Criar uma Loja Virtual Grátis
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O ENCANTO DAQUELES OLHOS VERDES / Romano Torres
O ENCANTO DAQUELES OLHOS VERDES / Romano Torres

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

A chuva nunca mais cessava.

Teimosa, escorria pelo guarda-brisa, dificultando a visibilidade, apesar da actividade dos limpa-vidros, cujo raspar monótono acompanhava o ruído regular do motor.

Em volta, a paisagem tomava o aspecto desolado de um mundo morto. Os campos empapados de água estendiam-se sob o céu plúmbeo, um céu à Vlaminck, carregado de nuvens espessas, cor de aço, sulcado por traços fulgurantes, sobre o qual se recortavam árvores fantásticas, despidas de folhas, com os troncos retorcidos.

Revestidas com as luvas de cabedal forradas, as mãos de Elsa crispavam-se no volante e a dor aguda de um princípio de enxaqueca verrumava-lhe as fontes. Tinha a impressão de que o aspecto desolador da estrada, deserta e sinuosa, varrida pela chuva incessante, mais pesada lhe tornava a fadiga.
Quando a sombra fantasmagórica surgiu do casebre em ruínas que a abrigava, Elsa mal teve tempo para dar uma volta ao volante a fim de evitar o obstáculo imprevisto, depois, alguns metros adiante, travou e parou. Como poderia deixar de acudir ao ser humano ou fantasma, debaixo daquela chuva torrencial e não atender ao gesto de apelo que acabava de lhe ser dirigido?

Baixou o vidro e debruçou-se para fora, o que teve como resultado ser açoitada pela chuva, que atingiu o lugar onde estava instalada.

Pode levar-me no seu carro? pediu uma voz muito perto do esguio Jaguar.

Suba acedeu Elsa, fechando rapidamente o vidro.

E, voltando-se, abriu a porta para o desconhecido poder entrar e instalar-se a seu lado.

De relance, pôde ver os cabelos escuros escorrendo água sobre o rosto do invisível candidato ao ”auto-stop” e concluiu que não era candidato, mas sim candidata. De resto, a voz, a despeito da ressonância metálica, era bem uma voz feminina.

A passageira libertou-se rapidamente do impermeável, que escorria, e enrolou-o, atirando-o para o chão, a seus pés. Depois, voltou-se e atirou também para o banco do fundo com o saco que a incomodava.

Obrigada agradeceu depois com modos desenvoltos Salvou-me a vida.
Está a exagerar replicou Elsa, sem sorrir. Em seguida, carregou no acelerador. Entre as duas mulheres caiu o silêncio. Nem uma nem outra demonstravam desejos de o quebrar.

 

 

 

 

Vai para muito longe? inquiriu, por fim, Elsa.

 

Por segundos, desviou a vista da triste paisagem para examinar o vulto silencioso, aninhado a seu lado.

 

O olhar que encontrou e a expressão de surpresa que reflectiram as pupilas claras provocaram-lhe leve sensação de mal-estar. No entanto, não conseguiu ver o semblante emoldurado nas madeixas molhadas, coladas à testa e ao longo das faces. Os lábios estavam descorados e a mulher tremia de frio.

 

Vou acender o aquecimento decidiu Elsa É curioso, mas nesta época do ano nunca assisti a semelhante dilúvio.

 

Obrigada agradeceu a outra com inflexão indiferente.

 

Não respondera à primeira pergunta. O mal-estar de Elsa acentuou-se. Não teria sido imprudente acolher aquele farrapo humano numa estrada desconhecida, naquela região deserta e hostil? Com satisfação, lembrou-se do pequeno revólver, quase um brinquedo, que guardava na caixa das luvas. Isto trouxe-lhe à memória os seus aborrecimentos pessoais e, por momentos, desinteressou-se da passageira.
Se, pelo menos, tivesse a certeza de encontrar um abrigo reconfortante no fim daquela viagem desumana?... Mas a noite caía e nem um povoado se desenhava no horizonte. Todavia, fora informada de que em França os povoados e vilas se pegavam uns aos outros, acolhedores e seguros. Ora, naquela paisagem desolada não aparecia sequer um casal. Excepto alguns casebres, vistos de relance aqui e ali, a região apresentava um aspecto hostil e parecia desabitada.

 

Sentiu o desejo imperioso de pôr termo à tensão que reinava dentro do seu domínio rolante.

 

Estendeu a mão para o quadrante de bordo e tirou o acendedor eléctrico.

 

No mesmo instante, num gesto perfeitamente sincronizado, o que dava a entender que não tinha deixado de a observar sem o deixar perceber, a passageira tirou da algibeira uma cigarreira e ofereceu:

 

Cigarros?

 

Obrigado. Não fumo.

 

Excelente hábito!

 

O tom sarcástico e o riso um pouco estridente que acompanhou a afirmação irritaram Elsa. A mulher tornou-se-lhe subitamente antipática e, no íntimo, lamentou tê-la acolhido no carro.

 

Refugiou-se em completo mutismo, por forma alguma interessada em entabular conversa com aquela desconhecida de quem ansiava libertar-se o mais breve possível. Surgiu uma placa indicadora, mas tão velada pela chuva que a condutora do automóvel desistiu de a ler.

 

Aules-les-Perches anunciou a voz indiferente da passageira, como se tivesse adivinhado a hesitação de Elsa. Estamos a vinte e sete quilómetros de Chartres.

 

Conhece esta região?

 

Um pouco. E a senhora?

 

Absolutamente nada. É a primeira vez que venho à Beauce.

 

Triste, tudo isto. Plano e monótono, como pode ver, e um clima!... Quanto a este mês de Agosto, o menos que podemos dizer dele é que está uma peste.

 

Era a primeira vez que proferia tão prolongado discurso desde que entrara no carro. A voz arrastava no final das palavras, o que lhe dava uma inflexão vulgar.

 

Elsa, porém, ouviu apenas uma coisa: que a cidade mais próxima ficava a vinte sete quilómetros. Bruscamente, sentiu-se esmagada pela fadiga acumulada nos precedentes dias de viagens. Lamentou o impulso que a levara, estupidamente, a meter por aquele caminho vicinal, afastado da estrada principal, tão tortuoso como um troço da Panatnericana.

 

De facto, cedera ao pânico que a dominava, a esse medo atroz e cobarde que, havia alguns meses, lhe roubava, por vezes, o domínio próprio, todo o equilíbrio moral.

 

Que é isso! Não adormeça! protestou com vivacidade a passageira, que a observava Mais um pouco e íamos parar ao valado.

 

Ao mesmo tempo, agarrava bruscamente no volante, para evitar a queda.

 

Desculpe... sinto-me tão cansada!

 

A voz mal se ouvia. Em vão, Elsa lutava contra o desejo imperioso de cerrar os olhos, de ceder à fraqueza que se insinuava em todo o seu corpo, em todos os poros da sua pele.

 

No mais íntimo do seu ser, soavam como que campainhas de alarme, mas Elsa não se encontrava em estado de as ouvir: era como um som abafado que mal atingia a sua consciência entorpecida.

 

Há trinta horas que não durmo murmurou em voz pastosa.

 

Então passe-me o volante...

 

Num derradeiro sobressalto de lucidez, Elsa parou. Com a cabeça pendida para o volante, pediu:

 

Deixe-me descansar um instante. Depois ficarei boa.

 

Eu sei conduzir afirmou a voz metálica da desconhecida Não podemos passar aqui a noite com um tempo destes. Eu levo-a.

 

A voz mal conseguia atravessar a espécie de massa de algodão que envolvia o cérebro de Elsa... Vagamente, como se fosse muito longe, ouviu bater a porta do carro... sentiu-se empurrada com força... depois, o roncar suave do motor embalou-a e perdeu a consciência de tudo.

 

A primeira impressão exprimentada por Elsa quando despertou foi uma sensação de dor por todo o corpo. Tentou distender os membros doridos, mas não conseguiu. Parecia-lhe estar encerrada como que numa caixa. Estendeu as mãos e encontrou paredes lisas e macias; os pés enterravam-se em qualquer coisa de inconsistente...

 

Descerrou as pálpebras e o olhar vago não conseguiu distinguir coisa alguma. Endireitou-se e bateu com a cabeça num obstáculo desconhecido. O choque foi rude, a impressão muito desagradável.

 

Um pensamento horrível atravessou-lhe o cérebro ainda nublado. O perigo de que fugia não fora evitado: estava prisioneira. A tentativa desesperada para fugir à sorte medonha que ameaçava resultara em terrível fracasso.

 

Soltou um gemido. Aterrada, fez um movimento e de novo bateu com força no obstáculo desconhecido. Desta vez, a dor foi tão forte que não conseguiu reprimir um grito. Logo a seguir mordeu os lábios com força: o que iria acontecer agora?

 

O coração palpitava-lhe com força e não se atrevia a mover-se, com receio do acontecimento inevitável que não podia deixar de produzir-se. Mas, vendo que tudo ficava na mesma, recuperou a calma pouco a pouco. Lentamente, a lucidez voltou e iluminou o caos em que estivera mergulhada desde o despertar.

 

Para a direita viu brilhar qualquer coisa e ficou como que hipnotizada por esse ponto luminoso que parecia animado de vida fictícia. Endireitou-se e aproximou-se, lentamente, sem deixar de fixar essa luz surgida na escuridão.

 

E, de súbito, soltou uma gargalhada. O objecto que lhe despertara a atenção ansiosa não era mais do que o relógio fosforescente do automóvel. Estava dentro do seu carro e ninguém a havia raptado.

 

Estendeu a mão para o volante, que apertou num gesto exaltado de libertação.

 

Quando recuperou o estado normal, pensou em acender a lâmpada do tecto. Os ponteiros marcavam nove horas da noite.

 

Olhou para o impermeável, que se encontrava num molho, a seus pés, e, de súbito, recordou tudo quanto se passara antes de ser vencida pelo sono.

 

A passageira... para onde teria ido?... Na emoção do despertar, esquecera-a por completo.

 

Repentina suspeita a tomou. Inspeccionou o carro. A maleta estava no seu lugar, no banco do fundo. Puxou-a para si e abriu-a. Febrilmente, revistou-a.

 

Não faltava coisa alguma: papéis, dinheiro, livro de cheques, tudo se encontrava na bolsa de plástico. O cofrezinho das jóias encerrava todo o seu precioso conteúdo.

 

Já tranquila, completamente senhora de si, tentou descobrir onde estava. Anoitecera por completo, mas distinguiam-se bem os contornos dos objectos. O carro encontrava-se num cerrado, limitado por uma sebe. Dos canteiros emergiam maciços de flores e arbustos. A poucos metros, avistava-se a massa escura de uma casa baixa.

 

Elsa decidiu-se a abandonar o refúgio do carro e saltou para o chão. Teve um gesto aborrecido quando ouviu o bater da porta, que não conseguira evitar, e avançou em passos cautelosos.

 

A humidade fê-la estremecer. Na fachada da casa não brilhava a mais pequena luz. Deu alguns passos para a misteriosa habitação e, de súbito, ficou como cega por uma luz forte. A porta acabava de se abrir e um vulto apareceu no limiar.

 

Finalmente, acordou! Tem um sono profundo! Por mais um pouco completava as vinte e quatro horas, palavra de honra!

 

Estava com o sono tão atrasado! suspirou Elsa, deixando-se conduzir pela desconhecida, cuja presença não lhe causava espanto.

 

Era o seguimento lógico da aventura. De resto, Elsa estava decidida. Não se admiraria fosse com o que fosse.

 

Entre ofereceu a outra Cabe-me agora a vez de lhe dar hospitalidade.

 

Elsa olhou em volta com curiosidade. A vasta sala para onde acabava de entrar, tinha, na sua simplicidade rústica, um aspecto muito acolhedor. Móveis antigos harmonizavam na perfeição com os cobres brilhantes e faianças de tons quentes.

 

O perfume da velha França... não pôde deixar de murmurar.

 

E, como fascinada, aproximou-se da chaminé de tijolo vermelho onde ardia esplêndido lume.

 

Fui forçada a acendê-lo explicou a dona da casa Com este maldito tempo, esta casa ressuma humidade por todos os lados.

 

Elsa fixou-a.

 

Onde estamos? Em sua casa?

 

A outra teve um riso breve e respondeu com uma espécie de acrimonia:

 

Exactamente. Em minha casa... por enquanto.

 

Elsa cruzou os braços sobre o peito. A tepidez do ambiente penetrava-a com súbita doçura.

 

Deve saber bem viver aqui murmurou como se falasse consigo mesma.

 

Detesto tudo isto replicou a outra, que a tinha ouvido, com impaciência Se fosse obrigada a permanecer nesta casa mais de uma semana, partilharia a minha aversão.

 

Não me parece. Adoro as casas antigas.

 

Bom proveito lhe faça! Sente-se, por favor. Infelizmente, é a única coisa que posso oferecer-lhe esta noite. A criada foi-se embora e eu detesto cozinhar.

 

Não me apetece comer. Contentar-me-ia com uma chávena de chá.

 

E instalou-se numa cadeira de braços, de palha, que se encontrava junto da chaminé. Ao lado via-se pequena mesa. A dona da casa dispôs ali duas chávenas e um bule florido. Depois foi buscar a caixa do chá ao armário que ocupava a parede do fundo da sala e voltou para junto de Elsa.

 

Ajoelhou diante do fogo para pegar na chaleira, que fervia.

 

A poesia das coisas velhas comentou com ar desprezativo Muito poética nos romances, mas detestável na vida normal. Quanto a mim, sou, resolutamente, anti-romanesca: não há como o conforto moderno... tenho horror a todos estes métodos arcaicos...

 

Deitou no bule a água a ferver. O aroma do chá afagou as narinas de Elsa.

 

Confesso que vou beber esse chá com muito prazer.

 

Tem um ar abatido...

 

Aguardou uma confidência que não veio e depois, encolhendo os ombros, acrescentou:

 

Nem mesmo nos apresentámos uma a outra. Mas talvez isso não tenha importância...

 

Chamo-me Elsa elucidou, simplesmente, a convidada.

 

E eu Lisbeth declarou a outra, imobilizando-se com o bule na mão e examinando o vulto enrodilhado na cadeira de palha É estranho como os nossos nomes se parecem!... Elsa... Não é um nome francês?

 

Não sou francesa.

 

E curvou-se um pouco para o lume. Lisbeth começou a deitar o chá nas chávenas, observando, ao mesmo tempo, de soslaio, a sua misteriosa e pensativa hóspeda.

 

Por assim dizer, raptei-a declarou, mudando de tom Partiu para o país dos sonhos e eu tomei a única resolução que se impunha. Nesta espécie de deserto, não existe hotel ou hospedaria, não a vi em termos de acordar e não podia deixá-la abandonada na estrada, tanto mais que parecia não conhecer a região, pois me havia dito encontrar-se aqui pela primeira vez. Portanto, trouxe-a para minha casa.

 

Agradeço-lhe a sua solicitude.

 

Solicitude não é bem o termo. Digamos que fiquei satisfeita por ter companhia... mesmo ocasional.

 

Elsa ergueu os olhos para a dona da casa. Eram verdes, com estranhos cambiantes. O olhar que cruzou com o seu tinha o mesmo tom, mas era mais duro, quase inquietante, a despeito do sorriso que entreabria os lábios vermelhos sobre os dentes miúdos e muito brancos. Elsa não gostava daquele olhar, mas, ao mesmo tempo, qualquer coisa de familiar encontrava no rosto de Lisbeth. Onde a teria visto já?

 

Vive aqui sozinha?

 

Vivo. Herdei esta casa há dois meses. E, com um riso sarcástico, acrescentou:

 

Teria preferido herdar alguns títulos de renda...

 

Levou a chávena à boca e absorveu o conteúdo com gulosa voracidade. Depois, sentou-se na cadeira mais próxima e puxou para si um cofrezinho de tartaruga.

 

Não fuma, creio eu?

 

Como Elsa fizesse um gesto negativo com a cabeça, tirou um cigarro, meteu-o em comprida boquilha doirada e acendeu-o. Cruzou as pernas e começou a fumar, contemplando as chamas do fogão.

 

De tempos a tempos, furtivamente, olhava para a companheira silenciosa, absorta em profundas reflexões.

 

Quando o silêncio se tornou intolerável, ergueu-se bruscamente:

 

Creio que lhe saberia bem poder fazer uma toillete sumária?

 

Por certo confirmou Elsa E agradeço-lhe o incómodo que lhe dou.

 

Já lhe afirmei que não me incomoda. Nesta cabana há espaço que sobre para duas. Venha por aqui. Preparei-lhe o quarto a que chamo das traves. Não é um palácio, mas a cama é muito confortável.

 

Acendeu uma vela que se encontrava em cima do fogão rústico, onde se alinhava uma série de candeias de latão, e precedeu Elsa, comentando ao mesmo tempo com sarcástica ironia:

 

Maravilhosa, esta iluminação, não acha? Poderíamos supor ter regressado ao tempo do rei Dagoberto! Os encantos da província!

 

Não me desagrada replicou Elsa.

 

Por acaso... por uma noite, está bem. Gostaria de conhecer a sua opinião depois de a ter experimentado durante um ano! Brr!...

 

Abriu uma porta e ergueu o castiçal a fim de iluminar os passos da sua hóspeda.

 

Cuidado com esses degraus. Muito cómodo, não acha?

 

Sempre aquele sarcasmo e a hostilidade resmungona!

 

Lisbeth entrou no quarto atrás de Elsa. O clarão da vela punha sombras movediças no tecto de traves, à antiga. Em cima da mesa encontravam-se dois candeeiros estilo Império. Lisbeth tirou os vidros, levantou as torcidas, acendeu os dois bicos e dirigiu-se aos cantos do quarto para acender as três velas dos tocheiros.

 

Depois de tudo aceso, o cenário criou vida e Elsa, encantada, viu duas estreitas janelas, guarnecidas com cretone florido, vasto armário normando cuja madeira brilhava, docemente, na penumbra, quase tanto como as velhas ferragens.

 

Oculto com um biombo descobriu verdadeiro anacronismo naquela rusticidade: um lavatório moderno e um espelho emoldurado.

 

Lisbeth seguiu a direcção do seu olhar.

 

A velha tia que me deixou a casa explicou alugava este quarto durante o Verão e para isso sujeitou-se a certos sacrifícios, um dos quais o lavatório. Mas não tente servir-se das torneiras. Aqui ainda estamos no regime do poço e dos jarros.

 

Elsa tirou o casaco e abandonou o saco em cima de um divã estofado de seda desbotada.

 

Venha cáchamou a voz de Lisbeth, revelando certo nervosismo.

 

Intrigada, Elsa foi ter com ela.

 

Que aconteceu?

 

A voz baixa e um tanto velada contrastava com o timbre estridente da outra.

 

Lisbeth ergueu o castiçal à altura do espelho.

 

Olhe para ali. Não nota qualquer coisa? No espelho de moldura dourada os olhos verdes encontraram outros do mesmo tom.

 

Elsa fez um gesto de surpresa e entreabriu a boca.

 

Dir-se-ia... exclamou, hesitante, enquanto fixava a dupla imagem reflectida no espelho.

 

Podíamos ser gémeas, não acha? comentou Lisbeth com uma risada.

 

Elsa franziu a testa. Estupefacta, contemplava o rosto oval, as feições muito semelhantes às suas, o lábio inferior carnudo e o nariz ligeiramente arrebitado... Sim, a semelhança era flagrante.

 

Se os seus cabelos fossem pretos como os meus, a ilusão seria completa.

 

E acrescentou:

 

Quando a vi no carro, notei logo que nos parecíamos... É curioso, sabe?

 

Curioso, principalmente, que nos tivéssemos encontrado por acaso replicou Elsa.

 

Estava explicada agora a razão da impressão do ”já visto” ressentida em presença da desconhecida. Agora sabia onde a tinha encontrado: algumas vezes, quando se mirava ao espelho.

 

No entanto, essa impressão só podia ser momentânea e fugitiva, porque as duas expressões diferiam totalmente.

 

Depois de se ter preparado, venha ter comigo à sala decidiu a dona da casa sem voltar a insistir no assunto Entretanto, vou meter o seu carro na garagem e ao mesmo tempo buscar a sua mala.

 

Mas... eu posso...

 

Não se preocupe com isso. Não tenho que fazer e conheço isto melhor do que você. Até já.

 

E saiu, erguendo o castiçal, como a estátua da Liberdade em tamanho reduzido. Pensativa, Elsa acompanhou-a com a vista até que a penumbra absorveu o vulto fugitivo.

 

Pouco depois ia ter com Lisbeth à sala e instalava-se diante do fogão. Em cima de uma mesa baixa, numa taça de porcelana, viam-se rainhas-cláudias. Em volta, nozes e mel.

 

Eis todas as minhas provisões declarou a dona da casa As ameixas são do jardim e o mel foi-me fornecido pela velhota que, uma vez por dia, vem tratar da casa, como agradecimento por lhe ter cedido algumas jeiras de terra onde cultiva os seus legumes. As nozes trouxe-as da cidade.

 

Como organizou a sua vida aqui? inquiriu Elsa, para dizer alguma coisa.

 

Decidira passar algum tempo junto da sua hospedeira, a quem devia essa atenção pela hospitalidade concedida. Mas estava ansiosa por se encontrar sozinha no seu quarto rústico e poder mergulhar num sono benéfico, aninhada num leito macio.

 

Como uma selvagem. Não tenho vizinhos, excepto a velha Rosa, que habita um casebre a cem metros daqui, na extremidade do prado. Para encontrar um casal composto por três herdades, tenho de percorrer três quilómetros. O autocarro passa na estrada principal, a uma boa meia hora de caminho. Quando me encontrou na estrada, aguardava que ele passasse. Mas raramente faço uso dele. Prefiro recorrer à amabilidade dos automobilistas que passam... quando encontro um... ou uma acrescentou com cínico sorriso.

 

Prestou-me um favor replicou Elsa. Eu já não podia mais. Perdi-me na estrada e estava tão cansada que, se continuasse, acabaria por cair no valado.

 

Em resumo, auxiliámo-nos mutuamente. Lisbeth estalou uma nós entre os dentes,

 

como um animalzinho selvagem:

 

Esta paragem forçada não irá prejudicar a sua viagem? inquiriu com simulada ingenuidade.

 

Não tenho pressa. Não tenho destino determinado confessou Elsa involuntariamente.

 

A voz reflectia imensa amargura. Lisbeth relanceou-lhe rápida olhadela.

 

Tem aborrecimentos?

 

Elsa mordeu os lábios e depois encolheu os ombros,

 

Todos têm aborrecimentos na vida.

 

A quem o diz!

 

A boca vincou-se-lhe num trejeito que lhe acentuava a expressão vulgar.

 

Maldita vida!... Acredita que estaria disposta a apodrecer neste buraco se tivesse meio de sair daqui? Há dois meses que pus a casa à venda. Uma vez por semana, pelo menos, vou à cidade voltava de lá quando me encontrou para falar com o notário. Nada, sempre nada! É desesperante! Não aparece nem um só comprador. No entanto, não peço caro. Mas Ragot, o notário, pretende que a época é má. Agora, quase todos alugam casas só para passar o Verão. Tenho de esperar pelo Outono... pela época da caça. Porém, eu não posso esperar. Sairei daqui antes de ter realizado os diminutos fundos que alcançaria com a operação... e dos quais tenho tanta necessidade concluiu com impaciência.

 

Com a cabeça, designou um canto da sala onde se encontravam grande maleta e uma mala.

 

Já preparei as minhas bagagens... para entreter o tempo.

 

Os dedos morenos de Elsa brincavam com o colar de pérolas que trazia ao pescoço. O olhar ávido de Lisbeth seguia-lhe todos os movimentos.

 

Como breve silêncio se seguisse às suas palavras, designou o colar:

 

São verdadeiras?

 

As pérolas do meu colar?

 

Sim... Posso tocar-lhes?

 

Um pouco surpreendida pelo estranho pedido, Elsa soltou o fecho e fez correr entre os dedos as pérolas translúcidas, antes de o passar às mãos ávidas que se estendiam para ela.

 

Com certeza. Foi um presente... de meu pai concluiu, para desvanecer qualquer equívoco.

 

Os dedos de Lisbeth contraíram-se sobre a preciosa jóia. As chamas do fogão iluminavam fugitivamente o perfil inclinado, acentuando a expressão cobiçosa e ávida do semblante de feições correctas.

 

Tem muita sorte em possuir uma jóia destas comentou em voz surda, na qual vibrava um mundo de inveja e tristeza. Sempre tive uma paixão pelas pérolas. E dizer que nunca pude satisfazer o meu desejo!

 

As pupilas verdes de Elsa examinaram-na com espanto. O azedume da voz desgostou-a e a desconfiança que, de princípio, experimentara perante essa mulher que se parecia tanto com ela, desconfiança que se dissipara pouco a pouco desde que entrara naquela casa, reapareceu mais viva.

 

Com certeza, possui outras jóias replicou Esta casa vale bem um colar de pérolas.

 

Santo Deus! Se quer fazer a troca, minha amiga, está à sua disposição.

 

Elsa esboçou um sorriso.

 

Não desejo comprar uma casa, mesmo tão simpática e acolhedora como esta.

 

A outra triunfava.

 

Já calculava. Simpática e acolhedora por uma hora. Mas, quanto a viver sempre aqui...

 

Não se trata disso replicou Elsa Sentir-me-ia aqui muito bem, pelo contrário, e ao abrigo...

 

Ao abrigo de quê?

 

Das pessoas... da maldade do mundo.

 

Não gosta do mundo, de conviver? Eu, pelo contrário, adoro tudo isso.

 

Distendeu os braços e torceu-os numa invocação.

 

Ver pessoas, visitar lojas, montras! Fazer compras, adquirir as coisas que ambicionamos depois de as ter apalpado, examinado... Gastar largamente, sem conta... ter um livro de cheques, uma carteira bem recheada de notas... carro... foi sempre esse o meu sonho.

 

Nunca encontrou um magnate que pudesse oferecer-lhe tudo isso?

 

Um magnate! repetia Lisbeth, soltando irónica gargalhada não, não tive essa sorte. E você, é casada? inquiriu, curiosa.

 

Elsa estremeceu e hesitou.

 

Não.

 

Então, não é a seu marido a quem deve o ser rica? insistiu a outra com ar incrédulo.

 

Como sabe que sou rica? interrogou Elsa com súbita desconfiança.

 

Lisbeth soltou uma gargalhada.

 

Por causa... das aparências exteriores de riqueza. Salta aos olhos. Toma-me por tola ou supõe que sou cega? Conduz um carro estupendo... tem bagagem de princesa e jóias de estrela de cinema, jóias que valem uma fortuna. Não é preciso ser doutora para concluir que é rica.

 

E, com convicção, comentou:

 

Sempre tem uma sorte!

 

Amargo sorriso aflorou aos lábios de Elsa, que, para mudar de conversa, perguntou:

 

Não é casada?

 

Sou viúva.

 

Perdão. Lamento.

 

Não vale a pena. Não sou uma viuva inconsolável, descanse.

 

E, perante o gesto da sua interlocutora, acrescentou com ironia:

 

Ficou admirada com a minha atitude? Incomodada, Elsa desviou a vista.

 

Compreendo. É daquelas que gostam de manter as aparências... as sacrossantas aparências. Pois eu não quero nem sinto a necessidade de dissimular os meus sentimentos. Entre mim e o Gerardo tudo foi baseado na mentira. Cada um de nós foi desiludido em todas as suas esperanças. Ele morreu, paz à sua alma! Mas afirmar que o lamento, isso não.

 

E, com um gesto brutal, pareceu afastar alguém para muito longe.

 

Elsa esboçou também um gesto para pôr ponto nestas confidências pouco agradáveis e às quais não concedia grande interesse, mas a dona da casa falava como se o fizesse consigo mesma, mais pelo prazer de falar do que para aquela que a escutava com um trejeito desprezativo nos lábios.

 

Prolixa, com inesgotável verbosidade, expunha à desconhecida, hóspede de uma noite, o rosário das suas infelicidades conjugais. Sem conseguir interrompê-la, porque Lisbeth quase nem a via e falava com a cabeça recostada nas costas da cadeira, fixando, vagamente, a espiral de fumo azulado que subia do cigarro, teve de ouvir o romance completo da cantora de cabaré por quem um provinciano novo e rico se apaixonara, e desposara a despeito da oposição da família.

 

Tudo se desenrolou conforme as normas habituais: o filho revoltado contra os pais, a zanga e a perda de todas as esperanças interesseiras.

 

Sempre supus que o pai Forestier acabaria por se convencer e que, posto diante dos factos consumados, se conformaria e me aceitaria como nora. Puro engano! Quando soube do casamento, declarou ao Gerardo que a sua casa e a conta no Banco estavam definitivamente fechadas para ele. Está a ver? Os opulentos Forestier... armadores... Uns enfatuados que rolam sobre milhões e se envaidecem, se prendem a preconceitos antiquados... o nosso Meio... a nossa Família... a nossa Honra... a nossa Casta...

 

Soltou uma risada estridente onde vibravam talvez uns longes de amargura.

 

No entanto, juro-lhe, eu estava disposta a levar uma vida digna junto do meu marido, a portar-me honestamente e, de facto, fui bastante tola para o tentar. Mandaram-no para África... para uma plantação que pertencia a um tio do Gerardo. Aceitei, convencida de que poderíamos ganhar bastante dinheiro e que, de regresso a França, a família nos acolheria. A vida foi-nos adversa. Decorrido um mês de sertão, tanto eu como o Gerardo já não podíamos mais. Fora para viver entre pretos que eu havia sacrificado a minha carreira?... Apesar disto, vivemos cinco anos naquele inferno, isto é, os cinco mais belos anos da minha mocidade. Faz ideia do que fosse? Para mais, o Gerardo suportava mal o clima. Escrevi diversas vezes aos pais para lhes explicar que a saúde do filho ia declinando dia a dia. Foi o mesmo do que falar a uma estátua... Não tínhamos meios para pagar a viagem de regresso, nem casa em França, se voltássemos contra sua vontade... nem emprego. Uma bela cilada, não havia dúvida. Só se convenceram quando me vi obrigada a voltar para França com o Gerardo para o internar num sanatório. Então o pai quis ir buscá-lo, mas eu não consenti. Nunca mais o viram. Vinguei-me!

 

Para fazer todas estas confidências afivelara uma máscara de ódio que aterrou Elsa, a despeito da sua vontade.

