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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O DRAGÃO NEGRO / Patrícia Ryan
O DRAGÃO NEGRO / Patrícia Ryan

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Inglaterra, 1776

A Bela...

Assim como seus ancestrais saxões, Faithe de Hauekleah faria qualquer coisa para preservar seu lar e seu modo de vida, até mesmo aceitar casar-se com um guerreiro de reputação feroz, embora jurasse para si mesma que jamais entregaria o coração! Contudo, ela não imaginava o que viria a sentir nos braços de Luke. Nunca pensou que um homem pudesse ser tão forte a ao mesmo tempo tão gentil, tampouco que pudesse guardar um segredo capaz de separá-los...

A Fera...

Conhecido como o Dragão Negro, tanto pelos amigos quanto pelos inimigos, o notório Luke de Périgeaux encontra a redenção nos braços de Faithe, porém guarda um segredo monstruoso, que jamais poderá revelar a ela...

 

 

 

 

Março de 1067, aldeia de Cottwyk, em Cambridgeshire, Inglaterra

— Não parece um prostíbulo. — Luke de Périgueux puxou as rédeas, fazendo o cava­lo parar ao lado do que seu irmão montava, na clareira. Mal conseguia ver o chalé dentro da mata, logo adiante. As florestas inglesas eram negras como breu à noite.

— Pelo menos, é um abrigo — Alexandre comentou, bocejando. — Vai chover logo e prefiro estar lá dentro quando começar.

Um arrepio percorreu o corpo de Luke. Esfregou os bra­ços, por baixo do manto. Alex viu e socou-o de leve no ombro.

— Ah, então meu irmão sente frio como o restante dos mortais...

Luke assentiu, embora não fosse o ar úmido da noite que o fizesse arrepiar-se, mas uma amaldiçoada fraque­za de corpo e alma, vergonhosa demais para ser reve­lada. Cerrou os punhos e contraiu os dentes. Tentava controlar-se, para que a sensação passasse. Deitar-se com uma vagabunda ajudaria; sempre ajudava. Incitou o cavalo, e aproximou-se do chalé.

Alex seguiu-o, desconfiado da aparência do lugar. Podia ver luz por trás das janelas cobertas com tecidos grosseiros, e sentir o cheiro de madeira queimada, em­bora não ouvisse som algum.

— Talvez este não seja o lugar certo — observou.

— É claro que é.

Um dos arqueiros indicara o local. Em suas palavras rudes, havia apenas uma vadia ali, que abriria as per­nas a qualquer um com duas moedas e uma boa arma no meio das pernas, mesmo que fosse normando. Afinal, a maioria das mulheres saxãs, vadias todas elas, fugia quando via um normando...

Todos os habitantes daquela ilha miserável e en­charcada de chuva temiam e desprezavam os con­quistadores normandos. E por que não o fariam? Cinco meses tinham se passado desde que Luke e Alex cruzaram o Canal para auxiliar Guilherme, duque da Normandia, e agora rei da Inglaterra, a reclamar aquele país esquecido por Deus numa úni­ca e devastadora batalha. Hastings deveria ser o fim de tudo, e teria sido, se aqueles ingleses bárbaros parassem com suas incursões inúteis e aceitassem o governo normando. Durante todo o inverno, o exér­cito de Guilherme, incluindo muitos cavaleiros sem terras, como Luke e Alex, sedentos de pertences in­gleses, tinham confiscado propriedades e subjugado os habitantes locais sem compaixão, ha intenção de acabar com qualquer tendência de rebelião. Ainda assim, o povo parecia desafiá-los, agarrando-se com patética tenacidade a terras que estavam para sem­pre perdidas, desde a terrível data de quatorze de outubro de 1066.

O tecido grosso que cobria a porta foi afastado e uma figura apareceu, carregando uma lanterna. Era uma mulher gorda, com seios e quadris redondos, apertados nas roupas velhas de lã, e cabelos emaranhados que havia muito não viam um pente. Erguendo a lanterna, observou os dois forasteiros com olhos experientes. Alex riu.

— É, parece que chegamos, sim, ao lugar certo.

— Fala francês? — Luke perguntou à mulher, sen­tindo outro arrepio intenso.

— Um pouco — ela respondeu, com voz rouca. — Meu marido, que Deus o tenha, era de Beauvais.

Sorte. A maioria dos saxões não entendia uma só palavra do idioma de seus novos governantes. Luke já aprendera um pouco de inglês, pois tinha facilidade com idiomas, mas não queria ter de pensar nessa lín­gua hoje.

A mulher abriu um sorriso.

— Acho que não vieram para conversar... — Tinha o rosto marcado e seus dentes não eram muito claros, mas Luke não estava pensando em escolher muito nes­sa noite.

O rei Guilherme baixara normas proibindo seus ca­valeiros e soldados de molestarem mulheres e freqüen­tarem bordéis. Diferente de seus companheiros, Luke não tinha dificuldades em obedecer à lei quanto a estu­pros. Não gostava de brutalizar inocentes; já era violen­to o suficiente nos campos de batalha. Infelizmente, a única alternativa prática era freqüentar os prostíbulos que se abriam a normandos e, quanto a isso, não tinha o menor escrúpulo.

— Meu nome é Helig — disse a mulher, embora Luke não se lembrasse de ter perguntado. Helig. Pelo amor de Deus, por que os saxões davam nomes tão grotescos a suas mulheres? — Seis moedas, os dois juntos. Duas, em separado, se me quiserem um de cada vez. E mais duas para cada coisa diferente que desejarem.

— Duas moedas em separado, então — Luke decidiu. Alex até podia não querer se deitar com ela; já que tinha escrúpulos demais para com as mulheres com quem ia para a cama. Bonito e simpático, era conheci­do por conseguir levar qualquer moça para onde bem entendesse. Luke, ao contrário, não tinha a natureza agradável do irmão mais novo, e sua reputação feroz deixava as mulheres pouco à vontade. Nem mais se lembrava da última vez que uma delas se entregara a ele sem cobrar...

Helig levou-os a um lugar coberto nos fundos do cha­lé, onde abrigaram os cavalos, e depois seguiram para dentro. Luke logo se aproximou da lareira rústica, en­quanto seu irmão dedicava-se à inútil prática da cor­dialidade com a mulher saxã.

— Seus cabelos parecem de cobre — elogiou.

Ela deu de ombros.

— Parece não ter muita pressa, rapaz. Quer uma bebida?

— Claro. E acho que meu irmão também quer.

— Ah, logo vi que eram parentes. — Ela encheu duas canecas com uma bebida que mantinha num jarro. — Olhe, nunca vi cabelos tão escuros num normando, como vocês dois têm.

— É porque somos da Aquitânia, não da Normandia. E as pessoas são mais morenas no Sul. — Alex tirou o manto e largou-o sobre um dos bancos que ladeavam a mesa.

Luke, ao contrário, enrolou-se ainda mais no seu, diante das chamas, numa tentativa de disfarçar o tre­mor que o tomava. Até seu queixo doía por mantê-lo firme, para demonstrar calma.

Helig trouxe o jarro e colocou-o na mesa com força, fazendo Luke sobressaltar-se. Precisava acalmar-sé, disse a si mesmo. Voltou os olhos e viu o irmão erguen­do as saias da prostituta, para passar a mão em suas coxas, conforme ela se inclinava para pegar mais uma caneca, num armário baixo.

— Parece que criou pressa, afinal — ela comentou, usando palavras erradas no idioma que não dominava muito bem.

— É que você tem um encanto irresistível — Alex brincou.

— Tenho palha e cobertores na parte de cima do cha­lé. — Helig indicou, com a cabeça, a escada de madeira que levava a um nicho junto às vigas de sustentação do teto. — Ficaremos mais confortáveis lá.

Alex baixou as saias dela e tomou um gole da bebida.

— Para ser franco, estou mais cansado do que ex­citado — revelou. — Estamos lutando desde ontem de manhã, sem dormir. A batalha só terminou ao pôr-do-sol.

— Eu sei.

Claro. Ela devia ter ouvido falar da batalha perto do castelo de Cottwyk, por meio de seus vizinhos.

Acenando com a cabeça em direção a Luke, a mulher indagou:

— E você? Está também cansado demais para tomar o que veio buscar aqui?

— Não. — Ele desejava dormir tanto quanto o irmão, porém, mais urgente do que isso, era aliviar um pouco da energia selvagem que pulsava em suas veias.

Alex deixou a caneca e deitou-se junto à lareira, cobrindo-se com seu manto.

— Acorde-me quando terminar — avisou. — Depois será minha vez. — Bocejou, ajeitou-se e fechou os olhos.

Conhecendo bem o irmão, Luke sabia que não con­seguiria acordá-lo. Porém, apesar de ter sido simpá­tico com Helig, Alex não gostara tanto assim dela. Havia levantado suas saias para mostrar um interesse até educado. Se a quisesse de verdade, teria ido com ela para a parte de cima sem vacilar. Viu-o re­laxar o corpo e soube que, como sempre, adormecera com facilidade.

— Sujeito agradável, seu irmão — Helig comentou, oferecendo a ele a caneca cheia.

Luke tomou a bebida de uma vez. Não era má. Aliás, uma coisa que os saxões conseguiam fazer bem, era bebida.

— Você estava com sede, — Ela tomou a caneca, largou-a sobre a mesa e voltou para abrir-lhe o manto. Seus olhos se arregalaram ao tirar o broche que o pren­dia, uma jóia de ouro e ônix, representando um dragão. — Meu Deus! Você é ele!

Luke tomou a peça de suas mãos e recolocou-a no tecido. Tinha sido um presente de despedida de seu pai quando partira para juntar-se a Guilherme. Alex recebera um também, feito de pérolas, no formato da cabeça de um lobo, mas nunca sabia onde o tinha dei­xado. Luke, ao contrário, dava grande valor à sua jóia e cuidava para não perdê-la, especialmente depois de ter recebido a notícia da morte do pai no Natal. Ambos os broches continham no verso a inscrição Seja forte e corajoso.

— Você é ele, não? — Helig insistiu. — E o Dragão Negro.

— Sou Luke de Périgueux.

A mulher observou os cabelos longos, que ele usava como o pai tinha usado, com uma pequena trança en­tre as mechas, bem diferente dos normandos. Era uma característica que o diferenciava dos outros soldados, inclusive de seu irmão.

— E, é ele, sim. — Helig meneava a cabeça. — É aquele de quem falam tanto.

Luke sabia o que diziam a seu respeito. Conhecia as palavras que usavam para descrevê-lo: sedento de san­gue, cruel, brutal. Agora, a mulher ficaria com medo, e talvez até o recusasse, apesar das moedas prometidas. Esperou que a fascinação nos olhos dela se transfor­masse em apreensão, o que não aconteceu. Ela pare­cia mais interessada do que antes em saber quem ele era. Algumas mulheres tinham atração por monstros disfarçados de homens. E, enquanto Helig pendurava seu manto, imaginou que, se ficasse tão entusiasmada quanto ficara admirada, poderia proporcionar-lhe algu­mas boas horas de prazer. Ele realmente estava preci­sando daquilo!

Ela tornou a se aproximar, balançando o corpo, com uma expressão de desejo. Havia algo de cruamente se­dutor nela, que o fez reagir. Deitou-a sobre a mesa e ergueu suas saias com mãos trêmulas. O desejo pura­mente animal que se apoderava de seu corpo fazia-o perder o juízo e o autocontrole. Precisava de uma mu­lher, de uma satisfação rápida, e seria agora.

Helig tocou seu cinto.

— Vamos livrá-lo dessas coisas, primeiro.

Luke tirou a túnica pela cabeça, ficando com a ca­misa de baixo e a calça justa. Ela abriu a camisa dele, passando as mãos ansiosas nos pêlos de seu peito.

— Mas o que temos aqui? — indagou, curiosa, pu­xando o crucifixo preso na tira fina de couro que estava em torno do pescoço de Luke. — Ora, ora... Mas você é cheio de surpresas, não?

Enquanto ele a posicionava sobre a mesa, as mãos de Helig buscaram o outro cordão de couro que lhe pen­dia sobre o peito.

— E isto, o que é? — Apertou entre os dedos o sa­quinho de ervas secas, que chiaram ao ser tocadas e quebradas. Muitos dos companheiros de armas de Luke carregavam saquinhos assim, em que levavam ervas para diversas finalidades. Helig não entendeu: — Um amuleto!

— É — ele mentiu, enquanto tentava abrir as calças, tomado por uma necessidade carnal urgente.

A prostituta cheirou o saquinho.

— Parecem ervas medicinais — observou. Luke parou de abrir a calça.

— Reconheço este cheiro... Meu irmão, Ham, costuma usar esta erva. Talvez o conheça. Está sob o comando de lorde Alberic, não? Ham é o carrasco em Foxhyrst.

Luke e Alex estavam aquartelados no Castelo Foxhyrst, sob o comando um tanto inábil de lorde Alberic, um dos cavaleiros mais ambiciosos de Guilherme. E a devoção de Alberic ao seu senhor, junto a certa dissi­mulação e manipulações, tinha-lhe garantido o atual posto de xerife do condado. Grande parte dos soldados que tinham servido sob suas ordens em Hastings, in­cluindo Luke e seu irmão, permaneceram como grupos especiais de combate a rebeliões. Pelo que se lembra­va, o carrasco já estava no castelo quando haviam to­mado posse. Ham era um sujeito barbudo, mas calvo, que exercia com um entusiasmo selvagem sua tarefa, e pouco ou nada se importava que seus compatriotas o considerassem um traidor.

— Ham sempre diz que não consegue torturar e ma­tar sem, antes, mastigar umas folhas de ervas — Helig explicou. — E esta é uma delas, posso apostar. Sei pelo cheiro.

Ela tinha razão. Luke tirou o saquinho de suas mãos e enfiou-o novamente dentro da camisa.

— Ham sempre diz que uma dessas ervas o deixa quase louco — a mulher continuou, sem se importar com o que, de fato, devia estar fazendo. — Diz que fica mau como o próprio demônio, e que não se importa com mais nada, a não ser matar. E que fica nesse estado por um ou dois dias. — Olhou-o, interessada. — Aposto que mastiga essa erva antes de ir para as batalhas. Por isso fica tão feroz...

Ele tapou-lhe a boca com uma das mãos, enquanto com a outra a segurava pelo pescoço. Aproximou o rosto do dela e olhou bem dentro de seus olhos verdes, escan­carados.

— Você fala demais — murmurou. — Não quero con­versar com você, apenas me deitar com você.

Ela assentiu. Luke soltou-a.

— Vamos lá para cima, então, porque...

Ele tornou a cobrir sua boca, com mão trêmula.

— Aqui está bom. — Com a outra mão, separou-lhe as pernas e colocou-se entre elas. Notou que Helig olha­va para Alex, no chão, e esclareceu: — Meu irmão dor­me com qualquer barulho. — E voltou a soltar as tiras das calças.

Luke sentiu um frio estranho nas costas, e percebeu que Helig parecia olhar naquela direção. Voltou-se, e encontrou um homem à porta, segurando o tecido pe­sado para um lado. Era um sujeito grande, obviamente saxão, com cabelos compridos e vermelhos e barba lon­ga. Tinha a pele muito clara e grandes olheiras. Mesmo de onde estava, Luke podia sentir o cheiro nauseabundo que vinha dele, mistura de bebida, suor, urina e mofo.

O homem resmungou alguma coisa para Helig, fa­zendo um gesto em direção a Luke e Alex, e sua expres­são era de ultraje. Pelo que podia entender do idioma local, Luke percebeu que a mulher estava sendo repre­endida por receber normandos.

Com passos firmes, avançou para o estranho, sen­tindo novamente aquela fúria interior que o assolava. Com os punhos cerrados, estava pronto para esmurrá-lo até a morte, se necessário.

Pulando da mesa, Helig agarrou-o pelo braço enquanto dizia algo ao homem, em tom de súplica. O saxão rebateu, furioso, e enfiando a mão por baixo da tú­nica, retirou duas moedas. Enfiou-as na mão de Helig e empurrou-a para a parte de cima do chalé. Luke reagiu, pegando-o pelo braço.

— Por favor, não — a prostituta implorou, seguran­do seu pulso.

Podia acabar com o sujeito ali mesmo, mas escuta­va uma voz sussurrar em sua mente: São as ervas... Acalme-se... Vai passar... Basta se deitar...

— Por favor — Helig continuava implorando. — Não quero confusão aqui. Este homem está um pouco fora de si. Não sabe o que está fazendo...

Pois então eram dois, Luke concluiu. Dois ensandecidos lutando por uma prostituta barata.

— E um freguês regular — ela explicou. — Tudo o que quer é uma relação rápida, e então vai embora. Olhe, deixe-me ir com ele primeiro, depois vou com você de graça, está bem? Pode ficar comigo a noite inteira. Farei o que quiser.

Luke puxou o braço que ela ainda segurava. Podia matar aquele homem, no estado em que se encontrava. Mas a voz continuava soprando em seu ouvido para que se acalmasse, deixasse passar...

Deu um passo para trás, pegou o manto que ela pen­durara e embrulhou-se nele.

— Avise-me quando terminarem.

Pela forma como o saxão se dirigiu à parte de cima, Luke concluiu que estava muito bêbado. E sua vez po­deria demorar. Sabia que não conseguiria dormir en­quanto a loucura da batalha ainda estivesse em seu sangue. Passou os olhos pelo chalé, em busca de uma bebida mais forte do que a que tomara, e achou um jarro com conhaque. Tomou alguns goles antes de ir se sentar junto ao irmão. Voltou os olhos para as chamas, que dançavam como um campo de trigo ao sabor da bri­sa. Um campo dourado, iluminado pelo sol.

A imagem trouxe-lhe à memória a Abadia de Aurillac, onde passara uma juventude tranqüila, evi­tando as aulas e fugindo para os pastos repletos de carneiros, os vinhedos, os trigais. Apertou a cruz de madeira que trazia ao peito, lembrando-se daqueles tempos. Tinham sido anos alegres, os poucos em toda a sua vida. Ultimamente, vinha se perguntando se teria sido feliz, ou, pelo menos, se estaria satisfei­to, se tivesse preferido receber as ordens religiosas, como fora desejo de seu pai, em vez de optar por ser um homem de armas. Sua vontade era a de trocar a espada pelo arado. Poderia já ter recebido terras, por direito de batalha, ou por meio de um casamen­to com uma herdeira inglesa, como acontecera com muitos dos que tinham combatido em Hastings, mas sua habilidade com o arco e a espada o tinham tor­nado valioso demais para Guilherme e o sufocamento das rebeliões locais. Dizia-se que Guilherme tinha suas torres de assalto, seus aríetes, suas catapultas e Luke de Périgueux. Seus companheiros o chamavam, já havia algum tempo, de Dragão Negro, não apenas pela cor de sua flâmula, mas pela espécie de animal que carregava dentro de si e que estava representado em suas armas.

Uma chuva fina começou a cair sobre o telhado rús­tico. Da parte de cima, vinham sussurros e ruído de pa­lha. Com inveja do sono do irmão, Luke pegou o jarro de conhaque e bebeu diretamente dele.

Se pudesse abraçar a vida das armas como Alex! Chamavam-no Lobo Branco. Epíteto de guerra, tam­bém. Porque o inimigo não percebia sua presença até que o sentisse sobre si, enfiando-lhe o aço da espada num golpe mortal. Outro homem poderia atrair inveja de seus colegas de armas devido a tamanha habilidade, mas o jovem e simpático cavaleiro de vinte e um anos era o mais popular em Foxhyrst.

Luke mantinha sua dependência das ervas em se­gredo. Por vergonha. Que tipo de medroso era, que precisava daquilo para conseguir apontar suas setas fulminantes contra o inimigo? Durante certo tempo, chegara, sim, a sentir o fogo do dragão em sua alma, e entrava em qualquer batalha gritando, feroz, se­dento de sangue. Mas, com o tempo, passou a ficar enojado e agora precisava mastigar aquela mistura de ervas para conseguir sentir a mesma vontade, a mesma violência. Se, ao menos, isso não o afetasse tanto... Era freqüente não conseguir se lembrar do que tinha ocorrido nas batalhas, durante semanas a fio, até mesmo meses. Sequer se lembrava com cla­reza de ter tomado o castelo Cottwyk nesse mesmo dia. Tinha na mente apenas imagens fragmentadas, assombrosas, e uma vaga sensação de que fizera algo particularmente sem perdão. Não fosse pela malha suja de sangue, poderia imaginar que tudo não pas­sara de um terrível pesadelo.

As vozes na parte de cima do chalé tornaram-se mais altas, conforme aumentava a intensidade da chuva. Uma goteira se formou, bem perto de onde ele estava. Irritado com a prostituta, com o saxão e consigo mesmo, tomou mais uns goles. Toda vez que movia a cabeça, as coisas giravam ao seu redor. Portanto, tentava mantê-la parada, para não se sentir nauseado. Acomodou-se melhor e tornou a fixar os olhos nas chamas, tentando adivinhar que formas elas criavam. E começou a achar que ali havia um rapaz, ainda muito jovem, quase um menino. Ele lhe dizia algo em inglês. Duas palavras: por favor.

Arregalou os olhos e afastou-se das chamas, querendo que o espectro desaparecesse. No entanto, ele conti­nuava ali, naquele inferno, os olhos angustiados volta­dos para Luke, repetindo aquelas duas palavras...

Sentiu algo em seu braço e voltou-se, tentando man­ter a vista em foco.

— Jesus Cristo — sussurrou, vendo que a manga de sua camisa estava em chamas. Levantou-se, batendo no tecido, mas o fogo continuou, chamuscando sua pele. Mesmo sentindo a dor da queimadura, enrolou-se no manto, para apagar as chamas. Encolheu-se, então, cer­rando os olhos. Tinha que passar, tinha que passar...

O conhaque, a falta de sono e as malditas ervas o estavam enlouquecendo.

— Tem que passar — murmurou, baixando a cabe­ça até quase encostar a testa nos joelhos. — Tem que passar...

Ao abrir os olhos, viu-se no chão de um chalé es­tranho, balançando o corpo para a frente e para trás. Piscou, sem reconhecer o lugar, mas percebendo as cha­mas da lareira e o homem do outro lado, dormindo.

— Alex? — chamou, mas ele não se moveu. Aproximou-se para vê-lo melhor. Era mesmo Alex.

Junto com o som da chuva pesada, soou a voz de ou­tro homem, de cima. E então, a de uma mulher, e Luke teve a impressão de ver uma prostituta gorducha com cabelos ruivos. Logo, tudo começou a lhe parecer fami­liar e lembrou-se de ter ido até ali, em busca de uma mulher, e de Alex ter concordado em acompanhá-lo. Mas alguém lhe roubara a mulher e estava com ela lá em cima. Teve uma vontade repentina de subir e pegar o que viera buscar. Fechou os punhos e pôde ver a si mesmo esmurrando o saxão até que ele não mais se mexesse. Levou as mãos à testa e cerrou os olhos nova­mente, repetindo:

— Tem que passar, tem que passar...

Respirou fundo e tornou a se deitar, embrulhado no manto. Precisava dormir, isso sim. Dormir para que passasse.

Luke tocou o cacho de uvas, imaginando o bom vi­nho que os padres fariam. Segurando as frutas sobre a boca aberta, espremeu-as para tomar o suco. Escutou-as gemer...

Não! Engasgou-se e se debateu sob o manto. Outro gemido ecoou dentro do chalé. Escutou o barulho da pa­lha e uma voz de mulher. Aquela prostituta era sua, não daquele saxão imundo. Levantou-se rapidamente, furioso. Seguiu para a escada e galgou-a de três em três degraus. O saxão, deitado sobre a mulher, voltou-se, com ar ultrajado. Luke ergueu-o e esmurrou-o com vio­lência no rosto, arrancando-lhe um gemido de dor. Não parou de socar até perceber que o homem jazia, imóvel e coberto de sangue, sobre a palha.

Helig estava tentando arrastar-se para longe, mas Luke a segurou por trás, ergueu-lhe as saias e a cobriu com seu corpo. Ela gritou, fazendo-o despertar, subita­mente, daquela espécie de pesadelo.

Sentou-se, suando e tremendo, tentando libertar-se do manto que o prendia como um casulo. Diante dele, a lareira só tinha brasas, e Alex continuava dormindo. Da parte de cima do chalé, vinham sons de um casal numa relação bastante agitada. Tinha sido um sonho?, perguntou-se, aturdido. Parecera tão real...

Continuava tremendo muito. Era uma ameaça ambulante, nas condições em que se encontrava. Um animal capaz de qualquer coisa. Precisava sair dali naquele instante. Levantou-se com certa dificuldade e ajoelhou-se ao lado do irmão.

— Alex — chamou, chacoalhando-o. — Acorde! — Deu um tapa em seu rosto, ansioso. — Vamos sair daqui!

Tudo o que conseguiu foi que o ritmo da respiração de Alex se alterasse um pouco. Ele não despertaria até ter descansado o suficiente. Luke não sabia o que fazer. Não podia deixá-lo ali. Um soldado normando dormin­do sozinho num prostíbulo inglês com um saxão maluco no andar de cima? Não, não podia ir embora, apesar de querer muito.

Voltou ao seu lugar e acabou com o conhaque do jarro. Beber até ficar inconsciente, era disso que precisava.

O trovão o despertou. Luke ergueu a cabeça e olhou ao redor, sem saber como fora parar na palha, de bruços. Lembrava-se apenas de estar envolto no manto, junto ao fogo. Tentou se levantar, mas sua cabeça bateu em algo duro: uma das vigas do teto. Deitou-se outra vez, cerrando os olhos. Onde estava? O que estava acon­tecendo?

Sobressaltou-se ao escutar outro trovão. Quando o clarão de um relâmpago iluminou ó ambiente, viu a pa­lha e o teto. Estava na parte superior do chalé. Um ar­repio percorreu-lhe o corpo. Rastejou de volta à escada, mas sentiu algo pesado e firme contra os pés. Voltou-se e outro relâmpago mostrou-lhe o obstáculo: o saxão, deitado de costas, com os olhos meio abertos e um filete de sangue escorrendo pelo canto da boca.

Meu Deus, não. Luke sentiu-se sóbrio de repente.

Um grito angustiado vindo de fora o levou a olhar pela janela. Mais um relâmpago, e viu a prostituta fu­gindo, na chuva, recolhendo as saias, as pernas claras destacando-se na escuridão, a parte de cima da blusa aberta. Antes que o clarão se apagasse, Luke viu algo mais: havia sangue nas mãos dele. Fechou-as e o líquido viscoso fez seus dedos grudarem uns nos outros. Cerrou os olhos e lembrou-se de seu punho atingindo o saxão bem no meio do rosto. Não era mais uma imagem fan­tástica projetada em sua mente, mas a lembrança do que fizera momentos antes. Arrancara o saxão de cima da prostituta e matara-o com um único, e terrivelmen­te forte, golpe. Tentou se lembrar de mais alguma coi­sa, mas tudo se tornara uma mancha vermelha, como quando uma batalha terminava.

— Luke?

Alex... Nem mesmo ele conseguia dormir com aque­les trovões. Passou por cima do corpo do saxão e espiou o andar de baixo. Seu irmão estava à mesa, acendendo a lanterna, com a túnica amassada e os cabelos comple­tamente desalinhados.

— Traga isso aqui! — Luke gritou. --- Depressa! Alex obedeceu, dobrando-se por causa da pouca altu­ra do lugar, e iluminou o corpo do saxão.

— Quem é esse?

— Chegou depois que você tinha dormido. Alex empurrou o corpo com a ponta da bota.

— E cheirava assim enquanto estava vivo?

Luke bateu na testa com as juntas dos dedos, e elas doeram.

— O que houve? — Alex indagou, curioso.

— Eu o matei. O rapaz bocejou.

— E por que fez isso?

— Não... me lembro direito.

— Ah, não é de admirar, considerando-se o jarro va­zio de conhaque...

— Pelo amor de Deus, como pode achar isso diverti­do? Matei esse homem! Não é como matar alguém num campo de batalha. É... errado.

Alex ergueu os ombros.

— Você deve ter tido um motivo.

— É. Matei-o por causa daquela mulher. Tirei uma vida por causa de uma vadia de duas moedas.

O irmão moveu a mão no ar, com descaso.

— Não... eu quis dizer que você deve ter tido um bom motivo, mesmo estando bêbado demais para se lembrar.

— Acho que estou louco — Luke murmurou. — Isso seria motivo suficiente?

— Você ainda está bêbado, não louco. — Olhou ao redor. — Onde está a prostituta?

Luke fez um gesto em direção à janela.

— Eu a vi fugindo.

— Nessa tempestade?

— Parecia aflita.

— E o que houve com seu braço?

A manga da roupa estava queimada e solta, e havia bolhas no braço vermelho.

— Não sei... devo ter me queimado. — Levantou-se, e praguejou quando bateu a cabeça, de novo, no teto.

Alex não pôde deixar de rir.

— Acho que você é uma ameaça mais para si mesmo do que para os outros.

— Esse morto não concorda. — Passou pelo saxão e começou a descer a escada. — Vou atrás dela.

O irmão o seguiu.

— Por quê?

— Porque estava aqui e viu tudo. Quero que me con­te o que aconteceu. Preciso saber.

— Imagino que isso vá tranqüilizá-lo. Mas devería­mos esperar o amanhecer. Até lá, quem sabe, a chuva tenha passado...

— É, e ela provavelmente estará a quilômetros daqui.

— Pelo amor de Deus, ela está a pé. Não irá muito longe.

Demoraram a encontrá-la na trilha obscura que dei­xara. Viram-na já de manhã, deitada numa colina.

— Céus — Luke murmurou, ao se aproximarem. Até mesmo o impassível Alex empalideceu quando a viu.

— O que acha que... — ele não conseguiu terminar a pergunta.

— Um raio — Luke explicou, desmontando para fa­zer uma prece junto ao corpo queimado.

Alex fez o mesmo, mas andou para o outro lado, onde vomitou, junto a uma árvore. Depois de refeito, chamou:

— Vamos embora daqui.

— Não podemos deixá-la.

— Ora, alguém vai encontrá-la.

— Não. Isto foi obra minha, e não vou partir como se nada tivesse...

— Shhh. — Alex colocou o dedo sobre os lábios, aten­to.

Luke calou-se, sabendo que os ouvidos do irmão eram excelentes.

— Homens — ele sussurrou, apontando para uma trilha que descia a colina. — Vêm dali. Estão a pé. Portanto, provavelmente, são ingleses. Sugiro que con­tinuemos nossa conversa em um lugar mais seguro.

Luke montou, e os dois se abrigaram na mata, en­quanto os homens a pé surgiam na chuva. Um deles puxava uma mula, à qual estava atrelado um catre com o corpo do saxão. Juntaram-se todos em torno do corpo de Helig, com expressão de raiva e horror. Outro come­çou a soluçar, e cobriu o rosto com as mãos. Um tercei­ro se ajoelhou e inspecionou o corpo com curiosidade, chegando a tocar os pés e o rosto, onde as marcas de queimadura eram mais visíveis. Dois outros seguiram, depressa, até os arbustos, para vomitar.

O que tinha se ajoelhado ergueu-se e tirou algo de dentro da túnica. Luke forçou a vista e, ao reconhecer o objeto, voltou-se para o irmão:

— Alex, aquele é seu...

— Droga! — Levou a mão de imediato à gola do man­to, onde deveria estar seu broche.

Os homens passaram o objeto entre si, e o examina­ram, sem entender a inscrição. Luke meneou a cabeça, aborrecido. As vozes alteradas dos ingleses chamaram sua atenção. Eles agitavam machados, foices e forcados no ar e, por seu jeito furioso, estava claro que preten­diam encontrar e matar o normando que assassinara um dos seus por causa de uma prostituta.

Amarraram o corpo de Helig no lombo da mula e voltaram por onde tinham vindo, ainda brandindo os instrumentos de trabalho que agora eram armas.

— Provavelmente não vão ligar o broche a mim — Alex analisou. — Somente nossos homens me conhecem como Lobo Branco. Mesmo assim, acho melhor ficarmos algum tempo longe de Cottwyk, não? — Tocou as réde­as, mas Luke as segurou.

— Vou me entregar a Alberic — declarou.

— O quê?

— Ele é o xerife, agora. Vai cuidar para que eu seja julgado diante de uma corte de Guilherme e...

— Ficou louco?

— Talvez...

— Faz idéia do que esses saxões selvagens vão fazer com você se disser que matou um deles?

— Vou estar sob custódia normanda.

— Vão chegar a você de alguma forma. Por que ir de encontro ao perigo quando podemos simplesmente fugir? — Alex bateu no ombro do irmão, com uma rara ex­pressão de seriedade. — Não posso deixá-lo fazer isso. Está exausto e ainda sob o efeito do conhaque. Não está conseguindo pensar.

— Muito bem, mas, e se descobrirem que o broche é seu? Não posso deixar que seja envolvido em um crime que não cometeu.

— E eu não posso deixar que se arrisque por minha causa.

— Não sei o que...

— Luke, você está sempre cuidando de mim. Mesmo nas batalhas. Vejo-o sempre de olho em mim. E, quando algo vai mal, está sempre lá para me ajudar. Salvou minha vida mais de uma vez, arriscando a sua. Devo-lhe isso.

— Não me deve nada. E não pode impedir que eu me entregue.

Alex sorriu.

— Se fizer isso, vou alegar que está mentindo para me proteger. Direi que fui eu quem matou o sujeito, e vão acreditar, pois têm a evidência, o broche.

— E eu vou dizer que está mentindo para me pro­teger.

Ele deu de ombros.

— Então, provavelmente, nós dois seremos enfor­cados. Por isso, acho que é bem melhor retornarmos a Foxhyrst e fingir que nada aconteceu.

Luke respirou fundo, analisando a armadilha em que caíra. Alex esperou em silêncio por alguns segun­dos, antes de dizer:

— Bem? Vamos embora? — Viu o irmão assentir, em­bora contrariado.

Os dois embrenharam-se pela mata, afastando-se dali, mas Luke ainda insistiu:

— Não vou voltar a Foxhyrst.

— Olhe, Você...

— Há um monastério em St. Albans. Vou para lá.

 

Dois meses depois, na mansão Cambridgeshire, em Hauekleah

— Milady! Milady!

Faithe ergueu os olhos das margaridas que juntava para ver a jovem Edyth entrar correndo, corada e afoita, no salão principal de Hauekleah. O leite que trazia nos dois baldes respingava, por causa de seus movimentos desajeitados.

— Edyth, devagar, está molhando as plantas com o leite — Faithe a repreendeu.

— Mas é que há dois normandos vindo pela estrada! E um deles deve ser ele. O Dragão Negro.

Um silêncio de morte se seguiu. Os criados que estavam no salão olharam, apreensivos, para a jovem senhora. Faithe sentiu as mãos geladas e percebeu que tinha prendido o fôlego. Deixou de lado a guirlanda de margaridas e levantou-se, tentando se man­ter serena.

— O nome dele é Luke de Périgueux — disse. Edyth piscou, atônita.

— Mas mestre Orrick disse que o chamam de Dragão...

— O nome é Luke de Périgueux. — Faithe correu os olhos por todos os que se encontravam ali. — Ele será seu novo senhor. — Respirou fundo. — Será meu marido, e deverão tratá-lo com respeito ou sofrerão as conseqüências. Fiz-me entender?

Os criados se entreolharam. Ela jamais usava esse tom para falar com eles.

— Fiz-me entender? — repetiu, mais alto.

Eles assentiram com a cabeça e em voz baixa, e os olhares revelavam compaixão. Faithe sabia que a viam como mártir, primeiro feita viúva pelos normandos, de­pois forçada a escolher entre se casar com um deles ou perder a propriedade de seus ancestrais.

Ela ajeitou as dobras do vestido, sentindo o pa­pel guardado no bolso da saia. Era a carta de lorde Alberic, xerife normando a quem, agora, devia obe­diência, escrita em um tom traiçoeiramente cortês, o que parecia ser a especialidade dos invasores de seu país. Ele falava pouco sobre o marido que havia esco­lhido para ela. Citava apenas seu nome e a reputação de excelente soldado. Um homem que usara a habi­lidade de matar contra seu povo, seu marido... Lorde Alberic explicava que tinha direito de se recusar ao casamento, mas que, se assim o fizesse, colocaria seus bens à disposição do novo governo. Em outras pala­vras, ou desposava o tal cavaleiro, ou seria forçada a deixar Hauekleah e trancar-se em um convento pelo resto de seus dias. E suas terras, tratadas com apreço durante oitocentos anos pela família a que pertencia, seriam tomadas pelo inimigo. Tinha decidido, portan­to, que seria melhor entregar-se a qualquer demônio normando e ficar com a propriedade. Sua avó Hlynn, fizera praticamente a mesma coisa, casando-se, sem amor, com um guerreiro dinamarquês, para manter Hauekleah. Mas, como tinha achado a vida no campo cansativa, Thorgeirr ficara apenas durante um ve­rão, tempo suficiente para construir a nova mansão e plantar sua semente no ventre da esposa. Depois partira. Dizia-se que tinha vivido ainda muitos anos, mas Hlynn havia se sentido feliz por nunca mais vê-lo. Ficara ali com seu filhinho, que viria a ser pai de Faithe.

Talvez tivesse a mesma sorte, pensou, saindo para o jardim. Seu novo marido, acostumado à guerra, fica­ria tão entediado ali que a deixaria, e as terras seriam suas novamente.

Todos os olhares estavam sobre ela, conforme cami­nhava para os portões, que ficavam além do muro de pedras. Esse muro estava ali desde o tempo dos roma­nos, dizia-se. Protegendo os olhos contra o sol, observou a estrada de terra que ligava sua casa e a vila adjunta a Foxhyrst e às outras cidades a oeste.

Dois homens vinham a cavalo, por ali. Um alto, sobre a sela, o outro curvado para a frente. Faithe sentiu a boca seca e passou as mãos suadas pela saia. Trabalhadores do campo deixaram seus ara­dos e animais e correram para juntar-se aos criados da casa, como se, dessa maneira, todos pudessem defendê-la. Como sempre, a lealdade e o afeto de­les a emocionavam. Jamais abandonaria Hauekleah aos normandos, mesmo que fosse apenas por seus servos.

Conforme se aproximavam, Faithe percebeu que o cavaleiro que vinha ereto trazia numa das mãos a es­pada e, na outra, as rédeas do outro cavalo. O cava­leiro curvado não parecia estar consciente. Num gesto repentino, o que segurava a espada largou as rédeas e agarrou o companheiro pela túnica, impedindo-o de cair da sela. Curvou-se, segredou algo a seu ouvido e bateu-lhe amigavelmente nas costas.

— Ele está ferido — Faithe murmurou, dando um passo à frente.

Seu jovem capitão de armas segurou-lhe o braço, avisando:

— Não, senhora.

— Mas aquele homem está ferido...

Dunstan afastou-se, respeitoso, deixando-a agir como queria. Os dois cavaleiros tinham parado diante dos portões. Faithe foi até eles, imaginando qual seria seu futuro marido. Os dois eram fortes e tinham cabelos muito negros. O ferido, que identi­ficou pelo sangue na túnica e pelo corte no supercílio, usava os cabelos no estilo normando, enquanto o outro o mantinha longo, com uma trança pequena entre os fios.

Os criados a seguiam, bem como Dunstan e alguns homens, que tinham se colocado protetoramente ao seu lado. Faithe vacilou, não pela espada, mas pela forma como aquele estranho os encarava.

Fios de cabelo esvoaçavam ao vento e caíam sobre a testa dele, dando-lhe um ar mais feroz. Seus olhos tinham uma expressão severa, e a barba por fazer completava a impressão de perigo que o cercava. Não se parecia com nenhum soldado normando que ela já vira. Parecia indomado, ameaçador como um animal selvagem.

Os olhos de Faithe foram até o broche que prendia o manto do recém-chegado. Um dragão... negro.

— É ele — alguém murmurou.

Apavorada, Faithe ficou em silêncio. Então, aquele era o homem com quem ia se casar dentro de alguns dias, aquela criatura selvagem com olhos de assassino e uma espada na mão.

Tentou engolir o medo e deu um passo adiante, acompanhada por seus servos.

— Pare onde está — ordenou Luke de Périgueux, num inglês carregado de sotaque francês, apontando a espada para eles. — Não quero saber de armadi­lhas saxônicas! — Sua voz era forte e poderosa, e o tom que usava era o de um homem acostumado a ser obedecido.

O fato de ele falar inglês chocou-a. Faithe nunca ouvira um normando falar a sua língua. Apertou o tecido da saia entre os dedos, dizendo, com calma:

— Não lhe faremos mal.

— Diga isso a meu irmão. Fomos emboscados na mata, não muito longe daqui.

— Emboscados?

Ele passou os olhos pelos rostos que a acompanhavam.

— Onde está sua senhora? Meu irmão precisa de so­corro. Está muito ferido.

Faithe ergueu o rosto, ignorando a espada que ele mantinha apontada em sua direção.

— Sou Faithe de Hauekleah. Cuidarei de seu irmão.

Os estranhos e ferozes olhos do cavaleiro a fixaram com certa surpresa. Ele se deteve um pouco nas cha­ves que ela trazia penduradas num cordão, ao pescoço, percorreu seu corpo, notando os cabelos longos e soltos, as roupas de tecido simples e os sapatos sujos de terra, por causa do trabalho no jardim naquela manhã. Como sempre, ela se dedicara tanto aos afazeres domésticos que se esquecera por completo de se arrumar e, como resultado, parecia mais uma camponesa do que a pro­prietária das terras.

Mesmo quando se vestia com seda e se adornava com jóias, Faithe parecia bem mais jovem do que seus vin­te e quatro anos. Ela aprendera a equilibrar a aparên­cia juvenil com uma atitude confiante, mesmo quando, no fundo, não se sentisse muito segura. Dessa forma, quando Luke de Périgueux voltou a encará-la, foi com altivez que o enfrentou.

Seus olhares se cruzaram por segundos. Faithe notou que ele engolia em seco e que seus olhos penetrantes se escureceram ainda mais. Então, até mesmo o perigoso Dragão Negro ficava tenso diante da noiva...

Indicando, com a cabeça, a ponta da espada ainda voltada em sua direção, Faithe disse tranqüilamente:

— Se baixar sua arma, senhor, poderei cuidar de seu irmão.

— Cuidado — Faithe orientou, enquanto seis de seus homens, segurando as bordas do manto de Alex, o car­regavam para dentro.

Ele estava inconsciente e muito pálido. Luke mur­murou uma prece enquanto seguia ao lado dele, passan­do por alguns cômodos imensos. Ergueu os olhos para os troncos de carvalho que serviam de suporte para o telhado, que estavam ornamentados com guirlandas de margaridas, bem como as outras vigas, das quais pen­diam arranjos de outras flores. No chão, havia plantas baixas, que estalavam conforme eram pisadas. Nelas, florzinhas minúsculas exalavam um perfume agradá­vel que inundava o ar.

Faithe deu ordens para que colocassem um catre junto ao braseiro central, um retângulo de pedras sobre o qual uma chaleira estava pendurada.

— Deitem-no com cuidado — ela ordenou, e os ho­mens obedeceram como se carregassem um cachorrinho recém-nascido. — Tragam-me cobertores, sabão e minha cesta de medicamentos. Ah, e tiras de pano limpo, também — pediu para duas criadas, enquanto punha um pouco de água quente da chaleira numa va­silha. Sua voz era suave como a de uma menina, mas todos a obedeciam com presteza.

Era estranho que uma mulher tão jovem tivesse tan­ta autoridade, Luke avaliou, enquanto tirava o man­to. Ela era delicada e bem-feita de corpo, como lorde Alberic dissera na carta em que a tinha oferecido em casamento, prometendo-lhe também a propriedade. Os cabelos de um castanho muito claro pareciam suaves como seda e emolduravam o rosto mais bonito que ele já tinha visto. E ela tinha aqueles olhos cor de amên­doa, que ele vira apenas ali, na Inglaterra.

Estava satisfeito com a recepção acolhedora, embora esperasse uma mulher mais... refinada. Saxã ou não, era uma jovem de berço, embora não usasse véu, nem peles, nem jóias e sua tez não fosse pálida, mas corada como as das moças do campo. As chaves penduradas no pescoço eram a única indicação de sua posição.

Ajoelhando-se, ela abriu o cinto da espada, cuja bai­nha estava vazia, uma vez que Luke ainda segurava a arma do irmão. Tomou-o dela antes que pudesse entre­gá-lo a uma criada e, colocando-o sobre o ombro, embainhou a espada novamente. Deixava claro que pretendia manter a arma ao alcance da mão, e isso fez que Faithe erguesse as sobrancelhas, enquanto se voltava para soltar as botas do rapaz.

Luke gostaria de não precisar defender-se e a seu irmão daquela gente. Afinal, era seu novo senhor. Mas eles o viam como um inimigo. Para Faithe, sua pre­sença ali devia ser particularmente terrível. Era um invasor vitorioso e ela era seu prêmio de guerra. Só Deus conhecia a amargura que deveria haver sob sua aparência delicada e simples. Ademais, os saxões eram todos traiçoeiros. Estava na natureza do povo derrota­do usar de traição e artimanhas para resistir aos con­quistadores. Podiam se mostrar cooperativos enquanto arranjavam uma forma de lutar às escondidas. Teria de manter olhos muito abertos em relação a ela e aos criados. Ficaria até mesmo com a espada em riste, se necessário, embora não gostasse de usar armas. Era a primeira vez que segurava uma desde que entrara no monastério depois do incidente em Cottwyk.

Dois meses de orações e reclusão tinham aplacado a fúria em seu peito, que parecia estar numa estranha hibernação. Seria muita ingenuidade achar que estivesse livre dela para sempre, ou colocar a culpa num maço de ervas secas. Elas apenas tinham despertado o animal dentro dele, que esperava uma chance para matar e mutilar. Um animal que fazia parte do que ele realmente era, que sempre estivera ali e jamais o aban­donaria.

Baixou a cabeça e, com o braço esquerdo, friccionou o local dolorido no ombro, sua única lembrança da em­boscada. Ao voltar a olhar para lady Faithe, viu que ela retirou uma faca do bolso da saia e encostou-a no pescoço de Alex.

Em um movimento bruto e rápido, segurou-lhe o pulso, puxando-o e afastando a arma do corpo do irmão. Ela gritou e tentou, em vão, se libertar. Ele agarrou também a outra mão, obrigando-a a se levantar, com os dentes cerrados devido à dor provocada em seu braço. Ela derrubou a faca entre as plantinhas do chão.

— Eu disse nada de armadilhas saxônicas — Luke rosnou. Sentiu-a forçar o braço e apertou-o ainda mais.

— Solte-me ou vão matá-lo — ela avisou, por entre os dentes.

Olhando ao redor, Luke viu vários homens e mulhe­res se aproximando, com armas improvisadas, como machadinhas, picaretas e pás, que não fazia idéia de onde tinham surgido. Fitou-a e murmurou:

— Se ferir meu irmão, eu a matarei. — Apertou suas mãos ainda mais, fazendo-a reprimir um gemido.

Um rapaz de cabelos claros aproximou-se, ameaça­dor, mas Faithe impediu-o de se aproximar com um ges­to de cabeça.

— Não, Dunstan. Está tudo bem.

O jovem capitão de armas fitou Luke com olhos fero­zes, mantendo a adaga na mão.

— Mataria sua própria esposa? — Faithe indagou, encarando-o.

— Ainda não estamos casados.

Luke percebeu que ela tremia, mas a resposta que lhe deu foi altiva:

— Os normandos acham-se civilizados, mas eu ja­mais ouvi um inglês ameaçar uma mulher de morte.

— E eu jamais vi uma mulher, seja normanda ou inglesa, tentar cortar a garganta de um homem ferido sob seus cuidados.

— Pensa, realmente, que eu faria isso?

— Não a conheço. E estou começando a achar que nem quero conhecê-la. Muito menos desposá-la.

— Para mim, seria ótimo se montasse em seu cavalo e fosse embora daqui, deixando-me em paz.

Luke sorriu com desdém.

— Para mim, também seria ótimo se esta proprieda­de fosse, simplesmente, tomada de suas mãos e entre­gue a mim... irmã Faithe.

Ela empalideceu, e Luke teve certeza de ter tocado num ponto fraco. O lugar devia ser-lhe muito querido. Caso contrário, por que teria concordado em se casar com um normando que jamais vira antes somente para mantê-lo? E era bom saber que, nesse casamento, a si­tuação era ruim para ambos.

— Está me machucando — ela disse, olhando para as mãos que ele ainda prendia com força. — Largue-me.

Luke soltou-a e viu-a esfregar os pulsos marcados pelos seus dedos. Reprimiu um pedido de desculpas, lembrando-se de que, momentos antes, ela colocara uma faca no pescoço de Alex.

— Vão cuidar de seus afazeres — Faithe ordenou a seus criados. Eles logo se dispersaram, exceto Dunstan. Logo depois, uma mulher idosa e serena entregou-lhe uma barra de sabão e uma cesta. — Obrigada, Moira.

— Podíamos, simplesmente, tomar-lhe Hauekleah — Luke prosseguiu, percebendo que ela empalidecia ainda mais, o que evidenciou algumas sardas no nariz e em parte das maçãs do rosto. — Mas seria uma atitude brutal. Apesar do que deve pensar, seus novos gover­nantes são, sim, civilizados. Por que tomar pela espada o que pode ser arranjado com um casamento?

Hauekleah poderia ter sido tomado à força, a julgar pela vontade de lorde Alberic, desde que ele pudesse ficar observando a luta a certa distância, como era seu costume. Porém, entregar a mansão e as terras a Luke tinha lhe parecido mais divertido. Alberic era uma criatura mesquinha e cheia de si, cuja grande fraqueza era o pavor da batalha, atributo muito inconveniente para um comandante militar, o que fora antes de conse­guir que Guilherme o nomeasse xerife. Disfarçara sua fraqueza diante de todos, menos de Luke, que o vira esconder-se atrás de arbustos em Hastings, tremendo e respirando com dificuldade enquanto a terrível luta ocorria. Outras testemunhas de tal fato tinham pereci­do em mãos inglesas, e, por certo, Alberic desejava que o mesmo tivesse acontecido com Luke. Considerando-se sua atitude desde então, estava claro que despreza­va seu mais valioso cavaleiro por ter presenciado sua covardia. Não que fosse diretamente hostil. Vendo a si mesmo como grande diplomata, Alberic escondia seus sentimentos sob uma fachada de vago desdém. Luke jamais revelara o que tinha visto a ninguém além de, Alex. De qualquer forma, seria sua palavra contra a dele, favorecido pelo rei Guilherme.

Durante meses, Alberic resistira à idéia de dar ter­ras conquistadas a Luke, até que fora pressionado pelo próprio Guilherme. O rei interpretara a reclusão de Luke na abadia como uma forma de protesto por não ter recebido nada, e não queria perder um de seus mais valorosos heróis militares. Por fim, cedendo, o xerife tinha sido forçado a entregar-lhe Hauekleah por meio do casamento com Faithe. Claro que isso fora uma espécie de brincadeira de mau gosto, pois a mansão era ape­nas a sede de uma propriedade rural, em nada parecida com as grandes propriedades entregues a outros cava­leiros. Porém, Alberic não sabia que, o que imaginara ser um insulto, servia a Luke com perfeição. Suas me­lhores lembranças da infância eram da vida no campo. Poderia viver feliz ali, desde que conseguisse manter sua esposa saxã e os criados sob controle.

Outra criada chegou com cobertores e algumas fai­xas de linho, que deixou sobre um banco. Faithe voltou-se para pegá-las, mas, antes que o fizesse, Luke segu­rou-lhe o ombro e avisou:

— Este lugar é meu agora, goste ou não. Saiba que a estarei vigiando o tempo todo. Se tentar fazer mal a meu irmão, se eu perceber essa intenção em seus olhos, recusarei o casamento e deixarei que lorde Alberic tome Hauekleah à força.

Ela se soltou.

— Não pode, de fato, estar imaginando que fosse mi­nha intenção cortar a garganta de seu irmão.

— Vi...

— Eu ia apenas cortar a túnica.

Luke encarou-a, e depois voltou os olhos para Alex e suas roupas ensangüentadas.

— Acha que, se eu quisesse matá-lo, agiria diante de seus olhos? — Faithe insistiu.

Ele permaneceu calado, para não lhe dar razão. Viu-a ajoelhar-se novamente e pegar a faca no chão. Adiantou-se.

— Eu faço isso. — Imaginava que ela poderia estar sendo sincera, mas poderia, também, saber fingir mui­to bem. Fosse como fosse, precisava conhecê-la melhor para ter certeza.

Apesar de irritada, Faithe afastou-se, cedendo seu lugar. Conforme Luke cortava a pesada roupa de lã do irmão, ela ia pegando os pedaços de tecido e entregando a Moira. A camisa de baixo foi rasgada com facilidade e Faithe pôde voltar a se aproximar. Retirou o tecido ensopado de sangue com cuidado.

Luke continuava observando-a, notando-lhe as mãos ágeis, habilidosas, sem jóias, e de unhas aparadas.

— Com que arma ele foi ferido? — ela perguntou.

— Uma espécie de maça com uma ponta de metal. Ela assentiu.

— Ferramenta de camponês. Nós a usamos para fin­car mourões e revirar a terra. Havia muitos homens?

— Apenas dois, mas fomos surpreendidos. Apareceram do meio da mata. O que estava com a maça investiu diretamente contra Alex. O outro tinha uma funda. — Luke tocou o braço, onde tinha sido atingido, cerrando os dentes quando a dor tornou a atormentá-lo.

— Está ferido também?

— Nada grave. Se os saxões tivessem boa mira, te­ria sido minha cabeça diante daquela pedra, e eu não estaria aqui para relatar o que aconteceu. Imagino que quisessem nos desacordar e terminar o serviço com a maça, mas não foram hábeis o suficiente.

— Fugiram, então? Luke sorriu ao lembrar-se.

— Eu os teria perseguido, mas Alex precisava de so­corro. O sujeito que estava com a maça não deve ter ido longe, porque o atingi no abdômen com a espada de Alex. — Parou e encarou-a antes de perguntar: — A ordem para a emboscada partiu daqui?

Sem parecer surpresa com a pergunta, Faithe mo­veu a cabeça para afastar os cabelos e respondeu:

— Meus homens têm ordens estritas para não enfrentar normandos. Gosto muito de minha propriedade para encorajar meu povo a atacar o seu. Bem, o sangra-mento já parou. — Começou a soltar as tiras que pren­diam as calças de Alex. — Ajude-me aqui, sim? Luke vacilou.

— Não há... nenhum criado que possa fazer isso? E... em outro lugar?

— Se está preocupado com o recato de seu irmão, asseguro-lhe que ele está absolutamente inconsciente quanto ao que está acontecendo e minhas criadas todas já viram...

— Não, eu quis dizer... — Por que ele estava se atrapalhando com as palavras? — Certamente não é considerado de bom-tom que uma dama de certa categoria...

Faithe riu, e Luke viu-se dividido entre o prazer de estar diante de um sorriso tão luminoso e a humilhação por ser a causa dele.

— Está falando sério?

— Claro que sim. Nenhuma dama francesa se expo­ria a um homem nu, muito menos tiraria sua calça com as próprias mãos.

Faithe riu de novo enquanto baixava a calça dos quadris feridos de Alex.

— Imagino que isso não deixe os maridos franceses muito felizes — observou.

Luke quase sorriu. Tentou imaginar sua madrasta e suas irmãs dizendo algo semelhante, mas elas morre­riam antes de pronunciar qualquer palavra menos discreta. Também prefeririam morrer a despir um homem. Aliás, seus maridos pareciam, de fato, sempre mal-hu­morados... Aproximou-se, oferecendo-se para acabar de cortar as roupas do irmão, deixando-o completamente despido. Alex não se importaria. Jamais fora tímido.

Faithe colocou os cabelos para trás e arregaçou as mangas. Lavou as mãos, enxugou-as e, com um pedaço de linho, tocou o ferimento.

— Quer que eu faça isso? — Luke perguntou.

— Não. E necessário um toque delicado. — Ela sorriu. — Não precisa ficar preocupado com minha sensibilidade. Sou viúva, e não uma donzela ingê­nua. — Ele espantou-se com a lembrança da viuvez de lady Faithe. Lorde Alberic o avisara, na carta, a respeito do marido dela, que partira para Hastings no verão anterior, e jamais voltara. Lembrou-se de todos os saxões que tinha matado naquela batalha, e em tantas outras depois, e sentiu-se inquieto. Pela primeira vez desde que a carta chegara ao monastério, na semana anterior, enxergava o casamento pela perspectiva dela. Os normandos haviam matado seu marido sete meses antes e agora esperavam que se casasse com um de seus mais violentos soldados. Era admirável que ela aceitasse a situação com tamanha serenidade. Ou estava escondendo algum tipo de ar­madilha, ou era uma mulher especial, dessas que se adaptam para sobreviver à adversidade. De qualquer forma, não parecia estar mantendo luto pelo marido, o que era algo bom.

Ela continuava cuidando dos ferimentos. Fios de ca­belo caíam sobre seu rosto, e ela soprou-os para tirá-los da frente.

— São feridas feias — observou. — Mas agora que estão limpas, estou mais animada. A do quadril é pro­funda, e acho que vai demorar até que ele consiga an­dar novamente, mas não há ossos quebrados, e, se con­seguirmos impedir que os ferimentos inflamem, ele vai ficar bom logo.

— Graças a Deus! — Luke fez o sinal-da-cruz. Ela falava com tamanha confiança, que aceitou as palavras sem questionar, sentindo-se aliviado.

Ela começou a limpar os ferimentos na testa de Alex.

— Este não parece igual aos outros — comentou.

— Foi uma pedra. Como eu disse, um deles usava uma funda.

— Pode identificar os homens que os atacaram?

— Tinham cabelos escuros e mais ou menos a minha idade.

— Trinta e poucos anos?

— Tenho vinte e seis. Faithe o encarou.

— Parece mais velho...

Ele também se sentia bem mais velho.

— O homem que feri — explicou —, o que estava com a maça, não tinha um dos olhos. E o da funda tinha uma marca vermelha, acho que de nascença, no rosto.

Faithe lançou um olhar a Dunstan, que continuava presente.

— Sabe quem são? — Luke indagou.

Mais uma vez, ela moveu a cabeça e, dessa vez tam­bém os ombros, para afastar os cabelos, o que fez as chaves penduradas em seu pescoço tilintarem.

— São incorrigíveis, os dois. Hengist e Vance. São primos. Vivem nas matas, atacando viajantes, sejam saxões ou normandos.

— Mas não costumam atacar tão perto de Hauekleah — Dunstan acrescentou. Orrik e eu cuidamos para que as matas ao redor estejam livres de bandidos desse tipo.

— Quem é Orrik? — Luke indagou, encarando o che­fe da guarda.

— Meu administrador — Faithe esclareceu. Pegou uma caixinha de dentro da cesta e, com uma de suas chaves, abriu-a. — Cuida das terras para mim. Ontem, foi a Foxhyrst comprar uma carroça e suprimentos. Deve voltar amanhã. E Dunstan é meu capitão da guar­da, e cuida de tudo quando Orrik não está.

— Mais uma coisa a respeito de Hengist e Vance — disse Dunstan. — Eles são ladrões, não assassinos. Nunca ouvi dizer que tivessem atacado para matar.

— É, mas foi o que fizeram hoje — Luke ponderou, tocando o braço de leve. Seus instintos o mandavam seguir os agressores, mas não queria deixar o irmão.

O capitão olhou para o corpo ferido de Alex, pensativo.

— Quero que os encontre — Faithe ordenou.

Luke olhou-a, percebendo a autoridade, que fez o ca­pitão assentir.

— Não deviam ter se aproximando tanto, muito me­nos tentado matar nosso novo senhor. Não vou tolerar esse tipo de coisa — ela acrescentou, sem olhar para nenhum dos dois, apenas prosseguindo o tratamento de Alex.

O jeito calmo, mas seguro, com que ela liderava a todos impressionou Luke. Admirava a forma como al­guém tão simples conseguia impor-se daquela maneira. Também queria muito pegar as pessoas que tinham fei­to aquilo com o seu irmão. Mas, e se tudo não passas­se de uma encenação? E se Faithe houvesse ordenado a emboscada e agora estivesse fingindo mandar uma patrulha atrás dos malfeitores que tinham seguido suas instruções? Fosse como fosse, a autoridade que ela, demonstrava devia estar sendo exercida pelo próprio Luke. Tinha cruzado o Canal e encharcado aquela ter­ra de sangue para ganhar suas terras. Hauekleah era sua agora. Poderia abandonar as armas e viver em paz, mas primeiro tinha que provar àquela gente que era seu senhor.

Pensou em tirar o controle da situação das mãos daquela jovem e tomá-lo para si, mas decidiu calar-se.

Afinal, a propriedade não era oficialmente sua, e não seria até depois do casamento. Além disso, os homens que os tinham atacado deviam ainda estar fugindo. Não podia sair de Hauekleah para persegui-los sem ar­riscar a vida de Alex e, talvez, a sua.

— Leve alguns homens com você — Faithe prosse­guiu, falando com Dunstan. — E veja se consegue des­cobrir que caminho eles tomaram. Não deve ser difícil. Pelo que sir Luke nos diz, Hengist está muito ferido, talvez até morrendo. Procurem por sangue.

— Sim, senhora. — Dunstan se retirou. Era impres­sionante que tivesse deixado sua jovem senhora a sós com o Dragão Negro. Mas, assim que cruzou a porta, o capitão chamou: — Firdolf!

O rapaz de cabelos castanhos que cuidava do fogo atendeu-o. E, num segundo, estava junto a Faithe, de braços cruzados sobre o peito forte.

Ela continuava com os lenimentos. Pediu que lhe trouxessem um pouco de mel e sal. Duas moças mui­to parecidas, provavelmente gêmeas, que limpavam os móveis junto à porta, saíram e voltaram pouco depois, trazendo o que fora pedido.

— Obrigada, meninas.

