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O ENIGMA DE CATALINA - P.2 / Steven Saylor
O ENIGMA DE CATALINA - P.2 / Steven Saylor

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O ENIGMA DE CATALINA

Segunda Parte

 

         CONUNDRUM

Já a noite caíra no momento em que o corpo foi retirado do poço.

 

Na primeira tentativa, um escravo foi descido para o poço levando consigo uma segunda corda, que prendeu à volta dos ombros do cadáver. O escravo foi içado a tremer e com uma expressão nauseada e pálida, e depois foi içado o cadáver. A visão do cadáver nu, inchado e sem cabeça era tão grotesca, que alguns dos escravos gritaram de horror e largaram a corda. A corda fugiu, deslizando como se picasse pelas mãos daqueles que tentavam agarrá-la e revoluteando no ar como uma serpente louca. Do fundo do poço, chegou até nós o som de uma grande pancada na água. Instantes depois, a extremidade da corda seguiu o corpo até ao fundo do poço, como uma cobra desaparecendo no seu buraco com um sacão insolente da cauda.

 

Este desastre enervou os escravos mais supersticiosos. Ouvi vozes murmurando a palavra lémure. Olhando à minha volta à luz incerta do crepúsculo, não consegui perceber quem a pronunciara. Todos eles pareciam igualmente assustados. Era como se a palavra tivesse sido murmurada pela própria brisa quente e seca.

 

Foi então que percebi que o poço fora duplamente envenenado. Primeiro, pela poluição provocada pela carne inchada e em decomposição do cadáver. E depois, pelo próprio facto de ele ter sido encontrado. A partir de agora, este seria, para os escravos, um local ímpio. Afastar-se-iam dele, evitariam quaisquer recados que os obrigassem a passar por perto, desviariam os olhos ao passar e talvez até se recusassem a voltar a beber esta água, temendo que estivesse assombrada pela sombra do morto.

 

Só graças à capacidade que Arato tinha de dominar os outros escravos conseguimos encenar uma segunda tentativa, já o Sol se punha. O escravo que tinha descido ao poço recusou-se a voltar a fazê-lo. Nenhum dos outros escravos estava disposto a oferecer-se. Arato seleccionou um dos homens, que recuou. Arato ameaçou espancá-lo e chegou mesmo a bater-lhe nas costas. O escravo aquiesceu e consentiu em ser preso à armadura. Que alternativa havia? Ir eu próprio estava fora de questão, depois dos puxões que as minhas costas e os meus ombros tinham sofrido, e recusei-me a deixar Meto fazer a tentativa. Acabei por agir como teria feito qualquer outro proprietário de escravos, e permiti que o meu encarregado obrigasse um dos escravos a fazê-lo contra a sua vontade. Quase consegui ouvir a sombra do falecido Catão a troçar de mim.

 

Desta vez, o choque do aparecimento do cadáver não foi tão grande e os homens conseguiram segurar a corda. Contudo, a visão era enervante o aspecto ceroso da carne inchada, a fenda à volta do pescoço, a terrível ausência no sítio onde devia existir a cabeça. O corpo foi puxado para as pedras do pavimento. Formou-se uma poça de água por baixo dele, que esparrinhou em diversas direcções. Os escravos gritaram e deram um salto para trás, para evitar que a água lhes tocasse nos pés.

 

Olhei na direcção da casa e avistei a silhueta de Betesda a uma das janelas. Tinha-lhe mandado dizer para não deixar sair Diana e para se manter também afastada. O que estaria ela a pensar neste momento, olhando fixamente para o grupo de escravos assustados reunidos à volta do poço à luz que morria? Não demoraria a conhecer a verdade. Todos os membros da quinta a conheceriam não haveria maneira de manter secreta a catástrofe, como acontecera com Nemo.

 

Pedi a Arato que trouxesse mais tochas para eu poder observar melhor o corpo. Os escravos circulavam inquietos por ali, ansiosos por se afastarem. Disse a Arato para os mandar embora e para reunir todos os escravos à entrada do estábulo daí a uma hora. Inclinei-me ao lado do corpo, estremecendo por causa da violenta dor que tinha nos ombros e dos cortes que tinha nos cotovelos e nos joelhos, nos pontos onde as paredes rugosas do poço me tinham arranhado a carne. Meto ajoelhou-se ao meu lado, segurando uma tocha.

 

Bem, Meto, o que vês?

 

Ele engoliu audivelmente. Mesmo à rósea luz da tocha, parecia pálido.

 

A carne está tão inchada que é difícil dizer. Não sei bem por onde começar.

 

Faz uma lista mental. ”Ou-ou”, como dizem os filósofos. Homem ou mulher?

 

Homem, claro.

 

Velho ou novo?

 

Mais ou menos da mesma idade que Nemo? disse ele hesitante.

 

Porque dizes isso?

 

Por causa dos pêlos brancos que tem no peito. E porque tem as articulações nodosas. Não é um rapaz, mas também não é um velho.

 

Escuro ou claro?

 

É difícil falar acerca da pele, está toda inchada e descolorida, embora eu talvez dissesse que está escurecida pelo sol. Os pêlos à volta do sexo são escuros.

 

Escravo ou livre?

 

Escravo disse ele sem hesitar.

 

Porquê?

 

Do sítio onde estava, vi-lhe as costas quando os escravos o tiraram. Estendi as mãos para o voltar ao contrário, mas o peso foi excessivo

 

para os meus ombros magoados. Meto pousou a tocha, ajoelhou-se ao meu lado e ajudou-me a voltar o cadáver.

 

Vês? disse ele, erguendo a tocha e apontando. À luminosidade lúrida, tivemos a prova da condição do homem. Tinha as costas e os ombros cobertos de cicatrizes. Algumas eram antigas e quase tinham desaparecido, mas outras eram vivas e recentes. Ele fora regularmente espancado enquanto era vivo.

 

O que foi que provocou a morte? perguntei eu. Meto inclinou a cabeça, pensando.

 

Obviamente, foi morto antes de ser deitado ao poço, dado que não tem cabeça. A não ser que a cabeça também esteja lá em baixo. Ele olhou para o poço e respirou audivelmente.

 

Não me parece; não a vi, nem eu nem nenhum dos escravos que desceram depois de mim. Mas estás novamente a pressupor que ele foi assassinado, como aconteceu com Nemo. Não sabemos se assim foi. Não há feridas visíveis excepto no ponto onde a cabeça foi cortada e, tal como acontecia com Nemo, o mais provável é isso ter acontecido depois da morte. Será muito difícil dizer como é que morreu.

 

A não ser que consigamos descobrir quem é.

 

E de onde veio.

 

Certamente que quem deixou Nemo no celeiro, também deixou... Meto estremeceu. Que nome vamos dar a este? Papá?

 

Olhei para baixo para a miserável massa de carne sem vida.

 

Ignotus disse eu: Desconhecido.

 

Momentos depois, chegou um escravo vindo da casa.

 

A senhora quer falar urgentemente contigo disse ele, lançando olhares furtivos ao cadáver. E Côngrio manda dizer que o teu jantar está a ficar frio.

 

Diz à tua senhora que esta noite não tenho apetite. E, já agora, diz a Arato que mande reunir todos os escravos à entrada do estábulo.

 

Incluindo Côngrio?

 

Sim, incluindo Côngrio.

 

À luz da tocha de Meto, dirigimo-nos ao estábulo por entre as trevas que iam aumentando. Os escravos começaram a reunir-se e murmuravam entre si. Momentos depois, Arato saiu da casa, seguido pelos escravos da cozinha e por Côngrio.

 

Arato colocou-se ao meu lado e falou em voz baixa.

 

Estão todos aqui. Queres ser tu a falar com eles, Senhor, ou preferes que seja eu?

 

Eu falo com eles. Arato avançou.

 

Calados! Aconteceu uma coisa importante e o Senhor deseja falar com todos nós.

 

Afastou-se de mim, mas não se juntou aos outros escravos, mantendo-se à parte. Côngrio também se mantinha de lado, mas os seus ajudantes de cozinha juntaram-se aos outros. Mesmo entre os escravos, havia os de maior e os de menor importância.

 

Desde que viera para a quinta, nunca mais voltara a dirigir-me aos escravos em grupo. À luz das tochas, conseguia ver-lhes claramente o rosto. Eles olhavam para mim ansiosos. Lúcio Cláudio fora um senhor brando. Eu era, se calhar, ainda mais brando; talvez excessivamente, considerando que um deles, ou mais do que um, devia ter-me atraiçoado.

 

Encontrámos um corpo morto no poço disse eu. Isto não foi surpresa para ninguém, dado que a notícia já circulava entre eles, mas apesar disso houve um murmúrio de excitação. Qual de vocês sabe como é que ele foi ali parar?

 

Ninguém falou.

 

Estão a dizer-me que nenhum de vocês faz ideia como isso aconteceu, ou quando, ou quem o fez?

 

Eles olharam para mim e uns para os outros evasivamente, pigarrearam, abanaram a cabeça. Finalmente, um deles ergueu timidamente a mão e avançou. Era o escravo mais velho da quinta, um homem de barba cinzenta chamado Clemente.

 

Sim, fala disse eu.

 

Há algumas noites, pareceu-me ouvir qualquer coisa...

 

Sim?

 

Um som que vinha do poço. Acordo muitas vezes durante a noite... nunca durmo a noite inteira. Tenho sempre de me levantar a meio para verter águas. Sempre fui assim, desde criança. Os outros costumam troçar de mim e dizer que eu tenho uma bexiga pequena, mas tanto faz que a tenha cheia quando me vou deitar, como não, e à medida que vou envelhecendo...

 

Diz o que tens a dizer! interrompeu Arato. O que foi que ouviste?

 

Era muito tarde, já mais perto da madrugada que do pôr do Sol. A Lua já se tinha levantado e estava muito escuro. Eu estava a dormir por baixo do alpendre, ao lado do celeiro, quando acordei. Foi o som que me acordou... uma pancada na água vinda de algures. Da direcção do poço, julgo eu. Foi uma grande pancada na água mas o som não foi muito forte, foi um tanto abafado, como se tivessem atirado ao poço uma coisa volumosa. Levantei-me para urinar no pote que costumo usar e depois voltei a adormecer.

 

Em que noite foi isso? perguntei eu.

 

Acho que foi há três noites. Ou talvez há quatro. Já me tinha esquecido completamente. Só me lembrei agora, ao ouvir falar do corpo lançado ao poço.

 

Ridículo! lançou Arato. Acordou com necessidade de se aliviar e ouviu o som de uma pancada na água! Estava a sonhar.

 

Parece-me que não tiveste razão para o interromper disse eu secamente. Por que não há-de ele ter ouvido uma pancada na água a meio da noite? Depois desse barulho, ouviste mais alguma coisa, demento?

 

Ele coçou a barba.

 

Terei ouvido? Parece-me que senti alguém a passar no escuro depois de eu me ter aliviado, mas na altura não pensei nisso. A noite estava quente, era o tipo de noite em que as pessoas não conseguem dormir, e julgo que não sou o único a ter uma bexiga frágil. Era natural que houvesse outros escravos a passear no escuro.

 

Mas viste esse homem? Lembras-te de alguma característica sua? Disse alguma coisa ou cantarolou? Estava vestido de alguma maneira especial ou tinha um porte específico?

 

Demento voltou a coçar a barba, pensativo, mas finalmente abanou a cabeça.

 

Não, não me lembro de nada desse género. Parece-me recordar apenas de alguém a caminhar de um lado para o outro na área descoberta junto ao poço. Talvez tenha sido apenas um sonho, ou talvez isso tenha sido noutra noite qualquer.

 

Inútil murmurou Arato.

 

Pelo contrário, ele parece-me mais alerta e atento ao que se passa do que aqueles que deviam ser responsáveis por uma boa gestão desta quinta e pela segurança daqueles que nela vivem disse eu em voz baixa.

 

Mais ninguém avançou. Só demento ouvira qualquer coisa. Era como se estivesse a interrogar uma congregação de cegos e surdos. Avisei-os de que não hesitaria em punir qualquer escravo que viesse a descobrir estar a ocultar-me a verdade; procurei clarões de culpa nos seus olhos, mas apenas detectei o medo natural dos escravos. Garanti-lhes que o poço seria purificado como dono da casa, competia-me esse dever ritual, embora não fizesse ideia de como realizá-lo. Tanto quanto eu sabia, Catão não mencionava o assunto no seu livro. Mas eu ignorava como poderia o poço ser purificado de facto. Que género de poluição teria Ignotus deixado na água e quanto tempo duraria o perigo? Só me restava consultar Arato e, como sempre, eu não confiava inteiramente nele. Podia perguntar a Cláudia, mas a verdade é que não queria partilhar o incidente com ela.

 

Encarreguei um grupo de escravos de levar o corpo de Ignotus para um pequeno alpendre ao lado do estábulo e despedi os restantes. Enquanto eles dispersavam, Arato aproximou-se.

 

Devias torturá-los, Senhor.

 

O quê?

 

São escravos, Senhor. Tu falas com eles como se fossem soldados ou homens livres reunidos no mercado. Escravos vulgares como estes nunca dizem a verdade a não ser que sejam obrigados a isso. É impossível dizer o que eles saberão, nem há maneira de lho extrair excepto obrigando-os a falar. Sabes o que diz a lei: não se pode confiar nas revelações de um escravo, a não ser que sejam obtidas sob tortura.

 

Por essa lógica, devia começar por te torturar a ti, Arato. O que dizes a isso?

 

Ele empalideceu, sem ter bem a certeza se eu estaria a falar a sério ou não. Eu próprio não estava inteiramente seguro.

 

Podia estar calor lá fora, mas o interior do meu quarto estava gélido. Betesda estava perfeitamente furiosa. Consentiu em aplicar-me um bálsamo sedativo nos arranhões dos cotovelos e dos joelhos e chegou mesmo a massajar-me os ombros mas, quando eu falei com ela, não me respondeu. Na cama, voltou-me as costas e finalmente disse:

 

Seja o que for que eles queiram de ti, fá-lo. Não quero mais corpos sem cabeça, compreendes? Engole o teu orgulho e pensa nos teus filhos. E pára com essas tolices de andar a descer ao fundo dos poços!

 

Nessa noite, dormi mal. Nos meus sonhos, fantasmas sem cabeça saíam do poço e andavam a passear pelos campos.

 

Na manhã seguinte, Meto acordou-me. Tinha a túnica amarrotada e o cabelo ainda despenteado do sono. Arfava como se tivesse vindo a correr.

 

Papá, acorda!

 

Eu afastei a sua mão com um encolher de ombros e olhei para ele com olhos remelosos.

 

Papá, sei a verdade! Acordei a saber! Fui só a correr lá fora dar outra vista de olhos ao corpo para ter a certeza.

 

De que é que estás a falar? De Ignotus?

 

Já não é Ignotus, Papá. Eu sei o nome dele, e tu também. Anda, vou-te mostrar. Vou-te provar.

 

Ele esperou impacientemente enquanto eu calçava as sandálias e lançava uma túnica por cima dos ombros. Betesda tapou a cabeça com a colcha.

 

Meto foi à frente até ao alpendre, correndo diante de mim ansioso e depois esperando que eu o apanhasse. Lá dentro, o corpo de Ignotus fora depositado num assento baixo. O seu odor permeava o pequeno compartimento. Teria de ser tirado dali antes que o Sol subisse demasiado, ou nunca mais nos livraríamos do fedor.

 

Estás a ver, Papá?

 

O quê?

 

Ali, nas costas da mão esquerda!

 

Eu inclinei-me, gemendo por causa das dores nos músculos. A mão sem vida estava dobrada, de forma que eu tive de revirar a cabeça para ver a pequena marca inscrita nas suas costas. Era uma marca triangular, pouco maior do que uma moeda, de um roxo-vivo que parecia tinta de múrex.

 

E uma marca de nascença reconheci. Sim, reparei ontem à noite. Pensei que devia deixar-te reparar nela, mas tu não reparaste e eu não cheguei a mencioná-la. Sim, pode ser um dado valioso, se chegarmos a conseguir identificá-lo.

 

Mas eu já o identifiquei. Não me ouviste? Eu sei quem ele é. Quando vi a marca de nascença ontem à noite, lembrei-me de qualquer coisa, mas não consegui perceber o que era. Tu não paravas de me fazer aquelas perguntas ou-ou e paSsou-me. Mas esta manhã, quando acordei, tinha-me lembrado. Alguma vez te aconteceu, Papá?

 

Começo sempre os dias com grandes revelações.

 

Não estou a brincar, Papá. Então não te lembras onde viste aquela marca de nascença? Eu lembro-me! Parecia muito satisfeito consigo próprio.

 

Se alguma vez vi aquela marca de nascença, tens razão, não me lembro. Mas tens a certeza de que já a viste? perguntei cepticamente.

 

Sim, sei que já a vi, e se tu fosses observador também a terias visto. E Fórfex!

 

Fórfex? murmurei eu, tentando localizar o nome.

 

O cabreiro do monte Argênteo. O escravo de Gneu Cláudio, aquele que nos levou até à velha mina de prata e se feriu na cabeça.

 

Aquele que levou Catilina, queres tu dizer. Nós só fomos atrás. Eu olhei fixamente para a marca de nascença. Não, não me lembro de ver esta marca nas costas da mão dele.

 

Mas eu lembro-me! Reparei nela naquele dia. Lembro-me de ter pensado que parecia uma ponta de sangue, como se ele se tivesse picado. Ontem não consegui lembrar-me onde a tinha visto, mas quando acordei esta manhã, tinha-me lembrado. Pensei que tu também devias ter reparado. Tu reparas em tudo, Papá.

 

Fórfex! Lembrava-me do estilo adulador do escravo e do pânico que o tinha feito sair a correr da mina, do sangue a correr da sua cabeça e do desagrado do seu senhor. Abanei a cabeça indeciso. Há mais alguma coisa que o identifique? Estudei o corpo. Era mais ou menos da mesma idade que Fórfex e a cor da pele coincidia. A carne morta que tínhamos diante de nós era tão horrivelmente diferente do escravo vivo que nos levara à montanha, que eu tive dificuldade em me reconciliar com a transformação, embora se pudesse dizer o mesmo de qualquer homem e do cadáver em que ele se transforma.

 

As marcas nas costas, Papá! Lembras-te como Gneu Cláudio começou a espancá-lo quando nós nos vínhamos embora? É o tipo de senhor que deve espancar os escravos frequentemente, não achas? Por isso não é de espantar que Fórfex tenha todas estas cicatrizes nas costas.

 

Sim, lembro-me da tareia. Mas não me lembro da marca de nascença...

 

Bem, o que é que isso interessa, desde que um de nós se lembre? O importante é que agora sabemos quem ele era e de onde veio esse corpo. É Fórfex e, não se sabe como, veio aqui parar, trazido da propriedade de Gneu Cláudio.

 

Se ao menos pudéssemos ter a certeza disso...

 

Mas podemos! Como é possível que dois homens diferentes tenham exactamente a mesma marca de nascença? Não percebes que tem de ser Fórfex? Ele sorriu-me expectante e depois franziu o sobrolho quando viu que a dúvida se demorava no meu rosto. Não acreditas em mim, pois não, Papá?

 

Não, não é isso...

 

Não confias na minha memória. Duvidas do meu discernimento.

 

Se realmente te recordas da marca de nascença, por que não te lembraste ontem à noite?

 

Porque ontem à noite... Ele procurava as palavras, mas não conseguia encontrá-las. Porque não me lembrei, pronto! Mas lembro-me agora.

 

Meto, a memória altera-se com o passar do tempo e nem sempre podemos confiar nela...

 

Oh, Papá, tens sempre qualquer desculpa. Ele estava bastante irritado. Se fosse Eco a dizer-te isto e não eu, acreditavas nele imediatamente! Não duvidavas dele nem por um instante.

 

Eu inspirei profundamente.

 

Talvez. Porque Eco é Eco e tu és tu, gostava eu de ter dito.

 

Estás com inveja! disse Meto.

 

O quê?

 

Estás, porque não te lembraste. Não tinhas reparado na marca de nascença, não és suficientemente observador, mas eu reparei. Ou então reparaste mas esqueceste-te, mas eu reparei e lembrei-me! Desta vez, os meus olhos e a minha memória foram mais perspicazes do que os teus, e tu não queres admiti-lo!

 

A acusação pareceu-me perfeitamente absurda. Era apenas mais uma prova, se fossem necessárias mais provas, de que Meto ainda era mais um rapaz do que um homem. Ainda assim, senti uma ligeira ponta de desconforto. Haverá coisa pior para um homem da minha idade do que começar a duvidar do seu próprio discernimento?

 

Era possível que Meto tivesse razão, claro que tivesse visto a marca de nascença na mão de Fórfex, se tivesse esquecido até esta manhã, e que houvesse agora uma prova da identidade do escravo. Se assim fosse, então eu seria obrigado a exigir uma explicação a Gneu Cláudio. E se Meto estivesse enganado? E se ele tivesse recuperado uma falsa memória e agora estivesse a agarrar-se a ela por orgulho? Até onde poderia eu levar a minha queixa contra Gneu, baseado na memória de Meto, na qual eu próprio não confiava?

 

E se se tratasse de Fórfex? Nesse caso, teria Gneu Cláudio sido também o responsável pela presença de Nemo no meu estábulo? Qual dos escravos o teria ajudado? Seria sua motivação apenas molestar-me, expulsar-me da quinta? E quanto à relação com o enigma de Catilina seria apenas uma coincidência? Ou seria o facto de Catilina e Fórfex se terem conhecido e se terem relacionado um com o outro a mais inexplicável das coincidências? Ainda que o corpo pertencesse a Fórfex, a ligação poderia não ser com o seu senhor, mas com Catilina ou, por extensão, com Marco Célio ou com Cícero...

 

Os meus pensamentos giravam nos mesmos círculos em que se extenuavam desde que tínhamos encontrado Nemo. Teria eu sido sempre tão incapaz de descobrir coisas, e teria Meto razão em pensar que eu me tornara lento e descuidado? Eu já não era jovem e, embora haja pessoas cuja mente se torna mais arguta com o tempo, há muitas pessoas para quem o oposto é que é verdade.

 

Eu percebi que estivera a olhar com grande intensidade durante vários momentos para a marca roxa na mão do cadáver. Ergui os olhos e vi que Meto me observava, com os braços cruzados e apertados, os olhos estreitados, batendo compassadamente com o pé no chão à espera que eu reagisse.

 

Por agora disse eu calmamente presumiremos que Ignotus é Fórfex. Se Gneu Cláudio for o responsável, é de esperar que recuse assumir essa responsabilidade, por isso devemos começar por tentar que os seus escravos nos contem a verdade.

 

Eu só me apercebi até que ponto Meto estava tenso quando ele aliviou a tensão dos ombros e descruzou os braços. Pensei que sorrisse perante este pequeno triunfo, mas ele parecia mais próximo das lágrimas.

 

Verás, Papá disse ele num tom de voz muito sério. Verás como eu tenho razão e como me recordo.

 

Espero que sim disse eu, mas continuava a ter dúvidas.

 

Podíamos confrontá-lo directamente sugeriu Meto enquanto montávamos.

 

Só depois de termos tentado que os escravos nos contem a verdade disse eu, puxando as rédeas e acalmando a minha montada.

 

Mas como faremos para evitar encontrar-nos com ele? Só há uma estrada da Via Cássia para a propriedade. Se Gneu lá estiver, poderá ver-nos subir, ou então um dos seus escravos poderá ir informá-lo. Ele não me pareceu ser o tipo de senhor cujos escravos permitem a entrada de estranhos na propriedade sem lhe dizerem.

 

Não? Fórfex não se importou de deixar que Catilina subisse à montanha, connosco atrás.

 

Pois não, e bem vês o que aconteceu a Fórfex.

 

Se o corpo for realmente de Fórfex, pensei eu. Afastámo-nos do estábulo pelo caminho longo e direito que ia dar à estrada.

 

Quanto à nossa abordagem disse eu tenho uma ideia. Não tomaremos a estrada principal que vai dar à casa dos cabreiros e à villa de Gneu.

 

Então? As colinas rochosas ao longo da Via Cássia são demasiado inclinadas e desiguais para os cavalos e são difíceis de subir a pé.

 

Mas há outra maneira. Lembras-te quando estávamos na cumeeira a observar Catilina e Tongílio?

 

Quando Cláudia veio juntar-se a nós?

 

Sim. Fórfex tinha dito a Catilina que havia outro caminho, coberto de ervas e oculto por baixo das árvores, que sai da Via Cássia e sobe a encosta. Ele deve tê-lo encontrado, porque depois de procurar um bocado desapareceu por entre as rochas e as árvores. Penso que conseguiremos encontrar esse caminho. Podemos evitar a casa de Gneu e ir à procura de algum cabreiro que ande a passear isolado no meio das rochas e dos espinheiros.

 

Chegámos à Via Cássia e voltámos, não para a esquerda, em direcção ao portão principal da propriedade de Gneu, mas para a direita, em direcção a Roma. Passámos pela cumeeira, à nossa direita, e eu senti-me curiosamente vulnerável, sabendo até que ponto nos encontrávamos visíveis para qualquer pessoa que estivesse no alto da colina onde eu me sentava com tanta frequência a contemplar a paisagem. Mas é claro que não estaria aí ninguém a observar-nos, com a possível excepção de Cláudia, e Cláudia rapidamente saberia o que se passava se eu viesse a descobrir que Gneu atirara Fórfex para dentro do meu poço.

 

Não havia trânsito nenhum na Via Cássia. No ponto alto da depressão, onde a estrada passava entre a base da montanha e a base da cumeeira, fiz uma pausa e olhei à volta. Nada vi diante de nós, para além da comprida fita de estrada desaparecendo em direcção ao Sul. Atrás de nós, havia uma mancha no horizonte, que podia ser um grupo de escravos ou um rebanho a ser conduzido para Roma, mas que estava demasiadamente longe para me preocupar. Prosseguimos. A cumeeira ia declinando à nossa direita, mas as colinas baixas continuavam a ocultar a nossa visão da quinta de Cláudia. À nossa esquerda, a terra erguia-se a pique. Árvores altas e pedras viradas obscureciam por completo a visão da encosta íngreme que se avultava.

 

Algures por aqui... murmurei eu. Abrandámos o passo e olhámos por baixo dos arbustos. O emaranhado parecia impenetrável e intocado. Avançámos lentamente até eu ter a certeza de que tínhamos ultrapassado o ponto onde Catilina e Tongílio tinham desaparecido. As colinas baixas à nossa direita eram agora menores e viam-se os escravos a trabalhar nos campos de Cláudia.

 

Andámos demasiado disse Meto.

 

Pois foi. Vamos voltar para trás.

 

A visão que tivemos ao regressar não foi diferente da anterior e eu comecei a pensar que seria melhor desistir ou então ir investigar por baixo dos arbustos, como Catilina. Depois ouvi um bater de cascos sobre pedras, ergui os olhos e vi um jovem gamo na estrada diante de nós. Um ramo oscilante permitia detectar o ponto de onde ele emergira dos bosques na base da cumeeira. Ele avistou-nos e, por um longo momento, manteve-se imóvel como uma estátua, depois deu um salto em direcção à encosta da montanha. Os seus cascos fizeram um ruído crepitante sobre a erva seca da beira da estrada. Ele passou por entre umas árvores jovens e dispersas, entrou numa zona de intermitências de luz e sombra e depois pareceu encurralado contra uma parede de arbustos densos. Apesar disso, desapareceu num espaço estreito, entre uma grande rocha e o tronco grosso de um velho carvalho. Se eu tivesse pestanejado, diria que ele se desvanecera num raio de luz. Era o tipo de sinal de que falam os poetas, um portento.

 

Onde andam os gamos disse eu em voz baixa há muitas vezes um caminho.

 

Aproximámo-nos da grande rocha e desmontámos. A passagem apenas tinha largura suficiente para nos permitir passar e puxar os cavalos atrás de nós. Um espaço estreito e aberto contornava a grande rocha e ia dar a uma pequena clareira situada por trás, completamente escondida da estrada. Desse ponto, era possível detectar os vestígios de um antigo caminho que subia a colina íngreme.

 

Esta rocha deve ter caído a certa altura disse eu solta pelas chuvas ou por um tremor de terra, e bloqueou a extremidade do caminho, escondendo-a por completo da Via Cássia. O caminho propriamente dito está coberto de pedras; talvez seja adequado para gamos, mas não para cavalos. Temos de deixar os cavalos aqui e de prosseguir a pé.

 

O caminho era íngreme e desigual. Ao deixar de ser usado, transformara-se num arroio, e ao longo dos anos a passagem das águas deixara muitos detritos na sua esteira. Em determinados pontos, estava coberto de vegetação, o que nos obrigava a inclinar e a afastar os ramos das árvores. Aqui e ali, notavam-se pequenos ramos recentemente partidos; alguém andara a usar o trilho.

 

O carreiro começava por ser escarpado, mas depois tornava-se absurdamente íngreme. As pedras do arroio eram como degraus esculpidos por um Titã. Até Meto começou a arquejar e a suar, embora eu percebesse que ele estava a atrasar-se propositadamente e que iria muito mais à frente se avançasse ao seu próprio ritmo. Mas já assim eu sentia o coração a estalar e, quando chegámos ao espaço aberto onde eu vira o caminho pela primeira vez, na extremidade oposta, e onde Fórfex nos falara da sua existência, os meus pés tinham-se transformado em chumbo. Tínhamos chegado à estrada que seguíramos nesse dia, na companhia de Catilina e de Tongílio. À nossa esquerda, ela seguia para baixo, para a casa de Gneu e a casa dos cabreiros. À nossa direita, continuava a subir a montanha, passava pela queda de água e ia dar à mina.

 

O meu corpo protestou contra a loucura de continuar a subir a colina, mas era aí que seria mais provável encontrar algum cabreiro errante, de preferência sozinho e desprevenido.

 

Não foi preciso muito tempo. Quando nos aproximámos dos escarpados degraus de pedra que levavam à parte superior da queda de água, ouvi o balido de um cordeiro por entre o som da água a cair e, em contraponto, a voz de um cabreiro chamando num tom suave. Saímos do caminho e avançámos em direcção à cascata. O fragor das águas tornou-se mais forte, mas também conseguíamos ouvir melhor os balidos e a voz do cabreiro.

 

Passámos por um maciço de vinhas e de parras suspensas e encontrámo-nos na base da queda de água, na margem de um lago verde cheio de espuma. O lugar era completamente sombreado pelas árvores altas e pelo penhasco. Dispersos por entre aberturas na rocha e metidos no emaranhado de grandes raízes de árvores viam-se os crânios e os ossos que anteriormente tínhamos avistado de cima. Tive um arrepio; aquele sítio era húmido e frio, mesmo num dia quente de Verão.

 

Um pouco mais adiante, vimos o cabreiro. Era apenas um rapaz, mais jovem do que Meto, vestia uma túnica esfarrapada e calçava uns sapatos gastos, que segurava nos pés com umas tiras de couro. Tinha descoberto o cordeiro que procurava. Pusera o animal aos ombros, com as patas cruzadas sobre o seu peito e segurava-o com força. O som da queda de água abafara os nossos passos silenciosos. Quando nos viu, o jovem escravo apanhou um susto e recuou, tão de repente que quase perdeu o equilíbrio. Por momentos, oscilou em cima de uma pedra e talvez tivesse caído dentro do lago se Meto não tivesse avançado para lhe agarrar no cotovelo.

 

O jovem cabreiro recuperou o equilíbrio e soltou-se de Meto. Depois recuou. O cordeiro agitou-se e baliu. O escravo agarrou-lhe as patas com toda a força, ficando com os nós dos dedos tão brancos como a lã do animal. Olhava alternadamente para Meto e para mim, com o medo estampado nos olhos.

 

Quem são vocês? gaguejou finalmente. São vivos ou mortos?

 

Era uma pergunta curiosa, pensei eu, até que me lembrei de que aquele lago coberto de crâneos e de ossos era assombrado pelas lémures de escravos mortos. Fora o próprio Fórfex que no-lo dissera.

 

Estamos perfeitamente vivos disse eu, e falava a sério; certamente que as lémures não sentem as articulações hirtas e as pernas doridas como acontece aos homens vivos.

 

O escravo olhou para nós de sobrolho franzido e manteve-se à distância.

 

Acho que, quando me tocaste, tinhas a mão bastante quente disse ele, olhando para Meto. Mas o que estão vocês aqui a fazer? São amigos do meu Senhor?

 

O que estás tu aqui a fazer? contra-ataquei eu.

 

Eles obrigaram-me a vir, porque eu sou o mais novo. Alguém ouviu um dos cordeiros a balir aqui em baixo, ao pé do lago, por isso obrigaram-me a vir buscá-lo. Estava lá ao fundo ao pé da água e tinha um dos cascos presos entre duas pedras. Ninguém gosta de descer até aqui por causa deles. Olhou à sua volta, para os ossos dispersos.

 

Quem te mandou vir aqui? disse eu. Foi Fórfex?

 

Fórfex? Ele pronunciou o nome com um arquejo sufocado.

 

Sim, Fórfex não é o chefe dos cabreiros?

 

Já não é. Depois que... Ele olhou para nós com renovada desconfiança. O Senhor sabe que vocês estão aqui?

 

Diz-nos o que aconteceu a Fórfex disse eu no tom mais autoritário que pude. Os escravos de Gneu Cláudio eram do género de escravos que reagem bem a esse tom fáceis de intimidar e incapazes de fazer perguntas, mesmo quando falavam com um invasor da propriedade. Isto dizia muito acerca do seu senhor e do modo como ele os tratava.

 

Fórfex... o Senhor não queria, não era isso que ele queria fazer. Ele acaba por nos espancar a todos, mais cedo ou mais tarde, mas nunca... pelo menos com as suas próprias mãos... pelo menos desde que eu cá estou, e eu estou cá desde rapaz...

 

Estás a dizer que Gneu Cláudio matou Fórfex, não estás? perguntou Meto, olhando rapidamente para mim com uma sugestão de sorriso nos lábios. Talvez ele tivesse razões para se sentir justificado, mas aquela interrupção foi um erro. Meto não tinha idade suficiente nem o aspecto necessário para intimidar o jovem escravo. O cabreiro voltou a recuar, indeciso sobre se teria mais receio de responder ou de não responder. O cordeiro que ele tinha aos ombros balia pateticamente.

 

Como é que o teu senhor matou Fórfex? perguntei eu severamente, avançando e fixando o olhar no cabreiro. Ele era apenas um rapaz, um escravo que era regularmente vítima da violência do seu senhor. Não tinha defesas contra um interrogatório directo, mesmo de um homem que não tinha qualquer direito de o fazer, se eu mantivesse os olhos fixos nele e endurecesse a voz.

 

A cabeça... Fórfex já se tinha magoado na cabeça, há pouco tempo...

 

Lembrei-me de que Fórfex batera com a testa na rocha da mina do sangue a correr-lhe pela cara, das suas visões de lémures, dos desprezíveis queixumes enquanto o levávamos pela montanha abaixo.

 

Sim, continua disse eu.

 

Depois disso, ficou um bocado desorientado... mais lento do que o habitual, sem dizer coisa com coisa, com dores de cabeça que iam e vinham, às vezes tão fortes que ele acordava a meio da noite a balir como um cordeiro.

 

Pobre Fórfex, pensei eu. Se ao menos Catilina não te tivesse subornado para ires até onde os teus mais profundos temores te avisavam que não fosses.

 

O Senhor não é muito paciente. De qualquer maneira, estava sempre a espancar Fórfex por ser estúpido, mas depois do acidente enfurecia-se muitas vezes com ele. Culpava Fórfex por se ter magoado, dizendo que ele não tinha nada que tomar a iniciativa de ir mostrar a mina a forasteiros... mas vocês devem ser... Ele olhou para nós com uma consciência crescente.

 

Não interessa, continua! lancei eu.

 

Há alguns dias, o Senhor ordenou a Fórfex que matasse uma das cabras, mas Fórfex matou a que não era, pelo menos foi isso que o Senhor disse. O Senhor enfureceu-se de tal maneira... foi uma coisa horrível de ver, foi como uma tempestade com relâmpagos na montanha. Espancou Fórfex nas costas com o chicote, com tanta força que lhe rasgou a túnica. O chicote ficou cheio de sangue. Depois, deu-se uma mudança terrível na expressão do Senhor. Eu estava bastante perto e pude ver. Fiquei cheio de medo. Foi como se ele tivesse decidido que Fórfex estava acabado e que não valia a pena mantê-lo. Como uma garrafa de barro lascada que um homem parte toda só porque sim. Foi isso que ele fez a Fórfex. Voltou o chicote ao contrário e começou a bater-lhe com a pega... é uma pega de ferro, envolvida em couro, com grandes pregos de ferro. Começou a bater a Fórfex na cabeça. Ria-se e dizia: ”Já que a culpa é da tua cabeça, será ela a pagar!” E Fórfex queixava-se e gemia, e depois começou a fazer outros ruídos. Oh, por favor...

 

O rosto tornara-se-lhe branco com a lembrança. Tinha os olhos vermelhos e húmidos. Pestanejou e cambaleou. O cordeiro que ele tinha aos ombros baliu em consequência do movimento súbito e começou a dar pontapés, com tanta violência que o rapaz o largou e o animal voou pelos ares, aterrando com um estalido dos cascos numa pedra lisa. Saltou para a água, depois voltou a sair, e desatou a correr por baixo dos arbustos em direcção ao carreiro, sacudindo-se e espirrando gotas de água da sua lã cor da neve.

 

O jovem cabreiro cambaleou em direcção a uma parede de rocha e deslizou para o chão até ficar sentado num banco de pedra, apertando o estômago com as mãos.

 

Tenho náuseas quando me lembro disse ele debilmente.

 

Estou certo que sim disse eu sinceramente. Ainda teria mais se visse Fórfex neste momento. Quando é que isso aconteceu?

 

Há cinco dias.

 

Tens a certeza?

 

Tenho. Foi logo a seguir aos Idos. O Senhor tinha estado fora durante alguns dias, fora a Roma por causa das eleições. Voltou logo que elas terminaram. Dizem que as votações correram como ele queria, mas de qualquer maneira ele estava muito maldisposto. Talvez outra coisa qualquer lhe tenha corrido mal em Roma, para além das eleições. Acho que ele arranjaria sempre um motivo qualquer para embirrar com Fórfex.

 

Há cinco dias disse eu, trocando um olhar com Meto. E a noite passada Demento disse-nos que tinha ouvido uma pancada na água do poço três ou quatro noites antes... adequa-se perfeitamente. O que fizeram ao corpo de Fórfex?

 

Trouxeram-no para aqui disse o rapaz lentamente. Quando aquilo acabou, quando Fórfex ficou deitado no chão sem se mexer, com o sangue da cabeça todo... Ele interrompeu-se e inspirou audivelmente.

 

Continua.

 

A expressão do Senhor voltou a mudar. Acho que ele não percebeu bem o que tinha feito até ter acabado, percebes o que eu quero dizer? A cara dele, a expressão nunca vi uma expressão assim, a não ser em escravos. Era como se ele estivesse assustado com o que tinha feito. Dizem que há uma deusa que castiga os homens, mesmo os homens livres, quando eles vão longe demais. Há uma palavra grega... Ele franziu a testa.

 

Hubris disse eu. A insolência que se aproxima da loucura; a arrogância que despreza qualquer sentido de decência. A hubris é punida pela deusa Nemesis, que castiga os malvados.

 

Talvez o faça em alguns sítios disse o rapaz mas não me parece que essa deusa tenha alguma vez visitado esta montanha. Apesar disso, por momentos, acho que o Senhor percebeu que tinha ido longe de mais. Largou o chicote e começou a tremer. Mas depois cerrou os dentes e apertou os punhos para evitar que continuassem a tremer. Olhou à volta do compartimento, pestanejando como se estivesse demasiadamente escuro e ele não conseguisse ver, embora o Sol ainda fosse alto. Os seus olhos caíram sobre mim, apenas porque eu era o que estava mais próximo dele, julgo eu. ”Limpa isto!” disse ele, como se fosse porcaria das cabras. ”Limpa isto e leva o que resta dele para a queda de água. Atira-o por cima da falésia para ele se ir juntar aos outros ossos!”

 

E foi isso que tu fizeste?

 

Sim, só que não o atirámos por cima da falésia. Trouxemo-lo para aqui, para o lago. Um dos escravos mais velhos disse que devíamos despi-lo e limpar o sangue que ele tinha no corpo, para ficar em condições de entrar no Hades. Esse escravo disse umas palavras sobre o corpo, uma oração a um deus qualquer. Os escravos também têm deuses, sabes?, embora não me pareça que algum deles viva nesta montanha, e muito menos a tua Nemesis. Transportámo-lo através do ribeiro para o pé daquele monte de pedras ali, e depositámo-lo num sítio estreito, entre as pedras. Tapámo-lo com umas rochas maiores e depois fomo-nos embora. Começava a escurecer. Ninguém vem aqui depois de escurecer.

 

Pobre Fórfex! disse eu. Abandonado no meio das lémures que tanto temia. Para se ir juntar a elas.

 

Foi por isso que ninguém quis vir aqui hoje à procura do cordeiro que balia. Sempre tiveram medo dos espíritos antigos que habitam este lugar, e agora está cá também o de Fórfex. Como pode a sua lémure repousar depois de uma morte tão horrível? Nunca poderia vingar-se do Senhor; o Senhor é muito poderoso. Mas de outro escravo, sozinho e impotente... A voz do rapaz transformou-se num sussurro e ele olhou para o outro lado do ribeiro, para as pedras soltas e as sombras profundas que havia entre elas. Deve estar a vigiar-nos neste momento.

