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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O ECO DISTANTE
O ECO DISTANTE

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

30

Matizes cinzentos de sujeira começaram a se materializar na escuridão da cidade poluída. Alex deixou-se cair em um banco gelado no hospital, o rosto banhado em lágrimas. Nada em sua vida o havia preparado para uma noite como aquela. Passara do cansaço a um estado alterado onde tinha a impressão de que jamais conseguiria dormir novamente. A sobrecarga emocional era tamanha que ele não sabia mais o que estava sentindo.

Não conseguia se lembrar do caminho de Glasgow para Edimburgo. Sabia que tinha ligado para os pais em algum momento, tinha uma vaga lembrança de ter tido uma conversa tumultuada com o pai. As lágrimas escorriam pelo seu rosto. Todas as coisas que ele sabia que podiam dar errado. Todas as coisas que ele não tinha certeza se podiam dar errado com um bebê com trinta e quatro semanas de gestação. Desejou ser Esquisito, para poder confiar em algo menos falível do que os médicos. Que diabos ia fazer sem Lynn? Que diabos ia fazer com um bebê sem Lynn? Que diabos ia fazer com Lynn sem um bebê? Os presságios eram os piores possíveis: Mondo morto no necrotério de um hospital qualquer e Alex, que não havia estado onde deveria estar na noite mais importante da sua vida.

Abandonara o carro em algum lugar do estacionamento do hospital e conseguira encontrar a entrada para a ala da maternidade, na terceira tentativa. Quando finalmente alcançou a recepção, estava suado e ofegante, grato por saber que as enfermeiras na maternidade na certa já haviam visto de tudo na vida, de modo que um sujeito com a barba por fazer, de olhos arregalados, balbuciando como um louco nem chegava a abalar a escala Richter delas.

- A senhora Gilbey? Ah, sim, nós a levamos direto para a sala de parto.

Alex tentou concentrar-se nas indicações do caminho, repetindo-as baixinho enquanto cruzava os corredores do hospital. Tocou o interfone de segurança e olhou ansiosamente para as lentes do vídeo, torcendo para estar mais parecido com um futuro papai do que com um lunático à solta. Após o que lhe pareceu uma eternidade, a porta se abriu, fazendo um zumbido, e ele saiu aos tropeções para a sala de parto. Não sabia ao certo o que esperava encontrar, mas com certeza não era aquela antessala vazia e aquele silêncio soturno. Hesitou por um instante, sem saber o que fazer. Neste momento, uma enfermeira surgiu de um dos diversos corredores à sua volta.

- Sr. Gilbey? - perguntou ela.

Alex assentiu com um movimento frenético de cabeça.

- Onde está Lynn? - indagou ele.

- Acompanhe-me.

Ele a seguiu de volta pelo corredor.

- Como ela está?

- Está indo bem. - Ela fez uma pausa, com a mão apoiada na maçaneta. - Precisamos que o senhor a acalme. Ela está um pouco nervosa. Tivemos uma ou duas quedas no batimento cardíaco do feto.

- O que isso quer dizer? O bebê está bem?

- Não é nada preocupante.

Detestava quando os médicos diziam isso. Soava sempre como uma mentira deslavada.

- Mas ainda é muito cedo. Ela só está com trinta e quatro semanas.

- Tente não se preocupar. Eles estão em boas mãos.

A porta se abriu e Alex deparou-se com uma cena que não tinha qualquer semelhança com as práticas que haviam feito nas aulas do pré-natal. Era difícil conseguir imaginar algo mais distante do sonho dele e de Lynn de um parto natural. Três mulheres usando trajes cirúrgicos andavam para lá e para cá, afoitas. Uma quarta mulher, com um jaleco branco, examinava o monitor com visor eletrônico ao lado da cama. Lynn estava deitada de barriga para cima, com as pernas abertas, o cabelo grudado na cabeça, empapado de suor. O seu rosto estava vermelho e úmido, os olhos arregalados e cheios de angústia. A camisola fina do hospital estava grudada no seu corpo. O tubo de soro ao lado da cama desaparecia sob ela.

- Puta que pariu, ainda bem - disse ela, ofegante. - Alex, estou com medo.

Ele correu para o lado dela, alcançando a sua mão. Ela segurou com força.

- Eu te amo - disse ele. - Você está indo bem.

A mulher de jaleco branco levantou os olhos.

- Oi, eu sou a doutora Singh - disse ela, vendo que Alex tinha chegado. Ela se juntou à parteira, aos pés da cama. - Lynn, estamos um pouco preocupadas com os batimentos cardíacos do bebê. Não estamos progredindo tão rápido quanto eu gostaria. Talvez tenhamos que fazer uma cesariana.

- Qualquer coisa para tirar o bebê daqui - gemeu Lynn.

De repente, houve uma agitação geral.

- O bebê está preso - disse uma das parteiras. A dra. Singh examinou o monitor brevemente.

- Os batimentos cardíacos estão caindo - disse ela. Tudo começou a acontecer mais rápido do que Alex conseguia captar, enquanto apertava firme a mão melada de suor de Lynn. Ouviram frases assustadoras como "Vamos levá-la para a sala de cirurgia", "Insiram o cateter" e "Precisamos do formulário de consentimento". E a cama foi levada, a porta aberta e todos saíram apressados pelo corredor, direto para a sala de cirurgia.

O mundo transformou-se em um borrão de atividade. O tempo parecia acelerado e vagaroso ao mesmo tempo. E então, quando Alex estava prestes a perder as esperanças, ouviu as palavras mágicas:

- É uma menina. Vocês têm uma filha.

Os seus olhos encheram-se de lágrimas e ele virou-se para ver a filha. Ela estava coberta de sangue e avermelhada, assustadoramente quieta e silenciosa.

- Meu Deus - disse ele. - Lynn, é uma menina. - Mas Lynn não estava mais consciente.

Uma das parteiras embrulhou prontamente o bebê em uma manta e saiu às pressas. Alex levantou-se.

- Ela está bem? - Foi levado para fora da sala, aturdido. O que estava acontecendo com o seu bebê? Será que ela estava viva? - O que está acontecendo? - indagou ele.

A parteira sorriu.

- A sua filha está bem. Está respirando por conta própria, o que é uma das maiores preocupações nos bebês prematuros.

Alex deixou-se cair pesadamente em uma cadeira, com as mãos no rosto.

- Só quero que ela fique bem - disse ele, aos prantos.

- Ela está indo muito bem. Nasceu pesando dois quilos, o que é um bom sinal. Sr. Gilbey, já fiz o parto de alguns bebês prematuros e posso dizer que a sua garotinha é uma das mais fortes que eu já vi. Ainda é muito cedo, mas eu acho que ela vai ficar bem.

- Quando é que eu vou poder vê-la?

- O senhor pode ir lá embaixo na UTI neonatal, dar uma olhadinha nela. Ainda não vai poder segurá-la, mas como ela está conseguindo respirar sozinha, acho que amanhã mesmo, ou depois de amanhã, o senhor já vai poder colocá-la nos braços.

- E Lynn? - perguntou ele, sentindo-se subitamente culpado por não ter perguntado antes.

- Estão dando os pontos agora. Ela passou por maus bocados. Quando eles a trouxerem de volta, estará exausta e desorientada. E vai ficar triste por não poder ficar com o bebê. O senhor precisa ser forte, por ela.

Não conseguia lembrar de mais nada, a não ser do momento único em que olhou através do berço transparente e viu a sua filha pela primeira vez.

- Posso tocar nela? - perguntou, temeroso. A sua cabeça miudinha parecia incrivelmente vulnerável e os seus olhinhos estavam fechados, bem apertados. Mechas de cabelo preto estavam grudadas na sua cabeça.

- Dê o seu dedo para ela segurar - instruiu a parteira.

Ele esticou a mão, hesitante, acariciando a pele enrugada da mãozinha da filha. Os seus minúsculos dedinhos abriram-se e apertaram o dedo do pai. E Alex foi capturado.

Sentou-se ao lado de Lynn até ela acordar e então lhe contou sobre o milagre que era a sua filha. Pálida e exausta, Lynn chorou.

- Eu sei que a gente tinha combinado que ela se chamaria Ella, mas eu quero chamá-la de Davina. Por causa do Mondo - explicou ela.

Alex estremeceu. Não pensara em Mondo desde que chegara ao hospital.

- Ah, meu Deus - disse ele e a culpa devorou a sua alegria. - É uma boa ideia. Ah, Lynn, eu não sei o que dizer. A minha cabeça parece que vai explodir.

- Você devia ir para casa, dormir um pouco.

- Preciso dar uns telefonemas. Avisar às pessoas.

Lynn deu uma palmadinha na mão do marido.

- Isso pode esperar. Você precisa dormir. Está exausto.

E então ele partiu, prometendo voltar mais tarde. Mal havia alcançado a entrada do hospital, se deu conta que não tinha forças para ir para casa. Ainda não. Encontrou um banco e deixou-se desmaiar sobre ele, perguntando-se como conseguiria sobreviver nos próximos dias. Tivera uma filha, mas não estava com ela nos braços. Perdera outro amigo, e não conseguia sequer pensar nas consequências desta perda. E, de alguma maneira, precisava ser forte para ajudar Lynn. Até então, sempre vencera as dificuldades, protegido pela certeza de que Ziggy ou Lynn o ajudariam a se levantar quando a vida o derrubasse.

Pela primeira vez na sua vida adulta, Alex sentiu-se terrivelmente sozinho.

James Lawson ouviu a notícia da morte de David Kerr pelo rádio, a caminho do trabalho na manhã seguinte. Não pôde conter um sorriso impiedoso de satisfação. Demorara bastante, mas finalmente o assassino de Barney Maclennan tivera o que merecia. Então os seus pensamentos voltaram-se inquietos para Robin e para o motivo que ele lhe entregara de bandeja. Alcançou o telefone do carro. Assim que chegou à polícia, foi direto para o gabinete da revisão dos casos. Por sorte, Robin Maclennan ainda era a única pessoa na sala. Estava parado em frente à máquina de café, esperando a água quente passar pelo filtro e desaguar no recipiente abaixo. Encoberto pela máquina, Lawson aproximou-se sem ser percebido e Robin levou um susto quando o seu chefe perguntou, abruptamente:

- Já ficou sabendo?

- Do quê?

- David Kerr foi assassinado. - Lawson apertou os olhos, examinando o detetive minuciosamente. - Ontem à noite. Na casa dele.

Robin ergueu as sobrancelhas.

- O senhor está brincando.

- Acabei de ouvir no rádio. Liguei para Glasgow para confirmar se era o nosso David Kerr e, por incrível que pareça, era ele mesmo.

- O que aconteceu? - Robin virou-se de costas, adicionando algumas colheradas de açúcar na sua caneca de café.

- A princípio, foi um assalto que deu errado. Mas depois descobriram que ele foi apunhalado duas vezes. Bem, normalmente um ladrãozinho amador em pânico pode até desferir uma facada, mas depois ele vai dar no pé. Esse sujeito fez questão de garantir que Davey Kerr não ia ficar vivo para abrir a boca.

- O que o senhor quer dizer com isso? - perguntou Robin, apanhando a cafeteira.

- Não sou eu quem está dizendo, é a polícia de Strathclyde. Estão abertos a outras possibilidades. Foi exatamente o que me disseram. - Lawson ficou esperando, mas Robin não disse nada. - Onde você estava ontem à noite, Robin?

Robin lançou um olhar furioso para Lawson.

- Onde o senhor quer chegar com isso?

- Calma, cara. Não estou te acusando de nada, não. Mas, sejamos francos, se alguém aqui tem um motivo para matar Davey Kerr, esse alguém é você. Eu sei que você jamais faria isso. Estou do seu lado. Só quero ter certeza de que você tem um álibi, entendeu? - Pousou a mão no ombro de Robin, acalmando-o. - Você tem um álibi?

Robin deslizou a mão pelo cabelo.

- Meu Deus, não. Ontem foi aniversário da mãe de Diane e ela levou as crianças para Grangemouth. Eles só voltaram bem depois das onze horas. Fiquei sozinho em casa. - Robin franziu a testa, preocupado.

Lawson balançou a cabeça.

- Isso não é nada bom, Robin. A primeira coisa que eles vão perguntar é por que você também não foi para Grangemouth.

- Eu não me dou bem com a minha sogra. Nunca me dei. Então Diane usa o meu trabalho como desculpa quando eu não apareço. Mas essa não foi a primeira vez. Eu não tentei escapar para poder ir até Glasgow matar Davey Kerr, Deus me livre. - Ele cerrou os lábios. - Qualquer outra noite, eu estava safo. Mas logo ontem... Que merda. Estou ferrado se eles ficaram sabendo o que Kerr fez com Barney.

Lawson apanhou uma xícara e serviu-se do café.

- Não vão ficar sabendo por mim.

- O senhor sabe como é este trabalho. Parece uma central de fofocas. Tá na cara que alguém vai descobrir. Vão começar a fuçar o passado de Davey Kerr e alguém vai lembrar que o meu irmão morreu tentando salvá-lo após aquela tentativa de suicídio ridícula. O senhor, se estivesse encarregado do caso, não ia querer conversar com o irmão de Barney? Sondar se por acaso ele não havia decidido que estava na hora de acertar as contas? Eu disse e repito: estou ferrado. - Robin virou de costas, mordendo os lábios.

Lawson apoiou a mão no braço dele, solidário.

- Vamos fazer o seguinte. Se alguém de Strathclyde perguntar, você estava comigo.

Robin estava visivelmente chocado.

- O senhor vai mentir por mim?

- Nós dois vamos mentir. Porque nós dois sabemos que você não teve nada a ver com a morte de Davey Kerr. Veja a coisa pelo seguinte ângulo: estamos poupando o tempo da polícia. Assim eles não vão perder tempo e energia investigando você em vez de estarem procurando o assassino.

Robin assentiu com a cabeça, relutante.

- É, isso é. Mas...

- Robin, você é um bom tira. Um bom homem. Do contrário, eu não o teria na minha equipe. Acredito em você e não quero ver o seu nome na lama.

- Obrigado, senhor. Agradeço muito a sua confiança.

- Esquece isso. Para todos os efeitos, eu dei um pulo na sua casa, a gente tomou umas cervejas, jogou umas rodadas de pôquer. Você ganhou umas vinte pratas de mim e eu fui embora lá pelas onze. Que tal?

- Combinado.

Lawson sorriu, bateu levemente com a sua caneca na caneca de Robin e foi embora. Aquela era a marca da liderança para ele. Antecipar o que a sua equipe precisava e atender antes mesmo que ela percebesse que estava precisando.

Naquela noite, Alex pegou a estrada novamente, de volta para Glasgow. Por fim, chegou em casa, onde o telefone estava estourando de tanto tocar. Já havia falado com os avós maternos e paternos da criança. Os pais dele pareceram um pouco constrangidos por terem ficado tão contentes, levando em consideração o que acontecera em Glasgow. Já os pais de Lynn reagiram de forma confusa, arrasados com o pesadelo que era a morte do seu único filho. Ainda era muito cedo para que o nascimento do seu primeiro neto lhes desse algum conforto. E saber que a criança estava na UTI neonatal era apenas mais um motivo de pesar e medo. Os dois telefonemas deixaram Alex em um estado que ultrapassava o cansaço; estava praticamente um zumbi. Mandou um e-mail breve para os amigos e colegas de trabalho, comunicando o nascimento de Davina, desligou o telefone da tomada e caiu no sono.

Quando acordou, mal podia acreditar que havia dormido por apenas três horas. Estava tão descansado quanto se tivesse passado o dia inteiro dormindo. Tomou uma ducha, fez a barba, pegou um sanduíche pronto e a câmera digital antes de voltar para Edimburgo. Encontrou Lynn na UTI neonatal, em uma cadeira de rodas, contemplando alegremente a filha.

- Ela não é linda? - perguntou ela de cara.

- Claro que é. Você já a segurou no colo?

- O melhor momento da minha vida. Mas ela é tão pequenininha, Alex. Parece que a gente está abraçando o ar. - Ela lançou um olhar aflito para ele. - Ela vai ficar bem, não vai?

- Claro que vai. Os Gilbeys são lutadores. - Eles deram as mãos, torcendo para que ele estivesse certo.

Lynn olhou para ele, preocupada.

- Estou tão sem graça, Alex. O meu irmão morreu e tudo o que eu consigo pensar é em como eu amo Davina, em como ela é preciosa.

- Sei exatamente o que você está sentindo. Estou nas nuvens, aí alguma coisa me faz lembrar do que aconteceu com Mondo e eu despenco lá de cima. Não sei como a gente vai conseguir superar isso.

No fim da tarde, Alex também já tinha conseguido segurar a filha nos braços. Tirou várias fotos e a exibiu para os seus pais. Adam e Sheila Kerr não tiveram condições de ir até lá e a ausência deles fez com que Alex lembrasse que não podia ficar encasulado para sempre nos prazeres da paternidade recente. Quando a enfermeira trouxe o jantar de Lynn, ele se levantou.

- Tenho que voltar para Glasgow - disse ele. - Preciso ver se Hélène está bem.

- Você não precisa se responsabilizar por ela - reclamou Lynn.

- Eu sei disso. Mas ela ligou para a gente - lembrou ele. - A família dela está muito longe. Ela pode estar precisando de ajuda para resolver as coisas. E, além do mais, eu devo isso a Mondo. Não fui um bom amigo para ele nos últimos anos e não posso fazer nada a respeito agora. Mas ele era parte da minha vida.

Lynn contemplou o marido com um sorriso triste e lágrimas nos olhos.

- Pobre Mondo. Não consigo parar de pensar em como ele deve ter ficado assustado no fim. E morrer sem ter a oportunidade de ficar bem com as pessoas que você ama... E Hélène, eu nem consigo imaginar como deve ser. Quando eu penso em como me sentiria se alguma coisa acontecesse com você ou com Davina...

- Não vai acontecer nada comigo. Nem com Davina - afirmou Alex. - Eu prometo.

Enquanto cobria a distância entre a alegria e o pesar, lembrava-se daquela promessa. Era difícil não se sentir atordoado com as mudanças recentes em sua vida. Mas ele não podia se dar ao luxo de sucumbir. Havia muita coisa dependendo dele agora.

Ao aproximar-se de Glasgow, ligou para Hélène. A secretária eletrônica o redirecionou para o celular dela. Xingando, ele encostou o carro e ouviu a mensagem novamente, anotando o número. Ela atendeu no segundo toque.

- Alex? Como está Lynn? O que aconteceu?

Ficou surpreso. Sempre considerara Hélène obcecada demais com os próprios problemas para se preocupar com alguém que não fosse ela mesma ou Mondo. O fato de a preocupação com Lynn e o bebê ter se instalado tão profundamente na sua dor, a ponto de ser a primeira coisa mencionada por ela, deixou Alex impressionado.

- Tivemos uma filha. - Aquelas eram as palavras mais importantes que ele proferira na vida. Sentiu um aperto na garganta. - Mas como ela nasceu prematura, tiveram que levar para a incubadora. Mas ela está indo bem. E é linda.

- E como está Lynn?

- Machucada. Em todos os sentidos. Mas está bem. E você?

- Nada bem. Mas estou me virando, eu acho.

- Escuta, estou indo aí te ver. Onde você está?

- A casa ainda está interditada como local do crime, ao que parece. Só vou poder voltar amanhã. Estou na casa da minha amiga Jackie. Ela mora em Merchant City. Você quer vir até aqui?

Alex não estava muito propenso a dar de cara com a mulher com que Hélène traíra Mondo. Chegou a pensar em sugerir um local neutro, mas soaria bastante insensível naquelas circunstâncias.

- Me dá o endereço - disse ele.

Não foi difícil encontrar o apartamento. Ele ocupava metade do segundo andar de um armazém convertido em residência, muito popular entre os solteiros da cidade. A mulher que abriu a porta não podia ser menos parecida com Hélène. Usava uma calça jeans velha, desbotada e desfiada nos joelhos. A sua camiseta regata anunciava que ela era "100% Grrrrl" e revelava músculos capazes de levantar o seu próprio peso em halteres sem derramar uma gota de suor. Abaixo de cada bíceps, uma intrincada tatuagem em forma de bracelete celta. O seu cabelo curto e negro estava espetado para cima com gel e o seu olhar era mordaz. As sobrancelhas escuras estavam franzidas sobre os seus olhos azul-acinzentados e em sua boca não havia nenhum sorriso acolhedor.

- Você deve ser o Alex - disse ela, deixando instantaneamente óbvias as suas raízes de Glasgow. - É melhor você entrar.

Alex a acompanhou por um típico loft que jamais agraciaria as páginas das revistas de decoração de interiores. Esqueça o modernismo estéril: aquele era o habitat de alguém que sabia exatamente do que gostava e como gostava. Uma das paredes estava coberta de cima a baixo por estantes, abarrotadas de livros, vídeos, CDs e revistas desorganizadas. Em frente, um aparato compacto de ginástica que permitia realizar diversos exercícios, com alguns halteres soltos de qualquer jeito no chão. A área da cozinha exibia o tipo de desarrumação típica do uso frequente e a sala de estar estava mobiliada com sofás que apelavam mais para o conforto do que para a elegância. Uma mesa de centro estava soterrada por pilhas de jornais e revistas. As paredes eram decoradas com fotografias emolduradas de mulheres esportistas, de Martina Navratilova a Ellen MacArthur.

Hélène estava encolhida no canto de um sofá de tapeçaria cujos braços atestavam a presença de um gato. Alex atravessou o chão de madeira polida até a sua cunhada, que suspendeu o rosto para a tradicional troca de beijos no ar. Os seus olhos estavam inchados e escuros, mas, fora isso, Hélène parecia ter voltado ao seu normal.

- Fico feliz por você estar aqui - disse ela. - Obrigada por ter vindo, quando você deveria estar curtindo o seu bebê.

- Como eu disse, ela ainda está na UTI neonatal. E Lynn está exausta. Imaginei que seria mais útil aqui. Mas... - ele lançou um sorriso para Jackie. - Vejo que você está sendo bem cuidada.

Jackie deu de ombros, sem desanuviar a sua expressão de hostilidade.

- Eu trabalho como jornalista freelancer, então posso manter o meu horário bem flexível. Você quer beber alguma coisa? Tem cerveja, uísque e vinho.

- Prefiro um café.

- Não temos café. Pode ser chá?

Nada como se sentir bem recebido, pensou ele.

- Chá está ótimo. Com leite, sem açúcar, por favor. - Sentou-se na outra extremidade do sofá, longe de Hélène. Os olhos dela davam a impressão de ter visto mais do que gostaria. - Como você está?

Os seus cílios tremelicaram.

- Estou tentando não sentir nada. Não quero pensar em David, porque o meu coração fica apertado. Não consigo acreditar que o mundo vai continuar sem ele. Mas preciso passar por isso sem me desesperar. A polícia está sendo horrível, Alex. Lembra daquela garota sem graça, parada no canto da sala ontem?

- A policial?

- Exatamente. - Hélène bufou de escárnio. - Acontece que ela estudou francês no colégio. Ela entendeu a nossa conversa ontem à noite.

- Putz, que merda.

- Que merda mesmo. O detetive encarregado do caso esteve aqui pela manhã. Falou comigo primeiro, queria saber sobre a minha relação com Jackie. Disse que não adiantava mentir porque a policial escutou tudo ontem. Então, eu contei a verdade. Ele foi muito gentil, mas deu para perceber que estava desconfiado.

- Você perguntou o que aconteceu com o Mondo?

- É claro que sim. - O rosto dela enrijeceu, pesaroso. - Ele disse que ainda não podia me adiantar grande coisa. O vidro da porta da cozinha foi mesmo quebrado, possivelmente por um ladrão. Mas eles não encontraram nenhuma impressão digital. A faca usada para golpear David foi tirada de um conjunto de facas da cozinha. Ele disse que, ao que parece, David ouviu um barulho e desceu para investigar. Mas ele enfatizou bem as palavras, Alex. Ao que parece.

Jackie voltou trazendo uma caneca na qual um decalque de Marilyn Monroe havia sido prejudicado pela lava-louças. O chá era forte, bem escuro.

- Obrigado - disse Alex.

Jackie acomodou-se no braço do sofá, com uma das mãos no ombro de Hélène.

- São uns homens das cavernas mesmo. Só porque a mulher tem uma amante, acham logo que ela ou a amante querem se livrar do marido. Eles não conseguem vislumbrar um mundo onde pessoas adultas fazem escolhas mais complexas do que estas. Eu tentei explicar ao policial que era possível fazer sexo com uma pessoa sem querer eliminar os outros parceiros dela. O babaca me olhou como se eu fosse de outro planeta.

Alex tinha que concordar com o policial naquele ponto. O fato de ser casado com Lynn não o deixara imune aos encantos de outras mulheres. Mas fazia com que ele repudiasse a ideia de tomar alguma atitude a respeito. No universo dele, amantes eram para pessoas que estavam com o parceiro errado. Imaginava como ficaria arrasado se Lynn um belo dia anunciasse que estava dormindo com outra pessoa. Sentiu uma pontada de pena por Mondo.

- Vai ver que eles ainda não têm nada em vista, por isso estão mantendo o foco em você - disse ele.

- Mas eu sou a vítima nessa história, não a criminosa - respondeu Hélène, amarga. - Não fiz nada contra David. Mas é impossível provar o contrário. Você mesmo sabe muito bem como é difícil dispersar a suspeita depois que apontam o dedo para você. Isso deixou David tão perturbado que ele tentou até se matar.

Alex estremeceu sem querer, diante daquela lembrança.

- Não vai chegar a este ponto.

- Pode ter certeza que não - acudiu Jackie. - Amanhã cedo vou conversar com um advogado. Não vou ficar de braços cruzados.

Hélène pareceu preocupada.

- Tem certeza de que é uma boa ideia?

- Por que não? - perguntou Jackie.

- A gente não tem que contar tudo ao advogado? - Hélène lançou um estranho olhar de soslaio para Alex.

- Sim, mas existe o privilégio advogado-cliente - disse Jackie.

- Qual é o problema? - perguntou Alex. - Tem alguma coisa que você não me contou, Hélène?

Jackie suspirou e girou os olhos.

- Deus do céu, Hélène.

- Tudo bem, Jackie. Alex está do nosso lado.

Jackie lançou um olhar que deixava bem claro que ela decifrava Alex melhor do que a sua amante.

- O que você não me contou? - perguntou ele.

- Não é da sua conta, tá bem? - disse Jackie.

- Jackie! - protestou Hélène.

- Deixa pra lá, Hélène. - Alex levantou-se do sofá. - Eu não tenho obrigação nenhuma de estar aqui, sabe - disse ele para Jackie. - Mas achei que vocês precisariam de todos os amigos possíveis numa hora destas. Especialmente na família de Mondo.

- Jackie, conta pra ele - disse Hélène. - Senão ele vai sair daqui achando que a gente realmente está escondendo alguma coisa.

Jackie encarou Alex.

- Tive que sair por mais ou menos uma hora ontem à noite. Eu estava sem erva e a gente queria fumar um baseado. O sujeito que arruma drogas para mim não é do tipo que fornece álibis. E, mesmo que ele fornecesse, a polícia não ia acreditar nele. Então, tecnicamente, qualquer uma de nós poderia ter matado David.

Alex sentiu os pelos da sua nuca se arrepiarem. Lembrou-se de um momento, na noite anterior, quando chegou a questionar se Hélène o estava manipulando.

- Vocês deviam contar isso para a polícia - disse ele, abruptamente. - Se descobrirem que vocês mentiram, nunca vão acreditar que são inocentes.

- E você está acreditando muito, né? - desafiou Jackie, com desdém.

Alex não estava gostando nada do clima de hostilidade à sua volta.

- Olha, eu vim aqui para ajudar, não para ficar levando fora - respondeu ele, ríspido. - Eles falaram alguma coisa sobre a liberação do corpo?

- Iam fazer a autópsia hoje de tarde. Depois disso, parece que já podemos começar os preparativos para o funeral. - Hélène esticou as mãos. - Nem sei para quem ligar. O que devo fazer, Alex?

- Acho que dá para encontrar um agente funerário nas Páginas Amarelas. Coloque o anúncio do óbito no jornal, depois entre em contato só com os amigos mais íntimos e os parentes. Se você quiser, eu posso me encarregar da família.

Ela concordou com a cabeça.

- Vai ser uma ajuda e tanto.

Jackie reagiu, debochada.

- Aposto que eles não vão ficar tão interessados em falar com Hélène depois que ficarem sabendo sobre mim.

- Melhor evitar isso. Os pais de Mondo já têm problemas demais - disse Alex, friamente. - Hélène, você precisa arrumar um lugar para a recepção.

- Recepção? - perguntou ela.

- Depois do funeral - explicou Jackie.

Hélène fechou os olhos.

- Não acredito que estamos aqui falando sobre recepção enquanto o meu David está estirado numa mesa de necrotério.

- Bem... - disse Alex. Não precisava dizer o que estava pensando; a culpa pairava no ar entre os três. - Melhor eu ir embora.

- Ela já tem nome, a sua filha? - perguntou Hélène, visivelmente buscando um assunto mais ameno.

Alex lançou um olhar apreensivo para a cunhada.

- Nós íamos chamá-la de Ella. Mas pensamos melhor e... bom, Lynn quis chamá-la de Davina. Em homenagem a Mondo. Se você não se incomodar, é claro.

Os lábios de Hélène tremeram e os olhos ficaram rasos d’água.

- Oh, Alex. Sinto muito por nunca termos arrumado tempo para sermos mais amigos de você e de Lynn.

Alex balançou a cabeça.

- Para quê? Para que nos sentíssemos igualmente traídos?

Hélène encolheu-se, como se tivesse sido fisicamente golpeada. Jackie avançou em direção a Alex, fechando as mãos em punho.

- Acho que está na hora de você ir embora.

- Também acho - respondeu ele. - Vejo vocês no funeral.


31

O subchefe de polícia Lawson apanhou a pasta sobre a mesa.

- Eu estava contando com isso - suspirou ele.

- Eu também, senhor - confessou Karen Pirie. - Eu sei que eles não conseguiram nenhuma amostra biológica no cardigã naquela época, mas imaginei que com o equipamento sofisticado de hoje pudesse haver vestígio de alguma coisa que pudéssemos usar. Sêmen ou sangue. Mas não encontraram nada, a não ser estas gotinhas de tinta esquisitas.

- Que já havíamos detectado naquela época. E que não adiantou muito também. - Lawson abriu a pasta despretensiosamente e passou os olhos no breve relatório. - O problema é que o cardigã não foi encontrado com o corpo. Se eu me lembro direito, foi jogado por cima de uma cerca no jardim de alguém.

Karen assentiu.

- Número 15. E eles só acharam mais de uma semana depois. Àquela altura, já tinha nevado, derretido a neve e chovido, o que não ajudou em nada. O cardigã foi identificado pela mãe de Rosie, que afirmou ser o que ela estava usando quando saiu naquela noite. Nunca achamos a bolsa, nem o casaco. - Karen consultou a gorda pasta sobre o seu colo, virando as páginas. - Um casaco 7/8 marrom, de corte trapézio, da C&A, com um forro de pied-de-poule creme e marrom.

- Nunca achamos porque nem sabíamos onde procurar. Porque não sabíamos em que lugar ela foi morta. Depois que saiu do Lammas, ela pode ter sido levada para qualquer lugar a mais ou menos uma hora de distância de carro. Para Dundee, depois da ponte ou para o centro de Fife. Em qualquer lugar, de Kirriemuir a Kirkcaldy. Pode ter sido assassinada em um barco, em um estábulo, em qualquer lugar. A única coisa que conseguimos descobrir com certeza é que ela não foi morta na casa em Fife Park onde Gilbey, Malkiewicz, Kerr e Mackie moravam. - Lawson devolveu o relatório para Karen.

- Só por curiosidade, senhor... vocês chegaram a vasculhar outras casas em Fife Park?

Lawson franziu a testa.

- Acho que não. Por quê?

- É que me ocorreu uma coisa. O crime aconteceu durante as férias da universidade. Muitos alunos já tinham viajado para passar o Natal com as suas famílias. Pode ser que algumas casas estivessem vazias por lá.

- Mas deviam estar fechadas. Se tivesse ocorrido algum arrombamento em Fife Park, nós teríamos ficado sabendo.

- Bom, sabe como são os estudantes, senhor. Vivem uns nas casas dos outros. Não devia ser muito difícil arrumar uma chave. Além do mais, os quatro estavam no último ano. Eles podem muito bem ter guardado a chave de uma das casas onde se alojaram nos anos anteriores.

Lawson lançou um olhar de apreciação para Karen.

- É uma pena você não ter feito parte da investigação naquela época. Acho que ninguém nunca nem pensou nesta hipótese. Agora já é tarde demais, obviamente. E então, como vai a busca pelas provas? Você já terminou?

- Eu tirei uma folga no Natal e no Ano-Novo - justificou ela, defensiva. - Mas fiquei até tarde ontem à noite e terminei tudo.

- Então é isso? As provas concretas do caso Rosie Duff desapareceram do nada, sem deixar vestígios?

- Ao que parece, senhor. A última pessoa a ter acesso à caixa foi o detetive Maclennan, uma semana antes de morrer.

Lawson levantou a cabeça.

- Você não está insinuando que Barney Maclennan sumiu com as provas de um homicídio, está?

Karen corrigiu-se, imediatamente. A última coisa que queria era dar a impressão de que estava levantando suspeitas sobre um colega que morrera como herói.

- Não, senhor, de modo algum. Só quis dizer que, seja lá o que tenha acontecido com as roupas de Rosie Duff, não existe nenhuma papelada oficial a respeito.

Ele suspirou novamente.

- Deve ter existido sim, há muito tempo. E deve ter ido parar no lixo, a esta altura. Vou te contar, às vezes eu fico até desconfiado. Alguns dos sujeitos que trabalham para a gente...

- Bom, outra hipótese é a do detetive Maclennan ter encaminhado as provas para outros testes adicionais e elas nunca mais terem voltado, porque ele não estava mais lá para cobrar. Ou então, desapareceram porque ele não estava mais lá para receber - sugeriu Karen, cautelosa.

- É uma possibilidade. Mas, de qualquer maneira, você não vai conseguir encontrá-las agora. - Lawson tamborilou os dedos na mesa. - Bom, então é isso. Um caso não resolvido que vai continuar mal resolvido. Não estou com a menor pressa de comunicar isso ao filho dela também. Ele tem ligado todos os dias, querendo saber em que pé estamos.

- Até agora não consigo acreditar que o patologista não percebeu que ela teve um filho - disse Karen.

- Na sua idade, eu diria a mesma coisa - admitiu Lawson. - Mas ele já era um senhor bem idoso e pessoas idosas podem cometer erros idiotas. Sei bem disso agora, porque estou indo pelo mesmo caminho. Sabe, às vezes fico me perguntando se este caso não estava fadado ao fracasso desde o início.

Karen podia perceber a sua decepção. E ela sabia bem o que era aquilo, pois sentia a mesma coisa.

- O senhor não acha que vale a pena conversar com as testemunhas novamente? Os quatro estudantes?

Lawson fez uma careta.

- Isso vai ser difícil.

- Como assim, senhor?

Ele abriu a gaveta e apanhou um exemplar do Scotsman, datado de três dias antes. Estava aberta na página dos obituários. Ele estendeu o jornal para Karen, apontando para uma notícia em particular.

KERR, DAVID MCKNIGHT. Comunicamos o falecimento do Dr. David Kerr, de Carden Grove, Bearsden, Glasgow, amantíssimo esposo de Hélène, irmão de Lynn e filho de Adam e Sheila Kerr, de Duddingston Drive, Kirkcaldy. O funeral será realizado na próxima quinta-feira, às 14:00, no Crematório de Glasgow, Western Necropolis, Tresta Road. Flores somente dos familiares.

Karen olhou para Lawson, surpresa.

- Mas ele não devia ter mais de quarenta e seis, quarenta e sete anos, não é? Muito jovem para morrer.

- Você devia prestar mais atenção nas notícias, Karen. Você não ficou sabendo do professor da Universidade de Glasgow que morreu esfaqueado na cozinha, atacado por um ladrão na noite de quinta-feira?

- Aquele era o nosso David Kerr? O que eles chamavam de Mondo?

Lawson assentiu.

- O diamante louco em pessoa. Falei com o detetive encarregado do caso na segunda-feira. Só para ter certeza absoluta. Parece que eles não estão nem um pouco convencidos de que foi mesmo um assalto. A mulher estava pulando a cerca.

Karen fez uma careta.

- Espertinha.

- Bastante. Então, quer dar um pulo em Glasgow hoje à tarde? Acho que seria de bom tom prestarmos as últimas homenagens a um de nossos suspeitos.

- O senhor acha que os outros três vão aparecer por lá?

Lawson deu de ombros.

- Eles eram muito amigos, mas isso foi há vinte e cinco anos. Vamos ter que pagar para ver, sabe? Mas acho que não vai dar para conversar com ninguém hoje. Vamos ter de esperar a poeira baixar. Afinal, não queremos ser acusados de insensíveis, não é mesmo?

O crematório estava lotado e as pessoas que não conseguiram um lugar para sentar tiveram de ficar em pé. Mondo podia até ter cortado os laços com a família e os velhos amigos, mas aparentemente não tivera muita dificuldade em substituí-los. Alex sentou-se no banco da frente, com Lynn aconchegada ao seu lado. Ela havia saído do hospital dois dias antes, mas ainda se movimentava como uma senhora de idade. Alex tentou convencê-la a ficar em casa descansando, mas ela não queria nem pensar em perder o funeral do seu único irmão. Além do mais, argumentara que sem o bebê em casa para tomar conta, ela ia ficar sentada olhando para ontem. Preferia estar perto da sua família. Alex não arrumara nenhum argumento para dissuadi-la. E lá estava ela, segurando a mão do pai, que estava em estado de choque, tentando confortá-lo em uma inversão dos tradicionais papéis de pai e filha. A sua mãe estava ao lado, com o rosto praticamente escondido atrás das dobras de um lenço branco.

Hélène estava sentada um pouco mais adiante, de cabeça baixa, ombros arriados. Ela parecia bastante fechada, como se houvesse colocado uma barreira entre si mesma e o mundo. Pelo menos tivera o bom senso de não chegar no funeral de braço dado com Jackie. Ela ficou de pé quando o pastor anunciou o cântico final.

A abertura sonora do salmo vinte e três fez com que Alex sentisse um bolo na garganta. O cântico começou um pouco vacilante enquanto as pessoas encontravam o tom, mas depois cresceu, envolvendo-o completamente. Que clichê, pensou ele, com raiva de si mesmo por estar comovido pelo tradicional hino fúnebre. A cerimônia de Ziggy fora muito mais honesta, uma homenagem de verdade e não aquela superficialidade arranjada às pressas. Pelo que ele sabia, Mondo jamais pisara em uma igreja, a não ser para os tradicionais ritos de passagem. As pesadas cortinas abriram-se e o caixão começou a sua viagem derradeira.

Os acordes do último verso foram morrendo conforme as cortinas iam se fechando, encobrindo o caixão. O pastor entoou a sua bênção, depois afastou-se pelo corredor central. Logo em seguida, a família e, por último, Alex amparando Lynn. A maioria dos rostos espalhados pelos bancos não passava de um borrão mas, entre eles, Alex reconheceu imediatamente a figura magricela de Esquisito. Cumprimentaram-se brevemente com um aceno de cabeça e Alex continuou caminhando até a porta. Um pouco antes de sair, teve uma segunda surpresa. Embora não visse James Lawson desde a época em que o chamavam de Jimmy, reconhecia o seu rosto dos jornais. Que mau gosto, pensou Alex, posicionando-se no final da fila dos cumprimentos. Casamentos e funerais exigem a mesma etiqueta: era preciso agradecer a presença das pessoas.

Parecia não acabar nunca mais. Sheila e Adam Kerr pareciam totalmente desnorteados. Perder um filho naquelas circunstâncias brutais já era ruim o bastante; pior ainda era ter de receber pêsames de gente que nunca haviam visto e que jamais veriam novamente. Alex gostaria de saber se eles sentiam algum conforto ao ver quantas pessoas haviam aparecido para dar o seu último adeus. Para Alex, aquilo só servia para fazer com que ele recordasse a distância que o separara de Mondo nos últimos anos. Não conhecia quase ninguém.

Esquisito fora um dos últimos na fila dos cumprimentos. Abraçou Lynn com delicadeza.

- Meus pêsames - disse ele. Apertou a mão de Alex e tocou levemente no seu cotovelo. - Estou te esperando lá fora. - Alex assentiu com a cabeça.

Finalmente, os últimos retardatários foram embora. Estranho, pensou Alex. Nada de Lawson. Ele deve ter saído por outra porta. Melhor assim. Tinha lá as suas dúvidas se conseguiria ser educado. Alex escoltou o sogro e a sogra até o carro funerário, avançando por um grupo cabisbaixo. Ajudou Lynn a entrar no carro, verificou se estava tudo direitinho e então disse:

- Encontro com vocês lá no hotel. Preciso me certificar de que está tudo bem por aqui.

Sentiu-se envergonhado ao experimentar uma sensação de alívio tão logo o carro afastou-se da calçada. Deixara o seu próprio carro ali mais cedo, para garantir que não ficaria a pé caso alguma coisa acontecesse após o funeral. Lá no fundo, sabia que fizera isso porque precisava de uma folga daquela dor sufocante que se abatera sobre a sua família.

Um tapinha no seu ombro fez com que ele virasse para trás.

- Ah, é você - disse ele, quase rindo de alívio ao ver o rosto de Esquisito.

- Ué, quem mais você pensava que fosse?

- Bem, Jimmy Lawson estava escondidinho lá atrás no crematório.

- Jimmy Lawson, o tira?

- Tira, uma vírgula. Subchefe de polícia James Lawson agora - disse Alex afastando-se da entrada principal e caminhando até o local onde estavam as flores.

- E o que ele veio fazer aqui?

- Tripudiar da gente. Sei lá. Ele está encarregado da revisão dos casos. Talvez quisesse dar uma olhadinha nos seus principais suspeitos, na esperança de que em um momento de comoção fôssemos nos ajoelhar e confessar nossos pecados.

Esquisito fez uma cara feia.

- Jamais gostei desta baboseira católica. Devemos ser adultos o suficiente para lidarmos com as nossas culpas. Não é tarefa de Deus zerar o nosso placar para que possamos voltar a pecar novamente. - Ficou mudo e virou-se para Alex. - Quero que você saiba que estou muito feliz por Lynn ter tido um bom parto e pelo nascimento da sua filha.

- Obrigado, Tom. - Alex abriu um sorriso. - Viu só? Eu me lembrei.

- O bebê ainda está no hospital?

Alex suspirou.

- Ela ainda está muito fraquinha, então vai ficar no hospital mais uns dias. Mas não é fácil, sabe? Principalmente para Lynn. Passar por tudo aquilo e ainda voltar para casa de mãos abanando. E ainda ter que lidar com o que aconteceu com Mondo...

- Vocês vão esquecer todo este sofrimento quando o bebê estiver em casa, eu prometo. Vou me lembrar de vocês em todas as minhas orações.

- E isso vai fazer a maior diferença, hein? - disse Alex.

- Você vai ficar surpreso - respondeu Esquisito, sem se ofender. Continuaram caminhando, olhando para as homenagens. Um sujeito abordou Alex, querendo saber como chegar ao hotel onde organizaram a recepção. Quando Alex se virou para Esquisito novamente, viu o amigo agachado em frente a um dos arranjos. Quando chegou perto o bastante para verificar o que havia chamado a atenção de Esquisito, sentiu o coração disparar no peito. Era um arranjo de flores idêntico ao que haviam visto em Seattle: uma elegante e bem armada coroa de rosas brancas e alecrim. Esquisito apanhou o cartão e ficou de pé. - A mesma mensagem - disse ele, passando o cartão para Alex. - Lembrança de Rosemary.

Alex estava suando frio.

- Não estou gostando nada disso.

- Nem eu. Isso aqui é coincidência demais, Alex. E tanto Ziggy como Mondo morreram em circunstâncias suspeitas... Que diabos, vamos falar a verdade: Ziggy e Mondo foram assassinados. E a mesma coroa aparece nos dois funerais. Com uma mensagem que tem a ver com nós quatro e o assassinato nunca resolvido de Rosie Duff.

- Mas isso já tem vinte e cinco anos. Se alguém quisesse se vingar, teria se vingado antes, você não acha? - disse Alex, tentando convencer Esquisito e a si mesmo. - Deve ser só alguém tentando nos assustar.

Esquisito balançou a cabeça.

- Você teve outras coisas para pensar nesses últimos dias, mas eu não consigo tirar isso da cabeça. Há vinte e cinco anos, todos estavam de olho na gente. Eu não me esqueci daquela surra que levei. Não me esqueci da noite em que jogaram Ziggy na Masmorra da Garrafa. Não me esqueci como Mondo ficou tão magoado que tentou até se matar. O único motivo de tudo aquilo ter acabado foi a ameaça que os policiais fizeram a Colin e Brian Duff. Eles foram obrigados a nos deixar em paz. Foi você mesmo quem me disse naquela época que Jimmy Lawson te contou que eles só desistiram da gente porque não queriam que a mãe sofresse mais ainda. Vai ver que resolveram esperar.

Alex balançou a cabeça.

- Mas vinte e cinco anos? É possível guardar um ressentimento por vinte e cinco anos?

- Eu não sou a pessoa certa para responder a esta pergunta. Mas tem muita gente aí que não aceitou Jesus Cristo como salvador e você sabe tão bem quanto eu, Alex, que pessoas assim são capazes de qualquer coisa. A gente não sabe o que se passou na vida deles. Talvez tenha acontecido alguma coisa e reacendido todo o ódio. Talvez a mãe tenha morrido. Talvez a revisão dos casos tenha feito com que se lembrassem que tinham contas a acertar e que agora era mais seguro tomar uma atitude. Eu não sei. O que eu sei é que isso está me parecendo que tem alguém atrás da gente. E, seja lá quem for, tem tempo e recursos a seu favor. - Esquisito olhou à sua volta, nervoso, como se o inimigo pudesse estar ali entre os presentes que se afastavam para pegar os seus carros.

- Agora você está paranoico. - Aquela não era exatamente uma das características da juventude de Esquisito que Alex gostaria de recordar naquele momento.

- Não acho, não. Acho que sou o único com bom senso aqui.

- Tá, e o que você sugere que a gente faça?

Esquisito apertou o casaco contra o peito.

- Pretendo me enfiar em um avião amanhã cedo e voltar para os Estados Unidos. Quando chegar lá, vou mandar minha mulher e meus filhos para algum lugar seguro. Existem bons cristãos morando no meio do mato. Ninguém vai encontrá-los.

- E você? - Alex podia sentir as suspeitas de Esquisito o contaminando como um vírus.

Esquisito abriu o seu familiar sorriso maroto.

- Eu vou para um retiro. Os fiéis entendem que, de vez em quando, nós temos que sumir do mapa para restabelecermos contato com a nossa espiritualidade. E é isso o que eu vou fazer. A melhor coisa de pregar na televisão é que você pode gravar o programa de qualquer lugar. Então o meu rebanho não vai se esquecer de mim enquanto eu estiver fora.

- É, mas você não pode passar a vida inteira se escondendo. Mais cedo ou mais tarde, vai ter que voltar para casa.

Esquisito concordou com um gesto de cabeça.

- Eu sei disso. Mas eu não vou ficar de braços cruzados, Alex. Assim que eu e minha família estivermos fora da linha de fogo, vou contratar um detetive particular e descobrir quem mandou a coroa para o funeral de Ziggy. Porque quando eu souber disso, vou saber quem procurar.

Alex exalou o ar nervosamente.

- Você já pensou em tudo, hein?

- Quanto mais eu pensava naquela coroa, mais ficava intrigado. E Deus ajuda a quem se ajuda, então eu arquitetei o meu plano. Por precaução. - Esquisito pousou a mão no braço de Alex. - Alex, eu sugiro que faça o mesmo. Você não tem que pensar só em você agora. - Esquisito lhe deu um abraço apertado. - Cuide-se, está bem?

- Comovente pra cacete - disse uma voz, asperamente.

Esquisito soltou Alex e olhou para trás. No início, não reconheceu o homem sorridente que os encarava. Mas logo a sua memória voltou no tempo e ele estava novamente do lado de fora do Lammas, aterrorizado e ferido.

- Brian Duff - disse Esquisito, ofegante.

Alex olhou para o amigo e para o sujeito na sua frente.

- Esse é o irmão de Rosie?

- Isso aí.

As emoções confusas que atormentavam Alex há dias subitamente se transformaram em ira.

- Veio aqui comemorar a desgraça alheia, né?

- Justiça poética, não é assim que se diz? Um assassino de merda vem dar o seu último adeus a outro. Podes crer, vim comemorar mesmo.

Alex investiu contra ele, mas Esquisito conseguiu conter o amigo segurando firmemente no seu braço.

- Deixa pra lá, Alex. Brian, nenhum de nós encostou em um fio de cabelo da sua irmã. Eu sei que você quer arrumar alguém em quem colocar a culpa, mas não fomos nós. Você precisa acreditar nisso.

- Não preciso acreditar em nada. - Ele cuspiu no chão. - Eu realmente esperava que os tiras fossem prender pelo menos um de vocês agora. Já que isso não vai acontecer mesmo, é melhor ver vocês morrendo.

- É claro que não vai acontecer. Nunca encostamos na sua irmã e tem o DNA agora para provar isso - gritou Alex.

Brian bufou.

- Que DNA? Os babacas perderam as provas.

Alex estava boquiaberto.

- O quê? - perguntou, quase sem voz.

- Isso mesmo que você ouviu. Vocês continuam salvos. - Brian contorceu a boca em um sorriso debochado. - Já o amiguinho de vocês não teve a mesma sorte, né? - Ele girou nos calcanhares e partiu, sem olhar para trás.

Esquisito balançou a cabeça lentamente.

- Você acredita nele?

- Por que ele mentiria? - suspirou Alex. - Pior é que eu realmente achava que agora a gente ia se livrar, sabe? Como é que eles podem ter sido tão incompetentes? Como é que foram perder a única prova que poderia ter colocado um fim em tudo isso? - Ele fez um gesto para a coroa de flores.

- Não sei por que você está tão surpreso. Até parece que naquela época eles foram muito eficientes. Por que seria diferente agora? - Esquisito puxou a gola do casaco. - Alex, sinto muito, mas eu preciso me mandar. - Despediram-se com um aperto de mãos. - Dou notícias.

Alex continuou imóvel no mesmo lugar, impressionado com a rapidez com que o seu mundo virara de cabeça para baixo. Se Brian Duff não estava mentindo, será que aquelas coroas sinistras tinham alguma coisa a ver com o que ele acabara de contar? E, se tivessem, será que o pesadelo não acabaria enquanto ele e Esquisito continuassem vivos?

Sentado em seu carro, Graham Macfadyen observava tudo. As coroas de flores eram um toque de gênio. E valia a pena aproveitar cada oportunidade para comprovar isso. Não pudera estar em Seattle para conferir o efeito da primeira, mas não tinha mais dúvidas de que Mackie e Gilbey tinham captado a mensagem daquela vez. E isso significava que havia de fato uma mensagem a ser captada. Sujeitos inocentes não teriam ficado tão apavorados com aquele lembrete.

Ver a reação dos dois praticamente compensou o repugnante desfile de hipocrisia que ele teve de aturar no crematório. O pastor obviamente não conhecera David Kerr em vida, então não era de admirar que tivesse conseguido transformá-lo em um santo após a morte. Mas Macfadyen ficara enojado ao ver como todos os presentes concordavam com a cabeça, engolindo aquela baboseira, suas expressões pias concordando com aquela ficção hipócrita.

Ficou imaginando como reagiriam se ele tivesse ido lá na frente e contado toda a verdade. "Senhoras e senhores, estamos reunidos aqui hoje para cremar um assassino. O homem que vocês pensavam que conheciam passou a sua vida adulta inteira mentindo para vocês. David Kerr fingia ser um respeitável membro da comunidade. Mas a verdade é que há muitos anos ele participou do estupro e do assassinato brutal da minha mãe, pelo qual nunca foi punido. Então, quando forem lembrar dele a partir de agora, lembrem-se disso." Ah, um discurso assim com certeza teria acabado com aquelas expressões de tristeza reverente. Ele quase desejou ter feito isso.

Mas teria sido uma alegria fugaz. Não era inteligente ficar se vangloriando antes da hora. Melhor permanecer nas sombras. Até mesmo porque o seu tio aparecera lá para falar por ele. Não fazia a menor ideia do que tio Brian tinha dito a Gilbey e a Mackie. Mas servira para fazer com que tremessem nas bases. Não tinham mais como esquecer o que fizeram anos atrás. Ficariam acordados naquela noite, se perguntando quando o passado finalmente os alcançaria. E esta era uma perspectiva agradável para Macfadyen.

Observou Alex Gilbey indo buscar o seu carro, aparentemente ignorando tudo ao seu redor. "Ele nem imagina que eu existo", murmurou ele. "Mas eu existo, Gilbey. Eu existo." Ligou o motor e partiu para a recepção dos convidados para o funeral. Era impressionante o quão fácil era infiltrar-se na vida das pessoas.


32

A enfermeira disse a eles que Davina estava fazendo progressos. Já conseguia respirar direitinho sem o oxigênio e a sua icterícia estava respondendo bem às luzes fluorescentes que iluminavam o seu pequeno leito o dia inteiro. Quando segurou a filha nos braços, Alex pôde esquecer a depressão que o funeral de Mondo trouxera consigo e a aflição que a reação de Esquisito às flores havia gerado. A única coisa melhor do que estar sentado com a sua mulher e sua filha na unidade neonatal seria estar fazendo exatamente a mesma coisa na sua própria casa. Assim pensava ele, pelo menos até ter conversado com Esquisito no crematório.

Como se tivesse lido a sua mente, Lynn levantou os olhos do bebê que amamentava para o marido.

- Mais alguns dias e já vamos poder levá-la para casa.

Alex sorriu, tentando esconder a inquietação provocada por aquelas palavras.

- Mal posso esperar - disse ele.

Mais tarde, voltando para casa em seu carro, ele pensou se deveria tocar no assunto das flores e da revelação que Brian Duff fizera. Mas não queria preocupar Lynn, então achou melhor não contar nada. Ela foi direto para a cama, exausta após um dia cansativo. Alex abriu uma garrafa de Shiraz especialmente boa, que estava guardando para uma noite em que eles precisassem ser mimados. Levou o vinho para o quarto e serviu um copo para ele e outro para Lynn.

- Você vai me contar o que está te preocupando? - perguntou Lynn assim que ele deitou ao seu lado sobre o cobertor.

- Estava só pensando em Hélène e em Jackie. Não consigo parar de imaginar que o assassinato de Mondo pode ter tido um dedinho de Jackie. Não que ela própria tenha cometido o crime. Mas parece que ela conhece gente capaz de realizar um serviço assim, desde que bem pago.

Lynn franziu a testa.

- Eu até chego a desejar que tenha sido ela mesmo. Aquela vagabunda da Hélène merece sofrer. Como é que ela podia trair Mondo e fingir que era a esposa perfeita?

- Acho que Hélène está sofrendo de verdade, Lynn. Eu acredito quando ela diz que o amava.

- Não me venha defender essa mulher!

- Não estou defendendo. Mas, seja lá o que esteja rolando entre ela e Jackie, ela parecia gostar dele. Isso é óbvio.

Lynn apertou os lábios.

- Bom, se você diz... Mas não é isso que está te incomodando. Alguma coisa aconteceu depois que saímos do crematório, antes de você chegar à recepção. Foi Esquisito? Ele disse alguma coisa que te deixou preocupado?

- Juro por Deus que você é uma feiticeira - reclamou Alex. - Não, não foi nada de mais, não. Só uma pulga que se alojou atrás da orelha de Esquisito.

- Deve ter sido uma pulga assassina de Alfa Centauro para te deixar desse jeito, quando existem outras coisas importantes acontecendo. Por que você não quer me contar? É coisa de homem?

Alex suspirou. Não gostava de esconder as coisas de Lynn. Nunca acreditara que ignorância era uma bênção, não em um casamento que deveria manter a igualdade.

- Mais ou menos. É que eu não quero te perturbar com isso, ainda mais com tudo que você tem na cabeça agora.

- Alex, com tudo o que tenho na cabeça agora, você não acha que um assunto novo seria bem-vindo?

- Não esse, linda. - Bebericou o vinho, saboreando o seu reconfortante buquê. Gostaria de poder canalizar toda a sua consciência na apreciação daquele vinho e esquecer tudo o que o cercava. - Tem coisas que a gente não precisa ficar sabendo.

- Por que não estou conseguindo acreditar em você? - perguntou Lynn, apoiando a cabeça no ombro do marido. - Vamos lá, conta logo. Você sabe que vai se sentir melhor depois.

- Pra falar a verdade, não sei, não. - Alex suspirou novamente. - Não sei, talvez eu devesse mesmo te contar. Você é a mais sensata, afinal de contas.

- Coisa que nunca pudemos falar de Esquisito, por sinal - comentou Lynn secamente.

Alex contou sobre as coroas de flores nos funerais, tentando amenizar ao máximo a história. Para sua surpresa, Lynn não se esforçou nem um pouco para descartar tudo como uma paranoia de Esquisito.

- Ah, então é por isso que você está tentando se convencer de que Jackie contratou um matador profissional - disse ela. - Não gosto nada disso. Esquisito tem razão de estar levando a sério.

- Mas pode ser que tenha uma explicação simples - protestou Alex. - Talvez alguém que conhecesse os dois.

- Do jeito como Mondo se afastou de todo o seu passado? As únicas pessoas que poderiam conhecer os dois teriam de ser de Kirkcaldy ou de St. Andrews. E todo mundo nesses dois lugares sabia da história de Rosie Duff. Não dá para esquecer uma coisa dessas. Muito menos se a pessoa os conhecesse bem o suficiente para mandar flores para o funeral, quando o obituário dizia "somente flores da família" - ponderou Lynn.

- Mesmo assim, isso não quer dizer que tem alguém atrás da gente - disse Alex. - Tudo bem, alguém queria tirar um sarro. Mas isso não significa que essa mesma pessoa cometeu dois assassinatos a sangue-frio.

Lynn balançou a cabeça, descrente.

- Alex, em que planeta você vive? Dá até para acreditar que alguém disposto a tirar um sarro possa ter lido as notícias sobre a morte de Mondo. Afinal, ele pelo menos morreu no mesmo país em que Rosie Duff foi assassinada. Mas como alguém ia ficar sabendo de Ziggy a tempo de mandar flores para o funeral nos Estados Unidos, a não ser que estivesse envolvido de algum jeito com a sua morte?

- Não sei. Mas o mundo é pequeno hoje em dia. Vai ver que a pessoa que mandou a primeira coroa tinha algum conhecido em Seattle. Talvez alguém de St. Andrews tenha se mudado para lá e encontrado com Ziggy na clínica. O nome dele não era lá muito comum, e ele era relativamente famoso naquelas redondezas. Você mesma sabe disso, sempre que a gente saía para comer com Ziggy e Paul lá em Seattle, aparecia alguém para cumprimentá-lo. As pessoas não se esquecem do médico que cuidou dos seus filhos. E se foi isso mesmo, nada mais natural do que mandar um e-mail para alguém aqui quando Ziggy morreu. Em um lugar como St. Andrews, notícias como essa se espalham rapidamente. Não é tão impossível assim, é? - A voz de Alex ia ficando mais aflita à medida que ele se esforçava para encontrar alguma solução que tornasse possível descartar a sugestão de Esquisito.

- É um pouco surreal, mas tudo bem. Mas você não pode deixar isso assim. Você não pode confiar em uma possibilidade ínfima. Você tem que fazer alguma coisa, Alex. - Lynn apoiou o seu copo e abraçou o marido. - Não dá para se arriscar, ainda mais com Davina vindo para casa daqui a pouco.

Alex esvaziou o seu copo, sem prestar mais atenção na qualidade do vinho.

- Mas o que você quer que eu faça? Que eu vá me esconder com você e Davina? Para onde nós iríamos? E o meu trabalho? Não dá para simplesmente abandonar tudo com uma criança para sustentar.

Lynn afagou a cabeça dele.

- Alex, vai com calma. Não estou falando para nos enfiarmos no fim do mundo, como Esquisito. Você me disse que Lawson estava lá no funeral hoje. Por que você não vai conversar com ele?

Alex bufou.

- Lawson? O cara que tentou me passar a perna com sopa de lentilhas e simpatia? O sujeito que tem tanta fixação, há tanto tempo, que fez questão de vir assistir a um de nós ser cremado? E você acha que ele vai me ouvir de bom grado?

- Lawson pode até ter as suspeitas dele, mas pelo menos ele te salvou quando você estava prestes a levar uma surra. - Alex deslizou pela cama, aninhando-se sobre a barriga de Lynn. Ela recuou, afastando-o. - Cuidado com a minha cicatriz - disse ela. Alex ajeitou-se, apoiando-se no braço dela.

- Ele vai rir na minha cara.

- Ou então vai levar você a sério o bastante para investigar essa história. Ele não tem nenhum interesse em fazer vista grossa para esse tipo de justiça com as próprias mãos, se for isso mesmo. Sem contar que isso deixaria a polícia mais na merda do que ela já está.

- Você não sabe da missa a metade - disse Alex.

- Como assim?

- Aconteceu outra coisa depois do funeral. O irmão de Rosie Duff apareceu por lá. E fez questão de mostrar para mim e para Esquisito que tinha ido lá para comemorar.

Lynn ficou chocada.

- Hum, Alex. Que horror. Para todos vocês. Coitado dele. Vai ver que não consegue esquecer até hoje.

- E isso não é tudo. Ele nos contou que a polícia de Fife perdeu as provas ligadas ao caso de Rosie. As provas com as quais estávamos contando para fazer o teste de DNA que nos inocentaria.

- Você está brincando.

- Quem dera.

Lynn sacudiu a cabeça.

- Mais um motivo para você ir falar com Lawson.

- E você acha que Lawson vai gostar de eu ir lá jogar isso na cara dele?

- Não estou nem aí para o que ele vai gostar ou não. Você precisa saber direitinho o que está acontecendo. Se realmente tem alguém atrás de vocês, pode estar sendo movido pela constatação de que a justiça não vai ser feita novamente. Ligue para Lawson amanhã de manhã. Marque um horário com ele. Eu vou ficar mais tranquila.

Alex rolou para fora da cama e começou a se despir.

- Se é isso o que você precisa, considere feito. Só não coloque a culpa em mim se ele por acaso decidir que o sujeito que está atrás da gente está certo e decidir me prender.

Para a surpresa de Alex, quando ele ligou para agendar um encontro com o subchefe de polícia Lawson, a secretária marcou para aquela mesma tarde. Ele ainda teve tempo de ir para o escritório por algumas horas, o que o deixou mais fora de controle do que estava antes. Gostava de estar sempre atento aos negócios, não porque desconfiasse dos seus funcionários, e sim porque ficar sem saber o que estava acontecendo o deixava inquieto. Mas estava completamente por fora nos últimos tempos e precisava correr atrás do tempo perdido. Copiou uma pilha de memorandos e relatórios em um CD, torcendo para conseguir arranjar um tempinho em casa mais tarde para se atualizar. Pegou um sanduíche para comer no carro e partiu de volta para Fife.

Foi conduzido a um escritório vazio, que media aproximadamente o dobro do seu. Os privilégios da hierarquia eram sempre mais visíveis nos cargos públicos, pensou ele, observando a mesa enorme, o mapa da região elaboradamente enquadrado na parede e as comendas de James Lawson ostensivamente exibidas. Sentou-se na cadeira reservada aos visitantes, achando graça ao perceber como ela era bem mais baixa do que a do outro lado da mesa.

Não precisou esperar por muito tempo. A porta atrás dele se abriu e Alex ficou de pé. O passar dos anos não fora generoso com Lawson, pensou ele. A sua pele estava enrugada e desgastada, com duas manchas nas bochechas, as veias rompidas - a marca de um homem que bebeu demais ou que passou muito tempo exposto aos inclementes ventos de Fife. Os olhos, no entanto, continuavam espertos, como Alex pôde notar enquanto Lawson o observava dos pés a cabeça.

- Sr. Gilbey - disse ele. - Lamento tê-lo feito esperar.

- Tudo bem. Sei que o senhor deve estar ocupado. Agradeço por ter me encaixado tão depressa.

Lawson passou por ele sem oferecer a mão para um cumprimento cordial.

- Sempre fico interessado quando alguém ligado a uma investigação deseja me ver. - Acomodou-se na sua cadeira de couro, ajeitando a jaqueta do seu uniforme.

- Vi o senhor no funeral de David Kerr - disse Alex.

- Tive que resolver umas coisas de trabalho lá em Glasgow. Aproveitei para prestar os meus últimos respeitos.

- Eu não sabia que a polícia de Fife tinha tanto respeito por Mondo - retrucou Alex.

Lawson fez um gesto impaciente com uma das mãos.

- Suponho que a sua visita esteja relacionada com a reabertura do caso de Rosemary Duff, não é?

- Indiretamente, sim. Como vai a investigação? Já fizeram algum progresso?

Lawson parecia irritado com as perguntas.

- Não posso discutir assuntos operacionais de um caso em processo de investigação justamente com alguém na sua posição.

- E qual é exatamente a minha posição? Será que o senhor ainda me considera um suspeito? - Alex era mais corajoso do que a sua versão de vinte e um anos e não ia deixar um comentário como aquele passar impunemente.

Lawson remexeu em uns papéis sobre a mesa.

- O senhor é uma testemunha.

- E as testemunhas não podem saber o que está acontecendo? Vocês não hesitam em dar notícias para a imprensa quando fazem algum progresso. Será que eu tenho menos direitos do que um jornalista?

- Eu também não falei nada sobre o caso de Rosie Duff com a imprensa - respondeu Lawson secamente.

- Será que é porque o senhor perdeu as provas?

Lawson olhou longa e fixamente para Alex.

- Sem comentários.

Alex balançou a cabeça.

- Isso não basta. Depois do que nós passamos, vinte e cinco anos atrás, acho que mereço algo mais. Rosie Duff não foi a única vítima naquela época, e o senhor sabe muito bem disso. Talvez seja a hora de eu procurar a imprensa e contar que continuo sendo tratado como um criminoso pela polícia depois de todos estes anos. E, aproveitando a viagem, eu podia contar como a polícia de Fife arruinou a revisão do caso de Rosie Duff perdendo uma prova crucial, que teria me inocentado e possivelmente apontado o verdadeiro assassino.

A ameaça deixou Lawson visivelmente desconfortável.

- Eu não lido bem com intimidações, Sr. Gilbey.

- Nem eu. Não mais. O senhor tem certeza de que quer se ver nas páginas de tudo quanto é jornal como o tira que invadiu o último adeus de uma família consternada ao seu filho assassinado? O mesmo filho cuja inocência continuava duvidosa, graças à incompetência do senhor e da sua equipe?

- O senhor não tem necessidade nenhuma de tomar esta atitude - disse Lawson.

- Ah, não? Pois eu acho que tenho toda a necessidade, sim. O senhor deveria estar conduzindo a revisão de um caso não resolvido aqui. Eu sou uma testemunha-chave. Eu sou o sujeito que encontrou o corpo. E, no entanto, nenhum policial de Fife entrou em contato comigo até agora. Isso não me parece dedicação, sabe? E agora eu ainda fico sabendo que o senhor não consegue sequer manter um saco de provas em segurança. Talvez eu devesse estar conversando com o oficial encarregado da investigação, e não com um burocrata que ainda se deixa influenciar pelo passado.

Lawson retesou o rosto.

- Sr. Gilbey, é verdade que tivemos um probleminha com as provas desse caso. Em algum momento, nos últimos vinte e cinco anos, as roupas de Rosie Duff se perderam. Ainda estamos tentando recuperá-las, mas, até agora, só conseguimos localizar aquele cardigã que foi encontrado longe da cena do crime. E não havia nenhum material biológico nele. Nenhuma das roupas que poderiam ser suscetíveis às técnicas forenses modernas está disponível para nós. Então, no momento, estamos de pés e mãos atados. Na verdade, a oficial encarregada do caso queria ter conversado com o senhor antes, para rever o seu depoimento antigo. Será que poderíamos agendar este encontro?

- Meu Deus do céu - disse Alex. - Finalmente vocês querem conversar comigo agora? O senhor não está entendendo, não é? Nós ainda estamos na mira. O senhor já parou para pensar que dois de nós quatro foram assassinados no último mês?

Lawson suspendeu as sobrancelhas.

- Dois?

- Ziggy Malkiewicz também morreu em circunstâncias suspeitas. Um pouco antes do Natal.

Lawson apanhou um bloco e abriu uma caneta-tinteiro.

- Isso é novidade para mim. Onde foi que isso aconteceu?

- Em Seattle, onde ele já estava morando há doze anos. Alguém plantou uma bomba de incêndio na casa dele. Ziggy morreu dormindo. O senhor pode verificar com a polícia local. O único suspeito que eles têm até agora é o parceiro de Ziggy, o que é ridiculamente absurdo.

- Sinto muito pelo Sr. Malkiewicz...

- Dr. Malkiewicz - interrompeu Alex.

- Pelo Dr. Malkiewicz - corrigiu-se Lawson. - Mas continuo sem perceber de que modo estas duas mortes estão ligadas ao assassinato de Rosie Duff.

- Foi exatamente por isso que eu quis conversar com o senhor hoje. Para explicar por que eu acho que existe uma ligação.

Lawson recostou-se na cadeira, entrelaçando os dedos.

- Sou todo ouvidos, Sr. Gilbey. Estou interessado em qualquer coisa que possa iluminar um pouco a escuridão em que nos encontramos.

Alex contou sobre as coroas de flores. Sentado ali, na sede da polícia, o seu relato lhe soou tolo. Podia sentir o ceticismo de Lawson enquanto se esforçava para dar peso a uma ocorrência tão banal quanto aquela.

- Eu sei que parece paranoia minha - concluiu ele. - Mas Tom Mackie está tão convencido disso que vai esconder a sua família e sumir também. Isso não é uma coisa que você faz sem pensar.

Lawson retribuiu com um sorriso amargo.

- Ah, sim. O Sr. Mackie. Isso está me cheirando a "drogas demais na década de setenta", sabe? Pelo que eu sei, o uso de alucinógenos pode causar paranoia a longo prazo.

- O senhor não acha que devemos levar isso a sério? Dois dos nossos amigos morreram em circunstâncias suspeitas. Dois sujeitos que levavam vidas respeitáveis, sem ligações criminosas. Que, aparentemente, não tinham inimigos. E, nos dois funerais, aparece uma coroa fazendo uma alusão direta a uma investigação de homicídio em que os dois foram considerados suspeitos?

- Nenhum de vocês foi tachado publicamente como suspeito. Fizemos o possível para proteger vocês quatro.

- Tudo bem. Mas mesmo depois disso, um dos seus oficiais morreu por causa da pressão que foi colocada sobre nós.

Lawson empertigou-se, bruscamente.

- Que bom que o senhor se lembra disso. Porque aqui neste prédio ninguém se esqueceu.

- Tenho certeza disso. Barney Maclennan foi a segunda vítima do assassino. E eu acho que Ziggy e Mondo foram vítimas também. Indiretamente, é claro. Mas eu acho que alguém os matou porque queria se vingar. E, se foi isso mesmo, então o meu nome está na lista também.

Lawson suspirou.

- Compreendo por que o senhor está reagindo assim. Mas não creio que alguém tenha embarcado em uma programação deliberada para se vingar de vocês quatro. Posso garantir que a polícia de Glasgow está conduzindo uma linha de investigação promissora que não tem nada a ver com o assassinato de Rosie Duff. Coincidências acontecem e estas mortes são a prova disso. Uma coincidência, nada mais. As pessoas não agem desta maneira, Sr. Gilbey. Ninguém esperaria vinte e cinco anos para se vingar.

- E os irmãos de Rosie? Eles estavam doidos para dar o troco na gente naquela época. O senhor me disse que chegou a alertá-los. Que os convenceu a não fazer nada para não causar mais sofrimento à mãe deles. A mãe ainda está viva? Será que eles estão livres para se vingar agora? Será que foi por isso que Brian Duff apareceu lá no funeral de Mondo para implicar com a gente?

- É bem verdade que o Sr. e a Sra. Duff já morreram. Mas acho que o senhor não tem com o que se preocupar em relação aos Duff. Estive com Brian há algumas semanas. Não acho que ele estava muito a fim de vingança, não. E Colin trabalha no Golfo. Ele esteve em casa para o Natal, mas não estava no país quando David Kerr morreu. - Lawson inspirou profundamente. - Ele se casou com uma oficial colega minha, Janice Hogg. A ironia é que foi ela quem salvou o Sr. Mackie quando ele foi atacado pelos dois irmãos. Ela abandonou a polícia depois do casamento, mas estou certo de que não encorajaria o marido a cometer uma infração deste porte. Com relação a isto, o senhor pode ficar tranquilo.

Alex reconheceu a convicção na voz de Lawson, mas não se sentiu muito aliviado.

- Brian não foi exatamente amigável ontem - disse ele.

- Sei, imagino que não. Mas, vamos e venhamos, nem Brian nem Colin têm o perfil do que chamaríamos um criminoso sofisticado. Se eles decidissem matar você e os seus amigos, provavelmente teriam adentrado em um bar lotado e estourado os seus miolos com uma espingarda. Planejamento elaborado nunca foi o estilo deles - concluiu Lawson, secamente.

- Então ficamos sem nenhum suspeito. - Alex revirou-se na cadeira, pronto para levantar.

- Em termos - disse Lawson baixinho.

- Como assim? - perguntou Alex, tomado de apreensão.

Lawson parecia arrependido, como se tivesse falado demais.

- Deixa para lá, eu só estava pensando alto.

- Peraí. O senhor não pode me dispensar assim. O que quis dizer com "Em termos"? - Alex inclinou-se, como se estivesse prestes a voar sobre a mesa e agarrar Lawson pelas suas imaculadas lapelas.

- Eu não devia ter dito isso. Desculpe, estou só pensando como um policial.

- Mas não é para isso que o senhor é pago? Vamos lá, pode desembuchar.

Os olhos de Lawson oscilaram de um lado para o outro, como se ele estivesse procurando uma saída alternativa, que não o obrigasse a ter de passar por Alex. Ele passou a mão sobre o lábio superior e suspirou profundamente.

- O filho de Rosie - disse ele.


33

Lynn olhou estarrecida para Alex, sem parar de ninar gentilmente a filha no colo.

- Repete - pediu ela.

- Rosie teve um filho. Ninguém ficou sabendo na época. Sabe-se lá por quê, o legista não percebeu na autópsia. Lawson mesmo admitiu que o sujeito já estava mais para lá do que para cá, era velho e chegado numa bebida. Mas, em sua defesa, ele disse que era possível que a ferida tivesse escondido qualquer vestígio de que ela dera à luz. A família, obviamente, não quis dizer nada porque tinham certeza de que se as pessoas ficassem sabendo que Rosie tinha um filho ilegítimo, ela seria instantaneamente retratada como uma mãe precoce qualquer. Ela passaria de vítima inocente a uma garota que teve o que bem mereceu. Eles estavam desesperados para proteger o nome de Rosie. Não podemos culpá-los por isso.

- Eu não culpo mesmo. Basta ver como a imprensa pintou vocês; qualquer um teria feito a mesma coisa. Mas como foi que ele surgiu agora?

- Segundo Lawson, ele foi adotado. Ano passado, ele resolveu pesquisar sobre a sua mãe verdadeira. Acabou encontrando a mulher que cuidava do abrigo onde Rosie ficou durante a gravidez e foi então que ele descobriu que não ia ter um reencontro familiar afinal.

Davina gemeu e Lynn colocou o seu dedo mindinho na boca da filha, sorrindo para ela.

- Deve ter sido horrível para ele. Tem que ter muita coragem para procurar a mãe verdadeira. Afinal, ela já te rejeitou uma vez, sabe Deus por quê, e você está se colocando numa posição em que pode ser rechaçado novamente. Mas você precisa, ao mesmo tempo, nutrir a esperança de que a mãe vai recebê-lo de braços abertos.

- Pois é. E o pior deve ser descobrir que alguém o privou desta oportunidade vinte e cinco anos atrás. - Alex inclinou-se para a frente. - Posso segurá-la um pouquinho?

- Claro. Ela acabou de mamar, então deve dormir um pouquinho. - Lynn afrouxou delicadamente as suas mãos sob a filha, passando-a para Alex como se ela fosse a coisa mais valiosa e frágil do mundo. Ele deslizou a mão por baixo do pescoço delicado do bebê e o colocou no colo. Davina resmungou baixinho, depois se acomodou. - Então Lawson acha que o filho dela está atrás de você?

- Lawson não acredita que tenha alguém atrás de mim. Ele acha que eu sou um doido paranoico fazendo tempestade em copo d’água. Ele ficou extremamente constrangido por ter deixado escapar essa história do filho de Rosie e ficou tentando me convencer de que ele era incapaz de matar uma mosca. O nome dele é Graham, por sinal. Lawson não quis me dar o sobrenome de jeito nenhum. Ao que parece, ele trabalha com tecnologia de informação. Calmo, estável, um sujeito normal - disse Alex.

Lynn balançou a cabeça.

- Não consigo acreditar que Lawson não está dando a devida importância. Quem ele acha que mandou as coroas, então?

- Ele não sabe, e nem quer saber. Ele só está preocupado com a sua super-revisão que está indo por água abaixo.

- Eles são incapazes de administrar uma limpeza, quanto mais uma investigação de assassinato. Como foi que ele explicou a perda de uma caixa inteira de provas?

- Eles não perderam a caixa toda. Eles ainda têm o cardigã. Ao que parece, foi encontrado separadamente. Jogado sobre o muro, no jardim de um fulano qualquer. Foi submetido aos testes depois do resto das roupas de Rosie, vai ver que foi por isso que acabou separado do resto do material.

Lynn franziu a testa.

- Foi encontrado depois? Não teve uma segunda busca na casa de vocês? Eu me lembro vagamente do Mondo reclamando que eles reviraram tudo de novo, semanas após o assassinato.

Alex esforçava-se para lembrar.

- Depois da primeira busca... é, eles voltaram depois do Ano-Novo. Rasparam tinta das paredes e do teto. E queriam saber se nós tínhamos feito alguma reforma na casa. - Alex bufou. - Até parece. E Mondo disse que ouviu um deles falando sobre um cardigã. Ele achou que estavam procurando alguma peça de roupa nossa. Mas não era isso, é claro! Eles estavam falando sobre o cardigã de Rosie - concluiu ele, triunfante.

- Então devem ter encontrado alguma tinta no cardigã dela - disse Lynn, pensativa. - Por isso que eles estavam colhendo amostras.

- Sim, mas eles não conseguiram nada na nossa casa. Caso contrário, estaríamos ainda mais ferrados.

- Será que eles fizeram uma nova análise? Lawson disse alguma coisa?

- Não especificamente. Ele só comentou que eles não tinham nenhuma das roupas que poderiam ser submetidas a análise.

- Isso é ridículo. É possível fazer muitas coisas com tinta hoje em dia. Eu consigo muito mais informação dos laboratórios agora do que conseguia há três ou quatro anos. Eles deveriam estar testando isso. Você tem que voltar lá e falar com ele.

- Mas não adianta nada fazer uma análise se eles não tiverem nada para comparar com o resultado. Lawson não vai tomar providências só porque eu pedi.

- Mas você não disse que ele queria resolver este caso?

- Lynn, se isso fosse adiantar alguma coisa, eles já teriam feito.

Lynn corou com uma súbita raiva.

- Meu Deus, Alex, escuta o que você está falando. Você vai ficar sentado esperando outra bomba estourar em cima da gente? O meu irmão morreu. Alguém invadiu a casa dele na maior cara de pau e o matou. A única pessoa que podia te ajudar acha que você está paranoico. Eu não quero que você morra, Alex. Não quero que a nossa filha cresça sem ter uma lembrança do pai.

- E você acha que eu quero isso? - Alex apertou a filha contra o peito.

- Então para de ser tão frouxo. Se você e Esquisito estiverem certos, a pessoa que matou Ziggy e Mondo vai vir atrás de vocês dois. O único jeito de vocês se safarem é o assassino de Rosie ser finalmente descoberto. Já que Lawson não vai se mexer, talvez você devesse tentar. Você tem a melhor motivação do mundo em seus braços agora.

Alex não podia negar. Estava à flor da pele desde o nascimento de Davina, o tempo todo impressionado com a profundidade dos seus sentimentos.

- Eu sou um fabricante de cartões, Lynn, não um detetive - protestou ele, desanimado.

Lynn lançou um olhar indignado para ele.

- E quantas vezes as falhas da justiça foram corrigidas por um zé-ninguém insistente?

- Não sei nem por onde começar.

- Você se lembra daquela série sobre ciência forense que passou na tevê uns anos atrás?

Alex resmungou. Nunca se deixara contaminar pelo fascínio que as tramas de suspense na televisão ou no cinema exerciam sobre a sua mulher. Normalmente, durante um especial de duas horas com Frost, Inspetor Morse ou Wexford, ele apanhava um bloco de papel e trabalhava algumas ideias para novos cartões.

- Vagamente - respondeu ele.

- Eu me lembro de um dos cientistas forenses dizendo que eles costumavam deixar algumas informações de fora em seus relatórios. Vestígios de provas que não puderam ser analisados, coisas assim. Se não vai servir para ajudar os investigadores, eles nem incluem no laudo. Acho que é para evitar que a defesa confunda a cabeça dos jurados.

- Tá, mas não sei em que isso pode nos ajudar. Mesmo que nós conseguíssemos ter acesso aos relatórios originais, não teríamos como saber o que ficou de fora, não é?

- Não. Mas talvez, se conseguíssemos localizar o sujeito que assinou o relatório, ele talvez pudesse lembrar de alguma coisa que desistiu de acrescentar naquela época por parecer pouco importante, mas que de repente pode ajudar a gente agora. Talvez ele tenha até guardado as anotações pessoais dele. - A raiva de Lynn transformara-se em entusiasmo. - O que você acha?

- Eu acho que os hormônios mexeram com o seu cérebro - disse Alex. - Você acha que se eu ligar para Lawson e perguntar quem assinou o relatório forense ele vai me dizer?

- Para você, é claro que não. - Lynn entortou os lábios, com cara de nojo. - Mas, para um jornalista...

- Os únicos jornalistas que eu conheço escrevem amenidades para os suplementos de domingo - ponderou Alex.

- Ué, liga para eles e pergunta se alguém tem um colega que possa te ajudar. - Lynn falou com um ar decisivo. Quando ela estava daquele jeito, não adiantava tentar discutir e Alex sabia disso. Mas, enquanto se resignava com a ideia de ter de sondar os seus contatos, teve uma ideia. Talvez ele pudesse matar dois coelhos com uma cajadada só. Obviamente, podia dar tudo errado. Mas só havia uma maneira de descobrir.

Estacionamentos de hospitais eram ótimos pontos de observação, pensou Macfadyen. Pródigos em idas e vindas, com várias pessoas sentadas dentro de seus carros, esperando. Boa iluminação, o que garantia ver a sua presa entrando e saindo. E ninguém prestava atenção em ninguém; era possível ficar lá durante horas a fio sem levantar suspeita. Exatamente o contrário das ruas residenciais, onde todo mundo quer saber da vida do outro.

Perguntava-se quando Gilbey poderia levar a filha para casa. Tentou ligar para o hospital para sondar, mas eles não colaboraram muito; limitaram-se a informar que o bebê passava bem. As pessoas responsáveis por crianças andavam muito cautelosas ultimamente.

O ressentimento que sentia pela filha de Gilbey era impressionante. Ninguém viraria as costas para aquela criança. Ninguém ia abandoná-la nas mãos de estranhos. Estranhos que a criariam em um estado permanente de ansiedade, de medo de fazer alguma coisa que despertasse uma ira arbitrária contra ela. Os seus pais não o haviam maltratado, não no sentido de agressões físicas. Mas deixaram que ele se sentisse constantemente carente, constantemente errado. E eles não haviam sequer hesitado em culpar o seu sangue ruim por todos os seus deslizes. Mas ele perdera muito mais do que carinho e amor. As histórias familiares que haviam lhe contado quando criança eram histórias de outras pessoas, não dele. Desconhecia a sua própria história.

Jamais poderia olhar-se no espelho e buscar uma semelhança com as feições de sua mãe. Jamais perceberia aquelas estranhas congruências que acontecem nas famílias, quando uma criança repete as reações dos seus pais. Estava à deriva, em um mundo isolado. A única família que lhe restara não queria saber dele.

E agora, para completar, a filha de Gilbey teria tudo o que lhe fora negado, apesar de o pai ter sido o responsável por tudo o que ele perdera. Macfadyen não se conformava com aquilo e a amargura roía as entranhas da sua alma ressequida. Não era justo. Aquela criança não merecia ir para um lar seguro, cheio de amor.

Estava na hora de começar a fazer planos.

Esquisito beijou cada um de seus filhos e viu-os entrar no furgão da família. Não sabia quando os veria novamente e ter de se despedir naquelas circunstâncias deixou-o com um vazio no peito. Mas ele sabia que aquela dor era mínima se comparada ao que ele sentiria se não fizesse nada e, com sua omissão, visse algo acontecer aos seus filhos. Bastavam algumas horas de carro e estariam salvos na montanha, protegidos pela barricada de um grupo evangélico que morava lá, cujo líder fora diácono na igreja de Esquisito. O governo federal não encontraria os seus filhos lá; muito menos um assassino vingativo fazendo justiça com as próprias mãos.

Uma parte dele achava que estava exagerando, mas ele não estava preparado para lhe dar ouvidos. Anos de conversas com Deus haviam lhe rendido uma certa segurança para tomar decisões. Esquisito envolveu a mulher em seus braços e a apertou contra o peito.

- Obrigado por levar tudo isso a sério - agradeceu ele.

- Sempre levei você a sério, Tom - murmurou ela, acariciando a sua camisa de seda. - Quero que você me prometa que vai cuidar tão bem de si mesmo quanto está cuidando de nós.

- Só preciso dar um telefonema e já estou de saída também. Vou para um lugar onde não vai ser fácil me seguir ou me encontrar. Vamos ficar quietinhos por um tempo, confiar em Deus, e tenho certeza de que vamos superar esta ameaça. - Ele se inclinou e beijou a mulher, longa e ardentemente. - Vá com Deus.

Deu um passo para trás e ficou observando enquanto ela entrava no carro e dava partida no motor. As crianças acenaram para ele, animadas com a perspectiva de uma aventura que lhes daria férias da escola. O clima ingrato das montanhas não seria nada fácil, mas sabia que tudo daria certo. Acompanhou o furgão até o fim da rua e depois voltou depressa para dentro de casa.

Um colega de Seattle lhe arrumara um detetive particular de confiança, bem discreto. Esquisito ligou para o celular dele e esperou.

- Alô, aqui é Pete Makin - disse a voz do outro lado da linha, com um sotaque americano.

- Sr. Makin? O meu nome é Tom Mackie. Reverendo Tom Mackie. Quem me passou o número do senhor foi o reverendo Polk.

- Eu realmente aprecio um pastor que arruma trabalho para o seu rebanho - disse Makin. - Em que posso ajudá-lo, reverendo?

- Preciso descobrir quem enviou uma determinada coroa de flores para um funeral a que eu compareci recentemente, aí na sua área. Isso é possível?

- Acho que sim. O senhor tem algum detalhe específico para me informar?

- Não sei o nome do florista que fez o arranjo, mas era bem sofisticado. Rosas brancas e alecrim. Estava escrito no cartão "Lembrança de Rosemary".

- "Lembrança de Rosemary"... - repetiu Makin. - Tem razão, é meio estranho mesmo. Nunca vi nada parecido. Quem fez o arranjo com certeza deve se lembrar. O senhor pode me informar quando e onde ocorreu o funeral?

Esquisito deu as informações, soletrando cuidadosamente o nome de Ziggy.

- De quanto tempo você vai precisar para me dar uma resposta?

- Bom, isso depende. A funerária talvez possa me passar uma lista dos floristas que normalmente trabalham com eles. Mas se não for possível, vou ter que vasculhar uma área relativamente ampla. Isso pode demorar algumas horas ou alguns dias. Se o senhor me passar o seu telefone, posso lhe manter informado.

- Vai ser meio complicado me achar. Mas posso dar um jeito de te ligar todos os dias, pode ser?

- Por mim, tudo bem. Mas vou precisar de um adiantamentozinho para começar o serviço.

Esquisito deu um sorriso irônico. Ultimamente, não se podia confiar nem nos sujeitos de batina.

- Mando para você. De quanto acha que vai precisar?

- Quinhentos dólares são o suficiente. - Makin passou os detalhes do pagamento para Esquisito. - Assim que estiver com o dinheiro, começo a trabalhar. Obrigado, reverendo.

Esquisito desligou, estranhamente confiante após aquela conversa. Pete Makin não perdera tempo querendo saber o porquê daquela investigação, nem tentou valorizar o seu serviço tornando-o mais difícil do que era na realidade. Era um homem confiável, pensou. Subiu as escadas e trocou de roupa em seu quarto, despindo os hábitos clericais e enfiando-se em uma calça jeans, uma camisa de flanela bege e uma jaqueta de couro leve. Já tinha arrumado a sua bolsa; a única coisa que faltava apanhar era a Bíblia que ficava na mesa de cabeceira. Colocou-a num dos compartimentos da bolsa, contemplou o quarto familiar por alguns momentos e fechou os olhos para uma breve oração.

Uma hora depois, estava saindo do estacionamento sem limite de tempo do aeroporto de Atlanta. Chegara bem na hora do voo para San Diego. Naquela mesma noite, já teria cruzado a fronteira e estaria hospedado anonimamente em um hotel chinfrim em Tijuana, México. Aquele não era o tipo de lugar que ele escolheria normalmente, o que o tornava ainda mais seguro.

Fosse lá quem estivesse atrás dele, não o encontraria justo ali.

Jackie olhou fixamente para Alex.

- Ela não está aqui.

- Eu sei disso. É com você mesma que eu quero falar.

Ela bufou, com os braços cruzados sobre o peito. Desta vez, estava usando uma jaqueta de couro e uma camiseta preta colada no corpo. Um piercing de diamante brilhava em sua sobrancelha.

- Veio me colocar contra a parede, né?

- O que te faz pensar que isso é da minha conta? - perguntou Alex, friamente.

Ela arqueou as sobrancelhas.

- Você é homem, escocês, e ela é da sua família.

- Esta sua arrogância não vai te levar a lugar nenhum. Olha, estou aqui porque eu acho que podemos trocar uns favores.

Jackie inclinou a cabeça, adotando um ar insolente.

- Não transo com homens. Você ainda não sacou isso?

Exasperado, Alex virou-se para ir embora. Perguntou-se se valia a pena arriscar a ira de Lynn para fazer aquilo.

- Estou perdendo o meu tempo aqui. Só achei que você poderia gostar de uma sugestão para se livrar da polícia.

- Peraí. Você está me oferecendo uma saída?

Alex estacou, com um dos pés na escada.

- Não é por causa do seu charme natural, Jackie. É porque também vai me dar paz de espírito.

- Mesmo achando que eu posso ter matado o seu cunhado.

Alex resmungou.

- Pode acreditar, eu dormiria muito melhor se realmente conseguisse acreditar nisso.

Jackie reagiu, impaciente.

- Ah, é, né? Porque aí a sapatão ia ter o que merece.

Irritado, Alex a interrompeu.

- Será que dá para colocar os seus preconceitos de lado por cinco minutos? Eu só ficaria feliz se você fosse mesmo a assassina porque aí eu estaria seguro.

Jackie inclinou a cabeça, intrigada apesar da sua resistência.

- Isso é uma coisa muito estranha de se dizer.

- Não quer conversar sobre isso aí dentro?

Ela fez um gesto vago para a porta e deu um passo para trás.

- É melhor você entrar. Como assim, "seguro"? - perguntou ela enquanto ele se acomodava na cadeira mais próxima.

- Tenho uma teoria sobre a morte de Mondo. Não sei se você sabe, mas um outro amigo meu foi assassinado em circunstâncias suspeitas algumas semanas atrás.

Jackie fez um gesto afirmativo com a cabeça.

- Hélène comentou. Foi um cara que estudou com você e David na universidade, não foi?

- Nós crescemos juntos. Nós quatro. Éramos melhores amigos na escola e fomos para a universidade juntos. Uma noite, quando voltávamos bêbados de uma festa, nos deparamos com uma moça...

- Eu sei disso também - interrompeu Jackie.

Alex ficou surpreso ao constatar o quão aliviado se sentia por não ter de relembrar todos os detalhes que se seguiram à morte de Rosie.

- Ótimo. Então você já sabe da história. Bem, sei que isso pode parecer maluquice, mas eu acho que Mondo e Ziggy foram assassinados por alguém que está tentando se vingar pela morte de Rosie Duff. A garota que morreu - completou ele.

- Por quê? - Mesmo sem querer, Jackie estava compenetradíssima, inclinada para a frente com os cotovelos apoiados nos joelhos. A perspectiva de uma boa história era forte o bastante para colocar a sua hostilidade em segundo plano.

- Pode até parecer insignificante - disse Alex e, em seguida, contou-lhe sobre as coroas de flores. - O nome dela era Rosemary - concluiu ele.

Jackie levantou as sobrancelhas.

- Credo, que troço sinistro - disse ela. - Nunca vi nenhuma coroa assim. Fica meio complicado de entender se você não capta a referência ao nome da garota. Estou vendo agora por que você está tão grilado.

- É, mas a polícia não viu. Eles me trataram como se eu fosse uma velhinha com medo do escuro.

Jackie grunhiu, debochada.

- Bom, nós dois sabemos como a polícia é esperta. E então, o que você acha que eu posso fazer?

Alex ficou constrangido.

- Lynn imaginou que se conseguíssemos descobrir quem realmente matou Rosie naquela época, a pessoa que está tentando se vingar da gente ia ter que desistir. Antes que seja tarde demais para mim e para Tom Mackie.

- Faz sentido. Você não consegue convencer a polícia a reabrir o caso? Com a tecnologia que eles têm atualmente...

- O caso já foi reaberto. A polícia de Fife está fazendo uma revisão dos casos não resolvidos e este é um deles. Mas eles estão no maior impasse, principalmente porque perderam as provas. Lynn imaginou que se nós conseguíssemos encontrar o cientista forense que assinou o laudo original, ele poderia informar se deixou alguma coisa de fora do relatório.

Jackie concordou com um gesto de cabeça.

- Às vezes eles deixam coisas de fora mesmo, para evitar que a defesa tenha vantagem. Então você quer que eu encontre esse sujeito e entreviste ele?

- Algo assim. Achei que você poderia fingir que estava fazendo uma matéria minuciosa sobre o caso, com enfoque na investigação daquela época. Será que você não consegue convencer a polícia a te dar acesso ao material que eles se recusaram a me mostrar?

Ela deu de ombros.

- Vale a pena tentar.

- Então, você pode fazer isso?

- Vou ser franca com você, Alex. Eu não tenho o menor interesse em salvar a sua pele. Mas você está certo: eu também tenho muito a perder. Te ajudando a descobrir quem matou David, eu tiro o meu da reta. E então, com quem eu devo falar?


34

O recado na mesa de James Lawson dizia apenas: "A equipe da revisão dos casos gostaria de vê-lo assim que possível." Não parecia ser notícia ruim. Quando entrou na sala da sua equipe, com um ar de otimismo cuidadoso, percebeu imediatamente que tinha razão, ao ver uma garrafa de uísque Famous Grouse e meia dúzia de copinhos de plástico na mão dos detetives. Lawson abriu um sorriso.

- Isso aqui está me cheirando a comemoração - disse ele.

O detetive-inspetor Robin Maclennan deu um passo à frente, oferecendo-lhe o uísque.

- Acabei de receber notícias da polícia de Manchester. Eles prenderam um sujeito, suspeito de estupro há algumas semanas em Rochdale. Quando verificaram os resultados do exame de DNA no computador, foi batata.

Lawson estacou.

- Lesley Cameron?

Robin concordou com a cabeça.

Lawson apanhou a dose de uísque e suspendeu o seu copo em um brinde silencioso. Assim como o caso de Rosie Duff, ele jamais esqueceria o assassinato de Lesley Cameron. Aluna da universidade, ela havia sido estuprada e estrangulada quando voltava para o seu alojamento. Assim como com Rosie, jamais encontraram o assassino. Durante algum tempo, os detetives chegaram a tentar estabelecer uma relação entre os dois casos, mas não havia semelhanças suficientes para justificar uma ligação entre eles. Não bastava alegar que não houvera mais nenhum estupro seguido de morte em St. Andrews durante aquele período. Trabalhara como detetive assistente naquela época e se lembrava bem da polêmica. Pessoalmente, jamais acreditara na teoria que os dois crimes estavam de alguma forma relacionados.

- Lembro-me muito bem desta história - disse ele.

- Submetemos as roupas da vítima ao exame de DNA, mas não tivemos nenhum resultado do sistema - continuou Robin e o seu rosto esquálido revelou, em um sorriso, rugas previamente desconhecidas. - Então eu deixei de lado por um tempo e continuei verificando os infratores sexuais subsequentes. Não deu em nada. Mas aí, recebemos esta ligação da polícia de Manchester. Parece que temos um resultado.

Lawson deu um tapinha no ombro do detetive.

- Bom trabalho, Robin. Você vai até lá para o interrogatório? - perguntou ele.

- Com certeza. Mal posso esperar para ver a cara do canalha quando ele souber que eu quero interrogá-lo.

- Estas são boas notícias mesmo. - Lawson sorriu para o resto da equipe. - Viram só? Basta uma tacada de sorte e vocês chegam lá. Como vocês estão indo? Karen, você conseguiu alguma coisa com o ex-namorado de Rosie Duff? O tal que a gente acha que é o pai de Macfadyen?

Karen fez um gesto com a cabeça.

- John Stobie. Os policiais locais foram dar uma palavrinha com ele. E eles também conseguiram um resultado, de certa forma. Parece que Stobie tem o álibi perfeito. Ele quebrou a perna em um acidente com a sua moto no final de novembro de 78. Na noite em que Rosie foi assassinada, ele estava usando um gesso da coxa até o pé. Ou seja, jamais poderia estar correndo em St. Andrews no meio de uma tempestade de neve.

Lawson suspendeu as sobrancelhas.

- Qualquer um podia ver que Stobie tinha ossos frágeis mesmo. Eles devem ter verificado o prontuário médico, não é?

- Stobie deu permissão. E parece que ele estava falando a verdade mesmo. Então, podemos colocar um ponto final nesta história.

Lawson virou-se disfarçadamente, separando-se com Karen dos outros.

- Tudo bem, Karen. - Ele suspirou. - Talvez eu devesse colocar Macfadyen em contato com Stobie. Talvez ele até me desse um descanso.

- Ele ainda está perturbando o senhor?

- Algumas vezes por semana. Estou começando a achar que seria melhor se ele não tivesse aparecido do nada.

- Bom, eu ainda preciso conversar com as outras três testemunhas - disse Karen.

Lawson mudou de expressão.

- Na verdade, são só duas agora. Ao que parece, Malkiewicz morreu em um incêndio bem suspeito, um pouco antes do Natal. E Alex Gilbey enfiou na cabeça que, agora que David Kerr também foi assassinado, tem um justiceiro maluco solto por aí, matando um por um.

- O quê?

- Ele veio me procurar uns dias atrás. É paranoia pura e eu não quis encorajá-lo. Então, é melhor você deixar as testemunhas pra lá. Não acho que vai ajudar muito, depois de tanto tempo.

Karen pensou em discordar. Não que ela imaginasse que algo significante fosse resultar das suas conversas, mas uma detetive determinada como ela não ficava à vontade com a ideia de deixar uma possibilidade inexplorada.

- O senhor não acha que ele pode ter razão? Quer dizer, é coincidência demais, né? Primeiro, Macfadyen aparece e descobre que não temos a menor esperança de encontrar o assassino da mãe. Depois, dois dos suspeitos originais do caso são assassinados.

Lawson girou os olhos.

- Você está enfornada demais nesta sala de investigação, Karen. Está começando a alucinar. Lógico que Macfadyen não está por aí, dando uma de Charles Bronson. Ele é um profissional respeitável, pelo amor de Deus, não um psicopata. E não vamos insultá-lo com um interrogatório sobre dois crimes que sequer aconteceram na nossa circunscrição.

- Está bem, senhor - suspirou Karen.

Lawson apoiou a mão no braço dela, em um gesto paternal.

- Vamos esquecer um pouquinho de Rosie Duff por enquanto, está bem? Não estamos chegando a lugar algum. - Lawson voltou para o grupo. - Robin, a irmã de Lesley Cameron não é especialista em traçar perfis de criminosos?

- Sim, senhor. Dra. Fiona Cameron. Ela esteve envolvida com o caso de Drew Shand há alguns anos, em Edimburgo.

- Estou me lembrando. Bom, talvez você devesse fazer uma visitinha. Avisar a ela que estamos investigando um suspeito. E não deixe de avisar a imprensa também. Mas só depois de falar com a dra. Cameron. Não quero que ela fique sabendo primeiro pelos jornais. - Era claramente o fim daquela conversa. Lawson terminou o seu uísque e dirigiu-se para a porta. Estacou sob o portal e virou-se para trás. - Bom trabalho, Robin. Isso é bom para todos nós. Obrigado.

Esquisito empurrou o prato sobre a mesa. Comida engordurada para turistas, e com porções tão generosas que poderiam alimentar uma família inteira de mexicanos pobres por uns dois dias, pensou ele, sentido. Não suportava o fato de ter sido bruscamente arrancado da sua rotina. Todas as coisas que tornavam a sua vida agradável pareciam um sonho distante agora. E o conforto que podia ser extraído somente da fé tinha lá os seus limites. Era uma prova, se algum dia precisasse dela, de que estava aquém dos seus próprios ideais.

Enquanto o garçom retirava os resquícios do seu especial de burrito, Esquisito pegou o celular e ligou para Pete Makin. Após os cumprimentos iniciais, ele foi direto ao assunto.

- Conseguiu alguma coisa? - perguntou ele.

- Só consegui eliminar algumas possibilidades. A funerária me deu o nome das três lojas que normalmente trabalham para eles. Mas nenhuma delas montou o tal arranjo que o senhor descreveu para mim. E todas concordaram que parece estranho mesmo, que não é comum. Seria algo que eles com certeza se lembrariam se tivesse sido encomendado.

- E agora, então?

- Bom - rateou Makin. - Acho que temos uns cinco ou seis floristas aqui nas imediações. Eu vou checar todos eles, ver se descubro alguma coisa. Mas vai levar um dia ou dois. Amanhã, tenho que comparecer ao tribunal, vou depor em um caso de fraude. Pode ser que não dê tempo. Mas pode ficar tranquilo, reverendo. No dia seguinte, mando bala.

- Obrigado por ser tão direto, Sr. Makin. Volto a ligar daqui a alguns dias, para ver se o senhor já tem alguma novidade. - Esquisito guardou o celular de volta no bolso. Ainda não tinha chegado ao fim. Não estava sequer perto.

Jackie colocou pilhas novas no seu gravador, verificou se tinha canetas na bolsa e depois partiu em seu carro. Ficara agradavelmente surpresa com a boa vontade do assessor de imprensa da polícia, para quem ela ligou após a visita de Alex.

Já pensara em tudo. Disse que estava escrevendo uma matéria para uma revista importante, comparando os métodos usados pela polícia em uma investigação de homicídio há vinte e cinco anos com os atuais. E que chegara à conclusão de que a melhor maneira de abordar os métodos investigativos seria aproveitar uma revisão de casos não solucionados, como a que a polícia de Fife estava fazendo. Deste modo, ela estaria lidando com um oficial completamente ciente de todos os detalhes do caso. Enfatizou que não visava criticar a polícia; a matéria seria apenas sobre as mudanças no procedimento e na prática, levando em consideração as descobertas científicas e as mudanças na lei.

O assessor de imprensa ligou para ela no dia seguinte.

- Você teve sorte. Temos um caso de exatamente vinte e cinco anos atrás. E por coincidência, o nosso subchefe de polícia, policial naquela época, foi o primeiro oficial no local do crime. E ele concordou em lhe dar uma entrevista. Também consegui agendar um encontro com a detetive Karen Pirie, que está trabalhando na revisão desse caso. Ela está a par de todos os detalhes.

E lá estava Jackie, pregando uma peça na polícia de Fife. Normalmente, não costumava ficar nervosa antes de uma entrevista. Já estava na profissão há bastante tempo, não ficava mais apavorada. Havia lidado com todos os tipos de entrevistado: os tímidos, os espalhafatosos, os animados, os amedrontados, os especialistas em marketing pessoal, os que adotavam uma postura blasé, os criminosos embrutecidos e as vítimas desamparadas. Mas naquele dia, havia definitivamente uma carga de adrenalina circulando no seu sangue. Não estava mentindo quando dissera a Alex que também tinha algo a perder. Depois da conversa com ele, ficara horas acordada, nitidamente ciente do estrago que a suspeita sobre a morte de David Kerr podia causar em sua vida. Então, preparara-se para aquele dia vestindo-se de maneira conservadora e tentando deliberadamente parecer o menos ameaçadora possível. Pela primeira vez, havia mais furos do que brincos em suas orelhas.

Era difícil reconhecer o jovem policial no subchefe de polícia Lawson, pensou ela enquanto se acomodava à sua frente. Ele parecia uma daquelas pessoas que já nasciam carregando o peso do mundo nas costas, e naquele dia tal peso parecia especialmente pesado. Não devia ter mais de cinquenta anos, mas aparentava ter passado mais tempo em casa jogando bola do que conduzindo investigações criminais em Fife.

- Que ideia peculiar para uma matéria - disse ele, após terminarem os devidos cumprimentos.

- Que nada. As pessoas hoje em dia mal param para pensar nas investigações policiais. É bom lembrar como progredimos em um período de tempo relativamente curto. E eu, obviamente, preciso aprender muito mais do que vou acabar usando na matéria final. A gente sempre acaba jogando noventa por cento da pesquisa fora.

- E para onde está escrevendo esta matéria? - perguntou ele, despretensioso.

- Para a Vanity Fair - respondeu Jackie, confiante. Era sempre melhor mentir e usar nomes conhecidos. Fazia com que o entrevistado sentisse que não estava perdendo o seu tempo.

- Bom, estou aqui à sua disposição - disse ele com uma camaradagem forçada, abrindo as mãos em um gesto largo.

- Fico muito grata por isso. Imagino como o senhor deve estar ocupado. Bom, podemos relembrar aquela noite de dezembro de 1978? O que levou o senhor a participar do caso?

Lawson expeliu o ar pesadamente pelas narinas.

- Eu estava de plantão em uma viatura. Ou seja, estava trabalhando a noite toda, parando apenas para fazer um lanche. Mas não ficava dirigindo a noite inteira. - Um sorriso discreto surgiu no canto de sua boca. - Mesmo naquela época, já tínhamos um orçamento limitado. Eu não podia dirigir mais do que sessenta quilômetros por turno. Então, eu vasculhava o centro da cidade na hora em que os bares estavam fechando e depois encontrava um lugar tranquilo para estacionar até que houvesse um chamado. O que não costumava acontecer. St. Andrews era uma cidadezinha relativamente pacata, principalmente durante as férias da universidade.

- Devia ser bem maçante, hein? - comentou Jackie, solidária.

- E como. Eu costumava carregar um rádio transistor comigo, mas nunca tinha nada que valesse a pena escutar. Na maioria das vezes, eu estacionava perto da entrada do Jardim Botânico. Eu gostava daquele lugar. Era agradável e tranquilo, e dava para chegar a qualquer ponto da cidade em questão de minutos. Naquela noite, o tempo estava pavoroso. O dia inteiro nevara intermitentemente, e de madrugada o chão estava todo coberto por uma grossa camada de neve. Por causa disso, eu estava tendo uma noite calma. A maioria das pessoas não se arriscava a sair de casa com um tempo daqueles. Então, lá pelas quatro da manhã, eu vi um vulto aproximando-se pela neve. Eu saí do carro e, vou ser franco com você, por um momento achei que fosse ser atacado por um maníaco embriagado. O garoto estava sem fôlego, coberto de sangue e o suor escorria pelo seu rosto. Ele disse que havia uma moça em Hallow Hill, que ela havia sido atacada.

- O senhor deve ter tomado um susto - instigou Jackie.

- Primeiro, pensei que fosse um estudante bêbado. Mas ele era muito insistente. Ele disse que havia caído por cima da moça na neve e que ela estava sangrando bastante. Então eu percebi que ele estava falando sério, que não era fingimento. Comuniquei a central pelo rádio e avisei que ia investigar uma mulher ferida em Hallow Hill. Coloquei o rapaz na viatura...

- Esse era Alex Gilbey, não é?

Lawson ergueu as sobrancelhas.

- Você fez o seu dever de casa, hein?

Ela deu de ombros.

- Li as matérias nos jornais, só isso. Então o senhor levou Gilbey de volta a Hallow Hill? E o que encontrou lá?

Lawson concordou com a cabeça.

- Quando chegamos lá, Rosie Duff estava morta. Havia outros três rapazes em volta do corpo. Precisei tomar conta do local e pedi reforços pelo rádio. Pedi ajuda dos policiais e do Departamento de Investigação Criminal e escoltei as quatro testemunhas colina abaixo, para longe da cena do crime. Eu confesso de bom grado que estava totalmente baratinado. Nunca havia visto nada parecido e não sabia, àquela altura, se estava parado em meio a uma nevasca com quatro assassinos do meu lado.

- Mas o senhor não acha que se eles tivessem matado a moça a última coisa que fariam ia ser buscar ajuda da polícia?

- Não necessariamente. Eles eram rapazes bem inteligentes, perfeitamente capazes de forjar uma situação como aquela. E eu não podia dizer algo que mostrasse que eu suspeitava deles, porque tinha medo que eles escapassem noite afora e nos deixassem com um problema maior ainda. Afinal, eu mal sabia quem eles eram.

- Bom, imagino que o senhor conseguiu segurá-los direitinho, porque pelo que sei eles esperaram os seus colegas no local. O que aconteceu então? Em termos de procedimentos, quero dizer. - Jackie ouviu tudo o que Lawson tinha a dizer sobre o que aconteceu naquela noite na cena do crime, até o momento em que ele precisou escoltar os quatro jovens até a delegacia.

- O meu envolvimento direto com o caso terminou ali - concluiu Lawson. - Todas as investigações subsequentes foram conduzidas pelos oficiais do DIC. Tivemos que recrutar pessoal de outras divisões, porque não tínhamos gente suficiente para cobrir um caso como aquele. - Lawson arrastou a cadeira. - Agora, se você me der licença, vou chamar a detetive Karen Pirie. Ela está mais preparada do que eu para conversar sobre o caso com você.

Jackie recolheu o gravador, mas não desligou o aparelho.

- Incrível, o senhor realmente lembra bem daquela noite - disse ela, deixando transparecer admiração em sua voz.

Lawson apertou o botão do seu interfone.

- Margaret, peça para Karen vir até aqui, por favor. - Lawson lançou para Jackie um sorriso de vaidade satisfeita. - Temos que ser meticulosos no nosso trabalho - disse ele. - Eu sempre guardei anotações cuidadosas. Mas você precisa lembrar que assassinatos são ocorrências bastante raras em St. Andrews. Nos dez anos em que trabalhei lá, tivemos pouquíssimos casos de homicídio. Então, naturalmente, a gente não esquece.

- E vocês nunca estiveram prestes a prender alguém?

Lawson contorceu os lábios.

- Não. E isso é algo difícil de engolir para quem trabalha na polícia. Tudo apontava para os quatro rapazes que encontraram o corpo, mas só havia provas circunstanciais contra eles. Eu cheguei a ter um palpite de que o crime podia ter sido algum tipo de ritual de sacrifício pagão, por causa do lugar onde o corpo foi encontrado. Mas essa ideia nunca deu em nada, e nunca mais vimos algo parecido na nossa circunscrição. Lamento admitir, mas o assassino de Rosie Duff nunca foi punido. Mas, é claro, sujeitos que cometem crimes como esse normalmente acabam repetindo a dose, então, pode ser que ele esteja preso por outro assassinato.

Houve uma leve pancada na porta e Lawson disse:

- Pode entrar. - A mulher que entrou no recinto era diametralmente oposta a Jackie. Enquanto a jornalista era descontraída e atraente, Karen Pirie era rígida e sem sal. O que as unia era a flagrante centelha de inteligência que uma pôde reconhecer na outra. Lawson encarregou-se das apresentações e depois as conduziu habilmente até a porta. - Boa sorte com a sua matéria - disse ele, antes de fechar a porta firmemente.

Karen a conduziu por um lance de escadas até a sala onde a equipe de revisão dos casos trabalhava.

- Você mora em Glasgow? - perguntou ela enquanto subiam as escadas.

- Nascida e criada lá. É uma cidade incrível. Toda vida humana está lá, como eles dizem.

- O que é ótimo para uma jornalista. E como foi que você se interessou por esse caso?

Jackie repetiu a sua história sobre uma matéria de capa rapidamente. Pareceu fazer sentido para Karen. Ela abriu a porta do escritório e foi caminhando na frente. Jackie olhou à sua volta, notando as paredes de cortiça cobertas com fotografias, mapas e relatórios. Uns gatos pingados sentados atrás de computadores levantaram os olhos quando elas entraram, mas em seguida voltaram a trabalhar.

- Por sinal, não preciso nem dizer, tudo o que você vir ou ouvir aqui sobre as investigações atuais ou sobre qualquer outro caso é estritamente confidencial. Entendeu?

- Não sou repórter criminal. Não tenho interesse em nenhum outro caso além do que vim aqui conversar com você. Não vou passar a perna em vocês, ok?

Karen sorriu. Conhecera alguns jornalistas honestos na vida, mas na maioria não dava para confiar, eram capazes de roubar um sorvete de uma criança. Mas aquela mulher parecia diferente. Fosse lá o que estivesse buscando tão avidamente, não era mais uma matéria sensacionalista e descartável. Karen mostrou a Jackie uma mesa comprida encostada na parede, onde ela organizara todo o material da investigação original.

- Não sei exatamente o quão detalhada vai ser a sua matéria - disse ela, duvidosa, olhando para a pilha de pastas à sua frente.

- Eu queria ter uma noção de como a investigação progrediu. Quais caminhos foram explorados. E, é claro - completou Jackie, sacando uma expressão autodepreciadora da manga -, como isso é jornalismo, e não história, preciso dos nomes das pessoas envolvidas e todas as informações que você puder me oferecer sobre elas. Policiais, legistas, cientistas forenses, essas coisas. - Jackie sabia como fazer aquilo soar despretensioso.

- Claro, eu posso te dar os nomes. Já as informações, eu sei pouquíssimas. Eu tinha três anos na época do crime. E, para completar, o investigador oficial, Barney Maclennan, morreu durante a investigação. Você sabia disso, né? - Jackie assentiu com a cabeça. Karen continuou. - O único sujeito que eu conheci do pessoal da antiga foi David Soanes, o cientista forense. Ele fez todo o trabalho, mas quem assinou os laudos foi o chefe dele.

- E por quê? - perguntou Jackie, casual, tentando esconder a sua alegria por ter conseguido o que queria tão fácil e tão rápido.

- É praxe. Os laudos têm que ser assinados pelo chefe do laboratório, mesmo que ele nunca nem tenha tocado nas provas. Impressiona o júri.

- Nunca mais vou confiar nas assinaturas, então - disse Jackie, sarcástica.

- A gente faz o que é preciso para prender os bandidos - disse Karen. Ficou evidente pelo tom exausto da sua voz que ela não estava disposta a ficar na defensiva por uma coisa tão óbvia. - De qualquer forma, nesse caso, você não poderia estar mais bem servida. David Soanes é um dos sujeitos mais esforçados que eu já conheci. - Ela sorriu. - E hoje em dia, é ele quem assina o laudo dos outros. David leciona Ciência Forense na Universidade de Dundee agora. Encaminhamos todos os nossos serviços para lá.

- Talvez eu pudesse conversar com ele.

Karen deu de ombros.

- Ele é um cara bem acessível. Então, por onde começamos?

Duas horas de profundo tédio depois, Jackie conseguiu ir embora. Sabia mais do que jamais desejara sobre os procedimentos policiais de Fife na década de 70. Não havia nada mais frustrante do que conseguir a informação que se queria logo no início de uma entrevista e ter de ficar inventando assunto para não dar bandeira.

Karen, obviamente, não a deixara ver o laudo original. Mas Jackie não esperava que ela o mostrasse. Conseguira o que desejava. Agora, tudo dependia de Alex.


35

Alex contemplou a filha, deitada no moisés. Estava em casa, no seu lugar. A filha deles, em casa. Frouxamente envolvida em uma manta branca, franzindo o rosto enquanto dormia, Davina alegrava o seu coração. Perdera o ar franzino que tanto o preocupara nos seus primeiros dias de vida. Agora, parecia-se com os outros bebês e o seu rostinho tornava-se único. Queria desenhá-la todos os dias, para não perder nenhuma das nuances mais sutis da sua transformação.

Ela preenchia os seus sentidos. Se ele se debruçasse sobre ela, prendendo o fôlego, podia ouvi-la respirando baixinho. As suas narinas já reconheciam o inconfundível cheirinho de bebê. Alex amava Lynn, mas jamais sentira aquele sentimento avassalador de amor e proteção por alguém antes. Lynn estava certa, ele precisava mesmo fazer o que fosse necessário para garantir que acompanharia o crescimento da sua filha. Decidiu ligar para Paul mais tarde, para compartilhar aquela tarde tão significativa com ele. Se Ziggy estivesse vivo, teria ligado para ele e Paul merecia saber que continuava fazendo parte da vida deles.

O som distante de uma campainha interrompeu os seus devaneios. Alex tocou a filha, da maneira mais delicada que pôde, e depois saiu do quarto. Alcançou a porta da frente segundos depois de Lynn, que estava paralisada ao reconhecer Jackie na sua porta.

- O que você veio fazer aqui? - perguntou ela.

- Alex não te contou? - retrucou Jackie, arrastando a voz.

- Me contou o quê? - Lynn virou-se para Alex.

- Pedi ajuda a Jackie - explicou Alex.

- Isso aí. - Jackie parecia mais divertida do que ofendida.

- Pediu ajuda a ela? - Lynn não se esforçou para esconder o seu desdém. - Uma mulher que não só tinha motivos para matar o meu irmão, como conhecia gente disposta a fazer o serviço? Alex, como é que você pôde fazer uma coisa dessas?

- Porque ela também tem algo a lucrar. Ou seja, não vai nos passar a perna para conseguir uma manchete - explicou ele, tentando acalmar Lynn antes que Jackie se ofendesse de vez e fosse embora sem revelar se havia descoberto alguma coisa.

- Aqui em casa ela não entra - disse Lynn, categórica.

Alex levantou as mãos.

- Tudo bem. Deixa só eu pegar o meu casaco. Vamos até o pub, se estiver tudo bem para você, tá, Jackie?

Ela deu de ombros.

- Por mim, tudo bem. Mas você paga a conta.

Caminharam até o pub em silêncio. Alex não estava com vontade de se desculpar pela hostilidade de Lynn e Jackie não queria passar recibo. Quando se acomodaram no pub, cada um com um cálice de vinho tinto à sua frente, Alex suspendeu as sobrancelhas, inquisitivo.

- E aí? Conseguiu alguma coisa?

Jackie fez uma expressão convencida.

- Estou com o nome do cientista forense que trabalhou no caso de Rosie Duff. E o melhor da história é que ele continua na ativa. Está dando aulas em Dundee. O nome dele é David Soanes e, ao que parece, o cara é fodão.

- E quando você vai poder ir até lá conversar com ele? - perguntou Alex.

- Eu não vou lá falar com ele, Alex. Isso é tarefa sua.

- Minha? Eu não sou jornalista. Por que ele toparia falar comigo?

- O interessado aqui é você. Você pede pelo amor de Deus, diz a ele que qualquer informação que ele puder te dar pode ajudar a resolver o caso.

- Nem sei como entrevistar uma pessoa - protestou Alex. - E por que Soanes me diria alguma coisa? Você acha que ele vai querer assumir que deixou passar alguma coisa no laudo naquela época?

- Alex, você me convenceu a te ajudar e, francamente, eu nem vou com a sua cara, ou com a da sua mulher grosseira e tacanha. Então, acho que você provavelmente vai conseguir convencer David Soanes a te contar o que você quer. Principalmente porque você não vai perguntar sobre coisas que ele deixa passar. Você está interessado nas coisas que talvez não tenham sido suscetíveis à análise, coisas que justificadamente ficaram de fora do relatório. Se ele tem apreço pelo seu trabalho, com certeza vai querer te ajudar. Vai ser inclusive melhor do que conversar com um jornalista, que pode retratá-lo como incompetente. - Jackie bebericou o seu vinho, fez uma careta e ficou de pé. - Me avise quando tiver alguma novidade que possa me ajudar.

Lynn estava sentada na estufa, contemplando as luzes no estuário. Estavam sutilmente envolvidas pelo ar seco, o que conferia uma aparência ainda mais misteriosa do que mereciam. Ouviu um barulho na porta da sala, seguido pela voz de Alex anunciando:

- Já cheguei. - Mas, antes que ele pudesse ir até ela, a campainha tocou. E, independentemente de quem fosse, ela não estava disposta a receber.

Vozes abafadas iam ficando mais distintas conforme se aproximavam, mas ela ainda não conseguira descobrir quem era a visita. De repente, a porta se abriu e Esquisito foi logo caminhando em sua direção.

- Lynn! - bradou ele. - Já sei que você tem uma menininha linda para me mostrar.

- Esquisito! - exclamou Lynn, visivelmente surpresa. - Você é a última pessoa que eu esperava ver aqui em casa.

- Ótimo - disse ele. - Vamos torcer para todos estarem pensando a mesma coisa. - Ele a olhou com preocupação. - Como é que você está?

Lynn inclinou-se para abraçá-lo.

- Sei que parece bobagem, porque quase não o víamos, mas estou com saudades de Mondo.

- Claro que sim. Todos nós estamos. E estaremos sempre. Ele era uma parte de nós e agora não é mais. O único consolo é sabermos que agora ele habita a morada do Senhor. - Ficaram em silêncio por um momento e depois Lynn se afastou.

- E o que é que você está fazendo aqui? - perguntou ela. - Você não voltou direto para os Estados Unidos depois do funeral?

- Voltei. Despachei a minha mulher e os meus filhos para um lugar nas montanhas, onde ficarão a salvo de qualquer pessoa que tenha problemas comigo. E depois, desapareci. Cruzei a fronteira para o México. Lynn, jamais vá para Tijuana, a não ser que você tenha um estômago de ferro. A comida é a pior do mundo, mas o que realmente provoca indigestão na alma é a discrepância entre a riqueza extravagante dos Estados Unidos com a pobreza dos mexicanos. Fiquei com vergonha do país que escolhi para viver. Sabia que os mexicanos pintam os seus burros com listras, como zebras, para que os turistas tirem fotos com eles? Veja só a que ponto nós os obrigamos a chegar.

- Nos poupe do sermão, Esquisito. Vá direto ao assunto - reclamou Lynn.

Esquisito sorriu.

- Tinha me esquecido como você é direta, Lynn. Bom, fiquei bastante encucado depois do funeral de Mondo. Então contratei um detetive particular em Seattle. Queria descobrir quem enviou a coroa de flores para o funeral do Ziggy. E o sujeito conseguiu uma resposta. Uma resposta que me deu bons motivos para voltar pra cá. Além do mais, imaginei que este seria o último lugar onde alguém imaginaria que eu pudesse estar. Perto demais de casa.

Alex girou os olhos.

- Você realmente aprendeu a fazer suspense ao longo dos anos, hein? Você vai contar o que descobriu ou não?

- O sujeito que mandou as coroas mora aqui em Fife. Em St. Monans, para ser mais exato. Não sei quem ele é, nem que relação tem com Rosie Duff. O nome dele é Graham Macfadyen.

Alex e Lynn trocaram olhares de aflição.

- Sabemos quem ele é - disse Alex. - Ou melhor, podemos no mínimo adivinhar.

Foi a vez de Esquisito ficar ansioso e frustrado.

- O quê? Vocês sabem?

- É o filho de Rosie Duff - disse Lynn.

Esquisito arregalou os olhos.

- Ela teve um filho?

- Ninguém sabia naquela época. Ele foi entregue para adoção assim que nasceu. Devia ter uns três ou quatro anos quando ela morreu - explicou Alex.

- Que coisa! - exclamou Esquisito. - Bom, até que faz sentido, né? Imagino que ele só ficou sabendo que a mãe foi assassinada recentemente.

- Ele procurou Lawson quando a revisão dos casos não resolvidos foi anunciada. Tinha começado a procurar a mãe biológica alguns meses antes disso.

- Aí está o motivo que vocês estão procurando. Ele deve ter achado que vocês quatro eram responsáveis pelo assassinato - concluiu Lynn. - Temos que descobrir mais sobre esse Macfadyen.

- Precisamos descobrir se ele estava nos Estados Unidos na semana em que Ziggy morreu - disse Alex.

- Como é que a gente vai conseguir descobrir isso? - perguntou Lynn.

Esquisito levantou a mão.

- A central da Delta fica em Atlanta. Um dos meus fiéis tem uma boa posição lá. Acho que ele pode ter acesso às listas de passageiros. Aparentemente, as companhias aéreas compartilham informações como essas o tempo todo. E eu estou com os dados do cartão de crédito de Macfadyen, o que pode agilizar o processo. Posso ligar para ele mais tarde?

- Claro - disse Alex, inclinando a cabeça. - É a Davina? - Aproximou-se da porta. - Vou buscá-la.

- Muito bem, Esquisito - disse Lynn. - Nunca imaginei você como um pesquisador metódico.

- Esqueceu que eu era matemático, e dos bons? Todo o resto era só uma tentativa desesperada de não ficar igual ao meu pai. O que, graças a Deus, eu consegui.

Alex voltou, com Davina choramingando em seus braços.

- Acho que ela está com fome.

Esquisito levantou-se e contemplou o pequeno bebê embrulhado em uma manta.

- Caramba - disse ele, com uma voz cheia de doçura. - Ela é linda. - Ele olhou para Alex. - Agora você entende por que eu estou tão determinado a sair dessa com vida.

Lá fora, debaixo da ponte, Macfadyen observava a cena na casa de Alex. Fora uma tarde animada. Primeiro, aparecera uma mulher. Reconhecera-a do funeral, tinha visto a viúva de Kerr entrar no carro dela. Seguira as duas até um flat em Merchant City e, alguns dias depois, seguira Alex até aquele mesmo endereço. Não sabia quem ela era, onde se encaixava naquela trama intrincada. Seria apenas uma amiga da família? Ou mais do que isso?

Fosse ela quem fosse, não fora bem recebida. Ela e Gilbey foram até o pub, mas não ficaram lá tempo suficiente nem para tomar um único drinque. Depois, quando ele voltou para casa, a verdadeira surpresa apareceu. Mackie estava de volta. Ele deveria estar quietinho na Geórgia, pregando para o seu rebanho. Mas não, lá estava ele, novamente em Fife, junto com o seu cúmplice. Ninguém abandona tudo na vida assim, a não ser que tenha um bom motivo.

Estava mais do que provado. Dava para ver no rosto deles. Aquela não era uma descontraída reunião de amigos. Não era um encontro alegre, para comemorar a alta da filha de Gilbey do hospital. Aqueles dois estavam escondendo alguma coisa, algo que os reunira durante aquela crise. O medo os aproximara novamente. Estavam apavorados, com medo de que o inimigo que dera fim aos outros dois assassinos os localizasse a qualquer momento. Estavam juntos por segurança.

Macfadyen abriu um sorriso sinistro. A mão gelada do passado os alcançava, inexoravelmente. Não conseguiriam dormir tranquilos naquela noite. E era assim que devia ser. Tinha planos para eles. E, quanto mais assustados estivessem, melhor.

Tinham tido vinte e cinco anos de paz - muito mais do que a sua mãe pudera desfrutar. Estava na hora de aquela paz chegar ao fim.


36

O dia nasceu desanimador e cinzento, e a vista da North Queensferry estava obscurecida por uma bruma sombria. Em algum lugar uma buzina de nevoeiro soava o seu infeliz aviso, como uma vaca lamentando a morte de um bezerro. Com a barba por fazer e atordoado de sono, Alex apoiava os cotovelos sobre a mesa do café da manhã e observava Lynn amamentando Davina.

- Foi uma noite boa ou ruim? - perguntou ele.

- Média - respondeu Lynn, bocejando. - Nessa idade, precisam mamar várias vezes durante a noite.

- Uma da manhã, três e meia, seis e meia... Tem certeza de que ela não está faminta demais?

Lynn sorriu.

- É impressionante como o amor paterno desaparece rapidinho, né? - zombou ela.

- Se isso fosse verdade, eu teria tapado os ouvidos com o travesseiro e continuado a dormir, em vez de me levantar, preparar um chá para você e trocar a fralda dela - rebateu Alex, na defensiva.

- Se Esquisito não estivesse aqui, você podia ficar no quarto de hóspedes.

Alex fez um gesto negativo com a cabeça.

- Não quero fazer isso. Vamos ver como fica.

- Mas você precisa dormir. Você tem uma empresa para tocar.

Alex deu um muxoxo.

- Tirando o tempo que eu passo rodando o país inteiro atrás de cientistas forenses, né?

- Isso mesmo. Você está incomodado por Esquisito estar aqui em casa?

- Não, por quê?

- Bobagem minha. Eu é que sou muito desconfiada mesmo. Você sabe que eu sempre achei que, de vocês quatro, ele era o único que poderia ter matado Rosie. Então, sei lá, estou um pouco agoniada por ele ter aparecido assim, do nada.

Alex assumiu uma expressão de desconforto.

- Só desta maneira ele sairia impune do crime que cometeu? Por que ele sairia matando os amigos vinte e cinco anos depois?

- Vai ver que ele ficou sabendo da revisão do caso e ficou com medo de, depois de todo esse tempo, ser dedurado por um de vocês.

- Você é sempre exagerada, né? Ele não a matou, Lynn. Ele jamais faria isso.

- Mas as pessoas fazem coisas horríveis quando estão drogadas. E, pelo que eu me lembro, Esquisito tomava todas. Ele estava com a Land Rover; Rosie provavelmente o conhecia o suficiente para aceitar uma carona. E depois, aquela conversão religiosa sem mais nem menos. Vai ver que era culpa, Alex.

Ele balançou a cabeça.

- Ele é meu amigo. Eu saberia.

Lynn suspirou.

- Você deve ter razão. Eu exagero mesmo. E estou meio nervosa. Desculpa.

Enquanto ela falava, Esquisito apareceu. De banho tomado e barbeado, ele parecia o retrato fiel do homem saudável e forte. Alex olhou para ele e resmungou.

- Meu Deus, você está a cara daquele Tigrão da Disney.

- Que cama maravilhosa - disse Esquisito, olhando à sua volta, procurando a cafeteira. Atravessou a cozinha e começou a abrir todos os armários, até encontrar as xícaras. - Dormi como um bebê.

- Isso não - disse Lynn. - A não ser que você tenha acordado chorando de três em três horas. Você não está com um pouco de jet lag?

- Nunca tive jet lag na minha vida - respondeu ele, animado, servindo o café. - E aí, Alex, quando é que a gente parte para Dundee?

Alex começou a se aprumar.

- Tenho que ligar para lá e agendar um encontro.

- Você tá maluco? Dar oportunidade para o sujeito dizer não? - admoestou Esquisito, fuçando a cesta de pães. Apanhou um bolinho escocês e estalou os lábios. - Uhm, há anos que não como um desses.

- Sinta-se em casa - disse Alex.

- Estou me sentindo - respondeu Esquisito, vasculhando a geladeira atrás de manteiga e queijo. - Não, Alex. Nada de telefonemas. A gente simplesmente aparece lá e deixa bem claro que não vai arredar o pé até o professor Soanes encontrar uma janela.

- Uma janela? Para se jogar? - Alex não conseguiu resistir à tentação de debochar dos americanismos de Esquisito, que soavam ainda mais bizarros ditos com um sotaque escocês que se tornara ainda mais carregado da noite para o dia.

- Muito engraçado. - Esquisito apanhou um prato e uma faca e sentou-se à mesa.

- Você não acha que isso vai deixá-lo um pouquinho irritado, não? - perguntou Lynn.

- Não, acho que mostra que não estamos de brincadeira - disse Esquisito. - Acho que é o que dois sujeitos que se sentem ameaçados de morte fariam. Não está na hora de sermos educados, dóceis, obedientes. Está na hora de dizermos: "Estamos morrendo de medo e o senhor pode nos ajudar."

Alex fez uma careta.

- Tem certeza de que você quer mesmo vir comigo? - O olhar repressor que Esquisito lançou para ele teria paralisado qualquer um. Alex levantou as mãos, rendendo-se. - Está bem. Me dá meia horinha então.

Lynn observou o marido saindo, preocupada.

- Não se preocupe, Lynn. Eu vou cuidar dele.

Lynn bufou, debochada.

- Ah, por favor, Esquisito. Espero que eu não precise contar com isso.

Ele abocanhou um pedaço do bolo e a observou.

- Eu não sou mais a mesma pessoa que você lembra, Lynn - disse ele, sério. - Esqueça o adolescente rebelde, o excesso de álcool e as drogas. Lembre-se que eu sempre fiz os meus deveres e entreguei os meus trabalhos dentro do prazo. Eu dava a impressão de estar fora de controle, mas lá no fundo era um sujeito tão normal quanto Alex. Eu sei que vocês devem morrer de rir pelas minhas costas por ter um pastor que faz pregação na tevê na sua lista de cartões de Natal; e, por sinal, os cartões são maravilhosos. Mas por trás de toda a excentricidade, eu sou uma pessoa que leva muito a sério tudo o que acredita e o que faz. Quando eu digo que vou cuidar de Alex, pode ter certeza de que ele vai estar tão seguro comigo quanto estaria com qualquer outra pessoa.

Lynn aceitou a reprimenda, mas ela não serviu para minar a sua desconfiança completamente. Trocou a filha de seio para que ela continuasse a mamar e disse:

- Pronto, querida. - Fez uma careta de dor ao sentir o bebê sugar o seu seio com avidez; ainda não estava acostumada com aquela sensação tão nova. - Desculpa, Esquisito. É que é difícil não te julgar pela época em que nos conhecíamos melhor.

Ele terminou o seu café e levantou-se.

- Eu sei. Eu continuo te vendo como uma garotinha boba que sonhava com David Cassidy.

- Babaca - disse ela.

- Vou orar um pouco agora - disse ele, dirigindo-se à porta. - Eu e Alex precisamos de toda ajuda possível.

O lado de fora do ginásio Old Fleming era completamente diferente da imagem que Alex fazia de um laboratório forense. Escondido em um beco estreito, o seu arenito vitoriano estava consideravelmente manchado por um século de poluição. Não era uma construção feia; o seu único andar era bem proporcionado, com janelas em estilo italiano. Só não parecia ser o tipo de lugar que abrigava a tecnologia de ponta da ciência forense.

Esquisito também estava visivelmente intrigado.

- Tem certeza de que é aqui mesmo? - perguntou ele, hesitante na entrada do beco.

Alex fez um gesto para a rua.

- O café do antigo Instituto Técnico fica ali. De acordo com o mapa no site da universidade, é aqui mesmo.

- Parece mais um banco do que um ginásio, e menos ainda um laboratório. - Mesmo assim, ele seguiu Alex pelo beco.

A recepção não dava muitas pistas. Um rapaz com um problema sério de psoríase e vestido à moda dos beatniks da década de 50 estava sentado atrás do balcão, digitando em um teclado de computador. Olhou para eles por cima da escura armação dos seus óculos.

- Em que posso ajudá-los, senhores? - perguntou ele.

- Gostaríamos de saber se por acaso poderíamos dar uma palavrinha com o professor Soanes - disse Alex.

- O senhor marcou hora?

Alex fez um gesto negativo com a cabeça.

- Não. Mas ficaríamos muito agradecidos se ele pudesse nos receber. É sobre um caso antigo no qual ele trabalhou.

O rapaz balançou a cabeça de um lado para o outro, como um dançarino indiano.

- Acho que não vai ser possível, não. Ele é um homem muito ocupado.

- Nós também - interrompeu Esquisito, aproximando-se do balcão. - E o nosso assunto com ele é uma questão de vida ou morte.

- Meu Deus - disse o rapaz. - É o Tommy Lee Jones de Tayside. - O comentário poderia ter soado grosseiro, mas ele o fez com um ar divertido de admiração que neutralizou qualquer malícia.

Esquisito o encarou firmemente.

- Podemos esperar. - Alex acudiu antes que a coisa ficasse feia.

- E vão ter de esperar mesmo. Ele está dando um seminário agora. Deixa eu conferir a agenda dele para hoje. - Ele digitou alguma coisa no teclado. - Vocês podem voltar às três? - perguntou ele alguns segundos depois.

Esquisito chiou.

- E passar cinco horas em Dundee?

- Maravilha - respondeu Alex, lançando um olhar firme para Esquisito. - Vamos, Tom. - Deixaram os seus nomes, alguns detalhes do caso e o número do celular de Alex antes de partirem.

- Você, como sempre, a simpatia em pessoa - comentou Alex enquanto voltavam para o carro.

- É, mas conseguimos alguma coisa, não foi? Se tivéssemos que depender de você, como sempre um banana, teríamos sorte se conseguíssemos uma horinha antes do final do semestre. E então, o que vamos fazer nas próximas cinco horas?

- Podíamos ir até St. Andrews - sugeriu Alex. - É só cruzar a ponte.

Esquisito estacou.

- Você está falando sério?

- Claro. Nunca falei tão sério. Acho que não ia fazer mal nos lembrarmos de lá. E ninguém vai reconhecer a gente, depois de tantos anos.

Esquisito repousou a mão no peito, no lugar onde a sua cruz normalmente ficava. Deu um muxoxo ao lembrar que não estava usando o seu hábito.

- Está bem - disse ele. - Mas eu não quero nem passar perto da Masmorra da Garrafa.

Dirigir por St. Andrews era uma experiência estranha, perturbadora. Primeiro, porque eles jamais tiveram acesso a um carro na época em que eram estudantes e nunca haviam observado a cidade da perspectiva de um motorista. Segundo, porque ao avançarem pela cidade, passavam por prédios que não existiam naquela época. O amontoado de concreto do Old Course Hotel; o cilindro neoclássico do Museu da Universidade de St. Andrews; o Centro de Vida Aquática atrás do perene clube Royal and Ancient, o próprio templo do golfe. Esquisito contemplava a cidade pela janela, atônito.

- Como está mudada.

- Claro que está mudada. Lá se foi um quarto de século.

- Você voltou aqui outras vezes?

Alex balançou a cabeça.

- Há vinte anos que não passo nem perto. - Ele dirigiu lentamente, finalmente encaixando o seu BMW em uma vaga deixada por uma mulher em um Renault.

Saíram em silêncio e puseram-se a caminhar pelas ruas da cidade, outrora tão familiares. Era como rever Esquisito, pensou Alex, todos aqueles anos depois. A estrutura óssea era basicamente a mesma. Não havia como tomá-lo por outra pessoa, ou outra pessoa por ele. Mas a superfície era diferente. Algumas mudanças eram sutis, outras gritantes. Assim como caminhar novamente por St. Andrews. Algumas lojas continuavam no mesmo lugar de sempre e as suas fachadas permaneciam idênticas. Paradoxalmente, pareciam fora de lugar, como se tivessem conseguido de alguma maneira escapar da dobra de tempo que abocanhara o resto da cidade. A lojinha de doces ainda estava lá, um monumento ao apetite nacional por açúcar. Alex reconheceu o restaurante onde experimentaram comida chinesa pela primeira vez, os sabores desconhecidos e confusos para paladares acostumados com uma comida mais tradicional. Eram quatro naquela época, leves e confiantes, sem a menor noção de que algo ruim estava prestes a acontecer. E agora restavam dois.

Era impossível fugir da universidade. Dos dezesseis mil habitantes da cidade, um terço ganhava a vida às custas dela, e, se os seus prédios tivessem se desintegrado da noite para o dia, teriam deixado uma cidade banguela. Alunos corriam pelas ruas, com a característica veste de flanela vermelha embrulhada em volta do corpo, para proteger o seu dono do frio. Era difícil acreditar que um dia haviam feito a mesma coisa. Uma lembrança fugaz ocorreu a Alex: Ziggy e Mondo em uma sofisticada loja de roupas masculinas, experimentando os seus uniformes novos. Alex e Esquisito tiveram de se conformar com roupas de segunda mão, mas aproveitaram ao máximo a oportunidade de fazerem bagunça por uma boa causa, testando a paciência dos funcionários da loja. Aquilo tudo parecia estranho e distante agora, como se fosse um filme, não uma lembrança.

Quando se aproximaram do West Port, vislumbraram a fachada familiar do Pub Lammas através dos arcos de pedra do portão maciço. Esquisito estacou, abruptamente.

- Estou ficando maluco. Não aguento mais, Alex. Vamos sair desse lugar.

Alex não ficou exatamente contrariado com a sugestão.

- Vamos voltar para Dundee, então?

- Não, tive outra ideia. Um dos motivos de eu ter voltado era para confrontar esse tal de Graham Macfadyen sobre as flores. St. Monans não é muito longe daqui, é? Vamos até lá ver o que ele tem a nos dizer.

- Mas estamos no meio do dia. Ele deve estar trabalhando agora - ponderou Alex, apertando o passo para acompanhar Esquisito enquanto se dirigiam de volta ao carro.

- Pelo menos a gente dá uma olhada na casa. E, de repente, conseguimos voltar depois de falarmos com o professor Soanes. - Era inútil discutir com Esquisito quando ele estava daquele jeito, constatou Alex, resignado.

Macfadyen não conseguia descobrir o que estava acontecendo. Estivera de plantão do lado de fora da casa de Gilbey desde as sete da manhã e sentira uma onda de gratidão ao ver os dois saindo de carro. Os parceiros no crime certamente estavam tramando alguma. Seguiu o carro de Gilbey por Fife, até Dundee, e os acompanhou até o Beco Small’s. Assim que eles entraram no prédio antigo de arenito, apressou-se atrás deles. A placa na porta dizia: DEPARTAMENTO DE CIÊNCIA FORENSE, o que fez com que ele parasse. O que será que estavam procurando por lá? Por que estavam naquele lugar?

Fosse lá o que estivessem buscando, não demorou muito. Saíram do prédio uns dez minutos depois. Quase os perdera de vista perto da ponte, mas conseguiu alcançá-los enquanto diminuíam a velocidade, rumo a St. Andrews. Estacionar lá foi difícil e ele acabou tendo que deixar o seu carro bloqueando a garagem de alguém.

Conseguiu acompanhá-los enquanto caminhavam pela cidade. Não pareciam estar com um itinerário definido. Seguiram e voltaram pelos mesmos lugares algumas vezes, atravessando a North Street, a Market Street e a South Street. Por sorte, Mackie era alto o suficiente para destacar-se na rua, de modo que não foi muito difícil seguir a dupla. De repente, Macfadyen percebeu que aquele passeio aparentemente sem objetivo os estava levando cada vez mais perto do West Port. Estavam indo para o Lammas. Tinham a cara de pau de atravessar a porta e revisitar o lugar onde haviam visto a sua mãe pela primeira vez.

Macfadyen sentiu o suor acumulando-se sobre o seu lábio superior, apesar do frio úmido que o maltratava. Os indicativos de culpa multiplicavam-se a cada hora. Se fossem inocentes, teriam ficado bem longe do Lammas, se fossem inocentes e tivessem respeito. Mas a culpa os atraía como um ímã, estava certo disso.

Estava tão perdido em seus pensamentos que quase esbarrou nos dois. Haviam parado sem mais nem menos, no meio da calçada, e ele continuara andando. Com o coração pulando dentro do peito, Macfadyen desviou deles, de cabeça baixa. Abrigou-se sob a marquise de uma loja e olhou para trás, fechando as suas mãos suadas em punho dentro dos bolsos do seu casaco. Não conseguia acreditar no que via. Viraram as costas para o West Port e puseram-se a caminhar de volta pela South Street, na direção contrária.

Quase teve de apressar o passo para não perdê-los de vista, enquanto cruzavam por uma série de vielas e becos. O fato de darem preferência a vias estreitas em vez de ruas mais amplas cheirava a consciência pesada para Macfadyen. Gilbey e Mackie estavam se escondendo do mundo, protegendo-se dos olhares acusadores que imaginavam estar em cada esquina.

Quando conseguiu chegar ao seu carro, eles já estavam a caminho, passando de carro pela catedral. Xingando, Macfadyen sentou-se ao volante e ligou o motor. Estava quase alcançando o carro de Gilbey quando foi vítima do azar. No final da Kinkell Braes, por causa de obras na estrada, somente uma das pistas estava livre e controlada por semáforo. Gilbey avançou bem na hora que o sinal mudou de amarelo para vermelho, como se soubesse que precisava escapar. Se não tivesse nenhum outro veículo entre eles, Macfadyen teria se arriscado e avançado o sinal vermelho. Mas uma van de autopeças estava atravancando o seu caminho. Esmurrou o volante, irado, bufando até o sinal verde aparecer novamente. A van continuou colina acima, com Macfadyen no seu encalço. Mas só conseguiu ultrapassá-la uns bons quilômetros depois. Sabia, no fundo do seu coração, que não tinha mais a menor chance de alcançar a BMW de Gilbey.

Estava à beira das lágrimas. Não fazia a menor ideia do paradeiro dos dois. Nada naquela manhã desorientadora lhe oferecera alguma pista. Pensou em voltar para casa, verificar se tinha alguma novidade nos seus computadores. Mas não fazia muito sentido. Não ia descobrir onde Gilbey e Mackie estavam pela internet.

Só tinha certeza de uma coisa: mais cedo ou mais tarde, eles voltariam a North Queensferry. Xingando-se pela sua patetice, Macfadyen decidiu que o melhor a fazer era voltar para lá.

Quando estava passando pelo desvio que o levaria para a sua casa, Graham Macfadyen viu Esquisito e Alex parados de carro na sua porta.

- Satisfeito? - perguntou Alex.

Esquisito já havia sondado o lugar e batido na porta, sem sucesso. Depois, contornara a casa, olhando pelas janelas. Alex estava convencido de que a polícia ia aparecer a qualquer momento, acionada por algum vizinho enxerido. Mas aquele não era o tipo de lugar onde os moradores passavam o dia inteiro em casa.

- Pelo menos sabemos onde encontrá-lo - disse Esquisito. - Acho que ele mora sozinho.

- Por quê?

Esquisito lançou um olhar que dizia "isso é óbvio" para Alex.

- Nenhum toque feminino, não é?

- Nem unzinho sequer - respondeu Esquisito. - Tudo bem, você tinha razão. Foi uma perda de tempo. - Ele deu uma olhadela para o seu relógio. - Vamos procurar um pub decente e almoçar. E depois, podemos voltar para a simpática Dundee.


37

O professor David Soanes era um homem gorducho. Com as bochechas rosadas, uma auréola de cabelo grisalho encaracolado em volta da careca lustrosa e olhos azuis que chegavam a faiscar, parecia uma versão desconcertante do Papai Noel sem barba. Conduziu Esquisito e Alex por um cubículo minúsculo onde mal cabiam a sua mesa e duas cadeiras para visitas. O cômodo era espartano, sendo a sua única decoração um certificado que proclamava que Soanes era cidadão de Srebrenica. Alex não queria pensar no que ele devia ter feito para merecer aquela honra.

Soanes fez um gesto para que se sentassem e acomodou-se, imprensando a barriga roliça na beirada da mesa. Espremeu os lábios e observou os dois homens sentados à sua frente.

- Fraser disse que os senhores queriam conversar sobre o caso Rosemary Duff - disse ele, após uma longa pausa. A sua voz era tão doce e agradável quanto um pudim de Natal das histórias de Dickens. - Tenho algumas perguntas para fazer antes. - Ele conferiu um pedaço de papel sobre a mesa. - Alex Gilbey e Tom Mackie, não é isso?

- Isso mesmo - respondeu Alex.

- E não são jornalistas?

Alex pescou o seu cartão de visitas e entregou a ele.

- Sou dono de uma empresa que fabrica cartões. Tom é pastor. Não somos jornalistas.

Soanes analisou o cartão, dobrando-o para verificar se a gravação era verdadeira. Suspendeu uma das sobrancelhas cabeludas e grisalhas e perguntou, abruptamente:

- E qual o interesse dos senhores no caso Rosemary Duff?

Esquisito inclinou-se para a frente.

- Somos dois dos quatro sujeitos que encontraram o corpo dela na neve, há vinte e cinco anos. O senhor provavelmente examinou as nossas roupas no seu microscópio.

Soanes entortou levemente a cabeça para o lado. As rugas no canto dos seus olhos estreitaram-se quase imperceptivelmente.

- Isso foi há muito tempo. Por que vieram me procurar agora?

- Achamos que tem alguém atrás da gente - disse Esquisito.

Desta vez, Soanes suspendeu as duas sobrancelhas.

- Agora fiquei perdido. O que isso tem a ver comigo, ou com Rosemary Duff?

Alex pousou a mão no braço de Esquisito.

- Dos quatro que estiveram lá naquela noite, dois já morreram. Morreram nas últimas seis semanas. Ambos assassinados. Eu sei que pode ser mera coincidência. Mas nos dois funerais, encontramos uma coroa de flores e alecrim com os dizeres: Lembrança de Rosemary. Temos motivos para crer que as coroas foram enviadas pelo filho de Rosie Duff.

Soanes franziu a testa.

- Lamento, mas acho que os senhores estão no lugar errado. Deveriam ter procurado a polícia de Fife, que está conduzindo uma revisão de casos não resolvidos, incluindo esse.

Alex balançou a cabeça.

- Já tentei fazer isso. O subchefe de polícia Lawson só faltou me chamar de paranoico. Disse que coincidências como essas acontecem, que eu devia voltar para casa e parar de me preocupar à toa. Mas acho que ele está errado. Acho que alguém está matando a gente porque está convencido de que assassinamos Rosie. E a única maneira de conseguirmos nos safar é descobrindo o verdadeiro assassino.

Uma expressão impenetrável surgiu no rosto de Soanes à menção do nome de Lawson.

- Mesmo assim, continuo sem entender o que os senhores vieram fazer aqui. O meu envolvimento pessoal com esse caso terminou vinte e cinco anos atrás.

- Viemos porque eles perderam as provas - interrompeu Esquisito, incapaz de ficar muito tempo sem ouvir o som da sua própria voz.

- O senhor deve estar enganado. Testamos uma peça recentemente. E o exame de DNA deu negativo.

- Vocês só têm o cardigã - disse Alex. - Mas o mais importante, as roupas com marcas de sangue e sêmen, eles perderam.

Não havia como duvidar do interesse crescente de Soanes.

- Eles perderam as provas originais?

- Foi o que Lawson me disse - confirmou Alex.

Soanes balançou a cabeça, impressionado.

- Mas que horror - disse ele. - Ainda que não seja de se admirar, sob um comando desses. - A sua testa se enrugou em uma careta de desaprovação. Alex se perguntava o que mais a polícia de Fife havia feito para deixar aquela impressão negativa em Soanes. - Bom, sem a principal prova, não sei o que os senhores acham que posso fazer para ajudá-los.

Alex respirou profundamente.

- Sei que o senhor fez o relatório original do caso. E também sei que os peritos forenses nem sempre incluem todos os detalhes nos seus laudos. Imagino se havia alguma coisa que o senhor por acaso tenha deixado de fora naquela época. Estou pensando principalmente em vestígios de tinta. Porque a única coisa que eles não perderam foi o cardigã. E depois que o encontraram, voltaram para colher mais amostras de tinta na nossa casa.

- E por que eu haveria de contar alguma coisa a esse respeito aos senhores, isto é, supondo que houvesse algo para contar? Seria um procedimento altamente irregular. Afinal de contas, para todos os efeitos, vocês eram suspeitos.

- Éramos testemunhas, não suspeitos - disse Esquisito, irritado. - E o senhor tem que nos ajudar, senão vamos acabar assassinados e o senhor vai penar para acertar as contas com Deus e com a sua consciência.

- E porque cientistas devem se importar com a verdade - acrescentou Alex. Hora de correr riscos, pensou ele. - E eu tenho a impressão de que o senhor tem a verdade como sua circunscrição. Ao contrário da polícia, que normalmente só se preocupa em obter resultados.

Soanes apoiou um cotovelo na mesa e apertou o lábio inferior com os dedos, revelando a sua úmida carnosidade interior. Olhou para eles como se os estivesse avaliando, longa e firmemente. Então, levantou-se decidido e consultou o arquivo, que era o único acessório na sua mesa. Passou os olhos nas fichas e depois levantou a cabeça e encontrou os olhos ansiosos dos dois.

- O meu laudo versou principalmente sobre sangue e sêmen. O sangue era de Rosie Duff, o sêmen supostamente pertencia ao assassino. Como o sujeito que depositou o sêmen era um secretor, conseguimos determinar o seu grupo sanguíneo. - Ele folheou algumas páginas. - Encontramos também evidência de fibras. Um carpete industrial marrom, vagabundo, e algumas fibras de um carpete cinzento, usado por vários fabricantes de veículos em carros de médio porte. Alguns vestígios de pelo de cachorro, de um springer spaniel que pertencia ao dono do pub onde Rosie trabalhava. Tudo isso foi mencionado no meu laudo.

Ele percebeu o olhar de decepção nos olhos de Alex e deu um sorrisinho.

- Agora, vêm as minhas anotações.

Apanhou um bloco de anotações escritas a mão. Ele apertou os olhos por uns segundos, depois tirou uns óculos de leitura com armação dourada do bolso do casaco e os encaixou sobre o nariz.

- Minha letra sempre foi terrível - disse ele, secamente. - Não leio isso aqui há anos. Deixe-me ver... sangue... sêmen... lama. - Virou algumas páginas, cobertas por uma letra minúscula e firme. - Pelos... Aqui está. Tinta. - Bateu com o dedo na página e olhou para eles. - O que os senhores sabem sobre tinta?

- Emulsão para as paredes, verniz para madeira - disse Esquisito. - É tudo o que sei sobre tinta.

Soanes sorriu, pela primeira vez.

- A tinta é composta de três elementos principais. Tem o condutor, que normalmente é uma espécie de polímero. Basicamente, é aquela camada grossa que gruda no macacão se a gente não limpar na mesma hora. Tem o solvente, que normalmente é um líquido orgânico. O condutor é dissolvido no solvente para criar uma massa com uma consistência apropriada para um pincel ou um rolo. Geralmente, o solvente não tem nenhuma significância forense porque já evaporou há muito tempo. Finalmente, tem o pigmento, que é o que dá cor. Entre os pigmentos mais usados estão o dióxido de titânio e o óxido de zinco para o branco, a fitalocianina para o azul, o cromato de zinco para o amarelo e o óxido de ferro para o vermelho. Mas cada demão de tinta tem a sua própria assinatura microscópica. Então, é possível analisar uma mancha de tinta e dizer o seu tipo. Existem bibliotecas inteiras de amostras de tinta, para que possamos comparar com amostras individuais. E, é claro, além da tinta em si, analisamos a mancha. É um respingo? É uma gota? É uma raspa? - Ele levantou o dedo. - Antes que me perguntem mais alguma coisa, quero deixar claro que não sou especialista neste assunto.

- Mas podia ter me enganado direitinho - respondeu Esquisito. - E então, o que dizem as suas anotações a respeito da tinta no cardigã de Rosie?

- O seu amigo gosta de ir direto ao assunto, não é? - perguntou Soanes, felizmente mais divertido do que irritado.

- Sabemos como o tempo do senhor é precioso, só isso - respondeu Alex, contendo o riso diante da sua desculpa aduladora.

Soanes voltou para as suas anotações.

- Isso é verdade - disse ele. - A tinta em questão era um esmalte poliuretano alifático azul-claro. O que normalmente não é uma tinta caseira, e sim uma tinta usada em barcos, ou algo feito de fibra de vidro. Não tivemos nenhum resultado direto, embora a amostra se parecesse bastante com algumas tintas de barco no nosso banco de dados. Mas o mais interesse era o perfil das gotas. Elas tinham a forma de lágrimas minúsculas.

Alex franziu o cenho.

- O que isso quer dizer?

- Quer dizer que a tinta não estava molhada quando grudou na roupa dela. Eram gotículas bem pequenininhas de tinta seca, que sem dúvida foram transferidas para a roupa de Rosie de uma superfície onde ela esteve deitada. Provavelmente um carpete.

- Então alguém andou pintando alguma coisa no local onde ela esteve deitada? E a tinta respingou no carpete? - perguntou Esquisito.

- Tenho quase certeza. Mas voltando ao formato curioso. Se uma tinta pinga de um pincel, ou mancha um carpete, as gotículas não teriam aquele formato. E todas as gotas que analisamos nesse caso possuíam o mesmo perfil.

- Por que o senhor não incluiu estas observações no seu laudo? - perguntou Alex.

- Porque não conseguimos explicá-las. É muito temeroso para a acusação ter um profissional como testemunha dizendo "Eu não sei" em pleno tribunal. Um bom advogado de defesa deixaria as perguntas sobre a tinta para o final, para que a última coisa que ficasse na lembrança do júri fosse o meu chefe balançando a cabeça e admitindo não saber as respostas. - Soanes guardou os seus papéis de volta na pasta. - Então, deixamos de fora.

Alex se preparou para fazer a pergunta mais importante de todas:

- Se o senhor analisasse esta prova novamente, poderia conseguir um resultado diferente?

Soanes encarou-o por trás dos óculos.

- Eu, pessoalmente, não. Mas um especialista forense em tinta poderia oferecer uma análise mais proveitosa, sim. Mas as chances de vocês encontrarem um resultado vinte e cinco anos depois são escassas.

- Isso é problema nosso - rebateu Esquisito. - O senhor pode tentar? O senhor vai tentar?

Soanes balançou a cabeça.

- Como eu disse, estou longe de ser um especialista nessa área. E, mesmo que eu fosse, não poderia autorizar testes sem um requerimento da polícia de Fife. E eles não solicitaram testes na tinta. - Ele fechou a pasta com um ar de conclusão.

- Por que não? - indagou Esquisito.

- Acho que devem ter considerado uma perda de dinheiro. Como eu disse, as chances de chegarmos a um resultado a estas alturas são ínfimas.

Alex arriou-se na cadeira, desanimado.

- E eu não vou conseguir convencer Lawson a mudar de ideia. Que maravilha. Acho que o senhor acabou de assinar a minha sentença de morte.

- Eu não disse que é impossível fazer os testes - disse Soanes, gentil. - Eu disse que eles não podem ser feitos aqui.

- Mas como vamos fazer os testes em outro lugar? - perguntou Esquisito, irritado. - Ninguém tem as tais amostras.

Soanes apertou os lábios com os dedos novamente. Então, suspirou.

- Não temos nenhuma amostra biológica. Mas ainda temos a tinta. Eu verifiquei antes de receber os senhores. - Ele tornou a abrir a pasta e apanhou uma embalagem plástica com alguns compartimentos. Dentro deles, uma dúzia de slides microscópicos. Soanes retirou três e os alinhou sobre a mesa. Alex olhou para eles, ansioso. Não conseguia acreditar no que via. As manchinhas de tinta eram como minúsculos grãos de uma cinza de cigarro azulada.

- Alguém pode analisar isso? - perguntou ele, tentando controlar o seu entusiasmo.

- É claro - respondeu Soanes. Ele apanhou uma sacola de papel da sua gaveta e colocou sobre os slides, empurrando-os para Alex e Esquisito. - Levem estes. Nós temos outros que podemos analisar, se der em alguma coisa. Os senhores vão ter que assinar um documento, é claro.

Esquisito deslizou a mão sobre a mesa e pegou os slides. Colocou-os delicadamente no saco e depois jogou-os no bolso.

- Obrigado - disse ele. - Onde é que eu tenho que assinar?

Enquanto Esquisito rabiscava o seu nome em uma ficha de registro, Alex olhava intrigado para Soanes.

- Por que o senhor está fazendo isso? - perguntou ele.

Soanes tirou os óculos e os guardou, cuidadosamente.

- Porque eu detesto enigmas que não são desvendados - respondeu ele, ficando de pé. - Quase tanto quanto detesto trabalho policial malfeito. E depois, detestaria ter as mortes de vocês dois pesando na minha consciência, caso a sua teoria esteja realmente correta.

- Ei, o que você está fazendo? - perguntou Esquisito quando Alex, ao chegar nos arredores de Glenrothes, ligou a seta para a direita.

- Quero falar com Lawson o lance de Macfadyen ter mandado as coroas. E quero tentar convencê-lo a fazer com que Soanes analise as amostras que ele tem novamente.

- Perda de tempo - resmungou Esquisito.

- Melhor do que voltar para St. Monans e bater na porta de uma casa vazia.

Esquisito não disse mais nada, deixando Alex ir até a central da polícia. Na recepção, Alex pediu para falar com Lawson.

- É um assunto relacionado ao caso Rosemary Duff - explicou ele. Foram direcionados a uma sala de espera, onde ficaram sentados observando pôsteres sobre besouros, pessoas desaparecidas e violência doméstica. - É impressionante como a gente se sente culpado, só de sentar aqui - comentou Alex.

- Eu não me sinto, não - retrucou Esquisito. - Mas também, eu presto contas a uma autoridade superior.

Após alguns minutos, uma mulher troncuda caminhou na direção deles.

- Eu sou a detetive Pirie - disse ela. - Lamento informar, mas o subchefe Lawson não está disponível no momento. Mas eu sou a oficial encarregada do caso Rosemary Duff.

Alex balançou a cabeça.

- Quero falar com Lawson. Vou esperar.

- Sinto muito, mas não vai ser possível. Ele vai ficar fora por alguns dias.

- O chefe foi pescar - disse Esquisito, irônico.

Karen Pirie, pega de surpresa, disse:

- Pois é, foi mesmo. No lago... - entregou ela, antes de perceber a gafe.

Esquisito pareceu mais surpreso do que ela.

- Sério? Eu estava só brincando.

Karen tentou disfarçar a sua confusão.

- O senhor é Gilbey, não é isso? - perguntou ela, olhando concentrada para Alex.

- Sim, sou eu. Como a senhora...?

- Vi o senhor no funeral do Dr. Kerr. Sinto muito pela sua perda.

- É por isso que estamos aqui - disse Esquisito. - Achamos que a mesma pessoa que matou David Kerr está planejando acabar com a gente também.

Karen respirou profundamente.

- O subchefe Lawson comentou comigo sobre o encontro com o Sr. Gilbey. E, como ele disse para o senhor - continuou ela, olhando para Alex -, são temores que não têm nenhum fundamento.

Esquisito bufou, exasperado.

- Ah, é? E se disséssemos à senhora que quem enviou as coroas foi Graham Macfadyen?

- Coroas? - perguntou Karen, desnorteada.

- A senhora não acabou de dizer que Lawson contou sobre o encontro com Alex? - desafiou Esquisito.

Alex interveio, imaginando por um momento como os pecadores conseguiam aturar Esquisito. Ele contou a Karen sobre os misteriosos arranjos de flores e ficou agradecido ao constatar que ela começava a levá-lo a sério.

