Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O EGIPCIO / Mika Waltari
O EGIPCIO / Mika Waltari

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O EGIPCIO

Primeira Parte

 

O BARCO DE VERGA

Eu Sinuhe, filho de Senmut e de sua mulher Kipa escrevo isto. Não o escrevo para a glória dos deuses da terra de Kan, porque estou cansado de deuses, nem para a glória dos faraós porque estou cansado de seus feitos. Tampouco escrevo por medo ou por qualquer esperança no futuro; escrevo para mim, apenas. O que vi, conheci e perdi durante a minha vida, foi coisa demasiada para que me domine um vão temor e, quanto a algum desejo de imortalidade, estou tão exausto disso quanto dos deuses e dos reis. É apenas por minha causa que escrevo, por tal motivo e essência diferindo eu de todos os escritores passados e vindouros.

  Principio este livro no terceiro ano do meu exílio, nas praias do mar Oriental de onde os navios saem para as terras do Ponto; aqui, perto do deserto, junto àquelas colinas cuja pedra foi retirada para a construção das estátuas dos primitivos deuses. Escrevo porque já agora o vinho é amargo para a minha boca, porque perdi o prazer que achava nas mulheres e porque nem jardins nem lagos com peixes me distraem mais. Expulsei os cantores, pois o som proveniente de sopro ou de cordas é tormento para os meus ouvidos. Por conseguinte eu, Sinuhe, escrevo isto já que não me importo com a minha riqueza, as minhas taças de ouro, o meu ébano, o marfim e a mirra. Nada disso me foi tomado. Escravos ainda temem as minhas varas. Guardas inclinam a cabeça e deixam cair as mãos até aos joelhos, diante de mim. Mas limites foram impostos aos meus passos e nenhum navio consegue transpor as ressacas que imperam neste litoral; nunca mais poderei sentir o cheiro da terra negra pelas noites de primavera. O meu nome outrora foi inscrito no livro de ouro do faraó e sempre permaneci à sua destra. Minhas palavras contrabalançavam as de poderosos na terra de Kan; nobres me enviavam dádivas, e correntes de ouro pendiam do meu pescoço.

  Possuí tudo quanto um homem pode desejar, mas, como todo homem, desejei mais e, por conseguinte fiquei reduzido ao que ora sou. Fui banido de Tebas no sexto ano do reinado do faraó Horemheb, ameaçado de ser batido até à morte como um cão, se voltasse... de ser esmagado entre pedras como uma rã se desse um passo sequer para fora da área estabelecida como lugar de residência. E isso por ordem do rei, do faraó que fora outrora meu amigo.

  Mas antes de começar o meu livro quero deixar meu coração se lamentar em prantos porque assim no exílio cumpre a um coração chorar sempre que mágoas o enegrecem. Todo aquele que uma vez bebeu água no Nilo, ansiará para sempre tornar para perto dele, pois a sede não se aplacará com as águas de nenhuma outra terra. Trocarei a minha taça por uma caneca de barro se meus pés puderem de novo pisar o pó macio da terra de Kan. Trocarei minhas vestes de linho pelas peles com que os escravos se cobrem, se puder mais uma vez ouvir os caniços das margens sussurrarem ao vento primaveril. Claras eram as águas da minha juventude; doce era a minha loucura. Amargo é o vinho da idade, e nem mesmo o mais escolhido favo de mel pode substituir o pão maldito da minha pobreza. Retrocede ó Tempo, tu, tempo já desfeito! Ammon cruza os céus do ocidente para o oriente e traz de novo a minha mocidade! Não alterarei uma única palavra, não corrigirei a menor ação minha. Ó estilete rombo, ó papiro liso, devolvei-me a minha loucura e a minha mocidade! Senmut, a quem eu chamava de pai, era médico dos pobres de Tebas; e Kipa era sua mulher. Já eram velhos e não tinham filhos quando lhes surgi. Ambos, em sua simplicidade, disseram que eu era uma dádiva dos deuses, nem sequer desconfiando que malefícios tal dádiva lhes traria. Kipa me deu o nome de Sinuhe, tirado de não sei qual personagem de histórias porque ela amava as histórias e achou que eu viera fugindo de qualquer perigo como o meu homônimo da lenda que acidentalmente entreouviu um assustador segredo na tenda do faraó e fugiu indo viver muitos anos de aventuras em terras estrangeiras. Isso, porém, não passava de ingênua suposição de Kipa que na verdade desejou deveras que eu sempre me esquivasse de perigos e evitasse a má sorte.

Mas os sacerdotes de Ammon cuidam que um nome é um agouro, e pode muito bem ser que o meu me trouxesse perigos e aventuras e acabasse me levando para terras estrangeiras. Este meu nome me fez comparticipante de medonhos segredos - segredos de reis e de suas esposas - segredos capazes de trazer a morte. E por fim este meu nome me tornou um prófugo e um exilado. No entanto eu seria tão ingênuo quanto a pobre Kipa se imaginasse que o meu nome pudesse influir no destino de alguém; tudo não seria a mesma coisa se eu me chamasse Kepru ou Kafran ou mesmo Moisés? Tal o meu julgar; todavia Sinuhe foi com efeito exilado ao passo que Heb, o filho do Falcão, foi coroado como Horemheb com a coroa vermelha e branca tornando-se rei dos Reinos do Alto e do Baixo Egito. Por conseguinte, que cada um afira do significado dos nomes o que bem quiser, em sua própria fé achando lenitivo contra os males e vicissitudes desta vida.

Nasci durante o reinado do grande rei Amenhotep III e no mesmo ano em que nasceu aquele outro que desejou viver segundo a verdade e cujo nome já não pode mais ser proferido porque foi amaldiçoado - muito embora em tal época nada disto fosse conhecido. Quando ele nasceu houve grande júbilo no palácio, e o rei ofereceu muitos sacrifícios no grande templo de Ammon que mandara construir; até o povo se alegrou, por não supor o que viria a suceder. A consorte real, Taia, esperara até então por um filho, esperança essa de todo vã já que estava casada havia vinte e dois anos, com o seu nome escrito junto com o do rei na fachada dos templos e nos soclos das estátuas. Por conseguinte, aquele cujo nome já não pode ser pronunciado foi proclamado herdeiro com magnífico aparato de cerimônias assim que os sacerdotes o circuncidaram.

Ele nascera só ao vir da primavera, depois das semeaduras, ao passo que eu vim à luz no outono anterior quando as águas se achavam em nível máximo. O dia do meu nascimento é desconhecido, pois cheguei vagando pelo Nilo abaixo num pequeno barco de verga calafetado de breu, e minha mãe me achou entre os caniços da margem bem perto da soleira de casa. As andorinhas já haviam chegado e chilreavam por cima de mim; mas tão quieto e imóvel estava eu que ela pensou que eu tivesse morrido. Levou-me para dentro de casa, aqueceu-me com o calor de brasas e soprou dentro de minha boca até vagir.

Meu pai Senmut voltou de visitar doentes, trazendo dois patos e um alqueire de trigo. Quando ouviu meus vagidos pensou que Kipa houvesse ficado com um gatinho recém nascido e começou a repreendê-la, mas minha mãe disse:

- Não se trata de nenhum gato... Tenho um filho! Alegra-te, Senmut meu esposo, pois nos nasceu um filho!

Meu pai chamou-a de idiota e ficou zangado até que ela me mostrou, ficando ele logo com pena do meu desvalimento. Assim, pois, me adotaram como filho chegando mesmo a espalhar entre os vizinhos que Kipa me houvera dado à luz. Isso era uma tolice e não sei como chegaram a acreditar... Mas Kipa guardou o barco de verga que me trouxera, suspendendo-o no teto, acima do meu leito.

Meu pai tomou o seu melhor vaso de cobre e o levou ao templo e me registrou no livro de nascimentos como seu filho e de Kipa, mas ele próprio me circuncidou porque era médico, com receio de que as facas dos sacerdotes me deixassem feridas malignas. Não deixou que os sacerdotes me tocassem. Pode ser também que tenha feito assim para poupar dinheiro porque o médico de gente pobre nunca é pessoa abastada.

Evidente é que não posso me lembrar de tais coisas, mas meus pais me contaram tantas vezes e sempre com frases tão idênticas que automaticamente acabei acreditando no que diziam, mesmo porque não dispunha de motivos para poder supor que estivessem mentindo.

Durante a minha infância adiante jamais duvidei que eles fossem meus pais, tristeza alguma sombreou tal período. Não me disseram a verdade senão depois que os cachos dos meus cabelos foram cortados, quando me tornei garoto. Contaram-me então a verdade porque temiam os deuses e os veneravam, e porque meu pai não quis que eu vivesse enganado a minha vida toda. Mas quem eu fui, de onde vim, quem tinham sido meus pais, nunca viam saber, muito embora - por motivos que contarei mais tarde - creia que sei. Uma coisa é certa: Não fui o único a ser transportado rio abaixo num barco alcatroado.

Tebas, com os seus palácios e os seus templos, era uma grande cidade, e as choças de barro dos pobres se aglomeravam rente aos edifícios mais majestosos. Durante o tempo dos faraós o Egito tinha muitas nações sob o seu jugo e, com o poder e a riqueza, vieram costumes os mais variados. Estrangeiros chegavam a Tebas; mercadores e operários construíam templos aos seus próprios deuses. Grande era o esplendor e a riqueza dos templos e dos palácios e grande, também, a pobreza fora das muralhas. Muita gente pobre se desfazia dos filhos; muita mulher rica, cujo marido estava ausente em viagens, abandonava no rio a prova de seu adultério. Talvez eu fosse filho da mulher de algum navegante que houvesse enganado o marido com um mercador sírio. Talvez, já que quando me colheram eu ainda não estava circuncidado, eu fosse alguma criança estrangeira.

Quando meus cabelos foram cortados e minha mãe os pos de lado numa caixinha de madeira junto com as minhas primeiras sandálias, olhei demoradamente para o barco de verga que ela me mostrou. O vime se tinha descorado, as frestas estavam dilatadas, o cavername enegrecera quase com a fumaça do braseiro. Estava amarrado com laços de caçador, e isso era tudo quanto podia especificar algo referente à minha origem. Foi então que minha alma sentiu sua primeira ferida. Quanto mais passa o tempo mais a alma voa como um pássaro em demanda da infância. Agora aqueles dias brilham nítidos e claros na minha memória assegurando-me que tudo então foi melhor e mais radioso do que o mundo de hoje. Quanto a isso em nada difere a riqueza da pobreza, pois não há ninguém, por mais desamparado que seja, cuja infância não mostre lampejos de felicidade quando recordada na velhice.

Meu pai Senmut vivia num bairro sujo e rumoroso ao sul das muralhas do templo. Perto de sua casa estavam os grandes molhes de pedra onde as embarcações do Nilo desembarcavam seus carregamentos, e no labirinto das ruas estreitas se achavam as tavernas dos marinheiros e dos mercadores e os bordéis freqüentados também pelos ricos que chegavam em liteiras vindos do âmago da cidade. Os nossos vizinhos, eram cobradores de impostos, arrais, oficiais e funcionários já fora do serviço e alguns sacerdotes de quinta categoria. Como meu pai, pertenciam à parte mais respeitada da população, alteando-se acima dela como uma muralha se alteia acima da superfície da água. Além do mais, a nossa casa era espaçosa em comparação com as choupanas das pessoas bem pobres e que se estendiam tristemente ao longo das ruelas. Possuíamos até mesmo um jardim pequenino com um sicomoro que meu pai plantara. O jardim tinha na frente, separando-o da rua, uma sebe feita de várias acácias; e como cisterna dispúnhamos de uma pedra escavada que continha água somente no tempo das cheias. Havia quatro aposentos na casa, e num deles minha mãe preparava nossa comida que nos era servida numa varanda adiante da sala de consulta de meu pai. Duas vezes por semana uma mulher vinha ajudar minha mãe na arrumação e limpeza da casa, porque Kipa era muito asseada, e uma vez por semana uma lavadeira vinha apanhar a nossa roupa para lavá-la na margem do rio.

Nesse bairro tumultuoso onde havia muitos estrangeiros - bairro cuja degradação me foi revelada somente quando já não era mais criança - meu pai e os vizinhos mantinham a boa tradição e todos os costumes veneráveis. Nesse tempo, quando mesmo entre os aristocratas da cidade os bons costumes decaíam, ele e a sua classe continuavam rigidamente a representar o Egito do passado, com sua veneração aos deuses, pureza de coração e generosidade. Dir-se-ia que queriam assim com a sua conduta se dissociar daqueles com os quais eram obrigados a viver e trabalhar. Mas para que falar agora do que só vim a compreender mais tarde? Por que, em lugar disso, não me recordar do tronco rugoso do sicomoro e do marulhar de suas folhas quando eu me abrigava do sol escaldante à sua sombra, e do meu brinquedo favorito, um crocodilo de madeira que entreabria suas mandíbulas e mostrava a goela rubra quando eu o puxava por uma corda ao longo da rua calçada? A criançada dos vizinhos se aglomerava para contemplá-lo, tomada de admiração. Ganhei muitos doces de mel, muitas pedras reluzentes e uma porção de pedacinhos de fio de cobre só para deixar que o arrastassem e brincassem com ele. Habitualmente só crianças de gente rica tinha brinquedos assim; fora um carpinteiro quem o dera a meu pai que o curara de uma inflamação que não lhe permitia sentar-se à sua banca.

De manhã minha mãe me levava ao mercado de verduras. Não tinha nunca muitas compras a fazer; ainda assim gastava algum tempo a escolher uma réstia de cebolas e, a bem dizer, as manhãs de uma semana inteira no caso de ter que escolher sapatos novos. Conversava durante o caminho e qualquer pessoa a consideraria rica e interessada apenas em adquirir do que houvesse de melhor. Se não comprava tudo quanto empolgava sua fantasia, bem, então para que fazia isso? Somente para me ensinar hábitos de economia. Declarava:

- Não é o homem que tem ouro e prata que é rico e sim o homem que se contenta com pouco.

Assim me afirmava ela, enquanto os seus pobres olhos se voltavam pesarosos para os tecidos de lã coloridos de Sido e de Biblos, tão bonitos e leves como penugem. As suas mãos trigueiras e ásperas de trabalho acariciavam as penas de avestruz e os ornamentos de marfim.

- Tudo isso não passa de vaidade - dizia a mim e a si mesma.

Mas a mente da criança se rebelava contra tais preceitos.

Eu tinha uma vontade louca de possuir um macaco que passasse o braço pelo pescoço do seu dono; ou um pássaro de plumagem brilhante que tagarelasse palavras sírias e egípcias. E não implicava absolutamente com correntinhas de ouro nem com sandálias douradas. E foi somente muito mais tarde que vim a verificar quanto a querida e velha Kipa ansiava ser rica. Não sendo mais do que a mulher de um pobre médico, ela serenava seus anseios contando histórias.

De noite, antes de dormirmos, ela me contava em voz baixa todas as histórias que conhecia. Falava-me de Sinuhe e do homem náufrago que voltara do Reino da Serpente com incontáveis riquezas; de deuses e de espíritos daninhos; de feiticeiros e de faraós antigos. As vezes meu pai intervinha dizendo que ela estava enchendo a minha cabeça com tolices, mas quando já era bem noite e ele se punha a ressonar, ela continuava, tanto para prazer meu quanto seu. Lembro-me daquelas noites mornas de verão quando o catre duro machucava meu corpo nu e não havia meios do sono chegar; ouvia a sua voz sussurrante e embaladora. Nem sequer a tenho mais agora. Quanta vez aquela voz me valeu... Dificilmente a minha verdadeira mãe poderia ter sido mais bondosa e mais terna do que a simples e supersticiosa Kipa, de cujas mãos os narradores de histórias cegos e aleijados tinham certeza de receber boa alimentação.

Tais histórias me agradavam; mas como contrapeso havia a rua movimentada, aquele enxamear de moscas, aquela infinidade de cheiros e fartuns. O vento trazia do porto o travo agudo das madeiras de cedro, da mirra, ou uma rajada de bálsamo quando uma mulher nobre passava em sua liteira, meio inclinada para fora para repreender os garotos da rua. Ao sobrevir das noites, quando o barco de ouro de Ammon mergulhava atrás das colinas ocidentais, então se levantava de todas achoupanas e varandas circunjacentes um cheiro de peixe frito misturado com o aroma do pão ainda quente. Esse cheiro de bairro pobre de Tebas, aprendi a amá-lo quando criança, e jamais o esqueci.

Foi durante as refeições na varanda que recebi as primeiras lições de meu pai. Atravessava o jardim, cansado, vindo da rua ou do seu consultório com as vestes cheirando a ungüentos e drogas. Minha mãe lhe despejava água nas mãos, e depois nos sentávamos em bancos; mamãe nos servia. Certas ocasiões, enquanto estávamos sentados ali, acontecia passar um bando de marinheiros fazendo celeuma de bêbados, batendo com paus nas paredes das casas, ou parando para defecar junto aos troncos das acácias.

Meu pai, que era um homem discreto, não dizia nada até eles irem embora; depois sim, me dizia:

- Somente um negro ou um sírio imundo faz isso na rua; um egípcio só o fará entre paredes.

Ou então comentava:

- O vinho, tomado com moderação, é um dom dos deuses e alegra nossos corações. Um copo não faz mal a ninguém. Dois, desatam a língua; mas o homem que bebe um jarro de vinho dorme para, ao acordar, se ver na sarjeta, roubado e batido.

Às vezes um perfume de ungüentos finos vinha até à varanda, quando uma mulher bonita passava a pé pela rua, com sua roupa transparente, as faces, os lábios e as sobrancelhas muito bem pintados, mostrando em seus olhos líquidos um reflexo jamais visto nos olhos das mulheres virtuosas. Sempre que eu arregalava os olhos para alguma delas, meu pai declarava gravemente:

- Põe-te em guarda diante de uma mulher que te chama de "lindo garoto" e que te tenta, pois o coração dela é uma armadilha e um alçapão. O corpo, esse então queima pior do que o fogo.

Não é de admirar, por conseguinte, que após tais ensinamentos a minha alma infantil começasse a temer as bilhas de vinho e as mulheres vistosas que eram diferentes das demais, muito embora aquelas e estas outorguem o encanto perigoso das coisas proibidas e receadas.

Quando eu ainda era criança meu pai consentia que eu assistisse às suas consultas; mostrava-me seus escalpelos, instrumentos e boiões de remédio, e explicava para que serviam. Enquanto examinava os doentes eu me postava perto dele, segurando e lhe passando bacias com água, panos, roupas, óleo e vinho. Minha mãe não tinha coragem de ver feridas e chagas, jamais compreendendo o meu interesse por tais coisas. Uma criança não percebe o que seja sofrimento enquanto não o experimenta. Para mim o lancetar de uma pústula era uma operação sensacional, e não deixava de contar aos demais meninos o que vira, a fim de lhes ganhar o respeito.

Sempre que chegava um paciente novo, eu acompanhava o exame de meu pai, bem como as perguntas; prestava muita atenção até ouvi-lo declarar: "Esta doença pode ser curada", ou "vou-me encarregar do seu tratamento". Havia casos para cujo tratamento ele não se sentia competente. Então escrevia algumas linhas numa tira de papiro e mandava os doentes para a Casa da Vida, no templo.

Depois que algum doente assim saía, papai habitualmente dava um suspiro, meneava a cabeça e dizia: "Pobre criatura!”

Nem todos os pacientes de meu pai eram pessoas necessitadas. Fregueses dos alcouces próximos lá uma vez ou outra lhe eram remetidos para curativos após brigas, e suas vestes eram do mais fino linho. Comandantes de navios sírios apareciam também, quando tinham furúnculos ou dor de dente. Não fiquei surpreendido, portanto, quando a mulher de um comerciante de víveres se apresentou um dia para consultar trazendo jóias além de um colar de deslumbrantes pedras preciosas.

Suspirava, queixava-se e lamentava-se de muitas aflições enquanto meu pai a ouvia atentamente. Fiquei grandemente desapontado quando por fim ele tomou uma tira de papel e escreveu qualquer recomendação; fiquei desapontado porque esperava que ele se sentisse capaz de curá-la, vista como isso significaria o recebimento de lindíssimos presentes.

Suspirei, meneei a cabeça e sussurrei para mim próprio: "Pobre criatura”.

A doente deu um pulo, repentinamente, e olhou assustada e medrosa para meu pai. Este escreveu uma linha em antigos caracteres copiados de um rolo de papiro já puído; depois misturou óleo e vinho dentro de um recipiente e em seguida mergulhou o papel até a tinta ser dissolvida pelo vinho. Feito isto, entornou o líquido num jarro de louça e o deu à mulher do comerciante, como remédio, dizendo que tomasse aquilo aos poucos, isto é, sempre que sua cabeça ou o seu estomago começassem a doer. Depois que a mulher saiu, olhei para meu pai, que me pareceu embaraçado. Ele tossiu uma ou duas vezes e disse:

- Há muitas doenças que podem ser curadas com tinta que foi usada para uma invocação poderosa.

Foi só isto que ele disse para si mesmo, daí a pouco:

- Pelo menos não causará dano algum ao doente.

Quando fiz sete anos ganhei uma tanga de menino e minha mãe me levou ao templo para assistir a um sacrifício. O templo de Ammon em Tebas era naquele tempo o mais grandioso do Egito. Uma avenida ladeada por esfinges com cara de carneiro e esculpidas em pedra levava ao templo, diretamente, defronte do templo e do lago da deusa Lua. A área do templo era cercada por muralhas maciças e com os seus muitos edifícios formava uma cidade dentro da própria cidade. Do alto dos pilonos, em torre flutuavam galhardetes, e gigantescas estátuas de reis guardavam as portas de cobre de cada lado do recinto.

Atravessamos os portões e os vendedores de Livros da Morte puxavam minha mãe pelas roupas e faziam suas ofertas em tom áspero ou sussurrante. Minha mãe me levou a ver as lojas de carpintaria abarrotadas de imagens de madeira de escravos e servos que, depois de consagradas pelos sacerdotes, serviriam para os seus possuidores no outro mundo a ponto destes nem precisarem erguer um dedo para obter qualquer coisa.

Minha mãe pagou a espórtula erigida aos espectadores, e eu vi sacerdotes em trajes brancos e de mãos gentis matarem e esquartejarem um touro entre cujos chifres um rolo de papiro trazia um selo testificando que o animal não tinha a menor mácula e nem um único pelo preto. Os sacerdotes eram nédios e santos, e suas cabeças raspadas luziam untadas de óleo.

Havia cem ou mais pessoas para assistir ao sacrifício, mas os sacerdotes não prestavam a menor atenção a essa gente e conversavam livremente entre si, durante a cerimônia, tratando de seus negócios. Observei as pinturas de assuntos guerreiros nas paredes do templo e me maravilhei com as gigantescas colunas, não atinando absolutamente com o motivo da emoção de minha mãe quando ela, com os olhos cheios de lágrimas, me levou de volta para casa. Lá, me tirou os sapatos de criança e me deu as sandálias novas que eram incomodas e que magoavam meus pés enquanto não me habituei com elas.

Depois da refeição, meu pai, com um feitio esquisito no semblante, depôs a sua enorme mão sobre a minha cabeça e acariciou com especial ternura os cachos dos meus cabelos nas minhas temporãs.

- Agora já estás com sete anos de idade, Sinuhe, e deves decidir o que queres ser.

- Um guerreiro! - disse eu imediatamente, e fiquei perplexo ante a expressão de desaponto do seu rosto afável.

Nos brinquedos e jogos de rua, os melhores eram os de imitação de guerra; além disso eu contemplara soldados lutarem e se exercitarem no uso de armas diante de tendas e vira carros vistosos de guerra passarem depressa com ruídos de rodas durante as manobras fora da cidade. Não podia haver nada mais nobre nem maior do que a carreira de um guerreiro.

Além disso, um guerreiro não precisava aprender a ler, e foi o que me pareceu mais propício, porque meninos maiores costumavam falar sobre a dificuldade da arte de escrever e como os professores eram desalmados, puxando o cabelo dos alunos caso esses mesmo sem querer esmagassem uma lousa de greda ou quebrassem uma pena vermelha entre seus dedos inábeis.

Com certeza se meu pai não conseguira passar de um pobre médico, era por lhe faltarem dons de homem notável. Mas era consciencioso em seu trabalho e jamais fazia mal seus pacientes, e até, com o decorrer dos anos, tornara sábio por causa da muita experiência. Já sabia quanto eu era sensível e voluntarioso, de forma que não fez nenhum comentário à minha resolução.

A verdade é que logo a seguir pedindo à minha mãe uma espécie de púcaro e indo para a sua sala de trabalho o encheu com vinho ordinário de um gomil.

- Vem comigo, Situe - disse ele.

Conduziu-me para fora de casa até à margem do rio. Paramos junto do cais para olhar uma barcaça de onde enfezados carregadores transportavam mercadorias em sacos. O sol descambava atrás das colinas ocidentais por trás da cidade dos Mortos, mas aqueles servos trabalhavam já trôpegos e escorrendo suor. O capataz os atiçava com seu chicote, enquanto o conferente, sentado placidamente debaixo do seu toldo, verificava cada fardo na sua lista.

- Gostarias de ser um destes? - perguntou-me meu pai.

  Achei tal pergunta estúpida e o fitei sem responder. Havia lá quem quisesse ser carregador?

- Trabalham desde manhã bem cedo até de noite - disse Senmut. - Tem a pele já agora que nem a dos crocodilos, seus pulsos são grossos como os pés dos crocodilos. Só quando a trela é total é que se arrastam para suas miseráveis choças e o que comem é uma pada de pão e uma cebola, e o que bebem é um gole de rala cerveja amarga. Essa é a vida do estivador, a vida do homem do arado, a vida de quantos trabalham braçalmente. Achas que exista quem os inveje?

Meneei a cabeça, fitando-o ainda, cheio de pasmo. Era soldado que eu desejava ser e não estivador nem lavrador. Muito menos aguadeiro dos campos ou pastor encoscorado de esterco.

E como ele prosseguisse lhe disse assim:

- Pai, boa é a vida dos soldados. Vivem em tendas e comem à farta; de noite bebem vinho em casas de divertimentos, por entre sorrisos de mulheres. Os chefes deles usam correntes de ouro pendentes do pescoço, e a verdade é que não precisaram aprender a escrever. Quando regressam das batalhas trazem despojos e escravos que trabalham e seguem ofícios para servi-los. Por que não hei de fazer tudo para ser guerreiro, eu também?

Meu pai não deu resposta; apressou o passo, isso sim. Junto de um entulho enorme e úmido onde moscas zumbiam em enxames, ele se abaixou a fim de olhar para dentro de uma choça baixa de barro.

- Inteb, meu amigo, estás aí dentro?

Emergiu um velho sarnento apoiado a um bastão. Seu braço direito fora amputado rente ao ombro e sua tanga estava dura de sujeira. Tinha a cara apergaminhada pela velhice e lhe faltavam os dentes.

  - Esse...é que é Inteb?...- gaguejei olhando com horror para o velho.

Inteb era um herói que lutara nas campanhas da Síria sob o comando de Thothmes III, o maior dos faraós e ainda se contava a história das suas proezas e das recompensas que o faraó lhe dera.

O ancião ergueu a mão em saudação militar e meu pai lhe deu o púcaro de vinho. Depois se sentaram no chão, pois não havia sequer um banco do lado de fora da choça, e Inteb levou o vinho aos beiços com a mão tremula procurando cautelosamente não perder uma gota. Meu pai disse, sorrindo:

- Aqui o meu filho Sinuhe quer ser guerreiro. Trouxe-o à tua presença, Inteb, porque és o único sobrevivente dos heróis das grandes guerras e lhe podes falar da vida orgulhosa dos soldados e dos seus esplendidos feitos.

- Em nome de Set, Baal e de todos os outros demônios! - guinchou o outro, voltando os olhos míopes para mim. - Estará louco esse garoto?

A sua boca desdentada, os seus olhos turvos, o coto flutuante do braço e o peito estreito e tortuoso eram tão terrificantes que me acocorei atrás de meu pai e me agarrei ao seu braço.

- Menino, menino - gaguejou Inteb - se eu ganhasse um gole de vinho em troca de cada uma das maldições que tenho proferido contra a minha vida e contra o meu fado, esse fado miserável que fez de mim um soldado, encheria o lago que o faraó mandou fazer para a sua primitiva esposa. Valha a verdade, nunca o vi porque não quis jamais atravessar o rio, mas não duvido absolutamente que o encheria... Ah! E haveria quantidade bastante para embriagar um exército inteiro.

Bebeu outra vez, cuidadosamente.

- Mas - disse eu, com o queixo tremendo - a profissão de soldado é a mais honrosa de todas.

- Falas em honra? Em renome? - vociferou Inteb, herói dos exércitos de Thothmes. - Lérias Monturo onde se alimentam moscas, isso sim e nada mais! Muito menti eu outrora para ganhar vinho dos paspalhões que me escutavam, mas teu pai é um homem às direitas a quem não devo nem posso enganar. Por conseguinte, filho, te digo que a profissão de guerreiro é de todas a mais excomungada e degradante. O vinho começou a desfazer as rugas do seu rosto e a por um brilho em seus velhos olhos selvagens.

Levantou-se e apertou o pescoço com a sua única mão.

- Olha, menino! Este pescoço encordoado pendeu outorga ao peso de cordões de ouro. Cinco voltas davam eles aqui. O próprio faraó mos cingiu. Quem poderá contar as mãos decepadas que dependurei diante da tenda dele? Quem foi o primeiro a escalar as muralhas de Kadesh? Quem irrompeu por entre as fileiras inimigas como um elefante barrindo? Fui eu.  Eu, Inteb, o herói! E quem me agradece por isso tudo, agora O meu ouro seguiu o caminho de todas as coisas terrenas, e os escravos que fiz em batalhas fugiram ou pereceram miseravelmente. Deixei o meu braço direito na terra de Mitani, e desde muito estaria eu já mendigando nas esquinas das ruas se não fosse gente caridosa que de vez em quando me dá peixe seco e cerveja por eu dizer a seus filhos a verdade relativamente à guerra. Sou Inteb, o grande herói. Olha-me bem Deixei minha mocidade no deserto. Levaram-ma a fome, as privações e as vicissitudes. Foi lá que a minha carne pendeu para fora dos meus membros, que a minha pele se endureceu e que o meu coração se petrificou. E o pior de tudo foi que o deserto árido secou a minha língua e me tornei presa de sede inextinguível como todo e qualquer soldado que volta vivo da guerra em terras estrangeiras. E a minha vida se tornou como o Vale da Morte desde que perdi meu braço. Não será preciso mais do que relembrar a dor da ferida e a agonia quando os operadores soldaram a boca do coto com óleo a ferver depois da amputação... Ora aí está uma coisa que teu pai sabe bem o que possa ser. Louvado seja o teu nome, Senmut És um homem justo, um homem bom... mas... o vinho acabou.

O ancião calou-se, vacilou um pouco e tornou a se sentar no chão, voltando o fundo do púcaro para cima. Seus olhos eram cinzas reluzentes e novamente ali estava apenas um velho desventurado.

- Mas um guerreiro não precisa ter que aprender a escrever... - consegui tartamudear.

- Ora, ora! - disse o ancião e olhou de esguelha para meu pai que prontamente tirou do braço uma argola de cobre e lhe entregou.

Inteb chamou alguém em voz alta e um rapazola magricela apareceu correndo, agarrou o bracelete e o púcaro e embarafustou para a taverna à cata de mais vinho.

- Não precisa ser bom - gritou-lhe Inteb. - Pede zurrapa; assim te darão quantidade maior.

Olhou para mim com ar de raciocínio.

- De fato um guerreiro não precisa escrever. Apenas, lutar. Se souber escrever poderá ser um oficial comandando os mais valentes aos quais mandará para frente de batalha. Todo aquele que sabe escrever está apto a comandar; mas um homem que não sabe escrever garatujas jamais terá nem mesmo cem indivíduos sob as suas ordens. Que prazer pode ter um homem em usar correntes de ouro e receber honrarias quando é o sujeito com a pena vermelha na mão que dá as ordens? Assim tem sido e assim será. Por conseguinte, meu rapaz, se desejas comandar homens e conduzi-los, aprende a escrever. Então os ajaezados de ouro se inclinarão diante de ti, e escravos te carregarão numa liteira para o campo de batalha.

O menino sujo voltou com um jarro de vinho, bem como com o púcaro cheio, também. O rosto do ancião brilhou de alegria.

- Teu pai Senmut é um homem bom. Sabe escrever e me tratou nos dias prósperos quando eu tinha vinho abundante e chegava a ver até crocodilos e hipopótamos onde absolutamente não havia nenhum. Um homem bom, conquanto seja apenas um médico e não saiba manobrar um arco. Sou-lhe grato.

Fiquei a olhar nervosamente para o jarro de vinho para o qual Inteb voltou já então toda a sua atenção; e comecei a puxar com violência a manga larga e manchada de drogas de meu pai, temeroso de que no mínimo tanto vinho resultasse em virmos a acordar estendidos nalguma sarjeta, cheios de dores de pancadas. Senmut também olhou para o jarro, suspirou de leve e me levou embora. Inteb ergueu sua velha voz fanhosa numa canção síria, enquanto o garoto nu, tanado de sol, ria.

Foi assim que enterrei os meus sonhos marciais e não opus a menor resistência quando no dia seguinte meu pai e minha mãe me levaram à escola.

Meu pai não se achava em condições de me mandar para qualquer das grandes escolas do templo freqüentadas pelos filhos - e às vezes pelas filhas - dos ricos, dos nobres e dos eminentes sacerdotes.

Meu professor era o velho sacerdote Oneh que morava perto de nós e que dava aulas na sua varanda derrocada. Seus alunos eram filhos de artesões, mercadores, capatazes de docas e oficiais não comissionados cuja ambição se restringia a abrir uma carreira de escriba para os filhos. Oneh fora servente do Celestial MT do templo e era, por conseguinte bem capacitado para dar lições elementares de escrita a crianças que mais tarde teriam a seu cargo lojas de mercadorias, depósitos de cereais, cabeças de gado ou provisões para o exército. Havia centenas de escolinhas assim na grande idade de Tebas. A instrução não era cara; os alunos tinham apenas que sustentar o professor. O filho do vendedor de carvão se encarregava de lhe encher sempre o braseiro durante o inverno; o filho do tecelão fornecia-lhe tecidos; o filho do merceeiro não deixava que lhe faltassem cereais, e meu pai lhe tratava as muitas dores e pontadas e lhe dava ervas sedativas a serem tomadas com o vinho.

Dependendo tanto de nós, Oneh tinha por força que ser um inefável professor. Um garoto que adormecesse em cima da sua lousa jamais sofria puxões de orelhas; bastava que na manhã seguinte lhe trouxesse uma gulodice. As vezes o filho do cerealeiro trazia uma botija com cerveja. Em dias assim prestávamos atenção porque o velho Oneh ficava inspirado e nos contava estranhas histórias do outro mundo: da Celestial Mut, do Criador, de Ptah e de sexos de seus companheiros.

Ríamos, pensando que o havíamos distraído das nossas tarefas difíceis, principalmente de termos que escrever caracteres enfadonhos pelo resto do dia; foi bem mais tarde que averigüei que o velho Oneh era um professor bem mais sábio do que cuidávamos. Havia um propósito naquela sua mania de contar lendas a que a sua mente piedosa, ingênua, sabia dar vida. Através delas ficávamos sabendo as tradições do antigo Egito. Nelas nenhuma ação má ficava sem castigo. Cada coração humano era pesado ininterruptamente diante do alto trono de Osiris. Cada mortal cujas ações más fossem desvendadas sobre as balanças do deus de cabeça de Chacal era arremessado ao Devorador que era uma fusão de crocodilo e hipopótamo, mais aterrorizante do que qualquer deles isoladamente.

Falava também do sinistro Olho Voltado, o terrível barqueiro sem cuja ajuda ninguém conseguia chegar aos campos dos bem-aventurados; quando remava ia voltado para a popa, nunca para a proa como os barqueiros humanos do Nilo. Oneh nos fazia repetir de cor as frases que nos pudessem ser vantajosas e propícias. Ensinava-nos a copiá-las e a, em seguida, escreve-las de cor, corrigindo nossos erros com a gentil advertência de que o menor engano nos destruiria todos os ensejos de uma vida feliz no futuro.

Se acaso entregássemos ao olho Voltado uma carta contendo um erro mesmo trivial seríamos forçados a vagar como sombras por toda a eternidade pelas margens daquelas águas sombrias; ou, pior ainda, nos engolfaríamos nos medonhos abismos dos reinos da morte.

Freqüentei a escola de Oneh durante alguns anos. O meu melhor amigo era Thothmes que era um ano e pouco mais velho do que eu e que desde criançola aprendera a lutar e a domar cavalos. Seu pai comandava um esquadrão de carros de guerra e manejava um chicote trançado com fio de cobre; confiava em que o filho chegasse a ser um dia um oficial superior e por tal motivo desejava que ele aprendesse a ler. Mas não havia nada profético quanto ao nome depois ilustre de Thothmes, não obstante as ambições paternas, pois assim que o rapaz começou a freqüentar a escola deixou de se incomodar com o arremesso de dardos e a condução de carros. Aprendeu os caracteres com muita facilidade e enquanto os demais alunos lutavam em comum, ele desenhava cenas na sua lousa; cenas de carros, de cavalos empinados, de soldado sem luta. Trazia argila para a escola e enquanto o suco levedado contava histórias pela boca de Oneh, ele modelava uma imagenzinha cômica do Devorador despedaçando com rudes mandíbulas um velhote calvo eujo dorso curvo e cujo ventre de tonel não podiam pertencer a ninguém senão a Oneh. Este, porém, não se zangava. Ninguém podia se zangar com Thothmes. Tinha um rosto largo e curto, pernas grossas de lavrador, mas os olhos possuíam um brilho jubiloso que empolgava e os pássaros e animais formados de argila por suas mãos habilidosas, nos deliciavam. Tomei-me de amizade por ele, inicialmente, por causa do seu feitio marcial; mas a amizade persistiu depois que cessou de mostrar quaisquer traços de ambição guerreira.

Aconteceu um prodígio durante a minha temporada escolar e aconteceu tão repentinamente que ainda considero tal hora como uma hora de revelação. Foi num bonito dia de amena primavera, quando o ar estava repleto de cantos de pássaros e as cegonhas recompunham seus velhos ninhos nos telhados dos casebres de barro. As águas haviam descido e novos rebentos verdes emergiam do chão. Em todos os jardins que tinham recebido sementes plantas brotavam. Era um dia que convidava à aventura, e era impossível permanecermos sentados quietos na velha varanda raquítica de Oneh onde os tijolos se desmantelavam ao menor contacto. Eu estava riscando um desses símbolos perpétuos, letras a serem cortadas em pedra e traçando ao lado deles os sinais abreviados usados para serem escritos em cima de papel, quando de repente certa palavra esquecida de Oneh, determinado fulgor estranho dentro de mim, falou e deu vida àqueles caracteres.

Os desenhos se tornaram uma palavra, a palavra uma sílaba e a sílaba uma letra. Quando juntei desenhos a desenhos novas palavras irromperam - palavras vivas, inteiramente distintas dos símbolos. Qualquer rústico pode compreender um desenho; mas dois juntos só tem sentido para o literato. Creio que quem quer que haja aprendido a escrever e a ler sabe que é que estou querendo dizer. Para mim tal experiência se tornou mais fascinante do que arrebatar uma romã do cesto de um vendedor de frutas; mais doce do que uma tâmara seca; tão deliciosa como para o sedento um bom gole d'água.

De então em diante não precisei mais de instigação, mas me embebi nos ensinamentos de Oneh como a terra seca se embebe com o extravasar das águas do Nilo e depressa aprendi a escrever. Não tardou que começasse a ler o que os outros tinham escrito, e no terceiro ano de aula eu já sabia soletrar sozinho trechos de rolos esfarrapados, ler alto para os outros cabulas instrutivas e escreve-las.

Por esse tempo percebi que me tornara diferente dos demais. Meu rosto se tornara mais estreito, a minha pele mais clara, e os meus membros mais esguios do que os dos outros garotos e das pessoas entre as quais morava. Se não fosse a diferença dos trajes ninguém me distinguiria dos meninos que eram carregados em liteiras ou que andavam pelas ruas acompanhados por escravos. Zombaram de mim por causa disso. O filho do cerealista tentava passar o braço em torno do meu ombro e me chamava de menina; a tal ponto que certa vez tive que investir e quase o traspassei com o meu estilete.

Implicava com ele por causa do seu cheiro ruim e gostava de andar com Thothmes que nunca me tocava. E um dia Thothmes me disse:

- Vou modelar-te tal qual és; senta-te aí, bem quieto.

Resolvi, porém, levá-lo para minha casa e acolá, debaixo do sicomoro, ele me modelou em argila e riscou na base os caracteres do meu nome, com um estilete. Minha mãe Kipa, ao aproximar-se trazendo-nos bolos, levou um susto quando viu a imagem e chamou-a de feitiçaria. Mas meu pai disse que Thothmes podia vir a ser um artista da casa real se ao menos pudesse freqüentar a escola do templo; então, brincando, me inclinei diante de Thothmes e estendi as mãos ao nível dos joelhos conforme se faz diante de pessoas preeminentes. Seus olhos brilhantes; e ele brilharam em seguida que isso jamais se daria porque o pai achava que já era tempo de voltar para as tendas e freqüentar o curso da arte de guiar carros

Já sabia escrever quanto era necessário para um futuro oficial. Meu pai logo nos deixou e ouvimos Kipa falar sozinha lá na cozinha; no entanto Thothmes e eu comemos os bolos que eram gostosos e fofos: e mostramos contentamento.

Naquela época eu ainda era Feliz.

Certo dia meu pai pos o seu melhor traje recentemente lavado e prendeu no pescoço um largo colar bordado por Kipa. Dirigiu-se ao grande templo de Ammon, embora no íntimo não gostasse de sacerdotes. Mas é que nada acontecia em Tebas, ou antes em todo o Egito, naquele tempo, sem a ajuda e a intervenção deles. Administravam justiça a tal ponto que um homem ousado contra o qual a corte do faraó houvesse pronunciado um julgamento podia apelar para eles e obter reforma da sentença. Tinha nas mãos o ensino referente aos postos administrativos mais altos. Prediziam a altura das águas nas cheias e a quantidade das safras, fixando assim os impostos na nação inteira.

Não acho que fosse fácil para meu pai se humilhar diante deles. Toda a vida fora um médico de gente pobre no bairro dos miseráveis e um desconhecido no templo e na Casa da Vida; e agora, como os outros pais pobres, tinha que esperar na fila do lado de fora do departamento administrativo até que algum sacerdote ou qualquer outra pessoa o recebesse.

Revejo de onde estou agora aqueles pobres pais, com suas melhores roupas, acocorados no pátio do templo, sonhando carreiras ambiciosas para os filhos cujas existências queriam que fossem melhores do que as suas. Muitos tinham vindo de longe, em botes rio abaixo, carregando víveres consigo e os gastavam subornando algum porteiro ou funcionário só para conseguirem o privilégio de uma palavra a algum sacerdote de túnica bordada a ouro que, todo perfumado e antipático lhes torcia o nariz por causa do cheiro da pobreza e lhes dava respostas ásperas. E entretanto, Ammon não se fartava da contínua maré de novos servidores. Quanto maior a sua riqueza e poder, maior o número de escribas usados em seu serviço.

Todavia não existe um pai que não considere como um favor divino a graça de ser recebido no seu templo, muito embora, coitado dele, trazendo o filho, trouxesse um donativo mais precioso do que o ouro.

Meu pai ainda teve sorte naquela visita, pois pouco depois do meio dia passou ele Ptahor, seu antigo condiscípulo. Com o decorrer do tempo Ptahor se tornara um hábil trepanador da corte do faraó. Meu pai cobrou ânimo e falou com ele. Ptahor prometeu honrar nossa casa com sua visita e examinar-me.

Marcado que foi o dia, meu pai economizou para comprar um ganso e um vinho melhor. Kipa acendeu o forno e alvoroçou-se. Um cheiro gostoso de gordura de ganso se espalhou até à rua, e cegos e mendigos se juntaram para cantar e representar, desta forma querendo co-participação na iguaria. Kipa tomada de fúria, livrou-se deles entregando a cada, um pedaço de pão molhado em gordura. Thothmes e eu varremos bem a rua, desde a nossa porta até o começo do outro bairro.

Meu pai pedira a Thothmes que estivesse presente à chegada do visitante na esperança de que meu colega também merecesse a atenção do notável. Embora fossemos garotos, assim que meu pai acendeu o incenso e o dispôs na entrada a fim de perfumar o ambiente, ficamos tomados de respeitoso receio como se estivéssemos num templo. Eu vigiava o jarro com água perfumada e enxotava as moscas para fora da deslumbrante toalha de linho branco que Kipa reservara para seu funeral, mas que se viu obrigada a usar como toalha por causa de Ptahor.

Tivemos que esperar muito. O sol descambou, a atmosfera tornou-se mais fresca, o incenso no pórtico acabou de se queimar e o ganso frigia monotonamente lá no fogão. A minha fome aumentava e o rosto de Kipa se ia tornando comprido e hirto. Meu pai não disse nada, mas não acendeu as lâmpadas quando a escuridão chegou. Ficamos sentados juntos ali no pórtico, sem nos entreolharmos e foi então que notei que mágoa amarga e que decepção profunda uma pessoa rica e poderosa pode causar a uma pessoa pobre.

Eis, porém que por fim surgiu uma tocha ao longo da rua. Meu pai deu um pulo e foi depressa à cozinha buscar uma acha para acender as lâmpadas. Ergui o jarro e o fiquei segurando com mãos tremulas enquanto Thothmes fungava fortemente ao meu lado.

Ptahor, o abridor de crânios reais, chegou despretensiosamente numa liteira trazida por dois escravos negros e precedida por sujeito gordo evidentemente bêbado que trazia a tocha. Com zumbaias, exclamações alegres de saudação, Ptahor desceu da liteira para cumprimentar meu pai que se inclinou e estendeu as mãos ao nível dos joelhos. O visitante pos as mãos nos ombros de meu pai para lhe mostrar que não era necessária tal cerimônia ou, talvez, para se equilibrar.

Assim seguro, deu um pontapé no homem da tocha e lhe disse que podia dormir debaixo do sicomoro. Os negros, sem esperar ordens, largaram a liteira junto da sebe de acácias e se acocoraram no chão.

Sempre apoiado no ombro de meu pai, Ptahor subiu para o pórtico onde entornei água em suas mãos não obstante os seus protestos. Quando lhe estendi a toalha de linho, redargüiu que já que eu lhe molhara as mãos podia muito bem enxugá-las.

Depois que fiz isso, agradeceu e disse que eu era um menino simpático. Meu pai levou-o para o lugar de honra, uma cadeira com espaldar emprestada pelo merceeiro e Ptahor se sentou, volvendo os pequeninos olhos perscrutadores à sua volta por entre a luz das lâmpadas de óleo. Durante algum tempo houve silencio. Por fim, limpando a garganta, maneirosamente pediu bebida como se o longo percurso lhe tivesse ocasionado sede. Prontamente meu pai lhe serviu vinho, com ar prestimoso. Ptahor cheirou-o, provou-o com feitio desconfiado e em seguida esvaziou a taça com evidente prazer; e deu um suspiro de contentamento.

  Ptahor era um homenzinho de pernas arqueadas e de cabeça raspada, com um peito e um ventre que proeminavam por sob suas vestes finas. Seu colar, composto de pedras preciosas, estava manchado como a sua roupa; todo ele cheirava a óleo, vinho e suor.

Kipa serviu-lhe bolos de especiaria, postas de peixe frito em óleo, frutas e ganso assado. Ptahor comeu, aceitando tudo polidamente, embora fosse claro que acabara de jantar bem; ao provar cada prato de Kipa, elogiava muito, o que a satisfez sobremaneira. De acordo com um desejo dele, levei cerveja e comida para os negros que em paga se puseram a vociferar insultos perguntando se o velho pançudo ainda ia demorar muito. O criado ressonava debaixo do sicomoro e não tive a menor vontade de acordá-lo.

Aquele serão acabou se tornando muito confuso, pois até mesmo meu pai bebeu muito mais do que eu já o vira fazer; minha mãe não tardou a se ir sentar na cozinha, sobressaltada e aflita, balançando-se para diante e para trás, com as mãos na cabeça. Depois que o cântaro ficou vazio, começaram a beber o vinho utilizado por meu pai como remédio durante as consultas. Acabado que foi este, se serviram da cerveja comum de mesa, pois Ptahor assegurou que não era metido a exigências.

Conversaram sobre o tempo de estudantes na Casa da Vida, brindando-se e abraçando-se o tempo todo. Ptahor relatou sua prática de cirurgião de crânios reais, afirmando que esta era a parte mais difícil em que um médico podia se especializar, sendo mais adequada para a Casa da Morte do que para a Casa da Vida.

Mas que, quanto à tal especialização, pouco e raro era o trabalho, continuando assim pois a ser o mesmo preguiçoso de que Senmut, o Tranqüilo, certamente se lembraria. A cabeça humana - excetuando os dentes, os ouvidos e a garganta que requeriam especialistas adequados - era, no seu entender, a coisa mais simples que havia a se estudar; devido a isso escolhera tal especialidade.

- Mas - disse ele - se eu tivesse sido decente devia ter permanecido o que fui: um médico honesto tratando de dar saúde e vida aos meus pacientes. Sendo o que sou, só me compete tratar da morte quando parentes de velhos e de incuráveis me chamam. Gostaria de ser como tu, amigo Senmut, mais pobre, decerto, mas levando uma vida mais honesta e mais útil.

- Não acrediteis nele, meninos! - disse meu pai voltando-se também para Thothmes que se achava sentado junto de nós com uma taça de vinho na mão. - Sinto-me orgulhoso de chamar o trepanador de crânio do faraó de "meu amigo"; no seu ramo é a pessoa mais altamente habilitada no Egito inteiro. Pois então não me lembro das prodigiosas operações de trepanação mediante as quais salvou as vidas tanto de poderosos como de humildes e fez o mundo ficar perplexo?! Ele expulsa maus espíritos que levam os homens à loucura e lhes extrai dos cérebros tumores do tamanho de ovos. Antigos doentes seus, tomados de gratidão, outorgam-lhe ouro e prata, braceletes e taças.

- Mas a gratidão dos parentes ainda é maior - declarou Ptahor, categoricamente - pois se por acaso curo um em dez, um entre quinze ... não, digamos um entre cem, certíssima é a morte dos demais. Não ouviste falar de um certo faraó que viveu ainda três dias depois que seu crânio fora aberto? Não, os loucos incuráveis é que são trazidos para se submeterem à minha faca de cristal; quanto mais ricos e ilustres, mais depressa me chegam. A minha mão liberta os homens dos seus sofrimentos, divide heranças, terras, gado e ouro; a minha mão ergue faraós ao trono. Por conseguinte sou temido e ninguém ousa falar contra mim porque sei muitas coisas; mas o conhecimento aumentado faz aumentar as aflições, e a verdade é que sou um homem infelicíssimo.

Ptahor chorou um pouco e soprou o nariz na mortalha de Kipa.

- És pobre mas honesto, Senmut - soluçou ele. - É por isso que gosto de ti porque, se sou rico, também sou carcomido...tão carcomido como a carcaça podre de um boi na estrada.

Tirou do pescoço o colar de jóias e o dependurou no pescoço de meu pai; depois começaram a cantar, a entoar canções cujas palavras eu não entendia, mas que Thothmes escutava com interesse, dizendo-me incidentemente que cânticos de sigadores não eram ouvidos nem mesmo nas tendas. Kipa começou a chorar alto lá na cozinha. Um dos negros veio da sebe das acácias, ergueu Ptahor nos braços e quis levá-lo para a liteira aduzindo que desde muito já devia ele estar na cama.

Mas Ptahor lutou soltando gritos violentos, chamando os guardas para ajudá-lo e jurando que o negro era um assassino.

Como papai estava imprestável eu e Thothmes expulsamos o negro com bastonadas até ele fugir com raiva e ir embora, blasfemando furiosamente e levando consigo o companheiro e a liteira. Ptahor então entornou o jarro de cerveja em cima do corpo, pediu óleo para esfregar no rosto e tentou até tomar banho na cisterna. Thothmes me disse baixo que o melhor era pormos tal homem na cama; não tardou, pois que meu pai e o real cirurgião de crânios abraçados ao pescoço um do outro, babando juramentos intermináveis de eterna amizade.

Kipa chorava e arrancava os cabelos, cobrindo-se com a cinza que tirou do fogão. Eu estava atormentado pelo pensamento do que os vizinhos iriam dizer, pois o escarcéu e a bulha haviam soado longe através da noite quieta. Entretanto Thothmes estava tranqüilo porque já assistira a coisas mais selvagens nas tendas e na casa de seu pai quando os condutores de carros falavam de fatos antigos e de expedições punitivas à Síria e à terra de Kush. Esforçou-se para acalmar Kipa e, depois que limpamos o melhor possível quaisquer traços da noitada e do jantar, também fomos dormir. O criado continuava roncando em baixo do sicomoro, e Thothmes se deitou ao meu lado na cama, passou o braço em torno do meu pescoço e se pos a falar de raparigas, porque também bebera vinho. Mas como eu era um ano e tanto mais moço do que ele isso não me interessou e logo peguei no sono.

De manhã bem cedo fui acordado por uma série de sons e movimentos no quarto de dormir e ao entrar dei com meu pai dormindo ainda vestido e com o colar de Ptahor no pescoço. Ptahor se achava sentado no chão, segurando a cabeça com as mãos e perguntando com uma voz medonha onde se achava.

Saudei-o respeitosamente e lhe disse que ainda estava no bairro portuário, na casa de Senmut, o médico. Isso o aquietou, logo me pedindo cerveja em nome de Ammon. Respondi-lhe que ele próprio esvaziara o jarro de cerveja em cima do corpo, conforme o estado de sua roupa testemunhava.

Então se levantou, endireitou-se com uma catadura cheia de dignidade e saiu. Despejei água nas suas mãos e ele abaixou a cabeça calva, com um grunhido, pedindo-me que a molhasse também. Thothmes que já acordara, trouxe-lhe uma tigela de coalhada e um prato de peixe salgado. Depois que se alimentou ficou mais natural. Dirigiu-se ao sicomoro onde o servo se achava dormindo no chão e começou a bater nesse indivíduo até que ele acordasse e se erguesse com a roupa suja de folhas e gravetos e a cara encoscorada de terra.

- Porco imundo - exclamou Ptahor e zurriu-o outra vez. - E assim que te importas com os negócios do teu senhor e levas a tocha diante dele? Onde está a minha liteira? Onde está a minha roupa limpa? E as minhas amoras medicinais? Some da minha vista, ladrão e porco desprezível!

- Sou um ladrão e o porco às ordens do meu senhor - disse o criado, humildemente. - Que manda o meu senhor?

Pitaor deu-lhe as suas ordens. O criado saiu em demanda da liteira. Ptahor instalou-se confortavelmente debaixo do sicomoro, recostando- se no tronco, e recitou um poema concernente à manhã e onde falava em flores de lótus, numa rainha se banhando no rio; depois nos contou uma porção de coisas que os meninos gostam de escutar. Nesse ínterim Kipa acordou, acendeu o fogo e entrou no quarto onde se achava meu pai. Podíamos ouvir a voz dela mesmo dali do jardim. E quando meu pai apareceu mais tarde com uma roupa limpa, ambos se contemplaram deveras entristecidos.

- Tens um filho formoso - disse Ptahor. - Porta-se como um príncipe e tem os olhos afáveis como os das gazelas.

Apesar da minha idade, percebi que falava assim para que esquecêssemos o seu comportamento da noite passada. Daí a pouco, prosseguiu:

- Teu filho é talentoso? Os olhos da sua alma são tão abertos quanto os do seu corpo?

Então Thothmes e eu fomos apanhar as nossas lousas de escrita. O real cirurgião de crânios, olhando abstratamente para os ramos mais altos do sicomoro, ditou um pequeno poema de que ainda me lembro. Dizia assim:

Rejubila-te enquanto és jovem

Pois a velhice engole cinzas  

E qualquer corpo embalsamado  

Não ri na escuridão da tumba.

Tratei de caprichar, escrevendo primeiro em sinais comuns e depois em desenhos. Por fim escrevi as palavras "velhice”, "corpo" e "tumba" de todas as maneiras em que podiam ser escritas com referencia a sílabas e letras. Mostrei-lhe a minha lousa. Não achou nenhum erro e notei que meu pai se sentiu orgulhoso de mim.

- E o outro garoto? - disse Ptahor, estendendo a mão.

Thothmes mantivera-se sentado aparte, desenhando na sua lousa, e hesitou antes de estende-la, embora seus olhos demonstrassem alegria. Quando nos inclinamos para olhar, vimos que desenhara Ptahor prendendo seu colar no pescoço de meu pai e, depois, Ptahor entornando cerveja em cima de si mesmo, ao passo que no terceiro desenho ele e meu pai estavam cantando abraçados... Um desenho tão engraçado que a bem dizer se podia ver que espécie de canção era a que estavam cantando. Tive vontade de rir, mas não ousei, receoso de que Ptahor ficasse zangado. Sim, pois Thothmes não o lisonjeara; pintara-o tão baixote, calvo, cambaio e barrigudo quanto era, realmente.

Durante algum tempo Ptahor não disse nada, ficando a olhar firmemente ora para os desenhos, ora para Thothmes.

Este foi começando a ficar um pouco amedrontado e a se balançar nervosamente na ponta dos pés. Por fim Ptahor perguntou:

- Que queres por estes desenhos, menino? Eu os comprarei.

Thothmes, com o rosto escarlate, replicou:

- A minha lousa não está à venda. Eu vo-la dou como a um amigo.

Ptahor riu.

- Está bem. Então sejamos amigos e a lousa fica sendo minha.

Olhou para ela, atentamente, mais uma vez, riu e a arremessou-a de encontro a uma pedra, fazendo-a em pedaços.

Sobressaltamo-nos; e Thothmes lhe disse que, caso se sentisse ofendido, que o perdoasse.

- Posso zangar-me com a água quando ela reflete a minha imagem? - retorquiu Ptahor, placidamente. - E, os olhos e as mãos do desenhista refletem melhor do que a água... pois sei agora qual o meu aspecto ontem e não desejo que outros o vejam. Destruo a lousa, mas reconheço em ti o artista.

Thothmes deu saltos de júbilo. Ptahor, voltando-se para meu pai e apontando para mim, pronunciou solenemente o juramento antigo do médico:

- Encarregar-me-ei deste caso.

Apontando em seguida para Thothmes, disse:

- Farei o que puder.

E tendo voltado ambos a conversar como médicos, ele e meu pai, se puseram a rir, satisfeitos. Meu pai, pondo a mão em cima da minha cabeça, perguntou:

- Sinuhe, meu filho, queres ser médico, como eu?

Lágrimas me encheram os olhos e a minha garganta se constringiu de tal forma que não consegui responder; mas fiz que sim, com a cabeça. Olhei em redor. Como tudo aquilo me era caro, o jardim, o sicomoro e a cisterna!

E meu pai prosseguiu:

- Sinuhe, meu filho, queres ser um médico ainda mais capacitado do que eu? Sim, melhor do que eu?...Senhor da vida e da morte, e a quem todos, preeminentes ou humildes, possam confiar suas vidas?

- Nem como ele nem como eu! - apartou Ptahor. Endireitou-se e um fulgor inteligente surgiu em seus olhos. - Um autentico médico, ou seja, a pessoa mais poderosa de todas! Diante dele o próprio faraó fica nu. Diante dele o mais rico se assemelha ao mendigo.

Respondi timidamente:

- Gostaria bem de ser médico.

Era menino ainda, não sabia nada da vida nem que a velhice sempre procura por aos ombros da mocidade os seus sonhos e desapontamentos. Mas quanto a Thothmes, Ptahor mostrou um bracelete que lhe rodeava o punho e disse:

- Lê  

Tohthmes pronunciou os caracteres ali inscritos, lendo alto e vagarosamente:

"Uma taça cheia rejubila meu coração."

E não pode reprimir o riso.

- Não há razão para que te rias, birbante! Isto não tem nada que ver com o vinho. Se queres ser artista tens que pedir que a tua taça seja cheia. No verdadeiro artista se revela Ptah em pessoa, o criador, o construtor. O artista é mais do que um lago refletindo imagens. Com efeito, a arte pode muitas vezes não ser mais do que uma água lisonjeira ou um espelho mentiroso; o artista é mais do que isso. Exige portanto que a tua taça esteja repleta sempre, filho, não bastando que fiques contente com o que os homens te digam. Confia antes em teus próprios olhos, que vêem mais claro.

Prometeu que breve eu seria admitido como aluno na Casa da Vida e que faria tudo para que Thothmes entrasse para a escola de arte no templo de Ptah, caso tal coisa fosse possível.

- Mas, meninos, ouvi cuidadosamente o que vou dizer e depois esquecei imediatamente... ou, pelo menos, esquecei que foi o real cirurgião de crânios quem falou. Ireis cair agora nas mãos de sacerdotes. Tu, Sinuhe, te tornarás um deles no decorrer do tempo. Teu pai e eu fomos iniciados na escala mais baixa e ninguém pode seguir a vocação de médico sem ser iniciado assim. Quando ambos estiverdes entre eles sede prudentes como os chacais e espertos como as serpentes, para que não vos torneis cegos nem tontos. Mas por fora mostrai-vos inofensivos como pombos, pois enquanto a meta não for atingida um homem não deve se entremostrar como é. Lembrai-vos disso!

Conversamos mais tempo ainda até que o criado de Ptahor aparecesse com uma liteira alugada e roupagens limpas para o seu amo. Os escravos haviam empenhado a liteira de Ptahor num bordel próximo e ainda se achavam dormindo lá. Ptahor deu ordem ao criado para resgatar tanto a liteira como os escravos, despediu-se de nós, assegurando sua amizade a meu pai, e voltou para o bairro rico da cidade.

No dia seguinte mandou um presente para Kipa, um escaravelho sagrado esculpido em pedra preciosa para ser colocado junto do coração por baixo da mortalha, na hora do seu enterro. Não poderia ter dado alegria maior à minha mãe que lhe perdoou tudo e cessou de dar preleções a meu pai, Senmut, sobre os malefícios do vinho.

 

A CASA DA VIDA

Em Tebas, naquele tempo, toda a educação superior se achava nas mãos dos sacerdotes de Ammon e não era possível estudar para um posto importante sem um certificado deles. Conforme é notório as Casas da Vida e da Morte sempre tinham permanecido desde tempos imemoriais, dentro das muralhas do templo; e também as escolas teológicas para sacerdotes das categorias mais altas. Que as ciências da matemática e da astronomia estivessem subordinadas aos sacerdotes se compreende; mas quando se tratava de ensino jurídico e comercial se levantava nas mentes das mais alertas classes educadas o receio de que os sacerdotes se estavam imiscuindo em questões que apenas concerniam ao faraó e ao departamento de imposto.

A iniciação não era de fato indispensável aos membros das corporações de mercadores e advogados; mas como Ammon tomava conta de pelo menos um quinto da terra do Egito e, por conseguinte, também do seu comércio, todos aqueles que desejavam se tornar comerciantes em grande escala ou entrar para a administração achavam prudente tomar o grau ínfimo do sacerdócio e se submeter a Ammon como seus servos fiéis.

Antes de penetrar na Gasa da Vida tive que me sujeitar a exames de admissão para a categoria mais baixa de sacerdócio na faculdade teológica. Isso me tomou mais de dois anos, porque ao mesmo tempo tinha que acompanhar meu pai em suas visitas aos doentes e colher da sua experiência conhecimentos benéficos para a minha carreira futura.

Morava em casa como antes, mas tinha que assistir a uma aula ou mais todos os dias. Os candidatos desse estágio se dividiam em grupos de acordo com as profissões que seguiriam depois. Nós, isto é, aqueles destinados a serem discípulos na Casa da Vida, formávamos um grupo nossos mas não encontrei nenhum amigo íntimo entre tais companheiros. Resolvi seguir literalmente o conselho prudente de Ptahor e me conservava distante, obedecendo humildemente às ordens e fingindo estupidez enquanto os outros blasfemavam ou gracejavam conforme fazem as crianças.

Entre nós se achavam os filhos de médicos especialistas cujo parecer e tratamento eram cobrados em ouro. E havia também entre nós os filhos de médicos provincianos, quase sempre de mais idade do que nós, atarracados, broncos, queimados de sol, que se esforçavam por esconder a timidez e que cumpriam laboriosamente as suas tarefas. Havia rapazes das classes baixas que desejavam se levantar acima do nível social e comercial dos pais, que tinham sede natural de conhecimento, mas que recebiam tratamento ainda mais severo do que os outros porque os sacerdotes desconfiavam, por natureza de quantos não estivessem contentes com os velhos hábitos.

Minha precaução só me foi útil porque logo percebi que os sacerdotes tinham seus espiões e agentes disseminados entre nós. Uma palavra inadvertida, uma dúvida manifestada ou um gracejo dito entre amigos, logo eram levados ao conhecimento dos sacerdotes; e o acusado era chamado para inquérito e punição. Alguns eram flagelados e até mesmo expulsos da Casa da Vida que ficava de então por diante fechada para eles eternamente, tanto em Tebas como no resto do Egito.

Minha habilidade para ler e escrever me proporcionou uma acentuada vantagem sobre muitos dos meus condiscípulos, inclusive alguns mais velhos. Considerava-me maduro para entrar na Casa da Vida, mas a minha iniciação foi adiada.

Faltou-me coragem para perguntar o motivo; fazer isso seria, no entender deles, uma insubordinação a Ammon. Preenchi o tempo copiando os Textos dos Mortos que eram vendidos nos pórticos e me sentia rebelado e deprimido porque muitos dos colegas meus menos talentosos já haviam começado seus estudos na Casa da Vida. Mas sob a direção de meu pai eu só podia ganhar uma base mais sólida de tirocínio bem melhor do que a deles; aliás, também vinha percebendo que os sacerdotes de Ammon eram sagazes, pois decerto me observavam, notavam minha descrença e ar de desafio e, por conseguinte, me impunham aquela espécie de prova.

Por fim me foi comunicado que chegara o meu turno de me recolher ao templo. Passei lá dentro, em suas salas, durante uma semana, com a proibição de durante todo esse tempo deixar o recinto. Tive que jejuar e me purificar, e meu pai se apressou em cortar meus cabelos e convidar os vizinhos a uma festa em regozijo da minha maturidade. Pois, a começar de então, estando agora capacitado para a iniciação, por mais simples e singela que fosse a cerimônia, passei a ser considerado como homem feito, superior a meus vizinhos e a todos os rapazolas da minha idade.

Kipa caprichou o mais que pode, mas achei sem gosto o seu pão-de-mel, e a alegria e os comentários rudes dos vizinhos não me agradaram. De noite, depois que os convidados se foram embora, Senmut e Kipa se deram conta também da minha tristeza. Senmut começou a me contar a verdade a respeito do meu nascimento e Kipa o ajudava sempre que ele se esquecia de qualquer coisa; enquanto isso fitava o barco de verga suspenso por cima do meu leito; o vime enegrecido e arrebentado me entristecia a alma.

Teste mundo imenso, a verdade era que eu não tinha pai nem mãe, ali me achava sozinho numa grande cidade, sob as estrelas. Decerto não passava de um miserável estrangeiro na terra de Kan, ou então a minha origem era um segredo vergonhoso. Havia dor em meu coração quando me dirigi ao templo vestindo a túnica da iniciação que Kipa fizera para mim com tamanho cuidado e amor.

Éramos vinte e cinco, entre jovens e meninos; apresentamo-nos para ser recebidos no templo. Depois que nos banhamos no lago do templo, nossas cabeças foram raspadas e vestimos trajes grosseiros. O sacerdote designado para nosso diretor não era tão meticulosamente exigente como alguns outros. A tradição obrigava a sujeitar-nos a toda sorte de cerimônias humilhantes, mas havia entre nós alguns de alta condição social e outros que já tinham passado em exames - homens feitos que entravam a serviço de Ammon apenas para garantir um futuro melhor. Estes trouxeram consigo abundantes provisões e presentearam com vinho muitos dos sacerdotes; alguns chegavam até a sair de noite para casas de divertimentos, já que isso de iniciação para eles não significava nada. Eu me submetia ao regime com grande mágoa, com o espírito cheio de pensamentos amargos, satisfazendo-me com um pedaço de pão e uns púcaro com água - a dieta tradicional dos noviços - aguardando com ânimo discreto e solícito os dias vindouros.

Era tão jovem que ainda possuía uma ânsia indizível relativa à fé. Diziam que Ammon aparecia em pessoa durante a iniciação e falava individualmente com cada candidato; ser-me-ia um inefável conforto poder sentir alívio, abstraindo-me de mim e me voltando para qualquer objetivo universal e bem determinado.

Mas diante do médico até o faraó tinha que ficar nu; desde criança eu vira doenças e morte ao lado de meu pai, e meus olhos se haviam habituado a uma agudeza bem maior do que a que possuíam os outros da minha idade. Para um médico nada é sobremaneira sagrada e ele não se inclina perante nada, exceto diante da morte. Isso meu pai me ensinara. Por conseguinte, não tinha crença e tudo quanto vi no templo durante aqueles três anos apenas aumentou ainda mais a minha falta de fé.

Ainda assim esperava que atrás do véu espesso na obscuridade do santo dos santos encontraria o Ignoto; que Ammon me apareceria, trazendo paz ao meu coração.

Meditava sobre isso enquanto percorria a passagem entre as colunas a que os leigos tem acesso. Contemplava as pinturas sagradas de cor e observava as inscrições que falavam das estupendas dádivas que os faraós haviam trazido para Ammon, como parte dos despojos de guerra que competiam ao deus. E nisto encontrei uma radiosa mulher cujas vestes eram de linho tão transparente que seus seios e flancos podiam ser visto através da roupa. Era esguia e magra, seus lábios, faces e sobrancelhas estavam pintados; olhou-me com uma curiosidade espontânea.