 

Quando o Gerardo morreu, fiquei contente. Contente, sim, porque o velho sofria pelo coração e pelo orgulho. Nunca mais veria o filho e toda a sua vida sentiria o remorso de o ter repelido e enviado ao encontro da morte, tão seguramente como se o tivesse morto com as suas próprias mãos.

 

Apertou os lábios e lambeu-os como se saboreasse uma guloseima.

 

E, agora, querem acolher-me para se libertarem do remorso, com certeza... Se soubessem a que ponto os odeio!...

 

A voz tomou inflexões de perigosa doçura.

 

Havia, principalmente, um certo Bruno, irmão do Gerardo, que tudo tentou para me separar do meu marido. Foi o mais terrível adversário. A esse, jurei domá-lo e fazer-lhe pagar bem cara a oposição que fez ao meu casamento e à minha entrada na família. Além disso, reservo-lhes uma surpresa, que, se der resultado, como espero, me compensará, largamente, de tudo quanto me fizeram sofrer!

 

Na voz vibrava-lhe uma nota de triunfo e maldade.

 

”Que teria ela encontrado?” pensou Elsa, a quem estas confidências provocavam estranho mal-estar e cansavam.

 

Também ela vivia o seu próprio drama que a atirara para aquela estrada desconhecida, com o único fim de fugir a um destino pavoroso. Que lhe importavam as desventuras e tristezas daquela estranha, irmã dela pelo rosto, mas tão diferente na alma?

 

Como teria procedido Lisbeth se estivesse nas suas circunstâncias? Talvez tivesse adoptado atitude mais combativa e fizesse face aos acontecimentos, ficasse para se defender com perigo de própria vida.

 

Já é tarde. Creio que é tempo de recolhermos aos nossos quartos, não acha?

 

Compreendo. Aborreci-a com as minhas histórias. Aqui para nós, sou a mais tagarela das duas, não lhe parece?

 

Elsa não lhe respondeu. A dona da casa acompanhou-a até à porta do quarto e depois de uma troca de cumprimentos encontrou-se sozinha, aliviada, ansiosa por soçobrar no sono que, por um tempo, a libertaria de obsidiantes preocupações. Todavia, custou-lhe imenso a adormecer. A conversa de Lisbeth martelava-lhe o cérebro. Pensando bem, não podia deixar de a lamentar. Existia entre elas uma identidade de situações, condicionada, talvez, curiosamente, pela semelhança física. Estavam ambas em luta com terríveis demónios. Os de Lisbeth, porém, viviam dentro dela mesma, enquanto os de Elsa podiam a todo o momento materializar-se pela forma mais perigosa.

 

Quem, dentre as duas, seria mais digna de lástima?

 

E adormeceu por fim sem ter conseguido resolver o problema.

 

As badaladas argentinas de um relógio soaram no quarto silencioso e arrancaram a dorminhoca à inconsciência. Sobressaltou-se e ergueu-se num movimento brusco, dominada pelo terror, ao qual não conseguia eximir-se mesmo durante o sono.

 

O quarto estava mergulhado na escuridão e Elsa levou algum tempo para se recordar onde se encontrava, para ligar o despertar aos acontecimentos da véspera.

 

O mostrador luminoso do relógio de viagem indicava nove horas e meia. Seria possível que tivesse dormido tanto?

 

Maquinalmente, estendeu a mão para procurar o interruptor problemático que não encontrou. Lembrou-se então de que a casa não tinha electricidade.

 

Saltou da cama e, sem se preocupar com calçar as chinelas, correu para a janela e abriu as portas interiores e as vidraças. Estas roçaram a videira brava que revestia a parede da casa e Elsa recebeu em pleno rosto a carícia doirada do Sol.

 

Já não havia vestígios do temporal da véspera. O céu estava azul e a natureza, como que lavada pela chuva, cantava a alegria do Verão.

 

O quarto dava para uma horta cuja exuberância desordenada revelava um abandono que não deixava de ter encanto. A dona da casa, por certo, não tinha a mais pequena disposição para a jardinagem. Mas as cerejas salpicavam de vermelho os troncos de velha árvore com aspecto de centenária, nas sebes as groselhas pretas luziam brilhantes por entre as folhas, que havia muito não eram podadas.

 

Elsa saiu da janela para envergar o roupão e calçar as chinelas bordadas à chinesa, que na véspera tirara do saco de viagem. Experimentava estranha sensação de bem-estar.

 

Pela primeira vez, havia muitos dias, deixava de respirar no ambiente de inquietação em que vivia. Sob o macio edredão de seda desbotada, tão confortável, no quarto com o tecto revestido de traves, que parecia o cenário de um conto encantado, dormira um sono calmo de criança, embalada pelo coaxar das rãs, instaladas num charco próximo.

 

Recordou as curiosas circunstâncias que a tinham levado àquela casa desconhecida. Evocou o serão passado na sala rústica, tão calma, a lenha crepitando no fogão enegrecido, as chamas lançando o seu vermelho clarão sobre as paredes escuras, os móveis, os cobres cujo brilho punha palpitações na sombra misteriosa. Revia a máscara cínica e dura da dona da casa, a estranha mulher que, por extraordinário acaso, se parecia tanto com ela, mas cuja atitude se harmonizava tão pouco com o cenário em que, passageiramente, vivia.

 

Arrancou-se a estas reflexões para ir procurar Lisbeth, que, por certo, não estava levantada, porque a sala de estar ainda se encontrava mergulhada na mais profunda obscuridade. As portas interiores estavam fechadas e o mesmo acontecia com a porta envidraçada.

 

No entanto, pelas frinchas filtravam raios de sol, que alegravam o pavimento de tijolos vermelhos. Elsa pôde verificar que os restos da frugal refeição da véspera e os pratos ainda estavam em cima da mesa baixa.

 

Perplexa, olhou para a porta que supunha ser a do quarto de Lisbeth e depois, na ponta dos pés, foi abrir a que deitava para o jardim. Contra a sua espectativa, esta não se encontrava fechada, prova de que alguém já saíra, porque, na véspera, vira Lisbeth fechá-la à chave.

 

A primeira coisa que lhe chamou a atenção, quando deu alguns passos pela ruazita empedrada e coberta de musgo, foi o alpendre erguido à direita. Nesta garagem improvisada não viu o seu carro, nem tão pouco em qualquer outro sítio... apenas, dirigindo-se para o portão, os sinais dos pneus tornavam-se bem visíveis.

 

Preocupada, examinou o caminho: sobre o musgo, as rodas haviam também deixado o sinal da sua passagem. Era tudo quanto lhe recordava o seu lindo carro, que, na véspera, a trouxera a ela e à desconhecida.

 

Febril, voltou para casa. O seu primeiro gesto foi para correr ao quarto da dona da casa, mas, nesse instante, avistou sobre a mesa uma caixa de Nescafé, poisada em cima de uma folha de papel.

 

Era um bilhete rabiscado por Lisbeth, bilhete cuja leitura lhe provocou espanto e contrariedade.

 

”Perdoe-me se a ponho perante um facto consumado, mas não quis acordá-la. Além disso, calculo que não se recusaria a emprestar-me o seu carro por algumas horas. Tenho de ir à cidade e não pude resistir ao desejo de conduzir esta magnífica ”espada”, com a qual sonhei toda a noite. Há tanto tempo que não pego num volante!...

 

Elsa soltou uma exclamação indignada.

 

”A declaração é tranquilizadora, na verdade!”

 

Lisbeth anunciava que voltaria com as provisões para o almoço e desejava que a sua hóspeda descansasse tranquila naquela solidão e num cenário que demonstrara apreciar.

 

”Tem um fogareiro de petróleo na cozinha para fazer o café, e leite condensado e biscoitos no armário”.

 

Lisbeth”

 

Furiosa, Elsa amachucou o bilhete entre os dedos.

 

”Sempre é de uma audácia esta criatura!”

 

O facto não lhe causava espanto. Não lhe custara adivinhar, no decorrer das confidências feitas por Lisbeth, quanto esta era descarada, invejosa e cínica. Recordava-se do olhar cobiçoso lançado ao colar de pérolas. Lisbeth era de natureza exigente, carácter insaciável e não devia deter-se perante qualquer obstáculo quando se tratava de satisfazer um dos seus caprichos.

 

Ansiava por abandonar aquela casa e ver-se livre das abusivas e indelicadas familiaridades da sua dona; porém, fora-lhe roubado o meio de partir e seria obrigada a dominar a sua impaciência até ao regresso de Lisbeth. Mas, quando ela voltasse, havia de lhe dizer o que pensava do seu procedimento.

 

Embora a tivesse obsequiado e bem contra sua vontade há coisas que não se fazem.

 

Elsa não tinha ilusões sobre a forma como as suas censuras seriam recebidas. Lisbeth escutá-las-ia com aquele sorriso superior, que despertava logo o desejo de esbofeteá-la, mas Elsa, pelo menos, ficaria mais aliviada se pudesse dizer o que pensava e desabafar a sua indignação.

 

Lamentava, demasiado tarde, ter-lhe confiado as chaves do carro, na véspera, ou, pelo menos, de não lhe ter pedido para as restituir. Por uma distracção imperdoável, esquecera-se de o fazer, mas Lisbeth já nessa altura devia ter arquitectado os seus planos e por isso se aproveitara do esquecimento para ficar com elas.

 

Voltou para o quarto e, involuntariamente, foi inspeccionar o cofre das jóias. Não faltava nenhuma, o que lhe causou certo espanto: considerava a irritante e atrevida Lisbeth capaz de tudo.

 

De súbito, lembrou-se de que todos os seus documentos carta de condução, bilhete de identidade e outros documentos do carro haviam ficado na caixa das luvas, juntamente com o pequeno revólver. O facto desagradou-lhe. Se a indiscreta Lisbeth se lembrasse de abrir a caixa o que não deixaria de fazer se não o tivesse feito já que pensaria de presença daquela arma? Quanto aos documentos, pouca coisa lhe diriam. Apenas o nome Elsa Powell, nascida em Hedge Farm, no condado de Norfolk.

 

Na cozinha viu um jarro cheio de água. Levou-o para o quarto para as suas abluções. O seu rosto pensativo reflectia-se no espelho antigo, rodeado pela moldura doirada, que, por cima do lavatório moderno, fazia estranho contraste: evocou a outra imagem que, na véspera à noite, se reflectira junto da sua, tão estranhamente semelhantes que se poderia supor serem duas réplicas da mesma efígie.

 

Sim, as feições eram quase iguais, mais finas em Elsa, mais grosseiras em Lisbeth.

 

”Se eu tivesse os cabelos loiros e a cútis mais clara, como a sua, podiam tomar-nos por gémeas”afirmara a dona da casa.

 

”Felizmente, não me pareço com ela no moral comentou Elsa com persistente rancor.

 

Para entreter o tempo, decidiu arranjar a casa, depois de ter posto em ordem o quarto onde dormira.

 

Abriu de par em par as janelas da sala, lavou os pratos e, encontrando um pano do pó no armário, começou a limpar os móveis. Lisbeth não devia fazê-lo muitas vezes. Elsa viu o saco de plástico vermelho que Lisbeth trazia, consigo e o facto causou-lhe certo espanto.

 

A inconsciente criatura ter-se-ia esquecido dele? Elsa vira-a tirar dali as chaves, na véspera e, para as procurar no meio daquela confusão indiscritível, exibira, sucessivamente, uma carteira, o porta-moedas e outros objectos. Teria partido sem dinheiro? Calculava que a gasolina do reservatório daria para percorrer uma centena de quilómetros e fez votos para que o destino de Lisbeth não a conduzisse a mais de cinquenta. Caso contrário, arriscar-se-ia a ficar parada por falta de combustível.

 

”Que se arranje conforme puder! concluiu de mau humor. Desejo, unicamente, que me restitua o carro antes de anoitecer”.

 

A manhã ia alta quando terminou o arranjo da casa. Lamentou não ter tirado da caixa do carro a maleta com os vestidos. Restava-lhe, como único recurso, o vestido de jersey cinzento que envergava na véspera.

 

Depois de se ter preparado, agarrou num cesto e dirigiu-se para a cerejeira, prestando ouvido atento a todos os ruídos que vinham da estrada. Lisbeth escrevera: ”algumas horas”. Passava do meio-dia. Com certeza não tardaria muito.

 

Começava a ter fome. Fizera o Nescafé, mas duas chávenas da bebida, acompanhadas com os biscoitos, não haviam bastado para lhe saciar o apetite. As cerejas iriam saber-lhe bem.

 

Começou a colheita, verificando não ter Lisbeth exagerado ao referir-se ao isolamento da região onde se erguia a casa de tijolos vermelhos. Desde manhã ainda não tinha passado ninguém pelo caminho, nem pessoas nem veículos. A calma dos campos era absoluta. Quase poderia supor que se encontrava numa ilha deserta.

 

Acabara de encher o cesto e preparava-se Para se instalar numa das cadeiras do jardim para saborear a fruta acabada de colher, quando o ruído de um motor quebrou o silêncio profundo. Cheia de esperança e já mais sossegada, escutou: não havia dúvida, aproximava-se um automóvel, muito devagar, o que explicava não reconhecer o ruído característico do seu carro. Que maneira de conduzir tinha Lisbeth!...

 

Aproximou-se da cancela no momento em que o carro aparecia na volta do caminho. Todas as esperanças de Elsa se dissiparam. Tratava-se de um carro azul escuro, que avançava, vagarosamente, por assim dizer, com circunspecção, um carro que não era o seu.

 

Dispunha-se a voltar para o banco quando o automóvel parou junto da cancela. O condutor debruçou-se para fora a fim de ler o nome inscrito num dos pilares do portão: ”La Framboisière”. Satisfeito com o exame, arrumou o carro junto da sebe.

 

Elsa, sempre desconfiada quando via desconhecidos, esteve quase a dar meia volta e correr para casa. Demasiado tarde. Um homem alto saiu do carro e avançou para a cancela.

 

Hesitante, Elsa viu-o aproximar, tentando ocultar a sua emoção.

 

Era um rapaz alto, magro, com os dentes muito brancos alvejando no rosto bronzeado pelo sol. Trajava casaco de tweed e calça de tom uniforme.

 

Quando falou, a voz era agradável, a despeito do tom duro e frio que empregava. O timbre era estranho, semelhante ao que, por vezes, ouvimos nos locutores da rádio ou em actores pensou Elsa.

 

Mas, às primeiras palavras, ficou logo desconfiada.

 

Posso entrar? perguntou o desconhecido.

 

Elsa franziu a testa.

 

Entrar para quê?

 

E por que não o farei? teimou o rapaz sem sorrir, fixando-a com um olhar que a incomodou.

 

Esteve quase a replicar: ”Encontro-me sozinha em casa e não recebo desconhecidos”, mas calou-se, recordando-se de que estava, efectivamente, sozinha naquele ermo, com o visitante desconhecido e pouco amável.

 

O rapaz fez um gesto de impaciência.

 

Vamos, Lisbeth, basta de tergiversações. Bem sabe por que estou aqui. Abra a porta.

 

Lisbeth... Tomava-a pela dona da casa. Curiosa situação.

 

Antes que ela o desenganasse, o rapaz passou a mão por cima da cancela e abriu-a, num gesto autoritário.

 

Elsa não tentou opor-se, adivinhando a inutilidade da tentativa. O rapaz, com passo um pouco desengonçado, entrou e olhou em volta com curiosidade. Depois observou a rapariga com uma expressão misto de espanto e desprezo.

 

Mas não revelou o que pensava.

 

Indicando a porta da sala, largamente aberta, perguntou:

 

Será possível conversarmos uns instantes? Perplexa, ela aquiesceu, não podendo fazer outra coisa. Agarrou o cesto das cerejas e relanceou a vista para o alpendre, junto do qual, para corrigir a impressão de solidão, colocara duas cadeiras de ferro e uma mesa.

 

O rapaz concordou, sem lhe dar tempo [a concretizar o seu pensamento.

 

Se deseja ficar cá fora, parece-me, de facto, que aquele canto está indicado.

 

E no seu passo balanceado de desportivo, dirigiu-se para lá.

 

Elsa seguiu-o, hesitante, sem largar o cesto das cerejas.

 

Enquanto ele se instalava, com modos desembaraçados e altivos, Elsa censurava-se. Tinha de desenganar quanto antes o desconhecido, explicar-lhe o erro, dizer-lhe que não era quem supunha. Mas só o pensamento de entrar em explicações com ele a enervava. Por outro lado, não conseguia admitir que a confundisse com Lisbeth.

 

De facto, pareciam-se, mas não até à absoluta identidade. Não tinham a mesma cor de cabelo nem a mesma expressão e a semelhança das feições não resistia ao exame de alguns minutos.

 

Quanto mais o tempo passava, mais a situação se tornava espinhosa e as explicações difíceis.

 

Começou a desejar ardentemente a chegada de Lisbeth, que poria ponto naquele equívoco e a libertaria de toda a responsabilidade.

 

Suponho que já preparou as suas bagagens? inquiriu o visitante, fixando-a com olhar frio.

 

Elsa abriu muito os olhos, numa expressão perplexa.

 

As... minhas bagagens?

 

Com certeza replicou ele com brusca irritação Recebeu a nossa carta, não é assim? Recebeu-a, com certeza, visto ter-nos telegrafado, significando o seu acordo.

 

Escute replicou Elsa, bruscamente decidida a esclarecer a situação e a dar-lhe todas as circunstâncias está enganado...

 

Não, não estou enganado sobre os motivos que ditaram a sua decisão. Sei que a base é, simplesmente, a falta de dinheiro; mas, seja pelo que for, nós conformamo-nos com a situação sem profundar os motivos e não estamos dispostos a discutir o assunto.

 

Mas... deixe-me...

 

O rapaz atalhou com modos imperiosos e duros:

 

Toda a discussão seria inútil. É a Lisbeth quem vai ouvir-me.

 

Eu não sou...

 

Um fantoche movido por cordelinhos, já sei. Já nos afirmou isso numa das suas cartas quando nos pediu hospitalidade. Antes de a recebermos em nossa casa, impõe-se esclarecer bem as coisas e é por isso que vim buscá-la em vez de a deixar ir ter connosco.

 

Antes que ela pudesse falar, tirou a cigarreira, abriu-a e pediu com fria cortesia:

 

Dá licença?

 

Só nesse instante, Elsa reparou num pormenor pelo qual ainda não tinha dado: o visitante servia-se apenas da mão direita. A outra escondia-se na algibeira do casaco de tweed,

 

Involuntariamente, fixou a mão habilidosa e ágil que tirava o cigarro, o levava à boca, accionava o acendedor para o acender.

 

O facto deixou-a tão espantada que, subitamente constrangida, não conseguiu falar e escutou sem um protesto a tirada que se seguiu:

 

A todos custa a aceitar um estado de coisas que, depois de tudo quanto se passou, não pode criar entre nós um ambiente caloroso. Nem uns nem outros encaram com agrado a perspectiva que nos propôs. Mas queremos abolir o passado cruel para todos nós e remediar quanto possível as suas consequências no futuro. O facto de a família não ter querido conhecê-la, o que noutro tempo dificultou as coisas, hoje, pelo contrário, facilita-as. Os primeiros contactos tornar-se-ão mais fáceis. Além disso, confesso-lhe, Lisbeth e Elsa sentiu-se como que esbofeteada por esta atitude desprezativa, embora visasse uma terceira pessoa, quando ele a olhou de alto a baixo como se a avaliasse que a encontro muito mudada para melhor, pelo menos em aparência.

 

E teve um sorriso um tanto sardónico, o único desde o princípio da conversa.

 

É de crer que o casamento e a permanência nas colónias lhe fez bem.

 

Elsa acabou por recuperar a fala e a sua combatividade.

 

Muito bem começou, esforçando-se por falar com firmeza agora que já disse tudo quanto tinha para dizer sem me dar a possibilidade de...

 

Justificar o passado? Não voltemos ao assunto, é melhor atalhou ele, imperiosamente

 

Tudo isso não passa de uma história antiga.

 

Por isso mesmo...

 

Não percamos um tempo precioso. Temos longa viagem a fazer, tanto mais que me atrasei por causa de um incidente bastante trágico, concordo, mas que, infelizmente, me privou do meu motorista. Espero que a sua falta seja momentânea, mas, mesmo assim, temos de passar por Chartres para ir buscar o Ludovico.

 

Quero lá saber do Ludovico! protestou Elsa, irritada, ao verificar que não conseguia explicar-se, classificando a situação de absurda eu...

 

Se não se importa com ele importo-me eu - replicou o rapaz, interrompendo-a Não posso fazer a viagem sem descansar afirmou, relanceando breve olhar para a manga do casaco vazia Espero que o Ludovico não se demore no posto da polícia. O facto do carro ser inglês e a vítima estrangeira...

 

Um carro inglês?

 

A pergunta foi feita por Elsa num tom ansioso, fitando o rapaz com os olhos muito abertos, olhos que exprimiam apreensão e vago terror.

 

O visitante, entretido a acender o cigarro que se havia apagado, não notou a comoção da sua interlocutora.

 

Exactamente confirmou, expelindo uma baforada de fumo deu-se um incidente ridículo quando abandonávamos a estrada nacional para tomar o caminho para aqui. Encontrámos um carro avariado e, quando digo avariado, poderia dizer pulverizado... era um Jaguar preto.

 

Um Jaguar preto...repetiu Elsa com voz alterada.

 

Forrado de pele vermelha.

 

Tem a certeza?

 

Toda, tanto mais que nos obrigaram a parar e nos pediram para ficarmos de guarda aos destroços do carro, enquanto outro levava a vítima uma rapariga nova, segundo diziam até ao hospital mais próximo. O automobilista voltou decorridos três quartos de hora: a vítima morreu durante o trajecto.

 

Morta! exclamou Elsa em voz surda.

 

Pela sua imprudência. Diziam que vinha com uma velocidade louca.

 

O cérebro de Elsa funcionava como bússola desnorteada.

 

”Trata-se da sua Lisbeth!” queria gritar, mas a comoção era tanta que não conseguiu proferir palavra.

 

Se o rapaz, que falava em tom despreocupado, olhasse para ela em vez de seguir com a vista as espirais de fumo que iam perder-se no espaço, fatalmente teria dado pela sua palidez e pela alteração das feições. Mas, interessado em contar o incidente, nem pensou fazê-lo.

 

A história tornou-se mais complicada pelo facto de encontrarem um revólver na caixa das luvas. Isto tornou-se suspeito. Todos aqueles que rodeavam o carro destruído foram obrigados a dar o seu nome e revelar a identidade. O idiota do sargento, principalmente, mostrou-se exigente. Levantou toda a espécie de dificuldades para me deixar sair dali, só consentindo depois de eu dizer o meu nome e apelido e ainda com a condição de o Ludovico o acompanhar com as outras testemunhas até ao posto.

 

é espantoso! murmurou Elsa, apertando as mãos com tanta força que as articulações dos dedos se tornaram brancas.

 

O rapaz voltou-se para ela de testa franzida.

 

- Que tem? O calor fez-lhe mal? Está lívida e parece ter dificuldade em respirar.

 

Numa voz que despertava compaixão, a pobre Elsa concordou:

 

Sim, deve ser do calor... Desculpe, eu volto já.

 

Correu para casa, atravessou a sala e entrou no quarto onde passara uma noite tão calma a calma precursora da tempestade. Era como se dedos de ferro lhe apertassem o coração.

 

Desejava poder duvidar da realidade. Mas como seria possível? O Jaguar preto com o estofo vermelho, o revólver na caixa das luvas... E Lisbeth morta, vítima do seu procedimento imprudente!...

 

Atirou-se para a cama e rompeu em soluços convulsivos; batia com o punho na almofada, onde, na noite anterior, repoisara a cabeça num sono calmo sem sonhos, um sono inesperadamente recuperado.

 

”Não é possível!... balbuciava com voz intercortada.

 

Não simpatizara com a rapariga cínica, imprudente, descarada, mas morrer assim num desastre brutal era pagar muito caro os seus erros. Sentia-se como que um pouco responsável. Se não se tivesse atravessado no seu caminho, se não a tentasse com o carro, com as jóias e com a aparência de rapariga rica e feliz, a desditosa ainda viveria.

 

”Meu Deus... meu Deus! exclamava no auge do desespero.

 

Só decorrido muito tempo, depois de ter evocado com horror o corpo inerte e despedaçado daquela que ainda na véspera vira tão cheia de vigor, ávida por morder todos os frutos da vida, pensou em si mesma e no carro.

 

Tinha ficado pulverizado, afirmara o desconhecido ao anunciar-lhe a espantosa notícia, sem calcular que aquela a quem se referia com tanta indiferença era, precisamente, Lisbeth, a quem pretendia levar consigo, não sabia bem para que destino.

 

De resto, mesmo que o carro estivesse em estado de servir, para o reaver, Elsa ver-se-ia em sérias dificuldades para dar explicações às autoridades. De qualquer forma, haveria em volta do seu nome desagradável publicidade, cujas consequências e só ela poderia avaliá-las seriam terríveis.

 

Na sala próxima elevou-se a voz do visitante, que fora o mensageiro de tão estranha notícia, e essa voz vibrava de impaciência:

 

Lisbeth... Lisbeth, onde está? Avie-se. Temos de nos pôr a caminho quanto antes.

 

Elsa levantou-se e relanceou em volta um olhar alucinado. Que fazer? Como sair do labirinto para onde fora atirada pelas fatais consequências da imprudência de Lisbeth?

 

O que dizer àquele rapaz, que se obstinava em não ouvir, dominado por uma ideia fixa?

 

Todavia, impunha-se que lhe dissesse tudo.

 

Vou já; não me demoro.

 

Diante do espelho do lavatório esse espelho que ainda na véspera reflectira, junto do seu, um rosto que nunca mais veria examinou-se.

 

Estava pálida e trémula. O terror e a desorientação imprimiam-se-lhe nas feições alteradas e no olhar angustiado. À pressa, pôs um pouco de cor nas faces e passou o carmim pelos lábios pálidos. Depois, com um pouco de pó de arroz fez desaparecer os vestígios das lágrimas.

 

Da sala vizinha o rapaz avisava:

 

Vou conduzir o carro para o pátio a fim de meter as suas bagagens na caixa.

 

Espere! gritou Elsa, assustada.

 

Mas o rapaz já tinha saído e o saibro do jardim rangia debaixo dos seus pés.

 

As bagagens... As suas haviam ficado dentro do fatal Jaguar. Para as recuperar teria de fazer valer os seus direitos, contar a inverosímil história, suportar os interrogatórios, a curiosidade profissional dos jornalistas e dos fotógrafos da imprensa. A sua odisseia encheria os jornais... e a sua fuga tornar-se-ia o assunto de todas as conversas. Seria inevitavelmente apanhada por aqueles de quem tinha querido fugir, suportaria a sorte a que tinha conseguido escapar, porque o seu procedimento dava nova arma àqueles cujas manobras tanto temia.

 

De qualquer forma, estaria perdida.

 

Percorria o aposento como avezita presa numa gaiola e maldizia a ratoeira onde fora cair, quando ele voltou.

 

Olhou-o como se tivesse diante de si um fantasma.

 

Está perturbada? observou o rapaz em tom irónico e frio Gostava tanto desta casa?

 

Nem por segundos suspeitou a causa da sua aflição.

 

Escute, senhor começou ela em voz surda.

 

O rapaz franziu a testa.

 

Senhor! Para comodidade de todos não seria melhor tratar-me por Bruno? Não mudei de nome.

 

Elsa observou-o desconcertada, esquecendo, por momentos, a tempestade que se lhe desencadeava no cérebro. Bruno falava como se ele e Lisbeth já se conhecessem. Recordava que, na véspera, o nome de Bruno fora mencionado pela desaparecida. Nesse caso, como seria possível que a confundisse com Lisbeth? Como não tinha dado ainda pelo erro?

 

Parecia tão senhor de si! Em toda a evidência, era daqueles homens que só seguem os seus impulsos e não querem saber da opinião dos outros.

 

Então, vamos ou não? insistiu O motor já está a trabalhar. Vou ajudá-la a fechar a casa. Não leva mais nada?

 

Dirigiu-se para a janela e com a mão válida fechou as persianas. Procedeu da mesma forma com a porta e, voltando-se para Elsa, perguntou:

 

Que fazemos às chaves?

 

Elsa encolheu os ombros, num gesto maquinal.

 

Pensava em Lisbeth ”pulverizada” juntamente com o seu carro. Sentia-se dominada por um horror sem nome e agitavam-na breves estremecimentos nervosos.

 

Bruno relanceou-lhe um olhar estranho. Dava a impressão de que pretendia dizer qualquer coisa, mas arrependeu-se. Em silêncio, caminhou atrás dela, empurrando-a ligeiramente, para a obrigar a sair. Elsa não reagiu. Tinha de fazer um esforço para não bater os dentes.

 

Suba.

 

Abriu a porta do carro para Elsa entrar. O saco de viagem que levava com as bagagens de Lisbeth encontrava-se no banco do fundo. Metera ali todas as suas jóias antes de o fechar.

 

De súbito, reparou que apertava nos dedos o saco de plástico vermelho entregue por Bruno antes de fechar a casa, sem que ela pensasse em protestar. Num gesto de repulsa atirou-o para cima do banco. Era o saco da morta... continha os documentos de identidade de Lisbeth... as chaves, tudo quanto lhe pertencia.

 

Está muito nervosa.

 

Falava no tom frio que não deixara de empregar desde o princípio. Entretanto, fazia a manobra para sair do jardim.

 

Elsa voltou-se para ele com ar resoluto, decidida por fim a revelar-lhe a verdade. Nesse instante, porém, ele parou e desceu do carro a fim de fechar a cancela; depois voltou a sentar-se ao volante e atirou-lhe com as chaves da casa para o regaço.

 

Não me disse o que queria fazer delas! Levá-las consigo, naturalmente?

 

Não sei! respondeu, aborrecida.

 

A voz tomou uma estridência que nunca lhe conhecera e ressoou-lhe aos ouvidos como se fosse a de uma estranha. Viu um sorriso desprezador aflorar os lábios do condutor. Mordeu os seus e fulminou-o com o olhar. Ele, porém, nem sequer se voltou. Conduzia só com a mão válida, com espantosa destreza, atento a todas as dificuldades da estrada. Conservava a máscara dura e sombria como se tivesse intencionalmente adoptado o partido da frieza e hostilidade.

 

Desanimada, Elsa contemplou o caminho sinuoso que serpenteava por entre os campos, prontos para a ceifa. O carro dir-se-ia mergulhado num Oceano de oiro, ondulante e movediço. Até perder de vista, o trigo alastrava em vagas rutilantes, revestindo a planície de sumptuoso manto.