- É, tenho que admitir que é uma coisa muita estranha mesmo. Mas não quer dizer que o Sr. Macfadyen esteja por aí matando pessoas.

- De que outro modo ele ficaria sabendo das mortes? - perguntou Alex, buscando sinceramente uma resposta.

- Esta é a questão, não é? - perguntou Esquisito.

- Ele pode ter lido a respeito nos jornais. A morte do Dr. Kerr foi amplamente divulgada. E imagino que não deve ter sido muito difícil ficar sabendo do Sr. Malkiewicz também. A internet tornou o mundo bem pequeno.

Alex experimentou a mesma sensação de desânimo novamente. Por que as pessoas resistiam tanto para enxergar algo que lhe parecia tão claro?

- Mas por que ele mandaria as coroas, a não ser que achasse que somos os responsáveis pela morte da mãe?

- Uma coisa é achar que vocês são culpados, outra é assassinato - ponderou Karen. - Entendo que o senhor esteja se sentindo pressionado. Mas, pelo que me contou, não há nenhum indício de que esteja correndo perigo.

Esquisito estava apoplético.

- Quantos de nós precisam morrer para que vocês comecem a nos levar a sério?

- Alguém ameaçou os senhores?

Esquisito lançou um olhar mal-humorado.

- Não.

- Alguém andou ligando e desligando para a casa de vocês?

- Não.

- Notaram alguém rondando a sua casa?

Esquisito olhou para Alex, que balançou a cabeça em um gesto negativo.

- Então, sinto muito, não tem nada que eu possa fazer.

- Tem, sim - disse Alex. - A senhora pode solicitar uma nova análise da tinta encontrada no cardigã de Rosie Duff.

Karen arregalou os olhos, surpresa.

- Como é que o senhor sabe da tinta?

A voz de Alex tinha um quê de frustração.

- Éramos testemunhas. Suspeitos, para todos os efeitos. Acha que não percebemos quando os seus colegas rasparam as nossas paredes e colaram fitas adesivas no nosso carpete? E então, detetive Pirie? Que tal tentar descobrir de verdade quem matou Rosie Duff?

Incomodada por aquelas palavras, Karen empertigou-se.

- É exatamente o que eu tenho feito nos últimos meses, senhor. E a opinião oficial é de que uma análise da tinta não valeria a pena em termos de custo e benefício, devido à possibilidade remota de chegarmos a alguma conclusão depois de tanto tempo.

A raiva que Alex estava contendo há dias subitamente veio à tona.

- Não valeria a pena? Se existe alguma possibilidade, por menor que seja, vocês deviam ir atrás dela - gritou ele. - Até parece que vocês têm outros testes caros para fazer. Ainda mais agora que perderam a única prova que poderia finalmente limpar os nossos nomes. A senhora tem ideia do que as pessoas fizeram conosco naquela época, por causa da incompetência da polícia? Vocês estragaram a nossa vida. Ele levou uma surra - Alex apontou para Esquisito. - Ziggy foi jogado dentro da Masmorra da Garrafa. Podia ter morrido. Mondo tentou se matar e Barney Maclennan morreu por causa disso. E se Jimmy Lawson não tivesse aparecido na hora certa, eu teria sido espancado também. Então, não me venha com esse papo de custo e benefício. Limite-se a fazer o seu maldito trabalho. - Alex virou-se e foi embora.

Esquisito continuou parado no mesmo lugar, olhando fixamente para Karen Pirie.

- Você ouviu o que ele disse - alertou ele. - Diga a Jimmy Lawson para puxar o anzol e manter a gente vivo.


38

James Lawson abriu o ventre e mergulhou as mãos na cavidade, segurando as entranhas escorregadias. Crispou os lábios em um esgar de nojo, sentindo o deslizar dos órgãos vitais contra a sua pele - um acinte à sua personalidade basicamente rabugenta. Removeu as tripas, certificando-se de que o sangue e o muco não avançassem o limite imposto pelas folhas de jornal que ele estendera. Então, juntou a truta com as outras três que havia pescado naquela tarde.

Nada mau para aquela época do ano, pensou ele. Talvez fritasse umas duas para o chá e guardasse as outras no pequeno frigobar do trailer. Dariam um bom café da manhã, antes de partir para o trabalho no dia seguinte. Levantou-se e ligou a bomba que fornecia água gelada para a pequena pia. Da próxima vez que viesse ao seu esconderijo no lago Leven, precisava trazer algumas garrafas de cinco litros sobressalentes. Esvaziara a última no tanque naquela manhã, e embora pudesse sempre contar com o fazendeiro local que alugava a área para ele em uma emergência, não gostava de abusar da sua boa vontade. Levara o seu trailer para aquele local havia vinte anos e jamais incomodara o fazendeiro. Preferia assim. Só ele, o rádio e uma pilha de romances policiais. Um lugar privativo, para fugir das pressões do trabalho e da vida doméstica, um lugar para renovar as suas energias.

Abriu uma lata de batatas, escorreu a água e começou a cortá-las. Enquanto esperava a frigideira aquecer o suficiente para colocar o peixe e as batatas, embrulhou as tripas no jornal e jogou tudo em um saco plástico. Após a refeição, adicionaria a pele e as espinhas no saco, daria um nó bem firme e deixaria nos degraus do trailer, para que fosse recolhido pela manhã. Não havia nada pior do que ter de dormir com o fedor dos restos do seu jantar.

Lawson colocou um naco de manteiga na frigideira, esperou derreter e então adicionou as batatas. Foi virando as que começavam a pegar cor e cuidadosamente colocou as duas trutas na frigideira, adicionando um toque de limão espremido. O som familiar da fritura estalando o animou, o cheiro era a promessa do que estava por vir. Quando ficou pronto, transferiu para um prato e sentou-se à mesa para curtir o seu jantar. O momento não podia ser mais perfeito; o tema familiar do seriado The Archers começou a tocar no rádio assim que ele deslizou a faca na superfície crocante da primeira truta.

Estava na metade da refeição quando ouviu algo que não deveria ouvir. A porta de um carro batendo. O rádio ocultara o som do motor se aproximando, mas o barulho da porta foi alto o suficiente para se impor ao som da novela radiofônica. Lawson ficou momentaneamente paralisado, depois pegou o rádio e o desligou, concentrando-se para tentar ouvir alguma coisa lá de fora. Quase imperceptivelmente, abriu uma fresta da cortina. Próximo ao portão do campo, conseguiu distinguir o formato de um carro de tamanho pequeno ou médio. Talvez um Golf, um Astra ou um Focus. Era difícil ser mais preciso naquela escuridão. Observou a distância entre o portão e o seu trailer. Nenhum movimento.

A batida na porta fez o seu coração pular dentro do peito. Quem diabos estava lá fora? Pelo que sabia, as únicas pessoas que conheciam a localização do seu recanto de pesca eram o fazendeiro e a sua esposa. Nunca levara colegas ou amigos lá. Quando saíam para pescar, ele preferia encontrá-los no litoral, de barco, determinado a manter a sua privacidade.

- Um momento - gritou ele, levantando-se e caminhando em direção à porta, parando apenas para pegar a sua faca afiada de destrinchar peixes. Diversos criminosos poderiam achar que tinham contas a acertar e ele não seria pego desprevenido. Mantendo um dos pés atrás da porta, ele abriu uma fresta da porta.

Na nesga de luz que banhou os degraus, estava Graham Macfadyen. Lawson demorou alguns segundos para reconhecê-lo. Perdera peso desde a última vez em que haviam se encontrado. Os seus olhos queimavam febris sobre bochechas esquálidas e o seu cabelo estava escorrido e oleoso.

- Que diabos você está fazendo aqui? - perguntou Lawson.

- Preciso falar com você. Disseram que você tinha tirado uns dias de folga, então imaginei que estivesse aqui. - O tom de Macfadyen era prosaico, como se o fato de um civil bater na porta do trailer de pesca do subchefe de polícia fosse uma coisa absolutamente normal.

- Como foi que você me localizou aqui? - indagou Lawson, a ansiedade transformando-se em raiva.

Macfadyen deu de ombros.

- Hoje em dia, a gente acha tudo o que quiser. Você deu uma entrevista para o Fife Record na última vez em que foi promovido. Está no site deles. Você disse que gostava de pescar e que tinha um cantinho no lago Leven. Nem todos os caminhos desembocam na beira-mar. Dirigi até localizar o seu carro.

Havia algo nos seus modos que fez Lawson gelar até os ossos.

- Isto não é apropriado - disse ele. - Se você quer discutir assuntos de trabalho, procure-me no escritório.

Macfadyen parecia contrariado.

- O assunto é importante, não posso esperar. E não vou falar com outra pessoa, você entende a minha situação, só posso falar com você mesmo. Então por que não me escutar? Você precisa escutar, só eu posso te ajudar.

Lawson começou a fechar a porta, mas Macfadyen levantou a mão e a empurrou.

- Vou ficar aqui do lado de fora gritando se você não me deixar entrar - ameaçou ele. O seu tom de voz neutro não combinava em nada com a sua expressão determinada.

Lawson pesou os prós e os contras. Macfadyen não lhe parecia um tipo violento. Não era possível ter certeza absoluta. De qualquer maneira, estava com a faca, caso alguma coisa acontecesse. Era melhor ouvir o que ele tinha a dizer e ficar logo livre. Abriu a porta e recuou, sem virar as costas para a sua visita desagradável.

Macfadyen o seguiu para dentro do trailer. Em uma transtornada perversão do discurso normal, ele sorriu e comentou:

- Como é aconchegante aqui. - Então, o seu olhar recaiu sobre a mesa e ele ensaiou um pedido de desculpas. - Vejo que atrapalhei o seu lanche. Sinto muito.

- Tudo bem - mentiu Lawson. - O que é que você tem para me dizer?

- Eles estão se reunindo. Estão querendo ficar juntos para tentar evitar o destino que lhes espera.

- Quem está se reunindo? - perguntou Lawson.

Macfadyen suspirou, como se estivesse frustrado por estar lidando com um estagiário pateta.

- Os assassinos da minha mãe - disse ele. - Mackie está de volta. Está morando com Gilbey. É a única maneira de se sentirem seguros. Mas estão enganados, é claro. Isso não irá protegê-los. Jamais acreditei em destino, mas é a única maneira de descrever o que está acontecendo com o quarteto ultimamente. E Gilbey e Mackie devem estar sentindo a mesma coisa. Devem estar percebendo que o tempo deles está chegando ao fim, assim como chegou ao fim para os seus amigos. E obviamente está. A não ser que paguem o preço. E reunirem-se assim é como uma confissão. Você tem que enxergar isso.

- Você pode até estar certo - disse Lawson, tentando uma conciliação. - Mas este não é o tipo de confissão que funciona em um tribunal.

- Eu sei disso - respondeu Macfadyen, impaciente. - Mas eles não podiam estar mais vulneráveis. Estão com medo. Está na hora de usarmos esta fraqueza para criar uma desavença entre eles. Tenho observado os dois. Podem surtar a qualquer momento.

- Não temos nenhuma prova - disse Lawson.

- Eles vão confessar. Que outra prova você precisa? - Macfadyen não tirava os olhos do policial.

- As pessoas tendem a pensar assim. Mas pela lei escocesa, uma confissão por si só não é suficiente para condenar uma pessoa. Precisamos de provas corroborativas.

- Mas isso não está certo - protestou Macfadyen.

- É a lei.

- Você tem que fazer alguma coisa. Faça com que eles confessem e depois encontre uma prova para fundamentar a acusação no tribunal. Afinal de contas, é o seu trabalho - disse Macfadyen, levantando a voz.

Lawson balançou a cabeça.

- Não é assim que as coisas funcionam. Olha, prometo que vou procurar Mackie e Gilbey. Mas não posso fazer mais nada.

Macfadyen fechou a mão direita em um punho.

- Você não se importa, não é mesmo? Ninguém se importa.

- Me importo, sim - disse Lawson. - Mas tenho que agir dentro da lei. E o senhor também.

Macfadyen produziu um som estranho no fundo da garganta, como um cão engasgado com um osso de galinha.

- Esperava que você me compreendesse - disse ele friamente, segurando a maçaneta e abrindo a porta, que se escancarou em um solavanco e bateu contra a parede.

E então ele partiu, engolido pela escuridão da noite. Um frio úmido invadiu o calor aconchegante do trailer, abafando o cheiro rançoso de comida e o substituindo pelo odor penetrante do pântano. Lawson continuou parado na porta, mesmo depois de o carro de Macfadyen ter partido erraticamente pela estrada, e os seus olhos eram como duas poças negras de preocupação.

Lynn foi o passaporte deles para Jason McAllister. E ela não estava disposta a deixar Davina com ninguém, nem mesmo com Alex. Por isso, o que deveria ser uma corriqueira viagem matinal pela Ponte de Allan transformou-se em uma operação complexa. Era incrível o que precisava acompanhar um bebê, pensou Alex enquanto fazia a sua terceira e última viagem até o carro, carregando encurvado a cadeirinha e Davina. Carrinho, bolsa com fraldas, lenços, babadores, duas mudas de roupa, só por precaução. Mantas sobressalentes, só por precaução. Um blusão limpo para Lynn, porque nem sempre o bebê golfava no babador. O canguru. Era de admirar que não tivesse arrumado um espaço no carro para colocar a pia da cozinha também.

Afivelou o cinto de segurança sobre a cadeirinha e testou para ver se estava seguro. Nunca se preocupara com a firmeza dos cintos de segurança antes, mas agora se pegava questionando se eles eram de fato confiáveis em caso de batida. Inclinou-se para dentro do carro, ajeitou o chapeuzinho de Davina e beijou a sua filha adormecida. Conteve a respiração, apreensivo, ao ver que ela se mexia. Que ela não vá chorando durante o caminho todo, pediu ele. Não saberia lidar com a culpa.

Lynn e Esquisito juntaram-se a ele e os três entraram no carro. Alguns minutos depois, já estavam na autoestrada. Esquisito deu um tapinha no ombro de Alex.

- Dá para andar mais rápido do que quarenta quilômetros por hora aqui, sabia? - disse ele. - Vamos nos atrasar.

Contendo a preocupação com a sua carga valiosa, Alex acelerou, obediente. Estava tão ansioso quanto Esquisito para dar prosseguimento àquela investigação. E Jason McAllister parecia ser a pessoa perfeita para ajudá-los a alcançar a próxima etapa. O trabalho de Lynn como restauradora de pinturas para as galerias escocesas fez com que ela se tornasse uma especialista no tipo de tinta usado pelos artistas de diferentes períodos. E exigiu também que ela arrumasse um outro especialista para analisar as amostras do original, para que ela pudesse ser o mais precisa possível. E, além disso, às vezes a autenticidade de uma determinada obra de arte era duvidosa. Então as amostras de tinta tinham de ser avaliadas para verificar se faziam parte do período em questão e se eram compatíveis com os materiais usados pelo mesmo pintor em outros trabalhos, nos quais a procedência era inquestionável. O sujeito que ela encontrou para auxiliá-la na parte científica de suas investigações foi Jason McAllister.

Ele trabalhava em um laboratório forense particular, próximo à Universidade de Stirling. Passara a maior parte da sua vida profissional analisando fragmentos de tinta de acidentes na estrada, ou para a polícia, ou para seguradoras. Ocasionalmente, distraía-se com um caso de homicídio, estupro ou lesão corporal grave, mas estas ocasiões eram raras demais para os talentos variados de Jason.

Na inauguração de uma exposição de Poussin, ele procurou Lynn e contou a ela que era apaixonado por pintura. No início, ela achou aquele jovem nerd meio pretensioso, querendo mostrar intimidade com a arte. Depois, percebeu que ele estava realmente falando a verdade. Nada mais, nada menos. O que o entusiasmava não era o que estava representado na tela; era a estrutura do material usado para produzi-la. Ele lhe deu o seu cartão e fez com que ela prometesse que ia entrar em contato da próxima vez que tivesse um problema. Garantiu diversas vezes que era melhor do que a pessoa que estava trabalhando para ela, independentemente de quem fosse.

Jason deu sorte naquela noite. Lynn estava enjoada do sujeito bobão e pomposo com quem fora forçada a trabalhar anteriormente. Ele era um daqueles tipos da antiga de Edimburgo, que não conseguiam deixar de tratar as mulheres com condescendência. Ainda que o seu cargo fosse de técnico de laboratório, tratava Lynn como se ela fosse uma subordinada, cuja opinião não tinha a menor relevância. Com uma restauração importante à frente, Lynn estava sofrendo com a ideia de ter de trabalhar com ele novamente. Jason parecia um presente dos deuses. Desde o início, ele não a subestimou. Pelo contrário, o problema parecia ser justamente o oposto. Ele tinha a mania de achar que estavam no mesmo patamar e Lynn perdeu a conta das vezes que teve de pedir para ele ir com calma e falar em um idioma que ela compreendesse. Mas mesmo assim, preferia isso a ser julgada como inferior.

Quando Alex e Esquisito chegaram em casa com um saco com amostras de tinta, Lynn passou dez minutos ao telefone com Jason. Como ela já imaginava, ele agiu como uma criança que acaba de saber que vai passar as férias na Disneylândia.

- Tenho uma reunião bem cedo, mas consigo me liberar lá pelas dez.

Conforme Alex havia sugerido, ela tentou informar que pagariam pelo seu serviço por fora. Mas ele descartou a oferta.

- Para que servem os amigos? - ponderou ele. - Além do mais, estou de saco cheio de tinta de carro. Você vai me salvar de uma morte por tédio. Traz isso logo, mulher!

O laboratório ficava em um prédio surpreendentemente moderno e bonito, que ocupava o seu próprio terreno na rua, com a fachada de tijolos marrons. As janelas eram altas e todos os ângulos de aproximação eram monitorados com câmeras de segurança. Tiveram de ultrapassar duas portas antes de chegar à recepção.

- Já estive em presídios menos seguros do que isso aqui - comentou Esquisito. - O que eles fazem, afinal? Fabricam armas de destruição em massa?

- Prestam serviços forenses para a Coroa, como autônomos. E para a Defensoria também - explicou Lynn enquanto esperavam por Jason. - Então, precisam demonstrar que qualquer prova sob seus cuidados será armazenada com segurança.

- Quer dizer que fazem exames de DNA e tudo? - perguntou Alex.

- Por quê? Está em dúvida sobre a sua paternidade? - brincou Lynn.

- Quando ela se transformar em uma adolescente infernal a gente conversa - disse Alex. - Não, só estou curioso.

- Fazem DNA, exames de fios de cabelo, fibras e tintas - disse Lynn. Enquanto ela falava, um sujeito parrudo se aproximou e pousou a mão em seu ombro.

- Você trouxe o bebê - disse ele, inclinando-se para olhar dentro do carrinho. - Ei, ela é linda. - Ele abriu um sorriso para Lynn. - A maioria dos bebês dá a impressão de que um cachorro sentou no rosto deles. Mas ela parece uma pessoa de verdade, só que bem pequenininha. - Ele ergueu-se. - Eu sou o Jason - disse ele, olhando indeciso para Esquisito e Alex.

Os dois se apresentaram. Alex observou a camisa do time Stirling Albion, a calça cargo com os bolsos abarrotados e os cabelos arrepiados, cujas pontas exibiam um tom de loiro nada natural. Julgando pela aparência, Jason parecia um daqueles sujeitos que ficavam bem à vontade em um pub, com uma garrafa de cerveja cara na mão. Mas os seus olhos eram atentos e observadores e o seu corpo calmo e controlado.

- Venham comigo - instruiu Jason. - Deixe-me levar o bebê - acrescentou ele, apanhando o carrinho. - Ela é uma princesinha.

- Você talvez não dissesse isso às três da manhã - disse Lynn, obviamente coruja.

- Talvez não. A propósito, sinto muito pelo seu irmão - disse ele, olhando de esguelha para Lynn, desconfortável. - Deve ter sido horrível.

- Não tem sido fácil mesmo - disse ela, enquanto seguiam Jason por um corredor estreito, com as paredes pintadas de azul-claro. Ao fim do corredor, Jason os conduziu por um laboratório impressionante. Equipamentos misteriosos reluziam por todos os cantos. As bancadas eram impecáveis e arrumadas e o técnico que analisava algo que Alex imaginou ser um microscópio futurista não mexeu um músculo quando eles entraram.

- Parece que estou contaminando o lugar só com a minha respiração - comentou ele.

- Com tinta é bem mais tranquilo - disse Jason. - Se eu trabalhasse com DNA, você não poderia nem estar aqui. Então, expliquem exatamente o que vocês trouxeram para mim.

Alex resumiu a conversa que haviam tido com Soanes na véspera.

- Soanes não acha que temos muita chance de encontrar um resultado para a tinta, mas talvez você possa descobrir alguma coisa pelo formato dos pingos - acrescentou ele.

Jason analisou os slides.

- Parece que foram bem conservados, o que com certeza ajuda.

- O que você vai fazer com eles? - perguntou Esquisito.

Lynn resmungou.

- Você não devia ter perguntado isso.

Jason achou graça.

- Ignore Lynn, ela adora fingir que é ignorante. Temos diversas técnicas para analisar o condutor e o pigmento. E também usamos a microespectrofotometria para determinar a cor, para podermos definir de forma mais acurada a composição das amostras de tinta. Espectrometria infravermelha por transformação de Fourier, Cromatografia a gás e Microscopia eletrônica de varredura. Coisas assim.

Esquisito estava atordoado.

- E para que serve cada uma dessas? - perguntou Alex.

- Várias coisas. Se for um fragmento, podemos saber de que tipo de superfície ele veio. Com tinta de carro, analisamos as diferentes camadas e possuímos um banco de dados para consulta, onde descobrimos a marca, o modelo e o ano de fabricação. Com gotículas, é possível fazer basicamente a mesma coisa, a não ser os detalhes de superfície, uma vez que a tinta jamais esteve sobre ela.

- Quanto tempo isso demora? - perguntou Esquisito. - É que estamos com um pouquinho de pressa.

- Vou levar o tempo necessário. Talvez uns dois dias. Vou tentar ser o mais rápido possível. Mas não quero fazer nada menos do que um trabalho perfeito. Se vocês estiverem certos, existe a possibilidade de pararmos no tribunal dando o nosso testemunho e eu não quero fazer um trabalho porco. Vou fazer um recibo, atestando que apanhei as amostras com vocês, por precaução. Vai que alguém resolve dizer o contrário mais para a frente...

- Obrigada, Jason - disse Lynn. - Estou te devendo uma.

Ele sorriu.

- Eu realmente gosto disso em uma mulher.


39

Jackie Donaldson já havia escrito sobre aquela batida na porta de madrugada, a escolta até a viatura de prontidão na rua, o percurso por ruas desertas e a terrivelmente enervante espera em uma sala confinada que recendia a outras pessoas. Nunca lhe passara pela cabeça que um dia estaria de fato vivenciando aquela situação, e não escrevendo sobre ela.

Acordou com o barulho do interfone. Olhou a hora - 03:47 - e dirigiu-se trôpega de sono até o aparelho, vestindo o robe. Quando o detetive-inspetor Darren Heggie se anunciou, primeiro ela pensou que algo terrível tivesse acontecido com Hélène. Não conseguia entender por que ele queria subir àquela hora da madrugada. Mas Jackie não discutiu. Sabia que seria uma perda de tempo.

Heggie adentrou no seu flat com uma mulher vestida à paisana e dois policiais uniformizados, que permaneceram na retaguarda, levemente desconfortáveis. Heggie não perdeu tempo com conversa fiada.

- Jacqueline Donaldson, estou detendo você por suspeita de conspiração para um homicídio. Você poderá ficar detida por um período de até seis horas sem prisão e tem direito de entrar em contato com um advogado. Não precisa dizer nada, além do seu nome e do seu endereço. Você compreende o motivo da sua detenção?

Ela deu um sorrisinho debochado.

- Compreendo que o senhor tem todo o direito de fazer o que está fazendo. Mas não entendo por que está fazendo.

Jackie não simpatizara com Heggie de cara. O seu queixo pontudo, os olhos estreitos, o corte de cabelo ultrapassado, o terno barato e o andar pretensioso. Mas ele havia agido de maneira educada, quase laudatória, nos seus encontros anteriores. Naquele dia, porém, ele adotara uma eficiência brusca.

- Por favor, troque de roupa. A policial ficará com você. Estamos esperando lá fora. - Heggie deu as costas e enxotou os policiais escada abaixo.

Determinada a não demonstrar o seu constrangimento, Jackie voltou para o local do loft onde ficava a sua cama. Apanhou a primeira camiseta que viu, um casaco na gaveta e recolheu a calça jeans das costas de uma cadeira. Então, mudou de ideia. Se as coisas piorassem, havia a possibilidade de ter de se apresentar a um juiz antes de poder trocar de roupa. Vasculhou o fundo do armário, em busca do seu único terno decente. Jackie deu as costas para a policial, que se recusava a tirar os olhos dela, e se vestiu.

- Preciso ir ao banheiro - disse ela.

- Você tem que deixar a porta aberta - retrucou a mulher, impassível.

- Você acha que eu vou tomar um pico ou algo assim?

- É para a sua própria proteção - respondeu ela com enfado.

Jackie fez o que tinha de fazer e depois ajeitou o cabelo para trás, molhando-o com água gelada. Olhou-se no espelho, imaginando quando poderia fazer aquilo novamente. Agora sabia exatamente o que sentiam as pessoas sobre quem havia escrito. E aquela era uma sensação horrível. O seu estômago revirava, como se estivesse há dias sem dormir, e a sua respiração parecia entalada na garganta.

- Quando é que vou poder ligar para o meu advogado? - perguntou ela.

- Quando chegarmos à delegacia - respondeu a policial.

Meia hora depois, estava trancafiada em uma sala apertada com Tony Donatello, um advogado criminal de terceira geração que ela conhecia desde os seus primeiros meses como repórter em Glasgow. Estavam mais habituados a se encontrar em bares do que em celas, mas Tony foi educado e não comentou nada a respeito. Também era sensível o suficiente para não refrescar a memória de Jackie e lembrar que da última vez que a representara em uma delegacia, ela acabara sendo fichada.

- Eles querem te interrogar sobre a morte de David - explicou ele. - Mas imagino que você já saiba disso.

- É o único assassinato com o qual estou remotamente conectada. Você ligou para Hélène?

Tony deu uma tosse curta e seca.

- Parece que ela também foi chamada.

- Devia ter imaginado. E aí, qual vai ser a nossa estratégia?

- Você fez alguma coisa recentemente que possa ser interpretada como relacionada com a morte de David? - perguntou Tony.

Jackie balançou a cabeça.

- Nada. Não há nenhuma conspiração sórdida aqui, Tony. Hélène e eu não tivemos nada a ver com o assassinato de David.

- Jackie, eu não tenho nada a ver com Hélène. A minha cliente é você e eu tenho que me preocupar com os seus atos. Se houve qualquer coisa, por menor que seja, um comentário casual, um e-mail impertinente, qualquer coisa, isso pode te complicar e aí não vamos responder a pergunta nenhuma. Vamos ter que recorrer ao "nada a declarar". Mas se você tem certeza de que não precisamos nos preocupar com nada, vamos responder. E então?

Jackie mexeu no seu piercing de sobrancelha.

- Olha, tem uma coisa que você precisa saber. Eu não estava com Hélène o tempo todo. Dei uma saída, de mais ou menos uma hora, ou um pouco mais. Tive que ir me encontrar com uma pessoa. Não posso dizer quem era, mas acredite, não serve como álibi.

Tony parecia preocupado.

- Isso não é nada bom - disse ele. - Talvez seja melhor partir para o "nada a declarar" mesmo.

- Não, não quero isso. Você sabe que vai pegar supermal para mim.

- Você é quem sabe. Mas, diante das circunstâncias, eu acho que o silêncio seria a melhor opção.

Jackie parou e pensou por alguns minutos. Não conseguia imaginar como a polícia poderia saber da sua saída.

- Vou falar com eles - disse ela, finalmente.

A sala de interrogatório não era nenhuma surpresa para alguém versado na gramática dos seriados policiais na tevê. Jackie e Tony sentaram do lado oposto de Heggie e da detetive que o acompanhara até o loft. Naquela proximidade, a loção pós-barba de Heggie exalava um odor rançoso. Duas fitas cassete estavam engatilhadas juntinhas no gravador no canto da mesa. Uma vez terminadas as formalidades, Heggie foi direto ao assunto.

- Há quanto tempo você conhece Hélène Kerr?

- Há uns quatro anos. Conheci ela e o marido em uma festa dada por um amigo em comum.

- E qual é o seu relacionamento com ela?

- Antes de qualquer outra coisa, somos amigas. Ocasionalmente, somos amantes.

- Há quanto tempo vocês são amantes? - Os olhos de Heggie pareciam famintos, como se a mera ideia de Jackie e Hélène juntas fosse potencialmente tão satisfatória quanto uma confissão criminal.

- Há uns dois anos.

- E com que frequência se encontravam?

- Passávamos uma noite juntas, praticamente toda semana. Fazíamos sexo na maioria das vezes, mas nem sempre. Como eu disse, a amizade é o componente mais importante do nosso relacionamento. - Jackie estava achando mais difícil do que havia imaginado ficar calma e impassível diante do olhar de avaliação dos interrogadores. Mas sabia que tinha de manter a calma; qualquer rompante seria interpretado como um indício de algo mais do que mero nervosismo.

- David Kerr sabia que você estava dormindo com a mulher dele?

- Acho que não.

- Você deve ter ficado chateada com essa história de ela ter continuado com ele - sugeriu ele.

Uma observação perspicaz, pensou ela. E que estava incomodamente próxima da verdade. No fundo do seu coração, Jackie sabia que não lamentava a morte de David Kerr. Amava Hélène e estava cansada das migalhas que ela lhe oferecia. Há muito tempo que ela queria muito mais.

- Desde o início eu já sabia que ela não ia deixar o marido. E, por mim, tudo bem.

- Isso é difícil de acreditar - disse ele. - Você estava sendo preterida pelo marido dela e isso não te incomodava?

- Não era uma rejeição. O acordo era satisfatório para nós duas. - Jackie inclinou-se para a frente, torcendo para que a sua linguagem corporal transmitisse franqueza. - Era só um passatempo. Eu gosto da minha liberdade. Não quero me amarrar a ninguém.

- É mesmo? - Ele consultou as suas anotações. - Então o vizinho que ouviu vocês duas discutindo aos berros porque ela não queria deixar o marido está mentindo?

Jackie lembrou-se da discussão. Durante o período em que estavam juntas, haviam brigado pouquíssimas vezes, por isso aquela fora tão marcante. Havia alguns meses, convidara Hélène para ir com ela à festa de quarenta anos de uma amiga. Hélène olhara para ela sem poder acreditar no que tinha acabado de ouvir. Aquilo era algo que escapava às regras, um assunto que não devia sequer ter sido cogitado. Todas as frustrações de Jackie vieram à tona e elas descambaram para uma discussão calorosa. A coisa só mudou de figura abruptamente quando Hélène ameaçou ir embora e não voltar nunca mais. Aquela era uma perspectiva insuportável para Jackie e ela acabou cedendo. Mas não estava disposta a compartilhar a história com Heggie e a sua subalterna.

- Deve estar mentindo, sim - disse ela. - Não dá para escutar um "ai" através das paredes desses lofts.

- Ao que parece, dá para escutar muito bem se as janelas estiverem abertas - disse Heggie.

- E quando foi que se deu esta suposta conversa? - interrompeu Tony.

Heggie consultou novamente as suas anotações.

- No final de novembro.

- O senhor está realmente sugerindo que a minha cliente estava com as janelas abertas no final de novembro em Glasgow? - retrucou ele, debochado. - É só isso que o senhor tem? Fofoca e disse me disse de vizinhos enxeridos e cheios de imaginação?

Heggie encarou o advogado por um bom tempo antes de tornar a falar.

- A sua cliente tem um histórico de violência.

- Não, não é verdade. Ela foi condenada por ter agredido um policial em uma manifestação anticontribuição autárquica, onde um dos seus colegas a confundiu entusiasticamente com um dos manifestantes. Isso está longe de ser um histórico de violência.

- Ela deu um soco na cara do policial.

- Sim, depois que ele a arrastou pelos cabelos. Se tivesse sido uma agressão tão violenta quanto o senhor está falando, por que ela teria recebido apenas seis meses de sursis? Se isso é tudo o que o senhor tem contra ela, não vejo mais motivos para continuar detendo a minha cliente.

Heggie lançou um olhar irritado para os dois.

- Você estava com a Sra. Kerr na noite em que o marido dela morreu?

- Estava - respondeu Jackie, cautelosa. Era ali que as coisas começavam a ficar perigosas. - Era a noite em que costumávamos nos encontrar. Ela chegou por volta das seis e meia. Jantamos peixe com batatas, que eu saí para comprar, bebemos um pouco de vinho e depois fomos para a cama. Ela saiu lá pelas onze. Tudo como de costume.

- Alguém pode confirmar isso?

Jackie levantou as sobrancelhas.

- Não sei quanto ao senhor, inspetor, mas quando eu faço amor com alguém não costumo convidar os vizinhos. O telefone tocou algumas vezes, mas eu não atendi.

- Temos uma testemunha que afirma tê-la visto caminhando até o seu carro por volta das nove horas naquela noite - disse Heggie, triunfante.

- Ele deve ter confundido a data - disse Jackie. - Estive com Hélène a noite inteira. Será que esse é outro dos meus vizinhos homofóbicos que o senhor vem tentando convencer a fazer parte das testemunhas de acusação?

Tony agitou-se em sua cadeira.

- O senhor ouviu a resposta da minha cliente. Se não existe nada de novo para acrescentar, sugiro que a conversa termine por aqui.

Heggie respirou profundamente.

- Se o senhor permitir, Sr. Donatello, eu gostaria de apresentar o depoimento de uma testemunha que nós colhemos ontem.

- Posso dar uma olhada nisso? - perguntou Tony.

- Tudo a seu tempo. Denise?

A detetive abriu a pasta que apoiava no colo e colocou uma folha de papel na frente dele. Heggie umedeceu os lábios e disse:

- Prendemos um traficantezinho chinfrim ontem. E ele estava disposto a oferecer qualquer informação que pudesse melhorar a sua imagem conosco. Senhorita Donaldson, conhece Gary Hardie?

O coração de Jackie pulou no seu peito. O que aquilo tinha a ver com o caso? Não havia se encontrado com Gary Hardie naquela noite, nem com nenhum dos seus colegas.

- Sei quem ele é - enrolou ela. Estava longe de ser uma confissão; qualquer um que lesse os jornais ou visse tevê na Escócia teria reconhecido o nome. Algumas semanas antes, não sem o devido sensacionalismo, Gary Hardie escapara ileso da Suprema Corte em Glasgow após um dos casos de homicídio mais badalados dos últimos tempos naquela cidade. Durante o julgamento, ele havia sido chamado de "senhor das drogas", "um sujeito que não tem o menor respeito pela vida humana" e "uma mente do crime absolutamente cruel". Entre as alegações apresentadas ao júri, estava a de que ele havia pagado um matador profissional para eliminar um concorrente.

- Você conhece Gary Hardie pessoalmente?

Jackie sentiu o suor no meio das costas.

- Em um contexto estritamente profissional, sim.

- Estamos falando da sua profissão ou da dele? - indagou Heggie, aproximando a sua cadeira da mesa.

Jackie girou os olhos, debochada.

- Inspetor, faça-me o favor. Sou jornalista, o meu trabalho é entrevistar as pessoas que estão nas manchetes dos jornais.

- Quantas vezes você esteve com Gary Hardie? - pressionou Heggie.

Jackie soltou o ar pelo nariz.

- Três vezes. Entrevistei-o há um ano para uma matéria que escrevi sobre as gangues de Glasgow para uma revista. Depois, entrevistei novamente na época em que ele aguardava o julgamento, para uma matéria que eu pretendia escrever quando o julgamento terminasse. E tomei um drinque com ele duas semanas atrás. É importante manter os contatos, na minha profissão. É assim que eu consigo histórias que ninguém consegue.

Heggie parecia cético. Ele deu uma olhada no depoimento.

- Onde foi que vocês se encontraram?

- No Ramblas. É um barzinho em...

- Eu sei onde fica o Ramblas - interrompeu Heggie. Tornou a olhar para o papel à sua frente. - Durante o encontro, um envelope trocou de mãos. Das suas para as de Hardie. Um envelope bem grosso, senhorita Donaldson. Poderia nos dizer o que estava dentro do envelope?

Jackie estava tentando disfarçar o seu choque. Tony agitava-se ao seu lado.

- Gostaria de conversar a sós com a minha cliente - disse ele, apressado.

- Não, Tony, está tudo sob controle - respondeu Jackie. - Não tenho nada a esconder. Quando eu falei com Gary, para marcar o encontro, ele me disse que alguém havia mostrado a matéria a ele e que ele havia gostado da foto usada pela revista. Ele quis umas cópias. Então, eu mandei fazer as cópias e levei para o Ramblas. Se o senhor não acredita, pode checar com o laboratório de revelação de fotos. Eles não revelam muitas fotos em preto e branco, devem lembrar, sim. Também tenho o recibo.

Tony interveio prontamente.

- Está vendo, inspetor? Nada de mais. Só uma jornalista tentando agradar um bom contato. Se é só isso o que o senhor tem de novidade, não vejo motivos para deter a minha cliente aqui nem mais um minuto.

Heggie parecia levemente desapontado.

- Você pediu para Gary Hardie matar David Kerr? - perguntou ele.

Jackie fez um gesto negativo com a cabeça.

- Não.

- Você pediu a Gary Hardie para colocá-la em contato com alguém para matar David Kerr?

- Não, isso nunca passou pela minha cabeça. - Jackie levantara o rosto, suspendendo o queixo, vencendo o medo.

- Você nunca pensou em como a vida seria melhor sem David Kerr? E como seria fácil dar um jeito nisso?

- Isso é ridículo. - Ela bateu as mãos sobre a mesa. - Por que o senhor está perdendo tempo comigo, quando deveria estar fazendo o seu trabalho?

- Estou fazendo o meu trabalho - disse ele, calmamente. - Por isso a senhora está aqui.

Tony olhou para o seu relógio.

- Não por muito tempo, inspetor. Ou você prende a minha cliente, ou vai ter que liberá-la. O interrogatório acabou. - Ele apoiou a mão sobre a mão de Jackie.

Um minuto parece muito tempo em uma sala de interrogatórios. Heggie cultivou a pausa, encarando Jackie fixamente. Depois, afastou a cadeira para trás.

- O interrogatório terminou às seis e vinte e cinco. A senhora está liberada - disse ele, com má vontade na voz. Apertou um botão, desligando os gravadores. - Não acredito em você, senhorita Donaldson - disse ele, levantando-se. - Acho que você e Hélène Kerr tramaram a morte de David Kerr. Acho que você queria exclusividade. E que naquela noite você saiu de casa para pagar o sujeito contratado para fazer o serviço. E pretendo provar tudo isso. - Ele parou na soleira da porta e virou para trás. - Isso é apenas o começo.

Assim que eles se foram, fechando a porta, Jackie cobriu o rosto com as mãos.

- Meu Deus - disse ela.

Tony ajeitou os seus pertences e depois colocou o braço em volta dos ombros de Jackie.

- Você foi nota dez. Eles não têm nada contra você.

- Já vi pessoas encasquetando com menos provas do que eles têm contra mim. Estão determinados. Não vão desistir enquanto não arrumarem alguém que consiga testemunhar que me viu fora de casa naquela noite. Meu Deus. Não acredito que foram desencavar Gary Hardie justo agora.

- Gostaria que você tivesse comentado sobre ele comigo antes - disse Tony, afrouxando a gravata e se alongando.

- Desculpe. Não tinha a menor ideia de que iam falar nisso. Não perco o meu tempo pensando em Gary Hardie. E ele nem tem nada a ver com isso. Você acredita em mim, não é, Tony? - Ela parecia aflita. Se não conseguia convencer o seu próprio advogado, não ia ter a menor chance com a polícia.

- No que eu acredito não interessa. O que importa mesmo é o que eles podem provar. E, no momento, não têm contra você nada que um bom advogado não consiga derrubar em questão de minutos. - Ele bocejou. - Programão para uma madrugada, hein?

Jackie ficou de pé.

- Vamos sair desse buraco. Até o ar parece contaminado.

Tony sorriu.

- Alguém devia dar uma loção pós-barba decente para Heggie no próximo aniversário dele. A dele parece um gambá no cio.

- Ele ia precisar de bem mais do que um Paco Rabanne da vida para se tornar um membro da raça humana - debochou Jackie. - Hélène está detida aqui na delegacia também?

- Não. - Tony suspirou. - Olha, talvez seja melhor vocês duas se afastarem um pouco agora.

Jackie o olhou com uma expressão que combinava mágoa e decepção.

- Por quê?

- Porque se vocês não forem vistas juntas, fica mais difícil provar que estão mancomunadas. Juntas, dá a impressão de que estão bolando estratégias para contar sempre a mesma história.

- Isso é absurdo - respondeu ela com firmeza. - Porra, nós somos amigas. Dormimos juntas. Onde vamos buscar apoio e conforto? Se nos evitarmos, vai parecer que estamos com algum problema. Se Hélène me quiser por perto, é lá que eu vou estar. E ponto final.

Ele deu de ombros.

- Você é quem sabe. Os meus conselhos são pagos, quer você aceite ou não. - Ele abriu a porta e a conduziu até o corredor. Jackie assinou um documento para recuperar os seus pertences e caminharam até a saída juntos.

Tony abriu a porta que conduzia à rua e estacou. Apesar da hora, três câmeras e um punhado de jornalistas estavam amontoados na calçada. Assim que avistaram Jackie, começaram a gritar. "E aí, Jackie, você foi presa?", "Você e a sua namorada contrataram um assassino profissional?", "Como você está se sentindo como suspeita de um assassinato?".

Aquele era o tipo de cena na qual ela já tomara parte diversas vezes, embora jamais a tivesse observado daquela perspectiva. Jackie achava que não havia nada pior do que ser arrastada da cama no meio da noite e tratada como uma criminosa pela polícia. Agora, sabia que estava enganada. A traição, descobrira ela, tinha um gosto infinitamente mais amargo.


40

A escuridão no quarto de Graham Macfadyen era neutralizada pela luz fantasmagórica dos monitores. Nas duas telas que não estavam sendo usadas no momento, protetores de tela exibiam um apanhado de imagens que ele escaneara. Fotografias granuladas em preto e branco da sua mãe, tiradas dos jornais; fotos contemplativas de Hallow Hill; a lápide do cemitério e as fotografias que ele batera de Alex e de Esquisito nos últimos dias.

Macfadyen estava diante do seu computador, redigindo um documento. A princípio, planejara apenas uma reclamação formal sobre a inércia de Lawson e seus colegas. Mas uma breve pesquisa no site do Poder Executivo Escocês atestara a inutilidade do seu gesto. Qualquer reclamação que fizesse seria investigada pela própria polícia de Fife e eles dificilmente criticariam as atitudes do seu subchefe. Queria resultados, não ilusões.

Decidiu então revelar a história completa e mandar cópias para parlamentares e para toda a imprensa escocesa. Mas, quanto mais escrevia, mais tinha medo de ser rechaçado como mais um adepto de teorias conspiratórias. Ou algo pior.

Macfadyen mordiscou a pele ao redor das suas unhas e ponderou sobre o que devia fazer afinal. Acabara de escrever a sua crítica devastadora sobre a incompetência da polícia de Fife e a sua recusa de levar a sério a presença de dois assassinos em sua circunscrição. Mas precisava de algo mais para chamar a atenção das pessoas. Algo que tornasse impossível ignorar as suas reclamações ou desconsiderar a maneira pela qual o destino apontara inegavelmente o dedo para os culpados pelo assassinato de sua mãe.

Duas mortes deveriam ter sido o suficiente para produzir o resultado que ele desejava. Mas as pessoas eram tão cegas; não conseguiam enxergar o que estava diante do nariz. Afinal, mesmo após as mortes, a justiça ainda não havia sido feita.

E ele continuava a ser a única pessoa capaz de fazê-la.

A casa estava começando a virar um acampamento de refugiados. Alex estava acostumado à rotina que ele e Lynn haviam aprimorado ao longo dos anos: refeições a dois, caminhadas pelo litoral, exposições e cinema, programas ocasionais com amigos. Reconhecia que deveriam parecer chatos para algumas pessoas, mas isso não tinha importância. Gostava da sua vida. Sabia que as coisas iriam mudar com a chegada do bebê e recebia aquela mudança de coração, apesar de ignorar todo o seu significado. O que ele não antecipara era Esquisito no quarto de hóspedes. Nem a chegada de Hélène e de Jackie, a primeira atormentada e a segunda enlouquecida de ódio. Sentiu-se invadido, tão fustigado pela dor e a ira dos outros que sequer conseguia entender o que ele próprio sentia.

Ficara espantado ao ver as duas na sua porta, buscando asilo para escapar da imprensa que estava fazendo plantão na frente da casa delas. Como podiam ter imaginado que seriam bem recebidas logo ali? O primeiro impulso de Lynn foi sugerir que fossem para um hotel, mas Jackie estava convicta de que o único lugar onde ninguém procuraria por elas era lá. Assim como Esquisito, pensou Alex, exausto.

Hélène tivera uma crise de choro e pedira perdão por ter traído Mondo. Jackie fez questão de refrescar a memória de Lynn, lembrando que se arriscara para ajudar Alex. Mas mesmo assim, Lynn estava irredutível: não havia lugar para elas em sua casa. Foi então que Davina começou a choramingar e Lynn fechou a porta na cara das duas, correndo para ir ver a sua filha e lançando um olhar para Alex que dizia "nem ouse deixá-las entrar aqui". Esquisito driblou Alex e saiu atrás das duas, alcançando-as a caminho do carro. Quando ele voltou para casa, uma hora depois, contou que havia hospedado as duas em um hotel não muito distante e feito a reserva em seu nome. "Eles têm um chalé no meio das árvores", contou ele. "Ninguém sabe que elas estão lá. Vai ficar tudo bem."

O aparente cavalheirismo de Esquisito criara uma certa estranheza naquela tarde, mas o seu objetivo em comum aos poucos neutralizou o desconforto, bem como algumas doses generosas de vinho. Os três adultos ficaram sentados à mesa da cozinha, com as persianas fechadas, esvaziando as garrafas de vinho enquanto jogavam conversa fora. Mas falar sobre as dificuldades não era o suficiente; precisavam agir.

Para Esquisito, deviam confrontar Graham Macfadyen de uma vez, exigindo uma explicação para as coroas de flores enviadas para os funerais de Ziggy e de Mondo. Alex e Lynn rejeitaram a sua ideia de cara; sem nenhuma prova de que ele estava de fato envolvido nos assassinatos, aquilo só serviria para alertar Macfadyen das suas suspeitas, e não para provocar uma confissão.

- Eu estou pouco me lixando - retrucara Esquisito. - De repente assim ele desiste e deixa a gente em paz.

- É, ou isso, ou ele vai bolar abordagens mais sutis nas próximas vezes. Ele não está com pressa, Esquisito. Ele tem a vida inteira para vingar a morte da mãe - ponderou Alex.

- Isso supondo que foi ele mesmo quem matou Mondo, e não um assassino contratado por Jackie - disse Lynn.

- É exatamente por isso que a gente precisa arrancar uma confissão de Macfadyen - disse Alex. - Se ele desaparecer do mapa, não vai servir para limpar o nome de ninguém.

Continuaram especulando, sem chegar a uma conclusão, sendo interrompidos apenas pelo choro ocasional de Davina, acordada e disposta a mais uma mamada. Estavam revivendo o passado novamente, Alex e Esquisito relembrando o dano causado por boatos venenosos às suas vidas no último ano em St. Andrews.

Esquisito foi o primeiro a perder a paciência com o passado. Esvaziou o seu copo e levantou da mesa.

- Preciso tomar um ar - anunciou ele. - Não vou ficar intimidado, me escondendo atrás de portas trancadas pro resto da minha vida. Vou dar uma caminhada. Vocês querem me fazer companhia?

Nenhum dos dois quis. Alex estava começando a preparar o jantar e Lynn estava dando de mamar a Davina. Esquisito pegou a jaqueta impermeável de Alex e saiu, caminhando em direção ao litoral. Era incrível, mas as nuvens que cobriram o céu durante todo o dia haviam desaparecido. O céu estava claro e uma lua abusada exibia-se entre as pontes. A temperatura caíra vários graus e Esquisito encolheu-se dentro da gola do casaco quando uma rajada de vento gelado do estuário o atingiu em cheio. Ele mudou de ideia, caminhando em direção às sombras sob a ponte da ferrovia, sabendo que se subisse no promontório conseguiria acesso a uma vista panorâmica do estuário que seguia para Inchcolm e o Mar do Norte lá atrás.

Já desfrutava o prazer de estar fora de casa. Um homem sempre ficava mais perto de Deus ao ar livre, longe da algazarra das outras pessoas. Imaginara ter feito as pazes com o seu passado, mas os acontecimentos dos últimos dias o deixaram desconfortavelmente consciente da sua ligação com o jovem que ele fora um dia. Esquisito precisava ficar sozinho, precisava restaurar a sua fé nas mudanças que operara em sua vida. Enquanto caminhava, refletia sobre como havia avançado, quanta bagagem incômoda deixara no caminho, graças a sua crença na redenção que a sua religião oferecia. As suas ideias tornaram-se mais claras, o seu coração, mais leve. Ligaria para a sua família mais tarde. Precisava do conforto que só as suas vozes proporcionariam. Algumas palavrinhas com a sua mulher e com os seus filhos e sabia que poderia se sentir como alguém que escapa de um pesadelo. Em termos práticos, nada mudaria e ele sabia disso. Mas sentir-se-ia mais apto para enfrentar os seus infortúnios.

O vento estava ficando mais forte, zunindo e bradando em seus ouvidos. Ele parou para recuperar o fôlego, ciente do barulho distante do tráfego na ponte. Ouviu um trem se aproximando pela ferrovia e inclinou-se para trás, esticando o pescoço para vê-lo avançando uns quatro metros acima da sua cabeça.

Esquisito não viu nem ouviu a pancada que o fez cair de joelhos, em uma paródia sinistra de oração. A segunda pancada o atingiu nas costelas e o derrubou no chão. Teve a vaga impressão de ter visto uma figura toda vestida de preto segurando o que parecia ser um taco de beisebol nas mãos, antes que o terceiro golpe atingisse os seus ombros e fizesse os seus pensamentos desconexos concentrarem-se apenas na dor. Os seus dedos buscavam a grama, aflitos, enquanto ele tentava engatinhar para longe do seu agressor. Uma quarta pancada o atingiu na parte posterior das coxas, fazendo com que caísse de barriga para baixo, sem poder mais escapar.

Então, com a mesma rapidez que começara, o ataque chegou ao fim. Parecia um flashback do que havia acontecido vinte e cinco anos atrás. Através de um miasma de dor e vertigem, Esquisito pôde distinguir vagamente alguns gritos e o som incongruente de um cachorrinho latindo. Sentiu um odor cálido e rançoso e sentiu uma língua úmida e áspera lambendo o seu rosto. Poder sentir qualquer coisa que fosse já era por si só uma bênção; deixou as lágrimas descerem pelo seu rosto.

- O Senhor me salvou dos meus inimigos - ele balbuciou. Então, tudo ficou escuro.

- Eu não quero ir para o hospital - insistiu Esquisito. Ele já tinha dito aquilo tantas vezes que Alex começou a desconfiar que talvez se tratasse de um sinal incontroverso de concussão. Esquisito estava sentado à mesa da cozinha, rígido em sua dor e igualmente inflexível sobre a possibilidade de receber cuidados médicos. O seu rosto estava completamente sem cor e com um vergão que se estendia da sua têmpora direita até a nuca.

- Eu acho que você quebrou as costelas - disse Alex, pela milésima vez.

- Então, eles não vão sequer me engessar - disse Esquisito. - Já quebrei as costelas uma vez. Vão me dar uns analgésicos e falar para eu continuar tomando até melhorar.

- Estou mais preocupada com uma concussão - disse Lynn, aproximando-se com uma xícara de chá, bem forte e bem doce. - Bebe, isso é bom para o choque. Se você vomitar novamente, pode ser concussão mesmo e aí a gente vai te levar pro hospital em Dunfermline.

Esquisito estremeceu.

- Não, Dunfermline, não.

- Ele não deve estar tão mal assim, está até debochando de Dunfermline - observou Alex. - Você está conseguindo se lembrar de alguma coisa do ataque?

- Não vi nada até receber a primeira pancada. E depois, a minha cabeça estava estourando. Vi uma figura de preto. Possivelmente um homem. Talvez uma mulher alta. E um taco de beisebol. Olha só que coisa ridícula: tive que voltar dos Estados Unidos para a Escócia para ser atacado com um taco de beisebol.

- Você não viu o rosto dele?

- Acho que estava usando uma máscara. Não vi sequer a sombra de um rosto. Quando dei por mim, estava desmaiado. Quando acordei, o seu vizinho estava ajoelhado ao meu lado, completamente apavorado. E aí eu vomitei no cachorro dele.

Apesar da afronta ao seu terrier Jack Russell, o vizinho Eric Hamilton ajudou Esquisito a se levantar e o escoltou até a casa de Alex. Resmungou algo sobre ter assustado um ladrão, dispensou os agradecimentos efusivos do casal e mergulhou novamente na escuridão da noite, sem tomar sequer uma dose de uísque de recompensa.

- Ele já não vai muito com a nossa cara mesmo - disse Lynn. - É um contador aposentado e acha que somos artistas ripongos. Então não se preocupe, você não estragou uma bela amizade. Mas temos que chamar a polícia, sim.

- Vamos esperar até amanhecer. Aí podemos falar diretamente com Lawson. De repente agora ele nos leva a sério - sugeriu Alex.

- Você acha que foi Macfadyen? - perguntou Esquisito.

- Não estamos em Atlanta - disse Lynn. - Estamos em um vilarejozinho pacato em Fife. Acho que nunca houve um assalto por essas bandas. E se você fosse realmente assaltar alguém, ia escolher justo um gigante quarentão, sabendo que há aposentados passeando com os seus cachorrinhos todas as noites? Isso não foi casual, foi planejado.

- Também acho - concordou Alex. - E mantém o padrão dos outros assassinatos. É sempre assim, feito para parecer uma outra coisa. Incêndio, furto, roubo... Se Eric não tivesse aparecido, você estaria morto agora.

Antes que alguém pudesse responder, a campainha tocou.

- Deixa que eu atendo - disse Alex.

Quando ele voltou, tinha um policial atrás dele.

- O Sr. Hamilton deu queixa do ataque - explicou Alex. - O policial Henderson veio aqui tomar o seu depoimento. Este é o Sr. Mackie - acrescentou ele.

Esquisito ensaiou um sorriso duro.

- Obrigado por ter vindo - agradeceu ele. - Sente-se, por favor.

- São só alguns detalhes - disse o policial, sacando um caderninho de anotações e acomodando-se à mesa. Abriu o grosso casaco do uniforme, mas não o retirou. Aposto que são treinados a suportar o calor, para não sacrificar a impressão de corpulência que o casacão proporciona, pensou Alex, distraído.

Esquisito forneceu seu nome completo e endereço, explicando que estava visitando Alex e Lynn, seus velhos amigos. Quando disse que era pastor, Henderson adotou uma expressão de desconforto, como se estivesse constrangido por um assaltante da sua área ter caído de paulada justo em um representante de Deus.

- O que aconteceu exatamente? - perguntou o policial.

Esquisito contou os vagos detalhes do ataque dos quais conseguia se lembrar.

- Lamento, mas não me lembro de mais nada. Estava muito escuro e eu fui pego de surpresa - justificou ele.

- O agressor não disse nada?

- Não.

- Não pediu dinheiro, ou a sua carteira?

- Nada.

Henderson balançou a cabeça.

- Muito estranho. Não é o tipo de coisa que costuma acontecer por aqui. - Ele olhou para Alex. - Não entendo por que o senhor não ligou para a polícia.

- Estávamos mais preocupados em garantir que Tom estava bem - acudiu Lynn. - Estamos tentando convencê-lo a ir até o hospital, mas ele está determinado a adotar uma postura estoica.

Henderson concordou.

- Acho que a Sra. Gilbey tem razão, senhor. Não custa nada procurar um médico, para examinar as lesões. E, além do mais, isso garante um laudo oficial da gravidade do ataque, caso seja possível capturar o responsável.

- Quem sabe amanhã de manhã - disse Esquisito. - Estou cansado demais para encarar hospital agora.

Henderson fechou o seu caderninho e afastou a cadeira.

- Vamos mantê-lo informado sobre qualquer novidade, senhor - disse ele.

- Há algo que o senhor pode fazer por nós - disse Alex.

Henderson lançou um olhar curioso para Alex.

- Eu sei que isso vai soar estranho, mas o senhor pode dar um jeito de enviar uma cópia do seu relatório para o subchefe de polícia Lawson?

Henderson ficou surpreso com o pedido.

- Sinto muito, senhor. Eu não consigo entender...

- Olha, não estou querendo te menosprezar, mas é uma história muito longa e muito complicada e estamos muito cansados para explicá-la agora. O Sr. Mackie e eu estamos tratando de um assunto bastante delicado com o subchefe Lawson e talvez esta não tenha sido uma agressão casual. Eu gostaria que ele visse o seu relatório, só para que ficasse ciente do que aconteceu aqui esta noite. De todo modo, eu mesmo vou conversar com ele amanhã de manhã e seria bom se ele já pudesse estar por dentro do assunto. - Ninguém que já tivesse visto Alex convencendo os seus funcionários a dar o máximo de si ficaria surpreso com suas as delicadas técnicas persuasivas.

Henderson avaliou o pedido, com dúvida no olhar.

- Este não costuma ser o nosso procedimento normal - disse ele, hesitante.

- Eu sei disso. Mas esta não é uma situação normal. Eu prometo que não vai sobrar para você. Se você preferir esperar o subchefe entrar em contato com você... - Alex deixou a frase no ar.

Henderson tomou uma decisão.

- Vou enviar uma cópia para a central - disse ele. - E mencionar que foi o senhor quem solicitou.

Alex o acompanhou até a porta. Ficou parado na soleira, observando o carro da polícia partir. Alguém estava lá fora, camuflado pela escuridão, esperando a hora certa de atacar. Um calafrio percorreu o seu corpo. E não tinha nada a ver com o ar gelado da noite.


41

O telefone tocou um pouco depois das sete, acordando Davina e assustando Alex. Depois do que acontecera a Esquisito, o menor som penetrava a sua consciência, requerendo análise e avaliação de risco. Havia alguém lá fora atrás deles e todos os seus sentidos estavam em alerta. Por isso, quase não dormira. Ouvira Esquisito perambulando pela casa de madrugada, provavelmente procurando mais analgésicos. Não era um barulho que ele costumava ouvir à noite e, até ele descobrir do que se tratava, o coração acelerara em seu peito.

Atendeu o telefone, imaginando se Lawson já estaria no gabinete, com o relatório de Henderson à sua frente. Não estava preparado para a jovialidade de Jason McAllister.

- Alô, Alex! - exclamara alegremente o perito em análise de tintas. - Eu sei que pais de recém-nascidos acordam com as galinhas, então imaginei que vocês não se incomodariam se eu ligasse tão cedo. Escuta, tenho novidades para vocês. Posso dar um pulo aí e adiantar antes de ir para o trabalho. Que tal?

- Ótimo - respondeu Alex, sonolento. Lynn empurrou o cobertor e caminhou exausta até o moisés, suspendendo a filha e resmungando.

- Maravilha. Daqui a meia hora estou aí.

- Você tem o endereço?

- Claro. Já me encontrei com Lynn aí algumas vezes. Até mais. - Ele desligou e Alex levantou da cama, enquanto Lynn voltava com o bebê no colo.

- Era o Jason - disse ele. - Ele está vindo para cá. É melhor eu tomar uma ducha. Você nunca me disse que ele era tão animadinho assim. - Ele se inclinou e beijou a cabeça da filha, enquanto Lynn a amamentava.

- Às vezes ele é alegre demais mesmo - concordou Lynn. - Eu vou amamentar Davina, colocar uma roupa e depois encontro vocês.

- Nem acredito que ele conseguiu um resultado tão depressa.

- Ele é como você era no início da carreira. Gosta muito do que faz e pouco se importa com o tempo que dedica ao trabalho. E quer compartilhar o seu entusiasmo com todo mundo.

Alex estacou, pegando o seu robe.

- Eu era assim? Então é um milagre você não ter pedido o divórcio.

Alex encontrou Esquisito na cozinha, com uma aparência horrorosa. A única cor no seu rosto era proveniente do hematoma que se espalhava como uma maquiagem em volta dos seus olhos. Desconjuntado em uma cadeira, segurava uma xícara com as duas mãos.

- Sua cara está uma merda - disse Alex.

- Eu estou uma merda. - Ele bebericou o café e fez uma careta. - Por que vocês não têm um analgésico decente aqui nessa casa?

- Porque não costumamos levar surras na rua - respondeu Alex, indo atender à campainha. Jason saltou porta adentro com as pontas dos pés, tomado de entusiasmo e, ao olhar de esguelha para Esquisito, não acreditou nos seus olhos: em um gesto quase cômico, voltou a contemplá-lo para confirmar se tinha visto direito. - Porra, cara. O que foi isso?

- Um sujeito com um taco de beisebol - explicou Alex, sucinto. - Não estávamos brincando quando falamos que talvez fosse uma questão de vida ou morte. - Serviu café para Jason. - Fiquei impressionado quando você disse que tinha um resultado para a gente tão rápido - disse ele.

Jason deu de ombros.

- Pois é, quando comecei a trabalhar, vi que não era assim tão complicado. Fiz a microespectrofotometria para determinar a cor, depois testei no cromatógrafo de gás para ver a composição. Mas não bateu com nada da minha base de dados.

Alex suspirou.

- Bom, já imaginávamos isso - disse ele.

Jason suspendeu o dedo.

- Veja bem, Alex, não sou um cara desprovido de recursos. Alguns anos atrás, conheci um sujeito em uma conferência. Ele é o maior especialista em tinta do mundo, trabalha para o FBI e desconfia-se que tenha o maior banco de dados de amostras de tintas do universo. Então, pedi a ele para dar uma olhada para mim e voilà! Conseguimos. - Ele abriu os braços em um gesto largo, como se esperasse os aplausos.

Lynn chegou a tempo para escutar o desfecho.

- E então, o que era? - perguntou ela.

- Não vou chateá-los com os detalhes técnicos. A tinta em questão foi produzida por um fabricante em Nova Jersey em meados da década de 70, para ser usada em fibra de vidro e em alguns tipos de plástico moldado. O mercado-alvo eram os construtores e donos de barcos. Esta tinta proporcionava um acabamento bastante sólido, à prova de arranhões e até mesmo das condições climáticas mais extremas. - Jason abriu a sua mochila e vasculhou lá dentro, apanhando finalmente uma tabela de cores produzida no computador. Uma amostra de azul-claro estava sublinhada com caneta preta. - Era exatamente assim - disse ele, passando a folha de papel. - A boa notícia sobre a qualidade do acabamento é que, se por algum milagre a cena do crime ainda existir, é possível conseguir um resultado. Essa tinta foi vendida principalmente na costa leste dos Estados Unidos, mas foi exportada tanto para o Reino Unido quanto para o Caribe. A empresa faliu no final da década de 80, então não temos como saber mais detalhes.

- Então é bem provável que Rosie tenha sido assassinada em um barco? - perguntou Alex.

Jason produziu um estalo duvidoso com os lábios.

- Bom, se foi, deve ter sido num barco de tamanho razoável.

- Por quê?

Ele sacou uns papéis da mochila com um floreio.

- Aí é que as gotas de tinta entram na história. Pequenas gotas, é o que temos aqui. E um ou dois fragmentos de fibra, bem pequenos, que me parecem bastante com carpete. E isso conta uma história. Essas gotas caíram de um pincel enquanto alguém estava pintando alguma coisa. Essa é uma tinta que tem uma boa mobilidade, ou seja, ela se desprende do pincel em gotas a cada minuto. O pintor nem deve ter percebido. E são típicas de uma pintura que está sendo feita no alto, acima da cabeça do pintor, especialmente quando ele está bem esticado para fazer o serviço. E como não encontramos praticamente nenhuma variação no formato das gotas, isso dá a entender que a pintura foi aplicada no alto e na mesma distância. Nada disso se encaixa com a pintura de um casco. Mesmo que o casco estivesse de cabeça para baixo, para pintar o seu interior, o serviço não teria sido feito sobre um carpete, vocês não acham? E as gotas com certeza teriam tamanhos variados, porque algumas partes do casco estariam mais próximas do pintor, não é?

Ele fez uma pausa, olhando à sua volta. Todos estavam assentindo com a cabeça, hipnotizados com o seu entusiasmo.

- Então, o que sobrou? Se for mesmo um barco, então o sujeito estava provavelmente pintando o teto da cabine. Bom, eu fiz alguns testes com uma tinta bem similar e, para conseguir este efeito, precisei me esticar bastante. E barcos pequenos não têm o pé-direito tão alto assim. Então, o cara devia ter um barco bem grandinho.

- Se é que era mesmo um barco - disse Lynn. - Não pode ter sido outro lugar? Tipo o interior de um trailer?

- Pode ser. Mas trailers normalmente não são forrados com carpete, não é? Pode ter sido um depósito, ou uma garagem. Porque tintas fabricadas para fibra de vidro normalmente também são excelentes para amianto e, naquela época, amianto era bem comum.

- Resumindo: continuamos na mesma - sentenciou Esquisito, com frustração na voz.

A conversa descambou para várias direções. Mas Alex já não escutava mais nada. O seu cérebro estava a pleno vapor, concatenando uma torrente de pensamentos acionados pelo que acabara de escutar. A sua mente montava um quebra-cabeça, informações aparentemente desconexas começavam a se encaixar, formando um desenho inédito. Assim que cedemos espaço ao primeiro pensamento inimaginável, tudo começa a fazer sentido. A questão agora era: o que fazer a respeito?

De repente, percebeu que estava longe. Todos estavam olhando para ele com expectativa, esperando uma resposta para alguma pergunta que ele sequer ouvira.

- O quê? - perguntou ele. - Foi mal, eu estava viajando.

- Jason perguntou se você quer que ele prepare um relatório oficial - disse Lynn. - Para mostrar a Lawson.

- Lógico, ótima ideia - disse Alex. - Maravilha, Jason, muito bom mesmo.

Enquanto Lynn levava Jason até a porta, Esquisito lançou um olhar penetrante para Alex.

- Você teve alguma ideia, Gilly - afirmou ele. - Eu conheço essa cara.

- Não, estava só aqui quebrando a cabeça, tentando me lembrar se alguém do Lammas tinha um barco. Alguns eram pescadores, lembra? - Alex virou-se e começou a se ocupar, encaixando algumas fatias de pão na torradeira.

- Bom, agora que você falou... Podemos comentar isso com Lawson - disse Esquisito.

- Pois é. Quando ele ligar, você fala com ele.

- Por quê? Você vai aonde?

- Preciso ficar um pouco no escritório. Estou negligenciando demais o trabalho e ele não funciona por conta própria. Vou ter algumas reuniões hoje pela manhã, não tenho como não estar lá.

- Você acha sensato dirigir por aí sozinho?

- Não tenho escolha - respondeu Alex. - Mas acho que estou seguro em plena luz do dia, na estrada para Edimburgo. E vou voltar para casa antes de escurecer.

- Acho bom mesmo. - Lynn entrou na cozinha, trazendo os jornais. - Acho que Jackie tinha razão. Elas estão estampadas em todas as capas.

Alex mordiscou a sua torrada, perdido em pensamentos, enquanto os outros folheavam os jornais. Aproveitando que eles estavam ocupados, Alex apanhou a tabela de cores que Jason deixara lá e enfiou no bolso da calça. Aproveitando uma pausa na conversa, anunciou que estava de saída, beijou a mulher e a filha adormecida e partiu.

Tirou o BMW da garagem e desceu a rua, dirigindo-se para a via que desembocava na ponte para Edimburgo. Mas, quando alcançou a encruzilhada, em vez de ir para o sul na M90, desviou para o norte. O sujeito que estava atrás deles era a sua presa agora. Não tinha tempo para ficar participando de reuniões.

Lynn acomodou-se atrás do volante do seu carro com uma sensação de alívio da qual não se orgulhava. Estava começando a sentir claustrofobia dentro da sua própria casa. Não podia sequer se isolar no estúdio e recuperar a calma trabalhando em sua última pintura. Sabia que não deveria estar dirigindo ainda, ainda mais depois da cesariana, mas precisava sair um pouco. A necessidade de fazer umas comprinhas ofereceu a desculpa perfeita. Prometeu a Esquisito que pediria a um dos funcionários do supermercado que fizesse o trabalho pesado para ela. Embrulhou Davina em uma manta, quentinha, acomodou-a na cadeirinha e saiu.

Decidiu aproveitar a sua liberdade ao máximo e ir até o mercado Sainsburys, em Kirkcaldy. Se tivesse energia o suficiente depois das compras, podia até dar um pulo na casa dos seus pais. Eles ainda não tinham visto Davina depois que ela recebera alta do hospital. Talvez uma visita da neta ajudasse a levantar o astral. Precisavam de algo para se agarrar ao futuro, deixando o passado para trás.

Assim que ela saiu da estrada em Halbeath, a luz do indicador de combustível começou a piscar no painel. Racionalmente falando, sabia que tinha gasolina o suficiente para ir até Kirkcaldy e voltar, mas não queria correr riscos com um bebê a bordo. Desviou em direção a um posto, dirigindo até as bombas, ignorando completamente o carro que a seguia desde que saíra de North Queensferry.

Lynn encheu o tanque e em seguida correu para a lojinha de conveniências para pagar. Enquanto esperava o seu cartão de crédito ser aceito, deu uma olhada para fora.

No início, não conseguiu entender direito o que estava acontecendo. A cena lá fora não fazia o menor sentido. Então, compreendeu. Lynn berrou com toda a força dos seus pulmões e correu aos tropeções até a porta, derrubando a bolsa e espalhando todo o seu conteúdo no chão.

Um Golf prateado estava parado bem atrás do seu carro, com o motor ligado e a porta do motorista aberta. A sua porta da frente também estava entreaberta, ocultando a pessoa que estava debruçada lá dentro. Quando ela abriu a pesada porta da loja, o homem ergueu o corpo e uma mecha de cabelo escuro e espesso caiu sobre os seus olhos. Ele estava agarrado à cadeirinha de Davina. Lançou um olhar na direção de Lynn e correu para o outro carro. Os gritos de Davina perfuraram o ar como uma lâmina.

Ele jogou a cadeirinha no banco do carona e depois entrou depressa no carro. Lynn estava quase o alcançando. O homem bateu a porta do carro com força e partiu, cantando pneu.

Ignorando a dor da sua cicatriz recente, Lynn atirou-se sobre o Golf que chacoalhava loucamente em sua fuga. Mas os seus dedos desesperados não encontraram nada em que se agarrar e o seu impulso a lançou no chão, de joelhos.

- Não!!! - gritou ela, esmurrando os punhos no chão. - Não!!! - Tentou ficar de pé, caminhar até o seu carro e partir atrás do Golf. Mas as suas pernas cederam e ela desmaiou, tomada por uma angústia esmagadora.

Graham Macfadyen seguia triunfante pela A92, afastando-se do posto de gasolina em Halbeath. Estava feito. Pegara o bebê. Olhou de esguelha para ele, para verificar se estava tudo bem. Parara de chorar assim que pegaram a pista de mão dupla. Ouvira dizer que bebês gostam da sensação de estar em um carro em movimento e aquele com certeza não era uma exceção à regra. Os seus olhos azuis o encaravam, indiferentes e tranquilos. Ao fim da pista, escolhera as vias mais desertas, para evitar a polícia. Parara o carro e fixara o bebê direitinho no banco. Não queria que ele sofresse alguma coisa, não ainda. Era Alex Gilbey quem ele desejava punir e quanto mais o bebê permanecesse vivo e aparentemente bem, pior seria o sofrimento do pai. Manteria o bebê como seu refém por quanto tempo fosse preciso.

E fora ridiculamente fácil. As pessoas deviam cuidar melhor dos filhos. Era incrível que bebês não fossem parar nas mãos de estranhos com mais frequência.

Aquilo faria com que as pessoas o escutassem, pensou ele. Levou o bebê para casa e trancou as portas. Um cerco, era o que ele planejava. A imprensa compareceria em massa e ele teria a oportunidade de explicar por que fora forçado a tomar uma atitude tão drástica. Quando ficassem sabendo que a polícia de Fife estava acobertando os assassinos da sua mãe, entenderiam o motivo do seu gesto desesperado. E se mesmo assim o seu plano não funcionasse, bom, ainda havia um trunfo em sua manga. Contemplou o bebê sonolento.

Lawson ia se arrepender de não ter lhe dado ouvidos.


42

Alex deixou a via expressa em Kinross. Dirigiu pela pacata cidade-mercado, seguindo até o lago Leven. Quando ela deixou escapar que Lawson estava de folga pescando, Karen Pirie havia dito a palavra "lago" antes de se conter. E em toda Fife só existia um lago onde um pescador que se preze podia lançar o seu anzol. Alex não conseguia parar de pensar na mais recente descoberta. Porque sabia, lá no fundo do seu coração, que nenhum dos quatro havia cometido o crime e também não conseguia imaginar Rosie passeando sozinha pela rua no meio de uma tempestade de neve, uma presa fácil para um estranho. Por isso, sempre nutriu a ideia de que ela havia sido assassinada pelo seu namorado misterioso. E quando alguém planeja seduzir uma garota, não a leva para um depósito ou para uma garagem, e sim para a sua casa. E foi então que ele se lembrou de um comentário descartável em uma das conversas que tiveram na véspera. O inimaginável subitamente passou a ser a única coisa que fazia sentido.

O gigantesco vulto da colina Bishop surgiu à sua direita como um dinossauro adormecido, cortando o sinal do seu celular. Sem ter a menor ideia do que se passava em outro lugar, Alex estava em uma missão. Sabia exatamente o que estava procurando. Só restava saber onde poderia encontrar.

Dirigiu devagar, percorrendo cada trilha das fazendas e cada rua lateral que conduzia até a beira do lago. Uma névoa fluorescente cobria a superfície da água cinza-metálica, conferindo uma aparência sinistra e indesejável à sua busca. Alex parou diante de todos os portões com os quais se deparou, descendo do carro e esgueirando-se sobre os campos para certificar-se de que não estava perdendo a presa. Quando a grama rebelde encharcou os seus tornozelos, desejou ter colocado uma roupa mais apropriada. Mas não queria que Lynn percebesse que não estava indo para o escritório.

Percorreu lenta e metodicamente toda a costa do lago. Passou quase uma hora rondando um local destinado a um pequeno trailer, mas o que ele buscava não estava lá. O que não lhe causou nenhuma surpresa. Não esperava encontrar o que estava procurando em um lugar onde barqueiros ocasionais pudessem ter acesso.

Mais ou menos na hora em que a sua esposa aflita prestava depoimento para os detetives, Alex estava tomando um café em uma casa de chá na beira da estrada, espalhando manteiga em um bolo caseiro, tentando aquecer os ossos após a sua inspeção no local do trailer. Não fazia a menor ideia de que algo horrível tinha acontecido.

O primeiro policial a chegar ao local encontrou uma mulher incoerente, com as mãos e os joelhos do seu jeans imundos, lamentando-se na parte externa do posto de gasolina. O transtornado atendente estava parado ao seu lado, impotente, enquanto motoristas frustrados chegavam e partiam assim que percebiam que não seriam atendidos.

- Traga Jimmy Lawson aqui agora - ela gritava para o policial enquanto o atendente explicava o que havia acontecido.

O policial tentou ignorar as exigências dela, solicitando assistência de emergência pelo rádio. Então ela o agarrou pela jaqueta e insistiu aos berros, respingando saliva no rosto dele, exigindo a presença do subchefe. Ele tentou distraí-la, sugerindo que ligasse para o seu marido ou para um amigo, para qualquer pessoa.

Lynn o rechaçou com desdém e voltou para a loja de conveniência. Dos seus pertences espalhados pelo chão, pegou apenas o celular. Tentou ligar para Alex, mas aquela vozinha irritante da operadora avisou que o número chamado estava fora da área de cobertura ou desligado.

- Merda! - berrou ela. Digitando os números de qualquer jeito, conseguiu ligar para casa.

Quando Esquisito atendeu, Lynn soltou um gemido de dor.

- Tom, ele levou Davina, o canalha sequestrou a minha filha!

- Quem? Quem levou a menina?

- Eu não sei! Macfadyen, provavelmente. Ele roubou o meu bebê! - Finalmente vieram as lágrimas, escorrendo pelo seu rosto e fazendo com que ela se engasgasse.

- Onde você está?

- No posto de gasolina de Halbeath. Eu parei para encher o tanque. Só me afastei por um segundo... - Lynn engasgou nas palavras e deixou o telefone cair aos seus pés. Ela se agachou, debruçando-se sobre uma vitrine de doces. Envolveu a cabeça com os braços e soluçou. Não fazia a menor ideia de quanto tempo havia passado até que ouviu o tom de voz calmo e reconfortante de uma mulher. Levantou os olhos e deparou-se com um rosto desconhecido.

- Eu sou a detetive-inspetora Cathy McIntyre - disse a mulher. - Você pode me contar o que aconteceu?

- O nome dele é Graham Macfadyen. Ele mora em St. Monans - disse Lynn. - Ele roubou o meu bebê.

- Você conhece esse homem? - perguntou a detetive McIntyre.

- Não, não conheço. Mas ele está atrás do meu marido. Ele acha que Alex matou a mãe dele. Mas ele está enganado, é claro. Ele é completamente desequilibrado, já matou duas pessoas. Não deixe ele matar a minha filhinha. - As palavras de Lynn se atropelavam, fazendo com que ela soasse perturbada. Tentou respirar fundo e deu um soluço. - Sei que pareço uma maluca, mas não sou. Você precisa entrar em contato com o subchefe de polícia. James Lawson. Ele está sabendo de tudo.

A detetive McIntyre parecia estar na dúvida. Aquilo estava fora do seu alcance e ela sabia disso. Tudo o que conseguira fazer até o momento fora enviar um comunicado pelo rádio para todas as viaturas e as patrulhas avisando para procurarem um Golf prateado com um sujeito de cabelo escuro na direção. Ligar para o subchefe podia ser o seu atestado definitivo de humilhação.

- Deixa comigo - disse ela, caminhando até a parte externa do posto para avaliar as suas alternativas.

Esquisito estava sentado na cozinha, transtornado com a sua impotência. Orar era ótimo, mas um homem precisa de um nível muito mais alto de tranquilidade interior para conseguir algo útil com uma oração. A sua imaginação corria solta, imaginando cenas dos seus próprios filhos nas mãos de um sequestrador. Sabia que ficaria além do alcance de qualquer reação racional se estivesse no lugar de Lynn. O que precisava fazer era encontrar uma maneira concreta de ajudá-la.

Tentou falar com Alex, mas o celular não estava funcionando e ninguém no escritório havia visto ou tido notícias dele naquela manhã. Então Alex também constava na lista dos desaparecidos. Esquisito não estava totalmente surpreso; tinha certeza de que Alex estava com alguma coisa na cabeça que queria resolver sozinho.

Pegou o telefone, gemendo de dor mesmo com um movimento tão sutil, e pediu ao serviço de informações o telefone da polícia de Fife. Precisou se valer de todo o seu poder de persuasão para conseguir chegar até a secretária de Lawson.

- Eu realmente preciso falar com o subchefe - justificou ele. - É urgente. Vocês estão investigando o sequestro de uma criança e eu tenho informações vitais a respeito - explicou ele à mulher, que era claramente tão adepta da rispidez quanto ele da adulação.

- O Sr. Lawson está em uma reunião - disse ela. - Se o senhor deixar o seu nome e telefone, peço para ele entrar em contato assim que tiver oportunidade.

- A senhora não está me ouvindo, está? A vida de um bebê está correndo perigo. Se alguma coisa acontecer com essa criança, a senhora pode apostar a sua aposentadoria que eu procuro a imprensa imediatamente e conto a eles como vocês se omitiram. Se a senhora não chamar Lawson agora, vai acabar sendo o bode expiatório.

- Não vejo necessidade para falar assim comigo, senhor - respondeu a mulher, friamente. - Como é mesmo o seu nome?

- Reverendo Tom Mackie. Ele vai querer falar comigo, eu garanto.

- Aguarde um momento, por favor.

Esquisito contorceu-se de ira ao se ver obrigado a escutar um trecho de uma música clássica enquanto esperava. Após o que lhe pareceu uma espera interminável, uma voz familiar ressoou em seus ouvidos.

- Sr. Mackie, espero que o senhor tenha uma boa explicação para isso. Fui arrancado de uma reunião com o chefe de polícia para vir falar com o senhor.

- Graham Macfadyen sequestrou a filha de Alex Gilbey. Eu não acredito que você estava sentado em uma reunião enquanto isso aconteceu - criticou Esquisito.

- Como é que é? - perguntou Lawson.

- Você está com o sequestro de um bebê nas costas. Há uns quinze minutos mais ou menos, Macfadyen sequestrou Davina Gilbey. Ela é um bebê recém-nascido, tenha a santa paciência.

- Eu não estou sabendo de nada disso, Sr. Mackie. Dá para me contar o que aconteceu?

- Lynn Gilbey parou em um posto de gasolina para abastecer o carro em Halbeath. Enquanto ela estava pagando, Macfadyen apanhou a menina do carro dela. Os seus colegas estão no local agora, por que ninguém te contou nada?

- A Sra. Gilbey reconheceu Macfadyen? Ela já esteve com ele? - perguntou Lawson.

- Não. Mas quem mais ia querer fazer com que Alex sofresse desse jeito?

- Crianças são sequestradas por todo tipo de motivo, Sr. Mackie. Pode não ser pessoal. - A voz dele era tranquilizadora, mas não produziu nenhum efeito.

- Claro que é pessoal! - berrou Esquisito. - Ontem à noite, alguém tentou me surrar até a morte. Você deveria ter visto o relatório na sua mesa hoje cedo. E hoje, a filha de Alex é sequestrada. E você vai me dizer que tudo isso não passa de mera coincidência? Era só o que me faltava. Você tem é que levantar a sua bunda daí e encontrar Macfadyen antes que alguma coisa aconteça com o bebê.

- Posto de gasolina em Halbeath, não é isso?

- É. Vá pra lá agora, ouviu? Você tem autoridade para deslanchar as coisas.

- Vou entrar em contato com os policiais que estão no local. Enquanto isso, Sr. Mackie, procure ficar calmo, sim?

- Tá, tá bem. Vai ser muito fácil.

- Onde está o Sr. Gilbey? - perguntou Lawson.

- Não sei. Ele deveria ter ido para o escritório, mas não apareceu por lá até agora. E o celular dele não está funcionando.

- Deixa comigo. Seja lá quem for o sequestrador da criança, vamos encontrá-lo. E levá-la para casa novamente.

- Você fala como o pior tipo desses tiras de seriado de tevê, Lawson, sabia disso? Vá agitar as coisas. E encontre Macfadyen. - Esquisito bateu com o telefone na cara dele. Tentava se convencer de que conseguira fazer alguma coisa, mas não era o bastante.

Não adiantava. Não podia ficar sentado em casa, sem mexer uma palha. Pegou o telefone novamente e pediu o telefone de um radiotáxi ao serviço de informações.

Lawson olhava fixamente para o telefone. Macfadyen passara dos limites. Devia ter imaginado algo do tipo, mas fracassara. Agora era tarde demais para tirá-lo de circulação. Aquela situação tinha tudo para fugir do controle. E quem podia prever o que aconteceria então? Esforçando-se para manter uma aparência de calma, Lawson ligou para a central de operações da polícia e solicitou um relatório sobre o que estava acontecendo em Halbeath.

Assim que ouviu as palavras "Golf prateado" lembrou-se imediatamente da sua caminhada até a porta de Macfadyen e do carro estacionado em frente à sua casa. Não havia mais dúvidas. Macfadyen enlouquecera de vez.

- Quero falar com o oficial encarregado do caso - ordenou ele. Tamborilou os dedos na mesa enquanto aguardava. Aquilo era um pesadelo tornando-se realidade. Que diabos se passava na cabeça de Macfadyen? Será que estava se vingando de Gilbey, imaginando que ele fora o responsável pela morte da sua mãe? Ou estaria jogando um jogo mais astuto? Fosse qual fosse o seu plano, a criança estava correndo perigo. Normalmente, quando bebês eram sequestrados, a motivação do sequestrador era bem banal: queriam um filho. Imaginavam-se capazes de tomar conta da criança em questão, sufocando-a com tanto amor e cuidados. Mas naquele caso, a história era outra. A criança era apenas uma peça no jogo doentio de Macfadyen e, se ele imaginava estar vingando um assassinato, então assassinato talvez fosse o seu objetivo. Lawson mal podia pensar nas consequências sem que o seu estômago revirasse. - Vamos, atenda - murmurou ele.

Finalmente, uma voz estalou na linha.

- Aqui quem fala é a detetive-inspetora McIntyre - disse ela. Pelo menos tinham uma mulher no local do crime, pensou ele, aliviado. Lembrava-se de Cathy McIntyre. Ela era sargento no Departamento de Investigação Criminal na época em que ele trabalhava como superintendente em Dunfermline. Era uma boa profissional, sempre fazia as coisas de acordo com o figurino.

- Cathy, aqui quem fala é o subchefe Lawson.

- Pois não, senhor. Eu estava prestes a entrar em contato. A mãe do bebê sequestrado, a Sra. Lynn Gilbey, está perguntando pelo senhor sem parar. Ela acha que o senhor sabe o que está acontecendo aqui.

- O sequestrador partiu em um Golf prateado, não foi?

- Sim, senhor. Estamos tentando ver a placa pela filmagem das câmeras de monitoria, mas só conseguimos captar o carro em movimento. Ele estacionou bem atrás da Sra. Gilbey, não conseguimos distinguir o número da placa com o carro parado.

- Peça para alguém continuar tentando por enquanto. Mas eu acho que sei quem foi o responsável. O nome dele é Graham Macfadyen, ele mora em Carlton Way, número 12, em St. Monans. E imagino que foi para lá que ele levou a criança. Acho que ele está interessado em mantê-la como refém. Então quero que você me encontre lá, no final da rua. Não vá com muita gente, mas peça para alguém levar a Sra. Gilbey em uma viatura separada. E não ligue o rádio no carro onde ela estiver. Vou organizar a equipe de negociação de reféns e assim que chegar vou colocá-la a par da nossa estratégia. Não perca mais tempo, Cathy. Te encontro em St. Monans.

Lawson terminou a ligação e em seguida apertou os olhos com força, concentrado. A libertação de reféns era a tarefa mais difícil para um policial. Lidar com a família e os amigos de alguém que acabou de morrer era moleza em comparação àquilo. Ligou para a central novamente e solicitou a mobilização da equipe de negociação de reféns e de uma unidade armada.

- Ah, e mande um engenheiro de telecomunicações para lá também. Eu quero cortar todo tipo de acesso de Macfadyen com o mundo externo. - Finalmente, ligou para Karen Pirie. - Encontre-me no estacionamento em cinco minutos - bradou ele. - Eu explico no caminho.

Estava a caminho da porta quando o seu telefone tocou. Hesitou um pouco, decidindo se atenderia ou não. Resolveu voltar.

- Lawson - disse ele.

- Olá, Sr. Lawson. Aqui é o Andy, da assessoria de imprensa. O pessoal do Scotsman acabou de ligar, com uma história muito esquisita. Disseram que receberam um e-mail de um cara que diz que sequestrou um bebê porque a polícia de Fife está acobertando os assassinos da mãe dele. E ele atribui a culpa especialmente ao senhor. Ao que parece, é um e-mail bem longo e detalhado. Eles vão encaminhar para mim. Estão querendo saber se é verdade. Está rolando mesmo o sequestro de um bebê?

- Meu Deus - gemeu Lawson. - Estava com medo que algo assim acontecesse. Veja bem, estamos lidando com uma situação bem delicada aqui. E é verdade, um bebê foi sequestrado. Ainda não tenho todos os detalhes. É melhor perguntar ao pessoal da central, eles estão por dentro da história toda. Tenho a impressão de que você vai receber muitas ligações por causa disso, Andy. Dê o máximo de informação possível sobre as providências que já estão sendo tomadas. Convoque uma coletiva de imprensa para hoje mesmo, o mais tarde que você puder. Mas insista na tecla que o sujeito tem problemas mentais e que eles não devem dar ouvidos às suas reclamações.

- Então a versão oficial é de que o cara é pirado - disse Andy.

- Bota pirado nisso. Mas estamos levando o caso a sério. A vida de uma criança está em jogo, não quero que nenhuma notícia irresponsável o tire do sério. Entendeu?

- Entendi. Falo com o senhor mais tarde.

Lawson xingou baixinho e correu porta afora. Aquele ia ser um dia de cão.

Esquisito pediu para o motorista de táxi dar uma parada em um supermercado em Kirkcaldy. Quando chegaram lá, ele entregou um bolo de notas ao motorista.

- Amigo, faça-me um favor. Você está vendo o estado em que estou. Dá para ir até lá e me comprar um celular? Pode ser um desses pré-pagos mesmo. E alguns cartões também, por favor. Preciso estar conectado com o mundo.

Uns quinze minutos depois, retomaram o caminho pela estrada. Pegou a folha de papel onde havia anotado os telefones do celular de Alex e de Lynn. Tentou ligar para Alex mais uma vez. Nada. Por onde será que ele andava?

Macfadyen olhava fixamente para o bebê, perplexo. Começara a chorar assim que entraram na casa, mas ele ainda não tinha tido tempo para fazer algo a respeito. Tinha e-mails para mandar, tinha de contar ao mundo o que estava acontecendo. Estava tudo esquematizado. Bastava se conectar e, com apenas alguns cliques no mouse, a sua mensagem seria enviada para toda a imprensa do país, incluindo a maioria dos sites de notícias na internet. Agora eles haveriam de escutar o que ele tinha a dizer.

Deixou os computadores e voltou à sala de estar, onde havia deixado a cadeirinha do bebê no chão. Sabia que não deveria afastar-se dele, para evitar que a polícia os separasse ao invadir a casa, mas seus gritos o distraíram e ele teve de levá-lo para outro cômodo, para poder se concentrar. Fechara as cortinas, como havia feito na casa toda. Chegou até mesmo a pregar um cobertor na janela de vidro fosco do banheiro, que costumava ficar aberta. Sabia direitinho como funcionavam os cercos policiais; quanto menos os tiras soubessem o que estava se passando dentro da casa, melhor para ele.

O bebê continuava chorando. Os seus gemidos haviam se transformado em um choro baixinho, mas assim que ele entrou no recinto, pôs-se a chorar novamente. O som penetrou o seu cérebro como uma furadeira, impedindo o seu raciocínio. Precisava calar aquela criança. Ele a suspendeu, com cuidado, e a colocou no colo. O choro tornou-se tão intenso que ele pôde até sentir os soluços reverberando no seu peito. Talvez precisasse trocar a fralda, pensou ele. Tornou a colocá-la no chão e desenrolou a manta que a envolvia. Por dentro da manta, havia um casaquinho de lã. Ele o removeu e abriu os botões que ficavam no meio das pernas, tirando a roupinha que a protegia. De quantas camadas aquele maldito bebê precisava? Talvez estivesse apenas com calor.

Apanhou um rolo de papel-toalha e acocorou-se ao lado do bebê. Removeu as fitas adesivas que seguravam a fralda em volta da barriga do bebê e afastou-se imediatamente. Caramba, aquilo era nojento. Era verde, pelo amor de Deus. Franzindo o nariz de nojo, removeu a fralda suja e limpou a sujeira do bumbum da criança. Rapidamente, antes que uma nova leva aparecesse, ele aparou o bebê em uma generosa camada de papel toalha.

Depois de tudo isso, o bebê continuava chorando. Meu Deus, o que precisava fazer para calar a boca daquela criança? Precisava dela viva, pelo menos por enquanto, mas aquele choro o estava deixando maluco. Deu uma bofetada no rostinho avermelhado e conquistou um breve momento de silêncio. Mas assim que a criança assustada recuperou o seu fôlego, os gritos voltaram com força total.

Será que estava querendo mamar? Foi até a cozinha e despejou leite em uma tigela. Sentou-se, ninando o bebê em seus braços, desajeitado, imitando o modo como havia visto as pessoas fazendo na televisão. Enfiou o dedo entre os seus lábios e tentou derramar alguma coisa lá dentro, mas o leite escorreu pelo queixo do bebê e desceu pela manga da sua camisa. Tentou novamente e desta vez a criança reagiu, fechando os pequeninos punhos e dando chutes no ar. Como é que o monstrinho não sabia engolir? Por que agia como se ele estivesse tentando envenená-lo?

- Qual é o seu problema, porra? - gritou ele. O bebê enrijeceu em seus braços, chorando ainda mais.

Tentou mais um pouco, sem sucesso. Mas, de repente, o choro passou. O bebê adormeceu instantaneamente, como se alguém o tivesse desligado da tomada. Uma hora, estava abrindo o berreiro, na outra, dormindo como um anjinho. Macfadyen afastou o sofá e o colocou novamente na cadeirinha, obrigando-se a ser delicado. A última coisa que queria naquele momento era uma reprise daquele barulho infernal.

Voltou para os computadores, planejando entrar em diversos sites para ver se já estavam veiculando a sua história. Não ficou totalmente surpreso ao ver em seus monitores a mensagem: "Conexão perdida." Já esperava que fossem cortar as suas linhas telefônicas. Como se isso fosse impedi-lo. Tirou um celular do carregador e o conectou ao seu laptop com um cabo, fazendo a ligação. Tudo bem, era como voltar a andar de mula depois de ter dirigido uma Ferrari. Mas após um tempo insuportavelmente longo, ele estava conectado de novo.

Se pensavam que podiam calá-lo tão facilmente, tinham que rever os seus conceitos. Já estava planejando aquilo tudo há tempos e jogava para ganhar.


43

Alex estava perdendo o seu entusiasmo. A única coisa que o fazia prosseguir era a certeza absoluta de que a resposta que ele buscava tão desesperadamente estava perto. Tinha de estar. Já explorara o lado sul do lago e agora estava vasculhando a costa norte. Perdera a conta de quantos campos já havia pesquisado. Fora observado por gansos, cavalos, ovelhas e até mesmo por uma lhama. Lembrou-se vagamente de ter lido em algum lugar que os pastores as colocavam junto ao rebanho para defendê-lo das raposas, mas jamais conseguira entender como um bicho gordo e preguiçoso, com cílios de dar inveja a qualquer modelo, pudesse assustar um animal tão destemido quanto uma raposa. Um dia, levaria Davina até lá para ver a lhama. Ela ia gostar quando estivesse um pouquinho mais velha.

Descendo de carro por um outro caminho, passou diante de uma fazenda em estado lastimável. As construções estavam abandonadas, o encanamento vazando e as molduras das janelas descascadas. O jardim parecia uma espécie de cemitério para máquinas que deviam estar acumulando ferrugem há décadas. Um cachorro esquelético com um olhar enraivecido lutava com uma corrente, latindo furiosa e inutilmente na porta. A alguns metros do portão, os sulcos ficaram mais fundos e a grama mais esparsa. Alex atravessou pelas poças, fazendo uma careta ao constatar que uma pedra atingira o chassi do carro.

Um pórtico agigantou-se à sua esquerda e Alex desceu do carro, cansado. Contornou o seu carro pela frente e inclinou-se sobre as barras de metal. Olhando para a sua esquerda, viu algumas vacas encardidas ruminando melancolicamente. Deu uma olhadela para a sua direita e teve uma surpresa inesperada. Mal podia acreditar nos seus próprios olhos. Será que era mesmo o que ele estava pensando?

Alex remexeu no cadeado enferrujado que mantinha o portão trancado. Entrou no terreno e tornou a prender os elos da corrente. Prosseguiu caminhando, sem se importar nem com a lama nem com o esterco que maculavam os seus caros mocassins americanos. Quanto mais se aproximava do seu objetivo, mais tinha certeza de que havia encontrado o que estava procurando.

Não via o trailer havia vinte e cinco anos, mas a memória confirmou a sua suspeita. Bicolor, exatamente como ele lembrava: bege em cima, verde musgo embaixo. As cores estavam desbotadas, mas ainda era possível compará-las com a sua lembrança. Conforme se aproximava, pôde reparar que ainda estava bem conservado. Blocos de concreto empilhados em cada canto mantinham os pneus afastados do chão e não havia nenhum vestígio de limo no teto, no peitoril das janelas, nem na soleira da porta. A borracha frágil em volta das janelas havia sido tratada com algum tipo de selante para ficar à prova d’água, observou Alex enquanto contornava cautelosamente o trailer. Não havia o menor sinal de vida. Cortinas claras cobriam as janelas. A aproximadamente uns vinte metros do trailer, um pequeno portão na cerca conduzia ao lago. Alex pôde ver um barco a remo estirado na margem.

Alex olhou para trás e observou. Mal podia acreditar no que via. Era inacreditável, constatou ele. Possivelmente não tão raro quanto poderia parecer à primeira vista. As pessoas se desfaziam de mobílias, carpetes, carros. Mas os trailers sobreviviam, ganhavam vida própria. Lembrou-se do casal de velhinhos que morava em frente aos seus pais. Tinham o mesmo trailer de dois cômodos desde que ele era adolescente. Todas as tardes de sexta-feira no verão, eles o engatavam no seu carro e partiam. Não iam para muito longe, só até a costa para Leven ou Elie. Às vezes, caprichavam um pouco mais no passeio e atravessavam o Forth, rumo a Dunbar ou North Berwick. E voltavam no domingo à noite, tão satisfeitos quanto se tivessem atravessado o Polo Norte. Então, na verdade não era de se admirar que o tira Jimmy Lawson tivesse conservado o trailer onde morara enquanto construía a sua casa. Especialmente porque todo pescador precisa de um retiro. Qualquer pessoa teria feito a mesma coisa.

A não ser, é claro, pelo fato de que a maioria das pessoas não teria preservado o local de um crime.

- Agora você acredita em Alex? - perguntou Esquisito a Lawson. O efeito das suas palavras foi amenizado pelo fato de ele estar todo contraído, com o braço atravessado nas costelas, tentando fazer com que elas parassem de se raspar umas contra as outras em espasmos de dor.

A polícia não chegara ao local muito antes de Esquisito, mas ele já encontrara um aparente caos. Homens vestindo coletes à prova de balas com quepes e rifles movimentavam-se por toda parte, enquanto outros oficiais afobados andavam para lá e para cá, executando as suas tarefas obscuras. Curiosamente, ninguém parecia estar notando a sua presença. Saiu com dificuldade do táxi e observou a cena. Não demorou muito para localizar Lawson, debruçado sobre um mapa em cima do capô de um carro. A policial com quem ele e Alex haviam conversado na delegacia estava ao seu lado, com um celular grudado na orelha.

Esquisito aproximou-se deles, com a raiva e a ansiedade servindo como analgésicos.

- E aí, Lawson? - gritou ele. - Satisfeito agora?

Lawson virou para trás, um sujeito com sentimento de culpa surpreendido. O seu queixo caiu enquanto tentava reconhecer Esquisito por trás do estrago que haviam feito no seu rosto.

- Tom Mackie? - perguntou ele, na dúvida.

- Eu mesmo. Agora você acredita em Alex? O maluco está com a criança aí dentro. Já matou duas pessoas e você está aí parado, na esperança de que ele vá facilitar as coisas para você matando mais uma.

Lawson balançou a cabeça. Esquisito pôde ver a aflição em seus olhos.

- Isso não é verdade. Estamos fazendo tudo o que está ao nosso alcance para resgatar o bebê de Gilbey. E você não tem como acusar Graham Macfadyen de outros crimes além deste.

- Ah, não? Quem diabos matou Ziggy e Mondo, então? Quem foi que fez isso comigo? - Esquisito levantou o dedo em riste no rosto de Lawson. - Ele podia ter me matado ontem à noite.

- Você viu o rosto do agressor?

- Não, estava ocupado demais tentando escapar com vida.

- Nesse caso, continuamos na mesma. Não temos provas, Sr. Mackie. Nenhuma prova.

- Escuta aqui, Lawson. Há vinte e cinco anos que somos obrigados a viver com a morte de Rosie Duff nas costas. Aí, de repente, o filho dela aparece do nada. E Ziggy e Mondo são assassinados. Tenha santa paciência, Lawson, como é que você é a única pessoa que não consegue ver a relação de causa e efeito? - Esquisito estava praticamente berrando, sem sequer atentar para o fato de vários policiais estarem observando a cena com olhares atentos e impassíveis.

- Sr. Mackie, estou tentando montar uma operação complexa. A presença do senhor no local, levantando alegações infundadas, não me ajuda em nada. Não tenho nada contra as teorias, mas trabalho com provas.

A raiva de Lawson era óbvia. Ao seu lado, Karen Pirie havia terminado de fazer a sua ligação e estava se aproximando discretamente de Esquisito.

- Mas só é possível encontrar as provas quando se está procurando por elas.

- Investigar assassinatos que ocorreram fora da minha jurisdição não faz parte do meu trabalho - retrucou Lawson. - O senhor está me atrapalhando, Sr. Mackie. E, como o senhor mesmo já disse, a vida de uma criança pode estar em jogo.

- Você vai pagar por isso - disse Esquisito. - Vocês dois - acrescentou ele, virando-se para incluir Karen na sua condenação. - Foram avisados e não tomaram nenhuma providência. Se ele machucar um fio de cabelo da cabeça dessa criança, eu juro para você, Lawson, você vai desejar jamais ter nascido. E afinal, onde está Lynn?

Lawson estremeceu, recordando-se da chegada de Lynn Gilbey no local. Ela saiu às pressas da viatura e atirou-se sobre ele, desferindo socos em seu peito e gritando, incoerente. Karen Pirie interveio rapidamente, envolvendo a mulher descontrolada em seus braços.

- Ela está naquela van branca ali. Karen, leve o Sr. Mackie até o veículo da unidade de resposta armada. E fique com ele e com a Sra. Gilbey. Não quero os dois correndo por aí com atiradores profissionais de plantão.

- Olha, quando isso tudo terminar - disse Esquisito enquanto Karen o escoltava até o carro - nós vamos acertar as nossas contas.

- Eu não contaria com isso, Sr. Mackie - disse Lawson. - Eu sou um oficial de polícia sênior e me ameaçar é coisa séria. Vá para lá e organize uma corrente de orações. O senhor faz o seu trabalho que eu faço o meu.

Carlton Way parecia uma rua deserta em uma cidade fantasma. Nenhum movimento. Costumava ficar silenciosa durante o dia, mas naquele dia específico estava extraordinariamente calma. O trabalhador noturno da casa número 7 foi tirado da cama por uma batida na sua porta dos fundos. Atordoado, foi persuadido a trocar de roupa e a acompanhar os dois policiais prostrados na sua porta. Seguiram através da cerca no fundo do seu jardim pelos campos até a rua principal, onde lhe contaram acontecimentos tão estranhos que, não fosse pela presença em massa da polícia e do bloqueio que isolava Carlton Way do resto do mundo, ele teria achado que estava participando de uma pegadinha.

- Todas as casas estão vazias agora? - perguntou Lawson à detetive McIntyre.

- Sim, senhor. E a única comunicação com a casa de Macfadyen é através de uma linha telefônica privada para uso exclusivo da polícia. A equipe de resposta armada está disposta em volta da casa agora.

- Ok. Vamos lá.

Duas viaturas policiais e uma van passaram, uma atrás da outra, por Carlton Way. Estacionaram diante da casa de Macfadyen. Lawson desceu do primeiro veículo e foi falar com o especialista em negociação de reféns, John Duncan, atrás da van, onde não podiam ser vistos.

- Tem certeza de que ele está aí dentro? - perguntou Duncan.

- É o que dizem os especialistas. Imagem térmica, ou algo do tipo. Ele está aí dentro com o bebê. E ambos estão vivos.

Duncan passou os fones para Lawson e apanhou a base do telefone que o conectaria com a casa. A ligação foi atendida no terceiro toque. Silêncio.

- Graham? É você? - perguntou Duncan com a voz firme, mas calorosa.

- Quem está falando? - Macfadyen parecia surpreendentemente tranquilo.

- O meu nome é John Duncan. Estou aqui para ver o que pode ser feito para resolvermos esta situação sem que ninguém se machuque.

- Não tenho nada para falar com você. Quero falar com Lawson.

- Ele não está aqui no momento. Mas tudo o que você me disser será transmitido a ele.

- Ou Lawson, ou nada feito. - O tom de voz de Macfadyen era amistoso e casual, como se estivessem conversando sobre o clima ou sobre futebol.

- Como eu disse, o Sr. Lawson não está aqui no momento.

- Não acredito em você, Sr. Duncan. Mas vamos fingir que está me dizendo a verdade. Não estou com pressa. Posso esperar até que você o localize. - A linha ficou muda.

Duncan olhou para Lawson.

- Fim do primeiro round - disse ele. - Vamos dar uns cinco minutos e aí eu tento novamente. Uma hora ele vai ter que começar a falar.

- Você acha? Ele me pareceu bastante calmo. Não seria melhor eu falar com ele logo? Assim, pode ser que ele ache que vai conseguir o que quer.

- Ainda é muito cedo para fazermos concessões, senhor. Ele precisa nos dar algo antes que possamos retribuir.

Lawson suspirou profundamente e deu as costas. Detestava a sensação de estar fora de controle. Aquilo viraria um circo para a mídia e a possibilidade de um resultado drástico era muito, mas muito maior do que a de um bom desfecho. Sabia como funcionava aquele tipo de coisa. Quase sempre, terminava mal para uma das partes.

Alex estudou as suas opções. Em outras circunstâncias, a coisa mais sensata a fazer seria ir embora naquele minuto, direto para a polícia. Eles poderiam enviar os seus peritos e revirar o lugar, em busca da única gotinha de sangue ou do respingo de tinta que tornaria inevitável a ligação daquele trailer com a morte de Rosie Duff.

Mas como poderia fazer aquilo se o trailer em questão pertencia ao subchefe de polícia? Lawson embargaria qualquer investigação, pondo um fim antes mesmo que houvesse um começo. O trailer com certeza seria incendiado, e alguns vândalos seriam apontados como os possíveis culpados. E então o que teriam? Nada além de coincidências. A presença de Lawson em um local tão próximo do terreno onde Alex tropeçara no corpo da moça. Na época, ninguém havia atentado para aquele detalhe. Na Fife do final da década de 70, a polícia ainda estava acima de qualquer suspeita; eram mocinhos lutando contra o mal. Ninguém sequer questionou como foi que Lawson não viu o assassino levando o corpo de Rosie para Hallow Hill, embora estivesse parado diante do caminho mais óbvio para o cemitério picto. Mas aquele era um mundo novo, um mundo no qual era possível questionar a integridade de homens como James Lawson.

Se Lawson era o homem misterioso na vida de Rosie, era bastante compreensível que ela não quisesse revelar a sua identidade. Os seus irmãos encrenqueiros odiariam vê-la com um tira. E havia também a maneira como Lawson parecia sempre surgir do nada quando ele ou os seus amigos corriam perigo, como se tivesse assumido para si próprio a tarefa de agir como anjo da guarda dos quatro. Culpa, pensou Alex. Aquilo era o que a culpa fazia com uma pessoa. Apesar de ter matado Rosie, Lawson ainda cultivava um mínimo de decência para não permitir que outra pessoa pagasse pelo seu crime.

Mas nenhuma daquelas circunstâncias servia como prova. A probabilidade de encontrarem testemunhas que tivessem visto Rosie com Jimmy Lawson era nula. A única prova concreta estava dentro do trailer, e se Alex não tomasse nenhuma providência rápida, poderia ser tarde demais.

Mas o que podia fazer? Não era versado nas técnicas de invasão de domicílio. Arrombar carros na adolescência era uma coisa, abrir fechaduras era outra, e se ele forçasse a porta, Lawson iria perceber. Em qualquer outra época, poderia pensar que fora obra de moleques ou de algum sem-teto. Mas não agora. Não com tanto interesse no caso Rosie Duff. Não podia se dar ao luxo de julgar aquilo um fator insignificante. Era possível que Lawson colocasse fogo no trailer.

Alex deu um passo para trás e analisou a situação. Observou que havia uma claraboia no teto. Será que conseguiria entrar por ela? Mas como chegaria até o teto? Havia apenas uma possibilidade. Alex voltou até o portão, escancarou-o e entrou com o seu carro no terreno pantanoso. Pela primeira vez em sua vida, desejou ser um daqueles babacas que dirigiam um veículo com tração nas quatro rodas em plena cidade. Mas não, ele tinha de ser o mauricinho, com a sua BMW 535. O que faria se ficasse atolado na lama?

Dirigiu devagar até o trailer e parou paralelamente com uma de suas extremidades. Abriu a mala e desafivelou o kit de ferramentas básico do carro. Alicate, chave de fenda, chave inglesa. Apanhou tudo o que podia lhe ser útil, tirou o paletó do terno e a gravata e fechou a mala. Subiu no capô e, em seguida, no teto do carro. De lá de cima, o teto do trailer não estava tão longe. Lutando para se apoiar, Alex conseguiu finalmente alcançar o teto.

Era nojento lá em cima. O teto estava escorregadio e coberto de lodo. Partículas de sujeira agarravam-se às suas roupas e em suas mãos. A claraboia era um domo de plástico suspenso de mais ou menos uns setenta centímetros por trinta. Teria de se espremer bastante para conseguir entrar. Encaixou a chave de fenda em um dos cantos e tentou suspendê-la.

No início, a claraboia nem se mexia. Mas, após tentativas repetidas em diversos pontos, ela se moveu em um estalo. Suando, Alex secou o rosto com as costas da mão e espiou lá dentro. Havia um braço de metal giratório com parafuso de ajuste, que mantinha a claraboia no seu devido lugar e permitia que pudesse ser levantada e abaixada de dentro do trailer. O que também impedia que a claraboia fosse aberta mais do que alguns centímetros em um dos lados. Alex resmungou. Teria de desparafusar o braço de metal e depois colocá-lo no lugar novamente.

Tentou desajeitadamente conseguir o melhor ângulo. Era quase impossível mover aqueles parafusos, que haviam sido colocados ali há mais de um quarto de século. Forçou e lutou até que, por fim, um parafuso cedeu e depois o outro. Finalmente a claraboia estava solta.

Alex olhou para baixo. Não era tão ruim quanto ele imaginara. Se descesse devagar e com cuidado, talvez pudesse se apoiar no banco que ocupava uma das extremidades da sala. Respirou fundo, apoiou-se no teto e começou a descer.

Pensou que os seus braços iam voar para fora do corpo quando o seu peso desceu de supetão. Os seus pés pedalaram no ar, buscando um apoio, mas após alguns segundos, ele decidiu apenas cair.

Sob a luz tênue que o iluminava, o interior do trailer parecia praticamente idêntico ao que vira anos atrás. Mal podia imaginar que, naquele momento, estava sentado exatamente no lugar onde Rosie encontrara o seu destino trágico. Não havia nenhum cheiro característico, nenhuma mancha de sangue, nenhuma vibração no ar que o deixasse alarmado.

Estava tão perto da resposta. Alex mal tinha coragem de olhar para o teto. E se Lawson o tivesse pintado várias vezes depois? Será que ainda seria possível encontrar uma prova? Esperou o coração desacelerar até um batimento quase normal e murmurou uma prece para o Deus de Esquisito. Jogou a cabeça para trás e olhou para cima.

Merda. O teto não era azul, era creme. Tudo aquilo para nada. Bom, de todo modo, não voltaria de mãos abanando. Subiu no banco e escolheu uma parte próxima ao canto, onde não chamaria atenção. Com a lâmina afiada da chave de fenda, raspou a tinta, colhendo os fragmentos em um envelope que trouxera consigo.

Quando conseguiu uma quantidade suficiente, ele desceu e apanhou um dos fragmentos maiores. Era creme de um lado e azul do outro. Alex sentiu as pernas ficando bambas e deixou-se cair pesadamente no banco, experimentando uma emoção avassaladora. Apanhou a tabela de cores de Jason, que trouxera no bolso, e examinou a amostra de azul que havia despertado a sua memória de vinte e cinco anos atrás. Suspendeu a beirada da cortina para deixar entrar luz e colocou o fragmento da tinta que acabara de recolher sobre a amostra da tabela. O azul do fragmento praticamente desapareceu sobre o azul da amostra.

Os olhos de Alex encheram-se de lágrimas. Seria aquela a resposta definitiva?


44

Duncan fizera mais três tentativas de falar com Graham Macfadyen, mas ele recusara terminantemente desistir da sua exigência de falar somente com Lawson. Deixou Duncan ouvir o choro de Davina, mas aquela era a única concessão que estava disposto a fazer. Exasperado, Lawson decidiu que aquilo já estava indo longe demais.

- O tempo está passando. O bebê está agoniado e a mídia está acompanhando tudo de perto. Me passa o telefone de uma vez. De agora em diante, deixa que eu assumo - disse ele.

Duncan olhou para o rosto afogueado do chefe e passou o fone para ele.

- Vou ajudá-lo a manter tudo nos conformes - disse ele.

Lawson efetuou a ligação.

- Graham? Sou eu, James Lawson. Lamento ter demorado tanto para chegar aqui. Fiquei sabendo que você está querendo falar comigo, é isso?

- É isso mesmo. Mas antes de começarmos, já vou logo avisando que estou gravando a nossa conversa. Enquanto conversamos, estou transmitindo tudo ao vivo, pela internet. Toda a imprensa já está com o endereço do site, então, provavelmente, estão acompanhando tudo com bastante interesse. Nem adianta tentar bloquear o acesso ao site, por sinal. Eu fiz um esquema para ele ficar trocando de servidor. Antes mesmo que vocês descubram o endereço, ele já estará em outro lugar.

- Não tem necessidade nenhuma disso, Graham.

- Tem toda a necessidade do mundo. Vocês acharam que podiam me calar cortando as minhas linhas telefônicas, mas vocês têm uma mentalidade do século passado. Eu represento o futuro, Lawson, e você já era.

- Como está o bebê?

- O bebê é um saco, para falar a verdade. Só sabe chorar o tempo todo. A minha cabeça está explodindo. Mas essa coisa aqui está bem. Por enquanto, pelo menos. Ainda não sofreu nenhum mal.

- Você está causando mal somente por deixá-la longe de sua mãe.

- Isso não é culpa minha. É culpa de Alex Gilbey. Ele e os seus amigos me deixaram longe da minha mãe. Alex Gilbey, Tom Mackie, David Kerr e Sigmund Malkiewicz assassinaram a minha mãe, Rosie Duff, no dia 16 de dezembro de 1978. Primeiro eles a estupraram e depois tiraram a sua vida. E a polícia de Fife nunca chegou a indiciá-los pelos seus crimes.

- Graham - interrompeu Lawson -, tudo isso é passado. O que nos interessa agora é o futuro. O seu futuro. E quanto mais rápido isso tudo terminar, melhores serão as suas chances.

- Não fale comigo como se eu fosse retardado, Lawson. Eu sei que vou para a cadeia por causa de tudo isso. Isso não tem o menor peso para mim no que diz respeito à libertação do meu refém. Nada vai mudar isso, então não insulte a minha inteligência. Não tenho mais nada a perder, mas posso dar um jeito de levar alguém comigo. Bom, onde foi que eu parei? Ah, sim. Os assassinos da minha mãe. Você nunca os indiciou. E quando reabriu o caso, recentemente, alardeando aos quatro cantos que o DNA solucionaria os seus crimes antigos, descobriu que tinha perdido as provas do caso da minha mãe. Como pôde fazer isso? Como pôde perder algo tão importante?

- Estamos perdendo o controle - sussurrou Duncan. - Ele está chamando o bebê de "essa coisa". Isso não é bom. Volte a falar no bebê.

- Sequestrar a Davina não vai mudar nada disso, Graham.

- Mas ajudou a fazer com que vocês parassem de varrer o assassinato da minha mãe para debaixo do tapete. Agora, o mundo inteiro vai ficar sabendo o que você fez.

- Graham, descobrir quem matou a sua mãe é um compromisso pessoal meu.

Uma risada histérica ressoou do outro lado da linha.

- Ah, eu sei disso. Apenas não confio muito nos seus métodos. Eu quero que eles sofram aqui, neste mundo, não no próximo. Estão morrendo como heróis. A verdade sobre eles está sendo varrida para debaixo do tapete. É isso que dá quando você usa os seus métodos.

- Graham, precisamos conversar sobre a sua situação neste momento. Davina precisa da mãe. Por que você não a traz aqui fora e aí podemos conversar sobre as suas reclamações? Prometo que vamos ouvir tudo o que você tem a dizer.

- Você ficou maluco? É somente assim que eu consigo a sua atenção, Lawson. E pretendo aproveitar ao máximo, antes que tudo chegue ao fim. - A ligação terminou abruptamente com o telefone batendo no gancho do outro lado.

Duncan tentou disfarçar a sua frustração.

- Bom, pelo menos agora a gente já sabe o que é que deu nele.

- Ele está fora de si. Não dá para negociar se ele está transmitindo a ligação para o resto do mundo. Quem sabe que alegações malucas ele vai inventar agora? O cara devia ser detido, e não ouvido. - Lawson bateu com a mão na lateral da van.

- Antes que possamos fazer isso, precisamos tirar ele e o bebê de lá.

- Que se foda - disse Lawson. - Vai escurecer daqui a mais ou menos uma hora. Vamos invadir a casa.

Duncan parecia perplexo.

- Mas senhor, isso é totalmente contra as regras.

- Sequestrar um bebê também é. E eu não vou ficar aqui parado enquanto a vida de uma criança está em risco - acrescentou ele, voltando para o seu carro.

Alex deixou o lugar desfrutando uma enorme sensação de alívio. Chegou a duvidar em alguns momentos se conseguiria sair um dia daquele terreno sem a ajuda de um trator. Mas conseguira. Pegou o celular, planejando ligar para Jason e avisar que estava indo encontrá-lo, levando algo muito interessante. O celular estava sem sinal. Alex deu um muxoxo e dirigiu com cautela pela rua enlameada até a avenida principal.

Quando se aproximava de Kinross, o telefone tocou. Ele o pegou e viu que tinha quatro mensagens. Navegou pelas teclas para ouvi-las. A primeira era de Esquisito, pedindo para ele ligar para casa assim que pudesse. A segunda também era de Esquisito, passando um número de celular. A terceira e a quarta eram de jornalistas, pedindo que entrasse em contato com eles.

Que diabos estava acontecendo? Alex desviou da rua, parando no estacionamento de um pub, nos arredores da cidade, e ligou para o número que Esquisito deixara.

- Alex? Graças a Deus - gaguejou Esquisito. - Você está dirigindo?

- Não, acabei de estacionar. O que está acontecendo? Recebi umas mensagens...

- Alex, você precisa ficar calmo.

- O que foi? Davina? Lynn? O que aconteceu?

- Alex, aconteceu uma coisa horrível. Mas estão todos bem.

- Porra, Esquisito, me conta de uma vez - berrou Alex, paralisado de pânico.

- Macfadyen sequestrou Davina - disse ele, falando devagar e com clareza. - Está mantendo a menina como refém. Mas ela está bem. Ele não a machucou.

Alex teve a impressão de que alguém enfiara a mão no seu peito e arrancara o seu coração fora. Todo o amor que descobrira ter transformara-se em uma mescla de medo e ira.

- E Lynn? Onde está ela? - perguntou ele com a voz embargada.

- Ela está aqui com a gente, na frente da casa de Macfadyen em St. Monans. Calma aí, que eu vou passar o telefone pra ela. - Após um breve momento, Alex ouviu o que parecia uma sombra da voz habitual de Lynn.

- Onde é que você estava, Alex? Ele roubou a Davina. Ele levou a nossa filha, Alex! - Ele podia ouvir as lágrimas por trás da sua rouquidão.

- Eu estava em um lugar sem sinal, não pegava de jeito nenhum. Lynn, estou indo para aí. Aguenta firme, não deixa ninguém fazer nada, ouviu? Estou indo para aí e estou sabendo de uma coisa que vai mudar tudo. Não deixa ninguém fazer nada, está bem? Vai dar tudo certo. Tá ouvindo? Vai ficar tudo bem. Passa o telefone para Esquisito novamente, por favor. - Enquanto falava, Alex ligou o motor e começou a manobrar para sair do estacionamento.

- Alex? - Ele podia detectar a aflição na voz de Esquisito. - Quando é que dá para você chegar?

- Estou em Kinross. Acho que em uns quarenta minutos. Esquisito, eu sei o que aconteceu de verdade. O que aconteceu com Rosie, e posso provar. Quando Macfadyen ficar sabendo disso, ele vai ver que não precisa se vingar. Você precisa fazer com que eles não façam nada que coloque Davina em risco até eu chegar aí e contar tudo. Estou com uma bomba nas mãos.

- Vou fazer o possível. Mas eles nos afastaram da operação.

- Faça tudo o que você puder, Esquisito. E cuida da minha mulher para mim, tá?

- Claro. Vem o mais rápido que você puder, hein? Que Deus te proteja.

Alex pisou no acelerador; nunca dirigira tão depressa em sua vida. Quase desejou ser parado por alta velocidade. Assim, teria uma escolta policial para acompanhá-lo até lá. A polícia na sua cola até East Neuk. Era tudo o que ele precisava naquele momento.

Lawson olhou em volta do hall da igreja que havia solicitado.

- A equipe de suporte técnico consegue identificar em qual cômodo Macfadyen está com o bebê. Até agora, ele passou a maior parte do tempo em um quarto nos fundos da casa. O bebê às vezes está com ele e às vezes está na sala. Então temos de ser rápidos. Vamos esperar até que estejam separados, então um grupo entra pela frente e pega o bebê. O outro grupo fica com os fundos e cerca Macfadyen.

"Vamos esperar até anoitecer. Os postes da rua vão ficar apagados. Não vamos conseguir enxergar um palmo diante do nariz. Quero que essa operação funcione perfeitamente. E quero o bebê são e salvo aqui fora.

"Já com Macfadyen, são outros quinhentos. Ele tem problemas psicológicos. Não temos a menor ideia se está armado ou não. Temos motivos para acreditar que ele já matou duas pessoas. E tudo nos leva a crer que, ontem à noite, atacou mais uma. Se não tivesse sido interrompido, creio que teria cometido outro assassinato. Ele mesmo disse que não tem nada mais a perder. Se ele fizer menção de sacar uma arma, estão autorizados a disparar. Alguma pergunta?

O hall estava silencioso. Os oficiais do grupo de resposta armada haviam se aperfeiçoado exatamente para uma operação como aquela. O recinto transformara-se em um receptáculo de testosterona e adrenalina. Era em momentos como aquele que o medo ganhava um outro nome.

Macfadyen digitou alguma coisa no teclado e clicou no mouse. A conexão do celular era abominavelmente lenta, mas ele dera um jeito de incluir a sua conversa com Lawson no site. Disparou e-mails para os contatos que havia feito previamente com a imprensa, avisando que poderiam acompanhar de camarote a operação de resgate em seu site, onde poderiam ouvir em primeira mão o que estava acontecendo.

Não acalentava a ilusão de que podia controlar o resultado de tudo aquilo. Mas estava determinado a fazer o que podia, incluindo tudo o que fosse necessário para ganhar as manchetes dos jornais. Se o preço fosse a vida daquele bebê, estava disposto a pagar. Estava preparado. Conseguiria levar o seu plano a cabo, tinha certeza. Pouco importava se o seu nome viraria sinônimo de maldade nos tabloides. Não ia sair daquilo como o único vilão. Mesmo se Lawson tivesse conseguido boicotar a imprensa, a informação estava disponível na internet. Não podia interferir em seu site, não podia impedir que os fatos se espalhassem online. E Lawson já devia ter percebido que Macfadyen tinha uma carta na manga.

Da próxima vez que ligassem, ia abrir o jogo. Revelaria toda a dimensão da duplicidade da polícia. Contaria ao mundo como a justiça decaíra na Escócia.

Era o dia do juízo final.

Alex foi parado diante do bloqueio policial. Podia ver os diversos veículos policiais adiante e as barreiras vermelhas e brancas na entrada de Carlton Way. Abaixou o vidro do carro, consciente de que estava imundo e desgrenhado.

- Eu sou o pai da criança - disse ele ao policial que se debruçou para falar com ele. - É a minha filha lá dentro. A minha mulher está aí em algum lugar. Preciso ficar com ela.

- Posso ver a sua identidade, senhor? - perguntou o policial.

Alex apresentou a sua carteira de motorista.

- Sou Alex Gilbey. Por favor, deixe-me passar.

O policial comparou o seu rosto com a fotografia da carteira, depois se afastou para comunicar-se com alguém pelo rádio. Voltou um pouco depois.

- Sinto muito, Sr. Gilbey. Todo cuidado é pouco. Se o senhor puder estacionar ali no canto, um dos policiais o levará até a sua esposa.

Alex seguiu um outro policial de jaqueta amarela até um micro-ônibus branco. Ele abriu a porta e Lynn levantou-se, em um pulo, jogando-se em seus braços. Ela estava tremendo e ele pôde sentir o seu coração batendo descontrolado dentro do peito. Não havia palavras para a dor que sentiam. Abraçaram-se simplesmente, e a angústia e o medo que os dominavam eram palpáveis.

Durante um bom tempo, ninguém falou nada. Então Alex disse:

- Vai ficar tudo bem. Eu tenho como acabar com isso agora.

Lynn olhou para ele, com os olhos vermelhos e inchados.

- Como, Alex? Não há nada que você possa fazer.

- Posso, sim. Estou sabendo da verdade. - Olhou por cima de Lynn e viu Karen Pirie sentada ao lado da porta, junto a Esquisito. - Onde está Lawson?

- Está em uma reunião - disse Lynn. - Vai voltar daqui a pouco. Aí você fala com ele.

Alex balançou a cabeça.

- Não quero falar com ele. Quero falar com Macfadyen.

- Isso não será possível, Sr. Gilbey. Isso é tarefa para negociadores experientes. Eles sabem o que estão fazendo.

- Você não está entendendo. Ele precisa saber de coisas que só eu posso revelar. Não quero ameaçá-lo. Não quero nem exigir nada. Só preciso falar com ele.

Karen suspirou.

- Eu sei que o senhor deve estar aflito, Sr. Gilbey. Mas o senhor pode errar, querendo acertar.

Alex desvencilhou-se gentilmente dos braços de Lynn.

- Isso está acontecendo por causa de Rosie Duff, não está? Porque ele acha que eu estou envolvido no assassinato de Rosie Duff, não é?

- Ao que parece, sim - respondeu Karen, cautelosa.

- E se eu dissesse que posso responder a todas as suas perguntas?

- Se o senhor possui alguma informação relacionada ao caso, deveria falar é comigo.

- Tudo tem a sua hora, eu prometo. Mas Graham Macfadyen merece ser o primeiro a ouvir a verdade. Por favor, confie em mim. Tenho os meus motivos. É a vida da minha filha que está em jogo aqui. Se vocês não me deixarem falar com Macfadyen, eu vou procurar a imprensa e contar tudo o que sei. E, acredite, não vai ser a melhor maneira.

Karen avaliou a situação. Gilbey parecia calmo. Quase calmo demais. E ela não era treinada para lidar com situações como aquela. Normalmente, encaminharia ao seu superior. Mas Lawson estava ocupado demais em outro lugar. Talvez devesse consultar o negociador.

- Venha comigo, vamos falar com o inspetor Duncan. É ele quem está se comunicando com Macfadyen.

Ela desceu da van e chamou um dos policiais.

- Por favor, fique aqui com a Sra. Gilbey e com o Sr. Mackie.

- Eu vou com o Alex - disse Lynn, insubordinada. - Não vou sair do lado dele.

Alex segurou a mão dela.

- Vamos juntos, então - disse ele a Karen.

Ela sabia quando se dar por vencida.

- Está bem, vamos - disse ela, conduzindo-os até o cordão que bloqueava a entrada da rua de Macfadyen.

Alex nunca se sentira tão vivo. Estava consciente dos movimentos dos seus músculos a cada passo que dava. Os seus sentidos pareciam estar mais apurados, cada som e cheiro quase insuportavelmente amplificados. Jamais esqueceria aquela caminhada. Era o momento mais importante da sua vida e ele estava determinado a fazer a coisa certa, da maneira adequada. Ensaiara a conversa que teria com Macfadyen em sua errática jornada até St. Monans e estava seguro de que encontraria as palavras para ganhar a liberdade da sua filha.

Karen os levou até uma van branca estacionada do lado de fora da casa. Na escuridão crescente, tudo parecia lúgubre, refletindo o sentimento das pessoas que estavam envolvidas no resgate. Karen deu uma batidinha na lateral da van e a porta se abriu. A cabeça de John Duncan apareceu entre uma fresta.

- Detetive Pirie, não é isso? O que posso fazer pela senhora?

- Estes são o Sr. e a Sra. Gilbey. Ele gostaria de falar com Macfadyen, senhor.

Duncan suspendeu as sobrancelhas, alarmado.

- Acho que não é uma boa ideia. A única pessoa com quem Macfadyen quer falar é com o subchefe Lawson. E ele deu ordens para que não ligarmos mais para lá até que Lawson voltasse.

- Ele precisa ouvir o que eu tenho a dizer - disse Alex. - Ele está fazendo isso porque quer que o mundo inteiro saiba quem matou a sua mãe. Ele acha que fomos eu e os meus amigos. Mas ele está enganado. Descobri toda a verdade hoje e ele deve ser a primeira pessoa a saber.

Duncan mal conseguia disfarçar a sua surpresa.

- O senhor está me dizendo que sabe quem matou Rosie Duff?

- Sei, sim.

- Então deveria estar dando o seu depoimento a um dos policiais - respondeu ele, firmemente.

Um tremor de emoção percorreu o rosto de Alex, revelando como ele estava tentando se controlar.

- É a minha filha lá dentro. E eu posso terminar com tudo isso agora mesmo. Cada minuto que vocês me fazem perder aqui fora é mais um minuto que ela corre perigo. Não quero falar com ninguém, só com Macfadyen. E se vocês não me deixarem conversar com ele, vou ter que abrir o jogo com a imprensa. Vou contar que tenho como terminar com essa situação e que vocês não me deixam agir. Vocês realmente querem que isso se torne o epitáfio das suas carreiras?

- Você não vai saber o que fazer. Não é um especialista em resgates. - Alex percebeu que aquele era o argumento derradeiro de Duncan.

- Bom, toda a sua experiência não serviu para muita coisa, não é mesmo? - interrompeu Lynn. - O trabalho de Alex é negociar com as pessoas. E ele é muito bom nisso. Vamos assumir toda a responsabilidade pelo resultado de sua tentativa.

Duncan olhou para Karen. Ela deu de ombros. Ele respirou fundo e deixou escapar um longo suspiro.

- Eu vou ficar daqui escutando - disse ele. - Se eu achar que a situação está ficando fora de controle, corto a ligação.

Alex chegou a ficar tonto de tanto alívio.

- Ótimo. Vamos lá - disse ele.

Duncan pegou o telefone e colocou os fones nos ouvidos. Passou fones para Karen e o fone para Alex.

- É todo seu.

O telefone tocou. Uma, duas, três vezes. Na metade do quarto toque, Graham atendeu.

- Quer continuar, Sr. Lawson? - perguntou a voz do outro lado da linha.

A voz dele é tão normal, pensou Alex. Não parece nada com a voz de um sujeito que sequestraria um bebê e colocaria a sua vida em risco.

- Não é o Lawson. Aqui quem fala é Alex Gilbey.

- Não tenho nada para falar com você, seu assassino desgraçado.

- Me dê apenas um minuto. Tenho uma coisa para te contar.

- Se você vai dizer que não matou a minha mãe, poupe o seu latim. Não vou acreditar mesmo.

- Eu sei quem matou a sua mãe, Graham. E tenho provas. Estão aqui no meu bolso. Estou com fragmentos de tinta compatíveis com a tinta encontrada nas roupas da sua mãe. Colhi esses fragmentos hoje cedo, de um trailer no lago Leven. - Não houve resposta do outro lado da linha, apenas uma respiração forte. Alex continuou. - Havia mais alguém presente na noite do crime, mas ninguém prestou atenção nele, porque ele tinha motivos para estar lá. Ele encontrou a sua mãe depois do expediente e a levou para o seu trailer. Não sei direito o que aconteceu, mas desconfio que ela tenha se recusado a transar com ele e ele a tenha estuprado. Quando percebeu o que tinha feito, viu que não podia deixá-la viva para contar a história. Seria o fim para ele. Então, ele a esfaqueou. E a levou até Hallow Hill, abandonando-a para morrer. E ninguém nunca suspeitou dele, porque ele estava do lado da lei. - Karen Pirie encarava Alex, boquiaberta e aterrorizada conforme ia compreendendo as implicações do que ele estava dizendo.

- Diga o nome dele - sussurrou Macfadyen.

- Jimmy Lawson. Foi Jimmy Lawson quem matou a sua mãe, Graham. Não eu.

- Lawson? - Foi quase um soluço. - Você está blefando, Gilbey.

- Não, Graham. Como eu disse, tenho como provar. E o que você tem a perder acreditando em mim? Vamos acabar com isso agora e você vai ter a oportunidade de presenciar a justiça sendo finalmente cumprida.

Houve um longo e demorado silêncio. Duncan aproximou-se, disposto a recolher o telefone das mãos de Alex, mas ele virou-se para trás deliberadamente, apertando o fone em suas mãos com mais força ainda. E então Macfadyen falou:

- Eu achei que ele estava fazendo aquilo porque era a única maneira de conseguir alguma justiça. E não concordava com os métodos dele, porque queria que vocês sofressem. Mas não. Ele estava fazendo aquilo para se proteger - disse Macfadyen e as suas palavras não significaram nada para um Alex estupefato.

- Fazendo o quê? - perguntou ele.

- Matando vocês, ora.


45

Um manto de escuridão desceu sobre Carlton Way. Encobertas pelas sombras, figuras enegrecidas se moviam com armas semiautomáticas coladas em seus coletes à prova de balas. Percorriam o local com a silenciosa delicadeza de um leão atrás de um antílope. Ao se aproximarem da casa, se separaram, agachados sob os parapeitos das janelas e depois voltaram a se reagrupar, metade na porta da frente, metade na dos fundos. Cada um deles lutava para manter a sua respiração suave e tranquila, apesar do coração que batia freneticamente no peito, como um tambor convidando para a luta. Dedos verificavam se os fones estavam bem instalados na orelha. Ninguém queria perder o chamado para entrar em ação. Se fosse necessário. Não era hora de ambivalências. Quando a ordem fosse dada, demonstrariam o seu compromisso.

Lá em cima, um helicóptero sobrevoava o céu e os especialistas acompanhavam com atenção os resultados da imagem térmica. Eram responsáveis pela determinação do momento certo para agir. O suor ardia em seus olhos e encharcava as palmas das mãos enquanto mantinham o foco nas duas figuras incandescentes. Enquanto estivessem separadas, podiam agir. Mas se ficassem juntas, ninguém podia fazer nada. Não havia espaço para erros. Não com uma vida correndo perigo.

Tudo estava nas mãos de um único homem. O subchefe de polícia James Lawson caminhou por Carlton Way sabendo que aquela era a sua última cartada.

Alex esforçou-se para compreender as palavras de Macfadyen.

- O que você quer dizer? - perguntou ele.

- Eu o vi ontem à noite, com um taco de beisebol. Debaixo da ponte, dando uma surra no seu amigo. Pensei que estivesse tentando fazer justiça com as próprias mãos, sério mesmo. Mas se Lawson matou a minha mãe...

Alex agarrou-se ao único fato do qual tinha certeza absoluta.

- Ele a matou, sim, Graham. Eu tenho como provar. - De repente, a linha ficou muda. Desconcertado, Alex voltou-se para Duncan. - Que porra é essa? - quis saber ele.

- Já chega - disse Duncan, tirando os fones da cabeça. - Não posso permitir que isso seja transmitido para o mundo inteiro. Que diabos está acontecendo aqui, Sr. Gilbey? É um pacto entre o senhor e Macfadyen para incriminar Lawson?

- O que você está dizendo? - perguntou Lynn.

- Foi Lawson - disse Alex.

- Eu escutei, Lawson matou Rosie - disse Lynn, agarrando-se ao braço do marido.

- Não só Rosie. Ele matou Ziggy e Mondo também. E tentou matar Esquisito. Macfadyen o viu ontem - disse Alex, abismado.

- Olha, não sei o que o senhor está tramando... - começou Duncan. Ele parou imediatamente ao ver Lawson se aproximando. Pálido e coberto de suor, o subchefe olhou para eles, intrigado e visivelmente irritado.

- Que diabos vocês dois estão fazendo aqui? - perguntou ele, apontando para Alex e Lynn. Virou-se para Karen. - Eu não te pedi para ficar com ela na van da unidade de resposta armada? Deus, isso aqui virou um verdadeiro circo. Tire-os daqui.

Houve um breve momento de silêncio e então Karen Pirie disse:

- Senhor, precisamos conversar sobre algumas acusações muito sérias que acabaram de ser feitas sobre...

- Karen, isso aqui não é um programa de debates. Estamos no meio de uma operação de vida e morte, porra! - gritou Lawson. Ele suspendeu o rádio até os lábios. - Estão todos em suas posições?

Alex apanhou o rádio das mãos de Lawson.

- Escuta aqui, seu cretino. - Antes que pudesse continuar, Duncan partiu para cima dele, derrubando-o no chão. Alex lutou com o policial, esgueirando a cabeça para gritar: - Sabemos a verdade, Lawson. Você matou Rosie. E matou os meus amigos. Está acabado. Você não pode mais se esconder.

Os olhos de Lawson dardejavam de fúria.

- Você é tão louco quanto ele. - Ele se abaixou e recuperou o rádio, enquanto dois policiais mergulhavam em cima de Alex.

- Senhor - disse Karen, apreensiva.

- Agora não, Karen - explodiu Lawson. Virando-se de costas, tornou a levar o rádio até os lábios novamente. - Estão todos em suas posições?

As respostas estalaram no seu fone de ouvido. Antes que Lawson pudesse responder, ouviu a voz do comandante do suporte técnico no helicóptero.

- Não atirem! O alvo está com o refém.

Lawson hesitou por um momento. Depois disse:

- Podem atirar! Agora!

Macfadyen estava pronto para encarar o mundo. As palavras de Alex Gilbey haviam restaurado a sua fé na possibilidade de a justiça ser cumprida. Entregaria a menina para ele. Para garantir a sua segurança, levou uma faca consigo. Uma derradeira estratégia para que pudesse chegar até a rua e alcançar a polícia que o esperava lá fora.

Estava a caminho da porta da frente, com Davina encolhida debaixo do seu braço como um pacote. Carregava uma faca de cozinha na mão livre quando o seu mundo explodiu. As portas da frente e dos fundos desabaram. Homens gritavam em uma algazarra ensurdecedora. Labaredas incandescentes explodiam, obnubilando a sua visão. Instintivamente, apertou a criança contra o seu peito. A mão que trazia a faca aproximou-se dela. Através do caos, ouviu alguém gritar:

- Solte o bebê!

Sentiu-se paralisado. Não podia deixá-la.

O atirador pressentiu que a vida da criança estava em risco. Sem pensar duas vezes, posicionou-se diante do seu alvo, apontou a arma e mirou na cabeça de Macfadyen.


46

Abril de 2004; Blue Mountains, Geórgia

O sol de primavera brilhava sobre as copas das árvores enquanto Alex e Esquisito subiam o cume da montanha. Esquisito caminhava na frente até o afloramento de uma rocha que se projetava sobre o declive e a escalava, acomodando-se com as suas longas pernas penduradas na beira. Alcançou a sua mochila e pegou um par de binóculos. Ele o regulou até que a imagem lá embaixo ficasse nítida e o passou para Alex.

- Bem ali embaixo, um pouquinho para a sua esquerda.

Alex ajustou o foco e examinou o território lá embaixo. De repente, percebeu que estava olhando para o telhado da cabana deles. E que as figuras correndo para lá e para cá do lado de fora eram os filhos de Esquisito. Os adultos sentados à mesa de piquenique eram Lynn e Paul. E o bebê aos seus pés era Davina. Observou a sua filha abrindo os braços e dando uma risadinha para as árvores. O seu amor por ela chegava a doer.

Estivera tão perto de perdê-la. Quando ouviu os disparos, pensou que o seu coração iria explodir. O grito de Lynn ecoara em sua mente como o fim do mundo. Uma eternidade se passou até que um dos policiais armados surgisse com Davina em seus braços, e mesmo isso não causou nenhum alívio: quando se aproximaram, tudo que Alex conseguia ver era sangue.

Mas o sangue era de Macfadyen. O atirador acertara o seu alvo, inflexível. O rosto de Lawson exibia tantas expressões ao mesmo tempo que parecia ter sido esculpido com granito.

No caos que se seguiu, Alex separara-se da sua mulher e da sua filha para ir atrás de Karen Pirie.

- Você precisa ficar de olho no trailer.

- Que trailer?

- O trailer de pesca de Lawson. No lago Leven. Foi lá que ele matou Rosie Duff. A pintura no teto é compatível com a tinta no cardigã de Rosie. A gente nunca sabe, pode ser que ainda haja algum vestígio de sangue lá dentro.

Ela o olhou friamente.

- Você espera que eu leve esta palhaçada a sério?

- Mas é a verdade. - Ele apanhou o envelope do bolso. - Eu tenho os fragmentos que podem provar que não estou mentindo. Se você deixar Lawson voltar para o trailer, ele vai destruí-lo. A prova vai virar fumaça. Você precisa impedi-lo. Eu não estou inventando isso - disse ele, tentando convencê-la desesperadamente de que estava falando a verdade. - Duncan também ouviu o que Macfadyen disse. Ele viu Lawson atacando Tom Mackie ontem à noite. O seu chefe não vai medir esforços para encobrir os seus atos. Você precisa detê-lo e proteger o trailer.

O rosto de Karen continuava impassível.

- Você quer que eu prenda o meu chefe?

- Hélène Kerr e Jackie Donaldson foram detidas pela polícia de Strathclyde por muito menos, e com menos provas do que as que a senhora ouviu aqui hoje. - Alex lutava para continuar calmo. Não conseguia acreditar que tudo estava escapando entre os seus dedos. - Se Lawson não fosse o subchefe, você não estaria hesitando.

- Mas ele é o subchefe. É um oficial respeitado com um cargo extremamente importante.

- A mulher de César, Sra. Pirie. Mais um motivo para levar isso a sério. Você acha que isso não vai estar nos jornais amanhã de manhã? Se você acha que Lawson é inocente, então não custa nada tentar.

- A sua mulher está lhe chamando, senhor - disse Karen friamente. Ela foi embora, deixando-o impotente, parado no mesmo lugar.

Mas ela ouvira tudo o que ele tinha a dizer. Não chegou a prender Lawson, mas convocou alguns policiais uniformizados e deixou o local, discretamente. Na manhã seguinte, Alex recebeu uma ligação exultante de Jason, contando que ficara sabendo que os seus colegas em Dundee haviam detido um trailer na véspera, tarde da noite. Bingo.

Alex abaixou o binóculo.

- Eles sabem que você fica aqui espiando o que se passa lá embaixo?

Esquisito sorriu.

- Eu digo que Deus vê tudo e que eu tenho uma ligação direta com ele.

- Aposto que tem mesmo. - Alex reclinou-se para trás, deixando que o sol secasse o suor em seu rosto. A subida até lá fora íngreme e exaustiva. Não tiveram tempo para conversar. Aquela era a primeira oportunidade que tinha a sós com Esquisito desde que haviam chegado, na véspera. - Karen Pirie veio nos ver na semana passada - disse ele.

- Como ela está?

Aquela era, como Alex aprendera a compreender, uma pergunta típica de Esquisito. Não "O que ela disse?", e sim "Como ela está?". Subestimara demais o seu amigo no passado. Talvez agora tivesse a chance de reparar os erros daquela época.

- Acho que ela ainda está bastante abalada. Ela e a maioria dos policiais em Fife. É meio chocante descobrir que o seu chefe é um estuprador que cometeu vários assassinatos. As consequências são bem sérias. Mas eu acho que metade dos oficiais continua achando que Graham Macfadyen e eu inventamos a história toda.

- Então Karen foi lhe visitar para lhe deixar a par da situação?

- Mais ou menos. Ela não está mais encarregada do caso, obviamente. Acabou passando a investigação do caso de Rosie Duff para outros oficiais, de fora, mas ela fez amizade com um deles. O que significa que ainda está por dentro dos acontecimentos. E temos de reconhecer que ela se deu ao trabalho de ir nos contar as últimas novidades.

- Quais são?

- Terminaram a perícia no trailer. Assim como a compatibilidade da tinta, encontraram gotículas de sangue no chão, debaixo do banco. Colheram amostras de sangue dos irmãos de Rosie e do corpo de Macfadyen, porque obviamente não sobrou nada do DNA de Rosie, então eles têm que testar os parentes mais próximos. E o resultado é que o sangue no trailer de Lawson era mesmo de Rosie Duff.

- Impressionante - disse Esquisito. - Depois de todo esse tempo, ele é pego graças a um fragmento de tinta e uma gotinha de sangue.

- Um dos seus antigos colegas apareceu para depor, afirmando que Lawson gostava de se gabar que passava o expediente noturno levando garotas para o seu trailer e transando com elas. E o nosso próprio depoimento coloca Lawson bem próximo do local onde o corpo de Rosie foi encontrado. Karen disse que a promotoria hesitou um pouco, mas decidiu ir adiante com a acusação. E que quando Lawson ficou sabendo disso, desmoronou. Ela disse que foi como se ele não aguentasse mais carregar o fardo. Ao que parece, não é um fenômeno raro. Karen me contou que é comum que, ao se verem encurralados, os assassinos sintam a necessidade de confessar tudo o que já fizeram.

- E por que ele a matou?

Alex suspirou.

- Estavam saindo havia algumas semanas. E ela não o deixava ir até os finalmentes. Ele disse que ela estabelecia um limite e não se permitia ultrapassá-lo. E ele acabou se descontrolando e estuprando Rosie. Segundo Lawson, ela disse que ia direto para a polícia. E ele não podia permitir que ela fizesse aquilo. Então, pegou uma faca de cozinha e a esfaqueou. Já estava nevando, ele imaginou que não tivesse ninguém nas redondezas e largou o corpo dela em Hallow Hill. A ideia era dar a impressão de que havia sido uma espécie de ritual ou algo do tipo. Disse que ficou horrorizado quando soube que estavam desconfiando da gente. Obviamente, ele não queria ser apanhado, mas jura que fez de tudo para impedir que outra pessoa levasse a culpa pelo seu crime.

- Que generoso da parte dele, não? - comentou Esquisito, cínico.

- Mas eu acho que ele está falando a verdade, sabe? Porque, se ele quisesse, bastava uma mentirinha e nós seríamos acusados. Quando Maclennan ficou sabendo da Land Rover, por exemplo, Lawson podia muito bem ter dito que esquecera de mencionar que vira o carro naquela noite. Ou indo para Hallow Hill, ou na porta do Lammas na hora em que o bar fechava.

- Só Deus pode saber a verdade, mas suponho que podemos lhe conceder o benefício da dúvida, sim. Ele deve ter imaginado que estava salvo depois de todo esse tempo. Ninguém nunca desconfiou dele.

- Pois é. Sobrou foi mesmo para a gente. Lawson passou vinte e cinco anos desfrutando uma reputação aparentemente imaculada. Foi então que o chefe de polícia anunciou a revisão dos casos não resolvidos. Segundo Karen, Lawson se livrou das provas na primeira vez em que o DNA foi utilizado de maneira bem-sucedida no tribunal. As provas ainda estavam em St. Andrews, então não foi difícil para ele colocar as mãos nelas. O cardigã foi de fato extraviado em uma das vezes em que as provas foram transferidas de um local para o outro, mas o resto das roupas e as amostras biológicas, bom, a isso tudo ele fez questão de dar um fim pessoalmente.

Esquisito franziu a testa.

- E como é que o cardigã foi parar tão longe do local onde estava o corpo?

- Quando estava voltando para o carro de polícia, Lawson encontrou o cardigã perdido na neve. Deixara cair quando carregou o corpo até o topo da colina. Ele simplesmente enfiou a roupa na primeira sebe que viu pela frente. Era a última coisa que queria dentro de uma viatura policial. Então, após ter se livrado de todas as provas relevantes, ele deve ter imaginado que conseguiria conduzir a revisão dos casos e se safar.

- É, mas ele não contava com a aparição surpreendente de Graham Macfadyen. Jamais suspeitara da sua existência, graças ao desejo de respeitabilidade da família de Rosie. Ali estava alguém que realmente tinha um interesse em apurar a morte dela, alguém exigindo respostas. Mas o que eu ainda não consigo entender é por que ele saiu por aí eliminando o nosso grupo.

- Bom, pelo que Karen contou, Macfadyen estava pegando no pé de Lawson direto. Exigindo que ele conversasse novamente com as testemunhas. Principalmente nós quatro. Ele estava convencido de que éramos os culpados. No computador de Macfadyen, entre outras coisas, havia um registro das conversas que ele teve com Lawson. E, em um determinado momento, ele comenta que acha muito estranho Lawson não ter visto nada suspeito, uma vez que estava de plantão na sua viatura, próximo ao local do crime. Quando ele comenta isso com Lawson, ele fica irritado, o que Macfadyen interpreta como uma reação normal à crítica. Mas, obviamente, a verdade é que Lawson não queria ninguém analisando o que ele andou fazendo naquela noite. Afinal, a sua presença passou despercebida, mas tirando nós quatro, a única pessoa que temos certeza de que estava na área naquela noite era Lawson. Se ele não fosse policial, teria sido o principal suspeito do crime.

- Mesmo assim. Por que sair atrás da gente, depois de todo este tempo?

Alex acomodou-se desconfortavelmente sobre a pedra.

- Bom, aí é que vem a parte mais difícil. Segundo Lawson, ele estava sendo chantageado.

- Chantageado? Por quem?

- Mondo.

Esquisito arregalou os olhos.

- Mondo? Tá brincando. Que invenção doentia é essa de Lawson agora?

- Acho que não é invenção. Lembra de quando Maclennan morreu?

Esquisito estremeceu.

- Como posso esquecer?

- Então. Lawson era o primeiro puxando a corda e ele viu o que aconteceu. Segundo ele, Maclennan estava se segurando em Mondo, mas Mondo entrou em pânico e chutou-o para fora da corda.

Esquisito fechou os olhos por um momento.

- Gostaria de dizer que não acredito nisso, mas é uma reação típica de Mondo. Mas, mesmo assim, não entendo o que isso tem a ver com chantagem.

- Depois que eles resgataram Mondo, foi aquele caos. Lawson se encarregou de ficar com ele e o acompanhou na ambulância. Aí ele disse a Mondo que tinha visto a cena e garantiu que ia fazer de tudo para que ele fosse punido. E foi então que Mondo soltou a sua pequena bomba. Ele afirmou ter visto Rosie entrando na viatura de Lawson na porta do Lammas uma noite. Bem, Lawson sabia que ia ficar encrencado se Mondo espalhasse aquela informação. Então, eles fizeram um acordo. Se Mondo não contasse o que tinha visto, Lawson faria o mesmo.

- Mais do que chantagem, era a garantia de que ambos iriam se destruir - disse Esquisito, asperamente. - E o que deu errado?

- Assim que a revisão dos casos não resolvidos foi anunciada, Mondo procurou Lawson e disse que o preço do seu silêncio era não ser incomodado pela revisão. Não queria que a sua vida virasse de cabeça para baixo novamente. E ele disse a Lawson que um de nós sabia da história, que ele não era o único. Só que, é claro, ele não especificou para qual de nós ele supostamente havia contado. Por isso Lawson estava fazendo tanta questão que Karen se concentrasse na busca das provas, em vez de nos procurar novamente. Precisava ganhar tempo, eliminando quem ele imaginava estar a par da verdade. Mas aí ele ficou espertinho demais. Decidiu criar um suspeito para a morte de Mondo. Então, forneceu um motivo para Robin Maclennan, contando a verdade sobre a morte do seu irmão Barney. Mas antes de Lawson matar Mondo, Robin Maclennan entrou em contato com ele, o que fez com que ele entrasse em pânico e fosse procurar Lawson novamente. - Alex deu um sorriso contrariado. - Foi isso que ele teve de resolver em Fife na noite em que apareceu lá em casa. De todo modo, Mondo acusou Lawson de quebrar a sua parte no acordo. E, se achando muito esperto, disse que iria revelar a sua história primeiro, de modo que quando Lawson alegasse que ele matou Barney Maclennan, todos pensariam que era uma acusação sem fundamento, inventada por um sujeito acuado. - Alex esfregou a mão no rosto.

- Pobre Mondo, que idiotice - gemeu Esquisito.

- A maior ironia é que, se não fosse a obsessão de Graham Macfadyen com o caso, Lawson podia muito bem ter conseguido matar nós quatro.

- Como assim?

- Se Graham não estivesse nos rastreando pela internet, jamais teria ficado sabendo da morte de Ziggy e não teria enviado a coroa de flores. Aí, jamais teríamos feito a ligação entre os dois assassinatos e Lawson poderia nos eliminar à vontade. Mas mesmo assim, ele deu um jeito de manipular a coisa ao máximo. Fez questão de garantir que eu ficasse sabendo sobre Graham Macfadyen, apesar de ter fingido que deixou escapar a informação sem querer. E, é claro, ele contou a Robin Maclennan como Mondo matou o seu irmão. Assim, poderia garantir uma certa segurança. Depois que Mondo foi assassinado, o canalha foi tão esperto que procurou Robin e lhe ofereceu um álibi falso. E Robin aceitou, sem parar para pensar que o álibi servia para os dois - ou seja, que ele estava protegendo o verdadeiro assassino.

Esquisito estremeceu e suspendeu as pernas, apertando os joelhos contra o peito. Sentiu uma pontada nas costelas, a sombra de uma dor antiga.

- Mas por que ele veio atrás de mim? Deve ter percebido que nem eu nem você sabíamos o que Mondo tinha visto, do contrário já o teríamos procurado para tomar uma satisfação pela morte de Mondo.

Alex suspirou.

- Acontece que ele já estava mais sujo do que pau de galinheiro. Por causa das coroas de Macfadyen, nós fizemos a ligação entre dois assassinatos que foram planejados para parecer completamente sem relação. A sua única esperança era fazer com que Macfadyen passasse como o assassino. E ele não teria livrado a nossa cara, não é mesmo? Ele teria ido até o fim, teria matado nós quatro.

Esquisito balançou a cabeça, tristemente.

- Que confusão horrível. Mas por que ele matou Ziggy primeiro?

- É tão banal que dá vontade de chorar. Ele matou Ziggy primeiro porque estava com férias marcadas nos Estados Unidos, antes da revisão dos casos ser anunciada.

Esquisito umedeceu os lábios.

- Então eu poderia muito bem ter sido o primeiro?

- Se ele decidisse ir pescar lá para as suas bandas, com certeza.

Esquisito fechou os olhos, levando a mão no peito.

- E em relação a Ziggy e Mondo? O que está sendo feito?

- Praticamente nada, acho eu. Apesar de Lawson ter aberto o bico e contado tudo, eles não têm nenhuma prova que comprove que foi ele quem matou Mondo. Ele foi bastante cuidadoso nesse sentido. Ele não tem nenhum álibi, mas diz que ficou no trailer naquela noite, então mesmo que eles consigam achar um vizinho que confirme que o carro dele não estava na garagem, ele está protegido.

- Então ele vai se safar, é isso?

- É o que parece. Pela lei escocesa, toda confissão tem de ser comprovada para que o sujeito possa ser acusado de fato. Mas pelo menos os policiais de Glasgow não estão mais pegando no pé de Hélène e de Jackie, o que não deixa de ser um resultado.

Esquisito bateu com a mão sobre a pedra, indignado.

- E Ziggy? A polícia de Seattle já solucionou alguma coisa?

- Um pouco. Mas não muito. Sabemos que Lawson estava nos Estados Unidos uma semana antes da morte de Ziggy. Supostamente, participando de uma viagem de pesca na Califórnia. Mas aí é que está. Quando ele devolveu o seu carro alugado, constavam muito mais quilômetros do que se podia imaginar em um mero passeio local.

Esquisito chutou a pedra abaixo dos seus pés.

- E é uma viagem longa da Califórnia para Seattle, não é?

- Exatamente. Mas, mais uma vez, não há nenhuma prova concreta. Lawson é esperto demais para ter usado o cartão de crédito fora do local onde deveria estar. Karen disse que a polícia de Seattle tem mostrado uma foto dele em armazéns e em hotéis, mas não deu em nada até agora.

- Não acredito que ele vai se safar novamente com dois assassinatos nas costas - disse Esquisito.

- Ué, não é você quem acredita em um julgamento mais poderoso do que o dos homens?

- Mas o julgamento de Deus não nos absolve do dever de transitar em um universo moral - respondeu Esquisito com seriedade. - Uma das maneiras de demonstrar amor pelos nossos semelhantes é protegendo-os dos seus piores impulsos. E mandar os criminosos para a prisão é apenas um exemplo radical disso.

- Tenho certeza de que eles se sentem muito amados - debochou Alex. - Mas Karen trouxe mais uma notícia. Parece que eles afinal decidiram não acusar Lawson por tentativa de homicídio por ele ter atacado você.

- Por que não? Eu disse que estava disposto a voltar e prestar o depoimento.

Alex ficou de pé.

- Sem Macfadyen, não existe nenhuma prova de que foi Lawson quem te deu aquela surra.

Esquisito suspirou.

- Paciência. Pelo menos ele vai ter de responder pelo que fez com Rosie. Acho que, no final das contas, não importa se ele conseguir escapar pelo que fez comigo. Você sabe, eu sempre me orgulhei de ser safo. Mas naquela noite, eu saí da sua casa cheio de bravata. Me pergunto se teria sido tão corajoso, ou irresponsável, se soubesse que, em vez de uma só, tinha duas pessoas no meu encalço.

- Pois é, agradeça por isso. Se Macfadyen não estivesse nos espionando, jamais teríamos como identificar Lawson e o seu carro no local.

- Continuo sem conseguir acreditar que ele não mexeu uma palha enquanto Lawson acabava comigo - disse Esquisito amargamente.

- Talvez a aparição do meu vizinho Eric o tenha impedido - suspirou Alex. - Acho que nunca vamos saber ao certo.

- Mas o que realmente importa é que finalmente descobrimos quem tirou a vida de Rosie - disse Esquisito. - Era um espinho cravado no nosso corpo por vinte e cinco anos e agora podemos nos livrar dele. Graças a você, conseguimos neutralizar o veneno que infectou nós quatro.

Alex olhou para ele, curioso.

- Mas você chegou a pensar...?

- Se foi um de nós que cometeu o crime?

Alex concordou com a cabeça.

- Eu sabia que não podia ter sido o Ziggy. Ele não se interessava por mulher nenhuma e, mesmo naquela época, não queria ser curado. Mondo jamais ficaria calado se tivesse sido ele. E você, Alex... Bom, digamos apenas que eu não conseguia imaginar como você teria levado o corpo para Hallow Hill. Você não ficou com as chaves da Land Rover em nenhum momento.

Alex estava perplexo.

- E esse foi o único motivo pelo qual você não suspeitou de mim?

Esquisito sorriu.

- Você era forte o suficiente para ficar de bico fechado. Consegue ficar incrivelmente calmo sob pressão, mas quando você estoura, aí sai de baixo. E ainda tinha uma queda pela garota... Vou ser sincero, me passou pela cabeça, sim. Mas assim que ficamos sabendo que ela havia sido atacada em um outro lugar e transportada para Hallow Hill, eu vi que não poderia ter sido você. Donde se conclui que o senhor foi salvo pela logística.

- Obrigado pela confiança - disse Alex, ofendido.

- Foi você quem perguntou. E você? De quem suspeitava?

Alex teve a delicadeza de parecer constrangido.

- Cheguei a pensar em você. Principalmente quando virou crente. Parecia o tipo de coisa que um sujeito culpado faria. - Alex contemplou as copas das árvores no horizonte mais distante, onde as montanhas se confundiam em uma bruma azulada. - Sempre fico pensando em como a minha vida teria sido diferente se Rosie tivesse aceitado o meu convite e aparecido na festa naquela noite. Ela ainda estaria viva. Assim como Mondo e Ziggy. A nossa amizade teria sobrevivido sem tantas provações. E teríamos vivido sem ter de lidar com a culpa.

- Você poderia ter acabado casando com Rosie, em vez de Lynn - comentou Esquisito.

- Não - protestou Alex. - Isso jamais teria acontecido.

- Por que não? Não subestime a fragilidade das amarras que nos unem à vida que levamos. E você gostava dela.

- Ia acabar passando. E ela jamais se interessaria por um garoto como eu. Ela já era madura demais. Além do mais, acho que mesmo naquela época eu já sabia que Lynn seria aquela que iria me salvar.

- Salvar de quê?

Alex sorriu, um sorriso suave e íntimo.

- De tudo nesta vida. - Ele olhou para a cabana lá embaixo, onde estava o seu coração. Pela primeira vez, em vinte e cinco anos, tinha um futuro; libertara-se do fardo do passado. E sentia como se tivesse finalmente recebido o presente que tanto merecia.

 

[1] Relativo aos pictos, antigos habitantes da Caledônia, atual Escócia. O cemitério picto de St. Andrews fica em Hallow Hill e foi escavado em 1977. (N.T.)
[2] Em inglês CID (Criminal Investigation Department). Policiais do Reino Unido que trabalham usando roupas civis. (N.T.)
[3] Os "seis de Birmingham" foram condenados à prisão perpétua em 1975 por um crime que não cometeram. Acusados de terem sido os responsáveis por atentados a bomba em dois pubs em Birmingham, foram forçados a confessar o crime sob tortura. Logo depois, o IRA reivindicou os atentados, mas como eles já haviam confessado, a sentença foi mantida. Os seis ficaram presos até 1991, quando a Justiça Britânica finalmente reconheceu o seu erro e pagou aos inocentes uma indenização de quase dois milhões de dólares. A história dos "quatro de Guildford" não é muito diferente: em 1974, após serem acusados de um atentado ao pub Guildford, em Londres, quatro jovens irlandeses foram presos, torturados e forçados a confessar o crime. Condenados à prisão perpétua, só foram libertados 15 anos depois. Em 1993 o caso ganhou uma adaptação cinematográfica, dirigida por Jim Sheridan, no filme Em Nome do Pai. (N.T.)
[4] "Combine" é a palavra usada para ceifadeira em inglês. (N.T.)
[5] Típica tradição escocesa, realizada no Ano-Novo (Hogmanay). Reza a lenda que a primeira pessoa a pisar em sua casa determinará a sorte que você terá no ano vindouro. (N.T.)
[6] Trecho de uma canção religiosa ("Balance gentilmente, doce carruagem. Leve-me para casa"). (N.T.)
[7] "I’m a laughing Gnome and you don’t catch me" (Sou um gnomo risonho e você não me pega). (N.T.)
[8] "Another brick in the wall": referência à música do Pink Floyd. (N.T.)