 

Não me parece, se a sua lémure tiver seguido os seus restos mortais. Anda, vem mostrar-nos onde puseram o corpo.

 

O rapaz empalideceu.

 

Anda! disse eu. Se eu tiver razão... Meto pigarreou.

 

Se o meu filho tiver razão, o corpo desapareceu há muito tempo. Anda, mostra-nos onde foi! Era um testemunho da crueldade de Gneu Cláudio que fosse possível controlar o rapaz apenas com um tom de voz mais severo. Com um escravo menos temeroso teriam sido necessários uns empurrões, ou pelo menos uma ameaça de violência, para que ele fosse posto em pé por um homem que não era o seu senhor e atravessasse o ribeiro saltando sobre as pedras para revisitar uma campa que ele acreditava estar assombrada. O jovem cabreiro obedeceu, embora tivesse começado a tremer violentamente quando subimos o monte de rochas.

 

É do outro lado dessa pedra grande disse ele, com a voz a tremer. Apontou o caminho, mas recusou-se a prosseguir.

 

Meto e eu trepámos atrás dele e subimos para cima das pedras recortadas. Olhámos para baixo, para a estreita fenda e vimos o que havia para ver.

 

O corpo desapareceu disse eu.

 

Desapareceu? O jovem cabreiro trepou relutantemente atrás de nós. Olhou para baixo, para a fenda vazia, com uma expressão de terror supersticioso.

 

Não foi trabalho dos deuses nem das lémures garanti-lhe eu. Foram os homens que aqui o puseram e devem ter sido os homens que o tiraram daqui.

 

O mesmo homem que o matou! declarou Meto.

 

Eu desviei o rosto do cabreiro e franzi o sobrolho na direcção de Meto. Ainda não tínhamos qualquer prova do que ele dissera. Mais do que isso, não é justo para um escravo falar do seu senhor quando ele está a ouvir, porque ele pode repetir o que ouviu e vir a lamentá-lo.

 

Meto respondeu-me com uma expressão idêntica. Afinal tinha razão acerca de Fórfex, apesar das minhas dúvidas. Para ter a certeza absoluta, perguntou ao escravo:

 

Fórfex tinha alguma marca numa das mãos?

 

Uma marca? Estás a referir-te à pequena marca de nascença roxa que ele tinha nas costas da mão esquerda?

 

O rosto de Meto ficou inundado de triunfo.

 

Mas para onde é que foi o corpo? disse o escravo.

 

Não precisas de saber, pelo menos por agora disse eu. É melhor para ti que não saibas. Já enfrentaste suficientes perigos pelo simples facto de teres falado connosco e de nos teres contado como morreu Fórfex. Devia recompensar-te, mas não tenho nada para te dar.

 

Não me podes dar coisa nenhuma disse ele. O Senhor não nos deixa guardar nada. O homem que queria ver a mina deu a Fórfex umas moedas, mas o Senhor descobriu e tirou-lhas.

 

Esse homem que foi ver a mina... ele voltou cá?

 

O rapaz encolheu os ombros.

 

Não sei. Não cheguei a vê-lo. No dia em que ele veio, eu estava a guardar um rebanho na outra ponta da montanha. Estreitou os olhos. Dizem que estavam outros com ele. Eram vocês?

 

Até agora, consegui não responder a nenhuma das tuas perguntas disse eu, sorrindo. E foi melhor assim. Quanto menos souberes, melhor para ti. Deves esquecer-te de que nos encontraste aqui.

 

Como se vocês fossem lémures no nevoeiro disse ele.

 

Se quiseres.

 

Mas nós devíamos fazer outra pergunta disse Meto. Quando vocês puseram o corpo de Fórfex naquele sítio, o que tinha acontecido à cabeça?

 

Tinha sido esmagada. Já te contei disse o escravo, voltando a empalidecer.

 

Sim, mas continuava pegada ao corpo?

 

Claro.

 

Não tinha sido cortada? Talvez por estar tão destruída...

 

O corpo estava inteiro! protestou o cabreiro, com a voz a tremer.

 

Não é necessário insistires disse eu a Meto, colocando-lhe a mão no braço. Diz-nos uma coisa: morreu mais algum cabreiro, há cerca de um mês? perguntei eu, pensando em Nemo.

 

O rapaz abanou a cabeça.

 

E algum dos escravos do teu senhor?

 

Não. Um dos escravos da cozinha morreu de uma febre, mas isso já foi há um ano. Desde essa altura, só houve mais uma morte, que foi a de Fórfex.

 

Descemos o monte de rochas coberto de ossos espalhados e atravessámos o ribeiro. O jovem cabreiro foi à sua vida, enquanto Meto e eu descansávamos um bocado antes de continuarmos. Aquele vale sombrio era um local muito bonito, embora estivesse estragado e se tivesse tornado assustador pela presença de tantas mortes e de tanto sofrimento. Não era um local de repouso desagradável para as lémures dos escravos mortos, que deviam ter sido bem mais infelizes em vida, labutando sob um sol escaldante ou desaparecendo no interior da terra húmida e pedregosa.

 

Devíamos falar directamente com ele disse Meto, enquanto descíamos o caminho da montanha.

 

Concordo.

 

Sabemos agora, sem sombra de dúvida, que o corpo que estava no poço era Fórfex. Sabemos que Gneu matou Fórfex. E sabemos que ele não gosta de nós nem um bocadinho. Ele pensava que ia herdar a quinta de Lúcio Cláudio, não pensava? Portanto, tem um motivo: deteriorar a água do poço e tentar afastar-nos.

 

Há algumas falhas na tua lógica observei eu de esguelha, descendo com cautela um degrau íngreme e dobrando para trás um ramo com a forma de um chicote.

 

Tais como?

 

Porque cortaram a cabeça de Fórfex?

 

Para que nós não pudéssemos atribuir esse acto a Gneu. Ele sabia que nós conhecíamos Fórfex e que poderíamos reconhecê-lo apesar das feridas e portanto presumir de onde ele viera. Gneu é um cobarde da pior espécie, que se esquiva às suas obrigações e tem medo de se confrontar com os seus actos. Cortou a cabeça para nós não podermos saber de onde vinha o corpo anónimo. Não contou com a possibilidade de eu, com a minha vista apurada, reconhecer a marca de nascença que Fórfex tinha nas costas da mão.

 

Não, o culpado não contou com isso. Mas por que ordenou Gneu aos seus escravos que atirassem o corpo para a queda de água, se tencionava dar-lhe outro destino?

 

Olhei-o por cima do ombro. Meto encolheu os ombros.

 

Só pensou nisso mais tarde. Obviamente, não matou Fórfex apenas para poder atirar o corpo para o nosso poço; o assassínio não foi premeditado, nem o foi o ultraje contra nós. Mas, dado que tinha o corpo à mão, passou-lhe pela cabeça usá-lo.

 

O jovem cabreiro não mencionou ter recebido ordens para retirar o corpo.

 

O cabreiro também não sabia nada acerca de Catilina. Certamente que Gneu terá outros escravos mais aptos para fazerem aquilo que foi feito ao cadáver do pobre Fórfex.

 

E Nemo.

 

Também deve ter sido obra de Gneu. Ele colocou Nemo no nosso estábulo para nos assustar, mas não nos assustou o suficiente. Por isso, voltou a tentar o mesmo truque cobarde, só que desta vez fez algo realmente perigoso, poluiu o poço. Que homem desprezível!

 

Mas de onde veio Nemo? O cabreiro disse-nos que não houve outros mortos na montanha.

 

Quem sabe? Talvez Gneu tenha emboscado um liberto errante, ou assassinado um visitante de Roma.

 

Um forasteiro, queres tu dizer. Um estranho para nós.

 

Sim.

 

Então por que cortaram a cabeça a Nemo? Postulas que a cabeça de Fórfex foi cortada para esconder a sua identidade. Isso faz sentido. E Nemo? Quem era ele e por que lhe cortaram a cabeça?

 

Meto ficou silencioso. Por momentos, o único som que eu ouvi foi o dos ramos quebrados, dos nossos passos no caminho rugoso e desigual e da minha própria respiração arquejante.

 

Não tenho resposta para isso admitiu Meto por fim. Mas que importância tem Nemo? Sabemos de onde veio Fórfex e isso é que é importante. Gneu Cláudio é o culpado. Devia ser chicoteado. Devia ser julgado por assassínio, se houvesse justiça neste mundo. Mas a lei não proíbe um homem de matar os seus escravos, pois não? Suponho que o melhor que podemos fazer é levá-lo a tribunal por nos ter poluído o poço.

 

Isso é difícil de provar, uma vez que não dispomos de testemunhas.

 

Mas, Papá, as circunstâncias são óbvias!

 

Os tribunais exigem mais do que provas circunstanciais.

 

Então temos de procurar uma testemunha. Ele dificilmente poderia ter feito aquilo sem o conluio de um dos nossos escravos, pois não? O escravo que se tiver voltado contra nós, quem quer que tenha sido, tem de ser obrigado a falar.

 

Até que ponto gostarias que eu usasse a força contra os escravos? Já os interroguei e viste qual foi o resultado. Muitos senhores não se importariam de utilizar indiscriminadamente a tortura para obter a verdade. O próprio Arato sugere que eu o faça.

 

Não gostaria que fizesses isso, Papá.

 

É inevitável recorrer à tortura quando se trata de escravos e da lei. Supõe que descobrimos uma testemunha entre os nossos escravos. Nenhum tribunal romano aceitará um testemunho de um escravo a não ser que tenha sido obtido sob tortura. Gostarias que eu impusesse uma coisa dessas a outro homem, ainda que seja um escravo que conspirou contra nós? E se algum dos escravos se tiver limitado a ver o acto, mas estiver inocente? Ainda assim, teria de ser torturado para que o seu testemunho pudesse ser aceite. Não é de estranhar que os escravos tenham tanta relutância em falar. Admitirem que viram alguma coisa é o mesmo que oferecerem-se como voluntários para serem torturados.

 

Não tinha pensado nisso.

 

Mas eles pensaram, garanto-te. Dada a tua premissa, as melhores testemunhas seriam os escravos do próprio Gneu Cláudio, como o nosso jovem amigo, o cabreiro. Mas somos uma vez mais derrotados pela lei. Os escravos não podem testemunhar sem o consentimento dos seus senhores e portanto não se pode obrigar nenhum escravo a testemunhar contra o seu senhor.

 

E se conseguisses que Cícero nos representasse? Ele é tão esperto e tão poderoso, que talvez conseguisse arranjar uma maneira...

 

Por favor, não quero ter mais dívidas para com Cícero. Além disso, não me parece que, nesta altura e num futuro próximo, o nosso estimado cônsul tivesse tempo para se entreter com uma questão como esta.

 

Chegámos à clareira ao lado da grande pedra. Soltámos os cavalos e conduzimo-los pela estreita fenda entre o velho carvalho e a rocha, em direcção à berma da estrada, arrelvada e sombria. Um grupo de escravos esgotados arrastava-se pelo caminho, ligados uns aos outros pelo pescoço com uma corda sólida e conduzidos por uma equipa de vigilantes a cavalo. Estavam despidos ou cobertos com vagos andrajos. Como sapatos, tinham pedaços de couro amarrados aos pés. Nem os escravos nem os vigilantes repararam em nós. Deixámo-nos ficar na sombra, à espera que eles passassem.

 

Voltei-me para Meto e disse num murmúrio:

 

A tua argumentação contra Gneu Cláudio é bastante clara, ainda que tenha alguns lapsos. Apesar disso, os meus pensamentos voltam-se constantemente para Catilina.

 

Tu avalia-lo mal, Papá! murmurou Meto, com surpreendente veemência.

 

Pensa nas relações dele com Fórfex. Pensa na coincidência dos cadáveres sem cabeça e do enigma do corpo sem cabeça. Lembra-te de que Nemo nos apareceu logo depois de Célio me ter pedido que recebesse Catilina em nossa casa, como que para me intimidar, forçando-me a concordar. Agora, Célio e Cícero insistiram novamente em que abrisse as portas a Catilina. Eu protestei, e Fórfex aparece no nosso poço. Catilina é um homem desesperado...

 

Porque censuras Catilina? Ou Célio ou Cícero, já agora? Tens andado atrás da pista errada, Papá. Disseste agora mesmo que nenhum tribunal aceitaria provas circunstanciais, mas permitiste que as coincidências te roubassem o discernimento e te cegassem para o óbvio. Gneu Cláudio é o culpado. Deve pensar que é muito esperto, rindo-se de nós nas nossas costas. Se falarmos directamente com ele, aposto que admite a sua culpa por pura vaidade e despeito.

 

Talvez tenhas razão admiti eu. Dar-lhe-emos essa possibilidade hoje.

 

O últimos dos escravos, um homem cuja pele parecia de couro e cujo cabelo era como um emaranhado de palha, passou diante de nós, e ao fazê-lo tropeçou numa pedra da estrada. Caiu de joelhos, dando um puxão na corda que tinha à volta do pescoço e lançando uma onda de perturbação na fila. Rapidamente, um dos vigilantes voltou atrás e começou a chicotear o homem até ele se pôr de pé e recomeçar a andar.

 

Quando é que este mundo mudará? sussurrou uma voz. Podia ter sido dentro da minha cabeça, mas foi a voz de Meto, que contemplava os escravos com uma expressão solene e triste. Sem olhar para mim, montou o seu cavalo. Eu fiz o mesmo e regressámos rapidamente à quinta.

 

Eu queria levar comigo uma comitiva adequada quando regressasse às propriedades de Gneu Cláudio. Ordenei a Arato que viesse connosco, em parte porque me parecia apropriado que o meu encarregado me acompanhasse, e em parte porque queria observar as suas reacções enquanto eu falasse com Gneu; continuava a não confiar nele. Também escolhi alguns dos nossos homens mais corpulentos, pensando que talvez precisasse de protecção.

 

Partimos depois do meio-dia. Eu esperava que Gneu tivesse almoçado bem. Descobri que muitas vezes é útil abordar um homem quando ele se sente sonolento e está desprevenido.

 

Subimos a Via Cássia e entrámos abertamente e sem subterfúgios na estrada que ia dar a casa de Gneu. O caminho tornou-se mais íngreme. A encosta começou a ficar cheia de pedregulhos e de árvores. No meio da floresta, chegámos à casa dos cabreiros, onde tínhamos conhecido Fórfex. A estrada ia dar ao fundo leito do rio e corria ao seu lado. Por fim, atingimos a ponte, atravessámos a ravina e chegámos diante da casa de Gneu Cláudio.

 

Tratava-se de uma estrutura de dois andares em estilo rústico, mais etrusca do que romana. Era uma casa muito antiga, mal cuidada a avaliar pelo reboco que caía das paredes e pelos taipais pendurados de dobradiças partidas. Estava encostada a uma vertente íngreme e arborizada e rodeada de sombras. O ar era húmido e frio. Mesmo num dia de Verão como aquele, pairava sobre a casa e os telheiros improvisados que a rodeavam um manto de melancolia.

 

Galinhas e cães povoavam o pátio seco e poeirento. Ao ouvir-nos chegar, os cães levantaram-se e começaram a ladrar, enquanto as galinhas cacarejavam e se dispersavam em pânico. A porta da casa abriu-se e uma voz gritou rispidamente aos cães que se calassem. Os animais ganiram e começaram a correr em círculos nervosos, mas deixaram de ladrar.

 

O escravo que abriu a porta viu-nos e recuou. Suspeitei de que o seu senhor não teria muitas visitas, especialmente de grupos tão formidáveis como eu esperava que o nosso parecesse. O escravo olhou-nos duramente e fechou a porta sem dizer uma palavra.

 

Momentos depois, a porta voltou a abrir-se. Gneu Cláudio surgiu pessoalmente na soleira, com um aspecto tão mal-humorado como da última vez que eu o vira, insinuando-se junto de Catilina e castigando o infeliz Fórfex. Era um jovem espantosamente feio, com a sua ruiva juba desgrenhada e o pescoço sem queixo, mas a sua figura alta e musculosa dava-lhe uma presença imponente. Quando ele apareceu, os cães recomeçaram a ladrar. Gneu roncou como resposta, como se também fosse um deles. Tinha na mão um osso, que estivera a chupar; ainda tinha bocados de carne pendurados dos lábios. Atirou o osso para o meio dos cães, e eles lançaram-se imediatamente sobre ele, competindo pelo prémio, babando-se, rosnando e arrancando-o da boca uns dos outros, numa confusão assustadora.

 

Estúpidos cães resmungou Gneu. Ainda assim, são mais espertos do que muitos escravos e não respondem quando se fala com eles. A sua voz roufenha era tão desagradável ao ouvido como o seu rosto o era à vista. Ele olhou-nos de viés. Cláudia tinha dito que ele via mal mas, apesar da escuridão provocada pela sombra, parece ter-me reconhecido sem grande dificuldade. Com que então voltaste cá? E desta vez não trouxeste o teu amigo intriguista da cidade. Calculo que tenhas vindo outra vez espiar-me. Em nome do Hades, o que queres tu, Gordiano?

 

Julgo que conheces a resposta a essa pergunta, Gneu Cláudio disse eu.

 

Não te armes em esperto comigo disse Gneu. Não gosto de espertezas. Pergunta aos meus escravos, se não acreditas em mim. Ninguém te convidou, Gordiano. Invadiste a minha propriedade. Tenho todo o direito de te atirar ao chão e de te espancar como a um escravo. Diz o que queres e vai-te embora. Ou queres levar uma tareia? Também podia dar outra ao rapaz.

 

Papá! disse Meto baixinho, eriçando-se. Eu toquei-lhe no braço para o acalmar.

 

Estamos aqui, Gneu Cláudio, porque alguém cometeu uma atrocidade na minha quinta. Um acto de profanação. Uma ofensa à lei e aos deuses.

 

Se os deuses estão ofendidos, talvez seja porque um zé-ninguém plebeu de Roma deitou as mãos a uma propriedade que pertence a esta família há gerações! Talvez devesses ter pensado nisso antes de teres sentado o traseiro onde não devias.

 

Papá, não temos de ouvir estas coisas disse Meto.

 

Silêncio! Isso é uma admissão de responsabilidade, Gneu Cláudio?

 

Porquê?

 

Pela profanação de que eu estou a falar.

 

Não sei do que estás a falar. Mas se alguma catástrofe caiu sobre a tua cabeça, então isso é uma boa notícia para mim. Continua a falar. Divertes-me, plebeu.

 

Tu não me divertes, Gneu. Nem fiquei divertido com a partidinha que me pregaste há uns dias.

 

Já chega de enigmas! Sê claro ou desaparece!

 

Estou a falar acerca do corpo que lançaste para dentro do meu poço.

 

O quê? Estiveste demasiado tempo ao Sol sem chapéu, Gordiano. Essa é a primeira regra que tens de aprender se queres ser agricultor: a usar chapéu.

 

Negas?

 

Que corpo? Que poço? Dá uma bofetada ao teu pai, rapaz. Ele está a balbuciar.

 

Meto parecia ter dificuldade em se conter. Vi os nós dos seus dedos ficarem brancos quando apertou as rédeas.

 

Estou a falar do corpo do teu escravo Fórfex. Negas que o mataste há cinco dias?

 

Por que havia de o negar? Há anos que era meu escravo e já tinha sido escravo do meu pai. Tinha todo o direito de o matar, e que Júpiter me atinja se ele não o merecia!

 

És um homem ímpio, Gneu Cláudio.

 

E tu és um louco e um arrogante, Gordiano, chamado o Descobridor. Com que então descobriste um corpo no teu poço? Folgo muito, contigo e com quem lá o pôs. Mas não venhas depositar as culpas à minha porta. Eu não tive nada a ver com isso.

 

O corpo era de Fórfex.

 

Isso é impossível. Os meus escravos deram destino ao cadáver. Dei-lhes essa ordem pessoalmente e os meus escravos não têm o costume de me desobedecer, podes estar certo!

 

Apesar disso, o corpo foi parar ao meu poço.

 

Não era Fórfex.

 

Certamente que era Fórfex.

 

Serias capaz de reconhecer Fórfex se o visses com vida? Oh, mas claro, tu também lá estavas quando Fórfex foi mostrar o caminho para a mina ao teu amigo, não estavas?

 

Estava?

 

Foi o que Fórfex me disse mais tarde; afirmou que tinha ouvido chamar Gordiano a um dos invasores, embora eu não te tivesse reconhecido, na fraca luz daquele fim de tarde. Se soubesse que eras tu, ter-te-ia arrastado para o chão e ter-te-ia chicoteado.

 

És muito generoso com as tuas ameaças e os teus insultos, Gneu Cláudio. Pareces muito orgulhoso de confessar que mataste um escravo indefeso. Por que és tão tímido quando se trata de admitir que mandaste atirar Fórfex para dentro do meu poço?

 

Porque não fiz tal coisa! gritou ele. Os cães começaram a ladrar e a uivar.

 

Digo-te que o fizeste. Se não fosse Fórfex...

 

Insistes constantemente em que era o corpo do meu escravo. Então prova. Mostra-mo.

 

Se o fizer, admites que cometeste esse acto?

 

Não, mas pelo menos poderei acreditar em ti quando dizes que foi Fórfex que encontraste no teu poço.

 

Como é que eu posso fazer isso, quando tu próprio tomaste medidas para evitar que eu conseguisse provar a identidade do escravo mostrando a sua cara?

 

O que queres dizer? Posso ter-lhe partido o crânio, mas ele estava reconhecível. Tu próprio deves tê-lo reconhecido, já que dizes que o identificaste ao vê-lo.

 

Nunca disse isso.

 

Então como é que sabes que era Fórfex? gritou ele, furioso.

 

Tenho os meus métodos.

 

O que é que isso quer dizer? Voltaste a invadir a minha propriedade, a falar com os meus escravos, a contar-lhes mentiras? Ele olhou-me de esguelha, de tal maneira que eu deixei de conseguir ver-lhe os olhos. Como é que sabias que eu tinha morto Fórfex? Quem é que te contou? Quem se atreveu?

 

Também sei quem era o outro corpo disse eu, em parte para mudar de assunto, em parte para observar a sua reacção. Ao mesmo tempo, lancei um olhar a Arato, cujo rosto permanecia impassível. Não o vira trocar um único olhar com Gneu; se eles tinham algum segredo em comum, ou sequer se conheciam de vista, os seus olhos e os seus rostos não o revelaram.

 

Que outro corpo? gritou Gneu.

 

Proclamas a tua ignorância com demasiada rapidez, Gneu Cláudio... o que é um sinal seguro de culpa. Sabes bem ao que me refiro. Também tenho fortes provas contra ti relativamente a esse delito, e acabarás por te arrepender do teu descaramento.

 

Gneu inclinou a cabeça e fez uma careta. Cuspiu no chão e acenou-me com as duas mãos.

 

És louco, totalmente louco. Não dizes coisa com coisa, e agora começas a ameaçar-me diante da minha própria casa. Sai imediatamente! Sai daqui, senão mando os cães atrás de ti. Eles agarram um homem por uma perna e atiram-no ao chão num instante, e arrancam-lhe a garganta num piscar de olhos. Se não acreditas em mim, dá-me uma desculpa para to provar! E não haverá lei nenhuma que me impeça de o fazer enquanto estiveres nas minhas terras, como sabes. Por isso desaparece!

 

Eu olhei-o fixamente por momentos, depois puxei as rédeas do meu cavalo e voltei-me.

 

Mas, Papá... protestou Meto.

 

Já fizemos o que tínhamos vindo fazer disse eu baixinho. E acho que ele está a falar a sério quando nos ameaça com os cães. Vamos!

 

Relutantemente, e só depois de lançar um olhar ameaçador a Gneu, Meto deu a volta ao cavalo. Arato e os outros escravos já tinham feito o mesmo, obedecendo ao meu sinal. Eu estabeleci o ritmo, atravessando a galope a pequena ponte, descendo o caminho que passava pela casa dos cabreiros e passando pelos bosques semeados de rochas. Soube-me bem sentir no rosto a intermitência de sol e sombra, mas a má-disposição só me passou quando voltámos a emergir a um sol sem sombras, perto da Via Cássia.

 

Meto colocou-se ao meu lado.

 

Mas, Papá, viemos embora antes de Gneu Cláudio ter admitido que era culpado!

 

Teríamos de esperar muito tempo para que ele admitisse uma coisa que não fez.

 

Não compreendo.

 

Tu próprio o viste, Meto, e ouviste-o falar. Acreditas que ele sabe alguma coisa acerca do corpo no poço?

 

Ele admitiu ter morto Fórfex!

 

Sem hesitação, o que torna os seus protestos de ignorância tanto mais convincentes. Acredito nele quando diz que nada sabe acerca do corpo no poço. Ele matou Fórfex e ordenou aos escravos que dispusessem do corpo, e foi a última vez que ouviu falar do assunto. Suponho que reparaste que eu nunca disse que o corpo não tinha cabeça, embora tenha aludido a esse facto. Ele não mostrou compreender e presumiu que tínhamos reconhecido Fórfex pela cara e não pela marca de nascença.

 

Mas podia estar a mentir.

 

O homem não é grande actor. Vem-lhe tudo à superfície. Conheço o género. Foi educado com toda a pompa e o orgulho de um patrício, mas sem a educação que têm os da sua classe. Ameaça e oprime os outros homens com impunidade, porque acha que tem direito a isso. Não é do tipo tortuoso ou sequer fraudulento; não precisa de mentir, porque nunca se envergonha do que faz, por muito escandaloso que seja. Diz tudo o que lhe passa pela cabeça porque espera levar sempre a melhor, e provavelmente é isso que acontece.

 

Não conseguiu impedir-te de ficar com a quinta.

 

Pois não, mas se quisesse realmente atacar-nos, acho que o faria de maneira menos dissimulada. E, se estivesse envolvido nestes ultrajes, acho que admitiria o seu papel quando o acusámos, não achas? Gabar-se-ia disso. É um homem rude; não tem qualquer subtileza... viste como trata os escravos e os cães. Quem nos ofereceu Nemo e Fórfex é astuto, quase brincalhão, ainda que perverso. Isso não é uma descrição adequada de Gneu Cláudio.

 

Suponho que não. Mas, mesmo antes de nos virmos embora, acusaste-o directamente de também ser responsável por Nemo. Disseste que percebeste que ele estava a mentir. Disseste que tinhas provas!

 

Foi uma simulação final, um último esforço para me convencer de que ele nada sabe acerca dos corpos que nos apareceram na quinta. Não, Gneu não é o nosso carrasco. É verdade que matou Fórfex, e rezo para que Nemesis o castigue por isso. Fosse como fosse, Fórfex apareceu no nosso poço sem cabeça... tu recordaste-te da marca de nascença, e eu confesso que fiz mal em desconfiar de ti. Mas, entre o singelo enterramento do corpo de Fórfex e a sua decapitação e aparecimento no poço, alguém mais interveio.

 

Mas quem, Papá?

 

Não sei. Se não houver mais nenhuma crise, talvez nunca o saibamos.

 

Percebi pela sua expressão que Meto não se contentaria com isto. Eu também não me contentava, mas os anos tinham-me dado outra paciência.

 

Continuo a achar que devias acusá-lo disse Meto.

 

Não vale a pena incomodar Volumeno. Já viste o tempo que ele está a demorar a conseguir-nos um julgamento da nossa disputa com Públio Cláudio por causa da água. De que vale processar alguém quando não temos provas?

 

Mas temos algumas provas!

 

Um cadáver sem cabeça com uma marca de nascença? O testemunho de um cabreiro que nunca poderia ser obrigado a testemunhar contra o seu senhor? A completa negação da acusação por Gneu Cláudio? O testemunho de um escravo de quinta, velho e senil que pensa que talvez tenha ouvido uma pancada na água e avistado uma sombra certa noite quando se levantou para verter águas? Não, Meto, não temos prova nenhuma. É certo que podíamos conseguir subornar um júri, que é maneira de se ganharem processos em Roma quando não se têm provas, mas eu não gostaria de o fazer. Não acredito que Gneu Cláudio seja o responsável.

 

Mas, Papá, alguém deve ter sido. E temos de descobrir quem foi!

 

Paciência, Meto aconselhei eu fatigadamente, perguntando a mim próprio se também devia aconselhar-lhe resignação, pois sabia perfeitamente que muitos mistérios nunca se resolvem. Apesar disso, os homens continuam a viver, na ignorância e no temor, e embora possam considerar intolerável o seu estado de perplexidade, parecem ainda assim capazes de o tolerar enquanto os seus corações continuam a bater.

 

Segui os conselhos de Arato quanto à purificação do poço. Embora não fosse propriamente um sacerdote, ele parecia ter uma visão prática sobre a questão e já vira outros purificar poços poluídos por roedores e por coelhos, ainda que não por escravos mortos. Achou que era significativo que Fórfex tivesse sido adequadamente sepultado, pelo menos para um escravo, antes de os seus restos mortais terem sido perturbados. Isto significava que havia boas possibilidades de a lémure de Fórfex ter repousado antes de ele ser desenterrado. Se assim fosse, a lémure poderia ter ficado na queda de água da encosta da montanha, um local que lhe era mais familiar, em vez de seguir o cadáver profanado e decapitado para solo desconhecido. Os escravos pareceram aceitar como verdadeiros estes argumentos, pondo assim de parte o seu terror recém-adquirido pelo poço. Se Arato acreditava nos seus própios argumentos era algo que eu não podia saber, mas senti-me agradecido pelo seu efeito pragmático e pela gestão política que ele fez da situação.

 

Mas havia ainda o problema da poluição literal do poço, porque embora pudesse haver ou não uma lémure envolvida no assunto, não havia dúvidas de que um corpo entumecido estivera em contacto com a água e a contaminara. Ora, homens ou animais que bebam água contaminada podem adoecer, ou mesmo morrer. Arato achava que, com o tempo, o poço voltaria a encher e se purificaria sozinho, e entretanto recomendou que lançássemos pedras aquecidas lá para dentro, para obrigar a água a turvar-se e a emitir vapor. Pareceu-me que isto era o mesmo que cauterizar uma ferida com um ferro quente e que não fazia qualquer sentido relativamente ao poço, mas aceitei relutantemente o seu conselho. Entretanto, beberíamos alguma água que tinha sido armazenada em urnas e de maneira qualquer o ribeiro não estava completamente seco. Mas esperavam-nos tempos de seca.

 

Grande parte do feno para o Inverno fora perdido por causa do míldio. Corríamos grave perigo de ficar sem água. Comecei a perceber, com crescente incómodo, que se houvesse outro desastre semelhante, podia ser obrigado a vender a quinta. Para um homem rico, uma quinta no campo é uma distracção e, se perder dinheiro com ela, essa perda mais não é do que o custo da distracção. Mas eu não tinha fortuna na cidade; a quinta era o empreendimento onde eu apostara o meu futuro. Era essencial que fosse bem sucedido; o fracasso arruinar-me-ia. Nesse Verão, pareceu-me que os próprios deuses conspiravam para me roubar aquilo que Lúcio Cláudio, na sua generosidade, me oferecera, e que Cícero, com a sua esperteza, me garantira por lei.

 

Todos os dias Arato dava um pouco de água do poço a um dos animais da quinta, normalmente um cordeiro. Não os matava, mas soltava-lhes os intestinos e provocava-lhes vómitos. A água continuava imprópria para beber.

 

Eu perseverava na construção do moinho no ribeiro. Arato mandou os escravos deitar abaixo um pequeno alpendre que não era utilizado, para me fornecer pedras e vigas de construção. Dia após dia, a visão que eu tinha no espírito começava a tomar forma. O meu velho amigo Lúcio teria ficado surpreendido e orgulhoso, pensei eu.

 

Esperava uma visita de Catilina, ou pelo menos de Marco Célio, mas ninguém me incomodou durante o restante Quinctilis e grande parte do mês de Sextilis. Entretanto, coloquei escravos de guarda todas as noites, que se substituíam uns aos outros em turnos, como soldados num acampamento. Fosse por isso ou por outra coisa qualquer, não voltámos a ter surpresas desagradáveis sob a forma de corpos sem cabeça. Contudo, deu-se outro acontecimento perturbador.

 

Foi mesmo a seguir dos Idos de Sextilis, quase um mês depois do nosso regresso de Roma. O dia fora anormalmente atarefado. Tínhamos chegado a um ponto crítico na construção do moinho; as rodas não engrenavam, embora eu tivesse medido e voltado a medir as proporções e tivesse feito antecipadamente todos os cálculos. Além disso, tinha havido uma trovoada durante a noite, que não trouxe chuva mas espalhou ramos partidos e outros detritos pela propriedade; os homens tinham trabalhado o dia todo a limpar a desordem. Quando a longa tarde de Verão se aproximava do fim e eu arranjei finalmente tempo para descansar um pouco no escritório, Arato apareceu-me à porta.

 

Não quis incomodar-te mais cedo, porque pensei que talvez passasse, mas como está a piorar, achei que era melhor vir contar-te disse ele.

 

O que é que se passa?

 

É   demento. Está doente... aparentemente, está muito doente. Começou a queixar-se esta manhã, mas como as dores parecia irem e virem, e como ele não parecia muito aflito, não vi razões para te incomodar. Mas ele tem vindo a piorar. É possível que morra.

 

Segui Arato até ao pequeno alpendre ao lado do estábulo, onde Clemento dormia durante a noite e de vez em quando dormitava durante o dia. O velho escravo estava deitado de lado na palha, com os joelhos encostados ao peito. Gemia baixinho. Estava muito corado, mas tinha os lábios ligeiramente azuis. Uma escrava estava debruçada sobre ele, passando-lhe um pano húmido sobre a cara de tempos a tempos. De vez em quando, ele era tomado por um tremor espasmódico, formava uma bola ainda mais apertada com o corpo, e depois descontraía-se com um lamento patético.

 

O que se passa com ele? murmurei eu.

 

Não sei bem disse Arato. Esteve a vomitar. Parece-me que neste momento não consegue engolir, e quando tenta falar as palavras saem-lhe enroladas.

 

Algum dos outros apresenta as mesmas queixas? perguntei eu, pensando que uma epidemia na quinta seria a calamidade final.

 

Não, pode ser apenas por ele ser velho. Arato baixou a voz. Tempestades como a que houve a noite passada são prenúncios de morte para pessoas da sua idade.

 

Enquanto o observávamos, Demento teve uma convulsão e ficou rígido. Abriu os olhos e olhou para nós, mais com uma expressão de espanto do que de dor. Descerrou os lábios e soltou um gemido longo e áspero. Momentos depois, a mulher que o assistia estendeu a mão e tocou-lhe na testa com os dedos trémulos. Ele mantinha os olhos estranhamente abertos. A mulher retirou a mão e levou os nós dos dedos aos lábios. Demento estava morto.

 

Era bastante velho, claro, e os velhos podem morrer por muitas razões, e em qualquer momento. Mas eu não consegui deixar de me recordar que fora Demento quem ouvira o som abafado da pancada na água quando Fórfex fora deitado para dentro do poço e depois observara uma vaga sombra caminhando pela noite.

 

O moinho de água não funcionava.

 

Pesaroso, pensei, que de facto não era engenheiro tal como não era agricultor, acrescentou outra voz dentro da minha cabeça e que portanto não devia ficar surpreendido com o facto de os meus planos não terem resultado. Mantivera o projecto o mais simples possível. Construíra um pequeno modelo com lascas de madeira, que parecia funcionar perfeitamente. O próprio Arato, que nunca hesitava em injectar uma nota negativa em tudo, considerara a ideia praticável e a construção correcta. Mas, quando mandei os escravos empurrar a roda principal (porque em pleno Verão, no mês de Sextilis, o ribeiro não tinha força suficiente para fazê-la girar), as rodas andaram apenas alguns graus e depois pararam. Da primeira vez que isto aconteceu, os escravos continuaram a empurrar a roda principal, até que dois dos eixos de madeira se partiram com um ruído enorme que mais parecia um trovão. Na vez seguinte, fui mais cuidadoso, mas o moinho recusou-se a funcionar.

 

À   noite, sonhei com ele. Vi-o como ele devia ser, com o ribeiro a deslizar no leito, a roda principal a rodar e os blocos de pedra rangendo como dentes, com os cereais a saírem pelo escoadouro com interminável abundância. Noutros sonhos, mais obscuros, ele apareceu-me como uma espécie de monstro, vivo mas rancoroso, rodando sem controlo, esmagando escravos infelizes na sua engrenagem e derramando sangue pela boca.

 

Por que esbanjara eu tanta energia e imaginação na produção do moinho? Disse a mim próprio que se tratava de uma oferta à sombra do meu benfeitor, Lúcio Cláudio. Era um sinal de que estava perfeitamente adaptado à vida no campo, um sinal de que não me limitara a acomodar-me à agricultura, mas dominava os elementos que me rodeavam. Era um gesto de desafio contra Públio Cláudio, que pensava que podia privar-me dos meus direitos de água. Era todas estas coisas, claro (para além de ser aquilo que era concretamente, ou que devia ser, uma construção com valor intrínseco), mas também era uma diversão. Os mistérios de Nemo e de Fórfex continuavam por resolver. Em vez de permitir que esses fracassos me oprimissem, eu preferira atormentar-me com o fracasso continuado do moinho; em vez de voltar a minha imaginação para a satisfação pessoal que teria se conseguisse resolver esses mistérios de uma vez para sempre uma satisfação antiga e conhecida, confortável como uma veste usada, voltava-a para o triunfo técnico de um moinho de água que funcionasse realmente. Da mesma maneira, a minha obsessão com o moinho proporcionava-me uma fuga aos problemas da falta de água e da ameaçadora perspectiva de um Inverno sem feno.

 

Estas crises parecem-me agora pequenas, em comparação com a crise de maiores dimensões que se preparava à nossa volta não apenas em Roma e na Etrúria, mas em toda a Itália. Podia afirmar que não tive qualquer premonição da catástrofe que se aproximava, mas isso não seria inteiramente verdade. Um homem que volta as costas a um incêndio pode dizer com verdade que não vê o fogo, mas sente o calor nas suas costas; vê a luz lúrida que enche de cor os objectos que o rodeiam e a sua própria sombra recortada diante de si. Porém, se eu tive algum pressentimento do resultado da batalha entre Cícero e Catilina, preferi preocupar-me com o meu moinho de água.

 

Para o final do mês de Sextilis, Diana fez sete anos. Os aniversários das rapariguinhas não são especialmente celebrados entre os Romanos, mas este dia o vigésimo sexto dia de Sextilis, quatro dias antes das Calendas de Setembro era duplamente especial para a nossa família, porque não era apenas o dia em que Betesda dera à luz Gordiana, era também o dia em que Marco Múmio nos trouxera Meto, depois de o salvar do seu cativeiro na Sicília. Fizéramos desse dia um dia de festa de família, que todos os anos era celebrado com uma refeição especial; alguns dias antes, Betesda começou a supervisionar os preparativos de Côngrio na cozinha. Sempre contáramos com a presença de Eco neste dia e este ano não seria excepção. E, se nós tínhamos ido a Roma no dia da toga de Meto, Eco e Menénia viriam da cidade para esta celebração privada.

 

Chegaram de carroça no dia anterior ao aniversário de Diana, com Belbo e mais cinco escravos na comitiva. Reparei que os escravos eram dos mais fortes da casa de Eco e que vinham todos armados com grandes punhais, guardados dentro das túnicas. Disse uma piada sobre o facto de ele andar com uma escolta para se parecer com Cícero, mas Eco não se riu.

 

Depois falamos disse ele enigmaticamente, como se reconhecesse que me devia uma explicação, quando eu me limitara a gracejar.

 

Betesda fez todos os possíveis para que Menénia se sentisse à vontade, devolvendo a cortesia que a sua nora tivera para com ela na cidade; a cordialidade entre ambas parecia genuína. Meto e Diana estavam encantados com o facto de terem na quinta o irmão mais velho, ainda que fosse por pouco tempo. Enquanto todos usufruíam da companhia uns dos outros, eu consegui escapulir-me. Encontrei Belbo junto dos outros escravos vindos de Roma, que se descontraíam numa sombra ao lado do estábulo e jogavam à vez uma partida de trígono. Estavam dispostos em triângulo, atirando a bola de pele de um lado para o outro. Belbo, mais conhecido pela sua força do que pela sua agilidade, fora rapidamente desclassificado. Eu pedi-lhe que se juntasse a mim. Ele seguiu-me quando eu dei a volta à casa para me colocar fora do alcance dos ouvidos dos outros escravos.

 

O meu filho rodeou-se de uma escolta considerável para proteger duas pessoas sem nada de valioso em si mesmas, numa viagem tão curta e numa estrada tão movimentada.

 

Beto sorriu e abanou a cabeça.

 

Não escapa nada ao velho Senhor, como sempre.

 

”Como sempre”... quem me dera ter metade da capacidade de observação e da prudência que tinha anteriormente, Belbo, ou que pensava que tinha. Para que são todos estes punhais?

 

As coisas estão tensas na cidade.

 

Isso é terrivelmente vago. Em que é que o meu filho se meteu?

 

Não seria melhor ser ele a contar-te?

 

Se tu estivesses connosco há pouco tempo, eu escusar-te-ia de falares ao teu antigo senhor do teu novo senhor nas suas costas, mas tu conheces-me demasiadamente bem para me esconderes o que quer que seja, Belbo. Eco está envolvido em alguma coisa perigosa?

 

Senhor, tu conheces a vida. Lembras-te dos perigos do dia-a-dia. Eu olhei para ele com firmeza, pouco impressionado com aquelas evasivas.   Ele era forte como um touro e fiel como um cão, mas tinha tão pouco jeito para guardar segredos como para jogar trígono. Vi-o corar até às raízes do seu cabelo cor de palha.