 

Ao longe surgiram as torres góticas de uma catedral. Na véspera, Elsa teria apreciado em todo o seu valor o encanto da paisagem, mas, naquela manhã, perante a sua retina surgia apenas a imagem terrível que lhe obsidiava o espírito.

 

Só reparou que estava na cidade no instante em que o carro parou diante do portão de uma casa, encimado pela seguinte inscrição:

 

” Gendarmerie National”

 

No primeiro instante, não compreendeu e voltou-se para o companheiro, interrogando-o com o olhar, que revelava intenso terror. Supôs, de repente, que ele pretendia entregá-la às autoridades por um crime que ignorava, e o medo dominou-a.

 

Na berma da estrada estavam alguns carros parados.

 

Conceda-me um instante pediu Bruno com delicadeza, sem parecer notar a emoção da companheira.

 

Viu-o descer do carro e ir parlamentar com o guarda de serviço. Este entrou no edifício e voltou pouco depois, acompanhado por um rapaz alto e magro, com os cabelos cortados rentes.

 

Bruno aproximou-se do carro.

 

O meu motorista já está livre declarou Creio que não a fiz esperar muito.

 

Elsa suspirou, aliviada. Como fora tola! Era ali que discutiam o desastre e para onde tinha sido levado o carro.

 

Olhou para um lado e para o outro, no desejo de o descobrir.

 

Cá estou, patrão dizia uma voz um tanto nasalada fiz as minhas declarações, mas que podia eu dizer-lhes? Não a conhecia...

 

Então já estás livre?

 

Estou.

 

Olhou para a janela aberta, para lá da qual se apercebiam as cabeças curvadas sobre a secretária coberta de papéis.

 

Era o que faltava, demorarem-me mais ainda! Já não se pode circular pelas estradas sem sermos detidos pela polícia, só porque uma maluca se matou ao volante do seu carro.

 

Elsa estremeceu. Abriu a porta para descer; ia, enfim, poder explicar-se, recuperar o carro ou o que dele restasse contar a rocambolesca odisseia da véspera, aventura que tivera tão trágico epílogo. As palavras do motorista, que continuava a dar explicações, obrigaram-na a parar.

 

E ainda mais por um carro que não é francês! Guardaram-no no depósito e mandaram um telegrama à família da vítima. Pelos documentos ficaram sabendo donde vinha. Era de Inglaterra. Sempre vão ter uma surpresa! O que mais intrigava o sargento era o revólver encontrado na caixa das luvas.

 

Vamos. Conversarás durante o trajecto. Sobe e toma conta do volante.

 

Bruno voltou-se para a passageira, que, pálida e hirta, se conservava com a mão no fecho da porta e um pé no degrau, como se estivesse transformada em estátua.

 

Se prefere, pode ir para trás aquiesceu o rapaz, supondo ser essa a intenção de Elsa. Eu tomarei o seu lugar.

 

Elsa nem o ouviu. Martelavam-lhe o cérebro as palavras ditas pelo motorista. Tinham avisado a família... Em breve eles estariam ali... e, se a encontrassem viva, apanhá-la-iam de novo, e tudo quanto havia tentado, na ânsia de lhes fugir, só serviria como mais um argumento para alcançarem os seus fins.

 

O laço em que caíra apertava-a cada vez mais.

 

Vamos, decida intimou a voz impaciente de Bruno Ainda temos muito caminho para andar. Não podemos perder tempo.

 

Elsa estremeceu e ergueu para ele um olhar impregnado de vago terror. Bruno interpretou mal esta expressão.

 

Tem uma estranha propensão para sonhar observou com ironia. Por acaso ainda hesita? Não quero levá-la à força. Foi a Lisbeth quem pediu para ir viver em nossa casa. Se decidiu o contrário, em vez de tergiversar e hesitar, diga-o. Nesse caso, deixo-a aqui com as bagagens. Não esqueça que vamos para o outro extremo da França. Não quero perder mais tempo com os caprichos de... madame Forestier.

 

O tom era duro e peremptório. Visivelmente, começava a estar farto e, ao proferir as últimas palavras, havia uma nota sarcástica na sua voz.

 

”Vamos para o outro extremo da França”.

 

Esta declaração libertou-a de um peso. Iam para longe e isso realizava a sua ideia fixa: a fuga.

 

Não importava o que acontecesse depois... De momento, não tinha outro recurso. Sem uma palavra, entrou e instalou-se no banco do fundo. No mesmo instante, o carro partiu.

 

Aninhada no seu canto, Elsa olhava para o saco que continha tudo quanto restava da sua antiga personalidade. Bagagens e documentos, tudo tinha ficado no destroço informe em que se transformara o luxuoso carro, que a pobre Lisbeth tanto havia invejado.

 

Presentemente, a pobre não era mais do que um cadáver desfigurado, que a família iria reconhecer e com que satisfação só ela o sabia e levaria para Inglaterra, manifestando o mais intenso desgosto. Prestariam aos seus restos todas as honras devidas à sua gerarquia e Arnold vestiria luto. Não por muito tempo, apenas o suficiente para salvar as aparências.

 

Elsa, a última descendente dos baronetes Adelborn, terminaria a sua curta vida.

 

Entretanto, Lisbeth Forestier continuaria a viver a sua, misteriosa, aventurosa, pelo que pudera depreender. Por quanto tempo?

 

Dormiram em Montélimar, na Pousada do Imperador. Depois de Ludovico tomar conta do volante, fizeram apenas uma paragem, ao meio-dia, perto de Moulins. Bruno, que se conservara calado enquanto o potente carro devorava os quilómetros, convidou Elsa a descer a fim de almoçar.

 

Muito obrigada, senhor, não tenho vontade.

 

Ele relanceou-lhe um olhar descontente.

 

Já lhe pedi para me tratar por Bruno. Esses modos cerimoniosos são ridículos.

 

Desculpe.

 

O rapaz deu alguns passos para ela e envolveu-a num olhar penetrante.

 

Que jogo está a jogar, Lisbeth?

 

Eu?...

 

Sabia bem que, desde o instante em que aceitara o novo papel, seguia por um caminho escorregadio.

 

É inútil tentar compor uma personalidade diferente. Não lhe serviria para nada concluiu ele com um encolher de ombros.

 

Depois voltou-lhe as costas e entrou no restaurante, onde já se encontrava o motorista, e sentou-se à mesa no terraço envidraçado.

 

”Não é de tolices, apesar dos seus ares superiores”pensou Elsa.

 

Talvez não fosse assim senão com Lisbeth. Parecia professar por ela profundo rancor. Admirava-se cada vez mais por ele ainda não ter dado pelo erro e continuar equivocado sobre a sua verdadeira personalidade.

 

Nesse caso, os outros, todos esses desconhecidos que ia defrontar na casa desconhecida, para onde era arrastada pelo mais fantástico dos acasos, também não dariam pelo engano? Deixar-se-iam iludir?

 

Este pensamento perturbava-a e reconfortava-a ao mesmo tempo. Entre ela e Lisbeth, pelo que pudera avaliar na última noite, existia, de facto, extraordinária semelhança, mas, daí a confundi-las na sua identidade, havia grande diferença.

 

Bruno não deixava adivinhar a mais leve suspeita. Sendo assim...

 

Perplexa, olhou para o terraço, onde os dois homens comiam, conversando, servidos pelo impecável criado.

 

Bruno, naquele momento, ria ao escutar os comentários do companheiro Ludovico, sem dúvida, tinha já esquecido o drama da estrada, no qual se vira envolvido contra vontade, e recuperara a sua alegria de Meridional e despojara-se do seu ar duro e distante.

 

O sorriso não tinha alegria, mas era aliciante e iluminava-lhe a máscara sombria.

 

É um belo rapaz” pensou Elsa, que, na desorientação das primeiras horas, ainda não o tinha examinado bem.

 

Não se parecia com os rapazes com quem estava habituada a conviver. Era um francês, um desses entes com fama de sedutores e mentirosos, solícitos, cheios de atenções deliciosas para as mulheres. Este, porém, destruía todas as prevenções que tinha contra os seus compatriotas: não fazia o mais pequeno esforço para lhe agradar e, pelo contrário, nem se dava ao trabalho de esconder a sua antipatia.

 

Desconfie dos meus compatriotas costumava dizer mademoiselle Maria Lambert, a Francesa que estivera sempre a seu lado, desde criança até entrar no convento, e a quem devia falar correctamente o seu idioma, quase sem sotaque os franceses fazem a corte a todas as mulheres e a cada uma delas conseguem persuadir de que nunca conheceram o amor antes de as encontrar milagrosamente no seu caminho. Mas dizem o mesmo a todas. É instintivo, uma forma de se mostrarem delicados. As suas atenções não passam de mera cortesia. Não existe um átomo de verdade em todas as suas afirmações.

 

Mademoiselle Lambert sofria ainda a amargura de uma decepção, o que a tornava severa com os seus compatriotas.

 

Bruno era muito diferente deste modelo. Não se esforçava por ocultar a antipatia que professava pela suposta Lisbeth Forestier. Não teria hesitado em a abandonar no meio da estrada, diante do posto da polícia, se tivesse persistido na hesitação de o seguir.

 

Por que motivo se dispusera a fazer tão longa viagem para a ir buscar? Não poderia ter-se contentado em mandá-la seguir de comboio ou por barco?

 

Fazia a si mesma todas estas interrogações, perguntando com ansiedade como conseguiria sair de dificuldades quando chegasse ao fim dessa viagem e o que iria encontrar quando lá chegasse.

 

Enquanto se entregava a todas estas reflexões, os dois homens terminavam o almoço.

 

Então não se decide a comer alguma coisa? inquiriu Bruno delicadamente, quando voltou para o carro.

 

Quando ouviu a nova recusa de Elsa, ordenou a Ludovico:

 

Deixa-me o volante. Agora conduzo eu. Chegaram à pousada bastante tarde, e Bruno não insistiu em convidar Elsa para jantar.

 

Vou dar ordem para que a sirvam no quarto. Julgo que prefere assim, não é verdade?

 

Elsa aquiesceu com um movimento da cabeça.

 

Era tarde e sentia-se cansada. A cabeça parecia estalar-lhe com a enxaqueca.

 

Antes de seguir o criado que a conduzia ao quarto, hesitou e por fim estendeu-lhe timidamente a mão.

 

Boa noite... Bruno.

 

Ele simulou não ver o gesto e limitou-se a responder:

 

Boa noite, Lisbeth. Mostrou-se delicado, mas frio, e Elsa, não soube bem porquê, sentiu o coração oprimido pela tristeza. Que teria ela feito para ele ser desagradável àquele ponto? Depois pensou que aos olhos de Bruno era Lisbeth e que talvez o procedimento da rapariga justificasse aquela atitude. Enquanto subia vagarosamente a escada,! agitada por tão desencontrados pensamentos,! Bruno seguia-a com a vista. Notou a graça e a elegância do vulto esbelto, tudo quanto naquela mulher lhe causava espanto, como espanto lhe causava a delicadeza das feições e os modos correctos que evidenciara durante todo o dia. É espantoso! exclamou, exprimindo intensa surpresa.

 

E o rosto duro contraiu-se numa expressão sarcástica. Depois reparou que, a seu lado, Ludovico também olhava na direcção em que desaparecera a viajante.

 

Que pensas a seu respeito?

 

O mesmo que o patrão.

 

Bruno sorriu, com o seu sorriso atraente, que, desta vez, exprimia sincera alegria. Havia muitos anos que Ludovico o acompanhava nos azares de uma vida nem sempre isenta de perigos e que, mesmo naquela ocasião, não era sossegada e calma. Bruno achava sempre graça às reacções do rapaz, que pretendia identificar-se com ele.

 

Que pretendes dizer com isso? insistiu para o obrigar a formular a sua opinião.

 

Tem olhos verdes.

 

Indiscutivelmente, Ludovico ficara impressionado com os olhos de Elsa. E, dando um estalo com a língua, acrescentou:

 

E é uma perfeita mulher.

 

Foi tudo quanto viste? perguntou Bruno com ligeira impaciência.

 

Bem... é pouco conversadora... eis tudo quanto notei. E agora, se quer saber o que penso...

 

Pois claro! Se já to perguntei...

 

É uma boa comediante.

 

E as pupilas azuis do Bretão reflectiam irónica admiração.

 

Poderíamos deixá-la comungar sem confissão, como se diz na nossa terra, não acha?

 

Estou de acordo aprovou Bruno, com ar pensativo.

 

Há ainda outra coisa que me espantou notou Ludovico Pelo que sabia, madame... e designava a escada por onde desaparecera a viajante era morena, tinha os cabelos pretos...

 

Bruno soltou ligeira risada.

 

As mulheres mudam a cor dos cabelos com tanta facilidade como mudam de meias... A... minha cunhada e dir-se-ia que a palavra lhe deixava os lábios em sangue, por tal forma hesitou em a proferir era morena e tinha os cabelos negros, brilhantes...

 

Viu-a bem, com certeza? perguntou Ludovico com ingenuidade.

 

Por favor! atalhou Bruno, aborrecido.

 

Desculpe, patrão. Queria eu dizer...

 

Não digas nada que é melhor!

 

Mesmo assim, deixe-me acrescentar uma coisa... uma coisa que a classifica... Importa-se tanto com o nosso Carlos como com coisa nenhuma.

 

Nem sequer proferiu o seu nome confirmou Bruno, pensativo, e com um trejeito de desprezo nos lábios finos Não sei o que prepara nem a significação da nova atitude que adoptou, mas não me parece que aqueça muito o lugar em nossa casa... Ou então teria mudado muito.

 

...De facto, no decorrer daqueles sete anos, Lisbeth havia mudado muito, fisicamente, pensava Bruno quando, alguns minutos depois recolheu ao quarto, e em vão tentava conciliar o sono.

 

Pela estrada nacional, os camiões e pesados carros passavam incessantemente, perturbando o silêncio da casa.

Noutra altura, Bruno ter-se-ia sentido incomodado. Mas, naquela noite, os pensamentos que lhe tumultuavam no cérebro nem o deixavam reparar no barulho.

 

Acendeu a lâmpada da mesa de cabeceira. Com os olhos abertos, recordava todos os acontecimentos do dia, o choque experimentado nessa manhã e que tivera grande dificuldade em não deixar adivinhar provocado pelo primeiro contacto com Lisbeth.

 

De facto, não fora aquele o primeiro contacto. Já tinha tido ocasião de se encontrar com ela e ainda não conseguira esquecer a entrevista. A imagem que conservava de Lisbeth era a de uma linda mulher, alta, esbelta, perigosamente atraente, morena, com os olhos verdes, boca de recorte sensual, andar coleante e modos ousados.

 

Vira-a apenas uma vez e essa bastara para lhe inspirar o desejo de lhe fugir para sempre.

 

A entrevista durara apenas breves instantes. Tinha sido numa noite... esperara por ela à saída do Lancaster, em Biarritz. Queria propor-lhe um acordo para a obrigar a renunciar a casar com Gerardo... o pobre Gerardo, enfeitiçado pela sua sedução, Gerardo, fraco, sem defesa.

 

Assistira ao seu número de canto e depois fora esperá-la à saída do hotel. Envergava uma camisola branca e calça, muito no género SaintGermain-des-Prés, de quadrados azuis e brancos. Os compridos cabelos, negros e brilhantes, apertados em rabo de cavalo no alto da cabeça, caíam até aos ombros como a crina de uma égua.

 

Procurava um táxi. Bruno aproximou-se e ofereceu-lhe o carro para a conduzir a casa. Não lhe disse logo que era irmão de Gerardo e só mais tarde o fez, perto da Costa Basca, quando parou o carro para lhe falar.

 

Tinha uma voz de inflexões roucas, vulgares muito diferente da que adoptara agora, talvez por classificar de chique o leve sotaque inglês mas essa voz tinha qualquer coisa de sensual, de acanalhado, que despertava todos os baixos instintos.

 

Como poderia ter deixado de prender o fraco Gerardo?

 

Bruno, portanto, explicou-se. Face ao mar, que interrompia o silêncio com o seu marulhar de seda, revelou à sua passageira o motivo que o levara a provocar a conversa a sós: queria fazer-lhe uma proposta.

 

Na sombra do carro, ela observava-o de revés. Os olhos brilhavam-lhe e as mãos brancas, com as unhas pontiagudas, enrolavam e desenrolavam a madeixa de cabelos que lhe caía sobre o ombro. Tinha sido um pormenor vivo e agressivo que nunca conseguira esquecer: as unhas pintadas de vermelho violento, destacando-se no negrume da cabeleira brilhante, entre os cabelos que tinham a flexibilidade da serpente.

 

Sentada a seu lado, quase encostada a ele, deixou-o falar sem o interromper. Sentia o contacto insinuante do joelho dela contra a sua perna direita e, embora se afastasse o mais possível, o calor daquela mulher causava-lhe, pouco a pouco, estranho mal-estar.

 

Escutara o seu riso rouco e baixo:

 

No fim de contas, pouco me importa com o Gerardo... Estou disposta a deixá-lo ir governar a vida para onde quiser.

 

Inclinou-se mais para ele. Com a cabeça deitada para trás, como que se oferecia e os seus lábios quase afloraram os dele.

 

Poderei trocá-lo por si... pelo preço que entender.

 

Revoltado, Bruno não lhe ocultou o seu desprezo, indignado por ela poder admitir que ele procedesse dessa forma para com um irmão... quando Lisbeth já trazia no dedo o anel de noivado oferecido por Gerardo.

 

Pressentiu o perigo para Gerardo, manejado por aquela mulher sem vergonha e sem consciência, mas tão perigosamente sedutora.

 

E a forma como reagiu confirmou esta opinião. Mostrou-se tão violenta e tão ordinária que ele acabou por a obrigar a sair do automóvel, deixando-a na estrada, na paragem do autocarro, enquanto ela o cobria de ameaças e indecentes comentários. Naquele dia provara-lhe bem quem era... Eis porque os seus ares de senhora, a distinção, a reserva estranha em que se mantinha agora, não podiam impressioná-lo.

 

Recordava a criatura descarada, protagonista da cena desprezível e ridícula, e não conseguia ajustá-la à mulher que o acompanhava. Evidentemente, seis anos passados no mato mudam, completamente, uma pessoa! Além disso, Bruno vira-a por tão pouco tempo, conquanto esses momentos tivessem ficado bem vivos na memória, que era difícil recordar-se.

 

A cena não ficara por ali.

 

Nessa mesma noite, ao sair do hotel, encontrou Gerardo.

 

E, mesmo antes de ter tempo para compreender o que lhe acontecia, Gerardo, o calmo Gerardo, o irmão a quem adorava e sobre quem, até ali, havia tido a influência de um irmão mais velho, respeitosamente admirado, aproximou-se. Os lábios tremiam-lhe e tinha uma expressão dura que Bruno nunca lhe vira. Sem dizer uma palavra, estendeu o braço e atingiu o rosto de Bruno com um soco brutal.

 

Isto é para não tornares a meter-te com a minha noiva.

 

Sem reacção, Bruno escutou a injúria que se seguiu, tal como havia apanhado o soco. O ataque fora tão inesperado e súbito que nem teve forças para ripostar. O riso requebrado de Lisbeth obrigou-o a sair do seu espanto.

 

Ia precipitar-se sobre o irmão. Mas em volta deles já havia muita gente e Bruno renunciou a uma luta, que, vendo bem, nada remediaria. E dominou-se.

 

Nunca mais voltou a ver Gerardo.

 

Os anos foram passando... Gerardo morreu longe, vítima da má influência exercida sobre ele pela mulher. O casamento realizara-se, sem proveito para ela. O pai Forestier deixou de dar dinheiro ao filho e expulsou-o da família.

 

Bruno estava em Paris quando recebeu de casa a carta em que a viúva de Gerardo pedia para ser acolhida no lar da família do marido, enquanto não conseguisse melhorar a sua situação.

 

Foi um pedido que a todos causou espanto. Deixava adivinhar, encoberta, mas clara, uma ameaça. Mesmo assim, decidiram responder-lhe com um consentimento. Para neutralizar os planos da diabólica criatura impunha-se descobrir o que ocultava aquela nova atitude de conciliação.

 

”Vai buscá-lapediu madame Forestier, a mãe de Bruno e trá-la para aqui. Vê se consegues descobrir o que prepara. Em todo o caso, faz-lhe compreender que não alcançará coisa alguma de nós se vem como inimiga. Não nos deixaremos intimidar.

 

Madame Forestier desconhecia o que se havia passado, sete anos antes, entre Bruno e Lisbeth, e por isso o encarregava da missão.

 

Bruno aceitou. Iria ter com aquela a quem tratava por ”a bruxa Lisbeth” e demonstrar-lhe-ia, desde o primeiro instante, que os seus sentimentos não haviam sofrido modificação e continuava a considerá-la uma indesejável. A morte de Gerardo, porém, obrigava a família a ter certas condescendências nas suas relações com ela.

 

Além disso, havia Carlos.

 

De geração para geração, os Forestier possuíam barcos nos portos do Mediterrâneo, ao sul da França, em Port-Vendres, Cette, Collioure, em toda a costa chamada Vermelha, porque de manhã à noite parece flamejar, estendendo-se por uma região de lagoas e salinas, um mundo belo e ardente, de luz e de cor, numa ronda de miragens.

 

Erguida no meio de pinheiros e ciprestes, a casa dos Forestier dominava o pequeno porto de Marines, cujas casas escuras com telhados vermelhos se estendiam em leque na margem da lagoa, que acompanha as curvas da colina.

 

Tinha um nome simples, muito apropriado, embora diversos melhoramentos tivessem sido acrescentados ao plano primitivo: ”Bastide”.

 

Fora ali, naquele canto perdido, ao abrigo do vento do largo, que o avô Forestier,

 

(Bastide) Casinha de campo.

 

partindo da casita de pescador e tendo como única fortuna três bettes barcas de fundo chato movidas a remos, das quais ainda hoje se podem encontrar umas trinta no pequeno porto se lançara na grande aventura dos barcos de carga, que, naquela altura, arvorando o seu pavilhão, carregavam mercadorias para Maiorca, Tarragona, Oran ou Djidjelli e voltavam com os porões cheios de laranjas, de alfarroba e madeira de eucalipto.

 

Quando se chegava à Bastide pela estrada não se via logo o mar. Foi só quando o automóvel atingiu o alto da colina que Elsa avistou a lagoa, doirada pelos raios do Sol poente.

 

Teve como que um choque. Para lá da lagoa, o mar cintilava a perder de vista com ondulações rápidas, com tonalidades várias e pequenas cristas de espuma; os barcos ancorados no porto, cujos mastros pareciam árvores de uma floresta cerrada e ao mesmo tempo leve, as salinas com todas as suas facetas, sobre as quais se estendia o céu, muito azul e brilhante.

 

Elsa não conseguiu reprimir uma exclamação:

 

Como é belo... my God!

 

Mas o automóvel começou a subir a alameda ladeada por tamargueiras de folhagem avermelhada, ultrapassou o imponente portão de ferro forjado, percorreu uma rua ensaibrada que atravessava o parque onde as árvores e flores pareciam crescer como por milagre, num desafio feito à aridez do solo e ao sal, e parou num pátio pavimentado de pedra.

 

Elsa não se cansava de olhar para tudo. Tinha a impressão de sonhar maravilhoso conto de fadas do qual não desejaria despertar tão cedo, porque a libertava, temporariamente, dos problemas da sua vida. A aventura tinha sido fantástica e o cenário dir-se-ia harmonizar-se com essa aventura da qual era a heroína ansiosa e fascinada.

 

O companheiro não se dignara notar a maravilhada exclamação. Durante quase todo o trajecto conversara... com o motorista, mas por pouco tempo.

 

Impressionada com o mutismo, que tinha qualquer coisa de hostil e agressivo, Elsa adoptara a mesma atitude. Gostaria de poder quebrar a barreira de gelo que o desconhecido tão inopinadamente surgido na sua vida para a tirar de angustiosa situação erguia entre eles. Mas sentia-se paralisada.

 

Não por ele lhe ser antipático; pelo contrário. Sentia-se atraída para Bruno, não sabia bem por que motivo, dado o seu comportamento. A máscara dura e o olhar glacial deviam tê-la repelido. Seria então por causa do tom doirado do rosto severo, que lhe emprestava um ar de mocidade e de sensibilidade, contrariando a expressão amarga que a intrigava?

 

”Aquele semblante tem qualquer coisa de doloroso e nostálgico pensava Elsa Direi quase... desorientado, apesar da atitude agressiva e categórica”.

 

Furtivamente, olhou para o braço esquerdo, hirto na manga, metida na algibeira de Bruno, que, de costas para ela, parecia muito seguro ao volante.

 

Aquele aleijão tão pouco visível e que parecia não o preocupar, não inspirava compaixão. Aliás, Bruno não era desses homens que aceitasse a compaixão dos outros.

 

Por outro lado, se ele a tivesse tratado com mais cordialidade e fosse outro, Elsa não teria conseguido sustentar o seu papel e não hesitaria em confiar-lhe o seu segredo. Mas, na verdade, aquela hostilidade bem vincada e o desprezo evidente desanimavam-na, obrigavam-na a calar-se, desvaneciam todo o impulso de sinceridade.

 

À medida que passavam as horas mais presa se sentia.

 

”Daqui a pouco será tarde” pensou quando Ludovico lhe abriu a porta do carro.

 

Ficou sentada, de sorte que os dois homens, o motorista e o patrão, poderiam supor desejar ela representar o papel de senhora, o que estava no carácter da verdadeira Lisbeth. O facto mais a atrapalhou.

 

Ao toque da busina, uma mulher surgiu no limiar da porta. Trajava severo vestido cinzento e avental preto atado na cintura. Quando se aproximou de Elsa, esta descobriu, sob a touca de cassa engomada, uns olhos negros, sobrepujados por espessas sobrancelhas, que a examinavam sem amenidade.

 

Esta é a Maria, a governanta da Bastide apresentou Bruno em voz breve boa tarde, Maria.

 

Boa tarde, senhor Bruno.

 

Falava com forte sotaque provinciano, a voz rouca, e, muda e empertigada, fitava a recém-chegada como a estátua do rancor.

 

O rapaz voltou-se vagarosamente para Elsa e declarou:

 

Tratá-la-ão por madame Gerard para não se confundir com minha mãe que nesta casa tem o direito ao título de madame Forestier.

 

Elsa olhou para a Catalã. Um trejeito semelhante ao dos buldogues retorcia-lhe os lábios.

 

Boa tarde, madame.

 

Dir-se-ia mais um insulto de que um cumprimento. Elsa foi sensível ao ambiente hostil. A tarde radiante, o parque verdejante e florido, com roseiras, mimosas, altas palmeiras, tudo perdeu o seu encanto.

 

Boa tarde respondeu em voz surda. Sentia-se cada vez mais angustiada. O seu desejo

 

seria poder voltar costas e fugir... mas para onde ir naquela região desconhecida? E” depois, fugir outra vez... defrontar as antigas ameaças, o tremendo perigo!

 

Enterrou as unhas na palma da mão para dominar os nervos tensos.

 

Entre, por favor convidou Bruno delicadamente.

 

No instante de penetrar naquela casa desconhecida, hesitou. Sentia a impressão de ter caído numa ratoeira. Ergueu o olhar desesperado para o companheiro. Teria ele adivinhado o apelo angustiado das pupilas verdes palhetadas de oiro? Franziu a testa e por uma fracção de segundo poisou nela o olhar impregnado de surpresa.

 

Entre repetiu com uma nota mais afável na voz

 

Elsa obedeceu. Ludovico seguiu-a com três malas, malas cujo conteúdo Elsa desconhecia. Quanto a Bruno, que retomara o aspecto carrancudo, afastou-se para o lado a fim de a deixar passar, e ficou a falar com a governanta.

 

Como está minha mãe, Maria? A Catalã abanou a cabeça.

 

Nem melhor, nem pior, senhor Bruno... Continua a passar as noites sem dormir. Diz que receberá e com olhar rancoroso indicou o vulto esbelto que se afastava madame depois de ter bebido o seu chocolate.

 

Onde está meu pai?

 

O senhor ainda não voltou.

 

Bruno relanceou um olhar para o enorme relógio que se encontrava perto da escada de madeira encerada.

 

Com certeza. Não reparei que ainda não são cinco horas.

 

Depressa, Maria! Conta, conta. Como é ela?

 

Clotilde, a cozinheira, rapariga forte, de formas opulentas, com as ancas cingidas por um avental azul, interrogava a governanta com impaciente curiosidade. Com as mãos contraídas no cabo da colher de pau, mexia o chocolate espesso e apurava o ouvido para o toque de campainha, com que a patroa costumava chamá-la, com receio de que soasse antes de saber a opinião de Maria sobre aquela cuja chegada era assunto de conversa na cozinha havia mais de uma semana.

 

Uma expressão de rancor desfigurou o rosto anguloso da governanta.

 

Tem os olhos verdes declarou, repetindo sem o saber, as palavras de Ludovico.

 

Olhos de gata! comentou Clotilde. Que disse ela?

 

Os lábios finos de Maria entreabriram-se num sorriso sem alegria.

 

Nada.

 

Nada? Não percebo...

 

Brinca às senhoras.

 

E este breve comentário exprimia o maior desprezo da pessoa que, pela sua situação subalterna, se torna severa para com quem, não pertencendo à classe privilegiada dos patrões, se permite imitá-los e pretende fazer parte da sua casta.

 

Isto promete! comentou Clotilde, abanando a cabeça, coroada por um penteado à espanhola, com os cabelos pretos arrepiados e presos num carrapito na nuca.

 

E o senhor Bruno?

 

Mas o aroma do chocolate em ebulição obrigou-a a voltar as suas atenções para a cafeteira. Esquecera-se de o mexer com a espátula, a bebida transbordara e o líquido escuro e fumegante correu para o fogão. Tirou rapidamente a cafeteira do lume, preparou o tabuleiro com um pano de renda e pôs o pão a torrar.

 

As pupilas negras de Maria, que por vezes se assemelhavam às de uma ave de rapina, brilharam.

 

Estou persuadida de que não a suporta afirmou com evidente satisfação.

 

Clotilde voltou as torradas.

 

Seja como for comentou a cozinheira usa o nome dos Forestier e o seu lugar é aqui.

 

Maria voltou-se como se tivesse sido mordida por uma serpente.

