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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O DRAGÃO DE FUMO / João Aguiar
O DRAGÃO DE FUMO / João Aguiar

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O DRAGÃO DE FUMO

 

O DRAGÃO ADORMECIDO

Do Retiro à Casa da Tapada são três quilómetros de vinhas e de pinhais, estes cortados na sua continuidade por pequenas manchas de carvalhos misturados com bétulas, uma fantasia de algum antigo senhor da terra cujo nome já escorregou para o esquecimento.

Essa é também a dimensão maior, em largura, do pequeno vale cavado pelo Mansil num solo curiosamente desigual, aqui uma expansão de húmus fértil, além uma rigidez de granito, modelado, esculpido em grutas e formas loucas talhadas pelo vento e a chuva de milénios.

Há algo de muito estranho nesta pequena região. E o mais estranho de tudo é que não se passa nada. O tempo, aqui, parece imóvel; poder-se-ia jurar que não deixou marcas visíveis e substanciais, com excepção de dois grandes cartazes publicitários colocados à beira da antiga estrada nacional, a que muitos, por velho hábito e vaga saudade, ainda chamam “estrada real” na sua linguagem corrente. Um desses cartazes - o da esquerda, no sentido de Lisboa - anuncia aos povos as virtudes irresistíveis de um detergente para roupa. O outro.

O da direita, canta em tom alto e sublimado uma marca de preservativos autolubrificantes.

Mas nada mais fere a vista ou faz duvidar seriamente da sanidade mental da espécie humana. Há, sem dúvida, indícios claros de uma certa modernidade: por exemplo, boa parte da vinha que outrora deu fama à região converteu-se em matagal, pois aqui, como em muitos outros lugares, deixou de valer a pena amanhar a terra. E também, bordando as valetas das estradas, vê-se algum lixo feito de plástico eterno e venenoso. Além disso, duas ou três casas esparsas pelo vale evocam irresistivelmente, na dolorosa estética da sua arquitectura, a saga da emigração.

Porém, isto não chega para alterar a estranha imutabilidade do vale nem para o integrar nas modernas tendências da evolução. Porque o matagal não é estéril nem morto, antes possui um ecossistema próprio e tem, até, uma certa beleza desordenada; o lixo não ultrapassa a proximidade das estradas; quanto às casas, envolvidas por árvores ou trepadeiras e com as cores violentas já esmaecidas pelas chuvas, perderam a sua arrogância de estrangeiro invasor, integraram-se no mundo que inicialmente brutalizaram. O próprio Mansil só muito mais para jusante recebe no seu leito os vómitos das indústrias - a agro-indústria e as outras -, de modo que as águas correm ali com a limpidez que sempre tiveram.

Não há uma explicação racionalista ou economicista para este fenómeno de conservação. Subsiste, portanto, a liberdade de usar a fantasia para lhe .atribuir causas milagrosas ou, pelo menos, espirituais - as mesmas, talvez, que deram à aldeia o nome de Retiro e ao vale do Mansil o nome de Vale de Monges, nomes que se mantêm apesar de terem desaparecido os últimos vestígios do Mosteiro de São Jerónimo e de não haver já uma certeza certa sobre o local exacto onde se erguia nem sobre as grutas que outrora foram usadas pelos eremitas. A própria ausência de tal certeza, o facto de não se saber se foi esta ou aquela a gruta eleita por este ou aquele monge, como que faz de todo o vale terra sagrada.

A gente local não sabe, com um saber consciente, desta sacralidade, mas sente-a. Na Aldeia do Retiro as casas permanecem caiadas de branco, apenas guarnecidas com barras em tons de azul forte e de ocre, e isto acontece por hábito e por gosto, sem que a aliás indiferente Câmara Municipal haja imposto quaisquer regras. Quanto à igreja paroquial, tem um sino verdadeiro de verdadeiro bronze e não uma voz de sintetizador em gravação ejaculada aos quatro ventos por amplificadores sonoros.

É em tudo isto que Adriano pensa enquanto avança pelo caminho de terra batida a que a chuva emprestou uma consistência lamacenta. Estou a pisar chão sagrado, diz para consigo ao levantar a gola forrada do blusão de couro para não deixar entrar o frio.

Tantos eremitas e santos andaram por aqui, segundo reza a tradição - e também os pobres folhetos mal impressos distribuídos por uma desanimada Comissão Municipal de Turismo -, que toda essa energia espiritual há-de forçosamente ter-se sedimentado e impregnado a terra, as pedras, as árvores, as vinhas, até mesmo o ar.

O ar, em Vale de Monges, está sempre carregado de santidade, quase tanto como hoje está carregado de humidade murmura Adriano enquanto sorri da sua divagação pueril e se justifica dizendo: é este tempo que me avaria a cabeça. Que me avaria ainda mais a cabeça, quero dizer.

Uma tarde amortecida em tons de cinzento claro, afogada em neblina e silêncio, com gotículas de chuva a girar e a dançar enquanto descem para o solo ou se pousam sobre os ramos das árvores, já luzidios de humidade. Uma tarde tão quieta e calada que mesmo os odores do mato devem ter adormecido, retidos pela água nas plantas ou no solo. Quando ele inspira fundo, sente apenas o cheiro da água. A água cobriu-lhe a pele da cara com uma delgada película que se mistura com o suor.

Porque estou a transpirar, andei depressa de mais. Que pressa é esta que eu trago? Isto já não é passeio, é corrida. E uma tarde assim deve ser respirada devagar, saboreada lentamente.

Pára, então. Durante uns momentos os seus olhos acariciam tudo o que vêem, os troncos dos carvalhos esbatidos na bruma, o caminho estreito que se abre à sua frente, a massa indistinta de arbustos, ervas, troncos e folhas mortas. E, no seu interior, acaricia também o silêncio.

Só não consigo acariciar a paz porque essa não existe, não passa de um conceito abstracto e de um desejo insatisfeito, murmura enquanto retoma a marcha em passo mais lento.

Mesmo em dias como este, dias de contornos apenas adivinhados, dias que deviam ser de tranquilidade quase dormente, a paz é pouco mais do que uma ilusão ou, quando muito, uma sensação epidérmica. A própria falta de estímulo exterior gera nele uma excitação sem objecto ou motivo aparente, que é ao mesmo tempo uma espécie de angústia do espírito e uma vibração sensual do corpo.

Pergunto-me se mais alguém já descobriu uma qualidade erótica no nevoeiro.

Para complicar as coisas, é também em dias assim que, pelo menos enquanto está em Vale de Monges, o seu espírito mete entre parêntesis temporários a crescente convicção e as reflexões sobre a crueldade fundamental e o absurdo da vida para se preocupar com aquilo a que se habituou a chamar - algo pomposamente, penitencia-se - a busca da santidade. Nada de espantar, pensando bem, porque há uma vizinhança muito chegada entre misticismo e erotismo. Ambos se manifestam numa sugestão que não é explícita.

Santidade.

A santidade que Adriano procura em ímpetos esporádicos, a demanda particular de um Graal muito particular, arrasta-se há longos anos. É uma espécie de obsessão tranquila e recorrente que tem pouco que ver com as virtudes clássicas exaltadas pela hagiologia. A sua noção pessoal de santidade não está, aliás, completamente definida: talvez seja uma ligação secreta com o transcendente, talvez uma convicção interior, uma tranquilidade invisível, impalpável. Talvez. Porém, não tem a certeza, embora saiba que, se puder conquistá-la, há-de ser suficientemente poderosa para absorver os impactos desta essencial chatice que é a vida terrena.

- É isso e é sobretudo uma fantasia da juventude que sobreviveu estupidamente ao meu envelhecimento - resmunga em voz alta.

Tal como as outras fantasias juvenis que insistem em sobreviver e que ele só não mata a frio, com um sorriso superior, por suspeitar que é nelas que se esconde a sua capacidade de resistência e de imaginação.

Subitamente aparece à sua frente o portão gradeado, até agora escondido pela névoa. Também se tornou visível, para além da velha grade, o volume já familiar da Casa da Tapada. Decidira entrar pela cozinha para aquecer água e fazer chá, mas, a dois passos da escada, não resiste a contornar a casa, a afagá-la com o olhar, tal como fez com as árvores e as vinhas e o matagal.

Esta ideia leva-o a uma decisão que se diverte a considerar simbólica: em vez de dar a volta completa e entrar pelas traseiras, escolhe a porta principal. Um acto solene, diz a si próprio disfarçando a nova infantilidade com um sorriso de ironia. Um cerimonial. Chamemos-lhe uma homenagem à Tia Eugénia, por exemplo.

Logo à entrada, é acolhido pelo calor dos dois grandes aquecedores - a lareira, só a acenderá à noite - e novamente pelo silêncio, que ele quebra trauteando a Casta Diva enquanto se dirige à cozinha. Por que raio me lembrei da Casta Diva! Tempo de nevoeiro, tempo de Druídas. Os Druídas vão bem com a neblina.

Agora bebe chá verde por uma caneca grande, que leva consigo para a sala. Ao entrar, ignora o computador. Há trabalho acumulado para fazer, aconteceu porém que a casa, ao recebê-lo, deu-lhe um presente inesperado: uma atmosfera especial em que se dissolveu a excitação surda que havia começado a mordê-lo. Não é ainda, não será nunca a grande tranquilidade, mas tem de aproveitar este momento, esta disposição tão próxima da paz interior - uma paz activa, não de repouso inerte - que ele sempre associou à sua ideia pessoal de santidade.

Outra vez a santidade.

- Eu, ao pensar nesta santidade, devia pensá-la com aspas - diz em voz alta, numa tentativa de resistência aos excessos de imaginação.

São as defesas do seu eu imediato, o eu céptico e cínico, sempre alerta para não ser suplantado. É melhor que te conformes, diz-lhe. Ele sabe que, por efeito da súbita magia operada pela casa, a ironia não tem, neste momento, força suficiente para quebrar o encanto. Neste momento, e não importa o que possa acontecer depois, o mundo é essencialmente harmonia.

Harmonia, não importa o que possa acontecer depois. Mas “depois”, como conceito, é uma ilusão, porque na prática o “depois” pode ser sempre o instante imediato. Aliás, é quase sempre o instante imediato.

A comprová-lo, o telefone corta o silêncio.

Adriano não precisa sequer de reconhecer a voz porque já a adivinhou. Estava, parece-lhe, misturada com a própria vibração eléctrica do telefone, ao tocar Por isso, antecipa-se a qualquer introdução:

- Sim, Rita. Diz lá. Ela responde friamente:

- Não sei se incomodo. Pelo tom, parece-me que sim. Como dizer-lhe tudo aquilo que interrompeu e quebrou, talvez irremediavelmente?

- Não incomodas, tu nunca incomodas. Estava mais ou menos à espera de uma chamada tua. E então, há novidades? Tomaste uma decisão?

- Macau.

Uma só palavra, um simples nome. E assim, senhoras e senhores, se despedaça a pífia paz interior deste nabo Adriano, mais a sua cómica santidade, mais a imaginária atmosfera da casa e mais os manes da Tia Geninha. Basta uma palavra para varrer tudo isso com o vento da memória.

- Ah. Macau. Então, vais para esse tal Instituto...

- Camilo Pessanha.

- Claro! - replica Adriano soltando uma gargalhada. - Tinha de ser, era inevitável. E quando é que partes?

O mais depressa possível, diz Rita, porque eles estão pendurados, houve uma desistência de última hora. Depois acrescenta:

- E já agora, podes explicar o que é inevitável? Adriano respira fundo. - Camilo Pessanha é inevitável em Macau. O nome dele nesse instituto, quero dizer. Não te preocupes, isto foi uma graça de mim para comigo, restos de coisas passadas.

Como sempre acontece quando é referida a sua experiência macaense, Ritinha muda de assunto. Adriano mal a ouve, o resto da conversa decorre, para ele, em sistema de piloto automático. No fim, dirige-se à cozinha. A caneca de chá ainda está a meio, porém despeja o que resta no lava-louça.

Ao abrir a porta do congelador, ao retirar o gelo para o whisky que de repente se tornou uma necessidade, vê que as suas mãos tremem ligeiramente.

É por isso mesmo, aliás, que o whisky se tornou uma necessidade. Volta para a sala, serve-se de uma larga dose, cala dentro de si a Casta Diva, que começa a irritá-lo de tão insistente. Bebe um gole que deixa o copo à míngua de líquido mas não consegue tomar o gosto da bebida.

Percebo agora, diz para consigo, percebo agora, e já não era sem tempo, por que é que os monges que andaram neste vale abandonavam de vez em quando o mosteiro para se refugiarem nas grutas. É tão fácil, tão horrivelmente fácil despertar os dragões adormecidos e perder os caminhos das nossas várias santidades. É tão fácil. Basta um insignificante estímulo.

Sabia, evidentemente, que Macau era uma das possibilidades que se ofereciam a Rita para a fuga pós-divórcio. Porém não a tomou a sério, porque também não tomou a sério o seu aparente desgosto. E julgou ter boas razões para isso.

Mas, sobretudo, não achou possível que os acontecimentos tomassem uma forma tão arrumada, tão coerente: em tempos, ele refugiou-se em Macau levando na bagagem os restos de uma depressão e a sombra de um divórcio; agora, Rita prepara-se para fazer praticamente o mesmo. A hereditariedade não pode ir tão longe.

A verdade é que foi, rosna Adriano a meia voz. E aí está a Ritinha em vésperas de partida. O que, em si mesmo, não é trágico, uma vez que nada a obriga, excepto a sua própria vontade. Só que essa partida ameaça despertar um animal que lhe deu muito trabalho e alguns anos a embalar e a adormecer.

É tão fácil despertar esse animal, repete Adriano.

Sobretudo quando há um telefone perto.

Rita abandonou a sala deixando atrás de si um vago perfume que lhe recorda uma Eau de Tilleul dos seus tempos de adolescente.

- Claro que ainda tenho chá, sabia que vinhas buscar-me a casa - diz com um sorriso que Adriano adivinha sem o ver porque ela fala da cozinha, onde manipula utensílios.

- Está é velho, talvez. Não lhe toquei desde a tua última visita e isso já foi há três séculos.

Adriano pensa: não, não sou assim tão velho. Há três séculos regava-me eu com Eau de Tilleul, depois do banho.

Responde-lhe que não se preocupe com a velhice do chá e vai acrescentar que uma infusão velha é muito adequada a um pobre ancião, mas contém-se para não ceder ao lugar-comum; pior que a decadência do corpo é a lamúria da decadência, mesmo quando sai sob a forma de piada.

A sala, que ele sempre considerou demasiado pequena, parece agora ainda mais atravancada, com os móveis cobertos de lençóis, a lembrar fantasmas volumosos (são os lençóis do enxoval de casamento, cuidadosamente escolhidos por Lena - tanto quanto se lembra, sem a mínima consideração pelo gosto pessoal da filha). E as duas malas de Rita ocupam o espaço que resta.

- Temos muito tempo, não te preocupes - diz, falando para o ar.

- Eu sei, não estou preocupada.

A voz de Rita soa quase como se estivesse ali. No entanto, percebe que ela não mudou de posição, continua na cozinha.

São estes apartamentos novos, compactos como um CD. Isso também há-de influir na duração dos casamentos, é impossível duas pessoas viverem num espaço tão reduzido sem colisões físicas e as colisões físicas tendem a criar outros atritos.

Não que fosse este o caso. Não foi por falta de espaço, foi talvez por falta de tempo.

- A propósito - pergunta Adriano quando Rita volta à sala com uma chávena de chá e outra de café -, as questões do divórcio estão encerradas?

O a propósito, sabe bem, só se refere à corrente do seu pensamento e não à conversa. Mas ela deve ter compreendido porque não estranha a pergunta.

- Sim. Está tudo acabado e é um grande alívio. Pelo menos, isso correu bem. Ainda não te agradeci o apoio...

Ele faz um gesto a minimizar o apoio. Limitou-se a arranjar-lhe um bom advogado. Nos tempos que correm, é para isso que os pais servem, para arranjar advogados aos filhos quando chega o momento aparentemente inevitável do divórcio.

- Então, Macau.

Rita encolhe os ombros sem responder.

- Já agora, Ritinha, podia dar-te outra espécie de apoio. Ainda teimas em não querer que eu escreva ou que telefone aos meus amigos para...

Porque ele, contra a sua vontade e contra a sua racionalidade, não consegue libertar-se da ideia de uma Rita demasiado jovem, demasiado inexperiente e indefesa. Quem instalou em nós o sistema do instinto paternal não lhe programou a desactivação automática, o que só confirma as minhas ideias sobre as deficiências da Criação.

Rita interrompeu-o, abana a cabeça numa negativa. - Se escrevesses, aposto que tinha uma comissão de honra à minha espera e gente amiga a ajudar-me e todas essas coisas.

- Claro, é essa a ideia.

- Pois, mas eu não quero.

- Ah, eu sei, Macau, uma nova página - diz Adriano com um sorriso. Ficou por dizer a verdadeira razão, porém ele adivinhou-a. Ela recusa-se a recorrer aos seus antigos conhecimentos porque não quer que em Macau alguém possa vir a contar-lhe certos pormenores que decidiu continuar a ignorar.

É este enorme pudor que sempre dominou as nossas relações. Por isso é que entre nós nunca houve uma compreensão mais profunda que fosse além da terna superfície. E quem sabe se algum dia se quebrará este gelo.

Rita senta-se em sua frente e fixa o olhar na chávena de café.

- Nunca te perguntei isto: achas que fiz mal? No caso do divórcio, quero dizer. Achas que devia ter tentado...

Adriano interrompe-a com uma gargalhada que sente ser demasiado ruidosa - nervos?

- Quem sou eu para achar seja o que for? Eu, divorciado ao fim de vinte e tal anos? O teu casamento espantou-me pela longevidade. Não faças essa cara. Julguei que ia durar seis meses, durou dois anos. Ainda não me recompus do espanto.

- Pai!

Sorri-lhe para atenuar a ironia. - Isto não é uma crítica. É sinceridade. Tu não gostavas do Pedro e nem tiveste tempo para perceber. Três meses de... namoro? Ainda lhe chamam isso? De qualquer forma: três meses não chegam para conhecer alguém.

- Como sabes. Não estavas cá.

- Estava, sim, já não te lembras? Ou melhor, vim para o casamento.

O que nem sequer é verdade, comenta interiormente. Vim porque tinha de vir, tinha de regressar, tinha de abandonar Macau. E por acaso o regresso coincidiu com os preliminares da tocante cerimónia.

Recorda com particular nitidez esses dias torturados. Justamente, a maior tortura foi a sensação de inutilidade, o lento desenrolar das convenções sociais, desde o envio dos convites às flores de laranjeira, que ele suspeitava serem furiosamente imerecidas, todo aquele ritual solene para nada, um mero prelúdio do divórcio.

Adriano nem no dia do casamento de Ritinha duvidou do divórcio. De resto, o olhar céptico que então lançou às flores de laranjeira era fruto da certeza de uma gravidez pré-nupcial - certeza depois desmentida - que julgara ser a única razão de tudo aquilo. Afinal, na nossa família as mulheres ainda só têm filhos depois de se casarem.

Se pudesse, se isso não pusesse em risco o seu próprio casamento, que por essa altura tentava liricamente salvar, teria brilhado pela ausência, mas Lena - mais ela do que a filha - nunca lhe perdoaria. E agora, conclui, sei que seria preferível, isso e a previsível, inevitável cena homérica com a Lena, porque a tentativa de evitar a separação foi um erro e dele nasceu outro erro chamado Joca, uma criança condenada a ter pais com idade de avós. E divorciados, ainda por cima. Não adianta, nunca adianta querer devolver o rio à nascente.

- Outra coisa, e esta vem mesmo a propósito: suponho que te despediste da tua mãe e do teu irmão?

Ela levanta a cabeça. - Pelo telefone. Só da mãe, que chorou mas sem grande convicção, penso eu, porque lá no fundo ainda não digeriu o meu divórcio e acha que eu devo afastar-me por uns tempos. O Joca estava a fazer uma birra e não quis vir ao telefone. Mas ouvi-lhe os gritos.

Pois, está insuportável, a Lena estraga-o com uma tolerância que é quase cumplicidade e eu não posso fazer nada. Paciência.

Rita corta-lhe as reflexões perguntando:

- Por que dizes tu que eu nunca gostei do Pedro? Adriano está decidido a não aprofundar a questão, a não aprofundar qualquer questão, porque esta não é a altura para profundidades. Ao mesmo tempo, não lhe apetece arranjar evasivas.

- Tu ouviste-me. Um namoro de três meses. Nem sequer terá dado para perceberes se gostavas ou não da água-de-colónia que ele usa, quanto mais para perceberes se gostavas dele.

(Não usa Eau de Tilleul, disso estou eu seguro, porque deve ter saído do mercado há dois séculos e meio)

Lê na expressão de Rita um comentário mudo à incompreensão e à diferença de gerações. É verdade que, mesmo ignorando essa diferença, a questão, para ele, não se resume aos três meses de namoro, sabe-o bem. Mas não é este o momento para lhe dizer o que pensa verdadeiramente e de resto ela não estará interessada.

- Enfim - diz Rita - ao menos, agora sinto-me em paz e em sossego.

- Não por muito tempo. Ninguém tem paz ou sossego quando desafia um dragão feito de fumo.

Sente, sem olhar, a expressão dela, meio perplexa, meio exasperada.

Macau, explica então. Macau é um pequeno universo difícil de aprisionar dentro de modelos que não sejam o seu próprio. Dificilmente cabe nos nossos preconceitos lusitanos e não cabe de todo nos outros preconceitos, orientais ou ocidentais. Esse universo, podemos ignorá-lo, desprezá-lo, mascará-lo, podemos fazer tudo excepto capturá-lo dentro dos limites estreitos da lógica comum. E até mesmo fisicamente, ninguém lhe pode reter a memória certa. É um dragão, porque a China é terra de dragões. E é feito de fumo porque basta-lhe um momento ou um sopro para que a sua forma se altere e o que ontem foi deixe hoje de ser.

- Que imagem poética. É o que faz ter um pai escritor, passa-se a vida a apanhar com a intelectualidade criativa pela cara abaixo.

- Obrigado, minha querida filha. Mas não há poesia nenhuma, é uma coisa lixada. A mordedura deste dragão deixa marcas que não saem, tu vais ver.

Rita entende-o subitamente e não quer ouvir mais. Então, há que pôr termo ao embaraço em que encalharam os dois. Adriano levanta-se.

- Vamos andando? Não sei como está o trânsito daqui para o aeroporto.

Durante a viagem, enquanto defronta as ruas eternamente congestionadas, tenta em vão arrumar bem no fundo de uma prateleira interior a certeza alarmante de que, independentemente da sua vontade, as cicatrizes da mordedura do dragão voltaram a latejar.

O dia parece-lhe a continuação ininterrupta daquele outro, esse último dia de tranquilidade em Vale de Monges, em que recebeu o telefonema a dizer “Macau”. É o mesmo silêncio interior, o mesmo céu velado de cinzento claro, a mesma neblina, a mesma chuva miúda feita de pequenas gotas que se divertem numa trajectória tortuosa. A chuva é quase invisível, mas cai há várias horas, por isso a auto-estrada está lustrosa de água. E agora, que Lisboa e o seu tráfego engarrafado e histérico ficaram para trás, o silêncio já não é só interior. É mesmo tão envolvente que acaba por pesar-lhe. Num gesto quase inconsciente, Adriano prime com um dedo a cassete que deixou colocada na ranhura do leitor.

E quando a voz da Tebaldi enche o espaço restrito da cabina, ele rosna: Un bel di vedremo. Um belo dia veremos o que vai desencadear este meu regresso a Macau pela interposta pessoa da Ritinha, carne da minha carne.

Agora, que a deixou partir, arrepende-se de não lhe ter dado mais atenção durante o processo do divórcio. Devia ter-lhe dito: vem viver comigo para Vale de Monges, fechamos durante uns tempos ao mundo a porta da Casa da Tapada, cuidamos das nossas feridas, conversamos - santo Deus, há quanto tempo não conversamos a sério; desde que nasceste, pensando bem - e procuramos, cada um, a nossa forma pessoal de santidade. Saber o que andamos a fazer aqui, arranjar uma convicção interior que nos equilibre à beira do abismo (é nisso, afinal, que deve consistir a companhia dos anjos e dos santos), encontrar uma coerência e uma harmonia escondidas neste turbilhão idiota e cruel, isso é o mais importante, é o que conta, o resto é fogo de artifício e demagogia e publicidade paga.

Mas sabe, evidentemente, que a ideia de instalar a filha na Casa da Tapada não passa de divagação. Tal como sabe que nunca poderia acolchoar-lhe o choque do divórcio e que a ideia de santidade, seja a sua ideia pessoal ou qualquer outra, não consta da lista de preocupações de Ritinha. Aliás, quem pensa nisso aos vinte e cinco anos é já santo por natureza, até mesmo no sentido canónico da palavra, e não precisa de procurar mais nada.

Menos eu, objecta a si próprio. Menos eu, que pensava nisso em plena adolescência, constantemente (bom, pelo menos nos intervalos da masturbação), embora não lhe tivesse encontrado ainda um nome. Era, já então, a angústia de não saber por que obscura razão tinha Nosso Senhor (ou uma cegonha) tomado a iniciativa de me trazer a este mundo sem previamente me consultar. Fala-se tanto em liberdade mas é ridículo, uma vez que não dispomos da única liberdade fundamental, que é a de nascer ou não nascer.

Lá ao fundo, onde a longa faixa preta de asfalto desaparece numa lomba, avista-se a tabuleta que indica a saída para Vale de Monges. Que bom voltar para casa, reflecte Adriano e imediatamente se apercebe de que o seu desejo está dividido: uma parte de si quer reencontrar a Casa da Tapada, as suas memórias, o seu refúgio; mas uma outra parte, que vibra de excitação e de receio, está com Rita, a caminho de Macau, e teria preferido, até, fazer sem ela essa viagem.

Divisão de personalidade, resmunga a meia voz enquanto um carro que o ultrapassou a uma velocidade idiota lhe esparrinha os vidros com água do asfalto e o obriga a acelerar o ritmo dos limpa-pára-brisas. Divisão de personalidade. O que há a fazer é escolher uma delas, obviamente aquela que deseja Vale de Monges.

A tabuleta está mais próxima, já é possível ler as indicações. Adriano pergunta a si mesmo se a Tia Eugénia alguma vez terá dado à Casa da Tapada a importância que ele lhe dá. É impossível saber, conclui, porque mal a conheceu e sempre ouviu falar dela numa voz seca e apressada, a voz com que se fala de um assunto desagradável. Era um assunto desagradável para toda a família, especialmente as senhoras, que não raramente carpiam a memória do excelente Tio André, morto ainda tão novo e certamente ceifado pelo desgosto de se saber marido enganado (“arquicorno”, ouviu um dia Adriano, em criança, dizer a um primo adulto, em conversa entre homens, quando todos o julgavam no outro extremo do corredor).

Mas não devia ter para ela grande importância, a Casa da Tapada, porque acabara os dias - os seus alongados dias - em Lisboa, naquele quinto andar da Lapa que ele visitou uma única vez, no dia em que foi preciso fazer o inventário do recheio.

Adriano entrou já na estrada que conduz a Vale de Monges. Espera, a todo o momento, avistar o enorme anúncio dos preservativos, ponto de referência que indica a proximidade da via transversal que costuma usar para não ter de passar pela povoação. A Aldeia do Retiro deve estar, a esta hora e com este tempo, arrepiada e hirta sob a morrinha, toda ela cinzenta e branca, com as ruas desertas, como se já ninguém lá vivesse.

A crónica oficial da família, pensa ainda, consagra a noção de que a Tia Geninha foi uma espécie de cruzamento de Messalina com Semiramis. Mas, estranhamente, a imagem que dela lhe ficou foi a de uma senhora de belo rosto oval, com um ar reservado e aristocrático, de uma elegância despretensiosa. Uma só coisa trairia o seu mau comportamento e essa coisa era um sorriso gaiato que de vez em quando fazia, regra geral em ocasiões sérias ou mesmo solenes. Adriano recorda-se bem do sorriso, apesar de poucas vezes ter estado com ela. O sorriso destaca-se da vaga bruma a que se vai reduzindo a memória da adolescência: era como que um fulgor que lhe iluminava a cara e lhe fazia brilhar os olhos. Adriano gostava dele, o que o levou a sentir pela Tia Geninha uma simpatia rapidamente silenciada pela austera reprovação familiar, as sempre evocadas imagens do Tio André morto de desgosto na força da vida e do Avô Vasco transtornado de mágoa pelo genro e de vergonha pela filha.

Finalmente, entra na estrada municipal, demasiado estreita, que passa em frente do portão principal. Adriano pode já distinguir, meio esvaída na neblina, uma nesga de branco entre o escuro das árvores. Uma sensação de conforto solta-lhe a contracção muscular que quase sempre o aperta numa pequena tortura mais ou menos suportável, o tributo pago por pensar demasiado e, sobretudo, por pertencer ao batalhão dos psicossomáticos para quem a tensão nervosa se reflecte imediatamente no corpo físico.

Este cenário familiar tem um efeito apaziguador nos nervos e nos músculos. Contudo, apesar da familiaridade, ainda não perdeu o encanto a ideia de que aquela é a sua casa. E talvez, quem sabe, o lugar onde encontrará finalmente o que procura há tanto tempo. Não pode ser por acaso que recebeu esta herança e que ela se situa exactamente no limite de um vale a que chamam Vale de Monges.

O que nunca entendi, reflecte, foi por que razão a Tia Geninha fez de mim o seu herdeiro, eu que nunca a visitava, nunca lhe telefonava, nunca a procurava. Terá ela entendido aquela simpatia secreta da adolescência? Hei-de procurar alguma pista nos papéis. Ainda não li os seus papéis.

Porque Adriano, ao instalar-se na Casa da Tapada, pouco mexeu nos móveis e nas coisas da Tia Geninha. Deixou isso para mais tarde. Concebeu a ideia infantil de explorar a casa metodicamente, sala por sala, quarto por quarto, móvel por móvel, papel por papel. Uma exploração sistemática do passado e da vida, certamente interessante mesmo que moralmente reprovável, da defunta senhora.

A concretização dessa ideia acabou por ser repetidamente adiada. Primeiro, porque ele viu-se absorvido pelo envolvimento burocrático de que o Estado faz uso para melhor roubar os seus cidadãos através do imposto sucessório. Depois, pelas complicações inerentes à mudança para Vale de Monges. Finalmente, por inércia.

Mas a inércia termina hoje, decide, ao aproximar-se do portão de ferro. Hoje mesmo. Depois de escrever a crónica para aquele chato do João Carlos. Também tenho de acabar a reportagem sobre o castelo de Penha Velha, mas para isso ainda há tempo. Hoje, começa a minha incursão no mundo secreto da Tia Eugenia.

Recebi a tua carta anteontem pela manhã. Durante estes três dias pensei na resposta que havia de dar-te e aqui está ela.-não, não voltarei tão cedo a Vale de Monges. Depois de ler o que escreveste sei que não conseguirás entender o que eu sinto. Para quê, então, gastar papel e tinta a explicá-lo? Deixemo-nos estar como estamos, ao menos por enquanto. Quem sabe, talvez o que aconteceu nos tenha poupado a outras desavenças mais dolorosas.

Não me consola nem me desagrava saber que despediste a F. Mas suponho que essa tua reacção, aliás um pouco injusta, era inevitável. Para mim, de qualquer forma - e também isto te será difícil entender -, ela nada resolve e certamente não cura aferida que foi aberta.

Compreenderás que eu evite, quanto possível, a família. As explicações seriam enfadonhas e, dado que todos eles pensam como tu, corria-se o risco de atritos que desejo evitar.

Gena.

(Bilhete com data de 25 de Maio de 1952. Não menciona o destinatário, porém o sobrescrito está endereçado em nome do Tio André, o que quer dizer que ele, na época, se encontrava aqui, na Casa da Tapada, e a Tia Geninha em Lisboa. Não me lembro desta história, o que se compreende: era ainda muito miúdo. E depois, não devia ser considerada relevante pela família: um senhor que papava a sopeira era coisa de somenos)

Eugénia,

O teu silêncio faz-me supor que, a teres recebido a minha carta anterior, não pretendes responder. Mas eu sou teu marido e tenho o direito de exigir uma resposta. Sabes bem que não costumo dar ouvidos a boatos nem maledicências, porém acu-mulam-se os rumores sobre o teu comportamento. Epara além dos rumores há ainda o que eu próprio pude observar. Já no Verão passado, na Figueira, quando estávamos juntos e (pensava eu) reconciliados, senti que tu estavas diferente e reparei no modo especial como falavas com o Alberto Sá. Não quis então acreditar, tanto mais que ele não passa de um garoto, ainda não deve ter 30 anos. Calei as suspeitas, quis acreditar em ti. Hoje, não sei já o que pensar quando me chegam novas da tua suspeita familiaridade com... mas nem sequer posso imaginar tal coisa. Tu, minha mulher, com um rapazola, um labregozito, um trabalhador do campo! Não é possível.

A única maneira depor termo a tudo isto é vires ter comigo imediatamente. Conheces-me, sabes que sou capaz de uma conversa serena e cordata. Conto com a tua chegada, o mais tardar, no dia 20. É inútil dizer-te que toda esta história me traz angustiado e me rouba o sono.

Com a afeição de sempre, da qual espero que ainda sejas digna,

André

(A carta é datada do Porto, 5 de Agosto de 1958. Sim, tenho uma ideia disto, o Tio André estava a trabalhar no Porto e lá em casa já se falava a bom falar das aventuras da Tia Geninha. E... sim, em especial uma aventura com um rapaz daqui. Será ele, com certeza, o labregozito de que fala o arquicórnico Tio André. Como era o nome? Xavier? Ezequiel? Qualquer coisa assim)

Os papéis da Tia Geninha são bem poucos, afinal. Resumem-se a estas duas cartas, decerto esquecidas quando ela se instalou definitivamente na Lapa. A sua expedição ao passado familiar acaba assim. Não valeu a pena, afinal, arrastar-se para fora da cama às sete da manhã na previsão de acrescentar ao programa do dia um longo período consagrado a vasculhar um espólio que não vai além do conteúdo de uma velha caixa de sapatos.

Adriano pega na caixa de cartão, cheia de tralha variada. Foi lá que encontrou as cartas, misturadas com fotografias, brincos desirmanados, parafusos e um antigo estojo de pó-de-arroz (há quanto tempo deixou de haver pó-de-arroz!). Tinha pousado a caixa sobre o colo, mas agora sente necessidade de espreguiçar-se. Recosta-se na poltrona e arqueia ligeiramente o corpo para distender as pernas. Depois fecha os olhos, fatigados de quatro horas passadas diante do computador escrevendo a crónica e alinhavando a reportagem.

No andar da Lapa também não havia papéis, nem mesmo a usual colecção de inutilidades que se acumulam ao longo dos anos em todas as casas. A Tia deve ter feito uma limpeza geral pouco antes do fim, quem sabe se por sentir que esse fim se aproximava; e assim, apenas escapou o que havia deixado em Vale de Monges

Duas cartas e ambas de poucas palavras. Mas ainda assim, veja-se o prodígio, tão poucas palavras contam, apesar de tudo, uma longa história. Se ele estimular as recordações, conseguirá talvez lembrar-se de pequenos factos, palavras, entoações e expressões fisionómicas que o ajudarão a preencher os espaços deixados em branco.

Valerá a pena? Nada disto me ajuda a criar a atmosfera própria à meditação, à reflexão e a toda essa vaga trapalhada que me divirto a considerar como o caminho para a minha santidade particular. De qualquer modo, também não me parece importante reconstituir os dramas conjugais da Tia Geninha e do Tio André.

O Tio André: então, o inocente marido enganado também se divertia por fora. Mais precisamente, e para usar termos chãos e politicamente incorrectos, comeu uma sopeira chamada F., aqui na Casa da Tapada, e a Tia Geninha descobriu e não gostou nada. Este é um aspecto da questão que nunca foi abordado lá em casa.

Sem aviso, a caixa de sapatos resvala e cai no tapete. A sua atenção recai sobre a fotografia de um rapaz, um adolescente cujo rosto imediatamente reconhece.

Adriano pega na fotografia, olha longamente o rapaz, admira-lhe o rosto alegre e sorri.

Modéstia inteiramente à parte, eu não era nada feio.

Teria dezassete ou dezoito anos, foi no Portinho da Arrábida, durante as férias de Verão, lembro-me deste fato de banho, era azul escuro e tanto quanto me recordo nunca gostei dele porque me apertava demasiado.

Mas o que terá levado a Tia Geninha a guardar esta foto? E, sobretudo, como veio ela parar aqui, já que foi tirada numa altura em que as relações da Tia com a nossa família tinham ficado reduzidas à expressão mais simples?

Não sei, nunca hei-de vir a sabê-lo e estou derreado, reflecte Adriano e levanta-se para espreguiçar-se.

Antes de sair, a mulher-a-dias deixou-lhe o almoço feito, o que é simpático, porque, em períodos como este, com trabalho para entregar dentro de prazo certo, ele não tem ânimo nem gosto para cozinhar. Mas não lhe agrada a ideia de sentar-se à mesa com um livro à sua direita, apesar de ser esse um dos seus prazeres solitários. Vou acanalhar-me, vou à tasca do Tobias comer o frango de churrasco e irritar-me com a televisão permanentemente ligada e vou encharcar-me em vinho verde, nem que tenha de lá deixar o carro e vir a pé. Afinal de contas, um homem tem direito às suas fraquezas, mesmo quando vive no vale dos santos monges.

Está já fora de casa quando ouve o toque do telefone. É infalível, basta-me pensar em comer que o telefone toca logo, seja a que horas for.

A voz de Ritinha soa com uma nitidez perfeita, como se não tivesse de percorrer meio planeta:

- Só para dizer que já cheguei!

- A viagem foi boa?

- Foi óptima. Estou no hotel, mas já me arranjaram casa, entregam-ma depois de amanhã. E tive a honra de ser recebida no aeroporto pela directora do Instituto...

Passam trinta segundos de conversa e então Adriano interrompe-a:

- Estás a gastar uma fortuna com esta chamada. Eu ligo para ti.

- Não, já disse tudo. Eu vou ter um endereço electrónico, sabes? E então passo a mandar-te mensagens pela Internet.

- Ninguém pára o progresso - suspira Adriano.

No seu tempo de Macau, não tão longínquo assim mas que parece já pertencer a outra era, o grande veículo era o telefone. Foi pelo telefone que ele soube que Ritinha ia casar-se com Pedro e que Lena queria pedir o divórcio.

Ao frango de churrasco falta, como sempre, picante em quantidade suficiente. O Tobias - calhau, certamente, mas dotado com a esperteza do negócio - lê a falta no seu olhar e apressa-se a dizer que “o picantezinho vem já”.

A televisão vomita coisas de inenarrável mau gosto.

Adriano tenta imaginar a filha em Macau. As imagens que evoca estão esbatidas, não tanto pelo tempo mas pelo esforço que fez para esquecer. E depois, reflecte, antes assim. Aquela é a guerra da Ritinha e não a sua, - E o franguinho, está quente? O senhor doutor hoje veio muito tarde, isto já passa das quatro, e então... por sorte, ainda tinha sobrado esse.

Santo Deus, pensa Adriano, devia ter-me lembrado de que a esta hora o Tobias tem mais tempo para conversar, isto vai ser uma catástrofe.

- Homem, o frango está quente, o gindungo...

- É piri-piri, senhor doutor.

- Pois, mas eu digo gindungo, você já sabe, são manias. Ia eu a dizer: o frango está quente, o gindungo está bom, está forte, só o vinho é que não me agrada muito.

O dono da tasca revista a mesa com os olhos, depois dá uma palmada na testa.

- Desculpe lá! Esqueci-me do vinho. Quer...

- Verde, inefavelmente gelado.

Há que reconhecer: o Tobias, apesar de tudo, tem um toque de grande hotelaria. Se o pode evitar, nunca incomoda perguntando o significado dos qualificativos que Adriano usa. Aquele inefavelmente escorrega sobre ele como a água do Mansil no seu manso leito.

- Geladinho, está claro, geladinho… É a suave irritação provocada pelo abuso dos “inhos” que leva Adriano a oferecer um copo de verde ao Tobias, para o calar por instantes. O homem aceita, claro, a pinga é reconhecidamente a sua perdição, por sorte ele tem a embriaguez mansa e cordata.

Caramba, vou empiteirar o Tobias, é isso o que vou fazer.

E não é preciso muito, tendo em conta o que o outro já há-de guardar no bucho. Mas Adriano compreende, demasiado tarde, o seu trágico erro: o vinho - caído pela certa sobre incontáveis bagaços - solta-lhe ainda mais a língua. Paciência, a culpa é minha, não posso queixar-me.

- Futebol é que não, Tobias. Não me fale de futebol, nessa matéria sou ateu militante, não sei nada e tenho hidro-fobia a quem sabe.

- Tem quê? - pergunta o Tobias contrariando o elogio silencioso que Adriano acaba de fazer-lhe.

- Raiva.

Um riso ligeiramente alvar. - Ah, eu também já ando um bocado farto, sabe, isto agora são só negociatas, compra e venda de jogadores. Quando era rapaz, as coisas não eram assim. E eu jogava, sabe? Até não jogava nada mal.

As recordações da juventude do Tobias. Os jogos - mau grado a advertência antifutebol - os jogos em que ele entrou, brilhantemente, sob as cores do clube da terra. A vida nos bons velhos tempos em Oleiros, onde passou a infância. A vinda para a Aldeia do Retiro, complicada história de uma herança que a mãe recebeu. A tropa. As namoradas e os engates ocasionais, Tobias o irresistível.

Quando regressa a casa - de carro, porque acabou por despejar boa parte da garrafa no copo do homem -, Adriano sente, apesar de tudo, apesar da conversa chata e dos uivos da Televisão, uma sensação de contentamento. Está no seu mundo. As casas, as árvores e as pessoas. A imutabilidade aparente de Vale de Monges é, sabe-o agora, a sua grande força e ao mesmo tempo o seu refúgio. Está em casa, em sua casa e no seu mundo. Um mundo em que entrou como um estranho vindo da cidade grande e histérica. Um mundo que esperou por ele durante o tempo necessário, até que uma tia malcomportada mas encantadora resolvesse dar-lho de presente.

E agora que o tenho, hei-de conservá-lo. Não vou deixar que os fumos de Macau me excitem novamente.

Só muito mais tarde, quando já escureceu e ele voltou a instalar-se diante do computador e o gosto do churrasco desapareceu por completo, é que a coisa acontece com a violência interior de uma revelação. Algo que o Tobias disse no meio dos seus vapores etílicos.

Contudo, não é a altura ideal para explorar as recordações do dono da única tasca decente que existe na Aldeia do Retiro. Adriano acaba de receber um telefonema de João Carlos, amigável mas reivindicativo: os textos, preciso dos textos com urgência, homem de Deus, estás a lixar-me a vida.

As memórias do Tobias terão de esperar. No entanto, o estímulo foi tão forte que essas memórias o assaltam de novo logo na manhã seguinte, bem cedo, quando a D. Ermelinda começa a atroar a casa com o aspirador e a sua estação radiofónica favorita.

(A estação favorita. Eu não sou dos que lamentam sistematicamente o passado. Mas, quando eu era puto, elas, em vez de ligar o rádio, cantavam. O resultado musical não seria melhor, só que não se estava condenado a ouvir a publicidade).

Se bem que hoje não me importe muito. Vou tomar o pequeno-almoço à aldeia e tentar retirar um nabo da púcara do Tobias.

Mas o Tobias está lúcido a esta hora, não terá ainda absorvido mais de dois bagaços e Adriano encontra uma estranha dificuldade em pô-lo a falar - estranha porque ele, mesmo lúcido, nunca perde uma ocasião para dar à língua.

No entanto, esta manhã mostra-se muito lacónico.

- Sabe o que é, senhor doutor, a mulher está lá dentro na cozinha e então, já se sabe...

- A D. Bininha é ciumenta, Tobias? Mesmo ao fim destes anos todos? E ainda por cima, eu estava a falar dos seus tempos de solteiro, antes de você a conhecer.

O Tobias, muito obviamente, sente-se enrascado.

- Olhe, senhor doutor, eu ontem estava assim a modos com os copos e a gente quando está com os copos diz coisas que não deve. Peço-lhe desculpa, espero que não fique zangado. Não que eu tenha alguma coisa de que me envergonhe, isso é que não. Mas prontos, já se sabe como é, uma pessoa fala e depois...

Adriano faz um pequeno trejeito de dor, como sempre quando ouve pronunciar aquele “prontos” que o exaspera. Logo a seguir, interrompe o Tobias:

- Eu não tenho nada que ficar zangado. Você tem mais razões para isso. Pus-me para aqui a fazer perguntas indiscretas. É o defeito dos escritores, sabe...

Diz mais algumas tontices ao Tobias para preparar uma retirada airosa, paga rapidamente a torrada mal feita de que só comeu um terço e sai para a rua.

Se alguém me visse agora, passava-me um certificado de senilidade: ontem, com um almoço e vinho verde dentro de mim, voltei para casa de carro; hoje, que estou a bem dizer em semijejum, vou pedir ao Toninho da oficina que me leve o carro mais tarde e volto a pé.

Precisa de caminhar para pensar enquanto caminha. Aliás, há já demasiado tempo que se mantém encerrado em casa e hoje, com um céu de azul ininterrupto, hoje é o dia.

Ainda se sente no ar a chuva caída nas últimas semanas. Ela desprende-se da terra em vapor invisível, carregando aromas de flores, de seiva, de mato e de animais. Até o odor do estrume de vaca, amontoado algures para adubo, acaba por transformar-se, à distância, num ingrediente do perfume composto por todos aqueles aromas. Por vezes, a fronteira entre o perfume e o fedor pode ser ténue, questão de proporções muito subtis de vários componentes.

Engraçada, aquela reserva do Tobias. Que se tinha já manifestado na véspera, apesar da euforia etílica. O homem ia lançado nas reminiscências de aventuras amorosas e sexuais, a saudade erótica de uma juventude mais antiga que a de Adriano: quando fiz a tropa, então, foi um vê-se-te-avias, mas até aqui, na aldeia, não me faltavam raparigas, sabe o senhor doutor? Ah, eu podia contar cada coisa. E mesmo raparigas da cidade, houve até uma, olhe que estivemos quase a fugir juntos, que eu com ela não era só a coisa, eu gostava mesmo dela, mas...

Mas. O Tobias calou-se de repente ao olhar para ele e sob a máscara meio imbecil do borracho brilhou um lampejo e um alerta, depois mudou de conversa. Foi essa a revelação, mais do que as palavras.

O Tobias. Mentalmente, Adriano compõe o rosto redondo e um pouco abrutado do homem. Depois começa a retirar-lhe rugas e gorduras, a deixar a estrutura óssea revelar-se envolvida em carne firme e jovem, a acrescentar-lhe cabelo e a dar-lhe brilho à pele e aos olhos.

O Tobias. Não era Ezequiel nem Xavier o nome do labregozito, do rapazola a que o Tio André se referiu na carta, o apaixonado da Tia Geninha, o rapaz da aldeia.

O que faz de nós o tempo e a puta da vida, Tobias. Também eu estou muito longe daquele adolescente que encontrei há dias numa velha caixa de sapatos. Enfim, pelo menos não estou bagacificado, já é alguma coisa. De qualquer modo isso não interessa, o que interessa é raciocinar sobre esta magna descoberta.

Magna - à escala de Vale de Monges e da sua vida presente - porque a Adriano repugna acreditar em coincidências. E descair-se o Tobias com as suas recordações no próprio dia em que ele encontrou as cartas é inaceitável como coincidência. O que será mais fantástico: admitir que um subtilíssimo acaso juntou as duas ocorrências - achamento de cartas e descaimento de Tobias - ou acreditar num desígnio qualquer, num qualquer propósito oculto?

É, pelo menos, muito mais divertido acreditar na segunda hipótese.

Pequeno efeito de magia: esta ideia de um desígnio, de alguma força transcendente a manifestar-se, ainda que de maneira tão humilde, empresta um novo encanto à paisagem. Como se as árvores e cada planta de que se compõe o mato e cada animal e até o bruto granito revelassem ter na sua vida um propósito e uma razão, a Divindade a manifestar-se em vários níveis de consciência e autonomia.

A questão, diz ele a meia voz, a questão é saber se o desígnio e o propósito são reais ou se não passam as fronteiras da minha imaginação, que sempre tendeu a ser perigosamente fértil.

E a questão é saber se eu já estou a atingir a fase de ter de ser internado; quem me vir a andar pelos campos falando sozinho há-de com certeza dizer que sim.

No entanto, mesmo depois desta advertência que faz a si próprio, persistem o encanto e o conforto criados pelo primeiro pensamento. Acompanham-no durante o dia, mesmo enquanto martela o teclado do computador, e sente-os ainda quando, longas horas depois, já largamente deixada para trás a meia-noite, interrompe o trabalho para consultar a caixa do correio electrónico.

Há duas mensagens e uma delas é de Rita.

Olá!

Só para mostrar que já tenho e-mail e pedir-te que me ponhas na tua lista de endereços. Por cá tudo bem, começo hoje as minhas aulas e sinto-me como uma actriz de teatro em dia de estreia mas não há-de ser nada.

Beijinhos.

Antes mesmo de abrir a segunda mensagem, que ele calcula ser de João Carlos, envia uma resposta à filha:

Olá sou eu. O termo e-mail não é português em parte alguma do mundo. Espero que não o ensines aos teus alunos.

Mas ainda bem que já tens endereço electrónico. Vai dando notícias que eu também. Vê se arranjas um chinês. Beijinhos de volta.

A mensagem de João Carlos - como ele também calculava - é uma reivindicação:

Longe de mim querer prejudicar o teu êxtase criador com uma prosaica interrupção a propósito de prazos de entrega. Mas a verdade é que preciso de saber o que se passa com o castelo de Penha Velha. Já cá tenho as fotos e estão bastante boas. E o texto?

O texto há-de ir, há-de ir, resmunga Adriano. Tenho de pôr de lado as divagações e acabar a malfadada reportagem. Que nem é tão malfadada quanto isso, porque ele gosta do assunto e o seu único problema é ter de escrever por obrigação.

Há coisas piores, argumenta enquanto se endireita e olha o monitor como o forcado olha o touro antes de uma pega de caras. Há coisas piores e já passou por elas. Como que impelidos por este pensamento, os seus dedos voam sobre as teclas.

O “êxtase criador”, na expressão irónica de João Carlos, dura longas horas e, quando termina, a reportagem está completa, só faltará revê-la para aconchegar a linguagem.

- Mas isso fica para amanhã - diz Adriano em voz alta enquanto se levanta e começa a espreguiçar-se, tentando libertar os rins da vaga e persistente dor causada pela imobilidade.

- Sim, pode ficar para amanhã. E que diabo, tenho de impedir-me de falar em voz alta quando estou sozinho. Se me habituo, acabo no manicómio...

Isto disse-o também em voz alta, quase sem dar por tal. O que significa: estou a precisar de uma bebida para sacudir o cérebro.

Meia hora depois, está na sala, segurando um copo que o gelo embaciou. É em ocasiões como esta que precisaria de ter alguém com quem pudesse falar. Paciência, não há nada perfeito neste pobre mundo. O seu olhar pousa sobre um objecto incongruente que se encontra sobre a mesa grande, a mesa que em tempos reuniu a numerosa família, outras gerações, gente cujos nomes não conhece, gente que se dispersaria depois pelo mundo e pela vida e não regressaria à Casa da Tapada. Por que raio terá a D. Ermelinda deixado aquilo ali?

Aproxima-se e não tarda a reconhecer o objecto, é a caixa de sapatos que contém a pequena tralha da Tia Geninha. E a fotografia. A D. Ermelinda há-de ter posto a caixa aqui na mesa por não saber onde quero arrumá-la. Aproveito e recupero agora a minha foto, se calhar mando-a à Rita, ela vai achar piada. Pega na caixa e vira-a, de modo a esvaziá-la sobre a mesa. A fotografia fica escondida sob os objectos espalhados pelo tampo de nogueira.

E lá ficará ainda, porque a atenção de Adriano se desviou para o fundo da caixa. Só agora repara que ele parece estar forrado com uma folha de papel. Não tem razão alguma para querer retirar essa folha amarelada e suja de pó, mas nem sempre é preciso ter uma razão, portanto aplica-se, com o auxílio de um canivete, a libertar aquele forro improvisado.

Quando enfim o consegue, sente um pequeno formigueiro de excitação percorrer-lhe o corpo.

O lado da folha que estava virado para baixo revela um texto manuscrito. Adriano, depois de ler a carta que a Tia Geninha escreveu ao marido, reconhece facilmente a sua letra.

Leu o manuscrito e meditou sobre ele várias vezes, nos últimos dias. É um texto truncado, cujo início se encontrava numa outra folha certamente perdida ou rasgada:

admitir que foi uma decisão dolorosa, até fisicamente. Ou sobretudo fisicamente. Mas é por isso mesmo que não me arrependo de a ter tomado-, a minha violenta atracção pelo T. é uma fome dos sentidos e nada mais, já o compreendi há muito. Como compreendi também que me agarrei a ela e tentei mascará-la com as vestes do amor para fugir à outra velha paixão, à familiar. Foi a necessidade imperiosa, a necessidade inevitável de me libertar definitivamente do A.

O texto acaba assim, o resto da folha está em branco.

Adriano, que interrompeu o trabalho para reler uma vez mais aquelas linhas desbotadas, recosta-se na cadeira. Vejam como são as coisas, pensa. Afinal, a senhora gostava do marido, gostava tanto do Tio André que não foi capaz de perdoar-lhe a infidelidade e preferiu lançar-se nos braços do primeiro rapaz que encontrou. O Tobias, como confirma este T. revelador. E agora já tenho nome para quase todas as letras: T de Tobias, A de André... falta-me o F, a criada que o Tio deitou abaixo, mas esse não devo ser capaz de o descobrir. Tinha graça, se ela ainda vivesse na Aldeia do Retiro.

O toque do telefone, bem dentro da madrugada, fá-lo dar um salto. Recompõe-se imediatamente e ao atender não espera pela voz do outro lado:

- Sim, meu amor, diz.

A voz de Rita, insegura: - Perdão... de onde fala?

- Sou eu, Rita, e o meu amor és tu, não é nenhuma namorada.

- Já é a segunda vez que...

Adriano interrompe-a a rir: - Que adivinho? Hoje não foi difícil. A esta hora da manhã, só podias ser tu.

A voz de Rita ganha um tom de contrição: - Pois... esqueci-me da diferença horária. Acordei-te?

- Estou a trabalhar. Então, as novidades?

Não há novidades, responde ela um pouco na defensiva. O trabalho corre normalmente, os alunos parecem simpáticos e mostram-se muito empenhados, os colegas receberam-na bem.

- E Macau?

Macau, começa ela a responder, mas interrompe-se. Procura as palavras adequadas e Adriano, que o sabe, não a apressa. Rita acaba por dizer que é muito cedo para poder ter Uma ideia definida. Em todo o caso, está deslumbrada.

O tom soa verdadeiro. Porém, Adriano ouve algo mais além da sinceridade: uma reserva e uma tensão contida. Por isso, atalha:

- Ritinha, passa-se alguma coisa?

- Que coisa? Não, não se passa nada, que ideia! - o protesto negativo confirma a sua suspeita.

- Eu só queria ouvir-te a voz e mandar-te um beijo. E agora vou desligar e tu devias ir dormir.

