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O ECO DA MEMÓRIA - P.2 / Richard Powers
O ECO DA MEMÓRIA - P.2 / Richard Powers

                                                                                                                                                  

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O ECO DA MEMÓRIA

Segunda Parte

 

A jovem Sylvie, depois de parar de rir da atuação, repreendeu-os por terem cantado sem ela. “Ei! Comecem outra vez. Dêem-me uma parte.”

Ainda ela, ainda a sua companheira de viagem, apesar dos anos. Porém, o modo como haviam passado daquele ano para este, Weber não sabia dizer. Era ainda capaz de nomear a maioria das cidades onde tinham passado férias, ainda que não em que data ou o que haviam visto. Agora Florença no pino do Verão: uma loucura, ele sabia, mesmo enquanto estavam a planear a viagem. No entanto, Julho era a única altura que ambos podiam dispensar e as multidões que se acotovelavam e apertavam apenas faziam Sylvie sentir-se ainda mais feliz. Ela virou-se e sorriu para ele, um pouco envergonhada por ter sido apanhada colada à montra. Ele sorriu de volta o melhor que pôde, incapaz de dar um passo na direção dela através da torrente de visitantes na antiga ponte. Cupido nela acha infinda, deslumbrante claridade que suas trevas deslinda.

A crítica da Times surgira mesmo antes de saírem dos Estados Unidos. Ele lera-a à mesa do pequeno-almoço, ao mesmo tempo que Sylvie tentava arrancá-lo de casa para o aeroporto. “Leva-a contigo”, dissera ela, “não pesa nada.”

Ele não queria levá-la. Iam para Itália. As críticas não eram bem-vindas. Quando chegaram a La Guardia, já ele a reescrevera na sua cabeça. Já não sabia distinguir aquilo de que realmente se lembrava do que imaginara. Não sabia que expressões inteiras na Times tinham sido retiradas da crítica da Harper's. Seguramente que qualquer leitor que lesse ambas veria a duplicação.

Telefonou a Cavanaugh do aeroporto. “Se fosse a si, não deixava que isso me preocupasse, Ger”, disse o editor. “Vivemos dias estranhos neste país. Acho que todos procuramos algo em que descarregar as nossas frustrações. O livro está a vender bem. Como sabe, estamos aqui para si com o novo contrato, independentemente do que aconteça a este.”

Quando chegaram a Roma, Weber estava pronto para se expatriar. O ressentimento dera lugar a dúvida: talvez a crítica da Times não fosse plagiada, mas apenas uma corroboração independente. A ideia arruinou-lhe a vontade de ver as vistas. Na segunda noite, em Siena, ele e Sylvie discutiram. Não foi bem discutir, foi mais debaterem-se. Sylvie estava a ser demasiado defensora. Recusava-se a dar crédito a qualquer uma das apreensões dele.

- Talvez tenham alguma razão - Weber sugerira. - Observados sob uma perspectiva errada, estes livros poderiam de facto ser encarados como exploradores das incapacidades dos outros para proveito pessoal.

- Balelas. Tens contado a história de pessoas cujas histórias nunca são contadas, fazendo ver aos normais que a tenda é bem maior do que tinham pensado.

Precisamente o que ele lhe disse que fazia, todos estes anos.

- Estás cansado. O jet-lag está a afetar-te. De um lado para o outro num país estrangeiro. É natural que isto te faça sentir um pouco inseguro. Ei! Podia ser bem pior. Podias ter um qualquer assassino a soldo dos Médicis a apunhalar-te pelas costas pela tua arte. Vá lá. Abbastanza. O que queres fazer amanhã?

Precisamente a pergunta que o preocupava. O que fazer amanhã e no dia a seguir. Outro livro popular estava fora de questão. Até mesmo o trabalho de laboratório lhe parecia incerto. A sua equipa de investigação já o tratava de forma diferente - uma nova impaciência com o seu estilo despretensioso, anedótico e dado a poucas tecnologias, um apetite por investigação mais penetrante, aparatosa, com as grandes técnicas de visualização que estavam a desvendar os mistérios do cérebro. Ele era apenas um popularizador. E, pior do que isso, um popularizador explorador.

Ao fim de uma semana de anedonia, descobriu uma fraqueza surpreendente por licores italianos com exóticos rótulos do século XIX, como se fosse um bêbado nostálgico de segunda geração regressando à pátria. Não conseguia concentrar-se nos edifícios antigos, nem mesmo os do seu estilo preferido, o românico. Sylvie apercebeu-se do esforço que ele fazia nas visitas às antigas cidades, mas nunca o repreendeu. Siena, Florença, San Gimignano: tirou mais de 500 fotografias, a grande maioria de Sylvie frente a marcos históricos famosos, dezenas delas do mesmo ângulo, como se mulher e monumentos estivessem em perigo de desaparecer. Estava a arruinar-lhe as férias e esforçou-se por se alegrar. Mas por fim, a boa disposição militante dele fê-la sentar-se numa trattoria frente ao Palazzo Pretório em Prato e ter uma conversa com ele.

- Eu sei que te estás a preparar para uma provação quando regressarmos. Mas não há provação. Ninguém para combater. Nada mudou. O livro é tão bom quanto qualquer coisa que alguma vez tenhas escrito. - Precisamente o seu pior receio. - As pessoas irão lê-lo e fazer o que puderem com ele, e tu escreverás outra coisa. Meu Deus! A maioria dos escritores mataria pelo tipo de atenção que estás a receber.

- Não sou um escritor - respondeu. Mas talvez, inadvertidamente, ele tivesse também abdicado da sua carreira como neurocientista.

De volta a Roma, no último dia, ele perdeu o controlo. Estavam sentados num café na Via Cavour. Ela recordou-lhe que naquela noite iam sair para beber uns copos com um casal flamengo que ela conhecera.

- Quando é que me disseste isso?

- Em que altura? - Ela suspirou. - A típica surdez masculina.

- O que outras mulheres talvez tivessem apelidado de egocentrismo.

- Vá lá, Marido. Onde estás tu?

Contrariando o seu instinto, ele disse-lhe. Há dias que não mencionava as críticas.

- Interrogo-me se na verdade não estarão certos. - Ela lançou as mãos para o ar como uma líder de claque ninja.

- Pára lá com isso! Claro que não estão certos. São apenas trepadores profissionais. - A compostura dela enlouqueceu-o. Deu por si a dizer coisas absurdas em trechos cada vez mais incompreensíveis. Por fim, levantou-se e saiu. Idiota, parvo: vagueou ao acaso pela cidade à medida que o Sol se punha e as tortuosas ruas o desorientavam. Regressou ao hotel depois das 23h00. O casal flamengo havia muito que partira. Mesmo então, ela não o censurou como ele merecia. Casara com uma mulher que simplesmente não compreendia o drama. Nessa noite, e no avião no dia seguinte, ela estendeu-lhe a mesma calma profissional que concedia aos seus mais erráticos clientes da Wayfinders.

Chegaram a casa sãos e salvos. Sylvie tinha razão: nenhuma provação o esperava. Cavanaugh telefonou com algumas críticas animadoras, números e ofertas de tradução. Mas Weber estava ainda a braços com a promoção do livro até ao final do Verão. Leituras, entrevistas, rádio: mais prova, se é que a sua equipa de investigação de alguma necessitava, de que um homem não podia servir dois amos. Numa prelecção na livraria Cody's em Berkeley, um membro da, sob outros aspectos, respeitosa audiência perguntou como é que ele respondia à sugestão lançada pela imprensa de que os relatos de casos por si retratados violavam a ética profissional. As restantes pessoas apuparam a pergunta, mas com um entusiasmo ocultado.

Ele avançou aos tropeções ao longo de uma resposta que outrora fora automática: O cérebro não era uma máquina, não era o motor de um carro, não era um computador. Descrições puramente funcionais escondiam tanto quanto revelavam. Era impossível tentar compreender qualquer cérebro individual sem envolver a história privada da pessoa, as circunstâncias, a personalidade - a pessoa como um todo, para lá da soma de módulos mecânicos e défices localizados.

Um segundo ouvinte quis saber se todos os seus pacientes davam total consentimento. Ele respondeu é claro. Sim, mas com os distúrbios de que sofriam, será que compreendiam sempre totalmente tal consentimento? A investigação ao cérebro, disse Weber, sugeria que ninguém poderia alguma vez prever a compreensão de outrem. A explicação soou-lhe incriminadora, mesmo ao enunciá-la. Até ele conseguia escutar a evidente contradição.

Weber observou a turba naquela sala sem lugares sentados. Uma atraente senhora de meia-idade num vestido de madras segurava uma minúscula câmara de vídeo. Outros tinham gravadores de áudio.

- Isto começa a parecer-se um pouco com um frenesim alimentar - comentou ele, rindo. A altura não foi talvez a melhor. A audiência silenciou-se, confusa. Weber conseguiu por fim ganhar ritmo, limitando o prejuízo. Porém, o número de pessoas que esperou em fila por um autógrafo era menor do que da última vez que ele aqui estivera.

As costumeiras cores do seu dia assumiram uma nova matiz: demasiadas parecenças com um caso que ele certa vez estudara. Conhecia Edward apenas por intermédio da literatura, mas em Mais Amplo do que o Céu, Weber apropriou-se de Edward, descrevendo-o talvez como se o tivesse descoberto. Edward nascera parcialmente daltónico, tal como dez por cento de todos os homens, muitos dos quais nunca descobrem que sofrem desta anomalia. Uma carência de receptores da cor nos olhos de Edward tornava-o incapaz de distinguir os vermelhos e os verdes. O daltonismo era por si só uma perturbação estranha: a inquietante insinuação de que duas pessoas poderiam discordar sobre precisamente que matiz um determinado objeto tinha na realidade. No entanto, o daltonismo de Edward era ainda mais estranho.

À semelhança de uma percentagem ainda bem menor de pessoas - uma em várias dezenas de milhares -, Edward era também sinestético. A sinestesia hereditária de Edward foi consistente e estável ao longo da sua vida e assumiu uma forma comum: ver números como cores. Para Edward, números e tonalidades fundiam-se, da mesma forma que a suavidade habitualmente se funde com conforto e a agudeza com dor. Em criança, queixava-se de que as cores nos seus cubos numerados estavam todas erradas. A mãe compreendia-o; sofria também do mesmo problema.

As pessoas atingidas por esta anomalia sentiam frequentemente na pele a textura de palavras pronunciadas ou o paladar de formas. Não se tratava de simples associações ou sequer de acessos de capricho poético. Weber aprendera a encarar a sinestesia como algo tão duradouro quanto o cheiro dos morangos ou o frio do gelo: uma função do hemisfério esquerdo, de alguma forma enterrada debaixo do córtex, um cruzamento de sinais que todos os cérebros produziam, mas que apenas uns quantos escolhidos apresentavam à consciência, algo não totalmente perdido durante a evolução, ou talvez os batedores avançados da próxima vaga em termos de mutação.

Edward, ao mesmo tempo daltónico e sinestético, era a sua própria história. Ver, escutar ou pensar no numeral um fazia-o ver branco. Os dois surgiam emersos em campos de azul. Cada número era uma cor, da mesma forma que o mel era doce ou o intervalo de uma segunda menor era dissonante.

O problema surgia com os cincos e os noves. Edward chamava-lhes “cores marcianas”, tonalidades diferentes de qualquer uma que ele alguma vez vira.

Ao princípio, tal desconcertava os médicos. Depois de alguns testes, a verdade veio ao de cima: esses números eram vermelhos e verdes. Não o “vermelho” e o “verde” que os seus olhos viam e a sua mente aprendera a traduzir, mas vermelho e verde tal como eram percebidos pelos cérebros de quem não sofria de daltonismo - puras matizes mentais para as quais Edward não tinha quaisquer equivalentes visuais. Cores que os seus olhos não conseguiam detectar eram ainda registadas no seu córtex visual intacto, desencadeadas por números. Era capaz de apreender as tonalidades através da sinestesia; apenas não as conseguia ver.

Weber contara a história anos atrás, concluindo com algumas reflexões sobre o quarto fechado da experiência pessoal. Os sentidos eram, na melhor das hipóteses, uma metáfora.

A neurociência ressuscitara Demócrito: falamos de amargo e doce, de quente e frio, mas não nos aproximamos de qualidades reais mais do que a unha de um polegar. Tudo o que podíamos trocar eram indicadores - roxo, afiado, amargo - para as nossas sensações privadas.

Porém, há anos, estas ideias haviam sido para Weber apenas escrita, sem aroma ou tonalidade. Agora as palavras regressavam, raspando e matraqueando, emergindo em todo o lado para onde olhasse: cores marcianas, matizes que os seus olhos não conseguiam ver, inundando o seu cérebro...

Em Agosto, viajou para Sydney, convidado para discursar numa conferência internacional intitulada “As Origens da Consciência Humana”. Tinha as suas reservas em relação aos adeptos da psicologia evolucionista. A disciplina apreciava demasiado explicar tudo em termos de módulos pleistocénicos, identificando características grosseiras e falsamente universais do comportamento humano e explicando depois, com uma tautologia ex-post facto, por que motivo ocorriam adaptações inevitáveis. Porque é que os machos eram polígamos e as fêmeas monogamias? Tudo se resumia ao regime económico de esperma versus óvulo. Não era exactamente ciência; mas ao fim e ao cabo, nem a sua escrita o era.

Para Weber, a maior parte do comportamento consciente era menos adaptação do que exaptação. O pleiotropismo - um gene dando origem a vários efeitos não relacionados - complicava as tentativas de explicar características em termos de selecção independente. Tinha sérias dúvidas em relação a entrar numa sala cheia de psicólogos evolucionistas, mas a conferência dava-lhe uma oportunidade de ensaiar uma palestra que ele não se atrevia a apresentar em mais lugar nenhum: uma teoria sobre por que razão os doentes que sofriam de agnosia digital - a incapacidade de nomear que dedo estava a ser tocado ou apontado - também sofriam muitas vezes de discalculia - incapacidade para resolver operações matemáticas. Ninguém esperava que desbravasse terreno novo com o seu discurso. Deveria supostamente fazer de si mesmo, contar algumas boas histórias e apertar muitas mãos.

O voo de Nova Iorque para Los Angeles começou mal quando os seus sapatos acionaram os detetores de segurança e encontraram um estojo de manicura que ele estupidamente emalara na bagagem de mão.

Demorou ainda algum tempo a provar aos guardas que era quem afirmava ser. Em L.A. fez transbordo para o avião que o levaria a Sydney, que permaneceu estacionado junto à porta durante uma hora antes de ser cancelado. O piloto culpou uma racha da grossura de um cabelo no para-brisas. Quarenta pessoas no avião: sem dúvida que a racha teria parecido mais pequena se estivessem 400.

Desembarcou e ficou no aeroporto oito horas à espera do novo voo. Quando voltou a embarcar, perdera toda a noção do tempo. Algures a meio caminho sobre o Pacífico desenvolveu tinnitus moderado. Quando olhava para a esquerda ouvia um zumbido nos ouvidos. Quando olhava em frente, o tinido desaparecia. Pensou cancelar o seu discurso e regressar a Nova Iorque. O problema agravou-se ao longo do jantar e do filme transmitido a seguir. Porém, depois do filme os sintomas desapareceram.

Chegou tão atrasado a Sydney que teve de ir diretamente para as primeiras entrevistas, sem mesmo sequer fazer o check-in no hotel. A primeira entrevista transformou-se num banal perfil de personalidade. A segunda foi um daqueles desastres em que o pouco informado entrevistador queria que Weber comentasse tudo excepto o seu trabalho. A música clássica podia de facto tornar os bebés mais inteligentes? Para quando medicamentos estimuladores da cognição? Weber estava tão perturbado pela diferença horária que praticamente alucinou. Escutou as suas frases ficarem mais extensas e menos gramaticais. Quando por fim o jornalista australiano lhe perguntou se a América podia mesmo ter esperanças de ganhar a guerra ao terrorismo, Weber já só dizia coisas pouco sensatas.

Naquela noite estava demasiado cansado para conseguir dormir. A conferência era no dia seguinte. Deambulou pelo cavernoso centro de convenções, esbarrando em cadeiras e mesas de escritório. Toda a gente o reconhecia, mas a maioria dos presentes desviava o olhar ao cruzá-lo com o dele. Quanto a si, combateu o impulso de atribuir um diagnóstico reservado a toda a gente que vinha apertar-lhe a mão. A turba fluía pelas salas de conferência, sussurrando e rindo, exibindo-se, envaidecendo-se, encomiando e criticando, juntando-se em bandos, formando fações, conspirando, maquinando golpes de estado. Observou um homem e uma mulher de meia-idade guinchar ao vislumbrarem-se, beijarem-se e cavaquearem durante bastante tempo.

Ficou à espera de os ver catar parasitas do escalpe um do outro e comê-los. Os psicólogos evolucionistas tinham pelo menos acertado nisso. Criaturas mais antigas ainda nos habitavam, e nunca nos abandonariam.

Uma manhã de debates confirmou a sua impressão de que a disciplina prestava uma homenagem imerecida a uma mão-cheia de habilidosos homens do espetáculo, alguns da mesma idade da sua filha. Também isto era ciência: as modas iam e vinham; as teorias surgiam e desapareciam por toda uma série de razões, nem todas científicas. Tinha tanto interesse em seguir a última moda quanto em assistir a um jogo de basebol do princípio ao fim. Para começo, muito poucas das novas teorias podiam ser testadas. Porém, o campo da psicologia evolucionista estava aberto a fundos, privados ou públicos, e era impaciente, e apenas lhe haviam pedido que estabelecesse a tónica dominante e divertisse os convidados. Uma história caricatural delatora era o que vinha a calhar.

A meio da tarde já via a dobrar. Escutou uma discussão pouco convincente sobre a fenomenologia da sinestesia. Escutou um relato sensoriomotor sobre a origem da leitura. Escutou um acalorado debate entre cognitivistas e novos behavioristas acerca de lesões orbitofrontais e processos emocionais. A única palestra de interesse para si examinou a neuroquímica do traço que separava verdadeiramente os humanos das outras características: o tédio.

Seguiu-se um excruciante jantar durante o qual os convivas sentados à sua mesa - três investigadores americanos que ele conhecia apenas de reputação - o atormentaram acerca das críticas menos elogiosas. Seria um acaso estatístico ou uma mudança mais significativa no gosto popular? Até a palavra popular lhe soava aguçada, mordaz. Impelido, respondeu: “Suponho que desfrutei do tipo de atenção que produz inevitavelmente uma reação antagonista.” As palavras pareceram-lhe no final egoístas, palavras que estes investigadores iriam agora divulgar. Toda a conferência as teria escutado por alturas do seu discurso.

Um dos organizadores da conferência, um “psicoterapeuta holístico” de Washington, fez uma apresentação tão entusiasmada do discurso de Weber que quase parecia trocista. Só quando Weber se posicionou por trás do átril, eram oito da noite em Sydney, é que lhe ocorreu que o convite talvez não passasse afinal de uma cilada. Relanceou o olhar pela savana salpicada pelos rostos sorridentes e expectantes de uma espécie que caçava em matilha.

Detestava ter de ler palestras. Habitualmente, munia-se apenas de um esquema dos pontos a abordar, discursando livremente e improvisando. Contudo, quando naquela noite se afastou do guião preparado, deparou-se com o abismo. Estava no cimo de um enorme penhasco, água a cair estrondosamente sobre a rocha. O que era a acrofobia se não o desejo meio admitido de saltar? Manteve-se fiel à palavra escrita, mas com as luzes do palco em cheio sobre si e os olhos a pregarem-lhe partidas, estava constantemente a perder-se. Ao ler em voz alta, deu-se conta de que nivelara o discurso demasiado por baixo. À sua frente estavam cientistas, investigadores. Estava a apresentar-lhes descrições banais, coisas de revista de sala de espera. Apressou-se a acrescentar alguns pormenores mais técnicos, que pouco sucesso tiveram.

O discurso não foi um desastre total. Já escutara pior. Porém, não fora uma tónica dominante, não valera os honorários que lhe iam pagar. Aceitou algumas perguntas, na sua maioria lances lentos e diretos. A matilha sentiu pena dele, ao ver que a presa estava já morta. Uma pessoa perguntou se ele achava que o impulso narrativo podia na realidade ter precedido a linguagem. A pergunta nada tinha a ver com a palestra que ele acabara de proferir. Parecia referir-se, se a alguma coisa, à acusação lançada pela Harper's de que ele falhara o seu verdadeiro chamamento, de que Gerald Weber era, lá no fundo, um fabulista.

Conseguiu chegar ao final da receção sem mais humilhações. A provação deixou-o esfomeado, poucas horas depois do jantar, mas a receção apenas servia vinho australiano e untuosos quadrados de arenque em cima de bolachas de água e sal. Toda a sala desenvolveu síndrome de Klüver-Bucy: metendo coisas na boca como bebés, comportando-se de forma demasiado maníaca, miando sílabas disparatadas uns para os outros, oferecendo-se a qualquer coisa que se mexesse.

Só regressou ao hotel depois da meia-noite. Não tinha a certeza se podia telefonar a Sylvie. Não era capaz sequer de calcular a diferença horária. Deitou-se e permaneceu acordado, pensando nas respostas que deveria ter dado, vendo as rachas no teto do quarto como sinapses imóveis. Pouco depois das três da manhã, ocorreu-lhe que ele próprio poderia ser uma história de um caso extremamente detalhada, uma descrição de uma personalidade feita de forma tão pormenorizada que até julgava ser autónoma...

À noite, o cérebro fica estranho para si mesmo. Weber conhecia a bioquímica por trás da chamada “síndrome do pôr-do-sol” - a exacerbação extrema de sintomas médicos durante as horas de escuridão. Contudo, conhecer a bioquímica que comandava o distúrbio não o invertia. Por fim, deve ter adormecido, pois acordou de um sonho no qual via pessoas a mergulhar como mísseis numa grande massa de água e a emergir em protoformas fundidas. Sonhar: essa solução de compromisso para acomodar o tronco cerebral vestigial. Acordou com o telefone a tocar, um serviço de despertar que se esquecera de ter pedido. Não havia ainda luz do dia. Tinha trinta minutos para tomar banho, comer e atravessar a cidade até aos estúdios de televisão para uma aparição ao vivo num programa informativo matinal. Cinco minutos num programa de pequeno-almoço, algo que já fizera meia dúzia de vezes. Chegou ao estúdio como se tivesse deixado a cabeça ainda no hotel. Levaram-no para a sala da maquilhagem e empoeiraram-lhe a cara. Tirou os óculos. Não era uma questão de vaidade. Os óculos sob as luzes da televisão tornavam-se verdadeiros espelhos. Encontrou-se com o editor do programa que o pôs ao corrente do que iam abordar com base em notas fotocopiadas e páginas da Internet impressas. A crítica da Harper's espreitava por entre a pilha de papéis. O editor parecia estar a discutir um livro escrito por outra pessoa.

Weber sentou-se na apertada sala verde, observando um minúsculo monitor ao mesmo tempo que o convidado antes de si se esforçava por parecer natural. Chegou então a sua vez. Conduziram-no a um cenário rodeado de alta tecnologia e recheado de brilhante mobiliário de sala de estar. Em redor do sofá, uma pequena unidade de artilharia de câmaras aproximava-se a afastava-se à vez. Sem os óculos, o mundo era um Monet. Sentaram-no ao lado do comentador, que olhava para o que parecia ser uma mesinha de café, mas era na realidade o teleponto. Ao lado deste homem, uma mulher: uma esposa simbólica. Foi a mulher que o apresentou, alterando vários factos. A primeira pergunta veio de nenhures.

- Gerald Weber. Escreveu sobre tantas pessoas sofrendo de tantas doenças extraordinárias. Pessoas que acham que o quente é frio e que o preto é branco. Pessoas que acreditam que conseguem ver quando na verdade são invisuais. Pessoas para as quais o tempo parou. Pessoas que acham que partes dos seus corpos pertencem a outra pessoa. Pode contar-nos o caso mais estranho que alguma vez testemunhou?

Um espetáculo de aberrações a decorrer ao vivo frente a milhões de pessoas que tomavam os seus pequenos-almoços. Tal e qual o que as críticas o acusavam de fazer. Weber queria pedir-lhe que começasse de novo. Os segundos passavam, cada um tão vasto, branco e congelado como a Gronelândia. Abriu a boca para responder e descobriu que tinha a língua colado à parte de trás dos dentes de cima. Não conseguia salivar ou humedecer a cavidade entorpecida da garganta. Todos os australianos da Terra iriam pensar que ele estava a chupar uma porca de uma roda de automóvel.

As palavras acabaram por sair, mas aos pedaços, como se tivesse acabado de sofrer uma trombose. Murmurou qualquer coisa sobre os seus livros contrariarem a ideia de “sofrimento”. Cada estado mental era simplesmente uma nova e diferente forma de ser, diversa da nossa apenas em termos de grau.

- Uma pessoa que tenha amnésia ou alucinações não está a sofrer? - perguntou o homem numa voz jornalística, pronto para ser ensinado. Porém, o seu tom veiculava uns ténues laivos de sarcasmo prestes a desabrochar.

- Bom, comecemos pelas alucinações - disse Weber. O comecemos soou mais a comemos. Descreveu a síndrome de Charles Bonnet, doentes com défices visuais que os deixavam pelo menos parcialmente cegos. Os doentes com esta síndrome tinham muitas vezes alucinações nítidas. - Conheço o caso de uma mulher que se vê frequentemente rodeada por personagens de desenhos animados. Contudo, a síndrome de Bonnet é comum. Há milhões de pessoas diagnosticadas. Sim, há sofrimento envolvido. Porém, a consciência quotidiana comum envolve sofrimento. Precisamos de começar a ver todas estas formas de ser como contínuas e não descontínuas. Quantitativamente ao invés de qualitativamente diferente de nós. Eles são você e eu. Aspetos do mesmo aparelho.

A comentadora inclinou a cabeça na direção dele e sorriu, uma megadose de esplendoroso ceticismo.

- Está a dizer que estamos todos um pouco por aí? - O seu companheiro riu-se anti-septicamente. Televisão.

Weber fez notar que o que estava a dizer era que o pensamento delirante era semelhante ao pensamento habitual. Cérebros de qualquer tipo produziam explicações aceitáveis para perceções invulgares.

- É isso que lhe permite entrar em estados mentais tão diferentes do seu?

Tal como as piores das armadilhas, esta parecia inocente. Mudaram de tema, abordando agora as acusações ao seu trabalho que tinham encontrado na Internet. Preocupa-se mesmo com os seus doentes ou serve-se deles apenas com objetivos científicos? Boa controvérsia; melhor televisão. Sentiu a emboscada desenvolver-se. Mas não conseguia ver, tinha a boca seca e há dias que não dormia bem. Começou a falar, frases que soavam estranhas mesmo antes de ele as formar. Queria dizer, simplesmente, que toda a gente passava por momentos passageiros de delírio, como quando olhamos para o pôr-do-sol e nos interrogamos, por um instante, para onde vai o astro. Tais momentos concediam a toda a gente a capacidade de entender os défices mentais alheios. As palavras saíram-lhe como se estivesse a confessar uma insanidade intermitente. Ambos os anfitriões sorriram e agradeceram-lhe por ter ido ao programa naquela manhã. Passaram para um teaser sobre um homem de Brisbane cujo telhado do quarto fora atingido por um pedaço de coral do tamanho de uma bola de críquete. Depois um intervalo para publicidade e os assistentes vieram acompanhá-lo de novo até aos bastidores, a sua derrocada gravada para sempre e em breve disponível na Web, a qualquer altura, para qualquer pessoa, em qualquer lugar do mundo.

Telefonou a Bob Cavanaugh do hotel.

- Achei que gostaria de saber, antes de o ouvir de outras fontes. Não correu bem. Talvez haja repercussões.

Depois do maldito intervalo de ligação ao satélite, Cavanaugh soou-lhe apenas confuso.

- É a Austrália, Gerald. Quem é que irá saber?

 

Quanto é que Mark mudara? A pergunta perseguia Karin naquele Verão quente, um terço do ano já decorrido. Media-o constantemente, comparando-o com uma imagem dele antes do acidente que mudava a cada dia que passava com o novo Mark.

A noção que tinha dele era uma média corrente, avaliada em favor da pessoa mais recente que tinha à frente. Já não confiava na sua memória.

Estava seguramente mais lento. Antes do acidente, decidir como aplicar o património da mãe levara-lhe apenas vinte minutos. Agora, decidir se havia ou não de correr as venezianas era como resolvera questão do Médio Oriente. Num dia tinha apenas o tempo suficiente para se sentar e pensar no que precisava sem falta de fazer no dia seguinte e desfrutar de um pequeno e merecido descanso.

Estava também mais esquecido. Era capaz de se servir de uma tigela de cereais quando ao lado tinha ainda uma por terminar. Ela dizia-lhe várias vezes por semana que ele estava de baixa por incapacidade, mas ele recusava-se a acreditar nisso. Os seus “jogos de palavras” pareciam a Karin quase brincalhões. “Tenho de voltar ao trabalho”, declarou ele. “Alguém tem de trazer o tourinho para casa”. Ao ver o presidente nas notícias, resmungou: “Este outra vez, não... O sr. Feixo do Mal.” Queixou-se do visor do relógio com rádio: “Não percebo se são 10h00 a.m. ou 10:00 P.M.” Talvez se tratasse ainda daquilo a que todos os livros se referiam como afasia. Ou talvez Mark estivesse na brincadeira de propósito. Karin não se conseguia recordar se alguma vez ele fora engraçado, antes.

Agora era frequentemente infantil; era impossível continuar a negá-lo. Contudo, ela passara anos antes do acidente a atormentá-lo para que crescesse. O país inteiro era juvenil. A era que se vivia era infantil. E quando o via na companhia de Rupp e Cain, Mark nem sempre saía a perder na comparação.

O mais pequeno rastilho fazia-o explodir. Mas também a raiva era um familiar conhecido. Na primeira classe, quando a professora de Mark lhe chamara afectuosamente “ave rara” frente à turma por trazer o almoço num saquinho de papel e não numa lancheira, ele amaldiçoara-a por entre lágrimas de fúria. Anos mais tarde, quando o pai fez troça dele numa discussão durante uma ceia de Natal, Mark, com 14 anos, levantou-se como uma mola da mesa, correu escada acima gritando Feliz porcaria de Natal e esmurrou o painel de bordo da porta, acabando nas urgências do hospital com três ossos da mão partidos. E depois houve ainda a ocasião em que uma histérica Joan Schluter pegara numa tesoura de tosquia para cortar os cabelos do filho depois de Mark e Cappy terem discutido por causa das suas melenas.

O jovem de 17 anos explodira, dando um valente pontapé no forno e ameaçando ambos os progenitores com uma ação em tribunal por abuso de menor.

Na verdade, até a síndrome de Capgras tinha algum precedente. Durante três anos antes da puberdade, Mark aperfeiçoara Mr. Thurman, o seu amigo imaginário. Mr. Thurman confiara em grande segredo a Mark que este tinha sido adoptado. Mr. Thurman conhecia a verdadeira família de Mark e prometeu apresentar-lha quando ele fosse mais velho. Por vezes, Mr. Thurman fazia concessões em relação a Karin, dizendo que eram ambos crianças abandonadas, mas da mesma família. Outras vezes, tinham sido adoptados de instituições diferentes. Nessas alturas, Mark consolava-a, insistindo que seriam melhores amigos quando não tivessem de continuar naquela impostura de família. Karin odiara Mr. Thurman do fundo do coração, ameaçando muitas vezes gaseá-lo enquanto Mark dormia.

A Capgras também estava a mudá-la a ela. Karin lutou contra a habituação. Durante pouco mais tempo, ainda viu as diferenças: o riso dele, estranhamente mecânico. Os acessos de tristeza que o acometiam, apenas a afirmação de um facto. Até mesmo a ira dele, um mero ritual colorido. Era capaz de irromper numa declaração de amor infantil por Barbara, a propósito de nada. Era capaz de ir pescar com os amigalhaços, imitar toda a gíria, sentar-se no barco a amaldiçoar a sua sorte, executando todos os movimentos com uma intensidade temerosa, deprimida, desesperado por provar que estava ainda intacto, por trás das ligaduras. Por mais algum tempo, ela soube que o acidente os afastara como uma explosão e que nem toda a atenção desinteressada do mundo por parte dela os faria aproximar como no passado. Não havia passado para o qual regressar pois, a cada novo dia, a sua memória somatória provava-lhe cada vez mais que o meu irmão foi sempre assim.

De visita à Homestar uma tarde nos inícios de Julho, Karin encontrou Mark a ver um documentário sobre viagens com um amável e anémico padre deambulando pela Toscana. Mark estava extasiado, como se tivesse tropeçado na coisa mais extraordinária da televisão. Cumprimentou Karin, entusiasmado.

- Ei. Olha para este local! Inacreditável. As pessoas vivem ali há milhões de anos. E há lá pedras ainda mais antigas.

Karin observou-o. Ele agora tolerava-a, um hábito tão perturbador quanto as hostilidades do início. O relato da viagem terminou e Mark aproveitou para ver o que havia nos outros canais. Fez algumas paragens nos seus favoritos - desportos motorizados, de contacto, vídeos musicais, comédias alucinadas. Porém, encolheu-se com o barulho e a velocidade. Era agora incapaz de manter o cabo que o ligava ao mundo exterior sem sofrer uma sobrecarga. Ao fim de cinco minutos a ver a reposição da sua comédia preferida, perguntou:

- É possível o acidente ter feito com que me tornasse médium?

- Como assim? - disse Karin, aparentando calma.

- É como se fosse capaz de contar todas as piadas antes mesmo de eles as começarem.

Decidiu-se por um programa sobre o mundo natural que retratava as três espécies de mamíferos ovíparos primitivos, algo que antes do acidente ninguém o apanharia, nem morto, a ver.

- Jesus. Que coisas são aquelas? Alguém fez asneira nas especificações dos esboços dos bichos. Aves com cabelo!

Este é o Mark de que ela se lembrava da infância. Curioso e amável, sem atitudes súbitas. Ele ficara espantado o suficiente para a querer ali, sentada ao seu lado no estreito sofá. Ela tinha-o exatamente como queria. Podia fazer-lhe chá, podia mesmo esticar o braço ao longo das costas do sofá e tocar-lhe no ombro, e ele suportá-lo-ia. O pensamento traumatizou-a. Levantou-se e deu uns passos para um lado e para o outro. Impensável: a Toscana, equidnas e o seu irmão. Olhou fixamente para ele, sentado no sofá, franzindo as sobrancelhas aos retrógrados mamíferos, uma pantomima de entusiasmo.

- Olha só para aquilo! Abandonado pela evolução. Deixado para trás. É a coisa mais triste que alguma vez vi. - Desviou os olhos da televisão e viu-a a andar de um lado para o outro. - Ei. Importas-te de te sentar ao menos por um minuto? Estás a deixar-me nervoso.

Voltou a sentar-se no sofá ao lado dele. Ele inclinou-se para ela, dando início ao que ele julgava ser uma operação de charme. Colocou-lhe uma mão sobre a coxa e deu início à sua litania diária.

- E se me levasses até à Thompson Motors? Podia comprar uma carrinha usada por quase nada. Dava a volta ao vendedor. Tens é de me ajudar, porque me roubaram o livro de cheques. Deixaram-me aquilo da morada, mas os nomes e os números estão todos errados.

- Não sei, Mark. Talvez ainda não seja muito boa ideia.

- Não? - Carregou o sobrolho e levou as mãos desamparadas ao ar. - Quero lá saber. - Pegou numa cópia com uma semana de uma revista de automóveis deixada como individual na mesa de café e folheou as páginas com as cotações das carrinhas em segunda-mão que ele já marcara. Karin inclinou-se para a frente e pressionou o botão do controlo remoto da televisão, desligando-a. Ele virou-se de imediato para ela. - Importas-te? Eu estava a ver aquilo. Não queres realmente saber dos mamíferos ovíparos, pois não? Não te preocupas muito com mais nenhuma espécie a não ser tu mesma.

- Mark, os mamíferos ovíparos já acabaram.

- Isso é que não acabaram. Fósseis vivos. A maior história de sobrevivência na história dos vertebrados. Acabados? Nem penses. Olha! O que., aquilo é... uma espécie de unicórnio marinho, ou assim.

- É outro programa, Mark.

- E que raio sabes tu? É tudo o mesmo programa. - Em jeito de prova, andou para trás alguns canais. - Olha, repara neste. Baseado numa história verídica. Será que já ninguém faz filmes baseados em histórias falsas? - Recuou mais uns quantos, parando num canal sobre casos de tribunal. - Está bem assim? Estás satisfeita? Meu Deus. Não és destas bandas, pois não?

Enquanto Mark lia o jornal, ela observou dois vizinhos que se tinham processado um ao outro por causa de um lote de terreno que tinham comprado a meias. Após algum tempo, ela sugeriu:

- Vamos dar uma volta?

Ele deu um pulo, alarmado.

- Uma volta onde?

- Sei lá. Até lá abaixo à pradaria? E depois descíamos até ao rio. Pelo menos saímos aqui da urbanização.

Mark olhou para ela, com pena que ela tivesse pensado que tal seria possível.

- Não me parece. Talvez amanhã.

Ficaram sentados durante bastante tempo, lendo com um barulho de fundo de litigação televisionada. Ela preparou-lhe uma sandes de atum com queijo fundido para o jantar. Ele acompanhou-a até à porta quando ela se foi embora.

- Raios! Olha bem. É de noite outra vez. Nem sei como tinha tempo para trabalhar todo o dia, quando ainda trabalhava. Isso faz-me lembrar: devia telefonar para a fábrica, não devia? Tenho de regressar à rotina do costume, entendes? Não posso viver de dinheiro fácil para o resto da vida.

Mark começou a terapia comportamental cognitiva com a Drª Tower. Karin levou-o a Kearney no que ele apelidava de “o carrito japonês”. Já desistira da ideia de que ela poderia encenar um acidente para o matar. Ou talvez já se tivesse reconciliado com o destino.

O tratamento exigia seis avaliações semanais seguidas de 12 “sessões de ajustamento”, com tantas consultas de avaliação quantas necessárias ao longo do ano seguinte. Karin levava-o até ao Good Samaritan para as consultas e depois vagueava pela cidade por uma hora. A enfermeira pediu-lhe que não falasse com Mark sobre a terapia até que lhe fosse pedido que participasse nas sessões. Ela jurou que não o faria. Ao fim da segunda sessão, a pergunta escapou-se-lhe mesmo antes de ter tempo de se ouvir colocá-la.

- Então, que tal é conversar com a Drª Tower?

Ele assumiu um ar clínico.

- Não é mau, suponho. Não custa assim tanto aturá-la. Um bocadinho de compreensão lenta, porém. Só te digo, é preciso dizer tudo à mulher umas cem vezes. Ela acha que tu és capaz de ser genuína. De doidos.

Barbara visitava-o três vezes por semana. Aparecia sem dizer nada, sempre um acontecimento. Sem a sua farda hospitalar, de calções cinzentos e t-shirt cor de vinho, era a personificação do Verão. Karin admirou os seus braços e pernas despidos, interrogando-se mais uma vez sobre a idade dela. Barbara transformava Mark num patinho de borracha, balanceando-se constantemente, pronto para o que fosse que ela lhe pedisse. E tudo o que lhe pedisse era como um jogo. Levou-o ao supermercado e obrigou-o a fazer compras para ele mesmo. Essa linha de ação nunca ocorrera a Karin, que abastecia a despensa de Mark todas as semanas, mantendo-o ao mesmo tempo alimentado e dependente. Barbara, porém, era impiedosa. Não tomava quaisquer decisões por ele, por muito que ele apelasse ao coração dela.

- Ei, Barbie. Qual destes é que eu gosto mais? Lembra-se, daqueles anos todos no nosso hotel de saúde? Sou um homem de salsichas ou de toucinho?

- Eu digo-te como poderás descobrir. Observa-te a ti mesmo e vê qual deles escolhes. - Deixou-o à solta, condenado à liberdade no terror da abundância americana, fazendo intervenções apenas em questões como queijo em spray e cereais de marshmallow e chocolate. Barbara jogava jogos de vídeo com ele, até de corridas. Mark adorava: um peixe com rodas ao qual ele podia ganhar sempre, mesmo com um polegar atrás das costas. Ela vingou-se nas cartas. Mark adorava disputas épicas, que frequentemente o deixavam a suplicar misericórdia.

- É assim que se diverte, Barbie? Uma mulher adulta a derrotar sem misericórdia um principiante?

Karin escutou-os.

- Principiante? Não te recordas de jogar sempre a isto, com a tua mãe, em criança?

Ele troçou da idiotice.

- Jogar sempre? A minha mãe em criança?

- Tu sabes o que estou a dizer. Até usávamos cupões de desconto antigos para as apostas.

Mark levantou a cabeça das cartas para escarnecer.

- A minha mãe não jogava às cartas. O jogo era coisa do Demónio.

- Isso foi mais tarde, Mark. Quando éramos miúdos, ela ainda era viciada em cartas. Não te lembras? Ei, não me ignores.

- Jogar às cartas. Com a minha mãe. A minha mãe em criança. Três meses - não; trinta anos - de frustração turvaram o ambiente em redor dela.

- Oh, por amor de Deus! Não sejas tão cabeça de mosquito. - Ficou a escutar o eco do que dissera, horrorizada consigo mesma. Os seus olhos procuraram os de Barbara, alegando insanidade temporária. Barbara observou Mark, mas este limitou-se a inclinar a cabeça e a resfolegar:

- Cabeça de mosquito. Onde é que aprendeste isso? A minha irmã também costumava chamar-me isso.

Nada o transtornava, desde que Barbara ali estivesse. Aos poucos, ela conseguiu voltar a pô-lo a ler. Ludibriou-o de forma a que ele pegasse num livro que se recusara a ler no liceu. My Antónia.

- Uma história muito sensual - garantiu ela. - Sobre um rapaz de uma zona rural do Nebrasca com uma grande paixoneta por uma mulher mais velha.

Mark leu 50 páginas, embora tal lhe tenha demorado duas semanas. Confrontou Barbara com a prova, traído.

- Não é nada sobre o que disse. É sobre imigrantes e agricultura e a seca e coisas assim.

- Isso também - admitiu ela.

Ele continuou a ler história, para proteger o seu investimento, empenhando horas boas a seguir a outras menos boas. O final do livro confundiu-o.

- Quer dizer que ele regressa, depois de ambos terem casado e de ela ter tido aqueles filhos todos, só para estar com ela? Só para... ser amigo dela, ou assim? Só pelo que aconteceu quando eram mais novos? - Barbara acenou que sim com a cabeça, os olhos sonhadores. Mark estendeu a mão para a consolar. - O melhor livro obsoleto que alguma vez li. Não que tenha propriamente entendido tudo.

Ela levava-o a dar longos passeios sob o Sol de Verão. Deambulavam, ressequidos e no entanto peganhentos, o mês de Julho ameaçando arrastar-se sem fim, sem nada que pudessem fazer a não ser suportá-lo e continuar a andar. Passavam horas a fazer périplos pelos inflamados trigais, quais agentes locais de melhoramento agrícola responsáveis pela vigilância das colheitas da região. Levavam com eles o cão, Blackie Dois.

- Este rafeiro é quase tão bom quanto o meu - declarou Mark. - Apenas um pouco menos obediente. - De vez em quando, permitia que Karin os acompanhasse, desde que ela não o incomodasse.

Barbara tinha estômago para continuar a escutar Mark falar sobre tuning muito depois de o período de atenção de Karin se ter esgotado.

- Sou incapaz de deixar um carro sem modificações - declarou Mark. Descreveu então em pormenor a anatomia do veículo que estava a construir na sua cabeça: Rams, Bigfoots e Broncos todos fundidos num monstro híbrido. Ignorada e invisível, seguindo a dez metros de distância, Karin estudava a técnica de Barbara. Esta absorvia e deflectia-o, dispersando-o. Escutou, arrebatada, as listas de peças e componentes que Mark recitou, depois esticou um dedo, como quem não quer nada.

- Ouviste aquilo? Que barulho foi aquele? - Sem que ele disso se desse conta, num piscar de olhos Barbara teria Mark a escutar o coro de cigarras a que ele não prestava atenção desde os 15 anos.

Barbara Gillespie tinha o toque mais subtil que a humanidade conhecia, um domínio de si mesma que Karin conseguia dissecar e imitar durante curtos períodos de tempo, mas que nunca poderia esperar encarnar. Entristecia-a ver, em Barbara, o que ela afinal sempre quisera ser quando fosse grande. Porém, tinha tantas probabilidades de se tornar nela quanto um pirilampo tinha, por muita persistência que tivesse, de se tornar num farol. A outra mulher pertencia agora aqui mais do que ela própria.

Mark faria qualquer coisa pela sua boneca Barbie. Karin surpreendeu-os certa vez ao final da tarde sentados em redor da mesa da cozinha, as cabeças inclinadas sobre um livro de arte, como Joan Schluter e o seu último pastor agarrados às Escrituras. O livro chamava-se Um Guia para Ver com Outros Olhos: 100 Artistas que Mudaram a Nossa Perspectiva. Um qualquer tomo da prateleira secreta e surpreendente de Barbara. Karin avançou pé ante pé até às costas deles, receando que Mark se enfurecesse e a banisse. Mas ele nem sequer reparou nela. Estava hipnotizado com o quadro Casa e Árvores, de Cézanne. Barbara acariciou a imagem com as pontas dos dedos, cobrindo os troncos das árvores. Mark tinha a cara colada à página, seguindo o raspado da espátula do pintor. Debateu-se com o desenho, algo forçando a saída de dentro de si. Karin percebeu de imediato com o que é que ele se debatia: a antiga casa da quinta, o alpendre onde tinham passado os precários anos de infância, a casa cuja hipoteca o pai tentou pagar pulverizando colheitas num antigo avião Grumman AgCat. Não se conseguiu conter.

- Sabes onde isso fica, não sabes?

Mark virou-se para ela, como um urso surpreendido enquanto se alimentava.

- É em lado nenhum. - Apontou descontroladamente para o próprio crânio. - É um raio de uma fantasia, é o que é. - Ela encolheu-se e deu dois passos atrás. Mark poderia ter-se levantado e agredido Karin, não fora o toque leve dos dedos de Barbara no braço dele. O toque acionou um disjuntor e Mark voltou-se de novo para o livro, a raiva dissolvendo-se. Agarrou no volume pela lombada e folheou-o rapidamente com a outra mão como se fosse um flip-book, 500 anos de obras-primas da pintura em cinco segundos. - Quem é que tem feito todas estas coisas? Quero dizer, olhem para isto! Há quanto tempo é que isto dura? Onde estive toda a minha vida?

Passaram-se vários minutos até que Karin conseguisse parar de tremer. Certa vez, há oito anos, ele rachara-lhe o lábio com uma estalada quando ela lhe chamara um cretino duvidoso. Agora podia magoá-la de verdade, sem sequer se dar conta. Ficaria assim para sempre, ainda mais perturbado do que o pai de ambos, incapaz de manter empregos, vendo programas sobre a natureza e folheando livros de arte, reagindo ao mais pequeno contratempo com acessos incontroláveis de fúria. E depois viraria as costas, confuso, como se não acreditando realmente no que acabara de fazer.

Despedaçava-a: ele ficaria dependente dela para sempre. E ainda assim ela desiludiria-o, tal como fora incapaz de proteger os pais dos piores instintos destes. Os seus cuidados, quase deveres sacerdotais, estavam a piorar Mark ainda mais. Karin precisava que ele fosse de uma forma que Mark nunca voltaria a ser, uma forma que ela já nem tinha a certeza se ele alguma vez teria sido. Não tinha forças para lidar com a nova inocência perdida dele. Sentou-se numa cadeira desdobrável. O curso da sua própria vida já não conduzia a parte nenhuma. Os anos à sua frente ruíram, sepultando-a sob peso morto. Depois, o toque de dedos no seu antebraço fê-la sair de si mesma.

Levantou a cabeça e olhou para Barbara, um rosto cujo olhar parecia igual a qualquer comportamento. Barbara retirou a mão do braço de Karin e continuou a guiar Mark ao longo do calmante livro. Parecia conhecer o nome de todos os pintores, sem sequer olhar para as legendas. Estenderia este cuidado a todos os seus doentes que recebiam alta? Porquê os Schluter? Karin não se atrevia a perguntar. As visitas não durariam muito mais tempo. Mas ali estava Barbara na mesa da cozinha de Mark, fazendo-lhe companhia nesta nova maneira de olhar. As duas mulheres saíram ao mesmo tempo naquela noite. Karin acompanhou Barbara até ao carro.

- Escute. Não sei como dizer isto. Estou em dívida para consigo. Nunca poderei agradecer-lhe o suficiente por tudo. Nunca.

Barbara franziu o nariz.

- Ora, não é preciso agradecer. Obrigada eu por me deixar visitá-lo.

- A sério. Ele estaria perdido sem si. E eu estaria... pior. Era demasiado:

a mulher retraiu-se, preparada para fugir.

- Ora essa, isto não é nada. Faço-o totalmente por mim.

- Se houver alguma coisa... o que quer que seja... por favor...

 

Barbara não desviou o olhar do de Karin: Talvez haja, um dia. Para grande surpresa de Karin, ela despejou:

- Quem sabe quando é que precisaremos de alguém que olhe por nós?

Nem sequer os Mosqueteiros irritavam Barbara. Quando as visitas dos três se sobrepunham, Rupp e Cain recrutavam Barbara para jogos de póquer ou de futebol americano. Fosse qual fosse o jogo que os rapazes estivessem a jogar, Barbara juntava-se-lhes. Mark saía do seu dédalo durante o período de tempo em que ela estivesse por perto. Cain não conseguia resistir a arrastá-la para discussões intermináveis - a guerra ao terrorismo, o necessário encurtamento de liberdades civis, o invulnerável e ao mesmo tempo infinitamente ameaçado modo devida americano. Cain era um daqueles oradores atarracados e apopléticos que fazem valer os seus argumentos com estatísticas, assaz detalhadas e constantemente em mudança. Barbara dava-lhe luta. Certa vez, ele citou um qualquer artigo recentemente renovado da Carta de Direitos, e ela contra-atacou com o documento inteiro, memorizado. Ele fugiu da sala a gritar a plenos pulmões: “Talvez na sua Constituição!”

Rupp fazia-lhe a corte conscienciosamente, recorrendo a súplicas cada vez mais desesperadas: ajuda com o seu furão de estimação, uma excursão a uma exibição de modelismo envolvendo foguetes, lamber envelopes para uma gigantesca angariação de fundos. Ela, por seu lado, dava-lhe para trás graciosa e animadamente. Coloque-lhe um açaime. Tente uma descolagem a solo. Vá lamber sabonetes. Toda agente ficou à espera da próxima escalada no conflito. Toda a gente à exceção de Mark, que lhes suplicou, de olhos húmidos, que parassem com aquilo.

Karin dava-lhe o que ele lhe deixava dar. Adorava servir de taxista quando o levava e trazia das sessões de terapia cognitiva a que Mark cada vez mais resistia. Ao levá-lo a casa após a terceira sessão, de forma tão acidental que nem lhe pareceu que estivesse realmente a quebrar as ordens do hospital, voltou a sondá-lo.

- Como vão as coisas entre ti e a Drª Tower?

- Muito bem - disse Mark, os olhos, como sempre, colados à estrada. - Acho que toda esta terapia está a começar a fazer-me sentir um pouco melhor.

Antes da quarta sessão, Mark exigiu visitar os Cuidados Intensivos. Escolheu uma enfermeira ao calhas, contou-lhe a história e mostrou-lhe o bilhete. A sobressaltada rapariga prometeu que lhe transmitiria qualquer coisa que viesse a saber.

- Viste? - disse enquanto Karin o encaminhava para o andar da Drª Tower. - Ela estava a empatar-me com manobras evasivas. A garantir que na primeira noite não deixaram ninguém entrar para me ver excepto o meu familiar mais próximo. Mas tu disseste-me que te deixaram entrar a ti. Não faz sentido, pois não?

Ela abanou a cabeça, rendendo-se às leis do mundo dele.

- Não, Mark. Na verdade, não faz.

Karin passou a hora que a sessão demorava na cafetaria do hospital, calculando o grau da sua auto-ilusão. A terapia não estava a fazer nada por ele. Ela estava a agarrar-se à ciência médica da mesma forma que a sua mãe se agarrava ao Apocalipse. As garantias científicas de Weber haviam-lhe parecido tão racionais. Mas a verdade é que Mark também parecia racional para si mesmo. E cada vez mais perceptivo do que ela.

Quando ele saiu da sessão, Karin sugeriu que fossem jantar.

- E que tal Grand Island, ao Farmer's Daughter Café?

- Ena, pá! - Felicidade e medo perpassaram pelo rosto dele. - Esse é o meu restaurante preferido no cimo da Terra. Como é que soubeste disso? Falaste com o Rupp e o Cain?

Ela sentiu-se envergonhada por tudo o que era humano.

- Eu conheço-te. Sei do que gostas. Ele encolheu os ombros.

- Ei, talvez tenhas poderes estranhos que desconheças. Devíamos fazer-te alguns testes.

Mark e os amigos adoravam conduzir setenta quilómetros para comer o mesmo bife ensanguentado que podiam comer em meia dúzia de restaurantes em Kearney. Karin nunca entendera o apelo do Farmer's Daughter, mas agora estava contente pela viagem. Mark, refém, ia sentado a seu lado, pensativo durante a maior parte de uma hora. Do lugar do morto, como ele o apelidava, observou os campos de trigo, de soja e de milho, perscrutando a paisagem pela mínima coisa que não se encaixasse.

Leu os sinais de trânsito em voz alta: “Adopte-uma-auto-estrada. Adote uma auto-estrada! Quem haveria de pensar que tantas das estradas do nosso país eram órfãs?”

Karin esperou até ao apático troço entre Shelton e Wood River para o questionar. A Medicina traíra-a; podia também trair a Medicina.

- Então, qual é a pior coisa acerca da Drª Tower?

A cabeça dele ia quase colada ao painel de instrumentos para conseguir olhar para uma ave de rapina que os sobrevoava.

- Ela já começa a irritar-me. Quer saber um monte de coisas que aconteceram há para aí um milhão de anos atrás. O que está diferente, o que está igual. Eu digo-lhe: quer história antiga? Vá comprar um livro sobre história antiga. - O falcão ficou para trás. Mark endireitou-se no assento e inclinou-se na direção dela. - “O que fazia quando era pequeno e a sua irmã o arreliava?” E que interessa isso? Quero dizer, é estranho, não te parece? A tentar descobrir tanta coisa sobre mim. Mudar a forma como olho para as coisas.

O pulso dela acelerou ao aperceber-se do tom conspirador dele. Recordou-se da resistência adolescente dissimulada de ambos, sobrevivendo às piores certezas dos pais. Agora ele oferecia-lhe uma nova aliança. Ela podia juntar-se a ele, por mais insano que tal pudesse ser. Teriam ambos o que precisavam. Ela inspirou, controlando a vertigem de o ir bajular.

- Em primeiro lugar, Mark, ninguém te está a obrigar a fazer nada.

- Isso é um alívio.

- A Drª Tower apenas quer compreender o que passa pela tua cabeça agora.

- Porque não me voltam a meter numa daquelas máquinas? Meu Deus, têm é de melhorar as imperfeições daquelas coisas. Alguma vez estiveste dentro de um desses tubos? Uma barulheira infernal. É como ter o crânio a arranjar numa oficina. E nem nos podemos mexer. O queixo preso com umas correias. Dá-nos bem cabo da cabeça, se não estivermos já desgraçados. Leitura de mente computorizada.

Ela deixou o assunto esfriar até Grand Island. Verão ao longo do rio Platte: a resplandecente miragem, a parede verde-escura de calor esmagador que tornava as planícies o exemplo de terra de ninguém esquecida por Deus libertou Karin. Chicago, com a sua planta em rede, qual Lego, oprimira-a. As Montanhas Rochosas deixaram-na irascível. O brilho jactancioso de L.A. parecera-lhe uma cegueira histérica. Este local pelo menos ela conhecia. Só este local era aberto e vazio o suficiente para nele se poder desaparecer.

O Farmer's Daughter ocupava uma antiga loja da década de 1880 com lambris de madeira de cerejeira e pedaços de utensílios agrícolas a enferrujar nas paredes. O Nebrasca a fazer de si mesmo. A anfitriã, com ar de avó, cumprimentou-os como se fossem amigos que há muito não se viam, e Karin devolveu-lhe o cumprimento com uma efusividade semelhante.

- Mudaram isto - insistiu Mark. - Não sei. Talvez tenham remodelado. Dantes tinha um ar mais novo. - E quando fizéramos pedidos: - O cardápio é o mesmo, mas a comida decaiu em qualidade. - Comeu com determinação, mas pouca alegria.

- A Drª Tower apenas quer ter uma ideia dos teus pensamentos - voltou Karin a insistir. - Dessa forma, ela poderá, digamos, voltar a pôr tudo no lugar.

- Estou a ver, estou a ver. Achas que me estou a desintegrar?

- Bom... - Karin sabia que ela mesma pelo menos estava.- Como te sentes?

- Isso é o que aquela doutora está sempre a perguntar-me. Nunca me senti melhor. Sentia-me bem pior, deixa-me que te diga.

- Sem dúvida. Muito melhor do que estavas por esta altura há cinco meses.

Ele riu-se dela.

- Não podes dizer “por esta altura” há cinco meses.

Ela acenou com as mãos, envergonhada. Cada palavra em que a sua mente tocava transformava-se em figuras de linguagem desprovidas de sentido.

- Mark, durante vários dias depois de te terem tirado da carrinha, não conseguias ver, não conseguias mexer-te, não conseguias falar. Mal eras sequer humano. Operaste um milagre desde então. Foi essa a palavra que os médicos usaram: milagre.

- Sim. Eu e Jesus.

- Então, agora, depois de todo o caminho que percorreste, a Drª Tower pode ajudar-te ainda mais. Poderá encontrar algumas coisas que te façam sentir melhor.

- Não ter tido aquele acidente far-me-ia sentir melhor. Vais terminar essas batatas?

- Mark, isto é a sério. Queres voltar a sentir-te mais como tu mesmo, não queres?

- De que estás a falar? - Voltou a soltar umas risadinhas, mais ou menos. - Sinto-me exatamente como eu mesmo. Deveria sentir-me mais como quem, afinal?

Mais do que ela poderia exigir. Deixou a questão morrer. Quando a empregada colocou a conta da refeição na mesa, Karin esticou o braço para ela. Ele empurrou-lhe a mão para o lado.

- Que estás a fazer? Não vais pagar. Tu és a mulher.

- A ideia de virmos foi minha.

- É verdade. - Mark brincou com o pimenteiro, pensando. - Queres pagar a minha refeição? Não entendo. - A voz dele procurou um tom trocista. - Isto é alguma espécie de encontro? Oh, não, espera,, já me esquecia. Incesto.

A empregada veio e levou o cartão de crédito de Karin. Em breve atingiria o limite e teria de pedir um novo. Dali a mais cinco meses, o seguro de vida da mãe, a soma em que Karin não quisera mexer, o dinheiro que supostamente deveria usar para fazer coisas boas, estaria gasto também.

- Isto prova absolutamente que não podes ser minha irmã. A minha irmã é a pessoa mais forreta que alguma vez conheci. À exceção talvez do meu pai.

Ela deu um pulo para trás, magoada. Porém, o rosto sem expressão dele deteve-a. Provavelmente até tinha razão. Toda a sua vida, ela agarrara-se, em pânico, a qualquer coisa flutuante que a arrastasse para longe da voragem de Cappy e Joan. E todo o seu entesouramento empobrecera-a. O mesmo acontecia com a segurança: quanto mais se guardava menos se tinha. Ela trataria de compensar isso, agora. Mark não lhe custaria menos do que tudo. Passaria o resto da vida que tivesse a pagar pela vida que ele nem se apercebia de que perdera. Isso contaria como generosidade, quando não havia alternativa?

- A próxima fica por tua conta - disse ela. - Anda daí, vamos para casa.

Quando deixaram Grand Island, a noite estava a cair. Dezasseis quilómetros depois da cidade, Mark tirou o cinto de segurança. Tal não deveria tê-la perturbado. Precisamente o contrário: o antigo Mark nunca usava cinto de segurança. Aqui estava ele, a regressar ao normal, a confiar nela outra vez. E, contudo, ela entrou em pânico.

- Mark! - gritou Karin. - Põe o cinto. - Ela esticou o braço para o ajudar a prender o cinto e ele açoitou-lhe a mão. Tremendo, Karin parou na berma às escuras. Recusou-se a continuar até que Mark pusesse o cinto. E ele parecia perfeitamente feliz por ficar ali sentado na escuridão, a desfrutar daquele impasse mexicano.

Por fim, ele disse:

- Eu ponho o cinto, mas tu tens de levar-me.

- Onde? - perguntou ela, sabendo de antemão.

- Quero ver onde aquilo aconteceu.

- Mark. De certeza que não queres.

Ele olhou fixamente em frente, para o seu próprio universo. Girou a mão em redor da cabeça, o sinal de que já estava ausente.

- Mais vale pensar que nunca lá estive.

- Não podemos. Pelo menos esta noite. Vai estar escuro como breu. Não serás capaz de ver um palmo à frente do nariz.

- Nem isso ao menos consigo ver, agora.

- Deixa-me levar-te a casa. Prometo-te que iremos amanhã logo de manhã.

Ele virou-se contra ela.

- Isso seria muito conveniente, não seria? Levas-me de volta a “casa”, telefonas aos teus amigos e depois vão dar um jeitinho ao local, enquanto eu durmo. E eu nunca perceberia a diferença. - Formas sólidas, habilidosamente alteradas a coberto da noite, dados manipulados enquanto estavam de costas viradas. Tudo o que era certo, arrastado pela corrente. - Adulterar a cena do crime - disse ele, enquanto dava piparotes na tampa do porta-luvas do Corolla para cima e para baixo.

- Crime? Que queres dizer com isso? Que crime?

- Bem sabes do que estou a falar. Vasculhar a berma e retirar quaisquer provas. Colocar marcas de pneus falsas.

- Mark, qualquer pessoa que quisesse adulterar as provas leva quase meio ano para o fazer. Já não há provas. Porque haveriam essas pessoas de esperar até agora?

- Porque só agora é que eu quis saber.

A agitação piorou e ela teve de esticar o braço para lhe deter a mão que não parava de abanar a tampa do porta-luvas.

- Já não há nada para ver. Já foi tudo levado pelas águas ou coberto.

Ele endireitou-se, de novo animado.

- Concordas comigo, então? Alguém andou a alterar quaisquer pistas que eu pudesse recolher para resolver isto?

Isto. A vida dele.

- Pela natureza, Mark. - Cobrindo tudo o que alguma vez acontecera. - Volta a colocar o cinto. Vá.

Ele fez o que ela lhe pediu, mas sob a condição de ela passar a noite na Homestar onde ele poderia vigiá-la.

- Eu tenho um sofá de abrir na sala da frente onde podes dormir.

Regressaram a Farview em silêncio. Mark não a deixou ligar o rádio, nem sequer na estação KQKY, que, segundo ele afirmava, já não passava o mesmo tipo de música que costumava passar. Quando entraram em casa, Mark pediu-lhe as chaves do carro para colocar debaixo da sua almofada.

- Tenho andado com sonos pesados. Provavelmente não te ouviria se tentasses esgueirar-te de casa a meio da noite.

Enquanto o irmão tomava banho, Karin telefonou a Daniel. Arrancou-o da sua meditação. Contou-lhe os acontecimentos do dia e por que motivo iria ficar em casa de Mark.

- Vemo-nos amanhã? - disse ela, querendo desligar o telefone. Por um breve instante, ele não respondeu. Não acreditava nela. Ela fechou os olhos e balouçou-se. A história sob as tábuas do soalho, à espera de se inflamar.

Daniel ficou mais solícito.

- Está tudo bem? Queres que vá até aí?

- Estás a falar com quem? - quis saber Mark, materializando-se na porta da sala, segurando uma toalha à sua frente e a pingar para o tapete. - Eu disse-te para não falares com ninguém.

- Vemo-nos amanhã - disse Karin para o seu telemóvel, e depois desligou.

- Quem era? Raios, não posso virar-te as costas nem por um segundo.

- Era o Daniel Riegel. - Mark colocou o antebraço à sua frente, como que defendendo-se do nome. - Estamos juntos há... há já algum tempo. Estou a viver com ele, digamos assim. Estou bem com ele, Mark. Depois de toda a confusão que lançámos um sobre o outro. Está finalmente tudo bem entre nós. - Não acrescentou: por causa de ti.

- Danny Riegel? O Rapaz Natureza? - Sentou-se, ainda molhado, no braço do seu cadeirão reclinável, secando distraidamente o peito. Depois do que devia, Karin desviou os olhos. - Então, vocês os dois estão mesmo de namorico?

- Ele foi ver-te ao hospital. - Estúpido, forçado, irrelevante.

- Foi? Danny Riegel. Bom, ele a mim não me faz mal. Nem a uma amiba faria mal. Não estará de certeza envolvido em grandes coisas. Não são o estilo dele. Mas, caramba, como é que sabias que tinhas de te envolver com ele? Isso é muito estranho. A minha irmã e ele eram unha com carne. Devem ter-te programado com antecipação e puseram isso no teu ADN ou assim.

Ela virou a cara de novo para ele, ignorando a fadiga, voltando ao que teria de fazer todos os dias para o resto da sua vida, caso ficasse a tomar conta dele.

- Mark, ao menos por uma vez, opta pela solução mais fácil. A óbvia.

- Ora! Nesta vida? Não estás boa da cabeça.

Enrolou a toalha em redor da cintura e ajudou-a a abrir o sofá-cama. Mais tarde, depois da meia-noite, deixou-se ficar deitada, quieta, naquele colchão de rolamentos instáveis e molas afiadas, atenta a movimentos na escuridão.

Tudo parecia ter ganho vida: o ar condicionado a ligar-se e a desligar-se, pequenos percevejos a deambular pelas paredes, ramos de sangue quente a bater na janela, algo do tamanho de um pequeno automóvel fazendo o reconhecimento das azáleas, insetos a entrarem-lhe pelo ouvido, as suas asas soando à broca do dentista a aproximar-se do seu tímpano. E cada rangido lhe soava ao irmão, quem quer que ele fosse, a esgueirar-se até à sala de estar.

Após um habitual pequeno-almoço de cereais açucarados, Karin levou-o então até North Line Road. O ar da manhã era já escaldante, pronto para ultrapassar os 37 húmidos graus antes do meio-dia. Contudo, Mark vestira as suas calças de ganga pretas.

Não se conseguia habituar às cicatrizes nas pernas e não queria que ninguém pensasse que era assim que ele era. O troço de estrada refulgente parecia quase incaracterístico: pastagens rodeadas de junca e campos cobertos de erva, o raro sinal rodoviário e a árvore enfezada e encruzilhadas batizadas apenas com números. Karin parou o carro a dez metros do acidente.

- É aqui? Tens a certeza de que foi aqui que me despistei e capotei?

Muda, saiu do carro. Ele seguiu-a. Passaram a estrada deserta a pente fino em direções opostas. Podiam muito bem ser um casal em férias, parando para procurar um mapa que fora sugado pelo vento para fora do carro. O local oferecia ainda menos do que quando ela viera com Daniel, nada a não ser a brutal função da natureza, a base de toda a pirâmide, demasiado insignificante e disseminante para causar aborrecimento: uma cobertura verde e rasteira que se estendia até ao horizonte, com um fio de asfalto em fusão por entre ela.

Mark deambulou pela estrada, tão espantado quanto a manada de vacas Simmental no outeiro a 270 metros à sua direita. A única diferença era que as vacas não abanavam a cabeça.

- Em que direção seguia eu? - Ela apontou para Oeste, de regresso à cidade. Fosse qual fosse a prova que ele buscava, esta fora há muito levada por forças empenhadas em apagar a sua vida. - Estás a ver? Não há aqui nada. Eu bem te disse. Foi tudo levado. - Agachou-se e escovou o asfalto com a palma da mão. Por fim, colocou o joelho no chão e sentou-se na inclinada berma da estrada, os braços em redor dos joelhos. Ela aproximou-se dele para lhe pedir que saísse da berma. Ao invés disso, sentou-se ao lado dele, ambos alvos parados para qualquer veículo que passasse mais depressa do que uma ceifeira-debulhadora. Ele ergueu os braços no ar, erguendo o vazio. - Estávamos no Bullet. Lembro-me disso.

- Quem? - murmurou Karin, tentando soar tão inexpressiva quanto ele.

- Eu, o Tommy, o Duane. Dois tipos da fábrica. Música, a banda, creio eu. Estava frio. Eu estava a fazer braço-de-ferro com alguém. E é tudo. Não me lembro de mais nada. Nem sequer me recordo de me meter na carrinha. Nada até estar numa cama de hospital a babar-me. Há quanto tempo foi isso? Semanas? Meses? É como se estivesse preso algures e alguém estivesse a viver a minha vida. - O tom monótono emergia dele, uma fraca imitação de linguagem computorizada.

Ela colocou-lhe o braço no ombro e ele não se afastou ou a repeliu.

- Não te preocupes com isso - disse ela. - Tenta apenas... Ele bateu-lhe no braço e apontou. Uma antiga carrinha Pontiac aproximava-se de Leste. Puseram-se de pé e afastaram-se meio metro da estrada. O carro começou a travar e parou à frente deles com as janelas abertas. Os bancos estavam apinhados de tralha - caixas cheias de roupa, pilhas de pratos, livros, ferramentas, até mesmo um ramalhete de flores de plástico. Atrás, um colchão de encher exibia um cobertor de algodão maltrapilho. Um homem de cerca de setenta anos, feições marcadas, rosto carmesim, inegavelmente winnebago, inclinou-se por cima do banco do passageiro.

- Problemas com o carro?

- Mais ou menos - disse Mark.

- Precisam de boleia?

- Eu preciso de alguma coisa.

O homem winnebago abriu a porta do passageiro. Karin deu uns passos à frente.

- Estamos bem. Não é preciso nada. - O homem examinou-os aos dois e ficou a olhá-los ainda durante um momento antes de fechar a porta e seguir caminho, mais devagar do que um corta-relva com assento.

- Isto faz-me lembrar - disse Mark, não mais depressa que o Pontiac. Ela esperou, mas a paciência não deu frutos.

- O quê?

- Apenas me faz lembrar. - Avançou da berma da estrada para a linha central. Ela seguiu-o. Ele esticou as mãos, recriando o caminho imaginado. - Eu sei que capotei a carrinha. Sei que me operaram.

- Não foi exatamente uma operação, Mark.

- Eu tive uma maldita torneira a sair-me do crânio.

- Isso não é o mesmo que cirurgia ao cérebro.

Ele esticou a palma da mão para a calar.

- Eu digo-te o que mais aquele carro me fez lembrar. Havia mais alguém aqui. Não estava sozinho.

Os insetos começaram a procurar abrigo na pele dela.

- O que queres dizer com isso?

- O que pensas tu que eu quero dizer? Na maldita carrinha. Eu não era o único dentro dela.

- Eu acho que eras, Mark. Sabes, se tu não te lembras de estares dentro da carrinha...