 

Está doida? É aqui o lugar dessa bruxa? Teria sido melhor que o tecto lhe tivesse caído em cima quando transpôs a nossa porta.

 

O que aí vai! comentou Clotilde, a rir Não me parece crime ter gostado do senhor Gerardo. Não era o seu preferido, Maria?

 

Por ser o mais fraco e mais vulnerável e foi por isso mesmo que ela o apanhou. Quando penso que morreu sem voltar aqui...

 

Evidentemente, é triste concordou Clotilde, saboreando o chocolate com ar guloso.

 

Pensar que essa maltrapilha entra nesta casa como conquistadora, quando a ele lhe fecharam a porta...

 

Como conquistadora! Tenho a impressão de que ninguém a aceitará bem e que a vida não lhe correrá em maré de rosas. Talvez em breve se vá embora.

 

O ódio transfigurou o semblante da Catalã.

 

Tornar-lhe-ei a vida tão difícil que não terá outra coisa a fazer senão deixar-nos em paz.

 

Clotilde olhou-a de soslaio.

 

Cautela, não vá ela partir acompanhada... As pupilas negras cintilaram.

 

Que não se lembre de fazer uma coisa dessas! Custar-lhe-ia caro!

 

Quer que lhe diga...

 

Cala-te, tagarela! ralhou uma voz rouca, do limiar da porta. Vocês duas são piores do que moinhos de palavras.

 

E Ludovico entrou, esboçando irónico cumprimento para Maria. Casado com Clotilde, esforçava-se por a subtrair à má influência da Catalã, que, em sua opinião, tinha mau olhado.

 

Chegas a propósito! exclamou Clotilde toda contente Vais contar-nos...

 

Não conto nada! atalhou Ludovico, mirando o generoso decote de sua mulher e tentando enlaçar-lhe a cinturaNada disso nos diz respeito. São assuntos de família em que não devemos intrometer-nos.

 

Fale por si! protestou Maria, furiosa, em tom desprezativo.

 

E, dando meia volta, abandonou a cozinha com ar empertigado.

 

Fizeste-a zangar, Ludovico, falando-lhe da família Forestier como se ela não fizesse parte dela observou Clotilde, que se defendia sem convicção das carícias do marido.

 

A pretexto de estar na casa há trinta e um anos, entende poder mandar em todos e chega a prejudicar-nos.

Clotilde sorriu e consentiu que o marido lhe beijasse a face cheia, afogueada pelo calor do lume. E, requebrando-se, pediu:

 

A mim podes dizer-me como ela é, Ludo, meu bichano.

 

A estridência da campainha dispensou o ”meu bichano” de responder. Apressada, Clotilde deitou o chocolate na leiteira e pegou no tabuleiro.

 

Logo à noite tens de contar-me tudo disse para Ludovico, antes de sair da cozinha, acompanhando a intimação com significativa olhadela.

 

Ludo cofiou o bigode.

 

Conta com isso, minha amiguinha afirmou com ironia, indo buscar ao armário uma garrafa do melhor vinho da adega dos Forestier, vinho que a mulher escondia ali em sua intenção. Ludovico, que servia Bruno desde o tempo em que os dois haviam feito o serviço militar, prezava-se de ser discreto, principalmente no que dizia respeito ao patrão, por quem professava uma dedicação de cão fiel. E, como é natural, esta discrição englobava toda a família Forestier.

 

Madame Forestier via aproximar-se do leito o rapagão com ombros de atleta que era o filho mais velho. Nunca tivera por ele a oculta predilecção que dedicava ao fraco Gerardo, tão gentil e tão vulnerável. Bruno sempre soubera defender-se, graças aos músculos sólidos e punhos de atleta. Mas, desde que regressara da Indochina, fisicamente diminuído pela mutilação com a qual aparentava não se importar a reeducação havia sido, de facto, maravilhosa, visto poder servir-se do braço quase como antigamente a ternura maternal revestia-se para ele de um cunho protector, que noutros tempos nunca se atrevera a manifestar-lhe.

 

Cansado com a longa viagem, filho? perguntou.

 

Fitava-o com os grandes olhos azuis, meigos e de expressão vaga, que fulguravam com um brilho desusado no rosto pálido, semeado de manchas avermelhadas. A trança de cabelos grisalhos caía sobre a gola da camisa de bretanha branca, bordada à antiga.

 

Os lábios de Bruno afloraram a face da mãe.

 

Não, não estou cansado... E a mãe, como passou a noite?

 

Madame Forestier pegou na leiteira de porcelana de Moustier e o aroma do chocolate espalhou-se pelo ambiente de mistura com o perfume de verbena, que envolvia a doente, cuidadosa e bem tratada.

 

Dormi mal. Estava ansiosa por saber como tudo se tinha passado.

 

O filho fixou-a com expressão inquieta.

 

Passou-se tudo muito bem. Não sei por que razão seria o contrário. Não estavam todos de acordo? Não foi a... Lisbeth quem lhes pediu para a receberem?

 

A anciã levara uma torrada à boca e saboreava-a com ar pensativo.

 

Bruno dirigiu-se a uma das três janelas que davam para o campo. Dali avistava-se parte do porto: algumas casas baixas, construídas sobre a rocha, à sombra das figueiras raquíticas, constantemente açoitadas pelo vento do largo. Ao longe, avistava-se pequena ilha, à qual o irmão Gerardo e ele tinham dado o nome de ”Encalhada” porque se parecia com um barco encalhado, tendo por mastros as árvores retorcidas que ali cresciam.

 

Nessa ilha tinham passado os melhores momentos da sua vida de garotos.

 

E o pensamento de Bruno recordou Gerardo... a sombra de Gerardo... Sim, porque Gerardo não era agora mais do que uma imagem apagada, desvanecendo-se dia após dia, na memória do irmão a quem tanto queria.

 

Enquanto Gerardo estava vivo, Bruno conservara o seu rancor, a decepção pela forma como o irmão atraiçoara a amizade que os unia, pelas palavras com que lhe ferira o orgulho. Alimentava a oculta esperança de que um dia viriam a encontrar-se e poderiam explicar-se de homem para homem. Liberto da influência da desprezível aventureira, Gerardo aceitaria as censuras do irmão. Bruno dar-lhe-ia uma boa ensaboadela, como no tempo em que se zangavam em garotos, como dois franganotes de combate... e voltariam a ser dois bons camaradas, unidos até à morte, como haviam sido em rapazes.

 

Mas Gerardo morrera. Jamais veria os seus olhos azuis, meigos, um tudo nada hesitantes, muito parecidos com os da mãe, o rosto de feições irregulares, a boca risonha e sensual, a expressão travessa e despreocupada... e essa ingénua fatuidade que emanava de toda a sua pessoa.

 

Gerardo, que adorava apaixonadamente o Sol, a vida, o mar, que corria ao vento, trepava às vergas dos navios como um gato, se atirava às ondas para nadar como um delfim, descobria enguias nas concavidades das rochas, esse Gerardo desaparecera, já não tinha paixões nem afectos, nem amor nem ódios... Gerardo estava para sempre imóvel como as pedras, a areia e as rochas.

 

Nervoso, enxugou com a ponta do dedo uma lágrima que lhe assomara aos olhos.

 

Foi nesse instante preciso que a voz de madame Forestier inquiriu:

 

Como é ela?

 

”Como é ela?” A pergunta que todos em casa faziam a si mesmos.

 

Como quer que seja?

 

Surpreendida com os modos bruscos do filho, madame Forestier volveu-lhe um olhar tímido.

 

Viste-a... não é verdade?

 

Vi-a, sim... É destas mulheres que podem modificar-se como querem, a todas as horas, conforme as circunstâncias. É uma comediante. Mudou o tom dos cabelos. O olhar não tem a mesma expressão, quase se poderia supor ser a cor diferente. A voz tornou-se mais grave e tem um sotaque inglês.

 

A voz dura e irónica foi subindo de tom até chegar à estridência, o que fez estremecer a doente. Poisou a chávena no tabuleiro e comentou:

 

Sim, tu viste-a antes... do casamento. ”Sim, vi-a disse Bruno consigo mesmo, com uma raiva surda, que a muito custo não exteriorizou Tentou seduzir-me e, por sua causa, Gerardo e eu batêmonos como dois moços de fretes. E foi esse o último encontro que tive com meu irmão!”

 

Nada disto disse à mãe, porque nunca o contara a ninguém. Limitara-se a dizer aos seus ter a sua missão falhado e que podiam considerar Gerardo perdido para sempre.

 

Foi isso que levou o pai Forestier a cortar a mesada ao filho, propondo-lhe, sem possibilidades de escolha, o lugar em África.

 

O casal partiu com o coração cheio de rancor. Lisbeth aceitara, numa espécie de desafio, supondo que, quando usasse o nome que lhe recusavam, poderia influenciar o sogro e levá-lo a revogar a sua decisão.

 

Mas não o conhecia bem. Gerardo, por seu lado, não alimentava ilusões. Mas adorava sua mulher e deixou-lhe acreditar que, mais tarde ou mais cedo, as suas esperanças se realizariam.

 

Bruno pensava com horror no que teria sido a vida conjugal do pobre Gerardo, esmagado pelas recriminações da rapariga, que dia a dia lhe devia ter feito pagar muito caro a derrocada das suas ilusões.

 

Seja como for concluiu a mãe não podíamos proceder doutra forma. Devíamos fazê-lo em memória do Gerardo.

 

A voz sumiu-se-lhe quando terminou:

 

Meu pobre filho!

 

Bruno não podia ver sua mãe chorar. Aproximou-se do leito, pegou-lhe na mão, beijou-lhe os cabelos grisalhos, tremendo por a sentir tão frágil, tão enfraquecida. A notícia da morte de Gerardo, embora não o tivesse visto havia sete anos, envelhecera-a prematuramente.

 

Tenho receio de que o teu pai a trate com demasiada severidade, Brunomurmurou a voz trémula, por entre os soluços que lhe sacudiam o peito magro. A Maria está furiosa por vê-la nesta casa.

 

A Maria não tem voz no capítulo.

 

As pupilas húmidas de madame Forestier ergueram-se para o rosto severo, que a íntima emoção mais endurecia.

 

Tu conhece-la. Mostra sempre a sua opinião. Está há tanto tempo connosco...

 

Isso não é razão.

 

Bem sei. Mas ela é muito capaz de ofender... a Lisbeth. E é talvez o que ela deseja para... se afastar definitivamente de nós. Tem uma arma na mão, Bruno...

 

A voz do rapaz tomou estridências metálicas quando afirmou:

 

Não a usará, prometo-lhe, mãe.

 

Não podes impedi-la de o fazer, meu filho! E, se isso acontecesse, eu teria um grande desgosto. O meu coração ficaria dilacerado... Meu pobre Gerardo!... É tudo quanto nos resta dele...

 

Fixava o semblante impenetrável do filho com suplicante expressão, e a mão descarnada contraía-se na manga do casaco.

 

Não tenha medo. Eu tratarei do assunto, sossegue.

 

O tom persuasivo e categórico produziu o efeito desejado por Bruno. Madame Forestier acalmou.

 

Julgo afirmou com evidente repugnância que terei de a receber agora. Dá-me o espelho, meu filho. Quero pentear-me... e pôr um pouco de pó de arroz... Diz à Maria...

 

Bruno largou as mãos de sua mãe, que a agitação fazia tremer.

 

Não se enerve, mãe. Tem tempo. Recebê-la-á quando estiver pronta. Não deve mostrar-se tão solícita com a nossa... hóspeda.

 

É essa a tua opinião, Bruno? Não quero mostrar-me desagradável. Quanto a gostar dela, isso não! afirmou com energia mas devo demonstrar-lhe certas atenções... Tem direito a isso, por muito pouco que nos interesse.

 

Bruno sossegou-a com um gesto.

 

Não se atormente. Por agora, está ocupada a desmanchar as malas e só Deus sabe quanto tempo isso levará. Trouxe um arsenal completo.

 

Ainda bem replicou madame Forestier, soltando um suspiro de alívio, isso permitir-me-á preparar para a entrevista, que vai custar-me imenso concluiu com voz lamentosa, deixando-se cair sobre as almofadas.

 

Ao abandonar o quarto de sua mãe, Bruno pensava que nunca em sua vida havia odiado tanto uma pessoa como odiava essa tal Lisbeth, de voz falsa, sorriso mentiroso, calculada distinção, essa Lisbeth que conseguia tomar a aparência de uma mulher simpática e até, Deus lhe perdoasse, de uma mulher atraente!...

 

Sim, Lisbeth, aquela bruxa, era muito forte!

 

Consternada, Elsa olhava para os vestidos que acabava de tirar da mala e estendera em cima da cama. Já havia muitos nas costas da poltrona, no sofá e pendurados no velho armário forrado de tecido de Jouy, num tom rosa pálido.

 

Nenhum daqueles vestidos lhe convinha, nenhum era do género dos que estava habituada a usar.

 

Eram quase todos vestidos de verão, muito decotados, os que a verdadeira Lisbeth devia ter adoptado para seu uso enquanto se encontrava na plantação africana.

 

Mais alguns vestidos de cerimónia, ainda novos que, certamente, a falecida devia ter comprado quando de regresso à Europa demasiado elegantes para quem estava de luto, muito espalhafatosos para Elsa.

 

E, naquele montão de trapos, nem um só preto. Lisbeth não devia ser muito rigorista e não se conformara com trajar de preto para manifestar a sua dor de viúva. Além disso, não confessara ela a Elsa que não tinha motivos para chorar o marido?

 

Pobre Lisbeth! Mal supunha ela, quando se lhe referia com tanta frieza, com um cinismo que tanto impressionara a imprevista hóspeda, estar tão próximo de se lhe reunir e de que maneira brutal e trágica! No próprio carro da sua interlocutora!

 

Decididamente, na vida existem circunstâncias, coincidências, verdadeiramente estranhas! Elsa toda a vida lamentaria ter-se encontrado no caminho de Lisbeth. Sem o encontro e o que se lhe seguiu, a infeliz estaria ainda viva. Seria ela quem se encontraria no seu lugar, naquele quarto onde Elsa viera parar por um conjunto de factos, cada qual o mais extraordinário... enquanto Elsa, no seu carro, continuaria o caminho para um destino incerto.

 

Agora, privada de tudo, de documentos pessoais, de dinheiro, das suas coisas e até da própria personalidade, via-se reduzida a revestir a da falecida, enquanto os restos irreconhecíveis desta seguiam para o ponto donde Elsa se vira obrigada a fugir. Que coisa estranha e dramática!

 

Como acabaria tudo aquilo? Aparentemente, Lisbeth não era desejada ali. Em Bruno taciturno e distante e mais ainda na mulher que a recebera à chegada essa tal Maria, cuja figura sinistra se assemelhava às de Goya Elsa adivinhara antipatia, desconfiança, quase ódio.

 

No decurso da viagem não encontrara ocasião para iniciar as suas confidências. A atitude glacial de Bruno não a incitara a fazê-lo e a presença do motorista constrangia-a. Depois, desde a chegada, ainda não conseguira encontrar-se a sós com o rapaz.

 

No entanto, como desejava uma explicação para pôr a verdade a claro! A usurpação repugnava ao seu carácter leal e o papel que desempenhava cada vez lhe parecia mais odioso. De princípio, uma única coisa a preocupara: afastar-se do local onde se tinha dado o desastre e onde se arriscava a ser descoberta e apanhada por aqueles de quem havia fugido.

 

Mas, custava-lhe, horrivelmente manter por mais tempo o engano.

 

Por outro lado, vendo-se sem documentos que provassem a sua identidade e tendo, tacitamente, aceite a substituição, encontrava-se perante uma situação cruel e embaraçosa. Como encarariam a aventura aqueles em casa de quem entrara por meio de uma fraude?

 

À medida que as horas iam passando, mais se via presa nas malhas do absurdo romance, numa rede que mais e mais se apertava à sua volta.

 

Se a pusessem na rua e lhe recusassem auxílio, o que seria dela, na situação em que se encontrava, sem dinheiro e não tendo meios de provar a sua identidade?

 

Não se arriscaria a sofrer graves sanções, como ser detida pela polícia por falta de documentos? Se fosse mandada para a sua pátria, o seu procedimento no assunto, o facto de deixar acreditar ser ela a vítima do desastre e de ter seguido sem protestar os parentes de Lisbeth, quando lhe bastaria dizer uma palavra para restabelecer a verdade, nada disso falava em seu favor, tudo a tornava suspeita e confirmaria as acusações que os seus inimigos levantavam contra ela.

 

Para qualquer lado que se voltasse, via-se num beco sem saída. Acabou por decidir deixar correr os acontecimentos. Ali, não prejudicava ninguém, ao tomar o lugar de Lisbeth, que, pobre dela, havia pago com a vida a sua imprudência... Arriscar-se-ia a ser desmascarada por qualquer pessoa mais esperta do que Bruno ou o motorista. A carta encontrada no saco de Lisbeth tranquilizava-a a esse respeito, pois provava que na Bastide a viúva de Gerardo era apenas conhecida pela fotografia. E num retrato a semelhança podia iludir.

 

Fatigada com todas estas tergirversações, com as têmporas marteladas pela enxaqueca, foi tomar um banho, o que a acalmou um pouco.

 

Depois destas abluções, envergou o vestido alfaite que trouxera na viagem, resolvendo que no dia seguinte arranjaria o menos extravagante dos trajos encontrados na mala de Lisbeth. Havia uma saia e uma blusa que poderiam servir-lhe.

 

Quando acabava de se vestir, ouviu uma espécie de arranhadela na porta, um toque quase imperceptível ao qual não deu atenção de princípio. Mas, como a série de pancadinhas se tornasse mais forte, gritou:

 

Go in! Entre, por favor!

 

Vendo que a intimação não dava resultado, dirigiu-se à porta e abriu-a. De princípio, viu apenas o corredor ermo. Mas o espanto cessou quando, ao baixar a vista, encontrou dois olhos claros fitando-a e examinando-a com curiosidade.

 

Hello! exclamou, surpreendida e encantada.

 

Tinha diante de si um garotito de quatro anos, com os cabelos pretos muito encaracolados, cútis doirada pelo Sol, envergando um bibe azul com alças e, nos pés, sandálias brancas. Apesar da temperatura agradável, usava ainda uma camisola de lã.

 

A criança observava-a sem dizer palavra, com essa gravidade própria dos pequenitos.

 

Queres entrar? perguntou Elsa, afastando-se para o lado a fim de o deixar penetrar no quarto.

 

O miudinho não se fez rogado. Examinou o aposento com um olhar curioso e depois voltou a sua atenção para a ocupante do quarto.

 

Elsa sorriu-lhe.

 

Bom dia.

 

Bom dia respondeu a criança. Conservava-se diante dela, aprumado nas pernitas robustas. Tinha uma carita adorável, boca fresca como uma flor e expressão admirada.

 

Elsa ajoelhou para se pôr à sua altura e pegou-lhe na mãozita gorducha.

 

Como te chamas?

 

Carlos balbuciou a criança, sem desviar a vista da sua interlocutora.

 

Que idade tens, Carlos?

 

Quatro anos e meio, parece-me.

 

Já és um homenzinho, pelo que vejo.

 

Sou, sim respondeu Carlos E o meu papá morreu, sabias?

 

Elsa ergueu-se, assaltada por brusca suspeita.

 

E tu és a minha mamã acrescentou o garoto com evidente satisfação.

 

Eu! exclamou Elsa.

 

Posso dar-te um beijo?

 

Os bracitos estendidos e a expressão ávida de ternura do rostozinho que se lhe oferecia foram despertar no coração de Elsa fibras desconhecidas.

 

Meu amorzinho! murmurou, comovida, erguendo a criança nos braços para a elevar até si.

 

A criança aninhou-se-lhe contra o peito como gatito friorento e encostou meigamente a face à de Elsa. Este contacto provocou em Elsa desconhecida emoção. Havia muitas semanas mesmo antes de ter empreendido a aventurosa fuga, quando lá longe se debatia nas malhas de fantástica situaçãovivia no mais terrível isolamento. O gesto espontâneo da criança confiante e a sua presença representavam para ela como uma fonte encontrada de repente a meio de árido deserto.

 

Agora ficas sempre comigo? perguntou a vozita infantil.

 

Gostarias que ficasse?

 

Continuava com a criança nos braços, como se apertasse contra si um ramo de flores, admirada com a sua leveza e perfume.

 

Tu és a minha mamã...

 

Mas... atalhou Elsa, perturbada.

 

E não és má, pois não?

 

Não! Não sou, não. Má porquê?

 

A Maria dizia-me que a mamã era uma mulher má e que eu não devia gostar dela. Mas afinal gosto, sabes?...

 

E com a mãozita afagou os cabelos doirados de Elsa.

 

És parecida com uma fada...

 

Amorzinho...

 

E ria, inexplicavelmente feliz. O corpito tépido contra o seu e a confiança do pequenito comoviam-na.

 

Vives aqui? perguntou.

 

Vivo. O quarto dos brinquedos deita para o terraço e fica ao lado do escritório do avô.

 

Quem é o teu avô?

 

O garoto abriu muito os olhos.

 

O avô Forestier, quem havia de ser!

 

O avô Forestier... Em toda a evidência, a criança pertencia à família.

 

E uma suspeita começou a despontar no espírito de Elsa, uma suspeita leve, porque ainda não conhecia bem toda a família dos Forestier.

 

Porque afirmas ser eu a tua mamã?

 

Porque o és. Espero por ti há muito tempo. A avó dizia-me que estavas muito longe e não podias vir. É verdade que há leões em África? Viste muitos?

 

Elsa pôs a criança no chão. Acabava de adivinhar tudo: Carlos era filho de Lisbeth e de Gerardo.

 

Para que me pões no chão? Estás zangada comigo?

 

Não, meu filho afirmou Elsa, voltando a pegar-lhe e rodeando-lhe o pescoço com o braço.

 

Deixa-me estar assim. Não te vais embora, pois não?

 

Não prometeu Elsa, muito comovida.

 

Nesse instante, ouviram-se passos precipitados no corredor. Elsa deixara a porta entreaberta quando tinha feito entrar a criança. E, antes que pudesse reagir, o batente foi brutalmente empurrado e Maria entrou no quarto como uma tromba.

 

O olhar furioso caiu imediatamente na criança, que se refugiara contra as saias de Elsa e depois subiu, carregado de ódio, para o seu semblante surpreendido.

 

Resmungou uma frase em catalão, num tom furioso e agressivo e, num gesto brusco, levou o pequenito, que esperneava como um diabinho.

 

Estamos na hora de deitar. Não comecemos com maus hábitos proferiu, voltando-se para Elsa, que ainda não conseguira recuperar a calma.

 

Depois de a ter medido de alto a baixo com olhar ameaçador, voltou as costas, indiferente aos pontapés que o seu prisioneiro lhe atirava.

 

Quero a mamã... quero ficar com ela! Imóvel, Elsa escutava a vozita infantil gritar aos quatro ventos:

 

Quero a mamã!

 

Encostou-se à parede. O coração palpitava-lhe, esmagado pela emoção, enquanto os mais desordenados pensamentos lhe cruzavam o cérebro.

 

Lisbeth tinha um filho, o pequenino Carlos, que a família parecia ter adoptado. Recordou as frases proferidas pela desaparecida, durante o serão na casita rústica. Lisbeth afirmara dispor de uma arma, um meio para se vingar da família de Gerardo, do desprezo a que esta a votara. Não seria Carlos esse instrumento de vingança?

 

Decididamente, mais uma complicação surgia naquela vida já de si tão complicada. Esta, no entanto, não lhe desagradava. Recordava as pupilas azuis e os bracitos abertos, num apelo de ternura. De todos aqueles que encontrara no seu caminho, desde que tinha entrado no carro de Bruno Forestier, era o único que não lhe manifestara desconfiança e hostilidade.

 

Essa convicção aqueceu-lhe a alma.

 

Aquele primeiro jantar por muito tempo ficou de memória a Elsa; havia sido como uma espécie de sonho no qual participara como um autómato, instalada na alta cadeira de espaldar.

 

Nessa ocasião, foi apresentada ao chefe da família. Alto, robusto, mas não gordo, Vicente Forestier, aos sessenta e cinco anos, conservava o vigor dos cinquenta; os cabelos cortados à escovinha, ainda bastos, emolduravam o rosto corado onde brilhavam dois olhos escuros de expressão imperiosa, profundamente enterrados nas órbitas.

 

Tudo, na sua atitude, denunciava o homem de negócios, mas o contacto com o mar e com os marinheiros dava-lhe um cunho especial. Não seria difícil imaginá-lo com a farda e o boné de comandante, a bordo de um grande navio. De si para si, Elsa pensou que o velho tinha classe, a classe de um rico burguês, duro e autoritário.

 

Quando Bruno, muito cerimoniosamente, apresentou ao pai a nova hóspeda da Bastide, Elsa descia do quarto de madame Forestier. A entrevista emocionara-a bastante.

 

Pressentiu logo a desconfiança da doente e nunca a situação se lhe afigurou tão difícil; estava sobre brasas, enquanto a voz trémula da infeliz mãe falava do filho a quem não vira durante sete anos e que morrera longe dela.

 

A certa altura, não conseguindo dominar-se, apertou a cabeça nas mãos e deixou-se cair para trás, na cama.

 

Elsa, perturbada e comovida, aproximou-se.

 

Madame... que posso fazer por si? Estas palavras foram proferidas com esforço, mas a sua comoção era sincera.

 

Saber que estava a abusar da confiança daquela pobre senhora, chorosa e sem defesa, era-lhe intolerável. Procurava o meio de dizer-lhe a verdade e, no meio da sua desorientação, não sabia por onde começar a sua história.

 

A doente, por fim, descobriu o rosto fatigado, coberto pelas madeixas grisalhas que haviam escapado da trança. As pupilas azuis fitavam Elsa com surpresa e, ao descobrir a compaixão e a tristeza expressa nas feições e nas pupilas verdes, à surpresa juntou-se a esperança.

 

Não a supunha assim disse baixinho, como se falasse consigo mesma.

 

As faces de Elsa ruborizaram-se. Como prolongar a mentira perante aquele ser tão fraco?

 

Madame... eu...

 

Não me trate por madame...

 

E esboçou leve sorriso que a tornou ainda mais frágil. As lágrimas continuavam a brilhar-lhe na extremidade das pestanas.

 

Sei bem que, depois do que se passou, não pode tratar-me por mãe... Chame-me mamie, como o seu Carlitos?

 

Mas...

 

As mãos transparentes ergueram-se numa súplica.

 

Não vai levá-lo, pois não, Lisbeth? Não vai tirar-nos tudo quanto nos resta do meu pobre Gerardo?

 

Não pense nisso... Escute, madame, quero dizer-lhe uma coisa...

 

Eu sei e o rubor da febre avivava-lhe as faces quis-nos mal. Meu marido é muito rígido e inflexível. é esse o seu carácter, mas não é implacável, acredite. Sempre lamentou ter sido tão brusco nesta infeliz história. Não a conhecíamos e agora tenho a impressão de que nos deram de si uma imagem falsa. O meu pobre Bruno enganou-se. Baseou a sua opinião pelo que diziam...

 

Justamente, impõe-se que saiba... insistiu Elsa com desespero.

 

Não quero saber coisa alguma. Bastou-me o seu gesto de nos ter mandado o Carlos, há cinco anos.

 

Abanou a cabeça grisalha e a trança varreu a gola da camisa.

 

Aqui todos afirmaram ter sido desejo do Gerardo que educássemos o filho. O clima de África não convinha à criança.

 

E apertou o peito com as mãos magras.

 

Tive a impressão de tornar a ver o meu filho no tempo em que era só meu, pouco depois de nascer. E o desgosto pela ausência do Gerardo atenuou-se um pouco. O Carlos preencheu o vácuo horrível deixado pela sua partida. Porém, desde que nos escreveu, comunicando-nos o desejo de vir viver connosco... Tinha tanto medo que nos tirasse a criança, visto o Gerardo ter morrido e todos os direitos serem seus, agora...

 

Justamente, não tenho qualquer direito. O semblante da mãe iluminou-se numa expressão de louco reconhecimento e alegria.

 

É muito boa, minha filha. Apesar de tudo quanto disseram a seu respeito, a despeito das aparências, sabe o que é ser mãe. Não teria suportado que me separassem do Carlos. Mais um desgosto a acrescentar a tantos outros! suspirou Não, não o poderia suportar!...

 

Esgotada pelo esforço e pela comoção, deixou-se cair para trás e cerrou as pálpebras.

 

Desorientada, transtornada pelo desenrolar dos acontecimentos de uma situação que, por muito que fizesse, não conseguia modificar, Elsa balbuciou:

 

Please, madame, listen... quero dizer... está disposta a ouvir-me?

 

Involuntariamente, falava inglês, esquecendo-se do francês.

 

Madame Forestier... madame...

 

O sotaque tornara-se mais forte... e os pensamentos baralhavam-se no cérebro.

 

Os olhos azuis entreabriram-se. A doente sorriu docemente.

 

Trate-me por mamie murmurou.

 

Elsa contemplou o rosto pálido e magro da doente, que já mergulhara no sono, o que a tornava surda e inacessível às suas confidências e revelações.

 

Curvou-se desanimada, abandonando-se à corrente que a arrastava.

 

...A sala de jantar da Bastide era um aposento abobadado, com largas janelas e um arco à espanhola. Naquela época do ano anoitecia tarde e ainda não haviam acendido o lustre de ferro forjado.

 

Do seu lugar, Elsa via o mar iluminado pelos raios do Sol poente. Seriam sete da tarde. Na Bastide jantava-se cedo, logo que o dono da casa chegava. A ilhota escura, no meio da lagoa, mais do que nunca se assemelhava a uma barca naufragada.

 

Ludovico, mudo e empertigado, arvorado em mordomo na hora das refeições, passava as travessas. Apagara-se o sorriso e o bigodinho atrevido tomava ares solenes. Em cima da grande mesa, os quatro talheres estavam como que perdidos. No último momento, a sombria Maria havia retirado um, o de um conviva que faltava, pensou Elsa, limitando-se a registar o facto.

 

De princípio, reinou certo constrangimento entre os comensais. Com a cabeça pendida para o prato, Elsa assemelhava-se a uma colegial castigada. Por várias vezes os dois homens a tinham observado, furtivamente, enquanto trocavam frases insignificantes.

 

Em toda a evidência, o armador estava desconcertado pela atitude e aparência da nora indesejável, a quem não imaginara daquela maneira.

