquela pergunta. Tinha de escolher: ou continuar a ocultar-se de aldeia em aldeia, a viver sem tecto nem pão, a consumir-se de angústia até que algum dos seus amigos o acusasse, ou então entregar-se como prisioneiro no gabinete político ou finalmente seguir Fômine. Escolheu pois esta última hipótese. Pela primeira vez nessa noite, fitou o outro nos olhos e disse com um sorriso que lhe torcia os lábios:
- Sou obrigado a escolher como na história dos cavaleiros: se sigo pela direita, matam-me, se vou pela esquerda, tiram-me o cavalo... Três caminhos, todos eles bloqueados...
- Escolhe, não penses em histórias. Histórias dessas ficam para serem contadas mais tarde.
- Como não tenho para onde ir, sou realmente forçado a escolher.
- Então?
- Junto-me ao teu bando.
Fômine fez uma careta e mordeu o bigode.
- Não deves dizer essa palavra. Bando, porquê? Os comunistas é que nos chamam assim. Da tua parte isso não está certo. Deves dizer os insurrectos. Assim é que é exacto.
A contrariedade de Fômine foi de curta duração. Estava radiante com a decisão de Grigóri e não conseguia ocultá-lo.
Declarou, a esfregar vigorosamente as mãos:
- Eis um belo reforço para o nosso regimento. Estás a ouvir, capitão do Estado-Maior? Vamos dar-te um pelotão, e se não quiseres comandá-lo ficas a trabalhar no Estado-Maior com Kapárine. Dou-te o meu cavalo. Tenho outro de reserva.
De madrugada, a temperatura desceu ligeiramente. As poças cobriram-se de um gelo azulado. As ferraduras dos cavalos deixavam marcas redondas e nítidas, que se esfarelavam.
Porém o degelo da véspera fizera desaparecer por completo a neve, e a terra nua, coberta pela erva morta do ano anterior, cedia de leve sob as patas dos cavalos produzindo um ruído surdo.
O destacamento de Fômine formava-se em coluna de marcha atrás da aldeia. Ao longe, na estrada, recortavam-se as silhuetas de seis cavaleiros que precediam o destacamento da vanguarda.
Fômine, chegando a cavalo junto de Grigóri, disse a sorrir:
- Aqui está o meu exército. com tipos destes somos capazes de partir um corno ao diabo.
Grigóri relanceou os olhos pela coluna e pensou tristemente: “com a tua coluna terias caído logo em face do meu esquadrão do exército de Budionny, fazíamos-te em migalhas.”
Apontando os seus homens com a ponta do bengalim, Fômine inquiriu:
- Que tal te parecem?
- Já vi que sabem trespassar com o sabre os prisioneiros e depois despi-los, mas no combate não sei como se comportam - respondeu secamente Grigóri.
Fômine, voltando as costas ao vento, acendeu um cigarro e declarou:
- Hás-de vê-los no combate. Chegam-me cada vez mais antigos combatentes. com esses podemos contar.
No meio da coluna tinham tomado posição seis carros carregados de cartuchos e alimentos. Fômine pôs-se a cavalo à frente e deu ordem de marcha. Quando chegaram ao alto da colina, aproximou-se novamente de Grigóri:
- Então, que tal o meu cavalo? Agrada-te?
- É um bom cavalo.
Galoparam a par durante um bocado, depois Grigóri inquiriu:
- Fazes tenção de parar em Tatársski?
- Estás com saudades da tua gente?
- Gostava de fazer uma visita.
- Talvez dêmos por lá uma volta. De momento, tenciono cortar para o Tchir para agitar os cossacos, sacudi-los um pouco.
Porém os cossacos não estavam com vontade nenhuma de serem sacudidos. Grigóri verificou isso nos dias que se seguiram. De cada vez que ocupavam uma aldeia ou uma stanitsa, Fômine mandava reunir a população. Usava ele próprio geralmente da palavra, outras vezes era substituído por Kapáriine. Chamavam os cossacos às armas, falavam-lhes do fardo que os sovietes fazia pesar sobre os lavradores, da ruína, que seria inevitável, se o poder dos Sovietes não fosse derrubado. Fômine não discursava de uma forma tão concreta e lógica como Kapárine, mas era mais eloquente e a sua linguagem mais compreensível para o povo. Terminava em geral com as mesmas frases aprendidas de cor: “A partir de hoje, nós desobrigamo-vos da imposição alimentar. Não voltareis mais a entregar o trigo nos postos de armazenamento. São alturas de deixarmos de alimentar os parasitas comunistas. Eles engordaram com o vosso trigo, mas os estrangeiros não mais darão ordens entre nós. Vós sois homens livres. Armai-vos e apoiai o nosso poder. Hurra, pelos cossacos!”
Estes, olhando para o chão, ficavam calados, com um ar aborrecido; as (mulheres, em contrapartida, não metiam a língua no saco. Das suas fileiras cerradas partiam perguntas embaraçosas e exclamações.
- É lindo, o teu poder. Mas não tens sabão para nos dar?
- Onde trazes tu o poder, no saco?
- E vocês, que pão é que comem?
- Aposto que agora vão mendigar pelas herdades?
- Eles têm sabres, cortam a cabeça às galinhas sem pedirem licença a ninguém.
- O quê? Não entregamos o trigo? Vocês hoje estão aqui, amanhã sabe-se lá onde, e a nós é que os outros vêm pedir contas.
- Não vos daremos os 'nossos homens. Façam a vossa guerra sozinhos.
Furiosas, as mulheres gritavam ainda muitas coisas mais, pois os anos de luta haviam-nas esclarecido; temiam nova guerra e agarravam-se aos seus homens com a energia do desespero.
Fômine escutava com indiferença esses gritos de fúria que apreciava pelo seu justo valor. Esperava que voltasse a reinar a calma, e então dirigia-se aos homens, que lhe respondiam em poucas palavras, sem perderem a cabeça:
- Não nos podes obrigar, camarada Fômine. Estamos fartos de guerra.
- Já fizemos a experiência. Revoltámonnos em 1919.
- Não há com que fazer uma insurreição. E depois, de que serviria? De nada, neste momento.
- São alturas de se semear, e não de combater.
Certo dia, um homem gritou, nas últimas filas:
- Hoje falas bem. Mas onde estavas tu em 1919, durante a insurreição? Tarde acordaste, Fômine.
Grigóri olhou para Fômine. Este mudou de cor, mas, contendo-se, não respondeu.
Durante uma semana suportou com certa calma as objecções dos cossacos e as suas breves recusas; os gritos e as injúrias das mulheres nem sequer conseguiam alterar a sua boa disposição. “Não tem importância, acabaremos por os converter”, afirmava com segurança, a alisar o bigode. Porém, quando se convenceu de que a massa dos cossacos lhe era desfavorável, mudou bruscamente de atitude para com as pessoas que intervinham no decurso dessas reuniões. Falava sem descer da sela, ameaçava mais do que procurava persuadir o auditório. O resultado era o mesmo: aquela gente em que esperava apoiar-se escutava-lhe a arenga em silêncio e em silêncio dispersava.
Certa vez, numa aldeia, uma mulher tomou a palavra a seguir a ele para lhe responder. Era alta e forte, viúva, tinha uma voz rouca e fazia gestos largos com os braços, como um homem. O seu rosto espesso, marcado das bexigas, reflectia uma resolução agressiva, os seus lábios grossos e revirados torciam-se continuamente num sorriso de desprezo. Apontando com a mão vermelha e carnuda na direcção de Fômine, que se erguia na sela com uma imobilidade de pedra, cuspia palavras venenosas:
- Porque vens tu amotinar as pessoas? Para onde queres levar os nossos homens? Para algum buraco? Pensas que esta guerra maldita não fez já bastantes viúvas? Bastantes órfãos? Quererás tu chamar novas desgraças para cima das nossas cabeças? Quem é esse tzar libertador que nos vem de Rubejni? Fazias melhor se organizasses as coisas na tua terra, se evitasses a ruína. Isso é que te daria experiência e te faria conhecer o que está certo e o que não está. Mas todos nós sabemos que a tua mulher é uma escrava, enquanto tu arrebitas os bigodes e te passeias a cavalo para amotinar o povo. A tua casa, se o vento a não aguentasse, já teria caído em ruínas há muito tempo. E vens para aqui dar lições! Não respondes, meu alarve. Não é verdade o que eu digo?
Um riso breve, perpassando por entre a multidão, murmurou como a brisa e extinguiu-se. A mão esquerda de Fômine, poisada no pomo da sela, abanava lentamente as rédeas, o seu rosto estava negro de raiva contida, mas calava-se, enquanto puxava pela cabeça à procura de uma saída à altura das circunstâncias.
- E que poder é esse que nos vens pedir para apoiarmos?! - prosseguiu com força a viúva, desvairada.
Avançava lentamente para Fômine, de mãos na cinta, agitando as ancas. Os homens abriam-lhe caminho, escondendo os sorrisos e baixando os olhos trocistas. Formavam círculo, como para uma dança, afastando-se, a empurrarem-se uns aos outros.
- O poder de que falas és tu e mais ninguém continuava a viúva na sua voz grave. Arrasta-lo contigo atrás de ti e nunca ficas mais de uma hora no mesmo lugar. “Hoje a cavalo e amanhã de rastos”, é o que te vai acontecer, a ti e ao teu poder.
Fômine, enterrando as esporas nos flancos do cavalo, avançou para a multidão que recuou em todos os sentidos.
A viúva ficou sozinha no meio de um grande círculo. Passara por muita coisa na vida, por isso olhava tranquilamente o cavalo que mostrava os dentes e o rosto do cavaleiro, pálido de furor.
Ao chegar mesmo junto dela Fômine ergueu o chicote.
- Calas-te, minha porca bexigosa!... Então queres armar sarilho?
A intrépida viúva estava mesmo por baixo da cabeça do cavalo, de pescoço encolhido e boca arreganhada. Uma chapada de baba verde caiu do freio para cima do xale preto e daí para o rosto dela. Depois de o limpar com um piparote, recuou dois passos.
- Então tu tens o direito de falar e nós não? - gritou, fitando em Fômine os olhos esbugalhados, cintilantes de cólera.
Fômine não lhe bateu, mas berrou, agitando o chicote
- Merda de bolchevista! Hei-de tirar-te toda a manha do corpo. Levanto-te as saias e dou-te tantas chibatadas que acabarás por ganhar juízo!
A viúva recuou mais dois passos. De repente, voltando as costas a Fômine, curvou-se e levantou as saias.
- E isto, nunca viste, soldado exclamou.
Depois, erguendo-se com surpreendente agilidade, fez de novo frente a Fômine:
- Queres bater-me, a mim? Não tens coragem!
Fômine cuspiu com raiva e esticou as rédeas para segurar o cavalo, que recuava.
- Tapa lá isso, minha velha burra. Estás contente por teres tanta carne? disse muito alto, esforçando-se por manter uma expressão severa.
Um riso abafado percorreu a multidão. Um dos soldados de Fômine, no intuito de defender a honra ultrajada do seu chefe, correu para a viúva brandindo a coronha da carabina, mas logo um tipo alentado, muito mais alto do que ele, veio proteger a mulher com os ombros, dizendo calmamente, mas num tom muito significativo:
- Não lhe tocas!
Mais três homens da aldeia, acorrendo, empurraram para trás a viúva. Um deles, ainda jovem e de cabeleira abundante, murmurou para o soldado de Fômine.
- Porque ergues o braço dessa maneira? Deves mostrar a tua coragem é na colina. Nos pátios das herdades qualquer um é valente .
Fômine dirigiu-se a passo até à cerca. Aí pôs-se de pé nos estribos.
- Cossacos! Reflictam! - gritou para a multidão que dispersava lentamente. - Para já estou a falar-vos a bem. Mas dentro de oito dias voltaremos e a nossa linguagem será dife- rente.
De súbito, sem qualquer motivo aparente, recuperara o bom humor. Então gritou, rindo-se, a examinar o cavalo que caracolava sem sair do mesmo sítio:
- Não, nós não somos cobardes. Vocês não nos metem medo com as vossas mulheres e os seus (aqui empregou algumas expressões obscenas). Já vimos muitas bexigosas como esta e outras que o não são. Nós voltaremos e, se nessa altura nenhum de vocês se apresentar voluntariamente para fazer parte do nosso batalhão, mobilizaremos à força todos os jovens cossacos. Fiquem sabendo isto de uma vez para sempre. Não temos tempo para perder convosco a fazer-vos namoro.
Entre a multidão que se imobilizara por momentos esfuziaram risos e conversas amimadas. Fômine, sempre a sorrir, comandou:
- A cavalo!
Muito vermelho com o esforço que fazia para dominar o riso, Grigóri aproximou-se do seu pelotão.
O destacamento de Fômine, a desfilar pela estrada lamacenta, alcançara a colina, deixando para trás a aldeia hostil, mas Grigóri, sempre a sorrir: pensava: “Ainda bem que nós, os cossacos, somos uns tipos alegres. Rimos mais facilmente do que choramos. Se fôssemos a tomar tudo a sério valha-nos Deus! com esta vida que levamos já há muito nos teríamos enforcado a todos.”
Essa boa disposição conservou-a ele até à paragem seguinte, e foi só então que compreendeu, cheio de amargura e de angústia, que o empreendimento de Fômine estava votado ao fracasso pela impossibilidade de revoltar os cossacos.
A Primavera estava a chegar e o sol era mais quente A neve derretera nas encostas expostas ao Sul e a terra, avermelhada pela erva do ano anterior, cobria-se já ao meio-dia de um vou de névoa azulada e transparente. Nos locais soalheiros, sobre os túmulos, as hastes aceradas das coroas-de-rei, de um verde brilhante, surgiam por baixo das pedras enterradas na terra argilosa. Os campos lavrados no Outono estavam nus. Desertando dos caminhos de Inverno, as gralhas emigravam para as eiras, instalavam-se nos trigos do Outono inundados pelas águas do degelo. As ravinas e as concavidades do terreno conservavam uma neve azulada, a ressumar água; soprava ainda um hálito frio, mas os regatos invisíveis murmuravam com a sua voz doce e melodiosa sob a neve das encostas, e as copas dos choupos, nos bosques, começavam a tingir-se, imperceptivelmente, de um verde tenro.
Aproximava-se a época dos trabalhos, e o bando de Fômine diminuía a olhos vistos. Todas as manhãs faltava um ou dois homens: certo dia desapareceu de uma só vez meio pelotão: oito homens com os seus cavalos e armamento tinham partido para Viochénsskaia a fim de se renderem. Era preciso lavrar e semear. A terra convidava ao trabalho, e muitos homens de Fômine, convencidos da inutilidade do combate, abandonaram furtivamente o bando, regressando a casa. Só ficavam os duros, os que não podiam mesmo regressar, aqueles cujas culpas em face do poder dos Sovietes eram demasiado grandes para terem esperanças de perdão.
Nos primeiros dias de Abril, Fômine não tinha consigo mais do que vinte e seis homens. Grigóri contava-se entre esses. Não tivera coragem de regressar a casa. Estava firmemente convencido de que a causa de Fômine podia considerar-se perdida e que, mais tarde ou mais cedo, o bando seria destruído.
Ficariam feitos em pedaços no primeiro recontro com qualquer unidade de cavalaria regular do Exército Vermelho. Mas continuava a andar com Fômine e a manter-se às ordens deste, com a esperança secreta de que, quando chegasse o Verão, apoderando-se de qualquer maneira de dois cavalos dos melhores, partiria de noite com destino a Tatársski, e dali para o Sul, em companhia de Akcínia. A estepe do Don é vasta, não faltam espaços e estradas desertas; no Verão, todos os caminhos estão livres e em toda a parte se encontra refúgio.
Pensava alcançar o Kúbano a pé, com Akcínia, depois de haver abandonado os cavalos algures, indo instalar-se então ali, junto às montanhas, longe da terra natal, à espera do fim daqueles tempos conturbados. Não via outra solução.
A conselho de Kapárine, Fômine resolveu passar para a outra margem do Don, antes da derrocada dos gelos. Em caso de necessidade, poderia assim escapar às perseguições internando-se nos bosques que abundam no distrito do Khopr.
O bando atravessou o Don a montante da aldeia de Ribni.
De longe em longe, nos sítios dos rápidos, o gelo derretera. A água brilhava em escamas de prata sob o claro sol de Abril mas em todos os locais onde o caminho de Inverno se elevava uma arquine acima do nível do gelo, o Don permanecia inviolável. Colocaram jangadas de ramos de árvores nas margens e fizeram passar os cavalos um a um, seguros pelas rédeas; uma vez na outra margem, o destacamento, voltando a formar, partiu em direcção da stanitsa de Elánsskaia, depois de ter sido enviada uma patrulha de reconhecimento.
No dia seguinte, Grigóri encontrou um homem da sua aldeia, o velho Tchumakov, o cegueta. Dirigia-se a Griaznovski, a casa de uns parentes, e cruzou-se com o bando a pouca distância da aldeia. Grigóri, tomando o velho de parte, perguntou-lhe:
- Os meus filhos estão bons, tiozinho?
- Deus os guarde, Grigóri Panteleiévitch. Estão de saúde.
- Quero pedir-te um grande favor, tiozinho: dá-lhes saudades minhas e também à minha irmã Evdókia Panteleiévna ao Prokhor Zikov, e diz à Akcínia Astakhov que espere por mim dentro em breve. Mas, fora eles, não digas a ninguém que me encontraste, percebes?
- Farei como tu dizes, meu amigo, prometo. Não te preocupes, darei o recado certo.
- Que há de novo lá pela aldeia?
- Nada, tudo velho.
- Kochevói continua presidente?
- Continua.
- Ninguém da minha família teve qualquer aborrecimento?
- Que eu saiba, não. Parece que os deixam em paz. E porque não haviam de deixar? Não são responsáveis por ti...
- Que se diz lá pela aldeia?
O velho assoou-se, limpou com vagares o bigode e a barba a um lenço vermelho; por fim respondeu evasivamente:
- Só Deus sabe tudo o que se diz... Conta-se tanta coisa, cada um acrescenta um ponto. Vocês tencionam fazer a paz dentro em breve com o poder dos Sovietes?
Que havia de responder? Grigóri sorriu e disse, sempre a segurar o cavalo que queria ir atrás do destacamento:
- Não sei, tiozinho. Neste momento ainda não está nada resolvido.
- Não está nada resolvido? Então nós batemo-nos com os Tcherkesses e com os Turcos e mesmo assim acabámos por fazer a paz. E vocês, entre gente do mesmo país, não conseguem entender-se... Isso não está certo, Grigóri Panteleiévitch, não está certo, sou eu que to digo. O bom Deus, que vê tudo, não vos perdoará, lembra-te do que -te afirmo. Então isto é uma coisa normal? Vocês são todos russos, ortodoxos, e não conseguem entender-se. Podiam ter lutado durante uns tempos, vá, mas isto dura há quatro anos! É um pobre velho que o diz: já basta!
Grigóri, despedindo-se do homem, partiu a galope para se reunir ao pelotão. Tchumakov ficou muito tempo imóvel, apoiado ao pau, a limpar com a manga a órbita vazia, molhada de lágrimas. com o seu olho único, que era no entanto apurado como o de um rapaz, via Grigóri afastar-se, admirava a sua figura altiva, murmurando baixinho:
- É um belo cossaco, não lhe falta nada, figura e tudo, mas desviou-se... saiu do bom caminho. Era seu dever lutar com os Tcherkesses, mas que mais quer ele agora? Que lhe importa o governo? E que lhes teria passado pela cabeça a todos esses jovens cossacos? O Gricha não admira, já é de família. O falecido Pantelei também era maluco e quando me lembro do avô Rrokófi... esse não passava de um estarola, não era um homem... Mas os outros cossacos, que é que se lhes meteria na cabeça? Diabos me levem se percebo!