As duas se afastaram um passo, mas pararam. Pareciam não conseguir tirar os olhos de Alex. Ele tinha um rosto de anjo e o corpo musculoso de um soldado. Suas muitas cicatrizes, lembranças não de um campo de batalha, mas de um espancamento severo que sofre­ra por ter, aos dezessete anos, se envolvido com a mu­lher errada, serviam para acentuar, de certa forma, a atração que exercia sobre as mulheres. Era normal que elas se juntassem em torno dele, mas nenhuma ainda tivera uma visão tão completa assim, num primeiro en­contro... O rapaz de braços cruzados, Firdolf, franziu o cenho e encarou as duas moças.

— Bonnie, Blossom, é tudo — disse Faithe, dispensando-as.

— Não podemos ajudar, senhora? — uma delas per­guntou.

— Não — Firdolf respondeu com firmeza.

Faithe virou-se para ele, erguendo as sobrancelhas.

— Perdão...

Luke teve a impressão de que ela queria sorrir, mas simplesmente respondeu:

— Não. Vão até a cozinha e vejam se Ardith precisa de alguma coisa.

— Mas...

— Vamos. Quando ele acordar, deixarei que o ali­mentem.

As gêmeas se animaram e saíram, entre risadinhas e comentários.

— Seu irmão não vai se importar, vai? — Faithe in­dagou, sem olhar para Luke, enquanto abria uma cai­xinha onde se viam várias ervas.

— Acho que não. — Poderia dizer que tinha certeza, pois as duas garotas eram bonitas e, seguramente, su­cumbiriam ao charme de Alex.

O aroma das folhas secas sendo esmagadas entre os dedos dela era peculiar.

— Hortelã? — ele tentou adivinhar.

— Erva brava. E a outra era erva-doce. São excelen­tes para feridas como esta. — Ela as misturou com o mel e o sal e passou generosamente sobre o ferimento no quadril de Alex, que gemeu quando o lenimento pe­netrou sua pele.

— Calma — Luke murmurou, tocando o ombro do irmão.

E, conforme Faithe prosseguia sua tarefa, seus ca­belos continuavam caindo-lhe no rosto e atrapalhan­do sua visão. Cada vez que ela movia a cabeça para afastá-los, pareciam ficar mais teimosos. Ergueu a mão para colocá-los atrás da orelha, mas lembrou-se de que ela estava besuntada com a mistura de ervas e mel.

— Moira — chamou. — Por favor, faça uma trança em meu cabelo.

Mas a criada não estava mais ali. Luke ergueu a mão e puxou a tira de couro que prendia sua própria trança, colocando-a entre os dentes. Ajoelhou-se atrás de Faithe e começou a trançar-lhe os cabelos.

Eram macios e leves, e por isso a atrapalhavam, ele avaliou. Seus dedos roçaram a pele suave do pescoço. Podia ter evitado o contato, mas se permitiu tocá-la conforme lidava com as três divisões do cabelo. Era uma sensação estranhamente reconfortante, como se estivesse acariciando um animal pequeno.

Notou que ela se arrepiava e sorriu de leve, mas fi­cou decepcionado quando desceu mais os dedos e encon­trou a lã grossa do vestido. Logo ela seria sua esposa e poderia fazer muito mais do que trançar seus cabelos, pensou, satisfeito.

Tentou manter as mãos firmes, resistindo à urgên­cia de desfazer o laço do vestido. Imaginou que o abria, acariciava as costas delicadas, tocava os seios macios e quentes, sentindo os mamilos intumescidos... E, ao re­tirar a tira de couro de entre os dentes, percebeu que a cortara ao meio.

Faithe sentia o coração bater mais forte. Luke prendeu seus cabelos com o cordão de couro e tocou seu ombro. O calor que emanava da mão dele pareceu aquietá-la, aquecendo todo seu corpo. Contudo, ele logo se levantou, afastando-se dela. Voltou-se para vê-lo, em pé, com os cabelos agora completamente soltos. Ele a fitava, com uma expressão reservada e alerta.

— Obrigada — murmurou, voltando a atenção ao linimento que aplicava. Ouviu-o pigarrear antes de per­guntar:

— Há alguma bebida por aqui?

Tornou a olhá-lo, mas viu-o desviar a atenção, talvez de propósito, e esfregar a parte de trás do pescoço.

— Claro. Willa?

Uma criada o serviu e, enquanto bebia, sentado num banco, Faithe continuava aplicando o tecido fino, cheio de mel e ervas, sobre os ferimentos de Alex.

— Por que as flores?— ele perguntou.

Quando Faithe o encarou, percebeu que ele evitava seu olhar, e indicava, com um gesto, o ambiente enfei­tado.

— É o primeiro dia de maio.

Ele ergueu as sobrancelhas, ainda sem entender. Viu-a colocar um cobertor sobre seu irmão e sorrir.

— Decoramos nossas casas com flores no primeiro dia de maio — explicou. — Para comemorar a primavera. — Também se celebrava a fertilidade, mas preferiu não dizer a ele como os aldeões festejariam essa noite. Ele estaria envolvido demais com a recuperação do ir­mão para sair e conversar com alguém.

Ele assentiu.

Faithe observou-o. Muitos normandos viam suas tradições como pagas. Ele as baniria agora que era se­nhor de Hauekleah? Viu um músculo contrair-se em. seu rosto. Depois, ele levou a caneca aos lábios e tomou mais um gole. Percebia nele uma reserva muito grande, de alguém que não gostava de ser examinado e inter­pretado. Era um homem que se fechava em si mesmo, como um soldado em uma armadura. Imaginou se ele alguma vez a retirava.

Colocou uma bandagem sobre o ferimento da testa de Alex e viu-o mover-se devagar e começar a murmurar palavras em francês. Lavou as mãos e envolveu a cabeça dele com uma faixa para manter a atadura no lugar. Luke aproximou-se e ajoelhou-se junto dela mais uma vez.

— Abra os olhos, Alex — disse ao irmão, em seu idio­ma. — Acorde. — Sua gentileza a surpreendeu, pois contrastava com o comportamento agressivo. — Isso! — exclamou, satisfeito, enquanto ela guardava suas coisas na cesta. — Bem-vindo, irmãozinho.

Alex voltou-se para ele.

— O que, em nome de Deus...

— Fomos emboscados na mata.

Os olhos castanhos de Alex se estreitaram, confor­me ele tentava se concentrar na lembrança. Faithe os observou ali, juntos, tão parecidos e, ao mesmo tempo, tão diferentes. O rosto de Alex era jovial, de uma bele­za quase inocente, enquanto nada havia de inocente no irmão, que tinha os olhos ferozes e a expressão tensa. Ela sentia que, se o provocasse ao extremo, ele pularia sobre seu pescoço e a morderia.

— E... — ele murmurou, lembrando-se. — Dois ho­mens, não? Saxões.

— Isso mesmo. Dois miseráveis sedentos por nosso sangue.

— Não posso culpá-los. Se eu fosse um deles, tam­bém tentaria nos matar. Faithe estranhou que um sol­dado normando fizesse esse tipo de comentário.

— Disseram-me que são dois bandidos comuns, e não rebeldes ingleses. Fugiram, mas uma patrulha deve es­tar à procura deles agora.

— Deve estar? — Alex estranhou. Ergueu o braço para tocar a bandagem na testa, enquanto Luke olhava furtivamente para Faithe.

— Não sei o que pensar dessa gente — comentou, ainda em francês. — Podem estar mentindo para impedir que eu vá pessoalmente atrás dos dois. Dessa for­ma, eles teriam tempo para fugir. Não podemos confiar nos ingleses. Eles nos desprezam.

Faithe percebeu que ele não imaginava que ela com­preendesse seu idioma. Decidiu continuar escutando enquanto guardava lentamente suas coisas.

— Claro que nos desprezam, — Alex tateou sob o cobertor. — Onde está minha espada?

— Aqui. — Luke desafivelou a bainha presa em seu cinto e devolveu-a a Alex, que segurou a arma contra o peito.

— Que lugar é este?

— A mansão Hauekleah.

— Oh... Conheceu sua noiva?

— Sim. Alex sorriu.

— Ela é bonita?

Faithe ficou imóvel, prestando ainda mais atenção.

— Ah, parece uma camponesa, dessas que cuidam dos animais.

— Mas é bonita?

Luke olhou, um tanto incomodado, para ela, que fin­gia estar concentrada em enrolar uma tira de tecido. Alex seguiu a direção dos olhos do irmão.

— É ela?

— É. Não fique olhando. Alex observou-a abertamente.

— Ela é bonita! Seu sortudo! Não vai nos apresen­tar? — Tentou se sentar, mas gemeu de dor e deitou-se outra vez.

— Fique quieto. — Luke meneou a cabeça, abor­recido, antes de se voltar para Faithe e falar, em in­glês: — Milady, gostaria de apresentar-lhe meu irmão, Alexandre de Périgueux. — Para o irmão, disse, sim­plesmente: — Lady Faithe de Hauekleah.

— Estou honrada em conhecê-lo, sir Alex — ela res­pondeu, em seu francês praticamente perfeito, deixan­do-os atônitos. — Agora, se me derem licença, preciso sair e cuidar de meus animais.

Faithe virou-se e caminhou até a porta, escutando a risada do jovem Alex. Antes de sair, voltou-se e viu Luke esfregando os olhos fechados.

Nessa noite, Faithe acordou ao som de risadas dis­tantes. Foi até a janela e afastou a cortina de pele de animal. A lua cheia iluminou o aposento e a brisa arre­piou-a, fazendo-a cruzar os braços. Viu as pessoas que dançavam em torno da fogueira no meio do campo. Para além dele, a mata se estendia em torno da mansão.

Uma mulher gritou, em algum lugar, mas foi uma manifestação de alegria. Um movimento perto do abri­go dos carneiros chamou sua atenção. Logo viu que se tratava de um casal que, de mãos dadas, corria em direção à mata. Os cabelos muito loiros da moça reve­laram que se tratava de Willa, a ajudante da cozinha. O homem devia ser Nyle Plowman. Muitos dos casais que comemoravam essa noite na mata estavam jun­tos havia algum tempo, como era o caso deles. Alguns eram casados, geralmente um com o outro, mas nem sempre. Outros, levados pela atmosfera festiva, pela bebida ou pelo simples prazer carnal, uniam-se ape­nas nessa noite.

O barulho de água desviou seu olhar para o rio, que cortava aquela terra como uma ferradura. Um casal emergiu das águas, ambos nus, e correu para a prainha, Faithe imaginou que a moça poderia ser Edyth, a jovem que cuidava da ordenha. Achou, em um primeiro momento, que o rapaz era o atlético Firdolf, que fazia os serviços gerais, mas logo percebeu que não poderia se tratar dele. Firdolf vinha cortejando uma das gêmeas, Blossom, já havia algum tempo, e excluíra todas as ou­tras mulheres de sua mente. Se não tivesse conseguido convencê-la a passar essa noite em sua companhia, não devia nem estar acordado. Quem estava com Edyth era, provavelmente, um de seus primos, já que se pareciam muito, todos eles. Viu-o cair sobre a jovem e, logo, os dois estavam abraçados, unindo seus corpos sob o luar.

Fechou a cortina e cerrou os olhos. Não conseguia deixar de ver o casal abraçado à margem do rio. Havia tanto tempo não sentia esse tipo de prazer que quase nem se lembrava de como era ter um homem dentro de si, aliás, Caedmon tinha sido o único...

Não achava que o que sentira pelo marido pudesse ser chamado de amor, mas tinha gostado dele. Sempre a tratara com respeito e fora um bom companheiro, ape­sar de não se interessar por Hauekleah, ou até mesmo por isso, já que sua falta de vontade de tratar da vida ali a levara a administrar tudo como bem entendesse. Ao saber de sua morte, Faithe lamentara, mas sua tris­teza logo tinha passado diante dos deveres para com a sua propriedade.

Eles haviam partilhado poucos interesses e mal con­versavam, a não ser na cama. Fazer amor era o único passatempo que tinham em comum. Faithe estava so­zinha fazia quase um ano, mas não por opção. Muitas vezes sentira falta do toque de um homem e chegara a pensar em se casar outra vez, com alguém de sua esco­lha, a quem unisse seu coração.

Ouviu uma voz masculina chamando lá fora e, logo em seguida, um gritinho de mulher. Ele a encontra­ra, ou vice-versa. Elga Brewer e o marido formavam o casal mais feliz que Faithe já conhecera. A risada deles trouxe um sorriso a seus lábios. Tinham se ca­sado por amor. Deixou de sorrir. Não haveria um casamento assim para ela. Haveria Luke de Périgueux, o Dragão Negro, uma criatura sedenta de sangue. Sangue saxão...

Fechou os olhos e lembrou-se do roçar dos dedos dele em seu pescoço, enquanto trançava seus cabelos. A gen­tileza do gesto a tinha surpreendido, e o toque desper­tara algo dentro de si, uma necessidade desesperada, nascida de longos e solitários meses.

Porém, sentia também a impressão daqueles dedos em seus pulsos. Abriu os olhos e viu que ainda estavam marcados.

Tola. Luke de Périgueux era um monstro, o último homem do mundo que poderia querer em sua cama. Mas ele logo estaria nela... Estremeceu e fez uma prece:

— Senhor, meu Deus, por favor, faça-o cansar-se logo de mim. Faça-o cansar-se daqui e ir embora logo, como Thorgeirr.

Pensou em verificar se sir Alex estava bem. Colocou uma capa por sobre os ombros e abriu a porta do quarto, que ficava acima dos cômodos de serviço — adega, despensa e lavanderia — ao norte da mansão. Do corredor, olhou para baixo, para o imenso salão, onde uma úni­ca lamparina a óleo queimava. Viu um homem em pé junto a uma das janelas, enrolado num manto, de cos­tas para ela, e reconheceu Alex. Luke, que ficara para tomar conta dele, não estava ali. Os criados já tinham se recolhido a seus chalés, ou estavam comemorando a noite. Na verdade, apenas em época de colheita alguns deles dormiam no salão.

Faithe desceu devagar, e ele voltou-se para vê-la. Devia ter bons ouvidos, imaginou, já que descia em ab­soluto silêncio.

— Milady...

— Sir Alex...

— Não acha que estamos sendo muito formais para irmão e irmã?

— Imagino que sim. — Apertou mais a capa em tor­no de si. Logo, seriam irmãos pelo casamento.

— Pode me chamar de Alex.

— Então, me chame de Faithe.

— Sinto não poder falar com você em seu próprio idioma. Não tenho o talento de meu irmão para lín­guas. Mal entendo inglês. Levar uma conversa adian­te é impossível.

— Não tem importância. Mas deve se deitar. — Notava o rosto pálido e as olheiras. Aliás, o fato de estar em pé mostrava que era forte, mas não tinha juízo.

Risadas lá fora o fizeram olhar de novo pela janela.

— O que está acontecendo lá fora?

Faithe baixou os olhos e apertou o tecido da capa.

— Estão comemorando. Ele cocou o peito, pensativo,

— As duas moças que me trouxeram o jantar, as gê­meas... — Seu sorriso era tão sensual que Faithe não pôde deixar de rir. Ele pigarreou antes de prosseguir: — São encantadoras.

— São, sim.

— Pediram-me para ir à mata com elas esta noite, mas, claro, ainda não estou em condições de andar. E quando perguntei o motivo, coraram e não responde­ram. Fiquei imaginando por que...

E Faithe imaginou como as duas criaturas mais lascivas que conhecia poderiam ter corado... Encolheu os ombros e procurou mudar de assunto:

— Onde está seu irmão?

— Saiu para investigar quando começamos a ouvir essas risadas e a agitação lá fora. Acho que seguiu para a mata.

Faithe engoliu em seco.

— Bem, então cabe a mim fazê-lo voltar para a cama. Venha. — Ajudando-o a caminhar, levou-o de volta ao catre. Foram devagar, pois ele fazia uma careta de dor a cada passo que dava. Quando se deitou, desculpou-se, embaraçado, por ainda estar nu, e, desenrolando o cor­po, ajeitou-se sob o mesmo cobertor.

— Não devia ter se levantado. Vou verificar as bandagens.

Todas precisavam ser trocadas. Faithe colocou mais um pedaço de madeira nas chamas do fogareiro e, so­bre a grelha, uma chaleira com água. Depois pegou sua cesta de medicamentos. Alex observou-a em silêncio, vendo-a preparar novas bandagens.

— Meu irmão teve sorte por tê-la como noiva — co­mentou.

— Imagino que seja útil ter uma esposa que saiba fazer curativos...

— Não foi a isso que me referi. — Ele sorriu. — Você é linda.

Faithe sentiu o rosto queimar.

— Bem, uma está pronta — disse, sem encará-lo. — Se puder dobrar o...

— Não foi minha intenção parecer atrevido. — Alex apoiou-se sobre o cotovelo, gemendo.— Quero dizer... Não quero que pense que... bem, que estou interessado em você. Talvez, em outra situação, mas...

— Eu entendo. Por favor, dobre...

— Está noiva de meu irmão e eu jamais...

— Já entendi. Agora, por favor...

— Só estava constatando um fato, nada mais. Luke tem sorte por ter uma noiva tão bonita.

— Deite-se. — Ela mesma dobrou a ponta do cober­tor, expondo-lhe o quadril. Retirou a bandagem velha, sentindo a pele bastante quente. — Não achei seu irmão muito interessado. Disse que pareço uma campo­nesa que lida com animais. Alex riu.

— E eu nunca conheci uma camponesa feia. E todas as mulheres são bonitas quando se olha do ângulo certo.

— Ângulo certo... — Ela sorriu, enquanto limpava o ferimento, constatando que não havia inchaço ou ver­melhidão. — Imagino que esse ângulo seja quando você está por cima, na cama.

Houve um breve silêncio, e então ele soltou uma gar­galhada.

— Meu Deus! Você será excelente para Luke! Ele precisa de uma mulher como você para lançar alguma luz naquela alma negra que ele tem.

Faithe deixou de sorrir.

— Você e seu irmão são muito diferentes — obser­vou, aplicando o linimento e a bandagem nova.

— Não tanto quanto você imagina.

— Ele tem um temperamento mais sombrio. Você mesmo disse. — Ela o cobriu e ergueu a atadura em sua testa para verificar o ferimento.

— Sim.

— E há também a reputação dele.

— O Dragão Negro é o que Luke é. Não quem ele é.

— Não entendo. — Ela limpou também essa ferida e trocou a bandagem.

— As pessoas vêem apenas o animal com um arco. E acham que Luke de Périgueux é apenas isso. Mas, por dentro... — Alex tocou o peito. — Aqui... ele tem o cora­ção de um homem bom.

— Sim, bem... — Ela terminou de passar a faixa em volta da cabeça dele. — Está apertado demais?

— Não. — Tentou se apoiar de novo no cotovelo, ape­sar de, evidentemente, sentir dor. — Ele salvou minha vida cinco vezes.

— É mesmo? — Ela se levantou para encher um jar­ro com água quente.

— A quinta vez foi esta tarde, quando fomos ataca­dos. — Os olhos escuros brilhavam, febris e sinceros.

Faithe colocou cascas de limão secas e ervas no jarro e começou a preparar um chá.

— Eles surgiram de repente. — Ele se deitou e apoiou um braço sobre a testa. — Estávamos procurando este lugar e, subitamente, aquele sujeito estava perto de mim, brandindo a maça. Quando me acertou, no flanco, caí para trás. Tentei pegar a espada, e ele mirou minha mão, mas acabou atingindo meu quadril. Bem, melhor assim, eu acho. Um espadachim não vale nada sem a mão que empunha a arma, certo?

— Imagino que não — ela murmurou.

— Consegui desembainhar minha espada, mas não pude me levantar e usá-la. Um golpe daquela maça a teria feito voar pelos ares. Imaginei que ele logo esma­garia minha cabeça. E o outro bandido preparou a fun­da contra Luke. Acho que não tinha uma boa pontaria. Luke desmontou e seguiu direto contra o sujeito da maça, o que foi imprudente, pois estava desarmado.

— Um soldado viajando sem armas? — ela es­tranhou.

— Não permitiam armas no monastério.

— Monastério?

— É, a Abadia de St. Albans. Luke passou os dois últimos meses lá. Achei que soubesse.

— Não... mas por quê? Estava fazendo penitência? Alex ia responder, mas vacilou, dizendo apenas:

— É melhor perguntar a ele.

— Não posso. Mal o conheço. Ele sorriu.

— Mal me conhece também.

— Sim, mas é fácil conversar com você. Já ele é...

— O Dragão Negro. Faithe assentiu.

— Aqui dentro, não é — disse com suavidade, apon­tando, mais uma vez, para o próprio peito. — Ele se colocou diante do sujeito com a maça e gritou: Aqui, seu infeliz! Pegue-me, desgraçado! Desculpe minha lingua­gem, milady.

— Faithe — ela corrigiu, sorrindo. — E Hengist, o homem com a maça, atacou seu irmão?

— Sim, claro. Virou-se e girou aquela coisa, mas Luke baixou o corpo e agarrou a espada da minha mão, correndo atrás do maldito... Desculpe, atrás do homem. Não me lembro de mais nada depois.

Faithe percebeu que tinha prendido a respiração en­quanto ouvia o relato, e expirou.

— Isso porque você deve ter sido atingido na cabe­ça com a pedra nesse momento. Vance provavelmente tentou mais uma vez antes que os dois fugissem. E seu irmão preferiu ficar para cuidar de você.

— Está vendo? — Sorriu, satisfeito. — Ele é um ho­mem bom.

— Para você. Mas tem sido mau para muitos outros.

— Mas ele é um soldado! Espera-se que faça coisas ruins. É sua vocação...

Sem resposta para aquilo, ela respirou fundo. Colocou em uma caneca o chá que acabara de fazer e entregou-a a Alex.

—Isto vai baixar a febre. Você está um pouco quen­te. Consegue se sentar para beber?

Ele ergueu-se, com uma careta.

— Detesto o gosto dessas coisas — protestou.

— Mas vai gostar deste. — Tinha colocado uma boa quantidade de mel, o que o deixaria saboroso.

Ele cheirou a bebida, desconfiado, depois soprou e experimentou-a. Sorriu.

— Humm... é bom! O que é?

— Um tipo de chá balsâmico. — Ela se serviu tam­bém, apenas pelo prazer de bebê-lo, e sentou-se junto dele.

— Vai ajudá-lo a dormir. Poderá andar dentro de al­guns dias, se descansar bastante e não ficar se levan­tando.

Depois de mais um gole, ele explicou:

— É difícil ficar aqui deitado, sem fazer nada. Fico entediado.

— Quer que eu leia para você?

— Tem um livro?

— Tenho quatro — disse, orgulhosa. Levantou-se e foi até um baú junto à parede, que abriu com uma de suas chaves. — O que prefere: os Evangelhos, um livro sobre ervas, as fábulas de Esopo ou poesias francesas?

— As fábulas.

Faithe pegou o livro e voltou, sentando-se nova­mente.

— Certo, as fábulas, então.

Luke abriu a porta enorme com o máximo cuidado possível, para não incomodar o irmão. Viu-o logo, ador­mecido, e, sentada a seu lado, no chão, entre as plantinhas secas, Faithe. Ela estava de costas e não pareceu notar sua presença. Permaneceu parado, imaginan­do que, se pisasse nas plantas, o ruído o denunciaria. Queria observá-la sem ser visto, pelo menos por alguns instantes.

Observá-la e ouvi-la, pois percebeu que falava baixi­nho, apesar de Alex não a estar escutando. Aos poucos, no silêncio da noite, entendeu o que dizia. Estava con­tando a história A Raposa e as Uvas. Em latim! Ouviu o barulho do papel e deu-se conta do livro em seu colo.

Coçou o queixo áspero, por causa da barba que cres­cia. Bem, sua garota camponesa não apenas sabia falar francês, mas também lia, e em latim... E, a julgar pela cadência de sua leitura, melhor do que ele. Ela devia ter levado mais a sério as aulas que tivera.

Reparou que ela ainda estava com a trança que fi­zera, apesar de um pouco frouxa. Usava roupas claras, de dormir, e a luz do fogareiro parecia criar uma aura suave em torno do seu corpo.

Permaneceu em pé, junto à porta, ouvindo-a ler. Em determinado ponto, ela parou e bocejou, tocando os lábios com os dedos, mas sem interromper a leitura. Todos os seus movimentos pareciam ser assim, delica­dos e elegantes.

Ela era refinada, constatou, de repente. Apesar das roupas simples e do jeito natural, era uma mulher de berço, educada e culta. Previra algo muito diferente an­tes de conhecê-la. Claro que, erroneamente, tinha ima­ginado jóias e peles, pois, afinal, ela era dona de terras, e até mesmo a nobreza saxã gostava de luxo. Porém, à imagem que projetara, muito vaga, havia sido de uma mulher rica, mas sem graça nem cultura. E o que ti­nha diante de seus olhos era algo muito diferente, que o agradava profundamente.

Ela contrastava com os saxões em geral, avaliou. Eram pessoas sem civilidade, todos eles, o que acabara de constatar pelo que tinha visto na mata. Se eles co­memoravam o primeiro de maio com aquele sexo todo ao ar livre, a que outros rituais pagãos se apegariam? Visualizou selvagens pintados de azul, uivando para a lua, oferecendo um normando a algum de seus deuses da floresta, como um sacrifício humano,

Meneou a cabeça para afastar a imagem absur­da. Afinal, os ingleses eram cristãos. Adoravam o mesmo Deus que ele e obedeciam ao mesmo papa em Roma. Então, por que insistiam naquela prática pagã para comemorar a primavera? Havia muito a aprender sobre essa gente, seu povo agora, e quem melhor para ensiná-lo do que sua noiva, que parecia ter um pé na civilização e outro no mundo primitivo de seus ancestrais?

Ela terminou a história e fechou o livro. Riu de leve, aparentemente descobrindo que a pessoa para quem estivera lendo tinha adormecido. Deixou o vo­lume sobre um banco e ajoelhou-se para tocar o pei­to de Alex. A posição revelou as curvas de seu corpo, ressaltadas pela luz do fogareiro. A cintura fina em contraste com os quadris largos e arredondados des­pertaram nele ò instinto masculino de possuir, de penetrar.

Deu um passo adiante, vendo que ela agora se inclinava para tocar o rosto e a testa de seu irmão. Os seios, claramente delineados pela luz das cha­mas, oscilavam de leve com o movimento. Sentiu-se atingido pelo desejo.

Luke vinha tentando controlar a excitação desde que saíra da mata. O que tinha visto lá o impressiona­ra, mas também havia provocado uma certa fascinação que aquecera seu sangue. E, ao ver lady Faithe cuidan­do de Alex, esse calor tinha acabado se direcionando, como uma flecha ao ser mirada para um alvo.

Ela lhe pertencia. O xerife a prometera... mas era melhor que esperasse até a noite de núpcias para toma-la. Não que ela fosse rejeitá-lo se a quisesse agora, mas ela poderia não querer. Poderia também se sentir ultrajada, pois era uma dama. Porém, talvez simplesmente se deitasse e o aceitasse. Não conseguia imaginar como seria. Faithe era um enigma para ele, uma viúva jovem e delicada, com suas fábulas e suas ervas, e seu estranho senso de humor.

Viu-a, então, colocar as mãos ao lado da cabeça de Alex e inclinar-se para beijar-lhe a testa. O choque ante essa atitude fez que seu ardor desaparecesse, transfor­mando-se em raiva. Ela beijara seu irmão!

Avançou, como uma fera atrás da caça, pisando nos galhos e flores sem piedade, as mãos de soldado cerra­das ao lado do corpo. Ela beijara Alex!

Faithe ergueu os olhos ao notar que ele se aproxima­va, a princípio assustada, depois receosa. Luke trazia no rosto a fúria que brotara em seu peito. Ele viu um lampejo de medo em seus olhos, e então percebeu que ela compreendia o que estava acontecendo, ao voltar-se para Alex antes de encará-lo novamente.

Ela se levantou, apertando no peito a gola da capa. O cinto se soltara, expondo parte da roupa de tecido fino, por baixo. Entre os seios estava o molho de chaves, símbolo de sua autoridade naquele lugar. Obviamente, jamais o retirava de lá.

Luke parou perto dela. Bem mais alto, fazia-a er­guer muito o rosto para poder olhá-lo de frente. Antes que ele pudesse dizer qualquer coisa, ela falou, em seu próprio idioma:

— Eu estava sentindo a febre de Alex com meus lábios.

Ele vacilou, avaliando a explicação, enquanto seu semblante carregado era enfrentado com valentia e graciosidade ao mesmo tempo. Virou-se e se curvou para avaliar a temperatura dele com o dorso da mão.

— Ele não tem febre alguma — constatou em fran­cês, numa lembrança deliberada do domínio que exercia sobre ela. Havia anos sonhava em se estabelecer num lugar tranqüilo como aquele, levando uma vida sem derramamento de sangue. E agora tinha sua chan­ce. Tudo ali era seu, inclusive ela. O mundo de Faithe lhe pertencia. Seu corpo, suas terras, seus servos, seus animais, tudo. Viveriam todos por suas regras e, como demonstração de subserviência, falariam seu idioma, pelo menos em sua presença.

Faithe ergueu o rosto e respondeu em seu belo francês:

— Ele teve febre. Dei-lhe um chá balsâmico para baixá-la. — Pegou uma caneca e mostrou-a a Luke. — E é melhor não discutirmos isso aqui para não acordá-lo.

— Nada o acorda. — Ele pegou o recipiente e cheirou o resto do chá, desconfiado. — Nunca ouvi falar em me­dir a febre com os lábios.

— E algo que aprendi no convento onde cresci. Luke encarou-a. Sua curiosidade era evidente, e le­vou-a a explicar:

— Minha mãe morreu quando nasci e meu pai, quando eu tinha seis anos. Orrik convenceu meu tutor de que eu deveria ser educada em um convento. Havia uma freira, irmã Beatriz, que sempre tomava conta de mim quando estava doente. Se ela achasse que eu es­tava febril, encostava os lábios em minha testa para saber se a febre estava muito alta ou não.

Faithe retirou a caneca das mãos dele com suavida­de. Seus dedos tocaram-no, fazendo o corpo inteiro de Luke se arrepiar.

— Depois disso, ela me dava chá balsâmico. — Ela sentiu o aroma da bebida e sorriu. — Eu o adorava. A febre cedia e eu adormecia. E, às vezes, no meio da noite, sentia algo encostar-se a minha testa e abria os olhos. Mesmo sonolenta, via que a irmã Beatriz estava ali, verificando minha temperatura outra vez. E dormia de novo, feliz por saber que alguém estava cuidando de mim e que tudo estava bem no mundo.

Em absoluto silêncio, Luke imaginou como ela fora quando criança. Viu uma menininha de rosto corado e cabelos rebeldes, deitada numa cama toda branca. E uma vontade inesperada e estranha de abraçá-la o to­mou. Só Deus sabia o que faria quando a tivesse entre os braços.

Sentiu-se um idiota por ter interpretado mal o que vira. Sua reação fora impensada, carregada das im­pressões do que tinha presenciado do lado de fora, e, talvez, motivada pelo ciúme, por vê-la tão carinhosa com Alex. O pensamento absurdo de querer estar no lugar de seu irmão passou por sua cabeça. Trocaria ale­gremente os terríveis ferimentos pela oportunidade de sentir as mãos delicadas em seu corpo e os lábios ma­cios na testa.

Precisava ter paciência, disse a si mesmo. Em breve, sentiria isso e muito mais. Viu-a sorrir.

— Esta tarde acusou-me de tentar matar seu irmão e agora achou que eu o estava beijando. É tão difícil de acreditar que quero apenas ajudá-lo?

— Por que iria querer ajudar um soldado normando? O sorriso desapareceu.

— Ele vai ser meu cunhado. — Faithe baixou os olhos para a caneca entre as mãos, antes de voltar a encará-lo. — E o senhor será meu marido. Tenho pouco apreço por seu povo. Não poderia ser diferente, depois... — Preferiu não mencionar os crimes dos normandos contra sua gente. — No entanto, não tenho ilusões quanto aos soldados. O senhor e seu irmão apenas ser­viram a seu soberano, como meu marido fez com o nosso. Minha luta é com Guilherme da Normandia, não com os irmãos Périgueux.

— Palavras bonitas, mas acredito que não será fácil para seu povo se adaptar a um senhor normando.

O sorriso que ele começava a conhecer, maroto, vol­tou aos lábios de Faithe.

— Vai ser mais difícil para o senhor adaptar-se aos nossos costumes.

As imagens que vira na mata voltaram a ator­mentá-lo.

— Depois do que presenciei lá fora esta noite, não posso deixar de concordar.

Ela corou.

— Devia ter-lhe explicado tudo antes.

— E como se pode explicar algo assim? — Uma das imagens formou-se, bem clara, em sua mente: a do pri­meiro casal que tinha visto, à luz do luar. O homem com a calça baixada até o tornozelo segurava a mulher contra uma árvore, e ela tinha as pernas em torno de sua cintura. Usava roupas claras como as que Faithe vestia agora, e agarrava-se à camisa do amante, sus­pirando e gemendo conforme ele se movia dentro dela. A lembrança, misturada ao suave perfume que sen­tia agora, vindo de sua noiva, mexia com seu instinto mais primitivo e carnal. Afastou-se, inquieto, dando-lhe as costas e passando as mãos pelos cabelos longos, movimento que provocou dor no braço ferido. — Este é um país selvagem — murmurou. — Com costumes selvagens.

Faithe tornou a se aproximar. Normalmente, as pes­soas mantinham certa distância dele, mas ela parecia ser uma exceção.

— Não somos selvagens. Apenas diferentes dos normandos.

— Nós? Alguma vez esteve na mata... — interrom­peu-se, voltando a encará-la. Mas a imagem da mata retornou à sua mente, perturbando-o.

— Não. Passei a vida toda num convento e só saí de lá para me casar aos dezesseis anos. E Caedmon sem­pre achou que não devíamos...

— Caedmon?

— Meu marido. Foi criado em Worcester e esse cos­tume, para ele, era...

— Bárbaro?

Ela respirou fundo.

— Essa gente pertence ao povo, à terra. E eles co­memoram um momento de renascimento da nature­za. Suas vidas giram em torno das estações do ano. Sobreviveram a outro inverno e querem comemorar, num gesto de... libertação, de procriação.

Era algo racional, ele teve de admitir. Cada cultura tinha seus próprios costumes e todos os povos manti­nham um traço animal que levava à idéia de libertação. Sabia muito bem disso. E não podia negar o apelo pri­mitivo de uma noite de paixões desenfreadas. Mesmo assim...

— De onde venho, esse tipo de... atitude é feito em particular.

— Somos um povo rude, senhor. Um povo simples. Mas partilhamos dos mesmos valores de toda a cristandade. Reconhecemos o que é certo e o que é errado e tentamos ser bons. Espero que, com o tempo, nos aceite como somos.

Diante da sinceridade daquelas palavras, Luke sen­tiu-se compelido a tranqüilizá-la.

— Não vim pensando em transformar seu povo em algo que não é. Tudo que peço é a fidelidade de todos e, em troca, prometo tentar tolerar seus costumes.

Alegre, ela sorriu novamente.

— Estou aliviada por ouvir isso, senhor.

— Mas que fique claro que exijo fidelidade. Não pre­cisam gostar de mim, e, com certeza, muitos devem me desprezar, mas não tolerarei deslealdade.

— Não irão desprezá-lo. A menos que faça coisas des­prezíveis. Minha gente detesta os normandos em geral porque roubaram nosso país, mas é difícil detestar uma pessoa que nos trata bem e com justiça. Seja bom para eles. Passe os dias até nosso casamento demonstrando que poderá ser justo e generoso e, quando for o senhor de Hauekleah...

— Vamos nos casar amanhã.

Faithe parou de falar, olhando-o, surpresa.

— Imaginei que soubesse — Luke tentou esclarecer. — Lorde Alberic não lhe disse?

— Lorde Alberic disse-me bem pouco.

Luke afastou a idéia de adiar o enlace, uma vez que estava ansioso para possuir aquelas terras, assim como sua senhora.

— Ele exige um casamento rápido, já que estou vi­vendo sob seu teto desde já — explicou. — E eu também quero assim. Ele chegará amanhã pela manhã, com sua esposa, lady Bertrada, e seu capelão pessoal, que presi­dirá a cerimônia.

— Tenho meu próprio padre — Faithe rebateu. — Não vejo por que...

— Lorde Alberic é um homem que gosta das coisas feitas a seu modo. Entendo que tenha suas preferên­cias, mas não perderia meu tempo discutindo com ele esses detalhes.

— Discutir com ele? Ou com o senhor?

Luke respirou fundo. Preferia que ela aceitasse a si­tuação com mais temperança. Não gostava de limitar o poder dela, já que Faithe o exercia de forma impressio­nante, mas era imperativo que assumisse parte dele o quanto antes.

— Vai ter de aprender a aceitar minha vontade, sim.

Ela amarrou o cordão da capa.

— Obrigada pelo conselho, milorde. Imagino que seja muita presunção de minha parte querer opinar sobre os detalhes do meu casamento... e de minha vida.

— Milady...

— O senhor e lorde Alberic estão em posição bem melhor, ouso dizer, para cuidar de tudo e tomar as deci­sões. Não vou mais interferir. — Faithe deixou a caneca sobre um banco e se afastou, subindo a escada. Da por­ta de seu quarto, voltou-se, e perguntou:

— Posso saber quando e onde será a cerimônia?

— Às nove, na porta da capela, seguida de uma mis­sa. Milady...

— Estarei lá — disse, e fechou a porta atrás de si.

 

Faithe girava o anel de casamento no dedo, olhando furtivamente para o novo marido. Ele se mantivera calado e distante durante a cerimônia e a missa, e se encontrava da mesma forma no banquete de casamen­to. Blossom quis servir-lhe mais vinho, mas ele recu­sou. Faithe, ao contrário, aceitou. Queria estar o mais relaxada possível ao se recolher ao leito nupcial. Olhou para Bonnie, a gêmea de Blossom, que servia carnes do outro lado da mesa. Eram idênticas, e mal se podia sa­ber quem era quem. Mas Blossom usava uma só trança nos cabelos e Bonnie, duas. Faithe viu-a se curvar mais do que o necessário junto a Alex, que ainda tinha a ca­beça enfaixada.

— Algo doce para beber, sir Alex?

— O que quiser me servir, moça — respondeu ele, com um sorriso malicioso. E, voltando-se para Blossom, disse: — E você também, para contrabalançar.

As gêmeas sorriram, encantadas, e continuaram com seu serviço. O banquete era farto, embora sem luxo. Se lorde Alberic esperara encontrar o contrário, devia es­tar decepcionado. Faithe tinha deixado tudo a cargo de seu esposo. E como ele não se mostrara muito animado com a tarefa, as coisas corriam como de costume, sem o aspecto de uma festa. Não havia músicos, nem de­coração especial, e lorde Alberic mostrava-se um tanto decepcionado. Luke, porém, não parecia se importar. Ao contrário, parecia até alegre por contrariá-lo.

Lady Bertrada comportava-se de forma muito dife­rente. Comia bastante e, animada, falava sem parar. Pediu várias vezes a Faithe que fosse visitá-la no caste­lo Foxhyrst, dizendo sentir falta de companhia femini­na. Devia ser muito solitário ser esposa de um invasor, Faithe ponderou, em especial de um tão frio e mal-hu­morado quanto lorde Alberic.

Entediado com a falta de diversão, ele acabou insis­tindo que se retirassem cedo, para aborrecimento da esposa e alívio de Faithe. Podia suportar a verborragia de lady Bertrada, mas não a presença insuportável de seu marido. Talvez ele nem voltasse mais, uma vez que recebera uma acolhida pouco animadora.

Bebeu mais um gole de vinho, tomando cuidado para não deixar nenhuma gota cair sobre o vestido de seda em tom amarelado. Lembrou-se da expressão surpresa de Luke ao vê-la. Ele a olhara de cima a baixo, notando o véu sobre os cabelos e as trancas bem-feitas, mas se detivera nas curvas de seu corpo, reveladas pelo tecido suave do vestido. Às vezes, ao olhá-lo, percebia que a fitava com aqueles olhos profundos e sérios. Porém, ele desviava rapidamente o olhar, o que ela achava muito interessante:

Percebeu que estava mais uma vez rodando o anel no dedo, e colocou as mãos no colo. Era uma bela jóia, incrustada com esmeraldas. Não imaginava onde seu marido poderia ter encontrado algo assim em tão pouco tempo.

— Era de minha mãe.

Sobressaltou-se ao ouvir a voz profunda e suave, como um trovão distante. Ele inclinou-se um pouco em sua direção, observando o anel, e Faithe sentiu o aroma do sabão que ele usara no banho.

— Por que tem o anel de sua mãe?

— Ele me foi entregue quando ela morreu.

— E carregava-o consigo?

A resposta foi a mescla de um encolher de ombros e um gesto de cabeça. Ele levou os dedos à jóia sobre seu colo, tocando-a num gesto ao mesmo tempo terno e sensual.

— É lindo — ela disse.

— Deve usar coisas bonitas. É... — Claramente em­baraçado, ele retirou a mão e ergueu a taça, franzindo o cenho ao encontrá-la vazia. — E a senhora destas ter­ras. Devia usar seda e jóias todos os dias.

Faithe imaginara que ele fosse dizer que ela era uma mulher bonita. Talvez tivesse mudado de idéia.

— Preciso usar roupas com as quais possa trabalhar — respondeu, sorvendo um gole de vinho.

— E por que precisa trabalhar tanto? Tem servos para isso.

Ela sorriu.

— E o que me manteria ocupada?

— Minha madrasta e minhas irmãs fazem trabalhos com agulha e linha.

Faithe não conseguiu controlar uma risada.

— Desculpe. — Contraiu os lábios, tentando parar de sorrir. — Não quero parecer desrespeitosa, mas acho que ficaria louca passando uma agulha de um lado para o outro do tecido o dia inteiro.

Imaginou que ele fosse se zangar, mas percebeu um brilho divertido nos seus olhos.

— Então, que seja assim — disse, e calou-se de novo.

Faithe observou-o enquanto ele olhava para um lugar indefinido do outro lado do salão. Tinha feito a bar­ba e trançado os cabelos, e parecia bem menos feroz do que no dia anterior. Usava uma túnica preta que quase chegava ao chão, conferindo-lhe um aspecto as­cético. Poderia, até mesmo, passar por um homem do clero, não fosse a musculatura avantajada que podia ser notada sob suas vestes.

Faithe irritou-se ao perceber que girava o anel outra vez. Bebeu mais um gole de vinho, pensando que, nessa noite, receberia o Dragão Negro em sua cama e desco­briria o quanto ele era selvagem. Acabou com a bebida e fez um sinal a Blossom, pedindo mais. Porém, antes de ser servida, a porta principal do salão se abriu para dar passagem a Dunstan. O chefe da guarda abriu a boca, mas nada disse, reparando no vestido dela. Depois, olhou para seu novo senhor.

— Sinto que tenha perdido meu casamento — disse Faithe, em seu idioma.

Mesmo contrariado, o rapaz murmurou:

— Tudo por uma boa causa, milady. Pegamos Vance. Ele estava escondido em Upwood.

Dunstan fez um sinal e dois homens, Nyle Plowman e Firdolf, trouxeram Vance, de mãos atadas às cos­tas. Escutou-se um murmúrio coletivo dos convivas quando o capitão empurrou o prisioneiro em direção à mesa principal. O sujeito olhou ao redor, assusta­do, e Faithe chegou a sentir pena. Estava prestes a perguntar-lhe sobre seu companheiro, Hengist, quan­do Luke se levantou, em absoluto silêncio, fazendo que todos se calassem.

O criminoso piscou, temeroso, diante do homem que tentara matar no dia anterior.

— Onde está seu amigo? — Luke perguntou em inglês.

— Morto — ele balbuciou.

Dunstan assentiu, acrescentando:

— Hengist sangrou até a morte na mata, senhor. Encontramos o corpo.

Luke assentiu e voltou a olhar para Vance.

— Por que nos atacou? Sem encará-lo, o homem respondeu:

— Por algumas moedas. Desculpe a inconveniência. — Sorriu, mostrando que não tinha os quatro dentes da frente, mas logo parou, diante da seriedade do novo senhor da propriedade.

Contornando a mesa, Luke parou junto a cadeira em que Alex se encontrava, cercado de almofadas, tomando um gole de vinho.

— Acredito que, para meu irmão, tenha sido mais do que apenas uma inconveniência.

— Ah... Bem... Hengist exagerou.

— Lembro-me de ter visto você com aquela funda, bastante entusiasmado.

O criminoso assentiu, estremecendo.

— Foi o calor do momento, senhor. Não vai acontecer de novo.

— Pode apostar que não.

Faithe pigarreou, chamando a atenção do marido.

— Eu posso... Quero dizer... O senhor pode mandar reunir uma corte. Orrik normalmente as preside.

— Claro. Ou poderia mandar este animal para expe­rimentar a justiça normanda, com lorde Alberic.

Alex deixou de lado o ar displicente que mantivera até o momento e fitou o irmão com seriedade. A justiça normanda, Faithe sabia, significava uma boa dose de tortura antes da execução. Não que sua gente não fosse punir Vance, até mesmo enforcá-lo, já que ele e o primo causavam aborrecimentos havia anos, mas não era costume local usar das terríveis preliminares que pareciam agradar aos normandos. Se, ao menos, Orrik estivesse ali... Ele provavelmente tinha conciliado sua ida a Foxhyrst, para adquirir supri­mentos, com alguma de suas saídas misteriosas, que ela imaginava serem visitas à viúva Aefentid. Orrik poderia reunir cerca de doze homens e julgar Vance, o que deixaria Luke satisfeito, sem incomodar lorde Alberic.

A expressão no rosto de Vance era de pânico.

— Não, senhor, não pode me entregar a ele! Luke cruzou os braços.

— Nosso xerife está melhor... equipado para lidar com esta situação. Tem celas embaixo do castelo e um carrasco a seu serviço, que extrairá a verdade de você antes de mandá-lo para o inferno. Quero saber por que nos atacou e, se for necessário agir pela força, assim será.

Faithe ouvira falar sobre as torturas normandas. Tremia só de pensar em instrumentos de ferro, quei­maduras e óleo quente. Preparou-se para pedir piedade ao marido, mas encontrou o olhar de Alex, que indicou sutilmente que não o fizesse. Decidiu calar-se e esperar.

— Onde está mestre Orrik? — Vance perguntou, aflito. Olhou ao redor até encontrar o irmão de Nyle, Baldric, um homem atarracado, mas forte, que tinha o nariz torto por causa de uma fratura mal curada.

— Acha que sei? — o homem perguntou, com desdém. Todos ali sabiam que Baldric era o braço direito de Orrik. Dunstan era apenas quem passava as ordens adiante.

— Meu administrador não se encontra aqui — Faithe explicou ao criminoso. — Está cuidando de assuntos de nosso interesse. Por que quer saber?

— Porque ele saberia agir nesta situação e mandar me julgar de forma correta.

— Eu não pensaria assim se fosse você — Baldric comentou, mantendo a expressão de desdém.

Luke, cansado daquilo, aproximou-se de Vance e parou diante dele, ameaçador.

— Sou o senhor de Hauekleah agora. Poderia mandar que arrancassem seus olhos neste momento, se eu quisesse. Poderia ordenar que lhe quebrassem os ossos dos pés e das mãos e que esticassem seus membros até...

— Não, senhor, por piedade, não!— Vance gritou. — Eu imploro. Pode me enforcar, mas isso, não!

— Cale-se!

— Pelo amor de Deus, senhor! Eu direi qualquer coisa.

— Ouviu o nosso senhor. Cale-se! — Baldric levan­tou-se, alterado.

— Eu direi por que fizemos aquilo, mas...

— Deixe isso para o julgamento — Luke interrom­peu, frio.

Fez-se silêncio, seguido de comentários em voz baixa.

— Será julgado amanhã à tarde. E, se colaborar no interrogatório, poderei ser misericordioso e mandar açoitá-lo apenas. Caso contrário, será enforcado.

Vance irrompeu em soluços, continuando a afirmar que contaria tudo. Alex sorriu e piscou para Faithe.

— Milady, temos algum lugar seguro onde este sujei­to possa passar a noite? — Luke indagou à esposa.

— Temos os armazéns, na parte de trás junto à cozi­nha. O menor deles está quase vazio e possui uma tran­ca na porta. Dunstan sabe onde Orrik guarda a chave.

Luke olhou para o capitão e ordenou:

— Coloque-o lá. Dê-lhe pão e água e um pouco de palha onde possa dormir, mas não o deixe sair de forma alguma.

— Sim, milorde.

A resposta saiu com facilidade dos lábios de Dunstan e soou respeitosa, sem resquício de rancor. Faithe ficou espantada. Seu marido acabava de ganhar o respeito do rapaz. Escolhera a justiça saxã em detrimento da brutalidade normanda, e ela sabia que sua gente não se esqueceria disso.

— Oremos — disse o idoso capelão de Hauekleah, benzendo o quarto dos noivos. Ao terminar, fez o sinal-da-cruz com a mão trêmula.

— Amém — murmurou Luke.

Por fim, o padre despediu-se e se retirou, seguido pe­las testemunhas. Permaneceu ali apenas a criada, pa­recendo um pouco insegura.

— Pode ir também, Moira — Faithe a dispensou. — Consigo me preparar sozinha.

— Sim, milady. — A jovem pareceu aliviada ao sair, fechando a porta.

Luke permaneceu em absoluto silêncio por alguns instantes. Observou sua esposa discretamente, vendo-a girar o anel no dedo seguidas vezes.

— É um bonito quarto — disse, por fim, em francês, sabendo que precisava reforçar sua autoridade inclu­sive na privacidade de seus aposentos. Ela se retesou, mas sussurrou um agradecimento no mesmo idioma.

Ele fizera o comentário para ter algo a dizer, mas agora notava que era verdade. O quarto era espaçoso e havia enormes janelas. Dentre os móveis de madei­ra entalhada estava a grande cama, coberta por peles aconchegantes.

Notando que ele olhava para o leito, Faithe se afas­tou. Retirou os brincos, guardando-os num baú cuja chave trazia ao pescoço. Depois, tirou o véu e o enfeite que o prendia à cabeça e abriu outro baú, de onde tirou uma camisola de linho dobrada. Começou a se despir, tentando soltar a fita do vestido, amarrada às costas. Luke percebeu por que a criada normalmente a ajudava, uma vez que alcançá-la exigia um movimento difícil.

— Deixe... — ele disse, um pouco sem jeito, cami­nhando até ela. Soltou a tira, conforme imaginara no dia anterior. Para sua decepção, o vestido, ao ser afastado não revelou a pele, mas outra vestimenta por baixo.

Não estava acostumado a encontrar roupas de baixo nas mulheres que despia. Suas companheiras de cama tinham sido, na maior parte, prostitutas, e as que não cobravam costumavam trocar seus favores por presen­tes de algum tipo. Elas raramente usavam algo sob o vestido.

Nunca, nos doze anos em que se deitava com mu­lheres, tivera experiência com uma dama. E agora que uma se mostrava, presumivelmente, pronta para ceder ao seu desejo, ele não sabia ao certo o que se esperava dele, ou o que esperar dela. Faithe era sensual, mesmo tendo sido criada em um convento e sendo uma dama virtuosa.

Seu pai lhe ensinara que as mulheres bem-criadas tinham repulsa pelos assuntos da carne. Ao deitar-se com a esposa, um cavalheiro devia sempre poupá-la. Precisava ser respeitoso, gentil e rápido, erguendo sua camisola apenas até o ponto certo para fazer o que era necessário. E tudo devia acontecer na escu­ridão para evitar expor os olhos da dama ao mem­bro do marido, pois elas costumavam se alarmar com essa visão.

Faithe não se mostrara alarmada ao despir Alex, e até rira da preocupação de Luke com o recato. Mas, claro, aquela situação nada tinha a ver com uma noite de núpcias e o membro em questão estava adormecido como o dono.

Precisava ser gentil, mas não tinha certeza se sa­bia como. Com as prostitutas, podia agir como queria, e geralmente, depois de uma batalha, desejava ser impe­tuoso, aliviando-se da tensão e esquecendo, por alguns momentos, a criatura em que se transformara. Não po­dia nem queria usar sua esposa dessa forma, embora fosse a única que conhecesse.

— Obrigada — ela murmurou quando ele terminou de soltar o vestido.

Viu-a pegar a camisola com mãos trêmulas e detes­tou-se por ser a causa daquele tremor. O que seu pai faria?

Virou-se de costas e começou a desafivelar o cinto. Ouviu o ruído de seda e depois o das chaves.

— Posso perguntar-lhe algo, milorde?

Milorde. Detestava ouvi-la tratá-lo assim, com for­malidade, especialmente no quarto. Tinha certeza de que ela não chamava o primeiro marido de milorde.

— Sim.

— Por que preferiu julgar Vance? Por que não o man­dou ao carrasco de lorde Alberic?

Luke tirou a túnica e a camisa pela cabeça e as pen­durou, com o cinto, num gancho que havia na parede. Então soltou a trança e correu os dedos pelos cabelos;

— Apenas aceitei seu conselho, milady.

— Meu conselho?

Ele se curvou para tirar as botas.

— Disse que seu povo não me desprezaria, a menos que eu fizesse coisas desprezíveis. Não quero ser des­prezado. Apenas obedecido.

— Mas ameaçou-o com as torturas, como se quises­se... Quero dizer, achei que...

— Achou que eu fosse um monstro capaz de ordenar aquilo tudo contra o pobre homem.

Ela não respondeu. Luke jogou as botas a um canto e passou a mão no braço, sobre o ferimento que latejava.

— Com freqüência um prisioneiro confessa seus cri­mes apenas imaginando os instrumentos de tortura. A ameaça de punição pode ser tão eficaz quanto a própria punição e causa muito menos problemas.

— Entendo.

Usando apenas a ceroula, Luke percebeu que ela se dirigia para a cama. Ao voltar-se, viu-a sentada, esco­vando os cabelos, que brilhavam à luz das velas. Ficou parado, admirando a graça de seus movimentos.

Os braços, revelados pela camisola sem mangas, eram finos, mas firmes, moldados por músculos que se flexio­navam conforme ela se penteava. Eram os braços de uma mulher que não tinha medo do trabalho. Sua madrasta e irmãs pareciam frágeis demais quando as abraçava, refle­xo da vida repleta de mimos. Sua esposa era diferente... E imaginava como seria por inteiro quando a despisse.

O pensamento fez o desejo pulsar em seu corpo. Afastou as cobertas e sentou-se na cama, sentindo a maciez do colchão de penas. Faithe deixou a escova e deitou-se, lançando um olhar furtivo em sua direção. Logo, aproximou-se e tocou seu braço.

O coração de Luke bateu com força ao sentir os de­dos dela acariciando-o com delicadeza. Mas quando ela alcançou o ponto inchado pouco abaixo de seu ombro, gemeu de dor.

— Oh, sinto muito — ela se desculpou, recuando. — Não quis machucá-lo, mas não fazia idéia de que seu ferimento estivesse tão... Por que não me disse?

Ele seguiu o olhar horrorizado de Faithe ao ver a mancha vermelha e inchada, que cobria a pele desde o cotovelo até quase o ombro.

— Está doendo muito?

— Não — ele mentiu.

Ela o olhou, sem acreditar, e saiu da cama, procu­rando uma chave no molho que ainda mantinha no pescoço. Seus movimentos revelavam curvas que logo provocaram uma reação no corpo de Luke. Ele ajeitou melhor as cobertas ao redor da cintura.

Faithe ajoelhou-se para abrir o baú, tirando dele a cesta de medicamentos. Voltou para a cama com um frasco de cerâmica e retirou a tampa de cortiça.

— O que é isso? — Ele inclinou-se para sentir o aro­ma. — Perfume?

— Essência de alecrim. É bom para esse tipo de contusão. — Ela pingou um pouco de óleo nos dedos. — Diga-me se doer — pediu, tocando de leve o braço ferido.

— Não — ele disse com voz rouca. — Está tudo bem.

Doía, apesar do toque delicado, mas ele não revelaria isso, temeroso de que ela parasse. Faithe espalha­va o ungüento com suavidade, parecendo tomar muito cuidado para não machucá-lo. Exceto por um breve instante em que fixou os olhos na cruz de madeira em seu pescoço, toda a atenção dela estava focada no que fazia. Observou as pontas dos dedos traçarem círculos por toda a extensão de sua pele, aquecendo o líquido es­corregadio. Um calor calmante tomou seu ombro, espa­lhou-se por seu peito e continuou seguindo, descendo...

— Como está se sentindo? — perguntou com voz tão baixa que ele mal a ouviu.

Ele engoliu em seco.

— Bom. É bom.

Faithe olhou-o por entre os cílios.

— Dói menos do que antes?

— Sim — ele respondeu com sinceridade. — Muito menos.

Ela sorriu, maliciosa.

— Pensei que não estivesse doendo antes. Luke também sorriu, meneando a cabeça.

— Diverte-se com suas pequenas armadilhas? Faithe o encarou, parecendo admirada.

— O que foi? — ele perguntou.

— Está... sorrindo.

— Pensou que eu não conseguisse sorrir?

— Sim. Acho que sim. Mas estou feliz por ter me enganado,

Quando ela estendeu o braço para pegar a tampa do frasco, Luke viu as marcas escuras nos pulsos delica­dos. Antes que ela pudesse fechar a garrafinha, ele se­gurou sua mão. Percebeu que ela ofegou e se enrijeceu. Era evidente que seu toque a incomodava. Em plena noite de núpcias, a esposa mal suportava o contato de suas mãos.

Inclinou-se e correu as pontas dos dedos pela pele marcada. Ela estremeceu.

Lembrou-se de como a segurara com força, acusan­do-a de tentar matar Alex. Estava envergonhado pela violência de seu gesto.

— Eu... — Ergueu os olhos. O que poderia dizer a ela? Que nunca mais a machucaria? Como saber quan­do o animal dentro de seu peito ganharia vida outra vez? Como lhe assegurar que não era perigoso quando ele mesmo não tinha certeza disso?

— Está tudo bem — ela sussurrou.

— Não está.

Luke sentia a pulsação dela mais forte sob seus de­dos. Seria pelo mesmo motivo que fazia seu coração se acelerar? Ou seria medo? Soltando-a, pingou a essência de alecrim nos dedos e tomou-lhe a mão direita.

— Não é necessário — Faithe protestou, conforme ele gentilmente passava o ungüento na pele suave.

— Está doendo?

— Não.

— Então, permita-me desfrutar desse pequeno prazer.

Ela ficou em silêncio, mas sua respiração se acelerou.

Ao tomar a outra mão para passar o linimento, Luke sentia-se tomado pelo desejo. Mal podia esperar para mergulhar no corpo sensual de sua linda esposa. Estivera sem o conforto dos braços de uma mulher du­rante os dois meses que passara em St. Albans. Pensou também que gostaria de ter filhos, agora que sua vida se acalmara um pouco. Mas nunca se deitara com uma mulher que não estivesse completamente disposta a consumar o ato. Até as prostitutas eram ávidas, fosse pelo prazer ou pelo dinheiro. Ele nunca considerara to­mar uma mulher que não tivesse vindo a ele por von­tade própria.

Até o momento.

Repetiu para si mesmo que Faithe era sua esposa e que ele tinha direito de possuí-la. Ela esperaria por isso, e estranharia se ele não o fizesse. E ele a desejava.

— Milorde?

Estivera segurando a sua mão, sem se mexer, perdi­do em pensamentos. Soltou-a abruptamente e passou os dedos pelos cabelos. Faithe saiu da cama e foi guardar a caixa com os medicamentos. Ao se curvar, as chaves ba­teram contra a madeira, chamando a atenção de Luke. Por um breve instante, o decote se abriu, revelando os seios fartos, redondos e macios. Quando ela voltou para a cama, ele disse:

— Tire isso.

Faithe prendeu a respiração, a expressão de alar­me transformando-se em algo mais. Resignação? Expectativa? Levando a mão trêmula até o decote da camisola, começou a desfazer o laço.

— Isso, não. — Colocou a mão sobre a dela para im­pedi-la de continuar, e depois tocou a corrente presa ao pescoço. — As chaves. Não quero ouvi-las a noite toda. Os olhos dela brilharam com algo que poderia ser alívio ou confusão.

— Oh... claro. Como quiser, milorde.

Milorde. Não tinha dúvidas de que, se a deitasse e a cobrisse com o corpo, ela ficaria imóvel e passiva, submetendo-se ao dever conjugai. Mesmo sendo seu marido o Dragão Negro, matador de saxões, mesmo detestando seu toque. Cumpriria sua obrigação.

Luke respirou fundo. Queria-a tanto! Mas não ape­nas a aceitação, decorrente da falta de opção. E muito menos a coerção, o medo.

Inclinou-se para o lado, soprou a vela, apagando-a, e deitou-se, ajeitando as cobertas sobre o peito. Ela fez o mesmo. Ficaram assim, em silêncio, por longos minutos. Luke podia sentir seu o calor e o perfume. Imaginava o que estaria pensando e como reagiria se a tomasse nos braços.

— Tem medo de mim? — perguntou, por fim. Muito tempo se passou e chegou a imaginar que ela tinha adormecido. Por fim, ouviu:

— Um pouco.

Um pouco era o bastante.

— Boa noite — murmurou, dando-lhe as costas.

— Boa noite, milorde. — Faithe fez o mesmo, sem contestar.

Faithe acordou muito cedo, o que era comum, já que se levantava até antes de seus criados. Criatura da ter­ra que era, movia-se mais por hábito e instinto que por racionalidade.

Vestiu-se em silêncio para não perturbar o marido, que dormia, virado de costas para ela. Ele não tivera uma boa noite de sono e se mexera muito. A cama havia parecido pequena para ambos, o que nunca tinha acon­tecido quando era casada com Caedmon, que, embora alto e forte, não tinha a corpulência de Luke. Talvez nunca se acostumasse a dormir com ele. Durante a noi­te, seu pé tocara a perna dele, e os dois tinham se afas­tado depressa, passando o restante do tempo à beira da cama, evitando outro contato.

Pegou as chaves com cuidado, para que não tilintassem, e pendurou-as no pescoço. Gostaria que ele não tivesse mandado que as retirasse. Odiava estar sem elas. As chaves a faziam se sentir segura, e mostravam que ela era uma mulher a ser respeitada. Sem elas, era como se ficasse incompleta.