- Qual é o seu nome, lindo jovem? - perguntou-me ela com os olhos postos na pala cinzenta que exemplificava que eu era um candidato à iniciação.

- Sinuhe - respondi confuso sem ousar fitá-la; mas era tão linda que ousei esperar que me pedisse para ser seu guia através do templo. Tais pedidos eram freqüentemente feitos aos noviços.

- Sinuhe - repetira ela com ar pensativo, observando-me - Então deves ser muito assustadiço e sumir, tão logo um segredo te seja confiado.

Isso era uma alusão à história de Sinuhe e me aborreceu; eu já estava farto de gracejos assim na escola. prumei-me e olhei de frente; seu olhar era tão estranho e claro, tão perscrutador que senti meu rosto começar a enrubescer e tive a impressão de que uma chama me percorria o corpo.

- Assustar-me, eu? - redargüi - Um futuro médico não teme segredos.

Ela sorriu.

- Ah! O pintainho começou a piar antes de sair de casa. Está bem, dize-me uma coisa; tens entre os teus camaradas um jovem chamado Metufer? O filho arquiteto mor do faraó.

Fora esse Metufer quem enchera de presentes o sacerdote, dando-lhe dádivas de iniciação tais como vinho e um bracelete de ouro.

A contragosto lhe disse que conhecia, mas de bom grado lhe ofereci para ir chamá-lo. Lembrei-me a seguir que ela podia ser irmã ou prima de Metufer. Isso me animou e então lhe sorri, garbosamente.

- Como hei de ir chamá-lo, se não sei como te chamas e por conseguinte não poderei dizer quem o veio visitar?

- Ele sabe de quem se trata - retorquiu a mulher, batendo impacientemente no lajedo com a sandália adornada de pedrinhas.

Olhei para aqueles pés pequeninos sem vestígio de pó e cujas lindas unhas estavam esmaltadas com uma cor vermelha cintilante.

- Ele sabe de quem se trata. Não se pode dar o caso de ter um compromisso comigo! Não se pode dar o caso de meu marido estar de viagem e eu à espera de que Metufer venha consolar minhas mágoas?

Ante o pensamento de que ela era casada meu coração se agitou ainda mais; disse-lhe prontamente:

- Perfeitamente, bela desconhecida! Vou chamá-lo. Direi que uma mulher mais jovem e mais bela do que a deusa Lua o está chamando. E ele logo saberá quem é, pois quem quer que te haja visto uma vez não poderá te esquecer nunca.

Assustado com a minha própria presunção, me voltei para ir; ela, porém, me deteve.

- Por que tanta pressa? Espera! Tu eu temos mais alguma coisa a dizer um ao outro.

Tornou a me encarar a ponto do meu coração fundir em meu peito e eu ter a impressão de que meu estomago me caía aos pés. Estendeu uma das mãos, pesada de anéis e braceletes, tocou minha cabeça e disse afavelmente:

- Essa linda cabeça, assim raspada tão recentemente, não sente frio? - E mais suavemente: - Falaste a verdade? Achas que sou bonita? Olha-me mais de perto!

Olhei-a; seu vestuário era de linho real, e aos meus olhos ela era bela, mais bela do que todas as mulheres que eu vira e, na verdade, nada fazia para esconder sua beleza. Olhando-a, esqueci a ferida do meu coração, esqueci Ammon e a Casa da Vida. Sua proximidade queimava meu corpo como fogo.

- Não respondes? - disse com ar triste. - Nem é preciso. Aos teus olhos devo parecer uma feiticeira. Vai buscar o jovem candidato Metufer. E é só.

Eu não podia ir embora, nem falar, apesar de saber que ela estava gracejando. A escuridão reinava entre os pilares do imenso templo. Ligeiro reflexo de algum distante ornamento pétreo fulgiu em seus olhos. Não havia ninguém que nos visse.

- Talvez seja melhor não ires buscá-lo. - Estava sorrindo agora. - Talvez eu me satisfizesse contigo mesmo. Gostarias de estar comigo? Quem mais me poderia causar júbilo!?

Mas logo me lembrei do que Kipa me dissera a respeito de mulheres que tentam rapazes bonitos; lembrei-me tão repentinamente que dei um passo para trás.

- Não previ que Sinuhe se assustaria?

Aproximou-se de mim outra vez, mas ergui minha mão para afastar a dela, dizendo:

- Agora sei que espécie de mulher tu és. Teu marido está ausente, teu coração é uma armadilha, e teu corpo queima, pior do que fogo.

Embora falasse assim, não podia fugir dela que embora perplexa tornou a sorrir e chegou mais perto de mim.

- Achas? - disse com doçura. - Mas não é verdade. Meu corpo não arde absolutamente como fogo; dizem, com efeito, que ele é desejável. Experimenta.

Agarrou minha mão hirta e a pousou em seu ventre. Senti-lhe a beleza através do tecido leve, comecei a tremer, com o rosto em brasa.

- Ainda não me acreditas... - Disse ela, com falso desapontamento. - Minha roupa atrapalha. Mas, espera...Vou afastá-la.

Puxou o tecido para o lado e pos minha mão em contacto com o seu peito nu. Era macio e fresco.

- Vem, Sinuhe - disse ela brandamente. - Vem comigo. Beberemos vinho e juntos nos divertiremos.

- Não posso deixar o recinto do templo - disse eu, apavorado e cheio de pejo ante a minha covardia; desejava-a sobremaneira, mas a temia como a morte. - Devo manter-me puro até receber minha consagração; do contrário serei expulso do templo e nunca mais serei admitido à Casa da Vida. Tem piedade de mim!

Disse-lhe isto sabendo que, se ela insistisse, eu a seguiria. Mas era uma mulher do mundo e percebeu minha angústia.

Olhou em torno, com ar pensativo. Ainda nos achávamos sozinhos, mas passava gente por perto e um guia ia recitando alto as maravilhas do templo para alguns visitantes, pedindo-lhes mais dinheiro antes de lhes mostrar maravilhas maiores.

- És um jovem muito acanhado, Sinuhe - disse ela. - Ricos e grandes me oferecem ouro antes que eu os receba. Mas tu queres ficar incorrupto...

- Não preferes que eu vá chamar Metufer? - disse-lhe desesperadamente. Eu sabia que Metufer jamais hesitaria em se esgueirar para fora do templo quando a noite caísse, embora fosse o seu turno de guarda. Podia fazer tais coisas porque seu pai era o arquiteto-mor do faraó. Mas eu poderia matá-lo por isso.

- Parece que já não quero que chames Metufer - disse ela, olhando meus olhos maldosamente. - Gostarei decerto que nos separemos como amigos, Sinuhe. Vou, pois, te dizer o meu nome, que é Nefernefernefer, porque sou considerada formosa e porque todo aquele que pronunciou o meu nome não pode deixar de dize-lo mais duas vezes. E é costume também os amigos quando se separam permutarem lembranças. Por conseguinte, desejo um presente teu.

Mais uma vez me dei conta cruel da minha pobreza, pois nada tinha para lhe dar; nem o mais insignificante ornamento, nem o menor bracelete de cobre... E mesmo que tivesse não lhe ofereceria coisas assim ordinárias. Fiquei tão amargamente envergonhado que abaixei a cabeça, sem poder falar.

- Dá-me um presente que reaviva meu coração - disse ela soerguendo meu queixo com o dedo e aproximando o seu rosto.

Quando compreendi o que queria, toquei os seus lábios macios com os meus. Ela suspirou um pouco.

- Obrigada. Foi um bonito presente, Sinuhe, que não esquecerei. Mas deves ser um estrangeiro de terra muito distante, já que ainda não aprendeste a beijar. Do contrário, como é possível que as raparigas de Tebas não te hajam ensinado, já que os cabelos cortados mostram que és homem?

Tirou do polegar um anel de ouro e prata com uma grande pedra, sem nenhuma inscrição e o pos em minha mão.

- Também eu te dou um presente, Sinuhe, para que não me esqueças. Depois da iniciação, quando entrares para a Casa da Vida, poderás mandar gravar o teu selo nesta pedra, como os homens ricos e poderosos. Lembra-te, porém, que ela é verde porque meu nome é Nefernefernefer e porque dizem que os meus olhos são verdes como a água do Nilo na força do verão.

- Não posso ficar com teu anel, Nefer - e repeti "Nefernefer" e tal repetição me causou júbilo indizível - mas não te esquecerei.

- Teimoso Fica com o anel, porque eu quero. Guarda-o como um capricho meu e pelos juros que me pagarás um dia. - Sacudiu um dedo magro diante do meu rosto e seus olhos sorriam enquanto falava: - Acautela-te com as mulheres cujos corpos queimam mais do que fogo.

Voltou-se para se ir embora, proibindo-me que a seguisse. Vi-a descer as escadas da porta do templo e entrar numa liteira cheia de esculturas ornamentais que a estava esperando no átrio. Um homem se pos a correr na frente exigindo caminho livre; as pessoas se afastavam para os lados sussurrando e olhando. Quando a liteira sumiu fiquei tomado de uma sensação de vácuo como se estivesse caindo num abismo, de cabeça para baixo.

Alguns dias depois Metufer notou o anel no meu dedo; agarrou minha mão, com ar desconfiado e olhou atentamente para o anel.

- Por todos os quarenta bugios de Osiris! Foi Nefernefernefer, hein? Será possível?... Inacreditável....

E me ficou a olhar com certo respeito, muito embora o sacerdote me houvesse posto a esfregar os lajedos, pois só me eram dadas tarefas amesquinhantes porque eu não tivera a idéia de lhes dar um bom presente.

Acometeu-me então tal ódio por Metufer e suas palavras que ódio igual só o pode sentir gente moça e forte. Por isso por maior que fosse minha vontade de lhe fazer perguntas a respeito de Nefer, não me abalancei a tanto. Escondi na alma o meu segredo, porque uma ilusão é mais agradável do que a verdade, e um sonho é mais puro do que o contacto terrestre.

Contemplava a pedra verde enfiada em meu dedo, lembrava-me daqueles olhos e daquele seio frio, parecia sentir nos dedos ainda os seus ungüentos perfumosos e balsâmicos. Retinha-a ainda, seus lábios macios tocavam os meus. E isso era um consolo já que, embora Ammon se tivesse revelado a mim, a minha fé sumira.

Quando pensava naquela mulher, sussurrava com as faces ardentes:

- Minha irmã...

E tal palavra era uma carícia em meus ouvidos, pois desde tempos imorredouros o seu sentido era e continuaria a ser: "Minha Amada...”. Mas vou contar de que maneira Ammon se revelou a mim.

Na quarta noite era a minha vez de zelar pelo sossego de Ammon. Éramos sete jovens: Mata, Moisés, Bek, Sinufer,Nefru, Ahmoisés e eu. Moisés e Bek também eram candidatos à Casa da Vida; desta forma me dava mais com eles do que com os demais.

Eu vivia fraco por causa do jejum e da saudade. Íamos em porte solene caminhando muito sérios atrás do sacerdote, que o seu nome pereça no esquecimento, que nos levava para a parte fechada do templo.

A nave de Ammon já demandara o poente atrás das colinas, os guardas tinham acabado de tocar suas trompas de prata e os portões do templo já se achavam fechados. Mas o sacerdote que nos guiava comera uma boa porção de carne dos sacrifícios, bem como frutas e bolos; óleo escorria do seu semblante, seus maxilares estavam ainda rubros de vinho. Rindo consigo mesmo, soergueu o véu e nos deixou contemplar o santo dos santos. Em sua alcova que era um nicho escavado num formidando bloco de pedra jazia Ammon. As jóias da sua mitra e do seu colar fulguravam em tons verdes, vermelhos e azuis como outros tantos olhos vivos à luz sagrada das lâmpadas. De manhã, sob a direção do sacerdote, íamos ungi-lo e vesti-lo de novo, porque cada manhã lhe era requerido novo vestuário. Eu já o vira antes no Festival da Primavera quando fora carregado para o adro em seu bote dourado e a multidão toda se prosternara diante dele; e como o rio estivesse na cheia o vi também vogar por sobre o lago sagrado em sua nave de cedro. Mas daquela vez, como acontece a um ínfimo noviço, eu apenas o olhava de relance e de grande distância. Seu vestuário rubro jamais causara impressão tão majestosa como agora, à luz das lâmpadas, no silencio inviolado do santuário. Somente os deuses e os faraós usavam a cor vermelha, e olhei para o seu semblante soerguido e a sensação que tive foi que blocos e mais blocos de pedra esmagavam o meu peito.

- Vigiai e orai diante da divindade - disse o sacerdote, apoiando-se na beirada da cortina porque nem se podia manter nas pernas. - Pode ser que ele vos chame. Costuma revelar-se aos postulantes, dirigindo-se a cada um pelo nome e falando caso os ache merecedores.

Apressadamente fez os gestos litúrgicos, gaguejou o divino nome de Ammon e tornou a deixar cair a cortina sem sequer se incomodar de fazer uma reverencia e de esticar os braços. colando-os rente ao corpo.

Saiu, deixando-nos sozinhos na escuridão da antecâmara seguinte cujo pavimento gelou nossos pés descalços. Algum tempo depois da saída do sacerdote Moisés tirou uma lâmpada de detrás da pala enquanto Ahmoisés caminhou com a maior naturalidade até ao santuário e apanhou uma das lâmpadas para acender a do condiscípulo.

- Seríamos tolos se ficássemos aqui nesta escuridão - observou Moisés. E nos sentimos mais seguros, embora me parecesse que nenhum de nós estivesse sem medo. Ahmoisés tirou pão e carne; Mata e Nefru começaram a jogar dados em cima das lajes, fazendo a contagem tão alto que até despertavam ecos na nave.

Mas quando Ahmoisés acabou de comer se embrulhou na sua túnica e, depois de blasfemar um pouco contra a friagem e a dureza das pedras se instalou para dormir; não tardou que Sinufer e Nefru se estirassem ao lado dele a fim de se aquecerem.

Mas eu era muito novo e tomava conta do recinto, muito embora soubesse que Metufer havia dado uma botija de vinho ao sacerdote e que este havia sido convidado por aquele e mais uns dois outros postulantes ricos, o que portanto me certificava de que não seríamos pegos de surpresa. Eu vigiava, embora soubesse, pelo que os demais sempre me diziam, que era costume dos futuros iniciados passarem o tempo de guarda e de ronda comendo, jogando e dormindo.

A minha noite foi longa. Enquanto os outros dormiam, eu me tomava de devoção e aspiração, e refletia que me conservava puro, em jejum e obedecendo a todos os velhos mandamentos.

Por conseguinte, podia muito bem ser que Ammon se revelasse a mim. Repetia seus múltiplos nomes sagrados e prestava atenção ao menor ruído, com os sentidos alerta; mas o templo continuava frio e vazio. Quando começou a amanhecer, o velário do santuário estremeceu nos suportes, mas não aconteceu mais nada. Ao amanhecer de todo, isto é, quando a claridade começou a invadir a nave, soprei a lâmpada com toda a força e acordei meus companheiros. Os soldados tocaram suas trompas, as guardas se renderam nas muralhas e diante da fachada do templo começou um murmúrio como o de águas distantes. Ficamos a par de que o dia e os trabalhos tinham começado. Por fim o sacerdote entrou, apressado, e com ele vi, com grande surpresa, que vinha também Metufer. Grande hálito de vinho emanava de ambos; vinham de braço dado, o sacerdote rodando as chaves das relíquias sagradas em sua mão. Compelido por Metufer, soletrou as sagradas fórmulas antes de nos saudar.

- Postulantes Mata, Moisés, Bek, Sinufer, Nefru, Ahmoisés e Sinuhe Haveis vigiado e orado segundo vos ordenei, de maneira a poderdes ser aceitos pelo Altíssimo?

- Vigiamos e oramos - respondemos numa só voz.

- E Ammon se revelou a vós de acordo com a sua palavra?

O sacerdote arrotou e seus olhos nos percorreram com dificuldade. Olhamos de esguelha uns para os outros, hesitando.

Por fim Moisés balbuciou:

- Revelou-se.

Um após outro, os meus companheiros repetiram:

- Revelou-se.

O último foi dentre todos Ahmoisés que declarou firmemente, com uma reverencia:

- É mais do que certo que se revelou!

Encarou o sacerdote bem nos olhos. Eu, porém, não disse nada. Era como se uma garra estivesse apertando o meu coração, pois para mim aquelas palavras dos meus companheiros era uma blasfêmia. Metufer disse, cinicamente:

- Eu também estive de vigília e em oração para ser merecedor da iniciação, pois na próxima noite tenho outras coisas a fazer e não posso permanecer aqui. E também a mim Ammon apareceu, conforme o sacerdote pode testificar. A sua forma era a de um imenso odre de vinho; falou-me de muitas e muitas coisas, de assuntos sagrados que não me cumpre repetir aqui; mas suas palavras foram tal lenitivo para mim que nem vinho. Por isso, sedento, quis ouvir mais, sempre mais, até romper o dia.

Então Moisés se tomou de coragem e disse:

- A mim ele apareceu na forma do seu filho Horus; trepou em cima do meu ombro como um falcão, dizendo: "Abençoado sejas, Moisés, bem como a tua família e todos os teus feitos. Em verdade te digo que ainda morarás numa casa com dois portões e que te servirão muitíssimos servos.”

E logo os outros se apressaram em relatar o que Ammon lhes dissera. Falavam afoitamente, vários ao mesmo tempo, enquanto o sacerdote ouvia, acenava com movimentos de cabeça e sorria. Ignoro se contavam o que haviam sonhado, ou se estavam mentindo. Sei apenas que me mantive à parte e que não disse nada.

Por fim o sacerdote se voltou para mim, franziu as sobrancelhas raspadas e disse com austeridade:

- E tu, Sinuhe? Não foste merecedor? Ammon não te apareceu numa forma qualquer? Não o viste nem sequer na forma de um camundongo? Sim, pois ele se manifesta sob muitas formas.

Minha entrada para a Casa da Vida se achava em perigo; devido a isso me muni de coragem e respondi:

- De madrugada vi o véu do santuário mexer um pouco; mas não vi mais nada e Ammon não me dirigiu a palavra.

Então todos romperam a rir; Metufer, rindo, dando palmadas nos joelhos, disse ao sacerdote:

- Ele não passa de um simplório.

Depois, cobrindo a cara com a manga suja de vinho, sussurrou qualquer coisa ao ouvido do sacerdote, com os olhos postos em mim.

O sacerdote tornou a me encarar, mais sério ainda e disse:

- Se não ouviste a voz de Ammon não podes ser iniciado. Todavia, quanto a isso, havemos de arranjar uma solução, pois te considero um moço correto, cheio de bons propósitos.

Dizendo isto desapareceu entrando no santo dos santos e Metufer se dirigiu a mim. Mas ao ver meu rosto apavorado sorriu de modo amistoso e disse:

- Não tenhas medo!

Um momento depois todos nós desandamos a dar pulos porque através da obscuridade do santuário nos veio um vozeirão sobrenatural que não se assemelhava absolutamente a uma voz humana. Parecia vir de todas as partes ao mesmo tempo: do teto, das paredes, do vão das pilastras... E olhávamos em redor, querendo descobrir de onde ela vinha.

- Sinuhe Sinuhe, ó cretino, onde estás tu? Vem depressa e arroja-te diante de mim, pois não disponho de tempo e não posso dispor do dia inteiro só para ti!

Metufer puxou uma das abas do velário e empurrando-me lá para dentro me agarrou pela nuca e me fez me prosternar até ao chão numa reverencia só merecida pelos deuses e pelos faraós. Eu ergui a cabeça imediatamente e vi que o santo dos santos estava cheio de luz. Uma voz saía da boca de Ammon, dizendo:

- Sinuhe, Sinuhe, tu, ó porco, ó bugio! Estavas então bêbado e dormindo quando te chamei? Na verdade mereces ser atirado num fosso de lodo e comer terra pelo resto dos teus dias. No entanto, dada a tua pouca idade, terei misericórdia, muito embora sejas idiota, imundo e preguiçoso. Sim, pois me apiedo daqueles que acreditam em mim, os incrédulos, porém, devendo ser atirados nos abismos do Reino da Morte.

Muitíssimas outras coisas foram ditas pelo vozeirão, com uivos, injúrias e maldições; mas já não me lembro e nem quero me lembrar, tamanha foi a minha humilhação e amargura de espírito. Pois, escutando bem, pude surpreender através das sobre-humanas vibrações de tal voz o timbre exato do sacerdote; e tal descoberta me chocou e horrorizou tanto que nem consegui ouvir o resto. Depois que a voz se calou, permaneci prostrado diante da estátua de Ammon até que o sacerdote emergiu e me deu um pontapé jogando-me para o lado. Meus companheiros trataram imediatamente de trazer incenso, ungüentos, cosméticos e roupas rubras.

Cada um de nós tinha uma obrigação atinente ao deus; assim, lembrando-me da minha, saí até ao adro para apanhar um vaso de água santa e as toalhas consagradas, pois íamos lavar o rosto, as mãos e os pés do deus.

Ao voltar dei com o sacerdote cuspindo na cara de Ammon e a esfregando com a manga suja, logo a seguir Moisés e Nefru começando a lhe pintar os lábios, as faces e as sobrancelhas. Metufer ungiu-o e, por entre risadas, esfregou óleo santo na cara do sacerdote e na sua. Por fim a estátua foi despida para ser lavada e enxugada como se tivesse sujado propositalmente; passaram-lhe um saio vermelho bem fofo e uma casula lhe foi enfiada por sobre a alva que lhe cobria até mesmo os braços.

Depois que tudo isso foi feito, o sacerdote juntou as peças que tinham sido despidas do deus e se encarregou da água servida no banho, assim como das toalhas. Tudo isso seria dividido em pedaços e vendido na frente do pórtico a viajantes ricos; a água, por sua vez seria destinada como remédio para moléstias da pele. E então, terminada a nossa tarefa, tivemos ordem de ir para o pátio ensolarado, onde vomitei.

Meu cérebro e meu coração ficaram tão vazios quanto o meu ventre, pois eu deixara de acreditar nos deuses. Passada que foi uma semana, minha cabeça foi ungida com óleo, e tendo eu feito o juramento sacerdotal, recebi um certificado. Nesse documento se achava o grande selo do templo de Ammon e o meu nome, e me habilitava para a matrícula na Casa da Vida.

Assim fomos admitidos, Moisés, Bek e eu.Transpusemos suas portas, meu nome foi inscrito no Livro da Vida, conforme já havia sido antes o de meu pai Senmut e, antes dele, o de meu avo. Mas eu já não era mais feliz.

Na Casa da Vida, que fazia parte do grande templo de Ammon, o ensino era dirigido nominalmente pelos médicos reais, quanto a cada disciplina. Nós, porém, os víamos raramente porque tinham enorme clínica, recebiam valiosos presentes dos ricos e moravam em espaçosas casas fora da cidade. Mas sempre que era recolhido à Casa da Vida algum doente cujos sintomas deixavam embaraçados os médicos habituais, ou se estes não se aventuravam a empreender tais ou quais tratamentos, o médico real vinha ver e tratar o caso e demonstrar sua proficiência diante dos que se estavam especializando em tal setor. Desta forma mesmo o paciente mais pobre podia ter o benefício dos cuidados de um médico real, e isso para a glória de Ammon.

O período de prática era longo mesmo para aqueles que dispunham de talento. Tivemos que tomar um curso sobre drogas e poções, aprender nomes e propriedades de ervas, as estações e as horas em que deviam ser colhidas, a maneira de secá-las para fazer os extratos; e isso porque um médico tinha que estar apto a preparar, seus próprios remédios conforme a necessidade. Muitos embirravam não vendo a serventia disso já que bastava uma simples receita para ser obtido o fornecimento pela Casa da Vida de todo e qualquer remédio corretamente pesado e misturado. Tal conhecimento, todavia, me viria a ser de grande proveito, conforme mostrarei mais tarde.

Tivemos que aprender os nomes das diferentes partes do corpo, bem como as funções e finalidades de cada órgão humano.

Aprendemos a manobrar escalpelos e instrumentos de extração. Acima de tudo, no entanto, tivemos que acostumar nossas mãos a reconhecer a doença tanto através dos orifícios naturais do corpo como ao longo da pele. Observando os olhos, também, tínhamos que depreender a espécie do distúrbio. Habilitamo-nos a partejar uma mulher em trabalho sempre que o serviço das parteiras redundava inútil. Devíamos estimular e aliviar dores conforme o caso requeria. Aprendemos a distinguir as queixas banais das importantes, os distúrbios de origem mental dos de proveniência física. Habituamo-nos a diferenciar a verdade da imaginação na conversa dos doentes, e a fazer perguntas de modo a esclarecer um quadro sintomático.

Esse longo período de experiência foi seguido pelo dia em que - após o cerimonial da purificação - vesti um blusão branco e comecei a trabalhar na sala do ambulatório onde aprendi a arrancar dentes das mandíbulas de homens fortes, a fazer curativos, a lancetar inflamações e tumores, a coaptar ossos quebrados. Nada disso era novo para mim. Graças aos ensinamentos de meu pai fiz bons progressos e fui designado instrutor dos meus companheiros. Uma vez ou outra recebia presentes, idênticos, aliás, aos destinados aos médicos; e por fim o meu nome foi gravado na pedra verde que Nefernefernefer me dera, podendo eu assim colocar o meu sinete nas minhas prescrições.

Designaram-me para obrigações mais adiantadas. Passei a atender as salas onde jaziam os doentes incuráveis, e ajudei médicos preeminentes em seus tratamentos e operações; quase sempre para cada um que ficava bom, morriam dez. Averigüei que a morte não acarreta horrores para o médico e que, no mais das vezes ela vem para o doente como amiga misericordiosa: tanto que, após o desenlace, os mortos estão muito mais serenos do que em qualquer período de suas vidas e trabalhos.

Todavia eu era cego e surdo, e assim permaneci, até ao dia em que despertei deveras tal qual sucedera na infância quando desenhos, palavras e letras se transformaram irrompendo em vida. Mais uma vez os meus olhos se abriram e acordei como se emergisse de um sonho; o meu espírito se inundou de alegria porque perguntava a mim mesmo a respeito de tudo:

"Por que?" A formidável chave de todo o conhecimento verdadeiro é "Por que?" É mais poderosa do que o junco de Thoth, mais poderosa do que as inscrições na pedra.

Aconteceu assim: apareceu-me uma mulher que não tinha tido filhos e que se cuidava estéril, pois já estava com quarenta anos. Mas o seu fluxo mensal cessara e ela estava preocupada; procurou a Casa da Vida porque temia que um espírito mau se apossara do seu corpo, envenenando-o. Conforme era prescrito em tais casos, plantei grãos de milho num terreno, regando metade com água do Nilo e o resto com urina da tal mulher. Depois expus o chão ao calor do sol e pedi à mulher que voltasse daí a dois dias. Quando ela voltou, as sementes tinham germinado; as que eu regara com água do Nilo eram bem menores do que as outras cujos brotos verdes eram fortes. O que fora escrito pelos antigos era verdade e eu disse à mulher perplexa:

- Rejubila-te, pois o divino Ammon te fez a mercê de abençoar a tua matriz, e darás nascimento a uma criança como as demais mulheres favorecidas.

A pobre criatura chorou de alegria e me deu um bracelete de prata que pesava dois debens, pois desde muito tempo já estava desesperada. Deu-me crédito imediatamente e perguntou:

- Será um menino?

Considerava-me onisciente. Tomei-me de coragem, olhei-a bem nos olhos e disse:

- Será um menino.

Como as probabilidades eram iguais, o meu palpite não era descabido. A mulher alegrou-se ainda mais e me deu o bracelete do outro punho, com o mesmo peso.

Depois que ela se foi, me perguntei como era possível um grão de milho descobrir e saber sinais de gravidez tanto tempo antes dos olhos humanos perceberem. Citando o caso, perguntei ao professor. Este se restringiu a me olhar como se eu fosse estúpido e respondeu:

- Assim está escrito.

Ora, isso não era resposta. Não perdi a coragem e perguntei ao obstetra real, na casa da maternidade. Ele declarou:

- Ammon é o Deus Supremo. Seus olhos vêem o útero que recebe a semente; se ele permite a germinação, por que não há de permitir também que o milho cresça quando regado com líquido do corpo da mulher grávida?

Também ele me olhou como se eu fosse estúpido; mas tal resposta não tinha sentido. Então os meus olhos se abriram e vi que os médicos da Casa da Vida conheciam as escrituras e as tradições, e nada mais. Se eu perguntava por que motivo uma ferida inflamada devia ser cauterizada ao passo que quanto a uma outra, comum, bastava limpá-la e enrolá-la em gaze, ou então por que motivo os tumores se curavam com mangra e teia de aranha, apenas respondiam:

- Assim tem sido sempre. Da mesma forma um cirurgião podia realizar as cento e oitenta e duas operações e incisões prescritas, e realizá-las de acordo com a sua experiência e habilidade, bem ou mal, depressa ou devagar, com ou sem dor, mais do que isso não podia fazer porque somente aquelas estavam descritas, ilustradas nos livros, e nada mais fora feito, nunca.

Havia certos casos em que o doente ia ficando cada vez mais pálido e magro e, no entanto o médico não conseguia descobrir nenhuma doença ou distúrbio; acontecia então que um regime de fígado cru de animais dos sacrifícios o podia restabelecer e curar; mas ninguém, de modo algum, perguntava por que motivo isso se dava. Havia alguns que tinham dores no ventre e cujas mãos e pés ardiam; eram submetidos a purgas e narcóticos; alguns ficavam bons, outros morriam, mas nenhum médico sabia predizer quais os que sobreviveriam e quais os cujos ventres estufariam a ponto de morrerem.

Ninguém sabia por que tais coisas se passavam e ninguém procurava descobrir. Logo me dei conta de que fazia perguntas demasiadas, pois toda gente começou a me olhar de soslaio; como não tardasse que médicos que haviam entrado depois de mim obtivessem cargos a que eu ficava submetido então tirei meu blusão branco, lavei-me e deixei a Casa da Vida, levando comigo duas argolas de prata que juntas pesavam quatro debens.

Quando deixei o templo, onde estivera internado durante anos, vi que enquanto estudara e trabalhara a cidade de Tebas se transformara.

Notei isso enquanto caminhava pela Avenida dos Carneiros e atravessava os mercados. Grande movimento por toda parte; as roupas das pessoas se tinham tornado mais complicadas e caras; a coisa chegou ao ponto de já não se distinguir os homens das mulheres por suas cabeleiras e saios lisos. Música síria vinha das lojas e casas de divertimentos; pelas ruas se ouviam línguas estrangeiras; sírios e até mesmo negros ricos cruzavam por entre os egípcios, roçando os ombros, com naturalidade. A riqueza e o poder do Egito eram incomensuráveis. Já havia séculos que o inimigo não entrava nas cidades egípcias e homens que nunca tinham presenciado nem tomado parte em guerras atingiam idade quase anciã. Não poderei afirmar, ainda assim, se o povo se sentia um pouco mais feliz por causa disso, pois seus olhos eram inquietos, seus movimentos apressados, como se esperassem impacientemente alguma coisa nova e estivessem descontentes com a época.

Percorri sozinho as ruas de Tebas, sentindo o coração se rebelar pesadamente. Ao chegar a casa notei que meu pai Senmut envelhecera; tinha o dorso curvo, e sua vista já não distinguia caracteres escritos. Minha mãe Kipa também estava velha; tinha o andar trôpego e não falava em outra coisa a não ser em sua tumba. Sim, pois com o que economizara seu pai, havia comprado uma tumba na Cidade dos Mortos, na margem ocidental do rio. Fui ve-la. Era uma bonita tumba construída com tijolos de argila, tendo nas paredes as habituais inscrições e pinturas; e à toda volta se achavam centenas e milhares de tumbas análogas que os sacerdotes de Ammon vendiam a pessoas honestas e pródigas por altos preços que elas pagavam de bom grado a fim de obter a imortalidade. Escrevi um livro fúnebre para ser posto na tumba de meus pais para que estes não se sentissem desnorteados em tão longa jornada; um livro bonito, caprichosamente escrito, muito embora não fosse ilustrado nem colorido como os que eram vendidos na estante do templo de Ammon.

Minha mãe me deu de comer e meu pai me fez perguntas a respeito dos estudos; tirante isto, nada mais tivemos a dizer um ao outro. A casa me era estranha, tal qual me haviam sido as ruas e as pessoas. Senti meu coração ainda mais pesado até que me lembrei do templo de Ptah e de Thothmes que fora meu amigo e que se tornara artista. Pensei: "Tenho quatro debens de prata no meu bolso. Vou procurar meu amigo Thothmes para que nos rejubilemos juntos; beberemos à vontade, alegremente, já que não acho resposta para as minhas perguntas.”

Despedi-me de meus pais dizendo que devia voltar à Casa da Vida e não tardou que pouco antes do crepúsculo encontrasse o templo de Ptah. Tendo perguntado ao porteiro onde era a escola de arte, entrei e perguntei pelo aluno Thothmes. Os estudantes cuspiram no chão diante de mim quando falei em tal nome; mas o fizeram porque estava presente um professor; assim que este se afastou, me aconselharam a ir a uma taverna chamada À Botilha Siria.

Encontrei a taverna; estava situada entre o bairro pobre e o bairro rico e tinha uma inscrição em cima da porta gabando o vinho dos vinhedos de Ammon e também o da cidade. Dentro se achavam muitos artistas acocorados no assoalho riscando desenhos enquanto um ancião permanecia em triste atitude contemplando o copo de vinho vazio ali na sua frente.

- Sinuhe! Por todos os tornos de olaria, rapaz!... gritou alguém saudando-me com as mãos erguidas de espanto.

Reconheci Thotmes embora a sua túnica estivesse suja e puída e os seus olhos injetados, e apresentasse na testa um calombo. Tornara-se mais homem e mais esguio; havia vincos nos cantos de sua boca, mas os seus olhos conservavam ainda aquele brilho alegre, impudente e irresistível. Inclinou-se até nossos rostos de tocarem. Vi logo que ainda éramos amigos. Disse-lhe:

- Sinto o coração pesado. Tudo é vaidade. Resolvi te procurar para que alegremos nossos corações com vinho já que ninguém sabe responder ao que indago e pergunto.

Thothmes sacudiu a roupa para me dizer que não tinha dinheiro para o vinho. Disse-lhe com entusiasmo:

- Tenho aqui nos pulsos quatro debens de prata.

Thothmes então apontou para a minha cabeça que eu ainda conservava raspada para que toda gente visse que eu era um sacerdote de primeira categoria: era tudo quanto eu tinha como motivo de orgulho. Mas logo senti não haver deixado o cabelo crescer e disse com impaciência:

- Sou médico e não sacerdote. Se não me engano li aí fora em cima da porta que aqui serviam vinho local; vejamos se ele é bom.

Thothmes mandou vir vinho tinto e logo compareceu um escravo para derramar água em nossas mãos e colocar sementes assadas de lótus em cima de uma mesa baixa, diante de nós.

O próprio dono trouxe os copos coloridos. Thothmes ergueu o seu derramou uma gota no cão e disse:

- Em honra do Divino Oleiro! Que a praga devaste a escola de arte e respectivos professores! - E citou os nomes dos que mais odiava.

Eu também levantei o meu copo e derramei uma gota no chão.

- Em nome de Ammon! Que o seu navio afunde por toda a eternidade! Que as barrigas dos sacerdotes estourem e que a peste destrua os ignorantíssimos professores da Casa da Vida! - Mas disse tudo isso em voz baixa e olhando em redor, não fosse algum desconhecido escutar as minhas palavras.

- Não tenhas receio - disse Thothmes. - Tantos espiões de Ammon já apanharam nesta taverna que desistiram de vir escutar conversas. E quanto a nós, desde muito já estamos perdidos. Eu não arranjaria sequer pão nem cerveja se não tivesse tido a idéia de fazer livros ilustrados para os filhos dos ricaços.

Mostrou-me o rolo em que estava trabalhando quando cheguei. Não pude deixar de rir, pois ali vi desenhada uma fortaleza defendida por um gato aterrorizado e tremulo diante da investida de camundongos; e também um hipopótamo cantando em cima da fronde de uma árvore enquanto um pombo subia com dificuldade pela árvore acima servindo-se de uma escada.

Notei um sorriso nos olhos castanhos de Thothmes, mas que logo se apagou assim que ele desenrolou ainda mais o papiro e mostrou a cena de um velho sacerdote calvo puxando por uma corda um imenso faraó, como quem arrasta um animal para o sacrifício. Em seguida me mostrou um pequeno faraó se inclinando diante de uma estátua maciça de Ammon. Fez que sim com a cabeça ante o meu olhar indagador.

- Vês? Até as pessoas crescidas riem dos quadros, porque são de fato cenas idiotas. É ridículo um camundongo atacar um gato ou um sacerdote puxar um faraó... Mas os que sabem começam a refletir sobre uma porção de coisas. Assim pois não me faltará pão nem cerveja.... até que os sacerdotes me abram o crânio com uma paulada na rua. Coisas assim tem acontecido.

- Bebamos - disse eu.

E bebemos. Mas meu coração não se alegrou. Daí a instantes perguntei:

- Será errado se perguntar o porque das coisas?

- Claro que é, pois um homem que se mete a perguntar “Por que?” acaba não tendo onde morar nem onde descansar na terra de Kan. Tudo tem que ser tal qual vem sendo... e bem sabes disso. Se tremi de alegria quando entrei para a escola de arte foi porque me senti como um homem sedento ao deparar uma fonte, como um homem esfomeado encontrando pão. E aprendi belíssimas coisas! ... pois não! Aprendi como segurar uma pena e manobrar um cinzel, de que modo modelar em cera o que seria depois talhado em pedra, a maneira de polir o granito, como reunir certo as pedras de diversas cores, como pintar em cima de alabastro. Mas quando senti vontade de me por a trabalhar e fazer coisas que eu sonhara, fui incumbido de amassar argila para o trabalho dos demais. Sim, pois para eles acima de todas as coisas está a convenção. Acham que a arte tem a sua convenção tanto quanto a escrita; e quem a romper está perdido. Desde o começo dos tempos ficou explícito de que modo se deve representar uma figura em pé e de que modo representar uma outra sentada; como um cavalo levanta os cascos ou como um boi puxa um arado. Desde o começo a técnica foi fixada; quem quer que fuja dela não serve para ficar no templo, e a pedra e o cinzel lhe são negados. Ah Sinuhe, meu amigo! Também eu perguntei ".Por que?" e não raras vezes. É por isso que estou sentado aqui com calombos na cabeça.

Bebemos e ficamos alegres, e meu coração se aliviou como um tumor lancetado, pois já agora não me sentia sozinho.   

- Sinuhe, meu amigo: nascemos em época estranha. Tudo está se desfazendo... mudando de forma. como a argila no torno do oleiro. A roupagem está mudando, as palavras e os costumes estão se alterando e o povo já não acredita nos deuses.. muito embora os tema. Sinuhe, meu amigo: talvez tenhamos nascido para assistir ao crepúsculo do mundo pois o mundo já está velho e doze século já se passaram depois da construção das pirâmides. quando penso em tais coisas tenho vontade de enterrar a cabeça nas mãos e chorar como criança.

Mas não chorou porque estávamos bebendo vinho tinto em copos coloridos que a toda hora o dono da Botilha Siria tornava a encher inclinando-se depois e esticando as mãos ao rés dos joelhos. De vez em quando um escravo vinha lavar nossas mãos. Meu coração se tornou leve e álacre como uma andorinha no limiar do inverno; sentia vontade de declamar versos e de tomar o mundo inteiro em meus braços.

- Vamos para uma casa de divertimentos - disse Thothmes, rindo. - Ouçamos música; contemplemos a dança das jovens; alegremos nossos corações. Deixemos de perguntar "Por que" e de exigir que nos encham a taça até à borda.

Caminhamos ao longo das ruas. O sol já descambara e cheguei a ver que primeira vez aquela banda de Tebas onde nunca é noite. Nesse bairro barulhento e cintilante, tochas ardiam diante das asas de prazer, e lâmpadas em cima de colunas iluminavam as esquinas das ruas.

Passavam em diversas direções escravos transportando liteiras, e os brados dos corredores se misturavam com a música das casas e a celeuma dos bêbados. Até então eu jamais entrara numa casa de prazer; fiquei um tanto apreensivo. Chamava-se O Gato e as Uvas a casa para onde Thothmes me levou. Era uma bonita casa iluminada discretamente por lâmpadas douradas, de tom suave. Havia esteiras onde a gente se sentar e raparigas, a meu ver admiráveis, dançavam em cadencia com a música de flautas e cordas. Quando a música parava, elas se sentavam conosco e pediam que lhes oferecêssemos vinho, pois sentiam as gargantas secas como restolho. Em seguida duas dançarinas nuas realizaram uma dança complicada que exigia grande desenvoltura; observei-as com interesse. Como médico me achava habituado a ver raparigas despidas; todavia jamais vira seios, ventres e quadris menearem assim tão sedutoramente. Mas a música tornou a me entristecer e comecei a ansiar não sei por quais desejos. Uma linda mulher bem jovem agarrou a minha mão e aproximou seu corpo do meu, lateralmente, dizendo que eu tinha olhos de homem sábio e prudente. Mas seus olhos não eram tão verdes como a água do Nilo na força do verão, e sua roupa, conquanto deixando um seio descoberto, não era de linho real. Tratei pois de beber vinho, e nem a fitei nos olhos nem senti o menor desejo de chamá-la de "minha irmã"; desinteressei-me. Por fim só me recordo da última cena de que fui parte nessa casa: do pontapé de um negro e de uma contusão na cabeça quando cai escada abaixo Aconteceu pois o que minha mãe Kipa predissera: fiquei estirado na sarjeta sem uma única moeda de cobre no bolso, até que Thothmes passou o meu braço por cima do seu ombro forte e me levou até ao cais onde pude me fartar de beber água do Nilo e lavar a cara, as mãos e os pés.

Naquela manhã entrei na Casa da Vida com as pálpebras equimosadas, com um formidável calombo na cabeça, com a túnica suja, e sem a menor vontade de perguntar "Por que?" a respeito das coisas e dos fatos. Tinha que atender a surdos e doentes dos ouvidos; então me lavei prontamente e vesti o avental branco. Nesse ínterim encontrei o meu chefe que começou a me exprobrar em frases que eu já lera em livros e que conhecia de cor:

- Que será de ti se te esgueiras por entre paredes durante a noite e te pões a beber sem conta? Que será de ti se desperdiças teu tempo em alcouces quebrando bilhas de vinho com teu bastão só para assustar cidadãos pacíficos? Que será de ti se derramas sangue e tens que correr dos guardas?

Cumprido que foi este seu dever, sorriu, aliviado, levou-me para a sua sala e deu-me uma poção para limpar meu estomago. Serviu-me de lição saber que isso de vinho e bordéis eram coisas que na Casa da Vida não censuravam contanto que se parasse de, a propósito de tudo, fazer perguntas.

Assim, também eu fui tomado pela febre de Tebas e comecei a preferir a noite ao dia, as tochas ao sol, a música síria aos lamentos dos enfermos e o ciciar das raparigas ao tartamudear de velhos textos em papiros amarelentos. Mas ninguém podia reclamar contra mim já que eu preenchia os meus deveres na Casa da Vida, satisfazia clientes e mestres, conservava a mão firme. Isso tudo era parte da vida dos iniciados. Poucos estudantes se viam em condições de montar casa própria e de casar durante esse período de prática; e meu mestre me deu a entender que eu faria bem em "tratar do meu celeiro", dar rédeas ao corpo e alegrar os sentidos. Mas não intrometi na vida de mulher nenhuma embora soubesse que seus corpos absolutamente não ardiam mais do que o fogo.

Aqueles tempos eram cheios de desassossego e o grande faraó se achava doente. Vi seu rosto encarquilhado de ancião quando o transportaram para o templo durante o Festival do Outono. Passou adornado de ouro e de pedras preciosas, imóvel como uma estátua, com a cabeça um pouco afundada por causa do peso da dupla coroa. Os médicos já não podiam fazer nada a seu favor; corria o rumor de que os seus dias estavam contados e que o herdeiro não demoraria a sucede-lo. E o herdeiro não passava de um adolescente como eu.

Houve cerimônias e sacrifícios no templo de Ammon, e o deus não pode ajudar seu divino filho embora o faraó Amenhotep III lhe houvesse construído o templo mais belo de todos os tempos. Comentava-se que o rei se desiludira com os deuses egípcios e que remetera mensageiros a toda pressa a seu sogro, o rei de Mitani, em Nahara, solicitando que a miraculosa imagem de Ishtar de Nínive fosse mandada a fim de curá-lo. Mas, para júbilo dos sacerdotes, nem mesmo os deuses estrangeiros puderam curar o faraó. Quando as águas do rio começaram a subir, o real trepanador foi chamado ao palácio.

Durante todo o tempo em que eu estivera como aluno na Casa da Vida não vira sequer uma vez Ptahor, porque a trepanação era método raro e na temporada de prática não fora permitido assistir nem ajudar os especialistas em seus tratamentos e operações.

Agora o velho operador foi trazido à pressa de sua casa do campo para a Casa da Vida; procurei meios de me postar nas imediações da sala da purificação na hora em que ele entrasse. O mesmo crânio calvo, mas o semblante já todo enrugado, com as bochechas pendendo lugubremente de cada lado da boca murcha e séria. Reconheceu-me logo, sorriu-me e disse:

- Ah És tu, Sinuhe? Com que então venceste, filho de Senmut!?

E entregou-me uma caixa de madeira preta onde guardava seus instrumentos e me ordenou que o seguisse. Tratava-se de uma honra não merecida e até mesmo um médico real podia sentir inveja da minha situação; comportei-me de acordo com as circunstâncias. Ptahor disse-me:

- Preciso experimentar se meus dedos estão firmes para isso quero abrir um ou dois crânios e ver o que sucede.

Tinha o olhar lacrimejante e o gesto levemente tremulo. Entramos na sala onde jaziam os incuráveis, os paralíticos e os que sofriam de lesões cranianas e cerebrais. Ptahor examinou alguns e escolheu um velho para quem a morte só podia ser um alívio, e um escravo corpulento que perdera a fala e o uso dos membros por causa de uma pancada na cabeça durante uma briga na rua. Tomaram narcóticos por via oral, sendo levados depois para o anfiteatro onde os limparam. Enquanto isso Ptahor lavava seu instrumental e o purificava ao fogo.

Coube-me raspar as cabeças dos dois pacientes com uma navalha bem afiada. Em seguida as cabeças foram lavadas e enxugadas mais uma vez, os pericrânios submetidos a massagens com ungüentos entorpecedores, e Ptahor se prontificou a trabalhar. Primeiro fez uma incisão no pericrânio do velho e afastou as extremidades, indiferente ao sangue copioso.

Depois, com movimentos rápidos, abriu um orifício no crânio nu, fazendo-o com uma grande broca tubular, e soergueu o círculo de osso. O velho principiou a gemer e seu rosto se tornou azulado.

- Não vejo nada de mais na cabeça dele - disse Ptahor.

Recolocou o pedaço de osso, juntou as extremidades do couro cabeludo, enrolou em curativos a cabeça do velho. Feito isto, o enfermo rendeu a alma.

- Parece que minhas mãos estão tremendo um pouco - observou Ptahor. - Talvez um dos jovens aqui presentes possa ir me buscar um copo de vinho.

Os assistentes, não contando os professores da Casa da Vida, eram todos estudantes que pretendiam vir a ser cirurgiões-chefes. Depois que Ptahor bebeu o vinho que pedira, volveu sua atenção para o escravo que jazia amarrado e sob a ação de drogas, mas que ainda assim nos fitava selvagemente com olhos esbugalhados. Ptahor pediu que o ligassem com firmeza ainda maior e que sua cabeça fosse intercalada numa canga de onde nem mesmo um gigante se safaria. Isso feito, abriu o couro cabeludo, procurando, porém desta vez estancar a hemorragia dos vasos; as veias das extremidades da incisão foram cauterizadas, e o sangue parou sob a ação de medicamentos. Ptahor deixou que outros médicos fizessem isso, a fim de poupar as mãos. Na Casa da Vida existia sempre, por disposição regulamentar, um "estancador de sangue", quase sempre um homem bronco, cuja mera presença fazia cessar hemorragias quase imediatamente; mas Ptahor quis desta vez fazer uma demonstração, sendo seu intento também se valer de tais vantagens depois, no caso do faraó.

Assim, depois que Ptahor examinou a superfície do crânio limpo, nos mostrou o lugar onde o osso tinha sido esmigalhado. Servindo-se de broca, serra e formão, removeu um pedaço de parietal tão grande como a palma da mão de uma pessoa, e em seguida nos mostrou como crostas de sangue só tinham aglomerado entre as circunvoluções brancas do cérebro.

Com infinito cuidado removeu as placas de sangue, uma por uma, e retirou uma esquírola que se achava encravada na substância cerebral. Tal operação levou bastante tempo, de modo que cada aluno pode seguir todos os movimentos e reter bem na lembrança o aspecto de um cérebro assim exposto. Por último Ptahor fechou a abertura com uma chapa de prata que fora preparada nesse ínterim para substituir em tamanho e formato o pedaço de osso extraído; tal lâmina foi fixada adequadamente. Só faltava tornar a puxar o couro cabeludo e concluir o curativo, o que foi feito, dizendo então Ptahor:

- Acordem-no.

De fato o paciente perdera a consciência havia já muito tempo. Soltara as amarras, despejaram vinho pela garganta abaixo do escravo, fizeram-no inalar fortes drogas. Daí a pouco ele se sentou e irrompeu numa série de blasfêmias.

Foi um verdadeiro milagre; quem não houvesse assistido nem acreditaria, pois até à hora da operação o escravo se achava paralítico dos membros, e perdera desde muito o uso da fala. Dessa vez não tive necessidade de perguntar a razão, pois Ptahor explicou que a causa daqueles sintomas tinha sido a esquírola óssea rodeada de coágulos.

- Se não morrer dentro de três dias estará curado - disse Pthaor - Daqui a duas semanas se achará em condições de estraçalhar o homem que olapidou. Não creio que venha a morrer.

Com afável cortesia agradeceu a quantos o haviam ajudado, citando também o meu nome, embora eu não houvesse feito mais do que lhe ir passando os instrumentos à medida que mos pedia. Eu não compreendera o seu propósito; mas a verdade é que me entregando a sua caixa de ébano para carregar ele me escolhera para ser seu assistente no palácio do faraó.

Secundara-o ainda agora em duas operações e tinha por conseqüência mais préstimo e mais experiência do que até mesmo os médicos reais no caso da abertura de crânio. Mas eu não compreendera seu intuito e fiquei pasmo quando Ptahor me disse:

- Já agora estamos aptos a manobrar com o crânio real. Estás pronto, Sinuhe?

Envolto em meu simples manto de médico, subi para junto dele na cadeira portátil. O "estancador de sangue" ia numa das extremidades e os escravos do faraó corriam na nossa frente de modo a desimpedir o caminho para que a liteira não andasse aos repelões. O navio do faraó nos aguardava, com uma equipagem de ótimos escravos que remavam diligentemente; dir-se-ia que voávamos por sobre as águas e não que flutuávamos. Do cais real de desembarque fomos conduzidos imediatamente para a casa dourada. Não perguntei nem raciocinei sobre a razão da nossa pressa, porque soldados já marchavam através das ruas de Tebas, portões estavam sendo fechados, mercadores removiam suas mercadorias para o interior das lojas e fechavam as portas e os mostruários. Tudo isso dava a entender que o faraó estava à morte.

 

A FEBRE DE TEBAS

Grande multidão de todas as camadas sociais aglomerava-se junto das muralhas da casa dourada e até mesmo os molhes de acesso proibido estavam rodeados de embarcações, galeotas a remo dos ricos e botes de verga alcatroada dos pobres.

Quando a multidão nos viu um sussurro a percorreu como um aproximar de águas distantes, logo se espalhando de boca em boca a notícia do chegada do trepanador real. Então o povo juntou as mãos em gestos de mágoa, enquanto brados e lamentações nos seguiam até ao palácio, pois ninguém ignorava que nenhum faraó sobrevivera mais do que três dias após a trepanação de seu crânio.

Através do portão dos lírios fomos conduzidos aos aposentos reais; mordomos da corte se transformavam em nossos criados e se prosternavam diante de nós porque carregávamos a morte em nossas mãos. Uma sala fora preparada temporariamente para a purificação; mas depois de trocar umas poucas palavras com o médico do faraó, Ptahor ergueu as mãos em sinal de lástima e realizou o cerimonial de purificação de modo apenas perfunctório. O fogo sagrado foi conduzido à nossa frente e, depois de atravessarmos uma série de salas esplendidas, entramos no aposento real.

O Grande Faraó jazia estirado sob um dossel dourado. As colunas do leito eram deuses protetores e a armação era suportada por leões. Seu corpo anasarcado estava nu, despojado de todos os símbolos da soberania. O soberano se achava inconsciente, sua cabeça de velho pendia de lado, sua respiração era estentórica e do canto de sua boca escorria saliva. Tão fugaz e efêmera é a glória dos mortais que o faraó não fazia a mínima diferença de qualquer dos velhos que jaziam moribundos acolá nas alas da Casa da Vida. Mas pelas paredes do aposento ele estava pintado em atitude de velocidade num carro arrebatado por velozes cavalos altivos; seu braço poderoso puxava a corda do arco e soltava setas que iam transpassando leões a toda volta.

Prostramo-nos diante dele, cônscios, como acontece a quantos já viram a morte, que o engenho e a arte de Ptahor eram inúteis em tal caso. Mas como através das idades o crânio de cada faraó era aberto em último recurso sempre que a morte natural não sobreviesse, assim tinha que ser feito agora e empreendemos nossa missão. Levantei a tampa da caixa de ébano e purifiquei na chama, novamente, os escalpelos, brocas e formões. O médico da corte já raspara e lavara a cabeça do moribundo, e Ptahor ordenou ao "estancador de sangue" que se sentasse no leito e tomasse entre as mãos a cabeça do faraó.

Então a consorte real se aproximou da cama e não consentiu. Estivera antes apoiada à parede com os braços levantados em sinal de mágoa, imóvel como uma imagem. Atrás dela se postou agora o herdeiro do trono, Amenhotep, e também sua irmã, Baketamon; mas eu não ousara ainda erguer meu olhar para eles. Agora que um fremito percorria o aposento olhei, e os reconheci por causa das estátuas nos templos. O príncipe era da minha idade, mas mais alto; a princesa Baketamon tinha traços nobres e magníficos e olhos ovais. Mas muito mais majestosa do que qualquer deles era a consorte real, Taia, embora fosse baixa e nédia. Sua compleição era trigueira, seus malares fortes e proeminentes.

Diziam que descendia de gente do povo e que tinha sangue negro nas veias; não sei se isso era verdade; sempre ouvi dizer. Mesmo que fosse verdade que seus antepassados não traziam títulos honoríficos, Taia tinha olhos inteligentes, vivos e perscrutadores e de todo o seu semblante e porte se irradiava poder. Quando estendeu a mão e olhou para o "estancador de sangue" este pareceu se desfazer em pó sob os seus pés morenos e grandes. Compreendi o sentimento da esposa do faraó, pois aquele indivíduo era um boiadeiro de baixa extração que não sabia ler nem escrever. Estava agora ali de cabeça baixa e braços pendentes, com a boca aberta e com uma expressão atônita no rosto. Bronco e ignorantão, todavia, tinha o poder de estacar qualquer hemorragia só com o ato da sua presença. Devido a isso tinha sido chamado, largara o arado e os bois para ser mero empregado do templo. A despeito de todo o cerimonial de limpeza, o cheiro de esterco, de gado a bem dizer não o largava. Ele próprio não sabia explicar as razões daquele seu tão estranho poder.

Possuía-o tal como uma jóia pode ser encontrada num torrão de terra, e era um poder que não decorria de nenhum estudo nem de exercícios espirituais.

- Não permito que ele toque no deus - disse a rainha. - Se é necessário segurar a cabeça do deus eu a segurarei.

Ptahor esclareceu que tal tarefa era incomoda e sangrenta; ainda assim ela se instalou na beira da cama e com o maior cuidado soergueu a cabeça do esposo agonizante sobre o colo, indiferente à saliva que escorria molhando suas mãos.   

- Pertence-me - disse ela - e ninguém mais deve tocá-lo. É pelos meus braços que ele deve entrar nos reinos da morte.

Ele entrará a bordo da nave de seu pai o sol - disse Ptahor incisando o couro cabeludo com a sua faca de cristal.

- Do sol nasceu e ao sol voltará e todos os povos louvarão o seu nome por todos os séculos dos séculos...Em nome de Set e de todos os demônios, que está fazendo o "estancador de sangue"?

Falava assim para distrair para longe da operação os pensamentos da rainha, tal qual costuma fazer o médico perspicaz que procura conversar com o doente em quem está causando dor. Mas a última frase sacudira como uns apupo o lavrador que se apoiara ao portal com ar meio sonolento. Sangue começou a correr frouxamente da cabeça do faraó para o colo da sua consorte; não tardou que esta se sentisse indisposta e seu rosto se tornou lívido, cor de cera. O homem despertou do fundo dos seus pensamentos - decerto pensava em seus bois e nos canais de irrigação - lembrou-se do seu dever e, aproximando-se da cama, fitou o faraó e levantou as mãos. A hemorragia cessou imediatamente e eu lavei e enxuguei a cabeça real.

- Perdoai-me, senhora - disse Ptahor tomando a broca da minha mão - Para o sol, sim, com efeito, diretamente para junto de seu pai a bordo da nave de ouro. Que sobre ele caia a benção de Ammon.

E enquanto falava assim girava a broca depressa e com segurança entre as mãos de forma a ela ir entrando no osso. O príncipe abriu os olhos, deu um passo à frente e o seu semblante se crispou quando ele disse:

- Não Ammon, mas sim Ra-Herachte o abençoará, manifestando-se através de Aton.

- Ah, sim; com efeito, Aton - murmurou Ptahor com delicadeza. - Aton, naturalmente... Foi um lapso de língua.

- Tornou a segurar a faca de cristal e o martelo de cabo de ébano e com ligeiros golpes começou a remover o pedaço de osso.

- Pois me lembro que em sua divina sabedoria ele ergueu um templo a Aton. Foi isso sem dúvida logo depois do nascimento do príncipe, não foi, linda Taia? Um momento.

Volveu um olhar preocupado para o príncipe que estava, parado diante do leito com os punhos crispados e a fisionomia convulsa.

- Um gole de vinho dará firmeza à minha mão e só poderá fazer bem ao príncipe. Numa ocasião destas é bem adequado se romper o selo de uma botija real. Agora!

Estendi-lhe o formão e ele extraiu o pedaço de osso com um ruído áspero.

- Um pouco de luz, Sinuhe!

Ptahor deu um suspiro, pois o mais difícil fora feito; e o mesmo fiz eu. Idêntica sensação de alívio pareceu se comunicar ao faraó inconsciente, pois seus membros mexeram, sua respiração se tornou mais vagarosa, e ele caiu numa espécie de coma ainda mais profundo. Ptahor se pos a observar o cérebro do faraó ali naquela claridade propícia onde estava exposto; e o fazia com ar muito atento; as circunvoluções tinham uma coloração azul acinzentadas e tremiam.

- Hum! - disse ele com feitio pensativo. - O que havia a fazer está feito. Possa o seu deus Aton fazer o resto, pois se trata da alçada de deuses e não de homens.

Com muita delicadeza e cuidado recolocou o pedaço de osso no lugar, encaixando-o bem na fenda, recompôs as bordas da ferida, enfaixou a cabeça. A consorte real pousou a cabeça do esposo sobre um cepo de madeira raríssima e olhou para Ptahor. O sangue secara nas suas vestes; mas Taia não se importava com isso. Ptahor agüentou aquele olhar destemido sem dar mostra de obediência e disse em voz baixa:

- Querendo deus, ele viverá até de madrugada.

Em seguida levantou as mãos num gesto de lástima, o mesmo fazendo eu. Mas quando as ergueu demonstrando simpatia não ousei seguir seu exemplo, pois quem era eu para me condoer de soberanos? Purifiquei os instrumentos no fogo e os repus na caixa de ébano.

- Vossa recompensa será grande - disse a rainha e nos fez sinal de que podíamos sair.

Uma refeição estava preparada para nós na sala próxima e Ptahor olhou com satisfação para muitas botijas de vinho colocadas rente à parede. Tendo examinado de perto uma delas a mandou abrir; e um escravo derramou água nas nossas mãos. Depois que ficamos sozinhos outra vez Ptahor me explicou que Ra-Herachte era o deus dos Amenhoteps e que Aton era a sua manifestação; um deus de grande antigüidade, mais velho do que o próprio Ammon. E prosseguiu:

- Diz-se que o atual herdeiro do trono é o divino filho. - Tomou um trago de vinho - Foi no templo de Ra-Harachte que a rainha teve a sua visão, após a qual teve um filho. Tomou a seu serviço um sacerdote muito ambicioso a quem Favorecia; ele se chamava Eie e a rainha arranjou que a mulher de tal sacerdote fosse tomada como ama de leite do herdeiro. A filha Nefertiti mamou nos mesmos seios que o príncipe e brincou com ele no palácio como irmã; podes bem avaliar o que decorreu de tudo isso. Ptahor tornou a beber, suspirou e prosseguiu:

- Ah! Não há nada mais delicioso para um velho do que beber vinho e tagarelar sobre coisas que não lhe dizem respeito. Se ao menos soubesses, Sinuhe, quantos segredos estão enterrados atrás desta testa. Talvez sejam até segredos reais. Muitos se admiram e não sabem explicar por que motivo jamais nasceu vivo um filho na ala das mulheres do palácio, pois isso é contra todas as leis médicas ... e o homem que jaz aí ao lado com o crânio aberto muito menos foi um covarde nos seus dias de alegria e força. Encontrou essa que depois foi sua esposa durante uma excursão de caça; dizem que Taia é filha de um caçador qualquer e que morava entre caniços a beira do Nilo e que o rei a tomou por causa da sabedoria que entreviu nela, sendo que também lhe venerou os pais enchendo-lhes as tumbas com dádivas custosas. Taia nunca se opôs a que ele tivesse prazeres, contanto que as mulheres do serralho não gerassem filhos homens. Nisto ela teve uma sorte espantosa, a ponto de parecer impossível se não se soubesse que de fato assim foi.

Ptahor olhou de soslaio para mim e depois olhando em redor disse depressa:

- Mas, Sinuhe, nunca acredites em quaisquer histórias que possas ouvir; são disseminadas apenas por gente mal intencionada... Todos sabem quão boa é a rainha e que habilidade ela tem para reunir homens úteis à sua volta. Sim, sim...

Acompanhei Ptahor até fora do palácio; a noite tinha caído, o ar estava fresco e na banda oriental as luzes de Tebas expandiam um fulgor vermelho. O vinho atuava sobre mim e eu sentia de novo a febre da cidade em meu sangue. Estrelas cintilavam por cima da minha cabeça e o jardim estava cheio de flores.

- Ptahor, quando as luzes de Tebas se refletem no céu noturno, então fico sedento de amor!

- O amor não existe - disse ele com ênfase. - Quando não tem mulher com a qual se deitar, o homem fica triste; mas depois que se deitou com alguma, então fica ainda mais triste. Sempre foi assim e sempre será.

- Por que?

- Nem mesmo os deuses sabem. E não me fales nunca em amor a não ser que desejes que eu te abra o crânio. Far-te-ei isso de bom grado e sendo exigir o menor presente, poupando-te assim aborrecimentos maiores.

Pareceu-me melhor encarregar-me dos deveres de um escravo; ergui-o em meus braços e o transportei para o cômodo que havia sido posto à sua disposição. Ptahor era tão pequeno e tão velho que nem sequer me cansei Assim que o estendi em cima do leito ele dormiu imediatamente após alguns pedidos confusos de mais um pouco de vinho. Cobri-o com peles macias, pois a noite estava fresca e saí para o terraço de flores pois eu era jovem e a mocidade não tem vontade de dormir na noite da morte de um rei.

As vozes dos que passavam junto às muralhas do palácio chegavam até ao terraço como lufadas de um vento distante.

Despertei por entre o perfume das flores enquanto as luzes de Tebas refletiam de encontro ao céu para os lados do oriente um fulgor vermelho desatinado. Foi então que me lembrei de uns olhos verdes como a água do Nilo na força do verão e senti que não estava mais sozinho.

A luz das estrelas e do alfanje estreito da lua era tão fraca que eu nem podia discernir se quem se aproximava era um homem ou uma mulher; a verdade é que alguém chegou bem perto de mim e fitou o meu rosto. Mexi-me e a pessoa recém-chegada perguntou com tom autoritário, mas ainda assim estridente, como voz quase juvenil:

- És O Que Está Só?

Reconheci a voz do príncipe e a sua figura magra e me prostrei diante dele, sem ousar falar. Ele porém me sacudiu impacientemente com o pé.

- Levanta-te, tolo! Ninguém nos pode ver e portanto não precisas te inclinar perante mim. Guarda tal atitude para quando estiveres diante do deus de quem sou filho ... Sim, pois só existe um deus e todos os demais são suas manifestações. Não sabia disso? - E sem esperar resposta acrescentou com ar de ponderação: - Todos os outros, menos Ammon que é um falso deus.

Fiz um gesto de protesto e disse:

- Oh! ... - Apenas quis demonstrar com isso que temia um tal assunto.

Ele atalhou:

- Exatamente! Vi-te em pé perto de meu pai entregando a faca e o formão ao maluco do velho Ptahor. Por isso te chamei O Que Está Só. Quanto a Ptahor, minha mãe já o chamou de Macaco Velho. Eis os nomes que ambos deveis usar se tiverdes que morrer antes de deixar o palácio. Não me esqueci de vós dois, conforme está tão bem explícito.

Pensei que ele devia estar louco para falar desta forma esquisita, embora Ptahor me houvesse avisado que deveríamos morrer caso o faraó morresse; e o "estancador de sangue" acreditava nisso. Meu cabelo se eriçou, pois eu não queria morrer.

O príncipe estava anelante; suas mãos contorciam-se. Em dado instante sussurrou para si mesmo:

- Sinto-me alvoroçado...Preciso sair daqui. Ir para alhures... É o meu deus que está se revelando. Eu sei...E tenho medo. Não me deixes, ó solitário! Ele agarra meu corpo com força crispante e minha língua fica travada...

Tremi, cuidando que ele delirasse. Mas foi com voz de comando que me disse: "Vem!" e tive que seguí-lo. Levou-me pelo terraço abaixo e além do lago do faraó, enquanto por detrás das muralhas vinha o tom das lamentações das carpideiras.

Grande pânico me acometia porque Ptahor não esclarecera que não podíamos deixar o palácio antes da morte do rei mas como havia eu de contrariar o Príncipe?

Ia com o corpo empetigado e andava com tal rapidez que eu quase não conseguia emparelhar com ele. Vestia apenas uma espécie de sunga e a lua brilhava por sobre a sua pele bonita, as suas pernas esguias e as suas coxas femininas; e brilhava destacando suas orelhas e seu semblante atormentado e convulso que parecia falar de uma visão que só ele visse.

Quando chegamos à praia, o príncipe disse:

- Temos que tomar um bote. Vou para as bandas do oriente ao encontro de meu pai.

Não perdeu tempo em escolher uma embarcação, dirigiu-se para a mais próxima. Acompanhei-o e começamos a remar para a outra margem, sem que ninguém se opusesse, apesar de havermos roubado um barco. A noite estava agitada; outras embarcações deslizavam pelo rio e o reflexo vermelho de Tebas se mostrava cada vez mais claro no céu fronteiro.

Quando atingimos a outra margem deixamos o barco à mercê da correnteza e começamos a caminhar diante de nós como se já tivéssemos feito aquele caminho uma porção de vezes antes. Havia mais pessoas e passamos sem que as sentinelas nos interpelassem. Tebas sabia que o rei morreria aquela noite.

O príncipe continuava andando, não obstante o cansaço; eu admirava a rijeza daquele jovem corpo pois apesar da noite estar fresca o suor descia por mim abaixo enquanto o ia seguindo. As estrelas se deslocavam nos céus e a lua sumiu; ainda assim ele prosseguiu até que saímos do vale e nos metemos pelo deserto, deixando Tebas atrás de nós. As três colinas na banda leste - guardiãs da cidade - se alteavam negrejantes diante de nós, de encontro ao firmamento. Por fim o príncipe se arrojou anelante por cima da areia e disse com voz assustada:

- Segura as minhas mãos, Sinuhe, pois estão tremendo... Ah! Como o meu coração bate de encontro ao meu peito! A hora se entremostra... sim, ela se entremostra porque o mundo está desolado... Tu e eu estamos sozinhos.

Segurei-lhe os punhos e senti que seu corpo todo, assim convulsivo, estava banhado em suor frio. A nossa volta o mundo jazia deveras desolado; bem longe um chacal uivava diante de qualquer carcaça; lentamente as estrelas começaram a empalidecer e o espaço que nos rodeava se foi tornando acinzentado. De súbito o príncipe se soltou das minhas mãos e volveu o rosto erguido para o oriente, para o lado das montanhas. E disse baixo, com pasmo contido em seu rosto inflamado:

- O deus está chegando! O deus está chegando! - repetiu pela terceira vez, mas já então num brado que ecoou pelo deserto: - O deus está chegando!

A atmosfera foi clareando, as colinas diante de nós se inflamaram batidas de ouro e o sol se ergueu.. Com um grito estridente o príncipe se arrojou ao chão, como se desfalecesse, com a boca entreaberta, os membros retorcidos convulsivamente flagelando a areia. Mas eu já perdera o medo porque gritos de tal espécie, já os ouvira muitas vezes no átrio da Casa da Vida e sabia o que me competia fazer. Na falta de uma escápula para descerrar seus maxilares arranquei uma tira da minha sunga, enrolei-a e enfiei-a entre suas gengivas. Depois comecei a lhe fazer massagens nos membros. Ao acordar ele ficaria perplexo e exânime. Olhei em torno em busca de auxílio; mas Tebas se achava longe, bem atrás de nós e não lobriguei a menor choupana nas imediações.