- Bom, tu também não estavas lá! Estou a dizer-te o que sei. Havia alguém sentado na carrinha a conversar comigo. Lembro-me de estar a falar. Recordo-me distintamente de outra voz. Talvez tenha dado boleia a alguém, algures.

- Não havia mais ninguém em lado nenhum perto da tua carrinha.

- Então, quem quer que tenha sido, pegou nas suas perninhas e foi-se embora!

- Se os investigadores tivessem achado quaisquer impressões digitais, teriam...

- Valha-me Deus! Queres saber do que me recordo ou não? Estou a dizer-te do que se trata aqui. De pessoas que aparecem e desaparecem, assim! - Estalou os dedos, com força. - Primeiro estão mesmo aqui, depois já não estão. Na carrinha, cá fora na estrada e logo a seguir ninguém sabe delas. Talvez as tenha deixado algures. Qualquer pessoa nos pode desaparecer, em qualquer altura. Num dia são teus familiares de sangue, no próximo são plantas. - Remexeu no bolso e tirou o amachucado pedaço de papel, a sua única âncora. Os olhos marejaram-se de lágrimas, cegando-o. - Primeiro são anjos, depois não são sequer animais. Anjos que nem tão-pouco admitem que existem. - Lançou o papel ao chão. O vento arrastou-o pela estrada até à berma, onde ficou preso num ramo de painço.

Karin soltou um grito e correu atrás do papel como se perseguisse uma criança que se afastara do seu caminho. Correu direita para a berma, raspando as pernas num arbusto de mimosa da pradaria. Inclinou-se e apanhou a folha de papel, fungando. Virou-se para ele, triunfante. Mark estava imóvel na estrada, voltado para Leste, mas não a escutou. Não desviou o olhar, nem mesmo quando ela se aproximou dele.

- Havia qualquer coisa aqui mesmo. - Girou sobre os calcanhares, descrevendo um semicírculo. - Eu vinha nesta direção, mesmo depois da elevação. - Voltou a virar-se para Leste, acenando com a cabeça. - Qualquer coisa na estrada. Mesmo aqui.

O ânimo de Karin disparou.

- Sim - suspirou ela. - É verdade. Outro carro? Guinando em direcção à linha divisória. Vindo na tua direcção, na tua faixa.

Ele abanou a cabeça.

- Não. Não era isso. Era como uma coluna branca.

- Sim. Faróis...

- Não era um carro, raios! Um fantasma ou assim. Apenas flutuando, coisas a voar. Depois desapareceu. - O pescoço tombou para a frente e os seus olhos abriram-se mais, extraindo-se dos destroços.

Guiou-o de volta ao carro e sentou-o no lugar do passageiro. Fez a mesma conjetura durante todo o caminho de volta a Farview. Cerca de dois quilómetros antes da cidade, exigiu que ela lhe devolvesse o bilhete. Ela quase teve de se pôr de pé atrás do volante para o extrair dos calções demasiado apertados. Leu-o novamente, acenando com a cabeça.

- Sou um assassino - disse ele, quando ela estacionava o carro frente à garagem da Homestar. - Havia uma espécie de espírito-guia na estrada e eu tentei matá-lo.

Com que então, o autor do bilhete não é frequentador de igrejas.

Muito bem. Isso pelo menos já provou. Visitei todas as igrejas não ilegais, mostrei o bilhete a cada crente da cidade e ninguém o reclamou. Está na hora de fazer prospeção por entre os ateus. As pessoas geralmente não sabem isto acerca do Nebrasca, mas está pejado de ateus. Leva Bonnie consigo. Um antigo truque missionário: enviar a mais jovem e sensual rapariga que se tiver. Os cultos vigentes já se aperceberam disto. As pessoas são mais simpáticas com mulheres atraentes e vistosas. Mande uma raposa destas tocar à porta de alguém e uma mulher partirá do pressuposto que não será de certeza uma assassina em série, ao passo que um homem ficará ali a derreter-se, esvaziando os bolsos pela obra de beneficência da sua escolha. Até lê o Livro de Mórmon, se ela sorrir para ele da forma certa.

Partiram os dois juntos, a raposa e as uvas. Como se fossem casados ou assim, coisa que pessoalmente ele não renegaria, se isso significasse as unhas pintadas e as pestanas enroladas regularmente. Por vezes até levam o cão - uma família feliz.

A princípio, Bonnie não fica muito entusiasmada com a ideia, mas não lhe diz que não. Embarcam numa campanha de porta a porta, de bilhete na mão. Um combate casa a casa para fazer emergir o mensageiro escondido por trás da mensagem.

Muitas pessoas conhecem Mark Schluter, ou dizem conhecer. Ele reconhece algumas delas, mas com as pessoas nunca se sabe. Talvez tenha andado na escola com elas, ou trabalhado juntos na IBP ou no seu emprego anterior, não tão lucrativo. A vida numa cidade pequena: pior do que ter a nossa fotografia afixada na estação de correios. Muitas pessoas afirmam que o conhecem, embora não queiram mesmo dizer conhecer. Querem apenas dizer: Oh, o parvalhão sobre o qual lemos no Hub, que teve um acidente e por pouco não saía do estado vegetativo. É muito fácil ler os seus verdadeiros pensamentos apenas pela forma amável como o recebem quando ele e Bonnie tocam à campainha. Pelo menos, quando os mandam sentar, a ele e a Bonnie, e lhes servem as bebidas gasosas, ele pode confirmar as caligrafias delas. Talvez tenham deixado algures algumas cartas para colocar no marco do correio. Talvez uma lista de compras presa ao frigorífico com o pequeno íman da Guerra das Estrelas. Ou então as pessoas fazem uma sugestão patética - um qualquer número de telefone para ele ligar ou livro para ler, e ele pode dizer, Ei, óptima ideia. Importa-se de apontar isso por mim?

Porém, ninguém escreve como no bilhete. Aquela caligrafia extinguiu-se há cem anos, no Antigo País. Toda a gente a quem ele a mostra fica muito calado, como se soubessem que aquelas letras contorcidas apenas poderiam ter vindo do além.

O bilhete está a desintegrar-se, a voltar ao pó. Pede a Duane que o plastifique na fábrica. Ficaria assim uma coisa perpétua, que durasse por todo o tempo que ele precise de o carregar de um lado para o outro. Porém, no início de Agosto, uma coisa estranha começa a acontecer. Há semanas que andam a bater às portas. Ninguém em Farview admitirá o que quer que seja. Farview está portanto eliminada, riscada da sua lista. Quer agora enfrentar Kearney. Podiam ir para as bombas de gasolina da via-rápida ou para o Sino-Mart. Na pior das hipóteses, seriam expulsos da loja. Contudo, Bonnie começa a agir de forma esquisita em relação àquilo tudo. Então, ele começa a tentar tirar partido disso.

- Reparaste em alguma coisa fora do comum? - pergunta-lhe.

- Comum como, Marker?

Ela veste uma blusa branca sem mangas e uns calções curtos, mesmo curtos, e aquele seu cabelo preto liso e aquele umbigo que não param de olhar para ele. Ela é realmente adorável, e é uma espécie de mistério que Mark nunca se tenha dado conta disso de qualquer forma sistemática antes disto tudo do acidente.

- Pouco vulgar. Extraordinário. Reparaste em alguns... bom, digamos, padrões peculiares?

Ela abana a sua bonita cabeça. Ele quer confiar nela, porém ela dá-se um bocadinho de mais com a Pseudo-Irmã para que isso possa acontecer, e aquela mulher conseguiu enganar toda a gente, até Barbara.

- Estás a dizer-me que nenhuma das pessoas com quem falámos... te pareceu sequer estranha?

A pequena gargalhada, como uma caixa de música. Estranha, de que forma?

Ele tem de explicar a coisa de modo a não assustá-la. Ninguém irá acreditar numa coisa que coloque em perigo toda a sua mundivisão. Muito bem, diz-lhe. Muitas das pessoas que abrem a porta quando nós batemos? Não estou a dizer todas. Estou apenas a dizer... algumas... Algumas delas são a mesma pessoa.

- A mesma...? A mesma pessoa que quem?

- Como assim, a mesma pessoa que quem? A mesma que cada uma delas.

- Estás a dizer... Estás a dizer que são... a mesma pessoa que elas mesmas?

Bom, não é uma ciência complicada; nem sequer cirurgia ao cérebro. É uma espécie de conceito simples, na verdade: alguém os tem andado a seguir. Não deviam andar para um lado e para o outro pelas ruas de forma tão óbvia. Deviam ter misturado as coisas um bocado. Foram palermas, previsíveis. Caíram que nem uns patinhos.

- Escuta. Eu sei que isto te vai soar um bocado disparatado. Mas há... há um tipo que está sempre a aparecer.

- A aparecer? A aparecer onde?

- Tu percebes o que eu quero dizer. Segue-nos. De uma casa para outra. E eu acho que sei quem essa pessoa é.

Isto leva-a a dizer um ror de coisas bastante disparatadas. Compreensível: está assustada. Ele também, mas teve mais algum tempo para pensar sobre isso.

Bonnie continua em negação, a negação própria de um principiante: Como poderia alguém andar a seguir-nos? Como é que se introduziriam na casa seguinte, se disfarçavam por completo, e tudo isso antes de lá chegarmos?

Objeções muito pouco convincentes que se dissolvem assim que as examinamos. Porém, Bonnie está perturbada; não quer continuar com as rondas. Ele deveria ter adivinhado que isto ia acontecer. Provavelmente, ela acha que a sua vida corre perigo. Ele tenta explicar: o artista do disfarce está interessado numa pessoa e apenas numa pessoa - Mark Schluter. No entanto, Mark não consegue convencê-la a prosseguir a busca. Talvez até seja melhor assim, afinal de contas. A investigação não deu quaisquer frutos e quem pode dizer quando é que esta caça do gato e do rato não se tornaria violenta? Afinal de contas, até já houve violência. No dia 20 de Fevereiro, para ser preciso.

Prossegue a busca, sozinho. Faz batidas na Biblioteca Pública e na Moraine Assisted Living. Porém, o mais interessante é que poucas pessoas estão dispostas a fornecer-lhe amostras de caligrafia e uma em cada três das que se prontifica a dar-lhas faz-se passar por alguém que não é. O artista do disfarce continua no seu encalço. Alguém que ele não vê há muitos anos. Há um semblante de tristeza nos seus olhos que o denuncia de cada vez que o vislumbra. Como se estivéssemos todos tramados e este rosto solitário e sábio fosse o único a compreender totalmente esse facto. Danny Riegel, o rapaz dos pássaros de Kearney.

Ocorre a Mark: o seu acidente aconteceu mesmo no início da temporada das aves. Claro, podia tratar-se de uma mera coincidência. Mas agora que o senhor Migração começou a segui-lo por todo o lado, tal empresta mais credibilidade a uma teoria mais abrangente. Para além disso: Riegel e a sua irmã falsa andam a roçar os genitais um do outro. É tudo demais. Mark não sabe ao certo o que pensar disto tudo, mas tem de tomar uma atitude em relação a isso, ou então o isso tomará uma atitude em relação a si.

Confronta a Karin artificial. Não tem nada a perder. Está já numa encruzilhada. Espera até que ela apareça na imitação da Homestar com o seu mais recente saco de compras não solicitadas. Depois questiona-a de chofre, antes que ela tenha oportunidade de o confrontar: Diz-me apenas, honestamente, o que é que o teu amigo da natureza anda a tramar?

Não me mintas; já nos conhecemos há algum tempo, certo? Já passámos por situações atribuladas.

Ela fica toda envergonhada, cruza os braços e olha para os sapatos, como se tivesse sido apanhada em flagrante. Não sei ao certo, afirma ela. Estranho, não achas? A forma como ele reaparece sempre na minha vida em diferentes crises? Primeiro quando Cappy morreu, depois a mãe, e agora...

Um pouco estranha a forma como ele reaparece na minha vida. De cada vez que eu tento falar com alguém sobre a minha mensagem do céu?

Ela olha-o fixamente, como um pelotão de fuzilamento. Culpada. Dá então início a uma elaborada manobra para o empatar. A seguir-te por todo o lado? De que estás a falar? Começa a chorar, está a um passo de uma admissão de culpa, mas muda de táctica e fica pior do que inútil. Pega no telemóvel e telefona a Bonnie, tentando sincronizar as histórias com ela. Minutos depois já são duas contra um, com ambas as mulheres a despejar argumentos irrelevantes, a estenderem-lhe o telefone e a dizerem-lhe que é Daniel do outro lado da linha, fala só um bocadinho com Daniel...

Tem de sair daqui, ir para algum lugar onde possa pensar descansado. Conhece um local junto ao rio onde pode sentar-se simplesmente nos charcos e deixar aquelas centenas de quilómetros lamacentos e líquidos varrê-lo. Encaminha-se para Sul, a pé. Desde o Outono que não vem até ao Platte. Tem temido descobrir que alguém adulterou o rio também. Sai de casa sem o seu chapéu e o Sol queima-o. Os pássaros seguem-no de árvore em árvore. Um bando de rabos-de-quilha, espiões animais. Fazem uma barulheira totalmente desnecessária, como se tivessem alguma coisa contra si. As pretensas canções das aves produzem eco na sua cabeça, ca, ca, cata, catatua, catatua, catatua...

E de repente, as palavras estão já ali: as palavras que estava a dizer, mesmo antes de a carrinha voar pelos ares. Catatua. Poderia estar a referir-se a alguma ave. Mas não. Chega à extremidade de River Run Estates, esgueira-se pela orla de sicómoros. Tem à sua frente dois quilómetros e meio de península carregada de moscas negras e pólen, e nada que o proteja dos elementos. O rio recua à medida que ele caminha na sua direcção. O rabo-de-quilha não pára de o incomodar. Catatua, catatua.

Continua.

A força com que a epifania o assola fá-lo estatelar-se sentado num arbusto. O que ele ia a dizer era Continua. Ou alguém lho dizia a ele, na cabina da carrinha. Dera boleia a um anjo, alguém que sobrevivera ao capotamento da carrinha, saíra do destroço pelos próprios pés e regressara à cidade para participar o acidente. E depois seguira-o até ao hospital para deixar o bilhete, instruções para o futuro de Mark Schluter. Um anjo à boleia, dizendo-lhe Continua. Para onde? Em direcção aos destroços; examinar os destroços. Aqui.

Levanta-se, trémulo com a descoberta. No verde queimado do seu campo, emergem pontos negros e a sua visão afunila-se. O seu corpo quer afundar-se, mas ele luta contra o impulso, de pé. Dá meia volta e regressa a Farview, a correr. O seu cérebro explode de atividade como uma brasa espicaçada por um atiçador. Chega à Homestar falsa, dobrado por uma dor de lado. Como é que ficou tão fora de forma? Irrompe pela porta da frente, desejoso de contar a qualquer pessoa, até mesmo a pessoas a quem provavelmente não deveria contar. Uma histérica Blackie Dois quase o derruba, sabendo de antemão, por telepatia animal, desta descoberta do dono. A mulher continua lá em casa, sentada à secretária dele, ao seu computador, como se fosse dona de tudo. Gira na cadeira com um ar culpado, sobressaltada pelo seu regresso inesperado. Mais corada do que o habitual, empurrando a cadeira para trás e desculpando-se: Oh, não estou a fazer nada. A tentar piratear os dados do cartão de crédito dele ou assim. Encerra a sessão rapidamente e vira-se para ele. Mark? Mark, estás bem?

Pergunta inacreditável. Quem é que neste mundo esquecido por Deus é que está bem? Poderá representar a morte, dizer-lhe o que descobriu. Ele poderá ser qualquer pessoa. Ele continua sem a mínima ideia sobre de que lado ela está. Porém, foram ficando mais chegados ao longo destes meses, na adversidade. Ela sente qualquer coisa por ele, disso tem a certeza. Solidariedade ou pena, ao ver aquilo que ele enfrenta. Talvez o suficiente para a fazer romper fileiras e juntar-se a ele. Ou talvez não. Dizer-lhe poderá ser a coisa mais estúpida que alguma vez fez, desde o que quer que seja que fez para perder a sua verdadeira irmã. Mas, por fim, ele quer dizer-lhe. Precisa de lhe dizer. A lógica nada tem a ver com isso. Trata-se sim de sobrevivência.

Escuta, diz ele, excitado. O teu noivo? Namorado, não importa. Vê lá se consegues descobrir o que estava ele a fazer na noite do meu acidente. Pergunta-lhe se a palavra continua lhe diz alguma coisa.

Por um momento, Weber não conseguia encontrar o braço ou ombro esquerdos. Não tinha qualquer noção de se a sua mão estava por cima ou por baixo de si, com a palma para cima ou para baixo, esticada ou encolhida. Entrou em pânico e a aflição congelou-o, colocando-o quase alerta o suficiente para identificar o mecanismo: consciência antes de o córtex somatossensorial regressar por completo do sono. Porém, só quando forçou o lado paralisado a mexer-se é que conseguiu localizar os membros de novo.

Um hotel anónimo num outro país. Outro hemisfério. Singapura. Banguecoque. Uma versão ligeiramente mais espaçosa daqueles hoteis-morgue de Tóquio, com homens de negócios arquivados em gavetas, alugadas à noite. Mesmo quando se recordou de onde estava, não deu crédito à memória. Por que motivo ali se encontrava, desafiava qualquer resposta. Consultou o relógio: um número arbitrário que podia significar quer dia quer noite. Acendeu a hesitante lâmpada ao lado da cama e encaminhou-se para a casa de banho. Um duche quente ajudaria a dissipar esta duradoura sensação de deslocamento. Porém, o seu corpo apenas regressou tentativamente. Nenhum dos bizarros conhecimentos neurológicos adquiridos ao longo da sua vida profissional o perturbava mais do que um dos mais simples: a experiência comum estava simplesmente errada. O nosso sentido de encarnação física não provinha do corpo em si. Várias camadas de cérebro entrepunham-se ainda, remendando a partir de sinais toscos a tranquilizadora ilusão de solidez, de consistência, de unidade.

A água a escaldar correu-lhe pelo pescoço e pelo peito abaixo. Sentiu os ombros relaxar, mas não confiou muito na sensação. Os mapas corporais do córtex eram fluidos, na melhor das hipóteses, e facilmente desmontados. Era capaz de alarmar qualquer estudante pedindo-lhe que enfiasse os braços por dentro de duas caixas com uma janela no final da caixa da direita. A mão do estudante aparecia na abertura. Só que a mão que surgia na abertura não era a mão direita do aluno, mas um reflexo habilmente sobreposto da mão esquerda.

Ao ser-lhe pedido que fechasse a mão direita, o estudante via, através da janela, uma mão que se recusava a mexer. Em vez de chegar à única conclusão lógica - um truque de espelhos -, o estudante sentia quase sempre uma onda de pânico ao acreditar que a mão estava, de alguma forma, paralisada.

Pior ainda: um sujeito que observa uma mão de borracha ser acariciada em sincronia com a sua própria mão escondida continuava a sentir as carícias, mesmo quando o acariciamento da sua verdadeira mão já tinha sido interrompido. E a mão falsa nem sequer precisava de ser muito semelhante a uma mão real, ou mesmo sequer a uma mão. Podia ser uma caixa de cartão ou a esquina de uma mesa, e ainda assim o cérebro interpretá-la-ia como parte do seu corpo. Um sujeito com um parafuso preso à ponta de um dedo incorporaria gradualmente o parafuso na sua imagem corporal, estendendo a sua noção de dedo mais alguns centímetros para além do comum.

A mais pequena deformação podia alterar o mapa. A cada semestre de Outono, Weber pedia à sua sala cheia de alunos que enrolassem a ponta da língua para baixo e depois passassem um lápis da direita para a esquerda ao longo do fundo da língua, agora quase à frente da boca. Todas as pessoas sentiam que o lápis estava por baixo da língua e a passar da esquerda para a direita. Pedia a outros alunos que colocassem óculos com lentes prismáticas até que normalizassem a imagem de um mundo invertido. Quando retiravam os óculos e olhavam para o mundo de novo à vista desarmada, a paisagem real e não filtrada apresentava-se agora de cabeça para baixo.

Regatos ensaboados fluíam por cima da sua barriga e pelas pernas nodosas abaixo. Fizeram-lhe lembrar Jeffrey L., um homem cuja coluna foi esmagada num acidente de motorizada. A mota fizera jeffrey ficar estendido num talude de cabeça para baixo, com as pernas no ar, no momento em que a sua medula foi cortada. Perdeu o uso total do corpo do pescoço para baixo, e deveria ter perdido também toda a sensibilidade. Contudo, Jeffrey continuava a sentir o seu corpo invertido, os pés pairando para sempre acima da sua cabeça. Outro dos doentes de Weber, Rita V., estava sentada com os punhos cruzados quando o cavalo que montava a lançou ao chão. Depois do acidente, viveu para sempre em agonia, desejando apenas endireitar os braços que, na verdade, estavam perpetuamente esticados de cada lado do seu corpo. Outros tetraplégicos relatavam não ter qualquer sensibilidade no corpo, apenas a sensação de existirem como uma cabeça flutuante.

Mais desconcertante ainda eram os membros fantasmas. Nada pior do que a dor excruciante num membro que já não existia, dor ignorada pelo resto do mundo como puramente imaginária - está tudo na sua cabeça - como se houvesse outro tipo de dor. Uma pessoa podia sofrer de sensibilidade persistente em qualquer parte corporal retirada - lábios, nariz, orelhas e especialmente seios. Um homem continuou a sentir erecções no seu pénis amputado. Outro contou a Weber que desfrutava agora de orgasmos grandemente intensificados que se repercutiam pelo pé que não tinha.

Havia depois as guerras de fronteira, os mapas cerebrais da parte amputada invadidos por mapas vizinhos. Algures - só Deus sabia em que livro - Weber descreveu ter descoberto uma mão em larga medida intacta e sensível desabrochando no rosto de um amputado, Lionel D. Quando lhe tocavam na maçã do rosto, Lionel sentia o toque no polegar perdido. Acariciado no queixo, sentia a carícia no dedo mindinho. Ao passar água pelo rosto, sentia um líquido a pingar pela mão perdida abaixo.

Weber desligou o chuveiro e fechou os olhos. Durante mais alguns segundos, tributários de água quente continuaram a fluir pelas suas costas. O corpo intacto era também em si mesmo um fantasma, aparelhado de neurónios como um andaime já montado. O corpo é o único lar que possuímos e mesmo ele é mais um postal do que um local. Não vivemos em músculos e articulações e tendões; vivemos no pensamento e imagem e memória deles. Nenhuma sensação directa, apenas rumores e relatos duvidosos. O zumbido no ouvido de Weber - apenas um mapa auditivo, redisposto para produzir sons fantasmas num ouvido incólume. Podia acabar como um dos seus doentes vítimas de trombose, um braço esquerdo extra, três pescoços, um candelabro cheio de dedos, cada qual sentido discretamente, escondido sob um cobertor de hospital.

E, no entanto, o fantasma era real. Quando era pedido a pessoas com pés amputados que batessem com os dedos dos pés, a parte do seu córtex motor responsável pelo caminhar acendia-se. Até o córtex motor de pessoas intactas se acendia quando simplesmente se imaginavam a caminhar. Ao ver-se a si mesmo a fugir de alguma coisa, Weber sentia o seu pulso acelerar-se, ainda que imóvel na banheira.

Sentir e mexer, imaginar e fazer: fantasmas a sangrar, um para o outro. Durante um momento, não foi capaz de decidir qual era pior: estar encerrado numa sala de paredes sólidas, pensando que estamos do lado de fora; ou ser libertado e poder passar pelas paredes porosas para o azul multiforme...

Sem se embrulhar numa toalha, desligou a luz da casa de banho e avançou na direcção da cama quase às escuras. Sentou-se a pingar numa cadeira estofada. Humilhara-se no estrangeiro. No seu país, na sua terra, esperavam-no centenas de sujeitos, pessoas reais que ele usara como meras experiências do pensamento. Cada uma delas pulsava em si e não podia ser extraída. O mundo não tinha mais lugares, reais ou imaginados, onde ele pudesse humilhar-se.

Encontrou uma descrição na Internet, em casa de Mark, num sítio intitulado A Enciclopédia Livre do Povo. O sítio parecia respeitável, com notas de rodapé e citações, mas preparado em público, por voto comunitário, deixando-a tão duvidosa como sempre.

SÍNDROME DE FREGOLI: uma de um raro grupo de síndromes de identificação errónea na qual o doente está convencido de que várias pessoas diferentes são na verdade uma única pessoa que muda de aparência. A síndrome foi baptizada com o nome de Leopoldo Fregoli (1867-1936), um mágico e mimo italiano cuja capacidade para mudar de aparência e de voz rapidamente assombrava o público...

À semelhança da síndrome de Capgras, a de Fregoli envolve alguma ruptura na capacidade de categorizar rostos. Alguns investigadores sugerem que todos os delírios de não-identificação poderão existir dentro de um espectro de anomalias familiares partilhadas pela consciência normal e não patológica...

Contou-o a Daniel durante o jantar num restaurante chinês. Obri-gara-o a sair essa noite, pois precisava de sair da cela de monge dele e de falar em público. Aperaltara-se e até pusera perfume. Contudo, esquecera-se dos problemas de logística, que começaram assim que o cardápio foi parar às mãos de Daniel. Daniel a jantar fora: como um pastor calvinista numa rave. Abanou a cabeça, assobiando.

- Oito dólares por um prato de carne e brócolos? Acreditas, K? - A entrada era o líder do prejuízo do restaurante. Ela comeu tudo e ficou à espera. - Oito dólares é muito dinheiro para o Refúgio dos Grous.

Com subvenções equivalentes e uma boa gestão, podiam comprar e isolar seis centímetros quadrados de terra de cultivo periférica. A empregada veio informá-los dos pratos especiais daquela noite. A lista de peixe, carne e aves chacinadas crucificou Daniel.

- Esta “beringela chinesa” - perguntou à inocente rapariga, - sabe por acaso como é preparada?

- Vegetariana - assegurou-lhe a empregada, como o menu anunciava.

- Mas a beringela é frita em manteiga? Usam gordura de leite na preparação?

- Posso tentar saber - baliu a empregada.

- Seria possível trazer-me apenas um prato de vegetais às rodelas? Cenouras cruas, pepino? Esse tipo de coisa?

Karin não pensara ao sugerir uma saída e ele não pensara ao concordar. A carne de vaca e brócolos pareceram-lhe um sonho, uma cura para a sua crescente anemia devido a alimentos integrais. Semanas a viver com Daniel tinham-na deixado debilitada. Espreitou para ele por cima do cardápio, a empregada em redor dele. O rosto dele parecia tranquilo, como um animal a ser conduzido rampa acima até à pistola das descargas eléctricas. Ela pediu o tofu com massa chinesa.

Esquecera-se de como ele era em locais como este, locais de que o resto do mundo civilizado dependia. Quando a empregada lhe trouxe o pepino às rodelas, ele limitou-se a empurrá-los de um lado do prato para o outro com o garfo, argumentando com ela.

- Não parece possível que ele sofra de ambas as doenças - referiu ela. - Quero dizer, a síndrome de Capgras tem a ver com subidentificação. A de Fregoli parece-me exactamente o oposto.

- O melhor se calhar é termos cuidado com o autodiagnóstico.

- Auto... ? O que queres dizer com “auto...”?

- Somos leigos. Tu e eu não estamos qualificados para o diagnosticar. Precisamos de voltar ao Good Samaritan.

- A Hayes? Ele insultou-me praticamente, da última vez. Daniel, deixa-me que te diga, estou um pouco surpreendida. Desde quando é que tu defendes a Medicina organizada? Pensei que eram todos curandeiros. “Os nativos americanos esqueceram mais Medicina do que a tecnologia ocidental descobriu até agora.”

- Bom, isso é basicamente verdade. Mas eles não tinham muitos acidentes rodoviários, na altura em que as Primeiras Nações descobriram a sua Medicina. Se conhecesse algum nativo americano com experiência em lesões cerebrais, recomendá-lo-ia antes de qualquer um com quem falaste.

Não mencionou Gerald Weber pelo nome. Não precisava. Daniel antipatizara irracionalmente com o neurologista, mesmo sem sequer o ter conhecido.

- Tenho de dizer ao dr. Weber - aventou Karin. Queria dizer que já lhe tinha escrito.

- Tens? - Daniel foi ficando ditosamente calmo. Como se estivesse a meditar.

- Bom, ele é um dos maiores... - Pensando melhor, talvez não fosse. Talvez fosse apenas famoso. Não exactamente a mesma coisa. - Prometi que o avisaria se Mark mudasse. - Daniel mudara; tal como os amigos de Mark. Ela mesma se alterara, mais do que qualquer um deles.

Daniel examinou as pontas dos dedos.

- Há alguma desvantagem em contactá-lo?

- Para além de mais humilhação e desilusão?

A empregada veio saber como estava a comida.

- Óptima - respondeu-lhe Daniel, sorrindo.

Depois de ela ter virado as costas, Karin perguntou:

- Andámos na escola com ela?

Daniel sorriu por um dos cantos da boca.

- Ele é dez anos mais nova do que nós.

- Não acredito! Achas que sim?

Comeram em silêncio. Por fim, ela confessou:

- Daniel, estou a fazê-lo piorar.

Ele objectou nobremente; era a sua função. Mas todas as provas o contradiziam.

- A sério. Acho que a tensão de me ver todos os dias, de não ser capaz de me reconhecer... Está a despedaçá-lo. Não fui capaz de fazer praticamente nada por ele. E agora começa a exibir novos sintomas. Sou eu. A minha presença está a transtorná-lo. Estou a torná-lo...

Daniel exercitou toda a sua calma nela, mas o seu estado alfa começava a vacilar.

- Também não sabemos como ele teria ficado se tu não tivesses estado aqui todo este tempo.

- A tua vida seguramente que teria sido mais simples, não teria? - Ele voltou a sorrir, como se ela tivesse acabado de dizer uma piada.

- Mais vazia - corrigiu ele.

Vazia como ela se sentia. Vazia como todos os gestos dela acabavam por ser. Passou os dentes do garfo pelos fios de massa, como uma gadanha.

- Sabes o que é ainda mais estranho? Ele não acha que eu seja ela; e nunca irá acreditar que eu sou ela. Por isso, se eu me fosse simplesmente embora, parasse de o torturar, arranjasse um emprego, começasse a tentar saldar as minhas dívidas, não seria como se ela o estivesse a abandonar. A irmã dele. Nunca me atiraria isso à cara. Até comemoraria o facto!

Ela vislumbrou o brilho que perpassou pelo olhar dele antes que tivesse tempo de o reprimir. Estava a assustá-lo. Arrastá-lo-ia, também, para a sua loucura. Estava a fazer a Daniel o que Mark lhe estava a fazer a si. Em breve não passaria de uma estranha para ele. E depois para si mesma. Também para Daniel seria melhor que ela saísse de cena.

Ele abanou a cabeça, maravilhosamente seguro, certo.

- Não seria ele o sinistrado.

- O quê? Ficar por mim mesma? - A pior razão imaginável. As palavras empurraram-na milhões de quilómetros para longe dele, para um planeta sem oxigénio. - Estás preocupado - acrescentou ela. Ele voltou a abanar a cabeça, um pouco triste. - Estás - acu-sou-o ela, tentando brincar com ele. - Li num dos meus livros sobre o cérebro que as mulheres são dez vezes mais sensíveis a detectar os estados internos alheios do que os homens.

Daniel parou de importunar um pimento partido ao meio e pousou o garfo.

- Estávamos a falar sobre ti - referiu. - Sobre Mark...

- Adoraria discutir outra coisa qualquer por algum tempo.

- Bom, tenho andado a pensar... Têm sido uns dias estranhos no Refúgio. Mas sinto-me estranho a falar de uma coisa tão... ao mesmo tempo que enfrentamos...

- Fala. - E malgrado a ténue sensação de traição que ela sentia, ele falou.

O Refúgio, contou ele, avançava a passos largos para uma disputa. Durante anos, a combinação de vários grupos ambientais havia mantido honesta a gestão do rio, ameaçando invocar a Lei das Espécies Ameaçadas se as exigências sobre o Platte fizessem descer o nível das águas abaixo dos níveis necessários para suportar vida selvagem. Essa ameaça deixara de fazer sentido após o estabelecimento de quotas ambientais - níveis de água garantidos e reservados para a vida selvagem pelos três estados que dependiam do rio.

Porém, agora, o precário esquema de intercâmbio de direitos hídricos começava a vacilar. O sistema de bacias de recarga de Inverno já não abarcava todos os grupos que queriam beber do curso de água. Na mais recente ronda de negociações, o Refúgio conseguira alienar toda a gente menos os grous.

- Perseguem-nos de todos os lados. Estive no rio ontem, a oeste da velha ponte por onde passavam as carroças. Desde os seis anos que atravesso aqueles campos. De repente, vejo um agricultor vir na minha direcção por um carreiro. Calças de ganga, botas altas para a lama, camisa de trabalho e espingarda ao ombro, como se fosse uma raqueta de ténis. Chega-se ao pé de mim, esboça um sorriso e diz: “Você faz parte daquelas pessoas que andam a tentar salvar aquelas malditas aves, não faz? Faz alguma ideia dos estragos e do prejuízo que esses malditos pássaros provocam?” Comecei a andar mais depressa, para evitar problemas, e ele começa a gritar: “Os americanos demoraram centenas de anos a transformar esta terra pantanosa em magníficas quintas. E vocês querem transformar isto num pântano de novo. Se fosse a si tratava de arranjar protecção. Tenha cuidado. Olhe que é do seu interesse.” Acreditas? O homem teve o desplante de me ameaçar com as letras todas!

- Eu acredito - disse ela. - Há anos que te aviso.

Ele soltou umas risadinhas, os estalidos de um esquilo.

- Ter cuidado?

- Nem toda a gente concorda em colocar as aves à frente das pessoas.

- Aquelas aves são a melhor coisa que este lugar tem. Seria de esperar que as pessoas se apercebessem disso. Mas não: todos os acordos locais que levámos uma década a conseguir estão a desmoronar-se. A Barragem de Kingsley viu a sua licença renovada por mais quarenta anos. É de loucos! Devias vir trabalhar para nós, K. Precisamos de um combatente. Precisamos de toda a gente que conseguirmos.

- Sim - respondeu ela, e desta vez quase com intenção.

- É como te digo, a ganância já chegou a todo o lado, é incontrolável. O Conselho de Desenvolvimento prostitui-se por este novo consórcio de construtores. Prometeram que não haveria nem um edifício novo. Foi por isso que lutámos, e ganhámos. Uma interrupção no desenvolvimento em larga escala durante dez anos. Estão a vender-nos, como se fôssemos os novos pawnee.

- Consórcio? - Karin empilhou os cubos de tofu em pirâmides no prato. Sabia a quem ele se referia, sem que ele o dissesse. E ele sabia que ela iria fazer aquela pergunta, antes de ela a colocar.

- Uma matilha de homens de negócios locais. Por acaso não saberás... ? Não ouviste nada em relação a isto, ou ouviste? - Perscrutou-a com um olhar duvidoso.

- Nada. - Karsh. - Deveria ter ouvido?

Encolheu os ombros e abanou a cabeça, apologético.

- Sabemos que há investidores envolvidos, mas não sabemos quais os seus interesses. Têm algumas parcelas debaixo de olho para um novo projecto. Uma extensão de terreno aberto perto do rio. Conseguimos impedi-los há dois anos. Salvámos 18 hectares das garras deles. Estão a preparar-se para a guerra outra vez, agora que sabem que estamos falidos. Convocaram uma reunião do Conselho de Desenvolvimento para depois das eleições de Novembro.

- E o que querem eles? - Sacudiu a toalha da mesa com a mão.

- Até agora têm mantido as cartas na manga. Têm primeiro de abordar a questão do uso da água antes de mostrarem as cartas e revelarem que terras pretendem.

- O que sabes sobre eles? - quis ela saber, quase fortuitamente, mas a pergunta não escapou a Daniel. - Quero dizer, quantos são eles? Que recursos financeiros têm?

- Ao que parece são três organizações diferentes. Duas de Kear-ney e uma de Grand Island. O que quer que seja que estejam a tramar, é em grande escala.

- Grande o suficiente para constituir um problema?

- Têm a frente ribeirinha em mira. E seja o que for que aí construam, irá aumentar o consumo de água. Cada copo que sair daquele rio significa uma redução do fluxo e encorajará a invasão da vegetação sobre as áreas de paul. As aves...

- Sim - confirmou ela por antecipação. Não suportava ter de ouvir a história toda outra vez, pelo menos naquele momento. - Então, como é que o Refúgio pretende contra-atacar?

- Temos de preparar uma estratégia, mais ou menos em segredo. - Ele observou-a e por um terrível momento Karin pressentiu que ele estava a calcular a sua lealdade. O mais próximo de uma acusação que podia estar, sem a acusar propriamente. - Vamos formar uma espécie de consórcio: o Fundo de Defesa Ambiental, o Refúgio e o Santuário. Se conseguirmos formar um fundo de reserva partilhado, poderemos conseguir fracções estratégicas de terreno e tentar bloquear qualquer aquisição de maior extensão por parte dos investidores. É claro que nunca conseguiríamos levar-lhes a melhor numa hasta pública. Porém, se assegurarmos alguns terrenos chave, uma pequena faixa nas áreas mais prováveis, antes de as guerras dos lances e ofertas começarem... Tem de ser Farview. Algures em redor de Farview. A melhor terra por desenvolver fora de Kearney. - O nome da cidade de Mark fê-la emergir do seu devaneio. - Como de costume, são as aves que sofrem - declarou Daniel. - Nos mitos, os deuses estão sempre a tramar as aves. Porquê parar agora?

A empregada regressou, cedo de mais.

- Como está tudo por aqui?

- Está tudo muito bem - salmodiou Karin.

- Como estão os seus legumes? - perguntou a empregada a Daniel.

- Estupendos - respondeu ele. - Frescos.

- Tem a certeza de que não quer que lhe traga outra coisa qualquer? Uma coisa mais...?

Daniel sorriu.

- Obrigado. Estou bem assim.

Seguiu a empregada com os olhos à medida que esta se afastava. Quando outra criada de mesa veio servir-lhes mais água, Daniel disse desculpe em vez de obrigado.

Uma enorme represa de humilhação rompeu-se naquele instante e as antigas águas aí contidas submergiram Karin. A sua coluna tornou-se num salgueiro. Os punhos repousavam sobre o colo como pedras.

- De qual gostas mais? - inquiriu ela.

- Qual quê?

- Tu sabes. A primeira ou a segunda?

Sorriu para ela e abanou a cabeça, um modelo de inocência evasiva.

Ela olhou fixamente para o vazio, o seu rosto cor de cobre a condizer com o cabelo.

- Preferias estar noutro sítio qualquer?

Ele tentou continuar a sorrir, apesar de tudo.

- O que queres dizer com isso?

Ela admirou a coragem dele, por mais transparente que fosse a negação. Sorriu de volta, voltagem máxima.

- Conseguirias coisa melhor, não é? - As palavras subjugaram-no. Baixou os olhos na direcção do prato, para os legumes espalhados.

- Karin. Por favor, não vamos... Pensei que não voltaríamos a este assunto.

- Também eu pensei o mesmo. - Até ele ter duvidado.

- K. Não sei o que... o que achas que terás visto...

- Achar? Achar que vi?

- Juro-te, esse pensamento nunca atravessou a minha cabeça.

- Que pensamento?

Ele voltou a inclinar a cabeça, como uma daquelas criaturas tipo fadas que acumulam mais força vital encolhendo-se e recebendo os golpes.

- Qualquer pensamento.

Ela podia ainda fazer qualquer coisa: rir-se daquilo tudo, crescer. Dominar-se. Ou fazê-los mergulhar de volta no pior pesadelo de ambos. Um frémito vertiginoso percorreu-lhe a coluna.

- Ela é de facto um belo pepino. “Fresca”. E a que nos veio servir a água também. Ambas deliciosas. É tua noite de sorte. Duas pelo preço de uma. Um óptimo negócio.

- Não estava às compras. - Tentou olhá-la nos olhos sem desviar o olhar, mas a centelha de mágoa atingiu-o também. Toda a história entre eles.

Ela igualou-o em termos de calma.

- Apenas a ver as montras?

Ele ergueu as palmas das mãos no ar.

- Não estava a olhar. O que é que eu fiz? Fiz alguma coisa errada? Disse alguma coisa que te magoou? Se assim foi, estou sinceramente...

- Está tudo bem, Danny. Eu consigo aceitar o facto de os homens e os machos de outras espécies estarem geneticamente programados para a variedade. Cada homem tem de inspeccionar a mercadoria disponível no mercado. Isso não me incomoda. Gostava apenas... Não! Por favor, não!... Gostava apenas que reconhecesses isso.

Ele empurrou o prato para a frente e cruzou as mãos frente à boca, um conselheiro de orientação ou um padre. Pousou a testa sobre as mãos.

- Escuta. Desculpa. O que quer que te tenha feito mesmo agora que te possa ter magoado, peço desculpa.

- Agora mesmo? Não consegues dizê-lo, pois não? Não consegues admitir que estavas simplesmente a apreciá-la. A ambas. Eu nem sequer quero que te desculpes por isso. Seria apenas simpático se ao menos uma vez conseguisses admitir que estavas meramente a imaginar...

Deixou cair a cabeça para trás. Palavras antigas emergiram dele, tão antigas como aquelas com que ela o tinha atacado.

- Eu admitiria, se isso fosse o que eu estava a fazer. Nem sequer a vi. Nem sequer sou capaz de te dizer como ela era.

A irrelevância submergiu-a, a futilidade daquela troca de palavras. Ninguém se importava realmente com a forma como o mundo se apresentava para os outros. Ela sentiu uma profunda necessidade de quebrar tudo o que simulasse, que alegasse ligação. Viver neste vazio, nesta falsidade, onde a lealdade liderava sempre. O amor não era o antídoto para a síndrome de Capgras. O amor era uma forma da doença, fazendo e negando outros, ao acaso.

- Já te esqueceste? Olha outra vez!

Desta vez, as palavras saíram-lhe por entre os dentes cerrados:

- Não sou esse tipo de homem. Disse-te o mesmo há oito anos. Disse-to há cinco. Não acreditaste em mim nessa altura. Mas estava à tua espera quando voltaste. Estou contigo. Sempre estive e sempre vou estar. Contigo e com mais ninguém. Não estou à procura. Já encontrei.

Esticou o braço por cima da mesa para lhe pegar na mão. Ela encolheu o braço, derrubando o garfo e espalhando tofu.

- Comigo? Com os teus olhos ainda por todo o lado? A qual é que te referes? - Olhou em redor, envergonhada consigo mesma. Todo o restaurante evitava olhar para eles. Ela virou-se de novo para ele e chilreou: — Tudo bem, Daniel. Não estou a julgar-te. És quem és. Se apenas concordasses em dizer-me...

Ele puxou o braço de volta.

- Não devíamos ter saído para jantar. Devíamo-nos ter lembrado do que sempre... - Ela arqueou as sobrancelhas ao escutar a admissão. Ele inspirou, tentou recuperar o autocontrolo. - Um dia saberás para o que olho. Sempre. Confia em mim, K...

Ele soou-lhe tão assustado que a afligiu. Nesse momento sentiu o apelo profundo de Robert Karsh, um homem sem um décimo do idealismo de Daniel. Karsh, de todos os homens com quem ela alguma vez estivera, tinha pelo menos a decência de dizer para que mulher estava a olhar. Sem ilusões. Pelo menos Karsh nunca nem uma vez se enganou a si mesmo sobre ser totalmente dela. Karsh, sempre à coca. Karsh, o implacável investidor.

Ficaram sentados, empurrando o que ainda tinham nos pratos, corados de vergonha. Mais palavras apenas serviriam para clarificar. As pessoas nas mesas vizinhas devoraram a sua comida, pagaram e saíram. Ela ansiava por mudar de assunto, fazer de conta que não dissera nada.

A dúvida formou uma pequena crosta sobre a ferida, que ela arranhou. Queria apenas deitar tudo abaixo, esvaziar a paisagem, fugir para algum lugar vazio e verdadeiro. Mas não existia nenhum lugar verdadeiro; apenas uma breve miragem, seguida de uma longa e humilhante auto-justificação. Regressaria com este homem esta noite para a sua cela de monge. Ele era o seu amante, o seu companheiro. A promessa actual e eterna deste ano. Ela não tinha outra cama, mais nenhum local ao qual regressar, e ainda assim estar perto do irmão, o irmão perto do qual provavelmente não deveria estar.

- Peço desculpa - disse ela por fim. - Acho que estou a ficar doida.

- Não faz mal - respondeu ele. - Não tem importância.

Tudo importava. A empregada regressou, ainda a sorrir, mas circunspecta. Toda a gente os conhecia, agora.

- Posso tirar-vos isto da frente ou estão ainda...?

Daniel estendeu-lhe o seu prato meio vazio, desviando o olhar da Medusa. A contorção apenas confirmou o que Karin suspeitava, tornou as coisas mais lamentáveis. Quando a rapariga se foi embora, ele virou todo o seu empenho para Karin, desesperado por exibir uma decência que até mesmo ela teria de ratificar.

- Precisamos de contar ao dr. Weber sobre Mark. Estamos em território desconhecido. - Karin acenou com a cabeça, mas não conseguiu olhar para ele. Tudo o que era antigo, novo outra vez.

Por fim de regresso ao seu canto do globo, o seu ninho nas margens de Conscience Bay, Weber aterrou. Sylvie estava firme e resoluta, como é óbvio, verdadeiramente indiferente ao que qualquer pessoa, à excepção da filha de ambos, pensava deles. O julgamento público significava tanto para ela quanto o correio não solicitado. No que dizia respeito a Sylvie, o consenso era a ilusão. “Não conseguimos pensar com clareza sozinhos, quanto mais em grupos de dois ou três. E tu queres que eu confie no mercado? Vejamos o que eles têm a dizer sobre ti daqui a vinte anos.”

O destino do Famoso Gerald preocupava-a menos do que a epidemia de escândalos empresariais: Enron, WorldCom - a mega fraude de milhares de milhões de dólares do mês. Ela leu-lhe as últimas afrontas durante o pequeno-almoço.

- Caramba, Marido. Consegues acreditar no que está a acontecer? Vivemos na era do hipnotismo em massa. Enquanto continuarmos a bater palmas e a acreditar, os capitães da indústria tomarão conta de nós.

Ele estava grato pela distracção, pela sua justa raiva com a decepção empresarial. Estava determinada em não fazer a vontade ao seu nervosismo. E, no entanto, uma parte dele melindrava-se com a indiferença dela, sentia-se ofendido por ser preterido em favor dos escroques empresariais. Ofendia-se por, temperamentalmente, ela não ser abalada pelo súbito e sumário julgamento que se fazia dele.

Começou a ver as suas classificações na Amazon de cada vez que acedia à Internet. Cavanaugh mostrara-lhe essa característica, nos bons velhos tempos. Weber queria confrontar-se com a realidade. Os críticos possuíam um interesse profissional que o leitor privado não tinha. Contudo, as classificações do público eram muito variadas.

Uma estrela: Quem é Que este Tipo Pensa Que é? Cinco estrelas: Ignore os Cépticos; Gerald Weber Consegue-o Mais Uma Vez. O elogio era pior do que o veneno. As respostas multiplicavam-se, como as serpentes que se contorciam na cave da casa da sua família no pesadelo recorrente da sua infância. Uma vintena mais de cada vez que as consultava. De alguma forma, quando ele não estava a olhar, o pensamento privado dava lugar a classificações de grupo perpétuas. A era da reflexão pessoal terminara. A partir de agora, tudo seria regateado em rixas públicas. Programas de rádio com participações telefónicas, grupos de discussão de cada vez que alguém se mexesse. LeãoToIstoi: 4.1. Charles Darwin: 3.0.

E no entanto, de cada vez que se desligava, repugnado pelas implacáveis avaliações, dava de imediato por si a querer ir verificar de novo, para ver se a próxima resposta poderia apagar a última rejeição pouco inteligente. Comparava os seus resultados com os de outros escritores aos quais era aglomerado. Estaria sozinho nesta retaliação? Quem era o mais querido do momento; Quais dos seus colegas haviam também sido derrubados? Como é que o público conseguia mudar de rumo numa tal perfeita sincronia, como se respondesse a um sinal?

Não fizera nada desta vez que não tivesse já feito pelo menos duas vezes. Talvez fosse esse o problema: não conseguira alimentar o insaciável apetite colectivo pela novidade. Ninguém queria ser recordado de entusiasmos passados. Tornara-se num ícone de uma década anterior. Agora teria de pagar por toda a sua aclamação prévia.

E aí estava a cruel ironia. Quando ele começara, aos trinta e poucos anos, a sua escrita não fora para ninguém. Uma mera reflexão, uma carta para Sylvie. Palavras para a pequena Jess, para quando ela crescesse. Apenas uma forma de compreender o seu campo de estudo de forma um pouco mais humana, com mais algumas ligações, aquelas ténues especulações proibidas pelo empirismo, aquilo que a ciência procurava na verdade, mas não se atrevia a admitir. Apenas algo para refrescar as suas susceptibilidades a cada noite. O cérebro humano devaneando sobre si mesmo.

Apenas o entusiasmo de alguns amigos chegados aos quais mostrara os excertos o havia convencido de que talvez houvesse público para tais dissertações. A aprovação pública não significava nada, até a conseguir. Agora, a mera ideia de perder a sua audiência enchia-o de vergonha. O que começara como uma coisa secundária, tornara-se definitivo, uma definição que desaparecia no momento em que ele nela acreditara. Tinha apenas 55 anos. Cinquenta e seis. Como é que preencheria os próximos vinte anos? Havia o laboratório, é claro. Mas durante muito tempo, pouco mais fora aí do que um administrador. A maldição da ciência bem sucedida: os investigadores decanos tornavam-se inevitavelmente angariadores de fundos decanos. Não podia passar as próximas duas décadas a angariar fundos.

A maior parte das descobertas da neurociência haviam sido feitas desde que Weber começara a sua carreira como investigador. A base de conhecimentos sobre a qual se trabalhava duplicava a cada década. Era sensato pressupor que tudo o que era possível saber sobre as funções cerebrais estaria descoberto por volta da altura em que os seus actuais alunos se reformassem. A cognição encaminhava-se para a sua principal façanha colectiva: compreender-se a si mesma. Que auto-imagem ficaria de nós, à luz de todos os factos? A mente poderia não suportar a sua autodescoberta. Talvez nunca estivesse preparada para saber. O que faria a nossa raça com o total conhecimento de si mesma? Que nova criatura construiria o cérebro humano, para ocupar o lugar dela? Alguma estrutura nova, mais eficiente, despida do seu antigo lastro...

Dava longos passeios em redor do lago do moinho, até começar a cruzar-se com vizinhos simpáticos. Levava o barco até Conscience Bay. A embarcação estivera tanto tempo deitada de cabeça para baixo no pátio, que um opossum fizera o ninho por baixo dela. Confundido pela luz do dia, o animal guinchou em jeito de ameaça ao ser descoberto. Ao longo do braço de rio que conduzia à baía, flutuando ao sabor da corrente, sentiu o vento dirigir o barco à sua vontade. Envergonhara a mulher e a filha em público. Tornara-se num assunto de chacota.

Não fizera nada de mal, não cometera qualquer fraude consciente ou erro sério. Podia ainda exibir trinta anos de investigação conceituada, um minúsculo pedaço do empreendimento culminante da espécie. Apenas a sua tentativa de popularizar essa ciência é que, de algum modo, correra mal. Para sua surpresa, apercebeu-se de como se sentia: desonroso, apanhado em alguma infidelidade.

Setembro chegou, esse sombrio primeiro aniversário. Que importância tinha um revés privado face a tal trauma partilhado? Tentou recordar o terror generalizado do ano anterior, ao ligar o rádio e descobrir que o mundo ruíra. A força estava intacta, embora os pormenores tivessem desaparecido.

A sua memória estava seguramente a piorar. Até coisas simples: os nomes dos seus alunos. Uma cantiga que conhecera desde a infância. As palavras de abertura da Declaração de Independência. Ficava obcecado com a recuperação dessa memória, provando a si mesmo que não havia nada de errado, o que tornava o bloqueio ainda pior. Não disse nada a Sylvie. Ela ter-se-ia limitado a zombar do facto. Nem sequer mencionou os acessos de depressão. Ela apenas teria arranjado desculpas para ele. Talvez houvesse alguma coisa errada com o seu eixo hipotalâmico-pituitário-adrenal, algo que poderia explicar todo este descontrolo emocional. Pensou autoprescrever-se uma dosagem baixa de Deprenyl, mas o orgulho e os escrúpulos impediram-no.

Nos últimos dias do mês, quando mesmo Bob Cavanaugh desistira do livro e parara de telefonar, foi publicado um conto no The New Yorker, onde Weber publicara de vez em quando as suas próprias meditações. O autor era uma mulher na casa dos vinte, aparentemente conhecida, e bem para lá do que quer que fosse que viesse depois do fixe. A composição de duas páginas, intitulada “Dos Ficheiros do Dr. Lobofrontal”, assumia a forma de uma série de histórias na primeira pessoa contadas pelo neurocientista que as examinara. A mulher que usava o marido como abafador para o chá. O homem que acordara de um coma de quatro décadas com o impulso de acreditar piamente nos políticos que elegera. O homem que desenvolvera múltipla personalidade para usar a faixa para veículos com mais de um passageiro. Sylvie riu-se do conto.

- É afectuoso. E, de qualquer forma, não é sobre ti, Marido.

- É sobre quem?

Alargou as narinas.

- É sobre pessoas. Conjuntos infinitamente peculiares de sintomas ambulantes. Sobre todos nós, no fundo.

- Está a rir-se de pessoas com défices cognitivos? - Soou ridículo, até para si mesmo. Teria sugerido que tirassem umas férias, só que tinham acabado de o fazer.

- Sabes bem do que se está a rir. Daquilo que a comédia sempre se ri. Assobiar ao passar pelo cemitério. Ninguém quer acreditar que somos o que vocês dizem que somos.

- Nós?

- Sabes a que me refiro. Vocês, os estudiosos do cérebro.

- O quê ao certo é que andamos a dizer que ninguém quer escutar? Nós, os estudiosos do cérebro?

- Oh, os mecanismos internos. Os objectos podem estar mais perto do que parecem. O equipamento poderá dar resultados inesperados. Nenhuma garantia por escrito ou implícita. Tudo o que sabemos está errado.

Nessa noite, recebeu outra mensagem de correio electrónico do Nebrasca. Vinha no mesmo lote de mensagens de amigos e colegas que queriam, com toda a negável agressão do bom-humor, esfregar-lhe o nariz no conto do The New Yorker. Saltou para a mensagem de Karin Schiuter, recordando-se mais uma vez de que não respondera às tentativas de contacto por parte dela no início daquele Verão. Os críticos tinham razão. Mark Schiuter deixara de existir assim que deixou de poder fazer o que quer que fosse por Weber.

As notícias de Karin electrizaram-no. O irmão dela acreditava agora que alguém o seguia, sob uma variedade de disfarces. Mark estava a reunir uma lista de pormenores documentados que provavam que toda a sua cidade de Farview fora substituída entre a noite do seu acidente e o dia em que emergira do coma, com o objectivo expresso de o enganar.

Weber tinha acabado de se deparar com um caso, descrito na literatura clínica, ocorrido na Grécia, logo na Grécia de todos os locais míticos, descrevendo a coexistência das síndromes de Capgras e Fregoli num mesmo doente. Algo verdadeiramente extraordinário estava a acontecer a Mark Schiuter. Um novo e sistemático exame médico poderia deitar alguma luz sobre processos mentais que não eram nem sequer deficientemente compreendidos, processos esses que apenas este devastador défice poderia revelar. Todas as coisas que ninguém quer escutar.

Ao mesmo tempo que este pensamento tomava forma na mente de Weber, foi acometido por outro. Gerald Weber, oportunista neurológico. Violador de privacidade e explorador de espectáculos de aberrações. Não conseguiu decidir qual seria pior: seguir estas novas complicações ou deixar este apelo repetido desvanecer-se. Estas pessoas haviam pedido ajuda, e ele entrara na história delas. Depois esquecera-as. Ela continuava em dificuldades, continuava a esperar que ele os ajudasse. A única coisa que prescrevera - terapia comportamental cognitiva - parecia estar a tornar a coisa pior. Mesmo que Weber não pudesse fazer mais nada, estava obrigado a pelo menos escutar e prestar atenção.

A mensagem de Karin Schluter não fazia quaisquer pedidos evidentes. “Não é minha intenção pressioná-lo, em especial depois de não ter notícias suas desde Julho. Porém, escutei a sua entrevista na rádio, e tendo em conta o que referiu acerca da plasticidade do cérebro, achei que quereria ao menos saber o que se está a passar com Mark.” Desviou os olhos do monitor, em direcção à janela, para o vetusto bordo que - quando? - adquirira os tons amarelos de um pintassilgo em Maio. O Nebrasca na época das colheitas: o último lugar da terra onde queria ir. Qual era a palavra para medo despropositado de espaços abertos e ondulantes?

Apenas mais escrita o poderia salvar. Um relato concentrado, publicado ou não. Um que pudesse redimir o que quer que tivesse arruinado com o último. Não a história de um caso: uma vida. Poderia assegurar, de antemão, a boa vontade de todos os envolvidos. Podia recriar Mark Schluter, nada de compósitos, nada de pseudónimos, nada de pormenores aos quais dera lustro, nada de se esconder por trás dos aspectos clínicos. Apenas a história de um abrigo inventado, a luta amedrontada para construir uma teoria grande o suficiente para acomodar o ser humano.

Contou os seus planos a Sylvie na noite seguinte depois de jantar, enquanto lavava a louça. A conversa parecia um déjà vu, mas ele nunca imaginara que o anúncio a aborrecesse.

- De volta ao Nebrasca! Estás a falar a sério? Da última vez não vias a hora de voltar para casa.

- Será só por um par de semanas, ou assim.

- Duas semanas! Não entendo. Soa-me a... uma reviravolta completa.

- Acho que o Director de Viagem quer que eu faça isto.

Ela estava a tirar os copos do escorredor, a limpá-los lentamente e a guardá-los nos locais errados.

- Contavas-me se te estivesse a acontecer alguma coisa, não contavas?

Ele fechou a torneira da água quente.

- A acontecer? Como assim? - O que poderia ainda acontecer, nesta vida?

- Qualquer coisa... Quaisquer grandes alterações. Se alguma coisa estivesse verdadeiramente a perturbar-te? Ou a perturbar o Famoso Gerald. Contavas-me?

Há já semanas. Pousou o esfregão, tirou-lhe o pano da louça das mãos, dobrou-o ao meio e pendurou-o ao comprido na pega do forno.

- É claro. Sempre. Tudo. Tu sabes disso. - Avançou para ela, colocou-lhe três dedos no lobo temporal. Um exame mental; um beijo de escuteiro. - Só quando te conto as coisas é que eu mesmo as entendo.

 


PARTE QUATRO

 

PARA QUE PUDESSE VIVER

 

“O que estava repleto não era o meu cabaz, mas a minha memória. À semelhança dos papa-amoras, eu esquecera que jamais deixaria de ser manhã naquele lugar.”

Aldo Leopold, A Sand County Almanac

 

Encontram o caminho de regresso desde o Árctico. Aquela família de três voa agora na companhia de muitos outros. A meio da manhã, com o Sol a escaldar o ar em largas colunas ascendentes, as aves voam a cerca de dois quilómetros do solo. Pairam em bandos cada vez maiores, baixando para a próxima corrente ascendente a sul, onde voltam a subir. Atingem 80 quilómetros por hora, percorrem 800 quilómetros por dia, pouco batendo as asas. Ao fim do dia, deslizam até ao solo e recolhem-se em águas pouco profundas recordadas de anos anteriores. Navegam sobre campos demasiado cultivados, dinossauros emplumados grulhando, uma última grande lembrança da vida antes da própria existência.

O grou juvenil, já emplumado, segue os seus pais de regresso a uma casa de onde ele irá ter primeiro de aprender a partir. Tem de experimentar o percurso para o poder memorizar. Trata-se de uma tradição, um ritual que muda apenas ligeiramente, passado de geração em geração. Até mesmo pequenas variações - à esquerda por aquele vale abaixo, em frente depois daquele afloramento - são preservadas. Algo no olhar das aves deverá permitir que se processe a correspondência de símbolos. Porém, de que forma tal é feito ninguém sabe e nenhuma ave pode dizer.

Voam para Sul atravessando os estados ocidentais. Cada dia os agracia com vento de cauda. Na primeira semana de Outubro, a família passa a noite nas pradarias orientais do Colorado. Depois de o dia romper, enquanto as aves se alimentam do que os campos lhes oferecem, esperando que o solo aqueça e o ar ascenda, o espaço em redor do juvenil explode. O seu pai é atingido. Ele vê o progenitor espalhado ao longo do solo em redor. As aves gritam para o ar repercutente, os seus troncos cerebrais bombeando o pânico. Também este caos estabelece uma marca permanente, recordada para sempre: a época de caça.

Quando o mundo se recompõe do afluxo de sangue, a jovem ave localiza a mãe. Escuta os seus chamamentos, a uma distância de 800 metros, voando em círculos, traumatizada. Esperam mais dois dias, procurando, entoando vestígios do chamamento uníssono. Nada lhes pode dizer; não existe forma de saberem. Resta-lhes apenas voar em círculo e chamar, esperar, uma espécie de religião, para que o morto apareça. Quando ele não aparece, há apenas o ontem, o ano passado, os sessenta milhões de anos antes disso, o percurso em si, o regresso cego, auto-estruturado.

Os grous não se reúnem no Nebrasca agora. O rio Platte não é palco de um grandioso espectáculo outonal. As aves param aqui apenas por um breve período, em pequenos grupos. A mãe guia a sua inexperiente cria, ensinando-a. Leva-a até ao local onde, em Fevereiro último, ela e o seu companheiro se aninharam, a poucos metros de onde a carrinha ficou virada. Chapinha nos baixios do rio outonal, preparada para uma vez mais encontrar o seu companheiro nos meandros do rio, seguindo o tempo da cronologia animal, guiada pelo mapa cujas extremidades se enrolam à volta de si mesmas.

Porém, o seu companheiro também não está aqui. Fica agitada outra vez, recordando o antigo incidente, o trauma da Primavera passada. Algo de mau aconteceu certa vez aqui, tão estrondoso e mortal quanto o novo incidente fatal. Uma espécie de previsão, aquela irritante sensação na mente do grou fêmea viúvo é tudo o que resta do que aconteceu naquela noite. Quaisquer relatos de testemunhas oculares desaparecem no presente dos animais. Ninguém pode dizer o que uma ave poderá ter visto, o que uma ave poderá recordar.

A agitação dela contagia a cria e a aflição fá-la erguer-se num pulo. Pontapeia o vazio circundante. As rémiges primárias desfraldam-se como dedos esticados. O pescoço inclina-se para trás e a ave emite um chamamento, cortando o ar. Lança folhas ao ar e para trás das costas, dispondo as asas como se fossem um capuz. E pela primeira de um milhar de vezes na sua vida, dança. Na escuridão que começa a cair, outras espécies poderiam confundir tal atitude com êxtase.

Abandona a chamada terapia cognitiva. Já deveria ter desistido há muito tempo. Nada do que a Karin Fraudulenta possa sugerir com tal veemência poderá jamais ser vantajoso para ele. É apenas um truque para o distrair, para o pôr a pensar em tudo menos no que está a acontecer à sua volta. Uma espécie de lavagem cerebral para o levar a engolir todas estas falsificações como coisas reais. Só espera que a terapia não o tenha destrambelhado de forma irreparável.

A Drª Tower fica transtornada. Praticamente suplica-lhe: Mas nem sequer passámos ainda da avaliação. Bom, ele está pronto para lhe dar uma avaliação completa, se ela estiver interessada. Mas ela continua a argumentar. Tem mesmo a certeza de que está pronto para abandonar a terapia? Não quererá sentir-se melhor em relação às coisas antes de...? Tudo num tom de comiseração, egoísta. Ele diz-lhe que procure ajuda profissional.

Mas ele precisa de falar com alguém, alguém que possa ajudá-lo a juntar todos os factos. Bonnie está fora de cogitações. Está bem: ela é ainda a sua querida-Bonnie. Chamemos-lhe amor, ou o que quer que seja. No entanto, a Karin Fraudulenta conseguiu dominá-la, fê-la mudar de lado. Convenceu-a de que há alguma coisa de errado com ele. Mesmo quando ele lhe faz ver todas as provas acumuladas - a irmã desaparecida, a falsa Homestar, o facto de ninguém admitir ter escrito o bilhete, a nova Karin a enrolar-se com o antigo Daniel, este disfarçado a segui-lo por todo o lado, treinando animais para o vigiarem -, ela diz que não tem a certeza.

Podia perguntar a Rupp e Cain. Poderia tê-lo feito, há muito tempo, se não fosse por aquela pequena semente de dúvida. Onde estavam eles, afinal de contas, na noite em que ele capotou a Ram? Ele tem-se abstido, à espera de uma explicação que na realidade nunca se materializa. Mas agora ocorre-lhe: quem foi que plantou essa dúvida? Mais uma vez a Karin Embusteira, tentando fazer consigo o que conseguira fazer a Bonnie. Convencê-lo de que os seus amigos são inimigos e vice-versa. A teoria dos três carros: tudo ideia da impostora. Ele seria doido em pensar duas vezes nisso.

Procura uma oportunidade para recrutar os dois amigos. Consegue-a numa tarde fria, quando eles passam pela Homestar para o levar a um despejo de esquilos. Uma das especialidades de Ruppie: durante todo o Verão caça esquilos-cinzentos no seu quintal com uma espingarda de pressão, depois guarda-os na arca congeladora até ter animais suficientes que justifiquem um despejo nos arrabaldes da cidade. Os três munem-se então de binóculos, de algumas cervejas, umas salsichas e um saco escuro do lixo cheio de roedores a descongelar e dirigem-se para uma faixa de pradaria por cultivar ao longo de South Loup. Constroem uma pequena pirâmide de esquilos em campo aberto, montam acampamento a cerca de cem metros de distância e esperam pelos urubus-de-cabeça-vermelha. Rupp adora estas aves, era capaz de observá-las o dia inteiro. Cathartes aura, diz em jeito de chamamento quando eles começam a voar em círculo lá no alto. Ave, Cathartes aura, como se fossem alguma coisa saída da Bíblia, e os esquilos uma oferenda. E, na verdade, até é mais ou menos bíblico: o enxame cada vez maior de abutres.

Mark e Duane estão de calças de ganga e sweat-shirt. Rupp de calções e t-shirt preta; não tem frio. Montam acampamento e descontraem. A conversa gira em torno de mulheres desejáveis.

- Querem saber quem é mesmo boa? - pergunta Cain. - Aquela Cokie Roberts é bem boa.

- Um sete - argumenta Rupp. - Sete e meio. Uma cara fantástica, mas a superabundância de ideias faz baixar o valor da propriedade. E aquela Christiane Amanpour? Quero dizer, afinal como é? Ela é pelo menos americana, ou quê?

A falarem em código. Um diz: “Sabem o que ficaria bem em redor do pescoço de Britney?” E o outro responde: “Os tornozelos dela?” Ao fim de algum tempo, aquilo começa a irritar Mark. Observa a pilha de esquilos.

- Porque matas o raio dos esquilos, afinal? - pergunta a Rupp.

- Porque eles dão cabo dos meus melhores tomates.

- É essa a função deles - afirma Duane. - É suposto até um qualquer rato provocar o caos num tomatal. Sabias que o tomate é um fruto?

- Há muito que tinha as minhas suspeitas - diz Rupp. - Não me importava se os roedores comessem os tomates. Mas eles só querem arrancá-los do tomateiro e jogar polo. Não há como argumentar com eles, a não ser através do congelador.

- Matar é pecado, meu.

- Eu bem sei. Debati-me com a minha consciência e acabei por lhe ganhar, dois em cada três Outonos.

Os três amigos sentam-se, assam umas quantas salsichas num pequeno grelhador. Os urubus chegam e são duas espécies aparentadas, confraternizando em redor de um piquenique partilhado.

- Ah, o Dia do Trabalhador. É impossível não apreciá-lo.

Rupp concorda.

- A vita não pode ser mais dolce do que isto. Um dia como este pede poesia. Recita uma poesia qualquer para nós, está bem, Cain?

- Preferia meter a cabeça no cu de uma vaca - responde Cain.

Rupp encolhe os ombros.

- Há uma manada depois daquela colina. Vivemos num país livre. Força, estás à vontade.

Duane sugere que pratiquem um pouco de tiro ao alvo, mas Rupp limita-se a dar-lhe uma palmada na cabeça.

- Não se dá tiros a Cathartes aura. São nobreza. Do mais requintado que temos. Também não te punhas a dar tiros ao presidente, pois não?

- Não, a não ser que ele me ferisse primeiro. A propósito: tiveste mais notícias acerca da tua unidade? Ordens para mobilizar, ou assim? - Rupp limita-se a rir. Mas Duane não se deixa demover. - Deve estar para qualquer momento. Com certeza que a América vai ripostar antes do final do ano, e é bom que ninguém se meta no seu caminho. O Afeganistão vai parecer uma bicicleta infantil com fitas nos manípulos do guiador. A grande ofensiva vem aí. Coloquemos as armaduras. Voo directo de Fort Riley para Riyadh. Vamos à hajj, companheiro. Um fim-de-semana por mês, uma ova.

- Se não for agora, em breve será - confirma Rupp. - Alguma coisa temos de fazer. Não podemos ficar simplesmente sentados e de braços cruzados. Mas há-de ser mísseis de cruzeiro contra corredores de camelo, outra vez. Tudo o que, pessoalmente, tenho de fazer é manter as rodas bem oleadas. Estarei em casa no Dia dos Veteranos. - Dá uma cotovelada em Duane - Vá lá, palerma. Alista-te. Não há sabedoria sem algum sofrimento.

- E ser alvo de disparos? Preferia ser sodomizado por presos evadidos da prisão de Hastings.

- Olha, e quem diz que não podes ter ambas as coisas?

- Recebi uma carta da Guarda Nacional - menciona Mark.

- Como? - grita Rupp. Como se estivesse transtornado. - E o que dizia?

Mark acena a mão em redor da cabeça, enxotando moscas.

- Apenas uma carta. Amável e pessoal, cheia de termos legais. Não era uma carta daquelas que uma pessoa se senta para ler de fio a pavio.

- Quando foi isso? - quer saber Rupp. Como se fosse uma coisa importante.

- Quem sabe? Há algum tempo. Nada de importante. São o maldito Exército, meu. Com certeza não devem estar com pressa.

Contudo, Rupp está verdadeiramente perturbado, não pára de o atormentar.

- Veremos do que se trata num instante, assim que te levarmos a casa. Lembra-me.

- Claro, claro. Mas acalmem-se por um minuto. Escutem. É possível que o Governo tenha outros planos, bem diferentes, para nós.

Isto é o suficiente para lhes prender a atenção. Porém, Mark tem de prosseguir com calma. A questão mais abrangente é um pouco difícil de entender e ele não quer que os amigos fiquem confusos. Começa com o que eles já sabem de antemão. As substituições: irmã, cão, casa. Depois o bilhete que lhe foi deixado, acredita ele agora, por alguém que estava na carrinha consigo.