Pegou a cesta de medicamentos e saiu, imaginando se Alex dormira bem e se as ataduras ainda estavam no lugar. Ele insistira para que não as trocasse durante a noite, pois, afinal, aquela seria sua noite de núpcias. Agora, saindo para o corredor e olhando para baixo, Faithe entendia o porquê de tamanha insistência.

Ao lado de Alex, no catre, estava Blossom, tão nua quanto ele. Dormiam abraçados e estavam cobertos apenas até a cintura. Não conseguia deixar de olhá-los enquanto descia. Ele dormia tranqüilo, mas sem a bandagem. Como podia ter tomado uma mulher nas condições em que se encontrava? Esperava que ele não tivesse piorado o estado dos ferimentos.

Aproximou-se, observando-os. Sentia falta dessa proximidade física, do conforto de dormir abraçada a alguém, sentindo-se aquecida durante o sono. Apesar do receio por estar casada com Luke, parte de si tinha desejado que ele a tomasse. Que Deus a perdoasse pelo pensamento, mas achava-o sedutor em sua natureza predatória.

Lembrava-se de, ainda pequena, ter visto Orrik amarrar um porco selvagem a uma árvore. Sentira-se atraída pela natureza bruta daquele animal e chegara bem perto, mas ele investira, fazendo-a retornar, aflita, para os braços do administrador. Estranho sentir-se atraída pela brutalidade, pela força...

Mas havia mais em Luke de Périgueux do que a fama de animal feroz que ganhara. Havia um homem que tinha trançado seus cabelos e aplicara óleo em sua pele, com dedos gentis, capazes de enfeitiçar... Era uma criatura contraditória, mistura de homem e animal. E, quando decidisse exigir seus direitos conjugais, ela imaginava qual das duas partes agiria.

Reavivou o fogo e chamou por Blossom com suavida­de até despertá-la.

— Milady?

— É melhor levantar-se e se vestir antes que os ou­tros acordem.

A jovem se espreguiçou e, sentindo-a, Alex fez o mes­mo. Blossom sentou-se, mas ele segurou-lhe a trança, puxou-a para si e sussurrou:

— Fique.

— Ela não pode ficar — Faithe explicou. — Tem que ajudar no desjejum.

Ele abriu os olhos.

— Faithe? Oh, sinto muito... — disse com um sorriso, observando Blossom sair da cama.

— Não, não sente.

— É, não mesmo...

— Imagino que tenha se esquecido de suas ataduras.

— Que ataduras?— Ele ergueu o cobertor e sorriu, entregando-lhe os tecidos amarfanhados.

Blossom, vestindo-se, ria.

— Vá buscar um balde de água e depois veja se Ardith precisa de ajuda na cozinha — Faithe ordenou.

— Sim, milady.

Alex seguiu a moça com os olhos, comentando:

— Ela tem muita... vitalidade. Ela e a irmã. Faithe abriu a cesta, acomodando-se junto dele.

— Como a escolheu, e não a Bonnie?

— Não escolhi. Elas o fizeram. Tiraram na sorte e, pelo que pude entender de sua conversa, porque fala­vam em inglês, vão se revezar.

— Oh, quanto espírito esportivo!

— Verdade. Sabe que queriam ficar comigo juntas?

— Não... é mesmo? — Aquilo não era novidade para Faithe. Já as vira fazer a mesma coisa com outros jo­vens. — Parece-me uma oferta generosa.

— Demais, mas eu recusei. Na minha atual condi­ção, não creio que teria sobrevivido.

— Decisão prudente.

Blossom voltou com a água, e depois se retirou no­vamente, jogando no ar um beijo para Alex. Faithe co­locou o balde junto ao fogo e depois continuou a cuidar dos ferimentos dele. Conversavam, mas a mente dela estava em outro lugar. Pensava na noite anterior, ain­da assombrada por seu marido não ter consumado o casamento. Considerara diversas teorias. A que mais a incomodava era a idéia de que, talvez, ele amasse outra pessoa, alguém a quem pretendia ser fiel, apesar do ca­samento forçado para ficar com a propriedade dela.

— Eu estava pensando sobre seu irmão...

— Sim?

— Bem, ele me parece um homem viril, e não deixa de ser atraente. Se eu fosse uma mulher... bem, claro, que sou, mas... quero dizer, as mulheres devem conside­rá-lo... ele... deve ter tido muitas, e, talvez ainda tenha pelo menos uma...

— Quer saber se ele tem uma amante?

— Sim.

— Nunca teve.

— Nunca?

— Meu irmão é um soldado, Faithe. Ou era. Soldados não ficam muito tempo num só lugar, não criam esse tipo de laços. Claro que ele tem experiência com mu-lheres, já esteve com muitas, mas todas... bem... de um certo tipo. Dessas que não esperam encontrá-lo em sua cama pela manhã, se é que me entende.

Ela assentiu e a conversa tomou outro rumo. Faithe queria saber mais sobre sua outra teoria quanto à não Consumação do casamento. E quando passaram a falar Sobre a família de ambos, indagou:

— As pessoas em sua família são muito ligadas?

— Não. Apenas eu e Luke. Nossa mãe morreu quando eu era muito pequeno, e tínhamos uma irmã, Alienor, que faleceu também, há uns dez anos. Sou o mais jovem. Temos outras duas irmãs, e depois Luke, e ainda nosso irmão mais velho, Christien, que herdou a propriedade de nosso pai quando o perdemos no Natal. Ele benzeu-se pelo pai. — E há também o filho dele Com nossa madrasta.

— Apenas um?

— Sim. Lady Elise não gostava de fazer o que é ne­cessário para gerar filhos. Logo que engravidou, mu­dou-se para outro quarto. Meu pai não gostou e tentou reconquistá-la durante um bom tempo, mas, vendo que não conseguia, arranjou uma amante. Porém, não era feliz. Após anos ensinando para os filhos sobre a fide­lidade no casamento, acabou indo contra seus próprios princípios.

Faithe aplicou os ungüentos e colocou o tecido limpo por cima.

— E todos em sua família gozam de boa saúde?

— Sim, de forma geral. Alienor ficou muito doente antes de morrer. Sofreu muito, pobrezinha. O idiota de nosso capelão dizia que ela estava possuída pelo demô­nio, Aquele maníaco...

Faithe interessou-se mais.

— Ela tinha problemas mentais?

— No fim, sim. Mas estava sofrendo muito e ficou fora de si. Foi terrível vê-la passar por tudo aquilo. O médico disse que ela sofria de febre no cérebro e a san­grava todos os dias até que meu pai o impediu. Por fim, contratou um medico árabe que parecia entender da coisa. Ele disse que minha irmã tinha um tumor dentro da cabeça. —Alex olhou-a. — Mas por que está interes­sada nisso?

— Por nada.

— Está tentando descobrir se alguém na família é louco... — Ele a olhava, sorrindo, vendo-a guardar seus medicamentos.

— Oh, que absurdo! — Mas era verdade. O padre Paul, certa vez lhe confessara que seguira o caminho religioso para não transmitir a loucura que arruinara sua família. Faithe acreditava que esse era o único mo­tivo para que um cavaleiro escolhesse ser celibatário e não ter filhos. A maioria dos homens na posição de Luke queria ter herdeiros.

— Fique tranqüila — Alex acalmou-a, rindo. — A família Périgueux está livre de doenças terríveis, inclu­sive a loucura. Luke já chegou a pensar isso de si mes­mo, mas é o mais sensato de todos nós, por isso mesmo sente-se tão diferente e tão infeliz.

— Que bom saber...

— Não é um pouco tarde para essas perguntas? Vocês já se casaram. Não há como voltar atrás agora, a não ser com uma anulação.

Faithe acabara de trancar o baú em que colocara a cesta. Ficou imóvel. À não consumação de um casamen­to era motivo para uma anulação, sim. E se Luke tivesse se arrependido e quisesse exatamente isso? Ficaria com a propriedade e a mandaria para algum convento distante... E poderia se casar com outra. E Hauekleah teria outra senhora. Sua querida propriedade seria de outra. Oferecera-se a um normando brutal para man­ter o que de mais precioso possuía e ele nem mesmo a quisera porque podia ficar com tudo! Oitocentos anos e tudo acabaria assim...

— Faithe? — Alex apoiou-se no cotovelo, analisando-a com uma expressão preocupada conforme ela gi­rava o anel de esmeralda no dedo. — Está tão pálida. Você está bem?

— Sim, estou.

— Precisa de alguma coisa? Quer beber algo?

— Preciso da verdade. Conte-me a verdade.

Ele a encarou, avaliando a resposta. Tentou sentar-se, mas cerrou os dentes de dor e se deitou de novo.

— Muito bem. A verdade sobre o quê?

— Sobre o que seu irmão pretende. Ele falou com você sobre acabar com nosso casamento? Por isso você mencionou uma anulação?

— Olhe, meu irmão tem seus defeitos, mas jamais se casaria tendo em mente algo escuso. É um homem de honra. Seguramente, você já percebeu isso.

Ela já tinha percebido. Apesar da reputação e dos modos selvagens, Luke era uma pessoa com escrúpulos, o tipo de homem que não se submeteria a esquemas desleais. Mas por que, então, ele não queria consumar o casamento?

Faithe se orgulhava de sua capacidade de identificar problemas e encontrar soluções, algo que fazia diversas vezes por dia ao gerenciar Hauekleah. Era necessário analisar a situação friamente e elaborar uma estraté­gia. Sim, seria capaz de resolver essa questão.

Alex sorriu.

— Mas que idéia absurda a de que Luke pudesse terminar um casamento com alguém que tem seu sor­riso. De onde tirou essa idéia?

— É que... achei que ele pudesse querer voltar à vida de soldado assim que experimentasse como é viver no campo. Poderia pedir uma anulação e livrar-se do peso que seria administrar Hauekleah.

— Luke jamais veria este lugar como um fardo. Mas ela sabia o quanto de trabalho a propriedade re­queria. Luke logo desistiria assim que soubesse também.

— Além do mais — ele prosseguiu —, não é simples obter uma anulação. É necessário haver um motivo plausível.

Faithe levantou-se e atiçou o fogo. Sabia que Alex a olhava, interessado. Falara demais, podia quase escu­tá-lo deduzindo o que estava acontecendo.

— Luke quer que aqui seja seu lar. Não pretende voltar à vida de soldado. Eu, porém, o farei, assim que me recuperar.

— Isso pode levar meses.

— Bem, se estiver disposta a me aturar aqui por tanto tempo, acho que vou gostar.

— Adoraria que ficasse, mas tem certeza de que não vai se aborrecer?

Alex sorriu, olhando para a porta, de onde vinha Bonnie. A garota ajoelhou-se ao lado dele, carinhosa.

— Blossom me disse que tinha acordado. Um bom desjejum vai ajudá-lo a recuperar as forças.

Ele olhou para Faithe e sorriu, com os olhos brilhando.

— De alguma forma, não acho que tédio será um problema.

— Mestre Orrik está vindo pela estrada — gritou um garoto, à porta do salão.

Luke interrompeu o desjejum, enquanto o menino acrescentava, animado:

— E ele está com uma carroça novinha!

— Onde está lady Faithe? — Luke indagou.

— Em Middeltun, senhor.

— É alguma vila próxima daqui?

Alex, que estava reclinado numa cadeira enquanto uma das gêmeas fazia sua barba, sorriu.

— Não conhece Hauekleah muito bem, não é mesmo, irmão? Meddeltun é o campo preferido de sua esposa. Ela o cultiva sozinha.

Luke voltou-se, estranhando:

— Eles dão nomes a seus campos de cultivo?

— Parece que sim.

Alex ergueu o queixo para que a moça passasse a lâmina em seu pescoço. Em seguida, ela tomou o rosto dele nas mãos, ajeitando-o para prosseguir com a tarefa.

Firdolf, que comia em um dos cantos do salão, levan­tou-se e passou por eles, carrancudo. Olhou para Alex, enciumado, mas nada disse. Sabia que não seria páreo numa luta de espadas contra ele, mesmo ferido.

— Não consegue se barbear sozinho? — Luke pare­ceu importunar-se de repente.

Alex sorriu quando a jovem beijou-o na testa antes de se afastar com a vasilha e a navalha.

— E por que eu o faria?

— É mesmo. Por quê? — disse Luke. — Como você sabe tanta coisa a respeito de Hauekleah?

— Faithe me contou. Nós costumamos conversar. — Ele riu. — Ora, não me olhe desse jeito! Não estou ten­tando roubar sua esposa.

— Ah, que alívio — respondeu, irônico.

— Mas seria fácil, se eu quisesse. Mulheres recém-casadas negligenciadas costumam ficar carentes...

— Negligenciada? — Luke perguntou, irritado. Não era possível que ela tivesse contado a seu irmão sobre a noite anterior!

— Só quis dizer que estamos na manhã seguinte ao seu casamento e você nem sabe onde ela está. Recém-casados deveriam ficar no quarto até meio-dia e só sa­írem de lá, exaustos, para mostrarem que continuam vivos.

— Obrigado pela opinião — ele grunhiu, desejando que o irmão não fosse tão perceptivo. Não queria com­partilhar com ninguém seus sentimentos contraditó­rios a respeito de se deitar com a esposa.

— Quer que eu vá buscar lady Faithe, milorde? — indagou o menino.

— Sim. — Luke viu-o sair correndo e seguiu-o, pa­rando à porta, onde o sol incidia, forte. Foi até o pátio, de onde avistou a carroça de madeira com rodas enor­mes que se aproximava. Porém, estava distante demais para que pudesse perceber quem a conduzia. Seguiu por onde o garoto tinha desaparecido, entre algumas árvores. Logo adiante havia um campo sendo cultivado, ao longo da margem do rio. Mais adiante, nas colinas, havia ovelhas pastando. O lugar era maravilhoso e o fez lembrar-se de seus tempos de menino na Aquitânia. O cheiro da terra impregnava suas narinas. Respirou fundo. Terra fértil, grama verdejante, fartura... Olhou com atenção para o leste e, vendo o vinhedo enorme, sentiu-se em casa.

Uma das camponesas vinha em sua direção, com uma criança. Somente quando se aproximaram reco­nheceu Faithe e o menino. Ela estava descalça, usava um chapéu de abas largas que cobria de sombra seu rosto e, ao ombro, trazia pendurada uma cesta cheia de grãos.

— Estava semeando? — perguntou, incrédulo.

— Trigo — ela respondeu, sorrindo.

— Mas, dentre todos os tipos de tarefa que poderia desempenhar...

— Trabalho é trabalho, seja ele qual for.

—Parece que sim.

— É relaxante semear.

— Relaxante!

Luke tornou a olhar para o campo, onde havia ou­tras pessoas com cestas semelhantes à dela, e viu uma menininha espantando os corvos com uma vareta.

— É, sim — Faithe insistiu. — Em outras tarefas, eu tenho sempre de prestar atenção ao que estou fazen­do, mas, aqui, entro no ritmo e minha mente fica livre. Gosto de fazer isso quando preciso pensar ou resolver algum problema. Faithe inclinou a cabeça, e ele viu que seu rosto estava corado. Ela teria revelado mais do que desejaria? Teria ele, com sua relutância em consumar o casamento, se reduzido a um dos problemas que preci­savam ser resolvidos?

— Seu administrador retornou — informou, notan­do que ela se animava. Ela tirou o chapéu e entregou a cesta ao menino.

— Olhe, milady! — O garoto apontou para cima. Tanto Luke quanto Faithe protegeram os olhos para ver o que ele indicava.

— São três! É seu sinal de sorte, não?

— É mesmo — ela murmurou, vendo os três falcões planando em círculos elegantes sobre o campo.

Luke admirava-os ao mesmo tempo que avaliava como era fácil para ela falar ora em francês com ele, ora em inglês com o garoto.

— De que tipo são? — perguntou, imaginando que poderia se dedicar à falcoaria se obtivesse boas ninhadas.

— Não sei ao certo. Estão muito longe. Há tantos tipos por aqui. É daí que vem o nome da propriedade. Hauekleah quer dizer campo dos falcões. Luke deixou de olhar os pássaros e voltou-se para sua esposa. Ela era linda! Não como as damas que conhecera. Suas roupas eram absurdas, os cabelos, despenteados, e o chapéu... Mas ali, diante dele, olhando para o céu, era a criatura mais bela que já conhecera, em sua familiaridade com as coisas da terra, sua simplicidade, sua força de vida.

— Boas coisas vão lhe acontecer, milady — anunciou o menino. — Viu seu sinal de sorte, não?

Faithe sorriu e mexeu nos cabelos dele.

— Bem, Alfrith, acho melhor levar essa cesta para alguém lá no campo. E depois que ajudar Cwen a es­pantar os corvos, vocês dois podem ir até a cozinha e acabar com aquele creme de avelãs.

— Oh, milady, obrigado! Vou fazer um bom trabalho com os corvos. Prometo. — Ele saiu correndo em dire­ção ao campo.

Faithe voltou-se para o marido, ainda sorrindo.

— Venha. Vou apresentá-lo a Orrik.

Seguiram até mais adiante, e viram a estrada vazia.

— Ele deve estar entrando pelos fundos — Faithe explicou.

Conforme caminhavam, Luke refletia. Formavam um estranho casal. Ela, naquelas vestes de camponesa, era a imagem da inocência, enquanto ele... parecia o que era, de fato. Um invasor, um intruso.

— Não vai conseguir se comunicar com ele em fran­cês — ela avisou. — Orrik sabe ler e escrever em latim, mas sempre se recusou a aprender francês. Entende um pouco quando falam devagar, mas diz que jamais vai falar essa língua.

— Vou querer que, com o tempo, todos aqui a falem. Pelo menos, todos os que tiverem de se dirigir a mim.

Faithe assentiu, sem rebater. Continuaram andando até um local com várias construções cobertas.

— São os armazéns — ela esclareceu. — Vance está no menor deles. Ali está o banheiro e, além dele, o celei­ro, o estábulo e o galinheiro.

Mais adiante viram a carroça e o homem que descia dela para abrir o portão de madeira e entrar na pro­priedade.

— Não é muito cedo para ele estar voltando de uma distância tão grande? — Luke indagou antes que che­gassem muito perto.

— Ah, provavelmente passou a noite com... uma amiga, não muito longe daqui.

Ele assentiu. Os saxões eram o povo mais interessa­do em sexo que já conhecera.

— É a viúva Aefentid — Faithe prosseguiu. — Ela tem uma hospedaria do outro lado do bosque.

Quando alcançaram o portão, as pessoas que cerca­vam o recém-chegado deram passagem a seus senhores.

— É uma bela carroça, Orrik! — Faithe elogiou.

— Obrigado, mila... — interrompeu-se ao ver Luke. O homem era mais velho do que Luke imaginara.

Tinha cerca de sessenta anos, mas a constituição física de alguém mais jovem. Usava os cabelos grisalhos pre­sos em um rabo-de-cavalo e a barba estava aparada. Os olhos brilhavam, dando a impressão de uma mente inteligente e rápida.

— Então, é ele — disse Orrik, sem sorrir. Cuspiu no chão e depois se voltou para descarregar a carroça. — Trouxe pregos e velas. Consegui bom preço no alcatrão. O sal, porém, estava caro.

Faithe deu um passo em sua direção.

— Orrik...

— Disseram-me que já se casou com o infame, cruel, fedorento filho...

— Orrik! Ele entende inglês!

O administrador lançou mais um olhar a Luke e continuou descarregando os suprimentos.

— É nos casamos, sim — ela prosseguiu. — Portanto, ele é o senhor de Hauekleah agora, e você não deve di­zer tais coisas.

— Retiro fedorento. Afinal, ele não tem cheiro ne­nhum que eu possa identificar. Isso não me parece comum, porém. — Depositou algumas caixas sobre o solo, sem parecer cansado com o serviço. — O resto, eu confirmo.

— Orrik, por favor!

— Deixe-o falar, milady — Luke interferiu, em in­glês. — Gosto de saber com quem estou lidando.

O administrador encarou-o pela primeira vez.

— Está lidando... milorde... com um homem que viu o que vocês, açougueiros, fizeram em Hastings. Vi cen­tenas, centenas de ingleses mortos por suas malditas armas.

— Também estive em Hastings. Foi uma batalha, não um massacre. Os dois lados lutaram com valentia e nobreza.

— Nobreza? Não soube o que seu querido Guilherme fez ao nosso rei? E depois de ele ter sido atingido por uma flecha no olho!

— Ouvi dizer, sim, mas não acredito. Todas as bata­lhas produzem histórias assim.

— Pois saiba que, desta vez, não foi uma história. Eu estava lá e vi tudo, do meu posto.

As pessoas que ali estavam, comentando sobre as mercadorias, de repente, fizeram silêncio total, atentas. Orrik prosseguiu:

— Era quase noite quando apareceram, Guilherme e três de seus cavaleiros brandindo suas espadas. Tudo o que pude fazer foi ficar quieto e observar, ou teriam me matado também. Primeiro, Guilherme atingiu Haroldo no peito, e, então, os demais avançaram sobre ele. Um cortou seu ventre e expôs suas entranhas, outro cortou sua cabeça e o terceiro... — Orrik interrompeu-se, olhou para Faithe e continuou: — Decepou outra parte dele. E depois a embrulhou e colocou-a em seu alforje, nem ouso imaginar com que propósito. — Ele estava pálido, obviamente ainda chocado com as lembranças.

Luke engoliu em seco, percebendo que ele dizia a verdade. E o pior era que aquilo não o surpreendia. Embora Guilherme fosse um líder nato, jamais o vira como um homem honrado.

— Haroldo era um grande rei — Orrik acrescentou. — Forte, bom, com um temperamento generoso. E esse foi o jeito que seu nobre Guilherme escolheu para matá-lo. — Cuspindo novamente no chão, ele se voltou para continuar a descarregar a carroça. Disse, de costas: — Justifique isso, se puder.

— Não posso. Assim como não posso justificar boa parte do que vi em meus anos como soldado. Nem a maior parte do que eu mesmo fiz.

— Imagino que não, ou não o chamariam de Dragão Negro.

— Não chamam mais — Faithe interferiu, com frieza. — E não permitirei que ninguém o faça. — Correu os olhos ao redor, para ratificar o que dizia. Olhou principalmente para Orrik, que passou a manga da camisa pela testa suada.

— Sim, milady — ele resmungou.

Faithe aproximou-se mais dele e, quando falou, em latim, foi com suavidade. Luke sabia que ninguém ali podia entendê-la.

— Deve ser um exemplo para os outros. Eles o respeitam.

— Milady, pelo amor de De...

— Não me force a decidir o que fazer com você se persistir nessa demonstração aberta de desrespeito. Conheço-o desde que nasci e gosto de você como de um pai. Manteve esta propriedade funcionando enquanto estive no convento, e sempre lhe serei grata, mas Luke de Périgueux é meu marido agora e não vou tolerar ne­nhuma insolência contra ele, em especial vinda de você. Compreendeu?

Orrik demorou a responder:

— Perfeitamente, milady.

— Ótimo.

Faithe percebeu que estragara a aba do chapéu por tê-la apertado demais entre os dedos. Entregou-o a uma menina, pedindo:

— Por favor, Esme, leve isto para Moira consertar, sim?

— Sim, milady. — A garotinha saiu correndo com o chapéu nas mãos.

Quando se afastou de Orrik, angustiada por tê-lo re­preendido, deparou-se com Luke, que a olhava de ma­neira estranha.

Ele a observara falar com o administrador, em si­lêncio, como se tivesse concedido a ela esse privilégio questionável. Agora percebia um calor surpreendente em seu olhar. Encarou-a por alguns instantes, e fez um gesto suave de aprovação com a cabeça.

Faithe assentiu e se afastou, para livrar-se da aten­ção de sua gente. Para seu alívio, Luke a seguiu. Não queria que ele ficasse perto de Orrik.

— Bom dia, milady, milorde — Dunstan saudou, no caminho. Com ele estava Felix, seu sobrinho, que tra­zia um caneco e um pedaço de pão nas mãos. Pararam diante do armazém menor. — Hora do desjejum de Vance — disse o capitão a Baldric, que montava guarda à porta.

— Teve algum problema com ele? — indagou Luke.

— Comigo, ele se comportou — Dunstan respondeu. E, voltando-se para o outro homem, perguntou: — E com você?

— Tudo tranqüilo. — Baldric já abria a porta. Um cheiro fétido saiu do armazém, atingindo-os.

Faithe sentiu o efeito no estômago e logo compreendeu o que acontecia, Felix gritou e soltou a caneca, espalhando água pelo chão. Dunstan murmurou uma im-precação e Baldric, parecendo imperturbável, olhou para dentro com expressão de curiosidade.

Luke colocou-se diante de Faithe para impedi-la de ver o interior do armazém. Ela ainda tentou olhar, mas ele a deteve, segurando-a pelos ombros.

— Não — Luke insistiu.

— Mas quero ver...

— Não, não quer.

— Solte-me — ela sussurrou, furiosa. — Eles não devem me ver assim. Parecerei fraca se não me deixar ver.

Ele soltou-a. Faithe respirou fundo e seguiu para a porta aberta. Hesitou ao ouvir um zumbido de insetos, mas depois foi em frente. O cheiro dentro do armazém era horrível. Colocou uma das mãos sobre o nariz e a outra no batente, para se apoiar. Sentiu as pernas estremecerem e, não fosse o braço forte do marido em sua Cintura, teria fraquejado ali mesmo.

— Já viu o bastante? — ouviu-o perguntar, com voz baixa e rouca.

Sim, vira, mas não conseguia deixar de olhar. Vance estava pendurado pelo pescoço, numa corda que pendia da viga principal de sustentação do teto. Seu rosto estava escuro e retorcido. Mas não era a visão do cadáver nem o cheiro da morte que mais impressionavam. Eram as moscas, às centenas, pousando sobre sua boca sem dentes, sobre seus olhos. Uma sensação horrível de náusea a tomou. Ainda bem que não comera nada ainda, pois teria vomitado ali, diante de todos.

— Venha, milady — Luke chamou, tentando condu­zi-la para fora, com um braço sobre seus ombros.

— Não me segure. Não quero que vejam. — Afastou-se dele, mas tudo pareceu girar ao seu redor.

— Pelo amor de Deus, todos sabem que é humana.

— Mas precisam que eu seja forte. — Levou a mão trêmula à fronte. Sentia-se muito mal. Temia desmaiar e envergonhar-se diante de seus servos.

Luke tentou ajudá-la a se sentar num banco de pe­dra próximo, mas ela recusou e afastou-se, querendo ir para casa. Porém, quando se lembrou de que o lugar estaria cheio de gente, desviou-se para a parte de trás, pelo caminho de cascalho. Poderia chegar ao celeiro, mesmo com as pernas muito fracas.

Orrik chamou-a, mas ela o ignorou. Continuou se­guindo e, ao entrar no celeiro, o cheiro do feno pareceu reanimá-la.

— Milady...

Voltou-se, percebendo que Luke a seguira. Estava apoiada a uma viga e disse apenas:

— Vá embora. — Quando retirou as mãos do suporte e tentou se manter em pé, tudo começou a girar à sua volta.

Esperou sentir o impacto do corpo no chão, mas, em vez disso, foi amparada pelos braços de Luke, erguida e carregada como uma criança, recostada ao peito forte.

O Dragão Negro está me levando, pensou, antes de perder os sentidos.

Faithe sentiu uma mordida num dos dedos do pé e mexeu-o. Logo, sentiu cócegas, como se estivesse sendo atacada por uma criatura minúscula, como uma fada.

Abriu os olhos. Estava deitada de lado, na palha, e, baixando os olhos, viu o gatinho cinzento brincando com seus dedos enquanto um outro, amarelo, observava, da segurança de sua caixa.

Percebeu que estava no local que mandara reservar para os gatos. Tinha desmaiado, e Luke devia tê-la car­regado até ali. Foi então que se deu conta de que estava deitada sobre o colo dele. A túnica de lã sobre a qual seu rosto descansava não disfarçava a musculatura da coxa longa e firme.

Permaneceu quieta, vendo o gatinho trocar seus dedos pela tentação maior das tiras de couro das botas do marido. Luke pegou alguns ramos de feno e bateu-os contra o joelho, desviando a atenção do bichinho. O gatinho parou, por trás da bota, e observou com aten­ção o movimento, antes de pular, atacando, como mandava seu instinto felino. Luke ergueu a palha e o fez levantar-se nas patas de trás, para tentar alcançá-la. Quando o bichano conseguiu tocá-la, Luke a soltou e deixou-o brincar.

Faithe observava tudo em absoluto silêncio. Viu seu marido sentar-se melhor para acariciar a cabeça do gatinho até fazê-lo ronronar de prazer. Como podia, avaliou, a mesma mão que matara tantos saxões, acarinhar um bichinho desse jeito? E quando o gatinho esfregou a cabeça nas mãos de Luke e lambeu seus dedos, ele riu.

Ela se sentou, olhando-o, admirada.

— Está rindo?

— Ah, acordou! Graças a Deus!

— Você estava rindo? Ele a olhou solenemente.

— Eu sou capaz de rir.

Faithe ergueu as sobrancelhas. Ele imitou seu gesto e tocou-a no rosto com a ponta dos dedos.

— Está pálida ainda. Como se sente?

— Melhor. — Ela tentou se levantar, mas tudo pare­ceu girar e teve de manter-se quieta.

— Acho que não.

Envolvendo-a com os braços, ele a puxou de leve contra seu peito, tocando-a no rosto e mantendo-a aninhada no ombro largo. Faithe deixou-se ficar ali, sentindo a firmeza de seus músculos e as batidas rit­madas de seu coração. Ele era grande e sólido. Aspirou seu perfume, que já lhe era familiar, e sentiu-se estra­nhamente protegida.

— Nunca vi uma pessoa empalidecer tanto e ainda continuar em pé — ele comentou.

— Eu precisava sair dali para que não me vissem fraquejar.

— Acho que eu teria feito a mesma coisa.

— Verdade?

— Bem, quando se está no comando, a tendência é querer parecer invencível.

— Prefiro que não me vejam fraca ou doente, e, mui­to menos, nervosa. Nunca me viram chorar. Pelo menos, não desde que eu era criança.

— Nem mesmo... quando seu marido morreu?

— Vim para cá. Sempre venho quando preciso ficar sozinha.

— E se houvesse alguém aqui?

— Eles quase sempre saem de imediato. Sabem que este é meu refúgio

Ele pareceu pensativo por alguns momentos.

— Uma mulher não devia sentir necessidade de fe­char-se em si mesma.

— E um homem?

Não houve resposta. Ficaram calados. Faithe voltou-se para a caixa de gatinhos, e viu que a mãe alimen­tava os filhotes. Imaginou como seria ter uma criança alimentando-se de seu próprio corpo. Devia ser uma sensação gratificante.

Sentiu-se triste. Sua maior frustração no primei­ro casamento fora a falta de filhos. Suspeitava que a culpa fosse de Caedmon, pois nenhuma das amantes que ele tivera antes de desposá-la lhe havia dado filhos.

Luke começou a acariciá-la nos cabelos e nas cos­tas, e Faithe fechou os olhos, sentindo o coração dele se acelerar. Não se surpreendia. A atração entre ambos era evidente. Notava que ele a olhava muito, como se quisesse descobrir algo dentro dela. Talvez seus senti­mentos. Mas por que se interessaria? Afinal, tudo que era dela pertencia a ele agora. Tudo? Não, ele ainda não a tinha tomado. Ele a desejava, mas não a possuí­ra. Não entendia por que, e aquilo a deixava inquieta. Afastou-se.

— Preciso retomar meus afazeres.

— Não. Ainda está pálida e...

— Por favor, milorde.

Luke respirou fundo diante do tratamento formal que detestava quando vindo dela, mas permitiu que se fosse.

— Foi uma pena o que aconteceu com Vance, mas não exatamente uma surpresa — Orrik comentou. Ele caminhava ao lado de Faithe e parou quando ela se deteve para inspecionar as árvores que floresciam no pomar.

Luke os observava com atenção enquanto passava os dedos pelo braço ainda dolorido. Durante o almoço, quando ordenara ao administrador que o levasse para conhecer a propriedade, Faithe insistira em ir junto, talvez para evitar algum tipo de confronto. Ela não precisava ter se preocupado, pois Luke decidira ser ci­vilizado com o homem, mas tinha permitido que ela os acompanhasse.

Gostava de tê-la por perto, embora a recíproca não fosse verdadeira, conforme ela demonstrara ao se re­tirar rapidamente do celeiro quando a havia tocado. Levaria tempo até que perdesse o medo e se entregasse a ele por vontade própria. Até que isso acontecesse, ele teria paciência. Jamais a tomaria pela força. Queria-a desejosa também, não passiva e resignada, e muito me­nos temerosa.

— Por que não é surpresa que Vance tenha se suici­dado? — perguntou, sabendo que era isso o que o admi­nistrador queria.

— Não faria isso se soubesse que enfrentaria dias de tortura e depois a forca? — Orrik rebateu, sem voltar-se para encará-lo.

— Mas ele não ia ser torturado — Faithe interferiu.

— Os normandos sempre torturam seus prisioneiros antes de matá-los, milady. É o jeito deles.

— Mas sir Luke ia promover um julgamento. Orrik parou e encarou o novo senhor.

— Isso é verdade?

— Sim.

— Um plano para agradar ao povo?

— Apenas uma tentativa de fazer justiça — disse Luke.

—Então, por que ele se matou? — questionou Faithe. — Foi-lhe garantido que, se falasse tudo o que sabia, re­ceberia a misericórdia de quem o julgasse... E pareceu-me ter intenção de falar. Agora, jamais saberemos por que ele e seu primo cometeram tal crime...

Orrik meneou a cabeça e recomeçou a andar, apon­tando para as colméias a pouca distância.

— Por ali fica Middeltun, o campo bem na curva do rio. Ali perto estão também a aldeia e o outro campo. E, mais além, Norfeld e Surfeld.

Luke olhou para Faithe, sem entender.

— Campos que os aldeões partilham — ela explicou. — São, ambos, do outro lado do rio, acessíveis por meio das pontes. Um ao norte, outro ao sul.

— Surfeld é bem ali — Orrik apontou. Seguiram um pouco mais até chegarem a uma parte de terra que não era lavrada.

— Por que aquele campo não foi semeado? — Luke quis saber.

Orrik revirou os olhos, cansado de dar explicações.

— Para poupar o solo — Faithe esclareceu. — E as­sim que o mantemos fértil. A cada estação, um campo descansa enquanto o outro é dividido e cultivado pelos aldeões.

— E eles cooperam com esse sistema sem super­visão?

Orrik resmungou algo a respeito de soldados que não entendiam da vida no campo.

— Eu supervisiono um pouco — disse Faithe, lan­çando um olhar zangado na direção de Orrik. — Mas eles costumam resolver sozinhos. Funciona bem. No ano passado, colhemos oitocentas sacas de cevada...

— E novecentas de trigo — Luke interrompeu. — Além de aveia, ervilhas e vagem. Eu sei. E sei também que os preços estavam altos e que conseguiram uma moeda por saca.

Faithe encarou-o, perplexa, enquanto Orrik dava-lhes as costas, irritado.

— A parte de laticínios produz aproximadamente duzentos queijos por ano e uma grande quantidade de manteiga, para o mercado local. Cinqüenta leitões, trin­ta gansos e oitenta frangos nascem em média a cada estação.

Ela sorriu, impressionada, e ele ficou feliz por ter provocado aquele sorriso.

— Quantos ovos? — ela desafiou.

— Quatrocentos. E a renda com o aluguel é de vinte e seis libras todos os anos.

— Imagino que lorde Alberic lhe tenha fornecido as informações quando ofereceu minha mão em ca­samento.

— Não, eu tive de pedir. Ele achou que eu não me importaria, mas não é verdade. Este é meu lar agora. A propriedade é minha e pretendo saber tudo o que puder a respeito de Hauekleah.

Faithe apertou os lábios e abraçou o próprio cor­po. Luke percebeu que ela não gostara do que tinha ouvido. De qualquer forma, agora tudo pertencia a ele. Ela não desejava que demonstrasse algum inte­resse na propriedade? Que estivesse preparado para governá-la?

— Bem, está ficando tarde, milorde. Orrik e eu te­mos coisas a fazer antes de anoitecer, se o senhor já tiver visto o bastante.

Milorde. De novo.

— Vi o suficiente no momento. Vou selar meu cava­lo e explorar um pouco mais a região. Voltarei para o jantar.

— Como desejar, milorde.

Durante a refeição, ela observava o marido, pensan­do na conversa que tinham tido no pomar. As palavras dele a respeito da posse de Hauekleah ecoavam em sua mente. Quando ele se afastara, Orrik tinha dito que, a não ser que a quisesse fora do caminho, Luke de Périgueux não tinha motivos para se interessar tanto pela propriedade.

Lembrando-se da conversa, achou que Orrik podia ter razão. Apesar do ódio que o insuflava desde a batalha de Hastings, ele era um homem sensato. Confiava nele havia anos e jamais tinha se decepcionado.

Queria acreditar que seu marido era um homem honrado, mas a opinião do velho administrador influen­ciava muito sua avaliação. E, a cada minuto, tinha mais certeza de que Luke queria anular o casamento, não o consumando, e se apoderar de Hauekleah por completo, afastando-a dali de algum modo.

Concluiu que a única forma de manter sua proprie­dade seria forçando-o a levá-la para a cama.

— Por que está tão pensativa? — ele perguntou, surpreendendo-a em seus pensamentos.

— Oh, desculpe...

— Há algo errado com o anel? Não pára de girá-lo no dedo.

— Não, nada. Perdoe-me. — Sentia-se uma tola.

Talvez forçá-lo não fosse exatamente uma possibilidade. Como uma mulher poderia obrigar um homem daquele tamanho e força a fazer algo? Sorriu ao pensar em algo. Na cama, sempre fora confiante. Lembrava-se de ter descoberto, fazendo amor com Caedmon, o ver­dadeiro poder feminino, de excitar, agradar e satisfazer. Aprendera a apreciar esse poder, e usá-lo para o prazer dos dois. Sabia seduzir.

Era atraente, e percebia que sua beleza era admira­da pelos homens. Nos olhos de Luke, via atração e dese­jo. O sentimento era mútuo. Cada vez que ele a fitava, sentia-se estremecer e perder o fôlego.

Viu-o inclinado na direção de Alex, que lhe dizia algo. Luke concentrava-se na conversa como em tudo o que fazia. Seria assim também no amor?

Estava decidida. Esvaziou seu copo de vinho, sa­bendo o que fazer. Luke a desejaria tanto que deixaria de lado seus planos para se apossar sozinho de Hauekleah. E o seduziria nessa noite mesmo, quando se recolhessem. Um problema simples, com uma so­lução simples. Nada de grandes desafios, e ela prova­velmente apreciaria... Isso, claro, se conseguisse pa­rar de tremer. Dizia a si mesma que não devia ficar tensa, pois o desejo era recíproco. Podia fazê-lo. Não tinha nada a temer.

 

— Milady já terminou de se banhar, milorde.

— Obrigado, Moira. A criada desejou boa-noite e retirou-se, deixando Alex e Luke no salão.

— Seus ferimentos estão cicatrizando bem? — per­guntou Luke.

— Muito bem. Aquela coisa horrorosa que Faithe vive espalhando parece funcionar.

Faithe. A esposa e o irmão se tratavam pelo primeiro nome desde o início. Luke invejava o relacionamento tranqüilo e natural entre eles.

— Agora que você manifestou preocupação quanto ao meu bem-estar, sugiro que suba e ajude sua adorável esposa a se enxugar — disse, com um sorriso.

— Tenho certeza de que ela pode lidar com isso so­zinha.

— Talvez não. As damas têm dificuldades para al­cançar partes interessantes do corpo...

Luke olhou-o, aborrecido.

— Já disse que vou subir depois.

Uma das gêmeas apareceu, trazendo uma jarra e uma taça.

— Um pouco de conhaque antes de se deitar, milorde? Quero dizer... milordes — perguntou, ajoelhando-se ao lado de Alex, sem disfarçar totalmente a decepção ante a presença de Luke.

Alex lançou ao irmão um olhar significativo, fazen­do-o despedir-se e seguir para a escada. Mal tinha colo­cado o pé no primeiro degrau, o casal já estava se bei­jando. Pisou firme ao se aproximar do quarto para que Faithe o ouvisse chegar, e bateu à porta.

— Entre — ela disse em francês.

Luke abriu a porta. Sentada em um banquinho e en­rolada na toalha, ela passava algo nas pernas, do torno­zelo à coxa. Estava determinado a não se aproximar até que Faithe parasse de tremer a cada toque seu. Mas ela tinha pernas maravilhosas... Arriscou mais um olhar e viu-a tocando os braços.

— O que é isso? — perguntou, sem conseguir conter a curiosidade.

— Um óleo perfumado que uso após o banho para manter a pele macia. — Lentamente, ela ergueu a cabe­ça, passando a mão pelo pescoço e o colo, quase deixan­do escapar a toalha. — Eu mesma o preparo. — Ergueu o frasco na direção dele. — O que acha?

Ele se aproximou quase com cautela, e pegou o vidro para sentir o perfume. Então, aquela era a fonte do aroma enigmático que sempre o afetava ao se aproximar dela.

— É muito agradável — observou.

— Não consigo alcançar minhas costas. Poderia me ajudar?

As damas têm dificuldades para alcançar partes in­teressantes do corpo...

Ela afrouxou a toalha, fazendo-a escorregar pelas costas, e prendeu-a ao redor dos quadris. Ergueu os ca­belos e esperou, com os braços soltos ao lado do corpo.

Olhando-o por sobre os ombros, ela disse:

— Vou passar na parte da frente enquanto você cui­da das minhas costas. — Ergueu a mão com a palma para cima.

Luke demorou alguns instantes para entender o que ela queria, e então amenizou a força com que apertava o frasco, colocando um pouco de óleo na mão dela.

— Obrigada. — Ela esfregou as mãos uma na outra e começou a espalhar o líquido.

Apesar de não conseguir ver o que ela fazia, sua imagi­nação completava os detalhes. Ele visualizava seus seios, escorregadios por causado óleo, sentia sua maciez e calor...

— Milorde? — ela murmurou. — Vai...

Ele resmungou uma resposta, colocou o líquido na palma da mão e tocou-a no ombro. A pele era quente, ligeiramente úmida e muito macia. Moveu a mão de­vagar, percorrendo as costas, chegando à curva da cin­tura. Conforme a fricção aquecia o óleo, a fragrância se tornava mais intensa, perturbando seus sentidos, afe­tando seu equilíbrio. Ele aumentou a pressão, sentin­do os músculos e ossos delicados sob a pele acetinada. Acariciou-lhe a cintura e os quadris, deleitando-se com o incrível corpo feminino e com o doce calor que ema­nava dela.

Era algo assustadoramente íntimo, que envolvia uma espécie de promessa. O corpo dele reagiu com uma excitação tão grande que fez que prendesse o fôlego. Sentiu um frêmito percorrê-lo e, num reflexo, fechou as mãos ao redor dos quadris dela.

— Milorde? — Quando ela se virou para encará-lo, Luke colocou o frasco em suas mãos e se afastou. — Está bem?

Bem? Não, ele não estava nada bem. A necessidade física que sentia era imensa, insuportável. Faithe devia saber o que estava provocando nele. Nenhuma mulher agia assim a não ser que quisesse atrair um homem.

Mas ele nada sabia de mulheres como Faithe... Estava acostumado às que queriam consumar o ato sexual rapidamente para se livrar logo da tarefa. Damas, de acordo com o pai, não tinham consciência da paixão que despertavam, e não estavam preparadas para as conse­qüências, motivo pelo qual o homem deveria aprender a se controlar.

— Gostaria que eu o despisse? — ela perguntou, aproximando-se dele.

Sim, por favor.

— Não será necessário.

— Mas sou sua esposa. Uma esposa deve fazer esse tipo de coisa...

De que tipo de coisa estaria falando? De despi-lo... ou algo mais? Fosse o que fosse, ela faria o que julgava ser sua obrigação. Luke não sabia ao certo o que queria ter com a esposa, mas, com certeza, não gostaria que ela apenas cumprisse um dever.

—Não...

— Por favor...

Faithe levou as mãos a seu cinto, e ele se retesou. Aquelas mãos estavam tão próximas de seu... Cerrou os olhos. Não queria pensar. Em nada. Mas o efeito era devas­tador. Queria jogá-la na cama e possuí-la de imediato. Ou sair correndo dali para poupá-la de seu ataque bestial.

Faithe prosseguia. Tirou o cinto, depois a túnica e a camisa juntas, erguendo-as por cima da cabeça, fazen­do-o curvar-se de leve para alcançá-lo.

— Seu braço está bem melhor, mas deve passar um pouco mais de ungüento esta noite.

Calado, Luke queria apenas que ela lhe desse as costas, que o deixasse terminar de se despir em paz. Imaginava se ela estaria percebendo seu estado de ex-citação, sob a calça que mal o disfarçava.

— Não será necessário — repetiu. E, vendo que ela se ajoelhava à sua frente, deu um passo para trás, mas encontrou a cama e parou. — O que vai fazer?

— Tirar suas botas.

— Pare. Eu mesmo faço isso.

— Por favor, permita-me. Levante o pé.

Ele obedeceu, contrariado, sentindo-a roçar sua coxa com a cabeça. O efeito foi um calor quase insuportável que se espalhou por seu corpo.

— Agora, o outro... — Após retirar as botas, Faithe ergueu as mãos para o cordão que lhe prendia a calça à cintura.

— Realmente, não precisa fazer isso — Luke disse.

— Mas eu quero...

Ele engoliu em seco. Faithe devia ter percebido seu estado e, portanto, sabia o que estava fazendo. Ela de­samarrou o cordão e tocou-o com firmeza, consciente da reação que provocava.

Quando ela ergueu os olhos para vê-lo, Luke pren­deu a respiração. Ela o queria! Porém, logo notou que ela tremia de leve, da cabeça aos pés. E seu desejo se foi como por encanto. O que ela pretendia era cumprir seu dever conjugal, nada mais. Devia estar achando estra­nho que ainda não a tivesse tomado.

— Levante-se — ordenou, áspero.

— Mas... não quer...?

— Não.

— Seu corpo quer.

— Meu corpo, sim. Minha mente, não. Vista-se.

— Mas...

— Vista-se! — Suavizando o tom, ele acrescentou: — Vamos conversar.

Mas Faithe não se moveu. Continuava segurando a toalha apenas sobre os seios, deixando-a solta sobre o resto do corpo, oferecendo-o à visão de Luke. Ergueu bem a cabeça, orgulhosa, e afirmou:

— Não vai fazer isso comigo.

— Não lhe fiz nada...

— Exatamente!

Ele queria apenas que Faithe se vestisse. Assim, tal­vez conseguisse pensar. Foi até o baú e tirou de lá uma camisola, que lhe entregou. Virou-se de costas e espe­rou que se vestisse.

— Está melhor assim, milorde? — ela perguntou, irritada.

Voltou-se para ela e viu-a já vestida. A camisola era larga no decote, expondo boa parte dos seios. Seios, aliás, generosos para uma mulher relativamente ma­gra. Sentiu o desejo começar a correr por seu corpo no­vamente, mas as palavras dela conseguiram refreá-lo:

— Sei por que não quer se deitar comigo.

— Por quê?

— Porque, se consumar nosso casamento, serei, de fato, sua esposa e ficarei protegida de...

— O quê? Então, é por isso que preparou esta ence­nação toda? Para se proteger?

— Casei-me sem contestar. E, como sua esposa, te­nho certos direitos. Por exemplo, o de não ser banida...

— Direitos? — Luke estava furioso. Ela tentara se­duzi-lo para proteger seu direito legal de esposa! Sentia todos os seus músculos tensos. O animal ressurgia den­tro dele, comandava-o. E uma imagem repentina pas­sou por sua mente: a do saxão morto na palha daquele chalé. Já fora capaz de cometer um assassinato. Poderia ser capaz de qualquer coisa, então.

— Milorde...

— Pare de me chamar assim!

Faithe assustou-se. Despertara o Dragão Negro... Devia estar apavorada, mas deu um passo à frente.

— Quero apenas o que qualquer esposa tem o direito de esperar.

Luke segurou-a pelos braços, jogou-a na cama e deitou-se sobre seu corpo, com brutalidade.

— E isto o que quer? — perguntou, por entre os den­tes, erguendo-lhe a camisola.

Por segundos, ela apenas fitou-o, assustada.

— Não — murmurou, por fim.

— Não? Não era o que queria quando armou essa cena toda? — Jogou-se contra ela, mas nunca antes se sentira tão frio, sem o mínimo desejo. — Quer que eu a tome de forma rápida, sem emoção alguma, não é? — Continuava forçando o peso de seu corpo contra ela, percebendo-a mais e mais tensa. — Para proteger seus direitos! O que acha de chamarmos testemunhas, então?

Faithe começou a se debater. Luke tentava controlá-la, mas ela acabou atingindo-o no nariz. Isso o enfure­ceu ainda mais. Sentiu-o apertando-lhe os braços, em­purrando o corpo contra o seu. Talvez fosse possuí-la assim, bruto, grosseiro, o que a apavorou.

— Não! Não, milorde! Por favor...

— Diga o meu nome.

— Por favor, deixe-me...

— Meu nome!

Duas gotas de sangue escorreram do nariz de Luke e caíram sobre o rosto dela. Faithe respirava com difi­culdade, aflita.

— Luke... Luke... Não faça isso. Por favor.

Ele baixou os olhos e viu os dela cheios de lágrimas.

— Jesus!... Não chore.

— Não vou chorar. Não na sua frente.

Claro. Luke sabia que seria a última pessoa a quem Faithe demonstraria sua fraqueza. Sentia-se satisfeito por ter conseguido se controlar.

— Por favor, solte-me. Não vai querer...?

— Não, claro que não. — Soltou-lhe os braços, mas segurou seu rosto entre as mãos. Os dois estavam tremendo, sem controle. — A última coisa que faria seria machucá-la. Sinto muito, milady, eu...

— Faithe.

Outra gota de sangue caiu e Luke limpou-a, bem como as outras, do rosto dela.

— Faithe — murmurou.

— Sinto muito se o atingi. Ele se afastou um pouco.

— Não faz mal. Teve todo o direito de fazê-lo para se defender. Sou... um animal. — Deixou-se cair, deitado. — Devia estar preso numa jaula.

Ouviu-a deixar a cama. Pouco depois, voltou com um tecido úmido, que colocou sobre seu nariz.

— O que...?

— Fique tranqüilo. — Limpou o sangue que conti­nuava escorrendo. Havia um pequeno corte numa das narinas. E, quando conseguiu estancá-lo, deixou o pano molhado e deitou-se.

Luke voltou-se para ela, como se isso fosse a coisa mais natural do mundo, e tomou-a nos braços. O calor de seus corpos poderia ter iniciado uma nova onda de paixão, mas o que aconteceu deixou-o pasmo. Estava muito mais feliz por apenas ficar assim, junto dela, do que se a estivesse possuindo.

— Achei que não se deitava comigo para anular nosso casamento — ela murmurou, em tom de arrependimento.

— E por que, em nome do Senhor, eu faria tal coisa?

— Para ficar com Hauekleah e livrar-se de mim.

— É... devia ter entendido por que me provocou daque­le jeito... Afinal, que tipo de mulher iria para a cama com o Dragão Negro, mesmo que fosse essa sua obrigação?

— Luke... Sinto muito.

Ele assentiu e acariciou seus cabelos.

— Por um momento, achei que, de fato, me desejasse.

— Luke, eu...

— Já faz muito tempo que não há algo bom e puro em minha vida. Agora, tenho Hauekleah... e você. Pela primeira vez, não estou rodeado apenas de horror e morte e... não quero estragar o que me foi dado. Nosso casamento pode ter sido apenas um acordo, mas não precisa ser um casamento frio. E quero que fique claro que não a quero apenas cumprindo um dever conjugal, para proteger seus direitos. E não a quero se me temer, mesmo que seja apenas um pouco. Quando se entregar a mim, se um dia vier a fazê-lo, quero que seja por sua própria vontade.

— Se um dia eu o fizer? — Faithe perguntou, incrédula.

Luke encarou-a, sério.

— Não vou me deitar com você apenas para tran­qüilizá-la. Eu a quero muito, mas não assim. Precisa aprender a confiar em mim. Até lá, acho melhor eu dor­mir no chão.

Ele fez menção de se levantar, e Faithe logo se sen­tou.

— No chão?

— Sou um soldado, esqueceu? Ou fui. Posso dormir em qualquer lugar.

— Mas por que, se pode dormir no conforto de nossa cama?

Luke percorreu o corpo dela com os olhos, sentindo o desejo se renovar.

— Acho que sofreria mais se ficasse na cama, mila... Faithe.

— Está certo, então...

 

— Onde estamos, Alfrith? — Orrik perguntou quando Baldric ergueu o menino até o topo de uma enorme rocha.

— Na parte mais extrema da fronteira norte de Hauekleah, mestre.

Dando-se por satisfeito com a resposta, Orrik fez um sinal a Baldric, que colocou o garoto no chão antes de pegar outro, chamado Bram.

Faithe observava, contente.

— Isto é mesmo necessário? — Luke sussurrou a pergunta em seu ouvido, para que ninguém mais es­cutasse.

Tinham caminhado a manhã inteira pelos limites da vasta propriedade, na cerimônia anual destinada a fixar na memória dos mais jovens os limites de Hauekleah.

— Os meninos precisam aprender onde nossas ter­ras acabam e começam as dos vizinhos — ela explicou, enquanto Baldric batia no garoto que havia errado a resposta.

— Por que simplesmente não registram os limites por escrito? — Luke insistiu.

— Temos uma carta de propriedade, mas as pessoas não conseguem entendê-la, uma vez que somente Orrik e eu sabemos ler e escrever aqui.

— E eu também.

— Claro... — Mesmo que já fizesse quinze dias que estavam casados, ela ainda não o via como parte do lu­gar. Não que ele não estivesse se esforçando, pois anda­va por toda a propriedade, fazendo questão de conhe­cer os aldeões e indagar a respeito de tudo. Pelo visto, estava abraçando sua nova posição com grande zelo. Mesmo assim, Faithe ainda achava que aquilo não du­raria. Sua avó lhe contara que o marido também tinha agido dessa forma, mas que logo se entediara da vida ali. Dissera também que soldados não conseguiam viver muito tempo num só lugar. Afinal, os agentes da morte não tinham paciência para fazer as coisas crescerem...

Olhou para o marido, vestido na túnica longa e simples, e imaginou se ele seria um agente da morte. Como ela, parecia não se encaixar nem no mundo normando nem no saxão. Mantinha os braços cruzados, observan­do com atenção a cerimônia. E, quando fez uma careta de desagrado, Faithe olhou para ver o que o afligia. O pequeno Felix, por não saber a resposta, acabava de le­var sua palmada e, chorando, pedia pela mãe. Pequeno e franzino para a idade, aos sete anos, o garoto era víti­ma da chacota dos demais. No momento, riam dele. Não tinha amigos e não tinha pai. Sua dependência da mãe aumentava a cada dia, o que piorava sua situação fren­te aos outros garotos. Luke meneou a cabeça diante da cena, contrariado. O grupo, de mais de duzentas pessoas, continuou a caminhada pelos limites de Hauekleah.

No trajeto, Luke segurou a mão de Faithe para ajudá-la a pular um tronco caído. Ela sentiu o coração acelerado, de repente. Imaginava se ele perceberia sua reação. Conforme ele havia prometido, continuava dor­mindo no chão, sobre alguns cobertores. Nunca mais ti­nham se referido àquela noite. Era como se a tentativa frustrada de sedução houvesse sido esquecida.

Faithe agora sabia que seu marido só a aceitaria em sua cama se estivesse disposta a amá-lo. Tinha de con­fiar nele e se importar com ele. O lado bom era saber que Luke nunca tivera intenção de mandá-la embora de lá. Talvez ele mesmo fosse embora, um dia, como seu avô... E se viesse, de fato, a gostar dele? Como seria se resolvesse deixá-la? Ficaria com o coração partido...

Ao chegarem ao rio, Faithe e Luke uniram-se a Orrik e Baldric sobre a ponte de madeira junto ao moinho, en­quanto o restante das pessoas permanecia na margem norte. Orrik chamou Alfrith e perguntou:

— Onde estamos, menino?

— Na... ponte a oeste de nossa sede, senhor. Baldric aproximou-se e, diante da resposta errada, ergueu o menino nos braços, lançando-o ao rio. Com um grito, Alfrith caiu e afundou como uma pedra. Luke, in­quieto, perguntou:

— Ele está bem?

O garoto, por fim, apareceu na superfície e nadou até a margem. Bram teve de ser arrastado para a ponte e, quando também errou e foi arremessado, preparou-se, fechando o nariz com dois dedos. Precisou de ajuda para sair das águas frias, chorando.

— Oh, meu Deus — Faithe murmurou, vendo que a mãe de Felix o carregava, agarrado a seus ombros, para a ponte.

— Não! — o menino gritava, apavorado. — Não, ma­mãe, por favor! Não!

Os demais garotos riam de seu medo.

— Senhor, meu Felix não sabe nadar — disse a mãe, constrangida e temerosa.

— Os outros também não — Orrik rebateu, sem compaixão.

— Mas ele é tão fraquinho e está apavorado...

— Melhor assim. Vai fixar este lugar na memória e se lembrar no ano que vem.

Baldric agarrou o menino, que gritava e esperneava ao ser separado da mãe.

— Pelo amor de Deus — Luke adiantou-se. — Dê-me esse menino!

— De jeito nenhum! — Orrik protestou, vendo que Baldric vacilava.

— Milorde vai agir da maneira que acredita ser a correta — disse Faithe, em latim, para o administrador. — Não me obrigue a discipliná-lo diante das pessoas.

Orrik, vermelho de raiva, fez um sinal a seu auxiliar. Baldric jogou o garoto nos braços de Luke, que o colocou sentado em seus ombros. Felix calou-se, alerta.

— Felix... — Luke segurava as pernas do menino.

— Sim, milorde.

— Quero que se lembre, nos anos que virão, da ma­nhã em que você foi a pessoa mais alta de Hauekleah. O garoto olhou ao redor e sorriu.

— E, quando se lembrar — Luke prosseguiu. —, vai se lembrar também de que esta ponte marca a divisa no ex­tremo oeste de nossa propriedade. Vai se lembrar disso?

— Sim, milorde!

— Para sempre?

— Para sempre.

— Ótimo. Estou satisfeito, se minha esposa também estiver.

Faithe sorriu, desarmada.

— Estou muito satisfeita, senhor meu marido.

— Muito bem, então. Está com fome, Felix?

— Sim, senhor.

— Gostaria de se sentar à minha mesa para almoçar? Ele arregalou os olhos, enquanto os outros meninos olhavam-se, contrafeitos.

— Mamãe pode ir também?

— Claro que sim.

Felix inclinou-se para olhar Luke de frente e disse em voz baixa:

— Eu vou ter que comer nabo?

— Felix! — a mãe ralhou.

— Ora, a pergunta é pertinente. Eu também detesto nabo. E jamais o obrigaria a comer essa coisa sem gos­to. Mas vai poder comer toda a sobremesa que quiser.

Assim, com a criança nos ombros, Luke parecia o completo oposto de um agente da morte. Faithe aceitou a mão que ele lhe oferecia e voltaram todos à mansão. Orrik, porém, permaneceu na ponte, carrancudo.

— Não sei o que fazer quanto a seu irmão — Faithe confessou a Alex que, sentado no banco de pedra e apoiado a uma bengala, observava-a cultivar o jardim.

— Nem eu...

— Ele é tão...

— É mesmo.

— O fato é que não sei se ainda estará interessado em Hauekleah no ano que vem.

— Ah, está imaginando que seja apenas uma ani­mação passageira. Ainda acha que ele quer anular o casamento?

— Não... — Ela não discutiria esses detalhes íntimos com ele. — Obrigada — murmurou quando Alex fez um buraco na terra com a ponta da bengala, para que ela colocasse as próximas sementes.

— Não sei por que está plantando vagem aqui, se os aldeões têm seu próprio campo para plantá-la em maior quantidade.

— Estas sementes são as das plantas mais produti­vas do ano passado. Uso meu jardim para experimen­tar os grãos e ver quais plantas são as melhores.

Ele sorriu.

— Já lhe disse que considero meu irmão um homem de sorte?

— Sim. — Faithe riu. — Muitas vezes.

— Ele também sabe. Está feliz por ter você.

— Ele disse isso?

— Não, mas nem precisa. Ele é completamente transparente para mim.

Ela o encarou, sem acreditar. Luke era tão fechado!

— Eu o conheço a vida inteira. Bem, pelo menos des­de que eu tinha seis anos.

— Não compreendo. Ele é seis anos mais velho que você. Por que não o conheceu antes?

— Eu o conhecia, claro, mas não tão bem. Apenas o via duas vezes por ano, quando ele saía do monastério.

Faithe encarou-o, surpresa.

— Não sabia que ele foi criado em um monastério?

— Não. Não conversamos muito.

— É evidente que não. — Alex recostou-se ao ban­co. — Como o segundo filho, Luke estava destinado à vida religiosa, e eu, a ser soldado. Nosso pai o enviou para a Abadia de Aurillac para que fosse educado pelos padres.

— E por que ele não se tornou um padre, então?

— Acho que por não ter o temperamento adequado. Ele não tinha paciência para as aulas, e muito menos para os serviços religiosos. Costumava violar regras, e elas são a base da vida eclesiástica, como deve saber. Não ia à missa, dormia até tarde, fugia do monastério para fazer as refeições nos campos...

— E era castigado?

— Não muito. Nosso pai era um cavaleiro poderoso e dava grandes contribuições para a abadia em troca da educação de Luke. Mas chegou um ponto em que o abade escreveu a meu pai dizendo, muito sutilmente, que Luke devia ter inclinação para a vida secular. E as­sim, ele foi chamado de volta à nossa casa quando tinha doze anos, e passou a treinar para as armas, como eu. Preferi a espada. — Alex riu, fazendo movimentos com a bengala como se empunhasse uma espada. — Luke gostava mais do arco acoplado, que é uma forma mais impessoal de matar. Não se tem de olhar direto para quem se está matando... Luke nunca gostou muito das armas, mas preferiu essa vida à religiosa.