Bem nesse instante passou voando por cima de mim, com guincho, um falcão que pareceu vir dos raios do sol nascente sobre nós descrevendo um arco, descendo porém como se fosse pousar na testa do príncipe. Assustado, imediatamente fiz o sinal sagrado de Ammon. Estaria o príncipe com Horus na sua mente quando saudou o deus? E estaria Horus se manifestando ali, então? O jovem gemeu e eu me abaixei par a atende-lo. Quando tornei a erguer a cabeça pareceu-me que o pássaro tomara a forma humana. Diante de mim se achava um homem ainda moço, parecendo um! deus, e os raios solares o faziam ainda mais belo. Tinha consigo uma espada e usava uma túnica rude de pobre. Conquanto não acredite em deuses achei mais seguro me prostrar diante dele, o que logo fiz.

- De que se trata? - perguntou ele em dialeto do Nilo Inferior. - O mancebo está doente?

Arrependido da minha atitude que achei idiota me pus em pé e o saudei de modo comum, dizendo:

- Se és um salteador pouco temos que possas roubar; na aqui se acha um mancebo doente e os deuses te abençoarão se me ajudares.

Ele deu um silvo como um falcão e o pássaro descendo do céu pousou em cima do seu ombro.

- Eu sou Horenheb, filho do falcão - disse ele, orgulhosamente. - Meus pais não passam de fabricantes de queijo, mas foi predito por ocasião do meu nascimento que eu assumiria o comando de coortes. O falcão veio voando na minha frente e eu o segui visto não haver encontrado abrigo na cidade. Tebas tem medo de espadas depois que as trevas raem. Mas é que tenciono entrar a serviço do faraó, como guerreiro. Dizem que ele se acha enfermo; por conseguinte há de necessitar de braços valorosos para proteger sua soberania.

O príncipe gemia, passando as mãos crispadas pelo rosto baixo e contorcendo os membros. Retirei o trapo de dentro da sua boca e pensei em arranjar água para o reavivar. Horemheb encarou-o e me perguntou alvarmente:

- Ele está morrendo?...   

- Não - respondi afoitamente. - Trata-se de um acesso do mal sagrado.

Horemheb agarrou o punho da espada enquanto me fitava.

- Necessário é que não faças pouco em mim só pelo fato de eu ser pobre e estar descalço. Sei escrever regularmente e leio o que me apresentam escrito. E terei comando sobre muitos. Que deus se apossou dele?

O povo pensa que é um deus que fala através dos que estão acometidos do mal sagrado, daí a pergunta de Horemheb.

- Ele tem o seu próprio deus - respondi - e me parece que está um pouco confuso da cabeça.

- E está sentindo frio! - atalhou Horemheb tirando sua capa e a abrindo por cima do príncipe - As manhãs em Tebas são frias, mas meu sangue basta para me conservar quente. O meu deus é Horus. Este rapaz é evidentemente o filho de algum homem rico pois tem a pele clara e delicada e mãos que nunca trabalharam. E tu, quem és?

- Sou médico e iniciado de primeira categoria no sacerdócio de Ammon, em seu templo de Tebas.

O herdeiro do trono levantou-se, grunhiu e olhou atônito ao redor de si. E seus dentes rangiam, quando disse:

- Meus olhos viram. Em tal instante foi como se um ciclo do tempo se fendesse... Perdi a noção do momento e dos séculos... O deus estendeu por cima da minha cabeça mil mãos me abençoando. E havia em cada mão o símbolo da vida eterna. Como então não hei de acreditar?

Ao dar com Heremheb seus olhos se clarearam e o príncipe ficou mais belo assim, tomado de radioso deslumbramento.

- És tu o enviado de Aton, o deus único?

- O falcão veio voando diante de mim e eu o segui, eis por que motivo me acho aqui. É quanto sei; nada mais.

O príncipe olhou carrancudo para a arma de Horemheb e lhe disse em tom de censura:

- Trazes uma espada?

Horemheb apresentou-a.

- A copa é de madeira de lei - disse ele. - Seu fio do cobre anseia por beber o sangue dos inimigos do faraó. Minha espada está sedenta e seu nome é: Decepadora de Gargantas.

- Nada de sangue! - exclamou o príncipe. - Aton considera o sangue uma abominação. Não há nada mais horrível do que sangue a correr.

- O sangue purifica o povo e o torna forte; engorda e alegra os deuses. Enquanto houver guerra, necessário é que corra sangue.

- Jamais tornará haver guerra - declarou o herdeiro do trono.

 Horemheb riu.

- O mancebo é ingênuo! Sempre houve guerras e sempre as haverá, porque as nações tem que provar o valor umas das outras se é que desejam sobreviver.

Mas já agora o príncipe olhava diretamente para o sol e exclamava:

- Todos os povos são seus filhos! Todas as línguas! Todas as raças. A terra negra e a terra vermelha. Levantarei templos em sua honra e mandarei aos príncipes de todas essas terras o símbolo da vida...Sim, pois eu o vi!Foi dele que nasci e para ele é que voltarei.

Meneando a cabeça com dó, Horemheb me disse:

- Está louco. Vejo que necessita deveras de um médico.

O príncipe estendeu a mão saudando o sol e o seu semblante se encheu mais uma vez de apaixonada beleza como se estivesse contemplando um outro mundo. Deixamo-lo acabar sua oração e depois começamos a reconduzi-lo para a cidade. Não opôs resistência. O acesso deixara-o fraco; cambaleava e gemia enquanto prosseguia; por fim o carregamos entre nós, e o falcão voava na nossa frente.

Ao chegarmos à beira da terra lavrada vimos uma liteira real à nossa espera. Os escravos estavam prostrados no chão; e eis que saiu da liteira um sacerdote obeso, de cabeça raspada e cujo rosto moreno era grave e belo. Estendi meu braço até ao rés do joelho, diante dele pois o tomei por Eie, de quem Ptahor me falara. Ele porém não me deu atenção.

Prosternou-se diante do príncipe e o chamou de rei. Assim me dei conta de que Amenhotep havia morrido. Então os escravos se apressaram em atender ao novo faraó. Seus membros foram lavados, esfregados e ungidos; seu corpo foi vestido com linho real e sobre a sua cabeça foi colocado o adereço régio.

Nesse ínterim Eie se dirigiu a mim:

- Ele chegou a encontrar o seu deus, Sinuhe?

- Encontrou o seu deus e tomei conta dele para que nenhum dano lhe sobreviesse. Como sabeis o meu nome?

Eie sorriu.

- Compete-me saber tudo quanto se passa dentro das muralhas e paredes do palácio. Sei teu nome; sei que és médico e que por conseguinte podia confiar o príncipe aos teus cuidados. Também és um dos sacerdotes de Ammon a quem,aliás... juraste sujeição...

Havia indícios de ameaça no tom de sua voz quando disse a última frase. Estendendo as mãos, exclamei:

- Juramento a Ammon? Que significado tem isso?

- Tens razão. E motivos de sobejo para não te arrependeres. E este homem com esta espada? - E apontou para Horemheb que se achava parado a um canto, experimentando a ponta da espada na mão, com o falcão empoleirado no ombro. - Será melhor, decerto, que ele morra, pois os segredos do faraó são comparticipados por poucos.

- Ele estendeu sua capa sobre o faraó quando fazia frio e está pronto a brandir a espada contra os inimigos do faraó. Acho que vos será mais útil vivo do que morto, pontífice Eie!

Eie arrancou do punho um bracelete de ouro e lho arremessou, dizendo por única observação:

- Tu, homem da espada, visita-me qualquer dia na casa dourada, se precisares de mim.

Mas Horemheb deixou o bracelete caído na areia junto a seus pés e encarou Eie com ar de desafio.

- Recebo ordens do faraó. E se não me engano, faraó, aqui, é aquele que está com o adereço real na cabeça. O falcão me conduziu até ele e isso é sinal bastante.

Eie não se sobressaltou.

- Ouro é coisa de valia e tem utilidade permanente.

Dizendo tal comentário, apanhou o bracelete e tornou a enfiá-lo no braço.

- Rende teu preito de obediência ao faraó, mas tens que na presença dele por de lado a tua espada.

Nisto o príncipe deu um passo à frente. Seu rosto estava pálido e tomado de serenidade advinda do secreto êxtase que aquecia meu coração. Disse:

- Segui-me! Segui-me todos vós por este novo caminho, pois a verdade me foi revelada.

Encaminhamo-nos com ele para a liteira, embora Horemheb sussurrasse consigo mesmo:

- A verdade jaz, mas é na minha espada...

Os carregadores seguiram trotando para onde um barco nos aguardava ao longo do cais de embarque. Conforme tínhamos ido, assim voltamos, incógnitos, não obstante a chusma que se aglomerava do lado de fora das muralhas do palácio.

Tivemos permissão de entrar nos aposentos do príncipe e ele nos mostrou enormes jarras cretenses sobre as quais estavam pintados peixes e outros seres. Alguém veio anunciar que a Rainha-Mãe se achava a caminho para lhe render preito. Visto isso nos despediu prometendo que se lembraria de nós dois.

Depois que o deixamos, Horemheb me disse com ar perplexo:

- Estou em apuros. Não tenho para onde ir.

- Pois fica aqui e não te sobressaltes - aconselhei-o. - Ele prometeu se lembrar de ti e será bom que estejas ao alcance quando o fizer, pois o deuses são caprichosos e esquecem prontamente.

- Ficar aqui zumbindo no meio deste enxame? - retrucou ele apontando para os cortesões que pululavam junto à porta do príncipe. - Não. Razão de sobra tenho para estar inquieto - prosseguiu, carrancudo.

- Que será de uma terra como o Egito cujo soberano tem medo de sangue e acredita que todas as nações, idiomas e raças tem igual mérito? Nasci guerreiro e meu instinto guerreiro me diz que tais noções são mau prognóstico para um homem como eu. Despedimo-nos e lhe disse que perguntasse por mim na Casa da Vida caso viesse a precisar de um amigo.

Ptahor estava esperando por mim em nosso aposento. Recebeu-me com olhos avermelhados e ar irritadiço.

- Estavas ausente quando o faraó rendeu seu último suspiro de madrugada. Sim. Tu, ausente. E eu, a dormir! Nenhum de nós se achava acolá para ver a alma do faraó voar das narinas reais para o sol, como um pássaro.

Disse-lhe tudo quanto acontecera comigo durante a noite e a madrugada; e ele ergueu as mãos em sinal de grande espanto.

- Ammon nos protege, pois pelo que me dizes o novo faraó está louco.

- Acho que não - disse eu com ar vago. - Parece- me que ele tomou conhecimento de um novo deus. Quando sua cabeça clarear veremos prodígios na terra de Kan.

- Que Ammon nos livre disso. Serve-me um pouco de vinho porque a minha garganta está seca como uma estrada empoeirada.

Logo depois disso fomos levados debaixo de escolta para um pavilhão na Casa de Justiça onde o Guarda do Selo nos leu a lei abrindo um rolo de couro e nos disse que devíamos morrer já que o faraó não se restabelecera depois que seu crânio fora aberto. Olhei para Ptahor, mas este se restringiu a sorrir quando o executor avançou com a espada.

- Primeiro o "estancador de sangue" - disse Ptahor. - Tem mais pressa do que nós, pois a mãe dele já está preparando sopa de favas lá na terra do Poente.

O "estancador de sangue" despediu-se ardorosamente de nós, fez o sagrado sinal de Ammon e se ajoelhou humildemente no chão diante dos rolos de couro O executante brandiu a espada num grande arco por cima da cabeça do condenado, a lâmina cantou no ar, mas parou de chofre antes mesmo de tocar a nuca. Mas "o estancador de sangue" caiu no chão; pensamos que houvesse desmaiado de pavor, pois não havia o menor arranhão em seu torso nu. Quando chegou a minha vez me ajoelhei sem medo. O carrasco riu e tocou a minha nuca com a lâmina sem se preocupar em me assustar. Ptahor observou que era de estatura baixa e que por isso não precisava se ajoelhar, e o carrasco apenas roçou a espada por cima de sua nuca, também. Assim, morremos, a lei foi cumprida, e recebemos novos nomes gravados em pesados anéis de ouro.

No anel de Ptahor estava escrito: "O Homem Que Parece Macaco", e no meu: "O Que Está Sozinho". Em seguida o presente de Ptahor foi pesado em ouro, e o meu. também; e nos enfiaram vestuários novos. Pela primeira vez vesti um traje liso de linho real e me foi cingido um colar pesado de prata e pedras preciosas.

Quando os criados tentaram levantar o "estancador de sangue" e reanimá-lo, acharam-no morto, rijo que nem uma pedra.

Averigüei isso com os meus olhos e posso testemunhar que foi verdade. Mas por que ele morreu, ignoro; decerto foi susto, de tanta expectativa. Por mais simples que ele possa ser, um homem que tem o dom de fazer parar uma hemorragia não é igual aos outros homens.

Quando regressei à Casa da Vida com minhas vestimentas novas e o meu bracelete de ouro no punho, os meus professores se inclinaram diante de mim. Ainda assim eu era um simples aluno e tive que escrever um minucioso relatório sobre a operação e a morte do faraó, o que atestei com o meu nome. Levei muito tempo fazendo isso e terminei com uma descrição da alma do faraó saindo de suas narinas sob a forma de um pássaro e entrando diretamente no sol, Mais tarde tive a satisfação de ouvir o meu relatório ser lido ao povo durante os setenta dias durante os quais o corpo do faraó foi preparado para entrar na imortalidade. Durante esse período de lamentação todas as casas de divertimentos, tavernas e botequins de Tebas estiveram fechados; tanto que, para se comprar vinho ou se ouvir música, se tinha que entrar pela porta dos fundos.

  Mas quando esses setentas dias passaram me certifiquei de que já então eu era um médico qualificado e podia começar a clinicar em qualquer bairro de cidade que escolhesse. E que se, por outro lado, preferisse prosseguir meus estudos num ou noutro ramo especial da ciência, por exemplo, entre os médicos-dentistas, obstetras, cirurgiões, topedistas, ou qualquer outro dos quatorze diferentes assuntos em que a instrução é ministrada na Casa da Vida - bastaria escolher a especialidade. Isto era uma demonstração especial de favor, testemunhando quão amplamente Ammon recompensa seus servidores.

Mas eu era jovem e a aprendizagem na Casa da Vida já não me empolgava mais, porque a febre de Tebas me abrasava; o que eu desejava era a riqueza e a fama.

Urgia saber aproveitar junto ao povo a minha aura de fama. Com o ouro que recebi comprei uma pequena casa nas cercanias do bairro rico, mobiliei-a de acordo com as minhas posses e comprei um escravo - um indivíduo esquelético, com um olho só, mas excelente para mim. Chamava-se Kaptah. Assegurou-me que aquele seu olho único só poderia me ser vantajoso pois doravante ele poderia dizer aos pacientes que me aguardavam na sala de espera que sempre fora totalmente cego e que depois que eu o tratara adquirira sua vista parcialmente. Mandei decorar as paredes da minha sala de espera.

Numa delas Imhotep, o Sábio, o deus dos médicos, aparecia dando aula: Eu aparecia muito pequenino na frente dele, conforme era costume, mas em baixo do desenho havia uma inscrição que dizia assim:

- O mais sábio e mais talentoso de seus discípulos É Sinuhe, O que Está Sozinho e é filho de Senmut.

Outro desenho me mostrava sacrificando a Ammon, para que eu fosse visto glorificando o deus e assim ganhasse a confiança dos meus clientes. Mas no terceiro desenho o Grande Faraó me olhava lá dos céus, com a forma de um pássaro, enquanto os seus servos pesavam ouro para mim e me cingiam vestimentas novas.

Encarreguei Thothme de fazer esses desenhos embora ele não fosse um artista autorizado e seu nome não constasse no livro do templo de Ptah. Mas era meu amigo e devido ao seu trabalho todos quantos olhavam para os desenhos pela primeira vez erguiam as mãos, com admiração, dizendo:

- Não resta dúvida que esse Sinuhe, O Que Está Sozinho, e que é filho de Senmut, inspira confiança e decerto curará seus clientes tamanha parece ser sua habilidade.

Quando tudo ficou pronto me sentei à espera de doentes. Quedei assim longo tempo, sem que aparecesse nenhum. Ao fim do dia fui para uma casa de vinhos, pois ainda me sobrava um pouco de ouro e prata dos donativos do faraó. Eu era jovem e me considerava um médico hábil; não tinha dúvidas quanto ao futuro e, acompanhado por Thothmes, bebi à grande. E discutimos em altos brados os negócios dos Dois Reinos, pois por toda parte, no mercado diante das lojas dos mercadores, nas tavernas e alcouces, tais assuntos eram vigorosamente debatidos por toda gente naquela época.

Afinal acontecera conforme o velho Chanceler do Selo havia predito. Quando o corpo do faraó foi submetido a provas contra a morte e conduzido ao seu lugar de repouso no Vale dos Reis e as portas foram seladas com o selo real, a Rainha-Mãe ascendeu ao trono segurando em suas mãos o azarrague e o cajado.

Sobre o seu queixo estava a barba da soberania e em torno da sua cinta a cauda do leão herdeiro ainda não fora coroado faraó e se dizia que desejava se purificar e realizar suas devoções perante os deuses antes de assumir o poder. Mas quando a Rainha-Mãe demitiu o velho Chanceler do Selo e nomeou Eie, o sacerdote desconhecido, para a honrar à sua destra, com isso prejudicando em categoria todos os homens ilustres do Egito, então o templo de Ammon zumbiu como uma colméia, houve maus agouros e desgraças se sucederam durante os sacrifícios reais.

Os sacerdotes interpretaram muitos sonhos estranhos. Os ventos se soltaram de seus habituais quadrantes contra todas as leis da natureza e choveu forte durante dois dias em toda a terra do Egito. Mercadorias armazenadas nos portos sofreram estragos e os cereais se corromperam. Certos poços nas cercanias de Tebas viraram cisternas de sangue, acorrendo muita gente para ver. Mas o povo não chegou a se apavorar pois tais coisas costumavam acontecer sempre que os sacerdotes se enfezavam. Conquanto houvesse inquietações e grande celeuma oca, os mercenários lá em suas tendas - egípcios, sírios, negros e shardanistas - receberem pródigos presentes da Rainha-Mãe, e assim a ordem foi mantida. O poder do Egito não chegou a ser disputado; na Síria era ele mantido por guarnições, e os príncipes de Biblos, Esmirna, Sido e Gaza - que em sua infância tinham vivido aos pés do faraó e crescido na casa dourada - lamentaram a sua morte como a de um pai e escreveram cartas à Rainha onde se declaravam pó debaixo dos pés da Soberana.

O rei da terra de Mitani, em Naharani, mandou a sua filha como noiva ao faraó conforme seu pai fizera muito antes dele e conforme fora combinado com o Celestial Faraó, antes de sua morte. Tadukhipa, conforme ela se chamava, chegou a Tebas com servos, escravos e jumentos carregados de mercadorias de grande valor. Ela era uma criança de apenas seis anos e o príncipe a tomou para sua esposa, porque o reino de Mitani era uma muralha entre a riqueza da Síria e as terras do Norte e guardava todas as estradas de caravanas desde a terra dos rios gêmeos até ao mar. O júbilo chegou a seu termo entre os sacerdotes de Sekhmet, a celestial filha de Ammon e os gonzos dos portões do seu templo foram fechados até a ferrugem os corroer quase.

Era a respeito de tudo isso que eu e Thothmes falávamos. Alegramos nossos corações com vinho enquanto ouvíamos música síria e contemplávamos a dança das raparigas. A febre da cidade percorria o meu sangue. Ainda assim todas as manhãs o meu escravo caolho chegava à borda do meu leito, cortesmente, e me trazia pão e peixe salgado, e enchia meu copo com cerveja. Então eu me lavava e ia me sentar à espera dos doentes, não tardando a recebe-los; ouvia-lhes as queixas e tratava-os.

Chegou o tempo das cheias. As águas chegaram a atingir as muralhas do templo e quando baixaram de novo, a terra germinou toda ela em brotos tenros, os pássaros fizeram seus ninhos e as flores de lótus se entreabriram nos poços por entre as acácias perfumosas.

Um dia Horemheb veio à minha casa, visitar-me. Vestia linho real e do seu pescoço pendia uma corrente de ouro. Trazia na mão um chicote denotando que era um oficial de corte do faraó. Mas agora não cingia espada nenhuma. Disse-me:

- Vim pedir-te conselho, Sinuhe, o Solitário.

- Como assim? Estás tão forte como um touro e tão vigoroso como um leão. Não percebo que necessidade possas ter de um médico.

- Vim te procurar como amigo e não como médico - disse ele sentando-se.

Kaptah lavou-lhe as mãos; ofereci-lhe bolos mandados por minha mãe, vinho local, pois meu coração se alegrou ao avistá-lo.

- Com que então foste promovido, hein? És agora oficial da corte e, sem dúvida, a luz dos olhos de todas as mulheres.

Ficou sério.

- E que imundície que é tudo isso! O palácio está cheio de moscas que zumbem em cima de mim. As ruas de Tebas são duras e ferem meus pés, e as minhas sandálias me machucam.

Jogou longe as sandálias, com um movimento e esfregou os artelhos.

- Sim, sou oficial do corpo da guarda. Mas muitos dos oficiais são crianças de dez anos de idade, de cabelos ainda compridos e que caçoam de mim só porque descendem de gente nobre; seus braços não têm força para manobrar o arco e suas espadas são brinquedos de ouro e prata. Podem cortar com ela, mas nunca derrubar um inimigo. Os soldados bebem e dormem com as jovens escravas da corte e não obedecem a disciplina nenhuma. Na escola militar lêem dissertações caducas, nunca viram guerra e ignoram o que seja fome e sede ou medo do inimigo.

Agitou a corrente de ouro que lhe pendia do pescoço e após esse gesto de impaciência continuou:

- Que valem correntes de ouro e honrarias se não foram ganhas em batalhas e sim em zumbaias diante do faraó? A Rainha-Mãe amarrou uma barba no queixo e se cingiu com uma cauda de leão; mas como há de um guerreiro olhar para uma mulher e considerá-la chefe? Nos tempos dos grandes faraós um guerreiro não era absolutamente um homem desprezado, mas agora os tebanos consideram esta nossa profissão como a mais desprezível de todas e nos fecham as portas. Desperdiço o meu tempo. Desperdiço a minha mocidade e a minha energia estudando as artes da guerra entre gente que dará meia volta e fugirá ante o grito de guerra de um negro. Pelo meu falcão te digo que os soldados se fazem no campo de batalha e não alhures e que é ao fragor das armas que eles se retemperam. Não quero mais ficar aqui!

Deu uma chicotada em cima da mesa virando os copos de vinho e o meu criado fugiu com um guincho de pavor.

- Horemheb, meu amigo, antes de mais nada estás doente! Tens olhos febris e estás banhado em suor.

- Acaso não sou um homem? - Deu um soco no peito. - Posso levantar um escravo vigoroso em cada mão e arrebentar as cabeças de ambos batendo com elas uma na outra, assim! Posso carregar grandes pesos como qualquer soldado, correr grandes percursos sem perder o fôlego, e não tenho medo da fome nem da sede e muito menos do sol do deserto! Mas estas minhas qualidades são vergonha aos olhos deles e as mulheres da casa dourada apenas admiram certos homens como os que, por exemplo, não precisam se barbear. Elas gostam só de homens de punhos magros, peito sem cabelo e quadris afeminados. Admiram os que se defendem do sol, que pintam de vermelho a boca e que chilreiam como pássaros em árvores. Desprezam-me porque sou forte, porque tenho a pele e a mãos queimadas pelo sol, muito embora isso mostre que sei trabalhar.

Calou-se, ficando com o olhar parado ao longe. Por fim esvaziou o copo.

- És um solitário, Sinuhe, e o mesmo sou eu, porque já prevejo o que irá acontecer. Sei que nasci para um alto comando e dia virá em que ambos os reinos precisarão de mim. Mas não posso mais suportar a solidão, Sinuhe. Há chispas de fogo na minha alma; minha garganta se constringe; não consigo dormir direito. Preciso ir-me embora de Tebas, a sordície me horripila e as moscas me conspurcam.

Nisto me encarou e disse, abaixando a voz:

- Sinuhe, és médico. Dá-me um remédio que conquiste o amor.

- Ora, isso é fácil. Posso te dar umas bagas que dissolvidas em vinho te tornem forte e ardente como um símio de modo a que as mulheres suspirem em teus braços e revirem os olhos. Isso é facílimo.

- Não tu não me entendeste direito Tenho virilidade até demais quero mas é um remédio contra a loucura. Um remédio que aplaque meu coração... e que o transforme em pedra.

- Tal remédio não existe. Um sorriso... o olhar de uns olhos verdes... e lá se vai por água abaixo toda a ciência dos médicos. Disto sei bem. No entender dos sábios, todavia, um espírito mal pode afugentar outro mais fraco. É o que eles dizem; se é verdade, ou não, ignoro. Mas suponho que em tal caso o segundo espírito deva forçosamente ser pior do que o anterior.

- Que queres dizer com isso? - perguntou ele, irritado. -Estou farto de frases torcidas.

- Trata de descobrir outra mulher que enxote do teu coração a primeira. Eis o que quero dizer. Tebas está cheia de mulheres adoráveis, sedutoras, que pintam o rosto e que usam os linhas mais transparentes. Entre elas fácil te será arranjar uma que te sorria, já que és moço, forte, esbelto, e que tens uma corrente de ouro no pescoço. Mas não compreendo porque é que queres fugir da primeira. Mesmo que seja casada, não existe para o amor muralha suficientemente alta que não possa ser transposta. Quando uma mulher deseja um homem emprega ardis que removem quaisquer barreiras. Episódios acontecidos em ambos os reinos comprovam esta asserção. Diz-se do amor das mulheres, que é constante como o vento que sopra sempre, apenas mudando de direção. Diz-se que a virtude da mulher é como a cera, pois se derrete ao calor. Tem sido assim e sempre será.

- Ela não é casada - retorquiu Horemheb. - Não se coaduna ao caso o que engrolaste a respeito de constância e virtude. Ela nem sequer me olha, embora eu esteja sempre sob os seus olhos... E nem faz caso da minha mão caso eu a estenda para a ajudar a subir para a liteira.   

- Trata-se então de uma mulher de alta categoria?

- Inútil falarmos a respeito dela. É mais formosa do que a lua e as estrelas, e mais remota... Na verdade mais fácil me seria agarrar a lua com os meus braços. Portanto, tenho que esquece-la! Tenho que abandonar Tebas, ou morrer  

- Evidentemente não vou pensar que te tornaste vítima do sortilégio da Rainha-Mãe! - exclamei, brincando, pois meu desejo era faze-lo rir. - Ela é velha demais e demasiado gorda para agradar a um jovem.

- E além disso já dispõe do seu sacerdote - replicou Horemheb, com ar de desprezo. - Acho que ambos praticavam adultério ainda ao tempo do rei vivo.

Detive-o com um gesto e disse:

- Deves ter bebido em muitas fontes envenenadas desde que chegaste a Tebas.

- A que eu desejo pinta os lábios e as faces com substâncias rubras e amarelas; são negros e ovais os seus olhos, e ninguém tocou ainda seus membros envoltos em linho real. Chama-se Baketamon e em suas veias corre o sangue dos faraós. Já agora estás a par da minha loucura, Sinuhe. Mas se contares a alguém ou a mim mesmo repetires o que te acabo de dizer, irei à tua procura e te liquidarei estejas lá onde estiveres. Porei tua cabeça entre tuas pernas e te arremessarei de encontro a uma muralha.

Fiquei profundamente alarmado com o seu segredo, pois isso de um homem de baixa extração ousar erguer os olhos para a filha do faraó era na verdade ousadia inominável. Respondi-lhe:

- Mortal algum pode se aproximar dela. Se tiver que se casar com alguém será com o próprio irmão, o herdeiro, que a soerguerá ao seu nível tomando-a como consorte real. E assim será, pois li nos olhos dela quando estava à cabeceira do leito de morte do Rei: não olhava senão para o irmão. Incutiu-me medo, pois seus membros jamais aquecerão homem algum, e em seu olhar reside o vácuo e a morte. Vai-te embora, Horemheb, meu amigo. Tebas não é lugar onde fiques.

Respondeu com irritação:   

- Tudo isso sei melhor do que tu e teu palavreando soou em meus ouvidos como zumbir de moscas. Volvamos preferivelmente para o que disseste ainda agora a respeito de espíritos maléficos, pois tenho o coração a transbordar. De mais a mais, quando bebo vinho, anseio por uma mulher que me sorria, seja ela qual for. Só que sua vestimenta deve ser de linho real, tem que usar cabeleira e pintar os lábios e as faces de vermelho e amarelo... E para que seus olhos despertem o meu desejo tem que ser curvos como o arco-íris.

Sorri.

- Falas acertadamente. Debatamos o assunto, por conseguinte, como amigos.

- Escuta: entre os meus colegas do corpo da guarda há um Kefta, de Creta, em quem há tempos preguei um pontapé. Ele agora me respeita e me convidou a acompanhá-la hoje a uma recepção numa casa perto de um deus qualquer com cara de gato. Esqueci o nome do deus, porque no momento não estava disposto a ir.

- Queres dizer Basta. Conheço o templo. O quarteirão com toda a probabilidade deve calhar com o teu propósito porque mulheres fáceis são muito devotas desse deus felino a quem oferecem sacrifícios para arranjar amantes ricos.

- Mas só irei contigo, Sinuhe. Sou de origem humilde, desconheço protocolos tebanos e principalmente as etiquetas que se usam com as mulheres desta cidade. Es um homem do mundo, nasceste aqui... Deves portanto ir comigo. 

O vinho já me entusiasmara; aquela prova de confiança envaideceu-me. Absolutamente não confessei que o meu conhecimento de mulheres era tão incompleto quanto o dele. Mandei Kaptah arranjar uma liteira, pechinchei o preço com os carregadores enquanto Horemheb bebia mais vinho para cobrar coragem. Os homens nos transportaram para o templo de Bast.

Quando viram tochas e lâmpadas ardendo diante de determinada casa - para onde nos levavam - começaram a se queixar alto do preço ínfimo, até que Horemheb os chicoteou, ficando eles então calados conquanto furiosos.

Fui o primeiro a entrar e ninguém pareceu se surpreender com o nosso aparecimento. Criados solícitos derramaram água em nossas mãos. O aroma de iguarias quentes, de bálsamos e de flores se expandiam pelo pórtico afora. Escravos nos adornaram com guirlandas, e entramos majestosamente no salão.

Uma vez lá dentro não tive olhos senão para a mulher que veio ao nosso encontro. Vestia delgada vestimenta de linho real e seus membros fulguravam como torso de deusa. Tinha na cabeça uma cabeleira densa, de cor azul, e usava muitas jóias de coral. Suas sobrancelhas estavam pintadas de preto e as pálpebras eram circundadas por uma sombra esverdeada. Mais verde do que todas as cores verdes eram os seus olhos, lembrando a água do Nilo na força do verão. E foi como se meu coração mergulhasse neles.

Sim, pois se tratava de Nefernefernefer, aquela criatura que encontrei certa vez entre as colunas do grande templo de Ammon. Não me reconheceu, mas sorriu para Horemheb que ergueu o cabo do chicote, saudando.

Kefta, o jovem eretense, se achava lá, também; correu para Horemheb, abraçou-o, chamando-o de amigo.

Ninguém prestou atenção em mim, de forma que tive lazer para observar a irmã do meu coração. Não era tão jovem quanto me parecera antes e seus olhos não sorriam agora, lembrando frias pedras verdes. Mas se eles não sorriam, já a boca sorria pois aqueles estavam ocupados em prestar atenção na corrente de ouro que pendia do pescoço de Horemheb. Mas só em contemplá-la fiquei com os joelhos vacilantes.

Havia muito falatório e risadas. Jarras de vinho viradas pelo chão por entre flores esmagadas. Músicos sírios tangendo e soprando seus instrumentos de tal modo que era impossível se ouvir diálogos e conversas. Via-se logo que tinha havido muita distribuição de bebida, pois a um canto uma mulher se pos a vomitar. O criado que lhe aproximou um vaso já o fez com atraso; de modo que ela sujou a vestimenta e todos se puseram a rir.

Kefta, o cretense, abraçou-me também, untando-me de ungüento sem querer e chamando-me de amigo. Foi quando Nefernefernefer olhou para mim, ao ouvir meu nome e disse:

- Sinuhe?! Conheci certa vez um certo Sinuhe; também era estudante de medicina.

- Sou eu esse Sinuhe - expliquei-lhe fitando-a e tremendo.

- Não, não és ele. - E fez um gesto me desmentindo. - O Sinuhe que conheci era um mancebo com olhos tão claros como os de uma gazela... e tu és um indivíduo com feitio exato de homem feito. Há duas peles cobrindo tuas sobrancelhas e tua face não é lisa como era a dele.

Mostrei-lhe o anel com a pedra verde que eu usava no meu dedo; ela meneou a cabeça, achando que eu a trapaceava e disse:

- Acaso não estarei recebendo em minha casa um impostor que matou o verdadeiro Sinuhe e que se apossou do anel que lhe dei outrora? Não lhe terás subtraído também o nome? Oxalá não tenha morrido esse Sinuhe que tanto me agradava...

Ergueu as mãos num gesto de mágoa; então, amargurado, arranquei o anel do dedo e lho estendi, declarando:

- Fica outra vez com teu anel, então. Retiro-me. Não quero vexar-te por mais tempo. Retorquiu logo:

- Não vás embora - E pousando de leve a mão em cima de meu braço disse com a voz de antigamente:

- Não quero que vás embora!

E fiquei, não obstante saber que seu corpo me queimaria pior do que o fogo e que nunca mais eu poderia ser feliz sem ela. Criados nos serviram vinho. E jamais vinho algum foi mais saboroso na minha boca do que naquela ocasião.

A mulher que se sentira mal lavou a boca e recomeçou a beber vinho. Depois entreabriu o vestido manchado e o deixou cair. Removeu também a cabeleira e assim ficou totalmente nua. Deu em comprimir os seios com ambas as mãos, ordenando aos servos que enchessem tal vão com vinho. Anuíram e ela deixou beber quem muito bem quis. Percorria a sala, rindo alto; era jovem, bonita, libertina, e parando diante de Horemheb lhe ofereceu o vinho que conservava entre os seios. Ele inclinou a cabeça e bebeu. Quando endireitou a cabeça estava com o rosto manchado de vermelho escuro; fitou os olhos da mulher, agarrou-lhe a cabeça nua, ficou a beijá-la. Todos se puseram a rir e a mulher ria com todos, até que, se tomando de pejo, subitamente pediu outro vestido. Os criados a vestiram e ela recolocou a cabeleira. Então se instalou junto de Horemheb e não bebeu mais. Os músicos sírios continuavam a tocar. Eu sentia a febre de Tebas em meu sangue.

Sabia que nascera para assistir ao crepúsculo do mundo... que nada mais importava enquanto pudesse permanecer ao lado da irmã do meu coração, contemplando seus olhos verdes e seus lábios rubros.

Assim pois, foi através de Horemheb que tornei a encontrar a minha amada Nefernefernefer. Bem melhor teria sido que tal não sucedesse.

- Esta casa é tua? - perguntei-lhe enquanto estava sentado ao seu lado sentindo seu olhar verde sobre mim.

- Sim, esta é a minha casa. E estes são os meus convivas. Tenho-os comigo todas as noites pois não gosto de estar sozinha.

- E Metufer? - perguntei, porque desejava me inteirar de tudo, fosse qual fosse a mágoa que viesse a sofrer.

Ela ficou um tanto séria.

- Não sabias que Metufer morreu? Foi condenado por uso indébito do dinheiro que o faraó entregara ao pai dele para a construção de um templo. Sim, foi morto e o pai não é mais arquiteto-mor. Ignoravas tal caso?

Respondi, sorrindo:

- Se isso é verdade, estou quase acreditando que Ammon o castigou, pois escarnecia muito do deus.

E contei-lhe que vira naquele tempo Metufer e o sacerdote cuspirem na cara da estátua de Ammon para molhá-la e depois se ungirem com o ungüento sagrado do deus.

Ela sorriu; mas surpreendi em seus olhos um fulgor distante, esquisito. Até que disse:

- Por que foi que naquela ocasião não me procuraste? E nem depois, até hoje? Se tivesses tido empenho nisso me haverias de achar. Fizeste mal em não ter aparecido preferindo ir visitar outras mulheres levando no dedo o meu anel.

- Naquele tempo eu não passava de um garoto e senti medo...Mas em meus sonhos eras minha irmã, Nefernefernefer...E, podes rir de mim se quiseres... mas até agora nunca me deitei com uma mulher. Fiquei à espera de te reencontrar.

Por entre risadas ela fez um gesto de descrença.

- Pela certa estás mentindo. Vejo no fundo dos teus olhos uma mulher velha e feia... Acaso te diverte zombar de mim e mentir a tal ponto?

Tinha agora alegria nos olhos, como daquela vez longínqua e me pareceu tão jovem que meu coração crescia e pulsava dolorosamente enquanto eu a fitava. Redargüi com veemência:

- Palavra de honra que nunca toquei mulher nenhuma. Concordo que talvez não seja verdade que andei te esperando. Quero ser sincero. Passaram por mim muitas mulheres; moças e velhas, bonitas e vulgares, instruídas e rudes. A todas observei de igual modo, com olhos de médico. E nenhuma delas alvoroçou o meu coração. A razão disso, não sei dizer.

- Decerto, quando eras criança, caíste do alto de um carro de carga e deste com o crânio em cima do varal, ficando perdido na estrada; se disso resultou melancolia também te afeiçoou à solidão. .. - Riu alto, de mim, e me tocou com tamanha suavidade como mulher nenhuma até então me fizera.

Não foi preciso responder, porque ela própria sabia que sua suposição era fantástica e inventada. Retirou a mão depressa, sussurrando:

- Tratemos de beber, isso sim. Quero gozar ainda contigo, Sinuhe.

Ficamos bebendo vinho enquanto os escravos transportavam alguns dos convivas para as suas liteiras e Horemheb continuava abraçado à tal mulher chamando-a de sua irmã.

Vi-o tirar do pescoço a corrente de ouro e procurar colocá-la no pescoço da companheira de serão. Todavia ela não consentiu, dizendo, zangada:

- Sou uma mulher decente e não uma rameira!

Levantou-se e se afastou com modo ofendido; mas, chegando ao portal, acenou, secretamente e Horemheb a seguiu. E não vi mais nenhum dos dois, aquela noite. Os que ainda permaneceram continuaram a beber. Cambaleavam pelo pavimento tropeçando em bancos e tangendo cítara que os músicos lhes cediam. Abraçavam-se chamando-se mutuamente de irmão e amigo e depois caíam por entre exclamações como castrados e eunucos.

Eu estava embriagado; não por causa de vinho e sim pela proximidade de Nefernefernefer, pelo contato da sua mão. Finalmente ela fez um sinal e os criados começaram a extinguir as luzes, a transportar mesas e bancos e a juntar as guinadas machucadas. Disse-lhe então:

- Preciso ir-me.

Mas cada palavra pungia meu coração como sal em cima de ferida, pois temia perde-la, e todo e qualquer momento passado longe da sua companhia me parecia tempo desperdiçado.

- Para onde?! - perguntou ela, fingindo surpresa.

- Por aqui mesmo...Vou ficar de guarda esta noite nesta rua diante da tua casa. Depois irei oferecer tributos e sacrifícios em todos os templos de Tebas em ação de graças aos deuses por te haver reencontrado...Irei arrancar flores das árvores para despetalá-las pelo teu caminho quando saíres. E comprarei mirra para ungir o teu portal.

Ela sorriu e disse:

- Acho melhor não ires, porque aqui já há flores e mirra. E se saíres assim inflamado pelo vinho te perderás por aí com outras mulheres. Não permitirei.

Suas palavras me encheram de júbilo. Quis agarrá-la. Resistiu, declarando:

- Que é isso? Os criados podem ver... O fato de morar sozinha não significa que eu seja uma mulher à-toa.

Levou-me até ao jardim, que o luar banhava e que rescendia a mirto e acácia. Lá no lago as flores de lótus haviam fechado seus cálices por causa da noite, e vi que a beirada do lago era rodeada de lajes coloridas. Criados nos lavaram as mãos e trouxeram ganso assado e frutas imersas em mel. E Nefernefernefer disse:

- Come e distrai-te comigo, Sinuhe.

Mas minha garganta estava cerrada de desejo e eu não podia engolir. Olhando-me com ar zombeteiro, ela comia vorazmente. Cada vez que voltava o olhar para mim o luar se refletia em seus olhos. Quis prende-la em meus braços; afastou-me, dizendo:

- Não sabes por que motivo Bast, a deusa do amor, tem a configuração de um gato?

- Pouco me importo com deuses e gatos! - respondi, investindo para alcançá-la, com os olhos veiados de desejo.

Afastou minhas mãos.

- Dentro em breve me tocarás. Deixarei que palpes meus seios e meu ventre se isso te proporcionar sossego depois; mas antes quero que me ouças e aprendas por que é que a mulher é como um gato e por que motivo também se assemelha a um gato a paixão. Suas patas são macias mas escondem unhas que arranham, dilaceram e que entram sem dó nem piedade pelo coração adentro. Ah Deveras, a mulher é como um gato, pois um gato também se entretém em atormentar a sua presa e em torturá-la sem jamais se cansar de tal brinquedo.  Só depois que a criatura fica tolhida é que ele a devora e trata depois de procurar outra vítima. Estou te dizendo isto porque desejo ser sincera contigo. Longe estou de querer o teu mal. Não. Jamais quererei o teu mal - disse e repetiu, distraidamente, segurando a minha mão e a movendo na direção do peito, enquanto colocava a outra em cima do seu colo.

Estremeci; lágrimas irromperam dos meus olhos. Então ela tornou a me empurrar.

- Podes ir agora e não voltar nunca mais. Não te amofinarei. Mas se quiseres ficar não me censures depois pelo que possa acontecer.

Deu-me tempo para sair. Mas não fui embora. Então ela suspirou um pouco, como cansada do jogo e disse:

- Pois então, seja. Conceder-te-ei o que vieste buscar. Mas se bonzinho porque estou cansada e receio adormecer em teus braços.

Levou-me para o seu aposento, puxou-me para o seu leito de marfim e ébano. Em seguida, deixando cair as vestes me ofereceu o seu amplexo.

Foi como se todo o meu ser estivesse sendo queimado até virar cinzas ao contato do seu corpo.  Daí a pouco bocejou e disse:

- Estou com muito sono. Já agora acredito que nunca te deitaste com mulher nenhuma, pois te portaste muito desajeitadamente e não me causaste o mínimo prazer. Mas quando um mancebo toma em seus braços a primeira mulher lhe dá um inestimável tesouro. Por conseguinte não te pedirei nenhum outro presente. Agora, porém, vai embora; preciso dormir. Já obtiveste o que te fez vir me procurar.

Como tentasse abraçá-la de novo, ela se defendeu e me mandou sair. Voltei para casa com o corpo moído e em febre, sabendo que nunca mais poderia esquece-la.

No dia seguinte disse ao meu criado Kaptah para mandar embora todos os clientes e dizer-lhes que procurassem outros médicos. Mandei vir um barbeiro, depois me lavei, esfreguei no corpo óleos doces e cheirosos, vesti-me e mandei vir uma liteira, dizendo aos carregadores que fossem depressa. Desejava chegar logo à casa de Nefernefernefer sem sujar minhas vestes e meus pés com a poeira. Kaptah ficou a olhar para mim espantado e meneando a cabeça porque jamais eu deixara minha sala de trabalho no meio do dia e porque temia que se eu negligenciasse minha clínica os honorários escasseassem. Mas eu tinha uma idéia fixa e meu corpo parecia arder sob a ação do fogo - um fogo glorioso.

 Um servo me fez entrar e me conduziu ao aposento de Nefernefernefer. Ela estava se enfeitando diante de um espelho e me olhou com olhos indiferentes.

- Que desejas, Sinuhe. Não me aborreças.

- Sabes muito bem que é que eu desejo - respondi, procurando cingí-la entre meus braços e recordando o ardor da noite passada. Mas fui empurrado bruscamente.

- És malicioso, ou estúpido? Então isso é hora de aparecer? Um mercador chegou de Sido com uma jóia que adornou outrora a testa de uma rainha em sua tumba. E esta tarde determinada pessoa ficou de me traze-la de presente. Desde muito anseio por uma gema que ninguém possua. Portanto tenho que me embelezar e ungir bem o meu corpo.

Despiu-se sem nenhum pejo e se estirou na cama para que um escravo lhe esfregasse ungüento nos membros. Meu coração ficou suspenso na minha garganta e minhas mãos começaram a suar, ante a visão de tamanha beleza.

- Que é que estás esperando, Sinuhe? - perguntou-me depois que o escravo se retirou, deixando-se ficar languidamente estirada em cima da cama.

- Por que não vais embora? Preciso vestir-me.

Uma espécie de vertigem se apoderou de mim; investi. Ela todavia se esgueirou com tal perícia que não consegui me apoderar do seu corpo e permaneci afinal ali, parado, derramando lágrimas de hirto desejo. Até que consegui dizer:

- Se pudesse te comprar tal jóia te compraria; bem sabes. Mas não consinto que mais ninguém te toque. Prefiro morrer.

- Ah, é? - disse ela com os olhos quase fechados. - Proíbes que mais alguém me toque? Se então eu desistir de tudo o mais, Sinuhe, se comer, beber e brincar contigo, já que nunca se sabe o dia de amanhã, que é que me darás?

Esticou-se na cama a ponto do seu ventre ficar em baixo-relevo. Não havia cabelo nele, nem em sua cabeça ou em qualquer parte do corpo.

- Não tenho, em verdade, nada para te dar. - E olhei em torno de mim ao dizer tais palavras. Vi o chão de lápis-lázuli incrustado com turquesas, vi a quantidade de taças de ouro existentes no quarto. - Na verdade não tenho nada para te dar.

Meus joelhos fletiram. Ia sair, quando ela me deteve.

- Quanto te lamento, Sinuhe! - disse mansamente, espreguiçando-se ainda mais. - Já me concedeste o que possuías de valor, conquanto fosse um valor muito relativo, no meu entender. Mas tens uma casa, roupas e todos os instrumentos de arsenal médico. Não és assim tão pobre, acho eu.

Tremendo da cabeça aos pés, retruquei:

- Tudo isso é teu, Nefernefernefer, caso queiras. Vale pouco, mas a casa está montada para consultório médico. Um estudante da Casa da Vida daria um bom preço por ela se os pais tivessem meios.

- Achas?

 Voltou-se de costas para mim e enquanto se contemplava no espelho passava os dedos esguios por sobre os arcos das sobrancelhas negras.

- Já que queres... Procura então um escriba para fazer o inventário de tudo que possuis e transferir para o meu nome. Sim, pois embora eu viva sozinha não sou absolutamente uma mulher desprezível e devo me precaver por causa do futuro quando talvez me venhas a jogar na rua, Sinuhe.

Eu olhava firmemente para o seu corpo nu. Minha língua se tornava áspera em minha boca e meu coração batia tão violentamente que me voltei logo e saí.

Encontrei um escriba da lei que imediatamente organizou os necessários papéis e os remeteu para serem registrados nos arquivos reais. Quando voltei, Nefernefernefer estava vestida com linho real e enfiara uma cabeleira dourada. O pescoço, os punhos e os tornozelos se achavam adornados com as mais esplendidas jóias. Na porta a aguardava uma liteira magnífica.

Entregando-lhe o documento do escriba, disse:

- Tudo quanto eu possuía é agora teu, Nefernefernefer. Até mesmo as roupas que visto. Comamos, bebamos e gozemos o dia inteiro, pois ninguém sabe o que será do dia de amanhã.

Segurou o papel, descuidadamente, colocou-o dentro de um cofre de ébano e disse:

- Custa-me ter que te dizer, Sinuhe, mas parece que está a chegar o meu fluxo mensal, de modo que não posso estar contigo, conforme queria. É melhor ires embora até que eu tenha concluído a minha purificação adequada, pois minha cabeça me pesa e meu corpo me dói. Volta outro dia e satisfarei teu desejo.

Encarei-a com a morte no peito e não consegui falar. Ela bateu com o pé no chão, violentamente.

- Põe-te daqui para fora! Estou com pressa.

Tentei, ao despedir-me, tocar-lhe o rosto. Censurou-me:

- Não desmanches a pintura do meu rosto.

Fui para casa e pus meus pertences em ordem, para que tudo estivesse arrumado quando chegasse o novo proprietário. Meu escravo caolho me seguia, passo a passo, meneando a cabeça, até que a sua presença me enfureceu. Dei um berro:

- Deixa de andar em cima dos meus calcanhares! Já não sou mais teu amo. Agora pertences a outro. Trata de servi-lo obedientemente quando ele chegar, e não o furtes tanto como fazias comigo pois seu bastão pode ser mais rijo do que o meu.

Ele então se arremessou ao chão, erguendo as mãos acima da cabeça e chorando amargamente, tomado de desespero.

- Não me mande embora, meu senhor, pois meu velho coração se afeiçoou aqui e se estraçalhará se me banir. Sempre lhe fui fiel, apesar do meu senhor ser moço e simples. Quanto roubei do meu senhor o fiz tendo em vista a sua vantagem mesmo. Quantas vezes não tenho percorrido as ruas sob o calor do meio-dia proferindo o seu nome e os seus méritos, apesar dos criados dos outros médicos me esboroarem e jogarem esterco em cima de mim?

Senti meu coração como imerso em sal e a boca me amargava enquanto olhava para o pobre escravo. Comovi-me e agarrando-o pelos ombros, disse:

- Levanta-te, Kaptah! Não adianta todo esse berreiro. Não é por não gostar de ti que te passo a outrem, pois teus serviços me tem satisfeito, não obstante às vezes teres dado prova de mau gênio batendo com as portas e fazendo barulho com os pratos quando te enfezas por qualquer coisa. Teus furtos não me irritaram nunca, pois se trata do direito de um escravo. Fui obrigado contra a minha vontade a te traspassar a um terceiro, pois eu não tinha mais nada a dar. Perdi a minha casa também e tudo quanto possuía, a tal ponto que apenas as roupas que visto me pertencem. Não te lamentes em vão.

Kaptah arrancava os cabelos e grunhia.

- Amaldiçoado seja este dia!

Ficou a refletir pesadamente durante algum tempo e depois continuou:

- O patrão é um grande médico, a despeito da sua pouca idade e a verdade é que tem o mundo aos seus pés. Acho, por conseguinte, que seria melhor juntarmos todas estas coisas que valem muitíssimo e assim que a noite cair fugirmos depressa. Podemos rumar para as Terras Vermelhas, onde ninguém o conhece, ou para as ilhas do alto mar onde o vinho é cintilante e as mulheres são alegres. Para a terra de Mitani também, ou para a Babilônia onde os rios correm em direção diferente do Nilo. Lá a proficiência dos médicos egípcios é muito considerada, o meu senhor pode ficar rico e assim serei servo de um amo respeitável. Apresse-se, patrão, juntemos todos os seus pertences antes que caia a noite. - E me puxava pela manga.

- Kaptah, poupa-me palavras tolas. Meu coração está sofrendo mortalmente e o meu corpo já não é mais o mesmo. Estou ligado por grilhões mais fortes do que cadeias de ferro, embora não os vejas. Não posso fugir. Ausentar-me de Tebas equivaleria a me atirar numa fornalha ardente.

Meu escravo ficou sentado no chão, porque seus pés estavam com borbulhas dolorosas que eu tratava de vez em quando sempre que dispunha de tempo. Lamentava-se:

- Não resta dúvida que Ammon os abandonou, o que aliás não é de espantar já que o meu senhor raramente lhe oferece sacrifícios. Ainda assim ofereci ao templo, de boa vontade, um quinto do que tenho roubado do meu senhor, como sinal de gratidão por ter um amo tão jovem e tão simples.E agora ele também me abandonou. Está bem... Está bem... Temos que mudar de deuses e oferecer sacrifícios quanto antes a algum outro que possa talvez afastar para longe de nós o mal e nos proporcionar algum bem outra vez.

- Para de uma vez com essas tolices. Esqueces-te de que não temos nada para oferecer em sacrifício já que tudo agora pertence a outrem?

-A um homem, ou a uma mulher?

- A uma mulher - respondi, vendo que não adiantava nada esconder.

Ao ouvir isso ele rompeu em novas lamentações.

- Melhor me fora não haver nascido nunca! Por que foi que minha mãe não me estrangulou com o cordão umbilical? Sim, pois não há fado mais amargo do que ser escravo de uma mulher sem coração. Pois como pode ter coração a mulher que lhe fez tudo isso?

- Não se trata absolutamente de mulher sem coração! - repreendi-o, pois de tal forma é idiota o homem que não tendo com quem se abrir em confidencias o faz com um escravo. Foi o que se deu comigo a propósito de Nefernefernefer. - Nua na cama, ela é mais bela do que a lua. Seu corpo refulge com ungüentos caros, e os seus olhos são verdes como a água do Nilo na força do verão. Feliz és tu, Kaptah, já que te será permitido viver perto dela e respirar o mesmo ar.

Kaptah fez um berreiro maior.

- Ela acabará me vendendo como carregador ou cavouqueiro. Meus pulmões arrebentarão. Espirrará sangue de debaixo das minhas unhas e perecerei chafurdado na lama como um jumento atolado.

Intimamente eu sabia que tudo isso podia vir a ser verdade porque na casa de Nefernefernefer dificilmente haveria pão e cômodo para um coitado como ele. Lágrimas começaram a cair dos meus olhos e eu não sabia se chorava por ele ou por mim.

Ao ver isso, Kaptah ficou calado imediatamente e se pos a me fitar muito perplexo; mas inclinei a cabeça em cima do braço e não me importei mais que meu escravo me visse em prantos. Tocando minha cabeça com sua mão enorme, disse solicitamente:

- Tudo isso foi por culpa minha. Eu devia ter tomado conta direito do meu amo. Mas nem me passou pela cabeça que ele fosse tão cândido e tão puro como um tecido antes de ser lavado pela primeira vez. Só isso pode explicar tudo. Admirava-me de fato que o patrãozinho nunca me mandasse buscar uma rapariga ao chegar do botequim de noite. Todas as mulheres que mandei que o procurassem - só para lhe dar prazer - se retiraram sempre aborrecidas chamando-me de rato e corvo. E muitas delas eram bem jovens e viáveis. Melhor para mim, que não tinha rabalheira. Ficava contente, então, como um cretino, certo de que o patrãozinho jamais traria para dentro de casa uma mulher que me esbordoasse a cabeça ou que me atirasse água quente nos pés sempre que houvesse brigas entre os dois. Idiota, cretino, que eu fui! O primeiro tição logo incendeia a palhoça...

Falou ainda durante muito mais tempo e o som de sua voz era como o zumbir de moscas em torno das minhas orelhas. Depois que se calou foi preparar comida, trouxe água para lavar minhas mãos. Mas não comi nada porque meu corpo estava em fogo; tão logo desceu a noite um pensamento único se apossou da minha mente... NEFERNEFERNEFER

De manhã cedo fui à casa de Nefernefernefer; ela ainda estava dormindo. Quando despertei os criados estes blasfemaram e me jogaram água. Sentei-me então no patamar feito um mendigo até ouvir movimento e vozes dentro da casa, quando então ensaiei entrar outra vez.

Nefernefernefer ainda estava estirada na cama. Seu rosto me pareceu. pequeno e branco e seus olhos verdes estavam escuros decerto por causa do vinho que tomara de noite.

- Mas que coisa!... Que é que queres?   

- Comer, beber e gozar contigo, conforme prometeste...

Isso foi ontem. Hoje é um outro dia diferente. Uma escrava tirou de Nefer a roupa enxovalhada e lhe untou e esfregou os membros. Nefer olhava-se ao espelho, pintava o rosto, ajeitava a cabeleira; por fim, pegando no seu novo adorno de pérolas e pedras preciosas montadas em ouro velho, o colocou na fronte, comentando:

- É bonito... Valeu o preço, embora eu esteja exausta como se houvesse lutado a noite inteira.

- Mentiste-me, pois, ontem dizendo que não podias.- disse-lhe eu, apesar de no íntimo não haver acreditado na desculpa.

- Enganei-me... Devia ter ficado "doente" ontem. Era o dia. Agora receio que me hajas dado um filho, Sinuhe, pois fui dócil em teus braços e foste muito violento. - E sorriu para o escárnio ficar mais completo.

- Com que então essa tua jóia provém de uma tumba real da Síria?... Não foi o que me disseste ontem?

- Ah! Foi encontrada debaixo do travesseiro de um mercador sírio... Mas não te vexes por causa disso. Era um homem barrigudo, gordo como um porco e cheirava a cebola. Tenho aqui o que tanto desejava e não penso absolutamente em reve-lo.

Retirou o ornamento e a cabeleira e os depôs sem o menor cuidado no chão, junto da cama. Seu crânio nu era macio e vistoso, posto assim sob aquelas mãos entrelaçadas enquanto o corpo todo se espreguiçava.

- Sinto-me exausta, Sinuhe. E abusas do meu cansaço para me devorares com os olhos agora que estou sem forças para não consentir nessa tua curiosidade. Lembra-te que embora eu viva sozinha não sou absolutamente uma mulher à-toa.

- Sabes muito bem que não tenho mais nada para te dar. Já é teu tudo quanto eu possuía.

Abaixei a cabeça para a beirada da cama e funguei aspirando o perfume do bálsamo e do corpo daquela mulher que estendeu a mão para acariciar meus cabelos e logo a retirou depressa, rindo e meneando a cabeça.

- Que falsos que são os homens! Estás mentindo, Sinuhe. Apesar disso não posso dominar minha atração por ti... Sou fraca.

Mas quando a quis tomar em meus braços ela me empurrou e se sentou, dizendo com tom de ressentimento acerbo:

- Ainda assim, por mais fraca e sozinha que eu seja, não quero histórias com trapaceiros e espertalhões. Nunca me disseste que teu pai Senmut tem uma casa no bairro pobre perto do porto. A casa vale pouco, mas o terreno vale bem assim ali tão perto do cais, e a mobília pode ser arrematada no mercado. Comerei, beberei e gozarei contigo hoje só se me deres essa tua propriedade... pois não se sabe nunca o que será o dia de amanhã e urge que eu guarde a minha reputação.

- Tal propriedade não é minha e sim de meu pai - respondi, apaspalhado. - Como é que me pedes o que não te posso dar, Nefernefernefer?

Ela entortou um pouco a cabeça, esquadrinhando-me com aqueles olhos verdes.

- A propriedade de teu pai é tua herança legal, Sinuhe, conforme estás fartos de saber. Além do mais, nunca me disseste que ele está cego e que te encarregou da administração dos bens que forma a poderes dispor de tudo como se fosse teu.

Lá isso era verdade, pois quando a vista de meu pai escureceu ele me entregou o seu sinete e me pediu que tomasse conta da sua propriedade já que não podia ver mais para assinar o nome. Kipa e ele muitas vezes haviam dito que a casa podia alcançar um bom preço, preço esse que os habilitaria a adquirir uma pequenina herdade fora da cidade onde poderiam viver até chegar a hora de encetar a viagem para a imortalidade.

Nem pude falar tão atônito fiquei ante o horroroso pensamento de enganar meu pai e minha mãe que confiavam em mim. Mas Nefernefernefer cerrou de leve as pálpebras e murmurou:

- Segura minha cabeça entre tuas mãos... Toca os meus seios com os teus lábios... Sim, há não sei o que em ti que me enlanguece, Sinuhe, a ponto de me fazer esquecer minhas próprias vantagens, sempre que se trata de ti. Passarei o dia inteiro contigo, entregues ambos ao prazer, se transferires a propriedade de teu pai para meu nome, mesmo que ela valha pouco.

Tomei sua cabeça entre minhas mãos; era macia e pequenina e me encheu de febre inenarrável. E disse com uma voz que raspava meus ouvidos:

- Pois seja.

E quando quis me aproximar, ela declarou:

- Entrarás no reino que já é teu, mas primeiro vai procurar um escriba da lei a fim de que ele prepare os documentos necessários, pois não confio nas promessas dos homens e devo zelar pela minha reputação.

Deixei-a e fui procurar o escriba; cada passo aumentava o meu tormento. Pedi ao homenzinho que fizesse tudo o mais depressa possível. E uma vez tudo organizado, cravei o sinete de meu pai em cima do papel e assinei com o meu nome.

Mas quando voltei os criados disseram que Nefernefernefer estava dormindo e tive que esperar até tarde da noite que ela acordasse. Por fim me recebeu, agarrou no documento do escriba e o enfiou despreocupadamente no cofre preto.

- És teimoso, Sinuhe, mas sou uma mulher de honra e sempre cumpri minhas promessas. Toma-me, já que para isto vieste.

Estendeu-se na cama e me ofereceu seu amplexo sem sentir o menor prazer. Virou a cabeça de lado para se ver no espelho, bocejou tapando a boca com a mão, de modo que a delícia que eu pretendia virou cinza.

Quando me levantei da cama, ela disse:

- Obtiveste o que desejavas, Sinuhe; agora vai embora porque estou cansada. Volta outro dia. A verdade é que te concedi o que desejavas.

Cheguei em casa todo alquebrado como a casca de um ovo jogado longe. Minha vontade era ficar imóvel num quarto escuro, esconder a cabeça entre as mãos e procurar alívio no pranto. Mas encontrei no pórtico um estrangeiro sentado usando uma cabeleira crespa e uma vestimenta síria de muitas cores.

Saudou-me majestosamente e disse que desejava consultar-me já que eu era médico. Disse-lhe:

- Não atendo mais a clientes, porque esta casa já não é minha.

- Tenho os pés inchados - disse ele numa mistura de sírio com outra língua. - O seu inteligente escravo Kaptah gabou muito a sua perícia em tratar tais flictenas. Livre-me deste tormento e não se arrependerá.

Teimou tanto que acabei por introduzi-lo na minha sala e chamei Kaptah querendo que este me trouxesse água quente para lavar as mãos. Não houve resposta. Como tornasse a examinar os pés do sírio reconheci pelas articulações nodosas e esparavonadas que se tratava do próprio Kaptah. Meu criado arrancou a cabeleira e rompeu em estrepitosa gargalhada.

- Que brincadeira é essa? - exclamei; e lhe dei umas bordoadas até a gargalhada se transformar em uivos. Depois que joguei para um lado o bastão, ele disse:

- Já que não sou mais o seu escravo e sim o escravo de outra pessoa, posso sem perigo lhe dizer que penso fugir. Assim pois fiz esta experiência para verificar se alguém me reconheceria nestes trajes.

Referi-lhes as punições em que incorriam os escravos fujões fiz-lhe ver que mais cedo ou mais tarde seria recapturado, já que sua vida seria cheia de percalços. Contudo, ele replicou:

- A noite passada bebi muita cerveja e tive um sonho. O patrãozinho jazia dentro de uma fornalha. Aproximei-me, porém, com palavras severas e o erguendo pela pele da nuca o mergulhei em água corrente que passava ao lado. Depois disso estive no mercado e perguntei a um decifrador de sonho que era que isso significava. Ele respondeu que o meu amo corria perigo e que tinha diante de si uma longa viagem e que eu, devido ao meu arrojo, passaria por muitos golpes, isto é, pancadaria. Tal sonho deu certo, pois basta uma pessoa olhar para seu rosto, patrãozinho, para ver que o meu senhor está correndo grave perigo, quanto a golpes, pancadas, já estou com o lombo a arder...Logo, o final do sonho também tem que dar certo. Eis por que motivo me disfarcei num sírio; estou resolvido a acompanhá-lo nessa viagem.

- Tua lealdade me comove, Kaptah - disse eu, e procurei um tom zombeteiro. - Pode bem ser que se abra diante de mim uma longa viagem. Mas se tal se der será para a Casa dos mortos onde dificilmente me seguirás.

- Ninguém sabe o dia de amanhã - foi a resposta esperta de Kaptah.

- O patrãozinho é novo e tenro como um bezerro informe e não o deixarei seguir sozinho a complicada viagem para a Casa dos Mortos e para a Terra do Poente. Devo mas é ir com o patrãozinho a fim de ajudá-lo com a minha experiência, pois meu coração gosta do meu amo apesar de toda a loucura que este tem feito. Conquanto seja provável que eu tenha gerado muitos filhos nos meus bons tempos, todavia nunca cheguei a conhecer nenhum; de maneira que tenho tendência a considerá-lo como filho. Não quero com isso ofende-lo; estou procurando apenas expressar a afeição que lhe dedico.

Isso era levar a insolência muito longe, mas não tive coragem de esbordoá-lo; de mais a mais ele já não era meu escravo. Fechei-me no meu quarto, cobri a cabeça e dormi como uma pedra até a manhã seguinte, pois não há narcótico que se compare à vergonha e ao remorso quando estes são profundos. Não obstante isso, logo que acordei, a primeira coisa de que me lembrei foi o olhar de Nefernefernefer. Sim, os seus olhos e o seu corpo. Tinha a impressão de estar segurando sua cabeça macia em minhas mãos e sentir o seu peito de encontro ao meu. Tomei banho, vesti-me, cuidei do rosto e fui para a casa dela.

Nefernefernefer recebeu-me no jardim junto ao seu lago de flores de lótus. Seus olhos estavam claros, cinzentos e eram mais verdes do que a água do Nilo. Assim que me viu exclamou:

- Oh Sinuhe! Voltaste... Logo não sou ainda assim tão velha e feia. Que queres?

Olhei-a como um esfomeado olha para um pão. Daí a pouco ela entortou a cabeça, aborrecida.

- Sinuhe, Sinuhe!...Outra vez? Moro sozinha, não nego, mas não sou absolutamente uma mulher à-toa. Devo zelar pela minha reputação.

- Ontem transferi para teu nome todos os bens de meu pai; agora ele é um homem pobre, apesar de toda a sua vida ter sido um médico respeitável. E como está cego terá na velhice que mendigar pão ao passo que minha mãe será obrigada a lavar roupa para fora.

- Ontem foi ontem e hoje é hoje. - Cerrou quase os olhos. - Mas não sou injusta. Podes sentar aqui a meu lado e segurar a minha mão. Sinto-me feliz hoje e quero pelo menos que comparticipes deste meu estado de coração, se não de outros prazeres mais.

Sorriu de modo equívoco e acariciou de leve o ventre, enquanto ia dizendo:

- Não me perguntas por que motivo o meu coração está alegre, hoje; mas vou dizer. Cumpre que saibas que um figurão distintíssimo do Baixo Reino chegou a esta cidade trazendo consigo uma taça de ouro de aproximadamente cem debens de peso e onde estão gravados os desenhos mais belos e divertidos. É um homem velho, evidentemente, e tão magro que suas canelas me irritam e magoam. Creio, contudo que dentro de horas essa taça adornará a minha casa. Emitiu um profundo suspiro fingido ao ver que eu não respondia, e ficou a contemplar firmemente, mas com modo sonhador, os lótus e as demais flores do jardim. Depois, deixando cair a roupa, entrou no lago. Sua cabeça erguia-se da água junto a uma flor de lótus, e era mais bela do que todos os lótus. Boiando diante de mim com as mãos atrás da cabeça, disse:

- Estás calado, hoje, Sinuhe! Será que por acaso te magoei sem querer? Desculpar-me-ei de bom grado se puder.

Involuntàriamente respondi:

- Sabes muito bem que é que desejo Nefernefernefer.

- Estás com o rosto enrubescido. Chego a ver o sangue pulsar em tuas temporãs. Não seria melhor que tirasses a roupa e entrasses para o lago? Aqui junto de mim poderias te refrescar. O dia está tão quente! Ninguém nos pode ver. Não hesites.

Despi-me e entrei para o lago. Meu corpo tocava no dela; mas quando a quis agarrar se evadiu rindo e jogando água na minha cara.

- Sei e compreendo o que queres, Sinuhe, embora tenha pejo em te olhar. Mas antes deves me dar um presente porque não sou uma mulher desprezível.

Cheio de raiva, exclamei:

- Estás louca? Sabes muito bem que me extorquiste tudo! Estou coberto de vergonha e não ousarei mais olhar para meus pais. Mas pelo menos ainda sou médico e meu nome está registrado no Livro da Vida. Talvez ainda venha a ganhar o suficiente para te dar um presente consentâneo contigo. Tem piedade de mim agora, pois mesmo aqui dentro d'água estou ardendo em fogo e mordo a mão até sair sangue só porque olho e te vejo.

Ela se estendeu na água com os seios emergindo da superfície como duas flores. Olhou-me por entre os cílios pintados de verde e disse:

- Não te ocorre lembrança de nada que me possas dar? É que estou fraquejando, Sinuhe; perturba-me ver-te nu aqui no meu lago. És desajeitado, não tens experiência, mas acho que dia virá em que te ensinarei muita coisa que ainda estás longe de conhecer... Sei de uns estratagemas que apuram o prazer de um homem... E o de uma mulher, também. Há que considerar isso, Sinuhe!

Quando irrompi por cima dela, saiu do lago e parando atrás de uma árvore, sacudiu a água dos braços.

- Sou uma mulher fraca e os homens são falsos... Tu também, Sinuhe! Sinto o coração pesado ao pensar nisso e estou a ponto de chorar... Sim, pois quem não vê que estás farto de mim?! Do contrário não me esconderias que teus pais possuem uma tumba instalada com toda a perfeição na Cidade dos Mortos. Uma tumba para quando morrerem. Pagaram no templo a soma necessária para o embalsamamento de seus corpos contra a corrupção e quanto for necessário na jornada para a Terra do Poente.