Instantes depois, Adriano põe o telefone de lado e pousa o olhar no monitor, sem o ver.

Quem inventou que as mulheres dominam a arte da mentira era um macho chauvinista e despudorado. Desde criança, Rita nunca foi capaz de mentir com eficácia. Quando mente, o que é raro e quase só por imperativos sociais, a voz treme-lhe ligeiramente e perde força. Foi o que sucedeu agora.

Além disso, aquele súbito ataque de saudade, ou melhor, aquela súbita manifestação de afecto, não é típica nela. Rita esconde sempre as emoções.

Tal como eu. Somos aflitivamente, perigosamente parecidos. Perigosamente para ela.

Mas por isso mesmo era inútil tentar fazê-la falar. Tem de ficar à espera do momento próprio, que pode não chegar. E depois, o mais provável é que tudo não passe de uma contrariedade ligeira, pois até essas Rita costuma esconder.

Adriano sacode a cabeça e pousa os dedos sobre o teclado. Porém, antes de retomar a escrita, olha em volta.- a salinha que escolheu como santo dos santos e gabinete de trabalho parece que lhe sorri no seu conforto imóvel: os quadros que trouxe de Lisboa, os móveis que ali reuniu, a bela imagem barroca de Nossa Senhora, vestida de ouro velho, a carta patente que atesta a promoção a coronel do bisavô Luís, com as armas reais e a assinatura de D. Carlos. E, a seu lado, na secretária, a confissão íntima da Tia Geninha.

Precisa de olhar tudo aquilo para afastar de si a imagem de Macau e desviar os ventos do desassossego.

O novo telefonema vem alguns dias depois e novamente de madrugada.

Adriano, que passou a tarde na Aldeia do Retiro, em visita ao pároco - justificada com um vago pretexto, mas na realidade só para poder discutir com alguém, contrariar alguém, irritar-se com alguém -, regressou a casa com o princípio de uma ideia capaz de dar um livro. Esse princípio de ideia tornou-se, durante o jantar, suficientemente incomodativo para que ele, ao acabar a refeição, pegasse no balão de aguardente velha, subisse ao primeiro piso, entrasse no gabinete de trabalho e ligasse o computador. Depois, tipicamente, a ideia esbateu-se. Insistiu em chamá-la de volta. Insistiu durante o tempo de dois cachimbos, enquanto, sem grande interesse, explorava a Internet e por fim, farto de informações de magro conteúdo, preferia embrutecer-se com jogos mais ou menos idiotas. Quando finalmente sentiu que podia começar a escrever, o telefone tocou.

Desta vez, Rita não procura esconder a sua preocupação, ou melhor, ainda tenta mas falha redondamente, - Ouve: há coisas que eu preciso de saber. Podes dar-me o nome e o número de telefone de um ou dois amigos teus de cá? Gente em quem tenhas confiança e a quem eu possa fazer perguntas.

Adriano não resiste a um afável sarcasmo: - Pensei que não querias conhecer os meus amigos de Macau. Pelo menos, foi o que disseste e repetiste-o à partida...

Rita salta sem deter por cima do remoque. Pois disse e repetiu, mas agora precisa de informações e talvez de algum conselho. Nada de grave, o pai não deve ficar preocupado, só tem de dar-lhe alguns nomes. Um ou dois, não precisa de mais.

- Dou-te os nomes que quiseres, já se vê. Entretanto, ficaria muito grato se me explicasses o que se passa, porque é evidente que não serve de nada dizeres que não tenho de preocupar-me. Essa, como tu bem sabes, é a melhor maneira de preocupar alguém.

Nada de especial, responde a rapariga, mas é complicado de mais para explicar pelo telefone. E quando Adriano lhe lembra que existe essa maravilha tecnológica chamada correio electrónico, argumenta: mesmo assim é difícil escrever, é difícil explicar, são coisas que...

E cala-se, por esgotamento das desculpas. Então, Adriano ouve a sua própria voz dizer algo de inacreditável, algo que nunca lhe passaria pela cabeça dizer - mas é mentira, porque as palavras estão a ser ditas:

- Esse teu apartamento. Quantos quartos?

Dois, replica ela, mas porquê, não estás a pensar em...

- Estou exactamente a pensar nisso. Não te preocupes, eu durmo no chão.

Disparate, ela tem um divã. Mas é ridículo, o papá atravessar literalmente meio mundo só porque a filhinha tem umas perguntas a fazer. E de resto, como pode ele abandonar o trabalho, assim, de repente?

- Ritinha. Lembro-te que o meu trabalho faz-se em qualquer parte desde que haja um computador portátil. Não quero jurar, mas tenho a certeza de que o João Carlos até revira os olhos de gozo quando lhe falar em Macau e HongKong e quando lhe disser que só tem de pagar o trabalho,:mais nada. Por mim, está decidido. A não ser que não me queiras aí...?

- Nada de chantagem moral, papá, responde ela. Claro que. .te quero aqui, mas não para te meteres em assuntos sem interesse nenhum. Se quiseres vir para me visitar, isso é outra coisa.

Adriano abrevia a conversa, que ele percebe ter chegado ao ponto do discurso convencional. Eu aviso logo que possa partir, mas vai ser o mais brevemente possível, é só fazer a reserva e falar com o João Carlos. Um beijo e deixa-me ir para a cama, que amanhã vou pôr-me em campo.

Desliga e recosta-se na cadeira. Tal como fez após o telefonema anterior, olha à sua volta fixando os móveis e os objectos do gabinete.

Mas os seus sentimentos são diferentes, agora. Tudo aquilo lhe parece apagado e longínquo, tudo aquilo perdeu realidade.

O dia rompeu sem uma nuvem e com promessa de calor.Neste momento, em que o Sol ainda não se despegou por completo do horizonte, sabia bem um passeio ao longo do rio, enquanto há orvalho e uma vaga neblina. Em vez disso, Adriano prepara-se para ir até Lisboa.

Caramba, estou a ficar campónio. Uma simples ida a Lisboa já me pesa na vontade como se fosse uma excursão ao fundo da Sibéria e obriga-me a sair da cama de madrugada para fazer os preparativos.

Diz isto apenas porque lhe apetece troçar um pouco de si próprio. Levantou-se simplesmente quando acordou e isso aconteceu de madrugada, o que é normal, perdeu há muito o sono pesado da juventude; então, fez uma lista de todas as coisas que queria ou precisava de fazer em Lisboa e dispôs-se a ir mais cedo. De qualquer modo, a excursão é inevitável porque tem de vender o seu peixe a João Carlos.

Há meses que não se encontram, embora a comunicação entre os dois se mantenha a bom ritmo, por telefone e correio electrónico (para quando os casamentos e os filhos feitos por telefone e correio electrónico?).

João Carlos não é propriamente um velho amigo, não andaram a roçar os fundilhos pelos bancos da mesma escola, porém as afinidades pessoais e profissionais fizeram mais pela intimidade entre os dois do que os anos poderiam ter feito. O que não impede um duelo verbal quase constante sempre que se encontram, um duelo em que não há propriamente desacordo mas somente a manifestação de personalidades muito diferentes. João Carlos é, ainda hoje, um empreendedor, entusiasta ao ponto de ser incómodo.

Adriano recorda-se particularmente - ainda não se havia mudado para Vale de Monges - de uma conversa à beira-Tejo, numa rara noite de Junho afogueada, sem aragem que moderasse a temperatura. Ambos transpiravam, as camisas estavam coladas às costas. Tinham vindo ali depois de jantar para caminhar, fazer a digestão e tomar um fresco que afinal não existia. Tinham falado de tudo e de nada e por fim haviam desembocado na Imprensa, ofício de ambos e razão de se terem conhecido. Adriano ouvira em silêncio uma longa tirada sobre quebra de qualidade, mau uso do português e sensacionalismo. Era um tema recorrente e não se julgara obrigado a responder, mas João Carlos, que a quentura da noite não abatia, atacara-o com súbito vigor:

- Estás a dormir em pé ou já não te interessas por estas coisas, agora que és um escritor de sucesso?

Ele começara a responder:

- “Sucesso” é um galicismo e tu não devias...

- Merda.

Após esta primeira troca de galhardetes, Adriano tinha prosseguido comentando que o assunto estava mais que esgotado por discussões anteriores.

- Quer isso dizer que secaste. Não tens nada de novo para dizer a este respeito, nenhum contributo a dar.

Palavras ditas em tom de acusação e de queixa. João Carlos precisava de uma sessão de sofrimento intelectual, era uma estranha necessidade que o acometia de vez em quando, a grande lamentação sobre as misérias do mundo em geral e dos media em particular. Isso acontecia-lhe não quando estava deprimido mas, bem pelo contrário, quando se sentia cheio de ideias e de energia. Parece impossível, pensara Adriano, que alguém tenha ideias, energia e vontade de sofrer intelectualmente com as misérias do mundo numa noite em que não há um sopro de vento e o suor nos empapa até a roupa interior.

- Enfim, sempre te direi uma coisa que ainda não disse. Não é nenhum descobrimento do caminho marítimo para a índia mas é o que se pode arranjar a esta hora e com este calor. Não foi a Imprensa, em si mesma, que mudou nestes últimos anos. A Imprensa não é uma ilha nem um compartimento estanque. O que lá encontras, vais encontrá-lo em toda a parte, em todos os compartimentos da chatíssima Aldeia Global. Na Imprensa nota-se mais, por razões óbvias. E não é só em Portugal, não temos esse exclusivo, é na Europa, no Ocidente... olha para a América. A informação passou a valer como espectáculo. Isto é um lugar-comum, está claro. Mas tudo o mais vale como espectáculo, desde os casamentos aos funerais passando pelas crises de Governo, as guerras e as conferências de paz. O inenarrável Saddam Hussein deixou ficar os jornalistas do mundo inteiro em Bagdade durante a Guerra do Golfo, para quê? Os tribunais vão-se transformando em palcos, isto quando não se transferem pura e simplesmente para os estúdios, por comodidade. Podia continuar a dar exemplos, mas estou a ficar com sede.

João Carlos ignorara o apelo à desidratação. - Tudo isso, estamos fartos de o dizer, não é novo - rosnara.

- Tem calma, era só a introdução. O que eu ia dizer era, imagina a coincidência, o que tu próprio acabas de dizer, embora com outra intenção: isto não é novo, é pelo menos a segunda vez na História do mundo que o show se torna uma obsessão social e política, portanto não há que estranhar, são fases. A primeira vez foi debaixo do domínio romano, SPQR forever. Os jogos do circo, estás a ver? No período do Baixo Império, não só mas sobretudo, o circo tornou-se omnipotente, daí essa maravilha que é o Coliseu de Roma. A política, a economia, a vida inteira passava pelo circo. Os romanos, entre outros contributos mais interessantes, deram-nos essa perversão, apoiada em realizações técnicas espantosas. Mas a riqueza do pensamento decaiu em proporção directa. Considera o teatro: na época em que as técnicas e os equipamentos do palco romano atingiram um nível nunca igualado antes, já não se fazia teatro de jeito, era só farsas e pantomimas, quase sempre obscenas. Ora bem, estamos agora na época USA forever e não sou o primeiro a pensar que os americanos de hoje são parecidos em muitas coisas com os romanos de ontem. Graças às magnificências do progresso, o Coliseu foi ressuscitado, chama-se Televisão. O teatro romano foi ressuscitado, chama-se Cinema e todo o show, como aliás o nome indica, é americano e não podia deixar de ser. E com isto, estou agora a morrer de sede.

Ao que João Carlos respondera: já lá vamos, ali no Cais do Sodré há sítios onde beber cerveja, mas sobre o que disseste eu não sei até que ponto esta situação é inevitável ou inelutável.

- É as duas coisas. E não quero cerveja, quero vinho verde muito gelado.

Tinham-se encaminhado então para o Cais do Sodré enquanto João Carlos declarava: há sempre qualquer coisa a fazer.

- Há? O quê, não me dirás? Estabelecer uma comissão de qualidade com plenos poderes? Ou talvez um decreto-lei que proíba...

João Carlos interrompera:

- Agradeço que não desconverses. O que é preciso é nadar contra a maré, nadar com força contra a maré.

E Adriano tinha parado sem aviso, levando um turista estrangeiro que vinha na retaguarda a esbarrar contra ele e a dizer Oh, I’m sorry. Resolvida cordialmente essa questão, encarara João Carlos com espanto divertido.

- Meu filho, se queres fundar um jornal ou uma revista para nadar contra a maré, a coisa torna-se mais grave porque se trata da tua sanidade mental. E do teu afogamento. Eu sei que não és o que se pode chamar um economicamente débil, mas passas rapidamente a ser. Não contes comigo para ajudar à tua ruína. Achas tu que há por aqui algum estanco onde tenham vinho verde a pressão?

Assim havia terminado a conversa. O que, pensara Adriano, era perigoso, porque se João Carlos, depois de lhe puxar pelo pensamento e pela língua, cessava repentinamente de lhe dar troco, isso significava que estava de facto a chocar alguma ideia louca e que tudo aquilo não passara de uma sondagem.

Hipótese confirmada vários meses mais tarde, quando lhe anunciou o lançamento de uma revista mensal intitulada (oh, deuses!) Contra a Maré.

- É um título horroroso, faz pensar num boletim de clube náutico ou de uma associação de nadadores salva-vidas - objectou Adriano, que sabia inúteis quaisquer outros argumentos. João Carlos varreu o horror do título com um gesto decidido.

- Graficamente, a palavra “Contra” vai ficar muito mais destacada, entendes? De resto, o título faz parte da filosofia do projecto, não fazer concessões ao vulgar marketing e privilegiar a mensagem. Este nome contém toda a nossa filosofia, entendes? Uma revista bem escrita, bem estruturada, a matéria escolhida pela sua importância específica e não pelo estardalhaço nem pelo escândalo forçado... mas tu sabes tudo isto. Não há concessões ao sensacionalismo, não há concessões à fofoca, não há concessões...

Adriano interrompera-o: - Não há concessões à esperança. Vai ser um desastre.

O desastre, por enquanto, continua adiado, enquanto duram os recursos de João Carlos, e ele maravilha-se todos os meses, quando mais um número sai para as bancas. E agora, que está decidido a partir para Macau mesmo que vá a nado contra a maré, Adriano espera que a revista sobreviva ainda durante algum tempo.

Em Lisboa, despacha tão rapidamente quanto possível as várias tarefas que se impôs e depois encontra-se com João Carlos ao fim da manhã, na Redacção da revista. Porém o amigo, mal o vê, abandona a secretária, aproxima-se dele e quase o empurra para a saída, anunciando que morre de fome e que portanto os dois vão almoçar imediatamente.

- Nem me digas nada antes que eu tenha um prato cheio de comida à minha frente, porque não te ouço. Ontem fui ao Porto e voltei esta manhã. Para estar aqui contigo, a esta hora, com tudo o que eu tinha para fazer, meti-me à estrada em jejum. Estou capaz de comer um boi.

- Vê-se que estiveste no Porto - responde Adriano. - Eu, que ando só por Lisboa e Vale de Monges, estou simplesmente capaz de comer uma vaca.

João Carlos cumpre o aviso: só quando, no restaurante, vê à sua frente uma dose, não de boi mas de peito de frango com ervas aromáticas, é que encara Adriano e murmura:

- Muito bem, agora podemos falar, Disseste-me ao telefone que tinhas uma ideia para uma série de reportagens, uma coisa do outro mundo…

Adriano corrige-o: não é do outro mundo e sim deste; e ele nunca disse que teve uma ideia para uma série de reportagens, O que disse foi que se preparava para cravar seriamente João Carlos mas podia atenuar o cravanço com uma série de reportagens.

O outro encolhe os ombros, É o mesmo, replica, A indiferença com que ouviu a rectificação mostra não só que acredita mais na proposta do que no cravanço, mas também a confiança absoluta que tem em Adriano, a quem essa confiança assusta, por vezes. Precisa que lhe dêem espaço para a ocasional asneira ou mesmo para várias.

Inspira fundo, olha João Carlos bem nos olhos e anuncia:

- Tenho de ir a Macau.

- Ah,

Exactamente: ah. Se João Carlos não andasse a nadar contra a maré, ele não lhe faria a proposta, porque Macau não vende por aí além, nunca vendeu. Talvez, justamente, por ser importante, sobretudo agora, a dois passos, por assim dizer, da transferência da Administração para a China, Os jornais hão-de encher páginas com o assunto, certamente, mas isso há-de ser mais tarde, quando começarem a cobertura da transferência propriamente dita, e ainda assim mais por obrigação imanente que por qualquer outro motivo.

João Carlos não o ouviu com atenção, está a seguir o seu próprio raciocínio e quando este se completa interrompe Adriano.

- É o ponto finalíssimo do ciclo imperial. Depois disto, para voltarmos completamente ao rectângulo do século XIII, basta a independência da Madeira e dos Açores...

Berlengas, Desertas, Ilha do Pessegueiro, completa Adriano esvaziando a garrafa de vinho no seu copo. Mas para João Carlos passou o momento do gracejo:

- Essa piada é velha e reaccionária. Como eu dizia; é o retorno às origens. Só isto já devia dar-nos pano para mangas: o que vai acontecer? Somos ou não capazes de continuar a ser um país ou só teremos estritamente vocação para estância de férias da Mãe Europa?

A questão já foi muito batida e estás a mudar de assunto, atira-lhe Adriano enquanto faz sinal ao empregado a pedir nova garrafa. O que interessa para o caso é Macau, já que lá VOU; Macau e a transferência.

- Não a transferência em si mesma. Mas sim como a fazemos e o que lá deixamos e como está a sentir-se aquela gente diante da perspectiva. Sobretudo, interessa-me um balanço de final de império: saímos bem, com dignidade, ou com o rabo nacional entre as pernas? Deixamos coisa que se veja? Podemos sentir um orgulho ainda que modesto ou vamos acrescentar mais um verso às nossas lamentações? Queres sobremesa?

Quero queijo se for aceitável, responde Adriano. Acusas-te-me de dizer piadas reaccionárias mas o que estás a pedir-me cheira a patriotismo e pronunciaste as palavras império e imperial demasiadas vezes. É uma nostalgia.

- Nostalgia os tomates. Patriotismo os tomates.

Falam já só pelo prazer da conversa, porque, uma vez mais, ambos sabem que a questão está resolvida e resta agora regular os baixos aspectos materiais, o que fazem rapidamente. Então, quando João Carlos, que insistiu em pagar a conta, devolve a carteira ao bolso do casaco, olha em volta, como que a assegurar-se de que não são ouvidos e inclina-se um pouco para a frente.

- Só uma pergunta, se me é permitido. Disseste que tens de ir a Macau e tanto quanto sei já lá estiveste e arranjaste uma complicação chinesa, quero eu dizer, uma rapariga que...

Adriano abana a cabeça e sorri:

- Sofres de excesso de imaginação romântica. A minha filha está em Macau.

Mas quando, mais tarde, já na auto-estrada, de regresso a casa, tenta reconstituir na memória o tom em que deu esta resposta, parece-lhe que a sua voz soou com menos força. Tal como a de Rita, quando mente. Há muito que sabe de quem ela herdou a incompetência na mentira.

Sim, claro, vou porque a minha filha precisa de mim, não sei bem porquê nem para quê. Só me pergunto qual a desculpa que arranjaria se não tivesse aparecido uma complicação desconhecida, porque sei agora que a mansa tranquilidade da Casa da Tapada foi varrida por um vento que cheira a gengibre e a sésamo.

O dragão acordou. Mesmo que Rita houvesse dito brutalmente; não, não te quero em Macau, ele partiria, nem que fosse instalar-se num hotel. O dragão acordou e a sua mordedura está viva e em sangue.

 

O REPTO AO DRAGÃO DE FUMO

Rita dirige-se à porta de embarque enquanto repete intimamente: o dragão de fumo. Que ideia ridícula.

Na realidade, ainda não decidiu se a ideia é ou não ridícula e de resto isso não tem a menor importância. Mas precisa de agarrar-se a um qualquer raciocínio que a proteja contra a angústia de uma partida que significa o abandono de tudo aquilo que conhece, o corte decisivo com o passado próximo e o afastamento de um pai cuja ternura só recentemente começou a compreender. Repetir que “dragão de fumo” é uma ideia ridícula permite-lhe manter uma pequena agitação mental capaz, assim o espera, de a distrair e de alargar o nó que ameaça apertar-lhe a garganta.

Ao chegar à zona de espera contígua à porta de.embarque, senta-se, pousa o saco de cabina e olha em volta, tenta distrair-se a classificar os outros passageiros.

Alguns turistas, não muitos. A maioria é um misto de portugueses e chineses (ou macaenses, não conhece bem as diferenças físicas) e entre eles há ainda dois ou três africanos, quatro timorenses, que ela identifica porque trazem emblemas nas lapelas dizendo: Timor Livre. Gente que vive em Macau e para lá regressa: professores, funcionários da Administração, um ou outro empresário. Sejam o que forem, parece-lhe que todos se conhecem, cruzam-se palavras com várias pronúncias de português, desde o puro ao carregado de sotaque chinês, passando pela música suave do português tropical, diferente do brasileiro. No entanto, mesmo aqueles que se mantêm calados parecem partilhar com os outros um mundo e um conhecimento que lhe são estranhos. E tem a sensação irritante de estar a ser observada e avaliada, em discretos olhares e discretas conversas. Mas deve ser a sua imaginação a trabalhar, diz a si mesma.

Em todo o caso, há alguém que a olha directamente e está, sem qualquer dúvida, a fazer uma apreciação qualquer: um homem dos seus quarenta e tal anos, vestido sobriamente, de fato e gravata muito convencionais e óculos escuros, acessório aparentemente inútil neste momento e neste lugar. Os óculos escondem-lhe os olhos, porém Rita sabe que estão pousados em si, a examiná-la com uma espécie de despudor quase grosseiro.

Ou sou eu que continuo a imaginar coisas e isso é o mais provável.

Desvia a cabeça, decide ignorar o homem dos óculos escuros. Decide ignorar também a vaga sensação de perigo que a incomoda desde que chegou à porta de embarque e para qual não encontra nenhum motivo racionalmente aceitável.

Mas há um, embora racionalmente inaceitável: vou embarcar para viver e trabalhar no Extremo Oriente, em Macau, no desconhecido. Tudo o que é desconhecido é perigoso, assim nos segreda um instinto gerado na noite mais funda das cavernas. Apenas isso. O que se passa é que o tal dragão, não o conheço. Não lhe sei os contornos e a primeira imagem que tenho dele são estes passageiros, estes companheiros de viagem que me rodeiam e esta variedade tão grande de traços fisionómicos, cores de pele e sotaques, faz-me sentir já perdida. Com irritante nitidez, desenha-se a ideia de que a expressão usada pelo pai, o “dragão de fumo”, começa a revelar-se adequada.

O dragão de fumo. Que ideia barroca. Ideia de escritor. Ideia de um pai que de repente decidiu publicar um livro e depois outro, e outro, até que ela percebeu: o meu pai, afinal, é um escritor.

Já lá vão quinze anos desde esse choque inesperado mas Rita ainda não se habituou completamente à ideia, tal como não se desfez completamente do mal-estar inicial que ela provocou e que nunca teve a coragem de mencionar, ainda menos explicar, a quem quer que fosse. Se o pai escrevesse para crianças seria diferente, porque o mundo infantil está mais distanciado. Assim, ao ler os seus livros, tem sempre o sentimento absurdo mas insistente - e desagradável - de que ele, através das personagens que cria, através do pensamento e da respiração que lhes dá, expõe publicamente a própria vida e a alma. E de que, ao fazê-lo, a expõe também, a ela, Rita.

Uma outra ideia absurda é esta: se não se tivesse tornado escritor, ele e a mãe não se teriam divorciado. Foi (sim, deve ser absurdo e no entanto não consigo lutar contra esta convicção) foi o desencadear de energias provocado pela escrita que despertou nele um excesso e uma revolta e um desassossego e uma procura e foi tudo isso que levou os pais ao divórcio.

O divórcio devia ser reservado à minha geração, que já nasceu no desassossego, e às gerações que vêm depois da minha. E nós, que vivemos num mundo sobressaltado e mutante, precisamos de pais estáveis e imutáveis. Precisamos desse equilíbrio, nós que pertencemos à era da subversão. Não é justo que eles possam surpreender-nos com repentinas alterações de rumo.

Rita inspira longamente e liberta o ar. Sente-se irritada consigo mesma. Claro que está a ser injusta, talvez até ridícula, como o dragão de fumo, O pai não merece recriminações, ou, pelo menos, não é só ele a merecê-las. Deus sabe que a mãe teve uma parte importante das responsabilidades pela ruptura. Além disso, o pai foi o único verdadeiro apoio com que Rita contou durante o seu próprio divórcio. Não com os seus conselhos, mas com os silêncios, os sorrisos, a simples aceitação de razões cuja explicação nunca lhe pediu (por que está ele tão seguro de que eu nunca gostei do Pedro?).

Agora que a despertou, mergulha por completo na recordação dessa experiência relativamente breve mas dolorosa, quase violenta, e de tal modo se envolve que os seus gestos e movimentos se tornam automáticos e quando dela emerge, com um encolher de ombros, está já dentro do avião, sentada, com o cinto de segurança já apertado. O tempo que passa é irreal como num sonho de que ela só acorda quando lhe servem o jantar.

“Eles dão-nos de comer sempre que podem para nós não os empatarmos, para ficarmos quietos no nosso lugar e não engarrafarmos as coxias”, disse-lhe o pai falando da longa viagem aérea para Macau. Recorda este comentário no momento em que um jovem com cara de bebé, um membro do pessoal de cabina, retira o tabuleiro da refeição, que ela mal provou. Ao contrário de Adriano; -minha querida, eu a bordo sou uma óptima boca, como tudo e bebo tudo o que me põem na frente. Não que a comida deixe recordações indeléveis, não sei se me entendes; isto, em mim, deve ser uma questão de metabolismo. Só não como os doces, mas se os substituíssem por salmão ou uma dose suplementar de queijo, também marchavam”.

Uma longa conversa em surdina, entre um homem e uma mulher, a pouca distância do seu lugar, acaba por arrancá-la às confissões gastronómicas paternas. A mulher é uma das assistentes, pela maneira como fala. A conversa termina antes que Rita consiga apreender-lhe o sentido e logo a seguir há uma presença junto de si e uma voz masculina agradável, a mesma que ouviu a dar réplica à assistente, pronuncia a frase convencional; “Desculpe... dá-me licença?”

Ele recosta-se na cadeira e murmura; - Beba o seu porto, antes que arrefeça.

Rita não pode impedir-se de sorrir porque Alexandre falou num tom perfeitamente sério e ela aprecia este humor seco e sóbrio. Bebe um gole de porto saboreando simultaneamente o vinho, o seu efeito de euforia tranquila – e aquela presença tão próxima, que lhe é mais agradável do que gostaria de admitir perante si própria. Ao longo de longos meses, enquanto durou a fase crítica do conflito final com Pedro e do divórcio, com a sensibilidade e a racionalidade sacudidas, abaladas até ao limite extremo, convenceu-se de que Pedro esgotara - estragara - a sua capacidade para ter prazer com a simples companhia de um homem. Não tomou nenhuma decisão de celibato relativo ou absoluto, não é ingénua a esse ponto e conhece-se a si mesma bem de mais, porém ganhou a convicção de que o que Pedro destruíra não podia ser refeito, pelo menos não completamente. E agora, com a presença de Alexandre, sente um misto de excitação dos sentidos e de exaltação mental, uma espécie de felicidade absurda.

Desculpe, dá-me licença, disse ele ao abordá-la, após o debate com a assistente de bordo. Como este lugar ao seu lado está livre, importa-se muito se eu me instalar? Reservei um lugar de não-fumador mas acho que não vou conseguir aguentar-me durante toda a viagem sem fumar. Prometo incomodar o menos possível e como nunca durmo dentro do avião não há o perigo de ressonar.

Ela riu ao ouvir a longa tirada. Não o viu antes do embarque, deve ter chegado em cima da hora. Deu-lhe uns trinta e cinco anos. Talvez menos, ou então é o cabelo anelado e os olhos, que parecem sempre prontos a sorrir, que o fazem mais novo. Acima de tudo, não tem, definitivamente, o ar de garanhão conquistador, um género que odeia. Fez-lhe um breve aceno de concordância. Ele instalou-se, propôs uma bebida, Rita escolheu porto seco. Sem pensar. Não consegue perceber por que não recusou.

Pousa o cálice sobre a mesinha em sua frente. - Você manda beber mas não bebe - diz a Alexandre. Este levanta o seu cálice num brinde.

- Tem razão, vamos fazer ao mesmo tempo uma saúde e as apresentações; à sua e chamo-me Alexandre Moura.

Os vidros tocam-se enquanto Rita dá a resposta: - À sua e eu chamo-me Rita...

Engole o nome que ia pronunciar e que era o apelido de Pedro. A força do hábito.

- Rita Carreira. Vai para Macau ou sai em Bangkok?

- Macau, responde Alexandre, sem mostrar que reparou na sua hesitação. Vou montar uma coisa linda, uma loja de cultura portuguesa, sabe como é, livros, CD's, quadros, peças de artesanato. Deve começar a funcionar pouco antes da transferência da Administração para a China, vai ficar dependente da Escola Portuguesa.

- Temos os mesmos patrões, então - comenta ela e fala do Instituto Camilo Pessanha, da cadeira que vai leccionar, “Estudo Aprofundado da Literatura Portuguesa”, que título pomposo. E discutem Macau, os chineses, os macaenses, a transferência que se aproxima. Discutem como leigos, numa ignorância que ambos confessam e que, de certo modo, os aproxima um do outro. As luzes da cabina apagam-se para que os passageiros repousem melhor, mas continuam a conversar a meia voz.

Uma hora depois, Alexandre declara que ela deve tentar dormir e levanta-se - para esticar as pernas, diz.

Rita faz reclinar as costas do assento. Fecha os olhos, mas não para dormir.

Estou divorciada, a caminho de Macau. A caminho do desconhecido, ao lado de um desconhecido.

Tenta analisar as suas emoções, acaba por desistir - para quê, aliás, analisar seja o que for, se daí nunca sai nada de útil. O que é preciso é que Macau lhe dê o distanciamento e o tempo de que necessita para se refazer e, se preencher essas duas necessidades, o dragão pode fumegar à vontade sem a sua interferência nem o seu interesse. Esta é uma pequena explosão de egoísmo a que Rita se acha com direito.

Volta a abrir os olhos, procura Alexandre. Ele está de pé, a pouca distância, à retaguarda. Observa com atenção mal disfarçada um lugar que se situa do outro lado da cabina, junto à janela. Por mera curiosidade ociosa, Rita debruça-se um pouco para ver qual é o alvo, se for uma rapariga terá de rever a opinião formada e chamar-lhe garanhão conquistador.

O alvo é, porém, um homem que olha, justamente, na direcção dela. Desta vez tem essa certeza porque ele tirou os óculos escuros. O efeito não é mais favorável que o anterior, quando o viu na porta de embarque. Rita não gosta daquela expressão e gosta ainda menos agora, por lhe parecer que aquele olhar é intencional. Durante alguns instantes forma-se um triângulo de olhares, mas dura pouco: o homem vira-se para a janela como se pudesse ver alguma coisa no exterior e Alexandre regressa ao seu lugar, - Não tem sono? - pergunta com um sorriso. - Isso é um perigo, porque se você não dormir eu não me calo...

E, de facto, voltam a conversar longamente. Entretanto, perdeu-se a relativa inocência do primeiro contacto. Talvez por ter surpreendido Alexandre a observar furtivamente o outro passageiro, Rita sente um inexplicável alerta interior, começa a reparar em pequenos pormenores de que antes não se tinha apercebido. Alexandre pergunta mais do que responde. O seu interesse parece ir além do motivo óbvio, é como se ele quisesse fazer uma avaliação completa, incluindo o enquadramento familiar, as convicções pessoais, o passado longínquo e próximo.

Devia sentir-se irritada, porém sente-se apenas intrigada e encontra certo gosto na ginástica mental exigida para escapar com desenvoltura ao interrogatório. Por fim, decide que é tempo de lançar um aviso. Abruptamente, interrompe Alexandre:

- Agora é a minha vez: data e local de nascimento, estado civil, habilitações literárias, partido ou corrente política, actividades anteriores, rendimento anual?

Ele olha-a um pouco aturdido e depois dobra-se numa gargalhada cujo som tenta abafar para não acordar os companheiros de viagem adormecidos.

- Mas eu não queria... peço desculpa. Já percebi que fui inconveniente. Juro que a intenção não era... - interrompe-se, ri novamente enquanto abana a cabeça.

- Sempre que simpatizo com alguém, é a mesma coisa: Uma curiosidade doentia, que quer você, é mais forte que eu. Não me diga mais nada, não me ligue importância, vote-me ao desprezo. Eu mereço.

Rita encolhe ligeiramente os ombros. - Não é caso para tanto. Mas de facto não vou dizer mais nada, porque sinto que está a chegar o sono e já não era sem tempo.

Ele deseja-lhe bons sonhos. Rita ajeita-se melhor no assento. Invocou o sono somente porque achou dever interromper a conversa, no entanto dá-se conta de que vai, de facto, adormecer.

Acorda, por força, quando o avião rola na pista do aeroporto de Bangkok. Alexandre, com um sorriso alegre, dá-lhe as boas-vindas ao mundo dos vivos e à Tailândia... foi ele quem, antes da manobra de aterragem, lhe endireitou as costas do assento e lhe apertou o cinto de segurança. Como explicar um sono tão pesado? Só mais tarde, enquanto vagueia pelo edifício do aeroporto, na vasta área reservada às lojas francas, é que se lembra de ter tomado um comprimido antes de partir. Tomou-o ainda em casa, aliás; na cozinha, ao mesmo tempo que preparava o chá para o pai. Foi preciso ter os nervos muito tensos para só lhe sentir o efeito tantas horas depois. Mas agora ele aí está, o efeito, pensa, irritada com o atordoamento. Alexandre, a seu lado, conversa, ri, graceja, mas Rita mal o ouve e responde-lhe a custo.

Em todo o caso, não está tão atordoada que não anote mais um pequeno facto curioso. Quando regressam ao avião, Alexandre mantém-se de pé, junto do lugar, até que todos os passageiros estejam instalados, e Rita julga perceber que ele está de novo a observar (vigiar...?) o homem dos óculos escuros. Mas ao debruçar-se para espreitar, corrige a conclusão: deve estar, sim, a certificar-se de que o outro saiu em Bangkok, pois o assento que ocupava encontra-se vazio.

Que idiotice esta. Quantos livros de espionagem terei eu lido nos últimos tempos, para estar agora a delirar desta maneira?

Após a repreensão que faz a si mesma, o sono, que durante a escala em Bangkok nunca andou muito longe, volta em força. Adormece outra vez maldizendo o comprimido que tomou em Lisboa.

Desperta pouco antes da chegada a Macau, ainda entontecida. E, embora entretanto tenha abandonado o assento, caminhado e até falado, os seus sentidos só entram em verdadeiro estado de vigília quando recolhe a mala da passadeira rolante e se encaminha para a saída. Tem a vaga noção de ouvir Alexandre, sempre a seu lado, fazer diversos comentários. Lembra-se, sobretudo, de o ouvir dizer: estava com curiosidade de ver o aeroporto de Macau, porque da outra vez ainda tive de vir por Hong Kong, era uma chatice.

Para Rita, os aeroportos são todos iguais e nenhum, velho ou novo, lhe desperta grande interesse. O que, raciocina agora, tem algum interesse é a revelação de que ele já esteve em Macau - feita porventura num momento de distracção, pois não lho dissera antes. Mas não importa, afinal, pois é bem provável que não o volte a encontrar tão cedo e que um novo contacto, a haver, seja fortuito.

Como se lhe tivesse lido o pensamento, Alexandre diz-. - Não se vai livrar de mim facilmente. Eu hei-de arranjar o número de telefone do Instituto Camilo Pessanha, portanto você terá notícias minhas muito em breve... está alguém à sua espera?

Justamente nesta altura, Rita avista duas mulheres, uma europeia e outra, chinesa ou macaense, empunhando um pequeno cartaz dizendo: “Dr- Rita Carreira”. Acena-lhes enquanto responde: sim, estão ali pessoas do Instituto, vê? E você, tem transporte para a cidade ou quer que peça uma boleia para si?

- Não é preciso. Chegou o momento doloroso da despedida - declara Alexandre com um sorriso gaiato. - Desejo-lhe muitas felicidades e olhe que vou cumprir a ameaça de lhe telefonar daqui a dois ou três dias.

Despedem-se. Rita, ao afastar-se dele, tem o sentimento - absurdo, exagerado, certamente - de deixar para trás tudo o que lhe era familiar.

Antes assim.

Alexandre fica parado a olhá-la, esperando que se volte para acenar uma última despedida, mas Rita afasta-se a conversar com as duas mulheres, como se ele lhe tivesse saído da ideia. Então, apoia as mãos no carrinho onde transporta a bagagem e avança devagar.

Uma voz grita alegremente o seu nome e ele estaca para encarar o homem de barba e cabelo grisalhos, o cabelo já a rarear, que vem na sua direcção, de braços abertos, a sorrir. Abraçam-se com efusão enquanto o outro lhe pergunta se fez boa viagem, se vem ou não muito cansado, se a família está bem de saúde. Depois encaminham-se juntos para a saída.

- Já era tempo de vires a Macau! - diz o homem. Alexandre responde: pois, mas não é assim tão fácil, é um bocado mais longe que o Algarve.

- E o aeroporto? Não dizes nada do aeroporto, o nosso grande orgulho, juntamente com o terminal...

- Claro, o aeroporto é magnífico - interrompe Alexandre - e eu já estava à espera da pergunta, esta gente do Governo passa a vida a fazer propaganda, deviam ter vergonha.

- Animal. Não se te pode dizer nada. E depois, vivemos na era da propaganda e da publicidade, ou não? As coisas só começam a existir quando são propagandeadas e não vejo razão para nós sermos modestos...

- A não ser a virtude que reside na modéstia. Continuam a gracejar e a picar-se mutuamente enquanto abandonam o carrinho da bagagem e pegam nas malas para se dirigirem ao parque de estacionamento. No exterior, apesar de já ser noite, um bafo quente e húmido envolve-os. Restos do Verão, diz o homem ao ver Alexandre respirar fundo como se o ar lhe faltasse. Restos do Verão, que este ano, segundo os bonzos da meteorologia, deverá prolongar-se e não está mesmo afastada a possibilidade de um tufão. Que alegria, resmunga Alexandre. O outro dá uma gargalhada e comenta que o tufão, se vier, será para ele uma experiência nova.

O carro encontra-se no fundo do parque. Quando se aproximam dele ambos têm o rosto coberto de suor, a breve caminhada bastou para os encharcar. Arrumam as malas na bagageira, entram e o homem acciona imediatamente a ignição - para poder ligar o ar condicionado, explica.

Depois de o fazer vira-se para Alexandre e as duas máscaras risonhas caem. Como se não se tivessem cumprimentado antes, o homem estende-lhe a mão:

- João Dias. Muito prazer.

Alexandre aperta a mão estendida e diz o seu nome. O outro não lhe dá tempo para continuar a falar:

- Desculpe esta palhaçada. Macau, em termos portugueses, é uma aldeia, toda a gente se conhece. Achei preferível que parecêssemos amigos de longa data, desperta menos a curiosidade, compreende.

Sim, foi uma excelente ideia, diz Alexandre, que começa a sentir na pele o conforto do ar condicionado. O outro prossegue: resolvi metê-lo na Pousada de Mong-Há, pelo menos durante os primeiros tempos, porque essa é uma solução normal, que não levanta especulações nem comentários, toda a gente espera isso. Como vê, estamos a dar a maior atenção aos pormenores.

Arranca lentamente, conduz o automóvel para a saída do parque enquanto fala sempre no mesmo tom grave, de urgência contida: gostava de poder fazê-lo participar já numa reunião com os outros, mas, uma vez mais, o normal é que eu o conduza à pousada de modo a que você possa descansar e portanto é isso o que vou fazer.

- Mas eu não tenho sono! - protesta Alexandre. - E além disso, precisamos de falar.

João Dias faz um breve sorriso. - Não se preocupe, vamos falar. Também é natural que, depois de uma longa separação, dois amigos queiram trocar impressões e novidades. Mas não durante muito mais de uma hora. A amizade exige que eu, depois de uma hora, o deixe ir dormir. Não pense que estamos a exagerar ou a brincar aos agentes secretos. Recebi confirmação de Hong Kong. A partir da meia-noite de hoje, hora de Macau, entramos em período operacional.

O carro contorna agora um monumento que Alexandre não conhecia e Dias, ao reparar no seu olhar, informa que é a Asa dos Bons Ventos”. Depois, num tom diferente, acrescenta:

- É justamente do que estamos a precisar. Bons ventos. Em vez disso, murmura Alexandre, você ameaça-me com um tufão. O outro faz um sorriso em que os olhos não participam e responde: sim, é bem possível. Esse tufão de que falei é meteorológico e não podemos evitá-lo se vier, mas representa um risco menor, pelo menos comparado com o outro que parece estar a preparar-se. É com ele que temos de preocupar-nos.

O carro contornou a “Asa” e Dias toma agora a direcção da ponte nova da Taipa, rumo à cidade, cujas luzes abrem no céu um enorme halo luminoso.

- Você veio bem acompanhado durante a viagem - diz ele, dando às palavras um tom de interrogação. Alexandre entendeu-o, sabe que não está a fazer ironia e que a indiscrição tem um motivo preciso, - Sim. Conheci-a no avião, é uma professora que vem para o Instituto Camilo Pessanha. Tanto quanto pude perceber, não há nada de suspeito.

Em silêncio, recorda a longa conversa com Rita, a bordo. Quando ela finalmente adormeceu, ficou a olhar para o seu rosto, que o sono alisara e a que roubara expressão. Parecia ainda mais jovem - mais frágil, sobretudo. Ao mexer-se, a manta de lã que a cobria deslizou para o chão. Alexandre apanhou-a e aconchegou-a com todo o cuidado e a sua mão tocou ao de leve a mão dela, macia e quente. Não, não pode haver nada de suspeito, mas há certamente algo de perigoso.

É nesta rapariga, perigoso para mim, que durante os próximos tempos devo pôr de lado as distracções e ser, tanto quanto possível, um cérebro a comandar um corpo.

- Não terá vindo uma outra pessoa neste mesmo avião, alguém de quem o seu chefe me falou pelo telefone?

Alexandre sobressalta-se um pouco ao ouvir a voz de João Dias, tão embalado estava no silêncio e no devaneio.

- Ah, esse. Não sabemos o suficiente, ou pelo menos não sabíamos ainda, quando parti de Lisboa. Nem a identidade nem o aspecto. Durante a viagem fui olhando discretamente à esquerda e à direita. Havia um tipo que, pela pinta... mas saiu em Bangkok.

Dias comenta que isso nada significa. Se alguém quisesse passar desapercebido, podia escolher exactamente a saída em Bangkok e de lá iria para Hong Kong, embarcaria num jetfoil e entraria em Macau pelo Terminal Marítimo, com toda a tranquilidade.

Mas Alexandre abana a cabeça numa negativa. Não vale a pena preocuparmo-nos com uma simples desconfiança, Lisboa há-de enviar elementos muito em breve...

- ...Ou pelo menos assim o espero - remata, em voz baixa.

 

Tem procurado, em vão, evitar a sacramental e inesca-pável pergunta; “Então? Gosta de Macau?”.

Rita detesta a pergunta, não somente por ser sacramental e inescapável mas também porque não lhe conhece a resposta.

Estes escassos primeiros dias de Extremo Oriente apenas serviram para a confundir: há demasiados estímulos, demasiadas sensações e coisas novas para a sua capacidade de assimilação. Sente-se atordoada e, no entanto, ainda nem sequer percorreu a cidade, pois tem estado absorvida pelas formalidades burocráticas, pela instalação numa casa - grande de mais para si e largamente vazia e impessoal -, pelos primeiros contactos com o Instituto.

Fiel à promessa (ou à ameaça, como lhe chamou), Alexandre telefonou-lhe dois dias após a chegada, mas foi uma conversa breve porque ambos estavam ocupados. Rita perguntou-lhe se a loja de cultura portuguesa (ou seria loja portuguesa de cultura?) já tinha instalações, ele respondeu que só havia ainda um escritório minúsculo, um “cochicho temporário”, e logo a seguir propôs-lhe um jantar, que ela recusou por ter já aceite o convite da Drª Ifigénia.

A Dr- Ifigénia é a directora do Instituto Camilo Pessanha. Uma cinquentona seca de carnes, parca de peitos, mas abundante na pompa e circunstância. Foi ela que a recebeu no aeroporto juntamente com a frágil, graciosa e intangível Susana Wong, a secretária-geral. Esta recepção foi uma especial e excepcional deferência, deu-lhe a ifigénica pessoa a entender, e como, logo a seguir, fugindo à lógica do discurso, declarou “gosto muito dos livros do seu pai”, Rita não teve dificuldade em perceber que uns gramas de notoriedade paternal se haviam transferido para ela. Nem se deu ao trabalho de tentar saber de que modo a directora estabeleceu a relação familiar, estas coisas sabem-se e pronto. Felizmente, a enorme Ponderabilidade profissional e social da Dr- Ifigénia (ou, pelo menos, a que ela se atribui a si própria) leva-a a isolar-se um pouco dos restantes mortais. Rita ouviu já comentários irónicos de alguns colegas a esse respeito.

Este vai ser o seu primeiro dia de aulas, de resto faltam apenas uns trinta minutos para começar a primeira aula. Aqui, na sala reservada ao convívio entre professores, cruzam-se conversas - e mexericos, suspeita ela. Marta, uma professora dos seus quarenta e cinco anos que parece ter decidido tomá-la sob a sua protecção, pergunta-lhe se já provou a tão celebrada cozinha chinesa, a genuína.

- Porque se ainda não provaste - acrescenta -, é mais que tempo. A Isabel e eu estamos a pensar em levar-te a almoçar ao Federal.

Rita confessa que nestes dias mais recentes se tem alimentado essencialmente de sandes e iogurtes.

- Que horror! - exclama Isabel com um risinho divertido. - Isso é péssimo para a saúde. Está combinado, vamos ao Federal. Vou telefonar a marcar mesa e depois da aula encontramo-nos aqui... - interrompe-se ao olhar para o fundo da sala. - Espera, chegou uma pessoa que tens de conhecer.

Marta e Rita olham também para o visitante que acaba de entrar, um homem que já deve ter ultrapassado há muito os sessenta, impecavelmente vestido, com laço em vez de gravata, e que tem no rosto os traços inconfundíveis do sangue asiático. Marta explica; é o Salvador Noronha, o Dr. Salvador de Noronha e Sousa, um monumento de Macau, está classificado e tudo. É médico, aliás como convém a um tipo que se chama Salvador, só que já quase não exerce.

Em compensação, acrescenta Isabel, escreve poemas. Pior ainda, publica-os, o que anda muito na moda por cá. Mas é um querido. E sabe tudo sobre Macau, a história de Macau, a literatura de Macau. E até, por causa disso, está a colaborar com o Instituto. Vais gostar de o conhecer.

Salvador Noronha aproxima-se a um sinal de Marta, que faz as apresentações. Ao ouvir o apelido de Rita, os seus olhos fecham-se por instantes num esforço de concentração. Carreira, murmura ele, esse nome diz-me qualquer coisa. Porém, Rita não lhe dá tempo para pensar. A última coisa que ela deseja é que lhe falem da experiência do pai em Macau; já a aborreceu a referência feita pela directora do Instituto, mas essa, pelo menos, não o conhece pessoalmente. Para cortar as eventuais reminiscências do velho médico, toma ela a palavra, diz-lhe que há-de procurá-lo para lhe perguntar coisas sobre Macau.

- Com muito prazer! - responde ele e o que é curioso é que parece mesmo sentir prazer com a ideia. - Estou às suas ordens. Deixe-me que lhe dê o meu cartão...

O cartão de visita é uma instituição pública em Macau. Em quatro dias, Rita já acumulou uma boa dezena.

- E então, gosta da terra? - pergunta inevitavelmente Salvador. Ela repete a frase que preparou para enfrentar a pergunta; ainda é muito cedo para saber, mas acho que vou gostar.

- Claro que vai gostar. Espero que sim. Precisamos de gente que goste de Macau...

Para compensar aqueles que estão a fazer as malas, atalha Marta. E durante uns minutos a conversa gira em volta de um tema que Rita notou ser omnipresente: quem parte e quem fica depois da transferência da Administração em 1999, quem fica por opção, quem fica por dever e quem parte por necessidade ou falta de futuro profissional, mas gostaria de ficar.

Os trinta minutos estão quase esgotados. Rita despede-se. Tem agora a sua aula, explica, e em resposta a uma pergunta de Salvador confessa que se sente um pouco nervosa perante a perspectiva de enfrentar pela primeira vez os seus novos alunos, todos eles chineses, ao que parece...

- Alguns são macaenses, com certeza - interpõe Salvador. Mas vai ver que são todos muito correctos. E muito aplicados.

As outras professoras riem, dizem que Salvador é a melhor alma que há no mundo, que acha toda a gente muito correcta. Ele defende-se da amável acusação de ingenuidade, ao mesmo tempo que reafirma a sua fé essencial no género humano. E um toque de campainha vem pôr termo à conversa.

Caminhando ao longo do corredor, Rita dá-se conta de que não estava simplesmente a fazer conversa: sente o corpo ligeiramente contraído pela tensão à medida que se aproxima da sala de aulas.

A cadeira chama-se Estudo Aprofundado da Literatura Portuguesa, mas na realidade o que se espera é que você também aperfeiçoe o conhecimento que eles têm da língua, porque sem isso não chegam à literatura, ou pelo menos chegam mal. E tem de compreender que as diferenças entre o chinês e o português são muito grandes e que a aprendizagem não é nada fácil. Os nossos alunos têm entre os vinte e dois e os trinta anos e não beberam o português com o leite materno.

Este é o discurso da Drª Ifigénia, pronunciado no tom de sessão solene que a caracteriza. Ao ouvi-lo, Rita ficou com a incómoda sensação de que, sem ela se dar conta de tal, a Pátria lhe confiou uma missão não só transcendente como heróica. Se assim foi, diz entredentes, pregou-me uma partida suja, porque eu só queria mudar de cenário e ganhar a vida.

Chegou à porta da sala. Inspira uma boa golfada de ar e entra. Trinta pares de olhos - e nem um deles redondo - fixam-na atentamente enquanto ela se encaminha para a secretária. Quando sorri e diz “bom dia”, trinta sorrisos lhe respondem.

Após os primeiros minutos de aquecimento - ou de produção de adrenalina -, ela sente que atingiu o ritmo necessário e a aula acaba por correr muito melhor do que esperava. Não sem algumas surpresas interessantes: uma das raparigas, que a enganou com o seu ar tímido e o seu aspecto de camponesa acabada de sair de um arrozal, pergunta-lhe se Eça de Queirós visitou a China para escrever O Mandarim; uma outra quer saber por que motivo Wenceslau de Moraes decidiu abandonar Macau para se estabelecer no Japão. E quando pergunta à turma se alguém conhece Florbela Espanca, um dos rapazes levanta-se e recita Eu quero amar, amar perdidamente sem uma única falha nem hesitações. Tenho de contar isto à directora, pensa ela.

Quando a aula termina, deixa-se ficar sentada à secretária enquanto os estudantes saem: aproveita a necessidade de arrumar os livros e apontamentos que trouxe para dar um breve descanso aos pés, já que, durante a maior parte do tempo, preferiu passear de um lado para outro e andar entre as filas de cadeiras a ficar sentada falando ex catbedra. Está curvada sobre a sua pasta de documentos e levanta a cabeça ao ouvir uma voz suave a dizer: “desculpe”...

É o rapaz que sabe Florbela de cor, olhando-a com um sorriso que, pensa Rita, vai além da formal cortesia chinesa a que já se vai habituando.

- Sim?

Ele responde no seu português correcto mas laborioso, vê-se que ao falar ainda tem de procurar as palavras: chamo-me Cheong Chi Meng e só quero dar-lhe as boas-vindas a Macau e dizer que a achamos muito simpática.

Rita sente-se corar, como sempre acontece em circunstâncias semelhantes. Que raio, tive de herdar isto do meu pai, que também fica estragado ao ouvir elogios. Apesar de gostar mais deles que de pão para a boca.

Agradece rapidamente e logo a seguir fala da sua surpresa ao ouvi-lo dizer o poema. O sorriso de Cheong, que ainda não se apagou, alarga-se um pouco.

- Gosto muito de Florbela Espanca. Gosto muito da poesia portuguesa. É muito diferente da chinesa, mas gosto.

E Rita ouve-se a si mesma perguntar:

- Já agora, Cheong, diga-me... não: se não te importas, vou tratar-te por tu... diz-me uma coisa: o que vais tu fazer com todos estes conhecimentos depois da passagem de Macau para a administração chinesa?

Ele abre ligeiramente os olhos, como se a pergunta o tivesse espantado. Mas o português, responde, vai continuar a ser língua oficial, juntamente com o chinês. E está a trabalhar como intérprete. Além disso, gosta de conhecer a cultura portuguesa. E remata num tom que a Rita soa um pouco oficial ou, pelo menos, convencional: - Fico muito feliz porque Macau volta para a China, mas é pena se não continuar a ser como é hoje.

Cheong afasta-se, mas ela não se levanta. Vejam como são as coisas, em meia dúzia de frases este deu-me toda uma lição de subtileza oriental.

Lição que julga não ter compreendido totalmente. Em todo o caso, apreendeu dois elementos curiosos: um é a permanente, quase obsessiva comparação entre China e Europa, cultura chinesa e cultura ocidental (a poesia portuguesa é muito diferente da chinesa, mas ele gosta, ou seja, apesar da diferença, gosta). Chama-lhe obsessão, talvez com exagero, porque deparou com a mesma atitude nos chineses (ainda poucos, admita-se) com quem falou.

O segundo elemento é também do género a que ela chama obsessivo, mas esse refere-se sobretudo aos portugueses e mais particularmente aos macaenses: a iminência da passagem para a China e a noção da importância do acontecimento. Aquilo que em Portugal apenas desperta um muito vago interesse é aqui não somente um tema constante, o que é compreensível, dado que mudará inevitavelmente a vida pessoal de cada um, mas também uma questão nacional, uma grande questão portuguesa, capaz de afectar, se não o futuro pelo menos a imagem do país. E segundo todas as aparências, as pessoas consideram isso muito importante.

O que é tecnicamente exacto, reflecte enquanto se levanta para ir ao encontro das colegas e do prometido almoço. Mas nunca lhe passou pela cabeça tomar tão a peito essa preocupação nacional porque as preocupações nacionais não são o seu forte nem a sua preferência.

 

Alexandre faz um raciocínio, não idêntico, mas semelhante. Apesar de tudo quanto sabe, e que Rita ignora, veio para Macau simplesmente com a preocupação de executar o trabalho e obter resultados concretos. Tem, é certo, uma outra preocupação, que aumentou gradualmente nas últimas vinte e quatro horas, mas também essa é muito concreta e limitada. Afinal de contas, não se pode andar sempre com a cabeça cheia de grandes desígnios, aliás isso não faz bem à saúde. Uma cabeça permanentemente ocupada com grandes desígnios ou pertence a um santo ou a um fanático e o mundo, que parece ter esgotado a sua capacidade para produzir santos, anda a parir fanáticos em excesso.