Agora, quando ocupava uma aldeia, Fômine já não reunia a população. Compreendera a inutilidade da propaganda. Neste momento importava-lhe mais conservar os combatentes que tinha do que recrutar outros novos. Tornara-se macambúzio, menos falador. Começara a procurar consolo na aguardente. Nos lugares onde podia demorar-se uma noite havia sempre grossa bebedeira. Os homens bebiam todos, seguindo o exemplo do chefe. A disciplina abrandara. Os casos de pilhagem tornavam-se mais frequentes. As casas dos funcionários dos Sovietes, abandonadas pelos seus moradores ao saberem que o bando se aproximava, eram esvaziadas de tudo quanto podia ser transportado na sela de um cavalo. Muitos dos homens levavam os alforges a deitar por fora. Certo dia, Grigóri viu um homem do seu pelotão na posse de uma máquina de costura portátil. Abandonando a rédea sobre o pomo da sela, levava a máquina debaixo do braço esquerdo. Grigóri teve de servir-se do chicote para o obrigar a largar a presa. Nessa noite, Grigóri travou uma violenta altercação com Fômine. Estavam ambos sozinhos num quarto, Fômine sentado à mesa, bêbado como um cacho, e Grigóri a passear de um lado para o outro.
- Senta-te, não andes sempre a dançar diante da minha vista! - disse Fômine irritado.
Sem lhe dar ouvidos, Grigóri continuou a passear ainda um bom bocado dentro do quartinho cossaco. Disse por fim:
- Estou farto disto, Fômine. É preciso acabarmos com a pilhagem e com toda esta farsa.
- Tiveste hoje algum sonho mau?
- Tu achas graça... Mas as pessoas começam a dizer mal de nós.
- Bem vês que não tenho mão na minha gente - confessou Fômine contra vontade.
- Nem sequer tentas.
- Tu não tens nada que me dar ordens. E as pessoas a quem te referes não me merecem consideração. Trabalhamos para eles e os patifes... Eu penso aquilo que quero e isso me basta.
- Mas pensas mal. A bebida não te deixa pensar. Há quatro dias que não fazes outra coisa senão dormir, enquanto os outros bebem. Até as sentinelas se embebedam de noite. Que queres tu? Que venham atacar-nos quando estivermos todos bêbados e nos deixemos degolar num beco da aldeia?
- E tu julgas que podemos escapar? Temos de morrer um dia. Tantas vezes vai o cântaro à fonte... percebes o que quero dizer?
- Então, nesse caso, entra amanhã em Viochénsskaia e diz: prendam-nos, rendemo-nos!
- Não, é preciso fazer-se ainda mais barulho...
Grigóri parou em frente da mesa, de pernas afastadas:
- Se não restabeleces a ordem, se não paras com as pilhagens e com as bebedeiras, abandono-te e levo comigo metade dos homens declarou ele tranquilamente.
- Experimenta - retorquiu Fômine, arrastando a voz numa ameaça.
- Nem preciso de experimentar.
- Tu não... proíbo-te que me ameaces.
Fômine poisara a mão no estojo do revólver.
- Não toques nisso! - disse logo Grigóri, que se fizera lívido. Mesmo por cima da mesa sou capaz de te abater.
E desembainhou a meio o sabre. Fômine, poisando a mão na mesa, sorriu:
- Que queres tu de mim? Já ando com a cabeça em água e ainda me vens com idiotices. Guarda lá o sabre. Já nem se pode brincar, hem? Não me digas que isso é a sério! Pareces uma garota de dezasseis anos...
- Já te disse aquilo que tinha a dizer. Convence-te de uma vez para sempre. Nem todos aqui são como tu.
- Isso sei eu.
- Então tem cuidado. Amanhã mandas esvaziar os alforges.
- Isto já não é uma unidade de cavalaria, é um comboio. É preciso tirar-lhes os maus costumes. E ainda dizem que combatem pelo povo! Roubam tudo quanto podem e fazem negócio nas aldeias como os antigos bufarinheiros. Uma vergonha!
- Que raio de lembrança eu tive de me juntar a vocês!
Grigóri, depois de cuspir no chão, voltou-se para a janela, pálido de cólera e de indignação.
Fômine desatou a rir:
- A cavalaria ainda não nos perseguiu uma única vez. Quando o lobo tem a barriga cheia e é perseguido pelos cavaleiros, vomita pelo caminho aquilo que comeu. O mesmo se dá com os meus rapazes: hão-de largar tudo quando se virem cercados de perto. Vamos, Melekhov, não te enerves. Eu vou tratar disso. A coisa aconteceu porque eu lhes dei largas de mais e ando desanimado. Mas saberei dominá-los a tempo. Não devemos separar-nos, temos de suportar juntos os maus bocados...
Não puderam terminar a conversa: a dona da casa entrou na sala com uma tigela de sopa de couve fumegante e logo uma multidão de cossacos rompeu por ali dentro atrás de Tchumakov.
Porém a conversa não fora em vão. No dia seguinte pela manhã, Fômine mandou esvaziar os alforges e velou ele próprio pela execução dessa ordem. Quando um dos larápios opôs resistência à inspecção, recusando desfazer-se dos seus haveres, Fômine abateu-o com um tiro de revólver.
- Tira-me daqui este estupor! - disse tranquilamente, empurrando o cadáver com o pé. E, dirigindo-se à tropa, ergueu a voz: - Vocês andaram a meter o nariz nas arcas, seus filhos da puta. Não foi para isso que eu vos levantei contra o poder dos Sovietes. Aos inimigos mortos podem tirar tudo quanto quiserem, até as cuecas cheias de merda, se não tiverem nojo, mas não se toca nas famílias. Não fazemos guerra às mulheres. E aquele que refilar recebe o mesmo tratamento.
Um ligeiro murmúrio percorreu as fileiras e depois extinguiu-se....
A ordem parecia restaurada. Durante três dias, o bando percorreu a região pela margem esquerda do Don, aniquilando em pequenos recontros os destacamentos locais de autodefesa.
Na stanitsa Chumiilínsskaia, Kapárine propusera que passassem ao território de Vorónej. Defendia esta ideia invocando o facto de a população dali estar, em grande parte, ao lado delas, visto ter-se revoltado recentemente contra o poder dos Sovietes Mas, quando Fômine comunicou isto aos cossacos, estes responderam em uníssono: “Não sairemos do nosso distrito.”
Reuniu-se uma assembleia e a decisão teve que ser revogada. Durante quatro dias, o bando marchou sem descanso em direcção a Leste, recusando o combate com um grupo de cavaleiros que o vinha perseguindo desde Kazánsskaia.
Fômine não conseguia fazer-lhes perder o rasto, pois os trabalhos da Primavera haviam começado e encontrava-se gente por toda a parte, mesmo nos pontos mais desertos da estepe. Marchavam durante a noite, mas, pela manhã, logo que paravam, surgia a pouca distância a patrulha inimiga a cavalo, uma metralhadora disparava algumas rajadas curtas, e os homens de Fômine, debaixo do fogo, apressavam-se a aparelhar de novo os cavalos. Depois da aldeia de Melnikov, na stanitsa de Viochénsskaia, Fômine conseguiu iludir o inimigo e desembaraçar-se dele, graças a uma manobra astuciosa. Apurou então que o grupo de cavalaria era comandado por um cossaco chamado Igor JuravMov, da stanitsa Bukamovsscaia, homem enérgico e instruído na arte militar; que esse destacamento tinha o dobro da sua gente; que, além disso, dispunha de seis espingardas-metralhadoras e de cavalos folgados. Tudo isto levou Fômine a não aceitar o combate; isso 'permitia aos homens e aos cavalos repousarem um pouco, enquanto aguardavam a oportunidade de vencer o grupo de cavalaria, não em combate aberto, mas de surpresa; Era assim que contava escapar a essa perseguição tenaz. Tinha também a esperança de poder vir a fornecer-se de espingardas-metralhadoras e de cartuchos à custa do inimigo. Mas tais cálculos não se concretizaram.
Aquilo que Grigóri temia aconteceu no dia dezoito de Abril, na orla da floresta de carvalhos de Slatchkovsskaia.
Na véspera, Fômine e a maior parte dos seus homens tinham-se embebedado na aldeia de Svasitiatnóvsski, donde só partiram ao romper do dia. Quase ninguém pregara olho durante toda a noite, e muitos dos homens iam a dormir sobre a sela. Cerca das nove horas da manhã, fizeram alto perto da aldeia de Ogojine. Fômine instalou postos avançados e mandou dar aveia aos cavalos.
Soprava de Leste um vento forte, em rajadas. Uma escura nuvem de poeira emboscava o horizonte. Uma névoa espessa obscurecia a estepe que o Sol iluminava a custo, escondido pelo pó que remoinhava a grande altura. O vento batia as abas dos capotes, sacudia as caudas e as crinas dos cavalos, que lhe voltaram as costas, procurando abrigo junto das raras moitas de espinheiro dispersas pela orla da floresta. A areia picava nos olhos e fazia-os lacrimejar; via-se mal, mesmo a curta distância.
Grigóri esfregou as narinas e as pálpebras húmidas do cavalo, pendurou-lhe ao pescoço o saco-manjedoura e aproximou-se de Kapárine, que dava de comer à montada dentro de uma aba do capote.
- Escolhemos bem o local para fazermos alto! - declarou ele apontando com o chicote para a floresta.
Kapárine encolheu os ombros.
- Eu bem disse àquele idiota. Como se ele desse ouvidos a alguém!. .
- Devíamos ter parado na estepe ou perto de algumaaldeia.
- Receias que possamos ser atacados a partir da floresta?
- Receio.
- O inimigo está longe.
- Ou talvez perto. Não se trata da infantaria.
- A floresta ainda está nua. Se se passar qualquer coisa vê-se logo.
- Ninguém pode ver nada. Estão quase todos a dormir. Receio bem que até as sentinelas.
- Não se têm de pé, a seguir à paródia de ontem. Agora vai ser difícil despertá-los.
Kapárine fez uma espécie de careta de dor e disse a meia voz:
- Com um chefe destes, estamos lixados. Tem a cabeça mais leve do que uma palha e além disso é estúpido. Estúpido como um cavalo. Porque não assumes tu o comando? Os cossacos respeitam-te, seguir-te-iam de boa vontade.
- Não tenho necessidade disso, só estou aqui de passagem - respondeu secamente Grigóri. E voltou para junto do cavalo, a lamentar aquela confissão imprudente que lhe escapara.
Kapárine deixou cair do capote o resto da aveia e foi atrás de Grigóri.
- Sabes, Melekhov - disse ele, a degolar os rebentos duros e grossos de uma haste de espinheiro que acabava de quebrar na passagem -, acho que não conseguiremos resistir muito tempo se não nos juntarmos a uma forte unidade anti-soviética, por exemplo, à brigada Maisak, que anda pelo sul da região. Temos de nos reunir a eles, de contrário, qualquer dia somos exterminados.
- O Dom vai cheio, não podemos atravessar.
- Já, não, mas quando a água baixar teremos de ir. Não achas?
- Está certo. Temos de partir Não há nada a fazer aqui.
Kapárine, animando-se, lançou-se num longo discurso acerca da decepção que tivera quanto a alcançar apoio por parte da população cossaca e da necessidade de convencerem Fômine, desse lá por onde desse, de que se tornava imperioso acabar com aquela vagabundagem pelo distrito, sendo urgente proceder-se à fusão com uma unidade mais forte.
A conversa acabou por fatigar Grigóri. Observava o cavalo com atenção e, logo que este acabou de esvaziar o saco-manjedoura, tirou-lho, apertou-lhe a cilha e pôs-lhe a barbela.
- Não partimos já, é inútil apressares-te.
- Fazias melhor em ter o cavalo a postos, de contrário arriscas-te a não ter tempo para nada respondeu Grigóri.
Kapárine, depois de o fitar atentamente, voltou para junto da montada.
Grigóri, com o cavalo à arreata, foi ter com Fômine. Este encontrava-se deitado sobre uma manta, a roer preguiçosamente uma asa de frango, com as pernas afastadas. Arredando-se para o lado, convidou Grigóri, com um gesto, a tomar lugar a seu lado.
- Senta-te e almoça comigo.
- Temos de nos ir embora daqui. Não são alturas de almoçar disse Grigóri.
- Damos de comer aos cavalos e partimos.
- Eles que comam mais tarde.
- Estás com muita pressa. A patrulha acaba de chegar e disse que não há ninguém sobre a colina. Isto significa que JuravMov nos perdeu o rasto. De contrário, estaria já em cima de nós. De Bukianovsskaia nada há a recear. Quem é o comissário político de lá? Mikheiev Pavlov, um tipo combativo, mas as suas forças são medíocres e não há perigo de vir contra nós. Descansemos um bom bocado até o vento cansar-se e depois iremos para Slactchchovsskaia. Senta-te e come um bocado de frango. Que tens tu? Dir-se-ia que te tornaste medroso, Melekhov. Tens de ir examinar as moitas uma a uma para ficares descansado.
Fômine fez um gesto cansado e desatou a rir.
Grigóri foi-se embora a resmungar, prendeu o cavalo a um arbusto e deitou-se ali perto, protegendo o rosto com a aba do capote Adormeceu ao som do assobiar do vento, do puído suave e harmonioso da erva seca curvada sobre ele.
Uma longa rajada de metralhadora fê-lo erguer-se de um salto. Ainda esta não terminara já ele desprendia a montada.
Cobrindo todas as vozes. Fômine berrava:
- A cavalo!
Mais duas ou três espingardas-metralhadoras começaram a crepitar à esquerda da floresta. Já na sela, Grigóri examinou rapidamente a situação. À direita, na orla da mata, uns cinquenta soldados vermelhos, que mal distinguiam através da poeira, atacavam em ordem dispersa, cortando a retirada para a colina. As lâminas dos sabres, azuladas pela luz pálida do Sol, brilharam por cima das cabeças deles, com aquela cintilação fria de que ele bem se recordava. Na própria floresta, sobre um montículo coberto de silvas, as espingardas-metralhadoras disparavam com uma rapidez febril, esvaziando fita após fita. À esquerda, um meio esquadrão vermelho, disposto em leque, avançava sem um grito, de sabres desembainhados, para fechar o cerco. Só restava uma saída: abrir caminho pelo meio dos assaltantes da esquerda, que se encontravam relativamente espaçados, e fugir para o Don.
Grigóri gritou para Fômine, enquanto desembainhava o sabre:
- Segue-me!
Vinte ságenas adiante voltou-se. Fômine, Kapárine e alguns outros acompanhavam-mo num galope furioso à distância de uma dezena de ságenas. Na floresta, as metralhadoras deixaram de disparar, excepto a que se encontrava mais à direita, a qual continuava a vomitar rajadas curtas e raivosas sobre os homens de Fômine. Calou-se também por fim, e Grigóri percebeu que os vermelhos tinham chegado ao local do acampamento, dando início ao massacre. Adivinhou-o pelos gritos surdos e desesperados, pelos tiros intermitentes dos defensores. Não havia tempo para olhar para trás. Aproximava-se a toda a velocidade das filas inimigas que vinham ao seu encontro, à procura de um alvo. Um vermelho, envergando uma peliça curta de coiro curtido, galopava direito a ele. Montava um cavalo cinzento pouco rápido. De relance, como que à luz de um relâmpago, Grigóri viu o cavalo, com a estrela branca do peitoral salpicada de flocos de espuma, e o cavaleiro, um jovem de rosto vermelho de entusiasmo.
E, atrás dele, a estepe que fugia para o Don... Teria, em breve, de aparar o golpe e de desferir outro. A cinco ságenas do cavaleiro, Grigóri fez uma finta à esquerda, ouviu o sibilar do sabre por cima da sua cabeça, ergueu-se de chofre e, com a ponta do sabre, atingiu o crânio do cavaleiro quando este já não se encontrava no mesmo nível que ele. Quase não sentiu na mão a força do golpe, mas, ao olhar para trás, viu o outro a escorregar da sela, todo curvado para a frente, com uma larga fita de sangue a escorrer-lhe pelas costas da peliça amarela. O cavalo cinzento, abrandando o galope, metera num trote rápido, de cabeça erguida e um ar espantado, a encolher-se todo como se tivesse medo da própria sombra...
Grigóri inclinou-se para o pescoço da montada e abaixou o sabre num gesto habitual. As balas sibilavam-lhe por cima da cabeça. O suor gotejava das orelhas tombadas e frementes do animal. Grigóri nada mais ouvia além das balas que procuravam atingi-lo e do resfolegar rápido e forte da montada.
Voltou-se uma vez mais, e viu Fômine, Kapárine e Tchumakov a galoparem umas cinquenta ságenas atrás de si; um pouco mais longe, um homem do décimo segundo pelotão, Sterliadnikov, o coxo, procurava iludir com o galope do seu cavalo os dois vermelhos que o perseguiam. Os oito ou nove homens que tinham seguido Fômine estavam já mortos. Os cavalos sem cavaleiros fugiam para todos os lados, de cauda ao vento; deixaram-se capturar pelos vermelhos, com excepção de um grande baio que pertencera a um dos homens do destacamento, chamado Pribitkov, que galopava agora ao lado de Kapárine, arrastando atrás de si o dono morto cujo pé ficara preso no estribo. Depois de transpor uma colina arenosa.
Grigóri deteve o cavalo, embainhou o sabre, obrigando o animal a deitar-se isto, que parecia tão simples, exigira uma semana de treino e esvaziou o carregador. Mas estava tão apressado e nervoso que só com o último tiro conseguiu abater o cavalo de um dos vermelhos, o que permitiu ao quinto fugitivo escapar à perseguição.
- A cavalo! Estás perdido! - gritou-lhe Fômine, passando ao lado de Grigóri.
O bando ficara completamente esmagado. Restavam apenas cinco homens. Foram perseguidos até Antonovsski e a corrida só terminou quando desapareceram todos nos bosques que rodeavam a aldeia.
Enquanto durara a fuga, nenhum deles pronunciara uma só palavra.
O cavalo de Kapárine tombou junto a um regato e foi impossível fazê-lo levantar. Os restantes animais encontravam-se exaustos, vacilavam, atiravam com as pernas a custo, deixando cair por terra grandes chapadas de espuma branca.
- Tens mais habilidade para guardar um rebanho do que para comandar um destacamento - declarou Grigóri ao saltar em terra, sem olhar para Fômine.
Este não respondeu. Desmontou também, desaparelhou o cavalo, afastou-se sem retirar a sela e foi sentar-se sobre um montículo coberto de erva.
- Bem, temos de abandonar os cavalos - declarou olhando em volta com angústia.
- E depois? - perguntou Tchumakov.
- Passaremos a pé para a outra margem.
- E vamos para onde?
- Ficaremos na floresta até à noite. Depois atravessaremos o Don e esconder-nos-emos primeiro em Rubejni. Tenho lá muita família.
- Outra estupidez! - exclamou Kapárine furioso. -Imaginas que não irão lá procurar-te? É precisamente na tua aldeia que vão esperar-te. com que é que tu pensas? com a cabeça ou com outra coisa?
- Bem, mas então para onde é que vamos? - inquiriu Fômine, desorientado.
Grigóri retirou da cantina os capuchos e o bocado de pão que lá trazia. Disse:
- Ainda tencionam discutir durante muito tempo? Vamos embora. Prendam os cavalos, peguem nas selas e vamos embora. Senão os outros virão apanharmos mesmo aqui.