— Pois me parece que a abraçou muito bem, já que se tornou o Dragão Negro. — Faithe voltou a concen­trar-se no trabalho.

Alex ergueu as sobrancelhas. Ficou em silêncio por algum tempo, e depois disse:

— Meu irmão, quando quer fazer alguma coisa, sabe fazê-la bem. Veja como está se dedicando a este lugar. Todos já o respeitam. Exceto seu administrador, é claro. Faithe suspirou.

— Não sei se Orrik algum dia aceitará um normando como senhor.

— Pois, se pretende continuar administrando Hauekleah, não terá opção. Luke não vai suportar a insolência dele para sempre.

Faithe mordeu o lábio, pensativa. E se o marido ti­rasse o posto de Orrik? Ele estava ali desde muito antes de seu nascimento. Tornara-se uma espécie de pai para ela, depois que o seu falecera por causa de uma doen­ça nos pulmões. Orrik podia ser teimoso e carrancudo, mas ela o amava e não queria que perdesse o posto que tanto prezava.

— Olhe, a não ser por Orrik, acho que Luke gosta muito da vida aqui — Alex continuou. — Nunca o vi tão bem. E acho que sua alegria se deve, pelo menos em parte, à esposa que conseguiu.

— Não tenha tanta certeza.

— Ora, isso vai se arranjar com o tempo. Ela o encarou, surpresa.

— O que vai se arranjar com o tempo? Alex pigarreou.

— Bem, tenho olhos e ouvidos... Mas não se preo­cupe. Esse tipo de coisa é como água fervendo numa chaleira tampada. A água a faz tremer, até que a tampa cai e o vapor é liberado. Simples e fácil.

Faithe sorriu, não muito animada.

— Então, tenho apenas que esperar que a tampa caia... Alex ergueu os ombros, sorrindo.

— Tem uma idéia melhor?

Luke acordou no meio da noite, o desejo pulsando em seu corpo. Sentou-se, suado. Já tinha acontecido antes, noites atrás, quando sonhara com Faithe, nua, em seus braços. Também despertara perturbado, agitado pela força com que seu corpo reagira. E havia ficado deitado, quieto, esperando que ela não acordasse. Ereções no­turnas não o incomodavam desde a juventude, e sentia-se envergonhado com o que estava acontecendo agora. Levantou-se devagar, aproximando-se da cama. Faithe dormia tranqüilamente. Luke sentiu o corpo in­teiro doer por causa da vontade de tomá-la. Vestiu-se, apressado, na intenção de procurar pôr um fim àquele tormento sozinho, em algum lugar afastado. Ao sair, olhou para o salão, e viu que seu irmão estava com uma das gêmeas diante do fogareiro. Estavam nus, e abra­çados, fazendo amor. Não poderia passar por eles. E seu corpo reclamava, rígido, quente. Voltou para o quarto e deitou-se, sem tirar as roupas. No silêncio, podia ouvir os gemidos femininos lá embaixo. Seria uma longa e sofrida noite...

 

Faithe o viu quando passou entre o campo das ove­lhas e a aldeia. Os animais não estavam ali, pois tinham sido recolhidos para a tosquia. Luke estava sob um carvalho, observando o procedimento anual. Mesmo ao longe, parecia muito alto e forte. Alex estava ao lado dele, sentado numa pedra larga, apoiado à bengala. Parecia bem-disposto, embora o ferimento no quadril ainda estivesse longe de curado. Provavelmente deixa­ria uma cicatriz feia. Já fazia mais de um mês que so­frera o ataque e ainda sentia dores.

A manhã estava clara e quente. Os irmãos usavam calça e camisa apenas, sem a pesada túnica de lã.

Ao chegar mais perto, Faithe viu que Felix, sentado no chão, colocava seus soldadinhos de argila numa fila, sobre a grama. O menino era a sombra de Luke nas últimas semanas, ficando junto dele sempre que a mãe permitia.

Alex apontou para a tosquia, usando a bengala, dis­se algo,e Luke assentiu. Faithe sabia o que lhes chama­ra a atenção: uma mulher juntara-se aos homens para tosquiar os animais.

— Aquela é Elga Brewer — disse, assim que perce­beu estar próxima o suficiente para ser ouvida.

Os dois se voltaram e ela prosseguiu:

— Todo mês de junho deixa seu serviço de fabricação de vinho para ajudar na tosquia. Seu pai era pastor e ela cresceu fazendo esse tipo de coisa.

— Fico admirado que você também não esteja aju­dando — Luke comentou, parecendo bem-humorado. — Faz tantas tarefas por aqui...

— Mesmo que soubesse como, e não sei, não tenho força.

Os dois homens olharam para Elga, cujos braços eram tão fortes quanto os dos homens.

— Ela me dá medo — Felix comentou. Luke riu.

— A mim também — disse ao menino, curvando-se um pouco.

Ficaram ali, observando em silêncio. Faithe estava feliz. A tosquia significava que estavam deixando a primavera e entrando no verão. Dunstan supervisio­nava o serviço, já que Orrik saíra outra vez numa de suas jornadas inexplicadas. Faithe queria que se ca­sasse logo com a tal viúva que devia estar visitando, pois suas saídas acabavam atrapalhando o trabalho em Hauekleah.

Dunstan tomava a administração para si nessas ocasiões, e saía-se muito bem, apesar de jovem. Era um líder nato e, diferente de Orrik, mostrava-se aberto a Luke. Na verdade, mais aberto, até, do que fora com Caedmon, uma vez que o primeiro marido de Faithe não tinha se apegado tanto à vida rural.

Havia crianças trabalhando também, ajudando a juntar a lã para colocá-la em grandes cestos de palha.

— Por que não está ajudando? — Faithe perguntou a Felix.

— Tio Dunstan pediu e eu tentei, mas não consegui. Os outros meninos disseram que... Ah, não sou bom nisso.

Os garotos tinham deixado de atormentá-lo, devido à proteção que Luke lhe oferecia, mas não tinham pas­sado a ser menos duros, ao que parecia.

— Você não é tão crescido quanto eles — Luke expli­cou ao menino. — Por isso não conseguiu arrebanhar a lã. Mas, no ano que vem, vai conseguir.

Felix encolheu os ombros e continuou a alinhar seus soldadinhos.

Alex olhou para o irmão e sorriu.

— Não sei por que você não está ajudando. Quis to­car os porcos ontem...

Faithe surpreendeu-se.

— Só ajudei a buscar os que tinham se embrenhado na mata — Luke disse. — Nada mais.

— Está sempre tão interessado em tudo por aqui... Por que não se oferece? Vá lá — Alex insistiu.

— Não sei se deve — Faithe opinou. — É necessário ter prática, ou o carneiro pode ficar muito machucado.

— Mas ele me disse que já fez isso antes.

— No monastério. Como eu era pequeno, só me dei­xavam tosquiar os menores. Mas eu gostava.

— É difícil lidar com um carneiro adulto e forte — disse Faithe. — É melhor você...

— É melhor eu ir até lá ver o que ainda consigo fa­zer. — Luke arregaçou as mangas.

— Opa! Quero ver — instigou o irmão. Luke tocou Felix com a ponta da bota.

— E então, garoto? Vai arrebanhar a lã que eu cortar?

O menino levantou-se de imediato.

— Posso? Obrigado, milorde! Vou fazer um bom ser­viço, o senhor vai ver!

— Sei que vai.

Ele foi até os tosquiadores, e falou com Dunstan, que pareceu surpreso. Faithe riu e comentou:

— Não estão acostumados a um senhor que faça es­ses serviços.

— Seu primeiro marido não fazia?— Alex quis saber.

— Caedmon tinha outros interesses. Deixava tudo por minha conta, e eu gostava.

— Você se ressente por Luke agir dessa forma?

— Não. Talvez eu aceite porque ele não tomou nada de mim nem tentou me impedir de fazer as coisas que eu fazia antes.

— Ainda assim, acha que ele vai se cansar e voltar a ser um soldado, não?

— Não sei.

Luke já pegava uma ovelha, prendia-a no meio das pernas e começava a tosquiá-la.

— Ele está tentando impressioná-la, percebeu? — Alex comentou, divertido.

— Bobagem... — disse ela, corando.

Luke trabalhava mais devagar e com menos ha­bilidade do que os outros tosquiadores, mas a lã que cortava ia sendo arrebanhada por Felix rapidamente. Quando parou e falou com Dunstan, Alex observou:

— Ele está pedindo um conselho.

Faithe sabia que a demonstração de humildade se­ria apreciada pelos trabalhadores. E, ao vê-lo tornar a pegar a tesoura e cortar melhor a lã, sentiu-se orgu­lhosa. Em alguns minutos, a ovelha estava tosquiada e retornou, depressa, para junto das outras.

— E então, ficou impressionada? — Alex indagou.

— Os homens ficaram.

De fato, todos o elogiavam, animados e sinceros. Quando Luke voltou-se para ela, revelando orgulho e certa timidez no olhar, Faithe sorriu. Ele devolveu o sorriso, aceitou a água que Felix oferecia e foi buscar outra ovelha bem maior.

— Ele aprende rápido — comentou Faithe, observando-o.

— Eu disse a você. Quando meu irmão se dispõe a fazer algo, ele se dedica, e quer fazer o melhor.

A concentração no olhar de Luke confirmava aque­las palavras. Faithe não conseguia desviar os olhos do marido. Ele tinha tirado a camisa e, inclinado sobre o grande animal, trabalhava com mais rapidez. Seus mo­vimentos eram elegantes e controlados. O suor escorria pelo peito forte e pelo abdômen, e os músculos das co­xas eram ressaltados sob as calças pelo esforço exigido na tarefa.

Uma onda de calor a percorreu. Imaginou se ele le­varia a mesma intensidade e dedicação para a cama deles, quando chegasse a hora. Ela não tinha tenta­do mais se aproximar desde aquele convite frustrado. Aparentemente, ele estava mesmo decidido a esperar que ela confiasse nele e o desejasse.

Fizera alguns progressos nesse sentido. Em seu co­ração, sabia que ele não anularia o casamento, fosse ou não consumado. Tinha aprendido nas semanas de convivência que Luke era um homem honrado.

Mais tarde, quando a tosquia já terminara e os tra­balhadores estavam almoçando ali mesmo, Faithe apon­tou para a cesta que tinha sido deixada perto dela.

— Nossa comida. Eu estava pensando em comer no campo. — Afastou um absurdo acesso de timidez e prosseguiu: — Gostaria de ir comigo?

— Claro.

Ela sorriu, esforçando-se para desviar os olhos do peito nu, ainda úmido de suor. Luke voltou-se para o irmão.

— Eu o convidaria para ir conosco se estivesse melhor.

— E perder a oportunidade de ficar sozinho com uma mulher tão encantadora, meu irmão? Só se você fosse louco.

Faithe revirou os olhos. Alex era um eterno galanteador. Ela seguiu com o marido para o campo, levando a comida embrulhada numa trouxa. Ao se aproxima­rem da margem do rio, ele avisou:

— Vou dar um mergulho primeiro. Estou muito suado.

— Claro...

— Estou ensinando Felix a nadar.

— É mesmo?

— Sim. No ano que vem, ele não vai gritar quando Orrik o jogar da ponte. Se jogar.

Ela riu ao pensar no Dragão Negro tomando as do­res de um menino franzino.

— Os outros garotos ainda o atormentam um pouco — ela observou, vendo-o tirar a calça, por baixo da qual usava ceroulas.

— Meninos tendem a ser assim, infelizmente. — Tirou o cordão com a cruz e colocou-o no pescoço de Faithe, por cima das chaves.

— Falou com eles?

— Não. Seria um grave erro interceder abertamente em favor de Felix.

Faithe estava impressionada com a forma como Luke preferira agir. Viu-o pular, de repente, da ponte, e nadar até ficar bem distante. Ela cruzou a ponte. Na margem, sob uma árvore, deixou as roupas dele sobre uma pedra e amarrou a barra das saias para poder entrar no rio até os joelhos. Sentou-se, depois, numa pedra que ficava dentro da água e abriu um dos embrulhos que trouxera, no qual havia morangos. Os primeiros da estação. Adorava-os. Comeu, deliciada, até ver Luke voltar nadando.

Quando ele emergiu, foi atingida pela força que emanava dele, masculina e poderosa. Podia ver os con­tornos do corpo através das ceroulas coladas à pele. E a imagem daquela noite em que tentara seduzi-lo voltou à sua mente. Estivera diante dele, sabendo que ele a queria, sentindo o desejo vibrar em seu corpo. Agora, ele a olhava como naquela noite... Aproximou-se, olhando para suas pernas e depois para a vasilha em suas mãos.

— Morangos?

— Sim. Quer um?

Luke pegou a fruta e mordeu-a, saboreando-a de olhos fechados, antes de levar a outra metade à boca de Faithe. Era um gesto sensual, e ela abriu os lábios, aceitando-a, sem deixar de fitá-lo. O sumo escorreu pelo queixo. Ele limpou-o com o polegar e lambeu o dedo.

Seus olhares se encontraram, mas logo ele rompeu o contato, virando-se para o rio. Faithe voltou a atenção para a comida que tinham levado, mas os pensamentos continuavam agitados em sua mente.

Por que ele se mantinha distante? Teria, mesmo, que confiar, que querer muito estar com ele para ser bem-vinda em sua cama? Talvez ele estivesse esperando algum sinal, uma iniciativa... Mas Faithe não queria passar pelo que acontecera naquela noite. Não o provo­caria outra vez.

Era estranho, porém comovente, que aquele bravo guerreiro parecesse tão cheio de preocupação quanto ao ato de amor. Ele parecia querer uma espécie de en­contro de almas, antes que os corpos se unissem. Ela mesma nunca levara o sexo tão a sério. Nem Caedmon. Ele tinha sido um homem ardente e ela o servira com entusiasmo. Divertiam-se na cama, sem buscar algo mais profundo, e nunca houvera entre ambos nada além de afeição.

Faithe oferecera a Luke esse tipo de diversão, mas não era o que ele queria. Ela o desejava com uma intensidade que nunca imaginara ser possível. Nada em sua experiência a tinha preparado para aqueles sentimentos. Caedmon quisera apenas seu corpo. Luke queria muito mais. Queria uma parte de sua alma. Chocada, percebeu que estava inclinada a entregá-la.

— Devia nadar também — ele falou, ainda dentro da água.   -

— Não sei nadar.

— Mas devia, mesmo assim. Não é fundo aqui e se­ria refrescante.

— Não... Não quero molhar minhas roupas. Luke cruzou os braços e olhou-a com ar de riso.

— Uma esposa obediente pularia na água assim que percebesse que essa é a minha vontade.

— Devia ter se casado com uma mulher assim, então.

— Tem medo da água?

— Claro que não!

— Ótimo. — Ele se curvou e, com as mãos, jogou-lhe água, molhando-a dos pés à cabeça.

— Oh, seu... seu...

Ao vê-lo rir, ela se impressionou com a transforma­ção em seu rosto. A ferocidade sombria foi substituída por algo mais leve e juvenil, deixando-o mais parecido com Alex.

— Que delicioso ultraje! Devia ver a si mesma. Ela olhou para a roupa molhada.

— Luke!

— Sim? — Ele estava em pé no rio, com água até as coxas, as mãos nos quadris delgados, o peito chacoalhando com o riso. A descontração a surpreendia. Era um lado dele que nunca tinha visto, e de cuja existência nem sequer suspeitava. — Será que vou ter de arrastá-la contra a vontade?

A ameaça a fez chutar água na direção dele.

— Ora... — Luke aproximou-se e puxou-a pelas per­nas. — Vou lhe ensinar como uma esposa deve obedecer — disse, brincando. Rapidamente, tirou os dois cordões que ela trazia ao pescoço e lançou-os sobre a pedra em que estivera sentada.

Como sempre, Faithe sentiu-se vulnerável sem suas chaves. Sorrindo, ele pegou-a pela cintura e ergueu-a, mantendo-a junto ao seu corpo.

— Pare com isso! — Ela se contorcia e batia no peito dele, mas Luke apenas ria. Cativa dos braços fortes, estava completamente dominada. — Largue-me — ordenou em meio a risadinhas que não conse­guia conter.

— Acho que não. — Ele prosseguia, afastando-se da margem.

— Eu exijo que me solte agora mesmo! Ele parou, com a água na cintura.

— Exige?

— Sim!

— Ah, nesse caso...

Luke afastou-a e atirou-a na água. Ela afundou, mas, em vez de se erguer logo, puxou as pernas dele, desequilibrando-o. Levantou-se e começou a voltar para a margem. Estava quase lá quando sentiu os braços for­tes levantando-a com facilidade.

— Saxã ardilosa! — disse, rindo.

Faithe caiu, rindo também, e levou-o consigo. Conseguiu safar-se e correu, mas, mais uma vez, Luke alcançou-a e a derrubou ao seu lado. Uma de suas mãos tocou-lhe, involuntariamente, um dos seios. Houve uma breve pausa, antes que ele a soltasse.

Ela saiu da água. As roupas coladas ao corpo revelavam suas curvas, e Luke a olhava intensamente. Logo, ele virou-se de costas e disse:

— Vou colocar minhas roupas secas. Encontro você em Norfeld.

Ela assentiu, pegou a comida e começou a caminhar. Soltou a saia amarrada que, com o calor, logo secaria, mas que a refrescaria enquanto isso, e torceu os cabe­los. Porém, não conseguiu controlar a curiosidade e vi­rou-se. Luke estava de costas, nu, torcendo as ceroulas. Observou-o. Era um homem bonito, que emanava força e sensualidade.

Obrigando-se a desviar a atenção, continuou cami­nhando. Pouco depois, sentiu-o se aproximar. Baixou os olhos sobre si mesma, percebendo que, como a roupa já começava a secar, não estava mais tão indecentemente colada ao corpo.

— Quer vinho? — ofereceu quando o viu a seu lado.

— Trouxe isso também aí dentro?

Faithe assentiu e entregou-lhe o cantil de couro em que a bebida era transportada. Luke bebeu e ela fez o mesmo depois. Seguiram assim, trocando o cantil de mão durante o caminho, conversando sobre a colheita e quan­to poderiam lucrar com a venda dos grãos no mercado.

Ao chegarem ao campo, sentaram-se sob uma ár­vore. Faithe retirou a comida do embrulho que trazia, e eles começaram a fazer a refeição, ainda discutindo os planos para Hauekleah. Falaram também, com cer­ta reserva, sobre a invasão normanda e o futuro que a Inglaterra teria sob o reinado de Guilherme. Luke indagou sobre os costumes e rituais locais, querendo apenas aprender, e não criticar.

Se alguém lhe tivesse dito, um mês antes, que se sentiria à vontade ao lado do Dragão Negro, Faithe não teria acreditado. Quando terminaram de comer, olhou para longe e comentou:

— Você é habilidoso na tosquia. Fiquei impres­sionada.

— Os monges me ensinaram quando era pequeno.

— Gostava de fazer?

— Adorava. — Luke deitou-se, apoiando a cabeça nas mãos. Bocejou, o que a fez imitá-lo inconsciente­mente. — A maior parte do serviço braçal da abadia era feita por servos, mas os monges e estudantes tinham de cumprir certas tarefas também. Para mim, não eram obrigações, mas diversão. Preferia colher uvas, trigo, ordenhar animais e tosquiar a ter de ficar sentado numa cela, estudando latim.

Ela sorriu e pegou uma florzinha.

— Eu adorava estudar latim.

— Percebi. Seu latim é perfeito. Eu mal consigo ler nessa língua. Mas, se pudesse voltar no tempo, conti­nuaria fugindo das aulas e indo para o campo. Quando penso naqueles anos... Bem, nem acredito que tenha sido tão feliz.

Ela enfiou a flor no decote da blusa, e ouviu-o elogiar, com voz sonolenta:

— Bonito...

Guardou o que sobrara da refeição e, quando o olhou novamente, Luke já tinha adormecido. Assim, parecia ainda mais jovem. Sorriu, ajeitou o embru­lho como se fosse um travesseiro, e deitou-se. Cerrou os olhos e pôde vislumbrar um menino de cabelos muito negros, correndo pelos campos, sob o sol da Aquitânia.

Quando despertou, sentiu que mexiam em seu corpete e abriu os olhos, assustada. Luke estava inclinado sobre ela, colocando mais uma flor miúda num dos buraquinhos pelos quais passava a fita que prendia seu decote. Havia flores em todos eles. Pelo visto, ele estivera ocupado. Não percebeu que a tinha despertado e continuou com o trabalho delicado até perceber que seus seios reagiam, enrijecendo-se. Somente então pro­curou seus olhos.

— Não consegui me conter — murmurou, sorrindo. Faithe sentou-se com cuidado para que as flores não saíssem do lugar.

— Talvez seja melhor eu tirá-las antes de voltarmos. O que os outros vão pensar?

— Que fizemos um passeio maravilhoso. — Colocou mais uma flor, agora nos cabelos de Faithe, e comple­tou: — Sou feliz aqui.

— Eu sei...

— Este lugar... é tudo que eu sempre quis. Pretendo passar o resto de meus dias aqui. Não sou como seu avô. Não vou preparar meu cavalo e ir embora para nunca mais voltar.

— Como sabe disso? — Ela nunca tinha comentado suas inseguranças com ele.

— Eu e Alex conversamos sobre tudo.

— Claro. — Ela baixou a cabeça, imaginando sobre o que mais teriam conversado. Luke ergueu seu rosto, fazendo que o encarasse.

— Não vou embora, Faithe. Nunca. Preciso que sai­ba disso. Sou mais feliz aqui do que já fui em toda a minha vida.

Ela respirou fundo.

— Fico contente. — Era verdade. Não queria mais que ele partisse, apesar de, no início, ter rezado para que aquilo acontecesse. Era surpreendente e mara­vilhoso. — Tem certeza de que é totalmente feliz? E Orrik?

— Ele é um problema sério. Não posso ter um admi­nistrador abertamente hostil e insolente.

— Mas ele vai se adaptar. Por favor, dê uma chance a ele. Orrik tem seus defeitos, mas sempre foi como um pai para mim. Se fizer algo contra ele, vai me magoar. Por favor...

— Não tema. Não tenho planos de dispensá-lo ainda.

— Mas... — Ela girava o anel de casamento no dedo, tensa.

— Faithe. — Cobriu-lhe as mãos. — Pode parecer tolice, mas me entristece vê-la fazer isso com o anel. E como se quisesse arrancá-lo e jogá-lo longe.

— N-Não... é apenas um hábito, quando fico nervosa...

— Eu não devia deixá-la nervosa — ele disse em voz baixa. Sua expressão revelava uma espécie de mágoa, e ela viu então, com assustadora nitidez, o quanto ele ansiava pelos sentimentos que lhe negava. — Tenho feito o possível para que se sinta à vontade em minha companhia.

— Eu... eu me sinto...

Ele riu, como se falasse com uma criança mentirosa, ergueu-lhe mão e esfregou o anel com o polegar.

— Não é o que esse pequeno hábito me diz. Quando parar de girar o anel, talvez eu possa acreditar em você. — Beijou seus dedos com carinho. — Acho que está fi­cando tarde. Devemos voltar.

Ela assentiu. Luke não soltou sua mão. Nem quando se levantou, nem quando voltaram para casa.

— Milorde! Está aí em cima?

Reconhecendo a voz de Felix, Luke terminou de mar­telar o último prego e foi até a beirada do telhado.

— Sim. Ela já voltou? — Instruíra o menino a avisá-lo quando Faithe chegasse.

— Sim! Está com Daisy.

Daisy era a égua de Faithe. De onde estava, Luke podia ver boa parte da propriedade e, protegendo os olhos contra o sol, avistou-a sob uma árvore, acabando de desmontar e puxando a égua para a parte coberta dos estábulos.

— Orrik veio com ela? — indagou.

— Não, milorde.

Luke soltou uma imprecação. Parte da cozinha queimara naquela manhã e Faithe fora até a casa da viúva atrás do administrador para avisá-lo. Não tinha sido nada grave, mas Orrik sempre dizia que queria estar a par de tudo o que ocorresse em Hauekleah. Porém, se ela não o encontrara na casa da viúva, onde estaria?

Luke entregou o martelo a Dunstan, que trabalha­va também, e desceu pela escada de madeira apoiada ao beiral. Passou a caminhar na direção em que vira Faithe, e Felix correu para alcançá-lo.

— Posso ir com o senhor?

— Desta vez, não. Por que não vai à cozinha e diz a uma das garotas que mandei servir-lhe pão e mel?

— Sim, milorde! — Felix partiu depressa, animado. Luke passou a manga da camisa na testa suada. Já próximo de Faithe, viu que ela o saudava um tanto in­quieta e que, com uma ferramenta na mão, erguia a pata dianteira da égua.

— Uma pedra? — indagou.

— Acho que sim. Começou a mancar no meio do ca­minho. — Curvou-se, eliminando barro seco e pequenas pedras da pata da égua.

— Parece que Orrik não estava na hospedaria da viúva...

— Não — respondeu, sem desviar a atenção do que fazia. Encontrou a pedra, tirou-a, e soltou a pata do animal.

Luke começou a retirar a sela.

— Perguntou à viúva se ele esteve por lá?

— Sim. Não esteve.

— Onde acha que ele está desde ontem de manhã, então?

— Não faço idéia. Perguntei a Aefentid sobre as ou­tras vezes que Orrik saiu, e ela me disse que apenas em algumas ocasiões ele passou por lá.

Ele começou a escovar Daisy.

— Não esteve com ela?

— Por pouco tempo. Só ficava por uma noite, quando estava de volta de suas... viagens. — Faithe, definitiva­mente, estava contrariada.

— Então, por onde tem andado?

— Não sei, Luke. Sempre achei que Orrik estava sendo discreto porque Aefentid é viúva, respeitável... Imaginei que a estivesse protegendo de comentários, di­zendo que ia cuidar de assuntos de Hauekleah. Detesto pensar que possa estar fazendo algo que não pode me contar.

— Pois, a mim, ele vai contar — afirmou. Sua mão pesada fez a égua se inquietar.

— Dê-me isso. — Com um gesto suave, Faithe to­mou-lhe a escova e passou a cuidar do animal. — Orrik nem sempre foi assim, genioso e reservado. Antes de Hastings, nunca tinha feito essas viagens misteriosas. Depois da batalha, eu diria que ele ficou... assombrado, por causa do que viu.

— Sei muito bem o que ele viu lá. — Luke reconhe­cia que Orrik dissera a verdade quanto à mutilação de Haroldo nas mãos de Guilherme.

— A morte de Caedmon o afetou muito também — Faithe acrescentou, sem encará-lo. — Orrik gostava muito dele, apesar... de suas diferenças. Sentiu muito a sua morte.

Luke aproximou-se dela.

— E você? Também sentiu? Ela fitou-o.

— Sim. Fui para o celeiro e fiquei lá, chorando... até não ter mais lágrimas.

Ele engoliu em seco.

— Você o amava?

— De certa forma... Não como... Bem, nós não... Caedmon era meu marido e ficamos juntos quase oito anos. Ele era bom para mim, apesar de tudo.

— Apesar de tudo... Você e Orrik gostavam muito dele, apesar do quê?

— É que... para entender Caedmon, é preciso en­tender que ele não era daqui. Foi criado na cidade, em Worcester. — Faithe encarou-o. — Foi pupilo do bispo. Era filho bastardo de um homem muito importante.

— E como o conheceu, já que viviam em lugares tão diferentes?

— Eu o conheci no dia de nosso casamento, que foi arrumado pelo bispo e por meu antigo suserano. Foi... uma boa ligação para mim.

— Tenho certeza que sim. — Luke sentiu-se ridiculamente contente pelo fato de o primeiro casamento dela ter sido um acordo, e não uma união por amor.

— Ele não tinha terras, claro — ela prosseguiu. — Mas isso foi bom porque eu não queria sair de Hauekleah. O pai dele, apesar de não reconhecê-lo abertamente, deixou-o em uma boa situação. Com o di­nheiro de Caedmon, pude fazer muitas melhorias na propriedade.

— E ele gostava daqui?

— Imagino que estivesse satisfeito, embora... não se interessasse muito pela terra. Preferia a caça e a falcoaria. Ocupava-se dessa forma enquanto eu administra­va a propriedade.

— E ele gostava de você?

— Não estava mais apaixonado por mim do que eu por ele. Nenhum de nós esperava amor quando nos casamos. Casamentos arranjados são assim mesmo... — Ela corou, desviou o olhar e voltou a escovar Daisy com vigor.

— Casamentos arranjados podem começar assim. — Ele se inclinou, fitando-a, apesar do óbvio desconforto que ela demonstrava. — Porém, não precisam terminar da mesma forma. Não está mais de luto por ele, está? — Mesmo sabendo a resposta, queria escutá-la.

— Não. Mas ainda me ressinto pela forma como morreu.

— Caedmon morreu lutando por uma causa.

— Uma causa perdida. — Ela largou a escova e pas­sou a alimentar a égua.

— Faithe, os ingleses que pereceram em Hastings morreram como heróis. Lutaram bem, por uma causa na qual acreditavam. Devia sentir-se orgulhosa, não amarga.

Ela tornou a encará-lo de forma estranha.

— Caedmon não morreu em Hastings.

— Oh... achei que...

— Não na batalha. Foi capturado. Seu exército le­vou-o prisioneiro, e ele morreu depois, de alguma doen­ça, não sei qual.

Luke não soube o que dizer, simplesmente porque não houvera prisioneiros ingleses em Hastings. Aqueles que não foram mortos, desapareceram na floresta. Se houvesse prisioneiros, as famílias teriam recebido pe­didos de resgate, o que não ocorrera. Porém, Faithe cla­ramente acreditava que o marido morrera como prisio­neiro de guerra.

— Quem lhe contou isso?

— Orrik. Ele, Dunstan e mais alguns homens foram lutar em Hastings, com Caedmon.

Luke achou melhor falar diretamente com o admi­nistrador.

— Eu bem que gostaria de saber onde aquele... onde Orrik se meteu e quando vai voltar.

— Por favor, não o dispense. É tudo o que peço. Luke ergueu as sobrancelhas.

— Não é o que quero, mas ele pode me forçar...

— Dê-lhe tempo. Tenho certeza de que o comporta­mento dele vai melhorar.

— Quanto tempo? Estou aqui há um mês e meio e ele ainda me trata com desprezo. Todos já me aceitaram, alguns até gostam de mim, mas, para Orrik, sou ainda um inimigo, e parece que isso não vai mudar.

— Foi por causa de Hastings e da perda de Caedmon. Orrik vai superar o trauma, você vai ver.

— Alguns tipos de raiva não podem ser superados, Faithe. Muitas vezes, o melhor que se pode fazer é... enterrá-la, embora sempre haja o risco de ela irromper sem aviso. — Luke gostaria de não ter motivos para saber disso tão bem. Baixou os olhos para as mãos dela e sorriu. — Esta conversa não foi fácil, mas não a vi girando o anel no dedo.

— Estou tentando me livrar do hábito.

— Que bom. — Ele ergueu a mão para acariciá-la no rosto e viu-a fechar os olhos. Perguntou em voz baixa:

— Você acha que eu poderia tomar um banho quente antes de me deitar esta noite?

Faithe abriu os olhos.

— Pensei que gostasse de se banhar no rio.

— Normalmente, sim. Mas estou um pouco do­lorido ultimamente. Dormir no chão tem suas des­vantagens.

— A cama seria mais confortável — Faithe disse em voz quase inaudível.

— Sem dúvida. — Ele sorriu e tocou os lábios dela.

— Vou pensar nisso...

Faithe retribuiu o sorriso, alegre.

— Caedmon? Morreu de varíola. — Orrik cuspiu no chão. — Em alguma prisão normanda. — Continuou in­vestigando o que restara da parte queimada da cozinha.

Luke observou bem o forno, enegrecido, mas ainda inteiro, e comentou:

— Estranho. Estive em Hastings e não me lembro de terem feito prisioneiros.

— É, parece que o fogo ainda deixou alguma coisa aproveitável por aqui. — Orrik ignorou-o, olhando sob alguns escombros.

— Todos os ingleses que restaram fugiram para a mata — Luke insistiu.

— Menos os que estavam feridos no campo de ba­talha.

— Como os normandos. Nenhum prisioneiro inglês foi feito em Hastings.

— É mesmo? — Ele continuava examinando o que restara do incêndio.

— Sim. Agora, conte-me o que realmente aconteceu a Caedmon. — Luke cruzou os braços e recostou-se ao forno.

— Já lhe disse o que sei.

— Acho que não. Orrik parou e voltou-se.

— Está me chamando de mentiroso?

— Sim.

O administrador estreitou os olhos, furioso.

— Não pode me acusar de mentir.

— Claro que posso, já que não está dizendo a verda­de. É simples, não?

— Para o inferno com a verdade e com você tam­bém!

Luke não se moveu, apesar da insolência.

— Lady Faithe pode não partilhar desse seu desin­teresse pela verdade.

Os olhos do homem se voltaram para ele, pene­trantes.

— O que disse a ela?

— Nada. Esperei para falar com você primeiro. E, se não me disser o que, de fato, aconteceu, vou extrair tudo de Dunstan, ou de qualquer outro. Mas vou desco­brir. Ah, se vou.

Orrik acocorou-se, pegou um pedaço de madeira e então disse, parecendo realmente entristecido:

— Vou lhe contar, mas Faithe não precisa saber, em­bora seja uma garota muito esperta. Vai entender tudo se você ficar fazendo perguntas aqui e ali. Vai, então, me ouvir e ficar calado, certo?

— Está muito enganado se acha que pode me dizer o que fazer. Quero apenas saber dos fatos, nada mais.

Orrik murmurou uma imprecação e jogou longe a madeira. Encarou-o e começou a falar:

— Ficamos sabendo, no verão passado, que seu du­que Guilherme pretendia roubar a coroa de nosso rei Haroldo. Então, convocamos um pequeno grupo de sol­dados locais e seguimos para defender nossa terra, jun­to ao nosso rei. Eu, Caedmon, Dunstan e mais alguns homens, que, infelizmente, não sobreviveram. Ficamos esperando por vocês, normandos, até o dia quatorze de outubro. Conseguimos nos manter unidos em Hastings, durante toda a luta. Todos, menos Caedmon. Nós o per­demos de vista assim que a batalha começou e não o vimos mais.

— Não encontrou o corpo dele?

— Não. E procurei bastante. Fiquei durante horas virando cadáveres, vendo seus rostos... — Orrik cerrou os olhos por segundos. — Ele não estava lá.

— Caedmon desertou?

— Claro que não! Ele só não estava lá.

— Mas, se procurou e...

— Procurei, sim! Procurei por todo o sul da Inglaterra, se quer saber. Só voltei para cá no Natal. E não sabia o que dizer a Faithe. Nem foi preciso dizer nada, pois ela acabou imaginando que Caedmon tivesse sido feito prisioneiro.

— E deixou-a acreditar nisso.

— O que eu podia fazer? Queria apenas poupá-la. Mas, como eu disse, ela é esperta, e sabia do costume de se pedir resgate. Mandou-me a Londres em janeiro para negociar a libertação dele.

— E você foi?

— Bem... não a Londres. Passei um bom tempo procurando-o, e depois voltei dizendo que ainda não o li­bertariam. Mas não parei com as buscas.

— E teve sorte? Orrik respirou fundo.

— Em Hocktide, na Páscoa, se é que se pode chamar de sorte... Não o procurava mais na época, mas esta­va de passagem por uma aldeia, a caminho do merca­do. Parei numa taberna para beber algo e perguntei, como sempre fazia, por um homem com a descrição de Caedmon. Levaram-me a uma sepultura. Eu cavei, só para ter certeza. Era ele. Estava morto havia algumas semanas. — Orrik fez o sinal-da-cruz. — Recobri o tú­mulo, voltei para cá e contei a Faithe que o marido dela tinha morrido na prisão.

Luke cocou o queixo, pensativo.

— Mentiu para ela, então.

— Olhe aqui, normando, eu amo essa garota como se fosse minha filha! Como podia dizer a ela que o marido morreu num bordel malcheiroso em Cottwyk, brigando por uma vagabunda de duas moedas? — Ele empalideceu, obviamente percebendo que revelara mais do que pretendera.

Luke sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha. Não podia ser.

— Cottwyk?

— É. Uma aldeia perto de Foxhyrst.

— Conheço o lugar. — Afastou-se do forno. — E con­taram-lhe que foi assim que ele morreu?

— Sim. Disseram que apareceu durante o inverno e ficou vagando por lá. Disse chamar-se Caedmon, tinha barba e cabelos ruivos... Desenterrei-o e constatei que era ele.

Luke começou a entrar em pânico diante da des­crição.

— Somente Deus Todo-Poderoso pode saber como Caedmon acabou assim — Orrik comentou, consterna­do. Enfiou a mão na túnica, de onde tirou algo brilhan­te.

Espantado, Luke reconheceu o broche com a insíg­nia do lobo branco, que pertencia a seu irmão.

— Isto pertence ao desgraçado que o matou. Há uma inscrição atrás, em francês. Jurei a mim mesmo encon­trar o maldito e matá-lo com minhas próprias mãos.

Luke engoliu em seco. Tentou controlar-se.

— Encontrá-lo? Está procurando pelo assassino? Essas suas saídas são para isso, então?

Orrik assentiu, esfregando o broche com os dedos grossos.

— Já estou atrás dele há mais de dois meses. Mas Faithe não deve saber de nada. A morte dele será vin­gada, e eu serei o instrumento dessa vingança! — Ele se aproximou de Luke e encarou-o com ar feroz. — Jure que não vai dizer nada a ela!

— Nem pense em querer me dar ordens. Muito me­nos me ameaçar. — Passou por ele e saiu dali, profundamente alterado. Seria a última pessoa a contar a ela. E pedia a Deus que Faithe jamais descobrisse a verdade.

 

— Não se preocupe — Alex repetiu mais uma vez, depois que Luke o levou para o jardim e lhe contou o que Orrik tinha acabado de revelar.

— Pelo amor de Deus, Alex, matei o marido dela!

— Fale baixo!

Ambos se voltaram para a casa. No andar de cima, Faithe devia estar preparando o banho que havia pedi­do, Luke pensou.

— O que vou fazer? — perguntou, angustiado.

— Vai tirar isso da cabeça.

— Como pode dizer isso? Ele está com seu broche!

— Está com ele há bastante tempo e ainda não me encontrou, certo?

— Orrik é esperto e está furioso.

O irmão abriu um sorriso largo.

— Mas não me encontrou, e estou bem diante do nariz dele esse tempo todo. Ninguém aqui me conhece como Lobo Branco. É perfeitamente seguro.

— Deus, você é calmo demais.

— Luke...

— Não vou permitir que seja punido por um crime que eu cometi.

— Pare com isso. Nada mudou. Além do mais, se você se entregar, vou dizer que fui eu quem o matou e que você está só querendo me proteger.

Luke encarou-o, alterado.

— Está ficando louco?

— Não... A vida é uma grande loucura, e temos de aprender a lidar com as situações, nada mais.

Os dois voltaram para dentro. Uma das gêmeas serviu conhaque a ambos, e Luke bebeu o seu de uma só vez.

— Milorde, seu banho está pronto — Moira avisou, descendo a escada.

Estava prestes a subir, quando Alex tocou-o no ombro.

— Aproveite o banho e a companhia, e pare de se preocupar.

Ao chegar ao quarto, bateu na porta. Faithe abriu-a, e o conduziu até a tina.

— Está tudo preparado. Gostaria que eu... ficasse para ajudá-lo?

Percebeu que ela corava.

— Não, eu... posso me arranjar sozinho.

Uma expressão desapontada tomou-lhe o rosto por alguns instantes.

— Muito bem, então. — Antes de sair, virou-se e per­guntou: — Questionou Orrik sobre as saídas dele?

— Não... — Esfregou os olhos, desejando estar mais preparado para lidar com a situação.

— Não?

— Na verdade, sim. Mas ele não me disse nada. É teimoso.

— Ah, isso ele é. Quer que eu fale com ele?

— Não!

— Sempre fomos próximos. Talvez...

— Já disse que não!

Faithe chocou-se com o tom agressivo.

— Estou... — Ele meneou a cabeça. — Estou cansa­do. Isso não tem nada a ver com você.

Ela relaxou e até chegou a sorrir.

— Avise aos rapazes quando terminar, para que ve­nham retirar a tina — disse, antes de sair e fechar a porta.

Luke despiu-se e afundou na água, quente e com um leve aroma de ervas. Após desfazer a trança, recostou-se à tina de madeira, fechou os olhos e suspirou, per­turbado.

Tinha matado o marido dela.

— Meu Deus...

Escorregou até submergir. Quando os pulmões come­çaram a arder, ergueu-se, respirando com dificuldade.

Era ele. A criatura bestial normanda que Orrik pro­curava para vingar a morte de seu senhor. Matara o pobre homem por uma vagabunda de duas moedas. Um crime imperdoável, mas que tinha pretendido dei­xar para trás. No entanto, o pecado que o assombrara e enegrecera sua alma tinha agora ressurgido para ar­rancar dele tudo o que mais prezava... inclusive Faithe. Ela havia se tornado muito mais importante para ele do que imaginara ser possível pouco tempo atrás. Ela era o centro da nova vida que estava construindo ali.

Saber que matara seu marido por causa da selvageria incontrolável dentro de si mudava tudo. Durante se­manas, ele se vira fazendo amor com ela, mergulhando em seus olhos conforme a penetrava. Agora, tudo o que conseguia visualizar era a expressão amorosa sendo substituída pelo choque quando ela descobrisse o que ele tinha feito. Quando soubesse que, sob a superfície, ele era um monstro. Não permitiria que aquilo aconte­cesse. Faithe se tornara uma parte dele, se fizera pre­sente em sua alma. Perdê-la agora seria o mesmo que ter seu coração arrancado.

Não tinha gostado de saber que Orrik mentira para ela e agora teria de fazer o mesmo, omitindo a feia ver­dade.

Ele a transformara em uma viúva e tinha se casado com ela por causa da propriedade. Sentia-se o pior dos seres humanos. Se tentasse fazer amor com ela agora, sabia que fracassaria miseravelmente.

Terminou o banho, enxugou-se, vestiu-se e pediu aos garotos que tirassem a tina do quarto. Quando Faithe voltou, viu-o deitado no chão. Hesitou, com uma expres­são pensativa, mas então fechou a porta, apagou as ve­las e se deitou.

— Faithe...

— Sim?

— Boa noite.

Houve um longo silêncio.

— Boa noite, Luke.

 

Luke arrancou o saxão de cima da prostituta, ouvin­do-a gritar. Preparou-se para esmurrá-lo. Queria atingi-lo na cabeça. Impulsionou o corpo e...

O impacto o despertou, e Luke sentou-se, angustia­do. Com um gemido, enterrou a cabeça entre as mãos, sem conseguir se livrar das imagens que assaltavam sua mente. Sabia agora que se tratava de Caedmon. O terrível pesadelo voltava, mais intenso do que nunca. Levantou-se e viu que Faithe dormia tranqüilamente. Parecia uma fada...

Lembrou-se de ter achado que Caedmon nada mais era que um selvagem, sujo e fedorento. Os detalhes de sua aparência eram imprecisos, pois Luke estava sob o poder das ervas naquela noite. Porém, o cheiro féti­do devia ter sido real. Como uma mulher como Faithe suportara um casamento com um sujeito como aquele? Além do mais, era um desertor, um homem que vagara durante todo o inverno, preferindo prostitutas à bela mulher que tinha em casa.

As chaves de Faithe estavam na mesa-de-cabeceira, onde as deixava todas as noites antes de se deitar. Ele a tinha forçado a fazer isso, apesar de saber que ela odiava separar-se delas. Também a tinha forçado a falar seu idioma, até mesmo quando estavam a sós. Viera ao país dela como um inimigo invasor e recla­mara a propriedade que havia gerações pertencia à família dela.

E Faithe se adaptara a tudo isso, com doçura, in­teligência e integridade. Não apenas o aceitara, como tinha passado a se importar com ele. Não precisava que ela dissesse palavras doces para saber como se sentia a seu respeito. Havia entre eles uma conexão profunda, que ultrapassava o aspecto físico. Ela lhe dera a vida pela qual tinha ansiado durante os tris­tes e sangrentos anos de luta. Ao lado dela encontrara pastos verdes, calor e afeto, e um lugar no mundo ao qual pertencer.

E ele a traíra com um ato de pura selvageria, que, embora tivesse acontecido antes de se conhecerem, era imperdoável. Não havia como desfazer o que tinha fei­to. Por algum tempo, fora um homem feliz. Começara inclusive a pensar que seria possível enterrar o Dragão Negro de uma vez por todas, e esquecer que a criatura sedenta de sangue já tivesse existido.

Fora um tolo, pensou, ao olhar com uma tristeza profunda para sua linda e inocente esposa adormecida. Ele era o Dragão Negro e nunca conseguiria escapar da besta.

Vestiu-se, no mais absoluto silêncio, e desceu. No sa­lão, viu Alex com uma das gêmeas. Saiu sem ser visto, pelos fundos, e seguiu para os estábulos, onde selou seu cavalo e partiu em direção ao rio. Parou sobre a ponte e tirou o broche do manto. Examinou-o sob a luz tênue do início da manhã.

Lembrou-se de quando ele e Alex ganharam os broches, logo antes de se unirem ao exército de Guilherme. O pai, normalmente impassível, chegara às lágrimas naquele dia. Ele sabia que, mesmo que não perdesse os filhos em uma batalha, poderia nun­ca mais vê-los, pois os dois partiam com a intenção de obter propriedades na Inglaterra, um lugar muito distante de Périgueux.

De fato, o pai falecera no Natal. O broche era a única lembrança que tinha dele, e seu bem mais pre­cioso, com o qual tomava muito cuidado. Diferente de Alex...

Virando-o, leu as palavras inscritas no metal, as mesmas do broche de Alex, que agora se encontrava nas mãos de Orrik. Apertando-o entre os dedos, sussurrou a mensagem: Seja forte e corajoso. E, então, arremessou-o longe, vendo-o afundar nas águas do rio.

Depois, instigou o cavalo e galopou pelos campos até que ambos estivessem exaustos. O sol já estava alto quando voltou e entregou o animal aos cuidados do cavalariço. Seguiu para a cozinha, em busca de algo para beber. O movimento de mulheres ali era intenso, no preparo da comida.

— Milorde! — saudou Ardith, com um sorriso. — Precisa de alguma coisa?

— Um pouco de leite e pão.

— Bonnie!

A moça que aquecera Alex na noite anterior levan­tou-se depressa de onde estava cortando um frango em pedaços.

— Ouviu milorde. Traga-lhe pão e leite. —Voltando-se para ele, completou: — Não é um pouco tarde para fazer seu desjejum, milorde?

— Estive cavalgando.

— Mesmo? — Ela continuava separando tiras de bacon para o almoço. — Lorde Caedmon também era assim, que Deus o tenha. Cavalgava a manhã toda e depois aparecia para comer algo.

As mulheres que estavam próximas sorriram ao lembrar. Não era a primeira vez que Luke ouvia os servos falando de seu antigo senhor, mas, desta vez, estava interessado. Tinha a impressão de que todos ali gostavam de Caedmon. Mais uma vez, lembrou-se da criatura de aspecto bárbaro que aparecera naque­la noite na cabana da prostituta. Como podiam ser a mesma pessoa?

Bonnie apareceu com o pão e o leite.

— Deseja algo mais, milorde?

— Não. — Percebia que a garota se insinuava e foi incisivo na resposta.

Alex riria se soubesse que uma das gêmeas dele de­cidira flertar com o irmão. Luke nunca trairia a esposa. Apesar da sensualidade das irmãs, elas não... brilha­vam como Faith. Não tinham a pele dourada, o sorriso mágico ou os cabelos rebeldes. Não riam daquela ma­neira notável que iluminava tudo ao redor e não recen­diam amêndoas e tomilho. Nem o olhavam com aqueles incríveis olhos castanhos que enxergavam sua alma. Elas não eram Faithe.

Apoiou-se à mesa, comendo e bebendo, e começou uma conversa com Ardith:

— Então... seu antigo se­nhor gostava de caçar e praticar falcoaria, pelo que ouvi dizer.

— É verdade. Aliás, trazia muita caça para prepa­rarmos.

— Ouço apenas coisas boas a respeito dele.

— Ah, lorde Caedmon era muito bom.

— Muito simpático — interferiu uma das moças.

— Um senhor como nenhum outro — comentou outra.

— É verdade que era ruivo? — Luke perguntou, mo­lhando o pão no leite antes de levá-lo à boca.

— Sim. E bem bonito. Os ruivos costumam ter olhos feios e ser muito brancos, mas ele não.

— Era um homem alto e forte — observou uma mu­lher já madura, que mexia a comida num caldeirão enorme. — Não tanto quanto o senhor, mas bem pro­porcionado, sim.

— Nunca tinha uma palavra atravessada para nin­guém — Ardith acrescentou.

Outros comentários se seguiram, entre elas:

— É verdade.

— Estava sempre alegre.

— É, sempre, mesmo.

— Ele se vestia de forma simples, como sua senhora, ou mais elegantemente, como requeria sua posição? — Luke indagou, mordendo outro pedaço de pão.

— Ah, ele gostava de belas túnicas e peles! — Ardith exclamou, juntando as mãos. — Mas nada exagerado. Não usava jóias. Vestia-se bem, mas sem luxo excessivo. Sempre com a melhor lã, as melhores botas...

— Mantinha a barba aparada — Bonnie acrescen­tou. — E me lembro que tomava banho duas vezes por semana.

— Ele nasceu na cidade — disse uma moça que es­tava na outra ponta da mesa, escolhendo grãos. — E foi criado em Worcester, como pupilo do bispo. Dizem que seu pai era lorde Stigand, arcebispo de Cantuária.

Houve risadas, e uma das moças sugeriu:

— Todo mundo sabia que ele era filho bastardo do rei Haroldo.

— Bobagem — Ardith interferiu. — Seu pai era o próprio Papa Alexandre!

Luke sorriu, terminando seu leite. Logo, elas jura­riam de pés juntos que Caedmon era filho do próprio Deus. Por mais que tentasse, porém, não conseguia imaginar que aquele quase endeusado senhor fosse o mesmo malcheiroso e rude vagabundo que reclamara a companhia da prostituta naquela terrível noite. Algo estava errado naquela história... mas o quê? Precisava descobrir.

A fogueira, antes alta e forte, estava agora bem baixa, no topo da colina. Muitos aldeões ainda dan­çavam em torno dela, em comemoração à véspera do Dia de São João, vinte e quatro de junho. Os homens carregavam tochas e as mulheres tinham flores nos cabelos. As crianças levavam fitas coloridas às mãos, e pulavam sem parar. Felix estava entre elas, des­sa vez. Tinha se tornado bem-visto entre os meninos porque aprendera a nadar, e até se oferecera para ensiná-los.

Faithe, sentada ao lado do marido numa pedra um pouco afastada, observava a cena e movia os pés no rit­mo da canção. Pouco antes, tinha se impressionado com a graça de Luke ao tentar seguir os passos da dança. Ficara contente e surpresa, pois, nos últimos dias, ele andava taciturno e calado.

Ele estava diferente desde o dia em que a cozinha pegara fogo e ela tinha ido procurar Orrik. Lembrava-se da conversa com Luke no pasto. Tinham falado de banhos quentes e camas confortáveis. Ela pensara que fariam amor naquela noite.

Não tinham feito, por escolha dele. Luke se afastara dela, fechando-se novamente em si mesmo. Durante algum tempo, parecera relaxado e feliz, mas agora voltara a ser como quando chegara a Hauekleah. Raramente sorria, e estava sempre concentrado em algo dentro de si.

Talvez ele fosse como seu avô e, apesar das boas intenções, estivesse começando a se cansar da vida ali. No entanto, algumas vezes, surpreendia-o, olhando para ela com uma intensidade extraordinária. Nessas ocasiões detectava algo semelhante a medo nos olhos dele, mesclado a um desejo que ele não con­seguia disfarçar.

Fitou-o e percebeu que seu olhar estava direcio­nado para o outro lado da fogueira, onde se encon­travam Alex e as gêmeas. E ele não era o único a olhar para os três. Firdolf também os observava, in­teressado em Blossom, a gêmea que usava uma só trança.

— Caedmon tinha um irmão gêmeo?

Luke perguntou, de repente, espantando-a.

— Não... O que o levou a considerar uma coisa dessas?

— Não tinha nenhum irmão?

— Não. Pelo menos, ninguém que tivesse sido criado com ele em Worcester. É possível que tenha tido algum meio-irmão ou meia-irmã, mas não podemos afirmar, pois não se sabe ao certo quem foi seu pai.

Luke pensou, meneou a cabeça, e murmurou:

— Um meio-irmão... não, acho que não.

— Por que achou que ele tivesse um irmão? — Estava perplexa com o interesse dele, mas ansiosa para conti­nuar conversando.

— Estava apenas pensando... não sei por quê... — respondeu, sem olhar para ela.

Mesmo sem entender o que estava acontecendo, Faithe sugeriu:

— Podemos conversar sobre ele, se quiser. — Luke a encarou, e ela prosseguiu. — Moira me disse que você fez perguntas sobre ele ontem, na cozinha. Imagino que seja natural querer saber sobre o homem com quem fui casada por oito anos. Se há coisas que deseja saber, pode me perguntar.

Luke virou-se de novo para os dançarinos, bebendo seu vinho, e mantendo uma expressão tão fechada que a fez imaginar se o tinha ofendido de alguma forma. Por fim, ele comentou:

— Disseram-me que Caedmon era um homem bom.

— Era, sim. Todos gostavam dele. E isso se devia ao fato de não exercer grande autoridade sobre os aldeões e servos. Nunca dava ordens e jamais os disciplinava. Tudo isso ficava a meu critério, o que, devo confessar, me agradava.

— E nunca se importou por ele não se interessar pela propriedade?

— Às vezes. Mas não se pode ter tudo... Ele era bom, nunca me agrediu, e sei que era fiel e, mesmo que não se adaptasse tanto à vida aqui, tentou torná-la boa. Acho que acabamos nos dando melhor do que muitos casais, apesar de nossas diferenças. — Faithe olhou para os dançarinos e lembrou-se de que, no verão an­terior, Caedmon dançara com ela e a rodopiara muito, fazendo-a rir. — De certa forma, ele era... bem, pode parecer tolice, mas...

— Diga.

— Era como um irmão mais velho. — Exceto na cama, claro, mas não compartilharia aquela informa­ção com Luke. — Eu gostava dele e imaginei que pudés­semos envelhecer juntos.

Luke respirou fundo, contrafeito. O peso do que fize­ra o atormentava.

— Quando ouvimos falar que haveria uma invasão e Caedmon soube que seria obrigado a se juntar às for­ças do rei Haroldo, posso garantir que não ficou nada satisfeito.

— Não? — Ele parecia subitamente mais alerta.

— Caedmon não era um soldado. Não tinha sido treinado para lutar, embora, claro, soubesse manusear um arco e uma espada. Mas vi que ficou tenso. Não me entenda mal. Não quero dizer que fosse co­varde. Nunca fugiu de seu dever. Mas sei que pre­feriria não ter de ir lutar. Era um homem de paz. A habilidade de guerrear pode ser comum a alguns homens, mas não a todos. Dunstan reagiu assim também. Queria ir, mas não estava contente com isso. Orrik era o único de nosso grupo que parecia ansioso pela batalha.

Luke riu de leve, como se isso não o surpreendesse.

— Passaram-se algumas semanas antes que tives­sem reunido tudo o que precisariam levar — ela pros­seguiu. — Fiquei tão preocupada com Caedmon... Ele mudou muito. Oscilava entre a vontade de guerrear e a melancolia. Perdeu o apetite e recusava-se a falar comigo sobre seus medos, embora eu soubesse que os tinha. Tinha dores de cabeça terríveis. Depois come­çou a vomitar e chamei um médico. Ele me disse que esse tipo de coisa acontece a alguns homens antes de partirem para a guerra, e que eu não devia me preocupar.

Calado, Luke ouvia com muita atenção.

— Partiram há praticamente um ano. E você já co­nhece o resto da história. Caedmon foi aprisionado e morreu numa prisão normanda. Nunca mais o vi.

Ele tomou-lhe a mão e apertou-a de leve.

— Sinto muito.

Faithe forçou um sorriso.

— Não foi sua culpa...

Luke se enrijeceu e soltou-a.

— Lá está ele! — A voz era de Felix, que vinha cor­rendo na direção de Luke, com sua fita colorida. As ou­tras crianças o acompanhavam, alegres, gritando:

— Vá embora, Dragão Negro!

— Saia daqui!

— Volte para o lugar de onde veio!

Faithe riu até notar que ele estava sério.

— A função das crianças nesta cerimônia é expul­sar os dragões — explicou. — E, como você é o Dragão Negro...

Ele assentiu e tentou sorrir, mas não conseguiu.

— Muito bem, crianças, mas este dragão vai ficar aqui conosco. Passei a gostar dele. — Pelo canto dos olhos, percebeu que ele a fitava.

— Vamos ficar com ele! — Felix gritou.

— É, vamos!— concordaram os demais.

— Então, vão espantar os outros dragões para que só este fique.

As crianças se afastaram, gritando que expulsariam todos os dragões, empurrando-os pára o rio.

Num gesto inconsciente, Faithe procurou o braço do marido, encontrando-o firme, quente. Queria-o mui­to. O desejo por ele parecia angustiá-la cada dia mais. Ergueu a mão e tocou-lhe o rosto, sentindo-o incliná-lo para que o carinho fosse maior, como fazem os gatos. Ele olhou-a, então, pela primeira vez em muitos dias, diretamente nos olhos.

— Luke... — sussurrou, e teve a impressão de que ele se aproximava devagar, olhando para sua boca.

Um ruído chamou-lhes a atenção. Os aldeões apa­gavam suas tochas no rio. Felix e Alfrith traziam um balde colina acima e apagavam a fogueira dramati­camente.

Luke afastou-se e levantou-se da pedra.

— Parece que a festa acabou — disse, esfregando o pescoço.

— É... Luke!

— Sim?

— O que está acontecendo? Ele demorou para responder.

— Nada...

— Anda tão...

— Não há nada. — Estendeu a mão para ela. — Vamos?

Assim que a ajudou a se levantar, Luke soltou a mão dela, e voltaram para casa em silêncio.

Faithe achou a missa de domingo interminável, como sempre. Naquela manhã gloriosa poderia estar realizando uma série de trabalhos e tinha de ficar ali, parada. Quando, por fim, a cerimônia terminou, saiu, deixando Luke com o padre Paul na capela escura. No centro do campo principal de Hauekleah ficava o poço comunitário. Orrik estava sentado ali, conversando com Baldric. Quando a viu, ele dispensou o auxiliar e foi ao seu encontro.

— Posso lhe falar, milady?

— Claro, Orrik.

Ele olhou ao redor para se certificar de que não esta­vam sendo ouvidos.

— Chegou ao meu conhecimento que nosso novo se­nhor anda... bisbilhotando sobre assuntos que não lhe dizem respeito.

— Como assim?

Orrik pigarreou antes de continuar:

— Ele anda fazendo perguntas sobre lorde Caedmon, Baldric me disse. E isso não está certo.

— Bem, não vejo nenhum problema nessa curio­sidade.

— Senhora, esse homem é um soldado normando. E um inimigo. Não devemos nos esquecer disso.

— Esse homem, Orrik, é meu marido e seu senhor. Você é que não deve se esquecer disso.

— Mas ele não devia fazer perguntas.

— Por que não?

Orrik normalmente era direto e não hesitava. No en­tanto, agora, não encontrava palavras.

— Bem, é que... não gosto, só isso... Não gosto que ele fique... vasculhando a vida de Caedmon. Se lhe fizer muitas perguntas, espero que a senhora o mande para o inferno.

— Tarde demais, Orrik. Já contei a ele tudo o que sei.

A expressão do administrador foi de alarme.

— O que disse a ele?

— Mas qual é seu interesse nisso? Ele está apenas fazendo perguntas triviais.

— Esses malditos normandos nunca fazem nada tri­vial, milady. Não aprovo nada dessa... curiosidade que ele demonstra.

— O que seu senhor faz não deve ser aprovado ou desaprovado por você. Lembre-se disso.

— Mas eu não gosto...

— Não importa se gosta ou não. Já lhe pedi, Orrik. Não me force a decidir o que fazer com você, caso não aceite meu marido como o senhor de Hauekleah. Não posso me aliar a você. Pode imaginar o que aconteceria, com a propriedade se ele e eu nos confrontássemos de alguma forma?

Orrik hesitou, franzindo a testa.

— Não me obrigue a escolher entre ser leal a você ou a ele — Faithe pediu. — Eu sempre escolherei meu marido. E ele pode perguntar o que quiser, a quem quiser. Não se intrometa mais.

Mesmo visivelmente contrariado, ele fez uma leve mesura.

— Como quiser, milady.

— Onde está seu tio Dunstan? — Faithe perguntou a Felix enquanto tirava ervas daninhas do jardim, à tarde. O menino a ajudava.

— Mestre Orrik mandou-o a Winstow para visitar minha tia Audris e tio Synn.

— Quando?

— Acho que foi anteontem. Minha tia está doente.

Faithe sabia que a irmã de Dunstan, esposa de um comerciante de óleo em Winstow, andava adoenta­da, mas Orrik não queria o capitão da guarda fora de Hauekleah nessa época, em que as plantações cresciam. Imaginava o que o teria feito mudar de idéia.

— E quanto tempo seu tio vai ficar por lá? — per­guntou ao menino.

— Um ou dois meses.

— Dois meses?! — Estava pasma. Como Orrik podia dispensar a ajuda de Dunstan no verão?

— Minha tia está doente — Felix repetiu, como se ela não o tivesse ouvido da primeira vez.

Faithe não compreendia. A mulher tinha marido, que podia cuidar dela. Além disso, Winstow ficava a meio dia a cavalo de Hauekleah. Dunstan poderia visitar a irmã e regressar logo. Não fazia sentido.

Bem cedo, na manhã seguinte, Faithe selou Daisy e seguiu para o oeste. Chegou a Winstow ao meio-dia. O lugar era maior do que a aldeia de Hauekleah, mas não muito grande, o que permitiu que logo encontrasse o mercador de óleo.