A sua convicção quanto aos grandes desígnios ficou ligeiramente abalada nos últimos dias - apenas ligeiramente, só o bastante para necessitar de pequenas correcções: se não encontrou nenhum santo, também não encontrou nenhum fanático e, no entanto, as pessoas, à sua volta, estão sempre conscientes de que se movimentam, de alguma forma, no palco da História, com H maiúsculo.

Discretamente, olha à volta da grande mesa e repete em pensamento, para reter na memória, os nomes e funções daqueles homens que acabam de ser-lhe apresentados por João Dias (só hoje soube que ele é coronel do Exército); Luís Matos Costa, Polícia Judiciária; Jorge Almeida, Polícia de Segurança Pública; António Kwan, Polícia Marítima e Fiscal. Kwan é chinês, Jorge Almeida macaense. Matos Costa deve ter vindo de Portugal, mas os longos anos de Macau quase o transformaram num “filho da terra”. E eu, pensa Alexandre, sou o estranho. Como ironizou Dias, você é, no nosso grupo, o único reinol, que era como os macaenses de outrora chamavam aos que vinham do Reino.

Muito bem, sou um reinol. E em vez de me inquietar com os grandes desígnios, inquieto-me somente porque há um chinês que nunca vi e que faltou ao combinado, Vou ter de lhes falar no assunto, aliás.

Dias, que preside à reunião, levanta-se para ir ajustar o termostato do aparelho de ar condicionado, depois volta para junto da mesa mas não se senta.

- O nosso amigo Wang - diz então - ainda está em Pequim e só pode vir dentro de um dia ou dois. É pena, mas hoje, pelo menos, prefiro que ele não esteja aqui porque vamos tratar de questões... internas. Eu ia mesmo a dizer íntimas. O Wang Zhong Xie é, por assim dizer, o nosso contacto chinês - acrescenta, para esclarecimento de Alexandre.

Este, que entendeu o eufemismo, aproveita para pôr a questão que começou a preocupá-lo:

- Falando de contactos, o meu contacto, um tipo chamado Tang Kok long, ainda não deu sinais de vida. E estou a ficar preocupado com este silêncio.

Percebe imediatamente que Lisboa não os informou, portanto adianta que esse Tang Kok long surgiu na paisagem após uma diligência feita pelo serviço - o seu, claro está. E, pergunta Dias num tom ligeiramente crítico, as diligências foram feitas junto de quem e o que é que esse homem tem para lhe dar?

- Digamos que ele pertence a um serviço semelhante ao meu. Não igual, mas semelhante. E o que tem para dar são informações. Tão importantes, ao que parece, que só as quer dar pessoalmente, foi essa a comunicação que recebemos. Suponho que dizem respeito à parte chinesa do caso. Tanto quanto sei, ele tem estado infiltrado em certos meios... pouco ortodoxos.

- E não aparece... - comenta Dias. - Posso sempre perguntar discretamente a... não interessa, posso perguntar. Bom, vamos prosseguir. Agora que os senhores já conhecem o Dr. Alexandre Moura, convém que ele lhes explique qual é exactamente a cobertura com que veio para Macau.

Oh, porra, pensa Alexandre, aí vou eu outra vez. E disfarçando o tédio repete pela centésima vez a história da loja de cultura portuguesa, que deverá abrir nas vésperas da transferência da Administração para a China e que há-de ficar na dependência da Escola Portuguesa, com o apoio do futuro Consulado de Portugal. No fim, encosta-se ao espaldar da cadeira aguardando os comentários, que não são entusiásticos.

- Acha que isso vai pegar? - pergunta Jorge Almeida com ar de grande dúvida. Kwan também parece pouco convencido enquanto Matos Costa está impenetrável. Deve ter já absorvido um pouco da famosa impassibilidade oriental.

É Dias que defende a ideia sugerida por Lisboa: a cobertura pegará, desde que haja cuidado. Por exemplo, Alexandre tem de estar preparado para dar entrevistas aos jornais ou à televisão e tem de saber dissertar sobre o assunto. Quanto ao resto, tudo está tratado, através do Palácio da Praia Grande (o seu eufemismo favorito quando se refere ao Governo ou ao Governador). A loja existe, legalmente, e já tem mesmo instalações provisórias, insignificantes, é certo, mas que para o efeito servem, pois Alexandre só tem de fazer delas uma utilização de fachada.

- Portanto - remata - temos agora o Grupo de Trabalho completo e operacional, só falta avisar um ou dois colaboradores externos. A propósito - este é um novo esclarecimento para Alexandre - “Grupo de Trabalho” foi o nome que escolhi porque, na recente tradição administrativa portuguesa, soa a inocência e a inoperância e não excita curiosidades. Achei-o preferível a task force, mesmo porque estou farto de ouvir termos ingleses mal pronunciados.

- Apoiado - exclama Alexandre fervorosamente.

Mas o sorriso de João Dias já não pertence ao breve intervalo de humor, antes o encerra. Inclina-se um pouco para a frente, apoia as mãos ao tampo da mesa. João Dias vai, sem o saber, confirmar as reflexões de Alexandre a propósito dos grandes desígnios.

- Desculpem-me se o que vou dizer a seguir parece um discurso. Não é, pelo menos na intenção. Não tenho jeito nem paciência para discursos. Em todo o caso, não se perde nada em lembrar-lhes uma coisa. Quem está por detrás disto quer aproveitar-se do momento actual; as vésperas da transferência de Macau para a China. Ora bem, em quatrocentos anos nós rizemos aqui muita asneira, com certeza, e deixámos por fazer muito do que devia ser feito. Aceitemos isto e passemos adiante, para não cairmos na grande tentação nacional da autoflagelação. Em todo o caso, eu penso que apesar de tudo o balanço é positivo.

Deu especial ênfase à última palavra e agora faz uma pausa, como um convite a comentários. Eu sou de fora, sou um reinol, pensa Alexandre sorrindo apenas para si mesmo, isto não é comigo, é um discurso, por muito que ele diga que não, é um discurso para a família macaense.

Não espera que nenhum daqueles membros da família macaense se pronuncie. E, de facto, o homem da PSP e o da Polícia Marítima mantêm um silêncio inerte. Matos Costa, porém, que veio de Portugal, ainda que há muitos anos, há-de ter no sangue uns restos de autoflagelação (Alexandre prefere chamar-lhe autocrítica) porque murmura; enfim, bom, podíamos ter feito mais pela economia, podíamos...

Dias interrompe-o com uma gargalhada que ninguém espera. - Aí começamos nós! Claro que podíamos, mas isso é irrelevante. No contexto, quero dizer.

A gargalhada passou e deixou um rosto novamente sério, mesmo grave. - Talvez as pessoas compreendessem melhor o que deixamos cá se esse espólio deixasse de existir. Mas este não é o lugar nem este é o momento para discutir a questão. Dizia eu, o balanço é positivo e tem de continuar assim. E esse é o meu, o nosso compromisso com... o Palácio da Praia Grande.

Endireita o corpo, que até agora manteve ligeiramente inclinado sobre a mesa, e prossegue:

- Tudo isto para lhes fazer compreender até que ponto o segredo é essencial. Ainda que possamos evitar aquilo que receamos, isso de pouco servirá ,se o assunto vier a público. Nada pode transpirar. Nada pode sair destas quatro paredes. Senta-se e ao fazê-lo põe termo, visivelmente, ao momento dos grandes desígnios para descer ao terreno da acção concreta.

- Até que o Wang Zhong Xie chegue de Pequim, ou que esse contacto do Alexandre Moura dê sinais de si, estamos praticamente no ponto zero e é de lá que vamos partir. Ou seja: a recolha de informações e de indícios. A partir de agora, tudo o que aconteça em Macau, a ocorrência mais insignificante, deve ser-nos transmitida para análise.

Olha os representantes das Polícias, um a um.

- É esse o vosso primeiro trabalho.

A primeira ocorrência insignificante dá-se num sábado e nenhum dos três corpos policiais toma conhecimento dela.

 

É o primeiro dia, desde a sua chegada a Macau, em que Rita sente pesar-lhe a solidão e a distância. Acordou ainda não eram cinco da manhã julgando que a garganta lhe doía e depois compreendeu que era apenas uma contracção provocada pela vontade de chorar. Levantou-se quase de um salto e meteu-se debaixo do chuveiro e ao sair da casa de banho já sabe a razão dessa vontade.

Por isso mesmo, para não ceder ao que considera ser fraqueza, abstém-se de telefonar ao pai - porque é do pai, sobretudo, que sente a falta. Falou com ele, brevemente, logo após a chegada, e tem-lhe enviado mensagens pelo correio electrónico, mas receia, hoje, comover-se ao ouvir-lhe a voz. O melhor antídoto - pensa ela com uma ponta de remorso - será telefonar à mãe.

O remorso desaparece quando faz a ligação e o telefonema, do outro lado do planeta, é atendido por Joca.

(Eu adoro o meu irmãozinho, eu adoro o meu irmãozinho, eu adoro o meu irmãozinho mas ele está absolutamente insuportável, é preciso esperar que cresça e se escape às saias da mãe, se isso alguma vez for possível)

Joca recusa-se a chamar a mãe ao telefone e desliga enquanto Rita fala. Respira fundo, o antídoto começa a fazer efeito. Liga novamente e desta vez é a mãe que atende, embora Joca se mantenha perto dela, pois ouve-lhe os gritos furiosos. O antídoto funciona em pleno, duplica-se até o efeito inicial: a mãe diz-lhe a propósito de nada que Pedro está para casar. Rita, passada a batalha do divórcio, sente uma profunda indiferença pelo ex-marido; o que a irrita é a insistência da mãe em falar-lhe nele e mais ainda agora, porque o seu tom carrega a mensagem “vê lá tu o que perdeste”. Ao desligar, sente ainda um pouco a solidão, porém a garganta já não está contraída e tem de novo a certeza de ter tomado uma excelente decisão ao vir para Macau.

Sempre a mesma, Deus a benza, diz a meia voz, pensando na mãe. E no entanto, foi a única pessoa a quem confiou o verdadeiro motivo da separação, uma total, uma aterradora rejeição física e mental de Pedro, da sua maneira de fazer amor, do seu machismo encapotado, da sua insuportável vaidade e da sua mediocridade. Rejeição mais completa ainda por se ter desenvolvido gradualmente, crescendo de dia para dia. Eu bem te disse, reagiu a mãe, eu bem te disse que três meses de namoro não bastavam, mas ele é um óptimo rapaz. Talvez seja; e estou de acordo, precipitei-me, enganei-me e tenho a culpa, todas as culpas, sobretudo a culpa de ter agido como se fosse estúpida, o que aumenta a minha humilhação, admitiu Rita, mas só me resta agora começar a comportar-me como se fosse inteligente.

A mãe não pareceu ouvir o argumento, é eficientíssima a ignorar tudo o que possa alterar os seus julgamentos definitivos. Por isso, Rita, censurando-se o momento de fraqueza que a levou a abrir-se pela primeira (e última) vez, pôs termo às confidências e já não lhe falou daquilo a que chama o seu segredo - e é-o, de facto. Não desvendou a sensualidade intensa e estranha que descobriu em si, uma capacidade de excitação momentânea e imediata que deve ser mais masculina que feminina. Só demasiado tarde, mais precisamente depois da separação, compreendeu e definiu essa característica. Quando conheceu Pedro, confundiu-a com amor.

Enfim, compreendeu a tempo que seria inútil ou perigoso explicar isso à mãe. Devia, pensa agora, ter confiado mais no pai, que, segundo suspeita, entendeu muito mais apesar de ter ouvido muito menos.

O Sol, entretanto, nasceu. Rita sente-lhe o calor na pele, em breve terá de ligar o ar condicionado, mas por enquanto a temperatura é suportável. Aproxima-se da janela para contemplar Macau, coisa de que ainda não se fartou. O apartamento que lhe arranjaram é o décimo andar de um prédio não muito moderno, na zona do Tap Siac, numa localização que lhe permite ver o contraste entre a cidade velha e as novas torres que trepam furiosamente para o céu. Pelo menos, reflecte ao lembrar-se da angústia com que acordou, pelo menos já percebi que gosto disto. Ajuda um bom bocado a suportar os maus momentos.

Quando Alexandre lhe telefona, pelas dez horas, o mau momento da madrugada passou por completo. Alexandre tem uma proposta - honestíssima, diz ele em tom de gozo.

- Quer você passar o dia comigo?

- Por que é que diz que essa proposta é honestíssima? - Rita já decidiu aceitar, apenas quer dar-lhe troco.

- Porque eu convido-a para passar o dia comigo e não a noite. Também gostaria, mas sou demasiado cavalheiro para fazer essa proposta.

Logo a seguir explica a sua ideia: dar um longo passeio por Macau, talvez extensivo à Taipa e a Coloane, logo se vê, mas o problema é que ainda não tem carro. De qualquer modo, um passeio pela cidade, incluindo o almoço e este será uma pequena surpresa.

Rita encontra-se com ele uma hora mais tarde, à porta do prédio - preferiu esperá-lo em baixo para não criar tão depressa o hábito de Alexandre vir a sua casa. Pode ser absurdo, mas não consegue esquecer aquela frase do pai, a propósito de Pedro: Um namoro de três meses. Nem sequer terá dado para perceberes se gostavas ou não da água-de-colónia que ele usa, quanto mais para perceberes se gostavas dele.

Do Tap Siac ao Kun Iam Tong a distância não é grande, conforme se pode ver na planta da cidade que Alexandre trouxe consigo, por isso decidem ir a pé. O dia está quente, mas a temperatura ainda permite um pouco de exercício. Enquanto caminham lado a lado ele pergunta-lhe-. então e o que tem feito, gosta de Macau, gosta do Instituto, gosta dos seus alunos... ela responde que quatro perguntas seguidas logo no início de um reencontro são prova definitiva do que já suspeitava, Alexandre deve ser descendente do último Inquisidor-Mor e como este havia por força de pertencer ao clero, há-de ser um descendente por bastardia.

- Mas é um insulto e uma injustiça! - exclama ele com um riso aberto que o torna ainda mais atraente. - São perguntas naturais no local e na circunstância! Olhe, eu não escondo nada: desde que cheguei a Macau, passei todo o tempo enfiado em repartições chatas a falar com gente chata.

Será que a cultura, mesmo vendida numa loja, está condenada a ser chata, contrapõe Rita. Não, minha senhora. Antes de chegar à cultura e à sua loja, é preciso passar pelas baixas questões buropráticas, ou seja: práticas e burocráticas. Ele tem de arranjar instalações condignas para o futuro estabelecimento cultural, tem de resolver irritantes questões legais e falar com muitos e variados funcionários em muitos e variados escalões da Administração. É essa, de momento, a sua guerra, e não é nada invejável.

Envolvem-se na conversa e pouco vêem do que se passa à sua volta. Até que Rita adverte: se se distraem acabarão por se perder, além disso o passeio não se destina a discutir os meandros mais chatos da Administração e sim a conhecer melhor a cidade... Alexandre replica: não estamos nem estaremos perdidos porque já chegámos. E aponta um muro alto, ferido a meio por uma porta ornamentada:

- Está a ver? O grande templo de Kun Iam.

Entram na companhia de vários fiéis e de turistas carregando máquinas fotográficas e câmaras de vídeo. Rita deixa-se conduzir de pátio para pátio e de sala para sala, espreita as capelas mortuárias cheias de oferendas, comida e objectos de papel que serão queimados para irem, no outro mundo, tornar mais confortável a vida dos defuntos. E só abre a boca no momento em que Alexandre pára diante de uma imagem e anuncia:

- Aqui tem a dona da casa: Kun Iam, a deusa da misericórdia, a salvadora, a que dá filhos às mulheres estéreis.

Então ela olha-o bem de frente.

- Você já cá esteve. Não sei se durante estes dias andou sempre em repartições. O que sei é que já veio aqui.

Alexandre faz uma expressão de surpresa: - Mas... então, eu não lhe contei que vim a Macau há coisa de três ou quatro anos?

- Não me disse que andou a fazer turismo religioso.

- Religioso, não. Mas fiz umas férias no Extremo Oriente e como passei por Hong Kong, aproveitei para vir a Macau por um dia, está claro.

Está claro, replica ela, mas num só dia aprendeu muito, incluindo os atributos da deusa Kun Iam.

É tudo muito inocente e natural, com uma explicação lógica. Mas Rita não pode deixar de reparar na brevíssima expressão que lhe viu nos olhos - um garoto apanhado em falta - quando lhe disse “você já cá esteve”, como não pode impedir-se de pensar na viagem de Lisboa para Macau e na curiosidade inquisitiva de Alexandre. Curiosamente, nada disto a impele a afastar-se, pois não se sente em perigo. Promete a si mesma descobrir, como proeza pessoal, o que quer que haja nele de secreto ou reservado.

Este curso de pensamentos é interrompido por uma voz dizendo “bom dia” na peculiar entoação chinesa. Olha na direcção da voz: é Cheong Chi Meng, o seu aluno.

Cheong sauda-a com o seu largo sorriso, pergunta-lhe se é a primeira vez que visita o templo de Kun Iam, ouve a resposta de Rita e despede-se. Vê-se que não quer importunar, não quer impor a sua presença. Depois de ele se afastar, Rita observa-o à distância, apenas por curiosidade, para saber se o rapaz veio também como visitante ou se é um devoto da deusa.

Não tarda a compreender que é um devoto. Cheong toma um molho de pivetes de incenso das mãos de uma rapariga, obviamente uma amiga ou namorada, acende-os, faz a tripla vénia diante da imagem de Kun Iam. Mas o que intriga Rita é perceber que ele não está apenas acompanhado pela namorada - se é namorada - e sim por um pequeno grupo de rapazes e raparigas e que nesse grupo nem todos são chineses: há pelo menos dois europeus e um rapaz cuja pele e os traços acusam uma ascendência indiana. Não é preciso conhecer a fundo Macau ou o resto da China para saber que isto não é usual.

A seu lado, Alexandre murmura: - É comovente ver tanta fé. E se fôssemos almoçar?

Ela responde: - Você não passa de um materialista empedernido. Aquele rapaz é meu aluno, sabia?

- Depreendi. Mas isso não nos impede de almoçar, espero? Quero fazer-lhe a tal surpresa gastronómica de que falei.

A surpresa - quando chega finalmente, após uma visita adicional ao Mercado Vermelho, porque Rita, à saída do templo, ainda não tinha vontade de almoçar - é uma tasca chinesa na Rua do Campo. E a surpresa está em que se chama A Vencedora e se especializou em cozinha portuguesa.

- Eu descobri isto - explica Alexandre quando se sentam a uma mesa - ontem ao fim da manhã. Ia a passar e parei ao ver a montra, porque, não sei se reparou, tem lá umas peças de artesanato português, por sinal muito feias. E o dono, mal me viu, abriu a porta e disse; ... ouvir isto, e dito por um chinês, foi irresistível. Nunca antes comi bacalhau tão bom. É claro que o sabor não é exactamente o mesmo que em Portugal, deve ser da água ou dos temperos, não sei... mesmo assim... mas você vai ver, ou melhor, comer, e depois me dirá.

Sim, pensa Rita daí a minutos, o almoço é óptimo e o ambiente é muito agradável - excepto os olhares curiosos de outros comensais portugueses que devem estar já a fazer conjecturas sobre ela e Alexandre. Devia sentir-se bem. Se não transbordante de felicidade, o que seria um exagero, pelo menos tranquila e contente. No entanto, há nela uma tensão interior que não entende, como que um prenúncio de tempestade.

Sacode a cabeça, dá atenção a Alexandre, que lhe pergunta se ainda tem coragem para continuar a excursão durante a tarde, pois o calor aumentou consideravelmente. Claro que tenho, responde-lhe. Você prometeu-me um dia de excursão e não vai escapar ao cumprimento da promessa.

- Então - declara Alexandre - o nosso próximo destino é bom e santo. É a igreja de São Domingos. Já lá foi?

Rita viu-a por fora, mas nunca entrou na igreja. A fachada, admitiu, é linda, um barroco a que não está habituada. E logo Alexandre, enquanto pede a conta, se lança em explicações; há pouquíssimo tempo ainda, a igreja estava completamente degradada, aliás mantinham-na fechada porque o tecto ameaçava cair. O restauro é muito recente...

- Olhe lá - atalha Rita, que elogios deste género irritam porque lhe soam sempre a discurso oficial - quanto é que você recebe do turismo de Macau, ou da Secretaria da Cultura...

- Pronto. Não digo mais nada.

Desta vez, ele afinou, diz para si mesma, sem remorsos. Sem remorsos porquê? Que mal lhe fez Alexandre? Estou a ficar azeda, tenho de tomar cuidado.

Com ou sem discurso oficial, a igreja de São Domingos merece uma visita. Ambos esquecem os seus duelos verbais e passeiam lentamente pela nave. Sinal do imparável progresso, discretas colunas de som difundem música sacra, música do século XVIII, pela qual Rita sente particular preferência. A verdade é que nem sempre a tecnologia estraga o ambiente, pensando bem.

Alexandre toca-lhe no braço e murmura:

- Repare naquele estranho espectáculo.

Rita olha para o altar-mor, seguindo a indicação dos olhos dele. É somente um pequeno grupo de jovens, ajoelhados na primeira fila de bancos, a rezar.

No entanto, Alexandre tem razão, a cena é estranha.

Porque entre os jovens fiéis reconhece Cheong; e os restantes, tanto quanto ela se lembra, são os mesmos que se encontravam de manhã no Kun Iam Tong, queimando incenso em honra da deusa da misericórdia.

- Não percebo - exclama Rita em voz baixa e Alexandre comenta: - É uma juventude muito ecléctica, você não acha?

Então, antes que ela possa responder, a cena torna-se ainda mais estranha. Um homem já maduro, dos seus quarenta e muitos anos, que estava sentado num banco a meio da nave, levanta-se, marcha em direcção ao altar-mor e interpela agressivamente os jovens. Atrás dele seguem outros dois, com idade e aspecto semelhante - ar respeitável, casaco e gravata, como se tivessem saído de uma repartição.

À distância a que se encontram, Rita e Alexandre não conseguem ouvir as palavras, mas compreendem que os homens de ar respeitável estão indignados e que Cheong - pois é ele que fala pelo seu grupo - lhes responde com ar apaziguador, sem conseguir, no entanto, resultados visíveis.

- Quero saber que história é aquela - declara Rita e dá um primeiro passo em frente, mas Alexandre agarra-lhe num braço e diz firmemente:

- Não se meta nisso.

- Ele é meu aluno!

- Bem sei, replica ele com certa gravidade, é seu aluno e não seu filho, além disso já está suficientemente crescidinho para saber o que faz. Peço-lhe, Rita. Venha comigo.

Há qualquer coisa no seu tom que a faz perguntar:

- O que é que você sabe daquilo?

Já Alexandre conseguiu trazê-la até junto do portal. Juro que não sei nada, responde, e parece absolutamente sincero. Não sei nada, a não ser que não deve meter-se num assunto que não conhece. Se quiser, peça explicações ao rapaz, mas no Instituto, não aqui. Agora não me abandone, venha comigo...

Leva-a para fora da igreja, dirigem-se para a Avenida Almeida Ribeiro.

Um instante mais tarde, Cheong e os seus amigos saem também, muito contidos e um pouco solenes.

Alexandre tem de deixar escapar a oportunidade que criou ao falar a Rita num convite para passar o dia e no seu desejo íntimo de poder alargar esse convite à noite. Não que esperasse verdadeiramente algo mais que não fosse um jantar e talvez uma bebida tranquila numa esplanada. De qualquer forma, parece-lhe que ainda não é o momento propício. Mas o que o leva a abandonar a ideia é o incómodo escrúpulo profissional que sente e que o leva a telefonar para tentar localizar João Dias.

Este encontra-se na sala de operações do Grupo de Trabalho. Num sábado, ao fim da tarde. É talvez o sinal mais seguro de que estamos a tomar tudo isto a sério, reflecte enquanto se dirige ao encontro do Coordenador.

Dias está sentado diante de um computador a enviar mensagens por correio electrónico. Não tem de todo um ar de fim-de-semana, os olhos estão cercados de olheiras. Ao vê-lo chegar, interrompe o trabalho para perguntar-lhe o que se passou.

- Não sei bem se se passou alguma coisa - responde Alexandre. E conta-lhe com todos os pormenores o pequeno conflito a que assistiu na igreja de São Domingos. Esperava que Dias abanasse a cabeça ou encolhesse os ombros, em vez disso toma rápidos apontamentos enquanto ele fala e no final diz-lhe:

- Depois de vocês terem saído da igreja, não houve sequência nem consequências. Se as houvesse, quero dizer: se a PSP tivesse aparecido nós teríamos aqui a informação, porque já passaram três horas e as Polícias têm ordens muito precisas. Portanto, não temos a possibilidade de saber as causas. Você devia ter deixado a sua amiga intervir, assim já sabíamos do que se trata. Bem sei, foi o instinto do cavalheiro...

Diz isto mas o seu tom mostra que faz outras conjecturas sobre Rita e Alexandre. Este, irritado, responde;

- Se houvesse um atrito mais sério, eu tinha de intervir. Não por ser cavalheiro, mas porque era o que se esperaria de mim. E não me pareceu que fosse recomendável começar já a dar nas vistas.

O outro sorri, depois faz um trejeito de cansaço. - Não se zangue. Aliás, o que diz também é verdade. Muito bem, vamos esperar para saber se isto foi ou não um indício. Se quer que lhe diga, quase desejo que sim, porque enquanto não acontecer nada, estamos a zero. A propósito, continua sem notícias do seu contacto chinês?

- Nada. Já comuniquei ao serviço, em Lisboa.

- E o Wang Zhong Xie também se atrasou, continua em Pequim - murmura João Dias. - Temos de esperar. Uma das piores guerras é a guerra de nervos.

- Filhos da quê?

Cheong, a quem escapou a ligeira ironia, repete devagar:

- Filhos da Luz Resplandecente.

Os outros estudantes já saíram, Rita e Cheong estão sós na sala de aulas, ela reteve-o quando ia a passar à sua frente para lhe perguntar o que aconteceu exactamente no sábado. A princípio Cheong pareceu não perceber, foi preciso explicar-lhe que, depois de o ter encontrado a queimar incenso num templo budista, o viu a rezar numa igreja católica. Explicar-lhe, também, que não via mal algum nisso, apenas sentia alguma curiosidade. Só então o rapaz se abriu e começou a falar do pequeno grupo a que pertence:

- Os Filhos da Luz Resplandecente. A comunidade formou-se primeiro na índia, sabe... nós aceitamos e praticamos todas as religiões que defendem o espírito, a paz e o amor da humanidade.

Rita contempla o rosto aberto de Cheong. Está explicada aquela doçura, aquela ingenuidade que ele aparenta. Pobre Cheong, devoto de uma nova Religião Universal das Boas Intenções. Contém o sorriso para que ele não julgue que está a troçar e observa:

- Por isso vocês vão ao templo de Kun Iam. Claro, a deusa da misericórdia. E a igreja de S. Domingos...

- Chamam-lhe assim, interpõe Cheong, mas é uma igreja consagrada à Virgem Maria. O princípio feminino, a doçura, a misericórdia, o amor. Kun Iam e Nossa Senhora.

Rita acha a ideia interessante, embora não seja muito original. No fundo, é uma adaptação do mito da Grande Mãe. Mas não deseja entrar em discussões teológicas com um aluno seu. Além disso, há algo mais que quer saber.

- Só não entendo por que é que aqueles homens estavam tão irritados com vocês.

Cheong diz que também ele os seus amigos não entendem. É uma perseguição que começou há poucos meses, sem nenhuma razão. Quem a faz é gente de uma associação que existe em Macau, uma coisa chamada GRIC.

- Isso não é um nome, é uma sigla, contrapõe Rita. Mas ele não sabe ao certo o nome, apenas conhece a sigla: GRIC.

- E o que é que eles têm contra a tua... hã... comunidade?

- Não sei bem, diz Cheong. Eles são muito conservadores, deve ser por isso. Só sei que apresentaram uma queixa contra nós. Dizem que desviamos os jovens e fazemos desordem nas igrejas.

- Mas se houve alguma desordem no sábado, foram eles que a fizeram! Vocês deviam reagir, caramba.

A isto Cheong responde, imperturbável, que os Filhos da Luz Resplandecente se recusam a hostilizar seja quem for porque acreditam no amor, que é o único sentimento capaz de vencer verdadeiramente. Céus, pensa ela, vejam lá se acordam ainda durante o século XX. Contudo, não o diz em voz alta.

- Isso é muito bonito. Obrigada pelos esclarecimentos.

Ainda penso que tu e os teus amigos deviam responder a esses tipos, mas não quero meter-me onde não sou chamada... até amanhã.

Cheong despede-se e vai-se embora.

Paz e amor, Kun Iam, Nossa Senhora, fraternidade. É uma versão atrasada dos hippies menos a barba por fazer e mais o banho diário e a crença na divindade. Dizer que se tudo isso fosse possível o mundo seria com certeza muito melhor não leva a lado algum. Mas é pena.

Entretanto, a sua curiosidade não está completamente satisfeita. Na sala de professores, Rita aborda alguns colegas e pergunta-lhes o que é, ao certo, o GRIC. Porém, ao certo, ninguém sabe, embora uma colega - Marta - tenha a ideia de que é uma associação moribunda de nostálgicos do império. E acrescenta:

- Quem te pode informar é o Salvador Noronha.

Só então ela se recorda do velho médico e procura o cartão que ele lhe deu; encontra-o ainda na carteira - por sorte, a que usou no dia em que lhe foi apresentada. Está amarrotado, escondido sob o telemóvel. Tenho de pôr ordem em tudo isto, resmunga.

Salvador está em casa e atende-a com grande cordialidade, suplica-lhe que não o trate por “senhor doutor”, isso fá-lo ainda mais velho do que já é. À pergunta de Rita, responde que GRIC é a sigla do Grupo de Reflexão e Intervenção Cultural, uma associação cívica fundada e presidida pelo engenheiro Castro Silva, que foi seu condiscípulo no Liceu de Macau, um tipo um pouco pomposo, mas que não é má pessoa, muito conservador...

- Conservador ou reaça? - atalha Rita. Ele protesta: eu não diria tanto. Conservador, isso sim. Mas qual é o seu interesse, posso perguntar?

Rita conta-lhe a cena a que assistiu na igreja de São Domingos e as explicações de Cheong. A reacção de Salvador é de espanto:

- Isso é muito estranho. Não estou a ver o Castro Silva a meter-se numa história dessas.

- A verdade é que se meteu - insiste Rita. - E pensando bem, os senhores do GRIC que agrediram verbalmente os miúdos tinham, de facto, todo o ar de ter como presidente um Castro Silva, tal como o descreveu...

Ouve o riso divertido do médico, mas logo a seguir ele corrige:

- Ouça, o Castro Silva não está metido nisso, com certeza que não, aliás já pouco se ocupa do GRIC. Agora, quem manda naquilo é um tipo mais novo, um Benjamim Carvalho, que eu não conheço... mas, ainda assim, não percebo. Em Macau há liberdade religiosa, evidentemente. Católicos, protestantes, budistas, eu sei lá. Até temos um cemitério parsi. Não entendo.

Após dizer isto, e apesar das explicações de Rita, repete várias vezes: estou a vê-la muito interessada nessa questão.

Não o diz em tom inquisitorial, antes como se não a tivesse ouvido ou fosse ligeiramente obtuso.

Por fim, Rita despede-se. Então, Salvador, pensativamente, começa a marcar um número de telefone.

Cumprem-se as previsões de um ano meteorologicamente perverso: durante três dias, o Território é batido por rajadas de vento carregado de chuva morna. No mastro do farol da Guia é hasteado o Sinal Três de tufão.

O Sinal Três não determina ainda o encerramento dos serviços públicos nem das escolas, mas impede Alexandre de ir a Hong Kong procurar certa pessoa que tem “contactos amigáveis” com o seu serviço e que ele deseja consultar sobre o possível paradeiro do imaterial Tang Kok long. As carreiras de jetfoil também não foram interrompidas, porém João Dias lembra-lhe que, se enquanto estiver em Hong Kong for dado o aviso de Sinal Oito, ficará então impedido de regressar a Macau. Alexandre resigna-se a ficar inactivo, roendo o freio da impaciência e transpirando litros de suor sempre que não está imerso no ar condicionado.

No Instituto Camilo Pessanha, os professores veteranos recordam outros tufões. Rita gostaria de ver um verdadeiro, daqueles em que as pessoas têm de armazenar provisões e encerrar-se em casa; sorri quando escuta as evocações do passado, pronunciadas em tom quase saudoso, como a dizer: onde estão os tufões de antanho.

Mas as suas esperanças malogram-se. Ao quarto dia o Sinal Três é arriado, a deusa A-Mah protegeu novamente Macau e empurrou a tempestade para longe. Quarenta e oito horas depois, já é possível sair à rua sem risco iminente de se ficar alagado pela chuva.

A tasca é uma esplanada semicoberta por arcadas, junto à capelinha de São Francisco Xavier, em Coloane, que guarda ainda alguns ossos dos santos mártires do Japão. Estranhamente, apesar de tão próxima do templo e das preciosas relíquias, a esplanada não destoa, nem na paisagem visual nem no ambiente espiritual.

Com um fino sentido do comércio, os donos decidiram há muito atrair a clientela portuguesa, de modo que servem a clássica bica e, contrariamente à tradição chinesa, até fornecem guardanapos, se bem que estes sejam rolos de papel higiénico colocados em suportes de plástico.

- Há pratos ocidentais, mas é claro que vais provar o cbau-min de camarão - declara Marta enquanto uma empregada verte serenamente sobre a mesa metálica o resto do chá que está no bule servido aos clientes anteriores. Fascinada, Rita observa a rapariga enquanto esta molha um esfregão no chá derramado e limpa com ele o tampo sujo de molho e pequenos restos de comida desgarrados dos pratos que já retirou.

- Cbau-min de camarão, cbau-min de camarão... - ronrona Isabel com um pequeno sorriso - não a fartes já de cozinha chinesa, está bem? Ela tem muito tempo para provar tudo. Deixa-a comer um bocadinho de carne. É do que nós as três estamos precisadas, aliás.

A alusão é clara, mas dita de tal modo que não chega a ser ordinária. Rita deixa escapar uma gargalhada. Marta, que não tem grande sentido de humor, formaliza-se e protesta.

- E não é verdade, se calhar? - replica Isabel sentando-se - olha para nós: somos uma classe social típica de Macau. As mulheres divorciadas e portanto carenciadas.

- Divorciada não significa necessariamente carenciada, replica Marta. Pela sua parte, está bem mais feliz assim...

- Pois, minha filha, pois. Quem tem sorte é a Rita, que ainda está com o físico e a idade para fazer concorrência aos olhinhos rasgados e pescar um tipo. Agora, tu e eu, minha filha, já rompemos todas as solas que podíamos romper. Não há sapateiro que nos valha.

Rita alheia-se gradualmente da conversa depois de dizer a Isabel, sorrindo, que ela exagera, sobretudo na parte das solas. Olha à sua volta, deixa-se embalar.

Finalmente, pode dizer a si mesma que gosta de Macau. Gosta daquela convivência de pequena aldeia vivida numa cidade grande. Gosta da confusão das velhas ruas e dos cheiros e dos rostos que vê. Gosta do cocktail de gente, o grande fundo chinês com uma guarnição portuguesa e salpicos de Timor, índia, Paquistão, Japão, Filipinas, sabe-se lá que mais. Gosta das colegas, sobretudo Marta e Isabel. Gosta, até, de ouvir aquela discussão meio tonta entre as duas. Pela primeira vez desde há muito tempo, sente-se profundamente tranquila - apesar de Isabel ter razão no que respeita a determinadas carências, mas já viveu o suficiente para saber que não existe paisagem sem mancha, por pequena que seja.

E é neste momento preciso que Rita repara nuns óculos escuros pousados sobre uma mesa situada ao fundo, na outra extremidade da esplanada. Por uma razão qualquer, despertam-lhe uma recordação ainda recente que ela só identifica ao levantar os olhos para o presumível dono dos óculos; já viu aquela cara. É um europeu, quase certamente um português, que está sentado na companhia de um chinês que ela nunca viu, tanto quanto se lembra. Porém o outro é, sem dúvida, um dos passageiros do avião em que Rita veio. Mais precisamente, um dos que saíram em Bangkok.

Mas por que hei-de lembrar-me tão bem dele?

Nesta altura, o olhar do homem cruza-se com o seu e a memória torna-se completa e nítida: lembra-se dele por causa da forma insistente, quase agressiva como a fitara no aeroporto, pouco antes da partida, e, mais tarde, a bordo do avião.

Rita encolhe ligeiramente os ombros, dá novamente atenção à discussão que Isabel e Marta mantêm e que evoluiu, naturalmente, para uma má-língua pacífica.

No entanto, três ou quatro vezes olha de relance para a mesa onde estão os óculos escuros e sempre que o faz os olhos dos dois homens estão pousados nela. Sem cordialidade nem grosseria, apenas com um interesse frio.

À mesma hora, num quarto da Pousada de Mong-Há, Alexandre, deitado na cama, entrega o corpo à carícia do ar condicionado. Nunca se habituará a este clima. Odeia o Verão tardio, pede às divindades da meteorologia que se apressem a trazer rapidamente o tempo seco de Outubro e Novembro. Amanhã terá de ir a Hong Kong e a perspectiva não lhe é agradável. Entretanto, ainda nessa noite deverá mandar mensagens para Lisboa, por correio electrónico. Devia ter requisitado um computador portátil capaz de suportar a ligação à Internet; agora, vai ser preciso vestir-se novamente, sair, voltar a sentir a camisa colada às costas.

Retarda um pouco mais esse esforço desagradável para pensar em Rita. Gostaria de estar com ela neste momento. Gostaria de estar com ela em vários momentos, porém tem hesitado em oferecer a sua presença: quem sabe para onde terá de partir na semana que vem ou até dentro de quarenta e oito ou vinte e quatro horas? E depois, não se sente à vontade, nem sentirá enquanto for obrigado a vestir uma personalidade diferente da sua.

Sobressalta-o o toque do telemóvel que João Dias lhe arranjou. Deve ser o próprio Coordenador, pensa, talvez com uma verdadeira ocorrência a relatar, que indique o início das hostilidades.

Uma voz diz o seu nome com uma pronúncia impossível e inconfundível. Alexandre senta-se rapidamente na cama e responde em inglês:

- Sou eu. Quem fala?

- Tang Kok long.

Já não era sem tempo.

- Está em Macau?

- Sim. Quis vir mais cedo mas não foi possível. No sítio onde eu estava os transportes deixaram de funcionar por causa do tufão.

A explicação, diz Alexandre para consigo, só cobre os últimos dias. Como se tivesse feito a reflexão em voz alta, a voz prossegue: antes disso também não foi possível por outras razões. Agora estou em Macau mas ainda não posso encontrar-me consigo.

- As informações que tem são importantes?

Em vez de responder, a voz repete: ainda não posso encontrar-me consigo.

- Porquê, pergunta Alexandre com estranheza.

A mesma reacção, a voz não responde, diz somente: logo que possa, volto a telefonar. Depois, a ligação é cortada.

Alexandre atira o telemóvel para cima da cama e murmura uma praga.

 

O aparelho de ar condicionado emite um som lamentoso, como a pedir repouso ou reforma.

- Vêm cá arranjá-lo esta tarde - explica o inspector em tom de quem pede desculpa. - Quanto ao que acaba de dizer, tenho de a corrigir. Não há perseguição nenhuma, isto é uma instrução preparatória, para enviar ao Ministério Público, e tem de ser feita porque a lei o exige, nestas circunstâncias.

Ao que Rita responde com alguma secura: que impressionante. O inspector não se perturba, apenas encolhe os ombros e comenta: não é impressionante, é rotina.

Um agente - pelo menos, julga que é um agente, pouco sabe da hierarquia policial - martela o teclado de um computador, está a acabar de escrever a última resposta que ela deu.

Este é o remate de uma rápida mas intensa campanha em que Rita se empenhou nos últimos dias. Cheong veio contar-lhe que ele e os seus companheiros foram chamados à Polícia Judiciária: era o resultado da queixa apresentada pelo GRIC contra os Filhos da Luz Resplandecente, um assunto a que ninguém em Macau deu a menor importância, excepto um jornal, o Nova Abelha, que por uma razão qualquer publicou notícias e comentários, sempre claramente favoráveis ao GRIC.

Contudo, Rita decidiu que a questão era importante. Porque simpatiza com Cheong - que, além do mais, é um óptimo estudante - e porque a irritou a arrogância, o conservadorismo poeirento dos homens do GRIC, sobretudo aquela insuportável perseguição religiosa, ou ideológica ou seja lá o que for. Por isso, desenterrou o machado de guerra. Exortou os inocentes e ingénuos jovens da luz resplandecente a arranjar uma lista de testemunhas abonatórias. Falou com Salvador, que por sua vez falou com um amigo seu, jornalista (não do Nova Abelha). Convenceu Marta, Isabel e outros colegas a oferecerem-se para depor a favor de Cheong.

Foi uma pequena guerra, mas conduzida com um entusiasmo que - ela própria o suspeitou - pode ter sido, ao menos em parte, motivado por uma certa frustração física e afectiva que ela começa a sentir. Alexandre tem telefonado regularmente, mas, segundo afirma, está carregado, sobrecarregado de trabalho e não pode encontrar-se com ela. Bem, ainda que haja um pouco de frustração no ímpeto que a tem movido, pelo menos esse ímpeto serviu para fazer algo de construtivo.

A resposta que o agente passou ao computador encerra o seu depoimento. O homem executa o comando de impressão e depois entrega as três folhas ao inspector Luís Rodrigues. Este passa-as a Rita, pede-lhe que leia e assine. Quando a operação está terminada ela levanta-se.

- Sem querer ser indiscreta: acha que os rapazes da Luz Resplandecente vão ter aborrecimentos?

Rodrigues sorri brevemente, encolhe os ombros.

- Não me parece. O Ministério Público é que decide, mas tendo em conta o relatório que vamos entregar... não há nada a apontar aos miúdos.

Inclina-se um pouco e fala como se fizesse uma confidência:

- Se quer que lhe diga, aqueles tipos do GRIC são um atraso de vida. Tinha que ver, se as pessoas fossem incomodadas porque vão rezar a Kun Iam e à Virgem Maria. Para nós, tudo isto foi uma perda de tempo e de energia. Como se não tivéssemos mais nada que fazer.

Rita está de pé, encarando o inspector e de costas viradas para a porta do gabinete, que se manteve sempre aberta. Por isso, não vê que Alexandre parou por momentos no corredor, apenas o tempo suficiente para se certificar de que é ela quem ali se encontra. Depois afasta-se rapidamente e só volta a atrasar o passo após transpor um guarda-vento que o oculta. Dirige-se então à sala de operações, a terceira porta do lado direito, desprovida de qualquer letreiro identificativo. João Dias está só, ocupado a ler um documento. Alexandre dispara à queima-roupa:

- O que é que a Dr- Rita Carreira está a fazer aqui na PJ? Dias levanta os olhos e fita-o com atenção. - Aquela sua amiga? Não sei. Posso perguntar ao Matos Costa. Você não devia ter entrado pela porta principal, não convém muito que seja visto aqui na sede da Judiciária.

Faz uma pausa, passa as pontas dos dedos pelos olhos fatigados. - Ouça, quero dizer-lhe uma coisa e não pense que estou a meter-me nos seus assuntos. Mas nunca é bom, em alturas como esta, um tipo deixar-se envolver... emocionalmente. Digo isto por experiência. Desculpe se o ofendi.

Fala em tom quase paternal. Alexandre já reparou que Dias parece por vezes tê-lo adoptado como discípulo ou como subordinado de quem ele é um superior benigno e protector. Aliás, passou a tratá-lo pelo nome próprio. Sorri, divertido, garante que não se ofendeu e que não há risco de se deixar envolver a ponto de perder capacidades. Dias faz um pequeno gesto de cabeça e acrescenta, em jeito de remate; suponho que lá no seu serviço lhes dizem a mesma coisa. Depois, como Alexandre não responde, retoma a leitura.

Não há razão para se irritar com um conselho bem intencionado. No entanto, poderia responder-lhe que, em rigor, não tem inteiramente razão. Dias é um militar, a sua ideia sobre o assunto é vaga.

... Um dos mais sérios erros que podem cometer é convencerem-se de que para serem eficientes devem funcionar exclusivamente com o cérebro. Este serviço precisa de homens e não de máquinas de calcular; para isso, temos computadores. A emoção é, juntamente com a imaginação, a.grande e decisiva vantagem que o homem tem sobre a máquina. O segredo não está em eliminar as emoções. O segredo está em reconhecer a sua existência e aprender a viver com elas e a canalizá-las, já que não podemos eliminá-las sem perdermos a nossa própria natureza humana.

Ouviu este discurso há seis anos e nessa altura catalogou-o como palha inútil. Neste momento, começa a dar-lhe algum valor. Poderia até citá-lo ao Coordenador, se tal valesse a pena.

- A propósito - diz João Dias sem levantar os olhos do documento -, o misterioso Tang Kok long voltou a telefonar-te?

- Não, responde Alexandre, ainda não e já informei Lisboa. Ou o homem está a gozar connosco ou passa-se alguma coisa.

Quando Rita sai do edifício da Polícia Judiciária, o céu anuncia chuva, apesar de as previsões terem garantido que o tempo se vai aproximar do que é “normal para esta época do ano”. Não há um só táxi à vista. Paciência, vou arriscar, decide.

Avança a custo pelo passeio apinhado de gente. Ainda mal deu vinte passos, começam a cair gordas gotas de água - mas não posso andar sempre com um guarda-chuva pendurado no braço, pensa com irritação. Lembra-se de que acaba de deixar para trás uma pastelaria cuja montra está ensombrada por um toldo e então dá meia volta, tão rapidamente que por pouco não esbarra contra um chinês que vinha logo atrás. Basta a breve pausa para pedir desculpa: está encharcada no momento em que se acolhe à protecção do toldo.

Deixa-se ficar vendo a chuva cair com violência tropical. Sente que no rosto e nas costas a água se mistura com o suor, porque a temperatura se mantém. As belas previsões do tempo, murmura entredentes. Do mal o menos, antes chuva quente que chuva fria. De resto, não tem muito que esperar: vinte minutos mais tarde o sol brilha de novo e retoma o caminho, sempre atenta a algum táxi, mas os que passam vão ocupados, como seria de esperar.

Rita chega a casa uma hora mais tarde, após dar várias voltas na cidade e fazer várias compras.

E durante todo esse tempo, avistou perto de si, pelo menos umas cinco vezes, o mesmo rosto, o rosto do homem contra o qual chocou quando quis abrigar-se da chuva.

Evidentemente, as coincidências existem, pode até ser que a existência de vida num planeta não seja mais que uma coincidência de vários factores, no entanto convém não abusar desta explicação. Ao deparar com a mesma coincidência pela quinta vez, Rita começa a fazer perguntas a si própria, perguntas que ficam sem resposta.

Logo que entra em casa, pousa os sacos que trouxe e vai à janela da sala; do décimo andar, é difícil distinguir a cara de alguém que está na rua, mas o homem, lembra-se bem, vestia umas incongruentes calças amarelas, um amarelo-canário, e lá em baixo, no passeio, do outro lado da rua ainda molhada pela chuva, está um par de calças igual.

Não há razão para ter medo, reflecte enquanto transporta sacos e embrulhos de compras para a cozinha, não há razão para ter medo mas há razão para ficar com os sentidos alerta. Porque, a haver perseguição, ela não é do género erótico. Viu a cara do homem, viu-lhe os olhos e tem a certeza disso.

Claro que não há razão para ter medo e ela não o tem, mas estremece ao ouvir a campainha da porta, sobretudo porque, pelo toque, sabe que a pessoa se encontra já no décimo patamar e não lá em baixo. Pela primeira vez, Rita aprecia o estranho costume macaense das portas duplas à entrada dos apartamentos, uma de madeira e uma de metal, gradeada. Acha o costume estranho porque toda a gente lhe diz que há menos assaltos em Macau do que em Lisboa ou qualquer outra grande cidade europeia, as estatísticas são claras... mas, neste momento, abençoa a porta de grade.

O óculo de segurança mostra-lhe a cara honesta e agradável de Cheong, portanto abre a porta com um sorriso de alívio.

Cheong veio na companhia de uma amiga - Rita lembra-se de a ver no grupinho dos Filhos da Luz Resplandecente - e de uma “planta da felicidade” metida num vaso ornamental que ele segura cuidadosamente com as duas mãos. Ao entrar, pede desculpa pela visita inesperada, apresenta a amiga, que se chama Anabela, e depois ergue as mãos, mostrando o vaso:

- Não podemos demorar-nos. Trouxemos isto para si.

- Para mim? É linda... mas porquê?

- Para agradecer todo o incómodo que teve, responde Cheong. Ajudou-nos tanto e ainda hoje foi à Judiciária e nós estamos muito gratos.

Rita pegou no vaso e coloca-o provisoriamente sobre a mesa enquanto agradece e diz que não teve incómodo algum, apenas trabalho e esse foi feito com muito gosto.

- O inspector Rodrigues disse-me que o caso deve ser arquivado, por isso vocês não devem preocupar-se. Agora, sentem-se um bocadinho.

Mas Cheong repete que não podem demorar-se, têm uma reunião - presumivelmente dos Filhos da Luz, embora ele não o diga - e que só queriam dar-lhe a planta. Rita acompanha-os à porta. Anabela sai para o patamar e Cheong vai segui-la mas vira-se para trás subitamente e diz:

- Queria pedir-lhe uma coisa. Que me chamasse A-Meng.

- Como?

- O meu nome é Cheong Chi Meng, mas pode chamar-me A-Meng.

Não explica mais nada, como se Rita devesse compreender. Por simples acaso, tem razão: Marta disse-lhe uma vez que esse é um tratamento familiar.

- Muito bem. A-Meng. E obrigada.

Depois de eles saírem, procura um lugar definitivo para a planta e decide que ela fica bem perto da janela, sobre a pequena estante de pau-rosa, o único móvel que comprou até agora para juntar à escassa mobília fornecida pela Administração. É então que se lembra de olhar outra vez para a rua.

As calças amarelas ainda lá estão, mas agora acompanhadas por outras, azuis. Os dois homens falam com certa animação. Rita vai afastar-se da janela quando vê Cheong (A-Mèng!) e Anabela, que acabaram de sair do prédio e atravessam a rua. E vê também Calças Amarelas e Calças Azuis interromperem a conversa para observar os dois jovens, que se afastam na direcção dos campos de jogos do Tap Siac. E vê o homem das calças azuis dar um ligeiro empurrão ao seu companheiro canário, como a incitá-lo. E depois disso ambos seguem, a certa distância, na peugada de Cheong e Anabela, ou, pelo menos, assim parece.

Rita afasta-se da janela. Nada daquilo - ou antes: nada do que julga que aquilo seja - faz sentido e portanto deve ser registado sob a classificação de imaginação delirante. Porém, acaba de suceder qualquer coisa no seu íntimo: uma inesperada reviravolta da memória. O que a memória lhe diz, agora que um qualquer estímulo oculto veio catalisar os seus processos, é que não viu hoje pela primeira vez a cara das calças amarelas.

Viu-a pela primeira vez na esplanada de Coloane, ao lado dos óculos escuros.

Esta repentina compreensão tem nela a força de um impacte e mal se dá conta de que lançou mão ao telefone e marcou o número do pai em Vale de Monges. Só quando ouve a sua VOZ: “sim, meu amor, diz”, é que pensa nas horas, é madrugada em Portugal. Ao mesmo tempo, arrepende-se do infantil pedido de auxílio que se preparava para lançar. Bolas, já não sou nenhuma criança, isto é ridículo. Arranja então uma razão atabalhoada para o telefonema feito às primeiras horas da manhã em Vale de Monges e desliga assim que a conversa o permite decentemente.

Mas ao devolver o auscultador do telefone ao seu repouso compreende que, apesar de tudo, a chamada não foi em vão porque ouvir simplesmente a voz do pai lhe deu um inesperado conforto.

É talvez ridículo, mas é assim.

Nesta manhã de sábado o calor é uma carícia e não já uma agressão. O dia traz finalmente uma primeira promessa de Outono seco, o Outono luminoso de Macau.

A esta hora ainda há pouca gente no alto da Guia: dois ou três velhos chineses que trouxeram as suas gaiolas com pássaros canoros (usaram o teleférico, certamente) e as penduraram em ramos cobertos de sombras; alguns pares de namorados; aqui e além, um praticante de tai kek.

A cidade espalha-se à sua volta e envolve-a. Primeiro num anel de relva e árvores e plantas cujos nomes vergonhosamente ignora - vergonhosamente porque, para ela, a vegetação é um dos encantos de Macau; em outros lugares do mundo, a vegetação germina e cresce, enquanto aqui parece explodir, não somente nos parques e jardins mas onde quer que haja dois grãos de terra que não estejam totalmente cobertos pelo betão invasor. Um segundo anel, transparente e invisível, é o espaço vazio, o ar em torno do Monte da Guia, que lhe dá a distância e a respiração do terceiro: a cidade inteira e a água castanha-amarelada do Rio das Pérolas.

Num cenário como este é difícil sentir grandes ansiedades ou preocupações. De resto, Rita lançou-as para trás das costas, mesmo porque não voltou a ver o dono das calças cor de canário e já se convenceu de ter imaginado coisas. A última semana foi de apaziguamento quase total.

Esse estado de graça vai desaparecer em breve, em menos de um minuto; porém Rita não o sabe, não o pode adivinhar. Neste momento, respira a luz da manhã e pensa: como era bom que isto durasse para sempre, sem mudanças, esta paz, esta alegria tranquila, estas árvores, esta relva. Que o tempo passasse lá em baixo, mas não aqui.

À sua frente, um pássaro de plumagem negra e vermelha traça em voo lento uma larga curva que o deixa empoleirado no ramo de uma árvore. É neste preciso instante - recordá-lo-á mais tarde - que tudo se transforma, embora isso não seja imediatamente perceptível. Não soam trovões nem brilham relâmpagos nem se altera a trajectória aparente do Sol. Muito simplesmente, Rita vê, perto de si, um jovem chinês a executar os exercícios do tai kek. Na realidade, ele já ali se encontra há bastante tempo e Rita há pelo menos cinco minutos que parou a escassos metros de distância, porém toda a sua atenção estava virada para dentro, não para fora. Foi o voo do pássaro vermelho e negro que a fez olhar naquela direcção.

O que primeiro a atrai é o movimento: a graça, a suprema elegância dos movimentos do corpo, dos gestos lentos dos braços e das mãos que fazem desenhos no ar, paisagens de rios e montanhas e florestas e criam ao mesmo tempo a própria música em cujo ritmo dançam.

Então, o rapaz levanta a cabeça, sempre lentamente, e mostra o rosto. A boca está entreaberta, os olhos ausentes, na perfeita concentração do exercício.

Beleza pura, mas também uma espécie de radiância tranquila, um êxtase dominado. E no entanto, pensa Rita, este é um rosto capaz de se animar, de ser vivo e sensual.

E o que é que se passa comigo, devo estar completamente avariada da cabeça.

Sacode os ombros, dá meia volta, afasta-se alguns passos. Mas cada passo que dá é doloroso. Quer renovar o prazer de olhar para ele.

Estás muito pior do que julgavas... não, que diabo, isto não são vapores eróticos - ainda que fossem, tinha direito a eles, mas não se trata disso. É uma apreciação estética, ponto final. Adenda: também tenho direito a apreciações estéticas, novo ponto final.