Isso é impossível, dizem em uníssono os dois Mosqueteiros.

Mark olha-os inflexivelmente.

- Já sei o que vão dizer. Que não havia lá ninguém. Ninguém na carrinha amassada quando os paramédicos chegaram. Excepto eu. A pessoa abandonou o local do desastre. Deve ter sido quem telefonou a participar o acidente.

Rupp abana a cabeça, encostando uma cerveja gelada contra a testa.

- Não, não, meu. Se tivesses visto...

Duane interrompe-o.

- Meu, a tua carrinha parecia uma vaca depois de passar pelo matadouro. A fotografia veio nos jornais. Era impossível alguém conseguir sair dali pelo próprio pé. É um milagre que tu...

Mark Schluter fica um pouco perturbado. Faz tombar o grelhador. Uma brasa quente cai em cima dos seus ténis Chuck Taylor All-Stars.

- Pronto, pronto - intervém Rupp. - Partamos desse pressuposto. Como base de argumentação. O que te leva a pensar que este tipo estava...? Quem era ele? O que fazia o tipo na tua carrinha?

Mark leva as mãos ao ar.

- Vamos lá com calma e pensar com cabeça. Eu sei que a pessoa estava lá porque me lembro dela.

É como aquele momento num filme de suspense em que a personagem leva a mão ao queixo e arranca a máscara de látex.

- Lembras-te! Quem... ? Que estás a dizer?

Muito bem: então, Mark não se recorda ao certo da pessoa a quem terá dado boleia, mas lembra-se de conversar com ela. Uma conversa tão comum como esta. Talvez lhe tivesse dado boleia há já algum tempo, pois estavam a meio de uma espécie de conversa, meio questionário meio jogo de adivinhas. Perguntas a que a pessoa a quem dera boleia não respondia directamente, mas antes com dicas. Do tipo: está mais quente, agora está mais frio. Adivinha o segredo.

Rupp está perturbado, o que não acontece muitas vezes:

- Espera lá. Ao certo, do que é que te lembras?

Mas os pormenores não preocupam Mark agora. O que ele pretende é o quebra-cabeças completo. Exactamente aquilo que toda a gente quer impedi-lo de ver. Uma espécie de encobrimento sistemático, para o impedir de descobrir demasiado sobre aquilo em que ele já tropeçou. Analisemos os factos: alguns minutos depois de ele dar boleia a esta espécie de anjo no meio de nenhures e começar esta espécie de jogo das perguntas tem um acidente. Depois, no hospital, algo lhe acontece na mesa de operações. Algo que convenientemente lhe apaga a memória. E, quando recupera a consciência, já lhe trocaram a irmã, que poderia ajudá-lo a recordar-se, e substituíram-na por uma cópia que o mantém constantemente sob vigilância. É muita coisa para poder ser apelidada de coincidência. E depois alojam-no numa Farview paralela. Uma elaborada experiência, com Mark como macaco de laboratório.

- Então e nós? - quer saber Duane. - Porque é que não nos trocaram também? - Soa ofendido. Deixado de parte.

- Não é óbvio? Vocês os dois não sabem de nada.

Isso faz irritar Duane. Contudo, Mark não tem tempo para argumentar. Tem de fazê-los ver a escala que tudo isto deve atingir, para o Governo se dar ao luxo de gastar uma quantia enorme de dinheiro a substituir uma cidade inteira.

- Meu Deus - exclama Duane, começando por fim a aperceber-se do que ele está a falar. - O que achas que estarão a tramar?

- A questão é essa. Devia ser precisamente a isso que o tipo a quem dei boleia se referia. Mais quente. Mais frio. Devem estará usar este local para algum projecto. Ou necessitam de um lugar grande e vazio, livre de pessoas, ou então precisam de algo específico, alguma coisa de especial sobre a vida aqui.

Rupp resfolega.

- Alguma coisa especial?

Sobre a vida a que Mark incita-os.

- Pensem lá: algo tão perto de nós que já nem o vemos. Alguma coisa que nós fazemos e que mais ninguém faz.

Duane quase se engasga com uma salsicha.

- Trigo. Embalamento de carne. Aves migratórias.

- Meu Deus - É a vez de Mark exclamar. - As aves. Como é que não pensámos nisso? Vocês os dois não se lembram? Quando é que eu tive o acidente?

Ninguém diz nada, é tão óbvio. As poucas semanas ao longo do ano durante as quais este lugar perdido no mapa se torna mundialmente famoso.

- E ainda não vos disse tudo. Quando andei de porta em porta com o bilhete? Houve uma pessoa... Havia alguém que estava sempre a aparecer, embora nunca exactamente...

É como se Rupp nem sequer o estivesse a escutar. Nem sequer segue o raciocínio lógico. Apenas pergunta:

- Como é que sabes que é o Governo?

É isso mesmo que Mark está a tentar explicar-lhe. Foi seguido por todo o lado durante semanas por alguém que apenas pode ser Daniel Riegel. O Homem Pássaro. Para além disso, o tipo envolveu-se convenientemente com a falsa Karin. E todos estamos a ver para quem é que ele trabalha, não estamos?

- Daniel? Danny Riegel? Ele não trabalha para o Governo. Trabalha para aquele Refúgio dos Grous.

- Que é uma entidade governamental, que recebe a maior parte dos seus fundos do...

- Sabem, acho que pode muito bem ser uma operação governamental - refere Cain. - Pensando bem...

- Vocês estão a passar-se. - Rupp tenta uma gargalhada, mas sai-lhe acanhada.

- É uma coisa pública, seja como for - aponta Duane. - Um santuário público.

- Não é nada público. É uma fundação. Os seus fundos são privados...

- Deve ter algum tipo de vínculo estatal...

- Importam-se de se calar por um segundo? - interrompe Mark, tentando colocar um ponto de ordem. - O mais importante não é isso. Suponhamos que este tipo a quem dei boleia era um terrorista. Meses depois. Tentando atacar algo realmente... americano. E suponhamos que o Governo...

- Não deste boleia a ninguém - assevera Rupp. - Não havia ninguém a pedir boleia.

- Como é que sabes? Disseste-me que vocês nem sequer lá estavam.

Talvez Mark Schluter eleve um pouco a voz. Rupp e Cain também. É um pouco perturbador, verdade seja dita. Acalmam-se por um momento, ficando sentados a observar os abutres a debicar a pilha de esquilos. Porém, o piquenique está basicamente terminado.

- Devíamos regressar a tua casa - refere Rupp. - E dar uma vista de olhos naquela carta da Guarda Nacional.

- Não é preciso fazeres-me favores - riposta Mark.

Metem-se na carrinha Chevy 454 de 1 988 de Rupp; Duane vai no lugar do morto e Mark fica num dos bancos rebatíveis, como nos velhos tempos. Só que ele começa a ver que já não há mais velhos tempos, se é que alguma vez os houve. Rupp tem um CD novo dos Cattle Call no leitor, Hand Rolled. Uma canção chamada “Tenho Amnésia Desde que me Lembro”. Soa a gansos castrados, a mesma porcaria que os CC têm vindo a tocar desde que a banda começou. Porém, Duane fica agitado e Rupp carrega num botão para o leitor saltar para a faixa a seguir, como se a canção o envergonhasse. O que faz com que Mark a queira escutar ainda com mais atenção.

Regressam pela Route 40, mesmo antes da saída para Odessa, quando um enorme veado emerge de uma mata e salta para a estrada mesmo à frente deles. Vem direito à carrinha, um míssil apontado à cobertura do motor. Nem sequer há tempo para gritar. Mas no momento em que o animal se prepara para embater, Rupp guina o volante e faz uma derrapagem que os leva até ao meio da estrada e de volta duas vezes. O veado pára, na berma oposta, desconcertado. Estava tão à espera de estar morto que nem sequer sabe o que fazer com o destino cruzado. Só depois de a criatura fugir para as árvores é que os três humanos recuperam.

- Meu Deus.

Ambos os amigos olham para Mark. Rupp agarra-lhe o joelho, Duane o ombro.

- Estás bem, meu? Bolas, estávamos tramados. Acabados. Mas não aconteceu nada, na verdade. A carrinha nem sequer está arranhada e o veado recuperará.

Mark não percebe por que motivo é que querem que ele fique tão perturbado.

- Caramba - Duane não pára de dizer. - Estávamos feitos. O seguro de vida ia sendo descontado. Como raios é que fizeste aquilo? Guinar antes mesmo de eu conseguir sequer pôr a vista naquilo.

Rupp está a tremer. Duane e Mark esforçam-se por não olhar, mas é quase impossível. O homem da Guarda Nacional a tremer como se fosse um doente de Parkinson em andas no meio de um terramoto.

- O veado tentou matar-nos - diz ele, fingindo ser o Rupp do costume. Mas agora eles já viram, viram-no a ele. - Estou a dizer-vos, o maluco do animal tentou saltar pelo pára-brisas. O raio do jogo de vídeo salvou as nossas vidas. - Olha para as suas mãos. - Se não tivesse jogado centenas de horas daquele jogo de vídeo, estaríamos a fazer tijolo.

Rupp liga novamente a carrinha e volta à faixa da direita. Cain uiva como um coiote. Não acredita que teve sorte, por uma vez na sua vida. Esmurra o ar.

- Jesus, Jesus. Que viagem. - Esmurra o porta-luvas, que acaba por se abrir. Tira lá de dentro um pequeno walkie-talkie preto, algo que Mark já viu antes. Duane coloca-o junto ao rosto, mascando como se fosse um agente da polícia. - Alô, alô, São Pedro, amigo? Cancele as três reservas que tinha em nosso nome para hoje.

Ao ver o aparelho, levanta-se do assento e tenta agarrar o wal-kie-talkie.

- Dá cá isso. - Mas na verdade não precisa de o agarrar. Já o teve uma vez na mão. Ou um igual àquele.

- Guarda isso - ordena Rupp.

Cain luta com o porta-luvas, mantendo o walkie-talkie longe da mão de Mark. Mas já não há como guardá-lo.

O dedo de Mark oscila entre eles os dois, como se brandisse uma pistola.

- Vocês? Eu ia a falar com vocês os dois? Vocês os dois eram a pessoa a quem dei boleia? Não estou... Como é que eu hei-de...?

Rupp descarrega em Cain.

- Parvalhão, tens serradura no lugar do cérebro. - Conduz com uma mão, tentando apoderar-se do walkie-talkie com a outra. Ganha a escaramuça pelo objecto e lança-o pela janela do lado do condutor, como se isso fosse a resposta para todas as perguntas. Dardeja Cain com o olhar, pronto para o desfazer. - És mesmo um inútil. Que raio te passou pela cabeça?

- Que foi? Estava apenas... Que foi? Como é que eu havia de saber?

- Disseram-me que não estavam lá - diz Mark. - Mentiram-me.

- Não estávamos lá - argumentaram em uníssono.

Rupp silencia Cain com um olhar. Vira-se para Mark, suplicando.

- Tinhas um na tua carrinha. Estávamos apenas... Tínhamos acabado de comprar aquilo.

- Era esse o jogo? O teu discurso com o walkie-talkie? Eras tu?

- Tu é que o inventaste, meu. Fazia-te rir. Estávamos apenas a imitar aquilo da Banda do Cidadão, gozando uns com os outros à distância, quando tu...

Mark Schluter é uma estátua. Puro mármore.

- Tu, também. Também estás metido nisto tudo. - Os outros dois começam a falar ao mesmo tempo, tentando explicar-se, obscurecendo os factos. Mark tapa os ouvidos com as mãos. - Deixa-me sair. Pára a carrinha. Deixa-me sair aqui, já.

- Marker. Não sejas maluco, meu! Estamos a mais de três quilómetros de Farview - argumentam, mas ele não os ouve.

- Eu vou sair. Eu saio já daqui.

Fica violento, por isso vêem-se obrigados a deixá-lo sair. Porém, durante algum tempo, seguem na carrinha ao lado dele, muito devagar, tentando convencê-lo a voltar a entrar. Tentando, como sempre, confundi-lo ainda mais, antes de o Chevy travar com um guincho.

Não se tocaram, na noite da discussão no restaurante. No dia seguinte, falaram em monossílabos amáveis, obsequiosos. Deslocaram-se com-prometidamente pela casa, fazendo pequenos favores um ao outro. Durante toda a semana que se seguiu, Daniel mostrou-se humilde, paciente, dedicado, fazendo de conta que ainda habitavam aquela região elevada e soalheira a salvo do antigo pesadelo. Ele agia como se tivesse sido ela a provocar a cisão e ele, altruísta, estivesse a perdoá-la. Ele permitiu, e até o encorajou, embora tal a irritasse. Ela era assim mesmo.

Obviamente, ele não fazia ideia do que era melhor para ele ou do que precisava. Tinha apenas aquela exasperante máscara de abnegação. Ela queria gritar: “Vai, prova, experimenta. Encontra-te a ti mesmo. Eu sei que não sou boa o suficiente; é o que me dá a entender, a cada paciente aquiescência.” Ao invés disso, nada disse. A verdade apenas o inflamaria. Ela agora compreendia-o. São Daniel: precisando de transcender o resto da raça. Precisando de provar que um ser humano poderia ser melhor do que os seres humanos, que podia ser tão puro quanto um animal instintivo. No entanto, ele precisava da confirmação dela. Uma parte dela estava disposta a conceder que ele podia bem ser o melhor homem que ela jamais teria oportunidade de encontrar neste mundo. Adorava a melancólica insistência dele, garantindo que qualquer ferida podia ser sarada. Mas o olhar dele de dúvida, de indefinida decepção, aquela constante busca de algo um pouco mais merecedor e notável... Virtuoso, sacrificial, sofredor: e lentamente a sufocá-la.

A mais ínfima sugestão de que ele pudesse ser tão frágil como qualquer outra pessoa fazia-o perder o controlo. Em pânico, esforçava-se para lhe agradar, empenhava-se na relação como se estivesse em perigo de extinção. Limpava e cozinhava, esbanjava em acepipes - cogumelos e nozes de macadamia. Procurava-lhe artigos sobre a síndrome de Fregoli e alimentava-lhe cada receio. À noite, massajava-lhe as costas com Bálsamo Tigre.

Ela fez amor com ele, imaginando-se a mulher que ele imaginava. No final, foi acometida por uma ternura frenética, um esforço de último recurso para se emendar e remendá-los.

- Daniel - murmurou-lhe ao ouvido, na escuridão. - Danny? Talvez precisemos de pensar em algo pequeno. Algo novo. Algo que seja um pouco de ambos.

Tocou-lhe na boca e viu-o sorrir num feixe de luar. Pronto para ir quase a qualquer lugar que ela lhe pedisse. Não verbalizou qualquer objecção, mas um minúsculo músculo no seu lábio superior contraiu-se de forma errada, dizendo: Nada de bebés. Mais humanos não. Bem vês o que eles fazem.

Pelo menos ela ficou a saber o que ele achava das suas probabilidades como mãe. Viu, no fundo, a imagem que na verdade ele tinha dela.

No final da semana, Mark disse-lhe que ia abandonar a terapia. A notícia apanhou-a desprevenida. Sentiu-se como aos oito anos de idade, da primeira vez que Cappy Schluter foi à falência e os credores vieram leiloar a sala de estar. A sua última esperança de reabilitar Mark desvanecia-se. Suplicou-lhe que não parasse, mas tão esgotada por falta de sono que chegou mesmo a chorar. As suas lágrimas desorientaram Mark. Por fim ele abanou a cabeça.

- Isto é saúde mental? O que pretendemos alcançar com isto? Não para mim, irmão. A última coisa que quero é a saúde deste tipo.

Deslocou-se a Dedham Glen para falar com Barbara. Haviam-se passado meses desde o internamento de Mark, mas Karin quase esperou vê-lo a arrastar-se vestíbulo abaixo, censurando-a. Sentou-se no sofá plastificado em frente ao balcão da recepcionista, compondo-se ansiosamente, à espera de Barbara. Quando esta passou por ali, o seu rosto contraiu-se ao ver-se apanhada naquela emboscada. Sempre dissera a Karin que recorresse a si, fosse pelo que fosse. Talvez tivesse mentido. Porém, compôs-se rapidamente e conseguiu esboçar um pequeno sorriso.

- Olá, amiga! Está tudo bem?

Conversaram na sala da televisão, cercadas pelos aturdidos e incontinentes.

- Não sou advogada - disse Barbara. - Não sei nem posso aconselhá-la. Suponho que poderia ir com o assunto para a frente, se quisesse. É a representante legal dele, não é? Mas de que serviria isso? A terapia forçada não o iria ajudar. Apenas convenceria Mark de que estaria a persegui-lo, a atormentá-lo.

- Talvez até esteja. Apenas pelo mero facto de não ser quem ele pensa. Tudo o que eu faço só o faz piorar.

Barbara cobriu as mãos de Karin com as suas. O gesto dela fez mais por Karin do que os de Daniel. Porém, mesmo o cuidado de Barbara nada revelava.

- Suponho que se sinta assim, por vezes.

- Sinto-me sempre assim. Como é que hei-de saber qual a coisa mais acertada a fazer se não posso confiar na forma como as coisas me parecem?

- Escreveu a Cerald Weber? É a coisa certa a fazer.

Karin sentiu o impulso de se abrir por completo com ela, de contar a Barbara a verdade pura e defensável, que nunca se sentira tão desamparada na sua vida. Contudo, sabia agora o suficiente sobre os cérebros humanos, danificados ou não, para perceber que nem sequer deveria pensar em seguir por esse caminho. Precisava de uma mulher, alguém que a corroborasse, que a recordasse do mérito da ternura fortuita, que a salvasse da interminável rejeição masculina. Uma paixoneta de menina. Não, mais: amava esta mulher, por tudo o que Barbara fizera por eles. Porém, uma só palavra faria Barbara afastar-se. Escutou-se a si mesma adoptar um tom de puro convite.

- Tem filhos, Barbara? - Preparada, caso fosse repreendida, para negar qualquer tentativa de intimidade. O “não” de Barbara nada revelou. - Mas é casada?

Desta vez, não quis dizer já não. Algo em Karin a fez aprovei-tar-se desta admissão, como se fosse ainda capaz de dar algo em troca a esta mulher. Porém, não podia ter a certeza do que lhe era permitido perguntar.

- Está sozinha?

O rosto de Barbara espelhou uma pergunta que não conseguiu reprimir. Há alguém que não esteja? E depois suavizou-se.

- Não exactamente. Tenho isto. - Encolheu os ombros, as palmas das mãos viradas para cima, abarcando a sala da televisão. - Tenho o meu trabalho.

Karin resfolegou, não se conseguindo também conter. Sentiu a verdadeira pergunta que há muito precisava de colocar.

- O que é que este lugar lhe dá? - Barbara sorriu. Ao lado dela, a Mona Lisa poderia ter sido uma forte concorrente num daqueles programas de televisão em que as pessoas se revelam.

- Ligação. Solidez. Os meus... amigos. Novos a toda a hora.

Os olhos dela disseram Mark. Karin captou algo ilícito, preparada para suspeitar até da caridade cristã. Se Barbara fosse um homem, a Polícia teria estado ao corrente da situação. Mark, seu amigo? Ligação, com estes doentes, encurralados nos seus próprios corpos em colapso, pessoas incapazes de segurar uma colher ou apanhar uma do chão caso caísse? Um pensamento severo conduziu a outro e ela acabou por resvalar para o ressentimento. Ressentimento do facto de esta mulher não lhe dar um décimo do que dava de bom grado a um homem com uma lesão cerebral, 15 anos mais novo do que ela. Ressentimento pela constatação de que Barbara tinha Mark e ela mesma não tinha. O pensamento fê-la cerrar os olhos com força e contorcer o rosto. Ressentimento: uma outra maneira de dizer necessidade. Será que esta mulher não conseguia aperceber-se do quanto as duas estavam próximas?

- Barbara... Como é que consegue? Como consegue manter-se leal quando toda a gente é tão...? - Ela perderia o controlo, desgostaria Barbara. Olhou para a auxiliar, tentando não pedir.

Contudo, o rosto de Barbara mostrou apenas surpresa. A sua boca abriu-se numa rejeição.

- Eu não... - Nem desgostosa, nem descontrolada, sem qualquer lesão. - Não sou eu...

Poderia alguém verdadeiramente ter um tal domínio sobre si mesmo? Onde é que ela ia buscar tanta maturidade? Como teria ela sido com a idade de Karin? As perguntas acumulavam-se, nenhuma delas permissível. A conversa estagnou. Barbara ficou nervosa e precisava de regressar ao trabalho. Karin sentiu que esta poderia ser a última vez que conversariam desta forma. Agarrou e abraçou Barbara antes de ir embora. Contudo, fosse o que fosse que ligação quisesse dizer, o abraço não conteve nada disso.

Nesse final de tarde, quando Daniel regressou a casa, ela estava sentada em cima das suas três malas cheias, a um metro e meio da entrada da casa. Há meia hora que ali estava. Planeara ter já partido há algum tempo quando ele voltasse do trabalho. Ao invés disso, estava acampada na rua, a oito metros do seu carro, incapaz de se mexer para um lado ou para outro. Daniel saltou da bicicleta de um pulo, achando que ela estava magoada. Porém, a três metros de onde ela se encontrava, percebeu tudo.

Foi inexoravelmente nobre, mesmo ao ser abandonado. Todas as perguntas que ele não colocou - Porquê isto? Tens a certeza de que é isto que queres? E Mark? E eu? - cauterizaram-na ali sentada, paralisada. Ele nem sequer tentou demovê-la com conversa ou meiguices. Não disse nada durante um longo momento, permanecendo apenas de pé à frente dela, digerindo o sucedido, pensando. Procurou os olhos dela tentando determinar o que ela precisava dele. Ela não foi capaz de o olhar nos olhos de volta. Quando por fim ele falou, foi quase sem a acusar. Uma pura preocupação prática para com ela: exactamente o que ela não conseguia suportar.

- Mas para onde é que vais? As tuas coisas estão todas guardadas. O teu apartamento já está vendido.

Ela disse o que vinha ensaiando mentalmente há várias semanas.

- Daniel, é melhor ficarmos por aqui. Não consigo continuar assim. Por cada pequena coisa que faço para ajudar, magoo-o de outras três formas. O mero facto de olhar para mim fá-lo piorar. Ele quer que eu me vá embora. Estou farta e falida, estou sempre no teu caminho, sinto-me fraca e há seis semanas que não durmo bem. Ele faz-me sentir como se fosse invisível, um vírus, um nada. Estou a sucumbir, Danny. Sinto-me a flutuar e a pairar. Como se tivesse pequenas aranhas na pele, a toda a hora. Estou um caco. Sinto-me repugnante. Tu não, não podes, não tens absolutamente...

Ele colocou-lhe a mão no ombro para a acalmar. Não disse, eu sei. Limitou-se a acenar que sim com a cabeça. Algo semelhante a entusiasmo animou-a.

- Só daqui a dez dias é que deixo de ter acesso ao condomínio. Posso acampar no chão do apartamento. Será tão simples, apenas o mínimo essencial. Posso usar o dinheiro da venda para arrendar qualquer coisa. Posso recuperar o meu anterior emprego, começara reembolsar-te por tudo o que pagaste durante todos estes...

Ele calou-a. Olhou de relance por cima do ombro para a fila de janelas largas através das quais a vizinhança assistia agora a este teatro de rua de final de tarde de Setembro. Agora, para além de tudo, ela estava a fazer uma cena, a envergonhá-lo. Pôs-se de pé e agarrou numa das malas para a arrastar até ao carro. O impulso súbito fê-la tombar na direcção dele. Ele agarrou-a pelos ombros e equili-brou-a. Inclinou-se para lhe tirar a mala das mãos.

- Dá cá, deixa-me ajudar-te.

A caridade estúpida e brutal dele fê-la perder a compostura. Encolheu-se e afastou-se, pressionou os punhos fechados contra o rosto e começou a hiperventilar. Ele voltou a aproximar-se dela, para a consolar da melhor forma que pudesse. Ela debateu-se com ambas as mãos.

-- Deixa-me em paz. Não me toques. Não são lágrimas verdadeiras. Não percebeste ainda? Não sou ela. Sou apenas uma simulação. Algo que inventaste na tua cabeça. - Não compreendia as suas próprias palavras, húmidas e insanas. Passou-lhe pela cabeça, num vestígio de medo que se espalhava e intensificava, que estava a ter aquilo de que ela e Mark, no terror da infância, costumavam falar: um esgotamento.

Contudo, com a mesma imprevisibilidade, toda a sua insanidade se desvaneceu, e ela permaneceu no passeio, acalmada. Algo nela deveria sabê-lo desde sempre: ela nunca iria mais longe do que estes movimentos. Ir-se embora apenas confirmaria as teorias de Mark. Privá-la-ia de cada relato, de cada descrição que pudesse fazer de si mesma. Uma enorme curiosidade sobreveio-lhe, uma impaciência para perceber aquilo em que, ficando aqui, poderia ainda tornar-se. Perceber quem poderia ainda ser, caso não pudesse mais ser a outra. Voltou a sentar-se na mala tombada. Daniel sentou-se no pedaço de relva ao lado dela, agora indiferente ao que qualquer outro ser humano visse ou pensasse sobre eles.

- Não posso ir-me embora ainda - anunciou ela. - Esqueci-me. A mensagem do dr. Weber. Vai regressar na próxima semana.

- Sim - confirmou Daniel. - É verdade. - Não fez qualquer menção de pretender sequer segui-la. E mesmo isso, de uma forma que ela não era capaz de nomear, foi um pequeno alívio.

Permaneceram sentados lado a lado até as primeiras gotas de uma chuva dispersa de Outono começarem a cair. Então, ele ajudou-a a carregar a bagagem de volta para dentro.

No dia seguinte, Karin viu Karsh. Deambulou frente ao escritório dele, um percurso que evitara durante meses. A manhã estava gloriosa, um daqueles dias de Outono cristalinos, secos, azuis, em que a temperatura parece ficar suspensa em antecipação. Ela sabia que acabaria por vir até aqui, no momento em que Daniel referira aquelas palavras durante o desastroso jantar. Quase como se a estivesse a desafiar, trazendo de novo à tona todas as questões por resolver. Um novo consórcio de investidores. Homens de negócios locais. Por acaso não saberás... ? Não, ela não sabia. Não sabia o que quer que fosse sobre ninguém.

Contudo, sobre si mesma, havia coisas que podia descobrir. Contornou o quarteirão frente à Platteland Associates, fazendo de conta que via as montras das poucas lojas - material hospitalar, Exército de Salvação, livros usados - que não haviam sido vítimas de eutanásia desde a chegada do Wal-Mart. Ele sairia para almoçar às dez para o meio-dia e dirigir-se-ia para o Home Style Café. Quatro anos não teriam mudado nada. Robert Karsh era a encarnação do hábito. Uma mente de primeira qualidade sabe o que quer. Tudo o resto era caos.

Saiu do escritório acompanhado de dois colegas. Um casaco cinzento impecável e gravata cor de vinho, calças pretas: homem de negócios que se esforçava em demasia, fazendo de conta que Kearney era a próxima Denver. Ela virou-se para inspeccionar a montra de um serralheiro, um carrossel de chaves. Ele viu-a a uma distância de dois quarteirões. Levantou um braço no ar e depois deixou-o tombar instantaneamente. Fez sinal aos colegas que os encontraria mais tarde e logo a seguir estava à frente dela, não a tocar-lhe, mas a absorvê-la, a consumi-la de novo. Como um turista, nos tempos em que viajar era ainda difícil.

- Tu - disse ele. A voz um pouco mais grave. - És tu. Nem acredito que és tu.

Pela primeira vez em meses, ela conheceu-se a si mesma. Os últimos seis meses afastaram os dedos da sua garganta. Os seus ombros relaxaram. A cabeça ergueu-se.

- Acredita - respondeu ela, a sua voz a soar como a da telefonista privada de Deus.

Ele deu um passo atrás, acenando com as mãos.

- O que fizeste a ti mesma? - O corte de cabelo, aquele que fizera com o objectivo de levar Mark a pensar que era a sua verdadeira irmã. - Sim, senhor. Estás espectacular. Como uma virgem recauchutada pelo fabricante. Como se estivéssemos de novo na faculdade.

Ela franziu as sobrancelhas, tentando não soltar risadinhas.

- No liceu, queres tu dizer.

- Pois. O que eu disse. Perdeste peso? - Certa vez ele chamara-lhe anoréctica falhada.

Karin quase que se colocou em pose, saboreando a vingança.

- Como estão os teus filhos? - Era quase capaz de fazer isto. Capaz, directa, prática. - A tua esposa?

Ele fez uma careta, passando os dedos pelo cabelo.

- Estão bem, muito bem! Bom... é uma longa história.

O coração dela, esse resistente apalermado, começou a ficar descontrolado como um pombo numa caixa de Skinner. Por este homem, ela comprara outrora um livro chamado Como Fugir com o seu Amante, ao mesmo tempo que via vestidos de noiva. Pelo menos confinara-se ao damasco e cor de pêssego.

Ele não parava de olhar para ela, abanando a cabeça como se não acreditasse ainda.

- Como está... o teu irmão?

- Mark - avançou ela. Ficou à espera que ele titubeasse uma desculpa. Era o que fazia estar há tanto tempo com Daniel.

- Isso. Li no Hub acerca do que lhe aconteceu. Um pesadelo.

Trocando poucas palavras, deslocaram-se para o banco em frente ao monumento à guerra. Ele sentou-se ao lado dela, em plena luz do dia, no centro da cidade. Não parava de lhe perguntar se ela queria alguma coisa - uma sanduíche, talvez alguma coisa mais elaborada. E de cada vez, ela abanava a cabeça.

- Come tu - disse ela. Demoraria algum tempo até que ela voltasse a comer. Ele acabou por pôr de parte a ideia de comer, insistindo que isto era ainda mais importante do que a nutrição. Pediu pormenores sobre Mark e manteve-se quieto e atento durante um surpreendente período de tempo, comparado com o Robert Karsh de há quatro anos. Ia abanando a cabeça e dizendo coisas como Twilight Zone ou Invasão dos Mortos-Vivos. Cruéis, grosseiras, banais. Mas palavras que lhe soavam a um regresso a casa.

Tão fácil quanto respirar, ela abriu-se com ele. Contou-lhe tudo, fazendo o seu colapso parecer quase cómico.

- Ele tem sido toda a minha vida nos últimos seis meses. Mas já decidiu que nunca serei eu de novo. E ao fim de meio ano? Ele tem razão.

- Oh, ainda és tu, deixa-me que te diga. Talvez apenas mais umas rugas. - O lema de Robert: Ainda que grosseiro, dizer a verdade. Quanto mais brutalmente verdadeiro, melhor. Robert tinha dez vezes o autoconhecimento que Daniel tinha. Sempre se havia comprazido em admitir todas as mulheres que cobiçava. Sou homem, Coelhinha. Estamos programados para olhar. Tudo vale a pena ser visto. A verdade nua e crua era a razão por que ela estava sentada ali com ele, no centro da cidade, em frente ao monumento à guerra, à vista de toda a gente.

A voz dele arrepiou-a - o som do tempo a começar outra vez. O cabelo de Robert tinha agora uma ténue madeixa grisalha, por cima das orelhas. A camisa retesava-se por cima do cinto, em vez de fazer pregas. De resto, estava igual: como se fosse o irmão Baldwin que ninguém conhecia, ligeiramente atarracado, o rosto apenas um pouco demasiado largo para entrar no cinema e, por isso, posto de parte pelo resto do clã. Algo a importunava, uma pequena diferença. Talvez apenas uma questão de ritmo. Ele ficara uns segundos mais lento, mais aberto, mais sereno. Um pouco do fel neutralizado. Menos destro, menos agressivo, menos presumido. Ou talvez estivesse a comportasse o melhor que sabia. Qualquer pessoa podia ser qualquer coisa, por uma hora.

Ele pegou-lhe no cotovelo, como se ela fosse cega e fosse ajudá-la a atravessar a rua. Ela não se fez rogada.

- Porque demoraste tanto tempo? - O estrangulamento da voz dele desconcertou-a.

- Como assim?

- A procurar-me?

- Não te procurei, Robert. Só vim até à baixa fazer uns recados. Tu viste-me.

Ele sorriu, agradado por aquela mentira tão óbvia.

- Telefonaste-me na Primavera passada.

- Eu? Não me parece. - Depois recordou-se da praga da identificação de chamadas.

- Bom, era o número do teu irmão, mas ele ainda estava no hospital. - O sorriso dengoso, mais trocista do que sádico. - Não sei porquê, mas parti do pressuposto de que eras tu.

Ela fechou os olhos.

- Atendeu-me a tua filha. Ashley? Apercebi-me, no segundo em que escutei a voz dela... Lamento. Foi estúpido. Um erro. - Recor-dou-se das palavras da mãe, no dia antes de morrer: Nem os ratos fazem accionar a mesma ratoeira duas vezes.

- Bom - respondeu ele, - já vi crimes piores contra a humanidade. - Ele puxou uma pequena agenda preta do bolso do casaco, folheando-a até chegar à página pretendida. Mostrou-lhe o apontamento, na sua caligrafia nítida, glacial: Coelhinha, telefonema. A alcunha pela qual o irmão a tratava, desde a infância. O nome que ela nunca deveria ter mencionado a Karsh. O nome que nunca lhe passara pela cabeça voltar a escutar. - Quem me dera que não tivesses desligado. Talvez te pudesse ter ajudado.

Não era um sentimento que o antigo Robert Karsh tivesse sequer conseguido simular. O encontro de ambos poderia terminar aqui, poderia nunca mais voltar a vê-lo, mas ainda assim sentir-se-ia vingada, cem vezes melhor consigo mesma do que ele a fizera sentir-se da última vez.

- Estás a ajudar agora - confessou ela.

Robert conduziu a conversa de volta a Mark. Os sintomas fas-cinavam-no, o prognóstico deprimia-o e a resposta médica indignava-o.

- Diz-me qualquer coisa quando o Doutor Autor regressar. Eu gostaria de lhe fazer também alguns exames.

Não descreveu Barbara a Karsh. Não queria que aqueles dois se encontrassem, nem sequer em sonhos.

- E tu? Que novidades tens? - inquiriu ela. - Que tens feito?

Ele acenou para os edifícios circundantes.

- Tudo isto! Quando é que cá estiveste pela última vez? Deves achar a cidade bem diferente.

A cidade parecia-lhe Brigadoon. A Terra que o Tempo Esqueceu. Mal conteve um riso abafado.

- Curioso, estava a pensar que nada mudou desde Roosevelt. Teddy.

Ele fez uma careta, como se ela lhe tivesse aplicado uma joelhada.

- Estás a brincar, certo? - Olhou em redor, abarcando três pontos cardeais, como se ele mesmo pudesse estar a alucinar. —A cidade não metropolitana de mais rápido crescimento do Nebrasca. Talvez mesmo das Planícies Orientais!

Ela tentou engolir o riso, que se transformou em soluços.

- Desculpa. A sério... Reparei em algumas coisas... novas. Em especial perto da interestadual.

- És inacreditável. A cidade está praticamente a passar por um renascimento. Há melhorias e desenvolvimentos a decorrer por todo o lado.

- A aproximar-se da perfeição, Bob. - O nome escapou-se-Ihe. Logo aquele que jurara nunca mais voltar a pronunciar.

Ele parecia preparado para infligir um ataque frontal com toda a força, como nos velhos tempos. Ao invés, poliu o crânio com os nós da mão fechada, um pouco envergonhado.

- Sabes, Coelhinha! Tinhas razão sobre mim. Construímos muita porcaria. Nada abaixo dos padrões legais, mas ainda assim.... Muitos centros comerciais e complexos de apartamentos de betão e escória pelos quais terei de me redimir, quando vier o dia do ajuste de contas. Felizmente, a maior parte voará com os próximos ventos mais fortes. - Trauteou uma imitação em agudos da música do tornado do Feiticeiro de Oz. Ela riu-se, mesmo sem querer. - Mas agora estamos diferentes. Temos dois novos sócios e somos muito mais ambiciosos.

- Robert, a ambição nunca foi o teu problema.

- Não, refiro-me a ambição boa. Estivemos envolvidos no desenvolvimento da Archway! - Ela voltou a soluçar, mas ele resplandecia com um orgulho próprio de um escuteiro que a espantou. Parecia inconcebível que ela alguma vez tivesse temido este homem. Con-fundira-o simplesmente, nunca compreendera o que ele procurava ao certo. - Levei algum tempo a perceber que uma boa postura moral na verdade até vende. Só é preciso ensinar as pessoas a reconhecer o que é do seu interesse. Fomos para a frente com a fábrica de reciclagem de papel. Já foste vê-la? O último grito em tecnologia. Chamo-lhe Mea Pulpa...

Ela perguntou-lhe sobre novos projectos. Assim que lhe pareceu seguro, sondou-o. Algo em grande e novo, perto de Farview? Com ele, o melhor mesmo era ser directo. Não tentou esquivar-se; não era o seu estilo. Contemplou a pergunta dela, o espanto dele ameaçando tornar-se anseio.

- Onde é que foste ouvir uma coisa dessas? Olha que estás a referir-te a um negócio ultra-secreto, minha menina!

- É uma cidade pequena. - Motivo por que passara a sua vida adulta a tentar ir-se embora. Motivo por que nunca conseguiria.

Ele queria saber ao certo o que ela sabia, mas recusava-se a perguntar. Ao invés disso, limitou-se a olhá-la fixamente, um olhar tão íntimo quanto um braço em redor da sua cintura.

- Espera lá! Não me digas que andaste a falar com o druida? E como vai o mundo do ecoterrorismo ultimamente?

- Não sejas maldoso, Bob.

Ele sorriu de orelha a orelha.

- Tens razão. Seja como for, ele e eu agora dedicamo-nos praticamente ao mesmo negócio. Construir um futuro melhor. Cada um de acordo com as suas capacidades.

Olhou para ele, desgostada, encantada. Os quatro quarteirões de baixa que ela via pareciam de facto de alguma forma renovados. Talvez Kearney estivesse mesmo a renascer, a regressar aos seus dias de glória de há uma centena de anos, quando os seus animados residentes haviam formado um grupo de pressão para deslocar a capital de Washington para a sua cidade prodígio no centro do país. Essa bolha rebentara de forma tão perniciosa que Kearney levou mais um século a recuperar. Contudo, ao escutar Karsh falar sobre banda larga, a rede de acesso, tempos de satélite e rádio digital, ficou com a ideia de que a geografia morrera e que a imaginação era mais uma vez a única barreira a ultrapassar.

Passada meia hora, ela estava já a pensar como ele. Acenou para uma dependência bancária renovada do outro lado da rua, movimentos de braços amplos, qual assistente de mágico ou actriz a vender electrodomésticos no canal de vendas.

- És responsável por este?

- Talvez. - Passou a mão pelo seu rosto largo de Baldwin, divertido pelo seu próprio zelo. - Mas este novo... desenvolvimento é uma coisa diferente. Este é uma coisa boa, Karin.

- E em grande - acrescentou ela num tom imparcial.

- Não sei o que ouviste, mas trata-se de um projecto lindo. Sempre quis fazer pelo menos uma coisa na vida que fizesse com que te orgulhasses de mim.

Girou para o enfrentar. As palavras dele saídas de nenhures, da cabeça dela, tão totalmente imerecidas que os seus olhos se marejaram de lágrimas. Sempre sonhara que alguns anos de ausência o pudessem fazer gostar mais dela. Firmou-se com um braço, inspirando profundamente e pressionando a outra mão contra um olho. Demasiado aparato: tinha de parar. Ele colocou-lhe a mão no pescoço e meio ano de extinção desvaneceu-se. Em plena luz do dia. Sem se preocupar com quem poderia estar a vê-los. O antigo Robert Karsh nunca teria feito aquilo.

Permaneceram sentados, imóveis, até que as lágrimas cessaram e ele retirou a mão.

- Senti a tua falta, Coelhinha. Senti falta de estarmos lado a lado. - Ela não respondeu. Ele murmurou qualquer coisa sobre talvez conseguir uma brecha de meia hora ou assim na próxima terça-feira à noite. Ela acenou que sim, estremecendo como uma pragana de trigo num dia sem vento.

Para que ela se orgulhasse dele. Ninguém no planeta era quem pensávamos. Recuperou o controlo do rosto, olhando fixamente para o fundo da rua à esquerda. Deves achar a cidade bem diferente. Voltou-se de novo para ele, um olhar firme e sardónico já preparado. Este, porém, estava a olhar para um grupo de trabalhadores de escritório na casa dos vinte, três deles mulheres, encaminhando-se para o edifício municipal depois de terminada a sua hora de almoço.

- Se calhar tens de voltar para o escritório - disse ela. Ele virou a cabeça, sorriu e abanou a sua cabeça juvenil. O coração insensato dela voltou a apertar-se. - Vai - insistiu. A palavra soou frívola, desprendida. - Vai, deves estar esfomeado.

- Talvez vá apenas... mordiscar qualquer coisa rápida? - Ela acenou-lhe que fosse, um despedimento, uma bênção. Ele precisava de qualquer coisa mais. —Terça-feira?

Ela limitou-se a olhar para ele, uma contracção minúscula em redor dos olhos: O que achas?

Não disse nada a Daniel nessa noite. Não estava na verdade a enganá-lo; contar-lhe - abrindo a porta a conclusões erradas - seria, isso sim, enganá-lo, decepcioná-lo. Mesmo agora, ele parecia determinado em provar que era capaz de amar a sua maior ansiedade, permanecer-lhe tão dedicado quanto era para com as inocentes aves. E ela amava de facto aquele âmago dele que não conhecia mácula. O seu irmão - o Mark de antes - tinha razão: Daniel era uma árvore. Um tronco com décadas, inclinando-se em direcção ao Sol. Nem vitórias nem derrotas, apenas uma curvatura constante. De cada vez que ela o magoava, ele crescia um pouco. Nessa noite, ele parecia quase totalmente crescido.

Durante o jantar - cuscus com groselhas - a claustrofobia dos últimos dias assolou-os. Daniel estava sentado à mesa à frente dela, os cotovelos sobre a madeira de carvalho da antiga porta, os nós dos dedos pressionados contra os lábios. Ameaçava eclipsar-se na sua reflexão. Levantou-se e empilhou os pratos sujos. O cuidado sereno com que os ergueu e levou para o lava-louças traiu o facto: ela estava a derrotá-lo. Vergando os seus ideais verdes.

Pousou os pratos no lava-louças e começou a esfregá-los com um copo de água morna. Como sempre, quando lavava a louça, encostava a cabeça às portas dos armários por cima do lava-louças. Com o passar do tempo, a tinta do armário desvanecera-se numa pequena zona de forma oval, dos óleos do cabelo dele. Amava-o, de facto.

- Daniel? - chamou ela. Quase como uma verdadeira conversa banal. - Estive a pensar.

- Sim? Diz lá. - Ele soava ainda pronto a ir a qualquer lado. O seu antigo cristianismo pagão: Os animais guardam ressentimentos? Era um bom homem, o tipo de homem bom que apenas uma pessoa verdadeiramente insegura poderia achar desprezível.

- Tenho sido uma sanguessuga para ti. Uma verdadeira parasita.

Ele falou para a bacia onde tinha os pratos.

- Claro que não.

- Sim, tenho sido. Tenho andado tão preocupada com o Mark. Atrás dele o tempo todo. Receando arranjar um emprego com horas fixas de expediente, para o caso de...

- É claro - aquiesceu Daniel.

- Preciso de trabalhar. Estou a levar-nos a ambos à loucura.

- Ora!

- Estava a pensar... que podia ajudar - murmurou. - Se ainda estivesse disponível... o trabalho de que falaste, no Refúgio? - Ela morreria uma angariadora de fundos.

Ele pousou o pano da louça e voltou-se para ela. Os seus olhos perscrutaram-na, prontos para brilhar. Uma oferta de ajuda e a sua circunspecção dissipava-se. O pior já nem sequer lhe ocorria, e o melhor parecia já meio confirmado. Precisava desesperadamente de acreditar nela.

- Se apenas precisas de dinheiro...

- Não seria apenas dinheiro. - Não apenas água; não apenas ar. Não, disse a si mesma, apenas qualquer coisa.

- É porque não podemos pagar muito, pelo menos para já. As coisas estão complicadas, de momento. - Ele tinha tanta certeza de que ela ascenderia ao que de melhor havia nela que Karin quase desistiu. - Mas bem que precisamos de ti agora.

E a necessidade não deveria ser o suficiente? Algo precisava mais dela do que Mark alguma vez viria a precisar. Observou Daniel em busca de vestígios de caridade a que não se poderia dar ao luxo. Falsificaria a contabilidade, arriscaria o seu prestígio profissional, só para a manter no bom caminho? Poderia alguém confiar em alguém que confiava tanto em alguém? Olhou-o nos olhos; ele não os desviou. Precisava absolutamente dela, mas não por ela mesma. Por algo maior. Outrora, isso fora tudo o que ela alguma vez desejara. Levantou-se da mesa e avançou até ele. Beijou-o. Acordo selado, então. O que Mark não queria dela seria canalizado para outro lado. O Refúgio ficaria espantado com a sua energia. Na terça-feira seguinte, encontrou-se de novo com Robert Karsh.

Quatro meses depois e parecia já outro país. Os campos verdes por que passara em Junho passado acenavam agora em tons de dourado e castanho. Um percurso idêntico desde o aeroporto de Lincoln em direcção a Oeste, num carro alugado semelhante, porém, tudo em seu redor se alterara. Não era apenas a simples mudança de estação: a paisagem parecia mais elaborada, havia mais serranias, mais cumes, mais escarpas, falhas e pequenas matas ocultadas, perturbando a extensão perfeita de campos agrícolas, características surpreendentes onde Weber vira apenas o culminar do vazio, da vastidão. Perdera tudo isto, da primeira vez que viera.

Então, por que motivo é que nos últimos trinta quilómetros antes de Kearney tudo lhe pareceu tão familiar? Como regressar à fechada casa de Verão para ir buscar uma peça de roupa inadvertidamente deixada para trás. Não precisou de qualquer mapa, limitou-se a sair da interestadual para o MotoRest com base numa bússola interna. O letreiro cá fora ainda dizia “Bem-vindos Amantes dos Grous”, já preparado para a próxima migração de Primavera, agora a apenas quatro meses e meio de distância.

Sentiu que estava num retiro espiritual, recarregando as baterias, começando de novo. Pequenas mensagens no seu quarto voltavam a pedir-lhe que poupasse a toalha e salvasse o planeta. Foi o que fez, e foi para a cama estranhamente tranquilo. Acordou retemperado. Ao pequeno-almoço - um farto e saudável bufete com três tipos de enchidos - ocorreu-lhe que a sua escrita nunca se deveria ter tornado nada mais do que meditação pessoal, uma devoção diária para si mesmo e alguns amigos. Podia começar de novo, com o extraordinário Mark Schluter. Regressara não tanto para documentar, mas para ajudar a fazer avançar a sua história para o total desconhecido. A neurociência poderia por fim revelar-se incapaz de tranquilizar esta mente desesperadamente improvisante. Mas talvez ele pudesse ajudar Mark a improvisar.

Seguiu as direcções de Karin até Farview, River Run Estates, em ruas numeradas tão perpendiculares quanto a racionalidade pretendia ser. Encontrou a casa numa área no meio de um enorme campo nefasta, tipo forma de bolo, algo que não estivera ali ontem e não estaria com certeza amanhã. Ao subir os degraus até à porta de madeira laminada, foi assolado pela passageira sensação, não de déjà vu, mas de déjà ecrit, de uma passagem que escrevera há muito e que só agora se concretizava.

O homem que abriu a porta a Weber era um estranho. Todas as cicatrizes de Mark tinham sarado e o seu cabelo voltara a crescer. Parecia um jovem deus, algures entre Loki e Baco. Pareceu apenas medianamente surpreendido por ver Weber.

- Psil Que bom vê-lo. Onde raios é que andou? Não vai acreditar no que se tem passado por cá. - Observou o jardim atrás das costas de Weber antes de o convidar a entrar. Fechou a porta e encos-tou-se a ela, entusiasmado. —Antes que eu diga o que quer que seja: o que é que ouviu?

Todas as entrevistas clínicas deveriam decorrer na casa do sujeito. Weber aprendeu mais coisas sobre Mark em cinco minutos na sua sala de estar, do que em todos os seus encontros anteriores. Mark fê-lo sentar-se na cadeira excessivamente estofada e trouxe-lhe uma garrafa de cerveja mexicana e uma taça de amendoins tostados e cobertos de mel. Não deixou Weber começar a falar e foi remexer em qualquer coisa no quarto. Regressou com um bloco de papel e uma caneta. Fez sinal a Weber para que ligasse o gravador, os dois antigos colaboradores.

- Muito bem, vamos lá resolver isto, de uma vez por todas - disse ele.

Mark estava extraordinariamente animado, desenrolando uma história que preenchia todas as lacunas. Apressou-se a dar todas as respostas antes de Weber fazer sequer as perguntas. Traçou uma única e imaculada linha de pensamento: todos os seus amigos conspiravam para esconder o que acontecera naquela noite. Cain e Rupp sabiam; iam a falar consigo pelo walkie-talkie quando a carrinha se despistou. Porém, tinham-lhe mentido em relação a isso. A sua irmã sabia, e por isso fora substituída, para que nada revelasse. À semelhança do autor do bilhete, estava provavelmente presa em algum lado. Daniel Riegel andava a segui-lo, por razões ainda desconhecidas.

- Como se eu fosse uma criatura ou assim. Ele sabe seguir rastos e pistas. Consegue descobrir coisas da natureza invisíveis a olho nu. Coisas que você e eu nem tão-pouco sabemos que lá estão.

O namorado de uma falsa irmã segue-nos por todo o lado, disfarçado: Freud talvez fizesse mais do que uma ressonância magnética. Seguramente que o fenómeno era algo mais do que uma dissociação entre os percursos de reconhecimento ventrais e dorsais. Afinal, o que é que psicológico significava, se não um processo que não tinha ainda um substrato neurobiológico conhecido? Weber não elaborou quaisquer teorias sobre a nova crença de Mark. A sua função era apenas ajudar este novo estado mental a adaptar-se a si mesmo. Nunca mais se deixaria ser alvo de acusações de falta de compaixão. Deixaria Mark escrever o livro.

Como seria ser Mark Schluter? Viver nesta cidade, trabalhar num matadouro, e depois ver o mundo fragmentar-se de um momento para o outro. O caos puro, o absoluto desnorteamento da síndrome de Capgras contorcia as entranhas de Weber. Olhar para a pessoa que nos é mais próxima e íntima e não sentir nada. O assombro residia aí mesmo: Mark não se sentia mudado, por dentro. A improvisante consciência tratava disso. Mark continuava a sentir-se como sempre sentira, só o mundo ficara estranho. Precisava dos seus delírios para colmatar essa lacuna. O objectivo do eu era a autocontinuação.

Mark, pelo menos, era ainda ele mesmo - bem mais do que Cerald Weber poderia afirmar. Agindo com método, Weber tentou habitar o homem sentado à sua frente, tecendo teorias. Mais facilmente conseguiria canalizar mediunicamente Karin, a sua assustada investigação, as suas desesperadas e altruístas mensagens de correio electrónico. Como poderia ele habitar Mark Schluter, a absorta vítima de Capgras, quando não conseguia sequer encarnar Mark Schluter, o saudável modificador de carrinhas e técnico de matadouro? Já nem conseguia mais imaginar como era ser Gerald Weber, aquele confiante investigador da Primavera passada...

- Toda a gente nascida por aqui está envolvida na tramóia, no encobrimento. Você e Barbie são as últimas duas pessoas em quem posso confiar.

O que é que Mark achava que toda a gente estava a encobrir? Pior: o que o levaria a pensar que podia confiar em Weber? Como regra, Weber nunca colaborava com os delírios dos doentes. No entanto, fazia a vontade a todas as restantes pessoas, todos os dias da semana. O taxista paquistanês a caminho de La Guardiã, com as suas teorias acerca das ligações da Al Qaeda com a Casa Branca. O agente da segurança no aeroporto, que o fizera tirar o cinto e os sapatos. A mulher no lugar do avião ao seu lado, que lhe agarrou o braço durante a descolagem, certa de que a cabina explodiria ao atingirem os 450 metros de altitude. Fazer a vontade a Mark era status quo.

- Portanto, aparentemente eu ia a conversar com eles pelo walkie-talkie. Eles iam na carrinha de Rupp, e eu na minha. íamos atrás de qualquer coisa, tipo em perseguição. E um de nós teve de ser parado. Quer saber o mais engraçado? Esta mulher que se faz passar pela Karin? Sempre me deu a entender que estes dois estavam lá na noite do acidente, e eu não lhe dei ouvidos.

Algo acontecera a Mark na noite do acidente. E os amigos tinham-lhe mentido. O próprio Weber não conseguia explicar o bilhete do tal anjo da guarda ou interpretar os vários conjuntos de marcas de pneus na estrada. A sua própria explicação para o motivo por que o mundo parecia agora diferente a Mark não era nem sequer parcialmente satisfatória. Ao longo de todo este tempo, Mark pensara sobre o seu estado interior durante mais tempo e mais profundamente do que qualquer outra pessoa. Weber podia muito bem colaborar com as teorias dele. Talvez fazer a vontade fosse o mesmo que empatia, mas sob uma designação diferente.

Afundando-se no sofá, com os ombros no braço do mesmo e uma almofada entre os joelhos, Mark verbalizou a sua melhor hipótese. Estava inclinado em direcção a um projecto biológico secreto.

- Proezas experimentais. Como o tipo de coisas que o meu pai estava sempre a tentar alcançar. Mas em grande, a uma escala que apenas o Governo atingiria. E tem alguma coisa a ver com aves. De outra forma, por que razão é que Danny, o Homem Pássaro, andaria atrás de mim? - Também para isso Weber não tinha qualquer explicação. - A coisa deve ser bastante secreta. Se assim não fosse, já teríamos ouvido falar em qualquer coisa, certo? O que eu acho é o seguinte: tudo isto começou assim que eu saí do hospital. Fizeram-me qualquer coisa quando eu estava na mesa de operações. Está bem, a Karin substituta afirma que não foi verdadeiramente uma cirurgia. Mas eu tive uma coisa a sair-me da cabeça, não tive? Uma pequena torneira? Podiam perfeitamente ter-me injectado qualquer coisa e depois extraído por ali. Eu podia estar a sonhar toda esta situação, agora mesmo. Podem muito bem ter implantado todo este encontro aqui consigo no meu cérebro.

- Então, também me injectaram a mim, pois estou convencido de que estou aqui, também.

Mark semicerrou os olhos na direcção de Weber.

- A sério? Está a dizer...? Espere lá. Ora, deixe-se de coisas! Não é nada disso.

Escrevinhou qualquer coisa no seu bloco. Voltou a recostar-se no sofá e repousou os pés na mesa do café, olhando fixamente para o vazio. Sentou-se de um pulo, levantando o braço e apontando o dedo trémulo. Levantou-se vacilantemente e avançou até ao computador. Com a ponta do dedo indicador bateu várias vezes no vidro do monitor.

- Nunca antes me tinha ocorrido. Nunca me passou pela cabeça... Acha possível que os últimos meses da vida de Mark Schluter tenham sido programados numa máquina do Governo? - Weber não podia afirmar que tal era de todo impossível. - Isso ajudaria e muito a explicar porque me sinto como se estivesse a viver num jogo de vídeo. Um daqueles em que não conseguimos completar um nível e passar para o seguinte.

Weber sugeriu que fossem até lá fora e dessem um passeio até ao rio. Um pouco nervosamente, Mark concordou. O ar fresco fez-lhe bem. Quanto mais falavam, mais inflexível ele se tornava. Ocorreu a Weber que talvez estivesse a ajudar Mark a criar esta doença. iatrogenia. Colaboração entre médico e doente.

- Portanto, eu estou a falar com os meus amigos pelo walkie-talkie. Estamos a comunicar, vamos a perseguir uma coisa. E de repente eu vejo qualquer coisa na estrada. Guino e faço capotar a carrinha. A pergunta é: o que é que eu vi? O que estaria ali no meio da estrada naquela noite? Não há assim tantas opções. - Weber concordou. - Alguém que supostamente não devia estar ali. Não me refiro a terroristas, necessariamente. Poderia estar a trabalhar para qualquer um dos lados.

Regressaram por uma estrada poeirenta de gravilha ao longo de duas paredes de milho a dias de ser ceifado. Outono, a estação que sempre incapacitara Weber de tanta expectativa. A brisa fresca, seca, vivificante afectou Weber de uma forma que há muitos anos não afectava. O seu pulso acelerou-se, facto desencadeado pelo dia perfeito para pensar que alguma coisa ia acontecer. A seu lado, Mark caminhava carrancudo e resignado. A sua passada já não revelava quaisquer vestígios de um ferimento.

- Por vezes penso que foi, você sabe... Mark Schluter. O outro. O tipo que costumava trabalhar para ganhar a vida. O de confiança, que conseguiria passar todos os seus testes sem sequer pensar. Era ele que estava lá, no meio de nenhures. Passei-lhe com a carrinha por cima. Matei-o.

Começara a duplicar-se a si mesmo. Este homem-rapaz poderia não cessar de lançar luz sobre a consciência. Regressaram pelos campos a River Run, à Homestar. Sentaram-se lado a lado nos degraus de betão da entrada. As pernas de Mark demasiado afastadas. O cão, Blackie Dois, surgiu e enterrou o focinho nas mãos do dono. Mark acariciava e ignorava o animal ao acaso. O cão gania, incapaz de descodificar o capricho humano. Nem Weber conseguia. Renunciara a qualquer coisa que pudesse ser interpretada como exploração. No entanto, seguramente que a empatia com Mark não excluía um cuidado mais abrangente. Talvez a ciência não tivesse ainda acabado. Nada disse durante todo o tempo que pôde. Depois perguntou:

- Gostaria de vir a Nova Iorque por um tempo? - Um exame completo no Centro Médico com equipamento da última geração, o luxo de muito tempo disponível, de muitos investigadores talentosos.

Mark inclinou-se para longe do médico, espantado.

- Nova Iorque? E quê, ser atingido por um avião? - Weber asseverou-lhe que não correria qualquer perigo, mas Mark limitou-se a escarnecer, já não se deixando ludibriar. - O antraz por lá também é mato, não é?

Nada importava a não ser a confiança.

- Compreendo - cedeu Weber. - Provavelmente, é mais seguro ficar por aqui.

Mark abanou a cabeça.

- É como lhe digo, doutor. É um mundo estranho. Podem atin-gir-nos onde quer que estejamos. - Observou o horizonte em busca da pista que aí tinha de aparecer, um dia. - Mas agradeço o convite. Poderia estar morto por esta altura, se não fosse você. Você e Barbara são as únicas pessoas que realmente se preocuparam com o que me acontece. - Weber titubeou ao escutar estas palavras, as mais delirantes que Mark pronunciara em toda a tarde.

Os braços de Mark começaram a tremer, como se a temperatura do seu corpo tivesse baixado muito.

- Psi, tenho um pressentimento mesmo mau em relação à minha irmã. Já se passou, quê? Meio ano. Nem sequer uma palavra. Ninguém está disposto a contar-me o que lhe aconteceu. Tem de entender: desde que tive idade suficiente para molhar a cama que não se passa uma semana sem que ela venha ver como eu estou. Sabe-se lá porquê, ela sempre se preocupou comigo. Ela e este guardião desapareceram sem deixar rasto. Mesmo que a tenham presa, ela já teria tido tempo de arranjar uma forma de me enviar uma mensagem. Começo a pensar que tramei a minha irmã. Meti-a em sarilhos, talvez até a tenha matado, pelo simples facto de sermos parentes. Parece-lhe que... não podia ter sido ela que... ? Ela deve estar... convenhamos. Acho que provavelmente ela está...

- Fale-me dela - pediu Weber para o impedir de especular o pior.

Mark inspirou e uma sílaba brusca transformada em gargalhada emergiu dele.

- Nunca lhe conte que eu disse isto, mas ela não tem nada de especial. É a pessoa mais simples do mundo. Apenas precisa de carinho. Dê-lhe, tipo, três quintos de uma estrela de ouro e ela atravessará o deserto por si. É que, sabe, nós tínhamos uma mãe... Digamos que o mais importante para ela era acumular bênçãos. A minha mãe e a minha irmã tinham algumas questões por resolver. Sua miserável e ingrata liberal, só queres é diversão, blá blá, blá blá. Nove meses de enjoos matinais seguidos da dor mais excruciante da minha vida, para depois ires seduzir o teu professor de Educação Física, blá blá, blá blá, blá blá. Então, a Karin decide que vai ser perfeita. Trata de descobrir o que as pessoas esperam dela e age em conformidade, até à perfeição. A desilusão de um perfeito estranho é o suficiente para a deitar abaixo. Mais simples do que um animal de estimação, talvez. Apenas precisa de duas coisas: ama-me e diz-me que estou a proceder bem. Não me chames campónia indolente. Talvez, afinal, sejam três coisas. E você, Psil Também tem questões com algum irmão? Ei, não demore tanto tempo a responder. Não é uma pergunta com armadilha, nem nada disso.

- Um irmão - respondeu Weber. - Quatro anos mais novo. É cozinheiro no Nevada. - Se é que ainda por lá estava. Se é que ainda estava vivo. Weber tivera notícias de Larry pela última vez há dois anos, com demasiados pormenores acerca do festival anual dos Liberty Riders, “Lidera, Segue ou Sai da Frente”. Uma organização de motociclistas conservadores fanáticos que era tudo na vida de Lawrence Weber. Sylvie costumava importunar Weber de poucos em poucos meses para que lhe telefonasse, fizesse algum esforço para não perder o contacto. - É um bom homem - declarou Weber. - Lembra-me um pouco você.

- A sério? - A ideia lisonjeou Mark. - E os seus pais?

- Morreram - disse Weber.

Mais do que meia verdade. O pai morrera de acidente vascular cerebral quando tinha menos três anos do que Weber tinha agora. A mãe, com Alzheimer em estado avançado, estava numa instituição católica de cuidados assistidos em Dayton, onde a visitava de vez em quando. Ele e Sylvie ainda conversavam com ela ao telefone duas vezes por mês, diálogos saídos de uma peça de lonesco.

- Lamento - disse Mark, e como forma de o compensar convidou Weber para jantar. A simples amabilidade apanhou Weber desprevenido. Quantas minúsculas cortesias mentais persistiam ainda nos seus próprios meandros obscuros, absortas em relação aos desastres que as atingiam? O jantar foi cervejas bebidas da garrafa e lasanha congelada aquecida no microondas. - Foi a irmã substituta que trouxe isto. Coma por sua própria conta e risco.

- Estás bem? - perguntou Sylvie naquela noite. - Soas-me diferente, de alguma forma. A tua voz parece muito... não sei. Desenvolta. Como um filósofo ou assim.

- Filósofo. Ora aí está uma futura carreira.

- Deixas-me nervosa, Marido.

De facto, sentia-se diferente, até mesmo para si próprio: amalgamado algures fora do domínio do julgamento público.

- Estranho, não é? Duas viagens, mais de seis mil quilómetros cada, apenas para ver um homem que apenas quer que eu seja um detective.

- E ainda dizem que os médicos já não fazem consultas ao domicílio.

- Mas que caso! A Medicina precisa de ter conhecimento disto.

- A Medicina deveria saber muitas coisas. Estou contente que estejas a fazer isto. Eu conheço-te, Marido. Este caso tem-te consumido.

- Mulher? Lembra-me de telefonar ao meu irmão quando chegar a casa.

Depois da chamada, saiu e dirigiu-se à cidade, quarteirão a seguir a quarteirão de edifícios semelhantes a casas de biscoito de gengibre, sob o globo âmbar dos candeeiros de rua, como se se encaminhasse para algum encontro obscuro. O Outono tornava o ar mais espesso. O ano começava a chegar ao seu fim, carregado de preparativos. Enormes bordos flamejavam antes de entrarem no período de dormência. Um inquieto enxame de insectos fazia ressoar o seu coro da morte. Deteve-se na esquina de quatro estruturas de madeira em A, uma tremeluzindo com um brilho do século XIX, duas iluminadas pela televisão e a quarta às escuras. Nunca se sentira mais desejoso de descobrir. Descobrir o quê, não sabia dizer. O que fazia ele de volta? Algo a que o Outono prometia responder.

Continuava a andar ao acaso quando a rua ficou às escuras. Demorou quatro segundos a pensar: falha de energia. A excitação de tempestades e ambulâncias apoderou-se dele. Olhou para cima; o céu estava muito estrelado. Já se esquecera de quantas podia haver. Oceanos delas, derramando-se em rios. Já esquecera como a escuridão podia ser rica, fértil. Conseguia ver, embora mal, sem cor, mergulhado em acromatopsia. Ambos os acromatópsicos que entrevistara se haviam enfurecido contra as próprias palavras, vermelho, amarelo, azul. Viviam para o mundo nocturno, onde eram superiores aos não daltónicos e meramente comuns. Weber procurou atabalhoadamente quarteirões no meio da escuridão, o seu sentido de orientação falhando. Quando as luzes se voltaram a acender, sentiu a banalidade da visão.

No dia seguinte, Mark levou-o à pesca.

- Nada de especial, Psi. Sem extravagâncias. Talvez o Mark de antes lhe ensinasse a iscar as melhores minhocas e pequenos peixes. Mas hoje vamos usar engodo comercial. Minhocas odoríferas de borracha a arrastar os seus traseiros indolentes e de falsos invertebrados pela água até algum falhado de um achigã o tentar morder. Qualquer pessoa é capaz de o fazer. Crianças. Neuropsiquiatras. Qualquer um.

O local da pescaria era secreto, como o são todos. Weber teve de fazer um voto de silêncio antes de Mark o levar. Shelter Lake, em terras privadas, revelou ser pouco mais do que um lago de orvalho com ilusões de grandeza.

- Ora, aqui estamos nós. O esconderijo. Apanhar e libertar - instruiu Mark. - Quem apanhar mais peixes até às duas da tarde é o ser humano superior. Partida, largada, fugida. Meu, eu diria que você nunca iscou um anzol.

- Apenas em legítima defesa - confessou Weber.

O pai levara-o, todos os verões até ele fazer 12 anos - percas num pequeno lago do outro lado da fronteira do Indiana. O pai disse-lhe que o peixe não sentia nada e ele acreditou, sem quaisquer provas disso. Disparate; é claro que sentiam dor. Como é que ele não se apercebera disso? Certa vez levou Jess à pesca, uma distracção nostálgica, nas margens de South Fork, em Long Island, quando ela ainda era pequena. A expedição terminou em desastre quando ela iscou uma perca pelo olho. Conseguia ainda vê-la, a correr para cima e para baixo na praia, aos gritos. Essa fora a última vez.

- Tem a certeza de que isto é legal? - perguntou a Mark.

Mark limitou-se a rir.

- Eu assumo as culpas por si, Psi, se formos apanhados. Eu trato de manter a sua folha limpa.

Pescaram da margem, Mark praguejando.

- Devíamos ter roubado o raio do barco ao Rupp. De qualquer forma, em parte também é meu. Provavelmente, ele dava-me um tiro pelas costas se eu tentasse ir lá tirá-lo. Dá para acreditar que me mentiram? Fosse quem fosse que perseguíamos em conjunto naquela noite, deve ter conseguido fazer-lhes a cabeça. Agora nunca saberei afinal o que aconteceu. - Pescaram durante algum tempo, lançando e recolhendo a linha sem convicção. Weber não apanhou nada. Mark divertiu-se a zombar dele. - Não admira que não traga nada. Você lança como uma lançadora de softball com uma bola de quarenta centímetros.

Mark apanhou meia dúzia de percas de tamanho médio. Weber inspeccionava a vítima de cada vez, antes de Mark a devolver à água.

- Tem a certeza de que são todos diferentes? Acho que está a apanhar o mesmo peixe uma e outra vez.

- Deve estar a gozar comigo! Os primeiros fartavam-se de dar luta. Este está completamente flácido. Não têm nada a ver uns com os outros. - Mark avançou pela água até aos tornozelos, abanando a cabeça numa indignação divertida. - Este parece-se com algum peixe que conheça? Já perdeu por completo o tino, Psi. Demasiado Sol directo. Não é bom para alguém da sua profissão. - Ergueu-se como uma garça, inclinando-se para a frente, imóvel no meio da água. Pescava da mesma forma que Weber dactilografava: num enlevo distraído. Mark precisara de afastar Weber da cidade, de levá-lo para um lugar tranquilo o suficiente para pensar e falar sem o perigo de alguém os escutar. - Porque acha que se dão a tanto trabalho por mim, quando eu não sei nada? Toda esta elaborada fantasia, apenas para me manter na ignorância. Porque não matarem-me? Poderiam tê-lo feito sem problema, nos Cuidados Intensivos. Esgueiravam-se até ao quarto, desligavam as máquinas e pronto.

-Talvez saiba alguma coisa que eles pretendem descobrir. A ideia aturdiu Mark. Aturdiu Weber ainda mais, escutá-la sair da sua própria boca.

- Deve ser isso! - exclamou Mark. - Como diz o bilhete: mantido vivo para trazer outra pessoa de volta. Fazer alguma coisa com o que sei. Mas eu não sei o que sei.

- Sabe muita coisa - insistiu Weber. - Em relação a algumas coisas, sabe mais do que qualquer pessoa viva.

Mark girou o pescoço, os seus olhos semelhantes ao de uma coruja-das-torres.

- Sei?

- Sabe o que significa ser você. Agora. Aqui.

Mark voltou a contemplar a água, tão derrotado que nem sequer foi capaz de se enfurecer.

- Raios se sei. Nem tão-pouco tenho a certeza de que isto é aqui. Mudou os iscos para percas giratórias, não esperando apanhar

nada com elas num lago tão pequeno, mas pelo simples prazer de os arrastar pela água. Weber estava assombrado com a sua própria inaptidão, Não apenas o facto de não conseguir apanhar nada, mas a total incapacidade para estar sentado quieto e se divertir. Desperdiçar meio dia, segurando um pau com um fio na ponta, enquanto toda a sua carreira, todos os seus deveres profissionais, se desenrolavam à sua volta. Mas este era o seu dever profissional agora, a auto-eleita descrição das suas funções. Sentar-se quieto e observar, não uma síndrome, mas um ser improvisante. Sem isso, os críticos tinham razão e o resto da sua vida era uma mentira.

Mark, entretanto, ficara tão plácido quanto um peixe que se alimenta no fundo marinho. Saboreava o ar em grandes goladas.

- Sabe, PsR Estive a pensar. Acho que você e eu talvez estejamos de alguma forma ligados. Ei, não faça esse ar neurológico. Sabe a que me refiro, Sherlock. Estou apenas a falar de rotas de colisão e esse tipo de coisas. Escute. - Mark baixou o tom de voz para que nenhum dos cordados mais próximos o ouvisse. - Acredita em anjos da guarda?