 

É um trabalho novo que ele está a fazer confessou ele.

 

Para quem?

 

Para o jovem que esteve na festa de Meto... tu viste-o, falaste com ele. Ele voltou lá a casa uns dias depois, para contratar o jovem Senhor. É aquele jovem que tem uma barba e um corte de cabelo à moda.

 

Esse jovem tem nome? perguntei eu, embora já conhecesse a resposta.

 

Marco Célio disse Belbo.

 

Pelas bolas de Numa, eu sabia! Eles também lançaram a rede sobre Eco.

 

Uma vez ultrapassada a sua limitada resistência, Belbo parecia ansioso por falar.

 

Tem qualquer coisa a ver com uma conspiração uma conspiração para matar Cícero e derrubar o governo. O jovem Senhor tem ido a reuniões nocturnas em segredo. Eu não tenho ouvido grande coisa; fico cá fora com os outros escravos e guarda-costas. Mas há pessoas importantes nessas reuniões, isso posso dizer-te... senadores, cavaleiros, patrícios, pessoas que eu vejo no Fórum há anos. Marco Célio também está muitas vezes presente.

 

Enquanto ele falava, eu abanava a cabeça e cerrava os dentes. Eco devia ter mais juízo, pensei eu, e não se deixar arrastar para os assuntos de Marco Célio e do seu senhor, fosse ele Cícero ou Catilina. Investigar as circunstâncias de um simples assassínio ou desenterrar a verdade numa discussão relativa a uma propriedade era uma coisa, mas pôr uma venda nos olhos e deixar-se empurrar de um lado para o outro na tortuosa conspiração e contraconspiração entre Cícero e Catilina era outra coisa completamente diferente. Era mais do que o grau aceitável de perigo e incerteza; eu ensinara Eco a ser um Descobridor, e não um espião. Para mim, é honroso descobrir a verdade e torná-la pública, mas não é digno ocultá-la e murmurá-la no escuro.

 

Ocorreu-me que Eco poderia não ter tido escolha na matéria. A ideia de um corpo sem cabeça aparecer na casa de Roma fez-me agarrar na túnica de Belbo.

 

Ele foi ameaçado? Intimidado? Eles atreveram-se a levá-lo a temer por Menénia, ou por nós, aqui na quinta?

 

Belbo assustou-se com a minha veemência.

 

Penso que não, Senhor disse ele submissamente. Marco Célio foi lá a casa pouco depois de tu teres saído de Roma. Pareceu-me tudo muito cordial... o jovem Senhor é como tu eras; não gosta de aceitar trabalho de pessoas em quem não confia, pelo menos se puder evitá-lo. Mas pareceu-me perfeitamente disposto a fazer aquilo que Célio queria. Se houve ameaças ou coisa semelhante, eu não soube.

 

Ouvir um tom de voz tão conciliador vindo de um gigante como ele pareceu-me absurdo; quase tão absurdo como a visão do meu punho fechado agarrando-lhe a gola da túnica, que parecia a mão de uma criança contra a largura maciça do seu pescoço. Soltei-o e recuei.

 

Vê se os outros mantêm os punhais à mão, mesmo enquanto estão a jogar trígono disse eu. E coloca alguém a vigiar a estrada que vai dar à Via Cássia. Se Eco acha que precisa de uma escolta, eu confio no seu discernimento. Mas ele devia saber, e tu também, que não está mais seguro aqui do que na cidade.

 

Dei um longo passeio pela quinta para meditar. Quando regressei a casa, encontrei a família reunida no átrio, resguardando-se do calor da tarde. Betesda e Menénia estavam reclinadas em canapés de frente uma para a outra; Diana estava sentada de pernas cruzadas entre elas, a brincar com uma boneca; Meto e Eco estavam sentados lado a lado num banco junto da piscina. Tinham entre eles o pequeno jogo de sala chamado Elefantes e Archeiros, que Cícero me dera e que eu oferecera a Meto. Tinham evidentemente terminado a partida, porque as peças de bronze tinham sido todas empurradas para um dos lados da tábua de madeira aos quadrados. Quando eu me aproximei, ouvi Meto dizer qualquer coisa acerca de Aníbal.

 

O que estão vocês a discutir? perguntei eu, tão suavemente quanto pude.

 

A invasão de Itália por Aníbal disse Meto.

 

Com elefantes acrescentou Eco.

 

Na verdade, os elefantes não chegaram a Itália explicou Meto, voltando-se para Eco. Parecia muito satisfeito com a possibilidade de desempenhar o papel de pedagogo do seu irmão mais velho. Morreram na neve, ao atravessar os Alpes. O mesmo aconteceu aos homens de Aníbal, às dezenas de milhares. Não te lembras, há uns anos, quando eu cheguei a Roma, de um dos magistrados organizar um espectáculo no Circo Máximo... Aníbal atravessando os Alpes. Eles empilharam montículos de lixo para fazer pequenas montanhas e ravinas. Para a neve, usaram milhares de pedacinhos de tecido e havia escravos escondidos nos recantos com grandes leques para os fazer mexer e rodopiar. Mas os elefantes eram reais. Não chegaram propriamente a matá-los; mas não sei como, tinham treinado os animais para se deitarem de lado e fingirem que estavam mortos. O sorriso morreu-lhe no rosto. Um dos escravos que desempenhava o papel de um escravo cartaginês foi apanhado debaixo de um elefante e horrivelmente esmagado. Foi terrível, o sangue vermelho contra a neve branca... não te lembras, Eco?

 

Sim, claro.

 

Lembras-te, Papá?

 

Vagamente.

 

Seja como for, Eco, a questão, como diz Marco Múmio, é que a vitória na batalha não depende apenas do número dos combatentes, da sua coragem e da táctica, mas também dos elementos... da chuva, da neve, de um campo lamacento, de uma tempestade inesperada. ”Tanto os elefantes como os elementos são importantes”, diz ele, e ”Os homens fazem a guerra, mas são os deuses que fazem o tempo”. Devias falar com Múmio acerca do assunto um dia destes. Ele sabe tudo sobre os grandes generais e as batalhas famosas.

 

Eu abanei a cabeça.

 

Como é que vocês se puseram a falar de Aníbal? Oh, estou a ver... Elefantes e Archeiros.

 

Na verdade, Papá disse Eco, Meto interessa-se muito por história militar.

 

Verdade? Bem, se puderes pôr as batalhas de parte durante um momento, Eco, gostaria de pedir a tua opinião sobre o moinho de água.

 

Eco encolheu os ombros e levantou-se. Meto começou a levantar-se, mas eu indiquei-lhe que ficasse quieto.

 

Deixa-te estar; conversa com Menénia, tenta impedir que a tua irmã faça asneiras. Certamente que, por esta altura, já viste o moinho vezes suficientes. Meto ia começar a falar mas mordeu a língua e baixou os olhos. Voltou a sentar-se no banco e começou a mexer nos pequenos guerreiros de bronze.

 

Ele sente-se realmente fascinado pelas coisas militares disse Eco enquanto nos dirigíamos ao ribeiro. Não consigo imaginar onde é que ele foi buscar aquele interesse. Suponho que sempre gostou muito de Marco Múmio...

 

Indo directo ao assunto, o que é que tens andado a fazer em Roma?

 

       Eco suspirou.

 

Não sei porquê, mas não me pareceu que me tivesses ido buscar apenas para ir ver o teu moinho de água.

 

Não vale muito a pena. Foi um fracasso, como quase tudo o resto aqui na quinta

 

As coisas estão a correr mal?

 

Tínhamos chegado ao moinho. Eu descobri uma zona à sombra e fiz um gesto a Eco para que se sentasse ao meu lado Juntos, olhámos para a lama dura e seca ao longo das margens do ribeiro e para o fio de água que corria sobre as pedras

 

Vou começar por te contar os meus problemas disse eu. Depois, tu contas-me os teus.

 

Fiz-lhe um relato completo de tudo o que tinha acontecido desde a nossa chegada de Roma a descoberta do cadáver de Fórfex, a poluição do poço, o encontro com Gneu Cláudio, a morte de Demento.

 

Papá, devias ter-me informado. Devias ter-me escrito.

 

E tu devias ter-me informado das tuas relações com Marco Célio. Eco olhou para mim de esguelha. Arranquei-o a Belbo expliquei eu. Não foi difícil

 

E eu confesso que já sabia do corpo no poço

 

Como...

 

Meto contou-me Pelo menos contou-me a maior parte da história

 

E tu deixaste-me voltar a contar-te a história, como se nada soubessses!

 

Queria ouvi-la da tua boca, desde o princípio até ao fim. A narrativa de Meto foi mais dramática, mas a tua foi mais coerente. Meto pareceu-me muito orgulhoso por ter sido capaz de identificar Fórfex pela marca de nascença que ele tinha na mão. Tu anotaste o mesmo na tua versão

 

A sério? Calculo que Meto continue convencido de que Gneu Cláudio é o culpado

 

Ele inclina-se para essa opinião.

 

Mesmo que fosse Gneu Cláudio, eu seria impotente para apresentar queixa contra ele Mas, neste momento, ele sabe que nós suspeitamos dele eu cheguei mesmo a dizer-lhe que tinha provas contra ele, por isso, se ele é culpado, e se for possível intimidá-lo, já foi notificado Mas queria conversar contigo sobre outra coisa...

 

Papá, parece que não foi nada, teres encontrado outro corpo sem cabeça na quinta! E, desta vez, num acto de destruição maliciosa, e não apenas de intimidação. Acho que devias levar a família outra vez para Roma, antes que aconteça alguma coisa verdadeiramente terrível.

 

Eco, já discutimos este assunto disse eu impacientemente.

 

Não há espaço para todos nós lá em casa, além de que eu não tenho estômago para viver na cidade. Em vez de nós sairmos da quinta, eu sugeria que tu saísses de Roma e viesses viver para aqui. É melhor do que colocares-te nas mãos de Marco Célio. O que significa isso de teres permitido que ele te enviasse a reuniões secretas com Catilina e o seu círculo? Não compreendes o perigo?

 

Papá, estou a trabalhar para um cônsul romano.

 

Fraca protecção, se fores apanhado em algum crime com esses homens e assassinado logo ali, ou se eles descobrirem que és um espião e te armarem uma emboscada. Nessa altura, onde estará Cícero?

 

Eco beliscou o nariz.

 

Sei que nos últimos anos a tua opinião sobre Cícero se tornou pouco favorável, Papá. Parece teres perdido todo o respeito por ele desde que ele ganhou as eleições contra Catilina. Mas deves conceder-lhe o crédito de ter sido fiel aos seus amigos.

 

Não me digas que andas a espiar Catilina por amizade.

 

Não, Papá, faço-o por dinheiro. Mas tu devias fazê-lo por amizade. Havia na sua voz um tom que eu nunca ouvira anteriormente, aquela voz que sempre me parecera bela porque durante muitos anos ele fora mudo. Nunca tínhamos tido nenhuma discussão a sério. Subitamente, eu percebi que estávamos à beira de ter a primeira. Desviei os olhos e inspirei profundamente. Eco fez a mesma coisa.

 

Suponho que a minha ansiedade ficaria de certa maneira aliviada se tu me explicasses as circunstâncias precisas do teu envolvimento - disse eu por fim. O que pretende Catilina exactamente?

 

Aquilo que Marco Célio diz é verdade; Catilina e os seus colegas conspiram para destruir o Estado. Esperavam que ele ganhasse as eleições, caso em que daria início à sua revolução a partir de cima, utilizando os seus poderes consulares e os poderes dos seus amigos no Senado para levar a cabo as suas reformas radicais por meios legais, se isso fosse possível, ou através de uma guerra civil, se tivesse de ser. Era esse o caminho que o próprio Catilina preferia. Ele parece ter pensado que tinha possibilidades genuínas de ser eleito. Agora que o único caminho que lhe resta é a revolta armada, Catilina hesita. Sente-se manietado pela dúvida e pela incerteza.

 

Compreendo disse eu em voz baixa.

 

Até este momento, os conspiradores nada fizeram que fosse ilegal, ou pelo menos nada que pudesse incriminá-los. Não escrevem coisa alguma. Encontram-se em segredo, sub rosa. Eco sorriu. Catilina tem uma interpretação muito literal do assunto; pendura mesmo uma rosa no tecto de qualquer sala em que os seus amigos se encontrem para conspirar, recordando-lhes que a rosa significa o silêncio e que as palavras ali pronunciadas não devem chegar ao mundo exterior. Apesar disso, Cícero sabe de tudo o que se passa.

 

Porque tu os espias e vais contar.

 

Não estou propriamente sozinho. E sou apenas um espião menor, não sou um membro do círculo íntimo de Catilina. Pertenço a uma camada exterior de homens em quem ele pensa poder confiar e que, julga ele, poderão ser valiosos quando a crise chegar. Apesar disso, ouço muitas coisas e tenho um certo talento para distinguir a verdade dos rumores fantásticos que passam pelo meio dela. Estas pessoas estão cheias de grandes ilusões e por vezes pergunto a mim mesmo se constituirão de facto um perigo real.

 

Não digas isso a Cícero! Não é isso o que ele quer ouvir. Eco suspirou.

 

Papá, tu és insuportavelmente cínico.

 

Não, isso é uma descrição de Cícero. Não percebes que ele adora o papel que esta crise lhe confere? Se não houvesse conspirações contra o Estado, acho que ele inventava uma. Eco rangeu os dentes. Estávamos novamente à beira de uma ruptura. Eu recuei. Dá-me os pormenores disse eu. Quem são esses conspiradores? Conhece-los? Quem são os outros espiões a soldo de Cícero?

 

Queres mesmo que eu fale contigo acerca destas coisas? Depois de terem sido ditas, não poderão ser retiradas. Pensei que querias lavar as tuas mãos de Roma.

 

É   melhor saber do que não saber.

 

Mas os segredos são perigosos. Quem os possui assume o fardo de os guardar. Queres realmente essa responsabilidade?

 

Quero saber quem são as companhias do meu filho. Quero saber quem está a ameaçar a minha vida e porquê.

 

Então desenterraste a cabeça da areia.

 

Eu suspirei.

 

As penas da avestruz são muito valorizadas, mas são fáceis de arrancar. O facto de ela enterrar a cabeça num buraco não lhe dá espaço de manobra.

 

E deixa-lhe o longo pescoço exposto a punhais disse Eco.

 

Uma observação perspicaz.

 

Um trocadilho ainda mais perspicaz. Ambos nos retraímos, depois rimo-nos. Eu estendi a mão e agarrei nas dele por momentos. Oh, Eco, dizes que estes conspiradores estão iludidos, mas não estão tão iludidos como eu estava, ao imaginar que podia escapar a Roma. Ninguém pode! Pergunta a qualquer escravo que tenha conseguido fugir até aos Pilares de Hércules ou à fronteira com os Partos, acabando inevitavelmente por ser apanhado e devolvido ao seu senhor dentro de uma gaiola. Somos todos escravos de Roma, independente de como quer que tenhamos nascido, independentemente do que diga a lei. Só uma coisa nos liberta, a verdade. Eu tentei voltar as costas à verdade, pensando que, através da ignorância, podia escapar às Parcas. Mas devia saber que as coisas não são assim. Um homem não pode voltar as costas à sua natureza. Toda a minha vida busquei a justiça, sabendo como é rara e difícil de encontrar; ainda assim, se não conseguirmos encontrar a justiça, por vezes podemos ao menos descobrir a verdade e ficar satisfeitos com ela. Agora desisti por completo da justiça, e até parece que perdi o apetite, já para não falar do instinto, para descobrir a verdade, e chego a desesperar de alguma vez voltar a encontrá-la; mas desistir dessa busca é estar completamente perdido. Suspirei e fechei os olhos contra o brilho das folhas trémulas que se erguiam por cima de nós. Estas divagações fazem algum sentido para ti, Eco? Ou serei eu demasiadamente velho e tu demasiadamente jovem?

 

Abri os olhos e vi-o sorrir tristemente.

 

Acho que às vezes te esqueces até que ponto nós somos parecidos, Papá.

 

Talvez me esqueça, especialmente quando estamos separados. Quando tu estás comigo, eu sou um homem mais forte e melhor.

 

Nenhum filho poderia pedir mais do que isso. Só gostava que tu sentisses o mesmo... A sua voz diminuiu de intensidade e ele mordeu os lábios, mas eu sabia que ele estava a pensar naquele que não estava connosco em Meto, que estava em casa com a mãe e a irmã, uma vez mais excluído do conselho do seu pai.

 

Muito bem disse eu, sentando-me confortavelmente na relva conta-me então tudo o que sabes sobre Catilina e o seu círculo.

 

Eco fez uma expressão de pesar.

 

Aceito a responsabilidade de saber disse eu.

 

Não estou só a pensar em ti, estou a pensar em mim próprio. Se alguma vez Catilina ouvisse dizer que houve uma fuga nos seus segredos, e que era eu o responsável...

 

Sabes que podes confiar no meu silêncio.

 

Ele suspirou e colocou as mãos sobre os joelhos, juntando os cotovelos. Eu reconheci a postura como se estivesse a ver-me ao espelho.

 

Muito bem. Para começar, eles são mais do que possas pensar. Cícero e Célio falam como se os seus inimigos fossem legiões, mas tu sabes como Cícero tende a exagerar.

 

Cícero, a exagerar? disse eu, com choque fingido.

 

Exactamente. Mas neste caso tem razões para estar alarmado.

 

Qual é exactamente o objectivo da conspiração desses conspiradores?

 

Isso ainda não é claro, provavelmente nem para eles próprios, mas provocar alguma espécie de insurreição armada está definitivamente nos seus planos, e a morte de Cícero é a sua primeira prioridade.

 

Queres dizer que todos aqueles guarda-costas e aquela couraça absurda não eram só espectáculo? Pensei que se tratava apenas de uma exibição barata para assustar os eleitores.

 

Não estou certo de que Catilina quisesse ver Cícero morto antes das eleições, pelo menos não o queria o suficiente para conspirar para o seu assassínio. Se Catilina tivesse ganho o consulado, as coisas poderiam ter corrido de outra maneira. Mas agora os conspiradores estão todos de acordo, em parte para se vingarem, em parte para darem uma lição a outros interessados em servir os Optimates, em parte como solução prática.

 

E quem são esses homens? Nomeia alguns.

 

O próprio Catilina, claro. Que hoje em dia anda sempre acompanhado de um jovem chamado Tongílio.

 

Conheço-os ambos, do tempo que passaram debaixo do meu tecto. E quem mais?

 

O principal, a seguir a Catilina, é Públio Cornélio Lêntulo Sura.

 

Lêntulo? O Lêntulo Pernas? Esse velho depravado?

 

Esse mesmo.

 

Bem, Catilina escolheu uma personagem bem colorida como seu principal conspirador. Conheces a história desse homem?

 

No círculo de Catilina, toda a gente está a par. E, tal como tu, sorriem quando o nome dele é mencionado.

 

É um velho cheio de encantos, não o negarei. Trabalhei para ele uma vez, há seis ou sete anos, logo a seguir à sua expulsão do Senado. Bastava olhar para o homem para se pensar imediatamente na palavra ”patife”, mas eu não consegui evitar gostar dele. Suspeito de que os outros senadores também gostavam dele, ainda que de uma maneira retorcida, embora tenham votado expulsá-lo das suas fileiras. Alguém lhe chama Pernas directamente?

 

Só os outros patrícios disse Eco.

 

Sura, que significa barriga da perna, fora a alcunha que Lêntulo conquistara nos dias do ditador Sula, quando tinha o cargo de questor. Uma soma bastante substancial de dinheiro do Estado desaparecera durante a administração de Lêntulo. O Senado convocou-o para se explicar. Em resposta, Lêntulo declarou, de forma insolente e desprovida de qualquer constrangimento, que não tinha contas a prestar (já que as contas estavam vazias), mas que estava disposto a oferecer-lhes isto e estendeu a perna, como fazem os rapazes quando estão a jogar trígono e não acertam na bola. Lêntulo saiu-se impunemente desta exibição de desprezo, em grande medida graças ao seu parentesco com Sula, durante cuja ditadura um mero crime de desvio de dinheiros era uma brincadeira de crianças, mas a alcunha pegou.

 

Noutro momento da sua carreira, Lêntulo foi levado a tribunal por uma prevaricação qualquer e foi ilibado por uma vantagem de dois votos a seu favor. Mais tarde, ter-se-á queixado de que desperdiçara o seu dinheiro subornando mais um juiz. Um patife, como eu disse, mas com sentido de humor.

 

Os escândalos que o rodearam não evitaram que atingisse o pretorado, e finalmente o consulado; infelizmente, foi eleito para o cargo na pior altura possível, durante a revolta de escravos chefiada por Espártaco.

 

Virtualmente todas as pessoas que ocuparam o poder nessa altura foram desacreditadas pelas hesitantes tentativas de conter os escravos rebeldes; quando Espártaco foi finalmente derrotado, irrompeu uma orgia de recriminações e de apontar de dedos. Um ano depois do seu consulado, privado de aliados e vulnerável aos seus inimigos políticos, Lêntulo foi expulso do Senado com base em acusações de conduta inapropriada. Desta vez, mostrou aos outros Senadores, não a sua perna ossuda, mas a parte de trás da sua cabeça inclinada, ao partir desonrado.

 

Mas Lêntulo perseverou. Numa altura da vida em que a maioria dos homens se sentiria esmagada por esse género de humilhação e demasiado cansada para recuperar, voltou a participar na zaragata eleitoral, começando do princípio, como qualquer jovem. Há um ano, fora eleito pretor, mais de dez anos depois de ter desempenhado pela primeira vez esse cargo, tendo por isso voltado a ser admitido no Senado. A sua reemergência fora alimentada pela sua total desfaçatez, mas ele possuía muitas outras vantagens o distinto nome patrício de Cornélio; uma linhagem populista transmitida por um avô famoso, que morrera sessenta anos antes nos tumultos anti-Graco; o seu casamento com a ambiciosa Júha, parente de Júlio César, de parceria com quem educava o jovem filho dela, Marco António; e por fim, mas não por menos, um estilo de oratória aparentemente preguiçoso mas astuciosamente calculado, que comunicava todo o encanto do seu bilioso sentido de humor e da sua tremenda ambição.

 

Que motivação o leva a conspirar contra o Estado? perguntei eu. Afinal, recuperou a sua posição senatorial. Até podia voltar a candidatar-se a cônsul.

 

Sem qualquer esperança de vencer. Por trás daquele fatigado sentido de humor, existe uma grande quantidade de amargura e uma ardente impaciência. Este homem teve de recomeçar tudo a meio da vida; está ansioso por encontrar um atalho que lhe permita realizar o seu destino.

 

O seu destino?

 

Ultimamente, parece haver qualquer coisa de novo no seu carácter; um fraco por adivinhos. E parece que há uns adivinhos um tanto desonestos. Eles regalaram Lêntulo com versos, supostamente retirados dos Livros Sibilinos, que profetizam que três homens da família dos Cornélios estão destinados a governar Roma. Todos conhecemos dois deles Cina e Sula. Quem será o terceiro?

 

Esses adivinhos dizem a Lêntulo directamente que ele será ditador?

 

Não dizem uma coisa tão óbvia. Oh, esses adivinhos são espertos. Como sabes, diz-se que os versos sibilinos estão escritos em acróstico e que as primeiras letras de cada linha guardam sentidos ocultos. Bem, que palavra julgas tu que formam as primeiras letras destes versos concretos?

 

Eu comprimi os lábios.

 

Começa por Z?

 

Exactamente: L-Ê-N-T-U-L-O. Naturalmente não foram eles que apontaram esse pormenor a Lêntulo, deixaram-no descobrir sozinho. Agora, ele está convencido de foi destinado pelos deuses para governar Roma.

 

É louco disse eu. Já estou a ver o que entendes por ilusões. Ainda assim, um homem como ele, tendo subido tão alto, caído tão baixo, e tendo voltado a subir... deve achar que a Fortuna lhe reserva algum papel especial. Estendi as pernas sobre a relva e ergui os olhos para as folhas das árvores onde o sol incidia. Quer dizer que Lêntulo é a ”perna” onde Catilina se apoia?

 

Eco estremeceu.

 

É a perna principal mas, tal como acontece com muitos corpos, há duas pernas. A outra não é tão forte como esta.

 

”Por que coxeia a conspiração de Catilina?” Por favor, chega de enigmas acerca de partes do corpo!

 

Apesar disso, a segunda perna é outro senador do clã dos Cornélios, Gaio Cornélio Cetego.

 

Não tem alcunha?

 

Ainda não. Talvez seja demasiadamente jovem. Se tivesse, podia ser Cabeça Quente.

 

Dizes que é jovem, mas se pertence ao Senado tem de ter pelo menos trinta e dois anos.

 

Não tem mais do que isso. Tal como Catilina e Lêntulo, é um patrício, com todo o aparato correspondente. Os homens que são educados desde cedo a considerar-se muito importantes tornam-se diferentes dos outros.

 

Sim, isso é verdade disse eu, pensando na facilidade com que Catilina assumia o seu porte e a sua segurança, e na intensidade com que Homens Novos e ambiciosos como Cícero invejariam e desprezariam aquela presunção natural e simples de superioridade.

 

Tal como Lêntulo, Cetego pertence ao clã Cornélio, dispondo de poderosas relações, que derivam do sangue e de obrigações antigas. Mas não tem a longa e sofredora perseverança de Lêntulo; é jovem, impetuoso, impaciente e tem fama de ser violento. Não é muito eficaz no Senado, não é grande orador... anseia por actos e as palavras deixam-no insatisfeito. Além disso, teve um conflito familiar; tem um irmão mais velho que também pertence ao Senado e com quem ele quase não fala. Segundo se diz, tiveram uma disputa enorme por causa de uma herança. Cetego acha que foi desrespeitado, não apenas pela sua família, mas pelas Parcas.

 

O candidato ideal à revolução. Parece perfeitamente razoável, ainda que pouco simpático.

 

Apesar disso, lança os seus encantos sobre aqueles que são susceptíveis. Apela a jovens bem-nascidos como ele próprio, que desconfiam da retórica e odeiam o passo lento da política, a quem os Optimates impediram o progresso e que não têm dinheiro para se lançar em carreiras bem sucedidas, mas nem por isso deixam de ter a ambição do poder.

 

Eu peguei num galho e espetei-o no chão.

 

São esses os principais conspiradores?

 

Sim. Lêntulo por causa da sua perseverança, Cetego por causa da sua energia e da sua ousadia.

 

Dizes que eles são as pernas observei eu traçando duas linhas no chão. E Catilina é a cabeça. Desenhei um círculo. Mas, entre as pernas e a cabeça tem de haver um tronco. Já para não falar de braços, de mãos e de pés.

 

Pensei que estavas farto de metáforas corporais. Eu encolhi os ombros.

 

E eu pensei que não queria saber nada disto, mas ainda não parei de te fazer perguntas.

 

Muito bem. O tronco será o povo de Roma, claro. Se Catilina o conseguir convencer a segui-lo, se Lêntulo e Cetego conseguirem levar a conspiração para diante, então o corpo será muito poderoso. Quanto aos braços e às mãos, há uma série de homens em contacto regular com Catilina e com os seus amigos... senadores, cavaleiros, homens que já foram ricos mas que já não o são, homens que são ricos mas que querem ser ainda mais, bem como cidadãos comuns e libertos. Alguns deles parece sentirem-se atraídos pela simples excitação e pelo perigo do empreendimento, outros parecem pessoalmente fascinados por Catilina. Suspeito de que há mesmo alguns idealistas generosos, que pensam que vão mudar o mundo.

 

Eco, estás tão cínico como o teu velho pai. Talvez eles mudem o mundo, embora não possamos dizer se será para pior ou para melhor. Nomes, Eco!

 

Ele recitou uma longa lista. Eu conhecia alguns nomes, outros não.

 

Mas deves conhecer os nomes de Públio e de Sérvio Sula disse ele.

 

Os netos do ditador?

 

Esses mesmos.

 

”Como caem os poderosos” disse eu, citando uma das máximas orientais de Betesda. A não ser que caiam de pé.

 

A conexão dos Sula tem raízes profundas. Alguns dos mais fervorosos seguidores de Catilina são antigos soldados do ditador, que foram instalados em colónias agrícolas no Norte. Muitos deles passam tempos difíceis; irritam-se com o arado, por assim dizer, recordando-se dos bons velhos tempos das campanhas no Oriente ao lado do seu senhor, e da guerra civil em Roma. Antigamente, tinham o mundo inteiro aos seus pés; agora encontram-se metidos em lama e esterco até aos joelhos. Acham que Roma lhes deve mais do que aquilo que receberam. Agora que o seu actual campeão, Catilina, perdeu a aposta de se tornar cônsul, não uma, mas duas vezes, poderão estar prontos para pegar em armas a fim de conseguirem o que desejam. Desenterram as velhas armaduras de baixo dos arados, dão lustro às couraças e às caneleiras, afiam as espadas, aplicam novas pontas às lanças.

 

Mas esses veteranos idosos conseguirão realmente encenar uma revolução através das armas? Imagino que essas couraças estarão a ficar ferrugentas, e talvez mesmo apertadas na cintura. Sula poderá ter sido o comandante do melhor exército do mundo, mas os soldados devem estar um pouco grisalhos e moles.

 

São militarmente chefiados por um velho centurião chamado Gaio Mânlio, com quem Catilina vai constantemente conferenciar a Faesulae. Há muitos anos que ele representa os interesses dos veteranos e actualmente é o seu chefe. Foi Mânlio quem dirigiu os veteranos quando eles vieram a Roma no dia das eleições votar em Catilina, e foi Mânlio quem os impediu de recorrer à violência quando Catilina perdeu. Um banho de sangue a seguir às eleições teria sido prematuro; Mânlio manteve a disciplina nas fileiras. Tem o cabelo cor da neve, mas diz-se que é extraordinariamente saudável, com ombros de touro e braços capazes de vergar uma barra de aço. Tem andado a exercitar os veteranos e a armazenar armas em segredo.

 

Mânlio está realmente disposto a conduzir um exército?

 

Os conspiradores de Roma acham que sim, embora isso talvez seja outra das suas ilusões, nascida do desespero.

 

Talvez tenham razão. Antigamente, Sula tinha de facto um exército invencível. Eles combatiam pela glória e pelas pilhagens quando eram jovens; agora irão combater pela sua fortuna e pela sua família. Quem mais apoia Catilina?

 

Algumas mulheres, claro.

 

Mulheres?

 

Um certo grupo de Roma sobretudo mulheres bem-nascidas com apetite para as intrigas. Os seus inimigos acham que Catilina não passa de um proxeneta dessas mulheres, pondo-as em contacto com os seus jovens amigos em troca de jóias que possa vender ou de segredos acerca dos respectivos maridos. Mas eu suspeito de que muitas dessas mulheres ricas, educadas, requintadamente entediadas têm tantas ânsias de poder como os homens e sabem que nunca poderão tê-lo no curso normal dos acontecimentos. Quem sabe que género de promessas lhes fará Catilina?

 

Políticos sem futuro, soldados sem exército, mulheres sem poder disse eu. Quem mais apoia Catilina?

 

Eco hesitou.

 

Tenho ouvido sugestões e rumores, indicações vagas de que poderá haver homens bem mais importantes do que Lêntulo e Cetego envolvidos nisto, homens consideravelmente mais poderosos do que o próprio Catilina.

 

Referes-te a Crasso?

 

Sim.

 

E a César?

 

Sim. Mas, como te disse, não tenho qualquer prova de que estejam directamente envolvidos. Contudo, os conspiradores tomam como certo que ambos apoiarão aquilo que Catilina decidir fazer.

 

Eu abanei a cabeça.

 

Acredita em mim, Crasso seria o último homem a beneficiar com uma revolução armada. Talvez César, mas apenas se ela servisse os seus fins específicos. Apesar disso, se eles estiverem implicados, ou até se apenas tiverem apoiado tacitamente Catilina...

 

Já vês como se altera a escala dos acontecimentos.

 

Sim. É como uma mudança de perspectiva uma colina baixa coberta de flores brancas transforma-se à distância numa montanha coberta de neve. Não é de estranhar que Cícero se sinta nervoso e espalhe espiões por toda a cidade.

 

Cícero sabe tudo o que se passa na cidade, mesmo tudo. dizem que o cônsul nunca é apanhado de surpresa, quer a crise seja um tumulto no teatro ou um labéu contra ele no mercado de peixe. Ele tem uma paixão por informações.

 

Ou uma obsessão. E a marca distintiva do Homem Novo... os nobres não precisam de estar constantemente vigilantes para se sentirem seguros da sua posição. E pensar que ele começou comigo, quando eu investiguei o caso de Sexto Róscio para um jovem advogado em ascensão com um nome esquisito. Suponho que fui o primeiro agente da rede de Cícero. E agora és tu disse eu sardonicamente. Quem são os outros?

 

Cícero é demasiadamente inteligente, como mestre de espiões, para permitir que os seus agentes se conheçam uns aos outros. Marco Célio é o único acerca de quem tenho a certeza, porque é a ele que transmito aquilo que sei...

 

Se é que podemos ter certezas relativamente a Marco Célio.

 

Acho que podemos, a não ser que ele seja ainda mais esperto do que Catilina e Cícero juntos. Mas, para isso, Célio teria de ser um deus com forma humana, que veio à terra espalhar a devastação entre nós, os mortais.

 

Nesta altura, nem isso me surpreenderia. Tudo isto me cheira mal. Prefiro de longe um bom e honesto assassínio.

 

São os tempos em que vivemos, Papá.

 

Por falar em tempos, a crise é iminente?

 

É difícil dizer. Tal como uma panela ao lume, está em ebulição. Catilina é cauteloso. Cícero aguarda a sua hora, esperando que os seus inimigos cometam algum deslize que lhe proporcione provas irrefutáveis contra eles. Entretanto, Marco Célio diz que tu concordaste em acolher novamente Catilina aqui na quinta, se ele assim desejar.

 

Não concordei nada.

 

Disseste que não a Cícero quando ele foi ver-te, na cidade?

 

Dei-lhe a entender disse eu.

 

Para Cícero, tudo o que não seja um ”não” declarado é ”sim”, e mesmo um ”não” significa ”talvez”. Ele deve ter compreendido mal. Célio parecia seguro de que tu concordaras em manter as coisas como antes. Papá, faz o que Cícero te pede. Catilina poderá não voltar. Ou talvez volte, e nesse caso apenas terás de lhe dar abrigo. É um pedido tão simples. Nem sequer te obriga a tomar partido. Eu pus-me do lado de Cícero, Papá, e tu devias fazer a mesma coisa, ainda que seja com a tua assistência passiva. Acabará por ser para bem de todos aqueles que amamos.

 

Estou surpreendido contigo, Eco, por me aconselhares a pôr em perigo todos os que habitam esta quinta só porque isso pode ser melhor para eles a longo prazo.

 

O futuro já está decidido. Tu próprio o disseste, Papá: não podes evitar completamente o perigo, tal como não podes desistir da tua procura da verdade.

 

E a minha procura da justiça? Onde é que isso vai parar, no meio de toda esta confusão? Como a reconhecerei, se a encontrar?

 

Ele não tinha resposta para isto, ou pelo menos não teve oportunidade de a dar, porque nesse momento um visitante estranhamente alterado transpôs a passos largos o alto da colina. Ambos olhámos à volta e recuámos surpreendidos.

 

Em nome de Hércules! disse eu, enquanto Eco lançava a cabeça para trás e desatava a rir.

 

Diana descia a encosta arrelvada com um passo tão pomposo como a habitual postura de Cícero, com o queixo erguido. A sua altivez era ocasionalmente posta em causa por um pequeno tropeço, dado que as sandálias que trazia calçadas eram demasiadamente grandes para os seus pezinhos. Vinha envolvida numa coberta fina que se arrastava sobre a relva atrás de si, dobrada e traçada como se fosse uma toga.

 

É   o dia dos meus anos! anunciou ela. É a minha vez de vestir uma toga e dar um passeio.

 

O dia dos teus anos é só amanhã disse eu. Quanto à toga bem, ainda estás muito longe dos dezasseis anos. Além disso.

 

Fui salvo da necessidade de lhe dar uma lição sobre os duros factos da vida dos homens e das mulheres pelo aparecimento de Meto na crista da colina; ele encaminhou-se rapidamente para a irmã, com um ar ameaçador.

 

As minhas sandálias, minha harpiazinha! gritou. Agarrou-a pelos ombros, ergueu-a no ar e obrigou-a a largar as sandálias, e depois voltou a pousá-la. Não lhe bateu nem a beliscou, mas agarrou-a com força. Quando pousou os pés nus na relva, Diana começou a chorar.

 

Meto não lhe prestou atenção e calçou as sandálias. Depois lançou-me um olhar carregado, virou costas e desapareceu por cima da crista da colina.

 

A toga improvisada desenrolou-se e caiu ao chão. Agora de túnica vestida, Diana cerrou os punhos e começou a chorar, guinchando de tal maneira que eu tive de tapar os ouvidos. Eco pôs-se imediatamente de pé e correu a consolá-la.

 

Realmente, não havia justiça neste mundo!

 

Se calhar foi um erro excluir Meto das minhas conversas com Eco; por outro lado, o seu comportamento infantil com Diana parecia contradizer a sua própria insistência em que era tão adulto como o irmão. Eu cismei sobre isto durante o resto do dia, enquanto Meto cismava no facto de ter sido tratado com pouco respeito. Eco cismou no aparecimento de Fórfex e na teimosia do seu pai; Menénia cismava na inquietação do seu marido. Betesda cismava na atmosfera geral de infelicidade que pairava sobre a quinta. Ironicamente, quando parou de chorar, Diana recuperou imediatamente o bom humor. O desconforto geral parecia confundi-la, mas não esfriou o seu estado de espírito.

 

O aniversário de Diana passou sem dissabores aparentes. Côngrio excedeu-se uma vez mais. Se os nossos espíritos estavam insatisfeitos, os nossos estômagos não tiveram razão de queixa. Menénia fora às compras nos mercados de Roma e Diana foi inundada de prendinhas uma fita azul para o cabelo, um pente de madeira, um lenço azul e amarelo igual ao que Betesda comprara para Menénia no dia da toga de Meto, e que Diana cobiçara. Como que para expulsar a nossa ansiedade, concentrámos todas as atenções em Diana, que aceitou esta efusão de afectos como se fosse nada menos do que aquilo que lhe era devido pelo feito de completar sete anos.

 

No dia seguinte, Eco regressou a Roma.

 

Os poucos dias que faltavam para o fim do mês de Sextilis passaram rapidamente. Num piscar de olhos, íamos a meio de Setembro. Era a época mais atarefada na quinta, da atenção às colheitas e dos preparativos para a ceifa. Os dias eram mais compridos, o que nos dava mais tempo para levar a cabo as intermináveis reparações e os melhoramentos que se tinham acumulado durante o Inverno e que tinham sido adiados durante a Primavera o Verão. Todos os dias havia mais trabalho do que aquele que era possível fazer até ao pôr do Sol. Eu já não passava o meu tempo na cumeeira ou na biblioteca; antes mergulhara totalmente na condução da quinta. Em vez de me sentir sobrecarregado por este trabalho contínuo, sentia-me liberto por ele. Confrontado com os mistérios de Nemo e de Fórfex e sentindo-me incapaz de os resolver, inquieto com o envolvimento de Eco nas conspirações e contraconspirações que tinham lugar em Roma mas impossibilitado de decidir o seu destino, eu encontrava uma saída no simples cansaço físico de trabalhar todos os dias até ao limite das minhas forças e de cair à noite num sono sem sonhos. Os escravos parecia não saberem bem o que pensar de um senhor que se esgotava àquele ponto; imagino que Lúcio Cláudio nunca terá sequer apanhado uma única azeitona. Julgo que, exclusivamente pela minha energia, comecei finalmente a conquistar o respeito involuntário de Arato e, ao trabalhar ao seu lado dia após dia, vendo-o gerir as crises diárias e os escravos de que estava encarregado, comecei finalmente a confiar no seu discernimento e na sua lealdade.

 

Tentava delegar o máximo possível de responsabilidade em Meto, pensando poder assim mitigar as suas queixas de que era desrespeitado, mas todas as tarefas que lhe confiava acabavam por ficar a meio. Comecei a temer que ele estivesse a ficar entediado com a quinta, ou que tivesse decidido esquivar-se a qualquer tarefa que o seu pai lhe confiasse por simples despeito. Quanto mais eu tentava incluí-lo na gestão da propriedade, mais parecia cavar-se o fosso que nos separava. Ele estava a tornar-se cada vez mais imprescrutável para mim.

 

Em compensação, as minhas relações com Betesda entraram numa fase deliciosamente suave. Ela sempre adorara o calor porque ele lhe recordava a sua juventude em Alexandria e, enquanto o longo Verão se prolongava para Setembro, ela ia-se tornando cada vez mais a Betesda essencial e sensual que eu conhecia. Decidiu tirar os alfinetes e os pentes do cabelo e usá-lo solto, em longas tranças que lhe caíam em cascata sobre os ombros e pelas costas. Havia mais prata entre o negro do que em Verões anteriores, mas para mim esses fios de prata eram como a face ondulada da Lua reflectida em águas negras. O meu próprio físico recentemente descoberto parecia agradar-lhe; ela gostava do cheiro do suor no meu corpo, e da dureza dos meus braços depois de um dia de trabalho árduo. Muitas vezes, quando eu me deitava julgando estar completamente extenuado, ela provava-me que ainda restava alguma força no meu corpo. Fazia apelo a ela e arrancava-ma, deixando-me flácido e coberto de um novo brilho de suor, livre de todas as ansiedades e sem apetites, imóvel e com o espírito vazio, totalmente à mercê de Morfeu.