Em desafio àquela parte de si própria que ainda lhe diz coisas obscuras, volta a olhar. O rapaz, que curvou novamente a cabeça, levanta-a agora, os olhos dirigidos para o ponto onde ela se encontra. E, de repente, a perfeita entrega desfaz-se, o olhar ganha expressão. Ele viu-a e um leve sorriso abre-lhe o rosto. É um instante muito breve mas de efeito imediato, Rita cora como se ouvisse um galanteio à saída da primeira comunhão.

Quando dá por si está já a mais de cem metros, caminhando rapidamente. Mesmo as apreciações estéticas podem ser embaraçosas quando o alvo se dá conta, sobretudo se o alvo é um desconhecido que ainda por cima pertence a um mundo quase diametralmente oposto. Acho que é tempo de descer à planície.

O inesperado som do telemóvel provoca-lhe um acesso de irritação. Trouxe o maldito aparelho, numa pequena bolsa presa ao cinto das calças, para o caso de Alexandre querer comunicar. Mas a voz que ouve não é a de Alexandre.

Gostava que viesse almoçar hoje a minha casa, diz-lhe Salvador. Bem sei que devia ter telefonado ontem, mas foi uma decisão de última hora, tenho alguns convidados, poucos, e é uma coisa perfeitamente informal. Sempre fica a conhecer mais gente, as suas colegas dizem-me que anda muito metida consigo e isso não é bom.

Rita agradece, aceita. Mesmo que os convidados sejam uns chatos, este convite oferece-lhe a distracção de que necessita. O que é curioso é que, após desligar e antes de se dirigir para a estação do teleférico, pois agora tem mesmo de se apressar, não resiste a olhar novamente para o local de onde se afastou.

O rapaz já lá não está. E essa ausência, de certo modo (um modo obscuro e tortuoso, que ela se recusa a aceitar claramente), é um alívio. Porque o alto do Monte da Guia perdeu o suficiente do seu encanto para que não lhe custe sair dali.

Já que tenho de ir a casa mudar de roupa, tomo um banho de chuveiro, frio, para lavar-me das emoções estéticas.

O próprio alongar da distância, enquanto desce instalada numa cabina do teleférico, lhe serve para repor a ordem no passageiro caos. Lembra-se então de que Alexandre não telefonou, como ela esperava. Oh, tanto pior ou tanto melhor, o Dr. Salvador de Noronha e Sousa substitui-o com vantagem. Pelo menos não desperta emoções, estéticas ou outras.

 

A SERPENTE VERDE

Justamente, Alexandre é a primeira pessoa que ela vê ao entrar, duas horas mais tarde, em casa de Salvador, uma rara vivenda dos velhos tempos com o exterior a precisar de pintura e outros cuidados.

Quem lhe abre a porta é uma empregada, uma jovem filipina, porém Salvador está já atrás dela com uma saudação risonha: seja bem-vinda a esta pobre casa, venha, os outros já cá estão, vou apresentar-lhos, mas é como eu lhe disse, nada de cerimónias.

E quando entra na sala - que, como ela esperava, desmente o adjectivo “pobre” - Alexandre olha-a e sorri, a contar com a sua surpresa. Além dele há dois outros convidados, um casal de meia idade.

Salvador começa a fazer as apresentações: a Dr- Rita Carreira, a D. Otília Dias, o coronel João Dias... o Dr. Alexandre Moura. Oh, eu conheço, diz Rita com um erguer de sobrancelhas, e Alexandre pega-lhe logo na palavra:

- Conhece-me de ginjeira, viajámos no mesmo avião. - Depois, dirigindo-se a todos, propõe: - Vamos deixar-nos de títulos, de doutores e de coronéis, se estão de acordo. É mais familiar e mais simpático.

Continua a falar, agora directamente para Rita, enquanto Salvador recorre a um inglês fluente mas com forte sotaque para dizer à empregada que pode trazer as bebidas:

- Eu estive mesmo para telefonar-lhe esta manhã. Entretanto, soube que você também tinha sido convidada e resolvi fazer-lhe a surpresa. Espero que seja uma boa surpresa.

- Já vibrei mais com outras, mas não é desagradável - responde ela. Ao ouvir a resposta. Dias, que esteve a olhá-la com atenção, ri silenciosamente.

A jovem filipina entra empurrando um carrinho de chá carregado com garrafas e copos e coisas salgadas, enquanto Salvador declara: espero que gostem da cozinha da Mary. Antigamente, quando a minha mulher era viva, nós recebíamos muito. Agora tenho menos disposição...

Encolhe os ombros enquanto uma sombra lhe escurece momentaneamente os olhos. Mas de vez em quando - completa agora a frase - ainda sinto vontade de ter amigos cá em casa.

Então, cheia de boas intenções e vazia de tacto, a mulher de João Dias observa que isso é óptimo, até devia receber mais, sempre lhe preenche o tempo. Ele responde, quase alegre:

- Ah, o meu tempo ainda está muito preenchido, garanto! Mas escolham as bebidas e sentem-se, por favor. A Mary tem de acabar o almoço e é mais prático se cada um de nós se servir.

Rita instala-Se numa imensa poltrona, olha apreciativãmente à sua volta. É a primeira vez que entra num lar macaense, mas tem a certeza de que este representa toda uma época. Móveis europeus do século XIX ou princípios do XX, misturados com peças chinesas que muito obviamente não foram compradas ontem numa das lojas vizinhas das ruínas de São Paulo. Porcelanas, alguns marfins, uma imagem magnífica de São Francisco Xavier, aparentemente escultura indo-portuguesa. Dois retratos a óleo, quase de certeza gente da família, um deles mostra um velho militar de traços asiáticos, em uniforme de gala. E, ocupando um lugar de honra entre as fotografias, uma, com dedicatória, do Rei D. Manuel II, provavelmente no dia da aclamação, pois usa o grande manto de cerimónia e ao seu lado vê-se a coroa real.

Desvia agora a atenção para os outros convidados. Otília Dias, provavelmente uma excelente pessoa, tem o aspecto de quem nasceu para ser esposa amantíssima de alguém e, tendo-o conseguido, deu por findos os seus esforços nesta vida terrena. O marido é diferente: apesar de ser mais baixo que Alexandre e Salvador, transmite uma sensação de autoridade serena que não precisa de afirmação porque é natural. E, acrescenta Rita para si mesma, isso não tem que ver com o facto de ele ser tropa, é uma coisa muito diferente.

Um copo de whisky com gelo e água mineral surge diante dos seus olhos. É Alexandre que lho oferece: você estava tão distraída, explica ele, que achei melhor trazer-lhe o aperitivo... não há porto, pelo menos não há porto branco, acrescenta, para mostrar que ainda se lembra das suas preferências durante a viagem de avião.

Dias e Salvador conversam sobre gente e coisas que ela não conhece, D. Otília intervém sempre que o rumo os conduz à pequena má-língua, Alexandre dá uma breve achega quando são citados alguns nomes - de funcionários públicos que ele entretanto conheceu, supõe Rita.

Eu devia ter ficado mais uma hora no alto da Guia. Depois, ia a um supermercado e comprava uma sopa chinesa, daquelas que basta deitar água a ferver para demolhar.

O tédio começa a atacar-lhe os nervos como se fosse veneno injectado nas veias. Bom, às cinco horas tenho de estar em casa, o A-Meng vai lá entregar o ensaio que se esqueceu de levar ontem para a aula.

Mas até às cinco há muito tempo a queimar e não pode, ou não deve, ficar calada e queda, é preciso participar na conversa.

- Desculpe a curiosidade - diz ela a João Dias -, também é médico, como o Salvador? Bem sei que é oficial, mas pode ser coronel médico...

Ele abana a cabeça a sorrir. - Não, não! Eu sou... Hesita durante uns instantes e Salvador intervém;

- Aqui o nosso coronel é assessor do Governo de Macau.

Do Governo ou do Governador, pergunta ela.

- É o mesmo, replica Dias, e Salvador acrescenta, como se tivesse de explicar aquela presença do poder em sua casa: o que interessa é que é um velho amigo. E começa a contar um episódio ilustrativo dessa amizade. Rita não dá grande atenção, apenas reflecte que o relato parece destinar-se a mudar de assunto.

Alexandre também não ouve o médico, tem a atenção posta em Rita. Talvez porque não a viu durante uma semana inteira, acha que ela está hoje particularmente atraente, os seus olhos acinzentados brilham como se tivessem luz própria e o cabelo ganhou reflexos dourados que não são artificiais. Por que hão-de os dois estar ali a fazer sala quando podiam... não interessa, qualquer outra coisa que fizessem seria infinitamente melhor. Ideia cretina, a do Coordenador; temos de a observar de perto, bem sei que você tem a certeza de que ela não está envolvida, mas a verdade é que chegou muito recentemente a Macau e trabalha numa área que, neste nosso caso, é sensível. Está em contacto permanente com estudantes chineses. E a questão é que não podemos descurar o mais pequeno pormenor... aliás, pensando bem: esse tal elemento do PRN que vem ou veio para cá e de que vocês continuam a desconhecer a identidade pode muito bem ser uma mulher. Afinal de contas, vocês não têm a certeza de nada.

Essa ideia é totalmente ridícula, protestou Alexandre. Sem se formalizar, Dias replicou: quase certamente que sim, aliás tenho boas razões para concordar consigo. Mas o seguro, como sabe, morreu de velho e repito que não podemos descurar nada. Preciso de a ver. A coisa tem de parecer natural, tem de parecer um acaso, portanto vou pedir ajuda.

E ali estão agora a ouvir as historietas de Salvador. Quando podiam... neste momento dá-se conta de que Rita se lhe dirige:

- Ouça, Alexandre, a sua loja de cultura é muito misteriosa, sabe? Lá no Instituto, ninguém ouviu falar em tal coisa. Estranho, não? Se depende da Escola Portuguesa, como você diz...

- Mas ainda está muito no ovo, explica ele. Salvador encolhe os ombros e afirma que acha muito esquisita essa ideia de pôr a Cultura numa loja, como se fosse uma peça de roupa ou um perfume ou um quilo de carne. Depois, virando-se para Rita, continua:

- Ainda não lhe perguntei se a incomodei com a minha chamada desta manhã, para a convidar. Se calhar ainda estava deitada.

- Que ideia. Estava no alto da Guia, fui experimentar o teleférico.

Alexandre intervém: - Foi dar um passeio e não me disse nada? Eu também quero andar no teleférico. Podia ter ido consigo e dava-lhe protecção...

- Protecção! - resmunga Dias, que compreendeu perfeitamente a intenção galante (como ele diz, no seu vocabulário por vezes antiquado) mas não consegue impedir-se de reagir - Protecção! Isto aqui não é nenhuma selva.

Alexandre sorri. - Aí está a entidade oficial a velar pela imagem do Território...

É interrompido pelo toque do seu telemóvel. Logo aqui, pensa ele, numa altura em que não posso falar à vontade... Mas Dias e Salvador embrenharam-se numa discussão a propósito da eficiência da Polícia Marítima, Rita está a falar com D. Otília e Alexandre tem uma desculpa para levantar-se e afastar-se um pouco.

Reconhece imediatamente a voz que lhe fala em inglês.

- Está no hotel? - pergunta Tang Kok long. E quando ele explica onde se encontra, adverte: - Tenha cuidado com as respostas que vai dar. Ouça: tive de sair de Macau, estou em Zhuhai.

- Porquê?

Como anteriormente, o agente chinês não lhe dá uma réplica directa: - Temos de esperar uns dias para nos encontrarmos.

- Ainda não fiz outra coisa que não seja esperar, diz Alexandre, irritado. E quero saber porquê. Tang deixa passar uns segundos antes de se decidir a satisfazê-lo. Por fim, murmura: Há perigo. Em Macau, andavam à minha procura.

- Claro, Se quer saber, fui eu que pedi para... - mas Tang interrompe-o:

- Não, não eram os portugueses nem a minha gente. Era a Tcheng Sé.

Alexandre não compreende a palavra, pede-lhe que repita e Tang diz outra vez, sem mais explicações: era a Tcheng Sé. A Tcheng Sé, fixe este nome. E acrescenta: - Vou desligar.

- Espere. Tem ou não tem as... (que diabo, não posso falar abertamente) .. .tem ou não o material?

- Sim. Mas agora só lhe posso dizer uma outra coisa... Vou dizer em Português: Hexágono.

- Como?

Não há resposta, ele desligou. Alexandre olha à sua volta, vê que Rita o observa.

- Algum percalço grave na futura loja de cultura? - pergunta ela com uma certa ironia que não lhe passa desapercebida. Não brinque, responde, fazem-me a cabeça em água. Então, abençoadamente, a jovem Mary aparece a dizer que o almoço está servido e Alexandre não só pode esquivar-se a mais explicações como tem ainda uma oportunidade para murmurar ao ouvido do Coordenador, enquanto se dirigem à sala de jantar:

- Tenho de falar consigo, mais tarde.

Apesar de tanto João Dias como Salvador a inundarem de amáveis perguntas, Rita fala pouco enquanto estão à mesa. O tédio desapareceu: nestes últimos minutos surpreendeu pequenos jogos de olhares e de expressões entre os presentes e isso estimulou-a. Diverte-a esquivar-se a dar informações sobre si mesma enquanto, ao mesmo tempo, observa e digere o que observa; é um passatempo interessante. Uma outra razão para a sua reserva está no pressentimento de que a conversa há-de acabar por derivar para um assunto que ela pretende evitar, se isso for possível.

Mas não é. Salvador, inconscientemente, inicia o inevitável encadeado de palavras quando regressam à sala de estar e Rita proclama os méritos gastronómicos de Mary.

- Ainda bem que gostou do almoço - responde Salvador -, espero que tanto como eu gosto de a ver em minha casa. Foi uma boa ideia, não foi? Como lhe disse ao telefone, assim sempre fica a conhecer mais gente, além do pessoal do Instituto. Foi sobretudo por isso que a convidei, a si e ao Alexandre Moura, já que ele também é recém-chegado... só não sabia que tinham viajado juntos e que portanto se conheciam.

É então que João Dias faz uma pequena jogada.

- Para mim, a Rita não era exactamente uma desconhecida, sabe? Pelo menos, conheço o seu pai, de nome.

Ela guarda um compasso de espera, é Salvador que reage imediatamente:

- o pai... espere aí: acho que estou enfim a ligar o nome à pessoa. Carreira, eu bem dizia que o nome não me era estranho... então a Rita é filha do Adriano Carreira?

- Sou, responde, resignada. Aí está, já tardava, cedo ou tarde havia de acontecer.

- O escritor? - pergunta Alexandre num tom de ligeiro ressentimento. - E você faz caixinha com isso?

- Não vejo por que hei-de apregoar pelas ruas a minha filiação. Adoro o meu pai e damo-nos muito bem, mas ele é ele e eu sou eu.

Entretanto, Salvador navega no perigoso mar das reminiscências:

- Ora sim senhor... o Adriano Carreira, quem diria que eu havia de conhecer a filha dele. Sabe que o seu pai teve aqui em Macau umas aventuras complicadas...

- Rocambolescas, atalha João Dias a sorrir. Eu na altura não estava em Macau, mas contaram-me. E virando-se para Rita:

- Ora, você sabe de tudo, com certeza.

- Digamos que sei só aquilo que quis saber.

- Claro, claro, intervém Salvador, que caiu em si e cujas reminiscências o avisam - mais do que a voz de Rita - de que se pode ter entrado em terreno escorregadio e não esquece os seus deveres de anfitrião. É muito simpático, o seu pai, tem um sentido de humor...

- retorcido, diz Rita, eu sei. E Alexandre, que ainda não lhe perdoou o cortante da resposta, murmura audivelmente: agora percebo, são os cromossomas.

Dias ataca de novo perguntando:

- O seu pai ainda trabalha como jornalista?

- Sim, como free lance, diz ela. Mary entra com o carrinho.

agora fornecido de café e garrafas de licores, conhaque e aguardente. Salvador faz um novo apelo ao auto-serviço e enquanto os convidados pegam nas chávenas e escolhem uma bebida ele inspecciona com ar distraído uma pilha de jornais do dia e outros mais antigos, vindos de Lisboa.

- Por falar em jornalismo - observa pegando num jornal - Rita, há aqui uma notícia sobre aquela rapaziada que você se empenhou em defender, os Filhos... como é? Filhos da Luz Resplandecente. O Nova Abelha trata-os mal, sabe?

- O Nova Abelha é sempre muito favorável ao GRIC - comenta João Dias secamente. E Salvador replica a rir: claro, Dias não gosta do GRIC, eles têm criticado a Administração. O coronel responde-lhe, mas com o olhar pousado em Rita;

- Estou-me nas tintas, não é por isso. É outra coisa, é mais pessoal. Eu não sou propriamente de esquerda, mas eles exageram na direita.

Rita apoia e reforça: dizer “direita” não chega a ser exacto. Se Hitler ainda fosse vivo o GRIC acusava-o de ser um perigoso e inquietante comunista. Ao ouvir isto. Salvador solta uma gargalhada. É um pouco de exagero, talvez, diz quando acaba de rir. Mas logo a sua expressão se torna grave, intrigada:

- Em todo o caso, continuo a não perceber a fúria deles contra esses miúdos. - E distraído, esquecendo as presenças de Rita e D. Otília: - Aliás, confesso que não percebo muito bem o que está a passar-se em Macau...

Cala-se de repente porque Alexandre lhe lançou um olhar de aviso. Então, para compor a frase, remata:

- Estou velho, é o que é!

São quatro e vinte e Rita sente a súbita necessidade de estar só. Declara então que são horas de partir; falou-se há pouco dos Filhos da Luz Resplandecente e sucede que um deles, o seu aluno Cheong Chi Meng, ficou de passar em sua casa para entregar-lhe um trabalho que devia ter acabado ontem: os devaneios místicos devem ter-lhe atrasado os deveres de estudante.

Alexandre, a quem passou o amuo, insiste em levá-la a casa, pois já tem carro. Despedem-se dos outros - o coronel e a mulher ficam ainda com Salvador - e saem para o calor húmido, porque entretanto o dia teve uma traiçoeira recaída de Verão macaense.

- Abençoada loja de cultura portuguesa - diz ela quando já vão a caminho - ninguém sabe onde fica ou vai ficar, mas fornece carros magníficos.

- Você é terrível, responde Alexandre. Até parece que não acredita na minha loja de cultura. Ela não lhe dá troco imediatamente e quando o faz o tom que visa já não é de brincadeira.

- Eu não quero meter-me onde não sou chamada, mas este almoço foi... muito curioso. Por exemplo, cheguei à conclusão de que você já conhece muito bem aquele coronel João Dias, que é assessor do Governador.

Alexandre morde os lábios e maldiz outra vez a ideia do almoço.

- Porque é que diz isso?

- Foi o que me pareceu.

- Já o conhecia, claro, mas não muito bem. Por causa do meu trabalho. Enquanto durar a administração portuguesa, a loja depende, em última análise, do Governo de Macau. Portanto, tenho sempre coisas para tratar com o Palácio e o João Dias é o meu interlocutor e foi ele que me apresentou ao Salvador Noronha e...

Ela interrompe-o: - Eu não estou a fazer-lhe um interrogatório, você é que tem alma de inquisidor, lembra-se?

- Mas eu estou pronto a mostrar-lhe o meu escritório... hoje mesmo, se quiser... desde que aceite jantar comigo.

Cinco minutos mais tarde, em casa, Rita pergunta a si mesma por que razão aceitou o convite quando já tinha decidido não jantar, pois a refeição em casa de Salvador esgotou-lhe o apetite para o resto do dia. Talvez - surpreen-de-se a pensar - talvez porque preciso de um antídoto para a emoção estética chinesa desta manhã. Mas isso é idiota, não foi assim tão importante ou então estou muito pior do que julgava.

Prefere justificar-se com o desejo de tentar descobrir o que Alexandre esconde, se é que esconde qualquer coisa. Não pode apontar um indício indiscutível, mas ao mesmo tempo não consegue afastar essa ideia. E não se esquece das várias trocas de olhares entre ele. Dias e Salvador. Ou será apenas a sua imaginação?

A campainha da entrada. Cheong, com toda a certeza, para lhe entregar o ensaio. Vai abrir a porta.

Cheong está encostado à grade metálica da porta exterior, numa pose que ela acha lânguida, despropositada, e os seus olhos fitam-na com incómoda fixidez. São-lhe precisos alguns instantes para ler todos esses sinais. Então, repara que os joelhos do rapaz estão a vergar-se, cedendo ao peso do corpo, e que enquanto uma das mãos agarra um varão da grade a outra comprime o peito e essa mão está coberta de sangue, que se embebeu na camisa. Há mais sangue no chão do patamar, por onde se espalharam as folhas do ensaio sobre o episódio do Velho do Restelo em Os Lusíadas.

Rita jamais saberá dizer ao certo o que pensou ou o que sentiu durante os últimos noventa minutos, como nunca saberá aonde foi buscar a energia e, sobretudo, o método.

Conseguiu trazer Cheong para dentro de casa e deitou-o no chão, correu para o telefone, marcou o número de emergência, depois ajoelhou-se junto do rapaz e disse qualquer coisa - não sabe o quê - que lhe deve ter dado ânimo porque o fez sorrir. A seu tempo, abriu a porta aos homens da ambulância e da polícia, conteve a curiosidade dos vizinhos com breves explicações enquanto o ferido era colocado na maca

Teve, mesmo, a presença de espírito suficiente para lhe ordenar que não falasse, ao ver que ele insistia em dizer qualquer coisa em cantonense aos agentes da PSP. Só mais tarde, já Cheong ia a caminho do hospital, é que percebeu até que ponto essa coisa era importante, quando um dos agentes, que tinham ficado para a ouvir, lhe explicou que ele lhes dissera ter sido atacado, a poucos metros da sua porta, por dois homens que haviam fugido ao ouvir o ruído de passos, talvez no andar inferior. Se o rapaz tivesse desmaiado, ela seria agora, pelo menos provisoriamente, o único suspeito. É melhor nem pensar nisso.

Neste momento, encontra-se num corredor do Centro Hospitalar Conde de São Januário. Após a partida dos polícias.

lavou o sangue no patamar enquanto esclarecia mais pormenorizadamente os vizinhos, uma tarefa incómoda mas inescapável - de qualquer maneira, pode já ouvir o falatório excitado correndo como um incêndio pela população de Macau. Limpou também o pouco sangue que manchou o soalho da sala. Bebeu um valente trago de whisky. E saiu para a rua à procura de um táxi, depois de se ter informado junto de um solícito vizinho sobre o equivalente cantonense de “centro hospitalar”, para o dizer ao motorista.

Agora resta-lhe esperar, depois de prolongadas conversações na recepção. Se a espera for tão prolongada quanto as conversações, pensa ela, faço um escândalo. O whisky começou a trabalhar-lhe o sistema.

Uma enfermeira aborda-a, pergunta-lhe se é a pessoa que veio saber informações sobre o rapaz que entrou nas Urgências com ferimentos... sou eu, sim, interrompe, impaciente, como é que ele está? Mas a enfermeira, em vez de a tranquilizar, diz-lhe apenas: o Dr lan Kuok Weng vem já, ele fala consigo. Afasta-se rapidamente, antes que Rita tenha tempo para insistir numa resposta, e já no fundo do corredor troca algumas palavras com um médico chinês.

Rita contém a irritação a custo. Ainda por cima, não pode fumar e neste momento sente a necessidade urgente de um cigarro. Enfim, a enfermeira terminou a conversa com o médico e este avança pelo corredor na sua direcção. Dá dois ou três passos para ir ao seu encontro, depois pára subitamente sem deixar de olhar para ele.

De manhã, no alto da Guia, concentrado como estava nos exercícios do tai kek, parecia pouco mais que um adolescente.

Agora vê-se que tem... trinta anos? A aparência dos chineses engana quase sempre os ocidentais no que toca a idade, mas não pode ter muito mais que isso.

Não acredito, é uma coincidência demasiado coincidente. Coisas como esta não acontecem.

O médico chegou junto dela. Dá as boas-noites numa voz suave e diz-lhe logo que pode estar descansada; o seu aluno... é seu aluno, não é verdade, foi o que ele me disse... está livre de perigo. Teve muita sorte, sabe? Se a lâmina tivesse entrado um pouco mais à esquerda, o caso era muito sério.

Rita inspira fundo. - Graças a Deus. E obrigada por me vir dizer.

- A verdade - continua ele - é que venho também pedir-lhe um favor. Pode avisar os pais? O rapaz contou que eles estão fora e só vêm amanhã. Mas eu não o deixei falar mais e agora está sob o efeito dos medicamentos, por isso não temos o número do telefone.

- Não se preocupe, diz Rita, eu encarrego-me disso, hão-de ter o número no Instituto e eu peço à secretária-geral que faça a chamada, é preferível ser ela porque os pais não devem falar português e o meu cantonense é nulo.

É ao dizer isto que Rita se apercebe de um pormenor: ele fala português sem o mais leve sotaque, sem a mínima entoação estrangeira. Se o ouvisse com os olhos fechados não acreditaria que é chinês.

- Obrigado. Amanhã pode visitá-lo. - O médico hesita um instante, depois prossegue, com um sorriso tímido: - Peço desculpa: nós já nos encontrámos, sabe?

- No monte da Guia, esta manhã.

Ah, também se lembra, diz ele, encantado, mas peço perdão, não me apresentei: lan Kuok Weng... ou Frederico lan, se for mais fácil para si.

Rita diz-lhe o seu nome. A enfermeira aproximou-se, entretanto, e ao vê-la lan faz uma expressão resignada. Estão a precisar de mim, já sei. Posso dizer ao seu aluno que vem cá amanhã?

A pergunta, pensa Rita quando se encaminha para a saída, soou mais a: “venha amanhã, por favor”. Contudo, isto pode ser imaginação sua.

O que não é imaginação é o toque do telemóvel, que, aliás, não a surpreende, a esta hora, pois esqueceu-se completamente do jantar com Alexandre. Surpreendem-na, sim, as suas primeiras palavras: você está bem, não está demasiadamente abalada?

- Eu estou bem, mas como é que você já está ao corrente?

No seu quarto em Mong-Há, Alexandre autoflagela-se com um murro no joelho.

- Ouvi a notícia na rádio - mente ele - e embora não falassem em si, deram o nome do rapaz e o local da ocorrência. Sou muito brilhante em deduções, portanto aqui estou a saber como se sente. Além do que temos um jantar combinado e não diga que perdeu o apetite porque em qualquer caso tem de comer, é das normas, depois de uma emoção forte. Onde é que está, que eu vou buscá-la?

Rita diz-lhe que não lhe apetece ir até à pousada, onde combinaram jantar. Já que tem de comer, prefere algo mais simples, por que não A Vencedora? E para isso ele não tem de vir buscá-la, podem encontrar-se lá.

Escapei por pouco, penitencia-se Alexandre após desligar.

A notícia do atentado contra Cheong Chi Meng, aluno do Instituto Camilo Pessanha, junto à entrada do apartamento da Dr- Rita Carreira, foi-lhe dada há pouco por Matos Costa, que recebeu a comunicação enviada pela PSP à Judiciária, no cumprimento das instruções especiais vindas das altas esferas, e as transmite agora aos outros elementos do Grupo de Trabalho. Estupidamente, sem pensar, descaiu-se ao telefonar a Rita. Devia ter-lhe perguntado apenas se se tinha esquecido do convite, depois ouviria as suas explicações e manifestaria o espanto lógico. O que é que se passa comigo, pergunta-se, ao mesmo tempo que se lembra, pela segunda vez em pouco tempo, de que o segredo está em reconhecer a existência das emoções e aprender a viver com elas e a canalizá-las, já que não podemos eliminá-las. Pois, a canalização é que é difícil.

Durante o jantar, aplica-se a obrigar Rita a comer, mesmo sem apetite, e deixa que seja ela a abordar o assunto do atentado contra Cheong e a contar os pormenores. Só quando ouviu tudo é que participa nas especulações - que ambos sabem serem inúteis - sobre os hipotéticos motivos. A única conclusão a que chegam é que o simples roubo não parece ser uma razão aceitável, não é preciso esfaquear alguém para isso quando são dois homens armados contra um miúdo desarmado.

A meio das especulações e da refeição, Alexandre recebe uma chamada de João Dias.

- Pode falar? - pergunta ele logo depois das saudações.

- Não.

- Bom, não faz mal. Pode vir até ao quartel-general?

É assim que Dias chama à sala da Judiciária posta à disposição do Grupo de Trabalho. Hábitos castrenses, embora o nome que os outros lhe dão, sala de operações, também possua uma consonância militar. Ou clínica. Em ambos os casos, acertada.

Que remédio, responde Alexandre, contrariado. Então fico à espera, diz o Coordenador, e acrescenta: mas pelos sons que ouço, julgo que você está num restaurante. Jante em paz e venha depois.

É isso. Jante em paz, descanse em paz, requiescat inpace. E venha depois.

O jantar está irremediavelmente estragado, aliás era de esperar: Rita acusa finalmente a tensão das últimas horas e a Alexandre não agrada particularmente a ideia de passar o serão em conferência com Dias e seus rapazes, sobretudo porque tem a certeza de que não se trata de uma emergência, caso em que não o deixariam jantar em paz. Paciência. Haverá, espera ele, outras noites e outros jantares. Por hoje, apenas insiste em levar Rita a casa antes de se dirigir à sede da PJ, na Rua Central.

Não é uma emergência, mas estão lá todos, já sentados à mesa de reuniões - Dias, Matos Costa, Jorge Almeida, António Kwan. Não há sábado à noite para ninguém.

Logo que Alexandre se instala. Dias entra no assunto:

- Continuo a não saber se finalmente começou a acontecer aquilo que receávamos. Em todo o caso, aconteceu uma coisa que merece, pelo menos, a nossa atenção. Como todos já sabem, um rapaz chinês foi agredido à facada, ao fim da tarde.

Interrompe-se, como a convidá-los a fazer comentários. O único que fala é Kwan, da Polícia Marítima: mas não passa de uma agressão, talvez uma questão entre seitas. Dias abana a cabeça rejeitando a explicação e retoma a palavra:

- Pode ser um pouco mais complicado que isso. Os seus colegas da Judiciária - vira-se para Matos Costa ao dizer isto - meteram-se em brios, trabalharam depressa. Do lado da vítima, que se chama Cheong Chi Meng, não têm a mínima referência de ligações a seitas. Vive com os pais, a família é respeitada... melhor que isso: é respeitável, tanto quanto sabemos. Uma coisa nem sempre vai com a outra. Quanto aos agressores, há uma novidade, que me comunicaram antes que vocês todos chegassem e foi ela que me levou a convocá-los: foi detido um suspeito.

Faz nova pausa e os outros entreolham-se. Continuam sem compreender por que foi preciso vir esta noite.

- Tenham paciência, é só um primeiro dado - prossegue João Dias. - E aqui está o segundo: hoje, à hora do almoço, quando o Alexandre Moura e eu estávamos em casa do Salvador Noronha, houve um telefonema para o Alexandre. Ele já me contou tudo, ligou mais tarde para minha casa. E melhor ouvirem-no.

Não há dúvida, pensa Alexandre, o nosso Coordenador gosta de efeitos teatrais. Mas faz-lhe a vontade, relata o que Tang lhe disse e termina com as últimas palavras crípticas: Tcheng Sé e Hexágono. Vai acrescentar que não faz ideia do seu significado, porém Dias atalha:

- Sobre esse hexágono falaremos a seguir. Por agora, o que devemos considerar é isto: como lhes disse, a polícia deteve um suspeito do ataque e esse tipo está referenciado como pertencendo à Tcheng Sé.

Kwan endireita-se na cadeira, Jorge Almeida solta um breve assobio. Quanto a Alexandre, põe algum vinagre na voz para observar:

- Era simpático se alguém me explicasse o que é isso de Tcheng Sé. O senhor coronel não me disse nada quando lhe telefonei.

Dias olha-o com uma surpresa que não é fingida.

- Não sabe?! Desculpe. É verdade que na altura eu estava acompanhado, não podia dizer certas coisas, mas também pensei que soubesse, afinal já esteve antes em Macau e...

Deixa a frase em suspenso para acender um cigarro e explica então: Tcheng Sé quer dizer “serpente verde”, um réptil particularmente mortífero que se encontra nesta região da China, e é também o nome da seita mais importante que opera no Território. E ele acha que todos os membros do Grupo de Trabalho devem raciocinar sobre estes factos: primeiro, um agente chinês, que devia encontrar-se com Alexandre, bateu em retirada para Zhuhai por ter a Tcheng Sé no seu encalço; segundo, acaba de ser cometida uma agressão sem motivo aparente e pelo menos um dos seus autores - se se provar a autoria - está filiado nesta mesma seita.

- E o Hexágono? - lembra Alexandre. - Também é uma seita?

Dias faz um gesto negativo. Disse que abordariam essa questão mais tarde, mas pode fazê-lo já e rapidamente: ninguém sabe o que é, ninguém conhece a referência. Se Alexandre compreendeu bem o que Tang lhe disse, encontram-se perante uma incógnita.

- É possível - acrescenta ainda - que o Wang Zhong Xie, quando chegar de Pequim, nos dê alguma informação, se souber e se quiser Quanto ao resto, por enquanto só podemos raciocinar sem esperança de chegar a uma conclusão definitiva, porque nos faltam elementos.

Alexandre, que tenta digerir tudo aquilo, recorda-lhes que ainda não foram postos na mesa certos dados: o rapaz que agora está internado em São Januário pertence a um grupúsculo religioso que foi hostilizado por uma associação de gente muito conservadora. Portanto, há que pensar também no Grupo de Reflexão e Intervenção Cultural, vulgo GRIC, e nos Filhos da Luz Qualquer-Coisa. Não é uma salada russa, mas é sem dúvida uma salada luso-chinesa.

- Entretanto - remata - devemos agarrar-nos ao que temos e o que temos é um tipo da Tcheng Sé. Vamos interrogá-lo e tirar dele tudo o que houver para tirar

Matos Costa encolhe os ombros: você é um optimista, o gajo não falou nem fala, só exigiu um advogado e isso fê-lo em vários tons de voz. Não há provas concretas de que pertence à Tcheng Sé, embora tenhamos a certeza disso. E provavelmente vamos ser obrigados a libertá-lo, se o rapaz que foi ferido não o reconhecer Quando foi detido, já não tinha a faca. Andamos à procura dela, mas...

Em resumo, comenta Alexandre, nem isso, merda. Discutem longamente sem chegar a uma conclusão, como João Dias previu. Depois começa a debandada: primeiro Matos Costa, a seguir Kwan e Jorge Almeida. Quando Alexandre se prepara também para sair, Dias chama-o:

- Já me ia a esquecer, telefonaram de Lisboa, do seu serviço, a avisar que mandaram uma mensagem por e-mail.

Alexandre, que se sente excepcionalmente cansado, suspira com resignação. Pode ser uma questão administrativa, tal como a justificação de despesas, mas também pode ser qualquer outra coisa. Senta-se diante do computador que lhe foi destinado e digita as ordens necessárias, enquanto Dias, que não parece ter vontade de ir para casa, se instala à secretária e abre uma grossa pasta de documentos.

A mensagem é curta mas vem com dois anexos, um dos quais é uma fotografia. Esperava este material desde que desembarcou em Macau.

- Até que enfim! - diz em voz alta. - Os dados sobre o tipo do PRN. E confirmam que ele veio para cá.

Dias levanta a cabeça, interessado. Alexandre abre o anexo de texto ao mesmo tempo que diz:

- Vamos lá ver quem é o gajo. Mareei Ribeiro... Mareei? Ah, nasceu em França. Trinta e quatro anos. Ligações à extrema-direita europeia, o que já sabíamos. Ligeiros problemas com as autoridades francesas. Suspeitas de envolvimento em atentados. Especialista em subversão e acessoriamente em explosivos...

Um bom rapaz, em suma, comenta Dias com um sorriso torcido. Alexandre continua: mudou-se para Portugal em 1996. Em 97 filiou-se no Partido da Reconstrução Nacional, PRN para os amigos e conhecidos. Homem de confiança do secretário-geral, mas sempre fora da ribalta. Nenhum problema com a polícia portuguesa, mas isso não quer dizer nada. Passaporte válido. E agora, vamos lá ver a cara do bicho.

Abre o ficheiro com a foto, estuda-a atentamente. E o seu punho direito abate-se sobre a secretária num murro furioso que leva Dias a erguer as sobrancelhas numa interrogação.

- Porra. Porra! É o gajo que vinha no avião, aquele que saiu em Bangkok. E eu achei que estava a imaginar coisas. Mas é ele. Porra.

Vinte minutos depois de chegar a casa, Rita sente que a sua resistência se quebra. Cai enfim sobre si todo o peso de um dia demasiado cheio, agravado pelo acumular de vários pequenos nadas que são muita coisa - problemas de trabalho que a têm preocupado, o homem das calças cor de canário, as suas relações com Alexandre, os dois encontros com o jovem médico chinês.

Quando era criança e se assustava, corria para o pai, se ele estivesse perto. Apesar de não ter com ele grandes conversas (são os dois reservados), houve sempre, entre ambos, um entendimento tácito, próximo da cumplicidade. Não se lembra de ter procurado a mãe, porém lembra-se de dar consigo a correr para o pai antes mesmo de pensar em fazê-lo. Tal como agora dá consigo a marcar o número de telefone da Casa da Tapada.

No momento em que Adriano atende, tem de fazer um esforço para não chorar. Mas é sobretudo uma descarga nervosa que logra dominar rapidamente, antes que ele perceba.

Simplesmente, tem de dizer alguma coisa, justificar esta chamada. Pede-lhe então o número de telefone de um ou dois dos seus amigos em Macau e finge não captar o tom irónico da resposta. Entretanto, já se deu conta de que não pode desabafar sem causar ao pai uma considerável preocupação. Procura disfarçar, iludir as perguntas que ele lhe faz, mas este novo esforço não tem um êxito apreciável.

O pai conhece-a demasiado bem.

Já o devia saber, como já devia saber qual a consequência inevitável desta chamada para Vale de Monges. E na verdade, mal Adriano começou a pressioná-la com perguntas, Rita compreendeu que não tardaria a vê-lo desembarcar em Macau, não teve mesmo qualquer dúvida sobre isso.

Conhece demasiado bem o pai.

Dois agentes da Judiciária vieram cá esta manhã, diz-lhe Cheong. Mostraram-me uma fotografia de um homem, pergun-taram-me se eu o reconhecia. Mas não pude dar-lhes uma certeza, porque quando me atacaram aquilo foi tudo muito rápido, eles fugiram logo, e além disso eu ainda não tinha carregado no botão da luz, o patamar estava escuro.

Cheong é, pelo menos até ao momento, o único ocupante da enfermaria. As enfermarias têm três camas, de modo que estar sozinho quase equivale a ter um quarto particular, mas ele não se mostra especialmente satisfeito com isso, porque não tem com quem conversar. Cheong adora conversar.

Ao chegar, Rita começou por tranquilizá-lo quanto à família.

o contacto não foi tão simples quanto lhe parecera, porque é domingo e o Instituto está fechado. Rita obrigou-se a ir lá e parlamentou com o porteiro, que felizmente fala uns farrapos de português. Ele deixou-a vasculhar o cubículo da telefonista à procura do número particular de Susana Wong. Felizmente, apanhou-a em casa e a partir daí as coisas tornaram-se mais fáceis: Susana, que é um encanto de pessoa, foi ter com ela, consultou as fichas dos alunos, desencantou o telefone dos pais do rapaz, fez a ligação. Ainda não haviam chegado, mas têm atendedor automático e deixou uma mensagem gravada, em cantonense. Explicou a Rita que incluiu nessa mensagem as informações necessárias para eles falarem com ela mais tarde, se quiserem.

Cheong agradeceu-lhe o cuidado e depois calou-se fazendo um ligeiro esgar de dor. Rita ordena-lhe que não fale.

- Não me dói se eu falar devagar - explica ele. - Quero dizer-lhe uma coisa: eu não sei nada de seitas. Juro.

- Quem disse que sabias?

- Os polícias perguntaram-me. Parece que o homem que prenderam é membro da Tcheng Sé. Eu respondi-lhes que da Tcheng Sé só conheço o nome, mais nada. E é verdade.

Rita já ouviu mencionar a seita e abstém-se de fazer perguntas. Em vez disso, insiste em que ele não fale e acrescenta:

- Eu acredito em ti, A-Meng. Não te enerves que isso faz-te mal. Só não compreendo por que é que tentaram matar-te, mas é um assunto para a Polícia, não para nós. Agora, o que importa é que fiques bom.

Cheong teima em falar: já me sinto um pouco melhor, diz.

E tratam-me muito bem, sabe? As pessoas são todas muito simpáticas. Dão-nos muita atenção. E o médico, aquele que me tratou quando entrei, já veio ver-me muitas vezes. Fez-me perguntas sobre si.

Rita olha-o demoradamente, mas não consegue ler-lhe a expressão. De qualquer modo, é preferível não aprofundar e a melhor solução é ir-se embora. Promete a Cheong que volta amanhã, o mais tardar na terça-feira, e despede-se.

No corredor, caminha devagar para dar tempo... a quê? Devo estar completamente idiota. Voltei à adolescência. À idade da parvoíce.

Alguém mais pode ter voltado à adolescência, porque ouve passos de corrida atrás de si e uma voz a dizer “boa tarde”. Volta-se: ele deve ter vindo a correr desde o outro extremo do corredor, tem a respiração um pouco alterada.

Veio visitar o seu aluno, pergunta, e acrescenta logo a seguir: está a recuperar bem, não há nenhum problema.

Rita responde: ainda bem. E agora nenhum deles sabe como continuar. Mas também não há oportunidade para continuar, ouve-se um “bip-bip” que sai do bolso da bata de lan, ele retira de lá o aparelho e silencia-o.

- Desculpe, estão a precisar de mim. Ainda volta cá, ainda a vejo?

Desta vez o sentido da pergunta é óbvio, já não há favores a pedir que sirvam de disfarce e talvez seja isso que a faz corar, o que sempre a põe furiosa consigo mesma.

- Se não der alta ao rapaz, hei-de vir, sim.

Ele faz um aceno, começa a afastar-se. De repente vira-se para trás e diz a rir:

- Então, nunca mais lhe dou alta!

Depois larga a correr. Como um adolescente.

 

A caixa de sapatos está, de facto, em muito mau estado. Antes da partida, Adriano decide consagrar uma gaveta da cómoda que está na sala às recordações da Tia Geninha, incluindo as cartas e o pedaço do diário. A caixa, essa, vai deitá-la fora porque apesar de poder já ser considerada uma velharia - cinquenta, sessenta anos? - não tem a mais pequena característica que a notabilize.

Mas guarda essa operação para o fim. Primeiro, prepara a bagagem cuidadosamente. O cuidado é necessário porque sempre que viaja tem por mau hábito esquecer-se de algo essencial, a escova de dentes ou a roupa interior, por exemplo. Outro problema são as camisas, felizmente a preciosa D. Ermelinda dobrou-as e deixou-as em cima da cama por saber que nesse trabalho ele é particularmente desastrado.

Quando tudo fica pronto, pega na caixa de sapatos e dirige-se à sala, no andar térreo. Após inspeccionar toda a cómoda, escolhe a gaveta da direita, no topo, e sem hesitações nem delongas vai esvaziá-la no caixote do lixo. Afinal de contas, só tem velhos rascunhos seus, livros que começou a escrever e depois pôs de lado. Não há nada mais inerte que uma ideia abandonada.

No espaço assim recuperado coloca, sem grandes preocupações de arrumação, as cartas, o diário, toda a tralha, incluindo brincos desirmanados, a caixa de pó-de-arroz e a sua fotografia dos dezassete ou dezoito anos, que decidiu afinal não oferecer a Rita. Depois vai escolher um CD e preparar uma bebida - para a sossega, intruja-se a si próprio, pois sabe que o álcool lhe dá mau dormir. Porém ainda é cedo para deitar-se, mesmo porque o avião, amanhã, só parte ao fim da tarde; além disso, não tem sono, nestes últimos tempos o sono chega-lhe cada vez mais tarde.

A bebida é whisky, o CD é Richard Strauss, As Quatro Últimas Canções, a poltrona é a que está sabiamente posicionada de costas para o aparelho de televisão. E agora, que se instalou, apodera-se dele uma ideia e resolve brincar com ela.

Eu não me dei conta do verdadeiro significado da acção que acabo de executar e isso não me admira porque acho que funciono por impulsos inconscientes, aliás gostaria de saber quem escreveu para mim o guião das minhas acções, o guião dos meus guiões. Na maior parte dos casos, só compreendo os meus motivos e as minhas intenções a posteriori, o que deve fazer de mim um caso clínico interessante.

Seja como for. O que acabo de fazer foi um ritual e uma despedida. Naquela gaveta, guardei ritualmente o meu pequeno mundo de Vale de Monges, incluindo as grutas dos eremitas, incluindo a Tia Geninha e as suas paixões. O pequeno mundo que me lancei a explorar Pequeno, digo, em extensão, em dimensões históricas, em horizontes actuais. Outra coisa é a sua dimensão no sentido da profundidade, em relação às pessoas passadas e presentes que dele fazem parte e essa dimensão é uma quantidade desconhecida.

Era um mundo que eu queria conhecer e amar, por que não?

É muito simples. Em estrita confidência, só de mim para mim - para não ser mal interpretado - e aplicando todos os mutatis mutandi e mais alguns se os houver, eu acho que posso comparar-me a este estranho país onde nasci. Andei pelas sete partidas do mundo e nelas fui roçando e gastando os fundilhos, vibrei com grandes e pequenas coisas, arrisquei o couro seriamente, não por consciente e deliberada opção, que de herói tenho pouco, mas porque teve de ser e não o pude evitar. Deitei-me com mulheres de várias cores, quando não fiz a coisa de pé, o que também me aconteceu. E depois de tudo isso, fosse por razão da idade ou do destino ou qualquer outra, tal como o estranho país onde soltei o primeiro vagido e fiz o primeiro chichi e os seguintes, também eu regressei ao rectângulo e não vejo mal algum nisso. E não o lamento. Vale de Monges é o meu rectângulo. Pode haver um encanto especial num horizonte caseiro.

Pensava eu.

Pensava eu que não me daria mais nenhuma fome das sete partidas. Pensava. Bem posso dizer-me que vou simplesmente matar saudades de uma filha e ajudá-la ou dar-lhe apoio moral ou qualquer outra coisa, mas se me disser isso, quem estarei a tentar enganar? Oh, sim, ainda que nada mais houvesse eu embarcava por devoção de pai-galinha. Mas não embarcava a pensar que em Macau há um momento a ser vivido e gente que de repente quero voltar a ver. E, já agora, que pena ser só Macau e que pena eu só poder ser eu, português de meia idade a caminhar para os três quartos, e não poder ser, além de tudo isso - bem, a meia idade eu dispensava; adiante - chinês, judeu, árabe africano, indiano, mongol.

Com modéstia e realismo, posso não ser - não sou certamente - comparável à ditosa pátria minha amada nem aos seus heróis. Mas sou, e dessa honra sublime não abdico, o marinheirozito deselegante e trapalhão de olhos esbugalhados postos nas naus ao largo do Restelo.

E o melhor é ir para a cama antes que comece a escrever versos, coisa que não me acontece desde a mais tenra adolescência e não é agora que vou condescender numa recaída.

É a primeira vez que vê Macau do ar e sorri levemente ao recordar o seu discurso de há uns anos: não, “eles” não vão fazer nenhum aeroporto, ficam só os aterros, mais nada. Bom, não se pode ter sempre razão, aliás isso seria um bocado monótono.

Procura referências visuais, mas está a escurecer, só consegue distinguir as luzes da cidade e agora o avião, em manobra de aterragem, inclina-se para o lado oposto ao seu enquanto desce em direcção à ilha da Taipa. Uma coisa que tenho de fazer, diz a si mesmo, é ir ao templo do deus dos patos. Não se trata de atear cinzas apagadas, é só uma questão de cortesia para com Hông-kóng Sân.

Em terra, submete-se pacientemente aos cerimoniais burocráticos da chegada, arranja um suplemento de paciência para aguardar que a mala apareça na passadeira rolante. Enfim, à saída da zona aduaneira, vê Rita.

A filha está acompanhada. Boa, diz Adriano com um riso interior, se calhar já arranjou um gajo. Mas escusava de trazê-lo ao aeroporto.

Durante os breves instantes em que caminha ao encontro dos dois, observa-o com atenção: trinta e alguns anos, cabelo escuro anelado, bom aspecto. E completamente diferente de Pedro, não tanto na aparência como no porte. Ao menos, não veio desencantar em Macau outro macho ibérico.

Rita dá uma pequena corrida, abraça-o com mais ardor do que justifica uma separação ainda não muito longa, revê nela a garota que se acolhia ansiosamente nos seus braços quando enfrentava situações que não sabia dominar. O instante de reminiscência é muito breve, no entanto. Quando se afasta um pouco para a ver melhor já tem em sua frente a filha-mulher, não a garotinha, e os seus olhos azuis-cinzentos enviam uma mensagem - talvez de resposta a outra que ele emitiu sem dar por isso: “Atenção, não é aquilo que tu pensas”.

Apresenta-lhe o rapaz, que se atrasou propositadamente para os deixar à vontade: Alexandre Moura, veio comigo no avião, também está a trabalhar em Macau. E como tem carro, pedi-lhe que viesse comigo, é melhor que ter de entender-me com um taxista, ainda não encontrei um que falasse português ou sequer inglês.

Conveniência ou pretexto? - pergunta-se Adriano enquanto se dirigem para a saída. Não importa, se houver revelações sentimentais a fazer Rita escolherá o momento, como sempre fez. Que o dito cujo Alexandre gosta dela, isso está bem à vista.

Ao sair do edifício do aeroporto, respira fundo para tentar captar o cheiro de Macau que lhe ficou na memória. Tem uma secreta pena porque o Verão passou e já não é agredido pela estufa, trinta e muitos graus de calor e quase cem por cento de humidade. Um pouco de masoquismo, um pouco de recordações de uma outra vida que lhe parece horrivelmente longínqua. Depois, no carro, esquece a pequena desilusão e as possíveis relações de Ritinha com este Alexandre Moura, que à sua direita conduz escrupulosamente segundo as regras, e deixa-se envolver pelo ambiente. Não é só o aeroporto que é para ele uma novidade; ainda não vira a nova Ponte da Amizade, que atravessam em velocidade moderada, como não viu certamente muitas outras coisas. Porém o cansaço de dezassete horas de viagem embotou-lhe os sentidos, olha sem conseguir ver. Amanhã, pensa, amanhã vou fazer a minha romagem de saudade se conseguir dormir o suficiente esta noite, o que ainda não é certo.

Alexandre, que pouco falou durante a viagem e parece preocupado, deixa-os à porta de casa. Adriano anota mentalmente que nem ele nem Rita dizem “até amanhã”.

Minutos mais tarde, já fez a volta completa ao apartamento e, de regresso à sala, declara que precisa urgentemente de um whisky.

- Mas não vieste a beber champanhe durante toda a viagem, como é o teu costume? - pergunta ela enquanto se dirige para o armário onde guarda as bebidas.

- Isso é uma grave deformação das minhas palavras ou até mesmo uma vil calúnia. Durante o tempo em que estou a dormir, não bebo champanhe. A última dose tomei-a à a saída de Bangkok.

- Ah, pobre paizinho, isso é um ror de tempo! - ela preparou dois copos e estende-lhe um. - Também vou beber porque eu não tive champanhe. À tua.

Adriano ergue o copo. - À nossa. E a Macau, já agora...

A sua entoação é um convite, um incitamento à fala, porém Rita não reage. Pergunta-lhe se no trajecto do aeroporto até ali, ao Tap Siac, viu muitas mudanças. Algumas, responde Adriano, a começar pelo próprio aeroporto e depois a nova ponte. Tenho a impressão de que amanhã vou perder-me na rua. Lembras-te do que eu disse em Lisboa? Macau é um dragão de fumo...

- Pois é. Todos me dizem o mesmo, quero dizer, dizem coisas com o mesmo sentido mas não com esse recorte literário. A propósito, já conheço um amigalhaço teu, um médico. E Adriano diz imediatamente: há-de ser o Salvador Noronha. Como vês, eu dava-me com gente respeitável.

Faz uma pausa e depois informa-a: telefonei à tua mãe a dizer que vinha para cá e a perguntar se queria que trouxesse uma carta ou uma encomenda, mas ela estava adoentada, nada de grave, uma constipação. Em todo o caso, isso impediu-a de escrever e de fazer outra coisa que não fosse mandar-te beijinhos.

O que é mentira, pensa Rita, e ele sabe que eu sei, conhecemo-nos tão bem. Ainda ontem telefonei à mãe e não estava constipada, simplesmente não esteve para se maçar.

Para Adriano, a obrigação moral fica assim cumprida, embora saiba, de facto, que Rita desconfia da explicação que lhe deu. Adiante, vamos às coisas importantes. Pousa o copo, instala-se na poltrona maior e dispara:

- Agora acabou a conversa mole. Vais contar-me o que se passa.

- O que se passa?

Ela diz primeiro que não se passa nada que a afecte directamente. Depois, como o pai semicerrou os olhos no jeito que lhe conhece - faz sempre aquela expressão quando não acredita no valor facial do que ouve ou do que vê - tenta adiar, invoca a longa viagem, o fenómeno conhecido por...

-Jet lag, bem sei, o jacto do lago, ha-ha. Nada de faenas, Ritinha. Se for para a cama sem te ouvir primeiro, então é que não durmo. Anda lá, começa.

E Rita começa e relata-lhe o ataque a Cheong Chi Meng, o homem das calças cor de canário. E fala sobretudo do sentimento, que por vezes tem, de estar perdida num planeta desconhecido de que não conhece as regras.

Adriano acendeu um cachimbo, o primeiro desde que embarcou em Lisboa. Ouve-a em silêncio ao mesmo tempo que liberta nuvens de fumo. No fim, solta um longo suspiro e diz quase num murmúrio:

- É incrível como por vezes os cromossomas ultrapassam a sua competência e o seu pelouro. Eu cheguei a Macau e menos de um mês depois estava metido num sarilho. Correm anos, tu chegas a Macau e a história repete-se.

Fala a sério, apesar da ironia contida na frase. Aquela semelhança provoca-lhe mesmo um pequeno arrepio.

- Se eu pudesse, minha querida... se eu ainda tivesse autoridade jurídica sobre ti, sabes tu o que fazia? Mandava-te para Portugal no primeiro avião. E talvez ficasse cá para explorar o assunto, não sei bem.

- Pois, mas não já não tens autoridade jurídica. E não vou fugir a correr, garanto. Não exageres no proteccionismo, OK?

- "OK” não é português.

- Que chato!

Adriano ignora a exclamação. E não sei se é proteccionismo, continua. É qualquer coisa mais complicada, que vai mais fundo. Tu hás-de passar pelo mesmo, se vieres a ter crianças. O que acontece é que os nossos instintos paternais... ou maternais, conforme o caso... não são desactivados quando os filhos crescem. O que é uma pena, arriscamo-nos a ficar uns chatos, mas é assim mesmo, aliás é uma das características que nos distinguem dos animais. Evidentemente, não há razão para nos gabarmos porque está provado que a Terra seria um planeta muito mais pacífico e agradável se nela só houvesse animais, mas...

- Que conversa maluca é essa, agora?

Ele desata a rir. - Desculpa, são as perturbações dos fusos horários. Para voltar à vaca arrefecida: o que me preocupa em toda essa história é o envolvimento com uma seita.

Mas, insiste Rita, o A-Meng não está envolvido com seitas, foi o que ele me disse, foi o que jurou e eu acredito nele. Ao que Adriano replica: não é forçoso que o teu aluno esteja envolvido directamente, alguém da família pode estar e tudo isso pode ser uma represália.