Ao ouvir tais palavras dei golpes no peito até ensangüentá-lo.

- Queres então que roube meus pais até com referencia à eternidade? Que deixe seus corpos se desfazerem em nada como os corpos dos mendigos e dos escravos? Ou como os corpos dos que são arremessados ao rio por causa de seus crimes? Não podes exigir de mim uma tal coisa!

Lágrimas rolavam por meu rosto abaixo. E conquanto gemesse tomado de angústia, fui para junto dela. Apertou a sua nudez de encontro a mim, dizendo:

- Dá-me a tumba de teus pais e te direi baixinho ao ouvido: "Meu irmão!" e me transformarei num fogo de delícia e te ensinarei mil coisas desconhecidas que te ofuscarão de prazer! Que podia eu fazer senão chorar?

- Pois seja! E que teu nome fique amaldiçoado por toda a eternidade. A verdade é que não sei te opor resistência, tamanho é o sortilégio que exerces sobre mim.

- Não me fales de magias, que isso me ofende. Como estás zonzo e fora de ti vou mandar um criado buscar o escriba enquanto ficamos comendo e bebendo para alegrar nossos corações. Assim, quando os papéis estiverem em ordem, estaremos aptos a transmitir mútuas delícias.

E, dando uma risada alegre correu para dentro de casa.Vesti-me e segui-a. Escravos derramaram água nas minhas mãos e as enxugaram, efetuando mesuras quase rituais diante de mim. Mas por detrás faziam caretas e zombavam; tive que fingir que acreditava que seus risos fanhosos fossem ruído de moscas zumbindo.

Assim que Nefernefernefer reapareceu eles se calaram; comemos e bebemos juntos. Havia quatro qualidades de carne e doze espécies de pratos de massas. Bebemos vinhos misturados, coisa que logo sobe à cabeça. O escriba da lei chegou, escreveu o termo necessário. Transferi a Nefernefernefer a tumba de meus pais na Cidade dos Mortos com todas as suas instalações, bem como o depósito feito no templo, defraudando-os da imortalidade e da esperança de continuação de viagem para a Terra do Poente.

Carimbei com o sinete de meu pai, assinei meu nome e o escriba levou os documentos tratando de ir despachá-los aquele dia mesmo nos arquivos reais para que assim se tornassem válidos. Voltando, entregou o traslado a Nefernefernefer; ela enfiou o papel dentro do cofre preto e pagou o trabalho do funcionário. Depois que este saiu eu disse:

- Doravante estou amaldiçoado e desonrado perante os deuses e os homens... Qual o alto preço que me pagarás isso?...Prova-me agora que não foi alto o preço que isso me custará.

Ela sorriu.

- Bebe vinho, meu irmão, para que teu coração se alegre.

Quando a quis agarrar se evadiu e encheu a minha taça de vinho, entornando sobre ela uma jarra. Daí a pouco olhou a direção do sol e disse:

- O dia já está acabando. Não tardará a anoitecer. Não fazes menção de ir embora?...

- Bem sabes a razão pela qual permaneço!

- E contudo sabes qual poço é mais fundo e qual fosso é precipício, Sinuhe. Estou com pressa. Tenho que me vestir e pintar o rosto, pois uma taça de ouro se acha à minha espera para enfeitar a minha casa, amanhã.

Quis agarrá-la. Desvencilhou-se com uma risada estridente e chamou alto os criados que instantaneamente acudiram ao seu apelo.

- Como foi que este mendigo insuportável entrou na minha casa? Jogai-o na rua já. Não deixeis nunca mais que transponha as minhas portas! Caso resista, esbordoai-o.

Os criados atiraram-me na rua, aproveitando eu estar perplexo, bêbado e furioso. Irromperam de novo e me esbordoaram quando comecei a bater na porta de fora que estava trancada. Nisto começou a juntar gente em volta por causa do escarcéu; então os criados declararam:

- Este bêbado insultou nossa patroa que mora aqui nesta casa e que não é nenhuma mulher desprezível.

Bateram-me até eu ficar desacordado e deixaram-me estendido na rua onde transeuntes cuspiam em mim e cachorros urinavam em cima da minha roupa. Quando voltei a mim, nem vontade tive de me levantar; deixei-me ficar ali, imóvel, até de manhã. A escuridão me escondeu, e eu sentia que jamais teria vontade de mostrar minha cara novamente. O príncipe dera-me o nome de "O Que Está Sozinho" e, sem dúvida, naquela noite, eu era o mortal mais desvalido do mundo. Mas ao clarear o dia, quando começou a haver movimento de gente pelas ruas e os comerciantes principiaram a expor suas mercadorias nas montras e balcões, e comecei a ouvir o chiar dos carros de bois, me levantei e deixei a cidade indo me esconder entre caniços durante três dias e três noites, sem comer nem beber.

Meu coração e meu corpo eram uma ferida medonha. Se alguém se dirigisse a mim então eu soltaria brados, pois não podia responder pela minha razão.

No terceiro dia lavei as mãos e os pés, esfreguei o sangue que havia nas minhas roupas, lavando-as bem e pondo-as a secar. Já bem tarde me vesti e rumei para a minha casa. Mas esta já não era minha, e na porta pendia a insígnia de um outro médico. Chamei Kaptah e este veio correndo, soluçando de alegria; e arremessou os braços rodeando os meus joelhos.

- Patrão, pois para mim ainda é meu amo, seja lá quem me de ordens... chegou aqui um moço que se tem na conta de médico importante. Experimentou vestir sua roupa, rindo muito. A mãe dele já está lá dentro na cozinha. Não faz muito jogou água quente nos meus pés e me chamou de rato e de esterco. Mas os clientes do patrãozinho perguntaram muito onde estava...Estão dizendo que a mão do outro médico não é tão leve quanto a sua e que ele não adivinha as doenças como o patrãozinho.

Continuou a tartamudear coisas assim e o seu olho único encoscorado me encarava com uma expressão de horror, até que lhe disse:

- Fala, assim, vai falando, Kaptah. Conta-me tudo. Meu coração aqui dentro do meu peito virou pedra e já é incapaz de sentir mais dor.

Então, levantando os braços para expressar sua mágoa infinita, ele declarou:

- Eu daria até mesmo este olho que me sobrou para poupar desgosto ao meu patrãozinho. Mas ruim é o dia e foi providencial que o patrãozinho aparecesse...Seus pais morreram!

- Meu pai Senmut e minha mãe Kipa?!... - disse eu erguendo as mãos como é costume em tais lances. E senti meu coração pulsar furiosamente em meu peito.

- Esta manhã os meirinhos arrombaram a porta deles, pois ontem os haviam notificado da evicção. Mas os encontraram estirados na cama, inertes. Portanto ainda hoje o meu senhor os deve levar para a Casa dos Mortos pois amanhã a casa vai começar a ser demolida por ordem do novo dono.

- Meus pais souberam o que aconteceu? - perguntei; e não tive coragem de olhar para a cara do meu ex-escravo.

- Seu pai Senmut veio procurá-lo; trazia-o pelo braço sua mãe Kipa, pois ele não enxerga o caminho. Velhinhos e trôpegos, tremiam, enquanto andavam. Mas eu não sabia onde o patrãozinho estava. Seu pai então disse que fora melhor assim e me contou como os meirinhos o tinham posto para fora da casa e carimbado seus ombros e todos os bens do casal, significando assim que ele e a mulher não possuíam mais nada além dos trapos que vestiam. Como perguntassem a razão de tudo isso os beleguins riram e disseram que um tal Sinuhe vendera a casa, os bens e a tumba dos pais a fim de dar ouro a uma mulher perdida. Depois de hesitar bastante tempo o pai do patrãozinho me pediu uma moeda de cobre, pois precisava ditar uma carta para o patrãozinho e tinha assim que pagar esse trabalho a qualquer escriba. Mas acontece que já estava aqui nesta casa o novo dono e exatamente nessa hora apareceu a mãe de tal homem e me esbordoou porque eu estava perdendo meu tempo com um mendigo. Tenho certeza de que o patrãozinho vai acreditar que eu queria dar a moeda de cobre a seu pai, pois embora eu não tivesse tido ensejo de roubar nada do meu povo patrão, ainda tinha em meu poder cobre e prata do que furtei do patrãozinho e dos anteriores amos. Quando voltei à porta da rua, seus pais já se tinham ido. A mãe do meu novo patrão me proibiu de correr atrás deles e me fechou no fosso de assar, durante a noite, para evitar que eu fugisse.

- Meu pai deixou algum recado?

- Não deixou recado nenhum, patrão.

Conquanto meu coração fosse uma pedra dentro de meu peito, meus pensamentos eram serenos como pássaros no ar macio. Pus-me a refletir um pouco e disse a Kaptah:

- Dá-me todo cobre e prata que ainda tens. Depressa! Natural é que Ammon ou algum outro deus te recompense, já que eu não posso. Preciso transportar meus pais para a Casa da Morte e não disponho de meio nenhum para pagar o embalsamamento de seus corpos.

Kaptah recomeçou a chorar e a se lamentar, mas acabou se dirigindo a um canto do jardinzinho, olhando para todos os lados conforme faz um cão que enterrou um osso. Levantando uma pedra tirou um trapo onde estava amarrado todo o seu cobre e toda a sua prata; menos de dois debens, que era quanto juntara em toda a sua existência. Entregou-me tudo, verdade é que chorando muito. Abençoado seja ele, por isso, por toda a eternidade.

 Fui depressa para a casa de meu pai onde encontrei as portas arrombadas e rótulos e carimbos em cima de tudo quanto havia lá dentro. Os vizinhos se tinham aglomerado no jardim. Ergueram as mãos e se afastaram de mim, horrorizados, em silencio total. No quarto dos fundos jaziam sobre a cama Senmut e Kipa, com os semblantes com a mesma cor de quando eram vivos. E no chão fumegava ainda um braseiro cuja fumaça os havia sufocado. Para tanto os dois tinham fechado hermeticamente janelas e portas. Costurei a mortalha em torno dos corpos de ambos, apesar do selo existente até mesmo na mortalha, e fui buscar um condutor de burro que concordou em me deixar transportar os corpos.

Com a sua ajuda os icei para o lombo do animal e os levei para a Casa da Morte. Mas na Casa da Morte não os quiseram aceitar porque eu não dispunha de prata suficiente nem mesmo para pagar o embalsamamento mais barato.  Disse então aos lavadores de cadáveres:

- Sou Sinuhe, filho de Senmut e meu nome está registrado no Livro da Vida, muito embora um cruel destino me haja privado de prata bastante para o enterro de meus pais. Ora, ouvi bem: rogo-vos em nome de Ammon e de todos os deuses do Egito, que embalsameis os corpos de meus pais e vos servirei com toda a minha habilidade durante todo o tempo indispensável para a completa preservação dos mesmos.   

Blasfemaram por causa de aborrece-los com a minha insistência, descompuseram-me, mas por fim o capataz bexiguento aceitou o dinheiro de Kaptah, enfiou um gancho no queixo de meu pai e o mergulhou no recipiente do banho geral.  Fez o mesmo com minha mãe, atirando-a num banheiro igual.

Havia trinta banheiros destes. Todos os dias um era esvaziado e outro era cheio, de modo que os corpos dos pobres permaneciam durante trinta dias mergulhados em sal e lixívia para se preservarem contra a morte. Era apenas isso que era feito; e eu estava longe de ter a menor idéia a tal respeito.

Tive que voltar à casa de meus pais por causa do sudário que tinha o selo da lei. O capataz disse-me com ar de zombaria:

- Volte ainda hoje, do contrário tiraremos os corpos de seus pais e os jogaremos aos cães.

Isso bastou par a que eu percebesse que ele me tomara por mentiroso, não acreditando que eu fosse médico. Voltei impassível à casa de meu pai embora, ao entrar, as paredes vacilantes bem como o sicomoro e a cisterna - presenças da minha infância - parecessem me apostrofar. Repus depressa o pano no lugar de onde o tirara, e sai a correr.

Ao sair encontrei um escriba que dobrava a sua mesinha portátil na esquina da rua defronte de uma loja de merceeiro.

Disse-me:

- Sois Sinuhe, o filho de Senmut, o Justo?

- Sim, eu o sou.

- Não fujais de mim, pois tenho uma mensagem de vosso pai e me cumpre entregá-la. Ele não vos encontrou em casa.

Prostrei-me e cobri a cabeça com as mãos enquanto o escriba tirava o papel e lia alto:

"Eu, Senmut, cujo nome está escrito no Livro da Vida e minha mulher Kipa, enviamos nossa benção a nosso filho Sinuhe que recebeu na casa do Faraó o nome de O Que Está Sozinho. Os deuses te mandaram para nós, durante tua vida só nos causaste alegria, e grande tem sido o nosso orgulho em ti. Estamos aflitos por tua causa porque tens passado vicissitudes e não nos foi dado ajudar-te conforme quiséramos. Acreditamos que em tudo quanto fizeste alguma justificação houve, pois não conseguiste agir diferentemente. Não te aflijas por nós pelo fato de haveres vendido a nossa tumba, pois evidentemente não farias tal coisa sem um motivo forçoso. Mas os meirinhos nos deram prazo e não nos sobra tempo para aguardar a nossa morte. Ela, a morte, nos é propícia agora como o sono ao cansado e como o lar ao fugitivo. Nossa vida foi longa e nos proporcionou muitas alegrias, mas a alegria maior sempre nos foste tu, Sinuhe que vieste a nós mandado e trazido pelo rio quando já éramos velhos e tão solitários. Isto posto, te abençoamos. Não te aflijas por não termos tumba, pois a existência, toda ela, não é senão vaidade, e talvez seja melhor que volvamos ao nada, sem procurar encontrar outros perigos e mais percalço nessa difícil jornada para a Terra do Poente. Lembra-te sempre que a nossa morte foi fácil e que te abençoamos antes de partir. Possam todos os deuses te proteger do perigo. Que teu coração se escude contra as vicissitudes, e que venhas a encontrar alegria em teus filhos conforme encontramos em ti. Eis o desejo de teu pai Senmut e de tua mãe Kipa.”

Fundiu-se a pedra que era meu coração, fluindo em lágrimas sobre o pó do chão. O escriba disse:

- Aqui está a carta. Não traz o sinete de vosso pai, e nem pode ele assiná-la visto já não enxergar, mas decerto me acreditareis se vos disser como digo que a escrevi palavra por palavra segundo me ia sendo ditada; além disso as lágrimas de vossa mãe mancharam os caracteres aqui e acolá.

Mostrou-me o papel, mas meus olhos estavam cegos por causa do pranto e não vi nada. Enrolando-o, entregou-mo e continuou:

- Vosso pai Senmut era um homem justo e vossa mãe uma excelente criatura... conquanto de língua áspera às vezes como é feitio das mulheres. Ora, escrevi isso para vosso pai apesar dele não dispor do menor presente para mim. Quero que fiqueis com este papel que, aliás, é bom e podia ser usado outra vez, limpando-se o que aí foi escrito.

Refleti durante algum tempo e disse:

- Eu também não tenho nenhum óbulo para vos dar, ó excelente homem. Ficai com o meu manto; é de tecido bom; apenas está sujo e amarfanhado. Que todos os deuses do Egito vos abençoem e que vosso corpo seja preservado para sempre, pois vós mesmo ignorais o mérito da ação que fizestes. Ele aceitou o manto e foi embora agitando-o por cima da cabeça e rindo de contentamento. E eu me dirigi para a Casa da Morte apenas de sunga, como um escravo ou um carroceiro, a fim de ajudar os lavadores de cadáveres durante trinta dias e trinta noites.

Sendo médico, eu imaginava que já vira tudo quanto podem mostrar a morte e o sofrimento. Cuidava também que já me habituara a não estranhar cheiros tanto havia eu tratado tumores e pústulas. Mas tão logo principiei a trabalhar na Casa da Morte me certifiquei de que a tal respeito eu não passava de um criança e ignorava tudo. Os pobres, com efeito, quase não nos davam nenhum trabalho. Jaziam pacificamente em seus banhos que tresandavam a sal e lixívia; logo aprendi a manobrar o gancho com que eles eram movidos. Já os corpos dos de melhor categoria requeriam tratamento mais complicado, e isso de raspar entranhas e colocá-las em vasos exigia um temperamento embrutecido.

Muito mais medonho era assistir à espoliação a que Ammon submetia os mortos, muito mais do que os vivos. O preço do embalsamamento variava de acordo com os meios, e os embalsamadores enganavam os parentes dos defuntos exagerando o preço e dizendo que necessitavam de óleos, ungüentos e reservativos custossíssimos que juravam que empregavam, muito embora se servissem sempre do mesmo óleo de sésamo. Apenas os corpos dos ilustres eram submetidos deveras a todas as regras estipuladas. Quanto aos dos outros, enchiam-nos com um óleo corrosivo que consumia as vísceras, sendo então a cavidade forrada com fibras mergulhadas em resina.para os pobres nem mesmo isso era feito.Após remove-los da banheira no trigésimo dia eram postos a secar e em seguida devolvidos aos parentes.

A Casa da Morte era administrada por sacerdotes. Mesmo assim os embalsamadores e lavadores de cadáveres roubavam tudo que podiam e se consideravam no direito de agir assim. Apenas os amaldiçoados pelos deuses ou os criminosos que fugiam das autoridades se empregavam como lavadores de cadáveres, e podiam ser reconhecidos de longe pelo cheiro de sal, de lixívia e de cadáver que era inseparável do ofício. Assim toda gente os evitava e não eram admitidos em casas de pasto nem em alcouces.

Como me achava trabalhando ali voluntariamente, os lavadores de cadáveres me supunham igual a qualquer deles, e não me escondiam nenhuma de suas ações. Se já não houvesse testemunhado coisas piores fugiria apavorado ante o modo com que profanavam os corpos mesmo das pessoas mais distintas, mutilando-os para vender às feiticeiras os órgãos de que estas precisavam. Se existe uma Terra do Poente - que só por causa de meus pais espero que haja - creio que muitos dos mortos hão de ficar espantados ante a sua condição de amputados quando começarem sua jornada, a despeito das somas pagas no templo para seus funerais.

Mas a alegria maior na Casa da Morte se dava quando era trazido o corpo de uma mulher jovem, fosse ela bonita ou vulgar. Não era arremessada imediatamente à banheira, mas durante aquela noite ficava como companheira de catre de um lavador de cadáveres; tais homens brigavam e deitavam sortes a ver qual deles deveria ficar com a defunta. Sim, pois tais indivíduos eram tão horripilantes que nem mesmo a prostituta mais reles se submetia a eles mesmo que oferecessem ouro. Nem mesmo as negras os queriam, tendo-lhes pavor.

Uma vez um homem entrando para trabalhar na Casa da morte e aceitando o serviço de lavador de cadáveres, raramente deixava tal ofício por causa da aversão em que sua casta era tida, passando a viver toda a existência entre carcaças.

Durante os primeiros dias todos eles me pareceria mareados pela maldição dos deuses, e a conversa e a zombaria enquanto profanaram os corpos ultrajavam meus ouvidos.

Mais tarde vim a verificar que entre eles havia artesões que levavam a sério, honradamente, seu ofício, considerando-o o mais importante de todos, sendo que muitos seguiam a carreira de seus antepassados, hereditariamente. Cada qual se especializava em determinado ramo como faziam os médicos na Casa da Vida. Assim, alguns só se encarregavam de cuidar de cabeças, outros de ventres, outros ainda de corações, aqueloutros de pulmões, de modo a desta forma o corpo humano inteiro ser tratado parte por parte para adquirir preservação eterna.

Entre eles havia um homem idoso, chamado Ramose, que se incumbia da tarefa mais difícil de todas: tinha que destacar o cérebro e retirá-lo pelas narinas do defunto servindo-se de pinças; feito isto, lhe incumbia "enxaguar" o crânio por dentro com óleos purificadores. Notou a habilidade de minhas mãos, admirou-se, e começou a instruir-me a tal ponto que quinze dias depois me fez seu auxiliar na Casa da Morte, tornando assim a minha vida mais suportável. Ajudei-o nesse trabalho que era o mais limpo e o mais considerado ali dentro.

Tamanha era a sua influencia que os outros não ousaram mais me amedrontar nem me jogar tripas nem fezes. Não sei como lhe adveio tal poder, pois nem sequer falava, quase. Quando me dei conta dos roubos e vi o pouco que era feito para preservar os corpos dos pobres apesar dos preços caros, resolvi socorrer meus pais pessoalmente e adquirir-lhes indebitamente a vida eterna. Pois para a minha mente meu pecado contra eles já era tão horrendo que nada, nem mesmo um processo ilegal, podia piorar minha culpa. A única esperança e alegria da velhice de ambos tinha sido a idéia da própria preservação eterna. Assim, ansiando realizar e efetivar tal desejo, os embalsamei, com a assistência de Ramose, e os envolvi em tiras e faixas de linho, permanecendo para tal fim quarenta dias e quarenta noites na Casa da Morte. Com isto a minha estadia foi prolongada de modo a poder me apropriar bastante do necessário para o tratamento adequado dos corpos. Mas não tinha tumba para onde os levar e nem mesmo um caixão de madeira; e o mais que consegui fazer foi costurá-los juntos num couro de boi.

Estava já pronto para deixar a Casa da Morte, quando me veio uma indecisão que alterou até o bater de minhas veias.

Ramose, que tinha notado a minha capacidade de trabalho insistia para que eu permanecesse na qualidade de seu Assistente.

Poderia então ter um ordenado, furtar bastante e passar a minha vida nos dédalos da Casa da Morte sem que nenhum dos meus amigos soubesse; e ainda por cima inteiramente livre dos sofrimentos e surpresas de uma vida normal. Todavia não tive forças para ficar, e eu próprio ignoro por que motivo.

Após me lavar e me purificar com esmero, saí da Casa da Morte. Os lavadores de cadáveres soltavam blasfêmias e pilhérias, como despedida. Não que me quisessem mal. Era assim que se comunicavam com o próximo. Não conheciam outras maneiras. Ajudaram-me a carregar para fora o couro de boi. Apesar de haver tomado um banho completo os transeuntes principiaram a se afastar apertando as narinas e fazendo gestos insultantes, tão impregnado estava eu com o cheiro da Casa da Morte. Nenhum barqueiro quis me transportar para a outra margem do rio. Tive que esperar que a noite caísse para, esgueirando-me das sentinelas, me apropriar de um barco de verga. Remei para a outra banda, levando os corpos de meus pais para a Cidade dos Mortos.

A Cidade dos Mortos era guardada estritamente dia e noite, e impossível me seria encontrar uma tumba sem vigilância onde esconder meus pais a fim de que pudessem sobreviver eternamente em meio às oferendas que eram trazidas para os mortos ricos e ilustres. Levei por isso os corpos deserto adentro, com o sol a queimar minha pele e o percurso a estafar meus membros, até me estatelar, gemendo, certo de que ia morrer. A verdade é que ainda assim consegui transportar a querida carga para além das montanhas, através de atalhos perigosos utilizados apenas por bandidos. Penetrei assim no vale proibido onde jaziam sepultados os faraós.

Chacais uivavam dentro da noite; serpentes venenosas do deserto sibilavam, escorpiões corriam por entre as penhas mornas. Eu não sentia medo nenhum porque meu coração se tornara indiferente a quaisquer perigos. Apesar de moço saudaria a morte de bom grado se ela resolvesse se encarregar da minha solução, porque a minha volta à claridade solar e ao mundo dos homens me fizera sentir outra vez a amargura do meu opróbrio. Assim, que poderia me oferecer ainda a vida?

Naquele tempo eu ignorava que a morte se afasta do homem que a deseja e que acomete todo aquele que está sobremodo preso à vida. As serpentes fugiam dos meus pés, os escorpiões não me faziam mal, e o calor do deserto não me sufocava.

Os próprios guardas do Vale pareciam ter ficado cegos e surdos e não viam nem ouviam minhas quedas por entre pedras. Se me descobrissem instantaneamente me matariam abandonando meu corpo aos chacais.Desta forma o vale proibido se abriu diante de mim, mortalmente lívido e plácido, e mais majestoso em sua desolação do que todos os majestosos faraós entronizados durante existências inteiras.

Caminhei pelo vale a noite inteira procurando a tumba de um grande faraó. Já que chegara até ali considerei que só a melhor sepultura conviria para meus pais. Procurei e achei uma tumba cujo faraó houvesse tomado o navio de Ammon recentemente, onde as oferendas ainda pudessem estar frescas cujas cerimônias fúnebres no templo tivessem sido realizadas escrupulosamente.

Quando a lua sumiu, cavei uma passagem na areia ao lado da entrada, e acolá enterrei meus pais. Ao longe, no deserto, os chacais uivavam. Pareceu-me que Anuais percorria as imediações, vigiando meus pais e lhes fazendo companhia naquela última viagem. Sabia que seus corações não teriam que ficar esperando na grande escadaria diante de Osiris, muito embora faltasse aos meus pais o livro da morte dos sacerdotes e ignorassem as habituais mentiras aprendidas e decoradas com que os ricos se apresentavam como crentes. Suave foi o alívio que se apoderou da minha alma quando os recobri com areia, pois assim podiam viver por todos os séculos dos séculos ao lado do grande faraó e humildemente usufruir as boas oferendas ali expostas. Viajariam para a Terra do Poente no navio do faraó, comeriam o pão real e beberiam o vinho régio.

Enquanto acumulava areia em cima deles, minha mão roçou em qualquer coisa minúscula e dura, e verifiquei que se tratava de um escaravelho sagrado esculpido em pedra vermelha, com umas joiazinhas no lugar dos olhos e todo recoberto de sinais litúrgicos. Tremi e comecei a derramar lágrimas porque me pareceu que aquilo era um sinal mandado por meus pais dizendo que estavam contentes e em paz. Foi o que resolvi acreditar, muito embora soubesse que o escaravelho devesse ter caído do tesouro da tumba do faraó.

A lua já descambara desde muito e o céu começou a ir ficando pálido. Inclinei-me sobre a areia, despedindo-me de meu pai Senmut e de minha mãe Kipa. Que seus corpos se preservem para sempre e que suas vidas na Terra do Poente sejam cheias de delícias. Somente por causa deles chego a desejar que exista tal terra, embora desde muito não acredite mais.

Atingi as margens do Nilo naquele mesmo dia, bebi das suas águas e me deitei a dormir entre caniços. Meus pés estavam cheios de lanhos e feridas; minhas mãos sangravam. O deserto me cegara, meu corpo ficara cheio de arranhões e empolas, mas eu vivia e o sono venceu o sofrimento, porque o meu cansaço era infinito.

Acordei de manhã com o grasnar de patos por entre os juncais. Ammon navegava em sua nave dourada atravessando os céus, e da margem distante vinha a mim o murmúrio da cidade. embarcações fluviais deslizavam com suas velas vermelhas; lavadeiras batiam peças de roupa em suas tábuas, rindo e tagarelando enquanto trabalhavam. Manhã nova e sadia; mas meu coração se achava vazio e a vida se esvaía em cinza por entre meus dedos.

Submetera-me à grande expiação e agora já não achava propósito nem razão real na minha existência. Vestia minhas ilhargas uma simples sunga igual à dos escravos. Minhas costas estavam queimadas e sem chagas. E não possuía a menor moeda de cobre com que comprar alimento. Sabia que se saísse dali imediatamente as sentinelas me interpelariam.

Responder-lhes o que, se cuidava meu nome Sinuhe amaldiçoado e desonrado para sempre?

Raciocinava deste modo quando reparei em qualquer coisa viva junto de mim: um ser qualquer que à primeira vista não imaginei que fosse criatura humana e sim, bem mais, um espectro ou pesadelo. No lugar onde devia ser o nariz havia um orifício; as orelhas tinham sido cortadas; a pele era flácida. Examinando mais de perto, verifiquei que tinha imensas mãos esqueléticas mas que o corpo era grosso e cheio de vincos como do peso de cargas ou de marcas de cordas. Vendo que eu o observava, disse:

- Que é que estás segurando com tanto empenho aí na mão?

Abri-a e lhe mostrei o escaravelho sagrado que tinha encontrado na areia do vale proibido. Ele falou, então:

- Dá-me isso. Talvez me traga sorte, coisa de que muito preciso porque não passo de uma pobre carcaça.

Respondi-lhe:

- Eu também sou pobre e a única coisa que possuo é este escaravelho. Gostaria de guardá-lo como talismã para favorecer minha vida.

- Vale sempre uma moeda de prata. E apesar de eu ser pobre e mutilado, sinto pena da tua pobreza também e vou te comprar o escaravelho que na verdade não passa de um pedacinho de pedra pintada. Está aqui a moeda de prata.

E de fato arrancou do cinturão uma moeda de prata. Ainda assim resolvi conservar comigo o escaravelho, obcecado pela idéia de que me seria benéfico. Expliquei isso ao tal homem que retorquiu de mau modo:

- Esqueces-te de que eu podia ter dado cabo de ti enquanto dormias. Sim, estive demoradamente a te observar perguntando a mim mesmo que seria que seguravas com tamanho empenho na mão fechada. Esperei que acordasses, mas agora me arrependo de não te haver matado já que és um ingrato.

- Tuas orelhas e teu nariz provam que és um criminoso escapado das pedreiras. Pena foi que não tivesses dado fim à minha vida enquanto eu dormia... Teria sido uma boa ação, pois sou sozinho e não tenho para onde ir. Acautela-te porém e foge daqui porque se as sentinelas te descobrem acabam te amarrando os pés e te dependurando de cabeça para baixo na muralha. Ou, quando muito, te levam para o lugar de onde fugiste.

- De onde fugi? Mas que espécie de estrangeiro és tu que ignoras que não preciso temer os guardas pois sou um homem livre e não um escravo?! Podia entrar na cidade, se quisesse, e só não o faço porque o meu rosto amedronta as crianças.

- Como pode ser livre uma pessoa condenada a vida toda a trabalhar nas pedreiras? Sim, pois é o que deduzo vendo o estado de tuas orelhas e de teu nariz. - E tive um esgar de zombaria, cuidando que ele mentia.

Respondeu-me:

- Ignoras então que o príncipe ao ser coroado com a coroa do Alto e do Baixo Reino decretou que todas as algemas fossem abertas e todos os escravos das minas e das pedreiras alforriados, doravante recebendo salário quem quer que trabalhe?

Deu uma risada vaga e prosseguiu:

- Os juncais das margens do rio estão cheios de camaradas resolutos que estão vivendo das oferendas das mesas dos ricos na Cidade dos Mortos... porque os guardas tem medo de nós que não tememos ninguém e muito menos os mortos. Ninguém imagina o que seja ter estado nas minas. Não existe sorte pior do que ser mandado para lá como escravo, conforme deves fazer idéia. Muitos de nós não tememos nem mesmo os deuses. Verdade é que acho que a prudência é. uma virtude, e sou um homem pio... Pudera, passei dez anos numa pedreira!

Foi assim que fiquei sabendo que o herdeiro tinha sido entronizado como Amenhotep IV e que libertara todos os escravos e prisioneiros. Disso resultou que as minas e as pedreiras orientais junto à costa ficaram vazias; e também as do Sinai.

E isso porque não havia no Egito ninguém tão louco para trabalhar nas minas por vontade própria. A consorte real era a princesa de Mitani que ainda brincava com bonecas, e o faraó venerava um novo deus.

- Esse deus do faraó deve ser pela certa um deus formidando - comentou o ex-escravo - pois obriga o faraó a agir como um insano. Agora perambulam pelos Dois Reinos, livremente, ladrões e assassinos, as minas estão desertas e a fortuna do Egito tem que paralisar. Eu, por exemplo, sou inocente, fui vítima de uma injustiça; mas isso sempre aconteceu e sempre acontecerá, e considero maluqueira soltar milhares de criminosos para que assim se torne livre um inocente. Mas isso é lá com o faraó e não comigo. Eu cá fico com a minha opinião.

Enquanto falava me observava, pondo atenção em meus braços e nas minhas costas esfoladas. Não se incomodou com o cheiro que se desprendia de mim, mostrando pelo contrário comiseração por eu ser jovem. Disse:

- Tua pele está queimada. Tenho óleo. Consentes que te passe um pouco nessas crostas.

Esfregou óleo nos meus braços e nas minhas pernas, dizendo palavrões enquanto isso.

- Ammon Ammon! Nem eu próprio sei por que estou fazendo tal coisa, já que não me serves para nada. Acaso alguém me passou bálsamo e me lamentou quando me esbordoavam, e se insurgiu contra os deuses por causa da injustiça que me foi feita.

Estava farto de saber que quase todos os condenados e convictos protestam inocência; mas aquele homem estava sendo bom para comigo, e resolvi retribuir. Além disso me achava tão sozinho que tive medo que ele fosse embora e me deixasse naquela desolação. Disse-lhe, portanto:

- Que injustiça foi que cometeram contra ti? Conta-me para que eu lamente.

- Digo-te em verdade que outrora fui homem livre com terras a cultivar, uma choupana, mulher, bois e cerveja levedando em jarras. Acontece que era meu vizinho de terras um homem influente chamado Anukis. Tomara que o corpo dele seja podridão!Possuía terras que a vista não podia abranger de uma vez só; o gado era incontável como os grãos de areia do deserto, e quanto o gado mugia dir-se-ia bramir de oceano...Pois ainda assim, ele cobiçou a minha jeira. Enfezava-me de todos os modos possíveis e após cada inundação, quando o terreno era medido de novo, eu notava que as pedras de demarcação tinham sido mudadas. Sim, cada vez elas se aproximavam mais da minha cabana e eu ia perdendo o meu chão. O que era que eu podia fazer? Os intendentes davam ouvidos a ele e não a mim porque os enchia de presentes.

O homem sem nariz suspirou e continuou a passar óleo nas minhas costas.

- Apesar de tudo isso eu ainda poderia estar morando na minha choupana se os deuses não me houvessem desgraçado dando-me uma filha formosa. Eu tinha três filhas e cinco filhos, pois os pobres procriam depressa. Depois que a filharada cresceu me serviu de auxílio e de alegria, não obstante um dos filhos ter sido roubado quando criança por um mercador sírio. Mas a filha caçula era muito bonita e em meu orgulho de pai, não a deixava fazer trabalhos grosseiros nem carregar água para que não queimasse a pele, razão pela qual também não deixei que trabalhasse na lavoura. Teria sido melhor cortar-lhe o cabelo e esfregar fuligem em seu rosto, pois o meu vizinho assim que a viu começou a desejá-la. Deixar-me-ia com a minha terra, quieto, se eu lhe tivesse dado minha filha. Mas com isso não concordei, pois confiava que a beleza de minha filha lhe atraísse um homem decente para esposo... Um homem que cuidasse de mim na minha velhice e me quisesse bem. Certa vez os criados dele me acometeram. Eu tinha apenas o meu cajado mas com isto derrubei um deles ferindo-o na cabeça; e o indivíduo morreu. Então as autoridades me cortaram o nariz e as orelhas, e me remeteram para as minas. Minha mulher e meus filhos foram vendidos como escravos, mas Anukis conservou consigo a minha caçula, aproveitou-se dela quanto quis e depois a cedeu aos criados. Ora, foi ou não foi uma injustiça me mandarem para as minas? Quando agora, dez anos depois, o rei me concedeu liberdade, fui depressa para casa, mas meu tugúrio não existia mais, gado alheio pastava nas minhas relvas, e minha filha não quis saber de mim, jogou-me água quente nos pés acolá no telheiro do curral. Vim a saber que Anukis tinha morrido e que estava depositado na sua tumba na Cidade dos Mortos perto de Tebas, e que havia uma inscrição em cima de sua tumba. Vim então para Tebas decidido a contentar meu coração com o que pudesse estar escrito na tal cártula. Mas não sei ler nem encontrei quem soubesse, apesar de haver descoberto a tumba mediante sucessivas informações.

- Se queres, posso ler a inscrição.

- Que teu corpo seja preservado para sempre se me fizeres tal favor, pois não quero morrer ignorando o que Anuais mandou escrever.

Fomos juntos para a Cidade dos Mortos, sem que as sentinelas nos interpelassem e caminhamos tempo enorme por entre fileiras de tumbas até chegarmos diante de uma grande onde havia uma porção variada de bolos, frutas e flores. Uma botija fechada, com vinho, estava lá, também. O homem sem nariz comeu das oferendas, dando-me parte, e depois solicitou que lhe lesse o que estava escrito por cima da porta.

E o que li foi mais ou menos isto:

"Eu, Anukis, semeei cereais e plantei árvores frutíferas, e as minhas safras eram abundantes porque eu temia aos deuses e lhes oferecia como sacrifício um quinto do total das minhas colheitas. O Nilo sempre me galardoou com suas águas e enquanto vivi ninguém passou fome em minhas terras, nem faltou alimento aos meus vizinhos, pois fiz conduzir água para as terras deles e os alimentei com os meus cereais nos anos de carestia. Sequei lágrimas de órfãos e nunca prejudiquei viúvas, antes lhes saldei as dívidas, e o meu nome é abençoado de ponta a ponta da região. Aqueles cujo boi morria eu dava outro, novo e sadio. Cheguei ao escrúpulo de não remover demarcações nem proibi que a água corresse das terras vizinhas alagando meus campos, não deixando porém que isso se desse ao contrário.Vivi em justiça e comiseração todos os meus dias. Tais coisas fiz eu, Anuais, a fim de que os deuses fossem bondosos para comigo aliviando minha cornada para a Terra do Poente.”

O homem sem nariz ouviu reverentemente e, quando acabei, ele derramou lágrimas amargas, dizendo:

- Sou um desgraçado e acredito em tudo quanto aí se acha escrito. Vejo pois que Anuais foi um homem virtuoso, acatado em morte. As gerações futuras lerão esta inscrição por cima da porta da sua tumba e o venerarão. E eu sou um miserável e um malfeitor e acabei sem nariz nem orelhas de modo que a minha vergonha está exposta perante todos, e quando eu morrer meu corpo será arremessado ao rio e deixarei de existir até mesmo como alma. Tudo neste mundo não é vaidade?   

Rompeu o selo da botija e se pos a beber. Passou um guarda e o ameaçou com seu bastão, mas o meu companheiro disse:

- Anuais foi bom para mim em seus dias de vida e quero venerar sua memória comendo e bebendo aqui na sua tumba. Caso, porém, me queiras agarrar, ou mesmo prender também aqui o meu amigo. - que é um homem culto - lembra-te que há uma porção de camaradas meus decididos, acolá pelos juncais, muitos deles armados com punhais e que podem muito bem te assaltar de noite e te cortar a garganta.

Encarou sinistramente o guarda, com sua fisionomia medonha. O guarda olhou para um e outro lado e continuou seu caminho. Ficamos comendo e bebendo junto da tumba de Anuais, e a aba do teto por cima das oferendas nos própropinava uma boa sombra. E o homem refletiu alto:

- Vejo agora que teria sido melhor se eu entregasse de bom grado a minha filha a Anuais. Decerto ele me deixaria ficar com a choupana, outrossim, me daria presentes, pois minha filha era linda e virgem, ao passo que atualmente não passa de um pelejo para os criados dele. Vejo que os direitos dos ricos e dos poderosos são os únicos direitos no mundo e que a palavra dos pobres não chega aos ouvidos do faraó. Tirando um pouco a botija dos lábios riu e exclamou:

- A tua saúde, corretíssimo Anukis, que o teu corpo seja preservado para sempre. Não desejo te seguir à Terra do Poente onde tu e teus iguais viveis jubilosamente com o favor dos deuses. Ainda assim acho direito que, dada a tua bondade notória, continues cá nesta terra a dividir comigo taças de ouro e jóias da tua tumba. Assim pois, esta noite virei te visitar quando a lua estiver encoberta por uma nuvem.

- Que estás dizendo, Desnarigado? - exclamei, apreensivo, fazendo inadvertidamente o sinal sagrado de Ammon. - Não te vais converter num profanador de túmulos, pois isso é o mais vil dos crimes aos olhos dos deuses e dos homens!

Mas o Desnarigado, sob a influencia do vinho, retorquiu:

- Deixa de dizer besteira, figurão! Tenho contas a ajustar com Anukis, e como sou menos generoso do que ele, reforçarei minhas exigências. Caso tentes me impedir te quebro o pescoço. Se, pelo contrário fores ajuizado, tratarás de me ajudar visto como quatro olhos vêem melhor do que dois.

- Não percebes que juntos tiraremos muito mais coisas da tumba do que me seria possível sozinho? Viremos a uma hora em que não haja lua.

- Não quero ser dependurado pelos pés numa muralha e sofrer chibatadas - disse eu, trânsido de medo. Mas, refletindo, me dei conta de que dificilmente a minha vergonha poderia ser mais profunda, mesmo que meus amigos me vissem dependurado assim. Em que podia a morte me aterrorizar?

Naquela noite os soldados remaram atravessando o rio, vindo da cidade guardar as tumbas; mas o novo faraó deixara de lhes dar os habituais presentes que se distribuíam durante cerimônias como a coroação.

Estavam pois desgostosos e, como bebessem muito vinho - que era o que não faltava entre as oferendas - puseram-se também a arrombar as tumbas e a despojá-las. Ninguém se opôs a que o Desnarigado e eu violássemos a sepultura de Anukis, revirássemos seu caixão e tirássemos quantas taças de ouro e valores pudéssemos carregar. De madrugada um bando de mercadores sírios se reuniu na margem do rio para comprar quanto fora saqueado, levando tudo rio abaixo em seus navios.

Vendemo-lhes o nosso saque, recebendo aproximadamente duzentos debens em ouro e prata que dividimos entre nós de acordo com o peso estampado em cada metal. O preço que conseguimos foi mera fração do valor real dos bens, e o ouro tinha bastante liga; mas o Desnarigado ficou radiante.

- Vou acabar sendo um homem rico pois este ofício é mais proveitoso do que cambalear debaixo de carga pelo porto, ou do que carregar água dos poços de irrigação para os campos.

Aparteei:

- Tanto vai o cântaro à fonte que se quebra...

Separamo-nos e despedimo-nos pois, tendo eu voltado na barca de um mercador para a outra banda, entrando em, Tebas. Comprei vestuários novos, comi e bebi numa taverna, porque o cheiro da Casa da Morte já estava me deixando. Mas durante o dia inteiro vinham da Cidade dos Mortos, através do rio, sons de trombetas e ruídos de armas. Carros passavam com escarcéu ao longo das alamedas entre as sepulturas, e o corpo da guarda do faraó perseguiu os soldados e os mineiros depredadores, golpeando-os com espadas a ponto dos gritos serem ouvidos em Tebas. Ao fim da tarde a muralha estava com uma linha contínua de corpos dependurados pelos tornozelos, e a ordem foi restaurada. Dormi uma noite numa estalagem; depois me dirigi para onde morara antigamente e chamei alto o nome de Kaptah. Irrompeu capengando, com a cara inchada de pancadaria. Ao dar comigo chorou de júbilo e se jogou aos meus pés.

- Ah! O patrãozinho sempre voltou! Eu que o cuidava morta! Pois imaginava que caso o meu amo estivesse vivo viria me procurar pela certa em busca de mais dinheiro, cobre e prata. Uma vez a gente começando a ter caridade, não pára mais... Mas o patrãozinho não veio, apesar de eu haver furtado do meu patrão novo de uma só vez muito mais do que diz em toda a minha vida, antes. Isso aliás, está nítido através de meu rosto e do meu joelho, tamanha foi a bordoada que apanhei ontem. A mãe dele, mais velha do que um crocodilo velho - tomara que feda eternamente! - ameaçou-me vender... Estou apavorado...Deixemos esta casa amaldiçoada, patrãozinho e fujamos juntos.

Hesitei e ele levou isso a mal.

- Palavra de honra que roubei tanto que posso tomar conta do patrãozinho durante algum tempo. Quando o dinheiro acabar poderei trabalhar para o patrãozinho, só querendo agora que me leve consigo.

- O que me trouxe aqui foi o desejo de te pagar a minha dívida, Kaptah - disse eu; e fui contando e pondo na mão dele ouro e prata até perfazer muitas vezes a quantia que ele me dera. - Entretanto, se preferes, posso comprar a tua liberdade. Pago o que o teu novo amo pedir e assim poderás vir comigo.

- E uma vez livre para onde é que vou, visto que a vida inteira fui escravo? Sem o patrãozinho sou um gato cego, um cordeiro tomado de espanto. E para que há de gastar ouro pela minha liberdade? Para que pagar aquilo que já é seu?... - Piscou o olho único, após uma reflexão. - Um grande navio está a zarpar para Esmirna. Por que motivo não nos aventurarmos a seguir nele, oferecendo antes um regular sacrifício aos deuses? É lamentável, patrãozinho, que eu ainda não haja descoberto um deus bastante poderoso desde que desisti de Ammon que me pos nestes apuros...

Lembrei-me do escaravelho que tinha achado e o dei a Kaptah, dizendo:

- Aqui tens tu um deus bastante poderoso apesar de tão pequeno. Guarda-o bem porque acho que ele nos trará sorte. E a prova é que já tenho ouro na minha bolsa. Disfarça-te como sírio e foge, se assim queres, mas não te deixes de mim se fores agarrado depois como escravo fugido, que esse deus pequenino te ajude. Assim poupamos dinheiro para comprar nossa passagem para Esmirna. Não posso mais olhar para a cara de ninguém aqui em Tebas e em toda a terra do Egito; portanto, não voltaremos nunca mais.

- Não jure coisa nenhuma pois ninguém sabe o que o dia de amanhã pode trazer. Todo aquele que bebeu uma vez água do Nilo não poderá jamais aplacar a sede em outro lugar. Não sei que erro foi que o patrãozinho cometeu para abaixar assim os olhos quando fala... Mas o patrãozinho é moço e algum dia esquecerá isso. A ação de um homem é como uma pedra jogada num poço. Espadana água, e ondas se espalham em círculos; não demora, porém, que a água fique quieta outras vez, sem nenhum sinal mais da pedra. A memória humana é como essa água. Uma vez passando tempo suficiente, toda gente esquecerá o seu erro, patrãozinho, e então poderá regressar...Espero que a tal altura o patrãozinho esteja rico e poderoso a fim de me proteger.

- Vou e não voltarei - disse resolutamente.

Foi então que a patroa de Kaptah o chamou com voz estridente. Fui esperá-lo na esquina da rua. Não demorou que ele viesse ao meu encontro, com um cesto. Dentro do cesto estava uma trouxa, e Kaptah agitava umas moedas de cobre na mão.

- A mãe de todos os crocodilos me mandou fazer compras no mercado - disse ele, radiante. - Como de hábito, me deu dinheiro que não chega para nada; mas sempre adianta alguma coisa, pois acho que Esmirna é bem longe daqui.

Aquela trouxa dentro de cesto escondia sua roupa e uma cabeleira. Desceu até à beira do rio e mudou de roupa lá entre os caniços. Comprei-lhe um bonito cajado dos usados pelos criados e lacaios nas casas dos nobres. A seguir fomos ter ao cais onde os navios sírios se achavam ancorados e vi um grande navio de três mastros, em cujo flanco, da proa à ré, corria uma corda da espessura do corpo de um homem e em cujo mastro central flutuava o sinal de partida. O capitão era sírio, ficou radiante ao saber que eu era médico, tinha em grande conceito a medicina egípcia e na sua equipagem havia muitos doentes. O escaravelho nos estava dando sorte, deveras, pois ele nos registrou no livro de bordo e não quis cobrar a passagem redargüindo que assim pagava meu serviço. Desse momento em diante Kaptah passou a venerar o escaravelho como um deus, ungindo-o diariamente e o embrulhando num pano especial.

Zarpamos, os escravos começaram a se curvar por sobre os remos e em dezoito dias atingimos os limites entre os Dois Reinos. Daí a outros dezoito dias, alcançamos o Delta, e mais dois dias depois vimos diante de nós o mar, não havendo mais praias à vista.

Quando o navio começou a jogar, o rosto de Kaptah foi ficando cinzento e o escravo se agarrou à grande corda. Daí a pouco se queixava de que o estomago lhe queria sair pelas orelhas e que estava morrendo. O vento não amainou, o navio se pos a jogar mais pesadamente e o capitão o aproou para o alto mar, perdendo nós de vista a terra. Então também eu comecei a me sentir mal, mesmo porque não me capacitava de que modo o comandante a tornaria a achar. Deixei de rir de Kaptah porque eu próprio me sentia mareado, passando por momentos desagradabilíssimos. Daí a instantes Kaptah vomitou e se deixou ficar estirado no convés; estava verde de fisionomia e deixou de todo de falar.

Alarmei-me e quando vi que muitos outros passageiros se achavam vomitando e gemendo que estavam perdidos, dizendo isso com incríveis mutações de face, fui depressa em demanda do capitão e lhe disse que era claro que os deuses haviam amaldiçoado o seu barco já que uma terrível doença irrompera a bordo não obstante minha capacidade. Roguei-lhe que voltasse para terra enquanto ainda a podia descobrir, do contrário eu, como médico, não me responsabilizava pelas conseqüências. Mas o capitão procurou me tirar o susto, disse que soprava um vento magnífico que nos levaria otimamente na nossa rota e que eu não devia zombar dos deuses chamando a isso uma tempestade. Jurou por sua barba que todos os passageiros tornariam a ficar tão lépidos e remoçados como cabritos assim que chegassem a terra firme, e que eu não precisava pensar que a minha dignidade de médico estava correndo perigo.

Não obstante tais palavras, tornando a observar o péssimo estado dos viajantes, achei difícil dar crédito ao comandante.

Por que motivo eu próprio não me sentia assim tão ruim não posso dizer a não ser refletindo que logo que nasci fui posto num barco de juncos que o Nilo embalou.

Procurei atender a Kaptah e aos demais; mal, porém, tocava em qualquer dos passageiros, recebia desaforos. Lembrei-me de dar algum alimento a Kaptah, para fortalece-lo; virou a cara e escancarou os maxilares com força fazendo um barulho que nem hipopótamos, como se fosse vomitar, embora não houvesse mais nada sua barriga. Ora, Kaptah jamais em sua vida virara a cara para o lado oposto a um prato e por isso comecei a pensar que meu escravo estivesse em perigo de vida. E fiquei preocupadíssimo, porque já estava principiando a me acostumar ao seu feitio, e gostava do meu escravo.

A noite caiu e por fim peguei no sono, não obstante o medo do navio que cada vez jogava mais, do flaflar assustador das velas e do bater das vagas de encontro à amurada. Passaram-se dias e não morreu passageiro nenhum; houve até quem melhorasse e pudesse comer e passear pelo convés. Somente Kaptah continuava deitado, não querendo tocar em comida; o único sinal que lhe vi de melhora foi ter disposição para rezar ao escaravelho; concluí que ele ganhara coragem e esperava chegar ainda a terra firme. No sétimo dia apareceu uma faixa de terra e o capitão me disse que íamos passar ao largo de Joppa e Tiro e que estava em condições de rumar diretamente para Esmirna graças aos ventos favoráveis. Como ele sabia isso foi coisa que não consegui deduzir. No dia seguinte avistamos Esmirna e o comandante ofereceu opimos sacrifícios no seu camarote ao deus do mar e outros mais.

As velas foram arriadas, os remadores empunharam seus remos e nos conduziram para dentro do porto de Esmirna.

Quando atingimos local remançoso Kaptah se levantou e jurou pelo seu escaravelho que nunca mais pisaria num navio.

 

OS CABÍRIOS

Vou agora falar da Síria e das diferentes cidades onde estive e para tal fim, devo explicar antes de tudo que as Terras Vermelhas diferem em muito das Terras Negras. Não existe lá, por exemplo, nenhum rio igual ao nosso. De modo que a água desce das nuvens e molha o chão. Cada vale tem a sua montanha e atrás de cada montanha existe um outro vale. Em cada um deles mora um povo diferente governado por um príncipe que paga tributo ao  faraó - ou pagava ao tempo a que me refiro.

O vestuário das pessoas é colorido e feito de panos muito bem tecidos com fio de lã e cobre a pessoa desde a cabeça até aos pés. Uma das razões creio ser o fato deste país ser mais frio do que o nosso e a outra porque o povo acha que é vergonhoso expor o corpo, exceto quando "se aliviam"  mesmo em público, fato que para o egípcio constitui uma abominação. Usam o cabelo comprido e deixam crescer a barba; comem só dentro de casa, com as portas fechadas.

Cada cidade tem o seu deus que, todos eles, exigem sacrifício de vítimas humanas. Através disto só já basta para se ver que tudo na Terra Vermelha difere dos modos do Egito.

Também é claro que para os egípcios de certa distinção, que devido aos seus cargos moram em cidades sírias para a cobrança de impostos ou o comando das guarnições, tais cargos parecem mais um castigo do que uma honra. Tem saudades das margens do Nilo, todos eles, com exceção de raros que se afeiçoaram aos costumes estrangeiros. Estes modificaram o estilo de seus vestuários e de seus  pensamentos e oferecem sacrifícios a deuses outros. De certo modo as constantes intrigas entre os habitantes, as trapaças e as velhacarias dos contribuintes e as contendas entre os príncipes rivais amarguram as vindas  dos oficiais egípcios.

Vivi em Esmirna pelo espaço de dois anos durante os quais aprendi a língua babilônica, falando-a e escrevendo-a. E isso porque me foi dito que um homem podia com tal conhecimento se fazer compreender entre gente educada através do mundo conhecido.

Os caracteres ou letras são, conforme se sabe bem, impressos sobre greda, ou melhor aí desenhados com um estilete pontudo, e toda a correspondência trocada entre  reis é transportada deste modo. A razão de ser assim, não sei dizer. Só se for porque o papel queima e as lousas de greda duram a vida toda, como um testemunho da pressa com  que os governos esquecem seus pactos e tratados.

A Síria difere do Egito também no fato de que o médico deve procurar os seus pacientes que, em lugar de irem aos consultórios, confiam que seus deuses lhes trarão um bom médico. Além disso, os clientes dão seus presentes antes do tratamento e não depois de curados. Com isso lucra o médico, pois a tendência do paciente é esquecer seus deveres de gratidão tão logo se vê curado.

Tencionava seguir aqui a minha profissão despretensiosamente; mas com isso não concordou absolutamente Kaptah. Fez questão que eu exibisse tudo quanto tinha de roupas finas e que contratasse pregões encarregados de proclamar a minha fama em tudo quanto era praça pública. Tendia isso também a anunciar que eu não procurava os doentes a domicílio e que eles sim é que deviam me procurar. E Kaptah me proibiu de receber qualquer um que não trouxesse pelo menos uma moeda de ouro como dádiva. Fiz-lhe ver que tal presunção era loucura, pois na cidade ninguém me conhecia e os costumes diferiam muito dos da Terra Negra; mas Kaptah bateu o pé. Não consegui demove-lo porque quando uma idéia se lhe encasquetava na  cabeça ele ficava mais teimoso do que um burro.

Persuadiu-me também a visitar os médicos tidos em mais conta e em reputação mais alta e dizer-lhes:

"Sou Sinuhe, médico egípcio e quem o novo faraó concedeu o nome de O Que Está Sozinho e sou um homem de renome na minha pátria. Devolvo a vida aos mortos e faço os cegos verem caso assim queiram os meus deuses - pois tenho um deus pequenino, mas poderoso que carrego comigo na minha mala de viagem. A ciência difere de um lugar para outro; aliás, nem são as moléstias as mesmas em todos os lugares. Eis porque motivo aqui me acho na vossa cidade. Trouxe-me a vontade de estudar as moléstias e de curá-las; bem assim aproveitar vossas lições e sabedoria.  Não pretendo de forma alguma usurpar vossa clientela,  pois quem sou eu para competir convosco? Venho propor os,  por conseguinte, que me remetais pacientes vossos que  estão em desgraça perante vossos deuses e que devido a  isso não conseguis curar, e especialmente os que  necessitarem de operações, pois aqui em vossa terra não empregais operações.

Assim verei se o meu deus se decide a curá-los. E caso tal paciente seja curado vos darei a metade do que ele me der, pois não vim aqui em busca de ouro e sim de conhecimento. Caso meu tratamento malogre, não receberei nada do cliente e vo-lo devolverei com um presente.”

Os médicos que vim a conhecer nas ruas e praças de mercado visitando seus doentes, e aos quais me dirigi, revolutearam suas capas e cofiaram suas barbas,  respondendo:

- Sois moço ainda, mas não resta dúvida que o vosso deus vos abençoou com a sua sabedoria, pois vossas palavras são agradáveis de ouvir. Tudo quanto dizeis a respeito de ouro e de dádivas é ponderável, assim como a vossa opinião a propósito de operações. Nós cá jamais nos servimos de operações no tratamento dos doentes porque um homem que se sujeita a ser cortado ou aberto propende mais a morrer do que o que se nega a isso. Apenas vos rogamos uma coisa: que não efetueis curas utilizando-vos  de magia, pois a nossa própria feitiçaria é muito forte e  nesse ramo já existe competição demasiada tanto aqui em  Esmirna como em outras cidades ao longo do litoral.

Isso era verdade, pois havia muitos homens incultos vagando pelas ruas empenhados em tratar doentes por meio de magia e se aboletando à farta nas residências dos crédulos até os doentes ficarem bons ou morrerem. Aconteceu, pois que doentes que outros não tinham conseguido curar me procuraram e os tratei; mas devolvi aos médicos de Esmirna aqueles que não consegui curar.  Trouxe fogo sagrado do templo de Ammon para minha casa  a fim de levar a efeito a purificação prescrita e  aventurar-me assim ao uso da faca e praticar operações a  que os médicos assistiam cofiando as barbas e ficando  perplexos.

Tive a sorte de dar vista novamente a um cego, embora tanto alguns médicos como alguns feiticeiros lhe haverem coberto as pálpebras com uma mistura de cal e saliva para que a operação não surtisse efeito. Operei-o com uma agulha, pelo processo egípcio e com isso aumentou muito a minha reputação. Contudo, algum tempo depois, o homem tornou a perder a vista, pois a cura por meio da agulha é apenas temporária.

Os mercadores e os ricaços de Esmirna levavam uma vida indolente e luxuosa; eram mais gordos do que os egípcios da mesma categoria, sofriam de falta de ar e de cólicas de estomago. Sangrava-os que nem porcos. Quando as minhas drogas acabaram, soube aplicar bem meus conhecimentos quanto à arte de colher ervas nos dias certos e sob fases  propícias da lua e dos astros, pois a tal respeito parcos eram os conhecimentos dos homens de Esmirna e não ousei confiar em seus remédios.

Aliviei os obesos tratando de seus distúrbios intestinais e os poupei de sufocações fornecendo-lhes drogas que lhes vendi a preços graduais de acordo com suas posses. Não me meti em disputas com ninguém; pelo contrário, dei presentes aos médicos e às autoridades da cidade, enquanto Kaptah espalhava informações a meu respeito e distribuía alimento a mendigos e contadores de histórias para que proclamassem louvores e elogios a mim pelas ruas e mercados, evitando que meu nome caísse no  ouvido.

Ganhei grande cópia de ouro. Não gastei nem joguei fora, apliquei-o entre os comerciantes de Esmirna. Estes tinham navios que iam até ao Egito e às ilhas do alto mar e a terra de Hati; assim eu tinha interesses e cotas nos  lucros de uma frota de muitos barcos - uma centésima ou  qüinquagésima parte, conforme os meus meios de então.  Algumas embarcações não eram vistas nunca mais; a maior ia, porém, voltava, e meus lucros então - o dobro ou o triplo do que eu arriscara - era inscrito nos livros de  contabilidade. Este era um costume na Síria, e de todo  desconhecido no Egito. Mesmo os pobres especulavam em tais negócios, e, ou  aumentavam seu pequenino capital, ou empobreciam ainda mais; dezenas e dezenas deles amealhavam suas moedas de  cobre para comprar uma cota de um centésimo da carga ou  do casco de uma embarcação. Assim nunca me foi preciso  guardar ouro em casa como chamariz para salteadores. E  nem me via obrigado a carregá-lo comigo quando viajava  para outras cidades tais como Biblos e Silo por força da  minha profissão.

Em tal caso o mercador me entregava uma lousa de greda a ser aprescutada nas casas de comércio de tais cidades  mercê disso podendo eu obter deles o dinheiro, sempre que  desejasse.

Assim tudo me ia às maravilhas. Prosperava. Kaptah engordava, ficava majestoso dentro de suas novas roupas  caras e se untava com óleos finos. Chegou mesmo a ficar  indolente a ponto de me ver obrigado a esbordoá-lo. Mas a  razão pela qual tudo me corria assim tão bem não sei  dizer.

Apesar de tudo isso eu vivia solitário e a vida não me  proporcionava nenhum prazer autentico. Aborreci até o  vinho, pois este nunca me alegrava, tornando pelo  contrário o meu rosto mais torvo do que se eu lhe  houvesse passado fuligem.

Uma vez tendo bebido, só tinha uma vontade: morrer.  Devido a isso procurei aumentar meus conhecimentos para  que momento algum do dia me encontrasse à toa, pois o  trabalho não me deixava recordar minha vida e meus  feitos; e assim, de noite, dormia como uma pedra.

Interessei-me bastante pelos deuses de Esmirna a fim de verificar se porventura poderiam me evidenciar alguma  verdade que eu ignorasse. Como tudo o mais, tais deuses  diferiam muito dos do Egito. O grande deus deles era  Baal, um deus cruel que exigia sangue humano em paga de  seu favor, e cujos sacerdotes se tinham tornado eunucos.  Esse deus também exigia crianças. Além disso o próprio  mar tinha sede de sacrifícios de modo que tanto os  mercadores como as autoridades tinham sempre que procurar  novas vítimas. Nenhum escravo aleijado era visto jamais e  os pobres eram ameaçados com castigos selvagens ante a  menor ofensa. Assim um pobre homem que furtasse um peixe  para alimentar a família era desarticulado em sacrifício  em cima do altar de Baal.

A divindade feminina desse povo era Astarté, também  chamada Ishtar, como a deusa Ishtar de Nínive. Tinha  muitos seios e lhe mudavam todos os dias as jóias e as  finas vestes. Serviam-na mulheres que por qualquer intento eram conhecidas como virgens conquanto não fosse isso verdade.  Pelo contrário ali se achavam para procurar prazeres - missão essa olhada favoravelmente pela deusa. E quanto  maior fosse o prazer mais ouro e prata eram oferecidos ao templo pelo cliente.

Mas os comerciantes de Esmirna guardavam suas mulheres com grande severidade, fechando-as em casa e vestindo-as  da cabeça aos pés com vestuários espessos para que não  tentassem os estrangeiros. Os homens, porém, visitavam o  templo por causa da variedade e para obter a aprovação  divina. Eis por que em Esmirna não havia alcouces como  nas cidades do Egito. Se as raparigas do templo não eram  do agrado do homem, tinha este que tomar uma esposa ou  comprar uma escrava.

Todos os dias havia leilões de  escravas porque os navios não cessavam de entrar no porto  trazendo mulheres e crianças de todos os tamanhos e  idades e para todos os gostos. Mas as deformadas e  inválidas eram vendidas barato para o sacrifício a Baal  em proveito do conselho da cidade cujos membros riam e se  davam pancadinhas mútuas comentando a esperteza com que  iludiam seu deus.

Não deixei de oferecer sacrifício a Baal já que se  tratava do deus da cidade. A prudência me levava a lhe  render preito. Como eu era egípcio não lhe levei oferendas humanas; dei-lhe ouro. Visitava às vezes o templo de Astarté que  se abria de tarde; ficava a ouvir música e a contemplar  as sacerdotisas - que não chamarei de donzelas - enquanto  elas dançavam voluptuosamente para a glória da deusa.

Como era costume, eu me deitava com elas, admirando-me das novidades que me ensinavam; e eu consentia sem grande prazer nem interesse, apenas por curiosidade. Depois que me ensinaram suas práticas me saturei e deixei de visitar  o templo. A meu ver não havia divertimentos mais  monótonos do que os que ali se praticavam.

Kaptah deu em se preocupar por minha causa, porque o meu rosto ia perdendo a mocidade, as rugas começavam a aparecer na minha testa e meu coração permanecia fechado. Seu desejo era que eu adquirisse uma escrava para preencher meus momentos de ócio. E conzo era ele que  tomava conta da casa e movimentava meu dinheiro comprou para meu uso uma rapariga, valendo-se para isso  do seu próprio gosto. Lavou-a, vestiu-a, perfumou-a e trouxe-a perante mim de noite quando, exausto do trabalho do dia, meu único  desejo era ir para a cama em paz.

A rapariga era das ilhas do alto mar. Criatura média,  de pele branca, dentadura perfeita e olhos redondos e  belos como os de uma vitela. Ficou a me olhar com  veneração e mostrou medo da cidade desconhecida para onde  a haviam trazido. Kaptah exaltou-lhe os encantos com  muita seriedade; só para satisfaze-lo fiquei com ela.  Ainda assim, embora procurasse fazer tudo para sair da minha solidão, não consegui me  distrair, impossível me tendo sido até chamar a pobre criatura de "minha irmã".

Errei em me mostrar bondoso para com ela, pois se  tornou arrogante, chegando até a atrapalhar as minhas  consultas médicas. Comia muito, deu em engordar, não  havia ornatos e vestidos que a satisfizessem. Além disso  vivia atrás de mim exigindo que a tomasse a todo  instante. Não foi sem propósito que fiz viagens ao  interior e às cidades do litoral.

Assim que eu regressava  ela era a primeira a ir ao meu encontro com lágrimas e  perseguições. Não adiantava esbordoá-la: tornava-se mais excitada do que antes. A vida tornou-se intolerável em minha casa.

Mas o escaravelho me trouxe sorte, pois um dia o rei Aziru, soberano da província remota de Amurru, me  procurou.

Tratei-lhe dos dentes. Substituí-lhe um canino por um outro de marfim, já que o rei levara uma pancada no maxilar durante uma batalha e obturei-lhe outros dentes estragados, com ouro. Enquanto permaneceu na cidade em conferencia com as autoridades sobre negócios administrativos, me visitava diariamente.

Conheceu a minha escrava a quem eu chamava Keftiu à moda das ilhas distantes; não conseguia pronunciar-lhe o  nome gentílico e simpatizava com ela. Esse, Aziru tinha  pele branca e era forte como um touro; a sua barba era de um azul escuro e lustroso, e seus olhos  possuíam um brilho atrevido o que fez Keftiu principiar a  olhá-lo com desejo; sim pois as mulheres sempre se  cativam pelo que é novo.

Ele lhe admirava acima de tudo  as formas opulentas; e as vestes, que ela usava à maneira  grega, o excitavam profundamente. Tais vestes lhe cobriam  a garganta mas lhe deixavam nu o peito, e o rei estava  acostumado a ver as mulheres sempre cobertas com véus  desde a cabeça até aos tornozelos.

Acabou não podendo mais conter seu desejo e suspirando majestosamente me disse:

- Não resta dúvida, meu amigo Sinuhe, o Egípcio, que  sois meu amigo; consertastes minha boca fazendo-a  refulgir com lâminas de ouro sempre que a abro, e isso  enaltece a minha dignidade na terra de Amurru. Devido a  isso vos darei presentes de tal ordem que erguereis as  mãos, admirado. Ainda assim me vejo obrigado a vos causar  um desgosto, involuntariamente. Desde que pus meus olhos  sobre a mulher desta casa gostei tanto dela que não posso  mais conter o desejo que me empolga. É como se ela me  dilacerasse como um gato selvagem! Nem todas as vossas  artes, Sinuhe, poderão me curar desta doença. Nunca vi  criatura igual a ela e imagino vossa ternura quando ela  aquece vosso leito de noite. E a verdade é que desejo que  me cedais para que eu a tome como mulher entre as demais  que já possuo e a resgate. Digo-vos isto com a maior  franqueza porque sois um homem justo e vos pagarei o que  pedirdes. Mas desde já vos declaro que se não me cederdes de bom grado virei e a tomarei à força e a levarei para a  minha terra onde jamais a achareis caso ouseis ir  procurá-la.

Ao ouvir tais palavras levantei as mãos, cheio de  contentamento; mas Kaptah, que estava a ouvir, arrancou  os cabelos e começou a deblaterar:

- Amaldiçoado seja este dia! Melhor fora que o  patrãozinho não tivesse nascido a ter que assistir a este despropósito: perder a única mulher capaz de lhe  proporcionar prazer. E nem preço algum remediará nada  porque para o meu senhor ela vale mais do que todo o ouro  do mundo...do que todas as jóias, todo o incenso... E é  mais bela do que a lua cheia e o seu ventre é redondo e  alvo como um feixe de trigo - embora nunca o tenhais  visto - e os seus seios são como melões conforme vossos  próprios olhos se podem certificar.

E foi por aí além falando, pois desde sua chegada a  Esmirna aprendera com os mercadores a ser loquaz e a  preparar clima para um preço alto, muito embora ele e eu  não desejássemos outra coisa senão nos vermos livres  daquela criatura.

Quando Keftiu ouviu tal perlenga  desandou a chorar também, dizendo que não queria me  deixar, que jamais faria isso... Mas enquanto chorava  olhava com admiração para o príncipe principalmente para  aquela barba ondulada. Contemplava-o por entre o vão dos  dedos.

Ergui as mãos e tendo conseguido silencio, assumi uma expressão grave:

- Aziru, rei de Amurru e meu amigo! Confesso que esta mulher é cara ao meu coração e que a chamo de irmã. Mas vossa amizade me é mais cara do que tudo o mais e é  exatamente esta minha amizade que me leva a vo-la  entregar sem pagamento algum. Rogo-vos que a aceiteis e  que façais com ela tudo quanto o vosso gato selvagem  interior exigir... Sim, pois se não me equívoco, o  coração dela propende para vós. Ela vai ficar contente porque em seu corpo miam também muitíssimos gatos selvagens.

Azirru exclamou alto, tomado de júbilo:

- Ah! Sinuhe! Muito embora sejais egípcio e todos os males vem do Egito, doravante sois meu irmão e meu  amigo. Através de toda a terra de Amurru vosso nome será  abençoado. Como meu hóspede e conviva sentar-vos-eis à  minha direita em detrimento de todos os mais, mesmo que  sejam reis. Juro!