 

O ribeiro continuava a diminuir e a água do poço ainda estava impura, mas Arato exprimiu a opinião de que tínhamos que chegasse até as chuvas começarem a cair; como chefe da família, fui aconselhado a pedir aos deuses que nos não enviassem um Outono seco. Quanto à escassez de feno, pedi a Cláudia que me vendesse algum; infelizmente, ela disse que não tinha o suficiente. Pedir ajuda a outro Cláudio estava evidentemente fora de questão. Os restantes agricultores da região ainda não estavam dispostos a vender o que tinham armazenado, pois não tinham a certeza de vir a ter excedentes e preferiam esperar até a necessidade ser mais premente, altura em que poderiam conseguir melhores preços. Eu teria de resolver esse problema quando chegasse o momento; esperava vir a ter dinheiro disponível para comprar a quantidade necessária, pois de contrário teria de ver o gado perecer ou confrontar-me com um abate prematuro.

 

Embora, por comparação com estes problemas, essa fosse uma dificuldade menor, continuava frustrado com o moinho de água. Arato não divisava solução. Cheguei a pedir ajuda a Meto, mas talvez ele tenha detectado o cepticismo contido na minha voz, pois manifestou um enorme desinteresse. O fracasso do moinho não me teria incomodado tanto se eu não tivesse dedicado essa tarefa à memória de Lúcio Cláudio. O facto de ter revelado os meus planos ao meu vizinho do outro lado do ribeiro, Públío Cláudio, e de o ter mesmo convidado a partilhar a sua utilização, também não ajudou. Irritava-me pensar que aquele depravado se ria presunçosamente do meu fracasso, contando a história aos seus primos Mânio e Gneu.

 

Na manhã dos Idos de Setembro, fiz uma viagem à aldeia mais próxima. Estávamos a construir um muro de pedra novo num dos lados do estábulo, e eu precisava de contratar mais alguns trabalhadores para esse dia. Havia na aldeia um mercado onde poderia fazê-lo. Podia ter mandado Arato tratar do assunto mas, tendo em conta os acontecimentos desagradáveis que tinham tido lugar na quinta nesse Verão, queria ver pessoalmente de onde vinham os trabalhadores contratados e olhar para eles antes de os deixar entrar na minha propriedade.

 

Parti a cavalo com Arato de manhã cedo e voltei algumas horas depois, à frente de um grupo de seis homens a pé. Eram escravos, mas não vinham algemados; eram homens de confiança, que os seus senhores alugavam por uma certa quantia. Teria preferido usar libertos, mas o homem que geria o mercado de mão-de-obra da aldeia disse-me que ultimamente eles escasseavam. Em tempos difíceis, os libertos tendem a desistir da única coisa que possuem, vendendo a sua liberdade e regressando à escravatura para não morrerem de fome.

 

Quando saímos da Via Cássia, Arato colocou-se ao meu lado.

 

Temos visitas, Senhor disse ele.

 

Havia dois cavalos que não me pertenciam presos no exterior do estábulo, uma mancha preta e outra mancha branca recortadas na parede. Deixei os escravos ao cuidado de Arato e avancei. Meto ficara encarregado da quinta na minha ausência. Eu atribuíra-lhe expressamente essa responsabilidade, na esperança de que isso contribuísse para o restabelecimento do seu orgulho. Mas, quando me aproximei da casa, ele não estava à vista, nem apareceu quando eu o chamei. O escravo que estava de vigia desde a descoberta de Fórfex que eu mantinha vigilantes em permanência atravessou precipitadamente o telhado preto do estábulo e saltou para o chão.

 

Onde está Meto?

 

Lá em baixo ao pé do moinho, Senhor.

 

Os visitantes?

 

Também estão ao pé do moinho.

 

São só dois?

 

Ele acenou com a cabeça.

 

Eu pus o cavalo a galope, mas abrandei quando me aproximei do moinho. Desmontei e deixei o cavalo aproximar-se do leito do ribeiro, à procura de relva tenra e de alguma poça de água que conseguisse descobrir entre as pedras secas e a lama quebrada. Quando me aproximei, ouvi uma voz conhecida vinda do interior.

 

Então o problema deve ser este. Bem, é óbvio que estas duas rodas dentadas não foram feitas para se combinarem... seria como acasalar um burro e uma cabra.

 

Seguiu-se um riso bem-disposto de Meto, que se ria com um entusiasmo genuíno, como eu não lhe ouvia desde há vários dias, e de outra pessoa. Aproximei-me da entrada e avistei Tongílio encostado a uma parede, de braços cruzados. Tinha a túnica suja de pó e o cabelo despenteado por causa da cavalgada. Meto estava perto dele. Ambos observavam Catilina, que rastejava por entre as grandes rodas e os eixos de madeira. Quando eu entrei, olharam todos para mim.

 

Gordiano! disse Catilina. Que belo trabalho aqui fizeste! Foste tu que criaste este projecto?

 

Com a ajuda de Arato.

 

Espantoso! Já és conhecido pela tua esperteza; que ninguém diga que te falta ambição. Pensei que os engenheiros estavam todos ocupados a construir catapultas e torres de cerco para as legiões, ou a construir pontes e aquedutos para o Senado. Tens imenso talento. Quem foi o teu professor?

 

Os livros e o senso comum. Ter olhos e ouvidos também ajuda. Mas não é suficiente, receio bem. O moinho não funciona.

 

Ah, mas há-de funcionar. Tem apenas um pequeno defeito

 

Qual?

 

Vem cá ver, neste mastro. O problema é precisamente aqui.

 

O que queres dizer? Dei por mim irritado com a sua segurança, mas ao mesmo tempo tive um lampejo do que ele sabia do que estava a falar.

 

Devia partir daqui disse ele, apontando e ser exactamente perpendicular.

 

Mas isso implicava alterar tudo, mudando por completo a estrutura disse eu, mal querendo acreditar que a solução fosse tão fácil.

 

Nada disso. As duas rodas ficariam lado a lado em vez de estarem em ângulo recto. Tal como está agora, o mecanismo rebenta se der uma volta. Mas, com essa simples alteração...

 

Por Hércules! Tentei não parecer um tolo, boquiaberto com a simplicidade da solução. Ele tinha toda a razão, não havia dúvida alguma. Como é que eu não consegui ver uma coisa tão simples?

 

Catilina encolheu os ombros e colocou-me uma mão no ombro. Tinha o cabelo desgrenhado como o de Tongílio e estava corado da cavalgada. Parecia ter metade da idade que tinha, sentir-se feliz e seguro, e tudo menos um conspirador esquivo.

 

Criaste o moinho desde o zero, e tens a cabeça cheia da imensidade de decisões que tiveste de tomar ao fazer o projecto; entre tantas coisas, este pequeno pormenor que impede que ele funcione tornou-se invisível para ti. Pela minha parte, eu confrontei-me com o projecto no seu elegante acabamento, e para mim a única coisa que obstrói a sua perfeição é ofuscantemente óbvia. Estás a ver, Gordiano, por vezes uma perspectiva distanciada pode ser uma ajuda incomensurável. Não és o único que tem necessidade disso de vez em quando. A sua voz emprestou uma certa gravidade a estas palavras finais, e ele lançou-me um olhar carregado de significado, ao mesmo tempo que me apertava o ombro antes de tirar a mão.

 

Eu contemplei as engrenagens, tentando convencer-me a aceitar a simplicidade da solução de Catilina. A sua dedução seria tão simples e lógica como a sua explicação despretensiosa fazia parecer, ou ele era um génio? Como podia ele ter-se apercebido num momento de uma solução que há meses me deixava perplexo? Eu sentia-me simultaneamente irritado, impressionado, feliz e ainda hesitante.

 

Chegaram a cavalo disse eu distraído. Certamente que não vieram directamente de Roma, esta manhã?

 

Não, vimos do Norte disse Tongílio. Catilina estivera a conferenciar com o seu general Mânlio e com os veteranos de Sula em Faesulae, pensei eu.

 

O teu convite continua de pé, não é verdade? interpôs Catilina com um sorriso. Marco Célio levou-me a pensar que sim.

 

Eu inspirei profundamente e fingi examinar novamente as engrenagens para ter uma desculpa para a falta de sinceridade do meu tom de voz.

 

Sim. Claro.

 

Óptimo. Ficarias surpreendido, ou talvez não, se soubesses quantos amigos e colegas meus deixaram subitamente de ter lugar para mim sob o seu tecto, depois do meu recente desastre eleitoral. Mas também surgiram novos amigos, para compensar.

 

Catilina e Tongílio retiraram-se para dentro de casa, para descansarem e mudarem de roupa. Eu estava demasiadamente excitado com a perspectiva de completar finalmente o meu moinho para poder segui-los. Em vez de os mandar construir um muro novo para o estábulo, ordenei aos trabalhadores contratados que fossem realinhar as engrenagens. Trabalhámos até à noite. Betesda mandou Diana chamar-me para o jantar, mas eu disse-lhe que em vez disso me mandasse pão e queijo.

 

Finalmente, a nova disposição das engrenagens ficou terminada. Na ausência da corrente do ribeiro, os escravos empurraram a roda com as pás. Dentro do moinho, o mecanismo estremeceu e começou a girar. Os mastros rodaram; os dentes encaixaram e engrenaram; a roda de moagem deu uma volta, depois outra, e mais outra, sem contratempos.

 

Seriam ainda necessários pequenos ajustamentos, seria preciso completar a caixa da engrenagem e a sua utilização propriamente dita viria certamente a sugerir melhoramentos, mas o moinho era um êxito.

 

Este momento deu-me um sentimento de realização mais profundo do que eu poderia ter previsto. Arato exibia um sorriso que eu nunca vira no seu rosto. Até Meto abandonou o seu amuo e pareceu partilhar a minha excitação. Catilina devia estar ali comigo. Olhei para a casa, para as janelas escurecidas, e voltei a maravilhar-me com a simplicidade do seu génio.

 

Embora o dia tivesse sido quente e cansativo, a noite foi agradável. Eu estava coberto de pó, de suor e de fuligem. Era tarde mas a pressão da excitação parecia ter espantado o sono. Enquanto passava mais uns momentos a contemplar encantado o moinho de água, mandei dizer aos escravos da casa que me preparassem um banho quente. Dada a escassez de água, era uma extravagância considerável há muitos dias que todos nos remediávamos com esponjas e cerdas. Mas eu merecia uma recompensa, pensei.

 

Meto declarou que estava demasiado exausto para partilhar o banho comigo; preferiu lavar-se com uma esponja numa bacia de água e ir directamente para a cama. Quando abri a porta dos banhos, uma onda de vapor quente cercou-me o corpo nu, engolindo-me. A lamparina ardia muito baixa. Eu quase não conseguia ver a banheira, mas localizei-a seguindo o som do suave gorgolejar da água. Trepei por cima da borda e deslizei delicadamente para dentro da água quente, assobiando quando ela me beliscou o escroto. Acomodei-me lentamente dentro da piscina até a água me chegar ao pescoço. Expirei longamente e senti os músculos derreter.

 

Quando estendi as pernas, toquei noutra perna dentro de água. Tive um sobressalto, mas pequeno. Não fiquei grandemente surpreendido ao encontrar Catilina já dentro de água.

 

Estávamos sentados em cantos opostos da banheira, de frente um para o outro. As nossas barrigas das pernas estavam em contacto, mas eu não me incomodei a afastar-me. Estava demasiado cansado para me mexer, pensei. Por entre os véus de nevoeiro, vi Catilina sorrir. Ele ergueu uma taça de vinho e bebeu um golo.

 

Espero que não te importes de me encontrar aqui. Dentro do teu banho, quero eu dizer.

 

Fraco anfitrião seria eu se negasse a um convidado esse prazer. Além disso, pensei, Catilina merecia partilhar este pequeno presente que eu oferecera a mim próprio, já que sem ele eu nada teria que celebrar ou que me obrigasse a ficar acordado até tão tarde.

 

Ouvi os escravos transmitirem a ordem de carregar a fornalha e não resisti. Ultimamente, tenho andado tanto a cavalo, que as minhas nádegas se transformaram em pedra. Ele gemeu e dobrou-se debaixo de água. O movimento fez com que a sua perna batesse na minha.

 

Onde está Tongílio?

 

Já está deitado e a dormir como um bebé. O teu moinho já funciona? disse ele.

 

Sim. Foi glorioso! Devias ter assistido.

 

O triunfo era teu, Gordiano, não era meu. Deves estar muito orgulhoso do teu feito.

 

Foi maravilhoso quando pusemos as rodas em movimento e a coisa começou a mexer-se, como uma criatura chamada à vida. Ter-te-ia mandado chamar, mas pensei que já devias estar a dormir.

 

Disso não tenhas receio. Ultimamente, deixei por completo de dormir. Não tenho tempo.

 

Quer dizer que continuas ocupado? disse eu, e depois percebi as implicações do que dissera um homem que acabou de perder uma corrida para o poder costuma ter muito tempo para si.

 

Nunca estive tão ocupado na minha vida. Estou quase tão ocupado como estaria se tivesse ganho as eleições, julgo eu. Duvido de que mais algum homem nesta República tenha um calendário tão febril como o meu.

 

Oh, há pelo menos mais um disse eu.

 

O cônsul. Sim, mas Cícero pode dar-se ao luxo de fechar ocasionalmente os olhos. Tem muitos olhos e ouvidos substitutos espalhados por Roma, que vigiam por ele enquanto ele dorme.

 

Por um longo momento, eu examinei cuidadosamente o rosto de Catilina do outro lado do nevoeiro, mas decidi que não havia nenhum sentido oculto na sua referência aos espiões de Cícero. Era indubitavelmente um tema que Catilina teria no espírito independentemente da pessoa com quem estivesse a conversar. O círculo daqueles em quem podia confiar era cada vez mais restrito.

 

A água libertou-me os músculos. Senti que o meu espírito também se descontraía.

 

Vieram do Norte? disse eu.

 

De Faesulae e de Arretium.

 

E vão para Roma?

 

Amanhã.

 

Por momentos, ficou em silêncio. A água arrefeceu um pouco. Eu bati na parede. Apareceu um escravo. Eu disse-lhe que juntasse mais lenha ao fogo e que nos trouxesse outra taça de vinho misturado com água.

 

Deves ser muito feliz aqui, Gordiano disse Catilina. O seu tom de voz era distanciado, era o tom de um homem que partilha um banho com outro ao fim de um longo dia e que tenta fazer conversa.

 

Bastante.

 

Eu nunca me dediquei à gestão diária de uma quinta. Antigamente, tinha algumas propriedades fora de Roma, mas vendi-as.

 

Não é propriamente o sonho bucólico que os poetas sentimentais gostam de imaginar.

 

Ele riu suavemente.

 

Suponho que a realidade seja um pouco mais dura.

 

Sim. Há problemas... problemas pequenos, problemas grandes, sempre mais do que aqueles que conseguimos fechar na caixa de Pandora, por muito que trabalhemos.

 

Imagino que gerir uma quinta não seja muito diferente de gerir uma república. Havia na sua voz um matiz, simultaneamente, de desejo e de amargura.

 

É tudo uma questão de escala disse eu. Claro que alguns problemas são provavelmente os mesmos para todos os homens... saber se poderá confiar num escravo, tentar aplacar uma esposa exigente... estarei a ver-te sorrir, Catilina? Tentar tomar as melhores decisões relativamente a um filho que pensa que é um homem mas ainda é um rapaz...

 

Ah, Meto. Quer dizer que estás a ter problemas com ele?

 

Desde que vestiu a sua toga da masculinidade, parece que não conseguimos entender-nos. Ele intriga-me. Para ser sincero, o meu comportamento com ele também me deixa perplexo. Digo a mim próprio que ele está numa idade complicada, mas pergunto-me se o problema não será antes a minha idade.

 

Catilina riu-se.

 

Que idade tens tu?

 

Quarenta e sete.

 

Eu tenho quarenta e cinco. É uma idade bastante complicada! Quem somos, onde estivemos, para onde vamos... e será demasiado tarde para mudar de destino? De uma forma geral, acho que é mais difícil ter quarenta e cinco anos do que ter dezasseis, quanto mais não seja porque vemos com muito mais clareza todas as possibilidades que estão para sempre fora do nosso alcance. Temos idade suficiente para nos termos cansado da nossa inteligência e das nossas capacidades, idade suficiente para as paixões da nossa juventude estarem rançosas. Idade suficiente para termos visto a beleza desaparecer, enquanto a morte chamou mais conhecidos nossos do que aqueles que ainda estão vivos. Apesar disso, continuamos a viver. Certas ambições e apetites diminuem, mas há outros que tomam o seu lugar. Entretanto, as actividades mesquinhas da vida prosseguem... comemos, bebemos, copulamos; confrontamo-nos com a natureza litigiosa de pais, de esposas, de filhos. Não sei que problemas tens com Meto, mas acho que tens muita sorte em o ter. O meu filho desapareceu e quem me dera, especialmente nesta altura... Não concluiu o pensamento.

 

Por momentos, ficámos ambos em silêncio. Eu sentia-me derreter por causa do calor da água, ao mesmo tempo que assumia um papel familiar. Catilina mudara desde a última visita; nessa altura, controlava cuidadosamente tudo o que se passava entre nós. Ele era um homem que tinha necessidade de falar e eu era um ouvinte, como já fora tantas outras vezes, o saco onde ele podia depositar a matéria-prima do que quer que o sobrecarregasse a amargura, o remorso, a frustração, o medo. Há em mim qualquer coisa que atrai a verdade; esta maldição, ou será um dom?, foi-me transmitida pelo meu pai, a quem foi concedida pelos deuses. Cícero podia dizer que Catilina usava esse dom contra mim, fazendo-me seu confidente para obter os seus próprios fins. Havia uma parte de mim que também se mostrava céptica.

 

Mas não havia ponta de dissimulação no suspiro que atravessou os lábios de Catilina.

 

Estavas em Roma no dia das eleições? perguntou ele em voz baixa.

 

Estava. Estávamos todos, para celebrar a maturidade de Meto.

 

Ah, sim. Lembro-me de Célio me dizer que o rapaz fazia dezasseis anos.

 

Ele votou pela primeira vez.

 

Em mim, espero.

 

Na verdade, sim. Mas a nossa centúria foi para Silano. Catilina acenou gravemente. Não me perguntou em quem eu tinha votado,   presumo que tomando o meu apoio como certo. E se me tivesse perguntado? Em Nemo, teria eu dito. Em Ninguém. Num cadáver sem cabeça enterrado numa campa escondida perto daqui. Por momentos, pensei na possibilidade de o confrontar com os enigmas de Nemo e de Fórfex. Tentei imaginar como terminaria esse confronto. Se ele era o responsável, nunca o admitiria, por muito auto-revelador que fosse o seu estado de espírito. Se nada sabia acerca do assunto e se eu atribuísse a responsabilidade a Célio, seguir-se-ia com certeza um confronto entre ambos e Célio ficaria comprometido. E eu não podia propriamente expressar as minhas suspeitas de Cícero sem revelar o meu papel como seu instrumento e, por extensão, pôr Eco em perigo.

 

Tive tempo de percorrer este árido círculo mental mais do que uma vez antes de Catilina voltar a falar.

 

Nunca és assaltado por dúvidas, Gordiano? Ah, vejo a tua expressão, ainda que com dificuldade. Graças aos deuses por este vapor... é duro contemplar o rosto nu da dúvida!... Ele beberricou o seu vinho. Achas que é apenas a proximidade das nossas idades, a coincidência de termos nascido com poucos anos de diferença um do outro, que nos proporciona este entendimento mútuo? Que mais temos nós em comum? Eu sou um patrício, tu és um plebeu; eu adoro a cidade, enquanto tu a trocaste por uma quinta; eu acho que os apetites devem ser todos explorados e tu pareces ser um homem de grande contenção. Eu sou ousado e temerário na minha actuação política, mas suspeito que tu voltarias por completo as costas à política se pudesses. Contudo, odeias o poder vigente em Roma tanto como eu pelo menos foi o que Marco Célio me disse e, embora não estejas disposto a fazer mais do que isso, sinto-me grato por ao menos me proporcionares refúgio quando eu mais preciso. Célio também chamou a minha atenção para o teu filho Eco. Um homem valioso, tão competente como o pai, dizem alguns. Tanto Célio como Eco me recomendaram que não te sobrecarregasse excessivamente com os meus planos, por isso não o farei. Já é contributo bastante permitires-me estar aqui sentado nesta noite de Setembro, partilhando comigo o teu vinho e o teu banho e ouvindo um candidato fracassado divagar acerca dos seus infortúnios. Não te importas de voltar a chamar o teu escravo? Gostava que ele me servisse mais um pouco de vinho.

 

Percebi então que a taça de onde ele bebia quando eu me juntei a ele não era a primeira: não era de espantar que a língua se lhe tivesse soltado e a sua vigilância abrandado. Chamei o escravo, que trouxe mais vinho.

 

Queres que o mande aquecer a água? perguntei.

 

Já está mais do que suficientemente quente, não achas? Estou quase cozido. Com isso, Catilina ergueu-se e sentou-se na borda da banheira, inclinando-se para trás, contra a parede. A sua pele emitia vapor. Fios de água reflectiam o brilho âmbar da lamparina, fazendo brilhar os pêlos do seu peito largo. Talvez seja altura de tomar o banho frio.

 

Hoje não há banho frio.

 

O quê? Um banho quente sem um banho frio a seguir? É como fazer amor sem o clímax.”

 

Podes atribuir o coito interrompido a um pequeno problema com o meu poço.

 

Catilina ergueu uma sobrancelha. Eu estudei-lhe o rosto, à procura de um sinal de que ele compreendia, mas não detectei nenhum.

 

Até chegarem as chuvas do Outono, estamos com falta de água na quinta. O poço foi poluído o mês passado.

 

Poluído?

 

Eu hesitei, mas apenas por um instante. Dado que o assunto tinha sido abordado, por que não mencionar Fórfex para ver como Catilina reagia?

 

Descobrimos um corpo no fundo do poço.

 

Que horror! Presumo que repreendeste o teu encarregado. O que era, uma cabra?

 

Não se tratava do corpo de um animal.

 

Ele inclinou a cabeça, fez uma careta de fadiga e pestanejou diversas vezes. O vinho fizera-lhe abrandar temporariamente a perspicácia, mas também exagerara as suas expressões; era difícil dizer se estava ou não a representar.

 

O que queres dizer? perguntou.

 

Quero dizer que o que encontrámos no poço foi um homem.

 

O quê, um dos teus escravos caiu?

 

Não foi um dos meus escravos. Foi o escravo de um vizinho. Tu conhecia-lo.

 

Duvido.

 

Não duvides. Sei que o conhecias porque vi. Era Fórfex. Ele uniu as sobrancelhas.

 

Não reconheço o nome.

 

Não te lembras? era o cabreiro do meu vizinho. Aquele que nos foi mostrar a mina abandonada.

 

Oh, sim! Claro, Fórfex. Mas estava morto, dizes tu. Caiu ao teu poço. Dizes que o poluiu...

 

Só foi descoberto alguns dias depois.

 

Não gostaria de tê-lo visto quando o içaram.

 

Eu acenei com a cabeça.

 

O corpo estava muito inchado e degradado.

 

Mas conseguiste reconhecê-lo, apesar disso?

 

Apesar disso? Olhei para ele cuidadosamente. Saberia que o corpo não tinha cabeça?

 

Da degradação. Já tenho visto o que acontece aos cadáveres que são abandonados na Natureza, especialmente dentro de água.

 

Ainda assim, conseguimos descobrir a sua identidade.

 

Mas afinal o que é que ele estava a fazer na tua quinta?

 

Não sabemos bem.

 

É um tipo desagradável, esse teu vizinho. Devia manter os seus escravos dentro da sua propriedade.

 

Seria mais fácil convencer Gneu Cláudio disso, se tu próprio não tivesses invadido a sua propriedade.

 

É verdade, acho que sim disse Catilina com uma gargalhada tão genuína, que eu tive dificuldade em acreditar que ele estivesse a esconder-me alguma coisa. E levei-te comigo, não foi? Ele voltou a deslizar para dentro da água quente com um silvo e fechou os olhos. Deixou-se estar calado durante tanto tempo, que eu quase pensei que tinha adormecido. Depois, abrindo os olhos, anunciou: Está quente de mais! Mas não há banho frio a seguir meditou. Já estás farto, Gordiano?

 

Acho que sim. Se ficar mais tempo aqui metido, amanhã Côngrio poderá servir-me numa travessa com uma maçã na boca.

 

Bem, então vamos arrefecer lá para fora sugeriu Catilina.

 

Pensei em secar-me...

 

Que disparate! Está uma noite linda. Na extremidade do horizonte onde o Sol se pôs, o deus dos ventos ocidentais quentes agita-se durante o sono, sonhando com a Primavera; ele suspira e as ervas oscilam. Vamos dar um passeio e deixar que Zéfiro nos seque com o seu bafo quente. Levantou-se e saiu da banheira. Anda comigo, Gordiano.

 

O quê, sem nos vestirmos? Sem sequer nos secarmos?

 

Oh, calçamos as sandálias. Olha, eu já me calcei. E vou levar estas toalhas, para o caso de precisarmos de qualquer coisa para nos sentarmos.

 

Eu saí da banheira. Com o dedo grande do pé, Catilina empurrou as minhas sandálias na direcção dos meus pés. Eu calcei-me, inclinei-me e prendi as tiras.

 

A entrada está às escuras disse ele, abrindo a porta mas acho que me lembro do caminho. Avançou em direcção ao átrio. Despido e molhado, com a pele quente por causa do banho, eu segui atrás dele.

 

A Lua estava brilhante e cheia, como uma lamparina colocada no alto do átrio. A sua luz branca lançava reflexos sobre o tanque e iluminava as colunas de um dos lados, provocando sombras rígidas por trás delas. Pensando que tínhamos chegado ao nosso destino, parei e olhei para baixo, para o meu reflexo nu na água escura. O tanque estava de tal maneira imóvel, que se conseguiam ver as estrelas nele reflectidas. Igualmente reflectida vi a minha expressão divertida que teve abruptamente um sobressalto com o chiar da porta da frente a abrir-se.

 

Catilina! disse eu. Mas ele já tinha saído. Apenas consegui ver o seu braço nu fazendo-me sinal.

 

Absurdo murmurei, mas segui-o.

 

Lá fora, tal como Catilina dissera, um suave zéfiro fazia bulir o vale. O vento era quente e seco, como uma carícia contra a minha carne nua. À minha frente, vi Catilina com o seu corpo brilhante, pálido e lustroso como mármore ao luar. Nuvens de vapor erguiam-se da sua pele molhada e quente, de maneira que ele parecia caminhar no meio de uma névoa, deixando farrapos de vapor no rasto dos seus ombros largos e das suas pernas musculosas. Olhei para baixo e vi que o meu corpo emitia a mesma névoa quente. Ali perto, as vacas mugiram no redil e um cordeiro baliu sonolento.

 

Catilina, onde vais? murmurei eu não muito baixo. Ele não me respondeu, mas continuou a andar, fazendo-me um gesto para que o seguisse.

 

Que visão singular nós devíamos proporcionar. Ouvi um ruído vindo do telhado do estábulo e vi o escravo que fazia a guarda durante a noite olhar para nós com uma expressão estranha, provavelmente sem perceber bem se seríamos homens nus ou espíritos envolvidos em vapor.

 

Senhor? chamou ele em voz baixa e hesitante. Eu fiz-lhe um sinal com a mão que pareceu satisfazê-lo, embora tivesse continuado a olhar para nós com a mesma expressão de espanto.

 

Passámos pelos currais, pelas vinhas e chegámos ao olival. Eu aproximei-me de Catilina, mas deixei de lhe fazer perguntas. Estava demasiado embriagado pela estranheza de andar a caminhar nu ao luar, pelo beijo do zéfiro na minha pele, pelo voo deslumbrante de uma enorme borboleta branca à minha frente.

 

Isto é uma loucura disse eu.

 

Uma loucura? Que pode haver de mais sensato do que um homem caminhar despido sobre a terra? Que coisa pode ser mais piedosamente consonante com a vontade dos deuses, que nos fizeram à sua imagem, do que mostrarmo-nos a eles desta maneira? Chegámos à base da cumeeira. Catilina prosseguiu, galgando cuidadosamente mas com rapidez o caminho íngreme. Quando eu era jovem e estava uma noite agradável, costumava fazer isto na cidade depois de um banho quente.

 

Em Roma?

 

Ele riu-se com a recordação.

 

No monte Palatino, à saída de minha casa. Umas vezes sozinho, outras acompanhado. Dávamos um longo passeio à volta do quarteirão, nus e exalando vapor, deixando que o vento nos secasse. É delicioso, não é? Roma está cheia de estátuas nuas que não ofendem a dignidade de ninguém; por que havia um homem nu de ofendê-la? Seria de crer que tivesse provocado um escândalo, mas isso nunca aconteceu. Acreditas que nunca ninguém se queixou?

 

Se não fosses tão elegante, talvez alguém se tivesse queixado disse eu.

 

Lisonjeias-me, Gordiano. Tínhamos chegado ao cimo da cumeeira. Catilina largou as toalhas e subiu a um dos cotos de árvore para observar a paisagem. Eu olhei para cima, para o seu tronco poderoso e para os braços musculosos cruzados sobre ele, para o estômago liso, as pernas robustas e o sexo que pendia entre elas.

 

Estás resplandecente na tua nudez, Catilina! disse eu, rindo-me e tentando recuperar o fôlego. Olhei para ele abertamente e com alguma inveja. Pareces uma estátua num pedestal. Sentia-me um pouco embriagado, já não com o vinho mas com o luar e a peculiar novidade de andar nu ao ar livre. O vento secara o vapor do meu corpo, mas eu estava coberto por um novo reflexo de suor, resultante do esforço da subida.

 

Achas que sim? Os meus amantes sempre disseram a mesma coisa. Ele baixou os olhos sobre si próprio, como se o seu corpo lhe fosse familiar mas estivesse separado dele, como se fosse mais uma das coisas que ele possuía, uma cadeira finamente trabalhada ou um belo quadro. Notável para um homem de quarenta e cinco anos, suponho eu. Auto-elogiava-se sem ironia nem falsas modéstias, mas com a naturalidade de um homem que habita um corpo há muito tempo, e nem se sente desadequadamente impressionado com ele nem o toma como certo.

 

Lá em baixo, o vale dormia. Não avistei nenhuma luz proveniente das casas distantes dos Cláudios, e na minha própria via-se uma única lamparina, colocada no exterior da porta da frente por um dos escravos, que devia ter-nos visto deixar o átrio. Mas como é que o mundo podia dormir quando a Lua estava tão brilhante? A Via Cássia era uma fita do mais puro alabastro, que contornava a base da montanha. O telhado da casa parecia feito de telhas que brilhavam com uma pálida luz azul. E, quando o zéfiro suspirava através do olival, abaixo de nós, as folhas sibilantes brilhavam a preto e a prata. Um mocho piou numa árvore próxima.

 

Catilina suspirou.

 

Nunca limitei os prazeres que o meu corpo podia proporcionar-me, nem os prazeres que ele podia proporcionar a outros. É um lema de vida tão simples, não achas? Contudo, até isso os meus inimigos voltaram contra mim, retorcendo-o e transformando-o numa coisa feia e depravada. Estiveste na cidade durante os últimos dias da campanha. Deves ter ouvido como me difamaram. Como no ano passado, mas pior. No ano passado, Cícero e o seu intriguista irmão Quinto provaram o meu sangue; este ano não ficaram satisfeitos com nada que ficasse aquém de me arrancarem o coração e o comerem.

 

Catilina endireitou-se e olhou para baixo, para o vale. Quando eu dissera que ele parecia uma estátua num pedestal, falava meio a brincar e meio a sério. Na sua nudez marmórea e rosto austero, ele podia ser a imagem de um deus. Não dos deuses da infância, Mercúrio ou Apolo; talvez de Vulcano, ou mais provavelmente de Júpiter, senhor da ordem e modelador dos maiores destinos, olhando firmemente do alto do Olimpo.

 

Se tivesses barba, serias semelhante a Júpiter disse eu.

 

A ideia divertiu-o. Ele estendeu o braço direito à sua frente com a mão virada para baixo e abriu os dedos.

 

Se ao menos eu pudesse lançar dardos de luz, como Júpiter.

 

Olhou para as costas da mão. Cícero pode... sabias? Dos seus dedos emanam dardos de luz. Ou pelo menos uma espécie de luz. Ele aponta para a multidão no Fórum; congrega centelhas nas pontas dos dedos, que depois se incendeiam em chamas azuis. Lança dardos de luz sobre os seus olhos e os seus ouvidos, cegando-os para a verdade, tornando-se surdos à razão. Catilina voltou a erguer o braço e apontou para baixo com o indicador, imitando o gesto. O indicador de Cícero: as Virgens Vestais têm de ser protegidas de Catilina! Crack! Lança o relâmpago e os eleitores estremecem com temor supersticioso. O dedo médio: Catilina seduz jovens rapazes! Q relâmpago dardeja e os eleitores fazem caretas de desagrado... e talvez de alguma inveja? O dedo seguinte: Catilina faz de proxeneta a matronas ricas! Os eleitores uivam de desagrado. O dedo mindinho: a pretexto de estar ao serviço de Sula, Catilina assassinou cidadãos de bem e violou as suas mulheres e os seus filhos! Os eleitores tremem de desprezo. E com a outra mão... bem, com a outra mão está ocupado a masturbar-se, não é?

 

Eu dei uma grande gargalhada. Catilina grunhiu e começou também a rir-se, com um riso aberto e bem-disposto, pensei inicialmente, até que uma nota de amargura pareceu engoli-lo antes de ele ter completado o seu percurso.

 

Ele destruiu-me com mentiras e distorções e a multidão aclama-o como Primeiro Cidadão do país. Apesar disso, prefiro ser Catilina do que Cícero disse ele, estudando a sua mão por momentos, e depois deixando cair o braço ao longo do corpo. E tu, Gordiano?

 

O quê, se eu preferia ser eu ou Cícero?

 

Não! Qual dos dois preferias ser: Cícero ou Catilina?

 

Isso é uma pergunta estranha.

 

É   uma pergunta excelente.

 

Estás sempre a fazer jogos, Catilina.

 

E tu estás sempre a evitá-los. Temes o elemento de acaso? Tens sempre de conhecer o resultado antecipadamente? Então escolhe ser Cícero! Ele baixou os olhos sobre mim. Bolsas de sombra obscureceram-lhe os olhos, mas os seus lábios tiveram uma flexão de zombaria. Sabes o que é que eu acho? Acho que te assustaria a possibilidade de seres Catilina. Ele desceu do cepo. Pegou numa grande toalha, abriu-a sobre o solo e deitou-se em cima dela, juntando as mãos por baixo da cabeça e olhando para o alto, para a Lua.

 

Deita-te ao meu lado, Gordiano. Eu hesitei.

 

Anda, deita-te ao meu lado. Vem olhar para a face da Lua. Chamaste Diana à tua filha por causa da deusa da Lua, não foi? Vem olhar comigo para a sua face.

 

Eu deitei-me ao seu lado, de novo agudamente consciente da minha nudez, enquanto o luar me banhava.

 

Diana é um diminutivo de Gordiana expliquei-lhe.

 

Ainda assim, é vagamente impiedoso dar o nome de uma deusa a uma criança disse Catilina. Mas suponho que é adequado. Diana, a deusa patrona dos plebeus, que inspirou a revolta das Sabinas. Diana, deusa da fertilidade e do nascimento, que habita nas montanhas e nos bosques e ama as coisas selvagens. Temos tendência para nos esquecermos dela na cidade, como nos esquecemos da Lua entre tantas lamparinas brilhantes. Aqui, ela é mais forte. O brilho da sua luz banha o mundo inteiro. Deita-te aqui e venereno-la juntos durante algum tempo.

 

Deixámo-nos estar deitados em silêncio. À excepção de um ocasional roçar das folhas das árvores e do pio do mocho, o mundo estava de tal maneira silencioso que eu conseguia ouvir o meu coração bater e a respiração de Catilina ao meu lado. Passado algum tempo, ele disse:

 

Posso falar-te com toda a franqueza? Eu sorri.

 

Duvido de que me fosse possível impedir-te.

 

Aparentemente, partilhamos o mesmo gosto em mulheres, Gordiano. A tua mulher, Betesda, é espectacular; faz-me lembrar bastante a minha própria Aurélia. Têm uma beleza muito parecida, pejada de altivez e mistério. Mas julgo que não partilhamos o mesmo gosto por jovens rapazes.

 

Aparentemente não.

 

Contudo, não consigo perceber como é que alguém, incluindo Cícero, pode deixar de considerar Tongílio belo. Os seus olhos verdes, a forma como o cabelo lhe cai sobre as costas...

 

Tongílio é belo reconheci eu.

 

Mas nem por isso o desejas?

 

Isso não seria muito próprio, não achas, sendo eu teu anfitrião e Tongílio teu companheiro?

 

Agora quem é que está a fazer jogos de palavras, Gordiano? O que eu quero dizer é isto: se aprecias a beleza, por que não ages em consequência? Como podes resistir?

 

Eu ri-me suavemente.

 

Em primeiro lugar, Catilina, tal como muitos homens e mulheres excepcionalmente bem-parecidos que se encontram constantemente com a tentação, tu pareces pensar que os outros deparam com essas oportunidades com tanta frequência como tu.

 

Subestimas-te realmente de forma tão ridícula, Gordiano? Tongílio acha-te bastante atraente. Foi ele próprio que mo disse.

 

Ao ouvir isto, eu senti um inesperado e dúbio arrepio de satisfação.

 

Estás a brincar, Catilina. Tongílio nunca te diria semelhante coisa. A que propósito haviam de falar nesse assunto?

 

Parece-me um assunto bastante natural. A não ser que falem sobre política, de que hão-de as pessoas falar excepto da atracção e do desejo relativo que sentem pelas outras pessoas? Na verdade, pouco mais há sobre que falar.

 

Catilina, és incorrigível.

 

Não, talvez seja insaciável, mas sou eminentemente corrigível. Estou sempre disposto a ouvir coisas novas e a ser corrigido quando estou enganado. Farias bem em seguir o meu exemplo, Gordiano. Nesta como noutras matérias.

 

Que matéria?

 

O pouco razoável controlo que mostras nas tuas relações com jovens belos.

 

Catilina, não deves tentar corromper-me! Não valho os teus esforços!

 

Que disparate! Eu acho que os vales todos.

 

Suponho que devia sentir-me lisonjeado?

 

Não, agradecido e atento.

 

Eu dei uma gargalhada rouca, surpreendido com o facto de estas brincadeiras estarem a divertir-me imenso. Era evidentemente o feitiço da lua cheia, que se avultava, enorme e branca, acima de nós, quase suficientemente perto para ser possível tocar-lhe. Era a minha própria nudez e a borboleta que nos acompanhara na subida, e o indiscutível encanto de Catilina que me permitiam falar de coisas que nunca aconteceram nem viriam a acontecer.

 

Sabes o que é que eu acho, Gordiano? Acho que nós somos opostos mas complementares em muitos aspectos. Célio afirma que tu tens fama de extrair a verdade aos outros, que és uma espécie de lenda nesse campo; os homens têm tendência para esvaziar o seu coração quando estão contigo. Eu tenho um dom semelhante, mas diferente. Eu vejo o que se passa dentro do coração dos homens, em pontos para onde eles nunca olham, e sou eu que lhes digo o que aí reside. Sabes o que eu vejo no teu coração relativamente a esta questão?

 

Essa questão que te fascina mais do que a mim?

 

Julgo que não. Vejo dentro de ti um extraordinário carácter moral, um homem deslocado relativamente ao mundo em que vive. Ambos sabemos como encaram os Romanos a sexualidade: o poder é tudo, é mais importante do que o prazer. Na verdade, o prazer como um fim em si mesmo é uma coisa estranha a um bom romano... é decadente, oriental, um vício dos Egípcios e dos Gregos. O poder é dominante e o poder significa penetração. Os homens possuem esse poder; as mulheres não. Os homens dominam Roma e fizeram dela aquilo que é: um império interessado em conquistar o mundo inteiro, em penetrar e em dominar todas as nações e todas as raças.

 

Isso parece-me estar muito longe do tema da luxúria.

 

De modo nenhum. Num mundo assim, as tendências naturais do amor são desviadas; o prazer verga-se ao poder. Tudo se reduz a penetrar ou a ser penetrado. Que atitude tão simplista, tão mais adequada aos mecanismos do teu moinho de água do que às complexidades do espírito humano, mas é assim. Penetrar ou ser penetrado; as mulheres não têm alternativas nesta questão e por isso são permanentemente reduzidas a um estatuto inferior. Por seu lado, qualquer homem que se submeta a ser penetrado por outro homem renuncia ao seu poder e é considerado igual a uma mulher, pelo menos é isso que declara o consenso, embora todos saibamos que por trás das portas fechadas os homens têm tendência para fazer o que lhes apetece, mais compelidos pelo desejo do que pelo prestígio. Daí toda a coscuvilhice acerca da juventude de César, quando ele foi catamite do rei Nicomedes da Bitínia... um comportamento indigno de um romano! Mas, claro, César era jovem e viril e Nicomedes exsudava sensualidade oriental, e que interessa o que eles realmente fizeram, excepto para um manipulador político da estirpe de um Cícero, que é capaz de fazer disso um tema de campanha... transformando-o numa deficiência de carácter e de discernimento. O sexo ilícito atrai a ira dos deuses perguntem a Catão e se um romano como o próprio César se permitiu ser penetrado na juventude, quem sabe que fomes e catástrofes militares poderão resultar daí!