 

Os lábios de Bruno contraíam-se num trejeito irónico. E o pai traduzia:

 

”A sua reserva e distinção não passam de bluff. É uma comediante de mão cheia”.

 

Mas, fosse como fosse, Bruno sentia-se perturbado. Aquela Lisbeth digna e retraída, com a sua beleza frágil, melancólica doçura, olhos admiráveis, que exprimiam não sabia bem que preocupação latente ou íntima inquietação, tudo isto era diferente da primeira imagem que o impressionara e sempre recordava, talvez modificada pela memória e carregada pelo rancor. Por fim, Vicente Forestier interpelou a suposta nora. O nariz autoritário e um tudo nada recurvo, a boca dura e fria conferiam àquele rosto aristocrático um ar de mocidade e de persuasão ao qual bem poucos resistiam.

 

É pouco amiga de conversar, Lisbeth. Teria engolido a língua, por acaso?

 

Falava-lhe como se o fizesse a uma garota. A verdadeira Lisbeth ter-se-ia revoltado e responderia à letra, salvo se pretendesse conquistar o ”velho” era assim que tratava o sogro com um desses olhares ”assassinos” dos quais tinha o segredo.

 

Bruno concentrou sobre Elsa toda a sua atenção, apurada pela curiosidade.

 

Elsa deixou ver o semblante pensativo e ele ficou surprendido com a expressão de desânimo que revestia as feições delicadas, essas feições que, de hora a hora, reconhecia menos, se lhe tornavam desconhecidas.

 

Todavia, não tinha sonhado a cena decorrida no carro, sete anos atrás? No seu coração humilhado, apesar do tempo decorrido, a ferida sangrava ainda. Como confrontar a imagem da rapariga impudica e atrevida, cujo perfume agressivo o perseguira durante muito tempo e sempre associava à recordação da dolorosa questão com Gerardo, à amargura da decepção sofrida, sim, como confrontá-la com a nova Lisbeth, delicada e altiva, ansiosa e triste e de incontestável distinção?

 

Seria possível que seis anos de África a tivessem modificado a tal ponto, melhorado, beneficiado até fazerem dela uma criatura completamente oposta ao que fora antes, como duas máscaras de espantoso Janus?

 

Por tal forma que se via obrigado a lutar contra a atracção que o impelia para ela, uma atracção muito diferente da perturbação dos sentidos experimentada com o contacto de Lisbeth e da qual severamente se censurara como de uma culpa vergonhosa.

 

Não tenho muita coisa a dizer replicou Lisbeth, cruzando os olhos verdes com as imperiosas pupilas do armador. Peço-lhe desculpa por ser tão desagradável conviva.

 

Nada disso... nada disso! protestou Vicente Forestier Acho muito natural que se sinta fatigada depois de tão longa viagem e das tristes provações por que passou nestes últimos meses acrescentou com ar sombrio. Seria melhor não falar no passado, não acha?

 

Elsa fez um gesto vago e olhou para Bruno, que retomara a expressão glacial tão sua conhecida já; depois olhou para o armador, que, se não se mostrava muito caloroso, pelo menos, tentava ser delicado.

 

Ainda não pode conhecer a vida na Bastide. Suponho que lhe agradará... pelo menos durante algum tempo. O tempo de se refazer dos seus desgostos. Depois pensará como dirigir o futuro.

 

Evidentemente, receava que a nora se agarrasse ali.

 

Tomando o silêncio de Elsa por aquiescimento, continuou:

 

Só lhe pedimos uma coisa, não faça escândalo.

 

Ao ver o gesto de protesto, esboçado pela sua interlocutora, acrescentou com benevolência:

 

Sim, não me parece disposta a isso... e eu fui o primeiro a sugerir que não se falasse do passado. Desculpe-me.

 

Bruno corou. Começou a descascar um pêssego com concentrada atenção, servindo-se habilmente da mão aleijada.

 

O armador serviu-se da geleia de laranja e prosseguiu em tom doutoral:

 

Uma coisa deve ser discutida imediatamente. A situação de Carlos. Está de acordo?

 

Sobre quê? inquiriu Elsa maquinalmente.

 

O armador elevou a voz numa espécie de aviso e falou com certa dureza:

 

Sobre o Carlos. Não creio que viesse com a intenção de fazer chantagem?

 

A palavra sobressaltou Elsa, que se sentiu dominada pela cólera. Por instinto, identificou-se com a desaparecida, essa Lisbeth que lhe apresentavam, desde que entrara naquela casa, tanto pela atitude de todos eles como pelas palavras, sob um aspecto bem pouco atraente.

 

Sentiu que devia tomar a sua defesa. As pupilas verdes perderam, de súbito, toda a sua doçura melancólica. Cravou-as, cintilantes de cólera, no rosto austero e rígido do sogro de Lisbeth.

 

Que significam todos esses ataques? exclamou, fremente de indignação Porque me acusam gratuitamente não sei de que tenebrosos desígnios? É assim que tratam a mulher digo antes a viúva do seu filho? É esta a sua hospitalidade?

 

Vincente Forestier sobressaltou-se. As sobrancelhas uniram-se e os olhos não foram mais do que uma fenda cintilante entre as pálpebras quase cerradas. O nariz como se tornou mais recurvo.

 

Bem! Volta a ser o que é, minha amiga. Peço-lhe perdão, não tive intenção de a atacar, mas apenas de a avisar...

 

E sublinhava a palavra como se saboreasse um bombom.

 

Elsa encolheu os ombros com irreverência. A expressão era hostil e o olhar brilhante.

 

Bruno suspirou baixinho, como se estivesse mais aliviado e dirigiu à sua vizinha um olhar sarcástico. Finalmente, voltava a encontrá-la, sem equívoco possível. Preferia assim. A perturbação que principiava a dominar-lhe o cérebro dissipou-se.

 

O olhar cintilante de Elsa cruzou com o seu. Irónico, ele esboçou imperceptível sorriso.

 

Ainda não acabou de distilar o seu veneno? proferiu ela, dirigindo-se-lhe Vamos, está morto por isso. Porque espera? Que terrível acusação vai lançar sobre mim para eu corresponder à ideia que faz a meu respeito?

 

Bruno inclinou-se, sorridente:

 

Penso que deve proceder, precisamente, conforme o seu carácter, minha amiga. Cabe-nos a nós fazer-lhe compreender onde está o seu interesse.

 

Então foi como se um demónio desconhecido impelisse Elsa. Reagiu exactamente como teria reagido Lisbeth, a desaparecida que supunha ter o dever de defender, por lhe ter usurpado o lugar e causado a morte.

 

Empurrou bruscamente o prato e a cólera vibrava-lhe na voz quando protestou:

 

O interesse... o interesse... é só isso o que conta, o único móbil que domina esta casa? Foi o interesse que os levou a afastar o Gerardo e os levou a repelir uma pobre rapariga que, não tendo fortuna e não sendo da sua casta, era considerada como um zero... Foi também o interesse que os levou a educar o filho de Gerardo, para demonstrarem uma generosidade muito lisonjeira para a vossa vaidade... Isso é... quase sufocava de raiva é indigno! Supõem-se uns gentlemen? Pois eu digo-lhes que é odioso abrir a porta à viúva de um filho para a acusarem de vilanias e insultá-la debaixo deste tecto.

 

Calou-se sufocada. As lágrimas brilhavam-lhe nos olhos e os lábios tremiam-lhe.

 

À medida que Elsa proferia esta tirada o armador corava cada vez mais. As narinas fremiam e no olhar sombrio fulgiu um lampejo ameaçador. Depois, como ela se calasse, apertando uma contra a outra as mãos esguias, acalmou-se de repente. A confusão e o espanto substituíram a irritação expressa no semblante. Consultou o filho com o olhar, mas este, com a cabeça baixa, não fazia um gesto,

 

Vamos, Lisbeth, não se exalte assim proferiu com afectada benevolência Não desejamos insultá-la, mas sabe que não ignoramos as questões tidas com o Gerardo, precisamente por causa do Carlos.

 

E, erguendo a mão num ar ameaçador, continuou:

 

Quando confiou o pequeno à ama que, a pedido do nosso filho, foi buscá-la para a trazer para a Europa, para nossa casa, admitiu que, mais tarde, ela pudesse servir-lhe para fazer pressão sobre nós. Não negue. Um ano depois, escreveu-nos, dizendo morrer de saudades de seu filho e estar resolvida a tirá-lo da nossa companhia. Minha mulher não falo de nós prendera-se tanto ao neto que ficou aterrada com a ideia de o perder. Escrevi a meu filho. Nunca recebeu as minhas cartas. Suponho que à sua intervenção se deve esse desvio. Mais tarde recebi uma carta sua afirmando que as suas tristezas seriam atenuadas mediante uma compensação material. Concorde que não levei muito tempo a compreender. Um cheque... substancial acalmou imediatamente os seus escrúpulos de mãe.

 

Embora não estivesse em causa, esta declaração irónica fustigou Elsa, que não conseguiu evitar um trejeito de repugnância. O que descobria sobre a personalidade de Lisbeth enchia-a de repulsa.

 

Ficou calada, com a cabeça baixa. Sentia as faces a arder, a vergonha esmagava-a, numa espécie de ricochete.

 

Por entre os dedos, via o semblante impassível de Bruno, que escutava em silêncio, os lábios contraídos num vinco desdenhoso.

 

Com amarga satisfação, regozijava-se por encontrar a verdadeira personalidade de Lisbeth, que Elsa conseguira fazer vacilar na sua memória e no seu rancor. O arrebatamento da cunhada ressuscitara a personagem e as palavras do pai completavam-na.

 

Concorda com tudo isto, não é assim? prosseguiu o armador Concorda também que, ao recebermos a sua carta, ficássemos um pouco desconfiados. Verifico, parece-me, que os nossos receios eram vãos. Não nos reserva alguma surpresa desagradável? Só desejo acreditá-lo. Além disso, deve compreender que a felicidade da criança, principalmente, agora que já não tem pai e a voz alterou-se-lhe ao recordar o filho desaparecido, cuja recordação punha uma sombra dolorosa na sua serenidade de homem forte e vitorioso depende da benevolência da família paterna.

 

Esperou pela resposta, que não veio. Elsa continuava com o rosto oculto nas mãos.

 

Muito bem. Está tudo dito concluiu o armador, mudando de tom Não falemos mais no assunto.

 

Levantou-se. Bruno imitou-o e a sua alta estatura avultou ao lado da do pai, porém, mais esbelta.

 

Elsa levantou-se da mesa ao mesmo tempo. Sentia-se infinitamente cansada e acabrunhada. Mais do que nunca, tinha a impressão de se debater, presa nas malhas de apertada rede.

 

O armador aproximou-se e estendeu-lhe a mão.

 

Façamos as pazes. Boa noite, minha filha. Seja benvinda a nossa casa... Quero ainda dizer-lhe uma coisa. A Maria, essa espécie de selvagem que é nossa criada, educa muito mal o seu filho. Minha mulher, como pôde verificar, infelizmente, devido a sua precária saúde, não pode preocupar-se com ele. Tenciona tomar conta dessa criança, que, apesar de tudo, precisa da mãe?

 

Elsa corou. Maquinalmente, correspondeu ao gesto de Vicente Forestier e estendeu-lhe a mão.

 

Estou disposta a ocupar-me do Carlos murmurou, de novo dominada pelo complexo de timidez.

 

Dizia ”Tcharles” à inglesa, num sotaque que tinha o condão de irritar Bruno.

 

Discretamente, Ludovico acendeu o lustre, porque a noite já chegara. A claridade bateu na cabeça de Bruno, fazendo brilhar nas fontes alguns cabelos brancos, que passavam despercebidos à luz do dia.

 

Na sala tem um aparelho de rádio indicou quando o armador saiu.

 

Prefiro sair e dar uma volta pelo jardim declarou Elsa friamente Boa noite.

 

Boa noite.

 

Sempre aquela nota hostil e de desprezo na voz de Bruno... Elsa tinha vontade de chorar e confessava a si mesma que, noutras circunstâncias, gostaria de ter o rapaz por amigo.

 

O calor do dia ainda se fazia sentir no terraço, fugazmente iluminado por uma chuva de estrelas cadentes. Perto do mar, junto das casas baixas, as raparigas devaneavam, sentadas na areia quente, enquanto os rapazes, envergando camisas sem mangas e calças azuis, com as mãos nas algibeiras, as olhavam de alto e confundiam, por vezes, as vozes másculas com as vozes frescas, que cantavam para as barcas, cujos faróis picavam a noite.

 

Por vezes, essas vozes deixavam de se ouvir. Havia risos, um apelo no mar, de uma barca para a outra, sonoro e alegre, ao qual respondiam outros apelos. De longe em longe, nesta confusão de ruídos havia um intervalo de silêncio. Elsa povoava esses silêncios insólitos com murmúrios apaixonados, beijos, confidências, como se estivesse junto dessa mocidade irmã da sua, reunida junto da margem, da água sussurrante, naquela noite quente de Verão, que os exaltava com toda a sua magia.

 

Dentro de si, escutava todos esses ruídos imperceptíveis, recusando-se a evocar recordações. Apesar disso e contra sua vontade, elas emergiam como vela isolada que surge detrás de um promontório e, de súbito, arrasta outras consigo, avança, primeiro hesitante e depois mais firme à medida que o porto surge da bruma.

 

E essas recordações tomavam, pouco a pouco, a sua força definitiva, transformavam-se em cenário... rostos que se relacionavam com um só: o do pesadelo de Elsa.

 

Todavia, esse rosto era considerado como pesadelo apenas para a infeliz vagabunda, que, aureolada pelos cabelos doirados, recostava a cabeça no espaldar da cadeira de verga. Para os outros, Arnold nada tinha de pesadelo. As mulheres apreciavam o seu olhar acariciador, os seus modos brandos e distantes, o castanho doirado dos cabelos bastos e o veludo da sua voz. Em resumo, achavam-no atraente.

 

Elsa também apreciara tudo isto... fora tão cega como as outras. Até muito tarde, continuara a ser a colegial ingénua e apaixonada que, nos jardins do colégio, ansiava pelo toque da sineta indicando a chegada do bem-amado.

 

Triste bem-amado... Despertara à força do sonho, despertara como quem morre, implacàvelmente.

 

na sua desorientação, no isolamento que o belo Arnold tinha criado em sua volta, viu-se forçada a tomar as mais loucas resoluções... O terrível choque sofrido ao ter conhecimento da duplicidade de Arnold envolvera-a numa maré de horror e tinha fugido estupidamente, como se não existissem outras soluções, outros remédios para a sua infelicidade.

 

No entanto, podia tê-los encontrado, conseguir o auxílio, o amparo que lhe faltava. Mas não presentemente: a fuga e as circunstâncias em que a realizara, tudo quanto dela havia resultado: o escândalo e, por último, o drama que arrastara a infeliz Lisbeth, tudo isso erguia o irremediável entre ela e o passado. Já não podia voltar atrás.

 

Cruzou os braços no peito, num gesto friorento e estremeceu. O futuro apresentava-se-lhe com sombrias cores. A solidão lançava-lhe um manto de chumbo sobre os ombros. Estava gelada até ao mais íntimo da alma.

 

Lá em baixo, os ruídos cessavam e as casas do porto tornavam-se invisíveis sob o céu luminoso. Algumas luzes brilhavam nas janelas. Na costa acendera-se o farol. Elsa contemplava o seu facho brilhante e regular, que lhe fazia sinais, como se lhe piscasse o olho. Aquele ritmo amigo como que embalava a sua dor.

 

Maquinalmente, contava os relâmpagos e quando a luz desaparecia, espreitava ansiosa o momento em que de novo brilhasse.

 

Bruscamente, a solidão tornou-se-lhe intolerável. Teve o desejo irresistível de falar fosse com quem fosse, de encontrar um pouco de humanidade, de se abandonar e confiar as suas penas. Escutou o ruído de passos que faziam estalar o saibro do jardim e depois subiam a escada. Verificou ser Bruno, de regresso do passeio nocturno e solitário, quando viu brilhar a ponta esbraseada do cigarro por entre as sombras da noite.

 

Sem reflectir, num gesto espontâneo, levantou-se, deu alguns passos nas trevas e, antes que ele transpusesse a porta de casa, estava junto dele, iluminada pelo clarão do lampadário aceso no vestíbulo.

 

Escute, Bruno. Preciso de falar-lhe... é muito importante.

 

Ele parou. O cigarro descreveu uma curva no ar quando o atirou fora. Elsa seguiu com a vista a trajectória luminosa e em seguida ergueu-a para o rosto sombrio que tinha diante de si, no halo de luz projectado no limiar da porta.

 

Precisa de qualquer coisa? inquiriu ele com glacial cortesia.

 

”Apenas de um pouco de simpatia murmurou Elsa intimamente, desorientada pela voz que parecia colocar entre eles quilómetros de estrada, semeada de escolhos um pouco de simpatia para que possa desabafar consigo como se faz com um amigo”.

 

Desejo apenas que me conceda uns momentos de atenção murmurou em voz alta.

 

Desculpe-me replicou Bruno com frieza Mas vou deitar-me.

 

Mas é preciso que me escute! protestou Elsa com desespero e num tom suplicante.

 

Involuntariamente, prendeu a manga do casaco de Bruno e depois apertou-lhe o pulso. Sentiu-lhe o calor da pele sob a mão crispada.

 

O rapaz recuou como se uma serpente o tivesse tocado e arrancou-se-lhe das mãos com tanta força que lhe torceu as unhas, magoando-a.

 

Sempre é muito bruto! protestou ela, indignada, cerrando os dentes para não deixar perceber quanto lhe doía.

 

Não torne a fazer isso! intimou Bruno em voz surda Se recomeçar, serei capaz de a esbofetear.

 

Fixou-a com o olhar cintilante de cólera e depois, sem proferir palavra, passou diante dela e entrou em casa. Elsa ficou como que petrificada. Não compreendia o sentido daquela cena nem a reacção brutal de Bruno. Qual seria a causa do ódio que o rapaz nutria contra a cunhada, a quem tão pouco conhecia?

 

Quase a correr, subiu para o quarto e atirou-se para cima da cama. E, enquanto a luz do farol, na escuridão, através das persianas, multiplicava o silencioso apelo, chorou como nunca havia chorado na sua vida.

 

Elsa acrescentou um pós-escrito à carta que acabava de escrever:

 

”Não levo comigo coisa alguma do que pertenceu a Lisbeth. Tudo quanto se encontra nas gavetas da cómoda e no armário são coisas tiradas das suas malas”.

 

Assinou o parágrafo e releu as quatro páginas que acabava de escrever a Bruno, a sua confissão completa, a narração pormenorizada de tudo quanto havia acontecido desde que, na estrada de Beauce, batida pelo temporal, recolhera o pobre destroço humano que era Lisbeth Forestier, gesto imprudente, origem do drama. Com um suspiro, meteu-as no sobrescrito, sobre o qual traçou o nome de Bruno Forestier. Depois, deixou-o bem em evidência sobre a secretária de limoeiro.

 

Não tinha conseguido dormir em toda a noite. Reflectiu muito, pensou e tornou a pensar no problema, torturando o espírito para o resolver. Não, não era possível continuar assim a abusar da confiança daquela gente e, visto não ter coragem para os defrontar numa explicação bem clara, ir-se-ia embora, deixando-lhes a carta para eles meditarem à vontade.

 

Não lhes revelava os motivos que a tinham obrigado a proceder assim, a fugir, a conservar o incógnito a todo o custo, mesmo por uma impostura, a aceitar aquela situação estranha, nem tão pouco a sua verdadeira identidade. Isso era o seu segredo. Além disso, se quisessem verificar a verdade das suas revelações, fazerem novo inquérito sobre o desastre, em breve saberiam quem ela era.

 

Quanto a si, preferia desaparecer.

 

No saco de Lisbeth encontrara alguns milhares de francos que, de momento, a libertariam de preocupações. Também, de momento, os papéis da desaparecida servir-lhe-iam, enquanto não encontrasse uma hipotética solução para os seus problemas.

 

Levo este dinheiro, embora não me pertença escrevia a Bruno mas suponho que não vão censurar-me por isso. Restituí-lo-ei logo que me seja possível. Peço-lhes também o favor de não me denunciarem à polícia, por causa dos papéis de Lisbeth de que me apropriei. Tenho graves razões para assim proceder. Quando conseguir libertar-me desta situação, devolver-lhes-ei o cartão de identidade e o passaporte da sua cunhada.”

 

Relanceou o último olhar para o quarto onde se acolhera por tão poucas horas e que poderia ter sido para ela o refúgio ambicionado. Quando recordou o pequeno visitante da véspera, o gracioso Carlitos, tão espontâneo e tão afectuoso, teve um sorriso melancólico, cheio de pesar e de nostalgia.

 

Gostaria de poder ocupar-se da criança. No seu coração já o adoptara. Mas a atitude de Bruno, na véspera, a repugnância quase física que o rapaz lhe manifestava, era o máximo que podia suportar. O seu orgulho revoltava-se contra o desprezo imerecido, contra a espécie de frieza desdenhosa, tanto mais que não conseguia libertar-se do estranho sentimento de simpatia para com esse adversário teimoso e implacável.

 

Pelo menos, quando lesse a carta, Bruno ficaria sabendo quanto havia sido injusto. Seria dolorosamente ferido no seu insolente amor-

- próprio e ficaria sabendo que também podia enganar-se como os outros. Precisava bem da lição.

 

”Para que me preocupo eu com esse rapaz, com a sua opinião a meu respeito? pensou, irritada consigo mesma Pouco me importa o que possa pensar de mim e os juízos que faz a meu respeito, visto não saber quem sou e tomar-me por outra a quem detesta profundamente”.

 

Tentou afastar Bruno do pensamento, pegou no saco a única coisa que lhe pertencia de verdade e voltando deliberadamente as costas ao que poderia ter sido, se os acontecimentos se tivessem desenrolado de outra maneira, abriu a porta e espreitou para verificar se tinha o caminho livre.

 

O relógio de pulso indicava seis da manhã. Era muito provável que, àquela hora matinal, os donos da Bastide ainda estivessem a dormir, e não seriam os criados quem pudesse entravar a partida clandestina.

 

A porta bateu ao de leve quando Elsa saiu para o corredor. O silêncio hostil da casa envolveu-a misteriosamente. Não estaria Maria escondida num dos aposentos para a espreitar e e perseguir com os seus anátemas e maldições?

 

Escutou. Na cozinha, em baixo, não se ouvia o mais pequeno rumor: Clotilde não estava ainda a pé. Quanto a Carlos, com certeza dormia o seu sono inocente, aninhado no pequeno leito.

 

E, quando acordasse, em vão procuraria a fugitiva mamã, que tão depressa surgia perante o seu olhar encantado como desaparecia.

 

E a lenda da ”má mulher” mais se confirmaria.

 

Com o coração esmagado de tristeza, mas resolvida a continuar para a frente, desceu a escada com passos leves. Em baixo, o relógio batia, como se fosse o coração da casa... Foi obrigada a tentar duas vezes antes de conseguir abrir a pesada porta exterior, fechada com enorme ferrolho de ferro forjado.

 

Quando saiu para o terraço, a fresca brisa matinal envolveu-a e provocou-lhe um arrepio. O Cers, o vento caprichoso da Cote, que disputa ao vento do largo as rajadas, altera as vagas, sacode as árvores e arrepia a superfície esverdeada da lagoa, vagabundeava sobre a aldeia e sobre a ilhota. Elsa levantou a gola do casaco.

 

Depois, curvando a cabeça, para melhor lutar contra o vento, quase correu para a álea de tamargueiras, para o portão, para a ilusória liberdade.

 

Não deu pelo obstáculo e suportou o choque ao mesmo tempo que uma voz desconhecida exclamava:

 

Cautela com a abordagem!... Tive a sensação de ser torpedeado!... Oh! Perdão, mademoiselle

 

Espantada e também um tanto atordoada com a pancada, Elsa ergueu a cabeça e deixou ver o rosto admirado. Tinha diante de si outro rosto, o mais alegre e malicioso que lhe fora dado encontrar naqueles últimos tempos.

 

Usava a farda da marinha e esfregava o peito no ponto onde a cabeça de Elsa embatera.

 

Tinha os cabelos negros, pupilas de azeviche, cheias de brilho, um sorriso encantador e as faces crestadas pelo sol e pelo mar. A manga da farda exibia dois galões. Numa das mãos trazia uma maleta e na outra o boné.

 

Pouco a pouco, Elsa recuperou o sangue-frio.

 

O que disse? Foi torpedeado?

 

A indignação tingia-lhe de vivo rubor as faces pálidas.

 

Desculpe, mademoiselle. Torpedeado por um encantador torpedo e pelo qual desejaríamos ser mortos.

 

Examinava-a com olhos de conhecedor e esses olhos brilhantes recordavam outros, mais sombrios, mais distantes e glaciais: os de Vicente Forestier.

 

Elsa apertou a asa do saco e, depois de ligeira saudação, fez menção de seguir o seu caminho. O rapaz pôs-se-lhe na frente, a fim de lhe impedir a passagem.

 

Posso saber onde vai com tanta pressa a esta hora, mademoiselle... ou madame?

 

O olhar interrogativo ia da viajante para a fachada da casa, cujas janelas se conservavam fechadas.

 

Elsa corou.

 

Vou tomar o autocarro e já estou atrasada. Deixe-me passar, por favor.

 

O olhar penetrante e observador tornou-se mais fixo. Continuou a examinar a desconhecida, mas desta vez com redobrada atenção.

 

Por acaso... não será a mãe do Carlos?

 

Não! Não sou a mãe do Carlos! negou Elsa com irritação.

 

O rapaz sorriu, e ameaçou-a com o dedo:

 

É tão feio mentir! Vi os seus retratos e agora reconheço-a prosseguiu com veemência embora a objectiva não tenha sido muito caridosa consigo. É muito mais bonita do que nas fotografias, minha querida Lisbeth. Permita-me que me apresente. Eu sou o Alão.

 

Alão!

 

Fixava-o com espanto, numa incompreensão total.

 

Quem é o Alão?

 

Essa agora! O seu cunhado mais novo... o benjamim da família... Agrado-lhe?

 

Não se trata agora de saber se me agrada ou não. Deixe-me passar protestou Elsa com nervosismo.

 

Onde vai?

 

Uma expressão desconfiada nasceu-lhe no olhar, que desceu até ao saco da viajante.

 

Adivinhei... Teve alguma questão com a família... com Bruno ou então com a Maria?.,. Vamos, minha boa amiga, não tome as coisas tanto a sério! Todos eles são melhores do que parecem. Não faça tolices... Aceite o conselho deste estouvado do Alão, que só deseja ser seu amigo e aliado.

 

Resolutamente, pegou-lhe no braço e tentou arrastá-la para casa.

 

Com certeza, não vai abandonar o Carlos pela segunda vez? Garanto-lhe que a criança precisa de si.

 

Deixe-me ir... suplicou Elsa, resistindo.

 

Não, não a deixo ir embora. Encontrei-me no seu caminho muito a tempo para a impedir de fazer uma asneira. Fugir? A fuga nunca remediou coisa alguma, pelo que oiço dizer... Está aqui em sua casa e não deve abandoná-la, em memória do Gerardo e por causa do seu filho...

 

Elsa, num gesto desorientado, tapou os ouvidos com as mãos.

 

Não... não e não! protestou num crescendo de voz.

 

O rapaz relanceou-lhe um olhar compadecido. Atribuía aquele estado de exasperação em que se debatia a incompatibilidades com os habitantes de Bastide.

 

Compreendo... As coisas não correram lá muito bem entre si e o Bonzo... o Bonzo é o meu pai. Um urso às primeiras impressões, mas não é má pessoa, verá com a convivência... Quanto a Bruno, é um excelente rapaz, o que verificamos quando sabemos descobrir o que oculta sob os seus modos rudes. Não deve julgá-los pelas primeiras escaramuças que teve com eles. Quanto à Maria, é um pouco maluca. Deve ter um medo terrível que a suplante junto do seu ídolo, o pequeno Carlos. E tudo isto pode criar um ambiente... difícil para os seus primeiros tempos de vida na Bastide. A partir de hoje, tudo vai mudar, prometo-lhe. E, para começar, vai voltar a casa comigo para prepararmos juntos o nosso pequeno almoço. Desembarquei e estava com tanta pressa de chegar que nem pensei em comer... Morro de fome... e tenho quase a certeza de que ninguém se levantou ainda.

 

Enquanto falava, conseguira obrigar Elsa a dar meia volta e reconduzia-a para casa com mão firme. Ela ainda tentou resistir:

 

Já lhe pedi que me deixasse ir embora... protestou.

 

Isso chega a ser mania! Que receia? Que eu lhe faça a corte? Não tenha medo. Acho-a encantadora, mas a minha Babette é mais o meu tipo. Aqui para nós, adoro-a e considero-a minha noiva. Mas não diga nada a ninguém. É segredo. Babette é filha de um pescador e o Bonzo, quando souber, vai ficar desesperado. Mas conto consigo para me ajudar.

 

Comigo?

 

Acabara por ficar conquistada pela verbosidade daquele rapaz desembaraçado e sorridente... e, ainda por cima, tão simpático.

 

Com certeza... porque, com o seu exemplo... Meu pai sabe o erro que cometeu ao mostrar-se tão intransigente no seu caso.

 

O semblante risonho obscureceu-se.

 

O seu romance, que terminou por forma tão triste com a morte do Gerardo concluiu com voz surda Acredite, todos ficaram impressionados com o trágico desenlace. Eu também tive muita pena acrescentou, ao mesmo tempo que as feições se lhe contraíam Gostava muito do meu irmão. Era ainda um garoto quando... quando o Gerardo partiu consigo e se zangou com a família. Não falavam muito no assunto diante de mim, mas, pelo que ouvi, pude reconstituir a história... Devo confessar-lhe, eu estava do vosso lado contra os meus. Interessava-me apaixonadamente pela aventura dos dois.

 

Sorriu de novo, com um sorriso juvenil que recordava fugitivamente, mais malicioso e mais alegre, o de Bruno.

 

Que idade tem, Alão? perguntou Elsa, acabando por ceder àquele entusiasmo e deixando-se conduzir docilmente pelo seu tirânico mentor.

 

Vinte e dois anos.

 

Estou a ver.

 

E examinava-o, pensativa, parada, enquanto ele, calmamente, a defrontava.

 

Então, a impressão é boa... - É...

 

Sente que posso ser seu amigo, Lisbeth? Elsa abanou a cabeça.

 

Sinto e mais ainda do que supõe. O rapaz bateu as palmas.