Riu e o ouro dos seus dentes cintilou. Depois, ao olhar para Keftiu, que já parara de chorar, o semblante  do rei mudou. Fitou-a com olhos fulgurantes, segurou-a pelos braços.  Os seios de Keftiu balançavam. Ergueu-a indiferente ao peso, jogou-a para dentro da liteira. E assim, partiu; e  nem eu, nem ninguém mais, o vimos durante algum tempo  porque se fechou em seus aposentos durante três dias e  três noites. Kaptah e eu rejubilamos vendo-nos livres de tal carga Meu escravo, porém, me repreendeu severamente por eu não  haver cobrado nada, pois Aziru me teria dado tudo quanto  eu pedisse. Expliquei-lhe:

- Não vês que lhe dando a rapariga assegurei uma amizade real?! Nunca se sabe o que o dia de amanhã nos pode trazer. Apesar da terra de Amurru ser pequena e  insignificante, constituída apenas por pastagens para  burros e ovelhas, ainda assim a amizade de um rei é  amizade de rei e deve valer mais do que o ouro.

Kaptah meneou a cabeça, mas untou o escaravelho com mirra e colocou esterco fresco diante dele à guisa de  oferenda e gratidão por nos haver desembaraçado de  Keftiu.

Antes de voltar para a sua terra, Aziru me visitou e,  fazendo uma mesura até ao chão, disse:

- Não vos ofereço nada, Sinuhe, pois o que me  outorgastes não pode ser recompensado com donativos. A  rapariga é mais sedutora ainda do que eu supunha. Tem uns olhos que parecem poços sem fundo, e não estou cansado dela muito embora tenha premido minhas sementes tal qual se espreme óleo das azeitonas. Para ser franco devo dizer que o meu país não é rico e que o único modo pelo qual consigo ouro é cobrando imposto dos mercadores que o atravessam ou guerreando os meus vizinhos... Mas depois acorrem os egípcios que nem varejeiras; e muitas vezes  perco mais do que ganho. Assim pois, não posso vos  oferecer os donativos que vossos méritos exigiriam.  Contudo, prometo que caso apareçais na minha terra vos receberei com as maiores honrarias e que tudo quanto  pedirdes de mim vos darei caso esteja em minhas posses  vos servir... contanto que não me peçais nem Keftiu nem  cavalos, pois disponho de poucos e necessito deles para  os meus carros de guerra.  Se algum homem vos ofender mandai-me dizer e a minha gente o dilacerará, seja ele quem for. Ninguém saberá e vosso nome não será proferido no negócio. Eis o tamanho da minha amizade por vós.

Dito isto, abraçou-me à maneira síria. Vi que me admirava com real apreço, pois tirou do pescoço sua corrente de ouro e a prendeu no meu, sem deixar de  mostrar com um grande suspiro o enorme sacrifício que  isso representava para ele. Em compensação tirei do pescoço uma corrente de ouro que o mais rico armador sírio me dera por lhe haver salvo a mulher durante o  difícil trabalho de parto e com ela lhe cingi o pescoço. Assim pois, ele não perdeu com a troca e isso o  sensibilizou sobremaneira. Posto o que, nos despedimos.

Vendo-me livre de tal mulher, deixei que meu coração ficasse leve como um pássaro. Meus olhos ansiavam por ver coisas novas e eu estava repleto de inquietude e desejo  de me safar de Esmirna. Voltara mais uma vez a primavera. A terra estava fresca e verde; folhas repontavam nas  árvores; por toda a parte arrulhos de pombos em beirais e  coaxar de rãs nos poços. No porto, navios se aprestavam  para longas viagens.

Com a primavera se espalhou também a nova de que os  cabírios tinham acorrido dos desertos em enxames e estavam devastando as fronteiras sírias do sul até ao  norte, queimando aldeias e saqueando cidades, mas os  exércitos do faraó vieram também, atravessando o deserto  de Sinai através de Tanis, e estavam dando combate aos  cabírios. Capturaram os chefes e repeliram o inimigo outra vez para o deserto. Isso acontecia em todas as primaveras, desde  séculos.

Desta vez, todavia, os cidadãos de Esmirna  ficaram preocupados porque a cidade de Katna, guarnecida  por tropas egípcias, tinha sido invadida o seu rei  perecera, e todos os egípcios haviam sido passados pela  espada sem misericórdia sequer pelas mulheres e crianças,  e sem que quaisquer prisioneiros tivessem sido tomados  como reféns. De tal coisa jamais se tivera notícia antes,  pois os cabírios costumavam evitar as cidades  fortificadas.

A guerra alastrava-se pela Síria e eu jamais vira uma guerra. Fui pois me juntar às forças do faraó, decidido a verificar se testemunhava alguma verdade que até então me fora vedada e a estudar também os ferimentos infligidos pelas clavas e demais armas de guerra. Mas a razão  essencial da minha ida residia no fato de Horemheb ser o  comandante das tropas e eu, dada a minha solidão,  desejava rever o rosto de um amigo e lhe ouvir a voz.  Tendo percorrido a costa a bordo de um navio, penetrei  região adentro com a coluna de abastecimento, em meio a  bois carregados de cereais e jumentos carregados com  botijas de óleo e vinho e sacos de cebolas.

Chegamos a uma pequena cidade edificada sobre uma colina e  circundada de muralhas e cujo nome era Jerusalém. Estacionava ali uma pequena guarnição egípcia junto da  qual o próprio Horemheb instalara seu quartel-general.  Mas os boatos que haviam chegado à Síria eram muito exagerados quanto à quantidade dessa força armada que, aliás, compreendia apenas um esquadrão de carros de combate e alguns milhares de archeiros e lanceiros, ao passo que, segundo se dizia, as hordas cabírias eram  incontáveis como as areias do deserto.

Horemheb recebeu-me numa imunda cabana de barro. dizendo-me:

- Conheci há tempos um outro Sinuhe. Também era médico. E muito amigo meu.

E fitava-me, sem me reconhecer devido à túnica síria que eu usava. Como ele, eu também mudara de feições, parecia ter mais idade. Mas em dado instante percebeu seu engano, riu, ergueu seu chicote com cabo de ouro,  saudando-me.

- Ammon, Ammon! Pois se trata do próprio Sinuhe! E eu que te cuidava morto!

Pos para fora o bando de oficiais e escribas com seus mapas e papéis, mandou vir vinho.

- Formidáveis são os processos de Ammon que me fez te encontrar de novo e exatamente na Terra Vermelha, imunda e miserável cidade!

Ao ouvir isto meu coração se comoveu, pois me lembrei que me esquecera de todo daquele meu amigo. Contei-lhe quanto julguei conveniente a respeito da minha vida e das minhas aventuras e ele disse:

- Vem participar conosco das honras da guerra!  Pretendo dar a esses piolhentos cabírios tamanha escaldaduras que eles jamais hão de me esquecer e amaldiçoarão o dia em que nasceram. Eu era um rapazola imberbe quando nos vimos a primeira vez; tu eras um homem  do mundo e me deste bons conselhos. Aprendi... instrui-me  e agora, conforme vês, trago na mão um chicote com cabo  de ouro. Mas o ganhei no degradante serviço de membro do  corpo da guarda do faraó, dando cabo dos assaltantes e  convictos que ele, em sua loucura, libertou das minas.  Quanta trabalheira nos deram antes que os liquidássemos  de vez! Quando vim a saber que os cabírios estavam  atacando, pedi ao faraó que me desse tropas para repeli-los. Nenhum oficial de posto maior pretendeu competir comigo no comando porque riquezas e honras chovem mais profusamente na vizinhança do faraó do que  nas lonjuras do deserto... De mais a mais os cabírios  tem lanças pontiagudas e soltam brados de guerra  medonhos, conforme estou farto de averiguar. Pelo menos  me foi dado ensejo de ganhar experiência e de exercitar minhas tropas em batalhas genuínas. Pois, apesar de tudo isso, sabes com que é que se está encomendando o faraó? Quer que eu construa aqui em Jerusalém um templo ao seu novo deus e que expulse os  cabírios sem derramamento de sangue!

Horemheb deu uma gargalhada e me obrigou a rir também enquanto soltava uma lambada com o chicote na própria perna.

Depois ficou calado e, após nos servirmos de vinho novamente, prosseguiu:

- Não há negar, Sinuhe, que mudei um pouco depois do nosso encontro. Aliás isso tem que acontecer a um homem na presença do faraó. Mudará, quer queira, quer não queira. Ele me conturba, porque seus pensamentos são  profundos... E as suas palavras... Só fala do seu deus,  que é diferente de todos os outros deuses. Isso me deixa  com a sensação de ter formigas no cérebro. Era-me  impossível dormir a não ser tomando vinho e tendo uma  mulher junto de mim para me aliviar a cabeça, tão  esquisita é essa divindade do faraó. Trata-se de um deus sem forma pois tem que estar em  toda parte ao mesmo tempo. Sua imagem é um círculo; tem  mãos apenas. com as quais abençoa tudo quanto criou.  Perante ele escravo e senhor são iguais. Responde-me  Sinuhe, não te parece isso sonhos de homem doente? Chego a desconfiar que ele tenha sido mordido por uma vespa furiosa quando era criança... pois só mesmo um  maluco pode achar possível a derrota dos cabírios sem  derramamento de sangue!

Tornou a beber.

- O meu deus é Horus e muito menos sou contra Ammon. Confesso que acho que Ammon se tornou poderoso demais, e que o novo deus foi instituído em oposição a ele, a fim  de reforçar a soberania do faraó. Foi o que a própria  Rainha-Mãe me disse, e Ele tratou de divulgar. Sim, Eie,  o sacerdote que sustenta o cajado preso na mão direita do  rei. Pretendem com a ajuda de Aton derrubar Ammon ou pelo menos lhe limitar o poder pois não está certo que os  sacerdotes de Ammon governem o Egito por cima da cabeça  do faraó. Isto é uma política acertada e, como guerreiro, compreendo que seja indispensável um novo  deus. Se o faraó se contentasse apenas em levantar  templos a ele e contratar sacerdotes para tais serviços,  eu não me queixaria de nada. Mas o faraó pensa e fala demais no tal deus. Em tudo quanto é ocasião, mais cedo ou mais tarde, ele envereda a conversa para tal assunto e com isso torna os que o  cercam ainda mais malucos do que ele. Declara que vive  pela verdade... Mas a verdade é uma faca afiada nas mãos  de uma criança. Ora, uma faca deve ser conservada em sua bainha e utilizada apenas quando for necessário. O mesmo se dá com a verdade. E para ninguém é ela, a verdade,  mais perigosa, do que para um soberano.

Virou outro gole de vinho.

- Agradeço ao meu falcão ter conseguido deixar Tebas, porque tal cidade está fervilhando como um ninho de  serpentes por causa disso e eu não desejo me envolver em  contendas entre deuses. Os sacerdotes de Ammon já estão espalhando uma série formidável de histórias relativas às origens do faraó e fomentando sedições contra o novo  deus.    O seu casamento também causou indignação porque a  princesa de Mitani, que ainda brincava com bonecas,  morreu de repente e o faraó elevou Nefertiti, a filha do  sacerdote, à categoria de sua consorte. Certamente essa Nefertiti é bela e se veste bem, mas é muito voluntariosa e se porta em tudo como filha de tal pai.

- Como foi que morreu a princesa de Mitani? -  perguntei, porque vira essa criança assustada, de olhos  arregalados, olhando para Tebas ao ser transportada sob  um dossel e adornada como uma imagem ao longo da Avenida  dos Carneiros rumo ao templo.

- Os médicos disseram que ela estranhou o clima - disse ele, rindo. - E isso é uma deslavada mentira, pois toda  gente sabe que não existe país de clima mais sadio do que  o Egito. Mas tu próprio sabes bem que a morte entre as crianças reais é de alto índice... Mais alto do que no setor das  crianças pobres, embora pareça inacreditável. O mais  prudente é não citar nomes; mas eu deteria o meu carro  diante da casa do sacerdote Eie, se fosse necessário.

Depois disso nos estiramos na tenda para dormir.

De manhã acordei ao som de trombetas e vi os soldados se reunindo em companhias enquanto os sargentos corriam para cima e para baixo ao longo das fileiras, soltando  brados, sacudindo-os e atiçando-os com seus chicotes.  Depois que tudo ficou organizado, Horemheb deixou sua  cabana suja, com o chicote na mão e um criado erguia uma  umbela acima da sua cabeça e enxotava as moscas com um  abanador à medida que ele se dirigia aos soldados.

- Soldados do Egito! Conduzo-vos hoje ao campo de  batalha, porque minhas patrulhas acabam de me comunicar que os cabírios estão acampados atrás dos montes. Qual seja o número deles não sei dizer, porque as patrulhas  voltaram a correr acossadas por eles e não se detiveram  para fazer o cálculo. Tomara que sejam em número  suficiente para liquidar com todos vós poupando-me assim  ao aspecto miserável de vossas faces e possibilitando a  minha volta ao Egito de modo a levantar um exército de  homens verdadeiros que se comprazam com a guerra e os  seus despojos.

Encarou selvagemente as tropas e seu olhar surtiu  efeito. Ninguém ousou sequer pestanejar.

- Levar-vos-ei ao campo de batalha e vereis  pessoalmente que seguirei na vossa frente depressa em  lugar de me quedar um instante que seja para ver se me  seguis. Sim, pois sou filho de Horus e o falcão irá  voando na minha frente. Meu intento é vencer os cabírios,  mesmo que tenha que fazer isso sozinho. Aviso-vos, no entanto, que esta tarde o meu chicote fará gotejar muito sangue, pois açoitarei com as minhas próprias mãos todo aquele que não me houver seguido. E de uma coisa podeis ficar sabendo desde já: que o meu  chicote lanha mais profundamente do que as adagas dos cabírios que são de cobre ordinário e quebradiço. Em que  é que os cabírios são terríveis?! Em nada, absolutamente. Apenas no berreiro que fazem e que é deveras medonho.  Mas se entre vós há alguém que trema ao som de gritos que encha os ouvidos com cal. Não vos metais na batalha como  mulheres apatetadas... Fingi pelo menos que sois homens. Usais calças e não saias. E se derrotardes os cabírios  dividireis entre vós todo o gado deles e tudo mais que  possuem e que não é pouco já que saquearam muitas  cidades. Podereis também dividir entre vós as mulheres  deles. Parece-me que podereis rolar pelo chão com elas  esta noite, pois as mulheres cabírias são fortes,  bonitas e se entregam aos guerreiros corajosos.

Horemheb calou-se um pouco e percorreu o olhar pelos seus homens que em uníssono soltaram um grande brado e  feriram os escudos com as espadas e soergueram os arcos. Sorriu e, dando uma lambada no ar com o chicote, continuou:

- Dou-me conta que anciais por vos verdes  estraçalhados. Não? Por estraçalhar? Está bem! Mas antes temos que consagrar o novo templo ao novo deus do faraó, Aton.  Trata-se de um deus que é por natureza pacífico, e não me  parece que simpatizareis com ele. Por conseguinte, a  força principal romperá em marcha e as reservas quedarão  aqui para a cerimônia da consagração e para a obtenção do  favor do faraó em prol de nós outros que vamos lutar.

As tropas o acharam outra vez, principiando a sair da cidade em desordem, nada companhia seguindo o seu  estandarte suspenso no alto de uma haste. Os emblemas  eram caudas de leões e cabeças de falcões e crocodilos; e  seguiam na frente de todos rumo a batalha. Carros leves  seguiam adiante para abrir caminho. Mas os oficiais  encarregados do alto comando ficaram atrás com as  reservas e acompanharam Horemheb ao templo que se erguia  numa eminência das imediações da cidade.

Era um templo pequeno e construído com troncos. Tinha sido levantado à  pressa com madeira e barro. Era diferente dos outros  templos, sendo aberto no meio onde jazia o altar. Não se  via nenhum deus, o que fez a soldadesca ficar admirada e  procurar em volta.   

Horemheb disse-lhes:

- Trata-se de um deus circular, como o disco do sol. Olhai pois através da abertura central e fitai o céu se é  que vossos olhares podem suportar o revérbero. Ele  estende as mãos sobre vós, abençoando-vos, muito embora  minha mente me garanta quase que hoje, depois da vossa  marcha, os dedos dele hão de punir vossas costas como  agulhas em brasa.

Os soldados comentaram que esse deus do faraó era  demasiado distante. Desejavam um diante do qual pudessem se prostrar e até mesmo tocar com as mãos caso ousassem  objetivar essa vontade. Mas permaneceram calados e um  sacerdote avançou até a frente.

Um jovem magro, sem  crânio raspado, com uma túnica branca lhe descendo dos  ombros.Tinha uns olhos claros e sagazes. Diante do altar  fez ofertas de flores primaveris, óleo e vinho, o que  acabou provocando risadas entre a soldadesca. O sacerdote  também cantou um hino a Aton e que, segundo constava,  tinha sido composto pelo faraó. Era um hino comprido e  monótono, e todos os escutavam de boca aberta não  compreendendo quase nada.

“Belíssimo és tu por sobre o horizonte,  

Radioso Aton, fonte de todas as coisas vivas!

Quando te levantas na banda oriental dos céus todas as terras se enchem com o teu resplendor.

Belo és tu, grande és tu, radiante por sobre o mundo.

Teus raios abraçam todas as terras por ti criadas e assim unidas juntas pelos raios do teu amor.

Tão longe estás e todavia teus raios tocam o chão; 

Tão alto estás e todavia as solas dos teus pés se  movem sobre o pó.”

 

O sacerdote, cantando, se referiu às trevas, aos leões  que saem de seus antros durante a noite, às serpentes; e muitos dos que ouviam se encheram de susto. Depois cantou a claridade do dia e declarou que quando os  pássaros abrem as asas de manhã o fazem em adoração a  Aton. Explicou também que esse novo deus apressava o  desenvolvimento da criança na matriz geradora e dava  fertilidade à semente do homem. Ouvindo-o se tinha a  impressão de que não havia a menor coisa no mundo que não  procedesse de Ato, não podendo sequer um pintainho romper  sua casca e piar sem o auxílio de Ato. E assim terminou o sacerdote:

“Só tu pompeias no âmago do meu coração;  

E ninguém jamais te ouviu senão o Rei, teu filho.

Divides com ele teu pensamento e o unges com teu   poder.

O mundo jaz entre tuas mãos, pois o criaste;

Mercê de tua luz é que vivem os homens,  

E se escondes deles teu semblante, então perecem.

Tu és a vida e através de ti é que vivemos.

Todos os olhos estão voltados para tua glória  

Até a hora em que te recolhes, imenso.

Cessa todo o labor quando declinas no poente.

Desde que criaste o mundo o preparaste.

Para a vinda de teu filho bem-amado,  

Pois nasceu do teu flanco radioso  

O rei que vive só em prol da verdade,  

O senhor dos Dois Reinos, o filho de Ra,  

Que vive só para disseminar a verdade.

Pois para o Senhor das Tiaras criaste o mundo  

Bem como para a sua grande consorte bem-amada,  

Nefertiti, a rainha dos Dois Reinos,  

Que florescerão por todos os séculos dos séculos!...”

 

Os soldados ouviam e esfregavam os artelhos na areia. Quando o cântico terminou, eles, aliviados, deram um  brado em louvor do faraó porque tudo quanto tinham podido  inferir daquele hino era apenas isso: saudá-lo como o  filho de deus, conforme convinha por direito antiqüíssimo  e eterno.

Horemheb despediu-se do sacerdote que, radiante por  causa da aclamação das tropas, foi tratar de escrever ao  faraó um relato do acontecimento.

Os homens puseram-se em marcha, seguidos por juntas de bois e récuas de burros levando cargas. Horemheb seguiu no seu carro, bem na vanguarda, enquanto os outros  oficiais se deixavam levar em liteiras, queixando-se da  canícula. Eu me contentara em ir no dorso de um burro, conforme também fez o quartel-mestre, meu amigo. Levava comigo a minha caixa de medicamentos ciente de que teria que me utilizar dela.

A coluna marchou até ao fim da tarde, apenas tendo  parado um pouco para comer e beber enquanto descansava. Vários soldados ficaram com as solas dos pés em petição  de miséria e se jogavam nas margens da estrada, incapazes  de levantar não obstante os pontapés e as chicotadas dos  sargentos. E a tropa ora cantava ora soltava imprecações.  A medida que as sombras se iam estendendo começou a praga dos dardos arremessados dos penhascos que ladeavam a  estrada. Gritos irrompiam num e noutro trecho; um homem traspassado no ombro; outro caindo de chofre. Não houve ordem de Horemheb para se socorrer as vítimas ou procurar os emboscados. Compeli a coluna a prosseguir cada vez mais depressa em trote acelerado. Os carros leves iam  abrindo caminho, e não tardou que víssemos nas margens da  estrada corpos de cabírios com suas túnicas em  frangalhos, com as bocas e os olhos pululando de moscas.

Alguns dos nossos homens se ajoelharam para revirar  tais corpos querendo saqueá-los, mas não encontraram  nada.

O quartel-mestre suava montado no burro e me rogou que transmitisse a sua mulher e a seus filhos suas  derradeiras saudações, pois sentia que a sua última hora  estava chegando. Disse-me onde eu poderia encontrar sua  mulher em Tebas, e solicitou que eu não deixasse ninguém  saquear seu cadáver - caso eu não morresse junto com  todos aquela noite.

Acrescentou esta observação com um  sinistro movimento de cabeça.  Por fim se abriu diante de nós a grande planície onde  os cabírios estavam acampados. Horemheb deu ordem que as cornetas tocassem dispondo assim as tropas para o ataque. Os lanceiros ficaram no centro e os archeiros nos  flancos. Os carros com exceção de uns poucos mais pesados, foram despachados a exercer um certo mister mais além, e  investiram com tal velocidade que nuvens de poeira se  soergueram escondendo-os. E logo se levantou dos vales  situados atrás dos montes densa fumaça de aldeias em  chamas. Irrompendo contra nós na planície, os cabírios  pareciam incontáveis, e seus brados e guinchos enchiam os  ares durante o avanço sobre nós, suas adagas e escudos  fulgurando ameaçadoramente na claridade.

Horemheb disse com seu vozeirão:

- Enrijai vossos joelhos, camaradas, pois entre essa  chusma toda raros são os que sabem combater, tudo quando  vedes não passando quase de mulheres crianças e gado...  que serão vossos antes de anoitecer. Lembrai-vos que nos  panelões deles vos espera um jantar quente. Avante, pois,  esfomeados! Sim, pois até eu já estou com uma fome de  crocodilo!

E as hostes cabírias vinham em número maior do que nós, cada vez se aproximando mais. Suas lanças pareciam fusos à luz do sol e não achei nenhum encanto nessa perspectiva de batalha. As fileiras de nossos infantes ondulavam  presenciando como eu aquela investida vinda de todos os  lados.

 Os sargentos fizeram vibrar seus chicotes e suas  imprecações. Pareceu-me que os homens estavam exaustos demais para virar e fugir, pois se aglutinaram; os archeiros puxaram  nervosamente seus arcos à espera do sinal.

Tão logo os cabírios ficaram ao nosso alcance soltaram  seu uivo de guerra; um guincho tão medonho que o sangue  me fugiu da cabeça e minhas pernas se petrificaram.  Instantaneamente eles atacaram, deixando voar seus dardos  enquanto acometiam. As flechas faziam buzt, buzt... como  zumbir de insetos.

Jamais ouvi ruído mais apavorante do que o das setas passando perto dos meus ouvidos. Ao verificar  no entanto, o dano quase nulo que elas produziram  recobrei coragem. De fato, ou voavam bem acima de nossas cabeças ou eram interceptadas pelos escudos. Então  Horemheb bradou:

- Segui·me, canalha miúda!

Os condutores dos carros militares brandiram as rédeas e embarafustaram atrás do carro de Horemheb; os archeiros soltaram de uma só vez os seus dardos, enquanto os  infantes, com suas lanças e espadas avançaram  acompanhando os carros. Um clamor irrompeu de todas as  gargantas, e bem mais aterrador ainda do que o uivo dos  cabírios, porque cada homem procurava com isso recuperar  ânimo e afugentar o pânico. Dei comigo vociferando em  altos timbres, verificando logo que isso me trazia grande  alívio.

Os carros avançavam com estardalhaço por entre os  cabírios atacantes e bem na vanguarda, por sobre os  redemoinhos de poeira e o arremesso de lanças, fulgurava  o elmo de Horemheb com seu penacho. Na ressaga dos carros  atacavam os lanceiros guiados por seus estandartes de  batalha - caudas de leões e cabeças de falcões - enquanto  os archeiros se alastravam pela planície descarregando  dardos contra o inimigo atordoado. De então por diante  tudo se tornou uma confusão medonha de golpes, estrondos,  celeumas e estardalhaços. Flechas assobiavam passando por  mim; o meu jerico zurrava e corcoveava no centro da luta,  e eu o chamava a ordem e o esporeava com os calcanhares,  quase caindo; mas não conseguia dominá-lo. Os cabírios  lutavam resolutamente e sem medo, e os que caíam e eram  pisados pelos cavalos ainda golpeavam com suas adagas os  que os atacavam, e mais de um egípcio foi morto ao se  abaixar para cortar a mão da sua vítima em sinal de  triunfo. A exalação de sangue era maior do que a do suor  dos soldados, e corvos começaram a descrever círculos no  céu em bandos crescentes.

De repente os cabírios soltaram vociferações de raiva e iniciaram uma retirada geral porque perceberam que os  tais carros que haviam saído antes do começo da luta  estavam agora talando seus acampamentos, isto é, atacavam  as mulheres e punham em debandada o gado. A vista disso,  não lhes sobrou outro recurso senão ir salvá-los, a  surpresa, porém, lhes dificultando tal intento. Os carros  faziam giros por sobre eles, disseminando-os, ficando o  restante da ação a cargo dos infantes com suas lanças e  espadas. Quando o sol descambou a planície estava cheia  de cadáveres de mãos, cortadas, o acampamento ardia em  chamas e de todas as bandas nos chegava o mugir do gado  assustado.

No delírio da vitória os nossos homens prolongaram a carnificina, enfiando as lanças em tudo quanto viam, matando homens que já haviam deposto suas armas, fazendo saltar os miolos de crianças a golpes de clavas, e  desferindo flechas aloucadamente sobre as manadas em  galope estonteado, até que Horemheb ordenou que as  trombetas tocassem; foi só então que oficiais e  subalternos voltaram à realidade e começaram a aglomerar  a tropa, brandindo seus chicotes. Mas o meu jerico maluco  ainda galopava pelo campo de batalha sacolejando-me no  seu lombo como um saco de farinha, a ponto de eu nem  saber se estava morto ou vivo. A soldadesca se pos a  caçoar de mim até que alguém deu uma pranchada no focinho  do meu burro fazendo-o parar para que eu saltasse logo.  De então por diante passei a ser conhecido entre eles  como o Filho do Burro Bravo.

Os prisioneiros foram postos aos bandos em curros, as armas foram ensarilhadas e gente foi designada para  ajuntar o gado solto. Tão numerosos eram os cabírios que  muitos deles conseguiram fugir. Avisado disso, Horemheb  respondeu que os tais correriam ainda a noite inteira e  tão cedo não teriam pressa de voltar. A luz das tendas  que ardiam e ao revérbero dos fardos de forragem foi  trazida a arca sagrada e colocada diante de Horemheb.  Este a abriu e tirou lá de dentro a imagem de Sekhmet, o  deus com cabeça de leão cujo peito esculpido proeminava  majestosamente à luz das fogueiras. Os soldados, tomados  de grande júbilo, a salpicaram com gotas de sangue de  suas feridas e arremessaram para cima dela as mãos que  tinham cortado aos cabírios como prova de conquista. Formaram com elas um verdadeiro monte, muitos trazendo  quatro e cinco. Horemheb distribuiu correntes e  braceletes entre eles e promoveu ali mesmo os mais valentes. Estava sujo de poeira, manchado de sangue, com o chicote molhado, mas seus olhos sorriam percorrendo os seus guerreiros enquanto, radiante, os  cognominava de rufiões e trapaceiros.

Trabalho não me faltou, pois as adagas e as clavas dos cabírios tinham produzido ferimentos horríveis. Trabalhei aproveitando a luz das tendas que ardiam; os gritos dos  feridos se misturavam com os das mulheres que em grandes bandos eram arrastadas pelos soldados. Lavei e tapei  muitas feridas, fiz reentrar entranhas que emergiam de  ventres, endireitei lábios e couros cabeludos. Aos que  estavam em perigo irremediável de morte certa dei a beber  narcóticos para que morressem em paz durante a noite.

Cuidei também de muitos cabírios cujos ferimentos  graves haviam impedido a fuga, limpando e ajeitando suas  feridas.

Por que motivo fiz isso, nem sei. Talvez porque assim  Horemheb pudesse obter preço mais alto ao vende-los como escravos. Vários desses cabírios, no entanto, se  irritaram com o meu socorro e preferiam abrir outra vez  as feridas quando ouviam o choro dos filhos e as  lamentações das suas esposas raptadas. Procuravam soltar  as pernas amarradas, puxavam a roupa por cima das  cabeças, ficavam sangrando mortalmente.

Ao ver isso me senti menos orgulhoso da vitória do que momentos antes. Afinal de contas os cabírios não passavam de um miserável povo do deserto tentado pelo gado e pelo trigo do vale, pela qual razão excursionavam assim  desesperadamente pela Síria. Quase todos eram  esqueléticos e apresentavam doenças de olhos. Conquanto  fossem valentes em guerra e deixassem na retaguarda  aldeias em fogo, não pude deixar de sentir compaixão  quando os vi cobrir as cabeças com frangalhos enquanto  morriam.

No dia seguinte procurei Horemheb e pedi para instalar um acampamento adequado onde os soldados que haviam recebido ferimentos mais graves pudessem se restabelecer, pois se fossem levados diretamente para Jerusalém pela  certa pereceriam no caminho.

Horemheb agradeceu meu auxílio e disse:

- Jamais cuidei que tivesses tanto valor quanto  demonstraste ontem, investindo em plena batalha assim  montado em teu burro frenético. Não aceitaste a noção  preestabelecida de que a função do médico, nas guerras,  começa depois de acabada a batalha. Sei que, os meus  homens te apelidaram de o Filho do Burro Bravo e, se  quiseres, te levarei doravante à batalha no meu próprio  carro de combate. Futuro propicio te deve aguardar já que  tiveste a sorte de sobreviver, muito embora não  estivesses munido de espada nem de clava.

- Os teus soldados gabam teu nome e juram que te  seguirão para onde os conduzas! - disse eu, para  envaidece-lo. - Mas como é que não estás ferido sequer tendo  investido sozinho por entre a espessura das adagas? És  protegido por algum poder mágico, ou é porque não sentes  medo?

- Sei que estou destinado a realizar grandes feitos. De que forma sei isso, não te posso dizer. Um guerreiro ou  tem a boa sorte ao seu lado, ou não a tem, e eu sempre a  tive desde que o falcão me conduziu perante o faraó.  Verdade é que o meu falcão não gostou do palácio, fugiu e  nunca mais voltou. Mas enquanto marchávamos através do  deserto de Sinai suportando grande fome e maior sede - eu também, pois gosto de sentir o que a minha gente sofre  para assim poder ter domínio sobre ela - vi num vale uma  sarça ardente.  Tratava-se de fogo vivo modelado como uma árvore. Não  se consumiu; pelo contrário, ardeu dia e noite. A terra em redor desprendia um cheiro que me impregnou e me inspirou contínua coragem. Eu podia ver a sarça  ardente porque marchava na frente das minhas tropas  decidido a caçar animais ferozes do deserto. E ninguém  mais a viu, salvo o homem que conduzia o meu carro; ele  pode testemunhar se tal aparição foi verdade ou mentira.  Pois bem: desde tal momento me certifiquei de que nenhuma  espada, nenhuma lança e nenhuma clava me tocarão antes da  minha hora marcada.

Acreditei na sua narração e fiquei tomado de medo, pois ele não tinha nenhum motivo para inventar tal fato só  para me distrair. Acho-o mesmo incapaz de ter inventado  tal coisa porque Horemheb era um desses homens que só  acreditavam naquilo que podiam tocar com as mãos.

No terceiro dia Horemheb dividiu as suas tropas,  fazendo regressar a Jerusalém um contingente com o saque  - pois apareceram poucos mercadores no acampamento em  busca de escravos, víveres e pábulo - e mandou o outro  contingente pastorear o gado. Instalei um acampamento  para os feridos; ficou a guardá-lo um pelotão especial;  mas morreram quase todos os feridos. Horemheh por sua vez  foi com os seus carros em perseguição dos cabírios porque  durante o interrogatório dos prisioneiros ficou sabendo  que os fugitivos tinham conseguido salvar e levar consigo  o seu deus·   Levou-me junto, contra a minha vontade. Fui de pé, atrás dele, no carro, segurando com força a sua cintura e amaldiçoando a minha vida. Guiava o carro como um maluco  e a todo instante me parecia que íamos virar e que eu ia bater com a cabeça em cima das pedras. Ele, porém, caçoava de mim, explicando que apenas queria me dar a sensação do que era a guerra já que eu viera apenas para averiguar tal sensação.

E de fato me pus a par do que era a guerra: vi os  carros passarem como rajadas por sobre os cabírios que,  coitados, cantando, agitando palmas, impeliam o gado que  haviam roubado para esconderijos apropriados no deserto.  Os cavalos dos egípcios pisavam mulheres, crianças e  velhos. Ele, Horemheb, recebeu a rendição em meio à  fumaça dos acampamentos incendiados. Em sangue e em  lágrimas os cabírios ficaram sabendo que era melhor viver  na pobreza, acolá no deserto, e morrer de fome em suas  cavernas do que acometer a fértil e opima Síria a fim de  untar suas peles ressecadas e se empanzinar com cereais  roubados.

Foi assim que experimentei a guerra, que já não era  mais guerra e sim perseguição e carnificina, até que  Horemheb achou que bastava e, voltando, deu ordem que se  repusessem no lugar as pedras de demarcação que os  cabírios haviam derrubado.

Surpreendera finalmente o deus dos cabírios e  arremetera sobre ele como um falcão, apavorando os que o  conduziam e que o largaram e fugiram. A imagem foi mais  tarde metida numa fogueira e ardeu diante de Sekhmet. Os  guerreiros davam socos nos peitos, radiantes, exclamando:

- Vede como queimamos o deus dos cabírios!

O nome desse deus era Jehú ou Jahveh; era o deus único dos invasores que tiveram que regressar sem nada para  suas terras sáfaras. Tornaram-se assim mais pobres do que  quando saíram a depredar, pois já agora nem ânimo tinham  para agitar palmas e entoar canções.

Horemheb voltou para Jerusalém que se achava  superlotada com refugiados da região atacada e lhes  vendeu os cereais e as vitualhas. E tais refugiados  dilaceraram suas roupas exclamando furiosos:

- Estes ladrões ainda são piores do que os cabírios!

Mas não se viram em apuros pois estavam em condições de arranjar dinheiro com os, sacerdotes, os mercadores e  os coletores de impostos que acorreram para Jerusalém  vindos da Síria inteira.

Assim Horemheb converteu os despojos em ouro e prata que distribuiu pelos soldados. Compreendi então por que motivo quase todos os feridos haviam morrido a despeito dos meus cuidados. Assim a presa de guerra sobraria muito mais para a soldadesca viva que roubara também as roupas, as armas e os bens dos feridos, tendo até deixado de lhes  dar água e alimento para que perecessem. Como me admirar que cirurgiões incompetentes sofregamente se oferecessem para acompanhar as tropas em batalha ou que, a despeito dessa mesma incompetência, voltassem ricos!

Jerusalém estava cheia de ruídos, clamores e ressous de instrumentos sírios. Os soldados esbanjavam ouro e prata em bebidas e mulheres até que os comerciantes, tendo  assim recuperado seu dinheiro, se foram embora. Horemheb  instituiu uma taxa sobre os comerciantes tanto à chegada  como à saída dos mesmos, e desta maneira se tornou um  homem rico muito embora se abstendo de participar dos  despojos.

Não se mostrou altivo e quando fui me despedir dele antes de regressar a Esmirna, me disse:

- Esta campanha acabou antes mesmo de terminada e em carta o faraó me recomendou que não derramasse sangue sem ordem sua. Vou voltar ao Egito com os meus ratos, dissolver as tropas e depositar seus estandartes no  templo. Mas o que sobrevirá depois, não sei, pois estas são as  únicas tropas do Egito que tem experiência de guerra, as  demais não prestando para nada a não ser sujar muralhas e  beliscar nádegas de mulheres na praça do mercado.  Valha-me Ammon! Fácil é no palácio dourado do faraó  escrever hinos em louvor de um único deus e acreditar que  todas as nações podem ser governadas pelo amor! Se ele  ouvisse os gritos dos homens mutilados e os gemidos elas  mulheres nas aldeias incendiadas sempre que fronteiras  são taladas pensaria de outra forma.

Disse-lhe:

- O Egito não tem inimigos, pois é tremendamente rico e poderoso. Além disso a tua fama se espalhou por toda a Síria e os cabírios não removerão outra vez as  demarcações da fronteira. Por que motivo pois não hás de  mandar debandar as tropas, se eles na verdade espumam de  raiva diante de seus pratos vazios, se dormem em lapas  mal cheirosas como animais bravios e se estão coberto de  lêndeas?

- Não sabes o que estás dizendo - retorquiu ele olhando ao longe e coçando as axilas porque mesmo o posto do  comando estava cheio de piolhos. - O Egito confia demais em seu poderio e daí o seu engano. O mundo é grande e em lugares secretos se semeiam ventos de onde se colherão tempestades. Estou informado, por exemplo, que o rei dos Amoritas está reunindo afoitamente cavalos e carros,  quando lhe seria mais conveniente pagar o tributo ao  faraó com maior pontualidade. Nos banquetes os seus  oficiais de alto comando falam somente de como os  amorreus outrora governaram o mundo inteiro - o que em  certo sentido é verdade pois os últimos dos hiqsos moram  na terra de Amurru.

- Esse Aziru é meu amigo e um homem frívolo; conheço-o porque lhe tratei dos dentes. E acho que não pensa nessas coisas e sim em outras muito diferentes pois ouvi contar  que arranjou uma mulher que só o pode esfalfar.

- Sempre foste um homem bem informado - observou Horemheb, olhando-me atentamente. - És um homem livre, independente. Viajas de cidade em cidade e assim escutas muitas coisas que os outros jamais chegam a saber. Se eu estivesse em teu lugar e fosse livre, viajaria através de  tudo quanto é país procurando instruir-me. Iria à terra de Mitani e também à Babilônia e  verificaria que espécie de carros de guerra os hititas  empregam atualmente e de que forma exercitam suas tropas.  Visitaria as ilhas por esses mares além a fim de ver  qual o tamanho de seus navios, coisa de que se fala tanto. Mas o meu nome é conhecido através de toda a Síria e com certeza eu não poderia me informar  direito, por causa disso. Tu porém, Sinuhe, vestes roupas  sírias e falas uma língua que é conhecida por todas as  pessoas cultas e educadas de todas as nações. És médico  também e assim todos cuidarão que só entendes da tua  profissão. Além disso tua conversa é simples; eu, por  exemplo, a acho pueril, e tens uma observação muito  pronta. Sei contudo que teu coração está incomunicável,  ninguém sabendo o que carregas dentro dele. Não é verdade?

- Talvez, mas que é que desejas de mim?

- Que dirias se eu te fornecesse uma boa cópia de ouro e te mandasse para essas terras de que acabei de te falar  a fim de praticares em tua arte e espalhares ao mesmo  tempo a fama da medicina egípcia e teus próprios métodos  de tratamento? As pessoas ricas e influentes, até mesmo  os reis, talvez, te chamariam e assim analisarias seus  corações. E enquanto seguisses teus estudos e  clinicasses, deixarias que teus olhos e teus ouvidos  fossem meus; assim, quando regressasses ao Egito, me  poderias informar sobre tudo que viste e ouviste.

- Não pretendo regressar nunca mais. E, além disso, há perigo no que me propões. Não desejo que me dependurem de cabeça para baixo na muralha de alguma cidade  estrangeira.

- Ignoramos, todos nós, o dia de amanhã. Acho que ainda acabarás voltando ao Egito um dia porque todo  aquele que bebeu uma vez a água do Nilo não poderá se  dessedentar sempre em outras águas apenas. Até mesmo as  andorinhas e os grous voltam todos os invernos. Ouro para  mim é poeira e eu preferiria trocá-lo por  conhecimentos.Quanto a seres enforcado em alguma muralha,  isso é palavreado que entra por um ouvido meu e sai pelo  outro, pois não acredito em tal perigo. Não estou pedindo  que infrinjas as leis de nenhum lugar nem que te portes  mal. Acaso em todas as grandes cidades não se empenham  com o viajante para que visite os templos?...Não preparam  toda sorte de banquetes e diversões para atraí-lo e ao  seu ouro? Qual é o lugar que não te receberá bem se aí  entrares com dinheiro? Tua profissão também será bem  acolhida em terras onde matam os velhos e expõem os  doentes no deserto para que morram, conforme sabes que costumam fazer. Os reis são orgulhosos e gostam de formar paradas com  suas tropas para impressionar o estrangeiro. Que mal  farias tu em notar como é que tais homens marcham e de  que maneira estão armados, em contar seus carros e reter  na mente se são grandes e pesados ou pequenos e leves, se  transportam dois homens ou três, pois ouvi dizer que  alguns levam um homem com um escudo além do homem que  guia. Também seria importante verificar se as tropas são  bem alimentadas e nédias ou magras e sarnentas e se tem  doenças de olhos como os meus homens. Consta que os hititas descobriram não sei que metal  novo e que armas feitas com isso podem estragar o gume do  melhor machado de cobre. Se isso é verdade, não sei. E é possível que hajam descoberto algum novo modo de  endurecer o cobre. Seja lá como for, gostaria de me por  bem a par. Mas acima de tudo gostaria de conhecer as  almas e os corações dos soberanos e dos seus  conselheiros. Olha para mim, Sinuhe.

Encarei-o e foi  como se ele crescesse diante dos meus olhos. Parecia um  deus, e seus olhos queimavam como brasas a tal ponto que  meu coração se comoveu. Inclinei-me perante ele, que  então me disse mais:

- Acreditas agora? Sou ou não sou um homem de  autoridade?

- Meu coração me diz que podes me dar ordens. Mas ignoro por que motivo me submeto - disse-lhe quase  gaguejando com a língua presa na boca. - Não resta dúvida  que estás destinado a dirigir muitos, conforme declaras.  Aceito tua proposta. Irei. Meus olhos e meus ouvidos  serão teus. Não sei se ganharás algum lucro com o que eu  vir e escutar, pois sou leigo nos assuntos que te  interessam. Em todo caso farei tudo quanto me for  possível fazer; e não por causa de ouro e sim porque sou  teu amigo e porque os deuses lisamente assim  dispuseram - é que de fato eles existem.

Disse-me ele:

- Não creio que jamais te venhas a arrepender de nossa amizade. Ainda assim te darei ouro para tais viagens  pois,se bem conheço os homens com quem vais tratar,  precisarás ter posses. Não me perguntaste por que é que  tais conhecimentos me são mais preciosos do que o ouro;  mas vou te explicar: os grandes faraós sempre mandaram  homens vivazes às cortes estrangeiras. Mas os  representantes do atual faraó são uns cabeças de carneiro  que só sabem como preguear seus vestuários e usufruir  suas honrarias, preocupando-se em saber se o protocolo  manda que fiquem. à direita ou à esquerda do faraó. Assim pois não lhes dês atenção caso te venhas a encontrar com algum; que o palavreado deles não seja para os teus ouvidos mais do que zumbidos de moscas.

Quando nos despedimos ele pos de lado toda e qualquer dignidade, acariciou meu rosto e tocou com o seu os meus ombros, dizendo:

- Meu coração se confrange ante a tua partida Sinuhe, porque se és um solitário, eu também sou. Não há quem conheça os segredos do meu coração.

Creio que quando me disse tais palavras tinha em mente a princesa Baketamon cuja beleza o fascinara.  Deu-me muito ouro, bem mais do que eu pudera imaginar.  Acho até que me entregou o ouro todo que obtivera na campanha da Síria. Pos à minha disposição uma escolta que me protegeu até a minha chegada ao litoral, de modo a eu poder viajar sem medo de salteadores. Assim que cheguei coloquei o ouro todo numa grande companhia  comercial, trocando-o por lousas de greda bem mais  garantidas de transportar, pois de nada podiam servir  para os ladrões. Depois então tomei um navio a cujo bordo  segui para Esmirna.

 

O DIA DO FALSO REI

Antes de iniciar um novo livro em seqüência aos anteriores devo render preito aos passados dias em que viajei sem ser molestado através de muitas nações adquirindo sabedoria, pois um tempo assim dificilmente voltará. Percorri um mundo que durante quarenta anos não conhecera guerras. Por toda parte os reis protegiam as rotas das caravanas e os mercadores que se serviam delas, enquanto seus navios e os dos faraós varriam os  piratas dos mares. As fronteiras estavam abertas; mercadores e viajantes que traziam ouro eram bem  acolhidos em todas as cidades, e não havia dissensão nem  contendas entre os homens que se saudavam com mútua  consideração e procuravam aprender hábitos e modos  recíprocos. Muita gente educada falava diversas línguas e  conhecia dois modos de escrever bem.

Os campos eram aguados e davam abundantes colheitas e nas Terras Vermelhas os rios do céu cumpriam a tarefa que no Egito cumpre o Nilo, refrescando as terras.  Naquele tempo o gado pastava tranqüilamente em chão  relvoso e os pastores não carregavam armas e sim tocavam  instrumentos de sopro e cantavam canções idílicas. As  vinhas prosperavam e os pomares viviam pesados de carga  opima. Os sacerdotes eram nédios e reluzentes de  ungüentos; a fumaça de inúmeros sacrifícios se erguia da  fachada dos templos em cada país. Também os deuses  prosperavam e eram solícitos engordando simbolicamente  ante a cópia de oferendas e sacrifícios. Os ricos se  tornavam mais opulentos, os poderosos mais poderosos  ainda e os pobres bem mais pobres, segundo os deuses decretavam: de forma que todos estavam  contentes e ninguém murmurava. Tal é a visão que guardo  desse tempo pretérito - um tempo que jamais voltará -  quando no início da mocidade meu corpo não se estafava  com longas jornadas, meus olhos cada vez ficavam mais  sequiosos de novidades e meu coração, sedento de  conhecimento, se abeberava até às bordas.

Isto posto - tendo louvado o passado em que até mesmo o sol brilhava mais claro e os ventos eram mais propícios do que nestes ruins tempos de agora - passo a falar de  minhas viagens e de tudo quanto vi e ouvi.  Preliminarmente me referirei ao meu regresso a Esmirna.

Ao chegar a casa, Kaptah veio ao meu encontro,  correndo, por entre brados e prantos de alegria e se  arremessou aos meus pés.

- Louvado seja o dia que assim traz o meu amo à casa! - exclamou. - O patrãozinho sempre voltou, apesar de eu já o cuidar morto na guerra... Palavra que pensei que o meu senhor tivesse sido aberto por uma espada por não ter dado atenção às minhas palavras de advertência e ter  seguido para ver que tal era uma batalha... Há que  reconhecer que o seu escaravelho é um deus poderoso e que  o protegeu. Abençoado seja este dia! Meu coração está  repleto de júbilo por ver o patrãozinho, e minha alegria  corre pelos meus olhos abaixo em forma de lágrimas...  Sim, pois não as posso reter muito embora houvesse até  imaginado que ia herdar do patrãozinho e ficar de posse  do ouro todo que fora colocado entre os mercadores de  Esmirna. Longe de mim lastimar tal perda, porque sem o patrãozinho não passo de um filhote que perdeu a mãe. Ah! Que dias sombrios que passei! Em lugar de furtar mais do que  antigamente cuidei, isso sim, de zelar por sua casa e por  seus bens... E a tal ponto que ao regressar vai ver logo  como está mais rico do que quando partiu.

Lavou meus pés e minhas mãos, serviu-me de todo modo falando sempre por tudo quanto era junta a ponto de me ver obrigado a exigir que calasse a boca.

- Trata de preparar tudo porque vamos encetar uma  viagem que pode demorar muitos anos e que será cheia de percalços. Vamos conhecer a terra de Mitani, Babilônia e as ilhas do alto mar.

Então Kaptah exclamou:

- Agora é que lamento deveras haver nascido neste mundo e também haver me tornado gordo e próspero, pois quanto mais afortunado é um homem mais difícil lhe é renunciar  às suas comodidades. Caso se tratasse de uma viagenzinha  por um mês ou dois, conforme tem feito, eu não diria nada  e permaneceria pacificamente aqui em Esmirna. Mas se a  sua viagem vai se estender por anos, o patrãozinho não  voltará mais e não o tornarei a rever. Assim pois me  cumpre ir com o patrãozinho, levando o nosso escaravelho  sagrado. Contra possíveis azares o meu senhor precisará de toda  a indispensável boa sorte, e sem o escaravelho cairá em precipícios e será traspassado pela espada de  salteadores. O melhor ainda seria ficar em nossa casa,  aqui em Esmirna.

Como se vê, Kaptah com o decorrer dos anos se tornara mais confiado e falava da nossa casa, do nosso  escaravelho e quando se tratava de algum pagamento dizia:  o nosso ouro. Mas me aborreci com isso e com as suas lamentações, e disse:

- Meu coração me diz que um belo dia serás  dependurado pelos pés do alto de uma muralha. Resolve  portanto se vens comigo ou se ficas. E, antes de mais  nada acaba com esse contínuo miado e trata de preparar as  coisas porque há urgência e a viagem é longa.

Kaptah ao ouvir isso se calou, resignando-se com o seu fado e nos aprestamos para partir.

Como jurara nunca mais pisar num navio nos agregamos a uma caravana que estava a caminho para o norte da Síria, pois eu desejava  ver os cedros do Líbano de onde vinha a madeira para os  palácios e para a embarcação sagrada de Ammon. Da viagem,  pouco há a dizer; não ocorreu particularidade nenhuma e  não fomos assaltados. As estalagens eram boas; comemos e  bebemos bem; em uma ou duas das paradas gente enferma nos procurou e a tratei. Viajava numa liteira, porque isso de lombo de burro era coisa que não aturava mais. Apesar do vento queimar meu rosto, o que me obrigava a viver me untando com óleo, e apesar do pó me maltratar e os  mosquitos das,dunas me perseguirem, pouco me incomodei  com tais ninharias, pois meus olhos se rejubilavam com o  que viam.   

Vi florestas de cedros, e árvores tão gigantescas que  se eu descrevesse nenhum egípcio acreditaria nas minhas palavras. A fragrância dessa madeira era mais do que  maravilhosa. As correntes d'agua eram cristalinas eu  tinha impressão de que quem morasse numa região daquelas  não podia absolutamente ser infeliz deveras. Mas isso foi  idéia que tive antes de ver os escravos que as derrubavam  e locomoviam para mandá-las serra abaixo para as praias  do mar. Fazia mal à alma testemunhar a miséria de tais escravos; tinham os braços e as pernas cobertos por feridas  expostas produzidas pelos troncos e pelos instrumentos de  que se utilizavam, e em seus dorsos os versões esfolados  pelos açoites enxameavam de moscas.

Por fim nos dirigimos à cidade de Kadesh, onde havia  uma fortaleza e uma grande guarnição egípcia. Mas as muralhas da fortaleza não eram guardadas, as  defesas tinham desmoronado e quer os oficiais quer os  soldados moravam na cidade com suas famílias só se  lembrando dizer cruzi guerreiros nos dias em que eram  distribuídos cereais, alhos e cerveja dos paióis do  faraó.

Demoramos bastante tempo na cidade para que as  feridas das costas de Kaptah - causadas durante a viagem - ficassem curadas de vez. Tratei de muitas pessoas doentes porque os médicos egípcios daquele lugar eram incompetentes e seus nomes deviam desde muito ter sido cancelados do Livro da Vida, se é que com  efeito lá estavam registrados.

Mandei nessa cidade fazer um sinete para mim, de boa pedra, conforme exigia a minha dignidade, pois aqui os  sinetes diferiam dos do Egito, não sendo usados em anéis  e sim pendendo de uma corrente no pescoço e tinham a  forma de um cilindro que, quando rolado em cima de uma  lousa, deixava sua marca na superfície. Os pobres e os  ignorantes apenas deixavam a marca do polegar nos  documentos - e isso quando sucedia ter em que "assinar"  assim qualquer coisa.

Continuamos nossa viagem e atravessamos a fronteira, rumando para Naharani, sem sermos molestados chegando a uma região onde um rio corria em sentido contrário, isto  é tinha seu curso oposto ao que segue por exemplo o Nilo.

Informaram-nos que nos achávamos na terra de Mitani, e pagamos a taxa de viajantes para as rendas reais. Mas  como éramos egípcios o povo nos saudava com respeito,  vindo ao nosso encontro na rua e dizendo:

- Sede bem-vindos. Alegramo-nos sempre que vemos  egípcios porque desde muito os consideramos. E também  estamos preocupados porque o vosso faraó não nos manda  soldados, armas e ouro; e corre o rumor de que ele  ofereceu ao nosso rei determinado deus novo do qual não  temos nenhum noção; aliás já temos aqui Ishtar de Nínive  e muitos outros que por enquanto nos tem protegido.

Convidar-nos a ir até às suas casas, deram-nos alimento e bebida, e serviram também Kaptah porque era egípcio.

Conquanto mero criado, o que fez Kaptah me dizer:

- Esta é uma boa terra. Fiquemos aqui, onde o meu  senhor poderá clinicar, pois parece que esta gente é  ignorante crédula sendo fácil de ser enganada.

O rei de Mitani fora para as montanhas por causa da  estação cálida. Não tive o mínimo desejo de ir ter com  eles acolá, pois estava impaciente por ver as maravilhas  de Babilônia, de que tanto ouvira falar. Mas fiz conforme  Horemheb me recomendara, e conversei com os grandes e com  os humildes; todos fizeram a mesma queixa, mostraram a  mesma inquietação.

A terra de Mitani outrora havia sido poderosa, mas  agora parecia uma nação flutuando no ar,  emparedada por Babilônia a leste, por tribos selvagens ao  norte e a oeste pelos hititas cujo país se chamava Hati. Quanto mais ouvia falar dos hititas, que eram muito  temidos, mais firmemente decidi viajar para a terra de  Hati. Antes, contudo, desejava visitar Babilônia. Os habitantes da terra de Mitani eram de estatura  pequena, suas mulheres eram bonitas e as crianças pareciam bonecas. Pode ser que em tempos idos tenham  sido um povo poderoso, pois declaravam que outrora tinham dominado todos os povos do norte e do sul, do leste e do  oeste; mas isso não há nação que não declare. Mesmo desde  o tempo dos grandes faraós esta nação era dependente do Egito e por duas gerações as filhas dos seus reis tinham  morado na casa dourada como esposas dos faraós. Ouvindo a conversa e as queixas dos mitanianos cheguei à convicção de que o país deles fora escolhido como um escudo para a Síria e o Egito contra o poder de Babilônia e dos povos  selvagens, para assim receber em seu corpo espadas que  pretendessem alvejar a soberania do faraó. Por este  motivo, somente os faraós amparavam o trono vacilante do  rei e lhe mandavam ouro armas e mercenários. Mas o povo  não compreendia isso e se mostrava sobremodo orgulhoso da  sua terra e do seu poder.

Logo percebi que se tratava de uma nação exausta e em declínio com a sombra da morte em seus templos. O povo não se dava conta disso, preocupando-se mais com  refeições cujas iguarias eram preparadas de muitas  maneiras notáveis; perdia tempo também experimentando  vestuários novos - sapatos pontudos e altos chapéus -  tendo um gosto especialíssimo para a escolha de jóias. As  pessoas eram esguias como no Egito, e as mulheres tinham  a pele tão transparente que se podia ver o sangue  circular, todo azul, em suas veias. Falavam e comportavam-se com delicadeza, tendo aprendido desde a infância a andar graciosamente; isso, tanto os  Homens como as mulheres. A vida em tal país era  agradável; mesmo nas casas de divertimentos não havia  brigas; tudo era silencio e discrição a ponto de me  sentir sem jeito quando as freqüentava para beber um  pouco. Aliás sentia o coração pesado porque assistira a  uma guerra e, por conseguinte, deduzia que se era verdade  quanto diziam da terra de Hati então a de Mitani estava  sentenciada.

Possuía também uma medicina de alto padrão e seus  médicos eram homens habilidosos que conheciam a profissão  e que eram mais adiantados do que eu.

Obtive deles a receita de uma poção vermífuga que era  muito menos incomoda e desagradável do que qualquer outra conhecida até então. Curavam também a cegueira com o  emprego da agulha, no que me tornei mais proficiente. As desconheciam de modo total a trepanação e diziam que  somente os deuses podiam curar doenças cerebrais - e que  mesmo assim as pessoas não eram mais as mesmas sendo  preferível a morte.    Contudo o povo sentia curiosidade, procurava-me,  trazia-me seus doentes, pois tudo quanto era diferente e  novo o atraía.

Assim como gostavam de usar roupas e ornatos estrangeiros, de comer pratos e óticos e de beber vinho importado, tais pessoas desejavam outrossim ser tratadas  por médico recém-chegado. Mulheres vinham consultar-me,  muito risonhas, explicavam seus distúrbios, queixavam-se  da preguiça dos maridos a cujo cansaço e impotência se  referiam. Compreendi logo muito bem que era que elas queriam, mas cuidadosamente me fiz de desentendido, longe estando de querer ofender leis e costumes de uma nação estrangeira. Dei-lhes pelo contrário drogas para misturarem no vinho destinado aos maridos. Tais drogas, capazes de levantar  as energias de um morto, eu as obtivera de médicos de  Esmirna; os sírios são os mais hábeis médicos do mundo  neste assunto e seus medicamentos são bem mais poderosos  do que os do Egito. Mas se aquelas mulheres deram as tais  drogas aos maridos, ou se as deram a outros homens, lá  isso não sei, muito embora me parecesse que preferiam  homens estrangeiros, sendo - como eram - livres de  maneiras. Os casais tinham poucos filhos o que para mim  também já era um sinal de que a sombra da morte pairava  sobre aquele país.

Devo mencionar que essa população não conhecia mais as fronteiras do seu reino, porque as pedras demarcadoras tinham sido e eram constantemente deslocadas. Os hititas  as transportavam em seus carros e depois as dispunham  onde muito bem queriam. Se os mitanianos protestavam os  hititas riam e os desafiavam a repo-las nos antigos  lugares, caso quisessem.

Querer, queriam os mitanianos,  mas lhes faltava coragem porque - se é verdade o que  diziam dos hititas - jamais houve na face da terra povo  tão cruel e pertinaz. Corria a lenda de que o maior prazer deles era ouvir  gritos de mutilados e contemplar correr sangue de feridas  abertas. Cortavam as mãos dos mitanianos que moravam na fronteira e que se queixavam que o gado hitita pisava nas lavouras e destruía as colheitas; e depois diziam aos amputados  que, se quisessem, carregassem de novo as pedras  demarcadoras para seus primitivos lugares.

Cortavam os pés dos camponeses e lhes diziam que fossem  se queixar depressa ao rei; ou lhes esfolavam os couros cabeludos puxando-os até aos olhos para que não vissem  que fim tinham levado os marcos fronteiriços. Impossível enumerar as maldades que os hititas costumavam fazer,  todas as suas crueldades e proezas medonhas. Diziam-me  que tal povo era pior do que os gafanhotos, porque depois  da passagem destes a terra podia florescer ainda, ao  passo que por onde passavam os carros hititas não crescia  mais nada.

Não quis me demorar mais na terra de Mitani, pois achei que aprendera tudo quanto tinha desejado saber, mas o meu orgulho médico se sentiu ofendido ante as dúvidas dos  facultativos mitanianos que não acreditavam no que eu  lhes dizia a respeito da trepanação. Eis porém que chegou  à minha estalagem um homem da melhor distinção queixando-se que sentia um bramir de oceano nos ouvidos,  sendo dado a vertigens e sofrendo dores cruciantes.  Disse-me que se ninguém o curasse desejava morrer. Os  médicos de Mitani não queriam tratá-lo mais.

Disse-lhe eu:

- Se consentir que lhe abra o crânio é possível que eu  o cure. Mas como de uma operação destas em cem pessoas só uma se restabelece, também, é muito possível que o senhor morra.

Respondeu-me:

- Louco seria eu se não concordasse. Pelo menos há uma possibilidade contra cem. Não confio na cura. Mas morrer por suas mãos não é uma transgressão à vontade dos deuses como viria a ser o caso de meu suicídio. Todavia, se conseguir me curar de bom grado lhe darei metade dos meus bens - que não são poucos - e se eu morrer o senhor  também não se há de queixar porque lhe deixarei bons  donativos.

Examinei-o cuidadosamente, palpando-lhe bem todas as partes da cabeça; mas lugar nenhum era doloroso nem mais duro ou mais tenro do que as demais. Comentou então Kaptah:

- Experimente bater de leve com um martelo; só esclarecer  alguma coisa.

Fui batendo com o martelo em diferentes lugares.do  crânio, sem resultado, até que de repente o homem deu um grito e caiu desacordado. Concluí que descobrira a sede  da lesão e que seria melhor abrir o crânio naquele lugar.

Chamei os médicos descrentes e disse:

- Podeis acreditar ou não. Mas tenciono abrir o crânio deste homem a ver se o  curo, muito embora o resultado mais provável seja a  morte.

Os médicos motejaram:   

- Sempre vale a pena assistir a isso...

Arranjei fogo do templo de Ammon e com ele me  purifiquei, bem como ao doente e a tudo quanto estava na  sala. E comecei a operação quando o sol estava a pino.  Abrindo e afastando o couro cabeludo, estanquei a copiosa  hemorragia queimando os vasos com arames aquecidos ao  rubro, não obstante me preocupar com a aflição que isso  causava. Mas o paciente me disse que tais dores não eram  nada em comparação com o seu sofrimento de todos os dias.  Dei-lhe a beber muitos goles de vinho onde tinham sido  dissolvidos narcóticos o que fez os olhos do homem  proeminarem tanto como os de um peixe morto; mas sua  disposição era a melhor possível. Em seguida abri o osso com o maior esmero servindo-me dos instrumentos que conservara. O paciente não desmaiou  mais, pondo-se a respirar pausada e profundamente, e  disse que já sentia certo alívio quando lhe removi o  pedaço de osso. E logo fiquei radiante porque exatamente  onde abri o crânio, o demônio ou o espírito  disturbador depositara seu ovo. Lembrei-me bem das  lições de Ptahor. Era um tumor vermelho e medonho do  tamanho do ovo de uma andorinha.

Removi-o com o maior cuidado, queimando tudo quanto o aderia ao cérebro, mostrei-o aos médicos que pararam logo de rir. Fechei o crânio com uma placa de prata que  recobri com o couro cabeludo; e em todo esse tempo o  paciente não perdeu a consciência. Quando acabei ele se  levantou, andou e me agradeceu cheio de gratidão, pois já  não ouvia mais o bramido do mar e as dores haviam  cessado.

Esta vitória me tornou famoso na terra de Mitani e meu  renome chegou antes de mim a Babilônia. Conquanto meu paciente começasse a beber vinho e a se adaptar a tudo,  alegremente, lhe sobrevieram febres e delírios., durante um acesso saiu da cama, caiu da muralha e quebrou o pescoço. Mas todos declararam que a culpa não fora  minha e elogiaram muito a minha ciência.

Kaptah e eu contratamos uma embarcação com remadores e descemos o rio, a caminho de Babilônia.

A terra sob o domínio de Babilônia é chamada por nomes diferentes; é conhecida como Caldéia e também como terra dos Kassitas por causa do povo que ali vive.

Chamá-la-ei porém de Babilônia, pois toda gente sabe  que nação é essa. Trata-se de uma terra fértil cujos  campos de lavoura são irrigados, e plana até quanto os  olhos podem abranger,,diferenciando-se do Egito nisto e  em tudo o mais.

Assim exemplo, enquanto no Egito as  mulheres moem os cereais numa posição ajoelhada e girando  uma única mó, as mulheres de Babilônia ficam sentadas e  fazem girar duas mós, o que sem dúvida é mais fatigante.

São tão poucas as árvores que derrubar alguma é  considerado uma ofensa aos deuses e aos homens sendo  infração punida severamente, ao passo que todo aquele que  planta uma árvore ganha com isso o favor divino. Os  habitantes de Babilônia são mais gordos e untuosos do que  qualquer outro Povo e, como todos os obesos, riem à toa.  Comem alimentos pesados e farináceos e vi acolá uma ave a  que dão o nome de galinha; esse bicho não voa, vive entre  as pessoas e põe todos os dias um ovo do tamanho do de um  crocodilo; sei bem que quem ouvir falar nisso não  acreditará. Instaram comigo que os comesse, deram-me  alguns, pois os babilônios consideram tal alimento coisa  gostosíssima; mas nunca tive ânimo para os comer,  contentando-me com pratos conhecidos ou cujos  ingredientes não me repugnassem.

A gente da terra me disse que Babilônia era a maior e a mais antiga de todas as cidades do mundo; mas não  acreditei por saber que Tebas é ao mesmo tempo a maior e  a mais velha. Não existe no mundo uma cidade igual a  Tebas, embora eu admita que Babilônia me espantou com a  sua riqueza e extensão. As suas muralhas eram altas como  montanhas e formidáveis de aspecto, e a torre que  construíram aos deuses deles remontava até às nuvens. As  casas da cidade tinham quatro e cinco andares, de modo  que as pessoas moravam por baixo e por cima umas das  outras; e em parte nenhuma - nem mesmo em Tebas - vi  lojas tão magnificentes e tamanha riqueza de mercadorias  como nas casas de negócio em torno do templo.

O deus deles era Marduk, e em honra a Ishtar tinha sido construído um portal que era mais pomposo do que o  pórtico do templo de Ammon. Era coberto com muitas telhas  vitrificadas e coloridas dispostas de modo a formar  desenhos que fulguravam o olhar quando lhes batia o sol.  Desse pórtico se estendia uma estrada larga até à torre  de Marduk a cujo cimo levava uma rampa em espiral. Era  uma rampa tão macia e larga que uma porção de carros  podiam ser guiados até lá, simultaneamente. No cume dessa  torre moravam os astrólogos, que conheciam todos os  corpos celestes, calculavam suas rotas e prediziam os  dias benéficos e maléficos de forma que todos podiam regular suas vidas por este meio.

Constava também que eram capazes de prever o destino de  uma pessoa bastando para tanto saberem o dia e a hora do  seu nascimento. Sendo ignorante do meu próprio dia de  nascença não pude por em prova a ciência deles. Eu dispunha de bastante ouro, pois me bastava ir  buscá-lo nas firmas bancárias anexas ao templo. Montei  residência perto da Porta de Ishtar, num hotel de muitos  andares de altura em cujo terraço havia jardins, árvores  frutíferas e sebes de mirto, por entre cascatas  artificiais e lagos piscosos. Esse hotel era freqüentado  por pessoas eminentes que vinham visitar Babilônia saindo  de seus respectivos domínios e que aí se hospedavam quando não dispunham de moradia própria na cidade, e também por embaixadas estrangeiras. Os quartos eram forrados por espessos tapetes, e as camas cobertas e amaciadas por peles de animais selvagens, ao passo que  pelas paredes havia cenas frívolas resultantes da alegre  e sábia disposição em cores de tijolos vitrificados. Esse  hotel se chamava A Casa de Alegria de Ishtar e pertencia  como tudo o mais de importância na cidade, à Torre do  Deus. Em parte nenhuma do mundo se vêem tão diferentes  qualidades de pessoas e se ouvem tão esquisitas línguas  como em Babilônia.

Os habitantes da cidade diziam  que todos os caminhos conduziam a Babilônia e que ela  era o centro do mundo. Antes e acima de tudo se trata de  um povo de mercadores; acolá nada era levado tão em conta  como o comércio tanto que até os seus deuses comerciavam  uns com os outros. Por tal motivo esse povo execrava a guerra e, se mantinha mercenários e construía mura.lhas o fazia apenas para  salvaguardar seus negócios.

A vontade dele era que  houvesse estradas em todos os países e sempre abertas ao  tráfego geral principalmente porque os babilônicos sabiam  que eram mercadores muito maiores do que quaisquer  outros e que o comércio lhes trazia mais vantagens do  que a guerra. Ainda assim se orgulhavam dos soldados que  montavam guarda às suas fortificações e aos seus templos,  que marchavam todos os dias para a Porta de Ishtar, com  os elmos e couraças reluzentes de ouro e prata. Os punhos  de suas espadas e as copas de suas lanças também eram  adornados com ouro e prata, como exibição de riqueza.

Tomados de entusiasmo perguntavam aos estrangeiros se  jamais haviam visto antes tropas e carros assim.

O rei de Babilônia era um rapazinho bochechudo que  tinha que amarrar ao queixo uma barba falsa quando subia  ao trono para dar expediente. Gostava de brincar e de  ouvir histórias.

Meu renome me precedera de Mitani, de modo que depois  que me instalei na Casa da Alegria de Ishtar e conversei  com os sacerdotes e com os médicos acolá da torre, recebi ordem do rei para me apresentar à sua presença. Como sempre, Kaptah se apavorou e me fez esta observação:

- Patrão, não vá. Tratemos mas é de fugir, pois nada  de bom se pode esperar dos reis.

Redargüi:

- Não seja tolo. Esqueceste que temos o escaravelho conosco?