A reacção da filha espanta-o um pouco:

- Mas é uma mania que certas pessoas têm: se é chinês, anda metido com seitas! Como se toda a população da China...

- Eh! Eu não disse nada disso. Claro que ser chinês não é sinónimo de ser membro de uma seita. Mas elas existem, tal como a Máfia existe, é um facto da vida.

Não tenta compreender o vigor da resposta, limita-se a anotá-lo. Repara agora, só agora, que se sente terrivelmente cansado. Bebe o resto do whisky, afunda-se na poltrona. Oxalá consiga dormir toda a noite.

- Portanto, Ritinha, peço-te muito que não te metas nesse assunto, nem mesmo nessa história dos Filhos da Puta Resplandecente...

- O que é que te deu?!

Adriano encolhe os ombros. Pronto, da Luz Resplandecente, desculpa, isto não era discurso de pai, ou melhor, era discurso de pai muito cansado. Estou todo podre. Mas depois do que tu me contaste, preciso de pensar no que posso fazer

Não podes fazer nada nem eu quero faças, replica ela. Vai dormir.

O rolar dos anos tornou-o menos resistente: ontem lamentou a falta do excesso de humidade e calor, mas hoje tem de confessar a si próprio que se o tempo não fosse já de Outono, a mais bela época do ano em Macau, não poderia fazer a sua peregrinação pela cidade.

A cidade, como ele esperava, aliás, é a mesma que ele conheceu e é também diferente. Tem a sensação de que, desde que partiu daqui, alguém andou a pôr febrilmente a casa em ordem. Podiam ao menos ter deixado ficar o min, pensa, ao recordar o emaranhado de fios eléctricos que nos bairros mais antigos faziam impensáveis ligações clandestinas envolvendo as casas numa rede desordenada, saltando de um lado para o outro das ruas, cobrindo fachadas como se fossem trepadeiras ou lembrando um prato de massa chinesa, o que fazia jus ao nome que lhe puseram. Provavelmente, eu era a única pessoa que achava graça à coisa.

Podia ter começado o passeio rumando às ruínas de São Paulo ou ao Leal Senado, mas quer deixar essas estações da peregrinação para o fim da manhã, portanto contorna essa área para chegar à Rua das Estalagens. Aí, mesmo caminhando devagar, não tarda a ver o pequeno templo, no Largo do Pagode do Bazar.

Aqui está, reflecte Adriano ao entrar, uma coisa que não mudou em Macau.

É tudo exactamente como ele se lembrava, incluindo as poltronas de napa à direita do altar, para refastelamento dos bonzos. Mas onde o seu olhar se fixa é na imagem de Hông-kóng Sân, o protector dos patos, que parece dizer-lhe: então de volta, o que é que andaste a fazer durante todo este tempo.

Compra um molho de pivetes. O bonzo de serviço - é assim que pensa no homem, mas não sabe sequer se é ou não um bonzo - olha-o com algum espanto: um kwai-lôu, um diabo estrangeiro, a acender pivetes e a fazer a tripla vénia ao deus. Porém, Adriano deixou de o ver e de ter a noção da sua presença. No momento - e, estranhamente, foi só nesse momento - em que cravou os pivetes no queimador, o passado apoderou-se dele, a ponto de sentir uma vertigem. Porque, afinal, foi aqui que tudo começou, ao ver uma rapariga chinesa fazendo algo muito parecido com o que ele acaba de fazer.

A vertigem é breve. Sai do templo, segue em direcção à Rua da Palha, decide que afinal não irá a São Paulo neste primeiro dia como um vulgar turista. Em vez disso, ruma ao Largo do Senado. Ao ver a igreja de São Domingos, pára subitamente.

Deve ser o meu feitio religioso. Foi preciso acender incenso diante de Hông-kóng Sân para me lembrar de certas coisas; agora é a fachada de São Domingos que me lembra outras. E ele ainda deve morar no mesmo sítio, na Rua da Sé; mais uma igreja. Resta saber se o santo homem está em casa.

A Rua da Sé fica a dois passos de São Domingos e do Leal Senado. A porta, cá em baixo, está aberta, mas antes de entrar Adriano fica-se a contemplar os velhos prédios manchados pela humidade, como se esperasse ver-lhes agarrado um reflexo de si mesmo, ou melhor, do Adriano de há tempos atrás.

A recaída não dura muito. Entra, sobe a escada até ao terceiro andar, perguntando-se se, afinal, ele ainda ali mora, se ainda é capaz de enfrentar a escada diariamente. Talvez lhe tenham arranjado um lugar mais confortável.

O toque da campainha é o mesmo e acha espantoso recordar-se tão bem dele. Quando a porta se abre, Adriano, cujos olhos, cheios de luz do Sol, ainda não se habituaram à penumbra, consegue apenas ver uma sotaina branca e uma longa barba, mas isso já lhe chega. O outro, embora o veja distintamente, também não o reconhece, porque diz apenas:

- Sim...? Faz favor?

- Não, responde Adriano, o senhor é que fará o favor de me reconhecer, senhor padre Frazão. Eu estava ali em frente à igreja de S. Domingos, e vá lá saber-se porquê, isso fez-me pensar em santos e então lembrei-me de o visitar e aqui estou.

Já a meio da frase o padre lhe lança os braços ao pescoço e puxa-o para si.

- Adriano. Adriano Carreira, grande malandro! Em Macau?! Mas venha cá, entre, homem!

Leva-o, quase o arrasta até à sala, de que ele também se recorda, com a sua nudez de mosteiro acrescida de um computador que não se enquadra no ambiente. O padre Frazão fá-lo sentar-se e declara que, como esta ainda não é uma hora para um cristão beber álcool, vai fazer chá. Mas não deixa de falar, de fazer perguntas e exigir respostas enquanto, na exígua cozinha, põe água ao lume, tira do armário chávenas desirmanadas e uma lata de pou lei.

Adriano responde às suas perguntas e faz outras, fica a saber que o padre mantém - apesar dos seus oitenta e muitos anos - a sua actividade: sim, continua a dirigir a casa de retiros em Coloane, sim, continua a fazer as suas pesquisas históricas e linguísticas e, claro, celebra missa todos os dias, só está, evidentemente, dispensado de deveres pastorais, mas isso não é novidade, já assim era antes.

Terminadas as operações na cozinha, o padre Frazão vem sentar-se diante de Adriano trazendo as duas chávenas.

- Deixo o bule lá dentro em cima de uma lamparina, para não arrefecer - explica, e logo a seguir recosta-se, olha de frente para Adriano.

- Então, sempre acabou por divorciar-se. Lamento, como calcula, para mais com um filho tão pequeno...

Pois, lamentável mas inevitável, diz Adriano. O padre abana a cabeça num gesto lento. Um divórcio, sentencia, é sempre evitável, excepto quando pelo menos uma das partes não está disposta a evitá-lo. Adriano, sorrindo, faz-lhe notar que essa grande verdade já foi proferida pelo Amigo Banana, porém ele não presta atenção à resposta:

- Adriano. Você não me diga que voltou a Macau à procura de... da... ela já cá não vive, sabe, e julgo até que já se casou.

Adriano larga a rir, com vontade. - Santa preocupação sacerdotal. Não, não é nada disso e se quer saber, para mim esse assunto está encerrado há muito tempo. Não contido nem esquecido; encerrado. E já sabia que ela se foi embora...

O riso deixa-lhe o rosto quando continua:

- Não foi só ela a ir-se embora, não é verdade? O Daniel, o Manuel Garcia, outros ainda, foram debandando. Macau das minhas aventuras desapareceu. Macau despovoou-se de quase todos os meus amigos e de alguns inimigos. Ventos da transferência. Os que ainda não partiram estão a fazer as malas, suponho.

- Não todos, não exactamente. Eu, por exemplo, faço tenções de ficar, esta passou a ser a minha terra, há muito tempo que é a minha terra. E conheço vários outros que querem ficar também. E você, o que é que anda a fazer por aqui, se não veio à procura de...?

O padre não tencionava acabar a frase mas Adriano responde sem lhe dar tempo para marcar uma pausa: não vim à procura de quem o senhor pensava, e no entanto... ouça lá, passa agora do meio-dia e os cristãos já podem beber álcool, suponho, e também suponho que continua a ter por aí umas garrafitas. Exclusivamente para ministrar conforto às pobres almas desmoralizadas, claro.

- Você está na mesma. Tenho, sim, mas não para as almas, que essas não bebem, nem para mim, seu miserável difamador do clero.

Diz isto ao levantar-se para ir buscar uma garrafa de madeira seco e um só copo. Adriano serve-se, depois retoma a palavra: dizia eu, não vim a Macau por causa dela, mas vim por causa de outra rapariga. Não, não me olhe assim, é a minha filha. E relata-lhe o que sabe, o que Rita lhe contou.

Enquanto o faz, não tira os olhos do padre para não perder a mais pequena das suas reacções. Viria, de qualquer modo, visitar o padre Frazão porque gosta verdadeiramente dele e deve-lhe, além disso, alguns favores, mas quer também sondá-lo. Foi sempre um mistério para Adriano: este sólido velho é uma espécie de eremita que vive mergulhado em bibliotecas e arquivos, no entanto sabe - e o que não sabe intui - muito do que se passa em Macau, só que muito raramente o diz.

No entanto, não sabia que a filha de Adriano está a ensinar no Instituto Camilo Pessanha, afirma com ar severo, como se a informação lhe fosse devida.

- Isso - explica Adriano - é porque ela evita dizer quem é o pai. E sabe porquê? Não quer encontrar por cá eventuais restos das minhas experiências macaenses, sobretudo aqueles em que o senhor estará a pensar, apesar de eu já lhe ter dito que todos esses restos foram há muito tempo para a reciclagem, que eu sou um defensor da ecologia. E depois, claro, a rapariga não é uma figura pública, não aparece na televisão...

- Eu não vejo televisão.

- Faz muito bem, replica Adriano, é por isso que está com esse aspecto rijo e são. Entretanto, talvez possa iluminar-me um pouco: claro que não sabe nada da agressão ao jovem filho da luz, mas toda essa história do GRIC o que é que lhe diz?

O padre Frazão hesita, depois abana a cabeça. - De concreto, não me diz nada. Só sinto que se está a passar qualquer coisa, mas não me pergunte o quê, não sou capaz de responder-lhe, palavra.

Inclina-se para a frente. Sem aviso prévio, muda de assunto:

- Eu, há pouco, disse que você está na mesma, não foi? Parece-me que não é verdade. Há uma diferença qualquer. Tem uma aparência mais tranquila, mas ao mesmo tempo está... como hei-de explicar? Mais amargo, talvez. Não à superfície, é qualquer coisa lá no fundo. O que é que se passa? Não quero ser indiscreto, claro. Continua convencido da... como é que lhe chamava... a crueldade essencial da existência?

Adriano encolhe os ombros.

- É uma expressão que eu arranjei como podia ter arranjado qualquer outra. Se quer que lhe diga, não sei se corresponde exactamente ao que eu penso. Mas é verdade que nunca deixa de me surpreender a aparente falta de sentido da existência.

- Diz muito bem: aparente. E mesmo assim, só é aparente à primeira vista e uma vista muito superficial.

Como nos velhos tempos, os dois iniciaram uma discussão a propósito de nada. Porém, ao contrário do que sucedia nos velhos tempos, Adriano tem hoje a sensação frustrante de não conseguir encontrar as palavras exactas. E também - sobretudo - de não dizer nada de importante ou novo ou que valha a pena ser dito.

Apesar disso, lança-se numa tirada. Com um gesto de rendição irónica, declara: não quero engalfinhar-me filosoficamente ou teologicamente consigo, só acrescento uma coisa. Houve tempo em que eu pensei: muito bem, aceitemos que o mundo parece absurdo, mas há a considerar a procura da transcendência, que é também a procura de um sentido, e essa é uma constante, é uma obsessão do Homem, e só isso tem já um significado, talvez andemos todos, por vias diversas, à procura da matriz, ou da origem, ou da pátria inicial e invisível, e portanto essa obsessão faz parte da nossa natureza, foi inscrita no ADN de toda a gente, o que prova que ela encerra um objectivo e uma verdade qualquer. Mas basta olhar à nossa volta para entender que a tal obsessão desapareceu. A transcendência, quando muito, é agora um efeito especial em certos filmes que misturam sabiamente, porque bilheteira obriga, a mística, o kungfu e a queca, salvo o devido respeito.

O padre carrega o cenho em reacção à palavra queca.

- Você está a simplificar. Isso é uma deformação de jornalista.

Talvez, admite Adriano. Entretanto, veja, este nosso querido mundo, na sua crescente complexidade de relações e de sistemas, consegue ser cada vez mais simplista. É o milagre da simplificação em vez do milagre da multiplicação. A economia, por exemplo...

- Que é que você está para aí a dizer? - resmunga o padre Frazão, impaciente. - A que é que vem a economia? Eu não percebo nada de economia.

- Nem eu, graças ao Senhor. Mas não deixa de ser um bom exemplo. Fazem dela uma ciência e até mesmo uma religião do género animista, mas depois os mercados andam ao sabor de virgens histéricas a que chamamos grandes investidores e grandes financeiros. Um operário vê-se de repente no desemprego; porquê? Porque trabalhou mal? Porque os compradores não gostam do produto que ele ajuda a fabricar? Não. Porque o Presidente dos Estados Unidos tropeçou no penico ao sair da cama e torceu o tornozelo: as bolsas caem logo, é um prodígio. E com uma economia como esta, cheia de flatos e vapores e desmaios, em permanente tremedeira, ainda há quem tenha a coragem de sorrir perante a ingenuidade ou a falta de visão dos antigos fisiocratas ou dos menos antigos marxistas. Como se este capitalismo galopante fosse melhor ou mais inteligente. O mundo, meu caríssimo sacerdote, está a ser dirigido por atrasados mentais. A transcendência está onde eu já lhe disse, em Hollywood. E a religião, ultimamente, só tem produzido fanáticos que lançam bombas e matam gente, uma tendência não de todo nova mas que se agravou.

Adriano cala-se para tomar fôlego e remata com um ar muito sério e profundo:

- Voltando à crueldade da existência: quer almoçar comigo?

O padre olha-o desorientado, depois resmunga: lá está você a gozar.

- Não, estou a falar a sério, quero mesmo convidá-lo para almoçar e de caminho poderemos reflectir nisto: veja como todo o sistema de vida na Terra se baseia na destruição e na morte, portanto na crueldade: é preciso matar para viver, sempre. Isto é um lugar-comum, evidentemente, no entanto basta pensar um pouco para perceber que é um lugar-comum aterrador. Os vegetarianos são uns cómicos, pelo menos aqueles que o são por razões morais, porque as plantas são seres vivos e não está sequer provado que não tenham uma forma qualquer de sensibilidade. A propósito, só as plantas não precisam de matar para viver e ainda assim há excepções: as carnívoras matam e mesmo entre as parasitas há algumas que são mortais. Ainda assim, o planeta seria muito mais simpático só com plantas. Quanto aos homens, ou se habituam a comer pedras e terra ou não se safam, mas se todos comêssemos terra, onde é que já ia a Terra? Portanto, há-de admitir que há em tudo isto algo que nos escapa ou então um trágico erro de planificação.

- Adriano, o cálice de madeira caiu-lhe na fraqueza.

- É bem possível. Vamos almoçar?

Não foi, evidentemente, o cálice de madeira e sim uma qualquer vontade irresistível de dizer aquilo, uma vontade que nem ele próprio sabe explicar, talvez uma forma de mostrar ao padre que se continuasse a fugir às perguntas sobre Macau o assunto da conversa podia escorregar para questões que o santíssimo sacerdote decidiu há muito que já resolveu no seu espírito e não quer voltar a considerar.

Em todo o caso, não pretende abusar da paciência do velho nem estragar o almoço, portanto, quando se sentam à mesa do restaurante, falam de tudo e de nada enquanto atacam com igual apetite a travessa de carne de porco com molho de balichão e tamarindo, após o que o padre Frazão regressa às suas actividades - está a escrever um artigo sobre a “guerra dos ritos” - e Adriano retoma o seu passeio.

Mas tanto o calor como o balichão e o tamarindo lhe aconselham vivamente o regresso a casa. Desiste de ir até à Porta do Entendimento, que lhe fica longe de mais, e toma a direcção do Tap Siac. E quando entra em casa já sabe que depois de ligar o aparelho de ar condicionado vai estender-se na cama para dormir uma sesta. Não é ainda, por enquanto, o peso da idade, é o peso da diferença de fusos horários.

Alexandre aparece à noite, depois do jantar.

Há já alguns dias que pesa os prós e os contras de uma certa pergunta que acha dever fazer a Rita. A pergunta equivale apenas a um tiro no escuro dado com pouca esperança e pode ser perigosa, mas desde que viu a fotografia do “operacional” do PRN sente-se irritado consigo mesmo. Tive-o a poucos metros de mim, dentro do avião, exclamou ele depois de dar aquele murro na mesa, se soubesse... Dias interrompeu-o perguntando o que faria ele se soubesse. É simples, respondeu, saía atrás dele em Bangkok, temos um acordo com os tailandeses.

O Coordenador encolheu os ombros e limitou-se a dizer.-não adianta lamentar-se, nós vamos localizá-lo, se já chegou a Macau ou quando chegar. Alexandre mostrou-se céptico: um gajo como este, se é mesmo bom, tem pela certa outro passaporte com nome falso. A fotografia foi impressa e cópias dela foram entregues à PSP e à Polícia Marítima e Fiscal, Alexandre percorreu Macau em todos os sentidos na esperança algo pueril de encontrar aquele rosto que viu no avião. Até agora, nada aconteceu. Este nada, bem como o silêncio do agente chinês, começam a desgastar-lhe os nervos. É urgente localizar esse Mareei Ribeiro antes que algo aconteça e não depois, porque então será tarde. Pelo menos, importa saber se ele já entrou no Território. Daí este tiro no escuro, mesmo correndo riscos.

Adriano, quando Rita vai abrir a porta e traz Alexandre para a sala, reflecte: em rigor, pode não ser aquilo em que estou a pensar, afinal de contas ele sabe que eu estou aqui e além disso Macau ainda é um daqueles lugares abençoados onde as pessoas visitam regularmente os amigos sem prévio aviso telefónico quarenta e oito horas antes. Mas, à cautela, vou deixá-los à vontade.

Tem um excelente pretexto, pois o tabaco de cachimbo esgotou-se, portanto diz a Alexandre: desculpe se me ausento, não é nenhuma incompatibilidade consigo, é que tenho de ir à Tabacaria Filipina antes que feche.

Sai rapidamente. Na realidade, sabe que não vale a pena apressar-se porque a Tabacaria Filipina, vizinha do Leal Senado, deve estar a fechar neste momento, mas ele conhece outros locais. Deixa que passem quarenta minutos e depois regressa. Porque, raciocina com sombrio humor, uma coisa é um pai discreto deixar a filha conversar à vontade com um eventual namorado e outra muito diferente um pai sair de casa para deixar a filha...

Com que merda de ideias ando eu na cabeça?

Rita está só quando ele regressa, mas Adriano não se exime a fazer a sacramental pergunta inútil, porque precisa dela como pretexto:

- Então, o Alexandre já se foi embora? - e quando Rita completa a inutilidade respondendo que sim, ele prossegue: - Um tipo simpático. Muito interessado em ti.

Perante o silêncio absoluto, não se desencoraja: - Que eloquência esmagadora! Mas pronto, se não queres falar no assunto, por mim...

Pai, paizinho querido, suspira Rita com alegre resignação, não há assunto. Conheço mal o Alexandre, veio no mesmo avião que eu, como já te contei. Não quero cometer o mesmo erro que cometi com o Pedro, portanto não estou com pressa de o conhecer melhor.

E é a primeira vez, pensa Adriano, mas evita cuidadosamente dizê-lo, é a primeira vez que ela admite abertamente que o casamento com o Pedro foi um erro. Fazemos progressos. Em voz alta, pergunta: o que é que ele está a fazer em Macau, já agora, por simples e ociosa curiosidade?

Rita lança-lhe um olhar para que ele não pense que acredita na simplicidade nem na ociosidade.

- Trabalha num projecto da Escola Portuguesa, uma loja de cultura, que há-de abrir pouco antes da transferência da Administração.

Para evitar mais perguntas, não lhe fala nas suas dúvidas quanto às actividades de Alexandre nem lhe conta por que razão veio visitá-la esta noite: para saber (uma questão pessoal, salientou, que nada tem a ver com o seu trabalho) se ela terá avistado em Macau um homem que viajou com eles a partir de Lisboa e que Rita deixou de ver a bordo após a escala em Bangkok.

E que ela voltou a encontrar, há mais de dois meses, na esplanada de Coloane.

Logo que sai da casa de Rita, Alexandre dirige-se para a sede da Polícia Judiciária e entra pela porta lateral que costuma usar “para não dar tanto nas vistas”, como diz João Dias. No caminho, debateu consigo mesmo a questão: devo ou não dizer-lhe que esse Mareei Ribeiro já foi visto em Macau? Acabou por decidir-se pela negativa, pelo menos provisoriamente, porque de qualquer forma o homem já está a ser procurado e porque a informação de Rita pouco valor tem em si mesma, só serve, afinal, para o pôr de sobreaviso.

Quando entra na sala, vê que é o último a chegar, o grupo está ali na totalidade, acrescentado por um chinês que Dias se apressa a apresentar-lhe: o Sr. Wang Zhong Xie, que chegou ontem, finalmente, de Pequim; já sabe quem ele é.

Alexandre aproveita os instantes em que toma lugar à mesa de reuniões para observar este Wang Zhong Xie, que era esperado há tanto tempo: quarenta anos, talvez, tanto quanto é possível avaliar; óculos sem aros; fato muito sóbrio, gestos muito sóbrios e uma quase total ausência de expressão no rosto. Mas isto sou eu, pensa, que não sei ler caracteres chineses.

Agora, que todos estão sentados. Dias olha para Wang como se o convidasse a falar. E Alexandre, que pode não saber ler rostos chineses mas é razoavelmente hábil com os ocidentais, compreende que os dois se conhecem bem e que há entre eles um duelo cordial, até amigável, mas mesmo assim um duelo - de informação.

Wang sorri e nunca se viu sorriso mais simpático.

- Eu acabo de chegar - diz num português correcto mas de pronúncia laboriosa. Dias também sorri, com uma expressão franca e aberta.

- É verdade. E há-de trazer informações de Pequim.

- Sim, sim, sim. Diga-me uma coisa, estou interessado em saber o que se passa com esse partido português, por que razão está ele tão interessado em Macau. Não é muito lógico, pois não? Gostava de saber.

- Bom. - Dias vira-se para Alexandre e faz-lhe sinal para avançar. Portanto, deixa-se que o homem de Pequim ganhe o primeiro combate.

- O Partido da Reconstrução Nacional, explica Alexandre, é um agrupamento muito pequeno, sem representação parlamentar, que está conotado com a nova extrema-direita europeia. Se leu a documentação que aí tem, acrescenta, apontando a pasta de documentos que está em frente de Wang, há-de ter presente o perfil do PRN e não é preciso dar-lhe mais pormenores. Ultimamente, o meu serviço recebeu informações segundo as quais o PRN se prepara para lançar,.. tentar lançar, quero dizer, uma campanha de agitação em Portugal. O rastilho são os imigrantes. Os imigrantes não-europeus, evidentemente, só esses têm expressão numérica e além disso o PRN tem uma ideologia racista.

Wang diz “ah”, mas sem qualquer expressão. E onde é que entra Macau, que fica na China?

- Temos uma suspeita. Julgamos que o PRN vai tentar usar Macau como pretexto para lançar a campanha de que falei.

- Como? Não percebo.

Nesta altura, Dias toma a palavra.

- Ainda não sabemos ao certo, mas é evidente que querem aproveitar a circunstância em que estamos, as vésperas da passagem da Administração para a China.

Wang volta a dizer: “ah”. E acrescenta: - Como é que eles conseguem fazer isso? Esse partido não existe em Macau.

- Claro que não, continua Dias, precisa de ter apoios locais. Estamos a tentar encontrar pistas. Mas agora é a altura de você nos dizer alguma coisa. O PRN pode não ter nada a ver com o nosso problema, afinal. Sabe muito bem que os indícios que encontrámos e que nos puseram em alerta não foram recolhidos só em Macau. Ainda ontem recebi uma comunicação de Hong Kong, aliás eles também estão a trabalhar neste caso. Mas isto não é novidade para si.

Dias apoia as mãos à mesa, inclina-se um pouco, fita Wang com insistência: precisamos de todas as informações que haja, sem elas não podemos relacionar dados ou factos isolados. E outra coisa. O Dr. Alexandre Moura devia encon-trar-se em Macau com um dos vossos agentes e ele ainda não apareceu.

A cabeça de Wang roda muito lentamente na direcção de Alexandre.

- Um agente? Nosso?

- Sim, responde Alexandre. Chama-se Tang Kok long e sei que tem dados importantes para me entregar.

Qualquer diferença entre a cara de Wang e uma escultura em madeira é mera questão de pormenor Não se pode ser mais chinês, mais asiático, mais impenetrável.

- Não conheço. Não sei em que departamento trabalha.

Alexandre começa a sentir-se exasperado com as evasivas. Tenho de falar com ele, diz, martelando as palavras, e é urgente. Se for preciso, vou a Zhuhai, ele telefonou-me de Zhuhai a dizer que teve de sair de Macau porque estava a ser seguido pela Tcheng Sé. E a propósito, disse também uma palavra que não percebi: "Hexágono”.

Wang endireita-se na cadeira. Durante segundos, o seu rosto ganha expressão.

- Esse agente disse “Hexágono”?

- Sim.

- E estava a ser seguido pela Tcheng Sé de Macau?

- Foi o que ele disse, responde Alexandre secamente.

- Então, isto é mais grave do que eu pensava.

Wang fala directamente para João Dias. Este não parece perturbar-se. Sem tirar os olhos do outro, pergunta:

- O que é, exactamente, o Hexágono?

Ele, porém, ainda não está disposto a abrir-se. Em vez de responder, diz algo que é uma incongruência aparente: é preciso proteger o Tang Kok long, está com certeza em perigo de vida.

Alexandre, que perdeu a paciência, toma fôlego para dizer a Wang o que pensa, porém João Dias faz-lhe um sinal discreto que lhe devolve o bom senso.

- Wang, você ficou abalado - diz então o Coordenador. - Lembre-se do que acaba de ouvir: as últimas notícias do Tang Kok long colocam-no em Zhuhai. Mas ainda que ele tenha voltado para Macau, é impossível proteger alguém que está escondido. Precisamos da sua colaboração: fale com os tipos da Agência Nova China, talvez ele tenha entrado em contacto com eles. E dê-nos todas as informações úteis que tenha em seu poder.

Dias levantou-se enquanto falava, para ir observar uma planta pormenorizada de Macau que mandou afixar na parede maior da sala. Wang, que está a olhar as suas costas, responde-lhe num tom que acusa pela primeira vez um toque de urgência:

- Posso dar uma sugestão? É preciso prender todos os membros da Tcheng Sé. E interrogá-los.

Ao voltar-se para ele. Dias solta uma breve gargalhada. Boa ideia, exclama, contudo há umas pequenas dificuldades. Antes de mais, só poderíamos prender aqueles que conhecemos e esses estão longe de ser todos. E depois, Wang, dê-me razões legais. Os membros confirmados da Tcheng Sé já foram presos, julgados e condenados por associação criminosa. Por junto, são três. Quanto aos outros, só há suspeitas e a suspeita não é uma razão legal. E eu não posso tentar, sequer, sair da legalidade.

- A Imprensa caía em cima de si? - replica Wang com ironia amável.

- Pior. O Governador caía-me em cima. O sistema todo caía-me em cima. Se quer que lhe diga, Wang, eu caía-me em cima.

Não vamos tirar mais nada dele, pensa Alexandre, a partir de agora esta reunião passou a ser inútil.

Mais tarde, quando ela termina e Wang se despede e, logo depois, os representantes das polícias - que se limitaram a ouvir e a tomar notas - abandonam a sala, Alexandre deixa-se ficar, ocupa-se a reunir os cinzeiros cheios num só canto da mesa. Dias lança-lhe um breve olhar, depois começa a escrever notas à margem de um documento que tem na sua frente enquanto resmunga: deixe isso, a PJ tem pessoal para a limpeza, diga lá o que quer dizer

Alexandre senta-se na cadeira que Wang ocupou durante a reunião. Temos nós a certeza, pergunta, de que os chineses estão a colaborar connosco?

- Se se refere a Pequim, temos. Admito que o Wang Zhong Xie parece hermético. É o estilo dele. No entanto...

- Parece?

João Dias respira fundo, passa a mão pela testa como se a cabeça lhe doesse. - Enquanto eu acabo de escrever estas notas, diz ele, encoste-se para trás e pense. Depois falamos.

E durante dez minutos ficam os dois em silêncio. Dias a escrever, Alexandre a brincar distraidamente com o isqueiro. Ao fim desse tempo, o Coordenador guarda a caneta, endireita o corpo.

- Então?

- Ele não nos disse o que é o Hexágono, responde Alexandre, nem onde está o Tang Kok long. Quanto ao resto, reflexão feita, admito que nos passou algumas informações, mas eu preferia que as tivesse dado metidas em respostas claras.

- Pois, e eu preferia ter menos vinte anos do que tenho. É verdade que não deu informações sobre o paradeiro desse agente, mas provavelmente não as tem. E é verdade que não nos disse o que é o Hexágono, mas foi a única coisa que reteve. Ainda assim: pela maneira como falou, podemos pôr uma hipótese: talvez uma organização dissidente...

- Que ele, completa Alexandre, associou implicitamente à Tcheng Sé, que é uma tríade. Uma seita criminosa. E se a Tcheng Sé anda atrás de um agente chinês que veio a Macau com a missão de entrar em contacto connosco, é porque está de algum modo envolvida neste assunto. Valerá a pena interrogar esses três tipos que estão presos?

Mal formula esta pergunta, dá-se conta de que ela é totalmente ociosa. Dias encolhe os ombros.

- Não falam e de resto são arraia-miúda, soldados rasos. E não me pergunte pelo outro, o tipo que a PJ suspeita de ter atacado o aluno da sua amiga. Soltaram-no ontem, não era possível mantê-lo em detenção durante mais tempo, o rapaz nem sequer fez uma identificação categórica.

Há um outro nome para a azia, pensa Alexandre ao sentir um ardor subir-lhe à garganta, também se pode chamar frustração. Dias leu-lhe de alguma forma o pensamento:

- Eu sei. Continuamos às escuras. Bem, pelo menos ainda não aconteceu nada, já que a facada no estudante só pode ser considerada, por enquanto, como um caso de polícia. Outra coisa: por muita cooperação que tenhamos de Pequim, a festa é essencialmente nossa. Tanto quanto posso perceber. Para a China, esta questão pode representar um incómodo a evitar, mas a responsabilidade é nossa.

Não se esqueça de Hong Kong, objecta Alexandre, e Dias replica: não, não me esqueço, mas pelo menos no que diz respeito a Macau a responsabilidade é nossa e mais ainda num momento destes, - Ah, bem sei, o momento histórico, é claro.

Sente-se cansado de mais para falar em momentos históricos, passa já da uma da manhã. Levanta-se e espreguiça-se sem cerimónia, também está cansado de mais para cerimónias.

- Entretanto, até agora, só temos pistas chinesas e os primeiros indícios apontavam para um componente português. E não sei se já reparou, tudo isto leva-nos para longe do PRN e do Mareei Ribeiro, que, a propósito - afinal de contas sempre é melhor dizer-lhe isto, pensa Alexandre - já foi visto em Macau.

 

Algures, num recanto obscuro das altas esferas, uma cabeça privilegiada lembrou-se de que o Instituto Camilo Pessanha deve comemorar condignamente o primeiro aniversário da sua fundação. Provavelmente, pensa Rita, a ideia teve origem na própria directora, embora ela haja dado a entender que são instruções vindas de ainda mais alto. A verdade é que, seja qual for o programa dos festejos, a Dr" Ifigénia será sempre o centro das atenções mediáticas, como grande obreira do projecto, portanto será também ela a principal beneficiária.

Entretanto, há algo de ligeiramente artificial - ou de pesadamente ridículo - nestas comemorações. Porque, para perfazer um primeiro aniversário, o Instituto precisa de recorrer à data da assinatura do diploma que o criou, portanto o que vai celebrar-se é um ano de existência no papel e alguns meses apenas de funcionamento.

De qualquer modo, a directora decretou há já algum tempo a mobilização geral e urgente dos seus efectivos, para que todos dêem ideias, recebam tarefas, assumam responsabilidades. E hoje - com o atraso inerente às grandes pressas do funcionalismo - é o dia da magna reunião, que deixa Rita um pouco irritada e sobretudo muito cansada. No final, quando se prepara para ir ao Centro Hospitalar visitar Cheong, jura a si mesma, numa breve cerimónia íntima, que nunca mais apresentará uma única ideia e ainda menos uma sugestão.

Depois, ao sair do táxi, diante da entrada principal, pergunta-se - como tem acontecido nas visitas anteriores - se voltará a encontrá-lo. Por duas vezes, quando saía da enfermaria, lan passava no corredor e veio falar-lhe. Numa terceira, a mais recente, ele não apareceu.

E a visita de hoje será a última: Cheong diz-lhe que vai ter alta muito em breve e deixa de fazer sentido continuar a vir a São Januário, nem Cheong espera que ela o faça, porque, em jeito de despedida, assegura-lhe que voltará às aulas logo que termine a convalescença e depois agradece-lhe a atenção e os cuidados em termos que a deixam comovida

E também um pouco embaraçada. Se quiser ser completamente sincera, terá de perguntar-se qual o motivo real da sua solicitude. Mas não importa, se o rapaz se sente acarinhado. A boa acção da escuteira que ela nunca foi.

Quando a mãe e a irmã de Cheong entram na enfermaria, Rita submete-se às apresentações e sai pouco depois. E, desta vez, lan não vai a passar, está parado junto da porta, como se a esperasse.

- Não se sente bem? - pergunta ele. - Parece-me cansada ou tensa, ou... tem dormido bem?

Ela ri com vontade, o que acontece pela primeira vez neste dia. Doutor, isso é deformação profissional, começa a dizer, mas lan interrompe-a:

- Por favor, chame-me A-Weng. Ou melhor ainda, Frederico.

- Obrigada pela confiança. Dizia eu, não ligue. Isto é só uma crise passageira. Assim do género: Ah, que me metam entre cobertores e não me façam mais nada. Já passa.

lan surpreende-a então ao responder:

- Eu também gosto muito de Mário de Sá-Carneiro. Rita, por um instante, não sabe como há-de replicar.

- Agora é que me envergonhou, diz por fim. Eu fiz a citação assim de repente, sem me lembrar de quem era, e isso é imperdoável numa professora de Literatura. Já agora, podia explicar-me como é que fala um português que não tem o mais leve vestígio de sotaque...?

- Provavelmente, responde lan, porque nasci em Moçambique e saí de lá quando tinha dez anos. E depois estudei em Portugal...

- Onde se especializou em Sá-Carneiro, estou a ver.

- Não, em medicina! Mas o Sá-Carneiro não é o meu único favorito. Quer acreditar que tenho uma predilecção especial por Gil Vicente?

- Misericórdia, exclama Rita enquanto se pergunta se ele não vai ter de interromper a conversa bruscamente, chamado por uma enfermeira ou pelo irritante “bip-bip”. Misericórdia, passei a manhã a falar de Gil Vicente. E conta-lhe então das projectadas comemorações no Instituto, as ordens vindas do alto, a necessidade de se encontrar uma solução rápida e a sugestão que ela deu: um espectáculo cuja primeira parte fosse preenchida por um auto de Gil Vicente interpretado por alunos do Instituto e tendo na segunda parte uma cena chinesa - mímica, dança, ópera, qualquer coisa, enfim - a ser interpretada, evidentemente, por jovens portugueses. Interpenetração de culturas, homenagem mútua, essa trapalhada toda. O pior de tudo, remata, é que a sugestão foi aceite e agora metade da responsabilidade é sua, porque os jovens chineses que vão representar o auto são os seus alunos e têm vinte dias para mostrarem o que valem.

- E a parte chinesa, pergunta lan, quem são os portugueses que vão encarregar-se dela... mas interrompe-se, olha para o relógio. - Ai, as horas. Se eu tivesse coragem, convidava-a para jantar comigo, assim podíamos continuar a conversa, porque esse assunto interessa-me, sabe... o problema é que não tenho coragem.

O que é uma forma como qualquer outra de atirar barro à parede, mas que tem mais encanto do que todos os outros métodos que ela já conhece.

- Não há problema. Quem disse que os homens são mais corajosos que as mulheres? Eu tenho coragem que chegue para os dois e portanto aceito.

 

Adriano está a trabalhar na sala, onde instalou o computador portátil. Ao vê-la entrar em casa, sabe imediatamente que aquele jantar foi especial - Rita disse-lhe somente que jantava fora, o que aliás já aconteceu antes, mas nunca, das outras vezes, regressou com aquele sorriso luminoso, tão luminoso e transparente e espontâneo que ela nem deve perceber que o tem no rosto. Razão maior para não lhe fazer outra pergunta que não seja a convencional e estafada: então, esse jantar, foi agradável?

Até este momento, portou-se como o pai inteligente e discreto que decidiu dever ser. A falha vem quando Rita diz que sim, o jantar foi muito agradável e Adriano é incapaz de conter a língua e replica:

- Eu já sabia.

Imediatamente, morde a língua que não soube dominar. Mas é tarde, claro, Rita abre a boca, vai falar. É então que um abençoado, um providencial - quase teatral - toque de campainha o vem salvar do embaraço. É a campainha da porta da rua, lá em baixo, portanto deixa que seja ela a atender uma visita tão tardia.

Rita dirige-se ao intercomunicador. Pergunta quem é, faz um ar surpreendido, carrega no botão que liberta o trinco.

- Não percebo, é o Frederico! - exclama. Ao que Adriano responde - tendo o cuidado de usar um tom que exclua remoque ou inquisição: eu também não percebo, porque não sei quem é o Frederico.

- Não sabes,..? Ah, pois não, é verdade. Já vais saber. Mas é que foi com ele que eu jantei, acabamos de sair do restaurante, veio trazer-me a casa. Por isso é que não percebo.

Adriano morde a língua novamente. Preciso de matar em mim este horrível sentido de humor, pelo menos quando se trata da Ritinha. Porra, eu ia responder-lhe que se calhar ele lembrou-se de que não comeu sobremesa. Trata-se da minha filha, isto é ordinário, é mesmo perverso e se ainda houvesse cilícios à venda eu comprava meia dúzia.

A penitência - mental, à falta de melhor - dá-lhe alguma serenidade. Rita abriu já a porta e está a dizer: entre, entre, eu esperava vê-lo em breve, mas tão em breve é que não esperava, isto é uma agradável surpresa. Pois, o humor dela é muito parecido com o seu.

Atrás de Rita entra na sala um rapaz chinês. Excepcionalmente bonito, anota Adriano, que involuntariamente faz a comparação com Alexandre, que não tem aparecido nos últimos dias. Mas tenho também de recalcar este instinto de pai verificador de possíveis namorados ou noivos, está fora de moda e mais fora ainda da idade dela.

No entanto, não pode impedir-se de reparar, com um certo divertimento interior, que o rapaz não contava com a sua presença e que o seu rosto acusa uma ligeira desilusão, logo apagada por um sorriso cordial quando Rita o apresenta, o Dr. Frederico lan, médico do Hospital de São Januário, foi ele que assistiu o A-Meng naquela noite horrorosa.

O Dr. Frederico lan parece ansioso por explicar a sua presença. Encontrei isto no carro, diz entregando a Rita uma carteira de documentos.

- A minha carteira?! Mas como, se eu não abri a bolsa dentro do carro?

- Abriu, com certeza - replica lan - porque estava caída no chão.

Enquanto Rita agradece, insistindo em como é estranha aquela sua distracção, ele dá-se conta de que está a ser observado por Adriano e resolve enfrentá-lo em vez de esquivar-se:

- Eu conheço-o... de nome, como escritor, e estou a reconhecê-lo agora das fotografias nos seus livros. Mas não sabia que estava em Macau, a Rita não me contou... gosta de Macau?

- Muito, responde Adriano, e vai explicar que já aqui viveu durante uns tempos quando Rita, que lhe percebeu a intenção, intervém num tom quase agressivo: desculpem-me a interrupção, esta humilde dona de casa gostaria de saber se os senhores tomam uma bebida.

lan recusa, explica que tem de se ir embora porque amanhã entra ao serviço às oito horas, portanto não vai sequer sentar-se. No entanto, ainda diz a Adriano que leu há pouco tempo um dos seus romances, O Exílio.

- É bom, não é? - Rita continua apostada em não deixar que se estabeleça uma conversa entre ele e o pai. - Aliás, ganhou um prémio...

- Deixa-te de propaganda - atalha Adriano, que acabou de encher o cachimbo - e devolve o isqueiro que me roubaste.

- Eu? Calúnia!

Rapidamente, Lan tira o seu isqueiro do bolso e dá-o a Adriano.

- Ouça - diz este enquanto acende o cachimbo - ao menos, faça-me companhia num whisky.

Mas lan recusa novamente, agradece, despede-se. Depois de ele sair, quando Rita volta à sala, vê o pai instalado na poltrona, a fumar, e sabe, adivinha o que ele vai dizer.

- É simpático. E fala um português impecável.

- Pois fala. Veio de Moçambique.

- Ah. As malhas que o império tece, ou melhor, teceu. Por pouco não acrescentou: não sabia que gostavas de fazer malha. Mas desta vez foi capaz de se conter. No entanto, não escapa às consequências da outra piada, a que lhe saiu, pois Rita, que se sentou à sua frente, declara:

- Já agora, gostava que me explicasses como é que sabes que o jantar foi agradável. Foi o que disseste na altura em que ele tocou à porta.

Adriano liberta uma nuvem de fumo.

- Há certas ocasiões, Ritinha em que ficas resplandecente, como os Filhos da Luz. E há bocado, quando chegaste a casa, tu resplandecias, era visível a olho nu.

Falou quase inocentemente, quase sem dar à fala - ainda - muita importância, mas a irritação que as palavras provocam em Rita equivale, no seu espírito, a uma confirmação, sobretudo porque se lembra de uma outra reacção da filha, no dia da sua chegada; mas é uma manta que certas pessoas têm: se é chinês, anda metido com seitas, isto quando nada do que ele disse justificava um tal desabafo.

Empenha-se então em amainá-la:

- Não ligues. De resto, não é da minha conta.

- Eu não disse isso.

- Mas é verdade. E o meu interesse não é autoritário, é só afectivo. Há só uma coisa que não percebo: por que é que me impediste de dizer ao teu doutor chinês que já vivi em Macau?

- Ele não é o meu doutor e eu não impedi nada ou então foi sem dar por isso, responde Rita. E isto é um erro, porque Adriano pode resistir eventualmente aos ímpetos do seu sentido de humor, porém não resiste a uma negativa tão falsa.

- Aos meninos que mentem, crescem-lhes as orelhas... não, o nariz... enfim, um apêndice qualquer.

Sabes muito bem, diz ela então, que não gosto que se fale nesse assunto. Há coisas da tua vida em Macau que eu não quero saber.

- Que tu não queres admitir que sabes. Entre outras coisas que me aconteceram, apaixonei-me por uma chinesa... é isso, não é? Ora tu estás à beira de te apaixonares...

- Não é a mesma coisa.

Uma resposta curta, reflecte Adriano, porém maravilhosamente expressiva e densa de conteúdo. Tão densa de conteúdo que convém ficar por ali. Sacode o cachimbo no cinzeiro, levanta-se, fala de modo a fazer compreender que não está zangado, que o assunto não tem a mínima importância. São horas de ir para cama e é o que ele vai fazer, boa noite, até amanhã.

“Não é a mesma coisa”, repete um pouco mais tarde, já entre os lençóis. O que significa, antes de mais - embora Rita não o haja entendido, talvez - que ela não desmentiu aquele “estás à beira de te apaixonares”. O que significa, além disso, que, apesar de nunca se ter entendido com a mãe, continua a pensar que eles não se deviam ter divorciado, deviam ter carregado aos ombros a sua incompatibilidade, a indiferença e o tédio que mutuamente se provocavam. Que ele se apaixonou por Rosa Leong sem ter a idade nem o direito de permitir que isso lhe acontecesse.

E é capaz de ser verdade, quem sabe, mas o que ela não entende é que apesar da colossal diferença de idades e gerações, se é verdade para mim também é verdade para ela, ninguém devia casar-se ao fim de três meses de namoro, ninguém devia usar um homem ou uma mulher como um produto novo que aparece no mercado, descartável se não nos vai bem à cor da pele. Mas andamos todos, novos e velhos, permanentemente excitados, o sexo passou a ser uma questão de puro consumo e para se vender uma nova marca de alfinetes mostra-se um cu apetitoso, quando não é o resto, não sei porquê isto faz-me pensar nos frescos de Pompeia, a História não se repete mas anda lá muito perto, o problema é que deixámos de nos preocupar com a História e julgamos que andamos a inventar tudo. E é melhor apagar a luz para ver se durmo.

Na sala, Rita está imóvel e calada, o seu pensamento também se quedou e se calou. Na mão direita, segura o isqueiro que lan emprestou ao pai, para acender o cachimbo, e que ele acabou por não guardar.

lan partiu deixando-o em cima da mesa. Distracção? - pergunta-se Rita subitamente. Uma imagem acaba de saltar para dentro da sua memória: ela e Frederico no restaurante, a falar de Mário de Sá-Carneiro e depois de Camões e a seguir de outros temas menos literários; ela a abrir a bolsa. Tirou de lá a carteira de documentos para procurar um pedaço de papel onde pudesse escrever o número de telefone da casa dele, que se tinha esquecido, portuguesmente, dos indispensáveis cartões de visita. Rita não consegue visualizar o gesto de arrumar novamente a carteira, apenas se lembra de a ter pousado sobre a mesa. Quase pode jurar que não a guardou. A ideia fá-la sorrir.

Mas só vários dias depois é que decide ir a São Januário devolver-lhe o isqueiro. Não, apenas, por não querer parecer demasiado interessada. O acréscimo de trabalho no Instituto, por causa da sua péssima sugestão, tornou-se quase insuportável. Durante as aulas, já havia abordado o teatro vicentino, porém uma coisa é falar de Gil Vicente e outra muito diversa é conseguir pôr um punhado de jovens chineses a representar o Auto da Barca do Inferno de forma plausível. Conta apenas com a enorme boa vontade dos voluntários e consigo própria, e por vezes, em momentos de desânimo, receia que isso não chegue.

Alexandre apareceu-lhe duas vezes durante este período. Aceitou os seus convites para jantar, sentiu prazer na sua companhia, mas tem de admitir que algo se alterou - talvez, diz a si própria, talvez seja apenas a fadiga acumulada que não a deixa descontrair-se suficientemente.

Esse mal, a existir, não está só nela. Alexandre também lhe parece cansado e, sobretudo, tenso. E Rita desconfia cada vez mais da sua sinceridade, quando lhe pergunta pela loja de cultura ele faz um esforço visível ao responder, como se tivesse de recordar-se primeiro de que é esse o trabalho que afirmou estar a fazer.

Quanto ao pai, não voltou a pôr-lhe questões embaraçosas (diria impertinentes, se não fosse o pai) e, na realidade, só o vê à noite, já tarde, quando partilham uma refeição ligeira. Não sabe o que ele anda a fazer por Macau, mas calcula que anda às voltas com as reportagens e artigos que envia para Lisboa pelo correio electrónico. Desde que não se meta em sarilhos, tudo irá bem.

Hoje, que o ensaio do auto correu pela primeira vez de forma aceitável - excepção feita aos ataques de riso constantes de Lam Koi, o rapaz a quem foi distribuído o papel de Joane - ela saiu mais cedo e tomou um táxi para se dirigir ao Centro Hospitalar. Já é tempo de comprar um carro, porém aterroriza-a a ideia de conduzir à esquerda.

Na recepção dizem-lhe que o Dr. lan Kuok Weng está ocupado e que terá de esperar. É natural, pensa, mas se ele demorar muito vou-me embora. Nem devia ter vindo, é ridículo. Espero um quarto de hora, já que cá estou, depois deixo o isqueiro na recepção.

Não passaram ainda dez minutos quando o vê aproximar-se em passo rápido. Vem com um sorriso aberto... “resplandecente”. A involuntária lembrança do termo usado pelo pai incomoda-a ao ponto de a fazer corar.

- Por aqui, pergunta lan, como se estivesse surpreendido.

o Cheong Chi Meng já teve alta, saiu há já uns dias, pensei que soubesse.

- Eu sei. Vim falar consigo, para entregar-lhe isto. Dá-lhe o isqueiro. Espera um agradecimento que não vem: lan limita-se a olhá-la, sempre a sorrir. Ela acrescenta: ultimamente, passamos a vida a esquecer-nos de coisas...

- Eu não me queixo - diz finalmente lan. - Até gostava de comemorar este esquecimento. Como já arranjei coragem, posso convidá-la...

- Jantar outra vez, não, atalha Rita. Com o excesso de trabalho que tenho, desabituei-me de jantar. Não faz mal nenhum, é bom para manter a linha.

- Para uma bebida, então?

Durante o silêncio que vem depois desta pergunta, estabelece-se definitivamente a cumplicidade entre uma carteira de documentos e um isqueiro.

Muito mais tarde, quando ela entra em casa, Adriano só precisa de a observar durante um ou dois minutos para compreender o que aconteceu.

É estranha esta certeza, porém não duvida dela nem fica chocado ou surpreendido. Quando Rita lhe telefonou a dizer: vou chegar mais tarde, o Frederico convidou-me para ir tomar um copo, soube, pelo seu tom, pela maneira como falou, que ela tomou uma decisão. Vê-la agora, enquanto rega as plantas que acumulou junto da janela, enquanto lhe conta dos ensaios vicentinos e vai buscar leite à cozinha, ver os seus movimentos e ouvir-lhe a voz, serve somente de confirmação.

Rita não tarda a retirar-se, depois de um beijo afectuoso. Adriano deixa-se ficar diante do computador, mas não retoma o trabalho.

Bem, bem, não é nada que eu não esperasse. Santo Deus, e eu que lhe escrevi, naquela primeira mensagem electrónica, “vê se arranjas um chinês”. Arranjou mesmo, filhinha obediente. Ao menos, quando ela me disse que o rapaz pratica o tai kek todos os sábados no alto da Guia, eu abstive-me de responder: será que ele também pratica a tai queca? Pensei que não era gracejo conveniente de pai para filha e agora só de pensar que o poderia ter dito sinto como que um arrepio. Devia consultar um psicólogo para saber se esta mania ou este hábito ou este vício é resultado de algum trauma desconhecido. Não: é resultado da minha discordância fundamental em relação a tudo aquilo que me cerca. Mas se é assim, cada gracejo que se me escapa é uma agressão e portanto não é inocente.

Com gestos lentos, automáticos, bate o cachimbo contra o cinzeiro, põe-no de lado, pega num outro e começa a enchê-lo. Sorrateiramente, sem se fazer anunciada, apodera-se dele a ideia de que, na realidade, não está a cumprir nada de útil em IVIacau e que o melhor que tem a fazer é voltar para Portugal o mais depressa possível. Desde que chegou, não foi capaz de encontrar uma pista, nem que seja pequena, que o leve a compreender os acontecimentos que perturbaram Rita, o que, aliás, já devia ter previsto. E esses acontecimentos passaram sem deixar rasto aparente, aliás começa a duvidar de que Rita haja sido seguida por outro chinês que não seja o Dr. Lan Kuok Weng, Frederico para os amigos portugueses. Por outro lado, ela já não parece insegura nem angustiada. E, depois do que certamente se passou hoje, a sua presença é mais um empecilho que um conforto. E ela é maior e vacinada.

E eu estou mais velho do que pensava. Que ideia ridícula deixar o meu pequeno mundo de Vale de Monges e a exploração do passado da Tia Geninha para me lançar outra vez no grande mundo, à procura não sei bem de quê. O que vivi em Macau está vivido. Não é possível atear a cinza, cada fase da nossa vida é em si mesma um mundo e não dá resultado querer saltar para outros mundos.

A sua decisão de partir mantém-se, porém tem de ser adiada por alguns dias. Rita não lhe perdoaria se regressasse a Portugal antes do espectáculo que está a ensaiar - porque ela troça da ideia e lamenta-se do excesso de trabalho, mas empe-nhou-se a fundo e refere-se constantemente ao entusiasmo dos alunos, à maravilha que é começar a vê-los entrar nos seus papéis, dizer os textos de Gil Vicente - Deus sabe que são difíceis, até, para portugueses. E além disso, quer que o pai assista ao ensaio geral, marcado para o próprio dia da récita.

Há outras solicitações: o Liceu e o Instituto Politécnico descobriram finalmente que um escritor anda a vaguear por Macau e lograram localizá-lo; a partir desse momento, foi difícil recusar-se - simpaticamente, pelo menos - a encontros com os estudantes para falar de literatura e acessoriamente de jornalismo, pois também é conhecido o seu outro ofício.

É a tragédia de não ser um génio, declara ele a Rita, com um ar muito sério. Se eu fosse um génio podia mandá-los passear e ninguém levava a mal, até achavam graça.

E há ainda aquele jovem Luís Costa - jovem a julgar pela voz - que o perseguiu telefonicamente até o apanhar, para lhe pedir uma entrevista "de fundo”, como ele diz. O jornal é o Nova Abelha e este nome traz a Adriano recordações muito especiais. Mais uma vez, porém, é cinza que não se pode atear: o Nova Abelha de hoje não é o do passado, Rita apressa-se a adverti-lo de que o jornal passou a ter uma orientação política definida, basta dizer que foi o único que apoiou o GRIC na história dos Filhos da Luz Resplandecente.

- Não faz mal, eu aproveito para escandalizá-los um bocado, há-de fazer-me bem ao fígado - responde. E quando o infatigável Luís Costa lhe telefona de novo para confirmar a data da entrevista, decide marcá-la para o dia da récita, à tarde, logo após o ensaio geral. Deste modo, despacha num só dia as duas últimas obrigações que se impôs. E a seguir será tempo de pensar seriamente no regresso.

Consagra então estes últimos dias a despedir-se de Macau, rever os seus lugares favoritos, a capela de São Francisco Xavier em Coloane, os templos de A-Mah, Kuri Iam e Hông-kóng Sân, o Mercado Vermelho, São Paulo, os jardins de Camões e de Lou Lim loc, a Porta do Cerco, outros lugares ainda. Quer encher os olhos e a memória com Macau.

A nova peregrinação, que ele deseja mais lenta e mais longa do que a da chegada, não terminou ainda no dia do ensaio geral e da récita, mesmo porque teve de a interromper para acabar os trabalhos prometidos a João Carlos e à sua Contra a Maré. Não faz mal, ainda há tempo.

Neste dia, ao princípio da tarde, no Teatro D. Pedro V, Adriano senta-se num banquinho de lona portátil, na ponta esquerda do palco, e assiste divertido aos esforços de Rita.

Corre tudo bem, todos sabem os seus papéis, mas Lam Koi continua a sofrer ataques de riso convulsivo.