Angustiava Weber recordar-se: fora a mais devota das crianças. Um miúdo para o qual não havia nada melhor do que vestir uma sotaina branca e balançar qualquer coisa fumegante e em latão. Até mesmo os pais o achavam perturbadoramente espiritual. Considerava ser sua responsabilidade pessoal guiar o mundo na direcção do antigo e reverente. O seu zelo pela pureza, uma qualquer mania compulsiva da limpeza da alma, perdurara, apenas com ténues modificações, durante toda a adolescência, abarcando mesmo acessos de vergonha pela incapacidade de se abster do que ele e o seu padre apelidavam tacitamente de susceptibilidade, o prazer que depreciava toda a graça, pelo simples facto de ser solitário. Nem a ciência matara por completo a sua crença; os professores jesuítas haviam mantido factos e fé engenhosamente harmonizados. Depois, na faculdade, a religião morrera, da noite para o dia, despercebida e não chorada, simplesmente ao conhecer Sylvie, cuja fé ilimitada na suficiência humana o levara a colocar de lado coisas infantis. Depois disso, toda a sua infância lhe parecia ter pertencido a outra pessoa. Nada tinha a ver consigo. Nada restava desse rapaz se não a confiança adulta no bisturi da ciência.

- Não - respondeu. Nada de anjos à excepção daqueles que a selecção deixava de pé.

- Não - repetiu Mark. - Foi o que pensei. Eu também não, até receber este bilhete. - O seu rosto contorceu-se. - Acha que a minha irmã poderia ter escrito...? Não, isso é um disparate. Ela é como você. Realista até à medula.

Ficaram a observar a ondulação que as linhas provocavam na água. Weber começou a ficar com visão de túnel, em transe devido ao seu isco. O ar em todas as direcções ficou escuro como o lago. Olhou para cima, para um tecto de nuvens como uma beringela salpicada de farinha. Só então sentiu as gotas de chuva.

- Pois é - confirmou Mark. - Tempestades acompanhadas de trovoadas. Foi o que vi no canal da meteorologia.

- Já sabia disto? - A água começou a cair em todo o redor deles. - Então, por que raio nos trouxe a pescar?

- Oh, vá lá. Três quartos do que dizem naquele programa é pago por algum patrocinador.

Weber despachou-se, mas Mark nem sequer se apressou a colocar o material na caixa. Encaminharam-se para o carro no meio de colunas de água, Mark fatalista, cacarejando estranhamente, e Weber a correr.

- Qual é a pressa? - gritou Mark, por cima do barulho da chuva. Um relâmpago fez um rasgão no céu, seguido de um trovão tão violento que Mark caiu ao chão. Ficou sentado, a rir-se. - Fez-me cair literalmente de cu! - Weber vacilou entre ajudar Mark e salvar a sua própria vida. Não fez nem uma coisa nem outra, permanecendo no meio de um campo de erva a observar Mark a tentar pôr-se de pé. Mark olhou para cima, rindo para a torrente. - Vá, faz mais uma vez! Desafio-te! - O céu voltou a abrir-se e ele a cair no chão.

Quando avançaram os dois para o carro eram já apedrejados por granizo. Esgueiraram-se encharcados para o banco da frente. Um saco de bolas de naftalina rebentou, agredindo o carro alugado com força suficiente para o deixar marcado. Mark esticou o pescoço, olhando directamente para cima através do pára-brisas.

- Do que precisamos ainda? Gafanhotos. Sapos. Um primogénito. - Depois remeteu-se ao silêncio, dentro do casulo cinzento esmurrado. - Bom, talvez já tenhamos tido isso. - O granizo deu novamente lugar a chuva electrificada, fraca o suficiente para ser enfrentada. Ainda assim, Weber não ligou o carro. Por fim, Mark disse: - Conte-me qualquer coisa sobre você. De quando era miúdo ou assim. Não precisa de ser nada muito sério. Apenas uma coisa casual. Pode até inventá-la, se quiser. De outra forma, como é que hei-de saber quem você é?

Não ocorria nada a Weber. Esforçara-se a vida inteira por apagar o seu passado, nada de biografia a não ser o que coubesse nas badanas de um livro. Olhou para Mark, tentando pensar em alguma história.

- Gostava de apreciar as raparigas à distância, sem que elas soubessem.

Mark enrolou o lábio e abanou a cabeça.

- Também o fiz. Muito pouco retorno do investimento. E como foi que casou, Romeu?

- Os meus amigos montaram uma intervenção. Arranjaram-me um encontro sem que eu soubesse com quem era. Eu devia supostamente ir a um café numa tarde de domingo e encontrar uma mulher que se parecesse exactamente com Leslie Caron. Cheguei lá e nenhuma das mulheres que lá estavam condizia nem remotamente com a descrição. Afinal, a rapariga ficara muito nervosa e não aparecera. Mas eu não sabia, por isso, limitei-me a ficar ali especado a observar todas as raparigas e a pensar: “Bom, podia ser, talvez...” Está a ver, cabelo castanho, simetria bilateral... Uma empregada perguntou-me se podia ajudar. Eu disse-lhe que procurava uma rapariga que se parecia com Leslie Caron. Ela confundiu-me com um jovem impertinente com sentido de humor. Três anos depois, casámos.

- Está a gozar comigo! Casou por um acidente? Você é doido.

- Era muito jovem.

- E, por acaso, ela não se parecia com... Lindsay Whozit?

- Nada mesmo. Talvez um pouco mais do género de Natalie Wood. Mas mais como... a mulher com quem eu iria casar.

Mark olhou através da cascata que caía em redor deles, a sua alegria desvanecendo-se.

- Está a ver como é o destino? Cinco centímetros para a esquerda e a sua vida é a de outra pessoa. Ela está simplesmente ali, a ganhar a vida, e tumba: a sua companheira para o resto da vida. Eu diria que alguém olha por si. - Weber ligou o carro. Mark agarrou-lhe o braço. - Só que nós não acreditamos nessas coisas de anjos, não é? Tipos como nós?

Weber via agora o quanto falhara a este homem e à sua irmã. Não voltaria a fazê-lo. Fez telefonemas, sondando a sua rede de colegas. Ficaram desconcertados por ter notícias suas, partindo do pressuposto de que ele se exilara algures para morrer de desonra pública. Contudo, a história de Mark fascinou-os. Nenhum deles alguma vez trabalhara com uma coisa semelhante. E nenhum deles propôs o mesmo procedimento a seguir, excepto o par que sugeriu deixar uma doença que não colocava qualquer ameaça por tratar. A maioria soou-lhe agradecida quando Weber se despediu.

Aproveitava a ligação à Internet de banda larga do hotel até altas horas da noite. Acedia a todos os índices médicos, explorando cada referência clínica na literatura. Fizera o mesmo anteriormente, mas de forma mais rápida, menos minuciosa. O doente era do dr. Hayes; Weber era apenas um entrevistador convidado. Olhara para a literatura o suficiente para concluir que não existia uma verdadeira literatura. Os poucos casos que encontrara não tinham muitas relações directas com este.

Numa segunda viagem pelas mais actuais bases de dados, um resumo chamou-lhe a atenção. Butler, P. V. Um rapaz de 17 anos com delírios típicos da síndrome de Capgras no seguimento de uma traumática lesão cerebral. Tratamento e resultado: ideação completamente resolvida no período de 14 dias após o começo da toma diária de 5 mg de olanzapina.

Verificou a data: Agosto de 2000. Tinha dois anos e fora publicado no Australian and New Zealand Journal of Psychiatry. Não tinha desculpa para não o ter visto da primeira vez que fizera o mesmo tipo de pesquisa. Contudo, da primeira vez, não estivera verdadeiramente à procura. A irmã suplicara-lhe um qualquer tratamento, mas Weber não quisera que a Capgras fosse tratável com mais um comprimido milagroso acabado de lançar no mercado. Psicofarmacolo-gia: ou se acertava ou se errava, difícil de ajustar, carregada de efeitos secundários, mascarava sintomas e, uma vez iniciada, difícil de diminuir e de deixar de tomar. A próxima geração de médicos recordaria Weber sem dúvida tão tristemente quanto ele recordava os seus predecessores. O nível geral de barbaridade diminuíra, mas nunca tão rápida ou totalmente quanto se pensava. Ou talvez ele fosse o último dos bárbaros. Meses de sofrimento desnecessário devido ao puritanismo cego de Weber. Porque nunca considerara Mark como nada mais do que uma boa história.

Karin veio encontrar-se com ele ao hotel. Até subiu ao seu quarto, trazendo o namorado como protecção. Por nenhuma razão aparente, Daniel Riegel, um homem muito correcto e simpático, fez Weber sentir-se extremamente desconfortável. Constrangimento espontâneo, escondido numa qualquer associação: a barbicha, a camisa larga de gola à padre, a aura de calma auto-aprovação. Karin estava compreensivelmente ansiosa. Magoara-a com a sua repentina partida da primeira visita e desconcertara-a ao concordar com uma segunda. Os lábios dela mexiam-se ao mesmo tempo que Weber falava, combatendo a esperança de que ele pudesse ainda ajudá-los. Como fora que ela adquirira tal esperança, Weber podia apenas debilmente imaginar. O modo como escolhemos ter esperança neste ou naquele acontecimento, nesta ou naquela pessoa, no decurso dos evos, Weber não fazia a mínima ideia.

Arrumara o quarto antes da chegada deles, escondendo as suas coisas, qual esquilo, em armários e gavetas. Esquecera-se de um par de meias, um copo de batido e do seu livro de cabeceira - Os Setes Pilares da Sabedoria - e não podia agora guardá-los sem chamar a atenção. O quarto não oferecia grandes condições para Se sentarem, por isso Weber não conseguiu conduzir o encontro com o mesmo ritmo de uma visita ao seu consultório. Pela sua parte, Karin e o seu Daniel abordaram o encontro como se tivessem sido arrastados a tribunal. E Weber nem lhes apresentara ainda quaisquer opções.

Descreveu a sua visita de avaliação a Mark. O estado dele estava definitivamente mais pronunciado. Uma melhoria espontânea não parecia mais provável. A terapia comportamental falhara.

- Continuo a acreditar que Mark não corre perigo de magoar ninguém - declarou. Karin arfou, o que o irritou. - Acho que está na altura de tentarmos algo mais agressivo. Recomendo que Mark comece um regime de baixa dosagem de olanzapina.

Karin pestanejou ao escutar a palavra.

- É alguma coisa nova? - Nova desde Junho?

Daniel desafiou-o.

- Que tipo de medicamento é esse, exactamente? - Weber teve vontade de puxar dos galões. Ao invés disso, arqueou as sobrancelhas. - Quero dizer... é um... a que categoria pertence? É um anti-depressivo?

- É um antipsicótico. - Weber encontrou o tom exacto de certeza profissional, porém, ambos os interlocutores foram acometidos por um medo reflexo. Karin ficou vermelha.

- O meu irmão não é psicótico. Nem sequer é...

Weber estava preparado com as necessárias garantias.

- Mark não é esquizofrénico, mas desenvolveu sintomas complicados. Este medicamento é eficaz a contra-atacar esses sintomas. Teve uma taxa de sucesso muito boa num caso semelhante... noutro local.

Daniel refreou-se.

- Não quereríamos drogá-lo ou colocá-lo numa espécie de camisa-de-forças química. - Olhou para Karin em busca de confirmação, mas ela não o apoiou.

- Não ficaria numa camisa-de-forças química. - Não mais do que toda a gente, sempre. - Um pequeno número de pessoas manifesta letargia e algumas ganham peso. A olanzapina ajusta os níveis de vários neurotransmissores, incluindo a serotonina e a dopamina. Se resultar com Mark, reduzirá a sua agitação e confusão. Com sorte, há a possibilidade de o tornar mais lúcido, menos susceptível a explicações extraordinárias.

- Sorte? - inquiriu Karin.

Weber sorriu e esticou as mãos.

- É a grande aliada da Medicina.

- E ele voltaria a reconhecer-me? - Pronta para tentar qualquer coisa.

- Não lhe posso dar garantias. Mas parece de facto haver um precedente.

Daniel aparelhou-se para a batalha moral.

- Estes medicamentos não provocam dependência?

- A olanzapina não é viciante. - Weber não referiu durante quanto tempo Mark teria de a tomar pela simples razão de não o saber. Daniel persistiu. Ouvira histórias. Antipsicóticos que produziam retraimento social, ausência de afectividade. Weber realçou amavelmente o óbvio: Mark estava já pior. Daniel deu início a uma lista de todos os efeitos secundários conhecidos da medicação. Weber acenou com a cabeça, combatendo a crescente irritação que sentia. Queria ver o homem em apuros, a arrepender-se. - É um medicamento mais recente, um dos chamados antipsicóticos atípicos. Tem comprovadamente menos efeitos secundários do que a maioria.

Karin estava sentada na ponta da cadeira purpúrea do hotel, abanando a perna. Hipotensão postural e acatisia: dois dos efeitos secundários da olanzapina. Sofrimento por simpatia, e antecipação.

- O que Daniel quer dizer é que... tememos que o medicamento possa transformar Mark noutra pessoa.

Exactamente o resultado que ela estava a pedir a Weber que produzisse. Weber hesitou, mas depois acabou por dizer:

- Mas outra pessoa já ele é agora.

A consulta terminou com os três inquietos, irritados. Weber sentia-se frustrado, contrariado. Daniel Riegel recolheu-se ao seu receio moral. Karin parecia uma montanha-russa emocional. Queria desesperadamente o comprimido mágico, mas não podia decidir sem desiludir alguém. Ama-me e diz-me que estou a proceder bem.

- Se tem a certeza de que isso lhe diminuirá os sintomas - sondou ela, mas Weber recusava-se a fazer qualquer tipo de promessa. - Preciso de pensar nisto. De pesar os prós e os contras.

- Demore o tempo que precisar - disse-lhe Weber. - Todo o tempo do mundo.

Telefonou a Sylvie, saiu para jantar, tomou um duche, leu, escreveu até um pouco, embora não lhe tenha corrido muito bem. Quando foi abrir a sua caixa de correio electrónico, descobriu que já tinha uma mensagem de Daniel. Ficara assustado com alguma da informação que encontrara na Internet, um sítio que anunciava: “Olanzapina usada para tratar esquizofrenia. Funciona ao reduzir níveis invulgarmente elevados de actividade cerebral.” A mensagem estava carregada de ligações a sítios sobre incompetência ou negligência médica, listas de efeitos secundários conhecidos e suspeitados da olanzapina. A mensagem era irritantemente cuidadosa. Weber tinha conhecimento de que a olanzapina produzia mudanças drásticas nos níveis de açúcar no sangue? Uma acção judicial a aguardar decisão chegava mesmo a afirmar que a olanzapina “transformara algumas pessoas em diabéticos”. Daniel negou o seu papel no processo de tomada de decisão. “Mas gostaria de ajudar Karin a tomar a decisão mais acertada.”

A bênção da disponibilidade e abundância de informação: a Internet a democratizar até os cuidados de saúde. Suponhamos que dávamos a todas as farmacêuticas uma classificação tipo Amazon. A sabedoria da multidão. Acabem de uma vez por todas com os especialistas. Weber respirou fundo e começou a sua resposta. Aqui estava precisamente o motivo por que o exercício da Medicina erigia tantas barreiras entre quem a exercia e quem a ela recorria. Era um erro responder a esta mensagem. Mas Weber fê-lo, o mais atenciosamente possível. Uma dívida a saldar. Estava consciente dos possíveis efeitos secundários do medicamento e mencionara-os aquando do último encontro. A sua própria filha era diabética e não tinha qualquer desejo de induzir tal doença em ninguém. Não era também do seu interesse sugerir qualquer direcção a tomar com que Karin não se sentisse totalmente confortável. Daniel estava a proceder bem ao informá-la o mais possível. A decisão estava óbvia e unicamente nas mãos de Karin, mas Weber estava à disposição dela para a ajudar de todas as formas possíveis. Enviou a mensagem para ela também.

Adormeceu revolvendo questões suas, pelas quais não sentia grande apelo. O que desencadeara em si tamanha e interminável surpresa, esta sensação de estar a despertar de um longo embuste? Por que motivo é que este caso o perturbara e não as centenas deles antes deste? Desde a puberdade que não duvidava tanto dos seus impulsos. Quando é que se sentiria exonerado, saldado, de novo preparado para confiar em si mesmo? Tornara-se num tema de intenso fascínio clínico, o alvo da sua própria experiência aberta...

Na manhã seguinte, andou pela cidade em busca do local onde tomara o pequeno-almoço vários meses antes. O ar estava fresco e tonificante, preparando-o para qualquer coisa. Límpido e vigoroso, de um azul cor de ovo de tordo-americano na direcção dos quatro pontos cardeais. Os edifícios, carros, relva e troncos de árvore todos refulgiam, sobressaturados. Era como se estivesse num festival das colheitas captado em Kodachrome. Poeira e folha seca de milho no seu nariz: não se recordava da última vez que sentira tão rudemente o cheiro de uma coisa. Sentiu-se como quando, aos 17 anos, finalista do liceu católico Chaminade em Dayton, se colocara a si mesmo atarefa de escrever por dia um poema em estilo persa. Nessa altura, sabia que se tornaria poeta. Agora preenchia com esta sensação de terrível fraudulência novas possibilidades líricas.

Deixara os críticos convencerem-no. Algo se corroerá, o prazer que residia no âmago do que fazia. Os três livros pareciam agora igualmente superficiais, vãos e egoístas. Quanto mais corajosa Sylvie se mostrara perante a sua falta de alento, mais certeza ele tivera de que a desiludira, de que ela perdera uma qualquer fé básica nele e estava demasiado assustada para o admitir. Quem sabia de que forma Karin Schluter o via?

Depois de dobrar muitas esquinas ao acaso, deu com o restaurante. Uma grelha à qual era impossível escapar: não era uma cidade onde alguém se pudesse perder. Pronto para empurrar a porta e desafiar a memória da empregada, olhou para o interior através do vidro. Karin Schluter estava sentada numa mesa ao canto frente a um homem que não era claramente Daniel Riegel. Este homem, numa gravata verde-azulada e fato cinza-escuro, parecia capaz de comprar o ecologista com o troco que caíra do bolso para o forro do casaco. O par estava de mãos dadas por cima da mesa cheia de louça do pequeno-almoço. Weber recuou, virou a esquina e continuou a andar. Talvez ela o tivesse visto. Atravessou para o outro passeio e encaminhou-se para o final da rua. Por cima do ombro, vislumbrou as montras das lojas: escritórios de advocacia, uma loja de discos escura e atravancada com a montra rachada, um clube de vídeo com uma flâmula branca volante onde, em letras coloridas, se lia “Quarta-feira Tudo a Um Dólar”. Por trás do tapume de alumínio brilhante e da sinalética em plástico emergiam pedaços de tijolo e mísulas da década de 1890. A cidade inteira vivia numa contínua amnésia retrógrada.

Ninguém lhe podia pedir que fizesse mais do que fizera agora. Passara mais tempo com Mark do que qualquer clínico se podia dar ao luxo. Encontrara o melhor tratamento disponível. Colocara-se à disposição de Karin na decisão desta. Não beneficiaria com a visita de nenhuma forma. Na verdade, toda a viagem custara-lhe uma quantidade de dinheiro e de tempo considerável. Porém, não tinha ainda vontade de se ir embora. Não ajustara ainda as suas contas com Mark. Caminhou de volta ao hotel, comeu qualquer coisa do bufete, meteu-se no carro e conduziu até Farview.

Num campo a cerca de três quilómetros da cidade, passou por um brontossauro quadrangular verde que ceifava as filas altas de milho. Os campos adquiriam uma beleza severa, minimalista ao morrer. Nada poderia apanhá-lo de surpresa aqui nestes horizontes abertos. Os invernos seriam o pior, é claro. Gostaria de tentar um Fevereiro aqui. Semanas de temperaturas abaixo de zero, incrustadas de gelo, os ventos soprando do Dakota do Norte e do Sul sem nada que os abrandasse durante centenas de quilómetros. Olhou por cima de um outeiro orlado de cereal, para uma casa pouco melhor do que uma cabana. Imaginou-se numa destas casas de ripas cinzento-claras, ligado à humanidade por nenhum meio de comunicação mais avançado do que a rádio. Pareceu-lhe, ao passar de carro, um dos últimos locais do país onde qualquer pessoa teria de enfrentar o conteúdo da sua própria alma, despida de qualquer embrulho.

Alguns anos antes, River Run Estates fora um único campo de trigo ou soja. E algumas décadas antes disso fora uma dúzia de espécies de ervas para as quais Weber não tinha nome. Daqui a vinte anos, dois mil, evoluiria para ervas de novo, sem qualquer memória deste breve interlúdio humano. Havia outro carro na entrada da garagem de Mark; adivinhou a quem pertencia. O pulso de Weber acelerou, um impulso de luta ou fuga inesperado. Observou o seu rosto no espelho retrovisor: parecia um anão de jardim descorado. Chegou à porta da frente sem qualquer razão plausível, quer profissional quer pessoal, mas Mark abriu-a como se o esperasse. Weber viu-a por cima do ombro de Mark, sentada à mesa da cozinha. Sorria para si, acanhada, familiarizada. Weber continuava sem saber quem é que ela lhe fazia lembrar. Um primeiro vislumbre de reconhecimento assolou-o, e ele ignorou-o. Ela deu-lhe as boas-vindas, um antigo confidente. Ele retraiu-se, o esgar culpado que se costuma fazer ao passar na alfândega com contrabando na mala.

Mark sacudiu-o pelos ombros, satisfeito.

- Então, estão ambos aqui, as últimas duas pessoas em quem posso confiar. É bastante interessante só por si. Não acham que é interessante? As únicas pessoas que continuam comigo são as que conheci desde o acidente. Entre. Puxe uma cadeira. Estávamos precisamente a rever possíveis planos. Formas de fazer os culpados sair do mato.

Barbara sugou as bochechas e ergueu as sobrancelhas.

- Não era bem sobre isso que estávamos a falar, Mark.

Weber admirou o ar impassível dela. Parecia impossível que nunca tivesse tido filhos.

- Mais coisa menos coisa - argumentou Mark. - Não vamos desentender-nos por causa de pormenores técnicos.

- Então, do que estavam a falar? - perguntou Weber a Barbeira. Exposto, vacilante, afogando-se na parte mais baixa da piscina.

O sorriso dela sugeriu uma conversa privada.

- Estava apenas a sugerir aqui ao jovem Mark...

- Também conhecido como eu...

- ... que está na altura de uma nova abordagem. Se ele pretende saber o que Karin quer...

- Ela refere-se à pseudoirm...

- Se o que ele quer é “entendê-la a fundo”, então o melhor plano é conversar simplesmente com ela. Sentar-se com calma e perguntar-lhe tudo. Quem ela pensa que é. Quem ela pensa que ele é. O que recorda do seu próprio passado. Estar atento a...

- Uma espécie de operação com agentes infiltrados, está a ver? Fazê-la sair do esconderijo. Testar os álibis e briefings. Depois pas-sar-lhe uma rasteira e fazer com que confesse alguma coisa.

- Mister Schluter!

Mark fez continência.

- Presente.

- Não é nada esse o espírito...

- Esperem lá. Demasiado excitante. Tenho de ir à casa de banho. Ultimamente parece que tenho de fazer chichi a toda a hora. Doutor? Que idade é preciso ter para se ter alguma coisa na próstata? -Não esperou por uma resposta.

Weber olhou para Barbara, admirando. O plano dela possuía uma beleza simples, fora do alcance da teoria neurológica. Ninguém - nem os tipos inteligentes dos computadores, nem os cartesianos ou neo-cartesianos, nem os behavioristas dissimulados revivalistas, nem os farmacologistas ou os funcionalistas ou os adeptos de atribuir as culpas de tudo a lesões -, nenhum deles a não ser um civil o teria sugerido. E talvez não fosse mais destrutivo ou inútil do que qualquer outra coisa de que a ciência se lembrasse. Poderia não ter quaisquer resultados e ainda assim ser útil.

Ela evitou os olhos dele e murmurou uma pergunta. Ele respondeu:

- Sobretudo Nova Iorque.

Ela levantou os olhos, sorrindo num misto de alarme e embaraço.

- Desculpe! Eu disse “onde”? Queria dizer “como”?

- Ah! Nesse caso a resposta é “sobretudo trémulo”.

As palavras pareceram pronunciadas por outra pessoa. Mas sur-preenderam-no menos do que o conforto imediato que lhe proporcionaram. Emergindo do esconderijo, ao fim de meses: podia dizer qualquer coisa a Barbara, esta improvável auxiliar, esta mulher imperscrutável.

Barbara lidou com a confissão dele calmamente.

- É claro que tem andado. Se não estivesse abalado, haveria alguma coisa de errado consigo. A época de caça a si está aberta.

- Uma auxiliar de enfermagem a par da última sátira do The New Yorker. Mas o mais natural sentimento partilhado imaginável. Ela levantou os olhos, as pupilas dos seus olhos cor de avelã tão grandes quanto as manchas nas asas de uma borboleta nocturna. Conheciam-no. - Para os humanos tudo tem a ver com uma hierarquia, não é? Mesmo quando a classificação é imaginária.

- Não é um concurso no qual tenha muito interesse. Inclinou-se nas pernas traseiras da cadeira, o mesmo ar de cepticismo divertido com que acabara de presentear Mark.

- É claro que tem interesse. Este livro é você. Os predadores começam a fechar o círculo. Nada de imaginário nisso. O que vem fazer, rebolar e fazer-se de morto?

A mais amável das reprimendas, uma censura enraizada numa total lealdade. Confiança absoluta nele, mas com que autoridade?

hora e meia de tempo partilhado e a leitura dos livros dele. Contudo, ela via o que Sylvíe não via. A mulher perturbava-o; porquê? Ror que motivo lia ela críticas a livros? O que fazia aqui, na casa de um antigo doente? Poderiam estes dois estar envolvidos? A ideia era uma loucura. Uma visita privada, meses depois de Mark ter alta: fazia ainda menos parte da descrição das funções dela do que das dele. E, no entanto, aqui estava ele, também. Ela examinou-o, desconfiando dos motivos ocultos dele. E que resposta poderia ele dar à sua pergunta? Levantou-se e não disse nada, pronto para rebolar e fazer-se de morto.

Mark emergiu da casa de banho, ainda a puxar o fecho. Balançava a cabeça, tão animado quanto Weber alguma vez o vira.

- Muito bem, já sei qual vai ser o plano. O que vou fazer é o seguinte.

As palavras dele soaram sumidas e muito distantes. Weber não conseguia percebê-las, por cima do barulho em segundo plano.

A cara de Barbara Gillespie, aquela oval, continuava virada para ele, a mais singela das interrogações. O estômago de Weber respondeu por si.

Acabaram os dois num restaurante em Kearney, uma daquelas cadeias formadas em Minneapolis ou Atlanta e enviadas por fax para o resto do país. A América histórica e desaparecida, reencarnada sob a forma de franchises reconfortantes. Este imitava supostamente uma mina de prata da década de 1880, deslocada cerca de 650 quilómetros. Mas, a bem dizer, Weber já estivera numa idêntica em Queens.

O à-vontade da conversa entre ambos confundiu-o. Falaram naquele tipo de estenografia comprimida e cómica de pessoas que se conhecem desde a infância. Idioglossia, tão partilhada quanto qualquer outra. Debicaram cebola frita, cavaqueando sem terem de se explicar. É claro que tinham o cérebro de Mark como tema de conversa, um tópico de interesse inesgotável para ambos.

- Então, o que acha, pessoalmente, de Mark começar a tomar esta medicação? - O tom de voz de Barbara não deixou escapar nada, nenhuma insinuação da sua própria opinião.

O interesse dela em Mark irritava-o, inculpando o seu próprio. Porque haveria ela de ser tão íntima do rapaz, tendo em conta que partilhava ainda menos com Mark do que Weber? Abanou a cabeça e passou a mão pela sua futura careca.

- Estou hesitante, na melhor das hipóteses. Sou habitualmente conservador no que diz respeito a algo tão potente. Cada volta do dado neuroquímico é um pouco um passo arriscado. Como tentar consertar um daqueles barcos no interior de uma garrafa, abanando-a. Nem sequer sou grande fã dos inibidores de recaptação da sero-tonina, antes de esgotadas outras possibilidades.

- A sério? Não deve sofrer de depressão.

Já não tinha a certeza.

- Metade das pessoas que respondem aos inibidores também responderá a placebos. Vi estudos que sugerem que 15 minutos de exercício e 20 minutos de leitura por dia podem fazer tanto pela depressão quanto a maioria das medicações mais populares.

Ela pestanejou e inclinou a cabeça.

- Eu leio três ou quatro horas por dia e isso não me mantém especialmente fora de perigo.

Uma mulher que lia mais do que ele, que suportava os seus próprios acessos sombrios: não teria suspeitado nem de uma coisa nem de outra. Agora, pareciam ambos evidentes.

- Ai, sim? - Fez um esgar. - Tente reduzir para 20 minutos.

Ela sorriu e bateu na testa.

- Sim, doutor.

- Porém, isto pode ser a coisa certa para ele. O único caminho com alguma probabilidade de o ajudar. - Duas coisas diferentes, ele sabia. Mas não realçou a diferença.

Ela fez muitas perguntas, ávida pelo tópico Mark. Por arrasto, abordaram a síndrome de Capgras, depois a paramnésia reduplica-tiva, a intermetamorfose. Ela parecia fascinada com a anosognosia: doentes incapazes de reconhecer os seus sintomas, mesmo quando lhes são mostrados.

- Não consigo entender isto. Acha que o dr. Ramachandran pode estar certo? Que existe um pequeno subsistema cerebral do tipo “advogado do diabo” que se avaria?

Lera bem mais do que apenas os livros de Weber. E estava demasiado ansiosa por falar sobre o que lera. Ele escutou com atenção, olhando para ela, a orelha quase no ombro, um gesto vagamente canino. Queria perguntar, Afinal quem é você, quando não é você mesma? Perguntou:

- Então, há quanto tempo se dedica à enfermagem?

Ela inclinou a cabeça.

- Não sou verdadeiramente uma enfermeira. Sabe isso. Sou auxiliar de enfermagem. Uma auxiliar de cuidados. - Furtiva, roubou uma argola de cebola frita do prato.

- E nunca teve vontade de estudar enfermagem? Nunca pensou fazer formação como terapeuta? - Weber começou a elaborar uma teoria: algo a deixara tão em pânico com a arena do julgamento público quanto ele começava rapidamente a ficar. Outra coisa que tinham em comum.

- Bom, não estou no negócio da saúde há muito tempo.

- O que fazia antes?

Os olhos dela faiscaram.

- Porque será que me sinto como se fosse o alvo do próximo relato de caso?

- Desculpe. Foi um bocado intrometido da minha parte.

- Oh, não peça desculpa. Sinto-me lisonjeada, na verdade. Há tanto tempo que ninguém me fazia o interrogatório completo.

- Prometo deixar de ser bisbilhoteiro.

- Ora essa. Para ser franca, é bom falar sobre... coisas reais. Não tenho muitas oportunidades de o fazer... - O olhar dela perdeu-se. Elevislumbrou-a, ansiando por qualquer réstia de ligação intelectual, aqui num lugar onde escolhera exilar-se, um local que desconfiava do intelecto e detestava palavras. Talvez a única razão por que ela reagira e lhe respondera.

- Está... sozinha? Não tem amigos? Não é casada?

Ela soltou uma gargalhada.

- A pergunta adequada nos dias que correm é: “Quantas vezes?”

- Desculpe! Que erro crasso.

- Você diz “desculpe” muitas vezes. Quase faz pensar que está a falar a sério. Seja como for: duas vezes. A primeira vez foi uma insanidade temporária aos vinte e poucos anos. Sem culpa para nenhuma das partes. O segundo arrumou as malas ao ver que eu demorava muito tempo a decidir-me sobre a questão dos filhos.

- Espere lá. Divorciou-se de si por não ter filhos?

- Ele precisava de um herdeiro.

- Quem é que ele pensava que era, o rei de Inglaterra?

- Muitos homens pensam que sim.

Examinou o rosto dela, necessitando da neurociência para o imunizar contra a beleza. Viu-a como ela seria com setenta e muitos anos, afligida por Alzheimer e sentada apática em frente a uma janela.

- E a Barbara não queria ter filhos?

- Acerca destes subsistemas neurais - disse ela. - Quantos existem ao certo? Estou a ser acometida por um sentimento tipo colégio eleitoral.

Ela estava a usá-lo. E nem sequer era a ele, mas apenas a um cérebro disponível, apinhado, algo em que pudesse fazer ricochete.

- Ah! Política.

Provavelmente, estava na altura de ir para casa.

Não foi para casa. Ficaram sentados a conversar até a empregada deixar de lhes servir mais café. Até no parque de estacionamento, encostados ao carro dele, continuaram a conversar. Voltaram a falar de Mark, da amnésia retrógrada, de se a memória do que acontecera naquela noite estaria ainda dentro dele, teoricamente recuperável, ainda que não por ele.

- Ele diz que estava num bar - referiu Weber. - Uma qualquer discoteca de beira de estrada.

Ela sorriu, o sorriso mais solitário que ele alguma vez vira.

- Quer ver o sítio? - Só então é que Weber percebeu que estivera a sondá-la. - Telefone à sua mulher primeiro - instruiu ela.

- Como é que...?

- Por favor. Esteve comigo toda a tarde. Eu disse-lhe que fui casada. Sei como são estas coisas.

Assim, ali mesmo no parque de estacionamento, Weber telefonou a Sylvie enquanto a imperscrutável mulher caminhava de um lado para o outro sob um candeeiro a cinquenta metros de distância, dando-lhe privacidade, abraçando-se a si mesma no seu casaco de camurça demasiado leve para aquela altura.

Foram no carro alugado até ao Silver Bullet. Quando ligou o motor, o rádio ganhou vida - a mesma estação de rádio de música clássica que ele sintonizara ao vir de Lincoln. Desligou o rádio.

- Espere! - disse ela. - Não desligue.

Voltou a carregar no botão e fez marcha-atrás, saindo do parque de estacionamento para a estrada deserta. Vozes agudas sem acompanhamento alternavam-se, suportadas apenas por um fundo de metais. Música de outro planeta, antifonia, uma forma perdida de pensamento.

- Meu Deus - disse ela. Soava doente, maldisposta. Ele rodou a cabeça para olhar para ela. Na escuridão, o rosto dela pareceu-lhe tenso e os olhos molhados. Ergueu a palma da mão, em jeito de esconderijo e olhou para o lado. - Desculpe - disse numa voz abatida. - Vejam bem! “Desculpe.” Já pareço você. Desculpe. Isto não é nada. Não ligue.

- Monteverdi - supôs ele. - Algo que conheça?

Ela abanou a cabeça, com força.

- Nunca escutei nada como isto. - Ficou calada a ouvir, atenta como se escutasse um antigo receptor de rádio de cristal de galena a emitir as notícias de uma invasão estrangeira. Ao fim de metade de um coro, esticou o braço e desligou o rádio. Saíram da cidade por estradas rurais escuras, em silêncio, Barbara indicando o caminho apenas por gestos. Quando voltou a falar, a sua voz soava novamente como de costume. - É esta a estrada. Foi neste troço.

Observou-o, mas não conseguiu ver nada. Totalmente incaracterístico. Podiam muito bem estar em qualquer lugar entre o Dakota do Sul e Oklahoma. Prosseguiram pela escuridão de Outono, os faróis iluminando apenas o suficiente para os fazer avançar para sempre por entre a total ignorância.

O bar era ensurdecedor, a música tão alto que fazia vibrar os tímpanos de Weber.

- Pelo menos não é a noite do topless - gritou Barbara. - Aquela era a banda que estava a tocar na noite do acidente. A preterida de Mark.

Weber quis dizer que conhecia a banda, que sabia tanto sobre os gostos musicais de Mark quanto ela. Enfurecia-o que o cuidado, o interesse dela por Mark fosse tão espontâneo, ao passo que o dele era recheado de móbiles.

Encontraram uma mesa no canto. Ela dirigiu-se ao bar e trouxe duas cervejas pálidas em copos de plástico estriados. Inclinou-se sobre a mesa e gritou-lhe ao ouvido:

- Poderá perguntar a si mesmo: “Como é que eu vim aqui parar?”

- Como assim?

Ela olhou para ele para verificar se estava a falar a sério.

- Nada. Estava a falar sobre a minha geração.

Weber abriu os braços em forma de leque.

- Estas pessoas são todas clientes regulares? - Ela encolheu os ombros. A maioria. - Algumas estavam aqui, na noite em que Mark e os amigos...? - A música engoliu as palavras dele.

Ela inclinou-se para ele, os cotovelos sobre a mesa.

- A Polícia falou com toda a gente. Ninguém sabe de nada. Nunca ninguém sabe. - Permaneceram sentados na pequena mesa a beber a cerveja, cada qual observando a clientela. Ele examinou-a. De perto, o rosto dela era como o de uma criança, contando os dias para o seu aniversário. O inexplicável isolamento desta mulher perturbava-o. Algo acontecera para a confinar a uma pose, algum bizarro colapso de confiança que a deixara a suprir uma vida bem abaixo das suas capacidades. Perdera algo de si mesma, ou lançara-o fora, recusando-se a competir, a fazer parte desse empreendimento colectivo que a cada dia ficava mais imparável. Será que uma lesão no córtex pré-fontal a transformara numa eremita? Não era necessária uma lesão. Ele reconhecia-a, reconhecia o seu isolamento. Algo os ligava. Algo mais do que a impensável estranheza de Capgras - o órfão da custódia que partilhavam - tornara-os estranhos. Ela passara por uma crise muito semelhante à que agora o corroía.

Ela cruzou o olhar com o dele, que a examinava. Estendeu o braço por cima da mesa e segurou-lhe no punho.

- Então, é a isto que se refere quando diz “sobretudo trémulo”?

Embora ela lhe estivesse a segurar a mão, ele era incapaz de controlar o membro tremente. O corpo todo: estremecendo como se tivesse acabado de levantar um objecto com várias vezes o seu peso.

Ela inclinou-se na direcção dele e segurou-lhe o queixo.

- Escute. Eles não são ninguém. Não detêm qualquer poder sobre si.

Demorou ainda um momento a identificá-los a eles: o tribunal da opinião pública.

- Pelos vistos, têm - argumentou ele.

Mais poder sobre ele do que ele tinha sobre si mesmo. O córtex humano evoluíra trepando uma intrincada classificação social. A principal pressão em termos de selecção estava agora em acção: o rebanho na cabeça.

E moldado para isso pelo poder deles, o cérebro dela interpretou o dele.

- É o que lhe importa aquela trupe? Bajulação e manipulação. Nada mais importa a não ser o que sente em relação ao seu trabalho.

Tudo o que sentia em relação ao seu trabalho desaparecera. Apenas restava o julgamento sumário. Ela inclinou a cabeça, indagando-o. E com esse gesto involuntário, acabou por verbalizar o que sentia.

- É esse o problema. Tudo o que os críticos dizem é perfeitamente verdade. O meu trabalho é altamente suspeito.

Quase em júbilo por admitir tal coisa a esta mulher. Ela semi-cerrou os olhos e abanou a cabeça.

- Porque diz isso?

- Não vim até cá para o ajudar. Pelo menos, inicialmente. - A música continuava a ressoar; em redor dele, pessoas atarefadas a fabricar outras pessoas. Não conseguia olhar para nada mais complexo do que a espuma da sua cerveja. - Simples narcisismo, pensar que o poderia ajudar. Que mais posso eu fazer se não estender-lhe uma espingarda química... “Aqui tem, tome isto e façamos figas para que corra tudo bem”? - Ela acariciou-lhe os nós dos dedos com as costas do polegar, como se o fizesse desde sempre. - De que lhe serve toda a ciência cerebral do mundo? Arrogância, na verdade. Uma espécie de charlatanismo. O que estou sequer a fazer aqui?

Ela manteve uma pressão uniforme nos dedos dele e não disse nada. A sua coluna curvou-se para a frente. Algo nela partilhava da sensação de decepção dele, assumia-a no seu próprio corpo. Apenas os olhos dela o encorajavam: a empatia significava vertigem. Ergueu-lhe o punho no ar. Quase parara de tremer.

- Basta. Já chega de flagelação. Vamos dançar.

Ele retraiu-se contra as costas da cadeira, atordoado.

- Não sei dançar.

- O que está para aí a dizer? Todos os seres vivos dançam. - Riu-se do olhar de terror na cara dele. - É só levantar-se e agitar-se. Como se estivesse a apanhar percevejos.

Estava demasiado extenuado para objectar. Ela levou-o a reboque até ao meio da pista de dança, um rebocador a puxar um cargueiro avariado. Ele seguiu na esteira dela, em busca de instruções, mas não havia alguma. A dançar num bar com uma mulher que não conhecia: sentiu-se incomodado, apreensivo, como quando passava um dia sem trabalhar. Mas isto era apenas um refúgio, simples, improvisado, mútuo. A ideia de qualquer coisa ilícita pareceu-lhe quase cómica - ataque com uma arma inerte, costumava brincar com Syl-vie. Weber e Barbara agitavam-se e desabrochavam. Em redor deles as pessoas moviam-se. Contorções estranhas a condizerem com as ainda mais estranhas rabecas apalaches e guitarras barulhentas. Ao lado deles, um casal mais jovem olhava um para o outro e dançava vigorosamente. Mais afastado, uma descendente da tribo ponca executava uma variação da dança da chuva. Por todo o lado, joelhos projectando-se, ombros sacudindo-se. Barbara tinha razão: todo o ser vivo se sacudia sob a influência da Lua. Ela riu-se para ele.

- Está óptimo!

Estava ridículo. Um desajeitado juvenil que começou a voar. Porém, o seu corpo vibrava com o ritmo das coisas. A música parou, deixando-os encalhados. Weber ficou extremamente embaraçado, necessitando de preencher o vazio.

- Acha que Mark e os amigos dançaram nessa noite?

Ela franziu a testa, pensando nessa possibilidade.

- A Bonnie afirmou que não estava aqui. Não que não tenha havido mulheres envolvidas. Seguramente que houve álcool, bem como outras substâncias. O próprio Mark mo disse.

A música começou de novo: heavy metal. Uma onda assolou Weber, leve, omnisciente. Até mesmo dançar lhe parecia demasiado penoso para suportar.

- Vamos - disse. - Devíamos ir andando. Aqui não se aprende nada.

Ela também o sentia: ele tinha a certeza disso. Toda a emoção do desaire. Podiam ser qualquer pessoa, em qualquer vida, escondendo-se da descoberta. O rosto dela, tão inseguro quanto o dele, fingiu indiferença. Ela encontrou a saída e emergiram da nuvem de fumo e barulho para um céu carregado de estrelas. Weber sentiu a mais improvável das calmas, a placidez da impotência, e sabia que também ela se remetera àquele silêncio com ele. O ar estava denso e seco com a colheita. Os pés dele arrastaram-se pela gravilha ao avançarem direcção ao carro. Ela agarrou-lhe no cotovelo, detendo-o.

- Chiu! Escute!

Ele ouviu-o outra vez, na versão nocturna. Enxames de insectos, e os guinchos dos caçadores de insectos. De quando em vez, corujas, e o chamamento antifónico do que apenas poderiam ser coiotes. Criaturas que escutavam os humanos e os conheciam apenas como parte da rede mais alargada de sons. Seres vivos de todos os calibres para os quais o bar de beira de estrada era apenas mais um outeiro no contínuo teste que a paisagem representava, apenas mais um nódulo no bioma para explorar.

Ela olhou para ele, a mulher mais solitária que ele alguma vez conhecera, desesperada por uma ligação, por alguma prova de que não criara toda esta existência na sua própria cabeça. Ele escutou a noite, o som da solidão dela. Mas à semelhança da testemunha secreta autora do bilhete de Mark, ele mantinha-se ainda escondido, esperando que passassem sem dar por ele. Libertou-se do olhar inquiridor dela e caminhou em direcção ao automóvel. Quando chegaram, ele já não era capaz de se defender, nem sequer para si mesmo, o mais fácil dos públicos. Sim, obrigara-se a regressar para reparar a injustiça que cometera com os Schluter, para saldar a dívida consigo mesmo. Mas ali, no meio dos sons da noite habitada, no ténue roçar do vento no seu braço, no olhar desta mulher solitária, tão escondida nas margens da vida, reconheceu o desaparecimento que também ele procurava.

Karin foi falar com Karsh para lhe pedir conselho. Todos os conselhos de Daniel estavam envoltos em moralidade. A medicação, afirmava este, provocaria mais problemas do que resolveria. Porém, Daniel não era irmão de Mark. Trabalhar pela causa era uma coisa. Sacrificar sangue do seu sangue a ela era outra.

Vira Karsh duas vezes. Bebidas, pôr a conversa em dia. Nada de criminoso, nada com que não pudesse lidar. Há tanto tempo que não tinha um prazer na vida, que umas poucas sacudidelas nem sequer a recompunham. Ela entrava em contacto com ele por meio de um antigo endereço de correio electrónico secreto. Ele sugeriu um pequeno-almoço. “Uma espécie de mudança, não? Tipo saída após um programa, mas sem o programa.”

Costumava enfurecê-la. Tudo o que ela queria era que se sentassem juntos, uma vez, como pessoas civilizadas, frente à mesa do pequeno-almoço, em vez de se escapulirem como criminosos. Encontrou-se com ele no restaurante de Mary Ann, um pouco mais abaixo do escritório dele. Quando ela entrou, ele levantou-se de um pulo e deu-lhe um beijo rápido no rosto. Ela titubeou com o beijo súbito. Mas apenas pequeno-almoço: sentou-se e pediu. A mente de Robert era exactamente do que ela precisava, tão severa e brutal quanto uma auditoria. Expôs a medicação proposta pelo dr. Weber.

- Um antipsicótico - sussurrou. Robert acenou com a cabeça. Ela experimentou-o com uma das mais assustadoras objecções de Daniel. - Tenho medo que o meu irmão fique viciado em substâncias alteradoras do humor.

Karsh abanou a cabeça e apontou para o pequeno-almoço.

- Uma chávena de café é uma substância alteradora do humor. Uma omeleta espanhola. Acho que me lembro de um pequeno vício teu... Aquele chocolate suíço triangular? Não me digas que umas quantas tabletes daquilo nunca te fizeram efeito.

- Isto não é uma tablete de chocolate, Robert. É uma substância psicoactiva.

Ele encolheu os ombros e enxotou o ar com as mãos.

- Não estás actualizada, Coelhinha. Metade das pessoas deste país toma alguma coisa psicoactiva. Olha à tua volta. Vês aquelas pessoas ali? - Acenou para algures entre uma mesa de quatro senhores de idade em fatos de treino e uma família de menonistas. - Quase metade. Quarenta e cinco por cento da América toma alguma coisa que lhe altera o comportamento. Ansiolíticos. Antidepressivos. Não conseguiriam funcionar de outra forma. O mundo é demasiado estranho. Eu próprio também tomo uma coisa ou outra, na verdade.

Ela olhou para ele, desconcertada. O seu novo à-vontade, aquela sua recente calma e humildade: talvez apenas alguma coisa que ele andava a tomar. O atenuamento dos seus traços fisionómicos, a gordura em redor da barriga. Tudo meramente químico. Mas também, o próprio cérebro era uma torrente de uma ou outra substância alteradora do humor. Assim asseverava cada livro que ela lera desde o acidente de Mark. Isso contrariava-a. Queria o verdadeiro Karsh, não este filósofo tolerante.

- Mas os antipsicóticos...

Ele tinha esta espécie de tique: a mão direita confirmava constantemente a pulsação do braço esquerdo. Costumava irritá-la, mas agora apenas a assustava. Robert segurou o dedo indicador direito no ar, transformando-se em pregador.

- “Um grama é melhor do que uma maldição.”

- Que raio é isso?

- Não te lembras? - regozijou-se ele. - Tivemos de o ler no liceu. Lembras-te do liceu, não lembras? Talvez precises de alguma coisa para melhorar a memória.

- Recordo-me de te levar ao baile e de ir dar contigo atrás do dique enrolado com aquela cabra da Cricket Harkness.

- Pensei que estávamos a falar de literatura.

- Estávamos a falar do futuro do meu irmão.

Ele inclinou a cabeça.

- Desculpa. Diz-me o que te preocupa.

Era bom ser apenas ouvida, sem o perpétuo e silencioso julgamento. Fumar frente a um homem - sem se esconder - era ainda melhor. Contou-lhe todos os seus receios em relação a Mark: que pudesse magoar-se a si mesmo, que pudesse magoar alguém. Que algum sintoma novo e invulgar surgisse, deixando-o mais um passo menos humano. Que a medicação o tornasse ainda menos reconhecível.

- Isto está a dilacerar-me, Robert. Eu já tinha feito as malas para me ir embora. E nem isso fui capaz de fazer. Mark está totalmente certo em relação a mim. Sou uma substituta. Olha para a minha vida. Sou uma anedota. Uma dessas pessoas camaleão. Nada, no âmago. A namorada e amiga de toda a gente à sexta-feira. Ele diz que eu sou uma impostora? Tem razão. Nunca fiz mais nada a não ser reagir. Nunca quis mais nada a não ser o que achava que outra pessoa pudesse querer que eu...

- Ei - repreendeu Robert. - Tem calma. Se calhar tu é que precisas de alguns desses comprimidos.

Respondeu com um riso indistinto. Contou a Robert sobre a acção judicial contra a olanzapina que Daniel descobrira, fazendo de conta que fora ela quem a encontrara. Karsh tomou algumas notas na sua agenda.

- Temos uns quantos advogados. Eu peço a um deles que veja o que consegue descobrir.

Conversar com Karsh tranquilizara-a, mais do que deveria. É claro que ele era tão imparcial quanto Daniel. Nenhum deles sabia

o que era melhor para Mark. Mas escutar apenas os seus contra-argumentos era libertador. Uma decisão errada não cairia sobre a cabeça dela sozinha.

Karsh levou os dedos ao punho e referiu:

- Sabes, se te decidires pela medicação, há ainda um problema.

- Nomeadamente?

- Fazer com que Mark concorde.

- Fazer Mark tomar os comprimidos? Um problema? - Resfolegou, em sofrimento.

- Fazer com que os tome regularmente. Ou evitar que os deixe de tomar adequadamente. Não seria o mais credível dos doentes. Se se lhe mete na cabeça parar com a medicação de repente...

Ela acenou com a cabeça, mais uma coisa com que se preocupar. Tinham ambos chegado ao fim do pequeno-almoço. Estava na altura de ir embora. Nenhum deles se mexeu.

- Devia ir andando para o trabalho - disse ela.

- Então, é verdade que agora és uma Ajudante de Grou voluntária?

Ela devolveu-lhe o sorriso, cutilada por cutilada.

- Acredita ou não, eles até me pagam. - Ela mesma ainda mal acreditava.

Em poucas semanas, esforçando-se por parecer merecedora de ter sido contratada, lera cada relatório que o Refúgio emitira. E, logo desde o início, o Refúgio confiara-lhe responsabilidades genuínas. De uma forma incriminatória, as suas novas funções faziam-na levantar a cabeça da gamela da impotência em que vivera desde o acidente de Mark. Um lugar que precisava realmente das energias dela; alguma definição útil para os seus dias. À semelhança de Daniel, ela trabalhava agora pelo menos cinquenta horas por semana. Mark não podia recriminá-la: os impostores não lhe deviam qualquer lealdade. Sabia agora mais sobre o esforço para proteger o rio do que qualquer estagiário deveria saber. Informações que Karsh mataria para ter.

- A sério? - perguntou ele, arqueando as sobrancelhas. - Pagam, tipo, em dinheiro americano? Isso é óptimo. O que fazes ao certo para eles?

Fazia tudo: empilhava caixas, tirava fotocópias. Fazia chamadas a políticos locais e possíveis doadores, empregando aquela sua meia voz rica e tranquilizadora de atendimento ao cliente, que era o seu grande recurso.

- Robert. Sabes bem que não posso dizer-to.

- Compreendo. - Aqueles olhos cristalinos brilharam com uma inocência magoada. O velho Robert. Capaz de a desmontar sem um manual de instruções. O Karsh ao qual podia tanto evadir-se quanto escapar de si mesma. - Segredos bem mantidos dos protectores dos pauis. Compreendo inteiramente. O que é a nossa história pessoal comparada com a preservação da marcha da evolução velha de quatro mil milhões de anos?

Há dois anos naquele mesmo mês, ela deitara-se com este homem sob uma chuva torrencial, nua na lamacenta margem do rio, lam-bendo-lhe os sovacos como um gato.

- Caramba, Karsh. Que queres que eu diga? É o trabalho mais recompensador que alguma vez fiz. Mais importante do que eu mesma. E que tal mais importante que qualquer pessoa. Estive a ver umas documentações... Sabias que mudámos mais aquele rio em cem anos do que nos dez mil anteriores...?

- Desculpa... documentações? Que tipo de documentações?

- Fotocópias do Gabinete do Condado, se queres mesmo saber. - Era já demasiado. Mas seguramente que ele adivinharia. Observou-o fingir calma. Vira aquela expressão várias vezes, mas nunca antes fora capaz de a provocar. A visão não ficava nada a dever a um alterador de humor.

- Tens razão, provavelmente não deverias estar a dizer-me nada. - Derramando o seu encanto, um encanto mais estranhamente juvenil agora que começava a ficar grisalho. - Mas dizes-me se eu adivinhar, certo?

- Depende. -De...?

- Do que me contares em troca.

As mãos esticadas sobre a mesa.

- Força. Pergunta-me o que quiseres.

- Qualquer coisa? - Confirmou ela com um riso reprimido. - Como está a tua vida familiar?

Ele recostou-se nas costas da cadeira e cedeu, demasiado depressa.

- Os miúdos estão... fantásticos. Estou muito contente por me ter metido nisto da paternidade. Há sempre uma coisa diferente todas as semanas. Skate, teatro amador, pirataria de software em escala industrial. Não, estou a brincar: são bestiais. Com a Wendy e eu é que a história é diferente.

- Uma história diferente de...?

- Escuta. Não quero sobrecarregar-te com isto também. Isto não tem nada a ver com o teu regresso a casa. Já estava na forja muitos meses antes de te ter visto.

Não era, aparentemente, uma história diferente daquela que ele lhe contara durante anos. Mas agora já não a magoava. Como aquele tipo de correspondência não solicitada com carimbos como Urgente: Informação Importante. Por Favor Responda.

- Pois com certeza, Robert. As minhas idas e vindas nunca te afectariam.

- Sabes bem que não era isso que queria dizer. Contudo, vou demonstrar uma enorme perspicácia psicológica, permitindo que me ataques. - Em retaliação, ela salgou o pedaço de fatia de toucinho que restava no prato dele. Ele meteu-a na boca, num gesto de contrição. - É a isto exactamente que me refiro. - Agitou os braços, sorrindo de orelha a orelha. - Sabes quando foi a última vez que me senti assim tão livre? A Wendy e eu arrastamo-nos por aquela anti-séptica casa em estilo colonial, avaliando-nos um ao outro como investigadores de uma companhia de seguros avaliando um incêndio em busca de indícios de fraude. Já não sentimos nada um pelo outro. Já chegámos àquele ponto em que temos de nos separar para bem dos miúdos. - Olhou para a rua pela parede de vidro.

- Há ali alguma coisa de que gostes?

Ele acenou que sim com a cabeça.

- Gosto de tudo o que vejo um pouco mais. Quando tu estás perto de mim.

O truque mais perigoso de todos. Alguém que fazia os outros mais felizes por serem quem eram: era tudo o que ela alguma vez sonhara ser. E este homem conhecia o seu fatal ponto fraco. Ela escutou-o e satisfez-lhe a vontade, acenando ao tomar conhecimento dos pormenores - o apartamento de fuga que ele preparara, o advogado que prometia uma protecção razoável. Deixou-o continuar a falar sobre o seu emergente futuro. Pelo menos, teve a decência de não lhe perguntar se estaria interessada em preenchê-lo. E tudo o que esta breve escapadela lhe custava fora um beijo na cara e a rendição da sua conta do pequeno-almoço.

Ele agarrou-a por ambos os cotovelos ao despedir-se.

- Acho que o teu irmão é capaz de ter razão. Mudaste. - Antes que ela pudesse gritar, ele acrescentou: - Estás melhor. - E desapareceu pela rua principal de Kearney recentemente renovada.

Nessa noite, o dr. Weber telefonou.

- Como é que se tem aguentado? - perguntou ele.

Soava genuinamente solícito, mas ela recusava-se a ser analisada. Não precisava da ajuda dele: só o seu irmão. Foi buscar a sua lista de novas dúvidas em relação ao tratamento proposto e começou a colocar-lhas. Ele interrompeu-a com amabilidade.

- Regresso a Nova Iorque amanhã de manhã.

As palavras silenciaram-na. Deu início a duas objecções confusas antes de perceber. Ele estava novamente a despedir-se, e ainda mais rapidamente do que da última vez. Não o voltaria a ver, fosse qual fosse a opção por que se decidisse.

- Estarei em contacto com o dr. Hayes do Good Samaritan. Vou entregar-lhe o caso. Dar-lhe-ei todo o material que pesquisei e informá-lo-ei sobre o ponto em que nos encontramos.

- Mas isso... Eu não... Ainda tenho perguntas... - Ao vasculhar uma pilha de papéis do Refúgio, fez desequilibrar o monte e os papéis espalharam-se pelo chão. Praguejou brutalmente e depois tapou o bocal do telefone.

- Por favor - disse Weber. - Pergunte o que quiser. Agora ou em qualquer altura, mesmo depois de eu já ter regressado a casa.

- Mas achei que íamos... Pensei que teríamos outra oportunidade de falar sobre as opções. Trata-se de uma decisão muito importante e eu não tenho...

- Mas podemos falar. E tem também o dr. Hayes. O pessoal do hospital.

Sentiu-se perder o controlo, mas não se importou.

- Temos então aqui a compaixão médico-doente - disse Karin em voz alta. Precisava de dizer o que sentia, para o seu próprio bem e para o bem de todos. A compostura profissional do homem irritava-a. Porque se dera sequer ao trabalho de regressar, se isto era o que tinha planeado? Voltar para casa, para a sua família, para a sua mulher. Suponhamos que entrava pela porta da frente e a mulher não o reconhecia? Ameaçasse chamar a polícia se ele não se fosse embora? Antipsicótico. - Não sabe o que isto me tem feito.

- Posso imaginar - disse Weber.

- Não, não pode. Não faz a mais pequena ideia. - Estava farta de pessoas que se achavam capazes de imaginar. Estava preparada para lhe dizer exactamente o que ele era, mas em consideração por Mark acalmou-se. - Lamento - disse. - Foi imperdoável da minha parte. Não tenho andado bem ultimamente. - Garantiu-lhe que compreendia a decisão dele e que se haveria de arranjar na sua ausência. Depois agradeceu-lhe toda a ajuda prestada e despediu-se dele para sempre.

Ela atirara-lho na cara: Não faz a mais pequena ideia. Como se quisesse deliberadamente confirmar a pior das acusações públicas. Oportunista insensível. Não se interessa minimamente pelas pessoas. A única coisa que lhe interessa são as teorias.

O descaramento desta mulher assombrava-o. Propusera-lhe um tratamento onde não havia nenhum, uma opção que lhe custara tempo e esforço a encontrar. Dezenas de milhar de dólares em cuidados de saúde, prestados ao domicílio, sem quaisquer custos. Duas viagens de milhares de quilómetros encetadas por um investigador com uma reputação internacional, quando ela bem que poderia ter andado a bater a portas, suplicando consultas, arrastando o irmão por todo o continente, médico atrás de médico, em busca de alguém que soubesse sequer para o que estava a olhar.

Weber mantivera-se surpreendentemente composto, pelo menos em retrospectiva. Fosse como fosse, não disse o que sentia. Demasiado treino para isso. Segundo se recordava, nunca perdera a compostura numa situação profissional. Quisera explicar: A minha partida não é o que pensa. Mas depois teria de lhe dizer porque se ia embora. Ela tinha razão numa das suas acusações não verbalizadas: ele não era psicólogo. O comportamento humano, tão opaco quando começara os seus estudos, parecia-lhe agora pior do que o mistério religioso. Não compreendia ninguém. Não conseguia sequer começara entendê-la. Karin passara da gratidão à reivindicação sem quaisquer motivos para tal. Vulnerabilidade transformando-se em ataque, ao mesmo tempo que pedia misericórdia. Estudara os absurdos do comportamento humano toda a sua vida e não conseguira prever as palavras que ela lhe arremessara.

Sim, os danos cujo estudo ele transformara na sua carreira encaixavam-se mais num espectro consecutivo com a linha de base da psicologia. Porém, as coisas que ele lutava por explicar.sob a forma de défices não podiam desculpar esta pessoa saudável. Nenhum tribunal médico o condenaria caso ele lhe tivesse desligado o telefone. Ao invés disso, permaneceu em linha, sentindo tudo como que à distância. Vira o mesmo tipo de coisa numa jovem paciente certa vez. Assimbolia à dor: uma lesão no giro supramarginal do lobo parietal. Doutor, eu sei que a dor está lá; sinto-a. É terrível. Mas já não me incomoda. Dor em todo o lado, mas apenas não angustiante.

Talvez ele tivesse sofrido uma lesão e estivesse em compensação. Porém, ao telefone, não podia fazer mais nada a não ser agir de forma quase mecânica: o que faria Gerald Weber? Permitiu que Karin Schluter o insultasse, sem dizer nada em defesa própria. Respondeu às perguntas dela tão honestamente quanto possível. Desligou sentindo-se pior do que humilhado. No entanto, a humilhação não lhe dizia respeito. À beira de fazer sessenta anos, e o dia seguinte ameaçava revelar o mistério que toda a sua vida se esforçara por desvendar. Uma onda de antecipação percorreu-lhe o corpo, pior do que algo farmacêutico. Apaixonara-se por uma cifra, uma mulher sobre a qual nada sabia.

Telefonou para Christopher Hayes no Good Samaritan, que o cumprimentou amistosamente.

- Vou a meio do seu novo livro. Ainda não o terminei, mas sinceramente não entendo a perseguição da imprensa. Não é diferente de nada do que escreveu das outras vezes.

Weber chegara à mesma aniquiladora conclusão. Tudo o que escrevera agora apenas se somava à sua indeterminada desgraça. Contou a Hayes que estivera em Farview e que examinara Mark. A notícia silenciou Hayes. Weber descreveu a deterioração de Mark, mencionou o artigo que encontrou no ANZJP e argumentou em favor da olanzapina.

O dr. Hayes concordou com tudo.

- Deve estar recordado que eu achei que devíamos explorar essa vertente, em Junho. - Weber não se lembrava.

Vincadamente consciente da imagem que o seu interlocutor tinha de si, começou a concluir a conversa, terminando-a por fim. Regressou a Lincoln nessa noite, ficando em lista de espera até conseguir um voo. Telefonou a Mark do aeroporto para se despedir.

Mark mostrou-se estóico.

- Logo imaginei que iria pôr-se ao fresco. Saiu daqui meio à pressa. Quando é que regressa? - Weber respondeu que não sabia, - Nunca, não é? Não posso dizer que o censuro. Eu também voltaria à vida real, se soubesse como.

Mark não serve para nada ultimamente, excepto para falhar os testes que lhe colocam. Primeiro, desilude o Psi. Não sabe ao certo porquê - talvez tenha alguma coisa a ver com o seu desempenho, menos do que bom, nos últimos testes de pergunta e resposta -, mas o homem põe-se a milhas da cidade como se levasse fogo no rabo. Logo depois de afugentar o Psi, a Guarda está no seu encalço. Um qualquer acordo que o jovem Mark assinou e, ao que parece, o país agora necessita urgentemente dos seus préstimos.

A impostora - pelo menos pode depender-se dela - leva-o ao centro de recrutamento em Kearney. O mesmo lugar a que Rupp e o supracitado Mark foram há uma eternidade atrás, para conversarem sobre este fazer o seu quinhão pela Segurança Interna. Tenta entender o que se passou, na viagem de ida: o mesmo cabo especialista Rupp que admitiu por fim ter falado com ele logo após Mark ter supostamente assinado alguns papéis oficiais e mesmo antes de alguém ter empurrado Mark para fora da estrada. Como de costume, não bate certo, excepto para implicar o Governo. Mas o envolvimento governamental não é geralmente nada que exija muita cogitação.

No centro de recrutamento decorre uma grande conferência, à qual ele não é alheio, entre a pessoa que se faz passar por Karin e o chefe dos guardas. Ela está a tentar desfazer o acordo, apresentando papéis do hospital que provam que o irmão está obviamente incapacitado, etc. Contudo, os militares não se deixam enganar, é claro. E pedem a Mark Schluter que responda a algumas perguntas pelo seu país. Responde o melhor que sabe; honestamente que sim. Se a América está debaixo de fogo e tem de vencer um bando de estrangeiros para reconquistar a liberdade, Mark terá de ir, tal como toda a gente. No entanto, algumas das perguntas são de rir a bandeiras despregadas. Verdadeiro ou falso: Acho que conhecer pessoas com educações e experiências diferentes pode melhorar-me como pessoa. Bom, depende. Com “pessoas” referem-se a algum árabe a brandir uma arma e a ameaçar fazer cair o meu avião? Por vezes irrito-me com situações repetitivas e monótonas. Como responder a estas perguntas? Pergunta ao médico que faz o recrutamento se estamos, de facto, a preparar-nos para derrubar de vez o ditador, terminar o trabalho, ao fim de dez anos. Porém, Mr. Ramrod é um homem muito rígido. Não faço ideia, jovem. Responda às perguntas, jovem. Ao que parece, estamos a lidar com informações muito confidenciais.

A suposta Karin exprime as suas próprias opiniões no caminho para casa, opiniões suspeitosamente parecidas com as da sua verdadeira irmã. O nosso país é a família, esse tipo de coisa. Mark esquece por completo o assunto até uma semana depois, quando recebe uma carta da Guarda Nacional do Nebrasca. Basicamente, o conteúdo da mesma era: não nos telefone, nós telefonaremos.

Depois, argolada uma terceira vez. A pseudo irmã deixa escapar que os cheques que tem recebido da fábrica poderão deixar de vir depois do primeiro aniversário do acidente. Percebe que ela se arrepende do que disse assim que o verbaliza, como se ele não o devesse ter escutado, o que, como é claro, lhe desperta a atenção. Não há qualquer motivo para ela estar tão assustada. Por isso, desnecessário se torna dizer, que todo o joguinho secreto dela o assusta também.

Telefona para a fábrica. Ao fim de um milhão de minutos em espera a escutar Factos Surpreendentes sobre o Processamento de Carne, ao mesmo tempo que é passado de funcionário ignorante para funcionário ignorante dos Recursos Humanos, consegue falar com alguém que parece saber tudo sobre a situação dele. Não é um bom sinal e fá-lo pensar que Rupp ou Cain falaram com o pessoal da fábrica primeiro e lhes contaram o outro lado da história, o lado que toda a gente esconde de Mark. O funcionário diz-lhe que precisará de nova ronda de testes - um atestado de saúde passado pelo Good Samaritan - antes de pensarem em recontratá-lo. O que raio querem eles dizer com recontratar? Ele já trabalha ali. O homem diz qualquer coisa descortês e Mark contra-ataca com uma coisa do género: Querem que eu telefone aos agentes federais e lhes conte dos trinta trabalhadores ilegais hispânicos que têm a trabalhar no corte? Uma ameaça vã, na verdade, uma vez que Mark e os agentes federais não têm a melhor das relações, de momento. O tipo desliga-lhe o telefone na cara, por isso nada mais haverá a fazer a não ser submeter-se aos testes hospitalares. Tem a certeza de que se sairá muito bem nesses, tendo tido a sua quota-parte de prática. Porém, o hospital não está nada contente com ele por ter desistido da terapia e dá-lhe umas perguntas muito bizarras e ele erra as respostas outra vez.

Portanto, três lançamentos nulos, e pelas regras do jogo, está fora. Só que Mark ainda está em apuros. Enfrenta o desemprego. A sua vida é um jogo de vídeo de vida ou morte em contagem decrescente para a detonação. Tem até ao aniversário do acidente para perceber o que lhe fizeram na mesa de operações. A sua esperança é encontrar quem o encontrou a si, o autor do bilhete, o seu anjo da guarda, a única pessoa que sabe tudo.

Ocorre-lhe um plano, algo em que já devia ter pensado há algum tempo. Teria pensado, se não fosse toda a loucura em seu redor. Um plano bastante simples e a beleza do mesmo reside na forma como obriga as autoridades a envolver-se nele. Tornará a coisa pública. Enviará o bilhete para o programa Crime Solvers. Toda a gente em quatro condados verá o papel plastificado nos seus ecrãs de televisão. Não sou Ninguém, mas Esta Noite em North Line Road... Se houver alguma pessoa real, que não tenha sido vítima de lavagem cerebral e ainda viva, que saiba o que aconteceu naquela noite, terá de se apresentar. E se os poderes vigentes tentarem raptá-la e silenciá-la, todo o Nebrasca Central saberá.

Há um ano, nunca teria considerado descer tão baixo. O programa é demasiado patético: o pior tipo de baralhador de cérebros da televisão local. Uma jornalista e um agente da Polícia percorrem toda a região fingindo estarem interessados nos chamados mistérios por resolver de qualquer pessoa, muito embora tudo o que queiram seja, obviamente, fugir algures para as searas, para longe das câmaras, e enrolarem-se todo o dia. E os casos intrincados e desconcertantes que perseguem? Três quartos deles são acerca de mulheres desorientadas balindo que não vêem os maridos há semanas. Minha senhora, já tentou o apartamento da sua mulher-a-dias mexicana adolescente? Muito de vez em quando, mostram alguma coisa realmente interessante, como os dois tanques de amoníaco anidro roubados de um local em Holdrege e que apareceram num antigo e enorme armazém subterrâneo de metanfetaminas em Hartwell. Ou o Bigfoot das pradarias, a abominável criatura avistada à noite a rondar os contentores do lixo das pessoas em North Platte, e subsequentemente vista em todo o lado desde Ogallala a Litchfield, e que se revelou ser o urso-malaio de estimação, ilegal e evadido, de um funcionário de uma empresa de telefones: uma criatura muito confusa, agredida por algumas centenas de humanos histéricos e alucinados.

No entanto, o programa Crime Solvers é a sua última esperança. Submete-se a uma entrevista telefónica com o “caçador de histórias” do programa, também conhecido como estagiário não remunerado. Estão interessados e enviam a famosa Tracey Barr em pessoa para falar com ele, em conjunto com um operador de câmara, para o filmar. A Homestar na caixa que mudou o mundo. Ou pelo menos a Home-star falsa. Tracey Barr em carne e osso na sua sala de estar. Mark quer telefonar aos amigos, chamá-los para que fiquem de queixo caído, talvez até conseguir que sejam filmados. Depois lembra-se de que já não pode telefonar aos amigos como dantes.