- O escaravelho é o escaravelho - acrescentou ele - disso não me esqueço; mas a segurança vale mais do que o acaso,  e não convém que experimentemos tanto o poder da  escaravelho. Mas se o patrão insiste em querer ir, não  posso me opor e irei também; pelo menos assim morreremos  juntos. Urge porém que façamos praça da nossa dignidade e  exijamos que a liteira real venha nos buscar... De mais  a mais não iremos hoje porque, segundo os hábitos do  país, este não é um dia que convenha. Os comerciantes  fecharam suas lojas, o povo está descansando em suas  casas, e não trabalha. E não trabalha porque isso lhes é  vedado, já que se trata do sétimo dia da semana.

Refleti e lhe dei razão. Para nós, egípcios, todos os  dias eram iguais, salvo os que tivessem sido proclamados  maléficos de acordo com os astros; mas ali naquele país o  sétimo dia de cada semana podia ser desastroso até mesmo  para um egípcio, o mais conveniente, portanto, sendo a  prudência. Respondi então ao criado do rei:

- Não resta dúvida que me tomas por um  estrangeiro alvar, já que imaginas que eu iria aparecer  perante o teu rei num dia como o de hoje. Irei ver  amanhã o teu rei caso ele mande uma de suas liteiras me  buscar. Não quero me apresentar diante do trono com os  sapatos sujos de esterco das ruas.

Atalhou logo o criado:

- Pela resposta que me dás, egípcio vulgar, receio que tenhas que te apresentar diante do Rei impelido até ao  palácio por uma espada fustigando tuas nádegas.

E foi embora. Mas decerto ficou preocupado porque no dia seguinte a liteira do rei veio me buscar à porta da  Casa de Alegria de Ishtar. Era, ainda assim, uma liteira  ordinária, -como as que conduziam comerciantes e mais  gente do povo ao palácio para a exibição de jóias, penas  e bugios.   

Kaptah berrou para os carregadores e o desempedidor de caminho:

- Em nome de Set e de todos os demônios! Que Marduk vos ataque com escorpiões! Ide-vos embora! Pensais  acaso que o meu senhor se humilharia em trafegar numa  gaiola velha e ridícula dessas?!

Os carregadores ficaram furiosos e o guia ameaçou  Kaptah com o seu bordão. Transeuntes começaram a se  aglomerar ali na porta e a rir, dizendo:

- Palavra de honra que queremos ver que espécie de amo  é o teu que considera assim inadequada para seu uso a  liteira do rei...

Mas Kaptah alugou a grande liteira pertencente ao hotel e cujo transporte requeria quarenta escravos; era dentro  dela que embaixadores de reinos poderosos saíam a  realizar suas missões e negócios; servia também para  transportar deuses estrangeiros em visita à cidade, e os  papalvos deixaram de rir quando desci dos meus aposentos  com um vestuário onde estavam bordados a ouro e prata os  símbolos da minha profissão. O meu colar resplendia ao  sol por causa do ouro e das pedras preciosas, e do  meu pescoço pendiam cadeias e mais cadeias de fino  ouro. Os escravos do hotel seguiram-me com cofres de cedro e de ébano incrustados com marfim  dentro dos quais se achavam os remédios e os  instrumentos. Com efeito, não houve mais risadas; pelo  contrário: deram em me fazer mesuras, dizendo  alternadamente lá entre eles:

- Decerto esse homem ombreia em sabedoria com os  deuses. Sigamo-lo até ao palácio.

Nos portões do palácio a guarda dispersou com suas  espadas e fazendo barreira com seus escudos o ajuntamento  de gente, para que eu passasse por entre uma parede dupla  de ouro e prata. Leões alados ladeavam o caminho por onde  fui levado até as galerias internas. Nisto veio ao meu  encontro um velho cujo queixo era escanhoado à maneira  dos intelectuais e de cujas orelhas pendiam argolas de  ouro. Suas bochechas pendiam em flacidez descontente e  havia raiva em seus olhos quando me dirigiu a palavra:

- Já estou com o fígado irritado por causa do  desnecessário estardalhaço que causaste com a tua  chegada. O senhor dos quatro cantos do mundo já está  perguntando que espécie de homem é o que acode a um  chamado quando muito bem quer e não segundo a urgência  implícita na ordem real um homem que, ao vir provoca deliberado tumulto!...

Disse-lhe:

- Velhote...Tuas palavras entram por um dos meus ouvidos e saem pelo outro como o zumbir de moscas. Uma coisa, porém, te pergunto: Quem és para te dirigires a  mim nestes termos?!

- Sou o médico-camareiro do senhor dos quatro cantos do mundo... E tu, que aventureiro és que ousas vir arrancar ouro e prata do rei? Aviso-te desde já que caso ele, em  sua real bondade, te recompensar com imerecido ouro e  imerecida prata em barras, a metade me compete por  direito, ouvis-te???   

- Um conselho te dou: entende-te a respeito com o meu  criado cujo encargo outro não é senão afastar parasitas  e impostores do meu caminho. Serei condescendente  contigo, no entanto, porque és um ancião e um  inválido. Vou te dar estes braceletes que trago nos  punhos só para te mostrar que ouro e prata nada mais são  para mim do que poeira! Debaixo dos meus pés e que não é  à cata disso que venho e sim de sabedoria!

Dei-lhe os braceletes; ficou perplexo o mudo. Chegou  até a consentir que Kaptah me acompanhasse; e nos  conduziu à presença do rei.

O rei Burnaburiash se achava sentado em cima de fofas almofadas numa sala majestosa com paredes cujos tijolos  de esmaltes de diversas cores refulgiam. Era um rapazola  cheio de vontade e impertinente, segundo me pareceu,  embora estivesse com a mão no rosto. Ao seu lado jazia um  leão que rugiu de leve quando aparecemos. O velho  prostrara-se para roçar o chão com a boca, o mesmo  fazendo Kaptah que quando ouviu o rugido do leão se  encolheu e ficou acocorado, assim de mãos e pés juntos,  feito uma rã, dando um uivo, o que fez o rei romper num  acesso de gargalhada estirando-se para trás, em cima das  almofadas, torcendo-se de alegria. Kaptah se deixou ficar agachado no solo mas ergueu as  mãos num gesto de defesa enquanto o leão também se  aprumou e bocejou demoradamente e depois bateu com as  garras uma na outra enquanto eriçava a juba.

O rei riu até lhe correr lágrimas dos olhos. Depois  se lembrou da dor, deu um gemido e pos a mão numa das bochechas que estava tão inchada que o olho do mesmo lado permanecia quase fechado. Fez uma carranca para o  velhote que se apressou em dizer:

- Sempre chegou e aqui está o egípcio que não quis vir quando o mandastes chamar. Dizei apenas uma palavra que os guardas lhe moerão o fígado.

Mas o rei fez menção de lhe dar um pontapé, dizendo:

- Não é hora de dizer tolices; preciso que ele me cure imediatamente. A dor é medonha. Tenho até receio de morrer porque não durmo desde muitas noites e só tenho me alimentado de caldo.

Então o velhote se lamentou, batendo com a cabeça  contra o chão.

- O senhor das quatro bandas do mundo! Fizemos tudo para vos curar! Oferecemos mandíbulas e dentes ao templo para expulsar o espírito mau que está alojado no vosso  maxilar. Mas não conseguimos expulsá-lo porque não  deixastes que tocássemos vossa sagrada pessoa. E nem  creio que este impuro egípcio possa fazer mais do que  nós.

Retruquei:

- Eu sou Sinuhe, o egípcio, O Que Está Sozinho, Filho do Burro Bravo e não preciso examinar-vos para ver que vossa face está inchada por causa de um dente que não foi tratado nem extraído a tempo, conforme os vossos médicos decerto vos aconselharam que fosse feito. Tais dores são  para crianças e medrosos e não para o senhor das quatro  banda do mundo, diante de quem até os leões tremem e  abaixam as cabeças conforme vi com meus próprios olhos.  Ainda assim sei que a vossa dor é grande e quero ajudar-vos.   

O rei, ainda com a mão no rosto, respondeu:

- Falas com desembaraço demasiado. Se eu estivesse bom mandaria cortar tua língua impudente e moer teu fígado... Mas não há tempo para isso agora. Cura-me depressa e tua recompensa será grande. Mas se me machucares mandarei te matar imediatamente.

- Está feito. Tenho comigo um deus pequenino mas  notavelmente poderoso, graças ao qual não vim ontem...  pois se tivesse vindo teria sido em vão. Vejo que hoje é  que o inchaço está maduro, em condições de ser tratado.  E o farei, se desejardes. Mas nem mesmo um rei podem os  deuses preservar de sofrimento, embora vos declare que  uma vez tudo sanado o vosso alívio será tamanho que  esquecereis quanto sofrestes. Aliás homem nenhum no mundo  fará isso com facilidade maior do que eu.

O rei hesitou durante algum tempo, carrancudo, com a mão no rosto. Era um menino formoso quando assim quieto, apesar de voluntarioso, e percebi que simpatizava com  ele.

Sentindo que eu o encarava, disse por fim, irritado:

- Pois então faze depressa o que tens a fazer.

O velho  gemeu, batendo com a cabeça no chão, mas não o dei o  menor apreço. Mandei que trouxessem vinho aquecido e ao  qual misturei narcótico. Bebeu e daí a pouco declarou mudando um pouco de fisionomia:

- A dor está passando. Não será preciso me  atormentares com facas e boticões.

Mas a minha vontade era maior. Encravando a cabeça do  reizinho na minha axila, obriguei-o a abrir a boca,  lancetei-lhe a inflamação do queixo com uma faca  purificada no fogo que Kaptah trouxera. Não era, com  efeito, o fogo, sagrado de Ammon; Kaptah deixara que  este se extinguisse durante a viagem rio abaixo. A nova  chama a arranjara Kaptah no meu quarto de hotel riscando  uma pederneira acreditando com a sua simplicidade que o  escaravelho era potente como Ammon. O rei soltou grandes gritos quando sentiu a faca, e o  leão se ergueu com olhos lampejantes e grunhiu,  meneando a cauda de um lado para outro. Mas já o  menino estava ocupado em cuspir. Seu alívio era  evidente e eu o auxiliava, apertando-lhe levemente o  queixo.

Chorava e cuspia, e tornava a chorar,  exclamando:

- Sinuhe, o egípcio, abençoado sejas tu, apesar  de me haveres machucado. - E continuava a cuspir, com  parar. Mas o ancião falou:

- O que ele fez eu podia ter feito; e até melhor, se  houvésseis permitido que eu tocasse vosso queixo sagrado.  E o vosso dentista teria feito isso melhor do que todos  nós.

Ficou espantado quando eu declarei:

- Esse velho está dizendo a verdade. Fácil lhe teria  sido fazer isso, tão bem como eu fiz; e o dentista ainda  teria feito melhor. Mas a vontade deles não foi forte, e  a minha é forte; por isso não puderam vos livrar da dor,  ao passo que eu vos livrei. Sim, pois um médico deve ter  a coragem de machucar até mesmo um rei quando a dor for  inevitável, sem ter receio do que lhe possa suceder. Os  dois tiveram medo; eu não tive, pois para mim tudo se me  dá... Podeis chamar vossos homens. Que eles dêem cabo do  meu fígado depois que eu vos houver curado.

O rei cuspia e apertava a face, e esta já não lhe doía  mais.

- Nunca ouvi um homem falar como tu falas, Sinuhe. Confesso que me deste grande alívio; é só por isso que  perdôo a tua insolência...e que perdôo até mesmo o teu  criado que chegou a ver a minha cabeça no teu sovaco e a  ouvir os berros que dei. Perdôo teu criado principalmente  porque ele me fez rir com os saltos que deu. - Voltou-se  para Kaptah e ordenou: - Salta outra vez!

Mas Kaptah disse zangado:

- Isso não condiz com a minha dignidade.

Burnaburiash retrucou, rindo:

- Veremos!

Chamou o leão. O leão levantou-se e espreguiçou-se até suas articulações estalarem, sempre com os olhos  inteligentes pousados em seu senhor. O rei apontou para  Kaptah e o leão se encaminhou vagarosamente para Kaptah  agitando a cauda, enquanto o meu escravo recuava,  recuava, olhando para a fera como fascinado.

De repente o leão abriu as fauces e bramiu de modo  rouquenho. Kaptah embarafustou para a próxima porta e agarrando-se aos gonzos subiu aos saltos  e se empoleirou no caixilho. E uivava aterrorizado sempre  que o;animal procurava atingi-lo com a pata. O rei ria  como nunca, dizendo:

- Nunca vi um bufão em tais apuros!

O leão sentou-se a lamber os beiços, enquanto Kaptah se segurava lá em cima do portal, numa aflição crescente.  Mas por fim o rei mandou vir comida e bebida, declarando  que estava com fome. O velho chorava de alegria vendo o  rei curado. E grande quantidade de iguarias foi  trazida em pratos de prata e vinho em taças de ouro. O rei disse:

- Almoça comigo, Sinuhe. Embora eu tenha sido profanado na minha dignidade, me esquecerei disso hoje.  Não, não quero lembrar que enfiaste minha cabeça debaixo  do teu braço e que enfiaste teus dedos na minha boca.

Assim pois, comei bebi com ele e lhe disse:

- Passou-vos a dor, mas pode voltar a qualquer hora se o dente que a causou não for arrancado. Mandai portanto que o dentista o extraia enquanto vosso queixo estiver  desinchado, enquanto isso puder ser feito sem  complicar vossa saúde.

O semblante do rei ficou sério.

- Falas demais. Aborreces-me, estrangeiro maluco. -  Depois de refletir um pouco, acrescentou: - Talvez  tenhas razão, pois esta dor me vem durante o outono e  sempre que meus pés se molham... Dói tanto que minha  vontade é morrer. Se achas que isso deve ser feito,  então te encarrego; porque não quero ver mais o dentista  que me fez sofrer tanto sem necessidade.

Respondi-lhe, ponderadamente:

- Cabe ao vosso dentista e não a mim arrancar vosso dente, pois nesse mister ele é o homem mais habilitado no país. Mais habilitado até do que eu. De mais a mais não quero atiçar a raiva e o ciúme dele contra mim. Posso,  se quiserdes, ficar junto de vós, bem perto, segurar  vossas mãos e encorajar-vos enquanto ele vos extrai o  dente. E aliviarei a vossa dor servindo-me de todas as  artes que aprendi em muitas terras através de muitos  povos. E isso deve ser feito daqui a quinze dias, pois é  bom se marcar o dia antes que vos arrependais. Até lá  vosso maxilar terá sarado por fora e ireis bochechando de  manhã e de noite com o remédio que eu vos der, apesar de  ser um remédio que tem mau cheiro e gosto ruim.

O rei irritou-se:

- E se eu não quiser?!   

- Tendes que me dar vossa palavra sagrada que tudo será  feito conforme vos disse, pois nem mesmo o senhor das  quatro bandas do mundo pode recuar diante dessa  imperiosidade. E se consentirdes eu vos divertirei com  minhas mágicas e mudarei a água em vinho diante dos  vossos olhos... Ensinar-vos-ei até a fazer isso para que  assusteis vossos súditos. Tendes, porém, que prometer que  não revelareis o segredo a mais ninguém, pois é sagrado  para os sacerdotes de Ammon e eu próprio não conheceria  tal mágica se não tivesse sido sacerdote de primeira  categoria, nem ousaria revelá-la a vós se não fosses rei.

Quando acabei de falar, Kaptah gritou, desesperado, lá  de cima do portal:

- Tirai essa fera amaldiçoada daqui de perto, do  contrário me atiro e a esborracho pois já estou com as  mãos entorpecidas e com as costas lanhadas de tanto me  equilibrar aqui neste lugar que não se coaduna com a  minha dignidade.

Ante tal ameaça Burnaburiash riu ainda mais. Depois,  fingindo fúria, disse:

- Pois te digo que seria uma coisa medonha se matasses o meu leão, pois o trouxe de uma ninhada e ele é meu  amigo. Portanto vou mandar que ele se afaste para que não  cometas essa temeridade aqui no meu palácio.

Chamou o leão para junto de si e depois que Kaptah desceu do seu poleiro, se pos a esfregar as pernas e a fitar o leão com um tal feitio que o rei riu ainda dando  tapas nos joelhos.

- Jamais vi um homem mais cômico do que este. Queres me vender o teu escravo? Ficarás rico.

Mas eu não quis vender Kaptah e o rei não insistiu, de modo que nos despedimos amigos. O rei começara a cabecear e a bocejar; suas pálpebras quase não podiam mais ficar abertas pois havia muitas noites que ele não dormia.

O velho médico me acompanhou e eu lhe disse:

- Permutemos conselhos relativamente ao que ficou  marcado para daqui a quinze dias, pois será um dia  terrível e urge, por prudência, que ofereçamos  sacrifícios a todos os deuses propícios.

Ficou radiante com o que eu lhe disse, pois era um  homem pio e combinamos nos encontrar no templo para  oferecer sacrifícios e conferenciar com os demais médicos  a respeito do dente do rei. Antes de deixarmos o palácio,  ele ordenou que fosse dado alguma coisa para dessedentar  os carregadores que me haviam trazido; estes comeram e  beberam ali diante da fachada e me elogiaram afoitamente.

E enquanto me levaram de volta para o hotel cantavam  alto; chusmas nos seguiam. E desde esse dia o meu nome se tornou famoso em Babilônia. Mas durante o percurso Kaptah  seguia montado seu burro branco, furioso da vida, sem  me dirigir a palavra, porque tinha sido ferido na sua  dignidade.

Duas semanas depois me encontrei com os médicos do rei na torre de Marduk onde sacrificamos juntos um carneiro  cujo fígado os sacerdotes examinaram. Em Babilônia os  sacerdotes consultavam o fígado dos animais sacrificados, interpretando neles muita coisa ignorada por todos os  demais. Disseram-nos que o rei ficaria furioso, mas que  ninguém perderia a vida por causa do furor real nem  sofreria dano eterno; aconselharam-nos no entanto a  que nos acautelássemos com as garras e as espadas.  Solicitamos, a seguir, que os astrólogos consultassem o  Livro dos Céus para sabermos se tal dia seria auspicioso para aquele empreendimento. Responderam que o dia não era desfavorável, muito embora pudéssemos ter  escolhido um melhor. Depois disso, a pedido nosso, os  sacerdotes entornaram óleo na água para a leitura do  futuro. Tendo olhado bem para o óleo disseram que não  viam nada de notável - ou pelo menos nada que pudesse ser.considerado um mau augúrio. Quando deixamos o templo  um abutre passou por cima de nós carregando nas garras  uma cabeça humana que arrebatara de uma muralha. Os  sacerdotes interpretaram isso como um sinal favorável;  eu, todavia, tive impressão bem oposta.

Avisados assim pelos augúrios, mandamos embora a guarda pessoal do rei, e pedimos que fechassem o leão para que quando o monarca ficasse zangado não o atiçasse sobre  nós, pois os médicos nos informaram que tal fúria  sobreviria. Mas o rei Burnaburiash irrompeu  corajosamente, tendo fortificado o fígado com vinho - conforme a expressão usada em  Babilônia - o que não impediu de, quando viu a cadeira do dentista que tinha sido transportada para o palácio, se  virar, ficando logo pálido. Disse que tinha negócios  importantes a despachar e dos quais se esquecera por ter  estado a beber    Fez menção de sair da sala, mas enquanto os demais  médicos se prostraram com as caras no chão limpando-o com  as bocas, agarrei a mão do rei e comecei a encorajá-1o,  declarando-lhe que tudo decorreria num instante,  bastando que ele tivesse ânimo.

Ordenei aos médicos que asseassem bem as mãos,  purifiquei os utensílios do dentista no fogo do  escaravelho, depois esfreguei ungüentos entorpecedores  nas gengivas do infante até ele me mandar parar dizendo  que estava com o queixo feito tábua e que já não podia  mexer com a língua. Instalamo-lo então na cadeira  atando-lhe a cabeça no espaldar e pondo barras na sua  boca para que a não fechasse. Segurei-lhe as mãos, disse-lhe palavras amenas, o dentista invocou bem alto  todos os deuses de Babilônia rogando-lhes que o  ajudassem. E, enfiando o boticão dentro da boca do rei, arrancou o dente com uma presteza tal como jamais vi. A despeito da mordaça apropriada o rei berrou de modo horrível, e o leão, que urrava do lado de fora da porta, começou a investir contra a mesma, lacerando-a e  desconjuntando-a com as garras.

Foi um momento de pânico, pois quando desamarramos o menino, soltando-lhe a cabeça e retirando os estorvos da  boca, ele cuspiu sangue num vaso, gemendo e  gritando, com lágrimas pelo rosto abaixo. Depois ordenou  alto que a sua guarda pessoal desse cabo de nós todos.  Pos-se a chamar o seu leão, deu um pontapé no fogo  sagrado, esbordoou o seu médico-camareiro com uma vara  que tive que lhe arrancar da mão.

Roguei-lhe que  gargarejasse e bochechasse. Ele obedeceu, enquanto os  médicos jaziam aos seus pés tremendo como varas. O dentista pensou que a sua ultima hora  havia chegado. Mas o rei acabou se aquietando;  bebeu algum vinho, embora de cara torcida, pedindo-me  daí a pouco que o distraísse, conforme eu prometera.  Fomos para a grande sala de banquetes, pois ele não podia  mais tolerar sequer o aposento onde lhe fora extraído o  dente.

Resolveu de fato fechar para sempre tal cômodo  chamando-o de Sala Amaldiçoada. Então derramei água num  vaso e pedi ao rei e aos demais que a provassem e que se  certificassem que de fato se tratava de água comum. Em  seguida virei a água devagar num outro vaso e a água ao  correr para o outro recipiente se foi transformando em  sangue. O rei e os médicos, ao assistirem tal prodígio,  gritaram e desfaleceram.

Depois que o rei recompensou regiamente os médicos e tornou o dentista um homem rico, logo os mandou embora. Mas pediu que eu ficasse. E eu ensinei de que forma  transformar a água em sangue dando-lhe um pouco da  substância que devia ser misturada com a água para que  tal milagre se efetuasse. Trata-se de processo simples  conforme todos que sabem hão de concordar comigo. Ora,  toda grande arte é singela, e o rei se admirou  profundamente e me cobriu de elogios. E não ficou  contente enquanto não mandou chamar para o jardim todos  os figurões da corte e também elementos do povo que se achavam nas muralhas. E diante de todos eles transformou a água do lago em  sangue, resultando que tanto os graúdos como a gente  humilde se puseram a gritar de medo, prostrando-se diante  dele, para grande satisfação do reizinho.

Esqueceu-se do dente e disse:

- Sinuhe, o egípcio, curaste-me de um grande mal e  aliviaste meu fígado de muitos estorvos; pede-me pois o  que quiseres. Fala que espécie de donativo queres e to  darei, pois desejo agradar teu fígado, também.

Respondi:

- Rei Burnaburiash, senhor das quatro bandas do mundo! Como vosso médico, prendi vossa cabeça debaixo do meu braço e segurei com força vossas mãos quando soltáveis  gritos pavorosos. Não estou certo que ele, um  estrangeiro, conserve essa lembrança do Rei de Babilônia  quando voltar para o meu país a dizer o que vi aqui.  Impressionai-me pois com um vislumbre do vosso poder!  Prendei uma barba em torno do vosso queixo, rodeai vossa  cintura com uma cauda feito faixa e ordenai que vossos  guerreiros desfilem diante de vós, para que possa  contemplar vossa majestade e vosso poder. para que eu possa me prostrar humildemente diante de vós e beijar o pó. Não peço senão isso.

Meu pedido agradou, pois respondeu:

- Verdade é que ninguém jamais falou como tu, Sinuhe. Vou satisfazer teu pedido, embora me seja fastidiosíssimo porque terei que ficar sentado durante um  dia inteiro num trono de ouro até meus olhos se cansarem  e eu ser acometido de bocejos. Ainda assim, anuirei ao  que me solicitas.

Enviou ordem a todas as partes do país mandando reunir na capital as suas forças; e marcou o dia para a parada. Essa parada desfilou diante da Porta de Ishtar. O rei  ficou sentado num trono dourado, com o leão aos seus pés,  e com os altos dignatários em terno, armados em grande  gala. Parecia flutuar numa nuvem de ouro, prata e  púrpura. Diante e abaixo dele, ao longo da larga estrada,  desfilavam os guerreiros numa coluna de sessenta infantes  ombros a ombro e de seis carros paralelos. Tal passagem  durou o dia inteiro. As rodas dos carros faziam  estrépito, e o barulho dos pés em marcha e das equipagens  militares parecia o rolar de uma tempestade, fazendo os  olhos fulgurar e os joelhos tremer.

Disse a Kaptah:

- Não chega que comuniquemos que os guerreiros de Babilônia são numerosos como as areias do mar;  precisamos contá-los.

Ele protestou:

- Meu amo, de que modo se fazer isso, se não há tantos números assim no mundo?! Em todo o caso contei o mais que me foi possível. Os infantes eram sessenta vezes sessenta vezes sessenta  homens, ao passo que os carros eram sessenta vezes  sessenta - pois sessenta é o número sagrado de Babilônia,  assim como o são também os números cinco, sete e doze.

Notei também que os escudos e as armas do corpo da guarda real eram incrustados com ouro e prata, que os  rostos dos componentes dessa guarda cintilavam com  ungüentos, que tais soldados eram tão bem nutridos que a  marcha acelerada os punha quase sem fôlego e que passavam  diante do rei com a respiração anelante, parecendo mais  uma boiada. Mas tal guarda não era assim tão numerosa.  As tropas dos distritos das províncias estavam queimadas  de tanto sol, tinham fardas sujas e cheiravam a urina.  Muitos pelotões nem tinham armas porque a ordem do rei os  surpreendera sem grande prazo para se aprestarem. Tinham  os olhos feridos por insetos, que me fez refletir que os  soldados são iguais em todos os países. Além disso seus  carros eram velhos, um ou dois perderam uma roda, ao  passar, e as foices fixadas neles estavam verdes de  azinhavre.

Naquela noite o rei mandou me chamar à sua presença e disse, sorrindo:

- Viste o meu poder, Sinuhe?

Prostrei-me aos seus pés, beijei o chão e respondi:

- Na verdade um monarca mais poderoso do que vós não existe e não é sem fundamento que sois chamado o senhor das quatro bandas do mundo. Meus olhos estão cansados, minha cabeça ainda está girando, e meu corpo treme de  medo porque o número de vossos guerreiros é como as  areias do mar.

Ele sorriu, deliciado.

- Teu desejo foi satisfeito, Sinuhe. Bebamos vinho e  alegremos nossos fígados após um dia tão fastidioso, pois  tenho muita coisa a te perguntar.

Bebi com o rei, e ele me fez muitas perguntas do teor  das que são feitas por crianças e jovens que ainda não  viram nada do mundo.

Minhas respostas agradaram-lhe, e por último me disse:

- O vinho me reanimou, meu fígado está satisfeito, e  agora vou procurar as minhas mulheres. Mas vem comigo.  Podes vir, porque és médico. Tenho superabundância de  mulheres e não me ofenderei se escolheres uma para esta  noite, contanto que não lhe ponhas um filho visto como  isso criaria dificuldades. Além do mais, tenho  curiosidade de ver como é que um egípcio se deita com uma  mulher, já que todas as nações tem seus costumes  próprios. Se te dissesse os modos dessas mulheres vindas  de terras tão distantes, não acreditarias, ficando  perplexo.

Não deu apreço à minha recusa, levou-me à casa das  mulheres, mostrou-me pelas paredes cenas coloridas que  seus artistas haviam feito com os tijolos esmaltados.  Tais cenas mostravam homens e mulheres obtendo por  diferentes e variadas maneiras, gozo recíproco. Mostrou-me também algumas das suas mulheres que estavam com ricos  vestidos e preciosas jóias. Entre elas havia mulheres e  raparigas de todas as terras conhecidas e também de  nações selvagens e que haviam sido trazidas por  mercadores. Variavam de cor e de semblante e tagarelavam  em diferentes línguas, que nem papagaios.

Dançavam diante  do rei, exibindo ventres descobertos e o divertiam de  diversos modos, caprichando numa espécie de competição.  Ele insistia comigo continuamente para escolher uma  delas. Tive finalmente que lhe dizer que sempre que eu  estava tratando de um paciente importante prometia ao meu  deus me abster de mulheres.

Ora, na manhã seguinte eu  tinha que operar um dos oficiais da corte. Fiz-lhe ver,  por conseguinte, que já não podia estar com uma mulher  devendo me retirar logo a fim de não criar embaraços ao  meu voto. O rei concordou, anuindo com a minha saída dali; mas as mulheres ficaram seriamente despeitadas  conforme deram a entender com gestos e palavras. Não viam  no palácio homem nenhum em plena virilidade e sim apenas  eunuco e o rei que era rapazola magricela e imberbe.

Ao me retirar, o rei comentou rindo consigo mesmo:

- Os rios já estão transbordando; chegou a estação  vernal e os sacerdotes marcaram para daqui a treze dias o festival da primavera e o Dia do Falso Rei. Preparei-te  uma surpresa para esse dia; acho que te divertirás  muito, e espero me distrair bastante, também. Não te digo  o que vai ser para assim não estragar o efeito.

Retirei-me cheio de dúvidas, quase com a certeza plena  de que o que pudesse agradar ao rei Burnaburiash me desagradaria a mim, hipótese esta de que logo  participou meu criado Kaptah.

Durante a minha demorada permanência em Babilônia adquiri muitos conhecimentos sobre ocultismo, e todos  eles de grande utilidade para um médico; a arte  sacerdotal da profecia interessou-me sobremaneira. prendi  também, sob a direção de sacerdotes, a ler augúrios nas  vísceras de carneiros que revelam muitíssimas coisas  ocultas, e levei muito tempo estudando as formas que o  óleo toma ao boiar sobre,a superfície da água.

Antes de falar do festival da primavera em Babilônia e  do Dia do Falso Rei quero mencionar um curioso incidente  com referencia ao meu nascimento.

Quando os sacerdotes examinavam as vísceras de um enção e depois carneiro em minha intenção e, contemplavam  o óleo flutuante, me disseram:

- Há um medonho segredo com referencia ao vosso  nascimento e que não podemos resolver. Parece, todavia,  que não sois um simples egípcio, conforme acreditais e  sim um estrangeiro no mundo.

Disse-lhes que não nascera como os outros homens, mas que fora trazido rio abaixo num barco feito de juncos e que minha mãe me achara entre os caniços. Então os  sacerdotes se entreolharam e se inclinando profundamente  diante de mim disseram:

- Bem nos pareceu isso.

Prosseguiram conversa, falando-me do grande rei deles, Sargão, que estendera seu domínio por sobre os quatro  cantos do mundo e cujo império se estendia dos mares que  estão ao norte até aos oceanos que se acham ao sul, e que  incluía também ilhas e arquipélagos. Falaram-me que,  quando recém-nascido, Sargão tinha sido transportado rio  abaixo num bote calafetado e que nada se sabia da sua  origem até que proezas extraordinárias patentearam que  descendia de deuses.

Ao ouvir isso meu coração se tomou de susto e procurei rir, zombando do caso:

- Evidentemente vós outros não imaginais que eu, um médico, descenda de deuses!

Não riram; antes, muito sérios, redargüiram:

- Lá isso, ignoramos; mas a prudência é uma virtude... Portanto, só nos resta inclinarmo-nos diante de vós.

E mais uma vez se inclinaram profundamente diante de mim até eu enjoar e lhes dizer:

- Acabemos com tais parvoíces e voltemos aos nossos negócios.

Continuaram então a interpretar os pertuitos daquelas vísceras, não deixando, no entanto, de me lançar  olhadelas de esguelha e ciciar coisas uns com os outros.

Desde esse dia o pensamento da minha origem começou a pesar sobre o meu espírito e meu coração ficou oprimido porque eu era um estrangeiro em todas as quatro bandas do mundo. Tive grande vontade de interrogar os astrólogos, mas como não conhecia a hora exata do meu nascimento não adiantava nada interrogá-los pois lhes faltariam dados  necessários.

Todavia, a pedido dos sacerdotes, os astrólogos  procuraram as tábuas referentes ao ano e ao dia em que  apareci rio abaixo; é que os sacerdotes também sentiram  curiosidade. Mas o máximo que os astrólogos puderam dizer foi que se eu tivesse nascido a tal hora de tal dia eu seria de  sangue real e destinado a governar uma nação muito  populosa. Tal informação não me confortou em nada porque  ao recordar o passado apenas me vinha à mente o crime que  eu cometera e o opróbrio com que eu me cobrira em Tebas.  Decerto as estrelas me haviam amaldiçoado desde o próprio  dia de meu nascimento mandando-me rio abaixo no barco de  junco a fim de arrastar Senmut e Kipa a uma morte  prematura e roubar-lhes o contentamento da velhice...  roubar-lhes até mesmo a própria tumba. E pensando nisso  senti calafrios porque se já antes as estrelas tinham  sido contrárias a mim eu não podia evitar que meu destino  continuasse a trazer ruína e sofrimento aos que me  queriam bem. Temi o futuro e deduzi que tudo quanto me  acontecera e acontecia estava designado para me forçar à  solidão e ao afastamento de meus semelhantes, pois  somente longe de todos é que eu não os prejudicaria.

Resta-me falar sobre o Dia do Falso Rei.

Quando o trigo novo começou a despontar e o frio  cortante das noites foi sendo sucedido pelo calor os  sacerdotes saíram a buscar fora da cidade, lá em sua  tumba, o deus deles, e a exclamar que ele ressuscitara.  Em tal ocasião a cidade de Babilônia ficou transformada  num arraial festivo e cheio de danças, com multidões  alegres e desenvoltas percorrendo as ruas. Chusmas  invadiam as lojas fazendo mais celeuma e confusão do que  os soldados depois do dia da parada. Mulheres penetravam  no templo de Ishtar a fim de ajuntar prata para seus enxovais; e quem quisesse podia escolher entre  elas e tal fornicação não constituía vergonha. O último  dia do festival era o Dia do Falso Rei.

Já então eu estava bem mais ciente dos hábitos e  costumes de Babilônia; mas fiquei perplexo ao ver o corpo  da guarda pessoal do rei se encaminhar de madrugada, numa  bebedeira maciça, na direção da Casa de Alegria de  Ishtar, invadi-la arrebentando as portas e dando  chanfalhadas em quantos encontravam, perguntando-lhes aos  berros:

- Onde está escondido o nosso rei? Trazei-o aqui mais  que depressa, pois o sol já vai nascer e o rei deve  dispensar justiça ao seu povo!

O escarcéu era indescritível. Acenderam-se lâmpadas e a criadagem do hotel corria pelos corredores tomada de  pânico enquanto Kaptah, acreditando que se tratasse de  motins irrompidos na cidade se escondeu debaixo da minha  cama. Mas eu saí ao encontro dos soldados, coberto apenas  por um traje de lã em que me envolvi à pressa, pois me  levantara nu, naquele instante mesmo. Perguntei-lhes:

- Que desejais? Vede lá como vos portais comigo, pois sou Sinuhe, o egípcio, o Filho do Burro Bravo... Certamente já ouvistes falar em meu nome.

Ao que eles exclamaram:

- Pois se sois Sinuhe, sabei que andamos à vossa  procura, exatamente!

Rasgaram minha túnica, de modo que fiquei nu; e logo começaram a apontar para mim, mostrando-me, espantados, pois nunca tinham visto um homem circuncidado. E  desandaram a discutir, dizendo:

- Não será melhor o prendermos?!... Ele é um perigo para as nossas mulheres que apreciam tudo quanto seja novidade.

Mas depois que puseram termo a tais zombarias me  soltaram, declarando:

- Não nos façais perder mais tempo. Entregai-nos o  vosso criado, pois temos que levá-lo para o palácio sem  demora porque hoje é o Dia do Falso Rei. Ordenou-nos o  rei que fossemos sem demora a palácio levando esse homem.

Ao ouvir isso Kaptah ficou tão aterrorizado que começou a tremer tanto que sacudia a cama toda. Assim fácil lhes foi achá-lo. Arrancaram-no e levaram-no jubilosamente,  rendendo-lhe desde já muitas zumbaias, dizendo uns para  os outros:

- Que formidável prazer o nosso, hoje. Finalmente  encontramos o nosso rei que se havia escondido e sumira  da nossa vista. Nossos olhos ficam radiantes em  contemplá-lo e esperamos que ele recompense com muitos  donativos a nossa fidelidade.

Tremendo muito, Kaptah os encarava com olhos maiores do que ilhós de cabrestos; ante tal máscara de pavor e perplexidade, a soldadesca ria cada vez mais,  acrescentando:

- O rei das quatro bandas do mundo é este aqui, sim. Conhecemos-lhe bem a cara!

Faziam-lhe mesuras e os que se achavam atrás lhe davam pontapés no períneo a fim de apressá-lo.

Kaptah disse-me:

- Está-se a ver que esta cidade... ou melhor, o mundo inteiro está cheio de desordem, de maníacos e maldosos  dos quais nem mesmo o escaravelho parece poder me  proteger. Nem sei dizer se estou com os pés ou com a cabeça no  chão..Acaso estarei dormindo ainda na minha cama,  profundamente e que tudo isto não passa de um pesadelo?!  Seja como for tenho que ir com eles, pois são capazes de  tudo. Mas, patrãozinho, salve a sua vida, se puder. Retire o  meu corpo da muralha depois que me dependurarem com a  cabeça para baixo e embalsame-o por causa das dúvidas.  Não deixe que me joguem no rio.

Ouvindo tais súplicas os soldados riam, achando  estupenda graça.

- Louvado seja Marduk, pois um rei melhor do que este não poderíamos encontrar. E o que espanta é a língua  dele não estar cheia de nós, pois fala como uma  cachoeira.

A aurora ia rompendo. Então começaram a dar com as espadas nas nádegas de Kaptah para apressá-lo. E levaram-no.

Vesti-me rapidamente e fui ter logo ao  palácio onde encontrei todas as antecâmaras e galerias  repletas de chusma barulhenta.

Cuidei deveras então que motins tivessem irrompido e  que as sarjetas iriam ficar cheias de sangue tão logo  chegassem reforços das províncias. Mas, como acompanhei a soldadesca até à grande sala do trono, dei com Burnaburiash sentado em seu trono de ouro com patas de leão, debaixo do dossel de soberania,  vestindo uma farda realenga e segurando nas mãos os  símbolos do poder.

Rodeavam-nos os sumos-sacerdotes de  Marduk, os conselheiros e a aristocracia do reino. Mas os  soldados não lhes deram a menor atenção. Empurraram Kaptah  bem para a frente, abrindo caminho com as espadas até  chegar diante do trono, onde então se detiveram.

Houve súbito silencio. Voz nenhuma. Até que Kaptah ordenou:

- Ou tirais daqui essa criatura do diabo ou me fartarei desta brincadeira e vou-me embora.

Bem nesse momento a luz do sol irrompeu por entre as esculturas ornamentais da janela oriental e toda gente  começou a gritar:

- Ele tem razão! Tirai daqui essa criatura, pois  estamos fartos de ser governados por um criançola que nem  tem barba na cara! Este aqui, sim, é um sábio. Por  conseguinte o proclamamos rei para que nos governe!

Nem dei crédito aos meus olhos quando os vi investir contra o rei, brincando e rindo desenvoltamente,  arrancar-lhe das mãos os símbolos, e do corpo as vestes  deixando-o tão nu quanto, momentos antes, os soldados  tinham feito comigo.

Davam-lhe beliscões nos braços, palpavam-lhe os  músculos das coxas, caçoavam dele.

- Mas quem não vê que foi desmamado não faz muito tempo?... Ainda está com cheiro de leite materno nos beiços... Já é tempo, afinal, das mulheres do harém terem algum prazer, e parece-nos que este velhaco aqui, Kaptah,  o egípcio, está habituado a tais cavalarias!...

Burnaburiash não proferia nenhuma palavra de protesto, ria com eles, enquanto o leão muito assustado,  estranhando aquilo tudo, tratou de se safar, com a cauda  entre as pernas, com medo da confusão geral.

Foi então que também eu cuidei estar com os pés para cima e a cabeça para baixo, pois deixaram o rei e se  voltaram para Kaptah, vestiram-no com o manto real,  forçaram-no a ficar segurando os símbolos de majestade.  Depois o empurraram para o trono e se prostraram diante  dele, limpando o chão com os beiços. Entre eles o  primeiro a fazer isso foi Burnaburiash, nu em pelo,  agachado, e exclamando:

- Isso mesmo! Ele tem que ser o nosso rei! E um melhor não acharíamos!

Então todos se levantaram e proclamaram Kaptah rei. E batiam com os pés no chão, guinchavam e seguravam os ventres de tanto rir.

Kaptah encarava-os com olhos esbugalhados, com o cabelo em pé por entre o diadema real que haviam enfiado de  banda em sua cabeça. E por fim disse:

- Se realmente sou rei, então sempre calha antes de  mais nada um gole de vinho. Portanto, depressa, depressa,  súcia de escravos! Trazei vinho se é que ainda sobrou  algum, do contrário meu cetro dançará em cima de vossos  lombos e vos mandarei dependurar nas muralhas. Trazei  vinho e mais vinho, para que estes nobres e meus amigos  que me instituíram rei possam beber comigo e... mesmo  porque decidi tomar um banho de vinho enfiando-me nele  até ao pescoço.

Suas palavras despertaram grande hilaridade e a chusma vociferante o conduziu para um vasto salão em cujas mesas estavam expostos muitos pratos sumarentos e vinho à  vontade. Cada qual tomou o que muito bem quis, e  Burnaburiash enfiou um avental de criado e irrompeu por  entre a, multidão truanescamente, pisando em pés,  derramando vinho e molho nas roupas de muitos que  blasfemaram e lhe atiraram ossos que mal haviam começado  a descarnar. Fora do palácio, no jardim e nos pórticos,  alimento e vinho eram oferecidos à multidão. Bois e  carneiros estavam sendo esquartejados ali e postos a  assar.

A população servia-se de cerveja e de vinho e se  lambuzava com caldas feitas de creme e tâmaras. A medida  que o sol ia subindo o tumulto incrível aumentava.

Assim que se me ofereceu ensejo me aproximei de Kaptah e lhe disse baixo, quase confidencialmente:

- Kaptah, disfarça e segue-me. Fujamos sem ser vistos,  pois nada de bom pode resultar disto.

Mas Kaptah bebera muito vinho e se empanzinara com muita comida, e replicou desta forma:

- Dou tanto apreço ao que ouço como se fosse zumbido de moscas em meus ouvidos. Nunca ouvi besteira mais  cretina! Retirar-me? Eu?! E exatamente agora que este meu bom povo me fez rei e se prostra diante de mim?

Limpou a gordura da boca e jogando em cima de mim um osso de tamanho quase cavalar, gritou:

- Tirai da minha frente este egípcio imundo antes que  eu perca a paciência e faça o meu bordão vibrar nas  costas dele!

Podia ter acontecido coisa desagradável; mas exatamente nesse momento uma trombeta se fez ouvir e um homem anunciou que estava na hora do rei ir distribuir justiça  ao seu povo. De modo que fiquei esquecido de todos.

Kaptah ficou um tanto atordoado - se é que isso era  possível - quando começaram a conduzi-lo para a  Casa da Justiça, desculpando-se que preferia entregar o  caso aos juízes designados - pessoas de bem e que  mereciam sua confiança.

O povo reagiu com veemência e indignação, bradando:

- Queremos ser testemunhas da sabedoria do rei e  certificar-nos de que é o soberano que nos convinha, pois  conhece bem as leis.

Assim, Kaptah foi erguido ao trono da Justiça; diante  dele se viam algemas e azorragues, emblemas da justiça; o  povo foi chamado a se apresentar e expor suas questões ao  monarca. Depois de haver pronunciado alguns julgamentos  Kaptah ficou farto daquelas atribuições; espreguiçou-se e  disse:

- Hoje comi e bebi demais, acho eu. e isso anuviou e espessou um tanto o meu cérebro. Como rei também sou senhor do harém onde, segundo me consta, cerca de  quatrocentas mulheres me esperam. Cumpre-me por  conseguinte inspecionar esses meus bens, mesmo porque o  vinho e a realeza me abrasaram esquisitissimamente e me  sinto impetuoso como um leão.

Ao ouvir isso a ralé miúda irrompeu em tremenda ovação que parecia não ter fim. Ele foi acompanhado outra vez  até dentro do palácio onde no pátio que dava para a porta  do serracho a chusma se deteve.

Mas agora Burnaburiash não estava rindo mais; esfremava  as mãos nervosamente e coçava a perna direita com o pé esquerdo. Assim que me viu veio depressa ao meu  encontro, dizendo logo:

- Sinuhe, és meu amigo e podes, como médico, entrar na casa das mulheres do rei. Acompanha-o e age de modo que ele não faça nada de que possa vir a se arrepender tarde demais. Mandarei esfolar vivo esse sujeito e porei sua  cabeça a secar em cima da muralha se ele se atrever a  tocar nas minhas mulheres. Se, porém, agir direito  prometo lhe conceder morte plácida.

Disse-lhe:

- Burnaburiash, sou de fato vosso amigo e vos quero  bem. Dizei-me, todavia, que é que tudo isto significa, pois tenho o fígado em pandarecos em vos ver transformado em  criado e escarnecido por todos.

Respondeu-me impacientemente:

- Hoje é o Dia do Falso Rei, conforme toda gente sabe; apressa em segui-lo antes que aconteça algum mal.

Não saí do lugar, embora ele me empurrasse; disse-lhe  pelo contrário:

- Ignoro os costumes de vosso país. Deveis explicar-me  que é que tudo isso significa.

- Cada ano no Dia do Falso Rei, o homem mais estúpido e mais aloucado de Babilônia é escolhido como rei e posto a governar desde que o sol nasce até que se põe,  investido de majestade e domínio absolutos; e o rei  legítimo fica afastado momentaneamente. Nunca vi um rei  mais cômico do que Kaptah que foi escolhido por mim  exatamente por causa disso. Ele ignora o que está para  lhe acontecer e isso é que é o mais engraçado.

- Que é então que está para acontecer?

- Ao por do sol ele será morto com a mesma  subtaneidade com que foi coroado. Posso matá-lo  cruelmente, se tanto for a minha vontade. Mas nestes  casos quase sempre mando por no vinho dos falsos reis um  veneno agradável e assim morrem enquanto estão  dormindo, ignorando tudo. Apressa-te pois e providencia  para que teu criado,não faça besteiras de que possa se  arrepender antes do por do sol.

Mas não me foi necessário ir buscar Kaptah, pois este  voltou lá de dentro do serralho aos solavancos, furioso,  com sangue a lhe pingar do nariz e com a mão tapando seu  único olho.

Contou-me por entre bufos e suspiros:

- Veja só o que me fizeram! Só encontrei megeras e  negras.

E quando quis me aprumar para uma garota novinha ela se transformou num tigre e me deu um soco no olho além de me ferir o nariz com uma chinela!

Burnaburiash, quase desmaiou de tanto rir; tive que  segurá-lo entre os meus braços. E Kaptah continuou com  sua lamentação:

- Não me atrevo a abrir a porta dessa casa porque a mulher que está aí dentro parece uma fúria, uma fera... Nem sei o que se deva fazer. Não seria melhor, Sinuhe,  que entrasse e lhe abrisse o crânio a fim de soltar o  espírito mau que está dentro dela? Não pode deixar de  estar endemoninhada; só isso explica que ousasse erguer  as mãos contra o rei e me esborrachasse o nariz com uma  babucha a ponto do meu nariz sangrar como o cachaço de um  boi!

Burnaburiash acotovelou-me e disse:

- Entra, Sinuhe e vê que foi que aconteceu. Estiveste  lá dentro, já conheces o lugar. Hoje não posso entrar.  Vem depois me contar. Acho que sei de que rapariga é que  se trata. Decerto foi a que trouxeram ontem das ilhas do  alto mar. Espero usufruir muito prazer dessa criatura  que, aliás precisa antes tomar um pouco de chá de  papoula.

Instou tanto que acabei entrando no serralho que se  achava em incrível confusão. Os eunucos não se opuseram  porque sabiam que eu era médico. Mulheres velhas tinham  engalanado esplendorosamente e exibiam as caras  encarquilhadas cheias de pintura, em honra de tal dia, e  logo embarafustaram para mim perguntando ao mesmo tempo:

- Que fim levou ele, o nosso amado, a flor do nosso coração, o nosso carneiro por quem estávamos esperando  desde manhã?

Uma negralhona cujos peitos lhe pendiam atingindo a barriga que nem ganielas, se despira toda a fim de ser a  primeira a receber Kaptah e goelava:

- Devolve-me o meu querido para que eu possa apertá-lo de encontro ao seio. Devolve-me o meu elefante para que  ele sopre a tromba por cima de mim!

Mas os eunucos, atarantados, disseram:

- Não de atenção a essas mulheres. Compete-lhes apenas entreter o falso rei, e estão bebendo desde de manhã à  espera dele. Fez bem em vir, porque necessário se faz  aqui um médico: a mulher que foi trazida ontem está  louca. È, mais forte do que nós e nos dá pontapés  medonhos. E não sabemos o que possa acontecer porque está  armada com um punhal e é selvagem como uma fera a.

Levaram-me para o pátio do serralho cujos tijolos  coloridos e vitrificados cintilavam ao sol. No meio do  pátio havia um lago redondo onde monstros marinhos  esculpidos deixavam jorrar água de suas faces.

A mulher enfurecida se havia postado acolá; estava  com as roupas rasgadas porque os eunucos tinham  procurado agarrá-la; molhara-se toda porque atravessara o  lago; e os borrifos ainda a atingiam. Segurava-se com uma  das mãos na boca de uma foca e com a outra agarrava um  punhal. Devido ao barulho da água e às vozes dos eunucos eu não podia ouvir as palavras dela. A  despeito do vestido estraçalhado e do cabelo molhado, era  uma rapariga bonita. Fiquei sem jeito e disse aos eunucos:

- Deixem-me. Vou falar com ela... Ver se a acalmo.

Fechem a água para que eu possa ouvir o que ela diz.  Não resta dúvida que está vociferando.

Quando o ruído da água cessou percebi que ela não  estava falando e sim cantando. Não compreendi as  palavras do cântico porque eram numa língua que eu  desconhecia. Estava com a cabeça meio dobrada: para trás,  seus olhos faiscavam como os olhos verdes de um gato  selvagem suas faces pareciam abrasadas de furor. Gritei-lhe, mas com modo compassivo:

- Cessa com esses miados, gata selvagem... Joga fora  essa faca e aproxima-te para que possamos conversar;  quero tratar-te porque decerto estás fora de ti.

Interrompeu a canção e me respondeu num linguajar babilônico pior do que o meu:

- Joga-te no lago, macaco e nada até aqui para que eu sangre o teu fígado pois estou com sede!

- Não vim te fazer mal nenhum!...

- Muitos homens já me disseram tal mentira. Jamais me acercarei de um homem, nem que quisesse, porque minha vida foi consagrada a dançar diante do meu deus. E por  isso que ando sempre com este punhal e prefiro dar o meu  próprio sangue à divindade para que o beba do que deixar  que· um homem me toque. Menos ainda consentirei que aquele demônio caolho se aproxime bufando porque o acho mais parecido com um alforje do que com um homem.

- Pois dança quanto quiseres, ó aloucada! Mas joga fora esse punhal, pois podes te ferir o que seria de lastimar porque os eunucos me disseram que te pagaram a peso de  ouro no mercado de escravas destinando-te ao rei.

- Não sou nenhuma escrava. Fui arrebatada  traiçoeiramente conforme te podes dar conta se é que tens  olhos na cara. Mas não podes falar uma outra língua mais  respeitável que esses eunucos não entendam?! Estão  escondidos atrás das pilastras com as orelhas atentas ao  que estamos dizendo.

- Eu sou um egípcio - respondi-lhe na minha língua natal - e o meu nome é Sinuhe, O Que Está Sozinho, Filho do Burro Bravo. E de profissão sou médico. Logo não precisas ter receio  de mim.

Então ela se atirou na água e irrompeu na minha  direção, com o punhal nos dedos. Prostrando-se diante de  mim, disse:

- Sei que os egípcios são homens tolerantes e que não  se apossam de uma mulher à força. Portanto, confio em ti  e peço que desculpes se continuo com o punhal pois está  parecendo mais do que provável que hoje mesmo ainda terei  que abrir as minhas veias para não deixar que o meu deus  seja aviltado através da minha pessoa. Mas se temes os  deuses e te apiedas de mim, então me salva e me leva para  longe desta terra, não obstante eu não te poder  recompensar como merecerias, pois isso me é vedado.

- Não tenho em mente te ajudar a fugir, de modo algum - redargüi. - Isso seria uma desfeita minha ao rei que é  meu amigo e que pagou uma montanha de ouro por ti. De  mais a mais posso te dizer que o indivíduo que esteve  aqui não é senão o falso rei que reina por hoje, apenas,  ao passo que o rei verdadeiro te visitará amanhã. É um  mancebo ainda sem barba, de boa aparência e que espera se  comprazer muito em tua companhia depois de te domesticar.  Não creio que o poder do teu deus possa te valer aqui.  Não perderias nada em te submeteres ao inevitável. Será  melhor por conseguinte que acabes com esses acessos e que  te vistas e te adornes para ele. Não estás nada bonita  com essa cabeleira molhada e com a pintura dos lábios te  sujando o rosto todo.

Tais observações surtiram algum efeito, pois ela  apalpou os cabelos e molhando a ponta do dedo esfregou as sobrancelhas e os lábios. Depois me sorriu - tinha um  semblante pequenino e lindo - e disse com cordura:

- Meu nome é Minéia. É assim que deves me chamar quando me levares daqui para fora se fugirmos juntos  desta terra amaldiçoada.

Ergui as mãos, exasperado, e me voltei depressa para  sair; mas seu rosto assim me atormentava. Virei-me de  novo, aproximei-me e disse:

- Minéia, falarei a teu respeito com o rei; é o máximo  que posso fazer. Enquanto isso, veste-te e compõe-te. Se queres, posso te dar uma droga que te acalme bem de modo  a que não te incomodes mais com o que está acontecendo.

- Ousas fazer isso? Atreves-te a tanto?...Bem, se ficas  a meu favor vou te entregar este punhal que me protegeu  até aqui...Dou - to porque sei que uma vez tendo feito  isso me protegerás, não me atraiçoarás... Levar-me-ás  para fora desta terra.

Ficou a sorrir para mim por entre o cabelo gotejante  até que a deixei. Saí-levando o seu punhal e sentindo uma profunda mortificação. Sim, pois percebi que era mais  sagaz do que eu porque me entregando aquele punhal ligava  o seu destino ao meu e eu me via desse modo responsável  por ela.

Burnaburiash veio ao meu encontro quando saí do harém querendo logo saber que era que havia acontecido.

- Vossos eunucos estão às voltas com uma trapalhada. Exatamente. E que Minéia, a rapariga que adquiriram  para vós, está delirando e decidiu não se aproximar de  nenhum homem nem deixar que homem algum se aproxime dela porque o deus que venera proíbe tal contacto. É melhor, portanto, que a deixeis em paz até ulterior alteração  desse ponto de vista tão pessoal...

Mas Burnaburiash riu, radiante.

- Saber isso já faz meu prazer se antecipar... pois  conheço essa espécie de raparigas. A tal respeito o  melhor argumento é o bastão. Sou jovem, ainda não tenho  barba e muitas vezes me canso nos braços das mulheres. A  verdade é que sinto maior prazer em assistir e em escutar  quando os eunucos as esbordoam: agitam-se, gritam...  Assim pois essa jovem teimosa me agrada bastante porque  me proporciona ensejo de a mandar fustigar pelos meus  eunucos. Juro, por conseguinte, que esta noite mesmo ela  será batida até ficar com a pele inchada e não poder se  deitar de costas, pela qual razão meu prazer redobrará.

Deixou-me, esfregando as mãos e sorrindo feito uma  mulher. Fiquei parado, observando-o enquanto sumia; e  compreendi que ele já não era mais meu amigo e que minha simpatia se desfizera. E o punhal de Minéia ainda se  achava em minha mão.

Depois disso deixei de participar da alegria geral,  conquanto o palácio e a praça fronteiriça estivessem  repletos de povo que bebia vinho e cerveja e aplaudia com  furor as truanices de Kaptah que já se esquecera do susto  que levara no harém. A contusão no olho fora tratada com  postas de carne crua de modo que já não lhe doía, apenas  estando com cores muito vivas. Mas o que se passava  comigo, aborrecendo-me, não sei. Considerava que ainda  tinha muito que aprender em Babilônia já que os meus  estudos com referencia às vísceras dos carneiros ainda  estavam incompletos e que eu não sabia ainda derramar  óleo na água com a mesma proficiência dos sacerdotes.

Além disso Burnaburiash estava mais em débito comigo do  que eu com ele, se bem avaliarmos quanto lhe serviram a minha amizade e a minha perícia profissional, sendo  portanto claro que se eu permanecesse seu amigo receberia esplendidos presentes quando me fosse  embora. Todavia quanto mais eu ponderava a tal respeito  mais persistentemente me sentia fascinado pelo semblante  de Minéia. E pensava também em Kaptah que deveria morrer aquela noite por causa de um estúpido gracejo do rei, e  ainda por cima sem o meu consentimento sendo - como era - meu criado.

A conseqüência foi que meu coração opôs resistência ao rei que me ofendendo assim me dava o direito de ofende-lo também. Verdade é que meu coração me dizia que só o fato de haver calculado tais hipóteses já constituía uma  quebra de todas as leis da amizade. Mas eu era um  estrangeiro solitário, desligado de quaisquer costumes  locais. Assim pois, de tarde, fui à margem do rio e  aluguei um barco de dez remadores e disse à guarnição:

- Hoje é o Dia do Falso Rei e reconheço que deveis  estar sem nenhuma vontade de remar após tanta alegria e  vinhaça. Mas vos darei o dobro do pagamento de praxe porque  morreu um tio meu ricaço e preciso transportar o corpo  dele para junto dos demais parentes... E preciso fazer  isso imediatamente antes que seus filhos ou o meu irmão  comecem a brigar por causa da herança e me deixem sem  nada. Por conseguinte pagarei regiamente se remardes com  vontade a despeito da extensão da viagem pois a nossa  família vive acolá na fronteira de Mitani.

Os barqueiros mostraram má disposição mas lhes fui  buscar duas botijas de cervejas e lhes disse que poderiam  beber até a hora do poente, contanto que se aprestassem  para partir assim que escurecesse. Então protestaram  violentamente:

- Em circunstância alguma sairemos depois que estiver  escuro porque a noite é prenhe de muito demônios, grandes  e pequenos, e também de espíritos maus que soltam gritos  fantásticos e que decerto acabarão virando o nosso barco  e dando cabo de nós.

Respondi logo:

- Vou daqui ao templo fazer oferendas para que não nos  suceda dano nenhum no decorrer da viagem E o tilintar da prata toda que eu vos der abafará os grunhidos dos  demônios  Dirigi-me à torre e sacrifiquei um carneiro diante do adro; quase não havia gente por ali porque quase todos os  cidadãos se achavam reunidos no palácio para celebração  da festa do Falso Rei.

Contemplei as vísceras do carneiro, mas os meus  pensamentos se achavam em tamanha barafunda que pouco ou  nada depreendi. Notei apenas que o fígado do animal  estava mais escuro do que eu habituara a ver, e que  cheirava mal,fatos estes que me encheram de apreensões.  Colhi num odre que levei para o palácio o sangue do  carneiro.Ao enveredar para o harém uma andorinha voou ao  rés da minha cabeça, isso reavivou o meu coração e me fez  recobrar ânimo, porque se tratava de pássaro de minha  pátria; portanto considerei seu aparecimento um bom  agouro.

No harém, disse aos eunucos:

- Deixem-me sozinho com a louca. Quero expulsar o  demônio do corpo dela.   

Obedeceram-me e puseram à minha disposição uma sala  pequena. Aí dentro expliquei a Minéia o que ela devia  fazer; entreguei-lhe o odre com sangue e lhe restituí a  faca. Prometeu seguir minhas instruções. Deixei-a,  fechando a porta e dizendo aos eunucos que a largassem em  absoluta paz, pois estava sob a ação do remédio que eu  lhe dera para afugentar o demônio. Fiz-lhes compreender  que esse demônio entraria para o corpo do primeiro que  abrisse aquela porta sem minha licença. Foi quanto bastou.

Já agora o sol descambava enchendo as salas do palácio  com uma luz avermelhada. Kaptah continuava comendo e  bebendo enquanto Burnaburiash esperava o desfecho rindo e  meneando-se que nem uma rapariga. Ao longo dos pavimentos  molhados de bebidas homens embriagados dormiam sobre  poças de vinho. Disse a Burnaburiash:

- Estou fazendo tudo para me convencer que Kaptah terá  uma morte sem sofrimentos porque é meu criado e eu mereço  que me dispensem uma tal consideração.

- Apressa-te então porque o velhote já está dissolvendo  o veneno no vinho e teu criado tem que morrer assim que o sol baixar, conforme é de praxe.

Fui em demanda do velhote, isto é, o médico do rei.  Quando lhe disse que viera da parte do soberano acreditou  logo e me declarou:

- Mexe tu mesmo o veneno pois já estou com as mãos  tremulas por causa da quantidade de vinho que bebi; além  disso minha vista está tão baralhada que não vejo nada  direito, de tal forma ri o dia inteiro com as sandices de  teu criado.

Joguei fora aquela mistura e preparei um vinho com sumo  de papoulas em quantidade não mortal e apenas  entorpecedora. Depois, levando o copo a Kaptah, lhe  disse:

- Decerto não nos encontraremos mais porque estás tão  soberbo com as tuas dignidades que amanhã nem te dignarás  me conhecer. Bebe por conseguinte o vinho que te ofereço nesta taça  a fim de que, quando eu voltar ao Egito, possa dizer ao  certo que o senhor das quatro bandas do mundo é meu  amigo. Quando tiveres bebido te certificarás de que só  quero o teu bem, aconteça o que acontecer. Lembra-te  também do nosso escaravelho.

Kaptah disse:

- A conversa desse egípcio seria para mim como o zumbir  de moscas se eu já não estivesse com outros zumbidos provenientes de tanto beber, razão pela qual nem ouço o  que ele está me dizendo. Mas uma taça é coisa que nunca desdenho conforme todos vós aqui à minha volta tendes  verificado e eu, por minha vez, tudo tenho feito para que  meus súditos disso se certifiquem já que os prezo tanto.  Isto posto, vou virar goela abaixo a taça que este homem  me oferece embora saiba que amanhã sentirei burros  selvagens dando coices em minha cabeça.

E esvaziou a taça, na hora exata em que o sol se pos.  Trouxeram tochas e acenderam lâmpadas Todos se levantaram  e permaneceram em silencio reinando assim sossego no  palácio inteiro. Kaptah tirou o diadema de rei da  Babilônia, declarando engroladamente:

- Este estupor desta coroa pesa demais; já não a agüento. Também sinto as pernas dormentes... Minhas pálpebras  estão que nem chumbo... Acho melhor ir para a cama...   

Dizendo isto puxou para cima de si uma pesada toalha de  mesa e se deitou no chão disposto a pegar no sono. Com a toalha lhe caíram por cima jarras e taças, com muita  barulhada molhando-o de vinho até ao pescoço, cumprindo- se assim o que ele dissera de manhã. Os criados do rei  despiram Kaptah e puseram nos ombros de Burnaburiash  essas mesmas vestes maculadas de vinho; coroaram-no com o  diadema, puseram-lhe nas mãos os símbolos da majestade e  o conduziram para o seu lugar, no trono. O rei disse  então:   

- Foi um dia confuso... Ainda assim no decorrer de todas  estas horas não deixei de tomar boa nota daqueles dentre  vós que me demonstraram consideração insuficiente durante  a folia, cuidando com certeza que eu me chocaria e não recuperasse o meu trono. Ponde para fora a chicote os que  estão dormindo ainda pelo pavimento, expulsai dos pátios  a ralé e enfiai este maluco no bojo da eternidade, se é  que já morreu, pois estou farto dele.

Kaptah jazia estirado de costas; e o médico, depois de  examinar com mãos tremulas e olhos turvos declarou:

- Está mais morto do que uma varejeira.

Criados trouxeram uma grande urna de argila, dessas que  os babilônios usam para sepultar seus mortos, e Kaptah  foi colocado dentro dela. A parte superior foi lacrada  com argila.O rei ordenou que a urna fosse transportada  para as abóbadas subterrâneas do palácio e colocada entre  as dos anteriores falsos reis.

Nesse momento intervim, dizendo:

- Esse homem que está aí dentro é um egípcio, e é  circuncidado, como eu também sou. Portanto cumpre-me embalsamar-lhe o corpo, segundo o costume egípcio e  fornecer-lhe para a sua viagem rumo à Terra do Poente,  todas as coisas necessárias para que possa comer, beber e  se distrair depois da morte sem nenhum percalço. Para  tanto necessitamos nós egípcios, de trinta a setenta  dias, conforme a condição social que o defunto teve em  vida. No caso de Kaptah creio que bastarão trinta dias,  já que ele foi mero criado. Meu criado...Após tal prazo o  levarei para onde lhe compete ficar,isto é para as  abóbadas subterrâneas deste palácio onde ficará entre  seus predecessores, os outros falsos reis.

Burnaburiash, que escutara com muita atenção,  respondeu:

- Assim seja. Age com ele como quiseres já que se trata  de costume da tua terra; não me imiscuo nos costumes alheios, pois também oro diante dos deuses que não conheço  para propiciá-los anulando faltas que eu possa ter  cometido involuntariamente. A prudência é uma virtude.

Pedi aos criados que transportassem a urna com Kaptah  para uma liteira que estava esperando junto às muralhas  do,  palácio. Antes de sair disse ao rei:

- Durante trinta dias não me vereis porque durante o  período de embalsamamento não me posso apresentar diante  de ninguém para assim não transmitir os males que  enxameiam em torno de um cadáver.

Depois que cheguei à liteira abri um buraco na argila  que tampava o gargalo da urna. Fiz isso para que entrasse  ar suficiente. Depois voltei secretamente ao palácio  dirigindo-me ao serralho. Os eunucos ficaram aliviados  assim que me viram porque receavam a chegada do rei a  todo instante.

Mas quando abri a porta da saleta onde deixara Minéia,  recuei logo, arrancando os cabelos e soltando  lamentações.

- Venham ver o que aconteceu. Está morta em cima do  próprio sangue. O punhal ensangüentado jaz a seu lado... Até os cabelos estão cheios de coágulos!...

Os eunucos acorreram e ficaram lívidos, pois eles tem  verdadeiro horror de sangue; não ousaram tocá-la,  principiando a chorar apavorados já com a cólera do rei  Disse-lhes:

- Complicou nossas vidas, a minha e a de vocês, esta  desgraça. Tragam depressa uma esteira ou um cobertor para  que lhe enrolemos o corpo; lavem depois o sangue do chão  para que ninguém perceba o que sucedeu. Lembre-se de que o  rei contava usufruir muito prazer desta rapariga, e sua  cólera será medonha se souber que vocês e eu, por  desleixo, a deixamos morrer segundo a conveniência do  deus que a protegia.Tratem portanto de por no lugar dela,  imediatamente outra moça. Procurem, se possível, uma  estrangeira que não fale a língua de vocês.Vistam-na e  enfeitem-na para o rei, e caso ela resista esbordoem-na  diante dele, pois o rei gosta muito de assistir tais  espetáculos e recompensará vocês regiamente.

Os eunucos perceberam a sabedoria das minhas palavras; depois de pechinchar com eles um pouco relativamente ao  preço pedido pela nova rapariga lhes dei em prata a  metade do preço pedido. Trouxeram uma esteira forrada na qual enrolei Minéia; ajudaram-me a carregá-la através dos  pátios escuros até a liteira onde já se achava a urna com  Kaptah.    Depois que chegamos a margem do rio pedi aos  carregadores que transferissem a urna para dentro do  barco; mas eu mesmo transportei a esteira e a escondi  debaixo do pequeno convés.

Bradei depois para os carregadores:

- Escravos e filhos de cães!. Mesmo que alguém os  interrogue, esta noite vocês não ouviram nem escutaram  nada, absolutamente, hein?! E para que não se esqueçam  vou dar para cada um uma moeda de prata.

Dando pinotes de satisfação, eles exclamaram:

- Não resta dúvida que servimos um ilustre amo. Nossos  olhos são cegos e nossos ouvidos surdos. Não vimos nem escutamos nada esta noite.

Deixei-os ir, certo de que beberiam sem parar, como tem  sido sempre hábito dos carregadores do mundo inteiro;e  que bebendo dariam com a língua nos dentes contando tudo  que haviam visto. Ora, eles eram oito, e bem atarracados; impossível matá-los e jogá-los no rio conforme conviria  tanto.

Assim que eles se foram fui acordar os remadores. À luz  da lua que nascia, puseram-se manobrar os remos, afastando-nos todos da cidade, bocejavam e descompunham a  sorte, pois estavam aturdidos de tanta cerveja que haviam tomado.    Eis de que forma fugi de Babilônia. Por que motivo agissem, eu próprio não sei; decerto estava inscrito nos  astros antes do dia do meu nascimento e era inevitável.

 

MINÉIA

Conseguimos safar-nos da cidade sem que as sentinelas nos interpelassem porque o rio tinha franco acesso de noite.

Enfiei-me em baixo do convés a fim de descansar nele a cabeça exausta. Mas mesmo ali não tive paz porque Minéia se desvencilhou da esteira e começou a se lavar para se ver livre do sangue; tirava água do rio com as mãos e o luar refulgia nas gotas que lhe caiam por entre os dedos. olhou-me séria e disse em tom de admoestação:

- Obedeci ao teu conselho e o resultado foi este: me consurquei, estou cheirando a sangue e decerto nunca mais me purificarei. A culpa é toda tua. Além disso, ao me trazer, me apertaste demais sem necessidade, e agora mal posso respirar.