 

Ainda bem... Sentir-me-ia feliz se pudesse ser-lhe útil. Parece-me que a conheço há muito tempo... De resto, há muito tempo que penso nos dois e, além disso, desejava imenso ter uma irmã. Somos só rapazes e entre mim e Bruno há uma diferença de dez anos... quanto ao Gerardo, partiu há tantos anos... Eu estava ainda no colégio quando casaram, mas ele já não vivia connosco havia alguns anos... Portanto, quando me disseram que vinha para nossa casa, fiquei radiante. Em consequência, Lisbeth, tenho de a beijar!

 

Sem cerimónia, aproximou-se de Elsa e deu-lhe dois sonoros beijos nas faces, sem lhe conceder tempo para se defender do brusco ataque.

 

Um beijo de irmão para irmã é permitido, não acha?

 

Alão...

 

Lisbeth?

 

Não me trate assim!

 

Não? inquiriu com espanto. Então como quer que lhe chame?

 

Elsa acabava de verificar, de repente, ter encontrado alguém em quem podia confiar. Aquele Alão, espontâneo e fraternal, estava indicado para receber as suas confidências... e agradeceu mentalmente ao Céu ter-lhe enviado aquele simpático mensageiro para a tirar da desorientação em que se encontrava.

 

Alão começou gravemente eu não o conheço.

 

Mas conheço-a eu, Lisbeth.

 

- Conhece... ou antes, conhecia Lisbeth Forestier. Mas tem diante de si Elsa Powell. Bruscamente, ele tomou uma atitude fria.

 

O que diz?

 

Estavam diante da casa, em cuja fachada as rosas trepadeiras se entrelaçavam.

 

Que pretende fazer-me acreditar? repetiu, fixando a suposta cunhada.

 

Elsa ergueu o olhar inquieto para as janelas ainda cerradas. Baixou a voz:

 

Quer dar-me alguns minutos de atenção para uma conversa confidencial, Alão? Encontro-me nesta casa pelo mais estranho dos acasos. Acho-me a braços com a mais extraordinária das aventuras e, até agora, até ao instante em que o encontrei, não sabia como sair dela. Estou só, abandonada, sem apoio, numa altura em que tanto precisava de conselhos, de uma opinião afectuosa. Quer ouvir-me?

 

O rapaz fixava-a com expressão incrédula. Perante o ar grave da cunhada, os lábios trémulos, a ansiedade expressa no semblante angustiado, compreendeu que não estava a brincar.

 

Tomou atitude diferente. O olhar reflectiu curiosidade e desconfiança. Olhou bem a direito para Elsa, que não pestanejou. Hesitou por momentos, perplexo, indeciso sobre a resolução a tomar; depois decidiu:

 

Venha comigo para a sala. Estaremos sossegados e ninguém nos incomodará, mesmo que os criados se levantem.

 

Abriu a porta do vestíbulo e, cerimoniosamente, afastou-se para o lado a fim de a deixar passar.

 

Ludovico auxiliava Bruno a ajustar a mão articulada ao braço mutilado. Era a única coisa que o amo aceitava dele.

 

Pronto, meu tenente.

 

Já te disse para não me tratares por tenente. Tudo isso acabou.

 

Peço-lhe perdão. Escapou-me.

 

Que isso não aconteça outra vez.

 

Uma voz fresca subia do jardim, entoando uma canção inglesa:

 

Twinkle, twinkle, little star, As I wonder what you are (’)

 

Bruno fez um gesto de irritação e o seu olhar dirigiu-se para a janela: lá fora, em pleno sol, um vulto airoso dançava com uma criança

 

(’) Cintila, cintila, estrelinha, Enquanto eu tento adivinhar quem és.

 

nos braços: o pequenito ria, com esse riso leve e encantador, próprio das crianças. E a rapariga que o apertava contra si e fazia revolutear a saia branca em voltas e reviravoltas, dir-se-ia uma fada, cujos cabelos loiros, cor de mel, cintilavam ao sol, num deslumbramento de luz.

 

Nesse instante, a porta, em baixo, abriu-se com estrépito e uma voz trovejou:

 

Já acabou esse barulho? Não sabe que todos estão ainda a dormir, em casa!

 

Detida em pleno entusiasmo, Elsa fez face à sua interlocutora:

 

Às nove e meia? Não me parece que esteja alguém a dormir. O senhor Forestier já saiu há muito e o Alão foi pescar para a lagoa. E, se o Ludovico subiu, Bruno já acordou.

 

E madame Forestier, não se lembra dela? Pouco se lhe dá acordá-la?

 

O riso musical de Elsa subiu na atmosfera pura da manhã.

 

Mamie? Há quanto tempo não dorme! Fui eu quem lhe levou o pequeno almoço e encontrei-a muito bem disposta. É por isso que estamos tão contentes, não é verdade, Carlos, darling?

 

Agarrou as duas mãos da criança e começou a rodopiar com ela, enquanto esta deitava a cabecita para trás, soltando gritos de alegria.

 

Se já se viu sacudir assim o pequeno! resmungou Maria, enraivecida. E vesti-lo dessa forma grotesca. Está nu, por assim dizer.

 

Quase, Maria... quase. Um slip sobre o fato de banho é o bastante para se deixar bronzear ao sol. E é tão bom sentir a carícia do sol na pele, não é assim, Carlos?

 

Ergueu a criança nos braços, aproximou-a e aspirou-a como quem aspira o aroma de uma flor.

 

Como estás bonito e cheiras bem!... Cheiras a pão quente. Seria capaz de te comer.

 

E cobriu as facezitas rosadas de beijos gulosos e ternos.

 

Maria voltou-lhe as costas e bateu brutalmente com a porta.

 

No quarto de Bruno, Ludovico começou a rir com malícia.

 

A Maria encontrou quem a ensine. Detesta madame Gerardo e de que maneira! Se pudesse, queimá-la-ia viva...

 

Como se fosse uma feiticeira murmurou Bruno com ar sombrio.

 

A Feiticeira... Era assim que classificavam Lisbeth na Bastide... Mas desde que ali se encontrava, havia pouco mais de um mês, o ambiente mudara, pouco a pouco, em volta dela. Conseguira conquistar todos, inclusive o Bonzo, em geral o mais renitente.

 

Confesse que se enganou a respeito de madame Lisbeth, patrão. Eu mal posso acreditar que esta gentil criaturinha tivesse sido... tudo quanto diziam. Não é possível. É muito delicada e depois, aqui entre nós...

 

Permites-me que não discuta esse assunto contigo? atalhou Bruno com acrimónia.

 

Ludovico notou o aborrecimento expresso no semblante do seu antigo oficial e curvou a cabeça.

 

Está bem, patrão, desculpe. Eu dizia isto porque...

 

Cala-te, tagarela. Estás a aborrecer-me.

 

Ludovico calou-se, mas continuou a observar Bruno. Era evidente que este não suportava a cunhada. Com Maria, constituía o grupo hostil, que não desarmava. Quanto a Ludovico, passara para o partido contrário, dos que aceitavam Lisbeth.

 

”Que pena pensava que o patrão se mantenha na defensiva. A cunhada poderia trazer-lhe feliz diversão à sua vida tão triste”.

 

Recordava, com melancolia e com saudade, o rapaz entusiasta e simpático que, à frente da sua companhia de paraquedistas, tão bem soubera lutar na Indochina. Os seus homens adoravam-no e seguiam-no com uma confiança e coragem que a audácia do comandante, a competência, natural alegria e simplicidade, justificavam.

 

Depois dera-se o desastre. Ferido no decurso de uma missão só à sua coragem excepcional, domínio próprio, e também um pouco de sorte, se devera a salvação de toda a companhia viram-se forçados a amputar-lhe o braço.

 

O facto acontecera havia dois anos. Bruno reeducava-se devagar, mas, para um rapaz activo, desportivo, sentir-se assim inutilizado magoara-o profundamente. Ocultava o que sentia e a sua tristeza para não afligir os pais, principalmente a mãe, a quem adorava.

 

Recusava a compaixão alheia e, justamente por isso, fugia de frequentar a sociedade. Desligara-se da brilhante e encantadora rapariga de quem estava noivo antes do desastre, simplesmente por ler a piedade no seu olhar.

 

No tempo em que fora um belo rapaz, perfeito, sonhara fazer a sua carreira na aviação. Mas desejava pilotar, não ficar entre os que não voavam. Porém, quando voltou sem um braço, começou a estudar engenharia. Impossibilitado de pilotar as grandes naves aéreas, trabalhava para modificar os aparelhos. O facto, porém, constituía para ele pesada decepção, que se esforçava por ocultar dos outros.

 

Só Ludovico sabia como aquele homem, aparentemente tão forte e impassível, se debatia em crises de profundo desespero em certos momentos, quando se refugiava no quarto e fechava a porta para todos.

 

Já não precisa de mim, patrão?

 

Não, obrigado.

 

Nem do carro?

 

Também não.

 

Então vou trabalhar para o jardim e escolher as uvas moscatéis da parreira para a Clotilde preparar as fruteiras. Depois, se o senhor Alão quiser a minha companhia, vou pescar para a lagoa.

 

Vai, vai acedeu Bruno com leve impaciência.

 

Quando Ludovico saiu, foi de novo encostar-se ao parapeito da janela. Já não se ouvia a voz de Lisbeth. Maquinalmente, procurou-a com a vista. Nessa altura, porém, outra voz lhe despertou a atenção.

 

Hello, Lisbeth?

 

Estou aqui, Alão. A pesca foi boa?

 

Magnífica! Apanhei mujens e enguias. Vou levá-los à Clotilde para nos fazer uma bourride.

 

O que é isso? perguntou Elsa alegremente.

 

Não conhece? É uma espécie de caldeirada. Clotilde sabe fazê-la como ninguém. Depois de provar me dirá. Venha ver como ela prepara o peixe. Vale a pena.

 

Do seu posto de observação, Bruno viu aparecer os dois. Alão puxava a mão de Lisbeth, que, por sua vez, puxava a de Carlos, numa espécie de farândola.

 

Alão mostrava-se contente, feliz. A expressão era despreocupada, risonha, respirava mocidade como se a vida inteira do mar lhe palpitasse nas faces bronzeadas.

 

Um trejeito amargo vincou os lábios de Bruno.

 

Alão, pelo menos, triunfara na vida.

 

Contemplou a toalha acinzentada da água, velada pelo ténue nevoeiro, que subia até ao céu, alvo dos seus sonhos, agora interdito às suas mais legítimas ambições. E cerrou os dentes para não gritar a sua dor.

 

A voz de Lisbeth, com a qual se confundia o timbre mais grave e desafinado de Alão, cantava: Twinkle, twinkle, little star...

 

A vozita aguda e fraca do pequenino Carlos completava o coro.

 

Com a mão válida, Bruno varreu o espaço, como se quisesse afastar de si qualquer coisa. A insolente Lisbeth conhecia bem a sua força! Adivinhava agora o jogo. Supunha que o simples e estúpido Alão seria para ela uma conquista fácil, uma espécie de bolo que se engoliria numa só dentada. Sim, com certeza já lançara as suas vistas sobre ele, vendo-o tão novo e tão vulnerável como o fora Gerardo.

 

Mais uma vez, o pensamento de que o irmão morrera sem ter podido reconciliar-se com ele o fez sofrer. E aquela Lisbeth, que parecia tê-lo esquecido completamente; ria, cantava, exibia os seus vestidos brancos, as blusas claras, a sua alegria agressiva, sem se preocupar com o luto, mesmo por uma questão de conveniência, que teria salvaguardado as aparências.

 

Deixa-a lá defendia madame Forestier, que também se mostrava enfeitiçada pela sereia é nova e não gosta de se vestir de preto. O luto nem sempre está no trajo.

 

Acha isso? Então em que consiste o luto dela? Nestes risos... nestas brincadeiras... nesta alegria tão fora de propósito, que exibe a todas as horas?

 

Sente-se feliz por viver com o filhito e isso compensa-a do desgosto... além disso, talvez não se entendesse muito bem com o Gerardo concluiu, soltando fundo suspiro e provando assim a sua indulgência.

 

Bruno ficou exasperado. Por um lado, nem sempre conseguia manter bem vivo o seu rancor contra a intrigante. Cada vez conseguia menos ajustar a presente Lisbeth com a imagem da outra, daquela que lhe rasgara no orgulho e no coração tão profunda ferida. Por vezes, até, a segunda Lisbeth sobrepunha-se tão bem à outra imagem que conseguia apagá-la por completo.

 

Então fugia da sala, onde calmamente todas as noites Lisbeth servia de parceira ao pai e ao irmão para intermináveis partidas de canasta, enquanto o rádio ia tocando em surdina. Refugiava-se no quarto e punha o gira-discos a trabalhar com obras de Bach, Chopin, Listz, isto é, embriagava-se com a música como o teria feito com morfina ou outra qualquer droga.

 

Certa tarde, regressou a casa, inesperadamente, depois de ter ido à cidade falar com o pai aos escritórios da Companhia, o que fazia poucas vezes, pois cada vez se afastava mais do convívio dos outros.

 

A noite aproximava-se. O crepúsculo projectava sobre a água da lagoa os seus reflexos rosados. Quase todas as embarcações haviam saído para o mar e ouvia-se ao longe o bater dos remos. Por vezes, uma vela, batida pelos últimos raios de sol, flamejava como um archote por cima do enorme espelho líquido.

 

Bruno parou o carro junto do portão. Não levara Ludovico consigo. A casa dir-se-ia adormecida, mas, de súbito, ouviu o som do piano, do seu piano.

 

Correu para a sala, onde entrou como uma tromba. Elsa não deu pela entrada e, supondo-se sozinha, continuou a tocar, empolgada pela doçura do ambiente e pela tristeza dos seus próprios pensamentos.

 

O rapaz parou no limiar da porta. Encostado à parede, deixava-se envolver pelas ondas musicais, pela profunda melancolia que a execução segura e hábil da pianista sabia transmitir-lhe.

 

Por fim, Elsa deixou de tocar, abandonando as mãos sobre o teclado. Depois encostou-se ao piano e apertou a cabeça. Bruno ouviu-a suspirar. Ficou como petrificado. Era sensível à música por uma forma quase doentia. Estudara os grandes mestres, escutara muitos concertos e os mais notáveis talentos musicais. Quando, por causa do desastre, se vira na impossibilidade de interpretar os compositores que mais apreciava, desesperado, fechara o piano, como quem deixa cair a tampa de um caixão.

 

E aquela Lisbeth tão odiada acabava de interpretar uma das composições que mais apreciava, com uma ciência, emoção e sensibilidade, um sentimento sobre o qual não podia enganar-se: ficou transtornado.

 

Existiriam duas pessoas naquela criatura: a rapariga descarada, sem correcção nem sentimentos, e a sua réplica, possuindo todos os dons que faltavam à outra?

 

Era de endoidecer.

 

A pianista fechou o piano e voltou-se no banco. Ao ver Bruno parado no limiar da porta fez um gesto de espanto.

 

Estava aí... murmurou em voz fraca. O rapaz fixava-a com olhar estranho.

 

Não sabia que era pianista.

 

Pianista, é demasiado. Adoro a música, sim. Não conheço mais perfeito meio de evasão. O Bruno pensa da mesma maneira, não é verdade?

 

Abandonou o banco e aproximou-se do cunhado e a cada um dos seus passos a saia baloiçava numa cadência harmoniosa.

 

Não consigo compreendê-la, Lisbeth.

 

Compreender o quê?

 

A si, a sua atitude. Mudou tanto!

 

Leve ruga vincou a testa branca e lisa. Voltou a cabeça, atrapalhada. Cada vez lhe custava mais mentir. Mas obedecia a Alão, que, depois de a ter escutado, aconselhara:

 

”Não diga coisa alguma, por enquanto! Continue a desempenhar o seu papel. Não prejudica ninguém e quando chegar a altura eu lhes revelarei a verdade”.

 

Entretanto, era ele, o excelente rapaz, quem se ocupava do assunto e procurava esclarecer aquela situação tão complicada. Infelizmente, tudo levava muito tempo e, por vezes, as antigas preocupações voltavam a atormentá-la.

 

Principalmente, por causa de Bruno. Todos os outros com excepção da intratável Maria a haviam adoptado. O facto de nunca a terem conhecido em pessoa e baseado a sua opinião no ”diz-se” facilitara muito as coisas. Admitiam a possibilidade de se terem enganado e cada vez se mostravam mais amáveis e carinhosos com ela.

 

Mamie dedicava-lhe sincera ternura. Lisbeth substituía a filha que nunca tinha tido; o suposto sogro humanizava-se, Carlos andava sempre agarrado às suas saias, Clotilde pedia-lhe conselho para preparar as refeições ao seu gosto e Ludovico esforçava-se por lhe poupar qualquer canseira.

 

Quanto a Bruno, mais se couraçava na sua reserva altiva e hostil. Poder-se-ia supor que, com essa atitude, pretendia provar a sua reprovação pela fraqueza dos outros.

 

Talvez não me tivesse conhecido bem? sugeriu a pseudo-Lisbeth, após alguns minutos de silêncio. Ao mesmo tempo, relanceava-lhe um olhar prudente e circunspecto.

 

Julga que esqueci a cena do automóvel? Com a testa franzida, Elsa fingiu que tentava recordar-se. De facto, a sua ignorância não era fingida.

 

Uma cena?... Com franqueza, não me lembro.

 

Mentirosa!

 

O insulto foi tão brutal que Elsa não conseguiu reprimir um gesto de revolta.

 

O que disse? inquiriu com dignidade. Com os lábios contraídos numa expressão de dureza, Bruno deu alguns passos para ela.

 

Ora vamos, Lisbeth, quer fazer-me acreditar ter esquecido a comédia indigna, desempenhada por si quando nos encontrámos há seis anos e da qual resultou a minha questão com o Gerardo, questão à qual a Lisbeth não foi estranha? Confesse que seria inadmissível semelhante amnésia.

 

Elsa não lhe respondeu. O terreno para onde a conduzia era muito falso, semeado de escolhos. Não podia aventurar-se nele às cegas.

 

Passou a mão pela testa para afastar uma madeixa de cabelo e protestou em voz surda:

 

Quando deixará de me atormentar com o passado de Lisbeth, esse passado que parece ter provocado um rancor tão persistente?

 

Será capaz de negar ter-me dado suficientes motivos para isso?

 

Os grandes olhos verdes fixaram-no. Havia neles tanta doçura, uma expressão tão desolada

 

Bruno tomou-a por arrependimento que o rapaz ficou impressionado.

 

Pergunto a mim próprio até que ponto é sincera, Lisbeth? murmurou, quase como se a si mesmo formulasse a pergunta O seu actual procedimento é tão diferente do que seria o da antiga Lisbeth...

 

Terei então de usar, constantemente, e para sempre, as vestes do passado?

 

A réplica fora brusca, impregnada de irritação.

 

Como eu desejaria acreditá-la confessou Bruno a despeito da sua vontade.

 

O semblante de Elsa iluminou-se. Poisou a mão no braço do cunhado e sorriu-lhe com encantadora meiguice.

 

Olhe para mim, Bruno... Quando lhe afirmo que Lisbeth morreu, não minto. Será preciso fazer-lhe um juramento para o convencer?

 

O rapaz observava-a com uma expressão mista de perplexidade e enternecimento.

 

Com efeito, na sua presença não sinto a impressão ressentida noutros tempos. Quando fala e quando olho para si, todas as minhas dúvidas, todos os meus agravos se desvanecem. Que se passou consigo, Lisbeth?

 

Com extrema delicadeza, mas com firmeza, Elsa passou os dedos pela testa de Bruno, a fim de desfazer as rugas que a vincavam.

 

Deixe-se de pensar no que lá vai. Não poderíamos começar de zero? Gostaria que deixasse de ver em mim uma inimiga.

 

Bruno estremeceu com o contacto e recuou um pouco bruscamente.

 

Demónio ou anjo, ninguém pode resistir-lhe, Lisbeth murmurou em voz surda.

 

Elsa sorriu.

 

Escute! Antes de me conceder a sua amizade quer pôr-me à prova? Eu própria não aceito um afecto hesitante, que não seja espontâneo, livre de suspeitas... Daqui a algum tempo voltaremos a falar no assunto, não será melhor?

 

Deu uma reviravolta e afastou-se com passo ligeiro. Bruno ainda fez um gesto para a prender, mas Elsa já alcançara a porta.

 

Adeus, S. Tomé. Recorde-se do que lhe prometo. Um dia, muito breve, ficará convencido!

 

É essa a minha maior ambição replicou Bruno, enquanto a sombra de um sorriso lhe iluminava o rosto severo.

 

Sentada num cabeço de amarração, Elsa aguardava Alão. Um barco deslizava sobre a superfície da lagoa. Ao leme seguia um vulto aprumado e alto, que o nevoeiro tornava ainda mais esguio. Mas Elsa teria reconhecido Bruno entre mil. Por entre as barcas dos pescadores que regressavam ao porto, colhendo as velas, ele evolucionava, afastando-se para a ilha.

 

”Porque não vem ele com os outros? pensou O vento empurra-o para o mar e isso pode tornar-se perigoso.”

 

Afastava-se, sumindo-se nas sombras do crepúsculo e, à medida que ele desaparecia, Elsa sentia-se como abandonada.

 

”É absurdo pensou Para que teimo em conquistar a sua simpatia? Bruno detesta-me... supondo-me Lisbeth, sim, mas detesta-me!”

 

Depois da explicação, mostrava-se menos agressivo, mas fugia-lhe com ofensiva insistência. Quando ela entrava na sala, saía ele, e quando voltava com Alão e Carlos de um passeio pelo mar, afastava-se ostensivamente, como para os livrar da sua presença.

 

O tio começara a ensinar ao rapazito tudo quanto se relacionava com o mar, a sua paixão dominante. Levava a cunhada e o sobrinho no seu barco até à ”Encalhada”, onde passavam horas a nadar.

 

Elsa nadava como um peixe. Aquela filha da Irlanda aprendera desde criança a mover-se na água como se fosse o seu elemento natural. Quanto à criança, era dotada da aptidão própria dos seres muito novos. Alão também desejou ensinar-lhe a mover os remos da bette. Carlos mal podia erguê-los nos bracitos, embora fosse forte, mas esforçava-se com afinco, dando ao corpo o balancear que acompanha os gestos dos remadores.

 

Sentada à proa do barco, com as pernas estendidas, Elsa abandonava-se aos seus pensamentos, seguindo com olhar vago a esteira que o barco deixava na sua passagem. Contra o casco da ligeira embarcação as ondas embatia” com o ruído doce da seda amarfanhada.

 

Profundamente feliz, não pedia outra coisa mais do que aquela paz depois de tanto sobressalto, tantas peripécias dolorosas ou patéticas e que, presentemente, se sumiam num passado de brumas e sombras confusas. Começava a querer àquela família, ao lar no qual se integrava pouco a pouco. O facto de ter revelado a Alão a sua verdadeira personalidade absolvia a mentira. Sem luta, abria o coração às novas afeições conquistadas com a sua gentileza e bondade.

 

Apenas a atitude irredutível de Bruno era como uma ferida ou chicotada permanente no seu orgulho e boa vontade.

 

”No fim de contas, para que me preocupo tanto com ele?” pensava numa revolta de todo o seu ser.

 

Isso não impedia que, à noite, se conservasse por muito tempo à janela, contemplando a luz que brilhava na de Bruno até muito tarde, muito depois das luzes do porto e da aldeia se terem apagado.

 

Quer chá, Bruno?

 

Se faz favor aceitou ele com modos bruscos.

 

Elsa inclinou-se um pouco com o bule na mão, aflorando com a saia o veludo da poltrona onde o cunhado estava instalado. De si para si, perguntava qual o motivo por que o rapaz tinha ficado na sala, naquela noite?

 

O Bonzo encontrava-se junto de madame Forestier, que, mais adoentada do que o costume, causava preocupações aos seus, pois o calor do dia a incomodara bastante. Chamado por misteriosos assuntos, que não revelou a ninguém, Alão ausentara-se por alguns dias, aproveitando a sua licença.

 

Prestando serviço num dos navios do pai, levava a capricho ser tanto ou mais correcto do que os outros oficiais e nem sequer pensara em pedir uma licença suplementar, visto a sua terminar no fim do mês.

 

Elsa pôs o bule em cima da mesa e com a chávena na mão foi instalar-se no sofá, perto de Bruno. As pernas esguias e bem feitas saíam da saia rodada como da corola de uma flor. Trajava um vestido encomendado pelo catálogo de uma casa de Perpinhão, e que o sogro quisera oferecer-lhe.

 

Bruno olhava para o espelho pendurado por cima do fogão, onde se reflectia a nuca delicada e o lindo e grave perfil.

 

Aquela mulher sentada na sua frente era a mesma que o havia separado do irmão, aquela que, ferida na sua vaidade feminina por ele a ter repelido, procedera como a sua maior inimiga. E, por uma dessas reviravoltas tão frequentes nas mulheres, era ela quem, presentemente, tomava ares de vítima, a vítima da selvajaria e intransigência de Bruno!

 

Preciso de falar-lhe disse de repente.

 

Estou às suas ordens respondeu Elsa. O sorriso era de incontestável sedução, um sorriso por certo estudado e que não se assemelhava ao riso agressivo e descarado, por Bruno considerado como uma bofetada, no decorrer da dolorosa e memorável cena que não conseguia esquecer.

 

Como era diferente do primeiro aquele novo aspecto de Lisbeth! Para ele, este enigma era como um leit-motiv. A presença da cunhada mergulhava-o sempre numa espécie de horrorizado espanto. Tinha diante de si uma mulher nova e encantadora, reservada, de uma distinção inegável em todos os seus gestos. De que recursos dispunha aquela comediante!

 

Bruno estendeu a mão para a caixa poisada em cima da mesa de chá.

 

Quer um cigarro?

 

Não fumo, obrigada.

 

Mas antigamente fumava?

 

Torna-se fácil mudar de gostos.

 

Levantou-se para acender um fósforo e chegou-o ao cigarro que o cunhado metera entre os lábios, sem que este tivesse tempo de se servir do acendedor ou recusar o gesto amável.

 

Obrigado agradeceu, irritado com a solicitude.

 

O encantador sorriso extinguiu-se. A atitude de Elsa revelou súbito desânimo e com a mão afastou da testa uma madeixa dos cabelos loiros, cuja massa pesada parecia vergar-lhe a cabeça e a tornava ainda mais frágil.

 

O que tenho para lhe dizer torna-se um pouco difícil começou Bruno.

 

Depois calou-se e aspirou longamente o seu gitano. Imóvel, com os lindos olhos verdes fixos no semblante impenetrável, Elsa aguardava.

 

É difícil desempenhar a nossa tarefa de irmão mais velho... difícil e antipático.

 

Onde quer chegar?

 

A isto...

 

Endireitou-se e as pálpebras velaram o olhar brilhante.

 

Proíbo-a de recomeçar com o Alão as manobras já empregadas para conquistar o Gerardo.

 

Não lhe admito que me fale nesse tom replicou Elsa, ofendida.

 

Havia tanta dignidade neste protesto e na atitude que o rapaz se envergonhou, de súbito, do seu procedimento.

 

Desculpe.

 

Seja. Desculpo-o mais uma vez. Mas, se persiste em tratar-me assim, ver-me-ei obrigada a abandonar esta casa.

 

As negras pupilas de Bruno cintilaram.

 

E não a abandona sozinha, calculo. Elsa sustentou-lhe o olhar com calma.

 

Calcula muito mal. Ficarei desesperada se tiver de partir, de me separar de tudo quanto se me tornou querido nesta casa e com o olhar abraçou a sala e, para lá da janela, a paisagem, o mar e as casitas dos pescadores, onde as luzes começavam a brilhar pessoas e coisas... Mas terei de o fazer, porque já não posso suportar a sua hostilidade, Bruno.

 

Concede-me uma grande honra ironizou o rapaz Mas não se trata de mim, trata-se do Alão.

 

E então?

 

Então...

 

Bruno cerrou os dentes, os maxilares contraíram-se-lhe como se fizesse um grande esforço para dominar um gesto violento.

 

...dispõe-se a vampirizar o Alão como o fez com o Gerardo!

 

As pupilas verdes tornaram-se enormes no rosto corado pela indignação.

 

Vampirisar?

 

Não quer fazer-me acreditar que desconhece o termo depois de o ter exemplificado durante tanto tempo. Basta de comédia, Lisbeth!

 

Não o compreendo replicou ela com simplicidade.

 

Vou ser mais claro... Vi-a regressar da ilha com o Alão.

 

E com o Carlos. Também o vi quando saía. O que há de extraordinário em tudo isso? O mar não representa a única diversão aqui?

 

Está constantemente com o Alão quase gritou Bruno Onde quer chegar?

 

Elsa mediu-o com a vista e replicou com altivez:

 

Não acha que isso é comigo e com ele? replicou sem perder um átomo de calma.

 

Não, não acho. Tenho o dever de proteger o meu irmão. Não consegui arrancar o Gerardo das suas garras, mas, quanto a este, se Deus quiser, não alcançará os seus fins.

 

Levantou-se, empurrou a poltrona e olhou-a como se olhasse uma serpente.

 

Apesar dos seus modos altivos, continua a ser uma rapariga perigosa, Lisbeth.

 

A voz de Elsa vibrou, martelando as palavras:

 

Não considera uma cobardia da sua parte insultar injustamente uma mulher que se acolheu em sua casa e se encontra desprovida de tudo, sem defesa?

 

Bruno não conseguiu reprimir leve estremecimento, mas continuou, como um garoto obstinado que, apesar de saber estar em erro, teima.

 

Sem defesa?... Não deprecie o seu valor. Elsa examinou-o, mas o rosto impassível não deixava adivinhar o tumulto dos sentimentos. Por sua vez, levantou-se e, vagarosamente, afastou-se do sofá. Todos os seus movimentos eram fáceis e harmoniosos. Dirigiu-se para a porta, disposta a uma retirada estratégica.

 

Não se vá embora! intimou Bruno, sem afabilidade ainda não acabei.

 

Não estou disposta a continuar a escutá-lo.

 

O rapaz encolheu os ombros.

 

Não me importa saber se está ou não disposta, trata-se de um assunto que se impõe resolver e ao qual não pode fugir.

 

E o Bruno não pode impor-me por mais tempo a sua insolência, o seu ódio e a sua crueldade. Peço-lhe para aguardar apenas o regresso do Alão. Depois sairei desta casa.

 

Bruno deu alguns passos e colocou-se entre a porta e a cunhada.