 

”Os Gregos permitem-se esse tipo de paixões, é claro, mas apenas, e ostensivamente, entre velhos e jovens; é adequado e próprio um jovem submeter-se ao seu mentor, desde que em circunstâncias correctas e com o respectivo decoro. Ainda assim, como vês, o equilíbrio de poder depende do papel desempenhado. Naturalmente que, por trás de portas fechadas, haverá sempre excepções que não se adequam ao modelo do mestre e mentor e do dócil protegido.

 

”Nós, Romanos, nem sequer temos, ai de nós, um modelo de onde partir. Desprezamos os Gregos, ridicularizamos a sua obsessão com a filosofia e as provas físicas. Não dispondo das suas tradições avalizadas pelo tempo, em questões como o vício estamos entregues aos nossos dispositivos próprios. Em geral, usamos horrendamente os nossos escravos, tanto os homens como as mulheres. Essas paixões são desprovidas de honra, e por isso não dependem das regras da dignidade e do decoro nem são temperadas por elas, e muito menos limitadas pela lei. Os excessos dos Romanos na exploração dos seus instrumentos humanos são literalmente ilimitados. As escravas são em geral violadas, os jovens escravos são completamente despidos da sua dignidade e explorados com igual rapacidade. São tratados com um grau de desprezo que a maioria dos homens não infligiria a um cão; na verdade, um cão bem treinado é consideravelmente mais caro do que um rapazinho ou uma rapariguinha razoavelmente bonitos.

 

”Num mundo como este, a paixão significa invariavelmente degradação para alguém... pelo menos é isso que o consenso estabelece. Por isso, um homem chamado Gordiano, o Descobridor, esse ser estranhamente moral, descobre outras maneiras de dar forma aos seus anseios. Precisa de ter relações sexuais, claro; nesse sentido é semelhante a qualquer homem. Mas, apesar disso, não é um homem convencional: dedica-se a uma escrava, apaixona-se pela sua beleza, deixa-se encantar pela sua altivez e acaba por fazer dela sua mulher, preferindo elevá-la a degradar-se. O seu comportamento é quase uma sátira ao dito romano segundo o qual uma mulher deve ser escolhida pelo seu estatuto e uma escrava pela sua beleza. Tanto quanto se sabe, é mais fiel à sua mulher do que noventa e nove em cem romanos. Trata-se de uma união de amor, o mais raro dos casamentos romanos!

 

”Quanto ao prazer que podia ter com jovens rapazes, prefere não abordar sequer a questão. Ou antes, contorna-a. Tem demasiado respeito por eles, sejam cidadãos ou escravos, para seguir jovialmente a fórmula que inevitavelmente eleva um homem e degrada o outro. Prefere o papel de mentor casto. Este comportamento é raro mas não é inaudito; já o vi noutros e reconheci-o em ti. Gordiano não explora nem viola os seus escravos. Nem procura um meio-termo incerto com um companheiro com o mesmo estatuto que ele. Ensina; educa e ama; eleva. Faz do sentimento um fetiche; os seus gestos são grandiosos. Vai ao ponto de adoptar um garoto da rua e um jovem escravo e de fazer deles seus herdeiros. Que família tão pouco convencional! E, embora não deixe de ser delicadamente sensível à beleza dos jovens, vê mas não toca. Que reticência, mais dada à compaixão do que à paixão! Ele é um homem deslocado num mundo que encoraja os fortes a devorarem os fracos, que recompensa a crueldade e castiga a simpatia, que mede a masculinidade pela vontade que um homem tem de dominar outros homens, mulheres, crianças e escravos, quanto mais impiedosamente melhor. É um tipo mais estranho do que Catilina alguma vez foi!

 

Calou-se. Estávamos deitados lado a lado, igualmente nus sob a Lua brilhante.

 

E Catilina disse eu, e a minha voz soou-me estranha porque as palavras de Catilina tinham feito com que todas as coisas parecessem estranhas como se adapta Catilina a esse mundo?

 

Tal como Gordiano, Catilina faz as suas próprias leis, aquelas que lhe agradam.

 

E assim ficámos pela colina, devaneando e divertindo-nos durante grande parte da noite.

 

Como por vezes acontece quando o corpo foi aquecido por um banho e depois arrefece, e depois se esforça a seguir a um dia que já foi extenuante, eu adormeci sem querer. Felizmente, a noite continuou morna e não arrefeceu ao amanhecer. Despertei antes do cantar do galo. A toalha fora dobrada sobre mim como uma coberta. Catilina desaparecera.

 

Há muito que a Lua partira. O céu não estava azul nem preto, mas de uma cor intermédia. As estrelas menores tinham-se extinguido. A leste, Lúcifer, a estrela da manhã, brilhava logo acima da massa escura e pensativa do monte Argênteo.

 

Pus-me de pé, cobrindo a minha nudez com a toalha e calçando as sandálias, que tirara durante a noite. Desci calmamente a colina, com as costas hirtas por ter estado tanto tempo deitado em solo duro.

 

O vigilante que estava no cimo do estábulo, bocejando por causa da noite de vigília, abriu muito os olhos quando me viu.

 

Os meus convidados disse eu aqueles que chegaram ontem...

 

Já partiram, Senhor. Levaram os cavalos há uma hora. Voltaram na direcção de Roma quando chegaram à Via Cássia. Ele mordeu o lábio. Fiquei um bocado preocupado contigo quando ele desceu a colina sozinho. Fui lá acima verificar, mas pareceu-me que estavas bem. Dormias como uma pedra. Fiz bem em não te acordar?

 

Eu acenei pesadamente com a cabeça e entrei em casa. Betesda estava a dormir, mas agitou-se quando eu fiz deslizar o meu corpo para junto do seu.

 

Cheiras a vinho murmurou, com uma certa irritação na voz. Onde é que andaste a noite toda? Se estivéssemos em Roma, eu ficaria a pensar que tinhas estado com outra mulher.

 

Que absurdo disse eu. É impossível isso acontecer aqui. Fechei os olhos e dormi até ao meio-dia.

 

Essa noite que passei na cumeeira com Catilina foi um dos últimos momentos de calma antes do dilúvio.

 

Setembro continuou seco e quente. Os primeiros dias de Outubro transformaram as folhas em ouro e aceleraram a ceifa. Com o quebra-cabeças do moinho solucionado, eu voltei a dedicar-me à gestão da quinta e o trabalho prosseguiu a ritmo acelerado. Ocupei-me com pequenas coisas para me distrair das iminentes crises do feno e da água, e da continuada frieza de Meto para comigo.

 

Catilina fez-nos outra visita em Setembro e mais três em Outubro. Em todas essas ocasiões, trouxe consigo outros companheiros, para além de Tongílio, mas nunca mais de cinco ou seis. Eram homens grandes, que vinham armados: guarda-costas. Betesda não se interessou pelo seu aspecto, mas eles dormiram no estábulo e comeram a mesma comida que os escravos sem se queixarem e Catilina nunca se demorou mais do que uma noite.

 

A cada visita, Catilina ia-se tornando menos comunicativo e mais distante. Eu sentia nesta atitude as reticências de um homem crescentemente distraído e pressionado pelo tempo. Chegava ao fim do dia e partia de manhã cedo. Não assombrava o átrio nem se passeava nu ao luar; ia-se deitar pouco depois do jantar e levantava-se de madrugada. Eu raramente estava a sós com ele mais do que alguns momentos; não partilhámos novas revelações acerca da angústia da sua derrota ou das obscuras geometrias do desejo.

 

Ele nem sequer perdeu tempo a ir visitar novamente o moinho de água, embora eu me tivesse oferecido para lho mostrar mais do que uma vez. Descobri que era necessário reconstruir algumas partes do mecanismo para as adequar melhor à solução de Catilina e, uma vez que o projecto geral estava a ser alterado, Arato também sugeriu alguns ajustamentos menores ao esquema geral. Este trabalho foi feito avulso, aos bocados, à medida que os trabalhos mais prementes da quinta o permitiam. No final de Outubro, estava virtualmente terminado, embora fosse verdade que a sua utilidade só pudesse ser verdadeiramente confirmada e avaliada quando o ribeiro voltasse a ter água suficiente para fazer andar a roda. Eu olhava para os céus todas as manhãs e todas as noites, na esperança de que chovesse.

 

Foi já perto do final de Outubro que decidi mostrar o moinho a Cláudia. Fora Cláudia quem me falara da intenção do seu primo Lúcio de construir aquele moinho; sem ela, eu nunca teria sabido. Mandei-lhe uma mensagem, combinando encontrar-me com ela na cumeeira ao meio-dia, sugerindo-lhe que partilhássemos uma refeição simples e dizendo-lhe que tinha uma coisa para lhe mostrar.

 

Levei queijo, pão e maçãs. Cláudia trouxe bolos de mel e vinho, e o maior de todos os acepipes: um jarro de água fresca. Eu disse-lhe que os bolos de mel eram doces e o vinho delicioso, mas que o que mais me arrebatava o palato era a água fresca do poço.

 

A tua escassez tornou-se assim tão grave? perguntou ela.

 

Sim. Conseguimos tirar alguma água do fio que corre no ribeiro; quando a areia assenta, bebe-se bem, mas mal chega para saciar a sede dos escravos e dos animais. Depois, há um pequeno rego que desce a colina. Também corre muito pouco; só consegue encher meia urna por dia. Por isso, para dar de beber aos animais mais fortes, continuamos a usar o poço, embora lhes solte os intestinos. Felizmente, ainda temos algumas urnas grandes de água, que foram tiradas antes de o poço ficar poluído... guardo-as como se estivessem cheias de prata. E há muito vinho, mas de vez em quando um homem tem de beber água.

 

Suponho que a água do poço seja boa para as lavagens disse Cláudia.

 

Arato aconselha-nos a não nos lavarmos com ela. Apesar disso, usamo-la de vez em quando, com esponjas e cerdas. De qualquer maneira, o poço tem pouca água, devido à falta de chuva. Em vez de mergulhar numa banheira de água quente, Betesda unta-se com óleos perfumados. Anda aborrecida como um gato; como não pode aperaltar-se, mostra má cara. Acho que estamos a ficar todos com um bocado de mau aspecto. Esta túnica que trago vestida bem precisava de ser lavada.

 

Lamento não poder dispensar-te mais água, mas o meu poço também está perigosamente baixo, pelo menos é o que diz o meu encarregado. Aproveita essa água que eu te trouxe... bebe-a toda e vê lá se não ficas embriagado riu-se ela. A propósito, onde está o jovem Meto?

 

Suponho que esteja ocupado. Preferiu não vir.

 

Oh, eu não o vejo há tanto tempo; quase desde o dia dos anos dele. Bem, não vou insistir disse ela, vendo a minha expressão. Embora não ficasse surpreendida se me dissesses que ele não se sente muito feliz aqui na quinta. Já te disse que o teu lugar é na cidade e o mesmo se aplica a Meto, ainda com mais intensidade. Nem toda a gente está destinada à agricultura, especialmente quando a cidade pode proporcionar uma vida tão cheia, tão fértil. Ah, mas eu disse que não ia insistir e cá estou eu a dar conselhos que ninguém me pediu, como uma autoritária matrona romana!

 

Comemos em silêncio durante uns momentos. Estava um dia magnífico de Outono, com um ar fresco e um céu sem nuvens. Ao fundo, a paisagem estava ataviada com subtis tonalidades de ocre, cinzento e verde. Fios delgados de fumo provenientes de quintas a toda a volta, de fornos de pão e de queimadas de folhas, erguiam-se no ar como pilares. O mugido dos animais e as vozes dos escravos ao longe, no vale, atravessavam o ar cristalino.

 

Alguma vez haveria um dia como este na cidade? disse eu suavemente.

 

Nisso tens razão disse Cláudia, que contemplava a cena com um sorriso plácido. Mas o teu mensageiro disse-me que tinhas uma coisa para me mostrar.

 

E tenho, logo que acabarmos de comer.

 

Eu já acabei disse ela, passando os dedos carnudos pela boca para limpar as migalhas de bolo de mel. Mas não devias deixar a tua maçã a meio.

 

Temos mais maçãs do que aquelas que conseguimos comer.

 

Mas é um desperdício! Eu ri-me.

 

Dou o resto aos porcos quando formos a descer.

 

A descer?

 

Até ao ribeiro.

 

Oh, Gordiano... vais mostrar-me o moinho de água? Ela fez uma expressão estranha.

 

Vou.

 

Fui-te observando enquanto o construías, sabes? Não pude evitar reparar nisso quando vinha aqui à cumeeira. É uma construção muito elegante.

 

Eu encolhi os ombros.

 

Foi feita de pedaços de outras construções. Não é nenhum templo, mas acho que também não fere os olhos.

 

É encantador!

 

Talvez. Mas o mais importante é o que está lá dentro. O mecanismo funciona mesmo.

 

Então já está acabado?

 

Tanto quanto é possível, sem água no ribeiro para o mover. Erguemo-nos dos nossos respectivos cepos e juntámos os parcos restos   da refeição. Eu olhei de viés para a Via Cássia, como sempre faço quando vou a sair da cumeeira. Reparei em dois cavaleiros que vinham do sul. Não tinham nada de especial, mas ainda assim senti-me um pouco desconfortável enquanto descíamos e continuei a olhar para a estrada, mesmo depois de ela ficar tapada pelos arbustos e pelas árvores. Cláudia ficou bastante impressionada; na verdade, o seu entusiasmo foi tal, que dava a impressão de ser um pouco forçado, especialmente tendo em conta que não me pareceu perceber nada do mecanismo. Perguntava qual era o objectivo das rodas e dos mastros de uma forma que deixava claro que nenhuma explicação seria suficiente. Quando eu chamei uns escravos para empurrarem a roda e porem em movimentos os blocos de moagem, ela apanhou um susto e o sorriso morreu-lhe nos lábios.

 

Oh céus! disse ela. Parecem uns dentes enormes e horríveis a ranger! Parece que estamos nas goelas de um Titã!

 

No fundo, no fundo, não gostava assim muito do moinho, pensei eu, e sentia-se pouco à vontade perto dele. Atribuí o facto à sua classe e ao seu profundo conservadorismo, que desconfia de todas as inovações, sejam elas sociais ou mecânicas. O primo Públio apresentara esse ponto de vista de forma bastante eloquente quando eu lhe dissera que podia tirar benefícios do moinho: ”Para quê? Tenho escravos para me moerem os cereais.” Eu tivera esperanças de que Cláudia fosse mais receptiva, mas a verdade é que, em alguns aspectos, ela não era diferente dos primos.

 

As rodas estavam em movimento, quando ouvi uma voz exclamar:

 

Magnífico, Papá!

 

Voltei-me e vi Eco postado na soleira da porta, com Belbo atrás os dois cavaleiros que eu avistara na estrada.

 

Ri-me, feliz com a surpresa e dirigi-me a Eco para o abraçar. Entretanto, os escravos tinham suspendido o esforço e as rodas pararam lentamente.

 

Cláudia sorriu de través, depois apanhou um susto quando uma das engrenagens fez um ruído que parecia uma detonação.

 

Não é nada disse eu, mas a única maneira de a acalmar foi levá-la para fora da casa do moinho. Acompanhei-os a todos até junto da margem rochosa do rio. Eco queria ver outra demonstração do mecanismo, mas eu acenei discretamente na direcção de Cláudia, indicando-lhe que devíamos respeitar a nossa convidada. Noutra altura disse eu. Puxa muito pelos escravos e algum deles ainda se magoa.

 

Mas como é que resolveste os problemas que tinhas? Não me digas: veio-te a inspiração num sonho! Como já aconteceu tantas vezes, quando te confrontavas com mistérios que parecia não terem resposta.

 

Desta vez não foi assim. Na verdade, foi um conhecido de ambos que sugeriu a solução.

 

Um conhecido de ambos?

 

Um convidado ocasional. Contorci o queixo na direcção de Cláudia.

 

Ah! Eco compreendeu a necessidade do silêncio e acenou com a cabeça. O homem da cidade.

 

Esse mesmo. Mas não podemos ignorar a nossa convidada de hoje disse eu. Eco cumprimentou Cláudia com uma inclinação de cabeça.

 

Oh, Eco, é tão agradável encontrar-te trauteou Cláudia. A nossa breve troca de palavras dera-lhe tempo para recuperar a compostura. Que novidades trazes da cidade?

 

Na verdade... Eco parecia hesitante. Eu percebi imediatamente que o facto de haver novidades na cidade era precisamente a razão da sua visita, mas que aquilo que tínhamos para dizer não devia ser escutado por outros. Ele pestanejou e vi que calculara rapidamente aquilo que podia dizer sem dizer demasiado. Na verdade, foi por isso que vim. O ambiente em Roma tem estado tenso e alterado durante todo o Verão... suponho que já sabem.

 

Oh, sim, os meus primos andam a prever complicações desde as eleições disse Cláudia.

 

Então os teus primos podiam encontrar trabalho como adivinhos disse Eco. Foi um comentário chistoso, mas Cláudia não achou graça. O moinho tinha-lhe posto os nervos em franja.

 

Fala-se na cidade de uma revolução armada prosseguiu ele. Cícero conseguiu que o Senado votasse atribuir-lhe poderes de emergência. Estado.

 

Aquilo a que se chama o Decreto Radical em Defesa do...

 

Ah, sim, o decreto que os nossos antepassados criaram há sessenta anos para se libertarem daquele desordeiro Gaio Graco disse Cláudia com uma ponta de deleite.

 

Eu acenei com a cabeça, gravemente.

 

Gaio Graco foi assassinado por uma multidão nas ruas na altura em que as leis contra os assassínios foram temporariamente suspensas. São esses os planos para Catilina?

 

Ninguém sabe disse Eco. O decreto é vago. Essencialmente, atribui ao cônsul poderes sobre a vida e a morte que noutras circunstâncias teriam de ser concedidos pela Assembleia do Povo... o poder de convocar um exército e de o enviar para a guerra e o direito de aplicar aquilo a que se chama uma força ilimitada contra determinados cidadãos, a fim de proteger o Estado.

 

Por outras palavras, os Optimates do Senado contornaram toda e qualquer influência moderadora que pudesse ser exercida pela Assembleia do Povo disse eu.

 

E fizeram bem disse Cláudia. Quando a segurança do Estado está ameaçada, tem de se recorrer a decretos radicais. Só é pena que esses poderes estejam nas mãos de um Homem Novo como Cícero, que não é inteiramente digno dessa honra e cuja ascendência dificilmente pode tê-lo preparado para assumir essa responsabilidade.

 

Seja como for disse Eco toda a gente sabe que António, o colega de Cícero no consulado, é um inútil. Na verdade, ele tem simpatias por Catilina. O que significa que cai tudo sobre os ombros de Cícero.

 

Ou no seu regaço disse eu. Eco acenou com a cabeça.

 

Neste momento, pelo menos em teoria, Cícero tem mais poderes do que qualquer outra pessoa desde que Sula foi ditador.

 

Quer dizer que Cícero tem finalmente aquilo que queria disse eu. É o senhor exclusivo de Roma!

 

Bem, se ele nos livrar de Catilina de uma vez por todas, merece o cargo disse Cláudia. Que mais novidades trazes, Eco?

 

Rumores de guerra. O general de Catilina, Mânlio, está a mobilizar as suas tropas às claras em Faesulae. Também se fala de revoltas de escravos, instigadas por Catilina, claro. Uma na Apulia, outra em Cápua...

 

Em Cápua? Foi onde Espártaco iniciou a sua insurreição! disse Cláudia com os olhos muito abertos.

 

Eco acenou com a cabeça.

 

Todas as escolas de gladiadores de Itália receberam ordem para fechar as armas a cadeado e dispersar os gladiadores por outras quintas, presos com grilhetas. Foi uma das primeiras leis de Cícero depois de aprovado o Decreto Radical.

 

Agitar a memória de Espártaco! disse eu pesarosamente. Era um passo inteligente, que permitia manter o povo assustado e solidificar o seu apoio. O terror e o caos provocados pela revolta de Espártaco ainda estavam frescos na memória de todos. Assim, num tempo de crise declarada, quem poderia opor-se à dissolução das escolas de gladiadores ainda que elas não estivessem implicadas no caso e que a única razão para chamar a atenção para elas fosse lançar o pânico? Ao mesmo tempo, a associação servia para identificar o digno patrício Catilina com um escravo, trácio rebelde. Comecei a perceber o que Catilina queria dizer quando falava de Cícero e dos seus dardos.

 

Entretanto, Catilina foi objecto de certas acusações.

 

Outra vez? Que acusações? disse eu.

 

Acusações mais sérias do que suborno e desvio de dinheiros do Estado. Um dos Optimates processou-o com base na Lei de Flauto contra a violência política.

 

E qual foi a reacção de Catilina?

 

Foi incaracteristicamente fraca. Deixou-se colocar em prisão domiciliária em casa de um amigo. O que significa que não pode sair de Roma. Eco olhou para mim significativamente.

 

Óptimo disse eu automaticamente, como quem sacode as mãos depois de as ter lavado. A notícia incomodava-me mais do que eu gostaria de admitir, mas o meu envolvimento neste assunto poderia finalmente terminar.

 

Óptimo! repetiu Cláudia. Talvez assim a questão se possa resolver sem derramamento de sangue. Se for possível julgar Catilina e exilá-lo, é natural que a canalha que o segue se dissolva na lama de onde veio. Corta-se a cabeça e o corpo seca!

 

Que estranho disse eu. Estava a pensar na mesma metáfora.

 

Cláudia deixou-nos pouco depois, dizendo que tinha de ir contar as novidades aos primos e saber se eles teriam recebido outras notícias.

 

Quando ficámos sós, por insistência dele, mostrei a Eco o mecanismo do moinho de água, mas pareceu-me que as intrincâncias do que se estava a passar em Roma eram bastante mais complexas e, apesar da minha aversão, muito mais fascinantes.

 

Nessa noite, depois do jantar, reunimo-nos no átrio. A noite estava fresca mas o céu estava limpo. Com o passar das estações, a água fora escoada da fonte e no seu lugar havia agora uma braseira. Sentámo-nos em círculo à roda do fogo. Meto juntou-se a nós. Eu pedira-lhe expressamente que ficasse e ouvisse a conversa, mas ele não valorizara o meu gesto; a sua expressão indicou-me que ele considerava os meus esforços para o incluir meramente condescendentes. Betesda juntou-se a nós depois de deitar Diana. O estado de espírito de crise iminente penetrara a sua atitude de gatinha e picara-lhe a curiosidade.

 

A situação é a seguinte disse Eco. - O Senado está a formar um exército para enviar contra Mânlio, que se encontra em Faesulae, a fim de travar uma batalha na Etrúria, ou pelo menos de impedir Mânlio de marchar sobre Roma. Em Roma, a guarnição está alerta e foram colocadas mais sentinelas nocturnas em diversos pontos da cidade. Catilina está em prisão domiciliária mas os outros conspiradores estão todos à solta; Cícero não dispõe de provas contra eles. Poderá haver uma insurreição na cidade, ou não. Poderá haver uma batalha ou diversas batalhas entre as forças do Senado e as forças de Mânlio, ou não. Poderá haver outras insurreições por toda a Itália, ou não.

 

O Senado está realmente em perigo? perguntou Meto.

 

Ele fez a pergunta a Eco e pareceu desapontado quando Eco a transferiu para mim.

 

Por toda a Itália há pobreza, endividamentos e reduções à escravatura em consequência de bancarrotas disse eu. A nossa família foi beneficiada pela Fortuna, já para não falar dos desejos de Lúcio Cláudio, o que nos levou a ascender em vez de decair numa altura destas; mas à nossa volta há simples cidadãos que morrem de fome, enquanto nobres cheios de orgulho caem na pobreza e são incapazes de voltar a erguer-se. Os poucos que possuem grande riqueza e poder, dispensam-nos em melhoramentos avaros aos muitos que lutam pela sobrevivência. A corrupção dos que detêm o poder é óbvia para todos. Os homens anseiam por mudanças e sabem que isso nunca acontecerá enquanto os Optimates mantiverem o seu controlo imutável sobre o Senado. Poderão Catilina e os seus aliados desencadear uma revolução geral? É óbvio que o Senado acredita que isso é possível, senão nunca teria votado o Decreto Radical, conferindo ao cônsul poderes extraordinários. Abri as mãos diante das chamas. Cícero deve estar deliciado com a solene honra que os seus colegas lhe conferiram! Esse gesto de confiança nele terá sido espontâneo, ou terá Cícero puxado uns cordelinhos para conseguir a votação?

 

Sim, Papá admitiu Eco, vacilando perante o sarcasmo que detectou na minha voz podes ter a certeza de que Cícero fez grande pressão para conseguir que o Decreto Radical fosse aprovado. A cooperação do Senado foi ainda promovida pelas cartas anónimas que Cícero introduziu no debate.

 

Cartas? Não tinhas falado nisso.

 

Não? Devia estar a conter-me por causa de Cláudia. Na noite antes de Cícero solicitar ao Senado que aprovasse o Decreto Radical, recebeu a visita de diversos cidadãos distintos, entre os quais Crasso. Foram bater-lhe à porta à meia-noite, exigindo aos escravos de Cícero que acordassem o seu senhor. Parece que todos estes homens tinham recebido cartas anónimas naquela noite, advertindo-os de um iminente banho de sangue.

 

Como é que essas cartas chegaram às suas mãos?

 

Foram entregues por um mensageiro que manteve o rosto escondido. Ele entregou as cartas enroladas aos porteiros e partiu sem dizer palavra. A carta que Crasso recebeu tratava-o pelo nome, mas não estava assinada. Dizia ela: ”Dentro de poucos dias, os ricos e poderosos de Roma serão mortos. Foge enquanto podes! Esta advertência é um favor de um amigo. Não a ignores.”

 

E Crasso levou a carta a Cícero?

 

Sim, bem como diversos outros que tinham recebido cartas semelhantes na mesma noite. Podes imaginar a posição comprometedora em que Crasso ficou depois de receber a carta. Ele já é suspeito por causa das suas ligações passadas com Catilina, bem como pelas suas próprias actividades políticas, um tanto duvidosas. Há quem pense que é um dos conspiradores, ou talvez mesmo um dos poderes que suportam a conspiração. Para desviar as suspeitas, ele foi imediatamente mostrar a carta a Cícero, negando possuir qualquer informação acerca das suas origens e do iminente banho de sangue a que ela se referia.

 

Mas essas cartas não estavam assinadas?

 

Não, eram anónimas. Claro que toda a gente presume que terão sido escritas por alguém próximo de Catilina.

 

Que é exactamente o que se pretende que as pessoas presumam.

 

Mas quem mais poderia tê-las enviado? disse Eco.

 

Realmente, quem? A quem aproveita o pânico entre os poderosos e simultaneamente o esclarecimento da posição de um homem como Crasso? E foi em grande medida devido a esse incidente que Cícero conseguiu convencer o Senado a aprovar o Decreto Radical?

 

Juntamente com a informação de que Mânlio estava pronto a pôr o seu exército em acção.

 

Informação que teve origem em...

 

Em Cícero e nos seus informadores. E, claro, havia rumores de insurreições planeadas de escravos...

 

Rumores, dizes tu? Não eram relatórios? Eco olhou para o fogo por longos momentos.

 

Papá, estás a sugerir que foi o próprio Cícero quem enviou essas cartas anónimas? Que ele está a criar propositadamente um ambiente de pânico?

 

Não estou a sugerir coisa nenhuma. Limitei-me a fazer perguntas e a apresentar dúvidas... como fez o próprio cônsul.

 

Outubro terminou com ventos tormentosos do Norte e um céu baixo cinzento-pérola. As Calendas de Novembro amanheceram frias e frouxas, com chuvas que nunca desembocaram em tempestade, mas parecia caírem do céu em gotas individuais como lágrimas, com toda a mesquinhez dos deuses quando se dignam chorar.

 

E assim se manteve até ao oitavo dia de Novembro. A penumbra despontou e o dia nunca chegou a clarear. Uma massa de incómodas nuvens escuras reuniu-se a norte. Ventos altos varreram o vale. Os animais foram fechados nos estábulos. A Via Cássia estava quase deserta, à excepção de uns grupos de escravos arrepiados, conduzidos por homens a cavalo.

 

Para além de algumas saídas para cuidar dos animais e para ver se as portas estavam bem fechadas e se os apetrechos soltos tinham sido arrumados, ninguém saiu de casa. Diana andava aborrecida e maldisposta; quando a tempestade chegou, ficou assustada e ainda mais intratável. A sua mãe mostrou-se imensamente compreensiva e reconfortante com Diana. Com todos os outros, andou de mau humor o dia inteiro.

 

Meto fechou-se no seu quartinho estreito. Quando eu lá entrei de surpresa, vi um rolo de pergaminho de Tucídides aberto sobre a mesa e os soldados de metal espalhados pelo chão em ordem de batalha. Quando sorri e lhe perguntei que combate estava ele a encenar, ele mostrou-se embaraçado e irritado e encostou os soldados todos à parede.

 

O mínimo de felicidade que um dia miserável como este podia trazer era um céu cheio de água, pensei eu. Durante todo o dia, saí várias vezes para o pequeno jardim murado que ficava do lado de fora da biblioteca para observar o céu. A partir de

meio, o monte Argênteo estava escondido numa manta escura e indistinta de nuvens, ocasionalmente iluminada por dardos de luz. Devia estar a chover imensamente no alto da montanha, mas no vale havia apenas vento e escuridão.

 

A chuva começou finalmente a cair depois do pôr do Sol, se de facto houve pôr do Sol num dia como aquele em que o Sol nunca chegou a mostrar-se. Começou por um suave pingar contra o telhado, crescendo depois para uma torrente constante. Descobrimos mais algumas falhas por entre as telhas; com todo o deleite de um general há muito afastado da frente de batalha, Betesda mandou os escravos da cozinha irem buscar potes e vasilhas para apanhar as gotas. Subitamente, Diana recuperou a boa-disposição; abriu uma janela fechada e pôs-se a contemplar a chuva com guinchos de prazer. Até a disposição de Meto melhorou. Veio ao escritório devolver-me o rolo de pergaminho de Tucídides e falámos um bocado sobre os Espartanos e os Persas. Eu pronunciei uma oração silenciosa de agradecimento aos deuses pelo facto de o céu se ter finalmente aberto.

 

Tendo estado inquietos e fechados dentro de casa o dia todo, nessa noite estávamos bem acordados. Tínhamos sentido o cheiro dos cozinhados de Côngrio durante todo o dia e recebemos a sua refeição com entusiasmo. Depois, eu pedi a Meto que nos lesse em voz alta. Heródoto pareceu uma boa opção, com as suas narrativas de terras e costumes estranhos.

 

As horas foram avançando, mas ninguém parecia ter vontade de ir dormir. A chuva caía.

 

Nessa noite, como em todas as noites, eu mandara colocar uma sentinela. Impossibilitado de se postar no telhado do estábulo, ele instalou-se nas águas-furtadas, onde podia manter a vigilância a partir da janelinha fechada. Também ele estava bastante desperto naquela noite e detectou os homens que abandonaram a Via Cássia e se dirigiram à quinta.

 

Ninguém ouviu bater à porta por causa do ruído da chuva. Só quando o escravo começou a gritar e a lutar com o ferrolho, batendo com as portas contra o lingote, é que nos apercebemos da agitação. Betesda mostrou-se imediatamente apreensiva; umas quantas más experiências em Roma faziam-na desconfiar de visitas nocturnas. A sua agitação comunicou-se a Diana, que estava enroscada no seu colo. Meto baixou o rolo de pergaminho e correu comigo para o átrio. Mantivemo-nos por baixo da colunata, para evitar a chuva. Eu abri o postigo e olhei para fora.

 

O escravo apontava loucamente para a estrada, gritando. Subitamente, a chuva começou a cair com mais força e eu não consegui perceber nem uma palavra.

 

Desaferrolhámos a porta. O escravo entrou a correr, encharcado, com o cabelo em farripas e a escorrer água.

 

Homens! disse ele rouco. Vêm da estrada! Um exército inteiro a cavalo!

 

Estava a exagerar. Trinta homens não fazem um exército, mas certamente que constituem uma visão algo assustadora quando se dirigem rapidamente a nós na escuridão, embrulhados em capas pretas. O bater dos cascos dos cavalos juntou-se ao barulho da chuva e depois sobrepôs-se a ele como o estrépito constante de um trovão, aproximando-se cada vez mais. Os cavaleiros estavam a menos de trinta metros de distância.

 

Catilina? gritou Meto.

 

Não sei disse eu.

 

Papá, não seria melhor trancar as portas?

 

Eu acenei com a cabeça e puxei para dentro o escravo encharcado. Batemos com a porta e colocámos o ferrolho. Eu não sabia bem com que finalidade. O ferrolho destinava-se a impedir a entrada de ladrões e malandrins, e não de uma força armada. Homens armados não teriam dificuldade em forçar a entrada pela biblioteca ou pela cozinha. Mas poderia conceder-nos tempo para descobrir quem eram e o que pretendiam. Na outra extremidade do átrio, para além da cortina de chuva, vi Betesda de pé com Diana nos braços, ambas olhando para mim com os olhos muito abertos.

 

As pancadas na porta foram tão súbitas e tão fortes, que eu recuei e quase tropecei. Meto segurou-me no cotovelo e acalmou-me. Eu olhei pelo postigo.

 

Catilina? murmurou Meto.

 

Não me parece. Tinha dificuldade em distinguir os rostos, por causa da escuridão e das sombras provocadas pelos capuzes. O homem que estava à porta voltou a bater, não com o punho, mas com uma coisa mais pesada que ressoou pela madeira o pomo de um punhal.

 

Escravos fugidos? disse Meto. Eu voltei a cabeça e vi que ele olhava para mim com o medo estampado nos olhos. Pus-lhe a mão sobre o ombro e cheguei-o a mim. O que tinha eu feito, levando a minha família para um lugar como aquele? Na cidade, sempre podemos ter esperança de fugir, de chamar pelos vizinhos, de nos escondermos por entre a selva de muros e telhados. A casa da quinta e os campos que a rodeavam pareceram-me subitamente um lugar muito vazio, aberto e indefensável. Tinha os meus escravos, mas que protecção podiam eles proporcionar-me contra um bando de cavaleiros armados?

 

O homem voltou a bater à porta. Eu falei através do postigo.

 

Quem são vocês? O que querem?

 

Um dos homens, que continuava montado, o chefe, presumi eu, fez um gesto ao outro homem, indicando-lhe que parasse de bater.

 

Queremos o homem que está aqui escondido! gritou ele.

 

Que homem? O que é que querem? Senti uma estocada de alívio. Era apenas um engano bizarro, pensei.

 

Catilina! gritou o homem. Entrega-no-lo!

 

Papá? Meto olhou para mim, confuso. Eu abanei a cabeça.

 

Catilina não está aqui gritei eu.

 

Catilina está aqui!

 

Papá, o que é que ele quer dizer?

 

Não sei. Olhei para Betesda, que estava de pé, hirta como uma estátua, com Diana agarrada ao seu pescoço com o rosto escondido. Voltei a falar pelo postigo. Quem vos enviou?

 

Como resposta, voltaram a bater à porta. De algures, chegou até mim o som de brados e de gritos. Olhei pelo postigo. Por trás dos homens a cavalo, vi uma confusão de figuras embrulhadas em capas correndo para dentro e para fora do estábulo.

 

No instante seguinte, ouvi o ruído de madeira a ser estilhaçada, proveniente do interior da casa. Voltei-me. Betesda olhava através da entrada na direcção da biblioteca e gritava. Apertou Diana ao peito com mais força, enquanto Diana se agitava, em pânico. Os homens estavam dentro de casa.

 

Eu corri para o átrio, deitando abaixo a braseira. Betesda agarrou-se a mim e Meto comprimiu-se contra as minhas costas. Arato surgiu vindo não sei de onde; o seu rosto era uma máscara de confusão e de medo. Ouviu-se outro embate vindo da cozinha e Côngrio correu até ao centro da casa, rugindo de medo.

 

Um relâmpago cortou os céus mesmo por cima da casa, lançando sobre todas as coisas uma mistura de luz perfeita e de sombras. Sem uma pausa, seguiu-se o trovão, um violento estampido que pareceu abalar o chão. Acalmou depois para um estrondo mais suave que rolou pela casa como um gigante a partir pedra. Por cima do ruído da chuva, ouvi o barulho de mesas a serem voltadas, o estalido das panelas de metal a serem atiradas ao chão, o som de potes a serem partidos. Vindos de ambos os lados da casa, homens entraram no átrio, empunhando longos punhais. Nós encolhemo-nos enquanto eles corriam para a porta da frente, a desaferrolhavam e a abriam para trás.

 

O chefe desmontou. Os seus pés espalhavam lama e água. Ele desembainhou o punhal e entrou dentro de casa, levantando os pés ao alto a cada passo para os libertar da lama recente. Era tão alto, que teve de se inclinar para passar pela entrada.

 

Passou pela braseira entornada, afastando-a do seu caminho com um pontapé.

 

Gordiano, o Descobridor? disse ele, gritando para se fazer ouvir por cima da chuva e do barulho de coisas atiradas e partidas que continuava a fazer-se ouvir pela casa. Diana começou a chorar.

 

Eu endireitei-me o mais que pude e puxei Betesda para mim. Meto saiu de trás de mim e colocou-se ao meu lado.

 

Eu sou Gordiano disse eu. Quem são vocês e o que pretendem?

 

Em consequência do capuz que ainda tinha posto, eu apenas conseguia ver a metade inferior do seu rosto. Ele riu-se abertamente. Queremos a raposa manhosa que viemos desenterrar. Onde está ele?

 

Se estás a falar de Catilina, ele não está aqui disse Meto com a voz ligeiramente quebrada.

 

Não me mintas, rapazinho.

 

Não sou nenhum rapazinho!

 

O homem riu-se. Eu reconheci aquele riso, embora não reconhecesse o homem; era o riso de satisfação dos homens que se dedicam à pilhagem e ao saque, o riso cruel e ladrado que surge no clímax de uma perseguição ou no fragor da batalha. Fiquei com o coração gelado.

 

Os homens continuavam a girar à nossa volta, com os punhais a relampejar por entre os reflexos da chuva. Alguns deles tinham tirado os capuzes. Eram em geral jovens de cara lavada, de olhos brilhantes e lábios fortemente apertados. Alguns rostos eram-me vagamente familiares. De onde é que eu os conhecia?

 

Meto aproximou os lábios do meu ouvido.

 

É a escolta de Cícero! murmurou ele. Naquele dia no Fórum...

 

O que é que estás aí a segredar? bramiu o homem. Onde é que o esconderam?

 

Catilina não está aqui disse eu.

 

Que disparate! Sabemos que este é o seu refúgio. Vimos a segui-lo desde Roma. O louco pensou que podia escapar sem ser visto! Viemos buscá-lo... de uma maneira ou de outra.

 

Ele não está aqui. Pelo menos não está dentro de casa. Talvez esteja no estábulo...

 

Já revistámos o estábulo! Entreguem-no-lo!

 

Um dos companheiros aproximou-se a correr e segredou-lhe qualquer coisa ao ouvido.

 

É impossível! gritou ele. Estão a escondê-lo em qualquer sítio.

 

Mas eles eram pelo menos dez homens disse o outro numa voz tensa. E impossível esconder dez homens e dez cavalos numa casa como esta...

 

Dez homens e nove cavalos disse o chefe. Esqueces-te daquele que encontrámos a vaguear na estrada. Voltou-se para mim. Há horas que vimos a persegui-lo. Tinha bastante avanço quando partimos, mas não demorámos muito a aproximar-nos. Embora a noite estivesse preta como breu e molhada como um lago. Quando vínhamos a subir a estrada, houve uma abertura por entre as nuvens, um buraquinho muito pequenino, e avistámo-los à nossa frente à luz das estrelas, pareciam formigas na passagem entre a montanha e a cumeeira. Depois a abertura no céu fechou-se e a escuridão voltou a engoli-los. Quando os apanhámos, eles tinham desaparecido à excepção de um cavalo solitário, que vagueava pela estrada sem cavaleiro. Seria o de Catilina, depois de o ter lançado ao chão? Foi por isso que pararam aqui, pensando que estariam a salvo e que nós continuaríamos sem parar? Onde está ele? Entreguem-no-lo!

 

O homem gritava, mas o desespero que detectei na sua voz fez-me sentir mais seguro do que quando se rira. Deixara de ser um caçador no êxtase da matança, disposto a fazer fosse o que fosse; era agora um perseguidor ensopado e coberto de lama que fora enganado. Estava furioso, mas também se sentia profundamente infeliz. E começava a ficar esgotado.

 

Foi desse esgotamento que eu tentei aproveitar-me, fazendo eco dele na minha voz.

 

Catilina não parou aqui esta noite. Não achas que eu te diria se isso tivesse acontecido? Não tenho sido tão leal ao cônsul como tu? Se sabes o meu nome e se sabes que no passado Catilina se refugiou aqui, também deves saber o papel que desempenhei a pedido de Cícero. O que vai ele pensar quando souber da confusão que vocês espalharam pela minha casa, do temor que infundiram à minha família? Catilina não está aqui, já te disse! Há muitos dias que não o vemos. Ele escapou-te. Se esperas apanhá-lo, o melhor é retomares imediatamente a Via Cássia.