A escultural Miss Barr é um pouco mais velha e não tão sensual vivo. Não tão sensual, digamos, como uma certa Bonnie Baby no traje de pioneira. Ainda assim, Tracey - ela pede-lhe que a trate por Tracey, acredite-se ou não - é impressionante, numa blusa cor-de-rubi. Felizmente, Mark lembra-se de aperaltar também: a sua elegante camisa verde de manga comida da Izod. Presente da Bonnie de antes. Tracey quer a história completa. Como é claro, Mark Schiuter não tem a história completa. Foi por isso mesmo que chamou a “Patrulha do Crime”. E já aprendeu que, quando conta tudo o que sabe, as pessoas começam a agir de forma estranha consigo. Não quer tropeçar em mais minas do que as que tiver mesmo de ser. Quanto menos a estação televisiva souber, melhor. Dá-lhe a versão básica: acidente, marcas de pneus, hospital, a estada na UCI sem visitas e o bilhete na mesa-de-cabeceira à sua espera quando ele recupera a consciência semanas depois. Ela engole a história. Filmam o quintal e a casa: Mark sozinho a olhar fixamente para os campos. Mark com uma fotografia da carrinha. Mark com Blackie Dois (quem é que iria perceber a diferença?). Mark segurando o bilhete, mostrando-o a Tracey. Tracey a ler o bilhete em voz alta.

E mais importante ainda: um plano aproximado do bilhete, para que toda a gente em casa pudesse ver a letra e ler cada palavra.

Tracey arrasta-o até North Line para o filmar no local do crime. Junta-se a eles o Agente Encarregue do Caso daquela semana, o sargento Ron Fagan, que, afinal de contas, até conhece Karin do liceu, talvez até no sentido do Antigo Testamento. Não pára de perguntara Mark sobre a sua irmã. Como se a Polícia não soubesse da troca. Como vai a sua irmã? Ela é muito simpática. Continua por cá? Namora com alguém? Assaz arrepiante: este tipo de grande porte e uniforme tentando perceber as suspeitas de Mark. Este tenta esquivar-se às perguntas sem se enterrar mais do que já está.

Porém, o sargento Fagan é magistral com Tracey, discutindo os vestígios do local do acidente: as marcas que indicam que alguém lhe cortou a passagem e as outras que saem da estrada atrás da carrinha de Mark. Como se tivesse sido “apertado”?, quer saber Tracey. E, com uma expressão séria, o agente policial diz que não quer tirar conclusões apressadas. Tirar, ao fim de quase um ano. Diz que não conseguiram identificar as marcas dos pneus, não havendo portanto quaisquer indícios sobre os veículos envolvidos...

Infelizmente, menciona também a velocidade a que Mark ia quando capotou. É um número que não despertará a compaixão de nenhum potencial anjo da guarda que possa estar a ver o programa. Mark não fazia ideia de que ia tão depressa. Ocorre-lhe de repente que o carro atrás de si devia ir a persegui-lo. Ia em fuga e caiu direitinho na emboscada.

Posicionam a câmara do local do acidente no sítio errado. A estrada é aquela, mas o troço não. Mark objecta, mas é ignorado. Afirmam que o cenário aqui é melhor, mais pitoresco. O polícia acena com as mãos como um maestro, mostrando o que aconteceu aqui, mas está tudo errado. Tudo falso. Mark diz-lhes isso mesmo, talvez num tom de voz um pouco alterado. Tracey manda-o calar. Ele grita de volta: Como raio é que a pessoa que o encontrou vai reconhecer o local e apresentar-se, se o programa nem sequer mostra o local certo?

Olham todos para ele como se tivesse acabado de se evadir do manicómio, mas deslocam-se para o local certo, em vez de insistirem mais. Filmam-no a caminhar ao longo deste pedaço de estrada, o que é um grande disparate, uma vez que naquela noite ele não ficou exactamente em condições de poder andar. Mas, convenhamos: éHollywood. Está ameno e seco - tempo para um casaco leve, com algum vento. Porém, sente-se completamente gelado, frio no seu âmago, tão frio que bem podia estar ali deitado, imobilizado numa vala, em Fevereiro, o rosto pressionado contra o pára-brisas partido numa poça de gelo e lama.

Outro Inverno nas pradarias, aquilo a que Karin Schluter fugira durante toda a sua vida adulta. Fora criada a escutar histórias sobre o assassino de 36, com o seu mês de temperaturas abaixo de zero, ou o Inverno de 49, com os seus nevões de 12 metros, ou a Tempestade de Neve das Crianças de 1888, com a descida de 26 graus de temperatura num só dia, salpicando a paisagem de estátuas geladas. Este Inverno não era nada comparado com esses. E, ainda assim, ela receava pela sua sobrevivência.

Os castanhos cor de cartão e os cinzentos de canhão de cobre tomaram conta da paisagem. As últimas abóboras e cabaças secaram as suas trepadeiras e todos os seres vivos sensatos se mudaram para sul ou para baixo de terra. As noites cresceram, cobrindo a cidade mais cedo. Na maioria das noites, o vento mantinha-a acordada; poucos locais no globo tinham um ar tão barulhento. Sofreu a habitual depressão de Novembro, aquela sensação de que embatera contra o anteparo do mundo e agora jazia sob a indómita neblina do céu do Nebrasca, incapaz de fazer outra coisa a não ser esperar a Primavera e alguém que a descobrisse.

Ter-se-ia autodiagnosticado com distúrbio afectivo sazonal, mas recusava-se a acreditar em doenças recentemente inventadas. Riegel tentou que ela se sentasse sob as luzes de crescimento das suas plantas.

- Tem tudo a ver com o Sol, com o teu número de horas de luz solar diárias.

- Queres enganar o meu corpo com luzes fluorescentes? Não me parece uma coisa muito natural. - Dava por si a perder mais vezes a paciência com ele à medida que os dias encurtavam, mas não se conseguia conter. Ele sofria as agressões com um silêncio nobre, o que apenas servia para piorar as coisas. Ela corria a pedir-lhe desculpa com pequenas amabilidades, dizendo-lhe mais uma vez como estava grata pelo trabalho no Refúgio, o mais provido de significado que alguma vez fizera. No dia seguinte, voltava a falar-com brusquidão.

Telefonou a Barbara a pedir-lhe conselho.

- Não sei o que fazer. Posso transformá-lo com este medicamento, sabe Deus em quê. Posso deixá-lo como está agora. É demasiado poder.

Recitou as objecções de Daniel relativamente aos fármacos. A auxiliar de enfermagem escutou-a com atenção.

- Compreendo os receios do seu amigo, e falo-lhe como alguém que, ao longo da vida, deixou de fumar, pôs de lado a cafeína e o açúcar refinado. Sei que teme qualquer coisa que possa piorar as coisas. Não posso dizer-lhe o que fazer. Mas precisa de investigar esta substância, a olanzapina, tão cuidadosamente quanto...

- Já o fiz! - ripostou Karin com brusquidão. - E o homem que largou isto nas minhas mãos foi-se embora. Barbara! Por favor?

- Não posso aconselhá-la. Não estou qualificada para o fazer. Se pudesse tomar esta decisão por si, tomaria.

Karin, que sonhara vir um dia a tornar-se amiga desta mulher, até mesmo sua confidente, desligou o telefone odiando-a.

Aumentou o número de horas que passava no Refúgio. Se tivesse tido este trabalho desde o início - um rio ao qual se dedicar -, talvez se tivesse tornado numa criatura diferente. Colocaram-na a preparar folhetos. Um para a angariação de fundos e o outro para exercer pressão. Fogo de armas ligeiras na guerra cada vez mais desesperada pela água. Os profissionais faziam o trabalho principal, é claro. Mas mesmo os seus esforços secundários eram um contributo. Daniel, quase temendo olhar de frente para o crescente desvario dela, mostrou-lhe o material de pesquisa, explicando-lhe os objectivos.

- Precisamos de algo que faça despertar os sonâmbulos - instruiu. - Que torne o mundo estranho e real novamente.

Também se encontrava com Robert, de vez em quando, quando ele conseguia escapar-se. Não haviam feito nada, pelo menos nada que Wendy pudesse usar em tribunal. Apertavam a cabeça um do outro. Havia determinadas linhas no crânio que Daniel lhe ensinara, e ela mostrara-as a Robert. Meridianos. Algo poderoso, se fossem capazes de encontrá-los. Passavam horas fora de portas, em Cottonmill Lake, sob as esqueléticas árvores, à procura deles: pressão entre as sobrancelhas, um percurso que subia e descia até à coroa da cabeça e que, quando pressionado com força, era capaz de accionar os sentidos de uma forma impressionante. Quando ela descobrira as linhas de Robert,

recostara-se, gritara “Wasabi!” e tomara o pulso. As noites ficaram demasiado frias para estarem na rua, mas não tinham outro lugar para onde ir. Acabaram a embaciar o carro dela, parado nas bermas de estradas escuras de província ou nos cantos mais distantes de parques de estacionamento abandonados. Não podiam usar o carro dele devido ao apuradíssimo sentido do olfacto

Wendy. A mulher era, segundo os relatos do marido, tão olfactivamente perspicaz quanto um texugo.

- É pior do que ser um adolescente - queixava-se Karin. - Raios partam, Robert. Vou explodir.

Depois paravam e voltavam à conversa sem se tocarem. Tinham atingido aquela idade em que a frustração oferecia mais do que entrega. Significava alguma coisa este manter da fidelidade técnica.

O adultério vinha depois, quando regressavam aos respectivos companheiros.

Surpreendeu-a descobrir que se tivesse de escolher entre dormir com alguém e conversar, escolheria conversar. Era em larga medida o que precisava, dele, nos últimos dias. A mente dele era tão brutalmente diferente da de Daniel, ou da sua própria. Ela pensava mais rapidamente quando estava perto de Robert. Ele era uma enorme e arguta extensão daquele PDA em que não parava de mexer. Era capaz de se sentar ao volante do Corolla estacionado, mexendo naquela maquineta como uma criança a explorar um brinquedo da Playskool. À ansiedade dela em relação ao fármaco para Mark, ele disse:

- Faz a conta aos custos. Soma os benefícios. E vê qual é maior.

- Ouve bem o que dizes. Se fosse assim tão fácil...

- É assim tão fácil. A menos que queiras tornar a coisa mais difícil. Vá lá! Que mais te resta? A coluna do mais e a coluna do menos. E depois a soma. - A lucidez dele irritava-a, mas era o que a mantinha sã. - A sério - insistiu. A voz dele era tão calmante. - O que te impede de o pôr a tomar estes antipsicóticos e ver o que acontece?

- É difícil fazer o desmame destes fármacos, uma vez iniciada a toma.

- Difícil para ti ou para ele?

Ela aplicou-lhe uma palmada e ele gostou.

- O que faço se resultarem? - Ele girou no assento para ficar de frente para ela. Não compreendia. Como poderia? Nem ela tinha a certeza de compreender. Ele abanou a cabeça, mas os seus olhos tinham uma expressão mais divertida que exasperada. Ela era o quebra-cabeças dele.

Ela pegou-lhe na palma da mão e acariciou-a com o polegar, a transacção mais perigosa entre eles até à data.

- Como seria ele se... regressasse?

Robert fungou.

- Como era. O teu irmão.

- Sim. Mas qual deles? Não olhes para mim assim. Sabes a que me refiro. Ele conseguia ser um filho da mãe tão agressivo. Sempre a criticar-me.

Karsh encolheu os ombros, a culpa de toda a humanidade.

- Já fui conhecido por, tu sabes, ser também um pouco assim.

- É que não sou mesmo capaz... Quando tento imaginá-lo, antes? Não consigo ter a certeza se eu... Ele por vezes era tão irascível. Acusando-me de ter ido embora para me salvar, condenando-o à curandeira e ao empresário. Chamando-me... Por vezes, odiava-me de verdade.

- Ele não te odiava.

- Como é que sabes? - Lançou as mãos ao ar, um tiro certeiro para a raiva dela. - Desculpa - apressou-se a dizer. - Não sei se sou capaz de aguentar tudo aquilo outra vez. - Permaneceram sentados em silêncio. Ele consultou o relógio e depois rodou a chave na ignição. Ela não tinha muito tempo para o perguntar. - Robert? Achas que eu tinha ressentimentos em relação a ele, naquela altura? Tu entendes. Algum tipo de... escondido?

Robert tamborilou o volante.

- Queres a verdade? Não havia nada de escondido nisso.

Ela inflamou-se e depois deixou pender a cabeça.

- Mas não vês, isso faz parte... Não tenho ressentimentos para com ele, como ele é agora. Já não... não me importo muito. Sendo ele quem...

- Não te importas? - Karsh engrenou uma mudança. - Queres dizer que gostas mais dele desta forma?

- Não! Claro que não. É que... gosto da nova imagem que ele tem de mim, é melhor do que a anterior. Bem, não é de mim, na verdade; tu sabes: da “verdadeira Karin”. Gosto da forma como ele acha que eu era. Ele agora defende o antigo eu, contra quem quer que seja. Há dois anos, a verdadeira Karin era uma fonte constante de desilusão. Estava permanentemente a desiludi-lo. Uma vagabunda, uma vendida, alguém que só se interessava por dinheiro, uma pretensiosa aspirante a senhora da classe média, demasiado boa para as minhas raízes. Agora, a verdadeira Karin é uma espécie de vítima da história. A irmã que nunca consegui ser.

Karsh conduzia em silêncio, com o ar de quem parecia precisar de ligar aquele seu computador de bolso e abrir uma folha de cálculo. Actualização sobre Karin Schluter. Custos. Benefícios.

- Não acredito que estou a contar-te tudo isto. Sou completamente repugnante?

Sem tirar os olhos da estrada, esboçou um sorriso sarcástico.

- Não completamente.

- Não acredito que o contei a alguém. Que o admiti sequer para mim mesma, em voz alta.

Pararam a quatro quarteirões da casa dele, o local onde ele se apeava e regressava a pé. Abriu a porta do lado do condutor.

- Contaste-me porque me amas - declarou ele.

Ela passou a mão pela cara.

—Não - respondeu. - Não completamente.

Ele telefonava-lhe por vezes, quando o escritório estava vazio. Falavam em prestações roubadas, sussurrando acerca de nada. Uma vez ultrapassadas as perguntas básicas - O que foi o teu almoço? O que trazes vestido? -, tudo o resto recaía sobre os acontecimentos da actualidade. O atirador de Washington era um terrorista ou apenas um tipo rude, que se fez por si mesmo? Porque seria que os inspectores de armas da ONU no Iraque não encontravam nada? Os executivos da Enron e da ImClone deveriam ter o seu próprio canal de televisão real? Tão satisfatório para ambos quanto sexo pelo telefone. Ela mantinha-se em linha por equidade e ele por uma questão de liberdade. Cada um achava que poderia converter o outro: essa fora sempre a atracção fatal entre eles. Ambos concordavam que o Governo estava fora de controlo. Só que ela queria pô-lo a uso de uma forma decente, por fim, ao passo que ele queria derrubá-lo, de uma vez por todas. Um encontro fortuito com The Fountainhead's transformara um radiante e tímido campeão de natação do liceu num libertário, muito embora Karsh achasse até essa designação demasiado restritiva.

- Cada pessoa competente ao cimo da Terra é uma espécie de deus, querida. Juntos somos imparáveis. O engenho humano é capaz de qualquer coisa. Nomeia um constrangimento material e estamos a meio caminho de o transcender. Sai da nossa frente e observa os milagres a operarem-se.

- Oh, meu Deus, Robert. Não acredito que estejas a dizer isso. Olha à tua volta! Destruímos tudo.

- De que estás a falar? O comum adolescente das reservas nativas vive melhor do que a realeza costumava viver. Prefiro viver agora do que em qualquer outra altura da história. Excepto no futuro.

- Isso é porque és um animal. Quero dizer: isso é porque não és um animal.

- Desde quando é que tu adquiriste essas convicções?

Desde que se apercebera do pouco que podia fazer para mudar

Mark. Tinha de canalizar as suas energias para outro lado, ou morreria. Era provável que este rio necessitasse mais dela do que o irmão alguma vez precisara.

Em poucos minutos ficavam como que sobre gelo fino, e depois permaneciam aí, girando de braço dado, como um número de dança livre a pares. Cada um precisava de desenraizar o outro: inútil, no entanto irresistível. Ela preferia gritar horrorizada contra as atrocidades de Karsh do que murmurar em concordância relativamente às devoções de Riegel. Robert sabia a verdade que para sempre escaparia a Daniel, até à sepultura: apenas amamos aquilo em que nos conseguimos rever.

Invariavelmente, Karsh tentava sondá-la.

- Como vão as coisas na Salv'um Pássaro? Fala-me dessa nova ânsia de angariar fundos. Planeiam comprar uns pauis é?

- Fala-me tu primeiro do novo centro comercial do teu consórcio.

- Não é um centro comercial!

- O que raio é, então?

- Bem sabes que não to posso dizer.

- Ao passo que eu tenho supostamente de gritar os meus segredinhos aos sete ventos?

- Ah, então sempre tens um segredo? Os teus compinchas andam mesmo a preparar alguma.

Impetuosas, as súplicas dele. Ela detinha algum poder sobre ele. Saboreá-lo compensava as intermináveis humilhações passadas.

- Não restam assim tantos locais contestáveis de valor ao longo do rio, bem sabes. - Algo que Daniel dissera ao pequeno-almoço, algumas manhãs antes. Ela repetiu-o como se tivesse acabado de se lembrar disso.

- Nós não queremos atrapalhar os vossos planos - afirmou Karsh. - Não seria do nosso interesse desenvolver quaisquer áreas que o Refúgio considere essenciais para preservar.

- Então, deviam sentar-se à mesma mesa com os membros do conselho de administração e resolverem isto hectare a hectare.

Ele soltou um riso abafado.

- Alguma vez te disse que és realmente adorável?

- Não nesta vida.

- Bom, se tu e eu estivéssemos à frente disto, seria isso mesmo que faríamos. A sério. Toda esta cultura empresarial de capa e espada irrita-me. Falaremos de novo quando isto se tornar público. Ficarás bem mais orgulhosa de mim nessa altura.

A palavra “orgulhosa” teve impacto nela. Algo em si o admirava. Ele era capaz de apontar para coisas e alegar paternidade. Na sua maioria, coisas horríveis, é certo, mas verdadeiras e terminadas. Karsh pelo menos deixara uma cicatriz na paisagem. Já ela não podia apontar para nada, à excepção de uma série de empregos na área dos serviços, todos perdidos, e um apartamento, agora vendido. Nem sequer procriara, algo que todos os seus antigos colegas do liceu faziam mais facilmente do que Karin endireitava a vida. Até o seu próprio irmão afirmava que ela não era nada. Aos 31 anos, tropeçara por fim num trabalho com significado, importante. Ansiava ardentemente por dizer-lhe o quanto esse trabalho era merecedor.

- Orgulhosa? - perguntou, preparada para se perder. - De que forma?

- Verás, se conseguirmos a aprovação do Conselho de Desenvolvimento. Se não conseguirmos, deixará de ser relevante. Vem à audiência pública e logo ficarás a saber.

- Tenho de ir - respondeu ela, metendo-se com ele voluptuosamente. - Por causa do meu trabalho.

Foi à audiência com Daniel. Ele conduzia e ela julgou-o impiedosamente todo o caminho.

- Se chegas ao sinal de stop primeiro, devias ser também o primeiro a passar. Não fiques ali embasbacado a ceder a passagem aos outros.

- É uma questão de educação - argumentou ele. - Se toda a gente...

- Não é educação - gritou ela. - Apenas confunde as pessoas.

Ele retraiu-se.

- Pelos vistos! - Usou toda a crueldade que conseguiu reunir e isso mortificou-a. Quando chegaram à audiência, já se arrependera. Ela deu-lhe o braço quando atravessaram o parque de estacionamento da Câmara Municipal.

Largou-lho no vestíbulo ao ver Karsh e os seus colegas da Platte-land. Manteve os olhos no mármore cor-de-pêssego do chão enquanto Daniel a conduzia à sala das audiências. Procuraram lugares na sala que começava a encher-se. Daniel examinou a sala. Ela seguiu o olhar dele pela multidão sobretudo geriátrica. Dois estudantes do canal de cabo da comunidade universitária manuseavam uma câmara de vídeo a meio caminho do corredor do lado direito. Para além deles, a grande maioria da assistência ali reunida era beneficiária da Segurança Social. Porque é que as pessoas esperavam até terem quase um pé na cova para se começarem a preocupar com o seu futuro?

- Não está mal - comentou ela para Daniel.

- Achas? Quantas pessoas dirias que aqui estão?

- Não sei. Já sabes como sou com números. Cinquenta? Sessenta?

- Portanto... mais ou menos um décimo de um por cento das pessoas directamente atingidas?

Juntaram-se ao contingente do Refúgio. Daniel ganhou vida e Karin arrastou-se atrás, um melro no ninho. O grupo reviu o plano e um plano de recurso, suportados pela investigação que Karin preparara. Observou Daniel em acção, estimulado pelas forças reunidas contra eles. As fracas possibilidades de sucesso tornavam-no mais atraente do que há semanas lhe parecia.

Mesmo por trás da equipa de televisão estudantil, numa cadeira puxada deliberadamente para fora do plano da câmara, estava Barbara Gillespie. Vê-la confundiu Karin: mundos incompatíveis.

- Aquela é Barbara - disse a Daniel. - A Barbara do Mark. O que achas dela?

- Ah! - Daniel estremeceu.

- Não achas que ela tem qualquer coisa? Uma espécie de aura? Tudo bem; apenas a verdade.

- Parece muito... segura de si. - Receando olhar, corroborando-a.

O contingente da Platteland escolheu esse momento para fazer a sua entrada, avançando em grupo até junto dos restantes urbaniza-dores na primeira fila, mesmo em frente à mesa do Conselho. Ela e Daniel desviaram o olhar. Um minuto depois, ela voltou a dar uma espreitadela. Caso Karsh a tivesse visto, o momento passara. Estava soterrado em materiais para a apresentação. Estonteada, Karin olhou de relance para Barbara, que ergueu uma palma num aceno dissimulado. Perigo, dizia o movimento oscilante do aceno. Humanos por todo o lado.

A audiência começou. O mayor dirigiu-se ao Conselho e estabeleceu a ordem de trabalhos. Uma porta-voz do grupo de desenvolvimento subiu ao pódio, escureceu a sala e acendeu um ecrã de LCD. Um diapositivo acendeu-se por trás da mesa do Conselho, o ubíquo tema da natureza. Em letras da fonte Mistral lia-se: Novos Migrantes da Nossa Antiga Via Aquática.

Karin virou-se para Daniel, incrédula. Porém, ele e o Refúgio preparavam-se para o espectáculo, de dentes cerrados. Os diapositivos iam e vinham sinuosamente como o rio em questão. A apresentação encaminhava-se para o último alvo que Karin esperara: o que o Conselho de Desenvolvimento apelidava de “Sector da Hospitalidade”.

Um gráfico de barras mostrava o número de visitantes que se tinham deslocado ao condado para testemunhar a migração de Primavera ao longo dos últimos dez anos. Os números eram um eterno mistério para ela, mas conseguia calcular extensões. As barras duplicavam a cada três anos. Por alturas da sua morte, a maior parte do país caminharia por aquelas bandas todos os meses de Março.

A oradora metamorfoseou-se numa Joanne Woodward frente aos olhos de Karin.

- O local de concentração de quase todos os grus canadenses migratórios da Terra tornou-se num dos mais deslumbrantes espectáculos da vida selvagem disponível no nosso planeta.

- Disponível? - sussurrou ela.

Porém, imerso numa batalha mental, Daniel não a escutava.

Seguiu-se uma fotografia panorâmica: um trecho do Platte não muito longe da casa de Mark. Uma imagem começou a sobrepor-se, o esboço feito por um artista de um povoado rústico com antigas casas e cabanas. A oradora baptizou-o de Aldeia Natural do Platte Central e listava os seus princípios ambientais de construção - localização de baixo impacto, alimentação a energia solar, vedações fabricadas com milhões de pacotes de leite reciclados -, quando Karin percebeu: o consórcio queria construir uma aldeia turística para os visitantes dos grous.

A batalha desenrolou-se numa pantomima glacial, com urbani-zadores e conservacionistas a atacar e a contra-atacar. Daniel foi à liça, desferindo um par de golpes contundentes. As aves eram espectaculares, realçou, precisamente porque o rio secara sob as patas delas, concentrando-as nuns poucos santuários restantes. Retirar sequer mais um copo de água de um bioma que estava já em ruptura era no mínimo pouco escrupuloso. Karin examinara os factos, factos que ela mesma ajudara a pesquisar. Cada palavra que Daniel proferia era uma verdade contida nos Evangelhos. Porém, ele pregava-as com uma paixão tão messiânica que Karin começou a achar que a assistência o encarava como mais um Jeremias a apontar o dedo.

Robert, sorrindo como um espectador inocente, levantou-se para argumentar. A Aldeia não estava numa zona usada pelas aves, apenas perto dela. Os visitantes viriam, de uma forma ou de outra. Não fazia mais sentido absorvê-los o mais ecologicamente possível, em edifícios que preservavam uma consciência histórica, integrados na paisagem natural? Os visitantes partiriam mais alertados para a necessidade de conservar as áreas selvagens. O objectivo da conservação não era proteger a natureza para que a possamos apreciar? Ou seria que o Refúgio acreditava que apenas uma mão-cheia de escolhidos deveria desfrutar das aves?

Este último ponto foi acolhido com aprovação pelo público. Assembleia de estudantes outra vez. Os Karsh deste mundo esmagam sempre os Riegel, em qualquer votação. Os Karsh tinham humor, estilo, orçamentos ilimitados, sofisticação, sedução subliminar... Os Riegel tinham apenas culpa e factos.

Robert voltou ao seu lugar. Olhou de relance para Karin, um olhar que se deteve como um perseguidor. E que tal? Por um estranho e fugaz momento, sentiu-se pessoalmente responsável por toda aquela disputa.

O Refúgio contra-atacou: os urbanizadores estavam a requerer dez vezes mais quotas de água do que a sua Aldeia Natural consumiria. Os urbanizadores explicaram as suas próprias cautelosas projecções e prometeram que a Aldeia venderia todas as quotas de água não usada ao município a preço de custo.

A democracia prosseguiu, a forma de decisão mais embaraçosa conhecida do homem. Um barco à vela movido a sopro. Cada excêntrico apanhador de latas de alumínio sem-abrigo tinha voto na matéria. Como é que um processo tão cego poderia alguma vez chegar a uma decisão acertada? Um urbanizador de fato verde-claro e um Refugiado vestido de ganga, o pouco cabelo que lhe restava apanhado num rabo-de-cavalo, debateram-se, os seus braços espadas cerimoniais, as vozes subindo e descendo de tom em lamentos espectrais tipo uma cena de kabuki. Um filtro translúcido pousou sobre o ajuntamento de pessoas, como se Karin se tivesse levantado depressa de mais. Toda a sala tremeluzia, como um campo de leguminosas soprado pelo vento de Agosto. Estas pessoas já aqui se juntavam muito antes da ideia deste empreendimento ter sequer nascido. Desde que houvera pradarias planas o suficiente para cegar e enlouquecer, os homens haviam-se aqui juntado para discutir, apenas para provar a si mesmos que não estavam sozinhos.

O público estava tão confuso quanto o seu irmão. Pior: quanto ela. Os oradores andavam em círculo, substituindo-se um ao outro, substituindo-se a si mesmos, preparando-se para pelejar combatentes fantasmas... Ela encontrava-se no meio da rixa, uma agente dupla, vendendo-se a ambos os lados. Levou o combate para dentro de si mesma, todas as possíveis posições debatendo-se na frouxa democracia no seu crânio. Quantas partes cerebrais é que os livros de Weber haviam descrito? Um motim de agentes livres; cinco dúzias de especialistas na parte pré-frontal. Todas aquelas formas de vida com nomes latinos: a azeitona, a lentilha, a amêndoa. Cavalo-marinho e concha, aranha, caracol e minhoca. Suficientes partes corporais sobresselentes para fazer outra criatura: seios, nádegas, joelhos, dentes. Demasiadas partes para o seu cérebro recordar. Até mesmo uma parte chamada substância anónima. E todas tinham opinião própria, cada qual debatendo-se para ser ouvida por cima das outras. E claro que ela estava um caco delirante; toda a gente estava.

Uma onda assolou-a, um pensamento a uma escala que nunca sentira. Ninguém tinha qualquer ideia sobre o que os nossos cérebros procuravam ou de que forma pensavam obtê-lo. Se pudéssemos separar-nos por um momento, libertarmo-nos de toda a duplicidade, contemplar a própria água e não um espelho concebido pelo cérebro... Por um instante, à medida que a reunião se transformava num ritual instintivo, ocorreu-lhe: a raça humana inteira sofria de Capgras. Aquelas aves dançavam como os nossos familiares mais próximos, pareciam-se com os nossos parentes mais próximos, chamavam e desejavam e procriavam e ensinavam e avançavam pela vida tal como os nossos familiares. Metade das suas partes eram ainda nossas. Contudo, os humanos enxotavam-nos: impostores. Quando muito, um estranho espectáculo para contemplar à distância. Muito depois de toda a gente nesta sala ter morrido, este local de reunião perduraria, debatendo o declínio da qualidade de vida, enumerando os urgentes pormenores de uma nova e enorme construção. O rio secaria, iria para outro lado. Três ou quatro espécies dizimadas sobreviventes arras-tar-se-iam para aqui anualmente, sem saberem porque regressavam a esta árida terra devastada. E nós continuaríamos encurralados na ilusão. Porém, antes que Karin conseguisse fixar o pensamento que começava a tomar forma em si, este ficou irreconhecível.

A audiência terminou sem uma resolução. Agarrou Daniel, confusa.

- Não têm de tomar uma decisão?

Ele olhou para ela com pena.

- Não. Vão estudar a proposta durante alguns meses e depois emitem uma decisão quando ninguém estiver a ver. Bom, pelo menos agora sabemos aquilo que enfrentamos.

- Pensei que seria bem pior. Uma espécie de complexo comercial gigantesco. Ainda bem que é só isto. Algo que não cospe veneno. Algo que pelo menos é pró-aves.

Foi como se o tivesse apunhalado. Encaminhavam-se para as saídas na parte de trás da sala. Daniel parou no meio da multidão que se acumulava e agarrou-a pelo antebraço.

- Pró-aves? Isto? Perdeste o juízo?

Algumas cabeças giraram. Robert Karsh, a discutir números com dois membros do Conselho de Desenvolvimento, olhou naquela direcção. Daniel corou. Inclinou-se para Karin e pediu desculpa num sussurro.

- Desculpa. Foi imperdoável. Estas últimas horas foram desgastantes.

Ela continuou a andar para o silenciar. Uma mão bateu-lhe no ombro. Virou-se e viu Barbara Giliespie.

- Você! Que faz aqui?

A única sobrancelha arqueada, típico de Barbara.

- A ser uma boa cidadã. Eu vivo aqui!

Apanhada, Karin fez as apresentações.

- Deixe-me apresentar-lhe o meu amigo Daniel. Daniel, esta é Barbara, a... senhora sobre a qual te falei.

Riegel virou-se na direcção dela, um Pinóquio tenso, sorridente. Não foi sequer capaz de balbuciar. Karin vislumbrou Karsh a abandonar a sala, olhando de esguelha para Barbara.

- Gostei do que disse - referiu Barbara a Daniel. - Mas diga-me uma coisa. O que acha que estas pessoas planeiam fazer com estas instalações durante os cinco sextos do ano em que não se avista nem um grou? - Daniel ficou de boca aberta ao constatar que nenhum dos ambientalistas se lembrara de levantar tal questão durante a audiência. - Talvez um centro de conferências? - aventou Barbara. - É possível. Porque não? - Depois, tão subitamente que sobressaltou Karin, acrescentou: - Bom, gostei muito de a ver, minha querida! Prazer em conhecê-lo, Daniel. - Daniel acenou com a cabeça, aturdido. - Façamos figas! - Barbara recuou com um sorriso torcido e um aceno de rainha do baile de finalistas, e depois abandonou a sala no meio da multidão que se escoava. Uma parte de Karin amaldiçoou a saída dela.

Daniel estava arrependido.

- Desculpa. Não teria perdido a cabeça se as coisas não tivessem corrido tão... Não sei de onde veio aquilo. Sabes que eu não sou...

- Esquece o assunto. Não tem importância. - Nada importava a não ser libertar-se, atingir a verdadeira água. - Sim, perdi o juízo. Já ambos sabíamos isso de antemão.

Porém, Daniel não conseguia esquecer o assunto. Na viagem de carro para casa, avançou mais três teorias para explicar a agressão verbal. E queria que ela as ratificasse todas. Ela assim fez, no interesse da paz. Não era o suficiente para ele.

- Não digas que acreditas em mim, se não for verdade.

- Eu concordo contigo, Daniel. A sério.

Isso fez pelo menos com que chegassem a casa sem falar mais no assunto. Mas o post-mortem prosseguiu, depois de se deitarem, às escuras. Daniel falou para as rachas no estuque do tecto.

- A audiência foi um completo desastre, não foi? - Ela não conseguia perceber se devia concordar ou objectar. - Nem vimos bem o que nos atingiu. Lançámo-nos logo ao ataque como um ouriço-cacheiro. Combatendo como se fosse o habitual açambarcamento de terrenos para áreas comerciais. Não fomos capazes de desacreditar o projecto deles. Provavelmente o Conselho saiu da sala a pensar o mesmo que tu: que esta ideia até é de alguma forma benéfica para a zona.

Ela ainda acreditava que sim. E concretizada da melhor forma, podia até ser um equivalente populista do Refúgio, gerindo o impacto dos turistas, cuja quantidade apenas continuaria, fosse como fosse, a aumentar.

- Eles estão obviamente a preparar alguma. Esta deve ser apenas a fase um. Repara bem na quantidade de água que reclamam. E a tua amiga tem razão. Não terão com certeza lucro se o local encher apenas dois meses por ano.

Ela massajou-lhe o pescoço em círculos grandes e suaves. O livro de Weber afirmava que isso estimulava a produção de endorfinas. Resultou durante um minuto ou dois, antes de ele se virar.

- Estragámos tudo. Devíamos tê-los exposto, mas ao invés...

- Chiu. Fizeste o melhor que podias. Desculpa, não é isso que queria dizer. Quero dizer, fizeste o melhor que qualquer pessoa poderia ter feito, tendo em conta as circunstâncias.

Daniel ficou acordado a noite inteira. Pouco depois da uma da manhã, começou a ficar tão agitado que ela despertou o suficiente do seu sono irregular para lhe colocar uma mão sobre o ombro.

- Não te preocupes com isso - murmurou, ainda meio a sonhar.

- Foi apenas uma palavra.

Por volta das três ela acordou e viu que ele não estava na cama. Ouviu-o na cozinha, andando de um lado para o outro como um animal do zoológico. Quando por fim voltou a meter-se na cama, ela fingiu estar a dormir. Ele ficou deitado quieto, à escuta, no meio de um campo, seguindo o rasto de algo de grande porte. Reduz o teu campo sonoro ao interior do teu campo visual. Completamente imóvel, até mesmo os seus pulmões. Pelas cinco e meia, nenhum deles conseguia continuar a fingir.

- Estás bem? - perguntou ela.

- Pensativo - sussurrou ele.

- Já percebi.

Deviam ter-se levantado e tomado o pequeno-almoço ao estilo dos pioneiros, às escuras. Mas nenhum deles se mexeu. Por fim, ele disse:

- A tua amiga parece muito perspicaz. Ela tem razão. Estas casas para observadores de pássaros são apenas a ponta de qualquer coisa.

Ela deu um murro na almofada.

- Logo vi que estavas a pensar nela. É por isso que tu...?

Ele ignorou-a.

- Já alguma vez ma tinhas apresentado algures?

- Olha para mim. Eu tenho cara de quem perdeu o raio do juízo?

Ele pestanejou e deixou tombar a cabeça.

- Eu pedi-te desculpa. Foi imperdoável. Não sei que mais dizer.

Ela perdera de facto, perdera o juízo. Derrubada por não ter sido capaz de cuidar de alguém.

- Esquece. Não é nada. Estou doida. O que dizias sobre Barbara?

- Tenho a mais estranha das sensações de conhecer a voz dela. - Levantou-se e atravessou o quarto até à janela. Abriu a cortina e olhou para o pátio imerso na escuridão. - A voz dela soa à de alguém que eu conheço.

Inverno em Long Island: Porque insistiam em ficar? Seguramente que não pelos poucos deslumbrantes momentos merecedores de fotografia: geada no moinho de água, o lago dos patos congelado, Conscience Bay caiada de branco, sem mais nada a não ser os invasores cisnes-mudos e uma única e confusa garça-real esperando que a neve ficasse enfarruscada e a verdadeira estação de latência se instalasse. Não era pela saúde de ambos, seguramente: apedrejados dias seguidos por saraivadas hipodérmicas. Também não era por uma necessidade económica. Só podia ser por uma qualquer expiação insondável, mantendo-se fiel à límpida e primeva imagem do novo mundo.

- Enterrados, “naquela enorme obscuridade para lá da cidade” - citou Weber a Sylvie, durante o implacável pequeno-almoço de muesli e leite de soja - “onde os sombrios campos da república se estendem sob o manto da noite”.

- Sim, querido, com certeza.

- Podia estar a dar aulas no Arizona. Ou ser conferencista na Califórnia, vivendo a apenas alguns quarteirões da Jess. Melhor ainda, podíamos ambos estar reformados e a viver numa cabana na Úmbria.

Ela sabia o que fazer:

- Ou podíamos estar mortos e enterrados. Assim, já teríamos tudo disposto, tratado e nada a incomodar-nos. - Enxaguou as tigelas do pequeno-almoço pela enésima vez desde que partilhavam o mesmo tecto. - Palestra no Centro Médico daqui a 17 minutos.

Observou-a dirigir-se ao quarto para se vestir. Que imagem teriam dela os estranhos? Ainda magra para a sua idade, ancas e cintura ainda um eco do passado, o seu corpo ainda publicitando vigor, muito depois de ter qualquer direito de o fazer. Ela tornara-se quase insuportavelmente encantadora com ele nas últimas semanas, o resultado do seu quase descarrilamento no Nebrasca.

Na noite do regresso, contou-lhe porque viera a correr para casa. Dizer tudo: o contrato de casamento entre ambos desde o início, e para salvar qualquer coisa de verdadeiro com a mais real das mulheres, não podia esconder-se agora. Sempre acreditara no poema Poison Jree de William Blake: enterra uma fantasia se queres acalentá-la. Mata-a por exposição ao ar livre.

O ar húmido de Long Island não matou a fantasia dele. Ao invés disso, descrever a terrível descoberta que fizera à sua mulher na noite do seu regresso matou outra coisa. Deitado na cama ao lado dela, abordou o assunto. Sentiu uma agitação ao preparar-se para falar.

- Sylvie? Preciso de te contar uma coisa.

- Ai, ai. A tratares-me pelo primeiro nome, a coisa deve ser grave. - Sorriu, virou-se de lado e assentou a cabeça sobre o braço dobrado. - Deixa-me adivinhar. Apaixonaste-te.

Ele fechou os olhos com força e inspirou.

- Não diria... - começou ele. - Parece-me que regressei a Kearney, pelo menos em parte, para olhar outra vez para uma mulher em redor da qual, sem que disso me desse conta, fabriquei uma vida completamente hipotética.

Ela permaneceu como estava, sem desfazer o sorriso, como se ele tivesse acabado de dizer: “Um neurocientista entra num bar...”

- Que sintaxe tão elaborada, Ger.

- Por favor. Isto está a dilacerar-me.

O sorriso dela transformou-se num esgar. Virou-se de barriga para baixo, olhando-o como se ele tivesse acabado de confessar uma paixão por vestir roupa interior feminina. A cada segundo que passava, ela tornava-se mais profissional. Sylvie Weber, membro da Way-finder. Encorajadora; sempre, terrivelmente encorajadora.

- Dormiste com ela?

- Não é isso. Acho que nem sequer lhe toquei.

- Ah. Então estou mesmo tramada, não estou?

Ele mereceu a bofetada, até a desejava. Porém, encolheu-se e não disse nada.

- Eu conheço-te, Marido. A nobreza dos Weber. Conheço essa tua mente idealista.

- Isto não é algo que... eu queira. Foi por isso que regressei tão depressa.

Censurou-o num tom duro:

- Fugiste? - Depois abrandou o tom, envergonhada. - Não sabias, quando falámos sobre fazeres outra viagem até lá?

- Ainda não sei. Isto não é... - Queria dizer desejo, mas pareceu-lhe evasivo, tão enganador quanto algo que o Famoso Gerald pudesse escrever. Mais uma desesperada tentativa de construir uma história contínua a partir do caos. - Em retrospectiva, talvez uma parte de mim quisesse ir lá dar mais uma olhadela.

- Não deste conta de te sentires atraído por ela na primeira visita?

Ele pensou um pouco antes de responder. Quando falou foi de perto do tecto do quarto.

- Não sei ao certo se o que senti ontem se pode apelidar com segurança de atracção.

Ela tapou os olhos com as mãos.

- Isto é muito sério?

Como poderia ser sério? Três dias contra trinta anos. Um mistério total versus uma mulher que conhecia como a palma da sua mão.

- Não quero que isto signifique o que quer que seja.

Sob as mãos em concha, Sylvie chorou. O seu choro, tão raro ao longo dos anos, sempre o intrigara. Indiferente, quase abstracto. Demasiado civilizado para contar como um verdadeiro pranto. Se calhar, o sofrimento calmo era um sinal de genuína maturidade, o que a saúde mental exigia. Mas só agora é que Weber se apercebia do quanto o impreciso distanciamento dela sempre o perturbara. A crise de que a inabalável certeza de ambos sempre troçara - as amabilidades que os uniam e as brincadeiras disparatadas, Marido e Mulher -, o afastamento que nunca haviam entendido nos outros era agora o deles. E ela chorava sem produzir qualquer som.

- Então, por que raio me estás a contar isto?

- Porque não posso permitir que signifique alguma coisa. Ela pressionou as têmporas.

- Não estás simplesmente a atirar-me isto à cara? O meu castigo por...? - Pelo quê? Por se ter encontrado a si mesma, por encontrar algo que a satisfizesse a meio da vida, ao passo que o que o satisfazia a ele o abandonara? Algo animal se acendeu no rosto dela, preparado para se vingar. E ele sentiu o quanto cruelmente a amava.

Tentou dizer:

- Estou a dar-te... Estou a tentar...

Ela recompôs-se e deixou-se de choraminguices, novamente cooperante, demasiado depressa. Sentou-se e expirou, como se tivesse acabado de fazer ginástica. Bateu na colcha da cama com a palma da mão.

- Muito bem. Diz-me então o que te agrada nesta pessoa. - Projecto de melhoria. O próximo passo da vida para o autodomínio.

- Como posso eu... gostar de alguma coisa em relação a ela? Não sei nada sobre ela.

- É pelo desconhecido? Pelo mistério? Que idade tem ela?

Ele queria abandonar o assunto de uma vez por todas. Porém, falar era a sua penitência.

- Cinquenta e poucos - respondeu, mentindo por uma década. Uma mentira inútil (quarenta anos dificilmente a qualificariam como uma mulher mais nova) depois da verdade mais dura. Barbara era mais jovem, mas a juventude era irrelevante.

- Ela lembra-te alguém?

E então ocorreu-lhe.

- Sim. - Aquela aura de quem escapou à vida. Um passo fora e acima dela. A mesma pretensão angélica do autor daqueles três livros. E no entanto, aquele frenesim pessoal, mesmo abaixo da superfície da sua impecável actuação. - Sim. Tenho a sensação de estar de alguma forma ligado a ela. Ela lembra-me a mim mesmo.

Mais valia ter esbofeteado Sylvie.

- Não compreendo.

Nós os dois. Pressionou as palmas contra as órbitas até as pálpebras começarem a brilhar verde e vermelho.

- Há algo nela que se relaciona comigo. Que eu sinto necessidade de compreender.

- Estás a dizer que não é físico? Que é mais...?

E depois, o que tentara dizer a Karin Schluter, algo em que ele mesmo não conseguia inteiramente acreditar:

- Tudo é físico. - Químico, eléctrico. Sinapses. Paixão ou não. Ela deixou-se cair de costas na cama, ao lado dele.

- Vá lá - pediu ela com um sorriso, agarrando os lençóis como segurança. - O que é que esta flausina tem que eu não tenho?

Cobriu a careca com ambas as mãos.

- Nada. A excepção de ser uma história totalmente ilegível.

- Estou a ver. - Algures entre o corajosa e o ressentida. Qualquer uma delas o mataria. - Não tenho grandes hipóteses de competir com isso, pois não?

Por fim, ele recobrou o ânimo e abraçou-a, puxou a cabeça tremente dela contra o seu peito.

- A competição terminou. Sem controvérsia. Tu tens... todo o meu conhecimento. Toda a minha história.

- Mas não todo o teu mistério.

- Não preciso de mistério - asseverou ele. Mistério e amor não sobreviviam um ao outro. - Apenas preciso de me controlar.

- Gerald, Gerald. Esta é a melhor crise de meia-idade que consegues arranjar? - A coluna dela relaxou-se e ela irrompeu em lágrimas. Permitiu que ele a abraçasse. Ao fim de algum tempo, afastou a cara, limpando o rosto encarnado e húmido. - Tenho de comprar lingerie especial na Internet, ou assim?

Soltaram gargalhadas abafadas, envoltas em compaixão.

O recontro abalou-os, de uma forma pior do que Weber imaginara. Sylvie continuava pungentemente igual a si mesma, e ele recriminava-se pela sua imbecilidade de cada vez que ela sorria resolutamente para ele. Ao fim de trinta anos, ela deveria ter recebido a notícia com uma lassitude zombeteira, deveria ter percebido que ele era seu por defeito, enterrado sob o registo fóssil da experiência. Deveria ter-lhe passado a mão pela cabeça e dito: Continua a sonhar, meu homenzinho; o mundo é ainda o teu campo de ensaios. Deveria ter sabido que ele não ia a lado nenhum, excepto em símbolos.

Contudo, uma vida dedicada à neurociência provara que os símbolos eram reais. Não havia outro lugar onde viver. Passavam um pelo outro no quarto e abraçavam-se. Tocavam os antebraços um do outro na lavandaria. Sentavam-se ao lado um do outro nos bancos altos durante as refeições, como sempre haviam feito, ambos avivados pelo perigo, trocando teorias sobre os inspectores de armas da ONU ou sobre avistamentos de focas-comuns no estreito. O rosto de Sylvie era límpido e alegre, mas distante, como uma nebulosa captada pelo Hubble e cujas cores foram realçadas. Ela recusava-se a perguntar como ele estava, a única pergunta que importava para ela. Magoava-o olhar para Sylvie. Toda aquela insuportável preocupação esmagá-lo-ia.

Alguns anos atrás, o grupo de Giacomo Rizzolati em Parma testara neurónios de controlo motor no córtex pré-motor de um macaco. De cada vez que o macaco movia o braço, os neurónios activavam-se. Um dia, entre medições, os neurónios que comandavam o músculo do braço começaram a disparar num frenesim, muito embora o macaco estivesse completamente imóvel. Mais testes produziram a intrigante conclusão: os neurónios motores disparavam quando um dos investigadores do laboratório mexia o braço. Neurónios usados para mover um membro accionavam-se simplesmente porque o macaco via outra criatura a mexer-se, e movia o seu braço imaginário numa espécie de simpatia símbolo-espaço.

Uma parte do cérebro que desempenhava tarefas físicas estava a ser canibalizada para realizar representações imaginárias. A ciência revelara por fim as bases neurológicas da empatia: mapas cerebrais cartografando outros mapas cerebrais. Numa vivacidade de espírito tipicamente humana, a descoberta foi rapidamente apelidada de neurónios macacos de imitação. Tomografias e electroencefalogramas em breve revelaram que também os humanos estavam recheados de neurónios espelho. Imagens de músculos em movimento faziam músculos simbólicos mexer-se, e músculos simbólicos moviam tecido muscular.

Os investigadores apressaram-se a aprofundar a desconcertante descoberta. O sistema de neurónios espelho estendia-se para além da vigilância e realização do movimento. Desenvolvia trepadeiras que se estendiam para todo o tipo de processos cognitivos. Desempenhava um papel na fala e na aprendizagem, na descodificação facial, na análise de ameaças, no entendimento de intenções, na percepção de e na resposta a emoções, na inteligência social e na teoria da mente.

Weber observava a mulher deslocar-se pela casa, empenhada nas suas tarefas diárias, mas os seus próprios neurónios espelho não disparavam. Mark Schluter desmantelara gradualmente o seu mais básico sentido de ligação, de familiaridade e nada alguma vez lhe voltaria a parecer conhecido ou relacionado.

Jess veio a casa por três dias no Natal. Trouxe a companheira. Sheena. Shawna. Jess não notou nada de errado. Na verdade, a proximidade dos pais - os passarinhos de Inverno - tornou-se na piada corrente entre Jess e a sua intelectual em estudos culturais: “Eu avisei-te: chocantes exibições de devoção heteroburguesa como as apenas testemunhadas nas entranhas da América republicana.” As três mulheres em breve se concentraram num trio, percorrendo provas de vinho em North Fork ou passeando pela praia em Fire Island, deixando-o entregue a “devaneios de testosterona” solitários. Quando as raparigas partiram, Sylvie sofreu um acesso pós-festas de síndrome de ninho vazio. Apenas longas horas de serviço social na Wayfinders pareceram ajudá-la.

Ele pôs a hipótese de tratar a sua própria tristeza pós-natalícia com piracetam, um nootrópico sem qualquer toxicidade conhecida ou propriedades viciantes. Durante anos, lera afirmações espectaculares sobre a capacidade do fármaco de melhorar a capacidade cognitiva ao estimular o fluxo de sinais entre os hemisférios. Vários investigadores que ele conhecia tomavam-no com doses pequenas de colina, uma combinação sinergética que se afirmava produzir aumentos mais significativos de criatividade e de memória do que qualquer um dos fármacos tomado por si só. Porém, ele era demasiado cobarde para fazer experiência com uma mente já tão alterada.

O País da Surpresa não apareceu em nenhuma lista de final do ano, excepto as referentes a conquista dúbia. O seu rápido desaparecimento foi quase um alívio para Weber - não deixava quaisquer vestígios duradouros. Sylvie socorreu-o com uma indiferença estudada, o que apenas o entristeceu. Estavam sentados frente à lareira numa tarde de domingo depois do Ano Novo quando ele fez uma qualquer piada sobre o Famoso Gerald se ter esquecido de descer pela chaminé naquele ano. Ela riu.

- Sabes que mais? Ao diabo com o Famoso Gerald. Era capaz de me despedir do Famoso Gerald agora mesmo e não teria saudades dele. Um postal uma vez por ano do Club Med das Maldivas seria o bastante.

- Isso parece-me desnecessariamente cruel - referiu ele.

- Cruel? - Ela bateu na prateleira da lareira com força. Esticou as palmas das mãos viradas para cima, dando voz às semanas em que se coibira de dizer o que quer que fosse. - Meu Deus, Marido. Poderás dizer-me quando é que isto vai acabar?

Os olhos dela flamejavam e ele viu neles o tamanho do medo que ela sentia. É claro: ter de ficar de braços cruzados a testemunhar a sua deterioração pessoal, sem saber onde e se alguma vez teria um fim.

- Tens razão. Desculpa. Não tenho sido...

Ela respirou fundo uma série de vezes para se acalmar. Caminhou até ao sofá onde ele estava sentado e pressionou uma mão contra o peito dele.

- Que estás a fazer a ti mesmo? De que se trata? Reputação? A opinião pública nada mais é do que esquizofrenia partilhada.

Ele abanou a cabeça e levou a mão ao pescoço.

- Não. Não se trata de reputação. Tens razão: a reputação... é algo que não importa.

- Então o que é, Gerald? O que é que importa?

Ninguém via os seus próprios sintomas. Ninguém sabia quem os outros sabiam que ele era.

Sylvie agarrou-o pela camisa, estremecendo perante o silêncio dele.

- Escuta o que te digo. Trocaria de bom grado todo o reconhecimento que alguma vez conquistaste para ter o meu marido de volta e a trabalhar para si mesmo outra vez.

No entanto, o seu marido, despojado de reconhecimento, não era ninguém que Sylvie reconhecesse. Estava a um fio de cabelo de lhe dizer o que agora tinha a certeza sobre a imoralidade básica dos seus livros. Duas palavras que terminariam com o relacionamento de ambos mais depressa do que qualquer infidelidade, imaginada ou real.

Palestra no Centro Médico daí a 17 minutos. Tudo o que ela queria, finalmente, era que ele dominasse a sua vida de novo, como fizera durante décadas, desde que se haviam conhecido na Universidade de Columbus. O Marido dela. O homem que se lançava a qualquer actividade, não porque esta o pudesse conduzir aqui ou ali, mas pela inata singularidade do compromisso puro. O homem que lhe ensinara que qualquer vida com que nos cruzássemos era infinitamente cambiante e irreproduzível. Vai ensinar. Vai aprender. Quanto mais condimento é que queres da vida? Quanto mais importante poderias esperar tornar-te?

Enquanto brincava com a toranja, algo embateu na janela do recanto do pequeno-almoço com um baque. Percebeu o que era mesmo antes de se virar. Quando olhou, viu o pássaro tentando esvoaçar para longe, ferido: um cardeal macho que, durante as últimas duas semanas, atacava o seu próprio reflexo na janela do canto, achando-se um intruso no seu próprio território.

Estava à frente do anfiteatro de estudantes, compondo o microfone sem fios e combatendo a sensação de imposturice que agora o assolava antes de qualquer aula. Os alunos eram os mesmos de qualquer ano: miúdos brancos da classe média alta de Ronkonkoma e Comack, experimentando todo o tipo de estilos visuais desde o tatuagem-de-prisão ao crocodilo-Lacoste. Porém, a atitude deles mudara este semestre, tornara-se sardónica. Tinham passado entre si os requisitórios públicos sobre ele via correio electrónico e instant messenger. Continuavam a apontar cada palavra que ele dizia, mas agora mais para o apanhar, para exterminar o charlatanismo, as canetas inclinadas em desafio. Queriam ciência, não histórias. Weber já não era capaz de perceber a diferença entre elas.

Testou o microfone e focou o projector. Olhou para a arquibancada recheada de alunos finalistas. Os pêlos faciais indomados estavam de novo na moda. E os piercings, é claro, as ferragens: nunca se conseguiria habituar àquilo. Os netos Levittown com varas enfiadas nos narizes e nas sobrancelhas. Enquanto uma rapariga rechonchuda e tatuada na quarta fila fazia a sua última chamada de telemóvel legal antes de a campainha tocar - Ei, estou na aula de neuro -, ele viu o rebite que ela tinha na língua brilhar na saliva, uma surpreendente pérola de água doce.

Observando este semicírculo de entediados alunos de 21 anos, era incapaz de não lhes atribuir o estudo de histórias de casos. O febril anarquista, Bhloitov, estendia-se de lado, ocupando três cadeiras na fila de trás. A excitável rigorista, Miss Nurfraddle, no lugar da coxia, duas filas a seguir ao pódio, inquietava-se com os seus materiais perfeitamente alinhados. Do centro do auditório, um homem esguio com cabelo preto lustroso, eslavo ou grego, olhou Weber com indignação quando a aula não começou à hora certa. O que havia na vida que merecesse tal fúria?

Cada alma nesta sala olharia para si mesma daqui a algum tempo com um desgosto divertido. Eu nunca me vesti assim. Nunca tirei apontamentos tão diligentemente. Eu não podia ter pensado tais coisas. Quem era aquela patética criatura? O eu era uma turba, uma multidão improvisada, à deriva. Era esse o tema da palestra de hoje, de todas as palestras que dera, desde que conhecera o seu arruinado embalador de carne do Nebrasca.

Dois lugares abaixo do grego de cabelo lustroso estava a mulher na turma deste semestre para quem ele evitava olhar. Vinham e iam a cada ano, cada vez mais jovens. Nem todas eram bonitas, mas cada qual fingia ser mais velha do que na verdade era, as sobrancelhas erguidas um nanometro demasiado acima. Esta, sentada na oitava fila, de camisola de gola alta cor-de-pêssego colada ao corpo, sorria para ele, o seu rosto redondo corado, ansiosa por qualquer coisa que ele pudesse dizer.

A irmã, Karin, dissera uma coisa da primeira vez que se tinham encontrado para almoçar. Uma acusação. Não acredito. Também faz o mesmo. Achava que uma pessoa como o doutor... Ele achara que não sabia do que ela estava a falar. Mas soubera. E fazia-o, fazia-o, de facto, também.

Olhou de relance para as suas notas: ignorância organizada. Ao lado do cérebro, todo o conhecimento humano era como uma gota de limão ao lado do Sol.

- Hoje queria contar-vos a história de duas pessoas muito diferentes. - A sua voz desencarnada saiu por colunas colocadas no cimo das paredes, cheia de autoridade amplificada. Os últimos resquícios de tagarelice desvaneceram-se. A palavra histórias atraiu um riso reprimido. Bhloitov olhou para o primeiro diapositivo de Weber, um corte transversal de uma abóbada craniana, com um cepticismo evidente. Miss Nurfraddle pleiteava com um gravador de voz digital. A mulher da gola alta olhava fixamente para Weber com uma curiosidade influenciável. Os outros não revelavam qualquer emoção para lá de um leve tédio. - A primeira é a história de H.M., o mais famoso doente na literatura da neurologia. Um dia de Verão há meio século, do outro lado aqui do nosso estreito, um cirurgião ignorante e demasiado zeloso, tentando curar a epilepsia de H.M., que parecia não parar de piorar, inseriu uma pipeta estreita de prata no hipocampo do doente... Esta área rosa-acinzentada aqui... E extraiu-lha, em conjunto com a maior parte do giro parahipocampal, amígdala e córtices entorinal e peririnal... Aqui, aqui e aqui. O jovem, mais ou menos da vossa idade, esteve acordado durante todo o procedimento. - Também o auditório em peso o ficou. - Aqueles de entre vocês com hipocampos em funcionamento que estiveram presentes na aula passada não ficarão surpreendidos ao saber que, em conjunto com todos os tecidos evacuados por meio da pipeta, veio também a capacidade de H.M. para formar novas memórias...

Weber apercebeu-se do seu instinto para o espectáculo e sentiu-se nauseado. Porém, contara a história tantas vezes ao longo dos anos em prelecções, bem como nos seus próprios livros neurológicos romanceados, que já não sabia contá-la de outra forma. Foi avançando pelos diapositivos, recontando os resultados da cirurgia de cor: H.M. regressando ao mundo dos vivos, a sua personalidade intacta, mas incapaz de rotular novas experiências.

- Já leram o relato sobre H.M., da autoria do doutor Cohen. Quatro dias de testes e de cada vez que o examinador abandonava a sala e regressava, tinha de se voltar a apresentar. Tinham-se passado décadas desde a cirurgia. H. M. experimentava-as como se fossem dias.

O primeiro dever de um médico é pedir perdão. De onde é que aquilo tinha surgido? Um filme que ele e Sylvie haviam visto juntos, nos tempos de faculdade. O filme e aquela deixa tinham-nos abalado como só casais de vinte e poucos anos podem ser abalados. Não muito depois dessa noite, ele empenhara-se na sua futura carreira. E por volta da mesma altura, Sylvie deveria ter-se comprometido com ele para o resto da vida. O primeiro dever de um médico é pedir perdão. Ele deveria ter passado um momento todas as tardes a pedir perdão a toda a gente que naquele dia magoara inadvertidamente.

- A memória do passado deste jovem estava intacta, era até mesmo impressionante. Quando lhe mostraram uma imagem de Muhammad Ali, ele disse: “É Joe Louis.” Quando lhe foi feita a mesma pergunta, duas horas mais tarde, respondeu da mesma forma, como se pela primeira vez. Estava preso num cofre, parado no momento anterior à operação. Nem sequer era capaz de ficar a saber que estava preso num presente eterno. Não fazia qualquer ideia do que lhe acontecera. Ou antes: a parte dele que sabia não era capaz de transmitir esse facto à sua memória consciente. Várias vezes por hora, repetia: “Estou a ter uma pequena discussão comigo mesmo.” Era perseguido por um medo perpétuo de que fizera alguma coisa de errado e estava a ser castigado por isso.

Weber olhou para lá de uma fila de rostos que espelhavam horror e viu-a. Parou de falar, desorientado. Ela esgueirara-se para dentro do auditório, uma ouvinte secreta. Sylvie. Sylvie com 21 anos, no Ohio. Estava sentada na metade de cima do declive, do lado de dentro do corredor esquerdo, olhando para os diapositivos, um caderno de espiral sobre as pernas cruzadas, a extremidade da esferográfica encostada ao lábio superior. Na mesa flexível tinha todos os textos da disciplina. Aqui estavam eles, no final do semestre, e ele nunca reparara nela.

- Ao longo das décadas, H.M. tornou-se num dos mais estudados sujeitos da história médica. Por meio de uma intensa repetição diária, conseguiu tomar conhecimento de que estava sob observação. Os constantes testes a que era sujeito tornaram-se numa fonte de penoso orgulho. Uma centena de vezes por dia, repetiria: “Pelo menos posso ajudar alguém. Pelo menos posso ajudar as pessoas a compreender.” Mas ainda assim tinham constantemente de lhe recordar onde estava e de lhe dizer que naquele dia não iria para casa, para junto da mãe e do pai.

Observou a cascata de cabelo encaracolado cobrir o rosto sincero da jovem. Parecia-se muito pouco com Sylvie, na verdade. Apenas era ela. A dócil energia interior. A curiosidade resoluta, preparada para qualquer coisa que os estudos pudessem colocar-lhe no caminho. Weber despertou e devolveu a sua atenção aos impacientes alunos, os segundos passando. Descreveu os pormenores do caso sem ter de pensar neles. Os seus alunos tiravam notas. Isto era o que eles queriam: apenas os factos, firmes e repetíveis.

- Muito bem, em conjunto com o caso de H.M., gostaria que considerassem a história de David, um agente de seguros do Illinois de 38 anos, casado e com dois filhos pequenos, de perfeita saúde, que não exibia quaisquer doenças neurológicas invulgares para além da persistente crença de que os Chicago Cubs estavam a apenas uma temporada de distância de um prémio.

Gargalhadas educadas irromperam pelo auditório, mais acanhadas do que o ano passado. Olhou para cima. A jovem Sylvie mordia o lábio, de olhos colados no caderno. Talvez tivesse pena dele.

- O primeiro sinal de que alguma coisa não corria bem verificou-se quando David, habitualmente um fã dos R.E.M., desenvolveu uma paixão por Pete Seeger.

Nenhuma reacção da assistência. Também não houvera no ano passado. Estes nomes tinham passado para a amnésia cultural. Seege nunca existira e os R.E.M agora não passavam de uma febre passageira.

- A mulher achou isto estranho, mas só se alarmou um mês depois, quando David começou a dizer mal do seu autor favorito, J. D. Salinger, afirmando que era uma ameaça pública. Começou a coleccionar, embora nunca a ler, o que apelidava de “livros verdadeiros”, e que se limitavam a histórias do velho Oeste e aventuras navais. O estilo de roupa de David começou também a mudar - a regredir, como a mulher dele dizia. Levava calças com peitilho para o emprego. A mulher tentou que ele consultasse um médico, mas ele insistia que estava tudo bem. Estava tão lúcido que a mulher duvidou da sua própria aflição. David falava frequentemente sobre recuperar a pessoa que fora outrora. Uma e outra vez, disse à mulher: “Era desta forma que todos costumávamos viver.” Começou a sofrer de dores de cabeça e vómitos, letargia e vigilância reduzida. Uma noite, David veio para casa três horas mais tarde do que o habitual. A mulher estava assustadíssima. David viera a pé do escritório, a 19 quilómetros de distância, tendo vendido o carro a um colega. A mulher, já fora de si, gritou com ele. Ele explicou que os carros eram maus para o ambiente. Podia ir de bicicleta para o emprego, poupando assim muito dinheiro que podiam pôr de lado para a universidade dos filhos. A mulher começou a suspeitar de uma perturbação da personalidade induzida pelo stresse, algo que costumava ser apelidado de crise de identidade aguda... A jovem Sylvie tomou um apontamento no caderno equilibrado sobre a coxa. Qualquer coisa no modo como os cotovelos se projectavam, o declive do pescoço, ao mesmo tempo firme e vulnerável. Weber era bombardeado por sensações, todos os antigos momentos-chave que haviam partilhado, aqueles milhões de momentos que haviam desaparecido, um a seguir ao outro: estudando juntos na biblioteca até à hora de fecho; filmes europeus à terça-feira à noite no Cineclub; longos debates sobre Sartre e Buber; sexo mais ou menos contínuo. Vendando-a e passando vários lenços pela barriga nua dela para testar a sua afirmação de que conseguia sentir as cores. Sylvie adivinhava sempre a cor certa.

Vestígios, ainda intactos. Tudo o que ele fora estava ainda em arquivo, guardado algures. Porém, não conseguira aceder às sensações da recordação até este fantasma vivo se ter sentado à sua frente no pequeno anfiteatro, garatujando as notas erradas no seu próprio registo crescente.

- A mulher de David insistiu para que ele telefonasse à pessoa aquém vendera o carro e o comprasse de volta. Ele fê-lo, mas algumas semanas depois não regressou a casa do trabalho. Ao atravessar o parque de estacionamento do emprego, ficara tão extasiado pelas cambiantes do céu por cima da sua cabeça, que passara a noite ali, sentado no asfalto, a olhar para o espaço. Quando a Polícia o encontrou na manhã seguinte, estava desorientado. A mulher trouxe-o para o hospital, onde foi internado no serviço de psiquiatria, que rapidamente o transferiu para neurologia. Sem as modernas técnicas de visualização, quem sabe como teria sido tratado? Mas com uma tomografia: reparem aqui na zona caudal do córtex orbifrontal, onde verão um volumoso e circunscrito neoplasma, um meningioma, que cresceu durante anos, pressionando os lobos frontais de David e incorporando-se gradualmente na sua personalidade...

Ocorreu a Weber ao mesmo tempo que fazia avançar o diapositivo: a paixoneta no Nebrasca não fora a primeira mancha num registo de outra forma perfeito. Nunca traíra Sylvie, tecnicamente, porém, muito de vez em quando, o Fiel Gerald abeirava-se do precipício. No ano em que completara cinquenta anos, conhecera uma escultora que vivia na Bay Área. Corresponderam-se durante algum tempo, talvez um ano e meio, até ela o forçar a admitir que ela mais não era do que uma pura invenção dele. Há dez anos houvera uma assistente de investigação japonesa, ansiosa e expectante, de 31 anos. Quase uma catástrofe, independentemente da perspectiva por que a ocorrência fosse analisada. Ela partira quando ele começara a ignorá-la. Ela, que mal conseguia olhá-lo nos olhos quando falavam, dei-xou-lhe um bilhete depois de se ir embora: No Japão, os investigadores pelo menos têm um dia de luto por todas as cobaias que sacrificaram... Cada um destes romances amorosos teóricos haviam sido uma excepção: meia dúzia de excepções, bem contadas. Parecia ser um delinquente habitual. Contava tudo a Sylvie de cada vez que acontecia, mas depois do facto consumado, sempre subestimando a possível tragédia. Nada ficava no seu cadastro permanente.

Quando o diapositivo seguinte se iluminou, viu a verdade: queria Barbara Gillespie. Mas porquê? O papel que ela desempenhava não fazia sentido. Algo na vida dela correra tão mal quanto na dele. Ela já vivia no vazio em que ele penetrava. Uma coisa enorme, escondida. Ela sabia de uma coisa de que ele necessitava. Algo nela era capaz de o recordar.

Mas havia uma explicação mais parcimoniosa. Como é que estes alunos a diagnosticariam, se lhes fossem expostos os factos? Crise de meia-idade banal? Pura biologia, auto-ilusão clássica ou algo mais impressionante? Um qualquer défice que apareceria num exame ima-giológico, um tumor, pressionando sem piedade os seus lobos frontais, atribuindo-lhe imperceptivelmente um novo papel...

Aclarou a garganta; o som rompeu pelas colunas acima da sua cabeça.

- David não se apercebia do quanto estava alterado, e não apenas por a mudança ter sido tão gradual. Recordem-se da minha aula sobre anosognosia, há duas semanas. A função da consciência é asse-gurar-se de que todos os módulos do cérebro parecem integrados. Que parecemos sempre familiarizados connosco mesmo. David não queria ser tratado. Achava que encontrara o seu caminho de regresso a algo verdadeiro, algo que todas as restantes pessoas haviam abandonado.

A jovem Sylvie levantou a cabeça e examinou-o. Ele encheu-se de auto-aversão. Era capaz de perdoar o homem com a lista de meias infidelidades patéticas. Contudo, o homem cuja auto-imagem imaculada apagara tão completamente essa lista: o que mereceria tal pessoa para lá de uma lenta e agonizante exposição pública? Curvou os ombros e segurou-se ao pódio. Sentiu-se anémico e contra-atacou a sensação com mais análise estrutural, mais anatomia funcional. Perdeu-se em lobos e lesões. Um ténue sinal do seu relógio indicou-lhe que estava na altura das conclusões.

- Temos então as histórias de dois défices muito diferentes, dois homens muito diferentes, um que não podia tornar-se no seu próximo eu consecutivo e outro que mergulhou nele sem controlo. Um ao qual eram negadas novas memórias e outro que as fabricava com demasiada facilidade. Achamos que acedemos aos nossos próprios estados; tudo na neurologia nos diz que não. Olhamos para nós mesmos como uma nação soberana, unificada. A neurologia sugere que somos um chefe de estado cego, barricado na suite presidencial, escutando apenas conselheiros cuidadosamente seleccionados à medida que o país avança cambaleante por meio de mobilizações adhoc...

Olhou para a embotada assistência. Não valia a pena. Bhloitov estava furioso. Os olhos da mulher da camisola justa de gola alta vagueavam. Miss Nurfraddle parecia pronta para telefonar ao Procurador-geral através do seu BlackBerry e prender Weber por violações do Patriot Act. Não suportava olhar para a jovem Sylvie. Via-se reflectido nos rostos deles, uma aberração neurológica, um caso.

Como é que podia dizer-lhes? A energia recaiu numa antiga célula; a célula registou o sucedido. Algum incitamento desencadeou uma cascata química que desbridou a célula e alterou a sua estrutura, formando um molde dos sinais que sobre ela recaíram. Eons mais tarde, duas células entrelaçaram-se, fazendo sinal uma à outra, calculando o número de estados que podem consagrar. A ligação entre elas alterou-se. As células disparavam mais facilmente a cada disparo, as suas ligações cambiantes recordando um vestígio do exterior. Algumas dúzias de células destas estão suspensas em conjunto numa humilde massa viscosa: são já uma máquina infinitamente restruturante, a meio caminho do conhecimento. Matéria que cartografou outra matéria, um registo plástico de luz e som, local e movimento, mudança e resistência. Alguns milhares de milhões de anos e centenas de milhares de milhões de neurónios mais tarde, estas células entrelaçadas formaram uma gramática - uma noção de substantivos e verbos e até preposições. Estas sinapses registantes dobraram-se sobre si mesmas - seguindo às cavalitas do cérebro e interpretando-se a si mesmas à medida que interpretavam o mundo -, explodiram sob a forma de esperanças e sonhos, memórias mais elaboradas do que a experiência que as esculpira, teorias sobre outras mentes, locais inventados tão reais e pormenorizados quanto qualquer coisa material, eles mesmos matéria, mundos microscópicos electricamente gravados dentro do mundo, uma forma para cada forma que existia, com infinitas formas deixadas para mais tarde: todas as dimensões emergindo desta coisa na qual o universo flutua. Mas nunca quente ou frio, sólido ou macio, esquerda ou direita, alto ou baixo, apenas a imagem, o armazenamento. Apenas o jogo da semelhança interrompido por cascatas químicas, sempre a desfazer o estado que fazia a armazenagem. Semáforos à noite, pavimentando mesmo o penhasco de onde emitiam os sinais. Tal como ele escrevera: Sem ajuda, impossível, quase omnipotente, e infinitamente frágil...