30

Matizes cinzentos de sujeira começaram a se materializar na escuridão da cidade poluída. Alex deixou-se cair em um banco gelado no hospital, o rosto banhado em lágrimas. Nada em sua vida o havia preparado para uma noite como aquela. Passara do cansaço a um estado alterado onde tinha a impressão de que jamais conseguiria dormir novamente. A sobrecarga emocional era tamanha que ele não sabia mais o que estava sentindo.

Não conseguia se lembrar do caminho de Glasgow para Edimburgo. Sabia que tinha ligado para os pais em algum momento, tinha uma vaga lembrança de ter tido uma conversa tumultuada com o pai. As lágrimas escorriam pelo seu rosto. Todas as coisas que ele sabia que podiam dar errado. Todas as coisas que ele não tinha certeza se podiam dar errado com um bebê com trinta e quatro semanas de gestação. Desejou ser Esquisito, para poder confiar em algo menos falível do que os médicos. Que diabos ia fazer sem Lynn? Que diabos ia fazer com um bebê sem Lynn? Que diabos ia fazer com Lynn sem um bebê? Os presságios eram os piores possíveis: Mondo morto no necrotério de um hospital qualquer e Alex, que não havia estado onde deveria estar na noite mais importante da sua vida.

Abandonara o carro em algum lugar do estacionamento do hospital e conseguira encontrar a entrada para a ala da maternidade, na terceira tentativa. Quando finalmente alcançou a recepção, estava suado e ofegante, grato por saber que as enfermeiras na maternidade na certa já haviam visto de tudo na vida, de modo que um sujeito com a barba por fazer, de olhos arregalados, balbuciando como um louco nem chegava a abalar a escala Richter delas.

- A senhora Gilbey? Ah, sim, nós a levamos direto para a sala de parto.

Alex tentou concentrar-se nas indicações do caminho, repetindo-as baixinho enquanto cruzava os corredores do hospital. Tocou o interfone de segurança e olhou ansiosamente para as lentes do vídeo, torcendo para estar mais parecido com um futuro papai do que com um lunático à solta. Após o que lhe pareceu uma eternidade, a porta se abriu, fazendo um zumbido, e ele saiu aos tropeções para a sala de parto. Não sabia ao certo o que esperava encontrar, mas com certeza não era aquela antessala vazia e aquele silêncio soturno. Hesitou por um instante, sem saber o que fazer. Neste momento, uma enfermeira surgiu de um dos diversos corredores à sua volta.

- Sr. Gilbey? - perguntou ela.

Alex assentiu com um movimento frenético de cabeça.

- Onde está Lynn? - indagou ele.

- Acompanhe-me.

Ele a seguiu de volta pelo corredor.

- Como ela está?

- Está indo bem. - Ela fez uma pausa, com a mão apoiada na maçaneta. - Precisamos que o senhor a acalme. Ela está um pouco nervosa. Tivemos uma ou duas quedas no batimento cardíaco do feto.

- O que isso quer dizer? O bebê está bem?

- Não é nada preocupante.

Detestava quando os médicos diziam isso. Soava sempre como uma mentira deslavada.

- Mas ainda é muito cedo. Ela só está com trinta e quatro semanas.

- Tente não se preocupar. Eles estão em boas mãos.

A porta se abriu e Alex deparou-se com uma cena que não tinha qualquer semelhança com as práticas que haviam feito nas aulas do pré-natal. Era difícil conseguir imaginar algo mais distante do sonho dele e de Lynn de um parto natural. Três mulheres usando trajes cirúrgicos andavam para lá e para cá, afoitas. Uma quarta mulher, com um jaleco branco, examinava o monitor com visor eletrônico ao lado da cama. Lynn estava deitada de barriga para cima, com as pernas abertas, o cabelo grudado na cabeça, empapado de suor. O seu rosto estava vermelho e úmido, os olhos arregalados e cheios de angústia. A camisola fina do hospital estava grudada no seu corpo. O tubo de soro ao lado da cama desaparecia sob ela.

- Puta que pariu, ainda bem - disse ela, ofegante. - Alex, estou com medo.

Ele correu para o lado dela, alcançando a sua mão. Ela segurou com força.

- Eu te amo - disse ele. - Você está indo bem.

A mulher de jaleco branco levantou os olhos.

- Oi, eu sou a doutora Singh - disse ela, vendo que Alex tinha chegado. Ela se juntou à parteira, aos pés da cama. - Lynn, estamos um pouco preocupadas com os batimentos cardíacos do bebê. Não estamos progredindo tão rápido quanto eu gostaria. Talvez tenhamos que fazer uma cesariana.

- Qualquer coisa para tirar o bebê daqui - gemeu Lynn.

De repente, houve uma agitação geral.

- O bebê está preso - disse uma das parteiras. A dra. Singh examinou o monitor brevemente.

- Os batimentos cardíacos estão caindo - disse ela. Tudo começou a acontecer mais rápido do que Alex conseguia captar, enquanto apertava firme a mão melada de suor de Lynn. Ouviram frases assustadoras como "Vamos levá-la para a sala de cirurgia", "Insiram o cateter" e "Precisamos do formulário de consentimento". E a cama foi levada, a porta aberta e todos saíram apressados pelo corredor, direto para a sala de cirurgia.

O mundo transformou-se em um borrão de atividade. O tempo parecia acelerado e vagaroso ao mesmo tempo. E então, quando Alex estava prestes a perder as esperanças, ouviu as palavras mágicas:

- É uma menina. Vocês têm uma filha.

Os seus olhos encheram-se de lágrimas e ele virou-se para ver a filha. Ela estava coberta de sangue e avermelhada, assustadoramente quieta e silenciosa.

- Meu Deus - disse ele. - Lynn, é uma menina. - Mas Lynn não estava mais consciente.

Uma das parteiras embrulhou prontamente o bebê em uma manta e saiu às pressas. Alex levantou-se.

- Ela está bem? - Foi levado para fora da sala, aturdido. O que estava acontecendo com o seu bebê? Será que ela estava viva? - O que está acontecendo? - indagou ele.

A parteira sorriu.

- A sua filha está bem. Está respirando por conta própria, o que é uma das maiores preocupações nos bebês prematuros.

Alex deixou-se cair pesadamente em uma cadeira, com as mãos no rosto.

- Só quero que ela fique bem - disse ele, aos prantos.

- Ela está indo muito bem. Nasceu pesando dois quilos, o que é um bom sinal. Sr. Gilbey, já fiz o parto de alguns bebês prematuros e posso dizer que a sua garotinha é uma das mais fortes que eu já vi. Ainda é muito cedo, mas eu acho que ela vai ficar bem.

- Quando é que eu vou poder vê-la?

- O senhor pode ir lá embaixo na UTI neonatal, dar uma olhadinha nela. Ainda não vai poder segurá-la, mas como ela está conseguindo respirar sozinha, acho que amanhã mesmo, ou depois de amanhã, o senhor já vai poder colocá-la nos braços.

- E Lynn? - perguntou ele, sentindo-se subitamente culpado por não ter perguntado antes.

- Estão dando os pontos agora. Ela passou por maus bocados. Quando eles a trouxerem de volta, estará exausta e desorientada. E vai ficar triste por não poder ficar com o bebê. O senhor precisa ser forte, por ela.

Não conseguia lembrar de mais nada, a não ser do momento único em que olhou através do berço transparente e viu a sua filha pela primeira vez.

- Posso tocar nela? - perguntou, temeroso. A sua cabeça miudinha parecia incrivelmente vulnerável e os seus olhinhos estavam fechados, bem apertados. Mechas de cabelo preto estavam grudadas na sua cabeça.

- Dê o seu dedo para ela segurar - instruiu a parteira.

Ele esticou a mão, hesitante, acariciando a pele enrugada da mãozinha da filha. Os seus minúsculos dedinhos abriram-se e apertaram o dedo do pai. E Alex foi capturado.

Sentou-se ao lado de Lynn até ela acordar e então lhe contou sobre o milagre que era a sua filha. Pálida e exausta, Lynn chorou.

- Eu sei que a gente tinha combinado que ela se chamaria Ella, mas eu quero chamá-la de Davina. Por causa do Mondo - explicou ela.

Alex estremeceu. Não pensara em Mondo desde que chegara ao hospital.

- Ah, meu Deus - disse ele e a culpa devorou a sua alegria. - É uma boa ideia. Ah, Lynn, eu não sei o que dizer. A minha cabeça parece que vai explodir.

- Você devia ir para casa, dormir um pouco.

- Preciso dar uns telefonemas. Avisar às pessoas.

Lynn deu uma palmadinha na mão do marido.

- Isso pode esperar. Você precisa dormir. Está exausto.

E então ele partiu, prometendo voltar mais tarde. Mal havia alcançado a entrada do hospital, se deu conta que não tinha forças para ir para casa. Ainda não. Encontrou um banco e deixou-se desmaiar sobre ele, perguntando-se como conseguiria sobreviver nos próximos dias. Tivera uma filha, mas não estava com ela nos braços. Perdera outro amigo, e não conseguia sequer pensar nas consequências desta perda. E, de alguma maneira, precisava ser forte para ajudar Lynn. Até então, sempre vencera as dificuldades, protegido pela certeza de que Ziggy ou Lynn o ajudariam a se levantar quando a vida o derrubasse.

Pela primeira vez na sua vida adulta, Alex sentiu-se terrivelmente sozinho.

James Lawson ouviu a notícia da morte de David Kerr pelo rádio, a caminho do trabalho na manhã seguinte. Não pôde conter um sorriso impiedoso de satisfação. Demorara bastante, mas finalmente o assassino de Barney Maclennan tivera o que merecia. Então os seus pensamentos voltaram-se inquietos para Robin e para o motivo que ele lhe entregara de bandeja. Alcançou o telefone do carro. Assim que chegou à polícia, foi direto para o gabinete da revisão dos casos. Por sorte, Robin Maclennan ainda era a única pessoa na sala. Estava parado em frente à máquina de café, esperando a água quente passar pelo filtro e desaguar no recipiente abaixo. Encoberto pela máquina, Lawson aproximou-se sem ser percebido e Robin levou um susto quando o seu chefe perguntou, abruptamente:

- Já ficou sabendo?

- Do quê?

- David Kerr foi assassinado. - Lawson apertou os olhos, examinando o detetive minuciosamente. - Ontem à noite. Na casa dele.

Robin ergueu as sobrancelhas.

- O senhor está brincando.

- Acabei de ouvir no rádio. Liguei para Glasgow para confirmar se era o nosso David Kerr e, por incrível que pareça, era ele mesmo.

- O que aconteceu? - Robin virou-se de costas, adicionando algumas colheradas de açúcar na sua caneca de café.

- A princípio, foi um assalto que deu errado. Mas depois descobriram que ele foi apunhalado duas vezes. Bem, normalmente um ladrãozinho amador em pânico pode até desferir uma facada, mas depois ele vai dar no pé. Esse sujeito fez questão de garantir que Davey Kerr não ia ficar vivo para abrir a boca.

- O que o senhor quer dizer com isso? - perguntou Robin, apanhando a cafeteira.

- Não sou eu quem está dizendo, é a polícia de Strathclyde. Estão abertos a outras possibilidades. Foi exatamente o que me disseram. - Lawson ficou esperando, mas Robin não disse nada. - Onde você estava ontem à noite, Robin?

Robin lançou um olhar furioso para Lawson.

- Onde o senhor quer chegar com isso?

- Calma, cara. Não estou te acusando de nada, não. Mas, sejamos francos, se alguém aqui tem um motivo para matar Davey Kerr, esse alguém é você. Eu sei que você jamais faria isso. Estou do seu lado. Só quero ter certeza de que você tem um álibi, entendeu? - Pousou a mão no ombro de Robin, acalmando-o. - Você tem um álibi?

Robin deslizou a mão pelo cabelo.

- Meu Deus, não. Ontem foi aniversário da mãe de Diane e ela levou as crianças para Grangemouth. Eles só voltaram bem depois das onze horas. Fiquei sozinho em casa. - Robin franziu a testa, preocupado.

Lawson balançou a cabeça.

- Isso não é nada bom, Robin. A primeira coisa que eles vão perguntar é por que você também não foi para Grangemouth.

- Eu não me dou bem com a minha sogra. Nunca me dei. Então Diane usa o meu trabalho como desculpa quando eu não apareço. Mas essa não foi a primeira vez. Eu não tentei escapar para poder ir até Glasgow matar Davey Kerr, Deus me livre. - Ele cerrou os lábios. - Qualquer outra noite, eu estava safo. Mas logo ontem... Que merda. Estou ferrado se eles ficaram sabendo o que Kerr fez com Barney.

Lawson apanhou uma xícara e serviu-se do café.

- Não vão ficar sabendo por mim.

- O senhor sabe como é este trabalho. Parece uma central de fofocas. Tá na cara que alguém vai descobrir. Vão começar a fuçar o passado de Davey Kerr e alguém vai lembrar que o meu irmão morreu tentando salvá-lo após aquela tentativa de suicídio ridícula. O senhor, se estivesse encarregado do caso, não ia querer conversar com o irmão de Barney? Sondar se por acaso ele não havia decidido que estava na hora de acertar as contas? Eu disse e repito: estou ferrado. - Robin virou de costas, mordendo os lábios.

Lawson apoiou a mão no braço dele, solidário.

- Vamos fazer o seguinte. Se alguém de Strathclyde perguntar, você estava comigo.

Robin estava visivelmente chocado.

- O senhor vai mentir por mim?

- Nós dois vamos mentir. Porque nós dois sabemos que você não teve nada a ver com a morte de Davey Kerr. Veja a coisa pelo seguinte ângulo: estamos poupando o tempo da polícia. Assim eles não vão perder tempo e energia investigando você em vez de estarem procurando o assassino.

Robin assentiu com a cabeça, relutante.

- É, isso é. Mas...

- Robin, você é um bom tira. Um bom homem. Do contrário, eu não o teria na minha equipe. Acredito em você e não quero ver o seu nome na lama.

- Obrigado, senhor. Agradeço muito a sua confiança.

- Esquece isso. Para todos os efeitos, eu dei um pulo na sua casa, a gente tomou umas cervejas, jogou umas rodadas de pôquer. Você ganhou umas vinte pratas de mim e eu fui embora lá pelas onze. Que tal?

- Combinado.

Lawson sorriu, bateu levemente com a sua caneca na caneca de Robin e foi embora. Aquela era a marca da liderança para ele. Antecipar o que a sua equipe precisava e atender antes mesmo que ela percebesse que estava precisando.

Naquela noite, Alex pegou a estrada novamente, de volta para Glasgow. Por fim, chegou em casa, onde o telefone estava estourando de tanto tocar. Já havia falado com os avós maternos e paternos da criança. Os pais dele pareceram um pouco constrangidos por terem ficado tão contentes, levando em consideração o que acontecera em Glasgow. Já os pais de Lynn reagiram de forma confusa, arrasados com o pesadelo que era a morte do seu único filho. Ainda era muito cedo para que o nascimento do seu primeiro neto lhes desse algum conforto. E saber que a criança estava na UTI neonatal era apenas mais um motivo de pesar e medo. Os dois telefonemas deixaram Alex em um estado que ultrapassava o cansaço; estava praticamente um zumbi. Mandou um e-mail breve para os amigos e colegas de trabalho, comunicando o nascimento de Davina, desligou o telefone da tomada e caiu no sono.

Quando acordou, mal podia acreditar que havia dormido por apenas três horas. Estava tão descansado quanto se tivesse passado o dia inteiro dormindo. Tomou uma ducha, fez a barba, pegou um sanduíche pronto e a câmera digital antes de voltar para Edimburgo. Encontrou Lynn na UTI neonatal, em uma cadeira de rodas, contemplando alegremente a filha.

- Ela não é linda? - perguntou ela de cara.

- Claro que é. Você já a segurou no colo?

- O melhor momento da minha vida. Mas ela é tão pequenininha, Alex. Parece que a gente está abraçando o ar. - Ela lançou um olhar aflito para ele. - Ela vai ficar bem, não vai?

- Claro que vai. Os Gilbeys são lutadores. - Eles deram as mãos, torcendo para que ele estivesse certo.

Lynn olhou para ele, preocupada.

- Estou tão sem graça, Alex. O meu irmão morreu e tudo o que eu consigo pensar é em como eu amo Davina, em como ela é preciosa.

- Sei exatamente o que você está sentindo. Estou nas nuvens, aí alguma coisa me faz lembrar do que aconteceu com Mondo e eu despenco lá de cima. Não sei como a gente vai conseguir superar isso.

No fim da tarde, Alex também já tinha conseguido segurar a filha nos braços. Tirou várias fotos e a exibiu para os seus pais. Adam e Sheila Kerr não tiveram condições de ir até lá e a ausência deles fez com que Alex lembrasse que não podia ficar encasulado para sempre nos prazeres da paternidade recente. Quando a enfermeira trouxe o jantar de Lynn, ele se levantou.

- Tenho que voltar para Glasgow - disse ele. - Preciso ver se Hélène está bem.

- Você não precisa se responsabilizar por ela - reclamou Lynn.

- Eu sei disso. Mas ela ligou para a gente - lembrou ele. - A família dela está muito longe. Ela pode estar precisando de ajuda para resolver as coisas. E, além do mais, eu devo isso a Mondo. Não fui um bom amigo para ele nos últimos anos e não posso fazer nada a respeito agora. Mas ele era parte da minha vida.

Lynn contemplou o marido com um sorriso triste e lágrimas nos olhos.

- Pobre Mondo. Não consigo parar de pensar em como ele deve ter ficado assustado no fim. E morrer sem ter a oportunidade de ficar bem com as pessoas que você ama... E Hélène, eu nem consigo imaginar como deve ser. Quando eu penso em como me sentiria se alguma coisa acontecesse com você ou com Davina...

- Não vai acontecer nada comigo. Nem com Davina - afirmou Alex. - Eu prometo.

Enquanto cobria a distância entre a alegria e o pesar, lembrava-se daquela promessa. Era difícil não se sentir atordoado com as mudanças recentes em sua vida. Mas ele não podia se dar ao luxo de sucumbir. Havia muita coisa dependendo dele agora.

Ao aproximar-se de Glasgow, ligou para Hélène. A secretária eletrônica o redirecionou para o celular dela. Xingando, ele encostou o carro e ouviu a mensagem novamente, anotando o número. Ela atendeu no segundo toque.

- Alex? Como está Lynn? O que aconteceu?

Ficou surpreso. Sempre considerara Hélène obcecada demais com os próprios problemas para se preocupar com alguém que não fosse ela mesma ou Mondo. O fato de a preocupação com Lynn e o bebê ter se instalado tão profundamente na sua dor, a ponto de ser a primeira coisa mencionada por ela, deixou Alex impressionado.

- Tivemos uma filha. - Aquelas eram as palavras mais importantes que ele proferira na vida. Sentiu um aperto na garganta. - Mas como ela nasceu prematura, tiveram que levar para a incubadora. Mas ela está indo bem. E é linda.

- E como está Lynn?

- Machucada. Em todos os sentidos. Mas está bem. E você?

- Nada bem. Mas estou me virando, eu acho.

- Escuta, estou indo aí te ver. Onde você está?

- A casa ainda está interditada como local do crime, ao que parece. Só vou poder voltar amanhã. Estou na casa da minha amiga Jackie. Ela mora em Merchant City. Você quer vir até aqui?

Alex não estava muito propenso a dar de cara com a mulher com que Hélène traíra Mondo. Chegou a pensar em sugerir um local neutro, mas soaria bastante insensível naquelas circunstâncias.

- Me dá o endereço - disse ele.

Não foi difícil encontrar o apartamento. Ele ocupava metade do segundo andar de um armazém convertido em residência, muito popular entre os solteiros da cidade. A mulher que abriu a porta não podia ser menos parecida com Hélène. Usava uma calça jeans velha, desbotada e desfiada nos joelhos. A sua camiseta regata anunciava que ela era "100% Grrrrl" e revelava músculos capazes de levantar o seu próprio peso em halteres sem derramar uma gota de suor. Abaixo de cada bíceps, uma intrincada tatuagem em forma de bracelete celta. O seu cabelo curto e negro estava espetado para cima com gel e o seu olhar era mordaz. As sobrancelhas escuras estavam franzidas sobre os seus olhos azul-acinzentados e em sua boca não havia nenhum sorriso acolhedor.

- Você deve ser o Alex - disse ela, deixando instantaneamente óbvias as suas raízes de Glasgow. - É melhor você entrar.

Alex a acompanhou por um típico loft que jamais agraciaria as páginas das revistas de decoração de interiores. Esqueça o modernismo estéril: aquele era o habitat de alguém que sabia exatamente do que gostava e como gostava. Uma das paredes estava coberta de cima a baixo por estantes, abarrotadas de livros, vídeos, CDs e revistas desorganizadas. Em frente, um aparato compacto de ginástica que permitia realizar diversos exercícios, com alguns halteres soltos de qualquer jeito no chão. A área da cozinha exibia o tipo de desarrumação típica do uso frequente e a sala de estar estava mobiliada com sofás que apelavam mais para o conforto do que para a elegância. Uma mesa de centro estava soterrada por pilhas de jornais e revistas. As paredes eram decoradas com fotografias emolduradas de mulheres esportistas, de Martina Navratilova a Ellen MacArthur.

Hélène estava encolhida no canto de um sofá de tapeçaria cujos braços atestavam a presença de um gato. Alex atravessou o chão de madeira polida até a sua cunhada, que suspendeu o rosto para a tradicional troca de beijos no ar. Os seus olhos estavam inchados e escuros, mas, fora isso, Hélène parecia ter voltado ao seu normal.

- Fico feliz por você estar aqui - disse ela. - Obrigada por ter vindo, quando você deveria estar curtindo o seu bebê.

- Como eu disse, ela ainda está na UTI neonatal. E Lynn está exausta. Imaginei que seria mais útil aqui. Mas... - ele lançou um sorriso para Jackie. - Vejo que você está sendo bem cuidada.

Jackie deu de ombros, sem desanuviar a sua expressão de hostilidade.

- Eu trabalho como jornalista freelancer, então posso manter o meu horário bem flexível. Você quer beber alguma coisa? Tem cerveja, uísque e vinho.

- Prefiro um café.

- Não temos café. Pode ser chá?

Nada como se sentir bem recebido, pensou ele.

- Chá está ótimo. Com leite, sem açúcar, por favor. - Sentou-se na outra extremidade do sofá, longe de Hélène. Os olhos dela davam a impressão de ter visto mais do que gostaria. - Como você está?

Os seus cílios tremelicaram.

- Estou tentando não sentir nada. Não quero pensar em David, porque o meu coração fica apertado. Não consigo acreditar que o mundo vai continuar sem ele. Mas preciso passar por isso sem me desesperar. A polícia está sendo horrível, Alex. Lembra daquela garota sem graça, parada no canto da sala ontem?

- A policial?

- Exatamente. - Hélène bufou de escárnio. - Acontece que ela estudou francês no colégio. Ela entendeu a nossa conversa ontem à noite.

- Putz, que merda.

- Que merda mesmo. O detetive encarregado do caso esteve aqui pela manhã. Falou comigo primeiro, queria saber sobre a minha relação com Jackie. Disse que não adiantava mentir porque a policial escutou tudo ontem. Então, eu contei a verdade. Ele foi muito gentil, mas deu para perceber que estava desconfiado.

- Você perguntou o que aconteceu com o Mondo?

- É claro que sim. - O rosto dela enrijeceu, pesaroso. - Ele disse que ainda não podia me adiantar grande coisa. O vidro da porta da cozinha foi mesmo quebrado, possivelmente por um ladrão. Mas eles não encontraram nenhuma impressão digital. A faca usada para golpear David foi tirada de um conjunto de facas da cozinha. Ele disse que, ao que parece, David ouviu um barulho e desceu para investigar. Mas ele enfatizou bem as palavras, Alex. Ao que parece.

Jackie voltou trazendo uma caneca na qual um decalque de Marilyn Monroe havia sido prejudicado pela lava-louças. O chá era forte, bem escuro.

- Obrigado - disse Alex.

Jackie acomodou-se no braço do sofá, com uma das mãos no ombro de Hélène.

- São uns homens das cavernas mesmo. Só porque a mulher tem uma amante, acham logo que ela ou a amante querem se livrar do marido. Eles não conseguem vislumbrar um mundo onde pessoas adultas fazem escolhas mais complexas do que estas. Eu tentei explicar ao policial que era possível fazer sexo com uma pessoa sem querer eliminar os outros parceiros dela. O babaca me olhou como se eu fosse de outro planeta.

Alex tinha que concordar com o policial naquele ponto. O fato de ser casado com Lynn não o deixara imune aos encantos de outras mulheres. Mas fazia com que ele repudiasse a ideia de tomar alguma atitude a respeito. No universo dele, amantes eram para pessoas que estavam com o parceiro errado. Imaginava como ficaria arrasado se Lynn um belo dia anunciasse que estava dormindo com outra pessoa. Sentiu uma pontada de pena por Mondo.

- Vai ver que eles ainda não têm nada em vista, por isso estão mantendo o foco em você - disse ele.

- Mas eu sou a vítima nessa história, não a criminosa - respondeu Hélène, amarga. - Não fiz nada contra David. Mas é impossível provar o contrário. Você mesmo sabe muito bem como é difícil dispersar a suspeita depois que apontam o dedo para você. Isso deixou David tão perturbado que ele tentou até se matar.

Alex estremeceu sem querer, diante daquela lembrança.

- Não vai chegar a este ponto.

- Pode ter certeza que não - acudiu Jackie. - Amanhã cedo vou conversar com um advogado. Não vou ficar de braços cruzados.

Hélène pareceu preocupada.

- Tem certeza de que é uma boa ideia?

- Por que não? - perguntou Jackie.

- A gente não tem que contar tudo ao advogado? - Hélène lançou um estranho olhar de soslaio para Alex.

- Sim, mas existe o privilégio advogado-cliente - disse Jackie.

- Qual é o problema? - perguntou Alex. - Tem alguma coisa que você não me contou, Hélène?

Jackie suspirou e girou os olhos.

- Deus do céu, Hélène.

- Tudo bem, Jackie. Alex está do nosso lado.

Jackie lançou um olhar que deixava bem claro que ela decifrava Alex melhor do que a sua amante.

- O que você não me contou? - perguntou ele.

- Não é da sua conta, tá bem? - disse Jackie.

- Jackie! - protestou Hélène.

- Deixa pra lá, Hélène. - Alex levantou-se do sofá. - Eu não tenho obrigação nenhuma de estar aqui, sabe - disse ele para Jackie. - Mas achei que vocês precisariam de todos os amigos possíveis numa hora destas. Especialmente na família de Mondo.

- Jackie, conta pra ele - disse Hélène. - Senão ele vai sair daqui achando que a gente realmente está escondendo alguma coisa.

Jackie encarou Alex.

- Tive que sair por mais ou menos uma hora ontem à noite. Eu estava sem erva e a gente queria fumar um baseado. O sujeito que arruma drogas para mim não é do tipo que fornece álibis. E, mesmo que ele fornecesse, a polícia não ia acreditar nele. Então, tecnicamente, qualquer uma de nós poderia ter matado David.

Alex sentiu os pelos da sua nuca se arrepiarem. Lembrou-se de um momento, na noite anterior, quando chegou a questionar se Hélène o estava manipulando.

- Vocês deviam contar isso para a polícia - disse ele, abruptamente. - Se descobrirem que vocês mentiram, nunca vão acreditar que são inocentes.

- E você está acreditando muito, né? - desafiou Jackie, com desdém.

Alex não estava gostando nada do clima de hostilidade à sua volta.

- Olha, eu vim aqui para ajudar, não para ficar levando fora - respondeu ele, ríspido. - Eles falaram alguma coisa sobre a liberação do corpo?

- Iam fazer a autópsia hoje de tarde. Depois disso, parece que já podemos começar os preparativos para o funeral. - Hélène esticou as mãos. - Nem sei para quem ligar. O que devo fazer, Alex?

- Acho que dá para encontrar um agente funerário nas Páginas Amarelas. Coloque o anúncio do óbito no jornal, depois entre em contato só com os amigos mais íntimos e os parentes. Se você quiser, eu posso me encarregar da família.

Ela concordou com a cabeça.

- Vai ser uma ajuda e tanto.

Jackie reagiu, debochada.

- Aposto que eles não vão ficar tão interessados em falar com Hélène depois que ficarem sabendo sobre mim.

- Melhor evitar isso. Os pais de Mondo já têm problemas demais - disse Alex, friamente. - Hélène, você precisa arrumar um lugar para a recepção.

- Recepção? - perguntou ela.

- Depois do funeral - explicou Jackie.

Hélène fechou os olhos.

- Não acredito que estamos aqui falando sobre recepção enquanto o meu David está estirado numa mesa de necrotério.

- Bem... - disse Alex. Não precisava dizer o que estava pensando; a culpa pairava no ar entre os três. - Melhor eu ir embora.

- Ela já tem nome, a sua filha? - perguntou Hélène, visivelmente buscando um assunto mais ameno.

Alex lançou um olhar apreensivo para a cunhada.

- Nós íamos chamá-la de Ella. Mas pensamos melhor e... bom, Lynn quis chamá-la de Davina. Em homenagem a Mondo. Se você não se incomodar, é claro.

Os lábios de Hélène tremeram e os olhos ficaram rasos d’água.

- Oh, Alex. Sinto muito por nunca termos arrumado tempo para sermos mais amigos de você e de Lynn.

Alex balançou a cabeça.

- Para quê? Para que nos sentíssemos igualmente traídos?

Hélène encolheu-se, como se tivesse sido fisicamente golpeada. Jackie avançou em direção a Alex, fechando as mãos em punho.

- Acho que está na hora de você ir embora.

- Também acho - respondeu ele. - Vejo vocês no funeral.


31

O subchefe de polícia Lawson apanhou a pasta sobre a mesa.

- Eu estava contando com isso - suspirou ele.

- Eu também, senhor - confessou Karen Pirie. - Eu sei que eles não conseguiram nenhuma amostra biológica no cardigã naquela época, mas imaginei que com o equipamento sofisticado de hoje pudesse haver vestígio de alguma coisa que pudéssemos usar. Sêmen ou sangue. Mas não encontraram nada, a não ser estas gotinhas de tinta esquisitas.

- Que já havíamos detectado naquela época. E que não adiantou muito também. - Lawson abriu a pasta despretensiosamente e passou os olhos no breve relatório. - O problema é que o cardigã não foi encontrado com o corpo. Se eu me lembro direito, foi jogado por cima de uma cerca no jardim de alguém.

Karen assentiu.

- Número 15. E eles só acharam mais de uma semana depois. Àquela altura, já tinha nevado, derretido a neve e chovido, o que não ajudou em nada. O cardigã foi identificado pela mãe de Rosie, que afirmou ser o que ela estava usando quando saiu naquela noite. Nunca achamos a bolsa, nem o casaco. - Karen consultou a gorda pasta sobre o seu colo, virando as páginas. - Um casaco 7/8 marrom, de corte trapézio, da C&A, com um forro de pied-de-poule creme e marrom.

- Nunca achamos porque nem sabíamos onde procurar. Porque não sabíamos em que lugar ela foi morta. Depois que saiu do Lammas, ela pode ter sido levada para qualquer lugar a mais ou menos uma hora de distância de carro. Para Dundee, depois da ponte ou para o centro de Fife. Em qualquer lugar, de Kirriemuir a Kirkcaldy. Pode ter sido assassinada em um barco, em um estábulo, em qualquer lugar. A única coisa que conseguimos descobrir com certeza é que ela não foi morta na casa em Fife Park onde Gilbey, Malkiewicz, Kerr e Mackie moravam. - Lawson devolveu o relatório para Karen.

- Só por curiosidade, senhor... vocês chegaram a vasculhar outras casas em Fife Park?

Lawson franziu a testa.

- Acho que não. Por quê?

- É que me ocorreu uma coisa. O crime aconteceu durante as férias da universidade. Muitos alunos já tinham viajado para passar o Natal com as suas famílias. Pode ser que algumas casas estivessem vazias por lá.

- Mas deviam estar fechadas. Se tivesse ocorrido algum arrombamento em Fife Park, nós teríamos ficado sabendo.

- Bom, sabe como são os estudantes, senhor. Vivem uns nas casas dos outros. Não devia ser muito difícil arrumar uma chave. Além do mais, os quatro estavam no último ano. Eles podem muito bem ter guardado a chave de uma das casas onde se alojaram nos anos anteriores.

Lawson lançou um olhar de apreciação para Karen.

- É uma pena você não ter feito parte da investigação naquela época. Acho que ninguém nunca nem pensou nesta hipótese. Agora já é tarde demais, obviamente. E então, como vai a busca pelas provas? Você já terminou?

- Eu tirei uma folga no Natal e no Ano-Novo - justificou ela, defensiva. - Mas fiquei até tarde ontem à noite e terminei tudo.

- Então é isso? As provas concretas do caso Rosie Duff desapareceram do nada, sem deixar vestígios?

- Ao que parece, senhor. A última pessoa a ter acesso à caixa foi o detetive Maclennan, uma semana antes de morrer.

Lawson levantou a cabeça.

- Você não está insinuando que Barney Maclennan sumiu com as provas de um homicídio, está?

Karen corrigiu-se, imediatamente. A última coisa que queria era dar a impressão de que estava levantando suspeitas sobre um colega que morrera como herói.

- Não, senhor, de modo algum. Só quis dizer que, seja lá o que tenha acontecido com as roupas de Rosie Duff, não existe nenhuma papelada oficial a respeito.

Ele suspirou novamente.

- Deve ter existido sim, há muito tempo. E deve ter ido parar no lixo, a esta altura. Vou te contar, às vezes eu fico até desconfiado. Alguns dos sujeitos que trabalham para a gente...

- Bom, outra hipótese é a do detetive Maclennan ter encaminhado as provas para outros testes adicionais e elas nunca mais terem voltado, porque ele não estava mais lá para cobrar. Ou então, desapareceram porque ele não estava mais lá para receber - sugeriu Karen, cautelosa.

- É uma possibilidade. Mas, de qualquer maneira, você não vai conseguir encontrá-las agora. - Lawson tamborilou os dedos na mesa. - Bom, então é isso. Um caso não resolvido que vai continuar mal resolvido. Não estou com a menor pressa de comunicar isso ao filho dela também. Ele tem ligado todos os dias, querendo saber em que pé estamos.

- Até agora não consigo acreditar que o patologista não percebeu que ela teve um filho - disse Karen.

- Na sua idade, eu diria a mesma coisa - admitiu Lawson. - Mas ele já era um senhor bem idoso e pessoas idosas podem cometer erros idiotas. Sei bem disso agora, porque estou indo pelo mesmo caminho. Sabe, às vezes fico me perguntando se este caso não estava fadado ao fracasso desde o início.

Karen podia perceber a sua decepção. E ela sabia bem o que era aquilo, pois sentia a mesma coisa.

- O senhor não acha que vale a pena conversar com as testemunhas novamente? Os quatro estudantes?

Lawson fez uma careta.

- Isso vai ser difícil.

- Como assim, senhor?

Ele abriu a gaveta e apanhou um exemplar do Scotsman, datado de três dias antes. Estava aberta na página dos obituários. Ele estendeu o jornal para Karen, apontando para uma notícia em particular.

KERR, DAVID MCKNIGHT. Comunicamos o falecimento do Dr. David Kerr, de Carden Grove, Bearsden, Glasgow, amantíssimo esposo de Hélène, irmão de Lynn e filho de Adam e Sheila Kerr, de Duddingston Drive, Kirkcaldy. O funeral será realizado na próxima quinta-feira, às 14:00, no Crematório de Glasgow, Western Necropolis, Tresta Road. Flores somente dos familiares.

Karen olhou para Lawson, surpresa.

- Mas ele não devia ter mais de quarenta e seis, quarenta e sete anos, não é? Muito jovem para morrer.

- Você devia prestar mais atenção nas notícias, Karen. Você não ficou sabendo do professor da Universidade de Glasgow que morreu esfaqueado na cozinha, atacado por um ladrão na noite de quinta-feira?

- Aquele era o nosso David Kerr? O que eles chamavam de Mondo?

Lawson assentiu.

- O diamante louco em pessoa. Falei com o detetive encarregado do caso na segunda-feira. Só para ter certeza absoluta. Parece que eles não estão nem um pouco convencidos de que foi mesmo um assalto. A mulher estava pulando a cerca.

Karen fez uma careta.

- Espertinha.

- Bastante. Então, quer dar um pulo em Glasgow hoje à tarde? Acho que seria de bom tom prestarmos as últimas homenagens a um de nossos suspeitos.

- O senhor acha que os outros três vão aparecer por lá?

Lawson deu de ombros.

- Eles eram muito amigos, mas isso foi há vinte e cinco anos. Vamos ter que pagar para ver, sabe? Mas acho que não vai dar para conversar com ninguém hoje. Vamos ter de esperar a poeira baixar. Afinal, não queremos ser acusados de insensíveis, não é mesmo?

O crematório estava lotado e as pessoas que não conseguiram um lugar para sentar tiveram de ficar em pé. Mondo podia até ter cortado os laços com a família e os velhos amigos, mas aparentemente não tivera muita dificuldade em substituí-los. Alex sentou-se no banco da frente, com Lynn aconchegada ao seu lado. Ela havia saído do hospital dois dias antes, mas ainda se movimentava como uma senhora de idade. Alex tentou convencê-la a ficar em casa descansando, mas ela não queria nem pensar em perder o funeral do seu único irmão. Além do mais, argumentara que sem o bebê em casa para tomar conta, ela ia ficar sentada olhando para ontem. Preferia estar perto da sua família. Alex não arrumara nenhum argumento para dissuadi-la. E lá estava ela, segurando a mão do pai, que estava em estado de choque, tentando confortá-lo em uma inversão dos tradicionais papéis de pai e filha. A sua mãe estava ao lado, com o rosto praticamente escondido atrás das dobras de um lenço branco.

Hélène estava sentada um pouco mais adiante, de cabeça baixa, ombros arriados. Ela parecia bastante fechada, como se houvesse colocado uma barreira entre si mesma e o mundo. Pelo menos tivera o bom senso de não chegar no funeral de braço dado com Jackie. Ela ficou de pé quando o pastor anunciou o cântico final.

A abertura sonora do salmo vinte e três fez com que Alex sentisse um bolo na garganta. O cântico começou um pouco vacilante enquanto as pessoas encontravam o tom, mas depois cresceu, envolvendo-o completamente. Que clichê, pensou ele, com raiva de si mesmo por estar comovido pelo tradicional hino fúnebre. A cerimônia de Ziggy fora muito mais honesta, uma homenagem de verdade e não aquela superficialidade arranjada às pressas. Pelo que ele sabia, Mondo jamais pisara em uma igreja, a não ser para os tradicionais ritos de passagem. As pesadas cortinas abriram-se e o caixão começou a sua viagem derradeira.

Os acordes do último verso foram morrendo conforme as cortinas iam se fechando, encobrindo o caixão. O pastor entoou a sua bênção, depois afastou-se pelo corredor central. Logo em seguida, a família e, por último, Alex amparando Lynn. A maioria dos rostos espalhados pelos bancos não passava de um borrão mas, entre eles, Alex reconheceu imediatamente a figura magricela de Esquisito. Cumprimentaram-se brevemente com um aceno de cabeça e Alex continuou caminhando até a porta. Um pouco antes de sair, teve uma segunda surpresa. Embora não visse James Lawson desde a época em que o chamavam de Jimmy, reconhecia o seu rosto dos jornais. Que mau gosto, pensou Alex, posicionando-se no final da fila dos cumprimentos. Casamentos e funerais exigem a mesma etiqueta: era preciso agradecer a presença das pessoas.

Parecia não acabar nunca mais. Sheila e Adam Kerr pareciam totalmente desnorteados. Perder um filho naquelas circunstâncias brutais já era ruim o bastante; pior ainda era ter de receber pêsames de gente que nunca haviam visto e que jamais veriam novamente. Alex gostaria de saber se eles sentiam algum conforto ao ver quantas pessoas haviam aparecido para dar o seu último adeus. Para Alex, aquilo só servia para fazer com que ele recordasse a distância que o separara de Mondo nos últimos anos. Não conhecia quase ninguém.

Esquisito fora um dos últimos na fila dos cumprimentos. Abraçou Lynn com delicadeza.

- Meus pêsames - disse ele. Apertou a mão de Alex e tocou levemente no seu cotovelo. - Estou te esperando lá fora. - Alex assentiu com a cabeça.

Finalmente, os últimos retardatários foram embora. Estranho, pensou Alex. Nada de Lawson. Ele deve ter saído por outra porta. Melhor assim. Tinha lá as suas dúvidas se conseguiria ser educado. Alex escoltou o sogro e a sogra até o carro funerário, avançando por um grupo cabisbaixo. Ajudou Lynn a entrar no carro, verificou se estava tudo direitinho e então disse:

- Encontro com vocês lá no hotel. Preciso me certificar de que está tudo bem por aqui.

Sentiu-se envergonhado ao experimentar uma sensação de alívio tão logo o carro afastou-se da calçada. Deixara o seu próprio carro ali mais cedo, para garantir que não ficaria a pé caso alguma coisa acontecesse após o funeral. Lá no fundo, sabia que fizera isso porque precisava de uma folga daquela dor sufocante que se abatera sobre a sua família.

Um tapinha no seu ombro fez com que ele virasse para trás.

- Ah, é você - disse ele, quase rindo de alívio ao ver o rosto de Esquisito.

- Ué, quem mais você pensava que fosse?

- Bem, Jimmy Lawson estava escondidinho lá atrás no crematório.

- Jimmy Lawson, o tira?

- Tira, uma vírgula. Subchefe de polícia James Lawson agora - disse Alex afastando-se da entrada principal e caminhando até o local onde estavam as flores.

- E o que ele veio fazer aqui?

- Tripudiar da gente. Sei lá. Ele está encarregado da revisão dos casos. Talvez quisesse dar uma olhadinha nos seus principais suspeitos, na esperança de que em um momento de comoção fôssemos nos ajoelhar e confessar nossos pecados.

Esquisito fez uma cara feia.

- Jamais gostei desta baboseira católica. Devemos ser adultos o suficiente para lidarmos com as nossas culpas. Não é tarefa de Deus zerar o nosso placar para que possamos voltar a pecar novamente. - Ficou mudo e virou-se para Alex. - Quero que você saiba que estou muito feliz por Lynn ter tido um bom parto e pelo nascimento da sua filha.

- Obrigado, Tom. - Alex abriu um sorriso. - Viu só? Eu me lembrei.

- O bebê ainda está no hospital?

Alex suspirou.

- Ela ainda está muito fraquinha, então vai ficar no hospital mais uns dias. Mas não é fácil, sabe? Principalmente para Lynn. Passar por tudo aquilo e ainda voltar para casa de mãos abanando. E ainda ter que lidar com o que aconteceu com Mondo...

- Vocês vão esquecer todo este sofrimento quando o bebê estiver em casa, eu prometo. Vou me lembrar de vocês em todas as minhas orações.

- E isso vai fazer a maior diferença, hein? - disse Alex.

- Você vai ficar surpreso - respondeu Esquisito, sem se ofender. Continuaram caminhando, olhando para as homenagens. Um sujeito abordou Alex, querendo saber como chegar ao hotel onde organizaram a recepção. Quando Alex se virou para Esquisito novamente, viu o amigo agachado em frente a um dos arranjos. Quando chegou perto o bastante para verificar o que havia chamado a atenção de Esquisito, sentiu o coração disparar no peito. Era um arranjo de flores idêntico ao que haviam visto em Seattle: uma elegante e bem armada coroa de rosas brancas e alecrim. Esquisito apanhou o cartão e ficou de pé. - A mesma mensagem - disse ele, passando o cartão para Alex. - Lembrança de Rosemary.

Alex estava suando frio.

- Não estou gostando nada disso.

- Nem eu. Isso aqui é coincidência demais, Alex. E tanto Ziggy como Mondo morreram em circunstâncias suspeitas... Que diabos, vamos falar a verdade: Ziggy e Mondo foram assassinados. E a mesma coroa aparece nos dois funerais. Com uma mensagem que tem a ver com nós quatro e o assassinato nunca resolvido de Rosie Duff.

- Mas isso já tem vinte e cinco anos. Se alguém quisesse se vingar, teria se vingado antes, você não acha? - disse Alex, tentando convencer Esquisito e a si mesmo. - Deve ser só alguém tentando nos assustar.

Esquisito balançou a cabeça.

- Você teve outras coisas para pensar nesses últimos dias, mas eu não consigo tirar isso da cabeça. Há vinte e cinco anos, todos estavam de olho na gente. Eu não me esqueci daquela surra que levei. Não me esqueci da noite em que jogaram Ziggy na Masmorra da Garrafa. Não me esqueci como Mondo ficou tão magoado que tentou até se matar. O único motivo de tudo aquilo ter acabado foi a ameaça que os policiais fizeram a Colin e Brian Duff. Eles foram obrigados a nos deixar em paz. Foi você mesmo quem me disse naquela época que Jimmy Lawson te contou que eles só desistiram da gente porque não queriam que a mãe sofresse mais ainda. Vai ver que resolveram esperar.

Alex balançou a cabeça.

- Mas vinte e cinco anos? É possível guardar um ressentimento por vinte e cinco anos?

- Eu não sou a pessoa certa para responder a esta pergunta. Mas tem muita gente aí que não aceitou Jesus Cristo como salvador e você sabe tão bem quanto eu, Alex, que pessoas assim são capazes de qualquer coisa. A gente não sabe o que se passou na vida deles. Talvez tenha acontecido alguma coisa e reacendido todo o ódio. Talvez a mãe tenha morrido. Talvez a revisão dos casos tenha feito com que se lembrassem que tinham contas a acertar e que agora era mais seguro tomar uma atitude. Eu não sei. O que eu sei é que isso está me parecendo que tem alguém atrás da gente. E, seja lá quem for, tem tempo e recursos a seu favor. - Esquisito olhou à sua volta, nervoso, como se o inimigo pudesse estar ali entre os presentes que se afastavam para pegar os seus carros.

- Agora você está paranoico. - Aquela não era exatamente uma das características da juventude de Esquisito que Alex gostaria de recordar naquele momento.

- Não acho, não. Acho que sou o único com bom senso aqui.

- Tá, e o que você sugere que a gente faça?

Esquisito apertou o casaco contra o peito.

- Pretendo me enfiar em um avião amanhã cedo e voltar para os Estados Unidos. Quando chegar lá, vou mandar minha mulher e meus filhos para algum lugar seguro. Existem bons cristãos morando no meio do mato. Ninguém vai encontrá-los.

- E você? - Alex podia sentir as suspeitas de Esquisito o contaminando como um vírus.

Esquisito abriu o seu familiar sorriso maroto.

- Eu vou para um retiro. Os fiéis entendem que, de vez em quando, nós temos que sumir do mapa para restabelecermos contato com a nossa espiritualidade. E é isso o que eu vou fazer. A melhor coisa de pregar na televisão é que você pode gravar o programa de qualquer lugar. Então o meu rebanho não vai se esquecer de mim enquanto eu estiver fora.

- É, mas você não pode passar a vida inteira se escondendo. Mais cedo ou mais tarde, vai ter que voltar para casa.

Esquisito concordou com um gesto de cabeça.

- Eu sei disso. Mas eu não vou ficar de braços cruzados, Alex. Assim que eu e minha família estivermos fora da linha de fogo, vou contratar um detetive particular e descobrir quem mandou a coroa para o funeral de Ziggy. Porque quando eu souber disso, vou saber quem procurar.

Alex exalou o ar nervosamente.

- Você já pensou em tudo, hein?

- Quanto mais eu pensava naquela coroa, mais ficava intrigado. E Deus ajuda a quem se ajuda, então eu arquitetei o meu plano. Por precaução. - Esquisito pousou a mão no braço de Alex. - Alex, eu sugiro que faça o mesmo. Você não tem que pensar só em você agora. - Esquisito lhe deu um abraço apertado. - Cuide-se, está bem?

- Comovente pra cacete - disse uma voz, asperamente.

Esquisito soltou Alex e olhou para trás. No início, não reconheceu o homem sorridente que os encarava. Mas logo a sua memória voltou no tempo e ele estava novamente do lado de fora do Lammas, aterrorizado e ferido.

- Brian Duff - disse Esquisito, ofegante.

Alex olhou para o amigo e para o sujeito na sua frente.

- Esse é o irmão de Rosie?

- Isso aí.

As emoções confusas que atormentavam Alex há dias subitamente se transformaram em ira.

- Veio aqui comemorar a desgraça alheia, né?

- Justiça poética, não é assim que se diz? Um assassino de merda vem dar o seu último adeus a outro. Podes crer, vim comemorar mesmo.

Alex investiu contra ele, mas Esquisito conseguiu conter o amigo segurando firmemente no seu braço.

- Deixa pra lá, Alex. Brian, nenhum de nós encostou em um fio de cabelo da sua irmã. Eu sei que você quer arrumar alguém em quem colocar a culpa, mas não fomos nós. Você precisa acreditar nisso.

- Não preciso acreditar em nada. - Ele cuspiu no chão. - Eu realmente esperava que os tiras fossem prender pelo menos um de vocês agora. Já que isso não vai acontecer mesmo, é melhor ver vocês morrendo.

- É claro que não vai acontecer. Nunca encostamos na sua irmã e tem o DNA agora para provar isso - gritou Alex.

Brian bufou.

- Que DNA? Os babacas perderam as provas.

Alex estava boquiaberto.

- O quê? - perguntou, quase sem voz.

- Isso mesmo que você ouviu. Vocês continuam salvos. - Brian contorceu a boca em um sorriso debochado. - Já o amiguinho de vocês não teve a mesma sorte, né? - Ele girou nos calcanhares e partiu, sem olhar para trás.

Esquisito balançou a cabeça lentamente.

- Você acredita nele?

- Por que ele mentiria? - suspirou Alex. - Pior é que eu realmente achava que agora a gente ia se livrar, sabe? Como é que eles podem ter sido tão incompetentes? Como é que foram perder a única prova que poderia ter colocado um fim em tudo isso? - Ele fez um gesto para a coroa de flores.

- Não sei por que você está tão surpreso. Até parece que naquela época eles foram muito eficientes. Por que seria diferente agora? - Esquisito puxou a gola do casaco. - Alex, sinto muito, mas eu preciso me mandar. - Despediram-se com um aperto de mãos. - Dou notícias.

Alex continuou imóvel no mesmo lugar, impressionado com a rapidez com que o seu mundo virara de cabeça para baixo. Se Brian Duff não estava mentindo, será que aquelas coroas sinistras tinham alguma coisa a ver com o que ele acabara de contar? E, se tivessem, será que o pesadelo não acabaria enquanto ele e Esquisito continuassem vivos?

Sentado em seu carro, Graham Macfadyen observava tudo. As coroas de flores eram um toque de gênio. E valia a pena aproveitar cada oportunidade para comprovar isso. Não pudera estar em Seattle para conferir o efeito da primeira, mas não tinha mais dúvidas de que Mackie e Gilbey tinham captado a mensagem daquela vez. E isso significava que havia de fato uma mensagem a ser captada. Sujeitos inocentes não teriam ficado tão apavorados com aquele lembrete.

Ver a reação dos dois praticamente compensou o repugnante desfile de hipocrisia que ele teve de aturar no crematório. O pastor obviamente não conhecera David Kerr em vida, então não era de admirar que tivesse conseguido transformá-lo em um santo após a morte. Mas Macfadyen ficara enojado ao ver como todos os presentes concordavam com a cabeça, engolindo aquela baboseira, suas expressões pias concordando com aquela ficção hipócrita.

Ficou imaginando como reagiriam se ele tivesse ido lá na frente e contado toda a verdade. "Senhoras e senhores, estamos reunidos aqui hoje para cremar um assassino. O homem que vocês pensavam que conheciam passou a sua vida adulta inteira mentindo para vocês. David Kerr fingia ser um respeitável membro da comunidade. Mas a verdade é que há muitos anos ele participou do estupro e do assassinato brutal da minha mãe, pelo qual nunca foi punido. Então, quando forem lembrar dele a partir de agora, lembrem-se disso." Ah, um discurso assim com certeza teria acabado com aquelas expressões de tristeza reverente. Ele quase desejou ter feito isso.

Mas teria sido uma alegria fugaz. Não era inteligente ficar se vangloriando antes da hora. Melhor permanecer nas sombras. Até mesmo porque o seu tio aparecera lá para falar por ele. Não fazia a menor ideia do que tio Brian tinha dito a Gilbey e a Mackie. Mas servira para fazer com que tremessem nas bases. Não tinham mais como esquecer o que fizeram anos atrás. Ficariam acordados naquela noite, se perguntando quando o passado finalmente os alcançaria. E esta era uma perspectiva agradável para Macfadyen.

Observou Alex Gilbey indo buscar o seu carro, aparentemente ignorando tudo ao seu redor. "Ele nem imagina que eu existo", murmurou ele. "Mas eu existo, Gilbey. Eu existo." Ligou o motor e partiu para a recepção dos convidados para o funeral. Era impressionante o quão fácil era infiltrar-se na vida das pessoas.


32

A enfermeira disse a eles que Davina estava fazendo progressos. Já conseguia respirar direitinho sem o oxigênio e a sua icterícia estava respondendo bem às luzes fluorescentes que iluminavam o seu pequeno leito o dia inteiro. Quando segurou a filha nos braços, Alex pôde esquecer a depressão que o funeral de Mondo trouxera consigo e a aflição que a reação de Esquisito às flores havia gerado. A única coisa melhor do que estar sentado com a sua mulher e sua filha na unidade neonatal seria estar fazendo exatamente a mesma coisa na sua própria casa. Assim pensava ele, pelo menos até ter conversado com Esquisito no crematório.

Como se tivesse lido a sua mente, Lynn levantou os olhos do bebê que amamentava para o marido.

- Mais alguns dias e já vamos poder levá-la para casa.

Alex sorriu, tentando esconder a inquietação provocada por aquelas palavras.

- Mal posso esperar - disse ele.

Mais tarde, voltando para casa em seu carro, ele pensou se deveria tocar no assunto das flores e da revelação que Brian Duff fizera. Mas não queria preocupar Lynn, então achou melhor não contar nada. Ela foi direto para a cama, exausta após um dia cansativo. Alex abriu uma garrafa de Shiraz especialmente boa, que estava guardando para uma noite em que eles precisassem ser mimados. Levou o vinho para o quarto e serviu um copo para ele e outro para Lynn.

- Você vai me contar o que está te preocupando? - perguntou Lynn assim que ele deitou ao seu lado sobre o cobertor.

- Estava só pensando em Hélène e em Jackie. Não consigo parar de imaginar que o assassinato de Mondo pode ter tido um dedinho de Jackie. Não que ela própria tenha cometido o crime. Mas parece que ela conhece gente capaz de realizar um serviço assim, desde que bem pago.

Lynn franziu a testa.

- Eu até chego a desejar que tenha sido ela mesmo. Aquela vagabunda da Hélène merece sofrer. Como é que ela podia trair Mondo e fingir que era a esposa perfeita?

- Acho que Hélène está sofrendo de verdade, Lynn. Eu acredito quando ela diz que o amava.

- Não me venha defender essa mulher!

- Não estou defendendo. Mas, seja lá o que esteja rolando entre ela e Jackie, ela parecia gostar dele. Isso é óbvio.

Lynn apertou os lábios.

- Bom, se você diz... Mas não é isso que está te incomodando. Alguma coisa aconteceu depois que saímos do crematório, antes de você chegar à recepção. Foi Esquisito? Ele disse alguma coisa que te deixou preocupado?

- Juro por Deus que você é uma feiticeira - reclamou Alex. - Não, não foi nada de mais, não. Só uma pulga que se alojou atrás da orelha de Esquisito.

- Deve ter sido uma pulga assassina de Alfa Centauro para te deixar desse jeito, quando existem outras coisas importantes acontecendo. Por que você não quer me contar? É coisa de homem?

Alex suspirou. Não gostava de esconder as coisas de Lynn. Nunca acreditara que ignorância era uma bênção, não em um casamento que deveria manter a igualdade.

- Mais ou menos. É que eu não quero te perturbar com isso, ainda mais com tudo que você tem na cabeça agora.

- Alex, com tudo o que tenho na cabeça agora, você não acha que um assunto novo seria bem-vindo?

- Não esse, linda. - Bebericou o vinho, saboreando o seu reconfortante buquê. Gostaria de poder canalizar toda a sua consciência na apreciação daquele vinho e esquecer tudo o que o cercava. - Tem coisas que a gente não precisa ficar sabendo.

- Por que não estou conseguindo acreditar em você? - perguntou Lynn, apoiando a cabeça no ombro do marido. - Vamos lá, conta logo. Você sabe que vai se sentir melhor depois.

- Pra falar a verdade, não sei, não. - Alex suspirou novamente. - Não sei, talvez eu devesse mesmo te contar. Você é a mais sensata, afinal de contas.

- Coisa que nunca pudemos falar de Esquisito, por sinal - comentou Lynn secamente.

Alex contou sobre as coroas de flores nos funerais, tentando amenizar ao máximo a história. Para sua surpresa, Lynn não se esforçou nem um pouco para descartar tudo como uma paranoia de Esquisito.

- Ah, então é por isso que você está tentando se convencer de que Jackie contratou um matador profissional - disse ela. - Não gosto nada disso. Esquisito tem razão de estar levando a sério.

- Mas pode ser que tenha uma explicação simples - protestou Alex. - Talvez alguém que conhecesse os dois.

- Do jeito como Mondo se afastou de todo o seu passado? As únicas pessoas que poderiam conhecer os dois teriam de ser de Kirkcaldy ou de St. Andrews. E todo mundo nesses dois lugares sabia da história de Rosie Duff. Não dá para esquecer uma coisa dessas. Muito menos se a pessoa os conhecesse bem o suficiente para mandar flores para o funeral, quando o obituário dizia "somente flores da família" - ponderou Lynn.

- Mesmo assim, isso não quer dizer que tem alguém atrás da gente - disse Alex. - Tudo bem, alguém queria tirar um sarro. Mas isso não significa que essa mesma pessoa cometeu dois assassinatos a sangue-frio.

Lynn balançou a cabeça, descrente.

- Alex, em que planeta você vive? Dá até para acreditar que alguém disposto a tirar um sarro possa ter lido as notícias sobre a morte de Mondo. Afinal, ele pelo menos morreu no mesmo país em que Rosie Duff foi assassinada. Mas como alguém ia ficar sabendo de Ziggy a tempo de mandar flores para o funeral nos Estados Unidos, a não ser que estivesse envolvido de algum jeito com a sua morte?

- Não sei. Mas o mundo é pequeno hoje em dia. Vai ver que a pessoa que mandou a primeira coroa tinha algum conhecido em Seattle. Talvez alguém de St. Andrews tenha se mudado para lá e encontrado com Ziggy na clínica. O nome dele não era lá muito comum, e ele era relativamente famoso naquelas redondezas. Você mesma sabe disso, sempre que a gente saía para comer com Ziggy e Paul lá em Seattle, aparecia alguém para cumprimentá-lo. As pessoas não se esquecem do médico que cuidou dos seus filhos. E se foi isso mesmo, nada mais natural do que mandar um e-mail para alguém aqui quando Ziggy morreu. Em um lugar como St. Andrews, notícias como essa se espalham rapidamente. Não é tão impossível assim, é? - A voz de Alex ia ficando mais aflita à medida que ele se esforçava para encontrar alguma solução que tornasse possível descartar a sugestão de Esquisito.

- É um pouco surreal, mas tudo bem. Mas você não pode deixar isso assim. Você não pode confiar em uma possibilidade ínfima. Você tem que fazer alguma coisa, Alex. - Lynn apoiou o seu copo e abraçou o marido. - Não dá para se arriscar, ainda mais com Davina vindo para casa daqui a pouco.

Alex esvaziou o seu copo, sem prestar mais atenção na qualidade do vinho.

- Mas o que você quer que eu faça? Que eu vá me esconder com você e Davina? Para onde nós iríamos? E o meu trabalho? Não dá para simplesmente abandonar tudo com uma criança para sustentar.

Lynn afagou a cabeça dele.

- Alex, vai com calma. Não estou falando para nos enfiarmos no fim do mundo, como Esquisito. Você me disse que Lawson estava lá no funeral hoje. Por que você não vai conversar com ele?

Alex bufou.

- Lawson? O cara que tentou me passar a perna com sopa de lentilhas e simpatia? O sujeito que tem tanta fixação, há tanto tempo, que fez questão de vir assistir a um de nós ser cremado? E você acha que ele vai me ouvir de bom grado?

- Lawson pode até ter as suspeitas dele, mas pelo menos ele te salvou quando você estava prestes a levar uma surra. - Alex deslizou pela cama, aninhando-se sobre a barriga de Lynn. Ela recuou, afastando-o. - Cuidado com a minha cicatriz - disse ela. Alex ajeitou-se, apoiando-se no braço dela.

- Ele vai rir na minha cara.

- Ou então vai levar você a sério o bastante para investigar essa história. Ele não tem nenhum interesse em fazer vista grossa para esse tipo de justiça com as próprias mãos, se for isso mesmo. Sem contar que isso deixaria a polícia mais na merda do que ela já está.

- Você não sabe da missa a metade - disse Alex.

- Como assim?

- Aconteceu outra coisa depois do funeral. O irmão de Rosie Duff apareceu por lá. E fez questão de mostrar para mim e para Esquisito que tinha ido lá para comemorar.

Lynn ficou chocada.

- Hum, Alex. Que horror. Para todos vocês. Coitado dele. Vai ver que não consegue esquecer até hoje.

- E isso não é tudo. Ele nos contou que a polícia de Fife perdeu as provas ligadas ao caso de Rosie. As provas com as quais estávamos contando para fazer o teste de DNA que nos inocentaria.

- Você está brincando.

- Quem dera.

Lynn sacudiu a cabeça.

- Mais um motivo para você ir falar com Lawson.

- E você acha que Lawson vai gostar de eu ir lá jogar isso na cara dele?

- Não estou nem aí para o que ele vai gostar ou não. Você precisa saber direitinho o que está acontecendo. Se realmente tem alguém atrás de vocês, pode estar sendo movido pela constatação de que a justiça não vai ser feita novamente. Ligue para Lawson amanhã de manhã. Marque um horário com ele. Eu vou ficar mais tranquila.

Alex rolou para fora da cama e começou a se despir.

- Se é isso o que você precisa, considere feito. Só não coloque a culpa em mim se ele por acaso decidir que o sujeito que está atrás da gente está certo e decidir me prender.

Para a surpresa de Alex, quando ele ligou para agendar um encontro com o subchefe de polícia Lawson, a secretária marcou para aquela mesma tarde. Ele ainda teve tempo de ir para o escritório por algumas horas, o que o deixou mais fora de controle do que estava antes. Gostava de estar sempre atento aos negócios, não porque desconfiasse dos seus funcionários, e sim porque ficar sem saber o que estava acontecendo o deixava inquieto. Mas estava completamente por fora nos últimos tempos e precisava correr atrás do tempo perdido. Copiou uma pilha de memorandos e relatórios em um CD, torcendo para conseguir arranjar um tempinho em casa mais tarde para se atualizar. Pegou um sanduíche para comer no carro e partiu de volta para Fife.

Foi conduzido a um escritório vazio, que media aproximadamente o dobro do seu. Os privilégios da hierarquia eram sempre mais visíveis nos cargos públicos, pensou ele, observando a mesa enorme, o mapa da região elaboradamente enquadrado na parede e as comendas de James Lawson ostensivamente exibidas. Sentou-se na cadeira reservada aos visitantes, achando graça ao perceber como ela era bem mais baixa do que a do outro lado da mesa.

Não precisou esperar por muito tempo. A porta atrás dele se abriu e Alex ficou de pé. O passar dos anos não fora generoso com Lawson, pensou ele. A sua pele estava enrugada e desgastada, com duas manchas nas bochechas, as veias rompidas - a marca de um homem que bebeu demais ou que passou muito tempo exposto aos inclementes ventos de Fife. Os olhos, no entanto, continuavam espertos, como Alex pôde notar enquanto Lawson o observava dos pés a cabeça.

- Sr. Gilbey - disse ele. - Lamento tê-lo feito esperar.

- Tudo bem. Sei que o senhor deve estar ocupado. Agradeço por ter me encaixado tão depressa.

Lawson passou por ele sem oferecer a mão para um cumprimento cordial.

- Sempre fico interessado quando alguém ligado a uma investigação deseja me ver. - Acomodou-se na sua cadeira de couro, ajeitando a jaqueta do seu uniforme.

- Vi o senhor no funeral de David Kerr - disse Alex.

- Tive que resolver umas coisas de trabalho lá em Glasgow. Aproveitei para prestar os meus últimos respeitos.

- Eu não sabia que a polícia de Fife tinha tanto respeito por Mondo - retrucou Alex.

Lawson fez um gesto impaciente com uma das mãos.

- Suponho que a sua visita esteja relacionada com a reabertura do caso de Rosemary Duff, não é?

- Indiretamente, sim. Como vai a investigação? Já fizeram algum progresso?

Lawson parecia irritado com as perguntas.

- Não posso discutir assuntos operacionais de um caso em processo de investigação justamente com alguém na sua posição.

- E qual é exatamente a minha posição? Será que o senhor ainda me considera um suspeito? - Alex era mais corajoso do que a sua versão de vinte e um anos e não ia deixar um comentário como aquele passar impunemente.

Lawson remexeu em uns papéis sobre a mesa.

- O senhor é uma testemunha.

- E as testemunhas não podem saber o que está acontecendo? Vocês não hesitam em dar notícias para a imprensa quando fazem algum progresso. Será que eu tenho menos direitos do que um jornalista?

- Eu também não falei nada sobre o caso de Rosie Duff com a imprensa - respondeu Lawson secamente.

- Será que é porque o senhor perdeu as provas?

Lawson olhou longa e fixamente para Alex.

- Sem comentários.

Alex balançou a cabeça.

- Isso não basta. Depois do que nós passamos, vinte e cinco anos atrás, acho que mereço algo mais. Rosie Duff não foi a única vítima naquela época, e o senhor sabe muito bem disso. Talvez seja a hora de eu procurar a imprensa e contar que continuo sendo tratado como um criminoso pela polícia depois de todos estes anos. E, aproveitando a viagem, eu podia contar como a polícia de Fife arruinou a revisão do caso de Rosie Duff perdendo uma prova crucial, que teria me inocentado e possivelmente apontado o verdadeiro assassino.

A ameaça deixou Lawson visivelmente desconfortável.

- Eu não lido bem com intimidações, Sr. Gilbey.

- Nem eu. Não mais. O senhor tem certeza de que quer se ver nas páginas de tudo quanto é jornal como o tira que invadiu o último adeus de uma família consternada ao seu filho assassinado? O mesmo filho cuja inocência continuava duvidosa, graças à incompetência do senhor e da sua equipe?

- O senhor não tem necessidade nenhuma de tomar esta atitude - disse Lawson.

- Ah, não? Pois eu acho que tenho toda a necessidade, sim. O senhor deveria estar conduzindo a revisão de um caso não resolvido aqui. Eu sou uma testemunha-chave. Eu sou o sujeito que encontrou o corpo. E, no entanto, nenhum policial de Fife entrou em contato comigo até agora. Isso não me parece dedicação, sabe? E agora eu ainda fico sabendo que o senhor não consegue sequer manter um saco de provas em segurança. Talvez eu devesse estar conversando com o oficial encarregado da investigação, e não com um burocrata que ainda se deixa influenciar pelo passado.

Lawson retesou o rosto.

- Sr. Gilbey, é verdade que tivemos um probleminha com as provas desse caso. Em algum momento, nos últimos vinte e cinco anos, as roupas de Rosie Duff se perderam. Ainda estamos tentando recuperá-las, mas, até agora, só conseguimos localizar aquele cardigã que foi encontrado longe da cena do crime. E não havia nenhum material biológico nele. Nenhuma das roupas que poderiam ser suscetíveis às técnicas forenses modernas está disponível para nós. Então, no momento, estamos de pés e mãos atados. Na verdade, a oficial encarregada do caso queria ter conversado com o senhor antes, para rever o seu depoimento antigo. Será que poderíamos agendar este encontro?

- Meu Deus do céu - disse Alex. - Finalmente vocês querem conversar comigo agora? O senhor não está entendendo, não é? Nós ainda estamos na mira. O senhor já parou para pensar que dois de nós quatro foram assassinados no último mês?

Lawson suspendeu as sobrancelhas.

- Dois?

- Ziggy Malkiewicz também morreu em circunstâncias suspeitas. Um pouco antes do Natal.

Lawson apanhou um bloco e abriu uma caneta-tinteiro.

- Isso é novidade para mim. Onde foi que isso aconteceu?

- Em Seattle, onde ele já estava morando há doze anos. Alguém plantou uma bomba de incêndio na casa dele. Ziggy morreu dormindo. O senhor pode verificar com a polícia local. O único suspeito que eles têm até agora é o parceiro de Ziggy, o que é ridiculamente absurdo.

- Sinto muito pelo Sr. Malkiewicz...

- Dr. Malkiewicz - interrompeu Alex.

- Pelo Dr. Malkiewicz - corrigiu-se Lawson. - Mas continuo sem perceber de que modo estas duas mortes estão ligadas ao assassinato de Rosie Duff.

- Foi exatamente por isso que eu quis conversar com o senhor hoje. Para explicar por que eu acho que existe uma ligação.

Lawson recostou-se na cadeira, entrelaçando os dedos.

- Sou todo ouvidos, Sr. Gilbey. Estou interessado em qualquer coisa que possa iluminar um pouco a escuridão em que nos encontramos.

Alex contou sobre as coroas de flores. Sentado ali, na sede da polícia, o seu relato lhe soou tolo. Podia sentir o ceticismo de Lawson enquanto se esforçava para dar peso a uma ocorrência tão banal quanto aquela.

- Eu sei que parece paranoia minha - concluiu ele. - Mas Tom Mackie está tão convencido disso que vai esconder a sua família e sumir também. Isso não é uma coisa que você faz sem pensar.

Lawson retribuiu com um sorriso amargo.

- Ah, sim. O Sr. Mackie. Isso está me cheirando a "drogas demais na década de setenta", sabe? Pelo que eu sei, o uso de alucinógenos pode causar paranoia a longo prazo.

- O senhor não acha que devemos levar isso a sério? Dois dos nossos amigos morreram em circunstâncias suspeitas. Dois sujeitos que levavam vidas respeitáveis, sem ligações criminosas. Que, aparentemente, não tinham inimigos. E, nos dois funerais, aparece uma coroa fazendo uma alusão direta a uma investigação de homicídio em que os dois foram considerados suspeitos?

- Nenhum de vocês foi tachado publicamente como suspeito. Fizemos o possível para proteger vocês quatro.

- Tudo bem. Mas mesmo depois disso, um dos seus oficiais morreu por causa da pressão que foi colocada sobre nós.

Lawson empertigou-se, bruscamente.

- Que bom que o senhor se lembra disso. Porque aqui neste prédio ninguém se esqueceu.

- Tenho certeza disso. Barney Maclennan foi a segunda vítima do assassino. E eu acho que Ziggy e Mondo foram vítimas também. Indiretamente, é claro. Mas eu acho que alguém os matou porque queria se vingar. E, se foi isso mesmo, então o meu nome está na lista também.

Lawson suspirou.

- Compreendo por que o senhor está reagindo assim. Mas não creio que alguém tenha embarcado em uma programação deliberada para se vingar de vocês quatro. Posso garantir que a polícia de Glasgow está conduzindo uma linha de investigação promissora que não tem nada a ver com o assassinato de Rosie Duff. Coincidências acontecem e estas mortes são a prova disso. Uma coincidência, nada mais. As pessoas não agem desta maneira, Sr. Gilbey. Ninguém esperaria vinte e cinco anos para se vingar.

- E os irmãos de Rosie? Eles estavam doidos para dar o troco na gente naquela época. O senhor me disse que chegou a alertá-los. Que os convenceu a não fazer nada para não causar mais sofrimento à mãe deles. A mãe ainda está viva? Será que eles estão livres para se vingar agora? Será que foi por isso que Brian Duff apareceu lá no funeral de Mondo para implicar com a gente?

- É bem verdade que o Sr. e a Sra. Duff já morreram. Mas acho que o senhor não tem com o que se preocupar em relação aos Duff. Estive com Brian há algumas semanas. Não acho que ele estava muito a fim de vingança, não. E Colin trabalha no Golfo. Ele esteve em casa para o Natal, mas não estava no país quando David Kerr morreu. - Lawson inspirou profundamente. - Ele se casou com uma oficial colega minha, Janice Hogg. A ironia é que foi ela quem salvou o Sr. Mackie quando ele foi atacado pelos dois irmãos. Ela abandonou a polícia depois do casamento, mas estou certo de que não encorajaria o marido a cometer uma infração deste porte. Com relação a isto, o senhor pode ficar tranquilo.

Alex reconheceu a convicção na voz de Lawson, mas não se sentiu muito aliviado.

- Brian não foi exatamente amigável ontem - disse ele.

- Sei, imagino que não. Mas, vamos e venhamos, nem Brian nem Colin têm o perfil do que chamaríamos um criminoso sofisticado. Se eles decidissem matar você e os seus amigos, provavelmente teriam adentrado em um bar lotado e estourado os seus miolos com uma espingarda. Planejamento elaborado nunca foi o estilo deles - concluiu Lawson, secamente.

- Então ficamos sem nenhum suspeito. - Alex revirou-se na cadeira, pronto para levantar.

- Em termos - disse Lawson baixinho.

- Como assim? - perguntou Alex, tomado de apreensão.

Lawson parecia arrependido, como se tivesse falado demais.

- Deixa para lá, eu só estava pensando alto.

- Peraí. O senhor não pode me dispensar assim. O que quis dizer com "Em termos"? - Alex inclinou-se, como se estivesse prestes a voar sobre a mesa e agarrar Lawson pelas suas imaculadas lapelas.

- Eu não devia ter dito isso. Desculpe, estou só pensando como um policial.

- Mas não é para isso que o senhor é pago? Vamos lá, pode desembuchar.

Os olhos de Lawson oscilaram de um lado para o outro, como se ele estivesse procurando uma saída alternativa, que não o obrigasse a ter de passar por Alex. Ele passou a mão sobre o lábio superior e suspirou profundamente.

- O filho de Rosie - disse ele.


33

Lynn olhou estarrecida para Alex, sem parar de ninar gentilmente a filha no colo.

- Repete - pediu ela.

- Rosie teve um filho. Ninguém ficou sabendo na época. Sabe-se lá por quê, o legista não percebeu na autópsia. Lawson mesmo admitiu que o sujeito já estava mais para lá do que para cá, era velho e chegado numa bebida. Mas, em sua defesa, ele disse que era possível que a ferida tivesse escondido qualquer vestígio de que ela dera à luz. A família, obviamente, não quis dizer nada porque tinham certeza de que se as pessoas ficassem sabendo que Rosie tinha um filho ilegítimo, ela seria instantaneamente retratada como uma mãe precoce qualquer. Ela passaria de vítima inocente a uma garota que teve o que bem mereceu. Eles estavam desesperados para proteger o nome de Rosie. Não podemos culpá-los por isso.

- Eu não culpo mesmo. Basta ver como a imprensa pintou vocês; qualquer um teria feito a mesma coisa. Mas como foi que ele surgiu agora?

- Segundo Lawson, ele foi adotado. Ano passado, ele resolveu pesquisar sobre a sua mãe verdadeira. Acabou encontrando a mulher que cuidava do abrigo onde Rosie ficou durante a gravidez e foi então que ele descobriu que não ia ter um reencontro familiar afinal.

Davina gemeu e Lynn colocou o seu dedo mindinho na boca da filha, sorrindo para ela.

- Deve ter sido horrível para ele. Tem que ter muita coragem para procurar a mãe verdadeira. Afinal, ela já te rejeitou uma vez, sabe Deus por quê, e você está se colocando numa posição em que pode ser rechaçado novamente. Mas você precisa, ao mesmo tempo, nutrir a esperança de que a mãe vai recebê-lo de braços abertos.

- Pois é. E o pior deve ser descobrir que alguém o privou desta oportunidade vinte e cinco anos atrás. - Alex inclinou-se para a frente. - Posso segurá-la um pouquinho?

- Claro. Ela acabou de mamar, então deve dormir um pouquinho. - Lynn afrouxou delicadamente as suas mãos sob a filha, passando-a para Alex como se ela fosse a coisa mais valiosa e frágil do mundo. Ele deslizou a mão por baixo do pescoço delicado do bebê e o colocou no colo. Davina resmungou baixinho, depois se acomodou. - Então Lawson acha que o filho dela está atrás de você?

- Lawson não acredita que tenha alguém atrás de mim. Ele acha que eu sou um doido paranoico fazendo tempestade em copo d’água. Ele ficou extremamente constrangido por ter deixado escapar essa história do filho de Rosie e ficou tentando me convencer de que ele era incapaz de matar uma mosca. O nome dele é Graham, por sinal. Lawson não quis me dar o sobrenome de jeito nenhum. Ao que parece, ele trabalha com tecnologia de informação. Calmo, estável, um sujeito normal - disse Alex.

Lynn balançou a cabeça.

- Não consigo acreditar que Lawson não está dando a devida importância. Quem ele acha que mandou as coroas, então?

- Ele não sabe, e nem quer saber. Ele só está preocupado com a sua super-revisão que está indo por água abaixo.

- Eles são incapazes de administrar uma limpeza, quanto mais uma investigação de assassinato. Como foi que ele explicou a perda de uma caixa inteira de provas?

- Eles não perderam a caixa toda. Eles ainda têm o cardigã. Ao que parece, foi encontrado separadamente. Jogado sobre o muro, no jardim de um fulano qualquer. Foi submetido aos testes depois do resto das roupas de Rosie, vai ver que foi por isso que acabou separado do resto do material.

Lynn franziu a testa.

- Foi encontrado depois? Não teve uma segunda busca na casa de vocês? Eu me lembro vagamente do Mondo reclamando que eles reviraram tudo de novo, semanas após o assassinato.

Alex esforçava-se para lembrar.

- Depois da primeira busca... é, eles voltaram depois do Ano-Novo. Rasparam tinta das paredes e do teto. E queriam saber se nós tínhamos feito alguma reforma na casa. - Alex bufou. - Até parece. E Mondo disse que ouviu um deles falando sobre um cardigã. Ele achou que estavam procurando alguma peça de roupa nossa. Mas não era isso, é claro! Eles estavam falando sobre o cardigã de Rosie - concluiu ele, triunfante.

- Então devem ter encontrado alguma tinta no cardigã dela - disse Lynn, pensativa. - Por isso que eles estavam colhendo amostras.

- Sim, mas eles não conseguiram nada na nossa casa. Caso contrário, estaríamos ainda mais ferrados.

- Será que eles fizeram uma nova análise? Lawson disse alguma coisa?

- Não especificamente. Ele só comentou que eles não tinham nenhuma das roupas que poderiam ser submetidas a análise.

- Isso é ridículo. É possível fazer muitas coisas com tinta hoje em dia. Eu consigo muito mais informação dos laboratórios agora do que conseguia há três ou quatro anos. Eles deveriam estar testando isso. Você tem que voltar lá e falar com ele.

- Mas não adianta nada fazer uma análise se eles não tiverem nada para comparar com o resultado. Lawson não vai tomar providências só porque eu pedi.

- Mas você não disse que ele queria resolver este caso?

- Lynn, se isso fosse adiantar alguma coisa, eles já teriam feito.

Lynn corou com uma súbita raiva.

- Meu Deus, Alex, escuta o que você está falando. Você vai ficar sentado esperando outra bomba estourar em cima da gente? O meu irmão morreu. Alguém invadiu a casa dele na maior cara de pau e o matou. A única pessoa que podia te ajudar acha que você está paranoico. Eu não quero que você morra, Alex. Não quero que a nossa filha cresça sem ter uma lembrança do pai.

- E você acha que eu quero isso? - Alex apertou a filha contra o peito.

- Então para de ser tão frouxo. Se você e Esquisito estiverem certos, a pessoa que matou Ziggy e Mondo vai vir atrás de vocês dois. O único jeito de vocês se safarem é o assassino de Rosie ser finalmente descoberto. Já que Lawson não vai se mexer, talvez você devesse tentar. Você tem a melhor motivação do mundo em seus braços agora.

Alex não podia negar. Estava à flor da pele desde o nascimento de Davina, o tempo todo impressionado com a profundidade dos seus sentimentos.

- Eu sou um fabricante de cartões, Lynn, não um detetive - protestou ele, desanimado.

Lynn lançou um olhar indignado para ele.

- E quantas vezes as falhas da justiça foram corrigidas por um zé-ninguém insistente?

- Não sei nem por onde começar.

- Você se lembra daquela série sobre ciência forense que passou na tevê uns anos atrás?

Alex resmungou. Nunca se deixara contaminar pelo fascínio que as tramas de suspense na televisão ou no cinema exerciam sobre a sua mulher. Normalmente, durante um especial de duas horas com Frost, Inspetor Morse ou Wexford, ele apanhava um bloco de papel e trabalhava algumas ideias para novos cartões.

- Vagamente - respondeu ele.

- Eu me lembro de um dos cientistas forenses dizendo que eles costumavam deixar algumas informações de fora em seus relatórios. Vestígios de provas que não puderam ser analisados, coisas assim. Se não vai servir para ajudar os investigadores, eles nem incluem no laudo. Acho que é para evitar que a defesa confunda a cabeça dos jurados.

- Tá, mas não sei em que isso pode nos ajudar. Mesmo que nós conseguíssemos ter acesso aos relatórios originais, não teríamos como saber o que ficou de fora, não é?

- Não. Mas talvez, se conseguíssemos localizar o sujeito que assinou o relatório, ele talvez pudesse lembrar de alguma coisa que desistiu de acrescentar naquela época por parecer pouco importante, mas que de repente pode ajudar a gente agora. Talvez ele tenha até guardado as anotações pessoais dele. - A raiva de Lynn transformara-se em entusiasmo. - O que você acha?

- Eu acho que os hormônios mexeram com o seu cérebro - disse Alex. - Você acha que se eu ligar para Lawson e perguntar quem assinou o relatório forense ele vai me dizer?

- Para você, é claro que não. - Lynn entortou os lábios, com cara de nojo. - Mas, para um jornalista...

- Os únicos jornalistas que eu conheço escrevem amenidades para os suplementos de domingo - ponderou Alex.

- Ué, liga para eles e pergunta se alguém tem um colega que possa te ajudar. - Lynn falou com um ar decisivo. Quando ela estava daquele jeito, não adiantava tentar discutir e Alex sabia disso. Mas, enquanto se resignava com a ideia de ter de sondar os seus contatos, teve uma ideia. Talvez ele pudesse matar dois coelhos com uma cajadada só. Obviamente, podia dar tudo errado. Mas só havia uma maneira de descobrir.

Estacionamentos de hospitais eram ótimos pontos de observação, pensou Macfadyen. Pródigos em idas e vindas, com várias pessoas sentadas dentro de seus carros, esperando. Boa iluminação, o que garantia ver a sua presa entrando e saindo. E ninguém prestava atenção em ninguém; era possível ficar lá durante horas a fio sem levantar suspeita. Exatamente o contrário das ruas residenciais, onde todo mundo quer saber da vida do outro.

Perguntava-se quando Gilbey poderia levar a filha para casa. Tentou ligar para o hospital para sondar, mas eles não colaboraram muito; limitaram-se a informar que o bebê passava bem. As pessoas responsáveis por crianças andavam muito cautelosas ultimamente.

O ressentimento que sentia pela filha de Gilbey era impressionante. Ninguém viraria as costas para aquela criança. Ninguém ia abandoná-la nas mãos de estranhos. Estranhos que a criariam em um estado permanente de ansiedade, de medo de fazer alguma coisa que despertasse uma ira arbitrária contra ela. Os seus pais não o haviam maltratado, não no sentido de agressões físicas. Mas deixaram que ele se sentisse constantemente carente, constantemente errado. E eles não haviam sequer hesitado em culpar o seu sangue ruim por todos os seus deslizes. Mas ele perdera muito mais do que carinho e amor. As histórias familiares que haviam lhe contado quando criança eram histórias de outras pessoas, não dele. Desconhecia a sua própria história.

Jamais poderia olhar-se no espelho e buscar uma semelhança com as feições de sua mãe. Jamais perceberia aquelas estranhas congruências que acontecem nas famílias, quando uma criança repete as reações dos seus pais. Estava à deriva, em um mundo isolado. A única família que lhe restara não queria saber dele.

E agora, para completar, a filha de Gilbey teria tudo o que lhe fora negado, apesar de o pai ter sido o responsável por tudo o que ele perdera. Macfadyen não se conformava com aquilo e a amargura roía as entranhas da sua alma ressequida. Não era justo. Aquela criança não merecia ir para um lar seguro, cheio de amor.

Estava na hora de começar a fazer planos.

Esquisito beijou cada um de seus filhos e viu-os entrar no furgão da família. Não sabia quando os veria novamente e ter de se despedir naquelas circunstâncias deixou-o com um vazio no peito. Mas ele sabia que aquela dor era mínima se comparada ao que ele sentiria se não fizesse nada e, com sua omissão, visse algo acontecer aos seus filhos. Bastavam algumas horas de carro e estariam salvos na montanha, protegidos pela barricada de um grupo evangélico que morava lá, cujo líder fora diácono na igreja de Esquisito. O governo federal não encontraria os seus filhos lá; muito menos um assassino vingativo fazendo justiça com as próprias mãos.

Uma parte dele achava que estava exagerando, mas ele não estava preparado para lhe dar ouvidos. Anos de conversas com Deus haviam lhe rendido uma certa segurança para tomar decisões. Esquisito envolveu a mulher em seus braços e a apertou contra o peito.

- Obrigado por levar tudo isso a sério - agradeceu ele.

- Sempre levei você a sério, Tom - murmurou ela, acariciando a sua camisa de seda. - Quero que você me prometa que vai cuidar tão bem de si mesmo quanto está cuidando de nós.

- Só preciso dar um telefonema e já estou de saída também. Vou para um lugar onde não vai ser fácil me seguir ou me encontrar. Vamos ficar quietinhos por um tempo, confiar em Deus, e tenho certeza de que vamos superar esta ameaça. - Ele se inclinou e beijou a mulher, longa e ardentemente. - Vá com Deus.

Deu um passo para trás e ficou observando enquanto ela entrava no carro e dava partida no motor. As crianças acenaram para ele, animadas com a perspectiva de uma aventura que lhes daria férias da escola. O clima ingrato das montanhas não seria nada fácil, mas sabia que tudo daria certo. Acompanhou o furgão até o fim da rua e depois voltou depressa para dentro de casa.

Um colega de Seattle lhe arrumara um detetive particular de confiança, bem discreto. Esquisito ligou para o celular dele e esperou.

- Alô, aqui é Pete Makin - disse a voz do outro lado da linha, com um sotaque americano.

- Sr. Makin? O meu nome é Tom Mackie. Reverendo Tom Mackie. Quem me passou o número do senhor foi o reverendo Polk.

- Eu realmente aprecio um pastor que arruma trabalho para o seu rebanho - disse Makin. - Em que posso ajudá-lo, reverendo?

- Preciso descobrir quem enviou uma determinada coroa de flores para um funeral a que eu compareci recentemente, aí na sua área. Isso é possível?

- Acho que sim. O senhor tem algum detalhe específico para me informar?

- Não sei o nome do florista que fez o arranjo, mas era bem sofisticado. Rosas brancas e alecrim. Estava escrito no cartão "Lembrança de Rosemary".

- "Lembrança de Rosemary"... - repetiu Makin. - Tem razão, é meio estranho mesmo. Nunca vi nada parecido. Quem fez o arranjo com certeza deve se lembrar. O senhor pode me informar quando e onde ocorreu o funeral?

Esquisito deu as informações, soletrando cuidadosamente o nome de Ziggy.

- De quanto tempo você vai precisar para me dar uma resposta?

- Bom, isso depende. A funerária talvez possa me passar uma lista dos floristas que normalmente trabalham com eles. Mas se não for possível, vou ter que vasculhar uma área relativamente ampla. Isso pode demorar algumas horas ou alguns dias. Se o senhor me passar o seu telefone, posso lhe manter informado.

- Vai ser meio complicado me achar. Mas posso dar um jeito de te ligar todos os dias, pode ser?

- Por mim, tudo bem. Mas vou precisar de um adiantamentozinho para começar o serviço.

Esquisito deu um sorriso irônico. Ultimamente, não se podia confiar nem nos sujeitos de batina.

- Mando para você. De quanto acha que vai precisar?

- Quinhentos dólares são o suficiente. - Makin passou os detalhes do pagamento para Esquisito. - Assim que estiver com o dinheiro, começo a trabalhar. Obrigado, reverendo.

Esquisito desligou, estranhamente confiante após aquela conversa. Pete Makin não perdera tempo querendo saber o porquê daquela investigação, nem tentou valorizar o seu serviço tornando-o mais difícil do que era na realidade. Era um homem confiável, pensou. Subiu as escadas e trocou de roupa em seu quarto, despindo os hábitos clericais e enfiando-se em uma calça jeans, uma camisa de flanela bege e uma jaqueta de couro leve. Já tinha arrumado a sua bolsa; a única coisa que faltava apanhar era a Bíblia que ficava na mesa de cabeceira. Colocou-a num dos compartimentos da bolsa, contemplou o quarto familiar por alguns momentos e fechou os olhos para uma breve oração.

Uma hora depois, estava saindo do estacionamento sem limite de tempo do aeroporto de Atlanta. Chegara bem na hora do voo para San Diego. Naquela mesma noite, já teria cruzado a fronteira e estaria hospedado anonimamente em um hotel chinfrim em Tijuana, México. Aquele não era o tipo de lugar que ele escolheria normalmente, o que o tornava ainda mais seguro.

Fosse lá quem estivesse atrás dele, não o encontraria justo ali.

Jackie olhou fixamente para Alex.

- Ela não está aqui.

- Eu sei disso. É com você mesma que eu quero falar.

Ela bufou, com os braços cruzados sobre o peito. Desta vez, estava usando uma jaqueta de couro e uma camiseta preta colada no corpo. Um piercing de diamante brilhava em sua sobrancelha.

- Veio me colocar contra a parede, né?

- O que te faz pensar que isso é da minha conta? - perguntou Alex, friamente.

Ela arqueou as sobrancelhas.

- Você é homem, escocês, e ela é da sua família.

- Esta sua arrogância não vai te levar a lugar nenhum. Olha, estou aqui porque eu acho que podemos trocar uns favores.

Jackie inclinou a cabeça, adotando um ar insolente.

- Não transo com homens. Você ainda não sacou isso?

Exasperado, Alex virou-se para ir embora. Perguntou-se se valia a pena arriscar a ira de Lynn para fazer aquilo.

- Estou perdendo o meu tempo aqui. Só achei que você poderia gostar de uma sugestão para se livrar da polícia.

- Peraí. Você está me oferecendo uma saída?

Alex estacou, com um dos pés na escada.

- Não é por causa do seu charme natural, Jackie. É porque também vai me dar paz de espírito.

- Mesmo achando que eu posso ter matado o seu cunhado.

Alex resmungou.

- Pode acreditar, eu dormiria muito melhor se realmente conseguisse acreditar nisso.

Jackie reagiu, impaciente.

- Ah, é, né? Porque aí a sapatão ia ter o que merece.

Irritado, Alex a interrompeu.

- Será que dá para colocar os seus preconceitos de lado por cinco minutos? Eu só ficaria feliz se você fosse mesmo a assassina porque aí eu estaria seguro.

Jackie inclinou a cabeça, intrigada apesar da sua resistência.

- Isso é uma coisa muito estranha de se dizer.

- Não quer conversar sobre isso aí dentro?

Ela fez um gesto vago para a porta e deu um passo para trás.

- É melhor você entrar. Como assim, "seguro"? - perguntou ela enquanto ele se acomodava na cadeira mais próxima.

- Tenho uma teoria sobre a morte de Mondo. Não sei se você sabe, mas um outro amigo meu foi assassinado em circunstâncias suspeitas algumas semanas atrás.

Jackie fez um gesto afirmativo com a cabeça.

- Hélène comentou. Foi um cara que estudou com você e David na universidade, não foi?

- Nós crescemos juntos. Nós quatro. Éramos melhores amigos na escola e fomos para a universidade juntos. Uma noite, quando voltávamos bêbados de uma festa, nos deparamos com uma moça...

- Eu sei disso também - interrompeu Jackie.

Alex ficou surpreso ao constatar o quão aliviado se sentia por não ter de relembrar todos os detalhes que se seguiram à morte de Rosie.

- Ótimo. Então você já sabe da história. Bem, sei que isso pode parecer maluquice, mas eu acho que Mondo e Ziggy foram assassinados por alguém que está tentando se vingar pela morte de Rosie Duff. A garota que morreu - completou ele.

- Por quê? - Mesmo sem querer, Jackie estava compenetradíssima, inclinada para a frente com os cotovelos apoiados nos joelhos. A perspectiva de uma boa história era forte o bastante para colocar a sua hostilidade em segundo plano.

- Pode até parecer insignificante - disse Alex e, em seguida, contou-lhe sobre as coroas de flores. - O nome dela era Rosemary - concluiu ele.

Jackie levantou as sobrancelhas.

- Credo, que troço sinistro - disse ela. - Nunca vi nenhuma coroa assim. Fica meio complicado de entender se você não capta a referência ao nome da garota. Estou vendo agora por que você está tão grilado.

- É, mas a polícia não viu. Eles me trataram como se eu fosse uma velhinha com medo do escuro.

Jackie grunhiu, debochada.

- Bom, nós dois sabemos como a polícia é esperta. E então, o que você acha que eu posso fazer?

Alex ficou constrangido.

- Lynn imaginou que se conseguíssemos descobrir quem realmente matou Rosie naquela época, a pessoa que está tentando se vingar da gente ia ter que desistir. Antes que seja tarde demais para mim e para Tom Mackie.

- Faz sentido. Você não consegue convencer a polícia a reabrir o caso? Com a tecnologia que eles têm atualmente...

- O caso já foi reaberto. A polícia de Fife está fazendo uma revisão dos casos não resolvidos e este é um deles. Mas eles estão no maior impasse, principalmente porque perderam as provas. Lynn imaginou que se nós conseguíssemos encontrar o cientista forense que assinou o laudo original, ele poderia informar se deixou alguma coisa de fora do relatório.

Jackie concordou com um gesto de cabeça.

- Às vezes eles deixam coisas de fora mesmo, para evitar que a defesa tenha vantagem. Então você quer que eu encontre esse sujeito e entreviste ele?

- Algo assim. Achei que você poderia fingir que estava fazendo uma matéria minuciosa sobre o caso, com enfoque na investigação daquela época. Será que você não consegue convencer a polícia a te dar acesso ao material que eles se recusaram a me mostrar?

Ela deu de ombros.

- Vale a pena tentar.

- Então, você pode fazer isso?

- Vou ser franca com você, Alex. Eu não tenho o menor interesse em salvar a sua pele. Mas você está certo: eu também tenho muito a perder. Te ajudando a descobrir quem matou David, eu tiro o meu da reta. E então, com quem eu devo falar?


34

O recado na mesa de James Lawson dizia apenas: "A equipe da revisão dos casos gostaria de vê-lo assim que possível." Não parecia ser notícia ruim. Quando entrou na sala da sua equipe, com um ar de otimismo cuidadoso, percebeu imediatamente que tinha razão, ao ver uma garrafa de uísque Famous Grouse e meia dúzia de copinhos de plástico na mão dos detetives. Lawson abriu um sorriso.

- Isso aqui está me cheirando a comemoração - disse ele.

O detetive-inspetor Robin Maclennan deu um passo à frente, oferecendo-lhe o uísque.

- Acabei de receber notícias da polícia de Manchester. Eles prenderam um sujeito, suspeito de estupro há algumas semanas em Rochdale. Quando verificaram os resultados do exame de DNA no computador, foi batata.

Lawson estacou.

- Lesley Cameron?

Robin concordou com a cabeça.

Lawson apanhou a dose de uísque e suspendeu o seu copo em um brinde silencioso. Assim como o caso de Rosie Duff, ele jamais esqueceria o assassinato de Lesley Cameron. Aluna da universidade, ela havia sido estuprada e estrangulada quando voltava para o seu alojamento. Assim como com Rosie, jamais encontraram o assassino. Durante algum tempo, os detetives chegaram a tentar estabelecer uma relação entre os dois casos, mas não havia semelhanças suficientes para justificar uma ligação entre eles. Não bastava alegar que não houvera mais nenhum estupro seguido de morte em St. Andrews durante aquele período. Trabalhara como detetive assistente naquela época e se lembrava bem da polêmica. Pessoalmente, jamais acreditara na teoria que os dois crimes estavam de alguma forma relacionados.

- Lembro-me muito bem desta história - disse ele.

- Submetemos as roupas da vítima ao exame de DNA, mas não tivemos nenhum resultado do sistema - continuou Robin e o seu rosto esquálido revelou, em um sorriso, rugas previamente desconhecidas. - Então eu deixei de lado por um tempo e continuei verificando os infratores sexuais subsequentes. Não deu em nada. Mas aí, recebemos esta ligação da polícia de Manchester. Parece que temos um resultado.

Lawson deu um tapinha no ombro do detetive.

- Bom trabalho, Robin. Você vai até lá para o interrogatório? - perguntou ele.

- Com certeza. Mal posso esperar para ver a cara do canalha quando ele souber que eu quero interrogá-lo.

- Estas são boas notícias mesmo. - Lawson sorriu para o resto da equipe. - Viram só? Basta uma tacada de sorte e vocês chegam lá. Como vocês estão indo? Karen, você conseguiu alguma coisa com o ex-namorado de Rosie Duff? O tal que a gente acha que é o pai de Macfadyen?

Karen fez um gesto com a cabeça.

- John Stobie. Os policiais locais foram dar uma palavrinha com ele. E eles também conseguiram um resultado, de certa forma. Parece que Stobie tem o álibi perfeito. Ele quebrou a perna em um acidente com a sua moto no final de novembro de 78. Na noite em que Rosie foi assassinada, ele estava usando um gesso da coxa até o pé. Ou seja, jamais poderia estar correndo em St. Andrews no meio de uma tempestade de neve.

Lawson suspendeu as sobrancelhas.

- Qualquer um podia ver que Stobie tinha ossos frágeis mesmo. Eles devem ter verificado o prontuário médico, não é?

- Stobie deu permissão. E parece que ele estava falando a verdade mesmo. Então, podemos colocar um ponto final nesta história.

Lawson virou-se disfarçadamente, separando-se com Karen dos outros.

- Tudo bem, Karen. - Ele suspirou. - Talvez eu devesse colocar Macfadyen em contato com Stobie. Talvez ele até me desse um descanso.

- Ele ainda está perturbando o senhor?

- Algumas vezes por semana. Estou começando a achar que seria melhor se ele não tivesse aparecido do nada.

- Bom, eu ainda preciso conversar com as outras três testemunhas - disse Karen.

Lawson mudou de expressão.

- Na verdade, são só duas agora. Ao que parece, Malkiewicz morreu em um incêndio bem suspeito, um pouco antes do Natal. E Alex Gilbey enfiou na cabeça que, agora que David Kerr também foi assassinado, tem um justiceiro maluco solto por aí, matando um por um.

- O quê?

- Ele veio me procurar uns dias atrás. É paranoia pura e eu não quis encorajá-lo. Então, é melhor você deixar as testemunhas pra lá. Não acho que vai ajudar muito, depois de tanto tempo.

Karen pensou em discordar. Não que ela imaginasse que algo significante fosse resultar das suas conversas, mas uma detetive determinada como ela não ficava à vontade com a ideia de deixar uma possibilidade inexplorada.

- O senhor não acha que ele pode ter razão? Quer dizer, é coincidência demais, né? Primeiro, Macfadyen aparece e descobre que não temos a menor esperança de encontrar o assassino da mãe. Depois, dois dos suspeitos originais do caso são assassinados.

Lawson girou os olhos.

- Você está enfornada demais nesta sala de investigação, Karen. Está começando a alucinar. Lógico que Macfadyen não está por aí, dando uma de Charles Bronson. Ele é um profissional respeitável, pelo amor de Deus, não um psicopata. E não vamos insultá-lo com um interrogatório sobre dois crimes que sequer aconteceram na nossa circunscrição.

- Está bem, senhor - suspirou Karen.

Lawson apoiou a mão no braço dela, em um gesto paternal.

- Vamos esquecer um pouquinho de Rosie Duff por enquanto, está bem? Não estamos chegando a lugar algum. - Lawson voltou para o grupo. - Robin, a irmã de Lesley Cameron não é especialista em traçar perfis de criminosos?

- Sim, senhor. Dra. Fiona Cameron. Ela esteve envolvida com o caso de Drew Shand há alguns anos, em Edimburgo.

- Estou me lembrando. Bom, talvez você devesse fazer uma visitinha. Avisar a ela que estamos investigando um suspeito. E não deixe de avisar a imprensa também. Mas só depois de falar com a dra. Cameron. Não quero que ela fique sabendo primeiro pelos jornais. - Era claramente o fim daquela conversa. Lawson terminou o seu uísque e dirigiu-se para a porta. Estacou sob o portal e virou-se para trás. - Bom trabalho, Robin. Isso é bom para todos nós. Obrigado.

Esquisito empurrou o prato sobre a mesa. Comida engordurada para turistas, e com porções tão generosas que poderiam alimentar uma família inteira de mexicanos pobres por uns dois dias, pensou ele, sentido. Não suportava o fato de ter sido bruscamente arrancado da sua rotina. Todas as coisas que tornavam a sua vida agradável pareciam um sonho distante agora. E o conforto que podia ser extraído somente da fé tinha lá os seus limites. Era uma prova, se algum dia precisasse dela, de que estava aquém dos seus próprios ideais.

Enquanto o garçom retirava os resquícios do seu especial de burrito, Esquisito pegou o celular e ligou para Pete Makin. Após os cumprimentos iniciais, ele foi direto ao assunto.

- Conseguiu alguma coisa? - perguntou ele.

- Só consegui eliminar algumas possibilidades. A funerária me deu o nome das três lojas que normalmente trabalham para eles. Mas nenhuma delas montou o tal arranjo que o senhor descreveu para mim. E todas concordaram que parece estranho mesmo, que não é comum. Seria algo que eles com certeza se lembrariam se tivesse sido encomendado.

- E agora, então?

- Bom - rateou Makin. - Acho que temos uns cinco ou seis floristas aqui nas imediações. Eu vou checar todos eles, ver se descubro alguma coisa. Mas vai levar um dia ou dois. Amanhã, tenho que comparecer ao tribunal, vou depor em um caso de fraude. Pode ser que não dê tempo. Mas pode ficar tranquilo, reverendo. No dia seguinte, mando bala.

- Obrigado por ser tão direto, Sr. Makin. Volto a ligar daqui a alguns dias, para ver se o senhor já tem alguma novidade. - Esquisito guardou o celular de volta no bolso. Ainda não tinha chegado ao fim. Não estava sequer perto.

Jackie colocou pilhas novas no seu gravador, verificou se tinha canetas na bolsa e depois partiu em seu carro. Ficara agradavelmente surpresa com a boa vontade do assessor de imprensa da polícia, para quem ela ligou após a visita de Alex.

Já pensara em tudo. Disse que estava escrevendo uma matéria para uma revista importante, comparando os métodos usados pela polícia em uma investigação de homicídio há vinte e cinco anos com os atuais. E que chegara à conclusão de que a melhor maneira de abordar os métodos investigativos seria aproveitar uma revisão de casos não solucionados, como a que a polícia de Fife estava fazendo. Deste modo, ela estaria lidando com um oficial completamente ciente de todos os detalhes do caso. Enfatizou que não visava criticar a polícia; a matéria seria apenas sobre as mudanças no procedimento e na prática, levando em consideração as descobertas científicas e as mudanças na lei.

O assessor de imprensa ligou para ela no dia seguinte.

- Você teve sorte. Temos um caso de exatamente vinte e cinco anos atrás. E por coincidência, o nosso subchefe de polícia, policial naquela época, foi o primeiro oficial no local do crime. E ele concordou em lhe dar uma entrevista. Também consegui agendar um encontro com a detetive Karen Pirie, que está trabalhando na revisão desse caso. Ela está a par de todos os detalhes.

E lá estava Jackie, pregando uma peça na polícia de Fife. Normalmente, não costumava ficar nervosa antes de uma entrevista. Já estava na profissão há bastante tempo, não ficava mais apavorada. Havia lidado com todos os tipos de entrevistado: os tímidos, os espalhafatosos, os animados, os amedrontados, os especialistas em marketing pessoal, os que adotavam uma postura blasé, os criminosos embrutecidos e as vítimas desamparadas. Mas naquele dia, havia definitivamente uma carga de adrenalina circulando no seu sangue. Não estava mentindo quando dissera a Alex que também tinha algo a perder. Depois da conversa com ele, ficara horas acordada, nitidamente ciente do estrago que a suspeita sobre a morte de David Kerr podia causar em sua vida. Então, preparara-se para aquele dia vestindo-se de maneira conservadora e tentando deliberadamente parecer o menos ameaçadora possível. Pela primeira vez, havia mais furos do que brincos em suas orelhas.

Era difícil reconhecer o jovem policial no subchefe de polícia Lawson, pensou ela enquanto se acomodava à sua frente. Ele parecia uma daquelas pessoas que já nasciam carregando o peso do mundo nas costas, e naquele dia tal peso parecia especialmente pesado. Não devia ter mais de cinquenta anos, mas aparentava ter passado mais tempo em casa jogando bola do que conduzindo investigações criminais em Fife.

- Que ideia peculiar para uma matéria - disse ele, após terminarem os devidos cumprimentos.

- Que nada. As pessoas hoje em dia mal param para pensar nas investigações policiais. É bom lembrar como progredimos em um período de tempo relativamente curto. E eu, obviamente, preciso aprender muito mais do que vou acabar usando na matéria final. A gente sempre acaba jogando noventa por cento da pesquisa fora.

- E para onde está escrevendo esta matéria? - perguntou ele, despretensioso.

- Para a Vanity Fair - respondeu Jackie, confiante. Era sempre melhor mentir e usar nomes conhecidos. Fazia com que o entrevistado sentisse que não estava perdendo o seu tempo.

- Bom, estou aqui à sua disposição - disse ele com uma camaradagem forçada, abrindo as mãos em um gesto largo.

- Fico muito grata por isso. Imagino como o senhor deve estar ocupado. Bom, podemos relembrar aquela noite de dezembro de 1978? O que levou o senhor a participar do caso?

Lawson expeliu o ar pesadamente pelas narinas.

- Eu estava de plantão em uma viatura. Ou seja, estava trabalhando a noite toda, parando apenas para fazer um lanche. Mas não ficava dirigindo a noite inteira. - Um sorriso discreto surgiu no canto de sua boca. - Mesmo naquela época, já tínhamos um orçamento limitado. Eu não podia dirigir mais do que sessenta quilômetros por turno. Então, eu vasculhava o centro da cidade na hora em que os bares estavam fechando e depois encontrava um lugar tranquilo para estacionar até que houvesse um chamado. O que não costumava acontecer. St. Andrews era uma cidadezinha relativamente pacata, principalmente durante as férias da universidade.

- Devia ser bem maçante, hein? - comentou Jackie, solidária.

- E como. Eu costumava carregar um rádio transistor comigo, mas nunca tinha nada que valesse a pena escutar. Na maioria das vezes, eu estacionava perto da entrada do Jardim Botânico. Eu gostava daquele lugar. Era agradável e tranquilo, e dava para chegar a qualquer ponto da cidade em questão de minutos. Naquela noite, o tempo estava pavoroso. O dia inteiro nevara intermitentemente, e de madrugada o chão estava todo coberto por uma grossa camada de neve. Por causa disso, eu estava tendo uma noite calma. A maioria das pessoas não se arriscava a sair de casa com um tempo daqueles. Então, lá pelas quatro da manhã, eu vi um vulto aproximando-se pela neve. Eu saí do carro e, vou ser franco com você, por um momento achei que fosse ser atacado por um maníaco embriagado. O garoto estava sem fôlego, coberto de sangue e o suor escorria pelo seu rosto. Ele disse que havia uma moça em Hallow Hill, que ela havia sido atacada.

- O senhor deve ter tomado um susto - instigou Jackie.

- Primeiro, pensei que fosse um estudante bêbado. Mas ele era muito insistente. Ele disse que havia caído por cima da moça na neve e que ela estava sangrando bastante. Então eu percebi que ele estava falando sério, que não era fingimento. Comuniquei a central pelo rádio e avisei que ia investigar uma mulher ferida em Hallow Hill. Coloquei o rapaz na viatura...

- Esse era Alex Gilbey, não é?

Lawson ergueu as sobrancelhas.

- Você fez o seu dever de casa, hein?

Ela deu de ombros.

- Li as matérias nos jornais, só isso. Então o senhor levou Gilbey de volta a Hallow Hill? E o que encontrou lá?

Lawson concordou com a cabeça.

- Quando chegamos lá, Rosie Duff estava morta. Havia outros três rapazes em volta do corpo. Precisei tomar conta do local e pedi reforços pelo rádio. Pedi ajuda dos policiais e do Departamento de Investigação Criminal e escoltei as quatro testemunhas colina abaixo, para longe da cena do crime. Eu confesso de bom grado que estava totalmente baratinado. Nunca havia visto nada parecido e não sabia, àquela altura, se estava parado em meio a uma nevasca com quatro assassinos do meu lado.

- Mas o senhor não acha que se eles tivessem matado a moça a última coisa que fariam ia ser buscar ajuda da polícia?

- Não necessariamente. Eles eram rapazes bem inteligentes, perfeitamente capazes de forjar uma situação como aquela. E eu não podia dizer algo que mostrasse que eu suspeitava deles, porque tinha medo que eles escapassem noite afora e nos deixassem com um problema maior ainda. Afinal, eu mal sabia quem eles eram.

- Bom, imagino que o senhor conseguiu segurá-los direitinho, porque pelo que sei eles esperaram os seus colegas no local. O que aconteceu então? Em termos de procedimentos, quero dizer. - Jackie ouviu tudo o que Lawson tinha a dizer sobre o que aconteceu naquela noite na cena do crime, até o momento em que ele precisou escoltar os quatro jovens até a delegacia.

- O meu envolvimento direto com o caso terminou ali - concluiu Lawson. - Todas as investigações subsequentes foram conduzidas pelos oficiais do DIC. Tivemos que recrutar pessoal de outras divisões, porque não tínhamos gente suficiente para cobrir um caso como aquele. - Lawson arrastou a cadeira. - Agora, se você me der licença, vou chamar a detetive Karen Pirie. Ela está mais preparada do que eu para conversar sobre o caso com você.

Jackie recolheu o gravador, mas não desligou o aparelho.

- Incrível, o senhor realmente lembra bem daquela noite - disse ela, deixando transparecer admiração em sua voz.

Lawson apertou o botão do seu interfone.

- Margaret, peça para Karen vir até aqui, por favor. - Lawson lançou para Jackie um sorriso de vaidade satisfeita. - Temos que ser meticulosos no nosso trabalho - disse ele. - Eu sempre guardei anotações cuidadosas. Mas você precisa lembrar que assassinatos são ocorrências bastante raras em St. Andrews. Nos dez anos em que trabalhei lá, tivemos pouquíssimos casos de homicídio. Então, naturalmente, a gente não esquece.

- E vocês nunca estiveram prestes a prender alguém?

Lawson contorceu os lábios.

- Não. E isso é algo difícil de engolir para quem trabalha na polícia. Tudo apontava para os quatro rapazes que encontraram o corpo, mas só havia provas circunstanciais contra eles. Eu cheguei a ter um palpite de que o crime podia ter sido algum tipo de ritual de sacrifício pagão, por causa do lugar onde o corpo foi encontrado. Mas essa ideia nunca deu em nada, e nunca mais vimos algo parecido na nossa circunscrição. Lamento admitir, mas o assassino de Rosie Duff nunca foi punido. Mas, é claro, sujeitos que cometem crimes como esse normalmente acabam repetindo a dose, então, pode ser que ele esteja preso por outro assassinato.

Houve uma leve pancada na porta e Lawson disse:

- Pode entrar. - A mulher que entrou no recinto era diametralmente oposta a Jackie. Enquanto a jornalista era descontraída e atraente, Karen Pirie era rígida e sem sal. O que as unia era a flagrante centelha de inteligência que uma pôde reconhecer na outra. Lawson encarregou-se das apresentações e depois as conduziu habilmente até a porta. - Boa sorte com a sua matéria - disse ele, antes de fechar a porta firmemente.

Karen a conduziu por um lance de escadas até a sala onde a equipe de revisão dos casos trabalhava.

- Você mora em Glasgow? - perguntou ela enquanto subiam as escadas.

- Nascida e criada lá. É uma cidade incrível. Toda vida humana está lá, como eles dizem.

- O que é ótimo para uma jornalista. E como foi que você se interessou por esse caso?

Jackie repetiu a sua história sobre uma matéria de capa rapidamente. Pareceu fazer sentido para Karen. Ela abriu a porta do escritório e foi caminhando na frente. Jackie olhou à sua volta, notando as paredes de cortiça cobertas com fotografias, mapas e relatórios. Uns gatos pingados sentados atrás de computadores levantaram os olhos quando elas entraram, mas em seguida voltaram a trabalhar.

- Por sinal, não preciso nem dizer, tudo o que você vir ou ouvir aqui sobre as investigações atuais ou sobre qualquer outro caso é estritamente confidencial. Entendeu?

- Não sou repórter criminal. Não tenho interesse em nenhum outro caso além do que vim aqui conversar com você. Não vou passar a perna em vocês, ok?

Karen sorriu. Conhecera alguns jornalistas honestos na vida, mas na maioria não dava para confiar, eram capazes de roubar um sorvete de uma criança. Mas aquela mulher parecia diferente. Fosse lá o que estivesse buscando tão avidamente, não era mais uma matéria sensacionalista e descartável. Karen mostrou a Jackie uma mesa comprida encostada na parede, onde ela organizara todo o material da investigação original.

- Não sei exatamente o quão detalhada vai ser a sua matéria - disse ela, duvidosa, olhando para a pilha de pastas à sua frente.

- Eu queria ter uma noção de como a investigação progrediu. Quais caminhos foram explorados. E, é claro - completou Jackie, sacando uma expressão autodepreciadora da manga -, como isso é jornalismo, e não história, preciso dos nomes das pessoas envolvidas e todas as informações que você puder me oferecer sobre elas. Policiais, legistas, cientistas forenses, essas coisas. - Jackie sabia como fazer aquilo soar despretensioso.

- Claro, eu posso te dar os nomes. Já as informações, eu sei pouquíssimas. Eu tinha três anos na época do crime. E, para completar, o investigador oficial, Barney Maclennan, morreu durante a investigação. Você sabia disso, né? - Jackie assentiu com a cabeça. Karen continuou. - O único sujeito que eu conheci do pessoal da antiga foi David Soanes, o cientista forense. Ele fez todo o trabalho, mas quem assinou os laudos foi o chefe dele.

- E por quê? - perguntou Jackie, casual, tentando esconder a sua alegria por ter conseguido o que queria tão fácil e tão rápido.

- É praxe. Os laudos têm que ser assinados pelo chefe do laboratório, mesmo que ele nunca nem tenha tocado nas provas. Impressiona o júri.

- Nunca mais vou confiar nas assinaturas, então - disse Jackie, sarcástica.

- A gente faz o que é preciso para prender os bandidos - disse Karen. Ficou evidente pelo tom exausto da sua voz que ela não estava disposta a ficar na defensiva por uma coisa tão óbvia. - De qualquer forma, nesse caso, você não poderia estar mais bem servida. David Soanes é um dos sujeitos mais esforçados que eu já conheci. - Ela sorriu. - E hoje em dia, é ele quem assina o laudo dos outros. David leciona Ciência Forense na Universidade de Dundee agora. Encaminhamos todos os nossos serviços para lá.

- Talvez eu pudesse conversar com ele.

Karen deu de ombros.

- Ele é um cara bem acessível. Então, por onde começamos?

Duas horas de profundo tédio depois, Jackie conseguiu ir embora. Sabia mais do que jamais desejara sobre os procedimentos policiais de Fife na década de 70. Não havia nada mais frustrante do que conseguir a informação que se queria logo no início de uma entrevista e ter de ficar inventando assunto para não dar bandeira.

Karen, obviamente, não a deixara ver o laudo original. Mas Jackie não esperava que ela o mostrasse. Conseguira o que desejava. Agora, tudo dependia de Alex.


35

Alex contemplou a filha, deitada no moisés. Estava em casa, no seu lugar. A filha deles, em casa. Frouxamente envolvida em uma manta branca, franzindo o rosto enquanto dormia, Davina alegrava o seu coração. Perdera o ar franzino que tanto o preocupara nos seus primeiros dias de vida. Agora, parecia-se com os outros bebês e o seu rostinho tornava-se único. Queria desenhá-la todos os dias, para não perder nenhuma das nuances mais sutis da sua transformação.

Ela preenchia os seus sentidos. Se ele se debruçasse sobre ela, prendendo o fôlego, podia ouvi-la respirando baixinho. As suas narinas já reconheciam o inconfundível cheirinho de bebê. Alex amava Lynn, mas jamais sentira aquele sentimento avassalador de amor e proteção por alguém antes. Lynn estava certa, ele precisava mesmo fazer o que fosse necessário para garantir que acompanharia o crescimento da sua filha. Decidiu ligar para Paul mais tarde, para compartilhar aquela tarde tão significativa com ele. Se Ziggy estivesse vivo, teria ligado para ele e Paul merecia saber que continuava fazendo parte da vida deles.

O som distante de uma campainha interrompeu os seus devaneios. Alex tocou a filha, da maneira mais delicada que pôde, e depois saiu do quarto. Alcançou a porta da frente segundos depois de Lynn, que estava paralisada ao reconhecer Jackie na sua porta.

- O que você veio fazer aqui? - perguntou ela.

- Alex não te contou? - retrucou Jackie, arrastando a voz.

- Me contou o quê? - Lynn virou-se para Alex.

- Pedi ajuda a Jackie - explicou Alex.

- Isso aí. - Jackie parecia mais divertida do que ofendida.

- Pediu ajuda a ela? - Lynn não se esforçou para esconder o seu desdém. - Uma mulher que não só tinha motivos para matar o meu irmão, como conhecia gente disposta a fazer o serviço? Alex, como é que você pôde fazer uma coisa dessas?

- Porque ela também tem algo a lucrar. Ou seja, não vai nos passar a perna para conseguir uma manchete - explicou ele, tentando acalmar Lynn antes que Jackie se ofendesse de vez e fosse embora sem revelar se havia descoberto alguma coisa.

- Aqui em casa ela não entra - disse Lynn, categórica.

Alex levantou as mãos.

- Tudo bem. Deixa só eu pegar o meu casaco. Vamos até o pub, se estiver tudo bem para você, tá, Jackie?

Ela deu de ombros.

- Por mim, tudo bem. Mas você paga a conta.

Caminharam até o pub em silêncio. Alex não estava com vontade de se desculpar pela hostilidade de Lynn e Jackie não queria passar recibo. Quando se acomodaram no pub, cada um com um cálice de vinho tinto à sua frente, Alex suspendeu as sobrancelhas, inquisitivo.

- E aí? Conseguiu alguma coisa?

Jackie fez uma expressão convencida.

- Estou com o nome do cientista forense que trabalhou no caso de Rosie Duff. E o melhor da história é que ele continua na ativa. Está dando aulas em Dundee. O nome dele é David Soanes e, ao que parece, o cara é fodão.

- E quando você vai poder ir até lá conversar com ele? - perguntou Alex.

- Eu não vou lá falar com ele, Alex. Isso é tarefa sua.

- Minha? Eu não sou jornalista. Por que ele toparia falar comigo?

- O interessado aqui é você. Você pede pelo amor de Deus, diz a ele que qualquer informação que ele puder te dar pode ajudar a resolver o caso.

- Nem sei como entrevistar uma pessoa - protestou Alex. - E por que Soanes me diria alguma coisa? Você acha que ele vai querer assumir que deixou passar alguma coisa no laudo naquela época?

- Alex, você me convenceu a te ajudar e, francamente, eu nem vou com a sua cara, ou com a da sua mulher grosseira e tacanha. Então, acho que você provavelmente vai conseguir convencer David Soanes a te contar o que você quer. Principalmente porque você não vai perguntar sobre coisas que ele deixa passar. Você está interessado nas coisas que talvez não tenham sido suscetíveis à análise, coisas que justificadamente ficaram de fora do relatório. Se ele tem apreço pelo seu trabalho, com certeza vai querer te ajudar. Vai ser inclusive melhor do que conversar com um jornalista, que pode retratá-lo como incompetente. - Jackie bebericou o seu vinho, fez uma careta e ficou de pé. - Me avise quando tiver alguma novidade que possa me ajudar.

Lynn estava sentada na estufa, contemplando as luzes no estuário. Estavam sutilmente envolvidas pelo ar seco, o que conferia uma aparência ainda mais misteriosa do que mereciam. Ouviu um barulho na porta da sala, seguido pela voz de Alex anunciando:

- Já cheguei. - Mas, antes que ele pudesse ir até ela, a campainha tocou. E, independentemente de quem fosse, ela não estava disposta a receber.

Vozes abafadas iam ficando mais distintas conforme se aproximavam, mas ela ainda não conseguira descobrir quem era a visita. De repente, a porta se abriu e Esquisito foi logo caminhando em sua direção.

- Lynn! - bradou ele. - Já sei que você tem uma menininha linda para me mostrar.

- Esquisito! - exclamou Lynn, visivelmente surpresa. - Você é a última pessoa que eu esperava ver aqui em casa.

- Ótimo - disse ele. - Vamos torcer para todos estarem pensando a mesma coisa. - Ele a olhou com preocupação. - Como é que você está?

Lynn inclinou-se para abraçá-lo.

- Sei que parece bobagem, porque quase não o víamos, mas estou com saudades de Mondo.

- Claro que sim. Todos nós estamos. E estaremos sempre. Ele era uma parte de nós e agora não é mais. O único consolo é sabermos que agora ele habita a morada do Senhor. - Ficaram em silêncio por um momento e depois Lynn se afastou.

- E o que é que você está fazendo aqui? - perguntou ela. - Você não voltou direto para os Estados Unidos depois do funeral?

- Voltei. Despachei a minha mulher e os meus filhos para um lugar nas montanhas, onde ficarão a salvo de qualquer pessoa que tenha problemas comigo. E depois, desapareci. Cruzei a fronteira para o México. Lynn, jamais vá para Tijuana, a não ser que você tenha um estômago de ferro. A comida é a pior do mundo, mas o que realmente provoca indigestão na alma é a discrepância entre a riqueza extravagante dos Estados Unidos com a pobreza dos mexicanos. Fiquei com vergonha do país que escolhi para viver. Sabia que os mexicanos pintam os seus burros com listras, como zebras, para que os turistas tirem fotos com eles? Veja só a que ponto nós os obrigamos a chegar.

- Nos poupe do sermão, Esquisito. Vá direto ao assunto - reclamou Lynn.

Esquisito sorriu.

- Tinha me esquecido como você é direta, Lynn. Bom, fiquei bastante encucado depois do funeral de Mondo. Então contratei um detetive particular em Seattle. Queria descobrir quem enviou a coroa de flores para o funeral do Ziggy. E o sujeito conseguiu uma resposta. Uma resposta que me deu bons motivos para voltar pra cá. Além do mais, imaginei que este seria o último lugar onde alguém imaginaria que eu pudesse estar. Perto demais de casa.

Alex girou os olhos.

- Você realmente aprendeu a fazer suspense ao longo dos anos, hein? Você vai contar o que descobriu ou não?

- O sujeito que mandou as coroas mora aqui em Fife. Em St. Monans, para ser mais exato. Não sei quem ele é, nem que relação tem com Rosie Duff. O nome dele é Graham Macfadyen.

Alex e Lynn trocaram olhares de aflição.

- Sabemos quem ele é - disse Alex. - Ou melhor, podemos no mínimo adivinhar.

Foi a vez de Esquisito ficar ansioso e frustrado.

- O quê? Vocês sabem?

- É o filho de Rosie Duff - disse Lynn.

Esquisito arregalou os olhos.

- Ela teve um filho?

- Ninguém sabia naquela época. Ele foi entregue para adoção assim que nasceu. Devia ter uns três ou quatro anos quando ela morreu - explicou Alex.

- Que coisa! - exclamou Esquisito. - Bom, até que faz sentido, né? Imagino que ele só ficou sabendo que a mãe foi assassinada recentemente.

- Ele procurou Lawson quando a revisão dos casos não resolvidos foi anunciada. Tinha começado a procurar a mãe biológica alguns meses antes disso.

- Aí está o motivo que vocês estão procurando. Ele deve ter achado que vocês quatro eram responsáveis pelo assassinato - concluiu Lynn. - Temos que descobrir mais sobre esse Macfadyen.

- Precisamos descobrir se ele estava nos Estados Unidos na semana em que Ziggy morreu - disse Alex.

- Como é que a gente vai conseguir descobrir isso? - perguntou Lynn.

Esquisito levantou a mão.

- A central da Delta fica em Atlanta. Um dos meus fiéis tem uma boa posição lá. Acho que ele pode ter acesso às listas de passageiros. Aparentemente, as companhias aéreas compartilham informações como essas o tempo todo. E eu estou com os dados do cartão de crédito de Macfadyen, o que pode agilizar o processo. Posso ligar para ele mais tarde?

- Claro - disse Alex, inclinando a cabeça. - É a Davina? - Aproximou-se da porta. - Vou buscá-la.

- Muito bem, Esquisito - disse Lynn. - Nunca imaginei você como um pesquisador metódico.

- Esqueceu que eu era matemático, e dos bons? Todo o resto era só uma tentativa desesperada de não ficar igual ao meu pai. O que, graças a Deus, eu consegui.

Alex voltou, com Davina choramingando em seus braços.

- Acho que ela está com fome.

Esquisito levantou-se e contemplou o pequeno bebê embrulhado em uma manta.

- Caramba - disse ele, com uma voz cheia de doçura. - Ela é linda. - Ele olhou para Alex. - Agora você entende por que eu estou tão determinado a sair dessa com vida.

Lá fora, debaixo da ponte, Macfadyen observava a cena na casa de Alex. Fora uma tarde animada. Primeiro, aparecera uma mulher. Reconhecera-a do funeral, tinha visto a viúva de Kerr entrar no carro dela. Seguira as duas até um flat em Merchant City e, alguns dias depois, seguira Alex até aquele mesmo endereço. Não sabia quem ela era, onde se encaixava naquela trama intrincada. Seria apenas uma amiga da família? Ou mais do que isso?

Fosse ela quem fosse, não fora bem recebida. Ela e Gilbey foram até o pub, mas não ficaram lá tempo suficiente nem para tomar um único drinque. Depois, quando ele voltou para casa, a verdadeira surpresa apareceu. Mackie estava de volta. Ele deveria estar quietinho na Geórgia, pregando para o seu rebanho. Mas não, lá estava ele, novamente em Fife, junto com o seu cúmplice. Ninguém abandona tudo na vida assim, a não ser que tenha um bom motivo.

Estava mais do que provado. Dava para ver no rosto deles. Aquela não era uma descontraída reunião de amigos. Não era um encontro alegre, para comemorar a alta da filha de Gilbey do hospital. Aqueles dois estavam escondendo alguma coisa, algo que os reunira durante aquela crise. O medo os aproximara novamente. Estavam apavorados, com medo de que o inimigo que dera fim aos outros dois assassinos os localizasse a qualquer momento. Estavam juntos por segurança.

Macfadyen abriu um sorriso sinistro. A mão gelada do passado os alcançava, inexoravelmente. Não conseguiriam dormir tranquilos naquela noite. E era assim que devia ser. Tinha planos para eles. E, quanto mais assustados estivessem, melhor.

Tinham tido vinte e cinco anos de paz - muito mais do que a sua mãe pudera desfrutar. Estava na hora de aquela paz chegar ao fim.


36

O dia nasceu desanimador e cinzento, e a vista da North Queensferry estava obscurecida por uma bruma sombria. Em algum lugar uma buzina de nevoeiro soava o seu infeliz aviso, como uma vaca lamentando a morte de um bezerro. Com a barba por fazer e atordoado de sono, Alex apoiava os cotovelos sobre a mesa do café da manhã e observava Lynn amamentando Davina.

- Foi uma noite boa ou ruim? - perguntou ele.

- Média - respondeu Lynn, bocejando. - Nessa idade, precisam mamar várias vezes durante a noite.

- Uma da manhã, três e meia, seis e meia... Tem certeza de que ela não está faminta demais?

Lynn sorriu.

- É impressionante como o amor paterno desaparece rapidinho, né? - zombou ela.

- Se isso fosse verdade, eu teria tapado os ouvidos com o travesseiro e continuado a dormir, em vez de me levantar, preparar um chá para você e trocar a fralda dela - rebateu Alex, na defensiva.

- Se Esquisito não estivesse aqui, você podia ficar no quarto de hóspedes.

Alex fez um gesto negativo com a cabeça.

- Não quero fazer isso. Vamos ver como fica.

- Mas você precisa dormir. Você tem uma empresa para tocar.

Alex deu um muxoxo.

- Tirando o tempo que eu passo rodando o país inteiro atrás de cientistas forenses, né?

- Isso mesmo. Você está incomodado por Esquisito estar aqui em casa?

- Não, por quê?

- Bobagem minha. Eu é que sou muito desconfiada mesmo. Você sabe que eu sempre achei que, de vocês quatro, ele era o único que poderia ter matado Rosie. Então, sei lá, estou um pouco agoniada por ele ter aparecido assim, do nada.

Alex assumiu uma expressão de desconforto.

- Só desta maneira ele sairia impune do crime que cometeu? Por que ele sairia matando os amigos vinte e cinco anos depois?

- Vai ver que ele ficou sabendo da revisão do caso e ficou com medo de, depois de todo esse tempo, ser dedurado por um de vocês.

- Você é sempre exagerada, né? Ele não a matou, Lynn. Ele jamais faria isso.

- Mas as pessoas fazem coisas horríveis quando estão drogadas. E, pelo que eu me lembro, Esquisito tomava todas. Ele estava com a Land Rover; Rosie provavelmente o conhecia o suficiente para aceitar uma carona. E depois, aquela conversão religiosa sem mais nem menos. Vai ver que era culpa, Alex.

Ele balançou a cabeça.

- Ele é meu amigo. Eu saberia.

Lynn suspirou.

- Você deve ter razão. Eu exagero mesmo. E estou meio nervosa. Desculpa.

Enquanto ela falava, Esquisito apareceu. De banho tomado e barbeado, ele parecia o retrato fiel do homem saudável e forte. Alex olhou para ele e resmungou.

- Meu Deus, você está a cara daquele Tigrão da Disney.

- Que cama maravilhosa - disse Esquisito, olhando à sua volta, procurando a cafeteira. Atravessou a cozinha e começou a abrir todos os armários, até encontrar as xícaras. - Dormi como um bebê.

- Isso não - disse Lynn. - A não ser que você tenha acordado chorando de três em três horas. Você não está com um pouco de jet lag?

- Nunca tive jet lag na minha vida - respondeu ele, animado, servindo o café. - E aí, Alex, quando é que a gente parte para Dundee?

Alex começou a se aprumar.

- Tenho que ligar para lá e agendar um encontro.

- Você tá maluco? Dar oportunidade para o sujeito dizer não? - admoestou Esquisito, fuçando a cesta de pães. Apanhou um bolinho escocês e estalou os lábios. - Uhm, há anos que não como um desses.

- Sinta-se em casa - disse Alex.

- Estou me sentindo - respondeu Esquisito, vasculhando a geladeira atrás de manteiga e queijo. - Não, Alex. Nada de telefonemas. A gente simplesmente aparece lá e deixa bem claro que não vai arredar o pé até o professor Soanes encontrar uma janela.

- Uma janela? Para se jogar? - Alex não conseguiu resistir à tentação de debochar dos americanismos de Esquisito, que soavam ainda mais bizarros ditos com um sotaque escocês que se tornara ainda mais carregado da noite para o dia.

- Muito engraçado. - Esquisito apanhou um prato e uma faca e sentou-se à mesa.

- Você não acha que isso vai deixá-lo um pouquinho irritado, não? - perguntou Lynn.

- Não, acho que mostra que não estamos de brincadeira - disse Esquisito. - Acho que é o que dois sujeitos que se sentem ameaçados de morte fariam. Não está na hora de sermos educados, dóceis, obedientes. Está na hora de dizermos: "Estamos morrendo de medo e o senhor pode nos ajudar."

Alex fez uma careta.

- Tem certeza de que você quer mesmo vir comigo? - O olhar repressor que Esquisito lançou para ele teria paralisado qualquer um. Alex levantou as mãos, rendendo-se. - Está bem. Me dá meia horinha então.

Lynn observou o marido saindo, preocupada.

- Não se preocupe, Lynn. Eu vou cuidar dele.

Lynn bufou, debochada.

- Ah, por favor, Esquisito. Espero que eu não precise contar com isso.

Ele abocanhou um pedaço do bolo e a observou.

- Eu não sou mais a mesma pessoa que você lembra, Lynn - disse ele, sério. - Esqueça o adolescente rebelde, o excesso de álcool e as drogas. Lembre-se que eu sempre fiz os meus deveres e entreguei os meus trabalhos dentro do prazo. Eu dava a impressão de estar fora de controle, mas lá no fundo era um sujeito tão normal quanto Alex. Eu sei que vocês devem morrer de rir pelas minhas costas por ter um pastor que faz pregação na tevê na sua lista de cartões de Natal; e, por sinal, os cartões são maravilhosos. Mas por trás de toda a excentricidade, eu sou uma pessoa que leva muito a sério tudo o que acredita e o que faz. Quando eu digo que vou cuidar de Alex, pode ter certeza de que ele vai estar tão seguro comigo quanto estaria com qualquer outra pessoa.

Lynn aceitou a reprimenda, mas ela não serviu para minar a sua desconfiança completamente. Trocou a filha de seio para que ela continuasse a mamar e disse:

- Pronto, querida. - Fez uma careta de dor ao sentir o bebê sugar o seu seio com avidez; ainda não estava acostumada com aquela sensação tão nova. - Desculpa, Esquisito. É que é difícil não te julgar pela época em que nos conhecíamos melhor.

Ele terminou o seu café e levantou-se.

- Eu sei. Eu continuo te vendo como uma garotinha boba que sonhava com David Cassidy.

- Babaca - disse ela.

- Vou orar um pouco agora - disse ele, dirigindo-se à porta. - Eu e Alex precisamos de toda ajuda possível.

O lado de fora do ginásio Old Fleming era completamente diferente da imagem que Alex fazia de um laboratório forense. Escondido em um beco estreito, o seu arenito vitoriano estava consideravelmente manchado por um século de poluição. Não era uma construção feia; o seu único andar era bem proporcionado, com janelas em estilo italiano. Só não parecia ser o tipo de lugar que abrigava a tecnologia de ponta da ciência forense.

Esquisito também estava visivelmente intrigado.

- Tem certeza de que é aqui mesmo? - perguntou ele, hesitante na entrada do beco.

Alex fez um gesto para a rua.

- O café do antigo Instituto Técnico fica ali. De acordo com o mapa no site da universidade, é aqui mesmo.

- Parece mais um banco do que um ginásio, e menos ainda um laboratório. - Mesmo assim, ele seguiu Alex pelo beco.

A recepção não dava muitas pistas. Um rapaz com um problema sério de psoríase e vestido à moda dos beatniks da década de 50 estava sentado atrás do balcão, digitando em um teclado de computador. Olhou para eles por cima da escura armação dos seus óculos.

- Em que posso ajudá-los, senhores? - perguntou ele.

- Gostaríamos de saber se por acaso poderíamos dar uma palavrinha com o professor Soanes - disse Alex.

- O senhor marcou hora?

Alex fez um gesto negativo com a cabeça.

- Não. Mas ficaríamos muito agradecidos se ele pudesse nos receber. É sobre um caso antigo no qual ele trabalhou.

O rapaz balançou a cabeça de um lado para o outro, como um dançarino indiano.

- Acho que não vai ser possível, não. Ele é um homem muito ocupado.

- Nós também - interrompeu Esquisito, aproximando-se do balcão. - E o nosso assunto com ele é uma questão de vida ou morte.

- Meu Deus - disse o rapaz. - É o Tommy Lee Jones de Tayside. - O comentário poderia ter soado grosseiro, mas ele o fez com um ar divertido de admiração que neutralizou qualquer malícia.

Esquisito o encarou firmemente.

- Podemos esperar. - Alex acudiu antes que a coisa ficasse feia.

- E vão ter de esperar mesmo. Ele está dando um seminário agora. Deixa eu conferir a agenda dele para hoje. - Ele digitou alguma coisa no teclado. - Vocês podem voltar às três? - perguntou ele alguns segundos depois.

Esquisito chiou.

- E passar cinco horas em Dundee?

- Maravilha - respondeu Alex, lançando um olhar firme para Esquisito. - Vamos, Tom. - Deixaram os seus nomes, alguns detalhes do caso e o número do celular de Alex antes de partirem.

- Você, como sempre, a simpatia em pessoa - comentou Alex enquanto voltavam para o carro.

- É, mas conseguimos alguma coisa, não foi? Se tivéssemos que depender de você, como sempre um banana, teríamos sorte se conseguíssemos uma horinha antes do final do semestre. E então, o que vamos fazer nas próximas cinco horas?

- Podíamos ir até St. Andrews - sugeriu Alex. - É só cruzar a ponte.

Esquisito estacou.

- Você está falando sério?

- Claro. Nunca falei tão sério. Acho que não ia fazer mal nos lembrarmos de lá. E ninguém vai reconhecer a gente, depois de tantos anos.

Esquisito repousou a mão no peito, no lugar onde a sua cruz normalmente ficava. Deu um muxoxo ao lembrar que não estava usando o seu hábito.

- Está bem - disse ele. - Mas eu não quero nem passar perto da Masmorra da Garrafa.

Dirigir por St. Andrews era uma experiência estranha, perturbadora. Primeiro, porque eles jamais tiveram acesso a um carro na época em que eram estudantes e nunca haviam observado a cidade da perspectiva de um motorista. Segundo, porque ao avançarem pela cidade, passavam por prédios que não existiam naquela época. O amontoado de concreto do Old Course Hotel; o cilindro neoclássico do Museu da Universidade de St. Andrews; o Centro de Vida Aquática atrás do perene clube Royal and Ancient, o próprio templo do golfe. Esquisito contemplava a cidade pela janela, atônito.

- Como está mudada.

- Claro que está mudada. Lá se foi um quarto de século.

- Você voltou aqui outras vezes?

Alex balançou a cabeça.

- Há vinte anos que não passo nem perto. - Ele dirigiu lentamente, finalmente encaixando o seu BMW em uma vaga deixada por uma mulher em um Renault.

Saíram em silêncio e puseram-se a caminhar pelas ruas da cidade, outrora tão familiares. Era como rever Esquisito, pensou Alex, todos aqueles anos depois. A estrutura óssea era basicamente a mesma. Não havia como tomá-lo por outra pessoa, ou outra pessoa por ele. Mas a superfície era diferente. Algumas mudanças eram sutis, outras gritantes. Assim como caminhar novamente por St. Andrews. Algumas lojas continuavam no mesmo lugar de sempre e as suas fachadas permaneciam idênticas. Paradoxalmente, pareciam fora de lugar, como se tivessem conseguido de alguma maneira escapar da dobra de tempo que abocanhara o resto da cidade. A lojinha de doces ainda estava lá, um monumento ao apetite nacional por açúcar. Alex reconheceu o restaurante onde experimentaram comida chinesa pela primeira vez, os sabores desconhecidos e confusos para paladares acostumados com uma comida mais tradicional. Eram quatro naquela época, leves e confiantes, sem a menor noção de que algo ruim estava prestes a acontecer. E agora restavam dois.

Era impossível fugir da universidade. Dos dezesseis mil habitantes da cidade, um terço ganhava a vida às custas dela, e, se os seus prédios tivessem se desintegrado da noite para o dia, teriam deixado uma cidade banguela. Alunos corriam pelas ruas, com a característica veste de flanela vermelha embrulhada em volta do corpo, para proteger o seu dono do frio. Era difícil acreditar que um dia haviam feito a mesma coisa. Uma lembrança fugaz ocorreu a Alex: Ziggy e Mondo em uma sofisticada loja de roupas masculinas, experimentando os seus uniformes novos. Alex e Esquisito tiveram de se conformar com roupas de segunda mão, mas aproveitaram ao máximo a oportunidade de fazerem bagunça por uma boa causa, testando a paciência dos funcionários da loja. Aquilo tudo parecia estranho e distante agora, como se fosse um filme, não uma lembrança.

Quando se aproximaram do West Port, vislumbraram a fachada familiar do Pub Lammas através dos arcos de pedra do portão maciço. Esquisito estacou, abruptamente.

- Estou ficando maluco. Não aguento mais, Alex. Vamos sair desse lugar.

Alex não ficou exatamente contrariado com a sugestão.

- Vamos voltar para Dundee, então?

- Não, tive outra ideia. Um dos motivos de eu ter voltado era para confrontar esse tal de Graham Macfadyen sobre as flores. St. Monans não é muito longe daqui, é? Vamos até lá ver o que ele tem a nos dizer.

- Mas estamos no meio do dia. Ele deve estar trabalhando agora - ponderou Alex, apertando o passo para acompanhar Esquisito enquanto se dirigiam de volta ao carro.

- Pelo menos a gente dá uma olhada na casa. E, de repente, conseguimos voltar depois de falarmos com o professor Soanes. - Era inútil discutir com Esquisito quando ele estava daquele jeito, constatou Alex, resignado.

Macfadyen não conseguia descobrir o que estava acontecendo. Estivera de plantão do lado de fora da casa de Gilbey desde as sete da manhã e sentira uma onda de gratidão ao ver os dois saindo de carro. Os parceiros no crime certamente estavam tramando alguma. Seguiu o carro de Gilbey por Fife, até Dundee, e os acompanhou até o Beco Small’s. Assim que eles entraram no prédio antigo de arenito, apressou-se atrás deles. A placa na porta dizia: DEPARTAMENTO DE CIÊNCIA FORENSE, o que fez com que ele parasse. O que será que estavam procurando por lá? Por que estavam naquele lugar?

Fosse lá o que estivessem buscando, não demorou muito. Saíram do prédio uns dez minutos depois. Quase os perdera de vista perto da ponte, mas conseguiu alcançá-los enquanto diminuíam a velocidade, rumo a St. Andrews. Estacionar lá foi difícil e ele acabou tendo que deixar o seu carro bloqueando a garagem de alguém.

Conseguiu acompanhá-los enquanto caminhavam pela cidade. Não pareciam estar com um itinerário definido. Seguiram e voltaram pelos mesmos lugares algumas vezes, atravessando a North Street, a Market Street e a South Street. Por sorte, Mackie era alto o suficiente para destacar-se na rua, de modo que não foi muito difícil seguir a dupla. De repente, Macfadyen percebeu que aquele passeio aparentemente sem objetivo os estava levando cada vez mais perto do West Port. Estavam indo para o Lammas. Tinham a cara de pau de atravessar a porta e revisitar o lugar onde haviam visto a sua mãe pela primeira vez.

Macfadyen sentiu o suor acumulando-se sobre o seu lábio superior, apesar do frio úmido que o maltratava. Os indicativos de culpa multiplicavam-se a cada hora. Se fossem inocentes, teriam ficado bem longe do Lammas, se fossem inocentes e tivessem respeito. Mas a culpa os atraía como um ímã, estava certo disso.

Estava tão perdido em seus pensamentos que quase esbarrou nos dois. Haviam parado sem mais nem menos, no meio da calçada, e ele continuara andando. Com o coração pulando dentro do peito, Macfadyen desviou deles, de cabeça baixa. Abrigou-se sob a marquise de uma loja e olhou para trás, fechando as suas mãos suadas em punho dentro dos bolsos do seu casaco. Não conseguia acreditar no que via. Viraram as costas para o West Port e puseram-se a caminhar de volta pela South Street, na direção contrária.

Quase teve de apressar o passo para não perdê-los de vista, enquanto cruzavam por uma série de vielas e becos. O fato de darem preferência a vias estreitas em vez de ruas mais amplas cheirava a consciência pesada para Macfadyen. Gilbey e Mackie estavam se escondendo do mundo, protegendo-se dos olhares acusadores que imaginavam estar em cada esquina.

Quando conseguiu chegar ao seu carro, eles já estavam a caminho, passando de carro pela catedral. Xingando, Macfadyen sentou-se ao volante e ligou o motor. Estava quase alcançando o carro de Gilbey quando foi vítima do azar. No final da Kinkell Braes, por causa de obras na estrada, somente uma das pistas estava livre e controlada por semáforo. Gilbey avançou bem na hora que o sinal mudou de amarelo para vermelho, como se soubesse que precisava escapar. Se não tivesse nenhum outro veículo entre eles, Macfadyen teria se arriscado e avançado o sinal vermelho. Mas uma van de autopeças estava atravancando o seu caminho. Esmurrou o volante, irado, bufando até o sinal verde aparecer novamente. A van continuou colina acima, com Macfadyen no seu encalço. Mas só conseguiu ultrapassá-la uns bons quilômetros depois. Sabia, no fundo do seu coração, que não tinha mais a menor chance de alcançar a BMW de Gilbey.

Estava à beira das lágrimas. Não fazia a menor ideia do paradeiro dos dois. Nada naquela manhã desorientadora lhe oferecera alguma pista. Pensou em voltar para casa, verificar se tinha alguma novidade nos seus computadores. Mas não fazia muito sentido. Não ia descobrir onde Gilbey e Mackie estavam pela internet.

Só tinha certeza de uma coisa: mais cedo ou mais tarde, eles voltariam a North Queensferry. Xingando-se pela sua patetice, Macfadyen decidiu que o melhor a fazer era voltar para lá.

Quando estava passando pelo desvio que o levaria para a sua casa, Graham Macfadyen viu Esquisito e Alex parados de carro na sua porta.

- Satisfeito? - perguntou Alex.

Esquisito já havia sondado o lugar e batido na porta, sem sucesso. Depois, contornara a casa, olhando pelas janelas. Alex estava convencido de que a polícia ia aparecer a qualquer momento, acionada por algum vizinho enxerido. Mas aquele não era o tipo de lugar onde os moradores passavam o dia inteiro em casa.

- Pelo menos sabemos onde encontrá-lo - disse Esquisito. - Acho que ele mora sozinho.

- Por quê?

Esquisito lançou um olhar que dizia "isso é óbvio" para Alex.

- Nenhum toque feminino, não é?

- Nem unzinho sequer - respondeu Esquisito. - Tudo bem, você tinha razão. Foi uma perda de tempo. - Ele deu uma olhadela para o seu relógio. - Vamos procurar um pub decente e almoçar. E depois, podemos voltar para a simpática Dundee.


37

O professor David Soanes era um homem gorducho. Com as bochechas rosadas, uma auréola de cabelo grisalho encaracolado em volta da careca lustrosa e olhos azuis que chegavam a faiscar, parecia uma versão desconcertante do Papai Noel sem barba. Conduziu Esquisito e Alex por um cubículo minúsculo onde mal cabiam a sua mesa e duas cadeiras para visitas. O cômodo era espartano, sendo a sua única decoração um certificado que proclamava que Soanes era cidadão de Srebrenica. Alex não queria pensar no que ele devia ter feito para merecer aquela honra.

Soanes fez um gesto para que se sentassem e acomodou-se, imprensando a barriga roliça na beirada da mesa. Espremeu os lábios e observou os dois homens sentados à sua frente.

- Fraser disse que os senhores queriam conversar sobre o caso Rosemary Duff - disse ele, após uma longa pausa. A sua voz era tão doce e agradável quanto um pudim de Natal das histórias de Dickens. - Tenho algumas perguntas para fazer antes. - Ele conferiu um pedaço de papel sobre a mesa. - Alex Gilbey e Tom Mackie, não é isso?

- Isso mesmo - respondeu Alex.

- E não são jornalistas?

Alex pescou o seu cartão de visitas e entregou a ele.

- Sou dono de uma empresa que fabrica cartões. Tom é pastor. Não somos jornalistas.

Soanes analisou o cartão, dobrando-o para verificar se a gravação era verdadeira. Suspendeu uma das sobrancelhas cabeludas e grisalhas e perguntou, abruptamente:

- E qual o interesse dos senhores no caso Rosemary Duff?

Esquisito inclinou-se para a frente.

- Somos dois dos quatro sujeitos que encontraram o corpo dela na neve, há vinte e cinco anos. O senhor provavelmente examinou as nossas roupas no seu microscópio.

Soanes entortou levemente a cabeça para o lado. As rugas no canto dos seus olhos estreitaram-se quase imperceptivelmente.

- Isso foi há muito tempo. Por que vieram me procurar agora?

- Achamos que tem alguém atrás da gente - disse Esquisito.

Desta vez, Soanes suspendeu as duas sobrancelhas.

- Agora fiquei perdido. O que isso tem a ver comigo, ou com Rosemary Duff?

Alex pousou a mão no braço de Esquisito.

- Dos quatro que estiveram lá naquela noite, dois já morreram. Morreram nas últimas seis semanas. Ambos assassinados. Eu sei que pode ser mera coincidência. Mas nos dois funerais, encontramos uma coroa de flores e alecrim com os dizeres: Lembrança de Rosemary. Temos motivos para crer que as coroas foram enviadas pelo filho de Rosie Duff.

Soanes franziu a testa.

- Lamento, mas acho que os senhores estão no lugar errado. Deveriam ter procurado a polícia de Fife, que está conduzindo uma revisão de casos não resolvidos, incluindo esse.

Alex balançou a cabeça.

- Já tentei fazer isso. O subchefe de polícia Lawson só faltou me chamar de paranoico. Disse que coincidências como essas acontecem, que eu devia voltar para casa e parar de me preocupar à toa. Mas acho que ele está errado. Acho que alguém está matando a gente porque está convencido de que assassinamos Rosie. E a única maneira de conseguirmos nos safar é descobrindo o verdadeiro assassino.

Uma expressão impenetrável surgiu no rosto de Soanes à menção do nome de Lawson.

- Mesmo assim, continuo sem entender o que os senhores vieram fazer aqui. O meu envolvimento pessoal com esse caso terminou vinte e cinco anos atrás.

- Viemos porque eles perderam as provas - interrompeu Esquisito, incapaz de ficar muito tempo sem ouvir o som da sua própria voz.

- O senhor deve estar enganado. Testamos uma peça recentemente. E o exame de DNA deu negativo.

- Vocês só têm o cardigã - disse Alex. - Mas o mais importante, as roupas com marcas de sangue e sêmen, eles perderam.

Não havia como duvidar do interesse crescente de Soanes.

- Eles perderam as provas originais?

- Foi o que Lawson me disse - confirmou Alex.

Soanes balançou a cabeça, impressionado.

- Mas que horror - disse ele. - Ainda que não seja de se admirar, sob um comando desses. - A sua testa se enrugou em uma careta de desaprovação. Alex se perguntava o que mais a polícia de Fife havia feito para deixar aquela impressão negativa em Soanes. - Bom, sem a principal prova, não sei o que os senhores acham que posso fazer para ajudá-los.

Alex respirou profundamente.

- Sei que o senhor fez o relatório original do caso. E também sei que os peritos forenses nem sempre incluem todos os detalhes nos seus laudos. Imagino se havia alguma coisa que o senhor por acaso tenha deixado de fora naquela época. Estou pensando principalmente em vestígios de tinta. Porque a única coisa que eles não perderam foi o cardigã. E depois que o encontraram, voltaram para colher mais amostras de tinta na nossa casa.

- E por que eu haveria de contar alguma coisa a esse respeito aos senhores, isto é, supondo que houvesse algo para contar? Seria um procedimento altamente irregular. Afinal de contas, para todos os efeitos, vocês eram suspeitos.

- Éramos testemunhas, não suspeitos - disse Esquisito, irritado. - E o senhor tem que nos ajudar, senão vamos acabar assassinados e o senhor vai penar para acertar as contas com Deus e com a sua consciência.

- E porque cientistas devem se importar com a verdade - acrescentou Alex. Hora de correr riscos, pensou ele. - E eu tenho a impressão de que o senhor tem a verdade como sua circunscrição. Ao contrário da polícia, que normalmente só se preocupa em obter resultados.

Soanes apoiou um cotovelo na mesa e apertou o lábio inferior com os dedos, revelando a sua úmida carnosidade interior. Olhou para eles como se os estivesse avaliando, longa e firmemente. Então, levantou-se decidido e consultou o arquivo, que era o único acessório na sua mesa. Passou os olhos nas fichas e depois levantou a cabeça e encontrou os olhos ansiosos dos dois.

- O meu laudo versou principalmente sobre sangue e sêmen. O sangue era de Rosie Duff, o sêmen supostamente pertencia ao assassino. Como o sujeito que depositou o sêmen era um secretor, conseguimos determinar o seu grupo sanguíneo. - Ele folheou algumas páginas. - Encontramos também evidência de fibras. Um carpete industrial marrom, vagabundo, e algumas fibras de um carpete cinzento, usado por vários fabricantes de veículos em carros de médio porte. Alguns vestígios de pelo de cachorro, de um springer spaniel que pertencia ao dono do pub onde Rosie trabalhava. Tudo isso foi mencionado no meu laudo.

Ele percebeu o olhar de decepção nos olhos de Alex e deu um sorrisinho.

- Agora, vêm as minhas anotações.

Apanhou um bloco de anotações escritas a mão. Ele apertou os olhos por uns segundos, depois tirou uns óculos de leitura com armação dourada do bolso do casaco e os encaixou sobre o nariz.

- Minha letra sempre foi terrível - disse ele, secamente. - Não leio isso aqui há anos. Deixe-me ver... sangue... sêmen... lama. - Virou algumas páginas, cobertas por uma letra minúscula e firme. - Pelos... Aqui está. Tinta. - Bateu com o dedo na página e olhou para eles. - O que os senhores sabem sobre tinta?

- Emulsão para as paredes, verniz para madeira - disse Esquisito. - É tudo o que sei sobre tinta.

Soanes sorriu, pela primeira vez.

- A tinta é composta de três elementos principais. Tem o condutor, que normalmente é uma espécie de polímero. Basicamente, é aquela camada grossa que gruda no macacão se a gente não limpar na mesma hora. Tem o solvente, que normalmente é um líquido orgânico. O condutor é dissolvido no solvente para criar uma massa com uma consistência apropriada para um pincel ou um rolo. Geralmente, o solvente não tem nenhuma significância forense porque já evaporou há muito tempo. Finalmente, tem o pigmento, que é o que dá cor. Entre os pigmentos mais usados estão o dióxido de titânio e o óxido de zinco para o branco, a fitalocianina para o azul, o cromato de zinco para o amarelo e o óxido de ferro para o vermelho. Mas cada demão de tinta tem a sua própria assinatura microscópica. Então, é possível analisar uma mancha de tinta e dizer o seu tipo. Existem bibliotecas inteiras de amostras de tinta, para que possamos comparar com amostras individuais. E, é claro, além da tinta em si, analisamos a mancha. É um respingo? É uma gota? É uma raspa? - Ele levantou o dedo. - Antes que me perguntem mais alguma coisa, quero deixar claro que não sou especialista neste assunto.

- Mas podia ter me enganado direitinho - respondeu Esquisito. - E então, o que dizem as suas anotações a respeito da tinta no cardigã de Rosie?

- O seu amigo gosta de ir direto ao assunto, não é? - perguntou Soanes, felizmente mais divertido do que irritado.

- Sabemos como o tempo do senhor é precioso, só isso - respondeu Alex, contendo o riso diante da sua desculpa aduladora.

Soanes voltou para as suas anotações.

- Isso é verdade - disse ele. - A tinta em questão era um esmalte poliuretano alifático azul-claro. O que normalmente não é uma tinta caseira, e sim uma tinta usada em barcos, ou algo feito de fibra de vidro. Não tivemos nenhum resultado direto, embora a amostra se parecesse bastante com algumas tintas de barco no nosso banco de dados. Mas o mais interesse era o perfil das gotas. Elas tinham a forma de lágrimas minúsculas.

Alex franziu o cenho.

- O que isso quer dizer?

- Quer dizer que a tinta não estava molhada quando grudou na roupa dela. Eram gotículas bem pequenininhas de tinta seca, que sem dúvida foram transferidas para a roupa de Rosie de uma superfície onde ela esteve deitada. Provavelmente um carpete.

- Então alguém andou pintando alguma coisa no local onde ela esteve deitada? E a tinta respingou no carpete? - perguntou Esquisito.

- Tenho quase certeza. Mas voltando ao formato curioso. Se uma tinta pinga de um pincel, ou mancha um carpete, as gotículas não teriam aquele formato. E todas as gotas que analisamos nesse caso possuíam o mesmo perfil.

- Por que o senhor não incluiu estas observações no seu laudo? - perguntou Alex.

- Porque não conseguimos explicá-las. É muito temeroso para a acusação ter um profissional como testemunha dizendo "Eu não sei" em pleno tribunal. Um bom advogado de defesa deixaria as perguntas sobre a tinta para o final, para que a última coisa que ficasse na lembrança do júri fosse o meu chefe balançando a cabeça e admitindo não saber as respostas. - Soanes guardou os seus papéis de volta na pasta. - Então, deixamos de fora.

Alex se preparou para fazer a pergunta mais importante de todas:

- Se o senhor analisasse esta prova novamente, poderia conseguir um resultado diferente?

Soanes encarou-o por trás dos óculos.

- Eu, pessoalmente, não. Mas um especialista forense em tinta poderia oferecer uma análise mais proveitosa, sim. Mas as chances de vocês encontrarem um resultado vinte e cinco anos depois são escassas.

- Isso é problema nosso - rebateu Esquisito. - O senhor pode tentar? O senhor vai tentar?

Soanes balançou a cabeça.

- Como eu disse, estou longe de ser um especialista nessa área. E, mesmo que eu fosse, não poderia autorizar testes sem um requerimento da polícia de Fife. E eles não solicitaram testes na tinta. - Ele fechou a pasta com um ar de conclusão.

- Por que não? - indagou Esquisito.

- Acho que devem ter considerado uma perda de dinheiro. Como eu disse, as chances de chegarmos a um resultado a estas alturas são ínfimas.

Alex arriou-se na cadeira, desanimado.

- E eu não vou conseguir convencer Lawson a mudar de ideia. Que maravilha. Acho que o senhor acabou de assinar a minha sentença de morte.

- Eu não disse que é impossível fazer os testes - disse Soanes, gentil. - Eu disse que eles não podem ser feitos aqui.

- Mas como vamos fazer os testes em outro lugar? - perguntou Esquisito, irritado. - Ninguém tem as tais amostras.

Soanes apertou os lábios com os dedos novamente. Então, suspirou.

- Não temos nenhuma amostra biológica. Mas ainda temos a tinta. Eu verifiquei antes de receber os senhores. - Ele tornou a abrir a pasta e apanhou uma embalagem plástica com alguns compartimentos. Dentro deles, uma dúzia de slides microscópicos. Soanes retirou três e os alinhou sobre a mesa. Alex olhou para eles, ansioso. Não conseguia acreditar no que via. As manchinhas de tinta eram como minúsculos grãos de uma cinza de cigarro azulada.

- Alguém pode analisar isso? - perguntou ele, tentando controlar o seu entusiasmo.

- É claro - respondeu Soanes. Ele apanhou uma sacola de papel da sua gaveta e colocou sobre os slides, empurrando-os para Alex e Esquisito. - Levem estes. Nós temos outros que podemos analisar, se der em alguma coisa. Os senhores vão ter que assinar um documento, é claro.

Esquisito deslizou a mão sobre a mesa e pegou os slides. Colocou-os delicadamente no saco e depois jogou-os no bolso.

- Obrigado - disse ele. - Onde é que eu tenho que assinar?

Enquanto Esquisito rabiscava o seu nome em uma ficha de registro, Alex olhava intrigado para Soanes.

- Por que o senhor está fazendo isso? - perguntou ele.

Soanes tirou os óculos e os guardou, cuidadosamente.

- Porque eu detesto enigmas que não são desvendados - respondeu ele, ficando de pé. - Quase tanto quanto detesto trabalho policial malfeito. E depois, detestaria ter as mortes de vocês dois pesando na minha consciência, caso a sua teoria esteja realmente correta.

- Ei, o que você está fazendo? - perguntou Esquisito quando Alex, ao chegar nos arredores de Glenrothes, ligou a seta para a direita.

- Quero falar com Lawson o lance de Macfadyen ter mandado as coroas. E quero tentar convencê-lo a fazer com que Soanes analise as amostras que ele tem novamente.

- Perda de tempo - resmungou Esquisito.

- Melhor do que voltar para St. Monans e bater na porta de uma casa vazia.

Esquisito não disse mais nada, deixando Alex ir até a central da polícia. Na recepção, Alex pediu para falar com Lawson.

- É um assunto relacionado ao caso Rosemary Duff - explicou ele. Foram direcionados a uma sala de espera, onde ficaram sentados observando pôsteres sobre besouros, pessoas desaparecidas e violência doméstica. - É impressionante como a gente se sente culpado, só de sentar aqui - comentou Alex.

- Eu não me sinto, não - retrucou Esquisito. - Mas também, eu presto contas a uma autoridade superior.

Após alguns minutos, uma mulher troncuda caminhou na direção deles.

- Eu sou a detetive Pirie - disse ela. - Lamento informar, mas o subchefe Lawson não está disponível no momento. Mas eu sou a oficial encarregada do caso Rosemary Duff.

Alex balançou a cabeça.

- Quero falar com Lawson. Vou esperar.

- Sinto muito, mas não vai ser possível. Ele vai ficar fora por alguns dias.

- O chefe foi pescar - disse Esquisito, irônico.

Karen Pirie, pega de surpresa, disse:

- Pois é, foi mesmo. No lago... - entregou ela, antes de perceber a gafe.

Esquisito pareceu mais surpreso do que ela.

- Sério? Eu estava só brincando.

Karen tentou disfarçar a sua confusão.

- O senhor é Gilbey, não é isso? - perguntou ela, olhando concentrada para Alex.

- Sim, sou eu. Como a senhora...?

- Vi o senhor no funeral do Dr. Kerr. Sinto muito pela sua perda.

- É por isso que estamos aqui - disse Esquisito. - Achamos que a mesma pessoa que matou David Kerr está planejando acabar com a gente também.

Karen respirou profundamente.

- O subchefe Lawson comentou comigo sobre o encontro com o Sr. Gilbey. E, como ele disse para o senhor - continuou ela, olhando para Alex -, são temores que não têm nenhum fundamento.

Esquisito bufou, exasperado.

- Ah, é? E se disséssemos à senhora que quem enviou as coroas foi Graham Macfadyen?

- Coroas? - perguntou Karen, desnorteada.

- A senhora não acabou de dizer que Lawson contou sobre o encontro com Alex? - desafiou Esquisito.

Alex interveio, imaginando por um momento como os pecadores conseguiam aturar Esquisito. Ele contou a Karen sobre os misteriosos arranjos de flores e ficou agradecido ao constatar que ela começava a levá-lo a sério.