Dunstan estava do lado de fora da loja, ajudando o cunhado a carregar alguns barris de óleo. Ambos suavam em razão do forte calor. Ele sorriu assim que a viu.

— Milady! O que faz aqui?

— Vim procurá-lo.

Ele apresentou-a ao cunhado e depois a convidou para entrar e fazer a refeição. Seguiram para o andar de cima, onde ela se sentou e tomou um copo de água, refrescando-se da árdua cavalgada. Dali, pôde ver, em outro cômodo, uma jovem deitada, parecendo, de fato, doente. Dunstan desculpou-se, foi até o quarto e colo­cou um pano úmido sobre a testa da moça. Voltou logo depois, soltando a cortina de couro que servia de porta.

— E uma doença sem cura — revelou, em voz baixa. — Só nos resta rezar, infelizmente.

— Sinto muito, Dunstan.

Ele lhe serviu um ensopado e sentou-se a seu lado.

— Algo de errado em Hauekleah? Precisa de mim para alguma coisa?

A comida não tinha um bom aspecto, e ela imaginou se um dos dois homens a teria preparado.

— Não. Está tudo bem, mas estou curiosa quanto a certas coisas.

— Sim?

— Em primeiro lugar, não sei por que você quis fazer uma visita tão longa à sua irmã. Sei que ela está doente e realmente sinto por isso, mas Felix me disse que pre­tende ficar aqui por um ou dois meses. E não podemos ficar sem você por tanto tempo, ainda mais no verão.

O rapaz ergueu os ombros.

— Foi o que eu disse a mestre Orrik, mas ele insis­tiu. Não fez sentido para mim.

— Está me dizendo que esta viagem foi idéia dele?

— Sim. Não... De certa forma. Eu tenho pedido a ele para vir ver minha irmã desde que ela adoeceu, mas queria apenas ficar dois ou três dias. Orrik sempre dis­se que eu não podia deixar Hauekleah, e me conformei. E então, na semana passada, de repente, ele me disse para me preparar para vir. E disse que eu não precisa­ria voltar até a colheita.

Faithe arregalou os olhos.

— Mas... o que ele tem na cabeça?

— Não sei, milady. Ele disse que não precisariam de mim porque sir Luke está se saindo muito bem nas ta­refas... E eu sei que nosso novo senhor é muito dedicado e que sabe fazer praticamente de tudo. Mas...

— Sim, mas ele não pode tomar o seu lugar! Não tem a sua experiência com as coisas da terra.

Dunstan era indispensável na propriedade. Não en­tendia por que Orrik estava agindo dessa forma. O que estaria pretendendo, a ponto de arriscar Hauekleah para conseguir?

— Ele pediu que fizesse mais alguma coisa aqui?

— Não, milady. Devia apenas visitar minha irmã e tirar Hauekleah da cabeça.

Faithe bem que gostaria de saber por que Orrik que­ria o rapaz fora da propriedade. Deixou de lado o enso­pado e bebeu apenas a água.

— Orrik vem agindo de forma estranha ultimamen­te — comentou.

— Acha mesmo?

— Está irritado com as perguntas que meu marido anda fazendo.

— Perguntas, milady?

— Sobre Caedmon.

Dunstan ficou tenso. Não conseguia mais encará-la. Faithe o conhecia muito bem e sabia que ele era trans­parente como água. Se Orrik o tirara de Hauekleah, era porque não queria que ele falasse algo que ela devia saber.

— Você e Orrik são os dois únicos homens em Hauekleah que sobreviveram a Hastings — disse, des­confiada.

— Terminou sua água... Quer um pouco mais? E o ensopado, não está bom?

— O que quero é que me diga o que Orrik quer tanto esconder, Dunstan.

Ele tornou a se sentar, lentamente.

— Não sei do que está falando...

— Acho que sabe, sim.

— Milady... não posso... Mestre Orrik me fez prome­ter que não contaria...

— O quê? O que não pode me contar, Dunstan? Algo sobre Caedmon? Tem a ver com o que houve em Hastings?

— Por favor... Ele disse que era para seu próprio bem... Que a senhora sofreria...

— Ora, vocês dois têm escondido algo de mim, en­tão? O quê?

— Milady...

— Dunstan, ouça bem. Orrik errou ao exigir seu si­lêncio. Não sou criança e não preciso de proteção quan­to a verdades desagradáveis.

— Eu sei, mas...

— E posso garantir que não gosto desse tipo de pro­teção. Detesto ameaças, mas deve saber que não posso ter um capitão que omite informações de mim.

Ele ficou pálido.

— Diga-me o que estão escondendo de mim e o per­doarei — Faithe pressionou.

Dunstan baixou a cabeça. Levantou-se, então, indo até a janela. Lá, cruzou os braços e permaneceu assim por segundos antes de começar:

— Depois que partimos, no verão passado, para nos juntarmos ao rei, bem, seu marido... Ele não parecia mais o mesmo.

— Eu sei.

— Ele estava... ah, de nada adianta falar nisso agora...

— Dunstan, o que aconteceu quando estavam espe­rando pelos normandos?

Ele se voltou.

— O que Orrik não quer que eu lhe conte aconteceu quando a batalha de Hastings já tinha começado.

— Caedmon... envolveu-se com alguma mulher? É isso?

— Como... como sabe, milady?

Faithe cerrou os dentes. Apesar de não ter sentimen­tos profundos pelo marido, detestou saber que tinha sido traída.

— Na verdade, eu só imaginei. Ficamos separados por algum tempo e, como isso nunca tinha acontecido antes... Caedmon era homem, tinha suas necessidades. E estava muito tenso quanto à batalha. Não me surpre­ende. Ele se apaixonou por essa mulher?

— Não, senhora. Elas eram...

— Elas?!

— É. Eram mulheres comuns... vulgares...

Prostitutas, ela concluiu. Não devia se preocupar, então. Mas sentia certo incômodo ao imaginar seu marido numa cama qualquer, num lugar não muito limpo...

— Imagino que ele quisesse apenas... se aliviar, se­nhora — Dunstan continuou. — Estava tão tenso... A não ser uma vez que...

— Sim?

— Nada. Não tem importância.

— Dunstan, eu vim até aqui para saber! De tudo! —Vou dizer o que houve quando a batalha começou, está bem?

Faithe sabia que havia mais coisas que ele estava es­condendo, sobre alguma prostituta em particular, mas antes que pudesse perguntar, Dunstan prosseguiu:

— Seu marido não foi feito prisioneiro, milady.

— Não? Como assim?

— Ele desapareceu quando a batalha começou.

— Desapareceu?!

Desconfortável com o que estava sendo obrigado a revelar, ele deu alguns passos pelo cômodo e voltou a se sentar, agora de frente para Faithe.

— Fui o último a vê-lo. Nunca contei isso a ninguém, nem mesmo a Orrik. Ele sabe apenas que Caedmon de­sapareceu. Mas eu o vi quando as trombetas tocaram e tudo começou. Ele estava junto à mata e tinha as mãos na cabeça. Ficava balançando o corpo para a frente e para trás.

Faithe estava espantada. Segurava as chaves pen­duradas no pescoço com tanta força que os seus dedos doíam.

— Não sei ao certo o que houve, milady. Mas acho que ele simplesmente... — Dunstan encolheu os om­bros. — Orrik me chamou e perguntou por Caedmon. Olhei para trás, mas ele já não estava mais lá. Então menti. Disse que não o tinha visto. Posso ter errado, mas achei que não devia dizer a Orrik como ele estava, como um animal apavorado...

Faithe engoliu em seco.

— Caedmon desertou.

Ele baixou os olhos, o que foi uma resposta mais do que suficiente.

— Era isso que Orrik não queria que eu soubesse...

— Sim. Ele o procurou muito e depois, sempre que podia, usava uma desculpa qualquer para sair de Hauekleah e continuar procurando. Acabou encontrando-o em Hocktide. Encontrou seu corpo, numa cova em Cottwyk.

Faithe respirou fundo.

— Como ele morreu?

— Não, a senhora não precisa saber disso...

— Não me diga o que preciso ou não saber! — Estava furiosa, magoada. Caedmon devia ter se matado. Só podia ser isso. Tinha tirado a própria vida e seria con­denado ao inferno para sempre. Sabia, mas precisava ouvir da boca de Dunstan.

Um gemido veio de trás da cortina de couro. O rapaz levantou-se para atender a irmã. Faithe segurou-o pela manga da camisa,

— Diga-me!

Outro gemido, e então os chamados:

— Dunstan? Synn?

— Por favor, milady, minha irmã está precisando de mim.

— Diga-me!

— Ele foi assassinado. Sinto muito. Ele foi morto por causa de uma mulher. Um soldado normando, é o que dizem. Ele o matou.

— Vá atender à sua irmã.

— Milady...

—Vá! — Faithe voltou-se rapidamente antes que ele pudesse ver suas lágrimas e saiu dali, apressada.

 

O cheiro da tempestade estava no ar. Luke aca­bava de cobrir o telhado da capela com palha nova e imaginava, pela centésima vez, onde Faithe poderia estar e a que horas regressaria. Ergueu os olhos para o céu carregado de nuvens cinzentas. Tempestades de verão podiam ser terríveis. Se ela não chegasse antes da chuva, pedia a Deus que, pelo menos, encontrasse abrigo.

— Acabou bem a tempo, milorde! — Alfith exclamou, olhando-o no telhado, enquanto os outros meninos reco­lhiam os restos de palha do chão.

— Veja, milorde! — Felix apontou para o começo da estrada, distante. — Não é ela?

Era, e Luke respirou aliviado.

— Recolham o máximo que puderem antes que a chuva comece — recomendou aos meninos, assim que desceu. Pegou a camisa que deixara sobre uma estaca e vestiu-a. — E, se ouvirem trovões, corram para casa. — Pretendia alcançá-la a cavalo, na estrada ainda, mas quando chegou ao estábulo, ela já tinha chegado, apeado, e largado Daisy com um dos rapazes.

Estranhando, pois Faithe sempre tratava do animal sozinha, perguntou:

— Onde está sua senhora?

O cavalariço respondeu enquanto levava a égua para dentro:

— Eu a vi entrando no celeiro, milorde.

— No celeiro?

— É. E o homem que estava trabalhando lá saiu e fechou a porta para deixá-la à vontade. Ela parecia es­tar... bem... chorando. Estava com os olhos vermelhos. Minha mãe sempre diz que lady Faithe vai para o ce­leiro chorar porque pensa que ninguém sabe o que ela está fazendo lá dentro.

— É mesmo? Bem, termine logo com Daisy e vá para casa antes do temporal.

Luke vacilava. Como poderia perturbá-la num momento como aquele? Não passava de um animal que só a prejudicara... Se fosse até lá, Faithe pro­vavelmente o mandaria embora. Ficou ali parado, pensando, sentindo-se um completo idiota. Por fim, tomou coragem e entrou. O celeiro estava escuro e silencioso, a não ser pelos miados dos gatos que vi­viam ali. Esperou, até escutar os soluços baixos e controlados. Pediu a Deus que ela não o afastasse. Podia, até, merecer, mas não queria ser mandado embora. Não suportaria.

Quando a viu, encolhida sobre o feno, seu coração se apertou. Sussurrou seu nome, mas ela não o ouviu.

— Faithe? — chamou, mais alto.

Ela ergueu a cabeça, assustada. Estava trêmula e tinha o rosto molhado de lágrimas.

— Você está bem? — perguntou, suavemente. Viu a surpresa no rosto dela e entendeu por quê. Falara em inglês. Sempre se dirigia a ela em francês, como uma forma de reafirmar sua autoridade. Nunca tinha come­çado uma conversa no idioma dela, até o momento. Deu um passo em sua direção, e depois outro, e mais outro. — O que houve? Fale comigo.

Ela fechou os olhos, deixando as lágrimas fluírem antes de se sentar e estender os braços para ele.

Luke sentiu seu mundo rodar. Faithe o queria, preci­sava dele! Alcançou-a e a tomou nos braços, ajoelhando-se no feno, murmurando palavras de consolo e afeto, todas em inglês. Beijou-a nos cabelos e acariciou-lhe as costas.

— Não chore. Está tudo bem.

— Não.

— Vamos, não pode ser tão ruim assim...

— Pode, sim. Não entendo mais nada. Achei que sa­bia de tudo... Mas não... Estava enganada.

— Faithe, olhe para mim. O que aconteceu? — Segurou seu rosto entre as mãos e olhou-a de frente.

— Fui a Winstow hoje para falar com Dunstan. Orrik o mandou para lá para que não me contasse... — Mais lágrimas brotaram e escorreram por suas faces.

— Não lhe contasse o quê?

— Que Caedmon desertou no campo de batalha, e que não morreu na prisão. Oh, Luke, ele foi assassina­do... — Faithe irrompeu em soluços contra seu peito.

Tenso, ele a apertou contra si. Ela sabia... Faithe já sabia...

— Um homem o matou por causa de uma mulher — ela prosseguiu, chorando sem parar.

— Faithe, sinto muito... Eu...

— Não é culpa sua.

Ele fechou os olhos e cerrou os dentes.

— Faithe... Meu Deus.

— Eu não devia estar reagindo dessa forma.

— Como não? — Beijou-a na testa. — Chore. Você tem todo o direito...

Ela chorou até que as lágrimas secassem. Ao longe, o som dos trovões se intensificava.

— Precisamos voltar para casa... Ela agarrou-se a ele.

— Não. Por favor. Não quero que me vejam assim. — Ela o encarou. — Por favor, Luke, eu preciso de você!

— Ah, Faithe... Estou perdido... Perdido. — Tocou-lhe o rosto molhado com os lábios.

— Não — ela disse, e suspirou. — Eu o encontrei. — Acariciou a face dele com dedos trêmulos — Nós nos encontramos.

— Faithe... — Inclinou a cabeça na direção dela. — Perdoe-me — sussurrou. Sua boca encontrou os lábios macios com os quais sonhara tanto.

— Tolo — ela murmurou, antes de mover a cabeça devagar, roçando a boca na dele.

Seus lábios se tocaram, devagar. Luke gemeu, deli­ciado, saboreando a doçura e o prazer daquele carinho. Logo, tomou seu rosto entre as mãos e beijou-a inten­samente, um ato faminto e profundo, havia tanto tem­po desejado. Ele sentia as mãos de Faithe percorrerem suas costas, ombros e pescoço, aproximando-o ainda mais, correspondendo com paixão.

Um trovão próximo fez que se afastassem um pouco.

— Oh, Luke, eu quis tanto que fizesse isso. Tanto! Um sorriso suave surgiu nos lábios dele.

— Eu também... Faithe beijou-lhe o pescoço.

— E o que mais você quis fazer?

A pergunta, feita em um tom sensual, encheu-o de desejo. Curvou-se, deitando-a no feno. Mesmo tendo chorado, ela era linda. Os lábios, levemente inchados, eram incrivelmente eróticos e convidativos. Tocou-os. Estavam quentes. Queria lambê-los e mordê-los. Estava perdido.

— O que mais, Luke? — Faithe insistiu. — O que mais você quis?

Ele baixou os olhos e viu que o vestido que ela usava era fechado na parte da frente, com uma fita. Quisera tanto desfazer o laço, abrir o corpete... E foi o que fez.

 

Luke viu-a com o canto dos olhos, observando-o de­satar a fita do vestido. Ela olhava para ele como se algo a fascinasse. Concentrou-se em manter as mãos firmes enquanto abria o corpete, revelando o colo an­sioso e arfante.

As chaves dela estavam no caminho. Ao levantá-las, sentiu-a ficar tensa e, em vez de removê-las, como pre­tendera, simplesmente afastou-as para o lado. Ela sor­riu e tocou-o no braço, aquecendo-o. Um trovão soou, mais próximo do que o anterior.

Quando terminou de soltar a fita, deteve-se, sem abrir o vestido, e começou a acariciar lentamente, com as pontas dos dedos, seu pescoço, o rosto, a orelha... Faithe suspirou e sorriu.

Sentia um prazer incrível ao tocá-la dessa forma, como se tivesse todo o tempo do mundo. Jamais agira assim com uma mulher, prolongando as preliminares, deleitando-se com cada gesto.

Desceu os dedos para o colo, sentindo a respiração arfante, cada vez mais intensa. Quando, com muita delicadeza, colocou a mão sobre um dos seios, ela aper­tou seu braço. Sentiu o mamilo intumescer sob o tecido, e seu corpo reagiu de imediato, como se fossem um único ser.

Tudo parecia acontecer muito devagar, na penumbra. Ele estava, de fato, perdido. Era como se não houvesse passado nem futuro, apenas os dois, sozinhos e juntos, naquele instante e para sempre... O tempo estava, ao menos temporariamente, suspenso, assim como seus pecados. O que acontecera antes não mais existia. Tudo o que ele ouvia eram as batidas frenéticas de seu cora­ção, tudo o que via era Faithe, com a cabeça inclinada para trás, os olhos semicerrados, o sorriso sonhador...

Acariciou o mamilo rijo até fazê-la arquear, apertan­do de novo seu braço. Inclinando-se, beijou-a, e colocou a mão sob o tecido, deslizando-a sobre a pele quente e acetinada, fazendo-a gemer em seus lábios. Ele nun­ca experimentara nada mais irresistível, provocante e sensual. Precisava vê-la por inteiro.

Abriu o vestido, expondo-a até a cintura. Ela ofegou, mas permaneceu quieta enquanto ele a devorava com o olhar. Os seios, fartos, eram um contraponto às formas suaves e delicadas do corpo.

A necessidade de possuí-la provocava-lhe dor. Não se lembrava de uma sensação semelhante. Todas as dúvidas e apreensões pareceram evaporar ante o calor escaldante do desejo mútuo. A urgência de penetrá-la era forte, mas o desejo de prolongar esse intervalo, de regozijar-se com a mágica da descoberta era mais in­tenso. Queria unir-se a ela por completo, corpo e mente, coração e alma.

Além disso, Faithe não era como as mulheres que ele já tivera, acostumadas à brutalidade e à rapidez das paixões masculinas. Não imaginava como tinha sido entre ela e Caedmon, mas, certamente, ele não a magoara. Mesmo com certo distanciamento, ela parecia ter sentido afeição por ele. Talvez Caedmon tivesse sido um cavalheiro na cama, e ele não poderia ser diferente. Após tudo o que tinham passado, não se arriscaria a perder o encanto do momento por nada no mundo, mui­to menos por ser apressado e rude.

Acariciou-a no rosto, no pescoço e nos seios, com deli­cadeza. Ouviu-a murmurar seu nome e outras palavras incompreensíveis. Ao tocá-la no umbigo, ela gemeu, mo­vendo de leve os quadris, excitando-o ainda mais.

— O que mais, Luke? — ela sussurrou. Ao ver a con­fusão em seu rosto, acrescentou: — O que mais você desejou fazer?

Ele fitou-a intensamente por um momento antes de deslizar a mão pelo ventre liso, até sentir a umidade que revelava o desejo que a consumia. Impaciente, tomado por uma urgência incontrolável, inseriu uma das per­nas entre as dela, ajeitando-se, como se fossem aman­tes antigos cujos corpos se conheciam e se encaixavam de maneira mágica. Procurou seus olhos ao penetrá-la com os dedos, e viu-os perder o foco, conforme ela arfava. Ele a acariciava com vagar e curiosidade, encantado com a sensação de calor.

Passando a outra mão por seu pescoço, ele a apro­ximou e tomou-lhe a boca num beijo longo e faminto, sem deixar de tocá-la intimamente, deliciando-se com os suspiros e arquejos de prazer. Percebeu que ela abria sua camisa, percorrendo seu peito com dedos ansiosos, e sentiu-a sussurrar em sua boca.

— O que mais, Luke? Ele hesitou por um instante, relutante em exigir muito, mas, ao mesmo tempo ansiando pelo toque. Tomando-lhe a mão, conduziu-a até o membro ereto e pressionou-a, esperando que ela não se ofendesse. Para seu alívio, ela começou a percorrê-lo com os dedos, roubando-lhe o fôlego, extraindo gemidos de seu peito.

— Ah, Faithe... — Ele movia os quadris, abandonando-se às carícias, sem deixar de tocá-la no mesmo rit­mo. — Sim...

Com o braço livre, puxou-a de encontro a si, sentin­do os seios quentes e úmidos de suor contra o peito. Enterrou o rosto nos cabelos sedosos, aspirando seu perfume, sussurrando seu nome, sentindo seu corpo tremer...

— Luke... oh, Deus, Luke.

Ao ouvi-la, soube que o momento chegara. Colocou-a de costas na palha e deitou-se sobre ela.

— Sim! — Ela correu as mãos por sua cintura, puxando-o, aproximando-o de seu corpo.

A forma como Faithe correspondia o surpreendia e deliciava. Afastou-se um pouco para se livrar da calça, no mesmo momento em que ela tinha decidido fazê-lo. Suas mãos se encontraram e se confundiram, fazendo-os rir por breves momentos, para então afastar o tecido.

Mais um relâmpago cruzou o céu, trazendo uma lembrança terrível à mente de Luke, fazendo-o fechar os olhos.

— Jesus Cristo! — Ele podia rever o rosto contorcido, na palha, o sangue escorrendo pelo canto da boca. Sentia aquele cheiro horrível... — Não — gemeu, pen­sando em Caedmon, um homem bom que fora vítima do selvagem Dragão Negro, em sua fúria incontida.

Cerrou os olhos com força. Por que tinha de rever aquela cena justamente agora, num momento tão in­tenso, de tamanho encantamento? Era cruel. Seu corpo esfriou. Sentiu-se horrível.

— Meu Deus!

— Luke?

Ao abrir os olhos, viu-a sentada, olhando-o com uma expressão preocupada. Ela fechou o vestido com uma das mãos, e estendeu a outra na direção dele. Luke, ins­tintivamente, afastou-se.

— Luke?

Outro relâmpago, outro trovão. Ele se levantou, apressado, amarrando novamente o cordão da calça, vendo o rosto lindo contraído de aflição. Ela aproximou-se, o braço estendido.

Ele se levantou bruscamente.

— Preciso ir.

— Ir?! — Fitou-o com olhos arregalados.

— Faithe... — Passou as mãos pelos cabelos. O que poderia dizer?

Por um longo instante, ela apenas o encarou. Logo, seu rosto adquiriu uma horrível expressão de tranqüi­lidade e a luz se apagou de seus olhos.

— Faithe... — Por que aquilo estava acontecendo? O que ele podia fazer? Ajoelhou-se, estendendo as mãos na direção dela, tentando encontrar palavras para ex­plicar o que tinha acontecido.

— Não! — Ela se afastou, levantando-se, segurando o corpete com as duas mãos. — Não me toque.

Não era a raiva na voz dela que provocava a dor no peito de Luke, mas a frieza no olhar, o distanciamento que nunca vira antes. Tinha ido longe demais. Ela esta­va se fechando para ele.

— Meu Deus, Faithe. — Levantou-se, com as pernas trêmulas, e afastou o cabelo do rosto. Nunca tinha im­plorado na vida, mas foi o que fez, com voz rouca. — Não faça isso, por favor. Eu não suportaria. Preciso de você.

— Você não precisa de ninguém. Nunca precisou de ninguém, muito menos de mim.

O peito dele agitou-se com uma risada triste ante essa afirmação. Ela tinha devolvido seu coração. Mais do que isso, ela era seu coração. Faithe o tornara huma­no de novo e, sem ela, voltaria a ser o animal que fora antes.

— Faithe, se soubesse o que está dizendo...

— Então por que não... — A voz dela falhou. — Por quê? — O queixo tremeu, os olhos brilharam. —Não entendo. Explique para mim. Você pode simplesmente me explicar?

— Não chore — ele disse, dando um passo cauteloso na direção dela.

Faithe esquivou-se e ergueu o queixo, tentando se controlar.

— Não se preocupe, milorde. Vou me esforçar ao má­ximo para que não me veja mais chorando.

— Faithe... — Ele cobriu o rosto com as mãos. Precisava pensar no que dizer a ela. Não podia perdê-la. Não podia deixar que isso acontecesse.

— Queria que eu confiasse em você — disse ela, com voz trêmula. Quando ele descobriu o rosto, viu que ela o estudava com aquele terrível olhar distante, os olhos repletos de lágrimas contidas. — Você me queria nos seus termos. Queria que eu ansiasse por você, que o desejasse. Você disse... que, apesar de nosso casamento ter sido arranjado de forma impessoal, não precisaria ser assim. E eu acreditei.

— Faithe...

— Tola que sou, acreditei em você. Pensei que qui­sesse... — Não conseguiu prosseguir, dando vazão às lágrimas.

— E eu quis. Eu quero. — Deu um passo na direção dela, fazendo-a recuar.

Ela esfregou o rosto com a manga do vestido.

— Talvez você até acredite nisso, mas eu não vou mais me iludir. Como nosso casamento pode deixar de ser apenas um acordo se você não se esforça para isso?

— Está enganada.

— Mesmo? Levei a sério sua palavra, Luke. Eu me arrisquei e me abri para você. Entreguei-lhe mais do que a qualquer um, e simplesmente porque você pediu. Você fez que eu me despisse da armadura, mas mante­ve a sua. E por isso que você não... — Olhou para o local em que estiveram deitados. — Você não me quer tão perto. Há algo dentro de você que jamais conseguirei atingir. Mas você me tocou, Luke. Profundamente. — As lágrimas corriam por seu rosto. Por mais que odias­se derramá-las na presença dele, era incapaz de contê-las. — Fez que eu me apaixonasse por você.

Ela o amava... Ela o amava! Alegria e desespero o tomaram.

— Você foi cruel — ela prosseguiu. — Não precisava fazer que eu o amasse. — Tentou passar por ele, mas Luke a segurou. — Deixe-me ir!

— Não posso. — Ele sabia que, se a deixasse ir, nada seria igual entre eles novamente. O frágil laço que os unia ficaria abalado. Aquilo era tudo o que ele tinha. Seu mundo inteiro fora construído ao redor desse elo, e não o perderia.

— O que mais quer de mim, Luke? — Tentou se li­bertar dele. — Quanto mais pretende tomar de mim? Quanto será suficiente?

— Faithe, fique quieta. Deixe-me tentar explicar...

— Suas palavras não significam nada para mim. As ações dizem muito mais, não acha?

Ele assentiu.

— Tem razão. Tenho sido um tolo. — Que seu pas­sado fosse para o inferno! Que Caedmon fosse para o inferno! Tudo o que importava agora era Faithe, e só conseguia pensar em uma forma de recuperar a ligação entre eles. Por que resistir quando ambos desejavam aquilo com tanto desespero? Abraçando-a, inclinou a cabeça para beijá-la, mas ela se afastou.

— Pare de me beijar. Deixe-me ir!

— Não. Não vai sair daqui até eu convencê-la de que...

O relâmpago iluminou o celeiro, e o trovão ecoou, fazendo-os estremecer. Faithe aproveitou o momento para se soltar e sair correndo em direção à porta, mas Luke alcan­çou-a. Ela lutou para se soltar, e a fúria contida nos gestos o surpreendeu. Devia ter realmente lidado muito mal com a situação para levá-la a tal atitude. Agora, precisava ten­tar reparar o dano. Ela tinha de deixá-lo se explicar...

— Pare — exigiu, mas ela se contorceu e o chutou, fazendo-o perder o equilíbrio.

Caíram os dois sobre o feno. Ele se virou, com rapi­dez, para protegê-la na queda, mas o gesto passou des­percebido. Faithe parecia um animal selvagem, raivoso e determinado a se libertar.

Com um dos braços, Luke envolveu-lhe a cintura e, com a outra mão, agarrou os dois pulsos. O vestido se abriu enquanto ela se debatia, os seios se esfregando no peito nu, os cabelos cobrindo seu rosto, inebriando-o com seu perfume, os quadris se movendo sobre os seus. O corpo de Luke reagiu, mas ela pareceu não perceber.

— Fique quieta — resmungou.

— Queime no inferno!

— Tenho certeza de que isso vai acontecer. — Girou o corpo, deitando-se sobre ela. Segurou-lhe os pulsos so­bre a cabeça com uma das mãos, enquanto, com a outra, a obrigava a encará-lo. — Faithe, escute.

Ela continuou se debatendo, alheia ao efeito que aqueles movimentos provocavam no corpo dele. Luke estava dolorosamente excitado.

— Solte-me. Eu detesto você!

Ele aproximou o rosto do dela. O contato com os seios macios e a textura da pele, o perfume e o calor dela qua­se o fizeram perder o controle.

— Eu amo você.

Aquilo pareceu confundi-la por um instante. Ela fi­tou-o nos olhos antes de menear a cabeça.

— Você não me ama.

— Que Deus me ajude, eu amo você — ele murmurou.

— Você não sabe o significado do amor.

— Talvez não antes, mas agora eu sei. Eu amo você, Faithe, e não posso deixá-la sair daqui sem saber dis­so. Não posso perdê-la. Meu Deus, isso me mataria. — Cobriu-lhe os lábios depressa, antes que ela pudesse responder, em um beijo possessivo, ao qual ela não cor­respondeu.

— Palavras — ela disse, tentando soltar as mãos. — Beijos e palavras. Eles não significam nada. Deixe-me ir.

Ele a soltou, surpreendendo-a ao erguer suas saias. Faithe sussurrou o nome dele, sem acreditar, quando ele abaixou as calças e deitou-se sobre ela.

— Por que está fazendo isso?— Ela respirava com dificuldade, empurrando seus ombros. — Por que acha que eu quero?

— Nós dois queremos. E precisamos disso.

— Não... E apenas um ato de compaixão. Solte-me! — Ela tentou acertá-lo com os punhos, mas ele os agar­rou e imobilizou-os de novo.

— Não me faça prendê-la, Faithe. — Deitado sobre ela, revelou sua excitação, preparando-se para possuí-la. — Isto não tem nada a ver com compaixão.

Ela sentia-se úmida, quente e pronta para ele. Parou de lutar e fechou os olhos.

Um trovão reverberou quando ele sussurrou seu nome. Apesar de não tê-lo escutado, Faithe abriu os olhos. Havia tranqüilidade neles, compreensão e acei­tação. Ele agradeceu a Deus.

Segurando as mãos dela, Luke mergulhou em seu corpo, com um gemido de prazer. Ficaram assim, imó­veis, as mãos unidas, por alguns momentos. Como ele ansiara por aquilo. Quantas vezes despertara à noite, suado e tremendo, desejando-a. Agora, não estava so­nhando. Estava dentro dela, acolhido, feliz.

— Amo você, Faithe — murmurou, com a voz trêmu­la, junto ao seu ouvido. — Juro por Deus. — Soltou-lhe as mãos devagar. Rezava, em silêncio, pedindo que ela também o desejasse.

Faithe abraçou-o, aproximando-o, enterrando o ros­to úmido no pescoço dele. Passando um braço sob seus ombros, e tocando, com a outra mão, seu rosto, Luke sussurrava palavras incoerentes de conforto conforme a beijava. Sabia, agora, que ela também o queria.

Faithe fitou-o, e o calor e a ternura refletidos no olhar profundo e cristalino o emocionaram. Ela ergueu a mão e acariciou-lhe o rosto. Sentindo os olhos arderem, Luke fechou-os, encostando a testa na dela. Tentou pronun­ciar seu nome, mas não conseguia falar.

— Shhh. — Ela percorreu suas costas e ombros com as mãos. — Shhh.

Luke ficou deitado sobre ela, desfrutando as sensa­ções, sentindo seu perfume, escutando a respiração rit­mada, aconchegado no corpo quente e suave...

Estar assim, deitado nos braços de uma mulher, intimamente ligado a ela, era uma experiência nova para ele. Sexo sempre tinha estado relacionado apenas à luxúria, era algo físico e rápido. Nenhuma das mu­lheres a quem pagara para dar vazão ao desejo havia acariciado suas costas com mãos gentis, ou sussurrado palavras carinhosas em seu ouvido. Nenhuma delas o tinha amado, e ele nunca amara nenhuma. Jamais fize­ra amor, de verdade, com uma mulher. Jamais se unira com tamanho contentamento a alguém, as respirações sincronizadas, os corações batendo como se fossem um só. Nunca fizera parte de ninguém, como agora.

Faithe traçava, com os dedos, círculos suaves e lânguidos em suas costas e ombros. A massagem leve, ao mesmo tempo, o apaziguava e estimulava. A pele se arrepiava, e o corpo parecia carregado de sensações.

Conforme ela prosseguia com aquele toque mágico, seus sentidos se concentraram no ponto em que esta­vam unidos. Ainda sem se mover, sentiu o calor e a su­avidade daquele corpo macio, sua excitação aumentou ainda mais, e ele pulsou com intensidade dentro dela.

— Você me diria de novo? — ela pediu, em voz baixa.

Luke sabia a que ela se referia. Apoiando-se em um cotovelo, tocou-a no rosto e sussurrou, carinhoso:

— Eu amo você, Faithe. — Beijou-a com ternura e repetiu: — Amo você. — Beijou-a outras vezes, murmu­rando palavras de amor e desejo em seus lábios.

Havia algo deliciosamente erótico em ficar dentro dela sem se mover, conforme seu desejo aumentava, tornando-se quase insuportável. Tocou-a nos seios, acariciando-os sem pressa, vendo-a arquejar, sentindo-a contrair-se ao seu redor.

Bastava. Agarrando seus quadris, começou lenta­mente a se mover, determinado a ser gentil. Cerrou os dentes, tentando conter a onda surpreendente de pra­zer que o assolou, querendo controlar a necessidade de investir com mais velocidade e força. Seu corpo inteiro tremia. Faithe suspirou, beijou-o no pescoço e, agarran­do seus ombros, acompanhou seu ritmo.

— É maravilhoso senti-lo dentro de mim — ela mur­murou, deslizando as mãos sobre seus quadris.

— Meu Deus... Não posso mais...

Ele se sentia prestes a explodir. Mudou a forma de se movimentar, tentando intensificar o prazer de Faithe, arrancando-lhe gemidos suaves. Acariciou seus seios, provocando os mamilos, tomando-os na boca, até senti-la totalmente abandonada às carícias.

— Sim... oh, Luke.

Ouvi-la sussurrar seu nome o excitou de maneira incontrolável. Estava, definitivamente, perdido. Sentia-se cada vez mais envolvido na onda crescente de prazer, movimentando-se com mais rapidez, apesar do esforço para se conter.

E, então, a expressão de Faithe mudou, ela se enrije­ceu e agarrou-o com força nos quadris. Ele sentiu-a tre­mer, arquear-se, inclinar a cabeça e gritar, contraindo-se ao redor de seu corpo.

— Meu Deus — ele gemeu. Seu corpo reconheceu o que estava acontecendo antes de sua mente, e ele rea­giu ao clímax de Faithe penetrando-a com uma urgên­cia selvagem. O instinto o impelia em direção à libera­ção, e ele se surpreendeu com a intensidade do prazer que experimentou. Ela o envolvia com os braços e as pernas. Seu corpo ainda estremecia quando ele se deu conta de que estivera perdido, sim, mas que Faithe o tinha encontrado.

Faithe permaneceu nos braços de Luke, tranqüila e ainda um pouco tonta, apreciando a força que sentia emanar dele. Trabalho duro e sexo eram reconfortantes para ela, assim como o ritmo do coração que batia no peito ao qual se aconchegava.

Nada havia com o que se preocupar agora. Estavam cansados, deliciosamente exaustos. Suas roupas esta­vam amarrotadas, largadas sobre seus corpos, porque queriam sentir o calor da pele um do outro.

A chuva ainda caía, mas tranqüila, embalando-os. Faithe jamais se sentira tão bem, envolvida por tama­nha paz. As revelações sobre Caedmon pareciam fazer parte de um passado muito distante. Não queria pen­sar em nada disso.

— Estamos vivendo um momento perfeito — sussur­rou, sabendo que Luke a ouvia. Passou os dedos entre os pêlos de seu peito, sentindo-os macios. — Tudo está bem. Nós nos amamos, temos um ao outro... Nada está fora de lugar...

Sentiu que ele ficava tenso.

— Algo errado? — indagou, erguendo a cabeça para fitá-lo.

Quando seus olhares se encontraram, percebeu que, no dele, havia a mesma inquietação que vinha notando nos últimos dias. Porém, ele desviou os olhos e respirou fundo.

— Não importa — ele murmurou. — Nada importa, além de nós.

Faithe observou-o com atenção.

— O que foi? Pode se abrir comigo. — Sabia que ele estava triste.

— Não, não posso. Gostaria muito, mas não posso. — Ele evitava encará-la. — Já... desejou muito poder voltar no tempo e desfazer algo?

— Sim... Acho que todo mundo já desejou isso algu­ma vez na vida... E o que quer desfazer?

— Algo que não posso revelar, que nunca vou lhe contar.

Ela pensou por instantes, tentando compreender.

— Já se confessou a um padre?

— Sim. E passei dois meses fazendo penitência em St. Albans. Mas há certos pecados que enegrecem a alma e que nunca a abandonam. E o meu é um deles.

Faithe respirou fundo, avaliando as possibilidades. Uma idéia terrível lhe ocorreu. Cerrou os olhos e mur­murou:

— Os soldados normandos... alguns deles... quan­do querem uma mulher... Bem, eles simplesmente a tomam.

Houve um instante de silêncio, antes que ele se in­clinasse sobre um cotovelo, encarando-a. A intensidade de seu olhar a atingiu.

— Sou culpado de muitos pecados, Faithe. Pecados horríveis, pelos quais pagarei nas chamas do inferno. Mas estupro não é um deles.

— Tem certeza? — O que mais queria, no momento, era acreditar nas palavras dele.

— O que houve entre nós... Faithe, eu ia perder você. Se usei de força para segurá-la aqui comigo, foi apenas para não deixá-la ir embora...

— Eu entendo. E acredito em você. É um bom ho­mem, Luke de Périgueux.

Ele sorriu, amargo.

— Já me chamaram de muitas coisas, mas nunca de bom.

Abraçaram-se, e continuaram deitados no feno, ou­vindo a chuva. Faithe segurou a cruz de madeira que ele trazia presa a um cordão no pescoço. Uma imagem vaga de Cristo estava esculpida nela, num trabalho artesanal simples, e, por isso mesmo, interessante.

— Um homem nobre como você deveria usar uma cruz de ouro... Isso se usasse uma... — Sentiu-o me­xer em seus cabelos. Devia estar tirando fiapos de feno deles.

— Fui eu que fiz esta.

— Mesmo?

— Sim. Na abadia, em Aurillac, quando era pequeno.

Faithe sorriu, imaginando-o menino, entalhando a madeira, Alex lhe dissera que o irmão se comprometia com tudo que fazia. Até mesmo quando tinham feito amor, ele a fizera sentir com profundidade cada mo­mento, vivenciar a paixão, dedicado que era também àquilo...

— E tem usado este crucifixo desde que o fez? Houve um tempo de silêncio. Teve a impressão de que ele sorria.

— Pode, até, surpreender-se, mas guardei essa cruz como lembrança de meu tempo no monastério. Parece sentimental demais, mas... gosto das coisas religiosas, das missas...

— Imagino que sim, já que fica tanto tempo conver­sando com o padre Paul depois delas, em especial aos domingos. Realmente acha, Luke, que está destinado a queimar no inferno?

— Receio que sim.

— Por quê? Por causa desse pecado misterioso do qual não consegue se livrar?

— Em parte, sim. Mas há também todos os anos em que vivi como soldado.

— Mas, Luke, até mesmo os padres dizem que não é pecado servir ao seu rei em batalhas.

— Sim, mas nem todos os soldados abraçam a vida militar e a guerra da forma que fiz.

— Mas também não é pecado tentar fazer algo bem, porque esse sempre foi seu modo de agir.

— Eu sei, mas... no meu caso, foi mais do que isso. — Luke sentou-se, de costas para ela. Passou os dedos por entre os cabelos e ficou calado por segundos. Então, disse: — Eu tinha doze anos quando me mandaram de volta para casa, da abadia, por ter fracassado em meus estudos religiosos. Meu pai deu-me uma opção bem simples: voltar a Aurillac e continuar estudando para me tornar padre, ou permanecer em Périgueux e aprender o ofício da guerra, com Alex. E eu escolhi. E agora me arrependo de todo coração. — Voltou-se para ela e sua expressão se suavizou. — Apesar de que, se eu tivesse me tornado padre, jamais teria me casado com você. Então, talvez, tenha valido a pena.

— Como pode dizer isso se acredita estar fadado ao inferno por ter sido soldado?

— Provavelmente sofrerei nas chamas do inferno um dia, mas, até lá, pretendo passar o resto da minha vida na terra com você. E isso vale mais para mim do que pode imaginar.

Ela sentou-se e começou a acariciar-lhe os cabelos.

— Continue o que estava falando sobre sua infância.

— Bem, eu não queria desapontar meu pai uma se­gunda vez. Então, dediquei-me ao treinamento e, quan­do fui chamado para uma batalha real, numa disputa particular na Aquitânia, agi como se fosse uma máqui­na de guerra. Matei muitos homens com meu arco na­quele dia. Acabamos com o inimigo. O suserano de meu pai me fez ajoelhar ali mesmo, no campo umedecido de lama e sangue e me ordenou cavaleiro. Foi quando co­meçaram a me chamar de Dragão Negro. Meu pai, cla­ro, ficou orgulhoso.

— E deve ter ficado, mesmo. Luke, você não fez nada de errado.

— Eu era tão jovem, tão... inconseqüente. Não me preocupava nem com a minha própria vida, quanto mais com a minha alma. E nunca senti remorso por ter matado tantos homens.

— Eles o teriam matado, se pudessem.

— Não se trata disso. Eu sempre fui muito violen­to. Escolhi me especializar no arco porque podia ma­tar à distância. Não precisava olhar nos olhos de quem estava matando, então nunca os imaginei como seres humanos de verdade. Eram apenas... o inimigo. E os mandava para a outra vida sem piedade. Só Deus sabe quantos eliminei.

Ela apoiou-se às costas dele, sentindo-as tensas.

— Por isso se atormenta tanto? Porque não se impor­tava com os homens que matava? E Alex? Importa-se?

— Ele sempre soube que seus adversários eram feitos de carne e osso. Nunca teve alternativa. Matar com a espada é algo muito pessoal. A primeira vez que matou, numa batalha, Alex chorou muito depois. E eu fiquei junto dele. Com o tempo, acabou se acostumando, mas de uma forma que eu jamais conseguiria. Aceitou o ato de matar, sabendo muito bem que estava eliminando uma vida. Eu, pelo contrário, continuei matando desordenadamente, sem saber ao certo o que estava fa­zendo. Até o dia em que... — Ele se deteve, mais tenso ainda.

— Sim...?

— Uma batalha tinha acabado de acontecer. Lembro-me de estar no pátio de um castelo, cercado de cadáveres de meus inimigos, muitos dos quais tinham minhas fle­chas transpassando seus corpos. O sol estava se pondo. Era um desses crepúsculos em que tudo parece inun­dado de tons amarelos e rosados, como se estivéssemos num outro mundo... Parecia tão diferente, tão irreal... E, estranhamente, foi a primeira vez que a realidade me atingiu. Faz sentido para você?

— Sim, acho que sim.

— Pois então. Fiquei atônito. Foi como se, de repen­te, eu percebesse o que estava fazendo. E os dias que se seguiram foram como um terrível pesadelo. Ficava horrorizado com a possibilidade de entrar no campo de batalha novamente. Achava que jamais seria capaz de apontar o arco contra alguém. Falei com um amigo, um arqueiro. Ele me disse que esse tipo de coisa acontecia de vez em quando, mas que havia uma cura. E me deu... — Luke baixou a cabeça e soltou uma imprecação em voz bem baixa.

— O que ele lhe deu?

— Ervas. Uma mistura que eu devia mastigar antes de um combate. Ervas que me transformaram num monstro. Ou melhor, que libertaram o monstro que eu já era e não sabia. Foi terrível, Faithe. Minha sede por sangue aumen­tou muito. Passei a não me importar em matar, e nem mesmo me lembrava depois do que tinha feito durante a batalha. Mas os homens me contavam o que eu fazia e como ficava feroz, selvagem. E me transformei num sol­dado em seu sentido extremo. Um herói. Mas jamais me senti um herói quando tinha calafrios e tremores convul­sivos que escondia de todos. Tremores que eram a conse­qüência das ervas.

— Essas ervas que mastigava deviam ter efeitos que incitavam à loucura.

— Em mim, faziam emergir a loucura que já exis­tia. Sempre houve um animal vivendo em meu peito, Faithe. Sempre... As ervas apenas soltaram-no de sua jaula.

— Não diga isso.

— Eu sei.

— Não, não sabe. Conheço bem as ervas e até imagi­no qual você deve ter mastigado na mistura de que fa­lou. Luke, certas ervas têm o poder de levar à loucura, sim. Transformam os homens. Tiram-nos da realidade. Aquilo em que você se transformou veio delas, das er­vas, não de dentro de você.

— Mas eu sempre agi sem escrúpulos no campo de batalha.

— Até esse dia a que se referiu, no pátio do caste­lo. Nesse momento, deve ter amadurecido. Criou uma nova consciência da realidade e passou a entender o que eram suas ações. Você mudou nesse momento, Luke!

Ele a olhava, mas parecia não vê-la, imerso em seus pensamentos.

— Você não queria mais prosseguir com aquilo — Faithe insistiu. — Mas quando começou a mastigar as ervas, não teve escolha. Elas trouxeram de volta a sede por sangue, da qual você já se livrara.

— Seria bom aceitar o que me diz, mas seria tam­bém um falso consolo. Minha alma é negra, Faithe.

— Acha mesmo? Então, como explica o fato de eu ter me apaixonado por alguém tão demoníaco?

Ele piscou várias vezes, como se enfrentasse um ar­gumento imbatível.

— Nunca me senti atraída por animais de coração negro antes — ela completou, com um sorriso.

— Bem, eu devo ter escondido minha natureza embrutecida desde que cheguei aqui.

— Não. Ela não emergiu porque não existe mais. E você nunca mais mastigou as tais ervas, então sua na­tureza real, que é boa, finalmente teve a oportunidade de se afirmar.

Luke cerrou os olhos.

— Adoraria acreditar no que diz.

— Então, acredite. E pare de se preocupar. Você é um homem bom, ou eu não o amaria como amo. Não ansiaria por você, não pretenderia ter filhos com você e envelhecer a seu lado.

— Oh, Faithe... — Luke beijou-a, apaixonado. Tornaram a deitar-se, esquecendo-se novamente de tudo que os rodeava, perdidos em beijos e abraços in­tensos, que poderiam ser eternos...

— Está vendo? — ela sorriu. — Tudo está bem. O passado se foi, e com ele, o Dragão Negro. Agora, há somente nós dois.

— Só nós dois... E nada mais importa... — Luke sor­riu, tocando com o nariz o rosto dela.

— Nada do que você tenha feito sob a influência das ervas pode ter manchado sua alma, meu amor. Deus é misericordioso e entende tudo.

Luke suspirou. Seus braços a prendiam de encontro ao corpo.

— Por isso gosto de missas — murmurou. — Posso mergulhar no ritual e achar que a redenção é possível. Posso sentir-me unido a Deus.

— E exatamente assim que me sinto quando olho para estas terras, para os animais e a gente que vive aqui. Receio não gostar muito de missas. Elas me pare­cem uma perda de tempo.

Ele riu.

— Já reparei como fica inquieta, querendo sair, em especial aos domingos. Nem presta atenção ao que o padre está dizendo.

— Exatamente.

— Eu sei. Sei tudo sobre você.

— Sabe? O que mais sabe sobre mim?

— Sei que gosta disto. — Ele se voltou para beijar-lhe o seio, fazendo-a arrepiar-se.

— Oh, não faça isso, pois não serei mais capaz de conversar com você, e nossa conversa está agradável.

— Também gosto de conversar com você. Mas gosto de outras coisas também... — Passou a acariciar sen­sualmente as curvas de seu corpo. — Você é muito... intensa. Eu não esperava... quero dizer... Nunca estive com uma mulher que... bem...

— Oh, você está corando. Esplêndido! Fiz Luke de Périgueux ficar embaraçado.

Os dois riram, abraçados.

— É que nunca estive com uma mulher que falasse tão abertamente sobre tais assuntos.

— Isso o desagrada?

— Isso me intriga. Tudo em você me intriga.

— Tudo?

— Tudo. O que está aqui... — Pôs as pontas dos dedos em sua testa. — Aqui... — Colocou a mão no seio esquer­do, sobre o coração, e sorriu. — E também o que está aqui... — Tocou-a entre as pernas, fazendo-a gemer.

— Gosto de seu toque — Faithe sussurrou.

— Sua intensidade é muito excitante. Achei que eu gritaria, no fim, quando você... bem...

— Quando eu atingi o clímax.

— Meu Deus, Faithe! — exclamou, rindo.

— Você gritou, sim.

— Gritei?

— Sim... E eu adorei. Queria ter continuado a sentir aquele prazer, sem parar... para sempre...

Luke beijou-a, encantado.

— Nunca estive com uma mulher quando... isso aconteceu com ela.

— Mas Alex disse que você teve muitas mulheres.

— Acho que meu irmão anda falando demais. Sim, estive com muitas mulheres, como todo soldado, aliás.

— Prostitutas.

— Exatamente. Elas gostam de terminar logo com tudo e ganhar seu dinheiro. Não sentem prazer, nem estão atrás disso.

— É triste.

— É, imagino que sim. Nunca pensei muito a res­peito. Quero dizer, eu sabia que elas estavam perden­do alguma coisa ao não... atingir o clímax. Mas nunca tinha me ocorrido que eu também estivesse perdendo. Nunca imaginei que pudesse ser tão bom estar dentro de uma mulher quando ela... — Luke interrompeu-se, olhando-a intensamente.

— O que foi? Em que está pensando?

— Que quero sentir de novo.

— Oh, é mesmo?

— Sim. Muito.

Faithe sentiu o coração se acelerar.

— Diga-me como tocá-la para que aconteça de novo — ele pediu suavemente.

Ela tomou-lhe a mão, levando-a até o ponto mais sensível entre suas pernas.

— Aqui? Assim? — Ele a descobria, apreciando suas reações.

— Humm... Sim...

Quando percebeu que ela perdia o controle, entregue ao prazer, sussurrou:

— Espere, Faithe. Quero sentir quando acontecer.

Luke penetrou-a, sem deixar de acariciá-la com os dedos, amplificando as sensações, enlouquecendo-a. Ofegante, ela se abandonou à espiral de prazer, atin­gindo o clímax. Sentindo-a contrair-se ao redor de seu corpo, Luke agarrou-a pelos quadris, movendo-se com rapidez, possuindo-a intensamente, até unir-se a ela.

Sem fôlego, Faithe deitou-se no feno, e logo sentiu os dedos trêmulos de Luke em seu rosto.

— Você está bem?

— Oh, sim — ela murmurou.

Ele suspirou, aliviado e, deitando-se ao lado dela, abraçou-a.

— Fui um pouco... bruto no final. Foi maravilhoso. — Acariciou seus cabelos e beijou-a na testa. — Tive medo de feri-la ou de desagradá-la. Não devia ter perdido o controle.

—Tolo... Você deve perder o controle. Aliás, devemos perder o controle juntos.

—Você tem uma forma tão diferente de dizer as coisas.

— Jamais poderia me ferir ou me desagradar.

— Passei a vida toda ferindo pessoas. É um hábito difícil de largar.

— Não foi você — ela disse, com firmeza. — Foi o Dragão Negro, e ele não existe mais. Morreu quando você parou de mastigar aquelas ervas.

— Pode ser, mas ainda tenho medo do que poderia acontecer se eu deixasse de me controlar.

Faithe encarou-o. Beijou-lhe com suavidade os olhos.

— Mesmo quando está dentro de mim? — pergun­tou, num sussurro.

— Especialmente quando estou dentro de você. Você não é como as mulheres com quem eu estava acostu­mado. Ainda não sei como fazer amor com alguém como você.

— Parece que está se saindo muito bem...

— Porque consegue perdoar minha falta de delicadeza. Ela riu.

— Há muitas coisas que espero de você na cama, Luke, mas delicadeza não é uma delas.

— Você é impossível! Sabe bem o que eu quis dizer.

— Sei, sim. Mas fazer amor deve ser algo alegre e sem restrições.

— Sempre me controlei, sempre me restringi. E tenho medo de me soltar agora. Você significa muito para mim.

— Oh, que homem tolo! — Tocou-o, gentilmente, com a ponta dos dedos, na testa, no nariz e nos lábios. — Um dia desses, tomarei essas rédeas que você mantém apertadas com tanta firmeza e vou mostrar-lhe como é bom livrar-se delas.

Os olhos de Luke escureceram.

— Acha mesmo que é uma boa idéia? Sorrindo, ela sussurrou em seus lábios:

— Sim.

 

Luke despertou lentamente. Piscou e bocejou, perce­bendo que o sol brilhava. Acordava tarde já que pas­sara a maior parte da noite fazendo amor com Faithe enquanto o restante de Hauekleah dormia.

Olhou para o lugar dela, na cama, que estava va­zio. Ela sempre se levantava bem cedo. Espreguiçou-se, satisfeito, sentindo as cobertas sobre o corpo nu. Sua nudez lembrou-o da noite e também da tarde de tempo­ral no celeiro. Sorriu. Era muito bom estar casado com Faithe de Hauekleah.

Pulou da cama e vestiu-se depressa, ansioso por vê-la novamente, abraçá-la, beijá-la. Riu de si mesmo, do es­tado de semi-embriaguez em que parecia se encontrar. Feliz, eufórico. Estava perdido e contente com isso.

Ficou ainda mais feliz quando a viu perto de uma ja­nela, inspecionando algo nas mãos. Porém, sua alegria se dissipou ao ver o administrador junto dela. Baldric também se encontrava ali, de braços cruzados, recostado à parede. Alex estava sentado num banco enquanto uma das gêmeas cortava seu cabelo, para desagrado de Firdolf, que, de cara amarrada, alimentava o fogareiro. Obviamente, a gêmea era aquela por quem estava apaixonado. E Luke imaginou como ele poderia amar uma e não a outra, já que eram tão iguais. O amor, concluiu, não conhecia lógica ou motivos.

— Bom dia, irmão! — Alex logo o saudou. — Acordou bem a tempo de almoçar. — Ria, como se soubesse o motivo pelo qual Luke dormira até tão tarde.

Faithe sorriu ao percebê-lo ali, e chamou-o com um gesto de mão.

— O que acha disto? — indagou, mostrando-lhe o objeto que segurava.

Luke aproximou-se, mas estacou quando viu o bro­che de Alex, com o lobo branco incrustado de pérolas. Olhou para o irmão, que também o observava, com as sobrancelhas levemente arqueadas. Percebeu que ele achava a situação divertida, o inconseqüente!

Pegou o broche, fazendo de conta que jamais o vira antes. Orrik fechou o cenho.

— Isso foi do demônio que matou Caedmon — rosnou o administrador, olhando para Faithe, e recebendo uma expressão de irritação em resposta. Pelo visto, ela o tinha repreendido severamente por ter mentido para ela durante tanto tempo.

— É de origem francesa — Alex comentou, com um gesto vago em direção ao broche.

Luke encarou-o, pasmo por ver que ainda oferecia uma avaliação tão precisa sobre o objeto.

— Mas é mesmo — Alex insistiu. — Qualquer um pode ver...

— Ele tem razão — Orrik confirmou. — Não é de fabricação inglesa, o que é óbvio pelo formato. E há essa inscrição em francês, atrás.

Luke virou o broche entre os dedos. Para meu amado filho mais novo: seja forte e corajoso.

— É muito parecido com o seu — Faithe comentou com o marido.

— Mesmo? — Orrik interessou-se.

— Sim — disse Alex, sorrindo para o irmão. — Têm a mesma forma, são do mesmo tamanho e o desenho da borda é quase igual. Poderíamos compará-los. Onde está o seu, Luke?

No fundo do rio, como Alex devia saber...

— Eu o perdi — ele mentiu, mais irritado ainda com a atitude do irmão.

— Perdeu o broche que seu pai lhe deu? — Faithe indagou, consternada. — Sinto muito. Vou pedir a todos que o procurem. Vai aparecer, você vai ver.

Ele esperava, sinceramente, que não. Se os dois bro­ches fossem comparados, seria o fim.

— Obrigado — murmurou, tentando sorrir.

— Mesmo que não o encontremos — interferiu Orrik. —, este é francês, com certeza.

— É mesmo — Baldric apoiou.

— E deve ter caído do manto de um soldado francês — Faithe analisou com seriedade. — Afinal, foi encon­trado em um... em um bordel, e os soldados costumam freqüentá-los, não? — Olhou ao redor, e os quatro ho­mens assentiram, embaraçados. — Tudo o que sabemos sobre esse broche é que pertenceu ao filho mais novo de alguém.

— E que ele é um assassino desgraçado que gosta de bordéis — acrescentou Orrik.

Faithe corou. Se o assassino de seu primeiro mari­do freqüentava um desses lugares, Caedmon também o fazia, já que a jóia fora encontrada num deles. Pegou novamente o broche das mãos de Luke e murmurou, com suavidade, mas firmeza:

— Pretendo encontrar o dono disto.

Luke percebeu, pelo canto dos olhos, que Alex já não sorria. Ela voltou a encará-lo, dizendo, triste:

— Ele era meu marido. Não posso deixar que isto passe em branco. Tenho de encontrar o homem que o matou. Não poderia viver com minha consciência se não o fizesse.

— Eu entendo. — Era o que ela queria ouvir e foi o que Luke disse. Faithe precisava de sua aprovação. Tinha de saber que ele aceitava sua decisão de encon­trar o homem que matara seu primeiro marido. Que ele fosse essa pessoa era algo que pretendia esconder a qualquer custo: Ela ficaria devastada. Ele seria arrui­nado e a perderia.

— Preciso descobrir por que Caedmon desapareceu em Hastings — Faithe continuou, pensativa. — E por que viveu e morreu assim... E vou levar seu assassino à justiça. Nada vai me impedir de fazê-lo.

Luke arriscou outro olhar a seu irmão. Alex conti­nuava sério.

— Vou investigar — disse Orrik. — Vou mostrar esse broche em todas as aldeias pelas quais os normandos passaram e...

— Não foi isso que andou fazendo até agora? — Faithe interrompeu-o.

— Bem, sim, mas vou ser ainda mais diligente ago­ra. Vou falar com todos os ingleses daqui até...

— Todos os ingleses?

— Sim. Cada homem, mulher...

— E por que não com os normandos? — ela sugeriu.

— Os normandos? Os soldados?!

— Sim.

— Quer que eu interrogue soldados normandos?!

— Se está à procura de um soldado normando... Quem melhor para identificar quem usava este broche do que seus companheiros?

— Milady, eu...

— Se restringiu suas buscas entre os ingleses, não é de admirar que, até agora, não tenha obtido resultado algum.

— Não vou implorar informações a esses malditos. Não vale a pena.

— Para mim, vale. Orrik engoliu em seco.

— Por que acha que vão colaborar? — indagou. — Não implicariam um dos seus no assassinato de um saxão.

— Orrik, há várias formas de se obter informações de gente que não quer colaborar. Você nem tentou.

— E não vou tentar. Nem mesmo pela senhora. Luke adiantou-se:

— Eu faço isso. — Todos o olharam, e Alex ergueu ainda mais as sobrancelhas. Pensando depressa, ele prosseguiu: — Sou normando. Falarão comigo. Não sou indispensável a Hauekleah como Orrik. Posso me au­sentar de vez em quando.

Alex assentiu, percebendo o motivo que levara o ir­mão a agir dessa forma. Se fizesse a investigação, Luke teria controle sobre o que fosse descoberto e revelado.

Faithe aproximou-se dele, tocando-lhe o peito.

— Faria isso por mim?

— Sim, claro.

— Você é um homem bom, Luke. Obrigada.

Tudo que ele pôde fazer foi assentir, com um nó enor­me na garganta.

— Talvez pudesse começar interrogando os homens de lorde Alberic, em Foxhyrst — ela sugeriu. — São seus amigos, você lutou ao lado deles. Eles decerto lhe dirão de quem é o broche.

— Se souberem. Há milhares de soldados normandos na Inglaterra, Faithe. Tentar encontrar um deles por meio de um broche não vai ser tão fácil. — Luke tentava parecer convincente.

Ela mexia na jóia sem parar, parecendo tensa.

— Se soubéssemos mais sobre este objeto, sobre sua origem...

— É, já sabemos que veio da França — Orrik observou.

— O Império Franco é imenso — Faithe analisou. — Isto poderia ter sido feito na Normandia, em Anjou, Poitou... em qualquer lugar. Se soubéssemos onde foi feito, daríamos um grande passo para descobrir seu dono.

Faithe era esperta demais, Luke considerou, e disse:

— É uma excelente sugestão, embora eu não possa imaginar de onde o broche tenha vindo.

— Acho que eu mesma posso encontrar alguém que me diga.

Ele a encarou, incrédulo.

— Um ourives em Foxhyrst, ao qual encomendei isto. — Ela mostrou a corrente que trazia ao pescoço.

— O único ourives que conheço lá é um judeu — ob­servou Baldric.

— Exatamente. Isaac Ben Ravid — Faithe escla­receu.

Orrik negou com a cabeça.

— Não. Não vamos obter informações com um in­fiel.

— Mas esse infiel em particular é um excelente ouri­ves — ela insistiu, severa. — Serviu a várias casas im­portantes da Europa antes de envelhecer e vir para cá.

— Como sabe disso? — Orrik quis saber.

— Porque converso com ele quando vou a Foxhyrst. Gosto dele. E já falamos a respeito de sua profissão vá­rias vezes. Ele até me disse que conhece muitos joalheiros pessoalmente.

Luke olhou uma vez mais para o irmão, e Faithe en­tendeu mal sua atitude.

— Não me diga que você também não fala com ju­deus!

— Não, claro que não! Vou a Foxhyrst amanhã mes­mo. — Era melhor resolver a situação o quanto antes, avaliou consigo mesmo. Poderia simplesmente passar a noite numa hospedaria e depois voltar dizendo não ter tido sucesso na investigação.

— E, enquanto nós estivermos por lá, poderemos falar também com os soldados da guarnição — Faithe animou-se.

Luke sentiu um frio no estômago.

— Nós? — perguntou.

— Sim. Vou com você.

— Não é necessário.

— Eu sei, mas posso ajudar porque Isaac me co­nhece. Poderá se abrir com mais facilidade comigo do que com um estranho. Luke, preciso participar disso. Consegue entender?

Ele assentiu, relutante. Entendia, mas a situação es­tava ficando cada vez pior. Respeitava a esposa por sua determinação e força de caráter. E o confortava saber que, se tivesse sido ele a morrer em um chalé em uma parte qualquer da Inglaterra, ela não descansaria até encontrar e punir o responsável. O problema era ser o alvo da justiça que ela buscava...

Luke não conseguia dormir. O ato de amor, que de­veria tê-lo deixado exausto e sonolento, somente apro­fundara seu remorso quanto à farsa que encenava para Faithe. Levantou-se, inquieto, e foi até a janela, que abriu, aspirando os odores agradáveis de Hauekleah. Não podia perder aquilo. Não podia perder Faithe.

Voltou-se e viu-a, coberta até a cintura. Na noite anterior, permitira que ela voltasse a dormir com suas preciosas chaves no pescoço. Agora observava o cordão de ouro no qual estavam penduradas, contrastando com a pele suave, macia. Faithe trancara o broche de Alex no baú cuja chave estava ali, junto a outras. Na manhã seguinte, ela o pegaria para irem a Foxhyrst começar as investigações. Se, ao menos, não tivesse deixado que ela ficasse com as chaves... Poderia pegá-las, abrir o baú, tirar o broche e jogá-lo no rio, como fizera com o seu. O roubo seria averiguado, mas ninguém suspeitaria dele.

Voltou para a cama e, com imenso cuidado, tocou as chaves. Segurou-as com firmeza para não fazerem ba­rulho. Seus dedos roçaram os seios de Faithe, e ele sen­tiu uma onda de desejo percorrê-lo. Sorriu, diante do poder que ela tinha de excitá-lo até enquanto dormia.

Com extrema cautela, foi erguendo o cordão, tentan­do passá-lo pela cabeça de Faithe.

— Luke? — ela murmurou, quando o cordão passava por suas orelhas.

— Sim... — Beijou-a, para distraí-la, recolocando as chaves na posição original, sobre seu peito. Claro que ela acordaria... Mas agira movido pelo desespero.

— Sonhei que estava me tocando — Faithe sussur­rou em seus lábios, antes de conduzir a mão dele para os seios. — Aqui...

— E eu toquei, mesmo.

— Humm...

Sorrindo, ele beijou e sugou de leve os mamilos intumescidos. Ao mordiscá-los, ela gemeu, fazendo-o deter-se de imediato.

— Machuquei você?

— Não... Você se preocupa demais com isso, sabia?

— Acha, mesmo?

— Sim. Precisa se soltar mais quando estamos jun­tos, fazendo amor.

— E que eu me preocupo com você. Amo você. Não posso dar vazão ao meu desejo como um animal des­controlado.

— Eu poderia até gostar disso...

Luke pensou em todos os encontros sexuais que tivera com mulheres às quais não dera a menor im­portância.

— Não deve encorajar minha natureza animal — murmurou, beijando-a no nariz. — Pode não apreciar tanto o resultado quanto imagina.

— Pare de se referir a si mesmo dessa maneira. Ainda acha que há uma criatura selvagem dentro de você e que, se baixar a guarda, ela vai escapar e eu vou sair correndo de medo.

A idéia o fez sorrir. Podia até tentar, mas não conse­guia visualizá-la correndo de medo seja de quem ou do que fosse.

— Essa criatura morreu — Faithe insistiu. — Foi re­sultado daquelas ervas. Será que é tão difícil acreditar nisso?

— Você me faz querer acreditar, como se pudesse ser verdade.

— Eu acho que você acredita aqui. — Tocou-o na tes­ta. — Mas não aqui. — Pousou a mão sobre seu coração conforme o beijava suavemente.

Luke correspondeu com paixão, abraçando-a e deitando-a sobre os lençóis.

— Vamos ter de acordar cedo amanhã — ela mur­murou, interrompendo o beijo. — Precisamos dormir.

Luke sorriu e colocou-se entre as pernas dela, penetrando-a suavemente, fazendo-a gemer de prazer.

— Pode dormir, então. Só vou dormir quando acabar aqui...

Ela riu. O momento era extremamente íntimo e eró­tico, o que os excitou ainda mais. Aceitou-o, movendo-se sinuosamente sob seu corpo.

— Achei que queria dormir — Luke sussurrou em seu ouvido.

— Seria muito rude dormir e deixá-lo sem companhia...

— Como você é gentil...

— Ora, não foi nada — Faithe respondeu antes de ser beijada.

A manhã já terminava quando avistaram Foxhyrst ao longe. Faithe percebeu que Luke parecia aborrecido e tenso. Suas respostas tinham sido curtas nas tentati­vas de conversa que ela fizera durante o trajeto, e agora estava ainda mais carrancudo. Imaginou que ele devia se sentir mal por voltar ao lugar onde havia sido solda­do, lembrando-se de como agira de forma bruta e vio­lenta. A cidade, com seu castelo de pedra, servia ainda de base para o exército normando. Havia ali, além das casas dos habitantes, tendas de oficiais por todo can­to. Seguramente, um daqueles homens reconheceria o dono do broche.

— Luke, e se o homem estiver ainda aqui? No caste­lo? E se o encontrarmos hoje? Alguém poderá apontá-lo... O que faremos?

— Isso não vai acontecer.

Faithe sentiu tanta segurança na resposta que não perguntou mais nada. Entraram na cidade e seguiram para o distrito judeu, passando pelas ruas estreitas e movimentadas, repletas de pessoas e animais. A maio­ria dos cavaleiros pelos quais passaram eram soldados normandos. Muitos deles acenaram para Luke, mas ele simplesmente os ignorou.

— Talvez, se falássemos com eles e lhes mostrásse­mos o broche... — Faithe observou, estranhando a ati­tude dele.

— Depois. Vamos primeiro falar com o ourives. Continuaram seguindo até o bairro judeu, bem mais tranqüilo. Faithe parou seu cavalo diante de uma casa grande, de janelas altas.

— Ele mora aqui — anunciou.

Apearam, e Luke bateu à porta. Ninguém respon­deu. Ele insistiu, e, novamente, não houve resposta.

— Ele não está em casa — disse.

Faithe aproximou-se e espiou por uma das janelas, vendo movimento lá dentro.

— Mas há alguém ali. — Fez menção de bater de novo, mas escutou uma voz atrás de si.

— Ele não vai abrir.

Um judeu de barbas longas os olhava, calmo.

— Por que não? — Luke quis saber.

— Hoje é o sabá. O velho Isaac nunca atende a porta no sabá.

Faithe e Luke entreolharam-se.

— Mas hoje é sábado — ela protestou. — Seu sabá é amanhã.

O rapaz judeu sorriu, complacente, e explicou:

— Nosso sabá é hoje. Isaac não recebe fregueses no sabá.

— Mas não somos fregueses. Queremos apenas falar com ele, fazer-lhe perguntas.

— Mas hoje ele não fala com ninguém. Se não forem da família, não os receberá. Voltem amanhã.

Faithe encarou Luke. Ele deixara bem claro, antes de partirem de Hauekleah, que queria voltar no mesmo dia, e que não ficaria numa hospedaria com ela.

— Podem continuar batendo, se quiserem — disse o jovem —, mas ele não vai atender. — Voltou-se e conti­nuou caminhando pela rua.

— Bem, é isso — Luke comentou.

Faithe olhou-o, estranhando seu jeito. Parecia ali­viado. Montaram novamente.

— O que vamos fazer agora?

— Voltar a Hauekleah. Posso vir sozinho na segun­da-feira e falar com o ourives. E posso interrogar os sol­dados também.

— Então, virei com você. Ele meneou a cabeça.

— Faithe, deixe-me cuidar disso. Precisam de você em Hauekleah.

— Mas achei que você entendia...

— E entendo, só não quero que... — Luke passou a mão pela nuca. Olhou para longe, depois voltou a enca­rá-la. — Não há um feriado na semana que vem?

— Sim. Quinze de julho. É um feriado religioso lo­cal. Vamos ter uma grande festa no campo de pastoreio, com música e danças. O abade de Ramsey mandou avi­sar que virá.

— Então... Não tem de supervisionar os prepara­tivos?

Ele tinha razão. Faithe mordeu o lábio inferior, pensativa.

— Talvez Moira ou Orrik possam...

— Você nunca deixa esse tipo de coisa nas mãos de outras pessoas. Se o fizer desta vez, não vai ficar sosse­gada, mesmo estando longe. E já que o abade vem, não acha que...

— Talvez possamos voltar aqui na semana que vem, depois do feriado. O que acha?

— Não sei. Os soldados poderão ter sido manda­dos a outros postos. E eu perderia a oportunidade de falar com eles. Não. É melhor eu voltar na se­gunda-feira, sozinho. — Luke inclinou-se na sela e tomou-lhe a mão. — Sei que gosta de se envolver em tudo. Mas prometo cuidar disso da melhor forma possível.

— Eu sei. Confio em você. Achou que eu não con­fiasse?

Luke pigarreou e soltou a mão dela.

— Você está estranho. O que houve?

— Nada... Estou com fome.

— Eu também.

— Então, venha. Vamos comer e beber alguma coisa, e depois voltaremos para casa. — Luke virou seu cavalo em direção ao centro da cidade, sendo seguido de perto por Faithe.

Compraram pastelões recheados. O comerciante, que Luke conhecia do tempo em que estivera em Foxhyrst, os fazia com capricho.

— Vou comprar um pouco de vinho naquela taberna, e poderemos comer durante o caminho de volta. — Luke disse, apontando para uma construção.

Faithe permaneceu no cavalo enquanto ele desmon­tava. Estava quase entrando na taberna quando uma voz alta chamou:

— Pelo sangue de Nosso Senhor! Se não é o Dragão Negro!

Ambos olharam para o grupo montado que passava. À frente, rodeado de soldados, vinha lorde Alberic. Um de seus oficiais tinha chamado por Luke. Pouco atrás, seguia uma liteira fechada que, muito provavelmente, trazia lady Bertrada.

— Milady... — Lorde Alberic inclinou a cabeça em direção a Faithe. — Sir Luke... Que prazer inesperado!

— Como está, lorde Alberic? — Faithe ainda se sen­tia desconfortável entre soldados normandos.

— Milorde... — Luke saudou seu suserano. E, voltando-se para o cavaleiro que o cumprimentara, disse: — Griswold, é bom revê-lo.

— Pensei que nunca mais fosse vê-lo — disse o ho­mem, sorrindo. Era forte, loiro, e tinha uma cicatriz que ia da têmpora esquerda ao queixo. — Não é de admirar que tenha se afastado de seus antigos com­panheiros, com uma esposa assim tão linda. Ela é sua esposa, não?

Luke a apresentou, contrariado, tanto a Griswold quanto aos outros cavaleiros, cujos nomes ela sa­bia que esqueceria. Todos, para sua surpresa, cumpri-mentaram-na com extremo respeito. Afinal, era saxã e achava que qualquer normando, exceto seu marido e seu cunhado, poderia vê-la como inimiga para sempre.

A cortina à janela da liteira se abriu e lady Bertrada colocou o rosto para fora.

— Lady Faithe! — exclamou, animada. — Que mara­vilha encontrá-la aqui! E sir Luke. Vieram nos visitar? Pena que não estivéssemos em casa. Fomos a Norfolk para comprar cavalos.

Faithe olhou para Luke, esperando sua decisão.

— Ficamos desapontados por não encontrá-los — ele mentiu. — Em especial por não encontrá-la, milady.

Um sorriso de pura alegria apareceu no rosto de lady Bertrada. Faithe imaginou que ela não estivesse acostumada a palavras tão gentis.

— Ah, mas vão nos acompanhar até o castelo!— ela exclamou, sem deixar a opção de uma recusa. — E vão almoçar conosco. Temos um barril de vinho excelente que gostaríamos de degustar em sua com­panhia.

— É muito gentil, milady, mas já estávamos voltan­do para casa — Luke justificou-se, simpático.

— Ora, e não podem adiar sua partida só um pou­quinho? Aliás, melhor ainda: podem ficar aqui, dormir no castelo e voltar amanhã cedo. O que acham? Não é uma excelente idéia? — Lady Bertrada olhou para o marido, esperando sua anuência.

— De fato — Lorde Alberic apoiou-a, mas sem muita convicção.

Luke vacilava. Griswold bateu em seu ombro.

— E poderemos falar sobre os velhos tempos!

— Não seria uma boa oportunidade de conversar com seus companheiros de armas, senhor meu marido? — Faithe animou-se.

— Sim, mas...

— E amanhã poderemos ir falar com o outro senhor que não pudemos encontrar hoje...

Luke cerrou os olhos por frações de segundo. Ao abri-los, resignou-se:

— Nesse caso... acho que não poderemos recusar o convite de lady Bertrada.

O castelo em nada tinha mudado desde os tem­pos em que Faithe o visitara, quando seus antigos ocupantes saxões ainda residiam ali. Era um lugar simples, quase rústico. No salão principal, havia inú­meros catres. Logo se deu conta de que, ali, não te­riam o conforto e a privacidade de que dispunham em Hauekleah.

Os criados serviram uma mesa imensa, à qual se sentaram os soldados e seu suserano. Lady Bertrada desculpou-se exaustivamente pela falta de confor­to maior e prometeu que, assim que o rei Guilherme permitisse, muitas melhorias seriam feitas ali. Por en­quanto, a prioridade continuava sendo manter o país invadido em paz.

— Duvido que chegue o dia em que possamos des­cansar e nos ater a tarefas mais agradáveis, como a reforma deste castelo — Lorde Alberic observou, da cabeceira da mesa. — Esses saxões são um bando de malfeitores em quem não se pode confiar...

Luke retesou-se ao lado de Faithe.

— Milorde, peço que tenha mais cuidado com o que diz, uma vez que está diante de minha esposa, que é saxã.

Alberic empalideceu. Desculpou-se e evitou dirigir-se a eles diretamente durante toda a refeição. Porém, sua esposa, mais eloqüente do que nunca, compensou o silêncio.

Comeram em paz e, quando já estavam saboreando uma sobremesa feita de amêndoas, Griswold aproxi­mou-se e sentou-se ao lado de Luke.

— E então, meu amigo? Tem se adaptado à vida no campo?

— Nunca me senti melhor.

Alberic, que prestava atenção à conversa, fechou o cenho. Faithe sabia que ele e Luke não se supor­tavam, embora não conhecesse o motivo. Também sabia que Hauekleah fora, para seu suserano, uma piada de mau gosto em relação a Luke. Certamente, ele não tinha gostado do fato de Luke apreciar a vida ali.

— É um lugar fértil e maravilhoso — ele continuou falando. — As pessoas são trabalhadoras e cooperati­vas. A mansão é excelente. E o que é mais importante: minha esposa é linda e carinhosa.

Alberic olhou para a própria esposa que, apesar de muito simpática, não poderia ser considerada uma mu­lher bonita. Ela comia e falava sem parar, alheia ao conflito de vontades que acontecia à sua mesa.

Faithe avaliou se seria uma boa idéia Luke provo­car seu senhor daquela forma. Alberic, afinal, era um homem poderoso que já mostrara ser capaz de atos ig­nóbeis em muitas ocasiões... Não desaprovava a atitude do marido, mas esperava que ela não se voltasse contra ele, um dia.

Luke observava com interesse a forma como seu suserano olhava para a própria esposa e depois para Faithe. Notou que os olhos de Alberic brilhavam e que suas narinas se dilatavam. Tinha vontade de rir do ho­mem que tentara pregar-lhe uma peça e acabara por torná-lo tão feliz. Decidiu colocar mais lenha na foguei­ra que queimava o orgulho de Alberic:

— Meu irmão falou de você, outro dia — disse a Griswold.

— Alexander? Ouvi dizer que uma dúzia de saxões os emboscou na mata.

Uma dúzia. Luke sorriu.

— Dois, para ser exato. Mas apareceram de surpre­sa, e um portava uma maça, com a qual fez um bom trabalho em Alex.

— Mesmo? E como está agora o Lo...

—Ótimo! — Luke interveio, antes que o outro pudesse terminar de pronunciar o apelido de seu ir­mão. — Excelente! Já está andando sem auxílio da bengala e consegue, até, montar. Aliás, está pensan­do, inclusive, em voltar ao serviço de nosso xerife no outono.

— Bem, mas o que ele falou sobre mim? — Griswold interessou-se.

— Disse que não sente muito a sua falta porque você não consegue manter a boca fechada.

O soldado irrompeu numa risada escandalosa.

— Claro que ele não usou termos tão... delicados quanto eu... — Luke acrescentou, fazendo-o rir ainda mais.

Todos à mesa riram, exceto Alberic, que parecia ig­norar a conversa de propósito.

— Devo dizer, Luke, que você está muito bem-humo­rado. Nunca o vi tão alegre.

— É que Hauekleah me deixa assim. — Ele tocou a mão de Faithe e apertou-a de leve, fazendo-a sorrir.

— Jamais pensei em ouvir isso de você, meu cama­rada. Já vi muitas coisas estranhas na vida, mas nada comparado ao Dragão Negro trocando o arco pelo arado e gostando disso.

— Sempre apreciei o trabalho no campo.

— E, ainda por cima, tem uma bela esposa! Não é de admirar que esteja tão feliz.

Pelo canto dos olhos, Luke percebeu que lady Bertrada segredava algo ao ouvido do marido, apon­tando para a taça de doce de amêndoas que ele tinha diante de si. Com uma careta, Alberic empurrou-a para ela, que atacou a guloseima com unhas e dentes.

— Foi um casamento excelente. Devo agradecer a lorde Alberic por isso.

— Eu nunca pensei que veria o dia em que você se acertasse com uma mulher — Griswold continuou, sin­ceramente admirado. — Nunca me pareceu ser do tipo que se casa.

Luke sentiu uma pontada de apreensão. Griswold era conhecido por seu gosto por prostitutas. Se alguém quisesse saber onde elas estavam numa cidade, basta­va perguntar-lhe. Sempre que Luke tinha precisado de uma, geralmente depois de uma batalha, quando seu sangue ainda estava fervendo, recorrera ao antigo com­panheiro de armas.

Tomaram mais alguns goles de vinho, que realmente era excelente, e Griswold comentou:

— Tenho tentado me lembrar da última vez que o vi... Acho que foi há quatro ou cinco meses, não? No dia em que tomamos o castelo Cottwyk, eu acho.

Ele sabia muito bem que sim. Luke soltou a mão de Faithe, que voltara a segurar com carinho, e bebeu mais um gole de vinho.

— É, foi — disse, seco.

O soldado cocou a cicatriz que tinha no rosto.

— Que cerco difícil foi aquele, não? Mandaram alcatrão em chamas pelas muralhas, sobre nós, lembra?

Luke nunca mais pensara naquilo. De repente, seus ouvidos encheram-se dos gritos dos homens queimando, em agonia, e do cheiro da carne que ardia, terrí­vel, nauseabundo. Lembrava-se de alguns disparos que fizera com seu arco. As flechas, certeiras, tinham atingido vários saxões nas ameias do castelo. Um de­les, ferido apenas no braço, acabara caindo, de barriga para cima. Era pouco mais do que um menino e seus olhos se arregalaram ao ver os soldados normandos aproximando-se. Os companheiros de Luke abriram-lhe o ventre, mas não o mataram, para que morresse devagar, em tremenda agonia, enquanto o castelo caía sob jugo normando. E então...

Bastava daquilo! Terminou seu vinho de uma só vez. Não queria mais se lembrar. Maldito Griswold, por tê-lo feito se lembrar...

— Seu marido foi o guerreiro mais feroz que já co­nheci, milady — Griswold voltou-se para Faithe com um sorriso nos lábios. — Uma verdadeira lenda! Os ini­migos tremiam quando ouviam seus gritos de guerra.

— É, ouvi dizer... — ela murmurou.

Luke cerrava os dentes ao vê-la exposta a tais co­mentários.

— É... e aquele cerco foi, de fato, terrível. — Griswold parecia rever os fatos. — E logo depois, você ficou deses­perado por uma boa...

Luke olhou-o, furioso.

— ...dose de conhaque, dos mais fortes — ele comple­tou, com um sorriso.

Preciso de uma mulher. Urgente. Essas tinham sido suas palavras, ainda movido pelo efeito das ervas, tre­mendo dos pés à cabeça, com a sede de sangue queimando-lhe as veias. Griswold indicara o lugar, na mata, onde havia apenas uma prostituta, que ele dissera não ser grande coisa, mas que faria o serviço por duas mo­edas, o que era de admirar, já que a maioria delas saía correndo quando via os soldados normandos.

— Está se lembrando? — Griswold indagou agora, com um sorriso debochado nos lábios.

— Não — Luke mentiu. Não se lembrava de nada claramente até agora. Sabia que ele estava se divertin­do à sua custa, e sentia-se mal com aquilo. Não queria se lembrar daquele dia amaldiçoado, em especial com Faithe presente. Por isso disse:

— E vocês? Ainda jogam dados do lado de fora das tendas quando não têm nada para fazer?

— Ah, mas claro! Por quê? Está com vontade de per­der algumas moedas?

Luke levantou-se.

— Não. Mas estava pensando em esvaziar seus bol­sos. Isso, se minha esposa não se importar... — Voltou-se para Faithe.

Ela sorriu.

— Não, claro que não.

Ambos saíram para o dia ensolarado, Griswold ba­tendo nas costas do amigo enquanto se encaminhavam para as barracas dos soldados.

— Senti sua falta desde que desapareceu depois do cerco a Cottwyk. Disseram-me que tinha se tornado monge, mas não pude acreditar. Como você poderia fa­zer voto de castidade, afinal?

Luke imaginou que falar em sexo devia agradar so­bremaneira ao antigo companheiro.

— Luke! — A voz de Faithe o fez voltar-se. Ela vinha em sua direção.

— Aconteceu alguma coisa? —perguntou, preo­cupado.

— Não...

Tarde demais, ele percebeu que ela enfiava a mão no decote para pegar o broche de Alex. Tomou-o rapida­mente, mas Griswold já o tinha visto.

— Esse não é...?

— Não fazemos idéia a quem pertence. — Luke lan­çou-lhe um olhar significativo.

— Mas me pareceu ser... Deixe-me ver.

— Se souber a quem pertence... Estamos muito inte­ressados — Luke observou, mas seu tom era de aviso.

—O dono desse broche é um assassino e estamos atrás dele — Faithe explicou.

Griswold olhou para ela, depois para Luke, sem en­tender.

— Um... assassino?

— Parece que sim — Luke confirmou, com cuidado.

Um sorriso malicioso apareceu no rosto de Griswold.

— Bem, deixe-me ver o broche, Luke, para que eu possa, ou não, identificá-lo. — Estendeu a mão. — Vamos lá, mostre-me.

Depois de sustentar o olhar divertido do soldado por alguns segundos, Luke, por fim, soltou a jóia em sua mão. Ele observou-o com atenção, ergueu-o contra o sol, e disse:

— Mas que coisa! Olhe só!...

— Reconhece-o? — Faithe perguntou, ansiosa.

— Parece que sim...

Ela arregalou os olhos enquanto Luke cerrava os seus.

— E então?

— É um lobo...

— Sim, é claro que é — ela confirmou. — Mas...

— Interessante... — Griswold aproximou o broche de seu nariz. — Olhando bem de perto, não se vê direito o formato. Mas, a certa distância... — Afastou-o nova­mente. — Só pode ser um lobo!

— Sim, mas a quem pertence? — Faithe insistiu, ir­ritada.

— A quem?

— Sim!

— Não sei... — Devolveu a jóia a ela e sorriu para Luke. — Sinto muito.

Luke tomou o broche das mãos dela. Viu que havia tamanha decepção em seu olhar que se sentiu o último dos homens.

— Vou mostrar aos outros — prometeu.

— Está bem. — Ela apertou-lhe o braço, agradecida, e se afastou.

Griswold observou-o em silêncio e, quando Faithe desapareceu por onde viera, indagou:

— Pronto para o jogo?

— Sim.

Continuaram a caminhar. Luke sabia que o compa­nheiro não perguntaria mais nada.

— Apostas de sempre? — Griswold quis saber, quan­do chegaram.

— Tem tanto assim aí com você?

— Não, mas você deve ter. E vai me deixar ganhar, não vai? — ele piscou, malicioso.

Luke teve de sorrir. O preço, afinal, era baixo para o favor que ele tinha acabado de fazer.

 

A prostituta gritou quando o clarão do relâmpago e o som do trovão chegaram aos seus ouvidos. Por que ela estaria gritando? Luke levantou-se e sentiu o cha­lé inteiro girar. Subiu a escada de madeira conforme os gritos ficavam mais e mais altos. Estava escuro lá em cima. Até que outro relâmpago iluminou momen­taneamente o lugar e pôde ver o saxão sobre a palha. Era jovem, pouco mais do que um menino, e seu ven­tre tinha sido aberto, expondo os intestinos que saíam como se fossem serpentes avermelhadas. Na verdade, era ele quem gritava. E então... Respirando em profunda agonia, o menino olhou para o arco nas mãos de Luke e depois para seus olhos. Tinha olhos iguais aos de Faithe. Suaves olhos ingleses... Dizia "por favor", em sua língua nativa... Os companheiros de Luke riram do pedido do garoto. E ele deu as costas ao jovem e foi embora. O Dragão Negro não tinha o menor interesse em misericórdia.

— Não — gritou, sentando-se, tremendo dos pés à cabeça, mas afastando o cobertor. Seu coração batia tão forte que parecia prestes a explodir 'a qualquer momento.

— Luke? — O chamado, doce, veio da escuridão.

— Faithe? — Olhou ao redor, desesperado, pois não conseguia enxergar coisa alguma. Tinha noção, porém, de não estar em sua própria cama.

Mãos suaves alcançaram-no e secaram o suor de seu rosto.

— Estamos no salão do castelo de Foxhyrst — ela explicou, com carinho. — Lembra? Estamos passando a noite aqui.

Ele correu a mão trêmula pelos cabelos.

— Sim, lembro.

Tinham sido obrigados a partilhar o salão com mais de vinte outras pessoas, dentre visitantes, criados e soldados para quem não havia espaço nas barracas. Luke escolhera um lugar afastado, e colocara o catre de Faithe entre o seu e a parede, tentando proporcionar-lhe um mínimo de privacidade. Ela dormia com o vesti­do; ele, com a camisa e a calça, já que tirara a túnica.

— Teve um pesadelo? — ela perguntou.

— Sim.

O ruído provocado pelo farfalhar do vestido chegou a seus ouvidos quando ela deixou seu catre para juntar-se a ele. Luke abraçou-a, agradecido pelo conforto. Sentiu o beijo quente no pescoço e cerrou os olhos.

— Quer falar a respeito?

Depois de um suspiro, começou a contar, em voz bem baixa para não despertar os outros:

— Havia um menino. Eu não me lembrava dele... até hoje, quando Griswold falou sobre a tomada de Cottwyk. Era um garoto saxão. Eu o feri e ele caiu, a alguns metros de mim. Alguns de meus companheiros... Oh, Faithe, não vai querer ouvir isto...

— Conte-me — disse, com firmeza e determinação.

— Jesus Cristo!... Eles... eles o estriparam.

Os braços dela apertaram-se em torno de Luke, num reflexo.

— Eu disse que não ia querer ouvir.

— O que houve, então?

— Eu não queria me lembrar do resto. Forcei-me a não pensar mais, mas agora, em meu sonho... tudo vol­tou. O menino me fitou. Primeiro, olhou para meu arco e depois para mim. E falou, em inglês: por favor...

—Oh, Deus...

— Estava implorando para que eu o matasse, Faithe. E eu não o fiz.

— Oh, Luke...

— Dei-lhe as costas e fui embora.

— Por quê?

— Porque eu era um monstro, sem consciência, sem piedade. Não era... humano.

— Estava sob a influência daquelas ervas. Hoje em dia, jamais agiria da mesma forma.

Era verdade, Luke reconhecia.

— Você me domou...

— Não foi preciso. As ervas é que o forçavam a sair de si mesmo.

Ele assentiu. Eram as ervas...

— Sinto por ter sido forçado a se lembrar disso.

— Aqui, em meio aos meus antigos colegas, falando com Griswold... fui me lembrando mais e mais do que houve naquele dia. E não sei o que fazer a respeito. — Queria, muito, lembrar-se do motivo que fizera aquela prostituta gritar, mas ainda não conseguia.

— Não se torture tentando se lembrar do que fez ou viu quando estava sob o efeito das ervas — Faithe aconselhou. — Seria como tentar encontrar a razão em meio à loucura. Tire isso de sua cabeça.

Ela tinha muito bom senso, Luke reconheceu. Mas aquele dia horrível, encoberto por um manto de sangue, era difícil de esquecer. E, conforme esse manto se er­guia, mais os fatos iam ficando claros, mas outras per­guntas surgiam. Por que a prostituta gritara, afinal?

— Vamos, não pense mais. Tente dormir.

— Não vou conseguir.

— Então, vamos fazer amor.

— O quê? — ele riu. — Aqui?!

— Por que não? — Faithe mordiscou seu pescoço, en­viando uma onda de calor por todo o seu corpo.

— Não podemos.

— Podemos, sim. — Moveu-se contra ele, provocando-o ainda mais.

Imaginar que ela se mostrava sempre tão recatada e respeitável, mas que, na cama, era ardente e fogosa deixou-o louco.

— Como pode querer tal coisa? — protestou, num sussurro. — Pare de se mexer assim. — Tentou detê-la com ambas as mãos.

— Por quê? Não gosta? — As mãos dela, ao contrário, buscavam por ele, tocavam-no, incendiando-o. — Gosta, sim. Estou sentindo...

— Claro que gosto, mas não estamos sozinhos aqui, pelo amor de Deus!

— Ora, estão dormindo...

— É, e vamos acordá-los!

— Não, se ficarmos bem quietinhos. — Ela continu­ava, com mãos hábeis e ansiosas, a acariciá-lo, insinuante e ousada.

— Não faça isso — Luke gemeu, mas já não tentava detê-la.

— Isso? — Ela o tocava com firmeza, do jeito que agradava a ele.

— Oh, meu Deus, Faithe...

Ela deitou-se sobre ele e, com uma perna de cada lado de seu corpo, ergueu o vestido.

— Não, Faithe. Aqui, não. Inclinando-se, ela murmurou em seu ouvido:

— Nunca fez isto com outras pessoas por perto?

— Sim. — Já tinha estado com prostitutas na pre­sença de outros. Partilhara uma mulher com seus com­panheiros em muitas ocasiões, e também estivera em bordéis em que havia mulheres com outros clientes, to­dos no mesmo cômodo. Mas era soldado naquela época, ansioso apenas pelo prazer físico, e a situação era dife­rente. — Elas não eram como você, que é...

— Nobre e refinada? — Faithe completou, rindo, conforme abria a calça dele. — Criada num convento... Facilmente perturbada... Chocada, até...

— Nada a choca?

— E bom ficar chocada de vez em quando. Mantém o equilíbrio do corpo... — Ela riu suavemente. — Oh, Luke, você está pronto para mim... E eu para você...

— Vamos lá para fora — ele disse, pegando-a pela cintura. Porém, Faithe agarrou suas mãos e segurou-as de cada lado de sua cabeça.

— Não me force a prendê-lo.

Essas tinham sido as palavras dele no celeiro, desti­nadas a subjugar e a controlar. Surpreendeu-se ao ou­vi-las, e, por instantes, parou de lutar. Ela aproveitou para se posicionar sobre ele.

— Faithe, não...

— Não o quê? — Segurando-lhe os pulsos, ela se en­caixou e deslizou sobre o membro túrgido.

Ao sentir o calor e a deliciosa pressão do corpo femi­nino, Luke gemeu.

— Shhh...

— Não acredito que esteja fazendo isso.

— Fique quieto. Não fale. — Beijou-o, sensual, pro­vocante, e Luke sentiu, para sua própria surpresa, que gostava de ser dominado dessa maneira.

Era bom senti-la assim, com o controle da situação, seduzindo-o, quase, mas não totalmente, contra sua vontade. Era bom ficar ali, deitado, parado, deixando-a agir... Era delicioso sentir-lhe os beijos molhados, as mãos segurando as suas e o corpo envolvendo o seu, num abraço íntimo e quente. Quando começou a reagir, movendo os quadris, ela quase se separou dele.

— Não — ralhou, num sussurro. — Não se mexa e não fale.

Ele forçou-se a ficar quieto, sentindo-se arder, o cora­ção batendo com força, parecendo prestes a explodir, o corpo doendo de prazer. O controle era dela naquele ato de amor lento e agonizante.

Ao percebê-la respirando mais depressa, próxima do clímax, implorou:

— Mais depressa...

— Shhh...

— Deus do céu, Faithe! — Sem suportar mais, sol­tou as mãos e puxou-a pelos quadris, acelerando os movimentos. Sussurrou o nome dela e murmurou pa­lavras desconexas até que, juntos, atingissem o prazer máximo. Ele sentiu-se consumido pela sensação de um modo que nunca imaginara ser possível. Seus gemidos se misturaram e tiveram de beijar-se para abafá-los.

Sem fôlego, ficaram abraçados, naquela mesma posição, exaustos, até que os tremores passassem. Depois, beijaram-se, riram e trocaram juras de amor.

Quando Faithe adormeceu, Luke puxou o cobertor sobre eles. Naquele dia, no celeiro, ela tinha ameaça­do tomar as rédeas que ele segurava com tanta força e mostrar-lhe como seria livrar-se delas. E era exatamen­te o que tinha feito. Sua doce esposa saxã era sábia de uma forma estranha e misteriosa. Exercera uma au­toridade sexual sobre ele, algo que acreditava ser seu domínio exclusivo.

Faithe o tinha chocado, e ele gostara.

Conforme o sono o tomava, ele pensou, sorrindo, que nunca se sentira tão perfeitamente em equilíbrio.

 

— Aquitânia — disse Isaac Ben Ravid em seu sotaque carregado assim que Faithe lhe apresentou o broche. — É da Aquitânia.

— Tem certeza? — ela indagou.

Luke cerrou os olhos e passou os dedos pela testa. O ourives encarou-os com certo distanciamento, como se a pergunta de Faithe o tivesse ofendido.

— Sinto muito. Não quis parecer desconfiada, mas é que... o senhor mal viu a peça...

Isaac apontou para a mesa velha à qual se sentava, e Faithe depositou ali o objeto. A sala alta e ilumina­da nos fundos da casa, que lhe servia de oficina, tinha duas janelas enormes. Ao redor, dispostas em diversas prateleiras, estavam peças dos mais diferentes tipos, desde jóias até objetos sagrados, como cálices e crucifi­xos, obviamente encomendados por alguém da igreja.

Ele inclinou-se sobre o broche, pegou uma espécie de lente minúscula e se pôs a observar com atenção o desenho ali incrustado.

— O trabalho na beirada é típico das regiões ao sul do Império Franco — analisou, sem erguer a cabeça. — E a forma de trabalhar o ouro também.

— E por que disse ser da Aquitânia? — Luke inda­gou. — Não poderia ser de Tolouse ou da Gascônia?

O velho senhor ergueu os olhos e sorriu com in­dulgência.

— Há um mundo de diferenças entre um broche de Toulouse e outro da Aquitânia. Este me lembra as pe­ças que vi em Ventadour e Périgueux. O joalheiro que a fez só pode ser dessa região.

— Périgueux? — Faithe murmurou. Luke contraiu o maxilar até sentir dor.

— Ou Ventadour — insistiu o ourives. E, virando a peça, leu a inscrição, indagando: — Isto pertenceu a um soldado?

— É o que achamos. — Faithe sentou-se à mesa, encarando-o.

— Parecem ser palavras de um pai que se despede de um filho que vai para a guerra... Por que estão pro­curando o dono? — Isaac devolveu-lhe o broche.

— Ele matou meu primeiro marido.

— Oh... Então, deve responder por seu crime.

— É o que pretendo. Obrigada pela atenção. — Ela se levantou e, despedindo-se, deixou a oficina, junto de Luke.

— Périgueux, então... — Orrik disse, virando o bro­che entre os dedos.

— Ou Ventadour — Luke apressou-se a esclarecer. — É de algum lugar na Aquitânia.

— Isaac me pareceu muito seguro do que dizia — Faithe acrescentou, aceitando a taça de vinho que Bonnie lhe servia. Mal tinham chegado, e Orrik já co­meçara a fazer perguntas sobre a viagem. Tinham pa­rado, então, ali mesmo, no salão de Hauekleah.

Alex aproximou-se e pegou o broche das mãos do ad­ministrador, observando-o como se pouco o conhecesse.

— Parece, mesmo, com o de Luke — comentou. — Mas já sabíamos disso.

Luke também recebeu sua taça de vinho e bebeu em silêncio.

— Périgueux... — Orrik repetiu, pensativo. — Talvez isso facilite as coisas. As pessoas de lá tendem a ser bem mais morenas do que as do Norte... Vocês dois são bons exemplos disso.

Os dois irmãos se entreolharam, e Faithe percebeu o gesto.

— Conhecem alguém? Outro soldado que tenha vin­do da Aquitânia? — ela perguntou.

— Não — responderam os dois, juntos.

— Oh... Não vai ser tão fácil assim... Um soldado mais moreno do que os outros... É tudo que sabemos...

— Podemos começar a fazer perguntas por aí — Orrik sugeriu. — Baldric e Nyle, seu irmão, podem ser poupa­dos do trabalho aqui e ajudar, além de alguns outros.

— O que pretende fazer exatamente? — Faithe quis saber.

— Eles podem começar a investigar em Cottwyk e passar depois por todas as aldeias da região até que o dono do broche seja identificado. Vai ser um trabalho bem mais minucioso do que o que pude fazer, afinal, dispomos de mais informações agora. Alguém vai aca­bar descobrindo algo.

Faithe voltou-se para o marido:

— O que acha?

— Não sei...

Orrik ergueu as sobrancelhas.

— Tem uma idéia melhor? — desafiou.

— Vou mandar alguns homens a Hastings. Houve um momento pesado de silêncio.

— Hastings — Orrik repetiu.

— Acho melhor começarmos pelo começo — Luke explicou. — Caedmon desapareceu de lá em outubro. Quero saber o motivo antes de seguir seus movimentos durante o inverno.

— Mas por quê? É a morte dele que estamos investi­gando, não seu desaparecimento ou o que lhe aconteceu no inverno — Orrik contrapôs.

Alex afastou-se, indo até a janela, enquanto seu ir­mão esclarecia:

— Quanto mais soubermos o que o tirou de Hastings e como viveu depois disso, melhor poderemos saber dos fatos que levaram à sua morte.

— Ah, não concordo... — Orrik disse, cruzando os braços.

— Talvez as circunstâncias de sua morte não sejam o que parecem — Luke insistiu. — Talvez por isso você não tenha conseguido descobrir nada em suas investi­gações, porque imaginou que Caedmon tenha sido mor­to por causa de uma... — Ele olhou, embaraçado, para Faithe. Então, prosseguiu: — Bem, de qualquer forma, pode não ter sido bem assim. Caedmon pode ter conhe­cido o homem que o matou. O fato pode não ter tido nada a ver com a tal mulher. E se...?

— E se...? E se...? — Orrik resmungou. — Isso é absurdo! Caedmon morreu porque algum maldito normando não quis esperar a vez para usar a prostituta! — Ele se voltou para Faithe: — Desculpe. Mas, pelo amor de Deus, sabemos como ele morreu, por que morreu, e isso não tem nada a ver com seu desaparecimento em Hastings!

— Acho que tem — Luke teimou.

— Pois, então, é um tolo!

— Orrik! — Faithe o repreendeu.

— E, francamente... — ele continuou, parecendo alheio à fúria de Faithe. — Estou curioso para saber por que quer conduzir essa investigação tirando-a do rumo certo. Mandar nossos homens a Hastings vai ser uma perda de tempo.

— Eu, obviamente, discordo — disse Luke.

— E isso deveria ser o suficiente para que se calasse — Faithe dirigiu-se a Orrik. — Luke manda aqui, não você. E, se ele quer enviar os homens a Hastings, assim será.

Orrik meneou a cabeça e encarou Luke.

— Sabe quem é o assassino, Périgueux? É por isso que está tentando nos desviar dele?

— Ah, já chega! — Ela se irritou.

— Talvez ele seja um velho amigo seu... — Orrik per­sistiu.

— Pare com isso, Orrik!

— Pense bem, milady. Esse homem veio da mesma região, e talvez até da mesma cidade, que o assassino. Podem ter se conhecido, podem, até, ter sido amigos de infância. Por que ele estaria mandando nossos homens a Hastings, se não fosse para ocultar a culpa de um companheiro?

—Você passou dos limites — Faithe afirmou, em voz baixa e firme.

— Mas, milady...

— Nem mais uma palavra, ou o tirarei de seu posto. Houve alguns segundos de absoluto silêncio.

— Como quiser, milady — ele disse, por fim, fazendo uma mesura e se retirando.

Luke passou a mão na testa. Alex, ainda junto à ja­nela, estava sério, o que era muito raro.

— Vou... ver como estão as videiras — Faithe mur­murou, numa desculpa para poder sair dali e respirar um pouco de ar puro.

Faithe teve a idéia enquanto caminhava em meio às parreiras carregadas de cachos. Luke não ia gostar, mas sabia que precisava fazer isso. Andava lentamen­te, desfrutando da privacidade e do silêncio, quando avistou um homem se aproximando dela.

Ficou irritada, imaginando que se tratasse de Orrik. Porém, sorriu ao perceber que era Luke. E, quando ele a alcançou, lançou-se em seus braços, aspirando seu per­fume, sentindo a proteção de seus braços fortes. Quando ele beijou seus cabelos, sussurrou, subitamente feliz:

— Amo você, Luke de Hauekleah.

— Luke de Hauekleah — ele murmurou. — Gostei de como soa.

— Ora, você devia dizer: Também amo você. Ele riu.

— E amo. — Ficou sério, de repente. — Amo-a tanto que, às vezes, chega a doer. Porque temo perdê-la. Se... deixar de me amar, Faithe, não vou sobreviver.

Faithe o encarou.

— Por que está dizendo isso? Nada me fará deixar de amá-lo. — Abraçou-o. — O que o faz pensar isso?

Após alguns instantes, Luke respondeu:

— Devo estar com fome, e isso me faz pensar bobagens. Aliás, vim para chamá-la para o jantar.

— Já?

— Está na mesa, ao que parece.

— Luke... — Ela apertou-o com mais força e encos­tou o corpo ao dele. — Vou a Cottwyk.

Ele engoliu em seco.

— Por quê?

— Quero ver o túmulo de Caedmon. E há outros mo­tivos também. Sei que acredita que as respostas não estão lá, mas... talvez estejam. Não quis dizer nada diante dos outros, mas acho que seria esclarecedor se falássemos com os habitantes de lá e, se pudéssemos, ver por nós mesmos onde tudo aconteceu...

Ele fitou-a intensamente, apertando seus ombros.

— Quer ir àquele bordel?!

— Sim.

— Não. De jeito nenhum!

— Luke...

— Sei que não conseguirei demovê-la disso, se já se decidiu, mas pôr os pés num lugar como aquele... é de­mais! — Soltando-a, ele virou-se de costas e esfregou o pescoço.

— Não sou uma garota inocente e tola, lembra? Posso entrar num bordel sem me perturbar.

— Mas por quê?

— Para ver o lugar onde ele morreu. Posso descobrir alguma coisa, talvez haja pistas do que aconteceu na­quela noite.

— Orrik, provavelmente, já foi até lá. Por que você se sujeitaria a isso?

— Ele pode não ter percebido algo. E eu estarei bem, garanto. Luke, eu me sentiria bem fazendo algo de útil nessa investigação. Por favor, entenda. Preciso fazer isso!

— Eu sei... — ele disse, em voz rouca, passando as mãos pelos cabelos. — E quando pretende ir?

— Vou estar ocupada a semana inteira por conta da festa, então terei de deixar para a semana que vem. Na segunda-feira, talvez.

Ele fechou os olhos por um instante.

— Há algo que eu possa dizer para impedi-la?

— Não.

Suspirando profundamente, ele disse:

— Então, irei com você.

Faithe sorriu, e envolveu-o pela cintura. — Imaginei que fosse dizer isso. E ficarei muito feliz em contar com a sua companhia.

— É... vai ser uma jornada incrível — ele grunhiu. Antes que ela respondesse, ele soltou-se de seus bra­ços e tomou-lhe a mão.

— Vamos. O jantar está esfriando.

 

— Foi bem ali que o enterramos — disse o padre de meia-idade, apontando para o outro lado do pátio da igreja.

— É, foi bem ali — repetiu o taberneiro, um sujeito de rosto vermelho, que estava ao lado dele.

Luke mantinha o olhar em Faithe. Ela assentiu e caminhou, com passos lentos, até o lugar indicado. A sepultura ficava um pouco mais afastada das demais, junto a uma cerca de ferro.

Luke voltou-se para Alex, que insistira em acompa­nhá-los. A viagem deixara-o abatido, já que ainda não estava completamente recuperado de seus ferimentos e havia muito não cavalgava. Estava recostado ao tronco de uma árvore, descansando.

— Não devia ter vindo — Luke repreendeu-o, em fran­cês, para que os saxões ao redor não o entendessem.

— Precisava de exercício depois de três meses de puro ócio. — Ele tentou soar animado, mas fracassou.

— Não veio pelo exercício, mas pela preocupação co­migo, eu sei.

O irmão fez uma careta.

— Bem, da última vez que estivemos aqui você cau­sou certa confusão...

Luke torceu os lábios.

— Quando saímos daqui naquela manhã — Alex continuou —, tínhamos aqueles decentes cidadãos em nossos calcanhares, e eles me parecem estar por aqui no momento. Todos estavam armados com seus uten­sílios de trabalho, ansiosos para pegar um normando e o pendurar numa corda, não sem antes puni-lo um pouco.

— Acho que adorariam enforcá-lo agora também.

Luke e Alex tinham sido recebidos com civilidade apenas por estarem acompanhando uma nobre saxã, que também era esposa do misterioso Caedmon, en­terrado no túmulo solitário pouco adiante. Mas Luke lembrava-se bem de ter visto aquela gente junto ao cadáver queimado da prostituta, na colina, brandindo suas armas e exigindo punição para o assassino. E essa lembrança só lhe ocorria com tamanha clareza agora que tinham voltado a Cottwyk, como acontecera no ou­tro dia no castelo, em Foxhyrst. Precisava estar prepa­rado para tudo que seu cérebro projetasse de agora em diante.

— Foi exatamente por me lembrar disso que quis mon­tar hoje — Alex ponderou, tocando o cabo da espada.

— É, mas acho melhor você se sentar um pouco.

Alex olhou para o túmulo, sobre o qual Faithe se in­clinava, começando a arrancar as ervas daninhas da terra. Sentou-se, sabendo que a dor seria pior se per­manecesse encostado à árvore.

— Ninguém vai nos reconhecer — Luke observou, em voz baixa, num conforto inusitado a seu irmão, já que era sempre ele quem tentava acalmá-lo.

— É, ninguém nos viu.

Na verdade, quem os vira já tinha morrido. Caedmon e a prostituta. Luke voltou-se para ver Faithe passando a mão pela terra sobre a sepultura, e seu coração se apertou.

Ela logo se levantou e caminhou até eles.

— O mato vai voltar a crescer em breve. Nem sei por que me importei em tirá-lo...

Mas Luke sabia. Ela não suportava a idéia de ver o homem com quem partilhara sua vida por oito anos descansando para sempre num lugar tão simples. Por isso, retirou do bolso um saquinho com moedas, que en­tregou ao padre.

— Quero que substituam aquela lápide de madeira por outra, de pedra, bem feita. Um homem importante está enterrado ali.

Padre Tedmund arregalou os olhos diante da quan­tidade de dinheiro.

— Tratarei disso amanhã mesmo, milorde.

— Cuide também para que a sepultura tenha cuidados constantes, sem mato e com flores em dias santificados.

— Como quiser, milorde.

Faithe procurou sua mão. Sorria com suavidade e tinha os olhos marejados. Luke, então, voltou-se aos aldeões que estavam ali, curiosos.

— Temos perguntas a fazer.

Um dos homens, alto, com um avental de couro, logo informou:

— Outro homem esteve aqui perguntando sobre esse morto. Um senhor de certa idade. Chegou, até, a cavar a sepultura.

— Orrik — Faithe esclareceu.

— Sim, milady. Era esse mesmo o nome dele — con­firmou. — Dissemos a ele tudo o que sabíamos.

— Bem, agora vão nos contar — Luke insistiu. — Quando Caedmon chegou aqui?

— No fim da época de Natal — disse o padre. — Eu o vi na manhã do dia vinte de dezembro, dormindo nos fundos da igreja.

— E ele lhe disse algo sobre si mesmo? De onde esta­va vindo, como tinha chegado a Cottwyk?

Todos negaram com a cabeça.

— Ele não falava muito sobre si mesmo — prosse­guiu o padre. — Mas imaginei que tivesse vagado por aí e chegado a Cottwyk por acaso. E acabou ficando.

— E onde morava? — Luke quis saber.

Os homens se entreolharam. Alguns desviaram o rosto, outros se voltaram para Faithe, mas não a encararam.

— Dormia na igreja às vezes — disse o padre.

— Às vezes? E quando não dormia lá? O religioso corou.

— Talvez a senhora preferisse descansar um pouco na taberna Byrtwold enquanto conversamos...

— Não, não. Vou ficar aqui — Faithe teimou. O dono da hospedaria disse, com um sorriso:

— Minha esposa faz um molho delicioso para se co­mer com pão, milady. Poderia...

— Não, obrigada. Vou ficar aqui.

— Não vão falar abertamente com você aqui — Luke disse a ela, em francês.

— Vou dizer a eles que podem falar com franqueza.

— Pode dizer, mas não o farão. Vão proteger seus sentimentos e não saberemos de nada.

Alex levantou-se com certa dificuldade.

— Venha comigo à hospedaria, Faithe — chamou. — Estou cansado e com sede. Não quero ficar lá sozinho.

Ela hesitou, pensativa. Por fim, concordou:

— Está bem. Mas, Luke, quero que me conte depois tudo o que disserem.

— Claro.

Alex e Faithe seguiram até a hospedaria, que não ficava muito distante. Luke voltou-se, então, para os outros homens.

— Imagino que Caedmon tenha ficado com uma mulher.

— Helig — esclareceu o ferreiro com avental de cou­ro. — A prostituta que foi atingida por um raio. Mas ele só dormia lá quando ela não tinha outros fregueses. Ela tinha pena e deixava-o dormir junto ao fogo.

Luke assentiu.

— E durante o dia, o que ele fazia? — indagou.

— Ficava andando por aí — respondeu o padre— Prestava serviços em troca de refeições quando estava... consciente. Outras vezes, pedia restos para se ali­mentar. E, quando estava fora de si, alguém lhe pagava uma bebida ou dava uma esmola.

— Nunca imaginamos que pudesse se tratar de al­guém importante — explicou Byrwold.

Luke virou-se para o religioso.

— O que quis dizer quando se referiu e Caedmon não estar consciente?

— Bem... Conhecia esse homem, milorde?

— Não. Foi apenas o primeiro marido de minha esposa.

— Bom. Seria mais difícil contar-lhe o estado em que se encontrava se fosse um parente ou amigo.

— E como estava?

O ferreiro cruzou os braços ao dizer:

— Ele era louco.

— Não, nem sempre — Byrwold discordou. — Tinha momentos de lucidez.

— É, mas, no fim, estava completamente alucinado.

— E, com aquelas terríveis dores de cabeça que di­zia ter.

O padre assentiu, lembrando-se.

— Ele costumava apertar a cabeça entre as mãos e ficar balançando para a frente e para trás, em especial quando havia algum barulho alto ou muita atividade ao redor.

— É. Aconteceu quando estávamos jogando naquela tarde, lembra? E depois, na festa da colheita. — O dono da hospedaria se recordava.

— E lembram como gritava? — perguntou o ferreiro. — Tivemos, até, de levá-lo embora para não assustar as crianças.

Luke sentiu um arrepio passar por seu corpo. Lembrou-se, de repente, de sua irmã, uma criatura sempre tão doce e meiga, berrando e puxando os cabelos, parecendo tomada pelo demônio. Ela gritava que havia alguma coi­sa dentro de sua cabeça e, de acordo com o médico árabe que a tratara, havia, sim, um tumor pressionando-lhe o cérebro. Alienor tornara-se agressiva e começara a mal­tratar o pai, os irmãos e os criados. Quando estava perto do fim, tinham sido obrigados a amarrá-la para que não fizesse mal aos outros nem a si mesma. O hospedeiro prosseguiu:

— Esse Caedmon falava coisas sem sentido. Dizia que havia anjos e demônios em todo canto. E acabamos nem prestando mais atenção a suas palavras.

— Ele falava muito sobre o demônio que habitava sua cabeça, o pobre homem — acrescentou o padre, consternado. — Dizia que ele queria sair. Por isso batia contra a própria cabeça com os punhos cerrados, ou, às vezes, investia contra as paredes.

— Às vezes investia contra nós também — disse um rapaz que se mantivera em silêncio até o momento.

— O pobre-diabo estava louco — o ferreiro repe­tiu. — E, depois das crises, ficava arrependido, triste. Mantinha-se calado e abatido durante dias.

Luke engoliu em seco. Durante anos tentara se es­quecer dos detalhes dos últimos meses de vida de sua pobre irmã, mas agora eles voltavam.

— Ele chegava a perder os sentidos? — perguntou. Todos assentiram, e o padre acrescentou:

— Mas, quando acordava, nunca se lembrava de ter desmaiado.

— Reclamava de ver tudo dobrado?

— Ah, sim. Dizia, até, que havia mais do que dois de tudo que via. Pobre homem. Talvez houvesse, mesmo, um demônio dentro dele. Mas era só de vez em quando. Podia, até, ser normal quando não estava em crise. E parecia ter sido um homem bom antes de ficar daquele jeito. Talvez por isso o tenhamos tolerado...

— Gostavam dele, não? — Luke indagou, quase cer­to da resposta.

— Gostávamos do homem que ele tinha sido, pois, às vezes, o vislumbrávamos. E sentíamos pena de ver no que ele se transformara.

— E ele nunca falou sobre seu passado?

Todos negaram, menos Byrtwold, que esclareceu:

— Uma vez, quando tinha bebido um pouco. Ficou a tarde toda em minha hospedaria, murmurando coisas. E quando eu lhe disse que devia ir embora, começou a chorar. Depois me deu um murro, que fez meu na­riz sangrar. Quando viu o sangue, começou a chorar de novo, dizendo que não podia mais voltar para casa por­que não queria que a esposa o visse daquele jeito.

Luke respirou fundo, consternado.

— Tive pena dele naquele dia e ainda tenho — ele prosseguiu. — Mas Deus age de maneiras inusitadas... E o diabo também. O coitado detestava ser o que era.

— Bem... Obrigado — Luke murmurou, pensativo. — Ajudaram muito.

 

— Doente? Como assim? — Faithe estranhou.

— Muito doente, pelo que disseram. — Luke olhou, inquieto, para o irmão, ao seu lado, e apoiou os braços so­bre a mesa velha da hospedaria para tomar as mãos de Faithe. — Parece que Caedmon sofria do mesmo mal que minha irmã Alienor... — Luke hesitou, tentando encon­trar a melhor forma de contar-lhe. — Ele era... ele ficou...

O irmão chutou-o por baixo da mesa. Mesmo tendo apenas dez anos quando tudo acontecera a Alienor, sa­bia que Alex se lembrava muito bem do pesadelo que fora. A doença dela o tinha afetado profundamente, pois eram muito ligados. Aparentemente, ele não que­ria que revelasse a Faithe a demência do primeiro ma­rido. Talvez desejasse evitar seu sofrimento ao saber pelo que Caedmon passara antes de morrer.

— Bem, ele tinha dores de cabeça terríveis — disse, por fim.

— Sim. — Assentiu, distraída. — Ele já tinha essas dores antes de partir para Hastings. E eram terríveis.

— Pois então, Caedmon já devia estar doente.

— Mas deve ter havido algo além das dores de cabe­ça — Faithe insistiu.

— Desmaios, pelo que disseram. E, às vezes, ele via tudo em dobro.

— Não entendo. Por que não voltou para casa para que eu cuidasse dele? Por que ficou aqui?

Alex interferiu:

— Talvez não quisesse que sua doença fosse um far­do para você.

— Bem... Eu gostaria que não tivesse feito isso — disse ela, abatida,

— Pelo que pude perceber, as pessoas daqui foram boas para Caedmon — Luke disse, tentando aliviar a dor que percebia nela. — Cuidaram dele, alimentaram-no... Gostavam dele.

Faithe ia dizer algo, mas acabou soluçando. Logo, havia lágrimas rolando por seu rosto. Luke levantou-se de imediato e foi até ela, abraçando-a e dizendo pala­vras de conforto.

— Não chore mais, está bem? Vamos voltar para casa e esquecer esta tristeza toda.

Ela o encarou.

— Não podemos voltar para casa.

— Por que não?

— Não estivemos naquele lugar. Não vimos onde tudo aconteceu.

— Faithe, não está em condições de ir até lá...

— Estou bem. E quero ir.

— Não. Já chega. Vamos voltar para casa. Faithe negou com um gesto de cabeça e teimou:

— Vocês dois podem voltar, se quiserem. Eu vou até o fim.

Alex sorriu e tomou o restante de seu cal4o. Depois comentou:

— Ela me parece determinada, irmão. Não vai con­seguir tirá-la daqui.

Luke respirou fundo, contrariado.

— Muito bem, então — consentiu, a contragosto. — Vamos levá-la ate lá, se é o que você quer.

Faithe levantou-se, pronta.

— Perguntou aos homens como chegar lá?

— Sim — ele mentiu. — Fica ao norte, pela mata.

Na clareira, diante da cabana pobre, Faithe respirou fundo.

— É aqui?

— Sim. — Carrancudo, Luke começava a se lembrar de tudo o que acontecera, palavra por palavra. A indica­ção de seu colega sobre a casa da prostituta, a necessi­dade de sexo, a cegueira que as ervas provocavam para tudo, exceto sangue... Via a cabana agora e ela parecia ainda pior do que naquela noite. O telhado estava cain­do e as paredes mal se mantinham em pé. Galinhas cis­cavam aqui e ali, em busca de comida. Não se lembrava delas. Muito menos do chiqueiro fedorento que ficava a pouca distância da cabana.

— Como pode saber que é aqui? — Faithe insistiu. — Afinal, isto não se parece com... um bordel.

Alex sorriu.

— E o que sabe sobre esses lugares, cunhada? — Desmontou, seguido por ela e por seu irmão.

A cortina de couro foi afastada e um rostinho de criança apareceu, para logo em seguida sumir. Os três se entreolharam, e logo escutaram gritos dentro do chalé:

— Mamãe! Mamãe!

Segundos depois, a cortina foi afastada de novo e uma mulher corpulenta apareceu. Os cabelos cor de cobre provocaram um arrepio de reconhecimento em Luke, que ele procurou afastar. A prostituta estava morta, aquela era outra pessoa.

A mulher saiu da cabana. Estava grávida e trazia um bebê adormecido ao colo, preso por uma espécie de tipóia larga. Ouras crianças se agarravam a ela. Uma delas apertou-lhe o ventre e foi afastada pelos cabelos, emitindo um gemido de dor.

— O que querem? — ela indagou, com uma expres­são dura. Reconhecia os normandos e estava preparada para enfrentá-los e defender sua cria.

Luke ia responder, mas Faithe tocou seu braço, adiantando-se:

— Meu nome é Faithe de Hauekleah. E eles são meu marido, Luke, e meu cunhado, Alex.

— Oh... Sou Aefrid e... estas crianças são todas minhas.

— Aefrid, poderia nos receber em sua casa?

A mulher estranhava o fato de aquela gente bem-nascida querer visitá-la.

— Estão com fome? Tudo o que tenho é mingau de aveia, mas podem entrar e se servir. E tenho água lim­pa do córrego também.

Faithe sorriu.

— Aceitaremos apenas um pouco de água, obrigada.

— Podemos colocar os cavalos ali atrás? — Luke per­guntou e arrependeu-se de imediato.

Ela o fitou com curiosidade, antes de perguntar:

— Como sabe que tenho um coberto lá atrás?

— Eu... apenas imaginei, já que não estou vendo um estábulo...

— E por que eu teria um, não é mesmo? Se tenho apenas estas galinhas que apareceram por aqui, não sei vindas de onde. Mas garantem ovos e carne, e isso já é suficiente.

— É viúva? — Faithe quis saber, acompanhando-a até a rústica cobertura que havia nos fundos.

As crianças foram também. Luke tentava contá-las, mas todas tinham a mesma carinha assustada e cheia de sardas, além dos cabelos ruivos e desgrenhados.

— Viúva, eu? — Aefrid riu, chutando algumas gali­nhas que se colocavam no caminho. — Meu Gimm foi embora quando eu lhe disse que tinha mais um aqui dentro. — Mostrou o ventre inchado. — Não suportou. Saiu correndo pela estrada, chorando como uma crian­ça, aquele idiota.

Chegaram aos fundos, e o lugar exalava um cheiro ruim.

— Quantos filhos tem? — Alex indagou. Ele também devia estar tentando contar os pequenos, sem sucesso.

— Ah, nunca fui muito boa com números — disse Aefrid. Olhou para baixo e pegou duas meninas pelas trancas. — Dira, vá buscar um balde de água no ria­cho. Hildy, pegue alguns copos que não estejam muito sujos.

Entraram na cabana. Faithe observou ao redor, ima­ginando o lugar como um antro de pecado. Luke se­guiu seu olhar, parando no caldeirão com mingau que estava pendurado sobre as chamas do fogareiro. Uma lembrança veio-lhe à mente: estava deitado de um lado das chamas; Alex, do outro. Tinha sonhos alucinantes. Estremeceu ao pensar neles.

Alex tirou uma menininha de um banco e sentou-se, acomodando-a depois sobre suas pernas. Com um dedo enfiado na boca, ela o fitou com olhos muito abertos, mas não protestou.