Não havia qualquer esperança de lhes mostrar isso. Podia, quando muito, revelar as inúmeras formas por intermédio das quais os sinais se perdiam. Danificado em qualquer ligação: espaço sem dimensão, efeito antes da causa, palavras afastadas da sua referência. Podia mostrar como é que uma pessoa poderia desaparecer no esquecimento espacial, poderia trocar o cima com o baixo e o antes com o depois. Visão sem conhecimento, recordação sem razão, lanches entre personalidades que lutavam pelo controlo do desnorteado corpo, porém, sempre contínuo, completo para elas mesmas. Tão consistente e completo como estes inteligentes e cépticos alunos agora se sentiam.

- Um último caso, nos segundos que nos restam. Aqui temos uma secção lateral que revela danos no giro cingulado anterior. Lembrem-se de que esta área recebe input de muitas regiões sensoriais superiores e está ligada a áreas que controlam funções motoras de nível superior. Crick escreve sobre uma mulher com uma lesão assim que perdeu a capacidade de reagir ou até de formar intenções. Mutismo acinético: todo o desejo de falar, pensar, agir ou escolher desapareceu. Com um entusiasmo perdoavelmente humano, Crick declarou que localizara a sede da vontade.

A campainha tocou, salvando e condenando Weber. Os alunos começaram a sair ao mesmo tempo que ele se apressava a concluir:

- Assim concluímos uma breve introdução à muito complexa questão da integração mental. Sabemos um pouco sobre as partes. Sabemos consideravelmente menos sobre o modo como se unem para formar um todo. Na nossa última aula, examinaremos os candidatos mais prováveis a um modelo integrado da consciência. Se não têm o artigo referente a esta questão, sugiro que o arranjem.

Com o barulho das cadeiras e dos livros a fecharem-se, os alunos levantaram-se para sair. O que diria na semana seguinte, para resumir uma disciplina que se lhe escapava por entre os dedos? Muito depois de a sua ciência apresentar uma teoria abrangente do eu, ninguém se encontraria um passo mais próximo de saber o que significava ser outro. A neurologia nunca alcançaria de fora algo que existia apenas bem fundo no impenetrável interior.

Os alunos esvaziaram o anfiteatro, enchendo os corredores em grupos de amotinados. Um sentimento avassalou Weber, um desejo de complementar a genuína neurociência com literatura não científica, ficção que pelo menos reconhecia a sua própria cegueira. Obrigá-los-ia a ler Freud, o príncipe dos contadores de histórias: os histéricos sofrem principalmente de reminiscências. Dar-lhes-ia Proust e Carroll. Receitaria Funes, o memorioso, de Borges, o homem paralisado pela memória perfeita, destruído pelo facto de um cão visto de perfil às 03h15 ter o mesmo nome que esse mesmo cão visto de frente um minuto mais tarde. O presente era quase intolerável, de tão rico e tão nítido. Contar-lhes-ia a história de Mark Schluter. Descreveria o efeito que conhecer o rapaz-homem tivera em si. Faria um qualquer movimento que os seus neurónios-espelho se veriam forçados a imitar. Libertá-los-ia no dédalo da empatia.

Os habituais retardatários agruparam-se em redor do pódio. Tentou escutar cada pergunta, dar a cada observação toda a sua atenção. Quatro alunos, sofrendo das ansiedades típicas de final de semestre. Logo atrás da primeira onda, outros quatro aguardavam a sua vez. Observou o auditório, sem saber o que procurava. Viu-a então, rondando, a meio caminho do corredor do lado esquerdo. A jovem Sylvie, olhando de volta para si. Estava de pé, debatendo consigo mesma. Tinha uma mensagem para ele, para o rapaz que ele fora outrora, mas não podia esperar. Tinha de ir para um qualquer lugar no futuro.

Tentou apressar os duvidosos, cada qual com um sorriso animador. A multidão começou a rarear, e ele levantou os olhos, dando de caras, surpreendido, com o rosto de Bhloitov. A esta distância, Weber viu que o cabelo preto do anarquista era pintado. Tinha uma pulseira de couro tachonada e, espreitando por baixo da manga esquerda, uma Virgem de Guadalupe em vermelho e azul. O pubescente bigode era dividido por uma ténue cicatriz - um lábio leporino. Weber voltou a olhar de relance para o auditório. A jovem Sylvie, hesitante, começou a preparar-se para sair. Olhou de volta para o anarquista, tentando controlar-se.

- Em que posso ajudá-lo?

Bhloitov encolheu-se, pestanejou e recuou um pouco.

- O relato que fez daquele... daquele meningioma. David? - A voz dele era apologética. Weber acenou com a cabeça, incitando-o a prosseguir. - Estive a pensar... Acho que pode ser o meu pai...

Weber voltou a levantar os olhos, um reflexo desesperado. Sylvie tinha já a mochila ao ombro e caminhava em direcção à saída. Observou-a todo o caminho, ao mesmo tempo que Bhloitov murmurava e se obliterava. Ela nunca se virou para olhar para trás. Onde vais? Chamou Weber no espaço simbólico. Volta. Sou eu. Ainda aqui estou.

Estava na altura de se reformar. Já não podia confiar em si mesmo na sala de aula, quanto mais no laboratório. Podia dedicar-se ao voluntariado, à literacia para adultos ou dar explicações sobre ciência. Nos vinte anos que ainda lhe restavam, podia aprender outra língua estrangeira ou escrever um romance tendo a neurologia como pano de fundo. Histórias era o que não lhe faltava, afinal de contas. E nunca teria de o publicar.

Deixou-se ficar na universidade até ao final da tarde, submerso em tarefas inventadas, a regular troca de cartas de recomendação que fazia parte da vida académica. Encarava-as como expiação, trabalho subalterno. Por uma dose de feniletilamina, receitava a si mesmo 300 gramas de chocolate que, ultimamente, o ajudavam a aliviar o peso das noites de Inverno.

O mais estranho era que quase não sentia qualquer desejo por Barbara Gillespie. Talvez a achasse atraente, em termos abstractos. Mas mesmo agora, as transacções que imaginava nunca envolviam nada mais do que abraços inofensivos. Ela era como - o quê? Nem família nem amiga; seguramente que não uma mera amante. Uma qualquer afinidade que não tinha ainda sido inventada. Não queria possuí-la. Queria apenas investigar, com a habitual bateria de questionários, o que a fizera ruir e por que razão era tão libertador estar com ela. Queria decompô-la para a extrair. Conseguir a história e a biografia dela. Ela não dissera quase nada nos poucos minutos que haviam passado realmente na presença um do outro. No entanto, ela sabia alguma coisa sobre Mark que ele andava às cegas para descobrir.

Viu-a de calças de ganga verdes e camisa de algodão branca, subindo um escadote de madeira. O escadote estava encostado a uma casa branca tipo as de Cape Cod, perto do oceano. Tentava chegar à caleira. Que sabia ele sobre ela? Nada. Nada a não ser o que o seu córtex pré-frontal pudesse engendrar a partir do nada e tivesse vindo à deriva desde o hipocampo. Viu-a como uma menina com um véu preto pela cara, acendendo uma vela e colocando-a num altar numa igreja enevoada de incenso. O que sabia ele sobre quem quer que fosse? Viu-a a ela e a Mark Schluter, de fatos-macacos cinzentos e capacetes amarelos, inspeccionando uma miríade de manómetros num resplandecente cilindro de aço inoxidável da altura de uma casa. Viu-a pendurada na janela do passageiro de um pequeno carro azul conduzido por Karin Schluter, segurando um urso de pelúcia contra o vento. Viu-se a si mesmo, lado a lado com Barbara numa sala apinhada de tribunal algures num local como Kabul, tentando conseguir a custódia legal dos irmãos Schluter, mas incapazes de fazer com que a sua petição fosse entendida em qualquer língua útil.

Ocorreu-lhe que inventara a experiência no Nebrasca. Toda a história, do princípio ao fim: uma incursão num género literário misto, experimental, uma peça de teatro, uma moralidade disfarçada de jornalismo. Não possuía qualquer memória fidedigna de nada do que por lá acontecera. Não era capaz de reconstruir com exactidão qualquer dos traços de Barbara Cillespie, quanto mais as suas feições. E no entanto estava constantemente a convocar memórias recuperadas ela, todas tão pormenorizadas que poderia ter jurado que eram dados documentados.

O que sabia ele sobre a vida da sua própria mulher? Quem ela era quando não era a mulher dele. Entrou no carro e dirigiu-se a casa pelos campos cobertos de neve. As duas igrejas coloniais nunca deixavam de o tranquilizar. Fez a longa curva para Strong's Neck, o porto verde-acastanhado exposto pela maré baixa. Virou para Bob's Lane, aquela passagem que os visitantes nunca conseguiam encontrar a não ser que já lá tivessem estado. As chuvas de Inverno ainda alagavam o pátio da frente. No Outono, uma família de marrequinhas construíra o seu lar nas margens do lago temporário. Porém, agora o lago estava congelado e os patos haviam partido.

Sylvie chegara primeiro a casa. Tentava regressar da Wayfinders mais cedo desde que ele fizera detonar aquela bomba. Ele não lhe pedira que o fizesse, mas também não teve coragem de lhe dizer que não era necessário. Ela estava a pôr qualquer coisa no forno, caçarola de beringela. Há vinte anos, ele dissera-lhe que comeria de bom grado aquele acepipe todas as noites, e agora ela fora desenterrar aquele desvelo. O sorriso ansioso com que olhou para ele atravessou-o de um lado ao outro.

- O dia correu bem?

- Às mil maravilhas.

- E que tal foi a aula?

- Se queres que te diga, há uma forte possibilidade de eu ter sido brilhante. - Abraçou-a demasiado depressa, enquanto ela se esforçava por tirar a luva. - Já te disse que sou completamente doido por ti?

Ela riu-se num tom incerto e olhou para trás dele. Quem é que ela imaginava que podia estar para chegar? Quem é que ele poderia ter trazido para casa?

- Já, sim senhor. Ontem, se não me engano.

O programa de televisão vai para o ar. Mas é estranho. Fizeram qualquer coisa a Mark - passaram a sua imagem por um qualquer tipo de filtro digital de alta tecnologia. As pessoas que não o conhecem nunca suspeitariam, mas os seus amigos, os poucos amigos que Mark Schluter ainda tem, irão pensar que se trata de uma espécie de duplo.

O programa retrata a história, na sua maioria, da forma correcta, pelo menos. Falam sobre o acidente, o veículo que se atravessou à sua frente, o que saiu da estrada atrás de si. E há um grande momento em que o bilhete manuscrito surge na imagem e preenche todo o ecrã, e até colocam legendas, para o caso de alguém não conseguir ler ou assim. Não sou ninguém. Não sou ninguém. Podia ser qualquer pessoa, nos dias que correm. Mas há uma recompensa monetária, 500 dólares. Com a economia em queda novamente e todo o estado a viver do subsídio de desemprego, sem dúvida que alguém aparecerá para reclamar o prémio.

Gostaria de ficar sentado à espera que o telefone toque com informações anónimas, mas há muito para fazer. A Karin substituta aparece, toda irritada porque ouviu falar sobre o programa, mas não o viu. Quando é que fizeste isto? Porque não me disseste? É uma boa representação; ele quase acredita que ela não fazia a mínima ideia do que ele tinha feito.

Ele tem um plano para a testar, algo em que tem vindo a pensar. Pergunta se ela gostaria de dar um passeio, até Brome Road, a antiga quinta abandonada que o pai tentara outrora gerir. O local onde vivera desde os oito anos até quase aos 14. O local de que a irmã sempre falara como se fosse uma espécie de paraíso perdido. A sua substituta parece ter sido treinada para executar a mesma rotina. Fica aos pulos como uma miúda assim que o convite sai da boca dele. Dir-se-ia que ele a estava a convidar para o baile de finalistas ou coisa do género.

Seguem no pequeno carro japonês. Está estranhamente quente tendo em conta que faltam duas semanas para o Natal. Ele leva o casaco leve azul, que costuma vestir em Outubro. Catástrofe ecológica resultante do efeito de estufa, provavelmente. Bom, é aproveitar as anfetaminas de curta duração. Ela está toda entusiasmada como se há muito tempo não visse a quinta. E o mais engraçado é que provavelmente não vê. Avançam até ao caminho que conduz à casa e é como se alguém tivesse largado uma bomba no alpendre da frente. Todas as janelas, negras e despidas de cortinas. O quintal, um mar de ervas altas e daninhas, como uma espécie de projecto de restauro da pradaria. Há um sinal preto e cor de laranja a dizer PASSAGEM PROIBIDA pregado ao alpendre, o que é sem dúvida uma piada. Há anos que a quinta não é habitada. Verdade seja dita, a família Schiuter praticamente destruiu o local e nenhum residente subsequente foi capaz de o restaurar à sua antiga glória. Abandonada desde 1999, mas ele nunca viera revisitar o local até agora.

O celeiro está bastante inclinado para a direita, como se tombasse caso fosse atingido por uma pequena radiação de microondas. Porém, antes de conseguirem chegar lá, Karin Dois trava o carro com toda a força. Começa a dizer: Onde está a árvore? O sicómoro desapareceu. Aquele que tu e o pai plantaram para o meu décimo segundo aniversário. Bom, a coisa abala-o, a princípio. Ela sabe o que plantaram e quando. Mas depois, o cepo da árvore está mesmo ali e qualquer pessoa na cidade lhe poderia ter dito. Aqueles palermas dos Schiuter, a plantarem uma árvore que é uma autêntica sorvedora de água quando nem sequer têm água potável suficiente para impedir os feijões de se queimarem.

Ele diz: Ouvi dizer que iam cortá-lo, há algum tempo.

Ela vira-se para ele, magoada. Porque não me disseste?

Dizer-te? Eu nem sequer te conhecia nessa altura.

Deixa o carro no meio da gravilha e sai. Ele segue-a. Ela avança até ao cepo e fica ali, nas suas calças de ganga largueironas, as mãos nos bolsos do pequeno casaco de couro castanho como o que a verdadeira Karin costumava usar. Não é uma má pessoa. Apenas se deixou envolver em maus negócios.

Quando é que foi? Pergunta ela. Antes ou depois da mãe?

A pergunta desconcerta-o um pouco. E não apenas o facto de ela a colocar. Ele não tem a certeza.

Ela olha para ele, dizendo: eu sei. É como se ela ainda aqui estivesse, não é? Como se fosse emergir por aquela porta lateral com um prato cheio de folhados de salsicha e nos ameaçasse com uma sova de cinto se não déssemos graças e os comêssemos.

Bom, as palavras fazem-no mesmo arrepiar. Mas foi precisamente por isso que ele a trouxe até aqui. Para testar os limites. Que mais te lembras acerca dela? Pergunta ele. E ela começa a despejar uma série de coisas. Coisas que apenas a sua irmã sabe. Coisas de quando eram miúdos, de quando Joan Schluter era ainda um modelo de dona-de-casa. Lembras-te de como ela se orgulhava daquele prémio que a família dela ganhou quando ela era pequena?

Ele não se contém e responde: Concurso da Família em Melhor Forma, Feira Estatal do Nebrasca, 1951.

Organizado por uma espécie de sociedade nacional de eugenia, refere ela ainda. Avaliavam-nos pelos dentes e pelo cabelo, como faziam com as vacas e os porcos. E a família dela conquistou uma medalha de ouro!

Bronze, corrige ele.

Tanto faz. O que interessa é que ela passou o resto da vida zangada com o Cappy por ter poluído a informação genética e nos ter produzido.

Ela não pára de recitar estas coisas espantosas, coisas que o próprio Mark esqueceu. Pormenores do final da infância, antes de Joan ter começado a tratar o Sr. Omnipotente pelo primeiro nome. Coisas dos anos maus, em que não se lhe podia dizer nada sem que ela se pusesse de joelhos e arrotasse espíritos de menor importância. Lembras-te daquele livro, Mark? Aquele que ela costumava carregar e que te punha a rir como um doido? Jesus Preenche o teu Buraco Vazio. E o dia em que ela percebeu por fim do que te rias?

Estão ali os dois de pé, junto ao cepo do sicómoro, rindo como dois adolescentes a fumar droga. O vento levanta-se e depressa a temperatura baixa. Ele quer ir até à casa, mas as palavras dela agora são como um rio no degelo. Coisas do final, quando a mãe se tornou uma santa prematura. Não a terias reconhecido, diz ela, como se Mark não estivesse sequer ali.

Não terias acreditado nela, tão bem-disposta e simpática. Estávamos a conversar uma tarde, depois de ela ter começado a tomar morfina, e sem mais nem menos começou a dizer-me que a vida após a morte era provavelmente uma ilusão. E, no entanto, era capaz de estar ali sentada, mais cristã do que Cristo, sorvendo a sopa de queijo cheddar do hospital que eu lhe dava à boca e ia dizendo, Oh, está boa! Está boa!

Ela misturou os factos um pouco, mas Mark não pretende argumentar. Está a gelar, de repente. Pega-lhe pelo braço e puxa-a em direcção à casa. Ela não pára de falar.

Sabias que continuo a receber o correio dela? Suponho que não reencaminham correspondência para lá da sepultura. São na maioria cartas de instituições de caridade e ofertas de cartões de crédito. Catálogos da loja onde ela costumava encomendar aqueles casacos de lã horrorosos.

Chegam à porta da frente. Ele tenta abri-la: trancada, muito embora não haja nada lá dentro a não ser coco de rato e lascas de tinta. Ele olha para ela, não revelando nada.

Não te lembras? Pergunta ela. E vai direita à tábua solta mesmo à esquerda da janela da frente, abana-a um pouco. Por fim, consegue deslocá-la e lá está a chave sobresselente. Aquela que nem sequer mencionaram à família que se mudou para lá depois deles. É bem possível que ela esteja a ler as ondas cerebrais dele. Exames sem fios, uma qualquer espécie de mecanismo digital novo. Deveria ter perguntado ao Pai, quando teve oportunidade. Ela destranca a porta e entram no que parece um cenário de um filme de terror. A antiga sala de estar está descascada, com uma camada de pó cinzento e teias de aranha por todo o lado. Há sinais de infestação, mamíferos bem maiores do que ratos. Karin Dois puxa as maçãs do rosto para trás com as palmas das mãos.

Não faças isso. Ficas a parecer um ladrão de bancos com uma meia de vidro enfiada na cara.

Mas ela não o ouve. Vagueia de divisão para divisão em coma, apontando para coisas invisíveis. O sofá cor de vomitado, o televisor com orelhas de coelho, a gaiola do periquito. Ela sabe tudo, e trá-lo de volta com uma dor tão hipnótica que ou é a maior actriz que alguma vez viveu ou tem de facto um pedaço do cérebro da sua irmã transplantado no dela. Mark tem de descobrir isso, antes que dê consigo em doido. Ela caminha de um lado para o outro aturdida, como uma daquelas vítimas de catástrofes nos noticiários da televisão. Aqui era onde comíamos. Aqui estava a pilha dos sapatos. Ela está verdadeiramente transtornada. Entretanto, ele interroga-sese é a casa original ou um modelo à escala. Ela vira-se para ele. Lembras-te quando o pai nos apanhou a brincar aos médicos e nos fechou na despensa?

Não era isso que nós... Mas para quê argumentar? Ela não estava lá.

Prisioneiros. Durante dias, pareceu-nos. E tu começaste a elaborar um plano para nos escaparmos. Usando um pau de esparguete para empurrar a chave pelo buraco da fechadura até um pedaço de papel encerado, que depois puxaste por baixo da porta. Que idade tinhas, seis anos? Onde é que aprendias aquele tipo de coisas?

Nos filmes, é claro. Onde mais é que qualquer pessoa aprende o que quer que seja? Ela está junto à janela da cozinha a contemplar o quintal das traseiras. O que recordar acerca do... teu pai?

E até tem uma certa graça, na verdade. Porque era assim que ele e Karin Um costumavam chamar ao homem. O teu pai. Culpando-se um ao outro por ele. Bom, começa ele, não era seguramente um agricultor. Isso é mais do que certo. Estava sempre no mínimo três semanas atrasado ou adiantado. Vencer o sistema. Desafiar o conhecimento convencional. O ano em que ele colhesse o que quer que fosse seria uma era áurea. Foi uma sorte ele ter conseguido safar-se e meter-se naquelas bancarrotas inevitáveis.

Ela limita-se a encolher os ombros, enfia os punhos no lava-louças seco e poeirento. Tens razão, diz ela; tivemos sorte. A Crise da Agricultura tê-lo-ia afectado de qualquer maneira. Afectou todo os outros. Ah, mas fazer chuva, refere Mark. Nunca ninguém perdeu um tostão a fazer chuva.

Ela resfolega amargamente. Sabe-se lá porquê? Para ela é apenas um trabalho. Mas ela é óptima a desempenhá-lo. Abana a cabeça. Consegues lembrar-te da voz dele? Da forma como andava? Quem era aquele tipo? Quero dizer, devo ser mais ou menos da idade que ele tinha quando nos fechou na despensa. E não consigo... Lembro-me de que ele tinha uma grande cicatriz na parte de dentro da canela da perna direita devido a um qualquer acidente que sofrera quando era jovem.

Uma chulipa do caminho-de-ferro. Não importa que ela saiba: não podem magoá-lo com histórias do passado. Deixou cair uma chulipa em cima dele quando trabalhava para a Union Pacific.

Não deve ser bem assim, Mark. Como é que deixas cair uma chulipa na canela?

Não conheces o meu pai.

Ela começa a rir, mas depois fica transtornada. Tens razão, diz ela. Começa a chorar. Tens razão. E ele tem de a abraçar um pouco para que pare. Ela arrasta-o para as traseiras até um pequeno telheiro por cima do ferramental. Ela diz: Quando nos mudámos para a casa de Farview, a mãe e eu encontrámos uns vídeos...

O quê, referes-te àquelas coisas sobre auto-emprego? Arrase os seus Concorrentes? Canhar a Valer?

Ela abana a cabeça, estremecendo. Horrível, diz ela. Nem sequer sou capaz. Não sou capaz.

Ah, lembra-se Mark. Aquelas cassetes de pornografia da pesada. Sim, soube disso.

E quando a mãe, em choque, pega nelas e lhas mostra e começa aos gritos, ele limita-se a dizer que nunca as viu na vida, que não sabe como foram lá parar. Talvez os donos anteriores as tivessem lá deixado. Cassetes de vídeo! Os leitores de vídeo nem sequer tinham sido ainda inventados quando nos mudámos para esta casa. Ele pegou nelas, levou-as para as traseiras e despejou-lhes gasolina em cima. Uma fogueira.

Pois foi, corrobora Mark.

E a mãe limitou-se a engolir aquilo. Pontos de crédito em direcção ao martírio. Acreditou que ele ia no caminho do arrependimento.

Bom, diz Mark, talvez não.

Não. Está bem. Talvez não.

Sobem ao andar superior, onde ficavam os quartos. Ele começa a ficar habituado àquilo, à devastação. Pequenos pedaços de porcaria de animal decoram o vestíbulo: uma antiga conta do telefone, um isqueiro vazio. Um pedaço de lona e um par de garrafas de cerveja. Um fino tapete de pó de estuque cobre os soalhos. Mas uma pessoa conseguia viver aqui. Não era nada de mais. Habituamo-nos a qualquer coisa.

Ela entra no antigo quarto dele, apontando com o dedo e recitando: cama, cómoda, prateleiras, arca dos brinquedos. Olha para ele para confirmar se acertou em tudo. Acertou. Era impossível que a tivessem treinado em todas estas coisas. Tem de ser uma espécie de transferência directa de sinapses. O que significa que uma parte da sua irmã é realmente transfegada para dentro desta mulher. Algo essencial. Uma qualquer parte do cérebro dela, da alma dela. Um pouquinho de Karin, aqui. Ela aponta para o nicho no peitoril da janela, a minúscula casa onde Mr. Thurman viveu, ano após anos. O único amigo de infância de confiança que Mark teve. Ele retrai-se, mas acena com a cabeça.

Aquele olhar de desafio dela, outra vez. Mark? Posso perguntar-te uma coisa?

Eu nem sequer me aproximei daquelas malditas revistas Seventeen.

Ela solta uma gargalhada, como se não tivesse a certeza de que ele estivesse a tentar ser engraçado. Mas prossegue: O Cappy... alguma vez te tocou?

Como assim? Costumava quase partir-me as pernas. Ainda tenho as cicatrizes.

Não é isso... Deixa. Esquece. Anda agora até ao meu quarto para fazeres o mesmo comigo.

Espera lá, diz ele. Ir ao teu quarto? Não estás a tentar seduzir-me, pois não?

Ela bate-lhe no ombro. Ele segue-a obedientemente, às risadinhas. Entram no escuro quarto em decomposição, fazendo o mesmo jogo. Cama. Errado. Cama? Errado! Cómoda? Mais ou menos.

Então, como é que eu hei-de saber? Ela estava sempre a mudar as coisas de sítio.

Karin Dois agarra-o pelo punho, prendendo-lhe o braço. Tenta olhá-lo nos olhos. Como é que ela era? Conta-me como... é que ela era.

Quem? Queres dizer a minha irmã? Estás realmente interessada na minha irmã? Desapareceu há tanto tempo que seguramente que não voltará. E deve haver qualquer coisa de errado com Mark Schlu-ter, algo resultante do acidente de que nem o hospital tem conhecimento, pois ele irrompe num pranto desesperado como se fosse uma criança.

Estavam os dois sozinhos na casa abandonada, reconstruindo o passado que já não partilhavam. Houve um momento, entre os quartos arruinados e as memórias incertas, em que ocorreu a Karin que teriam ao menos aquele dia, aquela tarde de confusão em comum, se mais nada viessem a ter. E quando o seu irmão começou a chorar e ela avançou para o consolar, ele permitiu. Algo que nunca tinham tido antes.

Saíram para a rua, para o ar daquele ameno Dezembro. Percorreram toda a extensão do antigo campo, ignorando quem o cultivava agora. No esmagar do restolho por baixo dos pés, sentiu aquelas manhãs de Verão, acordando antes de o dia nascer, saindo para mondar os feijões enquanto o orvalho ainda os refrescava, arrancando as ervas daninhas com uma sachola tão afiada que certa vez ela quase decepara o dedo grande do pé, mesmo através do couro das suas botas de trabalho.

Mark seguia a seu lado, de cabeça pendida. Ela sentia-o debater-se e temia dizer o que quer que fosse, temia ser qualquer pessoa, menos ainda Karin Schluter. O mais estranho é que não se importava de se refrear. Habituara-se a ser a substituta, a ser esta mulher. Permitia-lhe começar do zero com ele, ao mesmo tempo que a outra Karin sofria uma melhoria tão drástica na memória dele. Uma hipótese de reescrever a sua biografia: duas oportunidades numa só, na verdade.

Subiram a colina hirsuta e negra do restolho. Sentiu novamente, como quando era miúda, a perversa desarborização deste local. Não havia nem um vestígio de cobertura vegetal à vista. Faça-se o que se fizer e Deus verá com certeza. Ao longe num ténue cume, carros e camiões deslizavam para cá e para lá como gadanhas na auto-estrada. Virou-se para olhar para a casa. Por volta desta altura no próximo ano já teria desaparecido, desmoronada ou arrasada por uma máquina, como se nunca tivesse existido. O telhado de duas águas, a enviesada porta para a cave escorada contra as fundações de tijolo, o atarracado toco branco, tipo caixa, projectando-se do horizonte nu. Nada lhe conferia protecção.

- Lembras-te de quando tu e o pai tentaram limpar aquela cisterna?

Ele bateu na cabeça como se o desastre tivesse acabado de acontecer.

- Não me recordes de coisas que não podes saber.

Ela não sabia até onde podia avançar.

- Lembras-te de quando a tua irmã fugiu?

Mark cruzou as mãos sobre o cocuruto da cabeça, para o impedir de voar com o vento. Começou novamente a caminhar, observando o rego que os seus pés seguiam no solo.

- Ela foi uma bênção, durante a minha juventude. Manteve-me afastado de muitos sarilhos e confusões. Bom, tinha os seus pequenos quês. Mas também, quem não os tem? No fundo, apenas queria ser amada.

- E quem é que não quer? - repercutiu Karin.

- Vocês as duas são muito parecidas. Ela também costumava dormir com uns e outros, um pouco. - Ela virou-se para ele com violência. Ele copiou o ar embasbacado dela, troçando. - Ei, tem calma, estou apenas a meter-me contigo. Bolas, és ainda mais fácil de irritar do que ela era. - Karin esbofeteou-o no peito com as costas da mão. Ele limitou-se a rir, aquele riso desconsolado - Mas, olha, tenho de te perguntar... Aquele tipo com quem andas actualmente?

Ela baixou os olhos e observou as marcas do arado. Qual deles?

- Porque estás com ele, afinal de contas? Ele é completamente normal em termos sexuais?

Ela não se conteve e soltou umas risadinhas.

- O que é normal, Mark?

- Normal? Homem, mulher, porta da frente. Nada que te possa garantir uns dias na choça.

- Ele é... bastante normal.

Mark deteve-se e ajoelhou-se no chão, junto a uma carcaça seca. Tocou-lhe com a ponta do sapato.

- Um rato-toupeiro - declarou. - Pobre criatura.

Ela puxou-o dali.

- Afinal de contas, o que tens contra o Daniel? Foram tão amigos, todos aqueles anos. O que aconteceu?

- O que “aconteceu”? - Mark desenhou as aspas no ar com os dedos. - Eu digo-te o que “aconteceu”: ele tentou sodomizar-me. Sem mais nem menos. Assédio sexual.

- Mark! Vá lá. Não acredito no que dizes. Quando é que isso aconteceu?

Ele girou sobre si mesmo e levantou as mãos.

- Como é que queres que eu saiba? Tipo, 20 de Novembro de 1988 às cinco da tarde?

- Não, Markie. Que idade tinhas? Catorze, quinze?

- Devias tê-lo ouvido. “Algo que podíamos ter, juntos. Apenas tocarmo-nos um ao outro, ali. Só tu e eu...” O tipo não estava mesmo bom da cabeça.

Ela ergueu também as mãos e ajoelhou-se na lama seca.

- Só podes estar a brincar. Isso é que é a grande zanga sobre a qual ambos se recusaram a falar todos estes anos? - Ele agachou-se ao lado dela e passou os dedos pela terra, evitando os olhos dela. - Todos os rapazes em crescimento fazem esse tipo de coisas uns com uns outros, pelo menos uma vez.

- Ora, não este rapaz em crescimento.

- Desperdiçaste uma amizade por causa disso? - Contudo, ela exilara melhores amigas por menos do que isso.

Mark brincava com um retículo de raízes, a boca contorcida.

- Ele seguiu o seu tortuoso caminho; eu segui o meu.

Ela pousou-lhe a mão no ombro. Ele não a afugentou.

- Porque não me disseste? Quero dizer, porque nunca o mencionaste à tua irmã?

- Porquê? Vocês são ambas mulheres com estudos superiores. Se vos apetece experimentar enrolarem-se com um bissexual, que tenho eu a ver com isso? - Ressentido, semicerrou os olhos e contemplou o campo ondulante. - O que achas que ele diria, se nos visse aos dois aqui, assim?

Ela recostou-se contra a aresta de um sulco, reprimindo uma gargalhada. Horrível. E, pior do que tudo, esta era a mais honesta e íntima conversa que tinham tido desde que haviam vivido nesta casa.

- Não era apenas, tu sabes... Fazer festinhas ao meu... O tipo realmente amava-me, ou assim.

Os olhos dele captaram as nuvens em movimento, e ela foi invadida por uma náusea. O embaraço das explicações. O tipo realmente... Mas não podia ser verdade. Não da forma que Mark insinuava.

- Também acho que ele é capaz de se ter envolvido com animais.

- Meu Deus, Mark! Pára com isso! Quem te disse isso? Os teus amigos? Os maiores abusadores de animais que já se viu.

Pendurou as mãos em redor do pescoço, infeliz e pensativo.

- Sabes, tinhas razão em relação ao Rupp e ao Cain. Estavas certa e eu estava errado. Não te dei ouvidos. Devia dar-te mais ouvidos.

- Eu sei - disse ela para a terra. - Eu também te devia dar mais ouvidos. - Estava a dar agora, Daniel mudando à medida que escutava. Empurrou o chão com as palmas das mãos e pôs-se de pé.

- Anda daí. Regressemos antes que sejamos detidos por violação de propriedade privada.

- O que é que vocês os dois fazem juntos? Como divertimento! - Virou a cara para o lado e tapou-a com as mãos. Ela pestanejou, desconcertada. - Não quero os pormenores sujos. Quero dizer, vão à ópera? Visitam a biblioteca pública e deixam-se ficar por lá até vos expulsarem?

O que é que eles faziam juntos? A diversão não era uma coisa que tivessem aperfeiçoado.

- Damos passeios, por vezes. Trabalhamos juntos. Para o Refúgio.

- E fazem o quê?

- Bom, de momento estamos a tentar salvar os grous dos seus admiradores. - Delineou os pormenores do seu dia de trabalho, surpreendendo-se a si mesma enquanto falava. Estava no Refúgio há pouco mais de um mês e já demonstrava todo o fervor de uma convertida. Não se conseguia imaginar a si mesma agora sem o trabalho. Sentada horas a uma mesa coberta de folhetos governamentais, tentando convertê-los numa linguagem que fizesse uma pessoa indiferente despertar e aperceber-se de todas as coisas que retiram água ao rio. O trabalho preenchera algum vazio nela, ocupara o espaço que a Capgras deixara. Estivera tanto tempo num estado de suspensão. Queria dizer a Mark os dados de que dispunha. Os humanos que consumiam vinte por cento mais energia do que o mundo podia produzir. Extinção a mil vezes a taxa de extinção normal. Ao invés disso, contentou-se em falar-lhe do combate pelos direitos hídricos, a guerra pela terra sendo travada fora de Farview.

- Espera um pouco. Estás a dizer que esta Aldeia Natural é má para as aves?

- É o que os números fazem crer. É o que o Daniel acha.

O nome fez Mark voltar a transtornar-se.

- O pretenso Daniel. É ele o elo perdido, sabias? A peça que falta. Tudo parece apontar sempre para ele.

Elo perdido. Copulador com animais. O defensor de todas as criaturas que não podiam competir com a consciência. Estavam quase junto à casa. Mark levava as mãos enfiadas nos bolsos de trás e pontapeava uma pedra pelo sulco abaixo. Estacou e acercou-se dela.

- Onde é que essa tal aldeia ficará supostamente?

Ela orientou-se e apontou para Sudeste.

- Querem colocá-la ali algures. Junto ao rio.

Lançou a cabeça para trás e o corpo deu um sacão.

- Caramba. Olha para onde estás a apontar! O que, em nome de Deus, se está a passar? - Um grito de dor escapou-se dele. - Não estás a ver? Mesmo onde eu tive o acidente. - Encostou-se à porta inclinada da cave. - Explica-me tu isto. - Por um segundo, ele pareceu-lhe à beira de um ataque. - Salvar as aves? Salvar o rio? E que tal salvarem-me a mim? Onde raios é que está o PsR? Tenho tantas coisas para lhe perguntar. O homem pisgou-se daqui tão depressa, que quase se pensaria que eu tentei sodomizá-lo a ele.

Os seus desesperados olhos cor de avelã esbugalharam-se para ela e Karin teve de dizer qualquer coisa.

- A culpa não foi tua, Mark. O homem também tem os problemas dele.

Ele inclinou-se para a frente na rampa, pronto para saltar.

- O que queres dizer com “problemas dele”?

Ela deu um passo atrás. Observou a distância que a separava do carro. Ele era capaz de qualquer coisa. Havia qualquer coisa de básico nele, esgadanhando-se para sair. Porém, voltou a encostar-se e ergueu as palmas das mãos.

- Está bem, esquece. Escuta apenas. Pedi-te para vires até aqui por uma razão. Desculpa lá ter-te enganado, mas em tempo de guerra... Há uma coisa que preciso de resolver de uma vez por todas. Não sei ao certo a quem reportas ou de que lado estás realmente. Contudo, sei que me ajudaste enquanto eu estive em baixo. Ainda não sei com certeza porquê, mas nunca o esquecerei. - Inclinou a cabeça e olhou para o céu branco-amarelado. - Bom, coloquemos as coisas nestes termos: enquanto me lembrar do que quer que seja, recordar-me-ei disso. Não sei de que modo sabes o que sabes, mas é óbvio que tens toda a base de dados da minha irmã, mais coisa menos coisa. Eles transferiram-na da minha irmã e gravaram-na em ti, ou coisa que o valha. Sabes mais coisas sobre mim do que eu sei sobre mim mesmo. És a única pessoa capaz de me responder a isto. Não tenho outra escolha a não ser confiar em ti. Portanto, não me lixes agora, está bem? - Pôs-se de pé e afastou-se uns três metros da casa, distante o suficiente para apontar para a antiga janela do seu quarto. - Lembras-te daquele tipo?

Ela conseguiu que o seu crânio acenasse.

- Algo nos teus bancos de memória. Quem ele era, como cresceu, o que foi feito dele? Em que se tornou?

Karin desejou que a cabeça acenasse outra vez, mas esta parecia recusar-se. Mark não reparou. Estava a olhar fixamente para a janela da sua infância, esperando que a prova descesse por ali por uma corda de fronhas e lençóis.

Virou-se e agarrou-a pelos ombros, como se ela fosse o mensageiro pessoal de Deus.

- Tens uma memória nítida de Mark Schluter, por volta desta altura no ano passado? Digamos, dez ou doze dias antes do acidente? Preciso de saber se achas, tendo em conta a tua percepção daquele tipo acerca do qual te treinaram... se achas que ele o poderia ter feito de propósito.

No cérebro dela soou um zumbido abafado.

- Como assim, Markie?

- Não me chames isso. Tu percebeste o que perguntei. Estava a tentar matar-me?

O estômago dela contraiu-se. Abanou a cabeça com tanta força que o cabelo chicoteou-lhe o rosto.

Ele examinou-a em busca de indícios de traição.

- Tens a certeza? Tens a certeza absoluta? Eu não disse nada antes? Não andava deprimido? O que eu pensei foi o seguinte: havia qualquer coisa na estrada à minha frente. Recordo-me de alguma coisa na estrada. Branca. Talvez aquele carro em sentido contrário, que me cortou a passagem. Pensando bem, talvez fosse a pessoa que me encontrou, o autor do bilhete, alterando o curso da minha vida. Porque, talvez eu estivesse ali... tu sabes, para capotar a carrinha, para pôr fim a tudo. E alguém me impediu.

O seu cérebro foi inundado de objecções mesmo antes de as pensar. Ele não mostrara qualquer sinal de depressão. Tinha o seu emprego, os amigos e a sua nova casa. Se ele quisesse fazer alguma coisa como aquela, ela teria sabido... Porém, ela mesma suspeitara da possibilidade. Desde que chegara ao hospital até àquela manhã.

- Tens a certeza? - voltou a inquirir Mark. - Não há nada nas memórias que te colocaram que te sugira alguma atitude suicida? Está bem. Tenho de acreditar que não me mentirias em relação a isto. Vamos. Leva-me para casa. - Caminharam para o carro. Ele sentou-se no lugar do passageiro. Ela ligou o motor. - Espera um pouco - pediu ele. Voltou a sair, correu para o alpendre e arrancou o sinal de PASSAGEM PROIBIDA. Correu de volta para o carro e entrou.

Ela levou-o para casa, uma distância que se expandia à medida que avançavam. Ela vacilou mais uma vez em relação à olanzapina. Mark agora gostava dela, pelo menos um bocadinho. Melhor ainda, gostava do que ela fora. Ela sabia a que uma cura o devolveria. Talvez Mark estivesse melhor assim. Talvez o bem-estar fosse mais do que sanidade oficial. Ele - o antigo Mark - poderia ter dito o mesmo tipo de coisa. Contudo, sucumbindo à sensatez, disse-lhe que precisavam de ir falar com o dr. Hayes outra vez.

- Descobriram uma coisa, Mark. Algo que te podem dar e que poderá ajudar a esclarecer algumas coisas. Fazer-te sentir um pouco mais... inteiro, completo.

- Esclarecer coisas seria bastante útil nesta altura. - Mas não estava verdadeiramente a escutá-la. Perscrutava o horizonte para a direita, em direcção ao rio, à futura Aldeia Natural, o seu acidente. - Salvar as aves, foi o que disseste? - Ele acenou que sim estoicamente ao pensar na completa insanidade da raça humana. - Salvar os pássaros e matar as pessoas.

Ligou o rádio do carro. Estava sintonizado na frenética estação conservadora que ela escutava pelo prazer de confirmar os seus priores medos. O presidente ordenara que se vacinassem meio milhão de militares contra a varíola. Agora, os ouvintes estavam a telefonar com conselhos sobre como se preparar para o iminente surto.

- Guerra biológica - cantarolou ele. Virou-se, o rosto dele coberto de uma absoluta incompreensão. - Quem me dera ter nascido há sessenta anos.

As palavras apanharam-na desprevenida.

- O que queres dizer com isso, Mark? Porquê?

- Porque se tivesse nascido sessenta anos antes, estaria morto por esta altura.

Virou para River Run e trepou a entrada para a garagem.

- Eu marco-te uma consulta com o dr. Hayes, está bem, Mark? Mark? Estás a ouvir-me?

Ele dispersou a sua névoa, hesitando, o pé direito pendurado para fora da porta do carro.

- Como queiras. Faz-me apenas um pequeno favor. Se a minha verdadeira irmã alguma vez voltar a aparecer. - Tamborilou a testa com os dois primeiros dedos. - Achas que conseguias guardar algum sentimento por mim?

“O eu apresenta-se como um todo, obstinado, encarnado, contínuo e consciente.” Ou pelo menos assim escreveu Weber outrora em Um Infinito de Mil e Trezentos Gramas. Mas mesmo nessa altura, antes de saber o que quer que fosse, sabia que cada um destes pré-requisitos podia falhar.

Todo: o trabalho de Sperry e Gazzaniga com doentes sujeitos a comissurotomia fez ruir por completo essa ficção. Os epilépticos aos quais foi cortado o corpo caloso como último recurso no tratamento da sua doença acabaram com dois hemisférios cerebrais separados sem qualquer ligação. Duas mentes independentes no mesmo crânio, a intuitiva à direita e a modelar à esquerda, cada hemisfério usando as suas próprias imagens mentais, ideias e associações. Weber observara as personalidades das duas metades de cérebro de um doente serem testadas independentemente. A da esquerda afirmava acreditar em Deus; a direita apresentava-se como ateia.

Obstinado: Libet sepultou este pré-requisito em 1983, mesmo em relação ao cérebro basilar. Pediu a dois sujeitos que olhassem para um relógio que marcava o tempo em microssegundos e apontassem o tempo sempre que decidissem levantar um dedo. Entretanto, eléctrodos colocados na cabeça dos sujeitos monitorizavam o potencial de prontidão, ou seja, a mudança eléctrica que indicava a actividade de accionamento do músculo. O sinal começava um terço de um segundo antes de qualquer decisão de mexer o dedo. O nós que tem a vontade não é o nós que pensamos que somos. A nossa vontade era uma daquelas partes de um sketch de comédia clássica em que o moço de recados acha que é o presidente do conselho de administração.

Encarnado: tomemos em consideração a autoscopia e as experiências extracorporais. Neurocientistas em Genebra concluíram que os acontecimentos resultavam de disfunções cerebrais paroxísmicas da junção temporo-parietal. Uma pequena corrente eléctrica aplicada no local correcto no córtex parietal direito, e qualquer pessoa poderia flutuar até ao tecto e observar de cima o seu corpo abandonado.

Contínuo: esse fio estava pronto para se quebrar ao mais pequeno toque. Desrealização e despersonalização. Ataques de ansiedade e conversões religiosas. Fenómenos semelhantes ao da identificação errónea - o contínuo típico da Capgras -, fenómenos que Weber testemunhara toda a sua vida sem realmente se aperceber deles. Amor eterno abjurado. Filosofias de vida abandonadas com um desgosto profundo. O pianista que ele entrevistara e que acordara uma manhã após uma doença prolongada, sem qualquer patologia discernível, ainda capaz de tocar, mas incapaz de sentir a música ou interessar-se por ela...

Consciente: aqui estava a sua mulher, a dormir na almofada ao lado da sua.

Este pensamento tomou forma estando ele deitado na cama ao amanhecer, escutando um tordo-imitador ressoar a sua ronda de chamamentos furtados: de eus como o eu se descreve a si mesmo, ninguém tinha um. Mentir, negar, reprimir, confabular: não se tratavam de patologias. Era a assinatura da consciência, tentando manter-se intacta. O que era a verdade comparada com a sobrevivência? Flutuando ou arruinada ou dividida ou um terço de segundo atrasada, algo teimava ainda: Eu. A água mudava sempre, mas o rio mantinha-se intacto.

O eu era um quadro pintado nessa superfície líquida. Um qualquer pensamento enviava um potencial de acção por um axónio abaixo. Um pouco de glutamato saltou o hiato, encontrou um receptor na dendrite alvo e desencadeou um potencial de acção na segunda célula. Foi então que se deu o verdadeiro disparo: o potencial de acção na célula receptora emitiu um bloqueio de magnésio de outro tipo de receptor, o cálcio aflui e o inferno químico foi libertado. Genes activados, produzindo novas proteínas, que fluíram de volta para a sinapse e a remodelaram. E isso fabricou uma nova memória, o desfiladeiro pelo qual o pensamento fluiu. Espírito a partir de matéria. Cada explosão de luz, cada som, cada coincidência, cada percurso ao acaso pelo espaço modificou o cérebro, alterando sinapses, acrescentando-as até, ao mesmo tempo que outras enfraqueciam ou entravam em declínio por falta de actividade. O cérebro era um conjunto de mudanças para espelhar a mudança. Usar ou perder. Usar e perder. A escolha é nossa e a escolha altera-nos.

O mesmo que acontece com a sinapse acontece com a ciência. Quando a potenciação a longo prazo foi descoberta na década de 1970, talvez tenham surgido uma dúzia de artigos em meia década. Nos cinquenta anos depois, foram publicados quase cem. Neurónios que disparam em conjunto criam conexões. No início da década de noventa, mil dissertações ou mais. Agora, mais do dobro desse valor e redobrando a cada cinco anos. Mais artigos do que qualquer investigador poderia esperar integrar. A ciência estava à solta com a exposta sinapse. A sinapse transformara-se já numa ciência. A mais pequena máquina imaginável de comparar e juntar. O condicionamento clássico e operante escritos sob a forma de químicos, capazes de aprender o mundo inteiro e fazer flutuar um tu, para além disso.

O tordo-imitador soltou os seus arrancos. Cada arranco transformava-se como os rodopios de um alarme automóvel cíclico. Listen to the mockingbird. Listen to the mockingbird. Cantara outrora essa canção com a sua mulher, quando ainda cantavam. A mockingbird is singing over her graveu.

Este era o hino do pássaro à plasticidade, cada vislumbre de luz do Sol reflectido na encrespada baía alterando a forma do seu cérebro. O cérebro que reconstitui a memória não era o cérebro que a formara. Até mesmo o reconstituir de uma memória adulterava o que anteriormente aí se encontrava. Cada pensamento, danificando e reobstruindo. Até o acompanhamento deste tordo-imitador, este, mudava Weber irrevogavelmente.

O emaranhado adensava-se à medida que ele o traçava: grupos de neurónios conectados que moldavam e memorizavam a luz cambiante eram eles mesmos imitados noutros grupos de neurónios. Partes completas de circuitos reservadas como moldes de areia para modelar outros circuitos, o olho da mente canibalizando o olho do cérebro, a inteligência social roubando os circuitos da orientação espacial. O e se imitando o o que é; simulações simulando simulações. Quando a sua pequena Jess não tinha ainda um mês de idade, Weber era capaz de a fazer deitar a língua de fora, mostrando-lhe apenas a língua a ela. Sem contar com os milagres envolvidos, ela tinha de localizar a língua do pai relativamente ao corpo dele, depois cartografar de alguma forma as partes corporais dele na noção que tinha das suas, descobrir e dar uma ordem a uma língua que nem sequer via, que não podia sequer conhecer. E fazia tudo isto ao vê-lo, este bebé ao qual nada fora ensinado. Onde terminava o eu dele e começava o dela?

O eu esvaía-se, o resultado do trabalho dos neurónios-espelho, dos circuitos de empatia, seleccionados e preservados por muitas espécies pelo seu obscuro valor de sobrevivência. O giro supramarginal da bebé evocou uma ficção, um modelo imaginário do que como o seu corpo seria se fizesse o que o dele estava a fazer. Weber vira pessoas com lesões nessa área - apraxia ideomotora. Se lhes fosse pedido que pendurassem um quadro, conseguiam fazê-lo. Porém, se lhes fosse pedido que fingissem pendurar um quadro, tacteavam impotentemente a parede, sem qualquer martelo e prego simulados nas mãos.

Quando, aos quatro anos, a filha folheava os seus livros de imagens, o seu pequeno rosto imitava as expressões aí desenhadas. Um sorriso fazia-a sorrir, induzindo uma felicidade infantil. Uma careta magoava-a. A Weber também, só de ver: as emoções moviam os músculos, mas mover os músculos apenas provocava emoções. As pessoas com lesões na ínsula eram incapazes de realizar o mapeamento imitativo e integrado de estados corporais necessários para interpretar ou adoptar os músculos de outrem. Então, o eu comunitário redu-zia-se a um só elemento.

O pássaro imitava, de um ramo perto da janela do quarto, pedaços de frases musicais roubadas de outras espécies e acrescentadas à crescente melodia. Na parte de trás das suas pálpebras, usando as mesmas regiões do cérebro que a verdadeira visão, Weber viu um rapazinho que não reconheceu - talvez fosse Mark, ou alguém como ele - num campo carregado de geada a observar aves mais altas do que ele. E ao vê-los arquearem-se e saltar e encaracolar os pescoços e bater as asas, o rapazinho bateu as suas.

Estar acordado e saber: já de si terrível. Estar acordado, saber e recordar: insuportável. Contra a tripla maldição, Weber apenas conseguia vislumbrar um consolo. Uma parte de nós era capaz de moldar outro modelador. E desse simples ciclo advinha todo o amor e cultura, a ridícula afluência de dons, cada qual uma frenética prova de que o eu não era isso... O nós não tinha casa, nenhum todo ao qual regressar. O eu expandia-se para tudo aquilo para onde olhava, alterado por cada raio da luz cambiante. Mas se nada cá dentro é alguma vez completamente nós, pelo menos uma parte de nós permanece à solta, na esteira de outros, negociando tudo o resto. Os circuitos de outrem circulavam através dos nossos.

Este foi o pensamento matutino que se formou no cérebro de Weber, as suas sinapses inconstantes, todo o discernimento de que alguma vez deveríamos ter necessitado. No entanto, desvaneceu-se com o começo de uma nova melodia, ao mesmo tempo que Sylvie murmurava e acordava, abria os olhos e sorria para ele.

- Sim? - perguntou ela, ensonada. Um antigo código entre eles: - Dormiste bem?

E, sim, ele acenou com a cabeça, sorrindo de volta para ela. Durante toda a sua vida dormira bem.

O Natal chegou e partiu e nada de anjo. Dúzias de pessoas telefonaram depois de o programa ter ido para o ar, todas elas com teorias, mas nenhuma com uma informação útil. Quando até o Crime Solvers o desiludiu, Mark insinuou a Karin que tinha agora uma boa ideia do que realmente acontecera naquela noite. Qualquer projecto de negócios ambicioso para transformar a região exigiria primeiro transformar os habitantes da região. Quando ela tentou que ele se explicasse melhor, ele disse-lhe que usasse a cabeça e descobrisse por ela mesma.

No final da tarde do dia de Ano Novo, o especialista Thomas Rupp, do 167º Regimento de Cavalaria - os Soldados da Pradaria - apareceu à porta da Homestar. Vinha sem casaco na sua farda de camuflagem de deserto de três cores, tendo acabado de regressar à cidade depois de alguns exercícios realizados pela unidade a que pertencia. Mark olhou pela janela suja da frente para o pátio escurecido, pensando que forças paramilitares haviam chegado com o intuito de requisitar a sua casa com respeito a este novo empreendimento da Aldeia Natural.

O especialista Rupp tamborilou a madeira simulada da porta da frente de Mark. A banda sonora de um programa televisivo sobre antiguidades penetrou pelas janelas.

- Gus. Então? Abre, Cus. Não podes ficar zangado connosco para sempre.

Mark estava do outro lado da porta, brandindo uma chave de tubos de noventa centímetros. Apercebendo-se de quem era, gritou através da almofada da porta.

- Vai-te embora. Não és bem-vindo por estas partes.

- Schluter, meu. Abre a porta. Está a ficar feio aqui fora.

Estavam seis graus negativos e uma visibilidade de três metros. O vento soprava uma neve seca e granulosa, transformando-a numa autêntica tempestade de areia branca. Rupp tremia de frio, o que apenas convenceu Mark de que se tratava de uma armadilha. Nada alguma vez gelava Rupp.

- Tenho coisas a esclarecer contigo, camarada. Deixa-me entrar para falarmos.

Por esta altura, o cão estava já histérico, rosnando como um lobo e pulando um metro no ar, pronto para saltar pela janela e atacar o que quer que fosse para proteger o seu dono. Mark não conseguia ouvir-se pensar.

- Que coisas? Coisas como o facto de me teres mentido? Como o facto de me teres feito sair da estrada?

- Deixa-me entrar para conversarmos. Para esclarecermos esta confusão de uma vez por todas.

Mark bateu na porta com a chave, esperando afugentar o intruso. O cão começou a uivar. Rupp gritou uns impropérios para chocar Mark e o fazer parar. A vizinha do lado, uma processadora de dados reformada que servia almoços a sem-abrigo, abriu a janela e ameaçou lançar-lhes uma bomba incendiária. Ambos os homens continuaram a gritar um com o outro, Mark exigindo explicações e Rupp exigindo que ele lhe abrisse a porta para não congelar por completo.

- Abre o raio da porta, Gus. Não tenho tempo para isto. Fui chamado. Parto para Fort Riley depois de amanhã, meu. Depois para a Arábia Saudita, assim que chegar a minha vez.

Mark parou de gritar e calou o cão o tempo suficiente para perguntar:

- Arábia Saudita? Para quê?

- As Cruzadas. O Armageddon. George versus Saddam.

- És tão mentiroso. Eu sabia que eras assim. De que é que isso serve?

- É o segundo assalto - explicou Rupp. - Desta vez é a sério. Vamos atrás dos sacanas que fizeram cair as Torres.

- Estão mortos - disse Mark, mais para o cão do que para Rupp. - Morreram no momento do impacto numa bola de fogo abrasadora.

- Por falar em morte. - Rupp bateu com força com os pés no chão e uivou de frio. - Estou vestido para 43 graus e aqui fora está bom é para o capitão Scott, Cus. Vais deixar-me entrar ou queres matar-me?

Uma pergunta com rasteira. Mark não respondeu.

- Está bem, meu. Desisto. Ganhaste. Fala com o Duane sobre este assunto. Ou então espera que eu regresse. Esta declaração de intenções não durará muito tempo. Vamos dar a estes rufias uma semana no máximo. O mais provável é que esteja aqui a abater gado por volta do Dia da Bandeira. Levo-te a pescar no teu aniversário. - Da casa apenas proveio mais silêncio. Rupp recuou, regressando à gelada tempestade de areia. - Fala com o Duane. Ele explicar-te-á o que aconteceu. O que queres do Iraque, Gus? Um daqueles chapeuzinhos brancos de pôr no cocuruto? Umas contas de oração? Um poço petrolífero em miniatura? Que queres que te traga? É só dizeres e eu trago.

Rupp desaparecera já na sua carrinha quando Mark gritou:

- O que é que eu quero? Quero o meu amigo de volta.

No Dia da Marmota, um domingo, Daniel Riegel telefonou ao seu amigo de juventude. Havia 15 anos que não tinham qualquer contacto, para além de avistamentos negáveis à distância e a ocasião em que se haviam cruzado no supermercado, passando um pelo outro sem trocarem qualquer palavra. As mãos de Daniel tremiam ao mesmo tempo que marcava o número. Desligou uma vez e depois obrigou-se a começar de novo.

Karin contara-lhe os acontecimentos daquela tarde na abandonada residência familiar, uma casa de que Daniel se recordava tão bem quanto se recordava da sua. Confrontou-o com a revelação que Mark fizera, algo arruinado em si. Amavas o meu irmão, não era? É claro que sim. Quero dizer, amava-lo não apenas como amigo. Ficara ali a repensar tudo, avaliando Daniel como avaliaria um estranho.

Não fazia ideia do que diria se Mark Schluter atendesse. Já não importava o que ele diria, desde que dissesse alguma coisa. Uma voz da outra ponta gritou:

- Estou?

E Daniel disse:

- Mark? É o Danny.

A voz dele deslizou como a de um adolescente entre o soprano e o baixo. Mark não disse nada, por isso Daniel avançou com uma clarificação, tolamente prosaico:

- O teu velho amigo. Como vão as coisas? O que tens feito? Há muito tempo que não falávamos.

Por fim, Mark falou.

- Falaste com ela, não foi? É claro que sim. Ela é tua mulher. Amante. Tanto faz. - A voz de Mark alternava entre o espanto e o receio. Porque haveriam as pessoas de falar sobre ele nas suas costas? De que lhes adiantava isso? As suas palavras nadavam em mistérios e estavam prontas para desistir de chapinhar e se afogarem.

Daniel começou a falar, gaguejando, sobre antigos mal-entendidos, problemas de comunicação, experiências que correram mal. Não foi o que tu pensas; devia ter-te dito; nunca deveria ter sugerido. Um longo silêncio foi o que recebeu de Mark. Um silêncio que valia 15 anos. Então:

- Escuta, não me incomoda que sejas homossexual. É uma grande moda hoje em dia. Nem sequer me incomoda que gostes mais de animais do que de pessoas. Eu faria o mesmo, se não fosse humano. Mas tem cuidado. Eu sei que é uma cidade universitária, mas se fores até às áreas circundantes terás uma surpresa.

- Tens razão em relação a isso - respondeu Daniel, - mas estás errado em relação a mim.

- Muito bem. Como queiras. Não importa. Esquece. Enterra o assunto. O pequeno Danny; o jovem Markle. Lembras-te desses tipos?

Daniel demorou alguns momentos a decidir.

- Acho que sim - respondeu.

- Eu cá é que não me lembro de certeza. Não faço ideia de quem foram esses dois. Dois mundos diferentes. Que importa?

- Não compreendes, nunca foi minha intenção levar-te a pensar...

- Ei, podes dormir com o que quiseres. Só se vive uma vez, na maioria dos casos.

E depois, sem mais nem menos, regressaram às trivialidades do presente.

- Posso apenas fazer-te uma pergunta? Porquê ela? Não me interpretes mal. Ela é boa pessoa. Pelo menos, ainda não me fez mal nenhum. Mas... isto não tem nada a ver comigo, pois não?

Daniel tentou dizer. Dizer porquê ela. Porque com ela não precisava de ser outra pessoa a não ser quem sempre fora. Porque estar com ela o fazia sentir-se familiarizado. Como regressar a casa.

Mark arruinou a explicação.

- Logo vi. Estás a usá-la como se fosse a minha irmã! A dormir com ela porque te faz lembrar a Karin. Os bons velhos tempos. Meu! A memória. Há-de sempre tramar-nos bem tramados, hã?

- Há-de - concordou Daniel. - Sempre.

- Pronto, muito bem. Estamos entendidos. Não te esqueças é que esta coisa do amor vai e vem. Acordas um dia e interrogas-te. Acho que não preciso de te dizer isto. Então, o que tens feito com a tua vida? - Soltou uma gargalhada que soou a um afiador de ferramentas movido por correia. - Nos últimos 15 anos. Em 200 palavras ou menos.

Daniel recitou o resumo encurtado, espantando-se com o que pouco mudara desde a infância e o pouco que conseguira realmente num período tão grande de tempo. Mal se conseguia ouvir falar por cima do ruído do passado.

Mark quis saber mais coisas sobre o Refúgio.

- Uma espécie de Dedham Glen para aves?

- Sim, talvez. Algo do género.

- Bom, não me podes magoar com isso. A Karin Dois diz que estás a combater esta coisa tipo Disney World dos pântanos? Acampamento Ornitólogo?

- A combater e a perder. O que é que ela te contou sobre isso?

- Já vi os agentes imobiliários deles aqui perto, farejando. Parece-me que têm a Homestar debaixo de olho. Acho que ainda vão confiscar a minha casa.

- Tens a certeza? Como sabes que são...?

- Uma equipa de tipos com um daqueles instrumentos de agrimensor? Tipos por aquelas bandas, dinamitando peixe?

A ideia assolou Daniel, com uma vaga de emoção desgostosa. Os urbanizadores estavam a conduzir um estudo de impacto ambiental. O verdadeiro dispêndio de capital começara.

- Escuta - disse Daniel. - Podemos encontrar-nos? Posso passar por tua casa?

- Ei. Espera lá, pá. Já to disse há muito tempo. Não sou desse tipo.

- Nem eu - reiterou Daniel.

- Ei, tudo bem. Vivemos num país livre. - Mark ficou em silêncio, mas calmo. - Mas diz-me uma coisa. Tu que sabes tudo e mais alguma coisa sobre pássaros, é possível treinar uma dessas aves para espiar uma pessoa?

Daniel mediu as palavras.

- As aves são surpreendentes. Os gaios-azuis sabem mentir. Os corvos castigam os vigaristas. Os corvos-americanos constroem ganchos a partir de arame direito e usam-nos para erguer chávenas de buracos. Nem sequer os chimpanzés são capazes disso.

- Então, seguir pessoas não seria um problema.

- Bom, não sei ao certo como seria para regressarem com a informação recolhida.

- Meu, essa é a parte fácil. Tecnologia. Minúsculas câmaras sem fios e coisas assim.

- Não sei - disse Daniel. - Não é o meu forte. Nunca fui bom a ver o possível a partir do impossível. Foi por isso que vim parar à conservação.

- O que quero saber é, não têm apenas, tu sabes, cérebros de passarinho?

Daniel deteve-se ao escutar o som, o Mark de dez anos, o amor da sua infância, que sempre recorrera aos conhecimentos livrescos de Daniel. Haviam caído por instinto na cadência esquecida.

- Ao que se sabe, os cérebros deles são muito mais potentes do que as pessoas algumas vez julgaram. Têm muito mais córtex, apenas com uma forma diferente do nosso, por isso não o conseguíamos ver. Conseguem pensar, disso não restam dúvidas. Vêem padrões. Houve pessoas que treinaram pombos para distinguir Seurats de Monets.

- Gortex? Distinguir o quê do quê?

- Os pormenores não são importantes. Porque perguntas?

- Tive uma ideia há alguns meses. Achei que... que talvez me andasses a seguir. Tu e os teus pássaros. Mas isso é um disparate, não é?

- Bom - respondeu Daniel -, já ouvi coisas mais disparatadas.

- Agora dou-me conta de que se alguém me anda a seguir, é o outro lado. Esta gente da Aldeia Natural. E não é bem de mim que andam atrás. Ninguém se preocupa na verdade se eu vivo ou morro. Provavelmente apenas querem a minha propriedade.

- Gostava muito de falar contigo sobre isso - avançou Daniel, usando uma ilusão para perseguir uma ilusão.

- Ah, meu. Talvez esteja apenas baralhado. Não fazes ideia daquilo por que passei. Uma porcaria de um acidente, faz este mês um ano. Tudo começou nessa altura.

- Eu sei - disse-lhe Daniel.

- Viste o programa?

- O programa? Não. Vi-te a ti.

- Viste-me? Quando foi isso? Não gozes comigo, Danny. Estou a avisar-te.

Daniel explicou: no hospital. Nos primeiros dias. Enquanto Mark estava ainda em recuperação.

- Vieste ver-me? Porquê?

- Estava preocupado contigo. - Era tudo verdade.

- Tu viste-me? E eu não te vi a ti?

- Estavas ainda em bastante mau estado. Tu viste-me, mas... eu assustei-te. Achaste que eu era... Não sei o que terás achado.

A mente de Mark levantou voo, fragmentos de palavras disper-sando-se como faisões ao escutar um tiro. Sabia quem achara que Daniel era. Outra pessoa viera vê-lo ao hospital. Alguém que deixara um bilhete. Alguém que estivera lá naquela noite, em North Line.

- Não viste o programa? Na televisão. De certeza que viste.

- Desculpa. Não tenho televisor.

- Meu Deus. Já me tinha esquecido. Tu vives no raio do mundo animal. Esquece; não tem importância. Se eu pudesse ver como tu és agora, talvez me recordasse de quem eu achei que tu eras. Do aspecto da pessoa que me encontrou.

- Ia adorar, quero dizer, gostaria muito. Talvez possa passar por tua casa um destes dias...?

- Agora - disse Mark. - Sabes onde eu moro? O que estou eu para aqui a dizer? O Refúgio dos Grous provavelmente também quer pôr a minha casa em liberdade.

Daniel bateu à porta e a porta pré-fabricada abriu-se, revelando uma pessoa pela qual ele poderia muito bem ter passado na rua sem identificar. O cabelo de Mark pendia solto e emaranhado, como nunca o usara. Ganhara nove quilos nos últimos meses e o peso surpreendia a pequena estatura de Mark tanto quanto surpreendeu Daniel. O mais estranho de tudo era o seu rosto, dominado por um piloto desorientado com os controlos. Pensamentos estranhos moviam agora aqueles músculos. O rosto contemplou Daniel contra o gelado céu de Fevereiro.

- Rapaz Natureza - cumprimentou Mark, um pouco céptico, tentando identificar o que havia ali de tão diferente. Por fim, percebeu. - Envelheceste.

Arrastou Daniel para dentro e colocou-o no centro da sala de estar, inspeccionando-o. Umas lágrimas escaparam-se-lhe pelos cantos dos olhos. Contudo, o rosto dele permaneceu atento, como um comprador examinando os ingredientes num rótulo. Daniel deixou-se ficar quieto, tremendo. Após um longo momento, Mark abanou a cabeça.

- Nada. Não estou a recordar-me de nada. - O rosto de Daniel contorceu-se, até que percebeu. Mark não se referia a 15 anos atrás; queria dizer há dez meses. - Nunca mais regressa, não é? - disse Mark. - As coisas nunca são o que foram. Provavelmente não eram o que eram mesmo na altura em que o eram mesmo. - Soltou uma gargalhada, algodão enrolado em arame farpado. - Não importa. Foste outrora o Rapaz Natureza e isso é o que basta para mim. Prazer em conhecer-te, Homem Natureza. - Lançou os braços em redor de Daniel, como se atasse as rédeas de um cavalo a um poste de atrelagem. O abraço terminou antes mesmo de Daniel conseguir retribuí-lo. - Desculpa lá aquelas confusões todas do passado. Muito tempo perdido e angústias e agora já nem sequer me lembro a que se deveu. Pronto, não queria a tua mão nas minhas partes privadas, mas isso não quer dizer que tinha de te sovar até quase à morte.

- Não - respondeu Daniel. - A culpa foi minha, toda minha.

- Caramba, envelhecer não é mais do que acumular coisas disparatadas pelas quais temos de nos desculpar. Como é que seremos quando tivermos setenta anos? - Daniel tentou responder, mas Mark não pretendia realmente uma resposta. Levou a mão ao bolso da camisa de bombazina que usava como casaco e tirou de lá um pedaço de papel plastificado cheio de rabiscos. - Ora bem, isto diz-te alguma coisa?

- A tua... Karin Dois falou-me sobre isso.

Mark agarrou-lhe o pulso.

- Ela não sabe que estás aqui, pois não? - Daniel abanou a cabeça. - Talvez ela não seja uma ameaça. Nunca se sabe. Então estás a dizer-me que não és o meu anjo da guarda? Não fazes ideia de quem seja? Bom, o que quer que tenha acontecido naquele dia no hospital, não me estás a fazer lembrar ninguém, pelo menos agora. Excepto uma versão maior, rude e mais velha do Rapaz Natureza. O que te posso oferecer para beber? Uma qualquer espécie de chá integral dos pântanos?

- Tens cerveja?

- Uau, o pequeno Danny R. atinge a maioridade.

Sentaram-se à mesa redonda de vinil da cozinha, nervosos com a inesperada reunião. Não sabiam, ainda, como ser outra coisa juntos que não rapazes. Daniel pediu a Mark que lhe descrevesse os agrimensores. Soaram-lhe apenas ligeiramente mais verosímeis do que o seu anjo da guarda. Mark perguntou pela Aldeia Natural, que, nas palavras de Daniel, lhe pareceu uma invenção paranóica.

- Não percebo. Estás a dizer que esta guerra está toda relacionada com a água?

- Nada merece mais uma guerra.

A ideia aturdiu Mark.

- Guerras pela água?

- Guerras pela água aqui, guerras pelo petróleo no estrangeiro.

- Petróleo? Esta guerra mais recente? Então, e a vingança? A segurança? A liberdade e assim?

- As crenças perseguem os recursos.

Conversaram e beberam, Riegel excedendo o seu consumo dos últimos dois anos. Estava preparado para ficar inconsciente, se necessário, para ficar com Mark.

Mark transbordava de ideias.

- Queres saber como hás-de roubar esta terra de debaixo do nariz destes tipos? Danny, Danny, deixa-me mostrar-te uma coisa. - Com o que mais se assemelhava a energia, Mark pôs-se de pé e caminhou com passos pesados até ao quarto. Daniel ouviu-o deslocar coisas de um lado para o outro, soando como uma escavadora numa lixeira. Regressou triunfante, brandindo um livro. Segurou-o frente a Daniel: Águas Planas. - O manual de História Local do meu primeiro ano de faculdade. Ou melhor, do meu último ano de faculdade. - Mark folheou as páginas num estado de quase excitação. - Espera. Está aqui algures. Mister Andy Jackson, se não estou em erro. O passado antigo é uma coisa estranha: a forma como parece estar sempre a regressar. Aqui está. Indian Removal Act de 1830. Inter-course Acts de 1834. Não fiques todo entusiasmado; não é assim tão interessante quanto soa. Todas as terras a oeste do Mississipi que não sejam já o Missouri, a Louisiana ou o Arkansas. Posso citar? “Para sempre protegidas e garantidas.” “Herdeiros ou sucessores.” “Perpetuamente.” Isso significa para sempre. Estamos a falar de muito, muito tempo, companheiro, a lei da terra. E dizem que eu é que estou delirante? Todo o país está delirante! Não há uma única pessoa branca por estas bandas que seja um proprietário legal, incluindo eu. É assim que devias abordar o assunto. Reúne os teus advogados, coloca alguns nativos da reserva do teu lado: deverás ser capaz de desocupar o estado inteiro. Colocá-lo de novo como estava.

- Eu... verei melhor isso.

- Devolvê-lo às aves migratórias. As aves não poderão causar mais estragos do que aqueles que nós já provocámos.

Daniel sorriu, mesmo sem querer.

- Tens razão nesse aspecto. Para acabar mesmo com tudo são necessários cérebros de tamanho humano.

A palavra cérebro despertou Mark de novo.

- Danny, Danny. Por falar em cérebros e grous, por que motivo é que as cabeças deles são encarnadas? Não achas isso estranho? É como se tivessem sido todos operados. Devias ter-me visto, meu, com o meu crânio ensanguentado numa tala. Ah, é verdade: tu viste-me. Eu é que não me vi a mim.

Segurou a mesma cabeça danificada entre as mãos, cindida novamente. Riegel não disse nada; e mexeu menos ainda do que o dedo mindinho. O perito de uma vida em seguir rastos regressava à sua actividade. Une-te ao lugar onde estás e a criatura virá até ti, de livre vontade.

Mark recompôs-se para um salto de fé.

- Aquela mulher com quem dormes... Ela quer que eu tome uns comprimidos. Drogar-me, suponho. Bem, não é exactamente droga. Se ao menos fosse assim tão interessante. Não, esta coisa chama-se Olestra. Ovaltine. Uma coisa assim. Supostamente, irá dar-me “lucidez”. Irá fazer-me sentir mais como eu mesmo. Não sei como quem é que me tenho vindo a sentir ultimamente, mas só te digo que seria muito bom sair deste carrossel. - Olhou para Daniel, um lampejo de falsa esperança suplicando para ser confirmado. - O pior é que isto pode ser a Fase Três do que quer que seja que estão a tentar fazer comigo. Primeira, fazer-me despistar. Segunda, tirar qualquer coisa da minha cabeça enquanto estou na mesa de operações. Terceira, darem-me uma qualquer “cura” química que me mude para sempre. Danny, tu conheces-me desde os primeiros tempos. Eu sei que estragámos a amizade que havia entre nós. Matámos o passado e arruinámos 15 anos. Mas tu nunca me mentiste. Pude sempre confiar em ti, excepto nos teus impulsos, mais fortes do que tu. Preciso de conselho sobre isto. Está a dilacerar-me. O que farias, meu? Tomavas estes comprimidos? Para ver o que acontece? O que farias se fosse contigo?

Daniel olhou fixamente para a sua cerveja, ébrio como um adolescente. Uma outra vertigem apoderou-se dele: o que faria no lugar de Mark? Estivera no quarto de hotel de Gerald Weber com Karin, assumindo a sua previsível atitude moralista. Talvez tivesse agido de outra forma se o seu próprio irmão, acabado de sair de uma desintoxicação de meio ano de cocaína em Austin, de repente se recusasse a reconhecê-lo. Daniel Riegel: absurdo de certeza. Ele talvez tomasse esta olanzapina se começasse a achar que o mundo estava estranho, se acordasse um dia farto do rio, cego para as aves, desapaixonado de tudo o que no dia anterior fora vida.

- É possível - murmurou. - Talvez queiras...

Uma pancada na porta salvou-o. Um ritmo alegre, conhecido. Daniel deu um pulo, sentindo-se vagamente criminoso.

- O que é agora? - queixou-se Mark, depois gritou: - Entre. Está sempre aberta. Roubem-me à vontade. Quem é que se importa?

Uma figura tiritante entrou rapidamente: a mulher que Karin apresentara a Daniel na audiência pública. Daniel pôs-se de pé, dando um encontrão à mesa e entornando a cerveja nas calças. Um tique facial proclamou a sua inocência. Também Mark estava de pé, precipitando-se sobre a mulher. Agarrou-a num abraço apertado, que ela, para espanto de Daniel, retribuiu.

- Boneca Barbie! Por onde tem andado? Já começava a ficar assustado.

- Mister Schluter! Estive aqui há quatro dias.

- Ah, sim. É capaz. Mas isso foi há muito tempo. E apenas uma visita curta.

- Deixe-se de lamúrias. Eu até podia mudar-me para cá e ainda assim te queixarias de que eu nunca estava em casa.

Mark lançou um olhar a Daniel, lambendo as penas de canário dos lábios.

- Bom, podíamos fazer essa experiência. Puramente por motivos de investigação na área da saúde. - Ela deixou-o onde estava e avançou para a cozinha, esforçando-se por tirar o casaco enquanto estendia a mão a Daniel.

- Olá, outra vez.

- Ei, ei, esperem um minuto. Estão a dizer-me que vocês os dois se conhecem?

Ela puxou o queixo para dentro e franziu a testa.

- É esse o sentido habitual de “olá, outra vez”.

- O que raio se passa? Toda a gente conhece toda a gente. Quando os mudos colidem!

- Acalma lá o teu coraçãozinho. Há uma explicação para tudo nesta vida, não sabias? - Descreveu a audiência pública, como ficara impressionada com o desempenho de Daniel. A explicação acalmou Mark. Daniel, pelo seu lado, não estava convencido.

- É melhor eu ir andando - disse, agitado. - Não sabia que estavas à espera de visitas.

- A Barbie? A Barbie não é uma visita.

- Não fuja - contrapôs Barbara. - É apenas uma visita social.

Mas algo em Daniel estava já em fuga. Ao chegar à porta, disse a Mark:

- Pergunta-lhe a ela. É uma profissional da saúde.

- Pergunto-lhe o quê? - perguntou Mark.

- Sim - ecoou Barbara. - Pergunta-me o quê?

- Olanzapina.

Mark fez uma careta.

- Ela acha que a decisão é minha e só minha. - Quando Daniel saiu, Mark gritou: - Ei! Aparece mais vezes!

Só depois de chegar ao seu apartamento e verificar as mensagens no atendedor é que Daniel Riegel, perito em seguir trilhos, se recordou de onde escutara Barbara Gillespie pela primeira vez.

Em meados de Fevereiro, as aves regressaram. Sylvie e Gerald Weber viram um documentário sobre os grous, deitados juntos na cama na sua casa coberta de neve em Chickadee Way, Setauket. À medida que a câmara mostrava uma vista panorâmica das margens arenosas do rio Platte, marido e mulher contemplaram a imagem envergonhados.

- Foi ali que foste? - perguntou Sylvie. Não conseguia muito bem dizer nada.

Weber grunhiu. O seu cérebro debatia-se com uma memória bloqueada, um problema de identificação que o incomodava há já oito meses. Contudo, os seus pensamentos empurravam a iminente solução para mais longe, quanto mais ele a perseguia. A sua mulher não interpretou bem a preocupação dele. Levou as costas das mãos ao seu antebraço e acariciou-o. Não faz mal. Nós os dois já estamos para lá da simplicidade. Toda a gente é confusa. Nós também podemos ser.

A mulher frente à câmara, uma nova-iorquina desastradamente urbana que parecia desanimada por tamanha vastidão, relatou a história como se fosse uma notícia. “Foi apelidado de um dos mais impressionantes espectáculos da natureza de todo o mundo e tem como estrelas meio milhão de Crus canadensis. Começam a chegar no Dia de São Valentim e a maioria já terá partido no Dia de São Patrício...”

- Aves espertas - comentou Sylvie. - E grandes cumpridores de dias santos. - O seu marido acenou que sim com a cabeça, observando o ecrã. - Toda a gente é irlandesa, hã. - O marido nada disse. Ela cerrou o maxilar e esfregou-lhe o ombro com mais força.

Por alturas do Dia dos Presidentes, despedindo-se de toda a gente com uma continência, Mark começou a medicação. O dr. Hayes duplicou a dosagem do caso australiano: uns ainda assim cautelosos 10 mg todas as noites.

- Então, deveremos começar a notar algumas melhorias em duas semanas? - sugeriu Karin, como se a concordância por parte do médico fosse legalmente compulsiva.

O dr. Hayes disse-lhe, em latim, que veriam o que veriam.

- Não se esqueça do que falámos. Poderá haver algum retraimento social.

- É impossível retrair - disse ela ao médico, em inglês, - se, para começo, nem sequer lá se está.

Quatro dias depois, às duas da manhã, o telefone arrancou Daniel e Karin de um sono profundo. Nu, Daniel cambaleou até ao aparelho. Murmurou incoerentemente para o bocal. Ou a incoerência foi de Karin, a tentar escutar da cama. Daniel regressou ao quarto aos tropeções, desnorteado.

- É o teu irmão. Quer falar contigo.

Karin apertou os olhos com força e sacudiu a cabeça.

- Ele telefonou para aqui? E falou contigo?

Daniel voltou a meter-se debaixo dos cobertores. Desligava o aquecimento à noite e o seu corpo nu começava a entrar em hipotermia.

- Eu... nós encontrámo-nos. Falámos um com o outro há pouco tempo.

Karin debatia-se com o pesadelo.

- Quando?

- Não importa. Há poucos dias. - Estalou os dedos: o tempo a passar, o telefone à espera, a história demasiado comprida. - Ele quer falar contigo.

- Não importa? - Arrancou da cama o cobertor cinzento dos excedentes do Exército. - É verdade, não é? Tu amava-lo. Refiro-me a paixão. Foi só por ele que tu... Nunca fui mais do que... - Colocou o cobertor em redor dos ombros e virou-lhe as costas, procurando o telefone às escuras.

- Mark? Estás bem?

- Sei o que me aconteceu durante a operação.

- Conta-me. - Ainda grogue de sono.

- Morri. Faleci na mesa de operações e nenhum dos médicos reparou.

A voz emergiu de dentro dela, esganiçada, suplicante:

- Mark?

- Esclarece um monte de coisas que não faziam sentido. Por que motivo tudo parecia tão... distante. Eu resistia à ideia porque, bem, obviamente alguém se haveria de ter dado conta, certo? Se eu não estivesse vivo? Depois ocorreu-me: Como é que eles haveriam de saber? Quero dizer, se ninguém o viu acontecer... Só agora me ocorreu a mim, e eu é que estou metido no meio disto!

Ela falou com ele durante bastante tempo, primeiro argumentativa, depois irracional, tentando apenas confortá-lo. Ele estava em pânico; não sabia como “ficar convenientemente morto”. Disse qualquer coisa acerca de ter estragado a transição - “espalhei o baralho” - e de agora não parecer haver maneira de voltar a colocar as coisas na sequência certa.

- Vou para aí agora mesmo, Mark. Podemos descortinar isso em conjunto.

Ele riu-se, como apenas os mortos conseguem rir.

- Não te preocupes. Eu conservo-me da noite para o dia. Ainda não comecei a decompor-me.

- Tens a certeza? - não parava ela de perguntar. - Tens a certeza de que ficas bem?

- Há coisas piores do que a morte.

Karin temia desligar o telefone.

- Como é que te sentes?

- Bem, na verdade. Melhor do que me sentia quando achava que ainda estava vivo. - No quarto, Daniel segurava um dos livros de neurociência a que Karin renovava constantemente o pedido de empréstimo da biblioteca.

- Encontrei - disse ele. - Síndrome de Cotard.

Ela lançou o cobertor cinzento para cima da cama e esgueirou-se para baixo dele. Já lera sobre a síndrome, passara um ano a explorar cada horror que o cérebro permitia. Outra ilusão de identificação errónea, talvez uma forma extrema de Capgras. Morte não reconhecida: a única explicação possível para se sentir tão distante de toda a gente.

- Como é que ele a desenvolve logo agora? Ao fim de um ano? Logo agora que começou o tratamento.

Daniel apagou a luz e arrastou-se para o lado dela. Colocou-lhe a mão no tronco. Ela encolheu-se.

- Talvez seja da medicação - sugeriu ele. - Talvez seja algum tipo de reacção.

Ela virou-se, ficando de frente para ele na escuridão.

- Oh, meu Deus. Isso é possível? Precisamos de o levar para ser novamente observado. Logo de manhã. - Daniel concordou. Ela estacou, pensativa. - Bolas. Como é que me pude esquecer?

- Do quê? O que se passa? - Tentou massajar-lhe os ombros, mas ela afastou-se.

- O acidente dele. Faz hoje um ano. Esqueci-me por completo. - Deitou-se e fingiu quietude durante cerca de uma hora. Por fim, levantou-se.

- Vou tomar qualquer coisa - murmurou ela.

- Mas já é tão tarde - argumentou ele.

Ela foi à casa de banho e fechou a porta. Ficou lá tanto tempo que ele foi atrás dela. Bateu à porta, mas não teve resposta. Abriu-a. Ela estava sentada na tampa da sanita, dardejando-o com o olhar antes mesmo de ele entrar.

- Com que então, viste-o. Falaste com ele. E nunca me contaste. É ele que tu queres, não é? Eu sou apenas a irmã dele, não é?

O dr. Hayes examinou Mark, espantado mas fascinado. Escutou quando Mark anunciou: “Não estou a dizer que se trate de encobrimento. Estou apenas a referir que ninguém reparou. Com certeza sabe que uma coisa assim pode acontecer. Mas estou a dizer-lhe, doutor, nunca me senti assim quando estava vivo.

Marcou nova tomografia para Mark, para a primeira semana de Março. Mark, estranhamente complacente, saiu do consultório para ver as últimas tecnologias do laboratório.

- Não pode ser da medicação - disse Hayes a Karin. - Não há nada como isto na literatura.

- Literatura - repetiu ela, tudo ficcional. Sentiu o neurologista já a apontar mentalmente este novo pormenor para publicação.

O diagnóstico de síndrome de Cotard não mudou nada de substancial. Agora que Mark começara a tomar a olanzapina, o dr. Hayes insistiu para que continuasse sem falhar qualquer toma. Karin podia garantir que ele mantivera o horário da medicação, exactamente como ele lho dera? Não podia, mas fê-lo. Sentia-se capaz de continuar a supervisionar o irmão ou preferia voltar a levar Mark para o Dedham Clen? Continuar a supervisioná-lo, disse Karin. Não tinha escolha. O seguro não pagaria uma readmissão.

Não se podia dar ao luxo de aumentar o número de horas que passava em Farview. Já não havia horas suficientes na semana para o Refúgio. O que começara como um trabalho inventado, a caridade de um homem que queria mantê-la por perto, transformara-se numa coisa verdadeira. Não era já sequer uma questão de trabalho com significado ou de auto-realização. Por mais absolutamente delirante que pudesse soar dizê-lo em voz alta a alguém, Karin sabia agora: a água queria algo dela.

Desesperada, telefonou a Barbara e pediu-lhe ajuda.

- É apenas por alguns dias, até a medicação começar a fazer efeito e ele se ver livre disto. - Os objectivos do tratamento tinham mudado. Já não precisava que Mark a reconhecesse. Apenas precisava que ele acreditasse que estava vivo.

- Com certeza - concordou Barbara. - Qualquer coisa. Durante o tempo que ele precisar.

A prontidão da auxiliar de saúde atormentou-a.

- É uma altura difícil no Refúgio - explicou Karin. - As coisas estão a começar a complicar-se com...

- Claro, eu entendo - asseverou Barbara. - Alguém devia provavelmente estar lá durante a noite. As noites devem ser difíceis para ele, agora. - A voz dela insinuava prontidão, boa vontade, mesmo àquela distância. Mas Karin recusava-se a pedir tal coisa a Barbara. Se o turno da noite não pudesse ser feito por Karin, também não deveria ser feito por Barbara.

Karin telefonou a Bonnie, a única verdadeira escolha. A chamada passou para o atendedor - Gostava muito de estar aqui para falar consigo - naquele animado tom soprano que parecia a buzina de um Ford Focus com uma dose de antide-pressivos. Karin tentou mais duas vezes, mas não conseguia ganhar coragem para deixar uma mensagem. Importavas-te de passar algumas noites em casa do meu irmão durante algum tempo? Ele acha que está morto. Mesmo para os padrões de Kearney, era algo que deveria ser pedido pessoalmente. Por fim, Karin deslocou-se ao Arch, durante o turno de Bonnie. Karin não se tinha ainda dado ao trabalho de ir ver o monumento. Sessenta e cinco milhões de dólares para transformar os seus bisavós em personagens do Cartoon Channel e para enganar as pessoas a caminho da Califórnia nos seus Lincoln Navigators, levando-as a crer que havia aqui alguma coisa por que valesse a pena parar.

Pagou os oito dólares e vinte e cinco de entrada, passou pelas figuras em tamanho real dos pioneiros e subiu pelas escadas rolantes através da carroça tapada, rodeada por murais gigantes. Avistou Bonnie perto da exposição das casas de torrão, no seu vestido de algodão estampado e touca, a falar com um grupo de alunos numa voz bizarra e antiquada. Ao ver Karin, Bonnie acenou-lhe entusiasticamente com a mão e, na mesma voz arcaica e falsa, gritou: “Hiya!” Enxotou os alunos da primeira classe que tinha agarrados à saia e juntou-se a Karin na exposição dos pawnee, o algodão ao lado do tencel.

- Está convencido de que morreu e ninguém reparou - contou-lhe Karin.

Bonnie franziu o nariz.

- Sabes, uma vez também me senti assim.

- Bon? Achas que podias ficar com ele? Na Homestar, apenas durante algumas noites?

Os olhos da rapariga arregalaram-se como os de um lémure.

- Com o Marker? É claro! - respondeu ela como se a pergunta só por si fosse destrambelhada. E mais uma vez por último, Karin viu como as coisas eram.

Providências tomadas; as mulheres assumiram cada qual um turno com Mark indiferente a todas as disposições tomadas em redor de si.

- Como queiras - disse Mark a Karin quando ela lhe descreveu o que combinara. - Divirtam-se. Mal não me fará, já cá não estou.

Contudo, juntou Karin e Bonnie na sala de estar da Homestar na noite da primeira segunda-feira de Março para verem o programa Crime Sol vers.

- Recebi uma chamada de aviso hoje - explicou ele, recusando-se a dizer mais o que quer que fosse. Deslocava-se metodicamente, oferecendo bebidas quentes e aperitivos, assegurando-se de que toda a gente ia à casa de banho antes de o programa começar. Karin observava-o, sentindo a loucura de toda a esperança.

Depois, Tracey, a apresentadora do programa, anunciou: “Houve um desenvolvimento na história que aqui trouxemos há algumas semanas sobre o homem de Farview que...”

No ecrã, um agricultor de Elm Creek apontou para um buraco na extremidade do seu relvado. Cinco dias antes, a sua mulher descobrira uma sempre-noiva a crescer no meio do vaso que o marido lhe arranjara com um pneu velho que tirara do rio em Agosto, quando as águas baixam bastante. “A minha mulher e eu somos admiradores do seu programa há muito tempo e quando me pus a olhar para o pneu a história do seu programa veio-me à memória e ocorreu-me que...”

O sargento da polícia Ron Fagan explicou que os pneus tinham sido confiscados e examinados pelos peritos forenses com base nos vestígios encontrados no local do crime. “Existe uma correspondência”, anunciou ele ao mundo, um pouco desanimado por estar a descrever pesquisas em bases de dados em vez de perseguições a alta velocidade. Relatou ainda que a pista fornecida pelo pneu conduzira a um homem local que fora levado para interrogatório. O homem trabalhava na fábrica de embalamento de Lexington e chamava-se Duane Cain.

Karin gritou para o televisor:

- Eu sabia. Aquela escumalha.

Bonnie, do outro lado, abanou a cabeça.

- Não pode ser. Eles juraram-me que foi outra pessoa. Mark estava imóvel, rígido, já um cadáver.

- Fizeram-me despistar. Abandonaram-me como morto. Pelo menos sei finalmente que o estou.

Karin vestiu o casaco, remexendo na mala em busca das chaves.

- Eu já lhe dou o interrogatório. - Apressou-se desajeitadamente para a porta. Com a pressa, abriu-a junto à cara e feriu o lábio.

Mark levantou-se do sofá.

- Eu vou contigo.

- Não! - Virou-se ela, furiosa, assustando-se até a si mesma. - Não. Deixa-me ser eu a falar com ele! - Blackie Dois rosnou. Mark recuou, as mãos erguidas. Ela saiu então para a escuridão, avançando às cegas para o carro.

Foi à esquadra. Duane Cain fora libertado. O sargento Fagan não estava de serviço, e ninguém lhe dava pormenores sobre o interrogatório. A noite estava tão fria e o mundo tão falho de oxigénio como um meteoro. O seu hálito saía gelado das narinas e banhava-lhe as mãos com um fumo pedregoso. Bateu com os cotovelos contra a caixa torácica para manter os pulmões em funcionamento. Voltou ao seu Corolla e atravessou a cidade, chegando ao apartamento de Cain no espaço de minutos. Ele abriu a porta às pancadas insistentes dela numa sweat-shirt encarnada que dizia: O que faria Belzebu? Estava à espera de outra pessoa e encolheu-se ao dar de caras com ela.

- Presumo que tenhas visto aquele programa?

Ela avançou para dentro de casa e encostou-o a uma parede. Ele não deu luta, apenas a agarrou pelos punhos.

- Eles deixaram-me vir embora. Eu não fiz nada.

- A porcaria das marcas dos teus pneus mostram que estavas mesmo à frente dele. - Ela debateu-se para lhe dar um murro ao mesmo tempo que ele a desarmava com uma espécie de abraço.

- Queres que te conte o que aconteceu, ou não?

Recusou-se a dizer o que quer que fosse até que ela parasse de o tentar agredir. Sentou-a numa cadeira e tentou dar-lhe qualquer coisa para beber. Ele equilibrava-se num banco alto a uma distância de segurança, brandindo a lista telefónica como se fosse um escudo.

- Não mentimos realmente, per se. Tecnicamente falando... - Ela ameaçou matá-lo, ou pior. Começou de novo. - Tinhas razão em relação aos jogos. Estávamos a fazer uma corrida. Mas não era o que tu pensas. Estávamos no Bullet. O Tommy tinha comprado recentemente um conjunto de walkie-talkies. Saímos do bar e começámos a brincar com aquilo. Eu e o Rupp na carrinha do Tommy, o Mark na dele. Apenas a brincar à apanhada. A dar uma volta como sempre fizemos, testando o alcance dos intercomunicadores, perseguindo-nos uns aos outros. Íamos dizendo “está mais quente”, “agora frio”, perdendo o sinal, apanhando-o de novo. Vínhamos da cidade, em direcção a Leste em North Line. Achámos que o tínhamos apanhado. O Mark estava às risadinhas para o intercomunicador, dizendo qualquer coisa sobre iniciar uma acção evasiva. Depois o sinal perdeu-se. Tirou o dedo do botão de transmissão e nunca mais o voltámos a ouvir. Não fazíamos ideia do que ele estava a aprontar. Tommy acelerou, achando que não devíamos estar muito longe. Estava bastante escuro. — Tapou os olhos com uma mão, escudando-se do brilho intenso da memória. — Foi então que o vimos. Estava capotado na berma do lado direito, a sul da estrada. O Tommy praguejou e levou o pé ao travão com toda a força. A carrinha guinou de traseira e desviou-se para a linha central. Foi isso que tu viste: as marcas dos nossos pneus na faixa dele. Só que chegámos lá depois dele. Ela estava sentada hirta, a coluna um espigão.

- E o que é que fizeram?

- Como assim?

- Ele está capotado naquela vala. Tu e o teu amigo estão mesmo ali...

- Estás a gozar? Ele tinha duas toneladas de metal em cima dele. Cada segundo contava. Fizemos o que tínhamos de fazer. Demos meia volta, acelerámos de volta à cidade e participámos o acidente.

- Nenhum de vocês tem um telemóvel? Na brincadeira com walkie-talkies ridículos e nada de telemóvel?

- Participámos o acidente - voltou a repetir. - No espaço de minutos.

- Anonimamente? E mais tarde nunca esclareceram a questão. Nunca contaram a história. Mudaram os pneus e atiraram os culpados ao rio.

- Escuta. Não sabes como as coisas são. - A voz dele subiu de tom. - Aqueles tipos da Polícia prendem-nos primeiro e fazem perguntas depois. Eles perseguem tipos como eu e o Tommy. Nós ameaçamo-los.

- Vocês, ameaçam? E ele foi nessa. O teu amigo Rupp. O especialista.

- Tu não acreditas em mim, nem mesmo agora. Achas que a Polícia ia acreditar em nós, na noite do acidente?

- Porque é que não ficaste detido na esquadra?

- Interrogaram o Tommy em Riley, e ele contou exactamente a mesma história. O que importa é que fizemos com que os paramédicos chegassem o mais depressa possível. Não tínhamos nada a acrescentar aos factos. Não temos a mínima ideia do que lhe aconteceu. Não teria feito qualquer diferença termos revelado a verdade.

- Talvez fizesse diferença para o Mark.

Duane contraiu o rosto.

- Não teria mudado nada.

A necessidade que sentia de acreditar nele abismava-a. Pôs-se de pé, reordenando coisas: as marcas dos pneus, a ordem destas, a sua memória. O tempo passou e repassou, desacelerou, travou e meteu marcha-atrás.

- O terceiro carro - referiu ela.

- Não sei - disse Cain. - Há um ano que penso nisso.

- O terceiro carro - repetiu ela. - O que saiu da estrada, atrás da carrinha do meu irmão. - Atravessou a sala na direcção dele, preparada para o agredir outra vez. - Viram algum carro na vossa direcção quando chegaram ao local? Qualquer carro seguindo para Oeste, regressando à cidade? Responde!

- Sim. Nós íamos atentos. Estávamos à espera de que ele passasse por nós como uma bala. Foi então que vimos um Ford Taurus branco com uma matrícula que não era do Nebrasca.

- De que estado era?

- O Rupp diz que era do Texas. Eu não consegui ver. íamos com alguma velocidade, como já te disse.

- A que velocidade seguia este Ford?

- É curioso que perguntes. Ficámos ambos com a impressão de que ia a arrastar-se. - A recordação fê-lo dar um pulo. - Meu Deus. Tens razão. Este outro carro... Este Ford surgiu mesmo antes de termos chegado lá, logo depois de ele... e os ocupantes... Estás a dizer que eles... O quê ao certo é que estás a dizer?

Ela não sabia o que estava a dizer. Naquela altura ou em qualquer outra.

- Também não pararam.

Cain fechou os olhos, segurou o pescoço numa das palmas das mãos e inclinou a cabeça para trás.

- Não teria feito qualquer diferença.

- Talvez tivesse - contrapôs Karin. Deus conduziu-me até si. Chegou a casa extremamente tarde. Daniel estava ainda acordado à espera dela, fora de si.

- Achei que te tinha acontecido alguma coisa. Pensei... Podias estar em qualquer lado. Podias estar ferida.

Podia ter estado com o outro.

- Desculpa - pediu ela. - Devia ter telefonado. - Para o acalmar, contou-lhe tudo.

Ele escutou, mas não foi de grande ajuda.

- Quem é que participou o acidente? O Rupp e o Cain? Não foi o outro carro? Achei que fora este anjo...?

- Talvez tenham sido ambos.

- Mas a Polícia não tinha dito que...

- Não sei, Daniel.

- Mas se o outro carro não parou, porquê o bilhete? Para ficarem com os créditos por abandonarem o local...?

- Tenho de dormir - explicou Karin.

Era demasiado tarde para telefonar a Mark e a Bonnie. De qualquer forma, não saberia o que dizer, o que o irmão conseguiria digerir.

Acordou na manhã seguinte com o telefone a tocar. O quarto resplandecia de luz e Daniel já tinha saído para o Refúgio. Levantou-se a custo, ainda ensonada.

- Já vou. Só um minuto, por favor. Andas a controlar-me ou coisa que o valha?

Contudo, quando levantou o auscultador a voz do outro lado da linha era aguda e espectral.

- Karin? É a Bonnie. Ele está a ter uma espécie de ataque e não consigo fazê-lo parar.

Tinha de ser o hospital, outra vez. Um círculo com o tamanho de um ano que o trazia de volta a onde começara, por esta altura em Março passado. Uma espécie migratória que não sabe outra coisa. Mark Schluter de volta ao Good Samaritan, não na mesma enfermaria, mas lá bem perto. Preso à cama, desintoxicado, 450 mg de olan-zapina retirados do seu corpo.

Um homem morto tentou matar-se: a única forma de voltar a encaixar as coisas. Distónico quando os paramédicos chegaram. Entubação e lavagem gástrica, levado para o hospital para receber fluidos por via intravenosa e monitorização cardiovascular, observado por pessoal hospitalar que se assegurará de que ele não tentará uma segunda vez.

Acorda deste segundo coma, uma mera sombra do primeiro. Consciente outra vez, recusa todas as tentativas de comunicar excepto para dizer: “Quero falar com o Psi. Só falarei com o Psi.”

O dr. Hayes telefona a Weber com as novidades. Weber recebe a notícia como um veredicto, o fruto da sua longa e egoísta ambição. Telefona a Mark de imediato, mas este recusa-se a falar. “Nada de telefones”, diz à enfermeira de serviço. “Todas as linhas telefónicas estão sob escuta. Cada cabo e satélite. Ele tem de vir cá, em pessoa.”

Weber faz várias outras tentativas para entrar em contacto com ele, todas sem resultado. Mark está fora de perigo, pelo menos por agora. Weber já se imiscuiu no caso para além dos limites da correcção profissional. A última viagem quase o arruinou. Mais envolvimento e será o seu fim.

Mas algo no neurocientista percebe agora: a responsabilidade não tem limites. Os casos de que nos apropriamos são nossos. Se não fizer nada, se recusar o único pedido do rapaz, se abandonar agora o que remendou tão mal, então é seguramente aquilo de que as suas vozes mais negras já o acusam. Tentou suicidar-se por minha causa. Não tem outra escolha a não ser regressar. O mesmo longo círculo, de novo de volta. O Director de Viagem obriga-o.

Não existe forma de o contar à mulher. Contar a Sylvie. Depois do que ele já lhe disse, qualquer razão parecerá a pior das auto-ilusões. Ela, que não estenderia uma mão se Gerald Weber, autor celebridade, santo maculado do discernimento neural, fosse queimado em efígie por falsa empatia: não havia forma possível de lho explicar.

Prepara-se para a reacção dela, mas nada o prepararia para a forma como o seu anúncio a abala. Ela recebe a notícia como uma Cassandra entorpecida que já adivinha tudo o que ele ainda não admitiu.

- Que podes tu fazer por ele? Alguma coisa que os médicos lá não possam fazer? - Ela fizera-lhe a mesma pergunta, um ano antes. Devia ter-lhe dado ouvidos nessa altura. Devia dar-lhe ouvidos, agora Abana a cabeça, a sua boca uma ranhura de uma caixa de correio.

- Nada que me ocorra.

- Não fizeste já o suficiente?

- O problema é esse. A olanzapina foi ideia minha.

Ela senta-se com força à mesa do pequeno-almoço. Mas ainda assim consegue controlar-se, como inevitavelmente seria de esperar.

- Não foi ideia tua que ele tomasse a dosagem de duas semanas de uma só vez.

- Pois não. Tens razão. Essa não foi minha.

- Não me faças isto, Gerald. O que estás a provar, afinal? És um homem bom. Tão bom quanto as tuas palavras. Porque te recusas a acreditar nisso? Porque não te limitas a...?

Ela levanta-se e começa a andar em círculo. Espera que seja ele a abordar o assunto. Estende-lhe esse lúgubre respeito, completamente imerecido. Partirá do pressuposto de que a mulher não é nada, é irrelevante, até que ele lhe diga o contrário. Acreditará nele, mesmo sem confiar. Ele tem de dizer qualquer coisa. Porém, não consegue honrar o facto, mesmo ignorando-o.

Tudo se resume à crença. Crença num tecido leve e fino demasiado efémero para enganar quem quer que seja. Esse será o santo graal do estudo do cérebro: ver de que forma dezenas de milhares de milhões de portas lógicas químicas, todas faiscando e amortecendo-se umas às outras, conseguem de alguma maneira criar fé nos seus próprios círculos espectrais.

- Ele está em agonia. Quer falar comigo. Precisa de alguma coisa de mim.

- E tu? Do que precisas? - Os olhos dela examinam-no, amargamente. Tem um ar debilitado e pálido, sofrendo da sua própria over-dose.

Ele responde, quase:

- Não me custa nada. Umas milhas acumuladas, um par de dias e algumas centenas retiradas da conta destinada à investigação. - Ela abana a cabeça, o mais perto que consegue ficar da irrisão.

- Desculpa - diz ele. - Preciso de fazer isto. Não sou um explorador. Não sou um oportunista.

Ela tem-se mantido a seu lado, encorajadora, manteve uma compostura laboriosa durante estes últimos meses, ao longo do seu contínuo acto de dissolvência. Cada queda na autoconfiança dele tem-na magoado.

- Não - contrapõe ela, esforçando-se por manter a compostura. Avança para ele; as suas mãos esgaravatam na camisa dele. - Não gosto disto, Marido. Isto está errado. Isto está muito confuso.

- Não te preocupes - diz ele. Assim que as palavras lhe saem da boca, sente a ridicularia do que acabou de dizer. O eu é uma casa em chamas; sai enquanto podes. Vê a sua mulher, vê-a verdadeiramente, pela primeira vez desde que deixou de acreditar no seu trabalho. Vê as pregas sob os olhos dela, o definhamento do seu lábio superior - quando é que ela envelheceu? Vê no olhar vacilante dela o quanto a assusta. Ela não consegue distingui-lo. Perdeu-o. - Não te preocupes.

Ela esquiva-se às palavras dele, desgostosa.

- Do que raio precisas? Precisas do Famoso Gerald? O Famoso Gerald pode ir enforcar-se. Precisas que as pessoas digam que tu...? - Morde o lábio inferior e desvia os olhos. Quando volta a falar, parece que está a ler as notícias do dia. - E vais ver as vistas enquanto lá estiveres? - O rosto dela está lívido, mas a voz é casual. - Alguns velhos amigos?

- Não sei. É uma cidade pequena. - E depois, a dívida de trinta anos corrige-se. - Não tenho a certeza. É provável.

Ela afasta-se e caminha na direcção do frigorífico. O seu movimento prático e não emotivo destrói-o. Abre o congelador e retira duas postas de tilápia para descongelarem para o jantar. Leva o peixe até ao lava-louças, abre a torneira e deita-lhe água por cima.

- Gerald? - Futilmente curiosa, tentando a aceitação e falhando por pouco. - Podes apenas dizer-me porquê?

Ele merece a fúria dela, até a deseja. Mas não esta calma aceitação. Gerald: diz-me apenas porquê. Para que penses bem de mim outra vez.

- Não tenho a certeza - diz-lhe ele. Repetindo-o mentalmente até se tornar verdade.

Mark não deixou qualquer bilhete antes de engolir os antipsicóticos. Como poderia ele, já morto? Mas até essa falta de mensagem acusa Karin. Durante todo o ano, Mark foi-lhe pedindo ajuda e de cada vez ela desapontou-o. Desiludiu-o de todas as formas: não conseguiu confirmar o passado dele, foi incapaz de lhe permitir o presente e não conseguiu garantir-lhe o futuro.

A antiga demência Schluter instala-se nela, a herança que nunca foi capaz de descartar. A sua primeira identidade: culpada e insuficiente, seja o que mais for que consiga. Visita Mark no hospital. Leva até Daniel consigo, o mais antigo amigo não imaginário de Mark. Porém, Mark recusa-se a falar com qualquer um deles.

- Importam-se de me deixar respeitosamente aqui a apodrecer em paz? - É o Psi ou mais ninguém.

Ela entrega-o novamente aos profissionais de saúde, aos correctivos químicos que lhe entram nos braços flácidos. Desce uns degraus na sua própria Escala de Clasgow. Não consegue concentrar-se em nada. A sua mente divaga horas seguidas. Por fim percebe por que motivo o irmão deixou de a reconhecer. Não havia nada para reconhecer. Ela deformou-se para além de qualquer possível reconhecimento. Um pequeno logro assente sobre outro até que nem mesmo ela consegue dizer em que posição se encontra ou para quem trabalha. Coisas sobre as quais falou, negou e mentiu, coisas que escondeu até de si própria. Todas as coisas para todas as pessoas. Fazendo o papel de uma conservacionista e de uma urbanizadora ao mesmo tempo. Refazendo-se de cada vez. Imaginação, até a memória, demasiado preparadas para a acomodar, seja ela quem for. Qualquer coisa por uma festa na cabeça. Uma festa de qualquer pessoa.

Ela não é nada. Ninguém. Pior do que ninguém. Vazia no âmago. Tem de mudar a sua vida. Da confusão do seu revoltante ninho, salvar alguma coisa. Qualquer coisa. A coisa mais ínfima, rastejante e castanha: não faz diferença, desde que seja livre e selvagem. Talvez seja já tarde de mais para ter o seu irmão de volta. Mas provavelmente conseguirá ainda salvar a irmã do seu irmão.

Enterra-se em trabalho para o Refúgio, pesquisando os seus folhetos. Algo que faça despertar os sonâmbulos e torne o mundo estranho e real novamente. A mais pequena dose de ciências de vida, uns quantos números numa tabela e começa a ver: pessoas, desesperadas por consistência, por firmeza, têm de matar tudo o que os excede. Qualquer coisa maior ou mais conexa ou, na sua sombria existência, um pouco mais livre. Ninguém consegue suportar a imensidão do mundo lá fora, mesmo enquanto a dizimamos. Ela tem apenas de olhar e os factos emergem. Lê e ainda assim não consegue acreditar: doze milhões ou mais de espécies, menos de um décimo delas contadas. E metade extinguir-se-á durante a sua vida.

Aturdida pelos números, os seus sentidos ganham estranhamente vida. O ar cheira a lavanda e até os castanhos de final de Inverno parecem mais vívidos do que desde os seus 16 anos. Tem fome a toda a hora e a futilidade do seu trabalho redobra-lhe a energia. As suas ligações aceleram-se. Assemelha-se àquele caso no último livro do dr. Weber, a mulher com demência fronto-temporal que de repente começara a produzir os mais sumptuosos quadros. Uma espécie de compensação: quando uma parte do cérebro está sobrecarregada, outra assume o controlo.

A teia que ela vislumbra é tão intrincada, tão vasta, que os humanos deveriam há muito ter emurchecido e morrido de vergonha. A única coisa aceitável para querer é o que Mark queria: não ser, rastejar até ao fundo do mais profundo poço e fossilizar numa rocha que apenas a água consiga dissolver. Apenas a água como solvente contra todos os derramamentos tóxicos, apenas água para diluir o veneno da personalidade. Tudo o que ela consegue fazer é trabalhar, tentar devolver o rio àqueles a quem o roubámos. Tudo o que é humano e pessoal a horroriza agora, tudo excepto compor estes condenados folhetos.

A água quer qualquer coisa dela. Algo que apenas a consciência pode providenciar. Ela não é nada, tão tóxica quanto qualquer coisa com um ego. Um embuste; um fingimento. Algo que não vale a pena reconhecer. Mas ainda assim, este rio precisa dela, a sua mente líquida, a sua forma de sobreviver...

O mundo enche-se de luxos a que ela não se pode dar. Dormir é um deles. Quando sucumbe ao sono, ela e Daniel ainda partilham uma cama. Mas já não se tocam, excepto por acidente. Ele agora medita mais, por vezes uma hora seguida, apenas para escapar a todos os danos que ela lhe provocou. Ela agrediu-o com traições; ele absorve as agressões tal como absorve todos os insultos da raça. Ele agora parece-lhe um homem capaz de absorver o que quer que seja, alguém que, de todas as pessoas que ela conhece, colocou de lado a vaidade e olhou para lá de si mesmo. E é com isto que ela se tem sentido tão ressentida em relação a ele. De todos os homens com quem alguma vez esteve, ele parece agora o único suficientemente fluido para ser um pai decente, para ensinar a uma criança tudo o que há fora de nós e que tem de ser reconhecido. Mas ele mais depressa morreria do que traria outro ser humano alienado a este mundo. Outro como ela.

Ele deveria tê-la posto na rua há meses. Não há razão para não o ter feito ainda. Talvez apenas amor residual pelo seu irmão. Ou apenas o cuidado com que trata qualquer criatura. Ela devia parecer-lhe hedionda, agarrando-se, uma pequena e quebradiça concha de necessidade. Com certeza que não a quererá, e nunca na verdade a quis. Contudo, continua, teimosa embora silenciosamente, a agir de forma decente com ela em todas as coisas. O seu irmão quase morreu e só este homem sabe o que isso significa. Apenas este homem pode ajudá-la a lidar com isso. Deitada na cama, a sua coluna a vinte centímetros da dele, ansiosa por esticar uma mão cega para trás e tocar nele. Para provar que ainda ali está.

No terceiro dia depois da tentativa de Mark, o Conselho de Desenvolvimento dá indicações da sua disponibilidade, em princípio, para conceder à Aldeia Natural do Central Platte o direito de adquirir quotas hídricas. Ela temera a decisão durante semanas, mas nunca acreditara que chegasse. O conjunto dos grupos conservacionistas do Platte responde numa desordem entorpecida.

Perderam a corrida a pé com o consórcio de urbanizadores e, numa série de reuniões apressadas, a aliança começa a desmembrar-se.

Se a decisão desmoraliza Karin, arrasa Daniel. Não diz nada sobre a decisão a não ser máximas estóicas e breves. Declara o Conselho abaixo de condenação. Algo emurchece nele, uma qualquer prontidão visceral para continuar a combater uma espécie que não será reabilitada e é impossível de vencer. Não fala com ela sobre isso e ela perdeu o direito de o pressionar.

Ela precisa de ajustar as contas por ele. Consertar ao menos uma coisa, por uma pessoa real, em todo o colapso dos últimos dias. Resgatar a confiança perdida dele e devolver alguma coisa ao homem que ama o seu irmão tanto quanto ela ama.

Karin tem uma coisa que lhe pode dar, uma coisa apenas. Aquilo que a água quer. Quase se convence de que trabalhou para isto, todos estes meses, apenas para poder dar-lha agora. Ela sabe o que o presente lhe custará; ele saberá quem ela é e lavará as mãos dela. O outro homem também. Perdê-los-á a ambos, tudo o que jurou falsamente alcançar. Mas pode dar a Daniel algo que vale bem mais do que ela mesma.

Passa o dia a preparar-lhe um festim vegetariano: seitan com bró-culos e amêndoa, skordalia e chutney de coentros. Até arroz doce com tahini, para o homem que considera a sobremesa um pecado. Desliza pela cozinha, mexendo e evolvendo, sentindo-se quase estável. Abençoada distracção, e o maior esforço que despendeu com ele desde que se mudara para ali. Não fez nada por ele, ao passo que ele a apoiou ao longo de todas as crises. Permitiu que a vida deles fosse tomada pela erva daninha que era a sua personalidade. Será assim tão impossível ser outra pessoa, fazer-lhe uma refeição como forma de agradecimento ao menos uma vez? Ainda que seja a última.

Daniel chega a casa envolto numa nuvem de distracção. Tenta perceber a que se deve o festim.

- O que é isto tudo? Alguma ocasião especial? Magoa-a, mas é preciso que assim seja.

- Há sempre uma ocasião.

- É verdade. - O sorriso dele é crucificado. Senta-se e estica as mãos, aturdido com toda aquela comida. Nem sequer despiu o casaco. - Então, é a minha festa de separação.

Ela pára de lamber arroz do dedo.

- O que queres dizer com isso?

Ele está calmo, a cabeça pendida.

- Larguei o emprego.

Karin segura-se à bancada, abanando a cabeça. Senta-se no banco em frente ao dele.

- O que queres dizer com isso? O que estás a dizer? - Ele não pode parar o seu trabalho. Impossível: como um colibri em greve de fome.

Ele mostra-se expansivo, quase divertido.

- Separei-me do Refúgio. Um cisma ideológico. Parecem ter decidido que esta coisa do parque temático dos grous afinal até nem é assim tão má. Que é uma coisa com a qual se pode trabalhar. O compromisso é a melhor parte da valentia. Andam a fazer circular um memorando a dizer que, gerida correctamente, a Aldeia poderá até ser benéfica para as aves!

Algo em que ela mesma acreditava, muito depois da audiência pública.

- Oh, Daniel. Não. Não podes permitir que isto aconteça.

Ele arqueia uma sobrancelha para ela.

- Não te preocupes. Isto não te atingirá. Já falei disso com eles. Podes continuar a trabalhar lá. Eles não te censurarão por seres minha... por tu e eu...

- Daniel. - Ela não consegue compreendê-lo.

Perderam. É isso que ele está a dizer. O combate terminou. O rio será alvo de urbanização; desaparecerá mais área livre. Ele está a dizer... mas é impossível, o que ele está a dizer. Desistir do Refúgio. Saltar para o nada.

- Não podes desistir. Não podes permitir que eles cedam a isto.

- O que eu posso e não posso deixar acontecer parece não ser a questão. - Ela consegue fazer com que seja. Consegue colocá-lo de volta na batalha. Uma palavra sua e o Refúgio rescindirá qualquer acordo que tenham decidido fazer. No entanto, essa palavra mata qualquer amor que ele alguma vez tenha sentido por ela. Ele vê-la-á em plena luz, o mais hedionda que consegue ser. Nem uma palavra e talvez ela até o mantenha, assim derrotado, necessitando dela. Não teria mais nada a não ser a atenção dela.

Pensa, por um instante, que faz isto pelas aves. Pelo rio. Depois diz a si mesma que é para salvar este homem íntegro. Porém, não salvará ninguém, nenhum ser vivo. Pouco ou nada desacelerará os humanos, que não podem ser impedidos. Decide fazer uma escolha egoísta, tão egoísta quanto qualquer escolha humana. Ele odiá-la-á, para sempre. Mas por fim saberá o que ela pode dar.

- É pior do que pensas - revela ela. - Aquela gente da Aldeia está a planear uma Fase Dois. Sei como é que o consórcio planeia ganhar dinheiro com as cabanas nas épocas baixas. Vão chamar-lhe... Museu das Pradarias Vivas.

Ela descreve-o em toda a sua banalidade.

- Um jardim zoológico? - pergunta ele. Não consegue conceber tal coisa. - Querem construir um zoo?

- Interior e exterior. Mas ainda há pior. Descobri porque precisam de quotas extra do rio. Há também uma Fase Três. Um parque aquático. Escorregas. Fontes e esculturas hidráulicas, tudo com temas da natureza. Uma enorme piscina com ondas.

- Um parque aquático? - Esfrega a cabeça, desde a testa ao cocuruto. Puxa por uma orelha, a boca contorcida. Solta umas risadinhas. - Um parque temático no Grande Deserto Americano.

- Tens de contar isto ao Refúgio. Eles têm de travar isto.

Ele não responde, sentando-se apenas sobre o calcanhar e observando todos os pratos elaborados que ela preparou. É agora. Agora pagará, por toda esta salvação.

- Como sabes isto tudo?

- Vi as plantas.

O queixo dele sobe e desce e sobe novamente. Uma espécie de aceno pungente.

- E ias contar-mo... quando?

- Acabei de to contar - diz ela, com as palmas das mãos voltadas para cima, apontando para a comida, a sua prova. Está pronta para lhe contar todos os cruéis pormenores, mas ele não precisa deles. Percebe tudo. Percebe agora o que ela tem feito, todas estas semanas, melhor até do que ela. Ela fica a ver-se a si mesma através dos olhos dele. Quase um alívio, o cansaço dele. Já devia saber de tudo há bastante tempo. Prepara-se para a repugnância, para a recriminação - qualquer coisa para se sentir de novo imaculada. As palavras dele arruínam a preparação dela.

- Tens andado a espiar-nos. Tu e aquela pessoa amiga? A trocar segredos. Uma espécie de agente dupla...

- Ele não é... Muito bem. Sou uma prostituta. Podes dizer o que quiseres. Tens razão em relação a mim. Uma cabra mentirosa e desonesta. Mas tens de acreditar numa coisa: Robert Karsh não é o que eu quero da vida, Daniel. Robert Karsh pode ir...

Ele olha para Karin como se ela estivesse de gatas e tivesse começado a ladrar. O que ela e outros homens fizeram é insignificante. Apenas o rio interessa. Olha para ela, aterrado. É incapaz de conceber, quanto mais enumerar, todas as formas por meio das quais ela traiu o rio.

- Estou-me pouco borrifando para Robert Karsh. Podes fazer o que quiseres com ele.

Ela estica as palmas das mãos na direcção dele, apoiando-o.

- Espera. De quem é que estás a falar? - Se não de Karsh. - A quem te referias com “pessoa amiga”?

- Sabes bem a quem me refiro. - Daniel perdeu toda a paciência. - A pessoa que arranjaram como investigador privado contratado. A tua amiga Barbara.

Os olhos dela arregalam-se. Ele deve ter alguma lesão, alguma doença pior que a de Mark. Pequenas mãos frias acariciam-na.

- Daniel? - Sairá de casa a correr para pedir ajuda.

- A sondar-me depois da audiência, a tentar perceber o quanto é que eu teria entendido.

- Que investigadora? Ela é a antiga auxiliar de enfermagem do Mark. Ela trabalha no centro de reabilitação...

- Por quanto? Três dólares por hora? Uma mulher que fala daquela forma? Uma mulher que age daquela maneira? Metes-me nojo - diz ele, humano por fim. Uma bifurcação de pânicos. O que é Barbara para ele? Imagina uma qualquer explicação secreta, algo que a coloca de fora, de parte. Mas o outro medo é ainda maior. O rosto contorcido de raiva, Karin recua em direcção à porta do apartamento.

Ele apercebe-se do desnorteamento dela e vacila.

- Não me digas que não... Quanto é que achas que consegues ocultar?

- Não estou a ocultar...

- Ela telefonou-me, Karin. A voz dela soou-me conhecida, da primeira vez que nos cruzámos com ela. Falei com ela ao telefone há 14 meses. Ela telefonou-me, mesmo por volta da altura em que os urbanizadores começaram a planear esta coisa. Alegou que estava a fazer uma reportagem. Fez-me um monte de perguntas sobre o Refúgio, o Platte, o trabalho de renovação. E eu, feito idiota, contei-lhe tudo. Quando as pessoas querem falar sobre aquelas aves, eu confio nelas. Ainda mais idiota. - Olha fixamente para lá dela, imóvel, como uma pequena criatura a morrer numa tempestade de neve.

- Espera lá. Isso é uma loucura. Estás a dizer que ela é o quê? Uma espia industrial? Que o trabalho dela em Dedham Glen é uma espécie de disfarce?

- Espia? Tu lá saberias, não? Estou a dizer que falei com ela. Respondi às perguntas dela. Lembro-me da voz dela.

Identificando aves pelo seu canto.

- Bom, então não te deves estar a recordar bem. Confia em mim nisso.

- A sério? Confiar em ti? Nisto? E em que mais devo confiar em ti? Tens andado a trair-me, a rir de mim com o teu antigo amante há meses...

Ela gira no banco e coloca as mãos nas orelhas. A bochecha direita dele contrai-se. Semicerra os olhos e abana a cabeça.

- Vais negar isto, depois de tudo? O nome dela nunca surgiu em todas as conversações secretas que andavas a ter com ele? Quando te encontravas com ele e lhe contavas tudo sobre nós? Sobre o Refúgio?

Ela geme e começa a desmoronar-se. Daniel põe-se de pé e caminha para o outro extremo da divisão, o mais longe possível dela, segurando o cotovelo e beliscando a boca, esperando que ela termine. Karin inspira, um pouco de cada vez, tentando permanecer calma, fazendo de conta que é ele.

- Acho que é melhor ir-me embora.

- Talvez tenhas razão - aquiesce ele e sai porta fora.

Ela vagueia pelo apartamento durante bastante tempo. Por fim, deixa-se arrastar até ao quarto e enfia as suas roupas num saco. Ele regressará e impedi-la-á, escutará a sua explicação. Porém, ela agora já desapareceu, tal como o seu irmão. Dirige-se à cozinha, embala a refeição em embalagens recicladas de rebentos de soja e mete-as no frigorífico. Senta-se desorientada na tampa da sanita, tentando ler um dos livros dele sobre meditação, um curso rápido sobre transcendência. Vai por fim sentar-se junto à porta de entrada em cima dos sacos que encheu com as suas coisas. Ele está lá fora algures, seguindo rastos, observando o edifício, à espera que ela saia.

Ao faltarem vinte minutos para a meia-noite, telefona por fim à amiga do irmão.

- Bonnie? Desculpa acordar-te. Posso ir dormir a tua casa? Só por uma noite ou duas. Não estou em parte nenhuma. Não sou nada.

Gerald Weber pára junto a uma caixa automática no seu terceiro carro alugado no Nebrasca. As suas mãos tremem, levantando mais dinheiro do que pretendia. Do aeroporto segue por instinto de volta ao hotel no qual já se tornou cliente habitual. Bem-Vindos Amantes dos Grous. Só que desta vez o vestíbulo está apinhado de pessoas de idade em roupas tricotadas, segurando guias da natureza e binóculos. Weber trouxe malas a mais, três vezes o que emalaria numa viagem profissional. Trouxe até o telemóvel e o gravador digital, um hábito profissional que deveria ter morrido há vários meses, em conjunto com as suas pretensões profissionais. Na sua bolsa de viagem, para além dos pensos rápidos e do pequeno estojo desdobrável de costura, colocou dez substâncias diferentes, desde ginkgo a dimetilaminoetanol.

Certa vez estudara um homem em tudo saudável que acreditava que as histórias se tornavam verdadeiras. As pessoas criavam o mundo por meio da palavra dita. Uma única frase desencadeava acontecimentos tão verdadeiros quanto a experiência. Viagem, complicação, crise e redenção: bastava verbalizar as palavras e estas tomavam forma.

Durante décadas, esse caso assombrara tudo aquilo sobre o que Weber escrevia. Aquele delírio em particular - as histórias tornavam-se verdadeiras - parecia o bacilo da cura. Contávamo-nos a nós mesmos para trás para formar um diagnóstico e para adiante em direcção a um tratamento. A história era a tempestade no âmago do córtex. E não havia melhor forma de chegar a essa verdade ficcional do que através das assombradas parábolas neurológicas de Broca ou Luria - histórias de como cérebros danificados poderiam narrar o desastre de modo a que voltasse a fazer sentido real.

Então, a história mudou. Algures, verdadeiras ferramentas clínicas tornaram as histórias de casos meramente acessórias. A Medicina cresceu. Instrumentos, imagens, testes, medições, cirurgia, fármacos: não havia espaço para as anedotas de Weber. E todas as suas curas literárias se transformaram em espectáculos de circo e de aberrações.

Certa vez, conhecera um homem que achava que contar as histórias de outras pessoas poderia torná-las verdadeiras outra vez. Então, outras histórias refizeram-no a ele. Ilusão, perda, humilhação, desgraça: bastava pronunciar as palavras e elas aconteciam. O próprio homem emergira de relatos adulterados; Weber inventara-o a partir da tessitura que criara. A história completa e física: fabricada. Agora o texto deslinda-se. Até mesmo o nome do caso - Cerald W. - soa ao mais débil dos pseudónimos.

Dá por si junto à cama de Mark, em busca de redenção. O rapaz roga-lhe:

- Psi. Porque demorou tanto? Pensei que estava morto. Mais morto do que eu estava. - O discurso dele é lento e desajeitado. - Contaram-lhe o que aconteceu? - Weber não responde. - Tentei matar-me. Talvez não pela primeira vez, tanto quanto qualquer pessoa pode afirmar.

As palavras puxaram Weber para a cadeira ao lado da cabeceira da cama.

- Como se sente agora?

Mark abre os braços, exibindo o tubo do soro no braço esquerdo.

- Bom, irei começar a sentir-me melhor bem depressa, quer queira quer não. É isso mesmo, vão voltar a trazer-me de volta ao que era antes. Mark Três. Sabe que já falam em electrochoques?

- Acho que... - começa Weber. - Deve ter ouvido mal ou entendido mal.

- Sim, ECT, electroconvulsivoterapia. “Muito moderada”, disseram-me. Sairei daqui feliz como se tivesse ganho a lotaria. Como novo. E não me recordarei de nada do que agora sei. Do que descobri. - Agita os braços e agarra Weber pelo pulso. - É por isso mesmo que tenho de falar consigo. Agora. Enquanto ainda sou capaz.

Weber segura a mão de Mark na sua, e este permite-o. O desespero do rapaz chegou a isto. Quando Mark fala, a sua voz é suplicante.

- O doutor viu-me, não muito tempo depois do acidente. Fez-me testes e exames. Falámos sobre a sua teoria, a da lesão, sobre a tal coisa posterior direita se ter separado da outra em forma de amêndoa. A miga?

Weber encosta-se à cadeira, chocado por Mark ainda se recordar. Ele próprio já se esquecera daquela conversa entre os dois.

- Amígdala.

- Sabe? - Mark puxa a mão, libertando-a da de Weber, e simula um sorriso débil. - Naquela altura, quando me disse aquilo, eu tinha a certeza de que o doutor perdera o juízo por completo. - Aperta os olhos e abana a cabeça. O tempo está a esgotar-se. Está a perder o discernimento para uma mistura química que pinga para o seu braço. Não consegue ao certo nomear o que precisa de dizer. A luta envolve todo o seu corpo. Esforça-se por alcançar o que está apenas a noventa centímetros de si. - O meu cérebro, todas aquelas partes separadas, tentando convencer-se umas às outras. Dezenas de escuteiros perdidos brandindo lanternas pequenas e fracas na floresta à noite. Onde estou eu?

Weber sabia contar histórias. As vítimas de automatismo, os seus corpos movendo-se sem consciência. Os sofredores de metamorfopsias, atormentados por laranjas do tamanho de bolas de praia e lápis do tamanho de fósforos. Os amnésicos. Os detentores de memórias pormenorizadas, nítidas, que nunca aconteceram. O eu é um rascunho feito à pressa, redigido por um comité, tentando enganar um editor inexperiente a publicá-lo.

- Não sei - responde Weber.

- Agora diga-me... - O rosto de Mark enruga-se outra vez, contorcido pelo esforço de pensar. Nenhuma pergunta que lhe pudesse ocorrer poderia valer tanta angústia. Mas foi para ouvir isto que Weber voou dois mil quilómetros. A voz de Mark desce de tom, dissimulada. - Acha que é possível...? Uma pessoa poderia estar completamente alterada e não ter a mínima noção...? E ainda assim sentir-se como sempre...?

Não é possível, Weber quer dizer. É certo. Obrigatório.

- Sentir-se-á melhor - assevera. - Mais completo do que se sente agora. - Uma promessa temerária. Também ele estaria a tomar o fármaco, se isso fosse verdade.

- Não estou a falar de mim - sibila Mark. - Estou a referir-me às restantes pessoas todas. Centenas de pessoas, talvez milhares: casos em que, ao contrário do meu, a operação resultou. Toda a gente anda por aí sem fazer a mais pálida ideia.

Os pêlos de Weber põem-se de pé. Piloerecção, uma antiga resistente evolucionária - pele de galinha.

- Que operação?

Mark está agora descontrolado.

- Preciso de si, Psi. Não há mais ninguém que me possa dizer. Todas as pequenas partes do cérebro, cavaqueando umas com as outras? Aqueles bandos de escuteiros lobitos? - Weber acena afirmativamente com a cabeça. - Pode cortar um? Um? Sem matar o bando?

- Sim.

O alívio é imediato. Mark desliza pela almofada abaixo.

- Pode colocar um? Raptar um escuteiro e colocar outro no lugar dele? A mesma lanterna pequena e ineficaz, acenando no escuro?

Mais pele de galinha.

- Diga-me o que quer dizer com isso.

Mark tapa os olhos com as mãos.

- “Diga-me o que quer dizer com isso”. O homem quer saber a que me refiro. - Vira a cabeça, desiludido. O tom de voz diminui de novo. - Refiro-me a transplantes. Misturas entre espécies.

Xenotransplante. Um artigo sobre o assunto no Journal of the America Association do mês passado. O crescente número de experiências - pedaços de córtex de um animal transplantados para outro, assumindo as propriedades da área hospedeira. Mark deve ter ouvido falar delas, na forma abastardada e mal interpretada através da qual a ciência chega às pessoas.

- Colocam partes de macaco em pessoas, certo? Porque não de pássaros? A pequena coisa em forma de amêndoa deles no lugar da nossa.

Weber precisa apenas de dizer que não, tão amável e terminantemente quanto possível. Mas algo em si quer dizer: não é preciso trocar. Já lá está, herdado. Estruturas antigas ainda nas nossas.

Deve-o a Mark, pelo menos perguntar.

- Porque haveriam de querer fazê-lo?

Mark aborda de imediato a questão.

- Faz parte de uma coisa mais abrangente. Um empreendimento, nos estiradores há muito tempo. A Cidade dos Pássaros. Ganhar dinheiro com os animais. A próxima grande negociata, entende? Descobrir uma forma de deslocar pedaços de um lado para o outro. Dos grous para os humanos. E vice-versa. Como o doutor diz: um escuteiro lobito a mais ou a menos e somos ainda o mesmo bando. Continuamos a sentir-nos como nós mesmos. Teria resultado em mim, também, mas alguma coisa correu mal.

Algo comunica através de Mark. Algo primevo que Weber tem de escutar antes que os químicos condenem este rapaz-homem de volta ao humano. Resta apenas este minuto. Apenas agora.

- Mas... qual é o objectivo desta operação?

- Estão a tentar salvar a espécie.

- Que espécie?

A pergunta surpreende Mark.

- Que espécie? - O choque dá lugar àquele ressonante e oco riso. - Essa é boa. Que espécie? - Fica em silêncio, decidindo.

No bunglalow de Bonnie, de inícios do século XX e com o formato de um frasco de viagem, as duas mulheres mal tinham espaço para deslizarem uma pela outra. Karin pede desculpa a toda a hora, lava louça que nem sequer está suja. Bonnie censura-a.

- Vá lá! É como acampar. A nossa casinha de torrão.

Na verdade, a rapariga tem sido uma bênção, alegre e divertida. Bonnie mantém-nas entretidas a ler cartas de tarot ou a assar s'mores no fogão. “O consolo da comida”, diz ela. À noite, Karin combate o impulso de se ir enroscar na cama dela.

Na segunda noite, volta para dentro depois de fumar meio maço de cigarros no alpendre e depara-se com Bonnie fora de si. A princípio recusa-se a dizer porquê, repetindo apenas: “Não é nada. Não tem problema.” Porém, não consegue continuar o que estava a fazer e acaba por carbonizar a comida. Karen descobre o culpado na mesa de café de Bonnie: o novo livro de Weber, que a rapariga tem laboriosamente estado a ler ao ritmo de meia página por dia ao longo dos últimos meses.

- É isto que te está a perturbar? - pergunta Karin. - Alguma coisa aqui? - Mais um abanar da cabeça, mas depois a rapariga cede à pressão.

- Existe uma parte do cérebro destinada a Deus? Visões religiosas devido a uma espécie de tempestade de epilepsia?

Karin desfaz-se em atenções, consolando a rapariga. E a rapariga sente-se reconfortada.

- É possível ligar e desligar Deus através de um mecanismo...? É apenas uma estrutura embutida? Já sabias disto? Toda a gente sabe? Toda a gente é esperta?

Karin fá-la calar-se e afaga-lhe os ombros.

- Ninguém sabe. Ele não sabe.

- É claro que sabe! Não o poria num livro, se não soubesse. É o homem mais inteligente que alguma vez conheci. A religião é apenas uma coisa do lobo temporal...? Ele diz que a crença é apenas uma coisa química evoluída que podemos ganhar ou perder...? Como o que o Mark decidiu em relação a ti. O facto de já não ser mais ele, o facto de nem sequer conseguir aperceber-se de que... Oh, raios. Caramba. Sou demasiado estúpida para perceber isto!

E Karin demasiado estúpida para ajudar. Uma parte dela - uma qualquer tempestade temporal - quer dizer: aquilo a que nos resumimos é ainda real. O espectro quer a nossa forma. Até mesmo um módulo Deus teria sido seleccionado pelo seu valor de sobrevivência. A água está a preparar alguma. Karin não diz nada disto; não tem palavras. A dúvida de Bonnie deve ter tardado em chegar, um tumor de crescimento lento. Está abalada o suficiente para tomar em consideração qualquer sistema de crença mais abrangente que Karin possa sugerir. Durante bastante tempo, olham uma para a outra, apanhadas num qualquer segredo vergonhoso. Depois, com base em mais nada a não ser sorrisos lúgubres, fazem um pacto, juntas no truque da crença, noviças numa nova fé, até que qualquer dano as mude.

Karin não saiu da casa de brincar excepto para mais uma tentativa infrutífera de falar com o irmão no hospital. Não foi ao Refúgio desde que deixou o apartamento de Daniel. Toda a sua vida suspeitou secretamente de que tudo o que aprendemos a querer, tudo aquilo que tornamos mesmo nosso, nos é retirado. Agora sabe porquê: nada é nosso. A noite passada sonhou que voava, bem acima dos cotovelos do Platte. Crostas de gelo tachonavam os baixios e os campos estavam cheios de restolho. Nenhuma forma de vida de grandes dimensões em parte alguma. Todos os animais de grande porte haviam desaparecido. Mas havia vida por todo o lado - microscópica, vegetativa, zumbindo na colmeia. Vozes sem linguagem, vozes que ela reconhecia, chamando-a para que visse. Acordou retemperada e cheia de uma confiança desconcertante.

Agora prepara-se para uma aventura no exterior, pedindo o melhor vestido de Bonnie emprestado, um vestido justo de seda cor de salva capaz de fazer girar algumas cabeças na Gold Coast de Chicago. Bonnie até se disponibiliza para a maquilhar.

Uma Bonnie mais velha, mais severa, segura recipientes coloridos contra o rosto de Karin, observando-os com os olhos semicerrados.

Tocando no cotovelo dela, Karin pergunta:

- Lembras-te de teres pintado as unhas dos pés do Mark quando ele estava ainda no hospital?

- Branco-gelo - recorda-se Bonnie.

- Branco-gelo - ecoa Karen. - Também quero. Trabalham em conjunto, quais técnicas.

Bonnie dá um passo atrás para admirar o seu trabalho.

- Assassina - comenta ela, o que deve ser bom. - Armada e perigosa. Podias comer homens como uma rã come moscas. Ele nem saberá o que o atingiu. Assassina, é o que te digo.

Karin fica quieta e chora. Agarra a desanimada artista da maquilhagem e abraça-a. Bonnie abraça-a de volta, agarrando-a, uma cúmplice antes do facto consumado.

Depois Karin está na baixa, no mesmo local onde se mostrou pela primeira vez a Robert Karsh. A noite desponta e o escritório dele esvazia-se para a rua. Ele é um dos últimos. Quando sai pela porta e a vê, pára surpreendido. Ela vira-se e encurta a distância entre os dois, tentando não pensar, sussurrando a palavra assassina para si mesma, um esconjuro protector. Ele avança na direcção dela, o queixo projectado, os olhos em todo o lado.

- Caramba - comenta ele. - Olha só para ti. - Ele deseja-a, mesmo agora, mesmo depois de tudo o que ela fez. Talvez mais ainda, por causa disso. Quer levá-la para trás dos arbustos e fazê-lo ali mesmo, como quaisquer vertebrados uns degraus abaixo na cadeia evolutiva. - Bom - muda ele de assunto, - o teu amigo Daniel parece ter conseguido a atenção do Conselho de Desenvolvimento. - Não precisa de acrescentar: a minha também. Sorri, o seu copioso sorriso amedrontado. O sorriso é tão típico dele que Karin não consegue evitar sorrir de volta. - Denunciaste os planos todos. Revelaste basicamente tudo o que te contei em confidência. Está bem, talvez não tudo. Mas tudo o que tinha a ver com o consórcio. - Continua a sorrir, como à sua pequena Ashiey, a rapariga que Karin nunca pôde conhecer. - Talvez isto tivesse tudo a ver com negócios, hã? Desde o início?

- Robert? - A voz dela escapa-se um pouco, até ela a controlar. - Quem me dera receber os louros por isso. Gostava ter sido assim tão esperta.

- Bem, sem dúvida que nos fizeste recuar. Complicaste o jogo. Um enorme embaraço pessoal, para mim. Foi preciso jogo de cintura para safar o meu couro. Mas olha, sempre mantém as coisas interessantes. É o preço de aprender o que significo para ti.

Ela abana a cabeça.

- Sempre o soubeste. Melhor do que eu.

- Também, se este projecto não acontecer em Farview, fá-lo-emos algures mais a jusante. Achas que nos vais impedir de construir? Achas que o desenvolvimento se limitará a desaparecer? Quem és tu? Não és sequer...

- Não sou sequer ninguém - remata ela.

- Eu não disse isso. Estou apenas a dizer que o que a comunidade necessitar irá ser construído. Mais cedo ou mais tarde...

Demasiado evidente para contra-argumentar. Mesmo neste momento, os olhos dele dizem: Vamos para qualquer lado. Arranjamos um quarto. Vinte minutos. O vestido de seda a cumprir a sua missão. E ele não sente nada, um nada que a preenche e eleva. Permanece perfeitamente quieta, incapaz de impedir a cabeça de abanar.

- Apaguei-me por ti. - Espantada por tê-lo feito; espantada por ser ainda capaz de o fazer. Olha para ele, procurando o seu próprio passado. - Achas que me conheceste. Achas que me conheces! - Anos de esforço e poderia passar por ele na rua e não sentir nem uma chama débil. Karsh também: Capgras mimético, um sorriso incapaz de reconhecer o que quer que seja, ali parado com um esgar como se tivesse acabado de subornar a professora com uma maçã contaminada.

Mas mesmo assim estão ligados. Vira-se e afasta-se, descrevendo uma linha recta que atravessava a cidade, esta cidade que ela odeia e da qual nunca se livrará. E pelo quarteirão abaixo, nas suas costas, ouve-o chamá-la, meio divertido: “Querida? Vá lá, Coelhinha. Ei! Anda, vamos resolver isto.” Tranquilo, compreendendo, claro que ela regressará, se não agora, então por esta altura no ano que vem.

Conversam durante mais tempo do que aquele que Weber pode afirmar. E a cada resposta de que Mark necessita, Weber fica com menos certezas. Aquele bando de escuteiros, acenando lanternas fracas na floresta à noite, está disperso. Toda a sua vida se conheceu a si mesmo como sendo este grupo de recurso. Apenas agora, algo se desprende em si e o conhecimento se torna real.

Conversam até as teorias de Mark começarem a soar plausíveis, até Mark acreditar que Weber compreendeu a extensão dos factos. Conversam até os químicos administrados intravenosamente diminuírem a actividade das suas sinapses, acalmando-o.

Mas algo nele continua a debater-se. Uma palma nas têmporas, a outra na nuca.

- Sabe, eles podem fazer-me o que quiserem. Medicamentos. Electrochoques. Até mesmo cirurgia, se for necessário. Deixo de bom-grado que me entrem outra vez na cabeça, se ao menos desta vez acertarem. Não consigo viver mais tempo com esta treta de parecer que fiquei a meio caminho. - Fecha os olhos e uiva como um lobo encurralado. - Detesto esta sensação de que inventei tudo. De que sou um palerma totalmente inventado. Mas há uma coisa que eu sei que não inventei. - Contorce o corpo, estica o braço para a gaveta da mesa-de-cabeceira e retira de lá o bilhete. Este recusa-se a decompor-se; a plastificação tornou-o permanente. Lança-o para cima da mesa-de-cabeceira. - Quem me dera que tivesse mesmo inventado isto. Quem me dera que não houvesse guardião. Mas há. E o que, em nome de Deus, devemos fazer em relação a isso?