- É, tenho que admitir que é uma coisa muita estranha mesmo. Mas não quer dizer que o Sr. Macfadyen esteja por aí matando pessoas.

- De que outro modo ele ficaria sabendo das mortes? - perguntou Alex, buscando sinceramente uma resposta.

- Esta é a questão, não é? - perguntou Esquisito.

- Ele pode ter lido a respeito nos jornais. A morte do Dr. Kerr foi amplamente divulgada. E imagino que não deve ter sido muito difícil ficar sabendo do Sr. Malkiewicz também. A internet tornou o mundo bem pequeno.

Alex experimentou a mesma sensação de desânimo novamente. Por que as pessoas resistiam tanto para enxergar algo que lhe parecia tão claro?

- Mas por que ele mandaria as coroas, a não ser que achasse que somos os responsáveis pela morte da mãe?

- Uma coisa é achar que vocês são culpados, outra é assassinato - ponderou Karen. - Entendo que o senhor esteja se sentindo pressionado. Mas, pelo que me contou, não há nenhum indício de que esteja correndo perigo.

Esquisito estava apoplético.

- Quantos de nós precisam morrer para que vocês comecem a nos levar a sério?

- Alguém ameaçou os senhores?

Esquisito lançou um olhar mal-humorado.

- Não.

- Alguém andou ligando e desligando para a casa de vocês?

- Não.

- Notaram alguém rondando a sua casa?

Esquisito olhou para Alex, que balançou a cabeça em um gesto negativo.

- Então, sinto muito, não tem nada que eu possa fazer.

- Tem, sim - disse Alex. - A senhora pode solicitar uma nova análise da tinta encontrada no cardigã de Rosie Duff.

Karen arregalou os olhos, surpresa.

- Como é que o senhor sabe da tinta?

A voz de Alex tinha um quê de frustração.

- Éramos testemunhas. Suspeitos, para todos os efeitos. Acha que não percebemos quando os seus colegas rasparam as nossas paredes e colaram fitas adesivas no nosso carpete? E então, detetive Pirie? Que tal tentar descobrir de verdade quem matou Rosie Duff?

Incomodada por aquelas palavras, Karen empertigou-se.

- É exatamente o que eu tenho feito nos últimos meses, senhor. E a opinião oficial é de que uma análise da tinta não valeria a pena em termos de custo e benefício, devido à possibilidade remota de chegarmos a alguma conclusão depois de tanto tempo.

A raiva que Alex estava contendo há dias subitamente veio à tona.

- Não valeria a pena? Se existe alguma possibilidade, por menor que seja, vocês deviam ir atrás dela - gritou ele. - Até parece que vocês têm outros testes caros para fazer. Ainda mais agora que perderam a única prova que poderia finalmente limpar os nossos nomes. A senhora tem ideia do que as pessoas fizeram conosco naquela época, por causa da incompetência da polícia? Vocês estragaram a nossa vida. Ele levou uma surra - Alex apontou para Esquisito. - Ziggy foi jogado dentro da Masmorra da Garrafa. Podia ter morrido. Mondo tentou se matar e Barney Maclennan morreu por causa disso. E se Jimmy Lawson não tivesse aparecido na hora certa, eu teria sido espancado também. Então, não me venha com esse papo de custo e benefício. Limite-se a fazer o seu maldito trabalho. - Alex virou-se e foi embora.

Esquisito continuou parado no mesmo lugar, olhando fixamente para Karen Pirie.

- Você ouviu o que ele disse - alertou ele. - Diga a Jimmy Lawson para puxar o anzol e manter a gente vivo.


38

James Lawson abriu o ventre e mergulhou as mãos na cavidade, segurando as entranhas escorregadias. Crispou os lábios em um esgar de nojo, sentindo o deslizar dos órgãos vitais contra a sua pele - um acinte à sua personalidade basicamente rabugenta. Removeu as tripas, certificando-se de que o sangue e o muco não avançassem o limite imposto pelas folhas de jornal que ele estendera. Então, juntou a truta com as outras três que havia pescado naquela tarde.

Nada mau para aquela época do ano, pensou ele. Talvez fritasse umas duas para o chá e guardasse as outras no pequeno frigobar do trailer. Dariam um bom café da manhã, antes de partir para o trabalho no dia seguinte. Levantou-se e ligou a bomba que fornecia água gelada para a pequena pia. Da próxima vez que viesse ao seu esconderijo no lago Leven, precisava trazer algumas garrafas de cinco litros sobressalentes. Esvaziara a última no tanque naquela manhã, e embora pudesse sempre contar com o fazendeiro local que alugava a área para ele em uma emergência, não gostava de abusar da sua boa vontade. Levara o seu trailer para aquele local havia vinte anos e jamais incomodara o fazendeiro. Preferia assim. Só ele, o rádio e uma pilha de romances policiais. Um lugar privativo, para fugir das pressões do trabalho e da vida doméstica, um lugar para renovar as suas energias.

Abriu uma lata de batatas, escorreu a água e começou a cortá-las. Enquanto esperava a frigideira aquecer o suficiente para colocar o peixe e as batatas, embrulhou as tripas no jornal e jogou tudo em um saco plástico. Após a refeição, adicionaria a pele e as espinhas no saco, daria um nó bem firme e deixaria nos degraus do trailer, para que fosse recolhido pela manhã. Não havia nada pior do que ter de dormir com o fedor dos restos do seu jantar.

Lawson colocou um naco de manteiga na frigideira, esperou derreter e então adicionou as batatas. Foi virando as que começavam a pegar cor e cuidadosamente colocou as duas trutas na frigideira, adicionando um toque de limão espremido. O som familiar da fritura estalando o animou, o cheiro era a promessa do que estava por vir. Quando ficou pronto, transferiu para um prato e sentou-se à mesa para curtir o seu jantar. O momento não podia ser mais perfeito; o tema familiar do seriado The Archers começou a tocar no rádio assim que ele deslizou a faca na superfície crocante da primeira truta.

Estava na metade da refeição quando ouviu algo que não deveria ouvir. A porta de um carro batendo. O rádio ocultara o som do motor se aproximando, mas o barulho da porta foi alto o suficiente para se impor ao som da novela radiofônica. Lawson ficou momentaneamente paralisado, depois pegou o rádio e o desligou, concentrando-se para tentar ouvir alguma coisa lá de fora. Quase imperceptivelmente, abriu uma fresta da cortina. Próximo ao portão do campo, conseguiu distinguir o formato de um carro de tamanho pequeno ou médio. Talvez um Golf, um Astra ou um Focus. Era difícil ser mais preciso naquela escuridão. Observou a distância entre o portão e o seu trailer. Nenhum movimento.

A batida na porta fez o seu coração pular dentro do peito. Quem diabos estava lá fora? Pelo que sabia, as únicas pessoas que conheciam a localização do seu recanto de pesca eram o fazendeiro e a sua esposa. Nunca levara colegas ou amigos lá. Quando saíam para pescar, ele preferia encontrá-los no litoral, de barco, determinado a manter a sua privacidade.

- Um momento - gritou ele, levantando-se e caminhando em direção à porta, parando apenas para pegar a sua faca afiada de destrinchar peixes. Diversos criminosos poderiam achar que tinham contas a acertar e ele não seria pego desprevenido. Mantendo um dos pés atrás da porta, ele abriu uma fresta da porta.

Na nesga de luz que banhou os degraus, estava Graham Macfadyen. Lawson demorou alguns segundos para reconhecê-lo. Perdera peso desde a última vez em que haviam se encontrado. Os seus olhos queimavam febris sobre bochechas esquálidas e o seu cabelo estava escorrido e oleoso.

- Que diabos você está fazendo aqui? - perguntou Lawson.

- Preciso falar com você. Disseram que você tinha tirado uns dias de folga, então imaginei que estivesse aqui. - O tom de Macfadyen era prosaico, como se o fato de um civil bater na porta do trailer de pesca do subchefe de polícia fosse uma coisa absolutamente normal.

- Como foi que você me localizou aqui? - indagou Lawson, a ansiedade transformando-se em raiva.

Macfadyen deu de ombros.

- Hoje em dia, a gente acha tudo o que quiser. Você deu uma entrevista para o Fife Record na última vez em que foi promovido. Está no site deles. Você disse que gostava de pescar e que tinha um cantinho no lago Leven. Nem todos os caminhos desembocam na beira-mar. Dirigi até localizar o seu carro.

Havia algo nos seus modos que fez Lawson gelar até os ossos.

- Isto não é apropriado - disse ele. - Se você quer discutir assuntos de trabalho, procure-me no escritório.

Macfadyen parecia contrariado.

- O assunto é importante, não posso esperar. E não vou falar com outra pessoa, você entende a minha situação, só posso falar com você mesmo. Então por que não me escutar? Você precisa escutar, só eu posso te ajudar.

Lawson começou a fechar a porta, mas Macfadyen levantou a mão e a empurrou.

- Vou ficar aqui do lado de fora gritando se você não me deixar entrar - ameaçou ele. O seu tom de voz neutro não combinava em nada com a sua expressão determinada.

Lawson pesou os prós e os contras. Macfadyen não lhe parecia um tipo violento. Não era possível ter certeza absoluta. De qualquer maneira, estava com a faca, caso alguma coisa acontecesse. Era melhor ouvir o que ele tinha a dizer e ficar logo livre. Abriu a porta e recuou, sem virar as costas para a sua visita desagradável.

Macfadyen o seguiu para dentro do trailer. Em uma transtornada perversão do discurso normal, ele sorriu e comentou:

- Como é aconchegante aqui. - Então, o seu olhar recaiu sobre a mesa e ele ensaiou um pedido de desculpas. - Vejo que atrapalhei o seu lanche. Sinto muito.

- Tudo bem - mentiu Lawson. - O que é que você tem para me dizer?

- Eles estão se reunindo. Estão querendo ficar juntos para tentar evitar o destino que lhes espera.

- Quem está se reunindo? - perguntou Lawson.

Macfadyen suspirou, como se estivesse frustrado por estar lidando com um estagiário pateta.

- Os assassinos da minha mãe - disse ele. - Mackie está de volta. Está morando com Gilbey. É a única maneira de se sentirem seguros. Mas estão enganados, é claro. Isso não irá protegê-los. Jamais acreditei em destino, mas é a única maneira de descrever o que está acontecendo com o quarteto ultimamente. E Gilbey e Mackie devem estar sentindo a mesma coisa. Devem estar percebendo que o tempo deles está chegando ao fim, assim como chegou ao fim para os seus amigos. E obviamente está. A não ser que paguem o preço. E reunirem-se assim é como uma confissão. Você tem que enxergar isso.

- Você pode até estar certo - disse Lawson, tentando uma conciliação. - Mas este não é o tipo de confissão que funciona em um tribunal.

- Eu sei disso - respondeu Macfadyen, impaciente. - Mas eles não podiam estar mais vulneráveis. Estão com medo. Está na hora de usarmos esta fraqueza para criar uma desavença entre eles. Tenho observado os dois. Podem surtar a qualquer momento.

- Não temos nenhuma prova - disse Lawson.

- Eles vão confessar. Que outra prova você precisa? - Macfadyen não tirava os olhos do policial.

- As pessoas tendem a pensar assim. Mas pela lei escocesa, uma confissão por si só não é suficiente para condenar uma pessoa. Precisamos de provas corroborativas.

- Mas isso não está certo - protestou Macfadyen.

- É a lei.

- Você tem que fazer alguma coisa. Faça com que eles confessem e depois encontre uma prova para fundamentar a acusação no tribunal. Afinal de contas, é o seu trabalho - disse Macfadyen, levantando a voz.

Lawson balançou a cabeça.

- Não é assim que as coisas funcionam. Olha, prometo que vou procurar Mackie e Gilbey. Mas não posso fazer mais nada.

Macfadyen fechou a mão direita em um punho.

- Você não se importa, não é mesmo? Ninguém se importa.

- Me importo, sim - disse Lawson. - Mas tenho que agir dentro da lei. E o senhor também.

Macfadyen produziu um som estranho no fundo da garganta, como um cão engasgado com um osso de galinha.

- Esperava que você me compreendesse - disse ele friamente, segurando a maçaneta e abrindo a porta, que se escancarou em um solavanco e bateu contra a parede.

E então ele partiu, engolido pela escuridão da noite. Um frio úmido invadiu o calor aconchegante do trailer, abafando o cheiro rançoso de comida e o substituindo pelo odor penetrante do pântano. Lawson continuou parado na porta, mesmo depois de o carro de Macfadyen ter partido erraticamente pela estrada, e os seus olhos eram como duas poças negras de preocupação.

Lynn foi o passaporte deles para Jason McAllister. E ela não estava disposta a deixar Davina com ninguém, nem mesmo com Alex. Por isso, o que deveria ser uma corriqueira viagem matinal pela Ponte de Allan transformou-se em uma operação complexa. Era incrível o que precisava acompanhar um bebê, pensou Alex enquanto fazia a sua terceira e última viagem até o carro, carregando encurvado a cadeirinha e Davina. Carrinho, bolsa com fraldas, lenços, babadores, duas mudas de roupa, só por precaução. Mantas sobressalentes, só por precaução. Um blusão limpo para Lynn, porque nem sempre o bebê golfava no babador. O canguru. Era de admirar que não tivesse arrumado um espaço no carro para colocar a pia da cozinha também.

Afivelou o cinto de segurança sobre a cadeirinha e testou para ver se estava seguro. Nunca se preocupara com a firmeza dos cintos de segurança antes, mas agora se pegava questionando se eles eram de fato confiáveis em caso de batida. Inclinou-se para dentro do carro, ajeitou o chapeuzinho de Davina e beijou a sua filha adormecida. Conteve a respiração, apreensivo, ao ver que ela se mexia. Que ela não vá chorando durante o caminho todo, pediu ele. Não saberia lidar com a culpa.

Lynn e Esquisito juntaram-se a ele e os três entraram no carro. Alguns minutos depois, já estavam na autoestrada. Esquisito deu um tapinha no ombro de Alex.

- Dá para andar mais rápido do que quarenta quilômetros por hora aqui, sabia? - disse ele. - Vamos nos atrasar.

Contendo a preocupação com a sua carga valiosa, Alex acelerou, obediente. Estava tão ansioso quanto Esquisito para dar prosseguimento àquela investigação. E Jason McAllister parecia ser a pessoa perfeita para ajudá-los a alcançar a próxima etapa. O trabalho de Lynn como restauradora de pinturas para as galerias escocesas fez com que ela se tornasse uma especialista no tipo de tinta usado pelos artistas de diferentes períodos. E exigiu também que ela arrumasse um outro especialista para analisar as amostras do original, para que ela pudesse ser o mais precisa possível. E, além disso, às vezes a autenticidade de uma determinada obra de arte era duvidosa. Então as amostras de tinta tinham de ser avaliadas para verificar se faziam parte do período em questão e se eram compatíveis com os materiais usados pelo mesmo pintor em outros trabalhos, nos quais a procedência era inquestionável. O sujeito que ela encontrou para auxiliá-la na parte científica de suas investigações foi Jason McAllister.

Ele trabalhava em um laboratório forense particular, próximo à Universidade de Stirling. Passara a maior parte da sua vida profissional analisando fragmentos de tinta de acidentes na estrada, ou para a polícia, ou para seguradoras. Ocasionalmente, distraía-se com um caso de homicídio, estupro ou lesão corporal grave, mas estas ocasiões eram raras demais para os talentos variados de Jason.

Na inauguração de uma exposição de Poussin, ele procurou Lynn e contou a ela que era apaixonado por pintura. No início, ela achou aquele jovem nerd meio pretensioso, querendo mostrar intimidade com a arte. Depois, percebeu que ele estava realmente falando a verdade. Nada mais, nada menos. O que o entusiasmava não era o que estava representado na tela; era a estrutura do material usado para produzi-la. Ele lhe deu o seu cartão e fez com que ela prometesse que ia entrar em contato da próxima vez que tivesse um problema. Garantiu diversas vezes que era melhor do que a pessoa que estava trabalhando para ela, independentemente de quem fosse.

Jason deu sorte naquela noite. Lynn estava enjoada do sujeito bobão e pomposo com quem fora forçada a trabalhar anteriormente. Ele era um daqueles tipos da antiga de Edimburgo, que não conseguiam deixar de tratar as mulheres com condescendência. Ainda que o seu cargo fosse de técnico de laboratório, tratava Lynn como se ela fosse uma subordinada, cuja opinião não tinha a menor relevância. Com uma restauração importante à frente, Lynn estava sofrendo com a ideia de ter de trabalhar com ele novamente. Jason parecia um presente dos deuses. Desde o início, ele não a subestimou. Pelo contrário, o problema parecia ser justamente o oposto. Ele tinha a mania de achar que estavam no mesmo patamar e Lynn perdeu a conta das vezes que teve de pedir para ele ir com calma e falar em um idioma que ela compreendesse. Mas mesmo assim, preferia isso a ser julgada como inferior.

Quando Alex e Esquisito chegaram em casa com um saco com amostras de tinta, Lynn passou dez minutos ao telefone com Jason. Como ela já imaginava, ele agiu como uma criança que acaba de saber que vai passar as férias na Disneylândia.

- Tenho uma reunião bem cedo, mas consigo me liberar lá pelas dez.

Conforme Alex havia sugerido, ela tentou informar que pagariam pelo seu serviço por fora. Mas ele descartou a oferta.

- Para que servem os amigos? - ponderou ele. - Além do mais, estou de saco cheio de tinta de carro. Você vai me salvar de uma morte por tédio. Traz isso logo, mulher!

O laboratório ficava em um prédio surpreendentemente moderno e bonito, que ocupava o seu próprio terreno na rua, com a fachada de tijolos marrons. As janelas eram altas e todos os ângulos de aproximação eram monitorados com câmeras de segurança. Tiveram de ultrapassar duas portas antes de chegar à recepção.

- Já estive em presídios menos seguros do que isso aqui - comentou Esquisito. - O que eles fazem, afinal? Fabricam armas de destruição em massa?

- Prestam serviços forenses para a Coroa, como autônomos. E para a Defensoria também - explicou Lynn enquanto esperavam por Jason. - Então, precisam demonstrar que qualquer prova sob seus cuidados será armazenada com segurança.

- Quer dizer que fazem exames de DNA e tudo? - perguntou Alex.

- Por quê? Está em dúvida sobre a sua paternidade? - brincou Lynn.

- Quando ela se transformar em uma adolescente infernal a gente conversa - disse Alex. - Não, só estou curioso.

- Fazem DNA, exames de fios de cabelo, fibras e tintas - disse Lynn. Enquanto ela falava, um sujeito parrudo se aproximou e pousou a mão em seu ombro.

- Você trouxe o bebê - disse ele, inclinando-se para olhar dentro do carrinho. - Ei, ela é linda. - Ele abriu um sorriso para Lynn. - A maioria dos bebês dá a impressão de que um cachorro sentou no rosto deles. Mas ela parece uma pessoa de verdade, só que bem pequenininha. - Ele ergueu-se. - Eu sou o Jason - disse ele, olhando indeciso para Esquisito e Alex.

Os dois se apresentaram. Alex observou a camisa do time Stirling Albion, a calça cargo com os bolsos abarrotados e os cabelos arrepiados, cujas pontas exibiam um tom de loiro nada natural. Julgando pela aparência, Jason parecia um daqueles sujeitos que ficavam bem à vontade em um pub, com uma garrafa de cerveja cara na mão. Mas os seus olhos eram atentos e observadores e o seu corpo calmo e controlado.

- Venham comigo - instruiu Jason. - Deixe-me levar o bebê - acrescentou ele, apanhando o carrinho. - Ela é uma princesinha.

- Você talvez não dissesse isso às três da manhã - disse Lynn, obviamente coruja.

- Talvez não. A propósito, sinto muito pelo seu irmão - disse ele, olhando de esguelha para Lynn, desconfortável. - Deve ter sido horrível.

- Não tem sido fácil mesmo - disse ela, enquanto seguiam Jason por um corredor estreito, com as paredes pintadas de azul-claro. Ao fim do corredor, Jason os conduziu por um laboratório impressionante. Equipamentos misteriosos reluziam por todos os cantos. As bancadas eram impecáveis e arrumadas e o técnico que analisava algo que Alex imaginou ser um microscópio futurista não mexeu um músculo quando eles entraram.

- Parece que estou contaminando o lugar só com a minha respiração - comentou ele.

- Com tinta é bem mais tranquilo - disse Jason. - Se eu trabalhasse com DNA, você não poderia nem estar aqui. Então, expliquem exatamente o que vocês trouxeram para mim.

Alex resumiu a conversa que haviam tido com Soanes na véspera.

- Soanes não acha que temos muita chance de encontrar um resultado para a tinta, mas talvez você possa descobrir alguma coisa pelo formato dos pingos - acrescentou ele.

Jason analisou os slides.

- Parece que foram bem conservados, o que com certeza ajuda.

- O que você vai fazer com eles? - perguntou Esquisito.

Lynn resmungou.

- Você não devia ter perguntado isso.

Jason achou graça.

- Ignore Lynn, ela adora fingir que é ignorante. Temos diversas técnicas para analisar o condutor e o pigmento. E também usamos a microespectrofotometria para determinar a cor, para podermos definir de forma mais acurada a composição das amostras de tinta. Espectrometria infravermelha por transformação de Fourier, Cromatografia a gás e Microscopia eletrônica de varredura. Coisas assim.

Esquisito estava atordoado.

- E para que serve cada uma dessas? - perguntou Alex.

- Várias coisas. Se for um fragmento, podemos saber de que tipo de superfície ele veio. Com tinta de carro, analisamos as diferentes camadas e possuímos um banco de dados para consulta, onde descobrimos a marca, o modelo e o ano de fabricação. Com gotículas, é possível fazer basicamente a mesma coisa, a não ser os detalhes de superfície, uma vez que a tinta jamais esteve sobre ela.

- Quanto tempo isso demora? - perguntou Esquisito. - É que estamos com um pouquinho de pressa.

- Vou levar o tempo necessário. Talvez uns dois dias. Vou tentar ser o mais rápido possível. Mas não quero fazer nada menos do que um trabalho perfeito. Se vocês estiverem certos, existe a possibilidade de pararmos no tribunal dando o nosso testemunho e eu não quero fazer um trabalho porco. Vou fazer um recibo, atestando que apanhei as amostras com vocês, por precaução. Vai que alguém resolve dizer o contrário mais para a frente...

- Obrigada, Jason - disse Lynn. - Estou te devendo uma.

Ele sorriu.

- Eu realmente gosto disso em uma mulher.


39

Jackie Donaldson já havia escrito sobre aquela batida na porta de madrugada, a escolta até a viatura de prontidão na rua, o percurso por ruas desertas e a terrivelmente enervante espera em uma sala confinada que recendia a outras pessoas. Nunca lhe passara pela cabeça que um dia estaria de fato vivenciando aquela situação, e não escrevendo sobre ela.

Acordou com o barulho do interfone. Olhou a hora - 03:47 - e dirigiu-se trôpega de sono até o aparelho, vestindo o robe. Quando o detetive-inspetor Darren Heggie se anunciou, primeiro ela pensou que algo terrível tivesse acontecido com Hélène. Não conseguia entender por que ele queria subir àquela hora da madrugada. Mas Jackie não discutiu. Sabia que seria uma perda de tempo.

Heggie adentrou no seu flat com uma mulher vestida à paisana e dois policiais uniformizados, que permaneceram na retaguarda, levemente desconfortáveis. Heggie não perdeu tempo com conversa fiada.

- Jacqueline Donaldson, estou detendo você por suspeita de conspiração para um homicídio. Você poderá ficar detida por um período de até seis horas sem prisão e tem direito de entrar em contato com um advogado. Não precisa dizer nada, além do seu nome e do seu endereço. Você compreende o motivo da sua detenção?

Ela deu um sorrisinho debochado.

- Compreendo que o senhor tem todo o direito de fazer o que está fazendo. Mas não entendo por que está fazendo.

Jackie não simpatizara com Heggie de cara. O seu queixo pontudo, os olhos estreitos, o corte de cabelo ultrapassado, o terno barato e o andar pretensioso. Mas ele havia agido de maneira educada, quase laudatória, nos seus encontros anteriores. Naquele dia, porém, ele adotara uma eficiência brusca.

- Por favor, troque de roupa. A policial ficará com você. Estamos esperando lá fora. - Heggie deu as costas e enxotou os policiais escada abaixo.

Determinada a não demonstrar o seu constrangimento, Jackie voltou para o local do loft onde ficava a sua cama. Apanhou a primeira camiseta que viu, um casaco na gaveta e recolheu a calça jeans das costas de uma cadeira. Então, mudou de ideia. Se as coisas piorassem, havia a possibilidade de ter de se apresentar a um juiz antes de poder trocar de roupa. Vasculhou o fundo do armário, em busca do seu único terno decente. Jackie deu as costas para a policial, que se recusava a tirar os olhos dela, e se vestiu.

- Preciso ir ao banheiro - disse ela.

- Você tem que deixar a porta aberta - retrucou a mulher, impassível.

- Você acha que eu vou tomar um pico ou algo assim?

- É para a sua própria proteção - respondeu ela com enfado.

Jackie fez o que tinha de fazer e depois ajeitou o cabelo para trás, molhando-o com água gelada. Olhou-se no espelho, imaginando quando poderia fazer aquilo novamente. Agora sabia exatamente o que sentiam as pessoas sobre quem havia escrito. E aquela era uma sensação horrível. O seu estômago revirava, como se estivesse há dias sem dormir, e a sua respiração parecia entalada na garganta.

- Quando é que vou poder ligar para o meu advogado? - perguntou ela.

- Quando chegarmos à delegacia - respondeu a policial.

Meia hora depois, estava trancafiada em uma sala apertada com Tony Donatello, um advogado criminal de terceira geração que ela conhecia desde os seus primeiros meses como repórter em Glasgow. Estavam mais habituados a se encontrar em bares do que em celas, mas Tony foi educado e não comentou nada a respeito. Também era sensível o suficiente para não refrescar a memória de Jackie e lembrar que da última vez que a representara em uma delegacia, ela acabara sendo fichada.

- Eles querem te interrogar sobre a morte de David - explicou ele. - Mas imagino que você já saiba disso.

- É o único assassinato com o qual estou remotamente conectada. Você ligou para Hélène?

Tony deu uma tosse curta e seca.

- Parece que ela também foi chamada.

- Devia ter imaginado. E aí, qual vai ser a nossa estratégia?

- Você fez alguma coisa recentemente que possa ser interpretada como relacionada com a morte de David? - perguntou Tony.

Jackie balançou a cabeça.

- Nada. Não há nenhuma conspiração sórdida aqui, Tony. Hélène e eu não tivemos nada a ver com o assassinato de David.

- Jackie, eu não tenho nada a ver com Hélène. A minha cliente é você e eu tenho que me preocupar com os seus atos. Se houve qualquer coisa, por menor que seja, um comentário casual, um e-mail impertinente, qualquer coisa, isso pode te complicar e aí não vamos responder a pergunta nenhuma. Vamos ter que recorrer ao "nada a declarar". Mas se você tem certeza de que não precisamos nos preocupar com nada, vamos responder. E então?

Jackie mexeu no seu piercing de sobrancelha.

- Olha, tem uma coisa que você precisa saber. Eu não estava com Hélène o tempo todo. Dei uma saída, de mais ou menos uma hora, ou um pouco mais. Tive que ir me encontrar com uma pessoa. Não posso dizer quem era, mas acredite, não serve como álibi.

Tony parecia preocupado.

- Isso não é nada bom - disse ele. - Talvez seja melhor partir para o "nada a declarar" mesmo.

- Não, não quero isso. Você sabe que vai pegar supermal para mim.

- Você é quem sabe. Mas, diante das circunstâncias, eu acho que o silêncio seria a melhor opção.

Jackie parou e pensou por alguns minutos. Não conseguia imaginar como a polícia poderia saber da sua saída.

- Vou falar com eles - disse ela, finalmente.

A sala de interrogatório não era nenhuma surpresa para alguém versado na gramática dos seriados policiais na tevê. Jackie e Tony sentaram do lado oposto de Heggie e da detetive que o acompanhara até o loft. Naquela proximidade, a loção pós-barba de Heggie exalava um odor rançoso. Duas fitas cassete estavam engatilhadas juntinhas no gravador no canto da mesa. Uma vez terminadas as formalidades, Heggie foi direto ao assunto.

- Há quanto tempo você conhece Hélène Kerr?

- Há uns quatro anos. Conheci ela e o marido em uma festa dada por um amigo em comum.

- E qual é o seu relacionamento com ela?

- Antes de qualquer outra coisa, somos amigas. Ocasionalmente, somos amantes.

- Há quanto tempo vocês são amantes? - Os olhos de Heggie pareciam famintos, como se a mera ideia de Jackie e Hélène juntas fosse potencialmente tão satisfatória quanto uma confissão criminal.

- Há uns dois anos.

- E com que frequência se encontravam?

- Passávamos uma noite juntas, praticamente toda semana. Fazíamos sexo na maioria das vezes, mas nem sempre. Como eu disse, a amizade é o componente mais importante do nosso relacionamento. - Jackie estava achando mais difícil do que havia imaginado ficar calma e impassível diante do olhar de avaliação dos interrogadores. Mas sabia que tinha de manter a calma; qualquer rompante seria interpretado como um indício de algo mais do que mero nervosismo.

- David Kerr sabia que você estava dormindo com a mulher dele?

- Acho que não.

- Você deve ter ficado chateada com essa história de ela ter continuado com ele - sugeriu ele.

Uma observação perspicaz, pensou ela. E que estava incomodamente próxima da verdade. No fundo do seu coração, Jackie sabia que não lamentava a morte de David Kerr. Amava Hélène e estava cansada das migalhas que ela lhe oferecia. Há muito tempo que ela queria muito mais.

- Desde o início eu já sabia que ela não ia deixar o marido. E, por mim, tudo bem.

- Isso é difícil de acreditar - disse ele. - Você estava sendo preterida pelo marido dela e isso não te incomodava?

- Não era uma rejeição. O acordo era satisfatório para nós duas. - Jackie inclinou-se para a frente, torcendo para que a sua linguagem corporal transmitisse franqueza. - Era só um passatempo. Eu gosto da minha liberdade. Não quero me amarrar a ninguém.

- É mesmo? - Ele consultou as suas anotações. - Então o vizinho que ouviu vocês duas discutindo aos berros porque ela não queria deixar o marido está mentindo?

Jackie lembrou-se da discussão. Durante o período em que estavam juntas, haviam brigado pouquíssimas vezes, por isso aquela fora tão marcante. Havia alguns meses, convidara Hélène para ir com ela à festa de quarenta anos de uma amiga. Hélène olhara para ela sem poder acreditar no que tinha acabado de ouvir. Aquilo era algo que escapava às regras, um assunto que não devia sequer ter sido cogitado. Todas as frustrações de Jackie vieram à tona e elas descambaram para uma discussão calorosa. A coisa só mudou de figura abruptamente quando Hélène ameaçou ir embora e não voltar nunca mais. Aquela era uma perspectiva insuportável para Jackie e ela acabou cedendo. Mas não estava disposta a compartilhar a história com Heggie e a sua subalterna.

- Deve estar mentindo, sim - disse ela. - Não dá para escutar um "ai" através das paredes desses lofts.

- Ao que parece, dá para escutar muito bem se as janelas estiverem abertas - disse Heggie.

- E quando foi que se deu esta suposta conversa? - interrompeu Tony.

Heggie consultou novamente as suas anotações.

- No final de novembro.

- O senhor está realmente sugerindo que a minha cliente estava com as janelas abertas no final de novembro em Glasgow? - retrucou ele, debochado. - É só isso que o senhor tem? Fofoca e disse me disse de vizinhos enxeridos e cheios de imaginação?

Heggie encarou o advogado por um bom tempo antes de tornar a falar.

- A sua cliente tem um histórico de violência.

- Não, não é verdade. Ela foi condenada por ter agredido um policial em uma manifestação anticontribuição autárquica, onde um dos seus colegas a confundiu entusiasticamente com um dos manifestantes. Isso está longe de ser um histórico de violência.

- Ela deu um soco na cara do policial.

- Sim, depois que ele a arrastou pelos cabelos. Se tivesse sido uma agressão tão violenta quanto o senhor está falando, por que ela teria recebido apenas seis meses de sursis? Se isso é tudo o que o senhor tem contra ela, não vejo mais motivos para continuar detendo a minha cliente.

Heggie lançou um olhar irritado para os dois.

- Você estava com a Sra. Kerr na noite em que o marido dela morreu?

- Estava - respondeu Jackie, cautelosa. Era ali que as coisas começavam a ficar perigosas. - Era a noite em que costumávamos nos encontrar. Ela chegou por volta das seis e meia. Jantamos peixe com batatas, que eu saí para comprar, bebemos um pouco de vinho e depois fomos para a cama. Ela saiu lá pelas onze. Tudo como de costume.

- Alguém pode confirmar isso?

Jackie levantou as sobrancelhas.

- Não sei quanto ao senhor, inspetor, mas quando eu faço amor com alguém não costumo convidar os vizinhos. O telefone tocou algumas vezes, mas eu não atendi.

- Temos uma testemunha que afirma tê-la visto caminhando até o seu carro por volta das nove horas naquela noite - disse Heggie, triunfante.

- Ele deve ter confundido a data - disse Jackie. - Estive com Hélène a noite inteira. Será que esse é outro dos meus vizinhos homofóbicos que o senhor vem tentando convencer a fazer parte das testemunhas de acusação?

Tony agitou-se em sua cadeira.

- O senhor ouviu a resposta da minha cliente. Se não existe nada de novo para acrescentar, sugiro que a conversa termine por aqui.

Heggie respirou profundamente.

- Se o senhor permitir, Sr. Donatello, eu gostaria de apresentar o depoimento de uma testemunha que nós colhemos ontem.

- Posso dar uma olhada nisso? - perguntou Tony.

- Tudo a seu tempo. Denise?

A detetive abriu a pasta que apoiava no colo e colocou uma folha de papel na frente dele. Heggie umedeceu os lábios e disse:

- Prendemos um traficantezinho chinfrim ontem. E ele estava disposto a oferecer qualquer informação que pudesse melhorar a sua imagem conosco. Senhorita Donaldson, conhece Gary Hardie?

O coração de Jackie pulou no seu peito. O que aquilo tinha a ver com o caso? Não havia se encontrado com Gary Hardie naquela noite, nem com nenhum dos seus colegas.

- Sei quem ele é - enrolou ela. Estava longe de ser uma confissão; qualquer um que lesse os jornais ou visse tevê na Escócia teria reconhecido o nome. Algumas semanas antes, não sem o devido sensacionalismo, Gary Hardie escapara ileso da Suprema Corte em Glasgow após um dos casos de homicídio mais badalados dos últimos tempos naquela cidade. Durante o julgamento, ele havia sido chamado de "senhor das drogas", "um sujeito que não tem o menor respeito pela vida humana" e "uma mente do crime absolutamente cruel". Entre as alegações apresentadas ao júri, estava a de que ele havia pagado um matador profissional para eliminar um concorrente.

- Você conhece Gary Hardie pessoalmente?

Jackie sentiu o suor no meio das costas.

- Em um contexto estritamente profissional, sim.

- Estamos falando da sua profissão ou da dele? - indagou Heggie, aproximando a sua cadeira da mesa.

Jackie girou os olhos, debochada.

- Inspetor, faça-me o favor. Sou jornalista, o meu trabalho é entrevistar as pessoas que estão nas manchetes dos jornais.

- Quantas vezes você esteve com Gary Hardie? - pressionou Heggie.

Jackie soltou o ar pelo nariz.

- Três vezes. Entrevistei-o há um ano para uma matéria que escrevi sobre as gangues de Glasgow para uma revista. Depois, entrevistei novamente na época em que ele aguardava o julgamento, para uma matéria que eu pretendia escrever quando o julgamento terminasse. E tomei um drinque com ele duas semanas atrás. É importante manter os contatos, na minha profissão. É assim que eu consigo histórias que ninguém consegue.

Heggie parecia cético. Ele deu uma olhada no depoimento.

- Onde foi que vocês se encontraram?

- No Ramblas. É um barzinho em...

- Eu sei onde fica o Ramblas - interrompeu Heggie. Tornou a olhar para o papel à sua frente. - Durante o encontro, um envelope trocou de mãos. Das suas para as de Hardie. Um envelope bem grosso, senhorita Donaldson. Poderia nos dizer o que estava dentro do envelope?

Jackie estava tentando disfarçar o seu choque. Tony agitava-se ao seu lado.

- Gostaria de conversar a sós com a minha cliente - disse ele, apressado.

- Não, Tony, está tudo sob controle - respondeu Jackie. - Não tenho nada a esconder. Quando eu falei com Gary, para marcar o encontro, ele me disse que alguém havia mostrado a matéria a ele e que ele havia gostado da foto usada pela revista. Ele quis umas cópias. Então, eu mandei fazer as cópias e levei para o Ramblas. Se o senhor não acredita, pode checar com o laboratório de revelação de fotos. Eles não revelam muitas fotos em preto e branco, devem lembrar, sim. Também tenho o recibo.

Tony interveio prontamente.

- Está vendo, inspetor? Nada de mais. Só uma jornalista tentando agradar um bom contato. Se é só isso o que o senhor tem de novidade, não vejo motivos para deter a minha cliente aqui nem mais um minuto.

Heggie parecia levemente desapontado.

- Você pediu para Gary Hardie matar David Kerr? - perguntou ele.

Jackie fez um gesto negativo com a cabeça.

- Não.

- Você pediu a Gary Hardie para colocá-la em contato com alguém para matar David Kerr?

- Não, isso nunca passou pela minha cabeça. - Jackie levantara o rosto, suspendendo o queixo, vencendo o medo.

- Você nunca pensou em como a vida seria melhor sem David Kerr? E como seria fácil dar um jeito nisso?

- Isso é ridículo. - Ela bateu as mãos sobre a mesa. - Por que o senhor está perdendo tempo comigo, quando deveria estar fazendo o seu trabalho?

- Estou fazendo o meu trabalho - disse ele, calmamente. - Por isso a senhora está aqui.

Tony olhou para o seu relógio.

- Não por muito tempo, inspetor. Ou você prende a minha cliente, ou vai ter que liberá-la. O interrogatório acabou. - Ele apoiou a mão sobre a mão de Jackie.

Um minuto parece muito tempo em uma sala de interrogatórios. Heggie cultivou a pausa, encarando Jackie fixamente. Depois, afastou a cadeira para trás.

- O interrogatório terminou às seis e vinte e cinco. A senhora está liberada - disse ele, com má vontade na voz. Apertou um botão, desligando os gravadores. - Não acredito em você, senhorita Donaldson - disse ele, levantando-se. - Acho que você e Hélène Kerr tramaram a morte de David Kerr. Acho que você queria exclusividade. E que naquela noite você saiu de casa para pagar o sujeito contratado para fazer o serviço. E pretendo provar tudo isso. - Ele parou na soleira da porta e virou para trás. - Isso é apenas o começo.

Assim que eles se foram, fechando a porta, Jackie cobriu o rosto com as mãos.

- Meu Deus - disse ela.

Tony ajeitou os seus pertences e depois colocou o braço em volta dos ombros de Jackie.

- Você foi nota dez. Eles não têm nada contra você.

- Já vi pessoas encasquetando com menos provas do que eles têm contra mim. Estão determinados. Não vão desistir enquanto não arrumarem alguém que consiga testemunhar que me viu fora de casa naquela noite. Meu Deus. Não acredito que foram desencavar Gary Hardie justo agora.

- Gostaria que você tivesse comentado sobre ele comigo antes - disse Tony, afrouxando a gravata e se alongando.

- Desculpe. Não tinha a menor ideia de que iam falar nisso. Não perco o meu tempo pensando em Gary Hardie. E ele nem tem nada a ver com isso. Você acredita em mim, não é, Tony? - Ela parecia aflita. Se não conseguia convencer o seu próprio advogado, não ia ter a menor chance com a polícia.

- No que eu acredito não interessa. O que importa mesmo é o que eles podem provar. E, no momento, não têm contra você nada que um bom advogado não consiga derrubar em questão de minutos. - Ele bocejou. - Programão para uma madrugada, hein?

Jackie ficou de pé.

- Vamos sair desse buraco. Até o ar parece contaminado.

Tony sorriu.

- Alguém devia dar uma loção pós-barba decente para Heggie no próximo aniversário dele. A dele parece um gambá no cio.

- Ele ia precisar de bem mais do que um Paco Rabanne da vida para se tornar um membro da raça humana - debochou Jackie. - Hélène está detida aqui na delegacia também?

- Não. - Tony suspirou. - Olha, talvez seja melhor vocês duas se afastarem um pouco agora.

Jackie o olhou com uma expressão que combinava mágoa e decepção.

- Por quê?

- Porque se vocês não forem vistas juntas, fica mais difícil provar que estão mancomunadas. Juntas, dá a impressão de que estão bolando estratégias para contar sempre a mesma história.

- Isso é absurdo - respondeu ela com firmeza. - Porra, nós somos amigas. Dormimos juntas. Onde vamos buscar apoio e conforto? Se nos evitarmos, vai parecer que estamos com algum problema. Se Hélène me quiser por perto, é lá que eu vou estar. E ponto final.

Ele deu de ombros.

- Você é quem sabe. Os meus conselhos são pagos, quer você aceite ou não. - Ele abriu a porta e a conduziu até o corredor. Jackie assinou um documento para recuperar os seus pertences e caminharam até a saída juntos.

Tony abriu a porta que conduzia à rua e estacou. Apesar da hora, três câmeras e um punhado de jornalistas estavam amontoados na calçada. Assim que avistaram Jackie, começaram a gritar. "E aí, Jackie, você foi presa?", "Você e a sua namorada contrataram um assassino profissional?", "Como você está se sentindo como suspeita de um assassinato?".

Aquele era o tipo de cena na qual ela já tomara parte diversas vezes, embora jamais a tivesse observado daquela perspectiva. Jackie achava que não havia nada pior do que ser arrastada da cama no meio da noite e tratada como uma criminosa pela polícia. Agora, sabia que estava enganada. A traição, descobrira ela, tinha um gosto infinitamente mais amargo.


40

A escuridão no quarto de Graham Macfadyen era neutralizada pela luz fantasmagórica dos monitores. Nas duas telas que não estavam sendo usadas no momento, protetores de tela exibiam um apanhado de imagens que ele escaneara. Fotografias granuladas em preto e branco da sua mãe, tiradas dos jornais; fotos contemplativas de Hallow Hill; a lápide do cemitério e as fotografias que ele batera de Alex e de Esquisito nos últimos dias.

Macfadyen estava diante do seu computador, redigindo um documento. A princípio, planejara apenas uma reclamação formal sobre a inércia de Lawson e seus colegas. Mas uma breve pesquisa no site do Poder Executivo Escocês atestara a inutilidade do seu gesto. Qualquer reclamação que fizesse seria investigada pela própria polícia de Fife e eles dificilmente criticariam as atitudes do seu subchefe. Queria resultados, não ilusões.

Decidiu então revelar a história completa e mandar cópias para parlamentares e para toda a imprensa escocesa. Mas, quanto mais escrevia, mais tinha medo de ser rechaçado como mais um adepto de teorias conspiratórias. Ou algo pior.

Macfadyen mordiscou a pele ao redor das suas unhas e ponderou sobre o que devia fazer afinal. Acabara de escrever a sua crítica devastadora sobre a incompetência da polícia de Fife e a sua recusa de levar a sério a presença de dois assassinos em sua circunscrição. Mas precisava de algo mais para chamar a atenção das pessoas. Algo que tornasse impossível ignorar as suas reclamações ou desconsiderar a maneira pela qual o destino apontara inegavelmente o dedo para os culpados pelo assassinato de sua mãe.

Duas mortes deveriam ter sido o suficiente para produzir o resultado que ele desejava. Mas as pessoas eram tão cegas; não conseguiam enxergar o que estava diante do nariz. Afinal, mesmo após as mortes, a justiça ainda não havia sido feita.

E ele continuava a ser a única pessoa capaz de fazê-la.

A casa estava começando a virar um acampamento de refugiados. Alex estava acostumado à rotina que ele e Lynn haviam aprimorado ao longo dos anos: refeições a dois, caminhadas pelo litoral, exposições e cinema, programas ocasionais com amigos. Reconhecia que deveriam parecer chatos para algumas pessoas, mas isso não tinha importância. Gostava da sua vida. Sabia que as coisas iriam mudar com a chegada do bebê e recebia aquela mudança de coração, apesar de ignorar todo o seu significado. O que ele não antecipara era Esquisito no quarto de hóspedes. Nem a chegada de Hélène e de Jackie, a primeira atormentada e a segunda enlouquecida de ódio. Sentiu-se invadido, tão fustigado pela dor e a ira dos outros que sequer conseguia entender o que ele próprio sentia.

Ficara espantado ao ver as duas na sua porta, buscando asilo para escapar da imprensa que estava fazendo plantão na frente da casa delas. Como podiam ter imaginado que seriam bem recebidas logo ali? O primeiro impulso de Lynn foi sugerir que fossem para um hotel, mas Jackie estava convicta de que o único lugar onde ninguém procuraria por elas era lá. Assim como Esquisito, pensou Alex, exausto.

Hélène tivera uma crise de choro e pedira perdão por ter traído Mondo. Jackie fez questão de refrescar a memória de Lynn, lembrando que se arriscara para ajudar Alex. Mas mesmo assim, Lynn estava irredutível: não havia lugar para elas em sua casa. Foi então que Davina começou a choramingar e Lynn fechou a porta na cara das duas, correndo para ir ver a sua filha e lançando um olhar para Alex que dizia "nem ouse deixá-las entrar aqui". Esquisito driblou Alex e saiu atrás das duas, alcançando-as a caminho do carro. Quando ele voltou para casa, uma hora depois, contou que havia hospedado as duas em um hotel não muito distante e feito a reserva em seu nome. "Eles têm um chalé no meio das árvores", contou ele. "Ninguém sabe que elas estão lá. Vai ficar tudo bem."

O aparente cavalheirismo de Esquisito criara uma certa estranheza naquela tarde, mas o seu objetivo em comum aos poucos neutralizou o desconforto, bem como algumas doses generosas de vinho. Os três adultos ficaram sentados à mesa da cozinha, com as persianas fechadas, esvaziando as garrafas de vinho enquanto jogavam conversa fora. Mas falar sobre as dificuldades não era o suficiente; precisavam agir.

Para Esquisito, deviam confrontar Graham Macfadyen de uma vez, exigindo uma explicação para as coroas de flores enviadas para os funerais de Ziggy e de Mondo. Alex e Lynn rejeitaram a sua ideia de cara; sem nenhuma prova de que ele estava de fato envolvido nos assassinatos, aquilo só serviria para alertar Macfadyen das suas suspeitas, e não para provocar uma confissão.

- Eu estou pouco me lixando - retrucara Esquisito. - De repente assim ele desiste e deixa a gente em paz.

- É, ou isso, ou ele vai bolar abordagens mais sutis nas próximas vezes. Ele não está com pressa, Esquisito. Ele tem a vida inteira para vingar a morte da mãe - ponderou Alex.

- Isso supondo que foi ele mesmo quem matou Mondo, e não um assassino contratado por Jackie - disse Lynn.

- É exatamente por isso que a gente precisa arrancar uma confissão de Macfadyen - disse Alex. - Se ele desaparecer do mapa, não vai servir para limpar o nome de ninguém.

Continuaram especulando, sem chegar a uma conclusão, sendo interrompidos apenas pelo choro ocasional de Davina, acordada e disposta a mais uma mamada. Estavam revivendo o passado novamente, Alex e Esquisito relembrando o dano causado por boatos venenosos às suas vidas no último ano em St. Andrews.

Esquisito foi o primeiro a perder a paciência com o passado. Esvaziou o seu copo e levantou da mesa.

- Preciso tomar um ar - anunciou ele. - Não vou ficar intimidado, me escondendo atrás de portas trancadas pro resto da minha vida. Vou dar uma caminhada. Vocês querem me fazer companhia?

Nenhum dos dois quis. Alex estava começando a preparar o jantar e Lynn estava dando de mamar a Davina. Esquisito pegou a jaqueta impermeável de Alex e saiu, caminhando em direção ao litoral. Era incrível, mas as nuvens que cobriram o céu durante todo o dia haviam desaparecido. O céu estava claro e uma lua abusada exibia-se entre as pontes. A temperatura caíra vários graus e Esquisito encolheu-se dentro da gola do casaco quando uma rajada de vento gelado do estuário o atingiu em cheio. Ele mudou de ideia, caminhando em direção às sombras sob a ponte da ferrovia, sabendo que se subisse no promontório conseguiria acesso a uma vista panorâmica do estuário que seguia para Inchcolm e o Mar do Norte lá atrás.

Já desfrutava o prazer de estar fora de casa. Um homem sempre ficava mais perto de Deus ao ar livre, longe da algazarra das outras pessoas. Imaginara ter feito as pazes com o seu passado, mas os acontecimentos dos últimos dias o deixaram desconfortavelmente consciente da sua ligação com o jovem que ele fora um dia. Esquisito precisava ficar sozinho, precisava restaurar a sua fé nas mudanças que operara em sua vida. Enquanto caminhava, refletia sobre como havia avançado, quanta bagagem incômoda deixara no caminho, graças a sua crença na redenção que a sua religião oferecia. As suas ideias tornaram-se mais claras, o seu coração, mais leve. Ligaria para a sua família mais tarde. Precisava do conforto que só as suas vozes proporcionariam. Algumas palavrinhas com a sua mulher e com os seus filhos e sabia que poderia se sentir como alguém que escapa de um pesadelo. Em termos práticos, nada mudaria e ele sabia disso. Mas sentir-se-ia mais apto para enfrentar os seus infortúnios.

O vento estava ficando mais forte, zunindo e bradando em seus ouvidos. Ele parou para recuperar o fôlego, ciente do barulho distante do tráfego na ponte. Ouviu um trem se aproximando pela ferrovia e inclinou-se para trás, esticando o pescoço para vê-lo avançando uns quatro metros acima da sua cabeça.

Esquisito não viu nem ouviu a pancada que o fez cair de joelhos, em uma paródia sinistra de oração. A segunda pancada o atingiu nas costelas e o derrubou no chão. Teve a vaga impressão de ter visto uma figura toda vestida de preto segurando o que parecia ser um taco de beisebol nas mãos, antes que o terceiro golpe atingisse os seus ombros e fizesse os seus pensamentos desconexos concentrarem-se apenas na dor. Os seus dedos buscavam a grama, aflitos, enquanto ele tentava engatinhar para longe do seu agressor. Uma quarta pancada o atingiu na parte posterior das coxas, fazendo com que caísse de barriga para baixo, sem poder mais escapar.

Então, com a mesma rapidez que começara, o ataque chegou ao fim. Parecia um flashback do que havia acontecido vinte e cinco anos atrás. Através de um miasma de dor e vertigem, Esquisito pôde distinguir vagamente alguns gritos e o som incongruente de um cachorrinho latindo. Sentiu um odor cálido e rançoso e sentiu uma língua úmida e áspera lambendo o seu rosto. Poder sentir qualquer coisa que fosse já era por si só uma bênção; deixou as lágrimas descerem pelo seu rosto.

- O Senhor me salvou dos meus inimigos - ele balbuciou. Então, tudo ficou escuro.

- Eu não quero ir para o hospital - insistiu Esquisito. Ele já tinha dito aquilo tantas vezes que Alex começou a desconfiar que talvez se tratasse de um sinal incontroverso de concussão. Esquisito estava sentado à mesa da cozinha, rígido em sua dor e igualmente inflexível sobre a possibilidade de receber cuidados médicos. O seu rosto estava completamente sem cor e com um vergão que se estendia da sua têmpora direita até a nuca.

- Eu acho que você quebrou as costelas - disse Alex, pela milésima vez.

- Então, eles não vão sequer me engessar - disse Esquisito. - Já quebrei as costelas uma vez. Vão me dar uns analgésicos e falar para eu continuar tomando até melhorar.

- Estou mais preocupada com uma concussão - disse Lynn, aproximando-se com uma xícara de chá, bem forte e bem doce. - Bebe, isso é bom para o choque. Se você vomitar novamente, pode ser concussão mesmo e aí a gente vai te levar pro hospital em Dunfermline.

Esquisito estremeceu.

- Não, Dunfermline, não.

- Ele não deve estar tão mal assim, está até debochando de Dunfermline - observou Alex. - Você está conseguindo se lembrar de alguma coisa do ataque?

- Não vi nada até receber a primeira pancada. E depois, a minha cabeça estava estourando. Vi uma figura de preto. Possivelmente um homem. Talvez uma mulher alta. E um taco de beisebol. Olha só que coisa ridícula: tive que voltar dos Estados Unidos para a Escócia para ser atacado com um taco de beisebol.

- Você não viu o rosto dele?

- Acho que estava usando uma máscara. Não vi sequer a sombra de um rosto. Quando dei por mim, estava desmaiado. Quando acordei, o seu vizinho estava ajoelhado ao meu lado, completamente apavorado. E aí eu vomitei no cachorro dele.

Apesar da afronta ao seu terrier Jack Russell, o vizinho Eric Hamilton ajudou Esquisito a se levantar e o escoltou até a casa de Alex. Resmungou algo sobre ter assustado um ladrão, dispensou os agradecimentos efusivos do casal e mergulhou novamente na escuridão da noite, sem tomar sequer uma dose de uísque de recompensa.

- Ele já não vai muito com a nossa cara mesmo - disse Lynn. - É um contador aposentado e acha que somos artistas ripongos. Então não se preocupe, você não estragou uma bela amizade. Mas temos que chamar a polícia, sim.

- Vamos esperar até amanhecer. Aí podemos falar diretamente com Lawson. De repente agora ele nos leva a sério - sugeriu Alex.

- Você acha que foi Macfadyen? - perguntou Esquisito.

- Não estamos em Atlanta - disse Lynn. - Estamos em um vilarejozinho pacato em Fife. Acho que nunca houve um assalto por essas bandas. E se você fosse realmente assaltar alguém, ia escolher justo um gigante quarentão, sabendo que há aposentados passeando com os seus cachorrinhos todas as noites? Isso não foi casual, foi planejado.

- Também acho - concordou Alex. - E mantém o padrão dos outros assassinatos. É sempre assim, feito para parecer uma outra coisa. Incêndio, furto, roubo... Se Eric não tivesse aparecido, você estaria morto agora.

Antes que alguém pudesse responder, a campainha tocou.

- Deixa que eu atendo - disse Alex.

Quando ele voltou, tinha um policial atrás dele.

- O Sr. Hamilton deu queixa do ataque - explicou Alex. - O policial Henderson veio aqui tomar o seu depoimento. Este é o Sr. Mackie - acrescentou ele.

Esquisito ensaiou um sorriso duro.

- Obrigado por ter vindo - agradeceu ele. - Sente-se, por favor.

- São só alguns detalhes - disse o policial, sacando um caderninho de anotações e acomodando-se à mesa. Abriu o grosso casaco do uniforme, mas não o retirou. Aposto que são treinados a suportar o calor, para não sacrificar a impressão de corpulência que o casacão proporciona, pensou Alex, distraído.

Esquisito forneceu seu nome completo e endereço, explicando que estava visitando Alex e Lynn, seus velhos amigos. Quando disse que era pastor, Henderson adotou uma expressão de desconforto, como se estivesse constrangido por um assaltante da sua área ter caído de paulada justo em um representante de Deus.

- O que aconteceu exatamente? - perguntou o policial.

Esquisito contou os vagos detalhes do ataque dos quais conseguia se lembrar.

- Lamento, mas não me lembro de mais nada. Estava muito escuro e eu fui pego de surpresa - justificou ele.

- O agressor não disse nada?

- Não.

- Não pediu dinheiro, ou a sua carteira?

- Nada.

Henderson balançou a cabeça.

- Muito estranho. Não é o tipo de coisa que costuma acontecer por aqui. - Ele olhou para Alex. - Não entendo por que o senhor não ligou para a polícia.

- Estávamos mais preocupados em garantir que Tom estava bem - acudiu Lynn. - Estamos tentando convencê-lo a ir até o hospital, mas ele está determinado a adotar uma postura estoica.

Henderson concordou.

- Acho que a Sra. Gilbey tem razão, senhor. Não custa nada procurar um médico, para examinar as lesões. E, além do mais, isso garante um laudo oficial da gravidade do ataque, caso seja possível capturar o responsável.

- Quem sabe amanhã de manhã - disse Esquisito. - Estou cansado demais para encarar hospital agora.

Henderson fechou o seu caderninho e afastou a cadeira.

- Vamos mantê-lo informado sobre qualquer novidade, senhor - disse ele.

- Há algo que o senhor pode fazer por nós - disse Alex.

Henderson lançou um olhar curioso para Alex.

- Eu sei que isso vai soar estranho, mas o senhor pode dar um jeito de enviar uma cópia do seu relatório para o subchefe de polícia Lawson?

Henderson ficou surpreso com o pedido.

- Sinto muito, senhor. Eu não consigo entender...

- Olha, não estou querendo te menosprezar, mas é uma história muito longa e muito complicada e estamos muito cansados para explicá-la agora. O Sr. Mackie e eu estamos tratando de um assunto bastante delicado com o subchefe Lawson e talvez esta não tenha sido uma agressão casual. Eu gostaria que ele visse o seu relatório, só para que ficasse ciente do que aconteceu aqui esta noite. De todo modo, eu mesmo vou conversar com ele amanhã de manhã e seria bom se ele já pudesse estar por dentro do assunto. - Ninguém que já tivesse visto Alex convencendo os seus funcionários a dar o máximo de si ficaria surpreso com suas as delicadas técnicas persuasivas.

Henderson avaliou o pedido, com dúvida no olhar.

- Este não costuma ser o nosso procedimento normal - disse ele, hesitante.

- Eu sei disso. Mas esta não é uma situação normal. Eu prometo que não vai sobrar para você. Se você preferir esperar o subchefe entrar em contato com você... - Alex deixou a frase no ar.

Henderson tomou uma decisão.

- Vou enviar uma cópia para a central - disse ele. - E mencionar que foi o senhor quem solicitou.

Alex o acompanhou até a porta. Ficou parado na soleira, observando o carro da polícia partir. Alguém estava lá fora, camuflado pela escuridão, esperando a hora certa de atacar. Um calafrio percorreu o seu corpo. E não tinha nada a ver com o ar gelado da noite.


41

O telefone tocou um pouco depois das sete, acordando Davina e assustando Alex. Depois do que acontecera a Esquisito, o menor som penetrava a sua consciência, requerendo análise e avaliação de risco. Havia alguém lá fora atrás deles e todos os seus sentidos estavam em alerta. Por isso, quase não dormira. Ouvira Esquisito perambulando pela casa de madrugada, provavelmente procurando mais analgésicos. Não era um barulho que ele costumava ouvir à noite e, até ele descobrir do que se tratava, o coração acelerara em seu peito.

Atendeu o telefone, imaginando se Lawson já estaria no gabinete, com o relatório de Henderson à sua frente. Não estava preparado para a jovialidade de Jason McAllister.

- Alô, Alex! - exclamara alegremente o perito em análise de tintas. - Eu sei que pais de recém-nascidos acordam com as galinhas, então imaginei que vocês não se incomodariam se eu ligasse tão cedo. Escuta, tenho novidades para vocês. Posso dar um pulo aí e adiantar antes de ir para o trabalho. Que tal?

- Ótimo - respondeu Alex, sonolento. Lynn empurrou o cobertor e caminhou exausta até o moisés, suspendendo a filha e resmungando.

- Maravilha. Daqui a meia hora estou aí.

- Você tem o endereço?

- Claro. Já me encontrei com Lynn aí algumas vezes. Até mais. - Ele desligou e Alex levantou da cama, enquanto Lynn voltava com o bebê no colo.

- Era o Jason - disse ele. - Ele está vindo para cá. É melhor eu tomar uma ducha. Você nunca me disse que ele era tão animadinho assim. - Ele se inclinou e beijou a cabeça da filha, enquanto Lynn a amamentava.

- Às vezes ele é alegre demais mesmo - concordou Lynn. - Eu vou amamentar Davina, colocar uma roupa e depois encontro vocês.

- Nem acredito que ele conseguiu um resultado tão depressa.

- Ele é como você era no início da carreira. Gosta muito do que faz e pouco se importa com o tempo que dedica ao trabalho. E quer compartilhar o seu entusiasmo com todo mundo.

Alex estacou, pegando o seu robe.

- Eu era assim? Então é um milagre você não ter pedido o divórcio.

Alex encontrou Esquisito na cozinha, com uma aparência horrorosa. A única cor no seu rosto era proveniente do hematoma que se espalhava como uma maquiagem em volta dos seus olhos. Desconjuntado em uma cadeira, segurava uma xícara com as duas mãos.

- Sua cara está uma merda - disse Alex.

- Eu estou uma merda. - Ele bebericou o café e fez uma careta. - Por que vocês não têm um analgésico decente aqui nessa casa?

- Porque não costumamos levar surras na rua - respondeu Alex, indo atender à campainha. Jason saltou porta adentro com as pontas dos pés, tomado de entusiasmo e, ao olhar de esguelha para Esquisito, não acreditou nos seus olhos: em um gesto quase cômico, voltou a contemplá-lo para confirmar se tinha visto direito. - Porra, cara. O que foi isso?

- Um sujeito com um taco de beisebol - explicou Alex, sucinto. - Não estávamos brincando quando falamos que talvez fosse uma questão de vida ou morte. - Serviu café para Jason. - Fiquei impressionado quando você disse que tinha um resultado para a gente tão rápido - disse ele.

Jason deu de ombros.

- Pois é, quando comecei a trabalhar, vi que não era assim tão complicado. Fiz a microespectrofotometria para determinar a cor, depois testei no cromatógrafo de gás para ver a composição. Mas não bateu com nada da minha base de dados.

Alex suspirou.

- Bom, já imaginávamos isso - disse ele.

Jason suspendeu o dedo.

- Veja bem, Alex, não sou um cara desprovido de recursos. Alguns anos atrás, conheci um sujeito em uma conferência. Ele é o maior especialista em tinta do mundo, trabalha para o FBI e desconfia-se que tenha o maior banco de dados de amostras de tintas do universo. Então, pedi a ele para dar uma olhada para mim e voilà! Conseguimos. - Ele abriu os braços em um gesto largo, como se esperasse os aplausos.

Lynn chegou a tempo para escutar o desfecho.

- E então, o que era? - perguntou ela.

- Não vou chateá-los com os detalhes técnicos. A tinta em questão foi produzida por um fabricante em Nova Jersey em meados da década de 70, para ser usada em fibra de vidro e em alguns tipos de plástico moldado. O mercado-alvo eram os construtores e donos de barcos. Esta tinta proporcionava um acabamento bastante sólido, à prova de arranhões e até mesmo das condições climáticas mais extremas. - Jason abriu a sua mochila e vasculhou lá dentro, apanhando finalmente uma tabela de cores produzida no computador. Uma amostra de azul-claro estava sublinhada com caneta preta. - Era exatamente assim - disse ele, passando a folha de papel. - A boa notícia sobre a qualidade do acabamento é que, se por algum milagre a cena do crime ainda existir, é possível conseguir um resultado. Essa tinta foi vendida principalmente na costa leste dos Estados Unidos, mas foi exportada tanto para o Reino Unido quanto para o Caribe. A empresa faliu no final da década de 80, então não temos como saber mais detalhes.

- Então é bem provável que Rosie tenha sido assassinada em um barco? - perguntou Alex.

Jason produziu um estalo duvidoso com os lábios.

- Bom, se foi, deve ter sido num barco de tamanho razoável.

- Por quê?

Ele sacou uns papéis da mochila com um floreio.

- Aí é que as gotas de tinta entram na história. Pequenas gotas, é o que temos aqui. E um ou dois fragmentos de fibra, bem pequenos, que me parecem bastante com carpete. E isso conta uma história. Essas gotas caíram de um pincel enquanto alguém estava pintando alguma coisa. Essa é uma tinta que tem uma boa mobilidade, ou seja, ela se desprende do pincel em gotas a cada minuto. O pintor nem deve ter percebido. E são típicas de uma pintura que está sendo feita no alto, acima da cabeça do pintor, especialmente quando ele está bem esticado para fazer o serviço. E como não encontramos praticamente nenhuma variação no formato das gotas, isso dá a entender que a pintura foi aplicada no alto e na mesma distância. Nada disso se encaixa com a pintura de um casco. Mesmo que o casco estivesse de cabeça para baixo, para pintar o seu interior, o serviço não teria sido feito sobre um carpete, vocês não acham? E as gotas com certeza teriam tamanhos variados, porque algumas partes do casco estariam mais próximas do pintor, não é?

Ele fez uma pausa, olhando à sua volta. Todos estavam assentindo com a cabeça, hipnotizados com o seu entusiasmo.

- Então, o que sobrou? Se for mesmo um barco, então o sujeito estava provavelmente pintando o teto da cabine. Bom, eu fiz alguns testes com uma tinta bem similar e, para conseguir este efeito, precisei me esticar bastante. E barcos pequenos não têm o pé-direito tão alto assim. Então, o cara devia ter um barco bem grandinho.

- Se é que era mesmo um barco - disse Lynn. - Não pode ter sido outro lugar? Tipo o interior de um trailer?

- Pode ser. Mas trailers normalmente não são forrados com carpete, não é? Pode ter sido um depósito, ou uma garagem. Porque tintas fabricadas para fibra de vidro normalmente também são excelentes para amianto e, naquela época, amianto era bem comum.

- Resumindo: continuamos na mesma - sentenciou Esquisito, com frustração na voz.

A conversa descambou para várias direções. Mas Alex já não escutava mais nada. O seu cérebro estava a pleno vapor, concatenando uma torrente de pensamentos acionados pelo que acabara de escutar. A sua mente montava um quebra-cabeça, informações aparentemente desconexas começavam a se encaixar, formando um desenho inédito. Assim que cedemos espaço ao primeiro pensamento inimaginável, tudo começa a fazer sentido. A questão agora era: o que fazer a respeito?

De repente, percebeu que estava longe. Todos estavam olhando para ele com expectativa, esperando uma resposta para alguma pergunta que ele sequer ouvira.

- O quê? - perguntou ele. - Foi mal, eu estava viajando.

- Jason perguntou se você quer que ele prepare um relatório oficial - disse Lynn. - Para mostrar a Lawson.

- Lógico, ótima ideia - disse Alex. - Maravilha, Jason, muito bom mesmo.

Enquanto Lynn levava Jason até a porta, Esquisito lançou um olhar penetrante para Alex.

- Você teve alguma ideia, Gilly - afirmou ele. - Eu conheço essa cara.

- Não, estava só aqui quebrando a cabeça, tentando me lembrar se alguém do Lammas tinha um barco. Alguns eram pescadores, lembra? - Alex virou-se e começou a se ocupar, encaixando algumas fatias de pão na torradeira.

- Bom, agora que você falou... Podemos comentar isso com Lawson - disse Esquisito.

- Pois é. Quando ele ligar, você fala com ele.

- Por quê? Você vai aonde?

- Preciso ficar um pouco no escritório. Estou negligenciando demais o trabalho e ele não funciona por conta própria. Vou ter algumas reuniões hoje pela manhã, não tenho como não estar lá.

- Você acha sensato dirigir por aí sozinho?

- Não tenho escolha - respondeu Alex. - Mas acho que estou seguro em plena luz do dia, na estrada para Edimburgo. E vou voltar para casa antes de escurecer.

- Acho bom mesmo. - Lynn entrou na cozinha, trazendo os jornais. - Acho que Jackie tinha razão. Elas estão estampadas em todas as capas.

Alex mordiscou a sua torrada, perdido em pensamentos, enquanto os outros folheavam os jornais. Aproveitando que eles estavam ocupados, Alex apanhou a tabela de cores que Jason deixara lá e enfiou no bolso da calça. Aproveitando uma pausa na conversa, anunciou que estava de saída, beijou a mulher e a filha adormecida e partiu.

Tirou o BMW da garagem e desceu a rua, dirigindo-se para a via que desembocava na ponte para Edimburgo. Mas, quando alcançou a encruzilhada, em vez de ir para o sul na M90, desviou para o norte. O sujeito que estava atrás deles era a sua presa agora. Não tinha tempo para ficar participando de reuniões.

Lynn acomodou-se atrás do volante do seu carro com uma sensação de alívio da qual não se orgulhava. Estava começando a sentir claustrofobia dentro da sua própria casa. Não podia sequer se isolar no estúdio e recuperar a calma trabalhando em sua última pintura. Sabia que não deveria estar dirigindo ainda, ainda mais depois da cesariana, mas precisava sair um pouco. A necessidade de fazer umas comprinhas ofereceu a desculpa perfeita. Prometeu a Esquisito que pediria a um dos funcionários do supermercado que fizesse o trabalho pesado para ela. Embrulhou Davina em uma manta, quentinha, acomodou-a na cadeirinha e saiu.

Decidiu aproveitar a sua liberdade ao máximo e ir até o mercado Sainsburys, em Kirkcaldy. Se tivesse energia o suficiente depois das compras, podia até dar um pulo na casa dos seus pais. Eles ainda não tinham visto Davina depois que ela recebera alta do hospital. Talvez uma visita da neta ajudasse a levantar o astral. Precisavam de algo para se agarrar ao futuro, deixando o passado para trás.

Assim que ela saiu da estrada em Halbeath, a luz do indicador de combustível começou a piscar no painel. Racionalmente falando, sabia que tinha gasolina o suficiente para ir até Kirkcaldy e voltar, mas não queria correr riscos com um bebê a bordo. Desviou em direção a um posto, dirigindo até as bombas, ignorando completamente o carro que a seguia desde que saíra de North Queensferry.

Lynn encheu o tanque e em seguida correu para a lojinha de conveniências para pagar. Enquanto esperava o seu cartão de crédito ser aceito, deu uma olhada para fora.

No início, não conseguiu entender direito o que estava acontecendo. A cena lá fora não fazia o menor sentido. Então, compreendeu. Lynn berrou com toda a força dos seus pulmões e correu aos tropeções até a porta, derrubando a bolsa e espalhando todo o seu conteúdo no chão.

Um Golf prateado estava parado bem atrás do seu carro, com o motor ligado e a porta do motorista aberta. A sua porta da frente também estava entreaberta, ocultando a pessoa que estava debruçada lá dentro. Quando ela abriu a pesada porta da loja, o homem ergueu o corpo e uma mecha de cabelo escuro e espesso caiu sobre os seus olhos. Ele estava agarrado à cadeirinha de Davina. Lançou um olhar na direção de Lynn e correu para o outro carro. Os gritos de Davina perfuraram o ar como uma lâmina.

Ele jogou a cadeirinha no banco do carona e depois entrou depressa no carro. Lynn estava quase o alcançando. O homem bateu a porta do carro com força e partiu, cantando pneu.

Ignorando a dor da sua cicatriz recente, Lynn atirou-se sobre o Golf que chacoalhava loucamente em sua fuga. Mas os seus dedos desesperados não encontraram nada em que se agarrar e o seu impulso a lançou no chão, de joelhos.

- Não!!! - gritou ela, esmurrando os punhos no chão. - Não!!! - Tentou ficar de pé, caminhar até o seu carro e partir atrás do Golf. Mas as suas pernas cederam e ela desmaiou, tomada por uma angústia esmagadora.

Graham Macfadyen seguia triunfante pela A92, afastando-se do posto de gasolina em Halbeath. Estava feito. Pegara o bebê. Olhou de esguelha para ele, para verificar se estava tudo bem. Parara de chorar assim que pegaram a pista de mão dupla. Ouvira dizer que bebês gostam da sensação de estar em um carro em movimento e aquele com certeza não era uma exceção à regra. Os seus olhos azuis o encaravam, indiferentes e tranquilos. Ao fim da pista, escolhera as vias mais desertas, para evitar a polícia. Parara o carro e fixara o bebê direitinho no banco. Não queria que ele sofresse alguma coisa, não ainda. Era Alex Gilbey quem ele desejava punir e quanto mais o bebê permanecesse vivo e aparentemente bem, pior seria o sofrimento do pai. Manteria o bebê como seu refém por quanto tempo fosse preciso.

E fora ridiculamente fácil. As pessoas deviam cuidar melhor dos filhos. Era incrível que bebês não fossem parar nas mãos de estranhos com mais frequência.

Aquilo faria com que as pessoas o escutassem, pensou ele. Levou o bebê para casa e trancou as portas. Um cerco, era o que ele planejava. A imprensa compareceria em massa e ele teria a oportunidade de explicar por que fora forçado a tomar uma atitude tão drástica. Quando ficassem sabendo que a polícia de Fife estava acobertando os assassinos da sua mãe, entenderiam o motivo do seu gesto desesperado. E se mesmo assim o seu plano não funcionasse, bom, ainda havia um trunfo em sua manga. Contemplou o bebê sonolento.

Lawson ia se arrepender de não ter lhe dado ouvidos.


42

Alex deixou a via expressa em Kinross. Dirigiu pela pacata cidade-mercado, seguindo até o lago Leven. Quando ela deixou escapar que Lawson estava de folga pescando, Karen Pirie havia dito a palavra "lago" antes de se conter. E em toda Fife só existia um lago onde um pescador que se preze podia lançar o seu anzol. Alex não conseguia parar de pensar na mais recente descoberta. Porque sabia, lá no fundo do seu coração, que nenhum dos quatro havia cometido o crime e também não conseguia imaginar Rosie passeando sozinha pela rua no meio de uma tempestade de neve, uma presa fácil para um estranho. Por isso, sempre nutriu a ideia de que ela havia sido assassinada pelo seu namorado misterioso. E quando alguém planeja seduzir uma garota, não a leva para um depósito ou para uma garagem, e sim para a sua casa. E foi então que ele se lembrou de um comentário descartável em uma das conversas que tiveram na véspera. O inimaginável subitamente passou a ser a única coisa que fazia sentido.

O gigantesco vulto da colina Bishop surgiu à sua direita como um dinossauro adormecido, cortando o sinal do seu celular. Sem ter a menor ideia do que se passava em outro lugar, Alex estava em uma missão. Sabia exatamente o que estava procurando. Só restava saber onde poderia encontrar.

Dirigiu devagar, percorrendo cada trilha das fazendas e cada rua lateral que conduzia até a beira do lago. Uma névoa fluorescente cobria a superfície da água cinza-metálica, conferindo uma aparência sinistra e indesejável à sua busca. Alex parou diante de todos os portões com os quais se deparou, descendo do carro e esgueirando-se sobre os campos para certificar-se de que não estava perdendo a presa. Quando a grama rebelde encharcou os seus tornozelos, desejou ter colocado uma roupa mais apropriada. Mas não queria que Lynn percebesse que não estava indo para o escritório.

Percorreu lenta e metodicamente toda a costa do lago. Passou quase uma hora rondando um local destinado a um pequeno trailer, mas o que ele buscava não estava lá. O que não lhe causou nenhuma surpresa. Não esperava encontrar o que estava procurando em um lugar onde barqueiros ocasionais pudessem ter acesso.

Mais ou menos na hora em que a sua esposa aflita prestava depoimento para os detetives, Alex estava tomando um café em uma casa de chá na beira da estrada, espalhando manteiga em um bolo caseiro, tentando aquecer os ossos após a sua inspeção no local do trailer. Não fazia a menor ideia de que algo horrível tinha acontecido.

O primeiro policial a chegar ao local encontrou uma mulher incoerente, com as mãos e os joelhos do seu jeans imundos, lamentando-se na parte externa do posto de gasolina. O transtornado atendente estava parado ao seu lado, impotente, enquanto motoristas frustrados chegavam e partiam assim que percebiam que não seriam atendidos.

- Traga Jimmy Lawson aqui agora - ela gritava para o policial enquanto o atendente explicava o que havia acontecido.

O policial tentou ignorar as exigências dela, solicitando assistência de emergência pelo rádio. Então ela o agarrou pela jaqueta e insistiu aos berros, respingando saliva no rosto dele, exigindo a presença do subchefe. Ele tentou distraí-la, sugerindo que ligasse para o seu marido ou para um amigo, para qualquer pessoa.

Lynn o rechaçou com desdém e voltou para a loja de conveniência. Dos seus pertences espalhados pelo chão, pegou apenas o celular. Tentou ligar para Alex, mas aquela vozinha irritante da operadora avisou que o número chamado estava fora da área de cobertura ou desligado.

- Merda! - berrou ela. Digitando os números de qualquer jeito, conseguiu ligar para casa.

Quando Esquisito atendeu, Lynn soltou um gemido de dor.

- Tom, ele levou Davina, o canalha sequestrou a minha filha!

- Quem? Quem levou a menina?

- Eu não sei! Macfadyen, provavelmente. Ele roubou o meu bebê! - Finalmente vieram as lágrimas, escorrendo pelo seu rosto e fazendo com que ela se engasgasse.

- Onde você está?

- No posto de gasolina de Halbeath. Eu parei para encher o tanque. Só me afastei por um segundo... - Lynn engasgou nas palavras e deixou o telefone cair aos seus pés. Ela se agachou, debruçando-se sobre uma vitrine de doces. Envolveu a cabeça com os braços e soluçou. Não fazia a menor ideia de quanto tempo havia passado até que ouviu o tom de voz calmo e reconfortante de uma mulher. Levantou os olhos e deparou-se com um rosto desconhecido.

- Eu sou a detetive-inspetora Cathy McIntyre - disse a mulher. - Você pode me contar o que aconteceu?

- O nome dele é Graham Macfadyen. Ele mora em St. Monans - disse Lynn. - Ele roubou o meu bebê.

- Você conhece esse homem? - perguntou a detetive McIntyre.

- Não, não conheço. Mas ele está atrás do meu marido. Ele acha que Alex matou a mãe dele. Mas ele está enganado, é claro. Ele é completamente desequilibrado, já matou duas pessoas. Não deixe ele matar a minha filhinha. - As palavras de Lynn se atropelavam, fazendo com que ela soasse perturbada. Tentou respirar fundo e deu um soluço. - Sei que pareço uma maluca, mas não sou. Você precisa entrar em contato com o subchefe de polícia. James Lawson. Ele está sabendo de tudo.

A detetive McIntyre parecia estar na dúvida. Aquilo estava fora do seu alcance e ela sabia disso. Tudo o que conseguira fazer até o momento fora enviar um comunicado pelo rádio para todas as viaturas e as patrulhas avisando para procurarem um Golf prateado com um sujeito de cabelo escuro na direção. Ligar para o subchefe podia ser o seu atestado definitivo de humilhação.

- Deixa comigo - disse ela, caminhando até a parte externa do posto para avaliar as suas alternativas.

Esquisito estava sentado na cozinha, transtornado com a sua impotência. Orar era ótimo, mas um homem precisa de um nível muito mais alto de tranquilidade interior para conseguir algo útil com uma oração. A sua imaginação corria solta, imaginando cenas dos seus próprios filhos nas mãos de um sequestrador. Sabia que ficaria além do alcance de qualquer reação racional se estivesse no lugar de Lynn. O que precisava fazer era encontrar uma maneira concreta de ajudá-la.

Tentou falar com Alex, mas o celular não estava funcionando e ninguém no escritório havia visto ou tido notícias dele naquela manhã. Então Alex também constava na lista dos desaparecidos. Esquisito não estava totalmente surpreso; tinha certeza de que Alex estava com alguma coisa na cabeça que queria resolver sozinho.

Pegou o telefone, gemendo de dor mesmo com um movimento tão sutil, e pediu ao serviço de informações o telefone da polícia de Fife. Precisou se valer de todo o seu poder de persuasão para conseguir chegar até a secretária de Lawson.

- Eu realmente preciso falar com o subchefe - justificou ele. - É urgente. Vocês estão investigando o sequestro de uma criança e eu tenho informações vitais a respeito - explicou ele à mulher, que era claramente tão adepta da rispidez quanto ele da adulação.

- O Sr. Lawson está em uma reunião - disse ela. - Se o senhor deixar o seu nome e telefone, peço para ele entrar em contato assim que tiver oportunidade.

- A senhora não está me ouvindo, está? A vida de um bebê está correndo perigo. Se alguma coisa acontecer com essa criança, a senhora pode apostar a sua aposentadoria que eu procuro a imprensa imediatamente e conto a eles como vocês se omitiram. Se a senhora não chamar Lawson agora, vai acabar sendo o bode expiatório.

- Não vejo necessidade para falar assim comigo, senhor - respondeu a mulher, friamente. - Como é mesmo o seu nome?

- Reverendo Tom Mackie. Ele vai querer falar comigo, eu garanto.

- Aguarde um momento, por favor.

Esquisito contorceu-se de ira ao se ver obrigado a escutar um trecho de uma música clássica enquanto esperava. Após o que lhe pareceu uma espera interminável, uma voz familiar ressoou em seus ouvidos.

- Sr. Mackie, espero que o senhor tenha uma boa explicação para isso. Fui arrancado de uma reunião com o chefe de polícia para vir falar com o senhor.

- Graham Macfadyen sequestrou a filha de Alex Gilbey. Eu não acredito que você estava sentado em uma reunião enquanto isso aconteceu - criticou Esquisito.

- Como é que é? - perguntou Lawson.

- Você está com o sequestro de um bebê nas costas. Há uns quinze minutos mais ou menos, Macfadyen sequestrou Davina Gilbey. Ela é um bebê recém-nascido, tenha a santa paciência.

- Eu não estou sabendo de nada disso, Sr. Mackie. Dá para me contar o que aconteceu?

- Lynn Gilbey parou em um posto de gasolina para abastecer o carro em Halbeath. Enquanto ela estava pagando, Macfadyen apanhou a menina do carro dela. Os seus colegas estão no local agora, por que ninguém te contou nada?

- A Sra. Gilbey reconheceu Macfadyen? Ela já esteve com ele? - perguntou Lawson.

- Não. Mas quem mais ia querer fazer com que Alex sofresse desse jeito?

- Crianças são sequestradas por todo tipo de motivo, Sr. Mackie. Pode não ser pessoal. - A voz dele era tranquilizadora, mas não produziu nenhum efeito.

- Claro que é pessoal! - berrou Esquisito. - Ontem à noite, alguém tentou me surrar até a morte. Você deveria ter visto o relatório na sua mesa hoje cedo. E hoje, a filha de Alex é sequestrada. E você vai me dizer que tudo isso não passa de mera coincidência? Era só o que me faltava. Você tem é que levantar a sua bunda daí e encontrar Macfadyen antes que alguma coisa aconteça com o bebê.

- Posto de gasolina em Halbeath, não é isso?

- É. Vá pra lá agora, ouviu? Você tem autoridade para deslanchar as coisas.

- Vou entrar em contato com os policiais que estão no local. Enquanto isso, Sr. Mackie, procure ficar calmo, sim?

- Tá, tá bem. Vai ser muito fácil.

- Onde está o Sr. Gilbey? - perguntou Lawson.

- Não sei. Ele deveria ter ido para o escritório, mas não apareceu por lá até agora. E o celular dele não está funcionando.

- Deixa comigo. Seja lá quem for o sequestrador da criança, vamos encontrá-lo. E levá-la para casa novamente.

- Você fala como o pior tipo desses tiras de seriado de tevê, Lawson, sabia disso? Vá agitar as coisas. E encontre Macfadyen. - Esquisito bateu com o telefone na cara dele. Tentava se convencer de que conseguira fazer alguma coisa, mas não era o bastante.

Não adiantava. Não podia ficar sentado em casa, sem mexer uma palha. Pegou o telefone novamente e pediu o telefone de um radiotáxi ao serviço de informações.

Lawson olhava fixamente para o telefone. Macfadyen passara dos limites. Devia ter imaginado algo do tipo, mas fracassara. Agora era tarde demais para tirá-lo de circulação. Aquela situação tinha tudo para fugir do controle. E quem podia prever o que aconteceria então? Esforçando-se para manter uma aparência de calma, Lawson ligou para a central de operações da polícia e solicitou um relatório sobre o que estava acontecendo em Halbeath.

Assim que ouviu as palavras "Golf prateado" lembrou-se imediatamente da sua caminhada até a porta de Macfadyen e do carro estacionado em frente à sua casa. Não havia mais dúvidas. Macfadyen enlouquecera de vez.

- Quero falar com o oficial encarregado do caso - ordenou ele. Tamborilou os dedos na mesa enquanto aguardava. Aquilo era um pesadelo tornando-se realidade. Que diabos se passava na cabeça de Macfadyen? Será que estava se vingando de Gilbey, imaginando que ele fora o responsável pela morte da sua mãe? Ou estaria jogando um jogo mais astuto? Fosse qual fosse o seu plano, a criança estava correndo perigo. Normalmente, quando bebês eram sequestrados, a motivação do sequestrador era bem banal: queriam um filho. Imaginavam-se capazes de tomar conta da criança em questão, sufocando-a com tanto amor e cuidados. Mas naquele caso, a história era outra. A criança era apenas uma peça no jogo doentio de Macfadyen e, se ele imaginava estar vingando um assassinato, então assassinato talvez fosse o seu objetivo. Lawson mal podia pensar nas consequências sem que o seu estômago revirasse. - Vamos, atenda - murmurou ele.

Finalmente, uma voz estalou na linha.

- Aqui quem fala é a detetive-inspetora McIntyre - disse ela. Pelo menos tinham uma mulher no local do crime, pensou ele, aliviado. Lembrava-se de Cathy McIntyre. Ela era sargento no Departamento de Investigação Criminal na época em que ele trabalhava como superintendente em Dunfermline. Era uma boa profissional, sempre fazia as coisas de acordo com o figurino.

- Cathy, aqui quem fala é o subchefe Lawson.

- Pois não, senhor. Eu estava prestes a entrar em contato. A mãe do bebê sequestrado, a Sra. Lynn Gilbey, está perguntando pelo senhor sem parar. Ela acha que o senhor sabe o que está acontecendo aqui.

- O sequestrador partiu em um Golf prateado, não foi?

- Sim, senhor. Estamos tentando ver a placa pela filmagem das câmeras de monitoria, mas só conseguimos captar o carro em movimento. Ele estacionou bem atrás da Sra. Gilbey, não conseguimos distinguir o número da placa com o carro parado.

- Peça para alguém continuar tentando por enquanto. Mas eu acho que sei quem foi o responsável. O nome dele é Graham Macfadyen, ele mora em Carlton Way, número 12, em St. Monans. E imagino que foi para lá que ele levou a criança. Acho que ele está interessado em mantê-la como refém. Então quero que você me encontre lá, no final da rua. Não vá com muita gente, mas peça para alguém levar a Sra. Gilbey em uma viatura separada. E não ligue o rádio no carro onde ela estiver. Vou organizar a equipe de negociação de reféns e assim que chegar vou colocá-la a par da nossa estratégia. Não perca mais tempo, Cathy. Te encontro em St. Monans.

Lawson terminou a ligação e em seguida apertou os olhos com força, concentrado. A libertação de reféns era a tarefa mais difícil para um policial. Lidar com a família e os amigos de alguém que acabou de morrer era moleza em comparação àquilo. Ligou para a central novamente e solicitou a mobilização da equipe de negociação de reféns e de uma unidade armada.

- Ah, e mande um engenheiro de telecomunicações para lá também. Eu quero cortar todo tipo de acesso de Macfadyen com o mundo externo. - Finalmente, ligou para Karen Pirie. - Encontre-me no estacionamento em cinco minutos - bradou ele. - Eu explico no caminho.

Estava a caminho da porta quando o seu telefone tocou. Hesitou um pouco, decidindo se atenderia ou não. Resolveu voltar.

- Lawson - disse ele.

- Olá, Sr. Lawson. Aqui é o Andy, da assessoria de imprensa. O pessoal do Scotsman acabou de ligar, com uma história muito esquisita. Disseram que receberam um e-mail de um cara que diz que sequestrou um bebê porque a polícia de Fife está acobertando os assassinos da mãe dele. E ele atribui a culpa especialmente ao senhor. Ao que parece, é um e-mail bem longo e detalhado. Eles vão encaminhar para mim. Estão querendo saber se é verdade. Está rolando mesmo o sequestro de um bebê?

- Meu Deus - gemeu Lawson. - Estava com medo que algo assim acontecesse. Veja bem, estamos lidando com uma situação bem delicada aqui. E é verdade, um bebê foi sequestrado. Ainda não tenho todos os detalhes. É melhor perguntar ao pessoal da central, eles estão por dentro da história toda. Tenho a impressão de que você vai receber muitas ligações por causa disso, Andy. Dê o máximo de informação possível sobre as providências que já estão sendo tomadas. Convoque uma coletiva de imprensa para hoje mesmo, o mais tarde que você puder. Mas insista na tecla que o sujeito tem problemas mentais e que eles não devem dar ouvidos às suas reclamações.

- Então a versão oficial é de que o cara é pirado - disse Andy.

- Bota pirado nisso. Mas estamos levando o caso a sério. A vida de uma criança está em jogo, não quero que nenhuma notícia irresponsável o tire do sério. Entendeu?

- Entendi. Falo com o senhor mais tarde.

Lawson xingou baixinho e correu porta afora. Aquele ia ser um dia de cão.

Esquisito pediu para o motorista de táxi dar uma parada em um supermercado em Kirkcaldy. Quando chegaram lá, ele entregou um bolo de notas ao motorista.

- Amigo, faça-me um favor. Você está vendo o estado em que estou. Dá para ir até lá e me comprar um celular? Pode ser um desses pré-pagos mesmo. E alguns cartões também, por favor. Preciso estar conectado com o mundo.

Uns quinze minutos depois, retomaram o caminho pela estrada. Pegou a folha de papel onde havia anotado os telefones do celular de Alex e de Lynn. Tentou ligar para Alex mais uma vez. Nada. Por onde será que ele andava?

Macfadyen olhava fixamente para o bebê, perplexo. Começara a chorar assim que entraram na casa, mas ele ainda não tinha tido tempo para fazer algo a respeito. Tinha e-mails para mandar, tinha de contar ao mundo o que estava acontecendo. Estava tudo esquematizado. Bastava se conectar e, com apenas alguns cliques no mouse, a sua mensagem seria enviada para toda a imprensa do país, incluindo a maioria dos sites de notícias na internet. Agora eles haveriam de escutar o que ele tinha a dizer.

Deixou os computadores e voltou à sala de estar, onde havia deixado a cadeirinha do bebê no chão. Sabia que não deveria afastar-se dele, para evitar que a polícia os separasse ao invadir a casa, mas seus gritos o distraíram e ele teve de levá-lo para outro cômodo, para poder se concentrar. Fechara as cortinas, como havia feito na casa toda. Chegou até mesmo a pregar um cobertor na janela de vidro fosco do banheiro, que costumava ficar aberta. Sabia direitinho como funcionavam os cercos policiais; quanto menos os tiras soubessem o que estava se passando dentro da casa, melhor para ele.

O bebê continuava chorando. Os seus gemidos haviam se transformado em um choro baixinho, mas assim que ele entrou no recinto, pôs-se a chorar novamente. O som penetrou o seu cérebro como uma furadeira, impedindo o seu raciocínio. Precisava calar aquela criança. Ele a suspendeu, com cuidado, e a colocou no colo. O choro tornou-se tão intenso que ele pôde até sentir os soluços reverberando no seu peito. Talvez precisasse trocar a fralda, pensou ele. Tornou a colocá-la no chão e desenrolou a manta que a envolvia. Por dentro da manta, havia um casaquinho de lã. Ele o removeu e abriu os botões que ficavam no meio das pernas, tirando a roupinha que a protegia. De quantas camadas aquele maldito bebê precisava? Talvez estivesse apenas com calor.

Apanhou um rolo de papel-toalha e acocorou-se ao lado do bebê. Removeu as fitas adesivas que seguravam a fralda em volta da barriga do bebê e afastou-se imediatamente. Caramba, aquilo era nojento. Era verde, pelo amor de Deus. Franzindo o nariz de nojo, removeu a fralda suja e limpou a sujeira do bumbum da criança. Rapidamente, antes que uma nova leva aparecesse, ele aparou o bebê em uma generosa camada de papel toalha.

Depois de tudo isso, o bebê continuava chorando. Meu Deus, o que precisava fazer para calar a boca daquela criança? Precisava dela viva, pelo menos por enquanto, mas aquele choro o estava deixando maluco. Deu uma bofetada no rostinho avermelhado e conquistou um breve momento de silêncio. Mas assim que a criança assustada recuperou o seu fôlego, os gritos voltaram com força total.

Será que estava querendo mamar? Foi até a cozinha e despejou leite em uma tigela. Sentou-se, ninando o bebê em seus braços, desajeitado, imitando o modo como havia visto as pessoas fazendo na televisão. Enfiou o dedo entre os seus lábios e tentou derramar alguma coisa lá dentro, mas o leite escorreu pelo queixo do bebê e desceu pela manga da sua camisa. Tentou novamente e desta vez a criança reagiu, fechando os pequeninos punhos e dando chutes no ar. Como é que o monstrinho não sabia engolir? Por que agia como se ele estivesse tentando envenená-lo?

- Qual é o seu problema, porra? - gritou ele. O bebê enrijeceu em seus braços, chorando ainda mais.

Tentou mais um pouco, sem sucesso. Mas, de repente, o choro passou. O bebê adormeceu instantaneamente, como se alguém o tivesse desligado da tomada. Uma hora, estava abrindo o berreiro, na outra, dormindo como um anjinho. Macfadyen afastou o sofá e o colocou novamente na cadeirinha, obrigando-se a ser delicado. A última coisa que queria naquele momento era uma reprise daquele barulho infernal.

Voltou para os computadores, planejando entrar em diversos sites para ver se já estavam veiculando a sua história. Não ficou totalmente surpreso ao ver em seus monitores a mensagem: "Conexão perdida." Já esperava que fossem cortar as suas linhas telefônicas. Como se isso fosse impedi-lo. Tirou um celular do carregador e o conectou ao seu laptop com um cabo, fazendo a ligação. Tudo bem, era como voltar a andar de mula depois de ter dirigido uma Ferrari. Mas após um tempo insuportavelmente longo, ele estava conectado de novo.

Se pensavam que podiam calá-lo tão facilmente, tinham que rever os seus conceitos. Já estava planejando aquilo tudo há tempos e jogava para ganhar.


43

Alex estava perdendo o seu entusiasmo. A única coisa que o fazia prosseguir era a certeza absoluta de que a resposta que ele buscava tão desesperadamente estava perto. Tinha de estar. Já explorara o lado sul do lago e agora estava vasculhando a costa norte. Perdera a conta de quantos campos já havia pesquisado. Fora observado por gansos, cavalos, ovelhas e até mesmo por uma lhama. Lembrou-se vagamente de ter lido em algum lugar que os pastores as colocavam junto ao rebanho para defendê-lo das raposas, mas jamais conseguira entender como um bicho gordo e preguiçoso, com cílios de dar inveja a qualquer modelo, pudesse assustar um animal tão destemido quanto uma raposa. Um dia, levaria Davina até lá para ver a lhama. Ela ia gostar quando estivesse um pouquinho mais velha.

Descendo de carro por um outro caminho, passou diante de uma fazenda em estado lastimável. As construções estavam abandonadas, o encanamento vazando e as molduras das janelas descascadas. O jardim parecia uma espécie de cemitério para máquinas que deviam estar acumulando ferrugem há décadas. Um cachorro esquelético com um olhar enraivecido lutava com uma corrente, latindo furiosa e inutilmente na porta. A alguns metros do portão, os sulcos ficaram mais fundos e a grama mais esparsa. Alex atravessou pelas poças, fazendo uma careta ao constatar que uma pedra atingira o chassi do carro.

Um pórtico agigantou-se à sua esquerda e Alex desceu do carro, cansado. Contornou o seu carro pela frente e inclinou-se sobre as barras de metal. Olhando para a sua esquerda, viu algumas vacas encardidas ruminando melancolicamente. Deu uma olhadela para a sua direita e teve uma surpresa inesperada. Mal podia acreditar nos seus próprios olhos. Será que era mesmo o que ele estava pensando?

Alex remexeu no cadeado enferrujado que mantinha o portão trancado. Entrou no terreno e tornou a prender os elos da corrente. Prosseguiu caminhando, sem se importar nem com a lama nem com o esterco que maculavam os seus caros mocassins americanos. Quanto mais se aproximava do seu objetivo, mais tinha certeza de que havia encontrado o que estava procurando.

Não via o trailer havia vinte e cinco anos, mas a memória confirmou a sua suspeita. Bicolor, exatamente como ele lembrava: bege em cima, verde musgo embaixo. As cores estavam desbotadas, mas ainda era possível compará-las com a sua lembrança. Conforme se aproximava, pôde reparar que ainda estava bem conservado. Blocos de concreto empilhados em cada canto mantinham os pneus afastados do chão e não havia nenhum vestígio de limo no teto, no peitoril das janelas, nem na soleira da porta. A borracha frágil em volta das janelas havia sido tratada com algum tipo de selante para ficar à prova d’água, observou Alex enquanto contornava cautelosamente o trailer. Não havia o menor sinal de vida. Cortinas claras cobriam as janelas. A aproximadamente uns vinte metros do trailer, um pequeno portão na cerca conduzia ao lago. Alex pôde ver um barco a remo estirado na margem.

Alex olhou para trás e observou. Mal podia acreditar no que via. Era inacreditável, constatou ele. Possivelmente não tão raro quanto poderia parecer à primeira vista. As pessoas se desfaziam de mobílias, carpetes, carros. Mas os trailers sobreviviam, ganhavam vida própria. Lembrou-se do casal de velhinhos que morava em frente aos seus pais. Tinham o mesmo trailer de dois cômodos desde que ele era adolescente. Todas as tardes de sexta-feira no verão, eles o engatavam no seu carro e partiam. Não iam para muito longe, só até a costa para Leven ou Elie. Às vezes, caprichavam um pouco mais no passeio e atravessavam o Forth, rumo a Dunbar ou North Berwick. E voltavam no domingo à noite, tão satisfeitos quanto se tivessem atravessado o Polo Norte. Então, na verdade não era de se admirar que o tira Jimmy Lawson tivesse conservado o trailer onde morara enquanto construía a sua casa. Especialmente porque todo pescador precisa de um retiro. Qualquer pessoa teria feito a mesma coisa.

A não ser, é claro, pelo fato de que a maioria das pessoas não teria preservado o local de um crime.

- Agora você acredita em Alex? - perguntou Esquisito a Lawson. O efeito das suas palavras foi amenizado pelo fato de ele estar todo contraído, com o braço atravessado nas costelas, tentando fazer com que elas parassem de se raspar umas contra as outras em espasmos de dor.

A polícia não chegara ao local muito antes de Esquisito, mas ele já encontrara um aparente caos. Homens vestindo coletes à prova de balas com quepes e rifles movimentavam-se por toda parte, enquanto outros oficiais afobados andavam para lá e para cá, executando as suas tarefas obscuras. Curiosamente, ninguém parecia estar notando a sua presença. Saiu com dificuldade do táxi e observou a cena. Não demorou muito para localizar Lawson, debruçado sobre um mapa em cima do capô de um carro. A policial com quem ele e Alex haviam conversado na delegacia estava ao seu lado, com um celular grudado na orelha.

Esquisito aproximou-se deles, com a raiva e a ansiedade servindo como analgésicos.

- E aí, Lawson? - gritou ele. - Satisfeito agora?

Lawson virou para trás, um sujeito com sentimento de culpa surpreendido. O seu queixo caiu enquanto tentava reconhecer Esquisito por trás do estrago que haviam feito no seu rosto.

- Tom Mackie? - perguntou ele, na dúvida.

- Eu mesmo. Agora você acredita em Alex? O maluco está com a criança aí dentro. Já matou duas pessoas e você está aí parado, na esperança de que ele vá facilitar as coisas para você matando mais uma.

Lawson balançou a cabeça. Esquisito pôde ver a aflição em seus olhos.

- Isso não é verdade. Estamos fazendo tudo o que está ao nosso alcance para resgatar o bebê de Gilbey. E você não tem como acusar Graham Macfadyen de outros crimes além deste.

- Ah, não? Quem diabos matou Ziggy e Mondo, então? Quem foi que fez isso comigo? - Esquisito levantou o dedo em riste no rosto de Lawson. - Ele podia ter me matado ontem à noite.

- Você viu o rosto do agressor?

- Não, estava ocupado demais tentando escapar com vida.

- Nesse caso, continuamos na mesma. Não temos provas, Sr. Mackie. Nenhuma prova.

- Escuta aqui, Lawson. Há vinte e cinco anos que somos obrigados a viver com a morte de Rosie Duff nas costas. Aí, de repente, o filho dela aparece do nada. E Ziggy e Mondo são assassinados. Tenha santa paciência, Lawson, como é que você é a única pessoa que não consegue ver a relação de causa e efeito? - Esquisito estava praticamente berrando, sem sequer atentar para o fato de vários policiais estarem observando a cena com olhares atentos e impassíveis.

- Sr. Mackie, estou tentando montar uma operação complexa. A presença do senhor no local, levantando alegações infundadas, não me ajuda em nada. Não tenho nada contra as teorias, mas trabalho com provas.

A raiva de Lawson era óbvia. Ao seu lado, Karen Pirie havia terminado de fazer a sua ligação e estava se aproximando discretamente de Esquisito.

- Mas só é possível encontrar as provas quando se está procurando por elas.

- Investigar assassinatos que ocorreram fora da minha jurisdição não faz parte do meu trabalho - retrucou Lawson. - O senhor está me atrapalhando, Sr. Mackie. E, como o senhor mesmo já disse, a vida de uma criança pode estar em jogo.

- Você vai pagar por isso - disse Esquisito. - Vocês dois - acrescentou ele, virando-se para incluir Karen na sua condenação. - Foram avisados e não tomaram nenhuma providência. Se ele machucar um fio de cabelo da cabeça dessa criança, eu juro para você, Lawson, você vai desejar jamais ter nascido. E afinal, onde está Lynn?

Lawson estremeceu, recordando-se da chegada de Lynn Gilbey no local. Ela saiu às pressas da viatura e atirou-se sobre ele, desferindo socos em seu peito e gritando, incoerente. Karen Pirie interveio rapidamente, envolvendo a mulher descontrolada em seus braços.

- Ela está naquela van branca ali. Karen, leve o Sr. Mackie até o veículo da unidade de resposta armada. E fique com ele e com a Sra. Gilbey. Não quero os dois correndo por aí com atiradores profissionais de plantão.

- Olha, quando isso tudo terminar - disse Esquisito enquanto Karen o escoltava até o carro - nós vamos acertar as nossas contas.

- Eu não contaria com isso, Sr. Mackie - disse Lawson. - Eu sou um oficial de polícia sênior e me ameaçar é coisa séria. Vá para lá e organize uma corrente de orações. O senhor faz o seu trabalho que eu faço o meu.

Carlton Way parecia uma rua deserta em uma cidade fantasma. Nenhum movimento. Costumava ficar silenciosa durante o dia, mas naquele dia específico estava extraordinariamente calma. O trabalhador noturno da casa número 7 foi tirado da cama por uma batida na sua porta dos fundos. Atordoado, foi persuadido a trocar de roupa e a acompanhar os dois policiais prostrados na sua porta. Seguiram através da cerca no fundo do seu jardim pelos campos até a rua principal, onde lhe contaram acontecimentos tão estranhos que, não fosse pela presença em massa da polícia e do bloqueio que isolava Carlton Way do resto do mundo, ele teria achado que estava participando de uma pegadinha.

- Todas as casas estão vazias agora? - perguntou Lawson à detetive McIntyre.

- Sim, senhor. E a única comunicação com a casa de Macfadyen é através de uma linha telefônica privada para uso exclusivo da polícia. A equipe de resposta armada está disposta em volta da casa agora.

- Ok. Vamos lá.

Duas viaturas policiais e uma van passaram, uma atrás da outra, por Carlton Way. Estacionaram diante da casa de Macfadyen. Lawson desceu do primeiro veículo e foi falar com o especialista em negociação de reféns, John Duncan, atrás da van, onde não podiam ser vistos.

- Tem certeza de que ele está aí dentro? - perguntou Duncan.

- É o que dizem os especialistas. Imagem térmica, ou algo do tipo. Ele está aí dentro com o bebê. E ambos estão vivos.

Duncan passou os fones para Lawson e apanhou a base do telefone que o conectaria com a casa. A ligação foi atendida no terceiro toque. Silêncio.

- Graham? É você? - perguntou Duncan com a voz firme, mas calorosa.

- Quem está falando? - Macfadyen parecia surpreendentemente tranquilo.

- O meu nome é John Duncan. Estou aqui para ver o que pode ser feito para resolvermos esta situação sem que ninguém se machuque.

- Não tenho nada para falar com você. Quero falar com Lawson.

- Ele não está aqui no momento. Mas tudo o que você me disser será transmitido a ele.

- Ou Lawson, ou nada feito. - O tom de voz de Macfadyen era amistoso e casual, como se estivessem conversando sobre o clima ou sobre futebol.

- Como eu disse, o Sr. Lawson não está aqui no momento.

- Não acredito em você, Sr. Duncan. Mas vamos fingir que está me dizendo a verdade. Não estou com pressa. Posso esperar até que você o localize. - A linha ficou muda.

Duncan olhou para Lawson.

- Fim do primeiro round - disse ele. - Vamos dar uns cinco minutos e aí eu tento novamente. Uma hora ele vai ter que começar a falar.

- Você acha? Ele me pareceu bastante calmo. Não seria melhor eu falar com ele logo? Assim, pode ser que ele ache que vai conseguir o que quer.

- Ainda é muito cedo para fazermos concessões, senhor. Ele precisa nos dar algo antes que possamos retribuir.

Lawson suspirou profundamente e deu as costas. Detestava a sensação de estar fora de controle. Aquilo viraria um circo para a mídia e a possibilidade de um resultado drástico era muito, mas muito maior do que a de um bom desfecho. Sabia como funcionava aquele tipo de coisa. Quase sempre, terminava mal para uma das partes.

Alex estudou as suas opções. Em outras circunstâncias, a coisa mais sensata a fazer seria ir embora naquele minuto, direto para a polícia. Eles poderiam enviar os seus peritos e revirar o lugar, em busca da única gotinha de sangue ou do respingo de tinta que tornaria inevitável a ligação daquele trailer com a morte de Rosie Duff.

Mas como poderia fazer aquilo se o trailer em questão pertencia ao subchefe de polícia? Lawson embargaria qualquer investigação, pondo um fim antes mesmo que houvesse um começo. O trailer com certeza seria incendiado, e alguns vândalos seriam apontados como os possíveis culpados. E então o que teriam? Nada além de coincidências. A presença de Lawson em um local tão próximo do terreno onde Alex tropeçara no corpo da moça. Na época, ninguém havia atentado para aquele detalhe. Na Fife do final da década de 70, a polícia ainda estava acima de qualquer suspeita; eram mocinhos lutando contra o mal. Ninguém sequer questionou como foi que Lawson não viu o assassino levando o corpo de Rosie para Hallow Hill, embora estivesse parado diante do caminho mais óbvio para o cemitério picto. Mas aquele era um mundo novo, um mundo no qual era possível questionar a integridade de homens como James Lawson.

Se Lawson era o homem misterioso na vida de Rosie, era bastante compreensível que ela não quisesse revelar a sua identidade. Os seus irmãos encrenqueiros odiariam vê-la com um tira. E havia também a maneira como Lawson parecia sempre surgir do nada quando ele ou os seus amigos corriam perigo, como se tivesse assumido para si próprio a tarefa de agir como anjo da guarda dos quatro. Culpa, pensou Alex. Aquilo era o que a culpa fazia com uma pessoa. Apesar de ter matado Rosie, Lawson ainda cultivava um mínimo de decência para não permitir que outra pessoa pagasse pelo seu crime.

Mas nenhuma daquelas circunstâncias servia como prova. A probabilidade de encontrarem testemunhas que tivessem visto Rosie com Jimmy Lawson era nula. A única prova concreta estava dentro do trailer, e se Alex não tomasse nenhuma providência rápida, poderia ser tarde demais.

Mas o que podia fazer? Não era versado nas técnicas de invasão de domicílio. Arrombar carros na adolescência era uma coisa, abrir fechaduras era outra, e se ele forçasse a porta, Lawson iria perceber. Em qualquer outra época, poderia pensar que fora obra de moleques ou de algum sem-teto. Mas não agora. Não com tanto interesse no caso Rosie Duff. Não podia se dar ao luxo de julgar aquilo um fator insignificante. Era possível que Lawson colocasse fogo no trailer.

Alex deu um passo para trás e analisou a situação. Observou que havia uma claraboia no teto. Será que conseguiria entrar por ela? Mas como chegaria até o teto? Havia apenas uma possibilidade. Alex voltou até o portão, escancarou-o e entrou com o seu carro no terreno pantanoso. Pela primeira vez em sua vida, desejou ser um daqueles babacas que dirigiam um veículo com tração nas quatro rodas em plena cidade. Mas não, ele tinha de ser o mauricinho, com a sua BMW 535. O que faria se ficasse atolado na lama?

Dirigiu devagar até o trailer e parou paralelamente com uma de suas extremidades. Abriu a mala e desafivelou o kit de ferramentas básico do carro. Alicate, chave de fenda, chave inglesa. Apanhou tudo o que podia lhe ser útil, tirou o paletó do terno e a gravata e fechou a mala. Subiu no capô e, em seguida, no teto do carro. De lá de cima, o teto do trailer não estava tão longe. Lutando para se apoiar, Alex conseguiu finalmente alcançar o teto.

Era nojento lá em cima. O teto estava escorregadio e coberto de lodo. Partículas de sujeira agarravam-se às suas roupas e em suas mãos. A claraboia era um domo de plástico suspenso de mais ou menos uns setenta centímetros por trinta. Teria de se espremer bastante para conseguir entrar. Encaixou a chave de fenda em um dos cantos e tentou suspendê-la.

No início, a claraboia nem se mexia. Mas, após tentativas repetidas em diversos pontos, ela se moveu em um estalo. Suando, Alex secou o rosto com as costas da mão e espiou lá dentro. Havia um braço de metal giratório com parafuso de ajuste, que mantinha a claraboia no seu devido lugar e permitia que pudesse ser levantada e abaixada de dentro do trailer. O que também impedia que a claraboia fosse aberta mais do que alguns centímetros em um dos lados. Alex resmungou. Teria de desparafusar o braço de metal e depois colocá-lo no lugar novamente.

Tentou desajeitadamente conseguir o melhor ângulo. Era quase impossível mover aqueles parafusos, que haviam sido colocados ali há mais de um quarto de século. Forçou e lutou até que, por fim, um parafuso cedeu e depois o outro. Finalmente a claraboia estava solta.

Alex olhou para baixo. Não era tão ruim quanto ele imaginara. Se descesse devagar e com cuidado, talvez pudesse se apoiar no banco que ocupava uma das extremidades da sala. Respirou fundo, apoiou-se no teto e começou a descer.

Pensou que os seus braços iam voar para fora do corpo quando o seu peso desceu de supetão. Os seus pés pedalaram no ar, buscando um apoio, mas após alguns segundos, ele decidiu apenas cair.

Sob a luz tênue que o iluminava, o interior do trailer parecia praticamente idêntico ao que vira anos atrás. Mal podia imaginar que, naquele momento, estava sentado exatamente no lugar onde Rosie encontrara o seu destino trágico. Não havia nenhum cheiro característico, nenhuma mancha de sangue, nenhuma vibração no ar que o deixasse alarmado.

Estava tão perto da resposta. Alex mal tinha coragem de olhar para o teto. E se Lawson o tivesse pintado várias vezes depois? Será que ainda seria possível encontrar uma prova? Esperou o coração desacelerar até um batimento quase normal e murmurou uma prece para o Deus de Esquisito. Jogou a cabeça para trás e olhou para cima.

Merda. O teto não era azul, era creme. Tudo aquilo para nada. Bom, de todo modo, não voltaria de mãos abanando. Subiu no banco e escolheu uma parte próxima ao canto, onde não chamaria atenção. Com a lâmina afiada da chave de fenda, raspou a tinta, colhendo os fragmentos em um envelope que trouxera consigo.

Quando conseguiu uma quantidade suficiente, ele desceu e apanhou um dos fragmentos maiores. Era creme de um lado e azul do outro. Alex sentiu as pernas ficando bambas e deixou-se cair pesadamente no banco, experimentando uma emoção avassaladora. Apanhou a tabela de cores de Jason, que trouxera no bolso, e examinou a amostra de azul que havia despertado a sua memória de vinte e cinco anos atrás. Suspendeu a beirada da cortina para deixar entrar luz e colocou o fragmento da tinta que acabara de recolher sobre a amostra da tabela. O azul do fragmento praticamente desapareceu sobre o azul da amostra.

Os olhos de Alex encheram-se de lágrimas. Seria aquela a resposta definitiva?


44

Duncan fizera mais três tentativas de falar com Graham Macfadyen, mas ele recusara terminantemente desistir da sua exigência de falar somente com Lawson. Deixou Duncan ouvir o choro de Davina, mas aquela era a única concessão que estava disposto a fazer. Exasperado, Lawson decidiu que aquilo já estava indo longe demais.

- O tempo está passando. O bebê está agoniado e a mídia está acompanhando tudo de perto. Me passa o telefone de uma vez. De agora em diante, deixa que eu assumo - disse ele.

Duncan olhou para o rosto afogueado do chefe e passou o fone para ele.

- Vou ajudá-lo a manter tudo nos conformes - disse ele.

Lawson efetuou a ligação.

- Graham? Sou eu, James Lawson. Lamento ter demorado tanto para chegar aqui. Fiquei sabendo que você está querendo falar comigo, é isso?

- É isso mesmo. Mas antes de começarmos, já vou logo avisando que estou gravando a nossa conversa. Enquanto conversamos, estou transmitindo tudo ao vivo, pela internet. Toda a imprensa já está com o endereço do site, então, provavelmente, estão acompanhando tudo com bastante interesse. Nem adianta tentar bloquear o acesso ao site, por sinal. Eu fiz um esquema para ele ficar trocando de servidor. Antes mesmo que vocês descubram o endereço, ele já estará em outro lugar.

- Não tem necessidade nenhuma disso, Graham.

- Tem toda a necessidade do mundo. Vocês acharam que podiam me calar cortando as minhas linhas telefônicas, mas vocês têm uma mentalidade do século passado. Eu represento o futuro, Lawson, e você já era.

- Como está o bebê?

- O bebê é um saco, para falar a verdade. Só sabe chorar o tempo todo. A minha cabeça está explodindo. Mas essa coisa aqui está bem. Por enquanto, pelo menos. Ainda não sofreu nenhum mal.

- Você está causando mal somente por deixá-la longe de sua mãe.

- Isso não é culpa minha. É culpa de Alex Gilbey. Ele e os seus amigos me deixaram longe da minha mãe. Alex Gilbey, Tom Mackie, David Kerr e Sigmund Malkiewicz assassinaram a minha mãe, Rosie Duff, no dia 16 de dezembro de 1978. Primeiro eles a estupraram e depois tiraram a sua vida. E a polícia de Fife nunca chegou a indiciá-los pelos seus crimes.

- Graham - interrompeu Lawson -, tudo isso é passado. O que nos interessa agora é o futuro. O seu futuro. E quanto mais rápido isso tudo terminar, melhores serão as suas chances.

- Não fale comigo como se eu fosse retardado, Lawson. Eu sei que vou para a cadeia por causa de tudo isso. Isso não tem o menor peso para mim no que diz respeito à libertação do meu refém. Nada vai mudar isso, então não insulte a minha inteligência. Não tenho mais nada a perder, mas posso dar um jeito de levar alguém comigo. Bom, onde foi que eu parei? Ah, sim. Os assassinos da minha mãe. Você nunca os indiciou. E quando reabriu o caso, recentemente, alardeando aos quatro cantos que o DNA solucionaria os seus crimes antigos, descobriu que tinha perdido as provas do caso da minha mãe. Como pôde fazer isso? Como pôde perder algo tão importante?

- Estamos perdendo o controle - sussurrou Duncan. - Ele está chamando o bebê de "essa coisa". Isso não é bom. Volte a falar no bebê.

- Sequestrar a Davina não vai mudar nada disso, Graham.

- Mas ajudou a fazer com que vocês parassem de varrer o assassinato da minha mãe para debaixo do tapete. Agora, o mundo inteiro vai ficar sabendo o que você fez.

- Graham, descobrir quem matou a sua mãe é um compromisso pessoal meu.

Uma risada histérica ressoou do outro lado da linha.

- Ah, eu sei disso. Apenas não confio muito nos seus métodos. Eu quero que eles sofram aqui, neste mundo, não no próximo. Estão morrendo como heróis. A verdade sobre eles está sendo varrida para debaixo do tapete. É isso que dá quando você usa os seus métodos.

- Graham, precisamos conversar sobre a sua situação neste momento. Davina precisa da mãe. Por que você não a traz aqui fora e aí podemos conversar sobre as suas reclamações? Prometo que vamos ouvir tudo o que você tem a dizer.

- Você ficou maluco? É somente assim que eu consigo a sua atenção, Lawson. E pretendo aproveitar ao máximo, antes que tudo chegue ao fim. - A ligação terminou abruptamente com o telefone batendo no gancho do outro lado.

Duncan tentou disfarçar a sua frustração.

- Bom, pelo menos agora a gente já sabe o que é que deu nele.

- Ele está fora de si. Não dá para negociar se ele está transmitindo a ligação para o resto do mundo. Quem sabe que alegações malucas ele vai inventar agora? O cara devia ser detido, e não ouvido. - Lawson bateu com a mão na lateral da van.

- Antes que possamos fazer isso, precisamos tirar ele e o bebê de lá.

- Que se foda - disse Lawson. - Vai escurecer daqui a mais ou menos uma hora. Vamos invadir a casa.

Duncan parecia perplexo.

- Mas senhor, isso é totalmente contra as regras.

- Sequestrar um bebê também é. E eu não vou ficar aqui parado enquanto a vida de uma criança está em risco - acrescentou ele, voltando para o seu carro.

Alex deixou o lugar desfrutando uma enorme sensação de alívio. Chegou a duvidar em alguns momentos se conseguiria sair um dia daquele terreno sem a ajuda de um trator. Mas conseguira. Pegou o celular, planejando ligar para Jason e avisar que estava indo encontrá-lo, levando algo muito interessante. O celular estava sem sinal. Alex deu um muxoxo e dirigiu com cautela pela rua enlameada até a avenida principal.

Quando se aproximava de Kinross, o telefone tocou. Ele o pegou e viu que tinha quatro mensagens. Navegou pelas teclas para ouvi-las. A primeira era de Esquisito, pedindo para ele ligar para casa assim que pudesse. A segunda também era de Esquisito, passando um número de celular. A terceira e a quarta eram de jornalistas, pedindo que entrasse em contato com eles.

Que diabos estava acontecendo? Alex desviou da rua, parando no estacionamento de um pub, nos arredores da cidade, e ligou para o número que Esquisito deixara.

- Alex? Graças a Deus - gaguejou Esquisito. - Você está dirigindo?

- Não, acabei de estacionar. O que está acontecendo? Recebi umas mensagens...

- Alex, você precisa ficar calmo.

- O que foi? Davina? Lynn? O que aconteceu?

- Alex, aconteceu uma coisa horrível. Mas estão todos bem.

- Porra, Esquisito, me conta de uma vez - berrou Alex, paralisado de pânico.

- Macfadyen sequestrou Davina - disse ele, falando devagar e com clareza. - Está mantendo a menina como refém. Mas ela está bem. Ele não a machucou.

Alex teve a impressão de que alguém enfiara a mão no seu peito e arrancara o seu coração fora. Todo o amor que descobrira ter transformara-se em uma mescla de medo e ira.

- E Lynn? Onde está ela? - perguntou ele com a voz embargada.

- Ela está aqui com a gente, na frente da casa de Macfadyen em St. Monans. Calma aí, que eu vou passar o telefone pra ela. - Após um breve momento, Alex ouviu o que parecia uma sombra da voz habitual de Lynn.

- Onde é que você estava, Alex? Ele roubou a Davina. Ele levou a nossa filha, Alex! - Ele podia ouvir as lágrimas por trás da sua rouquidão.

- Eu estava em um lugar sem sinal, não pegava de jeito nenhum. Lynn, estou indo para aí. Aguenta firme, não deixa ninguém fazer nada, ouviu? Estou indo para aí e estou sabendo de uma coisa que vai mudar tudo. Não deixa ninguém fazer nada, está bem? Vai dar tudo certo. Tá ouvindo? Vai ficar tudo bem. Passa o telefone para Esquisito novamente, por favor. - Enquanto falava, Alex ligou o motor e começou a manobrar para sair do estacionamento.

- Alex? - Ele podia detectar a aflição na voz de Esquisito. - Quando é que dá para você chegar?

- Estou em Kinross. Acho que em uns quarenta minutos. Esquisito, eu sei o que aconteceu de verdade. O que aconteceu com Rosie, e posso provar. Quando Macfadyen ficar sabendo disso, ele vai ver que não precisa se vingar. Você precisa fazer com que eles não façam nada que coloque Davina em risco até eu chegar aí e contar tudo. Estou com uma bomba nas mãos.

- Vou fazer o possível. Mas eles nos afastaram da operação.

- Faça tudo o que você puder, Esquisito. E cuida da minha mulher para mim, tá?

- Claro. Vem o mais rápido que você puder, hein? Que Deus te proteja.

Alex pisou no acelerador; nunca dirigira tão depressa em sua vida. Quase desejou ser parado por alta velocidade. Assim, teria uma escolta policial para acompanhá-lo até lá. A polícia na sua cola até East Neuk. Era tudo o que ele precisava naquele momento.

Lawson olhou em volta do hall da igreja que havia solicitado.

- A equipe de suporte técnico consegue identificar em qual cômodo Macfadyen está com o bebê. Até agora, ele passou a maior parte do tempo em um quarto nos fundos da casa. O bebê às vezes está com ele e às vezes está na sala. Então temos de ser rápidos. Vamos esperar até que estejam separados, então um grupo entra pela frente e pega o bebê. O outro grupo fica com os fundos e cerca Macfadyen.

"Vamos esperar até anoitecer. Os postes da rua vão ficar apagados. Não vamos conseguir enxergar um palmo diante do nariz. Quero que essa operação funcione perfeitamente. E quero o bebê são e salvo aqui fora.

"Já com Macfadyen, são outros quinhentos. Ele tem problemas psicológicos. Não temos a menor ideia se está armado ou não. Temos motivos para acreditar que ele já matou duas pessoas. E tudo nos leva a crer que, ontem à noite, atacou mais uma. Se não tivesse sido interrompido, creio que teria cometido outro assassinato. Ele mesmo disse que não tem nada mais a perder. Se ele fizer menção de sacar uma arma, estão autorizados a disparar. Alguma pergunta?

O hall estava silencioso. Os oficiais do grupo de resposta armada haviam se aperfeiçoado exatamente para uma operação como aquela. O recinto transformara-se em um receptáculo de testosterona e adrenalina. Era em momentos como aquele que o medo ganhava um outro nome.

Macfadyen digitou alguma coisa no teclado e clicou no mouse. A conexão do celular era abominavelmente lenta, mas ele dera um jeito de incluir a sua conversa com Lawson no site. Disparou e-mails para os contatos que havia feito previamente com a imprensa, avisando que poderiam acompanhar de camarote a operação de resgate em seu site, onde poderiam ouvir em primeira mão o que estava acontecendo.

Não acalentava a ilusão de que podia controlar o resultado de tudo aquilo. Mas estava determinado a fazer o que podia, incluindo tudo o que fosse necessário para ganhar as manchetes dos jornais. Se o preço fosse a vida daquele bebê, estava disposto a pagar. Estava preparado. Conseguiria levar o seu plano a cabo, tinha certeza. Pouco importava se o seu nome viraria sinônimo de maldade nos tabloides. Não ia sair daquilo como o único vilão. Mesmo se Lawson tivesse conseguido boicotar a imprensa, a informação estava disponível na internet. Não podia interferir em seu site, não podia impedir que os fatos se espalhassem online. E Lawson já devia ter percebido que Macfadyen tinha uma carta na manga.

Da próxima vez que ligassem, ia abrir o jogo. Revelaria toda a dimensão da duplicidade da polícia. Contaria ao mundo como a justiça decaíra na Escócia.

Era o dia do juízo final.

Alex foi parado diante do bloqueio policial. Podia ver os diversos veículos policiais adiante e as barreiras vermelhas e brancas na entrada de Carlton Way. Abaixou o vidro do carro, consciente de que estava imundo e desgrenhado.

- Eu sou o pai da criança - disse ele ao policial que se debruçou para falar com ele. - É a minha filha lá dentro. A minha mulher está aí em algum lugar. Preciso ficar com ela.

- Posso ver a sua identidade, senhor? - perguntou o policial.

Alex apresentou a sua carteira de motorista.

- Sou Alex Gilbey. Por favor, deixe-me passar.

O policial comparou o seu rosto com a fotografia da carteira, depois se afastou para comunicar-se com alguém pelo rádio. Voltou um pouco depois.

- Sinto muito, Sr. Gilbey. Todo cuidado é pouco. Se o senhor puder estacionar ali no canto, um dos policiais o levará até a sua esposa.

Alex seguiu um outro policial de jaqueta amarela até um micro-ônibus branco. Ele abriu a porta e Lynn levantou-se, em um pulo, jogando-se em seus braços. Ela estava tremendo e ele pôde sentir o seu coração batendo descontrolado dentro do peito. Não havia palavras para a dor que sentiam. Abraçaram-se simplesmente, e a angústia e o medo que os dominavam eram palpáveis.

Durante um bom tempo, ninguém falou nada. Então Alex disse:

- Vai ficar tudo bem. Eu tenho como acabar com isso agora.

Lynn olhou para ele, com os olhos vermelhos e inchados.

- Como, Alex? Não há nada que você possa fazer.

- Posso, sim. Estou sabendo da verdade. - Olhou por cima de Lynn e viu Karen Pirie sentada ao lado da porta, junto a Esquisito. - Onde está Lawson?

- Está em uma reunião - disse Lynn. - Vai voltar daqui a pouco. Aí você fala com ele.

Alex balançou a cabeça.

- Não quero falar com ele. Quero falar com Macfadyen.

- Isso não será possível, Sr. Gilbey. Isso é tarefa para negociadores experientes. Eles sabem o que estão fazendo.

- Você não está entendendo. Ele precisa saber de coisas que só eu posso revelar. Não quero ameaçá-lo. Não quero nem exigir nada. Só preciso falar com ele.

Karen suspirou.

- Eu sei que o senhor deve estar aflito, Sr. Gilbey. Mas o senhor pode errar, querendo acertar.

Alex desvencilhou-se gentilmente dos braços de Lynn.

- Isso está acontecendo por causa de Rosie Duff, não está? Porque ele acha que eu estou envolvido no assassinato de Rosie Duff, não é?

- Ao que parece, sim - respondeu Karen, cautelosa.

- E se eu dissesse que posso responder a todas as suas perguntas?

- Se o senhor possui alguma informação relacionada ao caso, deveria falar é comigo.

- Tudo tem a sua hora, eu prometo. Mas Graham Macfadyen merece ser o primeiro a ouvir a verdade. Por favor, confie em mim. Tenho os meus motivos. É a vida da minha filha que está em jogo aqui. Se vocês não me deixarem falar com Macfadyen, eu vou procurar a imprensa e contar tudo o que sei. E, acredite, não vai ser a melhor maneira.

Karen avaliou a situação. Gilbey parecia calmo. Quase calmo demais. E ela não era treinada para lidar com situações como aquela. Normalmente, encaminharia ao seu superior. Mas Lawson estava ocupado demais em outro lugar. Talvez devesse consultar o negociador.

- Venha comigo, vamos falar com o inspetor Duncan. É ele quem está se comunicando com Macfadyen.

Ela desceu da van e chamou um dos policiais.

- Por favor, fique aqui com a Sra. Gilbey e com o Sr. Mackie.

- Eu vou com o Alex - disse Lynn, insubordinada. - Não vou sair do lado dele.

Alex segurou a mão dela.

- Vamos juntos, então - disse ele a Karen.

Ela sabia quando se dar por vencida.

- Está bem, vamos - disse ela, conduzindo-os até o cordão que bloqueava a entrada da rua de Macfadyen.

Alex nunca se sentira tão vivo. Estava consciente dos movimentos dos seus músculos a cada passo que dava. Os seus sentidos pareciam estar mais apurados, cada som e cheiro quase insuportavelmente amplificados. Jamais esqueceria aquela caminhada. Era o momento mais importante da sua vida e ele estava determinado a fazer a coisa certa, da maneira adequada. Ensaiara a conversa que teria com Macfadyen em sua errática jornada até St. Monans e estava seguro de que encontraria as palavras para ganhar a liberdade da sua filha.

Karen os levou até uma van branca estacionada do lado de fora da casa. Na escuridão crescente, tudo parecia lúgubre, refletindo o sentimento das pessoas que estavam envolvidas no resgate. Karen deu uma batidinha na lateral da van e a porta se abriu. A cabeça de John Duncan apareceu entre uma fresta.

- Detetive Pirie, não é isso? O que posso fazer pela senhora?

- Estes são o Sr. e a Sra. Gilbey. Ele gostaria de falar com Macfadyen, senhor.

Duncan suspendeu as sobrancelhas, alarmado.

- Acho que não é uma boa ideia. A única pessoa com quem Macfadyen quer falar é com o subchefe Lawson. E ele deu ordens para que não ligarmos mais para lá até que Lawson voltasse.

- Ele precisa ouvir o que eu tenho a dizer - disse Alex. - Ele está fazendo isso porque quer que o mundo inteiro saiba quem matou a sua mãe. Ele acha que fomos eu e os meus amigos. Mas ele está enganado. Descobri toda a verdade hoje e ele deve ser a primeira pessoa a saber.

Duncan mal conseguia disfarçar a sua surpresa.

- O senhor está me dizendo que sabe quem matou Rosie Duff?

- Sei, sim.

- Então deveria estar dando o seu depoimento a um dos policiais - respondeu ele, firmemente.

Um tremor de emoção percorreu o rosto de Alex, revelando como ele estava tentando se controlar.

- É a minha filha lá dentro. E eu posso terminar com tudo isso agora mesmo. Cada minuto que vocês me fazem perder aqui fora é mais um minuto que ela corre perigo. Não quero falar com ninguém, só com Macfadyen. E se vocês não me deixarem conversar com ele, vou ter que abrir o jogo com a imprensa. Vou contar que tenho como terminar com essa situação e que vocês não me deixam agir. Vocês realmente querem que isso se torne o epitáfio das suas carreiras?

- Você não vai saber o que fazer. Não é um especialista em resgates. - Alex percebeu que aquele era o argumento derradeiro de Duncan.

- Bom, toda a sua experiência não serviu para muita coisa, não é mesmo? - interrompeu Lynn. - O trabalho de Alex é negociar com as pessoas. E ele é muito bom nisso. Vamos assumir toda a responsabilidade pelo resultado de sua tentativa.

Duncan olhou para Karen. Ela deu de ombros. Ele respirou fundo e deixou escapar um longo suspiro.

- Eu vou ficar daqui escutando - disse ele. - Se eu achar que a situação está ficando fora de controle, corto a ligação.

Alex chegou a ficar tonto de tanto alívio.

- Ótimo. Vamos lá - disse ele.

Duncan pegou o telefone e colocou os fones nos ouvidos. Passou fones para Karen e o fone para Alex.

- É todo seu.

O telefone tocou. Uma, duas, três vezes. Na metade do quarto toque, Graham atendeu.

- Quer continuar, Sr. Lawson? - perguntou a voz do outro lado da linha.

A voz dele é tão normal, pensou Alex. Não parece nada com a voz de um sujeito que sequestraria um bebê e colocaria a sua vida em risco.

- Não é o Lawson. Aqui quem fala é Alex Gilbey.

- Não tenho nada para falar com você, seu assassino desgraçado.

- Me dê apenas um minuto. Tenho uma coisa para te contar.

- Se você vai dizer que não matou a minha mãe, poupe o seu latim. Não vou acreditar mesmo.

- Eu sei quem matou a sua mãe, Graham. E tenho provas. Estão aqui no meu bolso. Estou com fragmentos de tinta compatíveis com a tinta encontrada nas roupas da sua mãe. Colhi esses fragmentos hoje cedo, de um trailer no lago Leven. - Não houve resposta do outro lado da linha, apenas uma respiração forte. Alex continuou. - Havia mais alguém presente na noite do crime, mas ninguém prestou atenção nele, porque ele tinha motivos para estar lá. Ele encontrou a sua mãe depois do expediente e a levou para o seu trailer. Não sei direito o que aconteceu, mas desconfio que ela tenha se recusado a transar com ele e ele a tenha estuprado. Quando percebeu o que tinha feito, viu que não podia deixá-la viva para contar a história. Seria o fim para ele. Então, ele a esfaqueou. E a levou até Hallow Hill, abandonando-a para morrer. E ninguém nunca suspeitou dele, porque ele estava do lado da lei. - Karen Pirie encarava Alex, boquiaberta e aterrorizada conforme ia compreendendo as implicações do que ele estava dizendo.

- Diga o nome dele - sussurrou Macfadyen.

- Jimmy Lawson. Foi Jimmy Lawson quem matou a sua mãe, Graham. Não eu.

- Lawson? - Foi quase um soluço. - Você está blefando, Gilbey.

- Não, Graham. Como eu disse, tenho como provar. E o que você tem a perder acreditando em mim? Vamos acabar com isso agora e você vai ter a oportunidade de presenciar a justiça sendo finalmente cumprida.

Houve um longo e demorado silêncio. Duncan aproximou-se, disposto a recolher o telefone das mãos de Alex, mas ele virou-se para trás deliberadamente, apertando o fone em suas mãos com mais força ainda. E então Macfadyen falou:

- Eu achei que ele estava fazendo aquilo porque era a única maneira de conseguir alguma justiça. E não concordava com os métodos dele, porque queria que vocês sofressem. Mas não. Ele estava fazendo aquilo para se proteger - disse Macfadyen e as suas palavras não significaram nada para um Alex estupefato.

- Fazendo o quê? - perguntou ele.

- Matando vocês, ora.


45

Um manto de escuridão desceu sobre Carlton Way. Encobertas pelas sombras, figuras enegrecidas se moviam com armas semiautomáticas coladas em seus coletes à prova de balas. Percorriam o local com a silenciosa delicadeza de um leão atrás de um antílope. Ao se aproximarem da casa, se separaram, agachados sob os parapeitos das janelas e depois voltaram a se reagrupar, metade na porta da frente, metade na dos fundos. Cada um deles lutava para manter a sua respiração suave e tranquila, apesar do coração que batia freneticamente no peito, como um tambor convidando para a luta. Dedos verificavam se os fones estavam bem instalados na orelha. Ninguém queria perder o chamado para entrar em ação. Se fosse necessário. Não era hora de ambivalências. Quando a ordem fosse dada, demonstrariam o seu compromisso.

Lá em cima, um helicóptero sobrevoava o céu e os especialistas acompanhavam com atenção os resultados da imagem térmica. Eram responsáveis pela determinação do momento certo para agir. O suor ardia em seus olhos e encharcava as palmas das mãos enquanto mantinham o foco nas duas figuras incandescentes. Enquanto estivessem separadas, podiam agir. Mas se ficassem juntas, ninguém podia fazer nada. Não havia espaço para erros. Não com uma vida correndo perigo.

Tudo estava nas mãos de um único homem. O subchefe de polícia James Lawson caminhou por Carlton Way sabendo que aquela era a sua última cartada.

Alex esforçou-se para compreender as palavras de Macfadyen.

- O que você quer dizer? - perguntou ele.

- Eu o vi ontem à noite, com um taco de beisebol. Debaixo da ponte, dando uma surra no seu amigo. Pensei que estivesse tentando fazer justiça com as próprias mãos, sério mesmo. Mas se Lawson matou a minha mãe...

Alex agarrou-se ao único fato do qual tinha certeza absoluta.

- Ele a matou, sim, Graham. Eu tenho como provar. - De repente, a linha ficou muda. Desconcertado, Alex voltou-se para Duncan. - Que porra é essa? - quis saber ele.

- Já chega - disse Duncan, tirando os fones da cabeça. - Não posso permitir que isso seja transmitido para o mundo inteiro. Que diabos está acontecendo aqui, Sr. Gilbey? É um pacto entre o senhor e Macfadyen para incriminar Lawson?

- O que você está dizendo? - perguntou Lynn.

- Foi Lawson - disse Alex.

- Eu escutei, Lawson matou Rosie - disse Lynn, agarrando-se ao braço do marido.

- Não só Rosie. Ele matou Ziggy e Mondo também. E tentou matar Esquisito. Macfadyen o viu ontem - disse Alex, abismado.

- Olha, não sei o que o senhor está tramando... - começou Duncan. Ele parou imediatamente ao ver Lawson se aproximando. Pálido e coberto de suor, o subchefe olhou para eles, intrigado e visivelmente irritado.

- Que diabos vocês dois estão fazendo aqui? - perguntou ele, apontando para Alex e Lynn. Virou-se para Karen. - Eu não te pedi para ficar com ela na van da unidade de resposta armada? Deus, isso aqui virou um verdadeiro circo. Tire-os daqui.

Houve um breve momento de silêncio e então Karen Pirie disse:

- Senhor, precisamos conversar sobre algumas acusações muito sérias que acabaram de ser feitas sobre...

- Karen, isso aqui não é um programa de debates. Estamos no meio de uma operação de vida e morte, porra! - gritou Lawson. Ele suspendeu o rádio até os lábios. - Estão todos em suas posições?

Alex apanhou o rádio das mãos de Lawson.

- Escuta aqui, seu cretino. - Antes que pudesse continuar, Duncan partiu para cima dele, derrubando-o no chão. Alex lutou com o policial, esgueirando a cabeça para gritar: - Sabemos a verdade, Lawson. Você matou Rosie. E matou os meus amigos. Está acabado. Você não pode mais se esconder.

Os olhos de Lawson dardejavam de fúria.

- Você é tão louco quanto ele. - Ele se abaixou e recuperou o rádio, enquanto dois policiais mergulhavam em cima de Alex.

- Senhor - disse Karen, apreensiva.

- Agora não, Karen - explodiu Lawson. Virando-se de costas, tornou a levar o rádio até os lábios novamente. - Estão todos em suas posições?

As respostas estalaram no seu fone de ouvido. Antes que Lawson pudesse responder, ouviu a voz do comandante do suporte técnico no helicóptero.

- Não atirem! O alvo está com o refém.

Lawson hesitou por um momento. Depois disse:

- Podem atirar! Agora!

Macfadyen estava pronto para encarar o mundo. As palavras de Alex Gilbey haviam restaurado a sua fé na possibilidade de a justiça ser cumprida. Entregaria a menina para ele. Para garantir a sua segurança, levou uma faca consigo. Uma derradeira estratégia para que pudesse chegar até a rua e alcançar a polícia que o esperava lá fora.

Estava a caminho da porta da frente, com Davina encolhida debaixo do seu braço como um pacote. Carregava uma faca de cozinha na mão livre quando o seu mundo explodiu. As portas da frente e dos fundos desabaram. Homens gritavam em uma algazarra ensurdecedora. Labaredas incandescentes explodiam, obnubilando a sua visão. Instintivamente, apertou a criança contra o seu peito. A mão que trazia a faca aproximou-se dela. Através do caos, ouviu alguém gritar:

- Solte o bebê!

Sentiu-se paralisado. Não podia deixá-la.

O atirador pressentiu que a vida da criança estava em risco. Sem pensar duas vezes, posicionou-se diante do seu alvo, apontou a arma e mirou na cabeça de Macfadyen.


46

Abril de 2004; Blue Mountains, Geórgia

O sol de primavera brilhava sobre as copas das árvores enquanto Alex e Esquisito subiam o cume da montanha. Esquisito caminhava na frente até o afloramento de uma rocha que se projetava sobre o declive e a escalava, acomodando-se com as suas longas pernas penduradas na beira. Alcançou a sua mochila e pegou um par de binóculos. Ele o regulou até que a imagem lá embaixo ficasse nítida e o passou para Alex.

- Bem ali embaixo, um pouquinho para a sua esquerda.

Alex ajustou o foco e examinou o território lá embaixo. De repente, percebeu que estava olhando para o telhado da cabana deles. E que as figuras correndo para lá e para cá do lado de fora eram os filhos de Esquisito. Os adultos sentados à mesa de piquenique eram Lynn e Paul. E o bebê aos seus pés era Davina. Observou a sua filha abrindo os braços e dando uma risadinha para as árvores. O seu amor por ela chegava a doer.

Estivera tão perto de perdê-la. Quando ouviu os disparos, pensou que o seu coração iria explodir. O grito de Lynn ecoara em sua mente como o fim do mundo. Uma eternidade se passou até que um dos policiais armados surgisse com Davina em seus braços, e mesmo isso não causou nenhum alívio: quando se aproximaram, tudo que Alex conseguia ver era sangue.

Mas o sangue era de Macfadyen. O atirador acertara o seu alvo, inflexível. O rosto de Lawson exibia tantas expressões ao mesmo tempo que parecia ter sido esculpido com granito.

No caos que se seguiu, Alex separara-se da sua mulher e da sua filha para ir atrás de Karen Pirie.

- Você precisa ficar de olho no trailer.

- Que trailer?

- O trailer de pesca de Lawson. No lago Leven. Foi lá que ele matou Rosie Duff. A pintura no teto é compatível com a tinta no cardigã de Rosie. A gente nunca sabe, pode ser que ainda haja algum vestígio de sangue lá dentro.

Ela o olhou friamente.

- Você espera que eu leve esta palhaçada a sério?

- Mas é a verdade. - Ele apanhou o envelope do bolso. - Eu tenho os fragmentos que podem provar que não estou mentindo. Se você deixar Lawson voltar para o trailer, ele vai destruí-lo. A prova vai virar fumaça. Você precisa impedi-lo. Eu não estou inventando isso - disse ele, tentando convencê-la desesperadamente de que estava falando a verdade. - Duncan também ouviu o que Macfadyen disse. Ele viu Lawson atacando Tom Mackie ontem à noite. O seu chefe não vai medir esforços para encobrir os seus atos. Você precisa detê-lo e proteger o trailer.

O rosto de Karen continuava impassível.

- Você quer que eu prenda o meu chefe?

- Hélène Kerr e Jackie Donaldson foram detidas pela polícia de Strathclyde por muito menos, e com menos provas do que as que a senhora ouviu aqui hoje. - Alex lutava para continuar calmo. Não conseguia acreditar que tudo estava escapando entre os seus dedos. - Se Lawson não fosse o subchefe, você não estaria hesitando.

- Mas ele é o subchefe. É um oficial respeitado com um cargo extremamente importante.

- A mulher de César, Sra. Pirie. Mais um motivo para levar isso a sério. Você acha que isso não vai estar nos jornais amanhã de manhã? Se você acha que Lawson é inocente, então não custa nada tentar.

- A sua mulher está lhe chamando, senhor - disse Karen friamente. Ela foi embora, deixando-o impotente, parado no mesmo lugar.

Mas ela ouvira tudo o que ele tinha a dizer. Não chegou a prender Lawson, mas convocou alguns policiais uniformizados e deixou o local, discretamente. Na manhã seguinte, Alex recebeu uma ligação exultante de Jason, contando que ficara sabendo que os seus colegas em Dundee haviam detido um trailer na véspera, tarde da noite. Bingo.

Alex abaixou o binóculo.

- Eles sabem que você fica aqui espiando o que se passa lá embaixo?

Esquisito sorriu.

- Eu digo que Deus vê tudo e que eu tenho uma ligação direta com ele.

- Aposto que tem mesmo. - Alex reclinou-se para trás, deixando que o sol secasse o suor em seu rosto. A subida até lá fora íngreme e exaustiva. Não tiveram tempo para conversar. Aquela era a primeira oportunidade que tinha a sós com Esquisito desde que haviam chegado, na véspera. - Karen Pirie veio nos ver na semana passada - disse ele.

- Como ela está?

Aquela era, como Alex aprendera a compreender, uma pergunta típica de Esquisito. Não "O que ela disse?", e sim "Como ela está?". Subestimara demais o seu amigo no passado. Talvez agora tivesse a chance de reparar os erros daquela época.

- Acho que ela ainda está bastante abalada. Ela e a maioria dos policiais em Fife. É meio chocante descobrir que o seu chefe é um estuprador que cometeu vários assassinatos. As consequências são bem sérias. Mas eu acho que metade dos oficiais continua achando que Graham Macfadyen e eu inventamos a história toda.

- Então Karen foi lhe visitar para lhe deixar a par da situação?

- Mais ou menos. Ela não está mais encarregada do caso, obviamente. Acabou passando a investigação do caso de Rosie Duff para outros oficiais, de fora, mas ela fez amizade com um deles. O que significa que ainda está por dentro dos acontecimentos. E temos de reconhecer que ela se deu ao trabalho de ir nos contar as últimas novidades.

- Quais são?

- Terminaram a perícia no trailer. Assim como a compatibilidade da tinta, encontraram gotículas de sangue no chão, debaixo do banco. Colheram amostras de sangue dos irmãos de Rosie e do corpo de Macfadyen, porque obviamente não sobrou nada do DNA de Rosie, então eles têm que testar os parentes mais próximos. E o resultado é que o sangue no trailer de Lawson era mesmo de Rosie Duff.

- Impressionante - disse Esquisito. - Depois de todo esse tempo, ele é pego graças a um fragmento de tinta e uma gotinha de sangue.

- Um dos seus antigos colegas apareceu para depor, afirmando que Lawson gostava de se gabar que passava o expediente noturno levando garotas para o seu trailer e transando com elas. E o nosso próprio depoimento coloca Lawson bem próximo do local onde o corpo de Rosie foi encontrado. Karen disse que a promotoria hesitou um pouco, mas decidiu ir adiante com a acusação. E que quando Lawson ficou sabendo disso, desmoronou. Ela disse que foi como se ele não aguentasse mais carregar o fardo. Ao que parece, não é um fenômeno raro. Karen me contou que é comum que, ao se verem encurralados, os assassinos sintam a necessidade de confessar tudo o que já fizeram.

- E por que ele a matou?

Alex suspirou.

- Estavam saindo havia algumas semanas. E ela não o deixava ir até os finalmentes. Ele disse que ela estabelecia um limite e não se permitia ultrapassá-lo. E ele acabou se descontrolando e estuprando Rosie. Segundo Lawson, ela disse que ia direto para a polícia. E ele não podia permitir que ela fizesse aquilo. Então, pegou uma faca de cozinha e a esfaqueou. Já estava nevando, ele imaginou que não tivesse ninguém nas redondezas e largou o corpo dela em Hallow Hill. A ideia era dar a impressão de que havia sido uma espécie de ritual ou algo do tipo. Disse que ficou horrorizado quando soube que estavam desconfiando da gente. Obviamente, ele não queria ser apanhado, mas jura que fez de tudo para impedir que outra pessoa levasse a culpa pelo seu crime.

- Que generoso da parte dele, não? - comentou Esquisito, cínico.

- Mas eu acho que ele está falando a verdade, sabe? Porque, se ele quisesse, bastava uma mentirinha e nós seríamos acusados. Quando Maclennan ficou sabendo da Land Rover, por exemplo, Lawson podia muito bem ter dito que esquecera de mencionar que vira o carro naquela noite. Ou indo para Hallow Hill, ou na porta do Lammas na hora em que o bar fechava.

- Só Deus pode saber a verdade, mas suponho que podemos lhe conceder o benefício da dúvida, sim. Ele deve ter imaginado que estava salvo depois de todo esse tempo. Ninguém nunca desconfiou dele.

- Pois é. Sobrou foi mesmo para a gente. Lawson passou vinte e cinco anos desfrutando uma reputação aparentemente imaculada. Foi então que o chefe de polícia anunciou a revisão dos casos não resolvidos. Segundo Karen, Lawson se livrou das provas na primeira vez em que o DNA foi utilizado de maneira bem-sucedida no tribunal. As provas ainda estavam em St. Andrews, então não foi difícil para ele colocar as mãos nelas. O cardigã foi de fato extraviado em uma das vezes em que as provas foram transferidas de um local para o outro, mas o resto das roupas e as amostras biológicas, bom, a isso tudo ele fez questão de dar um fim pessoalmente.

Esquisito franziu a testa.

- E como é que o cardigã foi parar tão longe do local onde estava o corpo?

- Quando estava voltando para o carro de polícia, Lawson encontrou o cardigã perdido na neve. Deixara cair quando carregou o corpo até o topo da colina. Ele simplesmente enfiou a roupa na primeira sebe que viu pela frente. Era a última coisa que queria dentro de uma viatura policial. Então, após ter se livrado de todas as provas relevantes, ele deve ter imaginado que conseguiria conduzir a revisão dos casos e se safar.

- É, mas ele não contava com a aparição surpreendente de Graham Macfadyen. Jamais suspeitara da sua existência, graças ao desejo de respeitabilidade da família de Rosie. Ali estava alguém que realmente tinha um interesse em apurar a morte dela, alguém exigindo respostas. Mas o que eu ainda não consigo entender é por que ele saiu por aí eliminando o nosso grupo.

- Bom, pelo que Karen contou, Macfadyen estava pegando no pé de Lawson direto. Exigindo que ele conversasse novamente com as testemunhas. Principalmente nós quatro. Ele estava convencido de que éramos os culpados. No computador de Macfadyen, entre outras coisas, havia um registro das conversas que ele teve com Lawson. E, em um determinado momento, ele comenta que acha muito estranho Lawson não ter visto nada suspeito, uma vez que estava de plantão na sua viatura, próximo ao local do crime. Quando ele comenta isso com Lawson, ele fica irritado, o que Macfadyen interpreta como uma reação normal à crítica. Mas, obviamente, a verdade é que Lawson não queria ninguém analisando o que ele andou fazendo naquela noite. Afinal, a sua presença passou despercebida, mas tirando nós quatro, a única pessoa que temos certeza de que estava na área naquela noite era Lawson. Se ele não fosse policial, teria sido o principal suspeito do crime.

- Mesmo assim. Por que sair atrás da gente, depois de todo este tempo?

Alex acomodou-se desconfortavelmente sobre a pedra.

- Bom, aí é que vem a parte mais difícil. Segundo Lawson, ele estava sendo chantageado.

- Chantageado? Por quem?

- Mondo.

Esquisito arregalou os olhos.

- Mondo? Tá brincando. Que invenção doentia é essa de Lawson agora?

- Acho que não é invenção. Lembra de quando Maclennan morreu?

Esquisito estremeceu.

- Como posso esquecer?

- Então. Lawson era o primeiro puxando a corda e ele viu o que aconteceu. Segundo ele, Maclennan estava se segurando em Mondo, mas Mondo entrou em pânico e chutou-o para fora da corda.

Esquisito fechou os olhos por um momento.

- Gostaria de dizer que não acredito nisso, mas é uma reação típica de Mondo. Mas, mesmo assim, não entendo o que isso tem a ver com chantagem.

- Depois que eles resgataram Mondo, foi aquele caos. Lawson se encarregou de ficar com ele e o acompanhou na ambulância. Aí ele disse a Mondo que tinha visto a cena e garantiu que ia fazer de tudo para que ele fosse punido. E foi então que Mondo soltou a sua pequena bomba. Ele afirmou ter visto Rosie entrando na viatura de Lawson na porta do Lammas uma noite. Bem, Lawson sabia que ia ficar encrencado se Mondo espalhasse aquela informação. Então, eles fizeram um acordo. Se Mondo não contasse o que tinha visto, Lawson faria o mesmo.

- Mais do que chantagem, era a garantia de que ambos iriam se destruir - disse Esquisito, asperamente. - E o que deu errado?

- Assim que a revisão dos casos não resolvidos foi anunciada, Mondo procurou Lawson e disse que o preço do seu silêncio era não ser incomodado pela revisão. Não queria que a sua vida virasse de cabeça para baixo novamente. E ele disse a Lawson que um de nós sabia da história, que ele não era o único. Só que, é claro, ele não especificou para qual de nós ele supostamente havia contado. Por isso Lawson estava fazendo tanta questão que Karen se concentrasse na busca das provas, em vez de nos procurar novamente. Precisava ganhar tempo, eliminando quem ele imaginava estar a par da verdade. Mas aí ele ficou espertinho demais. Decidiu criar um suspeito para a morte de Mondo. Então, forneceu um motivo para Robin Maclennan, contando a verdade sobre a morte do seu irmão Barney. Mas antes de Lawson matar Mondo, Robin Maclennan entrou em contato com ele, o que fez com que ele entrasse em pânico e fosse procurar Lawson novamente. - Alex deu um sorriso contrariado. - Foi isso que ele teve de resolver em Fife na noite em que apareceu lá em casa. De todo modo, Mondo acusou Lawson de quebrar a sua parte no acordo. E, se achando muito esperto, disse que iria revelar a sua história primeiro, de modo que quando Lawson alegasse que ele matou Barney Maclennan, todos pensariam que era uma acusação sem fundamento, inventada por um sujeito acuado. - Alex esfregou a mão no rosto.

- Pobre Mondo, que idiotice - gemeu Esquisito.

- A maior ironia é que, se não fosse a obsessão de Graham Macfadyen com o caso, Lawson podia muito bem ter conseguido matar nós quatro.

- Como assim?

- Se Graham não estivesse nos rastreando pela internet, jamais teria ficado sabendo da morte de Ziggy e não teria enviado a coroa de flores. Aí, jamais teríamos feito a ligação entre os dois assassinatos e Lawson poderia nos eliminar à vontade. Mas mesmo assim, ele deu um jeito de manipular a coisa ao máximo. Fez questão de garantir que eu ficasse sabendo sobre Graham Macfadyen, apesar de ter fingido que deixou escapar a informação sem querer. E, é claro, ele contou a Robin Maclennan como Mondo matou o seu irmão. Assim, poderia garantir uma certa segurança. Depois que Mondo foi assassinado, o canalha foi tão esperto que procurou Robin e lhe ofereceu um álibi falso. E Robin aceitou, sem parar para pensar que o álibi servia para os dois - ou seja, que ele estava protegendo o verdadeiro assassino.

Esquisito estremeceu e suspendeu as pernas, apertando os joelhos contra o peito. Sentiu uma pontada nas costelas, a sombra de uma dor antiga.

- Mas por que ele veio atrás de mim? Deve ter percebido que nem eu nem você sabíamos o que Mondo tinha visto, do contrário já o teríamos procurado para tomar uma satisfação pela morte de Mondo.

Alex suspirou.

- Acontece que ele já estava mais sujo do que pau de galinheiro. Por causa das coroas de Macfadyen, nós fizemos a ligação entre dois assassinatos que foram planejados para parecer completamente sem relação. A sua única esperança era fazer com que Macfadyen passasse como o assassino. E ele não teria livrado a nossa cara, não é mesmo? Ele teria ido até o fim, teria matado nós quatro.

Esquisito balançou a cabeça, tristemente.

- Que confusão horrível. Mas por que ele matou Ziggy primeiro?

- É tão banal que dá vontade de chorar. Ele matou Ziggy primeiro porque estava com férias marcadas nos Estados Unidos, antes da revisão dos casos ser anunciada.

Esquisito umedeceu os lábios.

- Então eu poderia muito bem ter sido o primeiro?

- Se ele decidisse ir pescar lá para as suas bandas, com certeza.

Esquisito fechou os olhos, levando a mão no peito.

- E em relação a Ziggy e Mondo? O que está sendo feito?

- Praticamente nada, acho eu. Apesar de Lawson ter aberto o bico e contado tudo, eles não têm nenhuma prova que comprove que foi ele quem matou Mondo. Ele foi bastante cuidadoso nesse sentido. Ele não tem nenhum álibi, mas diz que ficou no trailer naquela noite, então mesmo que eles consigam achar um vizinho que confirme que o carro dele não estava na garagem, ele está protegido.

- Então ele vai se safar, é isso?

- É o que parece. Pela lei escocesa, toda confissão tem de ser comprovada para que o sujeito possa ser acusado de fato. Mas pelo menos os policiais de Glasgow não estão mais pegando no pé de Hélène e de Jackie, o que não deixa de ser um resultado.

Esquisito bateu com a mão sobre a pedra, indignado.

- E Ziggy? A polícia de Seattle já solucionou alguma coisa?

- Um pouco. Mas não muito. Sabemos que Lawson estava nos Estados Unidos uma semana antes da morte de Ziggy. Supostamente, participando de uma viagem de pesca na Califórnia. Mas aí é que está. Quando ele devolveu o seu carro alugado, constavam muito mais quilômetros do que se podia imaginar em um mero passeio local.

Esquisito chutou a pedra abaixo dos seus pés.

- E é uma viagem longa da Califórnia para Seattle, não é?

- Exatamente. Mas, mais uma vez, não há nenhuma prova concreta. Lawson é esperto demais para ter usado o cartão de crédito fora do local onde deveria estar. Karen disse que a polícia de Seattle tem mostrado uma foto dele em armazéns e em hotéis, mas não deu em nada até agora.

- Não acredito que ele vai se safar novamente com dois assassinatos nas costas - disse Esquisito.

- Ué, não é você quem acredita em um julgamento mais poderoso do que o dos homens?

- Mas o julgamento de Deus não nos absolve do dever de transitar em um universo moral - respondeu Esquisito com seriedade. - Uma das maneiras de demonstrar amor pelos nossos semelhantes é protegendo-os dos seus piores impulsos. E mandar os criminosos para a prisão é apenas um exemplo radical disso.

- Tenho certeza de que eles se sentem muito amados - debochou Alex. - Mas Karen trouxe mais uma notícia. Parece que eles afinal decidiram não acusar Lawson por tentativa de homicídio por ele ter atacado você.

- Por que não? Eu disse que estava disposto a voltar e prestar o depoimento.

Alex ficou de pé.

- Sem Macfadyen, não existe nenhuma prova de que foi Lawson quem te deu aquela surra.

Esquisito suspirou.

- Paciência. Pelo menos ele vai ter de responder pelo que fez com Rosie. Acho que, no final das contas, não importa se ele conseguir escapar pelo que fez comigo. Você sabe, eu sempre me orgulhei de ser safo. Mas naquela noite, eu saí da sua casa cheio de bravata. Me pergunto se teria sido tão corajoso, ou irresponsável, se soubesse que, em vez de uma só, tinha duas pessoas no meu encalço.

- Pois é, agradeça por isso. Se Macfadyen não estivesse nos espionando, jamais teríamos como identificar Lawson e o seu carro no local.

- Continuo sem conseguir acreditar que ele não mexeu uma palha enquanto Lawson acabava comigo - disse Esquisito amargamente.

- Talvez a aparição do meu vizinho Eric o tenha impedido - suspirou Alex. - Acho que nunca vamos saber ao certo.

- Mas o que realmente importa é que finalmente descobrimos quem tirou a vida de Rosie - disse Esquisito. - Era um espinho cravado no nosso corpo por vinte e cinco anos e agora podemos nos livrar dele. Graças a você, conseguimos neutralizar o veneno que infectou nós quatro.

Alex olhou para ele, curioso.

- Mas você chegou a pensar...?

- Se foi um de nós que cometeu o crime?

Alex concordou com a cabeça.

- Eu sabia que não podia ter sido o Ziggy. Ele não se interessava por mulher nenhuma e, mesmo naquela época, não queria ser curado. Mondo jamais ficaria calado se tivesse sido ele. E você, Alex... Bom, digamos apenas que eu não conseguia imaginar como você teria levado o corpo para Hallow Hill. Você não ficou com as chaves da Land Rover em nenhum momento.

Alex estava perplexo.

- E esse foi o único motivo pelo qual você não suspeitou de mim?

Esquisito sorriu.

- Você era forte o suficiente para ficar de bico fechado. Consegue ficar incrivelmente calmo sob pressão, mas quando você estoura, aí sai de baixo. E ainda tinha uma queda pela garota... Vou ser sincero, me passou pela cabeça, sim. Mas assim que ficamos sabendo que ela havia sido atacada em um outro lugar e transportada para Hallow Hill, eu vi que não poderia ter sido você. Donde se conclui que o senhor foi salvo pela logística.

- Obrigado pela confiança - disse Alex, ofendido.

- Foi você quem perguntou. E você? De quem suspeitava?

Alex teve a delicadeza de parecer constrangido.

- Cheguei a pensar em você. Principalmente quando virou crente. Parecia o tipo de coisa que um sujeito culpado faria. - Alex contemplou as copas das árvores no horizonte mais distante, onde as montanhas se confundiam em uma bruma azulada. - Sempre fico pensando em como a minha vida teria sido diferente se Rosie tivesse aceitado o meu convite e aparecido na festa naquela noite. Ela ainda estaria viva. Assim como Mondo e Ziggy. A nossa amizade teria sobrevivido sem tantas provações. E teríamos vivido sem ter de lidar com a culpa.

- Você poderia ter acabado casando com Rosie, em vez de Lynn - comentou Esquisito.

- Não - protestou Alex. - Isso jamais teria acontecido.

- Por que não? Não subestime a fragilidade das amarras que nos unem à vida que levamos. E você gostava dela.

- Ia acabar passando. E ela jamais se interessaria por um garoto como eu. Ela já era madura demais. Além do mais, acho que mesmo naquela época eu já sabia que Lynn seria aquela que iria me salvar.

- Salvar de quê?

Alex sorriu, um sorriso suave e íntimo.

- De tudo nesta vida. - Ele olhou para a cabana lá embaixo, onde estava o seu coração. Pela primeira vez, em vinte e cinco anos, tinha um futuro; libertara-se do fardo do passado. E sentia como se tivesse finalmente recebido o presente que tanto merecia.

 

[1] Relativo aos pictos, antigos habitantes da Caledônia, atual Escócia. O cemitério picto de St. Andrews fica em Hallow Hill e foi escavado em 1977. (N.T.)
[2] Em inglês CID (Criminal Investigation Department). Policiais do Reino Unido que trabalham usando roupas civis. (N.T.)
[3] Os "seis de Birmingham" foram condenados à prisão perpétua em 1975 por um crime que não cometeram. Acusados de terem sido os responsáveis por atentados a bomba em dois pubs em Birmingham, foram forçados a confessar o crime sob tortura. Logo depois, o IRA reivindicou os atentados, mas como eles já haviam confessado, a sentença foi mantida. Os seis ficaram presos até 1991, quando a Justiça Britânica finalmente reconheceu o seu erro e pagou aos inocentes uma indenização de quase dois milhões de dólares. A história dos "quatro de Guildford" não é muito diferente: em 1974, após serem acusados de um atentado ao pub Guildford, em Londres, quatro jovens irlandeses foram presos, torturados e forçados a confessar o crime. Condenados à prisão perpétua, só foram libertados 15 anos depois. Em 1993 o caso ganhou uma adaptação cinematográfica, dirigida por Jim Sheridan, no filme Em Nome do Pai. (N.T.)
[4] "Combine" é a palavra usada para ceifadeira em inglês. (N.T.)
[5] Típica tradição escocesa, realizada no Ano-Novo (Hogmanay). Reza a lenda que a primeira pessoa a pisar em sua casa determinará a sorte que você terá no ano vindouro. (N.T.)
[6] Trecho de uma canção religiosa ("Balance gentilmente, doce carruagem. Leve-me para casa"). (N.T.)
[7] "I’m a laughing Gnome and you don’t catch me" (Sou um gnomo risonho e você não me pega). (N.T.)
[8] "Another brick in the wall": referência à música do Pink Floyd. (N.T.)

30

Matizes cinzentos de sujeira começaram a se materializar na escuridão da cidade poluída. Alex deixou-se cair em um banco gelado no hospital, o rosto banhado em lágrimas. Nada em sua vida o havia preparado para uma noite como aquela. Passara do cansaço a um estado alterado onde tinha a impressão de que jamais conseguiria dormir novamente. A sobrecarga emocional era tamanha que ele não sabia mais o que estava sentindo.

Não conseguia se lembrar do caminho de Glasgow para Edimburgo. Sabia que tinha ligado para os pais em algum momento, tinha uma vaga lembrança de ter tido uma conversa tumultuada com o pai. As lágrimas escorriam pelo seu rosto. Todas as coisas que ele sabia que podiam dar errado. Todas as coisas que ele não tinha certeza se podiam dar errado com um bebê com trinta e quatro semanas de gestação. Desejou ser Esquisito, para poder confiar em algo menos falível do que os médicos. Que diabos ia fazer sem Lynn? Que diabos ia fazer com um bebê sem Lynn? Que diabos ia fazer com Lynn sem um bebê? Os presságios eram os piores possíveis: Mondo morto no necrotério de um hospital qualquer e Alex, que não havia estado onde deveria estar na noite mais importante da sua vida.

Abandonara o carro em algum lugar do estacionamento do hospital e conseguira encontrar a entrada para a ala da maternidade, na terceira tentativa. Quando finalmente alcançou a recepção, estava suado e ofegante, grato por saber que as enfermeiras na maternidade na certa já haviam visto de tudo na vida, de modo que um sujeito com a barba por fazer, de olhos arregalados, balbuciando como um louco nem chegava a abalar a escala Richter delas.

- A senhora Gilbey? Ah, sim, nós a levamos direto para a sala de parto.

Alex tentou concentrar-se nas indicações do caminho, repetindo-as baixinho enquanto cruzava os corredores do hospital. Tocou o interfone de segurança e olhou ansiosamente para as lentes do vídeo, torcendo para estar mais parecido com um futuro papai do que com um lunático à solta. Após o que lhe pareceu uma eternidade, a porta se abriu, fazendo um zumbido, e ele saiu aos tropeções para a sala de parto. Não sabia ao certo o que esperava encontrar, mas com certeza não era aquela antessala vazia e aquele silêncio soturno. Hesitou por um instante, sem saber o que fazer. Neste momento, uma enfermeira surgiu de um dos diversos corredores à sua volta.

- Sr. Gilbey? - perguntou ela.

Alex assentiu com um movimento frenético de cabeça.

- Onde está Lynn? - indagou ele.

- Acompanhe-me.

Ele a seguiu de volta pelo corredor.

- Como ela está?

- Está indo bem. - Ela fez uma pausa, com a mão apoiada na maçaneta. - Precisamos que o senhor a acalme. Ela está um pouco nervosa. Tivemos uma ou duas quedas no batimento cardíaco do feto.

- O que isso quer dizer? O bebê está bem?

- Não é nada preocupante.

Detestava quando os médicos diziam isso. Soava sempre como uma mentira deslavada.

- Mas ainda é muito cedo. Ela só está com trinta e quatro semanas.

- Tente não se preocupar. Eles estão em boas mãos.

A porta se abriu e Alex deparou-se com uma cena que não tinha qualquer semelhança com as práticas que haviam feito nas aulas do pré-natal. Era difícil conseguir imaginar algo mais distante do sonho dele e de Lynn de um parto natural. Três mulheres usando trajes cirúrgicos andavam para lá e para cá, afoitas. Uma quarta mulher, com um jaleco branco, examinava o monitor com visor eletrônico ao lado da cama. Lynn estava deitada de barriga para cima, com as pernas abertas, o cabelo grudado na cabeça, empapado de suor. O seu rosto estava vermelho e úmido, os olhos arregalados e cheios de angústia. A camisola fina do hospital estava grudada no seu corpo. O tubo de soro ao lado da cama desaparecia sob ela.

- Puta que pariu, ainda bem - disse ela, ofegante. - Alex, estou com medo.

Ele correu para o lado dela, alcançando a sua mão. Ela segurou com força.

- Eu te amo - disse ele. - Você está indo bem.

A mulher de jaleco branco levantou os olhos.

- Oi, eu sou a doutora Singh - disse ela, vendo que Alex tinha chegado. Ela se juntou à parteira, aos pés da cama. - Lynn, estamos um pouco preocupadas com os batimentos cardíacos do bebê. Não estamos progredindo tão rápido quanto eu gostaria. Talvez tenhamos que fazer uma cesariana.

- Qualquer coisa para tirar o bebê daqui - gemeu Lynn.

De repente, houve uma agitação geral.

- O bebê está preso - disse uma das parteiras. A dra. Singh examinou o monitor brevemente.

- Os batimentos cardíacos estão caindo - disse ela. Tudo começou a acontecer mais rápido do que Alex conseguia captar, enquanto apertava firme a mão melada de suor de Lynn. Ouviram frases assustadoras como "Vamos levá-la para a sala de cirurgia", "Insiram o cateter" e "Precisamos do formulário de consentimento". E a cama foi levada, a porta aberta e todos saíram apressados pelo corredor, direto para a sala de cirurgia.

O mundo transformou-se em um borrão de atividade. O tempo parecia acelerado e vagaroso ao mesmo tempo. E então, quando Alex estava prestes a perder as esperanças, ouviu as palavras mágicas:

- É uma menina. Vocês têm uma filha.

Os seus olhos encheram-se de lágrimas e ele virou-se para ver a filha. Ela estava coberta de sangue e avermelhada, assustadoramente quieta e silenciosa.

- Meu Deus - disse ele. - Lynn, é uma menina. - Mas Lynn não estava mais consciente.

Uma das parteiras embrulhou prontamente o bebê em uma manta e saiu às pressas. Alex levantou-se.

- Ela está bem? - Foi levado para fora da sala, aturdido. O que estava acontecendo com o seu bebê? Será que ela estava viva? - O que está acontecendo? - indagou ele.

A parteira sorriu.

- A sua filha está bem. Está respirando por conta própria, o que é uma das maiores preocupações nos bebês prematuros.

Alex deixou-se cair pesadamente em uma cadeira, com as mãos no rosto.

- Só quero que ela fique bem - disse ele, aos prantos.

- Ela está indo muito bem. Nasceu pesando dois quilos, o que é um bom sinal. Sr. Gilbey, já fiz o parto de alguns bebês prematuros e posso dizer que a sua garotinha é uma das mais fortes que eu já vi. Ainda é muito cedo, mas eu acho que ela vai ficar bem.

- Quando é que eu vou poder vê-la?

- O senhor pode ir lá embaixo na UTI neonatal, dar uma olhadinha nela. Ainda não vai poder segurá-la, mas como ela está conseguindo respirar sozinha, acho que amanhã mesmo, ou depois de amanhã, o senhor já vai poder colocá-la nos braços.

- E Lynn? - perguntou ele, sentindo-se subitamente culpado por não ter perguntado antes.

- Estão dando os pontos agora. Ela passou por maus bocados. Quando eles a trouxerem de volta, estará exausta e desorientada. E vai ficar triste por não poder ficar com o bebê. O senhor precisa ser forte, por ela.

Não conseguia lembrar de mais nada, a não ser do momento único em que olhou através do berço transparente e viu a sua filha pela primeira vez.

- Posso tocar nela? - perguntou, temeroso. A sua cabeça miudinha parecia incrivelmente vulnerável e os seus olhinhos estavam fechados, bem apertados. Mechas de cabelo preto estavam grudadas na sua cabeça.

- Dê o seu dedo para ela segurar - instruiu a parteira.

Ele esticou a mão, hesitante, acariciando a pele enrugada da mãozinha da filha. Os seus minúsculos dedinhos abriram-se e apertaram o dedo do pai. E Alex foi capturado.

Sentou-se ao lado de Lynn até ela acordar e então lhe contou sobre o milagre que era a sua filha. Pálida e exausta, Lynn chorou.

- Eu sei que a gente tinha combinado que ela se chamaria Ella, mas eu quero chamá-la de Davina. Por causa do Mondo - explicou ela.

Alex estremeceu. Não pensara em Mondo desde que chegara ao hospital.

- Ah, meu Deus - disse ele e a culpa devorou a sua alegria. - É uma boa ideia. Ah, Lynn, eu não sei o que dizer. A minha cabeça parece que vai explodir.

- Você devia ir para casa, dormir um pouco.

- Preciso dar uns telefonemas. Avisar às pessoas.

Lynn deu uma palmadinha na mão do marido.

- Isso pode esperar. Você precisa dormir. Está exausto.

E então ele partiu, prometendo voltar mais tarde. Mal havia alcançado a entrada do hospital, se deu conta que não tinha forças para ir para casa. Ainda não. Encontrou um banco e deixou-se desmaiar sobre ele, perguntando-se como conseguiria sobreviver nos próximos dias. Tivera uma filha, mas não estava com ela nos braços. Perdera outro amigo, e não conseguia sequer pensar nas consequências desta perda. E, de alguma maneira, precisava ser forte para ajudar Lynn. Até então, sempre vencera as dificuldades, protegido pela certeza de que Ziggy ou Lynn o ajudariam a se levantar quando a vida o derrubasse.

Pela primeira vez na sua vida adulta, Alex sentiu-se terrivelmente sozinho.

James Lawson ouviu a notícia da morte de David Kerr pelo rádio, a caminho do trabalho na manhã seguinte. Não pôde conter um sorriso impiedoso de satisfação. Demorara bastante, mas finalmente o assassino de Barney Maclennan tivera o que merecia. Então os seus pensamentos voltaram-se inquietos para Robin e para o motivo que ele lhe entregara de bandeja. Alcançou o telefone do carro. Assim que chegou à polícia, foi direto para o gabinete da revisão dos casos. Por sorte, Robin Maclennan ainda era a única pessoa na sala. Estava parado em frente à máquina de café, esperando a água quente passar pelo filtro e desaguar no recipiente abaixo. Encoberto pela máquina, Lawson aproximou-se sem ser percebido e Robin levou um susto quando o seu chefe perguntou, abruptamente:

- Já ficou sabendo?

- Do quê?

- David Kerr foi assassinado. - Lawson apertou os olhos, examinando o detetive minuciosamente. - Ontem à noite. Na casa dele.

Robin ergueu as sobrancelhas.

- O senhor está brincando.

- Acabei de ouvir no rádio. Liguei para Glasgow para confirmar se era o nosso David Kerr e, por incrível que pareça, era ele mesmo.

- O que aconteceu? - Robin virou-se de costas, adicionando algumas colheradas de açúcar na sua caneca de café.

- A princípio, foi um assalto que deu errado. Mas depois descobriram que ele foi apunhalado duas vezes. Bem, normalmente um ladrãozinho amador em pânico pode até desferir uma facada, mas depois ele vai dar no pé. Esse sujeito fez questão de garantir que Davey Kerr não ia ficar vivo para abrir a boca.

- O que o senhor quer dizer com isso? - perguntou Robin, apanhando a cafeteira.

- Não sou eu quem está dizendo, é a polícia de Strathclyde. Estão abertos a outras possibilidades. Foi exatamente o que me disseram. - Lawson ficou esperando, mas Robin não disse nada. - Onde você estava ontem à noite, Robin?

Robin lançou um olhar furioso para Lawson.

- Onde o senhor quer chegar com isso?

- Calma, cara. Não estou te acusando de nada, não. Mas, sejamos francos, se alguém aqui tem um motivo para matar Davey Kerr, esse alguém é você. Eu sei que você jamais faria isso. Estou do seu lado. Só quero ter certeza de que você tem um álibi, entendeu? - Pousou a mão no ombro de Robin, acalmando-o. - Você tem um álibi?

Robin deslizou a mão pelo cabelo.

- Meu Deus, não. Ontem foi aniversário da mãe de Diane e ela levou as crianças para Grangemouth. Eles só voltaram bem depois das onze horas. Fiquei sozinho em casa. - Robin franziu a testa, preocupado.

Lawson balançou a cabeça.

- Isso não é nada bom, Robin. A primeira coisa que eles vão perguntar é por que você também não foi para Grangemouth.

- Eu não me dou bem com a minha sogra. Nunca me dei. Então Diane usa o meu trabalho como desculpa quando eu não apareço. Mas essa não foi a primeira vez. Eu não tentei escapar para poder ir até Glasgow matar Davey Kerr, Deus me livre. - Ele cerrou os lábios. - Qualquer outra noite, eu estava safo. Mas logo ontem... Que merda. Estou ferrado se eles ficaram sabendo o que Kerr fez com Barney.

Lawson apanhou uma xícara e serviu-se do café.

- Não vão ficar sabendo por mim.

- O senhor sabe como é este trabalho. Parece uma central de fofocas. Tá na cara que alguém vai descobrir. Vão começar a fuçar o passado de Davey Kerr e alguém vai lembrar que o meu irmão morreu tentando salvá-lo após aquela tentativa de suicídio ridícula. O senhor, se estivesse encarregado do caso, não ia querer conversar com o irmão de Barney? Sondar se por acaso ele não havia decidido que estava na hora de acertar as contas? Eu disse e repito: estou ferrado. - Robin virou de costas, mordendo os lábios.

Lawson apoiou a mão no braço dele, solidário.

- Vamos fazer o seguinte. Se alguém de Strathclyde perguntar, você estava comigo.

Robin estava visivelmente chocado.

- O senhor vai mentir por mim?

- Nós dois vamos mentir. Porque nós dois sabemos que você não teve nada a ver com a morte de Davey Kerr. Veja a coisa pelo seguinte ângulo: estamos poupando o tempo da polícia. Assim eles não vão perder tempo e energia investigando você em vez de estarem procurando o assassino.

Robin assentiu com a cabeça, relutante.

- É, isso é. Mas...

- Robin, você é um bom tira. Um bom homem. Do contrário, eu não o teria na minha equipe. Acredito em você e não quero ver o seu nome na lama.

- Obrigado, senhor. Agradeço muito a sua confiança.

- Esquece isso. Para todos os efeitos, eu dei um pulo na sua casa, a gente tomou umas cervejas, jogou umas rodadas de pôquer. Você ganhou umas vinte pratas de mim e eu fui embora lá pelas onze. Que tal?

- Combinado.

Lawson sorriu, bateu levemente com a sua caneca na caneca de Robin e foi embora. Aquela era a marca da liderança para ele. Antecipar o que a sua equipe precisava e atender antes mesmo que ela percebesse que estava precisando.

Naquela noite, Alex pegou a estrada novamente, de volta para Glasgow. Por fim, chegou em casa, onde o telefone estava estourando de tanto tocar. Já havia falado com os avós maternos e paternos da criança. Os pais dele pareceram um pouco constrangidos por terem ficado tão contentes, levando em consideração o que acontecera em Glasgow. Já os pais de Lynn reagiram de forma confusa, arrasados com o pesadelo que era a morte do seu único filho. Ainda era muito cedo para que o nascimento do seu primeiro neto lhes desse algum conforto. E saber que a criança estava na UTI neonatal era apenas mais um motivo de pesar e medo. Os dois telefonemas deixaram Alex em um estado que ultrapassava o cansaço; estava praticamente um zumbi. Mandou um e-mail breve para os amigos e colegas de trabalho, comunicando o nascimento de Davina, desligou o telefone da tomada e caiu no sono.

Quando acordou, mal podia acreditar que havia dormido por apenas três horas. Estava tão descansado quanto se tivesse passado o dia inteiro dormindo. Tomou uma ducha, fez a barba, pegou um sanduíche pronto e a câmera digital antes de voltar para Edimburgo. Encontrou Lynn na UTI neonatal, em uma cadeira de rodas, contemplando alegremente a filha.

- Ela não é linda? - perguntou ela de cara.

- Claro que é. Você já a segurou no colo?

- O melhor momento da minha vida. Mas ela é tão pequenininha, Alex. Parece que a gente está abraçando o ar. - Ela lançou um olhar aflito para ele. - Ela vai ficar bem, não vai?

- Claro que vai. Os Gilbeys são lutadores. - Eles deram as mãos, torcendo para que ele estivesse certo.

Lynn olhou para ele, preocupada.

- Estou tão sem graça, Alex. O meu irmão morreu e tudo o que eu consigo pensar é em como eu amo Davina, em como ela é preciosa.

- Sei exatamente o que você está sentindo. Estou nas nuvens, aí alguma coisa me faz lembrar do que aconteceu com Mondo e eu despenco lá de cima. Não sei como a gente vai conseguir superar isso.

No fim da tarde, Alex também já tinha conseguido segurar a filha nos braços. Tirou várias fotos e a exibiu para os seus pais. Adam e Sheila Kerr não tiveram condições de ir até lá e a ausência deles fez com que Alex lembrasse que não podia ficar encasulado para sempre nos prazeres da paternidade recente. Quando a enfermeira trouxe o jantar de Lynn, ele se levantou.

- Tenho que voltar para Glasgow - disse ele. - Preciso ver se Hélène está bem.

- Você não precisa se responsabilizar por ela - reclamou Lynn.

- Eu sei disso. Mas ela ligou para a gente - lembrou ele. - A família dela está muito longe. Ela pode estar precisando de ajuda para resolver as coisas. E, além do mais, eu devo isso a Mondo. Não fui um bom amigo para ele nos últimos anos e não posso fazer nada a respeito agora. Mas ele era parte da minha vida.

Lynn contemplou o marido com um sorriso triste e lágrimas nos olhos.

- Pobre Mondo. Não consigo parar de pensar em como ele deve ter ficado assustado no fim. E morrer sem ter a oportunidade de ficar bem com as pessoas que você ama... E Hélène, eu nem consigo imaginar como deve ser. Quando eu penso em como me sentiria se alguma coisa acontecesse com você ou com Davina...

- Não vai acontecer nada comigo. Nem com Davina - afirmou Alex. - Eu prometo.

Enquanto cobria a distância entre a alegria e o pesar, lembrava-se daquela promessa. Era difícil não se sentir atordoado com as mudanças recentes em sua vida. Mas ele não podia se dar ao luxo de sucumbir. Havia muita coisa dependendo dele agora.

Ao aproximar-se de Glasgow, ligou para Hélène. A secretária eletrônica o redirecionou para o celular dela. Xingando, ele encostou o carro e ouviu a mensagem novamente, anotando o número. Ela atendeu no segundo toque.

- Alex? Como está Lynn? O que aconteceu?

Ficou surpreso. Sempre considerara Hélène obcecada demais com os próprios problemas para se preocupar com alguém que não fosse ela mesma ou Mondo. O fato de a preocupação com Lynn e o bebê ter se instalado tão profundamente na sua dor, a ponto de ser a primeira coisa mencionada por ela, deixou Alex impressionado.

- Tivemos uma filha. - Aquelas eram as palavras mais importantes que ele proferira na vida. Sentiu um aperto na garganta. - Mas como ela nasceu prematura, tiveram que levar para a incubadora. Mas ela está indo bem. E é linda.

- E como está Lynn?

- Machucada. Em todos os sentidos. Mas está bem. E você?

- Nada bem. Mas estou me virando, eu acho.

- Escuta, estou indo aí te ver. Onde você está?

- A casa ainda está interditada como local do crime, ao que parece. Só vou poder voltar amanhã. Estou na casa da minha amiga Jackie. Ela mora em Merchant City. Você quer vir até aqui?

Alex não estava muito propenso a dar de cara com a mulher com que Hélène traíra Mondo. Chegou a pensar em sugerir um local neutro, mas soaria bastante insensível naquelas circunstâncias.

- Me dá o endereço - disse ele.

Não foi difícil encontrar o apartamento. Ele ocupava metade do segundo andar de um armazém convertido em residência, muito popular entre os solteiros da cidade. A mulher que abriu a porta não podia ser menos parecida com Hélène. Usava uma calça jeans velha, desbotada e desfiada nos joelhos. A sua camiseta regata anunciava que ela era "100% Grrrrl" e revelava músculos capazes de levantar o seu próprio peso em halteres sem derramar uma gota de suor. Abaixo de cada bíceps, uma intrincada tatuagem em forma de bracelete celta. O seu cabelo curto e negro estava espetado para cima com gel e o seu olhar era mordaz. As sobrancelhas escuras estavam franzidas sobre os seus olhos azul-acinzentados e em sua boca não havia nenhum sorriso acolhedor.

- Você deve ser o Alex - disse ela, deixando instantaneamente óbvias as suas raízes de Glasgow. - É melhor você entrar.

Alex a acompanhou por um típico loft que jamais agraciaria as páginas das revistas de decoração de interiores. Esqueça o modernismo estéril: aquele era o habitat de alguém que sabia exatamente do que gostava e como gostava. Uma das paredes estava coberta de cima a baixo por estantes, abarrotadas de livros, vídeos, CDs e revistas desorganizadas. Em frente, um aparato compacto de ginástica que permitia realizar diversos exercícios, com alguns halteres soltos de qualquer jeito no chão. A área da cozinha exibia o tipo de desarrumação típica do uso frequente e a sala de estar estava mobiliada com sofás que apelavam mais para o conforto do que para a elegância. Uma mesa de centro estava soterrada por pilhas de jornais e revistas. As paredes eram decoradas com fotografias emolduradas de mulheres esportistas, de Martina Navratilova a Ellen MacArthur.

Hélène estava encolhida no canto de um sofá de tapeçaria cujos braços atestavam a presença de um gato. Alex atravessou o chão de madeira polida até a sua cunhada, que suspendeu o rosto para a tradicional troca de beijos no ar. Os seus olhos estavam inchados e escuros, mas, fora isso, Hélène parecia ter voltado ao seu normal.

- Fico feliz por você estar aqui - disse ela. - Obrigada por ter vindo, quando você deveria estar curtindo o seu bebê.

- Como eu disse, ela ainda está na UTI neonatal. E Lynn está exausta. Imaginei que seria mais útil aqui. Mas... - ele lançou um sorriso para Jackie. - Vejo que você está sendo bem cuidada.

Jackie deu de ombros, sem desanuviar a sua expressão de hostilidade.

- Eu trabalho como jornalista freelancer, então posso manter o meu horário bem flexível. Você quer beber alguma coisa? Tem cerveja, uísque e vinho.

- Prefiro um café.

- Não temos café. Pode ser chá?

Nada como se sentir bem recebido, pensou ele.

- Chá está ótimo. Com leite, sem açúcar, por favor. - Sentou-se na outra extremidade do sofá, longe de Hélène. Os olhos dela davam a impressão de ter visto mais do que gostaria. - Como você está?

Os seus cílios tremelicaram.

- Estou tentando não sentir nada. Não quero pensar em David, porque o meu coração fica apertado. Não consigo acreditar que o mundo vai continuar sem ele. Mas preciso passar por isso sem me desesperar. A polícia está sendo horrível, Alex. Lembra daquela garota sem graça, parada no canto da sala ontem?

- A policial?

- Exatamente. - Hélène bufou de escárnio. - Acontece que ela estudou francês no colégio. Ela entendeu a nossa conversa ontem à noite.

- Putz, que merda.

- Que merda mesmo. O detetive encarregado do caso esteve aqui pela manhã. Falou comigo primeiro, queria saber sobre a minha relação com Jackie. Disse que não adiantava mentir porque a policial escutou tudo ontem. Então, eu contei a verdade. Ele foi muito gentil, mas deu para perceber que estava desconfiado.

- Você perguntou o que aconteceu com o Mondo?

- É claro que sim. - O rosto dela enrijeceu, pesaroso. - Ele disse que ainda não podia me adiantar grande coisa. O vidro da porta da cozinha foi mesmo quebrado, possivelmente por um ladrão. Mas eles não encontraram nenhuma impressão digital. A faca usada para golpear David foi tirada de um conjunto de facas da cozinha. Ele disse que, ao que parece, David ouviu um barulho e desceu para investigar. Mas ele enfatizou bem as palavras, Alex. Ao que parece.

Jackie voltou trazendo uma caneca na qual um decalque de Marilyn Monroe havia sido prejudicado pela lava-louças. O chá era forte, bem escuro.

- Obrigado - disse Alex.

Jackie acomodou-se no braço do sofá, com uma das mãos no ombro de Hélène.

- São uns homens das cavernas mesmo. Só porque a mulher tem uma amante, acham logo que ela ou a amante querem se livrar do marido. Eles não conseguem vislumbrar um mundo onde pessoas adultas fazem escolhas mais complexas do que estas. Eu tentei explicar ao policial que era possível fazer sexo com uma pessoa sem querer eliminar os outros parceiros dela. O babaca me olhou como se eu fosse de outro planeta.

Alex tinha que concordar com o policial naquele ponto. O fato de ser casado com Lynn não o deixara imune aos encantos de outras mulheres. Mas fazia com que ele repudiasse a ideia de tomar alguma atitude a respeito. No universo dele, amantes eram para pessoas que estavam com o parceiro errado. Imaginava como ficaria arrasado se Lynn um belo dia anunciasse que estava dormindo com outra pessoa. Sentiu uma pontada de pena por Mondo.

- Vai ver que eles ainda não têm nada em vista, por isso estão mantendo o foco em você - disse ele.

- Mas eu sou a vítima nessa história, não a criminosa - respondeu Hélène, amarga. - Não fiz nada contra David. Mas é impossível provar o contrário. Você mesmo sabe muito bem como é difícil dispersar a suspeita depois que apontam o dedo para você. Isso deixou David tão perturbado que ele tentou até se matar.

Alex estremeceu sem querer, diante daquela lembrança.

- Não vai chegar a este ponto.

- Pode ter certeza que não - acudiu Jackie. - Amanhã cedo vou conversar com um advogado. Não vou ficar de braços cruzados.

Hélène pareceu preocupada.

- Tem certeza de que é uma boa ideia?

- Por que não? - perguntou Jackie.

- A gente não tem que contar tudo ao advogado? - Hélène lançou um estranho olhar de soslaio para Alex.

- Sim, mas existe o privilégio advogado-cliente - disse Jackie.

- Qual é o problema? - perguntou Alex. - Tem alguma coisa que você não me contou, Hélène?

Jackie suspirou e girou os olhos.

- Deus do céu, Hélène.

- Tudo bem, Jackie. Alex está do nosso lado.

Jackie lançou um olhar que deixava bem claro que ela decifrava Alex melhor do que a sua amante.

- O que você não me contou? - perguntou ele.

- Não é da sua conta, tá bem? - disse Jackie.

- Jackie! - protestou Hélène.

- Deixa pra lá, Hélène. - Alex levantou-se do sofá. - Eu não tenho obrigação nenhuma de estar aqui, sabe - disse ele para Jackie. - Mas achei que vocês precisariam de todos os amigos possíveis numa hora destas. Especialmente na família de Mondo.

- Jackie, conta pra ele - disse Hélène. - Senão ele vai sair daqui achando que a gente realmente está escondendo alguma coisa.

Jackie encarou Alex.

- Tive que sair por mais ou menos uma hora ontem à noite. Eu estava sem erva e a gente queria fumar um baseado. O sujeito que arruma drogas para mim não é do tipo que fornece álibis. E, mesmo que ele fornecesse, a polícia não ia acreditar nele. Então, tecnicamente, qualquer uma de nós poderia ter matado David.

Alex sentiu os pelos da sua nuca se arrepiarem. Lembrou-se de um momento, na noite anterior, quando chegou a questionar se Hélène o estava manipulando.

- Vocês deviam contar isso para a polícia - disse ele, abruptamente. - Se descobrirem que vocês mentiram, nunca vão acreditar que são inocentes.

- E você está acreditando muito, né? - desafiou Jackie, com desdém.

Alex não estava gostando nada do clima de hostilidade à sua volta.

- Olha, eu vim aqui para ajudar, não para ficar levando fora - respondeu ele, ríspido. - Eles falaram alguma coisa sobre a liberação do corpo?

- Iam fazer a autópsia hoje de tarde. Depois disso, parece que já podemos começar os preparativos para o funeral. - Hélène esticou as mãos. - Nem sei para quem ligar. O que devo fazer, Alex?

- Acho que dá para encontrar um agente funerário nas Páginas Amarelas. Coloque o anúncio do óbito no jornal, depois entre em contato só com os amigos mais íntimos e os parentes. Se você quiser, eu posso me encarregar da família.

Ela concordou com a cabeça.

- Vai ser uma ajuda e tanto.

Jackie reagiu, debochada.

- Aposto que eles não vão ficar tão interessados em falar com Hélène depois que ficarem sabendo sobre mim.

- Melhor evitar isso. Os pais de Mondo já têm problemas demais - disse Alex, friamente. - Hélène, você precisa arrumar um lugar para a recepção.

- Recepção? - perguntou ela.

- Depois do funeral - explicou Jackie.

Hélène fechou os olhos.

- Não acredito que estamos aqui falando sobre recepção enquanto o meu David está estirado numa mesa de necrotério.

- Bem... - disse Alex. Não precisava dizer o que estava pensando; a culpa pairava no ar entre os três. - Melhor eu ir embora.

- Ela já tem nome, a sua filha? - perguntou Hélène, visivelmente buscando um assunto mais ameno.

Alex lançou um olhar apreensivo para a cunhada.

- Nós íamos chamá-la de Ella. Mas pensamos melhor e... bom, Lynn quis chamá-la de Davina. Em homenagem a Mondo. Se você não se incomodar, é claro.

Os lábios de Hélène tremeram e os olhos ficaram rasos d’água.

- Oh, Alex. Sinto muito por nunca termos arrumado tempo para sermos mais amigos de você e de Lynn.

Alex balançou a cabeça.

- Para quê? Para que nos sentíssemos igualmente traídos?

Hélène encolheu-se, como se tivesse sido fisicamente golpeada. Jackie avançou em direção a Alex, fechando as mãos em punho.

- Acho que está na hora de você ir embora.

- Também acho - respondeu ele. - Vejo vocês no funeral.


31

O subchefe de polícia Lawson apanhou a pasta sobre a mesa.

- Eu estava contando com isso - suspirou ele.

- Eu também, senhor - confessou Karen Pirie. - Eu sei que eles não conseguiram nenhuma amostra biológica no cardigã naquela época, mas imaginei que com o equipamento sofisticado de hoje pudesse haver vestígio de alguma coisa que pudéssemos usar. Sêmen ou sangue. Mas não encontraram nada, a não ser estas gotinhas de tinta esquisitas.

- Que já havíamos detectado naquela época. E que não adiantou muito também. - Lawson abriu a pasta despretensiosamente e passou os olhos no breve relatório. - O problema é que o cardigã não foi encontrado com o corpo. Se eu me lembro direito, foi jogado por cima de uma cerca no jardim de alguém.

Karen assentiu.

- Número 15. E eles só acharam mais de uma semana depois. Àquela altura, já tinha nevado, derretido a neve e chovido, o que não ajudou em nada. O cardigã foi identificado pela mãe de Rosie, que afirmou ser o que ela estava usando quando saiu naquela noite. Nunca achamos a bolsa, nem o casaco. - Karen consultou a gorda pasta sobre o seu colo, virando as páginas. - Um casaco 7/8 marrom, de corte trapézio, da C&A, com um forro de pied-de-poule creme e marrom.

- Nunca achamos porque nem sabíamos onde procurar. Porque não sabíamos em que lugar ela foi morta. Depois que saiu do Lammas, ela pode ter sido levada para qualquer lugar a mais ou menos uma hora de distância de carro. Para Dundee, depois da ponte ou para o centro de Fife. Em qualquer lugar, de Kirriemuir a Kirkcaldy. Pode ter sido assassinada em um barco, em um estábulo, em qualquer lugar. A única coisa que conseguimos descobrir com certeza é que ela não foi morta na casa em Fife Park onde Gilbey, Malkiewicz, Kerr e Mackie moravam. - Lawson devolveu o relatório para Karen.

- Só por curiosidade, senhor... vocês chegaram a vasculhar outras casas em Fife Park?

Lawson franziu a testa.

- Acho que não. Por quê?

- É que me ocorreu uma coisa. O crime aconteceu durante as férias da universidade. Muitos alunos já tinham viajado para passar o Natal com as suas famílias. Pode ser que algumas casas estivessem vazias por lá.

- Mas deviam estar fechadas. Se tivesse ocorrido algum arrombamento em Fife Park, nós teríamos ficado sabendo.

- Bom, sabe como são os estudantes, senhor. Vivem uns nas casas dos outros. Não devia ser muito difícil arrumar uma chave. Além do mais, os quatro estavam no último ano. Eles podem muito bem ter guardado a chave de uma das casas onde se alojaram nos anos anteriores.

Lawson lançou um olhar de apreciação para Karen.

- É uma pena você não ter feito parte da investigação naquela época. Acho que ninguém nunca nem pensou nesta hipótese. Agora já é tarde demais, obviamente. E então, como vai a busca pelas provas? Você já terminou?

- Eu tirei uma folga no Natal e no Ano-Novo - justificou ela, defensiva. - Mas fiquei até tarde ontem à noite e terminei tudo.

- Então é isso? As provas concretas do caso Rosie Duff desapareceram do nada, sem deixar vestígios?

- Ao que parece, senhor. A última pessoa a ter acesso à caixa foi o detetive Maclennan, uma semana antes de morrer.

Lawson levantou a cabeça.

- Você não está insinuando que Barney Maclennan sumiu com as provas de um homicídio, está?

Karen corrigiu-se, imediatamente. A última coisa que queria era dar a impressão de que estava levantando suspeitas sobre um colega que morrera como herói.

- Não, senhor, de modo algum. Só quis dizer que, seja lá o que tenha acontecido com as roupas de Rosie Duff, não existe nenhuma papelada oficial a respeito.

Ele suspirou novamente.

- Deve ter existido sim, há muito tempo. E deve ter ido parar no lixo, a esta altura. Vou te contar, às vezes eu fico até desconfiado. Alguns dos sujeitos que trabalham para a gente...

- Bom, outra hipótese é a do detetive Maclennan ter encaminhado as provas para outros testes adicionais e elas nunca mais terem voltado, porque ele não estava mais lá para cobrar. Ou então, desapareceram porque ele não estava mais lá para receber - sugeriu Karen, cautelosa.

- É uma possibilidade. Mas, de qualquer maneira, você não vai conseguir encontrá-las agora. - Lawson tamborilou os dedos na mesa. - Bom, então é isso. Um caso não resolvido que vai continuar mal resolvido. Não estou com a menor pressa de comunicar isso ao filho dela também. Ele tem ligado todos os dias, querendo saber em que pé estamos.

- Até agora não consigo acreditar que o patologista não percebeu que ela teve um filho - disse Karen.

- Na sua idade, eu diria a mesma coisa - admitiu Lawson. - Mas ele já era um senhor bem idoso e pessoas idosas podem cometer erros idiotas. Sei bem disso agora, porque estou indo pelo mesmo caminho. Sabe, às vezes fico me perguntando se este caso não estava fadado ao fracasso desde o início.

Karen podia perceber a sua decepção. E ela sabia bem o que era aquilo, pois sentia a mesma coisa.

- O senhor não acha que vale a pena conversar com as testemunhas novamente? Os quatro estudantes?

Lawson fez uma careta.

- Isso vai ser difícil.

- Como assim, senhor?

Ele abriu a gaveta e apanhou um exemplar do Scotsman, datado de três dias antes. Estava aberta na página dos obituários. Ele estendeu o jornal para Karen, apontando para uma notícia em particular.

KERR, DAVID MCKNIGHT. Comunicamos o falecimento do Dr. David Kerr, de Carden Grove, Bearsden, Glasgow, amantíssimo esposo de Hélène, irmão de Lynn e filho de Adam e Sheila Kerr, de Duddingston Drive, Kirkcaldy. O funeral será realizado na próxima quinta-feira, às 14:00, no Crematório de Glasgow, Western Necropolis, Tresta Road. Flores somente dos familiares.

Karen olhou para Lawson, surpresa.

- Mas ele não devia ter mais de quarenta e seis, quarenta e sete anos, não é? Muito jovem para morrer.

- Você devia prestar mais atenção nas notícias, Karen. Você não ficou sabendo do professor da Universidade de Glasgow que morreu esfaqueado na cozinha, atacado por um ladrão na noite de quinta-feira?

- Aquele era o nosso David Kerr? O que eles chamavam de Mondo?

Lawson assentiu.

- O diamante louco em pessoa. Falei com o detetive encarregado do caso na segunda-feira. Só para ter certeza absoluta. Parece que eles não estão nem um pouco convencidos de que foi mesmo um assalto. A mulher estava pulando a cerca.

Karen fez uma careta.

- Espertinha.

- Bastante. Então, quer dar um pulo em Glasgow hoje à tarde? Acho que seria de bom tom prestarmos as últimas homenagens a um de nossos suspeitos.

- O senhor acha que os outros três vão aparecer por lá?

Lawson deu de ombros.

- Eles eram muito amigos, mas isso foi há vinte e cinco anos. Vamos ter que pagar para ver, sabe? Mas acho que não vai dar para conversar com ninguém hoje. Vamos ter de esperar a poeira baixar. Afinal, não queremos ser acusados de insensíveis, não é mesmo?

O crematório estava lotado e as pessoas que não conseguiram um lugar para sentar tiveram de ficar em pé. Mondo podia até ter cortado os laços com a família e os velhos amigos, mas aparentemente não tivera muita dificuldade em substituí-los. Alex sentou-se no banco da frente, com Lynn aconchegada ao seu lado. Ela havia saído do hospital dois dias antes, mas ainda se movimentava como uma senhora de idade. Alex tentou convencê-la a ficar em casa descansando, mas ela não queria nem pensar em perder o funeral do seu único irmão. Além do mais, argumentara que sem o bebê em casa para tomar conta, ela ia ficar sentada olhando para ontem. Preferia estar perto da sua família. Alex não arrumara nenhum argumento para dissuadi-la. E lá estava ela, segurando a mão do pai, que estava em estado de choque, tentando confortá-lo em uma inversão dos tradicionais papéis de pai e filha. A sua mãe estava ao lado, com o rosto praticamente escondido atrás das dobras de um lenço branco.

Hélène estava sentada um pouco mais adiante, de cabeça baixa, ombros arriados. Ela parecia bastante fechada, como se houvesse colocado uma barreira entre si mesma e o mundo. Pelo menos tivera o bom senso de não chegar no funeral de braço dado com Jackie. Ela ficou de pé quando o pastor anunciou o cântico final.

A abertura sonora do salmo vinte e três fez com que Alex sentisse um bolo na garganta. O cântico começou um pouco vacilante enquanto as pessoas encontravam o tom, mas depois cresceu, envolvendo-o completamente. Que clichê, pensou ele, com raiva de si mesmo por estar comovido pelo tradicional hino fúnebre. A cerimônia de Ziggy fora muito mais honesta, uma homenagem de verdade e não aquela superficialidade arranjada às pressas. Pelo que ele sabia, Mondo jamais pisara em uma igreja, a não ser para os tradicionais ritos de passagem. As pesadas cortinas abriram-se e o caixão começou a sua viagem derradeira.

Os acordes do último verso foram morrendo conforme as cortinas iam se fechando, encobrindo o caixão. O pastor entoou a sua bênção, depois afastou-se pelo corredor central. Logo em seguida, a família e, por último, Alex amparando Lynn. A maioria dos rostos espalhados pelos bancos não passava de um borrão mas, entre eles, Alex reconheceu imediatamente a figura magricela de Esquisito. Cumprimentaram-se brevemente com um aceno de cabeça e Alex continuou caminhando até a porta. Um pouco antes de sair, teve uma segunda surpresa. Embora não visse James Lawson desde a época em que o chamavam de Jimmy, reconhecia o seu rosto dos jornais. Que mau gosto, pensou Alex, posicionando-se no final da fila dos cumprimentos. Casamentos e funerais exigem a mesma etiqueta: era preciso agradecer a presença das pessoas.

Parecia não acabar nunca mais. Sheila e Adam Kerr pareciam totalmente desnorteados. Perder um filho naquelas circunstâncias brutais já era ruim o bastante; pior ainda era ter de receber pêsames de gente que nunca haviam visto e que jamais veriam novamente. Alex gostaria de saber se eles sentiam algum conforto ao ver quantas pessoas haviam aparecido para dar o seu último adeus. Para Alex, aquilo só servia para fazer com que ele recordasse a distância que o separara de Mondo nos últimos anos. Não conhecia quase ninguém.

Esquisito fora um dos últimos na fila dos cumprimentos. Abraçou Lynn com delicadeza.

- Meus pêsames - disse ele. Apertou a mão de Alex e tocou levemente no seu cotovelo. - Estou te esperando lá fora. - Alex assentiu com a cabeça.

Finalmente, os últimos retardatários foram embora. Estranho, pensou Alex. Nada de Lawson. Ele deve ter saído por outra porta. Melhor assim. Tinha lá as suas dúvidas se conseguiria ser educado. Alex escoltou o sogro e a sogra até o carro funerário, avançando por um grupo cabisbaixo. Ajudou Lynn a entrar no carro, verificou se estava tudo direitinho e então disse:

- Encontro com vocês lá no hotel. Preciso me certificar de que está tudo bem por aqui.

Sentiu-se envergonhado ao experimentar uma sensação de alívio tão logo o carro afastou-se da calçada. Deixara o seu próprio carro ali mais cedo, para garantir que não ficaria a pé caso alguma coisa acontecesse após o funeral. Lá no fundo, sabia que fizera isso porque precisava de uma folga daquela dor sufocante que se abatera sobre a sua família.

Um tapinha no seu ombro fez com que ele virasse para trás.

- Ah, é você - disse ele, quase rindo de alívio ao ver o rosto de Esquisito.

- Ué, quem mais você pensava que fosse?

- Bem, Jimmy Lawson estava escondidinho lá atrás no crematório.

- Jimmy Lawson, o tira?

- Tira, uma vírgula. Subchefe de polícia James Lawson agora - disse Alex afastando-se da entrada principal e caminhando até o local onde estavam as flores.

- E o que ele veio fazer aqui?

- Tripudiar da gente. Sei lá. Ele está encarregado da revisão dos casos. Talvez quisesse dar uma olhadinha nos seus principais suspeitos, na esperança de que em um momento de comoção fôssemos nos ajoelhar e confessar nossos pecados.

Esquisito fez uma cara feia.

- Jamais gostei desta baboseira católica. Devemos ser adultos o suficiente para lidarmos com as nossas culpas. Não é tarefa de Deus zerar o nosso placar para que possamos voltar a pecar novamente. - Ficou mudo e virou-se para Alex. - Quero que você saiba que estou muito feliz por Lynn ter tido um bom parto e pelo nascimento da sua filha.

- Obrigado, Tom. - Alex abriu um sorriso. - Viu só? Eu me lembrei.

- O bebê ainda está no hospital?

Alex suspirou.

- Ela ainda está muito fraquinha, então vai ficar no hospital mais uns dias. Mas não é fácil, sabe? Principalmente para Lynn. Passar por tudo aquilo e ainda voltar para casa de mãos abanando. E ainda ter que lidar com o que aconteceu com Mondo...

- Vocês vão esquecer todo este sofrimento quando o bebê estiver em casa, eu prometo. Vou me lembrar de vocês em todas as minhas orações.

- E isso vai fazer a maior diferença, hein? - disse Alex.

- Você vai ficar surpreso - respondeu Esquisito, sem se ofender. Continuaram caminhando, olhando para as homenagens. Um sujeito abordou Alex, querendo saber como chegar ao hotel onde organizaram a recepção. Quando Alex se virou para Esquisito novamente, viu o amigo agachado em frente a um dos arranjos. Quando chegou perto o bastante para verificar o que havia chamado a atenção de Esquisito, sentiu o coração disparar no peito. Era um arranjo de flores idêntico ao que haviam visto em Seattle: uma elegante e bem armada coroa de rosas brancas e alecrim. Esquisito apanhou o cartão e ficou de pé. - A mesma mensagem - disse ele, passando o cartão para Alex. - Lembrança de Rosemary.

Alex estava suando frio.

- Não estou gostando nada disso.

- Nem eu. Isso aqui é coincidência demais, Alex. E tanto Ziggy como Mondo morreram em circunstâncias suspeitas... Que diabos, vamos falar a verdade: Ziggy e Mondo foram assassinados. E a mesma coroa aparece nos dois funerais. Com uma mensagem que tem a ver com nós quatro e o assassinato nunca resolvido de Rosie Duff.

- Mas isso já tem vinte e cinco anos. Se alguém quisesse se vingar, teria se vingado antes, você não acha? - disse Alex, tentando convencer Esquisito e a si mesmo. - Deve ser só alguém tentando nos assustar.

Esquisito balançou a cabeça.

- Você teve outras coisas para pensar nesses últimos dias, mas eu não consigo tirar isso da cabeça. Há vinte e cinco anos, todos estavam de olho na gente. Eu não me esqueci daquela surra que levei. Não me esqueci da noite em que jogaram Ziggy na Masmorra da Garrafa. Não me esqueci como Mondo ficou tão magoado que tentou até se matar. O único motivo de tudo aquilo ter acabado foi a ameaça que os policiais fizeram a Colin e Brian Duff. Eles foram obrigados a nos deixar em paz. Foi você mesmo quem me disse naquela época que Jimmy Lawson te contou que eles só desistiram da gente porque não queriam que a mãe sofresse mais ainda. Vai ver que resolveram esperar.

Alex balançou a cabeça.

- Mas vinte e cinco anos? É possível guardar um ressentimento por vinte e cinco anos?

- Eu não sou a pessoa certa para responder a esta pergunta. Mas tem muita gente aí que não aceitou Jesus Cristo como salvador e você sabe tão bem quanto eu, Alex, que pessoas assim são capazes de qualquer coisa. A gente não sabe o que se passou na vida deles. Talvez tenha acontecido alguma coisa e reacendido todo o ódio. Talvez a mãe tenha morrido. Talvez a revisão dos casos tenha feito com que se lembrassem que tinham contas a acertar e que agora era mais seguro tomar uma atitude. Eu não sei. O que eu sei é que isso está me parecendo que tem alguém atrás da gente. E, seja lá quem for, tem tempo e recursos a seu favor. - Esquisito olhou à sua volta, nervoso, como se o inimigo pudesse estar ali entre os presentes que se afastavam para pegar os seus carros.

- Agora você está paranoico. - Aquela não era exatamente uma das características da juventude de Esquisito que Alex gostaria de recordar naquele momento.

- Não acho, não. Acho que sou o único com bom senso aqui.

- Tá, e o que você sugere que a gente faça?

Esquisito apertou o casaco contra o peito.

- Pretendo me enfiar em um avião amanhã cedo e voltar para os Estados Unidos. Quando chegar lá, vou mandar minha mulher e meus filhos para algum lugar seguro. Existem bons cristãos morando no meio do mato. Ninguém vai encontrá-los.

- E você? - Alex podia sentir as suspeitas de Esquisito o contaminando como um vírus.

Esquisito abriu o seu familiar sorriso maroto.

- Eu vou para um retiro. Os fiéis entendem que, de vez em quando, nós temos que sumir do mapa para restabelecermos contato com a nossa espiritualidade. E é isso o que eu vou fazer. A melhor coisa de pregar na televisão é que você pode gravar o programa de qualquer lugar. Então o meu rebanho não vai se esquecer de mim enquanto eu estiver fora.

- É, mas você não pode passar a vida inteira se escondendo. Mais cedo ou mais tarde, vai ter que voltar para casa.

Esquisito concordou com um gesto de cabeça.

- Eu sei disso. Mas eu não vou ficar de braços cruzados, Alex. Assim que eu e minha família estivermos fora da linha de fogo, vou contratar um detetive particular e descobrir quem mandou a coroa para o funeral de Ziggy. Porque quando eu souber disso, vou saber quem procurar.

Alex exalou o ar nervosamente.

- Você já pensou em tudo, hein?

- Quanto mais eu pensava naquela coroa, mais ficava intrigado. E Deus ajuda a quem se ajuda, então eu arquitetei o meu plano. Por precaução. - Esquisito pousou a mão no braço de Alex. - Alex, eu sugiro que faça o mesmo. Você não tem que pensar só em você agora. - Esquisito lhe deu um abraço apertado. - Cuide-se, está bem?

- Comovente pra cacete - disse uma voz, asperamente.

Esquisito soltou Alex e olhou para trás. No início, não reconheceu o homem sorridente que os encarava. Mas logo a sua memória voltou no tempo e ele estava novamente do lado de fora do Lammas, aterrorizado e ferido.

- Brian Duff - disse Esquisito, ofegante.

Alex olhou para o amigo e para o sujeito na sua frente.

- Esse é o irmão de Rosie?

- Isso aí.

As emoções confusas que atormentavam Alex há dias subitamente se transformaram em ira.

- Veio aqui comemorar a desgraça alheia, né?

- Justiça poética, não é assim que se diz? Um assassino de merda vem dar o seu último adeus a outro. Podes crer, vim comemorar mesmo.

Alex investiu contra ele, mas Esquisito conseguiu conter o amigo segurando firmemente no seu braço.

- Deixa pra lá, Alex. Brian, nenhum de nós encostou em um fio de cabelo da sua irmã. Eu sei que você quer arrumar alguém em quem colocar a culpa, mas não fomos nós. Você precisa acreditar nisso.

- Não preciso acreditar em nada. - Ele cuspiu no chão. - Eu realmente esperava que os tiras fossem prender pelo menos um de vocês agora. Já que isso não vai acontecer mesmo, é melhor ver vocês morrendo.

- É claro que não vai acontecer. Nunca encostamos na sua irmã e tem o DNA agora para provar isso - gritou Alex.

Brian bufou.

- Que DNA? Os babacas perderam as provas.

Alex estava boquiaberto.

- O quê? - perguntou, quase sem voz.

- Isso mesmo que você ouviu. Vocês continuam salvos. - Brian contorceu a boca em um sorriso debochado. - Já o amiguinho de vocês não teve a mesma sorte, né? - Ele girou nos calcanhares e partiu, sem olhar para trás.

Esquisito balançou a cabeça lentamente.

- Você acredita nele?

- Por que ele mentiria? - suspirou Alex. - Pior é que eu realmente achava que agora a gente ia se livrar, sabe? Como é que eles podem ter sido tão incompetentes? Como é que foram perder a única prova que poderia ter colocado um fim em tudo isso? - Ele fez um gesto para a coroa de flores.

- Não sei por que você está tão surpreso. Até parece que naquela época eles foram muito eficientes. Por que seria diferente agora? - Esquisito puxou a gola do casaco. - Alex, sinto muito, mas eu preciso me mandar. - Despediram-se com um aperto de mãos. - Dou notícias.

Alex continuou imóvel no mesmo lugar, impressionado com a rapidez com que o seu mundo virara de cabeça para baixo. Se Brian Duff não estava mentindo, será que aquelas coroas sinistras tinham alguma coisa a ver com o que ele acabara de contar? E, se tivessem, será que o pesadelo não acabaria enquanto ele e Esquisito continuassem vivos?

Sentado em seu carro, Graham Macfadyen observava tudo. As coroas de flores eram um toque de gênio. E valia a pena aproveitar cada oportunidade para comprovar isso. Não pudera estar em Seattle para conferir o efeito da primeira, mas não tinha mais dúvidas de que Mackie e Gilbey tinham captado a mensagem daquela vez. E isso significava que havia de fato uma mensagem a ser captada. Sujeitos inocentes não teriam ficado tão apavorados com aquele lembrete.

Ver a reação dos dois praticamente compensou o repugnante desfile de hipocrisia que ele teve de aturar no crematório. O pastor obviamente não conhecera David Kerr em vida, então não era de admirar que tivesse conseguido transformá-lo em um santo após a morte. Mas Macfadyen ficara enojado ao ver como todos os presentes concordavam com a cabeça, engolindo aquela baboseira, suas expressões pias concordando com aquela ficção hipócrita.

Ficou imaginando como reagiriam se ele tivesse ido lá na frente e contado toda a verdade. "Senhoras e senhores, estamos reunidos aqui hoje para cremar um assassino. O homem que vocês pensavam que conheciam passou a sua vida adulta inteira mentindo para vocês. David Kerr fingia ser um respeitável membro da comunidade. Mas a verdade é que há muitos anos ele participou do estupro e do assassinato brutal da minha mãe, pelo qual nunca foi punido. Então, quando forem lembrar dele a partir de agora, lembrem-se disso." Ah, um discurso assim com certeza teria acabado com aquelas expressões de tristeza reverente. Ele quase desejou ter feito isso.

Mas teria sido uma alegria fugaz. Não era inteligente ficar se vangloriando antes da hora. Melhor permanecer nas sombras. Até mesmo porque o seu tio aparecera lá para falar por ele. Não fazia a menor ideia do que tio Brian tinha dito a Gilbey e a Mackie. Mas servira para fazer com que tremessem nas bases. Não tinham mais como esquecer o que fizeram anos atrás. Ficariam acordados naquela noite, se perguntando quando o passado finalmente os alcançaria. E esta era uma perspectiva agradável para Macfadyen.

Observou Alex Gilbey indo buscar o seu carro, aparentemente ignorando tudo ao seu redor. "Ele nem imagina que eu existo", murmurou ele. "Mas eu existo, Gilbey. Eu existo." Ligou o motor e partiu para a recepção dos convidados para o funeral. Era impressionante o quão fácil era infiltrar-se na vida das pessoas.


32

A enfermeira disse a eles que Davina estava fazendo progressos. Já conseguia respirar direitinho sem o oxigênio e a sua icterícia estava respondendo bem às luzes fluorescentes que iluminavam o seu pequeno leito o dia inteiro. Quando segurou a filha nos braços, Alex pôde esquecer a depressão que o funeral de Mondo trouxera consigo e a aflição que a reação de Esquisito às flores havia gerado. A única coisa melhor do que estar sentado com a sua mulher e sua filha na unidade neonatal seria estar fazendo exatamente a mesma coisa na sua própria casa. Assim pensava ele, pelo menos até ter conversado com Esquisito no crematório.

Como se tivesse lido a sua mente, Lynn levantou os olhos do bebê que amamentava para o marido.

- Mais alguns dias e já vamos poder levá-la para casa.

Alex sorriu, tentando esconder a inquietação provocada por aquelas palavras.

- Mal posso esperar - disse ele.

Mais tarde, voltando para casa em seu carro, ele pensou se deveria tocar no assunto das flores e da revelação que Brian Duff fizera. Mas não queria preocupar Lynn, então achou melhor não contar nada. Ela foi direto para a cama, exausta após um dia cansativo. Alex abriu uma garrafa de Shiraz especialmente boa, que estava guardando para uma noite em que eles precisassem ser mimados. Levou o vinho para o quarto e serviu um copo para ele e outro para Lynn.

- Você vai me contar o que está te preocupando? - perguntou Lynn assim que ele deitou ao seu lado sobre o cobertor.

- Estava só pensando em Hélène e em Jackie. Não consigo parar de imaginar que o assassinato de Mondo pode ter tido um dedinho de Jackie. Não que ela própria tenha cometido o crime. Mas parece que ela conhece gente capaz de realizar um serviço assim, desde que bem pago.

Lynn franziu a testa.

- Eu até chego a desejar que tenha sido ela mesmo. Aquela vagabunda da Hélène merece sofrer. Como é que ela podia trair Mondo e fingir que era a esposa perfeita?

- Acho que Hélène está sofrendo de verdade, Lynn. Eu acredito quando ela diz que o amava.

- Não me venha defender essa mulher!

- Não estou defendendo. Mas, seja lá o que esteja rolando entre ela e Jackie, ela parecia gostar dele. Isso é óbvio.

Lynn apertou os lábios.

- Bom, se você diz... Mas não é isso que está te incomodando. Alguma coisa aconteceu depois que saímos do crematório, antes de você chegar à recepção. Foi Esquisito? Ele disse alguma coisa que te deixou preocupado?

- Juro por Deus que você é uma feiticeira - reclamou Alex. - Não, não foi nada de mais, não. Só uma pulga que se alojou atrás da orelha de Esquisito.

- Deve ter sido uma pulga assassina de Alfa Centauro para te deixar desse jeito, quando existem outras coisas importantes acontecendo. Por que você não quer me contar? É coisa de homem?

Alex suspirou. Não gostava de esconder as coisas de Lynn. Nunca acreditara que ignorância era uma bênção, não em um casamento que deveria manter a igualdade.

- Mais ou menos. É que eu não quero te perturbar com isso, ainda mais com tudo que você tem na cabeça agora.

- Alex, com tudo o que tenho na cabeça agora, você não acha que um assunto novo seria bem-vindo?

- Não esse, linda. - Bebericou o vinho, saboreando o seu reconfortante buquê. Gostaria de poder canalizar toda a sua consciência na apreciação daquele vinho e esquecer tudo o que o cercava. - Tem coisas que a gente não precisa ficar sabendo.

- Por que não estou conseguindo acreditar em você? - perguntou Lynn, apoiando a cabeça no ombro do marido. - Vamos lá, conta logo. Você sabe que vai se sentir melhor depois.

- Pra falar a verdade, não sei, não. - Alex suspirou novamente. - Não sei, talvez eu devesse mesmo te contar. Você é a mais sensata, afinal de contas.

- Coisa que nunca pudemos falar de Esquisito, por sinal - comentou Lynn secamente.

Alex contou sobre as coroas de flores nos funerais, tentando amenizar ao máximo a história. Para sua surpresa, Lynn não se esforçou nem um pouco para descartar tudo como uma paranoia de Esquisito.

- Ah, então é por isso que você está tentando se convencer de que Jackie contratou um matador profissional - disse ela. - Não gosto nada disso. Esquisito tem razão de estar levando a sério.

- Mas pode ser que tenha uma explicação simples - protestou Alex. - Talvez alguém que conhecesse os dois.

- Do jeito como Mondo se afastou de todo o seu passado? As únicas pessoas que poderiam conhecer os dois teriam de ser de Kirkcaldy ou de St. Andrews. E todo mundo nesses dois lugares sabia da história de Rosie Duff. Não dá para esquecer uma coisa dessas. Muito menos se a pessoa os conhecesse bem o suficiente para mandar flores para o funeral, quando o obituário dizia "somente flores da família" - ponderou Lynn.

- Mesmo assim, isso não quer dizer que tem alguém atrás da gente - disse Alex. - Tudo bem, alguém queria tirar um sarro. Mas isso não significa que essa mesma pessoa cometeu dois assassinatos a sangue-frio.

Lynn balançou a cabeça, descrente.

- Alex, em que planeta você vive? Dá até para acreditar que alguém disposto a tirar um sarro possa ter lido as notícias sobre a morte de Mondo. Afinal, ele pelo menos morreu no mesmo país em que Rosie Duff foi assassinada. Mas como alguém ia ficar sabendo de Ziggy a tempo de mandar flores para o funeral nos Estados Unidos, a não ser que estivesse envolvido de algum jeito com a sua morte?

- Não sei. Mas o mundo é pequeno hoje em dia. Vai ver que a pessoa que mandou a primeira coroa tinha algum conhecido em Seattle. Talvez alguém de St. Andrews tenha se mudado para lá e encontrado com Ziggy na clínica. O nome dele não era lá muito comum, e ele era relativamente famoso naquelas redondezas. Você mesma sabe disso, sempre que a gente saía para comer com Ziggy e Paul lá em Seattle, aparecia alguém para cumprimentá-lo. As pessoas não se esquecem do médico que cuidou dos seus filhos. E se foi isso mesmo, nada mais natural do que mandar um e-mail para alguém aqui quando Ziggy morreu. Em um lugar como St. Andrews, notícias como essa se espalham rapidamente. Não é tão impossível assim, é? - A voz de Alex ia ficando mais aflita à medida que ele se esforçava para encontrar alguma solução que tornasse possível descartar a sugestão de Esquisito.

- É um pouco surreal, mas tudo bem. Mas você não pode deixar isso assim. Você não pode confiar em uma possibilidade ínfima. Você tem que fazer alguma coisa, Alex. - Lynn apoiou o seu copo e abraçou o marido. - Não dá para se arriscar, ainda mais com Davina vindo para casa daqui a pouco.

Alex esvaziou o seu copo, sem prestar mais atenção na qualidade do vinho.

- Mas o que você quer que eu faça? Que eu vá me esconder com você e Davina? Para onde nós iríamos? E o meu trabalho? Não dá para simplesmente abandonar tudo com uma criança para sustentar.

Lynn afagou a cabeça dele.

- Alex, vai com calma. Não estou falando para nos enfiarmos no fim do mundo, como Esquisito. Você me disse que Lawson estava lá no funeral hoje. Por que você não vai conversar com ele?

Alex bufou.

- Lawson? O cara que tentou me passar a perna com sopa de lentilhas e simpatia? O sujeito que tem tanta fixação, há tanto tempo, que fez questão de vir assistir a um de nós ser cremado? E você acha que ele vai me ouvir de bom grado?

- Lawson pode até ter as suspeitas dele, mas pelo menos ele te salvou quando você estava prestes a levar uma surra. - Alex deslizou pela cama, aninhando-se sobre a barriga de Lynn. Ela recuou, afastando-o. - Cuidado com a minha cicatriz - disse ela. Alex ajeitou-se, apoiando-se no braço dela.

- Ele vai rir na minha cara.

- Ou então vai levar você a sério o bastante para investigar essa história. Ele não tem nenhum interesse em fazer vista grossa para esse tipo de justiça com as próprias mãos, se for isso mesmo. Sem contar que isso deixaria a polícia mais na merda do que ela já está.

- Você não sabe da missa a metade - disse Alex.

- Como assim?

- Aconteceu outra coisa depois do funeral. O irmão de Rosie Duff apareceu por lá. E fez questão de mostrar para mim e para Esquisito que tinha ido lá para comemorar.

Lynn ficou chocada.

- Hum, Alex. Que horror. Para todos vocês. Coitado dele. Vai ver que não consegue esquecer até hoje.

- E isso não é tudo. Ele nos contou que a polícia de Fife perdeu as provas ligadas ao caso de Rosie. As provas com as quais estávamos contando para fazer o teste de DNA que nos inocentaria.

- Você está brincando.

- Quem dera.

Lynn sacudiu a cabeça.

- Mais um motivo para você ir falar com Lawson.

- E você acha que Lawson vai gostar de eu ir lá jogar isso na cara dele?

- Não estou nem aí para o que ele vai gostar ou não. Você precisa saber direitinho o que está acontecendo. Se realmente tem alguém atrás de vocês, pode estar sendo movido pela constatação de que a justiça não vai ser feita novamente. Ligue para Lawson amanhã de manhã. Marque um horário com ele. Eu vou ficar mais tranquila.

Alex rolou para fora da cama e começou a se despir.

- Se é isso o que você precisa, considere feito. Só não coloque a culpa em mim se ele por acaso decidir que o sujeito que está atrás da gente está certo e decidir me prender.

Para a surpresa de Alex, quando ele ligou para agendar um encontro com o subchefe de polícia Lawson, a secretária marcou para aquela mesma tarde. Ele ainda teve tempo de ir para o escritório por algumas horas, o que o deixou mais fora de controle do que estava antes. Gostava de estar sempre atento aos negócios, não porque desconfiasse dos seus funcionários, e sim porque ficar sem saber o que estava acontecendo o deixava inquieto. Mas estava completamente por fora nos últimos tempos e precisava correr atrás do tempo perdido. Copiou uma pilha de memorandos e relatórios em um CD, torcendo para conseguir arranjar um tempinho em casa mais tarde para se atualizar. Pegou um sanduíche para comer no carro e partiu de volta para Fife.

Foi conduzido a um escritório vazio, que media aproximadamente o dobro do seu. Os privilégios da hierarquia eram sempre mais visíveis nos cargos públicos, pensou ele, observando a mesa enorme, o mapa da região elaboradamente enquadrado na parede e as comendas de James Lawson ostensivamente exibidas. Sentou-se na cadeira reservada aos visitantes, achando graça ao perceber como ela era bem mais baixa do que a do outro lado da mesa.

Não precisou esperar por muito tempo. A porta atrás dele se abriu e Alex ficou de pé. O passar dos anos não fora generoso com Lawson, pensou ele. A sua pele estava enrugada e desgastada, com duas manchas nas bochechas, as veias rompidas - a marca de um homem que bebeu demais ou que passou muito tempo exposto aos inclementes ventos de Fife. Os olhos, no entanto, continuavam espertos, como Alex pôde notar enquanto Lawson o observava dos pés a cabeça.

- Sr. Gilbey - disse ele. - Lamento tê-lo feito esperar.

- Tudo bem. Sei que o senhor deve estar ocupado. Agradeço por ter me encaixado tão depressa.

Lawson passou por ele sem oferecer a mão para um cumprimento cordial.

- Sempre fico interessado quando alguém ligado a uma investigação deseja me ver. - Acomodou-se na sua cadeira de couro, ajeitando a jaqueta do seu uniforme.

- Vi o senhor no funeral de David Kerr - disse Alex.

- Tive que resolver umas coisas de trabalho lá em Glasgow. Aproveitei para prestar os meus últimos respeitos.

- Eu não sabia que a polícia de Fife tinha tanto respeito por Mondo - retrucou Alex.

Lawson fez um gesto impaciente com uma das mãos.

- Suponho que a sua visita esteja relacionada com a reabertura do caso de Rosemary Duff, não é?

- Indiretamente, sim. Como vai a investigação? Já fizeram algum progresso?

Lawson parecia irritado com as perguntas.

- Não posso discutir assuntos operacionais de um caso em processo de investigação justamente com alguém na sua posição.

- E qual é exatamente a minha posição? Será que o senhor ainda me considera um suspeito? - Alex era mais corajoso do que a sua versão de vinte e um anos e não ia deixar um comentário como aquele passar impunemente.

Lawson remexeu em uns papéis sobre a mesa.

- O senhor é uma testemunha.

- E as testemunhas não podem saber o que está acontecendo? Vocês não hesitam em dar notícias para a imprensa quando fazem algum progresso. Será que eu tenho menos direitos do que um jornalista?

- Eu também não falei nada sobre o caso de Rosie Duff com a imprensa - respondeu Lawson secamente.

- Será que é porque o senhor perdeu as provas?

Lawson olhou longa e fixamente para Alex.

- Sem comentários.

Alex balançou a cabeça.

- Isso não basta. Depois do que nós passamos, vinte e cinco anos atrás, acho que mereço algo mais. Rosie Duff não foi a única vítima naquela época, e o senhor sabe muito bem disso. Talvez seja a hora de eu procurar a imprensa e contar que continuo sendo tratado como um criminoso pela polícia depois de todos estes anos. E, aproveitando a viagem, eu podia contar como a polícia de Fife arruinou a revisão do caso de Rosie Duff perdendo uma prova crucial, que teria me inocentado e possivelmente apontado o verdadeiro assassino.

A ameaça deixou Lawson visivelmente desconfortável.

- Eu não lido bem com intimidações, Sr. Gilbey.

- Nem eu. Não mais. O senhor tem certeza de que quer se ver nas páginas de tudo quanto é jornal como o tira que invadiu o último adeus de uma família consternada ao seu filho assassinado? O mesmo filho cuja inocência continuava duvidosa, graças à incompetência do senhor e da sua equipe?

- O senhor não tem necessidade nenhuma de tomar esta atitude - disse Lawson.

- Ah, não? Pois eu acho que tenho toda a necessidade, sim. O senhor deveria estar conduzindo a revisão de um caso não resolvido aqui. Eu sou uma testemunha-chave. Eu sou o sujeito que encontrou o corpo. E, no entanto, nenhum policial de Fife entrou em contato comigo até agora. Isso não me parece dedicação, sabe? E agora eu ainda fico sabendo que o senhor não consegue sequer manter um saco de provas em segurança. Talvez eu devesse estar conversando com o oficial encarregado da investigação, e não com um burocrata que ainda se deixa influenciar pelo passado.

Lawson retesou o rosto.

- Sr. Gilbey, é verdade que tivemos um probleminha com as provas desse caso. Em algum momento, nos últimos vinte e cinco anos, as roupas de Rosie Duff se perderam. Ainda estamos tentando recuperá-las, mas, até agora, só conseguimos localizar aquele cardigã que foi encontrado longe da cena do crime. E não havia nenhum material biológico nele. Nenhuma das roupas que poderiam ser suscetíveis às técnicas forenses modernas está disponível para nós. Então, no momento, estamos de pés e mãos atados. Na verdade, a oficial encarregada do caso queria ter conversado com o senhor antes, para rever o seu depoimento antigo. Será que poderíamos agendar este encontro?

- Meu Deus do céu - disse Alex. - Finalmente vocês querem conversar comigo agora? O senhor não está entendendo, não é? Nós ainda estamos na mira. O senhor já parou para pensar que dois de nós quatro foram assassinados no último mês?

Lawson suspendeu as sobrancelhas.

- Dois?

- Ziggy Malkiewicz também morreu em circunstâncias suspeitas. Um pouco antes do Natal.

Lawson apanhou um bloco e abriu uma caneta-tinteiro.

- Isso é novidade para mim. Onde foi que isso aconteceu?

- Em Seattle, onde ele já estava morando há doze anos. Alguém plantou uma bomba de incêndio na casa dele. Ziggy morreu dormindo. O senhor pode verificar com a polícia local. O único suspeito que eles têm até agora é o parceiro de Ziggy, o que é ridiculamente absurdo.

- Sinto muito pelo Sr. Malkiewicz...

- Dr. Malkiewicz - interrompeu Alex.

- Pelo Dr. Malkiewicz - corrigiu-se Lawson. - Mas continuo sem perceber de que modo estas duas mortes estão ligadas ao assassinato de Rosie Duff.

- Foi exatamente por isso que eu quis conversar com o senhor hoje. Para explicar por que eu acho que existe uma ligação.

Lawson recostou-se na cadeira, entrelaçando os dedos.

- Sou todo ouvidos, Sr. Gilbey. Estou interessado em qualquer coisa que possa iluminar um pouco a escuridão em que nos encontramos.

Alex contou sobre as coroas de flores. Sentado ali, na sede da polícia, o seu relato lhe soou tolo. Podia sentir o ceticismo de Lawson enquanto se esforçava para dar peso a uma ocorrência tão banal quanto aquela.

- Eu sei que parece paranoia minha - concluiu ele. - Mas Tom Mackie está tão convencido disso que vai esconder a sua família e sumir também. Isso não é uma coisa que você faz sem pensar.

Lawson retribuiu com um sorriso amargo.

- Ah, sim. O Sr. Mackie. Isso está me cheirando a "drogas demais na década de setenta", sabe? Pelo que eu sei, o uso de alucinógenos pode causar paranoia a longo prazo.

- O senhor não acha que devemos levar isso a sério? Dois dos nossos amigos morreram em circunstâncias suspeitas. Dois sujeitos que levavam vidas respeitáveis, sem ligações criminosas. Que, aparentemente, não tinham inimigos. E, nos dois funerais, aparece uma coroa fazendo uma alusão direta a uma investigação de homicídio em que os dois foram considerados suspeitos?

- Nenhum de vocês foi tachado publicamente como suspeito. Fizemos o possível para proteger vocês quatro.

- Tudo bem. Mas mesmo depois disso, um dos seus oficiais morreu por causa da pressão que foi colocada sobre nós.

Lawson empertigou-se, bruscamente.

- Que bom que o senhor se lembra disso. Porque aqui neste prédio ninguém se esqueceu.

- Tenho certeza disso. Barney Maclennan foi a segunda vítima do assassino. E eu acho que Ziggy e Mondo foram vítimas também. Indiretamente, é claro. Mas eu acho que alguém os matou porque queria se vingar. E, se foi isso mesmo, então o meu nome está na lista também.

Lawson suspirou.

- Compreendo por que o senhor está reagindo assim. Mas não creio que alguém tenha embarcado em uma programação deliberada para se vingar de vocês quatro. Posso garantir que a polícia de Glasgow está conduzindo uma linha de investigação promissora que não tem nada a ver com o assassinato de Rosie Duff. Coincidências acontecem e estas mortes são a prova disso. Uma coincidência, nada mais. As pessoas não agem desta maneira, Sr. Gilbey. Ninguém esperaria vinte e cinco anos para se vingar.

- E os irmãos de Rosie? Eles estavam doidos para dar o troco na gente naquela época. O senhor me disse que chegou a alertá-los. Que os convenceu a não fazer nada para não causar mais sofrimento à mãe deles. A mãe ainda está viva? Será que eles estão livres para se vingar agora? Será que foi por isso que Brian Duff apareceu lá no funeral de Mondo para implicar com a gente?

- É bem verdade que o Sr. e a Sra. Duff já morreram. Mas acho que o senhor não tem com o que se preocupar em relação aos Duff. Estive com Brian há algumas semanas. Não acho que ele estava muito a fim de vingança, não. E Colin trabalha no Golfo. Ele esteve em casa para o Natal, mas não estava no país quando David Kerr morreu. - Lawson inspirou profundamente. - Ele se casou com uma oficial colega minha, Janice Hogg. A ironia é que foi ela quem salvou o Sr. Mackie quando ele foi atacado pelos dois irmãos. Ela abandonou a polícia depois do casamento, mas estou certo de que não encorajaria o marido a cometer uma infração deste porte. Com relação a isto, o senhor pode ficar tranquilo.

Alex reconheceu a convicção na voz de Lawson, mas não se sentiu muito aliviado.

- Brian não foi exatamente amigável ontem - disse ele.

- Sei, imagino que não. Mas, vamos e venhamos, nem Brian nem Colin têm o perfil do que chamaríamos um criminoso sofisticado. Se eles decidissem matar você e os seus amigos, provavelmente teriam adentrado em um bar lotado e estourado os seus miolos com uma espingarda. Planejamento elaborado nunca foi o estilo deles - concluiu Lawson, secamente.

- Então ficamos sem nenhum suspeito. - Alex revirou-se na cadeira, pronto para levantar.

- Em termos - disse Lawson baixinho.

- Como assim? - perguntou Alex, tomado de apreensão.

Lawson parecia arrependido, como se tivesse falado demais.

- Deixa para lá, eu só estava pensando alto.

- Peraí. O senhor não pode me dispensar assim. O que quis dizer com "Em termos"? - Alex inclinou-se, como se estivesse prestes a voar sobre a mesa e agarrar Lawson pelas suas imaculadas lapelas.

- Eu não devia ter dito isso. Desculpe, estou só pensando como um policial.

- Mas não é para isso que o senhor é pago? Vamos lá, pode desembuchar.

Os olhos de Lawson oscilaram de um lado para o outro, como se ele estivesse procurando uma saída alternativa, que não o obrigasse a ter de passar por Alex. Ele passou a mão sobre o lábio superior e suspirou profundamente.

- O filho de Rosie - disse ele.


33

Lynn olhou estarrecida para Alex, sem parar de ninar gentilmente a filha no colo.

- Repete - pediu ela.

- Rosie teve um filho. Ninguém ficou sabendo na época. Sabe-se lá por quê, o legista não percebeu na autópsia. Lawson mesmo admitiu que o sujeito já estava mais para lá do que para cá, era velho e chegado numa bebida. Mas, em sua defesa, ele disse que era possível que a ferida tivesse escondido qualquer vestígio de que ela dera à luz. A família, obviamente, não quis dizer nada porque tinham certeza de que se as pessoas ficassem sabendo que Rosie tinha um filho ilegítimo, ela seria instantaneamente retratada como uma mãe precoce qualquer. Ela passaria de vítima inocente a uma garota que teve o que bem mereceu. Eles estavam desesperados para proteger o nome de Rosie. Não podemos culpá-los por isso.

- Eu não culpo mesmo. Basta ver como a imprensa pintou vocês; qualquer um teria feito a mesma coisa. Mas como foi que ele surgiu agora?

- Segundo Lawson, ele foi adotado. Ano passado, ele resolveu pesquisar sobre a sua mãe verdadeira. Acabou encontrando a mulher que cuidava do abrigo onde Rosie ficou durante a gravidez e foi então que ele descobriu que não ia ter um reencontro familiar afinal.

Davina gemeu e Lynn colocou o seu dedo mindinho na boca da filha, sorrindo para ela.

- Deve ter sido horrível para ele. Tem que ter muita coragem para procurar a mãe verdadeira. Afinal, ela já te rejeitou uma vez, sabe Deus por quê, e você está se colocando numa posição em que pode ser rechaçado novamente. Mas você precisa, ao mesmo tempo, nutrir a esperança de que a mãe vai recebê-lo de braços abertos.

- Pois é. E o pior deve ser descobrir que alguém o privou desta oportunidade vinte e cinco anos atrás. - Alex inclinou-se para a frente. - Posso segurá-la um pouquinho?

- Claro. Ela acabou de mamar, então deve dormir um pouquinho. - Lynn afrouxou delicadamente as suas mãos sob a filha, passando-a para Alex como se ela fosse a coisa mais valiosa e frágil do mundo. Ele deslizou a mão por baixo do pescoço delicado do bebê e o colocou no colo. Davina resmungou baixinho, depois se acomodou. - Então Lawson acha que o filho dela está atrás de você?

- Lawson não acredita que tenha alguém atrás de mim. Ele acha que eu sou um doido paranoico fazendo tempestade em copo d’água. Ele ficou extremamente constrangido por ter deixado escapar essa história do filho de Rosie e ficou tentando me convencer de que ele era incapaz de matar uma mosca. O nome dele é Graham, por sinal. Lawson não quis me dar o sobrenome de jeito nenhum. Ao que parece, ele trabalha com tecnologia de informação. Calmo, estável, um sujeito normal - disse Alex.

Lynn balançou a cabeça.

- Não consigo acreditar que Lawson não está dando a devida importância. Quem ele acha que mandou as coroas, então?

- Ele não sabe, e nem quer saber. Ele só está preocupado com a sua super-revisão que está indo por água abaixo.

- Eles são incapazes de administrar uma limpeza, quanto mais uma investigação de assassinato. Como foi que ele explicou a perda de uma caixa inteira de provas?

- Eles não perderam a caixa toda. Eles ainda têm o cardigã. Ao que parece, foi encontrado separadamente. Jogado sobre o muro, no jardim de um fulano qualquer. Foi submetido aos testes depois do resto das roupas de Rosie, vai ver que foi por isso que acabou separado do resto do material.

Lynn franziu a testa.

- Foi encontrado depois? Não teve uma segunda busca na casa de vocês? Eu me lembro vagamente do Mondo reclamando que eles reviraram tudo de novo, semanas após o assassinato.

Alex esforçava-se para lembrar.

- Depois da primeira busca... é, eles voltaram depois do Ano-Novo. Rasparam tinta das paredes e do teto. E queriam saber se nós tínhamos feito alguma reforma na casa. - Alex bufou. - Até parece. E Mondo disse que ouviu um deles falando sobre um cardigã. Ele achou que estavam procurando alguma peça de roupa nossa. Mas não era isso, é claro! Eles estavam falando sobre o cardigã de Rosie - concluiu ele, triunfante.

- Então devem ter encontrado alguma tinta no cardigã dela - disse Lynn, pensativa. - Por isso que eles estavam colhendo amostras.

- Sim, mas eles não conseguiram nada na nossa casa. Caso contrário, estaríamos ainda mais ferrados.

- Será que eles fizeram uma nova análise? Lawson disse alguma coisa?

- Não especificamente. Ele só comentou que eles não tinham nenhuma das roupas que poderiam ser submetidas a análise.

- Isso é ridículo. É possível fazer muitas coisas com tinta hoje em dia. Eu consigo muito mais informação dos laboratórios agora do que conseguia há três ou quatro anos. Eles deveriam estar testando isso. Você tem que voltar lá e falar com ele.

- Mas não adianta nada fazer uma análise se eles não tiverem nada para comparar com o resultado. Lawson não vai tomar providências só porque eu pedi.

- Mas você não disse que ele queria resolver este caso?

- Lynn, se isso fosse adiantar alguma coisa, eles já teriam feito.

Lynn corou com uma súbita raiva.

- Meu Deus, Alex, escuta o que você está falando. Você vai ficar sentado esperando outra bomba estourar em cima da gente? O meu irmão morreu. Alguém invadiu a casa dele na maior cara de pau e o matou. A única pessoa que podia te ajudar acha que você está paranoico. Eu não quero que você morra, Alex. Não quero que a nossa filha cresça sem ter uma lembrança do pai.

- E você acha que eu quero isso? - Alex apertou a filha contra o peito.

- Então para de ser tão frouxo. Se você e Esquisito estiverem certos, a pessoa que matou Ziggy e Mondo vai vir atrás de vocês dois. O único jeito de vocês se safarem é o assassino de Rosie ser finalmente descoberto. Já que Lawson não vai se mexer, talvez você devesse tentar. Você tem a melhor motivação do mundo em seus braços agora.

Alex não podia negar. Estava à flor da pele desde o nascimento de Davina, o tempo todo impressionado com a profundidade dos seus sentimentos.

- Eu sou um fabricante de cartões, Lynn, não um detetive - protestou ele, desanimado.

Lynn lançou um olhar indignado para ele.

- E quantas vezes as falhas da justiça foram corrigidas por um zé-ninguém insistente?

- Não sei nem por onde começar.

- Você se lembra daquela série sobre ciência forense que passou na tevê uns anos atrás?

Alex resmungou. Nunca se deixara contaminar pelo fascínio que as tramas de suspense na televisão ou no cinema exerciam sobre a sua mulher. Normalmente, durante um especial de duas horas com Frost, Inspetor Morse ou Wexford, ele apanhava um bloco de papel e trabalhava algumas ideias para novos cartões.

- Vagamente - respondeu ele.

- Eu me lembro de um dos cientistas forenses dizendo que eles costumavam deixar algumas informações de fora em seus relatórios. Vestígios de provas que não puderam ser analisados, coisas assim. Se não vai servir para ajudar os investigadores, eles nem incluem no laudo. Acho que é para evitar que a defesa confunda a cabeça dos jurados.

- Tá, mas não sei em que isso pode nos ajudar. Mesmo que nós conseguíssemos ter acesso aos relatórios originais, não teríamos como saber o que ficou de fora, não é?

- Não. Mas talvez, se conseguíssemos localizar o sujeito que assinou o relatório, ele talvez pudesse lembrar de alguma coisa que desistiu de acrescentar naquela época por parecer pouco importante, mas que de repente pode ajudar a gente agora. Talvez ele tenha até guardado as anotações pessoais dele. - A raiva de Lynn transformara-se em entusiasmo. - O que você acha?

- Eu acho que os hormônios mexeram com o seu cérebro - disse Alex. - Você acha que se eu ligar para Lawson e perguntar quem assinou o relatório forense ele vai me dizer?

- Para você, é claro que não. - Lynn entortou os lábios, com cara de nojo. - Mas, para um jornalista...

- Os únicos jornalistas que eu conheço escrevem amenidades para os suplementos de domingo - ponderou Alex.

- Ué, liga para eles e pergunta se alguém tem um colega que possa te ajudar. - Lynn falou com um ar decisivo. Quando ela estava daquele jeito, não adiantava tentar discutir e Alex sabia disso. Mas, enquanto se resignava com a ideia de ter de sondar os seus contatos, teve uma ideia. Talvez ele pudesse matar dois coelhos com uma cajadada só. Obviamente, podia dar tudo errado. Mas só havia uma maneira de descobrir.

Estacionamentos de hospitais eram ótimos pontos de observação, pensou Macfadyen. Pródigos em idas e vindas, com várias pessoas sentadas dentro de seus carros, esperando. Boa iluminação, o que garantia ver a sua presa entrando e saindo. E ninguém prestava atenção em ninguém; era possível ficar lá durante horas a fio sem levantar suspeita. Exatamente o contrário das ruas residenciais, onde todo mundo quer saber da vida do outro.

Perguntava-se quando Gilbey poderia levar a filha para casa. Tentou ligar para o hospital para sondar, mas eles não colaboraram muito; limitaram-se a informar que o bebê passava bem. As pessoas responsáveis por crianças andavam muito cautelosas ultimamente.

O ressentimento que sentia pela filha de Gilbey era impressionante. Ninguém viraria as costas para aquela criança. Ninguém ia abandoná-la nas mãos de estranhos. Estranhos que a criariam em um estado permanente de ansiedade, de medo de fazer alguma coisa que despertasse uma ira arbitrária contra ela. Os seus pais não o haviam maltratado, não no sentido de agressões físicas. Mas deixaram que ele se sentisse constantemente carente, constantemente errado. E eles não haviam sequer hesitado em culpar o seu sangue ruim por todos os seus deslizes. Mas ele perdera muito mais do que carinho e amor. As histórias familiares que haviam lhe contado quando criança eram histórias de outras pessoas, não dele. Desconhecia a sua própria história.

Jamais poderia olhar-se no espelho e buscar uma semelhança com as feições de sua mãe. Jamais perceberia aquelas estranhas congruências que acontecem nas famílias, quando uma criança repete as reações dos seus pais. Estava à deriva, em um mundo isolado. A única família que lhe restara não queria saber dele.

E agora, para completar, a filha de Gilbey teria tudo o que lhe fora negado, apesar de o pai ter sido o responsável por tudo o que ele perdera. Macfadyen não se conformava com aquilo e a amargura roía as entranhas da sua alma ressequida. Não era justo. Aquela criança não merecia ir para um lar seguro, cheio de amor.

Estava na hora de começar a fazer planos.

Esquisito beijou cada um de seus filhos e viu-os entrar no furgão da família. Não sabia quando os veria novamente e ter de se despedir naquelas circunstâncias deixou-o com um vazio no peito. Mas ele sabia que aquela dor era mínima se comparada ao que ele sentiria se não fizesse nada e, com sua omissão, visse algo acontecer aos seus filhos. Bastavam algumas horas de carro e estariam salvos na montanha, protegidos pela barricada de um grupo evangélico que morava lá, cujo líder fora diácono na igreja de Esquisito. O governo federal não encontraria os seus filhos lá; muito menos um assassino vingativo fazendo justiça com as próprias mãos.

Uma parte dele achava que estava exagerando, mas ele não estava preparado para lhe dar ouvidos. Anos de conversas com Deus haviam lhe rendido uma certa segurança para tomar decisões. Esquisito envolveu a mulher em seus braços e a apertou contra o peito.

- Obrigado por levar tudo isso a sério - agradeceu ele.

- Sempre levei você a sério, Tom - murmurou ela, acariciando a sua camisa de seda. - Quero que você me prometa que vai cuidar tão bem de si mesmo quanto está cuidando de nós.

- Só preciso dar um telefonema e já estou de saída também. Vou para um lugar onde não vai ser fácil me seguir ou me encontrar. Vamos ficar quietinhos por um tempo, confiar em Deus, e tenho certeza de que vamos superar esta ameaça. - Ele se inclinou e beijou a mulher, longa e ardentemente. - Vá com Deus.

Deu um passo para trás e ficou observando enquanto ela entrava no carro e dava partida no motor. As crianças acenaram para ele, animadas com a perspectiva de uma aventura que lhes daria férias da escola. O clima ingrato das montanhas não seria nada fácil, mas sabia que tudo daria certo. Acompanhou o furgão até o fim da rua e depois voltou depressa para dentro de casa.

Um colega de Seattle lhe arrumara um detetive particular de confiança, bem discreto. Esquisito ligou para o celular dele e esperou.

- Alô, aqui é Pete Makin - disse a voz do outro lado da linha, com um sotaque americano.

- Sr. Makin? O meu nome é Tom Mackie. Reverendo Tom Mackie. Quem me passou o número do senhor foi o reverendo Polk.

- Eu realmente aprecio um pastor que arruma trabalho para o seu rebanho - disse Makin. - Em que posso ajudá-lo, reverendo?

- Preciso descobrir quem enviou uma determinada coroa de flores para um funeral a que eu compareci recentemente, aí na sua área. Isso é possível?

- Acho que sim. O senhor tem algum detalhe específico para me informar?

- Não sei o nome do florista que fez o arranjo, mas era bem sofisticado. Rosas brancas e alecrim. Estava escrito no cartão "Lembrança de Rosemary".

- "Lembrança de Rosemary"... - repetiu Makin. - Tem razão, é meio estranho mesmo. Nunca vi nada parecido. Quem fez o arranjo com certeza deve se lembrar. O senhor pode me informar quando e onde ocorreu o funeral?

Esquisito deu as informações, soletrando cuidadosamente o nome de Ziggy.

- De quanto tempo você vai precisar para me dar uma resposta?

- Bom, isso depende. A funerária talvez possa me passar uma lista dos floristas que normalmente trabalham com eles. Mas se não for possível, vou ter que vasculhar uma área relativamente ampla. Isso pode demorar algumas horas ou alguns dias. Se o senhor me passar o seu telefone, posso lhe manter informado.

- Vai ser meio complicado me achar. Mas posso dar um jeito de te ligar todos os dias, pode ser?

- Por mim, tudo bem. Mas vou precisar de um adiantamentozinho para começar o serviço.

Esquisito deu um sorriso irônico. Ultimamente, não se podia confiar nem nos sujeitos de batina.

- Mando para você. De quanto acha que vai precisar?

- Quinhentos dólares são o suficiente. - Makin passou os detalhes do pagamento para Esquisito. - Assim que estiver com o dinheiro, começo a trabalhar. Obrigado, reverendo.

Esquisito desligou, estranhamente confiante após aquela conversa. Pete Makin não perdera tempo querendo saber o porquê daquela investigação, nem tentou valorizar o seu serviço tornando-o mais difícil do que era na realidade. Era um homem confiável, pensou. Subiu as escadas e trocou de roupa em seu quarto, despindo os hábitos clericais e enfiando-se em uma calça jeans, uma camisa de flanela bege e uma jaqueta de couro leve. Já tinha arrumado a sua bolsa; a única coisa que faltava apanhar era a Bíblia que ficava na mesa de cabeceira. Colocou-a num dos compartimentos da bolsa, contemplou o quarto familiar por alguns momentos e fechou os olhos para uma breve oração.

Uma hora depois, estava saindo do estacionamento sem limite de tempo do aeroporto de Atlanta. Chegara bem na hora do voo para San Diego. Naquela mesma noite, já teria cruzado a fronteira e estaria hospedado anonimamente em um hotel chinfrim em Tijuana, México. Aquele não era o tipo de lugar que ele escolheria normalmente, o que o tornava ainda mais seguro.

Fosse lá quem estivesse atrás dele, não o encontraria justo ali.

Jackie olhou fixamente para Alex.

- Ela não está aqui.

- Eu sei disso. É com você mesma que eu quero falar.

Ela bufou, com os braços cruzados sobre o peito. Desta vez, estava usando uma jaqueta de couro e uma camiseta preta colada no corpo. Um piercing de diamante brilhava em sua sobrancelha.

- Veio me colocar contra a parede, né?

- O que te faz pensar que isso é da minha conta? - perguntou Alex, friamente.

Ela arqueou as sobrancelhas.

- Você é homem, escocês, e ela é da sua família.

- Esta sua arrogância não vai te levar a lugar nenhum. Olha, estou aqui porque eu acho que podemos trocar uns favores.

Jackie inclinou a cabeça, adotando um ar insolente.

- Não transo com homens. Você ainda não sacou isso?

Exasperado, Alex virou-se para ir embora. Perguntou-se se valia a pena arriscar a ira de Lynn para fazer aquilo.

- Estou perdendo o meu tempo aqui. Só achei que você poderia gostar de uma sugestão para se livrar da polícia.

- Peraí. Você está me oferecendo uma saída?

Alex estacou, com um dos pés na escada.

- Não é por causa do seu charme natural, Jackie. É porque também vai me dar paz de espírito.

- Mesmo achando que eu posso ter matado o seu cunhado.

Alex resmungou.

- Pode acreditar, eu dormiria muito melhor se realmente conseguisse acreditar nisso.

Jackie reagiu, impaciente.

- Ah, é, né? Porque aí a sapatão ia ter o que merece.

Irritado, Alex a interrompeu.

- Será que dá para colocar os seus preconceitos de lado por cinco minutos? Eu só ficaria feliz se você fosse mesmo a assassina porque aí eu estaria seguro.

Jackie inclinou a cabeça, intrigada apesar da sua resistência.

- Isso é uma coisa muito estranha de se dizer.

- Não quer conversar sobre isso aí dentro?

Ela fez um gesto vago para a porta e deu um passo para trás.

- É melhor você entrar. Como assim, "seguro"? - perguntou ela enquanto ele se acomodava na cadeira mais próxima.

- Tenho uma teoria sobre a morte de Mondo. Não sei se você sabe, mas um outro amigo meu foi assassinado em circunstâncias suspeitas algumas semanas atrás.

Jackie fez um gesto afirmativo com a cabeça.

- Hélène comentou. Foi um cara que estudou com você e David na universidade, não foi?

- Nós crescemos juntos. Nós quatro. Éramos melhores amigos na escola e fomos para a universidade juntos. Uma noite, quando voltávamos bêbados de uma festa, nos deparamos com uma moça...

- Eu sei disso também - interrompeu Jackie.

Alex ficou surpreso ao constatar o quão aliviado se sentia por não ter de relembrar todos os detalhes que se seguiram à morte de Rosie.

- Ótimo. Então você já sabe da história. Bem, sei que isso pode parecer maluquice, mas eu acho que Mondo e Ziggy foram assassinados por alguém que está tentando se vingar pela morte de Rosie Duff. A garota que morreu - completou ele.

- Por quê? - Mesmo sem querer, Jackie estava compenetradíssima, inclinada para a frente com os cotovelos apoiados nos joelhos. A perspectiva de uma boa história era forte o bastante para colocar a sua hostilidade em segundo plano.

- Pode até parecer insignificante - disse Alex e, em seguida, contou-lhe sobre as coroas de flores. - O nome dela era Rosemary - concluiu ele.

Jackie levantou as sobrancelhas.

- Credo, que troço sinistro - disse ela. - Nunca vi nenhuma coroa assim. Fica meio complicado de entender se você não capta a referência ao nome da garota. Estou vendo agora por que você está tão grilado.

- É, mas a polícia não viu. Eles me trataram como se eu fosse uma velhinha com medo do escuro.

Jackie grunhiu, debochada.

- Bom, nós dois sabemos como a polícia é esperta. E então, o que você acha que eu posso fazer?

Alex ficou constrangido.

- Lynn imaginou que se conseguíssemos descobrir quem realmente matou Rosie naquela época, a pessoa que está tentando se vingar da gente ia ter que desistir. Antes que seja tarde demais para mim e para Tom Mackie.

- Faz sentido. Você não consegue convencer a polícia a reabrir o caso? Com a tecnologia que eles têm atualmente...

- O caso já foi reaberto. A polícia de Fife está fazendo uma revisão dos casos não resolvidos e este é um deles. Mas eles estão no maior impasse, principalmente porque perderam as provas. Lynn imaginou que se nós conseguíssemos encontrar o cientista forense que assinou o laudo original, ele poderia informar se deixou alguma coisa de fora do relatório.

Jackie concordou com um gesto de cabeça.

- Às vezes eles deixam coisas de fora mesmo, para evitar que a defesa tenha vantagem. Então você quer que eu encontre esse sujeito e entreviste ele?

- Algo assim. Achei que você poderia fingir que estava fazendo uma matéria minuciosa sobre o caso, com enfoque na investigação daquela época. Será que você não consegue convencer a polícia a te dar acesso ao material que eles se recusaram a me mostrar?

Ela deu de ombros.

- Vale a pena tentar.

- Então, você pode fazer isso?

- Vou ser franca com você, Alex. Eu não tenho o menor interesse em salvar a sua pele. Mas você está certo: eu também tenho muito a perder. Te ajudando a descobrir quem matou David, eu tiro o meu da reta. E então, com quem eu devo falar?


34

O recado na mesa de James Lawson dizia apenas: "A equipe da revisão dos casos gostaria de vê-lo assim que possível." Não parecia ser notícia ruim. Quando entrou na sala da sua equipe, com um ar de otimismo cuidadoso, percebeu imediatamente que tinha razão, ao ver uma garrafa de uísque Famous Grouse e meia dúzia de copinhos de plástico na mão dos detetives. Lawson abriu um sorriso.

- Isso aqui está me cheirando a comemoração - disse ele.

O detetive-inspetor Robin Maclennan deu um passo à frente, oferecendo-lhe o uísque.

- Acabei de receber notícias da polícia de Manchester. Eles prenderam um sujeito, suspeito de estupro há algumas semanas em Rochdale. Quando verificaram os resultados do exame de DNA no computador, foi batata.

Lawson estacou.

- Lesley Cameron?

Robin concordou com a cabeça.

Lawson apanhou a dose de uísque e suspendeu o seu copo em um brinde silencioso. Assim como o caso de Rosie Duff, ele jamais esqueceria o assassinato de Lesley Cameron. Aluna da universidade, ela havia sido estuprada e estrangulada quando voltava para o seu alojamento. Assim como com Rosie, jamais encontraram o assassino. Durante algum tempo, os detetives chegaram a tentar estabelecer uma relação entre os dois casos, mas não havia semelhanças suficientes para justificar uma ligação entre eles. Não bastava alegar que não houvera mais nenhum estupro seguido de morte em St. Andrews durante aquele período. Trabalhara como detetive assistente naquela época e se lembrava bem da polêmica. Pessoalmente, jamais acreditara na teoria que os dois crimes estavam de alguma forma relacionados.

- Lembro-me muito bem desta história - disse ele.

- Submetemos as roupas da vítima ao exame de DNA, mas não tivemos nenhum resultado do sistema - continuou Robin e o seu rosto esquálido revelou, em um sorriso, rugas previamente desconhecidas. - Então eu deixei de lado por um tempo e continuei verificando os infratores sexuais subsequentes. Não deu em nada. Mas aí, recebemos esta ligação da polícia de Manchester. Parece que temos um resultado.

Lawson deu um tapinha no ombro do detetive.

- Bom trabalho, Robin. Você vai até lá para o interrogatório? - perguntou ele.

- Com certeza. Mal posso esperar para ver a cara do canalha quando ele souber que eu quero interrogá-lo.

- Estas são boas notícias mesmo. - Lawson sorriu para o resto da equipe. - Viram só? Basta uma tacada de sorte e vocês chegam lá. Como vocês estão indo? Karen, você conseguiu alguma coisa com o ex-namorado de Rosie Duff? O tal que a gente acha que é o pai de Macfadyen?

Karen fez um gesto com a cabeça.

- John Stobie. Os policiais locais foram dar uma palavrinha com ele. E eles também conseguiram um resultado, de certa forma. Parece que Stobie tem o álibi perfeito. Ele quebrou a perna em um acidente com a sua moto no final de novembro de 78. Na noite em que Rosie foi assassinada, ele estava usando um gesso da coxa até o pé. Ou seja, jamais poderia estar correndo em St. Andrews no meio de uma tempestade de neve.

Lawson suspendeu as sobrancelhas.

- Qualquer um podia ver que Stobie tinha ossos frágeis mesmo. Eles devem ter verificado o prontuário médico, não é?

- Stobie deu permissão. E parece que ele estava falando a verdade mesmo. Então, podemos colocar um ponto final nesta história.

Lawson virou-se disfarçadamente, separando-se com Karen dos outros.

- Tudo bem, Karen. - Ele suspirou. - Talvez eu devesse colocar Macfadyen em contato com Stobie. Talvez ele até me desse um descanso.

- Ele ainda está perturbando o senhor?

- Algumas vezes por semana. Estou começando a achar que seria melhor se ele não tivesse aparecido do nada.

- Bom, eu ainda preciso conversar com as outras três testemunhas - disse Karen.

Lawson mudou de expressão.

- Na verdade, são só duas agora. Ao que parece, Malkiewicz morreu em um incêndio bem suspeito, um pouco antes do Natal. E Alex Gilbey enfiou na cabeça que, agora que David Kerr também foi assassinado, tem um justiceiro maluco solto por aí, matando um por um.

- O quê?

- Ele veio me procurar uns dias atrás. É paranoia pura e eu não quis encorajá-lo. Então, é melhor você deixar as testemunhas pra lá. Não acho que vai ajudar muito, depois de tanto tempo.

Karen pensou em discordar. Não que ela imaginasse que algo significante fosse resultar das suas conversas, mas uma detetive determinada como ela não ficava à vontade com a ideia de deixar uma possibilidade inexplorada.

- O senhor não acha que ele pode ter razão? Quer dizer, é coincidência demais, né? Primeiro, Macfadyen aparece e descobre que não temos a menor esperança de encontrar o assassino da mãe. Depois, dois dos suspeitos originais do caso são assassinados.

Lawson girou os olhos.

- Você está enfornada demais nesta sala de investigação, Karen. Está começando a alucinar. Lógico que Macfadyen não está por aí, dando uma de Charles Bronson. Ele é um profissional respeitável, pelo amor de Deus, não um psicopata. E não vamos insultá-lo com um interrogatório sobre dois crimes que sequer aconteceram na nossa circunscrição.

- Está bem, senhor - suspirou Karen.

Lawson apoiou a mão no braço dela, em um gesto paternal.

- Vamos esquecer um pouquinho de Rosie Duff por enquanto, está bem? Não estamos chegando a lugar algum. - Lawson voltou para o grupo. - Robin, a irmã de Lesley Cameron não é especialista em traçar perfis de criminosos?

- Sim, senhor. Dra. Fiona Cameron. Ela esteve envolvida com o caso de Drew Shand há alguns anos, em Edimburgo.

- Estou me lembrando. Bom, talvez você devesse fazer uma visitinha. Avisar a ela que estamos investigando um suspeito. E não deixe de avisar a imprensa também. Mas só depois de falar com a dra. Cameron. Não quero que ela fique sabendo primeiro pelos jornais. - Era claramente o fim daquela conversa. Lawson terminou o seu uísque e dirigiu-se para a porta. Estacou sob o portal e virou-se para trás. - Bom trabalho, Robin. Isso é bom para todos nós. Obrigado.

Esquisito empurrou o prato sobre a mesa. Comida engordurada para turistas, e com porções tão generosas que poderiam alimentar uma família inteira de mexicanos pobres por uns dois dias, pensou ele, sentido. Não suportava o fato de ter sido bruscamente arrancado da sua rotina. Todas as coisas que tornavam a sua vida agradável pareciam um sonho distante agora. E o conforto que podia ser extraído somente da fé tinha lá os seus limites. Era uma prova, se algum dia precisasse dela, de que estava aquém dos seus próprios ideais.

Enquanto o garçom retirava os resquícios do seu especial de burrito, Esquisito pegou o celular e ligou para Pete Makin. Após os cumprimentos iniciais, ele foi direto ao assunto.

- Conseguiu alguma coisa? - perguntou ele.

- Só consegui eliminar algumas possibilidades. A funerária me deu o nome das três lojas que normalmente trabalham para eles. Mas nenhuma delas montou o tal arranjo que o senhor descreveu para mim. E todas concordaram que parece estranho mesmo, que não é comum. Seria algo que eles com certeza se lembrariam se tivesse sido encomendado.

- E agora, então?

- Bom - rateou Makin. - Acho que temos uns cinco ou seis floristas aqui nas imediações. Eu vou checar todos eles, ver se descubro alguma coisa. Mas vai levar um dia ou dois. Amanhã, tenho que comparecer ao tribunal, vou depor em um caso de fraude. Pode ser que não dê tempo. Mas pode ficar tranquilo, reverendo. No dia seguinte, mando bala.

- Obrigado por ser tão direto, Sr. Makin. Volto a ligar daqui a alguns dias, para ver se o senhor já tem alguma novidade. - Esquisito guardou o celular de volta no bolso. Ainda não tinha chegado ao fim. Não estava sequer perto.

Jackie colocou pilhas novas no seu gravador, verificou se tinha canetas na bolsa e depois partiu em seu carro. Ficara agradavelmente surpresa com a boa vontade do assessor de imprensa da polícia, para quem ela ligou após a visita de Alex.

Já pensara em tudo. Disse que estava escrevendo uma matéria para uma revista importante, comparando os métodos usados pela polícia em uma investigação de homicídio há vinte e cinco anos com os atuais. E que chegara à conclusão de que a melhor maneira de abordar os métodos investigativos seria aproveitar uma revisão de casos não solucionados, como a que a polícia de Fife estava fazendo. Deste modo, ela estaria lidando com um oficial completamente ciente de todos os detalhes do caso. Enfatizou que não visava criticar a polícia; a matéria seria apenas sobre as mudanças no procedimento e na prática, levando em consideração as descobertas científicas e as mudanças na lei.

O assessor de imprensa ligou para ela no dia seguinte.

- Você teve sorte. Temos um caso de exatamente vinte e cinco anos atrás. E por coincidência, o nosso subchefe de polícia, policial naquela época, foi o primeiro oficial no local do crime. E ele concordou em lhe dar uma entrevista. Também consegui agendar um encontro com a detetive Karen Pirie, que está trabalhando na revisão desse caso. Ela está a par de todos os detalhes.

E lá estava Jackie, pregando uma peça na polícia de Fife. Normalmente, não costumava ficar nervosa antes de uma entrevista. Já estava na profissão há bastante tempo, não ficava mais apavorada. Havia lidado com todos os tipos de entrevistado: os tímidos, os espalhafatosos, os animados, os amedrontados, os especialistas em marketing pessoal, os que adotavam uma postura blasé, os criminosos embrutecidos e as vítimas desamparadas. Mas naquele dia, havia definitivamente uma carga de adrenalina circulando no seu sangue. Não estava mentindo quando dissera a Alex que também tinha algo a perder. Depois da conversa com ele, ficara horas acordada, nitidamente ciente do estrago que a suspeita sobre a morte de David Kerr podia causar em sua vida. Então, preparara-se para aquele dia vestindo-se de maneira conservadora e tentando deliberadamente parecer o menos ameaçadora possível. Pela primeira vez, havia mais furos do que brincos em suas orelhas.

Era difícil reconhecer o jovem policial no subchefe de polícia Lawson, pensou ela enquanto se acomodava à sua frente. Ele parecia uma daquelas pessoas que já nasciam carregando o peso do mundo nas costas, e naquele dia tal peso parecia especialmente pesado. Não devia ter mais de cinquenta anos, mas aparentava ter passado mais tempo em casa jogando bola do que conduzindo investigações criminais em Fife.

- Que ideia peculiar para uma matéria - disse ele, após terminarem os devidos cumprimentos.

- Que nada. As pessoas hoje em dia mal param para pensar nas investigações policiais. É bom lembrar como progredimos em um período de tempo relativamente curto. E eu, obviamente, preciso aprender muito mais do que vou acabar usando na matéria final. A gente sempre acaba jogando noventa por cento da pesquisa fora.

- E para onde está escrevendo esta matéria? - perguntou ele, despretensioso.

- Para a Vanity Fair - respondeu Jackie, confiante. Era sempre melhor mentir e usar nomes conhecidos. Fazia com que o entrevistado sentisse que não estava perdendo o seu tempo.

- Bom, estou aqui à sua disposição - disse ele com uma camaradagem forçada, abrindo as mãos em um gesto largo.

- Fico muito grata por isso. Imagino como o senhor deve estar ocupado. Bom, podemos relembrar aquela noite de dezembro de 1978? O que levou o senhor a participar do caso?

Lawson expeliu o ar pesadamente pelas narinas.

- Eu estava de plantão em uma viatura. Ou seja, estava trabalhando a noite toda, parando apenas para fazer um lanche. Mas não ficava dirigindo a noite inteira. - Um sorriso discreto surgiu no canto de sua boca. - Mesmo naquela época, já tínhamos um orçamento limitado. Eu não podia dirigir mais do que sessenta quilômetros por turno. Então, eu vasculhava o centro da cidade na hora em que os bares estavam fechando e depois encontrava um lugar tranquilo para estacionar até que houvesse um chamado. O que não costumava acontecer. St. Andrews era uma cidadezinha relativamente pacata, principalmente durante as férias da universidade.

- Devia ser bem maçante, hein? - comentou Jackie, solidária.

- E como. Eu costumava carregar um rádio transistor comigo, mas nunca tinha nada que valesse a pena escutar. Na maioria das vezes, eu estacionava perto da entrada do Jardim Botânico. Eu gostava daquele lugar. Era agradável e tranquilo, e dava para chegar a qualquer ponto da cidade em questão de minutos. Naquela noite, o tempo estava pavoroso. O dia inteiro nevara intermitentemente, e de madrugada o chão estava todo coberto por uma grossa camada de neve. Por causa disso, eu estava tendo uma noite calma. A maioria das pessoas não se arriscava a sair de casa com um tempo daqueles. Então, lá pelas quatro da manhã, eu vi um vulto aproximando-se pela neve. Eu saí do carro e, vou ser franco com você, por um momento achei que fosse ser atacado por um maníaco embriagado. O garoto estava sem fôlego, coberto de sangue e o suor escorria pelo seu rosto. Ele disse que havia uma moça em Hallow Hill, que ela havia sido atacada.

- O senhor deve ter tomado um susto - instigou Jackie.

- Primeiro, pensei que fosse um estudante bêbado. Mas ele era muito insistente. Ele disse que havia caído por cima da moça na neve e que ela estava sangrando bastante. Então eu percebi que ele estava falando sério, que não era fingimento. Comuniquei a central pelo rádio e avisei que ia investigar uma mulher ferida em Hallow Hill. Coloquei o rapaz na viatura...

- Esse era Alex Gilbey, não é?

Lawson ergueu as sobrancelhas.

- Você fez o seu dever de casa, hein?

Ela deu de ombros.

- Li as matérias nos jornais, só isso. Então o senhor levou Gilbey de volta a Hallow Hill? E o que encontrou lá?

Lawson concordou com a cabeça.

- Quando chegamos lá, Rosie Duff estava morta. Havia outros três rapazes em volta do corpo. Precisei tomar conta do local e pedi reforços pelo rádio. Pedi ajuda dos policiais e do Departamento de Investigação Criminal e escoltei as quatro testemunhas colina abaixo, para longe da cena do crime. Eu confesso de bom grado que estava totalmente baratinado. Nunca havia visto nada parecido e não sabia, àquela altura, se estava parado em meio a uma nevasca com quatro assassinos do meu lado.

- Mas o senhor não acha que se eles tivessem matado a moça a última coisa que fariam ia ser buscar ajuda da polícia?

- Não necessariamente. Eles eram rapazes bem inteligentes, perfeitamente capazes de forjar uma situação como aquela. E eu não podia dizer algo que mostrasse que eu suspeitava deles, porque tinha medo que eles escapassem noite afora e nos deixassem com um problema maior ainda. Afinal, eu mal sabia quem eles eram.

- Bom, imagino que o senhor conseguiu segurá-los direitinho, porque pelo que sei eles esperaram os seus colegas no local. O que aconteceu então? Em termos de procedimentos, quero dizer. - Jackie ouviu tudo o que Lawson tinha a dizer sobre o que aconteceu naquela noite na cena do crime, até o momento em que ele precisou escoltar os quatro jovens até a delegacia.

- O meu envolvimento direto com o caso terminou ali - concluiu Lawson. - Todas as investigações subsequentes foram conduzidas pelos oficiais do DIC. Tivemos que recrutar pessoal de outras divisões, porque não tínhamos gente suficiente para cobrir um caso como aquele. - Lawson arrastou a cadeira. - Agora, se você me der licença, vou chamar a detetive Karen Pirie. Ela está mais preparada do que eu para conversar sobre o caso com você.

Jackie recolheu o gravador, mas não desligou o aparelho.

- Incrível, o senhor realmente lembra bem daquela noite - disse ela, deixando transparecer admiração em sua voz.

Lawson apertou o botão do seu interfone.

- Margaret, peça para Karen vir até aqui, por favor. - Lawson lançou para Jackie um sorriso de vaidade satisfeita. - Temos que ser meticulosos no nosso trabalho - disse ele. - Eu sempre guardei anotações cuidadosas. Mas você precisa lembrar que assassinatos são ocorrências bastante raras em St. Andrews. Nos dez anos em que trabalhei lá, tivemos pouquíssimos casos de homicídio. Então, naturalmente, a gente não esquece.

- E vocês nunca estiveram prestes a prender alguém?

Lawson contorceu os lábios.

- Não. E isso é algo difícil de engolir para quem trabalha na polícia. Tudo apontava para os quatro rapazes que encontraram o corpo, mas só havia provas circunstanciais contra eles. Eu cheguei a ter um palpite de que o crime podia ter sido algum tipo de ritual de sacrifício pagão, por causa do lugar onde o corpo foi encontrado. Mas essa ideia nunca deu em nada, e nunca mais vimos algo parecido na nossa circunscrição. Lamento admitir, mas o assassino de Rosie Duff nunca foi punido. Mas, é claro, sujeitos que cometem crimes como esse normalmente acabam repetindo a dose, então, pode ser que ele esteja preso por outro assassinato.

Houve uma leve pancada na porta e Lawson disse:

- Pode entrar. - A mulher que entrou no recinto era diametralmente oposta a Jackie. Enquanto a jornalista era descontraída e atraente, Karen Pirie era rígida e sem sal. O que as unia era a flagrante centelha de inteligência que uma pôde reconhecer na outra. Lawson encarregou-se das apresentações e depois as conduziu habilmente até a porta. - Boa sorte com a sua matéria - disse ele, antes de fechar a porta firmemente.

Karen a conduziu por um lance de escadas até a sala onde a equipe de revisão dos casos trabalhava.

- Você mora em Glasgow? - perguntou ela enquanto subiam as escadas.

- Nascida e criada lá. É uma cidade incrível. Toda vida humana está lá, como eles dizem.

- O que é ótimo para uma jornalista. E como foi que você se interessou por esse caso?

Jackie repetiu a sua história sobre uma matéria de capa rapidamente. Pareceu fazer sentido para Karen. Ela abriu a porta do escritório e foi caminhando na frente. Jackie olhou à sua volta, notando as paredes de cortiça cobertas com fotografias, mapas e relatórios. Uns gatos pingados sentados atrás de computadores levantaram os olhos quando elas entraram, mas em seguida voltaram a trabalhar.

- Por sinal, não preciso nem dizer, tudo o que você vir ou ouvir aqui sobre as investigações atuais ou sobre qualquer outro caso é estritamente confidencial. Entendeu?

- Não sou repórter criminal. Não tenho interesse em nenhum outro caso além do que vim aqui conversar com você. Não vou passar a perna em vocês, ok?

Karen sorriu. Conhecera alguns jornalistas honestos na vida, mas na maioria não dava para confiar, eram capazes de roubar um sorvete de uma criança. Mas aquela mulher parecia diferente. Fosse lá o que estivesse buscando tão avidamente, não era mais uma matéria sensacionalista e descartável. Karen mostrou a Jackie uma mesa comprida encostada na parede, onde ela organizara todo o material da investigação original.

- Não sei exatamente o quão detalhada vai ser a sua matéria - disse ela, duvidosa, olhando para a pilha de pastas à sua frente.

- Eu queria ter uma noção de como a investigação progrediu. Quais caminhos foram explorados. E, é claro - completou Jackie, sacando uma expressão autodepreciadora da manga -, como isso é jornalismo, e não história, preciso dos nomes das pessoas envolvidas e todas as informações que você puder me oferecer sobre elas. Policiais, legistas, cientistas forenses, essas coisas. - Jackie sabia como fazer aquilo soar despretensioso.

- Claro, eu posso te dar os nomes. Já as informações, eu sei pouquíssimas. Eu tinha três anos na época do crime. E, para completar, o investigador oficial, Barney Maclennan, morreu durante a investigação. Você sabia disso, né? - Jackie assentiu com a cabeça. Karen continuou. - O único sujeito que eu conheci do pessoal da antiga foi David Soanes, o cientista forense. Ele fez todo o trabalho, mas quem assinou os laudos foi o chefe dele.

- E por quê? - perguntou Jackie, casual, tentando esconder a sua alegria por ter conseguido o que queria tão fácil e tão rápido.

- É praxe. Os laudos têm que ser assinados pelo chefe do laboratório, mesmo que ele nunca nem tenha tocado nas provas. Impressiona o júri.

- Nunca mais vou confiar nas assinaturas, então - disse Jackie, sarcástica.

- A gente faz o que é preciso para prender os bandidos - disse Karen. Ficou evidente pelo tom exausto da sua voz que ela não estava disposta a ficar na defensiva por uma coisa tão óbvia. - De qualquer forma, nesse caso, você não poderia estar mais bem servida. David Soanes é um dos sujeitos mais esforçados que eu já conheci. - Ela sorriu. - E hoje em dia, é ele quem assina o laudo dos outros. David leciona Ciência Forense na Universidade de Dundee agora. Encaminhamos todos os nossos serviços para lá.

- Talvez eu pudesse conversar com ele.

Karen deu de ombros.

- Ele é um cara bem acessível. Então, por onde começamos?

Duas horas de profundo tédio depois, Jackie conseguiu ir embora. Sabia mais do que jamais desejara sobre os procedimentos policiais de Fife na década de 70. Não havia nada mais frustrante do que conseguir a informação que se queria logo no início de uma entrevista e ter de ficar inventando assunto para não dar bandeira.

Karen, obviamente, não a deixara ver o laudo original. Mas Jackie não esperava que ela o mostrasse. Conseguira o que desejava. Agora, tudo dependia de Alex.


35

Alex contemplou a filha, deitada no moisés. Estava em casa, no seu lugar. A filha deles, em casa. Frouxamente envolvida em uma manta branca, franzindo o rosto enquanto dormia, Davina alegrava o seu coração. Perdera o ar franzino que tanto o preocupara nos seus primeiros dias de vida. Agora, parecia-se com os outros bebês e o seu rostinho tornava-se único. Queria desenhá-la todos os dias, para não perder nenhuma das nuances mais sutis da sua transformação.

Ela preenchia os seus sentidos. Se ele se debruçasse sobre ela, prendendo o fôlego, podia ouvi-la respirando baixinho. As suas narinas já reconheciam o inconfundível cheirinho de bebê. Alex amava Lynn, mas jamais sentira aquele sentimento avassalador de amor e proteção por alguém antes. Lynn estava certa, ele precisava mesmo fazer o que fosse necessário para garantir que acompanharia o crescimento da sua filha. Decidiu ligar para Paul mais tarde, para compartilhar aquela tarde tão significativa com ele. Se Ziggy estivesse vivo, teria ligado para ele e Paul merecia saber que continuava fazendo parte da vida deles.

O som distante de uma campainha interrompeu os seus devaneios. Alex tocou a filha, da maneira mais delicada que pôde, e depois saiu do quarto. Alcançou a porta da frente segundos depois de Lynn, que estava paralisada ao reconhecer Jackie na sua porta.

- O que você veio fazer aqui? - perguntou ela.

- Alex não te contou? - retrucou Jackie, arrastando a voz.

- Me contou o quê? - Lynn virou-se para Alex.

- Pedi ajuda a Jackie - explicou Alex.

- Isso aí. - Jackie parecia mais divertida do que ofendida.

- Pediu ajuda a ela? - Lynn não se esforçou para esconder o seu desdém. - Uma mulher que não só tinha motivos para matar o meu irmão, como conhecia gente disposta a fazer o serviço? Alex, como é que você pôde fazer uma coisa dessas?

- Porque ela também tem algo a lucrar. Ou seja, não vai nos passar a perna para conseguir uma manchete - explicou ele, tentando acalmar Lynn antes que Jackie se ofendesse de vez e fosse embora sem revelar se havia descoberto alguma coisa.

- Aqui em casa ela não entra - disse Lynn, categórica.

Alex levantou as mãos.

- Tudo bem. Deixa só eu pegar o meu casaco. Vamos até o pub, se estiver tudo bem para você, tá, Jackie?

Ela deu de ombros.

- Por mim, tudo bem. Mas você paga a conta.

Caminharam até o pub em silêncio. Alex não estava com vontade de se desculpar pela hostilidade de Lynn e Jackie não queria passar recibo. Quando se acomodaram no pub, cada um com um cálice de vinho tinto à sua frente, Alex suspendeu as sobrancelhas, inquisitivo.

- E aí? Conseguiu alguma coisa?

Jackie fez uma expressão convencida.

- Estou com o nome do cientista forense que trabalhou no caso de Rosie Duff. E o melhor da história é que ele continua na ativa. Está dando aulas em Dundee. O nome dele é David Soanes e, ao que parece, o cara é fodão.

- E quando você vai poder ir até lá conversar com ele? - perguntou Alex.

- Eu não vou lá falar com ele, Alex. Isso é tarefa sua.

- Minha? Eu não sou jornalista. Por que ele toparia falar comigo?

- O interessado aqui é você. Você pede pelo amor de Deus, diz a ele que qualquer informação que ele puder te dar pode ajudar a resolver o caso.

- Nem sei como entrevistar uma pessoa - protestou Alex. - E por que Soanes me diria alguma coisa? Você acha que ele vai querer assumir que deixou passar alguma coisa no laudo naquela época?

- Alex, você me convenceu a te ajudar e, francamente, eu nem vou com a sua cara, ou com a da sua mulher grosseira e tacanha. Então, acho que você provavelmente vai conseguir convencer David Soanes a te contar o que você quer. Principalmente porque você não vai perguntar sobre coisas que ele deixa passar. Você está interessado nas coisas que talvez não tenham sido suscetíveis à análise, coisas que justificadamente ficaram de fora do relatório. Se ele tem apreço pelo seu trabalho, com certeza vai querer te ajudar. Vai ser inclusive melhor do que conversar com um jornalista, que pode retratá-lo como incompetente. - Jackie bebericou o seu vinho, fez uma careta e ficou de pé. - Me avise quando tiver alguma novidade que possa me ajudar.

Lynn estava sentada na estufa, contemplando as luzes no estuário. Estavam sutilmente envolvidas pelo ar seco, o que conferia uma aparência ainda mais misteriosa do que mereciam. Ouviu um barulho na porta da sala, seguido pela voz de Alex anunciando:

- Já cheguei. - Mas, antes que ele pudesse ir até ela, a campainha tocou. E, independentemente de quem fosse, ela não estava disposta a receber.

Vozes abafadas iam ficando mais distintas conforme se aproximavam, mas ela ainda não conseguira descobrir quem era a visita. De repente, a porta se abriu e Esquisito foi logo caminhando em sua direção.

- Lynn! - bradou ele. - Já sei que você tem uma menininha linda para me mostrar.

- Esquisito! - exclamou Lynn, visivelmente surpresa. - Você é a última pessoa que eu esperava ver aqui em casa.

- Ótimo - disse ele. - Vamos torcer para todos estarem pensando a mesma coisa. - Ele a olhou com preocupação. - Como é que você está?

Lynn inclinou-se para abraçá-lo.

- Sei que parece bobagem, porque quase não o víamos, mas estou com saudades de Mondo.

- Claro que sim. Todos nós estamos. E estaremos sempre. Ele era uma parte de nós e agora não é mais. O único consolo é sabermos que agora ele habita a morada do Senhor. - Ficaram em silêncio por um momento e depois Lynn se afastou.

- E o que é que você está fazendo aqui? - perguntou ela. - Você não voltou direto para os Estados Unidos depois do funeral?

- Voltei. Despachei a minha mulher e os meus filhos para um lugar nas montanhas, onde ficarão a salvo de qualquer pessoa que tenha problemas comigo. E depois, desapareci. Cruzei a fronteira para o México. Lynn, jamais vá para Tijuana, a não ser que você tenha um estômago de ferro. A comida é a pior do mundo, mas o que realmente provoca indigestão na alma é a discrepância entre a riqueza extravagante dos Estados Unidos com a pobreza dos mexicanos. Fiquei com vergonha do país que escolhi para viver. Sabia que os mexicanos pintam os seus burros com listras, como zebras, para que os turistas tirem fotos com eles? Veja só a que ponto nós os obrigamos a chegar.

- Nos poupe do sermão, Esquisito. Vá direto ao assunto - reclamou Lynn.

Esquisito sorriu.

- Tinha me esquecido como você é direta, Lynn. Bom, fiquei bastante encucado depois do funeral de Mondo. Então contratei um detetive particular em Seattle. Queria descobrir quem enviou a coroa de flores para o funeral do Ziggy. E o sujeito conseguiu uma resposta. Uma resposta que me deu bons motivos para voltar pra cá. Além do mais, imaginei que este seria o último lugar onde alguém imaginaria que eu pudesse estar. Perto demais de casa.

Alex girou os olhos.

- Você realmente aprendeu a fazer suspense ao longo dos anos, hein? Você vai contar o que descobriu ou não?

- O sujeito que mandou as coroas mora aqui em Fife. Em St. Monans, para ser mais exato. Não sei quem ele é, nem que relação tem com Rosie Duff. O nome dele é Graham Macfadyen.

Alex e Lynn trocaram olhares de aflição.

- Sabemos quem ele é - disse Alex. - Ou melhor, podemos no mínimo adivinhar.

Foi a vez de Esquisito ficar ansioso e frustrado.

- O quê? Vocês sabem?

- É o filho de Rosie Duff - disse Lynn.

Esquisito arregalou os olhos.

- Ela teve um filho?

- Ninguém sabia naquela época. Ele foi entregue para adoção assim que nasceu. Devia ter uns três ou quatro anos quando ela morreu - explicou Alex.

- Que coisa! - exclamou Esquisito. - Bom, até que faz sentido, né? Imagino que ele só ficou sabendo que a mãe foi assassinada recentemente.

- Ele procurou Lawson quando a revisão dos casos não resolvidos foi anunciada. Tinha começado a procurar a mãe biológica alguns meses antes disso.

- Aí está o motivo que vocês estão procurando. Ele deve ter achado que vocês quatro eram responsáveis pelo assassinato - concluiu Lynn. - Temos que descobrir mais sobre esse Macfadyen.

- Precisamos descobrir se ele estava nos Estados Unidos na semana em que Ziggy morreu - disse Alex.

- Como é que a gente vai conseguir descobrir isso? - perguntou Lynn.

Esquisito levantou a mão.

- A central da Delta fica em Atlanta. Um dos meus fiéis tem uma boa posição lá. Acho que ele pode ter acesso às listas de passageiros. Aparentemente, as companhias aéreas compartilham informações como essas o tempo todo. E eu estou com os dados do cartão de crédito de Macfadyen, o que pode agilizar o processo. Posso ligar para ele mais tarde?

- Claro - disse Alex, inclinando a cabeça. - É a Davina? - Aproximou-se da porta. - Vou buscá-la.

- Muito bem, Esquisito - disse Lynn. - Nunca imaginei você como um pesquisador metódico.

- Esqueceu que eu era matemático, e dos bons? Todo o resto era só uma tentativa desesperada de não ficar igual ao meu pai. O que, graças a Deus, eu consegui.

Alex voltou, com Davina choramingando em seus braços.

- Acho que ela está com fome.

Esquisito levantou-se e contemplou o pequeno bebê embrulhado em uma manta.

- Caramba - disse ele, com uma voz cheia de doçura. - Ela é linda. - Ele olhou para Alex. - Agora você entende por que eu estou tão determinado a sair dessa com vida.

Lá fora, debaixo da ponte, Macfadyen observava a cena na casa de Alex. Fora uma tarde animada. Primeiro, aparecera uma mulher. Reconhecera-a do funeral, tinha visto a viúva de Kerr entrar no carro dela. Seguira as duas até um flat em Merchant City e, alguns dias depois, seguira Alex até aquele mesmo endereço. Não sabia quem ela era, onde se encaixava naquela trama intrincada. Seria apenas uma amiga da família? Ou mais do que isso?

Fosse ela quem fosse, não fora bem recebida. Ela e Gilbey foram até o pub, mas não ficaram lá tempo suficiente nem para tomar um único drinque. Depois, quando ele voltou para casa, a verdadeira surpresa apareceu. Mackie estava de volta. Ele deveria estar quietinho na Geórgia, pregando para o seu rebanho. Mas não, lá estava ele, novamente em Fife, junto com o seu cúmplice. Ninguém abandona tudo na vida assim, a não ser que tenha um bom motivo.

Estava mais do que provado. Dava para ver no rosto deles. Aquela não era uma descontraída reunião de amigos. Não era um encontro alegre, para comemorar a alta da filha de Gilbey do hospital. Aqueles dois estavam escondendo alguma coisa, algo que os reunira durante aquela crise. O medo os aproximara novamente. Estavam apavorados, com medo de que o inimigo que dera fim aos outros dois assassinos os localizasse a qualquer momento. Estavam juntos por segurança.

Macfadyen abriu um sorriso sinistro. A mão gelada do passado os alcançava, inexoravelmente. Não conseguiriam dormir tranquilos naquela noite. E era assim que devia ser. Tinha planos para eles. E, quanto mais assustados estivessem, melhor.

Tinham tido vinte e cinco anos de paz - muito mais do que a sua mãe pudera desfrutar. Estava na hora de aquela paz chegar ao fim.


36

O dia nasceu desanimador e cinzento, e a vista da North Queensferry estava obscurecida por uma bruma sombria. Em algum lugar uma buzina de nevoeiro soava o seu infeliz aviso, como uma vaca lamentando a morte de um bezerro. Com a barba por fazer e atordoado de sono, Alex apoiava os cotovelos sobre a mesa do café da manhã e observava Lynn amamentando Davina.

- Foi uma noite boa ou ruim? - perguntou ele.

- Média - respondeu Lynn, bocejando. - Nessa idade, precisam mamar várias vezes durante a noite.

- Uma da manhã, três e meia, seis e meia... Tem certeza de que ela não está faminta demais?

Lynn sorriu.

- É impressionante como o amor paterno desaparece rapidinho, né? - zombou ela.

- Se isso fosse verdade, eu teria tapado os ouvidos com o travesseiro e continuado a dormir, em vez de me levantar, preparar um chá para você e trocar a fralda dela - rebateu Alex, na defensiva.

- Se Esquisito não estivesse aqui, você podia ficar no quarto de hóspedes.

Alex fez um gesto negativo com a cabeça.

- Não quero fazer isso. Vamos ver como fica.

- Mas você precisa dormir. Você tem uma empresa para tocar.

Alex deu um muxoxo.

- Tirando o tempo que eu passo rodando o país inteiro atrás de cientistas forenses, né?

- Isso mesmo. Você está incomodado por Esquisito estar aqui em casa?

- Não, por quê?

- Bobagem minha. Eu é que sou muito desconfiada mesmo. Você sabe que eu sempre achei que, de vocês quatro, ele era o único que poderia ter matado Rosie. Então, sei lá, estou um pouco agoniada por ele ter aparecido assim, do nada.

Alex assumiu uma expressão de desconforto.

- Só desta maneira ele sairia impune do crime que cometeu? Por que ele sairia matando os amigos vinte e cinco anos depois?

- Vai ver que ele ficou sabendo da revisão do caso e ficou com medo de, depois de todo esse tempo, ser dedurado por um de vocês.

- Você é sempre exagerada, né? Ele não a matou, Lynn. Ele jamais faria isso.

- Mas as pessoas fazem coisas horríveis quando estão drogadas. E, pelo que eu me lembro, Esquisito tomava todas. Ele estava com a Land Rover; Rosie provavelmente o conhecia o suficiente para aceitar uma carona. E depois, aquela conversão religiosa sem mais nem menos. Vai ver que era culpa, Alex.

Ele balançou a cabeça.

- Ele é meu amigo. Eu saberia.

Lynn suspirou.

- Você deve ter razão. Eu exagero mesmo. E estou meio nervosa. Desculpa.

Enquanto ela falava, Esquisito apareceu. De banho tomado e barbeado, ele parecia o retrato fiel do homem saudável e forte. Alex olhou para ele e resmungou.

- Meu Deus, você está a cara daquele Tigrão da Disney.

- Que cama maravilhosa - disse Esquisito, olhando à sua volta, procurando a cafeteira. Atravessou a cozinha e começou a abrir todos os armários, até encontrar as xícaras. - Dormi como um bebê.

- Isso não - disse Lynn. - A não ser que você tenha acordado chorando de três em três horas. Você não está com um pouco de jet lag?

- Nunca tive jet lag na minha vida - respondeu ele, animado, servindo o café. - E aí, Alex, quando é que a gente parte para Dundee?

Alex começou a se aprumar.

- Tenho que ligar para lá e agendar um encontro.

- Você tá maluco? Dar oportunidade para o sujeito dizer não? - admoestou Esquisito, fuçando a cesta de pães. Apanhou um bolinho escocês e estalou os lábios. - Uhm, há anos que não como um desses.

- Sinta-se em casa - disse Alex.

- Estou me sentindo - respondeu Esquisito, vasculhando a geladeira atrás de manteiga e queijo. - Não, Alex. Nada de telefonemas. A gente simplesmente aparece lá e deixa bem claro que não vai arredar o pé até o professor Soanes encontrar uma janela.

- Uma janela? Para se jogar? - Alex não conseguiu resistir à tentação de debochar dos americanismos de Esquisito, que soavam ainda mais bizarros ditos com um sotaque escocês que se tornara ainda mais carregado da noite para o dia.

- Muito engraçado. - Esquisito apanhou um prato e uma faca e sentou-se à mesa.

- Você não acha que isso vai deixá-lo um pouquinho irritado, não? - perguntou Lynn.

- Não, acho que mostra que não estamos de brincadeira - disse Esquisito. - Acho que é o que dois sujeitos que se sentem ameaçados de morte fariam. Não está na hora de sermos educados, dóceis, obedientes. Está na hora de dizermos: "Estamos morrendo de medo e o senhor pode nos ajudar."

Alex fez uma careta.

- Tem certeza de que você quer mesmo vir comigo? - O olhar repressor que Esquisito lançou para ele teria paralisado qualquer um. Alex levantou as mãos, rendendo-se. - Está bem. Me dá meia horinha então.

Lynn observou o marido saindo, preocupada.

- Não se preocupe, Lynn. Eu vou cuidar dele.

Lynn bufou, debochada.

- Ah, por favor, Esquisito. Espero que eu não precise contar com isso.

Ele abocanhou um pedaço do bolo e a observou.

- Eu não sou mais a mesma pessoa que você lembra, Lynn - disse ele, sério. - Esqueça o adolescente rebelde, o excesso de álcool e as drogas. Lembre-se que eu sempre fiz os meus deveres e entreguei os meus trabalhos dentro do prazo. Eu dava a impressão de estar fora de controle, mas lá no fundo era um sujeito tão normal quanto Alex. Eu sei que vocês devem morrer de rir pelas minhas costas por ter um pastor que faz pregação na tevê na sua lista de cartões de Natal; e, por sinal, os cartões são maravilhosos. Mas por trás de toda a excentricidade, eu sou uma pessoa que leva muito a sério tudo o que acredita e o que faz. Quando eu digo que vou cuidar de Alex, pode ter certeza de que ele vai estar tão seguro comigo quanto estaria com qualquer outra pessoa.

Lynn aceitou a reprimenda, mas ela não serviu para minar a sua desconfiança completamente. Trocou a filha de seio para que ela continuasse a mamar e disse:

- Pronto, querida. - Fez uma careta de dor ao sentir o bebê sugar o seu seio com avidez; ainda não estava acostumada com aquela sensação tão nova. - Desculpa, Esquisito. É que é difícil não te julgar pela época em que nos conhecíamos melhor.

Ele terminou o seu café e levantou-se.

- Eu sei. Eu continuo te vendo como uma garotinha boba que sonhava com David Cassidy.

- Babaca - disse ela.

- Vou orar um pouco agora - disse ele, dirigindo-se à porta. - Eu e Alex precisamos de toda ajuda possível.

O lado de fora do ginásio Old Fleming era completamente diferente da imagem que Alex fazia de um laboratório forense. Escondido em um beco estreito, o seu arenito vitoriano estava consideravelmente manchado por um século de poluição. Não era uma construção feia; o seu único andar era bem proporcionado, com janelas em estilo italiano. Só não parecia ser o tipo de lugar que abrigava a tecnologia de ponta da ciência forense.

Esquisito também estava visivelmente intrigado.

- Tem certeza de que é aqui mesmo? - perguntou ele, hesitante na entrada do beco.

Alex fez um gesto para a rua.

- O café do antigo Instituto Técnico fica ali. De acordo com o mapa no site da universidade, é aqui mesmo.

- Parece mais um banco do que um ginásio, e menos ainda um laboratório. - Mesmo assim, ele seguiu Alex pelo beco.

A recepção não dava muitas pistas. Um rapaz com um problema sério de psoríase e vestido à moda dos beatniks da década de 50 estava sentado atrás do balcão, digitando em um teclado de computador. Olhou para eles por cima da escura armação dos seus óculos.

- Em que posso ajudá-los, senhores? - perguntou ele.

- Gostaríamos de saber se por acaso poderíamos dar uma palavrinha com o professor Soanes - disse Alex.

- O senhor marcou hora?

Alex fez um gesto negativo com a cabeça.

- Não. Mas ficaríamos muito agradecidos se ele pudesse nos receber. É sobre um caso antigo no qual ele trabalhou.

O rapaz balançou a cabeça de um lado para o outro, como um dançarino indiano.

- Acho que não vai ser possível, não. Ele é um homem muito ocupado.

- Nós também - interrompeu Esquisito, aproximando-se do balcão. - E o nosso assunto com ele é uma questão de vida ou morte.

- Meu Deus - disse o rapaz. - É o Tommy Lee Jones de Tayside. - O comentário poderia ter soado grosseiro, mas ele o fez com um ar divertido de admiração que neutralizou qualquer malícia.

Esquisito o encarou firmemente.

- Podemos esperar. - Alex acudiu antes que a coisa ficasse feia.

- E vão ter de esperar mesmo. Ele está dando um seminário agora. Deixa eu conferir a agenda dele para hoje. - Ele digitou alguma coisa no teclado. - Vocês podem voltar às três? - perguntou ele alguns segundos depois.

Esquisito chiou.

- E passar cinco horas em Dundee?

- Maravilha - respondeu Alex, lançando um olhar firme para Esquisito. - Vamos, Tom. - Deixaram os seus nomes, alguns detalhes do caso e o número do celular de Alex antes de partirem.

- Você, como sempre, a simpatia em pessoa - comentou Alex enquanto voltavam para o carro.

- É, mas conseguimos alguma coisa, não foi? Se tivéssemos que depender de você, como sempre um banana, teríamos sorte se conseguíssemos uma horinha antes do final do semestre. E então, o que vamos fazer nas próximas cinco horas?

- Podíamos ir até St. Andrews - sugeriu Alex. - É só cruzar a ponte.

Esquisito estacou.

- Você está falando sério?

- Claro. Nunca falei tão sério. Acho que não ia fazer mal nos lembrarmos de lá. E ninguém vai reconhecer a gente, depois de tantos anos.

Esquisito repousou a mão no peito, no lugar onde a sua cruz normalmente ficava. Deu um muxoxo ao lembrar que não estava usando o seu hábito.

- Está bem - disse ele. - Mas eu não quero nem passar perto da Masmorra da Garrafa.

Dirigir por St. Andrews era uma experiência estranha, perturbadora. Primeiro, porque eles jamais tiveram acesso a um carro na época em que eram estudantes e nunca haviam observado a cidade da perspectiva de um motorista. Segundo, porque ao avançarem pela cidade, passavam por prédios que não existiam naquela época. O amontoado de concreto do Old Course Hotel; o cilindro neoclássico do Museu da Universidade de St. Andrews; o Centro de Vida Aquática atrás do perene clube Royal and Ancient, o próprio templo do golfe. Esquisito contemplava a cidade pela janela, atônito.

- Como está mudada.

- Claro que está mudada. Lá se foi um quarto de século.

- Você voltou aqui outras vezes?

Alex balançou a cabeça.

- Há vinte anos que não passo nem perto. - Ele dirigiu lentamente, finalmente encaixando o seu BMW em uma vaga deixada por uma mulher em um Renault.

Saíram em silêncio e puseram-se a caminhar pelas ruas da cidade, outrora tão familiares. Era como rever Esquisito, pensou Alex, todos aqueles anos depois. A estrutura óssea era basicamente a mesma. Não havia como tomá-lo por outra pessoa, ou outra pessoa por ele. Mas a superfície era diferente. Algumas mudanças eram sutis, outras gritantes. Assim como caminhar novamente por St. Andrews. Algumas lojas continuavam no mesmo lugar de sempre e as suas fachadas permaneciam idênticas. Paradoxalmente, pareciam fora de lugar, como se tivessem conseguido de alguma maneira escapar da dobra de tempo que abocanhara o resto da cidade. A lojinha de doces ainda estava lá, um monumento ao apetite nacional por açúcar. Alex reconheceu o restaurante onde experimentaram comida chinesa pela primeira vez, os sabores desconhecidos e confusos para paladares acostumados com uma comida mais tradicional. Eram quatro naquela época, leves e confiantes, sem a menor noção de que algo ruim estava prestes a acontecer. E agora restavam dois.

Era impossível fugir da universidade. Dos dezesseis mil habitantes da cidade, um terço ganhava a vida às custas dela, e, se os seus prédios tivessem se desintegrado da noite para o dia, teriam deixado uma cidade banguela. Alunos corriam pelas ruas, com a característica veste de flanela vermelha embrulhada em volta do corpo, para proteger o seu dono do frio. Era difícil acreditar que um dia haviam feito a mesma coisa. Uma lembrança fugaz ocorreu a Alex: Ziggy e Mondo em uma sofisticada loja de roupas masculinas, experimentando os seus uniformes novos. Alex e Esquisito tiveram de se conformar com roupas de segunda mão, mas aproveitaram ao máximo a oportunidade de fazerem bagunça por uma boa causa, testando a paciência dos funcionários da loja. Aquilo tudo parecia estranho e distante agora, como se fosse um filme, não uma lembrança.

Quando se aproximaram do West Port, vislumbraram a fachada familiar do Pub Lammas através dos arcos de pedra do portão maciço. Esquisito estacou, abruptamente.

- Estou ficando maluco. Não aguento mais, Alex. Vamos sair desse lugar.

Alex não ficou exatamente contrariado com a sugestão.

- Vamos voltar para Dundee, então?

- Não, tive outra ideia. Um dos motivos de eu ter voltado era para confrontar esse tal de Graham Macfadyen sobre as flores. St. Monans não é muito longe daqui, é? Vamos até lá ver o que ele tem a nos dizer.

- Mas estamos no meio do dia. Ele deve estar trabalhando agora - ponderou Alex, apertando o passo para acompanhar Esquisito enquanto se dirigiam de volta ao carro.

- Pelo menos a gente dá uma olhada na casa. E, de repente, conseguimos voltar depois de falarmos com o professor Soanes. - Era inútil discutir com Esquisito quando ele estava daquele jeito, constatou Alex, resignado.

Macfadyen não conseguia descobrir o que estava acontecendo. Estivera de plantão do lado de fora da casa de Gilbey desde as sete da manhã e sentira uma onda de gratidão ao ver os dois saindo de carro. Os parceiros no crime certamente estavam tramando alguma. Seguiu o carro de Gilbey por Fife, até Dundee, e os acompanhou até o Beco Small’s. Assim que eles entraram no prédio antigo de arenito, apressou-se atrás deles. A placa na porta dizia: DEPARTAMENTO DE CIÊNCIA FORENSE, o que fez com que ele parasse. O que será que estavam procurando por lá? Por que estavam naquele lugar?

Fosse lá o que estivessem buscando, não demorou muito. Saíram do prédio uns dez minutos depois. Quase os perdera de vista perto da ponte, mas conseguiu alcançá-los enquanto diminuíam a velocidade, rumo a St. Andrews. Estacionar lá foi difícil e ele acabou tendo que deixar o seu carro bloqueando a garagem de alguém.

Conseguiu acompanhá-los enquanto caminhavam pela cidade. Não pareciam estar com um itinerário definido. Seguiram e voltaram pelos mesmos lugares algumas vezes, atravessando a North Street, a Market Street e a South Street. Por sorte, Mackie era alto o suficiente para destacar-se na rua, de modo que não foi muito difícil seguir a dupla. De repente, Macfadyen percebeu que aquele passeio aparentemente sem objetivo os estava levando cada vez mais perto do West Port. Estavam indo para o Lammas. Tinham a cara de pau de atravessar a porta e revisitar o lugar onde haviam visto a sua mãe pela primeira vez.

Macfadyen sentiu o suor acumulando-se sobre o seu lábio superior, apesar do frio úmido que o maltratava. Os indicativos de culpa multiplicavam-se a cada hora. Se fossem inocentes, teriam ficado bem longe do Lammas, se fossem inocentes e tivessem respeito. Mas a culpa os atraía como um ímã, estava certo disso.

Estava tão perdido em seus pensamentos que quase esbarrou nos dois. Haviam parado sem mais nem menos, no meio da calçada, e ele continuara andando. Com o coração pulando dentro do peito, Macfadyen desviou deles, de cabeça baixa. Abrigou-se sob a marquise de uma loja e olhou para trás, fechando as suas mãos suadas em punho dentro dos bolsos do seu casaco. Não conseguia acreditar no que via. Viraram as costas para o West Port e puseram-se a caminhar de volta pela South Street, na direção contrária.

Quase teve de apressar o passo para não perdê-los de vista, enquanto cruzavam por uma série de vielas e becos. O fato de darem preferência a vias estreitas em vez de ruas mais amplas cheirava a consciência pesada para Macfadyen. Gilbey e Mackie estavam se escondendo do mundo, protegendo-se dos olhares acusadores que imaginavam estar em cada esquina.

Quando conseguiu chegar ao seu carro, eles já estavam a caminho, passando de carro pela catedral. Xingando, Macfadyen sentou-se ao volante e ligou o motor. Estava quase alcançando o carro de Gilbey quando foi vítima do azar. No final da Kinkell Braes, por causa de obras na estrada, somente uma das pistas estava livre e controlada por semáforo. Gilbey avançou bem na hora que o sinal mudou de amarelo para vermelho, como se soubesse que precisava escapar. Se não tivesse nenhum outro veículo entre eles, Macfadyen teria se arriscado e avançado o sinal vermelho. Mas uma van de autopeças estava atravancando o seu caminho. Esmurrou o volante, irado, bufando até o sinal verde aparecer novamente. A van continuou colina acima, com Macfadyen no seu encalço. Mas só conseguiu ultrapassá-la uns bons quilômetros depois. Sabia, no fundo do seu coração, que não tinha mais a menor chance de alcançar a BMW de Gilbey.

Estava à beira das lágrimas. Não fazia a menor ideia do paradeiro dos dois. Nada naquela manhã desorientadora lhe oferecera alguma pista. Pensou em voltar para casa, verificar se tinha alguma novidade nos seus computadores. Mas não fazia muito sentido. Não ia descobrir onde Gilbey e Mackie estavam pela internet.

Só tinha certeza de uma coisa: mais cedo ou mais tarde, eles voltariam a North Queensferry. Xingando-se pela sua patetice, Macfadyen decidiu que o melhor a fazer era voltar para lá.

Quando estava passando pelo desvio que o levaria para a sua casa, Graham Macfadyen viu Esquisito e Alex parados de carro na sua porta.

- Satisfeito? - perguntou Alex.

Esquisito já havia sondado o lugar e batido na porta, sem sucesso. Depois, contornara a casa, olhando pelas janelas. Alex estava convencido de que a polícia ia aparecer a qualquer momento, acionada por algum vizinho enxerido. Mas aquele não era o tipo de lugar onde os moradores passavam o dia inteiro em casa.

- Pelo menos sabemos onde encontrá-lo - disse Esquisito. - Acho que ele mora sozinho.

- Por quê?

Esquisito lançou um olhar que dizia "isso é óbvio" para Alex.

- Nenhum toque feminino, não é?

- Nem unzinho sequer - respondeu Esquisito. - Tudo bem, você tinha razão. Foi uma perda de tempo. - Ele deu uma olhadela para o seu relógio. - Vamos procurar um pub decente e almoçar. E depois, podemos voltar para a simpática Dundee.


37

O professor David Soanes era um homem gorducho. Com as bochechas rosadas, uma auréola de cabelo grisalho encaracolado em volta da careca lustrosa e olhos azuis que chegavam a faiscar, parecia uma versão desconcertante do Papai Noel sem barba. Conduziu Esquisito e Alex por um cubículo minúsculo onde mal cabiam a sua mesa e duas cadeiras para visitas. O cômodo era espartano, sendo a sua única decoração um certificado que proclamava que Soanes era cidadão de Srebrenica. Alex não queria pensar no que ele devia ter feito para merecer aquela honra.

Soanes fez um gesto para que se sentassem e acomodou-se, imprensando a barriga roliça na beirada da mesa. Espremeu os lábios e observou os dois homens sentados à sua frente.

- Fraser disse que os senhores queriam conversar sobre o caso Rosemary Duff - disse ele, após uma longa pausa. A sua voz era tão doce e agradável quanto um pudim de Natal das histórias de Dickens. - Tenho algumas perguntas para fazer antes. - Ele conferiu um pedaço de papel sobre a mesa. - Alex Gilbey e Tom Mackie, não é isso?

- Isso mesmo - respondeu Alex.

- E não são jornalistas?

Alex pescou o seu cartão de visitas e entregou a ele.

- Sou dono de uma empresa que fabrica cartões. Tom é pastor. Não somos jornalistas.

Soanes analisou o cartão, dobrando-o para verificar se a gravação era verdadeira. Suspendeu uma das sobrancelhas cabeludas e grisalhas e perguntou, abruptamente:

- E qual o interesse dos senhores no caso Rosemary Duff?

Esquisito inclinou-se para a frente.

- Somos dois dos quatro sujeitos que encontraram o corpo dela na neve, há vinte e cinco anos. O senhor provavelmente examinou as nossas roupas no seu microscópio.

Soanes entortou levemente a cabeça para o lado. As rugas no canto dos seus olhos estreitaram-se quase imperceptivelmente.

- Isso foi há muito tempo. Por que vieram me procurar agora?

- Achamos que tem alguém atrás da gente - disse Esquisito.

Desta vez, Soanes suspendeu as duas sobrancelhas.

- Agora fiquei perdido. O que isso tem a ver comigo, ou com Rosemary Duff?

Alex pousou a mão no braço de Esquisito.

- Dos quatro que estiveram lá naquela noite, dois já morreram. Morreram nas últimas seis semanas. Ambos assassinados. Eu sei que pode ser mera coincidência. Mas nos dois funerais, encontramos uma coroa de flores e alecrim com os dizeres: Lembrança de Rosemary. Temos motivos para crer que as coroas foram enviadas pelo filho de Rosie Duff.

Soanes franziu a testa.

- Lamento, mas acho que os senhores estão no lugar errado. Deveriam ter procurado a polícia de Fife, que está conduzindo uma revisão de casos não resolvidos, incluindo esse.

Alex balançou a cabeça.

- Já tentei fazer isso. O subchefe de polícia Lawson só faltou me chamar de paranoico. Disse que coincidências como essas acontecem, que eu devia voltar para casa e parar de me preocupar à toa. Mas acho que ele está errado. Acho que alguém está matando a gente porque está convencido de que assassinamos Rosie. E a única maneira de conseguirmos nos safar é descobrindo o verdadeiro assassino.

Uma expressão impenetrável surgiu no rosto de Soanes à menção do nome de Lawson.

- Mesmo assim, continuo sem entender o que os senhores vieram fazer aqui. O meu envolvimento pessoal com esse caso terminou vinte e cinco anos atrás.

- Viemos porque eles perderam as provas - interrompeu Esquisito, incapaz de ficar muito tempo sem ouvir o som da sua própria voz.

- O senhor deve estar enganado. Testamos uma peça recentemente. E o exame de DNA deu negativo.

- Vocês só têm o cardigã - disse Alex. - Mas o mais importante, as roupas com marcas de sangue e sêmen, eles perderam.

Não havia como duvidar do interesse crescente de Soanes.

- Eles perderam as provas originais?

- Foi o que Lawson me disse - confirmou Alex.

Soanes balançou a cabeça, impressionado.

- Mas que horror - disse ele. - Ainda que não seja de se admirar, sob um comando desses. - A sua testa se enrugou em uma careta de desaprovação. Alex se perguntava o que mais a polícia de Fife havia feito para deixar aquela impressão negativa em Soanes. - Bom, sem a principal prova, não sei o que os senhores acham que posso fazer para ajudá-los.

Alex respirou profundamente.

- Sei que o senhor fez o relatório original do caso. E também sei que os peritos forenses nem sempre incluem todos os detalhes nos seus laudos. Imagino se havia alguma coisa que o senhor por acaso tenha deixado de fora naquela época. Estou pensando principalmente em vestígios de tinta. Porque a única coisa que eles não perderam foi o cardigã. E depois que o encontraram, voltaram para colher mais amostras de tinta na nossa casa.

- E por que eu haveria de contar alguma coisa a esse respeito aos senhores, isto é, supondo que houvesse algo para contar? Seria um procedimento altamente irregular. Afinal de contas, para todos os efeitos, vocês eram suspeitos.

- Éramos testemunhas, não suspeitos - disse Esquisito, irritado. - E o senhor tem que nos ajudar, senão vamos acabar assassinados e o senhor vai penar para acertar as contas com Deus e com a sua consciência.

- E porque cientistas devem se importar com a verdade - acrescentou Alex. Hora de correr riscos, pensou ele. - E eu tenho a impressão de que o senhor tem a verdade como sua circunscrição. Ao contrário da polícia, que normalmente só se preocupa em obter resultados.

Soanes apoiou um cotovelo na mesa e apertou o lábio inferior com os dedos, revelando a sua úmida carnosidade interior. Olhou para eles como se os estivesse avaliando, longa e firmemente. Então, levantou-se decidido e consultou o arquivo, que era o único acessório na sua mesa. Passou os olhos nas fichas e depois levantou a cabeça e encontrou os olhos ansiosos dos dois.

- O meu laudo versou principalmente sobre sangue e sêmen. O sangue era de Rosie Duff, o sêmen supostamente pertencia ao assassino. Como o sujeito que depositou o sêmen era um secretor, conseguimos determinar o seu grupo sanguíneo. - Ele folheou algumas páginas. - Encontramos também evidência de fibras. Um carpete industrial marrom, vagabundo, e algumas fibras de um carpete cinzento, usado por vários fabricantes de veículos em carros de médio porte. Alguns vestígios de pelo de cachorro, de um springer spaniel que pertencia ao dono do pub onde Rosie trabalhava. Tudo isso foi mencionado no meu laudo.

Ele percebeu o olhar de decepção nos olhos de Alex e deu um sorrisinho.

- Agora, vêm as minhas anotações.

Apanhou um bloco de anotações escritas a mão. Ele apertou os olhos por uns segundos, depois tirou uns óculos de leitura com armação dourada do bolso do casaco e os encaixou sobre o nariz.

- Minha letra sempre foi terrível - disse ele, secamente. - Não leio isso aqui há anos. Deixe-me ver... sangue... sêmen... lama. - Virou algumas páginas, cobertas por uma letra minúscula e firme. - Pelos... Aqui está. Tinta. - Bateu com o dedo na página e olhou para eles. - O que os senhores sabem sobre tinta?

- Emulsão para as paredes, verniz para madeira - disse Esquisito. - É tudo o que sei sobre tinta.

Soanes sorriu, pela primeira vez.

- A tinta é composta de três elementos principais. Tem o condutor, que normalmente é uma espécie de polímero. Basicamente, é aquela camada grossa que gruda no macacão se a gente não limpar na mesma hora. Tem o solvente, que normalmente é um líquido orgânico. O condutor é dissolvido no solvente para criar uma massa com uma consistência apropriada para um pincel ou um rolo. Geralmente, o solvente não tem nenhuma significância forense porque já evaporou há muito tempo. Finalmente, tem o pigmento, que é o que dá cor. Entre os pigmentos mais usados estão o dióxido de titânio e o óxido de zinco para o branco, a fitalocianina para o azul, o cromato de zinco para o amarelo e o óxido de ferro para o vermelho. Mas cada demão de tinta tem a sua própria assinatura microscópica. Então, é possível analisar uma mancha de tinta e dizer o seu tipo. Existem bibliotecas inteiras de amostras de tinta, para que possamos comparar com amostras individuais. E, é claro, além da tinta em si, analisamos a mancha. É um respingo? É uma gota? É uma raspa? - Ele levantou o dedo. - Antes que me perguntem mais alguma coisa, quero deixar claro que não sou especialista neste assunto.

- Mas podia ter me enganado direitinho - respondeu Esquisito. - E então, o que dizem as suas anotações a respeito da tinta no cardigã de Rosie?

- O seu amigo gosta de ir direto ao assunto, não é? - perguntou Soanes, felizmente mais divertido do que irritado.

- Sabemos como o tempo do senhor é precioso, só isso - respondeu Alex, contendo o riso diante da sua desculpa aduladora.

Soanes voltou para as suas anotações.

- Isso é verdade - disse ele. - A tinta em questão era um esmalte poliuretano alifático azul-claro. O que normalmente não é uma tinta caseira, e sim uma tinta usada em barcos, ou algo feito de fibra de vidro. Não tivemos nenhum resultado direto, embora a amostra se parecesse bastante com algumas tintas de barco no nosso banco de dados. Mas o mais interesse era o perfil das gotas. Elas tinham a forma de lágrimas minúsculas.

Alex franziu o cenho.

- O que isso quer dizer?

- Quer dizer que a tinta não estava molhada quando grudou na roupa dela. Eram gotículas bem pequenininhas de tinta seca, que sem dúvida foram transferidas para a roupa de Rosie de uma superfície onde ela esteve deitada. Provavelmente um carpete.

- Então alguém andou pintando alguma coisa no local onde ela esteve deitada? E a tinta respingou no carpete? - perguntou Esquisito.

- Tenho quase certeza. Mas voltando ao formato curioso. Se uma tinta pinga de um pincel, ou mancha um carpete, as gotículas não teriam aquele formato. E todas as gotas que analisamos nesse caso possuíam o mesmo perfil.

- Por que o senhor não incluiu estas observações no seu laudo? - perguntou Alex.

- Porque não conseguimos explicá-las. É muito temeroso para a acusação ter um profissional como testemunha dizendo "Eu não sei" em pleno tribunal. Um bom advogado de defesa deixaria as perguntas sobre a tinta para o final, para que a última coisa que ficasse na lembrança do júri fosse o meu chefe balançando a cabeça e admitindo não saber as respostas. - Soanes guardou os seus papéis de volta na pasta. - Então, deixamos de fora.

Alex se preparou para fazer a pergunta mais importante de todas:

- Se o senhor analisasse esta prova novamente, poderia conseguir um resultado diferente?

Soanes encarou-o por trás dos óculos.

- Eu, pessoalmente, não. Mas um especialista forense em tinta poderia oferecer uma análise mais proveitosa, sim. Mas as chances de vocês encontrarem um resultado vinte e cinco anos depois são escassas.

- Isso é problema nosso - rebateu Esquisito. - O senhor pode tentar? O senhor vai tentar?

Soanes balançou a cabeça.

- Como eu disse, estou longe de ser um especialista nessa área. E, mesmo que eu fosse, não poderia autorizar testes sem um requerimento da polícia de Fife. E eles não solicitaram testes na tinta. - Ele fechou a pasta com um ar de conclusão.

- Por que não? - indagou Esquisito.

- Acho que devem ter considerado uma perda de dinheiro. Como eu disse, as chances de chegarmos a um resultado a estas alturas são ínfimas.

Alex arriou-se na cadeira, desanimado.

- E eu não vou conseguir convencer Lawson a mudar de ideia. Que maravilha. Acho que o senhor acabou de assinar a minha sentença de morte.

- Eu não disse que é impossível fazer os testes - disse Soanes, gentil. - Eu disse que eles não podem ser feitos aqui.

- Mas como vamos fazer os testes em outro lugar? - perguntou Esquisito, irritado. - Ninguém tem as tais amostras.

Soanes apertou os lábios com os dedos novamente. Então, suspirou.

- Não temos nenhuma amostra biológica. Mas ainda temos a tinta. Eu verifiquei antes de receber os senhores. - Ele tornou a abrir a pasta e apanhou uma embalagem plástica com alguns compartimentos. Dentro deles, uma dúzia de slides microscópicos. Soanes retirou três e os alinhou sobre a mesa. Alex olhou para eles, ansioso. Não conseguia acreditar no que via. As manchinhas de tinta eram como minúsculos grãos de uma cinza de cigarro azulada.

- Alguém pode analisar isso? - perguntou ele, tentando controlar o seu entusiasmo.

- É claro - respondeu Soanes. Ele apanhou uma sacola de papel da sua gaveta e colocou sobre os slides, empurrando-os para Alex e Esquisito. - Levem estes. Nós temos outros que podemos analisar, se der em alguma coisa. Os senhores vão ter que assinar um documento, é claro.

Esquisito deslizou a mão sobre a mesa e pegou os slides. Colocou-os delicadamente no saco e depois jogou-os no bolso.

- Obrigado - disse ele. - Onde é que eu tenho que assinar?

Enquanto Esquisito rabiscava o seu nome em uma ficha de registro, Alex olhava intrigado para Soanes.

- Por que o senhor está fazendo isso? - perguntou ele.

Soanes tirou os óculos e os guardou, cuidadosamente.

- Porque eu detesto enigmas que não são desvendados - respondeu ele, ficando de pé. - Quase tanto quanto detesto trabalho policial malfeito. E depois, detestaria ter as mortes de vocês dois pesando na minha consciência, caso a sua teoria esteja realmente correta.

- Ei, o que você está fazendo? - perguntou Esquisito quando Alex, ao chegar nos arredores de Glenrothes, ligou a seta para a direita.

- Quero falar com Lawson o lance de Macfadyen ter mandado as coroas. E quero tentar convencê-lo a fazer com que Soanes analise as amostras que ele tem novamente.

- Perda de tempo - resmungou Esquisito.

- Melhor do que voltar para St. Monans e bater na porta de uma casa vazia.

Esquisito não disse mais nada, deixando Alex ir até a central da polícia. Na recepção, Alex pediu para falar com Lawson.

- É um assunto relacionado ao caso Rosemary Duff - explicou ele. Foram direcionados a uma sala de espera, onde ficaram sentados observando pôsteres sobre besouros, pessoas desaparecidas e violência doméstica. - É impressionante como a gente se sente culpado, só de sentar aqui - comentou Alex.

- Eu não me sinto, não - retrucou Esquisito. - Mas também, eu presto contas a uma autoridade superior.

Após alguns minutos, uma mulher troncuda caminhou na direção deles.

- Eu sou a detetive Pirie - disse ela. - Lamento informar, mas o subchefe Lawson não está disponível no momento. Mas eu sou a oficial encarregada do caso Rosemary Duff.

Alex balançou a cabeça.

- Quero falar com Lawson. Vou esperar.

- Sinto muito, mas não vai ser possível. Ele vai ficar fora por alguns dias.

- O chefe foi pescar - disse Esquisito, irônico.

Karen Pirie, pega de surpresa, disse:

- Pois é, foi mesmo. No lago... - entregou ela, antes de perceber a gafe.

Esquisito pareceu mais surpreso do que ela.

- Sério? Eu estava só brincando.

Karen tentou disfarçar a sua confusão.

- O senhor é Gilbey, não é isso? - perguntou ela, olhando concentrada para Alex.

- Sim, sou eu. Como a senhora...?

- Vi o senhor no funeral do Dr. Kerr. Sinto muito pela sua perda.

- É por isso que estamos aqui - disse Esquisito. - Achamos que a mesma pessoa que matou David Kerr está planejando acabar com a gente também.

Karen respirou profundamente.

- O subchefe Lawson comentou comigo sobre o encontro com o Sr. Gilbey. E, como ele disse para o senhor - continuou ela, olhando para Alex -, são temores que não têm nenhum fundamento.

Esquisito bufou, exasperado.

- Ah, é? E se disséssemos à senhora que quem enviou as coroas foi Graham Macfadyen?

- Coroas? - perguntou Karen, desnorteada.

- A senhora não acabou de dizer que Lawson contou sobre o encontro com Alex? - desafiou Esquisito.

Alex interveio, imaginando por um momento como os pecadores conseguiam aturar Esquisito. Ele contou a Karen sobre os misteriosos arranjos de flores e ficou agradecido ao constatar que ela começava a levá-lo a sério.