 

O homem bateu com o pé e estremeceu de raiva, pensei eu, depois percebi que tremia por causa do frio. Deitou o capuz para trás e passou as mãos pelo cabelo ensopado. Apesar da sua altura, era bastante jovem.

 

O tumulto dentro de casa fora acalmando gradualmente. Os homens começaram a reunir-se à nossa volta no átrio, à espera do que viria a seguir.

 

O chefe olhou para mim de sobrolho franzido.

 

Ontem de manhã, os partidários de Catilina tentaram assassinar o cônsul. Foram a casa de Cícero ao nascer do dia, fingindo que iam fazer uma visita social, pensando que podiam convencer os escravos a deixá-los entrar para depois caírem sobre ele com os seus punhais. Mas o cônsul estava alerta e não os deixou entrar.

 

Se eu tivesse tido a mesma sorte e tivesse conseguido impedir a entrada de homens armados em minha casa, pensei eu, mas mordi a língua.

 

Hoje, Cícero reuniu o Senado no Templo de Júpiter e expôs os crimes de Catilina contra o Estado, com todos os pormenores... dizem que foi um discurso de tal maneira vibrante, que ia deitando abaixo o templo! Catilina estava encostado a um canto rodeado dos seus confederados, e todos os senadores com uma ponta de patriotismo o evitaram. Sempre que ele tentava falar, impediam-no. Ele viu o que o destino lhe reservava. Esta noite, o coelho assustado saiu da toca.

 

Há bocado chamaste-lhe raposa resmungou Meto, mostrando-se tão ríspido com o forasteiro como às vezes se mostrava comigo. Eu contive a respiração.

 

Chamei? Bem, tanto faz. Não tarda a ser esfolado, e o pêlo de um coelho é tão bom como o de uma raposa. Voltou-se para os seus companheiros. Procuraram em todas as dependências? Deram a volta aos currais?

 

O homem acenou com a cabeça.

 

Não há sinais dele, nem sequer há marcas recentes de cascos na lama.

 

O homem voltou a pôr o capuz e fez um gesto aos outros para que voltassem a montar.

 

Rápido! disse ele.

 

Enrolou-se bem na capa e olhou para mim com gravidade.

 

Se Catilina regressar, não voltes a dar-lhe comida e abrigo. O tempo dos fingimentos acabou. Catilina em breve estará morto, ele e os seus seguidores. Ninguém o teria dito mais eloquentemente do que Cícero o disse hoje no Senado, mesmo em frente de Catilina: ”O tempo da punição aproxima-se. Vivos ou mortos, colocá-los-emos em chamas sobre o altar dos deuses, para sofrerem o seu interminável castigo!”

 

Não, não, não! disse Betesda. Nenhum de vocês vai sair! Mas vocês estão loucos?

 

Pouco depois de os homens terem partido, e tendo nós verificado que eles tinham regressado à Via Cássia e voltado para norte, Meto e eu começámos a preparar-nos para sair. Éramos um só pensamento e uma só intenção, e ambos tínhamos chegado à mesma conclusão, mesmo sem falar; era agradável voltar a estar de acordo com o meu filho. Esse sentimento de satisfação contribuiu bastante para atenuar o choque do que acabava de acontecer.

 

Mas Betesda não estava atenuada. Olhava para nós com a mão pousada no ombro de Diana e apertando a filha contra si.

 

Tira já essa túnica pesada, marido! Meto, tira essa capa! Onde é que vocês pensam que vão?

 

Se Catilina e o seu grupo foram vistos a passar entre a montanha e a cumeeira... disse Meto, ignorando-a.

 

E desapareceram subitamente... disse eu.

 

E depois um dos cavalos apareceu sem cavaleiro...

 

Devem ter-se refugiado algures à beira da estrada.

 

Aquele espaço aberto escondido por trás da rocha grande... seria suficiente para esconder nove cavalos? disse Meto.

 

Acho que sim. Em breve saberemos.

 

Não vais convidá-lo cá para casa! disse Betesda com firmeza. E se os perseguidores desistirem da perseguição e regressarem? Se voltassem e o encontrassem aqui... ouviste o que disse o homem: não voltes a dar-lhe comida nem abrigo. Pensa na tua filha! Ela apertou Diana contra si com mais força.

 

Comida! disse Meto. Quase me esquecia. O que podemos levar-lhes?

 

Proibo-te! disse Betesda.

 

Mulher, pensa no elegante Catilina e no belo Tongílio. Queres que eles fiquem pele e osso por falta de alguns víveres da cozinha de Côngrio?

 

Aparentemente, a minha facécia tocou a corda certa. Betesda vacilou e amoleceu.

 

Temos algum pão que foi cozido esta manhã disse ela de má vontade. E há muitas maçãs...

 

Eu vou buscar disse Meto. Betesda apertou os lábios.

 

Os homens hão-de estar molhados e cheios de frio. Um cobertor   ou outro...

 

Há cobertores na nossa cama disse eu.

 

Esses não! Temos outros, que estão gastos e precisam de ser remendados. Espera, vou buscá-los.

 

E foi assim que Betesda se deixou subornar para nos auxiliar.

 

Evitámos o caminho aberto que ia dar à Via Cássia, preferindo atravessar os campos e os pomares. O solo estava lamacento e era cada vez mais rochoso e desigual ao longo da base da cumeeira. Receei que um dos nossos cavalos tropeçasse no esterco e partisse uma perna, mas chegámos à estrada sem contratempos. As pedras do pavimento da Via Cássia, duras e lisas, juncadas de gotas de chuva, estalavam por baixo dos cascos dos cavalos. Não há nada tão bem feito e tão insensível aos elementos como uma boa estrada romana.

 

Dirigimo-nos ao trilho que descobríramos anteriormente. Eu tinha pensado que talvez fosse impossível detectá-lo no meio dos arbustos escuros e gotejantes, mas fomos directos a ele, com tanta facilidade que eu pensei que devíamos estar a ser guiados pela mão de um deus. Desmontámos e passámos por entre o tronco do carvalho e a grande rocha, não sem alguma dificuldade, porque Meto trazia presas às costas uma trouxa de maçãs e de pão e eu um volumoso rolo de cobertores. Puxámos os cavalos atrás de nós. Tal como eu esperara, a pequena clareira, escondida da estrada, estava cheia de cavalos presos a troncos de árvores, a pedras e a ramos.

 

Houve uma explosão de luz. O brilho claro e intenso perfurou os ramos nus e acendeu pequenas chamas nos olhos dos cavalos. Eles resfolegaram, empurraram-se uns aos outros, bateram com os cascos no chão. O trovão ribombou no alto. Os cavalos ergueram as cabeças e relincharam.

 

Contei-os. Eram nove.

 

O solo da pequena clareira era pedregoso e, em vez de se ter tornado um charco de lama, transformara-se num verdadeiro lago. Os cavalos estavam imersos em água até acima dos cascos. Os meus pés também estavam completamente submersos. A razão para tanta água era óbvia. O trilho que subia a encosta da montanha transformara-se num pequeno regato. Eu olhei para a água que corria, para a lama e para as rochas de ambos os lados do dique e abanei a cabeça.

 

Intransitável disse eu.

 

Mas Catilina e os seus homens devem ter trepado disse Meto.

 

Mas nós estamos carregados com estas maçãs pesadas e estes cobertores incómodos...

 

Meto ajustou a carga que levava às costas e começou a trepar o caminho inclinado e coberto de água com a segurança de uma corça.

 

Anda, Papá! Não é tão difícil como parece.

 

Os ossos velhos quebram-se mais facilmente do que os novos resmunguei eu. E os pés idosos demoram mais tempo a equilibrar-se. Mas estava a falar sozinho, porque Meto já desaparecera à minha frente. Ergui os joelhos e pus um pé adiante do outro, tentando encontrar um percurso seguro entre as rochas incertas e a lama escorregadia.

 

Em que estava eu a pensar quando saí de casa? A resposta era simples: não tinha pensado. A excitação do assalto a minha casa confundira-me. O alívio por não ter sido assassinado na minha própria casa obnubilara por completo a recordação da agonia da anterior subida por este velho caminho. Se ela fora difícil na vez anterior o caminho estava coberto de ervas, era rugoso e absurdamente inclinado, era agora duplamente difícil por causa da chuva, e os fardos que transportávamos duplicavam novamente a dificuldade. Eu tinha a cabeça a latejar, os pés transformados em chumbo não estavam apenas pesados e incapazes de reagir, estavam desajeitados, tropeçavam em seixos soltos e escorregavam na lama traiçoeira. Comecei a perceber que a subida não era apenas tremendamente cansativa, era também perigosa. Havia uma possibilidade muito real de escorregarmos e caírmos pelo arroio abaixo, sem controlo, durante bastante tempo. Se eu partisse a espinha, Betesda repreender-me-ia ou consolar-me-ia?

 

A descida seria ainda mais perigosa, pensei eu, mas depois afastei esse pensamento. Entretanto, Meto avançava à minha frente, ágil como uma cabra e indiferente à chuva como um pato.

 

Finalmente, chegámos à primeira abertura, onde o caminho ia dar à extremidade da estrada que vinha da casa de Gneu e havia um carreiro que prosseguia montanha acima. O espaço aberto e coberto de lama estava muito pisado, o que constituía uma prova da passagem de Catilina por ali.

 

Eu encolhi e estiquei os ombros, que me doíam por causa da subida e do peso dos cobertores. A questão agora disse eu é se voltamos à esquerda ou à direita.

 

Meto ficou surpreendido.

 

À direita, claro, em direcção à mina.

 

Achas que sim? Uma ligação secreta entre Gneu e Catilina poderia explicar muita coisa. O assassínio de Fórfex, por exemplo.

 

Como é que isso pode ser?

 

Não sei, mas estou cheio de frio, todo molhado e demasiadamente cansado para pensar no assunto. E se Catilina enganou os seus perseguidores, não para se dirigir à caverna, mas para ir ter a casa de Gneu sem ser detectado?

 

Meto abanou a cabeça. Julgo que também revirou os olhos, mas não tive bem a certeza, por causa da escuridão.

 

No entanto, parecia-me que ele tinha razão e que as minhas suspeitas eram infundadas, porque na estrada que conduzia à casa de Gneu não se viam pegadas na lama. Voltámo-nos e dirigimo-nos ao caminho que ia dar à mina.

 

Ouvimos o rugido da queda de água muito antes de chegarmos junto dela. Um vislumbre da cascata por entre as árvores mostrou-nos que a corrente aumentara bastante de volume. Os degraus de pedra por onde subimos, aguçados e escorregadios por causa da chuva, eram uma espécie de teste traiçoeiro feito por um deus mal-humorado. Com os cobertores presos às costas, eu tinha de subir os degraus com a lentidão e a cautela de um velho aleijado.

 

Meto chegou lá acima muito antes de mim. Finalmente, eu subi o último degrau e coloquei-me ao lado dele. Quando ele olhou para mim, entrevi, pela primeira vez naquela noite, uma sugestão de dúvida nos seus olhos.

 

A perspectiva era suficiente para fazer vacilar qualquer homem. O leito do rio, que estava quase seco quando o atravessámos pela primeira vez, era agora uma corrente de água que nos dava pelas coxas. Apenas alguns metros à nossa esquerda, atingia a cascata e caía sobre o precipício com um rugido cavo.

 

Meto olhou para a corrente e mordeu o lábio.

 

Eu sempre tive aversão à água. Não sei nadar. Certa vez, em Cumas, tive uma experiência desagradável ao tentar abrir caminho até uma caverna marítima. Entre um teste pelo fogo e um teste pela água, escolheria o primeiro sem a menor hesitação. Mas nesta noite não tinha alternativa.

 

Enquanto Meto se mantinha atrás de mim, eu avancei.

 

Papá, tem cuidado!

 

Foi um conselho avisado. A corrente puxava-me pelos tornozelos. O leito de pedra, cavado pela água que corria, era polido e sinuoso, marcado por bolsas profundas e cristas agudas. Fui avançando, tacteando o caminho com os pés.

 

Anda, Meto, toma a minha mão.

 

Ele permaneceu na margem, olhando para mim hesitante.

 

Anda, será mais fácil se atravessarmos juntos.

 

Ele voltou a hesitar. Percebi que ele não duvidava da minha avaliação, mas da sua própria coragem.

 

Talvez devêssemos voltar atrás, pensei eu, olhando para a água negra onde continuavam a cair gotas de chuva. Tínhamos iniciado a viagem movidos por um impulso. Uma reacção contra os brutais guarda-costas de Cícero empurrara-nos para Catilina sem qualquer objectivo real. Nada lhe devíamos; não éramos obrigados a levar-lhe comida nem cobertores, muito menos pondo em perigo as nossas vidas. E, no entanto, sem discutir o assunto, Meto e eu tínhamos tomado a decisão de partir. Eu suportara as dificuldades e os perigos da subida, e agora sentia relutância em voltar para trás.

 

Estendi a mão a Meto, quase desejando que ele se recusasse a tomá-la. Se ele ficasse ferido, eu não seria capaz de suportar essa dor. Ele hesitou mais um momento, depois agarrou o meu pulso e avançou para dentro da água fria.

 

Atravessámos em diagonal, opondo-nos à corrente. Eu apalpava o caminho com os pés e advertia-o de cada irregularidade. A meio do caminho, a corrente tornou-se subitamente mais forte e eu cambaleei um pouco. Meto apertou-me a mão com mais força. Eu olhei para o rosto traiçoeiro e negro do ribeiro, pensando que a minha apreensão de toda a vida quanto à água devia ser uma mensagem das Parcas. Elas tinham previsto o futuro e sabiam que o meu fim viria através da água, por isso tinham-me concedido o medo que dela tinha como uma espécie de advertência. O meu coração batia muito depressa.

 

Algo chocou com a minha perna. Olhei para baixo e vi um crânio, que fora arrastado da encosta da montanha. Ele girou por momentos, envolvido no remoinho provocado pela minha perna, depois foi apanhado pela corrente. Vi-o balançar furiosamente na água e depois cair na vertical sobre o bordo da cascata.

 

Papá! disse Meto ansiosamente.

 

Os meus pés estavam mais pesados do que nunca. Estava cansado, pensei, mas a verdade é que sentia que os meus pés estavam enraizados naquele ponto, como se estivessem moldados na pedra. Engoli com dificuldade e lutei para mexer os dedos. Finalmente, o meu pé levantou-se e arrastou-se ao longo da rocha, como um peixe tímido.

 

Fosse como fosse, chegámos finalmente ao outro lado. Meto largou-me o pulso, mas eu ainda consegui sentir os seus dedos a tremer. As minhas mãos também se agitavam.

 

Enquanto atravessávamos o ribeiro, eu tinha-me esquecido da chuva e do frio, mas quando nos encontrámos a salvo senti toda a força dos meus tormentos. Estava cansado, molhado e a tremer. E ainda tínhamos diante de nós uma subida longa e íngreme. Mas não podíamos voltar atrás; eu só voltaria a atravessar o ribeiro quando fosse absolutamente obrigado a fazê-lo.

 

Prosseguimos e chegámos ao trilho em ziguezague. Continuámos a arrastar-nos caminho acima, para trás e para diante enquanto ganhávamos altura. Finalmente, chegámos ao longo declive no alto da colina que dava para uma prega escondida da montanha. Aqui, a chuva diminuiu para um chuvisco e as nossas pegadas fizeram um chiado desagradável nos seixos soltos. Quando nos aproximámos da abertura da mina, tão escondida na escuridão que eu apenas pude adivinhá-la, murmurei a Meto que não fizesse barulho.

 

Mas a advertência foi tardia.

 

É uma experiência peculiar ver uma lança surgir da escuridão, directamente apontada a um ponto no meio do nosso nariz, entre os nossos olhos. Nem sequer nos apercebemos bem de que o objecto que se aproxima é uma lança o ângulo não o permite, porque apenas vemos um ponto brilhante que rodopia, iluminado pela luz vacilante das estrelas, que atravessa as nuvens esfarrapadas. E, contudo, percebemos o suficiente para nos esquivarmos sem demora!

 

Enquanto caía de joelhos, percebi que se tratava de facto de uma lança avistei a extremidade afiada e o longo cabo que a segurava. Ela fez um ruído agudo e sibilante ao passar por cima da minha cabeça, a que se seguiu um baque forte. Algo pareceu atingir-me as costas com um golpe duro que me fez oscilar; não consegui perceber o que era. Ao meu lado, Meto guinchou. O meu coração, que parara por completo, deu subitamente um salto e recomeçou a bater. Pensei que ele fora atingido, depois vislumbrei o seu rosto e percebi que o seu medo era todo por minha causa. Pusemo-nos ambos de joelhos e gatinhámos em direcção à vegetação baixa. Os arbustos tremeram violentamente em consequência do nosso assalto, e cobriram-nos de gotas de chuva.

 

Eu tentei mudar de direcção e voltar-me, mas compreendi que estava preso nos arbustos. Não fazia sentido, até que percebi que a lança tinha perfurado o rolo de cobertores que eu trazia às costas e ficara espetada, com o cabo aparecendo por cima da minha cabeça.

 

Era como se estivesse ferido, pois estava impossibilitado de manobrar. Meto cambaleou para o meu lado tentando agarrar a lança, ainda convencido de que eu estava ferido.

 

Amigos! gritei eu, esperando que a palavra chegasse antes de a lança seguinte ser lançada.

 

Houve um momento de silêncio, depois um relâmpago de luz rasgou o céu e incidiu na encosta da montanha. Aquela luz aparatosa, vi o lanceiro acocorado atrás de uma rocha por cima da entrada da mina, com o braço em posição de lançar uma segunda lança. Abaixo dele, à boca da mina, estava Catilina. Tinha o braço erguido e a boca aberta.

 

Pára! gritou ele.

 

O relâmpago terminou e o mundo ficou às escuras. Eu estremeci. A ordem fora tardia, pensei eu. A lança já estava a caminho. Nem Catilina, com toda a sua esperteza, podia apanhar uma lança no ar.

 

O estrépido longo e grave do trovão sacudiu a encosta, de tal maneira devastador que eu não consegui perceber se tinha sido atingido pela lança, ou não. Agachei-me, com as mãos sobre a cabeça. Momentos depois, uma mão tocou-me no ombro. Ergui os olhos. Uma luz distante lançava um brilho pálido e trémulo sobre o rosto sorridente de Catilina.

 

Gordiano! Estás com um aspecto pavoroso disse ele suavemente. Vem abrigar-te da chuva.

 

Do outro lado do muro que fora construído para impedir a entrada das cabras e das crias, o interior da mina estava escuro. Havia uma pequena fogueira, mas a maior parte da luz que ela emitia parecia ser engolida pelas sombras invejosas. Estes eram os seus domínios e a luz era uma intrusa.

 

Catilina agachou-se e estendeu as mãos para o fogo, para se aquecer.

 

Felizmente, conseguimos encontrar uns pedaços de madeira. Mas, quando eles acabarem, parece-me melhor não arrancarmos os suportes, porque o tecto pode cair-nos em cima. O fumo não é problema... quem construiu a mina teve a esperteza de abrir pequenos poços de ventilação. Crasso foi louco em não se interessar por esta propriedade. Eu bem lhe disse que valia o investimento. Mas ele disse-me que já se relacionara com este ramo dos Cláudios e que não queria voltar a fazê-lo. Olhou fixamente para as chamas. Bem, que mais há a dizer sobre Crasso? Abandonou-me.

 

Olha, Lúcio, eles trouxeram pão disse Tongílio, acocorando-se ao lado dele. E maçãs... podemos metê-las num espeto e assá-las no fogo, para comermos qualquer coisa quente! E um rolo de mantas. As de dentro estão quase secas.

 

Os outros elementos do grupo de Catilina mantinham-se escondidos na sombra. Alguns deles eram homens que eu já vira, nas ocasiões em que se tinham alojado no meu estábulo de um dia para o outro. Outros eram desconhecidos. Alguns parecia dormitarem, enquanto os olhos abertos dos seus companheiros brilhavam à luz do fogo. Pareciam mais velhos do que Meto, mas consideravelmente mais jovens do que Catilina ou do que eu. Estavam todos fortemente armados. Faziam turnos de vigília à entrada da mina.

 

Não me parece que corras perigo de ser descoberto, pelo menos esta noite disse eu. Numa noite como esta não andam cabreiros por aí e os homens que vinham a perseguir-vos desde Roma partiram. Depois de terem revirado a minha casa à tua procura, prosseguiram para norte.

 

A não ser que vos tenha seguido até aqui disse Catilina. Não havia nenhuma entoação de acusação ou de suspeita na sua voz, tratava-se apenas de uma constatação pragmática. Não cheguei até aqui para ser morto num buraco pelos guarda-costas de Cícero, pelo menos se puder evitá-lo. Enquanto estivermos aqui, estaremos vigilantes.

 

Tongílio estendeu-lhe uma maçã espetada num pau. Catilina sorriu.

 

Comida! Mantas! Também trouxeram uma banheira de água quente?

 

Queres acreditar que me esqueci?

 

Por Hércules, que pena! Seria delicioso, numa noite como esta, deitar-me contigo numa banheira de água a ferver e deixar correr as horas até de madrugada.

 

Meto animou-se.

 

Podíamos regressar a casa...

 

Eu fiquei hirto. Catilina reparou e abanou a cabeça.

 

Seria pouco prático e pouco seguro, Meto. Seria demasiado perigoso para ti e para a tua família. E também seria demasiado perigoso para mim. Não, acho que não poderemos voltar a tua casa, pelo menos enquanto esta crise não terminar. Pergunto a mim próprio como é que eles se lembraram de me procurar aí. Achas que Marco Célio me atraiçoou?

 

Ele viu a minha expressão, depois olhou para Meto, cuja expressão culpada era ainda mais pronunciada. Catilina apertou os lábios e uma sombra de dúvida atravessou-lhe o rosto.

 

Então foi Célio. Deve ter sido ele. Mas vocês não me denunciaram aos homens que me perseguiam; perceberam que eu estava aqui, mas não disseram nada. Pois não? Ele olhou inquieto para a boca da mina.

 

Não, Catilina. Viemos até aqui em segredo.

 

Ele suspirou e contemplou as chamas que dançavam por baixo da maçã espetada.

 

Perdoem-me. Nos últimos dias recebi alguns golpes duros. Homens que eu pensava que eram meus amigos voltaram-me as costas. Homens que eu nunca esperei ter de temer declararam-me que desejavam ver-me morto. Cícero! Possam os seus olhos apodrecer!

 

Possa a sua língua ficar preta! disse Tongílio, com uma veemência que eu nunca detectara nele. Pegou numa das maçãs e atirou-a a um muro próximo, onde ela explodiu contra a pedra.

 

A língua dele já é preta disse Catilina como bem sabemos depois de termos ouvido o lixo que hoje saiu da sua boca.

 

Então que seja comida pelos vermes! gritou Tongílio, que cerrou os punhos e começou a andar de um lado para o outro. Não havia espaço suficiente para a sua ira; momentos depois, ele aproximou-se do muro e deu um salto para o outro lado.

 

A chuva vai acalmá-lo disse Catilina, cujos olhos não se tinham desviado do fogo.

 

O meu filho Eco veio visitar-nos há uns dias disse eu. E contou-me que te sujeitaras voluntariamente a prisão domiciliária, em consequência de acusações ao abrigo da Lei de Plauto. Porque saíste de Roma? O que aconteceu?

 

Catilina desviou os olhos do fogo. Devido a um efeito das chamas, o seu rosto parecia simultaneamente divertido e ameaçador.

 

O mundo desfez-se pelas costuras e está a desmoronar-se rapidamente.

 

Isso é outro enigma?

 

Não. Por ti, Gordiano, dobrarei a língua e falarei sem subterfúgios. O teu filho Eco disse-te que eu estava em prisão domiciliária. Que mais te disse ele?

 

Que Cícero convencera o Senado a aprovar uma coisa chamada Decreto Radical em Defesa do Estado.

 

Sim, foi o mesmo instrumento que os antepassados deles utilizaram para se verem livres de Gaio Graco. Suponho que devia sentir-me lisonjeado. Claro que as provas que Cícero apresentou foram todas forjadas, da primeira à última.

 

Como?

 

Ele disse-lhes que eu planeava massacrar metade do Senado no vigésimo oitavo dia de Outubro. Como prova, apresentou cartas anónimas que tinham sido recebidas por certas pessoas, aconselhando-as a fugirem da cidade. Que raio de prova é essa? Sabes quem é que eu acho que escreveu essas cartas? Tiro, o secretário de Cícero, tão-esperto-que-ele-é, a ditado do seu senhor. O desprezível malandreco.

 

Não me digas mal de Tiro, Catilina. Tenho muito boas recordações dele, dos tempos em que me ajudou a investigar o caso de Sexto Róscio.

 

Isso foi há anos! Desde essa altura, tornou-se tão corrupto como o seu senhor. Os escravos seguem o caminho do homem a quem pertencem, sabes isso muito bem.

 

Deixa lá; dizias que as cartas tinham tido origem no próprio Cícero.

 

Achas que fui eu que as escrevi? Ou algum dos meus apoiantes, que queria avisar secretamente uns amigos antes de eu lançar um banho de sangue? Que disparate! Foi um plano concebido por Cícero com dois objectivos: criar um clima de histeria e de medo entre os senadores, que já estão dispostos a acreditar que alguém os quer assassinar e têm razões para isso e testar aqueles que receberam as cartas anónimas. Crasso foi um deles. Eu pensei que podia contar com ele se não com o seu apoio declarado, pelo menos com a sua discrição mas quando ele teve a oportunidade de me voltar as costas, não hesitou em agarrá-la. Para não ter problemas, para separar o seu destino do meu, foi a correr ter com Cícero, relatando-lhe a advertência contida na carta. Certamente sabia que ele vinha do próprio cônsul. Que farsa, ambos a representarem para benefício do Senado! Como é que um homem orgulhoso como Crasso pode permitir que Cícero o manipule desta maneira? Não te preocupes, mais cedo ou mais tarde, ele vinga-se do Homem Novo de Arpinum.

 

”Para manter os senadores num estado de histeria, Cícero fez outras revelações chocantes, todas baseadas na sua supostamente infalível rede de espiões e de informadores. Primeiro, declarou que, em determinado dia o vigésimo sétimo dia de Outubro o meu colega Mânlio pegaria em armas em Faesulae. E então? Há meses que Mânlio anda a treinar os veteranos de Sula, e isso não tem nada de ilegal. Mas, claro, no próprio dia que Cícero predissera, um dos senadores leu em voz alta uma carta que lhe tinham enviado, dizendo que Mânlio e os seus soldados tinham pegado em armas e começado a combater. A combater contra quem, onde? É tudo um disparate, mas Cícero acena gravemente com a cabeça e os senadores engolem em seco. Ele previu que isso aconteceria, e aconteceu mesmo. A carta é uma prova. Uma carta., estás a perceber? Outra obra de Tiro, ditada pelos lábios do próprio Cícero.

 

”Seguiu-se a escandalosa acusação de Cícero, de que eu planeava um ataque de surpresa à cidade de Praeneste nas Calendas de Novembro. Para defender a cidade contra esse ataque, Cícero convocou a guarnição de Roma... convenientemente, Praeneste é ali perto, para sul. Não houve ataque nenhum; o que não é de espantar, porque não havia planos nenhuns, e mesmo que houvesse, anunciar previamente um ataque secreto impede, por definição, que ele se concretize. Inchado como um sapo, o cônsul autoproclama-se o salvador de Praeneste... quando tudo aquilo não passou de uma fantasia! Que poderoso general, capaz de prever e prevenir ataques que nunca foram planeados!

 

”Nenhuma táctica é baixa de mais. Ele ordenou a dissolução das quintas de gladiadores de toda a Itália como se eu fosse o instigador de uma insurreição de escravos! Ofereceu enormes recompensas a quem quer que se apresentasse a denunciar a suposta conspiração se fossem escravos, a liberdade e cem mil sestércios; se fossem homens livres, duzentos mil sestércios e o perdão total! Até agora, ninguém se apresentou a reclamar estes prémios esplendorosos. Um tal silêncio é apenas a prova do medo que esses monstros inspiram aos seus agentes, diz Cícero... ignorando o facto óbvio de que não existe conspiração nenhuma para denunciar!

 

Catilina abanou a cabeça.

 

Quando um dos seus lacaios me fez acusações ao abrigo da Lei de Plauto, pensei que seria preferível submeter-me, dar uma prova de cooperação. Os meus inimigos sujeitaram-me a tantos julgamentos espúrios, que mais um não me assusta grandemente. Não que não tenha conseguido divertir-me um bocadinho à custa de Cícero. Iluminados pelas chamas, pareceu-me entrever um sorriso malicioso nos seus lábios.

 

O que queres dizer com isso?

 

Bem, fui directamente ter com Cícero e propus-lhe colocar-me sob a sua custódia! ”Se querem pôr-me em prisão domiciliária, disse eu, que seja em casa do próprio cônsul... em que outro sítio poderia eu ser mais fortemente vigiado e impedido de prosseguir a minha nefanda conspiração?” O embaraço de Cícero! Se eu era uma ameaça tão directa, era seu dever tomar-me sob sua custódia; por outro lado, como é que ele podia continuar a arengar acerca dos meus esquemas loucos se me tivesse seguro sob o seu tecto? Não lhe agradava, por isso ele recusou a minha proposta. Apesar disso, conseguiu retorcer as coisas para sua vantagem. ”Se não estava seguro vivendo na mesma cidade em que eu vivia, disse ele, como podia estar seguro comigo a viver em sua casa? Eu assassiná-lo-ia, a ele e a toda a sua família, se tivesse possibilidade de o fazer, com as minhas próprias mãos, se fosse preciso.” Outros também declinaram a minha proposta, fosse por terem receio de se associar a mim ou por temerem pela sua vida. Quando finalmente me entreguei ao cuidado de Marco Metelo, o homem mais imparcial que posso conceber, Cícero disse que eu me limitava a refugiar-me em casa de um dos meus apoiantes. Pobre Metelo! Agora escapei às suas mãos, e toda a gente vai pensar o pior dele.

 

Por que fugiste da cidade? disse Meto.

 

Porque hoje Cícero disse diante do Senado que queria ver-me morto... e disse-o claramente! Eu não tenho razões para duvidar dele. Fugi para salvar a vida.

 

Os homens que Cícero mandou atrás de ti contam outra história observei eu. Dizem eles que ontem de manhã tu mandaste homens a casa de Cícero para o assassinar.

 

Os homens que Cícero mandou atrás de mim não hesitarão em me assassinar, se me apanharem!

 

Mas aquilo que eles dizem... é verdade? disse Meto.

 

É   outra mentira! Ele deu um suspiro cansado. Cícero afirma que, há duas noites, eu me escapei da casa de Metelo e participei numa reunião secreta, onde maquinei um plano para o assassinar. Supostamente, dois dos meus amigos Gaio Cornélio e Lúcio Vargunteio deviam ir bater-lhe à porta de manhã fingindo que iam fazer-lhe uma visita, para poderem entrar em sua casa e depois o esfaquearem. Como se algum deles estivesse disposto a cometer um acto desses, sem qualquer esperança de escapar ou de provar ao Senado que tinha tido razão suficiente para o fazer! Mas Cícero é esperto; a meio da noite, convocou alguns senadores que ainda duvidavam do seu palavreado. ”Venham imediatamente a minha casa, disse-lhes”. ”O que poderá ser, perguntam eles, para ele nos acordar desta maneira?” Quando chegaram, havia lamparinas acesas por toda a casa, que estava cheia de guardas armados. Estás a ver como ele monta o cenário para explorar a credulidade destes homens, recorrendo ao melodrama barato? Conta-lhes que acabou de chegar um informador, que trazia informações terríveis: Catilina e os seus conspiradores estiveram reunidos naquela mesma noite numa casa da Rua dos Fabricantes de Foices, a conspirar o seu assassínio. Os agentes serão Gaio Cornélio e Lúcio Vargunteio, conhecidos apoiantes de Catilina e desordeiros famosos. ”Observem bem, diz ele, eles virão de manhã, resolvidos a derramar sangue. Sereis vós as minhas testemunhas.”

 

”E pronto, na manhã seguinte, Gaio Cornélio e Lúcio Vargunteio vão a casa de Cícero. Batem à porta; os escravos recusam-se a deixá-los entrar. Batem novamente, exigindo ser recebidos pelo cônsul. Os escravos debruçam-se das janelas e insultam-nos. Aparecem guarda-costas, que mostram o brilho do aço; Cornélio e Vargunteio dão meia volta e fogem.

 

”A previsão de Cícero realizou-se. As testemunhas assistiram a tudo. Mas o que viram elas? Dois homens, já em situação precária por serem associados comigo, que foram bater à porta de Cícero... não com a intenção de o matarem, mas porque foram levantados da cama por uma convocatória anónima, que dizia que, se tinham amor à vida, fariam bem em ir imediatamente a casa do cônsul! Sim, foi Cícero quem maquinou todo aquele episódio! Tudo aconteceu exactamente como Cícero pretendia, porque evidentemente Cornélio e Vargunteio chegaram agitados, temerosos e sem saberem exactamente o que os esperava, e quando depararam com insultos começaram rapidamente a mostrar-se também insultuosos e agressivos. Foram enganados e levados a desempenhar o papel de assassinos frustrados, e só se aperceberam disso quando hoje ouviram o discurso de Cícero no Senado, em que ele anunciou a sua história absurda de ter sobrevivido a uma conspiração para o assassinar e apontou para as supostas testemunhas respeitáveis, que acenaram com a cabeça expressando o seu acordo! O homem é um monstro. O homem é um génio disse Catilina amargamente. Estão a ver, quando no Verão passado ele usou pela primeira vez o truque de dizer que a sua vida corria perigo para tentar adiar as eleições pela segunda vez, ninguém acreditou nele; a sua escolta exagerada e a couraça que vestia por baixo da toga eram demasiadamente absurdas. Desta vez, inventou um truque mais astucioso e mais subtil. Quando hoje o ouvi contar aquela história no Senado, nem queria acreditar no que estava a ouvir. Não soube o que responder. Só posteriormente falei com Cornélio e com Vargunteio, e percebi o que se tinha passado. Não havia conspiração nenhuma para assassinar Cícero. Oh, não é que eu me importasse de o ver morto. Poucas coisas me agradariam mais...

 

Nada me faria mais feliz disse Tongílio, que reapareceu sem ruído ao brilho do fogo. Tinha a capa molhada e escorriam-lhe fios de água do cabelo em desalinho. A tempestade não dá sinais de acalmar; está a chover como nunca. O céu está em chamas com os relâmpagos. Olha, a tua maçã já está suficientemente mirrada., Lúcio. É altura de a tirares do fogo. Mas não a comas já, senão queimas a língua. Se eu pudesse incendiar a língua de Cícero! Olhou para a escuridão do túnel e riu-se da imagem que formara no espírito. A expressão de crueldade que tinha no rosto fazia aumentar ou desfigurava a sua beleza? O seu riso foi breve; ele começou a andar de um lado para o outro, incapaz de ficar parado.

 

Tongílio tem razões pessoais para se sentir amargurado disse Catilina em voz baixa. Cícero não hesitou em brandir o seu nome, chamando-lhe meu catamito. E curioso como criaturas assexuadas como Cícero adoram explorar os próprios pormenores de intimidade que afirmam considerarem repulsivos. Toda a gente sabe que Cícero despreza a sua mulher e que entregou a sua pobre filha em casamento ainda ela não tinha treze anos! Não é propriamente um amante de mulheres; não é propriamente um amante. Mas está disposto a ridicularizar Tongílio sem o menor vislumbre de vergonha. Desavergonhado, assexuado; as cavidades no carácter de Cícero que deviam conter essas qualidades estão preenchidas com arrogância e despeito.

 

O que aconteceu hoje no Senado, Catilina? disse eu.

 

Eu fui informado de que Cícero planeava fazer um discurso contra mim. Não podia propriamente estar ausente, pois não? Pensei que poderia defender-me e mostrar que ele era um tolo. Suponho que essa foi a minha hubris, pensar que poderia igualar-me a ele em palavras; agora, os deuses castigaram-me por causa disso.

 

”Não houve nenhum discurso formal. Cícero gritou; eu gritei; os senadores mandaram-me calar aos gritos. Dei por mim abandonado, praticamente sozinho, à excepção da mão-cheia dos meus íntimos. Julgo, Gordiano, que não saberás a vergonha que é ser evitado pelos próprios colegas daquela maneira. Implorei-lhes que se recordassem do meu nome Lúcio Sérgio Catilina. Eneias tinha um Sérgio ao seu lado nome quando fugiu de Tróia em chamas e regressou a Itália. Somos uma das mais respeitadas famílias de Roma desde as suas origens. E quem é Cícero? Quem é que alguma vez ouviu falar da família Túlio, de Arpinum, uma cidade com uma taberna e duas pocilgas? Ele é um metediço, um intruso, pouco melhor do que um estrangeiro! É um imigrante... foi o que eu lhe chamei cara-a-cara! Palavras fortes, Catilina.

 

Nem por isso, tendo em conta que ele estava a fazer ameaças à minha vida! ”Por que continua vivo este homem?”... foram as suas palavras no Senado. Apresentou exemplos do passado distante em que o Senado condenou reformadores à morte e troçou dos presentes, dizendo que lhes faltava a fibra moral para fazer a mesma coisa. Mencionou as leis que impedem um cônsul ou o Senado de executar um cidadão, e declarou que eu estava fora do alcance dessas leis, que era um rebelde e deixara de ser um cidadão. Estava a incitá-los a assassinarem-me! Como alternativa, mandar-me-ia exilar, juntamente com todos os meus apoiantes. ”Pega na tua canalha e sai daqui”, disse ele. ”Livra Roma da tua pestilência e deixa-nos em paz.” Uma vez e outra, deixou claro que eu tinha de escolher entre sair da cidade ou ser assassinado.

 

”Claro que não conseguiu resistir a repetir as mais perversas e dolorosas mentiras sobre mim, na minha cara e diante dos meus colegas. Fez novamente alusões escarninhas à minha depravação sexual; fez novamente a horrível insinuação de que eu matei o meu filho. Queria provocar-me, fazer-me perder a cabeça. Odeio admitir que conseguiu. Eu comecei por negar calmamente todas as acusações e acabei a gritar com toda a força... a gritar para ser ouvido por cima dos escárnios dos meus colegas.

 

”Quando Cícero insinuou que todos os seus inimigos deviam ser fechados num campo, eu não aguentei mais. ”Que as opiniões políticas de todos os homens sejam escritas na sua testa, para toda a gente ver!” disse Cícero. ”Para quê?” disse eu. ”Para te ser mais fácil escolher as cabeças que hás-de cortar?”

 

”Ao ouvir isto, o interior da câmara rugiu como o oceano numa tempestade. Mas Cícero treinou a sua voz para se erguer acima de qualquer ruído que os homens ou a natureza possam produzir. ”O tempo da punição aproxima-se”, gritou ele. ”Os inimigos de Júpiter, em cujo templo nos encontramos reunidos, serão reunidos e sacrificados no seu altar. Vivos ou mortos, incendiá-los-emos... vivos ou mortos!”

 

”Houve um tal rebuliço, que eu temi pela minha vida. Ergui-me, fiz a expressão mais digna que consegui, e dirigi-me para as portas. ”Estou rodeado de inimigos”, gritei. ”Sou perseguido até ao desespero. Mas digo-vos o seguinte: se acenderem um fogo para me consumir, eu apagá-lo-ei... não com água, mas com a destruição!”

 

A sua voz tremia de emoção. Tinha os olhos brilhantes. Eu nunca o vira tão despido da sua compostura. Tongílio ajoelhou-se ao seu lado e pousou-lhe uma mão no ombro. Deixámo-nos ficar em silêncio durante muito tempo. A fogueira precisava de ser estimulada, mas ninguém se mexia.

 

Finalmente, eu falei.

 

Estás a dizer-me, Catilina, que és completamente inocente das acusações de conspiração? Que as tuas discretas idas e vindas, a tua aliança com todos os descontentes da cidade, a tua ligação militar a Mânlio... que essas coisas só existem na imaginação febril de Cícero? Estás a dizer-me que não tens qualquer intenção de derrubar o Estado?

 

Os seus olhos reflectiam a luz da fogueira, mas também pareciam iluminados a partir de dentro.

 

Não faço afirmações de falsa inocência. Mas digo-te que os meus inimigos me manipularam, conduzindo-me a uma posição em que não me restam alternativas. Sempre trabalhei dentro do sistema político do Estado romano. Sofri a indignidade de julgamentos espúrios, fiz compromissos intermináveis com homens como César e Crasso; submeti-me a campanhas eleitorais de fealdade feroz. Por duas vezes concorri a cônsul; por duas vezes os Optimates maquinaram a minha derrota. Ninguém pode dizer que eu considerei a possibilidade de recorrer à violência enquanto me restavam recursos legítimos. A República está de rastos, é uma pilha titubeante de tijolos prestes a cair, com os Optimtes ciosamente sentados no topo. Quem a derrubará? Quem pegará nos pedaços, voltando a dar-lhe forma a seu bel-prazer? Por que não hei-de ser eu, e por que não hei-de usar todos os instrumentos que forem necessários para isso?