Tchumakov atirou o chicote ao chão, pisou-o aos pés e disse numa voz trémula:
- Passamos à infantaria, agora... E todos os nossos rapazes estão mortos... Santa Mãe de Deus, como eles os desfizeram!
- Nunca pensei escapar... Via a morte diante dos olhos...
Tiraram os arreios dos cavalos em silêncio, prenderam-nos todos quatro a uma árvore e dirigiram-se em bicha para o Don, como lobos, com as selas às costas, procurando ocultar-se o mais possível entre as balsas.
Na Primavera, quando o Don transborda e cobre toda a pradaria, só uma pequena parte da margem esquerda se conserva fora de água.
Na Primavera, do alto das colinas, vê-se ao longe uma ilha coberta de uma espessa vegetação de salgueiros jovens, de carvalhos, de vimes cinzentos e compridos.
No Verão, o lúpulo selvagem enrosca-se nas árvores até à copa; a rede emaranhada das silvas cobre a terra; as corriolas azuis-claros trepam pelos arbustos; nas raras clareiras, a erva, alta e densa, generosamente alimentada pela terra fértil, ergue-se acima de um homem.
No Verão, mesmo ao meio-dia, o bosque é calmo, obscuro e fresco. Apenas os verdelhões quebram o silêncio e os cucos dizem aos desconhecidos os anos que lhes restam para viver.
No Inverno, o bosque está completamente vazio e nu, mergulhado num silêncio de morte. O fuste negro das árvores recorta-se lugubremente no fundo do céu esbranquiçado. Somente os lobos e as suas crias ali encontram abrigo seguro, repousando durante dias inteiros entre as moitas carregadas de neve.
Fômine, Grigóri Melekhov e os outros homens que haviam escapado ao massacre tinham-se instalado naquela ilha. Viviam ali como lhes era possível, alimentando-se das magras provisões que um primo de Fômine lhes vinha trazer de noite, num barco, e tinham fome; em contrapartida dormiam até querer, com a cabeça recostada nas almofadas das selas. De noite, faziam sentinela à vez. Não acendiam lume, com receio de que lhes descobrissem o refúgio.
A cheia que banhava a ilha corria continuamente para o sul. A água abria caminho por entre os choupos que se erguiam na estrada fazendo um ruído ameaçador, mas logo se apaziguava, murmurando uma canção suave ao embalar a copa dos arbustos submersos.
Grigóri depressa se acostumou ao barulho incessante e próximo da corrente. Ficava deitado o dia inteiro, junto à margem a pique, contemplava a imensidão da água, os contrafortes barrentos das colinas, perdidos numa bruma de sol lilás. Lá longe, atrás dessa bruma, encontrava-se a sua aldeia, os filhos, Akcínia... Os seus tristes pensamentos iam sempre ali parar. Todas as vezes que pensava na família, assaltava-o uma angústia que lhe queimava o coração, sentia ferver dentro de si um ódio surdo contra Michka, mas esforçava-se por conter estes sentimentos, evitando olhar para as colinas, de modo a fugir às recordações. Que necessidade tinha de dar livre curso à memória cruel? Já sofria bastante sem isso.
Doía-lhe tanto o peito que lhe parecia ter o coração em ferida, e que este já não batia, apenas sangrava. Era o resultado dos ferimentos, dos infortúnios da guerra, do tifo; Grigóri escutava agora em cada minuto as pancadas importunas do coração.
Por vezes, a dor aguda no peito tornava-se tão intolerávelque lhe secava os lábios e apenas podia gemer. Mas descobrira um meio seguro de expulsar a dor: deitava-se na terra húmida e encharcava a camisa na água gelada; então, a dor abandonava-lhe o corpo, lentamente, como que de má vontade.
O tempo estava bom e não havia vento. De quando em quando, nuvens brancas, despenteadas pela brisa do alto, corriam no céu luminoso; o seu reflexo, desfilando pela águacomo um bando de cisnes, desaparecia ao tocar na margem distante.
Era bom ver remoinhar a corrente furiosa que se quebrava de encontro à margem, escutar as mil vozes da água sem pensar em nada, tentando não pensar em nada que o fizesse sofrer. Grigóri fitava durante horas e horas as voltas caprichosas e infinitamente diversas da corrente. Mudavam de forma a cada minuto; ali, onde há pouco deslizava a direito, arrastando à superfície hastes de junco, folhas mortas, raízes de ervas, formava-se um sorvedouro apertado, que aspirava avidamente tudo quanto flutuava; instantes depois, no lugar do sorvedouro, a água fervilhava, dividia-se com violência em turbilhões, e ora repelia uma raiz de espadana enegrecida, ora uma folha de carvalho espalmada, ora um tufo de palha vindo Deus sabe donde.
À noite, para as bandas do poente, o céu abrasava-se de um vermelho de cereja. A Lua surgia atrás de um grande choupo. A sua luz espraiava-se no Don como uma chama branca e fria, que projectava, brilhando, reflexos e cintilações escuras nos sítios onde o vento encrespava a água.
À noite, de mistura com os ruídos da corrente, as vozes dos inúmeros patos que voavam para o sul ressoava constantemente sobre a ilha. E muitas vezes, as aves, que ninguém vinha inquietar, poisavam em frente dela, do lado do nascente. Na água adormecida, na floresta inundada, as abequinhas lançavam o seu grito de sedução, os patos selvagens grasnavam, as pegas palravam baixinho, chamando umas pelasoutras. Certo dia até, ao aproximar-se devagarinho da margem, Grigóri avistou, a pouca distância, um bando de cisnes.
O Sol não nascera ainda. A aurora abrasava o céu atrás da crista longínqua da floresta, a água reflectia a sua luz e parecia toda ela rosada. Rosadas também eram as grandes aves majestosas que vogavam na superfície imóvel, voltando para o oriente as cabeças altivas. Ao escutarem um leve ruído na margem, levantaram voo soltando gritos de trombeta e, quando se ergueram acima da floresta, Grigóri recebeu nos olhos o clarão de neve da sua plumagem cintilante.
Fômine e os companheiros matavam o tempo cada qual a seu modo: o habilidoso Sterliadnikov instalava a perna doente com a maior comodidade possível, remendava as roupas e as botas de manhã à noite, limpava a espingarda. Kapárine, a quem as noites passadas sobre a terra húmida não convinham, permanecia deitado ao sol durante dias a fio, envolto até à cabeça na peliça curta, sacudido por uma tosse abafada.
Fômine e Tchumakov jogavam incansavelmente às cartas que eles próprios haviam recortado de restos de papel. Grigóri, vagueando pela ilha, ficava-se largo tempo à beira da água.
Falavam pouco. Tudo quanto tinham a dizer uns aos outros já fora dito e redito. Só se reuniam para comer e também à noite, enquanto esperavam a chegada do primo de Fômine.
O tédio esmagava-os. Uma vez, porém e foi a única em todo o tempo que permaneceram na ilha, Grigóri viu Tchumakov e Sterliadnikov, alegres, de súbito, sabe Deus porquê, a lutarem um contra o outro. Começaram por espezinhar o chão durante um grande bocado, a resmungar, dizendo graçolas. Os seus pés enterravam-se até aos artelhos na areia branca e granulosa. Sterliadnikov era sem dúvida o mais forte dos dois, mas Tchumakov ganhava-lhe em destreza. Lutavam à maneira kalmuk, de ombros atirados para a frente, agarrando pela cintura, olhos fitos nos pés um do outro. Os seus rostos estavam pálidos e concentrados, a respiração era forte e entrecortada. Grigóri observava a luta, cheio de interesse.
De súbito, Tchumakov, que escolhera bem o momento, deitando-se de costas, derrubou o adversário e fê-lo passar por cima do seu corpo com um movimento das pernas dobradas.
Não tardou que o ágil e flexível Tchumakov, passando a dominar Sterliadnikov com o corpo, lhe enterrasse as omoplatas na areia, enquanto o outro, a rir-se, ofegante, rugia: “Malandro! Isso não vale, atirar o parceiro ao chão...”
- Vocês lutam como dois gatos novos. Parem lá com isso, ou ainda acabam à pancada... - disse Fômine.
Mas não, nenhum deles tinha vontade de bater no outro.
Sentaram-se pacificamente na areia, de braço dado, e Tchumakov entoou numa voz de baixo, abafada mas harmoniosa, uma música de dança:
Gelo e frio, neve e geada,
Gelo do Natal, neve magana,
Que fazes esconder o lobo na abrigada
E trazes o amor para dentro da choupana...
Sterliadnikov repetiu a quadra na sua vozinha de tenor, e depois puseram-se a cantar juntos, com um talento inesperado:
Surge a moça no alpendre
com a peliça na mão,
Para vestir ao soldado
Dono do seu coração...
De repente, Sterliadnikov, não resistindo mais, pôs-se de pé num salto, começou a dançar e a dar estalos com os dedos, enquanto raspava com a perna doente na areia. Sem interromper a canção, Tchumakov, pegando no sabre, cavou um buraco pouco profundo no solo e disse:
- Espera aí, meu coxo. Tu tens uma perna mais curta do que a outra, não podes dançar em terreno plano. Ou danças numa rampa ou então faz assim, enfia a perna sã neste buraco e deixa a outra de fora. Experimenta, e vê se dá resultado... Anda, experimenta...
Sterliadnikov, depois de enxugar a testa alagada em suor, enfiou docilmente a perna na cova aberta por Tchumakov:
- Tens razão, assim vai melhor.
Sufocado de gozo, Tchumakov desatou a bater palmas e a cantar muito depressa:
Quando tu vieres, para me visitar,
Quando tu vieres, hei-de te beijar...
E Sterliadnikov, mantendo o rosto sério como é próprio dos dançarinos, pôs-se a rodopiar com arte, tentou mesmo dar alguns saltos...
Os dois arrastavam-se, sempre iguais. Quando começava a escurecer, os cinco homens esperavam com impaciência a chegada do primo de Fômine. Juntavam-se na margem, a conversarem a meia voz; fumavam, tapando com os capotes o lume dos cigarros. Tinham resolvido ficar na ilha mais oito dias, depois atravessarem durante a noite para a margem direita do Don. Aí arranjariam cavalos, partindo em seguida para o sul. Certos boatos assinalavam a presença do bando de Maslak nessa região.
Fômine encarregara o primo de saber onde poderiam encontrar, nos arredores, bons cavalos de sela; além disso, perguntava-lhe todos os dias o que se passava na aldeia. As notícias eram tranquilizantes: Fômine era procurado na margem esquerda do Don; os vermelhos tinham ido, de facto, em busca dele a Rubejni, mas haviam-se ido logo embora depois de lhe revistarem a casa.
- Temos de nos despachar a fugir daqui. De que diabo serve cá ficarmos? Se nos fôssemos amanhã? - alvitrou Tchumakov durante o almoço.
- Temos de começar por saber alguma coisa acerca dos cavalos - declarou Fômine. - Porquê tanta pressa? Se comêssemos melhor aguentava bem esta vida até ao Inverno. Olha como isto é bonito! Depois de termos repousado podemos recomeçar. Se quiserem apanhar-nos não consentiremos. Bateram-nos em toda a linha, concordo, por minha culpa, é certo. Foi uma pena, claro, mas ainda não dissemos a última palavra. Arranjaremos mais homens. Assim que tivermos cavalos, daremos uma volta pelas aldeias, por aqui e por ali; dentro de oito dias, teremos connosco uns cinquenta homens, talvez cem. Havemos de arranjar reforços, isso posso eu jurar.
- Estupidez e presunção! - exclamou Kapárine, imitado.
- Os cossacos traíram-nos. Não quiseram vir connosco nem quererão agora. Devemos ter a coragem de encarar a verdade e não nos iludirmos com falsas esperanças.
- Porque dizes que não virão connosco?
- Porque não quiseram vir a princípio nem quererão agora.
- Bom, isso é o que vamos ver - declarou Fômine com um olhar de desafio. Eu cá não deporei as armas.
- Conversa fiada! - tornou Kapárinie com um ar cansado.
- Cabeça de burro! - exclamou Fômine, furioso. – Quem te manda andar a semear o pânico? Aborreces-me com as tuas choradeiras! Então porque fizemos nós tudo isto? Porque nos revoltámos? Que estás tu aqui a fazer, se tencionas desistir? Foste tu que me incitaste à insurreição. E agora queres esconder-te? Não dizes nada?
- Nada tenho a dizer! Vai para o diabo, imbecil! - gritou Kapárine, numa voz histérica. E foi-se embora, todo friorento, embrulhado na peliça de gola levantada.
- São todos os mesmos, estes gajos da alta sociedade. Basta uma ninharia para que eles... - disse Fômine, suspirando.
Ficaram um momento calados, atentos ao rugido forte e contínuo da água. Uma pata passou por baixo deles soltando altos gritos, seguida por dois machos. Um bando de estorninhos que piavam desalmadamente desceu sobre a clareira, voltou a levantar voo mal avistou os homens, desenrolando-se como um novelo negro.
Dali a pouco tempo, Kapárine regressou.
- Quero ir hoje mesmo para a aldeia - declarou, olhando Fômine, com um piscar de olhos teimoso.
- Porquê?
- Olha que pergunta! Porque apanhei uma tísica aqui e quase não me aguento nas pernas!
- E então? Julgas que te vais curar na aldeia? - respondeu Fômine, imperturbável de calma.
- Tenho necessidade absoluta de passar ao menos algumas noites no quente.
- Não irás para parte nenhuma - declarou duramente Fômine.
- Então, queres que morra aqui?
- Como quiseres.
- Mas porque é que não posso ir-me embora? Estas noites ao frio dão cabo de mim.
- E se te deixas apanhar na aldeia? Não pensaste nisso? Nesse caso virão dar cabo de todos nós! Julgas que não te conheço? Denunciavas-nos logo ao primeiro interrogatório. Já na estrada de Viochénsskaia tu eras capaz de nos denunciar.
Tchumakov desatou a rir com ar de aprovação. Concordava plenamente com Fômine. Mas Kapárine teimava:
- Tenho de me ir embora. As tuas hipóteses tão perspicazes não me fazem mudar de ideias.
- Já te disse para ficares e manteres essa boca calada!
- Mas vê se compreendes, Iakov Efímovitch. Não posso continuar a viver esta vida de cão. Tenho uma pleurite, talvez mesmo uma infecção nos pulmões.
- Hás-de curar-te. Deita-te ao sol que ficas logo bom.
Kapárine declarou brutalmente:
- Vou-me embora hoje de qualquer maneira. Não tens o direito de me reter. Partirei seja como for.
Fômine fitou-o, a piscar os olhos desconfiados. Ergueu-se em seguida, após haver trocado com Tchumakov um olhar de inteligência.
- É certo que tens um ar de doente, Kapárine... Deves estar com muita febre... Espera, vou ver se tens a testa quente.
Deu alguns passos na direcção de Kapárine, de mão estendida, mas o outro, vislumbrando sem dúvida uma intenção má no rosto de Fômine, recuou, a gritar:
- Arreda-te!
- Pouco barulho! Que raio de ideia é essa de te pores assim aos berros? Só queria verificar. Que é que receias?
Fômine, avançando, filou Kapárine pelo pescoço.
- Rendes-te, malandro? - murmurava numa voz estrangulada, a tentar, com todas as suas forças, derrubar o outro.
Grigóri teve dificuldade em separá-los.
A seguir à refeição do meio-dia, Kapárine foi procurar Grigóri, quando este estava a pôr a roupa a secar sobre uns arbustos.
- Queria falar-te a sós. Sentemo-nos.
Sentaram-se no tronco apodrecido de um choupo, derrubado por um raio.
Kapárine disse, com uma tosse abafada:
- Que pensas tu do destempero daquele idiota? Agradeço sinceramente a tua intervenção. Procedeste nobremente, como é próprio de um oficial. Mas é horrível. Não posso mais. Estamos transformados nuns autênticos bichos... Há quantos dias não comemos uma refeição quente? E dormir nesta terra húmida... Apanhei um resfriamento, sinto uma pontada tremenda. Estou convencido de que tenho os pulmões infectados.Queria tanto passar um bocado junto do lume, dormir num quarto aquecido, mudar de roupa... Ando a sonhar com uma camisa limpa, com um lençol lavado... Não, não posso mais.
Grigóri sorriu:
- Querias fazer a guerra com todo o conforto?
- Ouve lá, tu chamas a isto guerra? - retorquiu vivamente Kapárine. - Isto não é guerra: andamos sempre a deslocar-nos, matamos uns tantos funcionários dos Sovietes e depois fugimos. Seria guerra se o povo nos ajudasse, se isto fosse o início de uma insurreição, mas assim não é guerra, não, isto não é guerra de maneira nenhuma! Não temos outra alternativa. Não podemos render-nos.
- Mas que fazer, então?
Grigóri encolheu os ombros, e aquilo que respondeu a seguir viera-lhe ao espírito ali na ilha, num momento em que estava a repousar:
- Uma má liberdade vale sempre mais do que uma boa prisão. Sabes o que diz o povo: quando a gaiola é forte, está o diabo contente.
Kapárine fazia desenhos na areia com uma varinha. Prosseguiu ao cabo de um longo silêncio:
- Não é preciso rendermo-nos. Temos mas é de procurar novas formas de luta contra os bolchevistas. Torna-se urgente romper com essa gente infame. Tu és um intelectual...
- Que rico intelectual... - disse Grigóri, sorrindo. Só a palavra já me custa a pronunciar.
- És oficial.
- Por um mero acaso.
- Não, deixa-te de histórias, és oficial, conviveste com oficiais, conheceste homens a valer, não és um renegado dos Sovietes como o Fômine, e deves compreender que não faz sentido nenhum ficarmos aqui. Isso equivale a um suicídio. No bosque dos carvalhos, foi ele que nos meteu na boca do lobo e, se continuamos a ligar a nossa sorte à dele, a coisa vai repetir-se. É um patife e ainda por cima um refinadíssimo idiota. com ele, estamos lixados.
- Portanto, achas que não devemos render-nos, mas sim abandonar Fômine? E para onde iremos? Ter com Maslak?
- Não, com esse a aventura é a mesma, mas numa escala maior. Agora estou a ver as coisas doutra maneira. Não é para junto de Maslak que devemos ir...
- Para onde, então?
- Para Viochénsskaia.
Grigóri encolheu os ombros com irritação.
- Matando dois coelhos de uma cajadada? Não estou de acordo.
Kapárine fitou-o com os olhos coruscantes:
- Não compreendeste, Melekhov. Posso confiar em ti?
- Inteiramente.
- Palavra de oficial?
- Palavra de cossaco.
Kapárine lançou os olhos para as bandas de Fômine e de Tchumakov, que se encontravam no acampamento, e baixou a voz, embora a distância fosse demasiado grande para que os outros pudessem ouvir a conversa.
- Conheço as tuas relações com Fômine e os outros. No meio deles, tu és um corpo estranho, tal como eu. Não me interessam os motivos que te levaram a entrar em luta contra o poder dos Sovietes. Se bem compreendo, trata-se do teu passado e do receio que tens de ser preso, não é isso?
- Disseste que não te interessavam os motivos.
- Pois, pois, disse isto por dizer. Agora quero explicar-te certas coisas a meu respeito. Fui oficial e membro do partido socialista-revolucionário, mas depois reconsiderei totalmente acerca das minhas convicções políticas... Só a monarquia pode salvar a Rússia. Somente a monarquia! A própria Providência está a mostrar esse caminho à nossa pátria. O emblema do poder dos Sovietes é o martelo e a foice, hem?