- É, tenho que admitir que é uma coisa muita estranha mesmo. Mas não quer dizer que o Sr. Macfadyen esteja por aí matando pessoas.

- De que outro modo ele ficaria sabendo das mortes? - perguntou Alex, buscando sinceramente uma resposta.

- Esta é a questão, não é? - perguntou Esquisito.

- Ele pode ter lido a respeito nos jornais. A morte do Dr. Kerr foi amplamente divulgada. E imagino que não deve ter sido muito difícil ficar sabendo do Sr. Malkiewicz também. A internet tornou o mundo bem pequeno.

Alex experimentou a mesma sensação de desânimo novamente. Por que as pessoas resistiam tanto para enxergar algo que lhe parecia tão claro?

- Mas por que ele mandaria as coroas, a não ser que achasse que somos os responsáveis pela morte da mãe?

- Uma coisa é achar que vocês são culpados, outra é assassinato - ponderou Karen. - Entendo que o senhor esteja se sentindo pressionado. Mas, pelo que me contou, não há nenhum indício de que esteja correndo perigo.

Esquisito estava apoplético.

- Quantos de nós precisam morrer para que vocês comecem a nos levar a sério?

- Alguém ameaçou os senhores?

Esquisito lançou um olhar mal-humorado.

- Não.

- Alguém andou ligando e desligando para a casa de vocês?

- Não.

- Notaram alguém rondando a sua casa?

Esquisito olhou para Alex, que balançou a cabeça em um gesto negativo.

- Então, sinto muito, não tem nada que eu possa fazer.

- Tem, sim - disse Alex. - A senhora pode solicitar uma nova análise da tinta encontrada no cardigã de Rosie Duff.

Karen arregalou os olhos, surpresa.

- Como é que o senhor sabe da tinta?

A voz de Alex tinha um quê de frustração.

- Éramos testemunhas. Suspeitos, para todos os efeitos. Acha que não percebemos quando os seus colegas rasparam as nossas paredes e colaram fitas adesivas no nosso carpete? E então, detetive Pirie? Que tal tentar descobrir de verdade quem matou Rosie Duff?

Incomodada por aquelas palavras, Karen empertigou-se.

- É exatamente o que eu tenho feito nos últimos meses, senhor. E a opinião oficial é de que uma análise da tinta não valeria a pena em termos de custo e benefício, devido à possibilidade remota de chegarmos a alguma conclusão depois de tanto tempo.

A raiva que Alex estava contendo há dias subitamente veio à tona.

- Não valeria a pena? Se existe alguma possibilidade, por menor que seja, vocês deviam ir atrás dela - gritou ele. - Até parece que vocês têm outros testes caros para fazer. Ainda mais agora que perderam a única prova que poderia finalmente limpar os nossos nomes. A senhora tem ideia do que as pessoas fizeram conosco naquela época, por causa da incompetência da polícia? Vocês estragaram a nossa vida. Ele levou uma surra - Alex apontou para Esquisito. - Ziggy foi jogado dentro da Masmorra da Garrafa. Podia ter morrido. Mondo tentou se matar e Barney Maclennan morreu por causa disso. E se Jimmy Lawson não tivesse aparecido na hora certa, eu teria sido espancado também. Então, não me venha com esse papo de custo e benefício. Limite-se a fazer o seu maldito trabalho. - Alex virou-se e foi embora.

Esquisito continuou parado no mesmo lugar, olhando fixamente para Karen Pirie.

- Você ouviu o que ele disse - alertou ele. - Diga a Jimmy Lawson para puxar o anzol e manter a gente vivo.


38

James Lawson abriu o ventre e mergulhou as mãos na cavidade, segurando as entranhas escorregadias. Crispou os lábios em um esgar de nojo, sentindo o deslizar dos órgãos vitais contra a sua pele - um acinte à sua personalidade basicamente rabugenta. Removeu as tripas, certificando-se de que o sangue e o muco não avançassem o limite imposto pelas folhas de jornal que ele estendera. Então, juntou a truta com as outras três que havia pescado naquela tarde.

Nada mau para aquela época do ano, pensou ele. Talvez fritasse umas duas para o chá e guardasse as outras no pequeno frigobar do trailer. Dariam um bom café da manhã, antes de partir para o trabalho no dia seguinte. Levantou-se e ligou a bomba que fornecia água gelada para a pequena pia. Da próxima vez que viesse ao seu esconderijo no lago Leven, precisava trazer algumas garrafas de cinco litros sobressalentes. Esvaziara a última no tanque naquela manhã, e embora pudesse sempre contar com o fazendeiro local que alugava a área para ele em uma emergência, não gostava de abusar da sua boa vontade. Levara o seu trailer para aquele local havia vinte anos e jamais incomodara o fazendeiro. Preferia assim. Só ele, o rádio e uma pilha de romances policiais. Um lugar privativo, para fugir das pressões do trabalho e da vida doméstica, um lugar para renovar as suas energias.

Abriu uma lata de batatas, escorreu a água e começou a cortá-las. Enquanto esperava a frigideira aquecer o suficiente para colocar o peixe e as batatas, embrulhou as tripas no jornal e jogou tudo em um saco plástico. Após a refeição, adicionaria a pele e as espinhas no saco, daria um nó bem firme e deixaria nos degraus do trailer, para que fosse recolhido pela manhã. Não havia nada pior do que ter de dormir com o fedor dos restos do seu jantar.

Lawson colocou um naco de manteiga na frigideira, esperou derreter e então adicionou as batatas. Foi virando as que começavam a pegar cor e cuidadosamente colocou as duas trutas na frigideira, adicionando um toque de limão espremido. O som familiar da fritura estalando o animou, o cheiro era a promessa do que estava por vir. Quando ficou pronto, transferiu para um prato e sentou-se à mesa para curtir o seu jantar. O momento não podia ser mais perfeito; o tema familiar do seriado The Archers começou a tocar no rádio assim que ele deslizou a faca na superfície crocante da primeira truta.

Estava na metade da refeição quando ouviu algo que não deveria ouvir. A porta de um carro batendo. O rádio ocultara o som do motor se aproximando, mas o barulho da porta foi alto o suficiente para se impor ao som da novela radiofônica. Lawson ficou momentaneamente paralisado, depois pegou o rádio e o desligou, concentrando-se para tentar ouvir alguma coisa lá de fora. Quase imperceptivelmente, abriu uma fresta da cortina. Próximo ao portão do campo, conseguiu distinguir o formato de um carro de tamanho pequeno ou médio. Talvez um Golf, um Astra ou um Focus. Era difícil ser mais preciso naquela escuridão. Observou a distância entre o portão e o seu trailer. Nenhum movimento.

A batida na porta fez o seu coração pular dentro do peito. Quem diabos estava lá fora? Pelo que sabia, as únicas pessoas que conheciam a localização do seu recanto de pesca eram o fazendeiro e a sua esposa. Nunca levara colegas ou amigos lá. Quando saíam para pescar, ele preferia encontrá-los no litoral, de barco, determinado a manter a sua privacidade.

- Um momento - gritou ele, levantando-se e caminhando em direção à porta, parando apenas para pegar a sua faca afiada de destrinchar peixes. Diversos criminosos poderiam achar que tinham contas a acertar e ele não seria pego desprevenido. Mantendo um dos pés atrás da porta, ele abriu uma fresta da porta.

Na nesga de luz que banhou os degraus, estava Graham Macfadyen. Lawson demorou alguns segundos para reconhecê-lo. Perdera peso desde a última vez em que haviam se encontrado. Os seus olhos queimavam febris sobre bochechas esquálidas e o seu cabelo estava escorrido e oleoso.

- Que diabos você está fazendo aqui? - perguntou Lawson.

- Preciso falar com você. Disseram que você tinha tirado uns dias de folga, então imaginei que estivesse aqui. - O tom de Macfadyen era prosaico, como se o fato de um civil bater na porta do trailer de pesca do subchefe de polícia fosse uma coisa absolutamente normal.

- Como foi que você me localizou aqui? - indagou Lawson, a ansiedade transformando-se em raiva.

Macfadyen deu de ombros.

- Hoje em dia, a gente acha tudo o que quiser. Você deu uma entrevista para o Fife Record na última vez em que foi promovido. Está no site deles. Você disse que gostava de pescar e que tinha um cantinho no lago Leven. Nem todos os caminhos desembocam na beira-mar. Dirigi até localizar o seu carro.

Havia algo nos seus modos que fez Lawson gelar até os ossos.

- Isto não é apropriado - disse ele. - Se você quer discutir assuntos de trabalho, procure-me no escritório.

Macfadyen parecia contrariado.

- O assunto é importante, não posso esperar. E não vou falar com outra pessoa, você entende a minha situação, só posso falar com você mesmo. Então por que não me escutar? Você precisa escutar, só eu posso te ajudar.

Lawson começou a fechar a porta, mas Macfadyen levantou a mão e a empurrou.

- Vou ficar aqui do lado de fora gritando se você não me deixar entrar - ameaçou ele. O seu tom de voz neutro não combinava em nada com a sua expressão determinada.

Lawson pesou os prós e os contras. Macfadyen não lhe parecia um tipo violento. Não era possível ter certeza absoluta. De qualquer maneira, estava com a faca, caso alguma coisa acontecesse. Era melhor ouvir o que ele tinha a dizer e ficar logo livre. Abriu a porta e recuou, sem virar as costas para a sua visita desagradável.

Macfadyen o seguiu para dentro do trailer. Em uma transtornada perversão do discurso normal, ele sorriu e comentou:

- Como é aconchegante aqui. - Então, o seu olhar recaiu sobre a mesa e ele ensaiou um pedido de desculpas. - Vejo que atrapalhei o seu lanche. Sinto muito.

- Tudo bem - mentiu Lawson. - O que é que você tem para me dizer?

- Eles estão se reunindo. Estão querendo ficar juntos para tentar evitar o destino que lhes espera.

- Quem está se reunindo? - perguntou Lawson.

Macfadyen suspirou, como se estivesse frustrado por estar lidando com um estagiário pateta.

- Os assassinos da minha mãe - disse ele. - Mackie está de volta. Está morando com Gilbey. É a única maneira de se sentirem seguros. Mas estão enganados, é claro. Isso não irá protegê-los. Jamais acreditei em destino, mas é a única maneira de descrever o que está acontecendo com o quarteto ultimamente. E Gilbey e Mackie devem estar sentindo a mesma coisa. Devem estar percebendo que o tempo deles está chegando ao fim, assim como chegou ao fim para os seus amigos. E obviamente está. A não ser que paguem o preço. E reunirem-se assim é como uma confissão. Você tem que enxergar isso.

- Você pode até estar certo - disse Lawson, tentando uma conciliação. - Mas este não é o tipo de confissão que funciona em um tribunal.

- Eu sei disso - respondeu Macfadyen, impaciente. - Mas eles não podiam estar mais vulneráveis. Estão com medo. Está na hora de usarmos esta fraqueza para criar uma desavença entre eles. Tenho observado os dois. Podem surtar a qualquer momento.

- Não temos nenhuma prova - disse Lawson.

- Eles vão confessar. Que outra prova você precisa? - Macfadyen não tirava os olhos do policial.

- As pessoas tendem a pensar assim. Mas pela lei escocesa, uma confissão por si só não é suficiente para condenar uma pessoa. Precisamos de provas corroborativas.

- Mas isso não está certo - protestou Macfadyen.

- É a lei.

- Você tem que fazer alguma coisa. Faça com que eles confessem e depois encontre uma prova para fundamentar a acusação no tribunal. Afinal de contas, é o seu trabalho - disse Macfadyen, levantando a voz.

Lawson balançou a cabeça.

- Não é assim que as coisas funcionam. Olha, prometo que vou procurar Mackie e Gilbey. Mas não posso fazer mais nada.

Macfadyen fechou a mão direita em um punho.

- Você não se importa, não é mesmo? Ninguém se importa.

- Me importo, sim - disse Lawson. - Mas tenho que agir dentro da lei. E o senhor também.

Macfadyen produziu um som estranho no fundo da garganta, como um cão engasgado com um osso de galinha.

- Esperava que você me compreendesse - disse ele friamente, segurando a maçaneta e abrindo a porta, que se escancarou em um solavanco e bateu contra a parede.

E então ele partiu, engolido pela escuridão da noite. Um frio úmido invadiu o calor aconchegante do trailer, abafando o cheiro rançoso de comida e o substituindo pelo odor penetrante do pântano. Lawson continuou parado na porta, mesmo depois de o carro de Macfadyen ter partido erraticamente pela estrada, e os seus olhos eram como duas poças negras de preocupação.

Lynn foi o passaporte deles para Jason McAllister. E ela não estava disposta a deixar Davina com ninguém, nem mesmo com Alex. Por isso, o que deveria ser uma corriqueira viagem matinal pela Ponte de Allan transformou-se em uma operação complexa. Era incrível o que precisava acompanhar um bebê, pensou Alex enquanto fazia a sua terceira e última viagem até o carro, carregando encurvado a cadeirinha e Davina. Carrinho, bolsa com fraldas, lenços, babadores, duas mudas de roupa, só por precaução. Mantas sobressalentes, só por precaução. Um blusão limpo para Lynn, porque nem sempre o bebê golfava no babador. O canguru. Era de admirar que não tivesse arrumado um espaço no carro para colocar a pia da cozinha também.

Afivelou o cinto de segurança sobre a cadeirinha e testou para ver se estava seguro. Nunca se preocupara com a firmeza dos cintos de segurança antes, mas agora se pegava questionando se eles eram de fato confiáveis em caso de batida. Inclinou-se para dentro do carro, ajeitou o chapeuzinho de Davina e beijou a sua filha adormecida. Conteve a respiração, apreensivo, ao ver que ela se mexia. Que ela não vá chorando durante o caminho todo, pediu ele. Não saberia lidar com a culpa.

Lynn e Esquisito juntaram-se a ele e os três entraram no carro. Alguns minutos depois, já estavam na autoestrada. Esquisito deu um tapinha no ombro de Alex.

- Dá para andar mais rápido do que quarenta quilômetros por hora aqui, sabia? - disse ele. - Vamos nos atrasar.

Contendo a preocupação com a sua carga valiosa, Alex acelerou, obediente. Estava tão ansioso quanto Esquisito para dar prosseguimento àquela investigação. E Jason McAllister parecia ser a pessoa perfeita para ajudá-los a alcançar a próxima etapa. O trabalho de Lynn como restauradora de pinturas para as galerias escocesas fez com que ela se tornasse uma especialista no tipo de tinta usado pelos artistas de diferentes períodos. E exigiu também que ela arrumasse um outro especialista para analisar as amostras do original, para que ela pudesse ser o mais precisa possível. E, além disso, às vezes a autenticidade de uma determinada obra de arte era duvidosa. Então as amostras de tinta tinham de ser avaliadas para verificar se faziam parte do período em questão e se eram compatíveis com os materiais usados pelo mesmo pintor em outros trabalhos, nos quais a procedência era inquestionável. O sujeito que ela encontrou para auxiliá-la na parte científica de suas investigações foi Jason McAllister.

Ele trabalhava em um laboratório forense particular, próximo à Universidade de Stirling. Passara a maior parte da sua vida profissional analisando fragmentos de tinta de acidentes na estrada, ou para a polícia, ou para seguradoras. Ocasionalmente, distraía-se com um caso de homicídio, estupro ou lesão corporal grave, mas estas ocasiões eram raras demais para os talentos variados de Jason.

Na inauguração de uma exposição de Poussin, ele procurou Lynn e contou a ela que era apaixonado por pintura. No início, ela achou aquele jovem nerd meio pretensioso, querendo mostrar intimidade com a arte. Depois, percebeu que ele estava realmente falando a verdade. Nada mais, nada menos. O que o entusiasmava não era o que estava representado na tela; era a estrutura do material usado para produzi-la. Ele lhe deu o seu cartão e fez com que ela prometesse que ia entrar em contato da próxima vez que tivesse um problema. Garantiu diversas vezes que era melhor do que a pessoa que estava trabalhando para ela, independentemente de quem fosse.

Jason deu sorte naquela noite. Lynn estava enjoada do sujeito bobão e pomposo com quem fora forçada a trabalhar anteriormente. Ele era um daqueles tipos da antiga de Edimburgo, que não conseguiam deixar de tratar as mulheres com condescendência. Ainda que o seu cargo fosse de técnico de laboratório, tratava Lynn como se ela fosse uma subordinada, cuja opinião não tinha a menor relevância. Com uma restauração importante à frente, Lynn estava sofrendo com a ideia de ter de trabalhar com ele novamente. Jason parecia um presente dos deuses. Desde o início, ele não a subestimou. Pelo contrário, o problema parecia ser justamente o oposto. Ele tinha a mania de achar que estavam no mesmo patamar e Lynn perdeu a conta das vezes que teve de pedir para ele ir com calma e falar em um idioma que ela compreendesse. Mas mesmo assim, preferia isso a ser julgada como inferior.

Quando Alex e Esquisito chegaram em casa com um saco com amostras de tinta, Lynn passou dez minutos ao telefone com Jason. Como ela já imaginava, ele agiu como uma criança que acaba de saber que vai passar as férias na Disneylândia.

- Tenho uma reunião bem cedo, mas consigo me liberar lá pelas dez.

Conforme Alex havia sugerido, ela tentou informar que pagariam pelo seu serviço por fora. Mas ele descartou a oferta.

- Para que servem os amigos? - ponderou ele. - Além do mais, estou de saco cheio de tinta de carro. Você vai me salvar de uma morte por tédio. Traz isso logo, mulher!

O laboratório ficava em um prédio surpreendentemente moderno e bonito, que ocupava o seu próprio terreno na rua, com a fachada de tijolos marrons. As janelas eram altas e todos os ângulos de aproximação eram monitorados com câmeras de segurança. Tiveram de ultrapassar duas portas antes de chegar à recepção.

- Já estive em presídios menos seguros do que isso aqui - comentou Esquisito. - O que eles fazem, afinal? Fabricam armas de destruição em massa?

- Prestam serviços forenses para a Coroa, como autônomos. E para a Defensoria também - explicou Lynn enquanto esperavam por Jason. - Então, precisam demonstrar que qualquer prova sob seus cuidados será armazenada com segurança.

- Quer dizer que fazem exames de DNA e tudo? - perguntou Alex.

- Por quê? Está em dúvida sobre a sua paternidade? - brincou Lynn.

- Quando ela se transformar em uma adolescente infernal a gente conversa - disse Alex. - Não, só estou curioso.

- Fazem DNA, exames de fios de cabelo, fibras e tintas - disse Lynn. Enquanto ela falava, um sujeito parrudo se aproximou e pousou a mão em seu ombro.

- Você trouxe o bebê - disse ele, inclinando-se para olhar dentro do carrinho. - Ei, ela é linda. - Ele abriu um sorriso para Lynn. - A maioria dos bebês dá a impressão de que um cachorro sentou no rosto deles. Mas ela parece uma pessoa de verdade, só que bem pequenininha. - Ele ergueu-se. - Eu sou o Jason - disse ele, olhando indeciso para Esquisito e Alex.

Os dois se apresentaram. Alex observou a camisa do time Stirling Albion, a calça cargo com os bolsos abarrotados e os cabelos arrepiados, cujas pontas exibiam um tom de loiro nada natural. Julgando pela aparência, Jason parecia um daqueles sujeitos que ficavam bem à vontade em um pub, com uma garrafa de cerveja cara na mão. Mas os seus olhos eram atentos e observadores e o seu corpo calmo e controlado.

- Venham comigo - instruiu Jason. - Deixe-me levar o bebê - acrescentou ele, apanhando o carrinho. - Ela é uma princesinha.

- Você talvez não dissesse isso às três da manhã - disse Lynn, obviamente coruja.

- Talvez não. A propósito, sinto muito pelo seu irmão - disse ele, olhando de esguelha para Lynn, desconfortável. - Deve ter sido horrível.

- Não tem sido fácil mesmo - disse ela, enquanto seguiam Jason por um corredor estreito, com as paredes pintadas de azul-claro. Ao fim do corredor, Jason os conduziu por um laboratório impressionante. Equipamentos misteriosos reluziam por todos os cantos. As bancadas eram impecáveis e arrumadas e o técnico que analisava algo que Alex imaginou ser um microscópio futurista não mexeu um músculo quando eles entraram.

- Parece que estou contaminando o lugar só com a minha respiração - comentou ele.

- Com tinta é bem mais tranquilo - disse Jason. - Se eu trabalhasse com DNA, você não poderia nem estar aqui. Então, expliquem exatamente o que vocês trouxeram para mim.

Alex resumiu a conversa que haviam tido com Soanes na véspera.

- Soanes não acha que temos muita chance de encontrar um resultado para a tinta, mas talvez você possa descobrir alguma coisa pelo formato dos pingos - acrescentou ele.

Jason analisou os slides.

- Parece que foram bem conservados, o que com certeza ajuda.

- O que você vai fazer com eles? - perguntou Esquisito.

Lynn resmungou.

- Você não devia ter perguntado isso.

Jason achou graça.

- Ignore Lynn, ela adora fingir que é ignorante. Temos diversas técnicas para analisar o condutor e o pigmento. E também usamos a microespectrofotometria para determinar a cor, para podermos definir de forma mais acurada a composição das amostras de tinta. Espectrometria infravermelha por transformação de Fourier, Cromatografia a gás e Microscopia eletrônica de varredura. Coisas assim.

Esquisito estava atordoado.

- E para que serve cada uma dessas? - perguntou Alex.

- Várias coisas. Se for um fragmento, podemos saber de que tipo de superfície ele veio. Com tinta de carro, analisamos as diferentes camadas e possuímos um banco de dados para consulta, onde descobrimos a marca, o modelo e o ano de fabricação. Com gotículas, é possível fazer basicamente a mesma coisa, a não ser os detalhes de superfície, uma vez que a tinta jamais esteve sobre ela.

- Quanto tempo isso demora? - perguntou Esquisito. - É que estamos com um pouquinho de pressa.

- Vou levar o tempo necessário. Talvez uns dois dias. Vou tentar ser o mais rápido possível. Mas não quero fazer nada menos do que um trabalho perfeito. Se vocês estiverem certos, existe a possibilidade de pararmos no tribunal dando o nosso testemunho e eu não quero fazer um trabalho porco. Vou fazer um recibo, atestando que apanhei as amostras com vocês, por precaução. Vai que alguém resolve dizer o contrário mais para a frente...

- Obrigada, Jason - disse Lynn. - Estou te devendo uma.

Ele sorriu.

- Eu realmente gosto disso em uma mulher.


39

Jackie Donaldson já havia escrito sobre aquela batida na porta de madrugada, a escolta até a viatura de prontidão na rua, o percurso por ruas desertas e a terrivelmente enervante espera em uma sala confinada que recendia a outras pessoas. Nunca lhe passara pela cabeça que um dia estaria de fato vivenciando aquela situação, e não escrevendo sobre ela.

Acordou com o barulho do interfone. Olhou a hora - 03:47 - e dirigiu-se trôpega de sono até o aparelho, vestindo o robe. Quando o detetive-inspetor Darren Heggie se anunciou, primeiro ela pensou que algo terrível tivesse acontecido com Hélène. Não conseguia entender por que ele queria subir àquela hora da madrugada. Mas Jackie não discutiu. Sabia que seria uma perda de tempo.

Heggie adentrou no seu flat com uma mulher vestida à paisana e dois policiais uniformizados, que permaneceram na retaguarda, levemente desconfortáveis. Heggie não perdeu tempo com conversa fiada.

- Jacqueline Donaldson, estou detendo você por suspeita de conspiração para um homicídio. Você poderá ficar detida por um período de até seis horas sem prisão e tem direito de entrar em contato com um advogado. Não precisa dizer nada, além do seu nome e do seu endereço. Você compreende o motivo da sua detenção?

Ela deu um sorrisinho debochado.

- Compreendo que o senhor tem todo o direito de fazer o que está fazendo. Mas não entendo por que está fazendo.

Jackie não simpatizara com Heggie de cara. O seu queixo pontudo, os olhos estreitos, o corte de cabelo ultrapassado, o terno barato e o andar pretensioso. Mas ele havia agido de maneira educada, quase laudatória, nos seus encontros anteriores. Naquele dia, porém, ele adotara uma eficiência brusca.

- Por favor, troque de roupa. A policial ficará com você. Estamos esperando lá fora. - Heggie deu as costas e enxotou os policiais escada abaixo.

Determinada a não demonstrar o seu constrangimento, Jackie voltou para o local do loft onde ficava a sua cama. Apanhou a primeira camiseta que viu, um casaco na gaveta e recolheu a calça jeans das costas de uma cadeira. Então, mudou de ideia. Se as coisas piorassem, havia a possibilidade de ter de se apresentar a um juiz antes de poder trocar de roupa. Vasculhou o fundo do armário, em busca do seu único terno decente. Jackie deu as costas para a policial, que se recusava a tirar os olhos dela, e se vestiu.

- Preciso ir ao banheiro - disse ela.

- Você tem que deixar a porta aberta - retrucou a mulher, impassível.

- Você acha que eu vou tomar um pico ou algo assim?

- É para a sua própria proteção - respondeu ela com enfado.

Jackie fez o que tinha de fazer e depois ajeitou o cabelo para trás, molhando-o com água gelada. Olhou-se no espelho, imaginando quando poderia fazer aquilo novamente. Agora sabia exatamente o que sentiam as pessoas sobre quem havia escrito. E aquela era uma sensação horrível. O seu estômago revirava, como se estivesse há dias sem dormir, e a sua respiração parecia entalada na garganta.

- Quando é que vou poder ligar para o meu advogado? - perguntou ela.

- Quando chegarmos à delegacia - respondeu a policial.

Meia hora depois, estava trancafiada em uma sala apertada com Tony Donatello, um advogado criminal de terceira geração que ela conhecia desde os seus primeiros meses como repórter em Glasgow. Estavam mais habituados a se encontrar em bares do que em celas, mas Tony foi educado e não comentou nada a respeito. Também era sensível o suficiente para não refrescar a memória de Jackie e lembrar que da última vez que a representara em uma delegacia, ela acabara sendo fichada.

- Eles querem te interrogar sobre a morte de David - explicou ele. - Mas imagino que você já saiba disso.

- É o único assassinato com o qual estou remotamente conectada. Você ligou para Hélène?

Tony deu uma tosse curta e seca.

- Parece que ela também foi chamada.

- Devia ter imaginado. E aí, qual vai ser a nossa estratégia?

- Você fez alguma coisa recentemente que possa ser interpretada como relacionada com a morte de David? - perguntou Tony.

Jackie balançou a cabeça.

- Nada. Não há nenhuma conspiração sórdida aqui, Tony. Hélène e eu não tivemos nada a ver com o assassinato de David.

- Jackie, eu não tenho nada a ver com Hélène. A minha cliente é você e eu tenho que me preocupar com os seus atos. Se houve qualquer coisa, por menor que seja, um comentário casual, um e-mail impertinente, qualquer coisa, isso pode te complicar e aí não vamos responder a pergunta nenhuma. Vamos ter que recorrer ao "nada a declarar". Mas se você tem certeza de que não precisamos nos preocupar com nada, vamos responder. E então?

Jackie mexeu no seu piercing de sobrancelha.

- Olha, tem uma coisa que você precisa saber. Eu não estava com Hélène o tempo todo. Dei uma saída, de mais ou menos uma hora, ou um pouco mais. Tive que ir me encontrar com uma pessoa. Não posso dizer quem era, mas acredite, não serve como álibi.

Tony parecia preocupado.

- Isso não é nada bom - disse ele. - Talvez seja melhor partir para o "nada a declarar" mesmo.

- Não, não quero isso. Você sabe que vai pegar supermal para mim.

- Você é quem sabe. Mas, diante das circunstâncias, eu acho que o silêncio seria a melhor opção.

Jackie parou e pensou por alguns minutos. Não conseguia imaginar como a polícia poderia saber da sua saída.

- Vou falar com eles - disse ela, finalmente.

A sala de interrogatório não era nenhuma surpresa para alguém versado na gramática dos seriados policiais na tevê. Jackie e Tony sentaram do lado oposto de Heggie e da detetive que o acompanhara até o loft. Naquela proximidade, a loção pós-barba de Heggie exalava um odor rançoso. Duas fitas cassete estavam engatilhadas juntinhas no gravador no canto da mesa. Uma vez terminadas as formalidades, Heggie foi direto ao assunto.

- Há quanto tempo você conhece Hélène Kerr?

- Há uns quatro anos. Conheci ela e o marido em uma festa dada por um amigo em comum.

- E qual é o seu relacionamento com ela?

- Antes de qualquer outra coisa, somos amigas. Ocasionalmente, somos amantes.

- Há quanto tempo vocês são amantes? - Os olhos de Heggie pareciam famintos, como se a mera ideia de Jackie e Hélène juntas fosse potencialmente tão satisfatória quanto uma confissão criminal.

- Há uns dois anos.

- E com que frequência se encontravam?

- Passávamos uma noite juntas, praticamente toda semana. Fazíamos sexo na maioria das vezes, mas nem sempre. Como eu disse, a amizade é o componente mais importante do nosso relacionamento. - Jackie estava achando mais difícil do que havia imaginado ficar calma e impassível diante do olhar de avaliação dos interrogadores. Mas sabia que tinha de manter a calma; qualquer rompante seria interpretado como um indício de algo mais do que mero nervosismo.

- David Kerr sabia que você estava dormindo com a mulher dele?

- Acho que não.

- Você deve ter ficado chateada com essa história de ela ter continuado com ele - sugeriu ele.

Uma observação perspicaz, pensou ela. E que estava incomodamente próxima da verdade. No fundo do seu coração, Jackie sabia que não lamentava a morte de David Kerr. Amava Hélène e estava cansada das migalhas que ela lhe oferecia. Há muito tempo que ela queria muito mais.

- Desde o início eu já sabia que ela não ia deixar o marido. E, por mim, tudo bem.

- Isso é difícil de acreditar - disse ele. - Você estava sendo preterida pelo marido dela e isso não te incomodava?

- Não era uma rejeição. O acordo era satisfatório para nós duas. - Jackie inclinou-se para a frente, torcendo para que a sua linguagem corporal transmitisse franqueza. - Era só um passatempo. Eu gosto da minha liberdade. Não quero me amarrar a ninguém.

- É mesmo? - Ele consultou as suas anotações. - Então o vizinho que ouviu vocês duas discutindo aos berros porque ela não queria deixar o marido está mentindo?

Jackie lembrou-se da discussão. Durante o período em que estavam juntas, haviam brigado pouquíssimas vezes, por isso aquela fora tão marcante. Havia alguns meses, convidara Hélène para ir com ela à festa de quarenta anos de uma amiga. Hélène olhara para ela sem poder acreditar no que tinha acabado de ouvir. Aquilo era algo que escapava às regras, um assunto que não devia sequer ter sido cogitado. Todas as frustrações de Jackie vieram à tona e elas descambaram para uma discussão calorosa. A coisa só mudou de figura abruptamente quando Hélène ameaçou ir embora e não voltar nunca mais. Aquela era uma perspectiva insuportável para Jackie e ela acabou cedendo. Mas não estava disposta a compartilhar a história com Heggie e a sua subalterna.

- Deve estar mentindo, sim - disse ela. - Não dá para escutar um "ai" através das paredes desses lofts.

- Ao que parece, dá para escutar muito bem se as janelas estiverem abertas - disse Heggie.

- E quando foi que se deu esta suposta conversa? - interrompeu Tony.

Heggie consultou novamente as suas anotações.

- No final de novembro.

- O senhor está realmente sugerindo que a minha cliente estava com as janelas abertas no final de novembro em Glasgow? - retrucou ele, debochado. - É só isso que o senhor tem? Fofoca e disse me disse de vizinhos enxeridos e cheios de imaginação?

Heggie encarou o advogado por um bom tempo antes de tornar a falar.

- A sua cliente tem um histórico de violência.

- Não, não é verdade. Ela foi condenada por ter agredido um policial em uma manifestação anticontribuição autárquica, onde um dos seus colegas a confundiu entusiasticamente com um dos manifestantes. Isso está longe de ser um histórico de violência.

- Ela deu um soco na cara do policial.

- Sim, depois que ele a arrastou pelos cabelos. Se tivesse sido uma agressão tão violenta quanto o senhor está falando, por que ela teria recebido apenas seis meses de sursis? Se isso é tudo o que o senhor tem contra ela, não vejo mais motivos para continuar detendo a minha cliente.

Heggie lançou um olhar irritado para os dois.

- Você estava com a Sra. Kerr na noite em que o marido dela morreu?

- Estava - respondeu Jackie, cautelosa. Era ali que as coisas começavam a ficar perigosas. - Era a noite em que costumávamos nos encontrar. Ela chegou por volta das seis e meia. Jantamos peixe com batatas, que eu saí para comprar, bebemos um pouco de vinho e depois fomos para a cama. Ela saiu lá pelas onze. Tudo como de costume.

- Alguém pode confirmar isso?

Jackie levantou as sobrancelhas.

- Não sei quanto ao senhor, inspetor, mas quando eu faço amor com alguém não costumo convidar os vizinhos. O telefone tocou algumas vezes, mas eu não atendi.

- Temos uma testemunha que afirma tê-la visto caminhando até o seu carro por volta das nove horas naquela noite - disse Heggie, triunfante.

- Ele deve ter confundido a data - disse Jackie. - Estive com Hélène a noite inteira. Será que esse é outro dos meus vizinhos homofóbicos que o senhor vem tentando convencer a fazer parte das testemunhas de acusação?

Tony agitou-se em sua cadeira.

- O senhor ouviu a resposta da minha cliente. Se não existe nada de novo para acrescentar, sugiro que a conversa termine por aqui.

Heggie respirou profundamente.

- Se o senhor permitir, Sr. Donatello, eu gostaria de apresentar o depoimento de uma testemunha que nós colhemos ontem.

- Posso dar uma olhada nisso? - perguntou Tony.

- Tudo a seu tempo. Denise?

A detetive abriu a pasta que apoiava no colo e colocou uma folha de papel na frente dele. Heggie umedeceu os lábios e disse:

- Prendemos um traficantezinho chinfrim ontem. E ele estava disposto a oferecer qualquer informação que pudesse melhorar a sua imagem conosco. Senhorita Donaldson, conhece Gary Hardie?

O coração de Jackie pulou no seu peito. O que aquilo tinha a ver com o caso? Não havia se encontrado com Gary Hardie naquela noite, nem com nenhum dos seus colegas.

- Sei quem ele é - enrolou ela. Estava longe de ser uma confissão; qualquer um que lesse os jornais ou visse tevê na Escócia teria reconhecido o nome. Algumas semanas antes, não sem o devido sensacionalismo, Gary Hardie escapara ileso da Suprema Corte em Glasgow após um dos casos de homicídio mais badalados dos últimos tempos naquela cidade. Durante o julgamento, ele havia sido chamado de "senhor das drogas", "um sujeito que não tem o menor respeito pela vida humana" e "uma mente do crime absolutamente cruel". Entre as alegações apresentadas ao júri, estava a de que ele havia pagado um matador profissional para eliminar um concorrente.

- Você conhece Gary Hardie pessoalmente?

Jackie sentiu o suor no meio das costas.

- Em um contexto estritamente profissional, sim.

- Estamos falando da sua profissão ou da dele? - indagou Heggie, aproximando a sua cadeira da mesa.

Jackie girou os olhos, debochada.

- Inspetor, faça-me o favor. Sou jornalista, o meu trabalho é entrevistar as pessoas que estão nas manchetes dos jornais.

- Quantas vezes você esteve com Gary Hardie? - pressionou Heggie.

Jackie soltou o ar pelo nariz.

- Três vezes. Entrevistei-o há um ano para uma matéria que escrevi sobre as gangues de Glasgow para uma revista. Depois, entrevistei novamente na época em que ele aguardava o julgamento, para uma matéria que eu pretendia escrever quando o julgamento terminasse. E tomei um drinque com ele duas semanas atrás. É importante manter os contatos, na minha profissão. É assim que eu consigo histórias que ninguém consegue.

Heggie parecia cético. Ele deu uma olhada no depoimento.

- Onde foi que vocês se encontraram?

- No Ramblas. É um barzinho em...

- Eu sei onde fica o Ramblas - interrompeu Heggie. Tornou a olhar para o papel à sua frente. - Durante o encontro, um envelope trocou de mãos. Das suas para as de Hardie. Um envelope bem grosso, senhorita Donaldson. Poderia nos dizer o que estava dentro do envelope?

Jackie estava tentando disfarçar o seu choque. Tony agitava-se ao seu lado.

- Gostaria de conversar a sós com a minha cliente - disse ele, apressado.

- Não, Tony, está tudo sob controle - respondeu Jackie. - Não tenho nada a esconder. Quando eu falei com Gary, para marcar o encontro, ele me disse que alguém havia mostrado a matéria a ele e que ele havia gostado da foto usada pela revista. Ele quis umas cópias. Então, eu mandei fazer as cópias e levei para o Ramblas. Se o senhor não acredita, pode checar com o laboratório de revelação de fotos. Eles não revelam muitas fotos em preto e branco, devem lembrar, sim. Também tenho o recibo.

Tony interveio prontamente.

- Está vendo, inspetor? Nada de mais. Só uma jornalista tentando agradar um bom contato. Se é só isso o que o senhor tem de novidade, não vejo motivos para deter a minha cliente aqui nem mais um minuto.

Heggie parecia levemente desapontado.

- Você pediu para Gary Hardie matar David Kerr? - perguntou ele.

Jackie fez um gesto negativo com a cabeça.

- Não.

- Você pediu a Gary Hardie para colocá-la em contato com alguém para matar David Kerr?

- Não, isso nunca passou pela minha cabeça. - Jackie levantara o rosto, suspendendo o queixo, vencendo o medo.

- Você nunca pensou em como a vida seria melhor sem David Kerr? E como seria fácil dar um jeito nisso?

- Isso é ridículo. - Ela bateu as mãos sobre a mesa. - Por que o senhor está perdendo tempo comigo, quando deveria estar fazendo o seu trabalho?

- Estou fazendo o meu trabalho - disse ele, calmamente. - Por isso a senhora está aqui.

Tony olhou para o seu relógio.

- Não por muito tempo, inspetor. Ou você prende a minha cliente, ou vai ter que liberá-la. O interrogatório acabou. - Ele apoiou a mão sobre a mão de Jackie.

Um minuto parece muito tempo em uma sala de interrogatórios. Heggie cultivou a pausa, encarando Jackie fixamente. Depois, afastou a cadeira para trás.

- O interrogatório terminou às seis e vinte e cinco. A senhora está liberada - disse ele, com má vontade na voz. Apertou um botão, desligando os gravadores. - Não acredito em você, senhorita Donaldson - disse ele, levantando-se. - Acho que você e Hélène Kerr tramaram a morte de David Kerr. Acho que você queria exclusividade. E que naquela noite você saiu de casa para pagar o sujeito contratado para fazer o serviço. E pretendo provar tudo isso. - Ele parou na soleira da porta e virou para trás. - Isso é apenas o começo.

Assim que eles se foram, fechando a porta, Jackie cobriu o rosto com as mãos.

- Meu Deus - disse ela.

Tony ajeitou os seus pertences e depois colocou o braço em volta dos ombros de Jackie.

- Você foi nota dez. Eles não têm nada contra você.

- Já vi pessoas encasquetando com menos provas do que eles têm contra mim. Estão determinados. Não vão desistir enquanto não arrumarem alguém que consiga testemunhar que me viu fora de casa naquela noite. Meu Deus. Não acredito que foram desencavar Gary Hardie justo agora.

- Gostaria que você tivesse comentado sobre ele comigo antes - disse Tony, afrouxando a gravata e se alongando.

- Desculpe. Não tinha a menor ideia de que iam falar nisso. Não perco o meu tempo pensando em Gary Hardie. E ele nem tem nada a ver com isso. Você acredita em mim, não é, Tony? - Ela parecia aflita. Se não conseguia convencer o seu próprio advogado, não ia ter a menor chance com a polícia.

- No que eu acredito não interessa. O que importa mesmo é o que eles podem provar. E, no momento, não têm contra você nada que um bom advogado não consiga derrubar em questão de minutos. - Ele bocejou. - Programão para uma madrugada, hein?

Jackie ficou de pé.

- Vamos sair desse buraco. Até o ar parece contaminado.

Tony sorriu.

- Alguém devia dar uma loção pós-barba decente para Heggie no próximo aniversário dele. A dele parece um gambá no cio.

- Ele ia precisar de bem mais do que um Paco Rabanne da vida para se tornar um membro da raça humana - debochou Jackie. - Hélène está detida aqui na delegacia também?

- Não. - Tony suspirou. - Olha, talvez seja melhor vocês duas se afastarem um pouco agora.

Jackie o olhou com uma expressão que combinava mágoa e decepção.

- Por quê?

- Porque se vocês não forem vistas juntas, fica mais difícil provar que estão mancomunadas. Juntas, dá a impressão de que estão bolando estratégias para contar sempre a mesma história.

- Isso é absurdo - respondeu ela com firmeza. - Porra, nós somos amigas. Dormimos juntas. Onde vamos buscar apoio e conforto? Se nos evitarmos, vai parecer que estamos com algum problema. Se Hélène me quiser por perto, é lá que eu vou estar. E ponto final.

Ele deu de ombros.

- Você é quem sabe. Os meus conselhos são pagos, quer você aceite ou não. - Ele abriu a porta e a conduziu até o corredor. Jackie assinou um documento para recuperar os seus pertences e caminharam até a saída juntos.

Tony abriu a porta que conduzia à rua e estacou. Apesar da hora, três câmeras e um punhado de jornalistas estavam amontoados na calçada. Assim que avistaram Jackie, começaram a gritar. "E aí, Jackie, você foi presa?", "Você e a sua namorada contrataram um assassino profissional?", "Como você está se sentindo como suspeita de um assassinato?".

Aquele era o tipo de cena na qual ela já tomara parte diversas vezes, embora jamais a tivesse observado daquela perspectiva. Jackie achava que não havia nada pior do que ser arrastada da cama no meio da noite e tratada como uma criminosa pela polícia. Agora, sabia que estava enganada. A traição, descobrira ela, tinha um gosto infinitamente mais amargo.


40

A escuridão no quarto de Graham Macfadyen era neutralizada pela luz fantasmagórica dos monitores. Nas duas telas que não estavam sendo usadas no momento, protetores de tela exibiam um apanhado de imagens que ele escaneara. Fotografias granuladas em preto e branco da sua mãe, tiradas dos jornais; fotos contemplativas de Hallow Hill; a lápide do cemitério e as fotografias que ele batera de Alex e de Esquisito nos últimos dias.

Macfadyen estava diante do seu computador, redigindo um documento. A princípio, planejara apenas uma reclamação formal sobre a inércia de Lawson e seus colegas. Mas uma breve pesquisa no site do Poder Executivo Escocês atestara a inutilidade do seu gesto. Qualquer reclamação que fizesse seria investigada pela própria polícia de Fife e eles dificilmente criticariam as atitudes do seu subchefe. Queria resultados, não ilusões.

Decidiu então revelar a história completa e mandar cópias para parlamentares e para toda a imprensa escocesa. Mas, quanto mais escrevia, mais tinha medo de ser rechaçado como mais um adepto de teorias conspiratórias. Ou algo pior.

Macfadyen mordiscou a pele ao redor das suas unhas e ponderou sobre o que devia fazer afinal. Acabara de escrever a sua crítica devastadora sobre a incompetência da polícia de Fife e a sua recusa de levar a sério a presença de dois assassinos em sua circunscrição. Mas precisava de algo mais para chamar a atenção das pessoas. Algo que tornasse impossível ignorar as suas reclamações ou desconsiderar a maneira pela qual o destino apontara inegavelmente o dedo para os culpados pelo assassinato de sua mãe.

Duas mortes deveriam ter sido o suficiente para produzir o resultado que ele desejava. Mas as pessoas eram tão cegas; não conseguiam enxergar o que estava diante do nariz. Afinal, mesmo após as mortes, a justiça ainda não havia sido feita.

E ele continuava a ser a única pessoa capaz de fazê-la.

A casa estava começando a virar um acampamento de refugiados. Alex estava acostumado à rotina que ele e Lynn haviam aprimorado ao longo dos anos: refeições a dois, caminhadas pelo litoral, exposições e cinema, programas ocasionais com amigos. Reconhecia que deveriam parecer chatos para algumas pessoas, mas isso não tinha importância. Gostava da sua vida. Sabia que as coisas iriam mudar com a chegada do bebê e recebia aquela mudança de coração, apesar de ignorar todo o seu significado. O que ele não antecipara era Esquisito no quarto de hóspedes. Nem a chegada de Hélène e de Jackie, a primeira atormentada e a segunda enlouquecida de ódio. Sentiu-se invadido, tão fustigado pela dor e a ira dos outros que sequer conseguia entender o que ele próprio sentia.

Ficara espantado ao ver as duas na sua porta, buscando asilo para escapar da imprensa que estava fazendo plantão na frente da casa delas. Como podiam ter imaginado que seriam bem recebidas logo ali? O primeiro impulso de Lynn foi sugerir que fossem para um hotel, mas Jackie estava convicta de que o único lugar onde ninguém procuraria por elas era lá. Assim como Esquisito, pensou Alex, exausto.

Hélène tivera uma crise de choro e pedira perdão por ter traído Mondo. Jackie fez questão de refrescar a memória de Lynn, lembrando que se arriscara para ajudar Alex. Mas mesmo assim, Lynn estava irredutível: não havia lugar para elas em sua casa. Foi então que Davina começou a choramingar e Lynn fechou a porta na cara das duas, correndo para ir ver a sua filha e lançando um olhar para Alex que dizia "nem ouse deixá-las entrar aqui". Esquisito driblou Alex e saiu atrás das duas, alcançando-as a caminho do carro. Quando ele voltou para casa, uma hora depois, contou que havia hospedado as duas em um hotel não muito distante e feito a reserva em seu nome. "Eles têm um chalé no meio das árvores", contou ele. "Ninguém sabe que elas estão lá. Vai ficar tudo bem."

O aparente cavalheirismo de Esquisito criara uma certa estranheza naquela tarde, mas o seu objetivo em comum aos poucos neutralizou o desconforto, bem como algumas doses generosas de vinho. Os três adultos ficaram sentados à mesa da cozinha, com as persianas fechadas, esvaziando as garrafas de vinho enquanto jogavam conversa fora. Mas falar sobre as dificuldades não era o suficiente; precisavam agir.

Para Esquisito, deviam confrontar Graham Macfadyen de uma vez, exigindo uma explicação para as coroas de flores enviadas para os funerais de Ziggy e de Mondo. Alex e Lynn rejeitaram a sua ideia de cara; sem nenhuma prova de que ele estava de fato envolvido nos assassinatos, aquilo só serviria para alertar Macfadyen das suas suspeitas, e não para provocar uma confissão.

- Eu estou pouco me lixando - retrucara Esquisito. - De repente assim ele desiste e deixa a gente em paz.

- É, ou isso, ou ele vai bolar abordagens mais sutis nas próximas vezes. Ele não está com pressa, Esquisito. Ele tem a vida inteira para vingar a morte da mãe - ponderou Alex.

- Isso supondo que foi ele mesmo quem matou Mondo, e não um assassino contratado por Jackie - disse Lynn.

- É exatamente por isso que a gente precisa arrancar uma confissão de Macfadyen - disse Alex. - Se ele desaparecer do mapa, não vai servir para limpar o nome de ninguém.

Continuaram especulando, sem chegar a uma conclusão, sendo interrompidos apenas pelo choro ocasional de Davina, acordada e disposta a mais uma mamada. Estavam revivendo o passado novamente, Alex e Esquisito relembrando o dano causado por boatos venenosos às suas vidas no último ano em St. Andrews.

Esquisito foi o primeiro a perder a paciência com o passado. Esvaziou o seu copo e levantou da mesa.

- Preciso tomar um ar - anunciou ele. - Não vou ficar intimidado, me escondendo atrás de portas trancadas pro resto da minha vida. Vou dar uma caminhada. Vocês querem me fazer companhia?

Nenhum dos dois quis. Alex estava começando a preparar o jantar e Lynn estava dando de mamar a Davina. Esquisito pegou a jaqueta impermeável de Alex e saiu, caminhando em direção ao litoral. Era incrível, mas as nuvens que cobriram o céu durante todo o dia haviam desaparecido. O céu estava claro e uma lua abusada exibia-se entre as pontes. A temperatura caíra vários graus e Esquisito encolheu-se dentro da gola do casaco quando uma rajada de vento gelado do estuário o atingiu em cheio. Ele mudou de ideia, caminhando em direção às sombras sob a ponte da ferrovia, sabendo que se subisse no promontório conseguiria acesso a uma vista panorâmica do estuário que seguia para Inchcolm e o Mar do Norte lá atrás.

Já desfrutava o prazer de estar fora de casa. Um homem sempre ficava mais perto de Deus ao ar livre, longe da algazarra das outras pessoas. Imaginara ter feito as pazes com o seu passado, mas os acontecimentos dos últimos dias o deixaram desconfortavelmente consciente da sua ligação com o jovem que ele fora um dia. Esquisito precisava ficar sozinho, precisava restaurar a sua fé nas mudanças que operara em sua vida. Enquanto caminhava, refletia sobre como havia avançado, quanta bagagem incômoda deixara no caminho, graças a sua crença na redenção que a sua religião oferecia. As suas ideias tornaram-se mais claras, o seu coração, mais leve. Ligaria para a sua família mais tarde. Precisava do conforto que só as suas vozes proporcionariam. Algumas palavrinhas com a sua mulher e com os seus filhos e sabia que poderia se sentir como alguém que escapa de um pesadelo. Em termos práticos, nada mudaria e ele sabia disso. Mas sentir-se-ia mais apto para enfrentar os seus infortúnios.

O vento estava ficando mais forte, zunindo e bradando em seus ouvidos. Ele parou para recuperar o fôlego, ciente do barulho distante do tráfego na ponte. Ouviu um trem se aproximando pela ferrovia e inclinou-se para trás, esticando o pescoço para vê-lo avançando uns quatro metros acima da sua cabeça.

Esquisito não viu nem ouviu a pancada que o fez cair de joelhos, em uma paródia sinistra de oração. A segunda pancada o atingiu nas costelas e o derrubou no chão. Teve a vaga impressão de ter visto uma figura toda vestida de preto segurando o que parecia ser um taco de beisebol nas mãos, antes que o terceiro golpe atingisse os seus ombros e fizesse os seus pensamentos desconexos concentrarem-se apenas na dor. Os seus dedos buscavam a grama, aflitos, enquanto ele tentava engatinhar para longe do seu agressor. Uma quarta pancada o atingiu na parte posterior das coxas, fazendo com que caísse de barriga para baixo, sem poder mais escapar.

Então, com a mesma rapidez que começara, o ataque chegou ao fim. Parecia um flashback do que havia acontecido vinte e cinco anos atrás. Através de um miasma de dor e vertigem, Esquisito pôde distinguir vagamente alguns gritos e o som incongruente de um cachorrinho latindo. Sentiu um odor cálido e rançoso e sentiu uma língua úmida e áspera lambendo o seu rosto. Poder sentir qualquer coisa que fosse já era por si só uma bênção; deixou as lágrimas descerem pelo seu rosto.

- O Senhor me salvou dos meus inimigos - ele balbuciou. Então, tudo ficou escuro.

- Eu não quero ir para o hospital - insistiu Esquisito. Ele já tinha dito aquilo tantas vezes que Alex começou a desconfiar que talvez se tratasse de um sinal incontroverso de concussão. Esquisito estava sentado à mesa da cozinha, rígido em sua dor e igualmente inflexível sobre a possibilidade de receber cuidados médicos. O seu rosto estava completamente sem cor e com um vergão que se estendia da sua têmpora direita até a nuca.

- Eu acho que você quebrou as costelas - disse Alex, pela milésima vez.

- Então, eles não vão sequer me engessar - disse Esquisito. - Já quebrei as costelas uma vez. Vão me dar uns analgésicos e falar para eu continuar tomando até melhorar.

- Estou mais preocupada com uma concussão - disse Lynn, aproximando-se com uma xícara de chá, bem forte e bem doce. - Bebe, isso é bom para o choque. Se você vomitar novamente, pode ser concussão mesmo e aí a gente vai te levar pro hospital em Dunfermline.

Esquisito estremeceu.

- Não, Dunfermline, não.

- Ele não deve estar tão mal assim, está até debochando de Dunfermline - observou Alex. - Você está conseguindo se lembrar de alguma coisa do ataque?

- Não vi nada até receber a primeira pancada. E depois, a minha cabeça estava estourando. Vi uma figura de preto. Possivelmente um homem. Talvez uma mulher alta. E um taco de beisebol. Olha só que coisa ridícula: tive que voltar dos Estados Unidos para a Escócia para ser atacado com um taco de beisebol.

- Você não viu o rosto dele?

- Acho que estava usando uma máscara. Não vi sequer a sombra de um rosto. Quando dei por mim, estava desmaiado. Quando acordei, o seu vizinho estava ajoelhado ao meu lado, completamente apavorado. E aí eu vomitei no cachorro dele.

Apesar da afronta ao seu terrier Jack Russell, o vizinho Eric Hamilton ajudou Esquisito a se levantar e o escoltou até a casa de Alex. Resmungou algo sobre ter assustado um ladrão, dispensou os agradecimentos efusivos do casal e mergulhou novamente na escuridão da noite, sem tomar sequer uma dose de uísque de recompensa.

- Ele já não vai muito com a nossa cara mesmo - disse Lynn. - É um contador aposentado e acha que somos artistas ripongos. Então não se preocupe, você não estragou uma bela amizade. Mas temos que chamar a polícia, sim.

- Vamos esperar até amanhecer. Aí podemos falar diretamente com Lawson. De repente agora ele nos leva a sério - sugeriu Alex.

- Você acha que foi Macfadyen? - perguntou Esquisito.

- Não estamos em Atlanta - disse Lynn. - Estamos em um vilarejozinho pacato em Fife. Acho que nunca houve um assalto por essas bandas. E se você fosse realmente assaltar alguém, ia escolher justo um gigante quarentão, sabendo que há aposentados passeando com os seus cachorrinhos todas as noites? Isso não foi casual, foi planejado.

- Também acho - concordou Alex. - E mantém o padrão dos outros assassinatos. É sempre assim, feito para parecer uma outra coisa. Incêndio, furto, roubo... Se Eric não tivesse aparecido, você estaria morto agora.

Antes que alguém pudesse responder, a campainha tocou.

- Deixa que eu atendo - disse Alex.

Quando ele voltou, tinha um policial atrás dele.

- O Sr. Hamilton deu queixa do ataque - explicou Alex. - O policial Henderson veio aqui tomar o seu depoimento. Este é o Sr. Mackie - acrescentou ele.

Esquisito ensaiou um sorriso duro.

- Obrigado por ter vindo - agradeceu ele. - Sente-se, por favor.

- São só alguns detalhes - disse o policial, sacando um caderninho de anotações e acomodando-se à mesa. Abriu o grosso casaco do uniforme, mas não o retirou. Aposto que são treinados a suportar o calor, para não sacrificar a impressão de corpulência que o casacão proporciona, pensou Alex, distraído.

Esquisito forneceu seu nome completo e endereço, explicando que estava visitando Alex e Lynn, seus velhos amigos. Quando disse que era pastor, Henderson adotou uma expressão de desconforto, como se estivesse constrangido por um assaltante da sua área ter caído de paulada justo em um representante de Deus.

- O que aconteceu exatamente? - perguntou o policial.

Esquisito contou os vagos detalhes do ataque dos quais conseguia se lembrar.

- Lamento, mas não me lembro de mais nada. Estava muito escuro e eu fui pego de surpresa - justificou ele.

- O agressor não disse nada?

- Não.

- Não pediu dinheiro, ou a sua carteira?

- Nada.

Henderson balançou a cabeça.

- Muito estranho. Não é o tipo de coisa que costuma acontecer por aqui. - Ele olhou para Alex. - Não entendo por que o senhor não ligou para a polícia.

- Estávamos mais preocupados em garantir que Tom estava bem - acudiu Lynn. - Estamos tentando convencê-lo a ir até o hospital, mas ele está determinado a adotar uma postura estoica.

Henderson concordou.

- Acho que a Sra. Gilbey tem razão, senhor. Não custa nada procurar um médico, para examinar as lesões. E, além do mais, isso garante um laudo oficial da gravidade do ataque, caso seja possível capturar o responsável.

- Quem sabe amanhã de manhã - disse Esquisito. - Estou cansado demais para encarar hospital agora.

Henderson fechou o seu caderninho e afastou a cadeira.

- Vamos mantê-lo informado sobre qualquer novidade, senhor - disse ele.

- Há algo que o senhor pode fazer por nós - disse Alex.

Henderson lançou um olhar curioso para Alex.

- Eu sei que isso vai soar estranho, mas o senhor pode dar um jeito de enviar uma cópia do seu relatório para o subchefe de polícia Lawson?

Henderson ficou surpreso com o pedido.

- Sinto muito, senhor. Eu não consigo entender...

- Olha, não estou querendo te menosprezar, mas é uma história muito longa e muito complicada e estamos muito cansados para explicá-la agora. O Sr. Mackie e eu estamos tratando de um assunto bastante delicado com o subchefe Lawson e talvez esta não tenha sido uma agressão casual. Eu gostaria que ele visse o seu relatório, só para que ficasse ciente do que aconteceu aqui esta noite. De todo modo, eu mesmo vou conversar com ele amanhã de manhã e seria bom se ele já pudesse estar por dentro do assunto. - Ninguém que já tivesse visto Alex convencendo os seus funcionários a dar o máximo de si ficaria surpreso com suas as delicadas técnicas persuasivas.

Henderson avaliou o pedido, com dúvida no olhar.

- Este não costuma ser o nosso procedimento normal - disse ele, hesitante.

- Eu sei disso. Mas esta não é uma situação normal. Eu prometo que não vai sobrar para você. Se você preferir esperar o subchefe entrar em contato com você... - Alex deixou a frase no ar.

Henderson tomou uma decisão.

- Vou enviar uma cópia para a central - disse ele. - E mencionar que foi o senhor quem solicitou.

Alex o acompanhou até a porta. Ficou parado na soleira, observando o carro da polícia partir. Alguém estava lá fora, camuflado pela escuridão, esperando a hora certa de atacar. Um calafrio percorreu o seu corpo. E não tinha nada a ver com o ar gelado da noite.


41

O telefone tocou um pouco depois das sete, acordando Davina e assustando Alex. Depois do que acontecera a Esquisito, o menor som penetrava a sua consciência, requerendo análise e avaliação de risco. Havia alguém lá fora atrás deles e todos os seus sentidos estavam em alerta. Por isso, quase não dormira. Ouvira Esquisito perambulando pela casa de madrugada, provavelmente procurando mais analgésicos. Não era um barulho que ele costumava ouvir à noite e, até ele descobrir do que se tratava, o coração acelerara em seu peito.

Atendeu o telefone, imaginando se Lawson já estaria no gabinete, com o relatório de Henderson à sua frente. Não estava preparado para a jovialidade de Jason McAllister.

- Alô, Alex! - exclamara alegremente o perito em análise de tintas. - Eu sei que pais de recém-nascidos acordam com as galinhas, então imaginei que vocês não se incomodariam se eu ligasse tão cedo. Escuta, tenho novidades para vocês. Posso dar um pulo aí e adiantar antes de ir para o trabalho. Que tal?

- Ótimo - respondeu Alex, sonolento. Lynn empurrou o cobertor e caminhou exausta até o moisés, suspendendo a filha e resmungando.

- Maravilha. Daqui a meia hora estou aí.

- Você tem o endereço?

- Claro. Já me encontrei com Lynn aí algumas vezes. Até mais. - Ele desligou e Alex levantou da cama, enquanto Lynn voltava com o bebê no colo.

- Era o Jason - disse ele. - Ele está vindo para cá. É melhor eu tomar uma ducha. Você nunca me disse que ele era tão animadinho assim. - Ele se inclinou e beijou a cabeça da filha, enquanto Lynn a amamentava.

- Às vezes ele é alegre demais mesmo - concordou Lynn. - Eu vou amamentar Davina, colocar uma roupa e depois encontro vocês.

- Nem acredito que ele conseguiu um resultado tão depressa.

- Ele é como você era no início da carreira. Gosta muito do que faz e pouco se importa com o tempo que dedica ao trabalho. E quer compartilhar o seu entusiasmo com todo mundo.

Alex estacou, pegando o seu robe.

- Eu era assim? Então é um milagre você não ter pedido o divórcio.

Alex encontrou Esquisito na cozinha, com uma aparência horrorosa. A única cor no seu rosto era proveniente do hematoma que se espalhava como uma maquiagem em volta dos seus olhos. Desconjuntado em uma cadeira, segurava uma xícara com as duas mãos.

- Sua cara está uma merda - disse Alex.

- Eu estou uma merda. - Ele bebericou o café e fez uma careta. - Por que vocês não têm um analgésico decente aqui nessa casa?

- Porque não costumamos levar surras na rua - respondeu Alex, indo atender à campainha. Jason saltou porta adentro com as pontas dos pés, tomado de entusiasmo e, ao olhar de esguelha para Esquisito, não acreditou nos seus olhos: em um gesto quase cômico, voltou a contemplá-lo para confirmar se tinha visto direito. - Porra, cara. O que foi isso?

- Um sujeito com um taco de beisebol - explicou Alex, sucinto. - Não estávamos brincando quando falamos que talvez fosse uma questão de vida ou morte. - Serviu café para Jason. - Fiquei impressionado quando você disse que tinha um resultado para a gente tão rápido - disse ele.

Jason deu de ombros.

- Pois é, quando comecei a trabalhar, vi que não era assim tão complicado. Fiz a microespectrofotometria para determinar a cor, depois testei no cromatógrafo de gás para ver a composição. Mas não bateu com nada da minha base de dados.

Alex suspirou.

- Bom, já imaginávamos isso - disse ele.

Jason suspendeu o dedo.

- Veja bem, Alex, não sou um cara desprovido de recursos. Alguns anos atrás, conheci um sujeito em uma conferência. Ele é o maior especialista em tinta do mundo, trabalha para o FBI e desconfia-se que tenha o maior banco de dados de amostras de tintas do universo. Então, pedi a ele para dar uma olhada para mim e voilà! Conseguimos. - Ele abriu os braços em um gesto largo, como se esperasse os aplausos.

Lynn chegou a tempo para escutar o desfecho.

- E então, o que era? - perguntou ela.

- Não vou chateá-los com os detalhes técnicos. A tinta em questão foi produzida por um fabricante em Nova Jersey em meados da década de 70, para ser usada em fibra de vidro e em alguns tipos de plástico moldado. O mercado-alvo eram os construtores e donos de barcos. Esta tinta proporcionava um acabamento bastante sólido, à prova de arranhões e até mesmo das condições climáticas mais extremas. - Jason abriu a sua mochila e vasculhou lá dentro, apanhando finalmente uma tabela de cores produzida no computador. Uma amostra de azul-claro estava sublinhada com caneta preta. - Era exatamente assim - disse ele, passando a folha de papel. - A boa notícia sobre a qualidade do acabamento é que, se por algum milagre a cena do crime ainda existir, é possível conseguir um resultado. Essa tinta foi vendida principalmente na costa leste dos Estados Unidos, mas foi exportada tanto para o Reino Unido quanto para o Caribe. A empresa faliu no final da década de 80, então não temos como saber mais detalhes.

- Então é bem provável que Rosie tenha sido assassinada em um barco? - perguntou Alex.

Jason produziu um estalo duvidoso com os lábios.

- Bom, se foi, deve ter sido num barco de tamanho razoável.

- Por quê?

Ele sacou uns papéis da mochila com um floreio.

- Aí é que as gotas de tinta entram na história. Pequenas gotas, é o que temos aqui. E um ou dois fragmentos de fibra, bem pequenos, que me parecem bastante com carpete. E isso conta uma história. Essas gotas caíram de um pincel enquanto alguém estava pintando alguma coisa. Essa é uma tinta que tem uma boa mobilidade, ou seja, ela se desprende do pincel em gotas a cada minuto. O pintor nem deve ter percebido. E são típicas de uma pintura que está sendo feita no alto, acima da cabeça do pintor, especialmente quando ele está bem esticado para fazer o serviço. E como não encontramos praticamente nenhuma variação no formato das gotas, isso dá a entender que a pintura foi aplicada no alto e na mesma distância. Nada disso se encaixa com a pintura de um casco. Mesmo que o casco estivesse de cabeça para baixo, para pintar o seu interior, o serviço não teria sido feito sobre um carpete, vocês não acham? E as gotas com certeza teriam tamanhos variados, porque algumas partes do casco estariam mais próximas do pintor, não é?

Ele fez uma pausa, olhando à sua volta. Todos estavam assentindo com a cabeça, hipnotizados com o seu entusiasmo.

- Então, o que sobrou? Se for mesmo um barco, então o sujeito estava provavelmente pintando o teto da cabine. Bom, eu fiz alguns testes com uma tinta bem similar e, para conseguir este efeito, precisei me esticar bastante. E barcos pequenos não têm o pé-direito tão alto assim. Então, o cara devia ter um barco bem grandinho.

- Se é que era mesmo um barco - disse Lynn. - Não pode ter sido outro lugar? Tipo o interior de um trailer?

- Pode ser. Mas trailers normalmente não são forrados com carpete, não é? Pode ter sido um depósito, ou uma garagem. Porque tintas fabricadas para fibra de vidro normalmente também são excelentes para amianto e, naquela época, amianto era bem comum.

- Resumindo: continuamos na mesma - sentenciou Esquisito, com frustração na voz.

A conversa descambou para várias direções. Mas Alex já não escutava mais nada. O seu cérebro estava a pleno vapor, concatenando uma torrente de pensamentos acionados pelo que acabara de escutar. A sua mente montava um quebra-cabeça, informações aparentemente desconexas começavam a se encaixar, formando um desenho inédito. Assim que cedemos espaço ao primeiro pensamento inimaginável, tudo começa a fazer sentido. A questão agora era: o que fazer a respeito?

De repente, percebeu que estava longe. Todos estavam olhando para ele com expectativa, esperando uma resposta para alguma pergunta que ele sequer ouvira.

- O quê? - perguntou ele. - Foi mal, eu estava viajando.

- Jason perguntou se você quer que ele prepare um relatório oficial - disse Lynn. - Para mostrar a Lawson.

- Lógico, ótima ideia - disse Alex. - Maravilha, Jason, muito bom mesmo.

Enquanto Lynn levava Jason até a porta, Esquisito lançou um olhar penetrante para Alex.

- Você teve alguma ideia, Gilly - afirmou ele. - Eu conheço essa cara.

- Não, estava só aqui quebrando a cabeça, tentando me lembrar se alguém do Lammas tinha um barco. Alguns eram pescadores, lembra? - Alex virou-se e começou a se ocupar, encaixando algumas fatias de pão na torradeira.

- Bom, agora que você falou... Podemos comentar isso com Lawson - disse Esquisito.

- Pois é. Quando ele ligar, você fala com ele.

- Por quê? Você vai aonde?

- Preciso ficar um pouco no escritório. Estou negligenciando demais o trabalho e ele não funciona por conta própria. Vou ter algumas reuniões hoje pela manhã, não tenho como não estar lá.

- Você acha sensato dirigir por aí sozinho?

- Não tenho escolha - respondeu Alex. - Mas acho que estou seguro em plena luz do dia, na estrada para Edimburgo. E vou voltar para casa antes de escurecer.

- Acho bom mesmo. - Lynn entrou na cozinha, trazendo os jornais. - Acho que Jackie tinha razão. Elas estão estampadas em todas as capas.

Alex mordiscou a sua torrada, perdido em pensamentos, enquanto os outros folheavam os jornais. Aproveitando que eles estavam ocupados, Alex apanhou a tabela de cores que Jason deixara lá e enfiou no bolso da calça. Aproveitando uma pausa na conversa, anunciou que estava de saída, beijou a mulher e a filha adormecida e partiu.

Tirou o BMW da garagem e desceu a rua, dirigindo-se para a via que desembocava na ponte para Edimburgo. Mas, quando alcançou a encruzilhada, em vez de ir para o sul na M90, desviou para o norte. O sujeito que estava atrás deles era a sua presa agora. Não tinha tempo para ficar participando de reuniões.

Lynn acomodou-se atrás do volante do seu carro com uma sensação de alívio da qual não se orgulhava. Estava começando a sentir claustrofobia dentro da sua própria casa. Não podia sequer se isolar no estúdio e recuperar a calma trabalhando em sua última pintura. Sabia que não deveria estar dirigindo ainda, ainda mais depois da cesariana, mas precisava sair um pouco. A necessidade de fazer umas comprinhas ofereceu a desculpa perfeita. Prometeu a Esquisito que pediria a um dos funcionários do supermercado que fizesse o trabalho pesado para ela. Embrulhou Davina em uma manta, quentinha, acomodou-a na cadeirinha e saiu.

Decidiu aproveitar a sua liberdade ao máximo e ir até o mercado Sainsburys, em Kirkcaldy. Se tivesse energia o suficiente depois das compras, podia até dar um pulo na casa dos seus pais. Eles ainda não tinham visto Davina depois que ela recebera alta do hospital. Talvez uma visita da neta ajudasse a levantar o astral. Precisavam de algo para se agarrar ao futuro, deixando o passado para trás.

Assim que ela saiu da estrada em Halbeath, a luz do indicador de combustível começou a piscar no painel. Racionalmente falando, sabia que tinha gasolina o suficiente para ir até Kirkcaldy e voltar, mas não queria correr riscos com um bebê a bordo. Desviou em direção a um posto, dirigindo até as bombas, ignorando completamente o carro que a seguia desde que saíra de North Queensferry.

Lynn encheu o tanque e em seguida correu para a lojinha de conveniências para pagar. Enquanto esperava o seu cartão de crédito ser aceito, deu uma olhada para fora.

No início, não conseguiu entender direito o que estava acontecendo. A cena lá fora não fazia o menor sentido. Então, compreendeu. Lynn berrou com toda a força dos seus pulmões e correu aos tropeções até a porta, derrubando a bolsa e espalhando todo o seu conteúdo no chão.

Um Golf prateado estava parado bem atrás do seu carro, com o motor ligado e a porta do motorista aberta. A sua porta da frente também estava entreaberta, ocultando a pessoa que estava debruçada lá dentro. Quando ela abriu a pesada porta da loja, o homem ergueu o corpo e uma mecha de cabelo escuro e espesso caiu sobre os seus olhos. Ele estava agarrado à cadeirinha de Davina. Lançou um olhar na direção de Lynn e correu para o outro carro. Os gritos de Davina perfuraram o ar como uma lâmina.

Ele jogou a cadeirinha no banco do carona e depois entrou depressa no carro. Lynn estava quase o alcançando. O homem bateu a porta do carro com força e partiu, cantando pneu.

Ignorando a dor da sua cicatriz recente, Lynn atirou-se sobre o Golf que chacoalhava loucamente em sua fuga. Mas os seus dedos desesperados não encontraram nada em que se agarrar e o seu impulso a lançou no chão, de joelhos.

- Não!!! - gritou ela, esmurrando os punhos no chão. - Não!!! - Tentou ficar de pé, caminhar até o seu carro e partir atrás do Golf. Mas as suas pernas cederam e ela desmaiou, tomada por uma angústia esmagadora.

Graham Macfadyen seguia triunfante pela A92, afastando-se do posto de gasolina em Halbeath. Estava feito. Pegara o bebê. Olhou de esguelha para ele, para verificar se estava tudo bem. Parara de chorar assim que pegaram a pista de mão dupla. Ouvira dizer que bebês gostam da sensação de estar em um carro em movimento e aquele com certeza não era uma exceção à regra. Os seus olhos azuis o encaravam, indiferentes e tranquilos. Ao fim da pista, escolhera as vias mais desertas, para evitar a polícia. Parara o carro e fixara o bebê direitinho no banco. Não queria que ele sofresse alguma coisa, não ainda. Era Alex Gilbey quem ele desejava punir e quanto mais o bebê permanecesse vivo e aparentemente bem, pior seria o sofrimento do pai. Manteria o bebê como seu refém por quanto tempo fosse preciso.

E fora ridiculamente fácil. As pessoas deviam cuidar melhor dos filhos. Era incrível que bebês não fossem parar nas mãos de estranhos com mais frequência.

Aquilo faria com que as pessoas o escutassem, pensou ele. Levou o bebê para casa e trancou as portas. Um cerco, era o que ele planejava. A imprensa compareceria em massa e ele teria a oportunidade de explicar por que fora forçado a tomar uma atitude tão drástica. Quando ficassem sabendo que a polícia de Fife estava acobertando os assassinos da sua mãe, entenderiam o motivo do seu gesto desesperado. E se mesmo assim o seu plano não funcionasse, bom, ainda havia um trunfo em sua manga. Contemplou o bebê sonolento.

Lawson ia se arrepender de não ter lhe dado ouvidos.


42

Alex deixou a via expressa em Kinross. Dirigiu pela pacata cidade-mercado, seguindo até o lago Leven. Quando ela deixou escapar que Lawson estava de folga pescando, Karen Pirie havia dito a palavra "lago" antes de se conter. E em toda Fife só existia um lago onde um pescador que se preze podia lançar o seu anzol. Alex não conseguia parar de pensar na mais recente descoberta. Porque sabia, lá no fundo do seu coração, que nenhum dos quatro havia cometido o crime e também não conseguia imaginar Rosie passeando sozinha pela rua no meio de uma tempestade de neve, uma presa fácil para um estranho. Por isso, sempre nutriu a ideia de que ela havia sido assassinada pelo seu namorado misterioso. E quando alguém planeja seduzir uma garota, não a leva para um depósito ou para uma garagem, e sim para a sua casa. E foi então que ele se lembrou de um comentário descartável em uma das conversas que tiveram na véspera. O inimaginável subitamente passou a ser a única coisa que fazia sentido.

O gigantesco vulto da colina Bishop surgiu à sua direita como um dinossauro adormecido, cortando o sinal do seu celular. Sem ter a menor ideia do que se passava em outro lugar, Alex estava em uma missão. Sabia exatamente o que estava procurando. Só restava saber onde poderia encontrar.

Dirigiu devagar, percorrendo cada trilha das fazendas e cada rua lateral que conduzia até a beira do lago. Uma névoa fluorescente cobria a superfície da água cinza-metálica, conferindo uma aparência sinistra e indesejável à sua busca. Alex parou diante de todos os portões com os quais se deparou, descendo do carro e esgueirando-se sobre os campos para certificar-se de que não estava perdendo a presa. Quando a grama rebelde encharcou os seus tornozelos, desejou ter colocado uma roupa mais apropriada. Mas não queria que Lynn percebesse que não estava indo para o escritório.

Percorreu lenta e metodicamente toda a costa do lago. Passou quase uma hora rondando um local destinado a um pequeno trailer, mas o que ele buscava não estava lá. O que não lhe causou nenhuma surpresa. Não esperava encontrar o que estava procurando em um lugar onde barqueiros ocasionais pudessem ter acesso.

Mais ou menos na hora em que a sua esposa aflita prestava depoimento para os detetives, Alex estava tomando um café em uma casa de chá na beira da estrada, espalhando manteiga em um bolo caseiro, tentando aquecer os ossos após a sua inspeção no local do trailer. Não fazia a menor ideia de que algo horrível tinha acontecido.

O primeiro policial a chegar ao local encontrou uma mulher incoerente, com as mãos e os joelhos do seu jeans imundos, lamentando-se na parte externa do posto de gasolina. O transtornado atendente estava parado ao seu lado, impotente, enquanto motoristas frustrados chegavam e partiam assim que percebiam que não seriam atendidos.

- Traga Jimmy Lawson aqui agora - ela gritava para o policial enquanto o atendente explicava o que havia acontecido.

O policial tentou ignorar as exigências dela, solicitando assistência de emergência pelo rádio. Então ela o agarrou pela jaqueta e insistiu aos berros, respingando saliva no rosto dele, exigindo a presença do subchefe. Ele tentou distraí-la, sugerindo que ligasse para o seu marido ou para um amigo, para qualquer pessoa.

Lynn o rechaçou com desdém e voltou para a loja de conveniência. Dos seus pertences espalhados pelo chão, pegou apenas o celular. Tentou ligar para Alex, mas aquela vozinha irritante da operadora avisou que o número chamado estava fora da área de cobertura ou desligado.

- Merda! - berrou ela. Digitando os números de qualquer jeito, conseguiu ligar para casa.

Quando Esquisito atendeu, Lynn soltou um gemido de dor.

- Tom, ele levou Davina, o canalha sequestrou a minha filha!

- Quem? Quem levou a menina?

- Eu não sei! Macfadyen, provavelmente. Ele roubou o meu bebê! - Finalmente vieram as lágrimas, escorrendo pelo seu rosto e fazendo com que ela se engasgasse.

- Onde você está?

- No posto de gasolina de Halbeath. Eu parei para encher o tanque. Só me afastei por um segundo... - Lynn engasgou nas palavras e deixou o telefone cair aos seus pés. Ela se agachou, debruçando-se sobre uma vitrine de doces. Envolveu a cabeça com os braços e soluçou. Não fazia a menor ideia de quanto tempo havia passado até que ouviu o tom de voz calmo e reconfortante de uma mulher. Levantou os olhos e deparou-se com um rosto desconhecido.

- Eu sou a detetive-inspetora Cathy McIntyre - disse a mulher. - Você pode me contar o que aconteceu?

- O nome dele é Graham Macfadyen. Ele mora em St. Monans - disse Lynn. - Ele roubou o meu bebê.

- Você conhece esse homem? - perguntou a detetive McIntyre.

- Não, não conheço. Mas ele está atrás do meu marido. Ele acha que Alex matou a mãe dele. Mas ele está enganado, é claro. Ele é completamente desequilibrado, já matou duas pessoas. Não deixe ele matar a minha filhinha. - As palavras de Lynn se atropelavam, fazendo com que ela soasse perturbada. Tentou respirar fundo e deu um soluço. - Sei que pareço uma maluca, mas não sou. Você precisa entrar em contato com o subchefe de polícia. James Lawson. Ele está sabendo de tudo.

A detetive McIntyre parecia estar na dúvida. Aquilo estava fora do seu alcance e ela sabia disso. Tudo o que conseguira fazer até o momento fora enviar um comunicado pelo rádio para todas as viaturas e as patrulhas avisando para procurarem um Golf prateado com um sujeito de cabelo escuro na direção. Ligar para o subchefe podia ser o seu atestado definitivo de humilhação.

- Deixa comigo - disse ela, caminhando até a parte externa do posto para avaliar as suas alternativas.

Esquisito estava sentado na cozinha, transtornado com a sua impotência. Orar era ótimo, mas um homem precisa de um nível muito mais alto de tranquilidade interior para conseguir algo útil com uma oração. A sua imaginação corria solta, imaginando cenas dos seus próprios filhos nas mãos de um sequestrador. Sabia que ficaria além do alcance de qualquer reação racional se estivesse no lugar de Lynn. O que precisava fazer era encontrar uma maneira concreta de ajudá-la.

Tentou falar com Alex, mas o celular não estava funcionando e ninguém no escritório havia visto ou tido notícias dele naquela manhã. Então Alex também constava na lista dos desaparecidos. Esquisito não estava totalmente surpreso; tinha certeza de que Alex estava com alguma coisa na cabeça que queria resolver sozinho.

Pegou o telefone, gemendo de dor mesmo com um movimento tão sutil, e pediu ao serviço de informações o telefone da polícia de Fife. Precisou se valer de todo o seu poder de persuasão para conseguir chegar até a secretária de Lawson.

- Eu realmente preciso falar com o subchefe - justificou ele. - É urgente. Vocês estão investigando o sequestro de uma criança e eu tenho informações vitais a respeito - explicou ele à mulher, que era claramente tão adepta da rispidez quanto ele da adulação.

- O Sr. Lawson está em uma reunião - disse ela. - Se o senhor deixar o seu nome e telefone, peço para ele entrar em contato assim que tiver oportunidade.

- A senhora não está me ouvindo, está? A vida de um bebê está correndo perigo. Se alguma coisa acontecer com essa criança, a senhora pode apostar a sua aposentadoria que eu procuro a imprensa imediatamente e conto a eles como vocês se omitiram. Se a senhora não chamar Lawson agora, vai acabar sendo o bode expiatório.

- Não vejo necessidade para falar assim comigo, senhor - respondeu a mulher, friamente. - Como é mesmo o seu nome?

- Reverendo Tom Mackie. Ele vai querer falar comigo, eu garanto.

- Aguarde um momento, por favor.

Esquisito contorceu-se de ira ao se ver obrigado a escutar um trecho de uma música clássica enquanto esperava. Após o que lhe pareceu uma espera interminável, uma voz familiar ressoou em seus ouvidos.

- Sr. Mackie, espero que o senhor tenha uma boa explicação para isso. Fui arrancado de uma reunião com o chefe de polícia para vir falar com o senhor.

- Graham Macfadyen sequestrou a filha de Alex Gilbey. Eu não acredito que você estava sentado em uma reunião enquanto isso aconteceu - criticou Esquisito.

- Como é que é? - perguntou Lawson.

- Você está com o sequestro de um bebê nas costas. Há uns quinze minutos mais ou menos, Macfadyen sequestrou Davina Gilbey. Ela é um bebê recém-nascido, tenha a santa paciência.

- Eu não estou sabendo de nada disso, Sr. Mackie. Dá para me contar o que aconteceu?

- Lynn Gilbey parou em um posto de gasolina para abastecer o carro em Halbeath. Enquanto ela estava pagando, Macfadyen apanhou a menina do carro dela. Os seus colegas estão no local agora, por que ninguém te contou nada?

- A Sra. Gilbey reconheceu Macfadyen? Ela já esteve com ele? - perguntou Lawson.

- Não. Mas quem mais ia querer fazer com que Alex sofresse desse jeito?

- Crianças são sequestradas por todo tipo de motivo, Sr. Mackie. Pode não ser pessoal. - A voz dele era tranquilizadora, mas não produziu nenhum efeito.

- Claro que é pessoal! - berrou Esquisito. - Ontem à noite, alguém tentou me surrar até a morte. Você deveria ter visto o relatório na sua mesa hoje cedo. E hoje, a filha de Alex é sequestrada. E você vai me dizer que tudo isso não passa de mera coincidência? Era só o que me faltava. Você tem é que levantar a sua bunda daí e encontrar Macfadyen antes que alguma coisa aconteça com o bebê.

- Posto de gasolina em Halbeath, não é isso?

- É. Vá pra lá agora, ouviu? Você tem autoridade para deslanchar as coisas.

- Vou entrar em contato com os policiais que estão no local. Enquanto isso, Sr. Mackie, procure ficar calmo, sim?

- Tá, tá bem. Vai ser muito fácil.

- Onde está o Sr. Gilbey? - perguntou Lawson.

- Não sei. Ele deveria ter ido para o escritório, mas não apareceu por lá até agora. E o celular dele não está funcionando.

- Deixa comigo. Seja lá quem for o sequestrador da criança, vamos encontrá-lo. E levá-la para casa novamente.

- Você fala como o pior tipo desses tiras de seriado de tevê, Lawson, sabia disso? Vá agitar as coisas. E encontre Macfadyen. - Esquisito bateu com o telefone na cara dele. Tentava se convencer de que conseguira fazer alguma coisa, mas não era o bastante.

Não adiantava. Não podia ficar sentado em casa, sem mexer uma palha. Pegou o telefone novamente e pediu o telefone de um radiotáxi ao serviço de informações.

Lawson olhava fixamente para o telefone. Macfadyen passara dos limites. Devia ter imaginado algo do tipo, mas fracassara. Agora era tarde demais para tirá-lo de circulação. Aquela situação tinha tudo para fugir do controle. E quem podia prever o que aconteceria então? Esforçando-se para manter uma aparência de calma, Lawson ligou para a central de operações da polícia e solicitou um relatório sobre o que estava acontecendo em Halbeath.

Assim que ouviu as palavras "Golf prateado" lembrou-se imediatamente da sua caminhada até a porta de Macfadyen e do carro estacionado em frente à sua casa. Não havia mais dúvidas. Macfadyen enlouquecera de vez.

- Quero falar com o oficial encarregado do caso - ordenou ele. Tamborilou os dedos na mesa enquanto aguardava. Aquilo era um pesadelo tornando-se realidade. Que diabos se passava na cabeça de Macfadyen? Será que estava se vingando de Gilbey, imaginando que ele fora o responsável pela morte da sua mãe? Ou estaria jogando um jogo mais astuto? Fosse qual fosse o seu plano, a criança estava correndo perigo. Normalmente, quando bebês eram sequestrados, a motivação do sequestrador era bem banal: queriam um filho. Imaginavam-se capazes de tomar conta da criança em questão, sufocando-a com tanto amor e cuidados. Mas naquele caso, a história era outra. A criança era apenas uma peça no jogo doentio de Macfadyen e, se ele imaginava estar vingando um assassinato, então assassinato talvez fosse o seu objetivo. Lawson mal podia pensar nas consequências sem que o seu estômago revirasse. - Vamos, atenda - murmurou ele.

Finalmente, uma voz estalou na linha.

- Aqui quem fala é a detetive-inspetora McIntyre - disse ela. Pelo menos tinham uma mulher no local do crime, pensou ele, aliviado. Lembrava-se de Cathy McIntyre. Ela era sargento no Departamento de Investigação Criminal na época em que ele trabalhava como superintendente em Dunfermline. Era uma boa profissional, sempre fazia as coisas de acordo com o figurino.

- Cathy, aqui quem fala é o subchefe Lawson.

- Pois não, senhor. Eu estava prestes a entrar em contato. A mãe do bebê sequestrado, a Sra. Lynn Gilbey, está perguntando pelo senhor sem parar. Ela acha que o senhor sabe o que está acontecendo aqui.

- O sequestrador partiu em um Golf prateado, não foi?

- Sim, senhor. Estamos tentando ver a placa pela filmagem das câmeras de monitoria, mas só conseguimos captar o carro em movimento. Ele estacionou bem atrás da Sra. Gilbey, não conseguimos distinguir o número da placa com o carro parado.

- Peça para alguém continuar tentando por enquanto. Mas eu acho que sei quem foi o responsável. O nome dele é Graham Macfadyen, ele mora em Carlton Way, número 12, em St. Monans. E imagino que foi para lá que ele levou a criança. Acho que ele está interessado em mantê-la como refém. Então quero que você me encontre lá, no final da rua. Não vá com muita gente, mas peça para alguém levar a Sra. Gilbey em uma viatura separada. E não ligue o rádio no carro onde ela estiver. Vou organizar a equipe de negociação de reféns e assim que chegar vou colocá-la a par da nossa estratégia. Não perca mais tempo, Cathy. Te encontro em St. Monans.

Lawson terminou a ligação e em seguida apertou os olhos com força, concentrado. A libertação de reféns era a tarefa mais difícil para um policial. Lidar com a família e os amigos de alguém que acabou de morrer era moleza em comparação àquilo. Ligou para a central novamente e solicitou a mobilização da equipe de negociação de reféns e de uma unidade armada.

- Ah, e mande um engenheiro de telecomunicações para lá também. Eu quero cortar todo tipo de acesso de Macfadyen com o mundo externo. - Finalmente, ligou para Karen Pirie. - Encontre-me no estacionamento em cinco minutos - bradou ele. - Eu explico no caminho.

Estava a caminho da porta quando o seu telefone tocou. Hesitou um pouco, decidindo se atenderia ou não. Resolveu voltar.

- Lawson - disse ele.

- Olá, Sr. Lawson. Aqui é o Andy, da assessoria de imprensa. O pessoal do Scotsman acabou de ligar, com uma história muito esquisita. Disseram que receberam um e-mail de um cara que diz que sequestrou um bebê porque a polícia de Fife está acobertando os assassinos da mãe dele. E ele atribui a culpa especialmente ao senhor. Ao que parece, é um e-mail bem longo e detalhado. Eles vão encaminhar para mim. Estão querendo saber se é verdade. Está rolando mesmo o sequestro de um bebê?

- Meu Deus - gemeu Lawson. - Estava com medo que algo assim acontecesse. Veja bem, estamos lidando com uma situação bem delicada aqui. E é verdade, um bebê foi sequestrado. Ainda não tenho todos os detalhes. É melhor perguntar ao pessoal da central, eles estão por dentro da história toda. Tenho a impressão de que você vai receber muitas ligações por causa disso, Andy. Dê o máximo de informação possível sobre as providências que já estão sendo tomadas. Convoque uma coletiva de imprensa para hoje mesmo, o mais tarde que você puder. Mas insista na tecla que o sujeito tem problemas mentais e que eles não devem dar ouvidos às suas reclamações.

- Então a versão oficial é de que o cara é pirado - disse Andy.

- Bota pirado nisso. Mas estamos levando o caso a sério. A vida de uma criança está em jogo, não quero que nenhuma notícia irresponsável o tire do sério. Entendeu?

- Entendi. Falo com o senhor mais tarde.

Lawson xingou baixinho e correu porta afora. Aquele ia ser um dia de cão.

Esquisito pediu para o motorista de táxi dar uma parada em um supermercado em Kirkcaldy. Quando chegaram lá, ele entregou um bolo de notas ao motorista.

- Amigo, faça-me um favor. Você está vendo o estado em que estou. Dá para ir até lá e me comprar um celular? Pode ser um desses pré-pagos mesmo. E alguns cartões também, por favor. Preciso estar conectado com o mundo.

Uns quinze minutos depois, retomaram o caminho pela estrada. Pegou a folha de papel onde havia anotado os telefones do celular de Alex e de Lynn. Tentou ligar para Alex mais uma vez. Nada. Por onde será que ele andava?

Macfadyen olhava fixamente para o bebê, perplexo. Começara a chorar assim que entraram na casa, mas ele ainda não tinha tido tempo para fazer algo a respeito. Tinha e-mails para mandar, tinha de contar ao mundo o que estava acontecendo. Estava tudo esquematizado. Bastava se conectar e, com apenas alguns cliques no mouse, a sua mensagem seria enviada para toda a imprensa do país, incluindo a maioria dos sites de notícias na internet. Agora eles haveriam de escutar o que ele tinha a dizer.

Deixou os computadores e voltou à sala de estar, onde havia deixado a cadeirinha do bebê no chão. Sabia que não deveria afastar-se dele, para evitar que a polícia os separasse ao invadir a casa, mas seus gritos o distraíram e ele teve de levá-lo para outro cômodo, para poder se concentrar. Fechara as cortinas, como havia feito na casa toda. Chegou até mesmo a pregar um cobertor na janela de vidro fosco do banheiro, que costumava ficar aberta. Sabia direitinho como funcionavam os cercos policiais; quanto menos os tiras soubessem o que estava se passando dentro da casa, melhor para ele.

O bebê continuava chorando. Os seus gemidos haviam se transformado em um choro baixinho, mas assim que ele entrou no recinto, pôs-se a chorar novamente. O som penetrou o seu cérebro como uma furadeira, impedindo o seu raciocínio. Precisava calar aquela criança. Ele a suspendeu, com cuidado, e a colocou no colo. O choro tornou-se tão intenso que ele pôde até sentir os soluços reverberando no seu peito. Talvez precisasse trocar a fralda, pensou ele. Tornou a colocá-la no chão e desenrolou a manta que a envolvia. Por dentro da manta, havia um casaquinho de lã. Ele o removeu e abriu os botões que ficavam no meio das pernas, tirando a roupinha que a protegia. De quantas camadas aquele maldito bebê precisava? Talvez estivesse apenas com calor.

Apanhou um rolo de papel-toalha e acocorou-se ao lado do bebê. Removeu as fitas adesivas que seguravam a fralda em volta da barriga do bebê e afastou-se imediatamente. Caramba, aquilo era nojento. Era verde, pelo amor de Deus. Franzindo o nariz de nojo, removeu a fralda suja e limpou a sujeira do bumbum da criança. Rapidamente, antes que uma nova leva aparecesse, ele aparou o bebê em uma generosa camada de papel toalha.

Depois de tudo isso, o bebê continuava chorando. Meu Deus, o que precisava fazer para calar a boca daquela criança? Precisava dela viva, pelo menos por enquanto, mas aquele choro o estava deixando maluco. Deu uma bofetada no rostinho avermelhado e conquistou um breve momento de silêncio. Mas assim que a criança assustada recuperou o seu fôlego, os gritos voltaram com força total.

Será que estava querendo mamar? Foi até a cozinha e despejou leite em uma tigela. Sentou-se, ninando o bebê em seus braços, desajeitado, imitando o modo como havia visto as pessoas fazendo na televisão. Enfiou o dedo entre os seus lábios e tentou derramar alguma coisa lá dentro, mas o leite escorreu pelo queixo do bebê e desceu pela manga da sua camisa. Tentou novamente e desta vez a criança reagiu, fechando os pequeninos punhos e dando chutes no ar. Como é que o monstrinho não sabia engolir? Por que agia como se ele estivesse tentando envenená-lo?

- Qual é o seu problema, porra? - gritou ele. O bebê enrijeceu em seus braços, chorando ainda mais.

Tentou mais um pouco, sem sucesso. Mas, de repente, o choro passou. O bebê adormeceu instantaneamente, como se alguém o tivesse desligado da tomada. Uma hora, estava abrindo o berreiro, na outra, dormindo como um anjinho. Macfadyen afastou o sofá e o colocou novamente na cadeirinha, obrigando-se a ser delicado. A última coisa que queria naquele momento era uma reprise daquele barulho infernal.

Voltou para os computadores, planejando entrar em diversos sites para ver se já estavam veiculando a sua história. Não ficou totalmente surpreso ao ver em seus monitores a mensagem: "Conexão perdida." Já esperava que fossem cortar as suas linhas telefônicas. Como se isso fosse impedi-lo. Tirou um celular do carregador e o conectou ao seu laptop com um cabo, fazendo a ligação. Tudo bem, era como voltar a andar de mula depois de ter dirigido uma Ferrari. Mas após um tempo insuportavelmente longo, ele estava conectado de novo.

Se pensavam que podiam calá-lo tão facilmente, tinham que rever os seus conceitos. Já estava planejando aquilo tudo há tempos e jogava para ganhar.


43

Alex estava perdendo o seu entusiasmo. A única coisa que o fazia prosseguir era a certeza absoluta de que a resposta que ele buscava tão desesperadamente estava perto. Tinha de estar. Já explorara o lado sul do lago e agora estava vasculhando a costa norte. Perdera a conta de quantos campos já havia pesquisado. Fora observado por gansos, cavalos, ovelhas e até mesmo por uma lhama. Lembrou-se vagamente de ter lido em algum lugar que os pastores as colocavam junto ao rebanho para defendê-lo das raposas, mas jamais conseguira entender como um bicho gordo e preguiçoso, com cílios de dar inveja a qualquer modelo, pudesse assustar um animal tão destemido quanto uma raposa. Um dia, levaria Davina até lá para ver a lhama. Ela ia gostar quando estivesse um pouquinho mais velha.

Descendo de carro por um outro caminho, passou diante de uma fazenda em estado lastimável. As construções estavam abandonadas, o encanamento vazando e as molduras das janelas descascadas. O jardim parecia uma espécie de cemitério para máquinas que deviam estar acumulando ferrugem há décadas. Um cachorro esquelético com um olhar enraivecido lutava com uma corrente, latindo furiosa e inutilmente na porta. A alguns metros do portão, os sulcos ficaram mais fundos e a grama mais esparsa. Alex atravessou pelas poças, fazendo uma careta ao constatar que uma pedra atingira o chassi do carro.

Um pórtico agigantou-se à sua esquerda e Alex desceu do carro, cansado. Contornou o seu carro pela frente e inclinou-se sobre as barras de metal. Olhando para a sua esquerda, viu algumas vacas encardidas ruminando melancolicamente. Deu uma olhadela para a sua direita e teve uma surpresa inesperada. Mal podia acreditar nos seus próprios olhos. Será que era mesmo o que ele estava pensando?

Alex remexeu no cadeado enferrujado que mantinha o portão trancado. Entrou no terreno e tornou a prender os elos da corrente. Prosseguiu caminhando, sem se importar nem com a lama nem com o esterco que maculavam os seus caros mocassins americanos. Quanto mais se aproximava do seu objetivo, mais tinha certeza de que havia encontrado o que estava procurando.

Não via o trailer havia vinte e cinco anos, mas a memória confirmou a sua suspeita. Bicolor, exatamente como ele lembrava: bege em cima, verde musgo embaixo. As cores estavam desbotadas, mas ainda era possível compará-las com a sua lembrança. Conforme se aproximava, pôde reparar que ainda estava bem conservado. Blocos de concreto empilhados em cada canto mantinham os pneus afastados do chão e não havia nenhum vestígio de limo no teto, no peitoril das janelas, nem na soleira da porta. A borracha frágil em volta das janelas havia sido tratada com algum tipo de selante para ficar à prova d’água, observou Alex enquanto contornava cautelosamente o trailer. Não havia o menor sinal de vida. Cortinas claras cobriam as janelas. A aproximadamente uns vinte metros do trailer, um pequeno portão na cerca conduzia ao lago. Alex pôde ver um barco a remo estirado na margem.

Alex olhou para trás e observou. Mal podia acreditar no que via. Era inacreditável, constatou ele. Possivelmente não tão raro quanto poderia parecer à primeira vista. As pessoas se desfaziam de mobílias, carpetes, carros. Mas os trailers sobreviviam, ganhavam vida própria. Lembrou-se do casal de velhinhos que morava em frente aos seus pais. Tinham o mesmo trailer de dois cômodos desde que ele era adolescente. Todas as tardes de sexta-feira no verão, eles o engatavam no seu carro e partiam. Não iam para muito longe, só até a costa para Leven ou Elie. Às vezes, caprichavam um pouco mais no passeio e atravessavam o Forth, rumo a Dunbar ou North Berwick. E voltavam no domingo à noite, tão satisfeitos quanto se tivessem atravessado o Polo Norte. Então, na verdade não era de se admirar que o tira Jimmy Lawson tivesse conservado o trailer onde morara enquanto construía a sua casa. Especialmente porque todo pescador precisa de um retiro. Qualquer pessoa teria feito a mesma coisa.

A não ser, é claro, pelo fato de que a maioria das pessoas não teria preservado o local de um crime.

- Agora você acredita em Alex? - perguntou Esquisito a Lawson. O efeito das suas palavras foi amenizado pelo fato de ele estar todo contraído, com o braço atravessado nas costelas, tentando fazer com que elas parassem de se raspar umas contra as outras em espasmos de dor.

A polícia não chegara ao local muito antes de Esquisito, mas ele já encontrara um aparente caos. Homens vestindo coletes à prova de balas com quepes e rifles movimentavam-se por toda parte, enquanto outros oficiais afobados andavam para lá e para cá, executando as suas tarefas obscuras. Curiosamente, ninguém parecia estar notando a sua presença. Saiu com dificuldade do táxi e observou a cena. Não demorou muito para localizar Lawson, debruçado sobre um mapa em cima do capô de um carro. A policial com quem ele e Alex haviam conversado na delegacia estava ao seu lado, com um celular grudado na orelha.

Esquisito aproximou-se deles, com a raiva e a ansiedade servindo como analgésicos.

- E aí, Lawson? - gritou ele. - Satisfeito agora?

Lawson virou para trás, um sujeito com sentimento de culpa surpreendido. O seu queixo caiu enquanto tentava reconhecer Esquisito por trás do estrago que haviam feito no seu rosto.

- Tom Mackie? - perguntou ele, na dúvida.

- Eu mesmo. Agora você acredita em Alex? O maluco está com a criança aí dentro. Já matou duas pessoas e você está aí parado, na esperança de que ele vá facilitar as coisas para você matando mais uma.

Lawson balançou a cabeça. Esquisito pôde ver a aflição em seus olhos.

- Isso não é verdade. Estamos fazendo tudo o que está ao nosso alcance para resgatar o bebê de Gilbey. E você não tem como acusar Graham Macfadyen de outros crimes além deste.

- Ah, não? Quem diabos matou Ziggy e Mondo, então? Quem foi que fez isso comigo? - Esquisito levantou o dedo em riste no rosto de Lawson. - Ele podia ter me matado ontem à noite.

- Você viu o rosto do agressor?

- Não, estava ocupado demais tentando escapar com vida.

- Nesse caso, continuamos na mesma. Não temos provas, Sr. Mackie. Nenhuma prova.

- Escuta aqui, Lawson. Há vinte e cinco anos que somos obrigados a viver com a morte de Rosie Duff nas costas. Aí, de repente, o filho dela aparece do nada. E Ziggy e Mondo são assassinados. Tenha santa paciência, Lawson, como é que você é a única pessoa que não consegue ver a relação de causa e efeito? - Esquisito estava praticamente berrando, sem sequer atentar para o fato de vários policiais estarem observando a cena com olhares atentos e impassíveis.

- Sr. Mackie, estou tentando montar uma operação complexa. A presença do senhor no local, levantando alegações infundadas, não me ajuda em nada. Não tenho nada contra as teorias, mas trabalho com provas.

A raiva de Lawson era óbvia. Ao seu lado, Karen Pirie havia terminado de fazer a sua ligação e estava se aproximando discretamente de Esquisito.

- Mas só é possível encontrar as provas quando se está procurando por elas.

- Investigar assassinatos que ocorreram fora da minha jurisdição não faz parte do meu trabalho - retrucou Lawson. - O senhor está me atrapalhando, Sr. Mackie. E, como o senhor mesmo já disse, a vida de uma criança pode estar em jogo.

- Você vai pagar por isso - disse Esquisito. - Vocês dois - acrescentou ele, virando-se para incluir Karen na sua condenação. - Foram avisados e não tomaram nenhuma providência. Se ele machucar um fio de cabelo da cabeça dessa criança, eu juro para você, Lawson, você vai desejar jamais ter nascido. E afinal, onde está Lynn?

Lawson estremeceu, recordando-se da chegada de Lynn Gilbey no local. Ela saiu às pressas da viatura e atirou-se sobre ele, desferindo socos em seu peito e gritando, incoerente. Karen Pirie interveio rapidamente, envolvendo a mulher descontrolada em seus braços.

- Ela está naquela van branca ali. Karen, leve o Sr. Mackie até o veículo da unidade de resposta armada. E fique com ele e com a Sra. Gilbey. Não quero os dois correndo por aí com atiradores profissionais de plantão.

- Olha, quando isso tudo terminar - disse Esquisito enquanto Karen o escoltava até o carro - nós vamos acertar as nossas contas.

- Eu não contaria com isso, Sr. Mackie - disse Lawson. - Eu sou um oficial de polícia sênior e me ameaçar é coisa séria. Vá para lá e organize uma corrente de orações. O senhor faz o seu trabalho que eu faço o meu.

Carlton Way parecia uma rua deserta em uma cidade fantasma. Nenhum movimento. Costumava ficar silenciosa durante o dia, mas naquele dia específico estava extraordinariamente calma. O trabalhador noturno da casa número 7 foi tirado da cama por uma batida na sua porta dos fundos. Atordoado, foi persuadido a trocar de roupa e a acompanhar os dois policiais prostrados na sua porta. Seguiram através da cerca no fundo do seu jardim pelos campos até a rua principal, onde lhe contaram acontecimentos tão estranhos que, não fosse pela presença em massa da polícia e do bloqueio que isolava Carlton Way do resto do mundo, ele teria achado que estava participando de uma pegadinha.

- Todas as casas estão vazias agora? - perguntou Lawson à detetive McIntyre.

- Sim, senhor. E a única comunicação com a casa de Macfadyen é através de uma linha telefônica privada para uso exclusivo da polícia. A equipe de resposta armada está disposta em volta da casa agora.

- Ok. Vamos lá.

Duas viaturas policiais e uma van passaram, uma atrás da outra, por Carlton Way. Estacionaram diante da casa de Macfadyen. Lawson desceu do primeiro veículo e foi falar com o especialista em negociação de reféns, John Duncan, atrás da van, onde não podiam ser vistos.

- Tem certeza de que ele está aí dentro? - perguntou Duncan.

- É o que dizem os especialistas. Imagem térmica, ou algo do tipo. Ele está aí dentro com o bebê. E ambos estão vivos.

Duncan passou os fones para Lawson e apanhou a base do telefone que o conectaria com a casa. A ligação foi atendida no terceiro toque. Silêncio.

- Graham? É você? - perguntou Duncan com a voz firme, mas calorosa.

- Quem está falando? - Macfadyen parecia surpreendentemente tranquilo.

- O meu nome é John Duncan. Estou aqui para ver o que pode ser feito para resolvermos esta situação sem que ninguém se machuque.

- Não tenho nada para falar com você. Quero falar com Lawson.

- Ele não está aqui no momento. Mas tudo o que você me disser será transmitido a ele.

- Ou Lawson, ou nada feito. - O tom de voz de Macfadyen era amistoso e casual, como se estivessem conversando sobre o clima ou sobre futebol.

- Como eu disse, o Sr. Lawson não está aqui no momento.

- Não acredito em você, Sr. Duncan. Mas vamos fingir que está me dizendo a verdade. Não estou com pressa. Posso esperar até que você o localize. - A linha ficou muda.

Duncan olhou para Lawson.

- Fim do primeiro round - disse ele. - Vamos dar uns cinco minutos e aí eu tento novamente. Uma hora ele vai ter que começar a falar.

- Você acha? Ele me pareceu bastante calmo. Não seria melhor eu falar com ele logo? Assim, pode ser que ele ache que vai conseguir o que quer.

- Ainda é muito cedo para fazermos concessões, senhor. Ele precisa nos dar algo antes que possamos retribuir.

Lawson suspirou profundamente e deu as costas. Detestava a sensação de estar fora de controle. Aquilo viraria um circo para a mídia e a possibilidade de um resultado drástico era muito, mas muito maior do que a de um bom desfecho. Sabia como funcionava aquele tipo de coisa. Quase sempre, terminava mal para uma das partes.

Alex estudou as suas opções. Em outras circunstâncias, a coisa mais sensata a fazer seria ir embora naquele minuto, direto para a polícia. Eles poderiam enviar os seus peritos e revirar o lugar, em busca da única gotinha de sangue ou do respingo de tinta que tornaria inevitável a ligação daquele trailer com a morte de Rosie Duff.

Mas como poderia fazer aquilo se o trailer em questão pertencia ao subchefe de polícia? Lawson embargaria qualquer investigação, pondo um fim antes mesmo que houvesse um começo. O trailer com certeza seria incendiado, e alguns vândalos seriam apontados como os possíveis culpados. E então o que teriam? Nada além de coincidências. A presença de Lawson em um local tão próximo do terreno onde Alex tropeçara no corpo da moça. Na época, ninguém havia atentado para aquele detalhe. Na Fife do final da década de 70, a polícia ainda estava acima de qualquer suspeita; eram mocinhos lutando contra o mal. Ninguém sequer questionou como foi que Lawson não viu o assassino levando o corpo de Rosie para Hallow Hill, embora estivesse parado diante do caminho mais óbvio para o cemitério picto. Mas aquele era um mundo novo, um mundo no qual era possível questionar a integridade de homens como James Lawson.

Se Lawson era o homem misterioso na vida de Rosie, era bastante compreensível que ela não quisesse revelar a sua identidade. Os seus irmãos encrenqueiros odiariam vê-la com um tira. E havia também a maneira como Lawson parecia sempre surgir do nada quando ele ou os seus amigos corriam perigo, como se tivesse assumido para si próprio a tarefa de agir como anjo da guarda dos quatro. Culpa, pensou Alex. Aquilo era o que a culpa fazia com uma pessoa. Apesar de ter matado Rosie, Lawson ainda cultivava um mínimo de decência para não permitir que outra pessoa pagasse pelo seu crime.

Mas nenhuma daquelas circunstâncias servia como prova. A probabilidade de encontrarem testemunhas que tivessem visto Rosie com Jimmy Lawson era nula. A única prova concreta estava dentro do trailer, e se Alex não tomasse nenhuma providência rápida, poderia ser tarde demais.

Mas o que podia fazer? Não era versado nas técnicas de invasão de domicílio. Arrombar carros na adolescência era uma coisa, abrir fechaduras era outra, e se ele forçasse a porta, Lawson iria perceber. Em qualquer outra época, poderia pensar que fora obra de moleques ou de algum sem-teto. Mas não agora. Não com tanto interesse no caso Rosie Duff. Não podia se dar ao luxo de julgar aquilo um fator insignificante. Era possível que Lawson colocasse fogo no trailer.

Alex deu um passo para trás e analisou a situação. Observou que havia uma claraboia no teto. Será que conseguiria entrar por ela? Mas como chegaria até o teto? Havia apenas uma possibilidade. Alex voltou até o portão, escancarou-o e entrou com o seu carro no terreno pantanoso. Pela primeira vez em sua vida, desejou ser um daqueles babacas que dirigiam um veículo com tração nas quatro rodas em plena cidade. Mas não, ele tinha de ser o mauricinho, com a sua BMW 535. O que faria se ficasse atolado na lama?

Dirigiu devagar até o trailer e parou paralelamente com uma de suas extremidades. Abriu a mala e desafivelou o kit de ferramentas básico do carro. Alicate, chave de fenda, chave inglesa. Apanhou tudo o que podia lhe ser útil, tirou o paletó do terno e a gravata e fechou a mala. Subiu no capô e, em seguida, no teto do carro. De lá de cima, o teto do trailer não estava tão longe. Lutando para se apoiar, Alex conseguiu finalmente alcançar o teto.

Era nojento lá em cima. O teto estava escorregadio e coberto de lodo. Partículas de sujeira agarravam-se às suas roupas e em suas mãos. A claraboia era um domo de plástico suspenso de mais ou menos uns setenta centímetros por trinta. Teria de se espremer bastante para conseguir entrar. Encaixou a chave de fenda em um dos cantos e tentou suspendê-la.

No início, a claraboia nem se mexia. Mas, após tentativas repetidas em diversos pontos, ela se moveu em um estalo. Suando, Alex secou o rosto com as costas da mão e espiou lá dentro. Havia um braço de metal giratório com parafuso de ajuste, que mantinha a claraboia no seu devido lugar e permitia que pudesse ser levantada e abaixada de dentro do trailer. O que também impedia que a claraboia fosse aberta mais do que alguns centímetros em um dos lados. Alex resmungou. Teria de desparafusar o braço de metal e depois colocá-lo no lugar novamente.

Tentou desajeitadamente conseguir o melhor ângulo. Era quase impossível mover aqueles parafusos, que haviam sido colocados ali há mais de um quarto de século. Forçou e lutou até que, por fim, um parafuso cedeu e depois o outro. Finalmente a claraboia estava solta.

Alex olhou para baixo. Não era tão ruim quanto ele imaginara. Se descesse devagar e com cuidado, talvez pudesse se apoiar no banco que ocupava uma das extremidades da sala. Respirou fundo, apoiou-se no teto e começou a descer.

Pensou que os seus braços iam voar para fora do corpo quando o seu peso desceu de supetão. Os seus pés pedalaram no ar, buscando um apoio, mas após alguns segundos, ele decidiu apenas cair.

Sob a luz tênue que o iluminava, o interior do trailer parecia praticamente idêntico ao que vira anos atrás. Mal podia imaginar que, naquele momento, estava sentado exatamente no lugar onde Rosie encontrara o seu destino trágico. Não havia nenhum cheiro característico, nenhuma mancha de sangue, nenhuma vibração no ar que o deixasse alarmado.

Estava tão perto da resposta. Alex mal tinha coragem de olhar para o teto. E se Lawson o tivesse pintado várias vezes depois? Será que ainda seria possível encontrar uma prova? Esperou o coração desacelerar até um batimento quase normal e murmurou uma prece para o Deus de Esquisito. Jogou a cabeça para trás e olhou para cima.

Merda. O teto não era azul, era creme. Tudo aquilo para nada. Bom, de todo modo, não voltaria de mãos abanando. Subiu no banco e escolheu uma parte próxima ao canto, onde não chamaria atenção. Com a lâmina afiada da chave de fenda, raspou a tinta, colhendo os fragmentos em um envelope que trouxera consigo.

Quando conseguiu uma quantidade suficiente, ele desceu e apanhou um dos fragmentos maiores. Era creme de um lado e azul do outro. Alex sentiu as pernas ficando bambas e deixou-se cair pesadamente no banco, experimentando uma emoção avassaladora. Apanhou a tabela de cores de Jason, que trouxera no bolso, e examinou a amostra de azul que havia despertado a sua memória de vinte e cinco anos atrás. Suspendeu a beirada da cortina para deixar entrar luz e colocou o fragmento da tinta que acabara de recolher sobre a amostra da tabela. O azul do fragmento praticamente desapareceu sobre o azul da amostra.

Os olhos de Alex encheram-se de lágrimas. Seria aquela a resposta definitiva?


44

Duncan fizera mais três tentativas de falar com Graham Macfadyen, mas ele recusara terminantemente desistir da sua exigência de falar somente com Lawson. Deixou Duncan ouvir o choro de Davina, mas aquela era a única concessão que estava disposto a fazer. Exasperado, Lawson decidiu que aquilo já estava indo longe demais.

- O tempo está passando. O bebê está agoniado e a mídia está acompanhando tudo de perto. Me passa o telefone de uma vez. De agora em diante, deixa que eu assumo - disse ele.

Duncan olhou para o rosto afogueado do chefe e passou o fone para ele.

- Vou ajudá-lo a manter tudo nos conformes - disse ele.

Lawson efetuou a ligação.

- Graham? Sou eu, James Lawson. Lamento ter demorado tanto para chegar aqui. Fiquei sabendo que você está querendo falar comigo, é isso?

- É isso mesmo. Mas antes de começarmos, já vou logo avisando que estou gravando a nossa conversa. Enquanto conversamos, estou transmitindo tudo ao vivo, pela internet. Toda a imprensa já está com o endereço do site, então, provavelmente, estão acompanhando tudo com bastante interesse. Nem adianta tentar bloquear o acesso ao site, por sinal. Eu fiz um esquema para ele ficar trocando de servidor. Antes mesmo que vocês descubram o endereço, ele já estará em outro lugar.

- Não tem necessidade nenhuma disso, Graham.

- Tem toda a necessidade do mundo. Vocês acharam que podiam me calar cortando as minhas linhas telefônicas, mas vocês têm uma mentalidade do século passado. Eu represento o futuro, Lawson, e você já era.

- Como está o bebê?

- O bebê é um saco, para falar a verdade. Só sabe chorar o tempo todo. A minha cabeça está explodindo. Mas essa coisa aqui está bem. Por enquanto, pelo menos. Ainda não sofreu nenhum mal.

- Você está causando mal somente por deixá-la longe de sua mãe.

- Isso não é culpa minha. É culpa de Alex Gilbey. Ele e os seus amigos me deixaram longe da minha mãe. Alex Gilbey, Tom Mackie, David Kerr e Sigmund Malkiewicz assassinaram a minha mãe, Rosie Duff, no dia 16 de dezembro de 1978. Primeiro eles a estupraram e depois tiraram a sua vida. E a polícia de Fife nunca chegou a indiciá-los pelos seus crimes.

- Graham - interrompeu Lawson -, tudo isso é passado. O que nos interessa agora é o futuro. O seu futuro. E quanto mais rápido isso tudo terminar, melhores serão as suas chances.

- Não fale comigo como se eu fosse retardado, Lawson. Eu sei que vou para a cadeia por causa de tudo isso. Isso não tem o menor peso para mim no que diz respeito à libertação do meu refém. Nada vai mudar isso, então não insulte a minha inteligência. Não tenho mais nada a perder, mas posso dar um jeito de levar alguém comigo. Bom, onde foi que eu parei? Ah, sim. Os assassinos da minha mãe. Você nunca os indiciou. E quando reabriu o caso, recentemente, alardeando aos quatro cantos que o DNA solucionaria os seus crimes antigos, descobriu que tinha perdido as provas do caso da minha mãe. Como pôde fazer isso? Como pôde perder algo tão importante?

- Estamos perdendo o controle - sussurrou Duncan. - Ele está chamando o bebê de "essa coisa". Isso não é bom. Volte a falar no bebê.

- Sequestrar a Davina não vai mudar nada disso, Graham.

- Mas ajudou a fazer com que vocês parassem de varrer o assassinato da minha mãe para debaixo do tapete. Agora, o mundo inteiro vai ficar sabendo o que você fez.

- Graham, descobrir quem matou a sua mãe é um compromisso pessoal meu.

Uma risada histérica ressoou do outro lado da linha.

- Ah, eu sei disso. Apenas não confio muito nos seus métodos. Eu quero que eles sofram aqui, neste mundo, não no próximo. Estão morrendo como heróis. A verdade sobre eles está sendo varrida para debaixo do tapete. É isso que dá quando você usa os seus métodos.

- Graham, precisamos conversar sobre a sua situação neste momento. Davina precisa da mãe. Por que você não a traz aqui fora e aí podemos conversar sobre as suas reclamações? Prometo que vamos ouvir tudo o que você tem a dizer.

- Você ficou maluco? É somente assim que eu consigo a sua atenção, Lawson. E pretendo aproveitar ao máximo, antes que tudo chegue ao fim. - A ligação terminou abruptamente com o telefone batendo no gancho do outro lado.

Duncan tentou disfarçar a sua frustração.

- Bom, pelo menos agora a gente já sabe o que é que deu nele.

- Ele está fora de si. Não dá para negociar se ele está transmitindo a ligação para o resto do mundo. Quem sabe que alegações malucas ele vai inventar agora? O cara devia ser detido, e não ouvido. - Lawson bateu com a mão na lateral da van.

- Antes que possamos fazer isso, precisamos tirar ele e o bebê de lá.

- Que se foda - disse Lawson. - Vai escurecer daqui a mais ou menos uma hora. Vamos invadir a casa.

Duncan parecia perplexo.

- Mas senhor, isso é totalmente contra as regras.

- Sequestrar um bebê também é. E eu não vou ficar aqui parado enquanto a vida de uma criança está em risco - acrescentou ele, voltando para o seu carro.

Alex deixou o lugar desfrutando uma enorme sensação de alívio. Chegou a duvidar em alguns momentos se conseguiria sair um dia daquele terreno sem a ajuda de um trator. Mas conseguira. Pegou o celular, planejando ligar para Jason e avisar que estava indo encontrá-lo, levando algo muito interessante. O celular estava sem sinal. Alex deu um muxoxo e dirigiu com cautela pela rua enlameada até a avenida principal.

Quando se aproximava de Kinross, o telefone tocou. Ele o pegou e viu que tinha quatro mensagens. Navegou pelas teclas para ouvi-las. A primeira era de Esquisito, pedindo para ele ligar para casa assim que pudesse. A segunda também era de Esquisito, passando um número de celular. A terceira e a quarta eram de jornalistas, pedindo que entrasse em contato com eles.

Que diabos estava acontecendo? Alex desviou da rua, parando no estacionamento de um pub, nos arredores da cidade, e ligou para o número que Esquisito deixara.

- Alex? Graças a Deus - gaguejou Esquisito. - Você está dirigindo?

- Não, acabei de estacionar. O que está acontecendo? Recebi umas mensagens...

- Alex, você precisa ficar calmo.

- O que foi? Davina? Lynn? O que aconteceu?

- Alex, aconteceu uma coisa horrível. Mas estão todos bem.

- Porra, Esquisito, me conta de uma vez - berrou Alex, paralisado de pânico.

- Macfadyen sequestrou Davina - disse ele, falando devagar e com clareza. - Está mantendo a menina como refém. Mas ela está bem. Ele não a machucou.

Alex teve a impressão de que alguém enfiara a mão no seu peito e arrancara o seu coração fora. Todo o amor que descobrira ter transformara-se em uma mescla de medo e ira.

- E Lynn? Onde está ela? - perguntou ele com a voz embargada.

- Ela está aqui com a gente, na frente da casa de Macfadyen em St. Monans. Calma aí, que eu vou passar o telefone pra ela. - Após um breve momento, Alex ouviu o que parecia uma sombra da voz habitual de Lynn.

- Onde é que você estava, Alex? Ele roubou a Davina. Ele levou a nossa filha, Alex! - Ele podia ouvir as lágrimas por trás da sua rouquidão.

- Eu estava em um lugar sem sinal, não pegava de jeito nenhum. Lynn, estou indo para aí. Aguenta firme, não deixa ninguém fazer nada, ouviu? Estou indo para aí e estou sabendo de uma coisa que vai mudar tudo. Não deixa ninguém fazer nada, está bem? Vai dar tudo certo. Tá ouvindo? Vai ficar tudo bem. Passa o telefone para Esquisito novamente, por favor. - Enquanto falava, Alex ligou o motor e começou a manobrar para sair do estacionamento.

- Alex? - Ele podia detectar a aflição na voz de Esquisito. - Quando é que dá para você chegar?

- Estou em Kinross. Acho que em uns quarenta minutos. Esquisito, eu sei o que aconteceu de verdade. O que aconteceu com Rosie, e posso provar. Quando Macfadyen ficar sabendo disso, ele vai ver que não precisa se vingar. Você precisa fazer com que eles não façam nada que coloque Davina em risco até eu chegar aí e contar tudo. Estou com uma bomba nas mãos.

- Vou fazer o possível. Mas eles nos afastaram da operação.

- Faça tudo o que você puder, Esquisito. E cuida da minha mulher para mim, tá?

- Claro. Vem o mais rápido que você puder, hein? Que Deus te proteja.

Alex pisou no acelerador; nunca dirigira tão depressa em sua vida. Quase desejou ser parado por alta velocidade. Assim, teria uma escolta policial para acompanhá-lo até lá. A polícia na sua cola até East Neuk. Era tudo o que ele precisava naquele momento.

Lawson olhou em volta do hall da igreja que havia solicitado.

- A equipe de suporte técnico consegue identificar em qual cômodo Macfadyen está com o bebê. Até agora, ele passou a maior parte do tempo em um quarto nos fundos da casa. O bebê às vezes está com ele e às vezes está na sala. Então temos de ser rápidos. Vamos esperar até que estejam separados, então um grupo entra pela frente e pega o bebê. O outro grupo fica com os fundos e cerca Macfadyen.

"Vamos esperar até anoitecer. Os postes da rua vão ficar apagados. Não vamos conseguir enxergar um palmo diante do nariz. Quero que essa operação funcione perfeitamente. E quero o bebê são e salvo aqui fora.

"Já com Macfadyen, são outros quinhentos. Ele tem problemas psicológicos. Não temos a menor ideia se está armado ou não. Temos motivos para acreditar que ele já matou duas pessoas. E tudo nos leva a crer que, ontem à noite, atacou mais uma. Se não tivesse sido interrompido, creio que teria cometido outro assassinato. Ele mesmo disse que não tem nada mais a perder. Se ele fizer menção de sacar uma arma, estão autorizados a disparar. Alguma pergunta?

O hall estava silencioso. Os oficiais do grupo de resposta armada haviam se aperfeiçoado exatamente para uma operação como aquela. O recinto transformara-se em um receptáculo de testosterona e adrenalina. Era em momentos como aquele que o medo ganhava um outro nome.

Macfadyen digitou alguma coisa no teclado e clicou no mouse. A conexão do celular era abominavelmente lenta, mas ele dera um jeito de incluir a sua conversa com Lawson no site. Disparou e-mails para os contatos que havia feito previamente com a imprensa, avisando que poderiam acompanhar de camarote a operação de resgate em seu site, onde poderiam ouvir em primeira mão o que estava acontecendo.

Não acalentava a ilusão de que podia controlar o resultado de tudo aquilo. Mas estava determinado a fazer o que podia, incluindo tudo o que fosse necessário para ganhar as manchetes dos jornais. Se o preço fosse a vida daquele bebê, estava disposto a pagar. Estava preparado. Conseguiria levar o seu plano a cabo, tinha certeza. Pouco importava se o seu nome viraria sinônimo de maldade nos tabloides. Não ia sair daquilo como o único vilão. Mesmo se Lawson tivesse conseguido boicotar a imprensa, a informação estava disponível na internet. Não podia interferir em seu site, não podia impedir que os fatos se espalhassem online. E Lawson já devia ter percebido que Macfadyen tinha uma carta na manga.

Da próxima vez que ligassem, ia abrir o jogo. Revelaria toda a dimensão da duplicidade da polícia. Contaria ao mundo como a justiça decaíra na Escócia.

Era o dia do juízo final.

Alex foi parado diante do bloqueio policial. Podia ver os diversos veículos policiais adiante e as barreiras vermelhas e brancas na entrada de Carlton Way. Abaixou o vidro do carro, consciente de que estava imundo e desgrenhado.

- Eu sou o pai da criança - disse ele ao policial que se debruçou para falar com ele. - É a minha filha lá dentro. A minha mulher está aí em algum lugar. Preciso ficar com ela.

- Posso ver a sua identidade, senhor? - perguntou o policial.

Alex apresentou a sua carteira de motorista.

- Sou Alex Gilbey. Por favor, deixe-me passar.

O policial comparou o seu rosto com a fotografia da carteira, depois se afastou para comunicar-se com alguém pelo rádio. Voltou um pouco depois.

- Sinto muito, Sr. Gilbey. Todo cuidado é pouco. Se o senhor puder estacionar ali no canto, um dos policiais o levará até a sua esposa.

Alex seguiu um outro policial de jaqueta amarela até um micro-ônibus branco. Ele abriu a porta e Lynn levantou-se, em um pulo, jogando-se em seus braços. Ela estava tremendo e ele pôde sentir o seu coração batendo descontrolado dentro do peito. Não havia palavras para a dor que sentiam. Abraçaram-se simplesmente, e a angústia e o medo que os dominavam eram palpáveis.

Durante um bom tempo, ninguém falou nada. Então Alex disse:

- Vai ficar tudo bem. Eu tenho como acabar com isso agora.

Lynn olhou para ele, com os olhos vermelhos e inchados.

- Como, Alex? Não há nada que você possa fazer.

- Posso, sim. Estou sabendo da verdade. - Olhou por cima de Lynn e viu Karen Pirie sentada ao lado da porta, junto a Esquisito. - Onde está Lawson?

- Está em uma reunião - disse Lynn. - Vai voltar daqui a pouco. Aí você fala com ele.

Alex balançou a cabeça.

- Não quero falar com ele. Quero falar com Macfadyen.

- Isso não será possível, Sr. Gilbey. Isso é tarefa para negociadores experientes. Eles sabem o que estão fazendo.

- Você não está entendendo. Ele precisa saber de coisas que só eu posso revelar. Não quero ameaçá-lo. Não quero nem exigir nada. Só preciso falar com ele.

Karen suspirou.

- Eu sei que o senhor deve estar aflito, Sr. Gilbey. Mas o senhor pode errar, querendo acertar.

Alex desvencilhou-se gentilmente dos braços de Lynn.

- Isso está acontecendo por causa de Rosie Duff, não está? Porque ele acha que eu estou envolvido no assassinato de Rosie Duff, não é?

- Ao que parece, sim - respondeu Karen, cautelosa.

- E se eu dissesse que posso responder a todas as suas perguntas?

- Se o senhor possui alguma informação relacionada ao caso, deveria falar é comigo.

- Tudo tem a sua hora, eu prometo. Mas Graham Macfadyen merece ser o primeiro a ouvir a verdade. Por favor, confie em mim. Tenho os meus motivos. É a vida da minha filha que está em jogo aqui. Se vocês não me deixarem falar com Macfadyen, eu vou procurar a imprensa e contar tudo o que sei. E, acredite, não vai ser a melhor maneira.

Karen avaliou a situação. Gilbey parecia calmo. Quase calmo demais. E ela não era treinada para lidar com situações como aquela. Normalmente, encaminharia ao seu superior. Mas Lawson estava ocupado demais em outro lugar. Talvez devesse consultar o negociador.

- Venha comigo, vamos falar com o inspetor Duncan. É ele quem está se comunicando com Macfadyen.

Ela desceu da van e chamou um dos policiais.

- Por favor, fique aqui com a Sra. Gilbey e com o Sr. Mackie.

- Eu vou com o Alex - disse Lynn, insubordinada. - Não vou sair do lado dele.

Alex segurou a mão dela.

- Vamos juntos, então - disse ele a Karen.

Ela sabia quando se dar por vencida.

- Está bem, vamos - disse ela, conduzindo-os até o cordão que bloqueava a entrada da rua de Macfadyen.

Alex nunca se sentira tão vivo. Estava consciente dos movimentos dos seus músculos a cada passo que dava. Os seus sentidos pareciam estar mais apurados, cada som e cheiro quase insuportavelmente amplificados. Jamais esqueceria aquela caminhada. Era o momento mais importante da sua vida e ele estava determinado a fazer a coisa certa, da maneira adequada. Ensaiara a conversa que teria com Macfadyen em sua errática jornada até St. Monans e estava seguro de que encontraria as palavras para ganhar a liberdade da sua filha.

Karen os levou até uma van branca estacionada do lado de fora da casa. Na escuridão crescente, tudo parecia lúgubre, refletindo o sentimento das pessoas que estavam envolvidas no resgate. Karen deu uma batidinha na lateral da van e a porta se abriu. A cabeça de John Duncan apareceu entre uma fresta.

- Detetive Pirie, não é isso? O que posso fazer pela senhora?

- Estes são o Sr. e a Sra. Gilbey. Ele gostaria de falar com Macfadyen, senhor.

Duncan suspendeu as sobrancelhas, alarmado.

- Acho que não é uma boa ideia. A única pessoa com quem Macfadyen quer falar é com o subchefe Lawson. E ele deu ordens para que não ligarmos mais para lá até que Lawson voltasse.

- Ele precisa ouvir o que eu tenho a dizer - disse Alex. - Ele está fazendo isso porque quer que o mundo inteiro saiba quem matou a sua mãe. Ele acha que fomos eu e os meus amigos. Mas ele está enganado. Descobri toda a verdade hoje e ele deve ser a primeira pessoa a saber.

Duncan mal conseguia disfarçar a sua surpresa.

- O senhor está me dizendo que sabe quem matou Rosie Duff?

- Sei, sim.

- Então deveria estar dando o seu depoimento a um dos policiais - respondeu ele, firmemente.

Um tremor de emoção percorreu o rosto de Alex, revelando como ele estava tentando se controlar.

- É a minha filha lá dentro. E eu posso terminar com tudo isso agora mesmo. Cada minuto que vocês me fazem perder aqui fora é mais um minuto que ela corre perigo. Não quero falar com ninguém, só com Macfadyen. E se vocês não me deixarem conversar com ele, vou ter que abrir o jogo com a imprensa. Vou contar que tenho como terminar com essa situação e que vocês não me deixam agir. Vocês realmente querem que isso se torne o epitáfio das suas carreiras?

- Você não vai saber o que fazer. Não é um especialista em resgates. - Alex percebeu que aquele era o argumento derradeiro de Duncan.

- Bom, toda a sua experiência não serviu para muita coisa, não é mesmo? - interrompeu Lynn. - O trabalho de Alex é negociar com as pessoas. E ele é muito bom nisso. Vamos assumir toda a responsabilidade pelo resultado de sua tentativa.

Duncan olhou para Karen. Ela deu de ombros. Ele respirou fundo e deixou escapar um longo suspiro.

- Eu vou ficar daqui escutando - disse ele. - Se eu achar que a situação está ficando fora de controle, corto a ligação.

Alex chegou a ficar tonto de tanto alívio.

- Ótimo. Vamos lá - disse ele.

Duncan pegou o telefone e colocou os fones nos ouvidos. Passou fones para Karen e o fone para Alex.

- É todo seu.

O telefone tocou. Uma, duas, três vezes. Na metade do quarto toque, Graham atendeu.

- Quer continuar, Sr. Lawson? - perguntou a voz do outro lado da linha.

A voz dele é tão normal, pensou Alex. Não parece nada com a voz de um sujeito que sequestraria um bebê e colocaria a sua vida em risco.

- Não é o Lawson. Aqui quem fala é Alex Gilbey.

- Não tenho nada para falar com você, seu assassino desgraçado.

- Me dê apenas um minuto. Tenho uma coisa para te contar.

- Se você vai dizer que não matou a minha mãe, poupe o seu latim. Não vou acreditar mesmo.

- Eu sei quem matou a sua mãe, Graham. E tenho provas. Estão aqui no meu bolso. Estou com fragmentos de tinta compatíveis com a tinta encontrada nas roupas da sua mãe. Colhi esses fragmentos hoje cedo, de um trailer no lago Leven. - Não houve resposta do outro lado da linha, apenas uma respiração forte. Alex continuou. - Havia mais alguém presente na noite do crime, mas ninguém prestou atenção nele, porque ele tinha motivos para estar lá. Ele encontrou a sua mãe depois do expediente e a levou para o seu trailer. Não sei direito o que aconteceu, mas desconfio que ela tenha se recusado a transar com ele e ele a tenha estuprado. Quando percebeu o que tinha feito, viu que não podia deixá-la viva para contar a história. Seria o fim para ele. Então, ele a esfaqueou. E a levou até Hallow Hill, abandonando-a para morrer. E ninguém nunca suspeitou dele, porque ele estava do lado da lei. - Karen Pirie encarava Alex, boquiaberta e aterrorizada conforme ia compreendendo as implicações do que ele estava dizendo.

- Diga o nome dele - sussurrou Macfadyen.

- Jimmy Lawson. Foi Jimmy Lawson quem matou a sua mãe, Graham. Não eu.

- Lawson? - Foi quase um soluço. - Você está blefando, Gilbey.

- Não, Graham. Como eu disse, tenho como provar. E o que você tem a perder acreditando em mim? Vamos acabar com isso agora e você vai ter a oportunidade de presenciar a justiça sendo finalmente cumprida.

Houve um longo e demorado silêncio. Duncan aproximou-se, disposto a recolher o telefone das mãos de Alex, mas ele virou-se para trás deliberadamente, apertando o fone em suas mãos com mais força ainda. E então Macfadyen falou:

- Eu achei que ele estava fazendo aquilo porque era a única maneira de conseguir alguma justiça. E não concordava com os métodos dele, porque queria que vocês sofressem. Mas não. Ele estava fazendo aquilo para se proteger - disse Macfadyen e as suas palavras não significaram nada para um Alex estupefato.

- Fazendo o quê? - perguntou ele.

- Matando vocês, ora.


45

Um manto de escuridão desceu sobre Carlton Way. Encobertas pelas sombras, figuras enegrecidas se moviam com armas semiautomáticas coladas em seus coletes à prova de balas. Percorriam o local com a silenciosa delicadeza de um leão atrás de um antílope. Ao se aproximarem da casa, se separaram, agachados sob os parapeitos das janelas e depois voltaram a se reagrupar, metade na porta da frente, metade na dos fundos. Cada um deles lutava para manter a sua respiração suave e tranquila, apesar do coração que batia freneticamente no peito, como um tambor convidando para a luta. Dedos verificavam se os fones estavam bem instalados na orelha. Ninguém queria perder o chamado para entrar em ação. Se fosse necessário. Não era hora de ambivalências. Quando a ordem fosse dada, demonstrariam o seu compromisso.

Lá em cima, um helicóptero sobrevoava o céu e os especialistas acompanhavam com atenção os resultados da imagem térmica. Eram responsáveis pela determinação do momento certo para agir. O suor ardia em seus olhos e encharcava as palmas das mãos enquanto mantinham o foco nas duas figuras incandescentes. Enquanto estivessem separadas, podiam agir. Mas se ficassem juntas, ninguém podia fazer nada. Não havia espaço para erros. Não com uma vida correndo perigo.

Tudo estava nas mãos de um único homem. O subchefe de polícia James Lawson caminhou por Carlton Way sabendo que aquela era a sua última cartada.

Alex esforçou-se para compreender as palavras de Macfadyen.

- O que você quer dizer? - perguntou ele.

- Eu o vi ontem à noite, com um taco de beisebol. Debaixo da ponte, dando uma surra no seu amigo. Pensei que estivesse tentando fazer justiça com as próprias mãos, sério mesmo. Mas se Lawson matou a minha mãe...

Alex agarrou-se ao único fato do qual tinha certeza absoluta.

- Ele a matou, sim, Graham. Eu tenho como provar. - De repente, a linha ficou muda. Desconcertado, Alex voltou-se para Duncan. - Que porra é essa? - quis saber ele.

- Já chega - disse Duncan, tirando os fones da cabeça. - Não posso permitir que isso seja transmitido para o mundo inteiro. Que diabos está acontecendo aqui, Sr. Gilbey? É um pacto entre o senhor e Macfadyen para incriminar Lawson?

- O que você está dizendo? - perguntou Lynn.

- Foi Lawson - disse Alex.

- Eu escutei, Lawson matou Rosie - disse Lynn, agarrando-se ao braço do marido.

- Não só Rosie. Ele matou Ziggy e Mondo também. E tentou matar Esquisito. Macfadyen o viu ontem - disse Alex, abismado.

- Olha, não sei o que o senhor está tramando... - começou Duncan. Ele parou imediatamente ao ver Lawson se aproximando. Pálido e coberto de suor, o subchefe olhou para eles, intrigado e visivelmente irritado.

- Que diabos vocês dois estão fazendo aqui? - perguntou ele, apontando para Alex e Lynn. Virou-se para Karen. - Eu não te pedi para ficar com ela na van da unidade de resposta armada? Deus, isso aqui virou um verdadeiro circo. Tire-os daqui.

Houve um breve momento de silêncio e então Karen Pirie disse:

- Senhor, precisamos conversar sobre algumas acusações muito sérias que acabaram de ser feitas sobre...

- Karen, isso aqui não é um programa de debates. Estamos no meio de uma operação de vida e morte, porra! - gritou Lawson. Ele suspendeu o rádio até os lábios. - Estão todos em suas posições?

Alex apanhou o rádio das mãos de Lawson.

- Escuta aqui, seu cretino. - Antes que pudesse continuar, Duncan partiu para cima dele, derrubando-o no chão. Alex lutou com o policial, esgueirando a cabeça para gritar: - Sabemos a verdade, Lawson. Você matou Rosie. E matou os meus amigos. Está acabado. Você não pode mais se esconder.

Os olhos de Lawson dardejavam de fúria.

- Você é tão louco quanto ele. - Ele se abaixou e recuperou o rádio, enquanto dois policiais mergulhavam em cima de Alex.

- Senhor - disse Karen, apreensiva.

- Agora não, Karen - explodiu Lawson. Virando-se de costas, tornou a levar o rádio até os lábios novamente. - Estão todos em suas posições?

As respostas estalaram no seu fone de ouvido. Antes que Lawson pudesse responder, ouviu a voz do comandante do suporte técnico no helicóptero.

- Não atirem! O alvo está com o refém.

Lawson hesitou por um momento. Depois disse:

- Podem atirar! Agora!

Macfadyen estava pronto para encarar o mundo. As palavras de Alex Gilbey haviam restaurado a sua fé na possibilidade de a justiça ser cumprida. Entregaria a menina para ele. Para garantir a sua segurança, levou uma faca consigo. Uma derradeira estratégia para que pudesse chegar até a rua e alcançar a polícia que o esperava lá fora.

Estava a caminho da porta da frente, com Davina encolhida debaixo do seu braço como um pacote. Carregava uma faca de cozinha na mão livre quando o seu mundo explodiu. As portas da frente e dos fundos desabaram. Homens gritavam em uma algazarra ensurdecedora. Labaredas incandescentes explodiam, obnubilando a sua visão. Instintivamente, apertou a criança contra o seu peito. A mão que trazia a faca aproximou-se dela. Através do caos, ouviu alguém gritar:

- Solte o bebê!

Sentiu-se paralisado. Não podia deixá-la.

O atirador pressentiu que a vida da criança estava em risco. Sem pensar duas vezes, posicionou-se diante do seu alvo, apontou a arma e mirou na cabeça de Macfadyen.


46

Abril de 2004; Blue Mountains, Geórgia

O sol de primavera brilhava sobre as copas das árvores enquanto Alex e Esquisito subiam o cume da montanha. Esquisito caminhava na frente até o afloramento de uma rocha que se projetava sobre o declive e a escalava, acomodando-se com as suas longas pernas penduradas na beira. Alcançou a sua mochila e pegou um par de binóculos. Ele o regulou até que a imagem lá embaixo ficasse nítida e o passou para Alex.

- Bem ali embaixo, um pouquinho para a sua esquerda.

Alex ajustou o foco e examinou o território lá embaixo. De repente, percebeu que estava olhando para o telhado da cabana deles. E que as figuras correndo para lá e para cá do lado de fora eram os filhos de Esquisito. Os adultos sentados à mesa de piquenique eram Lynn e Paul. E o bebê aos seus pés era Davina. Observou a sua filha abrindo os braços e dando uma risadinha para as árvores. O seu amor por ela chegava a doer.

Estivera tão perto de perdê-la. Quando ouviu os disparos, pensou que o seu coração iria explodir. O grito de Lynn ecoara em sua mente como o fim do mundo. Uma eternidade se passou até que um dos policiais armados surgisse com Davina em seus braços, e mesmo isso não causou nenhum alívio: quando se aproximaram, tudo que Alex conseguia ver era sangue.

Mas o sangue era de Macfadyen. O atirador acertara o seu alvo, inflexível. O rosto de Lawson exibia tantas expressões ao mesmo tempo que parecia ter sido esculpido com granito.

No caos que se seguiu, Alex separara-se da sua mulher e da sua filha para ir atrás de Karen Pirie.

- Você precisa ficar de olho no trailer.

- Que trailer?

- O trailer de pesca de Lawson. No lago Leven. Foi lá que ele matou Rosie Duff. A pintura no teto é compatível com a tinta no cardigã de Rosie. A gente nunca sabe, pode ser que ainda haja algum vestígio de sangue lá dentro.

Ela o olhou friamente.

- Você espera que eu leve esta palhaçada a sério?

- Mas é a verdade. - Ele apanhou o envelope do bolso. - Eu tenho os fragmentos que podem provar que não estou mentindo. Se você deixar Lawson voltar para o trailer, ele vai destruí-lo. A prova vai virar fumaça. Você precisa impedi-lo. Eu não estou inventando isso - disse ele, tentando convencê-la desesperadamente de que estava falando a verdade. - Duncan também ouviu o que Macfadyen disse. Ele viu Lawson atacando Tom Mackie ontem à noite. O seu chefe não vai medir esforços para encobrir os seus atos. Você precisa detê-lo e proteger o trailer.

O rosto de Karen continuava impassível.

- Você quer que eu prenda o meu chefe?

- Hélène Kerr e Jackie Donaldson foram detidas pela polícia de Strathclyde por muito menos, e com menos provas do que as que a senhora ouviu aqui hoje. - Alex lutava para continuar calmo. Não conseguia acreditar que tudo estava escapando entre os seus dedos. - Se Lawson não fosse o subchefe, você não estaria hesitando.

- Mas ele é o subchefe. É um oficial respeitado com um cargo extremamente importante.

- A mulher de César, Sra. Pirie. Mais um motivo para levar isso a sério. Você acha que isso não vai estar nos jornais amanhã de manhã? Se você acha que Lawson é inocente, então não custa nada tentar.

- A sua mulher está lhe chamando, senhor - disse Karen friamente. Ela foi embora, deixando-o impotente, parado no mesmo lugar.

Mas ela ouvira tudo o que ele tinha a dizer. Não chegou a prender Lawson, mas convocou alguns policiais uniformizados e deixou o local, discretamente. Na manhã seguinte, Alex recebeu uma ligação exultante de Jason, contando que ficara sabendo que os seus colegas em Dundee haviam detido um trailer na véspera, tarde da noite. Bingo.

Alex abaixou o binóculo.

- Eles sabem que você fica aqui espiando o que se passa lá embaixo?

Esquisito sorriu.

- Eu digo que Deus vê tudo e que eu tenho uma ligação direta com ele.

- Aposto que tem mesmo. - Alex reclinou-se para trás, deixando que o sol secasse o suor em seu rosto. A subida até lá fora íngreme e exaustiva. Não tiveram tempo para conversar. Aquela era a primeira oportunidade que tinha a sós com Esquisito desde que haviam chegado, na véspera. - Karen Pirie veio nos ver na semana passada - disse ele.

- Como ela está?

Aquela era, como Alex aprendera a compreender, uma pergunta típica de Esquisito. Não "O que ela disse?", e sim "Como ela está?". Subestimara demais o seu amigo no passado. Talvez agora tivesse a chance de reparar os erros daquela época.

- Acho que ela ainda está bastante abalada. Ela e a maioria dos policiais em Fife. É meio chocante descobrir que o seu chefe é um estuprador que cometeu vários assassinatos. As consequências são bem sérias. Mas eu acho que metade dos oficiais continua achando que Graham Macfadyen e eu inventamos a história toda.

- Então Karen foi lhe visitar para lhe deixar a par da situação?

- Mais ou menos. Ela não está mais encarregada do caso, obviamente. Acabou passando a investigação do caso de Rosie Duff para outros oficiais, de fora, mas ela fez amizade com um deles. O que significa que ainda está por dentro dos acontecimentos. E temos de reconhecer que ela se deu ao trabalho de ir nos contar as últimas novidades.

- Quais são?

- Terminaram a perícia no trailer. Assim como a compatibilidade da tinta, encontraram gotículas de sangue no chão, debaixo do banco. Colheram amostras de sangue dos irmãos de Rosie e do corpo de Macfadyen, porque obviamente não sobrou nada do DNA de Rosie, então eles têm que testar os parentes mais próximos. E o resultado é que o sangue no trailer de Lawson era mesmo de Rosie Duff.

- Impressionante - disse Esquisito. - Depois de todo esse tempo, ele é pego graças a um fragmento de tinta e uma gotinha de sangue.

- Um dos seus antigos colegas apareceu para depor, afirmando que Lawson gostava de se gabar que passava o expediente noturno levando garotas para o seu trailer e transando com elas. E o nosso próprio depoimento coloca Lawson bem próximo do local onde o corpo de Rosie foi encontrado. Karen disse que a promotoria hesitou um pouco, mas decidiu ir adiante com a acusação. E que quando Lawson ficou sabendo disso, desmoronou. Ela disse que foi como se ele não aguentasse mais carregar o fardo. Ao que parece, não é um fenômeno raro. Karen me contou que é comum que, ao se verem encurralados, os assassinos sintam a necessidade de confessar tudo o que já fizeram.

- E por que ele a matou?

Alex suspirou.

- Estavam saindo havia algumas semanas. E ela não o deixava ir até os finalmentes. Ele disse que ela estabelecia um limite e não se permitia ultrapassá-lo. E ele acabou se descontrolando e estuprando Rosie. Segundo Lawson, ela disse que ia direto para a polícia. E ele não podia permitir que ela fizesse aquilo. Então, pegou uma faca de cozinha e a esfaqueou. Já estava nevando, ele imaginou que não tivesse ninguém nas redondezas e largou o corpo dela em Hallow Hill. A ideia era dar a impressão de que havia sido uma espécie de ritual ou algo do tipo. Disse que ficou horrorizado quando soube que estavam desconfiando da gente. Obviamente, ele não queria ser apanhado, mas jura que fez de tudo para impedir que outra pessoa levasse a culpa pelo seu crime.

- Que generoso da parte dele, não? - comentou Esquisito, cínico.

- Mas eu acho que ele está falando a verdade, sabe? Porque, se ele quisesse, bastava uma mentirinha e nós seríamos acusados. Quando Maclennan ficou sabendo da Land Rover, por exemplo, Lawson podia muito bem ter dito que esquecera de mencionar que vira o carro naquela noite. Ou indo para Hallow Hill, ou na porta do Lammas na hora em que o bar fechava.

- Só Deus pode saber a verdade, mas suponho que podemos lhe conceder o benefício da dúvida, sim. Ele deve ter imaginado que estava salvo depois de todo esse tempo. Ninguém nunca desconfiou dele.

- Pois é. Sobrou foi mesmo para a gente. Lawson passou vinte e cinco anos desfrutando uma reputação aparentemente imaculada. Foi então que o chefe de polícia anunciou a revisão dos casos não resolvidos. Segundo Karen, Lawson se livrou das provas na primeira vez em que o DNA foi utilizado de maneira bem-sucedida no tribunal. As provas ainda estavam em St. Andrews, então não foi difícil para ele colocar as mãos nelas. O cardigã foi de fato extraviado em uma das vezes em que as provas foram transferidas de um local para o outro, mas o resto das roupas e as amostras biológicas, bom, a isso tudo ele fez questão de dar um fim pessoalmente.

Esquisito franziu a testa.

- E como é que o cardigã foi parar tão longe do local onde estava o corpo?

- Quando estava voltando para o carro de polícia, Lawson encontrou o cardigã perdido na neve. Deixara cair quando carregou o corpo até o topo da colina. Ele simplesmente enfiou a roupa na primeira sebe que viu pela frente. Era a última coisa que queria dentro de uma viatura policial. Então, após ter se livrado de todas as provas relevantes, ele deve ter imaginado que conseguiria conduzir a revisão dos casos e se safar.

- É, mas ele não contava com a aparição surpreendente de Graham Macfadyen. Jamais suspeitara da sua existência, graças ao desejo de respeitabilidade da família de Rosie. Ali estava alguém que realmente tinha um interesse em apurar a morte dela, alguém exigindo respostas. Mas o que eu ainda não consigo entender é por que ele saiu por aí eliminando o nosso grupo.

- Bom, pelo que Karen contou, Macfadyen estava pegando no pé de Lawson direto. Exigindo que ele conversasse novamente com as testemunhas. Principalmente nós quatro. Ele estava convencido de que éramos os culpados. No computador de Macfadyen, entre outras coisas, havia um registro das conversas que ele teve com Lawson. E, em um determinado momento, ele comenta que acha muito estranho Lawson não ter visto nada suspeito, uma vez que estava de plantão na sua viatura, próximo ao local do crime. Quando ele comenta isso com Lawson, ele fica irritado, o que Macfadyen interpreta como uma reação normal à crítica. Mas, obviamente, a verdade é que Lawson não queria ninguém analisando o que ele andou fazendo naquela noite. Afinal, a sua presença passou despercebida, mas tirando nós quatro, a única pessoa que temos certeza de que estava na área naquela noite era Lawson. Se ele não fosse policial, teria sido o principal suspeito do crime.

- Mesmo assim. Por que sair atrás da gente, depois de todo este tempo?

Alex acomodou-se desconfortavelmente sobre a pedra.

- Bom, aí é que vem a parte mais difícil. Segundo Lawson, ele estava sendo chantageado.

- Chantageado? Por quem?

- Mondo.

Esquisito arregalou os olhos.

- Mondo? Tá brincando. Que invenção doentia é essa de Lawson agora?

- Acho que não é invenção. Lembra de quando Maclennan morreu?

Esquisito estremeceu.

- Como posso esquecer?

- Então. Lawson era o primeiro puxando a corda e ele viu o que aconteceu. Segundo ele, Maclennan estava se segurando em Mondo, mas Mondo entrou em pânico e chutou-o para fora da corda.

Esquisito fechou os olhos por um momento.

- Gostaria de dizer que não acredito nisso, mas é uma reação típica de Mondo. Mas, mesmo assim, não entendo o que isso tem a ver com chantagem.

- Depois que eles resgataram Mondo, foi aquele caos. Lawson se encarregou de ficar com ele e o acompanhou na ambulância. Aí ele disse a Mondo que tinha visto a cena e garantiu que ia fazer de tudo para que ele fosse punido. E foi então que Mondo soltou a sua pequena bomba. Ele afirmou ter visto Rosie entrando na viatura de Lawson na porta do Lammas uma noite. Bem, Lawson sabia que ia ficar encrencado se Mondo espalhasse aquela informação. Então, eles fizeram um acordo. Se Mondo não contasse o que tinha visto, Lawson faria o mesmo.

- Mais do que chantagem, era a garantia de que ambos iriam se destruir - disse Esquisito, asperamente. - E o que deu errado?

- Assim que a revisão dos casos não resolvidos foi anunciada, Mondo procurou Lawson e disse que o preço do seu silêncio era não ser incomodado pela revisão. Não queria que a sua vida virasse de cabeça para baixo novamente. E ele disse a Lawson que um de nós sabia da história, que ele não era o único. Só que, é claro, ele não especificou para qual de nós ele supostamente havia contado. Por isso Lawson estava fazendo tanta questão que Karen se concentrasse na busca das provas, em vez de nos procurar novamente. Precisava ganhar tempo, eliminando quem ele imaginava estar a par da verdade. Mas aí ele ficou espertinho demais. Decidiu criar um suspeito para a morte de Mondo. Então, forneceu um motivo para Robin Maclennan, contando a verdade sobre a morte do seu irmão Barney. Mas antes de Lawson matar Mondo, Robin Maclennan entrou em contato com ele, o que fez com que ele entrasse em pânico e fosse procurar Lawson novamente. - Alex deu um sorriso contrariado. - Foi isso que ele teve de resolver em Fife na noite em que apareceu lá em casa. De todo modo, Mondo acusou Lawson de quebrar a sua parte no acordo. E, se achando muito esperto, disse que iria revelar a sua história primeiro, de modo que quando Lawson alegasse que ele matou Barney Maclennan, todos pensariam que era uma acusação sem fundamento, inventada por um sujeito acuado. - Alex esfregou a mão no rosto.

- Pobre Mondo, que idiotice - gemeu Esquisito.

- A maior ironia é que, se não fosse a obsessão de Graham Macfadyen com o caso, Lawson podia muito bem ter conseguido matar nós quatro.

- Como assim?

- Se Graham não estivesse nos rastreando pela internet, jamais teria ficado sabendo da morte de Ziggy e não teria enviado a coroa de flores. Aí, jamais teríamos feito a ligação entre os dois assassinatos e Lawson poderia nos eliminar à vontade. Mas mesmo assim, ele deu um jeito de manipular a coisa ao máximo. Fez questão de garantir que eu ficasse sabendo sobre Graham Macfadyen, apesar de ter fingido que deixou escapar a informação sem querer. E, é claro, ele contou a Robin Maclennan como Mondo matou o seu irmão. Assim, poderia garantir uma certa segurança. Depois que Mondo foi assassinado, o canalha foi tão esperto que procurou Robin e lhe ofereceu um álibi falso. E Robin aceitou, sem parar para pensar que o álibi servia para os dois - ou seja, que ele estava protegendo o verdadeiro assassino.

Esquisito estremeceu e suspendeu as pernas, apertando os joelhos contra o peito. Sentiu uma pontada nas costelas, a sombra de uma dor antiga.

- Mas por que ele veio atrás de mim? Deve ter percebido que nem eu nem você sabíamos o que Mondo tinha visto, do contrário já o teríamos procurado para tomar uma satisfação pela morte de Mondo.

Alex suspirou.

- Acontece que ele já estava mais sujo do que pau de galinheiro. Por causa das coroas de Macfadyen, nós fizemos a ligação entre dois assassinatos que foram planejados para parecer completamente sem relação. A sua única esperança era fazer com que Macfadyen passasse como o assassino. E ele não teria livrado a nossa cara, não é mesmo? Ele teria ido até o fim, teria matado nós quatro.

Esquisito balançou a cabeça, tristemente.

- Que confusão horrível. Mas por que ele matou Ziggy primeiro?

- É tão banal que dá vontade de chorar. Ele matou Ziggy primeiro porque estava com férias marcadas nos Estados Unidos, antes da revisão dos casos ser anunciada.

Esquisito umedeceu os lábios.

- Então eu poderia muito bem ter sido o primeiro?

- Se ele decidisse ir pescar lá para as suas bandas, com certeza.

Esquisito fechou os olhos, levando a mão no peito.

- E em relação a Ziggy e Mondo? O que está sendo feito?

- Praticamente nada, acho eu. Apesar de Lawson ter aberto o bico e contado tudo, eles não têm nenhuma prova que comprove que foi ele quem matou Mondo. Ele foi bastante cuidadoso nesse sentido. Ele não tem nenhum álibi, mas diz que ficou no trailer naquela noite, então mesmo que eles consigam achar um vizinho que confirme que o carro dele não estava na garagem, ele está protegido.

- Então ele vai se safar, é isso?

- É o que parece. Pela lei escocesa, toda confissão tem de ser comprovada para que o sujeito possa ser acusado de fato. Mas pelo menos os policiais de Glasgow não estão mais pegando no pé de Hélène e de Jackie, o que não deixa de ser um resultado.

Esquisito bateu com a mão sobre a pedra, indignado.

- E Ziggy? A polícia de Seattle já solucionou alguma coisa?

- Um pouco. Mas não muito. Sabemos que Lawson estava nos Estados Unidos uma semana antes da morte de Ziggy. Supostamente, participando de uma viagem de pesca na Califórnia. Mas aí é que está. Quando ele devolveu o seu carro alugado, constavam muito mais quilômetros do que se podia imaginar em um mero passeio local.

Esquisito chutou a pedra abaixo dos seus pés.

- E é uma viagem longa da Califórnia para Seattle, não é?

- Exatamente. Mas, mais uma vez, não há nenhuma prova concreta. Lawson é esperto demais para ter usado o cartão de crédito fora do local onde deveria estar. Karen disse que a polícia de Seattle tem mostrado uma foto dele em armazéns e em hotéis, mas não deu em nada até agora.

- Não acredito que ele vai se safar novamente com dois assassinatos nas costas - disse Esquisito.

- Ué, não é você quem acredita em um julgamento mais poderoso do que o dos homens?

- Mas o julgamento de Deus não nos absolve do dever de transitar em um universo moral - respondeu Esquisito com seriedade. - Uma das maneiras de demonstrar amor pelos nossos semelhantes é protegendo-os dos seus piores impulsos. E mandar os criminosos para a prisão é apenas um exemplo radical disso.

- Tenho certeza de que eles se sentem muito amados - debochou Alex. - Mas Karen trouxe mais uma notícia. Parece que eles afinal decidiram não acusar Lawson por tentativa de homicídio por ele ter atacado você.

- Por que não? Eu disse que estava disposto a voltar e prestar o depoimento.

Alex ficou de pé.

- Sem Macfadyen, não existe nenhuma prova de que foi Lawson quem te deu aquela surra.

Esquisito suspirou.

- Paciência. Pelo menos ele vai ter de responder pelo que fez com Rosie. Acho que, no final das contas, não importa se ele conseguir escapar pelo que fez comigo. Você sabe, eu sempre me orgulhei de ser safo. Mas naquela noite, eu saí da sua casa cheio de bravata. Me pergunto se teria sido tão corajoso, ou irresponsável, se soubesse que, em vez de uma só, tinha duas pessoas no meu encalço.

- Pois é, agradeça por isso. Se Macfadyen não estivesse nos espionando, jamais teríamos como identificar Lawson e o seu carro no local.

- Continuo sem conseguir acreditar que ele não mexeu uma palha enquanto Lawson acabava comigo - disse Esquisito amargamente.

- Talvez a aparição do meu vizinho Eric o tenha impedido - suspirou Alex. - Acho que nunca vamos saber ao certo.

- Mas o que realmente importa é que finalmente descobrimos quem tirou a vida de Rosie - disse Esquisito. - Era um espinho cravado no nosso corpo por vinte e cinco anos e agora podemos nos livrar dele. Graças a você, conseguimos neutralizar o veneno que infectou nós quatro.

Alex olhou para ele, curioso.

- Mas você chegou a pensar...?

- Se foi um de nós que cometeu o crime?

Alex concordou com a cabeça.

- Eu sabia que não podia ter sido o Ziggy. Ele não se interessava por mulher nenhuma e, mesmo naquela época, não queria ser curado. Mondo jamais ficaria calado se tivesse sido ele. E você, Alex... Bom, digamos apenas que eu não conseguia imaginar como você teria levado o corpo para Hallow Hill. Você não ficou com as chaves da Land Rover em nenhum momento.

Alex estava perplexo.

- E esse foi o único motivo pelo qual você não suspeitou de mim?

Esquisito sorriu.

- Você era forte o suficiente para ficar de bico fechado. Consegue ficar incrivelmente calmo sob pressão, mas quando você estoura, aí sai de baixo. E ainda tinha uma queda pela garota... Vou ser sincero, me passou pela cabeça, sim. Mas assim que ficamos sabendo que ela havia sido atacada em um outro lugar e transportada para Hallow Hill, eu vi que não poderia ter sido você. Donde se conclui que o senhor foi salvo pela logística.

- Obrigado pela confiança - disse Alex, ofendido.

- Foi você quem perguntou. E você? De quem suspeitava?

Alex teve a delicadeza de parecer constrangido.

- Cheguei a pensar em você. Principalmente quando virou crente. Parecia o tipo de coisa que um sujeito culpado faria. - Alex contemplou as copas das árvores no horizonte mais distante, onde as montanhas se confundiam em uma bruma azulada. - Sempre fico pensando em como a minha vida teria sido diferente se Rosie tivesse aceitado o meu convite e aparecido na festa naquela noite. Ela ainda estaria viva. Assim como Mondo e Ziggy. A nossa amizade teria sobrevivido sem tantas provações. E teríamos vivido sem ter de lidar com a culpa.

- Você poderia ter acabado casando com Rosie, em vez de Lynn - comentou Esquisito.

- Não - protestou Alex. - Isso jamais teria acontecido.

- Por que não? Não subestime a fragilidade das amarras que nos unem à vida que levamos. E você gostava dela.

- Ia acabar passando. E ela jamais se interessaria por um garoto como eu. Ela já era madura demais. Além do mais, acho que mesmo naquela época eu já sabia que Lynn seria aquela que iria me salvar.

- Salvar de quê?

Alex sorriu, um sorriso suave e íntimo.

- De tudo nesta vida. - Ele olhou para a cabana lá embaixo, onde estava o seu coração. Pela primeira vez, em vinte e cinco anos, tinha um futuro; libertara-se do fardo do passado. E sentia como se tivesse finalmente recebido o presente que tanto merecia.

 

[1] Relativo aos pictos, antigos habitantes da Caledônia, atual Escócia. O cemitério picto de St. Andrews fica em Hallow Hill e foi escavado em 1977. (N.T.)
[2] Em inglês CID (Criminal Investigation Department). Policiais do Reino Unido que trabalham usando roupas civis. (N.T.)
[3] Os "seis de Birmingham" foram condenados à prisão perpétua em 1975 por um crime que não cometeram. Acusados de terem sido os responsáveis por atentados a bomba em dois pubs em Birmingham, foram forçados a confessar o crime sob tortura. Logo depois, o IRA reivindicou os atentados, mas como eles já haviam confessado, a sentença foi mantida. Os seis ficaram presos até 1991, quando a Justiça Britânica finalmente reconheceu o seu erro e pagou aos inocentes uma indenização de quase dois milhões de dólares. A história dos "quatro de Guildford" não é muito diferente: em 1974, após serem acusados de um atentado ao pub Guildford, em Londres, quatro jovens irlandeses foram presos, torturados e forçados a confessar o crime. Condenados à prisão perpétua, só foram libertados 15 anos depois. Em 1993 o caso ganhou uma adaptação cinematográfica, dirigida por Jim Sheridan, no filme Em Nome do Pai. (N.T.)
[4] "Combine" é a palavra usada para ceifadeira em inglês. (N.T.)
[5] Típica tradição escocesa, realizada no Ano-Novo (Hogmanay). Reza a lenda que a primeira pessoa a pisar em sua casa determinará a sorte que você terá no ano vindouro. (N.T.)
[6] Trecho de uma canção religiosa ("Balance gentilmente, doce carruagem. Leve-me para casa"). (N.T.)
[7] "I’m a laughing Gnome and you don’t catch me" (Sou um gnomo risonho e você não me pega). (N.T.)
[8] "Another brick in the wall": referência à música do Pink Floyd. (N.T.)