 

”Sim, há algum tempo que considero a possibilidade da violência, mas dizer que preparei uma conspiração é absurdo. Tenho-me encontrado secretamente com amigos; tenho consultado Mânlio acerca da prontidão e da lealdade das suas tropas. Chama-lhe conspiração, se quiseres, mas até agora não passou da vaga expressão de uma vontade partilhada de introduzir mudanças, sem que haja um consenso sobre a maneira de o fazer. Mânlio está ansioso por usar os seus veteranos. Lêntulo defende que se incitem escravos à revolta, uma insanidade que eu rejeito absolutamente. Cetego, sempre excitado, preferia incendiar Roma. Ele abanou a cabeça. Sabes qual é o meu sonho? Penso nas antigas revoltas dos plebeus, quando eles se juntavam e caminhavam sobre Roma para reclamarem os seus direitos e os patrícios eram obrigados a enfrentá-los sozinhos, e por fim cediam às suas exigências.

 

Se eu pudesse atrair a mim todos os descontentes os pobres, os endividados, aqueles que não têm poder... e obrigar os Optimates a ajoelharem-se sem derramar uma só gota de sangue, fá-lo-ia. Mas isso é apenas uma tolice sentimental; os Optimates nunca cederão nem uma migalha do seu poder. Os chefes de uma retirada pacífica seriam massacrados e os seus seguidores reduzidos à escravatura.

 

”Foi Cícero quem conduziu as coisas a uma situação de crise. Onde não havia provas de conspiração, ele inventou-as. Quando os meus partidários e eu adiámos as coisas, ele foi obrigado a tomar posição. Fez uma aposta; ou morre ele, ou morremos nós, e não haverá terreno intermédio. Ele provocou um conflito prematuro, que serve os seus próprios interesses. Ele acha que, se conseguir destruir-nos agora, enquanto é cônsul, terá alcançado a verdadeira grandeza; o povo amá-lo-á, os Optimates beijar-lhe-ão os pés, ele será o salvador de Roma.

 

”Contudo, ainda agora eu hesito. Pelo seu discurso, pelas suas exigências repetidas de que eu parta para o exílio, pergunto a mim próprio se Cícero se satisfaria com isso. Se isso acalmaria o seu apetite pelo poder. Se isso seria um feito suficientemente grandioso para o Homem Novo de Arpinum, ter salvo Roma de uma conspiração que nunca existiu e ter obrigado um perigoso rebelde a exilar-se antes mesmo de ele ter tido oportunidade de se rebelar!

 

Então estás disposto a exilar-te? disse Meto, aproximando-se mais do fogo. Ou vais pegar em armas?

 

O exílio... disse Catilina, não como resposta, mas como se estivesse a testar a qualidade da palavra. Antes de partir de Roma, enviei cartas a diversos homens de posição... antigos cônsules, patrícios, magistrados. Disse-lhes que partia para Massilia, na costa sul da Gáulia... não como um homem culpado que fugia à justiça, mas como um amante da paz ansioso por evitar uma guerra civil e impossibilitado de se defender contra perseguições e acusações inventadas. Podia ir para Massilia... se eles mo permitirem, se não bloquearem as passagens para a Gália. Pegar em armas... não estou preparado, ainda não tenho a certeza. Cícero provocou a crise para sua vantagem; fez de mim um fugitivo contra a minha vontade. Quer que eu aja de forma desesperada e que, ao fazê-lo, tropece.

 

E a tua mulher? disse eu.

 

Ele voltou o rosto, para que o fogo não pudesse continuar a iluminá-lo.

 

Entreguei Aurélia e a sua filha aos cuidados de Quinto Catulo. Ele é um homem de confiança dos Optimates, mas é um homem honesto. Ela estará segura com ele, aconteça o que acontecer; ele não lhe fará mal, e ninguém poderia acusá-lo de estar conluiado comigo.

 

A tempestade piorou. No exterior da mina, o vento gemia como um coro de lémures aos gritos. Os relâmpagos e os trovões martelavam a montanha, fazendo-a estremecer como a pele de um tambor. A água descia a encosta inclinada em grandes lençóis, levando consigo árvores desenraizadas e destroços de rochas. Betesda devia estar louca de preocupação, pensei eu, e senti um baque de temor. Com uma tempestade como esta, até os obstinados perseguidores de Catilina poderiam ter voltado atrás. E se eles tivessem ido procurar abrigo em minha casa, descobrindo a minha ausência? Deduzir as consequências destes pensamentos impedia-me de dormir.

 

As horas passavam agitadamente. Os homens de Catilina tentavam dormir por turnos, enrolando-se nos cobertores que eu trouxera e encostando-se uns aos outros para se aquecerem. A vigilância da entrada abrandou; nem um Titã se teria atrevido a escalar a montanha e a atacar-nos numa noite como aquela. Catilina estava sentado encostado a um muro de pedra. Tongílio estava enrolado num cobertor ao seu lado, com a cabeça pousada no regaço de Catilina. O rosto de Catilina estava mergulhado nas sombras, mas eu percebi que ele mantinha os olhos abertos; de vez em quando, o brilho das chamas incidia neles.

 

Meto dormitava, mas a certa altura abriu os olhos e ficou completamente acordado. Olhou fixamente para qualquer coisa colocada em cima de uma rocha, encostada a um dos muros. O pano em que estava embrulhada tinha-se soltado, deixando ver o brilho da prata.

 

O que é aquilo? murmurou ele, levantando-se e dirigindo-se ao objecto com uma expressão estranha.

 

Catilina voltou lentamente a cabeça.

 

É a águia de Mário disse ele em voz baixa.

 

Eu espreitei no meio do escuro. Era uma águia com o bico levantado e as asas abertas. Se não fosse o brilho da prata, podia perfeitamente ser uma ave real, imobilizada em glória. Meto estendeu a mão para a alcançar, quase lhe tocando com as pontas dos dedos.

 

Mário levou-a consigo na campanha contra os Címbrios, quando tu e eu éramos miúdos, Gordiano.

 

É absurdamente pesada murmurou Tongílio sonolento. Eu sei, porque fui eu que a carreguei montanha acima.

 

Catilina despenteou o cabelo do jovem e depois afagou-o suavemente.

 

Se chegar a haver uma batalha, tenciono colocá-la no topo de uma viga, como meu estandarte. É um objecto extraordinário, não é?

 

Como é que chegou às tuas mãos?

 

Isso é uma longa história.

 

A tempestade não vai parar tão cedo. Temos toda a noite.

 

Basta que te diga que me chegou às mãos por intermédio de Sula, durante as proscrições. É uma história sangrenta. Cícero contou ao Senado que eu a guardei em minha casa como uma espécie de relicário e que me inclinava diante dela em adoração antes de dar início aos meus crimes. Até a prata pura ele embacia com o ácido da sua língua.

 

Uma águia disse Meto voltando-se para mim, de maneira que a luz da fogueira, reflectida na prata, iluminou o seu rosto como se fosse uma estranha máscara.

 

Sim murmurei eu, sentindo-me subitamente cheio de sono.

 

É uma águia, Papá... não estás a perceber?

 

Sim, é uma águia disse eu, fechando os olhos.

 

   A tempestade levantou subitamente, revelando um céu coberto de nuvens esfarrapadas como flâmulas dilaceradas, iluminadas por trás pelo brilho cor de laranja pálido dos primeiros raios da madrugada. Os homens de Catilina ergueram-se, reuniram as suas coisas e ajudaram-se uns aos outros a escalar o muro que bloqueava a mina. As únicas provas da sua estada que deixaram para trás foram umas crostas de pão e uns caroços de maçã, pedaços de carvão e o cheiro picante de um fogo a lenha.

 

O caminho estava coberto de pequenas rochas e ramos partidos, mas estes eram impedimentos menores. Para mim, as dores que eu tinha nas pernas foram uma contrariedade maior. Depois de ter trepado à montanha, os meus joelhos tinham-se transformado em dobradiças ferrujentas e os meus tornozelos em madeira estilhaçada. Quando eu era rapaz, o meu pai dizia-me que era uma piada dos deuses que descer uma colina fosse mais doloroso do que subi-la. Nessa altura, eu não o compreendia. Agora, olhando para os homens mais jovens do que eu que me rodeavam e que tinham vindo a cavalo desde Roma, tinham dormido mal numa mina húmida e trotavam caminho abaixo com sorrisos no rosto, compreendi-o perfeitamente. Cada passo que eu dava fazia com que um pequeno raio palpitante me atravessasse os joelhos.

 

Pensei atemorizado na corrente dilatada do ribeiro. Tal como eu receara, estava mais turbulenta do que antes, ou pelo menos assim parecia à luz da madrugada, que salientava cada turbilhão de espuma e cada orifício traiçoeiro. Mas a tarefa foi facilitada pelo facto de sermos muitos. Ligando os braços e agarrando os pulsos uns dos outros, formámos uma cadeia mais forte do que as águas. Os jovens do grupo de Catilina pareciam deliciados por estarem mergulhados em água gelada até às coxas. Eu suportei a travessia o melhor que pude e ri-me com eles, quanto mais não fosse para evitar que os dentes me batessem.

 

No ponto onde o caminho divergia e em que uma parte dava para a casa de Gneu e a outra seguia para baixo, para a descida íngreme e coberta de obstáculos que ia dar à Via Cássia, eu chamei Catilina à parte.

 

Que caminho seguimos aqui? perguntei eu. Ele ergueu uma sobrancelha.

 

Descemos o caminho por onde viemos, claro. Os seus homens esperavam por ele à entrada do estreito trilho. Ele fez-lhes sinal para que avançassem. De outra forma, acabaríamos passando em bicos de pés junto da casa daquele teu vizinho horroroso, com todos os seus cães. Certamente te recordas...

 

Recordo-me. Mas também de outras coisas.

 

Gordiano, o que estás a querer dizer?

 

Não deves voltar a minha casa. Os teus inimigos estarão à espreita...

 

Compreendo.

 

A minha família... tenho de pensar na sua segurança.

 

Claro. E eu tenho de pensar em manter a cabeça em cima dos ombros!

 

Catilina, chega de piadas e de enigmas!

 

Ele espelhou a minha expressão de aborrecimento na sua.

 

Gordiano...

 

Lúcio, vens? Tongílio estava à espera à entrada do trilho, com Meto ao seu lado.

 

Vai andando disse Catilina por cima do ombro, num tom jovial. O velhote tem de descansar as pernas por momentos.

 

Tongílio apertou os lábios, pensativo, depois acenou com a cabeça e desapareceu. Meto seguiu-o, mas só depois de me olhar de frente e de hesitar tempo suficiente para ser convidado a juntar-se a nós. Finalmente, seguiu Tongílio, de sobrolho franzido. Porque tinha ele de considerar tudo aquilo que eu fazia como uma afronta pessoal?

 

Muito bem, Gordiano, o que se passa?

 

Desde que Marco Célio me abordou, pedindo-me que te recebesse em minha casa, passaram-se estranhas coisas na minha quinta. A primeira foi um corpo sem cabeça que apareceu no meu estábulo. Fiz uma pausa e estudei o seu rosto. Ele limitou-se a olhar para mim sem expressão. Depois apareceu-me outro corpo no poço...

 

Sim, falaste-me disso. O pobre cabreiro que nos mostrou este caminho. Como é que ele se chamava?

 

Não, como é que tu lhe chamavas?

 

O que queres dizer?

 

Como é que chamavas ao pobre Fórfex? Ele era teu espião, teu confederado, teu joguete? Porque morreu ele? Por que lhe cortaram a cabeça antes de o lançarem ao meu poço?

 

Catilina olhou para mim gravemente.

 

Estás a ser injusto comigo quando me fazes essas perguntas, Gordiano. Não faço a menor ideia do que estás a falar.

 

Eu inspirei.

 

Não tens nenhuma relação secreta com Gneu Cláudio?

 

O teu desagradável vizinho? Só vi o homem uma vez, e foi quando estava contigo! Depois disso, falei a Crasso da mina, aconselhei-o a fazer uma oferta sobre esta propriedade, mas como já te disse ele não se mostrou interessado em tratar com os Cláudios. Por isso, nunca mais lá fui.

 

Mas vieste esconder-te na propriedade de Gneu.

 

Sem ele saber. Embora não por muito tempo, se nos mantivermos por aqui; não tarda um dos seus cabreiros vir até cá acima e dar o alarme. Quando vi a mina pela primeira vez, percebi que seria o lugar ideal para me esconder, especialmente se Crasso comprasse a propriedade. Claro que isso assentava no postulado de Crasso se manter leal. Os seus olhos brilharam de amargura. Contudo, acabou por ser um sítio útil, não foi? Quanto a esses estranhos acontecimentos que tiveram lugar na tua quinta, o que têm eles a ver comigo?

 

Tiveram lugar em momentos determinantes, em que eu resisti à pressão de Célio para te acolher.

 

Pressão? Estás a dizer-me que nunca quiseste acolher-me?

 

Eu abanei a cabeça, sem vontade de falar. Como podia eu dizer-lhe que a ideia tinha tido origem em Cícero?

 

Gordiano, eu nunca disse a Célio que insistisse contigo para que me recebesses. Célio disse-me que tinhas todo o prazer nisso.

 

Mas o enigma que propuseste ao Senado acerca das massas sem cabeça e do Senado com o seu corpo definhado. A coincidência dos corpos sem cabeça que apareceram na minha quinta...

 

Gordiano, estás a querer dizer-me que, ao longo de todo este tempo, só me recebeste porque Célio te obrigou? Bem, então aí tens o teu vilão. Alguém disse aos homens de confiança de Cícero que me fossem procurar à tua quinta a noite passada: Célio, obviamente. Ele deve ter sido sempre leal a Cícero. Por Júpiter, quando penso nas confidências que lhe fiz... Ele lançou a cabeça para trás com uma expressão de dor. Quer dizer, Gordiano, que não tens qualquer afecto pela minha causa? Que estavas apenas a cumprir ordens de Célio quando me recebeste em tua casa?

 

Agora era a minha vez de imitar a sua expressão de consternação. Poderia ter dito que sim sem mentir, mas a verdade deixara de parecer tão simples como isso.

 

Deixa lá disse ele. O importante é que ontem à noite não me atraiçoaste, quando tiveste a possibilidade de o fazer. A não ser que...

 

Ele olhou para o trilho e empalideceu. A não ser que Tongílio e os outros estejam a descer ao encontro de uma emboscada!

 

Levou a mão ao punho da espada. Eu senti um arrepio de pânico. Ele voltou-se para mim com a morte nos olhos, e pela primeira vez eu apercebi-me da profundidade do seu desespero. Lúcio Sérgio Catilina era um patrício, que nascera no meio dos privilégios e da respeitabilidade. A confiança era para ele um direito de nascença e o valor mais elevado a confiança nos deuses, a confiança na imutabilidade da sua posição, a confiança no respeito dos outros cidadãos; mas também a confiança na invencibilidade do seu encanto nato. Agora, estas camadas de confiança tinham sido deslocadas uma após outra; ele fora traído pelos deuses e pelos homens.

 

Eu poisei a minha mão sobre a dele. Tive de ranger os dentes com o esforço que fiz para o impedir de tirar a espada da bainha.

 

Não, Catilina, os teus homens estão bem. Eu não te atraiçoei. Pensa... Meto está com eles. Eu não mandaria o meu próprio filho para uma armadilha.

 

Ele descontraiu-se lentamente. Os seus lábios registaram um sorriso retorcido.

 

Estás a ver no que eu me tornei? Olhou para o trilho vazio, como se conseguisse ver os jovens que tinham descido à nossa frente.

 

Mas eles continuam a contar com a minha força, como sempre contaram. Anda, despacha-te!

 

Tal como eu temera, a descida foi mais traiçoeira do que a subida. O trilho estava cheio de pedaços de troncos e de ramos, e a chuva transformara a terra rígida numa sopa traiçoeira de lama e de pedras. Descíamos tanto a escorregar como a andar. Tropeçávamos um no outro e agarrávamos os braços um do outro, utilizando a solidez dos nossos corpos para atingir um equilíbrio mútuo contra a instabilidade dos elementos.

 

Eu bati com os cotovelos e esfolei os joelhos; escorreguei e caí sobre o traseiro tantas vezes, que me pareceu que ele deixara de me doer. A quase impossibilidade da descida acabou por assumir um aspecto absurdo. Lá em baixo, ouvíamos a algaraviada bem-disposta dos homens de Catilina, que eram uma advertência de que nos esperavam mais tropeções e escorregadelas. Eu preparei-me para o último trecho, demasiadamente ofegante para conseguir rir-me.

 

Finalmente, chegámos à clareira pedregosa onde os cavalos esperavam por nós. Os animais pareciam esgotados e profundamente infelizes por causa da longa noite que tinham passado à chuva, mas animaram-se e começaram a agitar-se ao verem chegar os homens de Catilina, tão ansiosos por partir como os seus cavaleiros. Toda a gente estava coberta de lama, e eu mais do que todos.

 

Já fui espreitar a estrada disse Tongílio. O caminho está livre.

 

Conduzimos os cavalos um a um pela passagem estreita entre a rocha e o carvalho. Para compensar o cavalo que se tinha extraviado, eu dei-lhes o meu e Meto e eu montámos ambos no dele.

 

A animação da descida restaurara a confiança de Catilina. Ele agarrou as rédeas e deixou a montada à vontade. Ela ergueu as patas da frente e relinchou, feliz por ter saído da lama e do lixo. Quando a acalmou, ele aproximou-se de nós, inclinando-se para diante para afagar o pescoço do animal.

 

Tens a certeza de que não queres vir connosco, Gordiano? Não, estou a brincar! O teu lugar é aqui. Tens uma família. E tens um futuro.

 

Deu uma volta, indicando aos seus homens que formassem em escolta ao seu redor. Que aspecto tão estranho tinha a sua companhia, suja e esfarrapada, mas sorridente como se tivesse acabado de vencer uma batalha gloriosa.

 

Tongílio, tens a águia de prata? Óptimo. Gordiano, obrigado por aquilo que fizeste. E agradeço-te ainda mais por aquilo que poderias ter feito contra mim mas não fizeste.

 

Virou-se e afastou-se num galope rápido. Meto e eu seguimo-los até à crista da colina e observámos a companhia durante muito tempo, enquanto ela ia ficando cada vez mais pequena, desaparecendo para norte.

 

Meto disse em voz alta aquilo que eu estava pensar:

 

Voltaremos alguma vez a vê-lo, Papá?

 

Eu deixei o meu corpo responder encolhi os ombros de forma reservada. Quem senão as Parcas poderia responder a essa pergunta? Apesar disso, temi que fosse a última vez que víamos Catilina.

 

Quando regressámos a casa, Diana ficou deliciada, pensando que nos tínhamos levantado cedo para ir brincar na lama. Betesda ficou aterrada, mas também aliviada, embora tenha tentado não o mostrar. Exausto, eu deixei-a esfregar-me com uma esponja e depois rastejei para a cama. A certa altura, ela juntou-se a mim e fez amor comigo com uma ferocidade consumidora que há muito não evidenciava.

 

Nesse mesmo dia enquanto eu dormitava, enquanto Catilina e a sua companhia galopavam para norte, Cícero fez um segundo discurso contra Catilina em Roma, não ao Senado, mas directamente aos cidadãos reunidos no Fórum. Soube-o no dia seguinte, por um escravo que me trouxe uma carta de Eco avisando-me, tarde de mais, da fuga de Catilina. O discurso ao povo reiterava grande parte daquilo que Cícero dissera ao Senado, mas ainda com maior virulência e com uma crueza de hipérboles que evidenciava algum desprezo pela sofisticação da audiência. Eco não fazia comentários ao discurso compreensivelmente, porque a carta poderia cair em mãos alheias, limitando-se a citá-lo extensivamente. Talvez tivesse ficado tão aterrado como eu e pensasse que transmitir as palavras de Cícero verbatim dispensava comentários, ou talvez se sentisse apenas divertido com uma retórica tão escandalosamente inflamatória e a transcrevesse para meu divertimento.

 

No seu discurso, Cícero anunciava a fuga de Catilina de Roma e atribuía humildemente a si próprio o feito de ”ter afastado o punhal do nosso pescoço”. Em seguida, reconhecia timidamente que talvez alguns o censurassem por não ter preferido dar a morte ao canalha (embora ele não tivesse base legal para o fazer; só os tribunais e a Assembleia do Povo têm esse direito). A fuga de Catilina era uma prova da sua culpa, e Cícero repreendia severamente aqueles que tinham sido demasiadamente estúpidos para perceber a verdade. Se havia quem retratasse Catilina como um mártir sem culpas e Cícero como seu perseguidor vingativo, Cícero carregaria o fardo dessa difamação para bem de Roma. Quanto àqueles que se tinham aliado a Catilina e que permaneciam a monte na cidade, esse grupo de ”guerreiros” perfumados e bem-vestidos não podia esperar ter segredos para ele; os olhos e os ouvidos do cônsul seguiam-nos para toda a parte e ele tinha conhecimento dos seus pensamentos mais íntimos.

 

Quanto aos rumores de que Catilina não fora ter com Mânlio e os seus soldados, mas se dirigia para Massilia e para o exílio, Cícero esperava que fosse verdade, mas duvidava: ”Por Hércules, mesmo que estivesse totalmente inocente de desígnios traiçoeiros, Catilina é precisamente o género de pessoa que prefere sofrer a morte como um foragido do que definhar no exílio.” Cícero fora sagaz na avaliação do seu opositor.

 

Referia-se repetida e longamente à vida sexual de Catilina, chamando-lhe o mais bem sucedido sedutor de jovens rapazes do mundo, nomeando Tongílio e outros, e dizendo que Catilina fazia algumas das suas conquistas assassinando os pais destes jovens a seu pedido e partilhando assim as suas heranças, ao mesmo tempo que devassava os seus orifícios. ”Catilina, dizia Cícero, não tinha vergonha de assumir alternadamente o papel dominante e o papel passivo. Há muito que os seus atributos de resistência e energia físicas, outrora famosos, tinham sido esgotados em orgias desvairadas.”

 

O círculo íntimo de Catilina partilhava os seus excessos sexuais. Tal como o seu mentor, faziam gala da sua capacidade de desempenhar ambos os papéis na cama. Os rapazinhos dançavam e cantavam, mas também aprendiam a manejar punhais e a aspergir venenos, sendo por isso mais perigosos do que as suas carinhas bonitas e os seus cabelos cuidadosamente penteados poderiam sugerir. Tinham gasto as suas fortunas no jogo, com prostitutas e vinhos caros e o vómito que saía das suas bocas era uma conversa abjecta sobre o assassínio de cidadãos leais e o incêndio da cidade até à sua destruição, com o único fito de que as suas dívidas fossem canceladas. Agora que eram fugitivos, o que fariam Catilina e os seus rapazes, privados das suas reuniões debochadas e do aconchego das suas prostitutas durante a noite? ”Talvez, ponderava Cícero, a sua prática conhecida de dançarem nus nas festas fosse apenas um treino para as futuras noites ao frio à roda da fogueira de um acampamento.”

 

A multidão do Fórum devia ter adorado aquela vivacidade lúbrica. Mas poderiam os exageros de Cícero ser engolidos mesmo pelos ouvintes de menor discernimento? ”De que crime de perversidade é Catilina culpado?” perguntava ele. ”Não há em toda a Itália envenenador, gladiador, ladrão, assassino, parricida, forjador de testamentos, aldrabão, glutão, inútil, adúltero, prostituto, corruptor da juventude ou jovem corrompido de quem ele não tenha sido íntimo. Que assassínio foi cometido nos últimos anos sem ele? Que nefastos deboches, excepto através dele?”

 

As coisas não podiam ser mais claras, porque os dois lados eram como o dia e a noite. ”Do lado da sua causa, declarava Cícero, estava tudo o que era modéstia, castidade, honestidade, patriotismo, equilíbrio e autocontenção; do lado de Catilina estava tudo o que era insolência, devassidão, fraude, traição, histeria, licenciosidade e excitação. De um lado deste confronto, moram a justiça, a moderação, a coragem, a sabedoria e tudo aquilo que é bom; do outro lado, estão a injustiça, a luxúria, a cobardia, a imprudência e tudo aquilo que é mau. A prosperidade luta contra a pobreza; o bem contra o mal, a sanidade contra a loucura, a esperança no futuro contra o desespero sem objectivos. Num conflito como este, ainda que os esforços humanos fracassem, não ordenarão os próprios deuses imortais que uma liga de vícios como aquela seja derrubada por um exército glorioso de virtudes como este?”

 

Que patriotas do Fórum poderiam deixar de aclamar estes sentimentos?

 

Ao mesmo tempo, Cícero conseguia reiterar o perigo de um levantamento de escravos, afirmando que, mesmo que Catilina fosse bem sucedido na sua revolta, limitar-se-ia a provocar o caos, o que significaria um país governado por escravos fugitivos e por gladiadores. Deplorava a violência, mas prometia ao povo que, na terrível hipótese da guerra, ele se esforçaria porque houvesse o menor número possível de baixas. E apelava piedosamente ”aos próprios deuses imortais” para que dessem força a ”este povo invencível, a este glorioso império, a esta cidade, bela entre todas”.

 

A voz de Cícero estava em plena forma e o seu sentido de oportunidade era impecável, dizia Eco; o discurso fora bem recebido. A leitura destes excertos deixou-me profundamente deprimido.

 

O mensageiro que trouxera a carta de Eco regressou a Roma com a minha resposta. Eu dizia-lhe que o convidado por quem ele indagava tinha de facto passado pela Via Cássia, mas não parara em minha casa. Na verdade, por acordo mútuo, o homem não voltaria a ficar alojado sob o meu tecto. Não queria que Eco se preocupasse.

 

As chuvas continuaram. A terra foi refrescada e o ribeiro voltou a encher. Embora os nossos cuidados relativamente à escassez de feno estivessem apenas no princípio, a nossa grande preocupação acerca da água tinha finalmente terminado, e pela primeira vez eu vi o moinho de água mover-se sem a intervenção humana, pela simples força da corrente. Vê-lo em movimento, com a grande roda cumprindo o seu círculo e as engrenagens harmoniosamente encaixadas umas nas outras, fez-me pensar no meu querido amigo Lúcio Cláudio, cujo comportamento fora também harmonioso. Ele teria ficado deliciado com o moinho, e isso agradava-me. Pensei igualmente em Catilina, cujo génio prático resolvera o enigma do moinho de água, que eu fora incapaz de solucionar. Esses pensamentos agradaram-me menos, pois não entrevia um futuro feliz para Catilina e para a sua companhia. Tentei afastá-los completamente do meu espírito.

 

Mas eu sabia que isso não seria possível por muito tempo. Toda a Itália devia falar sobre Catilina, esperando notícias do seu destino. Alguns esperariam ouvir falar de uma insurreição contra os Optimates-, outros esperariam com o coração cheio de despeito, rezando pela destruição do traidor; e outros ainda limitar-se-iam a esperar ansiosamente, recordando-se da devastação produzida pelas guerras, pelas purgas e pelas insurreições que tinham devastado a Itália em anos recentes.

 

Secretamente, eu esperava que Catilina fizesse o que tinha dito e fugisse para Massilia. Mas não foi assim, pelo menos a julgar pela carta que recebi de Eco alguns dias depois dos Idos de Outubro:

 

Querido Papá:

 

A pressão dos acontecimentos impede-me de te visitar como gostaria. Tenho saudades dos teus conselhos seguros e do som da tua voz. Também tenho saudades de Betesda e de Diana e do meu irmão Meto. Para eles vai o meu afecto.

 

Chegou-nos a notícia de que Catilina pegou definitivamente em armas com Mânlio em Faesulae. Diz-se que fez primeiro uma paragem em Arretium, onde provocou distúrbios. Todos os dias ouvimos novos rumores de insurreições a norte e a sul, longe e perto. O povo de Roma vive num estado de grande agitação e ansiedade. Não me lembro de nada parecido desde os dias da revolta de Espártaco. As pessoas não falam de outra coisa e cada comerciante e cada mercador de peixe tem a sua opinião. Como diz o autor dramático, ”o mundo subterrâneo agita-se como uma rede à qual puxaram uma ponta”.

 

Por insistência de Cícero, o Senado declarou Catilina e Mânlio foragidos e inimigos do povo. Quem quer que os acolha em sua casa será igualmente considerado um inimigo do povo. Sei que me compreendes.

 

Está a ser organizado um exército, sob o comando do cônsul António. É quase certo que haverá uma guerra. Diz-se que Pompeu volta apressadamente para Roma, abandonando os seus deveres no estrangeiro para salvar o país, mas a verdade é que, em tempos de crise doméstica, se diz sempre a mesma coisa acerca de Pompeu, não   é?

 

Por favor, Papá, vem para Roma e traz a tua família. Certamente que a quinta é desagradável nesta altura do ano. Os homens ricos trocam as suas quintas pela cidade durante o Inverno, e tu deves fazer o mesmo. Se houver uma guerra, é provável que seja travada na Etrúria, e eu não durmo descansado quando penso na posição vulnerável em que te encontras. A cidade seria muito mais segura para todos vós.

 

Se não quiseres vir para uma estada prolongada, por favor, vem pelo menos fazer-nos uma visita, quanto mais não seja para que eu possa falar contigo com maior franqueza do que aquela que uma carta permite.

 

É este o desejo mais profundo do teu filho leal, Eco.

 

Li a carta duas vezes. À primeira leitura, senti-me comovido pela preocupação   dele, sorri ao vê-lo citar Bolito (um autor dramático de segunda   categoria, mas Eco sempre adorara o teatro) e abanei a cabeça

 

à sua exortação de não voltar a permitir que Catilina se albergasse sob o meu   tecto; por que se preocupava ele, se eu já lhe tinha dito que o meu convidado   não regressaria? A uma segunda leitura, fiquei sobretudo impressionado   com a falta de à-vontade e de naturalidade do seu tom.

 

Eco fora à quinta quando eu precisava dele, embora eu não lho tivesse   pedido directamente. Eu não podia fazer menos quando ele insistia   tanto comigo para que fosse visitá-lo. Falei com Betesda.

 

Perguntei a Arato quando é que eu faria menos falta (embora soubesse que   ele se sentiria feliz com a minha partida em qualquer altura).

 

Decidi então que a família faria uma viagem a Roma no princípio de Dezembro.

 

Para um homem que professava um fatigado desagrado com a política, o meu sentido de oportunidade não poderia ter sido mais irónico. A viagem que fizera no Verão sujeitara-me a discursos políticos e fizera-me aproximar das cabinas de votação contra a minha vontade. Esta viagem de Inverno obrigar-me-ia a assistir a um espectáculo bem mais grandioso, pois, a menos de um mês do fim do seu ano de consulado, Cícero viveria os momentos mais gloriosos da sua carreira. A vida é como o Labirinto de Creta, penso eu por vezes; sempre que batemos com o nariz numa parede, o Minotauro ri-se noutro ponto qualquer.

 

 

         NUNQUAM

Partimos para Roma ao nascer do dia seguinte às Calendas de Dezembro. Tínhamos o vento, que era tonificante mas não agressivo, pelas costas, e os nossos cavalos estavam cheios de vigor. Fizemos um tempo excelente e chegámos à Ponte Mílvia com o Sol no seu ponto mais alto.

 

O trânsito era pouco, especialmente em comparação com a confusão de cavalos e de carroças que tínhamos encontrado na nossa última viagem. Apesar disso, havia uma série de pessoas reunidas na extremidade da ponte. A princípio, pensei que se tratasse de comerciantes vendendo produtos que atraíam a multidão mas, à medida que nos aproximávamos, percebi que o único produto que estava a ser comerciado era a conversa, grande parte dela bastante animada. Os homens pertenciam a diversas classes havia agricultores locais e libertos e alguns viajantes bem-vestidos rodeados pelos seus escravos.

 

Quando nos aproximámos, eu fiz sinal ao escravo que conduzia a carroça que levava Betesda e Diana para que parasse à beira da estrada. Meto e eu desmontámos e dirigimo-nos à multidão. Vários homens falavam ao mesmo tempo, mas a voz que se erguia acima de todas as outras pertencia a um agricultor que vestia uma túnica coberta de pó.

 

Se aquilo que dizes é verdade, por que não os mataram logo ali? dizia o agricultor.

 

As suas observações visavam um mercador, um homem de algumas posses, a avaliar pelos anéis que tinha nos dedos e pela série de escravos que o rodeavam, todos eles melhor vestidos do que o agricultor.

 

Estou apenas a repetir aquilo que ouvi dizer quando esta manhã saía da cidade dizia o mercador. Os meus negócios obrigam-me a ir ao Norte, senão teria ficado para ver o que acontecia esta tarde. Diz-se que o Cícero poderá dirigir-se pessoalmente ao povo, no Fórum...

 

Cícero! O agricultor cuspiu para o chão. O grão-de-bico faz-me azia.

 

É melhor que uma faca de um bárbaro espetada no estômago, que era aquilo que os traidores tinham em mente para ti lançou o mercador.

 

Bah, isso é um monte de mentiras, como sempre disse o agricultor.

 

Não são mentiras disse outro homem, que estava mesmo na minha frente. Esse homem da cidade sabe do que fala. Eu vivo naquela casa ali, ao pé do rio. O pretor e os seus homens passaram a noite sob o meu tecto, por isso é natural que eu saiba. Estavam emboscados à espera, apanharam os traidores na ponte e prenderam-nos...

 

Sim, já contaste a tua história, Gaio. É certo que os soldados prenderam alguns homens em Roma, mas quem pode saber o que significa isso exactamente? perguntava o irritado agricultor. Esperem e verão, tudo isso não passa de mais um esquema maquinado por Cícero e pelos Optimates para apanhar Catilina. Vários outros se juntaram a ele num coro de gritos irritados.

 

E por que não? perguntava o mercador. À medida que a multidão se ia animando, os seus escravos iam-se juntando à sua volta como mastins treinados, formando um círculo protector. Catilina já devia estar morto. O único mal de Cícero foi não ter mandado estrangular esse demónio enquanto ele ainda estava em Roma. Em vez disso, ele continua com as suas conspirações e estás a ver onde isso nos levou... romanos a conspirar com bárbaros para encenar uma revolta! É uma vergonha. Isto deu origem a um coro de zombarias do lado do contingente do agricultor e a uma resposta igualmente vociferante por parte daqueles que concordavam com o mercador.

 

Eu toquei no ombro do homem chamado Gaio, que afirmara viver ali perto.

 

Cheguei agora mesmo do Norte disse eu. O que aconteceu? Ele voltou-se e olhou-nos atentamente, com os olhos inchados por causa   da falta de sono. O seu maxilar sem queixo era grisalho e ele tinha o cabelo em desalinho.

 

Venham cá disse ele afastemo-nos um pouco da multidão. Nem consigo ouvir os meus próprios pensamentos! Já contei a história mais de cem vezes esta manhã, mas não me importo de voltar a contá-la. Suspirou com enfado fingido, mas eu percebi que estava satisfeitíssimo por voltar a contar a cena a alguém que ainda a não tivesse ouvido. Os outros homens estavam demasiadamente ocupados a discutir para continuarem a escutá-lo. Vocês vão para a cidade?

 

Vamos.

 

Aí não se fala de outra coisa, de certeza. Mas vocês podem dizer às pessoas que ouviram os factos a uma testemunha ocular. Olhou para mim com gravidade, para ver se eu percebia a importância do que ele estava a dizer-me.

 

Está bem, continua.

 

A noite passada, muito depois de eu me ter deitado, vieram bater-me à porta.

 

Quem?

 

Um pretor, foi como ele se apresentou. Imaginem! Dava pelo nome de Lúcio Flaco. Fora pessoalmente enviado pelo cônsul, disse ele. Vinha rodeado por uma companhia de homens, todos embrulhados em capas escuras. E todos empunhando espadas curtas, como os homens das legiões. Disse-me que não tivesse medo. Declarou-me que ia passar a noite em minha casa. Pediu-me para guardar os cavalos no meu estábulo, por isso eu mandei um escravo com os homens dele. Perguntou-me se haveria alguma janela por onde pudesse vigiar a ponte. Perguntou-me se eu era patriota e eu disse-lhe claro que sim. Disse-me que, se isso era verdade, então ele sabia que podia ter a certeza de que eu me manteria em silêncio e o deixaria fazer o seu trabalho, mas ainda assim deu-me uma moeda de prata. Bem, é costume pagar qualquer coisa quando os soldados se instalam em casa de um cidadão, não é?

 

Mas esses homens não eram soldados, pois não? disse Meto.

 

Bem, não, suponho que não. Pelo menos não estavam vestidos de soldados. Mas tinham sido enviados pelo cônsul. O mês passado, o Senado aprovou um decreto devem ter ouvido falar disso em que encomendava aos cônsules a defesa do Estado, usando para isso os meios que considerassem necessários. Por isso, não é estranho ver homens armados enviados pelo cônsul, pois não? Claro que eu nunca pensei ser apanhado no meio de uma cena destas! Abanou a cabeça com um sorriso desmaiado. Seja como for, o pretor instalou-se à janela e abriu as portadas... se se inclinarem um pouco, poderão vê-la daqui, aquele lado da minha casa dá para a ponte e para o rio. Mandou um dos seus homens levar-lhe uma ponta de madeira a arder da minha braseira, pô-la de fora da janela e acenou com ela. E estão a ver aquela casa mesmo em frente da minha, do outro lado do rio? De uma janela daquela casa, outra pessoa respondeu acenando com outra ponta de madeira a arder. Quer dizer que eles tinham homens escondidos em casas de ambos os lados da ponte, estão a ver? Era uma emboscada. Percebi isso mesmo antes de ele mo dizer.

 

Fez uma pausa e olhou-nos atentamente, para ver se nós tínhamos absorvido toda a carga dramática da situação.

 

Sim disse eu e depois?

 

Bem, a noite foi avançando, mas claro que eu não conseguia dormir, nem eu, nem a minha mulher nem os meus filhos. Mas não podíamos acender as luzes, por isso deixámo-nos estar sentados às escuras. O pretor não saía da janela. Os seus homens comprimiam-se uns contra os outros embrulhados nas capas, falando em voz baixa. Algures entre a meia-noite e a madrugada, ouvimos cascos de cavalos na ponte... estava uma noite limpa e fria, e pouco mais se ouvia para além do som da água do rio, e aquele ruído sobre a ponte parecia o rufar de tambores. Deviam ser ainda bastantes cavalos. O pretor endireitou-se, à espreita, e os homens contiveram a respiração. Eu estava do outro lado da sala, mas espreitei por cima do ombro do pretor. A ponta de madeira a arder voltou a aparecer na janela do outro lado. ”São eles!” disse o pretor, e os homens puseram-se imediatamente de pé, com as espadas já desembainhadas. Eu recuei e encostei-me o mais que pude à parede para os deixar passar, enquanto eles corriam para a porta.

 

”Depois houve uma grande agitação na ponte, suficiente para acordar as lémures dos afogados de homens a correr para a ponte vindos das duas extremidades e do barulho dos cascos dos cavalos a meio, juntamente com gritos e pragas, algumas delas naquela língua horrível que os gauleses falam.

 

Gauleses? disse Meto.

 

Sim, alguns dos homens que atravessavam a ponte eram gauleses, da tribo dos Alóbroges, segundo me disse depois o pretor. Os outros eram romanos, embora não mereçam esse nome. Traidores!

 

Como é que sabes? disse eu.

 

Porque mo disse o pretor Lúcio Flaco. Depois da emboscada, ele estava muito satisfeito, corado de excitação, julgo eu, depois daquela longa espera, e em seguida... Bateu as palmas das mãos. Aconteceu tudo muito depressa, exactamente como ele queria, suponho eu. Não foi derramada uma única gota de sangue; pelo menos não se via nada na ponte esta manhã. Os traidores foram puxados dos cavalos, desarmados e presos. Quando tudo aquilo terminou, Flaco agradeceu-me e deu-me uma palmada nas costas e disse-me que eu tinha desempenhado o meu papel na salvação da República. Bem, eu disse-lhe que me sentia orgulhoso, mas que me sentiria ainda mais orgulhoso se soubesse o que tinha acontecido. ”Dentro em pouco ninguém falará de outra coisa ”, disse ele, ”mas não há qualquer razão para que não saibas antes dos outros. Estes homens que acabamos de prender participavam numa conspiração para derrubar a República!”

 

”Eram homens de Catilina?” perguntei eu. Como vivo aqui na estrada, mantenho-me a par daquilo que se passa em Roma, por isso sei dos problemas que o cônsul tem tido com esse patife.

 

”Veremos”, disse o pretor. ”As provas poderão estar aqui.” E mostrou-me uns documentos, todos muito bem enrolados e selados com cera. ”Cartas dos traidores para os outros conspiradores; serão abertas na presença do cônsul”, disse ele. ”Mas a prova mais determinante contra eles são os Gauleses que viajavam em sua companhia.” Apontou para o grupo de bárbaros de calções de couro que estavam sentados nos cavalos.

 

”São inimigos?” disse eu, sem compreender por que não tinham sido arrastados para baixo dos cavalos e presos como os outros.

 

”Não”, disse o pretor ”acontece que são amigos leais. Aqueles homens são enviados oficiais de uma tribo chamada dos Alóbroges, que vive na província da Gália Narbonense, do outro lado dos Alpes, sob domínio romano. Os traidores tentaram atraí-los para a sua conspiração. Queriam que os Alóbroges desencadeassem uma guerra na Gália, para reter as tropas enquanto os traidores levavam a cabo a sua revolta em Roma. Imagina, pedir a estrangeiros que combatessem contra romanos! Consegues imaginar coisa mais desprezível?” Eu disse-lhe que não. ”Esses conspiradores são homens sem honra nem lealdade”, disse ele. ”Era de supor que o simples facto de serem romanos os impedisse de contemplarem, sequer, a possibilidade de cometerem crimes tão revoltantes, mas homens como estes não têm qualquer respeito, nem pelo seu país, nem pelos deuses. Felizmente, os Alóbroges revelaram a conspiração ao seu patrono romano, que por sua vez a revelou a Cícero, que tem olhos e ouvidos em toda a parte. Os traidores, que continuavam a pensar que tinham os Alóbroges do seu lado, enviaram mensagens juntamente com os bárbaros, que deviam comunicar com Catilina e prosseguir para a Gália. Mas não passarão daqui. Vamos levá-los de volta para Roma. O Senado e o povo decidirão o que fazer com esta escumalha.”