 

Sairá daqui e ele segui-la-á. Não conte com isso, minha amiga. O Alão não vai atrás de si afirmou, martelando as palavras.

 

Exaltava-se e a sua cólera explodiu como uma bomba:

 

É melhor que saia imediatamente antes de ter concluído a sua ignóbil tarefa!

 

Os olhos brilhavam-lhe num lampejo feroz. Bateu com o punho fechado na mesa que estava ao seu alcance. A jarra redonda, que a guarnecia, tombou e quase rolou para o chão.

 

Elsa abanou a cabeça num movimento brusco, que arrancou rápidas cintilações aos cabelos doirados.

 

Está bem replicou em voz dura Partirei amanhã. Agora deixe-me sair.

 

Bruno olhava-a atónito, admirado com a facilidade da vitória. Embora ela tivesse falado em voz surda, cada uma das suas palavras se haviam destacado com nitidez e mais nítidas ainda surgiam as imagens. Voltou a vê-la com o vestido de viagem, o saco na mão, em resumo, a viajante que ele encontrara havia um mês, tal como nunca mais voltaria a ver, quando desaparecesse para sempre da sua vida.

 

”Que fui eu fazer! pensou com involuntário terror.

 

Mas um demónio interior como que o impelia para a violência, violência cada vez maior.

 

Juro-lhe que não tornará a ver o Alão! vociferou, afastando-se para lhe dar passagem.

 

Elsa voltou-se e relanceou-lhe um olhar rápido.

 

Quanto a isso, é com ele replicou com suavidade.

 

Bruno, depois dela sair, deixou-se ficar como que pregado no mesmo lugar. Arquejava como se acabasse de dispender grande esforço. Concentrando todas as suas forças, lutava contra o desejo louco de a chamar.

 

Chamá-la para lhe dizer o quê? Deixá-la ir embora não seria a melhor solução, aquela que ele julgava desejar, pelo menos? Depois do que acabava de lhe censurar, das suas ameaças, que outra coisa havia a fazer?

 

Decorrido algum tempo, foi abrir o aparelho de rádio. Procurou até encontrar a música que o embalasse no seu ritmo dolente.

 

Encontrou por fim Sydney Béchet e, enterrando-se na poltrona, com a cabeça apertada nas mãos, deixou que o som estridente dos metais absorvessem a sua amargura. Não compreendia o que se passava consigo. Detestava aquela mulher e, alguns anos atrás, quando, cinicamente, pretendera conquistá-lo, só tinha conseguido inspirar-lhe aversão e repulsa. Agora, sentia que manter aquela atitude lhe exigia grande esforço. Defendia-se com todas as suas forças da atracção que, pouco a pouco, substituíra o antigo ódio.

 

Levantou a cabeça. A noite descia suavemente sobre a lagoa. Acariciadas pelas vagas, as embarcações semiencalhadas na areia esbatiam-se na sombra.

 

Bruno olhou para o sofá, no ponto onde o corpo leve de Lisbeth repousara. O clarão rosado, projectado pelo candeeiro, inundava-o. O rapaz recordou os braços nus, a cútis de tonalidades quentes, as pupilas imensas onde se reflectia a surpresa, a indignação e a tristeza... Recordava o sorriso e os cabelos loiros, que a brisa quente, entrando pela janela, fazia esvoaçar em pequeninas madeixas brilhantes como se fossem de oiro.

 

Contraiu a mão válida no peito como se estivesse a apertar o corpo delicado de Lisbeth. Depois estendeu o braço como se envolvesse os ombros invisíveis, numa carícia apaixonada.

 

As feições varonis perderam toda a sua dureza.

 

Precisamente nesse instante, a porta abriu-se. Bruno sobressaltou-se e voltou-se para ver quem entrava.

 

Sou eu murmurou uma voz surda.

 

E o vulto negro de Maria, com a sua touca catalã, rígida de goma, entrou na sala, que atravessou, indo colocar-se diante de Bruno. Um riso silencioso entreabria os lábios enrugados.

 

Sabe que a bruxa está a fazer as malas? disse com ar triunfante e uma inflexão de intraduzível alegria.

 

Sim? limitou-se Bruno a responder, com indiferença.

 

Maria não notou o tom agressivo da voz.

 

Pediu as malas que a Clotilde havia arrumado no sótão e perguntou ao Ludovico se podia conduzi-la amanhã à estação de Perpinhão. Clotilde quis saber se ela se ausentava por muito tempo ou apenas por um dia. Respondeu que não sabia quando poderia voltar, visto ser chamada por assuntos urgentes que talvez a demorassem. Parece-lhe isto bom sinal, senhor Bruno?

 

E como o rapaz não lhe respondesse, insistiu, esfregando as mãos:

 

Pode ir para o diabo que a trouxe! Contanto que nos deixe o Carlitos... Devo dizer-lhe que nada disto me espanta. A Bastide não convém a uma mulher como ela. Que diz, senhor Bruno?

 

Não tinha ainda notado a prostração do rapaz. E recuou, estupefacta e indignada, quando o viu pôr-se de pé e ele lhe gritou quase cara a cara:

 

Deixa-me em paz!

 

A mulher põe... e as circunstâncias dispõem. Naquela noite houve grande reboliço na Bastide. O estado de madame Forestier agravou-se subitamente. Foram chamar o médico à pressa e este, depois de observar a doente, diagnosticou grave ataque de uremia.

 

Assustada, Elsa ofereceu-se para enfermeira.

 

Como, se não sabe nada disto! protestou o Bonzo, muito aflito.

 

Peço-lhe perdão. Sei tratar de doentes. Tenho os meus diplomas.

 

Além disso, a doente pedia com insistência a presença da nora. Elsa desmanchou as malas e instalou-se-lhe à cabeceira como um capitão no seu posto de combate.

 

Maria, carrancuda e sombria, andava pela casa, fazendo predições de morte como um adivinho de desgraças.

 

Ela tem mau olhado e vai matar a pobre senhora. Estão todos doidos. Não deviam consentir que se aproximasse dela.

 

Elsa, que nessa ocasião descia à cozinha para ferver a seringa das injecções, ouviu as malévolas insinuações da Catalã. Agarrou-a pelo braço com uma força de nervos que ninguém poderia supor existir num corpo tão frágil e, aproximando da máscara furiosa da criada o seu rosto calmo e severo, avisou:

 

Escute, Maria. Enquanto as suas idiotices não ameaçaram a paz desta casa, deixei-a falar. Mas, hoje, madame Forestier precisa de sossego e eu também. Se não consegue dominar os nervos, serei obrigada a convidá-la a ir passar algum tempo longe daqui.

 

Maria quase sufocou de raiva.

 

O quê... o quê? Convidar-me a ir embora?... A senhora? Tem a pretensão de me expulsar desta casa, a mim? Com que direito?

 

A sua patroa está doente. Portanto, sou eu quem a substitue e dá ordens.

 

Furiosa, Maria abanou a cabeça, fazendo esvoaçar as fitas da toca.

 

Gostaria de ver isso.

 

Imediatamente. Para começar, vá para a rouparia preparar ligaduras e compressas. A Clotilde não precisa de si aqui para a ajudar na cozinha.

 

Fique sabendo que eu não recebo ordens de uma...

 

O olhar glacial de Elsa deteve-lhe nos lábios a palavra injuriosa.

 

...estranha concluiu Maria, com esforço Farei o que bem me apetecer.

 

Fará o que eu lhe ordenar. Ou então pedirei a sua imediata saída.

 

Os olhos negros da Catalã ficaram reduzidos a simples nesga brilhante entre as pálpebras semicerradas.

 

Diga uma coisa; não sabe que amamentei com o meu leite o seu marido, o pobre Gerardo que a senhora matou?

 

A máscara era de maldade e hostilidade.

 

Educou-o muito mal, viu-se replicou Elsa sem se exaltar com a disparatada acusação Se ele tivesse sido guiado de outra forma, não teria cometido tanta tolice. E agora cale-se e vá fazer o que lhe ordenei ou então despedi-la-ei imediatamente.

 

A Catalã saiu como se levasse o diabo atrás de si.

 

Sem mais se preocupar com ela, Elsa pôs a seringa a ferver, enquanto na cozinha reinava pesado silêncio.

 

Mas, quando ela saiu, Clotilde, radiante, abriu a porta da garagem e chamou Ludovico.

 

Se tivesses ouvido como madame meteu a Maria na ordem... Valeu uma fortuna assistir, garanto-te.

 

Ainda bem comentou o motorista, retorcendo o bigode loiro Já era tempo que alguém baixasse a proa aquela serigaita. Julga-se patroa, dona de tudo isto. Como lida só com homens madame Forestier nunca teve saúde para lhe impor a sua autoridade manda em todos e supõe que a Bastide lhe pertence.

 

Ergueu as sobrancelhas claras, que quase se confundiam com a cor doirada da pele, e um sorriso pôs um traço branco na face gorducha.

 

Queres que to diga? Esta casa estava a precisar de uma patroa nova... E pode muito bem ser que em breve tenhamos uma... uma que estará no seu lugar por mais de uma razão.

 

Também já reparaste?... O nosso Alão? E a curiosidade fazia-lhe brilhar os olhos negros.

 

O ruivo olhou de revés a sua gorducha metade.

 

Não tens muito olho, minha amiga... O nosso Alão tem outras vistas! Mas o meu tenente bebe ares e ventos pela loirinha, fica sabendo.

 

O senhor Bruno? Estás doido, Ludovico!... Nesta casa é o único que não suporta madame Lisbeth... Ontem à noite ela teve as malas feitas para se ir embora e foi ele o culpado... Quando veio pedir-mas e te pediu a ti para a levares ao comboio, acabava de ter uma questão com o senhor Bruno. Foi a bisbilhoteira da Maria quem mo disse. Está sempre a escutar às portas e, portanto, não podia enganar-se.

 

Ludovico cofiou o sedoso bigode.

 

Sei muito bem o que estou a dizer. Vocês, mulheres, não percebem nada dos problemas dos homens. Conheço bem o meu tenente. Desde que fomos buscar madame Lisbeth, não parece o mesmo. Vive inquieto e não me admiraria muito se me dissessem que estava profundamente apaixonado pela linda viuvinha.

 

...Enquanto na cozinha se trocavam estes comentários, Elsa retomara o seu posto à cabeceira de Mamie. Silenciosa, discreta, velava pela pseudo-sogra com dedicação e eficiente autoridade.

 

A doente aceitava os seus cuidados com um sentimento de gratidão que, por vezes, lhe fazia chegar as lágrimas aos olhos. Quando o marido se sentava, desorientado e aflito, à sua cabeceira, involuntariamente envergonhado tcom a sua robusta e saudável aparência ao lado da fraqueza de sua mulher, esta, com a insistência própria dos doentes, voltava sempre ao mesmo assunto:

 

Enganámo-nos a seu respeito, Vicente. A nossa nora não é... por forma alguma, o género de mulher que nos descreveram. Pelo contrário, é uma excelente rapariga.

 

Tens razão concordava Vicente Forestier, que a si mesmo perguntava como conciliar o actual procedimento da encantadora Lisbeth, tão dedicada, simpática e distinta, com a chantagem feita antes com a criança.

 

Duas atitudes completamente opostas. No entanto, ele não havia sonhado, não se tratava de ditos nem de mexericos: a prova estava na correspondência trocada com a nora desconhecida, que se encontrava em África, correspondência que terminara com a remessa de um cheque, logo embolsado pela sua destinatária.

 

Se Lisbeth desempenhava agora uma comédia, no sentido de se tornar querida da família tão hostil até ali, tinha de concluir que a representava na perfeição.

 

Manifestava pelo filho um amor maternal que nunca demonstrara, pelo contrário. E o seu modo de ser com todos os habitantes da Bastide, o papel de enfermeira assumido junto da cabeceira de madame Forestier, papel que desempenhava com tão boa vontade, consciência e delicadeza, ao mesmo tempo que despertava os remorsos do Bonzo, mergulhava-o na maior perplexidade.

 

Todavia, sentia-se tão inquieto com a saúde de sua mulher que todas estas preocupações passavam para segundo plano.

 

...Elsa guardou a seringa hipodérmica na gaveta. A doente adormeceu com um sono calmo.

 

Depois do extenuante dia, durante o qual se conservara sempre de pé, indo e vindo em incursões à cozinha, subindo e descendo as escadas da velha moradia, muito acolhedora, de facto, mas pouco cómoda naquelas circunstâncias, Elsa sentia-se cansada.

 

Bruno devia substituí-la à noite e velaria à cabeceira da mãe até de manhã. Assim o tinham decidido o médico e o rapaz, a fim de poupar as forças da enfermeira dedicada, que não se preocupava consigo mesma.

 

Foi uma felicidade a sua cunhada saber tratar de doentes com tanta competência. Por aqui não arranjaria quem o fizesse e seria muito difícil encontrar uma enfermeira tão eficiente dizia o médico.

 

Ainda bem que tirei o curso de enfermeira na Fundação ”Florence Nightingale” e fiz dois anos de estágio quando estava no colégio, antes... antes do Arnold ir buscar-me! pensava Elsa.

 

Sentada perto da janela aberta, perscrutando a noite, rasgada de vez em quando, com intervalos regulares, pelos relâmpagos do farol, deixava a memória assestar a câmara para o passado.

 

Voltava a ver o tutor na época em que este ia visitá-la ao Finch College. Logo que a rodeira vinha chamar Elsa para ir ao locutório, todas as outras alunas ficavam em efervescência e cada uma delas procurava encontrar-se no corredor, que dava para o vestíbulo, por onde passaria o belo Arnold Powell.

 

Já não podia considerar-se um rapaz, mas todo o elemento feminino de Saint Patrick o elegia como o mais belo espécime masculino da região. Na sala onde se encontrava Elsa, cujo coração palpitava com força sob a bata de educanda, falava alto, captando de passagem o olhar das outras raparigas, que se encontravam também ali com a família, todas elas fascinadas pelo seu porte e modos fidalgos, como, de resto, o estavam todas as clientes de Arnold, que em Saint Patrick desempenhava as funções de solir citador.

 

A sua voz de timbre aveludado tornara-se célebre em todos os tribunais dos arredores e o seu cartório era dos mais concorridos.

 

Elsa conhecia-o desde criança. Era ele quem administrava a fortuna dos pais, mortos em Londres durante a guerra, quando ali se encontravam de passagem. O mesmo bombardeamento causara outras vítimas: os seus jovens tios Pete e Richard e a tia Rosalind.

 

Quanto ao padrinho, outro irmão do pai, morrera ao serviço da R.A.F.

 

Na altura do drama, restava a Elsa, ainda muito criança, a tia-avó, baronesa Kathleen, senhora de muita idade e quase inutilizada, que vivia no solar.

 

O baronete Adelborn casara com uma americana. Dirigindo um negócio de importações e exportações, vivia mais no Novo Continente do que na Europa; mas, na altura da guerra, decidira ficar em Inglaterra. Embora a Irlanda, sua terra natal, não tivesse entrado na guerra, era bastante leal a Sua Majestade para não desertar no momento de perigo.

 

Instalara sua mulher, o filho mais velho e a pequenina Elsa num antigo palacete londrino, onde se lhes reunia sempre que os seus afazeres lho permitiam. Foi durante uma dessas estadias que ocorreu a catástrofe onde quase toda a família desapareceu.

 

A velha tia Kathleen regressou ao solar com Elsa e educou-a com o auxílio de mademoiselle Maria Lambert e com a cooperação de Arnold Powell, conselheiro e amigo dos falecidos. Quando a excelente fidalga deu a alma a Deus, ficou, unicamente, o tutor para cuidar e ocupar-se de Elsa. Este despediu mademoiselle Lambert, e enviou-a para a França, decidindo que a pupila iria terminar os estudos num colégio.

 

Elsa tinha quinze anos e viveu mais três com as irmãs Finch, directoras do internato escolhido por Arnold.

 

Arnold Powell atingira os trinta e seis anos quando Elsa completou dezoito. Essa data marcou para ela o fim do internato. Saiu de lá com todos os seus diplomas e um certificado de enfermeira.

 

Durante as últimas férias, o tutor fez-lhe uma corte cheia de ardor e solicitude. Elsa estava vagamente apaixonada pelo belo rapaz, que todas as suas condiscípulas classificavam como encantador, facto que a lisonjeava intimamente. Poeta nas horas vagas, Arnold compusera para ela alguns versos. Não era preciso mais para inflamar a imaginação de uma colegial, educada pelas irmãs Finch na mais apertada sujeição.

 

Quando, no fim do ano, o belo Arnold lhe disse: ”Minha querida, gostaria imenso que vivesses comigo, mas isso daria pasto às más línguas. Para ser franco, se não tivesse o dobro da tua idade, casaria contigo, porque, na verdade, gosto muito de ti”, Elsa, encantada, bateu as mãos.

 

Eu também lhe quero, Arnold. Não me importa a sua idade. O Arnold é o meu ideal, o homem com quem sempre sonhei.

 

Nesse caso, como não podes ficar em Alderborn sem companhia e não seria bonito viver comigo antes de casarmos, vou confiar-te a uma senhora que te servirá de companhia e viverá contigo até à data do nosso casamento. Estás de acordo?

 

Nesta feliz combinação, Elsa só viu uma coisa: o facto de fugir à apertada e severa vigilância das irmãs Finch, de poder tocar piano seis horas por dia se lhe apetecesse, comprar um automóvel potente e rápido, que ela própria conduziria, e ir visitar mademoiselle Lambert, a preceptora francesa, de quem tinha imensas saudades.

 

Por consequência, aprovou todos os projectos do futuro marido.

 

Este apresentou-lhe mrs, Marjorie William, viúva de um médico, que, devido a reveses de fortuna, se via obrigada a desempenhar o papel de anjo da guarda junto das raparigas ricas e sem família. Ao contrário do que se poderia supor, mrs, William não era velha, mas uma loirinha muito interessante, de pupilas cor de tabaco, lábios carnudos e sorriso amável, sempre pronto a desabrochar, isto é, uma linda mulher no género que as irmãs Finch reprovariam. Justamente, Elsa estava farta delas e dos seus princípios.

 

Adoptou mrs. William e em breve se tornaram grandes amigas. Elsa escrevera a mademoiselle Lambert, pedindo-lhe para retomar as suas funções junto dela. Mas a Francesa talvez estivesse já colocada, porque nunca lhe respondeu, nem sequer com algumas palavras de amizade.

 

Elsa viveu no solar com Marjorie William o período mais apaixonante da sua vida. Comprou o carro tão desejado e as duas mulheres ausentavam-se frequentes vezes para dar grandes passeios. Foram muitas vezes a Dublin para visitar os grandes costureiros e os estabelecimentos da cidade. Elsa comprou o enxoval, guiando-se pelos conselhos de Marjorie. Muito elegante e distinta, a viúva transformou, pouco a pouco, a educanda do colégio Finch numa encantadora rapariga, trajando pela última moda, embora estas preocupações com o trajo assumissem pouca importância para Elsa, mais desportiva do que dada a ninharias.

 

Vestia bem, principalmente para agradar ao noivo.

 

Este ia todas as semanas a Adelborn. Mandava flores à noiva e nunca a visitava sem lhe dar um presente. O anel de noivado que lhe ofereceu valia uma fortuna: um diamante muito puro, levemente azulado, do mais belo efeito.

 

Fora escolhido por Marjorie, a quem Arnold pedira para ir ter com ele a Dublin na véspera do noivado para o ajudar a comprar a jóia.

 

Quando o soube, Elsa ficou um pouco desagradada. Arnold não poderia ter escolhido sozinho o anel que simbolizava a sua união? Foi nesta ocasião, durante a ausência de Marjorie, que ocorreu o incidente desagradável, única sombra na radiosa felicidade da futura mrs. Powell,

 

Nas terras de Adelborn existia uma granja onde vivia uma antiga criada dos pais de Elsa. Naquele dia, passeando a cavalo por aquelas paragens, Elsa lembrou-se de ir visitar a velha Ana. Esta mostrou-se muito retraída e misteriosa quando Elsa lhe falou no próximo casamento. Achava o solicitador muito velho para uma rapariga de dezanove anos, afirmou. Chegou até a dizer que a presença de Marjorie William ocasionava muitos comentários na região.

 

Elsa abandonou a herdade, furiosa. Pelo caminho encontrou Penélope, a neta de Ana, que regressava do trabalho. Quando a viu, a jovem tentou passar adiante, limitando-se a breve saudação.

 

Elsa deteve o cavalo e saltou para o chão a fim de a beijar. Era muito amiga da companheira de infância, a quem, durante as férias, via muitas vezes. A presença de Marjorie e o turbilhão em que esta a arrastava, não lhe tinham dado tempo para reatar relações de amizade com a sua companheira dos tempos felizes de menina.

 

A tua velha avó não está em seu juízo comentou para Penélope, não podendo esquecer os comentários da velha criada disse-me coisas disparatadas sobre o solicitador Arnold Powell, meu noivo e mrs. William Marjorie, a quem considero a mais dedicada e encantadora das mulheres.

 

A minha avó é-lhe muito dedicada, miss Elsa limitou-se a responder Penélope, desviando os lindos olhos claros da futura mrs, Powell.

 

Mas tu não podes acreditar nesses absurdos? Por mais um pouco teria acusado Arnold e Marjorie de serem... de se entenderem um com o outro.

 

Penélope conservava-se de lábios cerrados.

 

Como estes ditinhos são odiosos! exclamou Elsa, irritadíssima, voltando a montar.

 

E, em pensamento, mandou para o demónio as mexeriqueiras e os seus mexericos. O regresso de Marjorie, que parecia radiante e trazia numerosos presentes para Elsa, acabou por dissipar-lhe a irritação. Esteve quase para lhe contar o que tinha ouvido a seu respeito, para rirem as duas, mas, detida por uma espécie de pudor, calou-se.

 

Arnold chegou no dia seguinte. Celebrou-se o noivado na mais estrita intimidade, sem convidados, excepto um médico, amigo de Arnold, que aproveitou a ocasião para observar Elsa, pois, havia algumas semanas, esta sofria de insónias e até de alucinações.

 

O médico atribuiu tudo à excitação e nervosismo ocasionados pelo período de noivado e receitou calmantes.

 

O casamento foi apressado. Arnold desejava levar a sua jovem esposa para um cruzeiro à Itália e Grécia, aproveitando para isso o período de férias. Levariam consigo o Jaguar de Elsa, mais rápido que o Austin de Arnold e, a fim de não perderem tempo, o solicitador tratou com antecedência dos documentos necessários para a passagem do carro na fronteira.

 

O papel de Marjorie William ia terminar.

 

A revelação que devia elucidar a nossa heroína chegou demasiado tarde para Elsa poder remediar a situação para a qual os acontecimentos a impeliam.

 

O casamento civil realizou-se em Saint Patrick, na véspera do casamento religioso. No dia seguinte, Elsa e Arnold iriam à igreja católica consagrar a sua união.

 

Naquela noite, porém, de regresso a Adelborn, Elsa ficou edificada. Subira ao quarto para mudar de vestido. O acaso quis que tivesse esquecido a mala de mão na sala, a mala onde se encontrava um objecto de que necessitava para se preparar. Desceu. As sandálias não produziram ruído no corredor. A porta da biblioteca estava entreaberta e, reflectido num espelho, Elsa viu o parzinho, Marjorie e Arnold, estreitamente enlaçados.

 

Arnold, considerando a pupila já presa visto Elsa ser já, perante a lei, mrs. Powell estreitava a dama de companhia com um ardor que não deixava dúvidas sobre a natureza dos seus sentimentos.

 

Imobilizada pelo espanto e pela repulsa, Elsa pôde avaliar toda a extensão do seu infortúnio. Soube que Arnold casara com ela, unicamente, com o propósito de se apoderar de uma fortuna da qual não podia dispor até ali sem a sua assinatura. O facto de Elsa ser sua mulher conferia-lhe plenos direitos sobre essa fortuna. Tencionava pedir-lhe imediatamente uma procuração para vender os domínios que Elsa herdara na Irlanda e na América e que, até ali, Arnold administrara sem poder tocar-lhes, limitando-se a receber os rendimentos.

 

Quanto a ela, logo que conseguisse essa autorização legal, seria internada num sanatório particular, onde ninguém iria procurá-la. Certos factos anormais justificariam a medida: as insónias, provocadas por comprimidos cuidadosamente escolhidos e ministrados nas bebidas pela mão de Marjorie e a consulta do médico, que, em caso de necessidade, seria uma testemunha muito útil.

 

Depois, Arnold e a sua astuciosa amante poderiam entregar-se ao seu amor e gozar a fortuna da vítima, enquanto esta definharia no seu inferno; para eles, as viagens, os grandes hotéis, a vida larga... e talvez a definitiva instalação no Continente, onde ninguém os conhecia e onde poderiam recomeçar a sua vida de divertimentos e felicidade. Inebriados com o fácil triunfo, os dois felicitavam-se mutuamente pelo resultado das ignóbeis manobras, sem poderem adivinhar que, a poucos passos, horrorizada e indignada, Elsa acordava de um sonho onde tudo era inocência, cândida alegria e esperanças de felicidade, para nascer num mundo de ignomínia onde pela primeira vez na vida tomava contacto com o mal.

 

Mal conseguiu voltar ao quarto. Despiu-se e meteu-se na cama, ardendo em febre. Quando Marjorie, inquieta por não a ver descer, entrou no quarto, declarou-lhe que estava com terrível enxaqueca e muito agoniada, talvez por causa do calor.

 

Para o jantar, encomendado num hotel próximo, estavam convidadas diversas pessoas.

 

Vão os dois pediu Elsa em voz fraca Prefiro descansar hoje para estar boa amanhã.

 

Logo que o casal partiu no Austin do solicitador, Elsa levantou-se e vestiu-se com gestos febris. As malas estavam prontas havia alguns dias. Desceu com elas e meteu-as na caixa do carro.

 

Todos dormiam em casa quando abandonou a propriedade. Teve o cuidado de fechar o quarto e pregar na porta um bilhete, pedindo para não a incomodarem.

 

Desta maneira, ninguém daria pela fuga senão na manhã seguinte.

 

Abandonou o solar, sub-repticiamente, como uma ladra, com todos os faróis apagados, para não despertar a atenção do jardineiro, que habitava uma casinha perto do portão. Possuía todos os documentos necessários. Passaporte, passagem para o carro, papéis que Arnold preparara de antemão com a ideia na viagem e fizera visar na véspera, depois do casamento civil.

 

Viajou toda noite. Tencionava fugir para França e pedir auxílio a mademoiselle Lambert, a única pessoa em quem podia confiar, a única a quem conhecia, além dos amigos de Arnold.

 

Antes de embarcar com o carro, mandou a mademoiselle Lambert um telegrama com resposta paga. Essa resposta devia ser mandada para a posta-restante do Havre, para onde seguia o navio em que embarcara em Dublin.

 

Durante os dias seguintes procedeu como um autómato, como se outra pessoa mais enérgica, mais lúcida do que ela, agisse em seu lugar e tomasse as necessárias decisões.

 

Era como se um sudário gelado a envolvesse e substituísse a radiosa alegria, o optimismo através do qual considerara a vida. Afigurava-se-lhe que uma dessas vagas enormes do equinócio, se erguera no fundo de si mesma e a submergira.

 

As palavras proferidas à sua volta não lhe chegavam à consciência. Vivia com um único pensamento: atingir o fim da viagem, encontrar o semblante bondoso e franco de mademoiselle Lambert, a sua afeição protectora e os seus braços para neles se refugiar e chorar à vontade como chorava quando era pequena.

 

Mas não se tratava agora de um desgosto infantil logo esquecido e fácil de consolar. A vida brutal encarregara-se de a despertar e arrancar ao mundo de fantasia.

 

No decorrer da travessia, recordada, agora, como um pesadelo, convervou-se aniquilada, fechada no camarote, apesar de não ser sensível ao enjoo nem tão-pouco à temperatura sufocante da atmosfera. Por vezes, à noite, subia até à coberta e, escutando, os guinchos das gaivotas, no crepúsculo, via surgir os rostos daquelas a quem havia fugido, rostos mentirosos que respiravam ódio e ameaça.

 

O seu primeiro gesto consciente quando chegou ao Havre, depois de ter cumprido todas as formalidades toda a vida se admiraria por ter sabido, naquela altura, desenvencilhar-se no meio de tanta complicação, quando na véspera, ainda, não era mais do que uma educanda saída do colégio, tímida, desarmada perante todas as iniciativas foi o de se dirigir à posta-restante. Encontrou ali um telegrama que não lhe proporcionou a alegria com que contava e, pelo contrário, lhe trouxe aos olhos lágrimas de desapontamento:

 

A viúva Rambuteau, ocupante momentânea da casa de mademoiselle Lambert, que lha alugou, comunica-lhe estar a interessada, actualmente, desempenhando o cargo de governanta em casa de uma família francesa que partiu para a ilha da Reunião. Pode escrever para aqui. Eu farei seguir a correspondência.

 

Depois desta notícia, que lhe destruía todas as esperanças, Elsa meteu por uma estrada ao acaso, sem saber para onde ia ter. Na desorientação em que mergulhara ao ter conhecimento da ausência irremediável da única amiga que poderia auxiliá-la, o medo irreflectido de novo a dominou. Foi então que Lisbeth surgiu no seu caminho.

 

Bruno entrou no quarto com passos cautelosos. Surpreendeu Elsa recordando o passado e ficou admirado com a expressão melancólica e desalentada do semblante da cunhada.

 

Está fatigada, Lisbeth?

 

Ela ergueu a cabeça e sorriu-lhe. Depois apontou para a cama onde a doente dormia, pálida sob a coroa dos cabelos grisalhos.

 

Julgo que vai passar a noite sossegada.

 

Graças a si.

 

Elsa acompanhou-o ao aposento contíguo a fim de lhe dar as instruções e a indicação dos remédios a ministrar à doente.

 

Às cinco da manhã tenho de lhe dar uma injecção. Até lá deixe-a dormir, salvo se ela estiver muito agitada. Nesse caso, vá imediatamente acordar-me. Deixarei entreaberta a porta do meu quarto,

 

Bruno estava diante dela acanhado, atrapalhado, como se pretendesse dizer-lhe alguma coisa e não soubesse como.

 

Quando Elsa se dispunha a sair, prendeu-a por um braço:

 

Porque faz isto, Lisbeth?

 

A suposta Lisbeth semicerrou as pálpebras sobre as pupilas cor do mar.

 

Isto o quê?