30

Matizes cinzentos de sujeira começaram a se materializar na escuridão da cidade poluída. Alex deixou-se cair em um banco gelado no hospital, o rosto banhado em lágrimas. Nada em sua vida o havia preparado para uma noite como aquela. Passara do cansaço a um estado alterado onde tinha a impressão de que jamais conseguiria dormir novamente. A sobrecarga emocional era tamanha que ele não sabia mais o que estava sentindo.

Não conseguia se lembrar do caminho de Glasgow para Edimburgo. Sabia que tinha ligado para os pais em algum momento, tinha uma vaga lembrança de ter tido uma conversa tumultuada com o pai. As lágrimas escorriam pelo seu rosto. Todas as coisas que ele sabia que podiam dar errado. Todas as coisas que ele não tinha certeza se podiam dar errado com um bebê com trinta e quatro semanas de gestação. Desejou ser Esquisito, para poder confiar em algo menos falível do que os médicos. Que diabos ia fazer sem Lynn? Que diabos ia fazer com um bebê sem Lynn? Que diabos ia fazer com Lynn sem um bebê? Os presságios eram os piores possíveis: Mondo morto no necrotério de um hospital qualquer e Alex, que não havia estado onde deveria estar na noite mais importante da sua vida.

Abandonara o carro em algum lugar do estacionamento do hospital e conseguira encontrar a entrada para a ala da maternidade, na terceira tentativa. Quando finalmente alcançou a recepção, estava suado e ofegante, grato por saber que as enfermeiras na maternidade na certa já haviam visto de tudo na vida, de modo que um sujeito com a barba por fazer, de olhos arregalados, balbuciando como um louco nem chegava a abalar a escala Richter delas.

- A senhora Gilbey? Ah, sim, nós a levamos direto para a sala de parto.

Alex tentou concentrar-se nas indicações do caminho, repetindo-as baixinho enquanto cruzava os corredores do hospital. Tocou o interfone de segurança e olhou ansiosamente para as lentes do vídeo, torcendo para estar mais parecido com um futuro papai do que com um lunático à solta. Após o que lhe pareceu uma eternidade, a porta se abriu, fazendo um zumbido, e ele saiu aos tropeções para a sala de parto. Não sabia ao certo o que esperava encontrar, mas com certeza não era aquela antessala vazia e aquele silêncio soturno. Hesitou por um instante, sem saber o que fazer. Neste momento, uma enfermeira surgiu de um dos diversos corredores à sua volta.

- Sr. Gilbey? - perguntou ela.

Alex assentiu com um movimento frenético de cabeça.

- Onde está Lynn? - indagou ele.

- Acompanhe-me.

Ele a seguiu de volta pelo corredor.

- Como ela está?

- Está indo bem. - Ela fez uma pausa, com a mão apoiada na maçaneta. - Precisamos que o senhor a acalme. Ela está um pouco nervosa. Tivemos uma ou duas quedas no batimento cardíaco do feto.

- O que isso quer dizer? O bebê está bem?

- Não é nada preocupante.

Detestava quando os médicos diziam isso. Soava sempre como uma mentira deslavada.

- Mas ainda é muito cedo. Ela só está com trinta e quatro semanas.

- Tente não se preocupar. Eles estão em boas mãos.

A porta se abriu e Alex deparou-se com uma cena que não tinha qualquer semelhança com as práticas que haviam feito nas aulas do pré-natal. Era difícil conseguir imaginar algo mais distante do sonho dele e de Lynn de um parto natural. Três mulheres usando trajes cirúrgicos andavam para lá e para cá, afoitas. Uma quarta mulher, com um jaleco branco, examinava o monitor com visor eletrônico ao lado da cama. Lynn estava deitada de barriga para cima, com as pernas abertas, o cabelo grudado na cabeça, empapado de suor. O seu rosto estava vermelho e úmido, os olhos arregalados e cheios de angústia. A camisola fina do hospital estava grudada no seu corpo. O tubo de soro ao lado da cama desaparecia sob ela.

- Puta que pariu, ainda bem - disse ela, ofegante. - Alex, estou com medo.

Ele correu para o lado dela, alcançando a sua mão. Ela segurou com força.

- Eu te amo - disse ele. - Você está indo bem.

A mulher de jaleco branco levantou os olhos.

- Oi, eu sou a doutora Singh - disse ela, vendo que Alex tinha chegado. Ela se juntou à parteira, aos pés da cama. - Lynn, estamos um pouco preocupadas com os batimentos cardíacos do bebê. Não estamos progredindo tão rápido quanto eu gostaria. Talvez tenhamos que fazer uma cesariana.

- Qualquer coisa para tirar o bebê daqui - gemeu Lynn.

De repente, houve uma agitação geral.

- O bebê está preso - disse uma das parteiras. A dra. Singh examinou o monitor brevemente.

- Os batimentos cardíacos estão caindo - disse ela. Tudo começou a acontecer mais rápido do que Alex conseguia captar, enquanto apertava firme a mão melada de suor de Lynn. Ouviram frases assustadoras como "Vamos levá-la para a sala de cirurgia", "Insiram o cateter" e "Precisamos do formulário de consentimento". E a cama foi levada, a porta aberta e todos saíram apressados pelo corredor, direto para a sala de cirurgia.

O mundo transformou-se em um borrão de atividade. O tempo parecia acelerado e vagaroso ao mesmo tempo. E então, quando Alex estava prestes a perder as esperanças, ouviu as palavras mágicas:

- É uma menina. Vocês têm uma filha.

Os seus olhos encheram-se de lágrimas e ele virou-se para ver a filha. Ela estava coberta de sangue e avermelhada, assustadoramente quieta e silenciosa.

- Meu Deus - disse ele. - Lynn, é uma menina. - Mas Lynn não estava mais consciente.

Uma das parteiras embrulhou prontamente o bebê em uma manta e saiu às pressas. Alex levantou-se.

- Ela está bem? - Foi levado para fora da sala, aturdido. O que estava acontecendo com o seu bebê? Será que ela estava viva? - O que está acontecendo? - indagou ele.

A parteira sorriu.

- A sua filha está bem. Está respirando por conta própria, o que é uma das maiores preocupações nos bebês prematuros.

Alex deixou-se cair pesadamente em uma cadeira, com as mãos no rosto.

- Só quero que ela fique bem - disse ele, aos prantos.

- Ela está indo muito bem. Nasceu pesando dois quilos, o que é um bom sinal. Sr. Gilbey, já fiz o parto de alguns bebês prematuros e posso dizer que a sua garotinha é uma das mais fortes que eu já vi. Ainda é muito cedo, mas eu acho que ela vai ficar bem.

- Quando é que eu vou poder vê-la?

- O senhor pode ir lá embaixo na UTI neonatal, dar uma olhadinha nela. Ainda não vai poder segurá-la, mas como ela está conseguindo respirar sozinha, acho que amanhã mesmo, ou depois de amanhã, o senhor já vai poder colocá-la nos braços.

- E Lynn? - perguntou ele, sentindo-se subitamente culpado por não ter perguntado antes.

- Estão dando os pontos agora. Ela passou por maus bocados. Quando eles a trouxerem de volta, estará exausta e desorientada. E vai ficar triste por não poder ficar com o bebê. O senhor precisa ser forte, por ela.

Não conseguia lembrar de mais nada, a não ser do momento único em que olhou através do berço transparente e viu a sua filha pela primeira vez.

- Posso tocar nela? - perguntou, temeroso. A sua cabeça miudinha parecia incrivelmente vulnerável e os seus olhinhos estavam fechados, bem apertados. Mechas de cabelo preto estavam grudadas na sua cabeça.

- Dê o seu dedo para ela segurar - instruiu a parteira.

Ele esticou a mão, hesitante, acariciando a pele enrugada da mãozinha da filha. Os seus minúsculos dedinhos abriram-se e apertaram o dedo do pai. E Alex foi capturado.

Sentou-se ao lado de Lynn até ela acordar e então lhe contou sobre o milagre que era a sua filha. Pálida e exausta, Lynn chorou.

- Eu sei que a gente tinha combinado que ela se chamaria Ella, mas eu quero chamá-la de Davina. Por causa do Mondo - explicou ela.

Alex estremeceu. Não pensara em Mondo desde que chegara ao hospital.

- Ah, meu Deus - disse ele e a culpa devorou a sua alegria. - É uma boa ideia. Ah, Lynn, eu não sei o que dizer. A minha cabeça parece que vai explodir.

- Você devia ir para casa, dormir um pouco.

- Preciso dar uns telefonemas. Avisar às pessoas.

Lynn deu uma palmadinha na mão do marido.

- Isso pode esperar. Você precisa dormir. Está exausto.

E então ele partiu, prometendo voltar mais tarde. Mal havia alcançado a entrada do hospital, se deu conta que não tinha forças para ir para casa. Ainda não. Encontrou um banco e deixou-se desmaiar sobre ele, perguntando-se como conseguiria sobreviver nos próximos dias. Tivera uma filha, mas não estava com ela nos braços. Perdera outro amigo, e não conseguia sequer pensar nas consequências desta perda. E, de alguma maneira, precisava ser forte para ajudar Lynn. Até então, sempre vencera as dificuldades, protegido pela certeza de que Ziggy ou Lynn o ajudariam a se levantar quando a vida o derrubasse.

Pela primeira vez na sua vida adulta, Alex sentiu-se terrivelmente sozinho.

James Lawson ouviu a notícia da morte de David Kerr pelo rádio, a caminho do trabalho na manhã seguinte. Não pôde conter um sorriso impiedoso de satisfação. Demorara bastante, mas finalmente o assassino de Barney Maclennan tivera o que merecia. Então os seus pensamentos voltaram-se inquietos para Robin e para o motivo que ele lhe entregara de bandeja. Alcançou o telefone do carro. Assim que chegou à polícia, foi direto para o gabinete da revisão dos casos. Por sorte, Robin Maclennan ainda era a única pessoa na sala. Estava parado em frente à máquina de café, esperando a água quente passar pelo filtro e desaguar no recipiente abaixo. Encoberto pela máquina, Lawson aproximou-se sem ser percebido e Robin levou um susto quando o seu chefe perguntou, abruptamente:

- Já ficou sabendo?

- Do quê?

- David Kerr foi assassinado. - Lawson apertou os olhos, examinando o detetive minuciosamente. - Ontem à noite. Na casa dele.

Robin ergueu as sobrancelhas.

- O senhor está brincando.

- Acabei de ouvir no rádio. Liguei para Glasgow para confirmar se era o nosso David Kerr e, por incrível que pareça, era ele mesmo.

- O que aconteceu? - Robin virou-se de costas, adicionando algumas colheradas de açúcar na sua caneca de café.

- A princípio, foi um assalto que deu errado. Mas depois descobriram que ele foi apunhalado duas vezes. Bem, normalmente um ladrãozinho amador em pânico pode até desferir uma facada, mas depois ele vai dar no pé. Esse sujeito fez questão de garantir que Davey Kerr não ia ficar vivo para abrir a boca.

- O que o senhor quer dizer com isso? - perguntou Robin, apanhando a cafeteira.

- Não sou eu quem está dizendo, é a polícia de Strathclyde. Estão abertos a outras possibilidades. Foi exatamente o que me disseram. - Lawson ficou esperando, mas Robin não disse nada. - Onde você estava ontem à noite, Robin?

Robin lançou um olhar furioso para Lawson.

- Onde o senhor quer chegar com isso?

- Calma, cara. Não estou te acusando de nada, não. Mas, sejamos francos, se alguém aqui tem um motivo para matar Davey Kerr, esse alguém é você. Eu sei que você jamais faria isso. Estou do seu lado. Só quero ter certeza de que você tem um álibi, entendeu? - Pousou a mão no ombro de Robin, acalmando-o. - Você tem um álibi?

Robin deslizou a mão pelo cabelo.

- Meu Deus, não. Ontem foi aniversário da mãe de Diane e ela levou as crianças para Grangemouth. Eles só voltaram bem depois das onze horas. Fiquei sozinho em casa. - Robin franziu a testa, preocupado.

Lawson balançou a cabeça.

- Isso não é nada bom, Robin. A primeira coisa que eles vão perguntar é por que você também não foi para Grangemouth.

- Eu não me dou bem com a minha sogra. Nunca me dei. Então Diane usa o meu trabalho como desculpa quando eu não apareço. Mas essa não foi a primeira vez. Eu não tentei escapar para poder ir até Glasgow matar Davey Kerr, Deus me livre. - Ele cerrou os lábios. - Qualquer outra noite, eu estava safo. Mas logo ontem... Que merda. Estou ferrado se eles ficaram sabendo o que Kerr fez com Barney.

Lawson apanhou uma xícara e serviu-se do café.

- Não vão ficar sabendo por mim.

- O senhor sabe como é este trabalho. Parece uma central de fofocas. Tá na cara que alguém vai descobrir. Vão começar a fuçar o passado de Davey Kerr e alguém vai lembrar que o meu irmão morreu tentando salvá-lo após aquela tentativa de suicídio ridícula. O senhor, se estivesse encarregado do caso, não ia querer conversar com o irmão de Barney? Sondar se por acaso ele não havia decidido que estava na hora de acertar as contas? Eu disse e repito: estou ferrado. - Robin virou de costas, mordendo os lábios.

Lawson apoiou a mão no braço dele, solidário.

- Vamos fazer o seguinte. Se alguém de Strathclyde perguntar, você estava comigo.

Robin estava visivelmente chocado.

- O senhor vai mentir por mim?

- Nós dois vamos mentir. Porque nós dois sabemos que você não teve nada a ver com a morte de Davey Kerr. Veja a coisa pelo seguinte ângulo: estamos poupando o tempo da polícia. Assim eles não vão perder tempo e energia investigando você em vez de estarem procurando o assassino.

Robin assentiu com a cabeça, relutante.

- É, isso é. Mas...

- Robin, você é um bom tira. Um bom homem. Do contrário, eu não o teria na minha equipe. Acredito em você e não quero ver o seu nome na lama.

- Obrigado, senhor. Agradeço muito a sua confiança.

- Esquece isso. Para todos os efeitos, eu dei um pulo na sua casa, a gente tomou umas cervejas, jogou umas rodadas de pôquer. Você ganhou umas vinte pratas de mim e eu fui embora lá pelas onze. Que tal?

- Combinado.

Lawson sorriu, bateu levemente com a sua caneca na caneca de Robin e foi embora. Aquela era a marca da liderança para ele. Antecipar o que a sua equipe precisava e atender antes mesmo que ela percebesse que estava precisando.

Naquela noite, Alex pegou a estrada novamente, de volta para Glasgow. Por fim, chegou em casa, onde o telefone estava estourando de tanto tocar. Já havia falado com os avós maternos e paternos da criança. Os pais dele pareceram um pouco constrangidos por terem ficado tão contentes, levando em consideração o que acontecera em Glasgow. Já os pais de Lynn reagiram de forma confusa, arrasados com o pesadelo que era a morte do seu único filho. Ainda era muito cedo para que o nascimento do seu primeiro neto lhes desse algum conforto. E saber que a criança estava na UTI neonatal era apenas mais um motivo de pesar e medo. Os dois telefonemas deixaram Alex em um estado que ultrapassava o cansaço; estava praticamente um zumbi. Mandou um e-mail breve para os amigos e colegas de trabalho, comunicando o nascimento de Davina, desligou o telefone da tomada e caiu no sono.

Quando acordou, mal podia acreditar que havia dormido por apenas três horas. Estava tão descansado quanto se tivesse passado o dia inteiro dormindo. Tomou uma ducha, fez a barba, pegou um sanduíche pronto e a câmera digital antes de voltar para Edimburgo. Encontrou Lynn na UTI neonatal, em uma cadeira de rodas, contemplando alegremente a filha.

- Ela não é linda? - perguntou ela de cara.

- Claro que é. Você já a segurou no colo?

- O melhor momento da minha vida. Mas ela é tão pequenininha, Alex. Parece que a gente está abraçando o ar. - Ela lançou um olhar aflito para ele. - Ela vai ficar bem, não vai?

- Claro que vai. Os Gilbeys são lutadores. - Eles deram as mãos, torcendo para que ele estivesse certo.

Lynn olhou para ele, preocupada.

- Estou tão sem graça, Alex. O meu irmão morreu e tudo o que eu consigo pensar é em como eu amo Davina, em como ela é preciosa.

- Sei exatamente o que você está sentindo. Estou nas nuvens, aí alguma coisa me faz lembrar do que aconteceu com Mondo e eu despenco lá de cima. Não sei como a gente vai conseguir superar isso.

No fim da tarde, Alex também já tinha conseguido segurar a filha nos braços. Tirou várias fotos e a exibiu para os seus pais. Adam e Sheila Kerr não tiveram condições de ir até lá e a ausência deles fez com que Alex lembrasse que não podia ficar encasulado para sempre nos prazeres da paternidade recente. Quando a enfermeira trouxe o jantar de Lynn, ele se levantou.

- Tenho que voltar para Glasgow - disse ele. - Preciso ver se Hélène está bem.

- Você não precisa se responsabilizar por ela - reclamou Lynn.

- Eu sei disso. Mas ela ligou para a gente - lembrou ele. - A família dela está muito longe. Ela pode estar precisando de ajuda para resolver as coisas. E, além do mais, eu devo isso a Mondo. Não fui um bom amigo para ele nos últimos anos e não posso fazer nada a respeito agora. Mas ele era parte da minha vida.

Lynn contemplou o marido com um sorriso triste e lágrimas nos olhos.

- Pobre Mondo. Não consigo parar de pensar em como ele deve ter ficado assustado no fim. E morrer sem ter a oportunidade de ficar bem com as pessoas que você ama... E Hélène, eu nem consigo imaginar como deve ser. Quando eu penso em como me sentiria se alguma coisa acontecesse com você ou com Davina...

- Não vai acontecer nada comigo. Nem com Davina - afirmou Alex. - Eu prometo.

Enquanto cobria a distância entre a alegria e o pesar, lembrava-se daquela promessa. Era difícil não se sentir atordoado com as mudanças recentes em sua vida. Mas ele não podia se dar ao luxo de sucumbir. Havia muita coisa dependendo dele agora.

Ao aproximar-se de Glasgow, ligou para Hélène. A secretária eletrônica o redirecionou para o celular dela. Xingando, ele encostou o carro e ouviu a mensagem novamente, anotando o número. Ela atendeu no segundo toque.

- Alex? Como está Lynn? O que aconteceu?

Ficou surpreso. Sempre considerara Hélène obcecada demais com os próprios problemas para se preocupar com alguém que não fosse ela mesma ou Mondo. O fato de a preocupação com Lynn e o bebê ter se instalado tão profundamente na sua dor, a ponto de ser a primeira coisa mencionada por ela, deixou Alex impressionado.

- Tivemos uma filha. - Aquelas eram as palavras mais importantes que ele proferira na vida. Sentiu um aperto na garganta. - Mas como ela nasceu prematura, tiveram que levar para a incubadora. Mas ela está indo bem. E é linda.

- E como está Lynn?

- Machucada. Em todos os sentidos. Mas está bem. E você?

- Nada bem. Mas estou me virando, eu acho.

- Escuta, estou indo aí te ver. Onde você está?

- A casa ainda está interditada como local do crime, ao que parece. Só vou poder voltar amanhã. Estou na casa da minha amiga Jackie. Ela mora em Merchant City. Você quer vir até aqui?

Alex não estava muito propenso a dar de cara com a mulher com que Hélène traíra Mondo. Chegou a pensar em sugerir um local neutro, mas soaria bastante insensível naquelas circunstâncias.

- Me dá o endereço - disse ele.

Não foi difícil encontrar o apartamento. Ele ocupava metade do segundo andar de um armazém convertido em residência, muito popular entre os solteiros da cidade. A mulher que abriu a porta não podia ser menos parecida com Hélène. Usava uma calça jeans velha, desbotada e desfiada nos joelhos. A sua camiseta regata anunciava que ela era "100% Grrrrl" e revelava músculos capazes de levantar o seu próprio peso em halteres sem derramar uma gota de suor. Abaixo de cada bíceps, uma intrincada tatuagem em forma de bracelete celta. O seu cabelo curto e negro estava espetado para cima com gel e o seu olhar era mordaz. As sobrancelhas escuras estavam franzidas sobre os seus olhos azul-acinzentados e em sua boca não havia nenhum sorriso acolhedor.

- Você deve ser o Alex - disse ela, deixando instantaneamente óbvias as suas raízes de Glasgow. - É melhor você entrar.

Alex a acompanhou por um típico loft que jamais agraciaria as páginas das revistas de decoração de interiores. Esqueça o modernismo estéril: aquele era o habitat de alguém que sabia exatamente do que gostava e como gostava. Uma das paredes estava coberta de cima a baixo por estantes, abarrotadas de livros, vídeos, CDs e revistas desorganizadas. Em frente, um aparato compacto de ginástica que permitia realizar diversos exercícios, com alguns halteres soltos de qualquer jeito no chão. A área da cozinha exibia o tipo de desarrumação típica do uso frequente e a sala de estar estava mobiliada com sofás que apelavam mais para o conforto do que para a elegância. Uma mesa de centro estava soterrada por pilhas de jornais e revistas. As paredes eram decoradas com fotografias emolduradas de mulheres esportistas, de Martina Navratilova a Ellen MacArthur.

Hélène estava encolhida no canto de um sofá de tapeçaria cujos braços atestavam a presença de um gato. Alex atravessou o chão de madeira polida até a sua cunhada, que suspendeu o rosto para a tradicional troca de beijos no ar. Os seus olhos estavam inchados e escuros, mas, fora isso, Hélène parecia ter voltado ao seu normal.

- Fico feliz por você estar aqui - disse ela. - Obrigada por ter vindo, quando você deveria estar curtindo o seu bebê.

- Como eu disse, ela ainda está na UTI neonatal. E Lynn está exausta. Imaginei que seria mais útil aqui. Mas... - ele lançou um sorriso para Jackie. - Vejo que você está sendo bem cuidada.

Jackie deu de ombros, sem desanuviar a sua expressão de hostilidade.

- Eu trabalho como jornalista freelancer, então posso manter o meu horário bem flexível. Você quer beber alguma coisa? Tem cerveja, uísque e vinho.

- Prefiro um café.

- Não temos café. Pode ser chá?

Nada como se sentir bem recebido, pensou ele.

- Chá está ótimo. Com leite, sem açúcar, por favor. - Sentou-se na outra extremidade do sofá, longe de Hélène. Os olhos dela davam a impressão de ter visto mais do que gostaria. - Como você está?

Os seus cílios tremelicaram.

- Estou tentando não sentir nada. Não quero pensar em David, porque o meu coração fica apertado. Não consigo acreditar que o mundo vai continuar sem ele. Mas preciso passar por isso sem me desesperar. A polícia está sendo horrível, Alex. Lembra daquela garota sem graça, parada no canto da sala ontem?

- A policial?

- Exatamente. - Hélène bufou de escárnio. - Acontece que ela estudou francês no colégio. Ela entendeu a nossa conversa ontem à noite.

- Putz, que merda.

- Que merda mesmo. O detetive encarregado do caso esteve aqui pela manhã. Falou comigo primeiro, queria saber sobre a minha relação com Jackie. Disse que não adiantava mentir porque a policial escutou tudo ontem. Então, eu contei a verdade. Ele foi muito gentil, mas deu para perceber que estava desconfiado.

- Você perguntou o que aconteceu com o Mondo?

- É claro que sim. - O rosto dela enrijeceu, pesaroso. - Ele disse que ainda não podia me adiantar grande coisa. O vidro da porta da cozinha foi mesmo quebrado, possivelmente por um ladrão. Mas eles não encontraram nenhuma impressão digital. A faca usada para golpear David foi tirada de um conjunto de facas da cozinha. Ele disse que, ao que parece, David ouviu um barulho e desceu para investigar. Mas ele enfatizou bem as palavras, Alex. Ao que parece.

Jackie voltou trazendo uma caneca na qual um decalque de Marilyn Monroe havia sido prejudicado pela lava-louças. O chá era forte, bem escuro.

- Obrigado - disse Alex.

Jackie acomodou-se no braço do sofá, com uma das mãos no ombro de Hélène.

- São uns homens das cavernas mesmo. Só porque a mulher tem uma amante, acham logo que ela ou a amante querem se livrar do marido. Eles não conseguem vislumbrar um mundo onde pessoas adultas fazem escolhas mais complexas do que estas. Eu tentei explicar ao policial que era possível fazer sexo com uma pessoa sem querer eliminar os outros parceiros dela. O babaca me olhou como se eu fosse de outro planeta.

Alex tinha que concordar com o policial naquele ponto. O fato de ser casado com Lynn não o deixara imune aos encantos de outras mulheres. Mas fazia com que ele repudiasse a ideia de tomar alguma atitude a respeito. No universo dele, amantes eram para pessoas que estavam com o parceiro errado. Imaginava como ficaria arrasado se Lynn um belo dia anunciasse que estava dormindo com outra pessoa. Sentiu uma pontada de pena por Mondo.

- Vai ver que eles ainda não têm nada em vista, por isso estão mantendo o foco em você - disse ele.

- Mas eu sou a vítima nessa história, não a criminosa - respondeu Hélène, amarga. - Não fiz nada contra David. Mas é impossível provar o contrário. Você mesmo sabe muito bem como é difícil dispersar a suspeita depois que apontam o dedo para você. Isso deixou David tão perturbado que ele tentou até se matar.

Alex estremeceu sem querer, diante daquela lembrança.

- Não vai chegar a este ponto.

- Pode ter certeza que não - acudiu Jackie. - Amanhã cedo vou conversar com um advogado. Não vou ficar de braços cruzados.

Hélène pareceu preocupada.

- Tem certeza de que é uma boa ideia?

- Por que não? - perguntou Jackie.

- A gente não tem que contar tudo ao advogado? - Hélène lançou um estranho olhar de soslaio para Alex.

- Sim, mas existe o privilégio advogado-cliente - disse Jackie.

- Qual é o problema? - perguntou Alex. - Tem alguma coisa que você não me contou, Hélène?

Jackie suspirou e girou os olhos.

- Deus do céu, Hélène.

- Tudo bem, Jackie. Alex está do nosso lado.

Jackie lançou um olhar que deixava bem claro que ela decifrava Alex melhor do que a sua amante.

- O que você não me contou? - perguntou ele.

- Não é da sua conta, tá bem? - disse Jackie.

- Jackie! - protestou Hélène.

- Deixa pra lá, Hélène. - Alex levantou-se do sofá. - Eu não tenho obrigação nenhuma de estar aqui, sabe - disse ele para Jackie. - Mas achei que vocês precisariam de todos os amigos possíveis numa hora destas. Especialmente na família de Mondo.

- Jackie, conta pra ele - disse Hélène. - Senão ele vai sair daqui achando que a gente realmente está escondendo alguma coisa.

Jackie encarou Alex.

- Tive que sair por mais ou menos uma hora ontem à noite. Eu estava sem erva e a gente queria fumar um baseado. O sujeito que arruma drogas para mim não é do tipo que fornece álibis. E, mesmo que ele fornecesse, a polícia não ia acreditar nele. Então, tecnicamente, qualquer uma de nós poderia ter matado David.

Alex sentiu os pelos da sua nuca se arrepiarem. Lembrou-se de um momento, na noite anterior, quando chegou a questionar se Hélène o estava manipulando.

- Vocês deviam contar isso para a polícia - disse ele, abruptamente. - Se descobrirem que vocês mentiram, nunca vão acreditar que são inocentes.

- E você está acreditando muito, né? - desafiou Jackie, com desdém.

Alex não estava gostando nada do clima de hostilidade à sua volta.

- Olha, eu vim aqui para ajudar, não para ficar levando fora - respondeu ele, ríspido. - Eles falaram alguma coisa sobre a liberação do corpo?

- Iam fazer a autópsia hoje de tarde. Depois disso, parece que já podemos começar os preparativos para o funeral. - Hélène esticou as mãos. - Nem sei para quem ligar. O que devo fazer, Alex?

- Acho que dá para encontrar um agente funerário nas Páginas Amarelas. Coloque o anúncio do óbito no jornal, depois entre em contato só com os amigos mais íntimos e os parentes. Se você quiser, eu posso me encarregar da família.

Ela concordou com a cabeça.

- Vai ser uma ajuda e tanto.

Jackie reagiu, debochada.

- Aposto que eles não vão ficar tão interessados em falar com Hélène depois que ficarem sabendo sobre mim.

- Melhor evitar isso. Os pais de Mondo já têm problemas demais - disse Alex, friamente. - Hélène, você precisa arrumar um lugar para a recepção.

- Recepção? - perguntou ela.

- Depois do funeral - explicou Jackie.

Hélène fechou os olhos.

- Não acredito que estamos aqui falando sobre recepção enquanto o meu David está estirado numa mesa de necrotério.

- Bem... - disse Alex. Não precisava dizer o que estava pensando; a culpa pairava no ar entre os três. - Melhor eu ir embora.

- Ela já tem nome, a sua filha? - perguntou Hélène, visivelmente buscando um assunto mais ameno.

Alex lançou um olhar apreensivo para a cunhada.

- Nós íamos chamá-la de Ella. Mas pensamos melhor e... bom, Lynn quis chamá-la de Davina. Em homenagem a Mondo. Se você não se incomodar, é claro.

Os lábios de Hélène tremeram e os olhos ficaram rasos d’água.

- Oh, Alex. Sinto muito por nunca termos arrumado tempo para sermos mais amigos de você e de Lynn.

Alex balançou a cabeça.

- Para quê? Para que nos sentíssemos igualmente traídos?

Hélène encolheu-se, como se tivesse sido fisicamente golpeada. Jackie avançou em direção a Alex, fechando as mãos em punho.

- Acho que está na hora de você ir embora.

- Também acho - respondeu ele. - Vejo vocês no funeral.


31

O subchefe de polícia Lawson apanhou a pasta sobre a mesa.

- Eu estava contando com isso - suspirou ele.

- Eu também, senhor - confessou Karen Pirie. - Eu sei que eles não conseguiram nenhuma amostra biológica no cardigã naquela época, mas imaginei que com o equipamento sofisticado de hoje pudesse haver vestígio de alguma coisa que pudéssemos usar. Sêmen ou sangue. Mas não encontraram nada, a não ser estas gotinhas de tinta esquisitas.

- Que já havíamos detectado naquela época. E que não adiantou muito também. - Lawson abriu a pasta despretensiosamente e passou os olhos no breve relatório. - O problema é que o cardigã não foi encontrado com o corpo. Se eu me lembro direito, foi jogado por cima de uma cerca no jardim de alguém.

Karen assentiu.

- Número 15. E eles só acharam mais de uma semana depois. Àquela altura, já tinha nevado, derretido a neve e chovido, o que não ajudou em nada. O cardigã foi identificado pela mãe de Rosie, que afirmou ser o que ela estava usando quando saiu naquela noite. Nunca achamos a bolsa, nem o casaco. - Karen consultou a gorda pasta sobre o seu colo, virando as páginas. - Um casaco 7/8 marrom, de corte trapézio, da C&A, com um forro de pied-de-poule creme e marrom.

- Nunca achamos porque nem sabíamos onde procurar. Porque não sabíamos em que lugar ela foi morta. Depois que saiu do Lammas, ela pode ter sido levada para qualquer lugar a mais ou menos uma hora de distância de carro. Para Dundee, depois da ponte ou para o centro de Fife. Em qualquer lugar, de Kirriemuir a Kirkcaldy. Pode ter sido assassinada em um barco, em um estábulo, em qualquer lugar. A única coisa que conseguimos descobrir com certeza é que ela não foi morta na casa em Fife Park onde Gilbey, Malkiewicz, Kerr e Mackie moravam. - Lawson devolveu o relatório para Karen.

- Só por curiosidade, senhor... vocês chegaram a vasculhar outras casas em Fife Park?

Lawson franziu a testa.

- Acho que não. Por quê?

- É que me ocorreu uma coisa. O crime aconteceu durante as férias da universidade. Muitos alunos já tinham viajado para passar o Natal com as suas famílias. Pode ser que algumas casas estivessem vazias por lá.

- Mas deviam estar fechadas. Se tivesse ocorrido algum arrombamento em Fife Park, nós teríamos ficado sabendo.

- Bom, sabe como são os estudantes, senhor. Vivem uns nas casas dos outros. Não devia ser muito difícil arrumar uma chave. Além do mais, os quatro estavam no último ano. Eles podem muito bem ter guardado a chave de uma das casas onde se alojaram nos anos anteriores.

Lawson lançou um olhar de apreciação para Karen.

- É uma pena você não ter feito parte da investigação naquela época. Acho que ninguém nunca nem pensou nesta hipótese. Agora já é tarde demais, obviamente. E então, como vai a busca pelas provas? Você já terminou?

- Eu tirei uma folga no Natal e no Ano-Novo - justificou ela, defensiva. - Mas fiquei até tarde ontem à noite e terminei tudo.

- Então é isso? As provas concretas do caso Rosie Duff desapareceram do nada, sem deixar vestígios?

- Ao que parece, senhor. A última pessoa a ter acesso à caixa foi o detetive Maclennan, uma semana antes de morrer.

Lawson levantou a cabeça.

- Você não está insinuando que Barney Maclennan sumiu com as provas de um homicídio, está?

Karen corrigiu-se, imediatamente. A última coisa que queria era dar a impressão de que estava levantando suspeitas sobre um colega que morrera como herói.

- Não, senhor, de modo algum. Só quis dizer que, seja lá o que tenha acontecido com as roupas de Rosie Duff, não existe nenhuma papelada oficial a respeito.

Ele suspirou novamente.

- Deve ter existido sim, há muito tempo. E deve ter ido parar no lixo, a esta altura. Vou te contar, às vezes eu fico até desconfiado. Alguns dos sujeitos que trabalham para a gente...

- Bom, outra hipótese é a do detetive Maclennan ter encaminhado as provas para outros testes adicionais e elas nunca mais terem voltado, porque ele não estava mais lá para cobrar. Ou então, desapareceram porque ele não estava mais lá para receber - sugeriu Karen, cautelosa.

- É uma possibilidade. Mas, de qualquer maneira, você não vai conseguir encontrá-las agora. - Lawson tamborilou os dedos na mesa. - Bom, então é isso. Um caso não resolvido que vai continuar mal resolvido. Não estou com a menor pressa de comunicar isso ao filho dela também. Ele tem ligado todos os dias, querendo saber em que pé estamos.

- Até agora não consigo acreditar que o patologista não percebeu que ela teve um filho - disse Karen.

- Na sua idade, eu diria a mesma coisa - admitiu Lawson. - Mas ele já era um senhor bem idoso e pessoas idosas podem cometer erros idiotas. Sei bem disso agora, porque estou indo pelo mesmo caminho. Sabe, às vezes fico me perguntando se este caso não estava fadado ao fracasso desde o início.

Karen podia perceber a sua decepção. E ela sabia bem o que era aquilo, pois sentia a mesma coisa.

- O senhor não acha que vale a pena conversar com as testemunhas novamente? Os quatro estudantes?

Lawson fez uma careta.

- Isso vai ser difícil.

- Como assim, senhor?

Ele abriu a gaveta e apanhou um exemplar do Scotsman, datado de três dias antes. Estava aberta na página dos obituários. Ele estendeu o jornal para Karen, apontando para uma notícia em particular.

KERR, DAVID MCKNIGHT. Comunicamos o falecimento do Dr. David Kerr, de Carden Grove, Bearsden, Glasgow, amantíssimo esposo de Hélène, irmão de Lynn e filho de Adam e Sheila Kerr, de Duddingston Drive, Kirkcaldy. O funeral será realizado na próxima quinta-feira, às 14:00, no Crematório de Glasgow, Western Necropolis, Tresta Road. Flores somente dos familiares.

Karen olhou para Lawson, surpresa.

- Mas ele não devia ter mais de quarenta e seis, quarenta e sete anos, não é? Muito jovem para morrer.

- Você devia prestar mais atenção nas notícias, Karen. Você não ficou sabendo do professor da Universidade de Glasgow que morreu esfaqueado na cozinha, atacado por um ladrão na noite de quinta-feira?

- Aquele era o nosso David Kerr? O que eles chamavam de Mondo?

Lawson assentiu.

- O diamante louco em pessoa. Falei com o detetive encarregado do caso na segunda-feira. Só para ter certeza absoluta. Parece que eles não estão nem um pouco convencidos de que foi mesmo um assalto. A mulher estava pulando a cerca.

Karen fez uma careta.

- Espertinha.

- Bastante. Então, quer dar um pulo em Glasgow hoje à tarde? Acho que seria de bom tom prestarmos as últimas homenagens a um de nossos suspeitos.

- O senhor acha que os outros três vão aparecer por lá?

Lawson deu de ombros.

- Eles eram muito amigos, mas isso foi há vinte e cinco anos. Vamos ter que pagar para ver, sabe? Mas acho que não vai dar para conversar com ninguém hoje. Vamos ter de esperar a poeira baixar. Afinal, não queremos ser acusados de insensíveis, não é mesmo?

O crematório estava lotado e as pessoas que não conseguiram um lugar para sentar tiveram de ficar em pé. Mondo podia até ter cortado os laços com a família e os velhos amigos, mas aparentemente não tivera muita dificuldade em substituí-los. Alex sentou-se no banco da frente, com Lynn aconchegada ao seu lado. Ela havia saído do hospital dois dias antes, mas ainda se movimentava como uma senhora de idade. Alex tentou convencê-la a ficar em casa descansando, mas ela não queria nem pensar em perder o funeral do seu único irmão. Além do mais, argumentara que sem o bebê em casa para tomar conta, ela ia ficar sentada olhando para ontem. Preferia estar perto da sua família. Alex não arrumara nenhum argumento para dissuadi-la. E lá estava ela, segurando a mão do pai, que estava em estado de choque, tentando confortá-lo em uma inversão dos tradicionais papéis de pai e filha. A sua mãe estava ao lado, com o rosto praticamente escondido atrás das dobras de um lenço branco.

Hélène estava sentada um pouco mais adiante, de cabeça baixa, ombros arriados. Ela parecia bastante fechada, como se houvesse colocado uma barreira entre si mesma e o mundo. Pelo menos tivera o bom senso de não chegar no funeral de braço dado com Jackie. Ela ficou de pé quando o pastor anunciou o cântico final.

A abertura sonora do salmo vinte e três fez com que Alex sentisse um bolo na garganta. O cântico começou um pouco vacilante enquanto as pessoas encontravam o tom, mas depois cresceu, envolvendo-o completamente. Que clichê, pensou ele, com raiva de si mesmo por estar comovido pelo tradicional hino fúnebre. A cerimônia de Ziggy fora muito mais honesta, uma homenagem de verdade e não aquela superficialidade arranjada às pressas. Pelo que ele sabia, Mondo jamais pisara em uma igreja, a não ser para os tradicionais ritos de passagem. As pesadas cortinas abriram-se e o caixão começou a sua viagem derradeira.

Os acordes do último verso foram morrendo conforme as cortinas iam se fechando, encobrindo o caixão. O pastor entoou a sua bênção, depois afastou-se pelo corredor central. Logo em seguida, a família e, por último, Alex amparando Lynn. A maioria dos rostos espalhados pelos bancos não passava de um borrão mas, entre eles, Alex reconheceu imediatamente a figura magricela de Esquisito. Cumprimentaram-se brevemente com um aceno de cabeça e Alex continuou caminhando até a porta. Um pouco antes de sair, teve uma segunda surpresa. Embora não visse James Lawson desde a época em que o chamavam de Jimmy, reconhecia o seu rosto dos jornais. Que mau gosto, pensou Alex, posicionando-se no final da fila dos cumprimentos. Casamentos e funerais exigem a mesma etiqueta: era preciso agradecer a presença das pessoas.

Parecia não acabar nunca mais. Sheila e Adam Kerr pareciam totalmente desnorteados. Perder um filho naquelas circunstâncias brutais já era ruim o bastante; pior ainda era ter de receber pêsames de gente que nunca haviam visto e que jamais veriam novamente. Alex gostaria de saber se eles sentiam algum conforto ao ver quantas pessoas haviam aparecido para dar o seu último adeus. Para Alex, aquilo só servia para fazer com que ele recordasse a distância que o separara de Mondo nos últimos anos. Não conhecia quase ninguém.

Esquisito fora um dos últimos na fila dos cumprimentos. Abraçou Lynn com delicadeza.

- Meus pêsames - disse ele. Apertou a mão de Alex e tocou levemente no seu cotovelo. - Estou te esperando lá fora. - Alex assentiu com a cabeça.

Finalmente, os últimos retardatários foram embora. Estranho, pensou Alex. Nada de Lawson. Ele deve ter saído por outra porta. Melhor assim. Tinha lá as suas dúvidas se conseguiria ser educado. Alex escoltou o sogro e a sogra até o carro funerário, avançando por um grupo cabisbaixo. Ajudou Lynn a entrar no carro, verificou se estava tudo direitinho e então disse:

- Encontro com vocês lá no hotel. Preciso me certificar de que está tudo bem por aqui.

Sentiu-se envergonhado ao experimentar uma sensação de alívio tão logo o carro afastou-se da calçada. Deixara o seu próprio carro ali mais cedo, para garantir que não ficaria a pé caso alguma coisa acontecesse após o funeral. Lá no fundo, sabia que fizera isso porque precisava de uma folga daquela dor sufocante que se abatera sobre a sua família.

Um tapinha no seu ombro fez com que ele virasse para trás.

- Ah, é você - disse ele, quase rindo de alívio ao ver o rosto de Esquisito.

- Ué, quem mais você pensava que fosse?

- Bem, Jimmy Lawson estava escondidinho lá atrás no crematório.

- Jimmy Lawson, o tira?

- Tira, uma vírgula. Subchefe de polícia James Lawson agora - disse Alex afastando-se da entrada principal e caminhando até o local onde estavam as flores.

- E o que ele veio fazer aqui?

- Tripudiar da gente. Sei lá. Ele está encarregado da revisão dos casos. Talvez quisesse dar uma olhadinha nos seus principais suspeitos, na esperança de que em um momento de comoção fôssemos nos ajoelhar e confessar nossos pecados.

Esquisito fez uma cara feia.

- Jamais gostei desta baboseira católica. Devemos ser adultos o suficiente para lidarmos com as nossas culpas. Não é tarefa de Deus zerar o nosso placar para que possamos voltar a pecar novamente. - Ficou mudo e virou-se para Alex. - Quero que você saiba que estou muito feliz por Lynn ter tido um bom parto e pelo nascimento da sua filha.

- Obrigado, Tom. - Alex abriu um sorriso. - Viu só? Eu me lembrei.

- O bebê ainda está no hospital?

Alex suspirou.

- Ela ainda está muito fraquinha, então vai ficar no hospital mais uns dias. Mas não é fácil, sabe? Principalmente para Lynn. Passar por tudo aquilo e ainda voltar para casa de mãos abanando. E ainda ter que lidar com o que aconteceu com Mondo...

- Vocês vão esquecer todo este sofrimento quando o bebê estiver em casa, eu prometo. Vou me lembrar de vocês em todas as minhas orações.

- E isso vai fazer a maior diferença, hein? - disse Alex.

- Você vai ficar surpreso - respondeu Esquisito, sem se ofender. Continuaram caminhando, olhando para as homenagens. Um sujeito abordou Alex, querendo saber como chegar ao hotel onde organizaram a recepção. Quando Alex se virou para Esquisito novamente, viu o amigo agachado em frente a um dos arranjos. Quando chegou perto o bastante para verificar o que havia chamado a atenção de Esquisito, sentiu o coração disparar no peito. Era um arranjo de flores idêntico ao que haviam visto em Seattle: uma elegante e bem armada coroa de rosas brancas e alecrim. Esquisito apanhou o cartão e ficou de pé. - A mesma mensagem - disse ele, passando o cartão para Alex. - Lembrança de Rosemary.

Alex estava suando frio.

- Não estou gostando nada disso.

- Nem eu. Isso aqui é coincidência demais, Alex. E tanto Ziggy como Mondo morreram em circunstâncias suspeitas... Que diabos, vamos falar a verdade: Ziggy e Mondo foram assassinados. E a mesma coroa aparece nos dois funerais. Com uma mensagem que tem a ver com nós quatro e o assassinato nunca resolvido de Rosie Duff.

- Mas isso já tem vinte e cinco anos. Se alguém quisesse se vingar, teria se vingado antes, você não acha? - disse Alex, tentando convencer Esquisito e a si mesmo. - Deve ser só alguém tentando nos assustar.

Esquisito balançou a cabeça.

- Você teve outras coisas para pensar nesses últimos dias, mas eu não consigo tirar isso da cabeça. Há vinte e cinco anos, todos estavam de olho na gente. Eu não me esqueci daquela surra que levei. Não me esqueci da noite em que jogaram Ziggy na Masmorra da Garrafa. Não me esqueci como Mondo ficou tão magoado que tentou até se matar. O único motivo de tudo aquilo ter acabado foi a ameaça que os policiais fizeram a Colin e Brian Duff. Eles foram obrigados a nos deixar em paz. Foi você mesmo quem me disse naquela época que Jimmy Lawson te contou que eles só desistiram da gente porque não queriam que a mãe sofresse mais ainda. Vai ver que resolveram esperar.

Alex balançou a cabeça.

- Mas vinte e cinco anos? É possível guardar um ressentimento por vinte e cinco anos?

- Eu não sou a pessoa certa para responder a esta pergunta. Mas tem muita gente aí que não aceitou Jesus Cristo como salvador e você sabe tão bem quanto eu, Alex, que pessoas assim são capazes de qualquer coisa. A gente não sabe o que se passou na vida deles. Talvez tenha acontecido alguma coisa e reacendido todo o ódio. Talvez a mãe tenha morrido. Talvez a revisão dos casos tenha feito com que se lembrassem que tinham contas a acertar e que agora era mais seguro tomar uma atitude. Eu não sei. O que eu sei é que isso está me parecendo que tem alguém atrás da gente. E, seja lá quem for, tem tempo e recursos a seu favor. - Esquisito olhou à sua volta, nervoso, como se o inimigo pudesse estar ali entre os presentes que se afastavam para pegar os seus carros.

- Agora você está paranoico. - Aquela não era exatamente uma das características da juventude de Esquisito que Alex gostaria de recordar naquele momento.

- Não acho, não. Acho que sou o único com bom senso aqui.

- Tá, e o que você sugere que a gente faça?

Esquisito apertou o casaco contra o peito.

- Pretendo me enfiar em um avião amanhã cedo e voltar para os Estados Unidos. Quando chegar lá, vou mandar minha mulher e meus filhos para algum lugar seguro. Existem bons cristãos morando no meio do mato. Ninguém vai encontrá-los.

- E você? - Alex podia sentir as suspeitas de Esquisito o contaminando como um vírus.

Esquisito abriu o seu familiar sorriso maroto.

- Eu vou para um retiro. Os fiéis entendem que, de vez em quando, nós temos que sumir do mapa para restabelecermos contato com a nossa espiritualidade. E é isso o que eu vou fazer. A melhor coisa de pregar na televisão é que você pode gravar o programa de qualquer lugar. Então o meu rebanho não vai se esquecer de mim enquanto eu estiver fora.

- É, mas você não pode passar a vida inteira se escondendo. Mais cedo ou mais tarde, vai ter que voltar para casa.

Esquisito concordou com um gesto de cabeça.

- Eu sei disso. Mas eu não vou ficar de braços cruzados, Alex. Assim que eu e minha família estivermos fora da linha de fogo, vou contratar um detetive particular e descobrir quem mandou a coroa para o funeral de Ziggy. Porque quando eu souber disso, vou saber quem procurar.

Alex exalou o ar nervosamente.

- Você já pensou em tudo, hein?

- Quanto mais eu pensava naquela coroa, mais ficava intrigado. E Deus ajuda a quem se ajuda, então eu arquitetei o meu plano. Por precaução. - Esquisito pousou a mão no braço de Alex. - Alex, eu sugiro que faça o mesmo. Você não tem que pensar só em você agora. - Esquisito lhe deu um abraço apertado. - Cuide-se, está bem?

- Comovente pra cacete - disse uma voz, asperamente.

Esquisito soltou Alex e olhou para trás. No início, não reconheceu o homem sorridente que os encarava. Mas logo a sua memória voltou no tempo e ele estava novamente do lado de fora do Lammas, aterrorizado e ferido.

- Brian Duff - disse Esquisito, ofegante.

Alex olhou para o amigo e para o sujeito na sua frente.

- Esse é o irmão de Rosie?

- Isso aí.

As emoções confusas que atormentavam Alex há dias subitamente se transformaram em ira.

- Veio aqui comemorar a desgraça alheia, né?

- Justiça poética, não é assim que se diz? Um assassino de merda vem dar o seu último adeus a outro. Podes crer, vim comemorar mesmo.

Alex investiu contra ele, mas Esquisito conseguiu conter o amigo segurando firmemente no seu braço.

- Deixa pra lá, Alex. Brian, nenhum de nós encostou em um fio de cabelo da sua irmã. Eu sei que você quer arrumar alguém em quem colocar a culpa, mas não fomos nós. Você precisa acreditar nisso.

- Não preciso acreditar em nada. - Ele cuspiu no chão. - Eu realmente esperava que os tiras fossem prender pelo menos um de vocês agora. Já que isso não vai acontecer mesmo, é melhor ver vocês morrendo.

- É claro que não vai acontecer. Nunca encostamos na sua irmã e tem o DNA agora para provar isso - gritou Alex.

Brian bufou.

- Que DNA? Os babacas perderam as provas.

Alex estava boquiaberto.

- O quê? - perguntou, quase sem voz.

- Isso mesmo que você ouviu. Vocês continuam salvos. - Brian contorceu a boca em um sorriso debochado. - Já o amiguinho de vocês não teve a mesma sorte, né? - Ele girou nos calcanhares e partiu, sem olhar para trás.

Esquisito balançou a cabeça lentamente.

- Você acredita nele?

- Por que ele mentiria? - suspirou Alex. - Pior é que eu realmente achava que agora a gente ia se livrar, sabe? Como é que eles podem ter sido tão incompetentes? Como é que foram perder a única prova que poderia ter colocado um fim em tudo isso? - Ele fez um gesto para a coroa de flores.

- Não sei por que você está tão surpreso. Até parece que naquela época eles foram muito eficientes. Por que seria diferente agora? - Esquisito puxou a gola do casaco. - Alex, sinto muito, mas eu preciso me mandar. - Despediram-se com um aperto de mãos. - Dou notícias.

Alex continuou imóvel no mesmo lugar, impressionado com a rapidez com que o seu mundo virara de cabeça para baixo. Se Brian Duff não estava mentindo, será que aquelas coroas sinistras tinham alguma coisa a ver com o que ele acabara de contar? E, se tivessem, será que o pesadelo não acabaria enquanto ele e Esquisito continuassem vivos?

Sentado em seu carro, Graham Macfadyen observava tudo. As coroas de flores eram um toque de gênio. E valia a pena aproveitar cada oportunidade para comprovar isso. Não pudera estar em Seattle para conferir o efeito da primeira, mas não tinha mais dúvidas de que Mackie e Gilbey tinham captado a mensagem daquela vez. E isso significava que havia de fato uma mensagem a ser captada. Sujeitos inocentes não teriam ficado tão apavorados com aquele lembrete.

Ver a reação dos dois praticamente compensou o repugnante desfile de hipocrisia que ele teve de aturar no crematório. O pastor obviamente não conhecera David Kerr em vida, então não era de admirar que tivesse conseguido transformá-lo em um santo após a morte. Mas Macfadyen ficara enojado ao ver como todos os presentes concordavam com a cabeça, engolindo aquela baboseira, suas expressões pias concordando com aquela ficção hipócrita.

Ficou imaginando como reagiriam se ele tivesse ido lá na frente e contado toda a verdade. "Senhoras e senhores, estamos reunidos aqui hoje para cremar um assassino. O homem que vocês pensavam que conheciam passou a sua vida adulta inteira mentindo para vocês. David Kerr fingia ser um respeitável membro da comunidade. Mas a verdade é que há muitos anos ele participou do estupro e do assassinato brutal da minha mãe, pelo qual nunca foi punido. Então, quando forem lembrar dele a partir de agora, lembrem-se disso." Ah, um discurso assim com certeza teria acabado com aquelas expressões de tristeza reverente. Ele quase desejou ter feito isso.

Mas teria sido uma alegria fugaz. Não era inteligente ficar se vangloriando antes da hora. Melhor permanecer nas sombras. Até mesmo porque o seu tio aparecera lá para falar por ele. Não fazia a menor ideia do que tio Brian tinha dito a Gilbey e a Mackie. Mas servira para fazer com que tremessem nas bases. Não tinham mais como esquecer o que fizeram anos atrás. Ficariam acordados naquela noite, se perguntando quando o passado finalmente os alcançaria. E esta era uma perspectiva agradável para Macfadyen.

Observou Alex Gilbey indo buscar o seu carro, aparentemente ignorando tudo ao seu redor. "Ele nem imagina que eu existo", murmurou ele. "Mas eu existo, Gilbey. Eu existo." Ligou o motor e partiu para a recepção dos convidados para o funeral. Era impressionante o quão fácil era infiltrar-se na vida das pessoas.


32

A enfermeira disse a eles que Davina estava fazendo progressos. Já conseguia respirar direitinho sem o oxigênio e a sua icterícia estava respondendo bem às luzes fluorescentes que iluminavam o seu pequeno leito o dia inteiro. Quando segurou a filha nos braços, Alex pôde esquecer a depressão que o funeral de Mondo trouxera consigo e a aflição que a reação de Esquisito às flores havia gerado. A única coisa melhor do que estar sentado com a sua mulher e sua filha na unidade neonatal seria estar fazendo exatamente a mesma coisa na sua própria casa. Assim pensava ele, pelo menos até ter conversado com Esquisito no crematório.

Como se tivesse lido a sua mente, Lynn levantou os olhos do bebê que amamentava para o marido.

- Mais alguns dias e já vamos poder levá-la para casa.

Alex sorriu, tentando esconder a inquietação provocada por aquelas palavras.

- Mal posso esperar - disse ele.

Mais tarde, voltando para casa em seu carro, ele pensou se deveria tocar no assunto das flores e da revelação que Brian Duff fizera. Mas não queria preocupar Lynn, então achou melhor não contar nada. Ela foi direto para a cama, exausta após um dia cansativo. Alex abriu uma garrafa de Shiraz especialmente boa, que estava guardando para uma noite em que eles precisassem ser mimados. Levou o vinho para o quarto e serviu um copo para ele e outro para Lynn.

- Você vai me contar o que está te preocupando? - perguntou Lynn assim que ele deitou ao seu lado sobre o cobertor.

- Estava só pensando em Hélène e em Jackie. Não consigo parar de imaginar que o assassinato de Mondo pode ter tido um dedinho de Jackie. Não que ela própria tenha cometido o crime. Mas parece que ela conhece gente capaz de realizar um serviço assim, desde que bem pago.

Lynn franziu a testa.

- Eu até chego a desejar que tenha sido ela mesmo. Aquela vagabunda da Hélène merece sofrer. Como é que ela podia trair Mondo e fingir que era a esposa perfeita?

- Acho que Hélène está sofrendo de verdade, Lynn. Eu acredito quando ela diz que o amava.

- Não me venha defender essa mulher!

- Não estou defendendo. Mas, seja lá o que esteja rolando entre ela e Jackie, ela parecia gostar dele. Isso é óbvio.

Lynn apertou os lábios.

- Bom, se você diz... Mas não é isso que está te incomodando. Alguma coisa aconteceu depois que saímos do crematório, antes de você chegar à recepção. Foi Esquisito? Ele disse alguma coisa que te deixou preocupado?

- Juro por Deus que você é uma feiticeira - reclamou Alex. - Não, não foi nada de mais, não. Só uma pulga que se alojou atrás da orelha de Esquisito.

- Deve ter sido uma pulga assassina de Alfa Centauro para te deixar desse jeito, quando existem outras coisas importantes acontecendo. Por que você não quer me contar? É coisa de homem?

Alex suspirou. Não gostava de esconder as coisas de Lynn. Nunca acreditara que ignorância era uma bênção, não em um casamento que deveria manter a igualdade.

- Mais ou menos. É que eu não quero te perturbar com isso, ainda mais com tudo que você tem na cabeça agora.

- Alex, com tudo o que tenho na cabeça agora, você não acha que um assunto novo seria bem-vindo?

- Não esse, linda. - Bebericou o vinho, saboreando o seu reconfortante buquê. Gostaria de poder canalizar toda a sua consciência na apreciação daquele vinho e esquecer tudo o que o cercava. - Tem coisas que a gente não precisa ficar sabendo.

- Por que não estou conseguindo acreditar em você? - perguntou Lynn, apoiando a cabeça no ombro do marido. - Vamos lá, conta logo. Você sabe que vai se sentir melhor depois.

- Pra falar a verdade, não sei, não. - Alex suspirou novamente. - Não sei, talvez eu devesse mesmo te contar. Você é a mais sensata, afinal de contas.

- Coisa que nunca pudemos falar de Esquisito, por sinal - comentou Lynn secamente.

Alex contou sobre as coroas de flores nos funerais, tentando amenizar ao máximo a história. Para sua surpresa, Lynn não se esforçou nem um pouco para descartar tudo como uma paranoia de Esquisito.

- Ah, então é por isso que você está tentando se convencer de que Jackie contratou um matador profissional - disse ela. - Não gosto nada disso. Esquisito tem razão de estar levando a sério.

- Mas pode ser que tenha uma explicação simples - protestou Alex. - Talvez alguém que conhecesse os dois.

- Do jeito como Mondo se afastou de todo o seu passado? As únicas pessoas que poderiam conhecer os dois teriam de ser de Kirkcaldy ou de St. Andrews. E todo mundo nesses dois lugares sabia da história de Rosie Duff. Não dá para esquecer uma coisa dessas. Muito menos se a pessoa os conhecesse bem o suficiente para mandar flores para o funeral, quando o obituário dizia "somente flores da família" - ponderou Lynn.

- Mesmo assim, isso não quer dizer que tem alguém atrás da gente - disse Alex. - Tudo bem, alguém queria tirar um sarro. Mas isso não significa que essa mesma pessoa cometeu dois assassinatos a sangue-frio.

Lynn balançou a cabeça, descrente.

- Alex, em que planeta você vive? Dá até para acreditar que alguém disposto a tirar um sarro possa ter lido as notícias sobre a morte de Mondo. Afinal, ele pelo menos morreu no mesmo país em que Rosie Duff foi assassinada. Mas como alguém ia ficar sabendo de Ziggy a tempo de mandar flores para o funeral nos Estados Unidos, a não ser que estivesse envolvido de algum jeito com a sua morte?

- Não sei. Mas o mundo é pequeno hoje em dia. Vai ver que a pessoa que mandou a primeira coroa tinha algum conhecido em Seattle. Talvez alguém de St. Andrews tenha se mudado para lá e encontrado com Ziggy na clínica. O nome dele não era lá muito comum, e ele era relativamente famoso naquelas redondezas. Você mesma sabe disso, sempre que a gente saía para comer com Ziggy e Paul lá em Seattle, aparecia alguém para cumprimentá-lo. As pessoas não se esquecem do médico que cuidou dos seus filhos. E se foi isso mesmo, nada mais natural do que mandar um e-mail para alguém aqui quando Ziggy morreu. Em um lugar como St. Andrews, notícias como essa se espalham rapidamente. Não é tão impossível assim, é? - A voz de Alex ia ficando mais aflita à medida que ele se esforçava para encontrar alguma solução que tornasse possível descartar a sugestão de Esquisito.

- É um pouco surreal, mas tudo bem. Mas você não pode deixar isso assim. Você não pode confiar em uma possibilidade ínfima. Você tem que fazer alguma coisa, Alex. - Lynn apoiou o seu copo e abraçou o marido. - Não dá para se arriscar, ainda mais com Davina vindo para casa daqui a pouco.

Alex esvaziou o seu copo, sem prestar mais atenção na qualidade do vinho.

- Mas o que você quer que eu faça? Que eu vá me esconder com você e Davina? Para onde nós iríamos? E o meu trabalho? Não dá para simplesmente abandonar tudo com uma criança para sustentar.

Lynn afagou a cabeça dele.

- Alex, vai com calma. Não estou falando para nos enfiarmos no fim do mundo, como Esquisito. Você me disse que Lawson estava lá no funeral hoje. Por que você não vai conversar com ele?

Alex bufou.

- Lawson? O cara que tentou me passar a perna com sopa de lentilhas e simpatia? O sujeito que tem tanta fixação, há tanto tempo, que fez questão de vir assistir a um de nós ser cremado? E você acha que ele vai me ouvir de bom grado?

- Lawson pode até ter as suspeitas dele, mas pelo menos ele te salvou quando você estava prestes a levar uma surra. - Alex deslizou pela cama, aninhando-se sobre a barriga de Lynn. Ela recuou, afastando-o. - Cuidado com a minha cicatriz - disse ela. Alex ajeitou-se, apoiando-se no braço dela.

- Ele vai rir na minha cara.

- Ou então vai levar você a sério o bastante para investigar essa história. Ele não tem nenhum interesse em fazer vista grossa para esse tipo de justiça com as próprias mãos, se for isso mesmo. Sem contar que isso deixaria a polícia mais na merda do que ela já está.

- Você não sabe da missa a metade - disse Alex.

- Como assim?

- Aconteceu outra coisa depois do funeral. O irmão de Rosie Duff apareceu por lá. E fez questão de mostrar para mim e para Esquisito que tinha ido lá para comemorar.

Lynn ficou chocada.

- Hum, Alex. Que horror. Para todos vocês. Coitado dele. Vai ver que não consegue esquecer até hoje.

- E isso não é tudo. Ele nos contou que a polícia de Fife perdeu as provas ligadas ao caso de Rosie. As provas com as quais estávamos contando para fazer o teste de DNA que nos inocentaria.

- Você está brincando.

- Quem dera.

Lynn sacudiu a cabeça.

- Mais um motivo para você ir falar com Lawson.

- E você acha que Lawson vai gostar de eu ir lá jogar isso na cara dele?

- Não estou nem aí para o que ele vai gostar ou não. Você precisa saber direitinho o que está acontecendo. Se realmente tem alguém atrás de vocês, pode estar sendo movido pela constatação de que a justiça não vai ser feita novamente. Ligue para Lawson amanhã de manhã. Marque um horário com ele. Eu vou ficar mais tranquila.

Alex rolou para fora da cama e começou a se despir.

- Se é isso o que você precisa, considere feito. Só não coloque a culpa em mim se ele por acaso decidir que o sujeito que está atrás da gente está certo e decidir me prender.

Para a surpresa de Alex, quando ele ligou para agendar um encontro com o subchefe de polícia Lawson, a secretária marcou para aquela mesma tarde. Ele ainda teve tempo de ir para o escritório por algumas horas, o que o deixou mais fora de controle do que estava antes. Gostava de estar sempre atento aos negócios, não porque desconfiasse dos seus funcionários, e sim porque ficar sem saber o que estava acontecendo o deixava inquieto. Mas estava completamente por fora nos últimos tempos e precisava correr atrás do tempo perdido. Copiou uma pilha de memorandos e relatórios em um CD, torcendo para conseguir arranjar um tempinho em casa mais tarde para se atualizar. Pegou um sanduíche para comer no carro e partiu de volta para Fife.

Foi conduzido a um escritório vazio, que media aproximadamente o dobro do seu. Os privilégios da hierarquia eram sempre mais visíveis nos cargos públicos, pensou ele, observando a mesa enorme, o mapa da região elaboradamente enquadrado na parede e as comendas de James Lawson ostensivamente exibidas. Sentou-se na cadeira reservada aos visitantes, achando graça ao perceber como ela era bem mais baixa do que a do outro lado da mesa.

Não precisou esperar por muito tempo. A porta atrás dele se abriu e Alex ficou de pé. O passar dos anos não fora generoso com Lawson, pensou ele. A sua pele estava enrugada e desgastada, com duas manchas nas bochechas, as veias rompidas - a marca de um homem que bebeu demais ou que passou muito tempo exposto aos inclementes ventos de Fife. Os olhos, no entanto, continuavam espertos, como Alex pôde notar enquanto Lawson o observava dos pés a cabeça.

- Sr. Gilbey - disse ele. - Lamento tê-lo feito esperar.

- Tudo bem. Sei que o senhor deve estar ocupado. Agradeço por ter me encaixado tão depressa.

Lawson passou por ele sem oferecer a mão para um cumprimento cordial.

- Sempre fico interessado quando alguém ligado a uma investigação deseja me ver. - Acomodou-se na sua cadeira de couro, ajeitando a jaqueta do seu uniforme.

- Vi o senhor no funeral de David Kerr - disse Alex.

- Tive que resolver umas coisas de trabalho lá em Glasgow. Aproveitei para prestar os meus últimos respeitos.

- Eu não sabia que a polícia de Fife tinha tanto respeito por Mondo - retrucou Alex.

Lawson fez um gesto impaciente com uma das mãos.

- Suponho que a sua visita esteja relacionada com a reabertura do caso de Rosemary Duff, não é?

- Indiretamente, sim. Como vai a investigação? Já fizeram algum progresso?

Lawson parecia irritado com as perguntas.

- Não posso discutir assuntos operacionais de um caso em processo de investigação justamente com alguém na sua posição.

- E qual é exatamente a minha posição? Será que o senhor ainda me considera um suspeito? - Alex era mais corajoso do que a sua versão de vinte e um anos e não ia deixar um comentário como aquele passar impunemente.

Lawson remexeu em uns papéis sobre a mesa.

- O senhor é uma testemunha.

- E as testemunhas não podem saber o que está acontecendo? Vocês não hesitam em dar notícias para a imprensa quando fazem algum progresso. Será que eu tenho menos direitos do que um jornalista?

- Eu também não falei nada sobre o caso de Rosie Duff com a imprensa - respondeu Lawson secamente.

- Será que é porque o senhor perdeu as provas?

Lawson olhou longa e fixamente para Alex.

- Sem comentários.

Alex balançou a cabeça.

- Isso não basta. Depois do que nós passamos, vinte e cinco anos atrás, acho que mereço algo mais. Rosie Duff não foi a única vítima naquela época, e o senhor sabe muito bem disso. Talvez seja a hora de eu procurar a imprensa e contar que continuo sendo tratado como um criminoso pela polícia depois de todos estes anos. E, aproveitando a viagem, eu podia contar como a polícia de Fife arruinou a revisão do caso de Rosie Duff perdendo uma prova crucial, que teria me inocentado e possivelmente apontado o verdadeiro assassino.

A ameaça deixou Lawson visivelmente desconfortável.

- Eu não lido bem com intimidações, Sr. Gilbey.

- Nem eu. Não mais. O senhor tem certeza de que quer se ver nas páginas de tudo quanto é jornal como o tira que invadiu o último adeus de uma família consternada ao seu filho assassinado? O mesmo filho cuja inocência continuava duvidosa, graças à incompetência do senhor e da sua equipe?

- O senhor não tem necessidade nenhuma de tomar esta atitude - disse Lawson.

- Ah, não? Pois eu acho que tenho toda a necessidade, sim. O senhor deveria estar conduzindo a revisão de um caso não resolvido aqui. Eu sou uma testemunha-chave. Eu sou o sujeito que encontrou o corpo. E, no entanto, nenhum policial de Fife entrou em contato comigo até agora. Isso não me parece dedicação, sabe? E agora eu ainda fico sabendo que o senhor não consegue sequer manter um saco de provas em segurança. Talvez eu devesse estar conversando com o oficial encarregado da investigação, e não com um burocrata que ainda se deixa influenciar pelo passado.

Lawson retesou o rosto.

- Sr. Gilbey, é verdade que tivemos um probleminha com as provas desse caso. Em algum momento, nos últimos vinte e cinco anos, as roupas de Rosie Duff se perderam. Ainda estamos tentando recuperá-las, mas, até agora, só conseguimos localizar aquele cardigã que foi encontrado longe da cena do crime. E não havia nenhum material biológico nele. Nenhuma das roupas que poderiam ser suscetíveis às técnicas forenses modernas está disponível para nós. Então, no momento, estamos de pés e mãos atados. Na verdade, a oficial encarregada do caso queria ter conversado com o senhor antes, para rever o seu depoimento antigo. Será que poderíamos agendar este encontro?

- Meu Deus do céu - disse Alex. - Finalmente vocês querem conversar comigo agora? O senhor não está entendendo, não é? Nós ainda estamos na mira. O senhor já parou para pensar que dois de nós quatro foram assassinados no último mês?

Lawson suspendeu as sobrancelhas.

- Dois?

- Ziggy Malkiewicz também morreu em circunstâncias suspeitas. Um pouco antes do Natal.

Lawson apanhou um bloco e abriu uma caneta-tinteiro.

- Isso é novidade para mim. Onde foi que isso aconteceu?

- Em Seattle, onde ele já estava morando há doze anos. Alguém plantou uma bomba de incêndio na casa dele. Ziggy morreu dormindo. O senhor pode verificar com a polícia local. O único suspeito que eles têm até agora é o parceiro de Ziggy, o que é ridiculamente absurdo.

- Sinto muito pelo Sr. Malkiewicz...

- Dr. Malkiewicz - interrompeu Alex.

- Pelo Dr. Malkiewicz - corrigiu-se Lawson. - Mas continuo sem perceber de que modo estas duas mortes estão ligadas ao assassinato de Rosie Duff.

- Foi exatamente por isso que eu quis conversar com o senhor hoje. Para explicar por que eu acho que existe uma ligação.

Lawson recostou-se na cadeira, entrelaçando os dedos.

- Sou todo ouvidos, Sr. Gilbey. Estou interessado em qualquer coisa que possa iluminar um pouco a escuridão em que nos encontramos.

Alex contou sobre as coroas de flores. Sentado ali, na sede da polícia, o seu relato lhe soou tolo. Podia sentir o ceticismo de Lawson enquanto se esforçava para dar peso a uma ocorrência tão banal quanto aquela.

- Eu sei que parece paranoia minha - concluiu ele. - Mas Tom Mackie está tão convencido disso que vai esconder a sua família e sumir também. Isso não é uma coisa que você faz sem pensar.

Lawson retribuiu com um sorriso amargo.

- Ah, sim. O Sr. Mackie. Isso está me cheirando a "drogas demais na década de setenta", sabe? Pelo que eu sei, o uso de alucinógenos pode causar paranoia a longo prazo.

- O senhor não acha que devemos levar isso a sério? Dois dos nossos amigos morreram em circunstâncias suspeitas. Dois sujeitos que levavam vidas respeitáveis, sem ligações criminosas. Que, aparentemente, não tinham inimigos. E, nos dois funerais, aparece uma coroa fazendo uma alusão direta a uma investigação de homicídio em que os dois foram considerados suspeitos?

- Nenhum de vocês foi tachado publicamente como suspeito. Fizemos o possível para proteger vocês quatro.

- Tudo bem. Mas mesmo depois disso, um dos seus oficiais morreu por causa da pressão que foi colocada sobre nós.

Lawson empertigou-se, bruscamente.

- Que bom que o senhor se lembra disso. Porque aqui neste prédio ninguém se esqueceu.

- Tenho certeza disso. Barney Maclennan foi a segunda vítima do assassino. E eu acho que Ziggy e Mondo foram vítimas também. Indiretamente, é claro. Mas eu acho que alguém os matou porque queria se vingar. E, se foi isso mesmo, então o meu nome está na lista também.

Lawson suspirou.

- Compreendo por que o senhor está reagindo assim. Mas não creio que alguém tenha embarcado em uma programação deliberada para se vingar de vocês quatro. Posso garantir que a polícia de Glasgow está conduzindo uma linha de investigação promissora que não tem nada a ver com o assassinato de Rosie Duff. Coincidências acontecem e estas mortes são a prova disso. Uma coincidência, nada mais. As pessoas não agem desta maneira, Sr. Gilbey. Ninguém esperaria vinte e cinco anos para se vingar.

- E os irmãos de Rosie? Eles estavam doidos para dar o troco na gente naquela época. O senhor me disse que chegou a alertá-los. Que os convenceu a não fazer nada para não causar mais sofrimento à mãe deles. A mãe ainda está viva? Será que eles estão livres para se vingar agora? Será que foi por isso que Brian Duff apareceu lá no funeral de Mondo para implicar com a gente?

- É bem verdade que o Sr. e a Sra. Duff já morreram. Mas acho que o senhor não tem com o que se preocupar em relação aos Duff. Estive com Brian há algumas semanas. Não acho que ele estava muito a fim de vingança, não. E Colin trabalha no Golfo. Ele esteve em casa para o Natal, mas não estava no país quando David Kerr morreu. - Lawson inspirou profundamente. - Ele se casou com uma oficial colega minha, Janice Hogg. A ironia é que foi ela quem salvou o Sr. Mackie quando ele foi atacado pelos dois irmãos. Ela abandonou a polícia depois do casamento, mas estou certo de que não encorajaria o marido a cometer uma infração deste porte. Com relação a isto, o senhor pode ficar tranquilo.

Alex reconheceu a convicção na voz de Lawson, mas não se sentiu muito aliviado.

- Brian não foi exatamente amigável ontem - disse ele.

- Sei, imagino que não. Mas, vamos e venhamos, nem Brian nem Colin têm o perfil do que chamaríamos um criminoso sofisticado. Se eles decidissem matar você e os seus amigos, provavelmente teriam adentrado em um bar lotado e estourado os seus miolos com uma espingarda. Planejamento elaborado nunca foi o estilo deles - concluiu Lawson, secamente.

- Então ficamos sem nenhum suspeito. - Alex revirou-se na cadeira, pronto para levantar.

- Em termos - disse Lawson baixinho.

- Como assim? - perguntou Alex, tomado de apreensão.

Lawson parecia arrependido, como se tivesse falado demais.

- Deixa para lá, eu só estava pensando alto.

- Peraí. O senhor não pode me dispensar assim. O que quis dizer com "Em termos"? - Alex inclinou-se, como se estivesse prestes a voar sobre a mesa e agarrar Lawson pelas suas imaculadas lapelas.

- Eu não devia ter dito isso. Desculpe, estou só pensando como um policial.

- Mas não é para isso que o senhor é pago? Vamos lá, pode desembuchar.

Os olhos de Lawson oscilaram de um lado para o outro, como se ele estivesse procurando uma saída alternativa, que não o obrigasse a ter de passar por Alex. Ele passou a mão sobre o lábio superior e suspirou profundamente.

- O filho de Rosie - disse ele.


33

Lynn olhou estarrecida para Alex, sem parar de ninar gentilmente a filha no colo.

- Repete - pediu ela.

- Rosie teve um filho. Ninguém ficou sabendo na época. Sabe-se lá por quê, o legista não percebeu na autópsia. Lawson mesmo admitiu que o sujeito já estava mais para lá do que para cá, era velho e chegado numa bebida. Mas, em sua defesa, ele disse que era possível que a ferida tivesse escondido qualquer vestígio de que ela dera à luz. A família, obviamente, não quis dizer nada porque tinham certeza de que se as pessoas ficassem sabendo que Rosie tinha um filho ilegítimo, ela seria instantaneamente retratada como uma mãe precoce qualquer. Ela passaria de vítima inocente a uma garota que teve o que bem mereceu. Eles estavam desesperados para proteger o nome de Rosie. Não podemos culpá-los por isso.

- Eu não culpo mesmo. Basta ver como a imprensa pintou vocês; qualquer um teria feito a mesma coisa. Mas como foi que ele surgiu agora?

- Segundo Lawson, ele foi adotado. Ano passado, ele resolveu pesquisar sobre a sua mãe verdadeira. Acabou encontrando a mulher que cuidava do abrigo onde Rosie ficou durante a gravidez e foi então que ele descobriu que não ia ter um reencontro familiar afinal.

Davina gemeu e Lynn colocou o seu dedo mindinho na boca da filha, sorrindo para ela.

- Deve ter sido horrível para ele. Tem que ter muita coragem para procurar a mãe verdadeira. Afinal, ela já te rejeitou uma vez, sabe Deus por quê, e você está se colocando numa posição em que pode ser rechaçado novamente. Mas você precisa, ao mesmo tempo, nutrir a esperança de que a mãe vai recebê-lo de braços abertos.

- Pois é. E o pior deve ser descobrir que alguém o privou desta oportunidade vinte e cinco anos atrás. - Alex inclinou-se para a frente. - Posso segurá-la um pouquinho?

- Claro. Ela acabou de mamar, então deve dormir um pouquinho. - Lynn afrouxou delicadamente as suas mãos sob a filha, passando-a para Alex como se ela fosse a coisa mais valiosa e frágil do mundo. Ele deslizou a mão por baixo do pescoço delicado do bebê e o colocou no colo. Davina resmungou baixinho, depois se acomodou. - Então Lawson acha que o filho dela está atrás de você?

- Lawson não acredita que tenha alguém atrás de mim. Ele acha que eu sou um doido paranoico fazendo tempestade em copo d’água. Ele ficou extremamente constrangido por ter deixado escapar essa história do filho de Rosie e ficou tentando me convencer de que ele era incapaz de matar uma mosca. O nome dele é Graham, por sinal. Lawson não quis me dar o sobrenome de jeito nenhum. Ao que parece, ele trabalha com tecnologia de informação. Calmo, estável, um sujeito normal - disse Alex.

Lynn balançou a cabeça.

- Não consigo acreditar que Lawson não está dando a devida importância. Quem ele acha que mandou as coroas, então?

- Ele não sabe, e nem quer saber. Ele só está preocupado com a sua super-revisão que está indo por água abaixo.

- Eles são incapazes de administrar uma limpeza, quanto mais uma investigação de assassinato. Como foi que ele explicou a perda de uma caixa inteira de provas?

- Eles não perderam a caixa toda. Eles ainda têm o cardigã. Ao que parece, foi encontrado separadamente. Jogado sobre o muro, no jardim de um fulano qualquer. Foi submetido aos testes depois do resto das roupas de Rosie, vai ver que foi por isso que acabou separado do resto do material.

Lynn franziu a testa.

- Foi encontrado depois? Não teve uma segunda busca na casa de vocês? Eu me lembro vagamente do Mondo reclamando que eles reviraram tudo de novo, semanas após o assassinato.

Alex esforçava-se para lembrar.

- Depois da primeira busca... é, eles voltaram depois do Ano-Novo. Rasparam tinta das paredes e do teto. E queriam saber se nós tínhamos feito alguma reforma na casa. - Alex bufou. - Até parece. E Mondo disse que ouviu um deles falando sobre um cardigã. Ele achou que estavam procurando alguma peça de roupa nossa. Mas não era isso, é claro! Eles estavam falando sobre o cardigã de Rosie - concluiu ele, triunfante.

- Então devem ter encontrado alguma tinta no cardigã dela - disse Lynn, pensativa. - Por isso que eles estavam colhendo amostras.

- Sim, mas eles não conseguiram nada na nossa casa. Caso contrário, estaríamos ainda mais ferrados.

- Será que eles fizeram uma nova análise? Lawson disse alguma coisa?

- Não especificamente. Ele só comentou que eles não tinham nenhuma das roupas que poderiam ser submetidas a análise.

- Isso é ridículo. É possível fazer muitas coisas com tinta hoje em dia. Eu consigo muito mais informação dos laboratórios agora do que conseguia há três ou quatro anos. Eles deveriam estar testando isso. Você tem que voltar lá e falar com ele.

- Mas não adianta nada fazer uma análise se eles não tiverem nada para comparar com o resultado. Lawson não vai tomar providências só porque eu pedi.

- Mas você não disse que ele queria resolver este caso?

- Lynn, se isso fosse adiantar alguma coisa, eles já teriam feito.

Lynn corou com uma súbita raiva.

- Meu Deus, Alex, escuta o que você está falando. Você vai ficar sentado esperando outra bomba estourar em cima da gente? O meu irmão morreu. Alguém invadiu a casa dele na maior cara de pau e o matou. A única pessoa que podia te ajudar acha que você está paranoico. Eu não quero que você morra, Alex. Não quero que a nossa filha cresça sem ter uma lembrança do pai.

- E você acha que eu quero isso? - Alex apertou a filha contra o peito.

- Então para de ser tão frouxo. Se você e Esquisito estiverem certos, a pessoa que matou Ziggy e Mondo vai vir atrás de vocês dois. O único jeito de vocês se safarem é o assassino de Rosie ser finalmente descoberto. Já que Lawson não vai se mexer, talvez você devesse tentar. Você tem a melhor motivação do mundo em seus braços agora.

Alex não podia negar. Estava à flor da pele desde o nascimento de Davina, o tempo todo impressionado com a profundidade dos seus sentimentos.

- Eu sou um fabricante de cartões, Lynn, não um detetive - protestou ele, desanimado.

Lynn lançou um olhar indignado para ele.

- E quantas vezes as falhas da justiça foram corrigidas por um zé-ninguém insistente?

- Não sei nem por onde começar.

- Você se lembra daquela série sobre ciência forense que passou na tevê uns anos atrás?

Alex resmungou. Nunca se deixara contaminar pelo fascínio que as tramas de suspense na televisão ou no cinema exerciam sobre a sua mulher. Normalmente, durante um especial de duas horas com Frost, Inspetor Morse ou Wexford, ele apanhava um bloco de papel e trabalhava algumas ideias para novos cartões.

- Vagamente - respondeu ele.

- Eu me lembro de um dos cientistas forenses dizendo que eles costumavam deixar algumas informações de fora em seus relatórios. Vestígios de provas que não puderam ser analisados, coisas assim. Se não vai servir para ajudar os investigadores, eles nem incluem no laudo. Acho que é para evitar que a defesa confunda a cabeça dos jurados.

- Tá, mas não sei em que isso pode nos ajudar. Mesmo que nós conseguíssemos ter acesso aos relatórios originais, não teríamos como saber o que ficou de fora, não é?

- Não. Mas talvez, se conseguíssemos localizar o sujeito que assinou o relatório, ele talvez pudesse lembrar de alguma coisa que desistiu de acrescentar naquela época por parecer pouco importante, mas que de repente pode ajudar a gente agora. Talvez ele tenha até guardado as anotações pessoais dele. - A raiva de Lynn transformara-se em entusiasmo. - O que você acha?

- Eu acho que os hormônios mexeram com o seu cérebro - disse Alex. - Você acha que se eu ligar para Lawson e perguntar quem assinou o relatório forense ele vai me dizer?

- Para você, é claro que não. - Lynn entortou os lábios, com cara de nojo. - Mas, para um jornalista...

- Os únicos jornalistas que eu conheço escrevem amenidades para os suplementos de domingo - ponderou Alex.

- Ué, liga para eles e pergunta se alguém tem um colega que possa te ajudar. - Lynn falou com um ar decisivo. Quando ela estava daquele jeito, não adiantava tentar discutir e Alex sabia disso. Mas, enquanto se resignava com a ideia de ter de sondar os seus contatos, teve uma ideia. Talvez ele pudesse matar dois coelhos com uma cajadada só. Obviamente, podia dar tudo errado. Mas só havia uma maneira de descobrir.

Estacionamentos de hospitais eram ótimos pontos de observação, pensou Macfadyen. Pródigos em idas e vindas, com várias pessoas sentadas dentro de seus carros, esperando. Boa iluminação, o que garantia ver a sua presa entrando e saindo. E ninguém prestava atenção em ninguém; era possível ficar lá durante horas a fio sem levantar suspeita. Exatamente o contrário das ruas residenciais, onde todo mundo quer saber da vida do outro.

Perguntava-se quando Gilbey poderia levar a filha para casa. Tentou ligar para o hospital para sondar, mas eles não colaboraram muito; limitaram-se a informar que o bebê passava bem. As pessoas responsáveis por crianças andavam muito cautelosas ultimamente.

O ressentimento que sentia pela filha de Gilbey era impressionante. Ninguém viraria as costas para aquela criança. Ninguém ia abandoná-la nas mãos de estranhos. Estranhos que a criariam em um estado permanente de ansiedade, de medo de fazer alguma coisa que despertasse uma ira arbitrária contra ela. Os seus pais não o haviam maltratado, não no sentido de agressões físicas. Mas deixaram que ele se sentisse constantemente carente, constantemente errado. E eles não haviam sequer hesitado em culpar o seu sangue ruim por todos os seus deslizes. Mas ele perdera muito mais do que carinho e amor. As histórias familiares que haviam lhe contado quando criança eram histórias de outras pessoas, não dele. Desconhecia a sua própria história.

Jamais poderia olhar-se no espelho e buscar uma semelhança com as feições de sua mãe. Jamais perceberia aquelas estranhas congruências que acontecem nas famílias, quando uma criança repete as reações dos seus pais. Estava à deriva, em um mundo isolado. A única família que lhe restara não queria saber dele.

E agora, para completar, a filha de Gilbey teria tudo o que lhe fora negado, apesar de o pai ter sido o responsável por tudo o que ele perdera. Macfadyen não se conformava com aquilo e a amargura roía as entranhas da sua alma ressequida. Não era justo. Aquela criança não merecia ir para um lar seguro, cheio de amor.

Estava na hora de começar a fazer planos.

Esquisito beijou cada um de seus filhos e viu-os entrar no furgão da família. Não sabia quando os veria novamente e ter de se despedir naquelas circunstâncias deixou-o com um vazio no peito. Mas ele sabia que aquela dor era mínima se comparada ao que ele sentiria se não fizesse nada e, com sua omissão, visse algo acontecer aos seus filhos. Bastavam algumas horas de carro e estariam salvos na montanha, protegidos pela barricada de um grupo evangélico que morava lá, cujo líder fora diácono na igreja de Esquisito. O governo federal não encontraria os seus filhos lá; muito menos um assassino vingativo fazendo justiça com as próprias mãos.

Uma parte dele achava que estava exagerando, mas ele não estava preparado para lhe dar ouvidos. Anos de conversas com Deus haviam lhe rendido uma certa segurança para tomar decisões. Esquisito envolveu a mulher em seus braços e a apertou contra o peito.

- Obrigado por levar tudo isso a sério - agradeceu ele.

- Sempre levei você a sério, Tom - murmurou ela, acariciando a sua camisa de seda. - Quero que você me prometa que vai cuidar tão bem de si mesmo quanto está cuidando de nós.

- Só preciso dar um telefonema e já estou de saída também. Vou para um lugar onde não vai ser fácil me seguir ou me encontrar. Vamos ficar quietinhos por um tempo, confiar em Deus, e tenho certeza de que vamos superar esta ameaça. - Ele se inclinou e beijou a mulher, longa e ardentemente. - Vá com Deus.

Deu um passo para trás e ficou observando enquanto ela entrava no carro e dava partida no motor. As crianças acenaram para ele, animadas com a perspectiva de uma aventura que lhes daria férias da escola. O clima ingrato das montanhas não seria nada fácil, mas sabia que tudo daria certo. Acompanhou o furgão até o fim da rua e depois voltou depressa para dentro de casa.

Um colega de Seattle lhe arrumara um detetive particular de confiança, bem discreto. Esquisito ligou para o celular dele e esperou.

- Alô, aqui é Pete Makin - disse a voz do outro lado da linha, com um sotaque americano.

- Sr. Makin? O meu nome é Tom Mackie. Reverendo Tom Mackie. Quem me passou o número do senhor foi o reverendo Polk.

- Eu realmente aprecio um pastor que arruma trabalho para o seu rebanho - disse Makin. - Em que posso ajudá-lo, reverendo?

- Preciso descobrir quem enviou uma determinada coroa de flores para um funeral a que eu compareci recentemente, aí na sua área. Isso é possível?

- Acho que sim. O senhor tem algum detalhe específico para me informar?

- Não sei o nome do florista que fez o arranjo, mas era bem sofisticado. Rosas brancas e alecrim. Estava escrito no cartão "Lembrança de Rosemary".

- "Lembrança de Rosemary"... - repetiu Makin. - Tem razão, é meio estranho mesmo. Nunca vi nada parecido. Quem fez o arranjo com certeza deve se lembrar. O senhor pode me informar quando e onde ocorreu o funeral?

Esquisito deu as informações, soletrando cuidadosamente o nome de Ziggy.

- De quanto tempo você vai precisar para me dar uma resposta?

- Bom, isso depende. A funerária talvez possa me passar uma lista dos floristas que normalmente trabalham com eles. Mas se não for possível, vou ter que vasculhar uma área relativamente ampla. Isso pode demorar algumas horas ou alguns dias. Se o senhor me passar o seu telefone, posso lhe manter informado.

- Vai ser meio complicado me achar. Mas posso dar um jeito de te ligar todos os dias, pode ser?

- Por mim, tudo bem. Mas vou precisar de um adiantamentozinho para começar o serviço.

Esquisito deu um sorriso irônico. Ultimamente, não se podia confiar nem nos sujeitos de batina.

- Mando para você. De quanto acha que vai precisar?

- Quinhentos dólares são o suficiente. - Makin passou os detalhes do pagamento para Esquisito. - Assim que estiver com o dinheiro, começo a trabalhar. Obrigado, reverendo.

Esquisito desligou, estranhamente confiante após aquela conversa. Pete Makin não perdera tempo querendo saber o porquê daquela investigação, nem tentou valorizar o seu serviço tornando-o mais difícil do que era na realidade. Era um homem confiável, pensou. Subiu as escadas e trocou de roupa em seu quarto, despindo os hábitos clericais e enfiando-se em uma calça jeans, uma camisa de flanela bege e uma jaqueta de couro leve. Já tinha arrumado a sua bolsa; a única coisa que faltava apanhar era a Bíblia que ficava na mesa de cabeceira. Colocou-a num dos compartimentos da bolsa, contemplou o quarto familiar por alguns momentos e fechou os olhos para uma breve oração.

Uma hora depois, estava saindo do estacionamento sem limite de tempo do aeroporto de Atlanta. Chegara bem na hora do voo para San Diego. Naquela mesma noite, já teria cruzado a fronteira e estaria hospedado anonimamente em um hotel chinfrim em Tijuana, México. Aquele não era o tipo de lugar que ele escolheria normalmente, o que o tornava ainda mais seguro.

Fosse lá quem estivesse atrás dele, não o encontraria justo ali.

Jackie olhou fixamente para Alex.

- Ela não está aqui.

- Eu sei disso. É com você mesma que eu quero falar.

Ela bufou, com os braços cruzados sobre o peito. Desta vez, estava usando uma jaqueta de couro e uma camiseta preta colada no corpo. Um piercing de diamante brilhava em sua sobrancelha.

- Veio me colocar contra a parede, né?

- O que te faz pensar que isso é da minha conta? - perguntou Alex, friamente.

Ela arqueou as sobrancelhas.

- Você é homem, escocês, e ela é da sua família.

- Esta sua arrogância não vai te levar a lugar nenhum. Olha, estou aqui porque eu acho que podemos trocar uns favores.

Jackie inclinou a cabeça, adotando um ar insolente.

- Não transo com homens. Você ainda não sacou isso?

Exasperado, Alex virou-se para ir embora. Perguntou-se se valia a pena arriscar a ira de Lynn para fazer aquilo.

- Estou perdendo o meu tempo aqui. Só achei que você poderia gostar de uma sugestão para se livrar da polícia.

- Peraí. Você está me oferecendo uma saída?

Alex estacou, com um dos pés na escada.

- Não é por causa do seu charme natural, Jackie. É porque também vai me dar paz de espírito.

- Mesmo achando que eu posso ter matado o seu cunhado.

Alex resmungou.

- Pode acreditar, eu dormiria muito melhor se realmente conseguisse acreditar nisso.

Jackie reagiu, impaciente.

- Ah, é, né? Porque aí a sapatão ia ter o que merece.

Irritado, Alex a interrompeu.

- Será que dá para colocar os seus preconceitos de lado por cinco minutos? Eu só ficaria feliz se você fosse mesmo a assassina porque aí eu estaria seguro.

Jackie inclinou a cabeça, intrigada apesar da sua resistência.

- Isso é uma coisa muito estranha de se dizer.

- Não quer conversar sobre isso aí dentro?

Ela fez um gesto vago para a porta e deu um passo para trás.

- É melhor você entrar. Como assim, "seguro"? - perguntou ela enquanto ele se acomodava na cadeira mais próxima.

- Tenho uma teoria sobre a morte de Mondo. Não sei se você sabe, mas um outro amigo meu foi assassinado em circunstâncias suspeitas algumas semanas atrás.

Jackie fez um gesto afirmativo com a cabeça.

- Hélène comentou. Foi um cara que estudou com você e David na universidade, não foi?

- Nós crescemos juntos. Nós quatro. Éramos melhores amigos na escola e fomos para a universidade juntos. Uma noite, quando voltávamos bêbados de uma festa, nos deparamos com uma moça...

- Eu sei disso também - interrompeu Jackie.

Alex ficou surpreso ao constatar o quão aliviado se sentia por não ter de relembrar todos os detalhes que se seguiram à morte de Rosie.

- Ótimo. Então você já sabe da história. Bem, sei que isso pode parecer maluquice, mas eu acho que Mondo e Ziggy foram assassinados por alguém que está tentando se vingar pela morte de Rosie Duff. A garota que morreu - completou ele.

- Por quê? - Mesmo sem querer, Jackie estava compenetradíssima, inclinada para a frente com os cotovelos apoiados nos joelhos. A perspectiva de uma boa história era forte o bastante para colocar a sua hostilidade em segundo plano.

- Pode até parecer insignificante - disse Alex e, em seguida, contou-lhe sobre as coroas de flores. - O nome dela era Rosemary - concluiu ele.

Jackie levantou as sobrancelhas.

- Credo, que troço sinistro - disse ela. - Nunca vi nenhuma coroa assim. Fica meio complicado de entender se você não capta a referência ao nome da garota. Estou vendo agora por que você está tão grilado.

- É, mas a polícia não viu. Eles me trataram como se eu fosse uma velhinha com medo do escuro.

Jackie grunhiu, debochada.

- Bom, nós dois sabemos como a polícia é esperta. E então, o que você acha que eu posso fazer?

Alex ficou constrangido.

- Lynn imaginou que se conseguíssemos descobrir quem realmente matou Rosie naquela época, a pessoa que está tentando se vingar da gente ia ter que desistir. Antes que seja tarde demais para mim e para Tom Mackie.

- Faz sentido. Você não consegue convencer a polícia a reabrir o caso? Com a tecnologia que eles têm atualmente...

- O caso já foi reaberto. A polícia de Fife está fazendo uma revisão dos casos não resolvidos e este é um deles. Mas eles estão no maior impasse, principalmente porque perderam as provas. Lynn imaginou que se nós conseguíssemos encontrar o cientista forense que assinou o laudo original, ele poderia informar se deixou alguma coisa de fora do relatório.

Jackie concordou com um gesto de cabeça.

- Às vezes eles deixam coisas de fora mesmo, para evitar que a defesa tenha vantagem. Então você quer que eu encontre esse sujeito e entreviste ele?

- Algo assim. Achei que você poderia fingir que estava fazendo uma matéria minuciosa sobre o caso, com enfoque na investigação daquela época. Será que você não consegue convencer a polícia a te dar acesso ao material que eles se recusaram a me mostrar?

Ela deu de ombros.

- Vale a pena tentar.

- Então, você pode fazer isso?

- Vou ser franca com você, Alex. Eu não tenho o menor interesse em salvar a sua pele. Mas você está certo: eu também tenho muito a perder. Te ajudando a descobrir quem matou David, eu tiro o meu da reta. E então, com quem eu devo falar?


34

O recado na mesa de James Lawson dizia apenas: "A equipe da revisão dos casos gostaria de vê-lo assim que possível." Não parecia ser notícia ruim. Quando entrou na sala da sua equipe, com um ar de otimismo cuidadoso, percebeu imediatamente que tinha razão, ao ver uma garrafa de uísque Famous Grouse e meia dúzia de copinhos de plástico na mão dos detetives. Lawson abriu um sorriso.

- Isso aqui está me cheirando a comemoração - disse ele.

O detetive-inspetor Robin Maclennan deu um passo à frente, oferecendo-lhe o uísque.

- Acabei de receber notícias da polícia de Manchester. Eles prenderam um sujeito, suspeito de estupro há algumas semanas em Rochdale. Quando verificaram os resultados do exame de DNA no computador, foi batata.

Lawson estacou.

- Lesley Cameron?

Robin concordou com a cabeça.

Lawson apanhou a dose de uísque e suspendeu o seu copo em um brinde silencioso. Assim como o caso de Rosie Duff, ele jamais esqueceria o assassinato de Lesley Cameron. Aluna da universidade, ela havia sido estuprada e estrangulada quando voltava para o seu alojamento. Assim como com Rosie, jamais encontraram o assassino. Durante algum tempo, os detetives chegaram a tentar estabelecer uma relação entre os dois casos, mas não havia semelhanças suficientes para justificar uma ligação entre eles. Não bastava alegar que não houvera mais nenhum estupro seguido de morte em St. Andrews durante aquele período. Trabalhara como detetive assistente naquela época e se lembrava bem da polêmica. Pessoalmente, jamais acreditara na teoria que os dois crimes estavam de alguma forma relacionados.

- Lembro-me muito bem desta história - disse ele.

- Submetemos as roupas da vítima ao exame de DNA, mas não tivemos nenhum resultado do sistema - continuou Robin e o seu rosto esquálido revelou, em um sorriso, rugas previamente desconhecidas. - Então eu deixei de lado por um tempo e continuei verificando os infratores sexuais subsequentes. Não deu em nada. Mas aí, recebemos esta ligação da polícia de Manchester. Parece que temos um resultado.

Lawson deu um tapinha no ombro do detetive.

- Bom trabalho, Robin. Você vai até lá para o interrogatório? - perguntou ele.

- Com certeza. Mal posso esperar para ver a cara do canalha quando ele souber que eu quero interrogá-lo.

- Estas são boas notícias mesmo. - Lawson sorriu para o resto da equipe. - Viram só? Basta uma tacada de sorte e vocês chegam lá. Como vocês estão indo? Karen, você conseguiu alguma coisa com o ex-namorado de Rosie Duff? O tal que a gente acha que é o pai de Macfadyen?

Karen fez um gesto com a cabeça.

- John Stobie. Os policiais locais foram dar uma palavrinha com ele. E eles também conseguiram um resultado, de certa forma. Parece que Stobie tem o álibi perfeito. Ele quebrou a perna em um acidente com a sua moto no final de novembro de 78. Na noite em que Rosie foi assassinada, ele estava usando um gesso da coxa até o pé. Ou seja, jamais poderia estar correndo em St. Andrews no meio de uma tempestade de neve.

Lawson suspendeu as sobrancelhas.

- Qualquer um podia ver que Stobie tinha ossos frágeis mesmo. Eles devem ter verificado o prontuário médico, não é?

- Stobie deu permissão. E parece que ele estava falando a verdade mesmo. Então, podemos colocar um ponto final nesta história.

Lawson virou-se disfarçadamente, separando-se com Karen dos outros.

- Tudo bem, Karen. - Ele suspirou. - Talvez eu devesse colocar Macfadyen em contato com Stobie. Talvez ele até me desse um descanso.

- Ele ainda está perturbando o senhor?

- Algumas vezes por semana. Estou começando a achar que seria melhor se ele não tivesse aparecido do nada.

- Bom, eu ainda preciso conversar com as outras três testemunhas - disse Karen.

Lawson mudou de expressão.

- Na verdade, são só duas agora. Ao que parece, Malkiewicz morreu em um incêndio bem suspeito, um pouco antes do Natal. E Alex Gilbey enfiou na cabeça que, agora que David Kerr também foi assassinado, tem um justiceiro maluco solto por aí, matando um por um.

- O quê?

- Ele veio me procurar uns dias atrás. É paranoia pura e eu não quis encorajá-lo. Então, é melhor você deixar as testemunhas pra lá. Não acho que vai ajudar muito, depois de tanto tempo.

Karen pensou em discordar. Não que ela imaginasse que algo significante fosse resultar das suas conversas, mas uma detetive determinada como ela não ficava à vontade com a ideia de deixar uma possibilidade inexplorada.

- O senhor não acha que ele pode ter razão? Quer dizer, é coincidência demais, né? Primeiro, Macfadyen aparece e descobre que não temos a menor esperança de encontrar o assassino da mãe. Depois, dois dos suspeitos originais do caso são assassinados.

Lawson girou os olhos.

- Você está enfornada demais nesta sala de investigação, Karen. Está começando a alucinar. Lógico que Macfadyen não está por aí, dando uma de Charles Bronson. Ele é um profissional respeitável, pelo amor de Deus, não um psicopata. E não vamos insultá-lo com um interrogatório sobre dois crimes que sequer aconteceram na nossa circunscrição.

- Está bem, senhor - suspirou Karen.

Lawson apoiou a mão no braço dela, em um gesto paternal.

- Vamos esquecer um pouquinho de Rosie Duff por enquanto, está bem? Não estamos chegando a lugar algum. - Lawson voltou para o grupo. - Robin, a irmã de Lesley Cameron não é especialista em traçar perfis de criminosos?

- Sim, senhor. Dra. Fiona Cameron. Ela esteve envolvida com o caso de Drew Shand há alguns anos, em Edimburgo.

- Estou me lembrando. Bom, talvez você devesse fazer uma visitinha. Avisar a ela que estamos investigando um suspeito. E não deixe de avisar a imprensa também. Mas só depois de falar com a dra. Cameron. Não quero que ela fique sabendo primeiro pelos jornais. - Era claramente o fim daquela conversa. Lawson terminou o seu uísque e dirigiu-se para a porta. Estacou sob o portal e virou-se para trás. - Bom trabalho, Robin. Isso é bom para todos nós. Obrigado.

Esquisito empurrou o prato sobre a mesa. Comida engordurada para turistas, e com porções tão generosas que poderiam alimentar uma família inteira de mexicanos pobres por uns dois dias, pensou ele, sentido. Não suportava o fato de ter sido bruscamente arrancado da sua rotina. Todas as coisas que tornavam a sua vida agradável pareciam um sonho distante agora. E o conforto que podia ser extraído somente da fé tinha lá os seus limites. Era uma prova, se algum dia precisasse dela, de que estava aquém dos seus próprios ideais.

Enquanto o garçom retirava os resquícios do seu especial de burrito, Esquisito pegou o celular e ligou para Pete Makin. Após os cumprimentos iniciais, ele foi direto ao assunto.

- Conseguiu alguma coisa? - perguntou ele.

- Só consegui eliminar algumas possibilidades. A funerária me deu o nome das três lojas que normalmente trabalham para eles. Mas nenhuma delas montou o tal arranjo que o senhor descreveu para mim. E todas concordaram que parece estranho mesmo, que não é comum. Seria algo que eles com certeza se lembrariam se tivesse sido encomendado.

- E agora, então?

- Bom - rateou Makin. - Acho que temos uns cinco ou seis floristas aqui nas imediações. Eu vou checar todos eles, ver se descubro alguma coisa. Mas vai levar um dia ou dois. Amanhã, tenho que comparecer ao tribunal, vou depor em um caso de fraude. Pode ser que não dê tempo. Mas pode ficar tranquilo, reverendo. No dia seguinte, mando bala.

- Obrigado por ser tão direto, Sr. Makin. Volto a ligar daqui a alguns dias, para ver se o senhor já tem alguma novidade. - Esquisito guardou o celular de volta no bolso. Ainda não tinha chegado ao fim. Não estava sequer perto.

Jackie colocou pilhas novas no seu gravador, verificou se tinha canetas na bolsa e depois partiu em seu carro. Ficara agradavelmente surpresa com a boa vontade do assessor de imprensa da polícia, para quem ela ligou após a visita de Alex.

Já pensara em tudo. Disse que estava escrevendo uma matéria para uma revista importante, comparando os métodos usados pela polícia em uma investigação de homicídio há vinte e cinco anos com os atuais. E que chegara à conclusão de que a melhor maneira de abordar os métodos investigativos seria aproveitar uma revisão de casos não solucionados, como a que a polícia de Fife estava fazendo. Deste modo, ela estaria lidando com um oficial completamente ciente de todos os detalhes do caso. Enfatizou que não visava criticar a polícia; a matéria seria apenas sobre as mudanças no procedimento e na prática, levando em consideração as descobertas científicas e as mudanças na lei.

O assessor de imprensa ligou para ela no dia seguinte.

- Você teve sorte. Temos um caso de exatamente vinte e cinco anos atrás. E por coincidência, o nosso subchefe de polícia, policial naquela época, foi o primeiro oficial no local do crime. E ele concordou em lhe dar uma entrevista. Também consegui agendar um encontro com a detetive Karen Pirie, que está trabalhando na revisão desse caso. Ela está a par de todos os detalhes.

E lá estava Jackie, pregando uma peça na polícia de Fife. Normalmente, não costumava ficar nervosa antes de uma entrevista. Já estava na profissão há bastante tempo, não ficava mais apavorada. Havia lidado com todos os tipos de entrevistado: os tímidos, os espalhafatosos, os animados, os amedrontados, os especialistas em marketing pessoal, os que adotavam uma postura blasé, os criminosos embrutecidos e as vítimas desamparadas. Mas naquele dia, havia definitivamente uma carga de adrenalina circulando no seu sangue. Não estava mentindo quando dissera a Alex que também tinha algo a perder. Depois da conversa com ele, ficara horas acordada, nitidamente ciente do estrago que a suspeita sobre a morte de David Kerr podia causar em sua vida. Então, preparara-se para aquele dia vestindo-se de maneira conservadora e tentando deliberadamente parecer o menos ameaçadora possível. Pela primeira vez, havia mais furos do que brincos em suas orelhas.

Era difícil reconhecer o jovem policial no subchefe de polícia Lawson, pensou ela enquanto se acomodava à sua frente. Ele parecia uma daquelas pessoas que já nasciam carregando o peso do mundo nas costas, e naquele dia tal peso parecia especialmente pesado. Não devia ter mais de cinquenta anos, mas aparentava ter passado mais tempo em casa jogando bola do que conduzindo investigações criminais em Fife.

- Que ideia peculiar para uma matéria - disse ele, após terminarem os devidos cumprimentos.

- Que nada. As pessoas hoje em dia mal param para pensar nas investigações policiais. É bom lembrar como progredimos em um período de tempo relativamente curto. E eu, obviamente, preciso aprender muito mais do que vou acabar usando na matéria final. A gente sempre acaba jogando noventa por cento da pesquisa fora.

- E para onde está escrevendo esta matéria? - perguntou ele, despretensioso.

- Para a Vanity Fair - respondeu Jackie, confiante. Era sempre melhor mentir e usar nomes conhecidos. Fazia com que o entrevistado sentisse que não estava perdendo o seu tempo.

- Bom, estou aqui à sua disposição - disse ele com uma camaradagem forçada, abrindo as mãos em um gesto largo.

- Fico muito grata por isso. Imagino como o senhor deve estar ocupado. Bom, podemos relembrar aquela noite de dezembro de 1978? O que levou o senhor a participar do caso?

Lawson expeliu o ar pesadamente pelas narinas.

- Eu estava de plantão em uma viatura. Ou seja, estava trabalhando a noite toda, parando apenas para fazer um lanche. Mas não ficava dirigindo a noite inteira. - Um sorriso discreto surgiu no canto de sua boca. - Mesmo naquela época, já tínhamos um orçamento limitado. Eu não podia dirigir mais do que sessenta quilômetros por turno. Então, eu vasculhava o centro da cidade na hora em que os bares estavam fechando e depois encontrava um lugar tranquilo para estacionar até que houvesse um chamado. O que não costumava acontecer. St. Andrews era uma cidadezinha relativamente pacata, principalmente durante as férias da universidade.

- Devia ser bem maçante, hein? - comentou Jackie, solidária.

- E como. Eu costumava carregar um rádio transistor comigo, mas nunca tinha nada que valesse a pena escutar. Na maioria das vezes, eu estacionava perto da entrada do Jardim Botânico. Eu gostava daquele lugar. Era agradável e tranquilo, e dava para chegar a qualquer ponto da cidade em questão de minutos. Naquela noite, o tempo estava pavoroso. O dia inteiro nevara intermitentemente, e de madrugada o chão estava todo coberto por uma grossa camada de neve. Por causa disso, eu estava tendo uma noite calma. A maioria das pessoas não se arriscava a sair de casa com um tempo daqueles. Então, lá pelas quatro da manhã, eu vi um vulto aproximando-se pela neve. Eu saí do carro e, vou ser franco com você, por um momento achei que fosse ser atacado por um maníaco embriagado. O garoto estava sem fôlego, coberto de sangue e o suor escorria pelo seu rosto. Ele disse que havia uma moça em Hallow Hill, que ela havia sido atacada.

- O senhor deve ter tomado um susto - instigou Jackie.

- Primeiro, pensei que fosse um estudante bêbado. Mas ele era muito insistente. Ele disse que havia caído por cima da moça na neve e que ela estava sangrando bastante. Então eu percebi que ele estava falando sério, que não era fingimento. Comuniquei a central pelo rádio e avisei que ia investigar uma mulher ferida em Hallow Hill. Coloquei o rapaz na viatura...

- Esse era Alex Gilbey, não é?

Lawson ergueu as sobrancelhas.

- Você fez o seu dever de casa, hein?

Ela deu de ombros.

- Li as matérias nos jornais, só isso. Então o senhor levou Gilbey de volta a Hallow Hill? E o que encontrou lá?

Lawson concordou com a cabeça.

- Quando chegamos lá, Rosie Duff estava morta. Havia outros três rapazes em volta do corpo. Precisei tomar conta do local e pedi reforços pelo rádio. Pedi ajuda dos policiais e do Departamento de Investigação Criminal e escoltei as quatro testemunhas colina abaixo, para longe da cena do crime. Eu confesso de bom grado que estava totalmente baratinado. Nunca havia visto nada parecido e não sabia, àquela altura, se estava parado em meio a uma nevasca com quatro assassinos do meu lado.

- Mas o senhor não acha que se eles tivessem matado a moça a última coisa que fariam ia ser buscar ajuda da polícia?

- Não necessariamente. Eles eram rapazes bem inteligentes, perfeitamente capazes de forjar uma situação como aquela. E eu não podia dizer algo que mostrasse que eu suspeitava deles, porque tinha medo que eles escapassem noite afora e nos deixassem com um problema maior ainda. Afinal, eu mal sabia quem eles eram.

- Bom, imagino que o senhor conseguiu segurá-los direitinho, porque pelo que sei eles esperaram os seus colegas no local. O que aconteceu então? Em termos de procedimentos, quero dizer. - Jackie ouviu tudo o que Lawson tinha a dizer sobre o que aconteceu naquela noite na cena do crime, até o momento em que ele precisou escoltar os quatro jovens até a delegacia.

- O meu envolvimento direto com o caso terminou ali - concluiu Lawson. - Todas as investigações subsequentes foram conduzidas pelos oficiais do DIC. Tivemos que recrutar pessoal de outras divisões, porque não tínhamos gente suficiente para cobrir um caso como aquele. - Lawson arrastou a cadeira. - Agora, se você me der licença, vou chamar a detetive Karen Pirie. Ela está mais preparada do que eu para conversar sobre o caso com você.

Jackie recolheu o gravador, mas não desligou o aparelho.

- Incrível, o senhor realmente lembra bem daquela noite - disse ela, deixando transparecer admiração em sua voz.

Lawson apertou o botão do seu interfone.

- Margaret, peça para Karen vir até aqui, por favor. - Lawson lançou para Jackie um sorriso de vaidade satisfeita. - Temos que ser meticulosos no nosso trabalho - disse ele. - Eu sempre guardei anotações cuidadosas. Mas você precisa lembrar que assassinatos são ocorrências bastante raras em St. Andrews. Nos dez anos em que trabalhei lá, tivemos pouquíssimos casos de homicídio. Então, naturalmente, a gente não esquece.

- E vocês nunca estiveram prestes a prender alguém?

Lawson contorceu os lábios.

- Não. E isso é algo difícil de engolir para quem trabalha na polícia. Tudo apontava para os quatro rapazes que encontraram o corpo, mas só havia provas circunstanciais contra eles. Eu cheguei a ter um palpite de que o crime podia ter sido algum tipo de ritual de sacrifício pagão, por causa do lugar onde o corpo foi encontrado. Mas essa ideia nunca deu em nada, e nunca mais vimos algo parecido na nossa circunscrição. Lamento admitir, mas o assassino de Rosie Duff nunca foi punido. Mas, é claro, sujeitos que cometem crimes como esse normalmente acabam repetindo a dose, então, pode ser que ele esteja preso por outro assassinato.

Houve uma leve pancada na porta e Lawson disse:

- Pode entrar. - A mulher que entrou no recinto era diametralmente oposta a Jackie. Enquanto a jornalista era descontraída e atraente, Karen Pirie era rígida e sem sal. O que as unia era a flagrante centelha de inteligência que uma pôde reconhecer na outra. Lawson encarregou-se das apresentações e depois as conduziu habilmente até a porta. - Boa sorte com a sua matéria - disse ele, antes de fechar a porta firmemente.

Karen a conduziu por um lance de escadas até a sala onde a equipe de revisão dos casos trabalhava.

- Você mora em Glasgow? - perguntou ela enquanto subiam as escadas.

- Nascida e criada lá. É uma cidade incrível. Toda vida humana está lá, como eles dizem.

- O que é ótimo para uma jornalista. E como foi que você se interessou por esse caso?

Jackie repetiu a sua história sobre uma matéria de capa rapidamente. Pareceu fazer sentido para Karen. Ela abriu a porta do escritório e foi caminhando na frente. Jackie olhou à sua volta, notando as paredes de cortiça cobertas com fotografias, mapas e relatórios. Uns gatos pingados sentados atrás de computadores levantaram os olhos quando elas entraram, mas em seguida voltaram a trabalhar.

- Por sinal, não preciso nem dizer, tudo o que você vir ou ouvir aqui sobre as investigações atuais ou sobre qualquer outro caso é estritamente confidencial. Entendeu?

- Não sou repórter criminal. Não tenho interesse em nenhum outro caso além do que vim aqui conversar com você. Não vou passar a perna em vocês, ok?

Karen sorriu. Conhecera alguns jornalistas honestos na vida, mas na maioria não dava para confiar, eram capazes de roubar um sorvete de uma criança. Mas aquela mulher parecia diferente. Fosse lá o que estivesse buscando tão avidamente, não era mais uma matéria sensacionalista e descartável. Karen mostrou a Jackie uma mesa comprida encostada na parede, onde ela organizara todo o material da investigação original.

- Não sei exatamente o quão detalhada vai ser a sua matéria - disse ela, duvidosa, olhando para a pilha de pastas à sua frente.

- Eu queria ter uma noção de como a investigação progrediu. Quais caminhos foram explorados. E, é claro - completou Jackie, sacando uma expressão autodepreciadora da manga -, como isso é jornalismo, e não história, preciso dos nomes das pessoas envolvidas e todas as informações que você puder me oferecer sobre elas. Policiais, legistas, cientistas forenses, essas coisas. - Jackie sabia como fazer aquilo soar despretensioso.

- Claro, eu posso te dar os nomes. Já as informações, eu sei pouquíssimas. Eu tinha três anos na época do crime. E, para completar, o investigador oficial, Barney Maclennan, morreu durante a investigação. Você sabia disso, né? - Jackie assentiu com a cabeça. Karen continuou. - O único sujeito que eu conheci do pessoal da antiga foi David Soanes, o cientista forense. Ele fez todo o trabalho, mas quem assinou os laudos foi o chefe dele.

- E por quê? - perguntou Jackie, casual, tentando esconder a sua alegria por ter conseguido o que queria tão fácil e tão rápido.

- É praxe. Os laudos têm que ser assinados pelo chefe do laboratório, mesmo que ele nunca nem tenha tocado nas provas. Impressiona o júri.

- Nunca mais vou confiar nas assinaturas, então - disse Jackie, sarcástica.

- A gente faz o que é preciso para prender os bandidos - disse Karen. Ficou evidente pelo tom exausto da sua voz que ela não estava disposta a ficar na defensiva por uma coisa tão óbvia. - De qualquer forma, nesse caso, você não poderia estar mais bem servida. David Soanes é um dos sujeitos mais esforçados que eu já conheci. - Ela sorriu. - E hoje em dia, é ele quem assina o laudo dos outros. David leciona Ciência Forense na Universidade de Dundee agora. Encaminhamos todos os nossos serviços para lá.

- Talvez eu pudesse conversar com ele.

Karen deu de ombros.

- Ele é um cara bem acessível. Então, por onde começamos?

Duas horas de profundo tédio depois, Jackie conseguiu ir embora. Sabia mais do que jamais desejara sobre os procedimentos policiais de Fife na década de 70. Não havia nada mais frustrante do que conseguir a informação que se queria logo no início de uma entrevista e ter de ficar inventando assunto para não dar bandeira.

Karen, obviamente, não a deixara ver o laudo original. Mas Jackie não esperava que ela o mostrasse. Conseguira o que desejava. Agora, tudo dependia de Alex.


35

Alex contemplou a filha, deitada no moisés. Estava em casa, no seu lugar. A filha deles, em casa. Frouxamente envolvida em uma manta branca, franzindo o rosto enquanto dormia, Davina alegrava o seu coração. Perdera o ar franzino que tanto o preocupara nos seus primeiros dias de vida. Agora, parecia-se com os outros bebês e o seu rostinho tornava-se único. Queria desenhá-la todos os dias, para não perder nenhuma das nuances mais sutis da sua transformação.

Ela preenchia os seus sentidos. Se ele se debruçasse sobre ela, prendendo o fôlego, podia ouvi-la respirando baixinho. As suas narinas já reconheciam o inconfundível cheirinho de bebê. Alex amava Lynn, mas jamais sentira aquele sentimento avassalador de amor e proteção por alguém antes. Lynn estava certa, ele precisava mesmo fazer o que fosse necessário para garantir que acompanharia o crescimento da sua filha. Decidiu ligar para Paul mais tarde, para compartilhar aquela tarde tão significativa com ele. Se Ziggy estivesse vivo, teria ligado para ele e Paul merecia saber que continuava fazendo parte da vida deles.

O som distante de uma campainha interrompeu os seus devaneios. Alex tocou a filha, da maneira mais delicada que pôde, e depois saiu do quarto. Alcançou a porta da frente segundos depois de Lynn, que estava paralisada ao reconhecer Jackie na sua porta.

- O que você veio fazer aqui? - perguntou ela.

- Alex não te contou? - retrucou Jackie, arrastando a voz.

- Me contou o quê? - Lynn virou-se para Alex.

- Pedi ajuda a Jackie - explicou Alex.

- Isso aí. - Jackie parecia mais divertida do que ofendida.

- Pediu ajuda a ela? - Lynn não se esforçou para esconder o seu desdém. - Uma mulher que não só tinha motivos para matar o meu irmão, como conhecia gente disposta a fazer o serviço? Alex, como é que você pôde fazer uma coisa dessas?

- Porque ela também tem algo a lucrar. Ou seja, não vai nos passar a perna para conseguir uma manchete - explicou ele, tentando acalmar Lynn antes que Jackie se ofendesse de vez e fosse embora sem revelar se havia descoberto alguma coisa.

- Aqui em casa ela não entra - disse Lynn, categórica.

Alex levantou as mãos.

- Tudo bem. Deixa só eu pegar o meu casaco. Vamos até o pub, se estiver tudo bem para você, tá, Jackie?

Ela deu de ombros.

- Por mim, tudo bem. Mas você paga a conta.

Caminharam até o pub em silêncio. Alex não estava com vontade de se desculpar pela hostilidade de Lynn e Jackie não queria passar recibo. Quando se acomodaram no pub, cada um com um cálice de vinho tinto à sua frente, Alex suspendeu as sobrancelhas, inquisitivo.

- E aí? Conseguiu alguma coisa?

Jackie fez uma expressão convencida.

- Estou com o nome do cientista forense que trabalhou no caso de Rosie Duff. E o melhor da história é que ele continua na ativa. Está dando aulas em Dundee. O nome dele é David Soanes e, ao que parece, o cara é fodão.

- E quando você vai poder ir até lá conversar com ele? - perguntou Alex.

- Eu não vou lá falar com ele, Alex. Isso é tarefa sua.

- Minha? Eu não sou jornalista. Por que ele toparia falar comigo?

- O interessado aqui é você. Você pede pelo amor de Deus, diz a ele que qualquer informação que ele puder te dar pode ajudar a resolver o caso.

- Nem sei como entrevistar uma pessoa - protestou Alex. - E por que Soanes me diria alguma coisa? Você acha que ele vai querer assumir que deixou passar alguma coisa no laudo naquela época?

- Alex, você me convenceu a te ajudar e, francamente, eu nem vou com a sua cara, ou com a da sua mulher grosseira e tacanha. Então, acho que você provavelmente vai conseguir convencer David Soanes a te contar o que você quer. Principalmente porque você não vai perguntar sobre coisas que ele deixa passar. Você está interessado nas coisas que talvez não tenham sido suscetíveis à análise, coisas que justificadamente ficaram de fora do relatório. Se ele tem apreço pelo seu trabalho, com certeza vai querer te ajudar. Vai ser inclusive melhor do que conversar com um jornalista, que pode retratá-lo como incompetente. - Jackie bebericou o seu vinho, fez uma careta e ficou de pé. - Me avise quando tiver alguma novidade que possa me ajudar.

Lynn estava sentada na estufa, contemplando as luzes no estuário. Estavam sutilmente envolvidas pelo ar seco, o que conferia uma aparência ainda mais misteriosa do que mereciam. Ouviu um barulho na porta da sala, seguido pela voz de Alex anunciando:

- Já cheguei. - Mas, antes que ele pudesse ir até ela, a campainha tocou. E, independentemente de quem fosse, ela não estava disposta a receber.

Vozes abafadas iam ficando mais distintas conforme se aproximavam, mas ela ainda não conseguira descobrir quem era a visita. De repente, a porta se abriu e Esquisito foi logo caminhando em sua direção.

- Lynn! - bradou ele. - Já sei que você tem uma menininha linda para me mostrar.

- Esquisito! - exclamou Lynn, visivelmente surpresa. - Você é a última pessoa que eu esperava ver aqui em casa.

- Ótimo - disse ele. - Vamos torcer para todos estarem pensando a mesma coisa. - Ele a olhou com preocupação. - Como é que você está?

Lynn inclinou-se para abraçá-lo.

- Sei que parece bobagem, porque quase não o víamos, mas estou com saudades de Mondo.

- Claro que sim. Todos nós estamos. E estaremos sempre. Ele era uma parte de nós e agora não é mais. O único consolo é sabermos que agora ele habita a morada do Senhor. - Ficaram em silêncio por um momento e depois Lynn se afastou.

- E o que é que você está fazendo aqui? - perguntou ela. - Você não voltou direto para os Estados Unidos depois do funeral?

- Voltei. Despachei a minha mulher e os meus filhos para um lugar nas montanhas, onde ficarão a salvo de qualquer pessoa que tenha problemas comigo. E depois, desapareci. Cruzei a fronteira para o México. Lynn, jamais vá para Tijuana, a não ser que você tenha um estômago de ferro. A comida é a pior do mundo, mas o que realmente provoca indigestão na alma é a discrepância entre a riqueza extravagante dos Estados Unidos com a pobreza dos mexicanos. Fiquei com vergonha do país que escolhi para viver. Sabia que os mexicanos pintam os seus burros com listras, como zebras, para que os turistas tirem fotos com eles? Veja só a que ponto nós os obrigamos a chegar.

- Nos poupe do sermão, Esquisito. Vá direto ao assunto - reclamou Lynn.

Esquisito sorriu.

- Tinha me esquecido como você é direta, Lynn. Bom, fiquei bastante encucado depois do funeral de Mondo. Então contratei um detetive particular em Seattle. Queria descobrir quem enviou a coroa de flores para o funeral do Ziggy. E o sujeito conseguiu uma resposta. Uma resposta que me deu bons motivos para voltar pra cá. Além do mais, imaginei que este seria o último lugar onde alguém imaginaria que eu pudesse estar. Perto demais de casa.

Alex girou os olhos.

- Você realmente aprendeu a fazer suspense ao longo dos anos, hein? Você vai contar o que descobriu ou não?

- O sujeito que mandou as coroas mora aqui em Fife. Em St. Monans, para ser mais exato. Não sei quem ele é, nem que relação tem com Rosie Duff. O nome dele é Graham Macfadyen.

Alex e Lynn trocaram olhares de aflição.

- Sabemos quem ele é - disse Alex. - Ou melhor, podemos no mínimo adivinhar.

Foi a vez de Esquisito ficar ansioso e frustrado.

- O quê? Vocês sabem?

- É o filho de Rosie Duff - disse Lynn.

Esquisito arregalou os olhos.

- Ela teve um filho?

- Ninguém sabia naquela época. Ele foi entregue para adoção assim que nasceu. Devia ter uns três ou quatro anos quando ela morreu - explicou Alex.

- Que coisa! - exclamou Esquisito. - Bom, até que faz sentido, né? Imagino que ele só ficou sabendo que a mãe foi assassinada recentemente.

- Ele procurou Lawson quando a revisão dos casos não resolvidos foi anunciada. Tinha começado a procurar a mãe biológica alguns meses antes disso.

- Aí está o motivo que vocês estão procurando. Ele deve ter achado que vocês quatro eram responsáveis pelo assassinato - concluiu Lynn. - Temos que descobrir mais sobre esse Macfadyen.

- Precisamos descobrir se ele estava nos Estados Unidos na semana em que Ziggy morreu - disse Alex.

- Como é que a gente vai conseguir descobrir isso? - perguntou Lynn.

Esquisito levantou a mão.

- A central da Delta fica em Atlanta. Um dos meus fiéis tem uma boa posição lá. Acho que ele pode ter acesso às listas de passageiros. Aparentemente, as companhias aéreas compartilham informações como essas o tempo todo. E eu estou com os dados do cartão de crédito de Macfadyen, o que pode agilizar o processo. Posso ligar para ele mais tarde?

- Claro - disse Alex, inclinando a cabeça. - É a Davina? - Aproximou-se da porta. - Vou buscá-la.

- Muito bem, Esquisito - disse Lynn. - Nunca imaginei você como um pesquisador metódico.

- Esqueceu que eu era matemático, e dos bons? Todo o resto era só uma tentativa desesperada de não ficar igual ao meu pai. O que, graças a Deus, eu consegui.

Alex voltou, com Davina choramingando em seus braços.

- Acho que ela está com fome.

Esquisito levantou-se e contemplou o pequeno bebê embrulhado em uma manta.

- Caramba - disse ele, com uma voz cheia de doçura. - Ela é linda. - Ele olhou para Alex. - Agora você entende por que eu estou tão determinado a sair dessa com vida.

Lá fora, debaixo da ponte, Macfadyen observava a cena na casa de Alex. Fora uma tarde animada. Primeiro, aparecera uma mulher. Reconhecera-a do funeral, tinha visto a viúva de Kerr entrar no carro dela. Seguira as duas até um flat em Merchant City e, alguns dias depois, seguira Alex até aquele mesmo endereço. Não sabia quem ela era, onde se encaixava naquela trama intrincada. Seria apenas uma amiga da família? Ou mais do que isso?

Fosse ela quem fosse, não fora bem recebida. Ela e Gilbey foram até o pub, mas não ficaram lá tempo suficiente nem para tomar um único drinque. Depois, quando ele voltou para casa, a verdadeira surpresa apareceu. Mackie estava de volta. Ele deveria estar quietinho na Geórgia, pregando para o seu rebanho. Mas não, lá estava ele, novamente em Fife, junto com o seu cúmplice. Ninguém abandona tudo na vida assim, a não ser que tenha um bom motivo.

Estava mais do que provado. Dava para ver no rosto deles. Aquela não era uma descontraída reunião de amigos. Não era um encontro alegre, para comemorar a alta da filha de Gilbey do hospital. Aqueles dois estavam escondendo alguma coisa, algo que os reunira durante aquela crise. O medo os aproximara novamente. Estavam apavorados, com medo de que o inimigo que dera fim aos outros dois assassinos os localizasse a qualquer momento. Estavam juntos por segurança.

Macfadyen abriu um sorriso sinistro. A mão gelada do passado os alcançava, inexoravelmente. Não conseguiriam dormir tranquilos naquela noite. E era assim que devia ser. Tinha planos para eles. E, quanto mais assustados estivessem, melhor.

Tinham tido vinte e cinco anos de paz - muito mais do que a sua mãe pudera desfrutar. Estava na hora de aquela paz chegar ao fim.


36

O dia nasceu desanimador e cinzento, e a vista da North Queensferry estava obscurecida por uma bruma sombria. Em algum lugar uma buzina de nevoeiro soava o seu infeliz aviso, como uma vaca lamentando a morte de um bezerro. Com a barba por fazer e atordoado de sono, Alex apoiava os cotovelos sobre a mesa do café da manhã e observava Lynn amamentando Davina.

- Foi uma noite boa ou ruim? - perguntou ele.

- Média - respondeu Lynn, bocejando. - Nessa idade, precisam mamar várias vezes durante a noite.

- Uma da manhã, três e meia, seis e meia... Tem certeza de que ela não está faminta demais?

Lynn sorriu.

- É impressionante como o amor paterno desaparece rapidinho, né? - zombou ela.

- Se isso fosse verdade, eu teria tapado os ouvidos com o travesseiro e continuado a dormir, em vez de me levantar, preparar um chá para você e trocar a fralda dela - rebateu Alex, na defensiva.

- Se Esquisito não estivesse aqui, você podia ficar no quarto de hóspedes.

Alex fez um gesto negativo com a cabeça.

- Não quero fazer isso. Vamos ver como fica.

- Mas você precisa dormir. Você tem uma empresa para tocar.

Alex deu um muxoxo.

- Tirando o tempo que eu passo rodando o país inteiro atrás de cientistas forenses, né?

- Isso mesmo. Você está incomodado por Esquisito estar aqui em casa?

- Não, por quê?

- Bobagem minha. Eu é que sou muito desconfiada mesmo. Você sabe que eu sempre achei que, de vocês quatro, ele era o único que poderia ter matado Rosie. Então, sei lá, estou um pouco agoniada por ele ter aparecido assim, do nada.

Alex assumiu uma expressão de desconforto.

- Só desta maneira ele sairia impune do crime que cometeu? Por que ele sairia matando os amigos vinte e cinco anos depois?

- Vai ver que ele ficou sabendo da revisão do caso e ficou com medo de, depois de todo esse tempo, ser dedurado por um de vocês.

- Você é sempre exagerada, né? Ele não a matou, Lynn. Ele jamais faria isso.

- Mas as pessoas fazem coisas horríveis quando estão drogadas. E, pelo que eu me lembro, Esquisito tomava todas. Ele estava com a Land Rover; Rosie provavelmente o conhecia o suficiente para aceitar uma carona. E depois, aquela conversão religiosa sem mais nem menos. Vai ver que era culpa, Alex.

Ele balançou a cabeça.

- Ele é meu amigo. Eu saberia.

Lynn suspirou.

- Você deve ter razão. Eu exagero mesmo. E estou meio nervosa. Desculpa.

Enquanto ela falava, Esquisito apareceu. De banho tomado e barbeado, ele parecia o retrato fiel do homem saudável e forte. Alex olhou para ele e resmungou.

- Meu Deus, você está a cara daquele Tigrão da Disney.

- Que cama maravilhosa - disse Esquisito, olhando à sua volta, procurando a cafeteira. Atravessou a cozinha e começou a abrir todos os armários, até encontrar as xícaras. - Dormi como um bebê.

- Isso não - disse Lynn. - A não ser que você tenha acordado chorando de três em três horas. Você não está com um pouco de jet lag?

- Nunca tive jet lag na minha vida - respondeu ele, animado, servindo o café. - E aí, Alex, quando é que a gente parte para Dundee?

Alex começou a se aprumar.

- Tenho que ligar para lá e agendar um encontro.

- Você tá maluco? Dar oportunidade para o sujeito dizer não? - admoestou Esquisito, fuçando a cesta de pães. Apanhou um bolinho escocês e estalou os lábios. - Uhm, há anos que não como um desses.

- Sinta-se em casa - disse Alex.

- Estou me sentindo - respondeu Esquisito, vasculhando a geladeira atrás de manteiga e queijo. - Não, Alex. Nada de telefonemas. A gente simplesmente aparece lá e deixa bem claro que não vai arredar o pé até o professor Soanes encontrar uma janela.

- Uma janela? Para se jogar? - Alex não conseguiu resistir à tentação de debochar dos americanismos de Esquisito, que soavam ainda mais bizarros ditos com um sotaque escocês que se tornara ainda mais carregado da noite para o dia.

- Muito engraçado. - Esquisito apanhou um prato e uma faca e sentou-se à mesa.

- Você não acha que isso vai deixá-lo um pouquinho irritado, não? - perguntou Lynn.

- Não, acho que mostra que não estamos de brincadeira - disse Esquisito. - Acho que é o que dois sujeitos que se sentem ameaçados de morte fariam. Não está na hora de sermos educados, dóceis, obedientes. Está na hora de dizermos: "Estamos morrendo de medo e o senhor pode nos ajudar."

Alex fez uma careta.

- Tem certeza de que você quer mesmo vir comigo? - O olhar repressor que Esquisito lançou para ele teria paralisado qualquer um. Alex levantou as mãos, rendendo-se. - Está bem. Me dá meia horinha então.

Lynn observou o marido saindo, preocupada.

- Não se preocupe, Lynn. Eu vou cuidar dele.

Lynn bufou, debochada.

- Ah, por favor, Esquisito. Espero que eu não precise contar com isso.

Ele abocanhou um pedaço do bolo e a observou.

- Eu não sou mais a mesma pessoa que você lembra, Lynn - disse ele, sério. - Esqueça o adolescente rebelde, o excesso de álcool e as drogas. Lembre-se que eu sempre fiz os meus deveres e entreguei os meus trabalhos dentro do prazo. Eu dava a impressão de estar fora de controle, mas lá no fundo era um sujeito tão normal quanto Alex. Eu sei que vocês devem morrer de rir pelas minhas costas por ter um pastor que faz pregação na tevê na sua lista de cartões de Natal; e, por sinal, os cartões são maravilhosos. Mas por trás de toda a excentricidade, eu sou uma pessoa que leva muito a sério tudo o que acredita e o que faz. Quando eu digo que vou cuidar de Alex, pode ter certeza de que ele vai estar tão seguro comigo quanto estaria com qualquer outra pessoa.

Lynn aceitou a reprimenda, mas ela não serviu para minar a sua desconfiança completamente. Trocou a filha de seio para que ela continuasse a mamar e disse:

- Pronto, querida. - Fez uma careta de dor ao sentir o bebê sugar o seu seio com avidez; ainda não estava acostumada com aquela sensação tão nova. - Desculpa, Esquisito. É que é difícil não te julgar pela época em que nos conhecíamos melhor.

Ele terminou o seu café e levantou-se.

- Eu sei. Eu continuo te vendo como uma garotinha boba que sonhava com David Cassidy.

- Babaca - disse ela.

- Vou orar um pouco agora - disse ele, dirigindo-se à porta. - Eu e Alex precisamos de toda ajuda possível.

O lado de fora do ginásio Old Fleming era completamente diferente da imagem que Alex fazia de um laboratório forense. Escondido em um beco estreito, o seu arenito vitoriano estava consideravelmente manchado por um século de poluição. Não era uma construção feia; o seu único andar era bem proporcionado, com janelas em estilo italiano. Só não parecia ser o tipo de lugar que abrigava a tecnologia de ponta da ciência forense.

Esquisito também estava visivelmente intrigado.

- Tem certeza de que é aqui mesmo? - perguntou ele, hesitante na entrada do beco.

Alex fez um gesto para a rua.

- O café do antigo Instituto Técnico fica ali. De acordo com o mapa no site da universidade, é aqui mesmo.

- Parece mais um banco do que um ginásio, e menos ainda um laboratório. - Mesmo assim, ele seguiu Alex pelo beco.

A recepção não dava muitas pistas. Um rapaz com um problema sério de psoríase e vestido à moda dos beatniks da década de 50 estava sentado atrás do balcão, digitando em um teclado de computador. Olhou para eles por cima da escura armação dos seus óculos.

- Em que posso ajudá-los, senhores? - perguntou ele.

- Gostaríamos de saber se por acaso poderíamos dar uma palavrinha com o professor Soanes - disse Alex.

- O senhor marcou hora?

Alex fez um gesto negativo com a cabeça.

- Não. Mas ficaríamos muito agradecidos se ele pudesse nos receber. É sobre um caso antigo no qual ele trabalhou.

O rapaz balançou a cabeça de um lado para o outro, como um dançarino indiano.

- Acho que não vai ser possível, não. Ele é um homem muito ocupado.

- Nós também - interrompeu Esquisito, aproximando-se do balcão. - E o nosso assunto com ele é uma questão de vida ou morte.

- Meu Deus - disse o rapaz. - É o Tommy Lee Jones de Tayside. - O comentário poderia ter soado grosseiro, mas ele o fez com um ar divertido de admiração que neutralizou qualquer malícia.

Esquisito o encarou firmemente.

- Podemos esperar. - Alex acudiu antes que a coisa ficasse feia.

- E vão ter de esperar mesmo. Ele está dando um seminário agora. Deixa eu conferir a agenda dele para hoje. - Ele digitou alguma coisa no teclado. - Vocês podem voltar às três? - perguntou ele alguns segundos depois.

Esquisito chiou.

- E passar cinco horas em Dundee?

- Maravilha - respondeu Alex, lançando um olhar firme para Esquisito. - Vamos, Tom. - Deixaram os seus nomes, alguns detalhes do caso e o número do celular de Alex antes de partirem.

- Você, como sempre, a simpatia em pessoa - comentou Alex enquanto voltavam para o carro.

- É, mas conseguimos alguma coisa, não foi? Se tivéssemos que depender de você, como sempre um banana, teríamos sorte se conseguíssemos uma horinha antes do final do semestre. E então, o que vamos fazer nas próximas cinco horas?

- Podíamos ir até St. Andrews - sugeriu Alex. - É só cruzar a ponte.

Esquisito estacou.

- Você está falando sério?

- Claro. Nunca falei tão sério. Acho que não ia fazer mal nos lembrarmos de lá. E ninguém vai reconhecer a gente, depois de tantos anos.

Esquisito repousou a mão no peito, no lugar onde a sua cruz normalmente ficava. Deu um muxoxo ao lembrar que não estava usando o seu hábito.

- Está bem - disse ele. - Mas eu não quero nem passar perto da Masmorra da Garrafa.

Dirigir por St. Andrews era uma experiência estranha, perturbadora. Primeiro, porque eles jamais tiveram acesso a um carro na época em que eram estudantes e nunca haviam observado a cidade da perspectiva de um motorista. Segundo, porque ao avançarem pela cidade, passavam por prédios que não existiam naquela época. O amontoado de concreto do Old Course Hotel; o cilindro neoclássico do Museu da Universidade de St. Andrews; o Centro de Vida Aquática atrás do perene clube Royal and Ancient, o próprio templo do golfe. Esquisito contemplava a cidade pela janela, atônito.

- Como está mudada.

- Claro que está mudada. Lá se foi um quarto de século.

- Você voltou aqui outras vezes?

Alex balançou a cabeça.

- Há vinte anos que não passo nem perto. - Ele dirigiu lentamente, finalmente encaixando o seu BMW em uma vaga deixada por uma mulher em um Renault.

Saíram em silêncio e puseram-se a caminhar pelas ruas da cidade, outrora tão familiares. Era como rever Esquisito, pensou Alex, todos aqueles anos depois. A estrutura óssea era basicamente a mesma. Não havia como tomá-lo por outra pessoa, ou outra pessoa por ele. Mas a superfície era diferente. Algumas mudanças eram sutis, outras gritantes. Assim como caminhar novamente por St. Andrews. Algumas lojas continuavam no mesmo lugar de sempre e as suas fachadas permaneciam idênticas. Paradoxalmente, pareciam fora de lugar, como se tivessem conseguido de alguma maneira escapar da dobra de tempo que abocanhara o resto da cidade. A lojinha de doces ainda estava lá, um monumento ao apetite nacional por açúcar. Alex reconheceu o restaurante onde experimentaram comida chinesa pela primeira vez, os sabores desconhecidos e confusos para paladares acostumados com uma comida mais tradicional. Eram quatro naquela época, leves e confiantes, sem a menor noção de que algo ruim estava prestes a acontecer. E agora restavam dois.

Era impossível fugir da universidade. Dos dezesseis mil habitantes da cidade, um terço ganhava a vida às custas dela, e, se os seus prédios tivessem se desintegrado da noite para o dia, teriam deixado uma cidade banguela. Alunos corriam pelas ruas, com a característica veste de flanela vermelha embrulhada em volta do corpo, para proteger o seu dono do frio. Era difícil acreditar que um dia haviam feito a mesma coisa. Uma lembrança fugaz ocorreu a Alex: Ziggy e Mondo em uma sofisticada loja de roupas masculinas, experimentando os seus uniformes novos. Alex e Esquisito tiveram de se conformar com roupas de segunda mão, mas aproveitaram ao máximo a oportunidade de fazerem bagunça por uma boa causa, testando a paciência dos funcionários da loja. Aquilo tudo parecia estranho e distante agora, como se fosse um filme, não uma lembrança.

Quando se aproximaram do West Port, vislumbraram a fachada familiar do Pub Lammas através dos arcos de pedra do portão maciço. Esquisito estacou, abruptamente.

- Estou ficando maluco. Não aguento mais, Alex. Vamos sair desse lugar.

Alex não ficou exatamente contrariado com a sugestão.

- Vamos voltar para Dundee, então?

- Não, tive outra ideia. Um dos motivos de eu ter voltado era para confrontar esse tal de Graham Macfadyen sobre as flores. St. Monans não é muito longe daqui, é? Vamos até lá ver o que ele tem a nos dizer.

- Mas estamos no meio do dia. Ele deve estar trabalhando agora - ponderou Alex, apertando o passo para acompanhar Esquisito enquanto se dirigiam de volta ao carro.

- Pelo menos a gente dá uma olhada na casa. E, de repente, conseguimos voltar depois de falarmos com o professor Soanes. - Era inútil discutir com Esquisito quando ele estava daquele jeito, constatou Alex, resignado.

Macfadyen não conseguia descobrir o que estava acontecendo. Estivera de plantão do lado de fora da casa de Gilbey desde as sete da manhã e sentira uma onda de gratidão ao ver os dois saindo de carro. Os parceiros no crime certamente estavam tramando alguma. Seguiu o carro de Gilbey por Fife, até Dundee, e os acompanhou até o Beco Small’s. Assim que eles entraram no prédio antigo de arenito, apressou-se atrás deles. A placa na porta dizia: DEPARTAMENTO DE CIÊNCIA FORENSE, o que fez com que ele parasse. O que será que estavam procurando por lá? Por que estavam naquele lugar?

Fosse lá o que estivessem buscando, não demorou muito. Saíram do prédio uns dez minutos depois. Quase os perdera de vista perto da ponte, mas conseguiu alcançá-los enquanto diminuíam a velocidade, rumo a St. Andrews. Estacionar lá foi difícil e ele acabou tendo que deixar o seu carro bloqueando a garagem de alguém.

Conseguiu acompanhá-los enquanto caminhavam pela cidade. Não pareciam estar com um itinerário definido. Seguiram e voltaram pelos mesmos lugares algumas vezes, atravessando a North Street, a Market Street e a South Street. Por sorte, Mackie era alto o suficiente para destacar-se na rua, de modo que não foi muito difícil seguir a dupla. De repente, Macfadyen percebeu que aquele passeio aparentemente sem objetivo os estava levando cada vez mais perto do West Port. Estavam indo para o Lammas. Tinham a cara de pau de atravessar a porta e revisitar o lugar onde haviam visto a sua mãe pela primeira vez.

Macfadyen sentiu o suor acumulando-se sobre o seu lábio superior, apesar do frio úmido que o maltratava. Os indicativos de culpa multiplicavam-se a cada hora. Se fossem inocentes, teriam ficado bem longe do Lammas, se fossem inocentes e tivessem respeito. Mas a culpa os atraía como um ímã, estava certo disso.

Estava tão perdido em seus pensamentos que quase esbarrou nos dois. Haviam parado sem mais nem menos, no meio da calçada, e ele continuara andando. Com o coração pulando dentro do peito, Macfadyen desviou deles, de cabeça baixa. Abrigou-se sob a marquise de uma loja e olhou para trás, fechando as suas mãos suadas em punho dentro dos bolsos do seu casaco. Não conseguia acreditar no que via. Viraram as costas para o West Port e puseram-se a caminhar de volta pela South Street, na direção contrária.

Quase teve de apressar o passo para não perdê-los de vista, enquanto cruzavam por uma série de vielas e becos. O fato de darem preferência a vias estreitas em vez de ruas mais amplas cheirava a consciência pesada para Macfadyen. Gilbey e Mackie estavam se escondendo do mundo, protegendo-se dos olhares acusadores que imaginavam estar em cada esquina.

Quando conseguiu chegar ao seu carro, eles já estavam a caminho, passando de carro pela catedral. Xingando, Macfadyen sentou-se ao volante e ligou o motor. Estava quase alcançando o carro de Gilbey quando foi vítima do azar. No final da Kinkell Braes, por causa de obras na estrada, somente uma das pistas estava livre e controlada por semáforo. Gilbey avançou bem na hora que o sinal mudou de amarelo para vermelho, como se soubesse que precisava escapar. Se não tivesse nenhum outro veículo entre eles, Macfadyen teria se arriscado e avançado o sinal vermelho. Mas uma van de autopeças estava atravancando o seu caminho. Esmurrou o volante, irado, bufando até o sinal verde aparecer novamente. A van continuou colina acima, com Macfadyen no seu encalço. Mas só conseguiu ultrapassá-la uns bons quilômetros depois. Sabia, no fundo do seu coração, que não tinha mais a menor chance de alcançar a BMW de Gilbey.

Estava à beira das lágrimas. Não fazia a menor ideia do paradeiro dos dois. Nada naquela manhã desorientadora lhe oferecera alguma pista. Pensou em voltar para casa, verificar se tinha alguma novidade nos seus computadores. Mas não fazia muito sentido. Não ia descobrir onde Gilbey e Mackie estavam pela internet.

Só tinha certeza de uma coisa: mais cedo ou mais tarde, eles voltariam a North Queensferry. Xingando-se pela sua patetice, Macfadyen decidiu que o melhor a fazer era voltar para lá.

Quando estava passando pelo desvio que o levaria para a sua casa, Graham Macfadyen viu Esquisito e Alex parados de carro na sua porta.

- Satisfeito? - perguntou Alex.

Esquisito já havia sondado o lugar e batido na porta, sem sucesso. Depois, contornara a casa, olhando pelas janelas. Alex estava convencido de que a polícia ia aparecer a qualquer momento, acionada por algum vizinho enxerido. Mas aquele não era o tipo de lugar onde os moradores passavam o dia inteiro em casa.

- Pelo menos sabemos onde encontrá-lo - disse Esquisito. - Acho que ele mora sozinho.

- Por quê?

Esquisito lançou um olhar que dizia "isso é óbvio" para Alex.

- Nenhum toque feminino, não é?

- Nem unzinho sequer - respondeu Esquisito. - Tudo bem, você tinha razão. Foi uma perda de tempo. - Ele deu uma olhadela para o seu relógio. - Vamos procurar um pub decente e almoçar. E depois, podemos voltar para a simpática Dundee.


37

O professor David Soanes era um homem gorducho. Com as bochechas rosadas, uma auréola de cabelo grisalho encaracolado em volta da careca lustrosa e olhos azuis que chegavam a faiscar, parecia uma versão desconcertante do Papai Noel sem barba. Conduziu Esquisito e Alex por um cubículo minúsculo onde mal cabiam a sua mesa e duas cadeiras para visitas. O cômodo era espartano, sendo a sua única decoração um certificado que proclamava que Soanes era cidadão de Srebrenica. Alex não queria pensar no que ele devia ter feito para merecer aquela honra.

Soanes fez um gesto para que se sentassem e acomodou-se, imprensando a barriga roliça na beirada da mesa. Espremeu os lábios e observou os dois homens sentados à sua frente.

- Fraser disse que os senhores queriam conversar sobre o caso Rosemary Duff - disse ele, após uma longa pausa. A sua voz era tão doce e agradável quanto um pudim de Natal das histórias de Dickens. - Tenho algumas perguntas para fazer antes. - Ele conferiu um pedaço de papel sobre a mesa. - Alex Gilbey e Tom Mackie, não é isso?

- Isso mesmo - respondeu Alex.

- E não são jornalistas?

Alex pescou o seu cartão de visitas e entregou a ele.

- Sou dono de uma empresa que fabrica cartões. Tom é pastor. Não somos jornalistas.

Soanes analisou o cartão, dobrando-o para verificar se a gravação era verdadeira. Suspendeu uma das sobrancelhas cabeludas e grisalhas e perguntou, abruptamente:

- E qual o interesse dos senhores no caso Rosemary Duff?

Esquisito inclinou-se para a frente.

- Somos dois dos quatro sujeitos que encontraram o corpo dela na neve, há vinte e cinco anos. O senhor provavelmente examinou as nossas roupas no seu microscópio.

Soanes entortou levemente a cabeça para o lado. As rugas no canto dos seus olhos estreitaram-se quase imperceptivelmente.

- Isso foi há muito tempo. Por que vieram me procurar agora?

- Achamos que tem alguém atrás da gente - disse Esquisito.

Desta vez, Soanes suspendeu as duas sobrancelhas.

- Agora fiquei perdido. O que isso tem a ver comigo, ou com Rosemary Duff?

Alex pousou a mão no braço de Esquisito.

- Dos quatro que estiveram lá naquela noite, dois já morreram. Morreram nas últimas seis semanas. Ambos assassinados. Eu sei que pode ser mera coincidência. Mas nos dois funerais, encontramos uma coroa de flores e alecrim com os dizeres: Lembrança de Rosemary. Temos motivos para crer que as coroas foram enviadas pelo filho de Rosie Duff.

Soanes franziu a testa.

- Lamento, mas acho que os senhores estão no lugar errado. Deveriam ter procurado a polícia de Fife, que está conduzindo uma revisão de casos não resolvidos, incluindo esse.

Alex balançou a cabeça.

- Já tentei fazer isso. O subchefe de polícia Lawson só faltou me chamar de paranoico. Disse que coincidências como essas acontecem, que eu devia voltar para casa e parar de me preocupar à toa. Mas acho que ele está errado. Acho que alguém está matando a gente porque está convencido de que assassinamos Rosie. E a única maneira de conseguirmos nos safar é descobrindo o verdadeiro assassino.

Uma expressão impenetrável surgiu no rosto de Soanes à menção do nome de Lawson.

- Mesmo assim, continuo sem entender o que os senhores vieram fazer aqui. O meu envolvimento pessoal com esse caso terminou vinte e cinco anos atrás.

- Viemos porque eles perderam as provas - interrompeu Esquisito, incapaz de ficar muito tempo sem ouvir o som da sua própria voz.

- O senhor deve estar enganado. Testamos uma peça recentemente. E o exame de DNA deu negativo.

- Vocês só têm o cardigã - disse Alex. - Mas o mais importante, as roupas com marcas de sangue e sêmen, eles perderam.

Não havia como duvidar do interesse crescente de Soanes.

- Eles perderam as provas originais?

- Foi o que Lawson me disse - confirmou Alex.

Soanes balançou a cabeça, impressionado.

- Mas que horror - disse ele. - Ainda que não seja de se admirar, sob um comando desses. - A sua testa se enrugou em uma careta de desaprovação. Alex se perguntava o que mais a polícia de Fife havia feito para deixar aquela impressão negativa em Soanes. - Bom, sem a principal prova, não sei o que os senhores acham que posso fazer para ajudá-los.

Alex respirou profundamente.

- Sei que o senhor fez o relatório original do caso. E também sei que os peritos forenses nem sempre incluem todos os detalhes nos seus laudos. Imagino se havia alguma coisa que o senhor por acaso tenha deixado de fora naquela época. Estou pensando principalmente em vestígios de tinta. Porque a única coisa que eles não perderam foi o cardigã. E depois que o encontraram, voltaram para colher mais amostras de tinta na nossa casa.

- E por que eu haveria de contar alguma coisa a esse respeito aos senhores, isto é, supondo que houvesse algo para contar? Seria um procedimento altamente irregular. Afinal de contas, para todos os efeitos, vocês eram suspeitos.

- Éramos testemunhas, não suspeitos - disse Esquisito, irritado. - E o senhor tem que nos ajudar, senão vamos acabar assassinados e o senhor vai penar para acertar as contas com Deus e com a sua consciência.

- E porque cientistas devem se importar com a verdade - acrescentou Alex. Hora de correr riscos, pensou ele. - E eu tenho a impressão de que o senhor tem a verdade como sua circunscrição. Ao contrário da polícia, que normalmente só se preocupa em obter resultados.

Soanes apoiou um cotovelo na mesa e apertou o lábio inferior com os dedos, revelando a sua úmida carnosidade interior. Olhou para eles como se os estivesse avaliando, longa e firmemente. Então, levantou-se decidido e consultou o arquivo, que era o único acessório na sua mesa. Passou os olhos nas fichas e depois levantou a cabeça e encontrou os olhos ansiosos dos dois.

- O meu laudo versou principalmente sobre sangue e sêmen. O sangue era de Rosie Duff, o sêmen supostamente pertencia ao assassino. Como o sujeito que depositou o sêmen era um secretor, conseguimos determinar o seu grupo sanguíneo. - Ele folheou algumas páginas. - Encontramos também evidência de fibras. Um carpete industrial marrom, vagabundo, e algumas fibras de um carpete cinzento, usado por vários fabricantes de veículos em carros de médio porte. Alguns vestígios de pelo de cachorro, de um springer spaniel que pertencia ao dono do pub onde Rosie trabalhava. Tudo isso foi mencionado no meu laudo.

Ele percebeu o olhar de decepção nos olhos de Alex e deu um sorrisinho.

- Agora, vêm as minhas anotações.

Apanhou um bloco de anotações escritas a mão. Ele apertou os olhos por uns segundos, depois tirou uns óculos de leitura com armação dourada do bolso do casaco e os encaixou sobre o nariz.

- Minha letra sempre foi terrível - disse ele, secamente. - Não leio isso aqui há anos. Deixe-me ver... sangue... sêmen... lama. - Virou algumas páginas, cobertas por uma letra minúscula e firme. - Pelos... Aqui está. Tinta. - Bateu com o dedo na página e olhou para eles. - O que os senhores sabem sobre tinta?

- Emulsão para as paredes, verniz para madeira - disse Esquisito. - É tudo o que sei sobre tinta.

Soanes sorriu, pela primeira vez.

- A tinta é composta de três elementos principais. Tem o condutor, que normalmente é uma espécie de polímero. Basicamente, é aquela camada grossa que gruda no macacão se a gente não limpar na mesma hora. Tem o solvente, que normalmente é um líquido orgânico. O condutor é dissolvido no solvente para criar uma massa com uma consistência apropriada para um pincel ou um rolo. Geralmente, o solvente não tem nenhuma significância forense porque já evaporou há muito tempo. Finalmente, tem o pigmento, que é o que dá cor. Entre os pigmentos mais usados estão o dióxido de titânio e o óxido de zinco para o branco, a fitalocianina para o azul, o cromato de zinco para o amarelo e o óxido de ferro para o vermelho. Mas cada demão de tinta tem a sua própria assinatura microscópica. Então, é possível analisar uma mancha de tinta e dizer o seu tipo. Existem bibliotecas inteiras de amostras de tinta, para que possamos comparar com amostras individuais. E, é claro, além da tinta em si, analisamos a mancha. É um respingo? É uma gota? É uma raspa? - Ele levantou o dedo. - Antes que me perguntem mais alguma coisa, quero deixar claro que não sou especialista neste assunto.

- Mas podia ter me enganado direitinho - respondeu Esquisito. - E então, o que dizem as suas anotações a respeito da tinta no cardigã de Rosie?

- O seu amigo gosta de ir direto ao assunto, não é? - perguntou Soanes, felizmente mais divertido do que irritado.

- Sabemos como o tempo do senhor é precioso, só isso - respondeu Alex, contendo o riso diante da sua desculpa aduladora.

Soanes voltou para as suas anotações.

- Isso é verdade - disse ele. - A tinta em questão era um esmalte poliuretano alifático azul-claro. O que normalmente não é uma tinta caseira, e sim uma tinta usada em barcos, ou algo feito de fibra de vidro. Não tivemos nenhum resultado direto, embora a amostra se parecesse bastante com algumas tintas de barco no nosso banco de dados. Mas o mais interesse era o perfil das gotas. Elas tinham a forma de lágrimas minúsculas.

Alex franziu o cenho.

- O que isso quer dizer?

- Quer dizer que a tinta não estava molhada quando grudou na roupa dela. Eram gotículas bem pequenininhas de tinta seca, que sem dúvida foram transferidas para a roupa de Rosie de uma superfície onde ela esteve deitada. Provavelmente um carpete.

- Então alguém andou pintando alguma coisa no local onde ela esteve deitada? E a tinta respingou no carpete? - perguntou Esquisito.

- Tenho quase certeza. Mas voltando ao formato curioso. Se uma tinta pinga de um pincel, ou mancha um carpete, as gotículas não teriam aquele formato. E todas as gotas que analisamos nesse caso possuíam o mesmo perfil.

- Por que o senhor não incluiu estas observações no seu laudo? - perguntou Alex.

- Porque não conseguimos explicá-las. É muito temeroso para a acusação ter um profissional como testemunha dizendo "Eu não sei" em pleno tribunal. Um bom advogado de defesa deixaria as perguntas sobre a tinta para o final, para que a última coisa que ficasse na lembrança do júri fosse o meu chefe balançando a cabeça e admitindo não saber as respostas. - Soanes guardou os seus papéis de volta na pasta. - Então, deixamos de fora.

Alex se preparou para fazer a pergunta mais importante de todas:

- Se o senhor analisasse esta prova novamente, poderia conseguir um resultado diferente?

Soanes encarou-o por trás dos óculos.

- Eu, pessoalmente, não. Mas um especialista forense em tinta poderia oferecer uma análise mais proveitosa, sim. Mas as chances de vocês encontrarem um resultado vinte e cinco anos depois são escassas.

- Isso é problema nosso - rebateu Esquisito. - O senhor pode tentar? O senhor vai tentar?

Soanes balançou a cabeça.

- Como eu disse, estou longe de ser um especialista nessa área. E, mesmo que eu fosse, não poderia autorizar testes sem um requerimento da polícia de Fife. E eles não solicitaram testes na tinta. - Ele fechou a pasta com um ar de conclusão.

- Por que não? - indagou Esquisito.

- Acho que devem ter considerado uma perda de dinheiro. Como eu disse, as chances de chegarmos a um resultado a estas alturas são ínfimas.

Alex arriou-se na cadeira, desanimado.

- E eu não vou conseguir convencer Lawson a mudar de ideia. Que maravilha. Acho que o senhor acabou de assinar a minha sentença de morte.

- Eu não disse que é impossível fazer os testes - disse Soanes, gentil. - Eu disse que eles não podem ser feitos aqui.

- Mas como vamos fazer os testes em outro lugar? - perguntou Esquisito, irritado. - Ninguém tem as tais amostras.

Soanes apertou os lábios com os dedos novamente. Então, suspirou.

- Não temos nenhuma amostra biológica. Mas ainda temos a tinta. Eu verifiquei antes de receber os senhores. - Ele tornou a abrir a pasta e apanhou uma embalagem plástica com alguns compartimentos. Dentro deles, uma dúzia de slides microscópicos. Soanes retirou três e os alinhou sobre a mesa. Alex olhou para eles, ansioso. Não conseguia acreditar no que via. As manchinhas de tinta eram como minúsculos grãos de uma cinza de cigarro azulada.

- Alguém pode analisar isso? - perguntou ele, tentando controlar o seu entusiasmo.

- É claro - respondeu Soanes. Ele apanhou uma sacola de papel da sua gaveta e colocou sobre os slides, empurrando-os para Alex e Esquisito. - Levem estes. Nós temos outros que podemos analisar, se der em alguma coisa. Os senhores vão ter que assinar um documento, é claro.

Esquisito deslizou a mão sobre a mesa e pegou os slides. Colocou-os delicadamente no saco e depois jogou-os no bolso.

- Obrigado - disse ele. - Onde é que eu tenho que assinar?

Enquanto Esquisito rabiscava o seu nome em uma ficha de registro, Alex olhava intrigado para Soanes.

- Por que o senhor está fazendo isso? - perguntou ele.

Soanes tirou os óculos e os guardou, cuidadosamente.

- Porque eu detesto enigmas que não são desvendados - respondeu ele, ficando de pé. - Quase tanto quanto detesto trabalho policial malfeito. E depois, detestaria ter as mortes de vocês dois pesando na minha consciência, caso a sua teoria esteja realmente correta.

- Ei, o que você está fazendo? - perguntou Esquisito quando Alex, ao chegar nos arredores de Glenrothes, ligou a seta para a direita.

- Quero falar com Lawson o lance de Macfadyen ter mandado as coroas. E quero tentar convencê-lo a fazer com que Soanes analise as amostras que ele tem novamente.

- Perda de tempo - resmungou Esquisito.

- Melhor do que voltar para St. Monans e bater na porta de uma casa vazia.

Esquisito não disse mais nada, deixando Alex ir até a central da polícia. Na recepção, Alex pediu para falar com Lawson.

- É um assunto relacionado ao caso Rosemary Duff - explicou ele. Foram direcionados a uma sala de espera, onde ficaram sentados observando pôsteres sobre besouros, pessoas desaparecidas e violência doméstica. - É impressionante como a gente se sente culpado, só de sentar aqui - comentou Alex.

- Eu não me sinto, não - retrucou Esquisito. - Mas também, eu presto contas a uma autoridade superior.

Após alguns minutos, uma mulher troncuda caminhou na direção deles.

- Eu sou a detetive Pirie - disse ela. - Lamento informar, mas o subchefe Lawson não está disponível no momento. Mas eu sou a oficial encarregada do caso Rosemary Duff.

Alex balançou a cabeça.

- Quero falar com Lawson. Vou esperar.

- Sinto muito, mas não vai ser possível. Ele vai ficar fora por alguns dias.

- O chefe foi pescar - disse Esquisito, irônico.

Karen Pirie, pega de surpresa, disse:

- Pois é, foi mesmo. No lago... - entregou ela, antes de perceber a gafe.

Esquisito pareceu mais surpreso do que ela.

- Sério? Eu estava só brincando.

Karen tentou disfarçar a sua confusão.

- O senhor é Gilbey, não é isso? - perguntou ela, olhando concentrada para Alex.

- Sim, sou eu. Como a senhora...?

- Vi o senhor no funeral do Dr. Kerr. Sinto muito pela sua perda.

- É por isso que estamos aqui - disse Esquisito. - Achamos que a mesma pessoa que matou David Kerr está planejando acabar com a gente também.

Karen respirou profundamente.

- O subchefe Lawson comentou comigo sobre o encontro com o Sr. Gilbey. E, como ele disse para o senhor - continuou ela, olhando para Alex -, são temores que não têm nenhum fundamento.

Esquisito bufou, exasperado.

- Ah, é? E se disséssemos à senhora que quem enviou as coroas foi Graham Macfadyen?

- Coroas? - perguntou Karen, desnorteada.

- A senhora não acabou de dizer que Lawson contou sobre o encontro com Alex? - desafiou Esquisito.

Alex interveio, imaginando por um momento como os pecadores conseguiam aturar Esquisito. Ele contou a Karen sobre os misteriosos arranjos de flores e ficou agradecido ao constatar que ela começava a levá-lo a sério.