Justamente, chegaram ao momento crítico - crítico para Lam Koi - do Auto da Barca do Inferno. O Diabo perguntou ajoane: De que morreste.''E }oane respondeu: De quê? Samicas de caganeira. Lam Koi aguentou-se nesta, embora um sorriso perigoso se lhe desenhasse na cara. De quê? Pergunta novamente o Diabo. De... começa Lam Koi, mas pára.

- Outra vez!? - exclama Rita exasperada. - Diz a palavra, A-Koi, é Gil Vicente, é um clássico!

O pobre Joane ainda consegue articular: de cagamerdeira, mas depois não resiste, larga a rir e arrasta consigo todos os outros.

Rita solta um suspiro resignado, anuncia um quarto de hora de intervalo, para ver se Lam Koi se acalma. Isabel - a única das suas colegas que lhe tem prestado auxílio - aproxima-se dela e diz-lhe: experimenta fazer cara feia, pode ser que resulte.

- De qualquer modo, ele já está melhor, até há dois dias não era capaz, sequer, de dizer as réplicas, começava a rir logo que abria a boca. Mas se logo à noite se desmancha, eu mato-o, palavra.

Um ruído de gargalhadas interrompe-as. No palco encontra-se não apenas o elenco chinês do auto vicentino, mas também o elenco português de A Concubina do Imperador de Jade, a peça chinesa; rapazes e raparigas da Associação Cultural convidados pelo Instituto para dar ao espectáculo um carácter verdadeiramente intercultural. Se não fossem estes macaenses da Associação, pensa Rita, aonde é que iríamos arranjar portugueses que soubessem cantonense bastante para declamar num palco? Não são assim tantos e esse é talvez um dos nossos erros seculares.

Mas esqueçamos os erros, por hoje. Pelo menos aqui, neste palco, há um entendimento a condizer com a porta monumental erguida em frente à colina da Barra.

Como a ilustrar esta ideia, um rapaz alourado, vestido de Imperador de Jade - pertence ao elenco da peça chinesa - aproxima-se do Diabo vicentino, olha-o com ar crítico e diz para a Concubina, que na vida real é obviamente a sua namorada;

- Já viste? Está aqui um diabo estrangeiro. Um kwai-lôu. A-Kin, o Diabo, responde-lhe em voz baixa mas audível:

os tomates. E Isabel, que tal como Rita ouviu tudo, incluindo a resposta vicentina do Diabo vicentino, comenta: o A-Kin está a fazer grandes progressos no uso do português corrente.

- É verdade. Não que eu lhe tenha ensinado. - E, passado um momento, acrescenta: - Era bom que isto ficasse depois de 99.

Isabel, que já se distraiu a observar os fatos de cena chineses, pergunta-lhe: isto, o quê? Rita faz um gesto abarcando o palco.

- Isto. Tudo isto.

- Ah, entendo. Minha filha, espero bem que sim, porque eu fico em Macau, não te esqueças. E tu, a propósito.- já tomaste uma decisão?

Rita pressentiu a pergunta a que não quer responder porque sente-se demasiado confusa desde a explosão física e emocional no apartamento de lan.

Ele queria vê-la todos os dias, queria que se encontrassem todos os dias. Mas pediu-lhe um tempo para... não. Agora não é momento.

Avança para o grupo dos seus alunos, chama Lam Koi:

- Ouve, A-Koi. Tens de concentrar-te. Eu sei que é engraçado, mas não podes rir, estragas tudo, A melhor maneira é dizeres a palavra tantas vezes que te fartes dela. Faz uma coisa: enquanto durar este intervalo, vai para um canto, sozinho, e repete: cagamerdeira, cagamerdeira...

- Ensinas lindas coisas aos teus alunos.

O aparte foi murmurado por Adriano, que atravessa o palco para desenferrujar as pernas. Rita lança-lhe um “também tu”, mas ele não se detém, passa aos bastidores, distrai-se a olhar à esquerda e à direita.

Distrai-se tanto que tropeça num cabo eléctrico, não consegue restabelecer o equilíbrio, cai de bruços.

Cai de bruços e assim fica. Nem ouve Isabel, que está ali perto e assistiu à queda, perguntar-lhe se se magoou. Tem os olhos colados a uma pequena caixa que se encontra no chão, a dois metros dele, junto de um rolo de corda, uma caixa metálica onde há uma luzinha a piscar e um mostrador digital com números em contagem decrescente.

Finalmente ouve a voz alarmada de Isabel e levanta-se rapidamente. Não se preocupe comigo, diz em voz baixa, só estou magoado na dignidade. Mas faça-me um favor, com muita calma. Ponha toda a gente daqui para fora. Diga que há uma ligação eléctrica defeituosa, que há risco de curto-circuito. Leve-os a todos, incluindo a Rita, claro. Já. E preciso de uma lista telefónica, já.

Entretanto, limpou a testa coberta de repentino suor e levou a mão ao cinto, onde tem preso o telemóvel macaense que alugou. Podia ligar para o número de emergência, porém o tempo que perderá com a lista telefónica, ganhá-lo-á nas explicações se telefonar directamente para a Polícia Judiciária. O inspector Luís Rodrigues é um velho conhecido, de outros tempos e de outras ocorrências.

A informação de que um engenho explosivo foi encontrado nos bastidores do Teatro D. Pedro V chega muito rapidamente à sala de operações do Grupo de Trabalho, trazida por Matos Costa, que por sua vez a recebeu do inspector Rodrigues, e justifica uma reunião plenária de emergência.

Isto é provavelmente o princípio daquilo que receávamos, declara João Dias, mas pelo menos temos algo de material a que nos agarrarmos, a própria bomba. Pode dar-nos uma pista. E o pessoal do teatro tem de ser interrogado... não, isso não pode ser, raios, não pode.

Os homens das três polícias olham-no, espantados; só Alexandre, que o compreendeu, não levanta sequer a cabeça, está entretido a rabiscar desenhos numa folha de papel. Sem mudar de posição, toma a palavra:

- É verdade, não pode ser. Com excepção do electricista a quem o Adriano Carreira teve de dizer o que se passava para que alinhasse na história que inventou. Com esse, oh, com esse há que ter uma longa conversa para o convencer a não abrir a boca. Quanto aos outros, nada feito. Por uma razão qualquer, que me ultrapassa, sobretudo porque ele é um jornalista, o Adriano Carreira teve bom senso e imaginação para inventar essa história de ligação eléctrica a ameaçar curto-circuito e incêndio e conseguiu evacuar o palco e a sala. É um milagre e os milagres não devem ser desperdiçados.

Dias concorda com um aceno e observa.- gostava de conhecer pessoalmente esse senhor, o pai da sua amiga. Gostava de saber por que é que agiu contra o seu instinto profissional, é isso que me intriga. Mas o que importa é saber se depois deste enorme favor que nos prestou ele não vai estragar tudo e mandar a notícia para um jornal. Porque uma bomba, mesmo sem explodir, é notícia, claro, sobretudo em Macau. A gente dos jornais adora dar notícias dessas sobre Macau, é uma ternura.

Virando-se para Matos Costa, pergunta:

- Quem é que está no teatro?

- O Luís Rodrigues. E dois tipos das Minas e Armadilhas ficaram também, a revistar tudo, à cautela. Claro que o pessoal das Minas e Armadilhas foi vestido à civil para não dar nas vistas. Quer que o Rodrigues interrogue o Carreira?

Dias volta a acenar. - Mas não um interrogatório, antes uma conversa amigável, para o homem não desconfiar de que possa haver por detrás de tudo isto...

Deixa morrer a frase. Mais uma vez, Alexandre compreendeu o silêncio e a frustração que traduz, pois ele mesmo a sente. O que possa haver por detrás de tudo isto, nenhum deles sabe exactamente o que é. Ainda não conseguiram abrir uma brecha no muro. Há apenas uma fissura: foi colocada uma bomba e Mareei Ribeiro, o operacional do PRN, é perito em explosivos. Mas continuam a não saber dele. Com um passaporte falso e uma aparência modificada - coisa fácil, como ele muito bem sabe, não é preciso sequer uma barba, natural ou postiça - pode escapar-lhes indefinidamente.

A esta hora, no teatro, o ensaio está prestes a recomeçar e Luís Rodrigues agradece a Adriano ter-se esforçado por manter em segredo o motivo real da evacuação. Adriano faz um gesto a depreciar os seus méritos.

- Não foi nada de mais, você conhece-me, eu sou aquele grande espírito cívico de que falam os manuais. Neste momento, vejamos, há quatro cidadãos que sabem o que se passou: eu e duas professoras, uma delas reconhecidamente discreta e a outra é esta filha magnífica que eu tenho - Rita está a seu lado, serena e composta - e que você já conhece, mas não tão bem como eu. Garanto o seu silêncio plúmbeo. E há o cidadão electricista. Quanto a esse, compete-lhe a si incutir nele o temor de Deus.

- Eu sei, responde o inspector, já está a ser doutrinado. Mas queria ainda ter uma conversa consigo. E então, replica '. Adriano, o que é que nós temos estado a fazer, mímica?

Rodrigues inspira fundo. Já o conhece, deve-se-lhe um favor, há que ter paciência.

- Ao menos não perdeu a boa disposição. Digamos: imais uma conversa, mais desenvolvida... espere-me aqui uns minutos, por favor, temos de tomar providências discretas para o espectáculo de logo à noite. Eu volto já.

Mal ele se afasta, Adriano passa o braço à volta dos ombros de Rita. Tudo bem contigo, pergunta. Ela responde que sim, não deve preocupar-se.

- Pois, não devo preocupar-me. Só que a tua vida em Macau tem estado cheia de episódios titilantes que eu gostava muito de compreender.

- Também eu. Mas não tens de te queixar, estou a seguir as tuas pisadas, lembras-te. Entretanto, faz-me um favor: não te metas agora a detective nem a jornalista de investigação, OK'

- OK continua a não ser português, diz Adriano, e não vou meter-me em coisa nenhuma, pelo contrário, vou sair.

- E o inspector. - lembra Rita. - O inspector quer falar contigo.

Porém Adriano já tem a medida cheia: minha filhinha, espírito cívico sim, mas convém não abusar das boas coisas. Diz-lhe que tive que fazer E é verdade, tenho a entrevista para o Nova Abelha. Volto logo que acabar Talvez volte, quero dizer

Dá-lhe um beijo e afasta-se discretamente.

Na Redacção do Nova Abelha, que fica a escassa distância do teatro, Luís Costa não o faz esperar. Como Adriano calculou, é muito novo, é mesmo quase imberbe, eles qualquer dia vão buscá-los à porta da maternidade, resmunga para si próprio ao ver os sinais de acne juvenil que ainda decoram o rosto magro do rapaz.

Luís Costa declara-se um admirador de Adriano, o que é simpático mas embaraçoso, e depois dessa declaração leva-o para um pequeno gabinete onde só há espaço para uma secretária e duas cadeiras encostadas a uma mesa redonda, minúscula. É o gabinete do chefe, explica-lhe, o chefe teve de sair à pressa para uma conferência de Imprensa no Palácio e portanto podemos fazer a entrevista aqui, estamos mais à vontade. Eu vou buscar o gravador, não demoro nada, é só ver em que gaveta é que o meti. Sente-se, por favor, ponha-se tão confortável quanto puder.

Adriano agradece e fica de pé. Nota com agrado que a secretária está saudavelmente desarrumada e coberta de papéis. Detesta aquelas redacções tão plenamente convertidas à era informática que já não se distinguem de um consultório médico. Ali há um computador, claro, mas há também papéis em desordem, é um ponto a favor do Nova Abelha, a compensar, ao menos em parte, o seu alinhamento político.

Não resiste a explorar com os olhos a papelada. É uma (tentação infantil, mas já se sabe que em cada homem se esconde uma criança, portanto deixemos a criança brincar, que não faz mal a ninguém.

E é pelo mais puro dos acasos - admitindo que os acasos existem - que lê uma palavra, uma só palavra, numa folha manuscrita que devia estar totalmente oculta sob uma gorda pasta de cartolina. Depois, é a mais ociosa das curiosidades que o leva a puxar a folha e a ler.

A partir deste momento, a criança volta para o seu canto, o acaso e a curiosidade ociosa retiram-se. Adriano olha à sua volta rezando para que o redactor quase adolescente não tenha encontrado ainda o gravador. Com movimentos rápidos - e o coração a acelerar o seu ritmo - tira do bolso o único papel que traz consigo, um cartão de visita que alguém lhe deu, e copia aquele texto só em meias palavras, por vezes só com as duas primeiras letras de cada palavra. É preciso ainda voltar a colocar a folha manuscrita na posição exacta em que se encontrava. Não consegue sentar-se antes que o rapaz entre no gabinete, mas pelo menos afastou-se da secretária.

- Desculpe tê-lo feito esperar, houve um sacana que se apoderou do meu gravador, foi preciso andar à procura...

- Não tem a mínima importância, responde com uma tranquilidade que espera convincente. E acrescenta, para criar uma atmosfera descontraída: .vamos lá então dar pólen à sua abelha.

Luís Costa acha graça, ri, depois confessa que considera o título do jornal ridículo, despropositado...

- Porquê? - pergunta Adriano. - Não me diga que não sabe qual é a origem do título.

Não, não sabe. Evidentemente, as novas gerações - e até as menos novas - não fazem a mínima ideia do que aconteceu na Terra antes da sua época e também não estão interessadas. E os óculos, como aqueles que o rapaz usa, já não servem para ler, só para ver televisão.

- O primeiro jornal que houve em Macau chamava-se A Abelha da China.

Dá este esclarecimento porque quer ter mais uns segundos para normalizar o ritmo das pulsações, mas agora tem pressa de sair dali, sente um pequeno foco de incêndio no bolso onde guarda a carteira, que é também aquele onde meteu o cartão de visita. Precisa de estar só para pensar e não apenas isso, sente uma necessidade quase violenta de abandonar a Redacção do Nova Abelha.

Vamos à entrevista, pede então, e Luís Costa baixa os óculos para o gravador, acciona o botão, começa a fazer perguntas.

São as perguntas do costume, entremeadas com outras que mostram que o miúdo pode não conhecer a História de Macau mas não é nenhum idiota. Chegou a altura de escandalizar um pouco a linha política do jornal. Adriano, porém, já não consegue ordenar as ideias nem encontrar as palavras adequadas - que diabo, tem de sair dali o mais depressa possível. Mesmo porque começa a sentir uma quase irreprimível vontade de sacudir o portador de acne pelos ombros e gritar-lhe, meu estúpido, vê se pões os miolos a trabalhar, vê se percebes onde é que te meteste.

Penosamente, a entrevista aproxima-se do remate. Agora, diz o miúdo, só uma ou duas perguntas sobre as suas opiniões, a sua maneira de ver o mundo...

Vejo-o a fazer o pino, pensa Adriano, para o poder ver a direito. Em voz alta não diz isto, vai arranjando outras palavras que ele próprio mal ouve. Dá-se apenas conta do final de uma resposta:

- ...Como já lhe disse, eu não percebo nada de Economia, aliás a minha conta bancária é prova disso, mas não é preciso perceber de Economia para ver que até ao momento a tão falada mundialização só tem servido para explorar melhor os trabalhadores. Os trabalhadores do mundo inteiro. A mundialização da exploração. De modo que é bem possível que o tio Carlos volte rapidamente a estar na moda.

- Quem? - pergunta o miúdo, desorientado.

- Homem, o tio Carlos. Carlos de Karl Marx.

Luís Costa ri com vontade. Ao menos há um que acha graça às minhas graças.

- Bom, ficamos por aqui, isto dá-me um bom remate.

- E este jornal vai publicar o que eu disse. - pergunta Adriano.

Obviamente, acaba de tocar num ponto sensível, porque o outro fica muito sério e responde: espero que sim. Depois toma uma decisão, fala em tom de confidência: eu calculo o que o senhor está a pensar, deixe-me dizer-lhe uma coisa. Eu estou cá há pouco tempo, mas quando entrei o Nova Abelha ainda não era tão... conservador Foi com a nova administração que as coisas mudaram. E que quer, eu preciso de trabalhar, sobretudo preciso de ganhar experiência, se tiver de voltar para Portugal vou precisar de... enfim, o senhor sabe como é.

Pois sei, responde Adriano, faço votos para que arranje outro emprego por cá, se gosta de cá estar.

Escapa-se para o exterior e imediatamente se esquece dos dramas íntimos do redactorzinho, tem muito mais em que pensar e precisa de caminhar enquanto pensa, esta é, para ele, a melhor maneira de organizar as ideias.

Está a escurecer, passeios e lojas enchem-se de gente que saiu do emprego, há uma aragem fresca vinda da baía da Praia Grande - do que foi em tempos a baía e agora são novos aterros. Que ele não vê. Não vê nada, caminha apenas até sentir que começou a transpirar, apesar da aragem, e então pára e olha em volta e compreende enfim que se encontra bem longe do teatro, onde o inspector talvez ainda o espere.

Na sua frente, a menos de cinquenta metros, está a Porta do Entendimento.

É o mais belo monumento da cidade entre os muitos que se ergueram desde a sua primeira estada e Adriano tencionava incluí-lo nas peregrinações da despedida, porém não consegue apreender-lhe a forma, somente pensa que precisa de uma porta pessoal para atingir um entendimento que neste momento lhe escapa. As portas do meu entendimento andam fechadas, resmunga. Tanto pior. Vai a passar um táxi desgarrado e ele faz-lhe sinal. Sabe apenas seis ou sete palavras em cantonense, mas entre essas palavras inclui-se o equivalente a Leal Senado. E para ir do Largo do Senado à Rua da Sé, onde vive o padre Frazão, precisa somente de meio minuto.

Desta vez, o padre, ao abrir-lhe a porta, olha-o com uma vaga desconfiança, que Adriano dissipa afirmando: não, senhor padre, não tenho nenhum drama pessoal e não estou com os copos, esse Adriano Carreira em que está a pensar é o outro, o que conheceu há anos atrás.

Por outro lado, acrescenta quando já está na sala, por outro lado sou portador de uma crise que não é pessoal e quero analisá-la consigo. Mas é altamente confidencial.

- Pronto, você já se meteu outra vez em sarilhos, suspira o padre Frazão enquanto fecha e arruma os dois livros que tinha sobre a mesa de trabalho.

- Em matéria de sarilhos - defende-se Adriano - estou virgem, cândido, honesto e puro. Agora, ouça.

E fala-lhe da bomba encontrada à tarde no teatro. É uma das pouquíssimas pessoas a quem pode contar o que se passou sem recear que no dia seguinte a cidade e o mundo falem do assunto. Quando termina, o padre mantém-se calado por alguns momentos.

- Não percebo - diz enfim. - Não percebo de todo. As coisas mais graves que acontecem em Macau estão geralmente relacionadas com seitas. Mas isto não se encaixa. Uma seita não teria o mínimo interesse em pôr uma bomba onde quer que fosse e muito menos num teatro. Você, o que é que acha?

- Estou inteiramente de acordo - responde Adriano, e depois aponta para um canto da mesa de trabalho: - Aquilo, ali, é um computador?

Não, responde o padre com sarcasmo seco, é uma imagem de Nossa Senhora das Dores. E, insiste Adriano, posso usá-lo durante um infinitesimal instante? É que rabisquei à pressa uns apontamentos e tenho medo de não perceber depois a minha letra.

- Esteja à vontade, abra um ficheiro novo e avance. Adriano levanta-se, aproxima-se da mesa.

- Mas venha ver, senhor padre, venha ver que há-de achar uma certa graça. Fique atrás de mim e vá lendo.

Senta-se diante do computador, coloca ao seu lado direito o cartão de visita que tirou do bolso e começa a escrever. Não tarda a ouvir o padre Frazão:

- Espere lá: o que é isso?

Um momento, deixe-me acabar, responde Adriano. O texto é curto, bastam-lhe três minutos para decifrar as abreviaturas e fazer a transcrição. No fim, digita a ordem de impressão e levanta-se para encarar o padre.

- Isto é a cópia de um texto que eu encontrei esta tarde na secretária do chefe da Redacção do Nova Abelha.

o padre Frazão inclina-se sobre o monitor e relê. Possivelmente, mais que uma vez, pois mantém-se naquela posição durante algum tempo. Depois olha para Adriano.

- Que grande porr... hum.

- Pode dizê-lo, senhor padre, vejo que continua com um vocabulário cheio de pujança. Entretanto, e à luz da nossa primeira conversa, peço-lhe que me dê uma pista.

- Que pista, que pista, replica Frazão, não se meta em cavalarias, você não é polícia.

- Não, concorda Adriano, não sou polícia, o meu sacerdócio é outro, mas sou pai. E por uma razão que eu desconheço, e a minha filha também, as coisas que estão a acontecer passam-lhe muito de perto.

Voltam a sentar-se nos cadeirões.

- Mas eu - diz o padre bruscamente - não sei nada. Só sinto que anda qualquer coisa no ar. É um sentimento, não é um conhecimento.

- Que género de coisa? O senhor conhece Macau como as palmas das duas mãos.

- Não sei! Suspeitas não são provas.

O padre Frazão deixa passar uns segundos antes de continuar num tom de voz diferente, que coloca Adriano em estado de alerta:

- Já falou com o Salvador Noronha?

- Ainda não, responde Adriano, ando a arranjar coragem para discutir poesia com ele. Mas estou a falar consigo.

O outro abana a cabeça: eu não vou lançar suspeitas sobre esta ou aquela pessoa só porque me cheira vagamente a sarilhos e de resto, não ando a cheirá-los só em Macau. Em Hong Kong também.

- Ah? Em Hong Kong? A propósito: o ilustre Koopman ainda lá está?

Sim, Tom Koopman ainda vive em Hong Kong e ainda trabalha na Victoria Publishing House, se você quiser falar com ele dou-lhe o número do telefone.

Adriano agradece, declina a oferta: - Devo tê-lo na minha agenda. Agora ouça: eu não lhe peço que me conte segredos de confissão...

- Espero bem que não!

- Claro, longe de mim, vade retro e essas coisas todas. Mas a que é que lhe tem cheirado?

O padre Frazão solta um longo suspiro.

- Se por acaso souber alguma coisa concreta e certa, fique descansado que lhe conto. E não se esqueça, dê cumprimentos meus ao Salvador quando estiver com ele, há muito tempo que não o vejo.

E depois, admiram-se quando há surtos de anticleri-calismo militante, rosna Adriano ao descer a escada do prédio, que é velho e estreito de mais para comportar um elevador.

Matos Costa, o outro inspector da PJ de Macau que Adriano conhece, chega-se ao pé dele e murmura-lhe ao ouvido: você é um bom malandro, esta tarde deixou o Luís Rodrigues a secar à sua espera.

A récita de gala do Instituto chegou ao fim com grandes aplausos que são merecidos em cerca de setenta por cento - os trinta restantes devem-se à obrigação de fazer da noite um êxito intercultural. Adriano, que se sente já em grau três de tufão com o documento que mostrou ao padre, atingiria imediatamente o grau oito se reconhecesse todos os elementos das forças de segurança que se encontram no teatro em trajo civil, como se fossem espectadores, uns portadores de convites e outros de bilhetes pagos pelos fundos da Administração.

Está já perto da saída quando Matos Costa o alcança e lhe segreda aquela censura. Encara-o, faz uma breve saudação com a cabeça. Tive um imprevisto, responde, e de qualquer maneira já lhe disse o que sabia.

- E amanhã, pelas nove horas, pode falar com ele, ou comigo?

- Que remédio, a ver se me deixam em paz. Agora despeço-me, a minha filha vai sair pela porta dos artistas e combinámos que eu a esperava lá.

Matos Costa sossega-o: ainda devem estar todos no palco, atrás da cortina, porque o Governador decidiu ir felicitá-los antes de regressar a Santa Sancha. As felicitações, acrescenta, são merecidas, foi um excelente trabalho, estão todos de parabéns. Mas Adriano insiste em sair, sente-se abafar ali dentro. E - oh, pirosa fraqueza paternal - quer ser dos primeiros a abraçar Rita, que passou todo o tempo do espectáculo nos bastidores - e foi ao palco no fim, praticamente empurrada pelos seus alunos. Lam Koi não se desmanchou ao dizer a temida réplica.

Junto à saída dos artistas há um pequeno magote de gente. Reconhece lan e Alexandre e reconhece também, imediatamente, que entre os dois não existe qualquer simpatia esfuziante, o que não é de admirar. Mas esse, comenta no seu íntimo, não é um problema seu.

Rita aparece, ainda com os olhos a brilhar, ainda sob o efeito da adrenalina. Ao ver o pai, lança-lhe um sorriso, chama-o para o pé de si, pergunta-lhe se gostou. Responde afirmativamente, sem precisar de mentir, enquanto ouve lan comentar suavemente - é um rapaz suave, pensa Adriano; suave sem ser mole - que foi uma óptima ideia pôr chineses a representar Gil Vicente e portugueses a representar em cantonense. Como lan olhava para ele ao dizer isto, responde-lhe:

- Sim, não é por ser minha filha mas foi uma boa ideia. E furiosamente cultural, além do mais. - Vira-se então para Alexandre, que está em sua frente: - A propósito, eu gostava de falar consigo sobre a sua loja de cultura. Só umas perguntas.

O pedido é inocente, lembrou-se de que este poderá ser o tema de fecho da série de trabalhos que está a enviar a João Carlos. Contudo, nota que Alexandre, durante um breve instante, se coloca na defensiva. Talvez seja apenas porque Rita entra na conversa exclamando: ah, ele faz segredo disso, é uma loja secreta.

Não, não, é mentira, replica o visado com um riso que não é espontâneo. Tenho muito gosto em falar no assunto, quando quiser. Então, atrás de Adriano soa uma voz que fala pausadamente, com a toada musical da pronúncia macaense:

- Desculpem interromper, só quero dar os parabéns...

É Salvador, cuja presença no teatro seria sempre uma inevitabilidade histórica, dado que o seu interesse pela literatura não se confina à poesia.

Salvador permite-se um beijo paternal a Rita enquanto repete os parabéns, depois volta-se para Adriano:

- ...E queria também cumprimentar o ilustre escritor, que desde que chegou a Macau ainda não me deu a honra de uma visita.

Tem toda a razão, penitencia-se Adriano, e veja como são as coisas: justamente hoje, fiz uma anotação mental para lhe telefonar, porque preciso de falar consigo.

Salvador declara-se encantado e disponível a qualquer hora, após o que sugere um almoço de boa cozinha macaense. Enfim, retira-se, porque, diz ele, é uma ave que se recolhe cedo à capoeira.

Logo que o médico se afasta, Rita pega no braço do pai, puxa-o a si.

- Vens cear connosco?

- Quem é o nosco? - quer ele saber. Oh, os meus colegas, os nossos artistas, o Alexandre, o Frederico. Vamos à tasca de Coloane, aquela de que tu gostas.

Adriano abana a cabeça numa recusa: - Gente a mais, sabes como eu sou com as multidões. E depois, Ritinha, o Frederico e o Alexandre, logo os dois?

Ela repreende-o, mas risonha. Diz-lhe que está a ser inconveniente. E cora, tal como ele esperava.

- Foi só um gracejo inofensivo. Mas estou cansado, vou para casa.

Não é o único a desertar; não haverá, afinal, confronto entre rivais, porque Alexandre invoca uma dor de cabeça, diz que regressa à pousada.

A dor de cabeça é uma invenção, a primeira ideia que lhe ocorreu. Na realidade, precisa de saber se tem alguma mensagem no correio electrónico, alguma reacção ao relatório que enviou ao fim da tarde, pela mesma via, para Lisboa.

Há ainda outra razão. Quis ver com que insistência Rita lhe pediria que a acompanhasse, porque não lhe escapou a sua familiaridade com o jovem médico chinês que ela lhe apresentou de uma forma demasiado despreocupada para ser natural.

Mas também, argumenta consigo mesmo, enquanto põe o motor do carro a trabalhar, este não é precisamente o momento para me apaixonar.

A verdade é que com a puta da vida que levo, nunca é o momento.

 

O PUNHO HARMONIOSO DA JUSTIÇA

De Lisboa veio apenas o sinal de recepção do relatório. Nenhuma pergunta sobre eventuais progressos, o que é um alívio, pois nesse capítulo teria de afirmar o zero absoluto.

O engenho explosivo encontrado no teatro está a ser dissecado e examinado à lupa sob todos os ângulos, mas - disse-lhe Matos Costa - ainda não ofereceu nenhuma pista; o negregado Mareei Ribeiro continua invisível; e Wang Zhong Xie, o homem de Pequim, não apareceu com informações sobre o agente chinês.

Alexandre, deitado na cama, faz mentalmente este balanço ao mesmo tempo que se entretém a passar em revista todos os canais de televisão que a gerência da Pousada de Mong-Há põe ao dispor dos seus hóspedes.

Bomba, Ribeiro e Tang Kok long: três zeros absolutos. Eu só pedia que um deles se transformasse em qualquer outra coisa e não me parece que seja pedir muito.

Estranhamente, é apenas neste momento que começa a tomar consciência plena do que poderia ter acontecido se o pai de Rita não tivesse tropeçado num cabo eléctrico. Não equaciona somente as consequências imediatas, mas também tudo o que previsivelmente aconteceria.

Tudo o que acontecerá da próxima vez, porque se os indícios estão certos haverá próxima vez, a menos que eles consigam evitá-lo.

Porque se encontra só, a sua imaginação está mais livre, o que cria nele uma certa vulnerabilidade. O perigo da situação torna-se-lhe quase visível, atinge-o com a força de um murro. E então experimenta um momento de puro pânico, tão violento que dá um salto na cama e fica sentado.

Calma. Aonde é que eu ia? Meter-me debaixo da cama? Estou a precisar de uma bebida. Mas já é tarde, não costumo beber tão tarde, pelo menos quando estou sozinho.

Esta solidão leva-o a pensar novamente em Rita, uma outra imagem a evitar se quer manter o seu equilíbrio interior... chiça, é só coisas a puxar-me para baixo.

Duas pancadas leves na porta do quarto oferecem-lhe a distracção de que precisa. Levanta-se ao mesmo tempo que diz em voz alta:

- Sim?

- Room Service.

É engano, não pedi nenhum room service, mas já agora vou pedir, decide Alexandre. Abre a porta, depara com um empregado que transporta uma bandeja com uma garrafa de whisky, gelo, um copo, um guardanapo de papel. Deve ser para outro quarto, diz-lhe em inglês, eu não pedi nada, entretanto podia trazer-me...

Cala-se bruscamente. O empregado entrou e fechou a porta. Alexandre, com todos os sentidos em estado de alerta, estuda-lhe o rosto.

O empregado colocou a bandeja sobre a mesinha pequena, ao lado do televisor. Agora olha para Alexandre, agradece como se tivesse recebido uma gorjeta, dá as boas-noites, sai do quarto.

Ora bem, a Providência arranjou bem as coisas, pensa Alexandre. Queria uma bebida e aqui a tenho. Queria que pelo menos um dos três zeros passasse a ter uma quantidade e logo essa quantidade me entra no quarto.

Porque reconheceu o empregado de uma fotografia que trouxe de Lisboa e não precisa de pegar no guardanapo de papel para saber que lá está escrito um nome, Tang Kok long. Em todo o caso, pega nele, porque além do nome há-de haver outras indicações.

Dez minutos, depois saía da pousada. O que quer dizer que tem tempo para beber uma dose de whisky.

Toda a colina de Mong-Há é um belo parque florestal que envolve a pousada e a fortaleza. Quando Alexandre sai, a Lua recém-nascida emerge da massa escura das árvores, ainda enorme e amarela. O ar está perfumado pelo incenso que arde diante de um nicho onde se abriga uma divindade budista, quase de certeza Kun Iam.

Tang aproxima-se, vindo não sabe de onde, dir-se-ia que se materializou. Não o reconhece imediatamente porque esperava vê-lo envergando o uniforme de empregado e ele, durante aqueles dez minutos, mudou de roupa: fato escuro, gravata a condizer, poderia passar por um funcionário administrativo chinês. Entrega a Alexandre uma factura com o timbre da pousada e diz-lhe:

- Deve rubricar isso. Comprou a garrafa de whisky que ficou no quarto, se quiser posso reembolsá-lo. Amanhã de manhã, entregue o papel ao empregado da recepção. É meu primo.

Alexandre não pode impedir-se de rir.

- Já percebi como é que você conseguiu o disfarce. Um chinês sem primos é coisa que não existe.

São muito úteis, os primos, concorda o outro, e acrescenta: vamos dar um passeio pelo parque, a temperatura está muito agradável, venha daí.

Alexandre começa a caminhar ao lado dele. Mas agora, que já completou a sua análise da situação, começa a sentir-se vagamente irritado.

- Você não acha que tudo isto é um bocado filme de espionagem americano? E de orçamento reduzido, ainda por cima?

- Talvez pareça.

Tang não se mostra irritado mas também não diz mais nada. Continuam a caminhar lado a lado, embrenham-se no parque. Não por muito tempo: Alexandre estaca subitamente ao perceber que não estão sós, que há sombras, vultos humanos à frente e atrás deles. Eu sei, é o filme americano, lança-lhe Tang, que escolheu este momento para responder ao sarcasmo. Mas que quer, eu vivi bastante tempo em Hong Kong, algum veneno ocidental terei respirado no ar, aquilo era ainda colónia britânica, evidentemente.

Depois desta resposta, passa às coisas sérias: lamento só lhe aparecer agora e também esta encenação, mas há-de calcular que tenho boas razões. Entrei em Macau no dia em que você chegou de Lisboa e contava falar consigo no dia seguinte. Simplesmente, fui reconhecido por alguém. Não sei quem e talvez isso não interesse. O que interessa é que, de um momento para o outro, vi-me rodeado por gente da Tcheng Sé. E não era um trabalho de vigilância, era um trabalho de pura eliminação. Foi à justa que me safei para Zhuhai. A Tcheng Sé também opera em Zhuhai, mas eu tenho lá... apoios.

Alexandre mantém-se em silêncio. Ocorrem-lhe dezenas, centenas de perguntas, no entanto prefere esperar para organizar as prioridades.

Passei todo este tempo, prossegue Tang, a preparar as minhas defesas. Para poder encontrar-me consigo. As informações que tenho para si, não podia arriscar-me a passá-las pelo telefone, aliás não seria prático. Por várias razões, talvez lhas explique mais tarde ou você as entenda sem eu lhas explicar, só queria dar-lhas pessoalmente, portanto precisava de voltar a Macau.

- Não. Eu podia ter ido a Zhuhai - objecta Alexandre, e Tang lança-lhe um olhar divertido. Deixe-me dizer-lhe, responde, que você daria mais nas vistas em Zhuhai do que eu em Macau. Se é que o deixavam entrar... ou melhor, deixavam, só que voltávamos ao mesmo, não podia passar desapercebido. A Xinhua sabe perfeitamente que você não é um simples turista e a minha gente, quero dizer, a gente do meu serviço, colocada nesta parte da China, não tem sequer conhecimento da minha existência, compreende?

Alexandre precisa de alguns segundos para lembrar-se de que Xinhua é o verdadeiro nome da Agência Nova China. Quanto ao resto, é compreensível. Segurança. Acções paralelas em sistema de células ou de canais independentes, com a coordenação unicamente assegurada ao mais alto nível, é um método clássico. Mas se em Pequim optaram por este método, reflecte, isso quer dizer que tomam o assunto tão a sério como nós.

Tang remata a sua explicação; - Portanto, preparei as minhas defesas, como disse, e precisei de algum tempo para isso. Só ontem pude voltar a Macau. Foi uma sorte você estar hospedado aqui em Mong-Há, facilitou-me o trabalho de aproximação. Simplesmente, não queria falar-lhe no seu quarto. Os recintos fechados são um problema, como sabe. Não que eu acredite que haja microfones no quarto, isso é que seria um filme de espiões americano, mas no ponto em que estamos é melhor seguir as regras. E sinto-me mais à vontade cá fora.

- Pois é, a noite está de facto muito agradável... - observa Alexandre com um sorriso.

Tang não responde ao gracejo. Em vez disso, faz uma exposição seca, sem ambiguidades aparentes, sem evasivas obscuras. O seu inglês é tão fluente que não precisa de se deter à procura de palavras.

Fala ininterruptamente durante uma boa meia hora. À medida que fala, Alexandre sente o seu corpo arrefecer, apesar de não soprar vento e a noite continuar tão agradável como ele disse. Além do frio, há um princípio de náusea que ele se esforça por dominar. O whisky bebido no quarto sobe-lhe à garganta, misturado com um vómito ácido que ameaça sufocá-lo.

o caminho por onde seguem foi cortado na encosta da colina. À direita deles as árvores trepam pela encosta e do lado esquerdo, um pouco mais abaixo, corre o limite do parque e logo a seguir, a menos de cinquenta metros, os prédios de habitação construídos junto ao sopé de Mong-Há sobem e ultrapassam a altura a que passa o caminho. Deste modo, Alexandre pode ver o interior das salas que estão iluminadas, famílias chinesas reunidas em torno do televisor, donas de casa ocupadas na cozinha, duas garotas em fatos de treino a fazer ginástica, elas também diante de um televisor, e pequenas imagens de Buda e de Kun Iam em oratórios iluminados por lâmpadas vermelhas.

Olha para esta pacífica rotina familiar quase com saudade, como se fosse um bem que lhe pertence e que sabe estar prestes a perder.

Mas não é a altura adequada para divagações. Tang finaliza o seu relato tão abruptamente como o iniciou. E o que ele acaba de contar torna o quadro finalmente claro, mortalmente claro. Até é possível encaixar nele o atentado contra o aluno de Rita.

Continuam a caminhar em silêncio, Alexandre a digerir tudo o que ouviu, o outro a aguardar, porque sabe demasiado bem que as suas informações exigem digestão e que esta não é fácil.

- Vamos sentar-nos ali? - propõe Alexandre apontando um banco de madeira. - Não é que eu esteja cansado, mas depois de o ouvir as minhas pernas começaram a fraquejar.

As pernas, acentua depois de se instalarem no banco, e não a cabeça.

- Ainda bem, porque as nossas cabeças não podem dar-se ao luxo de fraquejar - observa Tang. - Mas também não vejo grande justificação para essa fraqueza nas pernas. Eu dei-lhe aquilo de que precisava para os portugueses poderem avançar. Há ainda muito a averiguar, mas só diz respeito à China.

- Não me deu os nomes nem o plano concreto quanto a Macau - lembra-lhe Alexandre - e isso é essencial, é mesmo a única coisa verdadeiramente essencial.

Tang solta uma exclamação, uma palavra que destoa da sua formação cultural e ideológica e que só pode ser explicada pela influência de Hong Kong: Christ! Depois desta heresia coloquial, replica;

- O plano deles, você pede-me isso? Esse é o trabalho que compete aos portugueses, descobrir o plano das acções em Macau. É aqui que ele está e em mais nenhum lado. Procurem-no. Quanto aos nomes, é diferente. Tenho-os numa lista. Não a trouxe comigo - acrescenta rapidamente para que Alexandre não o interrompa - porque há lá nomes que não lhes interessam e de resto não quero andar com esse papel no bolso. Além disso, tenho de admitir que queria vê-lo, falar consigo, antes de entregar os nomes que lhe interessam. Vou fazer uma lista separada. Dou-lha no nosso próximo encontro, que há-de ser também o último.

É durante esta longa tirada que Alexandre completa o quadro mental da situação, com todas as implicações possíveis. E é também neste lapso de tempo que o assalta uma ideia.

Uma ideia monstruosa, inadmissível, assustadora... é verdadeiramente isso tudo e mais algumas coisas, talvez, e ele nunca se julgaria capaz de a ter. Mas todo o indivíduo encerra dentro de si a capacidade, pelo menos potencial, de se surpreender a si próprio. O pior é que não consegue pô-la de lado, está entrincheirada para ficar.

- Tang. Vou fazer-lhe uma pergunta que só é indiscreta na aparência e acrescento que estou preparado para esquecer-me da sua resposta. Mas, neste momento, preciso de saber: se, como disse há pouco, a gente do seu serviço em Zhuhai não sabe da sua presença nesta parte da China, de que modo preparou você as suas defesas? Por outras palavras: quem são os homens que andam aí à nossa volta a vigiar?

A resposta leva tempo a chegar, tanto tempo que Alexandre ganha a certeza de que ou Tang decidiu abster-se ou então prepara-se para aconselhá-lo a meter-se na sua vida.

- Vou dizer-lhe uma coisa que é muito raro dizer a outros homens, mesmo que sejam chineses: simpatizo consigo. Não tenho uma razão especial para isso, nem é uma questão de razão e sim de... não interessa: simpatizo consigo. É só por isso que lhe respondo e também porque sei que não vai repetir o que vou dizer, aliás não teria qualquer interesse nisso.

Tang faz deslizar ligeiramente o corpo sobre a madeira do banco para ficar mais perto de Alexandre. A sua voz transforma-se num murmúrio.

- Você está no mesmo ofício e sabe muito bem que nem sempre podemos jogar segundo as regras legais. Eu precisava de protecção contra a Tcheng Sé, uma protecção permanente, dia e noite, em vigília e a dormir. A Tcheng Sé fez um contrato e tem todo o interesse em cumpri-lo, jogou nesse cavalo.

A Tcheng Sé escolheu bem o nome, serpente verde. É perigosa como um veneno. E um veneno pode ser combatido com outro. Entende?

Entendo, responde Alexandre, que sente um arrepio a vaguear pelo seu corpo, entendo que você fez uma aliança profana.

Chame-lhe o que quiser, diz Tang encolhendo ligeiramente os ombros. A Tcheng Sé tem muita força mas também tem rivais. Eu escolhi um desses rivais, não interessa o nome da organização, e propus-lhes uma troca. A minha protecção, agora, contra a protecção deles depois da devolução de Macau à China (Tang fala em devolução e não em transferência; cada um tem as idiossincrasias verbais das suas tradições históricas) e também prometi que a Tcheng Sé havia de ser perseguida com toda a força ao dispor das novas autoridades chinesas.

- O que lhes deixará, no futuro, o campo mais livre... se a promessa de protecção for cumprida - estas últimas palavras de Alexandre têm um tom de interrogação. Tang baixa ainda mais a voz, quase suprime o som para dizer: não que isso lhe interesse a si, mas estes não são melhores que os outros e portanto não merecem nada.

Alexandre tem o que lhe faltava, os dados exigidos pela sua ideia monstruosa.

- Não merecem nada, mas, se você quiser, ou for capaz disso, podem ter um papel importante, em tudo isto. Podem ser um tufão que lava o ar cheio de fumo. Como chamam vocês àquela antiga seita, a que os ocidentais chamam Boxers?

Tang olha-o perplexo. - Os Punhos Harmoniosos da Justiça. O que é que isso tem a ver...?

Alexandre, que apercebeu um vulto protector próximo do banco onde se encontram, fala agora num mero sopro: - Esta gente pode ser o punho harmonioso da nossa justiça. Não me interrompa, fale só no fim.

Então, começa ele a falar.

 

Foi bom ter acordado por volta das sete da manhã após dormir sem sobressaltos nem pesadelos e sem acordar a meio da noite, acontecimento bem-vindo e raro - e incompreensível, tendo em conta as circunstâncias: mistérios do metabolismo. As oito, com o pequeno-almoço tomado, estava encostado à janela a olhar para os campos de jogos do Tap Siac enquanto Rita, apressada nos preparativos matinais, corria entre o seu quarto e a casa de banho. As oito e vinte lembrou-se da promessa feita na véspera a Matos Costa, passou-lhe a boa disposição e rosnou: merda, tenho de lá ir se não fecundam-me o juízo.

Passam agora dez minutos das nove - atrasou-se deliberadamente porque nunca encontrou um funcionário, seja qual for o seu ramo ou grau hierárquico, que o não tenha feito esperar quando lhe marca uma hora. Matos Costa vem ter com ele, leva-o para uma sala cuja mobília já viu melhores dias, convida-o a sentar-se. E faz um preâmbulo: prefiro recebê-lo aqui e não no meu gabinete para que compreenda bem que isto é uma conversa, nada mais. Ou seja, não é um depoimento oficial e ainda menos um interrogatório.

- Já tinha percebido - observa Adriano - porque não vi azorragues nem ferros em brasa nem outros instrumentos de tortura. Eis uma brilhante dedução policial, não acha?

O inspector sente-se demasiado cansado e tenso para achar graça. Os últimos dias, sobretudo o de ontem, esgotaram-lhe as reservas de energia. Para mais, a mulher fez-lhe uma cena do tipo Clitemnestra quando ia a sair de casa, porque na véspera, tal como nas noites anteriores, chegou de madrugada e ela não acredita que haja tanto trabalho assim na Polícia Judiciária. E o filho mais novo, de quinze anos, começou a comportar-se de uma estranha forma, com súbitas alterações de humor, e pode muito bem ser que tenha cometido a suprema falta de originalidade que é entrar na droga e se assim for a vida vai tornar-se bastante mais difícil. Mas sabe que tem de pôr todas essas preocupações de lado e arranjar paciência.

Portanto, responde que a dedução é brilhantíssima, que os instrumentos de tortura hoje em dia são usados quase exclusivamente nos próprios agentes e inspectores da PJ que não obtêm resultados rápidos nas investigações. E começa a fazer perguntas.

Essas perguntas, que se referem ao achamento da bomba e às circunstâncias envolventes, não obtêm respostas substanciais, o que aliás ele já esperava; Adriano deu a Luís Rodrigues, na véspera, um depoimento completo. No fundo, apenas falta satisfazer a curiosidade do coronel Dias e é o que ele tenta a seguir:

- Suponho - começa cuidadosamente - que já lhe agradeceram o modo como ontem actuou e eu repito o agradecimento. Agora, para nossa orientação e se posso perguntar: tenciona fazer disto uma notícia e dá-la a algum jornal? Ou já o fez, se calhar...?

Adriano ajeita-se melhor na cadeira, que não é um modelo de conforto. Então, é isto o que os morde, pensa. Era de prever.

- Não, não o fiz. Hoje em dia, colaboro quase exclusivamente para uma revista mensal chamada Contra a Maré. Essa revista pertence a um amigo meu que é completamente maluco, isso percebe-se pelo título que ele escolheu e que chega a ser embaraçoso. Agora, veja só: o Presidente Clinton anda nas bocas do mundo porque teve de confessar que fez coisas com uma secretária, o que evidentemente altera o equilíbrio mundial e a composição química da água do mar. Em Portugal, as televisões fazem entrevistas de rua: o que é que acha do assunto, perguntam às pessoas, e nenhuma, que eu saiba, os mandou à tábua, provando assim a decadência do povo português. E esse meu amigo, o que faz? Manda pôr a notícia em cinco linhas no resumo dos acontecimentos mensais. Diz ele, disse-mo no último correio electrónico que recebi, que o Clinton é Presidente dos Estados Unidos e não de Portugal e que os americanos mandam no mundo inteiro mas não é obrigatório adoptar-lhes as taras.

Matos Costa replica com cinco sóbrias palavras:

- Não é a mesma coisa.

- Pois não, mas dá-lhe uma ideia da linha editorial.

O inspector insiste: Adriano terá por acaso comunicado a ocorrência ao seu amigo, só para informação...? Não, responde ele, é inútil, uma vez que sei que ele não publicaria. E a algum outro jornal...? Santa Hermengarda me valha. Matos Costa, não outra vez. Podem dormir em paz e deixar-me dormir a mim.

- Bom. Então, devo agradecer outra vez a sua discrição, a colaboração e...

Espere aí, interrompe Adriano, que sente aproximar-se um Discurso Cívico. Não falo e não falarei no assunto, mas estou curioso: por exemplo, os rapazes das Minas e Armadilhas foram para o teatro vestidinhos à civil. Foi por acaso, estariam todos a comemorar o aniversário do chefe quando foram chamados, ou foi por encomenda, e se foi por encomenda então vocês andam a tomar medidas muito especiais. O que é que se passa?

Não há nada que ele possa apontar concretamente, mas a verdade é que a expressão de Matos Costa sofre uma modificação subtil. Como se uma cortina tivesse descido da raiz dos cabelos em direcção ao queixo.

- Não sabia que eles tinham ido à civil, o Luís Rodrigues não me contou e como sabe eu não fui ao teatro à tarde. Bom. Dizia eu que é um alívio ver alguém que ainda possui, vamos lá, o sentido nacional, um certo patriotismo, e tem a consciência de que Portugal joga em Macau o seu prestígio e...

- Não. Pelo amor de Deus. Não me fale de patriotismo nem de prestígio. Não me atire esse fardo para cima. Da última vez que ouvi um discurso desse género estava todo vestido de verde, era alferes e praticamente imberbe, foi há trezentos anos, portanto. Não fugi à tropa, mas uma comissão de serviço chega-me. Assentemos que não vou divulgar a interessante ocorrência, mas não me arranje motivos, nem eu conheço os meus motivos. Sou um espírito tão insondável que não consigo chegar ao meu próprio fundo.

O que interessa, reflecte Matos Costa depois de Adriano sair, é que ele não diga nada a ninguém.

O relatório que o inspector apresenta a João Dias é muito sucinto; às nove horas e dez minutos da manhã, o Dr. Adriano Carreira apresentou-se para falar com o inspector Rodrigues. Em vez deste, foi o próprio Matos Costa que o recebeu. Falaram durante cerca de uma hora. Ele não passou a notícia a nenhum jornal e não tenciona fazê-lo. Não sabe por que motivo está a agir desta maneira tão conveniente, a única explicação que fornece é ter um espírito insondável. O Dr. Adriano Carreira tem um modo muito especial, e sarcástico, de falar.

- Já me disseram - suspira João Dias. - De qualquer forma é uma boa notícia que você me dá e Deus sabe que precisamos delas, até à data ainda não houve mais nenhuma.

Ouve-se então um “ahan”, um aclarar de garganta. Ambos olham para o terceiro ocupante da sala.

- É preciso fazer alguma coisa - afirma Wang Zhong Xie. - Não se tem feito nada. Ninguém foi preso, não se fez nada.

Dias fita-o com os olhos semicerrados. Quem o conhece bem dirá que o coronel, naquele momento, se sintonizou num comprimento de onda chinês.

- Wang. Meu querido amigo. Vamos fazer uma pausa. Venha daí dar um passeio e a seguir almoçamos juntos.

Um quarto de hora mais tarde, o carro de João Dias, conduzido pelo seu impecável motorista, deixa-os nas proximidades da Porta do Cerco, à entrada do Parque Sun Yat-Sen.

Wang está manifestamente desconfiado, ainda não percebeu qual é a ideia. Mas Dias não parece preocupado com essa desconfiança. Venha, venha, diz com um grande sorriso, aposto que ainda não visitou isto. É coisa muito recente e você, quando está em Macau, passa o tempo metido em gabinetes, se calhar até não conhece bem as ruas da cidade... veja, olhe em volta. Estamos mesmo no limite do Território, além fica o Canal dos Patos. É um belo parque, não é? E sabe o que era isto? Um aterro sanitário. Foi um bom aproveitamento, não acha?

- Magnífico - responde o outro secamente. - E o coronel trouxe-me aqui só para me mostrar relva e árvores e repuxos de água?

Dias, risonho, levanta os braços num gesto defensivo. - Não se perde nada, é uma bela coisa que deixamos em Macau. Entre muitas outras... - de repente, muda de expressão. - Eu trouxe-o aqui para ver se o ponho a falar. Você nunca ia abrir a boca em frente dos outros, nem mesmo diante do Matos Costa, eu já o conheço.

Wang sorri, sem se comprometer.

- Wang. Você acusa-nos de não fazermos nada. Mas sabe, tão bem como eu, que continuamos de mãos atadas. É impossível começar a prender pessoas sem mandado e sem razão concreta. E nós ainda continuamos à nora. Nem sequer sabemos o que é o famoso Hexágono. Colaboração também quer dizer informação.

Ao dizer isto, olha o seu interlocutor para que ele compreenda, sem qualquer dúvida, que este é o verdadeiro motivo de toda a encenação e que a encenação se destina a encostá-lo à parede. E Wang compreendeu-o, de facto. Olha à sua volta, como Dias tinha sugerido, observa um grupo de crianças chinesas que vestem o seu uniforme escolar, branco e azul escuro, e trazem pequenos cestos com o almoço que vão comer ao ar livre, à sombra das árvores, sob a vigilância de uma professora.

Wang leva algum tempo a decidir-se, parece absorto na contemplação das crianças, chega a acenar a uma delas, que o olha com um ar muito sério e compenetrado.

- O Hexágono - diz por fim - é uma coisa que na realidade não existe. É só uma suspeita. Suspeita-se em Beijing que um grupo de seis pessoas que em tempos tiveram... certa influência, está a tentar criar uma facção política... - Wang interrompe-se, procura um termo - extremista, digamos.

- Extremista, como? - pergunta Dias, que abandonou aquilo a que chama os circunlóquios orientais e quer arrancar-lhe rapidamente tudo o que for possível.

- Contrária à orientação que foi estabelecida por Deng Xiaoping. Contrária à abertura, à nova política económica...

Dias entendeu a hesitação e completa: - E contrária ao estatuto especial de Hong Kong e ao que foi previsto para Macau?

É uma conclusão lógica, admite Wang, o que equivale a uma afirmativa. Explorando a maré de confidências. Dias continua:

- Portanto, Pequim... desculpe eu dizer Pequim, não consigo habituar-me ao Beijing... deu a essa suspeita o nome de Hexágono. E como você fez perguntas sobre uma seita chamada Tcheng Sé, também é lógico supor que há uma ligação qualquer...

- A Tcheng Sé faz o trabalho sujo para o Hexágono.

Imediatamente arrependido de tanta franqueza, Wang trata de acolchoá-la com dúvidas: é claro que isto ainda é só uma suspeita, como eu expliquei, e de resto a Tcheng Sé não poderá ser propriamente o braço armado do Hexágono (admitindo que ele existe, o que é admitir muito) porque só está implantada numa região muito restrita.

Outro pelotão de crianças passa por eles, um pelotão alegre e desorganizado. Um dos miúdos, não terá mais de sete anos, olha reprovadoramente para o cigarro que Wang está a acender, mas a reprovação não atinge o alvo, que tem a cabeça virada para o lado oposto.

- E agora, que já sabe o que é, ou o que pode ser o Hexágono, como é que vai usar isso para entrar em acção aqui em Macau?

Há uma ironia discernível no tom de Wang, mas Dias não se deixa desarmar:

- Não tente gozar-me. Você é uma raposa velha e sabe que não é assim que as coisas se passam. Não vou a correr para o Palácio a dizer que está tudo resolvido e não vou recomendar que a Polícia comece a prender gente. Essa informação é uma palhinha, só uma palhinha para o ninho que andamos a tentar construir. E Deus sabe que nos têm faltado os materiais de construção. Vamos almoçar, eu convidei-o e além disso preciso de forças para continuar à procura de palhinhas para o ninho.

E conduz Wang na direcção do Canal dos Patos, junto ao qual há um restaurante.

 

A irritação que Adriano sentiu no final da entrevista com Matos Costa ainda não desapareceu e é desproporcionada, admite-o sem hesitação. E sem surpresa, também, porque sabe qual é o motivo.

O texto que continua a trazer consigo, copiado da folha de papel que a sua curiosidade descobriu na Redacção do jornal. As implicações contidas nesse texto. A certeza de que, se mostrasse à Polícia aquela transcrição, perderia boa parte da sua liberdade de movimentos, eles haviam de querer tê-lo à mão. E não gosta de ficar à mão de ninguém, muito menos do Poder, seja este representado pelos seus corpos políticos, económicos ou policiais.

Resta-lhe falar com Salvador. A hipótese que formulou acerca dele pode estar errada, claro, mas tem quase a certeza de ter razão. Porém, ao contrário do que Salvador lhe tinha dito na véspera, os seus vários telefonemas são sempre atendidos por uma empregada cujo português é nulo e cujo inglês é problemático.

Este falhanço aumenta a irritação, que dura até à noite e lhe corta o apetite. Ele e Rita decidiram comer em casa, uma sopa e uma salada, mas nem a salada Adriano consegue engolir. Rita começa por respeitar-lhe a má disposição e quase não fala, deixa-o remoer em paz e em silêncio. Mas quando, a seguir ao jantar, vê o pai vaguear ao acaso na sala, incapaz de ficar sentado, resolve informar-se, pergunta: o que é que tens, quase não jantaste, andas para aí sem poiso, pareces uma alma penada.

- Alma penada, não - responde-lhe Adriano fazendo um esforço para falar normalmente, pois não quer descarregar na filha a sua má disposição. - Diz antes, alma pensativa, reflexiva. Mas espera aí, que eu já te atendo.

Decidiu tentar uma última vez um contacto com Salvador e tem finalmente sorte, pois é ele que atende o telefone.

- Doutor, se eu fosse um seu doente já tinha morrido. Passei o dia a telefonar para aí.

Salvador desculpa-se, invoca um compromisso de que não se lembrou ao dizer-lhe que ficaria em casa, pede-lhe que marque o dia e a hora que quiser para se encontrarem.

- Hoje e agora. Pode ser?

- Mas... é assim tão urgente? - obviamente, ele estava a preparar-se para um serão sem companhia. Porém Adriano responde-lhe; não sei, mas talvez seja. Não quer usar a palavra “urgente” para não alarmar Rita.

Salvador resigna-se: então venha, venha depressa para a coisa não dar para muito tarde.

- Vou ser rápido como o vento que sopra na pradaria e essas coisas todas. Até já.

Desliga, anuncia a Rita que vai para a má vida, o que não representa qualquer risco de mal-entendido porque ela ouviu a conversa.

Bastam-lhe dez minutos para pôr-se em casa de Salvador, que lhe abre a porta - a empregada não dorme em casa do patrão, raciocina Adriano, que tinha concebido uma ideia libidinosa a esse respeito.

Salvador abre-lhe a porta em pessoa e em roupão, como a mostrar-lhe que já é um pouco tarde para visitas, porém ele não se dá por achado nem se desculpa. O sentido da urgência acordou finalmente.

Começa por relatar o que se passou na véspera à tarde. Salvador, ao ouvi-lo, abre muito os olhos e exclama: é incrível.

- Não é incrível, é uma bomba com um dispositivo temporizador - responde Adriano enquanto o observa com atenção. Poderia jurar que a surpresa é fingida, que ele já sabia.

- É incrível. Em Macau, quero dizer. Porque ao contrário do que se pensa na Europa, isto aqui não é o velho Oeste americano, nem o Médio Oriente nem...

- Nada de doutrina, já tive hoje a minha conta - atalha Adriano. - Aliás não é preciso, eu conheço Macau, não se esqueça.

Tem razão, diz Salvador, mas agora deixe-me perguntar-lhe, por que é que veio contar-me isto a esta hora, com tanta urgência?

É o momento de jogar a sua cartada. Como até agora ignorou o convite de Salvador para sentar-se, escolhe a poltrona que lhe parece mais confortável. Por uma razão qualquer, gosta de se afundar, espalhar numa poltrona, quando tem de travar um duelo verbal. Pena que nem sempre isso seja possível.

- Vamos por partes - começa Adriano - e a primeira parte é esta: a minha filha contou-me de um certo almoço que você deu aqui em sua casa. Contou-me com todos os pormenores, só não me disse o que comeu.

Mas é o principal, num almoço, observa Salvador e ao fazê-lo trai-se, porque o gracejo envolve-o no duelo, deixa subentendido que compreendeu a alusão.

- Pois é, a Rita pertence à nova geração. Os jovens não sabem comer, é uma vergonha, ainda há poucos dias dei com ela a comer um bamburger. Os filhos dão-nos cada desgosto. E agora, não desconverse, não vale a pena, já percebi que você percebeu que eu percebi. Mas tenho outras razões para concluir que você tem uma função qualquer, não sei qual nem a que título, na Administração de Macau.

Salvador tenta ainda um pequeno protesto: eu, funções na Administração, que disparate, eu sou um médico reformado, Adriano.

- Diz muito bem: Adriano. Adriano e não Adriasno. Ou não muito asno, pelo menos. Mas descanse. Eu não lhe peço que confirme e não quero pedir-lhe informações, muito pelo contrário, estou a preparar-me para oferecer-lhe uma informação absolutamente grátis, aproveite a nossa promoção da semana. Depois, você transmite a informação a quem quiser sem eu ter mais chatices com a PJ, já lá passei boa parte da manhã e não me apetece nada voltar. Evidentemente, sei que as suas funções não são oficiais.,.

- Nem são funções, a bem a dizer. - Salvador rendeu-se. -- O que acontece é que sempre que é preciso um idealista parvo, todos vêm ter comigo. E não posso dizer-lhe mais nada.

Não é preciso exagerar, diz Adriano em tom de consolação, se você fosse um idealista parvo, duvido que alguém viesse pedir-lhe ajuda. Os idealistas - não vale a pena acrescentar parvos, pois não? - normalmente, ou são incompetentes ou perigosos.

Salvador respira fundo. - Tem razão, não sou propriamente um idealista, bem pelo contrário. O que acontece é que gosto de Macau e quero continuar a viver aqui depois da transferência, quero ser enterrado aqui, ao pé da minha mulher, na mesma terra onde estão os ossos dos meus pais e dos meus avós. É só isso, de facto.

Adriano deixa passar um instante de silêncio para reflectir que afinal de contas Salvador é um idealista incompetente, porque este desabafo equivale à informação - por certo confidencialíssima - de que alguém ou alguma coisa ameaça seriamente o Território.

- Enfim - diz ele após este descobrimento - o que interessa é que não me enganei, portanto, aqui tem.

Tira do bolso o documento que imprimiu em casa do padre Frazão, ao mesmo tempo que explica; esse texto estava, ontem à tarde, na secretária do chefe da Redacção do Nova Abelha. Vi-o por simples acaso quando lá fui, dar uma entrevista a um rapazinho que trabalha no jornal errado. E depois de ler devolva-me, porque não tem valor nenhum, é só uma transcrição, o original já foi destruído com certeza.

Salvador lê o texto duas vezes, ao mesmo tempo o seu rosto perde a cor. No fim, quando o devolve, pergunta:

- Isso estava lá?

- Como tive a honra de lhe dizer. A questão que se põe é: quem está por detrás do Nova Abelha

Compondo o roupão, cujo cinto se deslaçou. Salvador responde lentamente: por acaso, sei que agora, desde há poucos meses, o sócio maioritário é o engenheiro Castro Silva, que você não deve conhecer. Está reformado, como eu, mas tem alguns negócios, enquanto eu não tenho nenhum, e tem bastante dinheiro, coisa que eu também não tenho, e é também presidente de uma associação, o Grupo de Reflexão e Intervenção Cultural...

Adriano, quase deitado na poltrona, endireita-se.

- O GRIC? Esse Castro Silva é presidente do GRIC? Então, como diria o Tio Arquimedes: eureka.

Salvador protesta: eu não tenho a mínima simpatia pelo GRIC nem pelas ideias do Castro Silva, sempre estivemos em bancos opostos, mas sei que ele é um homem de bem, não consigo imaginá-lo a meter-se numa história dessas.

- Em todo o caso - replica Adriano, levantando-se - é uma hipótese mais plausível do que ter sido o divino Espírito Santo. De qualquer maneira: tem a informação, pode fazer uso dela, é para isso que lha dou, mas convença-se, por favor, de que não sei mais nada e portanto fico infinitamente agradecido se me deixar à margem da questão. Pode sempre dizer nas exaltadas esferas onde a vai divulgar que a recebeu, justamente, do divino Espírito Santo. A gerência agradece, repito.

Quando entra novamente em casa, dá com Rita sentada diante do televisor. Desde que Adriano saiu, tem estado ali, imóvel, com os olhos postos no aparelho, mas não seria capaz de lembrar-se de um único segundo de emissão, porque não viu literalmente nada. Sente algum alívio ao ver o pai, não só porque ele lhe parece agora menos tenso mas também porque a sua chegada a vem sacudir, arrancar a um debate sem conclusão à vista.

O centro desse debate íntimo é lan, as suas relações com lan Kuok Weng, nome cristão Frederico.

Não tem estado a sós com ele nos últimos dias. Não foi criado um laço estável nem assumido um compromisso. Houve aquela vez primeira, em que Rita compreendeu, enfim, que a sua sensualidade - física e mental -, essencialmente frustrada durante o tempo em que viveu com Pedro, pode afinal completar-se. Que não está condenada, nem ao vazio nem à constante mudança, que a aterroriza mais que o vazio porque sente que acabaria por destruí-la.

Nessa vez primeira, o acto, sexual embora, não foi um acto de sexo e sim de amor - amor integral. Integral como o pão, apressa-se a dizer com um sorriso interior de troça, tentando moderar com a ironia um monólogo demasiado íntimo e exaltado. Sem o conseguir, porque escolheu mal os termos, afinal o pão é justamente o único alimento místico, pela sua antiguidade, pela sua essencialidade e pela sua consonância eucarística.

OK, pronto, adiante, desçamos à Terra, digamos simplesmente: foi uma coisa completa, não só o corpo dele, nem a excitação de o beijar, nem o toque ou o odor da pele, nem o resto, mas também a sua sensibilidade, o que dissemos um ao outro, a harmonia do conjunto. O encantamento.

Houve ainda outros dois encontros e depois Rita pediu-lhe um tempo de respiração. Não porque o encantamento se tivesse quebrado mas justamente pela razão oposta. A perfeição, quando julgamos vê-la, é ilusória porque sabemos bem que ela não existe na realidade.

Neste seu caso, é fácil perceber onde estão ou de onde virão as nuvens negras capazes de encobrir o céu e o Sol. O céu e o Sol são os de Macau, a Cidade do Nome de Deus de Macau na China, onde Frederico muito claramente quer ficar - embora não lho tenha dito muito claramente - porque lhe bastou já perder um mundo ao abandonar Moçambique. E depois há aquela outra noção que a aterroriza: a vida com ele, em Macau, tão horrivelmente longe da Europa (mais longe ainda após a transferência) seria um casamento com uma civilização que lhe é totalmente estranha. Capaz de a esmagar sob o peso dos seus muitos séculos e da sua própria estranheza. A questão, raciocina tão friamente quanto possível, a questão é saber se estou disposta a deixar de ser boa parte daquilo que sou.

É neste momento que a chegada do pai quebra o monólogo e a pressão interior.

- Mais bem disposto? - pergunta-lhe e ele sorri e responde: mais aliviado, pelo menos. É só então que Rita lhe pergunta qual o assunto tão urgente que teve de tratar com Salvador e Adriano hesita, na dúvida sobre se há-de ou não contar-lhe tudo.

Neste breve intervalo de silêncio ambos podem ouvir um farrapo de som televisivo, um farrapo de noticiário relatando um crime ocorrido à tarde, um turista chinês alvejado a tiro numa pensão, na zona da Areia Preta; a vítima, esclarece o apresentador do telejornal, chama-se Tang Kok long, trinta e cinco anos, natural de Cantão, sem família nem interesses em Macau, pelo que as autoridades colocam a hipótese de se tratar...

Adriano carrega num botão do controlo remoto murmurando: zapa, zapa, meu zapador, estou farto de ocorrências. E antes que possa retomar a conversa a campainha da porta provoca outra interrupção.

- Mau. Quem será, agora que eu me preparava para vestir o pijama?

Já Rita está a falar pelo intercomunicador. Acciona o botão do trinco e depois informa, com alguma surpresa: é o Alexandre.

- A esta hora?! Ritinha, querida, a casa é tua e eu não tenho nada com isso, mas era bom que os teus apaixonados fossem menos ardentes. Que só funcionassem durante as horas de expediente, por exemplo.

- Estás a ser quase inconveniente! - replica ela. - Mas também não imagino o que ele quer agora.

E Adriano, talvez porque está cansado, deixa-se levar pela tentação que prometeu repudiar:

- Se calha, deixaste ficar a bolsa no carro dele. É um bom método.

O que lhe vale um olhar furioso. Neste momento, toca a campainha do apartamento e Rita apressa-se a abrir a porta.

Alexandre parece ter envelhecido uns bons cinco anos. Linhas de cansaço e de angústia marcam-lhe a cara, linhas que começaram a formar-se há uma hora apenas, quando o Coordenador, informado por Matos Costa, lhe falou para o telemóvel.

Ele estava no carro, acabara de sair de Mong-Há: ia a caminho do seu segundo encontro com Tang Kok long, que devia entregar-lhe a lista prometida.

Viu-se obrigado a encostar o carro ao passeio, no primeiro espaço livre, aliás difícil de encontrar - por pouco não entrava pelo lado errado numa rua de sentido único. Tinha a vista toldada por milhares de pontos de luz vermelha. Mesmo depois de desligar o telefone, deixou-se ficar ali, imóvel, respirando fundo, sentindo que o ar lhe faltava, sem saber muito bem para onde ir ou o que fazer. E durante todo esse tempo uma voz repetia-lhe dentro da cabeça, a culpa é minha, a culpa é minha, sou o responsável.

Sou o responsável e hei-de pagar por isto, mas entretanto é preciso salvar o que pode ser salvo.

Uma sorte não terem acabado o serviço, ele ia a sair da pensão quando foi alvejado, um cãopôs-se à frente da moto do tipo que disparou, foi isso o que lhe prejudicou a pontaria, mesmo assim dizem-me que não é certo ele safar-se.

Palavras ditas por João Dias. Resta-lhe, portanto, uma só oportunidade e tem de agarrar-se a ela.

A decisão de procurar Rita - e destruir definitivamente a sua camuflagem, ou o que dela resta - foi a consequência do desespero. Também de um cálculo, igualmente desesperado, talvez. Ao entrar, uma pequena parte de si mesmo revolta-se ainda, mas ele rejeita esse protesto da prudência. No ponto em que as coisas estão, mais um erro deixa de ter importância. Portanto segue Rita até à sala, cumprimenta Adriano, vira-se para ela: peço imensa desculpa, diz, mas preciso muito de falar consigo. É muito importante.

Adriano levanta-se. - Então, eu aproveito a deixa e vou para a cama... não, não estou ofendido - acrescenta, ao ver que o rapaz vai desculpar-se mais uma vez -, estou é com sono. Boa noite.

Mal ele sai, Alexandre explica a Rita que precisa da sua ajuda: é um favor que não me agrada nada pedir-lhe, mas não vejo outra saída, tenho de falar com um homem que está internado no Centro Hospitalar de São Januário, um homem que foi ferido a tiro.

-; Chinês? O da notícia que a TDM deu ainda agora?

Alexandre morde os lábios para não praguejar. É claro que não se podia evitar a notícia, Tang já estava no hospital quando Matos Costa foi informado e passou palavra a João Dias.

- Esse. Não houve outro caso, que eu saiba, não é coisa que aconteça todos os dias. Agora ouça: pelo amor de Deus, não comece a gozar-me com piadas sobre a loja de cultura.

Rita faz um pequeno sorriso: pois, a loja de cultura não deve ter nada a ver com o assunto, armas de fogo não são cultura, isso é muito claro.

Alexandre volta a morder os lábios, contém a impaciência.

- Esqueça isso - suplica. - De qualquer modo, você já desconfiava dessa minha história, não sei porquê. Rita, eu não posso fazer-lhe confidências sobre o meu trabalho. Só posso dizer-lhe que tem que ver com...

Hesita, à procura de um eufemismo, e acaba por escolher: Macau, tem que ver com Macau e preciso de falar com aquele homem, é importante, repito, e é urgente.

- Mas se é assim tão importante e tão urgente, você pode arranjar uma autorização especial, com certeza.

Alexandre abana a cabeça lentamente, sem deixar de a fitar. Não pode repetir o que lhe disse João Dias: não podemos mostrar um interesse oficial sobre o assunto. Oficialmente, foi uma simples ocorrência. Pode apenas esperar que ela aceite a impossibilidade de pedir uma autorização.

- Ah, estou a ver, é uma história à James Bond. Jaime Bondo, porque é uma história portuguesa... - se é verdade que os gracejos do pai a enfurecem, não é menos verdade que herdou dele o defeito. Mas ao atentar melhor no rosto de Alexandre, nos seus olhos raiados de febre, continua num tom diferente:

- Não sei se o Frederico está no hospital esta noite.

- Pelo amor de Deus, telefone-lhe ou venha comigo ou faça as duas coisas.

Vou lá consigo, decide ela, nunca seria capaz de lhe explicar isto pelo telefone. Se ele não estiver, então ligo-lhe para casa... tudo isto é um bocado surrealista, não acha?

A quem o diz, e você não sabe da missa a metade, replica Alexandre.

Depois de eles partirem, Adriano abre por completo a porta da casa de banho, onde esteve a escutá-los, e volta à sala.

E sai assim de casa, tarde na noite, sem pensar em avisar-me, devia calcular que ainda estou acordado. E sabe perfeitamente que é rara a noite em que não me levanto para ir beber leite. Podia ter-me deixado um bilhete aqui na sala. A menos que haja adivinhado que eu estava à escuta, nunca se sabe, é um problema quando os filhos nos conhecem quase tão bem como nós os conhecemos. Quando eles são pequenos, fazem chichi e cócó nas fraldas, fazem barulho, têm toda a espécie de problemas quando os dentes começam a romper. Na idade do armário, zangam-se com o mundo e ofendem-se connosco. E depois de crescerem, só nos dão angústias. Por que raio não usei uma camisa-de-vénus.

Ou antes - volta agora contra si próprio a exasperação resignada que o assaltou - por que raio não a usaram os meus pais. Enfim, basta de lamentações, as lamentações não me resolvem o problema, tenho de fazer mais alguma coisa se quero voltar para Lisboa em paz de espírito.

Adriano procura a sua agenda, instala-se junto do telefone após lançar um olhar ao relógio. Se Tom Koopman mantém os hábitos que lhe conheceu, não é tarde para telefonar-lhe, costuma ficar a pé até à uma da manhã ou mais, agarrado a livros, manuscritos, relatórios, todos os instrumentos do trabalho de pesquisa em que ele é perito - um jovem génio precoce, agora menos jovem e menos precoce.

A chamada é atendida por uma voz obviamente chinesa, embora o inglês seja impecável. Como se chamava o empregado doméstico de TK, aquele discreto mordomo para todo o serviço? Não importa, provavelmente já não é o mesmo, passou tanto tempo. Finalmente, Koopman vem ao telefone, manifesta um ruidoso e afectuoso espanto ao ouvir o seu nome. Sim, TK, diz Adriano, estou em Macau, não estou a telefonar-lhe do outro lado do mundo. Já tencionava ir a Hong Kong visitá-lo, mas agora tornou-se urgente, preciso de falar consigo. Amanhã de manhã, pode ser? Desculpe não lhe dar um prazo maior, só posso dizer em minha defesa que tenho circunstâncias atenuantes.

Koopman pede-lhe um momento para ir consultar a agenda. Volta declarando-se encantado, vai mesmo ao ponto de anunciar que arranjará as coisas para não ir ao escritório, quer recebê-lo em casa, o que, pensa Adriano, é uma excelente ideia. E TK acrescenta que lhe dará de almoçar: vou pedir ao Erik que me ajude a fazer um prato, não sei como se chama, já me esqueci, mas é uma especialidade de Xangai.

É isso, Erik. Adriano recorda-se agora.

Foi um erro, estúpido como todos os erros, censura-se Rita, nunca devia ter-me deixado convencer, afinal de contas os problemas do menino Alexandre são dele e não meus.

A temperatura é glacial neste corredor do Centro Hospitalar e o gelo nada tem que ver com o ar condicionado nem com o termómetro atmosférico.

lan fala para Alexandre enquanto olha para Rita:

- Lamento, mas não pode vê-lo. O estado desse homem é muito grave.

Ela percebeu, sentiu quase fisicamente o endurecer do corpo de lan ao vê-los, Rita e Alexandre, lado a lado. O seu rosto fechou-se quando a ouviu interceder, fazer o pedido. O tom em que fala é perfeitamente correcto, mas também perfeitamente frio.

- Ele está inconsciente e não sei se vive até amanhã.

- Se me autorizassem a ficar no quarto, à espera de um momento em que recuperasse a consciência...

lan torna-se ainda mais distante. Sabe muito bem que isso é impossível, responde, aliás duvido que tivesse alguma utilidade. E Alexandre sente que começa a odiá-lo de verdade, sobretudo porque ele detém o poder inapelável da recusa, contra o qual não há defesas. No entanto, rói o freio, tenta uma vez mais:

- Isto é um caso de força maior, garanto. Infelizmente não posso explicar-lhe porquê, mas é um assunto vital, é uma questão de vida ou de morte.

- É com certeza uma questão de vida ou de morte, para o ferido - diz lan em tom definitivo.

Alexandre lança um olhar desesperado a Rita, uma súplica para que ela intervenha, e, como a reacção tarda, não consegue impedir-se de ripostar:

- Está bem, aprecio o jogo de palavras, mas você não entende. Trata-se de...

- Entendo, sim - interrompe-o lan - entendo que há qualquer coisa de estranho neste seu pedido, há qualquer coisa de estranho a passar-se. O Dr. Alexandre Moura (acentua este tratamento para contrastar com o “você” de Alexandre) quer à viva força falar com um homem que foi baleado e está em sério perigo de vida. Mas o Dr. Alexandre Moura não pertence à Polícia Judiciária de Macau. E ainda que pertencesse, eu não podia dar a autorização que me pede. E o homem, repito, está inconsciente. Se não têm outro assunto...

Alexandre afasta-se bruscamente alguns passos, se ficasse ali agredia-o. E Rita, a quem não escapou o plural usado, “se não têm outro assunto”, resolve-se enfim a intervir: Frederico, desculpa esta cena, tens toda a razão, está claro, mas eu estou convencida de que isto é realmente importante, compreendes?

- Não. Mas compreendo por que me pediste um tempo de respiração.

Tem ciúmes, claro, mas não é isso o que me fere e sim ver até que ponto ele é capaz de ser frio, de ser impenetrável. Em voz alta, responde:

- Não sejas parvo, a nossa relação não tem nada a ver com isto, limitei-me a fazer um favor a um amigo e também eu não sei exactamente o que se passa, mas sei, acredito que é importante.

Alexandre aproximou-se dos dois vagarosamente. Uma ideia acaba de ocorrer-lhe, algo em que já teria pensado se se encontrasse no seu estado normal.

Quando foi ferido, Tang ia ao seu encontro para lhe entregar uma lista com nomes.

Aborda lan novamente, dando às palavras toda a força, toda a persuasão de que é capaz:

- Ouça. O homem está inconsciente, não há nada a fazer, concordo, e compreendo que não pode deixar-me no quarto à espera que o tipo acorde, mas se ao menos me deixasse ver a roupa que ele trazia vestida...

Também não é legal, replica lan, e de resto a Polícia já examinou os documentos dele e não trazia consigo mais nada, além da carteira.

- Não são os documentos que me interessam, é a roupa! Diz isto numa fúria, mas ao mesmo tempo numa súplica.

Como uma criança; a angústia que lhe marcou a cara retira-lhe agora os anos de que o carregou e mais alguns ainda, mostra-o tal como se sente, desesperado e frágil. É isto o que leva Rita a interceder pela última vez: claro que é ilegal, Frederico, mas podes fazer isso? É ilegal, sim, mas não prejudica ninguém.

Durante quase um minuto, ele olha-a em silêncio.

- Venham comigo.

Leva-os para um gabinete pequeno, que parece não ser usado regularmente. Enquanto esperam, Rita e Alexandre não trocam uma palavra nem um olhar. Ele está fechado em si mesmo, absorvido por inteiro nesta última tentativa, ela sente-se isolada, utilizada naquele jogo entre dois homens e começa a sentir uma séria vontade de lhes gritar, deixem-me em paz, não me chateiem, não me apareçam mais, nem um nem outro.

lan entra no gabinete transportando um grande saco de plástico preto que atira para cima de uma cadeira.

- Dez minutos. Não mais.

Alexandre gostaria de estar só para fazer aquilo, mas não se atreve a pedir-lhes que se retirem, sente que aquela concessão feita por lan é tão frágil como uma bola de sabão, um gesto, um som mais brusco podem alterar tudo.

Despeja o saco sobre o tapete, senta-se no chão, começa a examinar a roupa de Tang. Casaco, calças, sapatos, camisa, gravata...

Camisa e gravata ensanguentadas. Lança um olhar a Rita, que empalideceu mas está decidida a aguentar-se; põe rapidamente de lado a camisa, que não oferece grandes possibilidades. Os seus dedos exploram a entretela da gravata, o casaco, palmo a palmo, as calças, o cinto, enfim, e, em desespero de causa, pega de novo na camisa para observar melhor o colarinho.

Nada.

Pousa o olhar nos sapatos. Evidentemente, num filme à Jaime Bondo - veio-lhe despropositadamente à ideia o sarcasmo de Rita - Tang usaria uns sapatos com saltos ocos e neles guardaria o seu arsenal, explosivos, gases venenosos, cianeto. Santo Deus, não pode ser verdade, é cómico de mais para ser verdade, mas fazei com que seja. Estende a mão, pega no sapato direito, um arrepio sacode-lhe o corpo.

Não é verdade, claro. Os saltos dos dois sapatos são tudo quanto há de mais vulgar, Contudo, Alexandre repara que as palmilhas não aderem completamente ao fundo porque foram arrancadas e coladas novamente.

Tang viu-se obrigado a improvisar e escolheu o método mais primitivo, que é, não raro, o mais eficiente. Mas, pensa Alexandre num súbito acesso de amargura, a Tcheng Sé, ou melhor, quem encomendou o trabalho à Tcheng Sé não sabe que ele tem esta lista, se soubesse não o tinham baleado na rua, arranjavam maneira de o apanhar num sítio onde pudessem revistá-lo. Toda esta precaução era inútil, afinal.

Sob cada palmilha há uma folha de papel muito fino, dobrada. Os caracteres são chineses. Alexandre guarda as duas folhas no bolso, devolve sapatos e roupa ao saco de plástico, depois levanta-se.

- Dr. lan Kuok Weng - diz em tom formal - estou-lhe muitíssimo grato. Não tenho palavras para dizer quanto.

- Se não tem palavras, não fale, responde-lhe lan com gelada ironia. Mas Alexandre não acabou:

- Ainda tenho de pedir-lhe mais uma coisa, tenho de pedir-lhe o maior segredo sobre isto.

- Que remédio, depois de eu o ter deixado fazer o que fez. Eu não vi esses papéis. Não vi nada, nem sequer o vi a si. Nada disto aconteceu.

Alexandre curva a cabeça numa breve saudação. Vira-se para Rita, que se remeteu ao papel de testemunha silenciosa:

- Vamos? Eu vou levá-la a casa, já se vê, mas depois ainda tenho coisas para fazer.

Novo drama de ciúme e paixão, pensa ela, estou a ficar farta, ainda há idiotas que dizem que as mulheres são complicadas e tortuosas e o pior é que alguns desses idiotas são mulheres. Domina-se, pergunta: Frederico, ainda ficas? Se vais sair, podias... mas ele interrompe-a dizendo:

- Estou de serviço. - O seu tom não deixa dúvidas, porém Rita quer ter razão, precisa de ter toda a razão do mundo para pôr em prática a decisão que acaba de tomar, portanto faz um derradeiro esforço e sorri.

- Obrigada por tudo. Eu telefono amanhã, está bem? A que horas?

- Não é preciso.

Mentalmente, ela repete “obrigada”. Esta resposta deu-lhe tudo aquilo de que precisava, por isso não replica nem reage, apenas começa a andar, sai do gabinete, avança pelo corredor, obriga Alexandre a dar uma pequena corrida para a alcançar. Quando sente a proximidade da sua presença não o olha, não quer que ele pense que a opção tomada lhe diz respeito, porque não é verdade: a opção respeita única e exclusivamente a si própria.

lan não se moveu. Viu-os sair do gabinete e, afirma a si mesmo, do hospital e da sua vida. Fecha todas as suas portas interiores: sou um interno do Centro Hospitalar Conde de São Januário, a que os meus compatriotas chineses chamam o Hospital no Alto da Colina. É isso o que importa neste momento, é isso o que sempre teve mais importância.

Dirige-se à enfermaria onde Tang Kok long foi colocado - não propriamente na enfermaria, mas num quarto adjacente reservado aos casos mais graves.

Tang abriu os olhos. Basta roçar levemente os dedos sobre a sua pele para perceber que a febre subiu, que não está a reagir aos medicamentos. lan faz um sinal à enfermeira, que se aproxima e, a seu pedido, murmura um breve relatório; depois afasta-se. Tudo quanto havia a fazer, foi feito. Resta contar com um factor não mensurável, a capacidade de resistência do ferido, a sua vontade, consciente ou inconsciente, de lutar.

- Hospital.

A palavra é pronunciada por Tang em cantonense. lan inclina-se um pouco, responde: sim, está no hospital, está em segurança, não fale.

- Médico. - Uma vez mais a pergunta é dita em tom de afirmação.

Sim, sou médico, mas não fale, guarde as forças.

O ferido, porém, não obedece. Não está completamente consciente, o que diz não faz sempre sentido, fala de pássaros, fala de serpentes, palavras com pouco ou nenhum nexo. Até que pronuncia um nome: Moura, Alexandre Moura, um kwai-lôu, mas tenho de falar com ele, as listas não chegam, há mais coisas. Ou-Mun. A porta da baía. Os punhos harmoniosos não serviram para nada.

lan não tenta compreender. Neste instante preciso, o importante é tranquilizá-lo. Fala-lhe suavemente, a sua voz é uma carícia reconfortante: eu trago-lhe cá esse homem amanhã, prometo, mas agora não fale mais, precisa de repousar.

Tang está a afundar-se rapidamente e ele começa a sentir que o perde. Convoca de novo a enfermeira com um aceno tão imperioso que ela vem a correr e diz-lhe-. vá chamar o Dr. Pereira Costa, depressa.

- A Porta do Entendimento. O mercado de tijolo, a porta, o mercado.

- Não fale, não fale mais, suplica lan.

Alexandre recebe a notícia da morte de Tang Kok long segundos após Rita sair do carro, quando ele ainda se encontra estacionado à sua porta. É João Dias que lhe telefona, dizendo que de São Januário alguém ligou para a Judiciária a informar. Entretanto, um retrato-robot do assassino foi já traçado e será distribuído amanhã. Dias não lhe pergunta se a sua diligência teve êxito, assumiu antecipadamente o malogro, e a sua voz ganha vida quando Alexandre lhe fala das duas folhas de papel.

- Traga-mas já, eu estou em casa mas em cinco minutos ponho-me na PJ.

- Com certeza - responde - só que é preciso arranjar um tradutor que saiba ler, porque somos os dois analfabetos em chinês.

Depois liga o motor enquanto pensa que devia ter dito uma palavra a Rita, ao menos uma palavra, além do agradecimento que pronunciou em voz baixa, simplesmente não sabe o que poderia ou deveria ter dito.

O percurso entre São Januário e o Tap Siac foi feito em completo silêncio. Um silêncio pelo qual Alexandre não é o único responsável: Rita desejou-o, ter-lhe-ia sido quase doloroso falar, aliás está demasiado fatigada para manter um diálogo coerente. É uma bênção - pensa, com algum remorso, ao entrar em casa - que o pai não esteja a pé.

No entanto, há-de ter-se levantado uma vez, como é seu costume quando tenta adormecer antes das duas da manhã, porque deixou ficar sobre a mesa um bilhete:

Amanhã de manhã não me vês, saio muito cedo, vou a Hong Kong. Um beijo.

A bordo do jetfoil, Adriano resmunga interiormente; lixaram-me o Terminal Marítimo, que era das coisas de que eu mais gostava.

A memória da sua primeira chegada a Macau está ligada ao velho terminal, desaparecido na febre de melhoramentos que assolou o Território nos últimos dez anos. Era um edifício desordenado, degradado e sujo, com uma vaga atmosfera de arquitectura colonial decadente. Sem o mais débil valor estético, mas com uma atmosfera exótica, uma respiração que parecia vir de séculos passados, das velhas histórias de aventureiros a chegar com os olhos a arder na fome de patacas fáceis. Por todos os lados se encontrava um aviso que deliciava e enternecia Adriano: É proibido cuspir no chão, a sugerir um hábito arreigado. E por tudo isto, o antigo Terminal Marítimo de Macau era um alívio para os olhos depois do gigantismo, da frieza, da eficiência de Hong Kong. Uma pessoa, ao desembarcar, relaxava os nervos, sentia-se de regresso à dimensão humana, sabia que era mesmo possível e admissível um certo abandalhamento saudável.

Tempos idos. O novo terminal, onde hoje embarcou, é o orgulho da Administração e não somente dela, pois Adriano já ouviu numerosos incitamentos a uma visita, com o argumento de que o seu amor por Macau exige essa romagem. Está feita, a romagem; e ninguém levará a sério o seu desgosto romântico, da mesma forma que ninguém o acredita quando lamenta o desaparecimento do min eléctrico a recobrir as velhas casas.

Para esta viagem de cinquenta minutos, trouxe um livro que não chega a abrir, porque o rugido surdo dos motores do jetfoil e a quase total ausência de balanço têm nele o efeito de um soporífero. Adormece com o livro sobre as pernas e só acorda quando a embarcação reduz a velocidade e os outros passageiros começam a agitar-se na perspectiva da chegada.

Koopman, que o espera à saída do terminal - insistiu nisso quando falaram pelo telefone - não mudou muito fisicamente. Os traços do rosto estão mais marcados, mas continua a ser o jovem gigante esguio e desengonçado que ele conheceu e que agora o abraça com uma exuberância nada holandesa. Tenho o carro muito longe, avisa, não consegui arranjar estacionamento nas redondezas, prepare-se para uma caminhada.

A caminhada não é tão longa quanto ele deu a entender: três minutos, apenas, durante os quais Koopman não se cala, inunda-o de perguntas sobre o que tem feito nestes anos, sobre a razão desta segunda vinda ao Extremo Oriente, sobre as suas actividades em Portugal. Fornece ocasionais informações sobre si próprio: foi à Europa no ano passado, esteve em Utrecht para ver a família e depois foi a Londres em serviço da editora, não teve tempo de passar em Lisboa para o ver...

E não o veria, não em Lisboa, explica-lhe Adriano, que lhe fala depois sobre Vale de Monges e a Casa da Tapada.

Já no carro, a caminho de Kowloon, onde TK tem o seu apartamento, prefere deixá-lo concentrar-se na condução - o trânsito está impossível - e olhar à sua volta, pois é a primeira vez que vê Hong Kong como sede de uma Região Administrativa Especial da República Popular da China e já não colónia da coroa britânica.

As diferenças não são grandes, pelo menos à superfície. A mais flagrante é a publicidade: aparentemente, todos os cartazes colocados depois da transferência de poderes estão escritos exclusivamente em caracteres chineses. Pode ser muito natural, pensa Adriano, mas agora não conseguem vender-me nem sequer um preservativo aperfeiçoado, porque não sei ler a mensagem.

O trânsito tornou-se um pouco mais fluído. Koopman volta a falar, diz que esteve há pouco tempo em Macau, foi uma pena não saber da sua presença, já se teriam encontrado.

- Então, e por cá? Como vai tudo? - pergunta-lhe Adriano. - O novo estatuto?

- Por enquanto, business as usual. Mais ou menos. Há a crise económica, mas essa não se deve à mudança, é geral nesta parte do mundo, você sabe disso. Enfim, faz-se o que se pode...

Adriano solta uma gargalhada breve. Que pena, comenta, você ter de dizer-me isso em inglês. A frase era muito mais típica em português: faz-se o que se pode, vamos indo, vai-se fazendo. Tem de aprender português, TK. Comparado com o cantonense e com o mandarim, deve ser muito mais fácil para si. Ainda hei-de ouvi-lo a recitar Os Lusíadas.

Minutos depois entram no apartamento de Koopman, que, tal como ele, também não mudou muito, pelo menos a enorme sala, com a estante cheia de livros a ocupar uma parede inteira e a cama de ópio em ébano transformada em altar para uma preciosa imagem de Kun Iam. Tanto quanto ele se recorda, tudo está na mesma e com a mesma impecável arrumação, a destoar do proprietário.

- Ali, sente-se ali, que é o lugar de honra - diz TK apontando um cadeirão em nogueira recoberto de almofadas - e agora vou fazer chá, se é que não vou rebentar com a chaleira eléctrica, mas sejamos optimistas. O que é que prefere: pou-lei, verde, jasmim, sotv mee, ti-kuan-yin?

Você refinou-se muito com os anos, comenta Adriano, antigamente, se bem me lembro, era um chá qualquer, em saquinho, com água tirada de uma garrafa térmica. TK corrige-o: isso é no escritório, cá em casa é diferente, mas é verdade que me tornei mais requintado no que diz respeito ao chá.

- Bom. Então, ti-kuan-yin em bule enorme, em quantidades industriais. Estou precisado desse estímulo.

Quando enfim estão os dois instalados frente a frente e têm entre eles, sobre a mesa baixa, o bule aquecido por uma lamparina, experimenta uma sensação de conforto e de reatamento. Sempre gostou da companhia deste holandês desterrado. Embora não possa considerá-lo propriamente um amigo íntimo, há entre os dois uma confiança e um idêntico sentido de humor que compensam a falta de intimidade.

Koopman faz o seu sorriso de garoto para perguntar-.

- Se não leva a mal a indiscrição, não voltou a ver a Rosa?

Pergunta esperada, mais ou menos. O padre Frazão e TK são hoje, nesta parte do mundo, os únicos que acompanharam de perto esse episódio da sua vida, portanto não admira que ambos façam esta inquirição. A sua resposta é a mesma, não voltei a vê-la, sei que se casou, é uma página virada definitivamente e que, por estranho que pareça, não me desperta emoções, nem sequer residuais. Agora estou solteiro e solitário.

- E isso não lhe custa? Afinal, você não é exactamente um velho.

- Mais do que julga, se se refere à idade cronológica. Não vou dizer-lhe que não custa, por vezes, mas há opções a fazer e a minha é tentar domesticar os impulsos.

Porquê domesticá-los, objecta TK, a menos que sejam violentos como os dos homens das cavernas?

Tudo isto anda muito longe do assunto que o trouxe a Hong Kong, no entanto sabe-lhe bem o preâmbulo, sabe-lhe muito melhor que o assunto em questão, aliás desagradável que baste. Há muito tempo que não tem a oportunidade de fazer uma introspecção assistida e TK é de longe preferível a qualquer psicólogo - de qualquer modo, nunca seria capaz de baixar as suas defesas diante de um psicólogo.

- Eu podia responder-lhe que não tenho a sua idade e estaria a afirmar uma realidade incontornável, incomodamente incontornável. Mas há outra razão. Domesticar os instintos, os baixos, entenda-se, sempre foi para mim uma aspiração irrealizada e olhe que venho a tentar desde a mais tenra adolescência.

Mas é isso que eu não entendo, exclama TK a rir.

Não, não vou falar-lhe na minha tão decantada busca da santidade com aspas, precisaria de falar durante muito tempo para que ele compreendesse, aliás eu próprio não a compreendo muito bem. Mas há talvez uma coisa de que posso falar.

- TK; você tem diante de si um tipo que sempre esteve em conflito com as suas próprias obsessões carnais, está a entender? A minha vida tem sido um duelo constante entre a cabeça de cima e a cabeça de baixo. Quando me casei, teria dado... oh, não sei o quê, mas muito, para ser capaz de manter-me fiel. Não era propriamente uma questão de moral convencional, ia mais fundo, era uma questão de constituição psíquica. Nunca entendi (e às vezes cheguei a invejar) os homens que conseguem ter uma amante e uma legítima e partilhar-se alegremente entre as duas sem ficarem rasgados na partilha. Eu sei isso bem, tive um caso extraconjugal antes da Rosa e foi uma tortura permanente. Você sabe o que é a febre, a incapacidade absoluta de contenção sexual, contra a própria vontade? Por mais que se goste de alguém, não ser capaz de evitar correr à esquerda e à direita?

Não, faz Koopman com a cabeça e vê-se que está a tentar abordar uma ideia que lhe é totalmente estranha.

- Não queira saber, não tem graça nenhuma, garanto. E assim, logo que atingi a maturidade suficiente, porque esta é uma questão mais mental do que física, ou melhor, é uma confusão entre as duas cabeças, a de cima e a de baixo... logo que atingi essa maturidade, respirei fundo. Só que então, veio o divórcio. Azar o meu. Mas não posso fazer nada. Podia ser pior, sabe? Claro que a fome subsiste, mas acalmou-se e é equilibrada pelo meu horror ao ridículo e há ainda a considerar o meu inveterado sentido estético. A ligação com a Rosa já estava fora do tempo, do meu tempo. O sexo é cada vez mais um privilégio da juventude. É isso o que nos mostram os media, excepto nos momentos em que se lembram de que a meia e a terceira idades também têm algum poder de compra e decidem passar-lhes a mão no pêlo.

Adriano, você está amargo, protesta Koopman. Ao que ele contrapõe: não estou mais amargo do que era, acho, nem fiz votos de celibato. Dou uma queca ocasional.

Ouve-se o ruído de uma chave accionando o fecho de uma porta. É o Erik, explica TK, veio das aulas, está a fazer um curso. Vem almoçar connosco e decidiu proibir-me o acesso à cozinha porque não quer catástrofes, diz ele.

Erik entra na sala sobraçando uma pasta. Tal como sucede com TK, a sua juventude parece intocada, mas isso, num chinês, é a regra. Erik vem cumprimentá-lo, depois troca um ou dois gracejos com TK e desaparece no interior da casa.

Se o não soubesse já, por vários sinais, Adriano teria agora a certeza, ao observar o modo como os dois se falaram.

TK surpreendeu-lhe o sorriso. - Quando você cá esteve da outra vez ainda não tinha acontecido - explica - nessa altura, ele era de facto o meu empregado, mordomo, secretário...

- Mas estava para acontecer, não estava? - replica Adriano. - A verdade é que já nessa altura a ideia me veio ao espírito.

Koopman larga a rir. Você é um perigo, exclama alegremente. Devia estar para acontecer, só que nós não nos dávamos bem conta disso. Apesar de ter sido um amor à primeira vista, levou algum tempo a vir à superfície.

Faz uma pequena pausa, como a marcar um parágrafo num texto, depois prossegue num tom completamente diferente.

- E então, diga lá-, o que é que se passa e o que é que você quer saber?

A primeira coisa que quero saber, diz Adriano, é se nos últimos meses, ou semanas, houve algum incidente especial em Hong Kong, não me pergunte que género de incidente porque não sei responder a isso...

Koopman interrompe-o, pergunta-lhe se já falou com o padre Frazão.

- Ah. Começa a perceber, não é? Falei, sim. E ele fez uma vaga referência. Mas você conhece-o, um santo e talvez por isso mesmo um chato, com a mania das reservas e dos segredos. Não se abriu; entreabriu-se e ainda assim muito pouco.

Não há muito para contar, diz TK, mesmo porque as autoridades abafaram o caso. Houve umas desordens na zona do porto e a Polícia prendeu uns tipos. Isto veio nos jornais, claro, o que não veio nos jornais e é apenas segredado, só em certos meios e muito baixinho, é que a Polícia, além de prender os desordeiros, recolheu indícios de que pode haver um plano organizado para criar atritos entre chineses e europeus.

Adriano digere a informação durante alguns instantes, enquanto TK volta a encher a sua chávena. Ao falar novamente, pega na chávena para beber um gole e repara que a sua mão treme um pouco.

- Outra pergunta. Já ouviu alguma vez falar numa associação de Macau, o Grupo de Reflexão e Intervenção Cultural, mais conhecido por GRIC? A intervenção, quando existe, é mais política do que cultural, mas estamos todos habituados a eufemismos.

- GRIC? Não conheço - responde Koopman. - GRIC... é uma sigla engraçada, não é? Parece um grilo...

- Pois. A sigla é mesmo a única coisa que eles têm de engraçado. Agora, vou contar-lhe uma coisa que aconteceu em Macau e que também só é segredada muito baixinho.

Relata-lhe então como encontrou a bomba no Teatro D. Pedro V e prossegue, cortando os comentários do outro, com a sua ida à Redacção do Nova Abelha.

- Para seu governo, TK, o Nova Abelha mudou de mãos recentemente e o sócio principal é um velhote mais ou menos reaccionário que é presidente do já citado GRIC. Esta, por enquanto, é só uma informação colateral; o que interessa é isto...

Retira do bolso o papel que já mostrou ao padre Frazão e a Salvador.

- Como lhe contei, depois do interessante episódio da bomba fui ao Nova Abelha para ser entrevistado. Aí, encontrei, por acaso, sobre a secretária do chefe da Redacção, um papel com um texto que consegui copiar. É este. Eu ia traduzir-lho na íntegra porque dava um belo efeito dramático, mas dá também muito trabalho, é melhor abreviar. Isto, TK, é, digamos, um projecto de notícia a que só falta acrescentar os pormenores. E a notícia refere o rebentamento de um engenho explosivo no Teatro D. Pedro V, durante o ensaio geral de um espectáculo, etc. etc.

Koopman fica muito calado e quieto durante meio minuto.

- Já mostrou isto à polícia? - pergunta finalmente.

- Não, mas fiz o equivalente. Você sabe que um jornalista, por reflexo condicionado, não gosta de andar de língua na boca com o poder, com a polícia, com as autoridades. Mesmo porque são todos uns chatos. E eu tenciono regressar a casa muito em breve e isso não ia acontecer se lhes contasse. Bolas, eu não estou ao serviço do Estado, o Estado o que faz por mim é cobrar-me impostos. O que eu decidi foi mostrar o texto a alguém que não tem nada que ver com a Polícia mas que serve, digamos, de canal de informação.

Aparentemente, esta resposta também exige digestão, porque Koopman guarda um longo silêncio reflexivo. Quando vai quebrá-lo, Adriano interpõe um protesto antecipado:

- Você não vai fazer-me um discurso, pois não, TK?

- Vou, contraria Koopman com um sorriso. Vou começar por dizer que você sabe perfeitamente que o que fez não chega, de outra maneira não vinha a Hong Kong para saber o que tem acontecido por cá. Tinha a esperança de que não seria possível estabelecer qualquer relação, o que, no seu espírito tortuoso (e comodista, deixe-me acrescentar), retiraria alguma dimensão, alguma gravidade ao assunto. Só que aconteceu exactamente o contrário, não é verdade? Pelo que vemos, está muito mais em jogo do que podemos imaginar.

- Tortuoso, comodista... não vim cá para ser insultado por si, seu holandês errante.

- Não desvie a conversa, replica TK, muito grave. E sobretudo não se engane a si próprio. Eu acusei-o de comodismo para o irritar. Não queira representar um papel que não é o seu. Não queira convencer-me de que lhe é indiferente o que se passa em Macau, porque não me convence. Não lhe é indiferente. E não só porque a sua filha está a viver lá. Bem escondida, aí no fundo, há uma outra preocupação. Eu já o conheço razoavelmente bem, sei que não estou autorizado a chamar-lhe patriotismo...

- Não se atreva - rosna Adriano afundando-se no cadeirão. - Não se atreva. Eu sei aonde você quer chegar, TK. É evidente que gosto do meu país, como você gosta da Holanda, apesar de raramente lá pôr os pés. É um fenómeno natural, como é gostar do papá e da mamã e dos filhos e até eventualmente de alguns primos, com moderação. Isto não é patriotismo, no sentido bombástico e lírico do termo. É evidente que para mim - embora não para a maior parte dos portugueses, que se estão imperialmente nas tintas - é importante que a transferência de Macau seja feita com... espere aí, deixe-me procurar uma palavra.

- Dignidade?

- Pode ser isso. Mas daí a voluntariar-me para... ora merda.

- Pois é, diz Koopman placidamente. Entretanto, você não sabe se a tal pessoa, o canal de informação, como lhe chama, funciona bem e depressa. Não pode ter a certeza.

Adriano solta um suspiro resignado. TK, você é um chato, murmura e pega no telemóvel, começa a marcar o número de Salvador. Está bem, pronto, vou confirmar se o tipo já falou com a Polícia.

Mas o telefone de Salvador toca longamente sem ser atendido. Dupla merda, resmunga enquanto liga para o número que Matos Costa lhe deu. Sejamos optimistas, talvez o convença a não me chatear muito mesmo sabendo que eu sou a fonte informativa.

Matos Costa atende quase imediatamente e em pessoa, o que significa que lhe deu um número directo. Estou em Hong Kong, diz-lhe Adriano, e desculpe a indiscrição aparente mas gostava de saber se o Salvador Noronha já falou consigo ou com alguém que lhe tenha passado depois uma certa informação.

O silêncio do outro lado da linha é um silêncio palpável. No entanto, a ligação não foi cortada porque a respiração do inspector é perfeitamente audível.

- Está a ouvir-me bem? Enfim, a voz de Matos Costa:

- Estou. O Salvador Noronha foi atropelado há cerca de hora e meia. Morreu.

Adriano não reage imediatamente, o que dá tempo a Matos Costa para acrescentar:

- O condutor fugiu. Já encontraram o carro, tinha sido roubado esta madrugada.

A temperatura na sala é agradável, Koopman ligou o ar condicionado logo que entraram, mas isso não impede que Adriano fique quase instantaneamente coberto de suor, escorrem-lhe gotas da testa para os olhos.

As grandes exclamações não são o seu forte e são uma perda de tempo e a dor que de repente lhe aperta o estômago como um cinto de aço exige-lhe acção.

- Tenho de falar consigo. O mais depressa possível. Vou para Macau de helicóptero. Pode mandar um carro esperar-me?

Matos Costa responde que irá ele próprio e desliga. Neste momento, Erik entra na sala e Koopman diz-lhe suavemente:

- O nosso convidado não vai poder almoçar connosco, Erik.

Este é um dia especial - e não apenas porque Adriano se priva de um almoço chinês.

 

Desde manhã cedo que o Grupo de Trabalho se reuniu à pressa. Jorge Almeida, o elemento que representa a Polícia de Segurança Pública, recebeu a notícia do atropelamento e morte de Salvador Noronha e passou-a aos outros; é ela que justifica esta reunião de emergência. Ou, pelo menos, é ela o único motivo invocado por João Dias ao convocá-la.

Não que o Grupo, em si mesmo, tenha algum trabalho a executar nas investigações. O que precisam de fazer é analisar o facto com frieza - a frieza possível; afinal de contas Salvador era um velho conhecido ou um velho amigo de todos eles - e decidir se ele deve ser incluído no quadro de situação que tentam desesperadamente elaborar.

Jorge Almeida traz à sala de operações uma primeira informação com significado: encontraram junto do Mercado Vermelho o carro que atropelou o médico. Foi roubado durante a madrugada e o dono apresentou queixa às oito da manhã.

- Não podemos ainda tirar uma conclusão - observa Matos Costa cautelosamente. - Algum miúdo pode ter-se passado, pode ter roubado o carro só para ver que velocidade podia atingir e quantas infracções podia acumular na ligação Taipa - Coloane. O atropelamento pode ter sido um acidente e a fuga um pânico. Precisamos de ter em conta esta hipótese.

- Precisamos de ter tudo em conta - intervém João Dias, que até este momento não abriu a boca.

Dias sente-se abatido por dentro. Matos Costa acaba de falar em pânico e foi esse o sentimento que dele se apoderou quando recebeu, em casa, a notícia da morte de Salvador. A mulher, a quem achou melhor contar logo, pois não tardaria a saber por outras vias, ficou extremamente abalada - Salvador era um amigo da casa e era sobretudo alguém do seu círculo social, ia às mesmas recepções, às mesmas inaugurações. Enquanto procurava acalmá-la, uma voz surda, uma voz ameaçadora segredava-lhe: estamos a perder a batalha, estamos a caminhar para o Apocalipse e não podemos fazer nada. A voz calou-se depois, emudecida pelas preocupações da acção imediata, mas deixou vestígios, este abatimento contra o qual tem agora de lutar.

Sacode o corpo, endireita-o. - Precisamos de ter tudo em conta - repete, abrindo a pasta de documentos que tem na sua frente - e por isso mesmo não podemos fazer nada enquanto não tivermos todos os dados. Portanto, provisoriamente, passamos adiante. O nosso amigo Wang Zhong Xie vai estar aqui dentro de uma hora, foi isso o que combinei com ele, e antes que chegue temos outro assunto a considerar.

- As listas - murmura Alexandre, que se perguntava quando iria o Coordenador falar nelas.

- Exactamente. O Alexandre Moura trouxe-me ontem dois documentos em chinês. Vou-lhe pedir que explique a todos como, quando e onde os arranjou, mas primeiro quero falar-lhes do conteúdo. Tive de arrancar da cama um dos nossos tradutores para conseguir uma transcrição.

Pega nas duas primeiras folhas de papel que se encontram na pasta.

- Os nomes dos cúmplices do Hexágono. Em Pequim... aliás, aí não são muitos... e também em Hong Kong, Shengzen e Zhuhai. Vou entregar esta lista ao Wang Zhong Xie. Quanto à outra, diz-nos respeito e levanta um problema. Há sete nomes. Excepto um, todos são chineses, são os chefes da Tcheng Sé em Macau e Hong Kong, a lista inclui mesmo a posição hierárquica de cada um.

Matos Costa mexe-se, como se quisesse abandonar a mesa. Dias lança-lhe um olhar.

- Espere até saber onde e como foram obtidos estes nomes, não sei se vale a pena detê-los já. Não vale, com certeza, se tivermos de os libertar logo a seguir por falta de motivos legalmente aceitáveis. E agora, o nome que não é chinês...

Como Alexandre já concluiu antes, João Dias, à sua maneira sóbria, gosta de um ou outro efeito dramático. Neste momento faz uma pausa e corre o olhar em torno da mesa antes de dizer o nome.

- Castro Silva.

Isto ele não me disse, pensa Alexandre, recordando o seu único encontro com Tang, em Mong-Há. Provavelmente, achou que bastava dar-me a lista quando chegasse o momento que considerava adequado. Provavelmente, mesmo sem se aperceber, achou que era secundário o nome do kuai-lôu, era um caso de solução automática a partir da altura em que pudéssemos avançar.

Depois de pronunciar o nome. Dias prossegue:

- Nenhum de nós, nesta sala, tem uma particular simpatia pelo GRIC nem pelo presidente do GRIC. Ainda assim, e também neste caso, é impossível prendê-lo e é difícil, ou delicado, interrogá-lo imediatamente. O nome dele está aqui, é verdade. Mas a que título? Penso que é a altura de saberem como é que estas listas vieram parar às nossas mãos.

Ao dizer isto, vira a cabeça na direcção de Alexandre.

o punho harmonioso da justiça, vou agora pô-lo em acção, Tang. Não aquele em que pensava quando na minha criminosa idiotia arranjei essa imagem poética - e, oh, como eu me julguei brilhante nesse momento de suprema cretinice. Esse punho falhou miseravelmente, deixou-te morrer da maneira mais estúpida. Resta-me conseguir forma e força para arranjar um outro. E se ao fazê-lo me puser a descoberto, tanto pior, só estarei a adiantar a minha liquidação, sem ter de a provocar eu próprio.

Em voz alta, Alexandre conta rapidamente como encontrou as listas escondidas nos sapatos de Tang, com quem ia encontrar-se; é provável, acrescenta, que só tencionasse entregar-lhe a que se refere a Macau, traria a outra consigo por uma questão de segurança. E é mais que provável que tivesse de memória muitas outras informações.

- Essas estão perdidas, agora - observa Matos Costa em tom sombrio. E Alexandre sente que esta simples frase é a deixa de que precisava.

- Não completamente. O nome do Castro Silva, incluído na lista referente a Macau, dá-nos uma chave, se o enquadrarmos naquilo que já sabemos. Tudo isto começou, como os senhores sabem, com a recolha de uma série de indícios, em Macau e em Lisboa. Em Macau, os indícios sugeriam que estava a preparar-se uma acção qualquer de desestabilização em larga escala e como Hong Kong confirmou essa suspeita e foi ao ponto de admitir a existência dos mesmos indícios, ficou claro que Pequim, a Pequim governamental e oficial, não estava envolvida no assunto, aliás não seria possível que estivesse.

Kwan, o homem da Polícia Marítima e Fiscal, murmura: nada disso é novidade para nós. Alexandre, ao responder-lhe, tem os olhos fixos no Coordenador; o rosto de Dias adquiriu uma estranha imobilidade.

- Eu sei que não é novidade, mas peço que tenham paciência. Espero que o nosso coronel (Dias não reage) concorde comigo, chegou a altura de fazermos um balanço da situação porque chegou também a altura de sabermos se podemos ou não fazer alguma coisa... falei nos indícios colhidos em Macau, passamos aos de Lisboa. Há mais de um ano que o meu serviço anda a vigiar discretamente o Partido da Reconstrução Nacional. Para dizer a verdade, já que não há nenhum jornalista perto, nós interessámo-nos pelo PRN desde que ele nasceu, mas o interesse redobrou há cerca de ano e meio, quando os franceses nos passaram certas informações que não interessa especificar. Em resumo: passámos a... observar com mais atenção o PRN.

Quase sem alterar a imobilidade facial, João Dias interpõe:

- Ele quer dizer com isto que colocaram agentes no interior do partido. Infiltrações.

Alexandre decide ignorar a observação, não lhe interessa desperdiçar um tempo que pode ser cada vez mais precioso. - Ficámos convencidos de que o PRN se prepara para lançar em Portugal uma campanha de xenofobia, sobretudo contra residentes e futuros imigrantes não-europeus, uma campanha articulada com outras que a extrema-direita prepara em França, na Alemanha, na Inglaterra, possivelmente na Itália. Ao mesmo tempo, descobrimos um elo, pouco definido mas confirmado, entre o PRN e Macau. Soubemos que eles iam enviar um homem para cá e a partir daí, mesmo antes de conseguirmos arranjar dados suficientes para...

Hesita um instante porque não quer usar uma expressão que possa ter conotações humorísticas, não quer distracções nem novas interrupções. Mas que se lixe, não vou começar à procura de palavras.

- ...Para fazer-lhe a ficha, mesmo antes disso, era já claro que esse homem vinha incumbido de uma missão. E ainda que essa missão se resumisse a angariar fundos, restava saber porquê em Macau e junto de quem e a troco de quê. Depois, quando recebi a ficha do Mareei Ribeiro e quando foi descoberta a bomba no teatro, tornou-se claro, ao menos para mim, que ele tinha começado a trabalhar, mas ainda não sabia quem lhe fez a encomenda. É aqui, julgo eu, que se encaixa o nome do Castro Silva e devo lembrar-lhes que o GRIC se tem movimentado ultimamente. A tentativa de perseguição a um grupinho religioso parece uma caturrice ridícula, mas pode ter sido um simples começo e não devemos pô-la de lado, sobretudo porque um membro desse grupo foi alvo de um atentado sem motivos aparentes. Como não devemos pôr de lado as inclinações políticas do GRIC, que está muito próximo do PRN.

Alexandre deseja furiosamente acender um cigarro, chega a estender a mão para o maço que traz no bolso da camisa, porém desiste. Nada, nenhum movimento deve distrair este respeitável público.

- Agora, a última premissa; o Hexágono, uma facção política chinesa, também ela extremista, que pretende que a china denuncie os acordos sobre Macau e Hong Kong. E que, segundo diz o Wang Zhong Xie, e ele deve saber, usa a Tcheng Sé como braço armado, nesta região. Tenho pensado muito em tudo isto e uma coisa saltou-me aos olhos. O Hexágono, por um lado, o PRN e o GRIC, por outro, são forças ideologicamente antagónicas, mas se houver distúrbios sérios em Macau e Hong Kong, distúrbios... fixem bem este ponto... capazes de criar atritos graves entre europeus e chineses, essa situação pode servir a todas estas partes, a todas estas partes vergonhosas, permitam-me a piada fácil. Os sentimentos nacionais exaltam-se. O Hexágono encontra um bom pretexto para sair à luz do dia, clamar por um desagravo e, dependendo dos apoios secretos com que possa contar, tentar alterar o status quo em Pequim. O PRN arranja um motor para a sua campanha contra os imigrantes, começa por gritar, fechem a porta aos chineses que querem entrar só porque têm passaporte português, e daí parte para os africanos, enfim, não preciso de desenvolver o tema, mas recordem-se de que falamos aqui de um plano de dimensões europeias. Resta o GRIC. Esses, sabem perfeitamente que a transferência da Administração de Macau é inevitável e portanto querem arranjar um nicho confortável em Portugal, um nicho que lhes dê uma voz política.

Finalmente, pode acender um cigarro e esse gesto é entendido - correctamente - como um sinal de que terminou. Porém, enquanto o faz, não deixa de observar João Dias.

O Coordenador também olha para ele, tem estado sempre a fazê-lo, com o olhar vazio de uma estátua. Agora, abandona a pose da apatia, sacode a cinza do seu charuto filipino. É um quadro muito bem apresentado, comenta, quase perfeito. Não estou seguro quanto às motivações da gente do GRIC, devo dizer-lhe. Gostava muito de ter poderes para examinar os negócios dos associados mais eminentes, uma situação como essa que você descreve pode ser muito favorável ao apagamento dos vestígios de certos tráficos ilegais e o nicho que eles possam querer arranjar em Portugal há-de ser mais financeiro que político; não acredito no idealismo deles.

- O que me deixa perplexo - continua depois de acender novamente o charuto, que entretanto se apagou - é que o Castro Silva é talvez o único que não corresponde a esta minha ideia. Estou a basear-me nos testemunhos mais insuspeitos. Não corresponde, primeiro, porque, independentemente das ideias políticas é um homem com escrúpulos. Segundo, porque tem mais proeminência social do que dinheiro, é só relativamente rico e os negócios dele não são nada de grandioso. Terceiro, porque é um saco cheio de vento, burro como três portas onduladas. E no entanto, o nome dele é o que está na lista, é o único.

O charuto fumega novamente, uma nuvem forma-se à volta da sua cabeça.

- É claro que o nosso trabalho ficaria imensamente facilitado se conseguíssemos deitar a mão ao famigerado Mareei Ribeiro. Mas se ele tem de facto um passaporte falso, e se entretanto mudou de aspecto, admito que não seja fácil, mesmo em Macau.

É neste momento que Adriano telefona de Hong Kong. Enquanto Matos Costa fala, os outros guardam silêncio para não o perturbar. João Dias continua a olhar pensativamente para Alexandre, que se pergunta se o Coordenador terá adivinhado coisas que ele não disse.

Este é mais do que um dia especial.

Há dias que parecem não estar incluídos no calendário e este é um deles: um dia herético, tanto no barómetro como na duração. Nas ruas, onde os progressos técnicos ainda não lograram colocar aparelhos de ar condicionado, o calor húmido voltou, como se o Verão, que já se arrastou para além do que seria normal, tivesse decidido regressar. Aliás, os boletins da meteorologia falam outra vez da possibilidade de um tufão. E as horas, no relógio do organismo humano, escorregam com uma lentidão inusitada.

Wang Zhong Xie acaba de chegar. Logo que o vê, João Dias compreende que ele deve ter perdido a noite. A morte do agente Tang Kok long, de que tomou conhecimento pela rádio antes que Dias arranjasse tempo para lhe telefonar - o que foi uma contrariedade irritante - deve tê-lo lançado num frenesim de actividade. Mas há ainda outra coisa, observa. Deve trazer algo para dizer, desta vez não vem apenas para ouvir.

Esta suposição confirma-se rapidamente. Wang cumprimenta todos os presentes com a sua habitual urbanidade, aproxima-se de Dias. Foi muito agradável aquele passeio no Parque Sun Yat-Sen, declara à queima-roupa. Gostava de voltar lá consigo.

Bem te percebo. Queres dizer-me qualquer coisa que te está atravessada na garganta, qualquer coisa incómoda que te faria perder a face diante dos outros. Bom, estamos aqui para salvar as faces uns dos outros, fraternalmente.

A réplica do Coordenador é indirecta, pois é dirigida aos restantes:

- Meus senhores, vamos fazer um intervalo enquanto eu converso com o Sr. Wang Zhong Xie.

Não basta ficarem sós, ainda é preciso criar a atmosfera propícia. Felizmente, ele tem o instrumento necessário. Pega na lista de cúmplices do Hexágono, aquela que se refere a Hong Kong, Zhuhai e Shengzen - não a transcrição, mas o original encontrado num dos sapatos de Tang - e entrega-a ao mesmo tempo que relata o modo como foi obtida.

Wang recebe a folha de papel, estuda-a com atenção, guarda-a no bolso. Agradece com uma só palavra, não faz comentários. Ainda está irritado, talvez não com Dias mas com as circunstâncias: na véspera, quis fazer o mesmo que Alexandre, quis ir ao Centro Hospitalar para interrogar o agente ferido, considerava ter esse direito, porém teve de aceitar a lógica do distanciamento e do segredo, a necessidade de manter a aparência de um delito comum.

- Também tenho uma lista para si - diz Wang, sentando-se. -Julgo que é importante procurar estas pessoas. Pertencem ao Colar de Ferro - e estende-lhe um papel com dois nomes chineses romanizados.

Não, Santo Deus, pensa Dias, outra dor de cabeça não, as outras já chegam. - Mas o Colar de Ferro não está referenciado em Macau - responde.

Wang sabe disso. No entanto, insiste, esses dois homens podem encontrar-se ainda no Território. Mas eu sei que tenho de dar-lhe uma explicação. Confidencial. Senhor coronel, altamente confidencial.

O uso deste tratamento não é habitual nele e não é gratuito. Quer dar toda a força possível à recomendação de confidencialidade. Dias mantém-se calado, à espera.

- O agente Tang Kok long cometeu um erro grave. Mais que um erro, até. Decidiu actuar por conta própria.

Cala-se, na esperança de ouvir uma palavra de compreensão que o dispense de continuar, mas não a ouve. Dias gostaria de poupar-lhe o sacrifício, porém precisa de saber tudo aquilo que o outro esteja disposto a dizer.

- Quando começou a adiar o encontro em Macau e comunicou que estava a ser seguido pela Tcheng Sé, o serviço dele enviou outro agente de Beijing para Zhuhai. A missão era apoiar o Tang Kok long e também dar-lhe protecção. Já não o encontrou em Zhuhai, ele já tinha voltado a Macau, mas encontrou vestígios da sua passagem...

Nova pausa, desta vez à procura de palavras adequadas.

- Eu vou abreviar: em Zhuhai, o Tang Kok long recrutou gente do Colar de Ferro. Não sei se sabe, o Colar de Ferro quer instalar-se em Macau, só que não pode, por causa da Tcheng Sé.

Não, pensa João Dias, esta não vou deixá-la passar.

- E também, já que fala nisso, porque nós não deixamos, Wang. A Polícia de Macau já prendeu três ou quatro tipos desses. Mas adiante.

Wang faz um largo sorriso. - Claro, evidentemente. O que interessa é isto: o Tang Kok long andou a recrutar gente do Colar de Ferro. Primeiro, para se proteger contra a Tcheng Sé, mas depois fez-lhes outra proposta.

Interrompe-se uma vez mais e agora é João Dias que completa, porque julga ter finalmente entendido;

- Propôs-lhes uma operação em grande estilo, abater todos aqueles que estavam nas listas que ele fez. Sobretudo os de Macau, suponho?

- Só os de Macau.

- Claro. Estou a ver o raciocínio; se eu entrego estes nomes às autoridades portuguesas de Macau, o que acontece é que vão emitir mandados de captura, meter os tipos na prisão, abrir um processo, levá-los a tribunal. E achou que isso não era eficiente. Que eles podiam safar-se com um bom advogado, fugir da prisão, sei lá. É isto, não é, Wang?

- Ele tinha ordens e não as cumpriu - diz Wang, que odeia dar uma resposta directa sobre este assunto. - E dei-xou-se assassinar e não nos disse tudo o que sabia e só por acaso é que conseguimos uma lista de nomes.

O telefone que está na secretária de Dias começa a tocar.

- Pode vir ao meu gabinete? - pergunta Matos Costa. - O Dr. Adriano Carreira já chegou.

Durante a viagem de helicóptero, Adriano tem uma súbita crise de consciencialização, expressa nesta frase lapidar;

Que raio de merda estou eu a fazer aqui?

Já tinha decidido retirar-se, mas agora é diferente: sente-se excedentário nesta parte do mundo. Não sabe bem por que trocou Vale de Monges por Macau, a Casa da Tapada pelo Tap Siac, os verdes suaves dos carvalhos, dos pinheiros e das bétulas pelas raízes loucas das árvores-de-São-José, os perfumes leves da terra e das plantas pelo odor violento do gengibre ou do incenso. Claro, claro, os instintos de pai-galinha. Mas sabemos bem, não sabemos, meu velho fingidor, que isso foi um pretexto, uma desculpa. Só que os grandes momentos e as grandes distâncias vivem-se quando se vivem, não quando tentamos refazê-los artificialmente. A tua indiferença perante as memórias de Rosa devia ter-te servido de aviso. Nada disto te interessa, esta guerra não é tua.

Mas quando o aparelho se aproxima de Macau e começa a descer para o heliporto, a antiga febre volta a reclamar os seus direitos e a cidade volta a ser a sua Cidade do Nome de Deus na China. Hei-de voltar a Patane, ao Jardim de Camões. Já me esquecia de Camões. Ainda que nada mais deixássemos aqui, Camões, mesmo que seja só uma tradição, Camões vale a pena. Os chineses vão adoptá-lo como seu porque se há linguagem que entendam bem é a da poesia.

Estou a ficar velho, talvez?

Matos Costa espera-o num carro da PJ, com motorista, portanto não falam durante o trajecto. Já no gabinete do inspector, ele apresenta-lhe um homem da sua idade, com uma curta barba grisalha, que Adriano adivinha ser um militar mesmo antes de Matos Costa pronunciar a palavra coronel. Não lhe diz quais as funções do coronel João Dias e também não faz perguntas a esse respeito. Fica a saber, durante os primeiros momentos de conversa preliminar, que o coronel conheceu Rita em casa de Salvador e este nome é o ponto de partida para as coisas importantes.

As coisas importantes ainda mal começaram quando Alexandre entra no gabinete. Estava no corredor, viu entrar Adriano, debateu consigo mesmo se poderia ou deveria mos-trar-se. Que importância tem isso agora, Rita há-de, pensa ele, ter contado ao pai o que se passou na noite anterior.

Adriano começou a falar da sua ida à Redacção do Nova Abelha e limita-se a fazer um aceno de cabeça na direcção de Alexandre, como se achasse a sua presença natural. Termina rapidamente o relato com a visita que fez a Salvador, depois entrega o documento com o texto que noticia por antecipação o rebentamento de uma bomba no Teatro D. Pedro V.

A seguir, encolhe os ombros ao escutar as inevitáveis censuras: não contou nada ao inspector Matos Costa, escondeu uma informação da máxima importância e gravidade.

- Permito-me discordar - atalha, quando acha que já ouviu bastante - por várias razões. O que eu descobri não serve de prova em parte nenhuma do mundo civilizado, mesmo porque, como eu disse ao Salvador, o original desse texto já foi destruído com toda a certeza. E além disso, não gosto de ser tratado como se estivesse ao serviço da Polícia. Não estou. E não escondi nenhuma informação, o que sabia passei-o ao Salvador porque era evidente que ele estava a colaborar com as altíssimas autoridades. O que ele fez depois e que se tenha deixado atropelar é lamentável e é triste, mas não é da minha responsabilidade.

Vira-se de repente para Alexandre, que já não espera um ataque, e dispara:

- E então, essa loja de cultura? Desistiu dela?

Dias aplica-se a manter a gravidade, a apagar um sorriso que lhe apareceu na boca sem saber como. Este Adriano Carreira, apesar de não ser mais novo que ele, lembra-lhe um alferes miliciano que teve sob o seu comando, há muitos anos, a quem deu um castigo e para quem recomendou um louvor. Contos velhos.

- Ouça, ouça. Não vale a pena irritarmo-nos - diz a Adriano em tom conciliatório.

- Não estou irritado, replica Adriano, estou exaltado, o que é diferente. De qualquer modo, neste momento já sabem o que eu sei e não interessa saberem o que deduzi porque têm mais e melhores informações que eu. Têm o texto que eu encontrei. O Salvador Noronha leu-o e confirmou que existe um cordão, suponho que umbilical, entre o Nova Abelha e o GRIC, e que esse cordão é o engenheiro Castro Silva. Mas ele acreditava no bom coração do Castro Silva. Não ficarei nada admirado se se descobrir que ontem à noite, depois de eu o ter deixado, ele lhe telefonou a pedir explicações.

No silêncio pesado que se segue ouve-se então um murmúrio de Matos Costa:

- Ele foi atropelado na rua onde o Castro Silva mora. A duzentos metros da porta, mais ou menos.

Dias, que esteve sentado no braço de um cadeirão de napa, levanta-se de repente.

- Matos Costa, é preciso interrogar o tipo. Não gosto de mostrar o meu jogo antes de tempo, mas não há outro remédio. O pior é que continuo convencido, tal como o Salvador, de que ele não está metido nisto e não sabe de nada.

Mas o Salvador, quase certamente, ia falar com ele esta manhã, objecta Alexandre. E Adriano, que, sem saber muito bem como, se sente agora parte integrante deste grupo de homens, observa:

- Claro que ia. Estou a ver a cena: ontem, mal eu saí de casa dele, telefonou ao Castro Silva para marcar um encontro e esclarecer a história da notícia antecipada. Grande burro. Encantador, um gajo porreiro, mas grande burro. E agora, se me dão licença...

Claro, intervém Dias, não o retenho mais tempo.

- Não é isso. É que senti um ataque súbito do meu espírito cívico e ao mesmo tempo tive uma ideia. Portanto, devo estar bêbado. Enfim, se me arranjarem um carro, posso tentar pescar mais alguma coisa a que se agarrem antes de caírem em cima do engenheiro.

Devo estar mesmo bêbado, reflecte Adriano quase alegremente. A necessidade de acção e a sua urgência puseram-no em estado de euforia. Como se houvesse recebido o contágio, o motorista da PJ carrega no acelerador, aproveitando o pretexto da urgência e a sorte de ter de usar a única estrada de Macau suficientemente longa e recta para permitir tal velocidade, o istmo que liga a Taipa a Coloane.

Se ele saiu de casa, é porque foi para Coloane, só pode encontrar-se lá, raios. A menos que fosse ao paço episcopal, mas fazer o quê? Hei-de apanhá-lo em Coloane.

Fecha os olhos, tenta dominar a excitação que lhe sacode o corpo.

Devia telefonar à Rita. Mas não, ela há-de estar a meio de uma aula. De repente, senti saudades dela, como se não a visse há meses. Vou convencê-la a voltar para Portugal, já se refez completamente do divórcio, não há razão para ficar. Tenho a certeza de que arranja colocação em Lisboa, até lá o papá ajuda, é para isso que os papás existem.

O carro trava, Adriano abre os olhos. Numa outra ocasião, vir à Casa de Retiros de Coloane despertaria nele um rosário - rosário, é caso para o dizer - de lembranças, mas não agora, diz-se enquanto carrega na campainha com uma insistência pouco cristã. A porta é aberta por uma freira chinesa que está nitidamente siderada por aquele toque furioso. O padre Frazão, por favor, é muito urgente, lança-lhe Adriano ao mesmo tempo que reza para que ela saiba português, por que raio é que me esqueci do meu latim, mas também não sei se as freiras de hoje falam latim.

A irmã deve falar português, porque se afasta rapidamente e logo, passados poucos séculos que não são mais de quatro minutos, aparece o padre, cristãmente irritado, perguntando que mosca lhe mordeu.

- Já sabe o que aconteceu ao Salvador?

- Estava a rezar por ele quando foram chamar-me.

- Isso é bom e santo, senhor padre, diz-lhe Adriano, mas preciso da sua ajuda para evitar que tenha de rezar por muitos outros mortos. Conta-lhe então tudo o que sabe e também tudo o que deduziu. Não sabe, evidentemente, da existência do Hexágono, mas isso não o impediu de chegar muito perto da realidade.

As palavras querem sair tão depressa que tem de as disciplinar. É muito simples, senhor padre, é luminoso, é cartesiano, está em todos os manuais de subversão e com sorte até se encontra na Internet. E não é novo, já estudei o método quando fiz a tropa, foi há quinhentos anos mas a substância não há-de ter mudado. Veja este caso de Macau, que é o que nos interessa: mata-se uns quantos portugueses de modo a poder lançar as culpas sobre os chineses e depois mata-se uns quantos chineses de modo a que pareça uma represália. Estou a simplificar, já se vê, mas este é o tutano, se me permite a expressão.

O padre segue-o com dificuldade. A certa altura cambaleia, como que atingido fisicamente pela torrente de palavras. Enfim, tenta colocar ele próprio uma palavra, porém sem êxito.

- Eu não quero os seus segredos de confissão, é evidente, não quero ser excomungado. Mas o senhor ouve coisas, não sei bem como, mas ouve, e tem suspeitas, já mo disse. E sabe como é que eles pensam, como é que funcionam.

Enfim, o padre consegue falar:

- O que quer você que eu lhe diga, Adriano? Que suspeito de alguma gente do GRIC? É verdade. Suspeito. Não do Castro Silva mas do... espere. Espere aí.

- Espero, sim, replica Adriano, mesmo porque o senhor é a minha única esperança de dar à Polícia uma ponta por onde eles possam puxar seriamente.

- Foi uma coisa que ouvi, ouvi por acaso, há tempos, ao Castro Silva, numa festa qualquer a que tive de ir. Uma inauguração, se bem me lembro. O Castro Silva estava muito aborrecido porque o vice-presidente do GRIC, o Benjamim Carvalho, tinha mudado o segredo do cofre, sem lhe dizer nada. Não sei de que cofre se trata, a conversa não era comigo.

- Ah.

- Não tire já conclusões. Mas enfim, o Castro Silva disse também à pessoa com quem estava a falar que o Carvalho tinha apresentado uma explicação qualquer, mas que ainda não lhe tinha dado o novo código. Não sei se isto ajuda, não tenho mais nada.

Pode ser que esse nada seja nada e também pode ser tudo, especula Adriano já dentro do carro. Agora o que importa é que não me mandem embora. Se entrei nisto, hei-de sair pelo meu pé.

Não é que este pequeno tesouro carregado por Adriano de Coloane até à Rua Central tenha mais valor do que um simples ouvir-dizer, pois não passa disso, exactamente. Mas é a gota de água tombada num copo já muito cheio. A imobilidade e a espera levaram o sentido de urgência ao ponto da obsessão.

De regresso à Sala de Operações, João Dias começa a disparar ordens: precisamos de mandados de busca e detenção, tratem disso já, é o mais complicado. Quero vigilância reforçada no aeroporto, na Porta do Cerco, no Terminal Marítimo, no embarque dos helicópteros. Quero patrulhas no Porto Interior, quero...

- Quer ajuda? - diz festivamente Wang Zhong Xie, para quem este arranque de actividades soa como os acordes de uma ópera chinesa.

- Wang, toda a ajuda que possa dar-me!'- responde o Coordenador. - Sobretudo, o reforço da vigilância na fronteira terrestre de Zhuhai... não; em toda a zona que envolve Macau. Com as autoridades de Hong Kong, falo eu, estão à espera disto há tanto tempo como nós, em todo o caso uma palavrinha sua também é importante.

Sempre à altura da situação, Wang faz um aceno de concordância e retira-se, com pressa de chegar à Avenida da Amizade, onde tem o seu gabinete, posto à disposição pela Xinhua. Dias, que não consegue manter-se sentado, aproxima-se de Matos Costa:

- Precisamos dos mandados já. Se houver dificuldades, telefone-me.

Matos Costa está também de saída, mas Alexandre segura-lhe no braço. Deixe-me ir consigo, pede.

É Dias quem responde: você sabe muito bem que não tem existência legal em Macau.

- Pois sei. Mas ouvi falar num cofre-forte. Vai ter de ser aberto e se não arranjarem o código, eu posso ser muito útil.

- Ensinam lindas coisas, lá no seu serviço - murmura muito audivelmente uma voz.

É Adriano, de cuja presença todos se esqueceram e que, uma vez mais, não resistiu à perigosa tentação do aparte, perigosa neste caso porque chamou sobre si as atenções.

- Está enganado - responde Alexandre virtuosamente -, sou um autodidacta. - E, virando-se para Dias, insiste: - Não acha que a situação justifica um pequeno desvio das normas?

Dias faz um aceno impaciente. A sua preocupação imediata é livrar-se do escritor, que ainda por cima, perigo dos perigos, é jornalista. Já passa da hora do almoço, diz-lhe, e além disso...

- Quer que eu me retire, porque já ouvi de mais. Mas não tenho fome e justamente porque ouvi de mais, é preferível que eu fique, não acha? Assim, não vou a correr para um telefone nem para um correio electrónico. É claro que estou pronto a jurar solenemente que não divulgo uma vírgula sem autorização prévia. Traga a Bíblia.

- Nunca há-de ter essa autorização.

Adriano observa que o futuro pertence a Nosso Senhor, como toda a gente sabe, e que mesmo não podendo publicar nada tem um direito moral e tem também quase oitenta quilos e se se deitar no chão vai dar uma grande trabalheira retirá-lo do local.

De qualquer modo, a acção não decorre agora na Sala de Operações e sim, com a discrição possível, um pouco por toda a cidade, mas sobretudo na sede do Grupo de Reflexão e Intervenção Cultural, invadido por agentes da PSP, com Jorge Almeida à cabeça, secundado por Matos Costa e Alexandre, os três a enquadrar um Benjamim Carvalho furioso e muitíssimo assustado. Castro Silva, o saco cheio de vento, está a velar o seu antigo condiscípulo Salvador de Noronha e Sousa, discretamente vigiado por um agente da PJ. Para ele, haverá sempre tempo.

- Tem a certeza de que não quer ir comer qualquer coisa? - pergunta João Dias, com uma vaga esperança.

Adriano abana a cabeça numa negativa. - Passou a hora, como disse muito bem, e continuo sem fome. Eu sei que estou a abusar um pouco. Só um pouco. Mas o senhor faria o mesmo no meu lugar, não é verdade?

Não tem resposta porque neste momento começam a chegar relatórios telefónicos. Gradualmente, mas com uma certa rapidez - reconfortante, após tanto tempo de espera - materializa-se, peça a peça, a operação; estão detidos os chefes da Tcheng Sé, todos menos três, que talvez não estivessem em Macau ou talvez tenham conseguido fugir; foi detido um dos homens do Colar de Ferro - o outro, que conseguiu passar a Zhuhai, foi lá apanhado. Wang Zhong Xie informa que, pelo seu lado - o seu lado inclui Hong Kong, evidentemente - tudo corre bem, o que é lacónico mas suficiente.

Contudo, falta o mais importante e a inquietação de Dias aumenta à medida que os minutos passam. Resiste à vontade de ligar para Matos Costa, não quer distraí-lo nem ocuparlhe o telemóvel com uma chamada que não é essencial.

Quando a comunicação chega, passa das cinco da tarde. É, precisamente. Matos Costa. De tal modo alterado que esquece a sua habitual circunspecção e cai na vulgaridade lamentável de usar o vocabulário cinematográfico americano:

- Bingo!

Depois desta primeira palavra, começa a relatar; Benjamim Carvalho recusou-se a abrir o cofre, recusou-se a tudo, mesmo a dar a chave da casa de banho, quanto mais o código. Quis chamar o seu presidente, quis chamar o seu advogado. Quis também fugir, mas isso foi somente um passageiro acesso de pânico que sobreveio no momento em que Alexandre conseguiu abrir o cofre.

- Estava lá tudo! - continua o inspector, com uma voz que a excitação faz tremer. - Actas de reuniões, correspondência, planos de acção, todos os planos da pólvora - outra vulgaridade verbal, esta portuguesa. - As ligações do GRIC com o Partido da Reconstrução Nacional, o Hexágono e a Tcheng Sé. A missão do Mareei Ribeiro em Macau...

- E esse, onde estará esse? - interrompe Dias.

Pouca sorte. De acordo com os documentos encontrados, deve ter abandonado o Território há dois dias, contrabandeado num barco de pesca, os bons ofícios da Tcheng Sé, O Alexandre Moura diz que é o método clássico dele, prepara tudo e depois raspa-se. Outra coisa: o caso dos Filhos da Luz Resplandecente - Matos Costa, na pressa de falar, engasga-se ao dizer “resplandecente” - incluindo o ataque ao aluno do Instituto Camilo Pessanha, foi o pontapé de saída. O Ribeiro não queria, achava uma tontice, mas o pessoal do GRIC insistiu. Agora, o mais importante: as duas próximas acções seriam a colocação de bombas, uma na Porta do Entendimento, outra no Mercado Vermelho, não se diz quando. Portanto, à cautela, o Mercado Vermelho está agora a ser evacuado, os rapazes das Minas e Armadilhas já estão nos dois locais. E merda, desta vez vamos ter de fazer um comunicado para a Imprensa.

- E encontraram tudo isso no cofre? Eles deviam estar doidos - exclama o Coordenador enquanto mentalmente dá graças aos Céus por esta loucura.

Isso e mais ainda: nomes que o Tang Kok long não tinha, nomes que interessam a Hong Kong. E uma outra coisa...

Matos Costa faz uma pausa, talvez porque precise de tomar fôlego.

- O Adriano Carreira ainda está aí, a chateá-lo?

Sim, responde João Dias lançando um olhar breve a Adriano, que espera que ele desligue para o assediar.

- Então, segure-o. O PRN tem-lhe um ódio de estimação, parece que o tipo os zurziu várias vezes na Imprensa, e o Mareei Ribeiro decidiu que seria interessante juntar o útil ao agradável e mandar abater a tiro a filha dele. Uma operação com repercussões garantidas na população portuguesa, é o que está aqui escrito, A operação tinha já data marcada - hoje, veja lá a coincidência. É duvidoso que o façam, dadas as circunstâncias, mas por outro lado, como se mantêm as instruções para que a PSP me informe de todas as ocorrências, acabo de saber que um taxista foi assaltado na Taipa e que lhe roubaram o carro e lembrei-me do método usado contra o Salvador. Andam à procura do táxi, mas podem ter-lhe posto placas falsas. Já seguiram agentes para o Instituto e como era de esperar o Alexandre Moura saiu daqui a correr porque ela tinha o telemóvel desligado. Gosta da miúda, nós sabemos. Também estou a tentar ligar para o Instituto, mas parece que a central telefónica fecha às cinco. Isto é areia de mais para uma só camioneta.

E agora, o que é que eu faço, pergunta a si mesmo João Dias ao desligar sob o olhar extremamente curioso de Adriano.

 

A CAPTURA DO DRAGÃO

A notícia da morte de Salvador Noronha chegou ao Instituto Camilo Pessanha a meio da manhã e provocou uma consternação diferenciada em vários graus, desde o grau convencional, muito próximo da indiferença, até ao desgosto real e palpável.

Rita, que não chora facilmente, deu consigo a chorar, para sua própria surpresa. À simpatia que tinha pelo “doutor-poeta”, como algumas colegas suas lhe chamavam com amável sarcasmo, junta-se a tensão acumulada durante a noite e também o cansaço que as poucas horas de sono lhe deixaram.

Por vontade de Isabel, de Marta e de outros professores, o Instituto encerraria ao fim da manhã, em sinal de luto. Afinal de contas. Salvador era quase o santo patrono da casa, vinha aqui quase todos os dias, estava sempre pronto a colaborar em iniciativas extracurriculares. Porém, a Dr- Ifigénia, entronizada na poltrona directorial, rejeitou a ideia. O Instituto estará representado - por ela - na missa e no funeral. O Instituto - ela - enviará uma coroa de flores condigna, mas não interromperá a sua sagrada tarefa,

A sagrada tarefa incluiu, hoje, uma interminável reunião durante a tarde. Pelas cinco horas, quando Rita volta à sala dos professores, sente-se completamente vazia de forças e não faz a mínima ideia do que foi dito ou decidido durante as duas últimas horas. Tem mesmo dificuldade em ouvir o colega que a chama a plenos pulmões, do outro lado da sala, dizendo que há um telefonema para ela.

- Tens o telemóvel desligado - são as primeiras palavras de lan.

Ele tinha-lhe dito: não precisas de telefonar, o que equivalia a dizer, não telefones.

Rita decidiu pegar-lhe na palavra, transformar o amuo dele em ruptura - se conseguir. Julga que isso é possível porque as experiências do casamento e do divórcio tiveram, pelo menos, a virtude de despertar nela um bom senso que anteriormente devia encontrar-se apenas em estado embrionário.

À observação sobre o telemóvel responde simplesmente: pela tua voz, deves estar muito cansado.

- Estou. Fiquei toda a noite e depois toda a manhã no hospital. O caso do Salvador Noronha.

- Prefiro não falar nisso, diz Rita, não consegui evitar o choro e não me interessa repetir... é estranho, no fundo eu mal o conhecia, mas isto feriu-me tanto como se ele fosse um grande amigo.

- Compreendo, então não se fala mais nisso. Ouve. Esta nossa zanga é estúpida.

- A zanga não é nossa, é tua, replica ela.

- Eu sei. A estupidez foi minha. Vem jantar comigo logo à noite, por favor.

Fiel ao bom senso, ela recusa. Mas, quase sem querer.

apresenta uma desculpa: tenho de dar alguma assistência ao meu pai, ainda hoje não o vi. Foi a Hong Kong de manhã, quase de madrugada, mas já deve ter voltado, deve andar por aí a matar saudades, como ele diz.

E logo a seguir lembra-se: nunca disse ao Frederico que o pai já viveu em Macau.

lan não faz qualquer reparo, agarrado como está à sua ideia; - Se não podes jantar, vamos tomar um aperitivo. Sem segundas intenções, juro. Vou buscar-te ao Instituto, diz-me só a que horas sais.

Se aceitar, o mais certo é que abandonará a sua decisão, portanto Rita enche-se de coragem:

- Não vale a pena, Frederico, o que aconteceu ontem não teve importância em si, mas fez-me pensar que há demasiadas diferenças entre nós e tu sabes tão bem como eu que essas diferenças são importantes, são importantes de mais para serem ignoradas. Vamos ter juízo, está bem?

Desliga sem querer ouvir a resposta. Quando se acaba, é melhor fazê-lo assim, vale mais um pouco de brutalidade que um arrastar doentio de zangas e reconciliações. E uma coisa decidi também, pensa repentinamente, vou começar a procurar emprego em Lisboa. Nem tem de ser em Lisboa, qualquer outra cidade serve. Braga, Guimarães, Aveiro. Percebi enfim que preciso de paz. Não preciso de afastar-me de Portugal, preciso é de paz.

Põe ordem nos seus papéis, prepara-se para sair. A parte mais pequena e menos importante da vida é o êxtase, reflecte, enquanto se encaminha para a portaria. Tomar uma decisão como esta dá-me uma grande tranquilidade. O único problema, a partir de agora...

O único problema é que lan está à espera dela no átrio do Instituto, com o seu sorriso tímido de adolescente. Quando falou, fê-lo pelo telemóvel, já estava no outro lado da rua.

E, ao vê-lo, Rita sente o mesmo que sentiu uma certa manhã no alto do Monte da Guia.

Devolve-lhe o sorriso em silêncio, ele coloca-se ao seu lado, saem, descem as escadas.

Param junto do portão. Ele diz-lhe-. eu jurei que era só um aperitivo sem segundas intenções. Rita, para esconder o riso que não consegue abafar, vira a cabeça para o lado direito.

lan julga que ela avistou alguém ou alguma coisa, olha na mesma direcção e é por isso que vê o táxi que se aproxima e vê o olhar dos dois homens, motorista e passageiro, e repara que o táxi tem as janelas abertas, o que é invulgar porque nesta época do ano todos os taxistas ainda trazem o ar condicionado a funcionar em pleno. Vê as mãos do passageiro e o objecto que as duas mãos agarram de modo muito seguro e profissional.

Rita não vê nada disso. Ouve o grito dele, atira-te ao chão; porém não reage imediatamente, não se atira, mas é atirada-. Frederico empurra-a ao mesmo tempo que dá meia volta de forma a colocar o corpo à sua frente. Depois, há o estampido e o peso de Frederico a esmagá-la e uma sensação quente e molhada na sua mão direita, que roçou com força o corpo dele, e gritos e chiar de pneus e sirenes e caos.

Depois de tudo aquilo, o silêncio é uma bênção. Ao quarto só chegam pequenos ruídos filtrados, passos cautelosos no corredor, vozes tranquilas a murmurar e, estranhamente, um chilreio de pássaro.

Se lhe perguntassem, não seria capaz de dizer como chegou até ali. A última imagem nítida que reteve é a de Frederico deitado no passeio, a agarrar e apertar a sua mão com tanta força que a magoou, isto antes de perder os sentidos. Não sabe como veio para o hospital - na ambulância, possivelmente; tem uma vaga ideia de lhe perguntarem se está ferida - nem com quem negociou, se é que negociou, a sua presença aqui.

Frederico ainda está inconsciente. Disseram-lhe há pouco: não esteja tão aflita, o Dr. lan Kuok Weng não corre perigo de vida, não é um ferimento mortal. Sim, mas isso não anula o frio que lhe deixou a certeza de que se ele tivesse morrido não saberia bem o que fazer a seguir da sua própria vida.

Muito levemente, acaricia com os dedos aquela mão que a magoou. Quando acordares, vou dizer-te que não foi preciso salvares-me a vida, não foi precisa uma bala para eu perceber que és mais importante para mim do que o bom senso. Percebi-o antes, ao ver-te à minha espera, ao sentir o encantamento do primeiro dia.

Repara então que não pensou apenas, disse tudo isto a meia voz. Não importa, ninguém a ouve. E ninguém a vê, de modo que pode permitir-se um pequeno gesto idiota: debruça-se sobre a cama e beija a mão de Frederico.

A mão treme ligeiramente, Rita levanta a cabeça. Ele abriu os olhos, esboça agora um sorriso.

- Como é que te sentes?

- Tão bem quanto possível, responde Frederico, não te preocupes, não é mortal, e contigo aqui o ambiente neste quarto é muito agradável.

Ela agradece: sempre simpático e galanteador, o Dr. lan Kuok Weng, só não sei como deixaram que eu ficasse, porque suponho que é contra as normas.

- Eu pedi-lhes.

Rita olha-o sem compreender imediatamente. Pediste quando, se estavas desmaiado? E Frederico, com um brilho de garoto nos olhos, responde: perdi os sentidos quando fui atingido, acordei no hospital.

- Então, ainda há pouco, ouviste o que eu disse? Quando saíres dessa cama, vais apanhar um par de estalos.

- Que bom, ela já quer bater-me, estamos a fazer grandes progressos.

A porta do quarto está entreaberta, o que permite a Adriano espreitar durante uns momentos. Depois, volta para junto de João Dias, que no corredor, está a alguns passos de distância.

Adriano sente uma furiosa necessidade de fumar, mas é impensável puxar do cachimbo aqui no hospital. Melhor assim; agora, que os seus nervos começam a descontrair-se, os maxilares doem-lhe terrivelmente, de tanto tempo que os manteve cerrados, enquanto durou o alerta.

Seguia no carro de João Dias em direcção ao Instituto quando receberam a comunicação do atentado e do seu desfecho - incluindo a prisão dos assassinos falhados, porque os agentes enviados por Matos Costa estavam justamente a chegar ao local e atravessaram o seu carro na rua, causando assim uma baixa no parque automóvel da PSP, pois o táxi fugitivo entrou bem pelo meio da viatura policial. Portanto, arrepiaram caminho, rumaram a São Januário. Ainda não conseguiu falar com Rita; ao notar que a porta do quarto está entreaberta, não resistiu a dar uma espreitadela, ao menos conseguiu vê-la. Raios, já podia ter saído de lá, eu também sou gente.

Dias está a observá-lo com um ar discretamente divertido. - Você tem filhos? - pergunta-lhe. A crise partilhada varreu os títulos e a cerimónia, senhor coronel, senhor doutor, e criou entre eles uma rápida familiaridade.

- Dois. Estão em Portugal.

- Talvez compreenda então o que vou dizer. Uma das coisas que mais me irritam neste baixo mundo em que somos obrigados a viver é que nunca temos descanso. Durante a maior parte dos anos em que andamos nesta chateza como adultos, ou nos preocupamos com os nossos pais, ou nos preocupamos com os nossos filhos, ou temos as duas preocupações ao mesmo tempo. Ah, você ri-se? Mas eu falo a sério. Veja a minha filha: perdi a conta às fraldas que lhe mudei e às noites que passei em branco quando ela era pequenina. Depois cresce, faz um casamento por engano, vem para Macau, no outro lado do mundo, mete-se em toda esta maldita história. E agora, ali naquele quarto, prepara-se para fazer justiça à grande vocação portuguesa e à especificidade de Macau e todos esses etcéteras, o grande encontro, a convivência harmoniosa de raças e de culturas e de religiões. Porque, não sei se já percebeu, apaixonou-se por esse rapaz.

João Dias hesita, por fim decide-se:

- Isso levanta um problema. Você também falou com o Dr. Pereira Costa... ele explicou-lhe a situação, suponho?

Adriano respira fundo. As várias emoções do dia começam a quebrar-lhe a resistência.

- Explicou.

Mas, acrescenta a meia voz, se eu conheço a minha filha, isso não a vai deter, pelo contrário. E tenho a certeza de que não há-de ser, sequer, um caso de gratidão abnegada, há-de ser paixão, ou amor, enfim, um sentimento idiota desse género. Digo idiota mas possivelmente faria o mesmo no lugar dela, a rapariga herdou de mim a parvoíce.

Dias murmura, em jeito de consolação: claro, hoje em dia há técnicas e métodos avançados, há-de ser possível uma recuperação parcial, só não sabem ainda até que ponto.

- Nem que ele ficasse totalmente paralisado. Enfim, neste momento, os problemas são outros: ele já sabe? E se sabe, como é que está a reagir? E a ela, já lho disseram? Raios, eu não precisava de mais este peso.

Após alguns instantes, João Dias comenta: a história repete-se, mais ou menos;

parece-me que a sua filha está só a seguir as pisadas do pai. Você teve um caso com uma rapariga chinesa, da outra vez, Contaram-me.

Pois tive, replica Adriano, mas a Rita exagera francamente ao seguir as minhas pisadas. Não era preciso meter-se em complicações, como eu, nem sofrer um atentado, como eu.

Uma sombra passa no rosto do coronel. Não me fale em atentados, desabafa. O de hoje, mesmo com um final relativamente feliz, vai dar-me uma dor de cabeça prolongada. Estou a pensar na Imprensa, na imagem de Macau. À distância, até a uma distância curta, como a que vai daqui a Hong Kong, a ideia que vai ressaltar, mais uma vez, é a do inferno do jogo, das seitas, do crime. Adiantará alguma coisa tentar explicar, mostrar números e relatórios? Merda.

Também o coronel já diz merda, embora apenas a meia voz. A crise foi violenta, não há dúvida.

- Falo desta maneira - continua, olhando agora para Adriano com insistência - porque aquilo que vamos dizer à Imprensa há-de incidir exclusivamente sobre o aspecto “marginalidade organizada”. Vamos tentar evitar referências a implicações políticas. Não que isso não deva ser conhecido, mas mais tarde. Neste momento, seria desastroso. Penso que ninguém deseja isso a Macau, a Portugal e à China. Quero eu dizer, ninguém com um mínimo de...

Interrompe-se porque Adriano fechou os olhos com um suspiro exasperado. Ao abri-los novamente, encara João Dias.

- Eu só não larguei a rir - diz Adriano - porque a situação mo proíbe. Afinal de contas, ali, atrás daquela porta, não está só a minha filha, mas também o rapaz que lhe salvou a vida e por causa disso perdeu o uso das pernas e sabe-se lá de que mais e se eu antes simpatizava com ele, agora a simpatia reforçou-se, claro. Mas é só por isto que não tenho vontade de rir ao ouvir esse começo de discurso. Poupo-lhe o trabalho de dizer o resto: não, ainda não enviei nenhum relato, nenhuma reportagem, nenhuma notícia. Claro que o que aconteceu hoje, não posso ignorá-lo, a revista que me pagou a viagem (e insiste agora em pagar-me ajudas de custo, o que eu não pedi) tem o direito de receber este material, se eu não fizesse nada isso equivalia a ver o mundo às avessas. Logo à noite, vou sentar-me calmamente diante do meu belo computador portátil e vou pensar sobre a melhor maneira de abordar o assunto sem criar riscos desnecessários.

- Isso, agradeço-lho do coração, responde Dias, agradeço-lho por mim, já que você não gosta que lhe falem em pátria nem em patriotismo, agradeço-lho por mim, porque me tira algum peso de cima e Deus sabe as toneladas que ainda ficam.

Adriano encolhe os ombros.

- Não tem que agradecer E sobre isso da pátria... caramba, não posso esquecer-me, estou a falar com um militar... depois de tantos anos de propaganda nacionalista contínua, antes do 25 de Abril, não são de estranhar as minhas reticências, pois não? Além disso, repare: o único patriotismo despudorado que hoje não está mal visto é o americano. As pessoas papam-no em incontáveis filmes e séries de TV, que até mesmo quando fingem que criticam estão, no fundo, a exaltar o poder americano, a virtude americana, toda a trapalhada americana. As pessoas papam e ninguém acha mal, mas se a produção fosse francesa, ou alemã, ou portuguesa, os críticos dos respectivos países atiravam-se ao ar, é essa a grande superioridade mental dos europeus, pelo menos enquanto eles se lembrarem dos fascismos e da última grande guerra. Depois, já não sei.

Cai em si ao reparar na expressão ausente do seu interlocutor.

- Peço perdão, desviei-me do assunto, a culpa é do trauma que este dia me trouxe, comecei a variar. Falávamos do peso que tem em cima de si. Olhe, no seu lugar, eu sentia-me feliz. Evitou-se o pior, não é assim? Além disso, repare, esta é uma história exemplar. Vocês passam a vida a falar na amizade luso-chinesa e no entendimento luso-chinês: quer melhor do que isto? Tanto quanto pude perceber, têm estado a trabalhar em colaboração muito estreita com Pequim, ou então, o que é que estava a fazer aquele senhor Wang, que é obviamente uma individualidade, na sua companhia? Bolas, é a confirmação de todos os discursos oficiais, Portugal e a China fraternalmente ombro a ombro contra as obscuras forças do mal. E você queixa-se?

- Não goze, resmunga João Dias.

- Não há nada a fazer, é de nascença. Mas porra, estou a dar-lhe o tom, a sintonia para falar à Imprensa, uma saída triunfante e ainda por cima sem mentir, e você só diz: não goze.

Evidentemente, prossegue Adriano, depois de uma pausa em que Dias esteve a digerir o que ele disse, evidentemente, da nossa parte, portuguesa, isto foi conseguido com muita confusão, alguma sorte, alguma esperteza esporádica, um bocado de carolice. Nada que se assemelhe às eficiências anglo-saxónicas: um método português. Mas suponho que também foi assim que chegámos à índia, portanto é normal que seja assim que saímos da China. E tem muito mais piada.

- Você é incorrigível. Parece um puto malcriado.

Como Dias, após este desabafo, não faz mais comentários, Adriano desvia o olhar dele e alonga-o pelo corredor, onde acaba de surgir uma figura conhecida.

- Olhe, vem aí o jovem herói do serviço secreto... chhh, eu não disse nada.

Alexandre não logrou chegar ao Instituto em tempo útil, um engarrafamento monumental, provocado por obras de pavimentação na rua, imobilizou-lhe o carro durante dez minutos, dando-lhe como única solução o contacto telefónico com Matos Costa. Então, voltou à Rua Central, porque depois de saber que Rita não foi atingida a sua grande prioridade era informar Lisboa, e só depois se dirigiu ao Centro Hospitalar.

Ao vê-lo aproximar-se, João Dias decide que este local e este momento são tão bons como quaisquer outros e além disso o tempo escasseia. Despede-se rapidamente de Adriano e vai ao encontro de Alexandre.

A rapariga, diz-lhe, encontra-se no quarto do Dr. lan Kuok Weng. Eu tenho de ir-me embora, há uma montanha de trabalho à minha espera, há ainda muito para fazer, mas quero dar-lhe uma palavra.

Ele sabe o que vou dizer, está-lhe na cara.

Vão até junto de uma janela, para não prejudicar a passagem de médicos e enfermeiros. Também Dias, tal como Adriano, gostaria de poder fumar. Mais uma razão para despachar este assunto.

- Alexandre. O que o Wang me contou sobre o comportamento do agente chinês, e que eu lhe transmiti ao fim desta manhã, não foi uma surpresa para si, pois não?

Alexandre olha-o de frente mas não responde.

- O balanço da situação que você nos fez foi brilhante de mais, exacto de mais. Você encontrou-se com o Tang Kok long e ele forneceu-lhe informações e disse-lhe o que tencionava fazer. E você alinhou nesse plano. Claro, não posso prová-lo, mas tenho a certeza.

- Não precisa de provar nada, replica Alexandre, só está enganado num ponto, a ideia foi minha e ele é que alinhou. Tenho de explicar porquê? Depois de saber a extensão do que estava a preparar-se? Depois de ver que o tipo da Tcheng Sé que tentou matar aquele puto acabou por ser posto em liberdade? Não correu como nós prevíamos, bem sei. Nunca me passou pela cabeça que um dos tipos dessa outra seita se passasse para a Tcheng Sé e recebesse dinheiro para abater o homem que devia proteger.

- O quê? - Dias levanta a cabeça num movimento brusco.

- Pelo menos, é o que parece. O Matos Costa está a interrogar os homens da Tcheng Sé, foi ele que mo disse, mas não sei pormenores. Possivelmente, a proposta que o Tang fez aos seus guarda-costas, a proposta que eu lhe sugeri, assustou pelo menos um deles e levou-o a passar-se para o inimigo. É mais uma coisa a pesar-me na consciência, eu sei.

Começam a caminhar lado a lado em direcção à saída.

- Alexandre - a voz de João Dias tem um pequeno toque de tristeza - eu gosto de si. E compreendo, até, a tentação de resolver o problema expeditamente. E descanse, não vou fazer-lhe um sermão. Só pergunto uma coisa-, não pensou, por acaso, que esse recurso à solução expedita iria destruir exactamente uma das coisas mais importantes, se não a mais importante, que nós queremos deixar em Macau? Isto pode parecer grandíloquo, mas porra, é verdade.

Estão agora no grande átrio de entrada.

- Não vale a pena bater mais no ceguinho - diz, por fim, Alexandre. - Já decidi que vou apresentar a minha demissão. É uma promessa que posso fazer-lhe, porque já a fiz a mim próprio. Só preciso de um pouco de tempo. Antes de deixar o serviço, quero assistir ao desabamento do PRN e ajudar no que puder, aliás já enviei um relatório para Lisboa. A Polícia e a Procuradoria Geral vão ter material que chegue, disso quero eu encarregar-me, e hei-de arranjar maneira de atrair o Mareei Ribeiro a Portugal para que possam caçá-lo. Para mim, vai ser um bom final de carreira. Não me queixo.

Chegaram à porta principal.

- Eu também saio, senhor coronel. A verdade é que vinha despedir-me de uma pessoa, mas pensando bem, não vale a pena.

Ao fundo do corredor, Adriano continua à espera. Até que enfim, resmunga ao ver Rita sair do quarto. Ela corre na sua direcção, os seus nervos cederam, é novamente a miudinha a abrigar-se sob a protecção do pai. Adriano abre os braços para a envolver.

- As partidas que tu pregas ao teu velho e alquebrado pai.

E agora, diz a si mesmo, tenho de arranjar maneira de saber se ela já sabe. Merda, as coisas que acontecem a um pai.

As despedidas, reflecte Adriano, são sempre deprimentes. Mas despedir-me, num quarto de hospital, do futuro marido da minha filha, que a salvou heroicamente com risco da própria vida e vai por isso ficar paralisado em percentagem ainda indeterminada, é não só deprimente como ridículo. A telenovela saltou do televisor para a rua e eu nunca lhes perdoarei isto, a nenhum dos dois, a afronta de me terem metido no elenco.

O melhor, ainda, é recorrer ao seu estilo habitual.

- Lembras-te, Rita, do que eu te disse em Lisboa? Sobre Macau? O que eu não podia prever era isto, que tu fosses capaz de caçar o dragão de fumo.

E para lan;

Adeus, dragão.

 

Quando a assistente de bordo passa pela segunda vez ao seu lado, Adriano faz um grande sorriso e colhe da bandeja uma nova taça de champanhe.

Ela teve a coragem que eu não tive. É isso o que os filhos devem fazer, ir até onde nós não fomos. Espero que aqueles dois possam ter filhos, apesar de tudo. Espero que dentro de um ano ainda não se odeiem. Espero que a transferência da Administração lhes corra bem ou menos mal. Já são três esperanças, convém não abusar.

Ajeita-se melhor no assento. É curioso, à medida que me afasto, Macau sai-me da ideia e outras coisas entram. Tenho de pensar, a sério, no Joca. Afinal de contas, é meu filho, também. E está a ser estragado com toda a diligência de que a Lena é capaz. Só não sei o que dizer-lhe da vida, quando chegar o tempo. Ele que descubra o que houver para descobrir.

E volto a pensar em Vale de Monges. A Casa da Tapada, a minha casa. E a minha cómica busca da minha cómica santidade. E as histórias da Tia Geninha...

Então, dá um salto, assusta a assistente que volta a passar, sem bandeja, e lhe pergunta se está a sentir-se mal.

Eu? Não, não, isto não foi nada, uma ideia que eu tive de repente, mas já que pergunta, pode trazer-me mais champanhe, por favor, que eu entornei este, estupidamente?

Adriano recosta-se novamente, respira fundo.

Como é possível que tenha passado todo este tempo sem que a Tia Geninha lhe viesse à lembrança e agora dois simples nomes. Vale de Monges, Casa da Tapada, hajam bastado para... atenção: o que é que está escrito no fragmento do diário?

A minha violenta atracção pelo T. (T de Tobias, já tinha chegado a essa conclusão) é uma fome dos sentidos e nada mais...

E a seguir? Agarrei-me a ela para fugir à outra velha paixão, à familiar. Foi a necessidade imperiosa, a necessidade inevitável de me libertar definitivamente do A.

A.

A sua fotografia dos dezassete anos guardada na caixa de sapatos.

Nunca teria imaginado e não admira. Mas agora, a esta luz, recorda inflexões de voz e olhares que estavam mergulhados no passado.

Estranho mundo, este. Estranho e confuso e melancólico.

Adriano esvazia a taça de champanhe, afunda-se mais na cadeira.

E deixa-se envolver por Vale de Monges, o seu rio, as suas árvores, o seu perfume de imutabilidade.

 

                                                                                João Aguiar  

 

                      

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