 

Fatigar-se assim... para tratar de minha mãe...

 

É natural. Vivo aqui, sustentam-me. É justo que preste alguns serviços dentro do que sei.

 

Foi essa apenas a razão que a moveu? perguntou Bruno de mau modo.

 

Elsa notou a amargura e decepção expressa no semblante e um lampejo de malícia lhe perpassou pelos olhos claros.

 

Gosto muito da sua mãe, Bruno. É muito boa e uma verdadeira senhora.

 

O rapaz abanou a cabeça e observou-a com espanto.

 

Porque está a olhar para mim dessa maneira?

 

Nunca acreditei que soubesse diferençar uma verdadeira senhora... de outra que o não seja.

 

Julga-me assim tão vulgar?

 

A Lisbeth era vulgar... agora já não é... E, assim, pergunto a mim mesmo...

 

Bruno resolveu então queimar os últimos cartuchos.

 

Foi há anos que desempenhou a comédia?... Quando recordo aquela cena... a cena tão brutal... tão grotesca...

 

Elsa fez um trejeito de amuo.

 

Decididamente, essa cena fez-lhe grande impressão.

 

O rapaz observou-a com desconfiança e confessou, a despeito da sua vontade:

 

A Lisbeth foi revoltante. Odiei-a tanto que não consegui esquecê-la.

 

Que lhe fiz eu assim tão grave?

 

Não brinque... Não me diga que não se recorda. Agora parece-me que fui ridículo. Esteve a troçar de mim e não queria por forma alguma beijar-me?

 

Eu quis beijá-lo?

 

Não seja odiosa atalhou Bruno com modos rudes Não me faça recordar a antiga Lisbeth. Além disso, presentemente, já não tenho medo de si. Era isso o que pretendia dizer-lhe no dia em que fui buscá-la.

 

Designou a manga vazia e o rosto másculo contraiu-se-lhe numa expressão de desespero.

 

Agora já não corro perigo, não temo certas mulheres, nem o seu amor nem o seu ódio... Já não sou um homem normal, sou um aleijado.

 

Voltou a cabeça e dirigiu-se para a janela a fim de lhe ocultar a contracção do semblante. De costas voltadas, encostou-se ao parapeito e não foi mais do que uma sombra, recortando-se no negrume da noite.

 

Elsa aproximou-se com passos leves. As sandálias não faziam qualquer ruído, de forma que Bruno só deu por ela quando o seu perfume o envolveu, esse perfume fresco que evocava os campos de alfazema.

 

Porque não me disse nada quando foi buscar-me à ”Framboisière”, Bruno?

 

O rapaz voltou-se bruscamente e olhou-a bem a direito. Os lindos olhos verdes não se desviaram, francos e directos, e os cabelos loiros irradiavam por cima da testa alta e branca.

 

Porque não encontrei a antiga Lisbeth... porque fiquei confundido... O meu desprezo e o meu ódio, tudo isso me pareceu injusto, visando-a... Teria sido estúpido da primeira vez?... Teria tido uma alucinação?

 

Num gesto espontâneo, Elsa ergueu-se na ponta dos pés e deu-lhe um beijo na face.

 

Gosto muito de si, Bruno.

 

Bruno recuou num brusco sobressalto, com os olhos muito abertos. Maquinalmente, passou a mão pela cara.

 

Sem lhe dar tempo a falar, Elsa continuou: Ou será agora que tem uma alucinação? murmurou com meigo sorriso.

 

Depois deu uma reviravolta e saiu, ligeira, do quarto, como um duende gracioso e caprichoso, deixando-o transtornado pelo espanto, pela perplexidade e pela comoção.

 

Mamie restabelecia-se lentamente e a ansiedade que reinara na Bastide durante tantos dias dissipou-se. A sombra da terrível ceifeira sumiu-se no horizonte, onde as asas das gaivotas reapareceram para se confundir com as brancas velas, que o vento fresco do largo empurrava para o mar.

 

A convalescente insistia com a sua enfermeira para descansar depois de tantos dias de fadiga junto da sua cabeceira, exigia que tomasse um pouco de ar.

 

Considero-a como minha verdadeira filha afirmava, olhando-a com profunda gratidão.

 

Elsa sorria, misteriosa e um pouco triste.

 

As suas relações com Bruno continuavam no mesmo pé. No dia seguinte à conversa na saleta contígua ao quarto de madame Forestier o rapaz mostrara-se taciturno e de novo procurava fugir-lhe. Lisbeth, porém, natural e simples, conseguira dissipar-lhe o mau humor e restabelecer o contacto entre eles.

 

Inconscientemente, madame Forestier foi o instrumento desta aproximação.

 

Bruno, leva a Lisbeth para dar um passeio. Impõe-se distraí-la. Há tantos dias que está aqui fechada!

 

Lisbeth não protestou e Bruno levou-a consigo. Visitaram a ilha onde Gerardo e ele tinham brincado em crianças e Alão lhe mostrara de passagem, porque era muito novo para se prender a recordações do passado.

 

Bruno descreveu-lhe os dias decorridos na ilha, brincando aos Robinson, enquanto as velas latinas dos barcos de pesca seguiam para o mar alto. Nesse tempo, a praia era o seu reino. Faziam barcos de bocados de casca das árvores ou de madeira, nadavam na lagoa ou na praia a fim de apanharem conchas, enquanto os pescadores não regressavam com as redes cheias.

 

Por vezes, iam até ao porto, na ”chata”, para escutar os marinheiros que voltavam de Tarragona ou de Valência, crestados pelo sol e com a cabeça recheada de histórias.

 

E em todas estas conversas, o nome de Gerardo estava sempre na boca de Bruno. Por vezes, calava-se de repente e relanceava à cunhada um olhar de soslaio, um olhar observador e fugidio.

 

Não sei porque parece constrangido quando me fala de seu irmão, Bruno observou Elsa certo dia, abordando deliberadamente o assunto. Tudo isso pertence ao passado e não devemos deixar-nos perturbar por essas recordações.

 

Bruno soltou uma risada irónica e amarga.

 

Admiro como consegue esquecer assim. Não gostava de meu irmão?

 

Prefiro não falar nesse assunto confessou Elsa, desviando a vista.

 

E eu não posso deixar de falar no Gerardo! protestou apaixonadamente, com voz trémula de emoção. Era o meu melhor amigo e a Lisbeth separou-nos.

 

Não foi esse o meu desejo afirmou Elsa com convicção. Quer acreditar-me?

 

E voltava para ele o rosto calmo, misterioso, sem mentira. Ignoraria ela a saudade e o remorso? Ou seria Bruno quem se teria enganado sobre os motivos que a haviam impelido?

 

Bruscamente, pegou-lhe na mão e apertou-a com força. Era como uma absolvição e um pacto e também o único gesto mais afectuoso que se permitia desde o início da sua camaradagem... excepto o de lhe pegar no braço para auxiliar a saltar para o barco ou de a guiar pelos caminhos mais difíceis. Caso contrário, a sua atitude rígida persistia.

 

Elsa levantou-se, ligeira, esbelta e loira na claridade brilhante do sol. Trazia sempre o fato de banho por baixo do vestido.

 

Vamos?

 

Libertou-se do vestido e correu para a água, soltando gritinhos de alegria. Bruno tirou a camisola e seguiu-a. Elsa adorava o mar, sentia-o como Bruno e os irmãos, que tinham passado toda a sua infância entre o mar e a terra.

 

Nadaram juntos, como dois delfins, brincando entre as ondas e a espuma. Tal era o domínio de Bruno que, apesar de não ter o braço, praticava todas as modalidades da natação com surpreendente habilidade.

 

Por vezes, levavam Carlos consigo, o que constituía mais um laço a uni-los. Desde que Elsa olhava por ele, estava mais bonito. Transformara-se num adorável rapazito, com a pele bronzeada, cujo corpo robusto de tonalidades quentes dir-se-ia feito de mármore e sol.

 

Manifestava uma alegria exuberante, muito diferente do que fora até ali e dava a impressão de que, rodeado pela ternura daquela a quem chamava mamã, desabrochava como uma planta transplantada para o clima que lhe convinha.

 

Como conseguiu viver sem ele durante tantos anos? perguntava, por vezes, Bruno, examinando com olhar penetrante o semblante impregnado de maternal ternura que Elsa inclinava para a criança.

 

Elsa abanava a cabeça, arrancando cintilações aos cabelos cor de mel.

 

Não sei. Isso pergunto eu a mim própria. De facto, fazia convergir sobre a criança,

 

meiga e carinhosa, toda a ternura de que o seu coração estava cheio. Fora tão pouco rodeada de afeições em pequena e, agora, depois de saber serem vis e falsas aquelas em que acreditara, sentia que precisava de prender-se a qualquer coisa ou a alguém...

 

Mas funda preocupação a atormentava. Uma noite, depois de terem jantado no terraço e quando o Bonzo subira para o quarto de sua mulher, Elsa deixou-se ficar calada e pensativa, enterrada na cadeira de braços.

 

Em que pensa, Lisbeth?

 

No regresso do Alão.

 

O olhar de Bruno ensombrou-se.

 

Está assim tão ansiosa pela sua volta?

 

A voz vibrava em inflexões hostis como nos primeiros dias da instalação de Elsa naquela casa. Ela abanou a cabeça e não lhe respondeu.

 

Nem sequer sei para onde meu irmão foi prosseguiu Bruno. O Alão é retraído e nunca nos diz para onde vai ou o que vai fazer. Consigo procede de outro modo?

 

Elsa iludiu a pergunta.

 

Quando ele regressar, partirei eu declarou, enquanto uma nuvem de melancolia lhe ensombrava o lindo rosto.

 

Bruno notou quanto a sua expressão era encantadora. A tristeza e a melancolia ficavam-lhe tão bem como a alegria. Era como a lagoa, cujas vagas brilhavam ao sol, mas que, de repente, se turvavam com o arrepio do vento e com o lodo do fundo.

 

A declaração sobressaltou Bruno. Inquieto, perguntou:

 

Tenciona ir-se embora, Lisbeth? Supus que tinha renunciado a essa ideia.

 

Não posso passar aqui toda a minha vida... vivendo à vossa custa.

 

Estranho escrúpulo. Esta casa também é sua.

 

Não; é sua.

 

Minha?!

 

Ou antes, de todos os seus... Vivi aqui feliz... por um tempo, mas a minha vida não pode fixar-se na Bastide.

 

Eis uma declaração cruel, Lisbeth.

 

Elsa ergueu os lindos olhos verdes e fixou-o.

 

Porquê? Não quis ser cruel, Bruno. Foram todos tão bons, tão acolhedores para a desconhecida que lhes caiu do céu...

 

Para nós não era uma desconhecida... mas sim a viúva do Gerardo.

 

Um sorriso um pouco triste entreabriu os lábios frescos.

 

A viúva do Gerardo... repetiu com estranha inflexão.

 

Era verdade. Haviam-na acolhido como viúva de Gerardo, mas não o teriam feito a Elsa Powell, não a teriam rodeado das atenções manifestadas a madame Gerardo Forestier.

 

Para que se vai embora, Lisbeth? insistiu Bruno Supunha que nos havíamos tornado amigos.

 

Mas somos amigos, Bruno.

 

Nesse caso...

 

Elsa calou-se, esgotados todos os seus argumentos. Em breve, ele estaria ao facto da verdade. Qual seria a sua reacção? Ficaria satisfeito ou guardar-lhe-ia rancor por causa da mentira involuntária? E, de súbito, compreendeu que o rancor de Bruno, um rancor que visava uma mulher que não era ela e por isso a deixava indiferente, seria insuportável quando, de facto, a alvejasse.

 

Então, sentiu que Bruno lhe era muito mais querido do que a si mesma desejava confessar.

 

Sem perceber, um sentimento desconhecido infiltrara-se-lhe no coração, expulsando tudo quanto nele vivia de amargura, desalento, rancor e medo. A recordação da feia traição de Arnold e de Marjorie, das suas vis manobras, tudo isso se lhe tornara indiferente; nem mesmo o sítio onde sempre vivera lhe parecia indispensável para a sua felicidade.

 

Não se importaria de ficar ali, naquele cenário, desconhecido meses antes, de passar ali toda a vida, contanto que estivesse junto de Bruno e vivesse para ele.

 

”Será isto o amor?” pensava, aterrada e ao mesmo tempo maravilhada.

 

Depois recordava Arnold com a sensação de desforra; o rapaz pretensioso e tolo, despojado de tudo quanto a sua imaginação lhe emprestara, tornava-se ridículo. A paixoneta de colegial ignorante, presentemente metia-lhe dó. Uma alegria imensa tumultuava-lhe no peito. Já não tinha medo dele nem sofria.

 

Um pouco alterada, a voz de Bruno soou atrás dela.

 

Escute, Lisbeth, se gosta do Alão, prometo-lhe que ninguém se oporá ao seu casamento com ele. Eu próprio falarei com o meu pai.

 

Elsa voltou-se e fixou-o com olhar vago, como se tivesse despertado de um sonho. Descobriu a expressão torturada tomada por Bruno quando supunha que ninguém o observava.

 

How do you say?... O que diz? inquiriu docemente Grande pateta!

 

E fugiu ligeira, enquanto o rapaz, com os olhos muito abertos, a seguia com a vista, tentando compreendê-la.

 

O dia do regresso de Alão marcou o final das tréguas que reinavam entre Elsa e Bruno. O rapaz chegou, inesperadamente, à hora do jantar e a sua voz sonora e fresca encheu a casa. Correu para o quarto da mãe, comovido, transtornado com a notícia de que tinha estado tão mal, encantado por a encontrar quase curada e saltou ao pescoço de Elsa, quando a convalescente lhe contou a dedicação e a forma competente como a havia tratado.

 

Não me causa espanto. Sempre lhe disse que era boa rapariga.

 

E voltou a apertar Elsa nos braços, despenteando-a, beijando-a, obrigando-a a dar voltas e reviravoltas ou então olhava-a bem a direito nos olhos, com expressão significativa, como se entre eles existisse um segredo e tivesse para lhe dar notícias que o enchiam de júbilo e não conseguia ocultar.

 

Enervado, Bruno tomou o partido de sair do quarto e, durante o jantar, pouco falou. O Bonzo, radiante com o regresso do filho mais novo, cujo carácter expansivo cem por cento meridional apreciava, conversava alegremente. Elsa observava o recém-chegado e o seu rosto exprimia profunda calma, serenidade, como se tivesse, de repente, adquirido a certeza de ter atingido o porto. Já não ria e parecia absorta num sonho tornado realidade.

 

Por vezes, sorria com os comentários de Alão, com um sorriso misterioso, que espalhava um clarão radioso e doce pelo encantador semblante de fada loira.

 

Em determinada altura, sentiu sobre si o peso do olhar de Bruno. Ergueu a cabeça e corou imperceptivelmente. Na têmpora do rapaz, pequenina veia entumeceu e começou a palpitar.

 

Carlos, que andava em volta do recém-chegado, devorando-o com os olhos, por momentos afastou-se dele e foi implicar com o tio mais velho.

 

Que tens, tio Bruno? Estás tão calado, hoje...

 

Deixa-me em paz! resmungou Bruno com mau modo.

 

O olhar de censura que Elsa lhe relanceou irritou-o. Aguardou com impaciência o fim do jantar, a custo dominando os nervos. Quando Elsa, que ocupava o lugar da dona da casa, se levantou, abandonou também a mesa e despediu-se.

 

Vais já deitar-te! estranhou Alão Pouco falámos... Fica mais um bocadinho a fazeres-me companhia.

 

Tens outras pessoas cuja companhia deve agradar-te muito mais...

 

E como Alão erguesse as sobrancelhas numa expressão de espanto, pediu, um tanto envergonhado com os seus modos bruscos:

 

Desculpa. Tenho um trabalho urgente para acabar esta noite.

 

O trabalho em questão não era assim tão urgente porque, instantes depois, Elsa e Alão, que se haviam afastado e conversavam animadamente, sentados num banco do jardim, ouviram os acordes da Apassionata, que Bruno tocava no gira-discos.

 

Que tem ele?

 

Na escuridão da noite, as pupilas de Elsa cintilaram como estrelas:

 

Ciúmes, creio eu respondeu, relanceando-lhe uma olhadela cheia de malícia.

 

-Não?...

 

Sim, deve ser isso confirmou ela, encantada.

 

Alão exultou.

 

Meu pobre Bruno! Acredite que isso me causa imenso prazer, Elsa. Eu bem lhe dizia que ele acabaria por se humanizar.

 

Elsa cruzou as mãos sobre o peito e o olhar vago perdeu-se na paisagem calma e silenciosa, envolta nas sombras do crepúsculo, que se lhe oferecia como um sonho dos contos de fadas.

 

E, em voz baixa, afirmou com fervor:

 

E eu adoro-o...

 

...No dia seguinte de manhã, Elsa saiu com Alão para a vila. No seu quarto, Bruno escutou o ruído do scooter que os levava. Assomou à janela. A manta de Elsa flutuava atrás dela como gloriosa flâmula.

 

Estranha sensação, a dor aguda e oculta que muito bem conhecia já, feriu o coração de Bruno com a sua acerada garra.

 

Entregara-se à resolução de complicadas equações a fim de esquecer o mal que o perseguia, quando ouviu bater à porta.

 

Entre disse, aborrecido por ter de abandonar os seus cálculos.

 

E mais contrariado ficou quando viu aparecer o vulto escuro da Catalã.

 

Que temos?

 

Preciso de lhe falar.

 

Falarás depois. Agora tenho que fazer.

 

Tem de me dar atenção. O que pretendo dizer-lhe é grave.

 

Bruno encolheu os ombros. Estava habituado aos ares dramáticos de Maria. Tratava-se, talvez, de qualquer problema doméstico, cuja resolução pedia a sua opinião.

 

Se é assunto da casa dirige-te a madame Lisbeth.

 

Madame Lisbeth! Bonita madame Lisbeth! comentou a velhota, com ironia Também se deixou enganar por ela como todos nós?

 

Bruno examinou-a com impaciência. Notou-lhe o brilho mau do olhar cintilando por entre as pesadas pálpebras e o sorriso triunfante dos lábios enrugados. Tornava-se evidente que exultava.

 

Finalmente, que pretendes?

 

Soube bonitas coisas a respeito daquela a quem tratam por madame Lisbeth... a sua madame Lisbeth é tanto madame Lisbeth como eu sou papa.

 

Bruno franziu a testa.

 

Deixemo-nos de enigmas. Fala com clareza em vez de o fazeres como uma cartomante de feira.

 

Não sei bem explicar-lhe... Para dizer a verdade, não percebi grande coisa, excepto que... e apontava para cima, na direcção do quarto de Elsa aquela espertalhona enganou-nos sobre a sua identidade.

 

Remexeu na algibeira e tirou uma folha de papel que agitou diante do rosto carrancudo de Bruno.

 

Leia isto... é mais inteligente do que eu. Deve perceber melhor.

 

Bruno estendeu a mão.

 

Trata-se de uma carta rasgada cujos bocados foram colados?

 

Maria aprovou com a cabeça.

 

Exactamente.

 

Onde encontraste isto?

 

No cesto dos papéis daquela mentirosa. A carta estava rasgada aos bocadinhos, mas eu consegui colá-la.

 

Agora já andas a espiar pelos cestos de papéis? observou Bruno com indignação.

 

E ainda bem que o fiz replicou a Catalã Sem mim, o Alão poderia perder a cabeça por causa dela e introduzi-la na família sob um nome falso. E, ainda por cima, ela seria capaz de nos tirar o Carlos. Seria bonito! Pode ler. A carta foi-lhe dirigida.

 

A mim!

 

A si. Leia... incitou com ironia Meu caro Bruno é como começa. Conta-lhe a história toda. Madame Lisbeth morreu... Não tenho pena dela, mas que outra esteja aqui em seu lugar, isso não! Parece um romance!

 

Bruno deixara de a escutar. Começara a ler e, à medida que avançava na leitura, a fisionomia reflectia-lhe incredulidade e estupefacção.

 

Pergunto a mim mesma para que escreveu essa carta se depois a rasgou concluiu Maria, agitando freneticamente as abas da touca.

 

Isso perguntava Bruno a si mesmo, enquanto voava pela estrada que conduzia à vila. Não sabia bem onde poderia encontrar o irmão e... a usurpadora, pois, de momento, na desorientação em que se encontrava não conseguia classificar Elsa de outra forma. Saíra de casa, num impulso espontâneo e irreflectido, para lhe pedir explicações sobre o inacreditável imbróglio.

 

Não viu o scooter e foi obrigado a pedir indicações às mulheres que remendavam as redes.

 

Por fim, avistou a máquina encostada à parede da igreja. Uma linda rapariga que se encontrava perto, sorriu-lhe.

 

Exibia os dentes muito brancos e brilhantes e a saia de tom vivo esvoaçava-lhe em torno das pernas bronzeadas.

 

Bom dia, senhor Bruno.

 

Bom dia, Babette respondeu, distraidamente, o rapaz.

 

Conhecia aquela filha de pescadores com quem dançara algumas vezes nas romarias.

 

Sabes onde está meu irmão?

 

Está na sacristia com madame.

 

Na sacristia! Que demónio iria o irmão fazer à sacristia? Talvez entregar os papéis para a publicação dos banhos para o seu casamento com...

 

Babette viu-o atravessar o adro com passo precipitado e uma nuvem lhe toldou o lindo semblante. Seguiu com olhar ansioso o vulto esguio até que ele se sumiu no pórtico. Depois persignou-se, uniu as mãos e começou a rezar.

 

Bruno não teve de procurar muito para encontrar quem procurava: Alão e Elsa saíam da sacristia depois de se terem despedido do sacerdote. Bruno aguardou-os junto do poço, no claustro e, quando passaram perto dele, surgiu-lhes de repente.

 

Elsa soltou um gritinho de medo.

 

Assustou-me, Bruno! Bruno dirigiu-se ao irmão.

 

Acompanha-me. Preciso de falar-te...

 

E como Elsa desse um passo para se afastar, acrescentou:

 

E a si também, madame, Elsa olhou-o com espanto.

 

Madame!

 

Bruno nem olhou para ela. Precedia-os com o seu passo vivo, que o nervosismo e a íntima emoção tornavam mais sacudido.

 

Elsa e Alão trocaram rápida olhadela. A fisionomia da rapariga iluminou-se com malicioso sorriso, mas como Bruno se voltasse para se certificar se os dois o seguiam, retomou uma atitude impassível.

 

Junto da porta do claustro havia um banco. Daquele ponto avistavam-se o largo e as casas do porto com as redes penduradas nas estacas.

 

Sentemo-nos aqui decidiu Alão Não vale a pena irmos mais longe. Sei o que pretendes dizer-nos.

 

Bruno voltou-se para Elsa, que se mantinha impassível.

 

Conheces a verdade sobre... a identidade de Madame!

 

Muito bem. Cheguei ontem de Dublin, onde tive uma entrevista com... com aquele que afirma ser seu marido.

 

O quê?

 

Assombrado, Bruno olhava, sucessivamente, para o irmão e para Elsa. A sua expressão era da mais completa incompreensão.

 

Devo dizer-te que esse casamento representava uma ignóbil cilada e não será considerado válido pelos tribunais. Além disso, não se realizou o casamento religioso e a Elsa é católica. Portanto, o casamento será anulado e ela em breve recuperará a sua liberdade. Aquele solicitador continuou Alão é um perfeito patife. Mas fui ter com um advogado de Londres que depressa lhe fez compreender o interesse, dele mais do que da Elsa, de não tornar público este escândalo. Aceitou todas as condições e, virtualmente, ela está livre.

 

Bruno passou a mão pela testa. Tornava-se evidente estar desorientado.

 

Compreendo o teu espanto, meu pobre Bruno! comentou Alão, a rir Também eu, na manhã em que a Elsa me tomou como confidente, quando a encontrei com um saquito na mão, disposta a abandonar a Bastide, mal podia acreditar em tão estranha aventura... No entanto, as provas estavam à vista e eu fui forçado a render-me à evidência.

 

Bruno voltou-se para Elsa, que ainda não proferira palavra.

 

Se bem compreendo, quando a encontrei na ”Framboisière”, a verdadeira Lisbeth já tinha sido despedaçada com o seu carro? Era ela a vítima do desastre no qual o Ludovico serviu de testemunha?

 

Elsa, tristemente, confirmou com a cabeça.

 

Como pude confundi-las! murmurou Bruno como se falasse consigo mesmo.

 

Ainda na véspera havíamos verificado como nos assemelhávamos murmurou Elsa.

 

O olhar de Bruno envolveu-a como se a visse pela primeira vez. Depois passou a mão pela testa húmida de suor.

 

Embora... Eu não devia enganar-me... Tudo quanto me perturbava... a diferença das vozes... a expressão do olhar... os seus modos... e esse sotaque inglês, que me espantava sempre, quando o ouvia... Mas, porque não me confessou tudo? perguntou de repente, irritado ao máximo.

 

Não me deu tempo para o fazer... Na altura em que entrou no jardim e começou a falar, tentei interrompê-lo, recorde-se... Mas o Bruno falava, falava, e não quis ouvir-me. Dir-se-ia que preparara o discurso de antemão e desejava fazê-lo, fosse como fosse.

 

Em parte era isso confessou Bruno, evocando o estado de espírito em que se encontrava no dia em que fora buscar a cunhada.

 

Logo a seguir, revelou-me o desastre. Reconheci logo que se tratava da pobre Lisbeth e do meu carro. Fiquei tão transtornada que nem sequer tive forças para lhe explicar tudo, e o Bruno quase me raptou com as bagagens dela. Segui-o sem bem saber o que fazia e...

 

A Elsa estava um pouco grogue, eis o que era comentou a voz alegre de Alão.

 

Este comentário dissipou um pouco a tensão da atmosfera. Em tom mais calmo, Elsa prosseguiu:

 

Chegámos ao posto da Polícia e, no momento em que supunha poder explicar tudo, Ludovico apareceu, anunciando que o meu carro estava no depósito e que já tinham avisado a minha família!

 

Calou-se e ocultou o rosto nas mãos como se pretendesse fugir a terrível visão. Alão poisou-lhe a mão no braço.

 

Pobre pequena... passou momentos muito duros!

 

Confesso que fui tomada pelo pânico continuou Elsa, dominando-se com esforço e só pensei numa coisa: fugir, fugir para muito longe... e consenti que me trouxesse para aqui...

 

Descobriu o rosto, deixou ver os olhos rasos de água e os braços descairam-lhe ao longo do corpo, num gesto cansado.

 

Eis a minha história, Bruno... Parece-se um pouco com um filme de grande metragem... um filme onde há de tudo... drama, sofrimento, mistério...

 

O olhar de Bruno foi de Elsa para Alão.

 

E também amor concluiu com um sorriso forçado.

 

É verdade aprovou Alão, enlaçando os ombros de Elsa também amor...

 

Na têmpora de Bruno a pequenina veia começou a palpitar.

 

Compreendo disse, voltando-lhes bruscamente as costas, disposto a afastar-se Desejo-lhes muita felicidade. Agora temos de dar a notícia ao Bonzo.

 

Aí está alguém que vai ficar de boca aberta, não achas?

 

E tem razão retorquiu Bruno.

 

Depois voltou-se para Elsa e comentou com pálido sorriso:

 

Em todo o caso, conquistou o direito de viver na Bastide. Declaro-lhe que substituiu a Lisbeth com toda a vantagem. Não será difícil a meus pais aceitá-la como sua filha. Já a consideram como tal.

 

Haviam chegado à porta do claustro. Bruno dispunha-se a seguir sozinho.

 

Olha lá! gritou Alão Não te vás embora tão depressa. Leva a Elsa contigo.

 

Bruno voltou-se muito corado.

 

Julgo que te compete a ti...

 

Eu tenho a minha noiva, meu amigo. Visto estarmos em maré de fazer surpresas ao Bonzo, não perderei o ensejo de lhe fazer mais uma. É como te digo. Vou, imediatamente, comunicar-lhe a minha intenção de casar com a Babette, de fazer dela minha mulher, não é esta a fórmula consagrada?

 

Mas...interrompeu Bruno, com espanto. Não pôde continuar. Um vulto airoso correu para ele, prendeu-lhe a banda do casaco e aproximou do seu o rosto suplicante:

 

Vai auxiliar-nos, não é verdade, senhor Bruno? Será nosso aliado? Há mais de três anos que espero pelo Alão!

 

Com autoridade, Alão afastou-a de Bruno,

 

Pois com certeza. Depois do que acabo de fazer por ele, tenho a certeza de que não será ingrato. Quanto a esses bracinhos, preferia senti-los em volta do meu pescoço, se não te importas.

 

Pouco depois, caminhavam os dois lado a lado. Nenhum deles se atrevia a falar.

 

O ruído produzido pelo scooter desvanecia-se e, quando se sumiu por completo, ouviam-se as vozes dos pescadores chamando de barco para barco. Uma aragem mais forte fez esvoaçar os cabelos loiros perto das faces de Bruno.

 

Por fim, a voz de Elsa cortou o silêncio.

 

Compreende, enfim, o que se passou, Bruno?

 

O rapaz não lhe respondeu. Elsa adivinhou o seu estado de espírito, tenso, dominado pela violência da paixão.

 

Procurando acertar o passo pelo dele, continuou:

 

Nunca me senti tão feliz como em sua casa, Bruno, e eu preciso tanto de carinho!

 

Sempre o mesmo mutismo! Bruscamente, Elsa parou e agarrou-lhe o braço.

 

Então não tem nada para me dizer?

 

Tenho replicou Bruno num repente Digo-lhe que a amo com todo o meu coração, com todo o ardor do meu carácter violento. Desde que a encontrei, sinto precisar de si, da sua presença.

 

Só então se atreveu a encará-la.

 

Mas digo-lhe também prosseguiu que sou um aleijado, um homem inutilizado. Não tenho o direito de monopolizar a sua mocidade, a sua alegria. Isto não passa de uma aventura louca, Elsa.

 

Sim, uma aventura, uma história louca desde o princípio... Daria, por certo, um péssimo filme, Bruno... mas sei também que...

 

E ergueu-se em bicos de pés para ficar à sua altura. As pupilas verdes cruzavam com as de Bruno, negras, impregnadas de nostalgia e trágica doçura. Os lábios afloraram os dele, leves como a carícia de uma asa.

 

... sei também que para nós será a mais bela, a mais duradoira, a mais vibrante história de amor, meu querido Bruno. 

 

                                                                                Romano Torres 

 

 

                                         

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

              Biblio"SEBO"