- É, tenho que admitir que é uma coisa muita estranha mesmo. Mas não quer dizer que o Sr. Macfadyen esteja por aí matando pessoas.

- De que outro modo ele ficaria sabendo das mortes? - perguntou Alex, buscando sinceramente uma resposta.

- Esta é a questão, não é? - perguntou Esquisito.

- Ele pode ter lido a respeito nos jornais. A morte do Dr. Kerr foi amplamente divulgada. E imagino que não deve ter sido muito difícil ficar sabendo do Sr. Malkiewicz também. A internet tornou o mundo bem pequeno.

Alex experimentou a mesma sensação de desânimo novamente. Por que as pessoas resistiam tanto para enxergar algo que lhe parecia tão claro?

- Mas por que ele mandaria as coroas, a não ser que achasse que somos os responsáveis pela morte da mãe?

- Uma coisa é achar que vocês são culpados, outra é assassinato - ponderou Karen. - Entendo que o senhor esteja se sentindo pressionado. Mas, pelo que me contou, não há nenhum indício de que esteja correndo perigo.

Esquisito estava apoplético.

- Quantos de nós precisam morrer para que vocês comecem a nos levar a sério?

- Alguém ameaçou os senhores?

Esquisito lançou um olhar mal-humorado.

- Não.

- Alguém andou ligando e desligando para a casa de vocês?

- Não.

- Notaram alguém rondando a sua casa?

Esquisito olhou para Alex, que balançou a cabeça em um gesto negativo.

- Então, sinto muito, não tem nada que eu possa fazer.

- Tem, sim - disse Alex. - A senhora pode solicitar uma nova análise da tinta encontrada no cardigã de Rosie Duff.

Karen arregalou os olhos, surpresa.

- Como é que o senhor sabe da tinta?

A voz de Alex tinha um quê de frustração.

- Éramos testemunhas. Suspeitos, para todos os efeitos. Acha que não percebemos quando os seus colegas rasparam as nossas paredes e colaram fitas adesivas no nosso carpete? E então, detetive Pirie? Que tal tentar descobrir de verdade quem matou Rosie Duff?

Incomodada por aquelas palavras, Karen empertigou-se.

- É exatamente o que eu tenho feito nos últimos meses, senhor. E a opinião oficial é de que uma análise da tinta não valeria a pena em termos de custo e benefício, devido à possibilidade remota de chegarmos a alguma conclusão depois de tanto tempo.

A raiva que Alex estava contendo há dias subitamente veio à tona.

- Não valeria a pena? Se existe alguma possibilidade, por menor que seja, vocês deviam ir atrás dela - gritou ele. - Até parece que vocês têm outros testes caros para fazer. Ainda mais agora que perderam a única prova que poderia finalmente limpar os nossos nomes. A senhora tem ideia do que as pessoas fizeram conosco naquela época, por causa da incompetência da polícia? Vocês estragaram a nossa vida. Ele levou uma surra - Alex apontou para Esquisito. - Ziggy foi jogado dentro da Masmorra da Garrafa. Podia ter morrido. Mondo tentou se matar e Barney Maclennan morreu por causa disso. E se Jimmy Lawson não tivesse aparecido na hora certa, eu teria sido espancado também. Então, não me venha com esse papo de custo e benefício. Limite-se a fazer o seu maldito trabalho. - Alex virou-se e foi embora.

Esquisito continuou parado no mesmo lugar, olhando fixamente para Karen Pirie.

- Você ouviu o que ele disse - alertou ele. - Diga a Jimmy Lawson para puxar o anzol e manter a gente vivo.


38

James Lawson abriu o ventre e mergulhou as mãos na cavidade, segurando as entranhas escorregadias. Crispou os lábios em um esgar de nojo, sentindo o deslizar dos órgãos vitais contra a sua pele - um acinte à sua personalidade basicamente rabugenta. Removeu as tripas, certificando-se de que o sangue e o muco não avançassem o limite imposto pelas folhas de jornal que ele estendera. Então, juntou a truta com as outras três que havia pescado naquela tarde.

Nada mau para aquela época do ano, pensou ele. Talvez fritasse umas duas para o chá e guardasse as outras no pequeno frigobar do trailer. Dariam um bom café da manhã, antes de partir para o trabalho no dia seguinte. Levantou-se e ligou a bomba que fornecia água gelada para a pequena pia. Da próxima vez que viesse ao seu esconderijo no lago Leven, precisava trazer algumas garrafas de cinco litros sobressalentes. Esvaziara a última no tanque naquela manhã, e embora pudesse sempre contar com o fazendeiro local que alugava a área para ele em uma emergência, não gostava de abusar da sua boa vontade. Levara o seu trailer para aquele local havia vinte anos e jamais incomodara o fazendeiro. Preferia assim. Só ele, o rádio e uma pilha de romances policiais. Um lugar privativo, para fugir das pressões do trabalho e da vida doméstica, um lugar para renovar as suas energias.

Abriu uma lata de batatas, escorreu a água e começou a cortá-las. Enquanto esperava a frigideira aquecer o suficiente para colocar o peixe e as batatas, embrulhou as tripas no jornal e jogou tudo em um saco plástico. Após a refeição, adicionaria a pele e as espinhas no saco, daria um nó bem firme e deixaria nos degraus do trailer, para que fosse recolhido pela manhã. Não havia nada pior do que ter de dormir com o fedor dos restos do seu jantar.

Lawson colocou um naco de manteiga na frigideira, esperou derreter e então adicionou as batatas. Foi virando as que começavam a pegar cor e cuidadosamente colocou as duas trutas na frigideira, adicionando um toque de limão espremido. O som familiar da fritura estalando o animou, o cheiro era a promessa do que estava por vir. Quando ficou pronto, transferiu para um prato e sentou-se à mesa para curtir o seu jantar. O momento não podia ser mais perfeito; o tema familiar do seriado The Archers começou a tocar no rádio assim que ele deslizou a faca na superfície crocante da primeira truta.

Estava na metade da refeição quando ouviu algo que não deveria ouvir. A porta de um carro batendo. O rádio ocultara o som do motor se aproximando, mas o barulho da porta foi alto o suficiente para se impor ao som da novela radiofônica. Lawson ficou momentaneamente paralisado, depois pegou o rádio e o desligou, concentrando-se para tentar ouvir alguma coisa lá de fora. Quase imperceptivelmente, abriu uma fresta da cortina. Próximo ao portão do campo, conseguiu distinguir o formato de um carro de tamanho pequeno ou médio. Talvez um Golf, um Astra ou um Focus. Era difícil ser mais preciso naquela escuridão. Observou a distância entre o portão e o seu trailer. Nenhum movimento.

A batida na porta fez o seu coração pular dentro do peito. Quem diabos estava lá fora? Pelo que sabia, as únicas pessoas que conheciam a localização do seu recanto de pesca eram o fazendeiro e a sua esposa. Nunca levara colegas ou amigos lá. Quando saíam para pescar, ele preferia encontrá-los no litoral, de barco, determinado a manter a sua privacidade.

- Um momento - gritou ele, levantando-se e caminhando em direção à porta, parando apenas para pegar a sua faca afiada de destrinchar peixes. Diversos criminosos poderiam achar que tinham contas a acertar e ele não seria pego desprevenido. Mantendo um dos pés atrás da porta, ele abriu uma fresta da porta.

Na nesga de luz que banhou os degraus, estava Graham Macfadyen. Lawson demorou alguns segundos para reconhecê-lo. Perdera peso desde a última vez em que haviam se encontrado. Os seus olhos queimavam febris sobre bochechas esquálidas e o seu cabelo estava escorrido e oleoso.

- Que diabos você está fazendo aqui? - perguntou Lawson.

- Preciso falar com você. Disseram que você tinha tirado uns dias de folga, então imaginei que estivesse aqui. - O tom de Macfadyen era prosaico, como se o fato de um civil bater na porta do trailer de pesca do subchefe de polícia fosse uma coisa absolutamente normal.

- Como foi que você me localizou aqui? - indagou Lawson, a ansiedade transformando-se em raiva.

Macfadyen deu de ombros.

- Hoje em dia, a gente acha tudo o que quiser. Você deu uma entrevista para o Fife Record na última vez em que foi promovido. Está no site deles. Você disse que gostava de pescar e que tinha um cantinho no lago Leven. Nem todos os caminhos desembocam na beira-mar. Dirigi até localizar o seu carro.

Havia algo nos seus modos que fez Lawson gelar até os ossos.

- Isto não é apropriado - disse ele. - Se você quer discutir assuntos de trabalho, procure-me no escritório.

Macfadyen parecia contrariado.

- O assunto é importante, não posso esperar. E não vou falar com outra pessoa, você entende a minha situação, só posso falar com você mesmo. Então por que não me escutar? Você precisa escutar, só eu posso te ajudar.

Lawson começou a fechar a porta, mas Macfadyen levantou a mão e a empurrou.

- Vou ficar aqui do lado de fora gritando se você não me deixar entrar - ameaçou ele. O seu tom de voz neutro não combinava em nada com a sua expressão determinada.

Lawson pesou os prós e os contras. Macfadyen não lhe parecia um tipo violento. Não era possível ter certeza absoluta. De qualquer maneira, estava com a faca, caso alguma coisa acontecesse. Era melhor ouvir o que ele tinha a dizer e ficar logo livre. Abriu a porta e recuou, sem virar as costas para a sua visita desagradável.

Macfadyen o seguiu para dentro do trailer. Em uma transtornada perversão do discurso normal, ele sorriu e comentou:

- Como é aconchegante aqui. - Então, o seu olhar recaiu sobre a mesa e ele ensaiou um pedido de desculpas. - Vejo que atrapalhei o seu lanche. Sinto muito.

- Tudo bem - mentiu Lawson. - O que é que você tem para me dizer?

- Eles estão se reunindo. Estão querendo ficar juntos para tentar evitar o destino que lhes espera.

- Quem está se reunindo? - perguntou Lawson.

Macfadyen suspirou, como se estivesse frustrado por estar lidando com um estagiário pateta.

- Os assassinos da minha mãe - disse ele. - Mackie está de volta. Está morando com Gilbey. É a única maneira de se sentirem seguros. Mas estão enganados, é claro. Isso não irá protegê-los. Jamais acreditei em destino, mas é a única maneira de descrever o que está acontecendo com o quarteto ultimamente. E Gilbey e Mackie devem estar sentindo a mesma coisa. Devem estar percebendo que o tempo deles está chegando ao fim, assim como chegou ao fim para os seus amigos. E obviamente está. A não ser que paguem o preço. E reunirem-se assim é como uma confissão. Você tem que enxergar isso.

- Você pode até estar certo - disse Lawson, tentando uma conciliação. - Mas este não é o tipo de confissão que funciona em um tribunal.

- Eu sei disso - respondeu Macfadyen, impaciente. - Mas eles não podiam estar mais vulneráveis. Estão com medo. Está na hora de usarmos esta fraqueza para criar uma desavença entre eles. Tenho observado os dois. Podem surtar a qualquer momento.

- Não temos nenhuma prova - disse Lawson.

- Eles vão confessar. Que outra prova você precisa? - Macfadyen não tirava os olhos do policial.

- As pessoas tendem a pensar assim. Mas pela lei escocesa, uma confissão por si só não é suficiente para condenar uma pessoa. Precisamos de provas corroborativas.

- Mas isso não está certo - protestou Macfadyen.

- É a lei.

- Você tem que fazer alguma coisa. Faça com que eles confessem e depois encontre uma prova para fundamentar a acusação no tribunal. Afinal de contas, é o seu trabalho - disse Macfadyen, levantando a voz.

Lawson balançou a cabeça.

- Não é assim que as coisas funcionam. Olha, prometo que vou procurar Mackie e Gilbey. Mas não posso fazer mais nada.

Macfadyen fechou a mão direita em um punho.

- Você não se importa, não é mesmo? Ninguém se importa.

- Me importo, sim - disse Lawson. - Mas tenho que agir dentro da lei. E o senhor também.

Macfadyen produziu um som estranho no fundo da garganta, como um cão engasgado com um osso de galinha.

- Esperava que você me compreendesse - disse ele friamente, segurando a maçaneta e abrindo a porta, que se escancarou em um solavanco e bateu contra a parede.

E então ele partiu, engolido pela escuridão da noite. Um frio úmido invadiu o calor aconchegante do trailer, abafando o cheiro rançoso de comida e o substituindo pelo odor penetrante do pântano. Lawson continuou parado na porta, mesmo depois de o carro de Macfadyen ter partido erraticamente pela estrada, e os seus olhos eram como duas poças negras de preocupação.

Lynn foi o passaporte deles para Jason McAllister. E ela não estava disposta a deixar Davina com ninguém, nem mesmo com Alex. Por isso, o que deveria ser uma corriqueira viagem matinal pela Ponte de Allan transformou-se em uma operação complexa. Era incrível o que precisava acompanhar um bebê, pensou Alex enquanto fazia a sua terceira e última viagem até o carro, carregando encurvado a cadeirinha e Davina. Carrinho, bolsa com fraldas, lenços, babadores, duas mudas de roupa, só por precaução. Mantas sobressalentes, só por precaução. Um blusão limpo para Lynn, porque nem sempre o bebê golfava no babador. O canguru. Era de admirar que não tivesse arrumado um espaço no carro para colocar a pia da cozinha também.

Afivelou o cinto de segurança sobre a cadeirinha e testou para ver se estava seguro. Nunca se preocupara com a firmeza dos cintos de segurança antes, mas agora se pegava questionando se eles eram de fato confiáveis em caso de batida. Inclinou-se para dentro do carro, ajeitou o chapeuzinho de Davina e beijou a sua filha adormecida. Conteve a respiração, apreensivo, ao ver que ela se mexia. Que ela não vá chorando durante o caminho todo, pediu ele. Não saberia lidar com a culpa.

Lynn e Esquisito juntaram-se a ele e os três entraram no carro. Alguns minutos depois, já estavam na autoestrada. Esquisito deu um tapinha no ombro de Alex.

- Dá para andar mais rápido do que quarenta quilômetros por hora aqui, sabia? - disse ele. - Vamos nos atrasar.

Contendo a preocupação com a sua carga valiosa, Alex acelerou, obediente. Estava tão ansioso quanto Esquisito para dar prosseguimento àquela investigação. E Jason McAllister parecia ser a pessoa perfeita para ajudá-los a alcançar a próxima etapa. O trabalho de Lynn como restauradora de pinturas para as galerias escocesas fez com que ela se tornasse uma especialista no tipo de tinta usado pelos artistas de diferentes períodos. E exigiu também que ela arrumasse um outro especialista para analisar as amostras do original, para que ela pudesse ser o mais precisa possível. E, além disso, às vezes a autenticidade de uma determinada obra de arte era duvidosa. Então as amostras de tinta tinham de ser avaliadas para verificar se faziam parte do período em questão e se eram compatíveis com os materiais usados pelo mesmo pintor em outros trabalhos, nos quais a procedência era inquestionável. O sujeito que ela encontrou para auxiliá-la na parte científica de suas investigações foi Jason McAllister.

Ele trabalhava em um laboratório forense particular, próximo à Universidade de Stirling. Passara a maior parte da sua vida profissional analisando fragmentos de tinta de acidentes na estrada, ou para a polícia, ou para seguradoras. Ocasionalmente, distraía-se com um caso de homicídio, estupro ou lesão corporal grave, mas estas ocasiões eram raras demais para os talentos variados de Jason.

Na inauguração de uma exposição de Poussin, ele procurou Lynn e contou a ela que era apaixonado por pintura. No início, ela achou aquele jovem nerd meio pretensioso, querendo mostrar intimidade com a arte. Depois, percebeu que ele estava realmente falando a verdade. Nada mais, nada menos. O que o entusiasmava não era o que estava representado na tela; era a estrutura do material usado para produzi-la. Ele lhe deu o seu cartão e fez com que ela prometesse que ia entrar em contato da próxima vez que tivesse um problema. Garantiu diversas vezes que era melhor do que a pessoa que estava trabalhando para ela, independentemente de quem fosse.

Jason deu sorte naquela noite. Lynn estava enjoada do sujeito bobão e pomposo com quem fora forçada a trabalhar anteriormente. Ele era um daqueles tipos da antiga de Edimburgo, que não conseguiam deixar de tratar as mulheres com condescendência. Ainda que o seu cargo fosse de técnico de laboratório, tratava Lynn como se ela fosse uma subordinada, cuja opinião não tinha a menor relevância. Com uma restauração importante à frente, Lynn estava sofrendo com a ideia de ter de trabalhar com ele novamente. Jason parecia um presente dos deuses. Desde o início, ele não a subestimou. Pelo contrário, o problema parecia ser justamente o oposto. Ele tinha a mania de achar que estavam no mesmo patamar e Lynn perdeu a conta das vezes que teve de pedir para ele ir com calma e falar em um idioma que ela compreendesse. Mas mesmo assim, preferia isso a ser julgada como inferior.

Quando Alex e Esquisito chegaram em casa com um saco com amostras de tinta, Lynn passou dez minutos ao telefone com Jason. Como ela já imaginava, ele agiu como uma criança que acaba de saber que vai passar as férias na Disneylândia.

- Tenho uma reunião bem cedo, mas consigo me liberar lá pelas dez.

Conforme Alex havia sugerido, ela tentou informar que pagariam pelo seu serviço por fora. Mas ele descartou a oferta.

- Para que servem os amigos? - ponderou ele. - Além do mais, estou de saco cheio de tinta de carro. Você vai me salvar de uma morte por tédio. Traz isso logo, mulher!

O laboratório ficava em um prédio surpreendentemente moderno e bonito, que ocupava o seu próprio terreno na rua, com a fachada de tijolos marrons. As janelas eram altas e todos os ângulos de aproximação eram monitorados com câmeras de segurança. Tiveram de ultrapassar duas portas antes de chegar à recepção.

- Já estive em presídios menos seguros do que isso aqui - comentou Esquisito. - O que eles fazem, afinal? Fabricam armas de destruição em massa?

- Prestam serviços forenses para a Coroa, como autônomos. E para a Defensoria também - explicou Lynn enquanto esperavam por Jason. - Então, precisam demonstrar que qualquer prova sob seus cuidados será armazenada com segurança.

- Quer dizer que fazem exames de DNA e tudo? - perguntou Alex.

- Por quê? Está em dúvida sobre a sua paternidade? - brincou Lynn.

- Quando ela se transformar em uma adolescente infernal a gente conversa - disse Alex. - Não, só estou curioso.

- Fazem DNA, exames de fios de cabelo, fibras e tintas - disse Lynn. Enquanto ela falava, um sujeito parrudo se aproximou e pousou a mão em seu ombro.

- Você trouxe o bebê - disse ele, inclinando-se para olhar dentro do carrinho. - Ei, ela é linda. - Ele abriu um sorriso para Lynn. - A maioria dos bebês dá a impressão de que um cachorro sentou no rosto deles. Mas ela parece uma pessoa de verdade, só que bem pequenininha. - Ele ergueu-se. - Eu sou o Jason - disse ele, olhando indeciso para Esquisito e Alex.

Os dois se apresentaram. Alex observou a camisa do time Stirling Albion, a calça cargo com os bolsos abarrotados e os cabelos arrepiados, cujas pontas exibiam um tom de loiro nada natural. Julgando pela aparência, Jason parecia um daqueles sujeitos que ficavam bem à vontade em um pub, com uma garrafa de cerveja cara na mão. Mas os seus olhos eram atentos e observadores e o seu corpo calmo e controlado.

- Venham comigo - instruiu Jason. - Deixe-me levar o bebê - acrescentou ele, apanhando o carrinho. - Ela é uma princesinha.

- Você talvez não dissesse isso às três da manhã - disse Lynn, obviamente coruja.

- Talvez não. A propósito, sinto muito pelo seu irmão - disse ele, olhando de esguelha para Lynn, desconfortável. - Deve ter sido horrível.

- Não tem sido fácil mesmo - disse ela, enquanto seguiam Jason por um corredor estreito, com as paredes pintadas de azul-claro. Ao fim do corredor, Jason os conduziu por um laboratório impressionante. Equipamentos misteriosos reluziam por todos os cantos. As bancadas eram impecáveis e arrumadas e o técnico que analisava algo que Alex imaginou ser um microscópio futurista não mexeu um músculo quando eles entraram.

- Parece que estou contaminando o lugar só com a minha respiração - comentou ele.

- Com tinta é bem mais tranquilo - disse Jason. - Se eu trabalhasse com DNA, você não poderia nem estar aqui. Então, expliquem exatamente o que vocês trouxeram para mim.

Alex resumiu a conversa que haviam tido com Soanes na véspera.

- Soanes não acha que temos muita chance de encontrar um resultado para a tinta, mas talvez você possa descobrir alguma coisa pelo formato dos pingos - acrescentou ele.

Jason analisou os slides.

- Parece que foram bem conservados, o que com certeza ajuda.

- O que você vai fazer com eles? - perguntou Esquisito.

Lynn resmungou.

- Você não devia ter perguntado isso.

Jason achou graça.

- Ignore Lynn, ela adora fingir que é ignorante. Temos diversas técnicas para analisar o condutor e o pigmento. E também usamos a microespectrofotometria para determinar a cor, para podermos definir de forma mais acurada a composição das amostras de tinta. Espectrometria infravermelha por transformação de Fourier, Cromatografia a gás e Microscopia eletrônica de varredura. Coisas assim.

Esquisito estava atordoado.

- E para que serve cada uma dessas? - perguntou Alex.

- Várias coisas. Se for um fragmento, podemos saber de que tipo de superfície ele veio. Com tinta de carro, analisamos as diferentes camadas e possuímos um banco de dados para consulta, onde descobrimos a marca, o modelo e o ano de fabricação. Com gotículas, é possível fazer basicamente a mesma coisa, a não ser os detalhes de superfície, uma vez que a tinta jamais esteve sobre ela.

- Quanto tempo isso demora? - perguntou Esquisito. - É que estamos com um pouquinho de pressa.

- Vou levar o tempo necessário. Talvez uns dois dias. Vou tentar ser o mais rápido possível. Mas não quero fazer nada menos do que um trabalho perfeito. Se vocês estiverem certos, existe a possibilidade de pararmos no tribunal dando o nosso testemunho e eu não quero fazer um trabalho porco. Vou fazer um recibo, atestando que apanhei as amostras com vocês, por precaução. Vai que alguém resolve dizer o contrário mais para a frente...

- Obrigada, Jason - disse Lynn. - Estou te devendo uma.

Ele sorriu.

- Eu realmente gosto disso em uma mulher.


39

Jackie Donaldson já havia escrito sobre aquela batida na porta de madrugada, a escolta até a viatura de prontidão na rua, o percurso por ruas desertas e a terrivelmente enervante espera em uma sala confinada que recendia a outras pessoas. Nunca lhe passara pela cabeça que um dia estaria de fato vivenciando aquela situação, e não escrevendo sobre ela.

Acordou com o barulho do interfone. Olhou a hora - 03:47 - e dirigiu-se trôpega de sono até o aparelho, vestindo o robe. Quando o detetive-inspetor Darren Heggie se anunciou, primeiro ela pensou que algo terrível tivesse acontecido com Hélène. Não conseguia entender por que ele queria subir àquela hora da madrugada. Mas Jackie não discutiu. Sabia que seria uma perda de tempo.

Heggie adentrou no seu flat com uma mulher vestida à paisana e dois policiais uniformizados, que permaneceram na retaguarda, levemente desconfortáveis. Heggie não perdeu tempo com conversa fiada.

- Jacqueline Donaldson, estou detendo você por suspeita de conspiração para um homicídio. Você poderá ficar detida por um período de até seis horas sem prisão e tem direito de entrar em contato com um advogado. Não precisa dizer nada, além do seu nome e do seu endereço. Você compreende o motivo da sua detenção?

Ela deu um sorrisinho debochado.

- Compreendo que o senhor tem todo o direito de fazer o que está fazendo. Mas não entendo por que está fazendo.

Jackie não simpatizara com Heggie de cara. O seu queixo pontudo, os olhos estreitos, o corte de cabelo ultrapassado, o terno barato e o andar pretensioso. Mas ele havia agido de maneira educada, quase laudatória, nos seus encontros anteriores. Naquele dia, porém, ele adotara uma eficiência brusca.

- Por favor, troque de roupa. A policial ficará com você. Estamos esperando lá fora. - Heggie deu as costas e enxotou os policiais escada abaixo.

Determinada a não demonstrar o seu constrangimento, Jackie voltou para o local do loft onde ficava a sua cama. Apanhou a primeira camiseta que viu, um casaco na gaveta e recolheu a calça jeans das costas de uma cadeira. Então, mudou de ideia. Se as coisas piorassem, havia a possibilidade de ter de se apresentar a um juiz antes de poder trocar de roupa. Vasculhou o fundo do armário, em busca do seu único terno decente. Jackie deu as costas para a policial, que se recusava a tirar os olhos dela, e se vestiu.

- Preciso ir ao banheiro - disse ela.

- Você tem que deixar a porta aberta - retrucou a mulher, impassível.

- Você acha que eu vou tomar um pico ou algo assim?

- É para a sua própria proteção - respondeu ela com enfado.

Jackie fez o que tinha de fazer e depois ajeitou o cabelo para trás, molhando-o com água gelada. Olhou-se no espelho, imaginando quando poderia fazer aquilo novamente. Agora sabia exatamente o que sentiam as pessoas sobre quem havia escrito. E aquela era uma sensação horrível. O seu estômago revirava, como se estivesse há dias sem dormir, e a sua respiração parecia entalada na garganta.

- Quando é que vou poder ligar para o meu advogado? - perguntou ela.

- Quando chegarmos à delegacia - respondeu a policial.

Meia hora depois, estava trancafiada em uma sala apertada com Tony Donatello, um advogado criminal de terceira geração que ela conhecia desde os seus primeiros meses como repórter em Glasgow. Estavam mais habituados a se encontrar em bares do que em celas, mas Tony foi educado e não comentou nada a respeito. Também era sensível o suficiente para não refrescar a memória de Jackie e lembrar que da última vez que a representara em uma delegacia, ela acabara sendo fichada.

- Eles querem te interrogar sobre a morte de David - explicou ele. - Mas imagino que você já saiba disso.

- É o único assassinato com o qual estou remotamente conectada. Você ligou para Hélène?

Tony deu uma tosse curta e seca.

- Parece que ela também foi chamada.

- Devia ter imaginado. E aí, qual vai ser a nossa estratégia?

- Você fez alguma coisa recentemente que possa ser interpretada como relacionada com a morte de David? - perguntou Tony.

Jackie balançou a cabeça.

- Nada. Não há nenhuma conspiração sórdida aqui, Tony. Hélène e eu não tivemos nada a ver com o assassinato de David.

- Jackie, eu não tenho nada a ver com Hélène. A minha cliente é você e eu tenho que me preocupar com os seus atos. Se houve qualquer coisa, por menor que seja, um comentário casual, um e-mail impertinente, qualquer coisa, isso pode te complicar e aí não vamos responder a pergunta nenhuma. Vamos ter que recorrer ao "nada a declarar". Mas se você tem certeza de que não precisamos nos preocupar com nada, vamos responder. E então?

Jackie mexeu no seu piercing de sobrancelha.

- Olha, tem uma coisa que você precisa saber. Eu não estava com Hélène o tempo todo. Dei uma saída, de mais ou menos uma hora, ou um pouco mais. Tive que ir me encontrar com uma pessoa. Não posso dizer quem era, mas acredite, não serve como álibi.

Tony parecia preocupado.

- Isso não é nada bom - disse ele. - Talvez seja melhor partir para o "nada a declarar" mesmo.

- Não, não quero isso. Você sabe que vai pegar supermal para mim.

- Você é quem sabe. Mas, diante das circunstâncias, eu acho que o silêncio seria a melhor opção.

Jackie parou e pensou por alguns minutos. Não conseguia imaginar como a polícia poderia saber da sua saída.

- Vou falar com eles - disse ela, finalmente.

A sala de interrogatório não era nenhuma surpresa para alguém versado na gramática dos seriados policiais na tevê. Jackie e Tony sentaram do lado oposto de Heggie e da detetive que o acompanhara até o loft. Naquela proximidade, a loção pós-barba de Heggie exalava um odor rançoso. Duas fitas cassete estavam engatilhadas juntinhas no gravador no canto da mesa. Uma vez terminadas as formalidades, Heggie foi direto ao assunto.

- Há quanto tempo você conhece Hélène Kerr?

- Há uns quatro anos. Conheci ela e o marido em uma festa dada por um amigo em comum.

- E qual é o seu relacionamento com ela?

- Antes de qualquer outra coisa, somos amigas. Ocasionalmente, somos amantes.

- Há quanto tempo vocês são amantes? - Os olhos de Heggie pareciam famintos, como se a mera ideia de Jackie e Hélène juntas fosse potencialmente tão satisfatória quanto uma confissão criminal.

- Há uns dois anos.

- E com que frequência se encontravam?

- Passávamos uma noite juntas, praticamente toda semana. Fazíamos sexo na maioria das vezes, mas nem sempre. Como eu disse, a amizade é o componente mais importante do nosso relacionamento. - Jackie estava achando mais difícil do que havia imaginado ficar calma e impassível diante do olhar de avaliação dos interrogadores. Mas sabia que tinha de manter a calma; qualquer rompante seria interpretado como um indício de algo mais do que mero nervosismo.

- David Kerr sabia que você estava dormindo com a mulher dele?

- Acho que não.

- Você deve ter ficado chateada com essa história de ela ter continuado com ele - sugeriu ele.

Uma observação perspicaz, pensou ela. E que estava incomodamente próxima da verdade. No fundo do seu coração, Jackie sabia que não lamentava a morte de David Kerr. Amava Hélène e estava cansada das migalhas que ela lhe oferecia. Há muito tempo que ela queria muito mais.

- Desde o início eu já sabia que ela não ia deixar o marido. E, por mim, tudo bem.

- Isso é difícil de acreditar - disse ele. - Você estava sendo preterida pelo marido dela e isso não te incomodava?

- Não era uma rejeição. O acordo era satisfatório para nós duas. - Jackie inclinou-se para a frente, torcendo para que a sua linguagem corporal transmitisse franqueza. - Era só um passatempo. Eu gosto da minha liberdade. Não quero me amarrar a ninguém.

- É mesmo? - Ele consultou as suas anotações. - Então o vizinho que ouviu vocês duas discutindo aos berros porque ela não queria deixar o marido está mentindo?

Jackie lembrou-se da discussão. Durante o período em que estavam juntas, haviam brigado pouquíssimas vezes, por isso aquela fora tão marcante. Havia alguns meses, convidara Hélène para ir com ela à festa de quarenta anos de uma amiga. Hélène olhara para ela sem poder acreditar no que tinha acabado de ouvir. Aquilo era algo que escapava às regras, um assunto que não devia sequer ter sido cogitado. Todas as frustrações de Jackie vieram à tona e elas descambaram para uma discussão calorosa. A coisa só mudou de figura abruptamente quando Hélène ameaçou ir embora e não voltar nunca mais. Aquela era uma perspectiva insuportável para Jackie e ela acabou cedendo. Mas não estava disposta a compartilhar a história com Heggie e a sua subalterna.

- Deve estar mentindo, sim - disse ela. - Não dá para escutar um "ai" através das paredes desses lofts.

- Ao que parece, dá para escutar muito bem se as janelas estiverem abertas - disse Heggie.

- E quando foi que se deu esta suposta conversa? - interrompeu Tony.

Heggie consultou novamente as suas anotações.

- No final de novembro.

- O senhor está realmente sugerindo que a minha cliente estava com as janelas abertas no final de novembro em Glasgow? - retrucou ele, debochado. - É só isso que o senhor tem? Fofoca e disse me disse de vizinhos enxeridos e cheios de imaginação?

Heggie encarou o advogado por um bom tempo antes de tornar a falar.

- A sua cliente tem um histórico de violência.

- Não, não é verdade. Ela foi condenada por ter agredido um policial em uma manifestação anticontribuição autárquica, onde um dos seus colegas a confundiu entusiasticamente com um dos manifestantes. Isso está longe de ser um histórico de violência.

- Ela deu um soco na cara do policial.

- Sim, depois que ele a arrastou pelos cabelos. Se tivesse sido uma agressão tão violenta quanto o senhor está falando, por que ela teria recebido apenas seis meses de sursis? Se isso é tudo o que o senhor tem contra ela, não vejo mais motivos para continuar detendo a minha cliente.

Heggie lançou um olhar irritado para os dois.

- Você estava com a Sra. Kerr na noite em que o marido dela morreu?

- Estava - respondeu Jackie, cautelosa. Era ali que as coisas começavam a ficar perigosas. - Era a noite em que costumávamos nos encontrar. Ela chegou por volta das seis e meia. Jantamos peixe com batatas, que eu saí para comprar, bebemos um pouco de vinho e depois fomos para a cama. Ela saiu lá pelas onze. Tudo como de costume.

- Alguém pode confirmar isso?

Jackie levantou as sobrancelhas.

- Não sei quanto ao senhor, inspetor, mas quando eu faço amor com alguém não costumo convidar os vizinhos. O telefone tocou algumas vezes, mas eu não atendi.

- Temos uma testemunha que afirma tê-la visto caminhando até o seu carro por volta das nove horas naquela noite - disse Heggie, triunfante.

- Ele deve ter confundido a data - disse Jackie. - Estive com Hélène a noite inteira. Será que esse é outro dos meus vizinhos homofóbicos que o senhor vem tentando convencer a fazer parte das testemunhas de acusação?

Tony agitou-se em sua cadeira.

- O senhor ouviu a resposta da minha cliente. Se não existe nada de novo para acrescentar, sugiro que a conversa termine por aqui.

Heggie respirou profundamente.

- Se o senhor permitir, Sr. Donatello, eu gostaria de apresentar o depoimento de uma testemunha que nós colhemos ontem.

- Posso dar uma olhada nisso? - perguntou Tony.

- Tudo a seu tempo. Denise?

A detetive abriu a pasta que apoiava no colo e colocou uma folha de papel na frente dele. Heggie umedeceu os lábios e disse:

- Prendemos um traficantezinho chinfrim ontem. E ele estava disposto a oferecer qualquer informação que pudesse melhorar a sua imagem conosco. Senhorita Donaldson, conhece Gary Hardie?

O coração de Jackie pulou no seu peito. O que aquilo tinha a ver com o caso? Não havia se encontrado com Gary Hardie naquela noite, nem com nenhum dos seus colegas.

- Sei quem ele é - enrolou ela. Estava longe de ser uma confissão; qualquer um que lesse os jornais ou visse tevê na Escócia teria reconhecido o nome. Algumas semanas antes, não sem o devido sensacionalismo, Gary Hardie escapara ileso da Suprema Corte em Glasgow após um dos casos de homicídio mais badalados dos últimos tempos naquela cidade. Durante o julgamento, ele havia sido chamado de "senhor das drogas", "um sujeito que não tem o menor respeito pela vida humana" e "uma mente do crime absolutamente cruel". Entre as alegações apresentadas ao júri, estava a de que ele havia pagado um matador profissional para eliminar um concorrente.

- Você conhece Gary Hardie pessoalmente?

Jackie sentiu o suor no meio das costas.

- Em um contexto estritamente profissional, sim.

- Estamos falando da sua profissão ou da dele? - indagou Heggie, aproximando a sua cadeira da mesa.

Jackie girou os olhos, debochada.

- Inspetor, faça-me o favor. Sou jornalista, o meu trabalho é entrevistar as pessoas que estão nas manchetes dos jornais.

- Quantas vezes você esteve com Gary Hardie? - pressionou Heggie.

Jackie soltou o ar pelo nariz.

- Três vezes. Entrevistei-o há um ano para uma matéria que escrevi sobre as gangues de Glasgow para uma revista. Depois, entrevistei novamente na época em que ele aguardava o julgamento, para uma matéria que eu pretendia escrever quando o julgamento terminasse. E tomei um drinque com ele duas semanas atrás. É importante manter os contatos, na minha profissão. É assim que eu consigo histórias que ninguém consegue.

Heggie parecia cético. Ele deu uma olhada no depoimento.

- Onde foi que vocês se encontraram?

- No Ramblas. É um barzinho em...

- Eu sei onde fica o Ramblas - interrompeu Heggie. Tornou a olhar para o papel à sua frente. - Durante o encontro, um envelope trocou de mãos. Das suas para as de Hardie. Um envelope bem grosso, senhorita Donaldson. Poderia nos dizer o que estava dentro do envelope?

Jackie estava tentando disfarçar o seu choque. Tony agitava-se ao seu lado.

- Gostaria de conversar a sós com a minha cliente - disse ele, apressado.

- Não, Tony, está tudo sob controle - respondeu Jackie. - Não tenho nada a esconder. Quando eu falei com Gary, para marcar o encontro, ele me disse que alguém havia mostrado a matéria a ele e que ele havia gostado da foto usada pela revista. Ele quis umas cópias. Então, eu mandei fazer as cópias e levei para o Ramblas. Se o senhor não acredita, pode checar com o laboratório de revelação de fotos. Eles não revelam muitas fotos em preto e branco, devem lembrar, sim. Também tenho o recibo.

Tony interveio prontamente.

- Está vendo, inspetor? Nada de mais. Só uma jornalista tentando agradar um bom contato. Se é só isso o que o senhor tem de novidade, não vejo motivos para deter a minha cliente aqui nem mais um minuto.

Heggie parecia levemente desapontado.

- Você pediu para Gary Hardie matar David Kerr? - perguntou ele.

Jackie fez um gesto negativo com a cabeça.

- Não.

- Você pediu a Gary Hardie para colocá-la em contato com alguém para matar David Kerr?

- Não, isso nunca passou pela minha cabeça. - Jackie levantara o rosto, suspendendo o queixo, vencendo o medo.

- Você nunca pensou em como a vida seria melhor sem David Kerr? E como seria fácil dar um jeito nisso?

- Isso é ridículo. - Ela bateu as mãos sobre a mesa. - Por que o senhor está perdendo tempo comigo, quando deveria estar fazendo o seu trabalho?

- Estou fazendo o meu trabalho - disse ele, calmamente. - Por isso a senhora está aqui.

Tony olhou para o seu relógio.

- Não por muito tempo, inspetor. Ou você prende a minha cliente, ou vai ter que liberá-la. O interrogatório acabou. - Ele apoiou a mão sobre a mão de Jackie.

Um minuto parece muito tempo em uma sala de interrogatórios. Heggie cultivou a pausa, encarando Jackie fixamente. Depois, afastou a cadeira para trás.

- O interrogatório terminou às seis e vinte e cinco. A senhora está liberada - disse ele, com má vontade na voz. Apertou um botão, desligando os gravadores. - Não acredito em você, senhorita Donaldson - disse ele, levantando-se. - Acho que você e Hélène Kerr tramaram a morte de David Kerr. Acho que você queria exclusividade. E que naquela noite você saiu de casa para pagar o sujeito contratado para fazer o serviço. E pretendo provar tudo isso. - Ele parou na soleira da porta e virou para trás. - Isso é apenas o começo.

Assim que eles se foram, fechando a porta, Jackie cobriu o rosto com as mãos.

- Meu Deus - disse ela.

Tony ajeitou os seus pertences e depois colocou o braço em volta dos ombros de Jackie.

- Você foi nota dez. Eles não têm nada contra você.

- Já vi pessoas encasquetando com menos provas do que eles têm contra mim. Estão determinados. Não vão desistir enquanto não arrumarem alguém que consiga testemunhar que me viu fora de casa naquela noite. Meu Deus. Não acredito que foram desencavar Gary Hardie justo agora.

- Gostaria que você tivesse comentado sobre ele comigo antes - disse Tony, afrouxando a gravata e se alongando.

- Desculpe. Não tinha a menor ideia de que iam falar nisso. Não perco o meu tempo pensando em Gary Hardie. E ele nem tem nada a ver com isso. Você acredita em mim, não é, Tony? - Ela parecia aflita. Se não conseguia convencer o seu próprio advogado, não ia ter a menor chance com a polícia.

- No que eu acredito não interessa. O que importa mesmo é o que eles podem provar. E, no momento, não têm contra você nada que um bom advogado não consiga derrubar em questão de minutos. - Ele bocejou. - Programão para uma madrugada, hein?

Jackie ficou de pé.

- Vamos sair desse buraco. Até o ar parece contaminado.

Tony sorriu.

- Alguém devia dar uma loção pós-barba decente para Heggie no próximo aniversário dele. A dele parece um gambá no cio.

- Ele ia precisar de bem mais do que um Paco Rabanne da vida para se tornar um membro da raça humana - debochou Jackie. - Hélène está detida aqui na delegacia também?

- Não. - Tony suspirou. - Olha, talvez seja melhor vocês duas se afastarem um pouco agora.

Jackie o olhou com uma expressão que combinava mágoa e decepção.

- Por quê?

- Porque se vocês não forem vistas juntas, fica mais difícil provar que estão mancomunadas. Juntas, dá a impressão de que estão bolando estratégias para contar sempre a mesma história.

- Isso é absurdo - respondeu ela com firmeza. - Porra, nós somos amigas. Dormimos juntas. Onde vamos buscar apoio e conforto? Se nos evitarmos, vai parecer que estamos com algum problema. Se Hélène me quiser por perto, é lá que eu vou estar. E ponto final.

Ele deu de ombros.

- Você é quem sabe. Os meus conselhos são pagos, quer você aceite ou não. - Ele abriu a porta e a conduziu até o corredor. Jackie assinou um documento para recuperar os seus pertences e caminharam até a saída juntos.

Tony abriu a porta que conduzia à rua e estacou. Apesar da hora, três câmeras e um punhado de jornalistas estavam amontoados na calçada. Assim que avistaram Jackie, começaram a gritar. "E aí, Jackie, você foi presa?", "Você e a sua namorada contrataram um assassino profissional?", "Como você está se sentindo como suspeita de um assassinato?".

Aquele era o tipo de cena na qual ela já tomara parte diversas vezes, embora jamais a tivesse observado daquela perspectiva. Jackie achava que não havia nada pior do que ser arrastada da cama no meio da noite e tratada como uma criminosa pela polícia. Agora, sabia que estava enganada. A traição, descobrira ela, tinha um gosto infinitamente mais amargo.


40

A escuridão no quarto de Graham Macfadyen era neutralizada pela luz fantasmagórica dos monitores. Nas duas telas que não estavam sendo usadas no momento, protetores de tela exibiam um apanhado de imagens que ele escaneara. Fotografias granuladas em preto e branco da sua mãe, tiradas dos jornais; fotos contemplativas de Hallow Hill; a lápide do cemitério e as fotografias que ele batera de Alex e de Esquisito nos últimos dias.

Macfadyen estava diante do seu computador, redigindo um documento. A princípio, planejara apenas uma reclamação formal sobre a inércia de Lawson e seus colegas. Mas uma breve pesquisa no site do Poder Executivo Escocês atestara a inutilidade do seu gesto. Qualquer reclamação que fizesse seria investigada pela própria polícia de Fife e eles dificilmente criticariam as atitudes do seu subchefe. Queria resultados, não ilusões.

Decidiu então revelar a história completa e mandar cópias para parlamentares e para toda a imprensa escocesa. Mas, quanto mais escrevia, mais tinha medo de ser rechaçado como mais um adepto de teorias conspiratórias. Ou algo pior.

Macfadyen mordiscou a pele ao redor das suas unhas e ponderou sobre o que devia fazer afinal. Acabara de escrever a sua crítica devastadora sobre a incompetência da polícia de Fife e a sua recusa de levar a sério a presença de dois assassinos em sua circunscrição. Mas precisava de algo mais para chamar a atenção das pessoas. Algo que tornasse impossível ignorar as suas reclamações ou desconsiderar a maneira pela qual o destino apontara inegavelmente o dedo para os culpados pelo assassinato de sua mãe.

Duas mortes deveriam ter sido o suficiente para produzir o resultado que ele desejava. Mas as pessoas eram tão cegas; não conseguiam enxergar o que estava diante do nariz. Afinal, mesmo após as mortes, a justiça ainda não havia sido feita.

E ele continuava a ser a única pessoa capaz de fazê-la.

A casa estava começando a virar um acampamento de refugiados. Alex estava acostumado à rotina que ele e Lynn haviam aprimorado ao longo dos anos: refeições a dois, caminhadas pelo litoral, exposições e cinema, programas ocasionais com amigos. Reconhecia que deveriam parecer chatos para algumas pessoas, mas isso não tinha importância. Gostava da sua vida. Sabia que as coisas iriam mudar com a chegada do bebê e recebia aquela mudança de coração, apesar de ignorar todo o seu significado. O que ele não antecipara era Esquisito no quarto de hóspedes. Nem a chegada de Hélène e de Jackie, a primeira atormentada e a segunda enlouquecida de ódio. Sentiu-se invadido, tão fustigado pela dor e a ira dos outros que sequer conseguia entender o que ele próprio sentia.

Ficara espantado ao ver as duas na sua porta, buscando asilo para escapar da imprensa que estava fazendo plantão na frente da casa delas. Como podiam ter imaginado que seriam bem recebidas logo ali? O primeiro impulso de Lynn foi sugerir que fossem para um hotel, mas Jackie estava convicta de que o único lugar onde ninguém procuraria por elas era lá. Assim como Esquisito, pensou Alex, exausto.

Hélène tivera uma crise de choro e pedira perdão por ter traído Mondo. Jackie fez questão de refrescar a memória de Lynn, lembrando que se arriscara para ajudar Alex. Mas mesmo assim, Lynn estava irredutível: não havia lugar para elas em sua casa. Foi então que Davina começou a choramingar e Lynn fechou a porta na cara das duas, correndo para ir ver a sua filha e lançando um olhar para Alex que dizia "nem ouse deixá-las entrar aqui". Esquisito driblou Alex e saiu atrás das duas, alcançando-as a caminho do carro. Quando ele voltou para casa, uma hora depois, contou que havia hospedado as duas em um hotel não muito distante e feito a reserva em seu nome. "Eles têm um chalé no meio das árvores", contou ele. "Ninguém sabe que elas estão lá. Vai ficar tudo bem."

O aparente cavalheirismo de Esquisito criara uma certa estranheza naquela tarde, mas o seu objetivo em comum aos poucos neutralizou o desconforto, bem como algumas doses generosas de vinho. Os três adultos ficaram sentados à mesa da cozinha, com as persianas fechadas, esvaziando as garrafas de vinho enquanto jogavam conversa fora. Mas falar sobre as dificuldades não era o suficiente; precisavam agir.

Para Esquisito, deviam confrontar Graham Macfadyen de uma vez, exigindo uma explicação para as coroas de flores enviadas para os funerais de Ziggy e de Mondo. Alex e Lynn rejeitaram a sua ideia de cara; sem nenhuma prova de que ele estava de fato envolvido nos assassinatos, aquilo só serviria para alertar Macfadyen das suas suspeitas, e não para provocar uma confissão.

- Eu estou pouco me lixando - retrucara Esquisito. - De repente assim ele desiste e deixa a gente em paz.

- É, ou isso, ou ele vai bolar abordagens mais sutis nas próximas vezes. Ele não está com pressa, Esquisito. Ele tem a vida inteira para vingar a morte da mãe - ponderou Alex.

- Isso supondo que foi ele mesmo quem matou Mondo, e não um assassino contratado por Jackie - disse Lynn.

- É exatamente por isso que a gente precisa arrancar uma confissão de Macfadyen - disse Alex. - Se ele desaparecer do mapa, não vai servir para limpar o nome de ninguém.

Continuaram especulando, sem chegar a uma conclusão, sendo interrompidos apenas pelo choro ocasional de Davina, acordada e disposta a mais uma mamada. Estavam revivendo o passado novamente, Alex e Esquisito relembrando o dano causado por boatos venenosos às suas vidas no último ano em St. Andrews.

Esquisito foi o primeiro a perder a paciência com o passado. Esvaziou o seu copo e levantou da mesa.

- Preciso tomar um ar - anunciou ele. - Não vou ficar intimidado, me escondendo atrás de portas trancadas pro resto da minha vida. Vou dar uma caminhada. Vocês querem me fazer companhia?

Nenhum dos dois quis. Alex estava começando a preparar o jantar e Lynn estava dando de mamar a Davina. Esquisito pegou a jaqueta impermeável de Alex e saiu, caminhando em direção ao litoral. Era incrível, mas as nuvens que cobriram o céu durante todo o dia haviam desaparecido. O céu estava claro e uma lua abusada exibia-se entre as pontes. A temperatura caíra vários graus e Esquisito encolheu-se dentro da gola do casaco quando uma rajada de vento gelado do estuário o atingiu em cheio. Ele mudou de ideia, caminhando em direção às sombras sob a ponte da ferrovia, sabendo que se subisse no promontório conseguiria acesso a uma vista panorâmica do estuário que seguia para Inchcolm e o Mar do Norte lá atrás.

Já desfrutava o prazer de estar fora de casa. Um homem sempre ficava mais perto de Deus ao ar livre, longe da algazarra das outras pessoas. Imaginara ter feito as pazes com o seu passado, mas os acontecimentos dos últimos dias o deixaram desconfortavelmente consciente da sua ligação com o jovem que ele fora um dia. Esquisito precisava ficar sozinho, precisava restaurar a sua fé nas mudanças que operara em sua vida. Enquanto caminhava, refletia sobre como havia avançado, quanta bagagem incômoda deixara no caminho, graças a sua crença na redenção que a sua religião oferecia. As suas ideias tornaram-se mais claras, o seu coração, mais leve. Ligaria para a sua família mais tarde. Precisava do conforto que só as suas vozes proporcionariam. Algumas palavrinhas com a sua mulher e com os seus filhos e sabia que poderia se sentir como alguém que escapa de um pesadelo. Em termos práticos, nada mudaria e ele sabia disso. Mas sentir-se-ia mais apto para enfrentar os seus infortúnios.

O vento estava ficando mais forte, zunindo e bradando em seus ouvidos. Ele parou para recuperar o fôlego, ciente do barulho distante do tráfego na ponte. Ouviu um trem se aproximando pela ferrovia e inclinou-se para trás, esticando o pescoço para vê-lo avançando uns quatro metros acima da sua cabeça.

Esquisito não viu nem ouviu a pancada que o fez cair de joelhos, em uma paródia sinistra de oração. A segunda pancada o atingiu nas costelas e o derrubou no chão. Teve a vaga impressão de ter visto uma figura toda vestida de preto segurando o que parecia ser um taco de beisebol nas mãos, antes que o terceiro golpe atingisse os seus ombros e fizesse os seus pensamentos desconexos concentrarem-se apenas na dor. Os seus dedos buscavam a grama, aflitos, enquanto ele tentava engatinhar para longe do seu agressor. Uma quarta pancada o atingiu na parte posterior das coxas, fazendo com que caísse de barriga para baixo, sem poder mais escapar.

Então, com a mesma rapidez que começara, o ataque chegou ao fim. Parecia um flashback do que havia acontecido vinte e cinco anos atrás. Através de um miasma de dor e vertigem, Esquisito pôde distinguir vagamente alguns gritos e o som incongruente de um cachorrinho latindo. Sentiu um odor cálido e rançoso e sentiu uma língua úmida e áspera lambendo o seu rosto. Poder sentir qualquer coisa que fosse já era por si só uma bênção; deixou as lágrimas descerem pelo seu rosto.

- O Senhor me salvou dos meus inimigos - ele balbuciou. Então, tudo ficou escuro.

- Eu não quero ir para o hospital - insistiu Esquisito. Ele já tinha dito aquilo tantas vezes que Alex começou a desconfiar que talvez se tratasse de um sinal incontroverso de concussão. Esquisito estava sentado à mesa da cozinha, rígido em sua dor e igualmente inflexível sobre a possibilidade de receber cuidados médicos. O seu rosto estava completamente sem cor e com um vergão que se estendia da sua têmpora direita até a nuca.

- Eu acho que você quebrou as costelas - disse Alex, pela milésima vez.

- Então, eles não vão sequer me engessar - disse Esquisito. - Já quebrei as costelas uma vez. Vão me dar uns analgésicos e falar para eu continuar tomando até melhorar.

- Estou mais preocupada com uma concussão - disse Lynn, aproximando-se com uma xícara de chá, bem forte e bem doce. - Bebe, isso é bom para o choque. Se você vomitar novamente, pode ser concussão mesmo e aí a gente vai te levar pro hospital em Dunfermline.

Esquisito estremeceu.

- Não, Dunfermline, não.

- Ele não deve estar tão mal assim, está até debochando de Dunfermline - observou Alex. - Você está conseguindo se lembrar de alguma coisa do ataque?

- Não vi nada até receber a primeira pancada. E depois, a minha cabeça estava estourando. Vi uma figura de preto. Possivelmente um homem. Talvez uma mulher alta. E um taco de beisebol. Olha só que coisa ridícula: tive que voltar dos Estados Unidos para a Escócia para ser atacado com um taco de beisebol.

- Você não viu o rosto dele?

- Acho que estava usando uma máscara. Não vi sequer a sombra de um rosto. Quando dei por mim, estava desmaiado. Quando acordei, o seu vizinho estava ajoelhado ao meu lado, completamente apavorado. E aí eu vomitei no cachorro dele.

Apesar da afronta ao seu terrier Jack Russell, o vizinho Eric Hamilton ajudou Esquisito a se levantar e o escoltou até a casa de Alex. Resmungou algo sobre ter assustado um ladrão, dispensou os agradecimentos efusivos do casal e mergulhou novamente na escuridão da noite, sem tomar sequer uma dose de uísque de recompensa.

- Ele já não vai muito com a nossa cara mesmo - disse Lynn. - É um contador aposentado e acha que somos artistas ripongos. Então não se preocupe, você não estragou uma bela amizade. Mas temos que chamar a polícia, sim.

- Vamos esperar até amanhecer. Aí podemos falar diretamente com Lawson. De repente agora ele nos leva a sério - sugeriu Alex.

- Você acha que foi Macfadyen? - perguntou Esquisito.

- Não estamos em Atlanta - disse Lynn. - Estamos em um vilarejozinho pacato em Fife. Acho que nunca houve um assalto por essas bandas. E se você fosse realmente assaltar alguém, ia escolher justo um gigante quarentão, sabendo que há aposentados passeando com os seus cachorrinhos todas as noites? Isso não foi casual, foi planejado.

- Também acho - concordou Alex. - E mantém o padrão dos outros assassinatos. É sempre assim, feito para parecer uma outra coisa. Incêndio, furto, roubo... Se Eric não tivesse aparecido, você estaria morto agora.

Antes que alguém pudesse responder, a campainha tocou.

- Deixa que eu atendo - disse Alex.

Quando ele voltou, tinha um policial atrás dele.

- O Sr. Hamilton deu queixa do ataque - explicou Alex. - O policial Henderson veio aqui tomar o seu depoimento. Este é o Sr. Mackie - acrescentou ele.

Esquisito ensaiou um sorriso duro.

- Obrigado por ter vindo - agradeceu ele. - Sente-se, por favor.

- São só alguns detalhes - disse o policial, sacando um caderninho de anotações e acomodando-se à mesa. Abriu o grosso casaco do uniforme, mas não o retirou. Aposto que são treinados a suportar o calor, para não sacrificar a impressão de corpulência que o casacão proporciona, pensou Alex, distraído.

Esquisito forneceu seu nome completo e endereço, explicando que estava visitando Alex e Lynn, seus velhos amigos. Quando disse que era pastor, Henderson adotou uma expressão de desconforto, como se estivesse constrangido por um assaltante da sua área ter caído de paulada justo em um representante de Deus.

- O que aconteceu exatamente? - perguntou o policial.

Esquisito contou os vagos detalhes do ataque dos quais conseguia se lembrar.

- Lamento, mas não me lembro de mais nada. Estava muito escuro e eu fui pego de surpresa - justificou ele.

- O agressor não disse nada?

- Não.

- Não pediu dinheiro, ou a sua carteira?

- Nada.

Henderson balançou a cabeça.

- Muito estranho. Não é o tipo de coisa que costuma acontecer por aqui. - Ele olhou para Alex. - Não entendo por que o senhor não ligou para a polícia.

- Estávamos mais preocupados em garantir que Tom estava bem - acudiu Lynn. - Estamos tentando convencê-lo a ir até o hospital, mas ele está determinado a adotar uma postura estoica.

Henderson concordou.

- Acho que a Sra. Gilbey tem razão, senhor. Não custa nada procurar um médico, para examinar as lesões. E, além do mais, isso garante um laudo oficial da gravidade do ataque, caso seja possível capturar o responsável.

- Quem sabe amanhã de manhã - disse Esquisito. - Estou cansado demais para encarar hospital agora.

Henderson fechou o seu caderninho e afastou a cadeira.

- Vamos mantê-lo informado sobre qualquer novidade, senhor - disse ele.

- Há algo que o senhor pode fazer por nós - disse Alex.

Henderson lançou um olhar curioso para Alex.

- Eu sei que isso vai soar estranho, mas o senhor pode dar um jeito de enviar uma cópia do seu relatório para o subchefe de polícia Lawson?

Henderson ficou surpreso com o pedido.

- Sinto muito, senhor. Eu não consigo entender...

- Olha, não estou querendo te menosprezar, mas é uma história muito longa e muito complicada e estamos muito cansados para explicá-la agora. O Sr. Mackie e eu estamos tratando de um assunto bastante delicado com o subchefe Lawson e talvez esta não tenha sido uma agressão casual. Eu gostaria que ele visse o seu relatório, só para que ficasse ciente do que aconteceu aqui esta noite. De todo modo, eu mesmo vou conversar com ele amanhã de manhã e seria bom se ele já pudesse estar por dentro do assunto. - Ninguém que já tivesse visto Alex convencendo os seus funcionários a dar o máximo de si ficaria surpreso com suas as delicadas técnicas persuasivas.

Henderson avaliou o pedido, com dúvida no olhar.

- Este não costuma ser o nosso procedimento normal - disse ele, hesitante.

- Eu sei disso. Mas esta não é uma situação normal. Eu prometo que não vai sobrar para você. Se você preferir esperar o subchefe entrar em contato com você... - Alex deixou a frase no ar.

Henderson tomou uma decisão.

- Vou enviar uma cópia para a central - disse ele. - E mencionar que foi o senhor quem solicitou.

Alex o acompanhou até a porta. Ficou parado na soleira, observando o carro da polícia partir. Alguém estava lá fora, camuflado pela escuridão, esperando a hora certa de atacar. Um calafrio percorreu o seu corpo. E não tinha nada a ver com o ar gelado da noite.


41

O telefone tocou um pouco depois das sete, acordando Davina e assustando Alex. Depois do que acontecera a Esquisito, o menor som penetrava a sua consciência, requerendo análise e avaliação de risco. Havia alguém lá fora atrás deles e todos os seus sentidos estavam em alerta. Por isso, quase não dormira. Ouvira Esquisito perambulando pela casa de madrugada, provavelmente procurando mais analgésicos. Não era um barulho que ele costumava ouvir à noite e, até ele descobrir do que se tratava, o coração acelerara em seu peito.

Atendeu o telefone, imaginando se Lawson já estaria no gabinete, com o relatório de Henderson à sua frente. Não estava preparado para a jovialidade de Jason McAllister.

- Alô, Alex! - exclamara alegremente o perito em análise de tintas. - Eu sei que pais de recém-nascidos acordam com as galinhas, então imaginei que vocês não se incomodariam se eu ligasse tão cedo. Escuta, tenho novidades para vocês. Posso dar um pulo aí e adiantar antes de ir para o trabalho. Que tal?

- Ótimo - respondeu Alex, sonolento. Lynn empurrou o cobertor e caminhou exausta até o moisés, suspendendo a filha e resmungando.

- Maravilha. Daqui a meia hora estou aí.

- Você tem o endereço?

- Claro. Já me encontrei com Lynn aí algumas vezes. Até mais. - Ele desligou e Alex levantou da cama, enquanto Lynn voltava com o bebê no colo.

- Era o Jason - disse ele. - Ele está vindo para cá. É melhor eu tomar uma ducha. Você nunca me disse que ele era tão animadinho assim. - Ele se inclinou e beijou a cabeça da filha, enquanto Lynn a amamentava.

- Às vezes ele é alegre demais mesmo - concordou Lynn. - Eu vou amamentar Davina, colocar uma roupa e depois encontro vocês.

- Nem acredito que ele conseguiu um resultado tão depressa.

- Ele é como você era no início da carreira. Gosta muito do que faz e pouco se importa com o tempo que dedica ao trabalho. E quer compartilhar o seu entusiasmo com todo mundo.

Alex estacou, pegando o seu robe.

- Eu era assim? Então é um milagre você não ter pedido o divórcio.

Alex encontrou Esquisito na cozinha, com uma aparência horrorosa. A única cor no seu rosto era proveniente do hematoma que se espalhava como uma maquiagem em volta dos seus olhos. Desconjuntado em uma cadeira, segurava uma xícara com as duas mãos.

- Sua cara está uma merda - disse Alex.

- Eu estou uma merda. - Ele bebericou o café e fez uma careta. - Por que vocês não têm um analgésico decente aqui nessa casa?

- Porque não costumamos levar surras na rua - respondeu Alex, indo atender à campainha. Jason saltou porta adentro com as pontas dos pés, tomado de entusiasmo e, ao olhar de esguelha para Esquisito, não acreditou nos seus olhos: em um gesto quase cômico, voltou a contemplá-lo para confirmar se tinha visto direito. - Porra, cara. O que foi isso?

- Um sujeito com um taco de beisebol - explicou Alex, sucinto. - Não estávamos brincando quando falamos que talvez fosse uma questão de vida ou morte. - Serviu café para Jason. - Fiquei impressionado quando você disse que tinha um resultado para a gente tão rápido - disse ele.

Jason deu de ombros.

- Pois é, quando comecei a trabalhar, vi que não era assim tão complicado. Fiz a microespectrofotometria para determinar a cor, depois testei no cromatógrafo de gás para ver a composição. Mas não bateu com nada da minha base de dados.

Alex suspirou.

- Bom, já imaginávamos isso - disse ele.

Jason suspendeu o dedo.

- Veja bem, Alex, não sou um cara desprovido de recursos. Alguns anos atrás, conheci um sujeito em uma conferência. Ele é o maior especialista em tinta do mundo, trabalha para o FBI e desconfia-se que tenha o maior banco de dados de amostras de tintas do universo. Então, pedi a ele para dar uma olhada para mim e voilà! Conseguimos. - Ele abriu os braços em um gesto largo, como se esperasse os aplausos.

Lynn chegou a tempo para escutar o desfecho.

- E então, o que era? - perguntou ela.

- Não vou chateá-los com os detalhes técnicos. A tinta em questão foi produzida por um fabricante em Nova Jersey em meados da década de 70, para ser usada em fibra de vidro e em alguns tipos de plástico moldado. O mercado-alvo eram os construtores e donos de barcos. Esta tinta proporcionava um acabamento bastante sólido, à prova de arranhões e até mesmo das condições climáticas mais extremas. - Jason abriu a sua mochila e vasculhou lá dentro, apanhando finalmente uma tabela de cores produzida no computador. Uma amostra de azul-claro estava sublinhada com caneta preta. - Era exatamente assim - disse ele, passando a folha de papel. - A boa notícia sobre a qualidade do acabamento é que, se por algum milagre a cena do crime ainda existir, é possível conseguir um resultado. Essa tinta foi vendida principalmente na costa leste dos Estados Unidos, mas foi exportada tanto para o Reino Unido quanto para o Caribe. A empresa faliu no final da década de 80, então não temos como saber mais detalhes.

- Então é bem provável que Rosie tenha sido assassinada em um barco? - perguntou Alex.

Jason produziu um estalo duvidoso com os lábios.

- Bom, se foi, deve ter sido num barco de tamanho razoável.

- Por quê?

Ele sacou uns papéis da mochila com um floreio.

- Aí é que as gotas de tinta entram na história. Pequenas gotas, é o que temos aqui. E um ou dois fragmentos de fibra, bem pequenos, que me parecem bastante com carpete. E isso conta uma história. Essas gotas caíram de um pincel enquanto alguém estava pintando alguma coisa. Essa é uma tinta que tem uma boa mobilidade, ou seja, ela se desprende do pincel em gotas a cada minuto. O pintor nem deve ter percebido. E são típicas de uma pintura que está sendo feita no alto, acima da cabeça do pintor, especialmente quando ele está bem esticado para fazer o serviço. E como não encontramos praticamente nenhuma variação no formato das gotas, isso dá a entender que a pintura foi aplicada no alto e na mesma distância. Nada disso se encaixa com a pintura de um casco. Mesmo que o casco estivesse de cabeça para baixo, para pintar o seu interior, o serviço não teria sido feito sobre um carpete, vocês não acham? E as gotas com certeza teriam tamanhos variados, porque algumas partes do casco estariam mais próximas do pintor, não é?

Ele fez uma pausa, olhando à sua volta. Todos estavam assentindo com a cabeça, hipnotizados com o seu entusiasmo.

- Então, o que sobrou? Se for mesmo um barco, então o sujeito estava provavelmente pintando o teto da cabine. Bom, eu fiz alguns testes com uma tinta bem similar e, para conseguir este efeito, precisei me esticar bastante. E barcos pequenos não têm o pé-direito tão alto assim. Então, o cara devia ter um barco bem grandinho.

- Se é que era mesmo um barco - disse Lynn. - Não pode ter sido outro lugar? Tipo o interior de um trailer?

- Pode ser. Mas trailers normalmente não são forrados com carpete, não é? Pode ter sido um depósito, ou uma garagem. Porque tintas fabricadas para fibra de vidro normalmente também são excelentes para amianto e, naquela época, amianto era bem comum.

- Resumindo: continuamos na mesma - sentenciou Esquisito, com frustração na voz.

A conversa descambou para várias direções. Mas Alex já não escutava mais nada. O seu cérebro estava a pleno vapor, concatenando uma torrente de pensamentos acionados pelo que acabara de escutar. A sua mente montava um quebra-cabeça, informações aparentemente desconexas começavam a se encaixar, formando um desenho inédito. Assim que cedemos espaço ao primeiro pensamento inimaginável, tudo começa a fazer sentido. A questão agora era: o que fazer a respeito?

De repente, percebeu que estava longe. Todos estavam olhando para ele com expectativa, esperando uma resposta para alguma pergunta que ele sequer ouvira.

- O quê? - perguntou ele. - Foi mal, eu estava viajando.

- Jason perguntou se você quer que ele prepare um relatório oficial - disse Lynn. - Para mostrar a Lawson.

- Lógico, ótima ideia - disse Alex. - Maravilha, Jason, muito bom mesmo.

Enquanto Lynn levava Jason até a porta, Esquisito lançou um olhar penetrante para Alex.

- Você teve alguma ideia, Gilly - afirmou ele. - Eu conheço essa cara.

- Não, estava só aqui quebrando a cabeça, tentando me lembrar se alguém do Lammas tinha um barco. Alguns eram pescadores, lembra? - Alex virou-se e começou a se ocupar, encaixando algumas fatias de pão na torradeira.

- Bom, agora que você falou... Podemos comentar isso com Lawson - disse Esquisito.

- Pois é. Quando ele ligar, você fala com ele.

- Por quê? Você vai aonde?

- Preciso ficar um pouco no escritório. Estou negligenciando demais o trabalho e ele não funciona por conta própria. Vou ter algumas reuniões hoje pela manhã, não tenho como não estar lá.

- Você acha sensato dirigir por aí sozinho?

- Não tenho escolha - respondeu Alex. - Mas acho que estou seguro em plena luz do dia, na estrada para Edimburgo. E vou voltar para casa antes de escurecer.

- Acho bom mesmo. - Lynn entrou na cozinha, trazendo os jornais. - Acho que Jackie tinha razão. Elas estão estampadas em todas as capas.

Alex mordiscou a sua torrada, perdido em pensamentos, enquanto os outros folheavam os jornais. Aproveitando que eles estavam ocupados, Alex apanhou a tabela de cores que Jason deixara lá e enfiou no bolso da calça. Aproveitando uma pausa na conversa, anunciou que estava de saída, beijou a mulher e a filha adormecida e partiu.

Tirou o BMW da garagem e desceu a rua, dirigindo-se para a via que desembocava na ponte para Edimburgo. Mas, quando alcançou a encruzilhada, em vez de ir para o sul na M90, desviou para o norte. O sujeito que estava atrás deles era a sua presa agora. Não tinha tempo para ficar participando de reuniões.

Lynn acomodou-se atrás do volante do seu carro com uma sensação de alívio da qual não se orgulhava. Estava começando a sentir claustrofobia dentro da sua própria casa. Não podia sequer se isolar no estúdio e recuperar a calma trabalhando em sua última pintura. Sabia que não deveria estar dirigindo ainda, ainda mais depois da cesariana, mas precisava sair um pouco. A necessidade de fazer umas comprinhas ofereceu a desculpa perfeita. Prometeu a Esquisito que pediria a um dos funcionários do supermercado que fizesse o trabalho pesado para ela. Embrulhou Davina em uma manta, quentinha, acomodou-a na cadeirinha e saiu.

Decidiu aproveitar a sua liberdade ao máximo e ir até o mercado Sainsburys, em Kirkcaldy. Se tivesse energia o suficiente depois das compras, podia até dar um pulo na casa dos seus pais. Eles ainda não tinham visto Davina depois que ela recebera alta do hospital. Talvez uma visita da neta ajudasse a levantar o astral. Precisavam de algo para se agarrar ao futuro, deixando o passado para trás.

Assim que ela saiu da estrada em Halbeath, a luz do indicador de combustível começou a piscar no painel. Racionalmente falando, sabia que tinha gasolina o suficiente para ir até Kirkcaldy e voltar, mas não queria correr riscos com um bebê a bordo. Desviou em direção a um posto, dirigindo até as bombas, ignorando completamente o carro que a seguia desde que saíra de North Queensferry.

Lynn encheu o tanque e em seguida correu para a lojinha de conveniências para pagar. Enquanto esperava o seu cartão de crédito ser aceito, deu uma olhada para fora.

No início, não conseguiu entender direito o que estava acontecendo. A cena lá fora não fazia o menor sentido. Então, compreendeu. Lynn berrou com toda a força dos seus pulmões e correu aos tropeções até a porta, derrubando a bolsa e espalhando todo o seu conteúdo no chão.

Um Golf prateado estava parado bem atrás do seu carro, com o motor ligado e a porta do motorista aberta. A sua porta da frente também estava entreaberta, ocultando a pessoa que estava debruçada lá dentro. Quando ela abriu a pesada porta da loja, o homem ergueu o corpo e uma mecha de cabelo escuro e espesso caiu sobre os seus olhos. Ele estava agarrado à cadeirinha de Davina. Lançou um olhar na direção de Lynn e correu para o outro carro. Os gritos de Davina perfuraram o ar como uma lâmina.

Ele jogou a cadeirinha no banco do carona e depois entrou depressa no carro. Lynn estava quase o alcançando. O homem bateu a porta do carro com força e partiu, cantando pneu.

Ignorando a dor da sua cicatriz recente, Lynn atirou-se sobre o Golf que chacoalhava loucamente em sua fuga. Mas os seus dedos desesperados não encontraram nada em que se agarrar e o seu impulso a lançou no chão, de joelhos.

- Não!!! - gritou ela, esmurrando os punhos no chão. - Não!!! - Tentou ficar de pé, caminhar até o seu carro e partir atrás do Golf. Mas as suas pernas cederam e ela desmaiou, tomada por uma angústia esmagadora.

Graham Macfadyen seguia triunfante pela A92, afastando-se do posto de gasolina em Halbeath. Estava feito. Pegara o bebê. Olhou de esguelha para ele, para verificar se estava tudo bem. Parara de chorar assim que pegaram a pista de mão dupla. Ouvira dizer que bebês gostam da sensação de estar em um carro em movimento e aquele com certeza não era uma exceção à regra. Os seus olhos azuis o encaravam, indiferentes e tranquilos. Ao fim da pista, escolhera as vias mais desertas, para evitar a polícia. Parara o carro e fixara o bebê direitinho no banco. Não queria que ele sofresse alguma coisa, não ainda. Era Alex Gilbey quem ele desejava punir e quanto mais o bebê permanecesse vivo e aparentemente bem, pior seria o sofrimento do pai. Manteria o bebê como seu refém por quanto tempo fosse preciso.

E fora ridiculamente fácil. As pessoas deviam cuidar melhor dos filhos. Era incrível que bebês não fossem parar nas mãos de estranhos com mais frequência.

Aquilo faria com que as pessoas o escutassem, pensou ele. Levou o bebê para casa e trancou as portas. Um cerco, era o que ele planejava. A imprensa compareceria em massa e ele teria a oportunidade de explicar por que fora forçado a tomar uma atitude tão drástica. Quando ficassem sabendo que a polícia de Fife estava acobertando os assassinos da sua mãe, entenderiam o motivo do seu gesto desesperado. E se mesmo assim o seu plano não funcionasse, bom, ainda havia um trunfo em sua manga. Contemplou o bebê sonolento.

Lawson ia se arrepender de não ter lhe dado ouvidos.


42

Alex deixou a via expressa em Kinross. Dirigiu pela pacata cidade-mercado, seguindo até o lago Leven. Quando ela deixou escapar que Lawson estava de folga pescando, Karen Pirie havia dito a palavra "lago" antes de se conter. E em toda Fife só existia um lago onde um pescador que se preze podia lançar o seu anzol. Alex não conseguia parar de pensar na mais recente descoberta. Porque sabia, lá no fundo do seu coração, que nenhum dos quatro havia cometido o crime e também não conseguia imaginar Rosie passeando sozinha pela rua no meio de uma tempestade de neve, uma presa fácil para um estranho. Por isso, sempre nutriu a ideia de que ela havia sido assassinada pelo seu namorado misterioso. E quando alguém planeja seduzir uma garota, não a leva para um depósito ou para uma garagem, e sim para a sua casa. E foi então que ele se lembrou de um comentário descartável em uma das conversas que tiveram na véspera. O inimaginável subitamente passou a ser a única coisa que fazia sentido.

O gigantesco vulto da colina Bishop surgiu à sua direita como um dinossauro adormecido, cortando o sinal do seu celular. Sem ter a menor ideia do que se passava em outro lugar, Alex estava em uma missão. Sabia exatamente o que estava procurando. Só restava saber onde poderia encontrar.

Dirigiu devagar, percorrendo cada trilha das fazendas e cada rua lateral que conduzia até a beira do lago. Uma névoa fluorescente cobria a superfície da água cinza-metálica, conferindo uma aparência sinistra e indesejável à sua busca. Alex parou diante de todos os portões com os quais se deparou, descendo do carro e esgueirando-se sobre os campos para certificar-se de que não estava perdendo a presa. Quando a grama rebelde encharcou os seus tornozelos, desejou ter colocado uma roupa mais apropriada. Mas não queria que Lynn percebesse que não estava indo para o escritório.

Percorreu lenta e metodicamente toda a costa do lago. Passou quase uma hora rondando um local destinado a um pequeno trailer, mas o que ele buscava não estava lá. O que não lhe causou nenhuma surpresa. Não esperava encontrar o que estava procurando em um lugar onde barqueiros ocasionais pudessem ter acesso.

Mais ou menos na hora em que a sua esposa aflita prestava depoimento para os detetives, Alex estava tomando um café em uma casa de chá na beira da estrada, espalhando manteiga em um bolo caseiro, tentando aquecer os ossos após a sua inspeção no local do trailer. Não fazia a menor ideia de que algo horrível tinha acontecido.

O primeiro policial a chegar ao local encontrou uma mulher incoerente, com as mãos e os joelhos do seu jeans imundos, lamentando-se na parte externa do posto de gasolina. O transtornado atendente estava parado ao seu lado, impotente, enquanto motoristas frustrados chegavam e partiam assim que percebiam que não seriam atendidos.

- Traga Jimmy Lawson aqui agora - ela gritava para o policial enquanto o atendente explicava o que havia acontecido.

O policial tentou ignorar as exigências dela, solicitando assistência de emergência pelo rádio. Então ela o agarrou pela jaqueta e insistiu aos berros, respingando saliva no rosto dele, exigindo a presença do subchefe. Ele tentou distraí-la, sugerindo que ligasse para o seu marido ou para um amigo, para qualquer pessoa.

Lynn o rechaçou com desdém e voltou para a loja de conveniência. Dos seus pertences espalhados pelo chão, pegou apenas o celular. Tentou ligar para Alex, mas aquela vozinha irritante da operadora avisou que o número chamado estava fora da área de cobertura ou desligado.

- Merda! - berrou ela. Digitando os números de qualquer jeito, conseguiu ligar para casa.

Quando Esquisito atendeu, Lynn soltou um gemido de dor.

- Tom, ele levou Davina, o canalha sequestrou a minha filha!

- Quem? Quem levou a menina?

- Eu não sei! Macfadyen, provavelmente. Ele roubou o meu bebê! - Finalmente vieram as lágrimas, escorrendo pelo seu rosto e fazendo com que ela se engasgasse.

- Onde você está?

- No posto de gasolina de Halbeath. Eu parei para encher o tanque. Só me afastei por um segundo... - Lynn engasgou nas palavras e deixou o telefone cair aos seus pés. Ela se agachou, debruçando-se sobre uma vitrine de doces. Envolveu a cabeça com os braços e soluçou. Não fazia a menor ideia de quanto tempo havia passado até que ouviu o tom de voz calmo e reconfortante de uma mulher. Levantou os olhos e deparou-se com um rosto desconhecido.

- Eu sou a detetive-inspetora Cathy McIntyre - disse a mulher. - Você pode me contar o que aconteceu?

- O nome dele é Graham Macfadyen. Ele mora em St. Monans - disse Lynn. - Ele roubou o meu bebê.

- Você conhece esse homem? - perguntou a detetive McIntyre.

- Não, não conheço. Mas ele está atrás do meu marido. Ele acha que Alex matou a mãe dele. Mas ele está enganado, é claro. Ele é completamente desequilibrado, já matou duas pessoas. Não deixe ele matar a minha filhinha. - As palavras de Lynn se atropelavam, fazendo com que ela soasse perturbada. Tentou respirar fundo e deu um soluço. - Sei que pareço uma maluca, mas não sou. Você precisa entrar em contato com o subchefe de polícia. James Lawson. Ele está sabendo de tudo.

A detetive McIntyre parecia estar na dúvida. Aquilo estava fora do seu alcance e ela sabia disso. Tudo o que conseguira fazer até o momento fora enviar um comunicado pelo rádio para todas as viaturas e as patrulhas avisando para procurarem um Golf prateado com um sujeito de cabelo escuro na direção. Ligar para o subchefe podia ser o seu atestado definitivo de humilhação.

- Deixa comigo - disse ela, caminhando até a parte externa do posto para avaliar as suas alternativas.

Esquisito estava sentado na cozinha, transtornado com a sua impotência. Orar era ótimo, mas um homem precisa de um nível muito mais alto de tranquilidade interior para conseguir algo útil com uma oração. A sua imaginação corria solta, imaginando cenas dos seus próprios filhos nas mãos de um sequestrador. Sabia que ficaria além do alcance de qualquer reação racional se estivesse no lugar de Lynn. O que precisava fazer era encontrar uma maneira concreta de ajudá-la.

Tentou falar com Alex, mas o celular não estava funcionando e ninguém no escritório havia visto ou tido notícias dele naquela manhã. Então Alex também constava na lista dos desaparecidos. Esquisito não estava totalmente surpreso; tinha certeza de que Alex estava com alguma coisa na cabeça que queria resolver sozinho.

Pegou o telefone, gemendo de dor mesmo com um movimento tão sutil, e pediu ao serviço de informações o telefone da polícia de Fife. Precisou se valer de todo o seu poder de persuasão para conseguir chegar até a secretária de Lawson.

- Eu realmente preciso falar com o subchefe - justificou ele. - É urgente. Vocês estão investigando o sequestro de uma criança e eu tenho informações vitais a respeito - explicou ele à mulher, que era claramente tão adepta da rispidez quanto ele da adulação.

- O Sr. Lawson está em uma reunião - disse ela. - Se o senhor deixar o seu nome e telefone, peço para ele entrar em contato assim que tiver oportunidade.

- A senhora não está me ouvindo, está? A vida de um bebê está correndo perigo. Se alguma coisa acontecer com essa criança, a senhora pode apostar a sua aposentadoria que eu procuro a imprensa imediatamente e conto a eles como vocês se omitiram. Se a senhora não chamar Lawson agora, vai acabar sendo o bode expiatório.

- Não vejo necessidade para falar assim comigo, senhor - respondeu a mulher, friamente. - Como é mesmo o seu nome?

- Reverendo Tom Mackie. Ele vai querer falar comigo, eu garanto.

- Aguarde um momento, por favor.

Esquisito contorceu-se de ira ao se ver obrigado a escutar um trecho de uma música clássica enquanto esperava. Após o que lhe pareceu uma espera interminável, uma voz familiar ressoou em seus ouvidos.

- Sr. Mackie, espero que o senhor tenha uma boa explicação para isso. Fui arrancado de uma reunião com o chefe de polícia para vir falar com o senhor.

- Graham Macfadyen sequestrou a filha de Alex Gilbey. Eu não acredito que você estava sentado em uma reunião enquanto isso aconteceu - criticou Esquisito.

- Como é que é? - perguntou Lawson.

- Você está com o sequestro de um bebê nas costas. Há uns quinze minutos mais ou menos, Macfadyen sequestrou Davina Gilbey. Ela é um bebê recém-nascido, tenha a santa paciência.

- Eu não estou sabendo de nada disso, Sr. Mackie. Dá para me contar o que aconteceu?

- Lynn Gilbey parou em um posto de gasolina para abastecer o carro em Halbeath. Enquanto ela estava pagando, Macfadyen apanhou a menina do carro dela. Os seus colegas estão no local agora, por que ninguém te contou nada?

- A Sra. Gilbey reconheceu Macfadyen? Ela já esteve com ele? - perguntou Lawson.

- Não. Mas quem mais ia querer fazer com que Alex sofresse desse jeito?

- Crianças são sequestradas por todo tipo de motivo, Sr. Mackie. Pode não ser pessoal. - A voz dele era tranquilizadora, mas não produziu nenhum efeito.

- Claro que é pessoal! - berrou Esquisito. - Ontem à noite, alguém tentou me surrar até a morte. Você deveria ter visto o relatório na sua mesa hoje cedo. E hoje, a filha de Alex é sequestrada. E você vai me dizer que tudo isso não passa de mera coincidência? Era só o que me faltava. Você tem é que levantar a sua bunda daí e encontrar Macfadyen antes que alguma coisa aconteça com o bebê.

- Posto de gasolina em Halbeath, não é isso?

- É. Vá pra lá agora, ouviu? Você tem autoridade para deslanchar as coisas.

- Vou entrar em contato com os policiais que estão no local. Enquanto isso, Sr. Mackie, procure ficar calmo, sim?

- Tá, tá bem. Vai ser muito fácil.

- Onde está o Sr. Gilbey? - perguntou Lawson.

- Não sei. Ele deveria ter ido para o escritório, mas não apareceu por lá até agora. E o celular dele não está funcionando.

- Deixa comigo. Seja lá quem for o sequestrador da criança, vamos encontrá-lo. E levá-la para casa novamente.

- Você fala como o pior tipo desses tiras de seriado de tevê, Lawson, sabia disso? Vá agitar as coisas. E encontre Macfadyen. - Esquisito bateu com o telefone na cara dele. Tentava se convencer de que conseguira fazer alguma coisa, mas não era o bastante.

Não adiantava. Não podia ficar sentado em casa, sem mexer uma palha. Pegou o telefone novamente e pediu o telefone de um radiotáxi ao serviço de informações.

Lawson olhava fixamente para o telefone. Macfadyen passara dos limites. Devia ter imaginado algo do tipo, mas fracassara. Agora era tarde demais para tirá-lo de circulação. Aquela situação tinha tudo para fugir do controle. E quem podia prever o que aconteceria então? Esforçando-se para manter uma aparência de calma, Lawson ligou para a central de operações da polícia e solicitou um relatório sobre o que estava acontecendo em Halbeath.

Assim que ouviu as palavras "Golf prateado" lembrou-se imediatamente da sua caminhada até a porta de Macfadyen e do carro estacionado em frente à sua casa. Não havia mais dúvidas. Macfadyen enlouquecera de vez.

- Quero falar com o oficial encarregado do caso - ordenou ele. Tamborilou os dedos na mesa enquanto aguardava. Aquilo era um pesadelo tornando-se realidade. Que diabos se passava na cabeça de Macfadyen? Será que estava se vingando de Gilbey, imaginando que ele fora o responsável pela morte da sua mãe? Ou estaria jogando um jogo mais astuto? Fosse qual fosse o seu plano, a criança estava correndo perigo. Normalmente, quando bebês eram sequestrados, a motivação do sequestrador era bem banal: queriam um filho. Imaginavam-se capazes de tomar conta da criança em questão, sufocando-a com tanto amor e cuidados. Mas naquele caso, a história era outra. A criança era apenas uma peça no jogo doentio de Macfadyen e, se ele imaginava estar vingando um assassinato, então assassinato talvez fosse o seu objetivo. Lawson mal podia pensar nas consequências sem que o seu estômago revirasse. - Vamos, atenda - murmurou ele.

Finalmente, uma voz estalou na linha.

- Aqui quem fala é a detetive-inspetora McIntyre - disse ela. Pelo menos tinham uma mulher no local do crime, pensou ele, aliviado. Lembrava-se de Cathy McIntyre. Ela era sargento no Departamento de Investigação Criminal na época em que ele trabalhava como superintendente em Dunfermline. Era uma boa profissional, sempre fazia as coisas de acordo com o figurino.

- Cathy, aqui quem fala é o subchefe Lawson.

- Pois não, senhor. Eu estava prestes a entrar em contato. A mãe do bebê sequestrado, a Sra. Lynn Gilbey, está perguntando pelo senhor sem parar. Ela acha que o senhor sabe o que está acontecendo aqui.

- O sequestrador partiu em um Golf prateado, não foi?

- Sim, senhor. Estamos tentando ver a placa pela filmagem das câmeras de monitoria, mas só conseguimos captar o carro em movimento. Ele estacionou bem atrás da Sra. Gilbey, não conseguimos distinguir o número da placa com o carro parado.

- Peça para alguém continuar tentando por enquanto. Mas eu acho que sei quem foi o responsável. O nome dele é Graham Macfadyen, ele mora em Carlton Way, número 12, em St. Monans. E imagino que foi para lá que ele levou a criança. Acho que ele está interessado em mantê-la como refém. Então quero que você me encontre lá, no final da rua. Não vá com muita gente, mas peça para alguém levar a Sra. Gilbey em uma viatura separada. E não ligue o rádio no carro onde ela estiver. Vou organizar a equipe de negociação de reféns e assim que chegar vou colocá-la a par da nossa estratégia. Não perca mais tempo, Cathy. Te encontro em St. Monans.

Lawson terminou a ligação e em seguida apertou os olhos com força, concentrado. A libertação de reféns era a tarefa mais difícil para um policial. Lidar com a família e os amigos de alguém que acabou de morrer era moleza em comparação àquilo. Ligou para a central novamente e solicitou a mobilização da equipe de negociação de reféns e de uma unidade armada.

- Ah, e mande um engenheiro de telecomunicações para lá também. Eu quero cortar todo tipo de acesso de Macfadyen com o mundo externo. - Finalmente, ligou para Karen Pirie. - Encontre-me no estacionamento em cinco minutos - bradou ele. - Eu explico no caminho.

Estava a caminho da porta quando o seu telefone tocou. Hesitou um pouco, decidindo se atenderia ou não. Resolveu voltar.

- Lawson - disse ele.

- Olá, Sr. Lawson. Aqui é o Andy, da assessoria de imprensa. O pessoal do Scotsman acabou de ligar, com uma história muito esquisita. Disseram que receberam um e-mail de um cara que diz que sequestrou um bebê porque a polícia de Fife está acobertando os assassinos da mãe dele. E ele atribui a culpa especialmente ao senhor. Ao que parece, é um e-mail bem longo e detalhado. Eles vão encaminhar para mim. Estão querendo saber se é verdade. Está rolando mesmo o sequestro de um bebê?

- Meu Deus - gemeu Lawson. - Estava com medo que algo assim acontecesse. Veja bem, estamos lidando com uma situação bem delicada aqui. E é verdade, um bebê foi sequestrado. Ainda não tenho todos os detalhes. É melhor perguntar ao pessoal da central, eles estão por dentro da história toda. Tenho a impressão de que você vai receber muitas ligações por causa disso, Andy. Dê o máximo de informação possível sobre as providências que já estão sendo tomadas. Convoque uma coletiva de imprensa para hoje mesmo, o mais tarde que você puder. Mas insista na tecla que o sujeito tem problemas mentais e que eles não devem dar ouvidos às suas reclamações.

- Então a versão oficial é de que o cara é pirado - disse Andy.

- Bota pirado nisso. Mas estamos levando o caso a sério. A vida de uma criança está em jogo, não quero que nenhuma notícia irresponsável o tire do sério. Entendeu?

- Entendi. Falo com o senhor mais tarde.

Lawson xingou baixinho e correu porta afora. Aquele ia ser um dia de cão.

Esquisito pediu para o motorista de táxi dar uma parada em um supermercado em Kirkcaldy. Quando chegaram lá, ele entregou um bolo de notas ao motorista.

- Amigo, faça-me um favor. Você está vendo o estado em que estou. Dá para ir até lá e me comprar um celular? Pode ser um desses pré-pagos mesmo. E alguns cartões também, por favor. Preciso estar conectado com o mundo.

Uns quinze minutos depois, retomaram o caminho pela estrada. Pegou a folha de papel onde havia anotado os telefones do celular de Alex e de Lynn. Tentou ligar para Alex mais uma vez. Nada. Por onde será que ele andava?

Macfadyen olhava fixamente para o bebê, perplexo. Começara a chorar assim que entraram na casa, mas ele ainda não tinha tido tempo para fazer algo a respeito. Tinha e-mails para mandar, tinha de contar ao mundo o que estava acontecendo. Estava tudo esquematizado. Bastava se conectar e, com apenas alguns cliques no mouse, a sua mensagem seria enviada para toda a imprensa do país, incluindo a maioria dos sites de notícias na internet. Agora eles haveriam de escutar o que ele tinha a dizer.

Deixou os computadores e voltou à sala de estar, onde havia deixado a cadeirinha do bebê no chão. Sabia que não deveria afastar-se dele, para evitar que a polícia os separasse ao invadir a casa, mas seus gritos o distraíram e ele teve de levá-lo para outro cômodo, para poder se concentrar. Fechara as cortinas, como havia feito na casa toda. Chegou até mesmo a pregar um cobertor na janela de vidro fosco do banheiro, que costumava ficar aberta. Sabia direitinho como funcionavam os cercos policiais; quanto menos os tiras soubessem o que estava se passando dentro da casa, melhor para ele.

O bebê continuava chorando. Os seus gemidos haviam se transformado em um choro baixinho, mas assim que ele entrou no recinto, pôs-se a chorar novamente. O som penetrou o seu cérebro como uma furadeira, impedindo o seu raciocínio. Precisava calar aquela criança. Ele a suspendeu, com cuidado, e a colocou no colo. O choro tornou-se tão intenso que ele pôde até sentir os soluços reverberando no seu peito. Talvez precisasse trocar a fralda, pensou ele. Tornou a colocá-la no chão e desenrolou a manta que a envolvia. Por dentro da manta, havia um casaquinho de lã. Ele o removeu e abriu os botões que ficavam no meio das pernas, tirando a roupinha que a protegia. De quantas camadas aquele maldito bebê precisava? Talvez estivesse apenas com calor.

Apanhou um rolo de papel-toalha e acocorou-se ao lado do bebê. Removeu as fitas adesivas que seguravam a fralda em volta da barriga do bebê e afastou-se imediatamente. Caramba, aquilo era nojento. Era verde, pelo amor de Deus. Franzindo o nariz de nojo, removeu a fralda suja e limpou a sujeira do bumbum da criança. Rapidamente, antes que uma nova leva aparecesse, ele aparou o bebê em uma generosa camada de papel toalha.

Depois de tudo isso, o bebê continuava chorando. Meu Deus, o que precisava fazer para calar a boca daquela criança? Precisava dela viva, pelo menos por enquanto, mas aquele choro o estava deixando maluco. Deu uma bofetada no rostinho avermelhado e conquistou um breve momento de silêncio. Mas assim que a criança assustada recuperou o seu fôlego, os gritos voltaram com força total.

Será que estava querendo mamar? Foi até a cozinha e despejou leite em uma tigela. Sentou-se, ninando o bebê em seus braços, desajeitado, imitando o modo como havia visto as pessoas fazendo na televisão. Enfiou o dedo entre os seus lábios e tentou derramar alguma coisa lá dentro, mas o leite escorreu pelo queixo do bebê e desceu pela manga da sua camisa. Tentou novamente e desta vez a criança reagiu, fechando os pequeninos punhos e dando chutes no ar. Como é que o monstrinho não sabia engolir? Por que agia como se ele estivesse tentando envenená-lo?

- Qual é o seu problema, porra? - gritou ele. O bebê enrijeceu em seus braços, chorando ainda mais.

Tentou mais um pouco, sem sucesso. Mas, de repente, o choro passou. O bebê adormeceu instantaneamente, como se alguém o tivesse desligado da tomada. Uma hora, estava abrindo o berreiro, na outra, dormindo como um anjinho. Macfadyen afastou o sofá e o colocou novamente na cadeirinha, obrigando-se a ser delicado. A última coisa que queria naquele momento era uma reprise daquele barulho infernal.

Voltou para os computadores, planejando entrar em diversos sites para ver se já estavam veiculando a sua história. Não ficou totalmente surpreso ao ver em seus monitores a mensagem: "Conexão perdida." Já esperava que fossem cortar as suas linhas telefônicas. Como se isso fosse impedi-lo. Tirou um celular do carregador e o conectou ao seu laptop com um cabo, fazendo a ligação. Tudo bem, era como voltar a andar de mula depois de ter dirigido uma Ferrari. Mas após um tempo insuportavelmente longo, ele estava conectado de novo.

Se pensavam que podiam calá-lo tão facilmente, tinham que rever os seus conceitos. Já estava planejando aquilo tudo há tempos e jogava para ganhar.


43

Alex estava perdendo o seu entusiasmo. A única coisa que o fazia prosseguir era a certeza absoluta de que a resposta que ele buscava tão desesperadamente estava perto. Tinha de estar. Já explorara o lado sul do lago e agora estava vasculhando a costa norte. Perdera a conta de quantos campos já havia pesquisado. Fora observado por gansos, cavalos, ovelhas e até mesmo por uma lhama. Lembrou-se vagamente de ter lido em algum lugar que os pastores as colocavam junto ao rebanho para defendê-lo das raposas, mas jamais conseguira entender como um bicho gordo e preguiçoso, com cílios de dar inveja a qualquer modelo, pudesse assustar um animal tão destemido quanto uma raposa. Um dia, levaria Davina até lá para ver a lhama. Ela ia gostar quando estivesse um pouquinho mais velha.

Descendo de carro por um outro caminho, passou diante de uma fazenda em estado lastimável. As construções estavam abandonadas, o encanamento vazando e as molduras das janelas descascadas. O jardim parecia uma espécie de cemitério para máquinas que deviam estar acumulando ferrugem há décadas. Um cachorro esquelético com um olhar enraivecido lutava com uma corrente, latindo furiosa e inutilmente na porta. A alguns metros do portão, os sulcos ficaram mais fundos e a grama mais esparsa. Alex atravessou pelas poças, fazendo uma careta ao constatar que uma pedra atingira o chassi do carro.

Um pórtico agigantou-se à sua esquerda e Alex desceu do carro, cansado. Contornou o seu carro pela frente e inclinou-se sobre as barras de metal. Olhando para a sua esquerda, viu algumas vacas encardidas ruminando melancolicamente. Deu uma olhadela para a sua direita e teve uma surpresa inesperada. Mal podia acreditar nos seus próprios olhos. Será que era mesmo o que ele estava pensando?

Alex remexeu no cadeado enferrujado que mantinha o portão trancado. Entrou no terreno e tornou a prender os elos da corrente. Prosseguiu caminhando, sem se importar nem com a lama nem com o esterco que maculavam os seus caros mocassins americanos. Quanto mais se aproximava do seu objetivo, mais tinha certeza de que havia encontrado o que estava procurando.

Não via o trailer havia vinte e cinco anos, mas a memória confirmou a sua suspeita. Bicolor, exatamente como ele lembrava: bege em cima, verde musgo embaixo. As cores estavam desbotadas, mas ainda era possível compará-las com a sua lembrança. Conforme se aproximava, pôde reparar que ainda estava bem conservado. Blocos de concreto empilhados em cada canto mantinham os pneus afastados do chão e não havia nenhum vestígio de limo no teto, no peitoril das janelas, nem na soleira da porta. A borracha frágil em volta das janelas havia sido tratada com algum tipo de selante para ficar à prova d’água, observou Alex enquanto contornava cautelosamente o trailer. Não havia o menor sinal de vida. Cortinas claras cobriam as janelas. A aproximadamente uns vinte metros do trailer, um pequeno portão na cerca conduzia ao lago. Alex pôde ver um barco a remo estirado na margem.

Alex olhou para trás e observou. Mal podia acreditar no que via. Era inacreditável, constatou ele. Possivelmente não tão raro quanto poderia parecer à primeira vista. As pessoas se desfaziam de mobílias, carpetes, carros. Mas os trailers sobreviviam, ganhavam vida própria. Lembrou-se do casal de velhinhos que morava em frente aos seus pais. Tinham o mesmo trailer de dois cômodos desde que ele era adolescente. Todas as tardes de sexta-feira no verão, eles o engatavam no seu carro e partiam. Não iam para muito longe, só até a costa para Leven ou Elie. Às vezes, caprichavam um pouco mais no passeio e atravessavam o Forth, rumo a Dunbar ou North Berwick. E voltavam no domingo à noite, tão satisfeitos quanto se tivessem atravessado o Polo Norte. Então, na verdade não era de se admirar que o tira Jimmy Lawson tivesse conservado o trailer onde morara enquanto construía a sua casa. Especialmente porque todo pescador precisa de um retiro. Qualquer pessoa teria feito a mesma coisa.

A não ser, é claro, pelo fato de que a maioria das pessoas não teria preservado o local de um crime.

- Agora você acredita em Alex? - perguntou Esquisito a Lawson. O efeito das suas palavras foi amenizado pelo fato de ele estar todo contraído, com o braço atravessado nas costelas, tentando fazer com que elas parassem de se raspar umas contra as outras em espasmos de dor.

A polícia não chegara ao local muito antes de Esquisito, mas ele já encontrara um aparente caos. Homens vestindo coletes à prova de balas com quepes e rifles movimentavam-se por toda parte, enquanto outros oficiais afobados andavam para lá e para cá, executando as suas tarefas obscuras. Curiosamente, ninguém parecia estar notando a sua presença. Saiu com dificuldade do táxi e observou a cena. Não demorou muito para localizar Lawson, debruçado sobre um mapa em cima do capô de um carro. A policial com quem ele e Alex haviam conversado na delegacia estava ao seu lado, com um celular grudado na orelha.

Esquisito aproximou-se deles, com a raiva e a ansiedade servindo como analgésicos.

- E aí, Lawson? - gritou ele. - Satisfeito agora?

Lawson virou para trás, um sujeito com sentimento de culpa surpreendido. O seu queixo caiu enquanto tentava reconhecer Esquisito por trás do estrago que haviam feito no seu rosto.

- Tom Mackie? - perguntou ele, na dúvida.

- Eu mesmo. Agora você acredita em Alex? O maluco está com a criança aí dentro. Já matou duas pessoas e você está aí parado, na esperança de que ele vá facilitar as coisas para você matando mais uma.

Lawson balançou a cabeça. Esquisito pôde ver a aflição em seus olhos.

- Isso não é verdade. Estamos fazendo tudo o que está ao nosso alcance para resgatar o bebê de Gilbey. E você não tem como acusar Graham Macfadyen de outros crimes além deste.

- Ah, não? Quem diabos matou Ziggy e Mondo, então? Quem foi que fez isso comigo? - Esquisito levantou o dedo em riste no rosto de Lawson. - Ele podia ter me matado ontem à noite.

- Você viu o rosto do agressor?

- Não, estava ocupado demais tentando escapar com vida.

- Nesse caso, continuamos na mesma. Não temos provas, Sr. Mackie. Nenhuma prova.

- Escuta aqui, Lawson. Há vinte e cinco anos que somos obrigados a viver com a morte de Rosie Duff nas costas. Aí, de repente, o filho dela aparece do nada. E Ziggy e Mondo são assassinados. Tenha santa paciência, Lawson, como é que você é a única pessoa que não consegue ver a relação de causa e efeito? - Esquisito estava praticamente berrando, sem sequer atentar para o fato de vários policiais estarem observando a cena com olhares atentos e impassíveis.

- Sr. Mackie, estou tentando montar uma operação complexa. A presença do senhor no local, levantando alegações infundadas, não me ajuda em nada. Não tenho nada contra as teorias, mas trabalho com provas.

A raiva de Lawson era óbvia. Ao seu lado, Karen Pirie havia terminado de fazer a sua ligação e estava se aproximando discretamente de Esquisito.

- Mas só é possível encontrar as provas quando se está procurando por elas.

- Investigar assassinatos que ocorreram fora da minha jurisdição não faz parte do meu trabalho - retrucou Lawson. - O senhor está me atrapalhando, Sr. Mackie. E, como o senhor mesmo já disse, a vida de uma criança pode estar em jogo.

- Você vai pagar por isso - disse Esquisito. - Vocês dois - acrescentou ele, virando-se para incluir Karen na sua condenação. - Foram avisados e não tomaram nenhuma providência. Se ele machucar um fio de cabelo da cabeça dessa criança, eu juro para você, Lawson, você vai desejar jamais ter nascido. E afinal, onde está Lynn?

Lawson estremeceu, recordando-se da chegada de Lynn Gilbey no local. Ela saiu às pressas da viatura e atirou-se sobre ele, desferindo socos em seu peito e gritando, incoerente. Karen Pirie interveio rapidamente, envolvendo a mulher descontrolada em seus braços.

- Ela está naquela van branca ali. Karen, leve o Sr. Mackie até o veículo da unidade de resposta armada. E fique com ele e com a Sra. Gilbey. Não quero os dois correndo por aí com atiradores profissionais de plantão.

- Olha, quando isso tudo terminar - disse Esquisito enquanto Karen o escoltava até o carro - nós vamos acertar as nossas contas.

- Eu não contaria com isso, Sr. Mackie - disse Lawson. - Eu sou um oficial de polícia sênior e me ameaçar é coisa séria. Vá para lá e organize uma corrente de orações. O senhor faz o seu trabalho que eu faço o meu.

Carlton Way parecia uma rua deserta em uma cidade fantasma. Nenhum movimento. Costumava ficar silenciosa durante o dia, mas naquele dia específico estava extraordinariamente calma. O trabalhador noturno da casa número 7 foi tirado da cama por uma batida na sua porta dos fundos. Atordoado, foi persuadido a trocar de roupa e a acompanhar os dois policiais prostrados na sua porta. Seguiram através da cerca no fundo do seu jardim pelos campos até a rua principal, onde lhe contaram acontecimentos tão estranhos que, não fosse pela presença em massa da polícia e do bloqueio que isolava Carlton Way do resto do mundo, ele teria achado que estava participando de uma pegadinha.

- Todas as casas estão vazias agora? - perguntou Lawson à detetive McIntyre.

- Sim, senhor. E a única comunicação com a casa de Macfadyen é através de uma linha telefônica privada para uso exclusivo da polícia. A equipe de resposta armada está disposta em volta da casa agora.

- Ok. Vamos lá.

Duas viaturas policiais e uma van passaram, uma atrás da outra, por Carlton Way. Estacionaram diante da casa de Macfadyen. Lawson desceu do primeiro veículo e foi falar com o especialista em negociação de reféns, John Duncan, atrás da van, onde não podiam ser vistos.

- Tem certeza de que ele está aí dentro? - perguntou Duncan.

- É o que dizem os especialistas. Imagem térmica, ou algo do tipo. Ele está aí dentro com o bebê. E ambos estão vivos.

Duncan passou os fones para Lawson e apanhou a base do telefone que o conectaria com a casa. A ligação foi atendida no terceiro toque. Silêncio.

- Graham? É você? - perguntou Duncan com a voz firme, mas calorosa.

- Quem está falando? - Macfadyen parecia surpreendentemente tranquilo.

- O meu nome é John Duncan. Estou aqui para ver o que pode ser feito para resolvermos esta situação sem que ninguém se machuque.

- Não tenho nada para falar com você. Quero falar com Lawson.

- Ele não está aqui no momento. Mas tudo o que você me disser será transmitido a ele.

- Ou Lawson, ou nada feito. - O tom de voz de Macfadyen era amistoso e casual, como se estivessem conversando sobre o clima ou sobre futebol.

- Como eu disse, o Sr. Lawson não está aqui no momento.

- Não acredito em você, Sr. Duncan. Mas vamos fingir que está me dizendo a verdade. Não estou com pressa. Posso esperar até que você o localize. - A linha ficou muda.

Duncan olhou para Lawson.

- Fim do primeiro round - disse ele. - Vamos dar uns cinco minutos e aí eu tento novamente. Uma hora ele vai ter que começar a falar.

- Você acha? Ele me pareceu bastante calmo. Não seria melhor eu falar com ele logo? Assim, pode ser que ele ache que vai conseguir o que quer.

- Ainda é muito cedo para fazermos concessões, senhor. Ele precisa nos dar algo antes que possamos retribuir.

Lawson suspirou profundamente e deu as costas. Detestava a sensação de estar fora de controle. Aquilo viraria um circo para a mídia e a possibilidade de um resultado drástico era muito, mas muito maior do que a de um bom desfecho. Sabia como funcionava aquele tipo de coisa. Quase sempre, terminava mal para uma das partes.

Alex estudou as suas opções. Em outras circunstâncias, a coisa mais sensata a fazer seria ir embora naquele minuto, direto para a polícia. Eles poderiam enviar os seus peritos e revirar o lugar, em busca da única gotinha de sangue ou do respingo de tinta que tornaria inevitável a ligação daquele trailer com a morte de Rosie Duff.

Mas como poderia fazer aquilo se o trailer em questão pertencia ao subchefe de polícia? Lawson embargaria qualquer investigação, pondo um fim antes mesmo que houvesse um começo. O trailer com certeza seria incendiado, e alguns vândalos seriam apontados como os possíveis culpados. E então o que teriam? Nada além de coincidências. A presença de Lawson em um local tão próximo do terreno onde Alex tropeçara no corpo da moça. Na época, ninguém havia atentado para aquele detalhe. Na Fife do final da década de 70, a polícia ainda estava acima de qualquer suspeita; eram mocinhos lutando contra o mal. Ninguém sequer questionou como foi que Lawson não viu o assassino levando o corpo de Rosie para Hallow Hill, embora estivesse parado diante do caminho mais óbvio para o cemitério picto. Mas aquele era um mundo novo, um mundo no qual era possível questionar a integridade de homens como James Lawson.

Se Lawson era o homem misterioso na vida de Rosie, era bastante compreensível que ela não quisesse revelar a sua identidade. Os seus irmãos encrenqueiros odiariam vê-la com um tira. E havia também a maneira como Lawson parecia sempre surgir do nada quando ele ou os seus amigos corriam perigo, como se tivesse assumido para si próprio a tarefa de agir como anjo da guarda dos quatro. Culpa, pensou Alex. Aquilo era o que a culpa fazia com uma pessoa. Apesar de ter matado Rosie, Lawson ainda cultivava um mínimo de decência para não permitir que outra pessoa pagasse pelo seu crime.

Mas nenhuma daquelas circunstâncias servia como prova. A probabilidade de encontrarem testemunhas que tivessem visto Rosie com Jimmy Lawson era nula. A única prova concreta estava dentro do trailer, e se Alex não tomasse nenhuma providência rápida, poderia ser tarde demais.

Mas o que podia fazer? Não era versado nas técnicas de invasão de domicílio. Arrombar carros na adolescência era uma coisa, abrir fechaduras era outra, e se ele forçasse a porta, Lawson iria perceber. Em qualquer outra época, poderia pensar que fora obra de moleques ou de algum sem-teto. Mas não agora. Não com tanto interesse no caso Rosie Duff. Não podia se dar ao luxo de julgar aquilo um fator insignificante. Era possível que Lawson colocasse fogo no trailer.

Alex deu um passo para trás e analisou a situação. Observou que havia uma claraboia no teto. Será que conseguiria entrar por ela? Mas como chegaria até o teto? Havia apenas uma possibilidade. Alex voltou até o portão, escancarou-o e entrou com o seu carro no terreno pantanoso. Pela primeira vez em sua vida, desejou ser um daqueles babacas que dirigiam um veículo com tração nas quatro rodas em plena cidade. Mas não, ele tinha de ser o mauricinho, com a sua BMW 535. O que faria se ficasse atolado na lama?

Dirigiu devagar até o trailer e parou paralelamente com uma de suas extremidades. Abriu a mala e desafivelou o kit de ferramentas básico do carro. Alicate, chave de fenda, chave inglesa. Apanhou tudo o que podia lhe ser útil, tirou o paletó do terno e a gravata e fechou a mala. Subiu no capô e, em seguida, no teto do carro. De lá de cima, o teto do trailer não estava tão longe. Lutando para se apoiar, Alex conseguiu finalmente alcançar o teto.

Era nojento lá em cima. O teto estava escorregadio e coberto de lodo. Partículas de sujeira agarravam-se às suas roupas e em suas mãos. A claraboia era um domo de plástico suspenso de mais ou menos uns setenta centímetros por trinta. Teria de se espremer bastante para conseguir entrar. Encaixou a chave de fenda em um dos cantos e tentou suspendê-la.

No início, a claraboia nem se mexia. Mas, após tentativas repetidas em diversos pontos, ela se moveu em um estalo. Suando, Alex secou o rosto com as costas da mão e espiou lá dentro. Havia um braço de metal giratório com parafuso de ajuste, que mantinha a claraboia no seu devido lugar e permitia que pudesse ser levantada e abaixada de dentro do trailer. O que também impedia que a claraboia fosse aberta mais do que alguns centímetros em um dos lados. Alex resmungou. Teria de desparafusar o braço de metal e depois colocá-lo no lugar novamente.

Tentou desajeitadamente conseguir o melhor ângulo. Era quase impossível mover aqueles parafusos, que haviam sido colocados ali há mais de um quarto de século. Forçou e lutou até que, por fim, um parafuso cedeu e depois o outro. Finalmente a claraboia estava solta.

Alex olhou para baixo. Não era tão ruim quanto ele imaginara. Se descesse devagar e com cuidado, talvez pudesse se apoiar no banco que ocupava uma das extremidades da sala. Respirou fundo, apoiou-se no teto e começou a descer.

Pensou que os seus braços iam voar para fora do corpo quando o seu peso desceu de supetão. Os seus pés pedalaram no ar, buscando um apoio, mas após alguns segundos, ele decidiu apenas cair.

Sob a luz tênue que o iluminava, o interior do trailer parecia praticamente idêntico ao que vira anos atrás. Mal podia imaginar que, naquele momento, estava sentado exatamente no lugar onde Rosie encontrara o seu destino trágico. Não havia nenhum cheiro característico, nenhuma mancha de sangue, nenhuma vibração no ar que o deixasse alarmado.

Estava tão perto da resposta. Alex mal tinha coragem de olhar para o teto. E se Lawson o tivesse pintado várias vezes depois? Será que ainda seria possível encontrar uma prova? Esperou o coração desacelerar até um batimento quase normal e murmurou uma prece para o Deus de Esquisito. Jogou a cabeça para trás e olhou para cima.

Merda. O teto não era azul, era creme. Tudo aquilo para nada. Bom, de todo modo, não voltaria de mãos abanando. Subiu no banco e escolheu uma parte próxima ao canto, onde não chamaria atenção. Com a lâmina afiada da chave de fenda, raspou a tinta, colhendo os fragmentos em um envelope que trouxera consigo.

Quando conseguiu uma quantidade suficiente, ele desceu e apanhou um dos fragmentos maiores. Era creme de um lado e azul do outro. Alex sentiu as pernas ficando bambas e deixou-se cair pesadamente no banco, experimentando uma emoção avassaladora. Apanhou a tabela de cores de Jason, que trouxera no bolso, e examinou a amostra de azul que havia despertado a sua memória de vinte e cinco anos atrás. Suspendeu a beirada da cortina para deixar entrar luz e colocou o fragmento da tinta que acabara de recolher sobre a amostra da tabela. O azul do fragmento praticamente desapareceu sobre o azul da amostra.

Os olhos de Alex encheram-se de lágrimas. Seria aquela a resposta definitiva?


44

Duncan fizera mais três tentativas de falar com Graham Macfadyen, mas ele recusara terminantemente desistir da sua exigência de falar somente com Lawson. Deixou Duncan ouvir o choro de Davina, mas aquela era a única concessão que estava disposto a fazer. Exasperado, Lawson decidiu que aquilo já estava indo longe demais.

- O tempo está passando. O bebê está agoniado e a mídia está acompanhando tudo de perto. Me passa o telefone de uma vez. De agora em diante, deixa que eu assumo - disse ele.

Duncan olhou para o rosto afogueado do chefe e passou o fone para ele.

- Vou ajudá-lo a manter tudo nos conformes - disse ele.

Lawson efetuou a ligação.

- Graham? Sou eu, James Lawson. Lamento ter demorado tanto para chegar aqui. Fiquei sabendo que você está querendo falar comigo, é isso?

- É isso mesmo. Mas antes de começarmos, já vou logo avisando que estou gravando a nossa conversa. Enquanto conversamos, estou transmitindo tudo ao vivo, pela internet. Toda a imprensa já está com o endereço do site, então, provavelmente, estão acompanhando tudo com bastante interesse. Nem adianta tentar bloquear o acesso ao site, por sinal. Eu fiz um esquema para ele ficar trocando de servidor. Antes mesmo que vocês descubram o endereço, ele já estará em outro lugar.

- Não tem necessidade nenhuma disso, Graham.

- Tem toda a necessidade do mundo. Vocês acharam que podiam me calar cortando as minhas linhas telefônicas, mas vocês têm uma mentalidade do século passado. Eu represento o futuro, Lawson, e você já era.

- Como está o bebê?

- O bebê é um saco, para falar a verdade. Só sabe chorar o tempo todo. A minha cabeça está explodindo. Mas essa coisa aqui está bem. Por enquanto, pelo menos. Ainda não sofreu nenhum mal.

- Você está causando mal somente por deixá-la longe de sua mãe.

- Isso não é culpa minha. É culpa de Alex Gilbey. Ele e os seus amigos me deixaram longe da minha mãe. Alex Gilbey, Tom Mackie, David Kerr e Sigmund Malkiewicz assassinaram a minha mãe, Rosie Duff, no dia 16 de dezembro de 1978. Primeiro eles a estupraram e depois tiraram a sua vida. E a polícia de Fife nunca chegou a indiciá-los pelos seus crimes.

- Graham - interrompeu Lawson -, tudo isso é passado. O que nos interessa agora é o futuro. O seu futuro. E quanto mais rápido isso tudo terminar, melhores serão as suas chances.

- Não fale comigo como se eu fosse retardado, Lawson. Eu sei que vou para a cadeia por causa de tudo isso. Isso não tem o menor peso para mim no que diz respeito à libertação do meu refém. Nada vai mudar isso, então não insulte a minha inteligência. Não tenho mais nada a perder, mas posso dar um jeito de levar alguém comigo. Bom, onde foi que eu parei? Ah, sim. Os assassinos da minha mãe. Você nunca os indiciou. E quando reabriu o caso, recentemente, alardeando aos quatro cantos que o DNA solucionaria os seus crimes antigos, descobriu que tinha perdido as provas do caso da minha mãe. Como pôde fazer isso? Como pôde perder algo tão importante?

- Estamos perdendo o controle - sussurrou Duncan. - Ele está chamando o bebê de "essa coisa". Isso não é bom. Volte a falar no bebê.

- Sequestrar a Davina não vai mudar nada disso, Graham.

- Mas ajudou a fazer com que vocês parassem de varrer o assassinato da minha mãe para debaixo do tapete. Agora, o mundo inteiro vai ficar sabendo o que você fez.

- Graham, descobrir quem matou a sua mãe é um compromisso pessoal meu.

Uma risada histérica ressoou do outro lado da linha.

- Ah, eu sei disso. Apenas não confio muito nos seus métodos. Eu quero que eles sofram aqui, neste mundo, não no próximo. Estão morrendo como heróis. A verdade sobre eles está sendo varrida para debaixo do tapete. É isso que dá quando você usa os seus métodos.

- Graham, precisamos conversar sobre a sua situação neste momento. Davina precisa da mãe. Por que você não a traz aqui fora e aí podemos conversar sobre as suas reclamações? Prometo que vamos ouvir tudo o que você tem a dizer.

- Você ficou maluco? É somente assim que eu consigo a sua atenção, Lawson. E pretendo aproveitar ao máximo, antes que tudo chegue ao fim. - A ligação terminou abruptamente com o telefone batendo no gancho do outro lado.

Duncan tentou disfarçar a sua frustração.

- Bom, pelo menos agora a gente já sabe o que é que deu nele.

- Ele está fora de si. Não dá para negociar se ele está transmitindo a ligação para o resto do mundo. Quem sabe que alegações malucas ele vai inventar agora? O cara devia ser detido, e não ouvido. - Lawson bateu com a mão na lateral da van.

- Antes que possamos fazer isso, precisamos tirar ele e o bebê de lá.

- Que se foda - disse Lawson. - Vai escurecer daqui a mais ou menos uma hora. Vamos invadir a casa.

Duncan parecia perplexo.

- Mas senhor, isso é totalmente contra as regras.

- Sequestrar um bebê também é. E eu não vou ficar aqui parado enquanto a vida de uma criança está em risco - acrescentou ele, voltando para o seu carro.

Alex deixou o lugar desfrutando uma enorme sensação de alívio. Chegou a duvidar em alguns momentos se conseguiria sair um dia daquele terreno sem a ajuda de um trator. Mas conseguira. Pegou o celular, planejando ligar para Jason e avisar que estava indo encontrá-lo, levando algo muito interessante. O celular estava sem sinal. Alex deu um muxoxo e dirigiu com cautela pela rua enlameada até a avenida principal.

Quando se aproximava de Kinross, o telefone tocou. Ele o pegou e viu que tinha quatro mensagens. Navegou pelas teclas para ouvi-las. A primeira era de Esquisito, pedindo para ele ligar para casa assim que pudesse. A segunda também era de Esquisito, passando um número de celular. A terceira e a quarta eram de jornalistas, pedindo que entrasse em contato com eles.

Que diabos estava acontecendo? Alex desviou da rua, parando no estacionamento de um pub, nos arredores da cidade, e ligou para o número que Esquisito deixara.

- Alex? Graças a Deus - gaguejou Esquisito. - Você está dirigindo?

- Não, acabei de estacionar. O que está acontecendo? Recebi umas mensagens...

- Alex, você precisa ficar calmo.

- O que foi? Davina? Lynn? O que aconteceu?

- Alex, aconteceu uma coisa horrível. Mas estão todos bem.

- Porra, Esquisito, me conta de uma vez - berrou Alex, paralisado de pânico.

- Macfadyen sequestrou Davina - disse ele, falando devagar e com clareza. - Está mantendo a menina como refém. Mas ela está bem. Ele não a machucou.

Alex teve a impressão de que alguém enfiara a mão no seu peito e arrancara o seu coração fora. Todo o amor que descobrira ter transformara-se em uma mescla de medo e ira.

- E Lynn? Onde está ela? - perguntou ele com a voz embargada.

- Ela está aqui com a gente, na frente da casa de Macfadyen em St. Monans. Calma aí, que eu vou passar o telefone pra ela. - Após um breve momento, Alex ouviu o que parecia uma sombra da voz habitual de Lynn.

- Onde é que você estava, Alex? Ele roubou a Davina. Ele levou a nossa filha, Alex! - Ele podia ouvir as lágrimas por trás da sua rouquidão.

- Eu estava em um lugar sem sinal, não pegava de jeito nenhum. Lynn, estou indo para aí. Aguenta firme, não deixa ninguém fazer nada, ouviu? Estou indo para aí e estou sabendo de uma coisa que vai mudar tudo. Não deixa ninguém fazer nada, está bem? Vai dar tudo certo. Tá ouvindo? Vai ficar tudo bem. Passa o telefone para Esquisito novamente, por favor. - Enquanto falava, Alex ligou o motor e começou a manobrar para sair do estacionamento.

- Alex? - Ele podia detectar a aflição na voz de Esquisito. - Quando é que dá para você chegar?

- Estou em Kinross. Acho que em uns quarenta minutos. Esquisito, eu sei o que aconteceu de verdade. O que aconteceu com Rosie, e posso provar. Quando Macfadyen ficar sabendo disso, ele vai ver que não precisa se vingar. Você precisa fazer com que eles não façam nada que coloque Davina em risco até eu chegar aí e contar tudo. Estou com uma bomba nas mãos.

- Vou fazer o possível. Mas eles nos afastaram da operação.

- Faça tudo o que você puder, Esquisito. E cuida da minha mulher para mim, tá?

- Claro. Vem o mais rápido que você puder, hein? Que Deus te proteja.

Alex pisou no acelerador; nunca dirigira tão depressa em sua vida. Quase desejou ser parado por alta velocidade. Assim, teria uma escolta policial para acompanhá-lo até lá. A polícia na sua cola até East Neuk. Era tudo o que ele precisava naquele momento.

Lawson olhou em volta do hall da igreja que havia solicitado.

- A equipe de suporte técnico consegue identificar em qual cômodo Macfadyen está com o bebê. Até agora, ele passou a maior parte do tempo em um quarto nos fundos da casa. O bebê às vezes está com ele e às vezes está na sala. Então temos de ser rápidos. Vamos esperar até que estejam separados, então um grupo entra pela frente e pega o bebê. O outro grupo fica com os fundos e cerca Macfadyen.

"Vamos esperar até anoitecer. Os postes da rua vão ficar apagados. Não vamos conseguir enxergar um palmo diante do nariz. Quero que essa operação funcione perfeitamente. E quero o bebê são e salvo aqui fora.

"Já com Macfadyen, são outros quinhentos. Ele tem problemas psicológicos. Não temos a menor ideia se está armado ou não. Temos motivos para acreditar que ele já matou duas pessoas. E tudo nos leva a crer que, ontem à noite, atacou mais uma. Se não tivesse sido interrompido, creio que teria cometido outro assassinato. Ele mesmo disse que não tem nada mais a perder. Se ele fizer menção de sacar uma arma, estão autorizados a disparar. Alguma pergunta?

O hall estava silencioso. Os oficiais do grupo de resposta armada haviam se aperfeiçoado exatamente para uma operação como aquela. O recinto transformara-se em um receptáculo de testosterona e adrenalina. Era em momentos como aquele que o medo ganhava um outro nome.

Macfadyen digitou alguma coisa no teclado e clicou no mouse. A conexão do celular era abominavelmente lenta, mas ele dera um jeito de incluir a sua conversa com Lawson no site. Disparou e-mails para os contatos que havia feito previamente com a imprensa, avisando que poderiam acompanhar de camarote a operação de resgate em seu site, onde poderiam ouvir em primeira mão o que estava acontecendo.

Não acalentava a ilusão de que podia controlar o resultado de tudo aquilo. Mas estava determinado a fazer o que podia, incluindo tudo o que fosse necessário para ganhar as manchetes dos jornais. Se o preço fosse a vida daquele bebê, estava disposto a pagar. Estava preparado. Conseguiria levar o seu plano a cabo, tinha certeza. Pouco importava se o seu nome viraria sinônimo de maldade nos tabloides. Não ia sair daquilo como o único vilão. Mesmo se Lawson tivesse conseguido boicotar a imprensa, a informação estava disponível na internet. Não podia interferir em seu site, não podia impedir que os fatos se espalhassem online. E Lawson já devia ter percebido que Macfadyen tinha uma carta na manga.

Da próxima vez que ligassem, ia abrir o jogo. Revelaria toda a dimensão da duplicidade da polícia. Contaria ao mundo como a justiça decaíra na Escócia.

Era o dia do juízo final.

Alex foi parado diante do bloqueio policial. Podia ver os diversos veículos policiais adiante e as barreiras vermelhas e brancas na entrada de Carlton Way. Abaixou o vidro do carro, consciente de que estava imundo e desgrenhado.

- Eu sou o pai da criança - disse ele ao policial que se debruçou para falar com ele. - É a minha filha lá dentro. A minha mulher está aí em algum lugar. Preciso ficar com ela.

- Posso ver a sua identidade, senhor? - perguntou o policial.

Alex apresentou a sua carteira de motorista.

- Sou Alex Gilbey. Por favor, deixe-me passar.

O policial comparou o seu rosto com a fotografia da carteira, depois se afastou para comunicar-se com alguém pelo rádio. Voltou um pouco depois.

- Sinto muito, Sr. Gilbey. Todo cuidado é pouco. Se o senhor puder estacionar ali no canto, um dos policiais o levará até a sua esposa.

Alex seguiu um outro policial de jaqueta amarela até um micro-ônibus branco. Ele abriu a porta e Lynn levantou-se, em um pulo, jogando-se em seus braços. Ela estava tremendo e ele pôde sentir o seu coração batendo descontrolado dentro do peito. Não havia palavras para a dor que sentiam. Abraçaram-se simplesmente, e a angústia e o medo que os dominavam eram palpáveis.

Durante um bom tempo, ninguém falou nada. Então Alex disse:

- Vai ficar tudo bem. Eu tenho como acabar com isso agora.

Lynn olhou para ele, com os olhos vermelhos e inchados.

- Como, Alex? Não há nada que você possa fazer.

- Posso, sim. Estou sabendo da verdade. - Olhou por cima de Lynn e viu Karen Pirie sentada ao lado da porta, junto a Esquisito. - Onde está Lawson?

- Está em uma reunião - disse Lynn. - Vai voltar daqui a pouco. Aí você fala com ele.

Alex balançou a cabeça.

- Não quero falar com ele. Quero falar com Macfadyen.

- Isso não será possível, Sr. Gilbey. Isso é tarefa para negociadores experientes. Eles sabem o que estão fazendo.

- Você não está entendendo. Ele precisa saber de coisas que só eu posso revelar. Não quero ameaçá-lo. Não quero nem exigir nada. Só preciso falar com ele.

Karen suspirou.

- Eu sei que o senhor deve estar aflito, Sr. Gilbey. Mas o senhor pode errar, querendo acertar.

Alex desvencilhou-se gentilmente dos braços de Lynn.

- Isso está acontecendo por causa de Rosie Duff, não está? Porque ele acha que eu estou envolvido no assassinato de Rosie Duff, não é?

- Ao que parece, sim - respondeu Karen, cautelosa.

- E se eu dissesse que posso responder a todas as suas perguntas?

- Se o senhor possui alguma informação relacionada ao caso, deveria falar é comigo.

- Tudo tem a sua hora, eu prometo. Mas Graham Macfadyen merece ser o primeiro a ouvir a verdade. Por favor, confie em mim. Tenho os meus motivos. É a vida da minha filha que está em jogo aqui. Se vocês não me deixarem falar com Macfadyen, eu vou procurar a imprensa e contar tudo o que sei. E, acredite, não vai ser a melhor maneira.

Karen avaliou a situação. Gilbey parecia calmo. Quase calmo demais. E ela não era treinada para lidar com situações como aquela. Normalmente, encaminharia ao seu superior. Mas Lawson estava ocupado demais em outro lugar. Talvez devesse consultar o negociador.

- Venha comigo, vamos falar com o inspetor Duncan. É ele quem está se comunicando com Macfadyen.

Ela desceu da van e chamou um dos policiais.

- Por favor, fique aqui com a Sra. Gilbey e com o Sr. Mackie.

- Eu vou com o Alex - disse Lynn, insubordinada. - Não vou sair do lado dele.

Alex segurou a mão dela.

- Vamos juntos, então - disse ele a Karen.

Ela sabia quando se dar por vencida.

- Está bem, vamos - disse ela, conduzindo-os até o cordão que bloqueava a entrada da rua de Macfadyen.

Alex nunca se sentira tão vivo. Estava consciente dos movimentos dos seus músculos a cada passo que dava. Os seus sentidos pareciam estar mais apurados, cada som e cheiro quase insuportavelmente amplificados. Jamais esqueceria aquela caminhada. Era o momento mais importante da sua vida e ele estava determinado a fazer a coisa certa, da maneira adequada. Ensaiara a conversa que teria com Macfadyen em sua errática jornada até St. Monans e estava seguro de que encontraria as palavras para ganhar a liberdade da sua filha.

Karen os levou até uma van branca estacionada do lado de fora da casa. Na escuridão crescente, tudo parecia lúgubre, refletindo o sentimento das pessoas que estavam envolvidas no resgate. Karen deu uma batidinha na lateral da van e a porta se abriu. A cabeça de John Duncan apareceu entre uma fresta.

- Detetive Pirie, não é isso? O que posso fazer pela senhora?

- Estes são o Sr. e a Sra. Gilbey. Ele gostaria de falar com Macfadyen, senhor.

Duncan suspendeu as sobrancelhas, alarmado.

- Acho que não é uma boa ideia. A única pessoa com quem Macfadyen quer falar é com o subchefe Lawson. E ele deu ordens para que não ligarmos mais para lá até que Lawson voltasse.

- Ele precisa ouvir o que eu tenho a dizer - disse Alex. - Ele está fazendo isso porque quer que o mundo inteiro saiba quem matou a sua mãe. Ele acha que fomos eu e os meus amigos. Mas ele está enganado. Descobri toda a verdade hoje e ele deve ser a primeira pessoa a saber.

Duncan mal conseguia disfarçar a sua surpresa.

- O senhor está me dizendo que sabe quem matou Rosie Duff?

- Sei, sim.

- Então deveria estar dando o seu depoimento a um dos policiais - respondeu ele, firmemente.

Um tremor de emoção percorreu o rosto de Alex, revelando como ele estava tentando se controlar.

- É a minha filha lá dentro. E eu posso terminar com tudo isso agora mesmo. Cada minuto que vocês me fazem perder aqui fora é mais um minuto que ela corre perigo. Não quero falar com ninguém, só com Macfadyen. E se vocês não me deixarem conversar com ele, vou ter que abrir o jogo com a imprensa. Vou contar que tenho como terminar com essa situação e que vocês não me deixam agir. Vocês realmente querem que isso se torne o epitáfio das suas carreiras?

- Você não vai saber o que fazer. Não é um especialista em resgates. - Alex percebeu que aquele era o argumento derradeiro de Duncan.

- Bom, toda a sua experiência não serviu para muita coisa, não é mesmo? - interrompeu Lynn. - O trabalho de Alex é negociar com as pessoas. E ele é muito bom nisso. Vamos assumir toda a responsabilidade pelo resultado de sua tentativa.

Duncan olhou para Karen. Ela deu de ombros. Ele respirou fundo e deixou escapar um longo suspiro.

- Eu vou ficar daqui escutando - disse ele. - Se eu achar que a situação está ficando fora de controle, corto a ligação.

Alex chegou a ficar tonto de tanto alívio.

- Ótimo. Vamos lá - disse ele.

Duncan pegou o telefone e colocou os fones nos ouvidos. Passou fones para Karen e o fone para Alex.

- É todo seu.

O telefone tocou. Uma, duas, três vezes. Na metade do quarto toque, Graham atendeu.

- Quer continuar, Sr. Lawson? - perguntou a voz do outro lado da linha.

A voz dele é tão normal, pensou Alex. Não parece nada com a voz de um sujeito que sequestraria um bebê e colocaria a sua vida em risco.

- Não é o Lawson. Aqui quem fala é Alex Gilbey.

- Não tenho nada para falar com você, seu assassino desgraçado.

- Me dê apenas um minuto. Tenho uma coisa para te contar.

- Se você vai dizer que não matou a minha mãe, poupe o seu latim. Não vou acreditar mesmo.

- Eu sei quem matou a sua mãe, Graham. E tenho provas. Estão aqui no meu bolso. Estou com fragmentos de tinta compatíveis com a tinta encontrada nas roupas da sua mãe. Colhi esses fragmentos hoje cedo, de um trailer no lago Leven. - Não houve resposta do outro lado da linha, apenas uma respiração forte. Alex continuou. - Havia mais alguém presente na noite do crime, mas ninguém prestou atenção nele, porque ele tinha motivos para estar lá. Ele encontrou a sua mãe depois do expediente e a levou para o seu trailer. Não sei direito o que aconteceu, mas desconfio que ela tenha se recusado a transar com ele e ele a tenha estuprado. Quando percebeu o que tinha feito, viu que não podia deixá-la viva para contar a história. Seria o fim para ele. Então, ele a esfaqueou. E a levou até Hallow Hill, abandonando-a para morrer. E ninguém nunca suspeitou dele, porque ele estava do lado da lei. - Karen Pirie encarava Alex, boquiaberta e aterrorizada conforme ia compreendendo as implicações do que ele estava dizendo.

- Diga o nome dele - sussurrou Macfadyen.

- Jimmy Lawson. Foi Jimmy Lawson quem matou a sua mãe, Graham. Não eu.

- Lawson? - Foi quase um soluço. - Você está blefando, Gilbey.

- Não, Graham. Como eu disse, tenho como provar. E o que você tem a perder acreditando em mim? Vamos acabar com isso agora e você vai ter a oportunidade de presenciar a justiça sendo finalmente cumprida.

Houve um longo e demorado silêncio. Duncan aproximou-se, disposto a recolher o telefone das mãos de Alex, mas ele virou-se para trás deliberadamente, apertando o fone em suas mãos com mais força ainda. E então Macfadyen falou:

- Eu achei que ele estava fazendo aquilo porque era a única maneira de conseguir alguma justiça. E não concordava com os métodos dele, porque queria que vocês sofressem. Mas não. Ele estava fazendo aquilo para se proteger - disse Macfadyen e as suas palavras não significaram nada para um Alex estupefato.

- Fazendo o quê? - perguntou ele.

- Matando vocês, ora.


45

Um manto de escuridão desceu sobre Carlton Way. Encobertas pelas sombras, figuras enegrecidas se moviam com armas semiautomáticas coladas em seus coletes à prova de balas. Percorriam o local com a silenciosa delicadeza de um leão atrás de um antílope. Ao se aproximarem da casa, se separaram, agachados sob os parapeitos das janelas e depois voltaram a se reagrupar, metade na porta da frente, metade na dos fundos. Cada um deles lutava para manter a sua respiração suave e tranquila, apesar do coração que batia freneticamente no peito, como um tambor convidando para a luta. Dedos verificavam se os fones estavam bem instalados na orelha. Ninguém queria perder o chamado para entrar em ação. Se fosse necessário. Não era hora de ambivalências. Quando a ordem fosse dada, demonstrariam o seu compromisso.

Lá em cima, um helicóptero sobrevoava o céu e os especialistas acompanhavam com atenção os resultados da imagem térmica. Eram responsáveis pela determinação do momento certo para agir. O suor ardia em seus olhos e encharcava as palmas das mãos enquanto mantinham o foco nas duas figuras incandescentes. Enquanto estivessem separadas, podiam agir. Mas se ficassem juntas, ninguém podia fazer nada. Não havia espaço para erros. Não com uma vida correndo perigo.

Tudo estava nas mãos de um único homem. O subchefe de polícia James Lawson caminhou por Carlton Way sabendo que aquela era a sua última cartada.

Alex esforçou-se para compreender as palavras de Macfadyen.

- O que você quer dizer? - perguntou ele.

- Eu o vi ontem à noite, com um taco de beisebol. Debaixo da ponte, dando uma surra no seu amigo. Pensei que estivesse tentando fazer justiça com as próprias mãos, sério mesmo. Mas se Lawson matou a minha mãe...

Alex agarrou-se ao único fato do qual tinha certeza absoluta.

- Ele a matou, sim, Graham. Eu tenho como provar. - De repente, a linha ficou muda. Desconcertado, Alex voltou-se para Duncan. - Que porra é essa? - quis saber ele.

- Já chega - disse Duncan, tirando os fones da cabeça. - Não posso permitir que isso seja transmitido para o mundo inteiro. Que diabos está acontecendo aqui, Sr. Gilbey? É um pacto entre o senhor e Macfadyen para incriminar Lawson?

- O que você está dizendo? - perguntou Lynn.

- Foi Lawson - disse Alex.

- Eu escutei, Lawson matou Rosie - disse Lynn, agarrando-se ao braço do marido.

- Não só Rosie. Ele matou Ziggy e Mondo também. E tentou matar Esquisito. Macfadyen o viu ontem - disse Alex, abismado.

- Olha, não sei o que o senhor está tramando... - começou Duncan. Ele parou imediatamente ao ver Lawson se aproximando. Pálido e coberto de suor, o subchefe olhou para eles, intrigado e visivelmente irritado.

- Que diabos vocês dois estão fazendo aqui? - perguntou ele, apontando para Alex e Lynn. Virou-se para Karen. - Eu não te pedi para ficar com ela na van da unidade de resposta armada? Deus, isso aqui virou um verdadeiro circo. Tire-os daqui.

Houve um breve momento de silêncio e então Karen Pirie disse:

- Senhor, precisamos conversar sobre algumas acusações muito sérias que acabaram de ser feitas sobre...

- Karen, isso aqui não é um programa de debates. Estamos no meio de uma operação de vida e morte, porra! - gritou Lawson. Ele suspendeu o rádio até os lábios. - Estão todos em suas posições?

Alex apanhou o rádio das mãos de Lawson.

- Escuta aqui, seu cretino. - Antes que pudesse continuar, Duncan partiu para cima dele, derrubando-o no chão. Alex lutou com o policial, esgueirando a cabeça para gritar: - Sabemos a verdade, Lawson. Você matou Rosie. E matou os meus amigos. Está acabado. Você não pode mais se esconder.

Os olhos de Lawson dardejavam de fúria.

- Você é tão louco quanto ele. - Ele se abaixou e recuperou o rádio, enquanto dois policiais mergulhavam em cima de Alex.

- Senhor - disse Karen, apreensiva.

- Agora não, Karen - explodiu Lawson. Virando-se de costas, tornou a levar o rádio até os lábios novamente. - Estão todos em suas posições?

As respostas estalaram no seu fone de ouvido. Antes que Lawson pudesse responder, ouviu a voz do comandante do suporte técnico no helicóptero.

- Não atirem! O alvo está com o refém.

Lawson hesitou por um momento. Depois disse:

- Podem atirar! Agora!

Macfadyen estava pronto para encarar o mundo. As palavras de Alex Gilbey haviam restaurado a sua fé na possibilidade de a justiça ser cumprida. Entregaria a menina para ele. Para garantir a sua segurança, levou uma faca consigo. Uma derradeira estratégia para que pudesse chegar até a rua e alcançar a polícia que o esperava lá fora.

Estava a caminho da porta da frente, com Davina encolhida debaixo do seu braço como um pacote. Carregava uma faca de cozinha na mão livre quando o seu mundo explodiu. As portas da frente e dos fundos desabaram. Homens gritavam em uma algazarra ensurdecedora. Labaredas incandescentes explodiam, obnubilando a sua visão. Instintivamente, apertou a criança contra o seu peito. A mão que trazia a faca aproximou-se dela. Através do caos, ouviu alguém gritar:

- Solte o bebê!

Sentiu-se paralisado. Não podia deixá-la.

O atirador pressentiu que a vida da criança estava em risco. Sem pensar duas vezes, posicionou-se diante do seu alvo, apontou a arma e mirou na cabeça de Macfadyen.


46

Abril de 2004; Blue Mountains, Geórgia

O sol de primavera brilhava sobre as copas das árvores enquanto Alex e Esquisito subiam o cume da montanha. Esquisito caminhava na frente até o afloramento de uma rocha que se projetava sobre o declive e a escalava, acomodando-se com as suas longas pernas penduradas na beira. Alcançou a sua mochila e pegou um par de binóculos. Ele o regulou até que a imagem lá embaixo ficasse nítida e o passou para Alex.

- Bem ali embaixo, um pouquinho para a sua esquerda.

Alex ajustou o foco e examinou o território lá embaixo. De repente, percebeu que estava olhando para o telhado da cabana deles. E que as figuras correndo para lá e para cá do lado de fora eram os filhos de Esquisito. Os adultos sentados à mesa de piquenique eram Lynn e Paul. E o bebê aos seus pés era Davina. Observou a sua filha abrindo os braços e dando uma risadinha para as árvores. O seu amor por ela chegava a doer.

Estivera tão perto de perdê-la. Quando ouviu os disparos, pensou que o seu coração iria explodir. O grito de Lynn ecoara em sua mente como o fim do mundo. Uma eternidade se passou até que um dos policiais armados surgisse com Davina em seus braços, e mesmo isso não causou nenhum alívio: quando se aproximaram, tudo que Alex conseguia ver era sangue.

Mas o sangue era de Macfadyen. O atirador acertara o seu alvo, inflexível. O rosto de Lawson exibia tantas expressões ao mesmo tempo que parecia ter sido esculpido com granito.

No caos que se seguiu, Alex separara-se da sua mulher e da sua filha para ir atrás de Karen Pirie.

- Você precisa ficar de olho no trailer.

- Que trailer?

- O trailer de pesca de Lawson. No lago Leven. Foi lá que ele matou Rosie Duff. A pintura no teto é compatível com a tinta no cardigã de Rosie. A gente nunca sabe, pode ser que ainda haja algum vestígio de sangue lá dentro.

Ela o olhou friamente.

- Você espera que eu leve esta palhaçada a sério?

- Mas é a verdade. - Ele apanhou o envelope do bolso. - Eu tenho os fragmentos que podem provar que não estou mentindo. Se você deixar Lawson voltar para o trailer, ele vai destruí-lo. A prova vai virar fumaça. Você precisa impedi-lo. Eu não estou inventando isso - disse ele, tentando convencê-la desesperadamente de que estava falando a verdade. - Duncan também ouviu o que Macfadyen disse. Ele viu Lawson atacando Tom Mackie ontem à noite. O seu chefe não vai medir esforços para encobrir os seus atos. Você precisa detê-lo e proteger o trailer.

O rosto de Karen continuava impassível.

- Você quer que eu prenda o meu chefe?

- Hélène Kerr e Jackie Donaldson foram detidas pela polícia de Strathclyde por muito menos, e com menos provas do que as que a senhora ouviu aqui hoje. - Alex lutava para continuar calmo. Não conseguia acreditar que tudo estava escapando entre os seus dedos. - Se Lawson não fosse o subchefe, você não estaria hesitando.

- Mas ele é o subchefe. É um oficial respeitado com um cargo extremamente importante.

- A mulher de César, Sra. Pirie. Mais um motivo para levar isso a sério. Você acha que isso não vai estar nos jornais amanhã de manhã? Se você acha que Lawson é inocente, então não custa nada tentar.

- A sua mulher está lhe chamando, senhor - disse Karen friamente. Ela foi embora, deixando-o impotente, parado no mesmo lugar.

Mas ela ouvira tudo o que ele tinha a dizer. Não chegou a prender Lawson, mas convocou alguns policiais uniformizados e deixou o local, discretamente. Na manhã seguinte, Alex recebeu uma ligação exultante de Jason, contando que ficara sabendo que os seus colegas em Dundee haviam detido um trailer na véspera, tarde da noite. Bingo.

Alex abaixou o binóculo.

- Eles sabem que você fica aqui espiando o que se passa lá embaixo?

Esquisito sorriu.

- Eu digo que Deus vê tudo e que eu tenho uma ligação direta com ele.

- Aposto que tem mesmo. - Alex reclinou-se para trás, deixando que o sol secasse o suor em seu rosto. A subida até lá fora íngreme e exaustiva. Não tiveram tempo para conversar. Aquela era a primeira oportunidade que tinha a sós com Esquisito desde que haviam chegado, na véspera. - Karen Pirie veio nos ver na semana passada - disse ele.

- Como ela está?

Aquela era, como Alex aprendera a compreender, uma pergunta típica de Esquisito. Não "O que ela disse?", e sim "Como ela está?". Subestimara demais o seu amigo no passado. Talvez agora tivesse a chance de reparar os erros daquela época.

- Acho que ela ainda está bastante abalada. Ela e a maioria dos policiais em Fife. É meio chocante descobrir que o seu chefe é um estuprador que cometeu vários assassinatos. As consequências são bem sérias. Mas eu acho que metade dos oficiais continua achando que Graham Macfadyen e eu inventamos a história toda.

- Então Karen foi lhe visitar para lhe deixar a par da situação?

- Mais ou menos. Ela não está mais encarregada do caso, obviamente. Acabou passando a investigação do caso de Rosie Duff para outros oficiais, de fora, mas ela fez amizade com um deles. O que significa que ainda está por dentro dos acontecimentos. E temos de reconhecer que ela se deu ao trabalho de ir nos contar as últimas novidades.

- Quais são?

- Terminaram a perícia no trailer. Assim como a compatibilidade da tinta, encontraram gotículas de sangue no chão, debaixo do banco. Colheram amostras de sangue dos irmãos de Rosie e do corpo de Macfadyen, porque obviamente não sobrou nada do DNA de Rosie, então eles têm que testar os parentes mais próximos. E o resultado é que o sangue no trailer de Lawson era mesmo de Rosie Duff.

- Impressionante - disse Esquisito. - Depois de todo esse tempo, ele é pego graças a um fragmento de tinta e uma gotinha de sangue.

- Um dos seus antigos colegas apareceu para depor, afirmando que Lawson gostava de se gabar que passava o expediente noturno levando garotas para o seu trailer e transando com elas. E o nosso próprio depoimento coloca Lawson bem próximo do local onde o corpo de Rosie foi encontrado. Karen disse que a promotoria hesitou um pouco, mas decidiu ir adiante com a acusação. E que quando Lawson ficou sabendo disso, desmoronou. Ela disse que foi como se ele não aguentasse mais carregar o fardo. Ao que parece, não é um fenômeno raro. Karen me contou que é comum que, ao se verem encurralados, os assassinos sintam a necessidade de confessar tudo o que já fizeram.

- E por que ele a matou?

Alex suspirou.

- Estavam saindo havia algumas semanas. E ela não o deixava ir até os finalmentes. Ele disse que ela estabelecia um limite e não se permitia ultrapassá-lo. E ele acabou se descontrolando e estuprando Rosie. Segundo Lawson, ela disse que ia direto para a polícia. E ele não podia permitir que ela fizesse aquilo. Então, pegou uma faca de cozinha e a esfaqueou. Já estava nevando, ele imaginou que não tivesse ninguém nas redondezas e largou o corpo dela em Hallow Hill. A ideia era dar a impressão de que havia sido uma espécie de ritual ou algo do tipo. Disse que ficou horrorizado quando soube que estavam desconfiando da gente. Obviamente, ele não queria ser apanhado, mas jura que fez de tudo para impedir que outra pessoa levasse a culpa pelo seu crime.

- Que generoso da parte dele, não? - comentou Esquisito, cínico.

- Mas eu acho que ele está falando a verdade, sabe? Porque, se ele quisesse, bastava uma mentirinha e nós seríamos acusados. Quando Maclennan ficou sabendo da Land Rover, por exemplo, Lawson podia muito bem ter dito que esquecera de mencionar que vira o carro naquela noite. Ou indo para Hallow Hill, ou na porta do Lammas na hora em que o bar fechava.

- Só Deus pode saber a verdade, mas suponho que podemos lhe conceder o benefício da dúvida, sim. Ele deve ter imaginado que estava salvo depois de todo esse tempo. Ninguém nunca desconfiou dele.

- Pois é. Sobrou foi mesmo para a gente. Lawson passou vinte e cinco anos desfrutando uma reputação aparentemente imaculada. Foi então que o chefe de polícia anunciou a revisão dos casos não resolvidos. Segundo Karen, Lawson se livrou das provas na primeira vez em que o DNA foi utilizado de maneira bem-sucedida no tribunal. As provas ainda estavam em St. Andrews, então não foi difícil para ele colocar as mãos nelas. O cardigã foi de fato extraviado em uma das vezes em que as provas foram transferidas de um local para o outro, mas o resto das roupas e as amostras biológicas, bom, a isso tudo ele fez questão de dar um fim pessoalmente.

Esquisito franziu a testa.

- E como é que o cardigã foi parar tão longe do local onde estava o corpo?

- Quando estava voltando para o carro de polícia, Lawson encontrou o cardigã perdido na neve. Deixara cair quando carregou o corpo até o topo da colina. Ele simplesmente enfiou a roupa na primeira sebe que viu pela frente. Era a última coisa que queria dentro de uma viatura policial. Então, após ter se livrado de todas as provas relevantes, ele deve ter imaginado que conseguiria conduzir a revisão dos casos e se safar.

- É, mas ele não contava com a aparição surpreendente de Graham Macfadyen. Jamais suspeitara da sua existência, graças ao desejo de respeitabilidade da família de Rosie. Ali estava alguém que realmente tinha um interesse em apurar a morte dela, alguém exigindo respostas. Mas o que eu ainda não consigo entender é por que ele saiu por aí eliminando o nosso grupo.

- Bom, pelo que Karen contou, Macfadyen estava pegando no pé de Lawson direto. Exigindo que ele conversasse novamente com as testemunhas. Principalmente nós quatro. Ele estava convencido de que éramos os culpados. No computador de Macfadyen, entre outras coisas, havia um registro das conversas que ele teve com Lawson. E, em um determinado momento, ele comenta que acha muito estranho Lawson não ter visto nada suspeito, uma vez que estava de plantão na sua viatura, próximo ao local do crime. Quando ele comenta isso com Lawson, ele fica irritado, o que Macfadyen interpreta como uma reação normal à crítica. Mas, obviamente, a verdade é que Lawson não queria ninguém analisando o que ele andou fazendo naquela noite. Afinal, a sua presença passou despercebida, mas tirando nós quatro, a única pessoa que temos certeza de que estava na área naquela noite era Lawson. Se ele não fosse policial, teria sido o principal suspeito do crime.

- Mesmo assim. Por que sair atrás da gente, depois de todo este tempo?

Alex acomodou-se desconfortavelmente sobre a pedra.

- Bom, aí é que vem a parte mais difícil. Segundo Lawson, ele estava sendo chantageado.

- Chantageado? Por quem?

- Mondo.

Esquisito arregalou os olhos.

- Mondo? Tá brincando. Que invenção doentia é essa de Lawson agora?

- Acho que não é invenção. Lembra de quando Maclennan morreu?

Esquisito estremeceu.

- Como posso esquecer?

- Então. Lawson era o primeiro puxando a corda e ele viu o que aconteceu. Segundo ele, Maclennan estava se segurando em Mondo, mas Mondo entrou em pânico e chutou-o para fora da corda.

Esquisito fechou os olhos por um momento.

- Gostaria de dizer que não acredito nisso, mas é uma reação típica de Mondo. Mas, mesmo assim, não entendo o que isso tem a ver com chantagem.

- Depois que eles resgataram Mondo, foi aquele caos. Lawson se encarregou de ficar com ele e o acompanhou na ambulância. Aí ele disse a Mondo que tinha visto a cena e garantiu que ia fazer de tudo para que ele fosse punido. E foi então que Mondo soltou a sua pequena bomba. Ele afirmou ter visto Rosie entrando na viatura de Lawson na porta do Lammas uma noite. Bem, Lawson sabia que ia ficar encrencado se Mondo espalhasse aquela informação. Então, eles fizeram um acordo. Se Mondo não contasse o que tinha visto, Lawson faria o mesmo.

- Mais do que chantagem, era a garantia de que ambos iriam se destruir - disse Esquisito, asperamente. - E o que deu errado?

- Assim que a revisão dos casos não resolvidos foi anunciada, Mondo procurou Lawson e disse que o preço do seu silêncio era não ser incomodado pela revisão. Não queria que a sua vida virasse de cabeça para baixo novamente. E ele disse a Lawson que um de nós sabia da história, que ele não era o único. Só que, é claro, ele não especificou para qual de nós ele supostamente havia contado. Por isso Lawson estava fazendo tanta questão que Karen se concentrasse na busca das provas, em vez de nos procurar novamente. Precisava ganhar tempo, eliminando quem ele imaginava estar a par da verdade. Mas aí ele ficou espertinho demais. Decidiu criar um suspeito para a morte de Mondo. Então, forneceu um motivo para Robin Maclennan, contando a verdade sobre a morte do seu irmão Barney. Mas antes de Lawson matar Mondo, Robin Maclennan entrou em contato com ele, o que fez com que ele entrasse em pânico e fosse procurar Lawson novamente. - Alex deu um sorriso contrariado. - Foi isso que ele teve de resolver em Fife na noite em que apareceu lá em casa. De todo modo, Mondo acusou Lawson de quebrar a sua parte no acordo. E, se achando muito esperto, disse que iria revelar a sua história primeiro, de modo que quando Lawson alegasse que ele matou Barney Maclennan, todos pensariam que era uma acusação sem fundamento, inventada por um sujeito acuado. - Alex esfregou a mão no rosto.

- Pobre Mondo, que idiotice - gemeu Esquisito.

- A maior ironia é que, se não fosse a obsessão de Graham Macfadyen com o caso, Lawson podia muito bem ter conseguido matar nós quatro.

- Como assim?

- Se Graham não estivesse nos rastreando pela internet, jamais teria ficado sabendo da morte de Ziggy e não teria enviado a coroa de flores. Aí, jamais teríamos feito a ligação entre os dois assassinatos e Lawson poderia nos eliminar à vontade. Mas mesmo assim, ele deu um jeito de manipular a coisa ao máximo. Fez questão de garantir que eu ficasse sabendo sobre Graham Macfadyen, apesar de ter fingido que deixou escapar a informação sem querer. E, é claro, ele contou a Robin Maclennan como Mondo matou o seu irmão. Assim, poderia garantir uma certa segurança. Depois que Mondo foi assassinado, o canalha foi tão esperto que procurou Robin e lhe ofereceu um álibi falso. E Robin aceitou, sem parar para pensar que o álibi servia para os dois - ou seja, que ele estava protegendo o verdadeiro assassino.

Esquisito estremeceu e suspendeu as pernas, apertando os joelhos contra o peito. Sentiu uma pontada nas costelas, a sombra de uma dor antiga.

- Mas por que ele veio atrás de mim? Deve ter percebido que nem eu nem você sabíamos o que Mondo tinha visto, do contrário já o teríamos procurado para tomar uma satisfação pela morte de Mondo.

Alex suspirou.

- Acontece que ele já estava mais sujo do que pau de galinheiro. Por causa das coroas de Macfadyen, nós fizemos a ligação entre dois assassinatos que foram planejados para parecer completamente sem relação. A sua única esperança era fazer com que Macfadyen passasse como o assassino. E ele não teria livrado a nossa cara, não é mesmo? Ele teria ido até o fim, teria matado nós quatro.

Esquisito balançou a cabeça, tristemente.

- Que confusão horrível. Mas por que ele matou Ziggy primeiro?

- É tão banal que dá vontade de chorar. Ele matou Ziggy primeiro porque estava com férias marcadas nos Estados Unidos, antes da revisão dos casos ser anunciada.

Esquisito umedeceu os lábios.

- Então eu poderia muito bem ter sido o primeiro?

- Se ele decidisse ir pescar lá para as suas bandas, com certeza.

Esquisito fechou os olhos, levando a mão no peito.

- E em relação a Ziggy e Mondo? O que está sendo feito?

- Praticamente nada, acho eu. Apesar de Lawson ter aberto o bico e contado tudo, eles não têm nenhuma prova que comprove que foi ele quem matou Mondo. Ele foi bastante cuidadoso nesse sentido. Ele não tem nenhum álibi, mas diz que ficou no trailer naquela noite, então mesmo que eles consigam achar um vizinho que confirme que o carro dele não estava na garagem, ele está protegido.

- Então ele vai se safar, é isso?

- É o que parece. Pela lei escocesa, toda confissão tem de ser comprovada para que o sujeito possa ser acusado de fato. Mas pelo menos os policiais de Glasgow não estão mais pegando no pé de Hélène e de Jackie, o que não deixa de ser um resultado.

Esquisito bateu com a mão sobre a pedra, indignado.

- E Ziggy? A polícia de Seattle já solucionou alguma coisa?

- Um pouco. Mas não muito. Sabemos que Lawson estava nos Estados Unidos uma semana antes da morte de Ziggy. Supostamente, participando de uma viagem de pesca na Califórnia. Mas aí é que está. Quando ele devolveu o seu carro alugado, constavam muito mais quilômetros do que se podia imaginar em um mero passeio local.

Esquisito chutou a pedra abaixo dos seus pés.

- E é uma viagem longa da Califórnia para Seattle, não é?

- Exatamente. Mas, mais uma vez, não há nenhuma prova concreta. Lawson é esperto demais para ter usado o cartão de crédito fora do local onde deveria estar. Karen disse que a polícia de Seattle tem mostrado uma foto dele em armazéns e em hotéis, mas não deu em nada até agora.

- Não acredito que ele vai se safar novamente com dois assassinatos nas costas - disse Esquisito.

- Ué, não é você quem acredita em um julgamento mais poderoso do que o dos homens?

- Mas o julgamento de Deus não nos absolve do dever de transitar em um universo moral - respondeu Esquisito com seriedade. - Uma das maneiras de demonstrar amor pelos nossos semelhantes é protegendo-os dos seus piores impulsos. E mandar os criminosos para a prisão é apenas um exemplo radical disso.

- Tenho certeza de que eles se sentem muito amados - debochou Alex. - Mas Karen trouxe mais uma notícia. Parece que eles afinal decidiram não acusar Lawson por tentativa de homicídio por ele ter atacado você.

- Por que não? Eu disse que estava disposto a voltar e prestar o depoimento.

Alex ficou de pé.

- Sem Macfadyen, não existe nenhuma prova de que foi Lawson quem te deu aquela surra.

Esquisito suspirou.

- Paciência. Pelo menos ele vai ter de responder pelo que fez com Rosie. Acho que, no final das contas, não importa se ele conseguir escapar pelo que fez comigo. Você sabe, eu sempre me orgulhei de ser safo. Mas naquela noite, eu saí da sua casa cheio de bravata. Me pergunto se teria sido tão corajoso, ou irresponsável, se soubesse que, em vez de uma só, tinha duas pessoas no meu encalço.

- Pois é, agradeça por isso. Se Macfadyen não estivesse nos espionando, jamais teríamos como identificar Lawson e o seu carro no local.

- Continuo sem conseguir acreditar que ele não mexeu uma palha enquanto Lawson acabava comigo - disse Esquisito amargamente.

- Talvez a aparição do meu vizinho Eric o tenha impedido - suspirou Alex. - Acho que nunca vamos saber ao certo.

- Mas o que realmente importa é que finalmente descobrimos quem tirou a vida de Rosie - disse Esquisito. - Era um espinho cravado no nosso corpo por vinte e cinco anos e agora podemos nos livrar dele. Graças a você, conseguimos neutralizar o veneno que infectou nós quatro.

Alex olhou para ele, curioso.

- Mas você chegou a pensar...?

- Se foi um de nós que cometeu o crime?

Alex concordou com a cabeça.

- Eu sabia que não podia ter sido o Ziggy. Ele não se interessava por mulher nenhuma e, mesmo naquela época, não queria ser curado. Mondo jamais ficaria calado se tivesse sido ele. E você, Alex... Bom, digamos apenas que eu não conseguia imaginar como você teria levado o corpo para Hallow Hill. Você não ficou com as chaves da Land Rover em nenhum momento.

Alex estava perplexo.

- E esse foi o único motivo pelo qual você não suspeitou de mim?

Esquisito sorriu.

- Você era forte o suficiente para ficar de bico fechado. Consegue ficar incrivelmente calmo sob pressão, mas quando você estoura, aí sai de baixo. E ainda tinha uma queda pela garota... Vou ser sincero, me passou pela cabeça, sim. Mas assim que ficamos sabendo que ela havia sido atacada em um outro lugar e transportada para Hallow Hill, eu vi que não poderia ter sido você. Donde se conclui que o senhor foi salvo pela logística.

- Obrigado pela confiança - disse Alex, ofendido.

- Foi você quem perguntou. E você? De quem suspeitava?

Alex teve a delicadeza de parecer constrangido.

- Cheguei a pensar em você. Principalmente quando virou crente. Parecia o tipo de coisa que um sujeito culpado faria. - Alex contemplou as copas das árvores no horizonte mais distante, onde as montanhas se confundiam em uma bruma azulada. - Sempre fico pensando em como a minha vida teria sido diferente se Rosie tivesse aceitado o meu convite e aparecido na festa naquela noite. Ela ainda estaria viva. Assim como Mondo e Ziggy. A nossa amizade teria sobrevivido sem tantas provações. E teríamos vivido sem ter de lidar com a culpa.

- Você poderia ter acabado casando com Rosie, em vez de Lynn - comentou Esquisito.

- Não - protestou Alex. - Isso jamais teria acontecido.

- Por que não? Não subestime a fragilidade das amarras que nos unem à vida que levamos. E você gostava dela.

- Ia acabar passando. E ela jamais se interessaria por um garoto como eu. Ela já era madura demais. Além do mais, acho que mesmo naquela época eu já sabia que Lynn seria aquela que iria me salvar.

- Salvar de quê?

Alex sorriu, um sorriso suave e íntimo.

- De tudo nesta vida. - Ele olhou para a cabana lá embaixo, onde estava o seu coração. Pela primeira vez, em vinte e cinco anos, tinha um futuro; libertara-se do fardo do passado. E sentia como se tivesse finalmente recebido o presente que tanto merecia.

 

 

 

[1] Relativo aos pictos, antigos habitantes da Caledônia, atual Escócia. O cemitério picto de St. Andrews fica em Hallow Hill e foi escavado em 1977. (N.T.)
[2] Em inglês CID (Criminal Investigation Department). Policiais do Reino Unido que trabalham usando roupas civis. (N.T.)
[3] Os "seis de Birmingham" foram condenados à prisão perpétua em 1975 por um crime que não cometeram. Acusados de terem sido os responsáveis por atentados a bomba em dois pubs em Birmingham, foram forçados a confessar o crime sob tortura. Logo depois, o IRA reivindicou os atentados, mas como eles já haviam confessado, a sentença foi mantida. Os seis ficaram presos até 1991, quando a Justiça Britânica finalmente reconheceu o seu erro e pagou aos inocentes uma indenização de quase dois milhões de dólares. A história dos "quatro de Guildford" não é muito diferente: em 1974, após serem acusados de um atentado ao pub Guildford, em Londres, quatro jovens irlandeses foram presos, torturados e forçados a confessar o crime. Condenados à prisão perpétua, só foram libertados 15 anos depois. Em 1993 o caso ganhou uma adaptação cinematográfica, dirigida por Jim Sheridan, no filme Em Nome do Pai. (N.T.)
[4] "Combine" é a palavra usada para ceifadeira em inglês. (N.T.)
[5] Típica tradição escocesa, realizada no Ano-Novo (Hogmanay). Reza a lenda que a primeira pessoa a pisar em sua casa determinará a sorte que você terá no ano vindouro. (N.T.)
[6] Trecho de uma canção religiosa ("Balance gentilmente, doce carruagem. Leve-me para casa"). (N.T.)
[7] "I’m a laughing Gnome and you don’t catch me" (Sou um gnomo risonho e você não me pega). (N.T.)
[8] "Another brick in the wall": referência à música do Pink Floyd. (N.T.)

 

                                                                  Val McDermid

 

 

 

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