— Há quanto tempo vivem aqui? — perguntou à mãe das crianças.

— Desde março. — Aefrid pegou as canecas que a filha trouxera e colocou-as na mesa, sem delicadeza. — Esta cabana era de minha irmã, que Deus a tenha. — Fez o sinal-da-cruz, e limpou as canecas com a própria saia. — Um raio a matou. Castigo divino por seus pe­cados, eu acho.

— Ela era uma... pecadora? — Faithe indagou.

— Traidora, isso sim. — Aefrid cuspiu no chão. — Deitava-se com... — Interrompeu-se, olhando, apreen­siva, para Alex e Luke.

Alex olhou para o irmão, com ar de riso. O pecado de Helig não tinha sido prostituir-se, mas atender aos normandos.

— Entendo — Faithe comentou, impedindo-a de con­tinuar.

A menina, que trazia a água com dificuldade, viu-se abruptamente livre da carga quando a mãe tirou o bal­de de suas mãos e colocou-o sobre a mesa, mergulhan­do as canecas para servir seus visitantes. Luke pegou a sua e, já que não havia nada nadando dentro dela, bebeu.

Aefrid apertou a criança que trazia ao colo e conti­nuou:

— Gimm foi embora no começo de fevereiro. Deixou-me a oficina de sapataria, mas tenho os pequenos para criar e nem sei lidar com sapatos. Vivíamos num cômo­do em cima da oficina, em Slepe. Era uma vida mise­rável, aquela. Então, ouvi falar da morte de Helig e... — Seus olhos se umedeceram. Pelo visto, não se sentia tão invulnerável com a morte da irmã como queria fa­zer parecer.

Luke teve outra visão: uma mulher de olhos arrega­lados e corpo marcado pelas queimaduras de um raio, na colina, sob a chuva. Alex encarou-o. Lembrava-se também.

— Bem... — Aefrid fungou e acalentou a criança. — Deus sabe o que faz. A desgraça de Helig foi sorte para nós, já que pudemos vir para cá, onde, pelo menos, te­mos comida. Por direito, esta cabana deveria ficar com meu irmão Ham, mas ele mora no castelo Foxhyrst. É o carrasco oficial, e não precisava disto, então a deu para mim. Vendeu a sapataria e me deu o dinheiro. Acho, até, que algumas dessas galinhas foram com­pradas por ele e largadas aí fora. Agora posso vender os ovos em Cottwyk nos dias de feira. Somos muito po­bres, mas não passamos mais fome. Muita gente não tem tanta sorte.

— Deve ter orgulho de si mesma — Faithe observou. — Bem, mas vou lhe dizer a que viemos.

— Imaginei que fossem viajantes e estivessem ape­nas com sede.

— Não. Uma outra pessoa morreu na noite em que sua irmã também se foi, Aefrid. E morreu aqui dentro.

— É, eu sei. Ouvi falar. Um sujeito chamado Caedmon que não estava...

— Não estava bem de saúde — Luke interferiu de­pressa.

— Isso mesmo. Diziam que ele era...

— Senhor de uma grande propriedade. — Agora foi a vez de Alex interferir, balançando a menina nos joelhos e fazendo-a rir. — E ele era, também, marido de lady Faithe.

A mulher arregalou os olhos.

— Oh, milady! Eu sinto... muito por sua perda...

— Temos certeza que sim. — Luke tirou algumas moedas do bolso. — Nosso propósito ao vir aqui era que pudéssemos ver o local onde lorde Caedmon faleceu e saber se você pode nos informar algo sobre aquela noi­te. — Colocou as moedas nas mãos de Aefrid, vendo-a arregalar os olhos mais uma vez. — Entenda que não queremos saber o que ouviu falar dele, mas o que sabe sobre seu assassinato.

— Nossa! Nunca vi tanto dinheiro junto — murmu­rou. — Pelo menos, não em minhas mãos.

— Pode nos dizer alguma coisa? — Faithe insistiu.

— Apenas o que me disseram. Alguém veio até aqui naquela manhã, à procura de minha irmã, e encontrou a cabana vazia, a não ser pelo corpo dele, lá em cima. Colocaram-no numa maca e saíram em busca de Helig. Logo, a acharam morta na colina.

Faithe ergueu os olhos para a parte de cima da ca­bana.

— Obrigado — Luke disse. — Ajudou muito. — Tocou o braço de Faithe e murmurou: — Não há mais nada a fazer aqui. É melhor...

— Talvez pudéssemos ir até lá em cima.

— Para quê? Não vamos saber de mais nada apenas olhando. As pistas sobre o assassino de Caedmon já de­sapareceram.

— Eu sei, mas queria subir ali mesmo assim. Quero apenas entender, saber tudo com clareza, para poder colocar um fim nessa história.

Luke respirou fundo. Entendia, mas sua vontade era tirá-la dali o quanto antes e também deixar aquele lo­cal. Como justificar sua pressa, porém?

— Então, vou subir primeiro — disse.

A escada de madeira estalou sob seu peso. Lembrava-se de ver Caedmon subindo, cambaleante, naquela noite. Imaginara-o bêbado, mas agora sabia que não se trata­va disso. Ele estava doente, talvez até morrendo. Mesmo assim, conseguira subir para ter o que queria. Luke lembrava-se de acordar de um pesadelo e de ouvir gemi­dos e o ruído da palha vindos de cima, enquanto o casal fazia sexo. Tentara acordar Alex para irem embora, mas seu irmão era uma pedra quando dormia profundamente. Decidira, então, embriagar-se. Acabara adormecendo junto ao fogo ou, talvez, tivesse desmaiado. E havia des­pertado com os gritos.

Parou no topo da escada, olhando para a palha no chão de madeira. A prostituta estava gritando e os re­lâmpagos se seguiam, sem parar. Por que ela gritava?

— Luke? — Faithe chamou-o, da escada.

— Sim? — Terminou de subir e curvou-se para não bater a cabeça nas vigas do teto. Ouviu Faithe logo atrás, mas não se voltou. Lembrava-se agora claramente de ter sido acordado pelos gritos da mulher e de ter subi­do depressa e visto... Sim! Revia a cena! O saxão estava batendo em Helig e ela tentava desvencilhar-se e fugir. Mas os punhos fortes do homem golpeavam-na enquan­to ele gritava, acusando-a de ser uma traidora.

— Luke, você está bem?

Ele se ajoelhou, comas mãos na cabeça. Tinha segura­do o saxão pela túnica, puxando-o de cima da mulher. Vira um brilho horrendo e enfurecido em seus olhos. Cerrara, então, os punhos e o golpeara com toda a sua força, derrubando-o sobre a palha.

— Luke? — Sentiu-a sacudi-lo, mas lhe parecia es­tar distante dali, num outro momento...

A prostituta já tinha descido, soluçando sem parar. Baixou os olhos para o saxão, viu seus olhos semi-aber­tos e tudo começou a girar...

— Alex! Alex, há algo errado com Luke!

A voz de Faithe não chegava aos seus ouvidos. Cobriu o rosto com as mãos e sussurrou:

— Meu Deus... Meu Deus...

— Faithe, vá lá para baixo. — A voz de Alex, logo atrás, era suave.

— Mas...

— Vá buscar nossos cavalos e coloque-os diante da cabana.

— Mas Alex...

— Precisamos ir embora daqui. Faça o que estou di­zendo.

— Está bem.

Luke sentiu a mão de Alex em seu ombro.

— Ela se foi. Está pegando os cavalos.

Assentiu, mas as palavras demoraram para fazer sentido.

— O que houve? — A pergunta do irmão o fez erguer os olhos.

— Eu o matei.

— Sim, eu sei. Eu não devia ter permitido que su­bisse aqui.

— Não. — Luke agarrou-o pela túnica. — Você não entende. Eu o matei, mas... foi sem querer. Foi apenas um soco e... — Baixou os olhos para a palha, como se o corpo de Caedmon pudesse, de repente, materializar-se ali.

— Ele estava doente. Mais frágil do que parecia. Por isso, deve ter morrido com um só golpe.

— É...

— Bem, meu irmão, vamos descer. Vamos sair daqui. Nunca deveríamos ter vindo. E pare de tremer, senão a mulher e as crianças vão achar que há algo de errado.

Luke meneava a cabeça.

— Devíamos ter vindo, sim. Eu devia ter vindo mui­to antes.

— Do que está falando?

— Ele a estava surrando.

— Caedmon? Surrando a prostituta?

— Sim. Não me lembrava disso. As ervas, o conha­que... Mas ele a estava surrando, sim, como um animal feroz. E ela gritava. Quando subi e o esmurrei...

—Você o fez para detê-lo. Para salvá-la!

— Mas não salvei.

— Salvou-a dele, não do relâmpago. Luke, você não estava lutando por ela, mas para protegê-la.

— É... Graças a Deus.

O crime que obscurecera sua alma não tinha sido um crime, afinal, mas um esforço frustrado para agir da forma correta.

— Preciso contar a Faithe, fazê-la entender...

— Não! Isso é a última coisa que deve fazer.

— Mas é o certo. Estou farto de mentir para ela, de esconder a verdade.

— Luke, seria um grande erro, meu irmão.

— Chega de segredos.

— Mantenha esse. Apenas esse. — Alex ajudou-o a se levantar. — Pense bem. Mesmo que a fizesse enten­der, por que trazer mais esse problema para sua vida? E vai ser um grande problema. Admitirá que matou um homem num bordel e, mesmo explicando tudo, não vai parecer nada bom.

—Vou contar exatamente como aconteceu. Caedmon estava atacando a mulher e...

— Como acha que Faithe vai se sentir? Foi difícil deixar de contar a ela sobre a loucura do marido, mas você o fez porque não queria feri-la. E agora quer...

— Não quero feri-la, mas estou farto de mentir para ela.

— Pois minta apenas dessa vez. Ou melhor, não min­ta. Omita. Se não disser que matou Caedmon, ninguém nunca saberá. Faithe jamais descobrirá, e assim será melhor. Por que deixá-la saber em que tipo de criatura seu primeiro marido se transformou?

Luke cerrou os olhos.

— Deus, odeio tudo isso.

— Eu sei, meu irmão. Mas, pelo menos, agora não car­rega mais essa culpa. Pode prosseguir com sua vida sa­bendo que não fez nada de errado. Ao contrário, agiu com nobreza, fazendo o que um homem de verdade faria.

Aquilo servia de consolo, afinal. Não era o monstro que sempre imaginara, nem mesmo no momento em que não tinha todos os sentidos sob controle. Era, no fundo, um homem bom e justo, que merecia uma vida ao lado de alguém como Faithe.

— Está sorrindo — Alex observou.

— Estou? — Sentia como se as nuvens negras que tinham pairado sobre sua cabeça houvessem se dissi­pado.

— Venha. Vamos sair daqui — Alex chamou, puxando-o pelo ombro.

— É, vamos, sim.

 

Faithe permaneceu na tina de água quente, descan­sando e aproveitando cada instante de seu banho. A volta de Cottwyk fora tranqüila, apesar de Luke não ter se sentido bem na cabana. Alex explicara que ti­nha sido uma vertigem, e devia ter razão, pois Luke parecera mais do que animado no caminho de volta. Nunca o vira tão bem, tão alegre. Mas as dúvidas ain­da persistiam quanto à morte de Caedmon. Era como se, quanto mais investigassem, maior se tornasse o mistério. Porém, a visita à cabana fizera que ela con­frontasse a realidade. No fim da vida, Caedmon estivera sozinho e doente, dependendo da boa vontade dos outros para sobreviver. E morrera num lugar pobre e fétido, por causa de uma prostituta. Sentia-se triste por ele, mas era uma mulher forte. Superaria. Já es­tava superando.

Seu casamento com ele tinha sido sem amor, mas amigável. As lembranças dos anos passados ao seu lado não eram ruins. Era como se tivesse vivido todos eles junto a um irmão, capaz de alegrá-la e deixá-la tranqüila. Queria ter, para sempre, uma boa imagem dele, como a que ainda estava fresca em sua memória, de quando ele a erguera nos braços, feliz e despreo­cupado, durante as festividades de São João, no ano anterior.

Ouviu a porta se abrindo e voltou-se para ver Luke, que entrava devagar. Podia ser um soldado e ter um corpo avantajado, mas movia-se com graça e elegância dignas de sua posição nobre. Sentiu-se relaxar ainda mais. Era estranho, mas, pela primeira vez, desde que descobrira detalhes sobre a morte de Caedmon, sentia-se, de fato, à vontade e satisfeita. Caedmon era parte do passado, e seu futuro acabava de entrar no quarto.

— Estive pensando — ela murmurou.

Luke percorreu seu corpo com um olhar faminto: os cabelos molhados, o rosto e os seios, acima da superfície da água, antes de dizer:

— Eu também. Durante todo o caminho de volta. Ela sorriu.

— Não nisso. Estive pensando em Caedmon.

O leve sorriso que ele tinha no rosto desapareceu.

— Os homens que você designou para as investiga­ções em Hastings vão partir pela manha, não?

— Sim.

— Talvez não devêssemos mandá-los. Talvez fosse me­lhor simplesmente... deixar os mortos descansarem em paz. Deixar Caedmon descansar. O que passou, passou.

Ele a observou por um longo momento, e então se aproximou, acocorando-se junto à tina.

— Por que mudou de idéia?

— Porque descobri tudo que queria hoje em Cottwyk.

— Mas, não descobrimos nada. Faithe tocou-lhe o rosto com carinho.

— Vi onde ele morreu e descobri que não queria sa­ber mais. Não sinto necessidade de saber quem o matou e fazer justiça. Deus saberá agir por mim. Quero deixar tudo nas mãos de Deus e seguir com a minha vida. Com a nossa vida.

Luke cerrou os olhos e aceitou o carinho, murmuran­do algo que Faithe não compreendeu.

— O que disse?

— Amo você. — Beijou-a, apaixonado, e repetiu: — Amo muito. E estou imensamente feliz. Costumava achar que não merecia ser feliz, mas agora acho que talvez mereça, sim, e isso torna tudo muito melhor. — Beijou-a novamente, e depois indagou: — Essa água ainda está quente?

— Sim. Já terminei, se quiser aproveitá-la.

Ele se levantou e tirou o cinto, deixando-o de lado. Depois, retirou a túnica, o cordão com o crucifixo e a ca­misa, pendurando tudo num gancho de madeira ao lado da porta. Faithe não perdia um só de seus movimentos, e o desejo começou a pulsar mais forte em seu corpo. Levantou-se e torceu os cabelos molhados. Luke voltou-se e se deteve antes de abrir o laço da calça. Estava en­cantado. Seu olhar foi tão intenso que a fez arrepiar-se.

— Está com frio? — perguntou, pegando a toalha. — Está tão quente aqui.

Faithe sorriu, saindo da tina.

— Não estou com frio, mas adoraria que me enxugasse.

— Estou ao seu serviço, milady. — Luke enrolou-a na toalha e começou a secar seus braços e costas. Aproximou-a de si e massageou seu corpo com mãos fortes, até fazê-la suspirar.

— Humm... Gosto disso... — ela sussurrou.

— Eu também. — Beijou-a e acariciou-a sem pudor. — Adoro tocá-la. Ajoelhou-se diante dela para secar-lhe as pernas. Passou o tecido entre as coxas, sobre os pêlos sedosos, enlouquecendo-a com a fricção suave.

Faithe imaginou se ele saberia o efeito que estava causando nela. Levou as mãos aos seus cabelos e afastou-os, para poder vê-lo melhor. Quando ele a fitou, per­cebeu, por sua expressão, que ele sabia.

Colocando a toalha sobre os ombros, Luke tocou-a de leve, observando-a intensamente, como se nunca ti­vesse visto tão de perto os mistérios femininos. Talvez não tivesse mesmo, pensou, ao lembrar-se do que ele lhe contara sobre sua vida sexual passada. Encontros rápidos, com prostitutas anônimas.

Ele se aproximou, respirando contra sua pele, fa­zendo-a se arrepiar. Ergueu novamente os olhos, quase com timidez.

— Estaria tudo bem se eu...?

— Sim. — Segurou-o pelos cabelos, aproximando-o ainda mais.

— Então, diga-me se eu fizer algo errado. Ela riu.

— Acho que não há como fazer isso errado...

Fechando os olhos, Luke encostou os lábios na pele suave e úmida. Faithe arquejou ante a onda de prazer. Ele fitou-a e abriu a boca para falar algo, mas se deteve e sorriu. Ela murmurou:

— Sim, estou bem.

— Eu sei. Estou aprendendo.—Agarrando seus qua­dris, ele acariciou-a com a língua até que ela gemesse e puxasse seus cabelos. Beijou-a, sugou-a e mordiscou-a, sentindo o clímax tomá-la rapidamente, explodindo com intensidade.

Luke ergueu-se e aninhou-a até que sua respiração normalizasse.

— Tem certeza de que nunca fez isso antes? — Faithe indagou, com um fio de voz, sob o efeito do prazer que experimentara.

— Acho que eu teria me lembrado. — Beijou-a apai­xonadamente.

— Gostaria que eu fizesse isso com você?

Ele riu.

— Sim, e algumas outras coisas... Tudo a seu tem­po. Neste instante, quero saber onde guarda aquele seu óleo perfumado.

Ela apontou para o frasco que deixara do outro lado da tina. Luke inclinou-se para pegá-lo e colocou um pouco na palma de uma das mãos, friccionando-as em seguida. Posicionado atrás dela, tocou-a nas costas, nos quadris, na cintura, acariciando-a com movimentos lentos e circulares.

— Está usando óleo demais — ela murmurou, de olhos fechados.

— Poderá se lavar.

— Quer dizer que terei de tomar outro banho?

— Pode ser... comigo, talvez...

Faithe deixou-se levar. Se a viagem a Cottwyk pro­vocara esse efeito nele, estava mais do que satisfeita. Luke parecia mudado, em paz consigo mesmo. O con­tentamento que sentia nele a realizava.

Luke deslizou as mãos até seus seios, tocando-os com dedos fortes. Os pêlos do peito roçavam em suas costas. Sentia a lã das calças contra suas nádegas e pernas. Ele abaixou a cabeça, murmurando em seu ouvido:

— Quero fazer isso desde aquela noite.

Sabia que ele se referia à noite em que tentara sedu­zi-lo, provocando-o ao pedir que passasse óleo em suas costas.

— Estava louco de desejo por você — continuou, massageando-lhe os seios, enviando correntes de pra­zer por todo seu corpo.

— E o que quis fazer comigo, Luke? — sussurrou, apoiando-se no peito másculo, deliciando-se com o to­que mágico...

— Isto... — Capturando seus mamilos, apertou-os de leve, fazendo-a gemer. — E isto... — Encostou-se completamente às costas dela, deslizando uma das mãos por seu ventre, até tocá-la entre as pernas, e penetrá-la com o dedo.

— Oh, meu Deus... O que mais, Luke? — perguntou, com voz rouca, entregando-se aos carinhos dele.

— Queria toma-la, possuí-la, repetidas vezes. Eu a desejava de todas as formas possíveis, Faithe.

— E como me quer agora? Diga-me.

— Assim, como estamos. — Tirou a toalha dos om­bros e jogou-a ao chão. — Aqui mesmo.

Faithe ajoelhou-se sobre a toalha e apoiou os braços na borda da tina. Houve um instante de silêncio, em que apenas o ouvia respirar, sabendo que ele se livrava do restante das roupas. Logo, agarrou seus quadris e penetrou-a, gemendo. Sentiu-o forte e poderoso, doce e perfeito dentro de seu corpo.

Dessa vez, ele não perguntou se estava bem. Não pa­rou, não se deteve. Possuiu-a com intensidade e paixão, num frenesi alucinante.

Envolveu-a com os braços fortes, os cabelos entrela­çados aos dela, o corpo pulsando, quente. Percebeu que ele era dominado pelas sensações, que se entregava to­talmente, deixando de lado as rédeas que o refreavam. Nunca ele a amara com tamanho abandono, e aquilo a tocou profundamente.

Suas mãos a acariciavam, nos seios e no ventre, des­cendo até o ponto vulnerável entre suas pernas, pro­vocando uma adorável agonia íntima, conduzindo-a ao clímax. Ele mordeu sua nuca, e Faithe soube que ele estava verdadeiramente perdido em sua paixão, toma­do pelo prazer.

Com o corpo rígido, ele parou, emitindo um som gutural que emergia do fundo do peito, pulsando com ela, vibrando em seu corpo. Faithe sorriu, sentindo lágri­mas nos olhos.

Caíram sobre a toalha, exaustos, escorregadios com óleo e suor. Ele enxugou seu rosto com a mão trêmula e sussurrou:

— Por que está chorando?

— Por causa desse momento perfeito. Mágico. Ele riu e tomou-a nos braços.

— Foi o que disse da primeira vez, no celeiro.

— Eu estava enganada. Aquele foi um ótimo mo­mento. Mas este é perfeito. Tudo é maravilho. Não falta nada.

— Tem razão. Tudo é perfeito. Agora e para sempre. — Luke beijou-a.

— Agora e para sempre — ela sussurrou em sua boca.

As coisas foram perfeitas por mais doze dias.

Depois do jantar, no último dia de julho, quando todos faziam os preparativos para a o festival que se realizaria no dia seguinte, Felix apareceu à porta do salão.

Luke percebeu que o menino estivera nadando, como vinha fazendo cada vez com mais freqüência ulti­mamente, depois que o ensinara. Tinha os cabelos mo­lhados e suas roupas colavam-se ao corpinho franzino. Correu os olhinhos por tudo até que eles encontraram os de Luke, no fundo do salão, onde jogava uma partida de dados com Alex.

— Milorde! Veja o que eu achei! — exclamou, esten­dendo a mão.

— Luke! — Alex alertou, por entre os dentes. Luke levantou-se, mantendo a calma.

— Traga aqui, Felix, para eu ver.

O garoto obedeceu, passando pelos criados e pelas outras crianças, mas se deteve ao lado de Faithe.

— Não... — Alex murmurou.

— Felix, traga aqui! — Luke insistiu, mais alto.

Mas o menino já exibia seu troféu a Faithe. E, pior do que isso, Orrik aproximava-se de ambos. Alex levan­tou-se. Num gesto puramente mecânico, levou a mão à cintura, onde estaria sua espada, caso a estivesse usan­do. Luke fez uma prece. Viu Faithe olhar o objeto, sorrir e mexer nos cabelos de Felix, antes que os outros meni­nos se juntassem a eles, curiosos.

Faithe fitou-o, sorriu e apontou para o garoto, como se o chamasse para ver também. Sem pestanejar, Luke cruzou o espaço que os separava. No entanto, nesse ins­tante, ela observou o objeto com mais atenção e sua ex­pressão mudou. Luke parou e virou-se para o irmão, que permanecia no mesmo lugar. Aguardaram alguns ins­tantes. Então, Alex ergueu as sobrancelhas e, com sua costumeira expressão despreocupada, levantou a taça e terminou de beber o vinho que estivera tomando.

Luke tornou a olhar para Faithe. Ela estava lendo a inscrição atrás do broche. Ele sabia de cor o que estava escrito ali: Para meu filho do meio... O ar lhe faltou. Ela o encarou, atônita, e seguiu em sua direção.

Todos já tinham se reunido em torno de sua senho­ra, e estavam surpresos, como ela. Orrik já chamara Baldric e agora lhe segredava algo ao ouvido. Baldric sorriu e saiu pela porta dos fundos.

— E uma citação do Deuteronômio — Luke explicou em voz baixa, sem saber o que mais dizer. — É... uma citação de Moisés, para o povo de Israel. Sejam fortes e corajosos. Nada temam, pois Deus, Nosso Senhor, esta­rá sempre convosco. Ele não os decepcionará e não lhes faltará.

Faithe apenas o encarava.

— Meu pai era um homem muito religioso. Ele...

— Luke, eu não entendo...

Os meninos percebiam que alguma coisa estava acontecendo ali, embora não tivessem compreendido a gravidade da situação. Felix, porém, olhava para Luke e para Faithe alternadamente, percebendo que fora responsável por tudo.

— Faithe... — Ele tentou adiantar-se, mas, quando ela se afastou, percebeu que compreendia tudo, e muito bem. — Faithe, veja...

— Não entendo... Explique para mim! Por favor, me explique! — Havia desespero em sua voz e lágrimas em seus olhos.

Luke fechou os seus por frações de segundo.

— Sinto muito — murmurou. — Aconteça o que acontecer, saiba que amo você e que estou...

— Explique-se — ela exigiu. — Diga que isto não é o que parece. Diga que aquele outro broche não pertence a Alex.

— Isso, explique — Orrik instigou, cruzando os bra­ços, numa atitude de desafio que se refletia em seus olhos.

— O outro broche é meu. — Alex acabara de se apro­ximar e ainda sorria.

Luke voltou-se conforme ele prosseguia:

— Sou o homem que estiveram procurando, Faithe. Ela meneou a cabeça, visivelmente chocada.

— Não... Não, Alex...

— Não é o que parece. — Luke interferiu.

Orrik abriu um sorriso maldoso.

— Então, pelo amor de Deus, explique o que é! — ela pediu, aflita.

Luke tentava encontrar uma explicação plausível. Felix começava a chorar ao seu lado.

— Oh, Deus! Por favor, Alex, diga que não foi você quem... — Faithe pediu, mas não conseguiu completar a frase.

— Não podemos conversar aqui. Vamos para fora e... — Luke começou a propor.

— Claro que você adoraria isso — Orrik interferiu. Olhou para os homens que Baldric tinha ido chamar. Todos estavam ali, segurando machados, martelos, serras e outros utensílios com os quais tinham trabalhado des­de o começo da manhã. Apontou para Alex e ordenou: — Cuidem para que esse miserável não vá a lugar nenhum!

Faithe abriu a boca, mas nada disse, mostrando-se desorientada. Luke jamais a vira tão sem ação. Os ho­mens olharam para Orrik, e depois uns para os outros, vacilando. Todos em Hauekleah gostavam muito de Alex.

Percebendo a hesitação geral, o administrador gri­tou, autoritário:

— Foi ele quem assassinou nosso lorde! E acabou de admiti-lo!

Os homens trocaram comentários em voz baixa. Um deles agarrou Alex pelo braço e ergueu um machado, mantendo-o encostado em sua nuca.

Faithe conseguiu encontrar forças e mandou que os criados e as crianças deixassem o salão. Todos obedece­ram de imediato, com exceção de Bonnie e Blossom, que já choravam, e de Felix, que continuava parado ao lado do homem que aprendera a amar e a respeitar como se fosse seu pai.

Orrik percebeu que Firdolf mantinha-se junto a uma parede, movendo-se muito devagar em direção à porta, e ordenou:

— Você! Vá buscar uma corda e faça um nó de enfor­camento!

O rapaz encarou-o, espantado.

— Depressa!

O jovem obedeceu, lentamente, olhando para Blossom e depois para Alex.

— Não! — Blossom gritou, agarrando-se à túnica de Qrrik. — Solte-o! Ele não fez nada!

— Pare com isso — Orrik deu-lhe um tapa violento no rosto.

— Orrik!— Faithe protestou. Alex tentava se soltar, gritando:

— Seu amaldiçoado! Não a toque!

Foram necessários mais três homens para detê-lo.

— Nyle e Baldric, levem essas duas meninas pa­ra fora — Orrik ordenou, sem nem mesmo olhar para elas.

Eles obedeceram, embora Bonnie e Blossom esper­neassem, mordessem e protestassem sem parar em seus braços. Blossom ainda conseguiu se soltar e voltou correndo para junto de Alex, mas Nyle tornou a agarrá-la pelos cabelos, puxando-a até fazê-la gritar de dor.

— Parem com isso! — Alex tornou a gritar. E todos pararam. Os dois irmãos e as duas gêmeas. — Bonnie e Blossom, voltem para casa.

Elas negaram com a cabeça, mas ele insistiu com firmeza:

— Vão. E esperem lá. Não tem nada que possam fa­zer aqui para me ajudar e... isto não é tão ruim quanto parece. — Mentia, mas era necessário. — Não passa de um mal-entendido. Agora... vão. Por favor.

Elas assentiram e, abraçadas, se retiraram.

— Tem, mesmo, jeito com as mulheres — Orrik co­mentou, com um vago sorriso. — Mas vai precisar de muito mais do que palavras suaves para impedir que eu passe uma corda por seu pescoço imundo de normando.

— Não foi ele — Luke disse, taciturno.

— Luke... — Alex tentou interferir.

Porém, Luke já olhava diretamente para Faithe.

— Fui eu.

Ela olhou-o, sem poder acreditar. No meio da confu­são que se instaurou, Luke só conseguia fitá-la, cala­do, e ver a decepção em seus olhos. Ouviu Orrik berrar mais ordens, sentiu seu braço ser agarrado e uma pres­são nas costas... Alex tentou interceder, mas aqueles mesmos outros homens o estavam segurando.

— Ele está mentindo para me proteger — gritou. — Fui eu! Eu matei Caedmon! Foi o meu broche que en­contraram lá, lembram-se?!

Orrik voltou-se para ele, furioso.

— Isso significa que estava lá quando seu irmão ma­tou nosso antigo senhor — rebateu. — E, se eu tiver de escolher entre os dois, aquele mais capaz de um ato tão brutal, escolherei o Dragão Negro. Posso sentir até em meus ossos que foi ele!

Como era conveniente para Orrik, Luke avaliou, que tivesse uma desculpa tão boa para destruir seu novo senhor normando, que jamais aceitara.

Faithe ainda o encarava.

— Por quê? — murmurou. Ainda continha as lágri­mas, mas estava prestes a deixar que fluíssem por seu rosto. — Deve ter tido um motivo... Sei que deve!

Já passara o tempo das mentiras, mesmo que fosse em nome da bondade, ele avaliou. Sua posição de se­nhor de Hauekleah não o salvaria da fúria vingativa do administrador. Sua única esperança de salvação era contar toda a verdade.

— Não o matei a sangue-frio, Faithe. Juro por tudo o que há de mais sagrado. E também não o matei por uma... por aquela mulher.

— Não adianta mais arranjar desculpas espertas, Périgueux! — Orrik gritou. — Deus é testemunha de que o farei pender de uma corda esta noite!

— Não! — Faithe apavorou-se. — Não haverá enfor­camento algum. Não permitirei!

— Pelo amor do Santo Cristo, milady! Pretende sim­plesmente deixá-lo livre?! Esse sujeito acabou de con­fessar que matou Caedmon. Assassinou seu marido e pretende não...

— Não o assassinei — Luke rebateu.

— Seu cão mentiroso! — Orrik desferiu um soco no estômago de Luke, que dobrou o corpo em razão da dor inesperada. As mãos que o seguravam, porém, o obriga­ram a se endireitar.

Faithe e Alex gritavam com Orrik, que revidava:

— Ele é um assassino e tem de ser enforcado! — Pegou uma serra e avançou contra Luke. — Vou cortar sua maldita garganta normanda, mas não o deixarei em liberdade!

— E então os normandos o enforcarão — disse Faithe.

— Pois vai ter valido a pena! Irei para o patíbulo de boa vontade só por saber que a justiça foi feita.

— E chama isto de justiça? Enforcar um homem sem julgá-lo primeiro?

— Não temos autoridade para julgá-lo — Orrik ex­plicou, extremamente irritado. — Somente o rei de­les pode fazer isso, e não venha me dizer que acredita num julgamento justo feito por Guilherme. Mesmo se fosse considerado culpado, o grande e poderoso Dragão Negro jamais seria enforcado por ter matado um saxão. O máximo que farão será dar-lhe umas chi­batadas. A única forma de vermos a justiça ser feita é enforcando-o com nossas próprias mãos, mesmo que tenhamos de fazê-lo na calada da noite e queimar seu corpo depois.

Baldric assentiu, concordando. Os outros, porém, pa­receram pegos de surpresa pela ferocidade de tais pala­vras. Infelizmente, Luke sabia que bastavam as trevas da noite para ele fazer o que tinha em mente.

— Eu proíbo — Faithe anunciou, severa. — Estão me ouvindo, todos vocês? Proíbo!

Todos ali assentiram, aceitando a ordem. Inclusive Orrik, mas sua expressão dizia o contrário. O adminis­trador jamais o entregaria aos normandos de forma pacífica. Luke sabia disso e, pela seriedade que via no rosto do irmão, ele também sabia.

Faithe voltou-se mais uma vez para encará-lo. Seu semblante ainda estava triste e desiludido, apesar da firmeza que demonstrava.

— O que houve naquela noite? E diga-me a verdade desta vez. Mentiu para mim durante meses, de uma forma ou de outra.

Luke respirou fundo.

— Eu estava tentando proteger... a mulher. Ela es­tava na parte de cima da cabana, com Caedmon. Sinto muito, Faithe. Não queria contar-lhe isto. Não queria que descobrisse o que realmente aconteceu naquela noite.

— Ah, com certeza não queria — Orrik interferiu, em tom de ironia.

Faithe olhou-o, numa advertência, antes de voltar a encarar seu marido.

— Prossiga.

— Bem, os dois estavam lá em cima, juntos. E eu estava dormindo na parte de baixo. Acordei com gri­tos da mulher e subi para ver o que estava aconte­cendo. Sinto muito, Faithe, mas... Caedmon a estava atacando.

Ela o olhou como se tivesse dito a coisa mais absur­da do mundo.

— Seu mentiroso sujo! — Orrik tornou a intervir. E, sem vacilar, esmurrou-o no rosto.

Em meio à confusão que voltou a tomar conta do lu­gar, Luke só conseguia sentir muita dor onde fora atingido, e os braços que o seguravam, agora com mais for­ça. De repente, outro som pareceu se sobressair. Felix chorava muito e começou a gritar:

— Perdão, milorde! Encontrei o broche, mas não sa­bia. A culpa é toda minha.

— Ouçam o que meu irmão tem a dizer — Alex gri­tou. — Ele está falando a verdade!

— Impossível... — Faithe murmurou.

Luke ergueu a cabeça, e o movimento fez com que o sangue escorresse do supercílio atingido. Ali, a dor era maior.

— Sinto muito, Faithe. Sinto de fato. Mas ele a esta­va atacando, batendo em seu rosto sem piedade... sem... sem parar...

— Mas Caedmon jamais fez algo assim!

— Faithe, meu amor, eu não mentiria para você...

Orrik soltou uma risada de desprezo e cuspiu.

— Não mentiria mais — Luke corrigiu-se, olhando-a com expressão de súplica. — Tem de acreditar em mim.

— Eu quero...

Ela queria, mas não conseguia. Como crer que o bom homem com quem fora casada por oito anos tivesse co­metido um ato tão vil, tão violento?

— Faithe, ele estava doente. Foi isso que o levou a agir dessa forma. — Luke percebia que suas explica­ções já não a alcançavam. Ela parecia alheia, distante, perdida em divagações. Percebeu que ela vacilava, que seu corpo oscilava de leve. Lembrou-se do dia em que ela desmaiara no celeiro.

— Faithe! Alguém a ajude! Moira!

A criada se aproximou e amparou-a, mas ela reagiu:

— Estou bem... pode deixar...

E seguiu, cambaleando, para a porta dos fundos.

— Viu o que suas mentiras podres fizeram? — Orrik culpou-o. — Faithe é como uma filha para mim! Veja o que fez a ela!

— Aqui está, mestre Orrik. — Firdolf retornava com a corda na qual fizera um nó de enforcamento.

— Você só causou danos desde que chegou aqui — Orrik continuou falando enquanto pegava a corda. — Agora, eu mesmo vou causar um pouco de dano... Olho por olho, dente por dente. Não é assim que o livro sa­grado diz?

— Sua senhora proibiu o enforcamento! —Alex pro­testou, vendo que a situação estava fora de controle.

— Ela se deixou levar pela conversa desse normando sujo. — O administrador passou a corda em torno do pescoço de Luke e apertou-a. — Não está pensando direito e preciso pensar por ela.

— Não! Não! — Felix passou a agredir Orrik com seus punhos de menino. Orrik empurrou-lhe a cabeça, jogando-o no chão.

— Vá embora, Felix — Luke ordenou. — Não pode me ajudar. — Não queria que o garoto fosse obrigado a vê-lo na ponta da corda. Já tinha peso demais em sua consciência.

— Mas é minha culpa, senhor! Preciso ajudá-lo!

— Pode me ajudar voltando para sua mãe, para que eu não me preocupe mais com você. Agora, vá!

O menino levantou-se, mas vacilava.

— Vá embora daqui — Luke ordenou, vendo-o pular e sair correndo do salão.

Orrik parecia satisfeito agora.

— Bem, podemos prosseguir? — Puxou a corda, for­çando Luke a curvar a cabeça para o lado. — O carva­lho perto do cercado dos animais tem um galho bem forte. Vai servir muito bem a nosso propósito.

— Ouçam-me bem todos vocês — Alex gritou, ainda preso pelos homens. — Orrik não tem autoridade para fazer isso. Ouviram lady Faithe proibir esse abuso.

Orrik pegou o martelo que um homem segurava.

— Não! — Luke apavorou-se, ao ver sua intenção.

Sem vacilar, o administrador bateu com o cabo da ferramenta na cabeça de Alex, desacordando-o. O san­gue logo aflorou à sua testa.

— Leve-o daqui — ordenou a Firdolf.

O rapaz ergueu Alex nos ombros enquanto o admi­nistrador segredava-lhe algo ao ouvido. Os olhos de Firdolf se arregalaram.

— Mas, mestre Orrik, se eu o deixar lá, ele...

— Vamos, não seja mole! Faça o que mandei! — Orrik puxou-o pela túnica e disse-lhe mais algumas palavras em voz baixa.

De onde estava, Luke pareceu ouvir a palavra Blossom. Provavelmente, Orrik o estava lembrando de que, com Alex fora do caminho, o objeto de seu desejo seria só seu.

O rapaz assentiu e levou Alex consigo, ainda desa­cordado.

— Não faça isso, Firdolf! — Luke tentou dissuadi-lo, mesmo sem saber do que se tratava. — Alex não cometeu crime algum! E Orrik não tem o direito de ordenar nada.

O rapaz não respondeu nem sequer voltou-se, mas havia consternação em seu semblante.

— Eu pouparia meu fôlego, se fosse você — Orrik observou. — Aliás, vai precisar de todo ele dentro de pouco tempo.

— Alex tem razão — Luke comentou com os homens que ali estavam. — Orrik está agindo por conta pró­pria, contra as ordens de sua senhora.

Eles teceram novos comentários. Vacilavam, estavam ainda aturdidos com tudo que estava acontecendo.

— Estou apenas vingando Caedmon! — Orrik ber­rou, tentando convencê-los.

— Pois está agindo errado, porque a morte de Caedmon foi uma tragédia. Ele estava morrendo, de qualquer maneira. Estava muito doente. Devia ter al­gum tumor na cabeça. O mesmo tipo de doença que ma­tou minha irmã.

— Mentira!

— Não. Ele enlouqueceu, no fim, como ela. Tinha crises de violência. Foi por isso que atacou aquela mulher.

— Ora, vá para o inferno, seu normando maldito! — Cansado de tudo aquilo, Orrik golpeou-o da mesma forma que fizera com Alex, deixando-o inconsciente.

 

Faithe acordou sentindo o cheiro familiar da palha e do feno. Sentou-se e foi tomada por uma onda de tontura. Deu-se conta, então, de que desmaiara ao chegar ao celeiro. Somente depois se lembrou do mo­tivo do desmaio: a terrível confissão de Luke e tudo que ele dissera sobre Caedmon ter agredido aquela prostituta.

— Não... — murmurou, pressionando a cabeça com as mãos. As coisas continuavam girando ao seu redor.

Logo em seguida, outra lembrança passou-lhe pela mente: a de Orrik jurando que, nessa mesma noite, enforcaria Luke. Levantou-se depressa, e, sentindo-se ainda mais tonta, teve de apoiar-se à parede. Mesmo assim, saiu do celeiro, com passos vacilantes. O céu es­tava marcado por contornos vermelhos e lilases. Não sabia quanto tempo estivera desmaiada. Orrik teria cumprido a ameaça? Teria ido contra suas ordens e en­forcado Luke? Ele jamais a desobedecera, mas voltara tão mudado de Hastings...

Suspendeu a saia e seguiu, mais depressa, de volta à casa. No caminho, Orrik a esperava, parado, de braços cruzados.

— Calma, milady! — exclamou, segurando-a pelo braço. — Para que a pressa?

— Você o fez? — ela perguntou, ansiosa. — Orrik, por tudo que é mais sagrado, diga que não o fez.

— Já lhe disse para ficar calma. Quer saber se fiz o quê?

— Enforcá-lo! Diga que não o enforcou, por favor.

— Claro que não. — Os olhos dele se dilataram, re­velando a indignação que sentia. — Achou que eu volta­ria atrás depois de ter-lhe dado minha palavra?

Aliviada, Faithe sentiu a tontura voltar. O adminis­trador tentou abraçá-la, para ampará-la, mas ela se afastou, murmurando:

— Fiquei tão assustada... Fui para o celeiro e des­maiei. E então me lembrei de sua ameaça.

— Mas mandou que eu não o fizesse, e não fiz. — Orrik tocou-lhe o queixo e a fez encará-lo. — Lembra-se disso também?

— Sim, mas... Sim.

— Alguma vez a desobedeci ou quebrei alguma pro­messa que tenha feito?

Por trás dele, Faithe podia ver, a certa distância, que Baldric montava guarda diante do cômodo no qual, tempos antes, tinham prendido Vance. Mesmo na pouca luminosidade do lusco-fusco, percebia o estranho sorri­so que ele tinha nos lábios. Ainda estava tonta, e seus pensamentos não estavam ordenados como deveriam, mas tinha a impressão de que nem tudo era o que parecia ser.

— Onde ele está, então? — perguntou, segurando as chaves em seu pescoço com mãos trêmulas.

— Seu marido? Bem ali. — Orrik moveu a cabeça em direção ao cômodo. — Onde mantemos todos os va­gabundos e malfeitores até decidirmos o que fazer com eles.

Faithe engoliu em seco. Então, Baldric estava, mesmo, de guarda, e seu marido se encontrava lá dentro, como um bandido qualquer, no mesmo lugar onde aque­le criminoso de estrada fora misteriosamente encontra­do morto. Olhou para Baldric. O que ele saberia e ela não? Podia pressionar Orrik, ordenar que lhe disses­se a verdade, mas conhecia-o bem, sabia o quanto ele era astuto e o quanto conseguia desviar uma conversa quando não queria revelar alguma coisa. Baldric tam­bém não revelaria nada. Era um verdadeiro capacho do administrador. No entanto, havia, sim, alguém que acabaria falando mais do que devia.

— Quero falar com meu marido. Onde está a chave dali?

Baldric a ouviu e tirou a chave do bolso, mas Orrik ergueu o braço, fazendo-o parar antes de enfiá-la na fe­chadura.

— Perdão, milady, mas isso não seria correto.

— Orrik, sua forma de falar comigo é que não está sendo correta. Luke é meu marido e vou falar com ele. — Tentou passar por ele, mas Orrik segurou-a pelo bra­ço, com uma força surpreendente para alguém de sua idade.

— Esse homem é um assassino violento — avisou. — Tem crises terríveis. É pior do que um cão enlouque­cido. E agora que está preso pode ser ainda pior.

— Ora, pelo amor de Deus, Orrik! — Ela tentou se soltar, mas não conseguiu.

— Eu detestaria ter minha consciência pesada se algo lhe acontecesse.

— Pois livro-o de qualquer responsabilidade. Agora, deixe-me ir.

— Mas ele vai envenenar seus pensamentos. Vai dis­torcer a verdade e fazê-la acreditar.

— E, imagino que você conheça bem esse tipo de coisa...

Orrik encarou-a, ofendido. Mesmo assim, disse:

— Se insiste em entrar lá, irei junto.

— De forma alguma. Não sou uma criança que pre­cisa de...

— Não vou discutir isso, Faithe. — Os dedos dele apertaram ainda mais seu braço. E o olhar, direto e se­vero, tornou-se mais intenso. Tratava-a pelo primeiro nome apenas quando estava, de fato, muito aborreci­do. — Você é minha responsabilidade, queira ou não. Sempre foi e sempre será. E não vou permitir que entre ali sozinha.

— Orrik, está me machucando.

Ele baixou os olhos para a própria mão e soltou-a.

— Falo a sério. Não vou deixá-la entrar sozinha — repetiu.

— Você não está em posição de permitir algo ou não, Orrik. Agora, deixe-me passar.

Olharam-se ainda por instantes, e então ele se afas­tou, resmungando: — Faça como quiser. Faithe foi até Baldric e estendeu a mão.

— Dê-me a chave.

Baldric voltou-se para Orrik e, vendo-o assentir, obe­deceu. Faithe abriu a porta e entrou. O lugar estava em absoluto silêncio.

— Luke? — Ela baixou os olhos e viu-o, no chão, jun­to a uma parede, com as mãos amarradas e as costas voltadas para a porta. Correu até ele e ajoelhou-se ao seu lado. — Luke! Luke, fale comigo!

— Ele não está morto — Orrik informou, da porta, vendo que ela se desesperava. Viu-a desamarrá-lo e sol­tou uma imprecação em voz baixa. — Saiba que vou amarrá-lo de novo depois que sair.

— Não vai estar aqui quando eu sair. Estou lhe ti­rando toda a responsabilidade sobre este assunto.

— O quê?

— Vá para casa. Você e Baldric. Estão os dois proibi­dos de se aproximar daqui.

— E quem vai montar guarda, então?

— Luke não precisa de um guarda. Olhe para ele. De fato, ele ainda nem se movera. Parecia desacordado.

— Ah, mas vai recobrar a consciência em breve. Não posso permitir que o deixe solto.

Ela respirou fundo, sabendo que o administrador não lhe daria sossego.

— Mui to bem, vou mandar Nyle ficar de guarda, en­tão. Confio nele.

— E em mim, não?

— Depois de querer enforcar meu marido? — Faithe virou Luke entre os braços, notando o ferimento em sua testa e o inchaço logo abaixo. — Veja o que fez. Não ti­nha esse direito, Orrik.

— Pois foi menos do que esse amaldiçoado merecia. Não entendo como ainda tem coragem de querer ficar ao lado dele, de falar com ele. Esse miserável matou seu marido num acesso de fúria!

— Não foi isso que ele disse.

— Ora, pelo amor de Deus! Refere-se àquela bo­bagem sobre Caedmon ter atacado a pobre mulher? Pense bem, Faithe. Ninguém conhecia Caedmon me­lhor do que você. Acha que ele seria capaz de atacar brutalmente uma mulher, mesmo que fosse uma... como aquela?

— O Caedmon que conheci, não. Jamais ergueu a mão para mim em todos os anos que vivemos juntos.

— Pois, então!

— Mas ele estava doente!

— Ah, e quem disse isso?

— As pessoas em Cottwyk.

— Disseram isso a você? Pessoalmente?

— Não... Luke me disse.

Ele riu com ironia, como se sua opinião acabasse de ser comprovada.

— E hoje, depois que você deixou o salão, esse men­tiroso começou a contar outra versão de sua história — esclareceu. — Disse que Caedmon estava louco.

— Louco?

— E. Fora de si, de tanta loucura.

Faithe calou-se, pensativa. Precisava agora, mais do que nunca, falar com Luke e tentar esclarecer tudo.

— Foi doloroso ouvir Caedmon ser ofendido da­quela maneira diante dos homens — ele prosseguiu. — Louco... Imagine! O pobre homem está morto. Foi morto pelo próprio Périgueux e, ainda assim, o sujei­to não o deixa descansar em paz, fica manchando seu nome. Não tem caráter nenhum, esse desgraçado. Pois lhe digo uma coisa: se permitirmos que os normandos julguem seu marido, aí sim, estaremos manchando de vez o bom nome de Caedmon, porque Luke vai dizer publicamente que ele era um lunático e que estava fora de si.

Faithe soltou Luke com delicadeza e levantou-se, en­frentando Orrik.

— Então, não é sua intenção entregá-lo aos norman­dos para ser julgado?

— E isso o que verdadeiramente quer, Faithe?

— Não há escolha... — Ela sabia que um julgamen­to justo acabaria com qualquer dúvida e colocaria um ponto final na história. E Luke provavelmente seria li­bertado. Orrik não poderia nunca mais querer incrimi­ná-lo de nada.

— Há uma opção, sim — ele teimou. Puxou-a de leve para fora de lá e para longe dos ouvidos de Baldric, segredando-lhe: — Não há necessidade de um julgamen­to. Podemos resolver tudo até amanhã pela manhã...

— Como?

— Estou dizendo que existe a justiça normanda e que existe a justiça saxã...

— Orrik, não está querendo insinuar que...

— Faithe, você não precisa ter nada a ver com isso. — Orrik usava um tom condescendente de pai que ofe­rece ajuda, apesar de tudo. — Nem precisa ficar saben­do como foi... Olhe, vá dormir tranqüila esta noite e amanhã tudo já estará resolvido. Eu prometo.

— Orrik, não lhe sobrou nem um pingo de decência? Eu confiava em você, mas agora...

— Pode confiar em mim, pelo amor de Deus! Sou o único em quem pode confiar, não vê? Sou o único que cuida de você e de tudo por aqui. — Percebeu que Baldric os observava, atento, e encarou-o, fazendo-o virar-se, antes de continuar argumentando: — Eu sin­to muito. De verdade. Sei que não deveria tomar isto em minhas mãos, mas detesto ver minha menina usa­da dessa maneira, sem poder para resolver a situação. Aquele normando matou Caedmon e depois ficou aqui durante meses, fingindo-se de bom homem. Enganou a todos. Enganou você! E quero puni-lo por isso. Posso, até, estar sendo severo demais, mas...

— Orrik, eu...

— Eu sou severo demais — ele prosseguiu. — Sinto-me alucinado de raiva e indignação pelo que foi feito a Caedmon. E me preocupo demais com você. Não quero vê-la sofrer. Você é minha menina. Minha Faithe, a fi­lha que nunca tive. Talvez eu me exceda, às vezes, mas é por gostar tanto de você. Por favor, acredite.

— Eu acredito... — Faithe reconhecia a verdade nas palavras que acabava de ouvir. Orrik sempre fora seu braço direito, sempre cuidara de tudo em Hauekleah, não havia dúvidas. Sempre tinha sido como um pai para ela. Mas isso acabara. Depois da chegada de Luke, ele se tornara intransigente, autoritário, arrogante. Avisara-o muitas vezes para não forçá-la a escolher entre ele e Luke. E tudo só fizera piorar, rompendo a ligação afeti­va que poderiam ter. De repente, lembrou-se de algo.

— Onde está Alex? Trancou-o em algum outro lugar?

— Não.

— Onde mandou que o colocassem?

Orrik respirou fundo. Agora evitava encará-la.

— Selou seu cavalo e foi embora.

— Foi embora? Como assim?

— Foi embora. Talvez tenha ficado com medo de ser trancafiado também, mas, como não é o assassino...

— E ele disse para onde estava indo?

Orrik pareceu pensar antes de responder:

— Não. Entrou na mata e se foi, para o oeste.

Faithe nada disse. A idéia de Alex abandonar o ir­mão à própria sorte não lhe parecia possível. Orrik to­cou seu nariz, como fazia quando era menina, e sorriu.

— Vamos, pare de se preocupar, minha querida. Está exausta. E não é para menos, pois foi um dia terrível. Por que não se recolhe e dorme um pouco?

Ela se voltou para o cômodo, que Baldric estava trancando novamente.

— Não vou conseguir dormir sabendo que Luke está ali. — Queria ficar com ele, mas sentia que devia descobrir o que, de fato, acontecera com Alex. Pretendia selar seu cavalo e seguir para o oeste também. Poderia alcançá-lo. Se nada encontrasse, possivelmente Orrik teria mentido e Alex teria sofrido outro destino... Assim, confirmou sua ordem, mandando Orrik e Baldric para casa e colocando Nyle de guarda à porta. Mandou também que levassem vinho e comida para Luke, quando ele acordasse.

Ele queria que Faithe estivesse ali. Andava de um lado para outro dentro do cômodo escuro, trancado, como um animal enjaulado. Sua cabeça ainda doía, por causa do golpe que sofrerá, e seu olho esquerdo continuava in­chado. Fora isso, sentia-se bem. Acordara surpreso por estar ali, desamarrado e sem uma corda no pescoço.

O orgulho o impedia de esmurrar a porta e exigir a presença dela. Não queria implorar para que conversas­sem, se essa não fosse sua vontade. No entanto, bem no íntimo, não havia lugar para tanta dignidade. Bem no fundo, queria sua presença, queria tê-la ali, para conver­sarem, para poder abraçá-la talvez... E se ela o estivesse odiando agora? Afinal, admitira ter matado Caedmon, e só Deus sabia o que Orrik poderia estar dizendo a ela. Notara o quanto estava vulnerável ao sair do salão.

Precisava explicar-lhe, fazê-la entender... Tinha de mostrar-lhe que fora, sim, o instrumento da morte de Caedmon, mas que não havia sido um assassinato, e, sim, uma tragédia. Se, ao menos, não a tivesse subes­timado antes, se tivesse dito tudo... Orrik não estaria tão forte agora se tivesse sido completamente honesto. De certa forma, era sua culpa estar ali, trancafiado, à espera de um destino incerto.

Passou os olhos ao redor. Não havia muito espaço para mover-se ali. Afinal, o lugar era usado para estocagem de grãos e havia sacas por todos os lados, empilha­das contra as paredes. A única abertura era bem alta, estreita, e usada apenas para ventilação. Não havia ne­cessidade de claridade ali dentro. Irritado ao extremo, voltou-se e esmurrou a porta uma única vez.

— Guarda! Quem está aí fora?

— Sou eu, milorde. Nyle.

— Por que não estou morto? Por que aquele infeliz não me enforcou enquanto podia?

— Ele bem que queria. Depois de atingi-lo, mandou-nos arrastá-lo até o carvalho grande. Mas ninguém quis obedecer, a não ser, sinto muito dizer, meu irmão Baldric.

Luke sorriu, com ironia, isso não o surpreendia.

— De qualquer maneira — Nyle prosseguiu —, nós todos o fizemos parar com aquilo. Achamos que o senhor merece um julgamento justo, ainda mais depois do que disse a respeito da desobediência a lady Faithe, e tam­bém sobre lorde Caedmon não estar bem do juízo...

— Veja bem o que fala — alguém recriminou, lá fora. Luke logo reconheceu a voz de Orrik. — Lady Faithe não mandou que não conversasse com ele?

— N-não, senhor. Ela não disse nada disso.

— Você tem menos cabeça do que um esquilo, Nyle. Fica aí escutando as mentiras dele — disse Baldric.

Luke meneou a cabeça, desencorajado pela presença dos dois.

— Não sabemos se são mentiras — Nyle rebateu, demonstrando coragem. — Não sabemos de nada. Lorde Caedmon pode, sim, ter ficado louco. Muita gen­te fica. Não...

Baldric interrompeu o irmão, mas suas palavras foram baixas e Luke só conseguiu ouvir algo parecido com enforcá-lo, mesmo assim.

— Ele vai enfrentar um julgamento justo — Nyle continuou desafiando. — Orrik prometeu.

— Não, se o infeliz quiser se matar — Baldric co­mentou, rindo.

Luke ergueu os olhos para o telhado firme do cômo­do. Lembrou-se da manhã em que tinham encontrado Vance pendurado ali, cheio de moscas ao redor. Outras coisas voltavam à sua memória agora. Vance prometera contar tudo quando ameaçara entregá-lo ao carrasco de Alberic. E pedira para falar com Orrik.

Uma idéia lhe ocorreu de repente: seria possível que os dois criminosos da estrada tivessem sido contratados por Orrik? O administrador sentira-se ultrajado por ter de suportar um novo senhor normando e poderia, sim, ter tomado uma atitude drástica para evitar que isso acontecesse.

De qualquer forma, se ele encomendara o ataque, fa­ria de tudo para manter seu envolvimento em segredo, pois sabia como os normandos o puniriam caso desco­brissem. Por isso, Vance tivera de ser eliminado antes de abrir a boca e revelar o que sabia.

Não tinha suspeitado de Orrik naquele momento porque ele não se encontrava em Hauekleah... ou se en­contrava? De acordo com o que a viúva Aefentid dissera a Faithe, Orrik costumava dormir com ela ao regressar de suas saídas. E sua hospedaria ficava bem do outro lado da mata. Baldric poderia ter ido até lá com facili­dade e contado sobre a captura de Vance. Orrik pode­ria ter voltado a Hauekleah durante a noite, enforcado Vance, retornado para a casa da viúva e chegado na manhã seguinte, com sua carroça nova... Baldric o teria ajudado a matar o criminoso, ou apenas montara guar­da... Mesmo com certa idade, Orrik ainda era bem forte, capaz de matar sozinho um homem como aquele.

Luke apertou os lábios, irritado consigo mesmo por não ter pensado nisso antes. Claro que a morte de Vance fora provocada por Orrik. Fazia sentido. Se tivesse che­gado a essa mesma conclusão antes, talvez agora não estivesse ali, à espera de que o administrador voltasse no meio da noite para repetir o que já fizera antes.

Encostou o ouvido na porta.

— Não, sir Luke jamais tiraria a própria vida. É pe­cado mortal e ele, além de ser muito valente, é também muito religioso — disse Nyle.

Baldric riu baixo, como se zombasse da ingenuidade do irmão. Nyle era um homem simples, de bom coração, e muito afável.

— Nyle, volte para casa — Orrik ordenou. — Deixe Baldric montar guarda esta noite.

Luke cerrou os dentes. Seria muito mais fácil mani­pular Nyle do que Baldric.

— Mas lady Faithe disse que eu deveria...

— Eu sei, mas ela me disse que mudou de idéia. Aliás, mandou-me justamente para substituir você por seu irmão.

Luke duvidava disso, mas Nyle aceitou sem questio­nar. Despediu-se dos outros dois e se afastou. E, quando tudo estava em silêncio novamente, Orrik avisou:

— Vou voltar daqui a algumas horas. Com cordas. Mas cuidado. Esse sujeito é um miserável mentiroso. Não fale com ele e não abra a porta por motivo nenhum, entendeu?

— Sim. Pode confiar.

O administrador baixou a voz consideravelmente e Luke teve de se esforçar para ouvir:

— Aliás, se, quando eu voltar, ele não estiver lá den­tro, será você que vão encontrar enforcado na viga. Não duvide disso.

— Não vou abrir a porta, juro! E não vou ouvir nada que ele tenha a dizer. Pode estar certo: ele vai estar aqui.

— É. Cuide para que esteja, mesmo. — Orrik se afas­tou com passos pesados e apressados.

Luke aproveitou os últimos momentos em que ainda havia luz para olhar bem ao redor. Afastou sacas e bar­ris, procurando por alguma coisa pesada que pudesse usar como arma. Claro que Orrik já verificara tudo que havia ali dentro antes de mandar prendê-lo. Portanto, não conseguiu nada que lhe pudesse ser útil para se defender.

Bateu com o pé no chão de terra, com força, para ver se conseguiria cavar por baixo da parede. Mas a terra ali estava tão dura, resultado de anos e anos de estocagem de sacas pesadas, que isso seria impossível. Mesmo que não fosse assim, não dispunha de nada que pudesse usar como ferramenta, muito menos de tempo para cavar...

Foi até a porta e chamou:

— Baldric!

Não houve resposta.

— Estou com sede. O vinho era pouco e minha gar­ganta está seca.

Silêncio.

— Vamos, seja caridoso e traga-me um pouco de água.

Nada. Baldric não o atendia. Se, ao menos, conse­guisse sua atenção, Luke tinha certeza de que o en­ganaria de alguma forma. Mas o homem estava firme em sua decisão de obedecer a Orrik a qualquer custo, e sabia que o silêncio total era a melhor forma de evitar qualquer deslize.

— Entendo, sabe? — Luke continuou insistindo. — Orrik não quer que abra a porta de forma alguma, mas estou, realmente, com muita sede. Olhe, vou lhe propor uma coisa: tenho aqui comigo um saco de moedas. E serão todas suas se me trouxer a água.

Houve silêncio por mais alguns segundos. Então, Baldric indagou:

— Quantas moedas tem aí?

— Ah, não contei, mas são muitas. — Era mentira. Luke sabia que não tinha grande coisa consigo. — Mas é melhor pegar agora, antes que ele volte. Assim não precisará dividir. E tudo que peço é um pouco de água.

Luke bem sabia que Baldric jamais lhe traria água, mas não podia perder a oportunidade de ver aquela por­ta aberta. Ele entraria armado, mas Luke sabia muito bem como desarmar um homem.

— Não — respondeu ele, por fim. — Não vale a pena me arriscar a atrair a ira de Orrik se algo der errado.

Luke cerrou os dentes. Ao que parecia, Baldric não abriria mesmo a porta. Voltou a andar de um lado para outro. A noite caiu e o cômodo ficou na completa escu­ridão, a não ser por uma réstia de luar que passava pela minúscula abertura quase junto ao teto. Enquanto andava e pensava, Luke lembrou-se do irmão. Por que Firdolf hesitara diante da ordem que recebera de Orrik? Para onde teria levado Alex? A menos que conseguisse escapar dali, tinha a impressão de que nem ele próprio, nem Alex, veriam a luz do sol novamente. Nunca mais teria Faithe nos braços, nunca mais teria a chance de explicar-lhe a verdade, de fazê-la entender... Tudo o que lhe restaria seria a lembrança do homem que matara seu primeiro marido e a enganara. Isso o atormentava mais do que a idéia da morte. Como soldado valente que sempre fora, enfrentar a morte era rotina. Houvera um tempo, até, em que havia achado que sua morte se­ria parte da justiça divina, resultado de tudo o que fi­zera de mau. Mas não era mais o Dragão Negro. Com Faithe, encontrara uma nova luz, uma felicidade que não imaginara possível. Descobrira que podia amar e ser amado e viver uma vida normal, como um homem bom. Por isso, não encarava a morte como algo que me­recesse agora. Precisava sair dali!

Um ruído chamou sua atenção junto à parede dos fundos. Foi até a abertura alta e ficou olhando, aten­to. E ouviu de novo; era uma espécie de arranhadura do lado de fora. Pareceu que ouvia sussurros também. Sim, alguém estava sussurrando.