Tais palavras me aborreceram e, como sentia cansaço, retruquei:

- Fecha essa boca, mulher amaldiçoada. Quando penso que me fizeste tenho vontade até‚ de te atirar no rio onde poderias lavar quanto quisesses. Por tua causa não estou sentado agora à mão direita do rei de Babilônia. Se eu tivesse ficado na cidade os sacerdotes da torre teriam dividido comigo toda sabedoria deles sem restrições e eu poderia ser o  médico mais sábio do mundo. Por tua causa fiquei sem os presentes que me cabiam como prova de gratidão pelas curas que consegui. O meu ouro está acabado e não posso  apresentar nos bancos do templo as lousas que me habilitam a retirar mais dinheiro. Tudo isso por tua causa. Maldito seja o dia em que te conheci. Comemorá-lo-ei todos os anos vestindo um saco e pondo cinza na cabeça.

Ela enfiou a mão no rio recoberto de luar fendendo água  parecia prata derretida; e enquanto isso dizia em voz  baixa com o rosto de lado:

- Se assim é então me jogarei no rio conforme teu desejo. Desta forma não te embaraçarei.

Levantou-se e ia atirar-se. Agarrei-a e contive-a, dizendo:

- Acaba com essa loucura! Se te jogares todos os meus desígnios terão sido inúteis. Peço-te em  nome de todos os deuses que me deixes dormir em paz, Minéia‚. Não me  aborreças com teus caprichos, pois estou exânime.

Dito isto me encolhi debaixo da esteira que puxei bem sobre mim porque a noite estava fria apesar do verão já ter chegado e as  cegonhas gloterarem por entre os caniços. Então ela se aconchegou a mim, murmurando:

- Já que não posso fazer mais nada deixa então que te aqueça.

Meu cansaço era demasiado para que eu entretivesse  qualquer conversa, e logo caí no sono. Dormi profundamente porque ela era jovem e seu corpo me aquecia deveras como , um borralho.

Quando acordei, achavam-nos bem distanciados da cidade, rio acima, e os barqueiros se queixavam:

- Estamos com os ombros endurecidos e com as costas doendo. Que desejas de nós? Que morramos estafados? Acaso a tua casa está pegando fogo e queres que corramos para extingui-los?

Tomei-me de fúria e redargüi:

- O primeiro que afrouxar sentirá nas costas o meu bordão Só ao meio-dia é‚ que parareis para o primeiro  descanso. Então podereis comer e beber. Dar-vos-ei bons goles de vinho de tâmara para vos reanimar. Com isso vos sentireis leves que nem pássaros. Mas se algum de vós murmurar invocarei todos os demônios Acaso ignorais que sou  sacerdote e mágico?

Disse isso para atemorizá-los, mas o sol já estava brilhando fortemente e, ante tamanha claridade, fizeram pouco caso de mim. Comentaram uns com os outros:

- Ele ‚ sozinho e nós somos dez! –

E o que estava mais perto tentou me bater com o remo. Nesse momento se ouviu um ruído ensurdecedor na popa: era Kaptah batendo nas paredes da urna, gritando e dizendo palavrões. Os remadores ficaram lívidos e um após outro se atiraram no rio começando a fugir a nado. O bote começou a derivar; então joguei a pedra que servia de âncora. Minéia subiu, vindo da pequena cabina do convés e penteava os cabelos. Instantaneamente o medo me deixou. Ela era bela, o sol brilhava, as cegonhas gloteravam por entre os juncais.

Corri para a urna funerária e disse alto enquanto quebrava o fecho de argila:

- Levanta-te, homem, sai daí para fora!

Kaptah insinuou a cabeça pela abertura da urna. Jamais vi homem mais perplexo. Grunhiu:

- Que história é‚ esta? Onde é‚ que estou Onde está o meu diadema real? Onde estão os símbolos da minha realeza? Estou nu, sinto calafrios, tenho a cabeça cheia de  moscardos... Minhas pernas e meus braços parecem de chumbo. Será que me mordeu alguma serpente venenosa? Pare com esta brincadeira comigo, Sinuhe, pois é perigoso desconsiderar os reis!

Tive vontade de puni-lo por sua arrogância do dia anterior. Fechei a fisionomia, disse:

- Não compreendo o que dizes, Kaptah. Deves estar zonzo por causa do vinho. Deves lembrar que quando deixávamos Babilônia bebeste demais e acabaste te tornando tão violento no barco e te dirigiste tão selvagemente aos barqueiros que eles te  encerraram nessa urna para evitar que os atrapalhasses. Falavas sem parar  sobre reis, juízes e uma porção de coisas mais.

Kaptah fechou os olhos procurando se recordar bem de tudo por fim replicou:

- Patrão, nunca mais beberei vinho, porque o vinho e os sonhos me levaram a um pesadelo terrível, a uma aventura tão fantástica que  nem ouso relatar. Se uma coisa posso dizer: Pareceu-me que pela graça do escaravelho eu era rei, distribuindo justiça do alto do meu, trono. E também que entrei no serralho real onde usufruí as maiores delícias com uma linda moça. Sem contar muitas outras coisas que aconteceram...Mas não  ouso pensar nelas agora.

E de repente viu Minéia. Agachando-se mais que depressa dentro da urna, declarou com voz patética e amedrontada:

- Patrão, ainda não acordei direito... Devo estar ,sonhando ainda... Parece-me que vi lá na popa da embarcação a moça que encontrei no  harém.

Esfregava o olho contundido e as narinas inchadas e se lamentava alto. Minéia dirigiu-se para a urna, puxou para fora a cabeça de Kaptah agarrando-o pelos cabelos, e disse:

- Olha-me bem! Sou eu a tal mulher com quem te divertiste na noite anterior?!

Kaptah olhou-a com terror, fechou o olho e gemeu:

- Ó deuses do Egito, tende piedade de mim e perdoai-me por haver venerado e oferecido sacrifícios a deuses estrangeiros... Sim  estáveis lá, senhora! Perdoai-me, porém. Tudo não passou de um sonho.

Ajudei-o a sair da urna, dei-lhe uma poção amarga estomacal, depois,  amarrando uma corda em volta da cintura dele, o mergulhei no rio apesar  dos seus protestos, deixei-o flutuar para assim lhe clarear o cérebro porque  o coitado ainda se achava sob a ação do vinho e do suco de papoulas. Depois que o icei para bordo outra vez lhe disse com serenidade:

- Que isso te sirva de lição, por tua desobediência a mim que sou teu amo. Tudo quanto supões apenas que te aconteceu foi verdade  mesmo. E se eu não te socorresse estarias agora morto numa urna entre os  outros falsos reis.

Contei-lhe a seguir tudo quanto se havia passado, repetindo muitas vezes  para que ele acabasse compreendendo e acreditasse. E rematei assim:

- Nossas vidas correm perigo, e já não acho mais graça nos acontecimentos que te contei porque tão certo como estarmos aqui neste barco seremos dependurados de cabeça para baixo  nas muralhas se o rei nos achar. Se não acontecer coisa ainda pior... O  essencial agora é‚ armarmos um bom plano para escaparmos com vida.  Vê lá se ajudas a inventar um processo para entrarmos na terra de Mitani.

Kaptah coçou a cabeça e ficou pensativo. Daí a algum tempo disse:

- Se é‚ que compreendi direito, tudo isso aconteceu deveras, e não foi nenhum pesadelo de bebedeira. Assim pois tenho que louvar este dia como um dia bom, pois doravante posso beber vinho sem apreensões. Até‚ momentos antes cuidei que nunca mais ousaria provar uma gota sequer. ..Esgueirou-se para a cabina, rompeu o fecho de uma botija e tomou um grande gole, louvando nominalmente todos os deuses do Egito e da Babilônia e muitos outros cujos nomes jamais eu ouvira falar.

Ao nomear cada divindade se  inclinava por cima da botija, até que por fim caiu em cima da esteira, pegando logo no sono e roncando como um hipopótamo.

Fiquei tão enraivecido com a sua conduta que a minha vontade foi rolá-lo para a água e afogá-lo, mas Minéia disse:

- Kaptah tem razão, pois cada dia tem seus percalços. Por conseguinte por que não bebermos vinho e não apreciarmos este lugar para onde as águas do rio nos trouxeram! Isto aqui é‚ tão bonito! Estamos escondidos pelos juncais. As cegonhas gloteram por entre os caniços, algumas passam voando com o pescoço estendido... Decerto estão construindo os ninhos. As águas brilham em tons verdes e dourados, e o meu coração se sente tão leve como um pássaro, agora que estou livre do cativeiro.

Refleti sobre as suas palavras, e as achei certas.

- Já que vós ambos estais loucos, por que não hei de estar também? A verdade ‚ que tanto se me dá que a minha pele prenda do alto de uma  muralha, a secar, amanhã ou daqui a dez anos, pois tudo isso está escrito  nos astros antes do nosso nascimento conforme me ensinaram os  sacerdotes da torre. O sol brilha radiante, e nos campos que marginam o rio o trigo irrompe, verde. Vou portanto tomar banho neste rio e tentar pegar peixes com as mãos como fazia quando era criança, porque este dia ‚ tão é bom como qualquer outro.

E assim tomamos banho no rio e secamos nossas roupas ao sol, e comemos e bebemos. Minéia ofereceu sacrifício ao seu deus e dançou o seu bailado para que eu assistisse; e isso ali dentro da embarcação. Meu peito ofegava com dificuldade ante tal espetáculo. Disse-lhe por fim:

- Apenas uma vez na minha vida chamei de "minha irmã" a uma mulher; mas seu amplexo era de fogo e seu corpo um deserto árido onde não consegui me dessedentar. Peço-te portanto, Minéia, que me poupes do sortilégio que teu corpo operas sobre mim. Não me olhes com esses olhos que lembram o luar no rio, do contrário te chamarei de "minha irmã" e me conduzirás à destruição e morte conforme me faz a outra  mulher.

Minéia olhou-me com atenção esquisita.

- Deves ter conhecido estranhas mulheres, Sinuhe... Mas  talvez as do teu país sejam diferentes. Não te perturbes por minha causa. Está longe do meu propósito seduzir-te  conforme pareces temer. O meu deus me proíbe sob pena de morte qualquer contato humano.

Tomou minha cabeça entre as mãos e a depôs sobre o joelho. E enquanto acariciava meu rosto e meus cabelos ia dizendo:

- Que cabeça dura é‚ esta que te obriga a pensar tão erroneamente sobre  as mulheres!? Se algumas envenenam fontes, outras há que são como um poço no deserto... ou como o orvalho numa campina ressequida. Não importa que tenhas uma cabeça pétrea e teimosa, com cabelos assim pretos e lisos; gosto de segurá-la. entre as mãos. Há em ti duas coisas que acho belas e agradáveis: os olhos e as mãos. Pensas que não lamento não poder te outorgar o que desejas? E lamento não só por ti como também por mim, se é‚ que esta confissão  sincera te pode agradar.   

A água se enrugava, verde e dourada, rente ao barco. E eu retinha as mãos belas e fortes de Minéia dentro das minhas, segurando-as como um homem que se está afogando. E olhava para seus olhos que lembravam o luar no rio e que ainda assim eram tão lindos como uma carícia. Disse-lhe:

- Minéia, minha irmã! Não aturo mais todos esses deuses que os homens inventaram com certeza por causa do medo. Por que não renuncias também ao teu que exige de ti sacrifício cruel e absurdo? Sacrifício hoje mais cruel do que nunca! Posso levar-te para um país fora do alcance desse deus, nem que tenhamos que viajar até‚ aos confins do mundo, comer raízes e peixes‚entre tribos selvagens e dormir entre caniços a vida inteira! Sim, deve haver nalguma parte do mundo um limite ao poder dessa divindade.

Minéia desviou a cabeça, segurando com mais força as minhas mãos.

- Esse deus se instalou dentro do meu coração, de modo que onde quer que eu vá estarei sob o seu domínio, sempre... E, se me entregar a algum homem terei que me haver com a morte. Agora, que sei ao certo quem és, julgo cruel e absurdo esse deus que exige tanto de mim. Mas que posso eu fazer contra ele? Amanhã talvez tudo se torne diferente. Esquecer-te de mim Não te interessarei... Os homens são tão mutáveis!

- Ninguém sabe o que o dia de amanhã pode trazer... - observei, sobressaltado pois todo o meu ser se inflamava  ante ela como um feixe de caniços,que durante anos e anos suporta o calor fustigante do sol até‚ que de repente uma centelha faz arder. - O  que dizes ‚ uma forma vaga de fuga servindo para me‚ atormentar...Todas  as mulheres gostam de agir assim.. E o meu tormento te apraz.

Ela retirou as mãos com um gesto de censura.

- Não sou uma mulher ignorante. Além da minha língua falo também a de Babilônia e a tua. Sei escrever o meu nome com três diferentes feitios de letras tanto sobre papel como sobre argila. Além disso tenho estado em muitas cidades grandes. Perante gente diferente tenho dançado e sido  admirada pela minha arte, até‚ que fui raptada por mercadores quando o navio em que eu viajava naufragou. Desde a  infância tenho vivido nos redis do deus. Fui iniciada no seu ritual secreto. E por isso que nenhum poder, nenhum  sortilégio me pode separar dele. Se tivesses dançado diante de touros, saltado por entre os seus chifres, sentido no teu pé‚ um focinho fumegante, entenderias. Decerto jamais viste jovens e raparigas dançarem diante de touros.

- Nunca ouvi falar nisso. Mas que eu tenha que respeitar e poupar a tua virgindade em benefício de touros, ora aí está uma coisa acima de tão da e qualquer compreensão...Verdade que tenho ouvido falar que na Síria os sacerdotes que realizam o ritual secreto da terra mão e sacrificam donzelas a tais bodes e tais donzelas são escolhidas dentre o povo.

Esbofeteou-me duas vezes; seus olhos cintilavam como os de um gato selvagem na treva quando ela exclamou tomada de fúria:

- Acho que não existe nenhuma diferença entre um homem e um bode  perante teus pensamentos que sós e voltam para coisas corporais, pois  homens há que cuidam que um bode lhes satisfaz a luxúria tão bem como  uma mulher. Chafurda-te na terra e deixa-me em paz. Não me importunes  mais com teus abrasamentos amorosos, pois conheces o amor tanto  como um bácoro entende de prata.

Suas palavras foram rudes e suas bofetadas severas. Deixei-a e fui para a proa. Para passar o tempo abri minhas malas de remédio e cirurgia e principiei a pesar drogas e limpar instrumentos Ela continuou sentada, tamborilando com os calcanhares o fundo do bote, num feitio exasperado.

De repente, como tomada de furor, arrancou o vestido, ungiu-se e começou a dançar um bailado tão selvagem e violento que o barco deu em balançar. Não consegui afastar os olhos, porque era incrível a habilidade com que ela dançava. Inclinava-se para trás até‚ pousar mãos no chão dobrando o corpo como  um arco, depois se arremessava para o ar. Todos a músculos do seu corpo  se contratam e se retesavam sob a pele cintilante. Ofegava, os cabelos  pareciam labaredas. Aquele bailado exigia uma desenvoltura tal que eu jamais vira cena idêntica em nenhuma das casas de divertimentos das muitas terras por onde andei.

Contemplá-la foi quanto bastou para que minha raiva se fundisse. Mudei logo de fisionomia, esqueci-me do que  perdera ao fugir com aquela rapariga caprichosa e ingrata. Lembrei-me também que ela estivera a ponto de dar cabo da vida para defender a sua virgindade e compreendi que agira mal em pretender o que ela não podia me outorgar. Depois que dançou muito até‚ ficar molhada de suor e com a musculatura brilhando de cansaço se cobriu toda, da cabeça aos pés, com uma peça do seu vestuário; e percebi que se pos a chorar.

Então larguei meus remédios e meus instrumentos.  Aproximei-me depressa, toquei-lhe o ombro, brandamente e lhe perguntei:

- Estás sentindo alguma coisa?

- Não - respondeu, empurrou minha cabeça e continuou a chorar.

Sentei-me ao seu lado, com o coração cheio de lástima.

- Minéia, minha irmã, não chores... Se ficaste sentida comigo então te digo que não chores sem motivo,  porque a verdade é que não pensei nunca, absolutamente nunca, em te tocar... mesmo que me desses consentimento. Quero poupar-te qualquer  sofrimento e mágoa, deixar-te sempre tal como estás.

Ergueu a cabeça e limpou as lágrimas num gesto irritado.

- Não receio sofrimento nem dissabores. Tolo! Não és tu que me fazes chorar. É o meu fado que me separou do meu deus e me fez ficar fraca como um frangalho a ponto do olhar de um paspalhão fazer vacilar os meus joelhos.

Segurei-lhe as mãos. Não opôs resistência, voltou-se finalmente para mim e disse:

- Sinuhe, deves ter a impressão de que sou uma ingrata e uma voluntariosa. Mas não é culpa minha. Sou vítima eu própria não sei de que. Gostaria de falar contigo a respeito do meu deus para que me compreendesses melhor. Mas‚é proibido falar sobre ele com pessoas não iniciadas no culto. Apenas te posso dizer que ele é‚ o deus do mar e que mora na mansão misteriosa. Todo aquele que entrou nessa mansão jamais voltou de lá, permanecendo com o deus eternamente. Dizem alguns que ele se assemelha a um touro apesar de viver no mar. E dizem também que se parece com um homem não obstante a  cabeça de touro. Acho porém que quanto a isso tudo seja simples lenda.  Fomos consagradas ao seu culto e aprendemos a dançar diante de touros.  Apenas sei que cada ano doze jovens são escolhidas do bando  consagrado,devendo cada uma entrar cada noite nessa mansão ao tempo  da lua cheia, e que não existe maior alegria para as jovens consagradas do que entrar na mansão divina. Eu também fui  escolhida,mas antes de chegar a minha vez o nosso navio naufragou, conforme já te disse. Os mercadores me raptaram e me venderam no mercado de escravos de Babilônia.  Durante toda a minha juventude não fiz outra coisa senão sonhar com a mansão maravilhosa do deus, com seu tálamo e com a eternidade. Embora as que lhe são consagradas tenham permissão para regressar a este mundo um mês depois, nenhuma até‚ agora fez isso... de mode que acho que o mundo não tem mais atrativos para quem chegou a conhecer o deus.

Uma nuvem pareceu velar o sol enquanto ela falava; a paisagem foi tomando um livor mortal e tétrico perante os meus olhos e um calafrio se apoderou de mim, pois verifiquei que Minéia não me era destinada. A sua história era como as histórias contadas pelos sacerdotes de todas as terras.  Minéia acreditava, e isso a anulava de mim para sempre.

Não vexá-la nem entristece-la. Aquecendo suas mãos nas minhas apenas lhe disse:

- Compreendo pois que tua vontade é‚ voltar para junto do teu deus; levar-te-ei por sobre o mar até Creta, pois agora sei que foi de lá que vieste. Quando falaste em touros já calculei, mas o que contaste sobre o deus da mansão misteriosa me certifica. Mercadores e marinheiros já me haviam falado nisso lá em Esmirna, mas só agora ‚ que vim a acreditar. Disseram-me que decerto os sacerdotes liquidam quem tenta sair da mansão do deus temendo que alguém no mundo venha a saber a verdade do que lá existe. Essa é‚ a opinião dos marinheiros e do povo; tu, que ‚és iniciada no culto, deves saber melhor.    

- Sabes que tenho que ir para a minha ilha... Em nenhum outro lugar do mundo encontrarei paz. Cada dia que passo contigo me alegra, Sinuhe, não porque me hajas livrado do mal, mas porque nunca ninguém me tratou como tu. A mansão do deus não me causa agora a mesma saudade de antes. Irei para ela com mágoa no meu coração. No que depender de mim garanto que voltarei para junto de ti depois do tempo indispensável... Ainda assim temo que isso não se de porque nunca ninguém voltou de lá. O nosso tempo‚ é breve e ninguém sabe o que acontecerá amanhã, conforme tua expressão. Portanto, Sinuhe, gozemos estes dias todos e não percamos à toa nossos pensamentos com o futuro.É o melhor que temos a fazer.

Um outro homem a teria agarrado à força, a levaria para a sua própria pátria onde a reteria até ao fim dos seus dias. Eu sabia que ela estava falando a verdade, que jamais teria um dia feliz se esquivasse ao contacto do deus; pelo contrário, então sim ‚ que acabaria me amaldiçoando e fugindo de mim. Assim é o poder dos deuses sobre os que acreditam neles, da mesma forma que nulo é esse poder sobre os que os desdenham.

Sem dúvida tais coisas estavam escritas nos astros antes do meu nascimento e não eram suscetíveis de alteração. Assim pois, comemos e bebemos ali no bote, escondidos entre os caniços; e remoto nos era ainda o futuro. Minéia abaixou a cabeça e acariciou meu rosto com seus cabelos, sorrindo. Bebeu vinho, depois tocou meus lábios com os seus que cheiravam a mosto. E o mal que causava ao meu coração era doce - mais doce talvez do que se eu a tivesse tomado, muito embora tal pensamento não me ocorresse então.

A hora do crepúsculo Kaptah acordou e saiu de debaixo da esteira, esfregando as pálpebras e bocejando.

- Louvado seja o escaravelho... sem me esquecer  absolutamente de Ammon! Já não tenho mais a cabeça pesada como uma bigorna. Poderia mesmo me readaptar à harmonia do mundo se  tivesse alguma coisa para comer porque meu estomago parece cheio de  leões rugindo...

Sem pedir licença participou da nossa refeição de  pássaros assados em brasas, mastigando-os ruidosamente cuspindo os ossos para água. Vendo-o lembrei-me da contingência em que nos achávamos.

- Beberrão! Melhor fora que nos ajudasses com alguma outra idéia aconselhando-nos e ajudando-nos a sair daqui, pois não demoraremos a ser atados pelos pés, todos três. Mas preferiste te embriagar e dormir de cara para baixo como um porco num charco. Vamos dize logo que é‚ que achas que deva ser feito pois os soldados do rei já devem estar no nosso encalço para liquidar conosco.

Kaptah coçou a cabeça.

- De fato este barco é grande demais para que três pessoas remem contra a correnteza. Para ser franco, não aprecio nada essa história de remos. Fazem calos nas mãos. Acho melhor desembarcarmos. Verei se consigo furtar dois burros para o transporte da nossa carga. Devemos vestir roupa rasgada de modo a não atrair as atenções... Nas estalagens temos que discutir e regatear os preços. Cumpre que o patrão não declare que é médico e finja ter uma  profissão muito diferente. Podíamos formar uma companhia de momaros, viajando de aldeia em aldeia, entretendo os rústicos de noite nos celeiros. Ninguém expulsa truões e os salteadores acham que nem vale a pena atacá-los. O patrão pode ler no óleo a sorte dos aldeões conforme aprendeu a fazer; eu posso contar intermináveis histórias engraçadas; e essa jovem pode ganhar o pão dançando. E mesmo não conviria roubar a embarcação dos pobres barqueiros que decerto estão escondidos em algum lugar entre os juncais  esperando apenas que anoiteça para nos matar. Seria prudente irmos embora sem detença.

A noite já estava caindo e não havia tempo a perder. Kaptah estava certo em supor que os barqueiros já deveriam ter perdido o medo; naturalmente viriam buscar o barco, e eram homens fortes.

Untamo-nos com o óleo deles, sujamos as roupas e as faces com terra, dividimos entre nós o ouro  e a prata que ainda sobravam escondendo-os em nossos cinturões e bainhas de roupa. Não quis deixar a minha mala de medicina; enrolamo-la na esteira acolchoada, fiz Kaptah carregá-la às costas apesar dos seus protestos. Depois, deixando o barco derivar por entre os caniços, pulamos para a terra.

Deixamos no bote bastante comida e duas botijas  de vinho, porque assim, no entender de Kaptah, os homens  ficariam parados ali, a bebericar, desistindo depois disso de  perseguir-nos. Caso tentassem dar queixa contra nós no tribunal quando já curados da bebedeira decerto se  contradiriam de tal maneira fazendo tamanha confusão que os juízes acabariam expulsando-os com bastonadas... Pelo menos assim cuidei.

Deste modo iniciamos nossa peregrinação e não foi muito difícil encontrarmos uma estrada de caravanas que percorremos durante a noite inteira não obstante Kaptah  amaldiçoar o dia em que nascera por causa do peso da carga atravessada em seus ombros. De manhã chegamos a uma aldeia cujos habitantes nos acolheram cordialmente, tomados de muito respeito porque ousáramos viajar de noite sem medo dos demônios. Deram-nos papa de leite e venderam-nos dois jumentos.

Despediram-se de nós com muitas festas quando fomos embora, pois se tratava de gente simples que não via ouro desde muitos meses e que pagava seus impostos com cereais e gado e morava em cabanas de barro com bois, vacas e ovelhas.

Dia após dia nos afastávamos de Babilônia por essa estrada além. Encontramos mercadores, afastávamo-nos dando passagem a liteiras de ricaços, fazendo mesuras quando esses passavam. O sol queimava nossas peles, nossas roupas iam ficando em frangalhos, cada vez nos habituávamos mais a representar em arraiais e em celeiros. Eu derramava óleo na água e vaticinava dias felizes, colheitas fartas, nascimento de filhos varões, casamentos vantajosos, pois tinha pena da pobreza de tal gente; a minha tendência era profetizar  somente coisas boas. Acreditavam, enchiam-se de alegria. Se devesse lhes dizer apenas a verdade teria que lhes falar de impostos cada vez maiores, de contendas e rixas, de juízes corruptos, de sezões durante as cheias, de secas medonhas, de gafanhotos e mosquitos, de trabalhos pesados e, após fadigas, da morte, sim, da morte! Pois que era a existência deles senão isto? Kaptah contava-lhes histórias de feiticeiras, princesas e terras distantes cujo povo carregava a cabeça  debaixo do braço virando lobo uma vez por ano. Acreditavam nas histórias, veneravam-no, empatinavam-no...

Minéia dançava para eles todos os dias apurando-se assim para o seu deus; admiravam-lhe a arte dizendo: "Nunca vimos coisa igual !”

A viagem me foi proveitosa, pois me ensinou que se os ricos são iguais por toda a parte e pensam do mesmíssimo modo, também os pobres são parecidíssimos por este mundo adiante.Tinham os mesmos pensamentos por mais diferentes que fossem seus costumes e por mais diversos que fossem os nomes de seus deuses.  Meu coração se enternecia diante deles por causa da grande simplicidade e não consegui me furtar a tratar os doentes que encontrava: lancetava-lhes os furúnculos, limpava-lhes os olhos, pois sabia que sem isso logo perderiam à vista... E fiz todas essas coisas por vontade própria, sem cobrar nada.

Mas por que motivo me expus assim ao perigo de vir a ser descoberto, ignoro. Talvez meu coração se tivesse  suavizado por causa de Minéia ali a meu lado diariamente, seu corpo moço aquecendo minha ilharga todas as noites quando nos deitávamos naquele chão batido que cheirava a palha e a estábulo. Talvez eu fizesse isso em favor dela para agradar aos deuses com ações meritórias e portanto propícias. Ou talvez tenha sido pelo desejo de continuar a, exercitar minha perícia de modo às minhas mãos não perderem sua firmeza e meus olhos seu acerto na percepção das doenças. Sim, pois quanto mais vivo mais claramente vejo que tudo quanto um homem faz o faz por diversas razões conquanto muitas vezes nem se de conta disso. Portanto as ações dos meus semelhantes são como pó debaixo dos meus pés já que não posso saber seus motivos e intuitos.

Fizemos face a muitas vicissitudes. Minhas mãos se tornaram calosas, as solas dos meus pés ficaram grossas, a poeira queimou meus olhos. Ainda assim, sempre que recordo esta nossa viagem ao longo das poeirentas estradas que se afastam de Babilônia, as acho belas e não consigo esquece-las. De fato! Daria mor parte do que conheci e possuí no mundo só para tornar a fazer tal viagem, com a mocidade de outrora, com os mesmos olhos vivazes, com o mesmo corpo infatigável e com Minéia a meu lado...

Minéia, com seus olhos que eram como o luar no rio. A sombra da morte nos acompanhou durante a viagem inteira... Morte que não seria branda se tivéssemos sido  descobertos e caíssemos nas mãos do rei. Mas naqueles distantes dias  nunca pensei na morte e nem a temi porque a vida me era muito mais  preciosa do que fora antes já que me via andando assim ao lado de  Minéia, vendo-a dançar nos terreiros borrifados.

Junto dela esquecia o crime e o opróbrio do começo da minha  mocidade, e todas as manhãs ao acordar com o vozerio de crianças e o passar do gado meu coração se sentia leve como um pássaro. Saia a  ver o nascimento do sol que daí a pouco vogava como uma nave dourada  ao longo de magnífico céu cerúleo.

Por fim chegamos à fronteira devastada; mas pegureiros, cuidando que fossemos pobres, nos mostraram a passagem, de forma que entramos no país de Mitani e chegamos até Naharani sem pagar tributo nem encontrar guardas de nenhum rei. Só depois que chegamos à grande cidade foi que nos aventuramos a percorrer bazares.

Ninguém ali nos conhecia. Compramos trajes novos, lavamo-nos e vestimo-nos de acordo com a nossa situação, depois do que  nos dirigimos ao melhor hotel.

Como o meu ouro já estava quase se  esgotando resolvi permanecer algum tempo na cidade a fim de exercer a minha profissão, tendo tido logo muitos pacientes; curei várias doenças porque o povo de Mitani era tão curioso como os demais e apreciava tudo quanto era novidade.

Minéia também atraiu a atenção por causa da sua beleza, e muitos se apresentaram com a intenção de comprá-la. Kaptah descansava depois dos seus labores, não tardou a engordar e se deu com muitas mulheres que lhe conferiram favores por causa de suas  histórias. Sempre que se embebedava nas casas de divertimentos falava do  seu curto passado como rei de Babilônia e toda gente ria e dava palmadas  nos joelhos, declarando:

- Mentiroso desta marca nunca vimos! Tem uma língua mais comprida e fluente do que um rio!

Assim o tempo foi passando até que Minéia começou a me fitar com um modo apreensivo; durante a noite ficava acordada, chorando. Disse-lhe então, certa vez:

- Sei que estás com saudade da tua terra e do teu deus. E bem distante nos achamos, aqui nestes páramos! Preciso, contudo, visitar ainda a terra de Hati, onde vivem os hititas; e isso por motivos que não posso te expor. Acho que da nação deles podemos viajar para Creta, embora, quanto a isso, não tenha certeza cabal. Se preferes te levarei diretamente ao litoral  da Síria de onde saem navios para Creta, todas as semanas. Mas ouvi  dizer que uma caravana sairá brevemente daqui a fim de levar, como faz  todos os anos, os presentes do rei de Mitani ao rei dos hititas. Com ela  viajaremos com maior segurança e veremos e ouviremos muitas coisas novas. Todavia quem decide és tu e não eu.

Intimamente a estava enganando, pois o desejo manifestado de visitar a terra de Hati era simplesmente vontade de conservá-la comigo  mais tempo ainda antes de levá-la resgatada ao seu deus.

Respondeu-me:

- Quem sou eu para interferir em teus planos? Irei contigo de bom grado  para onde quer que me leves, contanto que cumpras tua promessa de me  levar de volta … minha pátria. Onde fores te acompanharei e caso a  morte nos assaltasse eu lamentaria não por mim e sim por ti.

Visto isso resolvi me agregar à caravana como médico e viajar assim para a terra de Hati sob a proteção do rei de Mitani. Essa terra de Hati foi chamar-se também Cheta. Logo que Kaptah soube da minha decisão se pos a imprecar e invocou os deuses em seu auxílio.

- Mal saímos das fauces da morte e já o meu amo aspira a se lançar de chofre na goela de uma outra aventura mortal. Não há quem ignore que os hititas são selvagens e ruins. Por que me abandonas, ó meu escaravelho!?... Maldito seja o dia em que vim ,ter a este mundo só para sofrer os caprichos do meu amo lunático!

Tive que chamá-lo à ordem com um bastão, dizendo-lhe a seguir:

- Pois seja como queres. Vou pagar tua viagem e te mandar diretamente para Esmirna em companhia de uns mercadores. Trata de tomar conta de minha casa até‚ que eu apareça por lá. Já não aturo mais as tuas lamentações.

Mas Kaptah inflamou-se ainda mais, replicando:

- Que tolice vem a ser essa? Então sou homem que permita que o meu  amo viaje sozinho para a terra de Hati? Seria o mesmo que haver lançado um recém-nascido a um pátio de cães bravos; e meu coração jamais cessaria de me censurar por semelhante crime. Restrinjo-me a fazer uma pergunta: Vai-se por mar para essa terra de Hati?

Informei-lhe que, tanto quanto eu conjeturava, não havia mar nenhum entre a terra de Mitani e a de Hati.

- Louvado seja o meu escaravelho! Sim, pois se fosse necessário ir por mar eu não o acompanharia já que jurei pelos deuses jamais por os pés num navio... marítimo!

E logo começou a reunir as nossas coisas e a aprestar tudo para a nossa partida. Deixei tudo nos seus cuidados pois nesses assuntos era muito mais expedito do que eu.

A viagem que fiz junto com a delegação mitaniana foi sem incidentes e pouco há que falar sobre ela porque os hititas nos  escoltaram durante todo o percurso com os seus carros e providenciaram  para que tivéssemos alimento e bebida em todos os pontos de parada. Os  hititas são de rija tempera, pouco se importando com o frio e o calor pois  vivem entre serras estéreis e são acostumados a todos os rigores e  privações desde quando crianças. Não conhecem o medo e se retemperam  em batalhas. Zombam das nações mais fracas e as subjugam ao passo que  honram as nações valorosas e procuram manter boas relações com elas.

Essa nação é‚ dividida em muitas clãs e aldeias e governada por príncipes cujo poder é‚ absoluto e que por sua vez estão sujeitos ao soberano que vive na capital, a cidade de Hatushash, entre  montanhas. Tal soberano é‚ o sumo-sacerdote, o comandante-chefe e o  supremo juiz. Nele se funde toda a autoridade que governa os homens  através de manifestações de ordem tanto divina como temporal, e não  conheço nenhum outro rei investido de igual poder por mais absoluta que  costume ser toda autoridade real. Em outras nações, inclusive no Egito, os  sacerdotes e os juízes tem mais domínio sobre as ações dos reis do que  geralmente se supõe.

Quando falam nas grandes cidades do mundo os homens costumam mencionar Tebas, Babilônia e, algumas vezes, Nínive - que não  vi. Mas nunca os ouvi falar em Hatushash que é‚ a capital dos hititas e a  sede da autoridade, soerguida entre montanhas como um ninho de águia  no âmago de alcantis de caça. Todavia esta cidade pode muito bem ser  comparada às outras; e quando me lembro que seus  gigantescos edifícios são de granito talhado e as suas muralhas inexpugnáveis e mais maciças do que quaisquer outras que vi, sou obrigado a reconhecer que esta cidade é uma das maiores.

Se permanece quase uma coisa secreta em face do mundo advém isso do fato do rei a haver fechado aos estrangeiros. Apenas embaixadores acreditados são admitidos em audiência perante o rei e lhe entregam presentes. Mesmo tais plenipotenciários são vigiados. escrupulosamente durante sua permanência em Hatushash. Por isso os seus cidadãos não gostam de conversar com estrangeiros mesmo se lhes conhecem os idiomas sempre que alguém os assedia com perguntas respondem: "Não compreendo” ou "Não sei", e olham em redor, apreensivos, não querendo que outros os vejam em conversa com um forasteiro.

No entanto não são de natureza arredia, pelo contrário, são amistosos, gostam de ver os trajes dos estrangeiros quando tais vestuários são bonitos e seguem pelas ruas os que os usam.

Não contratam soldados como fazem os povos civilizados; exercem pessoalmente todos os cargos e condições de guerreiros e os homens são divididos em classes correspondentes às suas categorias militares. Assim os mais conspícuos são aqueles que obtêm o manejo de carros, e a situação dos varões não decorre de suas origens e descendências, mas sim de suas proficiências nas armas. Todos os homens válidos são convocados anualmente para exercícios militares sob a direção de seus comandantes. Hatushash não é uma cidade de comércio como as outras capitais, mas está cheia de forjas e oficinas que produzem rijo escarcéu de malhos, pois em suas bigornas e bancas são forjados arcos, espadas, rodas e guarnições de carros.

Ao tempo da minha chegada à terra de Hati o grande rei Shubiluliuma reinava havia já vinte e oito anos. Seu nome era tão temido que as pessoas se inclinavam e erguiam as mãos quando o ouviam e proferiam alto os seus louvores pois pusera ordem na terra de Hati e subjugara muitos povos. Morava num palácio de granito no centro da cidade, e muitas histórias se contavam do seu nascimento e dos seus feitos heróicos, conforme se contam dos grandes soberanos. Todavia nunca o vi; e nem mesmo o viram os enviados de Mitani que tiveram que deixar seus presentes nas lajes da sala de recepção em meio às zombarias dos soldados.

Logo de inicio me pareceu haver pouco que fazer para um médico em Hatushash porque, conforme vim a tomar conhecimento, os hititas tinham vergonha de doenças e as escondiam enquanto podiam. Crianças débeis e deformadas eram mortas ao nascer, e escravos doentes também eram mortos. Devido a isso os médicos tinham pouca perícia e eram homens ignorantes e incultos, embora tratassem feridas e contusões muito bem e dispusessem de remédios efetivos para todas as doenças peculiares às regiões montanhosas, Remédios desses que diminuíam rapidamente a febre do corpo e que de bom grado vim a conhecer. Mas sempre que alguma pessoa se via a braços com alguma doença que ameaçava ser fatal optava mais pela morte do que pelo tratamento só para não ficar inválida ou combalida pelo resto de seus dias. E isso porque os hititas não tinham medo da morte como os povos civilizados têm, e receavam sobremaneira a debilidade.

Todavia no íntimo todas as grandes cidades são iguais e as pessoas eminentes e ricas de todos os países se assemelham em tudo. Quando a minha fama se espalhou por entre a população, muita gente acorreu à minha estalagem com o intuito de se curar. Suas doenças me eram conhecidas e eu as poderia tratar. Mas preferiram vir a mim disfarçados, secretamente, e protegidos pela escuridão para que sua dignidade não fosse diminuída. Por tal razão me deram também magníficos presentes e no fim de tudo adquiri muito ouro e prata em Hatushash apesar de, no começo, ter receado sair de lá feito mendigo.

Os hititas eram muito estritos em sua conduta e homens das melhores classes não apareciam bêbados nas ruas, pois isso seria uma diminuição de dignidade; mas, como em todas as grandes cidades, eles também bebiam uma grande quantidade de vinho, inclusive dos compostos, que são mais perniciosos. Tratei os achaques resultantes disso e anulei seus tremores de mãos principalmente quando estavam às vésperas de se apresentar ao rei. Deixei Minéia dançar para entretê-los; admiravam-na grandemente e lhe davam ricos presentes sem aspirar à quaisquer outras vantagens - pois os hititas eram generosos quando alguma coisa os agradava.

Tendo ganho a boa vontade deles por esta forma me aventurei a fazer perguntas sobre muita coisa que me era vedado perguntar abertamente.  Muita coisa vim a saber por intermédio do Zelador dos Arquivos Reais, que falava e escrevia muitas línguas, lidava com a correspondência do rei para o estrangeiro, e que não era limitado pela rotina local. Agi de modo a que ele acreditasse que eu fira banido para sempre do Egito, jamais devendo voltar, e que o meu único interesse como forasteiro era adquirir riqueza e conhecimento. Teve confiança em mim e de boa vontade ia respondendo às perguntas em troca de bom vinho meu e da boa dança de Minéia.

- Por que motivo a cidade de Hatushash ‚ fechada aos estrangeiros? E por que é‚ que as caravanas e os mercadores são obrigados a trafegar somente em certas estradas, apesar deste seu país ser rico e esta sua cidade ombrear com outras em maravilhas? Não seria melhor que os demais se pusessem a par do poderio hitita e lhe cantassem louvores conforme tal nação merece?

Ele provou do seu vinho e disse com os olhos cintilantes voltados para os meneios de Minéia:

- Shubiluliuma, o nosso grande rei, disse quando subiu ao poder: "Dai-me trinta anos e eu tornarei a terra de Hati o mais poderoso reino que o mundo jamais viu." Esses trinta anos estão quase completados e acho que não demorar o mundo a ouvir a respeito da terra de Hati muitíssimo mais coisas do que as que suspeita.

- Mas em Babilônia eu vi marcharem diante do rei sessenta vezes sessenta vezes sessenta homens, e o barulho de seus pés era como o bramido do mar. Aqui tenho visto ao mesmo tempo na rua dez vezes dez homens e não posso compreender que é que fazem com todos os seus carros que estão sendo construídos nas oficinas da cidade. Para que servem carros num país montanhoso? Sempre foram utilizados para combater nas planícies.

Ele riu.

- Para um médico sois muito curioso, Sinuhe, o egípcio! Não se dará o caso de ganharmos nossa crosta de pão vendendo carros aos reis dos países planos? - E entrefechou as pálpebras, matreiramente.

- Não acredito nisso! - disse-lhe ousadamente. - Seria o mesmo que um lobo ceder suas garras a lebres.

Deu uma risada estrepitosa dando socos nos joelhos a ponto do vinho saltar para fora da taça.

- Preciso dizer essa piada ao rei! Talvez ainda durante a vossa existência vejais uma grande corrida de lebres, pois a justiça dos hititas é diferente da justiça das planícies. Na vossa terra creio que os ricos governam os pobres; na nossa os fortes governam os fracos. O mundo aprenderá uma lição nova antes que vossos cabelos fiquem grisalhos, Sinuhe.

- O novo faraó do Egito também tem um novo deus - disse eu com simulada simplicidade.

- Eu sei; eu sei, pois leio todas as cartas do rei. Trata-se de um deus que é‚ grande amante da paz e declara que não existe nenhuma disputa entre nações que não possa ser resolvida pacificamente. Não temos nada contra esse deus; pelo contrário, o apreciamos muito... enquanto governar no Egito e nas planícies. O vosso faraó mandou ao nosso grande rei uma cruz egípcia a que chama o símbolo da vida e ele deseja certamente ter paz durante alguns anos vindouros. Está bem; contanto que nos mande uma porção de ouro para que possamos armazenar ainda mais cobre, ferro e trigo, construir novas oficinas e forjar carros mais numerosos e mais pesados do que antes. Pois para tudo isso muito ouro se faz preciso, e o nosso rei reuniu aqui em Hatushash os armeiros mais célebres e mais peritos de muitos países diferentes e os paga regiamente.  Mas por que motivo ele faz tudo isso creio que a sabedoria de nenhum médico poderá adivinhar!

- Esse futuro que o amigo está para aí a prever agradará a corvos e chacais mas não me agrada, e não acho nele nenhum motivo para risadas. Em Mitani correm histórias a respeito dos crimes dos hititas nas regiões limítrofes.... Histórias tão medonhas que nem quero repetí-las, pois não se coadunam com um povo civilizado e culto.

- Que é civilização? Cultura, que é? - perguntou ele tornando a encher sua taça de vinho. - Também nós podemos ler, escrever e acumular lousas de greda numeradas e numerosas em nossos arquivos.  Nosso intuito é instilar medo entre os povos inimigos de modo que no tempo adequado se submetam a nós sem uma luta e assim se poupem de desnecessário dano e prejuízo. Sim, pois não amamos a destruição em si; preferimos anexar países e cidades em condições o menos danosas que nos for possível. Um inimigo tímido é ‚ um adversário metade vencido já.

- Então todos os povos são inimigos dos hititas? Eles não tem amigos, então?!

- Nossos amigos são todos aqueles que se submetem a nós e que nos pagam tributo. Deixamo-los viver ao seu modo e não interferimos quase em seus costumes e deuses, contanto que dominemos. Nossos amigos são também todos aqueles que não são nossos vizinhos... Pelo menos até enquanto não se tornam nossos vizinhos, pois quando isso se dá passamos a descobrir traços ofensivos neles que provocam desarmonia e que nos forçam a guerreá-los. Assim tem sido até aqui e assim temo que continue a ser sempre, pelo que conheço das idéias do nosso grande rei.

- Não tem os deuses dos hititas nada a dizer a respeito disso? Nos outros países muitas vezes são os deuses que determinam o que é direito e o que ‚ errado.

- Direito e errado? Direito é o que desejamos, e errado o que os nossos vizinhos desejam. Este é um princípio simplíssimo que facilita tanto a vida como a política e que, na minha opinião, difere pouco do que ensinam os deuses das planícies. A meu ver esses tais deuses testificam que é direito o que os ricos querem e que ‚ errado o que querem os pobres.

- Quanto mais aprendo a respeito dos deuses mais me entristeço - comentei, desanimadamente.

Naquela noite eu disse a Minéia:

- Já conheço bem a terra de Hati e já consegui o que procurava. Estou decidido a ir embora, pois sinto cheiro de cadáveres por aqui e isso me sufoca. A morte campeia como uma sombra opressiva me rodeando e se permaneço não tenho dúvida de que o rei me mandará empalar se souber que lhe descobri o jogo. Fujamos desta corrupção; sinto-me, se ficar, como se tivesse nascido corvo e não homem.

Com o auxílio de alguns dos mais eminentes indivíduo que eu tratara obtive licença para viajar por uma estada proibida, litorânea, e daí embarcar num navio. Os meus clientes lamentaram a minha partida e solicitaram que eu ficasse, garantindo-me que se continuasse a clinicar entre eles me tornaria rico em poucos anos. Em todo o caso minha partida não foi obstada por ninguém‚. Continuei a rir e a chasquear com eles, contando-lhes facécias até nos separarmos; deram-me muitos presentes de despedida.Deixamos os terríveis baluartes de Hatushash dentro dos quais se ocultava o mundo do futuro e passamos em cima de nossos jumentos por perto de escravos cegos que faziam girar mós rangentes e vimos cadáveres de feiticeiros empalados em ambos os lados da estrada. Procurei viajar o mais afoitamente possível, e dentro de vinte dias chegávamos ao porto.

Demoramo-nos lá por algum tempo - embora fosse uma cidade barulhenta, cheia de vício e de crime - pois sempre que víamos um navio com saída marcada para Creta Minéia dizia: "Este é muito pequeno e pode naufragar e não tenho vontade de uma segunda aventura e quando víamos um maior ela considerava: "Num navio sírio não quero viajar", objetando a propósito de um terceiro: "O capitão é mal encarado e temo que nos venda como escravos numa terra estrangeira.”

Assim ficamos naquele porto de mar e ao menos por uma coisa não me aborreci: tinha muito que fazer ali, limpando e costurando cutiladas e consertando fraturas de crânio com as minhas trepanações. Até o próprio mestre do porto veio me ver queixando-se de um mal venéreo. Eu conhecia essa moléstia de quando estivera clinicando em Esmirna e estava capacitado a curá-la com um remédio usado pelos médicos de lá. Depois que ficou bom, ele me perguntou:

- Que é que lhe devo dar em pagamento, Sinuhe!

Respondi:

- Não quero teu ouro. Dá-me a faca que tens na cinta e eu é que te ficarei devedor. Terei assim um presente duradouro que me fará lembrar de ti.

Mas ele objetou, declarando:

- Ora! É uma faca comum. Sua lâmina não vibra e o cabo não tem incrustações de prata.

Mas tudo isso ele disse porque se tratava de uma faca de metal hitita que era proibido dar ou vender a estrangeiros. Eu não conseguira comprar uma arma dessas, não tendo mesmo insistido com medo de despertar suspeita. Em Mitani só se viam facas dessas entre as pessoas mais importantes, e seu preço era dez vezes o seu peso de ouro. E mesmo assim seus possuidores não as vendiam porque havia poucas pelo mundo. Mas para um hitita uma tal faca não tinha grande valor já que lhe era proibido vende-la a um estrangeiro.

O mestre do porto sabia que eu deixaria logo o país; e refletindo que podia achar melhor emprego para o seu ouro do que dá-lo a um estrangeiro, acabou por me presentear com a faca. Era tão amolada que raspava o cabelo mais facilmente do que a lâmina mais fina de cristal e podia chanfrar o cobre sem estragar seu próprio gume. Fiquei radiante com ela e resolvi dar um banho de prata na lâmina e montá-la com um cabo de ouro como faziam os mitanianos quando adquiriam uma faca assim. O mestre do porto não tinha inimigos e ficara meu amigo porque eu o curara radicalmente.

Naquela cidade havia um campo onde eram conservados touros bravos, conforme acontece muitas vezes em cidades marítimas. A rapaziada local gostava de exibir sua destreza e seu valor em lutas contra esses animais enfiando-lhes farpas nas cernelhas e saltando por entre eles. Minéia ficou entusiasmada ao ve-los e teve vontade de experimentar tais jogos. Foi assim que a vi dançar entre os touros; jamais vira coisa igual e meu coração ficou frio de pavor enquanto eu assistia. Sim, pois um touro selvagem é a mais terrível de todas as feras - pior mesmo do que o elefante que quando não está irritado é manso - tem chifres longos e pontudos que são verdadeiras armas perfurantes; com uma marrada pode matar um homem jogando-o no ar e depois pisando-o.

Minéia dançou diante deles, vestindo apenas um traje leve; desviava-se para o lado quando, marravam com arrancos medonhos. Seu rosto foi ficando avermelhado e no auge da excitação arrancou a rede prateada que retinha seus cabelos deixando- os esvoaçar ao vento. Era uma dança tão rápida que os olhos não podiam acompanhar os movimentos diante dos chifres de uma das feras atacantes.

Segurava-os, dava um salto pisando na testa do animal, arremessava-se por cima dele, indo pisar na relva, atrás. Eu contemplava quase sem fôlego tamanha maestria e creio que foi exatamente por haver percebido o meu alvoroço que teimou em realizar coisas que eu julgava impossíveis. Assistia pois a tais lances com o corpo coberto de suor e nem podia ficar quieto onde me achava embora os que sentados atrás de mim se enfurecessem empurrando até o meu ombro.

Ao sair do campo foi aplaudida entusiasticamente. Puseram-lhe guirlandas na cabeça e no pescoço e gente da sua idade a presenteou depois com uma taba onde se viam touros pintados em vermelho e preto.  Todos exclamavam "Nunca vimos coisa igual!" e os comandantes de navios que tinham estado em Creta diziam enquanto exalavam hálitos avinhados: "Mesmo em Creta dificilmente se assiste a cenas assim !”

Mas Minéia se dirigiu ao meu encontro e se apoiou em mim, com os trajes gotejando suor. E assim descansando, exausta e orgulhosa, esperava que os músculos do seu corpo forte e esguio se relaxassem aos poucos. Disse-lhe:

- Nunca vi ninguém‚ como tu.

E logo o meu coração ficou pesado de apreensões porque a tendo visto dançar diante dos touros sabia que tal fato se interpunha na nossa vida como um sortilégio daninho.

Poucos dias depois disso um navio de Creta fundeou no porto; não era pequeno nem grande e os olhos do capitão não eram antipáticos. Tal homem falava a mesma língua que ela. E Minéia me declarou:

- Neste navio posso viajar sem perigo para a minha ilha... para o meu deus. Vais ter o prazer de te separares de mim já que te causei tantos cuidados e prejuízos.

- Sabes muito bem, Minéia, que irei para Creta contigo.

Olhou-me com olhos que lembravam ondas ao luar. Seus lábios estacam rubros e suas sobrancelhas eram duas linhas negras muito finas.

- Não sei por que motivo hás de ir comigo, Sinuhe! O navio me levará diretamente à minha ilha, com todas a segurança, e não me sucederá nenhum mal.

- Sabes sim, tão bem como eu, Minéia.

Entrelaçou os dedos nos meus e suspirou.

- Estamos viajando juntos desde muito tempo, Sinuhe, através de tantos percalços, tendo visto tantos povos, que a minha pátria até‚ ficou obscurecida na minha memória, esbatendo-se com um sonho.. E já não anseio tanto pelo meu deus, como antigamente. Por isso andei adiando.esta viagem com desculpas vagas, conforme hás de ter percebido... Mas quando tornei a dançar diante dos touros me dei conta de que, se me possuísses, eu teria que morrer.

- Sim, sim, eu sei. Já temos tratado disso tudo muitas vezes, antes; trata-se de uma história monótona, muito repetida. Não pretendo de modo algum te violar. O caso não merece o prejuízo do teu deus. Qualquer escrava pode me dar o que tu me recusas. Não existe nenhuma diferença, conforme diz Kaptah.

Os olhos dela cintilaram como os olhos verdes de uma gata selvagem na escuridão. Cravou as unhas na minha mão e disse furiosa:

- Pois vai logo procurar uma escrava, pois só te ver me revolta. Anda, vai atrás dessas medonhas raparigas do porto que tanto cobiças! Mas desde já te digo: depois não quero nem te ver. Posso até‚ te sangrar com essa faca que tens aí. O que me é vedado também te é vedado.

Sorri-lhe e perguntei:

- Acaso algum deus me proíbe tal coisa?

- Quem ta proíbe sou eu!...Ousa me aparecer depois disso!...

- Não te amofines, Minéia, pois para ser franco estou cansado de tal assunto. Não existe nada mais monótono do que estar com uma mulher. Já experimentei e não desejo repetir a experiência.

Ela inflamou-se de novo.

- Tais palavras melindram a mulher que há em mim. Deixa de histórias. Não há de ser com todas as mulheres que acharás isso monótono.

Fiquei sem poder achar uma resposta que lhe agradasse. E isso, por mais que procurasse. Naquela noite não se deitou a meu lado como era de hábito; levou a esteira acolchoada para outro cômodo e cobriu a cabeça para dormir.

Chamei-a.

- Minéia! Não me queres aquecer? Es mais moça do que eu, as noites são tão frias e estou tremendo.

- Não é verdade. Sinto tanto calor como se estivesse com febre. Nem posso respirar com esta atmosfera abafadiça. Quero dormir sozinha. Se estás com frio vai buscar um braseiro e conserva-o aí no teu quarto. Ou pega num gato e o faz deitar contigo e não me importunes mais.

Fui até‚ onde ela se achava, apalpei-lhe a testa. De fato seu corpo estava a arder e tremia debaixo do cobertor.

Disse-lhe:

- Acho que estás doente. Deixa-me tratar-te.

Deu-me pontapés. Empurrou-me.

- Vai-te embora daqui! O meu deus se encarregará de me curar.

Daí a algum tempo, porém, me chamou:

- Sinuhe, dá-me qualquer remédio! Do contrário meu coração arrebenta.

Dei-lhe um calmante. Por fim, adormeceu. Mas fiquei em vigília ali ao lado até‚ que os cães do porto começaram a ladrar ante o livor da madrugada.

Ao chegar o dia da partida disse a Kaptah:

- Arruma os nossos pertences, vamos embarcar num navio para a ilha de Keftiu que também é a de Minéia.

- Eu já desconfiava disso! E se não rasgo minha roupa só porque depois teria que serzi-la... Tampouco vale a pena cobrir minha cabeça com cinza por causa de‚ um patrão assim tão falso. Pois não jurou quando deixamos Mitani que não seria necessário atravessarmos o mar? Tenho que me resignar, que calar a boca! Nem mesmo chorarei para não prejudicar este meu único olho... Já chorei demais e bem amargamente por sua causa nessas terras por onde a sua loucura me arrastou...Restrinjo-me a dizer já, de modo a evitar futuros equívocos, que esta é a minha ultima viagem. E o meu estomago quem o diz. Mas não me dou ao trabalho sequer de repreendê-lo, patrão porque só em olhá-lo e em sentir seu cheiro de médico já me revolto. Já reuni as nossas coisas e estou pronto para a partida. Sim, pois sem o escaravelho o patrão não pode se aventurar a seguir num navio... e sem o escaravelho não tenho coragem de regressar para Esmirna e cuidar da minha vida. Portanto vou com o escaravelho e ou morro de enjôo a bordo, ou me afogo no mar com o patrão.

Admirei-me de atitude razoável de Kaptah... até descobrir que ele se informara entre marujos do porto a respeito de remédios para enjôo e que eles lhe haviam vendido talismãs. Antes de embarcarmos ele dependurou todos esses objetos no pescoço, apertou bem o cinturão e engoliu uma beberagem de tal espécie que ao subir para bordo o olho são: quase lhe saia para fora da órbita como o de um peixe frito. Pediu em altas vozes um quarto de porco bem gordo - que os marinheiros lhe haviam assegurado. que era o melhor remédio contra enjôo do mar. Estirou-se no banco e dormiu com um pernil de leitão numa das mãos e com o escaravelho fechado na outra. O mestre do porto ficou com a nossa lousa de greda e nos desejou boa viagem; a seguir os remadores se instalaram levando-nos para fora da baía.

Assim começou a viagem para Creta. O capitão ofereceu um sacrifico em seu beliche ao deus do mar e a outros mais,depois ordenou que içassem as velas; o navio zarpou começando a fender a água enquanto o meu estomago me subia para a goela - pois na frente não havia nenhuma linha de terra. Na frente só havia o mar sem fim, cheio de vagas.

 

A MANSÃO ESCURA

Diante de nós balançavam as águas infinitas; mas não receei nada porque Minéia estava comigo Minéia, que recebia em haustos o ar marítimo e tinha de novo nos olhos aquela expressão de luar. Ela permanecia de pé, na proa, junto da figura colorida do rosto, meio inclinada para a frente e sorvendo o ar como se com a sua vitalidade pudesse nos levar mais depressa por aquela travessia adiante. Por sobre nós o céu estava azul e o sol brilhava. O vento não era forte, mas sim fresco e propicio segundo a informação do comandante. Depois de. me acostumar ao balouço da nave não enjoei mais, verdade que o medo do desconhecido me assaltou o coração quando, no,segundo dia, a última gaivota que rodeava o navio regressou ao horizonte oposto à proa.

Substituindo-as, o bando de golfinhos do deus do mar começou a nos acompanhar; seus dorsos reluziam à medida que corcoveavam nas ondas.  Minéia chamava-os em voz alta, na sua língua natal, pois decerto lhe traziam saudações do seu deus.

Nem nosso navio era o único nas águas; avistamos uma galera cretense cujo casco estava coberto de escudos de cobre e que agitou seu galhardete quando se certificou que nossa embarcação não era um navio de piratas. Assim que se sentiu relativamente curado Kaptah se levantou do seu banco, deu em andar pelo convés conversando com a equipagem, jactando-se das suas muitas viagens por muitas nações. Referiu-se ao trecho entre o Egito e Esmirna, falou de uma tempestade que arrancara do mastro, o vela me; disse que somente ele e o capitão comiam, pois os demais tinham ficado deitados no tombadilho lamentando-se e vomitando de encontro ao vento... Falou-lhes também de temerosíssimos monstros marinhos e infestavam o delta do Nilo e que engoliam tudo quanto era bote de pesca que se aventurasse no mar alto. Os marinheiros deram-lhe pronta resposta descrevendo-lhe certas colunas na banda mais remota do oceano e que suportavam o firmamento e dizendo como eram feitas as sereias que aguardavam os marinheiros e que destilavam sortilégios seduzindo-os.

Descreveram também leviatãs marinhos cujo só aspecto imaginado faz o cabelo se eriçar na cabeça de Kaptah obrigando-o a correr para mim, com.o rosto lívido, a mão tremula agarrada ao meu ombro.

Minéia cada dia se tornava mais radiante. Seus cabelos flutuavam ao vento, seus olhos tinham reflexos de luar sobre as águas, e seu corpo era tão esguio e belo que meu coração se enternecia dentro do peito sempre que eu refletia e me lembrava que não demoraria a perdê-la. Voltar para o Egito ou para Esmirna sem ela me parecia coisa insuportável. O gosto da vida na minha boca era um gesto de cinzas, para tanto bastando que eu pensasse que em breve não sentiria suas mãos nas minhas, seu flanco rente ao meu, sua visão diante de mim.

O capitão e a equipagem veneravam-na profundamente porque sabiam que ela dançava diante de touros e que já lhe coubera a vez de penetrar na casa misteriosa ao tempo do plenilúnio, fato esse que um naufrágio impedira. Tendo eu experimentado fazer-lhes perguntas sobre o tal deus da ilha, não me responderam; alguns disseram: "Não sabemos." E outros responderam: "Estrangeiro, que língua difícil ‚ essa que falas?!" E desse deus eu sabia apenas que imperava no mar e que as ilhas lhe remetiam seus mancebos e suas donzelas para que dançassem diante de feras com grandes cornos pontiagudos.

Certo dia Creta irrompeu do mar como uma nuvem azul, e os marinheiros soltaram exclamações de alegria enquanto o capitão oferecia sacrifícios ao deus marinho que nos propiciara tempo bom e vento de quadrante favorável. As montanhas de Creta e as suas praias profundas vestidas de olivais e levantavam diante dos meus olhos. E ali estava eu, contemplando uma terra nova que desconhecia por completo mas onde por ironia tinha que deixar enterrado o meu coração.

Mas Mineía via naquela paisagem sua pátria e chorava de alegria ante as colinas relvosas e os promontórios verdes irrompendo para o mar. Por fim o velame foi arriado, os remadores conduziram a nave até rente ao cais passando por outras embarcações de muitos países - galeras de guerra e de comércio - que se achavam ancoradas no poço. Havia mais de mil talvez, e vendo-as Kaptah declarou que jamais acreditara que houvesse tantos navios no mundo. Naquelas paragens não havia torres nem muralhas e muito menos quaisquer fortificações, a cidade se seguia, rasa, ao porto.

É que poderosa era a soberania de Creta por sobre os mares, e onipotente o seu deus. Falarei agora de Creta e do que vi acolá; mas do que penso da terra e do seu deus nada direi. Fecharei meu coração deixando que os meus olhos testemunhem. A verdade é que em parte alguma do mundo vi algo tão estranho e belo.como Creta por mais verdadeiro que seja haver eu viajado por todas as terras conhecidas. Assim como a espuma cintilante arrebenta na praia, como as bolhas fulguram em todas as cinco cores do arco-íris, como o reverso das conchas fulge expondo a madrepérola‚ assim Creta se ostentou diante dos meus olhos.

Em parte alguma os prazeres humanos são tão imediatos e tão caprichosos como aqui. Ninguém‚ age senão pelo impulso do momento, e o pensamento das pessoas se transforma de hora em hora. Por esta razão é difícil extrair promessas de tal gente, ou fazer com ela quaisquer acordos. Tal gente é de lindo falar e de grande encanto porque se delicia com a música das palavras; a morte lhes é imperceptível e nem creio que sequer a nomeiem. Escondem-na, e quando algum homem morre é removido em segredo para que os demais não se oprimam. Acho que cremam os corpos dos seus mortos,. conquanto não tenha certeza do que sugiro: o que afirmo é o seguinte: durante minha estadia jamais vi um morto e nem mesmo cemitérios, a não ser tumbas de primitivos reis; estas são construídas de imensas pedras de outras era; e atualmente a população se distancia delas como evitando pensar na morte e assim escapar ao seu império.

Aqui a arte também é esquisita e caprichosa. Todos os pintores pintam conforme lhes dá na fantasia, indiferentes a regras, e apenas pintam tais coisas segundo o modo pelo qual as acham belas. Vasos e taças despedem ricas colorações e em torno de seus flancos flutuam todas as estranhas criaturas do mar; flores crescem por eles acima, borboletas adejam por entre elas, de modo que um homem afeito a uma arte regulada pela convenção se atrapalha ao ver tal trabalho e cuida estar sonhando.

Os edifícios não são imponentes como os templos e palácios de outros países, pois para eles é mais importante a conveniência e o conforto do que a simetria exterior.

Os cretenses amam o ar e a limpeza. Usam janelas gradeadas dando acesso à brisa, e em cada residência há muitos banheiros tanto com água quente como fria que corre em tubos de prata para banheiras do mesmo metal mediante simples virar de torneira. As privadas tem jactos de água corrente e rumorosa e em parte alguma vi conforto como aqui. E nem são apenas os ricos e os importantes que vivem desta forma, e sim toda gente, com exceção das casas do porto onde moram estrangeiros e trabalhadores das docas.    As mulheres despendem temo enorme no banho, arrancando os pelos do corpo e lavando, embelezando e pintando o rosto, de forma que nunca estão prontas a tempo e a hora, chegando às recepções quando muito bem resolvem E o mais estranho de tudo são suas roupas.  Usam-nas tecidas de ouro e prata e cobrem o corpo todo, menos os braços e o busto - o qual se orgulham muito. Mas as amplas e flexuosas saias são adornadas com milhares de bordados ou pintadas por artistas. Usam também vestidos confeccionados com numerosas peças de ouro laminado sob a forma de borboletas, escamas e folhas de palmeiras, e seus corpos brilham em meio a tudo isso. Usam penteados altos e complicados, devotando o dia inteiro em armá-los, cobrindo-os depois com chapéus leves e pequenos que prendem com alfinetes de ouro e que parecem borboletas pousadas. Tem os corpos flexuosos e esbeltos e os flancos estreitos como de meninos, de modo que dificilmente geram filhos e os evitam o mais que podem, não achando vergonhoso não os ter ou apenas criar um ou dois.

Os homens calçam botas ornamentadas que sobem até ao joelho, mas suas tangas são simples e se vestem levemente, gostando de exibir cinturas estreitas e ombros largos. Tem cabeças pequenas e bonitas, e braços e pernas delicadas; e, como as mulheres, não deixam que cresça cabelo em seus corpos. Pouquíssimos são os que falam línguas estrangeiras, pois preferem ficar em seu país do que ir aos dos outros que  não lhes proporcionam a mesma comodidade e alegria.

Conquanto a  riqueza deles decorra de navegação e com‚comércio, conheci muitos que  se recusavam a visitar o porto por causa do mau cheiro e que eram  incapazes de efetuar a menor operação aritmética, deixando tais coisas a  cargo de seus administradores. Desta forma forasteiros hábeis podem  adquirir fortuna depressa; se resolvem permanecer no bairro portuário e aí traficar.

Dispõem de instrumentos que tocam sem músico e soem escrever música  segundo caracteres especiais de forma a uma pessoa poder aprender a  tocar sem que para isso precise ouvir a música antes.

Os músicos de Babilônia também declaravam que podiam fazer isso, e  não os contradigo nem aos cretenses, pois não conheço nada de música, e  os instrumentos de muitos povos sempre deixaram meus ouvidos atônitos.  Além disso não deixo de dar certo crédito expresso corrente em outras  partes do mundo: "Ele mente como um cretense.”

Na ilha não se vem templos. O povo dá pouca atenção aos deuses contentando-se em lhes servir os touros sagrados. Aliás o fazem com grande entusiasmo, de medo que raramente se passa  um dia sem uma visita ao campo. Acho que se deva atribuir isso mais à  excitação e ao prazer concedidos pelos bailados do que à questão de  piedade.

Tampouco posso dizer que dediquem muita veneração ao seu rei,. pois se trata de pessoa em tudo igual a eles com a única exceção de viver num palácio que é um edifício maior muitas vezes que os dos seus súditos. Vivem tanto na companhia dele  como de qualquer outro; vivem intimamente com ele, contam-lhe  histórias, vão procurá-lo a horas que muito bem entendem e o deixam  quando se cansam ou atraídos por algum capricho novo. Bebem vinho  com moderação, por causa do prazer da bebida e são muito licenciosos.  No entanto jamais se embebedam,pois acham que isso é bárbaro; também nunca vi ninguém vomitar por excesso de bebida durante banquetes, conforme acontece freqüentemente no Egito e alhures. Todavia se desejam mutuamente com excitação  temperamental, os homens tomando as mulheres alheias e vice-versa  sempre que isso lhes dá na vontade.

Os mancebos que dançam diante dos  touros contam com o favor das mulheres que os tem em grande conta.  Muitos homens distintos aprendem a arte do bailado mitológico embora  não sejam iniciados liturgicamente; fazem-no por prazer e não raro  atingem uma proficiência igual à dos jovens iniciados que são proibidos de ter contacto com mulheres da mesma forma que as raparigas não podem ter com homens. Tal dispositivo não chego a compreender pois é evidente que, dada a maneira da vida que levam, não é de esperar que dêem muita importância ao caso.

Assim que chegamos ao porto nos dirigimos à estalagem dos estrangeiros que, como hotel foi o mais luxuoso que já vi, embora não muito grande. A Casa da Alegria de Ishtar, de Babilônia, com toda a sua magnificência empoeirada e sua famulagem grosseira, parecia, comparado com este, um lugar bárbaro. Tratamos de nos lavar e mudar de roupa. Minéia penteou-se e comprou vestidos novos de modo a poder se apresentar aos amigos.

Fiquei perplexo ao contemplá-la. Trazia agora na cabeça um chapéu pequenino como uma lâmpada e, nos pés, sandálias de salto  alto que cuidei dificultassem a locomoção. Não a vexei com nenhuma  observação, mas lhe dei brincos e um colar de pedras de diferentes cores  que o comerciante me disse que estavam na moda naquele dia, não se  responsabilizando porém, que ainda estivessem no dia seguinte.  Observei também com espanto seus seios nus com os bicos pintados de vermelho e que proeminavam devido à faixa de prata que lhe envolvia a cintura. Evitou os meus olhos dizendo com ar sobranceiro que não tinha nada que se envergonhar dos seios em comparação com os das demais mulheres de Creta.

Após inspeção mais próxima não neguei tal coisa, pois ela podia estar com a razão.

Depois fomos transportados propriamente à cidade. Com seus jardins e casas joviais, parecia um outro mundo depois da dunas, do barulho, do cheiro de peixe e do regatear das praças do porto. Minéia levou-me à casa de um senhor idoso que era seu amigo e patrono especial, costumando apostar dinheiro nela no campo dos touros; e ali Minéia se sentia como em sua casa. Achava-se ele estudando a lista dos touros quando chegamos, e anotava as apostas que queria fazer no dia seguinte.

Ao ver Minéia se tomou de tal júbilo que esqueceu os papéis, abraçou-a sem reservas e exclamou:

- Onde é que andou se escondendo? Não a vejo faz tanto tempo que supus que já se achasse recolhida à mansão do deus. No entanto não escolhi ninguém para substituí-la e seu quarto continua vazio...se é‚ que os meus criados o conservaram assim e se minha mulher não o derrubou para fazer lugar para um viveiro de peixes; deu-lhe agora para criar qualidades de peixes e não pensa em outra coisa.