Weber não faz nada, excepto esperar, até que os químicos se apoderem de Mark e ele adormeça. Depois vagueia pelo corredor do hospital. Senta-se por um momento numa sala de espera envidraçada, cheia de pessoas às quais foi prometido um milagre da alta tecnologia. Uma rapariga, aparentando por fora vinte anos, sentada numa cadeira estufada a cor-de-laranja, lê em voz alta um livro de imagens enorme e garrido a uma criança de quatro anos sentada ao seu colo. “Alguma vez te interrogaste sobre o milagre que aconteceu para que tu nascesses?” Lê ela, terna, tranquilizadoramente. “Não vieste dos macacos. Nem de alforrecas do mar. Não! Tiveste início quando Deus decidiu...”

Weber levanta os olhos e é como se a tivesse materializado, ali mesmo à sua frente, só pelo facto de ter pensado nela. A irmã, de seda verde.

- Viu-o? - pergunta ele. A sua voz soa-lhe estranha. Karin abana a cabeça.

- Está a dormir. Inconsciente.

Weber acena. In-consciente. Errado que a negação represente uma coisa tantos milhares de milhões de anos mais antiga do que o negado.

- Ele vai ficar bem? - pergunta ela.

Há qualquer coisa na pergunta que ele não consegue compreender. Alguém ficará?

- Está livre de perigo. Por agora. - Ficam ao lado um do outro, sem dizer nada. Ele vê as centenas de pequenos músculos em redor dos olhos dela a ler os seus, ao mesmo tempo que os olhos dele se adaptam aos dela. - Ele acha que talvez seja em parte pássaro.

Ela sorri, um sorriso doloroso.

- Conheço a sensação.

- Pensa que os cirurgiões das urgências trocaram...

O brusco aceno de cabeça dela interrompe-o.

- Já não é novidade - diz ela. - Não é de surpreender, tendo em conta o aspecto deles.

Ela está demente, qualquer coisa no fornecimento de água.

- Os cirurgiões?

O rosto dela enruga-se como o de uma criança, uma rapariga que acabou de descobrir o completo embuste das palavras.

- Não, os pássaros, os grous.

- Ah. Nunca os vi.

Karin olha para ele como se tivesse acabado de dizer que nunca sentira prazer. Consulta o relógio de pulso.

- Vamos - desafia. - Ainda temos tempo.

Abrigam-se num esconderijo abandonado à medida que o crepúsculo cai. Sentam-se numa lona velha que ela tinha na bagageira. Ela tem ainda o vestido verde de seda de Bonnie, ele está de fato e gravata. Karin levou-o a um local onde as aves pernoitam e que apenas os nativos conhecem - uma quinta privada, secreta e desabitada. O esconderijo é frio, o campo em redor deles cheio de restos de pés de milho do ano passado e de grãos. Para lá do campo, os bancos arenosos do rio serpenteiam. Umas quantas aves já ali se juntaram. Ela entrelaça as mãos à frente da cara, como uma criança a aprender a rezar. Ele olha para o grupo de aves a cem metros deles, depois de volta para ela. É isto? O espectáculo mítico?

Ela esboça um sorriso largo e abana a cabeça em resposta à dúvida dele. Ela passa-lhe a mão no ombro: espere. A vida é longa por ali. Mais longa do que pensa. Mais longa do que possa pensar.

Por um momento no frio, ele ergue-se. O céu passa de cor de pêssego a granada a cor de sangue. Um filamento agita-se contra a luz: um bando de grous surge de nenhures. Emitem um som, pré-histórico, demasiado estrondoso e ressonante para o tamanho deles. Um som de que ele se recorda de antes de o ouvir.

Ele e a mulher agacham-se no chão. A coluna dele estremece de frio. Outro filamento paira pelo ar e prepara-se para descer. Depois outro. As fibras de pássaros tocam-se e juntam-se, um tecido desfiado que se volta a unir. Surgem filamentos de todos os pontos cardeais, o céu carmesim, trespassado de veias negras. As asas inclinam-se e desviam a ave, deslizam ou sobem outra vez, antes de girarem num lento ciclone. Em breve o céu se enche de tributários, um rio de aves, um Platte espelho serpenteando pelo céu. E cada parte dele chamando.

As aves são enormes, muito maiores do que ele imaginara. As asas delas batem lenta e amplamente, as longas penas primárias arqueando-se bem acima do corpo, depois pendendo bem abaixo, um xaile perpetuamente recolocado sobre ombros esquecidos. Pescoços esticam-se ao passo que as pernas pendem balouçantes atrás, e no meio, a pequena protuberância do corpo, como o brinquedo de uma criança suspenso entre fios. Um grou aterra a seis metros do esconderijo. Sacode as asas, uma envergadura maior do que a altura de Weber. Atrás deste, centenas de outros pousam. E este local de pernoita neste campo privado é apenas um espectáculo lateral, nada comparado com o que ocorre nos santuários de maiores dimensões. Os chamamentos concentram-se e ecoam, um único estilhaçante e dissonante coro, estendendo-se por milhas em todas as direcções, de regresso ao pleistoceno.

Pensa: a Sylvie devia ver isto. O pensamento mais natural do mundo. Sylvie e Jess. Não Jess, mas Jessie, com oito ou nove anos, quando uma cidade de aves a teria deslumbrado. Alguma vez se aproximara daquela criança? Teria aquela menina merecido que ele se sentisse mais pai?

Em aglomerados fibrosos, as aves regressam à terra. O estado de graça perdido no tropeçamento em direcção ao solo. O desprestígio seria cómico se não fosse tão doloroso. Um milhar de grous planadores sucumbe à gravidade. Descobrem os humanos e prosseguem, imersos no constantemente serpenteante presente. Desde que existem pradarias e bancos arenosos e a ideia de segurança associada a este local, as aves têm-se reunido nestes pauis. Este século, alimentam-se de milho. No próximo século: de quaisquer sobras que este lugar possa ainda fornecer.

O solo gelado entorpece-o. Salta ao som da voz dela, de um planeta distante.

- Olhe! Aquele, ali. - Ele levanta a cabeça para ver. É ele, na discoteca de beira de estrada, ao lado de Barbara Gillespie, forçando o corpo a sentir alegria. As danças dos grous, estranhamente deliberadas. Lança gravetos ao ar. Então, a ave e a sua companheira ficam em alerta, os pescoços esticados, olhos em qualquer coisa invisivel-mente distante, os bicos paralelos, assinando o ar. Alternam, depois sincronizam, unindo os seus chamamentos num uníssono.

Localiza qualquer coisa no par a executar piruetas. Uma pista para a sua própria dissolvência. Então, numa trivial telepatia, algo que até a ciência conseguiria explicar, ela lê-lhe os pensamentos: “Porque regressaste? Foi por Mark? Ou por ela?”

Ele nem consegue sequer fazer-se de parvo.

O sorriso largo dela transforma-se num sorriso escarninho.

- Toda a gente percebeu. Óbvio.

- Percebeu o quê? - Podem ter percebido nada. Ele mesmo só viu agora. Mas até a sua lenta ciência converge para o óbvio: a primeira pessoa é sempre a última a saber.

Karin fala com alguém no meio do campo.

- Daniel afirma que ela lhe telefonou. Há um ano, antes do acidente de Mark. Fez-lhe todo o tipo de perguntas sobre o refúgio. Ele diz que ela é uma espia. Uma investigadora, a trabalhar para os urbanizadores. Isso soa-lhe a disparate? Como uma das teorias do Mark? - Ele diria qualquer coisa, se conseguisse. Surgir-lhe-ia uma ideia, um pensamento, e até o transmitiria, mas está de novo a deslizar para o fundo, para lá das palavras. Ela examina-o, os papéis trocados, ela o médico e ele o doente. - Passa-se alguma coisa consigo, aconteceu-lhe alguma coisa.

- Sim - confirma ele. Vê essa coisa, milhares delas, passando os campos a pente fino, a um sussurro de distância.

Ela fecha os olhos e deita-se no solo gelado. Ele baixa-se e coloca-se ao lado dela, de lado, a cabeça pousada sobre o braço dobrado. Olha para ela, para o campo aberto que ela é, à medida que os restos de luz âmbar se desvanecem, procurando a mulher de há um ano. Agora, ela olha de volta.

- Não sei o que precisava de si, quando lhe escrevi a contar o que se passara com o Mark. Não sei o que precisava dele. De qualquer pessoa. - Estica a palma para fora, para a condenante prova, o campo cheio de aves. O que há para necessitar?

Desvia os olhos, envergonhada. Senta-se, aponta para um casal perto: duas aves grandes e agitadas, caminhando com as asas estendidas, tagarelando. Uma corneteia uma melodia, quatro notas de surpresa espontânea. A outra apropria-se da melodia e ensombra-a. O som ofende-o: a criação a tagarelar consigo mesma, deixando-o de fora. O verdadeiro discurso, para além das capacidades de descodificação de qualquer um a não ser um grou. O par falante fica em silêncio, esquadrinhando o solo em busca de vestígios. Podiam ser detectives ou cientistas. A vida incomunicável, até mesmo para a vida.

Olha para a mulher, o rosto dela contorcido pelo mesmo pensamento, tão nitidamente quanto se tivesse sido ele a colocá-lo ali: como é ser uma ave?

- Ali - declara ela, apontando para o par de caminhantes. - É daquilo que o Mark estava a falar. - O nariz dela flameja, encarnado e cru. Abana a cabeça, não acreditando. - Costumavam simplesmente abrir o fecho e ser nós. Ou então nós despiríamos a nossa pele e íamos com eles. A mais velha história do mundo. - Ela olha para o perfil dele, mas quando ele se vira para ela, ela desvia o rosto. - O mais triste, porém, é que não conseguem amar. Acasalam para o resto da vida. Seguem os seus parceiros todos os anos ao longo de milhares de quilómetros. Criam as crias em conjunto. Fingem uma asa partida para atrair um predador para longe das crias. Até se sacrificam para salvar a prole. Mas não. Pergunte a qualquer cientista. As aves não sabem amar. As aves nem sequer têm um eu! Nada como nós. Sem qualquer relação.

Weber consegue apenas vislumbrar todos os ressentimentos que ela guarda contra si. Pediria desculpa, se conseguisse falar.

O indivíduo maior do par vira-se e olha-o fixamente. Algo da ave pré-histórica o fita, um segredo sobre ele, mas não seu. Um olhar oriundo do seu puro estado selvagem, toda a crua inteligência de simplesmente ser, que Weber esqueceu.

Contudo, a mulher está a falar. Diz coisas, coisas longínquas, com grande urgência. Fala-lhe das guerras da água. Que os conservacionistas ganharam, por agora. E que perderão, para sempre, depois. Viu os números envolvidos e não existe poder suficientemente grande para os impedir. O rosto dela assume uma máscara disforme. Acena o braço à ave que os fita e esta assusta-se e afasta-se.

- Como poderemos não querer isto? Apenas isto, exactamente como está. Se ao menos as pessoas soubessem... - Mas se as pessoas soubessem, este campo estaria coberto de observadores de grous.

- Quanto tempo lhe parece que temos? - inquire ela. - Meu Deus, o que há de errado em nós? Você é o perito. O que há nos nossos cérebros que não...?

O céu escureceu e ele não consegue ver para o que ela aponta. Cada um deles está sentado, isolado, no seu próprio esconderijo, olhando para uma noite impensavelmente longa.

Ela fala em voz alta, como se já só a memória existisse.

- Recordo-me da primeira vez que o meu pai nos trouxe até aqui. Éramos pequenos. Eu, o Mark e o meu pai, sentados neste campo. Este mesmo. Bem cedo de manhã, antes de o Sol nascer. Tem de ver estas aves de manhã. O espectáculo vespertino é puro teatro, mas o matutino é pura religião. Nós os três ao despontar do dia, ainda felizes. E o meu pai, ainda o homem mais sábio à face da Terra. Ainda consigo escutá-lo. Contou-nos como as aves viajavam. Ele era piloto de aviões ligeiros e adorava a forma como as aves seguiam marcos geográficos para encontrar este local exacto, ano após ano. O modo como reconheciam determinados campos. “Podem ter a certeza de que os grous se recordam. Prendem-se a certas coisas como um morcego se agarra à trave de um celeiro.” E a primeira vez que vi aquelas aves voltear no ar e desaparecer, não parava de olhar para o céu e de pensar, Ei, eu também. Levem-me com vocês. Sentimento horrível. Vazio. Do tipo: Onde é que eu errei?

Penteia as sobrancelhas com os dedos. Ele conhece-a agora, o que nela outrora o repelira tanto. A fraqueza. A sua necessidade de fazer bem pelo mundo.

- Uma espécie de lição para nós - prosseguiu ela. - A ideia dele de paternidade. Não se calando com noções como a de sangue, de família, de como até as aves tomavam conta dos seus. Assustou-nos aos dois. Apertou-nos a ambos até doer e obrigou-nos a prometer. “Se alguma vez acontecer qualquer coisa, e há-de acontecer, vocês os dois nunca, mas nunca desistam um do outro”.

Estas últimas palavras são tão embargadas que Weber vê-se obrigado a supri-las.

Depois ela desvia o olhar, novamente forte, mais composta do que ele consegue sequer simular, olhando para além das terras húmidas, para lá do progresso que as destruirá.

- Era tresloucado, o meu pai. Perdeu por completo o contacto com o resto da raça. Sempre me disse que eu não resultaria em nada. E assegurou-se basicamente de que isso aconteceria. - Vira-se e agarra o braço de Weber no escuro. Precisa que ele a contradiga. Necessita que ele diga que ainda não é tarde de mais para mudar a sua vida. Que não é demasiado tarde para um trabalho real por fim, o único trabalho com significado. - Se me tivesse educado... Se tivesse educado a mim a ao Mark? Alguém com os seus conhecimentos? - Talvez tivesse vindo a este chamamento mais cedo, enquanto ainda havia tempo.

Weber permanece em silêncio, demasiado assustado para confirmar ou negar. Mas ela já tirou o que precisava dele. Ela abana a cabeça para ele e diz:

- Sem ajudas, impossível, quase omnipotente e infinitamente frágil...

Ele esforça-se por identificar as palavras, escritas por alguém que outrora foi ele. O rosto dela, enrubescido pela ideia, suplica-lhe que se recorde. Se tudo é forjado, então tudo é livre. Livre para fazer de nós mesmos, livre para representar um papel, livre para imaginar qualquer coisa. Livre para entrelaçar a nossa mente no que amamos. O quanto poderíamos todos aprender acerca deste rio. Que locais a água poderia ainda conhecer.

Weber passa a noite acordado no seu cubículo alugado, o cérebro resplandecente de actividade. O telemóvel toca duas vezes, mas ele não atende. Olha para o visor encarnado do relógio da mesa-de-cabeceira, observando os minutos em suspensão. Irá a Dedham Glen pedir para ver o ficheiro dela. Não: o acesso ser-lhe-ia negado. Não está autorizado a fazê-lo. Podia pedir ao supervisor dela: Quando é que ela chegou a esta instituição? Que trabalho fazia antes deste? Mas o supervisor seguramente que o repeliria, ou pior.

Está na rua à porta de casa dela às quatro da madrugada. Sentado no interior do seu carro alugado totalmente às escuras, tem todo o tempo do mundo para decidir não arruinar a sua vida. Mas a verdade é que está já a desmoronar-se - Chickadee, Conscience Bay, Sylvie, o laboratório, a sua escrita, o Famoso Gerald - tudo derrubado, há meses. Não consegue já sequer fingir o papel. Nem tão-pouco a sua mulher acreditaria na representação. Deixa-se escorregar pelo banco, caindo. É uma necessidade de não ser ninguém, uma necessidade que para sempre ocultará a sua localização precisa das sondas da neurociência. Sai do carro e ziguezagueia até à entrada da casa, até ao caos que provocou.

Barbara vem à porta intumescida e ramelosa, a primeira insinuação de consciência nela. Inclina a cabeça e sorri, quase esperando-o. É a última parte sólida dele dissolve-se no ar.

- Está tudo bem? - pergunta ela, convidativa e incerta. - Não sabia que tinha regressado.

A cabeça dele balança, tão fácil quanto respirar.

Sem palavras, convida-o a entrar. Só depois de acender uma débil luz suspensa sobre um vestíbulo despido - uma abandonada casa de férias nas margens de um lago setentrional, da década de 1950 - é que pergunta:

- Já viu o Mark?

- Sim. A Barbara também?

Ela deixa tombar a cabeça.

- Tenho receado fazê-lo.

Mas isso não pode ser. A mais dedicada enfermeira do rapaz-homem, que já o viu em piores situações. Cruza o olhar com o dela, renegado, escapando-se por cima do ombro direito dela. Veste um roupão de banho masculino, de flanela verde e vermelha, do qual os seus braços e pernas se projectam como equívocos recentes. Leva a mão à cara inchada.

- Estou horrível?

Linda, o tipo de beleza gasta que o faz reagir visceralmente.

Ela condu-lo a uma minúscula cozinha onde, cambaleante, coloca uma chaleira de água sobre o bico do fogão. Ele gira em roda dela.

- Não há muito tempo - afirma ele. - Tenho uma coisa para lhe mostrar. Antes que o Sol nasça.

As mãos dela serpenteiam para cima e empurram o peito dele, primeiro gentilmente, depois com força. Acena com a cabeça.

- Vou só vestir-me. Por favor... - As palmas esticam-se, oferecendo-lhe as três pequenas divisões, para que fique à vontade.

Não há nada para tomar posse. A cozinha tem apenas espaço e utensílios para uma pessoa, uma colecção desencontrada de panelas amolgadas e frascos de compota. A mesa e cadeiras da sala de estar só podem ter vindo de um leilão. Tapete oval de trapos e cortinas de crochet. Um armário pesado e antigo de carvalho, obviamente de uma quinta, e uma escrivaninha a condizer. Por cima da escrivaninha, colada à parede, uma ficha de leitura já muito manuseada, escrita a caneta: Mas eu nada faço contra mim mesmo e, porém, sou o meu próprio Carrasco.

Sobre a escrivaninha, um livro: The Immense Journey. A leitura de uma auxiliar de enfermagem. A sobrecapa identifica o autor como um rapaz local, nascido e criado na curva do Platte. Uma multidão de setas adesivas coloridas estão apensas às páginas. Folheia até à última: O segredo, se é que podemos parafrasear um vocabulário selvagem, reside no ovo da noite.

Ao lado do livro encontram-se um leitor de discos portátil e auscultadores. Junto ao leitor, uma pequena pilha de discos. Pega no de cima: Monteverdi. Ela escolhe este momento para emergir demasiado rapidamente do quarto, abotoando a camisa de algodão azul-cobalto à pressa. Vê-o com o disco na mão. Foi apanhada; as sobrancelhas franzem-se, culpada.

Ele estende-o na direcção dela, acusando.

- Induziu-me em erro.

- Não! Comprei isso... depois da nossa noite. Uma recordação. Acredite, não entendo nada disso.

Weber coloca o disco no cimo da pilha sem olhar. Não quer ver os outros. A sua crença não suporta mais testes.

Ela atravessa a divisão e rodeia-o. Nos braços dela ele desmantela-se. Um punho na base do seu tronco cerebral abre-se numa mão. Age sob os efeitos da dopamina, o seu peito movendo-se aos sacões. A mais insensata pesquisa no periódico mais ousado... Arruinou-se e não há palavras que descrevam como é bom. Não há escritor, investigador, conferencista, nada de marido ou pai. Separou-se por precipitação. Nada resta a não ser a sensação, a pressão calorosa, suave contra as suas costelas.

A sala está fria e cada centímetro dela queima. Ele esgueira-se para becos límbicos traseiros, esquinas que sobreviveram quando o enorme neo-córtex surgiu como uma super auto-estrada. Sente a sua pele contra as mãos dela, pele demasiado branca e semelhante a papel, os braços nus uma confusão de veias, os flancos bossas grosseiras. Uma pulsação e ele fica estranho ao seu corpo, todos aqueles fantasmas aninhados, invisíveis para esta mulher que nunca o viu de outra forma que não desta.

Depois ainda mais estranho: não se importa como ela o vê. Não quer que ela o veja como outra coisa que não o que ele é verdadeiramente: oco e deselegante, despojado de autoridade. Sem limites, como qualquer pessoa.

- Espere - diz ele. - Há uma coisa que precisa de ver. - Algo que não é dele. O espectáculo vespertino é puro teatro, mas o matutino é pura religião.

Conduzem até ao campo onde estivera com Karin nos primeiros indícios da manhã. Encontra o caminho até lá, esquerdas e direitas armazenadas no seu corpo. A noite anterior dispersou-se, mas o bando ainda lá está, patinhando. Ele e esta mulher acomodam-se no esconderijo, a menos de três metros do amontoado mais próximo de aves. Esforçam-se por manter o silêncio, mas os seus movimentos alertam os grous que ficaram de vigia. A consciência dissemina-se pelo bando. Os grous agitam-se, individualmente e em conjunto, e depois acalmam-se quando o perigo passa. Na crescente luz, dão início à costumeira tartamudez matutina, irrompendo aqui e ali em experimentais passos de ballet.

- Eu disse-lhe - murmura ela. - Tudo dança.

Uma a uma, as aves experimentam o ar, primeiro em pequenos pulos, como pedaços de papel soprados pela brisa. Depois, milhares delas erguem-se como numa onda. A pulsante superfície do mundo ergue-se, uma espiral que ascende ao céu em correntes de ar. Uma variedade de sons transporta-os todo o caminho em direcção aos céus, estalidos e matracas de madeira, ribombantes, ressonantes, trompejantes nuvens de som vivo. Lentamente, o tapete desfralda-se em fitas e dispersa-se pelo ténue azul.

Que alegria há nesta vida. Erguendo-se para além de nós, sempre. Que alegria sem significado.

Escuta a sua voz emanar de si, um contraponto a este coro matinal grasnante:

- Para não ser separado, nem pela mais ténue cortina excluída da grandeza das estrelas.

- Que é isso? - pergunta ela.

Ele esforça-se por se recordar.

- Interioridade - o que é se não céu ampliado, cravejado de aves e varrido pelos ventos do regresso a casa? - Um livro de Rilke que ele comprou para Sylvie, há uma vida inteira atrás, acabados de terminar os estudos, quando ainda arranjavam tempo para elegias inúteis.

- O cientista é um poeta - diz esta mulher.

Mas não é nem uma coisa nem outra. Não é qualquer profissão que possa reconhecer. Nada que alguma vez tenha pensado que se poderia tornar. E esta mulher: o que é esta auxiliar de enfermagem? Uma mulher tão solitária que o quer até a ele.

Ela enfia a mão pela gola do casaco dele abaixo. Ele toca-lhe nas costas. Delineiam a pele, a armadilha entre eles. As mãos dele tremem contra os seios dela, e ela permitiria, conduzi-lo-ia até tudo, aqui mesmo neste campo repleto de aves. O tórax pressiona-se contra a palma dele. Tropeçam em algo surpreendente para ambos. As bocas estão coladas e o pensamento esvai-se. Tudo se esvai, excepto esta primeira necessidade.

Algo enorme e branco cruza o campo. Ele dá um pulo e ela segue-o. Ele vê-o primeiro, mas é ela que o identifica.

- Meu Deus. Um cisne-bravo. - Fantasmas naquele clarão de luz, um qualquer terror pessoal. Ela aperta-lhe o braço, um torniquete. - É impossível estarmos a ver isto. Só restam 160. Caramba, aquele é um deles!

Resplandecendo, o fantasma desliza pelos campos. Nenhum deles consegue respirar. Ele agarra-se a uma última esperança.

- Foi isso. O que estava na estrada. Ele disse que viu uma coluna branca... - Examinou o rosto dela, a ciência desejando ardentemente ser confirmada.

Ela segue a ave, receando olhar para Weber. Tem agora a oportunidade de esclarecer tudo. Ao invés disso, diz:

- Acha?

Observam a ave fantasma até esta desaparecer num aglomerado de árvores. Agacham-se e observam, muito depois de o campo se esvaziar.

Estão ambos gelados e sujos de lama. Ela volta a puxá-lo para si, desatenta novamente. Inundam-se um ao outro, ondas de oxitocina e uma união selvagem. A libertação - desaparecendo no meio da pradaria, livre de tudo - paira apenas uns milímetros fora do seu alcance.

Uma gargalhada entrecortada surge de algures demasiado perto, algo que não pertence ao coro matinal do Platte. O cricri de um grilo, meses antes da sua época. Grila outra vez, do interior do casaco despido a seus pés. Ele olha para ela, espantado. O olhar dela diz-lhe: o telefone. Procura desajeitadamente o bolso que esconde o mecanismo. Olha para o número no ecrã, a primeira vez na vida que o faz. Cala o telefone e volta para ela. Tudo será pânico a partir de agora. Estranho como o nascimento. Escrevê-lo-ia - o primeiro caso da história de Capgras contagioso -, se ainda fosse capaz de escrever. Ele parece estar a aproximar-se e ela recebe-o. Os pensamentos fluem através dele como um ribeiro sobre seixos, nenhum deles seu. Aí vem o vazio da chegada. Depois há apenas o abraçar e o preparar para a interminável vertigem.

Mudos, regressam ao carro dela.

- Para onde agora? - pergunta ela. Não há escolha, na verdade.

- Oeste.

Não existe outra bússola para eles os dois. Ele conduz ao acaso. Atravessam um ribeiro seco.

- Oregon Trail - nomeia ela. Cicatrizes na terra confirmam-na, apesar do século e meio de erosão.

Viajam por vários quilómetros em silêncio. Ele espera que ela diga o que a qualquer momento ele poderia fazê-la dizer. Mas agora, também ele está perjurado e não merece nada. Quando a fome aperta, param para comprar qualquer coisa para comer numa cidadezinha chamada Broken Bow.

- Outra cidade fantasma - comenta ela. - A maioria das cidades aqui teve o seu auge há cem anos. O local está a esvaziar-se. De regresso à fronteira.

- Como é que sabe estas coisas? - Ele já sabe de que forma é que ela sabe.

Ela esquiva-se.

- Por estas bandas? Apenas os moribundos ficam por cá. Compram água, fruta e pão e levam-no até aos bancos de areia.

Fazem o piquenique numa duna que é impelida na direcção do vento ao mesmo tempo que se sentam sobre ela. Uma parte deles está sempre a tocar-se. A terra está abandonada, uma doença contagiosa mundial. A meia distância, os acordes de um interminável transporte ferroviário.

Ela toca-lhe no ouvido, surpreendida.

- Lembrei-me agora mesmo do sonho que tive a noite passada. Tão bonito! Sonhei que estávamos a fazer música. Você e eu, o Mark e a Karin, penso eu. Eu estava a tocar violoncelo. Nunca toquei num violoncelo. Mas a música que extraía dele... inacreditável! Como é que o cérebro consegue fazer isso? Quero dizer, fazer de conta que toca um instrumento, tudo bem. Mas quem é que estava a compor aquela música? Em tempo real? Eu nem sequer sei ler música. As mais belas harmonias que alguma vez escutei. E devem ter sido escritas por mim.

Ele não tem resposta e é isso que lhe dá. Tudo o que pode fazer é tocar-lhe de volta na orelha. O sonho que ele teve na noite passada foi um sonho que não tem tido há meses: um homem, a mergulhar de cabeça, imóvel no ar frente a uma coluna fumegante branca.

Estão sentados no meio de um nenhures em deriva. O telefone dele vibra no bolso. Se esta coisa toca aqui, seria também capaz de tocar no espaço sideral. Sabe quem é mesmo antes de atender. O ecrã confirma-o: Jess. A filha, que apenas telefona em situações de emergência e nos dias de festa. Tem de atender. Antes mesmo de conseguir perguntar o que se passa, Jess berra com ele.

- Acabei de falar com a mãe. Que raio achas que estás a fazer?

Weber não se consegue sentir ligado a ela. Sente cada quilómetro entre este lugar e qualquer costa.

- Não sei - responde ele, talvez várias vezes. Apenas irrita ainda mais a filha.

- Vê se cresces - grita ela. Talvez esteja a ter um ataque de insulina. A rede começa a falhar.

- Jess? Jess. Não consigo ouvir-te. Escuta, eu telefono-te. Eu telefono-te...

Quando desliga, Barbara está ainda ali. Afaga-lhe a bochecha, hesitantemente, e ele permite. O primeiro dos seus castigos. A mão dela diz: O que precisares. Mais perto ou mais distante. Tua para continuares a forjar ou para mandares embora.

Ele é um caso que esquecera até este momento: a mulher com a ínsula destruída, perdida na assomatognosia. De vez em quando, por breves períodos de tempo, perdia por completo qualquer sensibilidade no seu corpo. Esqueleto e músculos, membros e tronco reduziam-se a nada. E ainda assim, sem corpo, ele mantinha-se fiel à mentira, acreditando naquele capo na junção temporo-parieto-occi-pital, naquele lacaio do sistema sempre a postos para assumir o controlo.

Entram no carro e seguem viagem, nada mais a fazer. Uns 19 quilómetros mais à frente, ela diz:

- Há um lugar que sempre quis visitar.

- Muito longe?

Franze os lábios enquanto calcula a distância.

- Cento e sessenta quilómetros?

Não há mais nada em si que possa objectar. Aponta pelo pára-brisas um qualquer destino invisível.

Ela fica cada vez mais descuidada atrás do volante, até mesmo frívola. Não têm futuro e ainda menos passado. Durante duas horas, não dizem nada sobre eles mesmos. Nem sequer falam muito sobre Mark. O mais perto que chegam disso é quando ela lhe pede que lhe diga as dez coisas essenciais que a neurociência sabe com certeza. Ele deveria ser capaz de listar dúzias, mas algo aconteceu à sua lista. Aquelas que são essenciais já não lhe parecem inabaláveis. E aquelas que são inabaláveis não serão com certeza essenciais.

Weber vê o local de destino deles à distância, erguendo-se de um campo de trigo de Inverno. Salisbury Plain. Monumento megalítico. Uma curva errada, algures, mas aqui estão eles. Ela ri-se ao vê-lo aperceber-se de onde estão.

- Chegámos. Carhenge.

As enormes lajes de pedra convertem-se em automóveis. Três dúzias de carros antigos pintados com tinta de spray e enterrados na vertical ou colocados, quais lintéis, em cima de outros dois. Uma réplica perfeita. Estão os dois fora do carro, caminhando em redor do círculo de carros. Ele exibe uma pesarosa imitação de contentamento. Aqui está: o monumento comemorativo ideal ao ofuscante foguete de artifício que são os humanos, a breve experiência que a selecção natural fez com a consciência. E por todo o lado, milhares de pardais fazem ninho nos enferrujados eixos.

Jantam em Alliance, num restaurante chamado Longhorn Smoke-house. Um aparelho de televisão suspenso da parede transmite as notícias. A Operação Libertação do Iraque tinha começado. A guerra parecia já tão iminente que Weber nem sequer fica chocado. Ficam a ver a notícia que se repete e o discurso do presidente: Que Deus abençoe o nosso país e todos aqueles que o defendem. Weber observa a expressão inflexível de Barbara enquanto ela olha para o ecrã. Ela assiste às notícias como apenas um repórter sabe fazer. Já há algum tempo que sabia, mas só agora a vê, sem enganos. A sua voz eleva-se um pouco quando fala.

- Mark tem razão. Todo este lugar não passa de um substituto. Quero dizer, reconhece este país?

Permanecem sentados no restaurante durante demasiado tempo, assistindo a demasiadas notícias explosivas mas sem qualquer conteúdo. Quando regressam ao carro, já a noite começa a cair.

- Procuramos um lugar para ficar? - pergunta sem olhar para ele. Refere-se a um refúgio, mas há muito que perdeu esse lugar.

Tudo o que ele mais deseja é começar do nada. Apagar tudo o que fez e o que está a fazer. Não tem nada à sua espera. Encontrar um lugar onde ficar, sim, noite após noite, os dois, mesmo que o pior se confirme, mesmo sabendo o que sabe dela. Acabam-se as reportagens à distância. Acabam-se os relatos de casos: apenas se tornaria tão culpado quanto ela. Todavia, as palavras que profere destroem essa possibilidade.

- Temos de regressar.

Ela é incapaz de esconder o meio segundo de medo. Os seus ombros estremecem.

- Oh, Heart! - exclama. A quem pertence esse nome? É por certo a alcunha ternurenta de alguém. Algum caso anterior com o qual o está a confundir. Ela não o deseja; quer apenas evitar ser descoberta. Argumenta. - A minha casa é tão pequena...

E a terra tão extensa.

- Temos mesmo de ir - repete ele.

Sim, a vida é uma obra de ficção. Porém, seja qual for o seu significado, a ficção é dirigível.

Ela sabe o que está a acontecer. Ainda assim, finge. Põe o automóvel a trabalhar e segue em direcção a Sudeste. Após alguns quilómetros pergunta numa voz convidativa:

- Está a pensar em quê?

Ele abana a cabeça. Não consegue resolver aquilo com palavras. O seu silêncio desencoraja-a. Agarra o volante com força, a sua expressão a de quem está preparada para o pior.

Ele toca-lhe ao de leve no braço.

- Estava a pensar que sinto que a conheço desde sempre.

Ela fita-o e a sua expressão desmancha-se. Não acredita no que ele diz, mas aceita. Uma parte dela já sabe para onde aquela conversa os conduz. Uma parte dela sofre já por antecipação do que ele dirá.

Ele escolhe aquele momento para perguntar:

- Em que história estava a trabalhar? Quando aqui esteve pela primeira vez?

Viajam alguns quilómetros em silêncio. Algo nele espera que ela não diga nada. Algo nele não quer saber dos factos. Sente o que viu nela pela primeira vez, o medo sob a sua compostura falsa. Pelo canto do seu olho ela é outra pessoa. Tal como aquela mulher que certa vez examinou, chamemos-lhe Hermia, cujo único sintoma era ver crianças no campo visual do olho esquerdo, chegava até a escutar os seus risos, mas assim que se virava elas desapareciam...

- Como assim? - pergunta ela por fim. A sua voz, esmalte brilhante sobre cinzas.

Não tem o direito de a forçar a nada. Ele não é a justiça; é a duplicidade em pessoa.

- Para quem estava a trabalhar?

Não há necessidade de saber, porém é um fenómeno neurológico comprovado que a actividade no centro da compreensão verbal tem um efeito analgésico sobre a dor.

Ela segura o volante e avança pela estrada em linha recta.

- Dedham Glen - responde. - Trabalhei para eles todos os dias durante um ano. Ganhava 1200 dólares por mês.

Por fim as anomalias na ficha médica de Mark fazem sentido. Ele sabe o que aconteceu.

- O amigo de Karin - diz ele, - o conservacionista. Entrevis-tou-o pelo telefone o ano passado.

Os seus olhos parecem confusos e as suas narinas tremem como o focinho de um coelho. Uma réstia de tenacidade nela liberta aquela pequena parte dele que ainda não se apaixonara.

- Água - explicou num tom displicente, jornalístico. - A história era sobre a água. - Viajam mais alguns quilómetros na escuridão. Ela fala para uma máquina. - Em breve esse será o tópico da maioria das histórias. - Ela recobra forças, sacode o cabelo e direcciona toda a força do seu vazio contra ele. Tira fotografias para uma revista de moda. Isso irá repeli-lo, mas por aquilo que reconhece nela, e partilha. Essa necessidade desesperada de escapar à descoberta. - Conto-lhe tudo. O que pretende saber?

Ele não quer saber de nada. Desapareceria de bom grado com ela para um lugar onde não existissem palavras.

- Uma jornalista - conta para o pára-brisas. Mais uma pequena cidade passa a correr na paisagem. - Produtora da Cablenation News. Está a ver: escolhe um tema pitoresco, trabalha-o, faz a pesquisa, supervisiona as entrevistas. Sempre tentei ser... ser tão grande quanto a história. Sempre me esforcei por compilar o máximo de material. Acho que foi isso que me matou. Fora editora durante sete anos, produtora durante três e meio. Podia ter chegado mais longe.

Ele observa as rugas no seu pescoço. Nunca antes reparara nelas. Os tendões dilatam-se sob os maxilares cerrados. A sua face irá rachar-se e dela emergirá algo.

- Estava em sarilhos. Queimada, como lhe costumam chamar. Era a super mulher. Quero dizer, meu Deus, estivera em Waco em 1993 a cobrir o cerco aos Davidianos com aquelas filas e filas de cadeiras de jardim nas quais os cumpridores cidadãos americanos se sentavam para observarem o churrasco humano. Produzi uma série sobre os bebés do infantário de Oklahoma. Cobri o suicídio em massa do grupo religioso Heaven's Gate. Nada me atingia. Podia relatar qualquer notícia. Caminhei pela baixa de Manhattan, espetando uma câmara de vídeo na cara das pessoas logo a seguir à queda das torres. Uma semana depois comecei a enlouquecer. Estamos todos doidos, não é? E tudo se desmorona à nossa volta.

Ela ainda precisa que ele a contradiga. O que sempre precisou dele e até mesmo nesta situação ele falha.

- O meu patrão obrigou-me a procurar um médico que me receitou aquilo que o resto da nação anda a tomar. Fiquei mais calma, mas perdi a agudeza de espírito. Tornei-me aborrecida e descuidada. Já não conseguia fazer um bom trabalho. Assim, tiraram-me das notícias e colocaram-me nas histórias com interesse humano. Reportagens inócuas, patéticas. O conservador pobre que morre e deixa um milhão de dólares para a escola local. Gémeos reencontrados após quarenta anos e que continuam a comportar-se de forma idêntica. Era isso que a viagem ao Nebrasca devia ser. Um pequeno descanso para acelerar a recuperação. Uma história tocante que agradasse a toda a gente, uma que até eu conseguisse fazer.

- Os grous - diz Weber.

A única notícia naquelas paragens. O regresso interminável. Numa extensão plana e incaracterística da estrada a quatro quilómetros da cidade ela volta-se e olha-o fixamente. Perscruta o rosto dele, regateando.

- Eles queriam uma coisa do estilo Disney, mas eu tentei algo maior, mais importante. Por isso pesquisei um pouco. Não levei muito tempo a descobrir sobre a água. Aprofundei a pesquisa e descobri que estávamos a matar o rio e que isso iria acontecer independentemente da minha reportagem. Podia contar uma história que comovesse as pessoas e as levasse a mudar as suas vidas e ainda assim isso não faria a mínima diferença. Aquela água já desapareceu.

Kearney aparece ao longe, uma cúpula cor de laranja no horizonte. Weber espera que ela acabe a sua história. Só depois de ela olhar de relance por cima do ombro direito com uma expressão desorientada, suplicante e fugidia é que ele entende que já terminou.

- Foi então que pediu a demissão - acrescenta ele - e se tornou auxiliar de enfermagem?

Ela sacode os ombros, mas não tarda a recompor-se.

- Primeiro aceitaram-me como voluntária. Tinha alguma experiência... Tirei a licença de auxiliar de enfermeira em três meses quando andava no liceu. - Mesmo agora se recusa a confessá-lo. Não o irá dizer, não sozinha, não por vontade própria. Por isso ele pergunta:

- Sabia que iam enviá-lo para lá?

O seu olhar endurece-se e sobre ela desce uma calma sepulcral.

- Isso é alguma teoria? Quem é que pensa que eu sou?

O eu é apenas uma diversão. Há muito tempo que a sua ciência sabe disso. Já suspeitava dela muito antes de Daniel a ter identificado. Talvez desde o dia em que a viu. Apercebeu-se de imediato da sua fraude, tal como ela pressentiu a dele: a mentira que os unia, que o atraiu até ela. Mas existe ainda um pormenor que ele não consegue entender.

- Tenho a impressão de já a ter visto antes. Há alguns anos. Quando a sua estação entrevistou...

- Sim - responde ela num tom calmo e controlado, virando à direita em direcção à auto-estrada, mesmo às portas da cidade. Volta a falar como uma produtora. Como uma jornalista capaz de fazer qualquer reportagem. - Afinal, porque continua a regressar? Para pôr a memória à prova? Achou que podia usar-me. Um pouco de emoção, um pouco de mistério. A hostilidade pública estava a dar cabo de si. Uma curta viagem de evasão; reescreve a sua vida. Experiência extracorporal. Revelar um crime. Apanhar alguém numa armadilha. E depois julgar-me.

Ele abana a cabeça por ambos. Algo bem mais importante do que isso o trouxera de volta. Os ventos do regresso a casa. Agora, mais do que nunca, mesmo quando ela mostra o seu lado mais frio e horrível, ele sabe quem ela é. A sua face começa a ficar vermelha e ela bate no volante com a palma das mãos. Os seus olhos não param. Com um movimento súbito da cabeça irá obrigá-la a tomar a direcção não de sua casa, não do quarto de um motel anónimo, mas de volta ao local onde toda aquela história teve início. Quando ele por fim retoma a palavra, a sua voz não lhe pertence.

- Não faço ideia do que possa ter sentido... do que possa ter significado para si. Mas sei o que sente por aquele rapaz.

No penúltimo semáforo antes do Good Samaritan, ela apercebe-se de para onde está a ser levada. Estica a mão direita e agarra-o. Uma última tentativa de sedução: podíamos ainda fugir os dois, desaparecer algures naquele extenso rio.

Weber pensa naquilo que ela já perdeu: a carreira, a comunidade, os amigos que tinha, um ano de vida e tantos quantos o rapaz possa querer tirar-lhe. Não é suficiente.

- Diga-lhe - aconselha ele. - Sabe que precisa de o fazer. Ela vira a cabeça, tentando explicar-se.

- Eu tentei - alega. - E tê-lo-ia feito, mas ele não me reconheceu...

- Em que altura?

O fingimento entre eles desmorona-se. Agora conhecem-se, sem quaisquer falsas aparências. Ela revolta-se.

- Porque está a fazer isto? Sou mais algum caso? O que quer de mim? Seu presunçoso e arrogante filho da...

Weber acena com a cabeça em sinal de assentimento.

- Vai ser capaz. - Contempla esse facto, a única coisa que sabe com certeza. - Vai ver que és capaz. Eu vou consigo.

Uma noite fria de Fevereiro numa estrada escura do Nebrasca. Ela está sozinha no carro, conduzindo ao acaso. Há algumas horas filmava o grande espectáculo da noite. Todavia, as câmaras não conseguiram captar a verdadeira força daquela reunião transcendental. As aves perturbaram-na de tal forma que não consegue regressar ao hotel. A equipa já há muito que esgotou os seus fundos, e ela está sozinha, em dificuldades, tão frágil e fraca como se sentia em Nova Iorque no Outono passado. Talvez tenha deixado a medicação demasiado cedo. Ou talvez sejam os grous, aqueles filamentos a flutuarem, aglomerando-se e trombeteando, enganados por milhões de anos de memória. O fim será rápido. Nunca saberão o que os atingiu.

Ela própria nunca saberia, se não tivesse seguido aquela história. A nova e silenciosa guerra nos pântanos. Pesquisou todos os pormenores e factos para aquela notícia. A sua espécie perdeu o juízo e agora, mais do que nunca, é cada vida por si. Os seus nervos estão em frangalhos, o carro alugado é sufocante e aquele troço recto de estrada é enervante. Tentou durante horas acalmar-se, passando tempo num restaurante, depois numa sala de cinema, a caminhar pela baixa deserta da cidade, a conduzir por aquelas estradas sem ninguém e ainda assim não está em condições de se deitar. Se conseguir aguentar mais algumas horas, só até de madrugada, e os pássaros novamente...

Até a antiga polifonia que sai das colunas do carro a deixa em frangalhos. Desliga o rádio, os dedos tensos. Contudo, o silêncio naquela escura e gelada noite de Fevereiro é ainda pior. Aguenta apenas trinta segundos antes de voltar a ligar o rádio. Avança e recua no sintonizador, tentando apanhar algo mais concreto. Encontra uma estação que lhe agrada, não interessa o assunto. É conversa, e apenas conversa a pode ajudar naquele momento.

A voz acetinada de uma mulher insinua-se-lhe ao ouvido. Por momentos soa-lhe a conversa de renascimento cristão - nenhum crente é deixado para trás. Porém aquelas palavras são piores do que religião. Factos. A voz feminina recita uma litania, algo entre uma lista de compras e um poema. A raça humana demorou 250 milhões de anos a atingir mil milhões de pessoas. Levou 123 anos a chegar aos dois mil milhões. Trinta anos mais tarde chegava-se aos três mil milhões. Depois em 14 anos, depois em 13, depois em 12...

Tremendo, pára na beira da estrada. Sozinha no meio de nenhu-res com aqueles números. Uma tempestade irrompe algures na sua cabeça. Os sinais aumentam de súbito, desencadeando-se uns aos outros. Nada na evolução a preparou para aquilo. Correntes de electricidade percorrem o seu corpo, acessos induzidos por aquela avalanche de factos, e quando a luz dos faróis surge reflectida no seu espelho retrovisor, o acto mais racional do mundo é abrir a porta e avançar na sua direcção.

Agora volta a entrar no hospital. No ano anterior haviam-na parado à entrada da enfermaria. É a irmã? Um aceno impensado com a cabeça foi o suficiente para a deixarem entrar. Desta vez ninguém a interrogou. Qualquer pessoa pode visitá-lo. Até a pessoa responsável pelo seu estado.

Ele está sentado na cama a ler um livro antigo e familiar. Ela percebe pela postura dele que o pior já passou. O rosto dele ilumina-se ao vê-la, aquela mistura de gratidão ideal e instintiva. Contudo, desvanece-se no mesmo instante em que olha para a sua cara.

- O que aconteceu? - pergunta ele. - Quem morreu?

Ela deixa-se ficar aos pés da cama. Só o facto de ali estar pode despertar a memória dele. Ainda se encontra lá tudo, no peso das suas sinapses. Mas ainda assim ela vê-se forçada a contar-lho. Os rodados dela foram os primeiros. O carro que estava atrás dele encontrava-se na verdade à sua frente. Ela estava no meio da estrada. Ele capotou a carrinha ao evitar matá-la.

- Como? - pergunta ele. - Porquê? As peças não encaixam.

Ela está viva graças a ele. Ele sofreu uma lesão cerebral por causa dela.

- É o meu anjo da guarda? Foi a Barbara quem escreveu o papel?

- Não - diz-lhe. - Não fui eu.

Ela encontra-se novamente à frente dele, em memória, apenas horas depois da primeira vez, na estrada deserta. Está ainda intacto e reage, preso a tubos, mas não ainda comatoso. Isso virá mais tarde. O choque daquela visita irá provocá-lo. Agora, junto à sua cama na unidade de traumatismos, reconhece-a. Fita-a, aterrorizado. Ela regressou, a coluna branca da qual teve de se desviar para não embater. É uma criatura sobrenatural que se ergueu dos mortos. Porém, o rosto dela parece distorcido e sons abafados saem-lhe da boca. Ele recua antes de entender: está a implorar-lhe perdão.

Ele tenta dizer-lhe. Nada emerge da sua garganta a não ser um sibilo seco. Ela inclina-se e aproxima o ouvido dos seus lábios. Nada. A sua mão direita agita-se no ar, pedindo caneta e papel. Ela procura-os dentro da mala e entrega-lhos. Já meio paralisado pela pressão que aumenta no interior do seu crânio, os lobos feridos inchando contra o osso fixo, e com uma mão magoada que não é sua, escreve as palavras:

Não sou Ninguém

mas esta Noite em North Line Road

DEUS guiou-me até si

para que pudesse VIVER

e trazer de volta outra pessoa.

Encaixa-lhe o papel entre os dedos. Enquanto ela o lê, o hemisfério direito dele sofre um pico de pressão e ele deixa-se cair na cama. Depois fica imóvel.

Destruiu-o por duas vezes. Em pânico reptiliano, larga o papel sobre a mesa-de-cabeceira e desaparece.

A angústia dele emerge. Mesmo enquanto ela advoga em sua defesa, os seus olhos renegam-na. No olhar dele, a santa desintegra-se e ela volta a ser quem sempre foi.

Permitiu que a procurasse durante um ano e nunca disse nada. Como foi capaz? Era a minha... Teria feito qualquer coisa...

Ela encontra-se à frente dele, apagada. Perdeu até o direito de se defender. Tira o papel da gaveta de mesa-de-cabeceira e agita-o no ar, chicoteando-o.

Se foi isso que aconteceu... que diabos faço eu com isto? Afastem-no de mim.

Atira-lhe o pedaço de papel plastificado. Cai no chão. Ela dobra-se para o apanhar.

Isto é teu. É a tua maldição, não a minha.

A sua boca mexe-se, perguntando Como? Quem? Mas não emite qualquer som.

A raiva de Mark explode.

Você é que supostamente devia ir fazer isto. Vá trazer de volta outra pessoa.

Alguém permanece em silêncio junto à porta, trazido de volta por um bilhete que irá circular para sempre. Para que pudesse viver. E agora essa maldição pertence-lhe a ele.

De que se lembra uma ave? De nada que qualquer outra coisa pudesse dizer. O seu corpo é um mapa dos lugares onde já esteve, nesta vida e antes. Uma vez chegado a estes baixios, o juvenil do grou sabe como regressar. No próximo ano, por esta altura, regressará e encontrará um parceiro para toda a vida. E no ano a seguir a esse: aqui de novo, a transmitir o mapa à sua própria cria. Então uma outra ave se lembrará daquilo de que as aves se lembram.

O passado do jovem grou flui e desagua no presente de todas as coisas vivas. Algo no interior do seu cérebro estuda e aprende o rio, uma palavra sessenta milhões de anos mais antiga do que a própria linguagem humana, mais velha ainda do que esta água rasa. Esta palavra continuará a existir mesmo depois de o rio desaparecer. Quando a superfície da Terra estiver crestada e arruinada, quando a vida for sendo esmagada até quase ser extinguida, esta palavra encetará então o seu lento regresso. A extinção é breve; a migração algo duradouro. A natureza e os seus mapas servir-se-ão do que de pior o ser humano lhes aprontar. As gerações vindouras de corujas dominarão a noite, milhões de anos depois de as pessoas terem precipitado o seu próprio fim. Não se sentirá a nossa falta. A descendência do falcão pairará nos ares, descrevendo círculos sobre os campos incultos. Os bicos-de-tesoura, os borrelhos e os maçaricos nidificarão nos milhares de ilhas de estruturas de Manhattan. Grous ou algo parecido voltarão a passar os rios a pente fino. Quando tudo o resto se for, as aves encontrarão a água.

Quando Karin Schluter entra no quarto do irmão, o homem que tem andado a negá-la desapareceu. No seu lugar, um Mark que ela nunca antes viu está sentado numa cadeira, veste um pijama às riscas, está a ler um livro com a imagem de uma pradaria na capa. Ergue o olhar como se ela estivesse já bastante atrasada para um encontro marcado há muito.

- És tu - diz ele. - Estás aqui. - A sua língua forma uma taça em redor do céu-da-boca, prestes a formar um K, mas é atravessado por um estremecimento e vira a cabeça para o lado.

Os músculos da face dela retesam-se. Uma vaga abate-se sobre ela. Ele está de volta; reconhece-a perfeitamente. Aquilo de que precisou durante todos aqueles meses, mais do que tudo. O reencontro com que sonhou ao longo de mais de um ano. Contudo, não é nada daquilo que imaginara. O regresso é demasiado brando, chega de modo demasiado gradual.

Ele fita-a, mudado de uma forma que ela não consegue identificar. Esboça um sorriso.

- Porque razão demoraste tanto? - Ela agarra-se a ele, puxa-lhe o pescoço para junto da sua cara. Por entre as faces dos dois flui um rápido. - Não me molhes - reclama ele. - Já tomei banho hoje. - Empurra a cabeça dela para longe de si e segura-a entre as suas mãos. - Caramba, olha bem para ti. Há coisas que nunca mudam.

Ela tem de voltar a fitá-lo por alguns instantes até se aperceber da diferença.

- Meu Deus, Mark. Estás a usar óculos.

Ele tira-os da cara para os inspeccionar melhor.

- Pois é. Não são meus. Pedi-os emprestados a um tipo ali ao lado. - Volta a pô-los na cara e pousa o livro no peitoril da janela, por cima de outro. Uma cópia de A Sand County Almanac. - Tenho andado a marrar.

Ela conhece aquele livro. Não deveria estar ali.

- Onde foste buscá-lo? Quem foi que to deu? - Um tom mais irritado do que ela pretende. Mesmo sem querer: irmão e irmã de novo, cedo de mais.

Ele olha para o livro, como se o fizesse pela primeira vez.

- Quem achas que mo deu? O teu namorado. - Vira-se para ela, num tom mais expansivo. - Um tipo complicado. Mas tem uma série de teorias intrigantes.

- Teorias? Acerca de quê?

- Acha que estamos todos lixados. Que ficámos marados ou coisa do género. Um bocadinho alucinado, não dirias?

A medicação está a fazer efeito, os choques ligeiros, mas tão gradualmente que quase não se distingue. O mesmo subsistema cerebral que o desligou da realidade sem ele se dar conta está agora a impedi-lo de se aperceber do seu regresso. É com espanto que ela o observa transformar-se de novo em si mesmo, no velho Mark.

- Estragámos as coisas por cá, por isso o teu Danny já está de olhos postos no Alasca.

Ela senta-se numa cadeira junto dele, com os braços em redor do peito para os manter quietos.

- Sim, ouvi dizer que sim.

- Vai arranjar um emprego novo. Vai passar o Verão inteiro com os grous, onde eles procriam. - Abana a cabeça perante o enigma que todas as coisas vivas constituem. - Já está farto de nós todos, não é?

Ela começa por querer explicar, mas acaba por se limitar a dizer:

- Sim.

- Não quer estar por cá quando acabarmos por dar cabo disto tudo.

A garganta dela fecha-se e os olhos enchem-se de amargura. Apenas acena com a cabeça.

Ele vira-se para ela. Receia fazer-lhe a pergunta.

- Vais com ele?

Já há muito que deveria ter-se habituado a esta dor.

- Não - responde-lhe. - Não me parece.

- Para onde vais, então? Para casa, presumo? - O cérebro dela, vago e indefinido, bravio. Não consegue dizer seja o que for. - Claro - acrescenta ele. - De regresso à terra dos Sioux. A menina de Sioux City.

- Vou ficar, Mark. No Refúgio dizem que ainda posso ser útil. Têm falta de gente, agora. - A água ainda não a dispensou.

Ele olha para longe, como se estivesse a ler palavras escritas na janela selada.

- Faz sentido, suponho. Sem o Danny por lá. Bem, alguém tem de fazer o papel dele, já que ele não quer.

Então é assim que tudo termina. De modo tão gradual que nenhum dos dois se apercebe das mudanças a engrenar. Ela pretende que ele se liberte de uma vez por todas, que acorde e se levante daquele sonho febril e se dê conta do que acabou de lhes acontecer. Porém, ele voltará a esmagá-la, desta vez vindo de outra direcção. Afirmará que sabia quem ela era, que sempre soube. Nenhuma torrente de firmeza a preenche novamente. Quando muito, toda a estrutura ficou ainda mais fraca, sem sequer haver um ferimento ao qual atribuir as culpas.

Ele estica as pernas e cruza-as, fingindo estar a descansar.

- Então, o Cain vai para a prisão ou quê? Ah, não, esqueci-me. Totalmente inocente. Sabes o que deviam fazer com aquele tipo? Deviam mandá-lo para o próximo Iraque. Usá-lo como refém. - Mark olha para cima, com ar de quem não compreende. - Era Barbara. O tempo todo, Barbara.

Ele tem outra vez seis anos, está aterrorizado. E ela de um lado para o outro, a tentar confortá-lo. Por uma vez, ele deixa-se confortar, de tão destroçado que está. Ele aperta a testa, depois abana a cabeça. Cobre os olhos com as mãos.

- Já sabes disto? - Ela acena afirmativamente. - Sabes que foi ela? - Agarra o crânio, a origem de toda a confusão. Ela volta a acenar com a cabeça. - Mas não sabias... antes?

Ela abana a cabeça numa veemente negação.

- Ninguém sabia.

Ele tenta perceber tudo.

- E tu estiveste aqui... o tempo todo?

Ele desaba sobre si mesmo, sem sequer querer uma resposta. Quando se recompõe o suficiente para voltar a falar, as suas palavras surpreendem-na.

- Ela diz que está. Diz que não é nada, agora.

Ela irrita-se, sentindo-se insultada por o irmão ainda se preocupar com ela. Profundamente indignada por a mulher os ter abandonado, depois de tudo o que fez por eles. Mais uma desilusão. Mais um caso de piedade desperdiçada.

- Caramba! - exclama ela de repente. - Uma mulher com as competências dela! Só porque fez um disparate, acha que já não pode ser útil neste mundo? Estamos aqui aflitos. E ela pretende rebolar e fazer-se de morta?

Mark olha para ela, confundido. Uma qualquer possibilidade anima-o. A sua própria perda não tem qualquer significado. Foi isto que o acidente lhe trouxe.

- Pede-lhe - propõe ele. Receoso de sugerir até mesmo esta insignificância.

- Eu não. Nunca mais volto a pedir seja o que for àquela mulher.

Ele senta-se direito, dentes cerrados em terror, como um animal.

- Tens de pedir-lhe para trabalhar para ti. Não estou só a dizê-lo por dizer. É da minha vida que se trata. - Ele abranda e respira. Volta a esfregar os olhos com as mãos. Aponta para o saco que contém a solução intravenosa, como que a justificar-se. - Bolas, tenho de voltar a tomar as rédeas da situação. O que estão eles a fazer-me? De repente fiquei todo emocional. Com tudo aquilo que sabem actualmente, é provável que pudessem até transformar alguém noutra pessoa qualquer.

Para ela, já não parece tratar-se de uma alucinação. Amanhã será pior.

Ele observa-a, esquecendo tudo o que não sejam as necessidades imediatas. Envolve o antebraço dela com os dedos, a medir.

- Não tens andado a alimentar-te.

- Tenho, pois.

- Comida? - pergunta ele, num tom céptico. - Ela não é assim tão magra.

- Ela quem?

- Deixa-te lá disso! Não me venhas com essa. “Quem?” A minha irmã. - E então, ao registar o momento de pânico que ela esboçou, solta uma gargalhada profunda. - Olha bem para ti! Tem lá calma. Estou só a gozar contigo.

Mark recosta-se na cadeira, estica as pernas e os seus ténis pretos, cruza as mãos por detrás da cabeça. É como se tivesse 65 anos, como se estivesse reformado. Daqui a três meses, o irmão dela irá de novo embora, ou talvez a irmã dele, algures para onde o outro não o possa acompanhar. Mas agora, por alguns momentos, eles conhecem-se, por causa do tempo que passaram afastados.

- Ao menos alguém fica por cá. É isso que vou fazer. Permanecer num local que conheço. Para onde se pode ir, de resto, com o inferno que anda por aí à solta?

As narinas dela estremecem e sente os olhos a arder. Tenta dizer para lugar nenhum, mas não consegue.

- Quero dizer, quantos locais podemos considerar a nossa casa?

- Acena com a mão na direcção da janela cinzenta. - Não é um lugar tão mal assim ao qual regressar.

- O melhor lugar do mundo - concorda ela. - Seis semanas, todos os anos.

Deixam-se ficar sentados durante algum tempo, sem estarem propriamente a conversar. Pode tê-lo para si mesma, em recuperação, durante mais um minuto. Porém, ele volta a ficar agitado.

- É isto que me assusta: como pude durante tanto tempo pensar...? Então como podemos ter agora a certeza...?

Ele levanta os olhos com ansiedade, vê-a a chorar. Assustado, recolhe-se e afasta-se. Mas ao ver que ela não pára, chega-se junto dela e sacode-lhe o braço. Tenta balouçá-lo, não lhe ocorrendo mais nada que possa acalmá-la. Continua a falar, diz coisas sem sentido, como se falasse para uma criança.

- Sei como te sentes. Foram dias difíceis para ambos. Mas olha! - Vira-a para a janela, através da qual se assiste a uma tarde monótona e carregada de nuvens, típica do rio Platte. - Nem é assim tão mau, hã? Na verdade, é igualmente bom. Em certos aspectos, é até melhor.

Ela esforça-se por recuperar a voz.

- Que queres tu dizer, Mark? “Igualmente bom?” Tão bom como quê?

- Como nós, quero eu dizer. Tu. Eu. Aqui. - Aponta para a janela, em sinal de aprovação: as Grandes Planícies. O rio dos baixios. Os seus parentes mais próximos, aquelas aves migratórias. - Seja o que for que chames a tudo isto. Tão bom como a realidade.

Existe um animal perpendicular a todos os demais. Um que voa em ângulos rectos em relação às estações. Faz o check-in, passando pela segurança graças ao seu instinto. Navega com recurso a memória muscular. Só o monótono discurso dos lembretes automáticos o consegue despertar: Os passageiros deverão sempre fazer-se acompanhar das respectivas bagagens. Os regulamentos governamentais proíbem...

Os aeroportos estão repletos de guerra. Na área de espera em Lincoln, é assaltado por monitores de televisão. Os programas noticiosos 24 horas por dia repetem incessantemente os mesmos 24 segundos de notícias, e ele não consegue olhar para mais lado nenhum. É o terceiro dia, o baixo grave continua a entoar, por sobre os instrumentos de sopro sintetizados, no intervalo entre cada segmento noticioso. Quadros esquematizados de aspecto mágico, mapas computorizados com batalhões que se movem, e generais na reserva a acompanhar tudo, a par e passo. Jornalistas integrados nas colunas militares, impedidos de relatar os factos a que assistem, debitam sinuosas especulações. Cessam todas as demais notícias acerca do resto do mundo.

Em Chicago, mais do mesmo: um táxi pára junto a uma zona de controlo na parte norte de uma cidade que poderá ou não estar sob o controlo dos ocupantes. O condutor acena, como que a pedir ajuda. Quatro soldados cometem o erro de se aproximar. Mesmo à sexta vez que assiste àquela história, Weber permanece sentado, como que petrificado, como se à sétima vez o resultado pudesse ser diferente.

De novo no ar, arrastando-se de regresso a Leste na sua enviesada rota, torna-se transparente, mais delgado do que uma fina película. Uma voz pede: Por favor não circule pela cabina nem permaneça em pé nos corredores. Tenta encontrar as palavras, um colete de salvação. Algo na sua espécie se desprende. O rapaz-homem é que estava certo: mais consistente com a síndrome de Capgras do que esta constante suavização da consciência. Tivera em tempos um doente - Warren, de que falara em O País da Surpresa -, um especulador bolsista com 32 anos de idade que praticava alpinismo aos fins-de-semana e que veio a rolar pela face de uma ravina escarpada, até aterrar sobre a respectiva testa. De regresso do coma, Warren emergiu para um mundo habitado por monges, soldados, modelos de moda, vilões de filme e criaturas semi-humanas e semi-animais, todas elas a falar com ele de modo perfeitamente natural. Weber seria capaz de destruir cada palavra, cada uma das cópias de livros que levam o seu nome por uma oportunidade de voltar a contar a história de Warren, agora que realmente sabe do que está a falar.

Está cercado. Até mesmo a cabina selada que o envolve se infectou de vida. Tudo é animado, verde, usurpador. Dezenas de milhões de espécies fervilham em seu redor, poucas delas são visíveis, menos ainda têm sequer um nome, prontas a experimentar seja o que for, todas as formas possíveis de logro e abuso, apenas para manter a sua existência. Observa as suas próprias mãos, que tremem, florestas húmidas inteiras de bactérias. Insectos escondem-se nas profundezas dos interstícios da cablagem deste avião. Sementes habitam os compartimentos de carga. Fungos espalham-se por sob o revestimento de vinil da cabina. Do lado de fora da sua pequena vigia, congelados no ar rarefeito, arquebactérias, microorganismos multirresistentes e extre-mófilos vivem do nada, na escuridão, em temperaturas abaixo de zero, limitam-se a copiar-se. Qualquer um dos códigos que se manteve vivo até este momento é infinitamente mais brilhante do que a mais subtil das suas ideias. E logo que as suas ideias morram, ainda mais brilhantes serão.

O homem sentado ao seu lado, que vinha a interrogar-se desde o início da viagem, reúne por fim coragem suficiente para lhe dirigir a pergunta:

- Não o conhecerei de algum lado?

Weber estremece, um esgar assimétrico, fantasmagórico, roubado de um dos seus pacientes.

- Não me parece.

- É claro, o tipo dos cérebros.

- Não - responde-lhe Weber.

O estranho examina-o, desconfiado.

- Claro que sim...

- Não sou eu - insiste Weber. - Trabalho na recuperação de terrenos.

Hospedeiras deslocam-se pelo corredor, para trás e para a frente. Uma passageira do lado de lá do corredor despeja um animal esmagado para a sua boca gigantesca. Weber sente a pele enrugar-se no interior do seu fato repleto de nódoas. As suas ideias deslizam como pequenos insectos sobre a água. Dele nada resta a não ser estes novos olhos.

No interior da sua prolífica cabeça, as imagens do último dia perseguem-no. No seu lugar por detrás da asa, Weber revê a última cena repetidas vezes - recompõe-na, rebobina-a, revive-a. Mark no seu quarto no Good Samaritan, a ver os mesmos noticiários vazios e abstractos acerca da guerra, tal como o resto do mundo em seu redor, desconcertado. A vê-los, inexoravelmente, como se, observando ele os exércitos que avançam durante o tempo suficiente, pudesse vir a reconhecer um velho amigo. O neurocientista cognitivo está de pé junto à cama, titubeia sob a televisão montada na parede, esquece-se por que razão ali está até que o próprio doente lho recorda.

- Já se vai embora? Mas qual é a pressa? Acabou de aqui chegar.

Ergue ambas as mãos em jeito de desculpa. A luz atravessa-as sem qualquer dificuldade.

Mark entrega-lhe uma edição usada de My Antónia.

- Para a viagem. Li-o quando fazia parte de um pequeno clube literário. Uma coisa para atrair as miúdas. Precisava de uma boa perseguição com helicópteros para se tornar num clássico. Uma cena de mergulho todos nus, ou assim. Mas passado em terras do Nebrasca, à séria. Por fim, lá consegui engoli-lo.

Weber estica a mão para agarrar a história que foi posta de parte. Uma mão esgueira-se até à sua e agarra-a.

- Doutor? Há uma coisa que não consigo entender. Eu salvei-a. Eu sou... o anjo da guarda daquela mulher. Dá para acreditar? Eu. - As palavras soam espessas e estranhas na sua boca, uma maldição pior do que o bilhete mal interpretado. - Que hei-de eu fazer com isto?

Weber permanece imóvel, como que congelado no meio daquele brilho intenso. É a pergunta que também ele se coloca. Ela estará com ele, firme e inabalável, para onde quer que ele vá. O acidental que se torna presente. Ninguém pode fazer nada por ninguém, para além de recordar: nascemos a cada segundo.

Mark implora a Weber, os seus olhos cintilam com o temor que só a consciência permite:

- Precisam dela no Refúgio. Pergunte à minha irmã. Precisam de uma investigadora. Uma jornalista. Seja lá ela o que for, eles precisam dela. - A sua voz negava qualquer envolvimento pessoal. - Bolas, ela não pode simplesmente ir-se embora. Não é que ela seja propriamente uma agente livre, independente... Está metida nisto até ao pescoço, neste lugar, quer goste quer não. Acha que eu poderia...? O que acha que ela iria... ?

Incapaz de saber o que qualquer outra pessoa faria. De saber qual a sensação de ser seja quem for.

- A minha irmã não lhe irá pedir. E eu nem sequer me atrevo. Do modo como as coisas ficaram? Depois do que lhe disse? Ela vai odiar-me para sempre. Nunca mais vai querer falar comigo.

- Podia tentar - propõe Weber. De novo a fingir, investido de autoridade nenhuma. Sem outras provas que não sejam uma vida inteira de histórias de casos. - Julgo que podia tentar.

Ele próprio está só a tentar prolongar. Se é que o Director de Viagem se lembra sequer de Weber, não está a aceitar atender chamadas de ninguém. Mas qualquer outra coisa está a dar sinal de mensagem, demasiado suave para ser audível. Através da janela de plástico do avião, as luzes de cidades desconhecidas cintilam lá em baixo, centenas de milhões de células brilhantes ligadas umas às outras, a trocar sinais entre si. Mesmo aí, a criatura espalha-se, abarca inúmeras espécies. Coisas que voam, se escondem, rastejam, cada caminho talha todos os outros. Um tear que cintila, eléctrico, sinapses do tamanho de ruas a formar um cérebro com pensamentos que se estendem por quilómetros, demasiado vastos para serem descortinados. Um emaranhado de sinais que escreve uma teoria das coisas vivas. Células expostas à chuva e ao Sol, uma interminável selecção que se combina agora numa mente do tamanho de continentes inteiros, impossivelmente consciente, omnipotente, mas frágil como uma névoa, células com mais alguns anos para descobrir a melhor maneira de se interligarem e qual o seu destino, antes de se extinguirem e se reconverterem em água.

Durante o voo passa os dedos pelo livro de Mark, percorre-o ao acaso, como se este registo oculto pudesse ainda prever o que aí vem. As palavras são mais obscuras do que a mais complexa pesquisa cerebral. Lufadas de pradaria, mil variedades de ervas altas que se desprendem das páginas. Ele lê e relê, mas não retém nada. Esquadrinha as notas que Mark fez à margem, os desesperados rabiscos junto de qualquer passagem que pudesse conduzi-lo em frente, para longe da confusão permanente. Mais para o fim, as trémulas marcas do sublinhado vão-se tornando mais desordenadas e largas:

Esta fora a estrada do Destino; conduzira-nos àqueles primeiros acidentes da fortuna que para nós predeterminavam tudo aquilo que alguma vez poderíamos vir a ser. Agora eu entendia que era essa mesma estrada que nos iria novamente juntar. Fosse o que fosse que tivéssemos perdido, tínhamos em comum o precioso e incomunicável passado.

Levanta o olhar da página e ocorre a fractura. Já sem um todo para proteger, nada de mais sólido do que células entrançadas e cintilantes. O que os exames sugerem, ele viu bem de perto, no campo: antepassados remotos que ainda se mantêm empoleirados no seu tronco cerebral, circulando em contínuo regresso, ao longo das curvas da água. Ele avança aos tropeções em direcção a esse facto, o único suficientemente amplo para o trazer de volta a casa, tombando para trás, rumo ao incomunicável, ao que ficou por reconhecer, o passado que ele irremediavelmente danificou, por simplesmente ser. Que destruiu e refez a cada pensamento. Um pensamento que precisa de transmitir a alguém antes que, também este, cesse de existir.

Uma voz chama para o desembarque. No aperto dos que se levantam, ele permanece de pé e agarra com firmeza a sua bagagem de mão, largando uma camada de si em tudo o que toca. Tropeça ao longo da manga que conduz ao terminal, entra num outro mundo, é trocado por impostores a cada passo que dá. Precisa que ela esteja lá, do outro lado da entrega das bagagens, se bem que tenha perdido todo e qualquer direito a essa esperança. Ali, a segurar um pequeno cartão com o seu nome, bem impresso para que ele o consiga reconhecer. Marido deverá ler-se no cartão. Não, Weber. Será ela que o empunhará e será assim que ele tem de a encontrar.

 

                                                                                Richard Powers  

 

                      

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