Kapárine escreveu com a varinha na areia as palavras martelo e foice, depois fitou Grigóri com os olhos brilhantes de febre.
- Lê agora ao contrário. Já leste? Compreendes? Só o trono (Martelo e foice diz-se em russo molot e serp. Da direita para a esquerda, lê-se prestolom, que significa: pelo trono) pode pôr fim à revolução e ao poder dos bolchevistas. Sabes que fui tomado de um terror místico quando descobri isto? Até tremi. É o dedo de Deus, se assim se pode dizer, a apontar um fim para os nossos desvios...
Emocionado, Kapárine, perdendo o fôlego, calou-se. Os seus olhos penetrantes, que reflectiam uma espécie de loucura mansa, estavam fitos em Grigóri. Porém este não tremia, esta revelação não o levava a experimentar qualquer terror místico.
Conservava, como sempre, um raciocínio frio e prático. E disse:
- O dedo de Deus nada tem a ver com isto Durante a guerra com a Alemanha estiveste na frente?
Surpreendido, Kapárine respondeu, após um momento de hesitação:
- Para sermos francos, porque me fazes essa pergunta? Não, não estive o que se pode chamar na frente de batalha.
- Então onde passaste o tempo da guerra? Na retaguarda?
- Sim.
- Todo o tempo?
- Sim, isto é, todo o tempo não, mas quase. Mas porque me interrogas a tal respeito?
- Eu tenho estado sempre na frente desde 1914. Então, essa história do dedo . qual dedo, visto que Deus não existe? Há tempo que não acredito nessas histórias. Foi em 1915, depois de ter visto bem o que é a guerra, que eu disse comigo: Deus não existe. Se existisse, não teria o direito de abandonar os homens nesta confusão. Nós, lá na frente, suprimimos Deus, deixámo-lo para os velhos e para as mulheres. Eles que se vão entretendo com ele. Portanto o dedo de Deus não existe. E a monarquia não pode voltar. O povo eliminou-a de uma vez para sempre. Aquilo que me mostraste, essas letras ao contrário, desculpa, mas é uma criancice, nada mais. E não compreendo bem onde tu queres chegar com tudo isso. Deves ser mais simples, mais directo. Eu era oficial, mas nunca frequentei a escola militar, não sou instruído. Se tivesse alguma instrução, talvez não estivesse convosco nesta ilha, como um lobo encurralado pela cheia concluiu. E a sua voz não traía qualquer pesar.
- O essencial não é isso - respondeu vivamente Kapárine.
- O essencial não é que acredites ou não em Deus. Isso diz respeito às tuas convicções, à tua consciência. Também pouco importa que sejas pela monarquia ou pela constituinte, ou que sejas apenas cossaco e partidário da autonomia. O essencial é a nossa unidade em face do poder dos Sovietes. Estás de acordo?
- Continua.
- Nós tínhamos contado com uma insurreição geral dos cossacos, hem? Perdemos. Agora temos de sair desta situação. Ainda é possível lutar-se contra os bolchevistas, e não apenas sob o comando de um Fômine qualquer. O essencial, hoje, é mantermo-nos vivos. Por isso venho propor-te uma aliança.
- Que aliança? Contra quem?
- Contra Fômine.
- Não compreendo.
- É muito simples. Convido-te a seres meu cúmplice.
Kapárine, cada vez mais nervoso, ofegava.
- Matamos este trio e fugimos para Viochénsskaia. Percebeste? Assim estamos salvos. Este serviço prestado ao poder dos sovietes evita-nos a condenação. Compreendes? Viveremos... salvaremos a vida. Bem entendido, mais tarde, poderemos retomar a <luta contra os bolchevistas. Mas quando se tratar de uma aventura séria e não como a deste desgraçado Fômine. Estás de acordo? Reflecte: isto é a única saída que nos resta, uma saída brilhante.
- Mas como faremos? - inquiriu Grigóri, que lá no íntimo tremia de indignação, esforçando-se por nada deixar transparecer.
- Tenho tudo combinado: faremos a coisa de noite, à arma branca, e, na noite seguinte, quando vier esse homem que nos traz de comer, atravessaremos o Don. E pronto. É de uma simplicidade genial e não há nisto a menor astúcia.
Grigóri disse, sorrindo, com falsa bonomia:
- É magnífico, mas diz-me, Kapárine, esta manhã, quando querias partir para te ires aquecer à aldeia... já fazias tenção de ir para Viochénsskaia? Fômine adivinhara?
Kapárine, após ter perscrutado o rosto sorridente e jovial de Grigóri, sorriu também, mas com certa tristeza e confusão:
- Para falar francamente, sim. Sabes, quando está em jogo a nossa pele, não se olha aos meios.
- Serias capaz de nos denunciar?
- Sim - confessou ingenuamente Kapárine. - Mas trataria de te poupar todos os dissabores no caso de serem apanhados -nesta ilha.
- E porque não nos mataste a todos sozinho? Durante a noite seria fácil.
- Havia um risco. Depois do primeiro tiro, os outros...
- Dá-me a tua arma - disse calmamente Grigóri, puxando do revólver. - Dá-ma já, ou mato-te neste instante. Vou levantar-me e pôr-me na tua frente para que Fômine não veja e tu atiras a pistola aos meus pés. Hem? Não tentes disparar. Ao primeiro gesto, mato-te.
Kapárine fez-se pálido como a morte.
- Não me mates murmurou ele, movendo apenas os lábios descorados.
- Não te matarei. Mas dá-me a tua arma.
- Vais denunciar-me...
Corriam-lhe lágrimas pelas faces hirsutas. Grigóri fez uma careta de nojo e piedade e ergueu a voz:
- Atira o revólver. Não te denunciarei, mas devia fazê-lo. Que malandrete tu me saíste! Que malandrete!
Kapárine atirou o revólver para os pés de Grigóri.
- E a tua browning? Dá-ma também. Tens-la dentro do blusão. No bolso do peito.
Kapárine tirou do bolso a browning, cujo níquel cintilava, e escondeu a cara nas mãos. Estava sacudido de soluços.
- Cala-te, patife! - disse rudemente Grigóri, que fazia um grande esforço para não o espancar.
- Vais denunciar-me. Estou perdido.
- Já te disse que não. Mas assim que deixarmos esta ilha vais para o diabo que te carregue. Pessoas como tu, ninguém as quer ao pé de si. Procura um abrigo sozinho.
Kapárine tirou as mãos do rosto que estava todo vermelho e molhado de lágrimas, com um aspecto horrível, os olhos inchados, a maxila inferior a tremer.
- Mas então porque... porque me desarmaste?
Grigóri respondeu de má vontade:
- Para que não me alvejasses pelas costas. Das pessoas instruídas pode esperar-se tudo... Fazem grandes discursos acerca do dedo de Deus, acerca do tzar, acerca de Nosso Senhor... Não há o direito de se ser tão nojento...
Sem olhar Kapárine, e a cuspir de vez em quando a saliva que lhe inundava a boca, Grigóri dirigiu-se ao acampamento num passo vagaroso.
Sterliadnikov estava a coser com um fio de sapateiro uma das correias da sela e assobiava tranquilamente. Fômine e Tchumakov, estendidos sobre uma manta de cavalo, jogavam às cartas como de costume.
Fômine lançou um breve olhar a Grigóri e inquiriu:
- Que te disse ele? De que estiveram a falar?
- Queixou-se da vida... Não sabe lá muito bem o que diz.
Grigóri, cumprindo a promessa, não denunciou Kapárine.
Mas à noite, sem ninguém dar por isso, desmontou a culatra da espingarda de Kapárine escondeu-lha. “Sabe-se lá o que ele seria capaz de fazer...” pensava enquanto se estava deitando.
No dia seguinte pela manhã, foi acordado por Fômine que lhe perguntava baixinho, todo curvado sobre ele:
- Foste tu que tiraste as armas de Kapárine?
- O quê? Quais armas?
Grigóri soergueu-se e sentiu dificuldade em mover os ombros. Adormecera um pouco antes do romper do dia e tivera muito frio de madrugada. O seu capote, o boné e as botas estavam encharcados pelo orvalho que caíra ao nascer do sol.
- Ninguém sabe das armas dele. Foste tu que lhas tiraste? Acorda. Melekhov.
- Sim, fui eu. Mas o que há?
Fômine afastou-se em silêncio. Grigóri levantou-se, sacudiu o capote. Perto dali, Tchumakov estava a preparar o almoço: lavara a única escudela do acampamento, cortou quatro fatias de um pão grande que apertava contra o peito, despejou o leite na malga, esmigalhou uma bola de kacha de milho e olhou para Grigóri.
- Hoje dormiste até tarde. Olha onde vai o sol.
- Os que têm a consciência pura dormem sempre bem declarou Sterliadnikov, a limpar as quatro colheres de pau à aba do capote. O Kapárine, esse, não pregou olho em toda a noite, sempre às voltas...
Fômine olhou para Grigóri, a sorrir, e não disse nada.
- Venham comer, seus gatunos! gritou Tchumakov.
Foi ele o primeiro a mergulhar a colher no leite, depois devorou com uma dentada metade da sua fatia de pão. Grigóri, pegando na colher, perguntou, a olhar para os outros dois com atenção:
- Onde está Kapárine?
Fômine e Sterliadnikov comiam em silêncio. Tchumakov olhou fixamente Grigóri, mas permaneceu também calado...
- Que fizeram de Kapárine? - inquiriu Grigóri, adivinhando vagamente o que se passara durante a noite.
- Já vai longe, a estas horas - respondeu Tchumakov, com o seu sorriso tranquilo. - Vai a caminho de Rostov. Neste momento deve estar perto de Usst-Kopérsskaia... Deixou cá a peliça, como vês.
Grigóri deitou os olhos para a peliça.
- É certo que o mataram?
Poderia não ter perguntado, Era claro como água. Mas as palavras tinham-lhe escapado. Ninguém lhe respondeu, e ele repetiu a interrogação.
- Acertaste respondeu Tchumakov, baixando as pestanas sobre os olhos cinzentos, belos e femininos. Fui eu que o matei. A minha função é matar gente...
Grigóri fitou-o. O seu rosto puro, vermelho e tisnado estava calmo e satisfeito. O bigode muito loiro com reflexos dourados destacava-se nitidamente sobre o rosto queimado do sol e punha em relevo o tom mais escuro das sobrancelhas e dos cabelos deitados para trás. Era na verdade belo e delicado, o carrasco do bando de Fômine... Poisou a colher na tigela, limpou o bigode com as costas da mão e disse:
- Melekhov, bem podes agradecer a Iakov Efímitch. Foi ele que salvou a tua alminha. De contrário, a estas horas, estarias a descer o Don na companhia de Kapárine...
- Como dizes?
Lenta e pausadamente, Tchumakov contou tudo:
- Kapárine queria render-se, está visto. E ontem conversou demoradamente contigo... Por isso nós fomos da mesma opinião que Iakov Efímitch, isto é, que não o devíamos deixar cair no pecado.
Tchumakov lançou a Fômine um olhar interrogador:
- Posso contar-lhe tudo?
Fômine fez que sim com a cabeça e Tchumakov prosseguiu, enquanto fazia estalar com os dentes os grãos de milho mal cozidos.
- Ontem à noite preparei um toro de carvalho e disse a Iakov Efímitch: “Vou limpar o sebo àqueles dois, ao Melekhov e ao Kapárine, durante a noite.” E vai ele e diz-me: “Ao Kapárine, está bem. Mas ao Melekhov, não.” Concordámos nesse ponto. Deixei que o Kapárine adormecesse. Também vi que estavas a dormir, porque ressonavas. Bem, pus-me então a rastejar e dei-lhe uma cartachada na cabeça. Nem sequer mexeu os pés, o nosso capitão do Estado-Maior. Espreguiçou-se devagarinho, e pronto... Revistámo-lo nas calmas e depois pegámos-lhe pelos braços e pelas pernas e levámo-lo para a beira da água. Tirámos-lhe as botas, o blusão e a peliça e... rio com ele! Tu continuavas a dormir e não deste por nada... A morte passou bem perto de ti esta noite, Melekhov. Esteve mesmo por cima da tua cabeça. Lakov Efímitch bem me tinha dito que não te tocasse, mas eu cá por mim pensava: “De que teriam falado aqueles dois melros ainda há [pouco?” É mau sinal quando, em cinco homens, há dois que começam a fazer grupinho à parte e se põem a contar segredos...” Aproximei-me de ti e queria trespassar-te com o sabre, porque dizia comigo: “Se lhe dou uma paulada e não acerto às primeiras, o tipo levanta-se e manda-me um tiro...” Mas foi ainda o Fômine que se meteu de permeio: “Não lhe toques, ele está connosco, podemos ter confiança nele.” Pronto, acabou-se. Pusemo-nos então a pensar o que teria sido feito das armas de Kapárine. Nessa altura, afastei-me de ti. Tu dormias tão bem que nem sentiste o perigo.
Grigóri declarou calmamente:
- Fazias mal em me matar, palerma. Nada havia de comum entre mim e Kapárine.
- Mas então porque tinhas tu contigo as armas dele?
Grigóri sorriu:
- Tirei-lhas durante o dia. A culatra, essa, desmontei-a de noite e escondi-a debaixo da minha sela.
Descreveu a conversa da véspera e a proposta de Kapárine.
Fômine perguntou com um ar descontente:
- Porque não me falaste nisso ontem?
- Tive dó dele, o malandro babava-se todo - confessou Grigóri.
- Ah! Melekhov, Melekhov! - exclamou Tchumakov, sinceramente espantado. -Deves meter esse dó onde escondeste a culatra de Kapárine, debaixo da tua sela, senão ainda te acontece alguma desgraça!
- Não preciso das tuas lições. Sei tanto como tu - retorquiu friamente Grigóri.
- Achas que estou a dar-te lições? Mas, se eu te tivesse mandado desta para melhor durante a noite, assim sem mais nem menos, por causa do teu bom coração... hem?
- Teria ido direitinho para o outro mundo - respondeu em voz baixa Grigóri, após um momento de reflexão. E acrescentou, mais para si próprio do que para os outros: - Deve ser horrível morrer acordado, mas, a dormir, não custa nada...
Uma noite, nos fins de Abril, atravessaram de barco o Don. Um jovem cossaco de Nijné-Krivsskaia, chamado Alexandre Kocheliov, aguardava-os na outra margem, em Rubejni.
- Vou convosco, Iakov Efímitch. Aborreço-me na terra - disse ele, ao acolher Fômine.
Este tocou com o cotovelo em Grigóri, murmurando:
- Estás a ver? Eu bem te dizia... Mal saímos da ilha e já nos chega mais gente. Este conheço eu. É um sujeito combativo.
- Bom sinal. A coisa vai.
A avaliar pelo tom da sua voz, sorria de contentamento.
Estava encantado, pelos vistos, com a aparição deste novo companheiro. O êxito da travessia e o facto de um homem se ter logo reunido a eles dava-lhe coragem, restituía-lhe uma nova esperança.
- Olha, além da espingarda e da pistola, ainda tens um binóculo! - disse com ar satisfeito, encarquilhando os olhos, a apalpar, na escuridão, o equipamento de Kocheliov. - Vê-se logo que é um verdadeiro cossaco, dos puros!
O primo de Fômine chegou também dali a pouco, montado num cavalicoque atrelado a uma carroça.
- Ponham as selas no carro -, disse a meia voz. - Mas despachem-se, pelo amor de Deus, é tarde e temos muito que andar...
Enervava-se, incitando Fômine, o qual, todo satisfeito por ter abandonado a ilha e sentir debaixo dos pés o solo firme da sua terra natal, desejaria ter-se demorado um momento para visitar os amigos...
Pouco antes da aurora, nos arredores de Iagódny, escolheram os melhores cavalos de uma manada, selaram-nos, e Tchumakov declarou ao velho guarda:
- Não te aflijas por causa dos animais. Não valem grande coisa e não os conservaremos por muito tempo: logo que acharmos outros melhores, devolvemo-los ao proprietário. Se te vierem perguntar quem os levou, diz que foi a milícia da stanitsa de Krasnókutsskaia. Os donos que vão lá procurá-los Diz-lhes também que fomos em perseguição de um bando.
Uma vez na estrada, despediram-se do primo de Fômine, depois voltaram à esquerda e partiram num trote largo na direcção de sudoeste.
De acordo com certos boatos, o bando de Maslak fizera uma surtida, alguns dias antes, para os lados da stanitsa de Mechkovsskaia. E Fômine, que resolvera juntar-se a ele, partiu com esse destino.
Durante três dias, percorreram os caminhos da estepe na margem direita do rio, evitando as aldeias grandes e as stanitsas. Nas povoações tauridianas limítrofes do território da stanitsa de Karguínsskaia, trocaram as pilecas por cavalos tauridianos, bem tratados e rápidos no galope.
Na manhã do quarto dia, junto à aldeia de Veji, Grigóri foi o primeiro a avistar uma coluna de cavalaria que desembocava entre dois outeiros longínquos. Havia pelo menos dois esquadrões, que precediam e escoltavam patrulhas de fraca importância.
Fômine ajustou o binóculo:
- Se não é Maslak, é...
- Tanto pode ser neve como chuva... disse Tchumakov, à maneira de graçola. Repara bem, Iakov Efímitch pois, se se trata de vermelhos, temos que dar meia volta, e depressa.
- Diabos me levem se consigo distinguir daqui alguma coisa - declarou Fômine, despeitado.
- Olha! Já nos pisgaram! Vem uma patrulha ao nosso encontro! - exclamou Sterliadnikov.
Com efeito, tinham-nos visto. A patrulha que caminhava à direita da coluna, mudando bruscamente de rumo dirigiu-se para eles a trote.
Fômine meteu à pressa o binóculo no estojo, mas Grigóri,curvando-se, a sorrir, segurou pela rédea o cavalo de Fômine:
- Não tenhas pressa. Deixa-os aproximar um pouco. São apenas doze. Temos de ver convenientemente de quem se trata e, em caso de perigo, estamos sempre a tempo de cavar. Os nossos cavalos estão folgados. Porque tens medo? Pega no binóculo.
Os doze cavaleiros, aproximando-se, aumentavam de tamanho de minuto para minuto. Distinguiam-se já nitidamente as suas silhuetas contra o fundo verde da colina coberta de erva nova.
Grigóri e os outros contemplavam Fômine com impaciência. As suas mãos faziam tremer o binóculo. Olhava tão fixamente que lhe escorreu uma lágrima pela face exposta ao sol.
- São vermelhos! Trazem a estrela no boné - exclamou finalmente Fômine numa voz abafada, obrigando o cavalo a dar meia volta.
Começou a debandada. Atrás deles soaram alguns tiros.
Grigóri percorreu quatro verstás ao lado de Fômine, olhando de tempos a tempos para trás.
- Já está feita, a tal junção - comentou, trocista.
Fômine manteve um silêncio acabrunhado. Tchumakov gritou, sofreando um pouco o cavalo:
- Temos de evitar as aldeias. Vamos para os campos de Viochénsskaia. Lá é menos povoado do que aqui.
Mais umas verstás daquele galope furioso e os cavalos ficariam completamente estoirados. Os seus pescoços tensos, cobertos de espuma, estavam profundamente enrugados.
- Mais devagar! Diminuir a velocidade! – comandou Grigóri.
De doze, os perseguidores passaram a nove; três tinham ficado para trás. Grigóri, depois de avaliar com os olhos a distância que os separava dos vermelhos, gritou:
- Parem! Vamos disparar sobre eles.
Os cinco homens, metendo os cavalos a trote, saltaram para o chão e pegaram nas espingardas.
- Sobre o último à esquerda, pontaria alta, fogo!
Cada um esvaziou o seu carregador, derrubaram o cavalo de um dos vermelhos e retomaram o galope. Isto acalmou o ímpeto dos perseguidores, que, após terem disparado ainda alguns tiros de longe, abandonaram definitivamente a caçada.
- Temos que dar de beber aos cavalos. Há um charco ali adiante - disse Sterliadnikov, apontando com o bengalim a linha de uma lagoa na estepe, azulada pela distância.
Meteram então a passo, observando atentamente todas as dobras do terreno, as ravinas, para seguirem a coberto dos desníveis.
Deram de beber aos cavalos na lagoa e puseram-se de novo a caminho, primeiro a passo, depois a trote. Ao meio-dia pararam para os deixar pastar na encosta de um vale profundo que cortava a estepe em diagonal. Fômine enviou Kocheliov a pé até junto de um túmulo vizinho, ordenando-lhe que ficasse aí de atalaia, bem escondido. No caso de ver surgir qualquer cavaleiro, devia regressar a toda a pressa depois de ter dado o sinal de alarme.
Grigóri peou o cavalo e deixou-o pastar. Deitou-se em seguida na encosta, num lugar seco. O cheiro adocicado da terra negra aquecida pelo sol não chegava a dominar o das violetas em flor. Havia-as aos montes nos terrenos em poisio, entre as hastes secas das corriolas, estendiam-se em ramificações coloridas ao longo de um cômoro muito antigo e, do meio da erva murcha do ano anterior, sobre as gretas duras como pedra, os seus olhos fitavam o mundo com uma pureza infantil.
Acabavam de viver na estepe vasta e profunda o tempo que lhes era concedido, e já as túlipas, com o seu brilho fabuloso, as vinham substituir na encosta, erguendo para o sol os seus cálices vermelhos, amarelos ou brancos; e o vento levava para longe, ao longo da estepe, o perfume misturado das flores.
No lado norte, na encosta abrupta, à sombra, tinham ficado pastas de neve húmida donde vinha frio, mas esse frio acentuava ainda mais o aroma das violetas moribundas, vago e triste como a recordação das coisas que muito amámos e há muito desapareceram...
Grigóri estendera-se, de pernas afastadas, apoiado nos cotovelos, a fitar com os olhos ávidos a estepe envolta numa névoa de calor, os túmulos azulados no horizonte, o ar fremente e vibrante na beira da encosta. Bastava-lhe fechar os olhos um minuto e ouvia o canto próximo e distante das cotovias, os passos leves e o sacudir dos cavalos que pastavam, o tilintar dos freios e o murmurar do vento nas ervas novas... Assim apoiado com todo o peso do corpo na terra dura, experimentava uma estranha sensação de afastamento, de paz. Há muito que isso lhe acontecia sempre a seguir a um susto, e Grigóri via então o mundo em volta como se fosse pela primeira vez.
A sua vista, o ouvido, afiguravam-se-lhe mais apurados e, após uma emoção, todas aquelas coisas em que dantes não reparava lhe atraíam a atenção. Seguia com o mesmo interesse o voo oblíquo e ruidoso de um milhafre a perseguir um pássaro minúsculo ou o avanço retardado de um escaravelho preto que mostrava grande dificuldade em vencer a distância que separava os seus cotovelos, ou o baloiçar leve de uma túlipa negra com reflexos purpúreos, apenas agitada pelo vento, a qual brilhava com uma beleza virginal. Essa túlipa encontrava-se agora perto dele, à borda de um buraco de toupeira a esbarrondar-se. Bastava-lhe estender a mão para a arrancar, mas Grigóri não se movia, contentava-se em contemplar a flor com muda admiração, em observar as folhas hirtas da haste que conservavam ciosamente as gotas de orvalho cintilantes onde se reflectia um arco-íris. Em seguida, voltava os olhos sem pensar em nada, seguia o voo de uma águia a pairar lá no alto, por cima de uma aldeia de montículos de toupeira abandonados...
Duas horas depois, voltaram a subir para a sela a fim de alcançar o território da stanitsa de Elánsskaia onde conheciam algumas aldeias.
A patrulha vermelha, provavelmente, assinalara a passagem deles. Ao entrarem na povoação de Kaménsskaia, foram recebidos com tiros disparados da outra margem do rio. O assobio musical das balas obrigou Fômine a afastar-se do caminho.
Ultrapassaram a aldeia a galope, sob o fogo do inimigo, e em breve desembocaram nas terras cobertas de erva da stanitsa de Viochénsskaia. Atrás da aldeia de Topkaia Balka, um pequeno destacamento da milícia tentou interceptá-los.
- Devemos cortar à esquerda - propôs Fômine.
- Acho melhor atacarmos - declarou resolutamente Grigóri. - Eles são nove e nós cinco. Poderemos passar.
Tchumakov e Sterliadnikov deram o mesmo parecer. Desembainharam os sabres, obrigando os cavalos fatigados a meter a galope. Os milicianos abriram um fogo cerrado sem desmontarem, mudaram de direcção e recusaram o combate.
- Não são lá muito valentes! - exclamou Kocheliov, trocista. - Quando se trata de preencher papéis, são chefes, mas, para um combate a sério, não aparece ninguém.
Disparando por vezes quando os milicianos os cercavam mais de perto, Fômine e os companheiros fugiam para leste, como lobos perseguidos pelos galgos: de quando em quando, mostravam os dentes, mas sem pararem nunca. Durante uma dessas trocas de tiros, Sterliadnikov foi ferido. A bala furou-lhe a barriga da perna direita e raspou no osso. Soltou um grito de dor e disse, empalidecendo:
- Fui alvejado numa perna... Sempre a mesma, a doente... Que corja de malandros!
Tchumakov deitou-se todo para trás a rir às gargalhadas, a ponto de lhe virem as lágrimas aos olhos. Enquanto ajudava Sterliadnikov a manter-se a cavalo, apoiado no seu braço, tremia todo de riso e dizia:
- Como é que eles conseguiram acertar? Foi de propósito... Viram um coxo e disseram consigo: vamos lá acabar-lhe com a perna de uma vez... Ah! Sterliadnikov! Ah, desgraçado!
- A tua perna vai ficar ainda mais curta. Como é que hás-de dançar agora? Tenho de te fazer um buraco no chão da fundura de um archine...
- Cala-te, malandro! Deixa-me em paz. Cala-te, pelas almas suplicava Sterliadnikov, fazendo caretas de dor.
Meia hora mais tarde, ao chegarem ao cimo de um vale cujas encostas se inclinavam suavemente, pediu:
- Paremos um instante, tenho de fechar a ferida. Vou com a bota cheia de sangue...
Fizeram alto. Grigóri ficou de guarda aos cavalos. Fômine e Kocheliov disparavam de tempos a tempos sobre os vultos distantes dos milicianos. Tchumakov ajudou Sterliadnikov a descalçar-se.
- É verdade. Sangraste muito - observou Tchumakov de sobrolho carregado.
Despejou a bota e o líquido acastanhado correu pela terra.Quis rasgar com a ponta do sabre a calça húmida e quente de sangue, mas Sterliadnikov não consentiu.
- São umas calças novas, não há motivo para as rasgarmos - declarou. E, apoiando-se com as duas mãos na terra, esticou a perna ferida. - Tira-me isto. Ajuda, mas devagar.
- Tens uma ligadura? - perguntou Tchumakov, apalpando os bolsos.
- Para que queria eu uma ligadura? Cá me arranjo sem ela
Sterliadnikov examinou atentamente o buraco por onde saíra a bala, em seguida despejou na palma da mão a pólvora de um cartucho cuja bala retirara com os dentes, e juntou-lhe terra e saliva, amassando tudo muito bem. Tapou generosamente os dois orifícios com essa lama e declarou, satisfeito:
- Isto dá sempre resultado. A ferida vai secar, dentro de dois dias estará cicatrizada. É como as feridas dos cães.
Não voltaram a parar até ao Tchir. Os milicianos mantinham-se a respeitável distância, só disparando de tempos a tempos. Fômine olhava muitas vezes para trás e dizia:
- Eles não nos perdem de vista... Talvez estejam à espera de reforços. Devem ter uma razão para se conservarem tão distantes...
Atravessaram o Tchir a vau na aldeia de Visloguzóvsski e treparam a pé a encosta suave da colina. Os cavalos estavam esgotados. Obrigavam-nos a descer as ladeiras, mas, para subir, era necessário pegarem-lhes nas rédeas e raspavam-lhes com as mãos os flancos e as garupas para fazerem cair a espuma.
Verificaram-se as hipóteses de Fômine: a umas cinco verstás de Visloguzóvsski, foram perseguidos por sete homens montados em cavalos novos e rápidos.
- Se continuam a revezar-se desta maneira, em breve estaremos tramados - observou Kocheliov com um ar sombrio.
Atravessaram a estepe sem se utilizarem dos caminhos, sempre a manterem o inimigo a distância: enquanto dois disparavam, deitados na erva, os outros afastavam-se umas duzentas ságenas, desmontavam, mantinham o inimigo debaixo de fogo a fim de permitirem aos dois primeiros que avançassem mais quatro ságenas a galope e regulassem o tiro. Desta forma mataram ou feriram gravemente um miliciano e abateram um cavalo. Em breve, Tchumakov ficou também sem o seu. Teve de correr ao lado do de Kocheliov, segurando-se ao estribo.
As sombras alongavam-se. O sol descaía. Grigóri propôs que se mantivessem em grupo; seguiam a passo, todos juntos, indo Tchumakov a pé. Do alto de uma colina, ao avistarem um carro puxado por dois cavalos, cortaram para alcançar a estrada O velho cossaco que conduzia a viatura meteu os cavalos a galope, mas os tiros obrigaram-no a parar.
- Vou trespassar aquele tipo com o sabre, grande malandro!
- Para lhe ensinar a fugir... - disse entre dentes Kocheliov, enquanto fustigava o seu cavalo com toda a força.
- Não lhe toques, Sachka, proíbo-te! - gritou Fômine.
E chamou de longe:
- Desatrela, tiozinho, estás a ouvir? Desatrela se tens amor à vida.
Indiferente às súplicas lacrimejantes do velho, eles próprios desatrelaram os tirantes, retiraram as cabeçadas e as coleiras, selaram rapidamente os cavalos.
- Ao menos deixem-me um dos vossos em paga! - suplicava o velhote a chorar.
- E um murro nas ventas, não queres, meu patife? - disse-lhe Kocheliov. - Nós também precisamos deles. Dá graças a Deus por ficares com vida...
Fômine e Tchumakov montaram os cavalos frescos. Não tardou que mais três cavaleiros se viessem juntar aos cinco que os perseguiam.
- Temos que meter a galope. Espicacem os cavalos, rapazes - ordenou Fômine. - Se chegarmos antes da noite aos vales de Krivsskoi estamos salvos...
Fustigou a sua montada, partindo à frente. O seu antigo cavalo trotava à esquerda, preso por uma rédea curta. Cortadas pelas patas dos animais, as túlipas vermelhas voavam em todas as direcções como grossas gotas de sangue. Grigóri, que galopava atrás de Fômine, ao ver aquelas manchas rubras, fechou os olhos. A cabeça andava-lhe à roda e voltou a sentir no peito a antiga dor...
Os cavalos estavam exaustos, bem como os homens, cansados por aquela corrida incessante, mortos de fome. Sterliadnikov oscilava na sela, mais branco do que um lençol. Perdera muito sangue. Torturavam-no a sede e a náusea. Comeu um bocado de pão duro, mas vomitou-o logo.
Ao crepúsculo, junto da aldeia de Krivsskoi, penetraram no meio de uma manada de cavalos que voltava da estepe. Dispararam ainda alguns tiros contra os seus perseguidores e verificaram com alegria que estes tinham parado. Os nove cavaleiros estavam reunidos lá longe, em consulta, pelos vistos, depois voltaram para trás.
Passaram dois dias em Krivsskoi, na casa de um cossaco conhecido de Fômine. Era um homem rico e recebeu-os bem.
Os cavalos ficaram instalados num telheiro escuro; deram-lhes tanta aveia que eles não conseguiram comê-la toda e ao fim desses dois dias encontravam-se totalmente refeitos daquela corrida louca. Os soldados de Fômine tratavam dos cavalos à vez, dormiam numa arrecadação de estrume forrada de teias de aranha e comiam até fartar em paga dos dias magros que haviam passado na ilha.
Se não fosse Sterliadnikov, poderiam ter partido logo no dia imediato: mas a ferida deste estava cada vez pior; pela manhã, aparecera toda vermelha em volta; à noite a perna inchara e Sterliadnikov perdeu os sentidos. Estava abrasado em sede e passou a noite a pedir água; assim que recuperava os sentidos, bebia sofregamente. Esgotou quase um balde em toda a noite, mas já não era capaz de se levantar, mesmo ajudado; cada movimento lhe provocava uma dor atroz. Urinava sem se erguer do chão e gemia continuamente. Os outros transportaram-no para o fundo da granja, mas de nada valeu.
Gemia por vezes muito alto e, quando perdia a noção das coisas, gritava palavras sem sentido.
Tornou-se necessário organizar turnos para o vigiar. Davam-lhe de beber, humedeciam-lhe a fronte escaldante e, quando se punha a gritar ou a delirar muito alto, tapavam-lhe a boca com a mão ou com um sabre.
No fim do segundo dia, Sterliadnikov voltou a si e disse que se sentia melhor.
- Quando fazem tenção de sair daqui? perguntou ele a Tchumakov, depois de o chamar com um dedo.
- Esta noite.
- Partirei convosco. Não me deixem, pelo amor de Deus!
- Como há-de ser isso? - perguntou Fômine a meia voz. Não consegues mexer-te.
- Qual, não me posso mexer! Olha!
Sterliadnikov ergueu-se com esforço, mas caiu logo para trás.
Tinha o rosto a escaldar e pequenas gotas de suor cobriam-lhe a testa.
- Vamos levar-te - declarou resolutamente Tchumakov.
- Levamos-te, não tenhas medo, peço-te. E limpa essas lágrimas, não és nenhuma mulher!
- Isto é suor - murmurou baixinho Sterliadnikov, puxando o boné para os olhos...
- Nós bem queríamos deixar-te, mas o dono da casa não está pelos ajustes. Não tenhas receio, Vassilli, a tua perna vai curar-se e ainda havemos de lutar juntos e dançar à cossaca. Porque estás assim desanimado, hem? A ferida não tem boa cara, mas não é um caso perdido.
Tchumakov, sempre duro e grosseiro nas suas relações com os outros, dissera isto tão amavelmente, num tom tão cordial e sincero, que Grigóri o fitou surpreendido.
Abandonaram a aldeia um pouco antes de romper o dia.
Sterliadnikov foi instalado com grande custo sobre o cavalo, sempre a oscilar, ora para um lado, ora para o outro. Tchumakov, a seu lado, segurava-o com o braço direito.
- Que estopada... Temos de o deixar em qualquer parte - murmurou Fômine que se aproximara de Grigóri, abanando tristemente a cabeça.
- Acabamos com ele?
- Que outra coisa se pode fazer? Não vamos passar todo o tempo a apaparicá-lo. Que queres tu que se lhe faça?
Seguiram muito tempo calados, a passo. Tchumakov foi rendido por Grigóri, e depois este por Kocheliov. O sol apareceu. No vale, o nevoeiro pairava por cima do Don, mas sobre a colina os longes da estepe permaneciam ainda transparentes e claros e a abóbada do céu, ornamentada lá no alto por alguns cirros estáticos, tornava-se mais azul de minuto para minuto. Um orvalho espesso cobria a erva de um brocado de prata, e as patas dos cavalos deixavam marcas escuras, semelhantes a regatos. Apenas as cotovias perturbavam, o grande silêncio benéfico que envolvia a estepe.
Sterliadnikov, cuja cabeça baloiçava ao sabor dos passos do cavalo, disse baixinho:
- Oh, como isto custa!
Fômine interrompeu-o com brutalidade:
- Cala-te! Para nós também não é fácil carregar contigo.
Perto da estrada dos Hetmans, uma abequinha saltou debaixo das patas dos cavalos. O bater sibilante e fremente das suas asas despertou Sterliadnikov do torpor em que ia mergulhado.
- Irmãos, deixem-me descer do cavalo... - suplicou.
Kocheliov e Tchumakov, tirando-o da sela, deitaram-no com precaução a erva molhada.
- Deixa ao menos ver o estado da tua perna. Anda, desaperta as calças - pediu Tchumakov, agachando-se.
A perna de Sterliadnikov estava monstruosamente inflamada, dura, e enchia a calça larga sem que esta fizesse qualquer prega. A pele mostrava-se violácea e luzidia até à anca, com manchas negras, aveludadas ao tacto. Também se viam manchas, mais claras, no ventre cavado. Tanto a ferida como o sangue coalhado nas calças exalavam já um cheiro a podre, e Tchumakov examinava a perna do amigo a tapar o nariz com os dedos, fazendo caretas e reprimindo a custo a náusea que lhe subia à garganta. Por fim, contemplou as pálpebras roxas de Sterliadnikov que cerrara os olhos, trocou um olhar com Fômine, e disse:
- Isto até parece o fogo de Santo António... Sim, a coisa está séria, Vassili Sterliadnikov... muito séria, mesmo... Ah, Vassia, tiveste pouca sorte!...
Sterliadnikov, a respirar com dificuldade, não falava.
Fômine e Grigóri saltaram em terra ao mesmo tempo, como que obedecendo a uma ordem e aproximaram-se do ferido, do lado donde soprava o vento.
Sterliadnikov ficou ainda um momento imóvel, depois sentou-se, apoiando-se com as duas mãos, e fitou os companheiros com os olhos turvos, que a renúncia tornava severos.
- Irmãos, acabem comigo... Já não pertenço a este mundo. Não aguento, já não tenho forças...
Voltou a deitar-se de costas e cerrou os olhos. Fômine e os outros já sabiam que ele havia de acabar por lhes fazer aquele pedido e esperavam por isso. Fômine, depois de piscar o olho a Kocheliov, voltou as costas. Kocheliov pegou na espingarda sem discutir. “Dispara”, disse Tchumakov, que se afastara um pouco, e Kocheliov adivinhou mais do que ouviu o que ele disse. Porém Sterliadnikov, abrindo os olhos, disse com firmeza:
- Aponta aqui. Ergueu a mão e apontou para a base do nariz. Para que a luz se apague de uma vez... Quando chegarem à minha aldeia digam à minha mulher o que se passou... Que não espere mais por mim.
Kocheliov levou um tempo desusado a manejar a culatra da espingarda e Sterliadnikov, de pálpebras cerradas, acrescentou:
- Só lá tenho a mulher... Não tenho nenhum filho... Ela teve um, mas morreu... Nunca mais nasceu outro...
Kocheliov levou por duas vezes a espingarda à cara, mas abaixou-a; estava cada vez mais pálido... Tchumakov, furioso, empurrando-o com o ombro, tirou-lhe a arma das mãos.
- Se não és capaz, desiste, alma de um raio!
Tirou o boné e alisou os cabelos.
- Depressa! exigiu Fômine, já com o pé no estribo.
Lentamente, muito baixinho, à procura das palavras, Tchumakov começou a falar:
- Vassili, adeus, e perdoa-nos a todos, em nome de Cristo. Encontrar-nos-emos no outro mundo e lá seremos julgados. Falaremos à tua mulher, conforme pediste.
Esperou uma resposta, mas Sterliadnikov permaneceu calado, sempre cada vez mais pálido, à espera da morte. Apenas as suas pestanas, queimadas pelo sol, se agitavam como que por acção do vento, e os dedos da mão esquerda moviam-se devagar, tentando, sabe-se lá porquê, abotoar sobre o peito um botão partido do casaco
Grigóri tinha visto morrer muitas pessoas na sua vida, mas não quis presenciar aquela morte. Deu rapidamente alguns passos, a segurar energicamente as rédeas do cavalo.
Esperava o tiro como se fosse ele a recebê-lo entre as omoplatas Esperava, e o seu coração contava os segundos e, quando a detonação estalou atrás dele, as suas pernas dobraram-se e foi a custo que dominou o cavalo que se empinava
Cavalgaram durante duas horas sem trocarem palavra.
Tchumakov, quando pararam, foi o primeiro a romper o silêncio com a mão a tapar os olhos, disse numa voz surda:
- Meu Deus, porque foi que o matei? Devia tê-lo deixado na estepe, sem sobrecarregar a consciência com mais este pecado. Tenho-o sempre diante dos olhos
- Ainda não te acostumaste? - disse Fômine. Depois de teres morto tanta gente ainda não conseguiste habituar-te? Deves ter em lugar do coração um bocado de ferro ferrugento
- Não me provoques, Iakov Efímitch - disse baixinho Tchumakov - Não me faças perder a cabeça, pois sou muito capaz de dar também cabo de ti Nem me custava nada.
- Provocar-te? Era o que mais me faltava! Já tenho preocupações que bastem - declarou Fômine num tom conciliante, deitando-se de costas.
O sol fê-lo piscar os olhos e espreguiçou-se com volúpia.
Ao contrário do que previra Grigóri, nos dez dias que se seguiram, vieram juntar-se a eles mais uns quarenta cossacos, fugidos de vários bandos desfeitos. Depois de perderem os seus atamanes, erravam através do distrito e logo se puseram ao lado de Fômine. Pouco lhes interessava servir este, de matar aquele, desde que pudessem continuar naquela vida nómada e espoliar todos aqueles que lhes vinham parar ao alcance. Eram homens sem fé nem lei, e Fômine, ao contemplá-los, dizia para Grigóri com desprezo: “Ah, Melekhov, isto não são homens, é a escória!... Uns verdadeiros malfeitores, todos eles!” No fundo, Fômine acreditava que estava lutando pelo povo trabalhador e afirmava ainda (com menos frequência do que outrora, é certo): “Nós somos os libertadores do povo cossaco...” Agarrava-se teimosamente às esperanças mais absurdas... Voltara a fechar os olhos aos assaltos cometidos pelos seus companheiros, achando que aquilo era um mal inevitável que se tinha de tolerar, mas pensando que, no decorrer do tempo, conseguiria livrar-se dos ladrões e, mais tarde ou mais cedo, acabaria por vir a ser o verdadeiro chefe das unidades insurrectas e não o atamane de um bando minúsculo
Porém Tchumakov qualificava os homens de Fômine de ladrões e esfalfava-se a tentar provar a este que ele próprio nada mais era do que um bandido de estrada. Sempre que se encontrava a sós, rebentavam entre eles violentas discussões.
- Eu sou um combatente ideológico contra o poder dos Sovietes gritava Fômine, vermelho de cólera. E tu chamas-me o que te vem à cabeça! Como podes tu perceber, imbecil, que eu me estou batendo por uma ideia?
- Não tentes fazer de mim parvo - replicava Tchumakov.- Nunca me obrigarás a acreditar nessas asneiras. Não sou nenhuma criança. Que belo combatente ideológico! Não passas de um bandido, acabou-se. Impressiona-te esta palavra?
- Não compreendo.
- Porque me insultas assim? Porquê, meu Deus? Revol tei-me contra o poder dos Sovietes e luto de armas na mão. Isto é ser um bandido?
- O facto de lutares contra o poder prova que és umbandido. Os bandidos sempre lutaram contra o poder, em todos os tempos. Seja ele o que for, o poder dos Sovietes representa a lei e mantém-se desde 1917; aquele que luta contra ele é um bandido.
- Tu não tens nada dentro da cabeça. E o general Krasnov e Denikine, também eram bandidos?
- E então? Pois claro que eram. Bandidos com galões.
- E os galões não significam grande coisa. Nós também podemos usá-los.
Fômine dava punhadas, cuspia e, à falta de argumentos convincentes, desistia da discussão. Impossível convencer Tchumakov.
A maior parte dos recém-chegados vinham admiravelmente armados. Quase todos traziam bons cavalos treinados em longos percursos e capazes de percorrer centenas de verstás por dia. Alguns tinham dois cavalos: um transportava o cavaleiro ao passo que o outro o sobressalente galopava sem sela a seu lado. Em caso de necessidade, o cavaleiro mudava de cavalo e ia-os deixando descansar à vez, o que lhe permitia percorrer duzentas verstás em vinte e quatro horas. Um dia, Fômine disse a Grigóri:
- Se tivéssemos tido logo dois cavalos para cada um, eles nunca nos conseguiriam alcançar. A milícia e o Exército Vermelho não podem tirar cavalos à população. Não se atrevem, mas a nós tudo é permitido. Os velhos contam que, noutros tempos, os Tatares possuíam dois cavalos e até mesmo três. Assim quem os poderia apanhar? Temos de lhes seguir o exemplo. A mim agrada-me bastante esse processo dos Tatares.
Em breve conseguiram arranjar cavalos, e isto tornou-os inatacáveis nos primeiros tempos. O grupo de milícia montada há pouco organizado em Viochénsskaia nunca conseguia apanhá-los. Os cavalos sobressalentes permitiam ao pequeno bando de Fômine distanciar-se facilmente do inimigo e ganhar-lhe várias etapas, ao mesmo tempo que evitava qualquer recontro duvidoso.
Uma vez, contudo, em meados de Maio, um grupo, que era quatro vezes superior em número, conseguiu encurralar Fômine junto da aldeia de Bobróvsski, na stanitsa de Urst-Khopersskaia. O bando, porém, logrando escapar-se, fugiu ao longo do Don, embora tivesse deixado atrás de si oito mortos ou feridos. Pouco depois, Fômine propôs a Grigóri o posto de chefe do Estado-Maior.
- Precisamos de um homem instruído para fazer os planos, para avançar de acordo com o mapa, de contrário eles cercam-nos e podem dar-nos um enxerto. Tens de encarregar-te disto, Grigóri Panteleiévitch.
- Para capturar milicianos e cortar-lhes as cabeças não é preciso Estado-Maior - observou Grigóri, com um ar aborrecido.
- Qualquer destacamento necessita de um Estado-Maior, não digas asneiras.
- Então porque não assumes tu esse posto?
- Não percebo nada disso.
- E Tchumakov?
- Também não.
- Caramba, então porque o atiras para cima de mim?
- És oficial, deves perceber do assunto, saber o que é atáctica e todos esses truques.
- Fui oficial como tu és chefe de destacamento. De resto, a nossa táctica é muito simples: galopar na estepe e olhar para trás de vez em quando - respondeu ironicamente Grigóri.
Fômine, a piscar o olho, ameaçou Grigóri com o dedo.
- Já te conheço as manhas. Queres ficar de parte, pões-te na sombra Isso de nada te servirá, meu caro. Tanto faz ser-se chefe do Estado-maior como chefe de pelotão, o preço é o mesmo. Julgas que, se te apanharem, te fazem um desconto? Não esperes por isso!
- Não estou a pensar em nada, guarda para ti as tuas suposições - respondeu Grigóri, de olhos fitos na dragona do sabre. - Mas não quero encarregar-me daquilo que não percebo.
- Bem, se não queres, não queres, passaremos sem ti - respondeu Fômine, despeitado.
A situação no distrito modificara-se sensivelmente: as casas abastadas, que antes acolhiam Fômine com a maior hospitalidade, fechavam agora as suas portas a sete chaves e, assim que o bando aparecia, os proprietários iam esconder-se nas hortas e nos prados. O tribunal revolucionário volante, instalado em Viochénsskaia, condenara severamente grande número de cossacos que se haviam mostrado outrora simpatizantes com Fômine. A notícia dera a volta às stanitsas e produzira os seus resultados no espírito daqueles que exprimiam abertamente a sua simpatia pelos bandidos.
Em quinze dias Fômine percorreu todas as stanitsas do o Alto Don. O bando contava cerca de cento e trinta homens; tinham agora a persegui-lo vários esquadrões do 13.º Regimento de Cavalaria transferido do Sul e já não um simples grupo de cavaleiros formado à pressa.
Entre os bandidos que se haviam reunido a Fômine nos últimos tempos, muitos vinham de bastante longe. Tinham chegado até ao Don por caminhos diferentes: alguns eram desertores de um comboio de prisioneiros, de uma cadeia ou de um campo de concentração; a maior parte pertencia ao grupo de Maslak; outros, enfim, eram os sobreviventes do bando de Kurotchkine, que fora desmembrado. Os homens de Maslak tinham consentido que os separassem e integrassem noutros pelotões, mas os que vinham do bando de Kurotchkine haviam-se recusado a fazer isso. Formavam um pelotão à parte, solidamente unido, sempre um pouco afastado dos outros. Permaneciam solidários tanto no combate como no descanso, auxiliavam-se entre si, e, sempre que pilhavam um armazém da única sociedade de consumo ou uma cantina, punham o lucro em comum e, ao partilhá-lo, observavam rigorosamente o princípio da igualdade.
Alguns cossacos do Terek e do Kúbano, de casacos Tcherkesses já gastos, dois kalmuks da stanitsa de Velikokniajesskaia, um letão com umas botas de caça que lhe chegavam à cintura, cinco marinheiros anarquistas de camisolas riscadas e blusões desbotados, todos vinham tornar ainda mais heterogéneo aquele bando.
Um dia, mostrando com os olhos a coluna em fila, Tchumakov perguntou a Fômine:
- Continuas a teimar que isto não são bandidos mas sim combatentes ideológicos? Só nos falta um pope despadrado e porcos de calções para termos 'toda a escolta da Santa Virgem...
Fômine não respondeu. O único desejo era reunir em sua volta o maior número possível de gente. Não perdia tempo com qualquer espécie de consideração antes de aceitar os voluntários. Interrogava pessoalmente todos aqueles que exprimiam o desejo de servir sob as suas ordens e respondia apenas:
- Estás apurado. Ficas. Vai ter com Tchumakov, o meu chefe do Estado-maior. Ele que te indique o pelotão e te dê uma arma.
Numa aldeia da stanitsa de Migulinsskaia, levaram à presença de Fômine um rapaz bem vestido, moreno, de cabelos encaracolados, que se mostrou desejoso de ingressar no bando.
O interrogatório revelou que o jovem era de Rostov, tendo sido recentemente condenado por pilhagem à mão armada, mas evadira-se da prisão de Rostov e viera até ao Alto Don por ter ouvido falar em Fômine.
- Qual é a tua origem? Arménio ou búlgaro? - inquiriu Fômine.
- Nada disso. Sou judeu - respondeu o rapaz, após um momento de hesitação.
A resposta era inesperada, e Fômine ficou perplexo. Não sabia o que fazer naquela circunstância imprevista. Depois de ter reflectido um momento, soltou um suspiro e disse:
- Bem, se és judeu, acabou-se. Não recusamos ninguém... Sabes ao menos montar a cavalo? Não? Se não sabes, aprendes. Vamos dar-te primeiro uma eguazita mansa. Vai procurar Tchumakov e ele te dirá onde ficas incorporado.
Dali a minutos, Tchumakov, fulo, chegava a galope.
- Estás louco ou andas a brincar comigo? - gritou ele, fazendo recuar o cavalo. - Que significa isso de me mandares um yupine? Não quero nada com essa gente. Que vá para o raio que o parta!
- Aceita-o, aceita-o, sempre é mais um homem – respondeu tranquilamente Fômine.
Tchumakov, porém, com a boca cheia de espuma, pôs-se a berrar:
- Não quero isso! Mato-o, mas não o quero cá. Os cossacos protestam. Vai lá tu entender-te com eles.
Enquanto discutiam, os cossacos, atrás de um carro, tinham despojado o jovem judeu da sua camisa bordada e das calças largas. Dizia um deles, enquanto experimentava a camisa:
- Estás a ver aquelas ervas perto da aldeia? Vai até lá a trote e deita-te no meio delas. Ficas escondido aí até nós partirmos e depois vai para onde te apetecer. Não voltes para junto de nós, senão damos cabo de ti. Vai até Rostov, para casa da tua mãe. Vocês, judeus, nada têm a ver com a guerra. Deus fez-vos para o comércio e não para a guerra. Passamos bem sem vocês, cá nos arranjaremos.
E o judeu não foi aceite; em contrapartida, no mesmo dia, incorporaram no segundo pelotão, no meio de grandes risos e chacotas, um idiota chamado Facha, célebre em todas as aldeias da stanitsa de Viochénsskaia. Tinham-no apanhado na estepe e trazido para a aldeia, vestiram-lhe cerimoniosamente uma farda que tiraram a um soldado vermelho morto e, depois de lhe haverem ensinado a manipular uma espingarda treinaram-no no uso do sabre.
Grigóri ia ver os cavalos que estavam no piquete quando deparou com uma multidão compacta; dirigiu-se para ela. Um coro de gargalhadas fê-lo apressar o passo. No silêncio que se seguiu, escutou uma voz de mestre-escola que dizia:
- Assim não, Facha. Não é dessa maneira que se maneja o sabre. Pareces um rachador! Faz-se assim, percebes? Quando capturares alguém manda-lo pôr de joelhos. Se o homem ficar de pé, nunca conseguirás dar-lhe uma sabrada... Assim que ele se puser de joelhos, vais por trás e cortas-lhe o pescoço. Nunca faças isso de cima para baixo. A lâmina tem de descer em viés.
O inocente estava perfilado no meio dos bandidos e apertava com força o punho de um sabre desembainhado. Escutava as instruções de um dos cossacos e franzia beatificamente as sobrancelhas a sorrir, com os olhos cinzentos arregalados. Tinha a boca cheia de espuma, como os cavalos, por cima das gengivas inflamadas; escorria-lhe a saliva para a barba cor de cobre avermelhado... Lambia os beiços grossos e gaguejava:
- Já percebi tudo, amigo, já percebi... Vou fazer assam... ponho o escravo de Deus de joelhos e corto-lhe o pescocinho... muito bem cortado. Vocês já me deram umas calças, uma camisa e umas botas... Mas não tenho casaco... Se me dessem um capotinho... podiam contar comigo. De todo o meu coração
- Basta matares um comissário para ficares com um capote.
- Agora conta-nos como te casaste no ano passado - pediu um dos cossacos.
Um terror animal luziu nos olhos piscos e turvos do inocente. Praguejou durante muito tempo, começando depois a contar a história ao som de risos. Era tudo tão repugnante que Grigóri se afastou a toda a pressa, arrepiado.
“Com quem eu me vim meter!”, pensava, tomado de angústia, de amargura e de raiva contra si próprio e contra aquela vida odiosa...
Deitou-se junto dos cavalos, a tentar não ouvir os gritos do idiota e as gargalhadas dos cossacos. “Amanhã vou-me embora! Já é mais do que tempo!”, disse consigo, a olhar para os cavalos que estavam folgados e gordos. Planeara minuciosamente a partida sem nada deixar ao acaso. Roubara a um miliciano morto os documentos passados em nome de um tal Uchakov e escondera-os no forro do capote. Quanto aos cavalos, andava a prepará-los havia quinze dias para uma corrida breve mas rápida: nunca se esquecia de lhes dar de beber, esfregava-os com palha como nunca fizera, mesmo durante o serviço militar, e recorria a todos os processos para lhes- arranjar aveia em todas as aldeias onde paravam para passar a noite. Os seus cavalos, agora, tinham melhor aspecto do que os outros, sobretudo o taurídio cinzento mosqueado, cujo pêlo brilhante cintilava ao sol como a prata anilada do Cáucaso.
Com aqueles cavalos poderia escapar a qualquer perseguição. Grigóri ergueu-se, entrou num pátio vizinho e perguntou respeitosamente a uma velha que estava sentada na soleira da granja:
- Tens uma foice, tiazinha?
- Tinha uma, mas agora só o diabo pode saber onde ela pára. Para que a queres tu?
- Para cortar um bocado de erva no teu prado para os meus cavalos. Dás licença?
A velha reflectiu um momento e por fim disse:
- Mas quando é que vocês nos deixam em paz? Ora pedem isto, ora aquilo... Uns querem trigo, outros vêm-nos tirar tudo quanto apanham à mão. Não te dou a minha foice. Arranja-te como quiseres, mas não ta dou.
- Então, velhinha, estás assim tão agarrada à tua erva?
- E então? Julgas que ela nasce à toa para aí? Que hei-de eu dar à minha vaca?
- Há falta de erva na estepe?
- Nesse caso vai lá tu, meu rapaz. Há muita erva na estepe.
Grigóri retorquiu com irritação:
- Era melhor dares-me a foice, tiazinha. Vou cortar um bocado de erva e ainda lá fica muita. De contrário, levamos os cavalos para o prado e vais ver o que fica.
A velha, depois de olhar fixamente para Grigóri, voltou-lhe as costas:
- Vai lá buscá-la. Acho que está debaixo do telheiro.
Grigóri encontrou uma velha foice partida e, ao passar diante da velha, ouviu-a murmurar:
- Uma morte vos desse, malditos!
Grigóri não conseguia habituar-se àquela vida. Notara havia muito os sentimentos dos aldeãos. “Têm razão”, pensava, lançando conscienciosamente a foice para não deixar nada atrás de si. “Para que precisam eles de nós? Ninguém precisa de nós e estamos a impedir toda a gente de viver em paz e de trabalhar. Temos de acabar com isto, já basta!” Mergulhado nestes pensamentos, ia observando os cavalos a agarrarem avidamente com os beiços aveludados nos molhos de erva tenra. Uma voz juvenil e velada veio tirá-lo daquele sonho.
- Oh, que lindo cavalo! Parece mesmo um cisne!
Grigóri olhou de banda para quem acabava de falar. Era um jovem cossaco da stanitsa de Alexeievsskaia, chegado havia pouco, que estava a contemplar o cavalo, abanando a cabeça com admiração. Sem afastar do animal os olhos maravilhados, andou por várias vezes em volta dele, dando estalos com a língua.
- É teu, ou quê?
- Tens alguma coisa com isso? - respondeu Grigóri, azedo.
- Queres trocar? Tenho um puro-sangue do Don, que é vivo e salta qualquer obstáculo! Rápido como o relâmpago.
- Vai para o diabo - tornou friamente Grigóri.
O rapaz, depois de ter estado em silêncio durante um momento, suspirou com tristeza, indo sentar-se a pouca distância. Observou demoradamente o cavalo cinzento e disse por fim:
- Tem pulmoeira, respira mal.
Grigóri palitava os dentes com uma palhinha. Aquele rapaz ingénuo começava a agradar-lhe.
- Não queres trocar comigo, tiozinho? - prosseguiu o garoto, fazendo uns olhos suplicantes.
- Não, mesmo que tu te oferecesses também juntamente com o teu cavalo.
- E onde foste tu arranjar esse animal?
- Fabriquei-o.
- Não, diz lá a sério...
- Todos os cavalos vêm ao mundo pela mesma porta. São filhos de uma égua.
- Não se pode discutir com este idiota! - respondeu o rapaz, irritado. E foi-se embora.
A aldeia, em frente de Grigóri, estava deserta, como se tivesse sido devastada pela morte. Além dos homens de Fômine, não se via vivalma. Uma carroça abandonada na viela, um cepo no meio do pátio com um machado espetado, uma tábua principiada a aplainar, uma junta de bois com a soga pendente a pastar na erva do meio da rua, um balde de fundo para o ar junto do poço, tudo demonstrava que a vida pacífica da aldeia fora interrompida de súbito e que os seus habitantes se haviam eclipsado no meio do trabalho.
Grigóri vira já aldeias, como esta, abandonadas, idênticos sinais de fuga precipitada, quando os regimentos cossacos percorriam a Prússia Oriental. Via-os agora no seu próprio país...
Era com o mesmo olhar sombrio e odiento que mostravam nessa altura os alemães que os cossacos o acolhiam hoje. Recordando-se das palavras da velha” olhou em volta com angústia, enquanto desapertava o colar da camisa. Sentia de novo a dor no peito.
O Sol queimava a terra. O cheiro adocicado da poeira, da erva-formiga e do suor de cavalo flutuava na viela. Nos jardins, sobre os salgueiros cheios de ninhos esfiapados, grasnavam os corvos. Um pequeno regato da estepe, alimentado por nascentes que brotavam, algures na encosta, corria lentamente através da aldeia, dividindo-a ao meio. De ambos os lados, estendiam-se vastas herdades cossacas perdidas na verdura das hortas, com cerejeiras a esconder as janelas e macieiras ramalhudas erguendo para o céu as suas verdes folhagens e as suas promessas de frutos.
Grigóri contemplara com os olhos embaciados o pátio invadido pela tanchagem, a casa de portadas amarelas e tecto de colmo, a grande cegonha do poço... Junto à eira, um enorme crânio de cavalo, esbranquiçado pelas chuvas, de órbitas negras arregaladas, erguia-se espetado na estaca de uma vedação. Na mesma estaca, enrolava-se em espiral a haste verde de uma corriola, a erguer-se para a luz. Atingira o cimo da estaca e agarrava-se com as gavinhas peludas às saliências do crânio, aos dentes do cavalo morto e a sua ponta, caída em busca de apoio, alcançava a haste de uma roseira brava.
Onde vira já Grigóri tudo isto? Em sonhos ou algures na sua infância? Assaltado por uma angústia pungente, atirou-se para junto da cerca a esconder o rosto nas mãos, e só se ergueu ao ouvir o grito longínquo e prolongado: “Selem os cavalos!”
Nessa noite, na estrada, saiu das fileiras e parou como que para apertar a sela dos cavalos. Ficou-se a escutar o barulho das ferraduras que se afastava lentamente, diminuindo pouco a pouco, até que saltou para a sela e partiu a galope estrada fora.
Durante cinco verstás, incitou os cavalos sem descanso, depois meteu a passo, apurando o ouvido para se certificar de que não era perseguido. Tudo estava calmo na estepe. Apenas as abequinhas chamavam umas pelas outras num tom lamentoso, sobre os charcos. Lá longe, tão longe que mal se ouvia, ladrava um cão.
Céu negro semeado de estrelas de oiro. Estepe silenciosa, brisa a rescender ao perfume amargo e familiar do absinto...
Erguido sobre os estribos, Grigóri soltou do fundo do peito um suspiro de alívio...
Chegou muito antes de nascer o dia à planície em frente de Tatársski. Acima da aldeia, no ponto em que o Dom era menos profundo, despiu-se todo, prendeu as roupas, as botas e as armas à cabeça de um dos cavalos e, segurando nos dentes a cartucheira, partiu a nado a par dos dois animais. O frio da água produziu-lhe uma queimadura insuportável. Para se aquecer, nadava vigorosamente com o braço direito, sem largar as rédeas da mão esquerda, enquanto amimava a meia voz os cavalos que gemiam e espirravam.
Ao chegar à margem, vestiu-se à pressa, apertou as correias das selas e, para aquecer os cavalos, partiu a galope a caminho da aldeia. O capote encharcado, a sela molhada, a camisa húmida gelavam-lhe o corpo. Batia os dentes, percorrido de calafrios, todo a tremer. Mas não tardou que a corrida o aquecesse e, perto da aldeia, meteu a passo, de olhos e ouvidos atentos. Decidiu deixar os cavalos numa ravina, descendo até ao fundo, a escorregar sobre os calhaus. Estes quebravam-se sob as patas dos cavalos, lançando chispas de lume.
Prendeu os amimais a um tronco caído que conhecia desde a infância e entrou na aldeia.
Lá estava a velha herdade dos Melekhovs, as macieiras escuras, a cegonha do poço debaixo da Ursa Maior . A abafar de comoção, Grigóri desceu até ao Don, transpôs com toda a cautela a velha cerca da herdade dos Astakhovs e dirigiu-se para uma janela cujas portadas não uniam bem. Só ouvia o bater apressado do próprio coração e o sangue a pulsar-lhe na cabeça. Bateu de mansinho num vidro, tão de mansinho que mal se ouviu. Akcínia aproximou-se silenciosamente da janela e espreitou para fora. Ele viu-a apertar as mãos contra o peito e ouviu o gemido que lhe saía dos lábios. Acenando-lhe para que abrisse a janela, largou a espingarda. Akcínia abriu as portadas até trás
Grigóri murmurou:
- Pouco barulho. bom dia. Não abras a porta que eu entro pela janela
Subiu para o banco de terra batida. Os braços nus de Akcínia envolveram-lhe o pescoço; esses braços amados tremiam tanto que Grigóri foi invadido pela mesma tremura.
- Ksiúcha... espera pega na espingarda . murmurou ele a gaguejar, numa voz apenas audível.
Segurando no sabre, transpôs o parapeito da janela e fechou-a atrás de si.
Quis tomar Akcínia nos braços, mas ela deixou-se cair na frente dele, apertando-lhe os joelhos, com o rosto encostado ao capote húmido, toda sacudida de soluços. Grigóri obrigou-a levantar-se e a sentar-se no banco. Apoiada nele, com o rosto escondido no seu peito, ficou calada, sempre a tremer, mordendo a aba do capote para abafar os soluços e não acordar as crianças.
Ela, sempre tão forte, estava quebrada pelo sofrimento que a atormentara nos últimos meses... Grigóri passou-lhe a mão pelos cabelos caídos pelas costas abaixo, na testa ardente molhada de suor, e deixou-a chorar à vontade. Por fim perguntou.
- Os meninos estão bons?
- Estão.
- E Duniachka?
- A Duniachka também... também... está boa.
- O Mikhail está em casa? Pronto, acaba lá com isso, tenho a camisa toda molhada das tuas lágrimas... Ksiúcha!
- Pronto, minha querida! Não é altura de chorares, não temos tempo... O Mikhail está em casa?
Akcínia limpou a cara, apertou nas palmas dás mãos húmidas as faces de Grigóri. Sorrindo através das lágrimas e sem despregar os olhos do bem-amado, disse baixinho:
- Eu não... choro mais... O Mikhail não está... há dois meses que vive em Viochénsskaia, não sei em que unidade. Anda ver os meninos. Oh, nós não te esperávamos... não te esperávamos!...
Michatka e Poliúchka dormiam na sua caminha, por cima dos cobertores. Grigóri, curvando-se sobre eles, ficou um momento imóvel, depois afastou-se na ponta dos pés e veio sentar-se em silêncio junto de Akcínia.
- Que aconteceu? - murmurou ela febrilmente. - Como é que vieste? Onde estavas? E se te prendem?
- Vim buscar-te. Não tenhas medo que não me apanham. Queres vir?
- Para onde?
- Vens comigo. Deixei o bando. Andei com Fômine. Ouviste dizer?
- Ouvi. Mas para onde iremos?
- Para o sul. Para o Kúbano. Ficaremos por ali algum tempo, sempre havemos de arranjar de comer, bem Posso trabalhar em qualquer coisa. As minhas mãos querem trabalhar e não fazer guerra. Sofri muito durante estes últimos meses... Mas depois te conto.
- E as crianças?
- Deixamo-las com Duniachka. Depois viremos buscá-las. Hem? Queres vir comigo?
- Gricha... Grichenka...
- Isso não... Chorar não vale... Pronto! Poderemos chorar mais tarde, agora não temos tempo. Arranja-te, temos os cavalos à nossa espera numa ravina Então? Vens?
- Que pensas tu? - inquiriu ela de repente em voz alta, mas levando as mãos à boca num gesto de susto, lançou um olhar para as crianças. - Que pensas tu? - repetiu baixinho. Que gosto de estar sozinha? Anda, Grichenka, meu querido. Sou capaz de te seguir a pé, de rastos, se for preciso, não quero ficar só por mais tempo. Não posso viver sem ti... Mata-me, mas não me abandones outra vez.
Abraçou com força Grigóri. Este, enquanto a apertava nos braços, ia olhando pela janela. As noites de Verão são curtas, tinham de se despachar.
- Queres deitar-te um bocadinho? - perguntou Akcínia.
- Que estás tu a dizer? - retorquiu ele, assustado. - Não podemos demorar. Veste-te e vai chamar a Duniachka. Temos de combinar tudo com ela. Precisamos de chegar a Sukhoi logo antes do amanhecer. Passaremos o dia ali, na floresta. És capaz de montar a cavalo?
- Meu Deus, sou capaz de tudo! E perguntas se posso montar a cavalo! Ainda julgo que tudo isto é mentira. Vejo-te muitas vezes em sonhos, mas nunca da mesma maneira...
Enquanto falava, ela penteava-se à pressa, a segurar os ganchos com os dentes, numa voz baixa e indistinta. Vestiu-se rapidamente e deu um passo em direcção à porta.
- Acordamos os meninos? Tens de os ver, ao menos.
- Não, não vale a pena - respondeu Grigóri num tom decidido.
Tirou do boné a bolsa do tabaco e pôs-se a enrolar um cigarro, mas logo que Akcínia saiu, aproximando-se da cama, beijou os filhos durante muito tempo; recordou-se então de Natalia e de todas as coisas que tinham sucedido ao longo da sua triste vida. Chorou.
Ao entrar, Duniachka exclamou:
- Viva, irmãozinho! Estás de regresso? Fartaste-te de vaguear pela estepe? Desatou em lágrimas: O tempo que estas crianças têm esperado por ti! Eram órfãos com o pai vivo!...
- Fala baixo, vais acordá-los. Deixa, minha irmã. Já ouvi essa cantiga. Estou farto de lágrimas e bastam-me os meus próprios desgostos... Não foi para isto que te mandei chamar. Queres ficar com as crianças?
- Mas para onde vais tu?
- Vou-me embora e levo comigo a Akcínia. Ficas com os meninos? Quando arranjar trabalho, virei buscá-los.
- Ora essa! Se vocês ambos se vão embora fico eu com eles. Não os ia deixar na rua nem em casa de estranhos...
Grigóri beijou Duniachka em silêncio.
- Obrigadinho, irmã. Bem sabia que não ias recusar.
Duniachka, depois de se sentar na arca, perguntou:
- Quando partem vocês? É já?
- Sim.
- E a casa? A herdade?
Akcínia respondeu com decisão:
- Resolve tu. Arrenda ou faz como entenderes. O que fica das minhas roupas e coisas da casa é para ti...
- Que hei-de eu dizer às pessoas? Quando me perguntarem para onde foste, o que devo responder?
- Diz que não sabes nada - respondeu Grigóri. E voltando-se para Akcínia: - Despacha-te, prepara-te, Ksiúcha. Não leves muita coisa. Uma blusa de agasalho, duas ou três saias, toda a tua roupa interior e um guarda-chuva. É quanto basta.
A aurora começava a romper quando Grigóri e Akcínia saíram de casa depois de se despedirem de Duniachka e beijarem as crianças, que não tinham acordado. Desceram para o Don e alcançaram a ravina, caminhando pela margem.
- Uma vez, partimos ambos assim para irmos para Iagodnói recordou Grigóri. Mas a tua trouxa era maior e nós éramos ambos mais novos...
Cheia de alegria, Akcínia fitou Grigóri que caminhava a seu lado:
- Continuo com medo de que tudo isto seja um sonho. Dá-me a tua mão, deixa-me tocar-te, para eu acreditar.
Riu baixinho e encostou-se ao ombro de Grigóri.
Ele viu-lhe os olhos inflamados pelas lágrimas, brilhantes de felicidade, as faces pálidas na escuridão que precede o dia. Sorriu tristemente e pensou: “Ela preparou-se e partiu como quem vai fazer uma visita... Nada lhe mete medo. Isto é que é uma mulher corajosa!”
Como que para responder ao pensamento dele, Akcínia declarou:
- Vês: basta assobiares-me como a um cachorrinho e vou logo. Foi o meu amor por ti e a inquietação que me fizeram perder o juízo... Só tenho pena das crianças, mas por mim nada me interessa. Só quero seguir-te para toda a parte, até na morte.
Ao ouvir-lhes os passos, os cavalos relincharam baixinho.
O dia vinha nascendo rapidamente. Via-se já uma linha rosada a aparecer no céu, para as bandas do leste. O nevoeiro erguia-se do Don.
Grigóri desprendeu os cavalos e ajudou Akcínia a montar, mas os pés dela não chegavam aos estribos. Irritado com a sua imprevidência, encurtou as correias e subiu para o outro cavalo.
- Segue-me, Ksiúcha. Quando deixarmos a ravina iremos a galope. Assim não darás tantos balanços. Não afrouxes as rédeas. O teu cavalo não gosta disso. Cuidado com os joelhos. Ele tem manias e pode morder-te. Vamos, a caminho!
Havia oito verstás a percorrer até Sukhoi Log. Em breve cobriram essa distância e chegaram à floresta ao nascer do Sol. Junto das árvores, Grigóri saltou em terra e ajudou Akcínia a fazer o mesmo.
- Então? Custa muito montar a cavalo quando se não está habituado? perguntou ele, sorrindo.
Akcínia estava muito vermelha, com os olhos negros a luzir.
- Não muito. É melhor do que andar a pé. Mas as minhas pernas...
Sorria, envergonhada.
- Vira-te de costas, Gricha, para eu ver as minhas pernas. Sinto a pele a arder... Devo estar toda esfolada.
- Isso não é nada... Passa já - tranquilizou-a Grigóri. Mas mexe-te um pouco, estás a ficar com os joelhos a tremer. - E acrescentou ternamente irónico, a piscar os olhos: - Ah, mulher cossaca! Escolheu uma pequena clareira à borda de uma ravina e disse: Vamos acampar aqui. Põe-te à vontade, Ksiúcha.
Desaparelhou os cavalos, peou-os, escondeu as selas e as armas debaixo de uma moita. A erva estava coberta de um orvalho espesso e abundante que a tornava cinzenta; na encosta, onde a penumbra da aurora encontrava o derradeiro refúgio, parecia azulada. Dos cálices entreabertos das flores pendiam botões alaranjados. As cotovias cantavam por cima da estepe, nos trigos e nas ervas cheirosas. As codornizes repetiam sem cessar o seu grito que convidava a dormir. Grigóri, depois de espezinhar a erva debaixo de um maciço de carvalhos, deitou-se com a cabeça apoiada na sela. O cacarejar sonoro da codorniz, o canto das cotovias, o vento quente soprando nas areias da outra margem que a noite não arrefecera, tudo convidava ao sono. E Grigóri passara tantas noites sem dormir!
Vencido pelo canto das codornizes e pela sonolência, Grigóri fechou os olhos. Akcínia estava sentada junto dele, silenciosa, e arrancava, pensativa, com os dentes as pétalas de uma flor que cheirava a mel.
- Gricha, ninguém virá surpreender-nos aqui? - perguntou ela baixinho, tocando com a haste da flor a face áspera de Grigóri.
Ele saiu a custo da sonolência e disse numa voz rouca:
- Não anda ninguém na estepe. A esta hora está deserta. Vou dormir, Ksiúcha. Vigia os cavalos. Depois dormirás tu. Estou morto de sono... Estou a cair de sono... Há quatro dias que... Depois conversaremos. .
- Dorme, meu querido. Dorme bem.
Akcínia curvou-se para Grigóri e, afastando-lhe os cabelos da testa, poisou-lhe delicadamente os lábios na face.
- Grichenka, meu amor, tens tantos cabelos brancos... - murmurou ela. Estás a ficar velho? Ainda há pouco eras um garoto...
Contemplou o rosto de Grigóri com um sorriso melancólico. Ele dormia, de lábios entreabertos e com a respiração regular. As pestanas escuras, com as extremidades queimadas pelo sol, estremeciam de leve e o seu lábio superior tremia, descobrindo a fila de dentes brancos. Akcínia observava-o atentamente, e só então reparou como ele mudara durante aqueles meses de separação. Havia uma certa severidade, uma espécie de crueza nas fundas rugas transversais entre as sobrancelhas do seu amado, nas pregas da boca, na aresta viva das maçãs do rosto... E ela pensou pela primeira vez que ele devia ser terrível no combate, de sabre desembainhado, sobre o cavalo. Baixou os olhos e contemplou furtivamente as mãos grandes e nodosas de Grigóri, suspirando sem saber porquê.
Momentos depois, Akcínia ergueu-se de mansinho e atravessou a clareira, arregaçando muito a saia para a não molhar na erva húmida de orvalho. Um regato que saltitava sobre as pedras murmurava ali perto. Ela desceu até à ravina, cujo leito era atapetado de pedras chatas e musgosas, bebeu água da nascente gelada, lavou-se e tirou o lenço para limpar o rosto afogueado. Conservava nos lábios um sorriso feliz, os seus olhos brilhavam alegremente. Grigóri estava de novo com ela! E, mais uma vez, o futuro desconhecido a fazia sonhar com uma felicidade quimérica... Chorava tanto nas suas noites de insónia, sofrera tanto naqueles últimos meses!... Ainda ontem, durante o dia, na horta, quando as vizinhas, entretidas a sachar as batatas tinham começado a cantar aquela canção triste, sentira o coração apertado e escutara sem querer os versos:
Voltem, voltem, patos bravos,
É tempo de ir para a água,
É tempo de ir para a água,
Para mim é tempo de mágoa...
Cantava uma voz vibrante, a lamentar a sorte maldita. E Akcínia não pudera conter as lágrimas que lhe saltavam dos olhos.
Quisera afogar-se no trabalho, matar a angústia que lhe roía o coração, mas as lágrimas velavam-lhe os olhos, caíam em gotas apressadas sobre a rama verde das batateiras, e ela não via nada, não podia trabalhar. Atirara fora o sacho e sentara-se no chão, tapando o rosto, a dar livre curso ao pranto...
Ainda ontem amaldiçoava a vida e tudo à sua volta se lhe afigurava escuro e sem alegria como num dia de chuva, mas hoje o mundo parecia-lhe alegre e luminoso como no fim de um fértil aguaceiro de Verão. “Também nós encontraremos o nosso destino”, pensava, a contemplar, distraída, os raios oblíquos do sol nascente.
Junto das moitas, ao sol, cresciam flores perfumadas, de todas as cores. Akcínia apanhou um braçado, sentou-se com precaução junto de Grigóri e, a recordar-se dos seus tempos de rapariga, fez uma coroa bela e graciosa. Admirou-a durante muito tempo, espetou-lhe ainda algumas rosas bravas, e depois poisou-a com cautela sobre os cabelos de Grigóri.
Cerca das nove horas, Grigóri foi despertado por um dos cavalos que relinchava. Sentou-se em sobressalto e procurou a arma às apalpadelas.
- Não é ninguém - disse-lhe Akcínia. - De que tens medo?
Grigóri esfregou os olhos e respondeu, com um sorriso ensonado:
- Acostumei-me a viver como uma lebre. Dorme-se só com um olho e dá-se um salto a cada ruído que se ouve... Isto, minha filha, é um hábito que custa a perder. Dormi muito?