- Heléia...está criando peixe?! - exclamou Minéia, muito admirada.

Um tanto confuso o velho respondeu:

- Não se trata de Hiléia. Tenho uma outra mulher que está lá dentro agora mostrando a um mancebo iniciado o viveiro de peixes. Apresente-me porém este seu amigo para que seja amigo meu também e possa considerar esta casa como dele.

- Este meu amigo é Sinuhe, o egípcio, O Que Está Sozinho, e tem a profissão de médico - disse Minéia.

- Pergunto-me quanto tempo ele permanecerá sozinho aqui - gracejou o velho. - Mas acaso você estará doente, Minéia, para voltar acompanhada por um médico? Isso me confrangeria, porque eu esperava que você dançasse amanhã diante dos touros e que assim a minha sorte mudasse. O meu intendente lá  no porto anda se queixando que as minhas rendas já não cobrem as  minhas despesas... Ou terá ele dito o contrário? Não me lembro bem  porque não sei fazer nenhuma dessas contas complicadas que ele  constantemente me apresenta, enfadonhamente.

- Não estou doente, não. Este meu amigo me salvou de muitos perigos e viajamos dando muitas voltas até eu poder chegar minha pátria. Naufraguei quando ia para a Síria dançar diante de touros.

- Que é que estás me dizendo?.. Espero que a despeito de toda a gratidão  você tenha conservado a virgindade do contrário teria que ser excluída das  competições... sem falar em outras penas, conforme você sabe muito bem.  Sinto-me deveras magoado, pois verifico que seus seios estão  desenvolvidos de maneira suspeita e seus olhos apresentam um brilho úmido. Minéia, Minéia! Você não cometeu nenhuma insensatez?

- Não! - disse Minéia, num acesso de brio. - E se digo que não minha  palavra deve bastar sem ser necessário um exame como o que me fizeram  no mercado de escravos de Babilônia. E preciso que fique notório que foi  graças a este meu amigo que consegui voltar atravessando tantos perigos.  E eu que pensava que os meus amigos ficariam radiantes quando me vissem! No entanto pensam apenas nos touros e nas apostas! - Começo a  chorar com raiva, e as lágrimas deixavam estrias de bistre em suas faces.

O velho ficou muito atrapalhado e comovido, dizendo logo    Não duvido que esse seu aspecto a que me referi provenha do cansaço  dele suas viagens porque decerto nessas terras estrangeiras você nem pode  tomar seus banhos diários. E nem julgo que os touros de Babilônia  possam ser comparados com os nossos... E isso me faz lembrar que desde  muito já devia eu ter ido procurar Minos, coisa que nem me passou pela cabeça, hoje. Acho melhor ir agora. Se minha mulher vier diga-lhe que fui visitar Minos e que não a quis estorvar nem ao jovem aspirante. Ou talvez fosse melhor eu ir me deitar, pois que no palácio de Minos ninguém observará se estive presente ou não?! Por outro lado, se eu fosse, poderia passar nos estábulos e ver que estado vai tomando o novo touro - aquele que tem uma mancha na anca. Talvez seja melhor eu ir. Trata-se realmente de um animal extraordinário!

Distraidamente se despediu de nos, mas Minéia lhe disse:

- Acho que também vamos ver Minos. Assim apresentarei Sinuhe a meus amigos.

Dirigimo-nos portanto ao palácio de Minos, o que fizemos a pé‚ porque o velho não chegava nunca…conclusão de se valeria a pena tomar uma liteira para um percurso tão breve. Foi só depois que chegamos ao palácio que vim a descobrir que esse Minos era o rei e que todos os reis naquela ilha se chamavam Minos, nome esse que os distinguia das demais pessoas. Mas qual Minos era ele, numericamente, não sabiam porque ninguém tivera paciência de contá-los e seriá-los.   

Havia inúmeras salas naquele palácio; nas paredes do salão estavam pintados ondulantes sargaços e medusas! e polvos avultavam por entre águas claras. O salão estava repleto de convivas cada qual vestido mais rica e extravagantemente do que o outro e que se movimentavam conversando, rindo alto e bebendo vinhos gelados e sucos de frutas em pequenas taças, ao passo que as mulheres exibiam e comparavam seus vestuários. Minéia apresentou-me a muitos de seus amigos que todos deram mostra de cortesia formal. O rei Minos dirigiu-me algumas palavras amistosas servindo-se do meu idioma, agradecendo-me por haver salvo Minéia e a trazido para a ilha e o seu deus. Disse-me que ela entraria na mansão da divindade marinha logo na primeira oportunidade, muito embora a sua  vez com referencia … escolha já tivesse passado.

Minéia andava pelo palácio como se este fosse s‚ levando-me através das  salas, demonstrando prazer … vista de algum objeto conhecido, falando  com a criadagem que a tratava como se não tivesse estado ausente. Fiquei  sabendo que qualquer cretense eminente podia visitar suas herdades ou  sair em viagem quando muito bem quisesse e mesmo que se esquecesse de  avisar os amigos estes não se espantavam com a sua ausência; a pessoa ao voltar se reencontrava com as demais como se nunca se tivesse ausentado. Este hábito que suavizava os casos de morte entre eles, pois quando alguém desaparecia ninguém estranhava, a pessoa logo ficava esquecida;  e a sua ausência num encontro marcado ou numa recepção não causava estranheza pois podia estar alhures fazendo qualquer outra coisa.

Finalmente Minéia me levou para um aposento encravado em cima de uma rocha por sobre o resto do edifício. Suas amplas janelas davam para uma paisagem de campos risonhos e férteis  lavouras, mostrando olivais e nesses fora da cidade.

Minéia disse-me que  aquele era o seu quarto: todas as suas posses se achavam ali como se as  tivesse deixado ontem, embora os vestidos e os adornos já pudessem  agora estar fora de moda e de uso.

Foi só então que vim a saber que ela era parenta, prima de Minos, fato  que eu já devera ter deduzido por causa do nome Minéia. Ouro, prata e  presentes preciosos eram para ela ninharias, pois estava acostumada desde  a infância a ter o que muito bem desejasse. E datava da infância sua  consagração ao deus tendo sido levada para os templos onde vivia quando  não se achava no palácio ou com o seu velho patrono e entre amigos.  Viviam todos casualmente em suas próprias residências ou nas de  quaisquer outros.

Depois Minéia me levou ao local dos touros que era a bem dizer uma cidade com seus estábulos e arenas prólos e currais,  construções escolares e residências sacerdotais. Visitamos estábulo por  estábulo, respirando o cheiro violento desses animais. Minéia não se  cansava de chamá-los por seus nomes e apelidos, e de incitá-los, embora  eles procurassem marrar encravando-a entre os postes dos cubos,  arremetendo e escavando a areia com os cascos.

Minéia encontrou rapazes e raparigas que conhecia; na verdade tais dançarinas não se davam bem, reinando entre eles rivalidades e ciumeiras por causa dos êxitos e estratagemas que  escondiam mutuamente. Mas os sacerdotes que tratavam de apurar os  touros e os jovens nos acolheram calorosamente e assim que souberam  que eu era médico me fizeram uma porção de perguntas a respeito do  regime e da dieta dos animais e do trato do respectivo pelo, muito embora devessem conhecer tais assuntos muito melhor do que nos Tinham Minéia em alto conceito e logo lhe reservaram um touro e um lugar no programa do dia seguinte. Ela estava ansiosa por exibir diante de mim sua proficiência com aqueles animais esplendidos.

Finalmente Minéia me levou a uma pequena construção onde o sumo-sacerdote do deus cretense morava sozinho. Assim como o rei se chamava sempre Minos, da mesma forma o sumo-sacerdote se chamava sempre Minotauro e por determinado  motivo era o homem mais venerado e mais temido de Creta. Não era de  bom grado que proferiam tal nome preferindo chamar tal pontífice "o  homem do casinhoto do touro." A própria Minéia tinha medo de  visitá-lo, apesar de em tal ocasião não me haver confessado isso;  verifiquei tal temor em seus olhos que eu já conhecia até‚ mesmo nas mínimas sombras.

Assim que fomos anunciados ele nos recebeu numa sala escura.

No princípio cuidei estar diante do, próprio deus e acreditei em tudo  quanto já ouvira falar, pois vi um homem com uma cabeça dourada de  touro. Depois que nos inclinamos ele removeu a cabeça mostrando seu  rosto natural; ainda assim, apesar do seu sorriso cortes, antipatizei com ele  porque notei em sua fisionomia inexpressiva certa crueldade fria. Eu próprio não sei definir bem isso, pois se tratava de um homem bonito, muito moreno e sobranceiro. Não foi preciso Minéia lhe contar nada; ele já estava a par do naufrágio e das  peregrinações. Não fez perguntas desnecessárias, agradeceu meus cuidados por Minéia que, afinal, redundavam em apreço por Creta e pelo  deus. Disse-me que ricos presentes me esperavam no hotel e que estava  certo de que eu ficaria contente ao ve-los. Disse-lhe:

- Sou indiferente a dádivas. Prezo mais o conhecimento do que o ouro.  Para aumentá-lo é que venho viajando por muitos países a tal ponto que  hoje conheço até‚ mesmo os deuses de Babilônia e dos hititas. Espero  conhecer algo sobre o deus de Creta que, segundo tenho ouvido falar, é maravilhoso, ama as virgens e os mancebos puros, em contraste com os  deuses da Síria cujos templos são casas de divertimento e que são servidos  por sacerdotes castrados.

Ele respondeu:

- Temos numerosos deuses venerados pela população. No porto existem templos à glória de deuses estrangeiros e onde podem ser oferecidos sacrifícios a Ammon e a Baal, facilmente. Mas não quero iludir-vos; cumpre-me dizer-vos que o poder de Creta está em função deste nosso deus que vem sendo adorado em segredo desde tempos imemoriais. Somente os iniciados o conhecem e isso mesmo quando o encontram face  a face. E ninguém voltou ainda para nos falar sobre a sua conformação e imagem.

- Os deuses dos hititas são os céus e a chuva que deles cai e que faz frutificar a terra. Pelo que depreendi, o deus de Creta é o deus marinho visto a riqueza e o poder da ilha derivarem do mar.

- Talvez tenhais acertado, Sinuhe - disse-me ele com um sorriso estranho. - Sabei porém que nós, cretenses, adoramos um deus vivo, e nisso somos diferentes do povo do continente que adora deuses mortos e imagens de madeira. Nosso deus não é uma imagem por mais que isso de touro sejam considerados seus  símbolos; e enquanto o nosso deus viver perdurará a soberania de Creta  nos mares. Assim foi predito e disso temos certeza sendo que também  temos grande confiança em nossas galeras de guerra com as quais  nenhuma outra nação marítima pode competir.

- Ouvi dizer que vosso deus mora no labirinto de uma mansão escura e misteriosa. Gostaria bastante de ver esse labirinto de que tanto falam. Mas não compreendo por que motivo os iniciados não voltam nunca do dédalo apesar da permissão que tem para isso depois do espaço de uma lua.

A isso redargüiu Minotauro repetindo palavras que já ouvira antes uma porção de vezes:

- A mais alta honra, a mais intensa felicidade que pode atingir um lote de iniciados é a de entrar na mansão do deus. Por isso as ilhas porfiam umas com as outras em mandar suas donzelas mais lindas e a flor dos seus mancebos  para as danças diante do touro, constituindo assim elementos para a seleção dos turnos. Não sei se tendes escutado histórias sobre a  mansão do deus; a vida acolá é completamente diferente da que  conhecemos, de maneira que quem entra não deseja mais regressar aos  tormentos e vicissitudes deste mundo. Que dizes, Minéia? Tens medo de  entrar?

Minéia não respondeu e eu disse:

- Vi corpos de marinheiros arremessados nas praias de Esmirna; seus rostos e seus ventres estavam tumefatos e nenhum júbilo se  refletia em seus traços. Eis tudo quanto conheço da mansão do deus do  mar. Mas não duvido da vossa palavra e desejo todo o bem a Minéia.

Minotauro disse friamente:

- Haveis de ver o labirinto pois a noite de lua cheia está próxima e  exatamente nessa noite Minéia penetrará na casa da divindade.

- E se ela recusar? - perguntei, ousadamente, porque suas palavras me enraiveceram e congelaram de desespero o meu coração.

- Tal hipótese nunca se deu. Tranqüilizai-vos, Sinuhe, o egípcio. Se Minéia dançar, como tem dançado, diante dos touros, acabará entrando na casa divina por livre vontade.

Enfiou outra vez a cabeça taurina como sinal de que nos devíamos retirar; e seu semblante sumiu da nossa vista. Minéia segurou  minha mão e me levou para fora; já não era mais feliz.

Ao voltar encontrei Kaptah no hotel; bebera copiosamente nas tavernas do porto. Disse-me:

- Patrão, esta terra para os criados é a Terra do Poente; ninguém os esbordoa... Ninguém se lembra quanto ouro traz na bolsa ou que jóias usa. Se um amo se enfurece com o criado e ordena que se vá embora, basta  que o criado desapareça ou se esconda e surja no dia seguinte, pois a tal  altura o amo já terá esquecido o caso, completamente.

Disse isso com aquele feitio típico de quando estava bêbado, mas assim  que fechou a porta e se certificou de que ninguém‚ ouvia, prosseguiu:

- Patrão, coisas estranhas estão prestes a acontecer nesta ilha. Os marinheiros nas tavernas estão dizendo que o deus de Creta morreu e que os sacerdotes, cheios de temor, estão procurando um deus novo. E trata-se de má notícia, pois os marinheiros já estão sendo arremessados de encontro a recifes e devorados por polvos, pois não é à toa que foi predito que o  poder de Creta ruirá quando o seu deus morrer.

Uma esperança selvagem empolgou meu coração. Disse a Kaptah:

- Minéia está para entrar na casa desse deus na noite da lua cheia. Se de fato ele morreu - e deve ser verdade porque o povo acaba  sempre descobrindo todas as coisas embora ninguém‚ lhas conte - então  talvez Minéia regresse da mansão de onde até agora ninguém‚ voltou.

Assegurei-me no dia seguinte um bom lugar no grande anfiteatro cujos  bancos de pedra se enfileiravam uns atrás dos outros de modo a toda gente  poder ver os touros sem dificuldade. Admirei muito esse dispositivo  original e Prático jamais tendo visto nenhum análogo; no Egito, por  ocasião das procissões e paradas, altas plataformas são erguidas de modo  a todos contemplarem o deus, os sacerdotes e os que dançam.

Os touros eram conduzidos à arena um por um e cada dançarino por sua vez realizava uma série de práticas complexas e perfeitas. Isso englobava muitas proezas diferentes que deviam ser  efetuadas sem a mínima falta e segundo maneiras regulamentares. A mais  difícil de todas era saltar por entre os chifres e dai dar uma cambalhota no  ar descendo e vindo se equilibrar em pé‚ nas ancas do bicho. Nem mesmo  a pessoa mais hábil podia executar isso tudo sem uma falta, pois o êxito  também dependia de como se portava o touro, de como estacava, marrava ou abaixava a cabeça. Os ricos e os influentes de Creta faziam apostas uns com os outros em cada  tourada, cada qual confiando em seu favorito. Depois de assistir a  algumas corridas dessas fiquei sem compreender o entusiasmo dos que  apostavam, pois achei que os touros não faziam diferença e eu não  conseguia diferenciar um caso do seguinte.

Minéia também dançou e receei por sua vida até‚ que sua agilidade maravilhosa me fascinou a tal ponto que esqueci o perigo que ela corria e aplaudi como toda gente. Dessa feita as raparigas dançavam nuas e os mancebos também, porque tais  jogos eram tão traiçoeiros que a mínima roupa podia prejudicar os  movimentos e por em perigo aquelas vidas. A meu ver Minéia era a  pessoa mais bela de quantas dançavam ali; sua pele cintilava de óleo, e  devo concordar que entre os demais dançarinos havia algumas raparigas  surpreendentemente fascinantes que recebiam grandes aplausos. Mas meus olhos não conseguiam se desprender de Minéia. Comparada com as outras e os outros se achava fora de prática por causa  da longa ausência, e não ganhou sequer uma guirlanda. Seu velho  patrono, que apostara no seu triunfo, ficou cheio de amargura e  ressentimento lembrando-se da prata que perdera; acabou indo para as  cocheiras fazer outras novas apostas que, não obstante ser o patrono de  Minéia, tinha direito de fazer.

Depois que me encontrei com Minéia no logradouro dos touros, ela olhou em torno e me disse friamente:   

- Sinuhe, não te verei mais porque meus amigos me convidaram para  uma festa; tenho também que me preparar para o meu deus, visto que lua  cheia será depois de amanhã. Por conseguinte é provável que não nos  encontremos mais antes de eu entrar para a casa do deus, a não ser que  queiras me acompanhar até‚ lá com o resto dos meus amigos.

- Pois vai. Tenho muita coisa que ver em Creta. Os costumes e as roupas  das mulheres me interessam bastante. Enquanto eu estava sentado assistindo a tua apresentação, diversas das  tuas amigas me convidaram a ir às suas casas; e me causa prazer  contemplar-lhes os semblantes e os bustos...Que importa que elas sejam  um pouco mais espessas e frívolas do que tu?...

Ela me agarrou pelos braços, tomada de fúria; seus olhos se inflamaram e sua respiração se acelerou quando me disse:

- Proibo-te que te divirtas com minhas amigas enquanto eu estiver ausente! Tens que esperar comigo até‚ eu ir e me esperar depois até‚ que eu venha. E mesmo que me aches franzina demais - coisa que antes nunca me ocorreu à mente  - tens que fazer o que peço como demonstração de amizade e porque estou instando.   

- Foi brincadeira minha. Não quero perturbar a tua paz já que sem dúvida tens muito que fazer antes de penetrar na mansão do deus. Voltarei pois para o hotel a tratar de doentes, pois no porto há muitas pessoas que precisam do meu auxílio.

Deixei-a e durante muito tempo ainda o cheiro dos touros continuava em minhas narinas. Jamais hei de esquecer o cheiro dos estábulos cretenses; e mesmo atualmente quando vejo gado e seu cheiro vem a mim, me sinto doente, não posso comer e meu coração dói em meu peito.

Deixei-a, por conseguinte e fui me por às ordens dos doentes lá no hotel. Tratei-os e aliviei-lhes o sofrimento até a escuridão descer e lâmpadas serem acesas nas casas de divertimentos do  porto. Através das paredes me vinha o som da música e das risadas - pois  mesmo os escravos tinham tomado as maneiras descuidadas de seus amos,  cada qual vivendo como se não devesse morrer nunca e como se isso de  sofrimento, mágoa e dissabor não existisse.

Noite franca. Permanecia sentado em meu quarto onde Kaptah já estendera a coberta do catre; escuridão não quis lâmpada acesa ali dentro. A lua nasceu, grande e clara, mas ainda não de  todo cheia; e odiei a lua porque iria me arrancar a única pessoa no mundo  que era minha irmã Tive ódio de mim também por me achar fraco, tímido  e incerto de vontade. E eis que a porta se abriu e Minéia entrou cautelosamente. Não estava vestida à maneira cretense mas usava  agora o mesmo vestido simples com o qual dançara para os poderosos ‚ os  humildes de muitas terras; e seus cabelos estavam atados por uma fita  dourada. Exclamei, espantado:

- Minéia! Por que vieste? Pensei que estivesses te preparando para o teu  deus!

Ela sussurrou:

- Fala baixo... Não quero que nos ouçam.

Sentou-se rente de mim e fitando a lua, prosseguiu:

- Não gosto do meu quarto de dormir lá da casa dos touros, e não me sinto mais feliz como antigamente entre meus amigos. Mas o motivo pelo qual resolvi vir te visitar nesta estalagem do porto, gesto este que parece despropositado, eu... não  te posso dizer. Se, contudo, queres dormir, não te‚ estorvarei... Irei  embora. Vim porque não pude dormir; senti saudades até‚ do cheiro das  drogas e das ervas; tive vontade de puxar mais uma vez a orelha e os  cabelos de Kaptah por causa das tolices que ele diz. Terras e povos diferentes me distraíam tanto que ,estranho estar aqui entre os touros, não  me entusiasmo com os aplausos e nem anseio pela mansão do deus como  antes. A conversa que me rodeia parece tagarelice sem interesse de  criança a alegria se esvai como espuma se desmanchando na praia, e os  prazeres da ilha já não os considero prazeres. Sinto o coração tão vazio quanto a cabeça; não me acode um único  pensamento que se possa chamar meu. Tudo é lancinante e nunca na  minha vida conheci tais desgostos. Peço-te pois que segures de novo a  minha mão, como antigamente. Quando seguras minha mão não sinto  medo de nada, nem mesmo da morte, Sinuhe, embora saiba que preferes olhar e segurar a mão de mulheres mais nédias e mais bonitas do que eu.

Disse-lhe:   

- Minéia, minha irmã! Minha infância e minha juventude foram como um arroio claro e gárrulo. Minha mocidade foi um grande rio que se  espalhou por sobre muitas terras mas cujas águas eram túrgidas e se  espraiaram em lençóis estagnados e inertes. Mas quando surgiste, Minéia,  conglomerastes todas essas águas que recomeçaram alegremente a descer  por um canal profundo lavando-me corpo e alma. O mundo passou a sorrir para mim e o mal foi prontamente varrido para longe. Por tua causa procurei o bem, tratei doentes sem pensar em pagamento e recompensa, não me submeti ao poder dos deuses misteriosos. Foi o que sucedeu com a tua chegada. Agora que te vais, levas também a luz e meu coração fica como um corvo sozinho no deserto. Já não sinto solicitude por ninguém odeio os homens, odeio os deuses, e não quero ouvir falar deles. Eis o que se passa comigo,  Minéia uma coisa quero te dizer, portanto: neste mundo há muitas terras  mas somente um rio. Deixa que eu te leve para a Terra Negra para junto  das margens desse rio onde patos selvagens grasnam por entre caniços e  onde todos os dias o sol atravessa os céus numa nave dourada. Vem  comigo, Minéia; quebraremos juntos uma botija e seremos marido e mulher, jamais nos separando um do outro. A vida nos será fácil,  e quando morrermos nossos corpos serão preservados, de forma que nos  reencontraremos na Terra do Poente e lá viveremos juntos para todo o sempre.   

Ela machucou minhas mãos entre as suas, acariciou com a ponta dos  dedos rainhas pálpebras, minha boca e minha garganta e disse:

- Sinuhe, mesmo que eu quisesse não poderia te seguir, pois navio algum  nos levaria para fora de Creta e capitão nenhum nos esconderia a bordo;  estou sendo guardada desde já por causa do deus e não posso consentir  que sejas morto por culpa minha. Não posso ir contigo. Depois que dancei diante dos touros a vontade deles e maior do que a minha; é-me impossível explicar-te isso porque se trata de coisas que não experimentaste. Assim pois na noite da lua cheia devo entrar na  mansão do deus e nenhum poder da terra me pode coibir. Por que motivo é isso, ignoro... e acho mesmo que ninguém sabe, a não  ser Minotauro.

Senti o coração como uma tumba vazia em meu peito quando respondi:

- Ninguém conhece o que o dia de amanhã pode trazer... E não acredito absolutamente que voltes dessa mansão. Nos paços dourados do deus do mar beberás vida eterna que flui da sua fonte, esquecerás as coisas terrenas, me esquecerás... E a verdade é que não acredito nessa lenda que é um conto fantástico. Ora, tudo quanto vi em tantas terras e jornadas me inclinam a  não acreditar em contos fantásticos. Fica sabendo portanto que se não  voltares dentro do prazo estabelecido entrarei pessoalmente na casa do  deus para ir te buscar. Tal é‚ o meu propósito, Minéia, nem que se transforme no meu último ato sobre a terra.

Horrorizada, ela tapou com a mão a minha boca e olhando em redor  exclamou:

- Cala-te! Não profiras tais coisas... E nem sequer penses nelas. A casa  do deus é escura e nenhum estrangeiro achará caminho dentro dela. Para  as pessoas não iniciadas pompéia lá dentro uma terrível morte. E nem  conseguirias entrar, pois é guardada por portas de cobre. Prefiro que  assim seja, do contrário em tua loucura poderias fazer conforme dizes indo ao encontro da tua destruição. Crê em mim: voltarei  espontaneamente; o deus que venero não pode ser tão maligno que vede o  meu retorno a ti se tal for o meu desejo. Trata-se de um deus correto e  majestoso que zela pelo poder de Creta, solicito para com tudo e todos;é  ele quem faz as oliveiras florescerem, o trigo amadurecer nos campos e as embarcações navegarem de um porto para outro. Guia os ventos a nosso favor, conduz as naves quando existe nevoeiro, protege deveras de todo mal os que se acham sob a sua proteção Por que, então, há de ele ter má vontade para comigo?

Desde a infância crescera assim debaixo de uma sombra; tinha os olhos  cegos e eu não poderia abri-los embora curasse cegueiras com as artes da  minha profissão. Numa fúria inútil tomeia-a entre os braços, beijei-a, acariciei-a. E seu corpo era liso como cristal e sua vida era para mim  como uma fonte no deserto.

Não ofereceu resistência; apoiou o rosto no meu pescoço e se pos a tremer; e eu sentia suas lágrimas quentes na minha pele, enquanto ela falava:

- Sinuhe, meu amigo, se duvidas que eu volte então não me oponho a  que me possuas. Faze de mim o que quiseres se é‚ que isso te dá alegria e mesmo que a  conseqüência seja a minha morte. Mas em teus braços que me importa  tudo o mais? Somente me aflige uma coisa: que a divindade me arranca de ti.

Perguntei-lhe:

- E junto a mim sentes alegria?

Sua resposta foi hesitante.

- Não sei. Sei apenas que longe de ti meu corpo não tem sossego nem  bem-estar. Sei apenas que quando me tocas uma névoa se ergue diante  dos meus olhos e que meus joelhos enfraquecem. Por causa disso me irrito  comigo mesma e evito teu contacto. Antes, tudo era nítido, nada estorvava  minha satisfação e eu só me gloriava da minha destreza, da minha flexibilidade e da minha condição de virgem. Mas agora sei que  teu contacto é suave embora me traga sofrimento. Mas...que sei eu?  Talvez depois me venha uma tristeza. Contudo, se achas que isso te dará  felicidade... então teu prazer é meu também e nada mais desejarei.

Diminuindo o amplexo, acariciei-lhe os cabelos, os olhos e o pescoço, e  disse:

- A mim me basta teres vindo aqui esta noite conforme fazias quando  caminhávamos juntos pelas estradas do país de Babilônia. Dá-me essa fita  dourada que tens nos cabelos, não te peço mais do que isso.

Olhou-me com ar de reflexão, alisou os flancos com os dedos em arco,  disse:

- Decerto sou magra demais e achas que meu corpo não te dará nenhum  prazer. Sem dúvida preferirias uma mulher mais jovial do que eu. Mas  serei afável, farei tudo que quiseres para não te desapontar e te darei o  maior prazer que puder.

Sorri-lhe, acariciei-lhe os ombros macios, declarei-lhe:

- Para mim nenhuma mulher é mais bonita do que tu e nenhuma daria prazer maior. Mas como hei de te tomar para gozo meu se  estás tão apreensiva por causa do teu deus? Há uma coisa que podemos fazer e que nos dará felicidade mútua. Segundo o costume de minha terra podemos pegar numa botija e  quebrá-la entre nós. Uma vez isso feito seremos marido e mulher, embora  eu não te possua e não haja sacerdotes para testificar e escrever nossos  nomes no livro do templo. Vou dizer a Kaptah que nos traga uma botija  para que assim cumpramos este rito.

Seus olhos aumentaram de tamanho e cintilaram ao luar. Bateu palmas, radiante, e sorriu. Saí para procurar Kaptah... mas dei com  ele sentado no chão do lado de fora da minha porta, esfregando  com o dorso da mão a cara suja de pranto.

Ao me ver choramingou alto. Perguntei-lhe:   

- Que é, Kaptah? Por que estás chorando?

Respondeu-me prontamente:

- Patrão, eu tenho um coração mole e por isso não pude reprimir minhas  lágrimas ao ouvir tudo quanto meu senhor estava conversando com essa  moça magricela.

Furioso, dei-lhe pontapés, exclamando:

- Então estavas escutando à porta e ouviste tudo quanto falamos?

Respondeu alvarmente:   

- Exatamente, patrão, porque reparei que gente curiosa se aproximava da  porta tentando escutar. Gente que não tinha negócio nenhum com o patrão  e que só queria espionar os passos dessa moça. Então expulsei essa gente,  com ameaças e me sentei perto da porta para tomar conta, certo de que o  patrão não havia de querer que o incomodassem em meio a uma conversa tão importante. Ora, uma vez sentado aqui, é claro  que tinha que ouvir o que estava sendo dito...Coisa tão bonita... apesar de  infantil... que fui obrigado a chorar.

Impossível zangar-me ante tal grandeza, redargüi apenas:

- Já que estiveste escutando então sabes do que precisamos. Vai depressa  arranjar uma botija ou um cântaro.

- De que espécie tem que ser, patrão? De argila, de pedra pintado,  simples, alto, baixo, largo ou estreito?

Ameacei-o com o bastão, tocando-o de leve, pois a alegria me tornara complacente e falei assim:

- Sabes muito bem que cerimônia se vai dar e que para tal fim qualquer botija serve. Deixa de impertinência e traze-me imediatamente a primeira botija que puderes agarrar.

- Vou embarafustar já. Apenas falei essas coisas a fim de lhe dar tempo para pensar no que vai fazer. Quebrar uma botija com  uma mulher significa um passo importante na vida de um homem; passo  esse que não deve ser dado afoitamente e sem a necessária reflexão. Está  bem. Está bem; vou buscar o cântaro e não me intrometo nesse negócio.

Kaptah apareceu com uma velha jarra de óleo, que cheirava a peixe e a  quebramos juntos, Minéia e eu. Kaptah foi testemunha do casamento, pos  o pé de Minéia em cima do seu pescoço e sentenciou:

- Doravante sois minha patroa e ama e me dareis ordens do mesmo modo  que o patrão... ou mesmo com mais autoridade... Espero, contudo, que não jogueis água quente nos meus pés quando  estiverdes zangada. Além disso espero que useis sandálias leves, sem  salto; não gosto das outras porque machucam e fazem calombos na minha cabeça. Prometo servir-vos como sirvo meu patrão, fielmente, já que nem  sei porque simpatizo muito convosco apesar de serdes magra, terdes um busto pequenino; não compreendo que foi que meu patrão viu de extraordinário em vós. Outrossim meu intento roubar tão conscienciosamente de vós quanto roubo dele já que o farei mais em vantagem vossa do que minha.

Proferindo isso se comoveu tanto que chorou outra vez e soltou brados de lamentação. Minéia acariciou-lhe as costas e as bochechas e consolou-o até ve-lo mais calmo; isto posto o fiz juntar os cacos da jarra e o mandei sair do quarto.

Naquela noite dormimos conforme nos habituáramos, Minéia e eu, a  fazer desde muito; isto é, permanecemos deitados juntos. Dormiu em  meus braços, respirando em cima do meu pescoço, os seus cabelos  acariciando minha face. Mas não a possuí pois o que lhe era vedado como  gozo considerei vedado a mim também. Parece que a alegria foi mais doce  e mais profunda do que se, Minéia tivesse sido minha,  conquanto a tal respeito pouco possa informar por impossibilidade de comparação. Mas de uma coisa tenho certeza: senti caridade por todos os  homens, e meu coração ficou limpo de todo e qualquer malefício; era  como se todo homem fosse meu irmão, toda mulher minha mãe e toda  moça minha irmã. E isso tanto na Terra Negra como nas terras  vermelhas sob o mesmo céu enluarado.

No dia seguinte Minéia dançou mais uma vez diante dos touros e meu coração se afligiu muito apesar de não lhe haver sucedido nenhum dano. Mas um jovem, seu companheiro,  escorregou da testa do touro e caiu no chão onde o animal lhe abriu o  corpo e o pisou sob os cascos. Os espectadores da arena se levantaram aos  brados de horror e prazer. Depois que conseguiram remover o touro e arrastar o corpo do dançarino para junto dos estábulos, as mulheres correram para ve-lo. Tocaram-lhe os membros ensangüentados, respirando  nervosamente e exclamando:

- Que formidável!  

E os homens consideravam:

- Desde muito que não tínhamos contendas tão excelentes como a de hoje!

E foram fazer apostas num outro, preocupados com o dinheiro e  indiferentes com o caso, pesando ouro e prata, bebendo juntos.  Divertiram-se em suas casas onde as luzes brilharam até altas horas.  Mulheres esgueiravam-se da cama dos maridos para a de outros homens,  mas ninguém amuava, visto se tratar de hábito antigo.

Passei a noite sozinho em meu catre porque Minéia não pode vir. De  manhã bem cedo aluguei uma liteira no porto e segui para casa dela  disposto a acompanhá-la até a morada do deus. Foi levada até lá numa  carruagem dourada puxada por cavalos engalanados, e os amigos seguiam  em liteiras ou a pé‚ com grande estrépito e prazer, jogando-lhe flores e parando à beira do caminho para beber vinho.

O percurso era longo, mas tudo decorreu bem; lascavam ramos de árvores, abanavam-se uns aos outros, afugentavam rebanhos, brincavam de toda sorte. A casa do deus estava situada num  lugar deserto, no sopé de uma montanha à beira-mar; e quando o grupo se  aproximou todos baixaram as vozes e cessaram de rir, falando por meio de  sussurros.

Difícil é descrever tal caso pois por fora era como uma colina baixa onde  crescia relva e flores e aderia ao dorso da montanha. A entrada era vedada  por altivas portas de cobre diante das quais - cá fora - havia um  templozinho onde era feita a consagração e que abrigava os guardas. Foi  à hora do crepúsculo que a procissão chegou. Os amigos de Minéia saltaram das liteiras, estiraram-se na relva e começaram a comer, beber e  brincar, esquecidos da solenidade iminente...

É que os cretenses tem  pouca memória. Quando a noite caiu, acenderam tochas e começaram a  correr atrás uns dos outros através das moitas; gritos de mulheres e  risadas de homens irrompiam da escuridão mas Minéia ficou sentada no templo, sozinha, pois ninguém‚ podia se aproximar dela.

Eu a contemplava. Estava adornada de ouro como uma imagem divina,  tendo na cabeça um grande enfeite colorido; tentava sorrir para mim,  mas era um sorriso sem alegria.

Assim que a lua nasceu, tiraram-lhe as jóias e o ouro, vestiram-na com  uma roupa singela, cingiram-lhe os cabelos com uma rede prateada. Em  seguida os guardas retiraram as tranças das portas de cobre que se  abriram com um ruído profundo e rangente. Foram precisos dez homens  para escancarar cada porta. Lá dentro tudo era treva hiante. Estabeleceu-se profundo silencio.

Minotauro cingiu-se com um cinturão de ouro, dependurou uma espada  na ilharga e enfiou a cabeça dourada e taurina, cessando assim de parecer  homem. Uma tocha acesa foi colocada na mão de Minéia; Minotauro introduziu-a na casa escura, onde sumiram. E a luz da tocha  desapareceu. Depois as portas de cobre foram fechadas outra vez com tom  retumbante e reforçadas com as grandes trancas tendo sido necessários  muitos homens vigorosos para arriá-las. E não vi mais Minéia.

Assaltou-me tal agonia de desespero que senti meu coração  se transformar numa ferida por onde golfava o sangue da minha vida. Caí  de joelhos, com a testa no chão. Naquela hora tive certeza de que nunca  mais tornaria a ver Minéia, não obstante haver prometido regressar para  viver o resto de sua vida junto de mim. Não, ela não voltaria. Por que razão me persuadi disso exatamente naquele momento não posso dizer,  pois a verdade é que até‚ ali eu vacilava, temia, acreditava, confiava e procurava me convencer de que o deus de Creta era diferente dos demais deuses e haveria de dar liberdade a Minéia por causa do amor que a ligava a mim. Agora eu só queria uma coisa: permanecer ali com a testa no chão, enquanto Kaptah se quedava sentado junto de mim, meneando a cabeça entre as mãos e soltando lamentos.

A flor da mocidade cretense corria em redor de mim com tochas nas mãos, dançando bailados complicadíssimos e entoando cânticos cujas palavras eu não compreendia. Desde que. as portas de  cobre haviam sido fechadas aquela mocidade toda se tomou de frenesi,  dançando, saltando e correndo até ficar exausta. E seus brados soavam em  meus ouvidos como o crocitar de corvos nas muralhas de uma cidade.   Após algum tempo Kaptah cessou a lamentação e disse:

- Se meus olhos não me iludem - e não bebi tanto assim para ver errado - o Cabeça de Chifre saiu da montanha. Como, não sei, já que as portas de cobre continuam fechadas.

Não se enganara não. Minotauro voltara, e a cabeça taurina de ouro  reluzia com brilho terrível ao luar. Lá estava ele dançando com os outros o  bailado ritual. Assim que o vi não consegui me dominar, ergui-me de um  salto e corri, agarrei-o pelas mangas e perguntei:

- Onde está Minéia?

Empurrou minhas mãos e agitou a máscara; mas como eu persistisse então a removeu e disse furiosamente:

- É proibido perturbar o ritual sagrado. Decerto ignorais isso por serdes  estrangeiro. Por conseguinte vos perdôo contanto que não ouseis erguer de  novo a mão contra mim.

Tornei a perguntar:

- Onde está Minéia?

- Deixei-a na treva da casa do deus, conforme me cumpria, e voltei para dançar o bailado do cerimonial em honra do deus. Que quereis de Minéia? Já não fostes recompensado por a haverdes  trazido à ilha?

- Como pudestes voltar deixando-a lá dentro? - insisti, investindo; mas o  sacerdote me deu um empurrão e as outras pessoas se interpuseram.

Kaptah agarrou-me pelo braço e me arrastou para longe dali. Fez bem em  ter agido assim, do contrário quem sabe o que poderia ter acontecido?

Disse-me:

- Não caia na tolice de fazer escândalo. O melhor é fingir. Dance, ria e  cante como os outros fazendo, do contrário pode se por em maus apuros.  Já descobri que Minotauro saiu por uma pequena porta ao lado das  grandes de cobre. Fui espiar e vi um guarda fechá-la e retirar a chave.  Trate de beber vinho agora, patrão. Acalme-se. Está com o rosto desfigurado como o de um possesso e rodando os olhos como um mocho.

Fez-me beber vinho e eu repousei sobre a relva, ao luar, enquanto o fulgor das tochas flutuava diante dos meus olhos.

Kaptah manhosamente me dera um vinho entorpecedor com suco de papoula. Assim se vingou do que eu lhe fizera aquela noite em Babilônia - quando lhe salvei a vida - apenas não me havendo colocado dentro de uma urna. Estendeu uma coberta por sobre mim e evitou que os dançarinos me pisassem. Bem provável é‚ que,  por sua vez, me haja salvo a vida porque eu, tomado de desespero, bem  podia ter cravado minha faca em Minotauro e liquidado com ele. Ficou  sentado junto de mim a noite inteira até a botija de vinho ficar vazia; depois pegou no sono e começou a resfolegar hálito de vinho em  minha orelha.

Acordei tarde no dia seguinte. A droga fora tão poderosa que no começo me perguntei onde estaria eu. Quando me lembrei fiquei calmo, a cabeça não tardou a clarear e, graças ao remédio, minha fúria cedeu de todo. Muitos dos que tomavam parte da procissão tinham voltado para a cidade, mas alguns ainda dormiam entre as moitas: homens e mulheres em promiscuidade, com os corpos desavergonhadamente expostos, haviam  bebido e dançado. até‚ de madrugada. Quando acordaram mudaram de vestes e as mulheres recompuseram os  penteados, descontentes por não se poderem banhar logo é que as torrentes e os arroios estavam demasiado frios e todos tinham o hábito da  água quente das piscinas.

Ainda assim gargarejaram, esfregaram ungüento nas faces, pintaram os lábios e as sobrancelhas e perguntaram reciprocamente:

- Quem fica para esperar Minéia e quem volta para a cidade...

Muitos agora estavam cansados da folia, e foram voltando para a cidade  com o decorrer das horas. Apenas os mais jovens e mais insaciáveis  permaneceram para continuar o divertimento, sob o pretexto de aguardar  o regresso de Minéia, mas a verdadeira razão era passar mais uma noite  entregues ao prazer. As mulheres aproveitaram ensejos mínimos para mandar os maridos para a cidade, e a fim de ficarem livres. -Foi só então  que compreendi por que motivo não existia um único alcouce na cidade a não ser no porto. Tendo assistido aos seus  folguedos lúbricos durante a noite e aquele seguinte dia, considerei que as  raparigas que quisessem fazer vida de profissão libertina encontrariam  fortes rivais nas mulheres "honestas" de Creta.

Quando percebi que Minotauro se retirava indaguei:

- Posso ficar esperando a volta de Minéia, aqui com seus amigos e amigas, embora eu seja um estrangeiro?

Encarou-me malevolamente e respondeu:

- É um direito que ninguém vos veda. Mas, se é que estou bem informado, está a zarpar para o Egito uma embarcação recentemente fundeada. no porto... Digo-vos isto porque talvez vossa  espera seja vã. Jamais voltou da mansão qualquer criatura consagrada que  a transpôs.

Insisti, no entanto, com porte e maneiras de simplório:

- E evidente que andei um tanto ou quanto fascinado por Minéia, embora me melindrasse o fato de ser justamente menosprezado por causa da divindade. Mas, para ser franco, também confesso que não espero que ela volte. E se aqui permaneço ainda advém tal resolução do fato da presença de tão encantadoras raparigas...mulheres casadas...também! Gostam de me olhar, de que eu lhes palpe sedutoramente os seios... Ora, jamais experimentei oportunidades desta ordem. A verdade é que Minéia era uma amiguinha rixenta, cheia de ciúmes, que  implicava e estragava meus prazeres quando por sua vez absolutamente  não me concedia nenhum. Peço que me perdoeis se bebi demais a noite  passada e acaso vos faltei com o respeito. Aliás me lembro confusamente  porque ainda estou um pouco zonzo.

Engrolei um pouco a língua ao dizer isto, gaguejei e me queixei de dor  de cabeça. Claro que ele sorriu, tomando-me por idiota; tonto que  respondeu:

- Não seja essa a dificuldade. Por mim e por todos podeis  vos divertir bastante. Nós aqui em Creta não somos de melindres tolos... Ficai, portanto. Esperai Minéia enquanto quiserdes. Mas cuidado com as  raparigas e as mulheres casadas. Se arranjais um filho com alguma  delas a coisa se complicará porque sois um estrangeiro. Cuidado!... E que  este meu conselho não seja uma advertência impertinente. Trata-se da franqueza de um homem para com outro facilitando-lhe a  compreensão dos nossos costumes insulanos.

Assegurei-lhe que seria cauteloso e me gabei das minhas passadas  experiências com as sacerdotisas da Síria e da Babilônia. Resultou ele me  considerar ainda mais do que até então um cretino formidavelmente  monótono. Deu-me uma palmada no ombro e se voltou decidido a seguir  para a cidade.

Creio, ainda assim, que advertiu os guardas a me vigiarem; e também  propendo a acreditar que aconselhou as cretenses a me entreterem, pois  logo depois que ele se foi um bando de mulheres me rodeou. Estas  cingiram meu pescoço com guirlandas, colaram os olhos aos meus,  apertaram os seios nus de encontro ao meu braço, levaram-me para um  horto de loureiros, onde comemos e bebemos. Testemunhei o quanto eram libertinas e cofiadas, bebi pesadamente, fingi que fiquei intoxicado  para que se aborrecessem de mim; de fato, acabaram perdendo a  jovialidade, maltrataram-me, chamando-me de suíno e de bárbaro.

Kaptah irrompeu, arrancou-me dali à força, insultando-me alto por causa  da minha bebedeira; e ofereceu-se para me substituir nos folguedos  lúbricos. Zombaram fartamente dele, os mancebos o escarneceram, seu  ventre obeso e sua calva luzidia foram motivo de gracejos compactos.  Mas era um estrangeiro, e as mulheres de todas as partes se sentem atraídas por tudo quanto é novidade. Depois que se fartaram de rir  consentiram que participasse da ronda e dos folguedos, dando-lhe  vinho, enchendo-lhe a boca com frutas, vasculhando-o, chamando-o de  fauno e de bode, ficando por fim  escandalizadas com o cheiro dele...coisa com que, aliás, acabaram se afazendo.

Assim, aquele dia se passou até eu não agüentar mais tais folguedos e  libertinagens, averiguando não haver vida mais sem propósito do que  aquela, já que isso de caprichos desordenados acaba sendo mais cansativo  do que o comedimento.

Ao vir da noite debandaram, como na anterior, entrando pelos bosques; e  os meus sonhos angustiantes foram interrompidos pelos gritos de  mulheres fingindo correr de mancebos que lhes agarravam os pelos  querendo arrancar-lhos. Mas ao amanhecer estavam todos exaustos,  atarantados, ansiosos por banho, e grande número voltou, aquele dia, para  a cidade.

Apenas gente mais nova e mais animosa ainda permaneceu pelas  imediações das portas de cobre. E, no terceiro dia, também essa gente se  foi; consenti que se servissem da minha liteira que quedava ali à minha  disposição Os que tinham vindo a pé estavam agora impossibilitados de  andar e vacilavam vencidos peta imoderada impudicícia e necessidade de sono. O que tudo deu muito certo, pois assim mais ninguém resolveu ficar à minha espera.

Eu dera vinho aos guardas durante o dia inteiro, de forma que quando, ao lusco-fusco, lhes trouxe mais outra botija não se surpreenderam, antes me receberam radiantes. Dispunham de raros  prazeres ali naquela vida de solidão obrigatória que durava um mês desde  a vinda de um iniciado até à de outro. Se algo os espantou foi eu esperar  Minéia; mas como eu era estrangeiro supuseram que o caso fosse mera  ingenuidade. Puseram-se pois a beber o meu vinho.

Ao me capacitar de que o sacerdote residente supunha a mesmíssima  coisa, disse a Kaptah, a sós:

- Já agora os deuses decretaram que nos devemos separar. Minéia não voltou nem creio que volte, a não ser que eu a vá buscar. Mas todo aquele que penetrou na mansão escura jamais regressou de lá, e não espero que coisa diferente me suceda. Escrevi pois uma importância sobre uma tábua de greda e a garanti com meu sinete sírio para que tenhas meios de te transportar para a Síria e possibilidade de retirar quantias dos  atacadistas e armadores de Esmirna. Podes vender a minha casa, se  quiseres. Uma vez isso feito, terás liberdade absoluta de ação. Se temes  que no Egito te agarrem como escravo fugido, fica então em Esmirna e  vai vivendo com o meu dinheiro. No pé em que as coisas estão não tens  sequer que te preocupar com as providencias para o embalsamamento do meu corpo. Se eu não encontrar Minéia pouco me importa que meu corpo seja preservado ou não. Vai-te, portanto, e que te acompanhe a boa sorte do escaravelho... Sim, pois deves ficar com  ele já que confias nele mais do que eu. Não creio que me venha a poder  valer na jornada que vou fazer agora.

Kaptah ficou calado bastante tempo, sem me olhar. Por fim, disse:

- Patrão, não lhe guardo rancor pelo fato de lá uma vez ou outra haver  me batido com desnecessária severidade, pois o fez com boa intenção.  Verdade é que muito mais vezes o meu senhor deu atenção aos meus  conselhos e conversou comigo considerando-me amigo bem mais do que  criado; de modo que mais de uma vez exorbitei e abusei da sua  dignidade até que o bastão tornasse a restabelecer a divisão ordenada  divinamente entre nós. A situação agora se alterou, pois desde que Minéia pos o pé‚sobre a  minha cerviz também sou responsável por ela no que concerne às minhas  atribuições de servo. Tampouco posso consentir que o meu senhor  transponha sozinho a mansão escura. Verdade é que não o  acompanharei lá dentro como servo - já que recebi ordem de o abandonar  e que devo obedecer mesmo às piores loucuras; assim pois o acompanho  como amigo. Sim, pois não posso deixar que vá sozinho e muito menos sem o escaravelho...muito embora compartilhe da opinião de que neste  caso dificilmente ele nos salvará...

Falou com tamanha circunspeção e critério que quase não o reconheci; e  também não se queixou com brados e lágrimas como era seu hábito. Mas  a meu ver era tolice dois procurarem a morte, já que a de um só bastava.  Foi o que lhe disse tornando a ordenar que me deixasse.

Obstinou-se:

- Ah! Não quer me deixar entrar junto? Está bem. Entrarei logo a seguir!  bem preferível, contudo, era entrar junto com o patrão pois tenho tanto  medo dessa mansão escura que só em pensar nela me urino todo... Patrão,  deixe! E deixe também que eu leve comigo uma botija de vinho para ir tomando uns goles de vez em quando a fim de ganhar coragem através desses labirintos... Sim, para que não suceda que  o meu terror o estorve.

Liquidei a discussão, declarando:

- Pára com essa tagarelice. Vai buscar logo de uma vez o vinho; temos que entrar já pois os guardas já devem estar dormindo profundamente com a beberagem que lhes pespeguei.

De fato os guardas dormiam que nem pedras. E o sacerdote também. Consegui assim remover do lugar onde se achava guardada a chave aos cuidados do sacerdote ali no seu aposento, bem à  mostra. Agarramos também um prato com brasas e algumas tochas que  não acendemos porque a lua estava clara, e fácil foi abrir a porta lateral.  Subimos para a casa do deus e fechamos a porta atrás de nós. Em plena  escuridão, ouvi os dentes de Kaptah rilharem de encontro ao gargalo da botija.

Depois que Kaptah fortificou seu ânimo com um bom gole, comentou  num sussurro:

- Patrão, acendamos uma tocha. A chama não pode em caso algum ser visto do lado de fora. E esta  escuridão é pior do que a treva da morte; sim, da morte inevitável, por  mais que tenhamos entrado por nossa própria vontade.

Soprei bem em cima do carvão e acendendo a tocha, percebi que nos  achávamos numa grande abóbada cuja entrada estava fechada pelas portas  de cobre. Dessa abóbada saíam dez passagens conduzindo a diferentes  direções e separadas umas das outras por muralhas maciças de tijolo. Não  estranhei porque já ouvira falar que o deus de Creta morava num labirinto.

Ora, os sacerdotes de Babilônia me haviam  ensinado que os labirintos eram construídos obedecendo à direção dos pertuitos das vísceras dos animais dos sacrifícios.

Baseado nisso, acreditei que talvez pudesse acertar com o caminho,  tantas e tantas vezes havia eu observado as entranhas de touros durante os  sacrifícios; convenci-me, racionalmente, de que o labirinto cretense devia  ter sido construído segundo tal sistema.

Assim pois apontei para a passagem mais distante e disse:

- Entremos por ali.

Mas Kaptah ponderou:

- Pressa é coisa que não temos. Toda precaução já é‚ por si uma  vantagem. O essencial é‚ não nos desorientarmos. Antes de mais nada procuremos um processo para garantir o regresso...  se é que regressaremos, coisa que duvido muito.

E ao dizer isso tirou de dentro da escarcela uma meada de fio cuja  extremidade prendeu na ponta de um grampo de osso que cravou entre os  tijolos. Tal dispositivo era tão engenhoso em sua simplicidade que  estranhei não me haver acudido à lembrança antes; mas não comentei  nada a fim de manter superioridade naquela situação, restringindo-me  a dizer-lhe rudemente que andasse depressa. Entrei portanto nos dédalos  da mansão escura com a imagem das entranhas bovinas impressa na  memória enquanto Kaptah, seguindo-me, ia desenrolando o fio.

Andamos interminavelmente ao longo da escuridão enquanto novas  passagens se abriam diante de nós. De vez em quando esbarrávamos de  encontro a uma parede e tínhamos que voltar e seguir outra direção. De  súbito Kaptah ficou parado e sorveu o ar. E logo os .seus dentes rilharam  e a tocha vacilou ante o seu fôlego no momento em que disse:

- Patrão, está sentindo o cheiro dos touros?

 Também eu agora me dera conta de um cheiro repulsivo,  verdadeiramente abjeto e que parecia emanar das próprias paredes, como  se o labirinto inteiro fosse uma cocheira gigantesca.

Ordenei a Kaptah que continuasse a andar mas sem respirar. Tomou um gole farto de vinho, e então fomos prosseguindo até que meu pé  escorregou numa substância visguenta. Abaixando-me verifiquei que se  tratava de um crânio carcomido de mulher ao qual ainda aderiam cabelos.,  Isso me certificou logo que não tornaria a ver Minéia viva. Mas a vontade impetuosa de pronta verificação me levou para a frente.  Agarrei Kaptah e o invectivei para que não chorasse, absolutamente. E  prosseguimos, desenrolando o fio enquanto avançávamos. Mas logo  batemos de encontro a uma nova parede que barrava nossa passagem, e  tivemos que.voltar, para logo prosseguir.

Inopinadamente, porém, Kaptah estacou, apontando para o chão. Seus  cabelos, apesar de tão poucos, se eriçaram, e seu rosto se desfigurou  numa contração hirta, ficando lívido.

Acompanhei seu olhar e dei com uma espécie de massa amontoada na  nossa frente formando um monte de excremento ressecado. Se aquilo fora  defecado por um touro então esse bicho deveria ser monstruosamente  grande.

Kaptah teve o mesmo pensamento, pois disse:

- Isso não pode ser de um touro, porque um touro não passaria nesta  espécie de corredor. Deve ser coisa largada por uma monstruosa serpente!

Dizendo tais palavras, tomou outro gole profundo da botija com os dentes rilhando no gargalo, enquanto eu refletia que o labirinto parecia mesmo feito para o colear de uma tal serpente. E então  me veio um instintivo desejo categórico de voltar. Todavia a lembrança  de‚ Minéia me impeliu num desespero selvagem. Embarafustei pelo  dédalo adiante, arrastando Kaptah comigo e empunhando a faca na mão  gélida.

Para que aquela faca numa tal situação?! E como continuássemos, o fedor das passagens descia cada vez mais  medonho, parecendo o miasma exalado por uma sepultura imensa e que  nos sufocava. De certa maneira minha perplexidade sumiu como se eu  adivinhasse que estávamos atingindo o fim. Correndo, lobrigamos uma  luz fraca entremostrando-se ao fundo. Estávamos agora em plena  montanha mesmo, pois as paredes de tijolos haviam terminado e o vão era escavado na rocha dúctil. O chão ia em descida, e tropeçávamos em  ossos humanos e em montes de excremento, até que por fim uma grande  caverna se abriu diante de nós.

Detivemo-nos sobre uma borda granítica que ladeava uma área aquosa.  Invadiu-nos uma atmosfera envenenada e densa. A claridade vinda do mar engolfava-se, uma medonha claridade  esverdeada que nos deixava enxergar sem necessidade de tocha.

Ouvíamos perto ondas troando de encontro às penhas. Por sobre a  superfície da água, diante de nós, flutuava uma imensa massa revestida de  couro que nossos olhos acabaram verificando ser o corpo gigantesco de  um animal morto - o animal mais horrendo e aterrorizador que se possa  imaginar - e que emitia uma fedencina de podridão. Sua cabeça oscilava  entre as ondas e era a cabeça de um touro colossal. Mas o corpo se  assemelhava ao de uma serpente que, tornada mole pela corrupção,  ondulava em curvas horrendas por sobre as águas. Tive certeza de estar  contemplando o deus de Creta... Tive certeza também de que ele estava  morto havia meses. Onde estaria Minéia, então?

E ao pensar nela pensei também em todos que haviam precedido. Pensei  nos jovens cuja virilidade era proibida e nas donzelas obrigadas a  conservar a virgindade a fim de entrarem na posse da felicidade e da  glória do deus. Pensei em seus crânios e ossos atirados nos dédalos da  mansão escura.

Pensei no monstro perseguindo-os ao longo do labirinto e bloqueando a  passagem com sua monstruosa grossura de modo a não adiantar nada  saltos ou quaisquer outros estratagemas das vítimas.

Aquele leviatã vivera alimentado por carne humana - uma ração por mês - razão essa fornecida pelo governo de Creta sob a forma das mais lindas raparigas e dos mais perfeitos mancebos, porque tais governos cuidavam que agindo assim poderiam manter a soberania dos mares. Lá das tenebrosas profundezas dos oceano a fera, outrora, acossada por algum temporal, devia se ter engolfado na caverna. Decerto uma barreira fora jogada de encontro à gruta para impedir sua volta ao mar, devendo então ter sido construído o labirinto para seus paços exíguos. E tinha sido alimentado sempre com sacrifícios humanos até‚ vir a morrer, e impossível substituí-lo, porque não poderia existir outro monstro análogo no mundo inteiro.

Onde estava Minéia, então?

Louco de desespero, gritei o nome de Minéia, despertando ecos na  caverna, até que Kaptah apontou para a rocha sobre que nos quedáramos.  Estava manchada com sangue seco. Seguindo as manchas até à beira da  água meus olhos deram com o corpo de Minéia nu o que dele sobrava.  Movia-se vagarosamente lá no fundo, arrastado por caranguejos que o estraçalhavam furiosamente. Já não tinha mais rosto e a reconheci  somente pela rede de prata nos cabelos. Não precisei olhar à procura da cutilada do Minotauro em seu busto, pois logo depreendi que  ele a seguira até ali, dera o golpe, por detrás e a arremessara na água, já  que ninguém devia saber que o deus de Creta havia morrido. Isso ele devia ter feito a muitos mancebos e raparigas, antes de Minéia.

Ao ver e compreender isso tudo um grito lancinante irrompeu de minha  garganta. Caí desacordado e teria resvalado com certeza daquela latibanda  para o mar se Kaptah não me houvesse arrastado para ponto seguro,  conforme mais tarde me contou. Do que sucedeu depois nada sei a não  ser pelo relato de Kaptah, tão lancinantemente profundo foi o meu desmaio em conseqüência da ansiedade, do tormento e do desespero.

Kaptah contou-me que chorou e ergueu lamentações durante longo  tempo ao lado do meu corpo, pensando que eu morrera; e que chorou  também por causa de Minéia, até lhe voltar o bom-senso. Palpando-me,  verificou que eu estava vivo e refletiu que pelo menos me poderia salvar  já que impossível lhe era fazer qualquer coisa por Minéia. Pode ver os corpos dos outros mancebos e donzelas que o Minotauro matara; as carnes  tinham sido arrancadas dos ossos pelos caranguejos, jazendo assim os  esqueletos alvacentos e lisos no leito de areia do fundo do mar.

Em seguida Kaptah começou a ficar sufocado pelo cheiro. Verificando que não podia carregar ao mesmo tempo a botija de vinho e o meu corpo, bebeu resolutamente o resto do vinho e atirou dentro da água a botija vazia. Reanimado assim deveras  pelo efeito da bebida conseguiu me trazer de volta até às portas de cobre,  guiando-se pelo fio que desenrolara durante a ida. Trouxe-me ora me  carregando, ora me ,arrastando. Quanto ao fio da meada, após refletir um  pouco, achou melhor enrolá-lo de novo enquanto regressava, para desta  forma não ficar nenhum indício da nossa visita. Parece que,a luz da sua  tocha, descobriu marcas secretas pelas paredes feitas decerto pelo  Minotauro a fim de ajudá-lo a se locomover direito ali dentro. Disse-me  Kaptah também que resolvera atirar a botija de vinho dentro da água  para dar o que pensar a Minotauro quando este na próxima vez voltasse a  desempenhar seu trabalho sangrento.

O dia estava rompendo quando Kaptah me trouxe para o lado de fora.  Fechou a porta, tornou a colocar a chave no aposento do sacerdote que,  junto com os guardas, ainda estava dormindo profundamente sob o efeito  das drogas que eu pusera no vinho que antes lhes ofereci. A seguir Kaptah  me levou para um esconderijo na moita da margem de um arroio.

Aí lavou meu rosto e esfregou minhas mãos até eu voltar a mim. Aliás,  não me lembro nem mesmo disso.

Parece que eu estava tão atarantado que nem podia falar, razão pela qual ele me deu uma droga sedativa. Foi somente muito depois, quando já  nos achávamos perto da cidade. que recobrei a lucidez total. Kaptah  guiava-me e amparava-me.

Do mais que daí por diante se passou me  recordo perfeitamente.

Não procurei me angustiar com sofrimentos; mesmo pensar  muito em Minéia que era já então uma sombra remota na minha alma.  Dir-se-ia que eu a conhecera numa outra vida. Raciocinei, isso sim, que o  deus de Creta estava morto e que portanto, de acordo com a profecia, o  poder de Creta iria agora declinar. Não me assustei ante tal pensamento,  mesmo porque os cretenses me tinham dado impressão de bondade, com uma alegria que espadanava como o mar de encontro às praias da ilha. Quando penetrei outra vez na cidade foi com satisfação que  pensei que aqueles edifícios majestosos e cheios de harmonia deveriam  em breve ser tomados por labaredas. que as exclamações licenciosas das  mulheres deveriam se. transformar em gritos de morte, que a máscara de  ouro do Minotauro deveria ser achatada em lâmina a ser dividida em despojos, e que não subsistiria nada da esplendida majestade de Creta. A  própria ilha submergiria de novo no mar de onde e erguera outrora com  outras maravilhas vindas das profundezas.

Pensei também no Minotauro e sem rancor, porque a morte de Minéia fora fácil: ela não tivera que fugir do monstro, não fora obrigada a empregar, em vão, toda a série de estratagemas da sua arte; morrera antes de saber o que a aguardava. Refleti que Minotauro era o único a saber que o deus tinha morrido e que Creta  deveria tombar; e deduzi que um tal segredo deveria ser coisa lancinante a  suportar. Eu ignorava mesmo que a tarefa de Minotauro teria sido sempre fácil ao tempo em que o deus vivia, quando ele remetia ao monstro a flor  da mocidade da sua terra, conduzindo-a mês após mês à mansão escura e sabendo o que lá dentro sucedia.

Não; não senti rancor. Pelo contrário, enquanto Kaptah me conduzia eu  cantava e ria como um possesso. Sem dificuldade Kaptah convenceu a  alguns amigos de Minéia - que encontramos acidentalmente - que eu  ainda continuava bêbado de tanto a haver esperado. Tais conhecidos  acharam isso natural, vendo que eu era um estrangeiro bastante  diferente e que ignorava que ali na ilha o fato de uma pessoa se apresentar bêbada em plena rua em hora meridiana era considerado  gesto de bárbaro. Por fim Kaptah conseguiu alugar uma liteira,  levando-me assim para a estalagem onde, tendo bebido grande quantidade  de vinho, caí num sono profundo e demorado.

Quando acordei, minha cabeça se achava lúcida e serena, e os fatos constituíam um passado remoto. Tornei a pensar em Minotauro. Deveria ir procurá-lo? Matá-lo? Que adiantaria tal  determinação? Tornando público o fato, eu poderia salvar as vidas  daqueles que ainda deveriam ser aparcados em lotes ou que já tinham sido  e que decerto consideravam um privilégio entrar na mansão da divindade.  Mas eu sabia que a verdade é uma faca fora da bainha nas mãos de uma  criança sempre pronta a ser voltada contra quem a carrega.

Assim pois, como estrangeiro, cheguei à conclusão de que o deus de  Creta não era da minha conta... e que Minéia sumira do mundo.  Caranguejos e lagostas despojavam seu esqueleto delicado que terminaria  para sempre no fundo arenoso do mar. Considerei que tudo havia sido  escrito nas estrelas muito antes do dia do meu nascimento; e assim, me resignei. Comuniquei tal idéia a Kaptah que se restringiu a dizer que eu estava doente e precisava descansar; e não deixou que  ninguém me incomodasse.

Por mais que me irritasse com Kaptah nessa ocasião ele teimou em me  obrigar a comer, não obstante eu não sentir fome alguma e querer apenas  vinho. Sofria de uma sede contínua e insaciável; além disso, somente  depois de beber muito até ficar vendo tudo confuso, é que me vinha certa  calma. Em tais ocasiões é que eu percebia que as coisas nem sempre são o que aparentam; transformam-se deveras, principalmente  para o bêbado que passa a ver diferentemente e a considerar como verdadeira essa visão mesmo que no íntimo saiba que ela é falsa. Afinal,  que é isso senão a verdadeira essência da verdade? Como procurasse  como paciência e descortino expor tal doutrina a Kaptah ele não deu  atenção exigiu que eu me deitasse, fechasse os olhos e ficasse bem quieto.

Posso agora avaliar a gravidade do meu estado de angústia, não obstante  haver esquecido meus pensamentos de então já que o vinho só serviu para  confundir e obscurecer minha compreensão. Ainda assim julgo que foi o  generoso vinho que salvou minha razão e me ajudou a transpor as piores  circunstâncias tão logo perdi Minéia para sempre e, com ela, a minha fé‚  nos deuses e na humanidade.

Parte da minha própria essência se evaporou nos fumos do vinho. Coisa  idêntica eu já sentira antes, na infância, quando vi o sacerdote de Ammon  cuspir na cara do deus, acolá no santuário e esfregá-la com a manga suja.

O rio da. vida encontrara um estorvo; suas águas se espalharam... sim, se  espalharam num lago amplo, de superfície bonita refletindo o céu exato e imóvel. Alguém arremessara um pau dentro do lago: a água se toldara, então, pois emergira do seu fundo o que no seu fundo existia: lodo e corrupção.

Certa manhã acordei no meu aposento da estalagem, e que vi?

Kaptah sentado a um canto a chorar silenciosamente meneando a  cabeça entre as mãos. Depois de haver virado na boca o gargalo de uma  botija e bebido um pouco de vinho, disse com fúria:

- Por que choras, cão?

Foi essa a primeira vez, depois de muitos dias, que me dei ao trabalho de  lhe falar, tão farto estava eu da sua solicitude amalucada. Ergueu a cabeça  e respondeu:

- Acha-se fundeado no porto um navio porto a velejar para a Síria; o  último, dizem, antes que venham os furacões do inverno. Eis por que  motivo estou chorando.

Disse-lhe eu, então:

- Pois corre para bordo dessa nave, antes que eu te esbordoe mais uma  vez! Assim pelo menos deixarei de aturar essa tua cara medonha e de  ouvir tuas queixas e lamentações eternas.

Mas ao me calar me tomei de vergonha e empurrei para longe a botija de  vinho. Jazia em meus pensamentos o consolo amargo de ainda existir uma  criatura dependendo de mim, muito embora se tratasse de um escravo  fugitivo. E Kaptah disse:

- Sejamos francos, patrão. Eu também estou cansado das tuas  bebedeiras. Os mortos estão mortos e não voltarão nunca mais. Vamos  embora daqui enquanto ainda podemos. O ouro, a prata... tudo quanto o  meu senhor acumulou no decorrer das suas jornadas... tudo isso foi  atirado à sarjeta. Assim com essas mãos tremulas não acredito que o meu senhor consiga efetuar uma simples cura. O mais que o meu senhor pode fazer é  levantar até aos beiços, se tanto, uma botija de vinho. No princípio cuidei  que lhe fizesse bem beber por causa da sua paz de espírito; insisti com o  meu senhor que bebesse e continuamente quebrei o lacre de muitas botijas...e bebi também... Se bebi!... Além disso me jactei perante os outros: "Vede que amo tenho eu! Bebe como um hipopótamo...  dissolve ouro e prata no vinho, indiferentemente, e comete badernas."  Mas agora não me felicito mais por isso; ao contrário, me envergonho do  procedimento do meu senhor, pois para todas as coisas há um limite e, a  meu ver, o patrão o está excedendo. Jamais condenarei um homem que bebe por desgosto, que brada pelas  ruas e que acaba quebrando a cabeça nas lajes. Trata-se de um costume  viável, que alivia a mente de muitas qualidades de desgostos. Eu próprio tenho feito isso uma porção de vezes. O mal-estar proveniente de tal  proceder deve ser tratado com prudência: a pessoa deve se restringir a beber cerveja e com‚ peixe salgado, e depois reassumir seus trabalhos,  conforme ordenam os deuses e exige a decência. Mas o meu senhor bebe  como se cada dia fosse o último, a ponto de eu temer que o meu senhor  pense se jogar dentro da sepultura. Caso este seja mesmo o seu intento  então o aconselho a se afogar num banho de vinho, que é um método mais rápido, mais agradável também, e que não desonra.

Refleti bastante em tais palavras. Examinei minhas mãos que tinham  sido as de um médico mas que presentemente tremiam por vontade  própria como se eu já não devesse mais dominá-las. Pensei nos  conhecimentos que acumulara numa porção de terras, e averigüei que os  excessos não passavam de loucura. Tanto era loucura beber e comer sem  moderação como externar demonstrações excessivas de prazer ou de desgosto.

Portanto, disse a Kaptah:

- Pois seja conforme dizes, mas a minha resolução advém dos fatos  estarem evidentes e não porque tuas palavras me hajam persuadido.  Considero-as tão monótonas como o zumbir de moscas em torno de  minha cabeça. Vou deixar de beber por uma temporada; não tenciono  mesmo abrir outra botija. Pus em ordem meus pensamentos e estou  decidido a voltar a Esmirna.

Kaptah deu saltos de alegria pelo aposento e foi fazer os preparativos para a nossa partida; e naquele mesmo dia tomamos a nave. A equipagem mergulhou os remos, safamo-nos do  porto, passamos rente a grupos de centenas de naves comerciais ancoradas  e galeras de guerra com seus veículos de cobre. Uma vez fora da barra os  remadores armaram seus instrumentos; o comandante ofereceu em seu  beliche sacrifícios ao deus do mar e aos outros, dando ordem, finalmente, para que a equipagem içasse o velame. A nave irrompeu para o mar alto em marcha veloz. Do lado da ré a ilha de Creta  se foi desfazendo numa nuvem azul... numa névoa... numa sombra... num  sonho, e nos vimos a sós em meio à extensão ondulante do oceano.

 

                                                                                            CONTINUA

 

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades