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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O DR. ARROWSMITH - P.2 / Sinclair Lewis
O DR. ARROWSMITH - P.2 / Sinclair Lewis

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O DR. ARROWSMITH

Segunda Parte

 

Nautilus foi uma das primeiras comunidades do país a adoptar o hábito das Semanas, agora tão ricamente desenvolvido que temos a Semana da Escola do Ensino por Correspondência, a Semana da Ciência Cristã, a Semana da Osteopatia e a Semana dos Pinheiros da Geórgia.

Uma Semana não é simplesmente uma semana.

Se uma igreja, uma câmara de comércio ou uma instituição pia, agressivas, espertas, combativas e possuidoras de iniciativa, desejam melhorar, o que quer dizer, ganhar mais dinheiro, recorrem a esses poucos espíritos enérgicos que governam uma cidade, e proclamam uma Semana. Esta consta de um mês de reuniões da comissão, uma centena de colunas de elogio à organização na Imprensa e, finalmente, um ou dois dias em que pessoas atléticas lisonjeiam auditórios distraídos nas igrejas ou cinetreatros, e as mais lindas raparigas da cidade têm o prazer da liberdade de conversar com desconhecidos do sexo masculino, nas esquinas das ruas, sob o pretexto de dar-lhes penduricalhos extremamente sem graça, em troca das quantias menores que tais desconhecidos julgam que devem pagar, se quiserem ser considerados gentlemen.

A única variante são as Semanas em que o objectivo não é adquirir dinheiro imediatamente, por meio da venda de penduricalhos, mas, por meio de uma propaganda geral, ganhar mais, posteriormente.

Nautilus tivera uma Semana da Iniciativa, durante a qual uma tribo de homens de conversa rápida, anteriormente vendedores ambulantes de livros, mas agora chamados engenheiros de Eficiência, percorreram a cidade, dando conselhos a proprietários de estabelecimentos, sobre como arrancar mais rapidamente o dinheiro uns dos outros, e o Dr. Almus Pickerbaugh fez uma palestra, numa reunião religiosa, sobre "A iniciativa de S. Paulo, o primeiro booster". Tivera uma Semana da Fraternidade em que cada pessoa devia falar diariamente pelo menos com três desconhecidos, tendo como conseqüência que caixeiros-viajantes idosos e enfurecidos levavam palmadas nas costas, durante todo o dia, desferidas por cordiais e vigorosos cidadãos desconhecidos. Haviam-se realizado também uma Semana da Casa Velha, uma Semana de Uma Carta para a Mãe, uma Semana do Erga a Sua Fábrica em Nautilus, uma Semana do Coma mais Milho, uma Semana da Freqüência da Igreja, uma Semana do Exército de Salvação e uma Semana do Seja o Dono do Seu Próprio Automóvel.

Talvez a mais útil de todas tenha sido a Semana da A. C. M. destinada a angariar oitenta mil dólares para uma nova sede da Associação Cristã da Mocidade.

No edifício antigo, havia anúncios eléctricos, mudados diariamente, os quais proclamavam: "Você deve contribuir", "Anda, rapaz! " e "Ó teu dinheiro cria felicidade", O Dr. Pickerbaugh fez dezanove conferências em três dias, comparando a A. C. M. com os Cruzados, com os Apóstolos e com as expedições do Dr. Cook, o qual, segundo ele acreditava, descobrira realmente o Pólo Norte. Orquídea vendeu trezentos e dezanove distintivos A. C. M. sete dos quais ao mesmo homem, que em seguida lhe disse coisas impróprias. Foi socorrida por um secretário da A. C. M. que durante um espaço de tempo considerável lhe segurou a mão, para acalmá-la.

Nenhuma organização podia rivalizar com Almus Pickerbaugh, na invenção de Semanas.

Começou, em Janeiro, com uma Semana das Crianças mais Robustas, e foi uma óptima Semana, mas tão calorosamente seguida pela Semana Antialcoólica, pela Semana dos Dentes mais Fortes e pela Semana do Não Cuspa no Chão, que se ouviam pessoas de menos fôlego resmungar: "A minha saúde está a estragar-se com todo esse barulho a respeito da saúde."

Durante a Semana da Limpeza Doméstica, Pickerbaugh divulgou um novo poema da sua autoria:

Os micróbios vêm muito de mansinho

E estragam-nos a saúde. Dai a um bom homem um ancinho

Para que limpe bem o seu quintal, E aplique em tais micróbios, afinal, Uma sova bem rude.

A Semana da Morte das Moscas trouxe-lhe, além da alegria de distribuir prêmios às crianças que haviam matado o maior número de moscas, a inspiração para dois versos. Cartazes aconselhavam:

Que vendas o martelo e compres um trombone Mas agarra-te bem à pá de matar moscas. Se quiseres que a doença o teu lar abandone, Declara guerra às moscas!

Aconteceu que a Ordem Fraternal das Águias estava a realizar uma convenção estadual em Burlington, nessa mesma semana, e Pickerbaugh telegrafou-lhe:

Não esquecer combate às moscas, peço, No vosso meretíssimo Congresso.

Isto foi transcrito em noventa e seis jornais, inclusive um do Alasca, e, brandindo os recortes, Pickerbaugh explicou a Martin:

- Veja como a gente pode espalhar a verdade, quando se fazem bem as coisas!

A Semana pró Três Charutos apenas por Dia, que Pickerbaugh inventou em meados do Verão, não alcançou êxito total, em parte porque um humorista indiscreto de um jornal local queria saber se o Dr. Pickerbaugh esperava que todas as crianças de peito fumassem três charutos por dia, e em parte porque os fabricantes de charutos compareceram no Departamento de Saúde com sólidas observações sobre o senso comum. Tão pouco houve êxito total na Semana do Deixe o Gato e Cuide do Cão.

Com todas as suas Semanas, Pickerbaugh tinha tempo para presidir à comissão do programa da Convenção Estadual de Postos e Funcionários da Saúde Pública.

Foi ele quem escreveu a carta circular enviada a todos os membros:

Confrade:

Não vai ao Arraial da Saúde? Vai ser o mais formidável acontecimento que este velho e alvoroçado planeta viu. E vai ser prático. Vamos mastigar todas estas esplêndidas generalidades e vamos ouvir as falas de gente que pode falar, de modo que a gente possa levar para casa uma coisa ou duas.

Luther Botts, o famoso director do coro da comunidade, estará a postos para deitar sal e pimenta no programa. John F. Zeiss, M. A. M. D. 1, e todo o resto do alfabeto (penteia esses cabelos, Zeiss, e arranja-te melhor, que as pequenas ficarão doidinhas por ti) abrirá o verbo e dirá umas coisas fundamentais. (Agora, depressa, levante-se, camarada, que esta é de arromba! ) De vez em quando, se as coisas correrem bem, havemos de dar um pulo do lugar onde a gente estiver para outro lugar, a fim de engolir, ou engolirmos no infinito, um almoço com pratos de resistência.

Não acha que tudo isto parece um bom espectáculo de teatro? Eu acho! Agora tem a palavra. Vamos, escreva uma carta a dizer que vem.

Isto causou muito entusiasmo e acharam muita graça. O Dr. Feesons, de Cliton, escreveu a Pickerbaugh:

Acho que foi em grande parte por causa da sua carta humorística de apelo que atraímos aquela freqüência e com toda a modéstia penso que podemos dizer que foi a melhor convenção de saúde pública que já se reuniu no Mundo. Tive de rir-me de uma gata velha, de Boston ou coisa parecida, que uivava que a sua carta era "uma desmoralização"! Acredita nesta? Acho que gente hipercrítica e carente de humor como ela deve ser tratada com o digno desprezo que merece. Que idiotas!

 

1 M. A. professor de Humanidades; M. D. doutor em Medicina. (Nota do T.)

 

Martin ficou cheio de entusiasmo durante a Semana das Crianças mais Robustas. Leora e ele pesavam bebês, examinavam-nos, escreviam horários de refeições e, em cada criança, viam o filhinho que nunca poderiam ter. Mas, quando veio a Semana a favor de mais Crianças, ele mostrou-se rebelde. Declarou que acreditava na limitação da natalidade. Pickerbaugh respondeu com teologia, violência e o exemplo próprio das suas oito belezas.

Martin manteve-se igualmente céptico perante a Semana contra a Tuberculose. Gostava de deixar as janelas abertas à noite e não gostava de homens que cuspiam nas calçadas, mas a circunstância de tais reformas, certamente estéticas e possivelmente higiênicas, serem propagadas com um frenesi sacrossanto e estatísticas falsas deixava-o contrariado.

Toda a dúvida sobre os seus eloqüentes índices relativos à tuberculose, toda a sugestão de que a causa do declínio da moléstia pudesse ter sido o aumento natural da imunidade e, não as cruzadas contra os escarros no chão e o ar confinado, Pickerbaugh considerava-as uma crítica à sua honestidade como organizador de tais cruzadas. Tinha os melindres pessoais da maioria dos propagandistas; acreditava que, como era sincero, as suas opiniões deviam necessariamente estar sempre certas. Pedir-lhe que fosse exacto nas suas declarações, citar a afirmação de Raymond Pearl: "Falando objectivamente, é um facto científico que são muito mal conhecidas as razões pelas quais a mortalidade pela tuberculose declinou" era ser um patife que gostava de sujar as calçadas.

Martin estava tão descontente que experimentou uma alegria anti-social e provavelmente maligna ao descobrir que, embora o índice da mortalidade pela tuberculose tivesse efectivamente caído durante a administração de Pickerbaugh em Nautilus, tinha caído na mesma proporção na maioria das localidades vizinhas, sem discursos sobre o hábito de escarrar no chão nem desfiles pró-janelas abertas.

Por felicidade de Martin, Pickerbaugh não esperava que ele participasse a fundo nas suas campanhas de propaganda, mas fosse, antes, o seu substituto no cargo, durante a realização.

Elas despertaram em Martin os pensamentos mais furiosos e complicados que já o haviam atormentado.

Todas as vezes que arriscava uma crítica, Pickerbaugh respondia-lhe: "Mas que importa que as minhas estatísticas nem sempre sejam exactas? Que importa que algumas pessoas achem vulgares a minha propaganda, o facto de eu divertir o público? Tudo isso é benéfico; tudo isto está com a razão. Os métodos que utilizamos não têm importância; se pudermos levar o povo a respirar ar mais fresco e limpar os quintais, e a beber menos álcool, estamos justificados."

Consigo mesmo, um pouco surpreendido, Martin reflectiu: "com efeito, que importância tem isso? A verdade pura, fria, impessoal, a verdade de Max Gottlieb, terá ela importância? Todos dizem: "Oh, você não deve falsear a verdade"; e todos ficam furiosos se a gente dá a entender que eles próprios a falseiam. Que é que tem importância, excepto amar, dormir, comer e ser lisonjeado? Penso que a verdade não tem importância para mim, mas, se tem, não será o desejo de precisão científica apenas uma mania minha, como a paixão de um outro homem pelo golfe? De qualquer forma, vou aderir a Pickerbaugh."

Foi ainda mais impelido a tomar a defesa do seu chefe pela atitude de Irving Watters e outros médicos, que atacaram Pickerbaugh por temerem que ele realmente alcançasse êxito e lhes diminuísse os rendimentos. Martin, porém, não deixou de se aborrecer com as estatísticas suspeitas.

Calculou que, de acordo com os índices de Pickerbaugh sobre os maus dentes, os descuidos na direcção dos automóveis, a tuberculose, e sete outros males, todas as pessoas na cidade tinham cento e oitenta por cento de probabilidades de morrer antes dos dezasseis anos, e não pôde alarmar-se grandemente, quando Pickerbaugh gritou: "Pois não sabe que o número de pessoas que morreram de antraz, no condado de Pickens, Mississípi, só no ano passado, foi de vinte e nove, e que todos podiam ter-se salvo, salvo, sim, senhor, com um duche frio diário?"

Pickerbaugh tinha, efectivamente, o terrível hábito dos duches frios, mesmo no Inverno, embora pudesse saber que dezanove homens, entre as idades de dezassete e quarenta e dois anos, morreram por causa dos duches frios no espaço de vinte e dois anos, só em Milwaukee.

Para Pickerbaugh a existência de "variáveis", palavra que Martin empregava agora tão irritantemente como anteriormente empregara controle, não tinha significado. Era-lhe inconcebível que a saúde pudesse ser determinada pela temperatura, hereditariedade, profissão, solo, imunidade natural ou por qualquer coisa que não fossem as campanhas do Departamento de Saúde pró maior limpeza e moralidade.

- Variáveis! Fu! - bufava Pickerbaugh. - Todos os homens esclarecidos pertencentes ao Serviço Público sabem bastante acerca das causas da doença: cumpre, pois, agir de acordo com esse conhecimento.

Quando Martin procurava mostrar que, na verdade, sabiam muito pouco acerca da superioridade do ar fresco sobre o calor moderado das escolas, acerca dos perigos higiênicos das ruas sujas, dos verdadeiros perigos do álcool, do valor do uso de máscaras durante as epidemias de gripe, da maioria das coisas que, dando socos na mesa, apregoava nas suas campanhas, Pickerbaugh limitava-se a ficar encolerizado, e Martin sentia ímpetos de demitir-se, tornava a encontrar-se com Irving Watters, voltava para junto de Pickerbaugh com novo zelo, e ficava em geral tão agitado e calamitoso como um jovem revolucionário que descobre a presunção dos seus dirigentes.

Chegou a duvidar do que Pickerbaugh chamava "o valor prático provado" das suas campanhas, tanto como da exactidão da biologia de Pickerbaugh. Notou que os jornalistas, na sua maioria, ficavam aborrecidos ao verem-se mobilizados para uma nova salvação do Mundo uma vez por quinzena, e quão incomparavelmente aborrecido ficava o homem da rua quando a décima nona rapariga bonita, em vinte dias, o atacava, a pedir-lhe que comprasse um penduricalho para auxiliar uma associação da qual ele jamais ouvira falar.

Mas ainda mais consternadora era a viscosa caça ao dólar que ele via na mais ardente eloqüência de Pickerbaugh.

Quando Martin sugeriu que todo o leite devia ser pasteurizado, que certas moradias conhecidas como focos de propagação da tuberculose deviam ser queimadas, em vez de inútil e totalmente fumigadas, quando insinuou que estes métodos salvariam mais vidas do que dez mil sermões e dez anos de desfiles de meninas com cartazes e os vestidos ensopados pela chuva, Pickerbaugh retorquiu, inquieto: "Não, não, Martin, não pense que podemos fazer isso. Que oposição íamos encontrar da parte dos proprietários de quintas e de imóveis! Neste serviço, não se pode realizar nada, a não ser que se evite irritar o povo."

Quando Pickerbaugh se dirigia ao auditório de uma igreja ou do círculo do lar, falava do "valor da saúde para tornar a vida mais alegre", mas, quando falava num almoço de homens de negócios, alterava a frase para "o valor em bons dólares e cents de termos operários que sejam sadios e abstêmios e, assim, capazes de trabalhar mais rapidamente pelos mesmos salários". Quanto às associações de pais, esclarecia-as sobre "a economia que podem fazer em despesas com médicos, se tratarem da criança antes que o mal vá muito longe"; mas, para os médicos, dava garantias de que a agitação em torno da saúde pública tornaria mais popular o costume da visita regular aos consultórios médicos.

Para Martin, falava de Pasteur, George Washington, Victor Vaughan e Edison como seus mestres, mas, ao pedir aos homens de negócios de Nautilus - o Rotary Club, a Câmara de Comércio, a associação de comerciantes por atacado - a sua divina aprovação de mais verbas para o seu departamento, deixava claramente entendido que eles eram seus amos e os senhores de toda a Terra, e estes, confortavelmente gordos, por detrás dos seus charutos, aceitavam a sua soberania.

Gradativamente, a contemplação de Martin ultrapassou Almus Pickerbaugh e focou todos os condutores, de exércitos ou impérios, de universidades ou igrejas, e viu que, na sua maioria eram Pickerbaughs. Predicou a si próprio, como Max Gottlieb outrora precidara, a lealdade de discordar, a fé na dúvida, o evangelho de não apregoar evangelhos, a sabedoria de confessar a sua ignorância provável e a alheia, e o enérgico progresso de um movimento, se for conduzido muito devagar.

Uma centena de interrupções arrancava Martin do laboratório. Era chamado à sala de espera do Departamento para explicar a cidadãos encolerizados porque a garagem contígua à casa deles precisava de não cheirar a gasolina; ia ao seu minúsculo escritório, para ditar cartas a directores de escolas sobre clínica dentária; viajava até Swede Hollow, para ver que atenção o inspector de gêneros e do leite dedicava aos matadouros; devia determinar que uma família de Shantytown fosse posta de quarenta; e, finalmente, escapava-se para o laboratório.

Este era bem iluminado, conveniente, bem aparelhado. Martin tinha pouco tempo para outras coisas que não fossem culturas, exames de sangue e Wassermanns para os médicos particulares da cidade, mas aquele trabalho servia-lhe de descanso e, de quando em quando, lançava-se a uma prova de precipitação que devia substituir a reacção de Wassermann e torná-lo famoso.

Pickerbaugh acreditava evidentemente que esta pesquisa ocuparia seis semanas; Martin esperava realizá-la em dois anos; mas, com as actuais interrupções, precisaria de duzentos, e até lá os Pickerbaughs teriam extirpado a sífilis e tornado inúteis as reacções.

Às obrigações de Martin, juntava-se o entretenimento de Leora na desconhecida cidade de Nautilus.

- Consegues distrair-te durante todo o dia? - dizia-lhe ele, animando-a. - A que sítio queres ir esta noite?

Ela olhava-o, desconfiada. Contentava-se por si, fácil e automaticamente, como uma gatinha, e ele anteriormente nunca se preocupara com a sua distracção.

 

As filhas de Pickerbaugh estavam sempre a irromper no laboratório de Martin. As gêmeas quebravam provetas e faziam tendas para bonecas com papel de filtro. Orquídea desenhava as inscrições dos cartazes especiais para as Semanas de seu pai, e o laboratório, dizia ela, era o lugar mais tranqüilo para trabalhar. Martin, no banco, sentia a presença dela, que zumbia na mesa colocada a um canto. Conversavam furiosamente e ele ouvia com fátuo entusiasmo opiniões que, se fosse Leora quem as emitisse, teria recebido com um "Eis uma observação mais do que tola!"

Segurava contra a luz um límpido tubo vermelho-clarete de sangue hemolizado, a pensar em parte na sua cor e em parte nos tornozelos de Orquídea, enquanto ela, debruçada sobre a mesa, absurdamente tolerante para com os seus pincéis, tinha as pernas traçadas num nó fantástico.

Abruptamente, Martin perguntou-lhe:

- Escute, menina. Suponhamos que você... suponhamos que uma pequena como você se apaixonava por um homem casado. Que acha que ela devia fazer? Ser boa para ele? Ou evitá-lo?

- Oh, devia evitá-lo. Por mais que sofresse. Ainda que gostasse dele terrivelmente. Porque, embora gostasse dele, não devia ser injusta para com a mulher dele.

- Mas suponhamos que a mulher nunca soubesse, ou... não se importasse?

Deixara de simular que trabalhava; estava diante dela, com as mãos nos quadris e uma súplica nos olhos escuros.

- Bem... se ela não soubesse... Mas não é isso. Acho que os casamentos são real e verdadeiramente feitos no Céu, não acha? O Príncipe Encantado virá um dia, o perfeito amante... - Como era juvenil, como eram juvenis e doces os seus lábios! - e naturalmente quero guardar-me para ele. Estaria tudo estragado se eu brincasse com o amor antes do meu Herói chegar.

Mas o seu sorriso era uma carícia.

Ele imaginou-se sozinho com ela no campo. Viu desvanecerem-se-lhe as moralidades que papagueava. Sofreu uma mudança tão definida como uma conversão religiosa ou como o acesso de frenesi popular que sucede à declaração de guerra; a mudança da relutância envergonhada de ser infiel a sua mulher, para uma determinação de aproveitar o que fosse possível. Começou a repelir a exigência de Leora de que a ela, que possuía eternamente o seu mais profundo amor, devia caber também cada um dos seus desejos errantes. E Leora exigia isto. Raramente se referia a Orquídea, mas podia dizer (ou ele nervosamente julgava que podia) se ele passara, ou não, uma tarde com a jovem. O mudo exame de Leora provocava-lhe um sentimento de culpabilidade. Ele, que nunca fora muito solícito, mostrava-se pródigo em doces insistências: "Ficaste em casa todo o dia? Olha, vamos dar uma volta depois do jantar e entrar num cinema. Ou, quem sabe, vamos fazer uma visita? O que preferires."

Ele próprio notava o tom blandicioso da sua voz, odiava-o e sabia que Leora não cedia à lisonja. Todas as vezes que se entregava a uma das suas meditações em torno da superioridade da sua marca de verdade sobre a de Pickerbaugh, resmungava: "És uma bela ave para pensar, na verdade, meu mentiroso!"

Na verdade, pagava um preço enorme para olhar os lábios de Orquídea, e nenhuma preocupação com o preço o impedia de olhá-los.

Em princípios do Verão, dois meses antes de estalar a Grande Guerra na Europa, Leora foi a Wheatsylvania passar quinze dias com a família. Então, ela disse-lhe:

- Sandy, não te farei nenhuma pergunta quando voltar, mas espero que não tenhas esse ar de tolo com que tens andado ultimamente. Acho que, por causa desse fel da terra, dessa erva-de-santiago, dessa tua idiota, não vale a pena brigarmos. Sandy, querido, desejo que sejas feliz, mas se eu não morrer antes de ti, não deixarei que me ponhas de lado como um chapéu velho. Ficas avisado. Agora, quanto ao gelo. Encomendei cem libras por semana, e se quiseres de vez em quando fazer o teu próprio jantar...

Depois de partir, nada aconteceu imediatamente, embora houvesse sempre muitas coisas prestes a acontecer. Orquídea tinha a curiosidade das moçoilas, quanto àquilo que um homem deseja fazer, mas satisfazia-se com vibrações excessivamente leves.

Martin jurou, naquela manhã de Junho, que ela era tola e namoradeira, e que ele "não tinha a menor intenção de ir para junto dela". Não! À noite, iria visitar Irving Watters, ou ficaria a ler, ou daria uma volta com o dentista da clínica escolar.

Mas, às oito e meia, marchava vagarosamente em direcção à casa dela.

Se os velhos Pickerbaugh estivessem... Martin chegava a ouvir-se a si próprio dizer: "Passei por aqui, doutor, para lhe perguntar o que pensa acerca de..." Arre! Pensava acerca de quê? Pickerbaugh nunca pensou em coisa alguma.

Percebeu Orquídea sentada nos degraus da entrada. Inclinado para ela, estava um rapaz de vinte anos, um certo Charley, empregado de escritório.

- Olá! O seu pai está? - gritou, com uma indiferença de que não pôde deixar de orgulhar-se.

- Que pena! Saiu com a mamã e só voltará às onze. Não quer sentar-se e descansar um pouco?

- Âââh Pois sim...

Sentou-se, resoluto, e procurou conversar jovialmente, enquanto Charley produzia uma atitude adequada, em sua opinião, ao maduro Dr. Arrowsmith, e Orquídea fazia leves sons ronronantes, arte em que era muito eficiente.

- Têm... ââââh... assistido a muitas partidas de baseball? disse Martin.

- Oh, vou a todas que posso - disse Charley. - Como vão as coisas por City Hall? Tem descoberto muitos casos de varíola e todas essas... itites e doenças engraçadas?

- Sim, sim, tenho trabalhado bastante - rosnou o maduro Dr. Arrowsmith.

Não conseguiu pensar em nada mais. Ficou a escutar, enquanto Charley e Orquídea davam risadinhas enigmáticas sobre coisas que o excluía do grupo e lhe davam a impressão de ter cem anos de idade: referências a Mamie e Earl, e um violento: "Está certo, sim, mas sempre que me vir a dançar com ela fale-me nisso, ouviu? " A um canto, Verbena Pickerbaugh ladrava, observando: "Larga um pouco! " - a pessoa desconhecidas.

"Credo! Isto não vale a pena! Vou-me embora" - suspirou Martin, mas nesse momento Charley exclamou, em voz aguda:

- Ora, deixa-te disso. Olha, preciso de dar uma volta.

Martin ficou só com Orquídea, numa paz e num silêncio embaraçadores.

- É tão bom a gente estar com alguém que tem cérebro e não está sempre a querer namorar, como Charley - disse Orquídea.

Ele considerou: "Esplêndido! Ela vai agora portar-se ajuizadamente. E tomo conta em mim. Vamos conversar um pouco e depois vou para casa."

Ela parecia ir-se aproximando mais. Sussurrou-lhe:

- Estava a sentir-me tão só, principalmente com esse rapaz, com aqueles plebeísmos horríveis, até ao momento em que ouvi os seus passos na calçada. Reconheci-o no mesmo segundo em que os ouvi.

Martin acariciava-lhe a mão. Como as suas carícias se tornassem mais ardentes do que se poderia esperar do assistente e amigo de seu pai, ela retirou a mão, trançou-as nos joelhos e começou a tagarelar.

Fora sempre assim, nas noites em que ele viera até à entrada, encontrando-a sozinha. Era dez vezes mais imprevisível do que a mulher mais complexa. Ele procurou a impressão de sentir-se culpado perante Leora, sem nenhuma das reputadas alegrias da culpa.

Enquanto Orquídea conversava, Martin procurou descobrir se ela possuía um pouco de inteligência. Evidentemente, não a possuía em dose suficiente para freqüentar um colégio superior de religiosos do Médio Oeste. Verbena ia para o colégio nesse Outono, mas Orquídea, segundo ela explicava, achava que "devia ficar em casa, para ajudar a mãe a cuidar das crianças".

"Quer dizer - reflectiu Martin - que ela não pôde nem sequer passar nos exames de admissão do Mugford! " Mas a sua opinião a respeito do cérebro dela ampliou-se de súbito quando ela exclamou lastimosamente:

- Pobrezinha de mim, provavelmente ficarei sempre em Nautilus, ao passo que você... oh, com os seus conhecimentos e a sua enorme força de vontade, sei que vai conquistar o Mundo!

- Que absurdo! Nunca conquistarei mundo algum, mas espero introduzir algumas medidas acertadas de saúde pública. Falando sério, acha que tenho muita força de vontade?

A Lua cheia crescia agora por detrás dos muros. O desenxabido domínio de Pickerbaugh encantou-se; a relva emaranhada era um jardim de rosas; a vinha, um templo de Diana; a velha rede, um franjado manto de prata; a mangueira da rega, com os seus mal-humurados borrifos, transformara-se num chafariz; e por sobre todo o Mundo, flutuava a magia especial do amor ao luar. A pequena cidade, de dia tão barulhenta e tão activa como um bando de crianças, estava quieta e esquecida. Raras vezes Martin tivera inspiração para perceber o encantamento de uma hora perfeita, tanto se absorvia nas suas tempestuosas meditações, mas agora fora apanhado e perdera-se num êxtase.

Tinha a mão de Orquídea abandonada entre as suas... e sentia saudades de Leora.

O beligerante Martin, que arrebatara Leora, não pensara em romance, porque, à sua maneira desajeitada, fora romântico. O Martin que, como um guerreiro que volta, se perfuma e amolece, suspirava por uma jovem sob o luar, agora ansiosamente estendia o rosto para o romance e nada tinha de romântico.

Sentiu que tinha o dever de mostrar-se amoroso. Aconchegou-se a ela, mas, quando Orquídea gemeu: "Oh, assim não! ", Martin não experimentou nenhum impulso imperioso, nenhuma força de convicção que o fizesse prosseguir. Lembrou-se novamente do luar, mas lembrou-se também de que, no dia seguinte, devia estar na repartição muito cedo, e pensou num modo de tirar o relógio, sem que ela notasse, e ver que horas eram. Conseguiu-o. Inclinou-se para despedir-se dela com um beijo, não a beijou, e de repente viu que estava a caminho de casa.

Enquanto andava, tornou-se convicta e suficientemente impiedoso consigo próprio. Considerou, enraivecido, que nunca esperava, por mais que perdesse o tino, transformar-se num ladrão de amor, num ratoneiro surrateiro e rastejante, e, nem mesmo assim, eficiente: menos eficiente do que os criados de bar que se pavoneiam com adolescentes debaixo das árvores. Declarou a si próprio que Orquídea era uma rapariguinha sem grande recato, cheia de suspiros e de linguinha arrastada, mas, quando se viu no seu quarto solitário, sentiu saudade dela, pensou em maneiras milagrosas e completamente idiotas de atraí-la naquela noite para junto de si, e foi para a cama suspirando: "Orquídea, Orquídea..."

Talvez tivesse prestado demasiada atenção ao luar e ao doce calor do Verão, pois repentinamente, num dia em que Orquídea entrou estabanadamente no laboratório e se empoleirou no banco entremostrando as meias, avançou para ela, agarrou-lhe masculamente os pulsos e beijou-a como ela desejava ser beijada.

Imediatamente, deixou de ser másculo. Estava assustado. Olhou-a sem força. Ela olhou-o também, com os olhos arregalados, os lábios trêmulos, sobressaltada.

- Oh! - fez, convictamente.

Depois, com um tom de imenso interesse alguma satisfação:

- Martin... oh... querido... achas que devias ter feito isso?

Ele tornou a beijá-la. Ela rendeu-se e por um momento nada houve no Universo, nem ele nem ela, nem laboratório nem pais nem esposas nem tradições, mas apenas a veemência de se confundirem.

De repente, ela balbuciou:

- Sei que há uma porção de gente apegada às convenções que diria que fizemos mal, e talvez eu antes pensasse assim, mas... Oh, estou muito contente por ser liberal! Naturalmente, não queria ferir a querida Leora ou fazer alguma coisa que não seja honesta, mas é uma maravilha que, com tantos burgueses à volta da gente, nos possamos erguer acima deles e sentir o apelo que a vida faz à vida e... Mas tenho de ir à reunião da A. C. M. Está aí uma advogada de Nova Iorque que vai falar-nos sobre a carreira da mulher moderna.

Quando ela saiu, Martin viu-se a si próprio como um amante vitorioso. "Conquistei-a", murmurou, com ar convicto. Provavelmente, jamais convicção alguma foi tão vacilante e precária.

Naquela noite, quando estava a jogar o póquer em sua casa, com Irving Watters, o dentista da clínica escolar, e um jovem médico da clínica municipal, a campainha do telefone chamou-o para um alvoroçado mas dulcíssimo:

- Aqui é Orquídea. Ficas contente por eu telefonar?

- Oh, naturalmente, contentíssimo.

Procurou parecer simultaneamente amoroso, alegre e bastante impessoal, para enganar os três médicos que, em mangas de camisa, bebiam cerveja e davam gargalhadas.

- Vais fazer alguma coisa esta noite, Marty?

- Aââh... convidei dois colegas para uma partida.

- Ah! - A exclamação foi agudíssima. - Ah, então... Fui uma criança em te chamar, mas o pai, Verbena e todos saíram e está uma noite tão linda, e pensei que... Não achas que sou muito tola?

- Não, não. Claro que não.

- Que bom que penses assim. Ficaria aborrecidíssima se pensasses que achas que eu sou uma tola em te telefonar. Tu não achas isso, não?

- Não... naturalmente que não. Escuta, tenho que...

- Eu sei. Não devo prender-te. Só queria que me dissessses se achavas que sou uma tola em...

- Não! Palavra! Ora o que é isso?

Três impacientes minutos depois, lamentavelmente ouvindo abafados risos masculinos nas suas costas, escapou-se. Os parceiros de póquer disseram todas as coisas consideradas apropriadas ao caso, em Nautilus: "Então, seu Dom Juan! " e "Mas que tal? com a mulher ausente apenas há uma semana! " e "Mas quem é ela? Traga-a até aqui, seu usurário! " e "Olha, sei quem é; é aquela modistazinha de Prairie Avenue."

Ao meio-dia seguinte, ela telefonou de um bar-drogaria, informando-o de que ficara acordada durante toda a noite, e, depois de profunda meditação, resolvera que eles "nunca mais deviam tornar a fazer aquilo" e queria que ele se encontrasse com ela à esquina de Crimmins Street com Missouri Avenue, às oito horas, a fim de poderem conversar sobre o assunto.

No decurso da tarde, telefonou, mudando a hora do encontro para as oito e meia.

Às cinco, telefonou apenas para lhe lembrar...

No laboratório, durante aquele dia, Martin não transplantou culturas. Estava muito confuso, muito humano para portar-se satisfatoriamente como experimentador; pensava com muita frieza para portar-se satisfatoriamente como um varão pecador e, durante todo o tempo, suspirou pela segura e calma consolação de Leora.

"Posso fazer o que quiser com ela esta noite.

Mas ela é uma desmiolada caçadora de homens.

Tanto melhor. Estou farto de ser um filósofo de meia tigela.

Queria saber se esses amantes de sorte, sobre os quais a gente lê todos esses romances e poesias, se sentem tão desenxabidos como eu.

Não serei antiquado, cauteloso, monogâmico e moral! É contra a minha religião. Reivindico o direito de ser livre...

Arre! Essas almas livres que se escravizam à liberdade são exactamente tão perniciosas como os seus pais metodistas. Tenho em mim uma sã imoralidade natural, em dose suficiente para me dar ao luxo de ser moral. Quero conservar o meu cérebro lúcido para o trabalho. Não quero que seja obscurecido por uma submissa correria, com o fim de beijar todas as raparigas que for possível.

Orquídea é demasiado fácil. Detesto renunciar ao direito de ser um feliz pecador, mas a minha situação era tão clara entre Leora e o meu trabalho, e não vou estragá-la. Que Deus ajude todo o homem que gosta do seu trabalho e da sua mulher! É um vencido desde o começo."

Encontrou-se com Orquídea às oito e meia, e tudo se passou secamente. Ficou igualmente desgostoso com o Martin galante de dois dias antes e com o Martin prosaico e cauteloso dessa noite. Foi para casa desconsoladamente ascético e suspirou por Orquídea, durante toda a noite.

Uma semana depois, Leora voltou de Wheatsylvania.

Martin recebeu-a na estação.

- Vai tudo bem - disse ele. - Sinto-me cento e sete anos mais velho. Sou um rapaz respeitável, morigerado e só Deus sabe como odiaria tudo isto, se não fosse a minha prova de precipitação, se não fosses tu e Mas andas sempre a perder a senha da tua mala grande? Acho que sou um mau exemplo para os outros, renunciando assim com tanta facilidade. Não, não, querida; não vês? Isso é o talão da passagem que o revisor do comboio te deu!

 

Nesse Verão, Pickerbaugh, abrindo caminho a berros e apertos de mão, realizara uma rápida tourné de conferências por lowa, Nebraska e Kansas. Martin compreendeu que, embora Pickerbaugh parecesse, em contraste com Gustaf Sondelius, um rústico malfalante e tagarela, estava destinado a ser dez vezes mais conhecido nos Estados Unidos do que jamais Sondelius o poderia ser, mil vezes mais conhecido do que Max Gottlieb.

Correspondia-se com muitos dos Grandes Homens niquelados, cujos retratos e aforismos sonoros apareciam nas revistas: os homens da publicidade que escreviam folhetos sobre Iniciativa e Optimismo; o director da redacção de uma revista que ensinava os empregados de escritório a transformarem-se em Goethes e Stonewall Jacksons, fazendo cursos por correspondência e nunca tocando na antiviril cerveja; e o sábio da cultura de milho que era também uma autoridade em finanças, paz, biologia, direcção jornalística, etnologia peruana e na arte de tornar lucrativa a oratória. Estes condutores intelectuais reconheciam em Pickerbaugh um dos seus; escreviam-lhe cartas mordazes: e, quando ele respondia, assinava "Pick", a lápis vermelho.

O Onward March Magazine, especializado em biografias de Homens que Fizeram o Bem, publicou uma nota sobre Pickerbaugh entre os tópicos sobre o pastor que construiu pessoalmente a sua bela igreja em estilo neogótico, com latas de conserva, a matrona que em sete anos impedira 2698 empregadas de fábrica de caírem na vergonha, e o sapateiro remendão de Oregon que aprendera sozinho a ler sânscrito, finlandês e esperanto.

"Apresento-lhes o velho médico Almus Pickerbaugh, um verdadeiro varão a quem Chum Frink saudou como o "Poeta-Doutor, de punhos prontos para a luta", um cientista que leva logo os seus notáveis descobrimentos para o meio da rua, mas que, como escrupuloso superintendente, à antiga, de uma Escola Dominical, repele os chamados cientistas ateístas que ameaçam os alicerces da nossa religião e dos nossos direitos com as suas presunçosas zombarias a tudo quanto é nobre e construtivo" - entoava o cronista.

Martin estava a ler este artigo e esforçava-se por compreender que ele fora efectivamente publicado numa fabulosa revista de Nova Iorque, com uma circulação de um milhão de exemplares, quando Pickerbaugh o chamou.

- Mart - disse ele -, acha-se competente para dirigir este Departamento?

- Mas... âââh...

- Acha que pode enfrentar as responsabilidades e conservar, sozinho, a higiene da cidade?

- Mas... âââh...

- Porque parece que vou para Washington, como o próximo representante desta zona no Congresso!

- Sim?

- É o que parece. Menino, vou levar a toda a nação a Mensagem que tenho procurado implantar aqui!

Martin produziu um "Parabéns" apreciável. Ficara tão espantado que a palavra saiu com veemência. Ainda guardava um fragmento da crença da infância de que os homens do Congresso são pessoas de inteligência e importância.

- Acabo de ter uma conferência com alguns republicanos de destaque desta zona. Foi uma grande surpresa para mim. Ah! Ah! Ah! Talvez me tenham escolhido por não terem ninguém mais para candidatar este ano. Ah! Ah! Ah! - Martin também riu. Parece que Pickerbaugh não julgou que fosse exactamente a reacção adequada, mas refez-se e continuou o seu gorjeio: Disse-lhes: "Senhores, devo adverti-los de que não estou certo de que possua as raras qualificações necessárias a um homem que terá o elevado privilégio de estabelecer, em Washington, as regras e regulamentos que devem reger, em cada sector da vida, esta grande nação de cem milhões de habitantes. Contudo, senhores, o impulso que me impele a tomar em consideração, com toda a modéstia, esta honra inesperada e provavelmente imerecida é o facto de me parecer que aquilo de que o Congresso precisa é de mais cientistas de larga visão para planear e mais homens de negócio experientes e au-tên-ticos para executar os melhoramentos exigidos pela nossa comunidade sempre em evolução, e também a possibilidade de persuadir os Homens de Washington da necessidade premente e notória de uma Secretaria da Saúde Pública, que tenha a fiscalização completa..."

Mas, fosse qual fosse o pensamento de Martin acerca de tudo isto, os Republicanos apresentaram de facto a candidatura de Pickerbaugh ao Congresso.

 

Enquanto Pickerbaugh fazia a campanha eleitoral, Martin ficou à frente do Departamento, e começou o seu reinado vendo-se apontado como tirano e extremista.

Em lowa, não havia granja mais higiênica e eficiente do que a do velho Klopchuk, nos arredores de Nautilus. As instalações, cobertas de telhas, tinham esgotos e eram excelentemente iluminadas; as máquinas de ordenhar eram perfeitas; as garrafas eram superfervidas; e Klopchuk recebia bem os inspectores e a prova da tuberculina. Lutara contra o sindicato dos operários da especialidade e conservara o seu estabelecimento aberto, empregando trabalhadores não sindicalizados ou pagando melhores salários do que os fixados pelo sindicato. Certa vez, quando Martin comparecera a uma reunião do Conselho Central do Trabalho de Nautilus, como representante de Pickerbaugh, o secretário do Conselho confessou que não havia casa comercial que eles desejassem tanto submeter ao sindicato e que fosse tão difícil de submeter como a de Klopchuk.

Ora, Martin tinha pequena simpatia pelo meio trabalhista. Como a maioria dos homens de laboratório, acreditava que a razão pela qual os operários encontravam menos graça em remendar a roupa ou em puxar uma alavanca do que a que ele próprio achava numa longa pesquisa era porque formavam uma raça inferior, preguiçosa e má de nascimento. A queixa dos sindicalistas era exactamente a coisa necessária para convencê-lo de que finalmente encontrara algo perfeito: o estabelecimento de Klopchuk.

Freqüentemente ia até lá, simplesmente pelo prazer de observá-lo. Notou, porém, algo que o perturbou: um ordenhador tinha persistentemente a garganta inflamada. Examinou o homem, fez culturas e encontrou estreptococos hemolíticos. Tomado de pânico, voltou apressadamente ao local e, fazendo culturas, descobriu que havia estreptococos nos úberes de três vacas.

Quando Pickerbaugh salvara a saúde da nação em todas as cidades menores da zona eleitoral e voltara a Nautilus, Martin insistiu em pôr de quarentena o operário contaminado e em fechar o Estabelecimento Klopchuk até que desaparecesse a infecção.

- Absurdo! Mas se é o lugar mais limpo da cidade! - exclamou Pickerbaugh, zombeteiro. - Para quê incomodar essa gente? Não há sinal de epidemia de estreptococos.

- Não? Três vacas contaminadas. Veja o que aconteceu em Boston e Baltimore, ainda há pouco. Pedi a Klopchuk que viesse aqui, para tratar do assunto.

- Ora você sabe quanto estou ocupado... Em todo o caso...

Klopchuk compareceu às onze, e, para ele, o caso foi trágico. Nascera miseravelmente na Polônia, passara fome em Nova Iorque, trabalhara vinte horas por dia em Vermont, Ohio lowa, conseguira fazer esta bela coisa: a sua granja.

Enrugado, humilde, torcendo o chapéu, quase em lágrimas, protestou:

- Doutor Pickerbaugh, faço tudo quanto os doutores dizem que é preciso. Conheço instalações! E agora vem este rapaz e como um empregado está constipado, diz que mato criancinhas com leite doente! Olhe que isto é a minha vida, e que eu preferia enforcar-me a vender uma gota de leite ruim. O rapaz tem algum motivo que não é sério. Tenho indagado as coisas. Descobri que ele é um grande amigo do Conselho Central do Trabalho. Pois se até vai às reuniões! E eles querem dar cabo de mim!

Para Martin, o velho trêmulo era lamentável; Martin, porém, nunca fora acusado de perfídia. Disse, sombrio:

- O senhor pode investigar mais tarde as acusações pessoais contra mim, doutor Pickerbaugh. Por enquanto, sugiro que recorra a um técnico para verificar os meus resultados; por exemplo, Long, de Chicago, ou Brent, de Minneapolis, ou qualquer outro.

- Eu... eu... - O Kipling e o Billy Sunday da saúde pública parecia tão aflito como Klopchuk. - Estou certo de que o nosso amigo não pretendeu fazer acusações contra o senhor, Mart. Ele está nervoso, naturalmente. Por que não tratamos do homem que está com a infecção estreptocócica, sem incomodar toda a gente?

- Pois sim, se é que o senhor quer ter uma grave epidemia aqui, lá para fim da sua campanha!

- O senhor sabe muito bem que eu faria tudo para evitar... Desejo que compreenda claramente que isto nada tem que ver com a minha campanha para o Congresso! Acontece simplesmente que devo à minha cidade o mais escrupuloso cumprimento do dever de salvaguardá-la contra as moléstias, e a mais destemida execução...

Ao cabo da sua oratória, Pickerbaugh telegrafou ao Dr. J. C. Long, o bacteriologista de Chicago.

Dir-se-ia que o Dr. Long fizera a viagem de comboio num frigorífico. Martin nunca vira um homem tão isento da poesia e da fluente filantropia de Almus Pickerbaugh. Era magro, exacto, não tinha peito, não tinha lábios, usava óculos e repartia o cabelo ao meio. Friamente, ouviu Martin, friamente, ouviu Pickerbaugh, glacialmente, ouviu Klopchuk, fez o seu exame e informou:

- O doutor Arrowsmith parece conhecer perfeitamente as suas funções, é certo que há perigo aqui, aconselho o encerramento da granja, os meus honorários são cem dólares, obrigado, não, não ficarei para jantar, tenho de apanhar o comboio nocturno.

Martin foi para casa desabafar com Leora:

- Esse homem foi tão amável como uma salada de pepinos, mas, palavra! Leo, com a sua liberdade cavalar, ele deixou-me louco por voltar à pesquisa; e ficar assim longe desses humanitários tão preocupados em berrar o seu amor ao querido povo, que deixam o povo morrer! Antipatizei com ele, mas... Só queria saber o que Max Gottlieb está a fazer neste momento Aposto... Aposto que está a conversar sobre música ou coisa parecida, com um grupo de pedantes. Não tinhas vontade de tornar a ver o velho pato? Sabes, só por uns minutos. Já te falei da ocasião em que colori tripanossomas... Não falei?

Imaginou que, com o encerramento temporário da granja, o caso estivesse encerrado. Não compreendeu que Klopchuk ficara profundamente ferido. Notou <jue Irving Watters, o médico de Klopchuk, se manteve frio quando se encontraram, e resmungou: "Para quê tanto alarme, Mart? " Mas não sabia que muitas pessoas em Nautilus haviam sido seguramente informadas de que esse sujeito, Arrowsmith, estava a soldo dos bandidos sindicalistas.

 

Dois meses antes, quando Martin estivera a fazer a inspecção anual das fábricas, encontrara Clay Tredgold, o presidente (por herança) da Companhia de Moinhos de Vento de Aço. Ouvira dizer que Tredgold, homem de quarenta e cinco anos, de conversação esmerada mas fluente, se movia como um grão-senhor nos planos mais excelsos da sociedade de Nautilus. Depois da inspecção, Tredgold insistiu:

- Queira sentar-se, doutor; fume um charuto e diga-me coisas sobre higiene.

Martin ficou de pé atrás. Havia um lampejo sardónico no olhar afável de Tredgold.

- Que deseja saber sobre higiene?

- Oh... tudo!

- A única coisa que sei é que os seus empregados o devem estimar. Naturalmente, o senhor não tem lavatórios em número suficiente no gabinete do segundo andar, mas todo o pessoal jurou que o senhor ia colocar outros imediatamente. Se o estimam bastante para mentir contra os seus próprios interesses, o senhor deve ser um bom chefe, e acho que vou deixá-lo continuar assim... até à minha próxima vistoria! Bem; preciso de ir-me.

Tredgold ficou radiante.

- Meu caro, tenho usado esse expediente com Pickerbaugh, durante três anos. Estou satisfeito por tê-lo conhecido. E creio que posso realmente colocar mais alguns lavatórios... antes da sua próxima inspecção. Passe bem!

Depois do caso Klopchuk, Martin e Leora encontraram Clay Tredgold e sua esposa, uma mulher delgada e vistosa, em frente de uma cinema.

- Vamos no meu carro, doutor? - gritou Tredgold. No caminho, sugeriu:

- Não sei se o senhor é abstêmio, como Pickerbaugh, mas, se aceitasse, iríamos até minha casa e apresentar-lhe-ia o cocktail mais deliciosamente concebido desde que o Evangeline County adoptou a lei seca. Acha razoável?

- Há anos que não ouço nada tão razoável- disse Martin.

A residência de Tredgold estava situada no cabeço mais alto (vinte pés bem contados acima do nível geral da planície) de Ashford Grove, que é a Back Bay1 de Nautilus. Era uma construção em estilo colonial, com uma varanda envidraçada, um salão de paredes a imitar pedra branca, e uma sala de recepção azul e prata. Martin procurou aparentar indiferença, aderindo com Leora à tagarelice da Sr.a Tredgold, mas era a casa mais bonita em que entrara.

Enquanto Leora se conservava sentada na beira da cadeira, à maneira de quem deseja voltar para casa, e a Sr.a Tredgold se inclinava para a frente, na sua cadeira, à maneira de uma dona de casa, Tredgold sacudia o Shaker e distribuía cortesias:

- Há quanto tempo está aqui, doutor?

- Há quase um ano.

- Experimente este. Olhe, noto que o senhor é bem diferente do Pickerbaugh Salvação.

Martin sentiu que devia elogiar o seu chefe mas, com agradável surpresa de Leora pôs-se de pé, de um salto, e declamou à melhor maneira de Pickerbaugh:

"Senhores das Indústrias dos Moinhos de Vento de Aço, que não encontram rival nas suas contribuições à prosperidade da nossa comunidade, embora eu compreenda que os senhores estão a cometer todas as infracções contra as leis sanitárias em que o inspector não pode apanhá-los, não posso deixar de render homenagem ao seu profundo respeito à higiene, patriotismo e cocktails, e se ao menos tivesse um assistente mais zeloso do que o jovem Arrowsmith, tornar-me-ia, com a licença dos senhores, presidente dos Estados Unidos."

Tredgold bateu as palmas. A Sr.a Tredgold afirmou:

- Mas é exactamente o Dr. Pickerbaugh!

Leora ficou cheia de orgulho e o mesmo aconteceu com o marido.

- Vejo com satisfação que o senhor está isento dessa exibição socialista de Pickerbaugh - disse Tredgold.

A suposição despertou algo da obstinação de Martin e lançou-o na defensiva:

- Ora, não dou a menor importância ao facto de ele ser socialista, seja qual for o significado disso. Nada conheço de

 

1 Zona residencial elegante de Boston. (N. do T.)

 

socialismo. Mas, uma vez que o arremedei... parece-me que fui um pouco desleal... devo dizer que não gosto muito de oratória que se enche tanto de veemência que fica sem lugar para os factos. Mas note, Tredgold, que isso é em parte culpa de pessoas como as da Associação de Industriais dos senhores. Os senhores incitam-no a declamar. Sou um homem de laboratório... ou melhor, é o que desejo ser, por vezes. Gosto de trabalhar com números exactos.

- Eu também. Estudei Matemática no Williams - disse Tredgold.

Instantaneamente, Martin e ele entraram no assunto educação amaldiçoando as Universidades por produzirem doutores como salsichas. Martin viu-se a fazer confidencias sobre as "variáveis" e Tredgold proclamou que não desejara tomar a direcção da fábrica herdada, mas especializar-se em Astronomia.

Leora confessou à cordial Sr.a Tredgold a prudência com que a esposa de um subdirector tem de economizar, e, com aquela sua voz acariciadora, a Sr.a Tredgold consolou-a:

- Eu sei. Fiquei em dificuldades horríveis quando meu pai faleceu. Já experimentou a costureirinha sueca de Crimmins Street, a segunda porta para lá da igreja católica? Ela é muito hábil e barateira.

Martin encontrara, pela primeira vez depois do casamento, uma casa onde se sentia totalmente satisfeito; Leora encontrara, numa dama com o fluente refinamento que ela sempre temera e odiara, a primeira mulher a quem podia falar de Deus e do preço do pano para toalhas. Saíram ambas de dentro de si próprias e não se acharam ridículas.

Foi à meia-noite, quando os encantos da bacteriologia e das toalhas começavam a empalidecer, que, fora, soou a buzina excitante e rouca de um automóvel, e entrou pesadamente um homem gordo e vermelho, que foi apresentado como o Sr. Schlemihl, presidente da Combelt Insurance Company, de Nautilus.

Mais ainda do que Clay Tredgold, era ele uma figura de proa da aristocracia de Ashford Grove, e, embora parecesse um invasor bárbaro na sala azul e prata, mostrou-se cordial:

- Muito prazer em conhecê-lo, doutor. Olha, Clay, sinto-me impar de satisfação por teres encontrado outro intelectual para a gente cavaquear. Quanto a mim, Arrowsmith, não passo de um pobre agente de seguros. Clay anda sempre a dizer que sou um estúpido analfabeto. Mas então, Clay, vem ou não vem um cocktail? Eu senti o cheiro lá em baixo! Entrei a dizer comigo mesmo que és um tipo decente! Vamos! Mistura a droga!

Tredgold misturou, energicamente. Antes que tivesse terminado, o jovem Monte Mugford, bisneto do venerável - venerável, apesar das suíças - Nathaniel Mugford, que fundara o Mugford College, entrou na sala sem ser convidado. Admirou-se da presença de Martin, achou-o humano, disse-lhe que era humano, e fez os devidos esforços para indemnizar-se do atraso no cocktail.

Assim, aconteceu que, às três da manhã, Martin estava a cantar, perante um auditório entusiasmado, a balada que aprendera com Gustaf Sondelius:

Tinha olhos escuros, distantes, Tinha loiro cabelo de torçal. Linda jovem modesta, singela, Mas de sangue impetuoso e sensual.

Às quatro, os Arrowsmith tinham sido aceites pelo grupo mais distinto de Nautiluz e, às quatro e trinta, foram levados a casa, a uma velocidade nem legal nem agradável, por Clay Tredgold.

 

Havia em Nautilus o Country Club, que era o eixo do que chamavam Sociedade, mas havia também uma tribo de talvez doze famílias, no bairro de Ashford Grove, a qual, embora os seus componentes fossem ao Country Club jogar golfe e condescendessem em misturar-se com outros jogadores de golfe, formava um grupo à parte e considerava-se como pertencente mais a Chicago do que a Nautilus. Entretinham-se uns aos outros, por escala. Presumiam que eram bem-vindos a qualquer party dado por um deles e para nenhum dos seus parties convidavam quem quer que fosse de fora do grupo, excepto forasteiros das cidades maiores e, ocasionalmente, algum franco-atirador, como Martin. Eram uma guarnição pequena e fechada, numa cidade bárbara.

Os membros do grupo eram riquíssimos, e um deles, Montgomery Mugford, sabia algo acerca do seu bisavô. Moravam em palácios à Tudor e em casas de campo à italiana, tudo tão novo que os relvados estavam cheios de falhas e mal tinham começado a crescer. Tinham grandes automóveis, e adegas maiores ainda, embora as adegas não contivessem mais do que gin, whisky, vermute e algumas garrafas sagradas de champanhe meio-doce. Cada membro do grupo conhecia familiarmente Nova Iorque - hospedavam-se no St. Regis ou no Plaza, e saíam a comprar roupa e a descobrir pequenos restaurantes elegantes

- e cinco dos doze casais haviam ido à Europa; tinham passado uma semana em Paris, com a intenção de percorrer galerias de arte, mas indo, na realidade, aos mais caros chamarizes de basbaques de Montmartre.

Martin e Leora foram acolhidos no grupo como parentes pobres. Eram convidados para jantares com números de arte e para almoços no Country Club, aos domingos. Fosse qual fosse o divertimento, terminava sempre com uha rápida corrida de automóvel para algum lugar, certa quantidade de bebidas e insistentes convites a Martin para tornar a "fazer aquela imitação de Doe Pickerbaugh".

Além da corrida de automóvel, das bebidas e das danças ao som do fonógrafo, a principal diversão do grupo eram as cartas. É curioso notar que, neste círculo completamente amoral, não havia intrigas amorosas; conversavam com uma liberdade considerável sobre "sexo", mas todos pareciam monogâmicos, todos felizmente casados ou com temor de parecerem casados infelizes. Mas, quando Martin os conheceu melhor, ouviu murmúrios sobre maridos que faziam "escapadelas" a Chicago, sobre esposas que procuravam jovens companheiros nos hotéis de Nova Iorque e farejou uma furiosa inquietação por debaixo da superior aparência da sua tranqüilidade sexual.

Não se sabe se Martin aceitou completamente algum dia como gentleman e intelectual o Clay Tredgold que se dedicava a tudo quanto dizia respeito à Astronomia, excepto ao seu estudo, ou Monte Mugford como o aristocrata de elevada linhagem, mas admirava os automóveis do grupo, os seus quartos de banho, as roupas compradas na Quinta Avenida, calças de tweed para golfe e casas impessoalmente decoradas por jovens narcisistas de Chicago. Descobriu molhos e velhas pratarias. Começou a encarar os vestidos de Leora, não apenas como abrigos convenientes, mas como uma expressão possível de encanto, e, irritado, compreendeu quão descuidada era.

Sozinha em Nautilus, e como raramente falasse a seu próprio respeito, Leora criara uma intensa e silenciosa vida própria. Pertencia a um clube de bridge e ia sozinha, gravemente, aos cinemas, mas a sua ambição era conhecer a França, e isto absorvia-a. Era um velho desejo, de origem misteriosa e longamente conservado em segredo, mas de repente ela suspirou:

- Sandy, a única coisa que queria fazer, daqui a uns dez anos, é visitar Touraine, a Normandia e Carcassonne. Achas que poderemos ir?

Raramente Leora pedia alguma coisa. Martin ficou enternecido e embaraçado, quando viu que ela lia obras sobre a Bretanha, quando a surpreendeu debruçada sobre uma gramática francesa altamente simplificada, soprando "J'ay... j'ay... não! Que pronúncia maldita!"

Gritou com entusiasmo:

- Lee, minha querida, então queres ir à França... Olha! Qualquer dia, partiremos para lá com os nossos sacos de viagem às costas e percorreremos esse velho país de ponta a ponta!

Leora, com um misto de contentamento e dúvida:

- E tu, Sandy, se ficasses aborrecido, poderias ir ver o trabalho do Instituto Pasteur. Oh, como gostaria de caminhar, pelo menos uma vez, entre muros altos e rebocados, e chegar a um pequeno e absurdo café, para ver o vaivém de homens com estranhas faixas vermelhas e com as suas calças azuis dobrando-se em baixo a cada passada. Achas que talvez possamos ir?

Leora era singularmente popular no grupo de Ashford Grove, embora nada possuísse daquilo a que Martin chamava a "elegância do grupo". Os seus vestidos tinham sempre falta de um botão. A Sr.a Tredgold, que, entre as mulheres, era simultaneamente a de melhor índole e a menos religiosa, adoptou-a tal como ela era.

Nautilus duvidara sempre de Clara Tredgold. O Sr. Almus Pickerbaugh disse que ela "não participava de nenhum movimento pró-melhoramento da cidade". Durante anos, parecera contentar-se em cultivar as suas rosas, mandar fazer os seus espantosos chapéus, pôr creme de amêndoas nas mãos bonitas e ouvir as histórias inconvenientes do marido - e durante anos fora uma mulher solitária. Em Leora, sentiu uma indiferença interessada igual à sua. As duas mulheres passavam tardes sentadas na varanda envidraçada, a ler, a arranjar as unhas, a fumar, sem dizerem uma palavra, mutuamente confiantes.

Com outras mulheres do grupo, Leora nunca se tornou tão íntima como com Clara Tredgold, mas elas apreciavam-na, tanto mais que Leora era uma hereje cujos vícios, fumar, indolência, pronunciado odor de profanidade, perturbavam a Sr.a Pickerbaugh e a Sr.a Irving Watters. O grupo, contudo, aprovava todas as coisas que iam de encontro às convenções, excepto quando se tratava de coisas econômicas que lhes ameaçavam a boa opulência. Leora costumava tomar chá ou um cocktail, en tête à tête, com a nervosa e jovem Sr.a Monte Mugford, que havia quatro anos fora a débutante mais lesta em Dês Moines e que via agora com horror a aproximação do seu segundo nené, e foi com Leora que a Sr.a Schlemihl, embora em público se conservasse jovial e serena para com o porcalhão do marido, desabafou: "Se ao menos esse homem deixasse de me agarrar... de me perseguir... de se babar em cima de mim! Odeio isto aqui! Hei-de passar o Inverno em Nova Iorque, sozinha! "

O pueril Martin Arrowsmith, tão indigno da velha e tranqüila sabedoria de Leora, não se contentava em vê-la aceite pelo grupo. Quando ela aparecia com o vestido sem um botão, ou com os cabelos como um ninho de corvo, ficava aborrecido e dizia coisas sobre o seu "relaxamento", das quais depois se arrependia.

"Porque não tentas perder algum tempo para te tornares mais atraente? Deus sabe que não tens mais nada que fazer! Minha Nossa Senhora, não podes nem sequer pregar botões?"

Clara Tredgold, porém, dava uma risada e dizia: "Leora, acho que tens as costas lindas, mas não queres que eu te pregue uns alfinetes antes que os outros cheguem?"

Depois de um party que durou até às duas, quando a Sr.a Schlemihl ostentara a nova criação da casa Lucile e quando Jack Brundidge (durante o dia vice-presidente e gerente de vendas da Companhia de Farináceos de Milho) dançara o que beligerantemente afirmou ser uma polca finlandesa, aconteceu que, enquanto Martin e Leora iam para casa num automóvel pertencente ao Departamento de Saúde Pública, ele resmungou:

- Lee, por que não cuidas mais da tua toilette? Esta manhã, ou ontem de manhã, ias consertar aquele vestido azul, e que me conste não fizeste coisa alguma durante todo o dia senão ficar sentada a ler, e depois sais com esse bordado que parece roído pelos ratos...

- Pára o carro um bocado! - gritou ela.

Ele travou-o, espantado. Os faróis tornaram ridiculamente importante uma cerca de arame farpado, uma porção de palha seca esparramada, um lanço deserto do caminho macadamizado.

Ela perguntou:

- Queres que me torne uma beleza de harém? Posso fazer isso. Posso tornar-me uma coquette. Mas nunca me importei com isso. Oh, Sandy, não quero continuar a brigar contigo. Ou continuo a ser a esposa simples e relaxada que sou, ou não serei coisa alguma. Que preferes? Preferes uma verdadeira princesa como Clara Tredgold, ou preferes-me, embora não dê a menor importância ao lugar onde vamos nem ao que vamos fazer, contanto que estejamos juntos? Tens cada motivo de preocupação! Estou cansada disto. Mas vamos de uma vez. Que é que queres?

- Não quero nada, a não seres tu. Mas não podes compreender... Não sou um adventício... Acho que devemos estar no mesmo nível de todos os meios que freqüentamos. Não vejo por que havemos de ficar em situação inferior a esse grupo, em coisa alguma. Querida, excepto talvez o caso de Clara, eles não são mais do que ricos guarda-livros! Mas nós somos verdadeiros e bons aventureiros. A tua França, que tanto amas... e onde um dia iremos, e o presidente francês esperar-nos-á no cais! Por que havemos de permitir que os outros façam as coisas melhores do que nós podemos fazer? Técnica!

Discutiram durante uma hora naquele sítio sombrio, ante os malignos fios de arame farpado.

No dia seguinte, quando Orquídea entrou no laboratório e, em tom suplicante, com a vivacidade da juventude, lhe perguntou: "Oh, Dr. Martin, o senhor já não vai lá a casa? " - ele beijou-a tão prazenteiramente, que mesmo uma menina leviana poderia perceber a sua falta de significado.

Martin compreendeu que provavelmente seria o próximo director do Departamento. Pickerbaugh disse-lhe: "O seu trabalho é muito satisfatório. Falta-lhe apenas uma coisa, rapaz: entusiasmo para entender-se com o povo e ir para diante, com vontade, com prestígio. Mas talvez isso lhe venha quando tiver mais responsabilidade."

Martin imaginou-se entre os encantos do prestígio, mas semtiu-se como um homem que foi forçado a envergar calças amarelas para um desfile cívico.

"Ora, posso ver-me nessa situação quando for director pensou, preocupado. - Sempre queria saber se haverá gente que alcança o que se chama o "êxito" e depois lhe toma horror. De qualquer forma, vou iniciar um sistema honesto de estatísticas demográficas no departamento, antes que eles me apanhem. Não me submeterei! Hei-de lutar! Conseguirei também os meus resultados!"

 

Talvez fosse a vontade de dar uma dose concentrada de inspiração tão poderosa que nenhum cidadão de Nautilus ousasse jamais adoecer de novo, ou talvez o Dr. Pickerbaugh desejasse uma pequena e razoável publicidade para a sua campanha eleitoral, mas o certo é que a Feira da Saúde Pública, que o bom homem organizou, foi colossal.

Obteve uma verba extraordinária da Câmara de Vereadores; levou a cooperarem, de roldão, todas as igrejas e associações; fez os jornais prometerem publicar três colunas de elogios, diariamente.

Alugou o "tabernáculo" de tábuas, um tanto arruinado, em que o Rev. Billy Sunday, evangelista, recentemente limpara todos os pecados da comunidade. Arranjou certo número de atracções originais. Os Escuteiros deviam fazer demonstrações diárias. Havia uma tenda da União Cristã Feminina da Temperança, onde afamados clérigos e fisiólogos provavam os males do álcool. Na tenda de Bacteriologia, o insubmisso Martin (com um primoroso casaco branco) devia fazer coisas bonitas com provetas. Uma senhora antinicotinista de Chicago ofereceu-se para matar um rato, de meia em meia hora, com injecções de pó de papel de cigarro. As gêmeas Pickerbaugh, Arbuta e Gladíola, agora com seis anos de idade, deviam mostrar ao público como se lavam os dentes, e fizeram-no efectivamente até que um agricultor de sessenta anos de idade, a quem elas haviam perguntado amavelmente: "O senhor lava os dentes diariamente? ", lhes deu a resposta fulminante: "Não, mas darei umas palmadas diariamente no vosso traseiro, e vou começar agora mesmo."

Nenhuma destas novidades causou tanto alvoroço como a Família Eugénica, que se prontificara, apenas por quarenta dólares diários, a dar um exemplo dos benefícios de um regime higiênico.

Eram pai, mãe e cinco filhos, todos tão belos e vigorosos que recentemente haviam feito refinadas exibições acrobáticas no Circuito Chautauqua1. Nenhum deles fumava, bebia, cuspia nas calçadas, dizia palavras feias ou comia carne. Pickerbaugh destinou-lhes a tenda principal, na plataforma antes sacerdotalmente ocupada pelo Rev. Sunday.

Havia números de rotina: tendas com gráficos, insígnias e boletins. O Octeto Saudista Pickerbaugh dava recitais de canto, e diariamente havia palestras, a maioria delas por Pickerbaugh ou pelo seu amigo, o Dr. Bissex, técnico de râguebi e professor de Higiene e muitas outras matérias no Mugford College.

Uma dúzia de celebridades, inclusive Gustaf Sondelius e o governador do estado, foram convidados para virem "trazer as suas mensagens", mas aconteceu, infelizmente, que nenhuma delas parecia dispor de tempo naquela semana.

A inauguração da Feira de Saúde realizou-se com grande afluência humana e êxito. No primeiro dia, houve um leve equívoco, A Associação de Proprietários de Panificação dirigiu-se, com veemência, a Pickerbaugh, por causa da divisa "Muito pastel produz piorreia", da tenda do regime alimentar. Mas retirou-se imediatamente a divisa irreflectida e prejudicial à prosperidade, e a Feira foi, a seguir, anunciada em todas as padarias da cidade.

O único participante descontente era, evidentemente, Martin. Pickerbaugh instalara-lhe um laboratório para demonstrações, o qual, não se levando em conta que não dispunha de água corrente, nem considerando que a legislação competente vedava o uso de qualquer espécie de chama, era exactamente um laboratório autêntico. Durante todo o curso do dia, Martin passava uma solução de tinta vermelha de uma proveta para outra, examinava com o microscópio, cuidadosamente, uma coisa absolutamente inexistente, e respondia a perguntas de pessoas que desejavam saber como se matam bactérias quando a gente as surpreende em flagrante.

Leora aparecia como sua assistente, muito bonita e séria no seu uniforme de enfermeira, muito incômoda com o seu riso

 

1 Chautauqua, organização recreativa educacional, segundo os moldes das escolas de Verão da localidade do mesmo nome. (N. do T.)

 

abafado diante do surdo praguejar de Martin. Encontraram um amigo, o bombeiro de serviço, um tipo esplêndido, que sabia histórias sobre gatinhos no quartel dos bombeiros e que não mostrava tendências para fazer perguntas sobre bacteriologia. Foi ele quem lhes mostrou como podiam fumar com segurança. Por detrás da barraca intitulada Limpe a Sua Casa e Evite os Incêndios, a qual constava de uma casa descuidada miniatural, com setas vermelhas a mostrar onde podia começar um incêndio, e uma Casa Limpa extremamente envernizada, havia um quartinho com uma janela partida, que daria saída ao fumo dos cigarros. Para este santuário, Martin, Leora e o bombeiro aborrecido retiravam-se uma dúzia de vezes por dia, e assim iam vencendo a semana.

Aconteceu outra desgraça. O sargento-investigador, entrando não para investigar mas para ver o encantador espectáculo do rato morrer aflitivamente de pó de papel de cigarro, parou diante da tenda da Família Eugénica, coçou a cabeça, dirigiu-se apressado ao posto policial e voltou com certas fotografias. Rosnou para Pickerbaugh:

- Hum Essa Família Eugénica. Eles não fumam, não bebem, nem nada?

- Exacto. E repare na perfeita saúde deles.

- Hum... É melhor tê-los de olho. Não lhe estragarei o espectáculo, Doe... nós, companheiros de trabalho do City Hall, temos o dever de ser unidos. Não os expulsarei da cidade antes da feira terminar. Mas eles formam a quadrilha Holton. O homem e a mulher não são casados, e só uma das crianças é filha deles. Cumpriram pena por venderem bebidas alcoólicas aos índios, mas a especialidade deles, antes de se dedicarem ao atletismo, costumava ser a chantagem por meio de mulheres. vou destacar um homem à paisana para vigiá-los. Bonito espectáculo o senhor arranjou, Doe. De facto, precisava de dar a esta cidade uma lição duradoura do valor da última palavra em matéria de higiene. Boa sorte! A propósito, Doe, o senhor já arranjou secretária para quando for para o Congresso? Tenho uma sobrinha que é um colosso em estenografia e uma menina de boa presença e que sabe conservar a boca fechada em coisas que não são da conta dela. Mandá-la-ei falar consigo. Passe bem, Doe.

Mas, excepto uma vez, em que apanhou o pai da Família Eugénica a aliviar a tensão de ser sadio em público, com um longo, gorgolejante e extático trago de um frasco, Pickerbaugh nada notou em desabono do seu procedimento, até sábado. Nada houve de mal em coisa alguma, até esse dia.

Jamais uma Feira apresentara semelhante lição de moralidade, ou assegurara tamanha publicidade. Todos os jornais da zona eleitoral lhe dedicavam colunas e mesmo o noticiário dos jornais democráticos mencionava a campanha de Pickerbaugh.

Depois, no sábado, o último dia da Feira, sobreveio a tragédia.

Caiu uma chuva torrencial, o telhado jorrou água sem constrangimento e a senhora encarregada da Tenda da Moradia Higiênica, sobre a qual também havia goteiras, foi levada para casa com pneumonia. Ao meio-dia, quando a Família Eugénica estava a fazer uma demonstração de vigor perfeito, a filha mais nova teve um ataque epiléptico, e, antes de terminar o alvoroço, a senhora antinicotinista de Chicago, na ocasião em que triunfalmente assassinava um rato, foi atacada por uma senhora antivivisseccionista, também de Chicago.

Em torno das duas senhoras e do infeliz ratinho, juntou-se a multidão. A senhora antivivisseccionista chamou assassina, vil e ateia à senhora antinicotinista, e tudo isto a senhora antinicotinista suportou, limitando-se a chorar um pouco e a gritar pela polícia. Mas, quando a senhora antivivisseccionista concluiu: "E, quanto às suas pretensões de conhecer um pouco de ciência, são falsas, pois não conhece coisa alguma! ", a senhora antinicotinista, dando um guincho, saltou da sua plataforma, enterrou os dedos nos cabelos da senhora antivivisseccionista e observou com clareza: "Vou mostrar-lhe se conheço ou não a ciência!"

Pickerbaugh tentou separá-las. Martin, satisfeito, conservou-se à margem, junto de Leora e do seu amigo bombeiro, e absteve-se, com clareza, de fazer qualquer coisa. Ambas se voltaram contra Pickerbaugh e passaram a acusá-lo, e, quando foram apartadas, ele tornou-se o fulcro de mil risadas, e correu verdadeiro risco de nunca chegar ao Congresso.

Às duas horas, quando a chuva amainou, e a multidão, que já almoçara, se reconstituiu e a história das duas senhoras circulava, o bombeiro retirou-se para as traseiras da barraca Limpe a Sua Casa e Evite Incêndios, a fim de fumar o seu cigarro de cada hora. Era um homem sonolento e descontente; pensava no quartel ameno e nos infindáveis jogos depinochle. Atirou o fósforo ainda aceso para a entrada das traseiras da Casa Limpa modelo. Esta fora tão perfeitamente lambusada de verniz que estava como um graveto embebido em petróleo. Saltou uma chama e instantaneamente o enorme e sombrio Tabernáculo ficou histericamente envolto em labaredas. A multidão arremessou-se para as saídas.

Naturalmente, na sua maioria, as saídas do Tabernáculo encontravam-se obstruídas pelas tendas. Houve pânico, gritos agudos, e as crianças começaram a ser atropeladas.

Almus Pickerbaugh não era covarde nem indolente. De repente, surgindo não se sabia de onde, marchava através do Tabernáculo, à testa das suas oito filhas, a cantar Dixie, a cabeça erguida, os olhos terríveis, os braços abertos num apelo. com a sua voz de capitão de navio à vela, desfez a confusão, evacuou o recinto, e depois voltou-se para as chamas que erguiam as grandes línguas avermelhadas.

A construção, encharcada de água da chuva, não fora atingida. O bombeiro, com Martin e o chefe da Família Eugénica, combatiam as chamas. Nada foi destruído, com excepção da Casa Limpa, e a multidão, que fugira aterrorizada, voltou maravilhada. O seu herói era Pickerbaugh.

Dentro de duas horas, os jornais de Nautilus vomitavam edições especiais, a explicarem que Pickerbaugh não só organizara a maior lição de higiene já vista, como também, com a sua coragem e poder de mando, salvara centenas de pessoas da morte por esmagamento, sendo isto provavelmente a única coisa absolutamente exacta que se disse acerca do Dr. Almus Pickerbaugh, em dez mil colunas de publicidade jornalística.

Para ver a Feira, ou Pickerbaugh, ou a deliciosa devastação de um desastre, ou outra luta entre as duas senhoras, metade da cidade visitou o Tabernáculo, naquela noite, e, quando Pickerbaugh subiu à plataforma, para a sua palestra de encerramento, foi saudado com frenesi. No dia seguinte, quando entrou a galope na última semana da sua campanha eleitoral, tornou-se o senhor de toda a zona.

 

O seu adversário era um advogado sensaborão e miúdo, cuja força estava na sua prática. Fora senador do estado, vice-governador, juiz do condado. Mas a divisa democrática, "Pickerbaugh, o Candidato de Escol", estava aureolada pela admiração pelo herói da Feira da Saúde Pública. Ele corria de um lado para outro, de automóvel, proclamando: "Não aceitei a minha candidatura por desejar o cargo, mas porque aspiro pela oportunidade de levar a toda a nação os meus ideais de saúde pública." Por toda a parte, lia-se o cartaz:

Para o Congresso

PICKERBAUGH

Poeta-Doutor, de punhos prontos para a luta.

Eia, às urnas, por ele, Que aos germes todos tirará a pele.

Realizaram-se enormes comícios. Pickerbaugh foi amplo e vago em relação ao seu programa. Sim, ele opunha-se à nossa entrada na guerra européia, mas assegurava-lhes, sem dúvida que assegurava, que era partidário de se lançar mão de todo o poder do nosso governo para terminar com essa terrível calamidade. Sim, era pelas tarifas elevadas, mas elas deviam ser ajustadas de tal maneira que os camponeses da sua zona pudessem comprar tudo barato. Sim, era pelos salários elevados para todos os trabalhadores, mas erguia-se como um rochedo, como um penhasco, pela protecção da prosperidade de todos os proprietários de fábricas, negociantes e proprietários de bens de raiz.

Enquanto esta campanha máxima trovejava, processava-se em Nautilus uma campanha menor e muito mais modesta, para reeleger como prefeito um certo Sr. Pugh, amorável chefe de Pickerbaugh. O Sr. Pugh ficava correctamente sentado numa secretária, e mostrava-se cordial e cheio de promessas a quem quer que fosse visitá-lo; clérigos, jogadores, veteranos do Grande Exército da República, agentes de circo, elementos da Polícia e senhoras de virtude razoável - toda a gente, excepto talvez agitadores socialistas, contra os quais valentemente protegia a cidadela de Nautilus. Nos seus discursos, Pickerbaugh recomendava Pugh por "aquela firme integridade e pronta simpatia com que apoiara todos os movimentos em prol do bem-estar público", e quando Pickerbaugh (honestissimamente) suplicou: "Senhor prefeito, se eu for para o Congresso, deve nomear Arrowsmith para o meu lugar; ele nada sabe de política, mas é incorruptível" - Pugh prometeu-lho e a amizade reinou naquela terra... Ninguém disse coisa alguma sobre o Sr F. X. Jordan.

  1. X. Jordan era um grande contratador e tinha generoso interesse pela política. Pickerbaugh chamava-lhe aproveitador e, da última vez que Pugh fora eleito - fora-o com uma Plataforma Reformista, embora desde essa ocasião a reforma tivesse sido docemente persuadida a portar-se bem e a ser prática - tanto Pugh como Pickerbaugh haviam acusado Jordan de ser uma "força maligna". Mas o prefeito Pugh tornara-se tão bondoso que, na actual eleição, nada disse que pudesse ferir os sentimentos do Sr. Jordan; em troca, que poderia o Sr. Jordan fazer senão falar generosamente do Sr. Pugh ao povo dos blindpigs e casas de má fama?

Na noite da eleição, Martin e Leora encontravam-se entre o grupo que esperava o resultado da votação em Pickerbaugh. Estavam confiantes. Martin nunca se deixara excitar pela política, mas agora impressionava-se com a nervosa aparência de indiferença de Pickerbaugh, com as informações telefonadas da redacção do jornal: "Resultado de Willow Grove: Pickerbaugh à frente, dois por um! "; com grupos que passavam diante da casas a berrar: "Pickerbaugh, Pickerbaugh, Pickerbaugh!"

Às onze, a vitória era certa, e Martin, sentindo no ventre a sua escassa confiança, compreendeu que era agora director da Saúde Pública, responsável por setenta mil vidas.

Olhou ansiosamente para Leora e, no sorriso tranqüilo dela, encontrou um apoio seguro.

Orquídea mostrara-se aérea e longínqua para com Martin, durante toda a noite, e aterradoramente tagarela e afectuosa para com Leora. Agora, atraía-o para uma saleta contígua e, com o olhar velado, cheio de languidez e abandono, exclamou: "Então, vou-me embora para Washington... e tu não fazes o menor caso! " Ele agarrou-a, murmurando: "Querida, não posso deixar-te! " A caminho de casa, pensou menos na perspectiva de ser director do que nos olhos de Orquídea.

De manhã, resmungou: "Mas a gente nunca aprende coisa alguma? Viverei para continuar a portar-me como um idiota, toda a vida? Isto repetir-se-á continuamente?"

Não tornou a vê-la, a não ser na plataforma do comboio.

Leora fez esta surpreendente reflexão, depois de os Pickerbaugh partirem:

- Querido Sandy, sei o que sentes ao perderes a tua Orquídea. É como se fosse a partida da Juventude. Ela é de facto um pêssego. Palavra que sei o que sentes e simpatizo contigo... quero dizer, naturalmente, uma vez que nunca mais tornes a procurá-la.

 

Por cima do cabeçalho do Nautilus Cornfield apareciam, em tipos vigorosos, os títulos e subtítulos:

ALMUS PICKERBAUGH VITORIOSO O primeiro Cientista eleito para o Congresso Émulo de Darwin e de Pasteur dá novo impulso ao leme da nau do Estado

Pickerbaugh devia resignar imediatamente; partiria para Washington antes do início do seu mandato a fim de, segundo explicou, estudar os métodos legislativos e encetar a sua propaganda pela criação de uma secretaria federal de Saúde Pública. Houve uma luta considerável em torno da nomeação de Martin para a vaga. Klopchuk, o proprietário da granja, mostrou-se amargo; Irving Watters cochichou para os colegas que Martin pretendia ampliar essas coisas socialistas, as clínicas gratuitas; F. X. Jordan tinha um médico jovem e sensato como seu candidato pessoal. Foi o grupo de Ashford Grove, Tredgold, Schlemihl e Monte Mugford que decidiu a questão.

Martin disse a Tredgold, preocupado:

- O povo querer-me-á? Achas que devo lutar contra Jordan, ou desistir?

Tredgold disse, docemente:

- Lutar? Para quê? Sou portador de um bom número de acções do banco que emprestou por várias vezes somas razoáveis em dinheiro ao prefeito Pugh. Deixa isso comigo.

No dia seguinte, Martin foi nomeado, mas apenas como director interino, com um ordenado de três mil e quinhentos dólares, em vez de quatro mil.

Que fora guindado por aquilo a que teria chamado "politiquice", eis o que não ocorreu a Martin.

O prefeito Pugh mandou-o chamar e disse-lhe, entre risadinhas:

- Doe, tem havido certa oposição contra si, porque é muito novo e não são muitas as pessoas que o conhecem. Não tenho dúvidas de que, mais tarde, poderei dar-lhe a nomeação efectiva... se o acharmos adequado ao cargo e popular. Entretanto, convém que evite qualquer coisa precipitada. Apareça por aqui, para ouvir o meu conselho. Conheço melhor do que o senhor esta cidade e as pessoas que é preciso ter em conta.

 

O dia da partida de Pickerbaugh para Washington foi um dia festivo. No Arsenal, das doze às duas horas, a Câmara de Comércio ofereceu a quem comparecesse um almoço de salsichas quentes, sonhos e café, com chicle para as mulheres e, para os homens, charutos Schweinhugel's Little Dandy, fabricados em Nautilus.

O comboio partiu às três e cinqüenta e cinco. A estação, com espanto de passageiros ignorantes que, de boca aberta, olhavam pelas janelas das carruagens, estava apinhada.

Perto da plataforma da última carruagem, em cima de um caixote oscilante, o prefeito Pugh fez um discurso. A banda Cornetas de Prata, de Nautilus, executou três marchas patrióticas, depois Pikherbaugh pôs-se de pé, na plataforma, cercado pela família. Enquanto olhava para a multidão, surgiam lágrimas nos seus olhos.

"Pelo menos uma vez - gaguejou - creio que não posso fazer um discurso. com efeito, estou perturbado pela comoção! Pretendia falar, mas tudo quanto posso dizer é... que os amo a todos, que lhes fico imensamente grato, que os representarei o melhor que puder, amigos! Deus os abençoe!"

O comboio moveu-se, e Pickerbaugh acenou à multidão, enquanto a distinguiu.

E Martin para Leora:

- Sim, sim!... É de facto boa pessoa. Ele... Qual o quê! A gente deixa sempre os outros dizerem asneiras porque somos submissos. E aqui estou eu, parado como um covarde, sem dizer uma só palavra, deixando-os soltar essa tempestade por todo o país. Que diabo, não haverá ninguém decente neste mundo? Bem... vamos trabalhar; hei-de fazer as coisas conscientemente, ainda que rebente.

 

Não se pode dizer que Martin demonstrasse grande capacidade de organização, mas, sob a sua direcção, o Departamento de Saúde Pública mudou por completo. Escolheu como assistente o Dr. Rufus Ockford, um rapaz vivo, recomendado pelo director Silva, de Winnemac. O serviço de rotina, exame médico de crianças, quarentenas, afixação de cartazes relativos à profilaxia da tuberculose, prosseguia como dantes.

As vistorias sanitárias e a inspecção dos gêneros tornaram-se talvez mais completas, porque Martin não tinha a fé exuberante de Pickerbaugh nos inspectores leigos, sendo um deles substituído, com apreciável desgosto da colônia alemã do distrito de Homedale. Também prestou atenção ao combate aos ratos e às pulgas, e passou a considerar as estatísticas demográficas como algo mais do que um registo de nascimentos e óbitos. Tinha idéias acerca do seu valor, as quais eram muito divertidas para o funcionário burocrático do Departamento de Saúde. Queria um relatório sobre a influência da raça, da ocupação e de uma dúzia de outros factores na proporção das doenças.

A principal diferença era que Martin e Rufus Ockford passaram a dispor de consideráveis lazeres. Martin calculou que Pickerbaugh devia gastar metade do seu tempo com a inspiração e a eloqüência.

Cometeu o seu primeiro erro determinando que Ockford passasse parte da semana na clínica municipal gratuita, como reforço aos dois médicos de meio horário. Houve uma furiosa agitação na Sociedade de Medicina de Evangeline County. Num restaurante, Irving Watters dirigiu-se à mesa de Martin.

- Ouvi dizer que reforçaste o pessoal da clínica - começou o Dr. Watters.

- Sim.

- Pensas em reforçá-lo ainda mais?

- Talvez seja uma boa idéia.

- Escuta uma coisa, Mart. Como sabes, minha mulher e eu fizemos tudo ao nosso alcance para que tu e Leora fossem bem recebidos aqui. Tenho prazer em fazer tudo quanto puder por um antigo colega da velha Winnemac. Mas também há certos limites, sabes isso! Não é que tenha objecção alguma a apresentar contra o facto de facilitares o serviço gratuito. Bem sei que é uma iniciativa louvável tratar gratuitamente essa classe de indigentes, de vagabundos, de gente miserável, e excluir os caloteiros das contas dos médicos particulares. Mas, ao mesmo tempo, começas a criar o hábito de animar uma porção de pessoas, que têm recursos para pagar, a recorrer ao tratamento gratuito e, praticamente, atacas a integridade dos médicos desta cidade, que só Deus sabe quanto tempo dedicam à caridade...

Martin não respondeu com prudência nem com compostura:

- Meu caro Irve, podes ir para o diabo que te carregue! Depois dessa hora, quando se encontravam, não trocavam

uma só palavra.

Sem perturbar o serviço da rotina, verificou que podia mergulhar bem-aventuradamente no laboratório. A princípio, limitou-se a pequenos trabalhos esparsos, mas, subitamente, mergulhou realmente, esqueceu-se de tudo, excepto das suas investigações.

Estava entretido com culturas isoladas de várias herdades e de vários indivíduos; pensava principalmente em Klopchuk e no estreptococo. Acidentalmente, descobriu a profusa produção de hemolisina no sangue de ovelha, em comparação com o sangue de outros animais. Por que dissolve o estreptococo os corpúsculos vermelhos do sangue de ovelha mais facilmente do que o dos coelhos.

É verdade que o bacteriologista de um movimentado departamento de saúde não tem o direito de perder o tempo do povo com a sua curiosidade; mas o faro do irresponsável cão de caça que havia em Martin afastou o burocrata exacto.

Pôs de lado o exame de um número, em sinistra ascensão, de escarros de prováveis tuberculosos; dedicou-se inteiramente à procura de uma resposta para a questão da hemolisina. Queria que os estreptococos produzissem o seu veneno, que destrói o sangue, em culturas de vinte e quatro horas.

Falhou magnífica e alvoroçadamente e entregou-se à meditação por várias horas. Experimentou uma cultura de seis horas. Misturou o fluido sobrenadante de uma cultura centrifugada com uma suspensão de corpúsculos vermelhos do sangue e colocou a mistura na estufa. Quando voltou, duas horas depois, as células do sangue estavam dissolvidas.

Telefonou para Leora:

- Lee! Descobri uma coisa! Não podes embrulhar uma sanduíche e vir passar a noite aqui?

- Claro que posso - disse Leora.

Quando apareceu, Martin explicou-lhe que a sua descoberta fora acidental, que a maioria das descobertas científicas são acidentais, e que pesquisador algum, por maior que fosse, podia fazer mais do que verificar o valor dos resultados casuais.

Falava como um homem idoso e um tanto mal-humorado.

Leora, sentada a um canto, ora coçava o queixo, ora lia uma revista médica. De vez em quando, reaquecia o café, numa duvidosa lâmpada de Bunsen. Quando o pessoal chegou, pela manhã, encontrou algo que só raramente ocorrera durante o regime de Almus Pickerbaugh: o director do Departamento transplantava culturas, enquanto, à beira de um longo banco, sua esposa estava adormecida.

Martin gritou para o Dr. Ockford:

- Some-te daqui, Rufus, e toma conta do departamento por hoje... estou ausente... faleci... Ahn! E leva Leora para casa e frita-lhe dois ovos; e podias também trazer-me uma sanduíche do Sunset Trail Lunch, sim?

- Imediatamente, chefe - disse Ockford.

Martin repetiu a experiência, ensaiando as culturas para a hemolisina após duas, quatro, seis, oito, dez, doze, catorze, dezasseis e dezoito horas de incubação. Descobriu que a produção máxima de hemolisina ocorria entre quatro e dez horas. Começou a procurar a fórmula de produção... e ficou desesperado, putou, enfureceu-se, suou. Verificou que a sua matemática era mrantil e que toda a sua ciência estava enferrujada. Cansou-se com a química, a matemática provocou-lhe dores de cabeça, mas, lentamente, começou a alinhar as conclusões. Achou que podia escrever um ensaio para a Revista de Moléstias Infecciosas.

Almus Pickbaugh já publicara artigos científicos, e com frequência.

Publicara-os no Trimensário Médico do Médio Oeste, do qual era um dos catorze redactores. Descobrira o germe da epilepsia e o germe do cancro - dois germes de cancro inteiramente diferentes. Ordinariamente, levava duas semanas para fazer a descoberta, escrever o artigo e providenciar para a sua aceitação. Martin não tinha esta admirável facilidade.

Experimentava, tornava a experimentar, praguejava, conservava Leora fora da cama, ensinava-lhe a fazer meio de cultura e mostrava descontentamento diante das opiniões dela sobre o ágar. Irritava-se violentamente com a estenógrafa; nem uma só vez pôde o pastor da Igreja Congregacional Jonathan Edwards levá-lo a fazer uma palestra à Classe de Bíblia; passaram-se os meses e o seu ensaio não estava concluído.

O primeiro a protestar foi Sua Honra o Prefeito. Ao regressar de um jogo de chemin de fer extremamente agradável, com F. X. Jordan, tomou pela rua que passava pelas traseiras do City Hall, e viu Martin, às duas horas da madrugada, a colocar melancolicamente as suas provetas na estufa, enquanto Leora se mantinha sentada a um canto, a fumar. No dia seguinte, mandou chamar Martin e protestou:

- Doe, não quero interferir no seu departamento... a minha especialidade nunca foi intrometer-me nas coisas... mas sem dúvida estou impressionado pelo facto de que, sendo treinado por um booster de setenta cavalos-vapor como Pickerbaugh, o senhor devia saber que é rematada loucura passar tanto tempo no laboratório, quando pode contratar um técnico de primeira ordem, a trinta dólares por semana. O que o senhor devia fazer era confundir esses sentimentais que estão sempre a ridicularizar a administração. Saia e vá falar às igrejas e clubes, e ajudar-me a espalhar as idéias pelas quais nos batemos.

- Talvez tenha razão - considerou Martin. - Sou um bacteriólogo sem utilidade alguma. Provavelmente, nunca chegarei a uma conclusão nessa experiência. O meu cargo é impedir os mascadores de tabaco de cuspirem na calçada. Terei o direito de desperdiçar o dinheiro dos contribuintes em qualquer coisa diferente?"

Mas, naquela semana, leu, numa informação do McGurk Institute of Biology, de Nova Iorque, que o Dr. Max Gottlieb realizara a síntese de anticorpos in vitro.

Imaginou o melancólico Gottlieb absolutamente alheio ao seu triunfo, e, à porta fechada, amaldiçoando os jornais por publicarem notícias exageradas da sua obra; e, quando o quadro se tornou mais claro, Martin sentiu-se como um suboficial destacado numa ilha deserta, quando sabe que o seu velho regimento se encaminha para uma agradável campanha na fronteira.

Depois, desencadeou-se a fúria McCandless.

 

A Sr.a McCandless fora outrora uma taxi girl; depois enfermeira, depois confidente, depois esposa do Sr. McCandless, valetudinário, comerciante por atacado de gêneros alimentícios e proprietário de bens de raiz. Quando este morreu, ela herdou tudo. Houve uma demanda, naturalmente, mas ela tinha um advogado excelente.

Era uma mulher feia, sem graça, sombria, insignificante e, apesar de tudo, ninfomaníaca. Não era acolhida pela sociedade de Nautilus, mas na sua sala abafadiça, no grande e enodoado sofá, entretinha achacosos, debilitados e avelhentados homens casados, um jovem polícia a quem com freqüência dava dinheiro, e o político-contratador F. X. Jordan.

Era proprietária, em Swede Hollow, da mais suja casa de quartos para aluguer de Nautilus. Martin registara casos de tuberculose nesse imóvel e, nas conferências com o Dr. Ockford e com Leora, apontava-o como um foco de morte. Queria demoli-lo, mas os poderes policiais do director da Saúde Pública eram vagos. Pickerbaugh desfrutara de grande poder, simplesmente porque nunca o exercera.

Martin tentou uma decisão rápida, no sentido da demolição do edifício McCandless. O advogado da proprietária era também advogado de F. X. Jordan, e a testemunha mais eloqüente contra Martin foi o Dr. Irving Watters. Mas sucedeu que, em virtude da ausência do juiz titular, o caso foi parar às mãos de um homem ingênuo e honesto, que rejeitou o embargo requerido pelo advogado da Sr.a McCandless e instruiu o Departamento de Saúde Pública, no sentido de usar os métodos que as posturas municipais previssem para os casos de emergência.

Nessa noite, Martin disse ao jovem Ockford:

- Não te parece, Rufus, que a McCandless e Jordan vão recorrer? Vamos descartar-nos do prédio enquanto isso for relativamente legal, hem?

- Bravo, chefe - disse Ockford; e acrescentou: - Escute, vamos embora para o Oregon, tentar a clínica por lá, quando formos postos na rua. Mas... por enquanto, podemos contar com o nosso inspector sanitário. Jordan seduziu a irmã dele, há uns seis anos.

À alvorada um grupo jovial e galhofeiro, chefiado por Martin e Ockford, todos de fato-macaco, invadiu o edifício McCandless, mandou sair os inquilinos e começou a arrasar a precária construção. Ao meio-dia, quando os advogados apareceram e os inquilinos estavam alojados em novos quartos requisitados por Martin, a diligência lançou fogo aos andares inferiores e, em meia hora, o edifício estava aniquilado.

  1. X. Jordan compareceu no teatro destes acontecimentos, depois do almoço. Um Martin muito sujo e um Ockford coberto de pó tomavam o café trazido por Leora.

- Muito bem, rapazes - disse Jordan -, vocês levaram a melhor. Mas se um dia tornarem a repetir esta obra, usem dinamite e poupem tempo. Sabem, gosto de vocês... e estou penalizado com o que sou forçado a fazer-lhes. Mas talvez os santos possam valer-lhes, porque é só uma questão de tempo para lhes ensinar a não macaquearem a serra circular.

 

Clay Tredgold admirou-lhes o incêndio de amadores e exclamou, jubiloso:

- Formidável! vou apoiá-los em todas as medidas que os preceitos de Higiene Pública determinarem.

Martin não gostou muito da promessa, pois o círculo de Tredgold era um tanto exigente. Este decidira que Martin e Leora eram espíritos livres como os próprios componentes do círculo, e que eram divertidos, mas haviam também decidido, muito antes que os Arrowsmiths, mudando-se para Nautilus, adquirissem existência autêntica, que o grupo tinha o monopólio de toda a liberdade e da faculdade de divertir-se, e esperavam que os Arrowsmiths aparecessem para tomar cocktails e jogar o póquer todas as noites de sábado e domingo. Não podiam compreender por que desejava Martin passar o tempo num laboratório, incomodando-se com certa coisa chamada "estreptolisina", que nada tinha que ver com cocktails, automóveis, moinhos de vento de aço ou seguros.

Certa noite, talvez uma quinzena depois da destruição do edifício McCandless, Martin entrou de noite no laboratório. Nem sequer estava a fazer experiências que pudessem divertir o grupo: turvando líquidos com colônias de bactérias ou fazendo as coisas mudarem de cor. Estava simplesmente sentado a uma mesa, a olhar para tábuas de logaritmos. Leora não estava lá e ele resmungava: "Que diacho, por que havia ela de ficar indisposta hoje?"

Tredgold, Schlemihl e suas mulheres tinham ido jantar à Old Farmhouse Inn. Haviam telefonado para casa de Martin a informar-se do lugar onde estava. Da ruela situada por detrás de City Hall, podiam espreitar e vê-lo, melancólico e só.

- Vamos buscar esse rapaz e refrescá-lo. Primeiro, vamos dar um pulo a casa e preparar alguns cocktails para surpreendê-lo - foi a inspiração de Tredgold.

Meia hora depois, Tredgold entrou no laboratório com muita algazarra.

- Bonita maneira de tratar uma noite enluarada de Primavera, jovem Arrowsmith! Vem connosco, vamos dançar um pouco. Pega no chapéu.

- Ora, Clay, gostaria de acompanhá-los, mas palavra que não posso agora. Tenho que fazer, tenho muito que fazer.

- Deixa-te disso! Não sejas tolo. Tens trabalhado demais. Olha, vê o que o papá te trouxe. Sé razoável. Toma um destes cocktails e ficarás a ver as coisas por outro prisma.

Martin foi razoável até esse ponto, mas não ficou a ver as coisas por outro prisma. Tredgold não costumava aceitar nãos. Martin continuou a recusar, cordialmente, depois um pouco azedo. Fora, Schlemihl apertava o botão da buzina e não o largava, produzindo um guincho exigente e irritante, que levou Martin a gritar:

- Pelo amor de Deus, mande parar aquilo. E deixem-me sozinho! Tenho que fazer, já disse!

Tredgold olhou-o por um momento, com espanto.

- É o que vou fazer! Não estou habituado a impor as minhas atenções. Perdoe-me tê-lo perturbado!

Na ocasião em que Martin taciturnamente compreendeu que devia ter pedido desculpas, o automóvel partia. No dia seguinte, e durante toda a semana, esperou que Tredgold telefonasse, Tredgold esperou que ele telefonasse, e ambos caíram

num círculo de antipatia. Leora e Clara Tredgold encontraram-se uma ou duas vezes, mas ficaram constrangidas, e duas semanas depois, quando o médico mais proeminente da cidade jantava com os Tredgolds e atacava Martin como rapaz presunçoso e de visão estreita, os dois Tredgolds ouviram e concordaram.

Imediatamente, a oposição a Martin tomou consistência.

Vários médicos eram contra ele, não só por causa da ampliação das clínicas, como também porque ele raramente lhes pedia auxílio e jamais um conselho. O prefeito Pugh achou que lhe faltava tacto. Klopchuk e F. X. Jordan acusaram-no de arbitrário. Os repórteres não simpatizavam com ele devido à sua reserva e secura ocasional. E o grupo cessara de defendê-lo. Martin estava mais ou menos consciente de todas estas forças, e imaginava que, por detrás delas, negociantes de reputação duvidosa, vendedores de icecream e leite impuros, proprietários de lojas insalubres e imundas casas de aluguer, homens que haviam sempre odiado Pickerbaugh, mas que tinham receado atacá-lo por causa da sua popularidade, se reuniam para destruir todo o Departamento de Saúde Pública... Nesses dias, apreciou Pickerbaugh, e amou o Departamento como um soldado.

Da parte do prefeito Pugh, recebeu uma indicação discreta de que evitaria incômodos se se demitisse. Não se demitiria. Nem rogaria apoio deste ou daquele cidadão. Continuou no seu trabalho, escudou-se na segura companhia de Leora e tentou desprezar os detractores. Não o conseguiu.

Pequenos ecos maldosos e curtas notícias visavam a sua tirania, ignorância e inexperiência. Uma anciã faleceu depois de submeter-se a tratamento na clínica, houve um inquérito e o magistrado insinuou que a culpa fora do "bisonho assistente do todo-poderoso chefe da Saúde Pública". Alguém inventou a alcunha "o kzar da Escola" para Martin, e a alcunha pegou.

Nas conversas dos clubes com serviço de restaurante, nas discussões da Associação de Professores e Pais, num franco memorial enviado ao prefeito, Martin foi acusado de inspeccionar o leite com demasiado rigor e de inspeccionar o leite com pouco rigor; de permitir que o lixo ficasse sem remoção e de perseguir os superatarefados encarregados da colheira do lixo; e, quando um caso de varíola apareceu no bairro boêmio, circulou o boato de que Martin fora lá pessoalmente e provocara o contágio.

Por mais vagos que os cidadãos fossem em relação à natureza da sua maldade, quando perderam a fé que depositavam nele perderam-na completamente e com satisfação, e acolheram a opinião, que na aparência se gerara espontaneamente, de que ele traíra o seu benfeitor, o benquisto Dr. Pickerbaugh, seduzindo Orquídea.

Diante desta interessante pincelada de imoralidade, teve contra si todas as igrejas elegantes. O pastor da igreja, Jonathan Edwards, embelezou um sermão sobre o Pecado na Alta Sociedade com uma referência a "certa pessoa que, enquanto, tal um Tzar, pretende salvaguardar a cidade de perigos inteiramente imaginários, faz vista grossa ao vício secreto que prolifera em lugares escusos; que se mancomuna com as forças da fraude e do mal e com os sicários que exploram a boa fé dos operários honestos, mas iludidos; certa pessoa que não pode erguer-se como um másculo varão entre homens e dizer: tenho limpo o coração e limpas as mãos".

É certo que parte da deliciada assistência julgou que isto se referia ao prefeito Pugh, e que outros interpretaram a alusão como dirigida a F. X. Jordan; mas os cidadãos bem avisados compreenderam que se tratava de um corajoso ataque a esse monstro de perfídia e devassidão, o Dr. Arrowsmith.

Por toda a cidade houve dois ministros que o defenderam: o padre Costello, da Igreja Católica Irlandesa, e o rabi Rovine. Acontecia que eram bons amigos e não estavam em bons termos com o pastor da igreja, Jonathan Edwards. Dominaram os seus rebanhos; cada um deles afirmou: "Algumas pessoas rastejam por aí com críticas ao nosso director da Saúde Pública. Se quiserem fazer acusações, façam-nas às claras. Não darei ouvidos a insinuações covardes. E permitam que lhes diga que esta cidade deve considerar-se feliz por ter como chefe da Saúde Pública um homem que é honesto e que efectivamente sabe alguma coisa!"

Mas os seus rebanhos eram pobres.

Martin compreendeu que estava perdido. Tentou analisar a sua impopularidade.

"Não se trata das intrigas de Jordan, dos murmúrios de Tredgold e do servilismo de Pugh. Tudo acontece por culpa minha. Não posso adular o povo, a fim de conseguir licença para contribuir para o seu bem-estar. E não vou dizer-lhe a infernal importância do meu trabalho, isto é, que sou a única pessoa que o salva de morrer imediatamente. Parece que um funcionário de um país democrático tem de fazer as coisas assim.

Mas não as faço! Entretanto, ou encontro uma saída para isto tudo, ou eles castram todo o Departamento."

Teve, pelo menos, uma inspiração. Se Pickerbaugh estivesse aqui, poderia esmagar, ou suprimir cordialmente a oposição. Lembrou-se da despedida de Pickerbaugh: "Agora, meu rapaz, embora eu esteja lá em Washington, esta Obra estará tão junto do meu coração como sempre esteve, e se precisar realmente de mim é só mandar dizer que largo tudo e venho."

Martin escreveu, dando a entender que estava em grandes apertos.

Pickerbaugh respondeu na volta do correio - óptimo Pickerbaugh! - mas a resposta era: "Não sei dizer-lhe quanto lamento não poder de momento deixar Washington, mas estou certo de que, com a sua gravidade, exagera a força da oposição. Escreva-me claramente, quando quiser."

- É o meu último tiro - disse Martin a Leora. - Estou liquidado, o prefeito Pugh queimar-me-á logo que voltar da sua pescaria. Sou um falhado, querida.

- Não és um falhado, e deves comer uma destas lindas postas de carne. Precisamos de ver agora o que vamos fazer... de qualquer forma, já era tempo de nos mudarmos... Detesto estar parada num lugar - disse Leora.

- Não sei o que vamos fazer. Talvez possa arranjar um emprego no laboratório de Hunziker. Ou voltar para o Dakota e tentar a clínica. O que gostaria de fazer era comprar uma granja, uma boa espingarda e correr com todos os graves cristãos do lugar. Mas, por enquanto, vou ficar por aqui. Ainda posso vencer... apenas preciso de dois milagres e a intervenção divina. Credo, como estou aborrecido! E tu voltas comigo para o laboratório esta noite? Venho cedo, palavra!... talvez antes das onze.

Terminara o seu artigo sobre a pesquisa relativa à estreptolisina, e ausentou-se por um dia para ir a Chicago tratar da sua publicação na Revista de Moléstias Infecciosas. Ao partir de Nautilus, sentiu-se confundido. Experimentara uma impressão de júbilo por estar livre de Wheatsylvania e encontrar-se a caminho da grande cidade. O tempo recuava, o avanço desfazia-se e via-se enredado em futilidades.

O director elogiou-lhe o artigo, aceitou-o e sugeriu apenas uma alteração. Martin tinha de esperar pelo seu comboio. Lembrou-se de que Angus Duer estava em Chicago, com a Clínica Rouncefield, uma organização particular de médicos especialistas que participavam das despesas e dos lucros.

A clínica ocupava catorze salas de um edifício de vinte andares, construído (pelo menos na lembrança de Martin) de mármore, ouro e rubis. A sala de recepção, aquecida por um vasto fogão de pedra, assemelhava-se à sala de visitas de um magnate do petróleo, mas não era um lugar de descanso. A jovem encarregada da porta perguntou os sintomas e o endereço de Martin. Um rapazito de libré precipitou-se com o seu nome para uma enfermeira, que voou para as salas interiores. Antes que Angus aparecesse, Martin teve de esperar um quarto de hora numa antessala menor, mais rica e mais deslumbrante. Nessa altura, estava tão pasmado que teria deixado os cirurgiões da clínica operá-lo de qualquer mal que fantasiassem.

Na Escola de Medicina e no Hospital Geral de Zenith, Angus Duer fora bastante eficiente, mas agora tinha uma segurança dez vezes maior. Foi cordial; convidou Martin para saírem, a fim de tomarem chá, quase como se tivesse essa intenção; mas a seu lado, Martin sentiu-se jovem, inculto, inepto.

Angus conquistou-o com esta reflexão: "Irving Watters? Ele era Digam? Não tenho a certeza se me lembro dele. Ah, sim... era uma dessas cabeças duras que são a praga de todas as profissões."

Quando Martin esboçou o seu conflito em Nautilus, Angus sugeriu: "É melhor vires cá para a Rouncefield, como patologista. O nosso patologista vai deixar-nos dentro de semanas. Podes encarregar-te muito bem do serviço. Estás a fazer três mil e quinhentos por ano, agora? Olha, acho que, para começar, poderia arranjar-te quatro mil e quinhentos, e, daqui a uns tempos, ficarias membro regular da clínica e participarias dos lucros. Manda-me dizer se aceitas. Rouncefield disse-me que desencantasse um homem."

Com este recurso e com um afectuoso sentimento por Angus, Martin voltou para Nautilus e para a guerra aberta. Quando o prefeito Pugh voltou, não exonerou Martin, mas nomeou, como director efectivo, o amigo de Pickerbaugh, Dr. Bissex, o técnico de râguebi e director do Serviço de Saúde do Mugford College.

O Dr. Bissex, em primeiro lugar, despediu Rufus Ockford, o que fez em cinco minutos; depois, saiu para falar numa reunião da A. C. M. da qual voltou ruidosamente para convidar Martin a demitir-se.

- Pois espere! - disse Martin. - Vamos, lealdade no caso, Bissex. Se quer queimar-me, queime, mas faça as coisas como devem ser feitas. Não pedirei a demissão e, se me demitir, recorrerei aos tribunais, e talvez possa lançar bastante luz sobre você, sobre a sua honra e sobre Frank Jordan, e impedi-los de sabotarem estes serviços.

- Então, doutor, que maneira de falar! É claro que não vou demiti-lo - disse Bissex, à maneira de quem fala com estudantes difíceis ou a equipas de râguebi ineficientes. - Fique connosco tanto tempo quanto quiser. Apenas, no interesse da economia, reduzo o seu ordenado para oitocentos dólares por ano!

- Está bem, corte-o e lixe-se - disse Martin.

Isto teve um sabor particular e original, quando Martin o disse, mas o sabor diminuiu quando Leora e ele verificaram que, com o aluguer da casa fixado por um contrato, não poderiam viver, fossem quais fossem as economias que fizessem, com menos de mil dólares por ano.

Agora, que se via livre de responsabilidade, começou a formar a sua própria facção, para salvar o Departamento. Reuniu o rabi Rovine, o padre Costello, Ockford, que continuava na cidade, com consultório particular, o secretário do Conselho do Trabalho, um banqueiro que considerava Tredgold "um homem perdido", e um excelente sujeito, o dentista da clínica escolar.

- com gente como esta por detrás de mim, posso fazer alguma coisa - declarou gravemente a Leora. - vou resistir. Não permitirei que transformem o D. S. P. em uma A. C. M. Bissex tem toda a macieza de Pickerbaugh, sem a sua honestidade e entusiasmo. Posso vencê-lo! Não valho grande coisa como dirigente, mas começava a imaginar um D. S. P. que fosse sólido e não uma fachada... que salvasse as crianças e evitasse as epidemias. Não desistirei. Hás-de ver!

O seu grupo dirigiu representações ao Comercial Club e, durante alguns dias, todos alimentaram a certeza de que o principal repórter do Frontiersman ia apoiá-los, "logo que pudesse convencer o director de que não correria nenhum risco". A beligerância de Martin, porém, foi moderada pela vergonha, pois nunca tinha bastante dinheiro para pagar as contas, e não estava acostumado a iludir fornecedores irados, a receber cartas impertinentes, a parar à porta a discutir com cobradores grosseiros.

Ele, que fora um dignitário municipal havia poucos dias, teve de suportar que lhe dissessem: "Vamos resolver já; ou o senhor se explica, seu caloteiro, ou chamo o guarda! " Quando a vergonha se transformou em terror, o Dr. Bissex cortou subitamente mais duzentos dólares no seu ordenado.

Martin irrompeu como um furacão no gabinete do prefeito, para discutir o assunto, e encontrou F. X. Jordan, sentado ao lado de Pugh. Era evidente que sabiam ambos do segundo corte e consideravam-no um óptimo gracejo.

Martin tornou a reunir o grupo.

- vou levar este caso para os tribunais - disse, impetuosamente.

- Óptimo - disse o padre Costello. E o rabi Rovine:

- Jenkins, o advogado esquerdista, tratará gratuitamente da questão.

O sábio banqueiro observou:

- O senhor não tem motivo algum para comparecer diante da justiça, enquanto eles não o demitirem sem causa. Bissex tem a atribuição de cortar-lhe o ordenado da maneira que entender. As leis municipais não fixam o salário de quem quer que seja, excepto do director e dos inspectores. O senhor não tem uma só coisa a alegar.

Num rasgo melodramático, Martin protestou:

- E suponho que não tenho coisa alguma a alegar se eles arruinarem o Departamento!

- Nada, se a cidade não fizer caso.

- Pois eu faço caso. E morrerei de fome, antes de pedir a demissão!

- O senhor morrerá de fome se não pedir demissão, e sua mulher morrerá também. Escutem, o meu plano é este - disse o banqueiro. - O senhor abre consultório particular aqui... financio o aluguer e os resto... e, quando chegar a ocasião, talvez daqui a cinco ou dez anos, voltaremos à carga e o senhor será nomeado director efectivo.

- Dez anos de espera... em Nautilus? Muito obrigado. Estou vencido. Sou um falhado completo... aos trinta e dois anos! vou pedir a demissão. Vou-me embora daqui - disse Martin.

E Leora, em casa:

- Sei que vou gostar de Chicago.

 

Martin escreveu a Angus Duer. Foi aceite como patologista na Clínica Rouncefield. Angus, porém, dizia na sua resposta: "De momento, eles não podem achar meio de pagar-te quatro mil e quinhentos dólares por ano, embora tenham muito gosto em oferecer-te até dois mil e quinhentos."

Martin aceitou.

Quando os jornais de Nautilus anunciaram que Martin se demitira, os bons cidadãos disseram, entre risinhos abafados: "Demitir-se? Ele foi posto no olho da rua, foi o que aconteceu." Um dos jornais fez uma inocente sátira:

Certa dose de hipocrisia é provavelmente inevitável em nós, pecadoras criaturas humanas, mas, quando um dignitário do público tenta passar por santo, enquanto se entrega a todos os vícios, e tenta acobertar a sua crassa ignorância e incompetência com manejos políticos, e dá uma amostra de si próprio provando que nem de politiquice entende, então mesmo os mais incompetentes de entre nós, velhos patifes, começam a reclamar a machadinha dos açougueiros.

E Pickerbaugh, de Washington:

Lamento grandemente saber que se demitiu do seu posto. Não sei dizer-lhe quanto estou magoado, depois de todos os sacrifícios que fiz para lhe abrir caminho e identificá-lo com os meus ideais. Bissex informa-me de que, em virtude de crise nas finanças municipais, foi forçado a cortar o seu ordenado temporariamente. Quanto a mim, pessoalmente, preferiria trabalhar para o D. S. P. por nada e ganhar a minha subsistência, como guarda-nocturno, a abandonar um combate em prol de tudo quanto é honesto e construtivo. Estou consternado. Tinha uma grande simpatia pelo senhor, e a sua defecção, a sua volta à clínica particular, visando, apenas, o lucro comercial, a sua venda pelo que calculo que seja um ordenado chorudo, é um dos golpes mais pesados que tive de suportar nestes últimos tempos.

 

No trajecto para Chicago, Martin pensava em voz alta: "Nunca julguei que pudesse sair-me tão mal. Não quero tornar a ver um laboratório nem um gabinete de saúde pública. Estou farto de tudo quanto não seja ganhar dinheiro. Acho que essa Clínica Rouncefield nada mais é, provavelmente, do que um alçapão dourado para caçar trouxas para assustar os pobre milionários e levá-los a submeter-se aos mais caprichosos exames e tratamentos que o negócio explorar. Oxalá que seja! Pretendo ser um médico de organização comercial o resto da vida. Espero ter o bom senso bastante para isso! Todos os homens ajuizados são bandidos. São leais para com os amigos, mas desprezam o resto. E como não ser assim, se a massa do povo os despreza quando não são bandidos? Angus Duer teve o bom senso de compreender isto desde que o conheço; já na Escola de Medicina. Provavelmente, é um técnico perfeito como cirurgião, mas sabe que a gente só tem aquilo que a gente agarra. Veja-se quantos anos precisei para aprender o que ele sempre soube! Se sei o que vou fazer? vou agarrar-me à Clínica Rouncefield, até que ganhe aí uns trinta mil dólares por ano, e depois chamo Ockford e monto a minha própria clínica, ficando eu como especialista em medicina interna e chefe de toda a empresa, e apanharei todos os cents que puder. E se o que o público quer é um pouco de medicina e muitos tapetes, ele os tera- e pagará a despesa. Nunca pensei que pudesse falhar desta Janeira... que pudesse transformar-me num espírito mercantil e não mais querer ser qualquer outra coisa. E não quero ser qualquer outra coisa. Estou farto!"

 

E, durante um ano, em que cada dia parecia mais comprido do que uma noite de insónia, mas que decorreu intensamente, sem acontecimentos, sem estações, sem entusiasmos, Martin funcionou como um fiel mecânico dessa fábrica médica, a mais competente, a mais limpa, eficiente e realista fábrica médica: Clínica Rouncefield. Não tinha de que se queixar. É possível que a clínica fizesse demasiados exames radiológicos de mulheres socialmente deslocadas, que precisavam mais de ter filhos e de esfregar soalhos do que de bonitas radiografias; é possível que na clínica se olhassem todas as amígdalas com uma carranca demasiado sanguinária; mas é certo que nenhuma fábrica poderia estar mais bem aparelhada nem ser mais agradavelmente dispendiosa, e nenhuma poderia trabalhar a sua matéria-prima humana tão rapidamente, em tão grande número de etapas. O Martin Arrowsmith que se mostrara desdenhoso para com Pickerbaugh e o velho Dr. Winters, tinha, para Rouncefield, Angus Duer e os outros perspicazes e corajosos especialistas da clínica, apenas o respeito do homem pobre e irresoluto pelo homem rico e astuto.

Admirava a firmeza de propósitos e a estabilidade de hábitos de Angus.

Este tinha diariamente uma lição de natação ou de esgrima; nadava com desembaraço e esgrimia como um demônio de cara impassível. Estava na cama antes das onze e trinta; nunca bebia mais de um copo por dia; e nunca lia nada, nem dizia coisa alguma que não contribuísse para o seu progresso, como brilhante e jovem cirurgião. Os seus auxiliares sabiam que o Dr. Duer não deixaria de chegar exactamente à hora, trajado com apuro, absolutamente normal, muito frio, e espantosamente desagradável para qualquer enfermeira que cometesse um erro ou esperasse um sorriso.

Martin, sem temor, ter-se-ia submetido ao dourado e ardente tira-amígdalas da clínica, ter-se-ia submetido a Angus para uma operação abdominal, ou a Rouncefield para qualquer cirurgia da cabeça ou do pescoço, desde que tivesse a certeza de que a operação era necessária, mas nunca pôde erguer-se até à fé lírica, professada pela clínica, de que quaisquer partes do corpo, sem as quais o indivíduo pode viver, deviam ser suprimidas imediatamente.

O verdadeiro inconveniente do seu ano em Chicago foi que, durante todo o seu dia de trabalho, não vivia. com mãos lestas e um décimo do cérebro, fazia contagens de glóbulos sangüíneos, fazia análises de urina, Wassermans e algumas autópsias, e durante tudo isso estava morto, num túmulo de azulejos brancos. Entre a tagarelice de Pickerbaugh e os cochichos de Wheatsylvania, vivera, lutara contra o meio. Agora, nada havia a combater.

Findo o serviço do dia, quase vivia. Leora e ele descobriram o mundo das livrarias, das casas de estampas, teatros e concertos. Liam romances, livros de história e viagens; conversavam, em jantares oferecidos por Angus ou Rouncefield, com jornalistas, engenheiros, banqueiros, comerciantes. Assistiam a uma peça russa, ouviam Mischa Elman, liam o querido Rabelais de Gottlieb. Martin aprendeu a fazer a corte sem puerilidades, e Leora foi pela primeira vez ao cabeleireiro e à manicure e começou a estudar francês. Chamara a Martin o "caçador de mentiras" e o "investigador da verdade". Decidiram agora, conversando sobre tudo isso na sua minúscula e atravancada habitação, que a maioria das pessoas que se chamam "investigadoras da verdade" - pessoas que andam de um lado para o outro, tagarelando sobre a Verdade como se ela fosse uma coisa tangível e classificável como casas, sal ou pão - não desejam tanto encontrar a Verdade como medicar a sua sarna mental. Nos romances, estes investigadores da Verdade pesquisavam o "segredo da vida" em laboratórios que não pareciam munidos de lâmpadas de Bunsen ou reagentes; ou iam, com grandes gastos e os os inconvenientes dos comboios superaquecidos e de serpentes indesejáveis, para mosteiros no Himalaia, a fim de prenderem de sábios não assépticos que o Espírito pode fazer uma espécie de coisas impressionantes, se a gente passar uns trinta ou quarenta anos a comer arroz e a olhar para o umbigo.

Diante destas altas questões, Martin torcia o nariz. Insistia em que não há Verdade, mas muitas verdades; que a Verdade não é um pássaro colorido que deve ser procurado entre os ro chedos e capturado pela cauda, mas uma atitude céptica em frente da vida. Insistia em que ninguém podia esperar mais do que ter, por tenacidade ou sorte, a espécie de ocupação que lhe agradava e a capacidade para conhecer melhor os factos do seu serviço do que o trabalhador médio.

A sua filosofia matemática não o persuadiu de que estava a progredir convenientemente. Quando tentava medir-se com os técnicos da clínica ou com os seus amigos profissionais, sentia-se ainda menos à vontade do que quando se vira sob o escárnio embaraçador do Dr. Hesselink, de Groningen. Nos almoços da clínica, conheceu cirurgiões de Londres, Nova Iorque, Boston; gente com limousines, posições sociais e a pressa ofensiva do homem que tem numerosos compromissos, ou a tranqüilidade ainda mais ofensiva da pessoa que acha graça aos seus inferiores; mestres da técnica, gente que lia comunicações em congressos médicos, magistrados e altos funcionários, cirurgiões que não experimentavam a mínima apreensão quando tinham de operar diante de médicos cheios de curiosidade ou quando davam ordens polidas, mas terminantes, aos subordinados; capitães da medicina, que jamais duvidavam de si próprios; pontífices da religião e da arte de curar; homens maduros, sábios paternais e docemente cordiais.

Ao lado das suas presenças aladas, Max Gottlieb parecia um velhote casmurro, Gustaf Sondelius um saltimbanco, e a cidade de Nautilus indigna de uma luta apaixonada. Quando a suave- cortesia deles o envolvia, Martin tinha a impressão de ser um lacaio.

Em longas horas de franqueza e lucidez crescentes, discutia com Leora a questão: "Quem é esse Martin Arrowsmith e para onde vai ele? " E confessava que a presença dos cirurgiões famosos perturbava a sua velha fé de que era, de certo modo, um homem superior. Foi Leora quem o consolou:

- Arranjei uma definição formidável para os teus sacrossantos cirurgiões famosos. Sabes como eles são polidos e importantes, e com que circunspecção sabem sorrir, não é assim? Pois não te lembras de uma vez que me disseste que o professor Gottlieb achava toda essa gente parecida com "homens de alegria condicionada"

Martin agarrou-se à frase; cantaram-na juntos; e transformaram-na numa canção mordaz e travessa:

"Homens de alegria condicionada! Homens de alegria condicionada! Que se lixem os grandes dirigentes, os homens da alegria condicionada, que se lixem os homens de sorriso circunspecto, que se lixem os homens que administram as lojas, oh, que se lixe a sua alegria condicionada, os homens de alegria medida, oh, que se lixe a sua alegria, e QUE SE LIXEM os seus sorrisos circunspectos!"

 

Enquanto Martin, o rapaz de Wheatsylvania, se transformava, de maneira irregular, em homem maduro, as suas relações com Leora passavam de um jogo leal e aventuroso entre rapaz e rapariga, para uma associação solidamente estável. Tinham essa compreensão mútua só conhecida dos casados, de poucos casados, em virtude da qual, apesar de todas as divergências, eram partes tão indivisíveis de um todo como o são o olho e a mão. A sua identificação não significava que vivessem permanentemente numa rósea bem-aventurança. Exactamente em virtude da amizade íntima que lhe dedicava e da segurança que vinha dela, precisamente porque a cólera e as exaltadas injustiças são por vezes maneiras de exprimir confiança, Martin irritava-se com ela e ficava amuado como não poderia ficar com qualquer outra mulher, com qualquer sedutora Orquídea.

De vez em quando, após uma discussão, encolhia-se, deixando de responder-lhe, e durante horas deixava-a sozinha, gozando a consciência de que a fazia sofrer, de que ela estava só, à espera, talvez a chorar. Como a amava e era simultaneamente seu amigo, aborrecia-se quando ela se mostrava menos msinuante, menos doce do que as mulheres que encontrava na residência de Angus Duer.

A Sr.a Rouncefield era uma digna matrona de passinhos faceiros, e ao lado dela Leora parecia resplandecente e rara. A Sr.a Uuer, porém, era de âmbar e gelo. Rica e jovem, vestia-se com distinção, falava com a falsa melodia das diplomadas pelas escolas femininas de aperfeiçoamento, era ambiciosa, e não se impressionava diante de um coração ou de um cérebro. Era, na verdade, o que a Sr.a Irving Watters julgava ser.

NO refinamento primário do grupo elegante de Nautilus, a

Sr.a Clay Tredgold amimava Leora e ria-se quando ela aparecia sem a fivela de um dos sapatos ou quando maltratava a sintaxe, mas a Sr.a Duer, de coturnos de ouro, tinha o hábito de olhar desdenhosamente as negligências com o mais polido, inofensivo e inequívoco dos olhares desdenhosos.

Quando voltavam de táxi da casa dos Duers, Martin observava, irritado:

- Nunca aprenderás coisa alguma? Lembro-me de uma vez, em Nautilus, quando parámos o carro no meio da estrada e ficámos a falar até... oh, que madrugada aquela! E disseste que ias ser tão enérgica, e aqui estamos, esta noite, exactamente no mesmo ponto... Então não podias ter-te dado o incômodo de reparar que estavas com uma mancha de fuligem no nariz? A Sr.a Duer notou-a, naturalmente! Por que és tão descuidada? Por que não tentas prestar um pouco mais de atenção a ti própria? E por que não fazes um esforço para dizer qualquer coisa? Ficaste apenas sentada... a mostrar que gozas de boa saúde! Não queres ajudar-me? A Sr.a Duer ajudará, provavelmente, Angus a tornar-se presidente da Associação Médica Norte-Americana, dentro de vinte anos, e nessa época suponho que me terás levado de volta para o Dakota, como assistente de Hesselink!

Leora encolhera-se contra ele, no luxo pouco comum de um taxi. Empertigara-se agora, e, quando falou, perdera a singela independência com que ordinariamente encarava a vida:

- Querido, sinto muito tudo isso. Saí hoje de tarde, saí e mandei fazer uma massagem ao rosto, para ficar bonita para ti; e por saber que gostas que a gente converse, peguei no livrinho sobre a pintura moderna que comprei e estudei-o até me cansar, mas hoje à noite não achei maneira de levar a conversa para a pintura moderna...

Martin, com a cabeça de Leora no peito, entre soluços, murmurou:

- Oh, minha pobre queridinha, tentas parecer importante entre aqueles caçadores de dólares!

 

Passado o primeiro deslumbramento dos azulejos brancos e da eficiência tumultuante da Clínica Rouncefield, Martin experimentou o desejo de apertar alguns nós frouxos da sua pesquisa com a estreptolisina.

Quando Angus Duer o descobriu, fez esta sugestão:

- Escuta, Martin, fico satisfeito com o facto de continuares com a tua ciência, mas, no teu lugar, acho que não perderia muito tempo com simples curiosidades. Um dia destes, o Dr. Rouncefield falava acerca disso. Teríamos muito prazer em facilitar-te todas as pesquisas que quisesses, uma vez que te ocupasses de alguma coisa prática. Digamos, por exemplo... se pudesses elaborar uns quadros de contagem de glóbulos sangüíneos em duzentos casos de apendicite e publicá-los, chegaríamos a alguma coisa... poderias fazer menção da Clínica; o nosso prestígio melhoraria ainda mais e... a propósito, talvez pudéssemos aumentar-te para três mil dólares por ano.

Esta generosidade teve como conseqüência extinguir o desejo alimentado por Martin de fazer qualquer espécie de pesquisa.

"Angus tem razão. O que ele quer dizer é: como cientista, estou liquidado. E é assim mesmo. Nunca mais tentarei qualquer coisa original."

Foi nessa ocasião, quando Martin já estava na clínica havia um ano, que o seu ensaio sobre a estreptolisina foi publicado na Revista de Moléstias Infecciosas. Ofereceu separatas a Rouncefield e a Angus. Estes disseram coisas extremamente amáveis, que mostravam que não haviam lido o estudo, e tornaram a sugerir os quadros relativos à contagem de glóbulos.

Enviou também uma separata a Max Gottlieb, no Instituto McGurk de Biologia.

Gottlieb escreveu-lhe, com a sua tinta opaca e aquela letrinha que parecia uma teia de aranha:

Caro Martin:

Li o seu estudo com grande prazer. As curvas da relação da produção de hemolisina com a idade da cultura são iluminativas. Falei de V. a Tubbs. Quando o teremos junto de nós... junto de mim? O seu laboratório e o seu dinner estão à sua espera. A última coisa que desejo ser é um místico, mas, quando vi o sinete finamente gravado de uma

 

1 Termo alemão. Servente, ajudante. (N. do T.)

 

clínica e que essa clínica era a Rouncefield, senti que V. devia estar cansado de esforçar-se por ser um bom cidadão e disposto a voltar ao trabalho. Ficaremos satisfeitos, eu e o Dr. Tubbs, se puder vir.

Seu, M. Gottlieb

- Vou com certeza adorar Nova Iorque - disse Leora.

 

McGurk Building. Uma parede lisa, trinta singelos andares de vidro e cal, implantados no atravancado triângulo de onde Nova Iorque governa a quarta parte do Mundo.

Martin não se sentiu oprimido pela primeira visão de Nova Iorque; após um ano no Loop1 de Chicago, Manhattan parecia andar vagarosamente. Mas quando contemplou, do comboio aéreo, a torre do Woolworth, exaltou-se. Para ele, a arquitectura nunca existira; as casas eram massas maiores ou menores, que continham objectos mais ou menos interessantes. O seu comentário mais apaixonado sobre arquitectura fora: "É um óptimo bungalow; bom sítio para a gente morar." Agora, reflectia: "Gosto de ver aquela torre todos os dias... com nuvens e tormentas por trás... Dá certa satisfação."

Percorreu Cedar Street, entre barulhentos camiões abarrotados de mercadorias de todo o Mundo; chegou diante do portal de bronze do McGurk Building e entrou numa galeria de paredes de barro, excessivamente colorida, com quadros murais de índios andinos, piratas singrando o mar das Antilhas, comboios guardados que transportavam ouro, e os espessos muros de Cartagena. No fim da galeria de Cedar Street, uma rua particular com o comprimento de um quarteirão, achava-se o Banco dos Andes e Antilhas (Ross McGurk, presidente do Conselho), em cujo santuário incrustado de ouro exportadores do Norte sacavam sobre Quito e funcionários lançavam uma cascata de spanhol sobre mulheres volumosas. Um anúncio indicava, no Im de Liberty Street:

 

"Venda de passagens, Linha McGurk, do centro comercial de Chicago. Viagens semanais para as Antilhas e América do Sul."

 

Nascido na planície, nunca se tendo afastado demasiado das lavouras de milho, Martin viu-se transportado para terras fulgurantes e empresas portentosas.

Na série de elevadores de porta de bronze, um deles tinha a indicação: "Expresso para o Instituto McGurk." Entrou orgulhosamente, sentindo-se já uma parte da áurea instituição. O elevador subiu rapidamente, e apenas vislumbrou durante meio segundo portas de vidro opaco com letreiros de companhias de exploração mineira, companhias madeirenses, companhias centro-americanas de caminhos de ferro.

O Instituto McGurk é, provavelmente, a única organização de pesquisa científica, no Mundo, que está instalada num edifício de escritórios comerciais. Ocupa o vigésimo nono e o trigésimo andares do McGurk Building, e na parte do terraço ficam o biotério e passeios cobertos, ao longo dos quais (por cima de um mundo de estenógrafas, contabilistas e graves gentlemen que desejam vender Vestuário Better-bilt a opulentos Dons da Argentina), vagueiam cientistas absortos, a sonharem com a osmose dos espirógiros.

Mais tarde, Martin notaria que a sala de recepção do Instituto era menor, porém, mais antipaticamente polida, com as suas molduras brancas e as suas cadeiras Chippendale, do que a antessala da Clínica Rouncefield, mas agora não tinha consciência do cenário, da jovem e lacônica empregada, de nada, excepto de que estava prestes a ver Max Gottlieb, pela primeira vez em cinco anos.

À porta do laboratório, perscrutou o interior com avidez.

Gottlieb, como sempre, tinha a pele morena e as faces descarnadas, o proeminente nariz aquilino, o olhar inquisitivo e selvagem, mas os seus cabelos estavam grisalhos, a carne em torno da boca afrouxara, e Martin sentiu vontade de chorar diante da debilidade com que ele se ergueu. O velho olhou-o de alto a baixo, com a mão no ombro de Martin, mas limitou-se a dizer:

- Ah, isto é bom... O seu laboratório fica na terceira porta do corredor... Mas faço uma objecção ao bom trabalho que você me mandou. Você diz: "A regularidade do ritmo com que a estreptolisina desaparece sugere que é possível formular uma equação..."

- Mas é isso mesmo, senhor!

- Então por que a não formulou?

- É que... não sei. Não tinha conhecimento suficiente de matemática.

- Então não devia ter publicado enquanto não soubesse a matemática!

- Eu... Escute, Dr. Gottlieb, acha realmente que tenho bastante capacidade para trabalhar aqui? Tenho enorme vontade de obter êxito.

- Êxito? Tenho ouvido essa palavra. É vernácula? Ah, sim, é uma palavra que os rapazes usam na Universidade de Winnemac. Significa passar nos exames. Mas aqui não há exames a passar... Martin, sejamos francos. Você sabe algo da técnica de laboratório; conhece um pouco esses bacilos; não é um bom químico e, quanto à matemática... fu!... muito insuficiente! Mas tem curiosidade e é teimoso. Não aceita regras. Por isso, acho que dará um óptimo ou um péssimo cientista, e se for bastante ruim tornar-se-á popular entre as senhoras ricas que governam esta cidade, e poderá fazer conferências para ganhar a vida, ou, até, se conseguir tornar-se apreciado, chegar a reitor de uma Universidade. Assim, de qualquer maneira, achará isto interessante.

Meia hora depois, discutiam ferozmente, Martin afirmando que toda a gente devia deixar de fazer guerra, de comerciar, de escrever, e entrar sem perda de tempo para os laboratórios, a fim de observar fenômenos novos; Gottlieb insistindo em que já havia meios cientistas flexíveis em número demasiado, que a única coisa necessária era a análise matemática (e muitas vezes a destruição) de fenômenos já observados.

A disputa soava belicosamente, e Martin, em todo o transcurso dela, sentia ditosamente a certeza de que viera para casa.

O laboratório em que conversavam (Gottlieb medindo o soalho, com os braços compridos caprichosamente afivelados nas costas magras; Martin ora sentado nos tamboretes altos, ora de pé) não se tornava notada por coisa alguma - um lavatório, um banco, estantes cheias de provetas numeradas, um microscópio, alguns cadernos de notas e tabelas, uma grotesca série de frascos ligados por tubos de vidro e borracha sobre uma mesa comum de cozinha, ao fundo do compartimento - mas, de quando em quando, durante as suas fogosas intervenções no e Date, Martin olhava em torno com reverência.

Gottlieb interrompeu a discussão:

- Que trabalho quer fazer aqui?

- Mas... gostaria de ajudá-lo, se fosse possível. Penso que procura esclarecer coisas relativamente à síntese de anticorpos.

- Sim. Acho que posso submeter as reacções de imunidade à lei de acção das massas. Mas você não poderá ficar a ajudar -me. Tem de fazer o seu próprio trabalho. O que é que quer fazer? Isto não é uma clínica, com pacientes alinhados na bicha!

- Quero encontrar uma hemolisina para a qual haja um anticorpo. Para a estreptolisina não há nenhum. Gostaria de trabalhar com a estafilosina. Não faz objecções?

- Não faço objecção alguma ao que você fizer... desde que não roube as minhas culturas de estafilococos do refrigerador, e desde que aparente mistério durante todo o tempo, de maneira que o Dr. Tubbs, o nosso director, pense que você está entregue a alguma coisa colossal! Só! Faço apenas uma sugestão: quando estiver embrulhado nalgum problema, tenho uma óptima colecção de romances policiais no meu gabinete. Que cabeça a minha! Pelo menos desta vez, que você acaba de chegar, devo manter-me sério... Talvez seja um maníaco, Martin. Há muita gente que me odeia. Há intrigas contra mim... oh, talvez pense que é imaginação minha, mas há-de ver! Cometo muitos erros. Mas uma coisa conservo pura: a religião de um cientista. Ser um cientista... não é apenas uma ocupação diferente, em que um homem possa escolher entre ser cientista e ser explorador, ou vendedor de acções, ou médico, ou rei, ou fazendeiro. É uma complicação de emoções muito obscuras, como o misticismo, ou como a vontade de escrever versos; torna as suas vítimas totalmente diferentes do bom homem normal. O homem normal, esse não dá grande importância ao que faz desde que coma, durma e ame. Mas o cientista é intensamente religioso... é tão religioso que não aceitará quartas partes de verdade, porque elas são um insulto à sua fé. Ele quer que tudo se submeta a leis inexoráveis. Opõe-se igualmente aos capitalistas que pensam que a sua sórdida corrida atrás do dinheiro é um sistema, e aos liberais, que pensam que o homem não é um animal de combate; ignora totalmente as tolas arengas, tanto do booster americano como do aristocrata europeu. Ignora-as! Totalmente! Odeia os pregadores que contam as suas fábulas, mas não é demasiado amável para com os antropólogos e historiadores que só sabem fazer conjecturas, mas que têm o topete de chamar-se cientistas! Sim, sim, é um homem que todas as pessoas

civilizadas devem naturalmente odiar! Ele despreza os ridículos partidários da cura pela fé e os quiropráticos, tanto como os médicos que querem agarrar precipitadamente a nossa ciência, antes que ela tenha sido verificada, e andar por aí a curar o povo, apagando todos os rastos com as suas passadas; e mais ainda do que a esses homens que se assemelham a porcos, mais ainda do que aos imbecis que nunca ouviram falar de ciência, odeia os pseudocientistas; e mais ainda do que esses cômicos cientistas do sonho, odeia os homens que são admitidos num reino limpo como o da biologia, e que só conhecem um livro didáctico e só sabem fazer palestras para impressionar basbaques! É o único verdadeiro revolucionário, o cientista autêntico. Não deve ter coração. Vive sob uma luz fria e clara. Mas é engraçado: na realidade, não é frio nem deixa de ter coração... é muito menos frio do que os optimistas profissionais. O mundo foi sempre governado pelos filantropos: pelos médicos que querem usar os métodos terapêuticos que não compreendem, pelos soldados que querem alguma coisa contra a qual defender o seu país, pelos pregadores que anseiam por levar o mundo inteiro a escutá-los, pelos bons industriais que amam os seus operários, pelos estadistas eloqüentes e pelos autores ternos... e veja que confusão infernal fizeram do mundo! Talvez estejamos agora na época do cientista, que trabalha, investiga e nunca sai a berrar o seu grande amor a todos os homens! Mas mais uma vez lembre-se, Martin, de que nem todos os homens que trabalham em ciência são cientistas. Estes são tão poucos! O resto: secretários, agentes de publicidade, vivandeiras! Ser um cientista é como ser um Goethe: é uma coisa inata da gente. Às vezes, acho que você tem um pouco disso inato em si. Se tem, há apenas uma coisa... não, há duas coisas que deve fazer: trabalhar o dobro do que puder e impedir que os outros se sirvam de si. Procurarei protegê-lo contra o êxito. É tudo quanto posso fazer. Só... Desejo, Martin, que seja muito feliz aqui. Que Koch o abençoe!

 

Martin passou cinco minutos de arrebatamento no laboratório que ia ser seu - um tanto pequeno mas eficiente, o banco exactamente com a altura conveniente, um lavatório com torneiras de pedal. Depois de fechar a porta e quando o seu espírito flutuara e enchera o pequeno compartimento com sua própria essência, sentiu-se seguro.

Nem Pickerbaugh nem Rouncefield poderiam irromper por ali dentro e arrastá-lo para dar explicações, tornar-se plausível e aparentar espírito público; estaria livre para trabalhar, em vez de ser a cada passo chamado à sala de embalagem ou a ditar cartas jovialmente manhosas a que os homens dão o nome de trabalho.

Olhou pela janela larga, situada abaixo do seu banco, e viu que dispunha da cobiçada Woolworth Tower para distrair o olhar e divagar. Enovelado numa alegria de precisão, não se emparedaria, contudo, contra a vida que fluía lá fora. Tinha, ao norte, não só a Woolworth Tower como o Singer Building, a magnificência arrogante do City Investing Building. Para oeste, navegavam grandes navios, roncavam rebocadores, deslizava todo o Mundo. Aos pés do seu penhasco fervilhava a multidão nas ruas. De repente, amou a Humanidade como amava as honestas e limpas estantes de provetas, e rezou então a prece do cientista:

"Deus me dê olhos límpidos e me livre da pressa. Deus me dê uma cólera serena e implacável contra toda a presunção, toda a obra presunçosa e todo o trabalho negligente e incompleto. Deus me dê uma inquietação que me impeça de dormir ou de aceitar louvores enquanto os resultados observados não forem iguais aos resultados previstos, ou enquanto não descobrir e assaltar, cheio de piedoso júbilo, o meu erro. Deus me dê forças para não confiar em Deus!"

 

Fez a pé todo o trajecto até ao seu insignificante hotel, em Thirties, e em todo o trajecto os transeuntes olharam para ele para esse rapaz delgado, pálido, cintilante, de olhos negros, que se enfiava por entre eles, meio correndo, sem nada ver, mas que, como num borrão, tudo via: intrépidos edifícios, ruas sujas, o tráfego implacável, aventureiros, basbaques, lindas mulheres, lojas de frivolidades, um céu borrascoso. Os pés moviam-se-lhe segundo a toada de: "Achei o meu trabalho, achei o meu trabalho, achei o meu trabalho!"

Leora esperava-o - Leora, cujo destino era sempre esperar por ele em quartos mais ou menos baratos, sentada em cadeiras de balanço que rangiam. Quando ele entrou açodadamente, ela sorriu e todo o seu corpo delgado e suave se iluminou. Antes que falasse, ela gritou:

- Oh, Sandy, estou tão contente!

E quando ele, a passear pelo quarto, fazia o panegírico de Max Gottlieb, do Instituto McGurk, de Nova Iorque, dos encantos da estafilosina, Leora interrompeu-o com um meigo:

- Querido, e quanto te pagarão? Ele estacou.

- Bah! Esqueci-me de perguntar!

- Oh!

- Mas olha! Isto não é a Clínica Rouncefield! Odeio esses corvos que não podem pensar em nada senão em ganhar dinheiro...

- Eu sei, Sandy. Palavra que não me importo. Estava só a pensar na espécie de casa que poderíamos alugar, para começar a procurar. Mas... O Dr. Gottlieb disse que...

Só três horas depois, às oito, é que foram jantar.

 

A cidade da magia não devia ser, para Martin, nem uma cidade nem qualquer espécie de magia, mas apenas um itinerário: o seu quarto, o subway, o Instituto, um restaurante favorito, de preços módicos, algumas ruas de lavandarias, armazéns de especialidades, cinemas. Mas nesta noite foi um maravilhoso aturdimento. Jantaram no Brevoort, sobre o qual Gustaf Sondelius lhe falara. Isto passou-se em 1916, antes de todo o país se tornar sadio e estéril; e o Brevoort era um tumulto de uniformes franceses, caviar, Louis, gravatas esvoaçantes, Nuits St. Georges, ilustradores, Grand Marnier, funcionários do Serviço Secreto inglês, corretores, conversa, e Marthell, V. O.

- Um belo grupo de malucos - disse Martin. - Já pensaste que podemos agora deixar de ser respeitáveis? Irving Watters não está a observar-nos, nem Angus! Será extravagância tomarmos uma garrafa de champanhe?

Acordou no dia seguinte com a desagradável impressão de Que devia haver qualquer motivo de dissabor, como acontecia em Nautilus, em Chicago. Mas, quando começou a trabalhar, Pareceu-lhe que se encontrava num mundo perfeito. O Instituto) solicitamente, fornecia todo o material e aparelhagem que desejasse - animais, estufas, frascos, culturas, meios - e dispunha de um técnico experiente: boy era como lhe chamavam no Instituto. Deixavam-no efectivamente a sós; animavam-no efectivamente a fazer trabalho individual; estava efectivamente associado com homens que não pensavam em termos de cartazes poéticos ou de operações de dois mil dólares, mas em colóides, esporulação e eléctrões, e nas leis e forças que os governam.

No seu primeiro dia, veio cumprimenttá-lo o chefe do Departamento de Fisiologia, Dr. Rippleton Holabird.

Holabird parecia, embora Martin tivesse encontrado o seu nome à frente de asteriscos em revistas de fisiologia, muito novo e muito belo para ser chefe de departamento: um homem alto, delgado, ágil, com um bigode cuidado. Martin fora educado na escola de Cliff Clawson; não compreendera, antes de ouvir a rápida saudação do Dr. Holabird, que a voz de um homem pode ter fascínio sem efeminação.

Holabird levou-o através dos dois andares do Instituto, e Martin contemplou todas as maravilhas com que sempre sonhara. Embora não fosse tão grande, o McGurk igualava, em apetrechamento, o Rockefeller, o Pasteur, o MacCormick, o Lister. Martin visitou salas para a esterilização de frascos e preparação de culturas, para trabalho do vidro, para polariscopia e espectroscopia, e uma câmara de combustão com parades de aço e cimento. Visitou um museu de patologia e bacteriologia, e experimentou logo o desejo de aumentá-lo. Havia um departamento de publicações, de onde saíam os relatórios do Instituto e o American Journal o Geographic Pathology, direcção do Dr. Tubbs, director do Instituto; havia uma sala de fotografia, uma gloriosa biblioteca, um aquário para o Departamento de Biologia Marinha e (idéia do Dr. Tubbs) uma série de laboratórios que cientistas estrangeiros visitantes eram convidados a ocupar à sua vontade. Um biólogo belga e um bioquímico português ocupavam agora dois destes laboratórios, e Martin soube um dia, com comoção, que Gustaf Sondelius também trabalhara ali.

Depois, Martin viu o centrifugador Berkeley-Saunders.

O princípio do centrifugador é o da desnatadeira. Apanha como sedimento os sólidos espalhados num líquido, como as bactérias em uma solução. Na sua maioria, os centrifugadores são movidos à mão ou por força hidráulica, e têm o tamanho de um grande shaker, mas este nobre instrumento tinha quatro pés de comprimento, era accionado a electricidade, e o recipiente central, protegido por uma chapa metálica, era fechado por alavancas como a escotilha de um submarino, sendo o conjunto montado numa base de cimento. Holabird explicou:

- Existem apenas três deste tipo. São fabricados por Berkeley-Saunders, na Inglaterra. O senhor sabe que a velocidade normal, mesmo de um bom centrifugador, é de cerca de quatro mil revoluções por minutos. Este atinge vinte mil por minuto... o mais rápido do Mundo. Que tal?

- Por Deus, aqui dão o material de que a gente precisa! exclamou Martin, entusiasmado. (Sob a bela influência de Holabird, disse realmente Deus, e não Minha Nossa Senhora.)

- Sim, McGurk e Tubbs são os homens mais generosos do mundo científico. Penso que o senhor se dará muito bem aqui, doutor.

- Tenho a certeza de que vou... de que me darei bem. E... com efeito... é uma grande gentileza da sua parte ter-me proporcionado esta excursão.

- Então não percebe quanto me agrada esta oportunidade de exibir os meus conhecimentos? Não há forma de vaidade mais agradável e mais segura do que fazer o papel de cicerone. Mas... ainda não contemplámos a verdadeira maravilha do Instituto, doutor. Por aqui.

A verdadeira maravilha do Instituto não tinha relações visíveis com a ciência. Era o salão, onde o pessoal almoçava e onde, de vez em quando, se realizavam jantares de cientistas, presididos pela Sr.a McGurk. Martin ficou deslumbrado e, inclinando a cabeça para trás, deslizou o olhar do soalho cintilante até ao tecto ouro-negro. O salão erguia-se à altura dos dois andares do Instituto. Colado à parede imensa, acima do estrado sobre o qual almoçavam o director e os sete chefes de departamento, havia uma galeria esculpida, para a música. Dos painéis de carvalho das paredes, pendiam retratos dos pontífices da ciência, vestidos de escarlate; havia um quadro mural de Maxfield Parnsh; e, dominando tudo, um candelabro com uma centena de lâmpadas.

- Minha... Deus! - disse Martin. - Nunca imaginei que houvesse uma sala assim!

Holabird foi generoso. Não sorriu.

Oh, talvez seja um pouco vistosa demais. É a criação favorita de Capítola... Capítola é a Sr.a Ross McGurk, esposa do fundador; é realmente uma mulher refinadíssima, mas gosta, de facto, de movimentos e associações. Terry Wickett, um dos nossos químicos, chama a isto o Salão da Opulência. Contudo, serve-nos de inspiração, quando entramos para almoçar, exaustos e abatidos. Agora, vamos fazer uma visita ao director. Ele disse-me que o levasse lá.

Depois do esplendor babilónico do Salão, Martin esperava que o gabinete do Dr. A. DeWitt Tubbs fosse uma espécie de sala de banho romana, mas era, salvo quanto a um banco de laboratório colocado a um canto, o escritório mais rigidamente comercial que ele vira.

O Dr. Tubbs era um homem sério, barbado como um terrier, muito culto e talvez o expoente americano mais poderoso da cooperação no campo da ciência, mas era também um homem mundano, exigente em matéria de sapatos e coletes. Formara-se em Harvard, estudara na Europa, fora professor de Patologia na Universidade de Minnesota, presidente da Universidade Hartford, ministro na Venezuela, director do Weekly Statesman, presidente da Liga Sanitária, e finalmente director do McGurk.

Era membro tanto da Academia Americana de Artes e Letras como da Academia das Ciências. Bispos, generais, rabinos liberais e banqueiros musicófilos jantavam com ele. Era um dos homens distintos a quem os jornais recorriam para entrevistas autorizadas sobre todos os assuntos.

Antes de ouvi-lo falar durante dez minutos, o interlocutor compreendia que tinha diante de si um dos poucos condutores da Humanidade que podem discorrer sobre qualquer ramo de conhecimento e que, ao mesmo tempo, podiam superintender coisas práticas e encaminhar a confusa Humanidade para ideais sãos e razoáveis. Embora um Max Gottlieb pudesse, nas suas pesquisas, mostrar certo talento, a sua estreiteza, o seu temperamento azedo e esquisito impediam-no de adquirir a visão larga sobre educação, política, comércio e todas as outras nobres questões; essa faculdade assinalava o Dr. A. DeWitt Tubbs.

Mas o director mostrou-se tão cordial para com o insignificante Martin Arrowsmith como se Martin fosse um senador que o visitasse. Sacudiu-lhe a mão calorosamente; relaxou-se num sorriso; a sua voz de barítono amaciou-se.

- Doutor Arrowsmith, não nos contentamos simplesmente em dizer-lhe que é bem-vindo aqui; esperamos mostrar-lhe que é bem-vindo! O doutor Gottlieb contou-me que o senhor tem aptidão natural para a investigação a portas cerradas, mas que trilhou os campos do exercício da medicina e da saúde pública, antes de fixar-se no laboratório. Não posso dizer-lhe como considero sábio ter feito essa anTpla digressão preliminar. Um número demasiado grande de pretendentes ao nome de cientistas carece da visão superior que vem da coordenação de todos os domínios mentais. - Martin ficou ofuscado ao descobrir que realizara uma ampla digressão. - Agora, sem dúvida, o senhor deseja algum tempo, talvez um ano ou mais, para tomar pé, doutor Arrowsmith. Não lhe pedirei nenhum relatório. Enquanto o doutor Gottlieb se achar satisfeito com o seu progresso, dar-me-ei por satisfeito. E se houver alguma coisa em que possa aconselhá-lo, pois talvez tenha uma carreira mais longa na ciência, acredite que ficarei encantado em ser-lhe útil, e estou certo de que o doutor Holabird fará o mesmo, embora ele realmente deva estar com ciúmes, pois é um dos nossos trabalhadores mais jovens... chamo-lhe até o meu enfant terrible... mas acredito que o senhor, apenas com trinta e três anos, destronará o pobre rapaz!

Holabird interrompeu-o, jovialmente:

- Qual, doutor, já fui destronado há muito tempo. O senhor esquece-se de Terry Wickett. Ele tem menos de quarenta.

- Ah! Ele! - murmurou o Dr. Tubbs.

Martin nunca ouvira alguém liquidar um homem tão venenosamente, com tamanha polidez. Compreendeu que, em Terry Wickett, poderia haver uma serpente, mesmo neste paraíso.

- Agora - disse o Dr. Tubbs - talvez queira dar uma olhadela pela minha organização. Orgulho-me de conservar os nossos arquivos e ficheiros com tão pouca fantasia como se fosse um agente de seguros. Mas há um certo quê de exotismo nestes mapas.

Atravessou a sala para mostrar uma série de estreitas gavetas cheias de mapas científicos.

De que eram estes mapas, não o disse nem Martin jamais o soube.

Apontou o banco, no extremo do gabinete e, sorrindo, confessou:

- O senhor pode ver ali como sou realmente ineficiente, gosto de afirmar que renunciei a todas as idílicas delícias da Pesquisa em patologia, pelos cuidados menos fascinantes, porém igualmente importantes e exaustivos, da direcção. Mas tal é a fraqueza do genus homo que, por vezes, quando devia atender pormenores práticos, fico obcecado por alguma concepção provavelmente absurda de patologia, e torno-me tão ridículo que nem mesmo me lembro de percorrer o corredor até ao meu laboratório regular... preciso sempre de um banco e uma experiência em andamento. Oh, receio não ser o homem moral que aparento em público! Aqui estou casado com um processo de direcção e continuo a suspirar pelo meu primeiro amor, a Sr.a Ciência!

- Acho óptimo que o senhor continue a ter afeição por ela - arriscou Martin.

Perguntava a si próprio quais seriam as experiências a que o Dr. Tubbs se dedicara ultimamente. O banco parecia um tanto abandonado.

- E agora, doutor, desejo apresentá-lo ao verdadeiro director do Instituto, a minha secretária, Miss Pear Robbins.

Martin já notara Miss Robbins. Não era possível deixar de notar Miss Robbins. Tinha trinta e cinco anos e era uma deusa augusta e láctea. Ela ergueu-se para um aperto de mão - um aperto de mão firme, competente - e para declamar, no seu glorioso tom de contralto:

- O doutor Tubbs é gentil, porque sabe que de outra maneira não lhe daria o chá da tarde. Ouvimos tantas coisas do doutor Gottlieb sobre a sua capacidade que quase tenho medo de lhe dar as boas-vindas, doutor Arrowsmith, mas quero fazê-lo.

Depois, arrebatado, no seu laboratório, Martin ficou a olhar a torre Woolworth. Estava aturdido por estas maravilhas

- as suas maravilhas, agora! De Rippleton Holabird, tão jovialmente elegante mas tão distinto, esperava fazer um amigo. Achou o doutor Tubbs um tanto sentimental, mas ficou impressionado pela sua bondade e pelos acolhimentos de Miss Robbins. Encontrava-se numa névoa de glória futura, quando a sua porta foi escancarada por um homem de feições duras, cabelos vermelhos, camisa de seda e uns trinta e seis ou trinta e oito anos de idade.

- Arrowsmith? - rosnou o intruso. - Chamo-me Wickett, Terry Wickett. Sou químico. Trabalho com Gottlieb. E... notei que o Holá-besta lhe andava a mostrar o jardim zoológico.

- O doutor Holabird?

- Isso... Mas... o senhor deve ser bastante inteligente, uma vez que o Tio Gottlieb o deixou entrar. Quando começa? Que pretende ser por aqui? Uma das aves corteses que utilizam o Instituto para penetração social e caça a uma mulher rica, ou um dos rústicos como eu e Gottlieb?

O rosnar de Terry Wickett era o som mais irritante que Martin ouvira. Respondeu numa voz curiosamente semelhante à de Rippleton Holabird:

- Penso que o senhor não precisa de afligir-se. Por acaso, já sou casado!

- Oh, não se preocupe com isso, Arrowsmith. Os divórcios são baratos, nesta cidade do homem. Mas... O Holá-besta mostrou-lhe Gladys-Namoradeira?

- Hem?

- A Gladys-Namoradeira ou o Centrifugador Galopante.

- Ah! Refere-se ao Berkeley-Saunders?

-, Claro, alma da minha alma. Como achou aquilo?

- É o centrifugador mais admirável que vi. O doutor Holabird disse...

- Ora, bolas! Ele tinha que dizer alguma coisa! Foi ele quem levou o velho Tubbs a comprá-lo. Tubbs faz o que o Holá-besta quer.

- E por que não? É o mais rápido...

- Pois sim. O centrifugador mais rápido de todo o Vereinigten e feito do melhor aço para palitos. O único inconveniente é que queima sempre os fusíveis e faz um borrifo dos germes, de modo que a gente precisa de uma máscara contra gases se pretende utilizá-lo... É gostou do velho Tubbs e da incomparável Pearl?

- Muito!

- Pois não. Naturalmente Tubbs é um burro, um ignorante, mas de qualquer modo não sofre da mania de perseguição, como Gottlieb.

- Escute, Wickett... ou doutor Wickett?

- Uhum... Medicinae Doctor, Pharmaciae Doctor, mas, apesar disso, um químico de primeira classe.

- Pois, doutor Wickett, a mim parece-me uma vergonha que um homem com o seu talento se tenha associado a idiotas como Gottlieb, Tubbs e Holabird. Acabo de sair de uma clínica de Chicago onde todos são gente sensata e honesta. Teria muito Prazer em recomendá-lo para um lugar nesse estabelecimento.

- Não seria muito mau. Pelo menos, evitaria toda essa conversa ao almoço, no Salão da Opulência. Mas... lamento tê-lo irritado, Arrowsmith; fiquei, porém, com boa impressão sua.

- Muito obrigado! Wickett arreganhou obscenamente os dentes - cabelos vermelhos, feições duras, coriáceo e magro - e resmungou:

- A propósito, Holabird não lhe contou que foi ferido no primeiro mês da guerra, quando era general, ou servente de hospital, ou coisa que o valha, no Exército Britânico?

- Não falou! Não se referiu à guerra!

- Pois falará! Bem, mano Arrowsmith, espero que havemos de passar muitos, muitos anos felizes juntos, brincando ao pé do Tio Gottlieb. Até à vista. O meu laboratório fica junto do seu.

"Imbecil! - julgou Martin. - Bem, posso agüentá-lo enquanto puder amparar-me a Gottlieb e Holabird. Mas... Imbecil presumido! Deus, então Holabird esteve na guerra! Invalidou-se, provavelmente. Mas eu devolvi o ataque de Wickett: não lhe contou que foi um bravo herói nessa guerra medonha? disse ele, e retorqui: "Lamento contradizê-lo, mas o doutor Holabird não se referiu à guerra." Que animal! Bem, não me aborrecerei por causa dele."

E realmente, quando Martin se reuniu com o restante pessoal, ao almoço, Wickett foi o único que ele não achou cortês, por mais breves que fossem os cumprimentos dos outros. Não distinguiu uns dos outros; durante dias, a maioria dos vinte investigadores formaram um borrão. Martin confundiu o Dr. Yeo, chefe do Departamento de Biologia, com o carpinteiro que viera para armar as estantes.

O pessoal sentava-se no Salão, ao longo de duas mesas compridas, uma sobre o estrado, uma em baixo: minúsculos grupos de insectos sob o tecto maciço. Não eram de aspecto particularmente nobre, estes possíveis Darwins, Huxleys e Pasteurs. Nenhum deles era um Platão de testa ampla. Excepto Rippleton Holabird, Max Gottlieb e talvez o próprio Martin, todos eles pareciam comerciantes a almoçar: rapazes incaracterísticos e de movimentos vivos; velhos de bigodes espessos; e frágeis homenzinhos de óculos, boiando dentro dos colarinhos. Mas havia uma calma consistente em torno deles; não havia, nas suas vozes, segundo acreditava Martin, nem ansiedade por dinheiro, nem a inquietação da inveja e das murmurações escandalosas.

Conversavam grave ou frivolamente sobre o seu trabalho, a única espécie de trabalho que, por se tornar parte da cadeia dos factos descobertos, é eterno, por mais que se esqueça o nome do trabalhador.

Quando Martin ouviu Terry Wickett (rude e plebeu como sempre, e chamando-se "o menino da química", referindo-se a "este pomposo Instituto" e ao "nosso honesto irmão novo, Arrowsmith") discutir com um homem delgado, de barba rala o Dr. William T. Smith, assistente de bioquímica - sobre a possibilidade de aumentar os efeitos de todas as enzimas com doses de raios X; quando ouviu um membro-associado vituperar outro, pelas suas concepções sobre a química celular e acusar Ehrlich de ser "o Edison da ciência médica", Martin percebeu novas avenidas para emocionantes pesquisas; estava de pé sobre uma montanha, e vales desconhecidos, veredas escarpadas e fascinantes abriam-se a seus pés.

O Dr. e a Sr.a Rippleton Holabird convidaram-nos para jantar, uma semana depois da sua chegada.

Assim como os fatos de tweed de Holabird faziam a elegância de Clay Tredgold parecer difícil e pretensiosa, o seu jantar revelou que as reuniões de Angus Duer em Chicago eram mecânicas, insípidas e um tanto aflitivas. Todas as pessoas que Martin conheceu em casa de Holabird eram Alguém, embora talvez um Alguém secundário: um jornalista passável ou um etnólogo incipiente; e todos tinham a graciosa despreocupação de Holabird.

Os Arrowsmith provincianos chegaram à hora, isto é, com um avanço de quinze minutos. Antes que aparecessem os cocktails, em velhos cristais de Veneza, Martin perguntou:

- Doutor, que problemas investiga agora na sua fisiologia?

Holabird transformou-se num entusiástico rapazote. com um propiciatório: "Quer então ouvir-me falar acerca deles... não precisa de ser polido, sabe! " - mergulhou numa exposição das suas experiências, desenhando esboços nos espaços em branco dos anúncios de um jornal, no dorso de um convite para casamento, na página de guarda de um romance com dedicatória manuscrita, sempre a olhar para Martin como a desculpar-se, sempre erudito e, contudo, jovial.

- Trabalhamos na localização das funções do cérebro. Penso que fomos além de Bolton e Flechsig. Oh, é apaixonante explorar o cérebro. Olhe!

Rápido, o lápis esboçava o cérebro; este vivia e pulsava debaixo dos seus dedos. Atirou fora o papel.

- Mas é uma vergonha impingir-lhe as minhas manias. Além disso, os outros estão a chegar. Diga-me, como acha o seu trabalho? Está à vontade no Instituto? Agrada-lhe o pessoal?

- De todos, excepto... Para ser franco, indispus-me com Wickett.

Holabird, generosamente:

- Eu sei. As suas maneiras são levemente agressivas. Mas não deve preocupar-se com ele; Wickett é de facto um bioquímico extraordinariamente competente. É solteirão: dedica-se inteiramente ao seu trabalho. E, na realidade, não acredita em metade das coisas ásperas que diz. Ele detesta-me, entre outros. Falou a meu respeito?

- Ãããh... Especialmente, não...

- Tenho a impressão de que ele anda por aí a dizer que eu costumo conversar sobre as minhas experiências na guerra, o que de facto não é verdade.

- Sim - num ímpeto -, ele disse isso.

- Desejaria que ele se esquecesse disso. Lamento tê-lo irritado por haver ido até lá e ter sido ferido. Hei-de lembrar-me para não cair noutra! Ora... a fazer tanto barulho por uma folha de serviços tão insignificante como a minha! O que aconteceu foi isto: quando estalou a guerra, em 14, estava em Inglaterra, alistei-me no corpo médico, levei a minha conta ao cabo de três semanas e fui dispensado; e foi esse o fim da minha magnífica carreira! Mas chegou mais alguém.

O seu fluente cavalheirismo conquistou Martin inteiramente. Leora estava igualmente cativada pela Sr.a Holabird, e voltaram para casa, depois do jantar, com um novo encantamento.

E assim acendeu-se para eles uma clara luz de felicidade. Martin sentia-se venturoso na paz do seu trabalho e não menos venturoso na sua vida fora do laboratório.

Durante toda a primeira semana, esqueceu-se de perguntar qual seria o seu ordenado. Depois, tornou-se um jogo esperar até ao fim do mês. À noite, em pequenos restaurantes, Leora e ele costumavam fazer especulações em torno do assunto.

O Instituto não lhe pagaria certamente menos que os dois mil e quinhentos dólares por ano que recebera na Clínica Rouncefield, mas, nas noites em que estava cansado, o ordenado descia para mil e quinhentos dólares, e, certa noite em que tomaram Borgonha, Martin aumentou para três mil e quinhentos.

Quando lhe entregaram o primeiro cheque mensal, fechado num pequeno sobrescrito lacrado, não ousou abri-lo. Levou-o para casa e entregou-o a Leora. No seu quarto de hotel, ficaram a olhar para o sobrescrito como se contivesse, provavelmente, veneno. Trêmulo, Martin abriu-o; arregalou os olhos e sussurrou: "Oh, gente decente! Pagam-me... são quatrocentos e vinte dólares... pagam-me cinco mil por ano!"

A Sr.a Holabird, uma gatinha branca, ajudou Leora a descobrir uma instalação de três compartimentos, com uma espaçosa sala de estar, numa velha casa perto de Gramercy Park, e ajudou-a a guarnecê-la com móveis em segunda mão. Quando Martin teve permissão para olhar, exclamou: "Espero ficar aqui uns cinqüenta anos!"

Foi a ilha grega onde encontraram paz. Actualmente, tinham amigos: os Holabirds, o Dr. Billy Smith - o químico de barba rala, que tinha gosto apurado para música e cerveja alemã - um anatomista que Martin conheceu num jantar de exalunos de Winnemac, e sempre Max Gottlieb.

Gottlieb encontrara também a sua tranqüilidade. Tinha, em Seventies, uma pequena casa acastanhada, que rescendia a tabaco e livros encadernados em couro. O seu filho Robert formara-se no City College e penetrara alvoroçadamente na vida comercial. Míriam cultivava a sua música, ao mesmo tempo que cuidava do pai - uma jovem gorducha, fogo sagrado por detrás da carne sem atractivos. Após uma noite de azedas dúvidas de Gottlieb, Martin sentiu-se inspirado e correu para o laboratório, a fim de investigar mil problemas das leis dos microrganismos, uma tarefa que usualmente começava pela blasfematória destruição de toda a obra recém-realizada.

O próprio Terry Wickett tornou-se mais tolerável. Martin Percebeu que os resmungos de Wickett eram em parte uma falsa concepção de humor, à Cliff-Clawson, e em parte um ressentimento, tão grande como o de Gottlieb, pelos cientistas morfológicos, que rotulam as coisas com os mais belos rótulos, que falam e tornam a falar sobre as coisas sem jamais as analisar. Wickett trabalhava freqüentemente toda a noite; ficava em mangas de camisa, revolta cabeleira rebelde e vermelha, sentado durante horas com um cronômetro diante de uma cuba de temperatura constante. De quando em quando, era um alívio entregar-se à áspera agressividade de Wickett, em vez da elegância de Rippleton Holabird, que reclamava de Martin uma penosa retribuição, em ocasiões em que estava megulhado profundamente nas suas investigações.

 

O seu trabalho começou às apalpadelas. Dias houve em que, apesar de toda a alegria encontrada, temia que Tubbs entrasse apressado e berrasse: "Que está a fazer aqui? O senhor não é o Arrowsmith que esperávamos! Vá-se embora!"

Isolara vinte espécies de estafilococos e submetia-os a provas para descobrir qual deles era mais activo na produção de uma toxina hemolítica, desintegradora do sangue, de sorte que lhe fosse possível produzir uma antitoxina.

Havia momentos pitorescos em que, depois da centrifugação, os organismos se enrolavam em massas nebulosas no fundo dos tubos; ou quando os corpúsculos vermelhos eram completamente dissolvidos e o líquido opaco, vermelho-tijolo, adquiria a colaração do vinho pálido. Mas a maior parte dos processos era incomparavelmente enfadonha: remover o material da cultura de seis em seis horas, fazer suspensões salgadas de corpúsculos em pequenas provetas, registar os resultados.

Nunca soube que isto era enfadonho.

Tubbs aparecia de vez em quando, encontrava-o a trabalhar, dava-lhe uma palmadinha no ombro, dizia alguma coisa que parecia francês e poderia mesmo ter sido francês, e animava-o vagamente; ao passo que Gottlieb, imperturbavelmente, lhe dizia que prosseguisse, e de vez em quando comovia-o mostrando-lhe o seu próprio caderno de notas (estava cheio de núrneros e de abreviaturas, e parecia-se estupidamente com um livro de facturas de pano de algodão) ou falando do seu próprio trabalho, num vocabulário tão pagão como o dos magos do Tibete:

- Arrhenius e Madsen têm uma contribuição tendente a submeter as reacções da imunidade à lei de acção das massas, mas espero demonstrar que as combinações antígeno-anticorpo ocorrem em proporções estoiquiométricas, quando certas variáveis se mantêm constantes.

- Ahn, compreendo - dizia Martin; e consigo mesmo: "Não entendo patavina! Ah, meu Deus, se me derem ao menos algum tempo e não me mandarem novamente afixar cartazes contra a difteria!"

Quando obteve uma toxina satisfatória, Martin começou a luta para descobrir uma antitoxina. Fez vastas tentativas, sem resultado. Às vezes, ficava certo de que descobriria alguma coisa, mas, quando fazia uma nova verificação das experiências, ficava geladamente certo de que não descobrira. Certa vez, entrou precipitadamente no laboratório de Gottlieb, a anunciar a antitoxina, mas Gottlieb, com carinho e várias perguntas incômodas e o presente de uma caixa de autênticos cigarros egípcios, mostrou-lhe que não levara em conta certas diluições.

Com todo o seu tactear amadorístico, Martin tinha uma característica sem a qual não pode haver ciência: uma curiosidade de grande alcance, farejante, alheia à vaidade, alheia ao drama, e ela levava-o para a frente.

 

Enquanto abria o seu caminho insignificante através dos primeiros anos da Grande Guerra Européia, o Instituto McGurk tinha uma existência muito animada, debaixo da sua plácida superfície.

Martin talvez não tivesse aprendido muita coisa na questão dos anticorpos, mas aprendeu o segredo do Instituto, e viu que, por detrás de toda a sua operosidade, estava Capítola McGurk, a Grande Animadora.

Capítola, a Sr.a Ross McGurk, opusera-se ao sufrágio das mulheres - até saber que as mulheres tinham a certeza de obter o voto - mas era uma superintendente completa dos negócios da virtude. Ross McGurk fundara o Instituto não só para se glorificar como também para desviar Capítola e conservar-lhe os dedos inquietos fora dos seus interesses em navegação, negócio madeireiro e minérios, que não suportariam muito bem as investigações de uma Grande Animadora.

Ross McGurk era, na época, um homem de cinqüenta e quatro anos, segunda geração dos construtores do caminho de ferro da Califórnia; formado pela Universidade de Yale; grande, suave, cheio de dignidade jovial, sem escrúpulos. Mesmo em 1908, quando fundara o Instituto, já possuía demasiadas casas, demasiados criados, demasiado alimento e nenhum filho, porque Capítola considerava "essa espécie de coisa nociva a mulheres com grandes responsabilidades". No Instituto, encontrava de ano para ano mais satisfação, maior satisfação em viver.

Quando Gottlieb chegou, McGurk subiu para vê-lo. McGurk, de quando em quando, tiranizava o Dr. Tubbs; Tubbs era forçado a correr ao seu gabinete como se fosse um moço de recados; mas, quando viu os olhos saturninos de Gottlieb, McGurk interessou-se; e os dois homens, o americano volumoso, de roupas cuidadas, poderoso, reservado, e o europeu cínico, simples, desdenhoso para com o poder, tornaram-se amigos. McGurk escaparia de uma conferência que interessasse o comércio de uma ilha inteira das Antilhas, para sentar-se num mocho alto, em silêncio, e assistir ao trabalho de Gottlieb.

"Qualquer dia, quando me livrar deste torvelinho, e despertar, tornar-me-ei seu servente, Max" - disse McGurk; e Gottlieb respondeu: "Não sei se... você tem imaginação, Ross, mas acho que está muito atrasado para se iniciar na realidade. Agora... se não se importa de comer no Childs, evitaremos o seu requintadíssimo regal Hall, e convidá-lo-ei para almoçar".

Capítola, porém, não participou da comunhão de ambos.

Gottlieb reencontrara a sua arrogância, e, para Capítola McGurk, precisava dela. Capítola tinha pequeninos e interessantes problemas para os pensionistas de seu marido estudarem. Certa vez, cheia de alvoroço, visitou o laboratório de Gottlieb, para lhe dizer que grande quantidade de pessoas morrem de cancro, e perguntou-me porque não abandonava essa anti-não-sei-quê, dedicando-se a descobrir a cura do cancro, o que seria formidável para todos.

Mas o verdadeiro agravo de Capítola nasceu quando, depois de Rippleton Holabird concordar em oferecer uma ceia, à meia-noite, no terraço do Instituto, a um dos seus comensais mais intelectuais, ela telefonou para Gottlieb, a perguntar, simplesmente: "Seria demasiado incômodo para o senhor vir abrir

O seu laboratório, para que todos possamos ter o prazer de visitá-lo? " - e Gottlieb respondeu: "Seria! Boa noite!"

Capítola queixou-se ao marido. Ele escutou - pelo menos Parecia escutar - e declarou:

"Cap, não me importo que persigas os criados. Eles podem

agüentar. Mas se te meteres com Max, fecho simplesmente todo o Instituto e então não terás assunto para conversar no Colony Club. E certamente é um despropósito que um homem que vale trinta milhões de dólares... pelo menos um sujeito que ganhou isso... não ache um pijama limpo. Não, não quero criado de quarto! Oh, por favor, Capítola, deixa-te de orgulhos e permite que vá dormir, sim?"

Capítola, porém, era indócil, especialmente na questão dos jantares mensais que oferecia no Instituto.

 

O primeiro dos Jantares Científicos de McGurk, que Martin e Leora testemunharam, foi um jantar particularmente importante e explicativo, porque o convidado de honra era o general de divisão Sir Isaac Mallard, cirurgião londrino, que estava nos Estados Unidos com uma missão militar inglesa. Magnanimamente, já se deixara exibir por todo o Instituto; fora chamado Sir Isaac pelo Dr. Tubbs e por todos os pesquisadores, excepto Terry Wickett; lembrou-se de ter conhecido Rippleton Holabird em Londres, ou declarou que se lembrava; e admirou a Gladys-Namoradeira.

O jantar começou com uma desgraça: Terry Wickett, de quem até ali se podia esperar confiadamente que permanecesse em decente ausência, compareceu e, dirigindo-se à esposa de um ex-embaixador, disse: "Não podia perder este festim, por causa da presença do prezado Sir Isaac. Olhe, se não lhe dissesse, a senhora dificilmente calcularia que a minha casaca foi alugada, não acha? Já notou que Sir Isaac toma todas as precauções para não tornar a rasgar o tapete com as esporas? Sempre gostava de saber se ele continua a matar todos os seus pacientes de mastoidite!"

Houve muita música e muitíssimos pratos; houve cientistas constrangidos a explicar a meigas e áureas damas, em poucas palavras, em que se ocupavam agora e em que esperavam ocupar-se nos próximos vinte anos; houve estas mesmas meigas damas arruinando em tom de doce censura: "Mas receio que o senhor ainda não tenha aprofundado isso." Houve os maridos das meigas damas - formados por Universidades, manipuladores de acções de petróleo ou direito corporativo - sempre prontos a dar, a quem quer que o desejasse, a sua opinião de que, embora as antitoxinas pudessem ter interesse, aquilo de que realmente precisávamos era de um bom sucedâneo para a borracha.

Houve Rippleton Holabird com o seu encanto.

E, na pausa da música, houve subitamente Terry Wickett, dizendo a uma mulher importantíssima, uma das amigas mais úteis de Capítola: "Sim, o nome dele escreve-se G-o-t-t-l-i-e-b, mas pronuncia-se Gott-lixa."

Mas os intrusos como Wickett, os provincianos soturnos como Martin e Leora, e os membros totalmente ausentes como Max Gottlieb eram poucos, e o jantar transformou-se magnificamente numa festa de confraternização, quando o Dr. Tubbs e Sir Isaac Mallard se brindaram, e brindaram Capítola, o solo sagrado da França, a Bélgica pequenina e heróica, a hospitalidade americana, o amor dos Ingleses pela vida doméstica, e as coisas extremamente interessantes que um rapaz dotado do sentido da cooperação poderia fazer na ciência moderna.

Os convidados foram conduzidos através do Instituto. Inspeccionaram o aquário de biologia marinha, o museu patológico, e o biotério, à vista do qual uma dama perguntou a Wickett: "Oh, as pobres cobaias e os queridos coelhos! Mas escute, doutor, não acha que seria muito mais bonito se os libertassem e passassem a trabalhar só com as provetas?"

Um médico de fama, cuja clientela era constituída por mulheres ricas, nenhuma delas residente a oeste da Quinta Avenida, disse à dama: "Acho que tem toda a razão. Nunca precisei de matar um só animal para ficar a saber as coisas!"

Com surpreendente precipitação, Wickett pegou no chapéu e saiu.

A dama disse: "O senhor compreende, ele não ousou enfrentar um argumento de peso. Oh, doutor Arrowsmith, naturalmente sei como Ross McGurk, o doutor Tubbs e todos os membros são maravilhosos, mas devo dizer que estou desiludida com os laboratórios dos senhores. Esperava encontrar curiosas retortas e fornos eléctricos e tudo, mas, palavra, não vejo nada que seja interessante, e acho que os senhores, que são inteligentes, deviam fazer alguma coisa para a gente, agora que nos atraíram a todos cá para baixo. O senhor, ou algum dos seus colegas, não sabe criar a vida de ovos de tartaruga, ou qualquer outra coisa? Oh, faça, sim! Por favor! Ou, pelo menos, vista um desses curiosos aventais de dentista que os senhores usam."

Martin também saiu rapidamente, acompanhado por uma Leora furiosa, que no táxi anunciou que estava com vontade de provar uma das taças de champanhe que vira sobre o bufete e declarou que o seu marido parecia louco.

 

Assim, por mais satisfeito que estivesse com o seu trabalho, Martin começou a ter dúvidas acerca da perfeição do seu santuário; a perguntar a si mesmo por que razão Gottlieb era tão ofensivo ao almoço para com o esmerado Dr. Sholtheis, o diligente chefe do Departamento de Epidemiologia, e por que motivo o Dr. Sholtheis suportava as ofensas; a perguntar a si mesmo por que motivo o Dr. Tubbs, quando aparecia num laboratório, dizia em voz cantante: "A única coisa que não deve perder de vista em todo o seu trabalho é o ideal de cooperação"; a perguntar a si mesmo por que razão um fisiologista tão ardente como Rippleton Holabird estava todo o dia em consulta com Tubbs, em vez de estar no seu gabinete.

Holabird fizera, cinco anos antes, um pouco de pesquisa, que levara o seu nome às revistas científicas de todo o Mundo: estudara o efeito da extirpação dos lobos anteriores do cérebro de um cão na aptidão do animal para orientar-se dentro do laboratório. Martin lera algo sobre essa pesquisa, antes de pensar em ir trabalhar no McGurk; ao chegar, ouviu com forte emoção o relato da experiência, pelo seu próprio autor; mas, quando ouviu Holabird referir-se a ela uma dúzia de vezes, ficou consideravelmente menos comovido, e reflectiu sobre se Holabird, durante a vida, continuaria a ser "o homem... lembra-se?... aquele que fez aquela maravilha sobre a locomoção dos cães ou coisa parecida".

Martin reflectiu ainda mais quando percebeu que todos os seus colegas estavam secretamente agrupados em facções.

Tubbs, Holabird e talvez a secretária de Tubbs, Pearl Robbins, eram a casta dominante. Murmurava-se que Holabird esperava um dia que o fizessem subdirector, cargo que devia ser criado para ele. Gottlieb, Terry Wickett e o Dr. Nicholas Yeo, esse biólogo rústico e bigodudo que Martin tomara a princípio por um carpinteiro, formavam uma facção independente e própria, e Martin, por mais que antipatizasse com o turbulento Wickett, foi arrastado por ela.

O Dr. William Smith, com a sua barbicha e uma concepção sobre os cogumelos formada em Paris, conservava-se isolado. O Dr. Sholtheis, que nascera para uma sinagoga da Rússia mas que era agora o mais zeloso anglicanista da Igreja Episcopal de Yonkers, procurava constantemente, na sua maneira cortês e doce, conseguir que Gottlieb recomendasse a sua obra científica. No Departamento de Biofísica, o chefe complacente era caluniado e invejado pelo seu próprio assistente. E em todo o Instituto não havia um homem que, em qualquer fase de embriaguez, afirmasse que a obra de outro cientista qualquer, em qualquer outra parte, era totalmente correcta, ou que havia um só dos seus rivais que não lhe roubara algumas idéias. Nenhuma roda de cadeiras de balanço, na varanda de um hotel de veraneio, nenhum grupo de actores jamais cochichara tantos escândalos nem insinuara, com mais calor, a completa imbecilidade dos confrades, do que estes altos cientistas.

Martin, porém, podia pôr de parte estas descobertas, fechando a sua porta, e tinha agora uma coisa a fazer que o tornou surdo às murmurações da intriga.

Desta vez, Gottlieb não entrou lerdamente no seu laboratório, mas, laconicamente, mandou-o chamar. A um canto do gabinete de Gottlieb, num esconderijo contíguo ao seu laboratório, estava Terry Wickett, enrolando um cigarro com ar sardónico.

Gottlieb observou:

- Martin, tomei a liberdade de conversar a seu respeito com Terry, e concluímos que você já perdeu muito tempo, de modo que é preciso começar a trabalhar.

- Pensava que estivesse a trabalhar, senhor! Fora-se toda a larga placidez dos seus dias alciónicos; via-se de regresso ao pickerbaughismo. Wickett acudiu:

- Não, não estava. Esteve apenas a mostrar que é um rapaz um tanto perspicaz, que poderia trabalhar se soubesse alguma coisa.

Enquanto Martin se voltava para Wickett à maneira de quem exclama: "Quem é você para falar assim? ", Gottlieb prosseguiu;

- O facto, Martin, é que nada pode fazer enquanto não souber um pouco de matemática. Se não quiser ser um bacteriologista de manual culinário, como a maioria o é, tem de dominar algumas das coisas fundamentais da ciência. Todas as coisas vivas são máquinas físico-químicas. Como poderá, pois, fazer progressos se não sabe química física, e como poderá saber química física sem saber matemática?

- Justo - disse Wickett. - Você apara a relva e apanha as boninas, e não cava a terra.

Martin encarou-os.

- Mas, Wickett, a gente não pode saber tudo. Sou bacteriologista, e não físico. Parece-me que uma pessoa deve usar a sua percepção, e não apenas uma caixa de ferramenta, para fazer descobertas. Um bom navegador poderia achar o caminho no mar, ainda que não tivesse os instrumentos, e todo o aparelhamento de um Lusitânia não faria de um pateta um bom navegador. O homem precisa de desenvolver o cérebro e não de depender de ferramentas.

- Pois sim, mas, uma vez que existem mapas e quadrantes, um navegador que fosse fazer um cruzeiro sem eles seria uma besta!

Durante meia hora, Martin defendeu-se, não com demasiada cortesia, diante do macio Gottlieb, do pétreo Wickett. E, durante todo esse tempo, aprendeu que era repugnantemente ignorante.

Gottlieb e Wickett desinteressaram-se, por fim. Gottlieb olhava para os seus cadernos de notas, Wickett afastava-se pesadamente, de regresso ao trabalho. Martin olhou ferozmente para Gottlieb. O homem significava tanto, que podia enfurecer-se com ele como se enfurecia com Leora, com a sua própria pessoa.

- Lamento que o senhor pense que nada sei - declarou raivosamente. E saiu com a violência mais altamente dramática. Entrou ruidosamente no seu laboratório, sentiu-se livre, depois desgraçado. Sem volição, como um bêbedo, entrou tempestuosamente na sala de Wickett, protestando:

- Acho que tem razão. A minha química física nada vale e a minha matemática está avariada. Que hei-de fazer... que é que vou fazer?

O bárbaro, embaraçado, resmungou:

- Mas... por amor de S. Pedro, não se preocupe, Comprido.

O velho e eu procurávamos apenas estimulá-lo. A verdade é que ele está satisfeitíssimo com o empenho com que você começou. Quanto à matemática... provavelmente está melhor do que o Holá-besta e o Tubbs o estão agora; esqueceu toda a matemática que aprendeu, e eles nunca souberam coisa alguma de matemática. São uns pecadores! Ciência, se não me engano, significa Conhecimento... a palavra vem do grego, essa bela língua falada pelos velhos helenos, aqueles bons amantes da bebedeira... e a maneira como a maioria dos rapazinhos científicos lamentam ter de deixar de escrever artiguetes burilados ou de oferecer chás, para suarem na conquista de algum conhecimento, transforma-me decerto num grande booster da raça humana. A minha própria matemática não é grande coisa, Comprido, mas se quiser que lhe dê umas lições à noite... Gratuitamente, é claro!

Assim começou a amizade entre Martin e Terry Wickett; assim começou uma mudança na vida de Martin, pela qual sacrificava três ou quatro horas de bom sono, todas as noites, para ruminar matérias que todos supõem conhecer e quase ninguém conhece.

Voltou à álgebra; verificou que se esquecera da maior parte dela; praguejou diante da competição do A infatigável e do indolente que passeiam de a Z; contratou um explicador da Universidade de Colúmbia; e esgotou a matéria, com um esguicho de algo semelhante a interesse pelas equações, em seis semanas... enquanto Leora escutava, observava, esperava, fazia sanduíches e ria das graças do explicador.

Ao fim dos primeiros nove meses no McGurk, Martin revira a trigonometria e a geometria analítica e estava a achar romântico o cálculo diferencial. Mas cometeu o erro de contar a Terry Wickett quanto sabia.

Terry rosnou: - "Não se fie muito na matemática, filho" - e confundiu-o de tal forma com referências à derivação termodinâmica da lei da acção das massas, e ao potencial de redução da oxidação, que ele tropeçou novamente numa humildade irritada, e novamente se considerou impostor e diletante.

Leu os clássicos da ciência física: Copérnico e Galileu, Lavoisier, Newton, La Place, Descartes, Faraday. Atolou-se, completamente, nas doutrinas de Newton; falou deste a Tubbs e verificou que o ilustre director nada sabia a seu respeito. Contou-o alegremente a Terry e foi desagradavelmente censurado Pela sua atitude de "novo-culto", de "espécie de convertido entusiástico", e, assim, voltou ao trabalho, cujo fim satisfaz sempre porque nunca há um fim.

A sua vida não parecia edificante nem, em qualquer grau, divertida. Quanto Tubbs o ia espreitar ao seu laboratório, encontrava um rapaz sem humor, rondando as suas experiências com toxinas hemolíticas, sem nenhum faro evidente pela Coisa realmente grande da Ciência, que era cooperar e ser eficiente. Tubbs tentou levá-lo para o bom caminho com um: "Estará convencido de que segue uma linha regular e demarcada no seu trabalho?"

Era Leora quem suportava o verdadeiro tédio.

Ficava sentada em silêncio (uma frágil criança, que apenas chegava ao ombro das pessoas, e que não envelhecera nove minutos depois do casamento, nove anos antes), ou dormitava inofensivamente na longa sala de estar, enquanto ele ficava perdido sobre os livros tristes e infestados de números até à uma hora, até às duas, e ela docemente acordava para receber as suas queixas: "E olha, tenho ao mesmo tempo de continuar com a pesquisa. E como estou cansado!"

Arrastou-o para um passeio ilegal de cinco dias em Cape Cod, no mês de Março. Ele sentou-se entre os dois faróis de Chatham, e declarou, irritado: "Vou dizer a Terry e a Gottlieb que vão para o diabo com a sua maldita química física. Já estudei o suficiente, agora domino a matemática." E ela comentou: "Sim, também faria isso... mas não achas engraçado que o doutorGottlieb parece ter sempre razão?"

Estava tão absorto na estafilosina e nos cálculos que não compreendeu que o mundo estava prestes a tornar-se seguro para a democracia. Ficou um pouco aturdido quando os Estados Unidos entraram na guerra.

 

O Dr. Tubbs precipitou-se para Washington, a fim de oferecer os serviços do Instituto à Secretaria da Guerra.

Todos os membros do quadro, excepto Gottlieb e dois outros, que recusaram tamanha honra, foram nomeados oficiais e convidados a correr para a rua, a fim de comprarem bonitas fardas.

Tubbs transformou-se em coronel; Rippleton Holabird em major; Martin, Wickett e Billy Smith foram feitos capitães. Mas os serventes não receberam posto militar algum, nem quaisquer deveres militares, salvo lustrar botas castanhas de montar e as polainas de couro, que os diversos guerreiros usavam, ao sabor da sua fantasia ou das suas pernas. E o mais beligerante de todos, Miss Pearl Robbins, que durante o chá trucidava heroicamente não só alemães mas também todas as esposas e filhos viperinos, ficou diabolicamente irreconhecível e teve de inventar um uniforme para si própria.

O único deles que, na marcha para o front, ultrapassou Liberty Street, foi Terry Wikett, que de repente solicitou uma licença, foi transferido para a artilharia e embarcou para França.

- Tenho vergonha de largar o meu trabalho assim, e certamente não tenho vontade de matar alemães... quero dizer, não mais do que de matar muita gente que anda por aí... mas nunca pude resistir à atracção de um grande espectáculo. Escuta, Comprido, olha pelo Tio Gottlieb, ouviste? Isto abateu-o muito. Ele tem uma porção de sobrinhos e parentes no Exército Alemão, e os patriotas, como Pearl a Patuda, farão uma exibição de idealismo perseguindo-o. Até à vista, Comprido, e toma cuidado contigo.

Martin protestara vagamente contra o facto de ser arrebanhado para o Exército. A guerra, para ele, era principalmente outra interrupção do seu trabalho, como o pickerbaughismo, como ganhar a vida em Wheatsylvania. Mas quando saiu com o uniforme, achou-o tão agradável que, durante algumas semanas, foi um patriota padrão. Nunca parecera tão bem, tão erecto e teso como dentro da farda. Era uma delícia receber a continência dos soldados, uma delícia igual à de retribuí-la com o esplendor digno, protector, do camarada, que Martin aparentava com os outros médicos, professores, advogados, corretores, autores e antigos intelectuais socialistas, que eram seus colegas no oficialato.

Mas, dentro de um mês, os prazeres de ser um herói tornaram-se mecânicos, e Martin sentiu saudade das camisas macias, dos sapatos cômodos e das roupas com bolsos razoáveis. Era uma maçada usar as polainas; e colocá-las, um inferno; o colarinho beliscava-lhe o pescoço e raspava-lhe o queixo; e era estafante para um homem que ficava sentado até às três horas da madrugada, no perigoso dever de estudar cálculo, ter de responder a cada continência.

Sob o olhar austero do coronel director Dr. A. DeWitt Tubbs, tinha de usar o uniforme, pelo menos partes identificáveis dele, no Instituto; mas, à noite, resvalou no hábito de esconder-se em trajo civil, e, quando ia ao cinema com Leora, tinha a agradável impressão de estar ausente sem licença, de arriscar-se em cada esquina a ser preso pela Polícia Militar e executado à alvorada.

Infelizmente, a polícia nunca olhou para ele. Mas, certa noite, quando, em atitude recomendável e inocente, olhava os restos de um artilheiro que acabava de ser morto por outro artilheiro, percebeu que o major Rippleton Holabird estava parado a seu lado, fulminando-o com o olhar. Desta vez, o major foi desagradável: "Capitão, parece-lhe acaso que cumpre o seu dever vestindo-se à paisana? Nós, infelizmente, com o nosso trabalho científico, não temos o privilégio de nos juntarmos aos rapazes que enfrentam de facto o perigo, mas cumprimos ordens justamente como se nos achássemos nas trincheiras... onde alguns gostariam de se encontrar novamente! Capitão, espero não tornar a vê-lo infringindo a ordem relativa aos uniformes, se não, uuuh..."

Mais tarde, Martin explodiu diante de Leora:

"Estou enjoado de ouvi-lo falar do seu ferimento. Não vejo nada que o impeça de voltar às trincheiras. O ferimento está curadíssimo. Quero ser patriota, mas o meu patriotismo é caçar antitoxinas, fazer o meu serviço, e não usar uma espécie particular de calças e um conjunto particular de idéias a respeito dos alemães. Tu sabes que sou correctamente antigermânico... acho que provavelmente eles são tão ruins como nós. Mas... vamos deixar isso e fazer mais um pouco de cálculo Querida, os meus serões não te aborrecem muito, hem?"

Leora tinha astúcia. Quando não conseguia entusiasmar-se, conseguia manter discreto silêncio.

No Instituto, Martin percebeu que não era o único defensor do país que não se sentia bem em trajo de herói. O mais sombrio dos membros do quadro era o Dr. Nicholas Yeo, o nordestino de bigodes ruivos, chefe do Departamento de Biologia.

Yeo enfiara a farda de major, mas nunca confraternizou com ela. (Sabia que era major porque o coronel Dr. Tubbs lho dissera, e sabia que usava uniforme de major porque o alfaiate lho dissera.) Saía do McGurk Building num estado de ânimo melancólico propiciatório, com uma perna da calça militar a fazer balão por cima da bota de montar; e apesar da firmeza dos seus propósitos, nunca se lembrava de abotoar a farda sobre as camisas estampadas com violetas, as quais, como freqüentemente se recordava em segredo, se podiam comprar baratas na Oitava Avenida.

O major Dr. Yeo, porém, teve um triunfo militar. Explicou a Martin, com voz rouca, enquanto se dirigiam para o refeitório completamente militarizado:

"Escuta, Arrowsmith, nunca te atrapalhas com essas continências? É um horror, nunca pude compreender o significado de todas as insígnias. Uma vez tomei um tenente do Exército de Salvação por um general da A. C. M... Mas agora achei a solução." Yeo ergueu o dedo até ao narigão e produziu estas sábias palavras: "Sempre que vejo um camarada de farda que pareça mais velho do que eu, faço a continência... meu sobrinho Ted, esteve a treinar-me e agora faço muito bem a continência... e se ele não corresponder, então penso no meu trabalho e não me preocupo. Quando a gente a encara cientificamente, esta vida militar não é, afinal de contas, muito difícil de suportar."

 

Sempre, em Paris ou em Bona, Max Gottlieb considerara os Estados Unidos uma terra que, na sua libertação da tradição monárquica, no seu contacto com a magnificência da lavoura do milho, nevascas e townmeetings, voltara o rosto ao orgulho pueril da guerra. Acreditava que, aqui, deixara de ser alemão e se tornara um compatriota de Lincoln.

A Guerra Européia foi a única coisa, além da sua demissão de Winnemac, que conseguiu quebrar a sua serenidade sardónica. Na guerra, não conseguia ver nem esplendor nem esperança, mas apenas uma tragédia rastejante. Guardava, como um tesouro, os seus meses de trabalho e bons colóquios na França, na Inglaterra, na Itália; amava os seus amigos franceses, ingleses e italianos, como amava os seus antigos Korpsbruder, e, por baixo do seu sarcasmo, amava deveras os alemães com quem trabalhara e bebera.

Os filhos de sua irmã - conhecera-os quando crianças, quando garotos, quando inquietos adolescentes durante umas Çnas que lhe haviam deixado saudades -, alistaram-se no exército do Kaiser em 1914; um deles chegou a Oberst, com muitas condecorações; um existiu insignificantemente; e um foi morto e cheirou mal durante dez dias. com tudo isto, sofreu melancolicamente, como depois sofreu a partida de seu filho Robert, tenente norte-americano, para combater os próprios primos. O que derrubou este homem, para quem as abstracções e leis científicas eram mais do que os enternecimentos da carne, foi a monomania do ódio que subjugou esta América não militar, para onde ele imigrara como protesto contra a dominação dos Junkers.

Escutava, incrédulo, afirmações femininas de que todos os alemães eram assassinos de crianças; via, incrédulo, Universidades banirem a língua de Heine, orquestras porem fora de lei a música de Beethoven, professores fardados dirigirem-se com gritos aos funcionários, e os funcionários nunca protestarem.

Não se sabe se o facto de se ter enganado tão grotescamente feria o seu amor aos Estados Unidos ou o seu egoísmo. E é curioso que ele, que tanto acusara a educação mecânica do país, se surpreendesse quando ela jubilosamente aderiu aos velhos, velhíssimos e mecânicos escárnios da guerra.

Quando o Instituto santificou a guerra, viu-se considerado, não o imunologista impessoal e grande, mas um judeu alemão suspeito.

Na verdade, o Terry, que foi para a artilharia, não o olhou com severidade, mas o major Rippleton Holabird empertigava o corpo quando se entrecruzavam no corredor. Quando Gottlieb insistia com Tubbs ao almoço: "Estou pronto a admitir todas as virtudes dos Franceses... sou muito amigo desse povo tão individualista... mas, segundo a teoria das probabilidades, presumo que deve haver alguns alemães bons entre sessenta milhões" - o coronel Dr. Tubbs comandava: "Nesta época de tragédia mundial, a superficialidade não me parece particularmente apropriada, doutor Gottlieb!"

Nas lojas e nos comboios aéreos, pessoas de cara vermelha e suada, quando lhe notavam o sotaque, fulminavam-no com o olhar e rosnavam entre si: "É um desses malditos hunos, esses bárbaros que envenenam a água! " E por mais desdenhoso que pudesse tornar-se, por mais que lutasse para esquecer o orgulho, os debiques reduziam-no, de um altivo cientista, a um velho pouco seguro, medroso, de nervos abalados.

Certa vez, uma dona de casa, que nos velhos tempos mostrara orgulho em conhecê-lo, uma dona de casa cujo nome de solteira era Straufnabel e que casara na famosa e velha família anglicana Rosemont, quando Gottlieb lhe disse, à despedida: "Auf Wiedersehen" - retorquiu-lhe em voz aguda: "Doutor Gottlieb, lamento muito, mas o uso dessa língua desagradável não é permitido nesta casa!"

Estava quase restabelecido das inquietações de Winnemac e da fábrica Hunziker; começara a tornar-se expansivo, a entreter as pessoas: cientistas, músicos, conversadores. Agora, era forçado a encolher-se. com Terry ausente, só tinha confiança em Míriam, Martin e Ross McGurk; e os seus olhos encovados, de pálpebras enrugadas, não exprimiam senão tristeza.

Mas podia ainda ser mordaz. Sugeriu que Capítola devia colocar na janela da sua casa uma bandeira de Serviço de Guerra com uma estrela correspondente a cada pessoa do Instituto que houvesse envergado o uniforme.

Ela tomou-o inteiramente a sério, e assim fez.

 

Os deveres militares do pessoal do McGurk não consistiam apenas em vestir uniformes, receber continências e ouvir as palestras do coronel Dr. Tubbs, ao almoço, sobre "o papel que os Estados Unidos inevitavelmente desempenharão na reconstrução de uma Europa democrática".

Preparavam soros; o assistente do Departamento de Biofísica estava a inventar barreiras electrificadas de arame farpado; o Dr. Billy Smith, que seis meses antes cantava o Student Lieder no Luchow, trabalhava no fabrico de gases venenosos para serem usados contra todos os cantores dos Lieder; e, para Martin, foi designada a manufactura de lipovacina, uma suspensão de organismos tifóides e paratifóides finamente triturados em óleo. Era uma tarefa untuosa e insípida. Martin acreditava bastante nela e dedicava-lhe todas as manhãs, mas blasfemava mais do que habitualmente e acolhia com ímpia alegria artigos científicos em que as lipovacinas eram condenadas como inferiores às soluções comuns de sal.

Notou a melancolia de Gottlieb e tentou confortá-lo.

O mais notável defeito de Martin era a sua falta de bondade

para com os tímidos, os solitários, os velhos cabeçudos; não era Cruel com eles: limitava-se a ignorá-los ou sentia tamanha impaciência diante da sua inaptidão que os evitava. Sempre que Leora o censurava por isso, resmungava:

- bom, mas... ando sempre demasiado absorvido no meu trabalho, ou na solução de algum problema, para perder tempo com idiotas. E é melhor assim. Na sua maioria, as pessoas colocadas acima do grau de porco perseguem tanto um vago sistema de filantropia que jamais conseguem fazer coisa alguma... e a maioria desses teus embaraçados e tímidos empobrecem espiritualmente. Hum... é muito mais fácil ter boa índole, ronronar palavras de amor, admirar-se a si próprio e andar no ar, do que atirar a cabeça para a frente e ater-se estritamente ao próprio trabalho, o trabalho que chega a alguma coisa. Muito pouca gente tem a coragem de ser honestamente egoísta... e de reivindicar o direito de trabalhar. Se encontrassem oportunidades, estes sentimentalistas teriam sido um Newton... sim, ou provavelmente um Cristo que desistiria de tudo quanto fez pelo Mundo para falar perante assembléias e escutar as queixas de solteironas desequilibradas. Nada exige mais coragem do que permanecer firme e conservar a lucidez.

E ele nem mesmo essa coragem tinha.

Quando Leora se queixava, tornava-se, por um ou dois dias, violentamente bondoso para com toda a espécie de extraviados, inquietos e desgraçados que encontrava; depois, descaía novamente na sua maneira habitual. Havia apenas duas pessoas cuja infelicidade conseguia sempre comovê-lo: Leora e Gottlieb.

Embora estivesse mais ocupado do que o julgava possível, com lipovacinas pela manhã, química-física à noite e, durante todas as intensas horas intermédias, com a continuação das suas pesquisas sobre a estafilolisina, dedicava todo o tempo que podia a procurar Gottlieb e a aquecer-lhe a vaidade com a sua atenção reverente.

Depois, as suas pesquisas apagaram tudo, fizeram-no esquecer-se de Gottlieb, de Leora e de todo o seu entusiasmo pelo estudo; levaram-no a descarregar sobre os outros o seu serviço de guerra, e a confundir a noite e o dia numa névoa de ardor e vertigem: compreendera que possuía algo que não era indigno de um Gottlieb, algo relacionado com a fonte misteriosa da vida.

 

O capitão Martin Arrowsmith, do Corpo Médico da Reserva, chegou a casa a lamentar-se para a sua boa esposa Leora:

- Estou rebentado de cansaço e sinto-me um pouco desanimado. Não realizei uma única coisa em todo este ano, no McGurL Esterilidade. Assim não vai. E rebento se estudar cálculo esta noite. Vamos ao cinema. E nem visto um fato humano regulamentar. O cansaço é demasiado.

- Pois sim, meu amor - disse Leora. - Mas vamos jantar aqui. Comprei um peixe maravilhoso, esta tarde.

Durante o filme, Martin deu a sua opinião, como capitão e como médico, de que parecia pouco provável que uma mãe não conhecesse a filha depois de uma ausência de dez anos. Estava inquieto e racional, o que não é uma atitude apropriada para se comparecer no cinema. Quando saíram, piscando, daquela obscuridade varada apenas pela luz da tela sombria, resmungou:

- vou voltar ao laboratório. Deixo-te num táxi.

- Ora, deixa esse aborrecimento por uma noite.

- Não, não está certo! Não faço serão há umas três ou quatro noites!

- Então leva-me contigo.

- Nada. Tenho um palpite de que vou trabalhar toda a noite.

Liberty Street, quando rapidamente a percorreu, dormia sob as suas torres. Por ordem de McGurk, o elevador para o instituto devia funcionar durante toda a noite, e na verdade três ou quatro dos vinte membros do quadro às vezes utilizavam-no depois das horas respeitáveis.

Naquela manhã, Martin isolara uma nova raça de estafilococos de um carbúnculo localizado na região glútea de um dOente do Lower Manhattan Hospital, um carbúnculo que estava a sarar com rapidez extraordinária. Colocara um pouco do pus em caldo e levara-o à estufa. Em oito horas, aparecera uma boa colônia de bactérias. Antes de voltar, exausto, para casa, devolvera o recipiente à estufa.

Não estava particularmente interessado, e agora, no laboratório, tirou a blusa militar, olhou para as luzes lá em baixo, no rio azul-escuro, fumou, achou que era um cão por não ser mais gentil com Leora, e mandou ao diabo Tozer, Bert, Pickerbaugh, Tubbs e quantos compareceram à sua memória antes que, distraidamente, se aproximasse da estufa e verificasse que o frasco, no qual devia haver uma vegetação sombria e bem perceptível, já não mostrava sinais de bactérias - de estafilocos.

"Mas, o diabo! " - gritou ele. - "Limpinho como quando semeei os germes! Ora esta... E pensar que este acidente estúpido veio justamente quando eu ia começar uma coisa nova!"

Precipitou-se da estufa, colocada num pequeno compartimento junto do corredor, para o laboratório e, erguendo o frasco contra uma luz forte, certificou-se de que vira bem. Preparou, de mau humor, uma lâmina com material do conteúdo do frasco e examinou-o no microscópio. Não descobriu nada mais do que sombras daquilo que haviam sido bactérias: finos contornos; a forma ainda estava ali, mas a substância celular desaparecera; minúsculos esqueletos num campo de batalha infinitesimal.

Ergueu a cabeça do microscópio, esfregou os olhos cansados, coçou o pescoço pensativamente - estava sem a farda, o colarinho no chão, a camisa aberta na garganta. Reflectiu:

"Há uma coisa estranha aqui. Esta cultura estava a desenvolver-se muito bem e agora suicidou-se. Nunca ouvi dizer que estes bichinhos fizessem isto. Achei alguma coisa! Que foi que causou isto? Alguma alteração química? Alguma coisa orgânica?"

Em Martin Arrowsmith, não havia heroísmos decorativos, nem gênio para as intrigas amorosas, nem um espírito raro, nem desditas edificantemente suportadas. Não se lembrava nem de uma elegância pitoresca nem de uma mensagem moral. Estava cheio de defeitos vivos e de uma perversa honestidade; um rapaz freqüentemente isento de bondade, freqüentemente descortês. Tinha, porém, um dom: uma curiosidade que não lhe permitia considerar nenhuma coisa como vulgar. Se tivesse sido um herói aceitável, como o major Rippleton Holabird, teria despejado o conteúdo do frasco na pia, teria confessado com bonita modéstia: "Pateta! Cometi qualquer erro! " - e teria prosseguido Martin, porém, sendo Martin, andou prosaicamente no seu laboratório, de um lado para o outro, a resmungar: "Deve, sim, haver alguma causa para isto, e vou descobrir qual é."

Teve uma idéia romântica: telefonaria a Leora para lhe contar a maravilha que estava a acontecer, e dizer-lhe que não se preocupasse com ele. Entrou no corredor, tacteando, acendendo fósforos, tentando encontrar os comutadores eléctricos.

À noite, todos os corredores são assombrados. Mesmo no McGurk Building, ostensivamente novo, houvera um contabilista que se suicidara. Enquanto Martin andava às apalpadelas, sentiu, sobressaltado, ruído de passos atrás de si, teve a consciência de formas que espreitavam dos vãos das portas e se desvaneciam insolentemente, de velhos horrores incorpóreos, e, quando encontrou o comutador, regozijou-se com a bênção e a segurança da luz instantânea que tornou a criar o Mundo.

Na mesa da central telefônica do Instituto, introduziu as chaves em todos os buracos do quadro que lhe pareceram razoáveis. De uma vez, julgou que estivesse a falar com Leora, mas era uma voz assexual e intolerante que dizia"Número, faz favor" com uma presteza impossível em uma pessoa tão indolente como Leora. De outra vez, foi uma voz que se babou: "É Sarah? " - e em seguida: "Não quero saber de ti! Desliga, sim! " Depois, uma rapariga justificava-se: "Palavra, Billy, tentei lá ir, mas o chefe entrou às cinco e disse..."

Quanto ao mais, era apenas uma zoada; o som de sete milhões de pessoas famintas de sono, de amor, ou de dinheiro.

Ele murmurou: "Oh, raio, acho que a esta hora Lee já foi deitar-se." E voltou para o laboratório.

Como um detective na pista do assassino de bactérias, ficou parado, a cabeça para trás, coçando o queixo, coçando a memória, em busca de casos parecidos de microrganismos que se houvessem suicidado ou aparecessem mortos sem causa perceptível. Precipitou-se escada acima, em direcção à biblioteca, consultou as autoridades norte-americanas e inglesas e, laboriosamente as francesas e alemãs. Nada encontrou.

Começou a pensar, ansioso, que poderia não haver estafilococos no pus que usara para semear o caldo - nenhum vivo,

Para morrer. Numa corrida febril, sem parar para apagar as

luzes, esbarrando nos ângulos e resvalando no pavimento demasiado perfeito, deslizou escada abaixo, e galopou pelo corredor até ao laboratório. Procurou os restos do pus original, lambuzou com ele uma lâmina de vidro e corou-o com violeta de genciana, perdendo nervosamente uma gota do vistoso corante. Saltou para o microscópio. Quando se inclinou sobre o tubo de bronze e focou a objectiva, no círculo cinzento-alfazema do campo de visão vieram à tona, como cachos de uvas, os grupos de estafilococos, manchas vermelhas contra o plano pálido.

"Lá estão eles, os estafilococos! ", gritou.

Em seguida, esqueceu-se de Leora, da guerra, da noite, do cansaço, do triunfo, de tudo, atirando-se aos preparativos para uma experiência, a sua primeira grande experiência. Um pouco aturdido, caminhou furiosamente pela sala. Depois impôs-se calma, instalou-se numa mesa, entre anéis e espirais de fumo do cigarro para fazer uma relação, em pequenas folhas de papel, de todas as causas possíveis de suicídio das bactérias - todas as questões a que tinha de responder, e as experiências que deviam encerrar a resposta.

Podia ser que algum alcali, num frasco mal lavado, tivesse causado a clarificação da cultura. Podia ser alguma substância antiestafilocócica existente no pus, ou algo libertado pelos próprios estafilococos. Podia ser alguma particularidade deste dado caldo.

Todas estas questões tinham de ser submetidas a provas.

Levantou a porta do depósito de frascos, partindo a fechadura. Pegou em frascos novos, lavou-os, tapou-os com algodão, e colocou-os na estufa de ar quente para esterilização. Arranjou novos caldos - na realidade, furtou-os do sortimento particular e altamente sagrado do refrigerador de Gottlieb. Filtrou um pouco da cultura clarificada num filtro de porcelana estéril e juntou o filtrado às raças comuns de estafilococos.

E, o que talvez fosse o mais importante de tudo, descobriu que estava sem cigarros.

Incrédulo, apalpou todos os bolsos, esquadrinhou-os e tornou a apalpá-los. Apanhou a farda e examinou-a; ocorreu-lhe a idéia animadora de que vira cigarros numa gaveta; não os encontrou; e descaradamente invadiu o compartimento onde estavam pendurados os aventais e blusas dos técnicos. Esquadrinhou furiosamente os bolsos e encontrou uma dúzia de belos cigarros, num maço achatado e cheio de vincos.

Para verificar cada uma das quatro causas possíveis da clarificação, preparou e semeou bactérias numa série de frascos em condições diversas e colocou-os na estufa, à temperatura do organismo. Até colocar o último frasco, a sua mão estava firme, calmo o seu rosto cansado. Estava acima de qualquer nervosismo, livre de toda a incerteza: era um profissional que executava a sua tarefa.

Quando eram seis horas de uma esplêndida e vasta manhã de Agosto, e quando abandonou o seu activo trabalho, quando os nervos tensos se distenderam, olhou do alto da sua janela e tomou conhecimento do Mundo, lá em baixo: tectos reluzentes, torres altivas, e um navio caracteristicamente esguio e de coberta alta, meneando-se nas águas lustrosas, rio acima.

Estava completamente extenuado; como um cirurgião após uma batalha, como um repórter durante um terremoto, achava-se talvez um pouco desequilibrado; mas não sentia sono. Amaldiçoou a demora necessária à formação das colônias de bactérias, sem o que não podia descobrir o efeito das várias espécies de caldos e raças de bactérias, mas sufocou a impaciência.

Subiu a barulhenta escada de ardósia para o mundo imponente do terraço. Escutou à porta do biotério do Instituto. As cobaias, acordadas, roíam, fazendo um ruído como o de um pano molhado que se esfrega numa vidraça, na limpeza das janelas. Bateu com o pé, e, assustadas, elas emitiram o seu estranho grito de terror, como o arrulhar dos pombos.

Caminhou violentamente de um lado para o outro, refrescado pelo firmamento altaneiro, até acalmar-se a ponto de sentir fome. Voltou a pilhar. Descobriu chocolate pertencente a um inocente técnico; invadiu mesmo o gabinete do director e, na secretaria de Pearl Robbins, a láctea Diana, desencantou chá e uma chaleira (assim como um bâton e uma carta de amor que começava: "Meu pequeno Ickles"). Fez uma chávena de chá profundamente ruim, depois, arrastando todo o corpo, voltou para a mesa e pôs-se a registar minuciosamente, num caderno de notas meio desmantelado e quase cheio, todas as fases da experiência.

Depois das sete, conseguiu fazer funcionar a central telefônica e falou com o Lower Manhattan Hospital. Poderia o Dr. Harrowsmith obter um pouco mais de pus do mesmo carbúnculo. o quê? Curara-se? Oh, diabo! Lá se fora o material.

Vacilante, ficou a pensar se esperaria que Gottlieb chegasse para contar a descoberta; resolveu manter silêncio até verificar se se tratava, ou não, de um acidente. Olhos muito abertos, bastante agitado para não dormir no subway, voou cidade acima para contar a Leora. Tinha de contar a alguém! Ondas de temor, dúvida, certeza e novamente temor avassalaram-no; os ouvidos zumbiam-lhe e as mãos estavam trêmulas.

Precipitou-se para casa; gritou: "Lee! Lee! " - antes de abrir a porta. Mas ela não estava.

Ficou pasmado, perplexo. A casa parecia oca. Tornou a procurá-la. Ela dormira ali, tomara uma xícara de café, mas desaparecera.

Foi imediatamente assaltado pelo temor de que tivesse acontecido um acidente e pelo ressentimento de ela não se encontrar ali, na grande hora. Taciturnamente, preparou o seu pequeno almoço... É estranho que os ovos fritos por excelentes bacteriólogos e químicos sejam tão húmidos; que façam café tão amargo e sejam tão descuidados com colheres sujas... Quando terminara a refeição, estava inclinado a crer que Leora o abandonara para sempre. Murmurou, com voz trêmula: "Tenho-lhe dado muito pouca atenção." Lerdo, transformado agora num velho, saiu para o Instituto e, à entrada do subway, encontrou-a.

- Estava tão preocupada! - disse-lhe ela, com voz débil. Não consegui ligação pelo telefone. Ia ao Instituto ver o que te tinha acontecido.

Beijou-a, com muita competência, e delirou:

- Meu Deus, pequena, desta vez fiz uma descoberta! E é algo grande. Achei uma coisa, não é um preparado químico, ouviste? - mas uma coisa que come os micróbios... dissolve-os... mata-os. Pode ser um grande passo em terapêutica. Hum... não... talvez não seja nada... Provavelmente, apenas mais um dos meus fiascos.

Ela procurou reassegurá-lo, mas ele não esperou. Precipitou-se para o subway prometendo telefonar-lhe. Por volta das dez horas, estava a olhar para o interior da estufa.

Havia presença de bactérias, com aspecto de nuvem, em todos os frascos, excepto naqueles em que utilizara o caldo do frasco original que servira de alarme. Nestes, o assassino misterioso de germes impedira a proliferação das novas bactérias que ele semeara.

"Magnífico" - disse.

Devolveu os frascos à estufa, tomou nota das observações, voltou à biblioteca e manuseou manuais, actas encadernadas de sociedades, revistas em três línguas. Aprendera razoavelmente um francês e um alemão científicos. É duvidoso que pudesse comprar uma garrafa de bebida ou perguntar o caminho para o Kursaal de uma estância de águas em qualquer dessas línguas, mas compreendia a gíria científica helenística universal, e esgravatou os livros pesados, esfregando os olhos, que pareciam cheios de fogo sagrado.

Lembrou-se de que era um oficial do Exército e tinha lipovacinas para fazer nessa manhã. Voltou para o trabalho, mas estava tão irritado que estragou a fornada, chamou louco ao seu paciente ajudante, e, depois desta injustiça, mandou-o buscar um pint de whisky.

Precisava de um confidente. Telefonou para Leora, almoçou dispendiosamente com ela e afirmou: "Ainda tenho a impressão de que descobri alguma coisa." A cada hora daquela tarde, voltou ao Instituto a fim de olhar para os frascos, mas, nos intervalos, vagueou pelas ruas, soprando de impaciência, encharcando-se de café.

De cinco em cinco minutos, ocorria-lhe, como uma idéia extática e inteiramente nova, este pensamento: "Porque não vou dormir? " Depois, lembrava-se e declarava asperamente: "Não; preciso de ficar a pé e observar todas as fases. Não posso deixar isso, se não terei de recomeçar tudo. Mas, como estou com sono! Porque não vou dormir?"

Antes das seis, criou nova dose de energia, e, às seis, a sua inspecção mostrou que os frascos com o caldo original ainda não apresentavam sinais de bactérias, e que os frascos em que havia semeado o pus original, exactamente como o primeiro frasco excêntrico, depois de exibirem a princípio uma boa vegetação de bactérias, se tinham novamente clarificado sob o ataque lento do assassino desconhecido.

Sentou-se, abandonando-se ao alívio que experimentara. Descobrira! Declarou, nas conclusões das primeiras notas:

"Observei um princípio, a que temporariamente chamarei o princípio X, no pus de uma infecção estafilocócica, o qual dissolve os estafilococos do pus em questão."

Quando terminara, às sete, repousou a cabeça no caderno de notas e adormeceu.

Despertou às dez, foi para casa, comeu como um selvagem, tornou a dormir e foi para o laboratório antes de amanhecer. O repouso seguinte foi à tarde e durou uma hora; dormiu dobrado sobre a mesa, sob a guarda vigilante do seu colaborador; e o seguinte ocorreu um dia e meio depois, durou oito horas, na cama, desde a alvorada até ao meio-dia.

Mas, em sonhos, estava constantemente a derrubar uma estante com provetas ou a partir um frasco. Descobria um Princípio X que dissolvia cadeiras, mesas, seres humanos. Desatava a atirá-lo para cima dos Bert Tozers e dos Drs. Bissex, e ficava diabolicamente a observar-lhes a evaporação, mas acidentalmente derramou-o sobre Leora, viu-a desvanecer-se, e despertou a gritar, para encontrar os braços da verdadeira Leora a cingi-lo; soluçou: "Oh, nada poderia fazer sem ti! Nunca me deixes! Quero-te tanto, embora esse maldito serviço me prenda tanto. Fica comigo para sempre!"

Enquanto Leora ficava sentada ao lado dele, na cama desalinhada, vistosa na sua longa camisa de gingham, ele tornou a adormecer, despertando três horas depois, para voltar ao Instituto, os olhos vermelhos e parados. Ela preparara-lhe café forte e esperara em silêncio que ele se levantasse, olhando-o com orgulho, enquanto ele se espreguiçava, balbuciando:

"É melhor que Gottlieb não fale mais na importância de novas observações! O Princípio X pode não ser particular dos estafilococos. Talvez a gente lhe possa submeter todos os germes... curar qualquer doença microbiana com ele. Germes que vivem de germes! Ou talvez seja um princípio químico, uma enzima. Oh, não sei. Mas hei-de saber!"

Ao dirigir-se, apressado, para o Instituto, exaltou-se com a certeza de que, após anos de flutuação, havia chegado. Teve visões do seu nome em revistas e livros didácticos; de assembléias científicas que o aplaudiam. Fora um desconhecido entre os peritos do Instituto, e agora tinha piedade de todos eles. Quando, porém, se encontrou novamente no seu banco, as grandiosas aspirações dissiparam-se e voltou a ser o cão de caça que fareja, o trabalhador impessoal. Diante dele - alegria suprema do investigador - abriam-se novos desfiladeiros de trabalho. E sentiu novas forças.

 

Durante uma semana, a vida de Martin apresentou toda a regularidade de um soldado foragido no país inimigo, com a mesma agitação e o mesmo desejo de perambular à noite. Estava sempre a esterilizar frascos, a preparar meios de várias concentrações de hidrogénio-fonte, a passar as primeiras notas para o novo caderno carinhosamente rotulado "Princípio X, Estaf. ", e a acrescentar-lhe novas observações. Procurou, esmeradamente, com muitos frascos e muitas semeaduras novas, determinar se o Princípio X se perpetuaria indefinidamente; se, quando era transmitido de um tubo para outro de bactérias, voltava a aparecer; se, desenvolvendo-se automaticamente por divisão celular, era verdadeiramente um germe, um subgerme infectador de germes.

Durante a semana, Gottlieb espreitou de vez em quando, por cima do ombro; Martin, porém, não sentia disposição para informá-lo senão quando tivesse a prova, uma boa noite de sono, e talvez mesmo depois de fazer a barba.

Quando ficou certo de que o Princípio X se reproduzia indefinidamente, de sorte que, no décimo tubo, se desenvolvia com tanto efeito como no primeiro, chamou solenemente Gottlieb e expôs-lhe os resultados, com os planos para investigações futuras.

O velho meteu os dedos magros no caderno, leu-o atentamente, levantou a cabeça e, sem perder tempo com parabéns, vomitou perguntas:

Fez isto? Porque não fez aquilo? Em que temperatura a actividade do Princípio alcança o máximo? Essa actividade manifesta-se no meio sólido do ágar?

- O meu novo plano de trabalho é este. Verificará que compreende a maior parte das suas sugestões.

- Hum! - Gottlieb percorreu-o com o olhar e bufou: Porque não previu um ensaio de propagação em estafilococos mortos? É o mais importante de tudo.

- Porquê?

Gottlieb penetrou instantaneamente no coração da selva onde Martin lutara tantos dias:

- Porque mostrará se está perante um vírus vivo.

Martin pareceu humilhado, mas Gottlieb mostrou o seu júbilo:

- Você achou algo grande. Agora, não deixe o director vir a saber disto e entusiasmar-se cedo demais. Estou satisfeitíssimo, Martin!

Havia na sua voz qualquer coisa que lançou Martin ao longo do corredor, de volta ao trabalho - e não ao sono. O que era o Princípio X - substância química ou germe - não o podia determinar, mas certamente o Princípio original florescia. Podia ser transmitido indefinidamente; Martin determinou-lhe a melhor temperatura e verificou que não se propagava em estafilococos mortos. Quando deitou uma gota contendo o Princípio numa colônia de estafilococos que era uma película cinzenta na superfície sólida e inclinada do ágar, a gota foi-se cercando de pontos ocos, à medida que o inimigo lançava o seu ataque, de sorte que a lasca de ágar parecia cera virgem roída pelas traças. Mas, dentro de quinze dias, um dos nós que Gottlieb previra apareceu.

De pé atrás com as centenas de bacteriologistas que se levantariam para matá-lo assim que o seu estudo fosse publicado, procurou certificar-se de que os resultados podiam ser confirmados. No hospital, obteve pus de muitos furúnculos, localizados em braços, pernas, dorsos; procurou repetir os seus resultados - e falhou, completamente. Nenhum Princípio X apareceu em qualquer dos novos furúnculos, e, melancolicamente, dirigiu-se a Gottlieb.

O velho meditou, fez uma ou duas perguntas, enovelou-se na cadeira estofada e interrogou:

- Onde estava localizado o carbúnculo original?

- Na região glútea.

- Ah, então o Princípio X pode estar presente no conteúdo do intestino. Investigue isso, em pessoas com furúnculos e sem furúnculos.

Martin investigou. Ao cabo de uma semana, obtivera o Princípio do conteúdo intestinal e de outros furúnculos na região glútea, encontrando uma quantidade especial em furúnculos que estavam a "sarar por si"; transplantou o novo Princípio, num céu de triunfo, de admiração por Gottlieb. Estendeu as investigações ao grupo intestinal de organismos e descobriu um Princípio X contra o colibacilo. Ao mesmo tempo, cedeu uma porção do Princípio original a um médico do Lower Manhattan Hospital, para o tratamento de furúnculos, e recebeu dele informações entusiásticas sobre curas, e perguntas ainda mais entusiásticas sobre o que poderia ser este mistério.

Com estas novas vitórias entrou ufano no laboratório de Gottlieb e foi imediatamente castigado:

"Oh! Só! Esta agora! Você deixa um médico experimentá-lo antes de terminar a pesquisa? Quer que informações falsas de curas apareçam nos jornais, sejam telegrafadas para todos os lugares, e leve toda a gente que tenha uma espinha arruinada a correr em busca de cura, de sorte que você nunca mais poderá trabalhar? Quer ser um homem milagroso, e não um cientista? Não quer completar as coisas? Desata a pular como um macaco e a tagarelar sobre colibacilos, antes de acabar com os estafilococos... antes mesmo de começar o verdadeiro trabalho... antes de ter descoberto qual é a natureza do Princípio X? Pode ir-se embora! O senhor é um... um... um reitor de Universidade! Não demorará muito e ouvirei contar que jantou com Tubbs e que o seu retrato saiu nos jornais como um elegante vendedor de panaceia!"

Martin ficou humilhado, e, quando encontrou Billy Smith no corredor o pequeno químico lhe perguntou com um alvoroço na voz: "Às voltas com alguma coisa de arromba? Não o tenho visto ultimamente" - Martin respondeu no tom do assistente de Doe Vickerson, em Elk Mills:

- Qual!... Nada disso... Apenas pensando um pouco.

 

Tão atentamente e tão impessoalmente como teria observado a lenta evolução da doença de uma cobaia infectada, Martin observou-se a si mesmo, na loucura do trabalho excessivo, descambar para a neurastenia. com um interesse considerável, estudou os sintomas de neurastenia, viu-os, um após outro, assomarem na sua pessoa e, despreocupadamente, voltou as costas ao perigo.

De uma irritabilidade, que o transformou numa pessoa insuportável, passou a um nervosismo doentio, em que se esquecia das coisas para as quais estendera as mãos, derrubava provetas, sobressaltava-se ao ouvir repentinamente passos atrás de si. A voz áspera do Dr. Yeo tornou-se para ele uma febre, um insulto, e ficava com o corpo rígido, a dizer por entre dentes: "Cale a boca... cale a boca... oh, cale a boca! " - quando Yeo parava para conversar com alguém do lado de fora da sua porta.

Depois, obsessionou-o o desejo de pronunciar às avessas todas as palavras que, dos anúncios, lhe saltavam aos olhos.

Enquanto permanecia com o ombro pendurado numa alça do subway, esquadrinhava os cartazes, à procura de novas palavras e expressões, para pronunciar invertidamente. Algumas adquiriam um sabor notavelmente agradável: No smoking transformava-se num vistoso e agradável gnikoms on, e Broadway era suportável como yawdaorb, mas ficou satisfeito com as tentativas com Punch, Health, Rough; e, quanto a Strengh, ficou abominável.

Quando precisou de voltar ao laboratório por três vezes para se certificar de que fechara a janela, sentou-se, enregelado, informou a sua própria pessoa de que estava à beira do abismo e pôs-se a deliberar se devia arriscar-se a prosseguir. Não foi uma deliberação muito boa: estava tão lisonjeado pelo seu trabalho em desdobramento que o próprio eu não podia ser levado a sério.

Finalmente, o Medo apoderou-se dele.

Começou com o terror pueril da escuridão. Ficava acordado, com medo de arrombadores; o ruído de passos diante do vestíbulo eram os passos furtivos de um degolador; um roçar inexplicado na escada de salvação era um assassino com uma pistola automática na mão. Via tudo isto com tamanha clareza que tinha de saltar da cama e espreitar timidamente para fora, e, quando na rua, lá em baixo, via efectivamente um homem parado, ficava gelado de pânico.

Cada clarão no Céu era um incêndio. Ia ficar encurralado na cama, seria asfixiado, morreria a retorcer-se.

Sabia positivamente que os seus terrores eram absurdos, mas o conhecimento não impedia que eles o dominassem.

A princípio, teve vergonha de confessar a Leora a sua aparente covardia. Admitir que tremia como uma criança? Mas, quando ficava imóvel e rígido, prestes a lançar um grito agudo, sentindo a corda de um assassino a apertar he a garganta, até que a aurora reconfortante lhe devolvesse am mundo digno de confiança, falou em "insónia" e depois disso, noite após noite, aconchegou-se nos braços dela, e Leora escudou-o contra os horrores, protegeu-o contra o garrote dos carrascos, afastou o perigo de incêndio. Fez uma lista, para verificação, dos terrores neurasténicos favoritos: agorofobia, claustrofobia, pirofobia, antropofobia e o resto, terminando com o que afirmava ser "o termo mais estúpido, pretensioso, charlatanesco de todo o florescente sortimento", a saber, siderodromofobia, o medo de uma viagem de comboio. Na primeira noite, pôde identificar a sua pirofobia, pois no vaudeville, em companhia de Leora, quando no palco uma dançarina acendeu um braseiro, ficou à espera de que todo o teatro começasse a arder. Olhou cautelosamente ao longo da fila de cadeiras (indignado consigo próprio por fazê-lo), calculou a sua probabilidade de alcançar a saída e só ficou à vontade quando alcançou a rua.

E só quando a antropofobia assomou, quando se sentiu incomodado pelas pessoas que caminhavam demasiado perto dele, e depois de rever prudentemente a sua lista, verificando quantas fobias já haviam sido assinaladas, é que se permitiu descansar.

Escapou-se para os morros de Vermont, com o propósito de vaguear durante quatro dias - sozinho, para andar mais ligeiro. Viajou à noite, em vagão-cama, e pôde fazer as mais interessantes observações de siderodromofobia.

Estava deitado num dos leitos de baixo, a cabeça afundada no travesseirinho enrodilhado. Era incomodado pelas roupas penduradas no cabide ao lado, as quais, oscilando, apontavam na abertura das cortinas verdes. O estore da janela estava erguido umas seis polegadas; deixava à mostra uma mancha leitosa, mosqueada de luzinhas amarelas, muito salientes na ruidosa escuridão da sua cela. Estremecia de ansiedade. Sempre que procurava adormecer, era galvanizado pela apreensão. Quando o comboio parou entre duas estações e da locomotiva veio um silvo inquisitivo e mal-humorado, avassalou-o a certeza de que algo de mal acontecera - uma ponte que ruíra, um comboio que se encontrava na mesma linha; e podia ser que outro avançasse célere atrás do seu comboio prestes a abalroá-lo a uma velocidade de sessenta milhas por hora

Imaginou-se despedaçado e sofreu mais do que se efectivamente o fosse, pois fantasiou não apenas um cadáver, mas meia dúzia, cada qual com um sortimento de misérias... A roda que ficava justamente debaixo dele - certamente não devia trepidar como trepidava... porque não a consertara o maldito homem do martelo na última grande estação? - aquela roda saltaria; a carruagem inclinar-se-ia para o lado, cairia, seria arrastado aos trambolhões... Uma colisão, um estrondo, a carruagem instantaneamente transformada num horrível montão de coisas amassadas, ele próprio colhido pelo leito, engavetado, prensado. Gritos agudos, gemidos de morte, as labaredas lambendo os destroÇos... A carruagem voltada, a rolar pelo barranco do rio, até mergulhar a prumo nas águas; ele próprio tentando arrastar-se através de uma janela, à medida que a água lhe subia em torno do corpo, cachoando por todos os orifícios... Ele de pé, perto do veículo destroçado, a resolver se se conservaria afastado por amor da sua obra sagrada ou se tentaria a salvação das vítimas, arriscando-se a morrer.

Tão reais eram as visões que não pôde suportar mais a cama, à espera. Estendeu a mão, em busca da lâmpada e não conseguiu encontrar o interruptor. Nervosamente, tirou uma caixa de fósforos do bolso do casaco, riscou um fósforo, acendeu a luz eléctrica. Viu-se, debaixo do lençol, reflectido no tecto de madeira polida, estendido no leito como um cadáver num ataúde. Precipitadamente, arrastou-se para fora, enfiou as calças e o casaco (deitara-se com a roupa de baixo, não levando a confiança no comboio ao ponto de vestir o pijama) e, sob a impressão desagradável dos pés descalços, patinhou até ao compartimento para fumadores.

O criado estava dobrado sobre um escabelo, engraxando uma estupenda pilha de sapatos.

Martin suspirou pela sua companhia animadora e arriscou um:

- Noite quente.

- Huhum... - grunhiu o criado.

Martin sentou-se, encolhido, no frio assento de couro do compartimento para fumadores, e interessou-se, profundamente, por uma bacia de lata. Estava certo de que o criado não aprovava o seu estudo, mas encontrou consolação no pensamento de que o homem devia fazer a viagem três vezes por semana, dezenas de milhares de milhas por ano, evidentemente sem morrer, e de que poderia haver uma probabilidade de ambos durarem até ao amanhecer.

Fumou até que a língua ficou áspera e até que, fortificado pela serenidade do criado, conseguiu rir das catástrofes imaginárias. Voltou para o leito cambaleante de sono.

No mesmo instante, voltou a sentir a tensão e ficou acordado até à alvorada.

Durante quatro dias caminhou, nadou em ribeiros frios, dormiu debaixo de árvores ou sobre montes de palha, e voltou (de dia, porém) com bastante reserva de energia para aguentar-se até que a sua experiência passasse de uma glória avassaladora para uma rotina sã e interessante.

 

Quando o trabalho sobre o Princípio X esgotava a sexta semana, o pessoal do Instituto suspeitou de que estava a suceder alguma coisa, e todos começaram a sugerir a Martin que ele precisava do auxílio de cada um deles. Martin evitou-os. Não desejava ser colhido por nenhuma das facções de assistência mútua, embora, com a ausência de Terry Wickett, sempre em França, e apesar da maneira severa como Terry o coagia à honestidade, se sentisse por vezes demasiado solitário.

Não se sabe como, o director veio a saber que Martin tinha achado ouro.

O Dr. Tubbs estava cansado de ser coronel - havia demasiados generais em Nova Iorque - e durante duas semanas não lhe ocorrera uma idéia com a qual revolucionasse uma pequena parte do Mundo. Certa manhã, suíças eriçadas de vida, irrompeu no laboratório de Martin e censurou-o:

- Que descoberta misteriosa fez você, Arrowsmith? Perguntei ao Dr. Gottlieb, mas ele foge ao assunto; diz que você quer alcançar a certeza, primeiro. Preciso de saber isso, não só porque tenho um interesse muito cordial pelo seu trabalho, como também porque, afinal de contas, sou o director!

Martin teve a impressão de que lhe arrebatavam o seu cordeirinho, mas não viu maneira de escapar. Exibiu os cadernos de notas e as culturas inclinadas, em ágar, com os pontos que marcavam a dissolução de bacilos. Tubbs ficou cheio de pasmo, assaltou as suíças, teve um momento de impressionante reflexão e disse, em voz tonitruante:

- Quer dizer que acha ter descoberto uma moléstia infecciosa das bactérias e não me falou nisso? Meu rapaz, não creio que se tenha apercebido de que pode ter alcançado o caminho supremo para matar as bactérias patogênicas... E não me falar!

- Mas... queria adquirir a certeza...

- Admiro a sua cautela, mas deve compreender, Martin, que o fim básico desta Instituição é a vitória sobre a doença, e não fazer bonitos estudos científicos! Você pode ter feito uma das descobertas de uma geração; a espécie de coisa atrás da qual o Sr. McGurk e eu andamos... Se os seus resultados se confirmarem... vou pedir a opinião do Dr. Gottlieb.

Apertou a mão de Martin cinco ou seis vezes e saiu ruidosamente. No dia seguinte, chamou Martin ao seu gabinete, apertou-lhe a mão mais algumas vezes, declarou a Pearl Robbins que era uma honra conhecerem-no, depois levou-o ao alto de uma montanha e mostrou-lhe todos os reinos do Mundo:

- Martin, tenho alguns planos para si. Você tem trabalhado brilhantemente, mas sem uma visão completa de uma humanidade mais larga. Ora, o Instituto é organizado segundo as linhas mais flexíveis. Não há compartimentos estanques, mas apenas unidades formadas em torno de homens excpcionais como o nosso bom amigo Gottlieb. Se um novo colega mostra verdadeira bossa, cercamo-lo de todas as facilidades, em vez de deixá-lo simplesmente arrastar-se no seu trabalho individual. Dediquei aos seus resultados a mais cuidadosa consideração, Martin; discuti-os com o Dr. Gottlieb... embora deva dizer que ele não participa do meu entusiasmo, quanto a resultados práticos imediatos. E resolvi submeter ao Conselho de Administração o projecto de um Departamento de Microbiologia, de que você será o chefe! Terá um assistente... um doutor em Farmácia com verdadeira experiência... e mais espaço e técnicos e manter- me-á informado directamente, discutindo as coisas comigo diariamente, em vez de o fazer com Gottlieb. Será dispensado de todo o serviço de guerra, por minha ordem... embora possa conservar o uniforme, e tudo. E o seu salário será, penso, se o Sr. McGurk e os outros membros do Conselho me apoiarem, dez mil por ano em vez de cinco mil. Sim, a melhor sala para si seria aquela sala grande do andar de cima, à direita dos ascensores. Agora, está vaga. E o seu gabinete, do outro lado do corredor. E toda a assistência que solicitar. Assim, meu rapaz, não precisará de ficar aí noites a fio, desperdiçando as mãos dessa maneira, mas apenas mandar fazer as coisas e indicar possíveis extensões do trabalho... tendo em mente todos os campos possíveis. Havemos de estender isso a todas as coisas. Teremos dezenas de médicos nos hospitais para ajudar-nos, confirmar os nossos resultados, e dilatar os nossos esforços... Poderíamos realizar um conselho semanal de todos esses médicos e assistentes, com você e eu presidindo conjuntamente... Se homens como Koch e Pasteur tivessem à sua disposição um sistema como este, poderia ter sido maior o alcance da sua obra! Uma eficiente cooperação universal... eis o que é a ciência, hoje... A época das pesquisas ingênuas, ciumentas, tacteantes, individuais, em suma, passou. Meu rapaz, é possível que tenhamos achado a coisa... um outro salvarsan! Publicaremos um estudo de parceria! Faremos que o mundo inteiro fale nisto! Olhe, fiquei acordado esta noite, a pensar na nossa magnífica oportunidade! Dentro de alguns meses, poderemos curar não só as infecções estafilocócicas, como também a febre tifóide, a disenteria! Martin, eu, como seu colega, nem por um momento desejo diminuir-lhe o grande mérito, mas devo dizer que, se você se tivesse aliado mais estreitamente a mim, teria chegado a provas e resultados práticos há muito tempo.

Martin voltou para o laboratório, ofuscado pela perspectiva de um departamento próprio, com assistentes, um mundo animador - e dez mil dólares por ano. Mas a sua obra parecia ter-Lhe sido tomada, o próprio eu fora-lhe arrebatado; já não era Martin, o discípulo de Gottlieb, mas um homem da alegria condicionada, o Dr. Arrowsmith, chefe do Departamento de Microbiologia, que usaria colarinhos severos, faria discursos, e jamais praguejaria.

Abateram-no dúvidas. Talvez o Princípio X se desenvolvesse apenas na proveta; talvez não tivesse grande valor para a cura do Homem. Precisava de saber... saber.

Depois, Rippleton Holabird irrompeu no laboratório:

- Martin, meu caro, o director acaba de falar-me acerca da sua descoberta e os esplêndidos projectos que tem com relação a si. Quero dar-lhe os parabéns de todo o coração, e saudá-lo como um colega chefe de departamento... você, tão novo... apenas com trinta e quatro, não é assim? Que magnífico futuro! Imagine - o major Holabird despojou-se da sua dignidade, escarranchou-se numa cadeira -, imagine tudo quanto tem na sua frente! Se este trabalho der realmente bom resultado, não há limites para as honras de que o cobrirão, seu cão de sorte! Aclamações de sociedades científicas, qualquer cátedra que lhe apetecer, prêmios, os homens mais poderosos solicitando-lhe uma consulta, um lugar aberto na sociedade! E olhe, meu velho: talvez saiba como sou afeiçoado ao Dr. Tubbs, e não vejo razão para que não se junte connosco, levando nós três as coisas aqui de modo a servirem os nossos propósitos. Como foi honesto da parte do director reconhecer, pronta e entusiasticamente, o seu trabalho e ajudá-lo de todas as maneiras! Foi sincero... e prestimoso. Mas você compreende-o bem. E nós os três... Um dia, poderíamos levantar uma superstrutura de ciência cooperativa para dirigir não só o McGurk mas todos os institutos e departamentos científicos de todas as Universidades do país, produzindo assim uma obra de pesquisa realmente eficiente. Quando o Dr. Tubbs se aposentar, tenho... falo com a mais completa reserva... tenho algumas razões para supor que o Conselho de Administração me considerará o sucessor dele. Depois, se esta obra for bem sucedida, você e eu poderemos fazer coisas de parceria! Para continuar a usar de franqueza, há muito poucos homens no nosso mundo (veja o caso do pobre Yeo! ) que combinem personalidades apresentáveis com um valor de primeira classe, e se você aparar um pouco da sua aspereza e da sua falta de disposição para apreciar os grandes dirigentes, e as mulheres encantadoras (porque, graças a Deus, sabe vestir um bom fato... quando se dá a esse incômodo! ) então, poderemos tornar-nos os ditadores da ciência em todo o país!

Martin não pensou numa resposta senão depois de Holabird sair.

Percebeu o horror dessa coisa indecente e berrante chamada êxito que exigia que ele renunciasse ao trabalho tranqüilo, e aparecesse, para ser manuseado por todos os admiradores devotados e enlameado por todos os devotados inimigos.

Correu para junto de Gottlieb, como para um pai sábio e doce, e rogou-lhe que o salvasse do êxito, dos Holabirds, dos A. DeWitt Tubbs e das hordas de cientistas discursadores, autores, caça-títulos, pregadores, cirurgiões populares, jornalistas servis, dos grandes negociantes sentimentais, dos políticos literatos, dos campeões do desporto, dos generais estadistas, dos senadores que dão entrevistas, dos bispos sentenciosos.

Gottlieb preocupou-se:

- Sabia que Tubbs tinha algo de indecente na cabeça, quando veio aqui, muito macio, mas não imaginei que pretendesse tentar transformar você num megafone, tudo num dia! vou tomar fôlego para lutar contra as forças da publicidade!

Foi derrotado.

- Deixei-o de lado, Dr. Gottlieb - disse Tubbs -, mas afinal de contas sou o director! E devo dizer que, talvez por causa da minha acabada estupidez, não consigo ver os horrores de proporcionar a Arrowsmith os recursos para curar milhares de pessoas que sofrem, e para tornar-se um homem de peso e prestígio!

Gottlieb recorreu a Ross McGurk.

- Max, estimo-o como a um irmão, mas Tubbs é o director, e se ele acha que precisa desse Arrowsmith (é aquele rapaz delgado que vi lá pelo seu laboratório?) não tenho o direito de impedi-lo. Tenho de apoiá-lo da mesma maneira que apoiaria o comandante de um dos nossos navios - disse McGurk.

Só quando o Conselho de Administração, que era formado pelo próprio McGurk, o reitor da Universidade de Wilmington, e três catedráticos de ciência em várias Universidades, se reunisse e aprovasse o projecto, é que Martin seria chefe de departamento. Enquanto esperava, Tubbs exigiu:

- Agora, Martin, deve apressar-se e publicar os seus resultados. Mãos à obra. Na realidade, já devia ter feito isso antes. Reúna o seu material o mais depressa possível e mande uma nota à Sociedade de Medicina e Biologia Experimental, para ser publicada na próxima acta.

- Mas não estou pronto para publicar! Quero tapar todos os buracos, antes de anunciar qualquer coisa!

- Que tolice! Essa atitude é antiquada. Já não estamos numa época de torres de marfim, mas de concorrência, na arte e na ciência tanto como no comércio... cooperação com o nosso grupo, mas, com os de fora dele, concorrência até à morte! Tape os buracos inteiramente, depois, visto que não podemos permitir que ninguém nos tome a dianteira. Lembre-se de que tem de fazer o seu nome. E o meio é trabalhar comigo... tendo como objectivo o maior bem para o maior número.

Quando Martin começou a escrever o seu artigo, pensando em resignar mas prosseguindo porque Tubbs lhe parecia, pelo menos, melhor do que os Pickerbaughs, teve a visão de um mundo de pequenos cientistas, cada um deles a trabalhar numa cela sem tecto. Empoleirado numa nuvem, vigiando-os, estava o divino Tubbs, uma glória de suíças, pronto a fulminar qualquer dos homenzinhos que cessasse de ser sério e perdesse tempo com especulações em torno de qualquer coisa que Tubbs não lhes tivesse designado. Por detrás do grupo, fora das vistas do Tubbs tutelar, a figura gigantesca e magra de Gottlieb erguia-se, sardónica, num horizonte tempestuoso.

A expressão literária não era fácil para Martin. Retardou o artigo, enquanto Tubbs mostrava irritação e o fustigava. As experiências tinham cessado; havia aflição, arranhar de pena e muito rasgar de papel manuscrito na cela sem tecto, privativa de Martin.

Desta vez, não encontrou refúgio em Leora. Ela exclamou:

- Porque não? Ih! Dez mil dólares por ano seria uma coisa formidável, Sandy. Sempre fomos tão pobres e gostas de boas casas e de boas coisas. E chefiar o teu próprio departamento... E podias aconselhar-te com o doutor Gottlieb, da mesma maneira. Ele é também chefe de departamento. E, no entanto, conserva-se independente do doutor Tubbs. Oh! Acho muito bom!

E lentamente, debaixo do considerável acréscimo de respeito que lhe era concedido nos almoços do Instituto, o próprio Martin "achou bom".

- Poderíamos ficar com uma daquelas casas novas de Park Avenue. Acho que o aluguer não é superior a três mil por ano meditou ele. - Não seria mau poder receber os amigos lá. Naturalmente, não permitiria que isso prejudicasse o meu trabalho... Não seria nada mau, não.

Foi ainda menos mau, por mais aflitiva que fosse a introdução, ser admitido na alta sociedade.

Capítola McGurk, que até então não o notara, excepto como a um objecto menos interessante do que a Centrifugadora Gladys, telefonou: "... o doutor Tubbs, muito entusiasmado, Ross e eu estamos encantados. Teria muito prazer se a sua mulher e o senhor pudessem jantar connosco, na próxima quinta-feira, às oito e trinta.".

Martin aceitou a real ordem.

Estava convencido de que, depois dos vislumbres proprocionados por Augus Duer e Rippleton Holabird, já conhecia o fausto e compreendia os jantares elegantes. Leora e ele, sem muita agitação, dirigiram-se a casa de Ross McGurk, em East Seventies, perto da Quinta Avenida. Da rua, a casa parecia possuir uma quantidade pouco comum de gárgulas de rocha, limeis esculpidas e grades de bronze, mas não parecia grande.

No interior, o vestíbulo de pedra, abobadado, abria-se como uma catedral. Os lacaios causaram-lhe embaraço; o elevador automático, respeitoso temor; opressão, um vestíbulo cheio de in-fólios de pergaminho e arcas italianas, e uma sala de visitas cheia de aguarelas; e o régio cetim branco e as pérolas de Capítola reduziram-nos à rusticidade.

Havia oito ou dez pessoas importantes, de ambos os sexos, de aspecto insignificante mas com nomes tão conhecidos como marcas de sabonete.

Martin ficou a pensar se seria da praxe oferecer o braço a alguma senhora desconhecida e "levá-la para a outra sala". Sentiu um alívio ao verificar que os convidados entravam simplesmente na sala de jantar, arrebanhados pela amável voz de baixo de McGurk.

A sala de jantar era vistosa e horrenda, com couros estampados e histerias de ouro, colecções de criados a observarem como os comensais utilizavam o garfo para espargos. Martin ficou sentado (é de duvidar que algum dia ficasse a saber que fora o convidado de honra) entre Capítola McGurk e uma mulher da qual só conseguiu saber que era a irmã de uma condessa.

Capítola inclinou-se para ele, no seu grande esplendor branco. - Ê agora, doutor Arrowsmith, diga-nos o que é que descobriu?

- Ora... Trata-se... ãããh... Procuro...

- O doutor Tubbs disse-nos que o senhor encontrou um maravilhoso sistema novo para combater as doenças. - Os seus // eram uma melodia de rios no Verão, os rr o trinado de pássaros na mata. - Oh, que poderia... que coisa poderia ser mais bela do que aliviar este velho e triste mundo do seu fardo de doenças! Mas, exactamente, o que é que o senhor está a fazer?

- Mas... ainda é muito cedo para ter a certeza... A senhora compreende, é mais ou menos assim. Tomam-se certos germes como o estafilococo...

- Oh, como a ciência é interessante, mas quão terrivelmente difícil de compreender para pessoas comuns como eu! Mas o que nos vale é a nossa humildade. Ficamos à espera de que cientistas como o senhor tornem o mundo seguro para a fraternidade...

Em seguida, Capítola voltou a atenção para outro conviva. Martin olhou em linha recta para a frente, comeu, e sofreu. A irmã da condessa, uma mulher pálida e comprida, olhava-o inflamadamente. Ele voltou-se com uma docilidade infeliz (notando que ela tinha um garfo a mais do que ele e perguntando a si próprio onde metera o seu).

Ela, com voz estridente:

- Disseram-me que o senhor é cientista.

- Ssssim.

- O defeito dos cientistas é que não compreendem a beleza. São tão frios.

Rippleton Holabird teria dado uma alegre réplica; Martin, porém, pôde murmurar apenas: "Não, acho que não é verdade." E passou a considerar se ousaria beber outra taça de champanhe.

Quando tinham sido arrebanhados para o regresso à sala de visitas, e a porta de comunicação fora transposta de maneira masculina mas dolorosamente aprimorada, Capítola desceu sobre ele com devoradoras asas brancas:

- Caro doutor Arrowsmith, não achei uma oportunidade, durante o jantar, para lhe perguntar exactamente o que é que está a fazer... Oh! Já viu os meus queridos filhos do colégio de Charles Street? Estou certa de que muitos deles se tornarão os mais fascinantes cientistas. O senhor precisa de ir lá fazer umas palestras.

Naquela noite, queixou-se a Leora:

- Vai ser difícil agüentar esta agitação. Mas acho que tenho de aprender a apreciá-la. De qualquer forma, será óptimo quando pudermos oferecer os nossos próprios jantares, a gente de verdade, Gottlieb e os outros, quando eu for chefe de departamento.

Na manhã seguinte, Gottlieb entrou lentamente no laboratório de Martin. Deteve-se junto da janela; parecia evitar os olhos de Martin. Suspirou e disse:

- Aconteceu algo de mau... talvez não totalmente mau...

- Que foi? É coisa em que eu possa ajudar?

- Não é a meu respeito. É a seu respeito.

Martin pensou, irritado: "Irá tocar de novo nessa tecla do perigo do êxito rápido? Já estou cansado disso!"

- É uma pena, Martin, mas você não é o descobridor do Princípio X.

- O quêêê?

- Alguém fez já a descoberta.

- Não pode ser! Percorri toda a literatura, e, com excepção de Twort, nenhuma pessoa antecipou uma sugestão... Mas, por Deus, doutor Gottlieb! Isso significaria que tudo quanto fiz, todas estas semanas foram simplesmente desperdiçadas, e que sou um tolo...

- Bem. Seja o que for. D'Hérelle, do Instituto Pasteur, acaba de publicar nos Comptes Rendus de l'Académie dês Sciences, um estudo... é o seu Princípio X, exactamente. A única diferença é que ele o denomina bacteriófago.

- Então eu...

Mentalmente, Martin terminou: "Então não serei chefe de departamento nem famoso nem coisa alguma. Volto para a planície." Esvaiu-se-lhe toda a energia e todo o propósito, e a luz da criação esfumou-se em cinzento-sujo.

- Agora, naturalmente - disse Gottlieb -, você poderia reivindicar o direito de ser considerado codescobridor, passando o resto da vida a lutar por essa concessão. Ou poderia esquecer-se disso e escrever uma bela carta de parabéns a D'Hérelle, e voltar para o trabalho.

Martin gemeu:

- Voltarei para o trabalho. Nada mais há a fazer. Acho que Tubbs vai desistir do novo departamento. Terei tempo para terminar de facto a minha pesquisa... talvez tenha encontrado alguns pontos de que D'Hérelle não tratou... e publicarei um estudo a confirmar as conclusões dele... Esse diabo!... Onde está a comunicação?... Creio que o senhor está satisfeito por eu ter escapado de ser um Holabird.

- Devia estar. É um pecado contra a minha religião não estar satisfeito. Mas estou a ficar velho. E você é meu amigo. Desagrada-me que perca a divertida oportunidade de ser pedante e próspero, por uns tempos... Martin, é uma bela coisa você corroborar D'Hérelle. Isso é ciência: trabalhar e não se aborrecer... demasiadamente... se outro obtém as honras... Quer que informe Tubbs sobre a precedência de D'Hérelle, ou você informá-lo-á?

Gottlieb deixou-o, olhando para trás um pouco abatido, ao sair.

Tubbs veio lamentar-se:

- Se ao menos tivesse publicado o estudo mais cedo, conforme lhe disse, doutor Arrowsmith! O senhor colocou-me de facto numa situação muito embaraçadora, perante o Conselho de Administração. Naturalmente, não se poderá tratar agora da criação de um novo departamento.

- Sim - disse Martin, distraído.

Cuidadosamente, pôs em ordem e guardou o começo do seu artigo e voltou para a sua banca. Fitou os olhos num frasco brilhante até que este o fascinou como se fosse uma bola de cristal.

 

Meditou:

"Não teria sido tão mau se Tubbs me tivesse deixado sozinho. Lixem-se esses velhos, lixem-se os homens da alegria condicionada, esses homens importantes que vêm oferecer-nos honrarias. Dinheiro. Condecorações. Títulos. Querem encher a gente de autoridade. Honras! Se a gente as alcança, fica pomposo, e depois de acostumado, se as perde, fica aniquilado. De sorte que não enriquecerei. Leora, pobrezinha, não terá os vestidos novos, a casa, nem nada. Nós... Agora não será muito divertido ficar naquela casa pequena e velha. Ora, basta de lamentações! Gostava que Terry estivesse aqui. Gosto desse Gottlieb. Ele podia ter-se regozijado... Bacteriófago, é o nome que o francês deu. Muito comprido. Seria melhor dizer apenas fago. Engraçado, ter de dar o nome que ele formou ao meu próprio Princípio X! Bem, de qualquer forma diverti-me bastante, a trabalhar durante todas essas noites. A trabalhar...

Escapava aos poucos ao seu estado de fascinação. O frasco afigurou-se-lhe cheio de caldo, com uma espuma de estafilococos. Apareceu no gabinete de Gottlieb, em busca da revista que continha a comunicação de D'Hérelle e leu-a minuciosa, entusiasticamente.

- É um homem, é um cientista! - exclamou, com satisfação.

A caminho de casa, fez projectos de experimentar o fago (conforme passou a chamar o Princípio X) no bacilo da disenteria de Shiga, projectos de crivar D'Hérelle de perguntas e críticas; alimentou a esperança de que Tubbs não o dispensasse, por enquanto; e distendeu-se, aliviado, com o pensamento de que não teria de escrever um artigo absurdamente prematuro sobre o fago, de que poderia andar vestido como toda a gente, de colarinho mole, à vontade, de que não precisava de ser racional e grave, de que não seria vigiado.

Murmurou, com uma risada: "Minha Nossa Senhora, aposto que Tubbs ficou com uma cara! Já se via a assinar todos os meus artigos junto comigo e a ficar com o mérito. Agora, quanto a esta experiência sobre a Shiga... Coitadinha da Lee, acho que terá de se acostumar aos meus serões."

Leora guardou consigo o que sentiu... ou, pelo menos, quase tudo o que sentiu.

 

Durante um ano, assinalado apenas pela volta de Terry Wickett, depois do Armistício, e pelos gracejos dessa inteligência turbulenta, Martin viveu engolfado no trabalho. Semana após semana, atacou laboriosamente as suas experiências com o fago. O seu trabalho - as suas mãos e a sua técnica - tornou-se mais destro, e os dias mais consistentes, menos agitados.

Retomou os serões de estudo. Passou da matemática à química física; começou a compreender a lei de acção das massas; ficou tão sarcástico como Terry diante do que chamava a "atitude clínica" de Tubbs e Holabird; leu muito em francês e alemão; nas tardes de domingo, passeava de barco no Hudson; e fez uma inconveniente pândega com Leora e Terry, para celebrar o dia em que o Instituto foi purificado pela venda do orgulho de Holabird, a Gladys Namoradeira.

Suspeitava de que o Dr. Tubbs, agora imponente com a fita da Legião de Honra, o mantivera no Instituto unicamente por causa da intervenção de Gottlieb. Mas é possível que Tubbs e Holabird tivessem a esperança de que ele tornasse a encontrar milagres susceptíveis de publicidade, pois ambos se conservavam corteses com ele, durante o almoço - corteses, decididamente repreensivos, abundantes em polpudas observações sobre a necessidade da publicação imediata das descobertas, em vez de se perder tempo com ninharias.

Passara-se mais de um ano sobre a verificação da precedência de D'Hérelle sobre Martin, quando Tubbs apareceu no laboratório com sugestões:

- Estive a pensar uma coisa, Arrowsmith - disse Tubbs. E assim parecia. - A descoberta de D'Hérelle não despertou o interesse popular que eu pensava. Se ao menos ele estivesse aqui connosco, eu teria providenciado para que alcançasse a atenção devida. Praticamente, nenhum jornal fez comentários. Talvez ainda possamos fazer alguma coisa. Segundo me parece, você tem continuado com aquilo a que o doutor Gottlieb costuma chamar a "pesquisa fundamental". Penso que talvez seja tempo de usar o fago no tratamento prático das moléstias. Desejo que o exprimente na pneumonia, na peste bubônica e talvez na febre tifóide, e, quando as experiências estiverem em andamento, faça algumas provas práticas em colaboração com os hospitais. Basta de desperdiçar tempo. Precisamos de curar de facto alguém!

Martin não estava isento do temor de uma demissão, se recusasse obedecer. E enterneceu-se quando Tubbs prosseguiu:

- Arrowsmith, suspeito que às vezes acha que me falta senso de precisão científica quando insisto em resultados práticos. Eu... Seja como for, não vejo os resultados realmente nobres e decisivos que devíamos obter com este Instituto, com toda esta aparelhagem. Gostaria de fazer alguma coisa de grande, meu rapaz, algo de útil para a pobre Humanidade, antes de me aposentar. Você não pode fazer-me isso? Vá curar a peste!

Desta vez, Tubbs foi um sorriso cansado e não uma gravidade de suíças.

Naquele dia, ocultando a Gottlieb que abandonava a indagação em torno da natureza fundamental do fago, Martin empreendeu o combate contra a pneumonia, antes de atacar a Morte Negra. E, quando Gottlieb veio a sabê-lo, estava absorvido por certas preocupações pessoais.

Martin curou coelhos de pleuropneumonia com a injecção de fago e impediu a propagação da pneumonia. Verificou que a imunidade produzida pelo fago podia ser tão infecciosa como uma doença.

Ficou satisfeito consigo e esperou o regozijo de Tubbs, mas, durante semanas, Tubbs não lhe prestou atenção. Entregara-se a um novo entusiasmo, o mais virulento de toda a sua vida: estava a organizar a Liga de Agências Culturais.

Ia coordenar todas as actividades mentais dos Estados Unidos, com a criação de um gabinete que dirigiria, censuraria suavemente e, em linhas gerais, estimularia a química e a produção de batik1, a poesia e a exploração do Árctico, a criação de gado

 

1 Tecido estampado pelo processo do mesmo nome, originário das índias Neerlandesas. (N. do T.)

 

e o estudo da Bíblia, as canções religiosas dos Negros e a redacção de cartas comerciais. Desatou subitamente a conferenciar com regentes de orquestras sinfônicas, directores de escolas de arte, proprietários de Chautauquas ambulantes, governadores liberais, ex-clérigos que escreviam uma saborosa filosofia para sindicatos jornalísticos e, na realidade, com todos os proprietários da intelectualidade norte-americana - e, particularmente, com um milionário chamado Minnigen, que recentemente se dedicara a elevar os padrões artísticos da arte cinematográfica.

Tubbs percorreu todo o Instituto, para convidar os pesquisadores a reunirem-se-lhe na Liga de Agências Culturais, com fascinantes jantares e reuniões. A maioria resmungou: "O velho está com nova erupção" - e esqueceu-se dele; mas um ex-major passou a sair todas as noites para conferenciar com senhoras graves que usavam vestidos distintos, que suspiravam devido à "perda de cavalos-vapor espirituais e intelectuais por causa da falta de coordenação", e que iam de limousine para casa.

Circularam boatos. O Dr. Billy Smith cochichou que entrara para falar com Tubbs e ouvira McGurk gritar-lhe: "A sua função é administrar este estabelecimento e não trabalhar para esse ladrão de terras, esse velhaco, esse diabo do Pete Minnigen!"

Na manhã seguinte, quando Martin se dirigia para o seu laboratório, notou expressões de espanto, cochichos, agitação nos corredores e, incrédulo, ouviu:

- Tubbs demitiu-se!

- Não pode ser!

- Dizem que vai para a sua Liga de Agências Culturais. Esse tal Minnigen deu à Liga uma fortuna e Tubbs vai ganhar o dobro do que tinha aqui!

 

Instantaneamente, apenas com as excepções de fanáticos como Gottlieb, Terry, Martin e o assistente de biofísica, deu-se uma paragem nas pesquisas. Houve uma eclosão de facções, um zumbido benevolente e feiticeiro de cientistas que desejavam ser o novo director do Instituto.

Rippleton Holabird: Yeo, o biólogo com aspecto de carpinteiro; Gillingham, o galhofeiro chefe de biofísica; Aaron Sholtheis, o esmerado judeu-russo anglicanista; todos eles passaram a circular com expressões de modesta boa vontade. Mostravam-se afectuosos com todos que encontravam nos corredores, por mais violentos que fossem nas discussões em particular. Somavam-se a eles não poucos intrusos, professores e pesquisadores de outros institutos, os quais achavam necessário vir consultar Ross McGurk a respeito de questões vaguíssimas.

Terry disse a Martin:

"Provavelmente, Pearl Robbins e o teu ajudante estão na dança pela Direcção. O meu não está... embora a única razão disso seja que acabo de assassiná-lo. Quanto aos dois, acho que Pearl seria a escolha mais feliz. Foi secretária de Tubbs tanto tempo que aprendeu toda a ignorância dele sobre técnica científica."

Rippleton Holabird era o mais untuoso dos caçadores da vaga, e o mais faminto. Terminada a guerra, perdera o uniforme e a autoridade. Disse a Martin, com ênfase:

"Sabe que sempre acreditei no seu gênio, Martin, e sei como esse velho Gottlieb acredita em si. Se conseguisse para mim o apoio de Gottlieb, e falasse com McGurk... Naturalmente, a Direcção seria um sacrifício para mim, porque teria de renunciar às minhas pesquisas, mas estou disposto a aceitá-la, porque acho, de facto, que alguém com tradições deve encarregar-se dela. Tubbs apoia-me e se Gottlieb também me apoiasse... eu providenciaria para que tirasse proveito disso. Arranjar-lhe-ia bastante espaço mais!"

Através do Instituto, circulou vagamente que Capítola advogava a escolha de Holabird como "o único cientista que é também um gentleman". Era vista a singrar pelos corredores, qual uma fragata, com Holabird, uma chalupa, na sua esteira.

Mas, enquanto Holabird andava radiante, Nicholas Yeo conservava um aspecto misterioso e satisfeito.

Todo o Instituto se alvoroçou na tarde em que o Conselho de Administração se reuniu no Salão, para a eleição do director. Os cientistas transformaram-se de pesquisadores em raparigas de um internato. O Conselho discutiu ou fez qualquer coisa aborrecida, durante várias horas extenuantes.

Às quatro, Terry Wickett precipitou-se para Martin:

- Escuta, Comprido, tenho informação positiva de que eles elegeram um tal Silva, director da Escola de Medicina de Winnemac. Tu estudaste lá, não foi? Que tal é ele?

- É bom velho... Não... Ele e Gottlieb detestam-se. Meu Deus! Gottlieb demitir-se-á e terei de sair. Justamente quando o meu trabalho ia bem!

Às cinco, passando diante de portas cheias de olhos atentos, o Conselho de Administração marchou para o laboratório de Max Gottlieb.

Alguém ouviu Holabird dizer, corajosamente:

"Quanto a mim, naturalmente, não renunciaria às minhas pesquisas por qualquer posto administrativo."

E Pearl Robbins informou Terry:

- Sim, é exacto... o próprio senhor McGurk acaba de me dizer... o Conselho elegeu o doutor Gottlieb novo director.

- Então estão loucos - disse Terry. - Ele recusará violentamente. "Non me peçam parra ir eks-ibir-me em reuniões de comisson! " Esta é boa!

Quando o Conselho deixou a casa, Martin e Terry invadiram o laboratório de Gottlieb e encontraram o velho de pé junto do seu banco, erecto como não o viam há muitos anos.

- É verdade... que eles querem que seja o director? - perguntou Martin, sem fôlego.

- Sim; eles pediram-me isso.

- Mas o senhor recusará? Não deixará que eles lhe estraguem o trabalho?

- bom... Eu disse que o meu trabalho tem de prosseguir. Eles concordaram em designar um subdirector para se ocupar dos pormenores. Vocês compreendem... Naturalmente, nada deve interferir na minha imunologia, mas isto proporciona-me a oportunidade de fazer grandes coisas e criar um instituto científico livre, para vocês todos. E aqueles idiotas de Winnemac, que riram da minha idéia de uma Escola de Medicina de verdade, pode ser que compreendam agora... Sabem quem foi o meu rival para director... sabe quem foi, Martin? Foi aquele tipo, o Silva! Ah!

No corredor, Terry resmungou: "Requiescat in pace."

 

Ao jantar em honra de Gottlieb (o único jantar oferecido em honra de Gottlieb) compareceram não só os homens de negócios impressionantes, mas fáceis, que comparecem a todos os jantares em honra de alguém, como também os poucos cientistas que Gottlieb admirava.

Ele apareceu tarde, um tanto comovido, escoltado por Martin. Quando chegou à mesa dos oradores, os convivas levantaram-se, aclamando-o. Ele fitou-os, tentou falar, estendeu os braços compridos como se quisesse abraçar todos, e sentou-se, a soluçar.

Houve telegramas da Europa; cartas calorosas de Tubbs e do director Silva, lamentando a impossibilidade de comparecerem; telegramas de reitores de Universidades; e tudo isto foi lido entre aplausos.

Capítola, porém, murmurou:

"Vamos sentir a falta do querido doutor Tubbs. Ele era tão progressivo. Não brinque com o garfo, Ross."

E, assim, Max Gottlieb assumiu a direcção do Instituto McGurk de Biologia, e, num mês, esse Instituto transformou-se numa barafunda.

Gottlieb projectava dedicar apenas uma hora por dia aos negócios. Para subdirector, designou o Dr. Aaron Sholtheis, o epidemiologista, o clérigo de Yonkers e cultor de dálias. Gottlieb explicou a Martin, que, embora naturalmente Sholtheis fosse um idiota, era o único homem disponível que combinava pelo menos um pouco de capacidade científica com boa vontade para suportar a rotina, a imponência e as transigências do trabalho de direcção.

Continuando com o seu velho desdém para com os gerentes dinâmicos, Gottlieb sentia-se justificado evidentemente por se ter transformado em gerente.

Não pôde limitar o seu trabalho oficial a uma hora por dia. Havia demasiadas conferências, demasiados visitantes distintos, demasiados papéis que precisavam da sua assinatura. Foi arrastado a jantares elegantes; e os almoços longos, ocos, verborrágicos, aos quais um director precisa de comparecer, e os telefonemas que marcavam datas para essas torturas, enchiam horas nervosas. Diariamente, os deveres de direcção arrastavam-se ao longo de duas, de três, de quatro horas, e ele ficava irritado, aturdia-se com complicações de pessoal e economia, tornava-se cada vez mais autocrático, mais cabeçudo; e os amáveis colegas do Instituto, que Tubbs reduzira, à força ou docemente, a uma paz de superfície, agora chocavam-se abertamente.

Enquanto devia estar irradiando benevolência do gabinete recentemente ocupado pelo Dr. A. DeWitt Tubbs, Gottlieb agarrava-se ao seu laboratório particular e ao seu exíguo escritório, como um gato se agarra à sua almofada, debaixo da mesa. Uma ou duas vezes, tentou sentar-se e tornar-se impressionante, no gabinete do director, mas fugiu daquela grande e limpa vacuidade e da estralejante máquina de escrever de Miss Robbins para o seu próprio esconderijo, que não cheirava a virtude progressiva mas apenas a cigarro e a papéis velhos.

Para o McGurk, como para todas as instituições científicas, acorriam centenas de fazendeiros, enfermeiras práticas e açougueiros suburbanos que haviam gasto largas somas com passagens de Oklahoma ou Oregon, para obter o reconhecimento de curas indiscutíveis que haviam descoberto: azeite de certa planta silvestre do Mississípi que salvava todos os casos de tuberculose, pomadas de arsênico garantidas contra todos os cancros. Vinham com cartas e fotografias entre a puída e limpa roupa branca guardada nas malas velhas - em todas as oportunidades, agachavam-se sobre as malas e esperançosamente extraíam testemunhos dos seus prodígios; suplicavam uma oportunidade para curar a Humanidade e, quanto a si, apenas dinheiro suficiente para mandar a filha para o Conservatório de Música. Tinham tanta certeza, eram tão funebremente súplices, que nenhum porteiro podia ser treinado em mantê-los a distância.

Gottlieb viu-os infiltrar-se no seu gabinete. Tinha pena deles. Tomavam-lhe as horas de trabalho, duvidavam da sua pretensão de ter um coração duro, imploravam-lhe com tal acanhamento e desventura que ele não podia descartar-se deles sem lhes fazer promessas, para admitir posteriormente que, se tivesse sido mais cruel, a crueldade teria sido menor.

Com as pessoas importantes é que era rude.

A direcção devorava bastante tempo e paz para impedir Gottlieb de prosseguir com os problemas cada vez mais recônditos do seu inquérito sobre a natureza da especificidade, e o seu inquérito impedia-o de dar bastante atenção ao Instituto para evitar que ele caísse aos pedaços. Fiava-se em Sholtheis, deixava-lhe as decisões, porém, Sholtheis, uma vez que de qualquer forma Gottlieb ficaria com todo o mérito por uma administração bem sucedida, continuava com o seu trabalho científico e passava as decisões a Miss Pearl Robbins, de maneira que o verdadeiro director era a bela e ciumenta Pearl.

Não havia director mais astuto nem mais falso no Mundo habitável. Pearl gostava do jogo. Afirmava a Ross McGurk, calorosa e modestamente, os méritos de Gottlieb e a sua timorata afeição por ele; lisonjeava de tal maneira a vaidade de Rippleton Holabird, correspondia com tanta macieza à ríspida hostilidade de Terry Wickett, impedindo-o de obter material para o seu trabalho, que o Instituto se atolou na intriga.

Yeo não queria falar com Sholtheis. Terry ameaçava Holabird de "amarrotá-lo". Gottlieb pedia constantemente conselho a Martin e jamais o seguia. Joust, o biofísico vulgar, mas capaz, carecendo da afeição que impediam Martin e Terry de censurar o velho, disse a Gottlieb que ele era um "director de borra" e que devia largar o posto; foi imediatamente demitido e substituído por uma nulidade.

Max Gottlieb falara sempre a Martin dos "caprichos dos deuses". Entre estes caprichos, Martin jamais contemplara um tão pungente como este, onde a presunção e a bulhenta falta de imaginação, que detestara em Tubbs, haviam feito deste um bom gerente, ao passo que o gênio de Gottlieb o transformara num tirano fraco; um capricho pelo qual a única coisa pior que uma instituição demasiado bem administrada e modelar vinha a ser uma instituição não administrada nem modelar. Dantes, tê-lo-ia negado com veemência, mas agora, à noite, rogava pela volta de Tubbs.

Se os negócios do Instituto não se tornaram mais complicados, certamente a sua placidez perturbou-se ainda mais com o aparecimento de Gustaf Sondelius, que acabava de voltar de um estudo sobre a doença do sono na África e que, ruidosamente, passou a ocupar um dos laboratórios para hóspedes.

Gustaf Sondelius, o soldado da Medicina preventiva, cuja conferência levara Martin de Wheatsylvania para Nautilus, ficara na sua galeria de heróis como um homem que possuía um pouco da percepção de Gottlieb, algo da firme bondade do Tio Silva, algo da ríspida honestidade de Terry, embora sem nada do seu desdém escarninho pelas coisas amenas e, com estas virtudes, uma exuberância cheia de interesse e inteiramente pessoal. É certo que Sondelius não se lembrava de Martin. Depois da noitada em Minneapolis, bebera, discutira e viajara exuberantemente para destinos obscuros, mas bem providos de vinho e de gente. Foi, porém, constrangido a lembrar-se e, dentro de uma semana, Sondelius, Terry e Martin podiam ser vistos a passear e a jantar juntos, ou a encher-se de conversa e de gin em casa de Martin.

A cabeleira revolta e ruiva de Sondelius estava quase cinzenta mas tinha os mesmos ombros de touro, a mesma testa ampla, e o mesmo furacão de projectos para tornar o Mundo asséptico, sem deixar de gozar algumas coisas sépticas, antes que elas fossem abolidas.

O seu propósito para depois de concluir a sua informação sobre a doença do sono era fundar uma Escola de Medicina Tropical em Nova Iorque.

Sitiava McGurk e o opulento Sr. Minnigen, que era o novo patrono de Tubbs, e, nas oportunidades ou fora delas, sitiava Gottlieb.

Adorava Gottlieb e fazia barulho a respeito dele. Gottlieb admirava-lhe a coragem e o ódio ao mercantilismo, mas, quanto à sua presença, não podia suportá-la. Ficava aturdido com a hilaridade de Sondelius, os seus cumprimentos, o optimismo explosivo, a falta de precisão, a exaltação, a corpulência opressiva. É possível que Gottlieb experimentasse certo ressentimento porque Sondelius, sendo embora apenas onze anos mais novo

- cinqüenta e oito contra os sessenta e nove de Gottlieb - parecia ter trinta anos menos e ser meio século mais alegre.

Quando Sondelius percebeu esta prevenção, tentou vencê-la, tornando-se mais ruidoso, lisonjeiro e entusiástico do que nunca. No aniversário de Gottlieb, deu-lhe um espantoso smoking-jacket de veludo cereja e malva, e, quando visitava a casa de Gottlieb, o que acontecia com freqüência, Gottlieb tinha de enfiar aquela coisa espantosa e pigarrear, enquanto Sondelius o assaltava com tonitruantes condenações de uma sopa medíocre e de músicos medíocres... Mas que Sondelius renunciava a jantares surpreendentemente decorativos por causa destas visitas, Gottlieb nunca o soube.

Martin encostava-se a Sondelius, à procura de ânimo, como se encostava a Terry em busca de concentração. Animo e concentração eram necessidades, nesses dias de um Instituto que enlouquecera, para quem quisesse fazer o seu serviço.

E Martin fazia-o.

Após uma conferência com Gottlieb e uma inquieta conversa com Leora sobre o perigo de trabalhar com os germes, voltara-se para a peste bubônica, para as possibilidades de preveni-la e de curá-la com o fago.

Quem ouvisse Martin interrogar Sondelius acerca da sua experiência com as epidemias de peste, teria acreditado que ele achava deliciosa a Morte Negra. Quem o contemplasse quando inoculava o horror em ratinhos astutos, enquanto ria para eles e lhes dizia nomes carinhosos, tê-lo-ia julgado louco.

Verificou que os ratos alimentados com o fago não sucumbiam sob a peste; que, depois do tratamento com o fago, o Bacilus pestis desaparecia de ratos portadores que, sem com isso morrerem, conservavam e propagavam a peste crônica; e que, finalmente, podia curar a moléstia. Ficou tão absorto, feliz e nervoso, como nos primeiros dias do Princípio X. Trabalhava durante toda a noite... ao microscópio, debaixo de uma lâmpada solitária, pescando com uma pipeta de vidro, fina como um cabelo, um único bacilo da peste.

Para proteger-se contra a infecção pelas pulgas dos ratos que empregava, Martin, enquanto trabalhava com animais, usava luvas de borracha, botas altas de couro e elásticos nas mangas da camisa. Estas precauções faziam-no vibrar e, para os outros membros do McGurk, encerravam algo da magia esotérica dos alquimistas. Transformou-se, parcialmente, em herói e, gradualmente, em alvo do ridículo. Os pesquisadores não estão mais livres do enfadonho vício dos comentários joviais do que os cordiais negociantes nos seus escritórios ou os velhos resmungões nas aldeias. Os químicos e biólogos chamavam-lhe "A Praga", recusavam-se a ir ao seu laboratório e tentavam evitá-lo nos corredores.

Enquanto passava fluentemente de experiência para experiência, enquanto o drama da ciência o obcecava, pensava muito pouco em si próprio e verificava que os outros o levavam a sério. Publicou um cauteloso artigo sobre o efeito do fago na peste, o qual foi mencionado em numerosas revistas científicas. Mesmo o fatigado Gottlieb foi encomiástico, embora pudesse prestar apenas um pouco de atenção e nenhum auxílio. Mas Terry Wickett permaneceu completamente frio. Mostrou, diante da obra até certo ponto brilhante de Martin, apenas um entusiasmo suficiente para indicar que não sentia inveja; não deixou de perguntar se, com a sua nova experiência, Martin continuava o seu inquérito em torno da natureza fundamental de todos os fagos, e o seu estudo de química física.

Depois, Martin teve um assistente como se concebem poucos, e esse assistente foi Gustaf Sondelius.

Sondelius estava desanimado em relação à sua Escola de Medicina Tropical. Andava à cata de um novo incômodo. Vivera sob diversas epidemias e olhava para a peste com um ódio apaixonado. Quando compreendeu a obra de Martin, exclamou, com expressão admirativa:

- Ai, Jesus! Talvez você tenha dado com a coisa, melhor do que Yersin, Haffkine ou outro qualquer! Talvez cure toda a gente da peste. os pobres diabos da índia. milhões de pessoas. Quero entrar nisso!"

Tornou-se o colaborador de Martin; sem pagamento, sem cansaço, não muito hábil, precioso na sua exuberância. Tal como Martin, amava a irregularidade; por princípio, nunca tomava as refeições à mesma hora numa série de dois dias, e, por gosto, trabalhava durante toda a noite e fazia versos, versos um tanto maus, à alvorada.

Martin fora sempre o caçador solitário. A coisa que mais gostava em Leora era possivelmente a sua capacidade singular para se manter alegremente não existente, mesmo quando estava presente. A princípio, ficou aborrecido com a presença turbulenta de Sondelius, por mais interessante que achasse o seu entusiasmo pelos ratos portadores da peste (aos quais Sondelius não odiava, mas que, com amoroso zelo, havia chacinado aos milhões, com uma romântica preferência por gases venenosos a ratoeiras). Mas o Sondelius que era exuberante na conversa podia ser quase taciturno no trabalho. Sabia exactamente como segurar os animais enquanto Martin fazia injecções intrapleurais; fazia culturas de Bacilus pestis; quando o técnico de Martin ia para casa apenas alguns minutos depois da meia-noite (o rapaz gostava de Martin e tinha muito bom conceito da ciência, mas cultivava o preconceito de dormir seis horas diárias e ver, de vez em quando, a mulher e os filhos, em Harlem), Sondelius, sempre jovial, esterilizava seringas e agulhas, e marchava pesadamente para o biotério, em busca de vítimas.

A mudança, em virtude da qual Sondelius se transformou, e mestre de Martin, em seu escravo, foi tão inconsciente, e Sondelius, apesar de todo o seu amor pickerbaughiano ao sensacionalismo, dava tão pouca importância às posições ou ao prestígio, que nenhum dos dois notou que houvera uma mudança. Fumavam cigarros um do outro; saíam às horas mais estranhas para tomar café com flapjacks num restaurante nocturno; e, juntos, manipulavam provetas saturadas de morte.

 

Do lunão, na China, dos bazares coloridos e barulhentos, arrastou-se uma coisa invisível ao sol e vigilante na treva, e foi-se arrastando, sinistra, sem parar; arrastando-se através do Himalaia, através de mercados murados, através de um deserto, ao longo de tórridos rios amarelos, para dentro do arraial de uns missionários norte-americanos - arrastando-se, silenciosa, segura; e, aqui e ali, à sua passagem, um homem enegrecia e ficava inerte sob a peste.

Em Bombaim, um novo guarda do porto, ignorando as coisas, fez grande festa, durante o arroz com a família, em torno de um novo e estranho costume dos ratos.

Estes príncipes dos canos de esgoto, tão difíceis de apanhar, tinham enlouquecido. Andavam pelo pavimento do armazém, sem dar atenção ao guarda, saltavam como se (o guarda disse-o jocosamente) quisessem voar, e imediatamente caíam mortos. Tocara-lhes, mas não se mexiam.

Três dias depois, esse guarda do porto morreu de peste.

Antes de ele morrer, da sua doca levantou ferro para Marselha um navio com um carregamento de trigo. Não houve doença a bordo durante todo o percurso; não houve razão para que, em Marselha, ele não atracasse junto de outro cargueiro, nem para que este, dirigindo-se para Montevidéu sem nada mais sensacional do que uma discussão entre o comissário e o segundo oficial, por causa de um quinto ás, não atracasse perto do endown Castle, que ia partir para St. Hubert, a fim de acrescentar cacau à sua carga de madeira.

Na viagem para St. Hubert, um miserável dispenseiro, natural de Goa, e, depois dele, o criado do salão de refeições do endown Castle, morreram com aquilo a que o capitão chamou mfluenza. Um grande incômodo foi o número de ratos que, não satisfeitos com o regime alimentar de madeira, emigraram para o paiol de mantimentos, depois para o castelo de proa, e que, sem nenhuma razão perceptível, morriam ao longo da coberta. Dançavam comicamente antes de morrer, e ficavam junto dos embornais, rígidos e encolhidos.

E assim o Pendown Castle chegou a Blackwater, capital e porto de St. Hubert.

St. Hubert é uma ilhota situada ao sul das Antilhas, mas sustenta cem mil habitantes - plantadores ingleses e empregados de escritório, índios que trabalham na abertura de estradas, negros das lavouras de cana-de-açúcar, comerciantes chineses. Há história nas suas areias e nos seus picos. Aqui, os piratas querenaram os seus navios; além, o marquês de Wimsbury, quando enlouqueceu, dedicou-se ao conserto de relógios e mandou os escravos queimar todos os canaviais.

Acolá, esse camponês galante, Gaston Lopo, trouxe Madame de Mermelont e viveu no fausto até que os escravos, os quais se comprazia em mandar açoitar freqüentemente, o surpreenderam a fazer a barba, e imediatamente a espuma do sabão ficou extravagantemente manchada de sangue.

Hoje, St. Hubert é, toda ela, plantações de cana e automóveis Ford, laranjas e tanchagens, nozes vermelho-amareladas dos cacaueiros, bananeiras, seringueiras e bambuais, igrejas anglicanas e capelas, lavadeiras de cor esfregando a roupa debaixo das paineiras, calor húmido, palmeiras reais, perpétuas que enchem de carmesim os vales; hoje, ela é toda esplendor, estupidez turística e telegramas com as cotações da cana, sob o Sol pródigo.

Blackwater, cidade plana e morta, de casas de argamassa cobertas de folha de ferro e estradas incandescentes e de um branco de osso, de hibiscos vermelho-salmão e depósitos com as sombrias bocas abertas para as ruas sufocantes, tem o porto de um lado e um pântano do outro. Mas, por detrás dela, ficam os morros de Penrith, em cujas alturas salubres e amenizadas pelas palmeiras está situada a Casa do Governo, voltada para as velas trêmulas.

Aqui mora, em avultado torpor, S. Ex. a o Governador de St. Hubert, coronel Sir Robert Fairlamb.

Sir Robert Fairlamb era um excelente homem, narrador de histórias apropriadas para as refeições, um homem que, num dia pagão, jamais fumava enquanto o vinho do Porto não desse sete voltas à mesa; mas era um governador execrando e um governador preocupado. O homem cuja posição social ficava abaixo da sua - o Honourable Cecil Eric George Twyford, um déspota magro, activo e narigudo, dono de uma plantação de cana-de-açúcar de uns dez mil acres, em St. Swithin's Parish, que conhecia vara por vara - dizia que S. Ex. a era um "idiota dorminhoco e insignificante", e versões da opinião chegaram um pouco rapidamente aos ouvidos de Fairlamb. Depois, para destruí-lo completamente, a Casa da Assembléia, que é a câmara de deputados de St. Hubert, deixou-se cindir pela contenda entre Kellett Perna Vermelha e George William Vertigan.

Os Pernas Vermelhas eram uma tribo pobre de escoto-irlandeses, que haviam chegado a St. Hubert como servos assalariados, duzentos anos atrás. A sua maioria era ainda constituída por pescadores e capatazes das plantações, mas um deles, Kellett, homem de boca pequena, irascível e diligente, subira de servente de escritório a proprietário de uma companhia de navegação e, enquanto o pai continuava a estender as redes na costa de Point Carib, Kellett era o flagelo da Casa da Assembléia e um cão de guarda da economia - particularmente de qualquer economia que aborrecesse o deputado, seu colega, George William Vertigan.

George William, conhecido ora pelo nome de Velho Jeo Wm, ora por O Rei da Casa de Gelo (aquele bar sedutor e ruinoso), nascera nas traseiras de uma igreja não conformista, no Lancashire. Era proprietário do Bazar Azul, o maior armazém de St. Hubert; foi a causa do contrabando de tabaco para a Venezuela; andava tão cheio de canções, negligência e rum como Kellett Perna Vermelha andava cheio de números, inveja e honestidade.

Kellett e George William repartiam, entre si, a Casa da Assembléia. Não podia haver dúvida, para uma pessoa respeitável, quanto aos seus méritos: Kellett, o homem familiar, justo e sério, a carreira era uma inspiração para a juventude; George Wilham, o jogador, o bêbedo, o contrabandista, o mentiroso, o vendedor de vestuários de algodão em segunda mão, uma criatura cuja única excelência era a sua afabilidade barata.

O primeiro triunfo de Kellett em economia foi propor a emissão do melancólico cockney (um oboísta) que era o caça de ratos oficial de St. Hubert.

George William Vertigan insistiu, nos debates e, posteriormente, em discussão privada com Sir Robert Fairlamb, em que os ratos destroem os alimentos e espalham, provavelmente, doenças, pelo que Sua Excelência devia vetar o projecto. Sir Robert ficou perturbado. Mandou chamar o chefe do Serviço Médico, Dr. R. E. Inchcape Jones (que preferia, porém, que lhe chamassem senhor, e não doutor).

O Dr. Inchcape Jones era um homem magro, alto, irritável, ainda novo, sem entranhas. Saíra de casa havia apenas dois anos, e queria voltar para casa, para aquela parte especial da casa representada pelos chás e partidas de tênis em Surrey. Declarou a Sir Robert que os ratos e as suas pulgas indefectíveis transportam doenças - peste, icterícia tóxica, sodóku e possivelmente lepra - mas que estas doenças não existiam e, consequentemente, não poderiam vir a existir em St. Hubert, excepção feita da lepra, que era um castigo natural de raças indígenas. Na realidade, frisava Inchcape Jones, nada existia em St. Hubert excepto malária, preguiça e uma estupidez animalesca geral, mas, se alguns Pernas Vermelhas como Kellett aspiravam a morrer de peste e de sodóku, porque haviam de opor-se-lhes as pessoas decentes?

Assim, pelo poder soberano da Casa da Assembléia de St. Hubert e de S. Ex. a o Governador, o cockney encarregado dacaça aos ratos, e a sua bamboleante e jovem assistente, foram constrangidos a deixar de existir. O caçador de ratos transformou-se em chauffeur. Transportava turistas canadianos e norte-americanos, que interrompiam a viagem em St. Hubert para passar um ou dois dias entre Barbados e Trindade, procurando nas serras os caminhos que considerava mais fáceis de vencer com o seu carro em segunda mão, e dando-lhes informações erradas em relação às flores. A assistente do caçador de ratos transformou-se numa respeitável contrabandista e chefe de um coro metodista wesleyano. E, quanto aos ratos, floresceram, espalharam a sua alegria pela terra e cada fêmea produziu de dez a duzentos ratinhos por ano.

Não eram vistos com freqüência durante o dia. "Os ratos não aumentaram; os gatos matam-nos" - dizia Kellett Perna Vermelha. Mas, à noite, eles faziam travessuras nos armazéns de gêneros, entravam e saíam dos veleiros, ao longo do cais. Faziam incursões pelo campo e concediam as suas pulgas a uma espécie de esquilos terrícolas, que abundavam em torno da localidade de Carib.

Ano e meio após a demissão do caçador de ratos, quando o Pendown Castle chegou de Montevidéu e atracou ao trapiche Councillor Pier, mil olhinhos cintilantes o contemplaram, de entre as estacas.

Por fazer parte da rotina, e não, certamente, por uma coisa relacionada com os óbitos causados por aquilo a que o comandante chamara influenza, a tripulação do Pendown Castle colocou protectores contra ratos nos cabos de amarração, mas não retirou a prancha durante a noite e, de vez em quando, um rato deslizava para terra com o propósito de buscar entre os seus parentes de Blackwater uma comida mais untuosa do que madeira dura. O Pendown partiu amavelmente para a sua terra, e de Avonmouth veio um telegrama para o chefe do Serviço Médico, Inchcape Jones, anunciando que o navio estava retido, que houvera outros óbitos entre a tripulação... e que a causa era a peste.

No conciso texto a palavra parecia escrita a fogo, e este fogo parecia calcinar até aos ossos.

Dois dias antes da chegada do despacho telegráfico, o patrão de uma barcaça de Blackwater fora acometido de um mal desconhecido, muito desagradável, com delírio e bubões. Inchcape Jones disse que podia não ser a peste, porque nunca houvera peste em St. Hubert. O seu colega Stockes replicou que talvez não pudesse haver peste, mas que aquilo era peste e da boa.

O Dr. Stockes era um homem magro e seco, médico distrital de St. Swithin Parish. Não se circunscreveu ao sector rural de St. Swithin, a que pertencia, mas meteu-se em toda a ilha, aborrecendo Inchcape Jones. Era bacharel em Medicina pela Universidade de Edimburgo; servira na selva africana; tivera febre amarela, cólera e muitas outras doenças razoáveis; e viera para St. Hubert apenas para recuperar os corpúsculos vermelhos do sangue e incomodar o infeliz Inchcape Jones. Não era um homem refinado; batera Inchcape Jones ao tênis, com um saque ntratável e pouco desportivo - a espécie de saque que se espera de um norte-americano.

E esse Stockes, esse pedante, esse terrível importuno, julga-se um bacteriologista amador! Quase excedia as medidas vê-lo arrastar-se pelos armazéns, caçar ratos, fazer culturas das arrigas das pulgas e, depois, vir meter-se no gabinete - magro e Pálido, cabelos ruivos e cara vermelha - para insistir que elas eram portadoras da peste.

- Caro colega, sempre há alguns Bacilus pestis entre os ratos-dizia Inchcape Jones, com uma atitude afável, mas vaga.

Quando o patrão da barcaça morreu, Stockes, irritante, solicitou que se declarasse publicamente que havia peste em St. Hubert.

- Ainda que seja peste, o que não é certo - disse Inchcape Jones -, não há razão para causarmos alvoroço e assustarmos toda a gente. Foi um caso esporádico. Não haverá outros.

Houve outros, imediatamente. Em uma semana, três outros trabalhadores da zona do porto e um pescador de Point Carib caíram com algo que, mesmo Inchcape Jones o reconheceu, se parecia desagradavelmente com a descrição da peste em Doenças Tropicais, de Manson: "Uma fase prodrómica caracterizada por depressão, anorexia, dor nos membros", depois a febre, a vertigem, a fisionomia angustiada, os olhos inflamados e encovados, os bubões na virilha. Não era uma doença bonita. Inchcape deixou de se tornar tagarela e jovial em matéria de piqueniques e tornou-se quase tão sombrio como Stockes, Mas, em público, ainda mostrava esperança, ainda negava; e St. Hubert a ignorar... a ignorar...

 

Para os vagabundos e amantes da bebida, o lugar mais agradável da cidade bastante insípida e de tectos de folha que se chama Blackwater é o bar e restaurante chamado Casa de Gelo.

Fica no andar situado por cima da Agência de Navegação Kellet e da loja onde um chinês, que passa por formado em Oxford, vende conchas de tartaruga lavrada e cocos com a horrível aparência de um crânio contraído pelos caçadores de cabeças. Excepção feita do terraço, onde a gente almoça e olha para mendigos índios, de tanga, acocorados, e para crianças inglesas de extraterrena palidez de pérola, que brincam na savana, toda a Casa de Gelo é uma grande penumbra de sonho em que o freguês não tem mais do que um vago conhecimento de grades mouriscas, de uns toques de douradura nas paredes caiadas, de um balcão de mogno, pesado e assombrosamente comprido, de aparelhos automáticos para venda de chocolates e de mesas com placas de mármore cercando a sua.

Aqui, à hora do cocktail, com os rostos pálidos e capacetes coloniais, encontram-se todos os dominadores brancos de St. Hubert que não pertençam a uma classe suficientemente elevada para entrar no Devonshire Club: empregados de agências de navegação, comerciantes que não têm avós, os secretários dos Inchcape Jones, os italianos e portugueses que passam contrabando para a Venezuela.

Acalmados porswizzles de rum, esses aperitivos acres e envolventes que só atingem a sua mortal perfeição quando preparados pelos turbilhonantes shakers dos negros do balcão da Casa de Gelo, os expatriados ficam em paz, e, tomando outra dose, ficam certos mais uma vez (visto que durante vinte e quatro horas, desde a última hora do cocktail, tinham perdido a certeza) de que no ano seguinte voltarão para casa. Sim, diminuirão a bebida, farão exercícios na frescura da alvorada, deixarão finalmente de beber, tornar-se-ão fortes e prósperos e voltarão para casa... os comedores de lódão... há lágrimas em seus olhos quando, na penumbra da Casa de Gelo, pensam em Picadilly ou nas eminências de Quebeque, de Indiana ou da Catalunha, ou nos tamancos de Lancashire... Nunca voltam para casa. Mas têm sempre novas e reconfortantes horas de cocktail na Casa de Gelo, até morrerem, e os outros homens perdidos comparecem aos seus funerais e cochicham entre si sobre a suapróxima volta para casa.

Pois bem, George William Vertigan, proprietário do Bazar Azul, era o monarca incontestado da Casa de Gelo. Era um homem grosso e rosado, o tipo de inglês que se vê nos Midlands, o tipo que é excessivamente não conformista ou excessivamente alcoólico, e George William não era não conformista. Todos os dias, das cinco às sete, estava inclinado para o balcão nunca bêbedo, nunca completamente bom, sempre cheio de melodia e de afabilidade; o único homem que não tinha saudades de casa, porque não tinha lembranças de nenhuma excepto da Casa de Gelo.

Quando murmuraram que um homem morrera de algo que Poderia ser a peste, George William anunciou à sua corte que se tosse verdade, isso viria a calhar para Kellet Perna Vermelha. Mas todos sabiam que o clima das Antilhas excluía a peste.

O grupo, a tremer à beira do pânico, cobrou novo ânimo.

Duas noites depois é que rastejou na Casa de Gelo o boato de que George William Vertigan morrera.

 

Ninguém ousava falar nisso, quer no Devonshire Club, quer na Casa de Gelo, quer no parque tocado pela viração e pelo mar, onde os negros se reúnem depois das horas de trabalho; mas todos ouviram a notícia, quase sem escutar, dessa morte... e daquela... e de outra. Ninguém queria apertar a mão do seu mais velho amigo; todos fugiam de todos os outros, embora os ratos lealmente andassem com eles; e através da ilha galopou o Pânico, que é mais assassino do que a sua irmã, a Peste.

E continuava a não haver quarentena, a não haver conhecimento oficial da peste. Inchcape Jones vomitou débeis proclamações sobre a inconveniência de ajuntamentos públicos demasiado grandes, e escreveu para Londres a pedir informações sobre o profiláctico de Haffkine; mas, para Sir Robert Fairlamb, protestou: "Sim, tem havido apenas alguns óbitos, e acho que já passou tudo. Quanto a essas sugestões de Stokes, no sentido de se queimar a aldeia de Carib, apenas porque houve alguns casos... com efeito! Isso é um despropósito! E soube que, se estabelecêssemos quarentena, os armadores tomariam as medidas mais severas contra administração. Seria a ruína do turismo e do comércio de exportação."

Mas Stokes, de St. Swithin, escreveu em segredo ao Dr. Max Gotriieb, director do Instituto McGurk, a dizer que a peste estava prestes a inflamar-se violentamente e a consumir totalmente as Antilhas; quereria o Dr. Gottlieb fazer alguma coisa?

 

Talvez houvesse no coração sombrio de Max Gottlieb uma diabólica insensibilidade para com a divina piedade, para com a Humanidade sofredora; talvez houvesse um simples ressentimento para com os médicos que consideravam a sua ciência apenas de valor como instrumento de publicidade; talvez houvesse a obscura, premente e inescrupulosa exigência de isolamento, por parte do homem de gênio. O certo, porém, é que ele, que vivera para estudar métodos destinados a imunizar a Humanidade contra as doenças, tinha pouco interesse em utilizar efectivamente esses métodos. Era como um pintor fabuloso, tão desdenhoso para com o gosto popular que, após uma vida de criação, destruísse tudo quanto fizera, por temor de ser desfigurado e escarnecido pelos olhos obtusos da turba.

A carta do Dr. Stokes não foi a única advertência recebida por ele de que a peste marchava através de St. Hubert, de que amanhã poderia saltar para Barbados, para as ilhas Virgens... para Nova Iorque. Ross McGurk era um imperador da nova era, mais bem servido do que qualquer sátrapa enclausurado da Antigüidade. Os comandantes dos seus navios entravam numa centena de portos; os seus caminhos de ferro invadiam florestas; os correspondentes mandavam-lhe informações confidenciais sobre a próxima eleição na Colômbia, a safra de cana em Cuba, o que Sir Robert Fairlamb dissera ao Dr. R. E. Inchcape Jones, no vestíbulo do seu bungalow. Ross McGurk, e depois "ele Max Gottlieb, sabiam melhor do que os comedores de lódao da Casa de Gelo quantos casos de peste havia em St. Hubert.

Contudo, Gottlieb não se comovia; continuava a considerar a estrutura química desconhecida dos anticorpos, interrompido por dúvidas sobre se Pearl Robbins tinha lápis em número suficiente; se ficaria bem mandar, naquela tarde, o Dr. Holabird receber a missão científica da Letônia, para que o Dr. Sholtheis pudesse comparecer à Conferência Anglicana sobre a Conservação da Hóstia.

Era assaltado por gente que fazia perguntas: funcionários de Saúde Pública, um certo Dr. Almus Pickerbaugh, congressista que passava por ser popular em Washington, Gustaf Sondelius, e um Martin Arrowsmith que não podia (porque era demasiado grande ou demasiado pequeno) alcançar inteiramente a indiferença concentrada de Gottlieb.

Constava que o Arrowsmith do McGurk possuía algo que podia extirpar a peste. Chegavam cartas apelando para Gottlieb: "Poderá ficar de braços cruzados, com o meio de salvação nas mãos, e ver milhares de infelizes morrerem em St. Hubert e, o que é mais, irá permitir que a peste hedionda consiga fincar pé no hemisfério ocidental? Caro amigo, este é o momento de o senhor abandonar os seus devaneios científicos e agir!"

Depois, Ross McGurk, por cima de uma reconfortante fatia de carne, insinuou, sem muita discreção, que chegara a oportunidade para o Instituto adquirir fama mundial.

Fosse a pressão de McGurk ou as exigências dos homens de espírito público, fosse a própria imaginação de Gottlieb que despertara o suficiente para imaginar a remota miséria dos negros nas plantações de cana, a verdade é que mandou chamar Martin e lhe disse:

- Fui informado de que há peste pneumónica na Manchúria e peste bubônica em St. Hubert, nas Antilhas. Se tivesse a certeza, Martin, de que você aplicaria o fago apenas a metade dos pacientes conservando os outros para comparação, sob condições higiênicas normais, mas sem o fago, você poderia determinar precisamente o seu valor, de modo tão completo como o que temos em relação à transmissão da febre amarela pelo mosquito, e então enviá-lo-ia em missão a St. Hubert. Que acha?

Martin jurou por Jacques Loeb que observaria as condições de prova; determinaria para sempre o valor do fago, pelo contraste entre pacientes tratados e não tratados, e assim, talvez, terminaria para sempre com toda a peste; havia de endurecer o coração e conservar os olhos bem abertos.

- Conseguirei que Sondelius vá consigo - disse Gottlieb. Tocará os tambores e assim conseguirá nos jornais os elogios que, segundo me disseram, um director deve obter.

Sondelius não se limitou a concordar - insistiu.

Martin nunca vira um país estrangeiro - pois o Canadá, onde passara um período de férias a trabalhar no restaurante de um hotel, não se lhe afigurava país estrangeiro. Não podia dar-se inteira conta de que ia efectivamente para um lugar de palmeiras, rostos trigueiros e lânguidas Noites de Natal. Atirou-se ao fabrico (enquanto Sondelius andava pela cidade a mandar fazer fatos de linho e à procura de um novo e competente capacete colonial) de fago antipestoso em larga escala: cem litros, fechados em frágeis ampolas. Era o mesmo Martin normal, porém as conferências e os poderes do mundo espreitavam-no.

Havia uma reunião do Conselho de Administração, para tomar conhecimento dos métodos de Martin e de Sondelius. Para isto, o reitor da Universidade de Wilmington desistiu de uma promissora entrevista com um ex-aluno milionário, Ross McGurk desistiu de uma partida de golfe, e um dos três cientistas da Universidade veio de avião. Chamado ao seu laboratório, Martin, um homem bastante novo, de colarinho mole e enrugado, ainda aturdido com os pormenores dos frascos de Erlenmeyer, terra de infusórios e filtros estéreis, viu-se perante os homens de alegria condicionada, e verificou que já não estava escondido na invisibilidade da insignificância, mas era encarado como um chefe de quem se esperava não só que obrasse milagres como também que explicasse previamente quanto era importante, maduro e milagroso.

Ficou tímido diante da gravidade de óculos dos cinco membros do Conselho, quando estes se sentaram, como um tribunal supremo, à mesa colocada sobre o estrado do Salão da Opulência - Gottlieb um pouco afastado, mas também tentando parecer grave e supremo. Sondelius, porém, ribombou porta dentro, entusiástico e tremendo, e subitamente Martin perdeu a timidez e a reverência para com o seu antigo mestre em Saúde Pública.

Sondelius queria exterminar todos os roedores de St. Hubert, forçar a adopção da quarentena, usar o sérum de Yersin e

O profiláctico de Haffkine, e dar o fago de Martin a toda a poPulação de St. Hubert, imediata e simultaneamente.

Martin protestou. No momento, parecia ser Gottlieb quem falava.

Sabia, e gritou-o a todos, que o sentimento humanitário tornaria impossível usar os pobres diabos que sofriam como simples objectos de experimentação, mas precisava de ter pelo menos alguns autênticos doentes testemunhas e não seria ele, mesmo perante os conselheiros, não seria ele quem havia de permitir que a experiência fosse de tal modo empastada por um tratamento múltiplo que jamais se pudesse dizer se as curas eram devidas a Yersin, Haffkine, ao fago, ou a nenhum deles.

Os conselheiros adoptaram o seu plano. Afinal de contas, embora desejassem salvar a Humanidade, não era melhor vê-la salva por um representante do McGurk, em vez de Yersin, ou Haffkine, ou o exótico Sondelius?

Ficou combinado que, se Martin encontrasse em St. Hubert um distrito que estivesse relativamente isento de peste, procuraria separar ali casos-testemunhas, uns tratados com pequenas doses de fago, outros quase sem tratamento algum, Nos distritos gravemente assolados, poderia dar o fago a todos, e se os índices da moléstia caíssem de modo extraordinário seria uma prova secundária.

Se o governo de St. Hubert, cujo apoio não haviam solicitado, daria poderes a Martin para experimentar e autoridade policial a Sondelius, os conselheiros não o sabiam. O chefe do Serviço Médico, um tipo chamado Inchcape Jones, respondera aos seus telegramas: "Nenhuma epidemia séria, nenhuma necessidade auxílio." McGurk, porém, prometeu que manobraria os seus numerosos cordéis, a fim de que a Comissão McGurk (Presidente, Martin Arrowsmith, Bacharel em Artes Liberais, Doutor em Medicina) fosse bem recebida pelas autoridades.

Sondelius insistiu ainda que, nesta crise, a simples experimentação era desumana, mas escutou a fúria arrazoada de Martin com o entusiasmo que esta eterna criança de pescoço de touro tinha por tudo quanto soava a novidade e, se possível, a verdade. Ao contrário de Almus Pickerbaugh, não considerava uma diferença de opinião científica como um ataque ao seu caracter.

Falou em ir por conta própria, independentemente de Martin e do McGurk, porém deixou-se conquistar quando os conselheiros murmuraram que, embora realmente desejassem que ele não usasse os soros a seu bel-prazer, fornecer-lhe-iam aparelhagem para matar todos os ratos que quisesse.

Então Sondelius sentiu-se feliz:

"E olhem bem para mim! Sou o capitão-general dos matadores de ratos! É só entrar num armazém e os ratos dizem: "Aí vem esse maldito velho, o Tio Gustaf... nada nos resta fazer" e viram logo as patinhas para o ar e morrem! Estou satisfeito por ter os senhores por trás de mim, porque estou falido comprei algumas acções de petróleo que não se agüentam agora... e precisarei de uma porção de gás de ácido cianídrico. Oh, esses ratos! Queria que me vissem! Bem, vou telegrafar a dizer que não posso fazer uma palestra que marquei para a próxima semana... fui fazer uma conferência numa escola feminina, eu, que sei falar a língua dos ratos e conheço sete belas e mortais espécies de ratoeiras!"

 

Martin jamais conhecera perigo maior do que o de nadar numa enchente como médico estagiário. Desde o acordar até à meia-noite, ficava tão absorvido pelo fabrico do fago e escutava tantos conselhos não pedidos que lhe davam todos os membros do Instituto que não podia pensar nos perigos de uma epidenia de peste; mas, quando ia para a cama, quando o cérebro continuava a remexer nos seus planos, apresentava-se-lhe perfeita e desagradavelmente a possibilidade de morrer.

Quando Leora recebeu a idéia de que ele ia partir para uma ilha freqüentada pela morte, para um lugar de maneiras, árvores e caras estranhas (um lugar, provavelmente, onde se falavam línguas engraçadas, onde não havia cinema nem pasta para dentes), afastou-se secretamente com certa idéia, a fim de olhá-la e examiná-la, exactamente como muitas vezes roubava da mesa coisas de um prato e escondia-as para, absorta, as comer a horas impróprias da noite, com a expressão deliciada de uma criança má. Martin ficou satisfeito por não lhe ter ela, com a sua preocupação, aumentado os receios. Mas, passados três dias, Leora falou:

- Vou contigo.

- Nem por sombras!

- Pois vou!

Não há segurança.

Tolo! Qual não há? Podes encher-me com esse teu maravilhoso fago e ficarei absolutamente boa. Como é bom ter um marido que cura as doenças! vou gastar algum dinheiro em roupas leves, embora aposte que St. Hubert não é mais quente do que Dakota em Agosto.

- Mas escuta, Lee querida! Acho que o fago imunizará contra a peste... naturalmente também tomarei fortes doses dele!... mas não sei e ainda que ele fosse praticamente perfeito, restariam pessoas a quem não protegeria. Tu não podes ir, queridinha. Mas estou morto de sono...

Leora agarrou-o pelas lapelas, tão comicamente furiosa como uma gatinha que finge arranhar por brincadeira, mas nem os seus olhos nem a voz meiga pareciam cômicos; era a eterna meiguice das mulheres dos soldados:

- Sandy, não sabes que não tenho outra vida que não sejas tu? Poderia ter, mas palavra que fiquei contente por me teres absorvido. Sou uma preguiçosa, uma inútil, uma insignificante, menos talvez no tocante ao teu conforto. Se estivesses fora, e eu não soubesse que estavas bem, ou se morresses e alguém mais se encarregasse do teu corpo que eu amo tanto... não achas que o tenho amado, querido?... enlouqueceria. É isso mesmo... então não vês? enlouqueceria! É assim como... Eu sou tu, e preciso de estar junto de ti. E hei-de ajudar-te! Farei as culturas, e tudo. Sabes quantas vezes te tenho ajudado. Oh, não te ajudei muito no McGurk, com todas aquelas medonhas complicações, mas ajudei-te em Nautilus... ajudei, não é verdade?... e talvez em St. Hubert - a sua voz era a das mulheres com o terror da meia-noite - talvez não aches ninguém que possa ajudar-te mesmo o pouco que eu te ajudo, e cozinharei, e tudo...

- Querida, não tornes isto mais difícil para mim. De qualquer modo, vai ser bastante difícil...

- Arre, Sandy Arrowsmith, não empregues essas expressões antigas e petulantes com que os maridos enrolam as esposas há séculos! Não sou mais esposa do que tu és marido. És um marido abominável! Não me dás a menor importância. O único momento em que sabes que existo é quando cai um maldito botão... e não compreendo como podem cair quando a gente os revista e cose de novo aqueles que estão frouxos... e nessas alturas só sabes gritar comigo. Mas não me importo. Prefiro-te a qualquer outro marido decente... Bem, já disse. vou.

Gottlieb opôs-se, Sondelius berrou, Martin aborreceu-se, mas Leora foi, e Gottlieb - o seu único acto de astúcia como director do Instituto - nomeou-a "Secretária e assistente técnica da Missão McGurk de combate à peste e experimentação do bacteriófago nas Pequenas Antilhas", e, docemente, fixou-lhe um ordenado.

 

Na véspera da partida da Missão, Martin insistiu para que Sondelius tomasse a sua primeira injecção de fago. Ele recusou.

- Não, não tocarei nisso enquanto você não se converter à Humanidade, Martin, e não der isso a toda a gente, em St. Hubert. E há-de converter-se! Espere até vê-los sofrer aos milhares. Você nunca viu uma coisa assim. Então esquecer-se-á da ciência e tentará salvar todos. Não me dará nenhuma injecção enquanto não as aplicar a todos os meus amigos pretos de lá.

Naquela tarde, Gottlieb chamou Martin ao seu gabinete. Falou com certa hesitação.

- Parte para Blackwater amanhã.

- Sim, senhor.

- Aããh... Você pode vir a desaparecer. Eu... Martin, é o mais antigo dos meus amigos de Nova Iorque, você e a boa Miriam. Diga-me: a princípio, você e Terry acharam que eu não aceitaria a direcção. Não acha agora que fiz bem?

Martin ficou perplexo, depois mentiu, apressado, dizendo as frases confortantes esperadas.

- Alegro-me por pensar assim. Tem visto o que tenho tentado fazer. Cometi erros, mas parece-me que começo a ver um verdadeiro ambiente científico formar-se finalmente no Instituto, depois da caça à popularidade, da parte de Tubbs e Holabird... Precisava de descobrir como livrar-me de Holabird, esse vincador de calças da ciência... Se ao menos ele não se desse tão bem com Capítola... socialmente, como dizem eles! Mas, de qualquer forma... Há os que diziam que Max Gottlieb não seria capaz desse brinquedo de criança: dirigir uma instituição. Uh! Comprar cadernos! Ajustar mulheres para esfregar o soalho! Não... o soalho é esfregado por mulheres ajustadas pelo superintendente do edifício, nicht wabr? Mas, de qualquer forma... Não senti despeito quando Terry e você duvidaram. Sou Um tipo com espírito bastante largo para permitir que cada Um tenha a sua opinião. Mas causa-me satisfação... quero muito bem a ambos... os únicos verdadeiros filhos que tenho... Gottlieb pousou a mão descarnada no braço de Martin. Causava prazer e SatisfaÇão o facto de você compreender agora que começo a

fazer um verdadeiro Instituto científico. Apesar de ter inimigos.

Martin, você talvez pensasse que gracejava se lhe contasse a trama existente contra mim... Até Yeo. Eu pensava que ele fosse meu amigo. Pensava que fosse um verdadeiro biólogo. Mas justamente hoje ele veio procurar-me para me dizer que não consegue obter ouriços-do-mar suficientes para as suas experiências. Como se eu pudesse fazer ouriços-do-mar com o vento! Disse que o deixo com falta de material. Eu! Eu que sempre me bati... não me importo com o que eles pagam aos cientistas, mas sempre lutei, lutei contra aquele Silva imbecil e todos eles, todos meus inimigos... Você não sabe quantos inimigos tenho, Martin! Não ousam mostrar a cara. Sorriem para mim, mas cochicham... Holabird, por exemplo... está sempre a conspirar contra mim, tentando aliciar Pearl Robbins, mas ela é uma boa pequena, sabe o que estou a fazer, mas... - Parecia vacilante; olhou para Martin como se não o reconhecesse e disse, em tom suplicante; - Martin, estou a ficar velho... não em anos... é uma mentira dizer que tenho mais de setenta... mas tenho motivos de preocupação. Não leva a mal que lhe dê alguns conselhos, como fiz tantas vezes, por tantos anos? Embora agora não seja um aluno em Queen City... não, foi em Winnemac. É um homem e um verdadeiro trabalhador. Mas... Tome cuidado para que nada, nem mesmo o seu bom coração, estrague a sua esperiência em St. Hubert. Não zombo do humanitarismo como costumava fazer; agora, penso às vezes que esta vulgar e litigiosa raça humana pode ainda vir a ter tanta graça e bom gosto como os gatos. Mas se quisermos que assim seja, é preciso haver conhecimento. Há muitos homens, Martin, bondosos e capazes de solidariedade; mas muito poucos aumentaram o conhecimento. Você tem a oportunidade! Poderá ser o homem que exterminará toda a peste, e talvez o velho Max Gottlieb tenha contribuído para isso, talvez? Você não deve ser apenas um bom médico em St. Hubert. Deve ter piedade, sim, muita piedade das gerações e gerações que hão-de vir, e por amor delas deve-se recusar a ter piedade dos homens que vai ver morrer. Morrer... é a paz. Não permita que nada, nem a bela compaixão, nem o temor de você mesmo morrer, o impeça de levar até ao fim esta experiência contra a peste. E, como meu amigo... Se você fizer isto, algo ficará também da minha administração. Se ao menos pudesse haver uma só coisa que me justificasse...

- Escuta, Comprido - disse Terry, abruptamente -, vim aqui para te lembrar, por causa de São Gottlieb, que tomes as notas sobre o f ago diariamente e por extenso, e tudo a tinta!

- Terry, tenho a impressão de que achas que tenho uma bela probabilidade de não voltar, eu próprio, com as notas.

- Oooh, que cáustico que tu estás! - disse Terry, debilmente.

 

A epidemia em St. Hubert devia ter-se intensificado, pois, na véspera do embarque da Missão McGurk, o Dr. Inchcape Jones declarou que a ilha estava de quarentena. Podia-se entrar, mas ninguém podia sair. Tomou esta medida a despeito da irritação do governador, Sir Robert Fairlamb, e dos protestos dos hoteleiros que viviam do turismo, dos ex-caçadores de ratos que transportavam os turistas , de Kellett Perna Vermelha, que lhes vendia passagens, e de todos os outros representantes do sólido comércio de St. Hubert.

 

Além das suas ampolas de fago e das seringas Luer para injecção, Martin fez preparativos pessoais para os trópicos. comprou, em dezassete minutos, um traje de Palm Beach, duas camisas novas, e, como St. Hubert era uma possessão inglesa e ouvira dizer que todos os súbditos ingleses usam bengala, comprou um bastão que o dono da loja lhe garantiu ser tão bom como a mais legítima cana-da-índia.

O céu, descobrindo sobre a amurada, voltava melancolicamente as costas e se afastava.

 

Como representante de Ross McGurk e das suas várias obras, más ou benevolentes, tiveram os dois camarotes de luxo na coberta de cima.

Martin sentiu muito frio sob uma tempestade de neve, em Sandy Hook, enjoou no cabo Hatteras, e no intervalo, sentiu cansaço e repousou; junto dele, Leora sentiu frio e enjoou com o decoro de uma dama, mas não sentiu cansaço algum. Insistia em transmitir-lhe informações do roteiro das Antilhas que ela comprara gravemente.

Sondelius exibia-se por todo o navio. Tomava chá com o capitão, comia com os marinheiros, entretinha-se em palestras intelectuais com o missionário negro alojado na 3.a classe. Podia ser ouvido - sempre podia ser ouvido: cantando no tombadilho, defendendo o bolchevismo contra o contramestre, discutindo combustão de petróleo com o imediato e explicando ao homem do bar como se faz um cocktail de gin. Organizou brincadeiras para as crianças da 3.a classe e pediu emprestado ao imediato um volume sobre navegação para estudá-lo entre as sessões de brincadeira.

Deu sabor à viagem ordinariamente circunspecta do Si. Buryan, mas cometeu um erro. Foi gentil para com Miss Gwilliam; procurou distraí-la com uma aventura aparentemente remota.

Miss Gwilliam era oriunda de uma das melhores famílias do seu bairro, em Nova Jersey; o pai era advogado e mordomo da igreja local, o avô fora um sólido fazendeiro. A circunstância de ela não ser casada, aos trinta e três anos, era devida inteiramente à preferência dos rapazes modernos pelas pequenas petulantes e que gostam de jazz; e ela não só era uma jovem delicadamente modesta como também uma cantora; com efeito, viajava Para as Antilhas a fim de preservar, para a reverente posteridade, as maravilhas da arte primitiva existentes nas baladas natiVas, as quais recolheria e cantaria para um público deliciado se conseguisse aprender a cantá-las.

Estudou Gustaf Sondelius. Ele era um pateta, em nada parecido com os cavalheirescos agentes de seguros e chefes de escritório que estava acostumada a encontrar no country club, e, o que era pior, não perguntava as suas opiniões sobre arte e boas maneiras. As suas histórias de generais e toda essa espécie de gente podiam ser consideradas como mentiras, pois andava misturado com sujos maquinistas. Precisava bastante das suas censuras brandas e joviais.

Quando estavam juntos na amurada e ele, na sua monótona e absurda cadência sueca, cantarolava que a noite era bonita, Miss Gwilliam observou: "Então, seu Bruto, que coisa bela fez hoje? Ou desta vez deu a alguém uma oportunidade de falar?"

Ficou placidamente espantada quando ele se retirou sem nada mostrar dessa reverência obediente que todo o exemplar da mulher norte-americana tem o direito de esperar de todos os machos, mesmo estrangeiros.

Sondelius veio lamentar-se para Martin:

- Comprido se é que posso chamar-lhe assim, como Terry... acho que você e o seu Gottlieb têm razão. É inútil salvar idiotas. É um grande erro ser natural. A gente devia ser sempre um medalhão, como o velho Tubbs. Só assim somos tratados com respeito, mesmo por parte de solteironas artísticas de Nova Jersey Que estranho é o amor-próprio! Eu, que fui amaldiçoado e maltratado por tantos graúdos, que uma vez fui retirado de uma prisão turca para ser fuzilado, nunca me ressenti tanto como agora, com essa indecente presumida. Ah, a presunção! É esse o inimigo!

Aparentemente, restabeleceu-se de Miss Gwilliam. Foi visto a discutir com o médico de bordo as suturas dos crânios dos negros, e inventou um jogo de cricket para a coberta. Mas, certa noite, quando estava sentado no social bali, a ler, de cabeça baixa, óculos traiçoeiros, boca cheia de vincos, Martin passou em frente da janela e viu, incrédulo, que Sondelius estava a envelhecer.

 

Estendido numa cadeira de braços, perto de Leora, Martin estudava-a, olhando atento para o seu pálido perfil, após tantos anos em que ela fora um elemento natural na sua existência. Meditou sobre ela como meditava sobre o fago; gravemente, concluiu que se havia descuidado com ela e, gravemente, começou a ser um bom marido.

- Agora, tenho uma boa oportunidade de ser humano, Lee; compreendo como te deves ter sentido solitária em Nova Iorque.

- Mas não me senti.

- Deixa-te disso! É claro que te sentiste solitária! Mas, quando voltarmos, reservarei para ti um pouco do meu tempo para... passearmos, irmos ao cinema e tudo. E mandar-te-ei flores, todas as manhãs. É um descanso a gente estar sentado aqui! Mas começo a pensar e a compreender agora que provavelmente me descuidei de ti... Dize-me, coração, aborrecias-te muito, muito?

- Mas não. Verdade!

- Não, não; diz-me de verdade.

- Mas nada tenho a dizer.

- Olha que tu, Leora! Agora que tenho a primeira ocasião em onze mil anos de pensar em ti e que confesso francamente que tenho sido negligente... E faço planos de te mandar flores...

- Escuta, Sandy Arrowsmith! Deixa de me incomodar! O que queres é o luxo de te atormentares, achando que tenho sido uma esposa infeliz, coitadinha, desditosa, como num romance. Tu estás a inventar um perfeito motivo de aborrecimento, porque, neste momento, não tens nenhum aborrecimento para gozar... Seria terrível, quando voltarmos para Nova Iorque, se te atirasses à tarefa de me procurar distracções. Farias isso como um boi. Teria de mostrar-me melosamente agradecida pelas flores, todos os dias... isto é, nos dias em que não te esquecesses!... e arrastar-me-ias para o cinema quando eu estivesse com vontade de ficar em casa a dormir...

- Minha Nossa Senhora, eu não...

- Por favor! És gentil e bom, mas és tão absorvente que tenho de ser o que tu queres, mesmo que seja ficar isolada. Mas... Talvez eu seja indolente. Gosto mais de andar à vontade, de fazer o que me apetece, do que ter de andar bem vestida, ser Popular na sociedade e todas essas coisas. Gosto de ficar a contemplar a casa... a propósito, queria mandar pintar de novo a cozinha, é tão bonita... e fingir que leio os meus livros em francês, e sair para dar uma volta, e olhar pelas janelas, e comer um ice cream soda; assim nem vejo o dia passar. Sandy, gosto muito, muito de ti; se pudesse, fingiria ser tão infeliz como o diabo, de "iodo que ficasses satisfeito, mas não sei mentir decentemente, so se' pregar mentiras como aquela da semana passada... Disse-te que não tinha comido nenhum bombom e que não estava nauseada, mas comera meia libra e estava quase a vomitar. Sabes uma coisa? Por Deus Nosso Senhor, sei que sou uma boa esposa!

Flutuaram de mares cinzentos para mares cor de púrpura, cor de prata. Ao anoitecer, ficavam junto da amurada, e ele sentia a vastidão do mar, da vida. Vivera sempre dentro da imaginação. Enquanto acotovelava as multidões, um marido novo e obscuro a correr para comprar uma posta de assado frio para o jantar, a caixa do seu cérebro era larga como o firmamento abobadado. Não via as ruas, mas microrganismos grandes como monstros da selva, milhas de frascos com uma espuma de bactérias, via-se a dar ordens ao seu ajudante de laboratório, e Max Gottlieb a dar-lhe sombriamente os parabéns. Os seus sonhos giravam sempre em torno do seu trabalho. Agora, não menos apaixonadamente, despertava para o navio, para o mar misterioso, para a presença de Leora, e gritou-lhe, no cálido crepúsculo do Inverno tropical:

- Querida, isto é apenas o primeiro dos nossos grandes passeios! Dentro de muito pouco tempo, se for bem sucedido em St. Hubert, começarei a ser levado a sério na ciência, e faremos uma viagem ao estrangeiro, à tua França, à Inglaterra, à Itália e a todo o Mundo!

- Achas? Oh, Sandy! Viajar!

 

Ele nunca veio a sabê-lo, mas, durante uma hora, no camarote vagamente iluminado pelas lâmpadas da saleta anexa, Leora ficou a olhá-lo, enquanto dormia.

Não era bonito; era grotesco como um cãozito a dormitar numa tarde quente. Os cabelos estavam em desalinho, o rosto afundado no travesseiro amarrotado que cingia com os dois braços. Ficou a olhá-lo, sorrindo, com os cantos dos lábios esticados como pequeninas flechas que vão ser lançadas.

"Como gosto dele, quando está todo desarranjado! Então não compreendes, Sandy, que fiz bem em vir? Andas tão cansado. Também tu podes adoecer... e ninguém senão eu saberia cuidar de ti. Ninguém conhece as tuas esquisitices... como detestas ameixas secas... e o resto. Cuidarei de ti noite e dia... o menor ruído acordar-me-á. E se precisares de gelo e de tomar remédios... Sim, também arranjarei gelo, nem que tenha de entrar em casa de um milionário para furtá-lo do seus highballs! Queridinho!"

Voltou o ventilador eléctrico para que o ar o atingisse mais directamente e, na ponta dos pés, entrou na sua circunspecta saleta. Não continha muitas coisas; uma mesa redonda, algumas cadeiras e um sibarítico armário embutido, de mogno e vidro, cuja utilidade nunca foi descoberta.

"Tudo tão... desajeitado. Acho que se pode arrumar melhor."

Mas não tinha talento para o arranjo de cadeiras e quadros na composição que torna humano um compartimento morto. Nunca, na sua vida, dedicara três minutos sequer ao arranjo de flores. Pareceu perplexa, sorriu, apagou a luz e deslizou para junto dele.

Deitou-se sobre a colcha do leito, uma figurinha sob o frívolo roupão, vencida pela languidez tropical. Reflectiu: "Gosto de um quarto pequeno, porque Sandy fica mais perto e as coisas não me atrapalham tanto. Como o homem é tirano! Qualquer dia, vou ter com ele e digo: "Vai para o diabo que te carregue! vou fazer isso! Querido, vamos juntos a França, tu e eu, sim?"

Adormeceu, sorridente, uma débil figurinha...

 

Divisaram montanhas envoltas na cerração e, no sopé, as fortificações coroadas de palmeiras, construídas em velhos tempos, contra os piratas. Na Martinica, viram casas de fachada branca, como na França provinciana, e um mercado efervescente, cheio de mulheres de cor, com lenços escarlates e azuis na cabeça. Passaram diante da quente Santa Lúcia e de Sabá, que é apenas um solitário vulcão. Devoraram pawpaws, fruta-pão e abacates, adquiridos a indígenas cor de café que vinham até junto do navio em nervosos barquitos; sentiram a moleza tropical das ilhas e sentiram o coração palpitar ao aproximarem-se de Barbados.

Um pouco adiante ficava St. Hubert.

Nenhum dos turistas tivera conhecimento da quarentena. Ficaram indignados pelo facto de a companhia os ter enviado ao encontro do perigo. No vento tépido, sentiram a peste.

O comandante tranquilizou-os com uma alocução formal. Sim, tocariam em Blackwater, o porto de St. Hubert, mas ancorariam ao largo; os passageiros que tinham St. Hubert como ponto de destino obteriam permissão para desembarcar na lancha do serviço sanitário e nenhuma pessoa de St. Hubert seria autorizada a embarcar - nada daquele foco de peste tocaria no vapor, excepto a mala oficial, que o médico de bordo desinfectaria.

(O médico de bordo, entretanto, perguntava a si próprio como é que se desinfectam malas... vejamos... talvez queimando enxofre em presença de vapor de água.)

O comandante treinara-se em oratória nas discussões com autoridades portuárias, e os turistas tranquilizaram-se. Martin, porém, murmurou para a sua Missão:

- Não tinha pensado nisso. Quando estivermos em terra, ficaremos praticamente prisioneiros enquanto durar a epidemia.

- Mas é claro! - disse Sondelius.

 

Deixaram Bridgetown, o aprazível porto de Barbados, já tarde. Era noite alta, e a maioria dos passageiros dormia, quando o navio chegou a Blackwater. Quando Martin saiu para a coberta húmida e deserta, Blackwater parecia irreal, asperamente inamistosa, e do futuro campo de batalha nada mais viu do que algumas luzes na praia, para além das águas inquietas.

Em torno do desembarque da missão havia algo receoso e ilícito. O médico de bordo andava abaixo e acima, e parecia embaraçado; ouvia-se o rosnar do capitão, na ponte; o imediato subiu a correr para conferenciar com ele e tornou a desaparecer em baixo; e ninguém aparecia para recebê-los. O vapor esperou, oscilando na ondulação, enquanto a praia parecia arrotar um miasma quente.

"E é nisso que vamos desembarcar e ficar! ", murmurou Martin para Leora, enquanto estavam parados perto da escada do portaló, ao lado das malas e caixas de fago, na coberta palpitante e que, aqui e ali, luzia na escuridão.

Apareciam passageiros de robe de chambre, tagarelando: "Sim, deve ser este o lugar, lá naquelas luzes. Deve ser medonho. O quê? Tem gente para desembarcar? Claro, os dois médicos. Mas eles têm coragem. Não tenho inveja deles!"

Martin escutava.

Da praia, uma luz oscilante começou a avançar para o navio, deslizou em volta da proa e parou ao lado da escada do portaló. Na meia-luz de uma lanterna erguida por um marinheiro ao pé da escada, Martin vislumbrou uma bela lancha coberta Pulada por marinheiros de uniforme naval e chapéus de palha de um preto vidrado, adornados de fitas, comandados por um homem com aspecto de escocês e uma espécie de capacete militar, pontiagudo, sobre um casaco civil.

O capitão desceu ruidosamente os degraus vacilantes da eSCotilha enquanto a lancha balouçava, fazendo cintilar o toldo moinado, manteve uma longa e intensa conferência com o comandante da lancha e recebeu uma mala postal, a única coisa que devia entrar a bordo.

O médico de bordo recebeu-a do capitão com respulsa, resmungando: "Agora onde vou arranjar um barril para desinfectar estas malditas cartas?"

Martin, Leora e Sondelius esperavam, sem alternativa.

Havia-se-lhes reunido uma mulher magra, de preto, que não tinham visto durante toda a viagem - um dos misteriosos passageiros que só são notados quando aparecem na coberta para desembarcar. Ia, evidentemente, para terra. Estava pálida, as mãos crispavam-se-lhe nervosamente.

O capitão gritou para cima:

- Muito bem... muito bem!... Podem descer agora. Queiram apressar-se. Tenho de prosseguir... Que contratempo!

O Si. Buryan não parecera grande nem luxuoso; mas agora era um castelo firme entre tempestades, o seu costado uma muralha maciça, quando Martin desceu, agarrando-se, à escada vacilante, e a pensar ao mesmo tempo em tudo isto: "Estamos como se caminhássemos para o cadafalso... eles levam a gente... não há possibilidade de resistir." E: "Estás a deixar a imaginação à solta; deixa-te disso! " E: "Será tarde demais para forçar Lee a ficar no vapor?." E, aflitivamente: "Nossa Senhora! Serão capazes de transportar o fago com cuidado? " Depois, viu-se na pequena plataforma quadrada, ao pé da escada do portaló; o costado do navio erguia-se sobre ele, iluminado pelas vigias dos camarotes e alguém ajudava-o a entrar na lancha.

Quando a desconhecida de preto entrou, Martin viu, à luz da lanterna, que os lábios se lhe apertaram, que o rosto perdera toda a expressão, como se fosse o rosto de alguém que esperasse sem esperança.

Leora apertou-lhe a mão com força, quando ele a ajudou a entrar para a lancha.

Martin murmurou, enquanto o vapor silvava:

- Depressa! Ainda podes voltar! Deves voltar!

- E deixar esta bonita lancha? Ora, Sandy! Repara que motor elegante ela tem!... Virgem, estou roxa de medo!

Quando a lancha começou a resfolegar, virou de bordo e rumou para as luzes trêmulas da terra, a dançar, erguendo e baixando a proa, o funcionário de cabelos ruivos perguntou a Martin:

- Os senhores são a Missão McGurck?

- Sim.

- Muito bem. - A voz aparentou satisfação, embora fosse fria, uma voz dinâmica e sem humor.

- O senhor. é o médico do serviço do porto? - perguntou Sondelius.

- Não; precisamente, não. Sou o doutor Stockes, de St. Swithin's Parish. Actualmente, somos todos quase todas as coisas. O médico de serviço do porto... faleceu há dois dias.

Martin pigarreou. Mas a imaginação deixara de perturbá-lo.

- O senhor é o doutor Sondelius, não é? Conheço a sua obra na África Oriental Alemã... estive lá também. E o senhor é o doutor Arrowsmith? Li o seu estudo sobre o fago da peste. Impressionou-me. Mas... quero aproveitar esta oportunidade para lhes falar antes que cheguem a terra... Os senhores vão encontrar oposição. Inchcape Jones, o chefe do Serviço Médico, perdeu a cabeça. Anda à roda, lanceta bubões... tem medo de queimar Carib, o maior foco da infecção. Arrowsmith, tenho uma idéia do que você quer fazer experimentalmente. Se Inchcape levantar obstáculos, venha procurar-me no meu distrito... se ainda estiver vivo. Stockes, é o meu nome... Eh, rapaz! Que estás a fazer? Estás com vontade de ir para a Venezuela?... Inchcape e o governador estão com tanto medo que não querem nem sequer cremar os cadáveres... há certo preconceito religioso entre os negros... obeah ou coisa parecida.

- Compreendo - disse Martin.

- Quantos casos de peste haverá agora - disse Sondelius.

- Só Deus sabe. Talvez uns mil. E dez milhões de ratos... Que sono!... Pois, meus senhores, sejam bem-vindos... - Estendeu os braços num gesto histérico. - Bem-vindos à Ilha das Hespérides!

Destacando-se da escuridão, Blackwater balouçava-se na direcção deles, um casario baixo e frágil, num baixio pantanoso, que cheirava a lodo. A maior parte da cidade era sombria, escura e tinha uma quietude sinistra. Não havia uma alma ao longo da sombria rua dos cais - armazéns, estação de carros, Pequenos hotéis - e, alcançado o molhe, saltaram em terra, sem serem incomodados por funcionários aduaneiros. Não havia carros à espera e os corretores de hotéis, que dantes importunavam turistas chegados pelo Si. Buryan, fosse qual fosse a hora, estavam agora mortos ou escondidos.

A magra passageira misteriosa sumiu-se, vacilando, com a sua mala - não disse uma só palavra e eles nunca mais tornaram a vê-la. A Missão, com Stokes e o polícia portuário que tripulara a lancha, transportaram a bagagem (Martin a ziguezaguear com uma caixa de fago), através das ruas cheias de sulcos de rodas e orladas de varandas, até ao San Marino Hotel.

Uma ou duas caras, coisas incorpóreas com lábios espantados, fitaram-nos, junto de entradas particulares; e, quando chegaram ao hotel, quando pararam diante dele, uma caravana trôpega sob malas e caixas, a gerente, de olhos esbugalhados, espreitou por uma janela, antes de admiti-los.

Quando entraram, Martin viu sob um candeeiro da rua o primeiro sopro de vida: uma mulher a chorar e uma criança espantada, que seguiam uma carroça aberta, onde estava empilhada uma dúzia de cadáveres rígidos.

"E eu poderia tê-los salvo a todos, com fago", murmurou consigo próprio.

A sua testa estava fria, mas sentiu-a viscosa de suor, quando balbuciou para a gerente acerca de quartos e refeições, quando desejou que Leora não tivesse visto o que seguia naquela carroça lenta e que não parava de guinchar.

"Teria preferido asfixiá-la a trazê-la, se soubesse como isto era", pensava, estremecendo.

A mulher desculpou-se:

- Tenho de pedir aos senhores que levem as suas coisas para os quartos. Os criados... Não estão aqui, agora.

O que foi feito da bengala que, num agradável momento de vaidade, comprara em Nova Iorque, Martin nunca o soube. Absorveu-se demasiado nos cuidados com as caixas de fago e preocupou-se demasiado com esta idéia: "Talvez esta droga tivesse salvo todos."

Agora, Stokes, de St. Swithin, era um homem reservado e tosco, mas, quando a última mala ficou no andar superior, encostou a cabeça a uma porta e exclamou: "Graças a Deus, Arrowsmith, que está aqui" - e partiu, apressado... Um dos guardas negros do porto, sem expressão, falando o inglês das Antilhas com algo do sotaque de Picaddilly, disse:

- Senhor, tem mais alguma ordem para mim? Se dá licença, vamos já para casa. Em cima da mesa está o whisky que o doutor Stokes me disse para trazer.

Martin ficou a olhá-lo, em silêncio. Foi Sondelius quem respondeu:

- Muito obrigado, rapazes. Repartam esta libra. E agora, vão dormir. - Fizeram a continência e não foram dormir.

Sondelius animou os noviços tanto quanto pôde, durante meia hora.

Martin e Leora despertaram para uma manhã tórrida, ofuscante, verde e carmesim, porém macabramente quieta; despertaram e compreenderam que, em torno deles, havia uma terra estranha, não imaginada, e diante deles, o trabalho que, na distante Nova Iorque, parecera dramático e excitante, mas que cheirava agora a necrotério.

 

Uma negra que, antes de entrar, os espreitou temerosamente da porta, trouxe-lhes uma espécie de pequeno almoço.

Sondelius veio ruidosamente do seu quarto, metido num veemente roupão de seda. Se certo dia, de óculos e curvado, parecera velho, agora mostrava-se jovem e turbulento.

"Olha, Comprido, acho que temos que fazer aqui! Encarrego-me de todos estes ratos! Esse Inchcape... vou tentar dominá-lo com estricnina! Que nobre melão! Leora, quando se divorciar de Martin, case comigo, sim? Passe-me o sal. Olhem, dormi a valer!"

Na véspera, Martin mal olhara para o quarto. Agora, divertia-se com o que considerava o seu exotismo. as paredes altas, de tábuas pintadas de um azul-aguado, os largos espaços sem móveis, a bungavília na janela, e, no pátio, o calor impiedoso e as folhas metálicas e vivas das palmeiras.

Para lá dos muros do pátio, erguiam-se os andares superiores de uma loja chinesa avarandada, e a clarabóia violentamente colorida do Bazar Azul.

Imaginara que deste mundo exótico devia subir um clamor, mas havia apenas uma quietude acusadora, e mesmo Sondelius se tornou soturno, embora tivesse o seu momento. Voltou a saracotear-se para o quarto, vestiu um fato de seda de Surate, que enfiara pela última vez no litoral oriental de África, e voltou com um capacete colonial que comprara secretamente para Martin.

De casaco de linho e chapéu de palha, Martin pertencia mais aos trópicos do que às suas ásperas planícies do Norte.

Mas o seu prazer em parecer estrangeiro foi interrompido pela entrada do chefe do Serviço Médico, Dr. R. E. Inchcape Jones, inquieto, apressado e magro, mas com bochechas de maçã.

"Naturalmente que os amigos são bem-vindos; mas, de facto, com tudo o que temos de fazer, receio que não possamos dar-lhes a atenção que sem dúvida esperam", disse ele, indignado.

Martin procurou uma resposta adequada. Foi Sondelius quem falou de um primo inexistente que era especialista em Harley Street, e que explicou que tudo quanto queriam era um laboratório para Martin e, quanto a si, uma oportunidade para chacinar os ratos. Quantas vezes, em quantos países, Gustaf Sondelius lisonjeara pró-cônsules e persuadira os pagãos a deixarem-se salvar!

Nas suas mãos, o chefe do Serviço Médico tornou-se praticamente humano; deu a impressão de que achava Leora realmente bonita; declarou que talvez pudesse deixar Sondelius meter-se com os ratos. Voltaria à tarde e levá-los-ia para a casa que mandara preparar-lhes, Penrith Lodge, nas colinas segregadas e seguras, situadas por detrás de Blackwater. E (curvou-se galantemente) expressou a sua esperança de que a Sr.a Arrowsmith achasse Lodge uma residência agradável, com três bons criados. O mordomo, embora fosse um homem de cor, era um velho sargento de rancho.

Mal Inchcape Jones se retirara, ouviu-se bater à porta, que se abriu para dar passagem ao colega de Martin em Winnemac, o Rev. Dr. Ira Hinkley.

Martin esquecera-se de Ira, aquele corpulento cristão que tentara salvá-lo durante as horas de dissecção, horas doces sem essa intervenção. Recordou-se confusamente. O homem entrou, vasto e com um ruído surdo. Os seus olhos arregalados sugeriam um desvairamento total e a sua voz era incandescente:

- Alô, Martin. Sim, é o velho Ira. Estou encarregado de todas as capelas da Irmandade da Santificação daqui. Oh, Mart, se conhecesses a maldade dos nativos, e como eles mentem, e cantam canções indecentes, e cometem toda a espécie de vilezas! E a Igreja de Inglaterra deixa-os chafurdar nos seus pecados! Restamos apenas nós para salvá-los. Soube que vinhas. Tenho trabalhado, Mart. Tenho assistido a esses miseráveis diabos contagiados pela peste, dizendo-lhes como o fogo do Inferno crepita em torno deles. Oh, Mart, se soubesses como o meu coração sangra ao ver estes seres ignorantes a marcharem impenitentes para a tortura eterna! Ao cabo de todos estes anos, sei que não podes continuar a ser um zombador. Venho a ti com as mãos abertas, rogando-te que não te limites a dar alívio aos sofredores mas também arranques as suas almas dos ardentes lagos de enxofre, aos quais, em Sua eterna misericórdia, o Senhor dos Exércitos condenou aqueles que blasfemam contra o Seu Evangelho, gratuitamente apresentado...

Novamente dói Sondelius quem afastou Ira Hinkley, não muito desgostoso, enquanto Martin apenas conseguia balbuciar:

- Mas como é que esse maníaco veio parar aqui? Isto vai ser o diabo.

Antes que Inchacape Jones voltasse, a Missão aventurou-se a sair para a primeira visita à cidade... Uma missão científica; mas, durante o percurso, foram apenas o turbulento Gustaf, o Martin cheio de dúvidas e a despreocupada Leora.

Os cidadãos haviam sido informados de que, na peste bubônica, ao contrário do que acontecia na pneumonia pestosa, não há perigo no contacto directo com os pestosos, desde que os parasitas Sejam evitados; mas não acreditavam nisso. Tinham medo uns dos outros e mais medo ainda dos estrangeiros. A Missão encontrou uma rua que morria de medo. Fechadas, as janelas e portas eram remendos estriados a arder ao sol; e o único tráfego era constituído por um carro vazio com um condutor assustado que, ao vê-los, acelerou a marcha, com medo que eles tomassem o carro. Os armazéns de gêneros e os drug-stores estavam abertos, mas dos seus interiores sombrios os empregados olhavam timidamente para fora, e, quando a Missão se aproximou de uma tenda de peixe, o seu único freguês fugiu, esgueirando-se ao passar por eles.

Uma mulher, que nada explicava, uma mulher com os cabelos desgrenhados, passou a correr perto deles, a guinchar apenas: "Meu filhinho..."

Foram ao mercado, uma centena de tendas debaixo de um ongo tecto de folhas de zinco, com pilares de pedra onde estavam inscritos os fátuos nomes dos altos funcionários que o havam construído - isto é, aprovado o crédito para a sua construção. Devia haver um jovial zumbido de compradores e vendedores, mas, em todas as vistosas tendas, via-se apenas uma negra com uma enfiada de vassouras, um índio de andrajos cinzentos acocorado diante da sua fortuna constituída por uma dúzia de hortaliças. Quanto ao mais, um monte de batatas podres e papéis espalhados pelo chão.

Descendo uma rua de aspecto sinistro, orlada de carvoarias, encontraram uma praça pública; e ali havia a quietude, não do sono, mas a velha quietude da morte.

Melancólicas mangueiras impediam a entrada da brisa e emgaiolavam o calor - calor rançoso e inerte, em cuja miséria o silêncio, que parecia espreitar maliciosamente, era o elemento mais desanimador. Através de uma aberta entre as mangueiras, divisaram uma casa de argamassa, com colgaduras de crepe negro.

- Está muito quente para a gente passear. Talvez seja melhor voltar para o hotel - disse Leora.

 

À tarde, Inchcape Jones apareceu com um Ford cujo aspecto familiar o tornava mais grotesco neste mundo rastejante, e levou-os a Penrith Lodge, nos frescos morros situados por detrás de Blackwater.

Atravessaram um denso bairro indígena de choças de bambu e lojas que eram simples cabanas sem pintura, de tábuas enegrecidas pelo tempo, sem portas, sem janelas, e de cujos interiores surgiam caras escuras que os olhavam com prevenção. Passaram, na velocidade mais sacolejante do chauffeur preto, diante de um edifício novo de tijolos, à frente do qual majestosos polícias negros, de luvas brancas, capacetes coloniais brancos e fardas escarlates cortadas por cintos brancos, marchavam de espingarda ao ombro.

Inchcape Jones suspirou:

- Escola. Transformada em hospital de pestosos. Há ali uns cem casos. Morrem a cada hora. Foi preciso mandar colocar sentinelas... os doentes tornam-se delirantes e tentam fugir.

No encalço deles, rastejava um cheiro de podridão.

Martin não se sentiu superior à Humanidade.

Com largas varandas e tecto baixo, entre vistosas flores e aprazíveis salgueiros, o bungalow de Penrith Lodge estava situado no alto de uma crista e olhava, através da feia baixa da cidade, para o mar. Nas janelas, as gelosias de junco sussurravam e entrechocavam-se, e as divisões nuas e altas eram animadas por lenços estampados com figuras de caraíbas... A casa fora ocupada pelo médico do porto, falecido havia três dias.

Inchcape Jones afirmou à indecisa Leora que em parte alguma estaria tão segura; a casa era à prova de ratos e o médico apanhara a peste no cais, morrera sem voltar a este bem-amado bungalow, onde ele, o solteirão profissional, oferecera as festas mais ruidosas de St. Hubert.

Martin trazia consigo aparelhagem suficiente para um pequeno laboratório, e montou-o num compartimento com gás e água corrente. Ao lado, ficava o quarto de dormir dele e de Leora, e a seguir um ao qual Sondelius imediatamente deu uma aparência de lar, atirando as suas roupas e as cinzas do cachimbo por toda a parte.

Havia duas criadas de cor e, por mordomo, um antigo militar, que os recebeu e lhes desfez as malas como se a peste não existisse.

Martin ficou perplexo diante do seu primeiro visitante. Era um negro jovem e singularmente belo, de movimentos ágeis, de olhar inteligente. Como a maioria dos norte-americanos brancos, Martin conversara muito sobre a inferioridade dos negros e não aprendera coisa alguma acerca deles. Olhou-o interrogativamente quando o rapaz elucidou:

- O meu nome é Oliver Marchand.

- Como?

- Doutor Marchand... diplomado em Medicina por Harvard.

- Oh!

- Permite-me que lhe dê as boas-vindas, doutor? E permita-me uma pergunta antes de escapar-me... tenho três casos de famílias de funcionários isolados no sopé do morro... sim, nesta crise permitem que um médico negro exerça a Medicina, mesmo entre os brancos! Mas... o doutor Stokes insiste em que D'Hérelle e o senhor consideram acertadamente o bacteriófago como um organismo. Mas que me diz da hipótese de Bordet, de que é uma enzima?

Em seguida, durante meia hora, o doutor Arrowsmith e o doutor Marchand, esquecendo-se da peste, esquecendo-se da peste mais cruel da prevenção racial, traçaram diagramas.

Marchand suspirou:

- Preciso de ir-me embora, doutor. Permite-me que o auxilie em qualquer caso que for possível? É um grande privilégio conhecê-lo.

Despediu-se serenamente e partiu. Um belo animal jovem.

- Nunca pensei que houvesse um médico negro. Seria bom que os outros não cessassem de mostrar-me quantas coisas desconheço! - disse Martin.

 

Enquanto Martin preparava o seu laboratório, Sondelius agia animadamente, descobrindo o mal da administração de Inchcape Jones, o qual se encontrava em quase tudo que era capaz de estar mal.

Hoje, uma epidemia de peste, numa terra civilizada, já não é uma história de gente que morre nas ruas e de cocheiros que gritam: "Tragam os mortos para fora da casa." A luta contra ela é conduzida como a guerra moderna, com telefones em vez de cavalos espumantes. O velho horror apresenta um aspecto de eficiência. Há gabinetes, ficheiros, exames bacteriológicos de doentes e de ratos. Há, ou devia haver, um director isolado, com poderes extralegais. Há grandes verbas, educação do público por intermédio de cartazes e jornais, brigadas de matadores de ratos, um corpo de desinfectadores, isolamento de doentes para que os parasitas não espalhem os germes.

Na maioria destes pormenores, Inchcape Jones falhara. Para, em primeiro lugar, reconhecer a existência da peste, tivera de lutar contra os negociantes que dominavam a Casa da Assembléia, os quais haviam clamado que uma quarentena os arruinaria, e agora recusavam-se a dar-lhe poderes totais e tentavam administrar a epidemia com uma Junta de Saúde Pública, o que era um tanto pior do que fazer navegar um navio durante um tufão por meio de um comitê.

Inchcape Jones era bastante corajoso, mas não sabia lisonjear. Os jornais chamavam-lhe tirano, não queriam contribuir para levar o público a tomar precauções contra os ratos e os esquilos terrícolas. Tentara fumigar alguns armazéns com bióxido de enxofre, mas os proprietários queixaram-se de que as emanações manchavam os tecidos e alteravam as tintas; e a Junta de Saúde ordenou-lhe que esperasse - esperasse um pouco esperasse para ver. Tentara mandar examinar os ratos, para verificar quais eram os centros de contágio, mas os seus únicos bacteriólogos eram Stokes e Oliver Marchand, que estavam sobrecarregados; e Inchcape Jones explicara com freqüência, em elegantes jantares particulares, que não tinha confiança na inteligência dos negros.

Estava quase louco; trabalhava vinte horas por dia; afirmava a si próprio que não tinha medo; lembrava a si próprio que conquistara honestamente a insígnia da Ordem de Serviço Distinto; aspirava ter alguém para dar-lhe ordens, além de um comitê de negociantes Pernas Vermelhas; e sempre, no borrão do cérebro insone, via os morros de Surrey, suas irmãs no passeio cheio de roseiras, as cadeiras de balouço e as mesas de chá, ao lado do court de tênis de seu pai.

Então, Sondelius, esse freqüentador de corredores parlamentares, astuto e freqüentemente mentiroso, esse soldado imoral do Senhor, irrompeu e tornou-se o ditador.

Aterrorizou a Junta de Saúde Pública. Lembrou as suas próprias experiências na Mongólia e na índia. Assegurou-lhes que se não deixassem de ser políticos, a peste poderia agarrar-se a St. Hubert para sempre, de modo que eles não mais teriam os dólares amáveis dos turistas e os prazeres do contrabando.

Ameaçou, lisonjeou, contou uma história que eles nunca tinham ouvido, mesmo na Casa de Gelo; e forçou a designação de Inchcape Jones para as funções de ditador de St. Hubert.

Gustaf Sondelius mantinha-se extremamente próximo do ditador.

Iniciou imediatamente a matança dos ratos. com uma autorização de Inchcape Jones, deteve o proprietário de um depósito que declarara que não deixaria que lhe arruinassem as suas pilhas de cacau. Conduziu polícias, negros robustos, treinados na Grande Guerra, até ao armazém, distribuiu-os e injectou ácido cianídrico.

Formou-se um ajuntamento para lá do cordão da polícia, que, olhando, fazia perguntas, duvidava. Não conseguiam acreditar que estivesse a suceder alguma coisa, pois as fendas das paredes do armazém tinham sido adequadamente calafetadas e não havia cheiro de gás. Mas o tecto era mal vedado. O gás coou-se através dele, incolor, diabólico, e de repente um butio, que fazia círculps por cima do telhado, voou direito, começou a cair em linha oblíqua e foi tombar, morto entre a multidão.

Um homem apanhou-o, olhos arregalados.

"Está bem morto" - murmuraram todos. com reverência, olharam para Sondelius, que se exibia entre os soldados.

A sua brigada de caçadores de ratos esquadrinhava cada armazém, antes de fazer funcionar a bomba de gás, para evitar que alguém ficasse encurralado no recinto, mas no terceiro armazém um vagabundo dormia e não foi notado. Quando as portas foram precipitadamente abertas, depois da fumigação, havia não apenas milhares de ratos mortos mas também um vagabundo morto e muito rígido.

"Pobre diabo... mandem-no enterrar" - disse Sondelius.

Não houve inquérito.

Diante de um swizzle de rum, na Casa de Gelo, Sondelius reflectiu: "Sempre queria saber quantos homens já matei, Martin. Quando desinfectava navios em Antofagasta, encontrávamos sempre dois ou três passageiros clandestinos. Escondiam-se muito bem. Pobres diabos!"

Sondelius desviava do serviço, arbitrariamente, empregados de escritório e carregadores, pondo-os a matar ratos com veneno, ratoeiras e gás, ou pela fome, para o que cimentavam e colocavam redes de arame nos estábulos e depósitos. Fez um mapa, em verde e vermelho-vivo, da população roedora da cidade. Infringiu todas as leis da propriedade, fazendo rusgas às lojas, em busca de apetrechos. Alternadamente, ameaçava e lisonjeava os dirigentes da Casa da Assembléia. Visitava Kellett, contava histórias aos seus filhos, e quase chorou quando ele lhe explicou quão bom luterano era - e com firmeza (mas não na casa de Kellett) bebeu até fartar-se.

A Casa de Gelo, a mais sombria e plácida dentre todas as tavernas, com as frescas mesas de mármores, paredes brancas tocadas de ouro, não fechara, embora apenas os beberrões veteranos e os sicários noviços, recém-expatriados e com uma aflitiva saudade de Peckham ou Walthamstow, de Peel Park ou de Cirencester High Street, sentissem desespero suficiente para ir lá, e só houvesse ficado, dos seus empregados, um vasto barman da Jamaica. Era, casualmente, entre todos eles, o que mais divinamente sabia preparar o ponche dos plantadores, o efervescente de Nova Orleães e o swizzle de rum. Sondelius aclamou-lhe as obras-primas, Sondelius, sozinho e plácido entre os ariscos fregueses, que entravam agora, não para sonhar, mas para emborcar um copo e fugir. Depois de um dia de matança de ratos e desinfecção de casas, sentava-se com Martin, com Martin e Leora, ou com quem quer que conseguisse convencer a acompanhá-lo.

Para Gustaf Sondelius, duques e remendões de sapatos eram igualmente notáveis, e Martin por vezes sentia ciúmes quando via Sondelius voltar-se para o empregado de um corretor de cacau com o mesmo sorriso que lhe dedicava, a ele, Martin. Durante horas, Sondelius falava de Xangai, de epistemologia e da pintura de Nevinson; durante horas, cantava obscenas canções da Zona, e berrava: "Bah, que rataria matei hoje no trapiche de Kellett! Acho que um pequeno swizzle não estraga muitos glomérulos nos rins de um homem de bem."

Era um gaiato, mas nunca dessa gaiatice exprobadora e irritante de um Ira Hinkley. Zombava de si próprio, de Martin, de Leora e do trabalho deles. Em casa, ao jantar, nunca dava atenção ao que comia (embora a desse ao que bebia), ao contrário do que em Penrith Lodge era de se desejar, perante os esforços de Leora para combinar os pontos de vista de Wheatsylvania com os standards dos criados das Antilhas e com a ausência de entregas diárias de mantimentos. Berrava e cantava - e tomava precauções para trabalhar entre os ratos e as pulgas ágeis: botas compridas, elástico nos punhos e no pescoço uma faixa de borracha inventada por ele e que hoje é conhecida em todas as lojas de artigos tropicais pelo nome de Gola Sondelius, de protecção contra insectos.

Era, sem que Martin nem Gottlieb jamais o notassem, o mais brilhante assim como o menos pomposo e, consequentemente, o menos apreciado guerreiro contra as epidemias, que o Mundo tem conhecido.

Isto quanto a Sondelius, pois, quanto a Martin, até aqui tivera apenas embaraços, ninharias, medo do medo.

 

Induzir os senhores do comércio de St. Hubert a submeterem-se a uma prova na qual metade deles poderia morrer, de sorte que toda a peste pudesse - talvez - ser extinta para sempre, foi impossível. Martin discutia com Inchcape Jones, com Sondalius, mas não conseguiu apoio, e começou a meditar numa campanha política, como teria meditado numa experiência.

Vira os padecimentos causados pela peste e deixara-se tentar (embora ainda resistisse) a esquecer-se da experimentação, a renunciar ao salvamento possível de milhões pelo salvamento imediato de milhares. Inchcape Jones, agora um pouco aliviado debaixo da acção intimidante e pesada de Sondelius, graças ao que pôde deslizar para uma rotina razoável, levou Martin para a aldeia de Carib, que, em conseqüência da sua praga de esquilos terrícolas infectados, estava a ser proporcionalmente mais castigada do que Blackwater.

Saíram velozmente da capital por estradas alvacentas, sob a agonia de um Sol ofuscante; deixaram as choças empoeiradas do subúrbio de Yamtown, entrando numa zona fresca, cheia de bambuais e canas-de-açúcar. Do topo de um morro, correram por uma estrada curva até a uma praia onde a rebentação alta estrondeava em grutas de rocha calcária. Parecia impossível que, sobre esta praia jubilosa, pudesse pairar a ameaça da peste, a viscosa criatura dos becos escuros.

O carro cortava um cantante vento alísio, que falava de brancas velas e homens altivos. Frecharam para Point Carib, onde a espuma ferve, e onde, em torno daquela solitária palmeira real plantada no cabo, assobia o vento. Deslizaram por um vale calmo, e chegaram à aldeia de Carib e ao pavor rastejante.

A peste fora espantosa em Blackwater; em Carib fora o fim de todas as coisas. As pulgas dos ratos haviam encontrado gordos lares nos esquilos terrícolas, que tinham tocas em cada quintal da aldeia. Em Blackwater, desde o princípio, fizera-se o isolamento dos pestosos, mas em Carib a morte andava em cada casa e a aldeia estava cercada por soldados da polícia, de baio neta armada, que não deixavam ninguém sair ou entrar, salvo os médicos. Martin foi levado pela fétida rua de casinhas cobertas de palmas e com paredes de varas de bambu e estéreo de vaca, casinhas partilhadas pelos galos e pelas cabras. Ouvia homens que davam gritos agudos no seu delírio; viu, dez vezes, aquela face de terror - olhos vermelhos e encovados, rosto contorcido, boca aberta - que assinala a Morte Negra; e, certa vez, contemplou uma menina em coma, à beira da morte, com a língua negra e, em torno dela, o cheiro do túmulo.

Escaparam para Point Carib e para o vento alísio, e quando Inchcape Jones exclamou: "Depois disso tudo, consegue ainda pensar em experimentações? " - Martin sacudiu a cabeça, enquanto tentava recordar a visão de Gottlieb e todos os seus pequenos projectos: "Dar o fago a metade, recusá-lo inflexivelmente à outra metade."

Viu-se a reflectir que Gottlieb, na sua inocência de solitário, não compreendera o que significava pretender experimentar no meio da histeria de uma epidemia.

Foi à Casa de Gelo; bebeu em companhia de um assustado funcionário, natural de Derbyshire; tornou a ver os olhos encovados, insistentes, de Gottlieb; e jurou não ceder à compaixão que, no fim, tornaria inútil toda a compaixão.

Uma vez que Inchcape não podia compreender a necessidade da experiência, apelaria para o governador, o coronel Sir Robert Fairlamb.

 

Posto que a Casa do Governo fosse oficialmente a residência principal de St. Hubert, era apenas um bungalow com cobertura de palmas, um pouco maior do que o próprio Penrith Lodge de Martin. Ao vê-lo, Martin sentiu-se mais à vontade, e subiu os largos degraus às nove da noite, como se fosse entrar de passagem na casa de um vizinho, em Wheatsylvania.

Foi interceptado por um criado, natural da Jamaica, de uma espantosa cortesia.

Martin declarou que era o Dr. Arrowsmith, chefe da Missão McGurk, e que lamentava muito mas precisava de falar com Sir Robert imediatamente.

O criado fazia ver, da maneira mais suave e mais acabrunhada, que seria preferível que o Dr. Uh... procurasse o chefe do Serviço Médico, quando uma larga cara vermelha e uma larga voz vermelha se projectaram por cima da grade da varanda, estrondeando:

"Manda-o entrar, Jackson, não sejas tolo!"

Sir Robert e Lady Fairlamb acabavam de jantar, numa mesinha redonda, carregada desordenadamente de café e licores, e estrelada de velas. Lady Fairlamb era uma insignificância nervosa e frágil; Sir Robert era um tanto empolado, muito sangüíneo, indubitavelmente corajoso, mas estava cheio de espanto; e, numa época em que nenhuma lavadeira ousava ir a parte alguma, a sua camisa de peitilho engomado reluzia.

Martin estava metido no seu fato de linho, agora muito querido, e numa amarrotada camisa mole que Leora tivera a intenção de lavar.

Explicou o que desejava fazer - o que devia fazer, se se quisesse que o Mundo um dia se livrasse do absurdo de ter a peste.

Sir Robert escutou tão prazenteiramente que Martin se julgou compreendido, mas no fim berrou:

- Rapaz, se eu estivesse a comandar uma divisão na frente de batalha, diante de uma ofensiva terrível, vital, e um funcionário do Ministério da Guerra me pedisse que arriscasse todas as forças para experimentar uma invençãozinha preciosa dele, adivinha o que responderia? Não posso fazer muita coisa agora... esse tal doutor Johninies tirou-me tudo das mãos... mas, na medida do possível, impedirei certamente que os senhores, vivisseccionistas ianques, se ponham a utilizar-nos como uma partida de... desculpa, Evelyn... de cadáveres sangrentos. Boa noite, senhor!

 

Graças à astuta táctica intimidativa de Sondelius, Martin conseguiu apresentar o seu plano a um Conselho Especial, composto pelo governador, pela Junta de Saúde Pública, então

Com funções temporariamente suspensas, por Inchcape Jones, diversos e combativos membros da Casa da Assembléia, e pelo próprio Sondelilus, que trazia consigo a capacidade não oficial que, por todo o Mundo, lhe serviria para mascarar a prazenteira tirania. Sondelius chegou mesmo a levar o médico negro, Oliver Marchand, não sob o pretexto de que ele era a pessoa mais inteligente da ilha (que parecia ser a razão de Sondelius), mas porque "representava a mão-de-obra das plantações".

O próprio Sondelius se opunha, tanto como Fairlamb, às experiências isentas de comoção a que Martin se propunha; acreditava que todas as experiências, por meio de artifícios que não via claramente, deviam ser realizadas no laboratório, sem perturbar a conduta de epidemias agradáveis, mas nunca pôde resistir a um drama tal como a inocente reunião do Conselho Especial.

A reunião foi aprazada para uma semana depois... enquanto morriam dezenas de pessoas diariamente. Enquanto a esperava, Martin fabricava mais fago, ajudava Sondelius a matar ratos, e Leora escutava os debates da meia-noite, entre os dois homens, e tentava levá-los a notar que fora uma coisa sensata terem permitido que ela viesse. Inchcape Jones ofereceu a Martin a posição de bacteriólogo do Governo, mas ele recusou pelo temor de passar a ser fiscalizado.

O Conselho Especial reuniu-se na Casa do Parlamento, e todos os membros procuraram despojar-se dos seus eus domésticos e simples, e revestir-se da aparência de juizes. com eles, compareceram os médicos da ilha que tinham encontrado tempo.

Enquanto Leora escutava, do fundo da sala, Martin falava-Lhes com certa consciência do espectáculo do pequeno Mart Arrowsmith de Elk Mills no acto de ser levado a sério pelos dirigentes de uma ilha tropical, chefiada por Sir Fulano. Ao lado dele, estava Max Gottlieb, de pé, e, apoiado no poder de Gottlieb, procurou reverentemente explicar que a Humanidade renunciou sempre à grandeza final por causa de qualquer crise, qualquer guerra, eleição ou lealdade a um Messias que, no momento, parecia importante, obstruindo, assim, a busca paciente da verdade. Procurou explicar que poderia - talvez - salvar metade de um determinado distrito, mas que, para provar de vez o valor do fago, a outra metade devia ser privada dele... embora, segundo lhe disse manhosamente, em qualquer caso a metade sem sorte devesse receber tanto cuidado como presentemente recebia.

Na sua maioria, os membros do Conselho tinham ouvido dizer que ele possuía um processo mágico de cura para a peste, o qual, por motivos desconhecidos e provavelmente inconfessáveis, retinha; e não permitiriam que continuasse a retê-lo. Houve muita discussão, um tanto sem relação com o que ele dissera, e dela saiu apenas o facto de que todos, excepto Stokes e Oliver Marchand, eram contra ele; Kellett estava irritado com este norte-americano, Sir Robert Fairlamb manteve-se desaprovador e Sondelius declarou que, embora Martin fosse um rapaz totalmente honesto, era fanático.

Na discussão, mergulhou uma fúria, na pessoa de Ira Hinkley, missionária da Irmandade da Santificação.

Martin não o vira depois da primeira manhã, em Blackwater. Sentiu um choque quando ouviu Ira intervir:

- Senhores, sei que quase todos pertencem à Igreja da Inglaterra, mas rogo-lhes que me ouçam, não como a um ministro mas como a um doutor em Medicina, a um médico qualificado. Oh, a ira de Deus caiu sobre os senhores... Mas eis o que quero dizer: fui colega de Arrowsmith nos Estados Unidos. Conheço-o bem! Foi um tal falhado que foi suspenso da Escola de Medicina. Cientista! E quanto ao seu chefe, esse indivíduo chamado Gottlieb, foi demitido da Universidade de Winnemac por incompetência! Conheço-os a ambos! Mentirosos e tolos! Zombadores da decência! Alguém, excepto Arrowsmith, já lhes disse que ele é um cientista qualificado?

A cara de Sondelius transfigurou-se, passando da curiosidade à fria cólera escandinava. Ergueu-se e gritou:

- Sir Robert, esse homem está doido! O doutor Gottlieb é um dos sete cientistas mais distintos actualmente existentes, e o doutor Arrowsmith é o seu representante! Anuncio a minha concordância com ele, concordância completa. Como os senhores devem ter visto pela minha actuação, sou perfeitamente independente dele e estou inteiramente ao serviço dos senhores, mas conheço a sua capacidade e sigo-o, com toda a humildade.

O Conselho Especial induziu Ira Hinkley a sair, pela menos significativa das razões - em St. Hubert os brancos não estimam grandemente os êxtases sagrados dos negros nas capelas da Irmandade da Santificação -, mas resolveu apenas "tomar conhecimento da matéria", enquanto os homens continuavam a morrer diariamente às dezenas e, na Manchúria como em St. Hubert, se rezava por uma trégua do flagelo dilacerante.

Fora, quando a Junta Especial se dispersou, Sondelius exclamou, num estrondo, para Martin e para a indignada Leora:

- Foi uma bela luta! Martin respondeu:

- Gustaf, você está agora comigo. A primeira coisa que você tem de fazer agora, é levar uma dose de fago.

- Não. Eu disse, Comprido, que não tomarei o seu fago enquanto você não o der a todos. É essa a minha intenção, por mais que combata esse Conselho.

Enquanto estavam parados diante da Casa do Parlamento, um pequeno automóvel, que possuía tudo menos conforto e força, cambaleou até eles e do seu interior saltou um homem magro como Gottlieb e inglês como Inchcape Jones.

É o Dr. Arrowsmith? O meu nome é Twyford, Cecil Twyford, de St. Swithin's Parish. Procurei vir à reunião do Conselho Especial, mas o idiota do meu capataz teve de ausentar-se à tarde para morrer de peste. Stokes relatou-me os seus planos. Muito justos. É um absurdo continuarmos na mesma diante da peste. O Conselho recusou? É lamentável. Talvez possamos fazer alguma coisa em St. Swithin's. Até à vista.

Durante todo o serão, Martin e Sondelius não cessaram de falar. Martin foi para a cama suspirando pela regularidade de trabalhar durante toda a noite e sair, pela alvorada, a pilhar cigarros. Não pôde dormir, porque um Ira Hinkley imaginário estava sempre a explodir sobre ele.

Quatro dias mais tarde, soube que Ira morrera.

Enquanto não mergulhara no coma, Ira assistira e abençoara o seu rebanho, a humilde congregação de cor na tórrida capela de lata que transformara em enfermaria de pestosos. Cambaleava de catre para catre, sob os textos do Evangelho, que escrevera nas paredes caiadas, quando deu um grito, muito alto, e caiu perto do púlpito de pinho onde gozara a alegria das suas prédicas.

 

Martin teve pelo menos uma oportunidade. Em Carib, onde cada uma, dentre três pessoas, estava de cama com a peste, havendo apenas um médico para atender a todos, ministrou o fago a toda a população; o conhecimento de que uma só das vistosas pulgas que saltassem de qualquer doente poderia comunicar-lhe a peste, não era revelado, para abrandar a longa tensão da série de injecções.

Esqueceu-se deste cansaço angustioso quando começou a verificar e a registar com precisão um decréscimo da epidemia, que não ocorria em parte alguma, excepto em Carib.

Ao chegar a casa, delirou diante de Leora:

- Hei-de mostrar-lhes! Agora, permitirão que eu experimente em condições de prova, e depois, quando a epidemia estiver dominada, iremos para casa. Vai ser uma delícia tornar a sentir frio! Só queria saber se Holabird e Sholtheis estão mais amigos agora... Que bom voltar para a nossa velha casa, hem?

- Concordo! - disse Leora. - E devia ter pensado em mandar pintar a cozinha, enquanto estávamos fora... Acho que porei a cadeira azul no nosso quarto.

Embora houvesse um decréscimo da peste em Carib, Sondelius estava preocupado, porque se tratava do pior foco de esquilos terrícolas infectados em toda a ilha. Costumava tomar as suas decisões rapidamente. Uma noite, enquanto explicava certas coisas a Inchcape Jones e a Martin, atropelou as suas dúvidas e roncou:

O único modo de desinfectar aquele lugar é queimá-lo... queimar tudo. vou fazer isso de manhã, antes que alguém possa impedi-los.

Com Martin como seu lugar-tenente, dirigiu a sua tropa de matadores de ratos - gente insensível, todos eles, de botas altas, mangas amarradas nos punhos e caras negras de piratas. Roubaram mantimentos das lojas, barracas, cobertores e fogareiros do depósito militar do Governo, e atulharam com a sua presa vários camiões. A fileira destes roncou em direcção a Carib, com os matadores de ratos sentados no alto da carga, cantando hinos piedosos.

Invadiram a aldeia, fizeram sair os habitantes sãos, transportaram os doentes em maças, acomodaram-os em barracas armadas numa pastagem acima do vale e, depois da meia-noite, incendiaram a povoação.

Os homens corriam por entre as cabanas, lançando-lhes fogo com tochas fantásticas. Das coberturas de palmas elevava-se uma fumarada espessa, de um branco opaco e frouxo, com torrentes de um negro espantoso, através do qual as labaredas surgiam subitamente. Contra o alcatrão, recortavam-se as palmeiras. As cabanas, de aspecto sólido, transformaram-se num instante em arcabouços de bambu, finas linhas de ripas negras, enquanto os tectos caíam em faíscas. As chamas iluminavam todo o vale; faziam os pássaros voar aterrorizados, soltando gritos ásperos, e transformavam a rebentação de Point Carib numa espuma sangrenta.

Juntamente com os nativos que tinham força e razão suficientes, a milícia de Sondelius fez um anel em torno da aldeia incendiada, gritando como doidos enquanto davam pauladas nos ratos e nos esquilos em fuga. No fulgor da devastação, Sondelius era um demônio, esmagando os ratos espantados com uma clava, fazendo fogo sobre eles quando escapavam e cantarolando, durante toda a acção, a obscena melopéia de Bill, o Marinheiro. Mas, à alvorada, estava a assistir os enfermos na nova e branca aldeia de lona, ensinando as mães a utilizarem os fogareiros e, com uma atitude condescendente, a discutir métodos para envenenar esquilos terrícolas nas suas tocas.

Sondelius voltou para Blackwater, porém Martin permaneceu no abarracamento durante dois dias, ministrando o fago, tomando notas, dirigindo as enfermeiras amadoras. Voltou para Blackwater ao cair de uma tarde e dirigiu-se ao gabinete do chefe do Serviço Médico, ou àquilo que fora o gabinete do chefe do Serviço Médico antes de Sondelius aparecer e tomar conta dele.

Sondelius estava lá, na secretária de Inchcape Jones, mas desta vez não se encontrava atarefadíssimo. Afundara-se na cadeira, os olhos vermelhos.

- Alô! Divertimo-nos com os ratos de Carib, hem? Como vai a minha nova aldeia de barracas? - exclamou com um riso surdo; mas a sua voz estava fraca e, ao erguer-se, cambaleou.

- Que é isso? Que é isso?

- Acho... acho que apanhei... Alguma pulga que me picou. Sim... - com um ar vacilante, mas estremamente interessado estava justamente a pensar em ir para o isolamento. Estou com febre e adenites. O meu vigor... Hum!... Estou quase com sessenta, mas só eu sei como podia levantar pessos que nenhum marinheiro consegue mexer... E podia lutar cinco rounds! Meu Deus, Martin, como estou fraco! Não é medo! Não!

Mas se não fossem os braços de Martin teria caído. Recusou-se a voltar para Penrith Lodge e para os cuidados

de Leora. "Eu, que isolei tanta gente... agora chegou a minha vez" - disse ele.

Martin e Inchcape Jones descobriram para Sondelius uma casinha modesta e limpa - a família morrera ali toda, mas a casa fora fumigada. Arranjaram uma enfermeira e o próprio Martin assistiu o doente, esforçando-se por lembrar-se de que já fora um médico, que compreendera as aplicações de gelo e palavras de consolação. Uma coisa não pôde ser arranjada - mosquiteiro - e apenas disto é que Sondelius se queixava.

Martin inclinou-se para ele, angustiado ao ver como a sua pele queimava, quão inchados estavam o rosto e a língua, como estava fraca a voz quando balbuciou:

- Gottlieb tem razão quanto a essas brincadeiras de Deus. Sim! A melhor de todas são os trópicos. Deus projectou-os tão belos, com flores, mar, montanhas. Fez os frutos crescerem tão bem que o homem não precisa de trabalhar... e depois deu uma risada, e arranjou vulcões, calor hümido, uma senilidade precoce, a peste, a malária. Mas a partida mais suja que pregou ao homem foi inventar a pulga.

Os seus lábios entumescidos estenderam-se, da sua garganta escaldante fluiu um débil grunhido e Martin compreendeu que tentava rir.

Entrou em delírio, mas, entre espasmos, murmurava, num tormento infinito, enquanto a consciência da sua própria fraqueza lhe trazia lágrimas aos olhos:

- Quero que veja como morre um agnóstico! Não estou com medo, mas queria, só uma vez mais, tornar a ver Estocolmo, e a Quinta Avenida, no dia da primeira queda de neve, e a Semana Santa em Sevilha. E, pela última vez, um bom copo! Estou calmo, Comprido. A vida fere alguns, mas é um bom jogo. E... sou um agnóstico piedoso. Oh, Martin, dá o fago à minha gente! Salva todos eles... Meu Deus, nunca pensei que eles pudessem enternecer-me desta maneira!

O coração falhara. Ficou inerte no catre baixo.

Martin experimentou um orgulho infeliz ao verificar que, apesar de toda a sua amizade a Gustaf Sondelius, ainda podia conservar o domínio da cabeça, ainda podia resistir à exigência de Inchcape Jones para que ministrasse o fago a todos, ainda podia fazer aquilo que viera fazer.

- Não sou um sentimental; sou um cientista! - dizia, com alarde.

Nas ruas, ouvia agora transeuntes resmungarem contra ele; garotos chamavam-lhe nomes e atiravam-lhes pedras. Tinham ouvido dizer que ele estava perversamente a impedir o salvamento deles. Os cidadãos vieram em comissão suplicar-lhe que curasse os seus filhos, e ele ficou tão abalado que teve de conservar permanentemente diante de si a visão de Gottlieb.

O pânico aumentava. Aqueles que a princípio se haviam conservado impassíveis já não podiam suportar a tensão de despertar à noite para ver coar-se pela janela o clarão da fogueira de Admiral Knob, o crematório de emergência onde Gustaf Sondelius e a sua carranca cinzenta e encarquilhada haviam sido atirados, com uma pá, juntamente com um negrinho coxo e um mendigo índio.

Sir Robert Fairlamb era um herói confuso, que exasperava os doentes quando tentava cuidar deles; Stokes continuava a ser o "Rochedo dos Séculos" - tinha apenas três horas de sono por noite, mas nunca deixava de fazer os seus quinze minutos habituais de exercício, quando se levantava; e Leora andava à vontade em Penrith Lodge, ajudando Martin a preparar fago.

O chefe do Serviço Médico é que se desfez em pedaços.

Privado da sua dependência do desprezado Sondelius, novamente afundado numa louca incerteza, Inchcape Jones guinchava quando pensava falar baixo, e o cigarro que tinha sempre na mão fina tremia de tal modo que o fumo subia em trêmulas espirais.

Durante uma das suas inspecções, foi ter, à noite, a uma chalupa na qual uma dúzia de Pernas Vermelhas se escapava para Barbados, e de repente viu-se no meio deles, subordonando-os para que o levassem consigo.

Quando a chalupa saía do porto de Blackwater, estendeu os braços em direcção às suas irmãs e à paz dos morros de Surrey, mas, quando as poucas luzes da cidade, assustadas, se perderam, compreendeu que era um covarde e saiu da sua loucura, erguendo a cabeça descarnada.

Exigiu que virassem a chalupa de bordo e o levassem de volta. Recusaram, aos rugidos, e fecharam-no no alojamento. Acalmaram-se; isto aconteceu dois dias antes de chegarem a

Barbados, ocasião em que o Mundo saberia que ele havia desertado.

Sem expressão alguma, Inchcape Jones saiu da chalupa para um hotel vizinho do cais de Barbados e, no desmazelo de um quarto que cheirava a balde de água suja, ficou imóvel um longo espaço de tempo. Nunca mais veria as suas irmãs e os morros frios. com o revólver que levara para fazer recuar doentes aterrorizados para as enfermarias de isolamento, com o revólver que usara em Arras, matou-se.

 

Assim, Martin iniciou a sua experiência. Stokes foi nomeado chefe do Serviço Médico, na vaga de Inchcape Jones, e fez uma designação ilegal de Martin para St. Swithin's Parish, como médico oficial com poderes completos. Isto, e a cooperação de Cecil Twyford, tornou possível a experiência.

Foi convidado para hospedar-se na residência de Twyford. A sua única preocupação era a protecção de Leora. Não sabia o que ia encontrar em St. Swithm's, ao passo que Penrith Lodge era tão seguro como os melhores locais da ilha. Quando Leora insistiu que, durante a experiência, a gélida coisa que calara as risadas de Sondelius poderia chegar até ele e ele poderia precisar dela, Martin procurou satisfazê-la prometendo que, se houvesse lugar para ela em St. Swithin's, mandá-la-ia buscar.

Naturalmente, mentia.

"Arre! Já foi bem duro ver Gustaf ir-se. Agora, não permitirei que ela se arrisque! " jurou.

Deixou-a protegida pelas criadas e pelo mordomo soldado; e o Dr. Oliver Marchand devia ir vê-la, quando pudesse.

 

Em St. Swithin's Parish, os bambuais, as plantações de cacaueiros e os agudos morros do sul de St. Hubert cediam o lugar a ininterruptos canaviais. Aqui, Cecil Twyford, esse homem abrupto e magro, governava cada acre de terra e interpretava todas as leis.

A sua residência, Frangipani Court, era um refúgio na planície escaldante. A casa era velha e baixa, de pedras espessas e argamassa; os quartos, de paredes apaineladas, estavam forrados com a porcelana, os retratos e as espadas de trezentos anos de Twytords; e entre as alas, havia um jardim interior deslumbrantemente sortido de hibiscos.

Twyford conduziu Martin através do corredor baixo e frio, e apresentou-o a cinco netos e a sua mãe, que, desde a morte de sua mulher, havia dez anos, se tornara a dona da casa.

- Vamos tomar chá? - disse Twyford. - A nossa hóspede norte-americana descerá dentro de um momento.

Martin não teria pensado em chá, mas, como durante gerações os Twyfords haviam tomado chá aqui, a horas convenientes, juraria que nenhum pânico os impediria de tomá-lo àquela hora.

Quando Martin entrou no jardim, quando viu a velha baixela de prata na mesa de vime e ouviu as vozes serenas, a peste pareceu dominada, e compreendeu que, a quatro mil milhas a sudoeste do cabo Lizard, se encontrava na Inglaterra.

Estavam sentados, satisfeitos, embora não com muito conforto, quando a hóspede norte-americana desceu e, da porta, fitou em Martin um olhar tão estranho como o que Martin lhe devolveu.

Contemplou uma mulher que devia ser sua irmã. Teria trinta anos, em relação com os trinta e sete de Martin, mas, na sua esbelteza, na palidez, nas sobrancelhas negras e nos cabelos escuros, era gêmea de Martin; era o seu eu encantado.

Pôde ouvir a sua própria voz grasnar: "Mas a senhora é minha irmã! " ao mesmo tempo que ela descerrava os lábios, mas nenhum dos dois falou enquanto se inclinavam na apresentação. Quando ela se sentou, Martin sentiu, como jamais sentira, a consciência de uma presença feminina.

Soube, antes do anoitecer, que se tratava de Joyce Lanyon, viúva de Roger Lanyon, de Nova Iorque. Viera a St. Hubert visitar as suas lavouras e fora colhida pela quarentena. Ouvira falar vagamente do seu finado marido como de um rapaz opulento e de boa estirpe; parecia ter visto em Vanity Fair um retrato dos Lanyons em Palm Beach.

Ela falou apenas do tempo, das flores, mas havia nela uma envolvente alacridade que bulia até com o severo Cecil Twyford. No meio dos complacentes insultos que ela dirigia ao mais robusto dos seus robustos filhos, Martin voltou-se para ela:

- Mas a senhora é minha irmã!

- Evidentemente. Mas... como o senhor é um cientista... O senhor é de facto um bom cientista?

- Óptimo.

- Conheci a senhora McGurk dos senhores. E o doutor Rippleton Holabird. Conheci-os em Hessian Hook. Conhece o lugar, não é verdade?

- Não, eu... Oh, ouvi falar.

- Conhece, sim. É aquela parte velha de Brooklyn, hoje renovada, onde escritores, economistas e toda essa gente, alguns quase tão bons como os que de facto são os melhores, freqüentam gente que é quase tão elegante como a que de facto é a mais elegante. O senhor conhece. Onde as pessoas se vestem formalmente para jantar, mas onde todos ouviram falar de James Joyce. O doutor Holabird é terrivelmente encantador, não acha?

- Mas...

- Diga-me. Quero saber. Cecil explicou-me o que o senhor pretende fazer experimentalmente. Não poderia ajudá-lo... como enfermeira, ou cozinheira, ou qualquer coisa... ou apenas o atrapalharia?

- Ainda não sei. Se tiver uma oportunidade de utilizá-la, hei-de ser muito pouco escrupuloso!

- Oh, não seja grave como Cecil e o doutor Stokes! Eles não têm o senso recreativo. Gosta desse tal Stokes? Cecil adora-o, e suponho que ele está simplesmente infestado de virtudes, mas acho-o tão seco, tão franzininho, tão pouco apetecível. Não acha que podia ser um pouco mais divertido?

Martin atirou fora todas as probabilidades de conhecê-la, ao proferir com veemência:

- Escute uma coisa! A senhora disse que acha Holabird "encantador". Sinto tristeza ao vê-la impressionar-se pelo precário ar científico dele e não apreciar Stokes. Stokes é austero... graças a Deus!... e é, provavelmente, rude. Que tem isso? Está em luta com um mundo que clama por falsos encantos. Nenhum cientista pode atravessar este moinho sem sair mais ou menos rude. E posso garantir-lhe que Stokes nasceu pesquisador. Desejaria que estivesse connosco no McGurk. Rude? Queria que visse a sua rudeza comigo!

Twyford parecia em dúvida, sua mãe parecia delicadamenteespantada e os cinco robustos filhos não pareciam coisa alguma, enquanto Martin prosseguia furiosamente, tentando materializar a sua visão do bárbaro, ascético e desdenhoso acólito da ciência. Mas os olhos adoráveis de Joyce Linyon tinham uma expressão doce, e quando ela falou, perdera algo da maneira hipercosmopolita de um comensal em traje convencional:

- Sim. Suponho que há uma diferença entre mim, a fingir de plantadora, e Cecil.

Depois do jantar, Martin passeou com ela no jardim e procurou defender-se sem saber bem de quê, até que ela interveio:

- Meu caro, você desculpa-se demasiadamente de nunca ter sabido desculpar-se! Se realmente pretende ser meu irmão gêmeo, faça-me o favor de dizer-me que vá para o diabo sempre que lhe ocorrer tal pensamento. Agora, quanto a esse seu Gottlieb, que parece uma espécie de obsessão para si...

- Obsessão! Qual! Ele... Separaram-se uma hora depois.

O que Martin menos desejara, entre todas as coisas, era outra inquietação pueril e irritante como a que experimentara com Orquídea Pickerbaugh, mas, quando se recolheu a um quarto com velhos quadros e se deitou numa cama com dossel de quatro colunas, sentiu a perturbação de saber que naquele casarão, perto dele, estava Joyce Lanyon.

Sentou-se na cama, horrorizado diante da verdade. Iria apaixonar-se por esta mulher jovem, apetecível e inteiramente inútil? (Como eram deliciosos os seus ombros, surgindo do cetim negro, durante o jantar! Ela possuía o gênio radioso da carne; aquilo que fazia a carne de muitas mulheres, mesmo da frágil Leora, parecer áspera e espessa. Havia através dela um róseo calor, como que uma luz interior.)

Desejaria ele porventura que Leora viesse, estando Joyce Lanyon naquela casa? (A querida Leora, que era a fonte da vida! Estaria ela agora, lá em Penrith Lodge, extraviada dele, insone por causa dele? )

Como poderia, mesmo na crise de uma epidemia, levar os Twyfords formalistas a convidarem Leora? (Estaria a ser honesto? Naquela tarde, tomara conhecimento do código dos Twyfords, rígido, embora benevolente, mas não poderia pô-lo de parte, tornando-se francamente um estranho? )

De repente, saltou da cama, ajoelhou-se, e dirigiu uma prece a Leora.

 

A peste começara apenas a invadir St. Swithin's, mas indubitavelmente progredia, e Martin, com as suas atribuições de médico oficial da paróquia, podia traçar planos. Dividiu a população em duas partes iguais. Uma delas, arrebanhada por Twyford, recebeu injecções de fago, enquanto a outra metade ficou privada dele.

Começou a obter êxito. Via a índia longínqua, com os seus quatrocentos mil óbitos anuais pela peste, salva em virtude dos seus esforços. Ouvia Max Gottlieb dizer: "Martin, você fez a experiência. Estou satisfeitíssimo!"

O mal atacou a metade da população da paróquia não submetida ao tratamento pelo fago muito mais gravemente do que aqueles que haviam sido tratados. Apareceram um ou dois casos entre os que haviam recebido injecções de fago, mas entre os outros houve diariamente dez vítimas, depois vinte, depois trinta. Estes casos infelizes, tratou-os ministrando o fago a pacientes alternados, no asilo um tanto desolador da paróquia, uma cabana caiada que parecia ainda mais mesquinha contra o fundo abobadado das figueiras-da-índia e das árvores da fruta-pão.

Nunca pôde compreender Cecil Twyford. Embora este considerasse os seus trabalhadores como escravos, embora, nos seus domínios de grande barão, lhes houvesse dado apenas este asilo desolado, arriscava a vida ao assisti-los, e as vidas de todos os filhos.

Embora Martin tentasse dissuadi-la, a Sr.a Lanyon apresentou-se para cozinhar, e mostrou-se uma cozinheira notável. Arranjava também as camas; mostrou mais inteligência do que os homens de Twyford, no tocante à desinfecção pessoal; e, enquanto se movia na cozinha rústica, metida num roupão de algodão que pedira emprestado a uma criada, perturbava de tal forma Martin que ele se esqueceu de se mostrar grosseiro.

À noite, quando voltavam para Frangipani Court, no barulhento e pequeno automóvel de Twyford, a Sr.a Lanyon conversava com Martin como uma pessoa que participara do seu trabalho, mas, depois do banho, do pó e do vestido, Martin falava-lhe como pessoa que tinha medo dela. O elo de ambos era a sua semelhança como irmão e irmã. Resolveram, quase irritados, que se pareciam extremamente, excepto que os cabelos dela eram mais lustrosos que os dele e que ela não tinha as sobrancelhas arqueadas e impertinentes.

Freqüentemente, Martin voltava à noite para junto dos seus pacientes, mas uma ou duas vezes a Sr.a Lanyon e ele fugiram tanto da insipidez da família Twyford como da visão dos doentes queimados pela febre, para a margem de uma laguna coalhada de rochas, que se internava profundamente na terra, deixando longe o mar.

Sentaram-se num penhasco cheio do canto das maretas. No cérebro de Martin, fervilhavam memórias de papeletas penduradas nas largas tábuas caiadas do asilo, dos estalos nas paredes causados pelo Sol, das caras entumescidas e apavoradas dos pacientes negros, de como um dos filhos de Twyford esmagara uma ampola de fago, e da comichão que o calor causava na enfermaria. Mas, para a sua tensão, a brisa da laguna era refrigerante, e refrigerante era o sussurro das maretas. Percebeu que o vestido branco da Sr.a Lanyon esvoaçava em torno dos joelhos dela; compreendeu que ela também estava ao mesmo tempo inquieta e aquietada. Voltou-se melancolicamente e ela exclamou:

- Estou com tanto medo, sinto-me tão só! Os Twyfords são heróicos, mas são de pedra. Parece que estou só nesta ilha!

Martin beijou-a e ela ficou recostada no ombro dele. A macieza da manga do seu vestido roçava a mão de Martin. Mas ela interrompeu o idílio assim:

- Não! Você não me liga a menor importância. Tem só curiosidade. Mas talvez isto seja bom para mim... esta noite.

Procurou convencê-la, convencer-se a si próprio, de que se

importava com violência especial, mas o amolecimento dominava-o; entre ele e o perfume dela, estavam os catres do hospital, um grande cansaço e o rosto calmo de Leora. Ficaram em silêncio, juntos, e quando a mão de Martin procurou a mão dela, sentiram-se isentos de paixão, compreensivos, com liberdade de conversar sobre o que quisessem.

Martin ficou parado diante da porta dela, quando voltaram para casa, e acompanhou com a imaginação os seus doces movimentos dentro do quarto.

"Não - disse consigo mesmo, furioso. - Não posso fazer isso. Joyce... as mulheres como ela... um dos milhões de coisas a que renunciei pelo trabalho e por Lee. É isso. E por enquanto não há nada a fazer. Mas se eu já estivesse aqui há duas semanas... Idiota! Ela ficaria furiosa se batesses! Mas..."

A sua atenção estava presa ao filete de luz que se escapava por baixo da porta; e cada vez mais presa ainda quando voltou as costas e caminhou para o seu quarto.

 

O serviço telefônico de St. Hubert era a feição mais tosca da ilha. Não havia telefone em Penrith Lodge - o médico do porto acostumara-se jovialmente a informar-se de Leora, telefonando para um vizinho. A central estava agora desmoralizada pela peste, e Martin, após uma tentativa inútil de duas horas, desistiu de falar com Leora.

Mas triunfara. Dentro de três ou quatro dias, iria a Penrith Lodge. Twyford, de acordo com uma sugestão sua, resolvera convidar Leora, e se ela e Joyce Lanyon se harmonizassem de tal modo que Joyce nunca mais se voltasse para ele em busca de companhia, seria bom que Leora viesse, seria óptimo - seria quase óptimo.

 

Quando Martin deixou Leora nas sombras melancólicas de Penrith Hills, ela sentiu a ausência. Tinham vivido quase sempre juntos, desde que ele a encontrara pela primeira vez, a esfregar o soalho de um quarto de hospital, em Zenith.

A primeira tarde não tinha fim; cada vez que ela ouvia um ranger de sapatos ficava alvoroçada, na esperança de que fossem os passos dele; mas compreendia que não viria, durante todo o serão vazio, durante a noite de que sentia terror; que não estaria ali em parte alguma, nem a sua voz nem o contacto da sua mão.

O jantar foi cheio de melancolia. com muita freqüência, jantara sozinha, quando Martin estava no Instituto, mas então ele costumava voltar para junto dela a uma hora qualquer, antes de amanhecer - provavelmente - e ela mastigava distraidamente a refeição, enchendo a boca, a um canto da mesa da cozinha, enquanto olhava para o suplemento humorístico do vespertino. Naquela noite, teve de guardar as aparências para o mordomo, que a serviu como se atendesse uma mesa de vinte convivas.

Sentou-se na varanda e ficou a contemplar os tectos sonbrios de Blackwater, lá em baixo; tinha a firme impressão de sentir um "miasma" de mistura com a ardente obscuridade.

Sabia a direcção de St. Swithin's Parish - para lá daquele pálido clarão das luzinhas das choupanas de palmas, enoveladas em cima dos morros. Concentrou-se nesse rumo, como se, por um efeito de magia, pudesse receber um sinal dele, mas não recebeu impressão alguma de que Martin pensasse nela. Ficou sentada, quieta, por muito tempo... Não tinha nada que fazer.

Passou a noite acordada. Tentou ler na cama, acendendo uma lâmpada eléctrica dentro do nebuloso e pequeno pavilhão do mosquiteiro, mas o filo estava rasgado e os mosquitos começaram a entrar. Quando apagou a luz e se estirou, desperta, incapaz de conciliar o sono, incapaz de encontrar segurança, enquanto para os seus olhos toldados pela penumbra as dobras do mosquiteiro pareciam escorregar em torno dela, tentou recordar se estes mosquitos poderiam ser portadores de germes da peste. Compreendeu quanto dependera de Martin para tais migalhas de conhecimento, assim como para toda a filosofia. Recordou-se de como ele ficara aborrecido porque ela não podia lembrar-se do nome do mosquito da febre amarela - era Anopbeles, Stegomya, ou era Aedes? - e de repente, dentro da noite, deu uma risada.

Ocorreu-lhe que ele lhe recomendara que tomasse outra injecção de fago.

"Diacho, esqueci-me. Mas agora, hei-de me lembrar amanhã de manhã."

"Tomar a injecção amanhã... tomar a injecção amanhã" zumbia-lhe no cérebro o estribilho irritante e inevitável, enquanto ela flutuava acima do sono, desejando angustiosamente aninhar-se entre os braços dele.

Na manhã seguinte (e não se lembrou de tomar outra injecção) os criados pareciam nervosos, e os esforços de Leora para confortá-los trouxeram à tona a notícia de que Oliver Marchand, o médico de quem dependiam, falecera.

À tarde, o mordomo soube que sua irmã fora levada para o isolamento, e desceu para Blackwater, a fim de tomar providências com relação às sobrinhas. Não voltou; ninguém soube o que lhe aconteceu.

Ao cair da noite, sob a impressão de que uma linha de patrulhas inimigas apertava o cerco em torno dela, Leora refugiou-se no laboratório de Martin. Parecia cheio da sua presença exuberante e esquisito. Manteve-se afastada dos frascos com germes da peste, mas apanhou e acendeu, porque tinha o contacto dele, um cigarro fumado até meio.

Aconteceu que havia uma ligeira fenda nos seus lábios; e naquela manhã, ao espanar o pó - ali, naquele laboratório construído como uma fortaleza contra as doenças - uma criada rachara uma proveta, que começara a gotejar. O cigarro parecia bem seco, mas havia nele germes da peste em quantidade suficiente para matar um regimento.

Duas noites depois, quando ela se sentia tão desesperadamente só que pensou em ir a pé até Blackwater, arranjar um automóvel e fugir para junto de Martin, despertou com febre, dores de cabeça, os membros frios. Quando as criadas a encontraram assim, fugiram de casa. com o torpor a rondá-la, ficou sozinha.

Durante todo o dia, toda a noite, com a garganta ressequida de sede, suspirou por alguém que a ajudasse. Arrastou-se, uma vez, até à cozinha, em busca de água. O soalho do quarto era um mar encapelado e interminável, o corredor uma obscuridade envolvente, e, perto da porta da cozinha, caiu e ficou a soluçar, durante uma hora.

"Eu queria... eu queria... não me lembro do que era." A voz interrogava desesperadamente o cérebro anuviado.

Sofrendo, lutando contra o sofrimento, pôs-se de pé, enrolou-se numa velha capa que uma das criadas abandonara na fuga, e entrou na escuridão, cambaleando, em busca de socorro. Quando chegou à estrada, tropeçou, caiu e ficou imóvel junto da cerca, como um animal ferido. De rastos, voltou para o bungalow, e a intervalos, quando o cérebro se lhe turvava ainda mais, quase se esquecia da dor, na sua louca ânsia de voltar a ver Martin.

Estava desnorteada; estava só; não ousava iniciar a sua longa jornada sem a mão dele a animá-la. Pôs-se a escutar, a escutar - tensamente.

"Hás-de vir! Sei que hás-de vir para me ajudar! Sei. Hás-de vir! Martin! Sandy! Sandy! ", soluçava.

Depois, deslizou para o coma bondoso. Não houve mais dor, e a casa toda, envolta na sombra, caiu num silêncio perturbado apenas pela sua respiração rouca e laboriosa.

 

Como Sondelius, Joyce Lanyon tentou convencer Martin a dar o fago a todos.

- Hei-de ser severo para ser bom, ainda que todos venham atrás de mim. Hei-de ser um verdadeiro Gottlieb. Nada poderá levar-me a fazer isso, nem mesmo que tentem linchar-me - respondeu, com exaltação.

Explicou a Joyce quem era Leora.

- Não sei se vocês vão gostar uma da outra. Você é tão diferente. Exprime-se terrivelmente bem, e gosta dessa gente refinada de que fala sempre, mas ela não lhes dá a menor importância. Fica sentada... sim, não deixa passar nada sem reparar, mas nunca fala muito. E tem o instinto de honestidade mais firme que já vi. Espero que simpatizem uma com a outra. Estava com receio de trazê-la para cá... não sabia o que ia encontrar... mas vou a Penrith e trazê-la-ei para cá hoje mesmo.

Pediu o carro de Twyford, rumou para Blackwater, e subiu para Penrith em excelente disposição de espírito. Apesar de toda a peste, poderiam passar agora animados serões. Um dos filhos de Twyford não era muito solene; ele e Joyce, com Martin e Leora, poderiam ir até à laguna, onde fariam piqueniques nocturnos; cantariam...

Entrou em Penrith Lodge gritando: "Lee! Leora! Vem cá! Sou eu!"

A varanda, quando subiu a correr os degraus, estava com o chão coberto de folhas e cheio de poeira, e a porta da frente, aberta, batia. A sua voz ecoou num silêncio desesperado. Ficou

sobressaltado. Arremessou-se casa adentro, não encontrou ninguém na sala de estar, na cozinha; correu para o quarto.

Na cama, atravessado sobre as dobras do mosquiteiro rasgado, jazia o corpo de Leora, frágil, inerte. Gritou-lhe, sacudiu-a, dobrou-se em pranto sobre ela.

Conversou com ela, com um toque de loucura na voz, tentando fazê-la compreender que a amara, que a deixara ali apenas por causa da segurança dela...

Havia rum na cozinha. Bebeu alguns copos cheios, sem mistura. Não fizeram efeito.

Ao cair da noite, foi ao jardim, o jardim alto e batido pela brisa, aberto sobre o mar, abriu uma grande cova. Ergueu o corpo leve e rígido, beijou-o e depositou-o na cova. Vagueou durante toda a noite. Quando voltou para casa e viu a fileira da roupa interior de Leora, com as linhas do seu corpo suave, o terror invadiu-o.

Depois, sentiu-se acabado.

Abandonou Penrith Lodge, saiu da residência Twyford, e mudou-se para um quarto situado atrás do gabinete do chefe do Serviço Médico. Ao lado do seu catre, havia sempre uma garrafa.

Como era a primeira vez que a morte o feria, soltou uma imprecação: "Oh, maldita experiência! " E, apesar da consternação de Stokes, deu o fago a todos quantos lho pediram.

Apenas em Swithin's, e visto que lá a experiência se iniciara tão favoravelmente, um resto de honra impediu-o de distribuir o fago universalmente; mas entregou a Stokes a direcção dessa experiência.

Stokes compreendeu que ele estava um pouco tresvariado, e só uma vez, quando Martin rosnou: "E que me importa a tua ciência? ", tentou reconquistá-lo para a experiência.

O próprio Stokes, com Twyford, prosseguiu na experiência e tomou os apontamentos que Martin teria tomado. À noite, depois de trabalhar catorze ou quinze horas desde o amanhecer, Stokes precipitava-se de motocicleta para St. Swithin's - odiava a trepidação e a falta de dignidade do veículo, e achava um tanto perigoso enveredar pelas curvas das estradas, nos morros, a sessenta milhas por hora, mas era este o meio mais rápido; e, até à meia-noite, conferenciava com Twyford, dava-lhe ordens para o dia seguinte, arranjava as suas notas desajeitadas e maravilhava-se com a sua docilidade soturna. Entretanto, todo o dia, Martin dava injecções a uma fileira de cidadãos assustados, no gabinete do chefe do Serviço Médico, em Blackwater. Stokes suplicava-lhe que, pelo menos, passasse o trabalho a um outro médico e tomasse o interesse que lhe fosse possível por St. Swithin's; Martin, porém, encontrava amarga satisfação em despir-se de toda a sua própria significação, em contribuir para a ruína dos seus propósitos.

Com uma enfermeira por assistente, não arredava pé da sala singela. Uma coluna de gente, brancos, pretos, índios, a dez de fundo, estendida ao longo de um quarteirão, a cauda agitada, esperava em silêncio, como se esperasse a morte. Arrastavam os pés até à enfermeira, ao lado de Martin, e, embaraçados, expunham os braços, que ela esfregava com sabão e água e humedecia com álcool, antes de passá-los para ele. Martin pinçava com os dedos, bruscamente, a pele do braço e espetava-a com a agulha da seringa, praguejando quando estremeciam e jamais notando as suas caras individuais. Ao afastarem-se, ficavam excitados de gratidão: "- Oh, Deus o abençoe, doutor! " - mas ele não os ouvia.

Às vezes, Stokes aparecia com um ar aflito, especialmente quando descobria, nas bichas, trabalhadores de St. Swithin's, que, segundo supunha, permaneciam na sua paróquia sob fiscalização, para servirem de prova ao valor do fago. Às vezes, Sir Robert Fairlamb aparecia, radiante e rumoroso, para oferecer os seus préstimos... Lady Fairlamb fora a primeira a ser injectada e, em seguida a ela, uma esfarrapada ajudante de cozinha, profusa em aleluias.

Decorrida uma quinzena, quando sentiu o cansaço do drama, tinha quatro médicos a dar injecções, enquanto ele manüfacturava o fago.

À noite, porém, Martin ficava sentado, só, bebendo decididamente, vivendo de whisky e de ódio, libertando a alma e dissolvendo o corpo pelo rancor, tal como outrora os eremitas os dissolviam pelo êxtase. A sua vida era tão irreal como as noites de um velho beberrão. Tinha uma vantagem sobre a cautelosa Humanidade normal: não tinha empenho em viver ou morrer, ele que se sentava junto dos mortos, que falava com Leora e Sondelius, com Ira Hinkley e Oliver Marchand, com Inchcape Jones e com uma sombria horda de pretos que erguiam as mãos suplicantes.

Depois da morte de Leora, voltara a casa de Twyford apenas uma vez, para trazer a sua bagagem, e não vira Joyce Lanyon. Odiou-a. Jurou que não fora a presença dela que o impedira de voltar mais cedo para junto de Leora, mas tinha a consciência de que, enquanto andava a tagarelar com Joyce, Leora morria.

"Maldito e volúvel adventício social! Graças a Deus que nunca mais tornarei a vê-la!"

Sentava-se à beira do catre, no quarto desolado e sem ar, os cabelos em desordem, os olhos transformados num borrão de sangue, enquanto um gatinho que achara na rua e que estimava como seu único amigo, dormia no seu travesseiro. Como batessem à porta, resmungou: "Agora não posso falar com Stokes. Ele que faça as experiências. Estou cheio de experiências!"

E, com enfado: "Abra a porta! ".

A porta abriu-se e apareceu Joyce Lanyon, fria, elegante, segura.

- Que deseja? - rosnou ele.

Ela encarou-o; fechou a porta; em silêncio, pôs em ordem a confusão de comestíveis, papéis e instrumentos que se encontravam na mesa. Levou docemente o gatinho irritado para cima de uma esteira, bateu o travesseiro e sentou-se ao lado dele, sobre o catre em desalinho. Em seguida:

- Por favor! Sei o que aconteceu. Cecil veio à cidade por uma hora e senti vontade de vir... Não ficará um pouco confortado sabendo como somos seus amigos? Não permite que lhe ofereça a minha amizade?

- Não quero a amizade de ninguém. Não tenho amigos!

Encolheu-se no seu mutismo, a mão de Joyce sobre a sua, mas, quando ela partiu, experimentou um estremecimento de ânimo.

Não pôde renunciar ao desafogo que encontrava no whisky e não pôde ver um meio de tornar a negar as injecções de fago a todos quantos a pediam, mas entregou a outros o serviço de injecções e a sua manufactura, e voltou à mais rígida observação da sua experiência em St. Swithin's... comprometida agora pela parte da população não vacinada, que devia servir de testemunha, e que, entretanto, se insinuara em Blackwater para receber a injecção de fago.

Não tornou a ver Joyce. Vivia no asilo, mas agora passava a maioria das noites sem beber.

 

O evangelho do extermínio dos ratos espalhara-se pela ilha; toda a gente, desde as crianças de cinco anos até às velhas já coxas, se atirava à caça de ratos e esquilos terrícolas. Ou por efeito do fago, da matança dos ratos ou da Providência, a epidemia entrou em declínio, e, seis meses após a chegada de Martin, quando o Maio antilhano escaldava e a quadra dos furacões estava iminente, a peste quase desaparecera e a quarentena foi suspensa.

St. Hubert sentiu a segurança voltar às suas cozinhas e lojas, e, por entre a tempestuosa Primavera, a ilha exultou, tal como um homem doente, ao livrar-se da dor pela primeira vez, exulta apenas com a idéia de viver e ficar em paz.

Que no mercado público as discussões em torno dos preços chegassem às injúrias; que os namorados passeassem indiferentes a tudo excepto a si próprios; que os vadios contassem coisas e beberricassem na Casa de Gelo; que os velhos ficassem acocorados, a tagarelar e a rir, à sombra das mangueiras; que as congregações cantassem, reunidas, ao Senhor - tudo isso já não parecia comum a ninguém, nem estúpido, mas a bem-aventurança do Paraíso.

Transformaram numa festa a partida do primeiro vapor. Brancos e negros, índios, chins e caraíbas, apinharam-se no cais, gritando, agitando lenços, esforçando-se para não chorar, ao ouvirem a débil música em que se transformara a Banda Medalha de Ouro, de Blackwater; e, enquanto o vapor, o St. La, da linha McGgrk, era rebocado do cais, com o capitão na amurada da ponte, muito teso, a saudá-los com vigor, mas com os olhos tão húmidos que não conseguia ver o porto, experimentaram a sensação de que já não eram leprosos emparedados, mas uma parte do mundo livre.

Naquele vapor, viajava Joyce Lanyon. Martin despediu-se dela no cais.

Mãos sólidas, quase tão alta como ele, Joyce olhou-o sem comoção e disse com alegria:

- Você venceu. Eu também. Ambos estivemos loucos, engaiolados daquela maneira. Acho que não o ajudei, mas procurei fazê-lo. Compreende, eu nunca fora exercitada na realidade. Você exercitou-me. Adeus.

- Poderei ir vê-la em Nova Iorque?

- Se de facto o desejar.

Partira, mas nunca estivera tanto na companhia dele como durante aquela hora de tédio em que o vapor se perdia além do horizonte, uma linha guarnecida por um arame de prata. Mas naquela noite, apavorado, ele correu para Penrith Lodge e apertou o rosto contra a terra húmida que corria a Leora de quem nunca tivera de defender-se e explicar, a quem nunca precisara de dizer: "Poderei ir vê-la, em Nova Iorque?"

Leora, porém, fria no seu último leito, não sorriu, não lhe respondeu nem o consolou.

 

Antes de partir, Martin tinha de reunir as notas da experiência com o fago; acrescentar as observações de Stokes e de Twyford aos primeiros dados exactos que tomara pessoalmente.

Como distribuidor do fago a algumas centenas de ilhéus apavorados tornara-se um dignitário. O Blackwater Guardian, na sua primeira edição, depois de levantada a quarentena, chamou-lhe "o salvador de todas as nossas vidas". Era o herói universal. Se Sondelius o ajudara a livrá-los do flagelo, não era porque Sondelius fora o seu lugar-tenente? Se houvera a intervenção do Senhor, como insistia em dizer o velho e fervoroso negro que sucedera a Ira Hinkley nas capelas da Irmandade da Santificação, não era evidente que fora o Senhor quem o enviara?

Ninguém prestou atenção a um feio médico sueco, que se portara com diligência mas sem dramatismo durante a epidemia, e declarava agora ser sabido que as pestes costumam declinar e desaparecer sem o fago.

Quando Martin completava as suas notas, recebeu uma carta do Instituto McGurk assinada por Holabird.

Rippleton Holabird dizia que Gottlieb se "sentia cansado", renunciara à direcção, suspendera as suas próprias experiências, e se encontrava agora em casa, a descansar. Ele, Holabird, fora designado director interino do Instituto, e, como tal, cantava:

As informações sobre o seu trabalho, nas cartas dos agentes do Sr. McGurk, que as autoridades de quarentena

permitiram que chegassem até nós, dão-nos conta, muito mais do que o seu modesto relatório pessoal, do êxito realmente sensacional que alcançou. V. conseguiu fazer o que poucos homens vivos poderiam fazer, quer estabelecendo o valor do bacteriófago na peste por meio da experiência em larga escala, quer salvando a maior parte da infeliz população atingida. O Conselho de Administração e eu apreciámos, devidamente, a glória que acrescentou, e acrescentará ainda mais, quando o seu relatório for publicado, ao nome do Instituto McGurk, e pensámos, agora, que, durante alguns meses, ficaremos privados do titular seu chefe, Dr. Gottlieb, em criar um Departamento separado, chefiado por si.

"Estabelecendo o valor... bah! Uma experiência meio feita", suspirou Martin. E: "Departamento! Já dei muitas ordens aqui. Estou farto de autoridade. O que quero é voltar para o meu laboratório e recomeçar tudo de novo."

Ocorreu-lhe que receberia agora, provavelmente, dez mil dólares por ano... Leora poderia, se vivesse, ter então o prazer de pequenos antares extravagantes.

Embora tivesse testemunhado o declínio de Gottlieb, experimentou um choque ao saber que ele era capaz de se deixar abater a ponto de abandonar o trabalho, mesmo por alguns meses.

Esqueceu-se de si próprio, quando lhe ocorreu que, renunciando à sua experiência, fazendo o papel de salvador, fora um traidor para com Gottlieb e tudo quanto Gottlieb representava. Quando voltasse para Nova Iorque, teria de fazer uma visita ao ancião, para confessar-lhe, para confessar àqueles olhos encovados e implacáveis, que não tinha provas completas do valor do fago.

Se pudesse correr para junto de Leora, com o seus dez mil dólares por ano...

 

Deixou St. Hubert três semanas depois de Joyce Lanyon.

Na véspera da partida, foi oferecido, a ele e a Stokes, um grande jantar, presidido por Sir Robert Fairlamb. Enquanto Sir Kobert rubicundamente atirava cumprimentos e Kellett tentava explicar certas coisas, todos os convivas bebiam à sua saúde, de pé, depois do brinde ao rei, Martin ficou absorto, a considerar que na manhã seguinte abandonaria estes olhos confiantes e defrontar-se-ia com as austeras exigências de Gottlieb, de Terry Wickett.

Quanto mais proclamavam a sua glória mais ele pensava naquilo que cientistas desconhecidos, rigidamente honestos, fechados em laboratórios distantes, diriam de um homem que tivera a sua oportunidade e a deitara fora. Quanto mais lhe chamavam doador da vida, mais se sentia desonrado e traidor; e, quando olhou para Stokes, viu na sua fisionomia uma piedade mais cruel do que a condenação.

 

Aconteceu que Martin voltou para Nova Yorque, como viera, no St. Buryan. O navio estava cheio dos fantasmas de Leora sonhando, de Sondelius berrando na ponte.

E, no Si. Buryan, estava aquela Miss Gwilliam do country club, que ofendera Sondelius.

Passara o Inverno importantemente, tomando notas sobre música nativa em Trindade e Caracas; pelo menos, fazendo planos de tomar notas. Viu Martin embarcar em Blackwater e observou com agudeza os amigos que compareceram ao seu botafora - dois ingleses, um gordo, um fino, e um escocês de ar severo.

- Todos os seus amigos parecem ingleses - declarou com ar esclarecedor, depois de reivindicá-lo como a um velho amigo.

- É verdade.

- O senhor passou o Inverno aqui?

- Passei.

- Que falta de sorte ser apanhado pela quarentena. Mas eu disse-lhe que era uma loucura desembarcar! Deve ter conseguido ganhar algum dinheiro, exercendo a medicina. Mas deve ter sido desagradável, na verdade.

- Sim, acho que sim.

- Preveni-o de que seria! Devia ter vindo para Trindade. Que ilha fascinante! E diga-me, como vai o Bruto?

- Quem?

- Oh, o senhor sabe... aquele sueco engraçado que costumava dançar...

- Morreu.

- Oh, sinto muito. O senhor compreende, apesar do que os outros diziam, nunca achei que ele fosse ruim. Estou certa de que tinha um espírito muito ilustrado, quando não se metia na pândega. A sua mulher não está consigo?

- Não... não está comigo. Preciso de descer para abrir as malas.

Os olhos de Miss Gwilliam seguiram-no com a expressão de quem dizia que o menos que se devia fazer era aprender boas maneiras.

 

Em virtude do medo e da ameaça dos furacões, havia poucos passageiros de primeira classe a bordo do Si. Buryan, e os que havia, na sua maioria não tinham significado, porque não eram esses alegres turistas ianques mas, simplesmente, sul-americanos. Conforme procedem os turistas, quando os seus espíritos se alargaram e enriqueceram pela viagem, ao voltarem para Nova Jersey ou Wisconsin, com o prestígio de terem gastado um conjunto de seis meses nas Andinas e na América do Sul, a respeitável companhia estudava-se fastidiosamente, notando o homem pálido e delgado que parecia tão inquieto, que todo o dia andava pelo convés, e depois da meia-noite ficava junto da amurada, absorto e sozinho.

"Esse cidadão parece-me terrivelmente aflito! ", disse o Sr. S. Sanborn Hibble, de Detroit, para a encantadora Sr.a Dawson, de Memphis, e ela respondeu, com a finura que a tornava tão popular onde quer que se encontrasse: "Exacto. Acho que está enamorado!"

"Oh, conheço-o! - disse Miss Gwilliam. - Ele e a mulher estavam no Si. Buryan quando vim. Agora, ela está em Nova Iorque. É uma espécie de médico... creio que não muito próspero. Aqui entre nós: não dou muito nem por ele nem por ela. Ficavam sentados, com um ar estúpido, durante toda a viagem."

 

Martin sentia comichão nos dedos à lembrança das suas provetas. Sabia, agora como havia suspeitado, que odiava o serviço de administração e os grandes negócios.

Enquanto percorria o deck, o seu cérebro desanuviava-se e sentia-se voltar ao equilíbrio. Irritado, imaginou os críticos que em breve estariam a picar o seu relatório final, fosse qual fosse. Por instantes, detestou a tendência para a demolição por parte dos ratos de laboratório seus colegas, tal como lhes detestara a competição; detestou a necessidade de estar sempre a olhar por cima do ombro para os perseguidores. Mas, certa noite em que se conservava junto da amurada havia horas, confessou que temia a crítica deles, e que a temia porque a sua experiência tinha falhas demasiado numerosas. Resmungou para o mar todos os argumentos com que se protegera: "O homem que nunca passou pela experiência de tentar, no meio de uma epidemia, manter a calma e observar as condições experimentais, não compreende, na segurança do seu laboratório, a luta que a gente tem de travar."

Uma crítica constante seria boa, se não encerrasse despeito, ciúmes, mesquinhez...

Não, mesmo assim ela podia ser boa! Alguns homens tinham de ser aquilo a que os tolerantes chamavam "malignos". Para eles, a alegre maldade de demolir o quase bom era mais natural do que a criação. Por que razão um grande demolidor de casas, que sabia desimpedir o chão, devia pôr-se a assentar tijolos?

"Exactamente! - murmurou. - Que venham! Talvez me antecipe a eles, publicando uma crítica ao meu próprio trabalho. Mas consegui alguma coisa, com a experiência de St. Swithin, mesmo tendo deixado as coisas correrem à vontade, durante aquele período. vou levar os meus quadros a um biometrista. Ele fará a revisão. Óptimo! Publicarei o que restar."

Foi para a cama com o sentimento de que poderia enfrentar os olhos de Gottlieb e de Terry, e, pela primeira vez em muitas semanas, adormeceu sem terror.

 

No molhe de Brooklyn, com espanto e leve indignação de Miss Gwilliam, do Sr. S. Sanborn Hibble e da Sr.a Dawson, Martin foi cercado por numerosos repórteres que, solícitos, mas vagamente, desejavam saber o que eram essas coisas notáveis que ele fizera com certa doença, em certo lugar.

Foi libertado por Holabird, que irrompeu no meio deles com as mãos estendidas, gritando: "Oh, meu caro! Sabemos tudo quanto aconteceu. Ficámos muito aflitos, mas restou-nos o consolo de vê-lo poupado para voltar ao nosso meio."

Não obstante o que Martin, à sombra de Max Gottlieb, tivesse dito sobre Rippleton Holabird, apertou-lhe as mãos e resmungou: "É bom a gente voltar para casa."

Holabird (estava de camisa azul, e colarinho azul, engomado, tal como um actor) não pôde esperar até que a bagagem de Martin se coasse por entre os funcionários da alfândega. Devia voltar para os seus deveres de director interino do Instituto. Demorou-se apenas para dar a entender que o Conselho de Administração ia fazê-lo director efectivo, e que, certamente, teria o prazer de ver Martin com o prestígio e a recompensa que merecia.

Quando Holabird já se fora, ao volante do seu elegante coupé (explicava com freqüência que sua mulher e ele podiam dar-se o luxo de um chauffeur, mas preferiam gastar o dinheiro noutras coisas), Martin notou Terry Wicket, encostado a uma coluna de madeira carcomida do armazém, como se tivesse estado ali durante horas.

Terry avançou e rosnou: "Alô, Comprido. Tudo bem? Vamos desembaraçar de uma vez as tuas coisas. Grande prazer em ver o director aos beijos a ti."

Quando percorriam as ruas sombrias de Brooklyn, Martin perguntou:

- Como vai Holabird como director? E Gottlieb?

- Hum... Holá-besta não é pior do que Tubbs; é mesmo mais polido e mais ignorante... Mas olha para mim! Qualquer dia, vou para o mato... comprei uma choça em Vermont... e vou trabalhar lá sem ter de apresentar resultados ao director! Eles puseram-me no Departamento de Bioquímica. E, quanto a Gottlieb... - A voz de Terry traía aflição. - Acho que está muito abalado... Deram-lhe uma pensão. Mas escuta, Comprido: ouvi dizer que vais transformar-te num dourado chefe de departamento, ao passo que eu nunca serei mais do que um membro associado. Estás disposto a acompanhar-me, ou vais ser um dos bichinhos de Holá-besta... um cientista-herói?

- Estou contigo, Terry, meu velho casmurro. - Martin abandonou o cinismo que sempre parecera apropriado entre ele e Terry. - Não tenho mais ninguém. Leora e Gustaf foram-se, e agora talvez Gottlieb também. Tu e eu temos de ficar unidos.

- Está dito!

Apertaram as mãos, pigarrearam e conversaram sobre chapéus de palha.

Quando Martin entrou no Instituto, os colegas acorreram para lhe apertar a mão e soltar exclamações, e se os elogios foram indigestos, não há ocasião alguma em que o estômago os agüente em tão grande quantidade como no momento da chegada à pátria.

Sir Robert Fairlamb escrevera ao Instituto uma carta em que o glorificava. A carta chegou pelo mesmo navio que trouxera Martin, no dia seguinte Holabird entregou-a à Imprensa.

Os repórteres, que haviam mostrado apenas um pequeno interesse pelo seu desembarque, acudiram em busca de entrevistas, e, como Martin se mostrasse impaciente e reservado, Holabird tomou conta deles, de sorte que os jornais puderam anunciar que os Estados Unidos, que andavam sempre a libertar o Mundo de um mal qualquer, haviam tomado mais uma vez a dianteira, repetindo o acto. O noticiário espalhou que o Dr. Martin Arrowsmith era não só um poderoso médico-mago e, possivelmente, um pouco também homem de laboratório, como um feroz exterminador de ratos, incendiado de aldeias, orador de Conselhos Especiais, e um vencedor da morte. Havia na época, em certos lugares, uma dúvida quanto à benevolência dos Estados Unidos para com os seus irmãos menores - México, Haiti, Cuba, Nicarágua - e os jornalistas e políticos exprimiram a sua gratidão a Martin por esta prova do sacrifício e da terna vigilância nacional.

Recebeu cartas do Serviço de Saúde Pública; de uma empreendedora Universidade do Médio Oeste, que desejava conceder-lhe o título de Doutor em Direito Civil; de escolas e sociedades de medicina que o convidavam para fazer conferências. Apareceram editoriais sobre a sua obra nas revistas médicas e nos jornais; e o congressista Almus Pickerbaugh telegrafou-lhe de Washington, num estilo que provavelmente considerara poético: "Eles precisam de correr para tomar a dianteira de homens que vêm da vetusta Nautilus." E foi novamente convidado para jantar na residência dos McGurks, não por Capítola mas pelo Sr. Ross McGurk, cujo nome nunca fora tão falado.

Recusou todos os convites para falar, e as organizações que o haviam convidado com insistência responderam docemente que compreendiam quão terrivelmente ocupado devia encontrar-se o Dr. Arrowsmith, mas que, se um dia dispusesse de tempo, elas se sentiriam altamente honradas...

Rippleton Holabird foi eleito director efectivo, em substituição de Gottlieb, e procurou utilizar Martin como a peça de honra do mostruário do Instituto. Levava todos os dignitários visitantes, todos os estrangeiros da alegria condicionada, para vê-lo, e eles mostravam satisfação e tentavam fazer perguntas. Depois, Martin foi feito chefe do novo Departamento de Microbiologia, com o dobro do ordenado anterior.

Nunca aprendeu qual era a diferença entre microbiologia e bacteriologia. Mas não pôde resistir a coisa alguma da sua glorificação. Estava ainda demasiado confundido - e ficou ainda mais confundido depois de visitar Max Gottlieb.

 

Na manhã que se seguiu à sua chegada, telefonara para casa de Gottlieb, falara com Míriam e obtivera permissão para fazer uma visita ao cair da tarde.

Durante todo o trajecto, não cessou de ouvir Gottlieb dizer: "Você era meu filho! Transmiti-lhe tudo quanto sabia da verdade e da honra, e você traiu-me. Saia da minha frente!"

Míriam recebeu-o na saleta, cheia de aflição:

- Não sei se devia ter-lhe dito que viesse, doutor.

- Porquê? Ele não pode receber visitas?

- Não é isso. Ele de facto não parece estar doente, a não ser quanto à fraqueza, mas não conhece ninguém. Os médicos dizem que é demência senil. Perdeu a memória. E há pouco, de repente, esqueceu-se de todo o seu inglês. Agora, só fala alemão, e eu não sei essa língua, a não ser uma ou outra palavra. Se ao menos a tivesse estudado, em vez de música! Mas talvez lhe faça algum bem vê-lo aqui. Foi sempre tão seu amigo. Não pode imaginar como ele falava no senhor e na esplêndida experiência que fez em St. Hubert.

- Pois... eu - Não pôde achar palavras para lhe dizer.

Míriam conduziu-o a um compartimento de paredes forradas de livros. Gottlieb estava afundado numa velha poltrona, em cujo braço repousava a sua mão descarnada.

- Doutor, é Arrowsmith, que acaba de voltar! - murmurou Martin.

O velho pareceu compreender apenas metade; encarou-o, depois menenou a cabeça e murmurou, com um soluço:

- Versteb' nicht.

Lágrimas lentas e indóceis embaciaram-lhe os olhos. Martin compreendeu que nunca mais poderia ser punido e reabilitado. Gottlieb precipitara-se nas trevas, cheio ainda de confiança nele.

 

Martin fechou a sua casa - a casa deles - com uma raiva fria, com medo de ceder à dor de haver encontrado entre as coisas de Leora mil fragmentos que lha trouxeram de novo: o vestido que ela comprara para o jantar de Capítola McGurk, um pedaço de chocolate petrificado, que ela escondera para mastigar clandestinamente à noite, um apontamento: "Comprar amêndoas para Sandy." Alugou um quarto de hotel, severo e impessoal, e atirou-se ao trabalho. Nada lhe restava senão o trabalho e a amizade rígida de Terry Wickett.

A sua primeira tarefa foi confrontar as estatísticas dos casos que tratara em St. Swithin com os novos dados que Stokes continuava a enviar. Alguns eram pouco consistentes, outros sugeriam que o valor do fago fora efectivamente confirmado, mas nada havia de definitivo. Levou os seus dados a Raymond Pearl, o biometrista, que formou um juízo ainda mais precário do que o do próprio Martin.

Martin já fizera um relatório do seu trabalho para o director e para os membros do Conselho, sem tirar conclusões, excepto quando dizia que "os resultados aguardam uma análise estatística, de que dependem para serem publicados". Holabird, porém, estava dominado por um entusiasmo selvagem, os jornais haviam noticiado maravilhas e sobre Martin choviam pedidos urgentes de fago; cartas a pedir informações sobre se não tinha um fago para a tuberculose, para a sífilis; ofertas para encarregar-se desta ou daquela epidemia.

Pearl frisara que os seus animadores resultados ao ministrar inicialmente o fago a toda a população de Carib deviam ser postos em dúvida, porque era possível que, ao iniciar o tratamento, a curva da moléstia já houvesse transposto o seu vértice. com esta e outras complicações, encarando a sua faina em St. Hubett tão friamente como se se tratasse da ficção de um homem que ele jamais vira, Martin chegou à conclusão de que não tinha prova suficiente, e entrou no gabinete do director.

Holabird mostrou-se brando e elegante, mas, suspirando, disse que, se essa conclusão fosse publicada, teria de retirar todas as coisas que dissera sobre a magnificiência cuja realização, segundo se presumia inspirara ao seu subordinado. Foi brando e elegante, mas firme; Martin, devia suprimir (Holabird não disse "suprimir" - disse "deixe comigo para reexame") os resultados estatísticos exactos, e preparar o relatório com um sumário ambíguo.

Martin ficou furioso, Holabird delicadamente inexorável. Martin precipitou-se para junto de Terry, declarando que ia demitir-se... que ia denunciar... que ia desmascarar... Sim! É o que ia fazer! Já não tinha de sustentar Leora. Trabalharia como empregado de bar. Ia voltar imediatamente para dizer a Holá-besta...

"Escuta, Comprido! Espera um momento! Segura o teu cavalo! - aconselhou Terry. - Agüenta um pouco a Besta, enquanto pensamos em alguma coisa que possamos fazer, para nos tornarmos independentes. Entretanto, tens o teu laboratório aqui, e ainda te resta um pouco de química física para aprender! E... Comprido, não disse nada sobre o teu serviço em St. Hubert, mas sabes e eu sei que, por uma infelicidade, tu próprio o prejudicaste. Poderás comparecer perante o tribunal de mãos limpas se pretendes acusar a Besta? Embora eu concorde que ele é um hipócrita sujo, um impostor, um adventício social, um capacho, um ambicioso do poder, a verdade é que ele tem razão. Espera um pouco. Vamos arranjar uma coisa. Pois, filho, nós apenas começámos a aprender a ciência; começámos a apenas a trabalhar."

Holabird, então, publicou oficialmente, sob a égide do Instituto, o relatório original de Martin ao Conselho, com solertes retoques como a mudança de "os resultados devem ser submetidos a uma análise" para "ainda que pareça conveniente uma análise estatística, é evidente que este novo processo de tratamento alcançou tudo quanto era esperado".

Martin enfureceu-se de novo, Terry de novo o acalmou; e com um frenesi bem diverso do entusiasmo dos dias em que sabia que Leora o esperava, reiniciou a sua química física.

Aprendeu os complicados mistérios da determinação dos pontos de congelação, da determinação da pressão osmótica e tentou aplicar as generalizações de Northrop sobre as enzimas ao estudo do fago.

Absorveu-se nas leis matemáticas, que permitem prever, estranhamente, os fenômenos naturais; o seu mundo era frio, exacto, austeramente materialista, amargo para aqueles que fundamentavam a sua lógica em impressões. Tornava-se diariamente mais escarninho para com os contadores de pedras da calçada, os revisores da nomenclatura das espécies, os compiladores de dados impróprios. Na sua concentração, não viu passar a estação amena.

Certa vez, ergueu a cabeça, espantado, e percebeu que era a Primavera; certa vez, Terry e ele percorreram duzentas milhas através dos morros da Pennsylvania, por estradas batidas pelo sol; mas sobre estes acontecimentos pareceu-lhe que havia transcorrido um dia apenas, quando chegou o Natal e Holabird percorreu, jovial e festivo, o Instituto.

A ausência de Gottlieb talvez tivesse sido boa para Martin, pois que já não podia voltar-se para o mestre em busca de soluções para as grandes dúvidas surgidas no seu trabalho. Quando abordou os problemas da difusão, começou a pôr em funcionamento o seu próprio maquinismo, e, quer fosse por engenho inato, quer simplesmente por devoção ao trabalho, mostrou-se tão capaz que mereceu de Terry o elogio quase esmagador: "Mas não vais muito mal, Comprido!"

A segurança com que Max Gottlieb parecia haver nascido, Martin conquistou-a lentamente, após muitos tropeços, mas conquistou-a. Desejava uma perfeição de técnica na indagação dos factos absolutos e prováveis; desejava, tão profundamente como um Poter, "arder como uma chama de pedra preciosa", e desejava não ter crédito nem prestígio no mercado público, mantendo-se livre das frivolidades inerentes que confundem e amolecem.

Holabird espantava-se tanto como Tubbs se teria espantado, diante das ramificações do trabalho de Martin. Afinal de contas, que se julgava ele - um bacteriologista ou um biofísico? Mas Holabird deixou-se vencer pela recepção do mundo científico ao primeiro ensaio científico importante de Martin, sobre o efeito dos raios X, dos raios gama e dos raios beta no fago anti-Shiga. Foi tão elogiado em Paris, Bruxelas e Cambridge como em Nova Iorque pela sua penetração, e pela "clareza e, se me é permitido um entusiasmo talvez anticientífico, a pura delícia e estilo da sua exposição", segundo a expressão do Professor

Berkeley Wurtz; o que se pode entrever pela citação do primeiro parágrafo do estudo:

Numa publicação preliminar, expus um assinalado efeito destruidor qualitativo das radiações de emanações de rádio no bacteriófago anti-Shiga. O presente estudo demonstra que os raios X, os raios gama e os raios beta produzem idênticos efeitos de inactivação sobre este bacteriófago. Além disso, demonstrámos a existência de uma relação quantitativa entre esta inactivação e as radiações que a produzem. Os resultados obtidos deste estudo quantitativo permitem estabelecer que a percentagem de inactivação, calculada segundo as unidades de bacteriófago remanescente, após a irradiação, pelos raios gama e beta, de uma suspensão de virulência fixada, é uma função das duas variáveis, milicuries e horas. A seguinte equação explica quantitativamente os resultados experimentais obtidos do (3-yt, )

Quando o director Holabird viu o artigo - Yeo foi suficientemente maligno para lho mostrar e pedir-lhe a opinião - disse: "Esplêndido, oh, simplesmente esplêndido! Tive há pouco ocasião de passar os olhos por ele mas vou lê-lo com todo o cuidado, no primeiro momento de que dispuser."

 

Martin, depois do seu regresso a Nova Iorque passou várias semanas sem visitar Joyce Lanyon. Recebeu um convite dela para jantar, mas não pôde comparecer e não teve mais notícias dela.

Esforçava-se então por determinar a pressão osmótica e os resultados não o deixavam satisfeito, quando se recolhia ao seu asseado quarto de hotel e ficava reduzido, de Dr. Arrowsmith, a um homem que não tinha com quem conversar. Lembrava-se daquele tépido crepúsculo em que se sentara com Joyce, junto da laguna; e, um dia, telefonou-lhe a perguntar se podia ir tomar chá com ela.

Sabia, de maneira vaga, que Joyce era rica, mas, depois de vê-la de roupão, a cozinhar no asilo de St. Swithin's, não compreendia a sua posição social; e ficou contrafeito quando, sentindo ainda em si o cheiro do laboratório, chegou à sua grande residência e a encontrou transformada numa dona de casa de voz macia, ama de muitos criados. A casa era um palácio e os palácios quer sejam pequenos como o de Joyce, com as suas dezoito divisões, quer sejam Buckingham ou o vasto Fontainebleau, são todos semelhantes; são abafados pelas superfluidades do orgulho, são tão completos que a gente não se lembra de ternos e pequeninos encantos, são indiferençáveis no seu sentimento comum da grandeza polida e impertinente, são por conseguinte totalmente nauseantes.

Mas, no meio do esplendor pretensioso que Roger Lanyon acumulara, Joyce não era nauseante. É de suspeitar que ela encontrasse prazer em mostrar a Martin o que realmente era, apresentando criados de libré, um grande número de sanduíches e alardeando: "Oh, nunca sei o que é que vão trazer-me para o chá."

Mas acolhera-o gritando: "Como está bem! Que alegria me dá! Ainda é meu irmão? Fui boa cozinheira no asilo, não é verdade?"

Se então Martin se tivesse mostrado suave e fino, ela não se teria interessado grandemente. Joyce conhecia grande quantidade de homens que eram finos, de boas famílias, lisos como marfim e capazes de ajudá-la a gastar os quatro ou cinco milhões de dólares de que estava carregada. Martin, porém, era ao mesmo tempo um sábio que quase chegava a dar interesse à determinação da pressão osmótica, um homem ágil e rijo que ela podia imaginar a correr ou a fazer a corte, e um rapaz solitário que ingenuamente a julgava, aqui, na sua cômoda segurança, a mesma rapariga que se sentara junto dele, na margem da laguna, a mesma mulher corajosa que o fora procurar ao seu quarto de bêbedo, em Blackwater.

Joyce Lanyon sabia fazer os homens falar. Graças a ela, mais do que à própria capacidade de expressão de Martin, este deu vida ao Instituto, aos seus membros com os seus conflitos e ao drama de percorrer o rasto de uma descoberta.

A vida, em Nova Iorque absolutamente suave, parecera, insípida a Joyce, depois dos riscos de St. Hubert; e o desdém de Martin pela facilidade e pelas recompensas divertia-a.

Agora, aparecia de quando em quando, para tomar chá, para jantar; ficou a conhecer o sistema da casa, os criados, foi o amigo que mais se aproximava da inteligência. Gostou - e possivelmente impressionou-os bem - de alguns dos amigos dela. com um deles, Martin, ficou em estado de guerra não declarada. Era Latham Irland, homem de cinqüenta anos, dolorosamente bem trajado, um advogado capaz, que gostava de ficar de pé diante de estufas e de mostrar serenamente a sua inteligência. Fascinava Joyce, dizendo-lhe que ela era subtil e em seguida em que estava a ser subtil.

Martin odiou-o.

Em meados do Verão, foi convidado para passar um week-end na vasta casa de campo que Joyce possuía em Greenwich, escondida entre flores. Ela apresentou um ar de quem se desculpava de tanto luxo; ele sentiu-se totalmente infeliz.

O esforço de pensar no vestuário; de sair apressadamente para comprar calças brancas, quando o que ele queria era conservar as provetas no banho de temperatura constante; de procurar parecer à vontade na limousine que foi buscá-lo à estação;

e de resolver quais os criados a quem devia dar gorjeta, e quanto e quando, era desanimador para um homem simples. Achou-se rústico quando, depois de haver dito abruptamente: "Um minuto enquanto subo para desemalar" - ela respondeu docemente: - "Oh, eles se encarregarão disso."

Descobriu que um criado de quarto lhe pusera sobre o leito, naquela primeira noite, a roupa interior que trouxera, e espremera na escova de dentes uma porção de pasta.

Sentou-se na beira da cama, a resmungar: "Isto é demasiado rico para o meu sangue!"

Odiou e teve medo daquele criado, que remexia nas suas roupas, as guardava em lugares onde não era capaz de encontrá-las, depois entrava ameaçadoramente quando Martin estava agachado no quarto enorme, à procura delas.

Mas a sua principal infelicidade foi que nada havia a fazer. O único desporto que conhecia era o tênis, em que estava muito entorpecido para jogar com esta gente tagarela e não identificada, que enchia a casa e, com ar de perfeita satisfação, jogava golfe e bridge. Ficou a conhecer apenas alguns dos amigos de quem falavam. Diziam: " - O R. G. sabe? " E ele dizia: " - Sim, sim." Mas nunca sabia quem era esse R. G.

Joyce foi tão solicitamente amável como quando tomavam chá sozinhos, e arranjou-lhe uma companheira desenvolta e mal feita, cujo tênis era pior do que o dele; mas Joyce tinha vinte convidados a atender - quarenta, no almoço do domingo - e Martin desistiu de certos desejos agradáveis de passear com ela sobre os frescos relvados e, após dizer-lhe, excitado, isto e aquilo, talvez mesmo beijá-la. Teve um momento a sós com ela. Quando ia partir, ela ordenou: "Venha cá, Martin." E afastou-se com ele.

- Notei que não se divertiu.

- Nada disso! Claro que me diverti...

- Claro que não se divertiu! E despreza-nos um pouco, e talvez em parte tenha razão. Gosto de pessoas elegantes, e maneiras graciosas, e de um bom jogo, mas suponho que tudo isso parece tolice, depois de noites passadas num laboratório.

Não; também gosto disso. De certa maneira. Gosto de olhar para mulheres bonitas... para si! É o diabo, Joyce, não me adapto a isto. Fui sempre pobre e andei sempre horrivelmente ocupado. Não aprendi esses jogos de vocês.

- Mas, Martin, pode aprendê-los, com a intensidade que

põe em todas as coisas.

- Como nas bebedeiras de Blackwater!

- E espero que em Nova Iorque, também! Roger divertia-se como um rapaz, embriagando-se em jantares distintos! Mas o que quero dizer é que, se se dedicar um pouco, poderá jogar bridge e golfe e conversar... melhor do que qualquer deles. Se soubesse como é nova a maior parte da classe aristocrática norte-americana! E olhe, Martin: não acha que isso seria bom para si? Não trabalharia melhor se de vez em quando abandonasse as tábuas de logaritmos? Irá então confessar que há uma coisa em que não pode vencer?

- Não; eu...

- Quer vir jantar na terça-feira, só comigo, para falarmos sobre tudo isso? - com prazer.

Durante algumas horas, no comboio que o conduzia à casa de campo de Terry Wickett, nos morros de Vermont, Martin convenceu-se de que amava Joyce Lanyon e de que ia dedicar-se à arte de se tornar divertido, assim como se dedicara à química física. Rigidamente sentado num dos bancos de um velho carro Pullman, com os pés sobre a mala, imaginou-se, com entusiasmo mas sem vestígio de humor, de smoking e freqüentando um clube (provavelmente viu-se em primeiro lugar a adquirir o smoking e a entrar para sócio do clube), a jogar golfe em plusfours1, a falar com interesse sobre R. G. e dizer graças incríveis sobre o velho Rolls-Royce do querido Latham Ireland.

Mas esqueceu-se destas ambições quando chegou à cabana de que Terry era o orgulhoso proprietário, perto de um lago entre carvalhos e bordos, e quando ouviu as sólidas teorias de Terry sobre a decomposição dos derivados do quinino.

Sendo talvez o menos sentimental dos seres humanos, Terry dera à sua casa o nome de Descanso dos Passarinhos. Era dono de cinco acres de mato, a duas milhas da estação do caminho de ferro. A cabana resumia-se a duas divisões de tábuas, com tarimbas em vez de camas e um oleado em vez de toalha de mesa.

- O meu plano é este, Comprido - disse Terry. – Qualquer

 

1 Calções mais longos e mais frouxos do que os knickerbockers. (N. Do T.)

 

dia estudo um meio de economizar para as despesas com um laboratório aqui, onde manufacture soros ou outra coisa, e faço mais duas casas ali à beira do lago, deixando uma absolutamente independente para a ciência... duas horas por dia para a parte comercial, e, digamos, umas seis para dormir, umas duas para comer e contar histórias porcas. Restam... duas, mais seis, mais duas, fazem dez, se é que sou autoridade em alta matéria... restam portanto, catorze horas por dia para as pesquisas (excepto em circunstâncias especiais), sem director, nem patronos de Sociedade, nem Conselhos de Administração, que a gente tenha de satisfazer com a apresentação de relatórios idiotas. Naturalmente que não haverá jantares científicos com senhoras em vestidos vaporosos, mas acho que poderemos dar-nos o luxo de comer bastante carne seca de porco e fumar em cachimbos de sabugo de milho, e a tua cama será feita com perfeição... se tu próprio a fizeres. Que tal? Mas... vamos dar umas braçadas.

Martin voltou para Nova Iorque com os planos não muito compatíveis de ser o jogador de golfe mais bem trajado de Greenwich e de cozinhar guisados com Terry, no Descanso dos Passarinhos.

A primeira destas coisas, porém, encerrava mais novidade para ele.

 

Joyce Lanyon divertia-se com uma conversão. As experiências em St. Hubert e a sua volubilidade natural haviam-na deixado insatisfeita com o grupo de velozes automobilistas de Roger.

Permitia que as senhoras Mecenas das suas relações a distraíssem com várias das suas causas, e divertia-se com elas como se divertira, em 1917, com o trabalho de guerra, activo mas inteiramente desorientado, pois Joyce Lanyon era até certo ponto uma arrumadora, epíteto inventado por Terry Wickett Para Capítola McGurk.

Uma arrumadora e mesmo uma aperfeiçoadora, mas não era uma Capítola; não agitava um leque de plumas, falando lentamente, nem deixava transparecer na conversação a sua inquietação amorosa. Era bonita e às vezes vistosamente bela, com algo de um tigre, mas andava tão longe dos boudoirs perfumados e da paixão pela lingerie negra como dos arrulhos da decadência de Capítola. Bastavam-lhe as alvas sedas e a sua pele imaculada.

Por detrás de todas as suas razões para dar valor a Martin, estava o facto de que a única vez na vida em que se sentira útil e independente fora quando se transformara em cozinheira de asilo.

Poderia ter continuado a flutuar no seu mundo de gente que flutuava, se não fosse a interposição de Latham Ireland, o advogado e amante-amador.

- Joy - advertiu ele -, parece haver uma quantidade exagerada da pessoa desse Dr. Arrowsmith por aqui. Na qualidade de seu benigno tio...

- Meu caro Latham, concordo inteiramente em que Martin é demasiado agressivo, tosquíssimo, muito egoísta, um tanto implicante, absolutamente pedante, e que as suas camisas são atrozes. E acho também que vou casar com ele. Quase chego a pensar que o amo!

- O cianeto não seria um meio mais elegante para você se suicidar? - disse Latham Ireland.

 

O que Martin sentia por Joyce era o que qualquer viúvo de trinta e oito anos sentiria por uma mulher jovem, bonita e bem-falante que desse atenção à sua sabedoria. Quanto à riqueza de Joyce, não havia problema algum. Ele não era um pobretão que casasse por dinheiro! Pois não ganhava dez mil dólares por ano, o que vinha a ser oito mil dólares mais do que precisava para viver?

De vez em quando, Martin suspeitava nela uma dependência invencível do luxo. com grande astúcia, pediu-lhe que, em vez de jantarem no salão estilo rei Jaime I do palácio de Joyce, saísse em companhia dele. Joyce acompanhou-o, com entusiasmo. Foram a Greenwich Village, a insondáveis restaurantes com velas, criados artísticos, mas sem nada que se comesse; ou a Chinatown, a antros com comida mas sem nada mais. Insistiu mesmo que ela tomasse o subway - embora depois do jantar ele, em geral, se esquecesse de que era espartano e costumasse chamar um táxi. Ela aceitou tudo isso, sem se encolher nem gaguejar muito.

Jogava tênis com ele no court do seu terraço; ensinou-lhe bridge, que, com a sua concentração e memória, em breve passou a jogar melhor do que ela, com enorme satisfação; persuadiu-o de que tinha pernas e que lhe ficaria bem o trajo de golfe.

Numa serena noite de Outono, Martin veio buscá-la para jantar. Deixou o táxi à espera.

- Porque não tomamos o subway? - disse ela.

Estavam parados à entrada da residência de Joyce, numa rua caríssima e sem romantismo algum, perto da Quinta Avenida.

- Ora, detesto o infecto subway tanto como você! Cotoveladas no estômago nunca me ajudam a planear experiências. Quando nos casarmos, espero aproveitar a sua limousine.

- É uma proposta? Não estou certa de que casarei consigo. Sim, não tenho a certeza! Você não tem o senso da comodidade!

Casaram no mês de Janeiro seguinte, em St. George's Church, e Martin sofreu quase tanto com as flores, o bispo, o tom da voz dos parentes e a cartola que Joyce encomendara, como com o aperto de mão de Rippleton Holabird, cujo semblante parecia significar: "Afinal, meu rapaz, deixaste o barbarismo e tornaste-te um dos nossos."

Martin convidara Terry para padrinho. Terry recusara, afirmando que só com grande pesar é que compareceria. O padrinho foi o Dr. William Smith, com a sua barba despontada expressamente para o acto, um aflitivo fato preto e uma cartola que comprara em Londres onze anos antes; mas ambos ficaram em segurança, entregues à guarda de um primo de Joyce que garantia dispor de mais de um lenço e reconhecer a Marcha Nupcial. Smith pensava que Martin fosse formado por Groton e Harvard, e, quando descobriu que o fora por Winnemac e nada mais, ficou com ar desconfiado.

No camarote de luxo do vapor, Joyce murmurou: "Querido, portaste-te com coragem! Não sabia que esse meu primo era tão idiota. Beija-me!"

Desde então... excepto num segundo terrível, em que Leora flutuou entre ambos, de olhos cerrados e mãos cruzadas sobre o peito pálido e frio... foram felizes e, em cada um, fizeram aventurosas descobertas.

 

Durante três meses vaguearam pela Europa.

No primeiro dia, Joyce dissera: "Vamos regular de uma vez para sempre essa coisa estúpida do dinheiro. Acho que és o menos mercenário dos homens. Abri uma conta-corrente de dez mil dólares para ti em Londres... abri, sim, e cinqüenta mil em Nova Iorque... e se quiseres, quando tiveres de fazer uma despesa para mim, gostaria que a utilizasses. Não! Escuta! Não compreendes como me esforço por tornar a situação suave e decente? Pretendes magoar-me só por causa do teu amor próprio?"

Deviam, aparentemente, visitar a princesa del Oltraggio (em solteira, Miss Lucy Deemy Bessy, de Dayton), Mme. dês Basses Loges (Miss Brown, de S. Francisco) e a condessa de Marazion (que fora a Sr.a Arthur Snaipe, de Albany, e várias coisas antes disso), mas Joyce foi com ele ver os grandes laboratórios de Londres, Paris e Copenhague. Ficou orgulhosa ao notar quantos detentores do Prêmio Nobel recebiam o seu marido, sabiam coisas dele, desejavam discutir o fago com ele e lhe mostravam a sua obra de anos. Alguns deles eram apressados e sem graça, na opinião de Joyce. O seu homem era mais bonito do que qualquer deles, e, se tivesse paciência com ele, poderia fazê-lo dominar o pólo, as roupas e a conversa... continuando, naturalmente, com a ciência... uma pena que ele não pudesse usar um título de cavaleiro, como um ou dois dos cientistas ingleses que haviam conhecido. Mesmo nos Estados Unidos, havia graus honoríficos.

Enquanto Joyce descobria e digeria Ciência, Martin descobria as mulheres.

 

Tendo convivido apenas com Madeline Fox e Orquídea Pickerbaugh, que eram boas raparigas americanas; com damas da noite logo esquecidas; e com Leora que, na sua indolência, na indiferença pela decoração e pelas aparências, não era nem mulher nem esposa mas apenas ela mesma, Martin nada sabia de mulheres. Esperara de Leora apenas que o ajudasse; que obedecesse aos seus desejos; que compreendesse, sem que as dissesse, todas as coisas lisonjeiras que pretendera dizer-lhe. Habituou-se mal, e Joyce não teve dúvida em dizer-lho.

Ficar sentada, contente e em silêncio, enquanto ele e os seus companheiros de pesquisas melhoravam o mundo, não era para Joyce. com muitos solavancos, Martin percebeu que, mesmo fora do quarto de dormir, tinha de levar em consideração as flutuações e as variáveis de sua esposa, como mulher, e ás vezes como mulher rica.

Ficou surpreendido ao verificar que, onde Leora reclamara azedamente lealdade sexual, ao passo que não concedia a mínima importância à maneira como ele lhe desse os bons-dias, Joyce era indiferente aos amores que ele pudesse ter com tantas mulheres quantas encontrasse (contanto que não a insultasse amando-as na sua presença), mas exigia que dissesse bons-dias pensando no significado da expressão. Surpreendeu-se ao verificar com que susceptibilidade ela diferençava as suas carícias quando ele estava interessado nela, do seu interesse apressado quando queria dormir. Poderia, segundo afirmava, matar um homem que a considerasse apenas um móvel conveniente, e acentuava desagradavelmente a palavra "matar".

Queria que ele se lembrasse do seu aniversário, dos vinhos de que ela gostava, do seu amor às flores e do seu desagrado pelo processo de se barbear. Queria um quarto só para si; insistia para que ele batesse à porta antes de entrar; e exigia que admirasse os seus chapéus.

Um dia, em que Martin se empolgou de tal forma pela obra do Instituto Pasteur que mandou um empregado telefonar-lhe a dizer que não podia jantar com ela, Joyce cerrou os lábios de raiva.

"Ora, devias ter esperado isso", reflectiu Martin, achando-se experiente, penetrante e paciente.

Às vezes ficava aborrecido porque ela jamais se resolvia a acompanhá-lo impulsivamente a algum passeio. Por mais rápido que este fosse, tinha sempre de ir ao quarto buscar as luvas brancas... e lá ficava placidamente a enfiá-las... E, em Londres, persuadiu-o a comprar polainas... e mesmo a usá-las.

Joyce não era apenas uma arrumadora... era uma realista. como muitos norte-americanos cosmopolitas, venerava o pariato inglês, adoptava todos os seus standards e crenças - ou o que considerava seus standards e crenças - e entesourava encontros com eles. Três anos e meio depois da Guerra de 1914-1918, ainda dizia detestar os alemães, e houve uma verdadeira desavença entre ela e Martin quando este pretendeu visitar os laboratórios de Berlim e Viena.

Mas, apesar de todas as diferenças do casal, foi uma peregrinação romântica. Amaram-se audazmente; percorreram a pé as montanhas e voltaram para divertir-se em vastos quartos de banho e refinados jantares; sentaram-se, ociosos, nas terrasses dos cafés, e, salvo quando ele recordava em silêncio quanto Leora desejara sentar-se na calçada dos cafés de França, revelaram-se reciprocamente toda a vivacidade dos seus espíritos.

Joyce oferecia-lhe com mãos generosas a Europa, a sua Europa que ela sempre conhecera e amara, e ele, que fora sempre sensível às tintas quentes e aos gestos finos - quando não estava empolgado pelo trabalho -, ficava-lhe agradecido, e maravilhava-se como uma criança. Acreditou que aprendia a levar a vida com suavidade e beleza; criticou o provincianismo, de Terry Wickett (mas só no seu foro íntimo); e assim, num ócio dourado, voltaram para a América, para a lei seca, para os politicos encarregados de proteger o Trust do Aço contra os comunistas, para as conversas sobre bridge e motores, e para as determinações da pressão osmótica.

 

O director Rippleton Holabird também casara com dinheiro, e, sempre que os colegas insinuavam que, depois dos seus primeiros e entusiásticos trabalhos em fisiologia, nada mais fizera do que arranjar algumas flores escolhidas com bom gosto em mesas talhadas por outros homens, era para ele uma satisfação observar que esses falhados vinham para o Instituto de subway, ao passo que ele chegava elegantemente no seu coupé. Agora, porém, Arrowsmith, dantes o mais pobre entre todos eles, vinha de limousine, com um chauffeur que tocava no boné, e Holabird sentia o gosto do fel.

Havia simplicidade em Martin, mas não se pode dizer que não lambesse os beiços ao notar o olhar de Holabird para o chauffeur.

O seu triunfo sobre Holabird foi menor do que o de poder entreter Angus Duer e sua mulher, chegados de Chicago; apresentá-los ao director Holabird, a Salamon, o rei dos cirurgiões, e a um médico-baronete; e ouvir Angus proclamar com comoção: - Mart, permites que te diga que todos lá estamos profundamente orgulhosos de ti? Rouncefield falou-me um dia destes de tudo isso. "Talvez seja presunção - disse ele -, mas acho que o treino que procurámos dar na Clínica ao Dr. Arrowsmith talvez tenha contribuído de algum modo para a sua magnífica obra nas Antilhas e no McGurk." Mas que mulher encantadora a tua, meu velho! Achas que ela não se importaria de dizer a minha mulher onde adquiriu aquele vestido?

Martin ouvira falar da superioridade da pobreza sobre o luxo, mas, depois dos restaurantes montados em camiões, em Mohalis; depois de doze anos a ajudar Leora a verificar as contas da lavandaria e a preocupar-se com o preço dos gêneros; depois de uma vida áspera no eléctrico, sobre a neve e a lama, não era consternador dispor de um criado de quarto que apresentava camisas automaticamente; não era degradante participar de jantares que tinham sempre interesse, e, na discreção do seu carro, encostar a cabeça doída na almofada macia e achar que era um tipo esperto.

"Compreendes, deixando outras pessoas fazerem para ti as coisas comuns, poupas energia para aplicar às coisas que só tu podes fazer", dizia Joyce.

Martin concordou e dirigiu-se a Westchester, para uma lição de golfe.

Uma semana depois do regresso da Europa, Joyce foi com ele visitar Gottlieb. Martin imaginava que Gottlieb sairia da sua contemplação para sorrir-lhes.

"Afinal de contas - considerava ele - o velho gostava das coisas belas. Se tivesse oportunidade, talvez tivesse também gostado de possuir uma grande Instituição."

Quanto a Terry, mostrou uma complacência surpreendente.

"Eu explico, Comprido... já que queres saber. Quanto a mim, detestaria viver pelas mãos de criados. Mas estou a ficar velho e sábio. Penso que pessoas diferentes gostam de coisas diferentes, e muito poucas têm bastante senso para vir perguntar-me que é que devem preferir. Mas, palavra, Comprido, acho que não vou jantar contigo. Comprei um smoking... comprei, ouviste?... está lá no meu quarto... o diabo da dona da casa conserva-o com naftalina... mas acho que não poderia ouvir Latham Ireland fazer espírito."

Todavia, era a atitude de Rippleton Holabird o que mais preocupava Martin, pois Holabird não lhe permitia esquecer-se de que, se não desejasse ser afastado e passar a ser apenas o marido de uma mulher rica, faria bem em lembrar-se de quem era o director.

Paralelamente com as maneiras macias que reservava para Ross McGurk, Holabird adquirira o ar remoto, a fria e inumana cortesia do homem de negócios, e cortesmente colocava no seu lugar aqueles que julgavam poder tratá-lo como nos alegres dias de antanho. Compreendeu a necessidade de reprimir a insubordinação, quando Arrowsmith apareceu numa limousine. Depois do seu regresso, concedeu-lhe uma semana para gozar a limousine, e em seguida, suavemente, foi vê-lo ao seu laboratório.

Martin - suspirou - verifiquei que o nosso amigo Ross McGurk está pouco satisfeito com os resultados práticos que o Instituto está a produzir e, para convencê-lo do contrário, receio ter de pedir-lhe que, no momento, se dedique com menos ênfase ao bacteriófago em favor da influenza. O Instituto Rockefeller tem uma orientação justa. Utilizaram as suas melhores cabeças e gastaram dinheiro, em somas magníficas, com problemas como a pneumonia, a meningite, o cancro. Já reduziram os terrores da meningite e da pneumonia; a febre amarela está em vésperas de completa extinção, em virtude dos trabalhos de Noguchi; e não tenho dúvidas de que o hospital deles, com os seus enormes recursos e mentalidades imbuídas de um esplendido espírito de cooperação, será o primeiro a encontrar algo que alivie a diabetes. Agora, segundo sei, estão empolgados pela causa da influenza. Não querem permitir que grasse outra grande epidemia dela. Nestas circunstâncias, meu caro, resta-nos batê-los nesse terreno, e escolhi-o para representar-nos no torneio."

Martin, de momento, cogitava num método para reproduzir o fago em bactérias mortas; mas não podia recusar-se, não podia arriscar-se a ser despedido. Era demasiado rico! Martin, o renegado estudante de Medicina, podia enterrar-se no lodo e ser um criado de bar, mas, se o marido de Joyce Lanyon se permitisse tal loucura, seria acompanhado pelos repórteres e fotografado no acto de manejar o sifão. E, menos ainda, podia permitir-se a mera situação de marido manteúdo - um criado de boudoir.

Concordou, embora com uma atitude pouco prazenteira.

Começou a procurar a causa da influenza com um semientusiasmo quase magnífico. Nos hospitais, encaminhou culturas de casos que podiam ser de influenza e que podiam ser de fortes resfriamentos - ninguém tinha a certeza quanto aos sintomas exactos da influenza; nada havia de perfeitamente delimitado. Deixou a maior parte do trabalho aos seus assistentes, dando-Lhes de quando em quando instruções sardónicas para "prepararem mais umas cem provetas com o meio A... ou mais umas mil! " - e, quando verificava que procediam como lhes agradava, não se mostrava repreensivo nem recto. Se não retirava arrependido, a mão do arado, era apenas porque nunca punha a mão no arado. Dantes, o seu pequeno laboratório privado apresentava o minucioso esmero de uma cozinha do Novo Hamsphire. Agora, as várias salas que estavam sob a sua superintendência eram uma desgraça, com longas estantes de provetas abandonadas, muitas delas cheias de bolor, nenhuma adequadamente rotulada.

Depois, teve uma idéia. Começou a acreditar firmemente que os investigadores de Rockefeller haviam descoberto a causa da influenza. Irrompeu no gabinete de Holabird e contou-lhe a idéia. E, quanto a si, pretendia voltar às suas investigações com relação à verdadeira natureza do fago.

Holabird sustentou que Martin devia estar enganado. Se Holabird queria que coubesse ao Instituto McGurk - e ao director do Instituto McGurk - o crédito da vitória sobre a influenza, então não era possível que o Rockefeller estivesse mais adiantado. Disse, também, coisas duras sobre o fago. A sua natureza essencial, assinalou, era uma questão acadêmica.

Martin, porém, nesta altura, era um cientista demasiado dialéctico para Holabird, que recuou e se retirou para a sua caverna (ou foi nisto que Martin melancolicamente acreditou) a fim de arquitectar novas maneiras de atormentá-lo. Por algum tempo, Martin ficou novamente livre para engolfar-se no seu trabalho.

Descobriu um meio de reproduzir o fago nas bactérias mortas, utilizando, numa operação muito delicada e difícil, uma atmosfera carregada de anidrido carbônico - uma operação tão delicada como o entalhe de um camafeu, tão improvável como pesar estrelas. A sua comunicação agitou o mundo dos laboratórios, e aqui e ali (em Tóquio, em Amesterdão, em Winnemac) alguns entusiastas acreditaram que ele provara que o fago era um organismo vivo; e outros entusiastas disseram, em linguagem esotérica, com fórmulas matemáticas, que ele era um mentiroso e seis espécies de idiota.

Foi nesta ocasião, quando poderia ter-se tornado um grande homem, que Martin deitou fora a maior parte da própria obra e descurou alguns dos seus deveres como marido de Joyce para seguir Terry Wickett, com o que demonstrou que carecia de senso comum, porque Terry continuava a ser um assistente ao passo que ele próprio era chefe de departamento.

Terry descobrira que certos derivados da quinina, quando introduzidos no organismo animal, se decompõem lentamente em produtos que são altamente tóxicos para as bactérias, mas apenas suavemente tóxicos para o organismo. Isto sugeria todo um mundo novo de terapêutica. Terry explicou-o a Martin e convidou-o a colaborar. Exuberantes de grandes planos, despediram-se de Holabird - e de Joyce - e, embora fosse Inverno, viajaram para o Descanso dos Passarinhos, nos morros de Vermont. Enquanto passeavam sobre a neve e caçavam coelhos, e em todos os serões longos e foscos, enquanto ficavam deitados sobre a barriga diante do fogo, deliravam e traçavam planos.

Martin não passara tanto tempo no aconchego das sedas que não pudesse apreciar carne de porco seca, depois do vento noroeste e da neve. Não era desagradável ver-se livre da necessidade de imaginar novos galanteios para Joyce.

Chegaram à conclusão de que deviam responder a uma interessante pergunta: agem os derivados da quinina atacando as bactérias ou transformando fluidos do organismo? Era uma pergunta simples, clara, definida, que requeria, para a resposta, apenas o mais profundo conhecimento de química, de biologia, algumas centenas de animais para experiências, e talvez dez, vinte ou um milhão de anos de tentativas e malogros.

Decidiram trabalhar com o pneumococo e com o animal que reproduzisse mais aproximadamente a pneumonia humana. Isto queria dizer o macaco, e matar macacos é dispendioso e um tanto sinistro. Holabird, como director, poderia fornecê-los, mas, se lhe fizessem confidencias, ele exigiria resultados imediatos.

Terry meditou:

- Lembro-me de que houve um desses Prêmios Nobel, Comprido, um desses fanáticos perfeitos que, em vez de deitar fora o dinheiro, gastou tudo com chimpanzés e outros macacos, associou-se com outro desses velhos barbudos, conseguiram pôr-se em lugar seguro contra os antivivisseccionistas, e resolveram o problema da transmissão da sífilis aos animais interiores... Mas nós não ganhámos nenhum Prêmio Nobel, dói-me dizer-te, e não me parece que...

- Terry, se for necessário tratarei do assunto. Ainda não pedi dinheiro a Joyce, mas pedi-lo-ei se o Holá-besta nos disser que não.

 

Enfrentaram Holabird no seu gabinete, com um vago ar de meninos acanhados, e pediram uma despesa de pelo menos dez mil dólares com macacos. Queriam iniciar uma pesquisa que poderia levar dois anos, sem resultados evidentes - possivelmente sem nenhum resultado. Terry precisava de ser transferido para o departamento de Martin, como co-dirigente, dividindo-se igualmente entre ambos a soma dos seus salários.

Em seguida, prepararam-se para combater.

Holabird encarou-os, ajeitou o bigode, abandonou os seus ares de director eficiente, e falou:

- Esperem um minuto, se não se importam. Segundo deduzo, vocês estão a explicar-me que de vez em quando é necessário algum tempo para desenvolver uma experiência. Preciso dizer-Lhes que já fui pesquisador num Instituto chamado McGurk, e que aprendi várias dessas coisas por mim próprio! Ora, Terry, e você, Mart, não sejam tão egoístas! Vocês não são os únicos cientistas que gostam de trabalhar sem serem perturbados! Se soubessem que vontade tenho de deixar de assinar cartas, e meter novamente os dedos no cilindro de um quimógrafo! Aquelas belas e grandes horas de pesquisa da verdade! E se soubessem como tenho lutado com os conselheiros para conservar para vocês a oportunidade de trabalharem livremente! Pois muito bem. Vocês terão os macacos. Arranjem o departamento conjunto como lhes aprouver. E trabalhem como melhor lhes parecer. Duvido que em todo o mundo científico haja duas pessoas nas quais se possa confiar tanto como em vocês dois, seus grandes brutos!

Holabird levantou-se, empertigado, belo, cordial e com a mão estendida. Martin e Terry apertaram-na timidamente e timidamente se retiraram. Terry rosnou: "Ele estragou-me todo o santo dia! Não me deu motivo sequer para eu dar um coice! Comprido, onde está a armadilha? Podes apostar que há uma armadilha... há sempre!"

Em um ano de divino trabalho, a armadilha não apareceu. Tiveram os macacos, os laboratórios e os serventes, e nada lhes turvou os ócios; começaram o trabalho mais empolgante que já haviam conhecido, e, decididamente, o mais emocionante. Os macacos são animais caprichosos; gostam de contrair tuberculose sem nenhuma provocação; no cativeiro, mostram inclinação pelas epidemias; e fazem cenas, praguejando contra os seus amos em sete dialectos.

- Eles são tão operosos - suspirava Terry. - Sinto desejos de deixá-los ir para o Descanso dos Passarinhos para plantarem batatas. Por que matarmos homens de acção como eles, só para salvar da pneumonia seres barrigudos de cara pastosa?

A primeira tarefa foi determinar com precisão a dose tolerada do derivado de quinina e estudar os seus efeitos na audição, na visão e nos rins, de acordo com infindáveis dosagens do açúcar e da uréia do sangue. Enquanto Martin fazia as injecções, observava o efeito nos macacos e perdia-se na química, Terry trabalhava (toda a noite, todo o dia seguinte, depois um copo e uma soneca agitada, e de novo toda a noite) em novos métodos para sintetizar o derivado da quinina.

Foi este o período mais difícil da vida de Martin. Trabalhar, cambalear de sono durante toda a noite, adormecer sobre uma simples mesa, à alvorada, e tomar o pequeno almoço no balcão oleoso de um botequim, eram coisas naturais e divertidas; mas explicar a Joyce por que não comparecera ao jantar que ela oferecera a uma escultura e a um advogado cujo avô fora general dos Confederados, isso era impossível. Obtinha uma rápida tolerância, explicando que, realmente, desejara beijá-la à hora de dormir; que apreciara a cesta de sanduíches que ela lhe enviara; e que estava prestes a afastar a pneumonia da raça humana, declaração que ela saudavelmente pôs em dúvida.

Mas quando havia faltado sucessivamente a quatro jantares; quando ela exclamou, encolerizada: "Não podes imaginar que coisa horrível foi a senhora Thorn ficar sem um homem no último momento? "; quando ela se lamentou: "Não me importei muito com a tua grosseria nas outras noites, mas esta noite em que eu nada tinha que fazer e fiquei sentada em casa, sozinha, à tua espera" - então ele ficou nervoso e confuso.

Martin e Terry começaram a provocar a pneumonia nos macacos e a tratá-los, obtiveram êxitos que os levaram a valsar solenemente corredor abaixo. Conseguiram salvar os macacos da pneumonia invariavelmente quando a infecção tinha apenas um dia, e a maior parte deles no segundo e no terceiro.

Os resultados foram complicados pela circunstância de que numerosos macacos se restabeleciam por si, o que eles registavam com índices de aparência simples, mas que tomavam dias de tensão e mobilidade... um homem sem colarinho, cabelos em desordem, as costas doridas, ficava curvado sobre uma mesa, enquanto o outro circulava por entre feridas gaiolas de macacos, arreganhando os dentes para eles, chamando-lhes Bess e Rover, resmungando placidamente: "Hum, querias morder-me, hem, coração? ", e, sem cessar, brando mas inflexível como os deuses, lhes injectava a mortal pneumonia.

Chegaram a um planalto onde o ar era escasso e cheio de vácuos. Estudaram no tubo de ensaio os produtos da destruição dos pneumococos - e falharam. Construíram fluidos artificiais do organismo (esmerada, penosa, inadequadamente), experimentaram o efeito do derivado os germes neste sangue artificial - e falaram.

Então Holabird ouviu falar dos seus primeiros êxitos e caiu sobre eles com lauréis e ira.

Viera a saber, disse, que tinha encontrado a cura da pneumonia. Muito bem! O Instituto precisava de fazer valer o mérito da cura dessa moléstia indesejável, e Terry e Martin teriam a bondade de publicar imediatamente as suas conclusões (mencionando o McGurk).

- Não publicaremos! Escute uma coisa, Holabird! - rosnou Terry. - Eu pensava que você nos deixaria em paz.

- E deixei! Quase um ano! Até completarem a experiência. E agora completaram-na. Chegou a hora de permitirem que o mundo saiba o que fizeram.

- O mundo saberia então mais do que eu sei! Nada feito, chefe. Talvez possamos publicar daqui a um ano.

- O senhor publicará agora ou...

- Está certo, Besta. Chegou o momento abençoado. Largo isto! E sou tão bem educado que o faço sem dizer o que penso de ti!

E, assim, foi Terry Wickett desligado do McGurk. Tirou patente do processo para sintetizar o seu derivado da quinina e retirou-se para o Descanso dos Passarinhos, para construir um laboratório com as suas pequenas economias e passar uma vida de pesquisa independente, custeada pela venda limitada de soros e da sua droga.

Para Terry, sem esposa nem criado de quarto, isto foi bastante fácil, mas para Martin não era simples.

 

Martin via-se na contigência de demitir-se. Explicou-o a Joyce. Como combinar uma residência na cidade e um castelo em Greenwich com a sua colaboração e a sua camisa de flanela no Descanso dos Passarinhos, ainda não o sabia; mas não seria desleal.

- Compreendes? Holá-besta despede Terry mas não ousa tocar-me! Esperei, simplesmente porque queria deixar Holabird a ruminar no que eu faria. E agora...

Explicava-lhe a situação no carro deles... dela, quando se dirigiam para casa, ao saírem de um jantar onde se mostrara tão jovial e encantador para com uma viúva importante que Joyce murmurara: "Que tolo foi Latham Ireland ao dizer que ele não saberia polir-se!"

- Estou livre, graças a Deus, estou finalmente livre, porque trabalho para uma coisa pela qual vale a pena a gente tornar-se livre! - exclamou, exuberante. Ela descansou a mão fina sobre a mão dele e pediu:

- Espera um pouco! Quero pensar. Fica quieto um momento, sim? - Depois: - Mart, se fores trabalhar com o Sr. Wickett, terás de me deixar constantemente.

- Mas...

- Não acho que isso seria muito correcto... quero dizer, especialmente agora, pois acho que vou ter um filho.

Ele fez um gesto de surpresa.

- Oh, não vou fazer o papel de mãe chorosa. E não sei se estou contente ou furiosa, embora ache que me agrada ter um filho. Mas isto complica as coisas, sabes. E, quanto a mim, sentiria que deixasses o Instituto, que te dá uma posição sólida, em troca de uma vida retirada. Querido, tenho sido gentil contigo, não tenho? E gosto de ti! Não quero que me abandones, e é o que farias se fosses para esse horrível lugar em Vermont,

- E não poderíamos comprar uma casa perto, onde passaríamos parte do ano?

- Sim. Mas teremos de esperar que fique liquidada esta estúpida tarefa de conceber uma criaturinha, para então pensarmos nisso.

Martin não se demitiu do Instituto e Joyce não pensou em comprar uma casa perto do Descanso dos Passarinhos até ao momento de comprá-la.

 

Sem Terry Wickett, Martin voltou ao fago. Teve um começo falso e fez o pior trabalho da sua vida. Perdera a sua feroz serenidade. Sentia demasiadamente o peso de uma vida social profissional e não podia compreender esse fenômeno esotérico, o dinnerparty - o penoso entretenimento de pessoas de que a gente nem gosta nem acha interessantes.

Enquanto encontrara um refúgio nas palestras com Terry, não se deixara irritar demasiado com insignificâncias bem trajadas, e, durante algum tempo, apreciara o jogo dramático de levar as pessoas elegantes a aceitá-lo. Agora, porém, a razão incomodava-o.

Cliff Clawson mostrou-lhe como a sua vida estava emaranhada.

Logo que chegara a Nova Iorque, Martin procurara Cliff, cuja turbulência fora o seu alívio entre os Angus Duer e os Irving Watter da Escola de Medicina. Não encontrou Cliff, nem na agência de automóveis para a qual trabalhara, nem em Automobile Row. Durante catorze anos, Martin não o viu.

Depois, levaram ao seu laboratório, no McGurk, um cartão impresso a vermelho e negro:

CLIFFORD L. CLAWSON

(Cliff) EXCELENTE EMPREGO DE CAPITAL EM ACÇÕES DE PETRÓLEO

HIGHAM BLOCK

BUTTE

- Cliff! O meu velho Cliff! O melhor amigo que um homem pode ter! Daquela vez, emprestou-me o dinheiro para ir buscar Leora! Velho Cliff! Minha Nossa Senhora, quanto precisava eu de alguém como ele agora que Terry se foi embora e só fiquei com esses bebedores de chá! - exclamou Martin, cheio de enfado.

Precipitou-se para fora e estacou, os olhos arregalados para um homem que dizia, e não em voz baixa, à jovem encarregada da sala de espera:

- pois é, irmã, vocês, melros científicos, sabem certamente viver! Ainda não pus as patas numa boite mais luxuosa do que esta, excepto em gabinetes de corretores desonestos... e ainda não pus os olhos em cima de uma criaturinha mais linda do que você. Que me diz de um jantar numa destas bonitas noites? Espero parler-vous consigo bastante seguido agora... sou um grande amigo de Doe Arrowsmith. E sou também médico... palavra!... um operador de verdade... freqüentei a Escola de Medicina e tudo. Ah! Cá temos o menino!

Martin não descontara as mudanças de catorze anos. Ficou consternado.

Cliff Clawson, aos quarenta anos, estava rotundo. O seu rosto estava coberto de suor e fofo de carne pálida; a voz era áspera. E Cliff gostava de paletós Norfolk, de tecido xadrez, apertados nos ombros carnudos e nas ancas avantajadas.

Berrou, enquanto espancava o dorso de Martin:

- Ora ora, ora, ora! Velho Mart! Então, seu grande velhaco! Então, seu grande velhaco! Então, seu ladrão de galinhas! Olha, seu magro de uma figa, serei o maior dos velhacos se pareces mais velho um só dia do que quando te vi pela última vez, em Zenith!

Martin notou o olhar malicioso com que a jovem, ordinariamente tímida, o observava. Disse: "Nossa Senhora! Que alegria tornar a ver-te", e apressou-se a esconder Cliff no segredo do seu gabinete.

- Estás muito bem - mentiu ele, quando se viu em segurança. - Que fizeste todo este tempo? Leora e eu fizemos o possível para te descobrir, logo que chegámos a Nova Iorque. Ãããh... Soubeste o que aconteceu... ãh... com ela?

- Sim, li a notícia do falecimento dela. Coitada! E li também as notícias sobre o teu óptimo trabalho nas Antilhas... onde é isso? Acho que és agora um grande homem... um famoso caçador da peste e todas essas coisas, e Um sábio de renome mundial. Acho que já não te lembras dos velhos amigos.

- Ora, não sejas tolo! É... é... é uma alegria ver-te.

- Olha, Mart, é com satisfação que observo que não adquiriste o capitus enlargatus. Por Deus Nosso Senhor que eu disse cá comigo: se entro lá e o velho Mart fizer pose comigo, sou homem para lhe dizer na cara umas verdades, depois de todas as lisonjas que ele ouviu das damas da alta roda. Estou contente por não teres perdido a cabeça. Pensei em escrever-te de Butte... andei a colocar por lá uns valores sem valor do petróleo e tive de partir um pouco apressado para poupar aos inspectores o incômodo de passarem uma revista aos meus livros. "É isto- pensava. - Qualquer dia, escreverei uma carta a esse cara de soro de queijo, a dizer-lhe como fiquei satisfeito com o seu bonito trabalhinho." Mas sabes como é... o tempo parece que anda de patins. Pois é, menino, isto é excelentibus! Temos agora boas ocasiões para conversar um bocado. vou trabalhar com um tipo aqui de Nova Iorque. Inversão de capitais... um negócio de ouro, velho? E um dia destes quero mostrar-te como se organiza um menu de verdade. Escuta: e que tens feito desde que voltaste das Antilhas? Suponho que preparas os teus planos para te tornares chefe, ou presidente, ou não sei o quê deste afamado Instituto.

- Não... Eu... ãããh... não faço empenho em ser director. Prefiro ficar com o meu laboratório. Eu... Talvez gostasses de ouvir alguma coisa sobre o meu trabalho com o fago.

Felicíssimo por descobrir algo de que podia falar, Martin esboçou as suas experiências.

- Espera! Tenho uma idéia... e creio que te interessará. Segundo me parece, o respeitável público começa a tomar conhecimento dessa história... como é?... bate... bacteriófago. Escuta! Lembras-te daquele velho patife, Benoni Carr, que eu apresentei como um grande farmacologista no banquete da Escola? Estive com ele a noite passada. Está estabelecido com um sanatório em Long Island... uma idéia de ouro, também... praticamente ele é um contrabandista de bebidas; leva para lá gente rica e dá-lhes de mamar tanto quanto quiserem, mediante receita, tudo absolutamente legal, preto no branco! Que pândegas fazem lá, com damas e tudo! Acredita uma coisa: o tio Cliff também anda doente com este regime seco e vai ao Sanatório Carr em busca de cura! Mas agora presta atenção: suponhamos que ele, ou outro qualquer, lança um novo sistema de cura... chamemos fageoterapia... oh, só o tio Cliff para inventar os nomes que atraem os generosos dólares! Os pacientes sentam-se num gabinete cheio de vapor e comem pastilhas de fago, com um pouco de estricnina para fazer pular o coração! A última palavra! Vale milhões de dólares! Que achas? Martin respondeu fracamente:

- Não, acho que sou contra isso.

- Porquê?

- Porque... Sinceramente, Cliff, se não me compreendeste, não sei como possa explicar-te a atitude científica. Mas sabes o que é isso? Atitude científica... e como Gottlieb costumava dizer... E como sou um cientista... pelo menos espero sê-lo... não poderia... não poderia associar-me com uma coisa dessas...

- Mas, piolhinho, então achas que não entendo a atitude científica? Arre! Também estive numa sala de dissecção! Seu casmurro! Claro que não esperava que associasses o teu nome a isso! Ficarias atrás de tudo, limitando-te a passar-nos o material e a fazer um pouco de publicidade do fago em geral, de modo que os trouxas caíssem mais facilmente. Quanto ao resto, o trabalho pesado, esse ficaria para nós.

- Mas... Espero que estejas a brincar, Cliff. Se não estivesses a brincar, dir-te-ia que, se alguém tentasse levar por diante uma coisa dessas, o denunciaria e levaria à cadeia, fosse quem fosse!

- Bah! Se encaras as coisas dessa forma! Cliff espreitava-o por cima das pequeninas almofadas de gordura dos olhos. Parecia duvidar.

- Acho que tens o direito de impedir que outros metam a mão no teu material. Está certo, Mart. E tenho de ir-me. Mas uma coisa poderias fazer, se é que isso não bole com a delicadeza da tua consciência: podias convidar o velho Cliff a jantar em tua casa, para conhecer a nova mulherzinha de que tive conhecimento pelas revistas da alta sociedade. Talvez ainda te lembres, velho, de que houve tempos em que ficavas satisfeito quando este pobre Cliff te oferecia comida e dormida!

- Oh, eu sei. Ainda me lembro! Nunca encontrei alguém igual a ti; nunca. Escuta. Onde moras? vou verificar com a minha mulher quais os compromissos que já temos e telefono-te amanhã, de manhã.

- Então deixas o programa a cargo dela, hem? Bem, nunca me meto nas coisas dos outros. Estou hospedado no Berington Hotel, quarto 617... não esqueças, 617... e poderás telefonarme antes das dez da manhã. Escuta, vocês têm uma maravilha de pequena ali à entrada. Que me dizes? Achas que há possibilidade de levá-la para jantar e saracotear um pouco com o tio Cliff?

Tão meticulosamente como o mais velho, o mais grave cientista do Instituto, Martin protestou:

- Oh, ela é uma pequena de boas famílias. Acho que não tentaria. E acho que não deves tentar.

Os olhos de Cliff, embora mergulhados na gordura, cintilaram.

Com excessiva cordialidade, com excessivos aplausos, quando Cliff observou: "É melhor voltares para o trabalho e pôr um pouco de sal no rabo de um casal de bactérias", Martin conduziu-o até à sala de espera, e levou-o, sem inconveniente para a jovem, até ao elevador.

Por muito tempo, ficou sentado no seu gabinete, sentindo-se totalmente infeliz.

Durante anos, Cliff Clawson afigurara-se-lhe outro Terry Wickett. Compreendeu que Cliff era tão diferente de Terry como de Rippleton Holabird. Terry era áspero, era grosseiro, era plebeu na linguagem, desprezava muitas coisas finas e graciosas, ofendia muitas pessoas finas e graciosas, mas estas asperezas constituíam o grosso tecido com que defendia a sua devotação por uma obra mais sagrada do que jamais o fora a visionada por um monje de capuz. Mas Cliff...

"Prestaria um serviço ao mundo matando este homem! murmurou Martin, irritado. - Fagoterapia num sanatório de salteadores! Só o agüento porque sou bastante covarde para não me arriscar a que ele vá dizer por aí que, nos dias felizes de triunfo, volto as costas aos velhos amigos. (Triunfo! Atamancar o trabalho! Jantares! Conversar com mulheres idiotas! Ficar furioso porque não se foi convidado para o jantar do ministro português!) Não. vou telefonar a Cliff, a dizer-lhe que não podemos recebê-lo em casa."

Ocorreram-lhe lembranças da lealdade de Cliff, nos velhos dias de privações, e da alegria de Cliff repartir com ele todos os produtos das suas actividades.

"Por que motivo havia ele de compreender a minha atitude quanto ao fago? Seria aquele projecto dele pior do que o sistema de muitos fabricantes de medicamentos de reputação formada? Até que ponto me ofendi com razão, e até que ponto fiquei melindrado pelo facto de ele não reconhecer a alta posição social do rico doutor Arrowsmith?"

Abandonou o problema, foi para casa, explicou quase francamente a Joyce qual seria a sua opinião provável sobre Cliff, e acrescentou que Cliff devia ser convidado para jantar apenas com o casal.

- Meu caro Mart - disse Joyce -, porque me insultas insinuando que sou tão snob que ficarei ofendida com uma gíria demasiado viva e com uma ética comercial muito semelhante à do avô do querido Roger? Achas que nunca me aventurei para além da sala de visitas? Creio que já me viste fora dela! Provavelmente, gostarei realmente do teu Clawson.

Um dia depois de Martin o convidar para jantar, Cliff telefonou a Joyce:

- É a senhora Arrowsmith? Aqui é o velho Cliff.

- Desculpe, não compreendo.

- Cliff! O velho Cliff!

- Lamento muitíssimo, mas... Talvez a ligação esteja errada.

- Mas é o Senhor Clawson, o que vai jantar convosco na...

- Ah, sim. Desculpe.

- Escute: o que quero saber é se vai ser apenas uma boa comezaina em casa ou uma soirée de verdade? Por outras palavras, minha filha, quer que eu vá com roupa ao natural ou com farda de peixe? Porque tenho tudo isso: casaco de rabo de andorinha e material conexo!

- Eu... O senhor quer dizer... Ah! Se deve vestir-se para jantar? Acho que sim.

- Dito! Estarei aí enfarpelado como um bar em dia de inauguração. vou mostrar-lhe o mais bonito adereço de botões de camisa em que vocês já puseram os olhos. É um grande prazer conhecer a pequena de Mart, e agora vamos desligar cantando Till we meet again ou "Au reservoir".

Quando Martin voltou para casa, Joyce recebeu-o com estas palavras:

- Querido, não suportarei o jantar. O homem deve ser maluco. Sim, querido, encarrega-te dele e eu vou para a cama. Além disso, vocês não hão-de querer-me perto... desejarão conversar sobre os velhos tempos e eu seria demais. E agora que a criança chegará dentro de dois meses, preciso de ir para a cama cedo.

Ora, Joy, Cliff ficaria ofendidíssimo, e ele foi sempre tão correcto comigo e... perguntas-me sempre pelos dias da minha juventude. Não queres então - em tom lastimoso - ouvir-nos falar sobre eles?

- Está bem, querido. Procurarei tornar-me uma espécie de raio de Sol para ele, mas advirto-te de que não me sairei bem.

Estavam convencidos de que Cliff falaria a gritar, beberia demasiado e daria palmadas nas costas de Joyce. Mas, quando apareceu para jantar, mostrou-se aflitivamente cortês e florido...

até ficar um pouco bêbedo. Quando Martin disse um "diabo! " Cliff reprovou-o: "É claro que sou um grosseirão, mas acho que uma dama como a Princesa não gostará que praguejes."

E: "Pois é verdade. Nunca esperei que um tipo natural como o jovem Mart casasse com um legítimo artigo de bom tom."

E: "Hum... Há-de ter custado uma boa bagatela mobilar uma sala de jantar como esta!"

E: "Champanhe, hem? com efeito; vocês deixam orgulhoso o pobre Cliff. Quer Vossa Majestade dizer ao seu Alto Prosopopeu que diga ao seu camareiro que diga à minha secretária o endereço do seu contrabandista?"

Na sua embriaguez, embora conservasse severamente o vocabulário moral e elegante, Cliff relatou a brincadeira de vender poços de petróleo sem petróleo e de se escapar antes que a lei o apanhasse; a habilidade de entrar para círculos religiosos com o fim de vender acções aos seus membros; e a exemplar experiência de auxiliar o Dr. Benoni Carr a capturar uma viúva rica e senil para o seu sanatório, prometendo arranjar-lhe consultas médicas do mundo dos espíritos.

Joyce manteve-se em inabalável silêncio e tão soberbamente polida que causava mal-estar.

Martin esforçou-se por estabelecer ligação entre ela e Cliff, e não fez observações morais em torno do facto estranho de um homem gabar-se das suas próprias velhacarias, mas ficou gelidamente furioso quando Cliff cometeu este despropósito:

- Disseste que o velho Gottlieb está um pouco maluco.

- Sim, não está muito bom.

- Pobre diabo. Mas acho que compreendeste agora como eras tolo quando ele era tudo para ti. Palavra, Madame Arrowsmith, este rapaz costumava achar que o tio Gottlieb era o suco da marmelada... queira perdoar a impropriedade da linguagem.

- Que queres dizer? - perguntou Martin.

- Falo de Gottlieb. Naturalmente, sabes tão bem como eu que ele foi sempre um agente de publicidade de si próprio, fazendo que falassem dele com as suas confidências a todo o ops terrara sobre a sua alta classe de cientista, e soltando sábios pedantismos sobre filosofia, e afirmando que todos os médicos são uns patifes. Mas há coisa melhor ainda... Lá, em San Diego, encontrei um tipo que foi professor de Botânica em Winnemac, e ele disse-me que, em toda essa história dos anticorpos, Gottlieb nunca fez referência a... não me lembro o nome... era um russo que fez a maior parte do trabalho antes dele e a quem o tio Gottlieb roubou a idéia.

O facto de esta acusação contra Gottlieb conter algo de verdadeiro, e de o seu deus por vezes não ter sido grande, serviu apenas para aumentar a raiva que levou Martin a cerrar os punhos sobre as pernas,

Três anos antes, teria arremessado alguma coisa, mas era uma pessoa adaptável. Joyce ensinara-lhe a mostrar-se contrariado serenamente, em vez de ruidosamente; e o seu único comentário foi: "Não, acho que estás enganado, Cliff. Gottlieb levou o estudo dos anticorpos muito além de todos os outros."

Antes que o café e os licores tivessem chegado ao salão, Joyce suplicou com a sua voz mais suave:

- Senhor Clawson, não reparará se eu me recolher agora? Fiquei contentíssima com esta oportunidade de conhecer um dos velhos amigos de meu marido, mas não me sinto bem, e acho que seria conveniente descansar um pouco.

- Senhora princesa, eu notei que estáveis um tanto ou quanto macambúzia.

- Oh! Bem... Boa noite!

Martin e Cliff acomodaram-se nas grandes cadeiras do salão e procuraram fingir-se velhos amigos, felizes por tornarem a encontrar-se. Mas evitavam olhar-se.

Depois de dizer alguns palavrões e contar três histórias solidamente obscenas, para mostrar que não estava estragado e que se mostrara elegante apenas para agradar a Joyce, Cliff arremessou:

- Pois é verdade! Tudo bem, como dizem os ingleses. Compreendi logo que a tua velha não se ligaria comigo. Estava tão entusiasmada como um icebergue. Ora... não fiz caso. Ela esPera um filho, e as mulheres, todas elas, ficam naturalmente esquisitas quando estão nesse estado. Mas...

Teve um soluço, assumiu um ar grave, e engoliu o quinto conhaque.

- Mas o que nunca pude compreender... Repara que não a critico. Ela é tão gentil como dizem. Mas o que não posso compreender é como, depois de viver com Leora, que era um material de verdade, possas suportar um pavão como Joyce!

Martin, então, explodiu. A miséria da incapacidade para o trabalho, naqueles meses que se seguiram à partida de Terry, roera-o.

- Escuta, Cliff. Não permito que discutas a minha mulher. Lamento que não tenhas simpatizado com ela, mas acho que neste assunto...

Cliff levantara-se, não com muita firmeza, embora a sua voz e os olhos evidenciassem resolução.

- Está certo. Previa que acabarias por mostrar-te importante. Não arranjei uma mulher rica para me passar o dinheiro. Não passo de um aventureiro desqualificado. Não pertenço a um lugar como este. Não sou bastante macio para me transformar em mordomo. Tu és. Está certo. Desejo-te felicidade. E podes ir para o diabo, meu jovem amigo!

Martin não o acompanhou até à saída.

Quando se viu só, resmungou: "Graças a Deus que a operação terminou!"

Disse a si próprio que Cliff era um velhaco, um idiota e um libertino cheio de banha; era um cínico sem sabedoria, um beberrão sem encanto e um filantropo que só era generoso porque isso lisonjeava a sua vaidade. Mas estas verdades admiráveis não diminuíram a dor da operação mais do que a remoção de um apêndice seria suavizada pela afirmativa de que se tratava de um mau apêndice, um apêndice sem bom gosto nem valor.

Quisera bem a Cliff... queria-lhe bem agora e sempre. Mas nunca mais tornaria a vê-lo. Nunca mais!

A impertinência daquele indecente, escarnecendo de Gottlieb! Que grosseirão! A vida era muito curta para...

"Mas... bah!... Cliff é grosseiro; eu também o sou. Ele é um velhaco, mas também o fui, ao adulterar os meus dados sobre a peste, em St. Hubert... e pior ainda, porque recebi elogios por isso."

Subiu lentamente para o quarto de Joyce. Ela estava deitada no seu imenso leito com dossel de quatro colunas, a ler Peter Whiffle.

- Querido, foi um desastre, não achas? - disse ela. - Ele já se foi embora?

- Sim... Já se foi embora... Enxotei o melhor amigo que tive... praticamente. Deixei-o sair com a impressão de que é um vagabundo e um falhado. Teria sido mais honesto matá-lo. Por que não pudeste mostrar-te simples e alegre com ele? Foste de uma polidez de embaraçar! Ele estava contrafeito, fora do seu natural, e mostrou-se pior do que é na verdade. Ele não é mais tosco... até bastante melhor do que os banqueiros que mascaram a sua verdadeira polpa com uma capa de suavidade... Pobre diabo! Apostaria que Cliff se encharca debaixo dessa chuva, a dizer: "O único homem a quem quis bem, e ao qual procurei ser útil, voltou-se contra mim; agora... agora, ele tem uma mulher amável. Para que serve a gente ser decente? " - deve ele remoer... Por que não pudeste mostrar-te simples e deixar de lado as tuas maneiras majestosas, pelo menos uma vez?

- Mas escuta! Tu aborreceste-te tanto como eu, e não permito que me ponhas as culpas! Subiste muito acima dele. E tu, que estás sempre a fazer alarde dos actos... não podes enfrentar este facto? Pelo menos uma vez, a culpa não é minha. Talvez consigas lembrar-te, meu rei dos homens, que tive o bom senso de sugerir que não devia aparecer esta noite; não lhe ser apresentada.

- Bem... sim. ah... mas... Acho que sim. Mas, de qualquer forma... Acabou-se, afinal de contas.

- Querido, compreendo como te sentes. Mas é melhor que tenha sido assim! E agora, o meu beijo de boa noite.

- Mas... - disse Martin consigo mesmo, ao sentir-se nu, perdido sem lar, no robe de chambre de seda negra com libélulas douradas, que ela comprara para ele em Paris -, mas se fosse Leora, em vez de Joyce... Leora teria reconhecido que Cliff era um patife e teria aceitado isso como um facto. (Lá voltam os factos! ) Não teria insistido em fazer o papel de juiz. Não teria dito: "Isto é diferente de mim, logo, está errado." Diria: "Isto é diferente de mim, logo é interessante." Leora...

Teve uma visão exacta, terrificante, de Leora jazendo sem caixão, em Penrith Hills, no húmus de um jardim.

Ao libertar-se, resmungou:

"- Que foi que Cliff disse? Não és o marido dela... és o seu mordomo... és demasiado macio." Tinha razão! Toda a questão se resume assim: Não tenho permissão para receber quem me agrada. Tenho sido tão esperto que me fiz escravo de Joyce e de Holá-besta.

E, a partir de então, estava sempre a fazer projectos de tornar a ver Cliff Clawson; mas nunca os realizou.

 

Acontecia que tanto o avô paterno de Joyce como o de Martin tinham recebido o nome de John, e o nome de John Arrowsmith deram eles ao filho. Não o sabiam, mas certo John Arrowsmith, marinheiro de Bideford, morrera no emprendimento da Invencível Armada, levando consigo cinco nobres castelhanos.

Joyce sofreu muito e renovou todo o amor de Martin (amou compassivamente aquela jovem delgada e brilhante).

"A morte é um jogo melhor do que o bridge... a gente não tem companheiro para nos ajudar! " - disse ela, quando estava grotescamente estendida numa cadeira de tortura e indignidade; quando, antes de lhe darem o anestésico, a angústia lhe esverdeava o rosto.

John Arrowsmith era escorreito de dorso e escorreito de membros - pesou ao nascer dez boas libras - e demonstrou possuir um olhar alegre quando deixou de ser uma larva enrugada e estúpida, e se transformou numa criança do sexo masculino. Joyce adorou-o, e Martin temeu-o por compreender que esse minúsculo aristocrata, essa criança nascida para se submeter aos preconceitos dos homens ricos, ainda condescenderia com ele.

Três meses depois do parto, Joyce estava mais do que nunca absorvida pelo back-hand service pelo putUng, por chapéus e por emigrados russos.

 

Pela ciência, Joyce tinha grande respeito e nenhuma compreensão. com freqüência, pedia a Martin que lhe explicasse o seu trabalho, mas quando ele animadamente traçava diagramas com a unha do polegar na toalha da mesa, ela interrompia-o com um gracioso: "Querido... espera um segundo, sim?... Plinder, não há mais Xerez?"

Quando voltava a prestar atenção, embora ela conservasse dócil o olhar, ele perdera o entusiasmo.

Foi ao laboratório de Martin, desejou ver os seus frascos e provetas, e suplicou-lhe que a forçasse a compreender, mas nunca pôde prestar atenção e calar-se durante uma hora.

De repente, no seu bracejar no laboratório, Martin tocou terra firme. Deu com o efeito do fago sobre a mutação das espécies bacterianas - muito belo, muito delicado - e, depois de meses difíceis, em que fora um cidadão equilibrado, quase um bom marido, um excelente jogador de bridge e um péssimo trabalhador, tornou a conhecer a felicidade da extrema exaltação.

Dispôs-se a trabalhar pela noite fora, todas as noites. Durante o seu tactear sem inspiração, nada havia que o retivesse no Instituto depois das cinco, e Joyce habituara-se a vê-lo aconchegar-se-lhe. Agora, mostrava uma inconveniente capacidade para esquecer-se de compromissos, para interromper deliciosos convidados que lhe pediam que explicasse tudo sobre a ciência, para esquecer-se mesmo dela e da criança.

- Tenho de trabalhar à noite! - dizia. - Não posso ser pontual e amável, quando estou absorvido por uma grande experiência, mais do que podias ser pontual, amável e cortês quando estavas a conceber.

- Eu sei, mas... Querido, ficas tão nervoso quando trabalhas assim. Meu Deus, não me importo que melindres os outros, faltando aos compromissos sociais... quero dizer, naturalmente, desejaria que isso não acontecesse, mas sei que isso pode ser inevitável. Mas quando te deixas absorver dessa maneira e ficas tão preocupado, estarás avançando, no fim de contas? Digo-te isto apenas no teu interesse. Ah! Achei! Espera um pouco!... Verás que cientista eu sou! Não; explicarei... agora, não!

Joyce tinha fortuna e nergia. Uma semana mais tarde, alvoroçada, alegre, elegante, disse-lhe depois do jantar: "Tenho "ma surpresa para ti!"

Levou-o a compartimentos desocupados, por cima da garagem, atrás da casa. Naquela semana, mobilizando vinte empregados da mais primorosa e imaculada casa fornecedora de aparelhos científicos de todo o país, criara para ele o melhor laboratório de bacteriologia que ele jamais vira - chão de ladrilho branco e paredes de azulejo, refrigerador e estufa, frasearia, corantes, microscópio, uma perfeita cuba de temperatura constante - e um técnico, com prática no Lister e no Rockefeller, que tinha o seu quarto de dormir nas traseiras do laboratório e que anunciou a sua disposição de servir o Dr. Arrowsmith de dia ou de noite.

"Pronto! - cantou Joyce. - Agora, quando quiseres trabalhar à noite, não terás de descer até Liberty Street. Podes duplicar as tuas culturas... penso que é assim que se diz... Se estiveres aborrecido depois do jantar... muito bem! Poderás escapar-te para aqui e trabalhar até à hora que quiseres. Querido, achas que fica bem assim? Fiz tudo bem? Preocupei-me tanto... arranjei os melhores homens que pude..."

Enquanto apertava os lábios contra os lábios dela, Martin pensava: "Fazer isto por mim! E mostrar-se tão humilde!... E agora, por Nosso Senhor, nunca mais poderei separar-me por mim mesmo!"

Com tanta alegria lhe exigiu que apontasse alguma falha que, para lhe dar o prazer novo de mostrar-se dócil, Martin sugeriu que o centrifugador era inadequado.

- Então espera, meu rapaz! - disse ela, cantante.

Duas noites depois, quando voltavam da Ópera, conduziu-o à garagem de chão cimentado, situada por baixo do novo laboratório, e a um canto, pronto para ser montado, estava um centrifugador em segunda mão, mas adequado, um centrifugador adequadíssimo, a obra-prima da grande firma de Berkeley-Saunders - nada mais, nada menos do que Gladys, cuja dispensa do McGurk, por suas maneiras desalinhadas, havia alvoroçado Martin e Terry a ponto de levá-los a sair para se embebedarem generosamente.

Foi-lhe menos fácil, desta vez, mostrar-se grato, mas tentou-o.

 

Tanto no sector económico-literário como no sector Rolls-Royce do círculo de Joyce, circulou, palpitante, a notícia de que havia uma nova diversão num mundo esgotado - ir ao laboratório de Martin, observá-lo a trabalhar, e ficar em reverente silêncio, excepto talvez quando Joyce murmurasse: "Não acham adorável como ele ensina as suas queridas bactérias a dizerem: Gentil Polly? " Ou quando Latham Ireland os alvoroçasse, sustentando que os cientistas não tinham senso de humor, ou Sammy de Lembre explodisse na sua maravilhosa paródia em estilo de jazz:

Oh, Mister Backsillilus, don't you griin-at-me; you mi-cro-bi-o-log-ic cuss, I'm dont thee. When Mr. Dr. Arrowsmith's done looked at de clues, You're sit in jait a singin' them Bac-ter-i-uh Blues. 1

O primo de Joyce, originário da Geórgia, dizia com animação: "Mart fica tão superior com todos esses vasinhos. Mas a gente pode sempre enfurecê-lo, dizendo-lhe que o mal dele é não ir à igreja com a devida regularidade."

Nos intervalos, Martin procurava concentrar-se.

O bando vinha da casa para o laboratório apenas uma vez por semana, o que certamente não era bastante para perturbar um homem resoluto - mas apenas o bastante para mantê-lo, constantemente, à espera.

Quando, tranqüilamente, tentou explicar isto e aquilo a Joyce, ela disse: "Incomodámos-te esta noite? Mas eles admiram-te tanto."

Ele fez: "Hum..." e foi deitar-se.

  1. A. Hopburn, o eminente advogado, ao afastar-se, no seu automóvel, da residência Arrowsmith-Lanyon, queixou-se para a esposa:

- Admito que o anfitrião atire a garrafa de vinho do Porto a um convidado, se achar que ele é um asno, mas não admito que se aborreça com a ousadia de um convidado expressar qualquer opinião... Não achas que ele parece um tolo, naquele laboratório idiota?... Chegas a compreender como pôde Joyce desposá-lo?

- Não imagino.

- Encontro apenas uma razão. Sem dúvida, ela...

- Mas não sejas obsceno, por favor!

 

1 Tradução aproximada: "Oh, meu Bacilo, não me arreganhes os dentes; comigo não, praga microbiológica. Quando o Sr. Dr. Arrowsmith tiver achado todos vocês, irão para a cadeia cantar a canção da Bactéria". (N. do T.)

 

- Bem, de qualquer forma... Ela, que poderia ter escolhido entre tantos homens de boa família, simpáticos, inteligentes... e friso a palavra inteligente, porque esse Arrowsmith poderá conhecer tudo sobre germes, mas não distingue uma sinfonia de uma cacafonia... Penso que não sou demasiado exigente, mas não compreendo por que devamos freqüentar uma casa cujo dono, evidentemente, gosta de contradizer os convidados... Pobre diabo, no fundo lamento-o deveras; provavelmente, nem sabe quando é grosseiro.

- Não. Talvez. O que causa pena é pensar no velho Roger... tão jovial, tão forte, um verdadeiro varão... e ver esse adventício, saído sabe Deus de onde, sentado na sua cadeira, sem saber apreciar o mérito de... Mas que terá Joyce descoberto nele? É verdade que ele tem olhos bonitos e umas mãos estranhamente robustas...

 

A falta de tempo de Joyce bulia com os nervos de Martin. Por que razões lhe faltava tempo, era difícil de averiguar; tinha uma excelente governanta, um nobre criado grave e duas amas para o filho. Mas dizia, freqüentemente, que nunca tinha tempo para realizar a sua ambição: sentar-se para ler.

Terry chamara-lhe a Arrumadora, e Martin, embora se ressentisse com isso, ao ouvir a campainha do telefone, murmurava com voz queixosa: "Oh, Senhor, aí está a Arrumadora... precisa de mim para o chá com algumas galinhas enfatuadas..."

Quando procurava explicar a Joyce que precisava de ficar livre de complicações sociais, ele respondia sugestivamente: "Serás um homenzinho tão fraco e irresoluto que a única maneira como consegues conservar-te concentrado é pelo afastamento? Receias os grandes homens que podem fazer coisas e ainda podem divertir-se?"

Martin experimentava certa vontade de ofendê-la, particularmente por causa da sua definição de grande homem. Mas, quando se tornava vulgar e irritado, ela assumia ares de grande dame, de modo que ele tinha a impressão de ser um criado impertinente, e tornava-se ainda mais vulgar.

Nessas ocasiões, Martin temia-a. Imaginava-se a escapar para junto de Leora, e os dois, assustados e insignificantes, comfortavam-se um ao outro, escondendo-se dela em cômodos recantos.

Mas com bastante freqüência, Joyce era a sua companheira, surpreendendo-o com novas diversões. E o orgulho do filho era um elo para ambos. Martin ficava sentado, a observar o pequenino John, gozando o seu vigor.

Foi no começo do Inverno, quando ela, regiamente, levara a criança para passar uma quinzena no Sul, que Martin se escapou por uma semana para o Descanso dos Passarinhos, de Terry.

Encontrou-o cansado e um pouco impertinente, após meses de trabalho absolutamente solitário. Construíra, ao lado da cabana, uma dependência para o laboratório e um tosco estábulo para os cavalos que utilizava na preparação dos soros. Ao contrário do que dantes teria acontecido, Terry não lhe expôs logo, entusiasmado, os pormenores das suas pesquisas, e só à noite, enquanto fumavam diante do primitivo fogão da cabana, acomodados em assentos feitos de barris, forrados com pele de alce, pôde Martin induzi-lo às confidencias.

Fora compelido a empregar a maior parte do seu tempo nos trabalhos caseiros e na preparação dos soros que formavam o seu meio de subsistência. "Se estivesses comigo, poderia ter realizado alguma coisa." Mas a sua experiência com o derivado da quinina progredira solidamente, e não lamentava ter abandonado o McGurk. Verificara ser impossível trabalhar com macacos; eram demasiado dispendiosos e muito frágeis para o Inverno de Vermont; mas descobrira um método para usar ratos contagiados com pneumococos e...

- Ora, que utilidade há em estar aqui a contar-te estas coisas, Comprido? Não tens o menor interesse nisso, caso contrário estarias aqui comigo há muitos meses. Escolheste entre Joyce e eu. Está certo, mas não podes ficar com ambos.

Martin resmungou:

- Lamento muito ter vindo intrometer-me, Wickett. - E saiu bruscamente da cabana. Vagueando sobre a neve, tropeçando em troncos de árvore, conheceu a angústia da sua última hora, a hora do malogro.

- Perdi Terry, agora (de qualquer forma, não tolerarei a sua impertinência! ) Perdi todos, e nunca possuí realmente Joyce. Estou completamente só. E só posso trabalhar metade! Estou liquidado! Eles nunca mais me deixarão trabalhar a fundo!

De repente, sem esforço mental, compreendeu que não se declararia vencido.

Tropeçando na neve, correu para a cabane e entrou a gritar:

- Seu velho casmurro, nós temos de ficar juntos!

Terry comoveu-se tanto com ele; nenhum deles ficou longe das lágrimas; e enquanto se batiam fortemente no dorso, balbuciavam: "Que boa parelha de asnos, escoiceando-se só porque estão cansados!"

- Virei trabalhar contigo de qualquer forma! - jurou Martin. - Pedirei uma licença de seis meses no Instituto, Joyce virá para algum hotel perto daqui, ou farei qualquer outra coisa. Minha Nossa Senhora! Voltar de novo ao verdadeiro trabalho!... Trabalhar!... Agora, dize-me uma coisa: quando estiver aqui, que achas de...

Conversaram até ao alvorecer.

 

O Dr. e a Sr.a Rippleton Holabird haviam convidado apenas Joyce e Martin para jantar. Holabird estava num dos seus melhores momentos. Admirou as pérolas de Joyce, e, depois de serem servidos os pombos, voltou-se para Martin, com amistoso entusiasmo:

- Joyce e você querem escutar-me agora mais particularmente? As coisas acontecem, Martin, e desejo que você... não, a Ciência deseja que você assuma nela o seu papel apropriado. E, - a propósito, não preciso de insinuar que isto é absolutamente confidencial. O doutor Tubbs e a sua Liga de Agências Culturais começavam a realizar maravilhas, e Minnigen tem sido extraordinariamente liberal. Dedicaram-se à Liga exactamente com a espécie de inteireza e escrúpulo pelos quais você e o nosso velho Gottlieb sempre insistiram. Durante quatro anos, prepararam planos. Sei casualmente que o doutor Tubbs e o conselho da Liga mantiveram as mais admiráveis conferências com reitores de Universidade, directores de jornais, dirigentes de clubes femininos, chefes de laboratório (os chefes equilibrados, sensatos, naturalmente), peritos em eficiência, os homens mais progressistas da publicidade, ministros, e todos os outros condutores do pensamento público. Elaboraram minuciosas tabelas, classificando todas as ocupações e interesses intelectuais, com métodos, materiais è instrumentos, e especialmente com os objectivos... os escopos, os ideais, os fins morais... que convém a cada uma delas. Uma coisa, na realidade, tremenda! com efeito; um músico ou um engenheiro, por exemplo, podem olhar Para a sua tabela e dizer com precisão qual é exactamente a sua falha, e o remédio. com esta base, a Liga está pronta a atirar-se a trabalho e concitar todos os trabalhadores mentais a filiarem-se-lhe. O Instituto McGurk não podia deixar de submeter-se a esta coordenação, que considero como um dos maiores avanços que jamais foi realizado no sector do pensamento. Estamos finalmente em vésperas de levar todas as caóticas actividades espirituais nacionais de outrora a conformarem-se com o ideal norte-americano; estamos em vésperas de torná-las tão práticas e perfeitas como a fabricação de caixas registadoras! Tenho certas razões para supor que posso associar Ross McGurk com Minnigen, agora que os interesses madeireiros de McGurk e Minnigen deixaram de guerrear-se, e, se assim for, deixarei provavelmente o Instituto e ajudarei Tubbs a dirigir a Liga de Agências Culturais. Precisarei então de um novo director, no McGurk, que trabalhe connosco e nos ajude a tirar a Ciência do mosteiro para servir a Humanidade.

Nesta altura, Martin compreendeu tudo acerca da Liga, excepto o que a Liga pretendia fazer.

Holabird prosseguiu:

- Ora, sei, Martin, que tem desprezado sempre o Senso Prático, mas tenho fé em si! Acredito que se deixou influenciar demasiado por Wickett, e agora que ele se afastou e você conhece mais a vida, agora que se integrou mais no círculo de Joyce e no meu, acredito que posso persuadi-lo a colocar-se (oh! naturalmente sem negligenciar de maneira alguma a severidade do seu trabalho de laboratório!) num ponto de vista mais amplo. Estou autorizado a designar um director assistente, e penso que posso dizer com segurança que ele me sucederia como director efectivo. Sholtheis quer o lugar, e o doutor Smith e Yeo saltariam sobre ele, mas acho que nenhum deles é inteiramente da nossa gente, e ofereço o posto a si! Penso que dentro de um ou dois anos, será o director do Instituto McGurk!

Holabird estava empertigado, como alguém que concedesse um régio favor. A Sr.a Holabird estava seriíssima, como uma pessoa presente a um momento histórico, e Joyce, extática diante da honra concedida a seu marido.

Martin gaguejou:

- Ãããh... tenho de pensar bem. Foi um pouco inesperado...

Durante o resto do serão, Holabird gozou tão completamente a previsão de uma era em que Tubbs, Martin e ele dominariam, coordenariam, estandardizariam e tornariam útil todo o mundo da inteligência, desde o corte de calças até à poesia, que não notou o silêncio de Martin. À despedida, disse em voz cantante:

- Converse sobre tudo isso com Joyce, e dê-me a sua decisão amanhã. A propósito, acho que vamos descartar-nos de Pearl Robbins; ela tem sido útil, mas agora considera-se indispensável. Isto é, porém, um pormenor... Oh, tenho fé em si, meu velho Martin! Amadureceu, serenou, e ampliou tanto os seus interesses, neste último ano!

No carro, naquele quarto móvel, sob a lâmpada de cristal Joyce olhou-o cheia de júbilo.

- Não achas demasiado maravilhoso, Mart? E sinto que Rippleton é capaz de executar tudo isso. Imagina-te no cargo de director, de chefe daquele grande Instituto, quando ainda há poucos anos eras lá apenas um noviço! E não contribuí também um pouco, hem?

De repente, Martin odiou o veludo azul e ouro do carro, a cigarreira de ouro habilmente dissimulada, toda aquela prisão macia e asfixiante. Desejou estar do outro lado, do lado de fora, junto do chauffeur - a sua gente! - enfrentando o Inverno. Procurou assumir um ar reverente e satisfeito, como se meditasse, mas estava apenas a ser covarde, hesitava em começar a carnificina. Lentamente:

- Gostarias realmente de me ver director?

- Naturalmente! Tudo aquilo... Oh, sabes; não penso na proeminência e no prestígio, mas no poder de realizar o bem.

- Gostarias de me ver a ditar cartas, a dar entrevistas, a comprar linóleo, a almoçar com distintos idiotas, a aconselhar pessoas de cujo trabalho não entendo coisa alguma?

- Ora, não sejas tão superior! Alguém tem de fazer essas coisas. E isso seria apenas uma pequena parte. Pensa na oportunidade de animar os jovens que querem uma oportunidade para fazer progredir a ciência!

- E desisto da minha própria oportunidade?

Porquê? Serias chefe do teu próprio departamento, da mesma forma. E, mesmo que desistisses... Es tão obstinado! Isso é falta de imaginação. Achas que, como te iniciaste num pequeno ramo da actividade mental, não há nada mais no mundo. Seria a mesma coisa se, quando te persuadi a abandonar uma vez por semana aquele laboratório mal-cheiroso para dedicares o teu poderoso intelecto ao jogo de golfe, achasses que o mundo da ciência pararia imediatamente! Falta de imaginação! exactamente como esses homens de negócios que estás sempre a amaldiçoar, porque não conseguem ver mais nada na vida além das suas fábricas de sabão ou dos seus Bancos!

- Então, queres que eu desista do meu trabalho... Compreendeu que ela, apesar de toda a sua entusiástica

complacência em ouvi-lo, jamais compreendera aquilo a que ele se dedicara, jamais compreendera uma só palavra sobre o efeito mortífero das funções de director em Gottlieb.

Ficou novamente em silêncio e, antes de chegarem a casa, ela disse:

- Sabes que sou a última pessoa a falar em dinheiro; na realidade, és tu quem com freqüência tem tocado na questão do que consideras uma odiosa dependência de mim; e sabes que, como director, ganharias muito mais do que... Perdoa-me!

Escapando-se dele, entrou no seu palácio e no elevador automático.

Ele subiu lentamente a escadaria, resmungando: "Sim, é a primeira oportunidade que tenho de contribuir realmente para as despesas desta casa. É isto! Disposto a receber o dinheiro dela, mas não a fazer coisa alguma em troca, e depois chamas a isso devoção à ciência! Pois preciso de tomar uma decisão agora mesmo..."

Não se aventurou no tumulto de decidir; sem ele, saltou para a decisão. Marchou para o quarto de Joyce, entrou nele irritado com o seu snobismo das cores discretas. Conteve-se por um momento à vista da atitude absorta em que a encontrou, sentada na beira do seu divã, mas afinal explodiu:

- Não farei isso, ainda que tenha de deixar o Instituto... e Holabird terá de me despedir. Não me deixarei enterrar nessa pomposa ilusão de dar ordens e...

- Mart! Escuta! Não queres que o teu filho se orgulhe de ti?

- Hum... Ora... Não; não, se ele tiver de orgulhar-se de mim por eu ser um camisa-engomada, um saltimbanco de feira...

- Por favor, não sejas vulgar.

- Porque não? E, na realidade, não tenho sido suficientemente vulgar ultimamente. O que preciso de fazer é ir para o Descanso dos Passarinhos, agora mesmo, e trabalhar com Terry.

- Queria ter um processo de explicar-te... Oh, como "cientista", tens os mais incríveis pontos cegos! Queria poder levar-te a compreender como essas tuas idéias são débeis e fúteis. O campo! A vida simples! O velho argumento... É justamente a absurda e covarde espécie de coisas a que esses cerebrais cansados recorrem, quando se escapam para alguma Colônia Esotérica e dizem que estão a armazenar força para vencer a vida, quando na verdade apenas fogem dela.

- Não. Terry arranjou o seu lugar no campo apenas porque lá pode viver mais barato. Se nós... se ele tivesse meios, provavelmente estaria aqui. no centro da cidade, com ajudantes e tudo o mais, tal como o McGurk, mas, por Deus Nosso Senhor! sem o director Holabird... e sem o director Arrowsmith!

- Apenas com o egoísta director Terry Wickett, mal educado, a dizer palavrões!

- Ora, por amor de Deus, deixa-me dizer-te...

- Martin, precisarás frisar os teus argumentos com um "por Deus" em cada frase, ou não tens outras expressões no teu vocabulário altamente científico?

- Bem; tenho vocabulário suficiente para exprimir a idéia de que penso em reunir-me com Terry.

- Escuta, Mart. Achas tamanha virtude em quereres ir para fora, e usar uma camisa de flanela, e ser pessoal, e muito, muito puro. Suponhamos que todos raciocinassem dessa forma. Suponhamos que todos os pais abandonassem os filhos, sempre que lhes doessem as suas ricas alminhas. A que ficaria reduzido o Mundo? Supõe que eu era pobre, e que me deixavas, e eu tinha de sustentar John lavando roupa...

- Provavelmente seria óptimo para ti mas péssimo para a roupa! Não! Peço-te desculpa. Foi uma resposta idiota. Mas... Imagino que foi exactamente esse raciocínio que impediu quase todos, durante séculos, de serem outra coisa mais do que uma máquina de digestão, propagação e obediência. A resposta é que muito poucos, em quaisquer condições, se dispõem a abandonar uma cama macia por uma tarimba, numa choça, com o fim de se tornarem puros, como muito apropriadamente disseste, e aqueles dentre nós que se tornam pioneiros... Ora, esta discussão poderia continuar para sempre! Poderíamos provar que sou um herói, ou um imbecil, ou um desertor, ou qualquer coisa que quiseres, mas o facto é que compreendi de repente que devo ir-me embora! Quero a minha liberdade de trabalhar, e deixo de Queixar-me e retomo-a. Tens sido generosa comigo. Sou-te agradecido. Mas nunca me pertenceste. Adeus.

- Querido, querido... Conversemos sobre isto amanhã, quando não estiveres tão excitado... E há uma hora eu estava tão orgulhosa de ti!

- Está bem. Boa noite.

Mas, antes da manhã, levando duas malas e um saco com as roupas mais grosseiras, deixando-lhe um afectuoso bilhete que foi a coisa mais difícil que escrevera, beijando o filho e murmurando: "Vem para junto de mim quando cresceres"; foi para um hotel barato, numa rua transversal da cidade. Quando se estendeu na raquítica cama de ferro, pensou melancolicamente no amor que deixava. Antes do meio-dia, já fora ao Instituto, demitira-se, apanhara alguns dos seus próprios aparelhos, notas, livros e materiais, recusara atender um telefonema de Joyce e tomara um comboio para Vermont.

Apertado no banco forrado de pelúcia vermelha do carro vulgar (ele, que já se habituara aos carros particulares, forrados de seda), sorriu com a alegria de não mais ter de preocupar-se com dinner-parties.

Chegou ao Descanso dos Passarinhos num pequeno trenó. Terry rachava lenha, no meio de uma mistura de cavacos e neve.

- Alô, Terry. Vim para ficar.

- Óptimo, Comprido. Escuta, há uma porção de pratos na cabana para lavar.

 

Ficara amolecido. Vestir-se na cabana fria e lavar-se em água gelada era um tormento; uma caminhada de três horas sobre uma pequena camada de neve esgotava-o. Mas o arrebatamento de poder trabalhar vinte e quatro horas por dia, sem ter de abandonar uma experiência no seu momento supremo para correr para casa, a fim de participar num jantar; de absorver-se com Terry em discussões tão obscuras como teologia e tão furiosas como a indignação de um bébedo, levou-o para a frente, e ele sentiu-se aos poucos enrijar. com freqüência, pensava em condescender com Joyce até ao ponto de lhe permitir que construísse um laboratório melhor para eles, e um domicílio mais civilizado.

Apenas com um criado, ou dois no máximo, e apenas um quarto de banho adequado...

Ela escrevera: "Portou-se brutalmente, e qualquer tentativa de reconciliação, se isso agora é possível, do que duvido, deve partir de si."

Respondeu descrevendo o inato batido pelo Inverno, mas não mencionou a palavra "reconciliação".

 

Pretendiam levar por diante o estudo sobre o mecanismo exacto da acção dos derivados da quinina. Isto era difícil com os ratos, que Terry fora forçado a usar em vez de macacos, por causa do tamanho daqueles. Martin trouxera culturas de Bacilus lepisepticus, que causam uma pleuropneumonia nos coelhos, e o primeiro trabalho que empreenderam foi descobrir se o composto original produzia contra este bacilo o efeito que tinha contra os pneumococos. Irreverentemente, verificaram que não produzia; pacientemente, absorveram-se numa pesquisa infinitamente complicada, em torno de um composto que produzisse o efeito.

Ganhavam a vida preparando soros que, com um pouco de má vontade, vendiam a médicos de cuja honestidade estavam certos, recusando-os rudemente aos vendedores populares de drogas. Recebiam assim somas surpreendentes, e todas as pessoas perspicazes acreditavam que eles eram muito astutos e reservados para serem sinceros.

Martin preocupava-se tanto com o que considerava a sua traição a Cliff Clawson como com a sua deserção de Joyce e de John, mas esta preocupação só o assaltava quando não podia dormir. Regularmente, às três da madrugada, trazia tanto Joyce como o honesto Cliff para o Descanso dos Passarinhos; e regularmente, às seis, quando estava a fritar presunto, esquecia-se deles.

- Terry, o bárbaro, liberto das risadinhas e da caça ao êxito, de Holabird, era um companheiro bastante sociável. O leito de cima ou o de baixo era o mesmo para ele, e enquanto Martin se ressentia do frio e da fadiga, Terry fazia mais do que a sua parte no corte da lenha e no serviço caseiro e, com grande melodia e eficiência, lavou a roupa de ambos.

Teve bastante discernimento para compreender que os dois, fechados a sós mês após mês, acabariam por brigar. Projectou com Martin ampliar o laboratório para conter oito (mas não mais!) pesquisadores desgarrados e antidomésticos como eles, os quais contribuiriam para as despesas do acampamento fabricando soro, mas que seriam independentes para fazerem o seu trabalho individual - quer se tratasse da estrutura do átomo, quer de uma refutação dos resultados dos Drs. Wickett e Arrowsmith. Dois rebeldes, um químico apanhado numa firma de fabricantes de drogas e um professor de Universidade, deviam chegar no próximo Outono.

- É uma espécie de volta miserável aos mosteiros - resmungava Terry -, com a diferença de que não procuramos resolver nada para ninguém excepto para as nossas próprias e esquisitas pessoas. E presta atenção a uma coisa! Quando este lugar se transformar em santuário, e uma porção de maníacos começarem a intrometer-se aqui, então tu e eu teremos de reagir, comprido. Mudar-nos-emos mais para dentro do mato, ou, se estivermos muito velhos para isso, faremos uma outra tentativa no magistério, ou no Dawson Hunziker ou mesmo no Reverendo Doutor Holabird.

Pela primeira vez, o trabalho de Martin começou definitivamente a tomar a dianteira do trabalho de Terry.

A sua matemática e a sua química física eram agora tão sólidas como as de Terry; a indiferença pela publicidade e pelas floridas exterioridades, igualmente grande; o zelo, igualmente fanático; o engenho para idear novos aparelhos, pelo menos comparável; e a imaginação, muito mais rápida. Tinha menos serenidade e mais paixão. Arremessava hipóteses como se fossem faíscas. Começou, incrédulo, a compreender a sua liberdade. Ainda havia de determinar a natureza essencial do fago; e, quando se tornou mais forte e mais seguro - e sem dúvida menos humano -, viu, diante de si, inúmeros inquéritos a realizar na quimioterapia e na imunologia; aventuras suficientes para se conservar activo durante várias décadas.

Parecia-lhe que era a primeira Primavera que vira e provara. Aprendeu a mergulhar no lago, embora o primeiro mergulho fosse um selvático choque de frio. Pescavam antes do pequeno almoço, jantavam numa mesa debaixo dos carvalhos, faziam uma caminhada de vinte milhas, apanhavam gaios azuis e esquilos para vizinhos interessados; e, quando trabalhavam durante toda a noite, saíam para ver a serena alvorada assomar para lá do lago adormecido.

Martin sentia-se embebido de sol, respirava a fundo e nunca deixava de cantarolar.

E um dia, espreitando por baixo dos seus novos óculos de aro de chifre, que lhe davam um ar de homem maduro, viu um gigantesco automóvel avançar lentamente pela vereda. Do carro, jovial e devidamente trajada de tweed, saltou Joyce.

O seu primeiro impulso foi fugir pela porta das traseiras da choça do laboratório. Hesitante, avançou ao encontro dela.

- É de facto um belo lugar! - disse ela; e, amoravelmente, beijou-o. - Vamos descer pela margem do lago.

Num tranqüilo recanto de ramos de vidoeiro e murmúrio de águas, ele, comovido, segurou-a pelos ombros. Ela gemeu:

- Querido, como senti a tua falta! Não tens razão quanto a uma porção de coisas, mas tens quanto a isto: precisas de trabalhar, e não ser perturbado por uma porção de gente tola. Gostas do meu traje de tweed? Não o achas bastante... campestre? Tu compreendes, vim para ficar! vou mandar construir uma casa perto daqui; talvez do outro lado do lago. Sim. Ficará uma deliciosa vivenda, lá em cima, naquela espécie de planalto, se puder adquirir o terreno... provavelmente pertence a algum horrível, apegado e velho fazendeiro. Imagina: uma casa baixa e ampla, com enormes varandas e toldos vermelhos...

- E virão visitas?

- Acho que sim. Às vezes. Porquê? Martin, desesperadamente:

- Joyce, quero-te muito. Agora mesmo desejo beijar-te convenientemente. Mas não quero que atraias para cá uma porção de gente... e provavelmente haverá uma lancha-automóvel terrivelmente barulhenta. O nosso laboratório transformar-se-á numa brincadeira. Caravansará. Nova sensação. Livra, Terry enlouqueceria! És adorável! Mas queres um parceiro, e eu quero trabalhar. Acho que não poderás ficar aqui. Não.

- E o nosso filho ficará sem os teus cuidados?

- Ele... Ele teria os meus cuidados se eu morresse?... Ele é um óptimo menino, também! Espero que não venha a ser um homem rico!... Talvez daqui a dez anos ele venha para cá, comigo.

- Para viver assim?

- Claro... a não ser que eu esteja liquidado. Nesse caso, não viverá tão bem. Agora comemos carne praticamente todos os dias!

- Ahn... E suponhamos que o teu Terry Wickett venha a casar com uma criada ou alguma camponesa incrivelmente estúpida?

Pelo que me dizias, ele tem certa inclinação por essa espécie de gente!

- Nesse caso, ou ele e eu a domaríamos ou isso seria a única coisa capaz de me vencer.

- Martin, não estás meio desequilibrado?

- Oh, de todo! E como gosto disto aqui! Embora tu... Escuta uma coisa, Joy! Somos desequilibrados mas não somos maníacos! Ontem, um "médico esotérico" veio aqui porque pensou que isto fosse uma colônia livre, e Terry acompanhou-o por umas vinte milhas, e, depois, acho que o atirou ao lago. Não. Bah!... Deixa-me ver. - Coçou o queixo. - Acho que não somos malucos. Somos fazendeiros.

- Martin, é engraçadíssimo ver como estás a transformar-te em fanático e, ao mesmo tempo, a fingir que não és fanático. Perdeste o senso comum. Eu sou o senso comum. Acredito no banho! Adeus!

- Então... Espera um momento!

Ela partira, triunfal e convenientemente.

Enquanto o chauffeur manobrava o carro por entre os troncos do relvado, Joyce olhou para fora durante um momento, e ambos se encaravam através de lágrimas. Nunca haviam sido tão francos, tão comoventes como neste olhar despido de armadura e que recordou cada gracejo, cada carícia, cada crepúsculo que haviam conhecido juntos. Mas o carro rodou para diante sem parar, e ele lembrou-se de que estava a realizar uma experiência...

 

Certa noite de Maio, o congressista Almus Pickerbaugh estava a jantar com o presidente dos Estados Unidos.

- Quando a campanha estiver encerrada, doutor - disse o presidente -, espero vê-lo como membro do gabinete... o primeiro secretário de Eugenia e Saúde Pública da Nação!

Nessa noite, o Dr. Rippleton Holabird falava perante um auditório de afamados pensadores, reunidos pela Liga de Agências Culturais. Entre os homens da alegria condicionada que se encontravam à mesa, estavam o Dr. Aaron Sholtheis, novo director do Instituto McGurk, e o Dr. Angus Duer, chefe da Clínica Duer e professor de Cirurgia no Fort Dearborn Medical College.

O momentoso discurso do Dr. Holabird estava a ser irradiado para um milhão de ardentes amantes da ciência.

Nessa noite, Bert Tozer, de Wheatsylvania, Dakota do Norte, estava presente ao ofício de quarta-feira. Fora, o seu novo sedan Buick esperava-o, e, com modesta satisfação, ouviu o ministro perorar com voz apaixonada:

- Os justos, os Filhos da Luz, serão recompensados com uma grande recompensa e seus pés caminharão na alegria, diz o Senhor dos Exércitos; mas os zombadores, os Filhos de Belial, serão mortos e lançados nas trevas e na desgraça, e nos activos mercados eles serão esquecidos.

Nessa noite, Max Gottlieb estava sentado, imóvel e solitário, num compartimento pequeno e escuro, por cima da rua barulhenta. Apenas os seus olhos viviam.

Nessa noite, a cálida aragem soprava languidamente a copa das palmeiras, lá onde as cinzas de Gustaf Sondelius estavam perdidas entre cinzas, e onde uma depressão, num jardim, marcava o túmulo de Leora.

Nessa noite, depois de um jantar extraordinariamente alegre com Latham Ireland, Joyce admitia:

- Sim. Divorciando-me dele, poderei casar consigo. Eu sei! Ele nunca compreenderá quanto é egoísta ao julgar-se o único homem'vivo que tem sempre razão!

Nessa noite, Martin Ãrrowsmith e Terry Wickett estavam recostados num bote toscamente construído, um bote extraordinariamente incômodo, além, nas águas do lago.

- Agora tenho a impressão de que começo de facto a trabalhar - dizia Martin. - Este novo derivado da quinina talvez venha a prestar. Cozinhá-lo-emos bem, uns dois ou três anos, e talvez a gente obtenha uma coisa permanente... ou provavelmente falharemos!

 

                                                                                Sinclair Lewis  

 

                      

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