- Não. Queres dormir mais?
- Preciso de dormir um dia inteiro para me refazer completamente. Vamos antes almoçar. Tens pão e uma faca dentro dos alforges da minha sela. Vou dar de beber aos cavalos.
Levantou-se, despiu o capote e sacudiu os ombros. O sol era quente. O vento agitava as folhas das árvores e o seu rumorejar cobria o murmúrio do regato.
Grigóri desceu até à água, fez um dique com pedras e ramos. Servindo-se do sabre como se fosse uma enxada, tapou com terra os interstícios das pedras. Quando a água subiu, foi buscar os cavalos e fê-los beber, depois tirou-lhes a cabeçada e deixou-os pastar de novo.
Durante o almoço, Akcínia perguntou:
- Para onde iremos quando sairmos daqui?
- Para Morozovskaia. Seguimos a cavalo até Platov e depois a pé.
- E os cavalos?
- Abandonamo-los.
- É pena, Gricha. Uns cavalos tão bons. Não me canso de olhar para o cinzento. Temos de os abandonar? Onde é que os arranjaste?
- Arranjei-os...Grigóri sorriu tristemente. Roubei-os a um taurídio. - E acrescentou após um curto silêncio: - Embora seja uma pena, temos de os abandonar . Não somos negociantes de cavalos.
- Mas para que conservaste as armas? Para que as queremos? Se por desgraça alguém as vir, é mau para nós.
- Quem queres tu que as veja de noite? Trouxe-as por precaução. Sem elas não me sinto seguro... Quando abandonarmos os cavalos, deixarei também as armas. Nessa altura já não serão precisas.
Depois do almoço, deitaram-se ambos sobre o capote estendido. Grigóri lutava em vão contra o sono e Akcínia, apoiada nos cotovelos, contava o que fora a sua vida sem ele, e o que sofrera durante todo aquele tempo. Grigóri escutava-lhe a voz monótona através de uma sonolência irresistível e não tinha forças para erguer as pálpebras pesadas. Por vezes, deixava de ouvir. A voz de Akcínia afastava-se, esbatia-se, sumia-se por completo. Ele estremecia, despertava, mas voltava logo a fechar os olhos ao cabo de um minuto. A fadiga era mais forte do que os seus desejos e a sua vontade.
- Eles tinham saudades, perguntavam onde estava o paizinho. Eu é que tratei deles, amimava-os o mais possível. Acostumaram-se a mim e iam cada vez menos para casa da Duniachka. A Poliúchka é muito meiguinha e sossegada. Passava a vida debaixo da mesa ia brincar com as bonecas de trapos que eu lhe fazia. O Michatka as vezes chegava da rua a correr, todo esbaforido, e eu perguntava: “O que foi?”, e ele, a corar, muito triste, dizia: “Os outros meninos não querem brincar comigo. Dizem: o teu pai é um bandido. Mãe, é verdade que ele é um bandido? O que são bandidos?” E eu dizia-lhe: “O teu pai não é nada um bandido. É... é um homem muito infeliz.” E ele então voltava a perguntar: “Porque é ele infeliz e o que é ser-se infeliz?” Eu não podia explicar-lhe... Gricha, foram eles por si que começaram a chamar-me mãe. Não julgues que fui eu que os ensinei. O Mikhail trata-os bem, gosta deles. Mas não me fala, volta as costas e segue o seu caminho. Apesar ddisso, ele trouxe-lhes duas vezes açúcar da stanitsa. Quem tinha muita pena de ti era o Prokhor. “Está perdido”, dizia ele. Na semana passada, veio falar-me de ti e até chorou... Revistaram-lhe a casa, à procura de armas. Viram tudo, o telhado e a cave...
Grigóri adormecera sem ouvir o fim da história. A folhagem de um álamo novo murmurava por cima da sua cabeça.
Deslizavam-lhe pelo rosto manchas de luz amarela. Akcínia Beijou-lhe demoradamente os olhos fechados, depois adormeceu também com o rosto apoiado no braço dele, sempre a sorrir.
Alta noite, depois de a Lua se ter escondido, partiram de Sukhoi Log. Dali a duas horas desciam uma colina sobranceira ao Tchir. Na planície cantavam os ralos, as rãs esganiçavam-se entre os juncos e ouvia-se o gemido surdo e longínquo de um milhafre.
Ao longo do rio, negras e sinistras, estendiam-se as hortas.Grigóri parou junto de uma pequena ponte. Havia alli uma aldeia envolta no silêncio da meia-noite. Grigóri, esporeando o cavalo, mudou de direcção. Não queria atravessar a ponte. Aquela calma não lhe inspirava confiança e sentia medo. Passaram a vau ao fundo da aldeia e mal acabavam de virar para uma viela estreita quando um homem ssurgiu de um fosso e, atrás dele, mais três.
- Alto! Quem vem lá?
Grigóri deu um salto como se tivesse apanhado uma paulada e puxou as rédeas. Mas logo se dominou e respondeu numa voz forte: “Gente de paz!” Obrigou o cavalo a dar meia volta e murmurou para Akcínia: “Para trás. Segue-me!”
As quatro sentinelas do destacamento de abastecimento que acabavam de se aboletar na aldeia para passar a noite avançavam para eles lentamente, em silêncio. Um dos homens parou para acender um cigarro e riscou um fósforo. Grigóri vibrou uma violenta chibatada no cavalo de Akcínia que partiu à desfilada. Grigóri galopava atrás dela. Seguiram-se alguns segundos de um silêncio angustiante, por fim uma salva irregular reboou como um trovão e a luz dos tiros furou a noite.
Grigóri ouviu o assobiar das balas e um grito prolongado: “Às armas!...”
A uma centena de ságenas do rio, Grigóri alcançou o cavalo cinzento e gritou:
- Deita-te, Akcínia. Mais para baixo!
Akcínia segurava as rédeas e 'tombava para o lado, com a cabeça deitada para trás. Teria caído se Grigóri a não segurasse.
- Estás ferida? Onde foi? Mas diz!... - exclamou Grigóri numa voz rouca.
Ela não respondeu. Pesava cada vez mais no braço dele. Grigóri, ofegante, murmurava, apertando-o contra si, sem abrandar o galope:
- Pelo amor de Deus, diz qualquer coisa! Que tens tu?
Mas nem uma palavra saía dos lábios de Akcínia, nem sequer um gemido.
A duas verstás da aldeia, Grigóri, deixando bruscamente a estrada, meteu por uma ravina, saltou em terra, tomou Akcínia nos braços e deitou-a delicadamente no chão.
Despiu-lhe a blusa de agasalho, rasgou-lhe no peito a chita da blusa interior e a camisa, procurou-lhe a ferida às apalpadelas. A bala, ao entrar, fracturara a clavícula esquerda e saíra pela clavícula direita. Com as mãos trémulas e ensanguentadas, Grigóri tirou do alforge da sela uma camisa limpa e o seu penso individual. Levantou Akcínia, encostou-a ao joelho e tentou pensar a ferida para deter o sangue que jorrava por baixo da clavícula. A camisa esfarrapada e o penso em breve ficaram negros e ensopados. O sangue corria também da boca entreaberta de Akcínia, borbulhava e fervia na sua garganta. E Grigóri, transido de horror, percebeu que tudo acabara, que acontecera a coisa mais horrível que lhe poderia suceder na vida...
Desceu com precaução a encosta íngreme, o atalho traçado na erva e semeado de excrementos de ovelha, levando nos braços Akcínia cuja cabeça inerte pendia sobre o seu ombro. Ouvia-lhe a respiração sibilante e entrecortada, sentia o sangue quente a abandonar aquele corpo a correr da boca dela para cima do seu peito. Os dois cavalos tinham-no seguido. Sacudiam-se, fazendo tilintar os freios e começaram a pastar na erva saborosa.
Akcínia morreu nos braços de Grigóri, pouco antes da aurora, sem ter recuperado os sentidos. Ele beijou-lhe demoradamente os lábios frios e salgados de sangue, poisou-a com jeito na relva e ergueu-se. Uma força misteriosa bateu-lhe em cheio no peito. Deu alguns passos para trás e caiu desamparado, mas logo se ergueu com angústia, voltou a cair e deu com a cabeça dolorosamente numa pedra. Então, de joelhos, desembainhando o sabre, começou a cavar uma sepultura.
A terra estava húmida e mole. Grigóri apressava-se o mais possível, mas sentiu-se abafar; rasgou a camisa para ver se respirava melhor. O ar da madrugada refrescou-lhe o peito encharcado em suor e assim custou-lhe menos a trabalhar. Tirava a terra com as mãos e com o boné, sem descamsar um minuto, mas levou muito tempo antes de conseguir que a cova lhe chegasse à cintura.
Enterrou a sua Akcínia à luz viva da manhã. Dentro da cova, cnuzou-lhe sobre o peito as mãos morenas, que tinham assumido a brancura da morte, cobriu-lhe o rosto com o lenço para que a terra não lhe penetrasse nos olhos entreabertos, fitos no céu e já vítreos. Por fim, despediu-se dela, convencido de que a sua separação seria breve...
Alisou cuidadosamente com as mãos o barro amarelo da pequena campa e ficou por muito tempo de joelhos ao lado da sepultura, com a cabeça a oscilar.
Agora já não tinha pressa. Tudo acabara.
No meio de uma nuvem de pó 'levantada pelo vento seco, o sol ergueu-se sobre a ravina. Os seus raios faziam brilhar a prata dos cabelos brancos de Grigóri, deslizavam-lhe pelo rosto lívido, empedrado numa imobilidade assustadora. Por fim, ergueu a cabeça, como se despertasse de um sono pesado e viu o céu negro por cima da sua cabeça e também negro o disco do Sol que brilhava com uma claridade ofuscante.
No princípio da Primavera, quando a neve se derrete, quando seca a erva derrubada pelo Inverno, começam os incêndios na estepe. O fogo corre em Correntes, impelido pelo vento, devora a grama seca, sobe ao assalto das espigas do cardo, desliza sobre as cabeças negras da artemísia, espraia-se pelos refegos do terreno. E o cheiro acre que sobe da terra queimada, cheia de gretas, flutua durante muito tempo sobre a estepe. Contudo, a erva nova reverdece alegremente em redor, as cotovias cantam por cima dela no céu azul, os patos de passagem detên-se sobre a planície generosa e as abetardas constróem ailá o seu ninho onde ficam até ao Verão. Mas por onde passa o incêndio, a terra morta, carbonizada, permanece negra e sinistra. Os pássaros não vão ali fazer ninho, todos os animais a deixam de parte, e só o vento com as suas asas rápidas passa e dispersa para longe a cinza azulada e a poeira escura, corrosiva.
A vida de Grigóri era agora negra como uma estepe queimada. Perdera tudo quanto era querido ao seu coração.
A morte impiedosa tudo lhe levara, tudo destruíra. Só lhe restavam os filhos. E Grigóri agarrava-se à terra como se, na verdade, a sua vida destroçada tivesse algum valor para ele e para os outros...
Depois de haver enterrado Akcínia, errou durante três dias pela estepe sem regressar a casa nem ir entregar-se a Viochénsskaia. Ao quarto dia, abandonou os cavalos numa aldeia da stanitsa de Usst-Kophresskaia, atravessou o Dom e dirigiu-se a pé até à floresta de carvalhos de Slachtchovsskaia, junto da qual o bando de Fômine fora destroçado no mês de Abril. Já então ele ouvira dizer que viviam desertores nessa floresta. Era a eles que queria juntar-se, pois não desejava voltar para junto de Fômine.
Caminhou alguns dias ao acaso pela floresta imensa. Martirizava-o a fome, mas não se atrevia a voltar aos lugares habitados. A morte de Akcínia roubara-lhe a coragem e a antiga presença de espírito. O estalido de um ramo a quebrar-se, um barulho na espessura da floresta, o grito de uma ave nocturna, tudo lhe causava medo e confusão. Alimemtava-se de bagas ainda mal maduras, de cogumelos minúsculos, de folhas de aveleira, e emagrecia a olhos vistos. Ao fim do quinto dia, foi descoberto pelos desertores que o levaram para a sua cabana.
Eram sete, todos naturais das aldeias vizinhas e haviam-se instalado na floresta no Outono do ano anterior, logo no início da mobilização. Viviam numa vasta cabana bem construída e quase nada lhes faltava. Iam muitas vezes durante a noite visitar as famílias e traziam pão, bolachas, sêmea de milho, farinha, batatas; quanto à carne para a sopa, arranjavam-na sem dificuldade noutras aldeias onde iam roubar gado de vez em quando.
Um dos desertores, que servira no 12.º Regimento cossaco, reconheceu Grigóri e os outros aceitaram-no logo.
Grigóri perdeu a conta dos dias, que (passavam com uma lentidão cruel. Viveu desta maneira na floresta até ao mês de Outubro, mas, quando começaram as chuvas do Outono e depois veio o frio, sentiu-se de repente assaltado por uma saudade pungente dos filhos e da sua aldeia...
Para matar o tempo, passava dias inteiros deitado na tarimba, a esculpir colheres de pau, escudelas, ou a talhar com arte figurinhas de homens e animais sobre a pedra mole. Esforçava-se por não pensar em nada, por barrar o caminho do seu coração à angústia corrosiva. Durante o dia lá ia conseguindo isso, mas era durante as longas noites que as recordações se vinham apoderar dele. Dava voltas na cama sem poder dormir. De dia, nenhum dos habitantes da cabana jamais lhe ouvira uma palavra de queixa. De noite, porém, acordava em sobressalto e passava a mão pelo rosto: as suas faces e a barba de seis meses estavam molhadas de lágrimas.
Sonhava muitas vezes com os filhos, com Akcínia, com a mãe, com todos aqueles que perdera. Toda a sua vida se concentrava no passado, e esse passado afigurava-se-lhe um sonho curto e doloroso. Dizia muitas vezes consigo: “Voltar só uma vez mais a casa, ver os meus filhos, e depois poderei morrer.”
Um dia, pouco antes da Primavera, viu chegar Tchumakov, encharcado até à cintura, mas sempre animado e cheio de vida. Depois de ter secado a roupa junto ao fogão e de se haver aquecido, veio sentar-se perto de Grigóri, sobre a tarimba.
- Muito andamos nós, Melekhov, desde o dia em que nos deixaste! Fomos até Astrakan e às estepes kalmukes... Andamos por Ceca e Meca. E não tem descrição o sangue que fizemos correr. Prenderam como reféns a mulher de Iakov Efímitch e confiscaram-lhe os bens. Isso enfureceu-o a tal ponto que nos mandou trespassar à sabrada todos aqueles que trabalhavam para o poder dos Sovietes. E nós trespassávamo-los a todos, uns atrás dos outros: professores primários, médicos, agrónomos... Sabe-se lá o que nós fizemos! Mas agora estamos liquidados e bem liquidados! declarou suspirando, ainda todo encolhido de frio. Da primeira vez, derrotaram-nos em Tichansskaia e, aqui há oito dias, em Solommi. Tinham-nos cercado por três lados e só podíamos sair pela colina, mas aí os cavalos enterravam-se na neve até à barriga... De madrugada, as metralhadoras começaram a disparar, foi assim que a coisa principiou... Foi assim que eles deram cabo de nós. Só escapámos dois: eu e o filho de Fômine. Ele levara com ele o filho, o Davidka, no Outono passado. Iakov Efímitch morreu também. Morreu à minha vista. Apanhou primeiro uma bala na perna que lhe partiu a rótula. A segunda bala raspou-lhe pela cabeça. Caiu por três vezes do cavalo abaixo. Parámos, agarrámo-lo e pusemo-lo de “novo na sela. Ele galopou um bocado e caiu outra vez. Foi então que apanhou a terceira bala na ilharga... Então largamo-lo. Cem ságenas adiante, voltei-me e vi dois cavaleiros junto dele a furarem-no com os sabres...
- Pois, a coisa tinha de acabar assim - declarou Grigóri com indiferença.
Tchumakov passou a noite na cabana e partiu no dia seguinte pela manhã.
- Para onde vais tu? - inquiriu Grigóri.
Tchumakov sorriu:
- Procurar outra vida melhor. Talvez queiras vir comigo?
- Não, vai sozinho.
- Sim, eu cá não posso viver convosco... Esse teu ofício, Melekhov, as tuas colheres e as tuas escudelas, não me convêm - respondeu maliciosamente Tchumakov, tirando o boné com ar cerimonioso - Deus vos abençoe, vocês são uns bandidos aposentados e um gajo aqui aborrece-se de morte. Deus vos dê um pouco de alegria, nesta vida de convento. Viver na floresta como um selvagem não é vida!
Depois da partida dele, Grigóri ficou ainda uma semana, depois foi-se também embora.
- Regressas a casa? - perguntou um dos desertores.
E Grigóri, pela primeira vez desde que ali chegara, esboçou um sorriso.
- Sim, volto para casa.
- Fazias melhor se esperasses pela Primavera. No Primeiro de Maio, concedem-nos a amnistia e nessa altura vamos todos embora.
- Não, não posso esperar - respondeu Grigóri. E despediu-se dos companheiros.
No dia seguinte pela manhã, chegava à vista de Tatársski, na outra margem do Don. Pálido de emoção e alegria, ficou-se a olhar para a sua herdade natal. Depois tirou do ombro a espingarda e o alforje, um farrapo, a estopa, o frasco de óleo de lubrificação e contou os cartuchos que lhe restavam, sem saber porquê: tinha doze carregadores e vinte e seis cartuchos soltos.
Ao fundo da encosta íngreme, o gelo descolara-se da margem. A água verde e transparente marulhava, quebrando as franjas de gelo. Grigóri atirou para La a espingarda, a pistola e depois os cartuchos, limpando em seguida as mãos ao capote.
Atravessou o Don a montante da aldeia, sobre o gelo azulado de Março, já corroído pelo degelo, e dirigiu-se para casa em grandes passadas. Avistou ao longe Michatka na descida que conduzia ao embarcadoiro e teve de se dominar para não deitar a correr.
Michatka estava a quebrar estalactites que se penduravam num rochedo, atirava-as para longe e ficava-se a vê-las rebolar com cintilações azuis.
Chegando ao fim da ladeira, Grigóri, ofegante, chamou numa voz estrangulada:
- Michenka!... Meu filho!...
Michatka fitou-o, assustado, e baixou os olhos; reconhecera o pai naquele homem barbudo, de aspecto horrível...
Todas as palavras meigas e acariciadoras que Grigóri murmurava durante a noite, na floresta, ao pensar nos filhos, esvaíram-se-lhe da memória. De joelhos, enquanto beijava as mãozinhas frias e rosadas do pequeno, repetia continuamente numa voz estrangulada:
- Meu filho... meu filho...
Por fim tomou-o nos braços e disse, perscrutando-lhe avidamente o rosto com os olhos secos e ardentes:
- Como está tudo por cá?... A tia e Poliúchka, vão bem?
Sempre sem fitar o pai, Michatka respondeu tranquilamente:
- A tia Dunia está boa, mas a Poliúchka morreu no Outono com uma coisa na garganta. E o meu tio Mikhail é soldado...
Tornara-se realidade aquilo que Grigóri sonhava nas suas noites de insónia. Estava ali, em frente do portão da sua casa natal, com o filho ao colo.
Era tudo quanto lhe restava na vida, tudo quanto o prendia ainda à terra e a esse mundo vasto, resplandecente debaixo do sol tépido...
Mikhail Cholokhov
O melhor da literatura para todos os gostos e idades