— Faithe? — chamou, em voz baixa.

— Não, milorde. — Um rostinho surgiu na abertura minúscula. — Sou eu.

— Felix? Como subiu até aí? Tem uma escada?

— Não. Estou em pé nos ombros de Alfrith e ele está em pé nos ombros de Bram.

— Mas... e se Baldric os vir?

— Ele não nos viu. Vou tirar o senhor daí e os outros meninos concordaram em me ajudar.

— Não. E perigoso demais. Volte para sua casa. Todos vocês. Voltem agora.

O menino negou com a cabeça e explicou:

— Se não fosse por mim, o senhor não estaria nessa encrenca.

Luke teve de rir diante da idéia de que seus proble­mas poderiam, de alguma forma, ter sido causados por aquela criança bem-intencionada.

— Sou bem capaz de me meter em minhas próprias encrencas, Felix. Mas... o que pretende fazer?

O garoto já enfiara a cabeça pela abertura e agora es­tava passando ambos os braços, com certa dificuldade.

— Eu lhe trouxe algo — disse.

— Pare com isso. Vai se machucar.

— Milorde, se não se importasse em me segurar quando eu pular...

Luke não teve alternativa, senão abrir os braços, pois Felix já se lançava para baixo. Segurou-o e colo­cou-o no chão. Era inacreditável, mas, pela primeira vez, a compleição franzina fora de grande valia ao menino.

Felix enfiou a mão na parte de trás do cinto e de lá tirou algo que ofereceu a Luke, com orgulho. Era um machado pequeno, do tipo que escultores usam.

— Encontrei perto da cozinha. Sei que não é muito, mas pode ser usado como arma, não?

— Agiu muito bem, Felix. Obrigado. — O machadinho poderia, até, quebrar um crânio, se bem utilizado. — Você é muito esperto. Daria um bom soldado. — O elogio fez que o garoto sorrisse. Agora estava armado, mas Baldric permanecia inflexível quanto a abrir a porta... — Bem, agora vou ajudá-lo a sair daqui. Venha, suba em meus ombros.

— Não será necessário, milorde.

— Ah, mas não pode ficar aqui...

— Baldric! — chamou um menino, lá fora. — Ele está morto! Sir Luke está morto!

— Mas o que é isso? — Baldric surpreendeu-se. — O que vocês estão fazendo, suas pestes?! Vão embora daqui ou...

— Ele está morto!

— Quem, diabos, está morto?

— Sir Luke! Ele se matou!

Luke baixou os olhos para Felix, vendo apenas o sor­riso do menino.

— Idéia sua? — perguntou, e viu-o assentir, orgulho­so de si mesmo. — Está bem, então se afaste da porta. Pegue aquela corda e espere ali no canto.

Felix obedeceu de imediato, enquanto Luke se posi­cionava ao lado da porta.

— Por que acham que ele está morto? — Baldric per­guntou, sem entender.

— Porque o vimos. Subimos para espiar pela entra­da de ar e...

— Vocês o quê?!

— Foi só para olhar, mas ele estava deitado para cima, com os olhos arregalados e uma adaga enfiada no pescoço.

— Ora, ele não tem adaga nenhuma...

— Ah, devia estar escondida em algum lugar... — dis­se outra voz de menino, parecendo bastante convincente. — Ou vai ver que alguém jogou uma pela abertura de ventilação e ele a pegou... Mas ele está bem morto, sim.

— É, mesmo — apoiou o outro garoto. — Nem pis­cou, nem nada...

— E há sangue por toda parte.

— Pelos ossos de Cristo... — Baldric grunhiu.

— Você nem vai precisar dessa faca — um dos me­ninos observou, obviamente para preparar Luke. — Já dissemos, ele está bem morto!

— Calem a boca.

Luke ouviu a chave girando na fechadura e se prepa­rou. Quando a porta foi aberta, viu a silhueta escura de Baldric. Segurando a machadinha pela parte de metal, baixou a mão com toda a força, acertando-o no braço, fa­zendo-o largar a faca por causa da dor. Puxou-o, então, para dentro e arrastou-o até um canto, pressionando a machadinha contra seu pescoço.

— Não me mate — ele implorou, em pânico.

— Mate, sim, mate, sim! — os meninos instigaram, juntos.

Luke teve de sorrir.

— Eles querem que o mate...

— Não, por favor. Pelo amor de Deus! Estou supli­cando, milorde!

— Milorde? Fui seu senhor quando me amarrou e me jogou aqui dentro?

— Sinto muito, milorde. De verdade.

— Acabe logo com ele — os meninos continuavam instigando. Pareciam ter ensaiado para falar juntos.

— O que acha de eu deixá-lo nas mãos deles? — Luke ofereceu, ainda sorrindo. — Até podia ser inte­ressante...

— Milorde, por favor! Por sua mãe! O que posso fazer?

— Dizer onde meu irmão está, por exemplo.

— Eu... eu honestamente... não sei... Luke voltou-se para os meninos.

— Ele é todo de vocês...

— Não! — Baldric gritou quando os garotos se apro­ximaram, ansiosos. — Quero dizer... sei o que Orrik dis­se a Firdolf, mas...

— Muito bem, quais foram as ordens dele? Baldric engoliu em seco.

— Orrik mandou que Firdolf o amarrasse e amorda­çasse e o largasse na floresta.

Luke soltou uma imprecação. Amarrado, sem poder gritar e com a ferida aberta no supercílio, Alex seria uma presa fácil para os animais.

— Então, Orrik esperava que os lobos terminassem o que não teve coragem de fazer.

— É, ele disse que não teria sobrado muito de seu irmão ao amanhecer.

— Muito bem. Onde, exatamente, Firdolf deveria deixá-lo?

— Isso eu não sei. Mas devia ser em algum ponto onde fosse muito difícil ele ser encontrado. Ou o que sobrasse de seu corpo.

Luke apertou a machadinha no pescoço de Baldric, vendo o desespero aumentar em sua expressão.

— Por favor, milorde, não faça isso! Não me mate.

— Mas você merece morrer.

Segundos se passaram. Luke poderia jurar que o su­jeito tinha se molhado de medo.

— É, não vale a pena sujar minhas mãos com um inseto como você — comentou.

— Obrigado, milorde, obriga...

Luke virou-o para baixo e chamou:

— Felix, dê-me a corda. Bram, Alfrith, encontrem al­guma coisa que possa servir de mordaça.

Os meninos foram rápidos. Depois de amarrar e amordaçar Baldric, Luke pegou sua faca e a chave do cômodo e saiu, com os garotos. Trancou a porta e deixou a chave pendurada logo ao lado, onde seria facilmente encontrada.

— Vamos ficar de guarda — Alfrith ofereceu.

— Não é necessário. Não quero que Orrik volte e os encontre aqui. E não falem a ninguém sobre o que houve. Não quero que lhes façam mal por terem me ajudado. Os três concordaram em ficar em silêncio.

— Algum de vocês viu para onde Firdolf levou meu irmão?

Todos assentiram.

— Todo mundo estava olhando — Alfrith explicou. — Ele pôs sir Alex no ombro e depois num cavalo, e levou-o pela estrada até a floresta As duas gêmeas o seguiram correndo. Mas elas ficaram cansadas quando os cavalos seguiram mais depressa. Então, sentaram-se na estrada e ficaram chorando.

— Firdolf já voltou?

— Sim — Felix respondeu. — Ao anoitecer.

— Onde ele mora?

— Na cabana pequena junto ao lago, aquela que está toda velha.

— Vocês todos são muito corajosos e inteligentes. Os meninos sorriram, satisfeitos.

— Mas foi Felix quem planejou tudo — Bram escla­receu. — E achamos que, se ele estava disposto a fazer isso sozinho, poderíamos ajudar.

Os meninos passaram os braços pelos ombros um do outro, numa demonstração de que eram todos compa­nheiros, e que Felix não era mais excluído. Agora esta­va mais para líder do que para qualquer outra coisa, apesar do tamanho.

— Bem, estou muito satisfeito por ter três valentes sol­dados a meu serviço — Luke elogiou. — Agora vão. Voltem para casa e ajam como se nada tivesse acontecido.

Eles obedeceram, correndo. Luke ergueu os olhos para a janela do quarto que partilhara com Faithe e imaginou se, um dia, voltaria a dormir ali com ela. Chegou a dar um passo na direção da casa, mas pensou melhor e pa­rou. Queria vê-la e conseguiria entrar sem ser percebido, mas Alex era sua prioridade agora. Os lobos surgiriam em breve. Talvez já o estivessem cercando...

Seguiu, depressa, sempre escondido, até o lago, e logo viu a cabana em ruínas. Aproximou-se, notando que ha­via certa luminosidade lá dentro. Ouviu vozes e o balbuciar de um bebê. Com cuidado, chegou à janela, e olhou para dentro. Uma mulher tinha, nos braços, uma crian­ça que começou a chorar. Um cachorro latiu em algum lugar. Havia mais pessoas ali. No total, eram seis, e to­dos ergueram a cabeça ao ouvir o cão. Firdolf não estava ali. Um homem chegou a ver Luke e exclamou:

— Milorde!

Luke reconheceu o pai de Firdolf. Ele segurou o ca­chorro, que tentou avançar contra a janela, na qual Luke já se mostrava por inteiro.

— Onde está seu filho? — A pergunta, feita com ab­soluta autoridade, exigia uma resposta.

A mãe de Firdolf inclinou-se de leve, respeitosa, e disse:

— Perdão, milorde, mas... não devia estar preso?

— Não mais.

— Oh... Bem, o senhor está com esse olho tão roxo...

— Onde está Firdolf? — Luke repetiu, ansioso.

— Não sabemos...

— Mas ele já devia ter voltado! O pai do rapaz levantou-se, ainda segurando o cão.

— Ele voltou, de fato, mas sua garota veio buscá-lo e saíram juntos.

— Ela não é garota dele — uma menina de uns doze anos comentou, parecendo ser autoridade no assunto. — Firdolf até queria que fosse, mas não é.

Luke logo pensou nas gêmeas. Por qual delas Firdolf era apaixonado? Não conseguia se lembrar.

— Está se referindo a...

— Blossom — disse a menina. — A que tem uma trança só.

— E quando ela veio buscá-lo? — Luke quis saber.

— Logo depois que ele chegou — disse um menino, que até agora só fizera comer.

O cachorro continuava tentando soltar-se, mostran­do os dentes a Luke. Era forte e cinzento, como um lobo. Pensou no irmão, indefeso, e sentiu um arrepio na espinha.

— Sabem para onde eles foram? Todos negaram com a cabeça.

— Sabem onde moram as gêmeas?

— Ah, elas vivem sozinhas, porque os pais já falece­ram e as irmãs mais velhas estão todas casadas — disse a mãe de Firdolf, sem pressa alguma para explicar. —A cabana delas fica na parte de trás de Hauekleah, onde os carneiros são guardados, naquele cercado novo... A cabana é tão bonitinha, com aquele jardim florido dian­te da porta e a cerquinha branca...

Luke deu-lhes as costas e se afastou, contando os mi­nutos para encontrar seu irmão. Seguiu, mais uma vez oculto, mas apressado, até o local que a mulher indicara.

Ao chegar, olhou pela janela aberta e viu Bonnie, a gêmea de duas trancas, preparando uma cesta de alimentos, à mesa. Entrou sem bater, assustando-a a princípio, mas logo um sorriso iluminou os traços da garota.

— Oh, é o senhor. Como foi que escapou? Oh, e esse seu olho!

— Onde está sua irmã?

Ela levou o indicador aos lábios, pedindo silêncio, e olhou para a abertura que ficava à esquerda, e que ti­nha uma cortina de couro em vez de uma porta.

Luke franziu o cenho.

— Ali? Firdolf está com ela?

Bonnie assentiu, mas, ao ver que ele se dirigia para lá, segurou-o pela túnica.

— Solte-me. Vou fazer que esse idiota diga para onde levou meu irmão.

— Blossom já está cuidando disso, milorde. Escutou um gemido masculino vindo de trás da cor­tina, e compreendeu de imediato.

Bonnie explicou, sussurrando:

— Firdolf não quis dizer para onde levou sir Alex porque morre de medo de Orrik, mas Blossom sabe como fazer um homem mudar de idéia.

Outros murmúrios e gemidos se seguiram. Bonnie sorriu e aproximou-se, tocando o rosto ferido de Luke.

— Oh, mas que coisa terrível de se fazer com um olho tão lindo... Dói?

— Não. — Ele mentiu e se afastou, sentindo a mesa atrás de suas coxas.

Bonnie não se intimidou e continuou avançando.

— Ah, deve doer, sim, e muito! Não quer que eu faça algo para melhorar seu sofrimento? — Suas mãos co­meçaram a subir pelo peito de Luke, que as segurou, afastando-as.

— Obrigado, mas lady Faithe é quem cuida de meus ferimentos.

Bonnie sorriu, provocante.

— Que sorte a dela, não?

— Isso, Blossom... Isso! Oh, Deus! — Firdolf gemia no outro aposento.

Bonnie continuava sorrindo e Luke afastou-se mais. Apontou para a cesta e indagou:

— Pretende levar isso para Alex?

— Sim. Logo que soubermos onde está.

— Oh, Blossom... Meu Deus! — Os gemidos se inten­sificaram.

Luke ergueu as sobrancelhas.

— Acho que teremos a resposta em breve — co­mentou.

— Mas... o que é isso? O que está fazendo? Blossom! Blossom, volte aqui! — Firdolf parecia desesperado.

— Ah, não sei, Firdy... — ela queixou-se numa voz absurdamente sensual. — Não me sinto bem fazendo isto, sentindo tanto prazer, enquanto sir Alex está lá, no meio da mata, sozinho...

— Blossom, pelo amor de Deus, não pode parar ago­ra. Veja em que estado me deixou.

— Ah, eu até voltaria para seus braços depois de sa­ber que iríamos buscar sir Alex assim que terminásse­mos aqui. Mas nem sei onde encontrá-lo. Talvez, se me dissesse...

— Na floresta, a sudoeste, está bem? Vou lhe dizer como chegar lá, mas, por favor, volte aqui e termine com isto, sim? — Ele prendeu a respiração. — Oh, sim! Isso...

Segundos depois Firdolf soltava uma espécie de uivo que Luke jamais ouvira antes e que o fez erguer as sobrancelhas mais uma vez. Pouco depois, Blossom afastou a cortina e apareceu, ainda abotoando a parte de cima de seu vestido. Atrás dela, numa cama larga, Firdolf estava largado, nu, com o peito arfando. A garo­ta sorriu, contente, ao ver Luke.

— Milorde! Conseguiu fugir!

Firdolf sentou-se, assustado, e puxou as cobertas so­bre si.

— Oh, pobrezinho... — Blossom sussurrou, aproxi­mando-se de Luke e tocando-lhe o ferimento com dedos suaves. — Dói?

Bonnie pigarreou, fazendo-a parar. Blossom voltou-se para Firdolf e anunciou:

— Ele concordou em nos contar para onde levou sir Alex. Não é, querido?

O rapaz continuava olhando para Luke, apavorado.

— Firdy? — ela chamou.

— Firdy — Luke repetiu, entre divertido e autori­tário, e viu o jovem pular da cama e passar a se vestir como podia.

— Sim, milorde. Às suas ordens! Olhe, não se zan­gue, eu só obedeci às ordens de Orrik. Ele é terrível e eu...

Luke deu dois passos largos em sua direção, fazen­do-o parar de se arrumar e engolir em seco.

— Diga-me apenas onde está meu irmão.

— Sim, milorde. Pegue a estrada até chegar ao se­gundo riacho. Ali, ela se divide e o senhor deverá seguir pela direita. Ao ver o grupo de carvalhos, saia da es­trada e entre na mata, seguindo sempre por onde ela é menos fechada. Logo vai aparecer uma clareira. Foi lá que o deixei.

Luke deu-lhe as costas e passou a mão na cesta, ig­norando os contínuos pedidos de desculpas do rapaz e os apelos das gêmeas para que as levasse consigo. Disse apenas antes de sair:

— Não digam a ninguém que estive aqui.

Os estábulos de Hauekleah ficavam bem próximos dali. Seguiu até lá, selou seu cavalo e o de Alex, que pu­xou pelas rédeas, e foi em direção à estrada, guiando-se pelo luar.

Seguiu as indicações corretamente e ficou aliviado ao se deparar com os carvalhos. Porém, logo começou a ouvir os uivos e rosnados.

Os animais formavam um círculo ao redor da pre­sa. Alex, deitado de lado, com a mordaça bem firme na boca e pés e mãos amarrados, mantinha os olhos muito abertos, fixos nos lobos que se aproximavam cada vez mais. A clareira era grande e ele estava bem no centro, num local que Luke imaginara ser mais fácil de se aproximar. De onde estava, ainda avançan­do a cavalo, pôde ver que um dos lobos se adiantou aos demais, na intenção de dar a primeira mordida, mas Alex chutou-o como pôde, e acabou por afastá-lo. Provavelmente, isso vinha acontecendo já havia al­gum tempo, com os lobos alternando-se nesses avan­ços individuais e posteriores retrocessos enquanto o grupo todo reunia coragem para um verdadeiro ata­que. A vantagem de Alex no momento era que, apesar de excelentes caçadores, esses animais sempre ten­diam a ter medo dos homens.

O lobo maior e mais ousado conseguiu aproximar-se e morder a perna de Alex antes que ele pudesse evitar. Luke, ao ver a cena, instigou seu cavalo a se­guir mais depressa, vendo que o animal já tinha feito em pedaços a parte de baixo das calças do irmão e rasgado parte de sua pele. A situação acabou por es­timular alguns dos outros lobos, que se aproximaram ainda mais. Os que permaneceram atrás se assusta­ram quando Luke chegou e apeou. Os quatro que es­tavam mais adiante continuaram rosnando, furiosos e ameaçadores.

— Aqui! — Luke chamou-lhes a atenção, movendo os braços.

O lobo maior arriscou alguns passos em sua direção. Luke pegou a faca de Baldric, que não era uma arma muito apropriada para enfrentar um animal assim, mas era tudo de que dispunha.

— Vamos, venham, seus miseráveis! Aqui!

O lobo maior saltou sobre ele, mas Luke abaixou-se e rolou pelo chão, evitando-o, mas estendendo o braço com a faca, que acabou acertando o animal. Um ganido leve demonstrou que o ferira. Uma dor em seu ombro demonstrou que também se ferira.

O lobo voltou-se, disposto a atacar outra vez, apesar da dor. Luke largou a faca, que mostrou ser inútil contra um animal tão grande e forte. Pegou uma pedra gran­de e, quando viu que seria atacado novamente, jogou-a contra o lobo, atingindo-o na cabeça e desacordando-o. Tornando a pegar a pedra, voltou-se contra os outros três, que esperavam, atentos e rosnando. Ergueu-a e rosnou também, tentando intimidá-los. Conseguiu, pois os três deram-lhe as costas e sumiram no meio da mata. Vendo que estavam a salvo, pegou a faca e cortou a mordaça de Alex.

— Seis — disse o rapaz.

— Seis? Seis o quê? Lobos? Há mais deles? Onde? — Luke falava enquanto o livrava das cordas.

— Não. Seis vezes, com esta, em que salvou minha vida. E não salvei a sua nenhuma ainda. — Ele sentou, meio desajeitado. — Vai ter que diminuir o ritmo para que eu possa alcançá-lo.

— Se eu diminuir, vai acabar morto e jamais terá a chance de me alcançar, irmãozinho.

Alex sorriu.

— É, tem razão. Mas obrigado, mesmo assim. — Bateu no ombro de Luke, fazendo-o gemer alto. Assustado, olhou para a própria mão, agora manchada de sangue. — Ora, o miserável o pegou...

— Não. Eu me feri na queda. Mas ele pegou você, com certeza. — Apontou para a perna ferida.

— Não foi grave. Bem, esse seu ferimento na testa parece pior.

— Obra de Orrik, mas pretendo fazê-lo pagar por isso.

— E terei prazer em ajudá-lo. — Alex apontou para a própria cabeça, que também tinha a marca da brutali­dade do administrador de Hauekleah. Depois, deixando que Luke o ajudasse, levantou-se e montou. E riu muito quando Luke lhe contou como Blossom conseguira a informação sobre seu paradeiro. — É, Firdolf andou atrás dela o verão inteiro.

— Não sente ciúmes? — Luke perguntou, enquanto seguiam por entre as árvores.

— Não. É bem-feito para mim. Fui esganado demais querendo as duas. Mas Blossom fez o que fez por mim e... sabe, acho que ela até gosta do sujeito. Na verdade, ela gosta de qualquer coisa que se mova dentro de um par de calças. As duas. Não vá me dizer que não tenta­ram se aproximar de você também.

— É, de fato... Alex tornou a rir.

— E imagino que tenha resistido bravamente.

— Sou casado.

— Parece nosso pai falando. E entenda isso como um elogio. Ele era um homem bom e sabia o que é verdadeira­mente importante na vida. Bem, para onde iremos agora?

— Foxhyrst. Vou me entregar a Alberic e exigir ser levado a Londres para ser julgado por Guilherme.

Alex ergueu as sobrancelhas.

— Não acha melhor voltarmos a Hauekleah e dar­mos a Orrik um pouco de seu próprio veneno?

— E depois? Admiti publicamente ter matado Caedmon. Acha que Faithe continuaria comigo como se nada tivesse acontecido? Eu a enganei, Alex. Tenho de compensá-la pelas mentiras e pelo que fiz, para tentar tê-la de volta.

— Bem, você é quem sabe, mas... colocar-se nas mãos de Alberic... Ele detesta você. Por que não segue direto para Londres e se apresenta ao rei?

— Porque o protocolo exige que eu me entregue ao xerife local e que ele me leve à presença do rei. Não se preocupe. Alberic me odeia, sim, mas jamais arriscaria ter contra si a raiva do rei por tomar um assunto destes em suas mãos.

— Espero que tenha razão.

— Vou fazer tudo da forma correta, pelo menos desta vez, para que não haja dúvidas quanto às minhas boas intenções. Quero esclarecer tudo em público e depois ser oficialmente libertado. E, quando tudo passar, po­derei me dedicar a reconquistar a confiança e o amor de Faithe.

— Como se os tivesse perdido...

Luke apenas ergueu as sobrancelhas. Não ousava pensar o contrário.

 

Faithe voltou a Hauekleah e foi direto ao estábulo, onde acordou o jovem cavalariço, Bert. Ele surpreen­deu-se ao vê-la ali, no meio da noite, trazendo sua égua pelas rédeas.

— Milady?

— Sim. Cuide de Daisy, sim? Cavalguei muito com ela.

— Mas... que horas são?

— Já é madrugada.

Quase madrugada, repetiu para si mesma, cami­nhando de volta à mansão. Estava tão exausta quanto seu cavalo e muito apreensiva. Cavalgara muito à pro­cura de Alex e nada encontrara.

Entrou pela cozinha, pegou pão, vinho e uma lan­terna e seguiu, comendo e bebendo, passando pelo pá­tio iluminado pelo luar. Ao ver o local em que haviam prendido Luke, parou, estranhando a ausência de Nyle. E, quando viu a chave pendurada, ficou ainda mais in­quieta. Foi até lá, bateu na porta e chamou:

— Luke?

Não houve resposta.

— Luke?

Sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha. Lembrou-se logo da imagem de Vance pendurado no teto, com a boca cheia de moscas. Seus dedos estavam trêmulos quando girou a chave na fechadura.

Ergueu a lanterna e continuou chamando por seu marido. E soltou o pão e o vinho que levava ao ver o homem no chão, amarrado e amordaçado. Ao perceber que se tratava de Baldric, relaxou, mas logo ficou apre­ensiva de novo. Ajoelhou-se, tirando-lhe a mordaça, e perguntou:

— Onde está Luke? O que houve com ele?

— Obviamente escapou — disse uma voz contraria­da, vinda da porta.

Voltou-se e viu Orrik, com os punhos fechados à cin­tura e os olhos fixos em Baldric.

— Eu... sinto muito, mestre Orrik, eu não que­ria... mas ele usou os meninos e eles me enganaram! Disseram que...

— Está praticamente chorando, seu animal. Não se envergonha?!

Baldric levantou-se, esfregando os pulsos. Parecia desesperado.

— Não foi minha culpa. Eu juro!

— Claro que foi, seu imbecil! Eu não o avisei para não falar com ele? Para não abrir a porta?

— Sim, mas...

— Você me desobedeceu. E agora nosso prisioneiro escapou. E é, sim, culpa sua e de mais ninguém. Agora, saia daqui antes que eu perca a paciência e acabe com esses seus dentes podres.

Baldric passou por ele correndo, apavorado.

— O que ele estava fazendo aqui? — Faithe indagou, assim que ficou a sós com Orrik. — Dei-lhe ordens es­pecíficas para que ele não ficasse...

— Nyle não se sentiu bem e tive de substituí-lo por alguém. Só tinha Baldric disponível.

— Oh, estou farta de suas mentiras, Orrik!

— Milady...

— O que fez com Luke? Enforcou-o?

O administrador empalideceu.

— Juro pela alma de minha mãe que não fiz isso. Não o vi desde que o deixamos trancado aqui. E ouso dizer que jamais o verei... nem a senhora. É, eu sei onde ele está agora. Esta à caminho de Bulverhythe Harbor. Quando nascer o dia, estará num barco, cruzando o Canal. Um homem pode desaparecer com facilidade no continente, como deve imaginar. Ele jamais será leva­do à justiça, mas os normandos o teriam libertado de qualquer maneira... — Orrik cuspiu no chão, mostran­do, uma vez mais, seu desprezo.

— Ora, cale a boca.

— Milady, não fique tão...

— Tão o quê? Meu marido desapareceu e tudo o que você tem para me dizer é que...

— Ele não desapareceu. Fugiu, o que é bem diferente.

— E quanto a Alex? O que houve com ele?

— Eu já lhe disse. Foi embora a cavalo.

— Orrik, passei a noite procurando por ele na estra­da que leva para o oeste, como você me disse. E não vi nem sinal de meu cunhado.

O administrador pareceu chocado por instantes.

— Não acreditou em mim, então? Saiu, a esta hora da noite, sozinha, para comprovar minhas palavras?

— Sim. Não tinha motivos para acreditar em você. O que realmente aconteceu com Alex?

— Foi embora. E, se não conseguiu alcançá-lo, é por­que o miserável estava correndo muito, com medo de que eu voltasse atrás e mandasse prendê-lo também.

Faithe respirou fundo.

— Nunca saberei a verdade de você. Nem sobre meu marido, nem sobre meu cunhado.

— Seu marido escapou, e essa é a verdade.

— Oh, estou farta de dar-lhe ouvidos! — Faithe er­gueu a lanterna, tentando ver além dele, mas Orrik bloqueou seu caminho.

— Seu querido normando enganou Baldric e fugiu, e quer saber por quê?

— Chega, Orrik! Cansei de suas explicações e de sua lógica desumana.

— A verdade pode ser desumana, minha cara, mas é o que é. E a verdade que você tem que enfrentar é que Luke de Périgueux fugiu para não ter de enfrentar a justiça do rei. Ele sabia que, se analisado em público, seria condenado pelo que é: um animal sem coração, sem piedade e sem remorso.

— Eu disse que já chega.

— Não que Guilherme fosse capaz de dar a ele a punição merecida. Poderia, até, nem ser considerado culpado oficialmente. Mas todo mundo saberia... Todos descobririam o que ele, na realidade, é. E é isso que Périgueux teme. Por isso fugiu, o covarde.

— Cale-se! — Ela fechou os punhos, batendo-os con­tra o peito do administrador, mas ele nem se abalou.

— Sua fuga só prova o quanto é culpado. Está mor­rendo de medo de enfrentar um tribunal.

— Talvez ele apenas tema o que você é capaz de fa­zer quando eu lhe der as costas.

Orrik meneou a cabeça, desapontado.

— Não posso acreditar que ainda o defenda. O ho­mem confessou ter matado Caedmon, e você o julga ino­cente... Ainda quer dar-lhe a oportunidade de evitar o castigo que bem merece.

— Orrik, quero apenas que seja feita justiça.

— Eu também. Mas é tarde demais para isso. Seu marido enganou a justiça, Faithe. Tudo que podemos fazer agora é seguir com nossas vidas. De certa forma, ele lhe fez um favor desaparecendo assim, pois jamais o verá novamente. Pode esquecê-lo, deixar de pensar que um dia esteve aqui.

Esquecer Luke... A idéia era tão absurda, que Faithe sentia vontade de rir. Não podia esquecê-lo como não podia parar de respirar. Luke se tornara parte de seu ser.

— Preciso descobrir a verdade — disse.

— Precisa esquecer, isso sim. Mas, por enquanto, acho que precisa apenas dormir e descansar. E tarde, está exausta. Poderemos conversar amanhã. Irei pro­curá-la nas primeiras horas.

Faithe não respondeu. Partiria bem cedo para Winstow, em busca da verdade, mas seria tola de­mais se deixasse Orrik saber disso. Subiu para seu quarto, sem discutir, e esperou que o resto da noite passasse.

Já era meio-dia quando chegou à loja do comercian­te de óleo. Encontrou Dunstan no andar de cima, cui­dando da irmã. A doença da pobre mulher a consumia velozmente e já a transformara num esqueleto coberto de pele amarelada.

— E uma questão de dias... — ele se lamentou, soltando a cortina da porta que separava o quarto da sala.

— Sinto muito — Faithe murmurou, sentando-se à mesa em que já conversara com ele antes.

— Peço a Deus todos os dias que a leve logo, que acabe com seu sofrimento. Fiz sopa. Gostaria de tomar um prato, milady?

— Não, obrigada. Estou sem fome.

— Está tudo bem em Hauekleah?

— Não. — Em breves, mas claras palavras, ela lhe contou sobre a descoberta do broche, a confissão de Luke e sua fuga. O jovem pareceu chocado com as no­tícias. Por fim, Faithe disse: — Quando estive aqui da outra vez, você me contou muitas coisas, mas guardou outras para si. Sei que estava tentando proteger meus sentimentos, mas agora preciso saber de tudo.

— Não, milady.

— Dunstan, alguma coisa aconteceu quando você e Caedmon estavam à espera das forças de Guilherme. Imagino que tivesse a ver com... uma mulher. Uma prostituta. Não quis me contar antes, mas preciso sa­ber agora. Por favor.

— Mas iria manchar a memória dele. Caedmon es­tava... tão doente...

— Dunstan, ele estava louco?

— Milady, algumas doenças acabam com a mente e com o corpo. Vi isso acontecer com minha irmã. Sabe, as coisas que ela diz, quando consegue conversar comigo, não fazem sentido. E Caedmon estava ficando assim. As dores de cabeça o estavam enlouquecendo.

— Ouvi dizer que ele tinha tonturas e visão dupla.

— É verdade, mas havia mais. Caedmon começou a reclamar das coisas mais estranhas, como... de não sentir mais o gosto da comida. Parecia sempre bêbado, mesmo que não tivesse tomado nem um gole.

— Dunstan, quero que entenda que preciso saber de tudo e que suas revelações não vão manchar a memória de Caedmon. Ele está morto, mas Luke está vivo, e é necessário que eu saiba o que houve naquela noite em Cottwyk, para o meu bem e também o de meu atual marido. E, se aquilo que ainda não me contou puder, de alguma forma, ajudar...

— Pode, sim, senhora. — Dunstan serviu dois copos de vinho, oferecendo um a Faithe. Depois de tomar al­guns goles, continuou: — Foi, mais ou menos, quinze dias antes da batalha de Hastings. O rei Haroldo e a maioria de seus homens estavam no Norte, lutan­do contra os dinamarqueses que nos haviam invadi­do pouco antes de Guilherme. Mas tínhamos ordens para permanecer no Sul. Estávamos numa hospedaria numa aldeia minúscula chamada Ixbridge. Todos dor­mimos na parte de baixo, mas lorde Caedmon, por ser nobre, ocupava um cômodo na parte de cima. Havia uma mulher lá. Uma mulher que... se vendia. Seu nome era Matfrid. E ele passou a noite em sua compa­nhia. — Dunstan olhou-a, para ver se sua reação lhe permitia continuar.

Faithe assentiu, encorajando-o, embora sentisse o peito se apertar pela vergonha da traição tão aberta que sofrerá.

— Bem, durante a noite, ouvimos gritos. Eram hor­ríveis. Subimos para ver o que estava acontecendo e... — Ele vacilou.

— Caedmon a estava atacando?

— Sim. Com uma faca.

— Oh, Deus!

— Nós o desarmamos, mas ele já a tinha ferido no rosto.

Faithe cobriu os lábios com as mãos e cerrou os olhos.

— Tivemos de dar algumas moedas a ela e depois saímos dali, Essa foi a única vez que vi lorde Caedmon assim, fora de si. Quero dizer, ele vinha sendo mais hos­til a cada dia, procurando brigas conosco, mas depois de Ixbridge... bem, percebemos que algo estava muito errado com ele.

Faithe pensou por instantes, depois indagou:

— Orrik também estava lá? Dunstan assentiu.

— Mandou-nos ficar calados a respeito do que aconteceu. Lorde Caedmon pareceu se acalmar por alguns dias e depois desapareceu em Hastings. Sei que foi um erro manter isso em segredo até agora, mas mestre Orrik estava apenas pensando na senhora. Ele a quer como a uma filha. E, se errou, foi apenas por esse motivo.

— Eu sei. E é exatamente isso o que torna tudo ain­da mais difícil.

Orrik esperava por Faithe no portão de Hauekleah quando ela voltou, nessa mesma tarde. Segurava um documento nas mãos.

— Onde esteve, milady? Fiquei preocupado.

— Preocupa-se demais comigo. Já sei sobre o que houve em Ixbridge.

Ele arregalou os olhos.

— Faithe...

— Não devia ter ocultado isso de mim. Ainda mais depois do que Luke disse sobre Caedmon. Se atacou uma mulher uma vez, poderia muito bem fazê-lo de novo. Luke disse a verdade sobre o que aconteceu em Cottwyk. Você sabia, mas nada disse. Por quê?

Ele respirou fundo, sinceramente entristecido.

— Só estava pensando em protegê-la. Périgueux nada significa para mim, continua sendo um inimigo. Você... é minha menina. Não queria que sofresse.

— Perder Luke me faria sofrer, e muito. Mais do que saber o que houve com Caedmon. Ele estava doente e sua doença o enlouqueceu. Achou que eu não poderia entender isso?

— Não queria que tivesse de enfrentar uma situação tão dura, tão dolorosa. Somente eu e Dunstan sabíamos no que Caedmon se transformara. Não quis que você soubesse nem que se tornasse público o que aconteceu em Ixbridge. Achei melhor ninguém saber.

— A ignorância nunca é melhor, Orrik.

Ele assentiu, baixando os olhos para o pergaminho que tinha em mãos.

— O que é isso? — ela perguntou.

— Uma carta de lorde Alberic. — Entregou-a a Faithe, cabisbaixo. O selo estava aberto, o que a fez en­cará-lo, aborrecida. — Não estava aqui, milady. E achei que poderia ser importante.

Contrariada, ela abriu a mensagem. O escriba de Alberic sempre lhe escrevia em latim, talvez imaginan­do que não compreendesse a língua de seus novos se­nhores normandos.

— É sobre Périgueux — Orrik esclareceu. — Ele se entregou a lorde Alberic.

— O quê? Quando?

— Esta manhã.

— Está vendo? Ele não estava com medo de ser jul­gado. — Faithe passou os olhos pela carta.

— De acordo com Alberic, Périgueux apareceu no castelo Foxhyrst quando o dia amanhecia, exigindo ser levado a Londres para ser julgado pelo rei. Mas parece que nosso xerife tem outros planos — explicou Orrik.

— Oh, não! — Faithe lia e se desesperava. Alberic dizia que a corte real estava cheia de assuntos a se­rem resolvidos entre barões e cavaleiros de maior im­portância. E, como os xerifes eram os representantes legais do poder de Guilherme, tinham a responsabi­lidade de cuidar de casos menores e locais, fazendo a justiça em nome do rei. Uma vez que a jurisdição de Alberic chegava a Hauekleah, ele se encarrega­ria de julgar o assassinato de lorde Caedmon. Assim, um grupo de jurados já estava sendo reunido para que tudo fosse feito dentro da lei em Foxhyrst mes­mo. Lady Faithe era bem-vinda para acompanhar os procedimentos, ou, se preferisse, poderia enviar um representante de sua confiança. Os preparativos co­meçariam na manhã seguinte.

— Amanhã?! — Ela se desesperou.

— É melhor que tudo se resolva depressa, não?

— Não. Alberic detesta Luke. Notou as palavras que ele usou na carta? Crime, assassinato. Luke jamais re­ceberá um julgamento justo diante desse homem.

O administrador ergueu as sobrancelhas.

— Que pena — disse, sem expressão. Faithe encarou-o, irritada.

— Falo sério — ele insistiu. — Tudo o que quero é justiça. Sei que deve ser difícil de acreditar depois de tudo que fiz. Reagi mal quando sir Luke confessou seu crime. Minha preocupação com você foi muito grande, mas acho que tem razão: agi mal. Espero que, um dia, possa me perdoar.

— É tarde demais para perdoar, Orrik. Muitas coi­sas aconteceram. E não importa o que diga agora. Sei que jamais conseguirá aceitar Luke como seu senhor.

— Está imaginando que ele possa voltar a Hauekleah?

— Pretendo cuidar para que volte. Sabe onde Nyle está?

— Por quê?

— Não poderei estar em Foxhyrst amanhã de ma­nhã. Estarei em outro lugar. Mas preciso mandar uma carta a lorde Alberic.

— Eu mesmo poderei levá-la.

— Não.

— Perdeu, mesmo, toda a confiança em mim?

— Por sua própria culpa. Preferiria confiar naquela cobra chamada Baldric a confiar em você.

Orrik desviou o olhar e pigarreou.

— Baldric está morto.

Ela voltou a encará-lo, surpresa.

— O quê? Morto?! Como?

— Nós o encontramos enforcado esta manhã. Como Vance.

— Mas... por quê?

— A única coisa que consigo imaginar é que tenha se sentido muito culpado por ter deixado Périgueux esca­par. Eu lhe disse para não abrir a porta. E a vergonha pode levar um homem de bem a um ato tão terrível.

— Meu Deus! — Faithe exclamou, não porque acre­ditasse nele, mas exatamente por não acreditar. Baldric jamais fora um homem de bem; jamais se deixaria consumir pela culpa ou pela vergonha. E era covarde; nunca tiraria a própria vida. Precisava agir, mas, no momento, sua prioridade era Luke. Cuidaria de Orrik depois.

— Nyle está arrasado por causa da morte do irmão — explicou o administrador. — E, é claro, tem de enter­rá-lo. Ninguém mais pode deixar Hauekleah sem fazer falta por aqui. Exceto eu, claro.

— Eu já disse não.

— Faithe, eu realmente sinto muito. Por tudo. Estava enganado, agi por impulso, por raiva. Mas agora me ar­rependo, ainda mais por ver essa desconfiança em seu olhar. Por favor, deixe-me mostrar que estou sendo sin­cero. Deixe-me levar sua carta.

— Não. Vou encontrar outra pessoa. E você vai per­manecer aqui. Não quero que deixe Hauekleah até que eu retorne. Depois conversaremos. Entendeu?

Orrik inclinou-se, numa mesura.

— Como quiser, milady.

 

Luke procurou não se retesar quando Ham, o carras­co de Foxhyrst, tirou as torqueses em brasa do fogareiro e apresentou-as diante de seu nariz.

— Isto — disse ele, observando o instrumento com olhos esgazeados. — é o que vou usar para tirar peda­ços de sua carne, bem devagarzinho.

Luke sentiu o cheiro do ferro superaquecido, mas permaneceu quieto, sem dar ao miserável a satisfação de vê-lo temer a tortura. No entanto, moveu as mãos presas às argolas de metal, às suas costas, o que fez seu ombro ferido doer terrivelmente. Deixou de olhar para o apetrecho sinistro nas mãos do carrasco para passar os olhos pelo porão do castelo, que agora era uma câmara de tortura reequipada por Alberic, mas que outrora fora uma bela adega. Havia correntes penduradas no teto, uma cadeira de ferro com amar­ras de couro e uma mesa de madeira manchada de sangue. Um apetrecho para deslocar membros ficava mais distante, num canto, junto à porta que levava ao subterrâneo úmido no qual Luke passara a noite, sem conseguir dormir.

— E quando eu terminar com isto aqui — prosse­guiu Ham, com satisfação mórbida —, vou pendurá-lo e surrá-lo com o chicote até que não haja mais pele sobre os músculos de suas costas. — Passando as torqueses para a mão esquerda, enfiou a direita no cinto e de lá tirou um maço de folhas secas, que enfiou na boca.

Luke reconheceu logo o mesmo cheiro das ervas terríveis das quais fora escravo meses antes. Ham era um homem enorme, forte, careca, e sua cabeça redonda parecia sair do meio dos ombros sem um pescoço para sustentá-la. A falta de cabelos era proposital. Podia-se ver que os cabelos, ruivos, recomeçavam a nascer em seu escalpo.

— E depois, talvez — o carrasco prosseguiu, en­quanto mastigava —, eu possa até tirar um de seus olhos ou cortar uma de suas orelhas, mas uma só, para que ainda possa ouvir bem o que estará acontecendo com você. E vou derramar conhaque em seus cabelos e atear fogo a eles. — Engoliu e riu, mostrando os den­tes grandes e amarelados. — Vai se parecer comigo, então. Isso será só o começo de seu castigo por ter ma­tado minha irmã.

— Não matei sua...

Ham golpeou-o com violência no estômago, impedin­do-o de completar a frase e fazendo-o dobrar o corpo. Luke teve de respirar fundo para que a sensação de dor e náusea passasse.

— Helig morreu porque estava fugindo de você — continuou o carrasco. Mais uma vez, apresentou-lhe as torqueses em brasa. — Matou-a tanto quanto se tivesse enfiado uma faca em suas entranhas. E vou fazer que sofra por isso.

— Nem fui julgado ainda, muito menos considerado culpado. — Luke lembrava-se da expressão de Alberic ao enviá-lo diretamente ao carrasco, depois que ele se entregara e pedira para ser levado até o rei Guilherme. E, nessa madrugada, o próprio Ham o tinha tirado da cela e dito que seria julgado ali mesmo, porque o rei já tinha trabalho demais na capital. Imaginara que seria levado de imediato para cima, para diante dos jurados, mas Ham passara a apresentar-lhe os instrumentos de tortura pelos quais teria de passar antes de uma exe­cução pública.

Pela centésima vez desde que chegara a Foxhyrst, Luke arrependeu-se de não ter ouvido seu irmão. Não devia ter se apresentado a Alberic, imaginando que ele o enviasse a Londres. A princípio, não acreditara que o xerife teria a ousadia de julgá-lo ali, já que era um par do reino, um senhor de terras. Ele devia saber que Guilherme ficaria furioso por ver que passara so­bre seu poder como soberano. Uma criatura sem valor como Alberic estar arriscando tanto era de estranhar.

Não fazia sentido. O xerife podia odiá-lo por ele ter pre­senciado sua demonstração de covardia em Hastings, mas Luke jamais revelara tal fato a ninguém. Achara que sua discrição o protegeria da raiva de Alberic, mas, obviamente, enganara-se. O xerife devia temê-lo, isso sim, pois poderia estar exposto, um dia, se tudo fosse revelado.

— Vai ser condenado — Ham observou, com uma cer­teza mordaz. — E depois vai ser enviado a mim nova­mente. Talvez eu devesse lhe mostrar agora o que está reservado para esse seu corpo sem valor. — Aproximou as torqueses ainda mais, fazendo Luke sentir o calor do ferro junto a seu nariz.

— Calma, homem. — A voz tranqüila veio da porta do calabouço. Luke e o carrasco voltaram os olhos para a escada de pedras pela qual Alberic descia, vestido elegantemente, acompanhado por dois guardas. — Vai haver tempo mais do que suficiente para essas coisas depois do julgamento.

Ham segurou Luke pela túnica e lançou-o contra a parede.

— Pois vou, mesmo, precisar de tempo suficiente para fazer o que quero — disse.

Alberic sorriu.

— Ham demonstra muito entusiasmo por sua pro­fissão, especialmente sendo saxão. Os ingleses me parecem sempre tão sem inspiração nesses assuntos. Quando cheguei aqui, sua idéia de tortura era forçar um prisioneiro a ficar acordado a noite inteira, ou fazê-lo ficar andando em círculos sem parar durante horas seguidas. Mas acabou se adaptando de forma excelente aos métodos normandos.

— É, não duvido — Luke comentou, vendo o carrasco tirar mais algumas folhas secas do cinto e enfiá-las na boca.

— Tragam-no para cima — o xerife ordenou a seus homens, e foi imediatamente atendido.

Ao meio-dia, qualquer esperança que Luke pudesse ter de um julgamento justo já tinha desaparecido. Fora deixado no centro do salão principal do castelo durante horas, guardado por homens corpulentos, as mãos ain­da amarradas às costas, observando e ouvindo o que Alberic chamava de procedimentos de seu julgamento. Sentados à mesa mais elevada, junto do xerife, estavam doze soldados de sua extrema confiança, todos homens que Luke tivera como companheiros no campo de bata­lha, mas que sempre haviam sido aliados fervorosos de Alberic, ainda mais depois de ele ter se tornado xerife. Alex, que acompanhara o irmão até o castelo, não esta­va presente; devia ter sido banido dos tais procedimen­tos. Griswold e outros amigos de Luke também não se encontravam ali. Faithe... Bem, não esperava que vies­se e achava até melhor ela não estar ali para presenciar aquilo.

As acusações foram lidas, "testemunhas" foram tra­zidas e ouvidas. O homem que encontrara o corpo de Caedmon alegou que ele fora espancado até a morte por causa de uma prostituta. Outros cidadãos de Cottwyck confirmaram tal versão e disseram como tinham encon­trado o corpo de Helig depois de ela ter fugido do assas­sino. Todos olharam, envergonhados, para Luke, como se não acreditassem ser ele o responsável pelo que di­ziam. O secretário de Alberic, sentado ao seu lado com papel e pena, obviamente entendia a língua local e tra­duzia os testemunhos ao seu senhor e aos jurados.

Por fim, um guarda entrou no salão, curvou-se dian­te do xerife e segredou-lhe algo ao ouvido.

— Mesmo? Pois mande-o entrar — ordenou ele.

Luke voltou-se, como os outros presentes, para ver Orrik ser encaminhado para diante da mesa, com uma carta selada em mãos. O administrador lançou um olhar raivoso a Luke antes de entregá-la.

— Trago as palavras de minha senhora, lady Faithe de Hauekleah. — Não se inclinou, como deveria.

Luke, subitamente alerta, olhou, interessado, en­quanto Alberic cortava o selo e abria o documento, passando-o, em seguida, para seu secretário. O homem leu com expressão concentrada e inclinou-se para falar ao ouvido de seu senhor.

Alberic sorriu, fazendo que um arrepio percorresse o corpo de Luke.

— Parece que a esposa de sir Luke deseja fazer al­guns acréscimos aos testemunhos que já ouvimos — anunciou o xerife a seus jurados. Depois encarou Luke, dizendo: — Ela parece partilhar conosco a opinião so­bre o temperamento e as inclinações de seu esposo. Chama-o de terrível, selvagem e... — Voltou-se para o secretário. — O que foi mesmo que disse quanto a ele ser capaz de...?

O homem ergueu a carta e passou a ler, enfático:

— Capaz de atos da mais incrível ferocidade. Não tenho dúvidas de que Luke de Périgueux assassinou meu marido, Caedmon de Hauekleah, sem que tivesse havido provocação, agindo por impulso e seguindo sua natureza bestial. Imploro que seja considerado culpado do crime de assassinato e que seja punido conforme a lei prevê nesse caso.

Luke negou com a cabeça, sem poder acreditar. Alberic sorriu ainda mais e ergueu as sobrancelhas.

— Parece, meus caros senhores, que a própria esposa de nosso réu o condena como assassino. O que podemos fazer, então, senão aceitar suas palavras?

Os soldados trocaram comentários em voz baixa.

— Exijo ver essa carta — disse Luke. Alberic encarou-o, sério.

— Não está em posição de exigir nada, Luke de Périgueux.

Ele deu um passo adiante, mas os guardas o refrea­ram, segurando-o pelos braços.

— Insisto em ler essa carta!

— Tirem-no daqui. — Alberic levantou-se. — Continuaremos depois do almoço.

Luke não pôde imaginar o que o xerife e seus com­panheiros estariam almoçando. A refeição destinada a ele foi um prato de mingau azedo e um copo de vinho já transformado em vinagre. Ele nem sequer a tocou.

Pensava apenas na carta de Faithe. Ela teria escrito aquilo? Imaginando tudo da perspectiva dela, até seria possível, avaliou. Afinal, admitira ter matado Caedmon e não chegara a se explicar. Sempre a admirara por sua força e valentia, e agora Faithe devia estar se valendo dessas qualidades para levar sua vida adiante, sem ele. Mas doía em sua alma saber que ela o abandonara des­sa forma.

Quando o tribunal tornou a se reunir, no começo da tarde, permitiu que Luke desse a sua versão dos fatos, mas Alberic analisou suas palavras como sendo "apenas o relato de um homem desesperado para se libertar". Orrik também foi chamado a depor sobre o que consi­derava falhas de caráter do Dragão Negro, sua infinita capacidade de violência e brutalidade. O administrador riu diante da possibilidade de que Caedmon estivesse louco, ou mesmo, doente, e garantiu que ele jamais seria capaz de atacar uma mulher. Outros servos de Hauekleah foram chamados, e todos testemunharam sobre a natureza gentil, cavalheiresca e generosa de seu antigo senhor. Alberic fez comentários elogiando Caedmon, o que Luke achou extremamente hipócrita, pois que o xerife odiava todos os saxões do fundo da alma. Devia estar muito ansioso para ver Luke pendu­rado numa corda, já que passava por cima do próprio ódio daquela forma.

Quando todos os testemunhos terminaram, Alberic encarou Luke e perguntou-lhe se sentia algum tipo de remorso por ter assassinado Caedmon.

— Não cometi assassinato — ele repetiu, firme.

— Essa não é uma resposta apropriada para a per­gunta que lhe fiz.

— E a única que tenho para dar.

— Levem-no de volta ao calabouço para que eu pos­sa deliberar com meu corpo de jurados.

Ham aproveitou mais essa ocasião para demonstrar o que aguardava Luke após a condenação.

Luke tentou permanecer impassível, apesar de sa­ber que não conseguiria mais escapar. Tudo o que lhe restava era sua dignidade. Já suportara a dor antes e havia muito se acostumara à idéia da morte. O que o atormentava era saber que a ligação de amor que tinha com Faithe houvesse sido destruída.

Os guardas vieram, por fim.

— Sua Excelência diz que estão preparados para o veredicto — um deles anunciou.

Escoltaram Luke de volta ao salão, onde foi colocado no mesmo local de antes, diante da mesa. Alberic, ao centro dela, mantinha as mãos unidas diante da boca, para ocultar seu sorriso. Orrik, afastado a um canto, observava tudo com profunda satisfação. Depois de al­guns minutos de sussurros entre os jurados, Alberic levantou-se e todos se calaram.

— Ficou determinado, por esta corte de jurados de Foxhyrst, que o acusado, Luke de Périgueux, co­meteu, de forma violenta e com a pior das intenções, crime de assassinato contra Caedmon de Hauekleah, na aldeia de Cottwyk. Também se determinou que ele perseguiu a mulher conhecida pelo nome de Helig, fazendo-a abandonar sua casa em noite de tempes­tade e perecer de forma brutal, atingida por um raio. Assim, Luke de Périgueux foi condenado à morte por enforcamento, que deverá acontecer amanhã ao nas­cer do dia, após sofrer castigos merecidos que ficam a critério do carrasco local, punição que se refere à sua impenitência.

— Que motivos ele tem para se arrepender? — gri­tou uma mulher.

Faithe? Luke reconheceu a voz de imediato e voltou-se, vendo-a à porta.

Ela adiantou-se e prosseguiu:

— Ele não fez nada de errado.

— Tirem-na daqui — Alberic ordenou de pronto. Um guarda segurou-a pelo braço.

— Solte-a! — Luke rugiu.

O soldado afastou-se, erguendo as mãos, como a mostrar que obedecia.

— O senhor me convidou para este julgamento — Faithe explicou, tirando uma carta do bolso de seu ves­tido. Estava corada e tinha os cabelos desalinhados, as­sim como as roupas. Parecia ter chegado havia pouco, e com pressa. Mas, para Luke, jamais estivera tão linda. — Disse que eu poderia assistir aos procedimentos, já que é meu marido quem está sendo julgado.

— Ou poderia enviar um representante — o xerife acrescentou, contrariado. — Mandou seu administra­dor, com uma carta.

Ela olhou com raiva para Orrik.

— Não. Mandei outro homem com minha carta. E gostaria de saber o que foi feito dele.

— Nyle foi necessário em outro lugar — Orrik expli­cou, em voz baixa.

— Ora, isso não interessa agora — Alberic protes­tou. — Sua carta foi entregue e, se agora se arrepende de tê-la mandado, saiba que é tarde demais. O julga­mento foi concluído e seu marido, considerado culpado de crime de assassinato.

— Meu marido é inocente. — Ela olhou significa­tivamente para Luke e depois retrocedeu até a porta, chamando alguém. Era uma mulher que usava roupas simples e uma capa com capuz, que lhe caía sobre o ros­to. — Esta mulher pode provar o que digo. Foi ela que, em Ixbridge, sofreu o ataque de meu primeiro marido, como revelei em minha carta.

— Sua carta não mencionava nada disso. — Alberic voltou-se para o secretário e franziu as sobrancelhas.

— Claro que sim. Referi-me a Matfrid. — Faithe olhou para a mulher, que retirou o capuz.

Ela era jovem, morena, e seria bonita, não fosse pe­las duas enormes cicatrizes, uma que ia de uma orelha ao queixo, outra que lhe marcava profundamente a tes­ta. Poderiam ficar mais claras com o tempo, mas, por enquanto ainda estavam vermelhas e muito feias.

Luke viu que Orrik arregalava os olhos, talvez reco­nhecendo a mulher, e fazia uma careta por ver-se irri­tado com sua presença ali.

— Matfrid é a mulher que Caedmon atacou em Ixbridge, com uma faca, enquanto aguardava pela ba­talha — Faithe explicou. — Descrevi o incidente em minha carta.

— Damian, havia alguma coisa naquela carta sobre essa mulher? — Alberic indagou ao seu secretário, por entre os dentes.

— Não, milorde. Eu juro! — O homem pegou a carta e a releu rapidamente.

— Mas foi o que escrevi — Faithe insistiu.

— Ora, que tipo de brincadeira sem graça é essa? — o xerife perguntou, furioso. — Alguma dessas armadi­lhas saxãs detestáveis, mulher?

— Dobre a língua quando fala com minha esposa — Luke protestou, encarando Alberic e vendo-o se enco­lher, apesar de seu prisioneiro estar acorrentado.

— Matfrid, conte o que aconteceu naquela noite — Faithe pediu. — Não tenha medo. Nada de mal vai lhe acontecer.

A jovem começou a falar devagar, com voz suave e receosa, o que trouxe um silêncio de morte ao lugar. O secretário ia traduzindo as palavras:

— Foi no outono passado. Setembro, para ser mais exata. Eles chegaram à taberna onde eu trabalhava; aquele a quem chamavam de Caedmon e aquele outro. — Ela apontou em direção a Orrik. — Havia mais ou­tros três ou quatro. Lorde Caedmon... — Torcia a saia nas mãos, nervosa. — Bem, ele me pagou duas moedas para... Bem, havia um quarto, no andar de cima...

— Sim, continue — Alberic instigou, impaciente.

— Então nós... fizemos o que ele me pagou para fa­zermos.

Alguns dos soldados riram e teceram comentários a meia-voz, mas se calaram ante um olhar irritado do xerife.

— Fale sobre a faca — Faithe sugeriu.

— É, ele tinha uma faca — Matfrid prosseguiu. — Ele estava se comportando de um jeito... estranho, e então puxou aquela faca. Tentei segurar sua mão, mas ele era forte. Começou a avançar contra mim e ergueu o braço. Foi como se algo brilhasse no ar e então... — Ela tocou a cicatriz do rosto. — Nem senti a princípio. Vi sangue nele e achei que tivesse se cortado, mas depois percebi que era meu sangue, e então a dor veio e comecei a gritar.

Mais uma vez, uma onda de comentários surgiu no salão. Matfrid prosseguiu:

— Eles o puxaram de cima de mim e me deram as duas moedas. Depois foram embora. Nunca mais os vi. — Olhou para Orrik. — Até agora.

— Meu marido disse a verdade sobre o que aconte­ceu em Cottwyk — Faithe afirmou, convicta. — Estava tentando proteger aquela mulher contra Caedmon, nada mais. Meu primeiro marido não era um homem mau, mas estava muito doente e isso acabou afetando sua mente, como expliquei na carta.

Alberic arrancou o papel das mãos de seu secretário e estendeu-o a Faithe.

— Esta é a única carta sua que recebi hoje! E, nela, a senhora denuncia sir Luke como...

— Denunciá-lo?! Jamais! — Ela tomou a carta nas mãos e leu-a apressadamente. — Nunca escrevi isto! — Voltou-se para Orrik, como também fizeram o xerife e os soldados que compunham o júri.

O administrador encostou-se à parede de pedra, tenso.

— Eu... a escrevi por você, Faithe — explicou.

— Escreveu isto e entregou ao nosso xerife como se tivesse sido eu?!

— Só o fiz por você, para protegê-la.

— Oh, Orrik...

— Devo entender... — Alberic intrometeu-se, exaspe­rado — ...que esse homem forjou a carta e apresentou-a a esta corte como se fosse genuína?

Orrik não precisou de um tradutor para compreen­der a raiva que lia nos olhos dele.

— Eu não tive opção. Era a única maneira de prote­gê-la.

— Guardas! — O xerife apontou para Orrik, que foi detido pelos soldados.

— Eu sabia que vocês, saxões, eram miseráveis trai­çoeiros, mas isto é... é ultrajante! — Alberic não se con­formava. — Fizeram-me de tolo, a mim e a minha corte. Vou fazê-los pagar bem caro por isso. Você vai servir de exemplo — disse para Orrik.

— Por favor, ele não teve má intenção — Faithe pe­diu. — Achou que estava me ajudando, então lhe peço que tenha misericórdia.

— Misericórdia, neste caso, seria matar esse infe­liz rapidamente, sem preliminares. E essa é a punição mais generosa que me passa pela cabeça agora.

— Milorde, se pudesse apenas prendê-lo...

— Prefiro ser enforcado a apodrecer numa prisão normanda! — Orrik vociferou, cuspindo no chão.

Isso bastou para assinar sua sentença de morte. A forma como todos os normandos ali o olharam deixou bem claro o que pensavam e sentiam. Faithe aproxi­mou-se dele, com lágrimas nos olhos.

— Por quê, Orrik? Por quê? Você mesmo se conde­nou, não vê?

— Não. Foram esses malditos normandos ambicio­sos que me condenaram. Tomaram nosso país e o de­vastaram. Isso já foi demais. Mas quando a tomaram e a entregaram a um de seus piores homens...

— Já chega, saxão! — Alberic gritou, enfurecido. — Se quiser morrer depressa, vai calar essa boca agora! — Voltou-se, então, para Luke.

Por breves instantes, os dois se entreolharam, num silêncio eloqüente. O xerife sabia que não havia mais nada a fazer senão soltá-lo. Detestava ter que fazê-lo, mas, por fim, disse a seus guardas, tentando manter-se calmo:

— Retirem as correntes do prisioneiro. Ele está livre agora.

Um dos homens apareceu com a chave e retirou os ferros.

— Não o deixem ir! — Orrik protestou ainda, enquan­to era arrastado para o calabouço. — Ficaram loucos?!

Luke caminhou até Faithe e abraçou-a, enquanto os gritos do administrador ainda soavam no salão:

— Fiz tudo por você, Faithe! Somente por você! Acorde, mulher! Esse que a está abraçando é o terrível Dragão Negro!

Ela negou com um gesto de cabeça. Ergueu os olhos para Luke e murmurou:

— O Dragão Negro não existe mais. Agora só há Luke de Périgueux, meu marido e senhor de Hauekleah. E é com ele que vou voltar para casa.

 

Maio de 1068, Hauekleah

— Por aqui — disse Luke, guiando Faithe pela mata.

— Por que está sussurrando? — ela perguntou. — Todos já devem ter ido para casa agora.

Ele riu.

— É, até mesmo Alex com as gêmeas...

Era quase aurora. Os últimos participantes da co­memoração do primeiro de maio havia muito tinham se recolhido. Luke estivera ansioso para levá-la até ali, mas esperara que o lugar ficasse vazio.

Conduziu-a até uma clareira iluminada pelos res­quícios do luar e pelos primeiros sinais do amanhecer. As flores perfumavam o ar e os pássaros cantavam.

Luke soltou o broche de seu manto e abriu-o sobre a grama, para que se deitassem. Abraçou-a e beijou-a com paixão. Depois a acariciou, encantado e feliz como tinha sido nesses meses todos de amor intenso. Faithe acariciou-lhe os cabelos, imaginando que um ano já se passara desde que ele tinha chegado a Hauekleah, o invasor vitorioso, reclamando seu prêmio de guerra.

O Dragão Negro já não existia. O passado, com toda a dor e a tristeza, estava morto e enterrado. E o futuro estava no ventre de Faithe, aguardando para nascer.

Sentiu o bebê se mover e sorriu, tocando a barriga com suavidade. Luke imitou-a, e outro movimento da criança o fez sorrir também. Faithe abraçou-o, ansiosa por mais uma noite de amor.

— Tem certeza? — ele perguntou. — Não vamos per­turbar o bebê?

— É melhor que ele se acostume, porque não tenho a menor intenção de abrir mão disso. Nunca vou deixar de amá-lo... com meu corpo e meu coração.

Luke beijou-a. Sua vida pulsava em Faithe. Sua alma estava para sempre unida à dela. O amor que comparti­lhavam o libertara.

 

 

                                                                  Patricia Ryan

 

 

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