 

O homem fez uma pausa, para respirar e obter efeito dramático. Pronunciara o seu longo monólogo com notável proficiência, certamente depois de tê-lo aperfeiçoado a cada repetição sucessiva.

 

Bem, não consegui voltar a dormir desde que eles me obrigaram a levantar ontem à noite, como podem imaginar. A princípio estava demasiado aterrorizado, e no fim demasiado excitado. Depois veio a aurora, e todos os vizinhos queriam saber o que tinha sido aquele barulho a meio da noite... julgavam que estavam a ouvir bandidos ou gladiadores fugitivos e fecharam ainda melhor as portadas. Por isso, eu tive de contar a história e todos os viajantes que passam pela estrada querem ouvi-la. Subitamente abriu a boca num grande bocejo e esfregou os olhos para afastar o sono. É que não é todos os dias que eventos tão importantes têm lugar mesmo diante do nosso nariz. Como disse o pretor, desempenhei o meu papel na salvação de Roma!

 

Nesse preciso momento, um pedaço de excremento de cavalo atravessou o ar e atingiu o lado da cabeça do homem. Ele soltou um ganido e agarrou-se ao ouvido, confuso.

 

Júpiter transformou-te num sapo! gritou uma voz aguda, que eu reconheci como sendo a do agricultor pró-Catilina. Tinha sido ele a lançar a bola de excremento; o seu alvo era o mercador abastado, que se esquivou com mais facilidade do que eu teria suposto.

 

Como te atreves? gritou o mercador.

 

Afasta de mim os teus escravos nojentos! gritou o agricultor, que ficou imediatamente cercado.

 

Eu vislumbrei o brilho do aço entre a multidão a agarrei no braço de Meto, mas ele já se me adiantara. Montámos os cavalos enquanto o condutor punha a carroça em movimento. A meio da ponte exactamente no ponto em que o pretor Lúcio Flaco interceptara os conspiradores e os seus infiéis aliados gauleses, olhei para trás. O incidente transformara-se num pequeno tumulto. O ar estava cheio de projécteis de excrementos e de pragas violentas. O agricultor irritado afastou-se da multidão a cambalear, apoiado por alguns dos seus aliados. Fios de sangue escorriam-lhe pelos antebraços. Entretanto, Gaio, a orgulhosa testemunha, fizera uma retirada estratégica para a sua casa junto ao rio, onde ficou a observar da entrada, bocejando com os olhos bem abertos.

 

Roma é como Betesda, pensei eu. Da mesma maneira que eu aprendi a detectar o estado de espírito da minha mulher pelos sinais mais subtis as suas inclinações de cabeça, um pente ou uma escova desarrumados na sua mesa, o modo como ela respira, assim também aprendi a avaliar o estado de espírito da cidade por pequenas manifestações.

 

Advertidos pelas informações que recebera na Ponte Mílvia, os meus olhos procuravam atentamente sinais. Os comerciantes expulsavam os clientes dos seus balcões e fechavam mais cedo. As tabernas estavam cheias a abarrotar. Viam-se poucas mulheres a andar de um lado para o outro. Bandos de rapazes corriam pelas ruas, enquanto os homens se juntavam nas esquinas a discutir. Entre aqueles que andavam a tratar da sua vida, a cavalo ou a pé, parecia haver uma orientação geral para o Fórum; alguns encaminhavam-se para o centro com rapidez e decisão, enquanto outros pareciam preferir uma abordagem em espiral, como pedaços de palha revoluteando pelo ar. Esta impressão era tão forte, que enquanto subíamos a Via Subura em direcção à casa de Eco, eu sentia que éramos como nadadores lutando contra uma corrente lenta mas segura.

 

Fomos acolhidos por Menénia. Enquanto Diana corria para os seus braços, eu perguntei por Eco e recebi a resposta que esperava.

 

Foi há bocadinho para o Fórum disse ela. Dizem que Cícero vai falar ao povo esta tarde. Não sabíamos a que horas vocês chegariam, mas Eco disse que, se chegassem a tempo, fossem até ao Fórum e tentassem descobri-lo.

 

Não me parece... comecei eu imaginando a cena, mas Meto interrompeu-me.

 

Vamos a cavalo ou a pé, Papá? disse ele, olhando para mim ansiosamente. Por mim, prefiro ir a pé. Doem-me as costas da viagem! Além disso, é sempre tão difícil encontrar lugar para deixar os cavalos, e não é muito longe...

 

Decidimos ir a pé.

 

A sensação de ser apanhado numa corrente tornou-se cada vez mais forte à medida que nos aproximávamos do Fórum. Da mesma maneira que uma corrente ganha velocidade quando estreita, assim também o trânsito de corpos foi acelerando e ficando cada vez mais congestionado. Quando chegámos ao Fórum, a multidão era bastante compacta. À nossa volta, rodopiavam boatos como peixes, e todas as línguas pronunciavam as mesmas palavras, uma vez e outra: ”Traidores... Alóbroges... Cícero... Catilina...”

 

Era impossível descobrir Eco numa tal compressão de corpos, pensei eu, mas logo a seguir Meto acenou com a mão e chamou-o pelo nome. Ali perto, um braço ergueu-se acima da multidão, e sob ele avistei o rosto surpreendido e ansioso de Eco.

 

Meto! Papá! Não fazia ideia que chegassem tão cedo. Foram lá a casa primeiro? Depressa, acho que ele já começou. De facto, muito adiante de nós, ouvi ecos de uma voz que me era distintamente familiar.

 

Dirigimo-nos para o espaço aberto diante do Templo da Concórdia. Por trás do templo, erguia-se a pique a falésia do Arx. À nossa direita, ficava o Senado e os Rostra, de onde Cícero fizera o seu discurso em defesa de Sexto Róscio, muitos anos antes. À esquerda ficava a base do caminho que levava ao topo do Capitólio e ao Arx. Depois de serem presos na Ponte Mílvia, os prisioneiros tinham sido levados para o Templo da Concórdia e fora aí que o Senado se reunira à pressa para discutir a questão. Agora, Cícero emergia do seu interior e dirigia-se à multidão do alto da escadaria que ia dar ao templo. Atrás dele, notória pela sua brilhante novidade e pelo esplendor do trabalho do artista, erguia-se uma imensa estátua em bronze de Júpiter. O Pai dos Deuses estava sentado no seu trono, magnificamente musculado e com uma barba imponente, com um feixe de raios numa mão e uma esfera aninhada na outra, e com raios de luz emanando da sua testa. Ao seu lado, Cícero parecia muito pequeno e mortal, mas a sua voz era mais atroadora que nunca.

 

Romanos! Ser salvo do perigo, ser arrancado às garras de uma morte certa, ser erguido acima de um mar de destruição... haverá experiência mais feliz, mais exaltante? Fostes salvos, Romanos! A vossa cidade foi salva! Alegrai-vos! Louvai os deuses!

 

”Sim, fostes salvos, porque o fogo do holocausto fora colocado sob toda a cidade, por baixo de cada casa, de cada templo, de cada altar. As chamas tremeluziam... mas nós esmagámo-las! Espadas tinham sido erguidas contra o povo, encostadas às vossas gargantas... mas nós afastámo-las e partimo-las com as nossas próprias mãos! Esta manhã, eu revelei a verdade ao Senado. Agora, caros cidadãos, transmitir-vos-ei directamente os factos, para que possais conhecer o perigo que foi corajosamente enfrentado e desviado. Contar-vos-ei como foi esse perigo detectado, investigado, descoberto e eliminado, em nome de Roma e pela graça dos deuses.

 

”Em primeiro lugar, quando há uns dias Catilina saiu da cidade ou, mais precisamente, quando eu o expulsei sim, assumo orgulhosamente que fui eu que o expulsei, e já não temo que me censureis por tê-lo feito; na verdade, estou mais preocupado com a possibilidade de que me responsabilizeis por tê-lo deixado partir com vida quando Catilina partiu, eu tive esperanças de que ele levasse consigo os seus imundos comparsas e de que nos livrássemos para sempre dessa escumalha! Infelizmente, vários desses odiosos intrigantes ficaram para trás, com a intenção de levar à prática os seus criminosos desígnios. Desde essa altura, o vosso cônsul manteve sobre eles uma constante vigilância, caros concidadãos; na verdade, praticamente não me permiti dormir, ou sequer pestanejar, pois sabia que, mais cedo ou mais tarde, eles atacariam. Mas até eu fui surpreendido pela enormidade da sua loucura. Dificilmente acreditaríeis se eu não dispusesse de provas para vos mostrar. Mas tereis de acreditar, em nome da vossa própria autopreservação!

 

”Chegou aos meus ouvidos que o pretor Públio Lêntulo sim, cidadãos, o Lêntulo Pernas; guardem as gargalhadas para quando ouvirem o melhor! tentava corromper os enviados dos Alóbroges, na esperança de desencadear uma insurreição do outro lado dos Alpes. Estes enviados deviam partir para a Gália ontem, com cartas e instruções, acompanhados por um dos homens de confiança de Lêntulo, Tito Voltúrcio, que também levava uma carta endereçada a Catilina.

 

”Por Hércules!, pensei eu, chegou finalmente a minha oportunidade, a oportunidade que implorei aos deuses que me enviassem... uma maneira de provar, de uma vez por todas, a profundidade da degeneração destes homens e do seu ódio por Roma, uma prova irrefutável que eu poderia apresentar diante do Senado e do povo. Por isso, ontem convoquei dois pretores leais e valorosos, Lúcio Flaco e Gaio Pomptino, e expliquei-lhes a situação. Sendo homens de irrepreensível patriotismo, eles aceitaram as minhas ordens sem hesitação. Quando a noite caiu, dirigiram-se em segredo à Ponte Mílvia, dividiram as suas forças em dois destacamentos, um para cada lado do Tibre, e esconderam-se nas casas mais próximas. Depois esperaram.

 

”Às primeiras horas desta manhã, a sua paciência foi recompensada. Os enviados dos Alóbroges chegaram à ponte, acompanhados por Voltúrcio e por uma comitiva dos seus companheiros de traição. Os nossos homens caíram sobre eles e cercaram-nos. Foram desembainhadas espadas, mas os pretores tinham a vantagem da surpresa e, quando os Alóbroges subitamente se afastaram em vez de os ajudarem a defender-se, Voltúrcio e os seus homens cederam e renderam-se. As cartas foram entregues aos pretores com os selos intactos. Voltúrcio e os seus homens foram postos sob custódia e entregues à minha porta ao nascer do dia. Eu convoquei imediatamente aqueles homens cujos selos estavam nas cartas, ou que havia provas de estarem mais profundamente implicados, entre eles Gaio Cetego, conhecido pela sua impetuosidade, e naturalmente Lêntulo, que foi o último a chegar, apesar da reputação das suas pernas. Talvez estivesse com sono por ter ficado acordado até tarde, escrevendo cartas incriminatórias!

 

”Muitos dos nossos estadistas mais importantes vieram visitar-me durante a manhã. Aconselharam-me a abrir pessoalmente as cartas seladas para que, se estivesse enganado quanto ao seu conteúdo, fosse poupado a uma vergonha. Mas eu insisti em que fossem abertas e lidas diante do Senado e se eu ficasse envergonhado, paciência; não é vergonha ser excessivamente zeloso em defesa da liberdade! E assim, convoquei rapidamente uma reunião de emergência do Senado, aqui, no Templo da Concórdia. Recordai o significado deste templo e daquilo que ele comemora: a harmonia das ordens, a feliz coexistência e cooperação das classes, pois são Romanos todos aqueles plebeus e patrícios, ricos e pobres, libertos e livres por nascimento que neste dia foram salvos da calamidade que ameaçava Roma inteira.

 

”Primeiro, Voltúrcio foi convocado para testemunhar diante do Senado. O homem encontrava-se num tal estado de pânico que quase não conseguia falar. Para lhe soltar a língua, foi-lhe feita uma promessa de imunidade afinal, ele não passava de um mensageiro, embora viesse a revelar-se que tinha conhecimento do que se passava. Este vacilante soldado de infantaria é originário de Croto, lá em baixo, no dedo do pé de Itália. Oh, mas uma úlcera no dedo do pé foi suficiente para mutilar os planos de Lêntulo Pernas!

 

Eu inspirei e olhei à minha volta. A multidão ria-se, como se ria de todos os jogos de palavras de Cícero. Dizia-se que nem na arena do Senado, diante de um público bem mais sofisticado, ele resistia a propor trocadilhos, por muito horríveis que fossem, especialmente se incluíssem algum insulto aos seus inimigos. Eu reparei que até Eco sorria, embora Meto se mantivesse sério, com o rosto firmemente fechado e os olhos estreitados, como se estivesse a tentar resolver um quebra-cabeças mais profundo e mais obscuro do que o jogo de palavras de Cícero.

 

O que nos revelou Voltúrcio? Vou dizer-vos: primeiro, que Lêntulo lhe confiara uma mensagem e uma carta para Catilina, urgindo-o a mobilizar um exército de escravos e a marchar sobre Roma.

 

Ao ouvir isto, a multidão parou de rir e ouviram-se gritos de cólera e de escândalo. Recordei-me da analogia dos dardos de Catilina e da forma como Cícero os utilizava para manipular a multidão, e dei por mim a olhar, não para Cícero, mas para a brilhante estátua nova de Júpiter e para os rostos crédulos que me rodeavam. No interior da cidade, o plano deles era incendiar as sete colinas sim, cada conspirador estava encarregado de pegar fogo a uma dada área e massacrar um grande número de cidadãos. Catilina deveria interceptar e matar aqueles que fugissem e depois reunir o seu exército de escravos às forças leais do interior da cidade.

 

Uma onda de cólera atravessou a multidão, tão palpável como um vento quente. Os escravos e o fogo são as duas coisas que os romanos livres mais temem. Ambos são instrumentos que eles podem dominar e de que podem retirar conforto, mas ambos podem ficar fora de controlo e produzir estragos terríveis. Lançá-los sobre os seus concidadãos romanos é um acto de imperdoável traição por parte de qualquer homem, e de um só fôlego Cícero conseguira acusar Catilina e os seus amigos de conspiração para o uso de ambos.

 

Em seguida, os Alóbroges foram trazidos à presença do Senado. Declararam que tinham sido obrigados a prestar um juramento, que lhes tinham sido confiadas cartas de Cetego e Lêntulo, e que lhes fora ordenado que enviassem cavaleiros do outro lado dos Alpes para ajudar à planeada insurreição. Imaginem um exército de escravos, de gauleses e de foragidos marchando sobre a cidade em chamas! Para garantir a sua lealdade, Lêntulo declarara-lhes que os adivinhos e os oráculos sibilinos tinham previsto que ele seria o terceiro dos Cornélios, depois de Cina e de Sula, a governar Roma ou aquilo que dela restaria, pois ele também declarou a sua convicção de que este é o ano previamente disposto para a destruição de Roma e do seu império, já que é o décimo ano a seguir à absolvição das Virgens Vestais e o vigésimo ano depois do incêndio do Capitólio. Cícero abanou a cabeça para mostrar o seu desagrado perante tamanha blasfémia.

 

Os Alóbroges também nos informaram de que havia discórdias nas fileiras destes intrigantes. Parece que Lêntulo, tipicamente preguiçoso, queria esperar mais dezassete dias e dar então início à carnificina a coberto das festividades de Saturnalia... a festividade em que os senhores trocam de lugar com os seus escravos. Mas Cetego, sedento de sangue e insensível a tão delicada ironia, estava ansioso por iniciar imediatamente o massacre.

 

”Era altura de confrontar directamente estes malfeitores. Todos eles foram convocados e foram-lhes mostradas as cartas que tinham sido interceptadas. Mostrámos a Cetego a sua carta. Ele concordou que o selo era seu. O fio foi cortado. Escrita pelo seu próprio punho e dirigida aos chefes dos Alóbroges, a mensagem reiterava a conspiração exactamente como eu vo-la descrevi. Anteriormente, e com base em informações dos Alóbroges, eu enviara um dos pretores a casa de Cetego, onde foi descoberto um esconderijo cheio de espadas e punhais, que foram confiscados. Quando o interroguei acerca disso, Cetego respondeu sarcasticamente que era apenas um coleccionador de armas de qualidade! Mas quando a sua carta foi lida em voz alta e a sua perversidade denunciada, ele encheu-se de vergonha e de medo e não voltou a abrir a boca.

 

”Outro dos autores das cartas, Estatílio, foi também convocado. Procedeu-se novamente à quebra do selo e à leitura da carta, a que se seguiu outra confissão gaguejada de culpa.

 

”Veio depois Lêntulo. A sua carta foi lida. Nela se reiterava aquilo que nós já sabíamos, mas Lêntulo recusou-se a ceder e a confessar como os outros. Eu ofereci a este homem que é actualmente pretor, mas já foi cônsul do povo romano uma oportunidade para falar em sua defesa. Ele recusou, e insistiu em que Voltúrcio e os Alóbroges fossem chamados à sua presença, para que ele pudesse confrontar-se directamente com os seus acusadores. Assim se fez; e assim foi Lêntulo desenganado, porque quando os nossos informadores recitaram resolutamente as ocasiões em que se tinham reunido com ele, ele começou a esboroar-se, e quando eles mencionaram os oráculos sibilinos, nós, os que estávamos ali presentes, pudemos observar o que a denúncia da culpa pode fazer a um homem. A magnitude do seu crime e o absurdo gritante das suas ilusões abateram-se subitamente sobre ele e despojaram-no de toda a sua vivacidade, e em vez de continuar a negar as acusações, como podia perfeitamente ter feito, Lêntulo surpreendeu-nos a todos ao proferir subitamente a sua confissão. Fê-lo numa voz lamurienta que nenhum de nós escutara anteriormente; quando mais precisava delas, as suas famosas capacidades oratórias e até o seu conhecido sarcasmo abandonaram-no por completo.

 

”Voltúrcio foi então chamado, para apresentar a única carta que ainda não fora aberta. Ao vê-la, Lêntulo empalideceu e começou a tremer; apesar disso, reconheceu o selo e a letra como seus, embora a carta propriamente dita não estivesse assinada. Vou ler-vo-la. Sem desviar os olhos da multidão, Cícero ergueu a mão. Ao seu lado surgiu Tiro, o seu secretário, que colocou o documento nas mãos do seu senhor. ”Saberás quem eu sou pelo homem que te levar esta missiva. Lembra-te de que és um homem; considera a tua situação; dá os passos que forem necessários. Recorre ao auxílio de todos, incluindo os mais inferiores.”

 

Cícero estendeu os braços, como se o documento cheirasse mal, e Tiro tirou-lho da mão.

 

Cartas, selos, letras, confissões... cidadãos, estas podem parecer-vos as provas mais definitivas contra estes homens. Mas ainda mais conclusivas foram as suas expressões furtivas, a palidez dos seus rostos, o seu silêncio de estupefacção e o modo como fixavam o chão, demasiadamente envergonhados para olharem para nós de frente, ou como relanceavam receosamente os olhos uns para os outros. A sua aparência de culpa era o testemunho mais incriminatório contra eles.

 

”Com base nas provas reunidas, o Senado votou por unanimidade prender os nove homens mais intimamente envolvidos nesta conspiração apenas nove apesar do alarmante número de traidores que há entre nós porque, na sua clemência, o Senado está convencido de que a punição destes nove poderá ser suficiente para chamar os restantes à razão.

 

”E foi assim que os revoltantes planos de Catilina fracassaram abjectamente. Se eu não tivesse tido a previdência de o expulsar da cidade, poderia não ter sido assim. Porque, embora nunca tivesse havido perigo real por parte do preguiçoso Lêntulo ou do temerário Cetego, já que eu estive constantemente vigilante, Catilina é um caso diferente. A sua capacidade de influenciar os corações dos homens, a sua atenção pessoal a todos os pormenores dos seus vastos planos, a sua inteligência, a sua enorme força e a sua resistência física todas essas características faziam dele o mais formidável dos inimigos de Roma, enquanto se encontrava entre nós. Ele nunca teria cometido o erro estúpido de enviar aquelas cartas incriminatórias, fechadas com o seu próprio selo! Se ele tivesse permanecido na cidade, e embora eu vigiasse todos os seus passos e contrariasse os seus desígnios, teríamos entre mãos um combate bem mais difícil, uma luta de morte.

 

Cícero fez uma pausa. Juntou as mãos diante de si e inclinou a cabeça por momentos e depois, inspirando profundamente, ergueu os olhos para a estátua de Júpiter colocada ao seu lado e aproximou-se dela.

 

Na minha condução destes eventos, caros concidadãos, sinto fortemente que fui guiado em todos os passos que dei pela vontade dos deuses imortais. Essa conclusão é óbvia, porque a iniciativa humana dificilmente poderia, só por si, dirigir estes assuntos para um final tão feliz. Na verdade, ao longo destes dias de obscuridade, tão persistentemente tornaram os deuses conhecida a sua vontade, que se tornaram virtualmente visíveis diante de nós. A notícia dos seus portentos já se difundiu entre vós, por isso quase não vale a pena mencionar todas as suas manifestações... as chamas que foram avistadas no céu à noite, os tremores de terra, os estranhos desenhos de relâmpagos. Através desses sinais, os deuses previram o resultado desta luta. Não os enumerarei todos, mas há um incidente de tal maneira determinante, que não posso deixar de o mencionar.

 

”Fazei recuar dois anos a vossa memória, até aos consulados de Cota e de Torquato. Nesse ano, o Capitólio foi repetidamente atingido por estranhos relâmpagos, que abalaram as imagens dos deuses nos seus pedestais, derrubaram as estátuas dos nossos antepassados e derreteram as tábuas de bronze da lei. Até a imagem de Rómulo, o nosso fundador, foi atingida, essa estátua coberta de ouro em que ele mama o leite da loba. Os adivinhos, chamados de toda a Etrúria, profetizaram assassínios e conflagrações, a subversão da lei, a guerra civil e o fim de Roma e do seu império... a não ser que os deuses fossem persuadidos a alterar o curso do destino. De acordo com estas advertências terríveis, foram organizados jogos cerimoniais durante dez dias consecutivos, e não ficou por fazer nada que pudesse aplacar os deuses.

 

”Os adivinhos ordenaram que se fizesse uma nova estátua de Júpiter e que fosse colocada num lugar imponente, voltada para o nascente e superintendendo ao Fórum e ao Senado. Com a imagem do Pai dos Deuses voltada para as nossas actividades mortais, qualquer ameaça de peso à segurança de Roma seria denunciada e tornada manifesta ao Senado e ao povo. Foi assim que, lentamente, se deu início à construção desta estátua, imensa e magnífica, que só agora foi completada... e que só ficou pronta a ser instalada neste lugar imponente, ao lado da entrada do Templo da Concórdia precisamente hoje.

 

”Nenhum homem poderá ser tão cego, que não perceba que todo o Universo, e mais especificamente esta cidade escolhida, é conduzido e governado pela vontade e pela majestade dos deuses. Há dois anos, fomos advertidos por aqueles que interpretam os sinais dos deuses de catástrofes iminentes e de caos civil. Nem todos acreditaram nos sinais, mas a sabedoria prevaleceu e os deuses foram aplacados. Agora chegou o tempo da crise e quem se atreveria a declarar que se trata de uma coincidência? a estátua de Júpiter ficou pronta! Tão oportuna é a benigna intervenção do grande Júpiter, que no próprio momento em que os conspiradores estavam a ser levados pelo Fórum para o Templo da Concórdia, os engenheiros acabavam de completar a instalação da estátua! E agora, com o terrível olhar de Júpiter sobre nós, esta conspiração contra a vossa segurança e a própria sobrevivência de Roma foi revelada e trazida à desapiedada e brilhante luz do dia.

 

”Mais desapiedado do que nunca deve ser, pois, o vosso ódio e o vosso castigo àqueles homens que se atreveram a espalhar as chamas da destruição, não apenas nas vossas casas, mas também nos altares dos deuses. Que orgulhoso eu me sentiria se pudesse afirmar que a sua apreensão e a sua prisão se deve exclusivamente a mim, mas não é verdade; foi o próprio Júpiter quem se opôs a eles. Júpiter deseja que o Capitólio seja salvo e que os templos e esta cidade e todos vós sejam igualmente salvos. E eu fui o instrumento desse desejo divino.

 

”O Senado decretou uma acção de graças aos deuses. Esse decreto foi promulgado em meu nome foi a primeira vez que essa honra foi conferida a um civil. Ela tomou a forma das seguintes palavras: ”porque ele salvou a cidade das chamas, os cidadãos do massacre e a Itália da guerra”. Sim, cidadãos, erguei as vossas vozes em acções de graças, mas não a mim; prestai o vosso louvor amoroso ao pai que vos salvou a todos, ao destruidor dos inimigos de Roma, a Júpiter Todo-Poderoso!

 

Cícero ergueu os braços para a estátua brilhante que tinha ao seu lado e recuou. Irromperam aplausos por entre a multidão, tão bem orquestrados que a princípio eu perguntei a mim próprio se Cícero teria semeado os seus partidários entre a multidão. Mas a ovação era demasiadamente forte para ser falsa, e por que não? Não era Cícero, o simples instrumento, que eles aplaudiam, era o Pai dos Deuses, que olhava para nós de trás do seu rosto trovejante. Ainda assim, quando recuou para a sombra, Cícero exibia um sorriso de puro triunfo, como se os aplausos fossem exclusivamente para ele.

 

Isto é o fim de Catilina disse Eco nessa noite, reclinado no seu canapé. Tínhamos acabado de jantar. A comida e os utensílios tinham sido recolhidos e só ficara um cântaro de vinho misturado com água. Diana dormia profundamente na sua cama, e Betesda e Menénia tinham-se retirado para outra sala.

 

Até hoje prosseguiu Eco ninguém em Roma estava certo do que ia acontecer. Parecia haver ainda uma possibilidade real de insurreição na cidade, fosse ela bem ou mal sucedida. Sentia-se nas ruas... a cólera, o ressentimento, a impaciência, o anseio por qualquer tipo de mudança, fosse a que preço fosse. Era como se as pessoas esperassem que o céu se abrisse e revelasse um panteão completamente novo de deuses, olhando para elas do alto dos céus.

 

Era a isso que te referias na tua carta, quando dizias que poderíamos falar com maior franqueza FACE A FACE? disse eu.

 

Bem, não podia propriamente expressar estas ideias numa carta, pois não? Olha o que aconteceu a Lêntulo e a Cetego por terem confiado os seus pensamentos incriminatórios a um rolo de pergaminho! Não que eu simpatize com eles, mas hoje em dia as pessoas têm de ter muito cuidado com aquilo que dizem, com as pessoas com quem falam...

 

O cônsul tem olhos e ouvidos em toda a parte disse eu.

 

Exactamente.

 

E os seus olhos vigiam-se uns aos outros.

 

Pois.

 

Nesse caso, é muita pena que todos esses espiões e contra-espiões de Cícero não tenham tropeçado nos seus próprios pés! disse Meto subitamente, com uma veemência que nos surpreendeu. Ele tinha estado sentado no seu canapé em silêncio, a beber vinho misturado com água e a ouvir-nos.

 

Eco olhou para o irmão, confuso.

 

O que queres dizer com isso, Meto?

 

Quero dizer... não sei bem o que quero dizer, mas achei o discurso de Cícero nojento. A sua voz estava cheia da paixão fervorosa daqueles que são muito jovens, muito sinceros e estão muito zangados. Achas que havia alguma palavra de verdade naquilo tudo?

 

Claro que havia disse Eco.

 

Entretanto, eu mantinha-me em silêncio, recostado para trás, ouvindo-os discutir.

 

Não pensas que terá sido Cícero a forjar aquelas cartas, pois não?

 

Não, mas quem é que planeou a maquinação?

 

Que maquinação?

 

A ideia de os conspiradores se desacreditarem, estabelecendo relações com os Alóbroges.

 

Suponho que terá sido Lêntulo a fazer a maquinação, ou um dos outros...

 

E por que não Cícero? disse Meto.

 

Mas...

 

Estive a ouvir alguns homens a conversar no Fórum depois de o discurso ter acabado, quando a multidão dispersava. Esses homens estavam a dizer que os Alóbroges se sentiam insatisfeitos com o domínio romano e que tinham razões para isso. Os funcionários romanos da Gália são corruptos e gananciosos, como todos os funcionários romanos. Foi por isso que os enviados vieram a Roma, para solicitar reformas ao Senado.

 

Exactamente concordou Eco. E, conhecendo o seu descontentamento, Lêntulo viu a sua oportunidade de os subornar.

 

Ou terá sido Cícero a ver uma oportunidade de os utilizar para seu benefício? Não percebes, Eco, que foram os Alóbroges que abordaram os apoiantes de Catilina, que a ideia foi deles, que eles agiram secretamente em nome de Cícero? Ele disse no seu discurso de hoje que estava desesperado por descobrir uma maneira de denunciar os seus inimigos, de os fazer falar. Suficientemente desesperado para planear ele próprio tudo isto! Lêntulo e Cetego foram enganados e, como loucos, morderam a isca. Agora Cícero apanhou-os na sua rede e eles nunca mais de lá sairão.

 

Eco encostou-se, com uma expressão pensativa.

 

Havia homens a dizer isso no Fórum?

 

Não o diziam em voz alta, como podes imaginar, mas eu oiço bem.

 

Tenho de admitir que faz sentido, mas é de doidos.

 

Porquê? Todos sabemos que Cícero prefere operar em segredo, com trapaças e enganos. Achas que ele não desceria a encenar todo este incidente? É tão simples, tão claro. Os Alóbroges vêm pedir favores, mas o Senado ignora-os. Cícero é o homem mais poderoso de Roma; pode conseguir-lhes aquilo que eles pretendem. Faz-lhes promessas, mas em troca eles têm de desempenhar o papel de agentes seus. Por isso, eles abordam Lêntulo e Cetego, fingindo pretender uma aliança. Sem Catilina para os orientar, Lêntulo, Cetego e os restantes não vão a lado nenhum sozinhos, por isso aceitam avidamente a proposta. Mas os Alóbroges querem um acordo por escrito só isso satisfará Cícero e os loucos acedem. Os enviados fingem partir para o seu país. Agindo com base em informações fornecidas por Cícero, dois pretores encenam uma dramática mas fingida emboscada na Ponte Mílvia.

 

Porquê ”fingida”? disse Eco.

 

Porque, embora os pretores pensassem que a emboscada era real, os homens que eles emboscaram estavam à espera deles e não ofereceram qualquer resistência. Porquê? Porque o informador, Voltúrcio, que acompanhava os Alóbroges, também fazia parte do jogo, era outro dos agentes de Cícero.

 

Também estavam a dizer isso no Fórum?

 

Não disse Meto com uma sugestão de sorriso a suavizar-lhe a irritação. A parte que diz respeito a Voltúrcio é da minha lavra.

 

Mas não é improvável disse eu, sentando-me e voltando ajuntar-me à conversa. Sabemos que Cícero tem espiões em toda a parte.

 

Até nesta sala murmurou Meto, tão baixo que eu quase não o ouvi.

 

Ainda assim disse Eco abanando a cabeça, mesmo que aquilo que vocês dizem seja verdade e que Cícero tenha armado uma cilada aos conspiradores, eles não eram obrigados a cair nela. Eles aliaram-se a súbditos estrangeiros e maquinaram fazer guerra contra Roma.

 

Sim disse eu e Meto tem razão quando lhes chama loucos por isso. O povo romano pode perdoar uma conspiração para derrubar o Estado a partir de dentro muitos deles não se importariam de aderir a uma insurreição desse género, quanto mais não fosse pelas possibilidades de saque que isso proporciona mas romanos conspirarem com estrangeiros contra o Estado é imperdoável. Transforma-os de rebeldes em traidores. Acho que tens razão, Eco, quando dizes que Catilina nunca recuperará disto. De facto, não é de espantar que Cícero tenha dado graças aos deuses no final do seu discurso... nem o próprio Júpiter conseguiria divisar uma forma mais definitiva de desacreditar Catilina e os seus seguidores. Meto tapou os ouvidos.

 

Por favor, Papá, não fales dos deuses! Sabes quais são os verdadeiros sentimentos de Cícero acerca da religião; ele gosta de se gabar entre os seus amigos intelectuais de não acreditar nos deuses. Diz ele que tudo isso são tolices e superstições. Contudo, quando fala ao povo no Fórum, mostra-se mais piedoso que um sacerdote e autoproclama-se instrumento de Júpiter. Que hipocrisia! E alguém acredita naquele disparate acerca do presságio que é a estátua de Júpiter? Não acham mais provável que Cícero tenha escolhido para dia da ”emboscada” aos Alóbroges o mesmo dia em que a estátua seria instalada, para poder explorar a coincidência? Isso é a prova determinante de que ele planeou tudo isto e regulou o tempo a seu bel-prazer.

 

Eco abriu a boca para dizer qualquer coisa, mas era impossível deter Meto.

 

Sabes que mais? Nem sequer tenho a certeza de que Lêntulo e Cetego tivessem planeado incendiar a cidade. Que provas temos disso, excepto a palavra de Voltúrcio, o informador... o espião de Cícero? Talvez Lêntulo e Cetego fossem suficientemente estúpidos para terem feito essa conspiração, ou talvez Cícero se tivesse limitado a inventar a história do incêndio para assustar as pessoas, tal como inventou a história de Catilina querer dirigir uma revolta de escravos. Nada assusta mais as pessoas do que estas duas coisas, o fogo e os escravos fora de controlo. Os ricos temem a vingança dos escravos e os pobres têm medo do fogo, que pode roubar-lhes tudo aquilo que possuem de um momento para o outro. Até os mais pobres de todos, que consideram Catilina seu salvador, voltariam as costas a qualquer homem que planeasse incendiar a cidade.

 

Dardos lançados contra a multidão! murmurei eu.

 

O que é que disseste, Papá? disse Eco.

 

Foi uma ideia que Catilina me deu. Virgens Vestais e deboche sexual; fogo posto, anarquia, revoltas de escravos; conspirações com estrangeiros; a vontade de Júpiter... Cícero parece ter uma ciência das palavras e das frases passíveis de manipular as massas.

 

E não te esqueças da sua vigilância disse Meto. Ergueu-se e pousou a taça. Tinha as mãos a tremer. Pelo menos eu posso dizer uma coisa que mais ninguém nesta sala pode dizer: nunca servi de olhos e de ouvidos do cônsul. E, com isso, voltou-se abruptamente e deixou-nos.

 

Eco ficou a olhar para ele.

 

Papá, o que aconteceu ao meu irmãozinho?

 

Está a tornar-se um homem, suponho eu.

 

Não, quer dizer...

 

Eu sei o que tu queres dizer. Desde a celebração do seu aniversário, aqui em Roma, tem estado cada vez mais como o viste hoje.

 

Mas estas ideias temerárias e a profundidade da sua cólera contra Cícero... de onde é que isso vem?

 

Eu encolhi os ombros.

 

Catilina dormiu sob o meu tecto diversas vezes. Julgo que Meto terá tido algumas conversas em privado com ele enquanto eu estava ocupado com outras coisas. Conheces o extraordinário efeito que Catilina tem nos jovens.

 

Mas essas ideias são perigosas. Se Meto quer tê-las na quinta, isso é uma coisa, mas aqui na cidade espero que ele tenha suficiente sensatez para manter a boca fechada, pelo menos em público. Acho que devias ter uma conversa com ele.

 

Porquê? Tudo aquilo que ele diz me parece perfeitamente razoável.

 

Está bem, mas não estás preocupado?

 

Um pouco. Mas, quando ele há bocado saiu da sala, o que eu senti não foi preocupação. Senti-me até orgulhoso, para dizer a verdade... e também um pouco envergonhado comigo próprio.

 

Há momentos no teatro em que as personagens e os acontecimentos que têm lugar em cena parece tornarem-se mais reais do que a própria realidade. Não falo das comédias romanas obscenas, embora por vezes até essas atinjam o ponto em que estou a pensar; refiro-me mais àquelas sublimes tragédias dos Gregos. Sabemos que as máscaras ocultam meros actores, e sabemos que as palavras que eles pronunciam foram antecipadamente escritas, mas quando Édipo se cega, não podemos deixar de sentir uma angústia mais viva do que a dor física e um terror que parece vir dos recessos mais profundos da nossa alma. Os deuses pairam no ar; sabemos que não passam de homens suspensos de uma grua, mas experimentamos um temor que transcende por completo a razão.

 

Os dias que se seguiram ao discurso de Cícero no Fórum foram coloridos com o mesmo sentido de irrealidade viva e compelidora. Havia qualquer coisa de grande e de teatral, mas ao mesmo tempo sujo e absurdo, na inevitável progressão para a destruição dos homens que tinham caído em poder de Cícero. Em última análise, não fora Cícero a decretar a sua aniquilação, mas o Senado. Se esse corpo augusto agiu legalmente, ou não, é uma controvérsia que eu duvido que venha a ser resolvida durante a minha vida.

 

A lei romana não confere aos cônsules nem ao Senado o direito de condenar um cidadão à morte; esse direito está reservado aos tribunais e à Assembleia do Povo. Porque os tribunais são lentos e pesados e a Assembleia perigosamente volátil, nenhuma das instituições tem grande utilidade numa emergência. Pode argumentar-se que o Decreto Radical, pelo qual o Senado conferira aos cônsules o poder de darem os passos que fossem necessários à preservação do Estado, suplantava outras restrições e permitia a imposição da pena de morte contra os inimigos internos de Roma. Apesar disso, seria correcto, legal ou honroso condenar à morte homens em cativeiro, que tinham poisado as armas e se tinham entregue às autoridades, não constituindo por isso ameaça directa para ninguém? Estas foram algumas das discussões que ocuparam o Senado nos dois dias seguintes.

 

Como inimigo declarado dos políticos, eu devia ter partido imediatamente da cidade, mas não o fiz. Não fui capaz. Tal como todos os outros cidadãos, eu vivia as horas que passavam numa expectativa nervosa e suspensa, sentindo o pavor de qualquer coisa terrível que pendia sobre a cidade e os seus habitantes. Toda a gente sentia o mesmo, fossem quais fossem as suas preferências políticas, a sua opinião acerca de Cícero, ou as suas crenças acerca da bondade ou da perversidade dos homens mantidos sob custódia. O pavor era como uma dor que se instalara em todas as articulações do corpo político, uma febre que perturbava a mente colectiva. Queríamos libertar-nos daquela doença. Mas também receávamos que os nossos médicos, os membros do Senado, recorressem a uma cura drástica, que não se limitasse a tratar a febre, mas matasse o paciente.

 

No dia seguinte ao discurso de Cícero, a cidade transformou-se num enorme remoinho de boatos, cujo centro voraz era o Templo da Concórdia, onde o Senado continuava a reunir-se. A notícia de que um dos apoiantes de Catilina implicara Crasso provocou o pânico entre os comerciantes do Fórum; os homens torciam as mãos, perguntando a si próprios o que aconteceria se Crasso fosse preso e a sua fortuna fosse imobilizada ou confiscada, enquanto outros diziam que Crasso nunca permitiria semelhante coisa e que preferiria juntar-se a Catilina e provocar uma guerra civil. De facto, um certo Lúcio Tarquínio apresentara-se diante do Senado afirmando que Crasso o mandara levar a Catilina a notícia das prisões, aconselhando-o a marchar imediatamente sobre Roma. A reacção dos senadores, depois de alguma consternação, foi mandar calar o homem aos gritos. Mesmo que a história fosse verdade, ninguém estava particularmente interessado em implicar Crasso enquanto ele permanecesse publicamente leal ao Senado. Depois de uma breve discussão, aqueles que estavam presentes registaram um voto de confiança no seu membro mais abastado. Foi igualmente decidido que Lúcio Tarquínio não seria autorizado a apresentar novos testemunhos enquanto não estivesse disposto a revelar quem o subornara para apresentar um testemunho falso e calunioso contra um homem de tão indiscutível patriotismo como Marco Crasso. Alguns estavam convencidos de que Tarquínio resolvera implicar Crasso a fim de moderar a punição daqueles que já se encontravam sob custódia, uma vez que, com Crasso entre eles, o Senado hesitaria em aplicar medidas drásticas. Outros achavam que fora Cícero quem levara Tarquínio a dar esse passo, a fim de silenciar Crasso e evitar que ele influenciasse a discussão. Apesar de tudo, Lúcio Tarquínio manteve a sua história original e, impedido de continuar a testemunhar, foi eficazmente amordaçado. A questão das lealdades de Crasso não voltou a ser suscitada, e ele evitou envolver-se numa discussão activa quanto ao destino dos homens presos.

 

César também foi objecto de escrutínio e de suspeita. Teria sido também implicado por Voltúrcio e pelos Alóbroges? E teriam sido essas acusações suprimidas pelo Senado e censuradas por Cícero no seu discurso porque nenhum deles estava interessado em se confrontar com César? Ou seriam tais afirmações meros boatos, postos a circular pelos inimigos de César? Fosse qual fosse a verdade, os boatos contra César generalizaram-se. Tão fortes eram os sentimentos dos homens armados designados para protegerem o Templo da Concórdia todos cavaleiros e partidários de Cícero, que nessa tarde, quando César saía do edifício, eles gritaram ameaças e brandiram as espadas contra ele. De acordo com os que assistiram à cena, a dignidade de César não vacilou e, uma vez liberto do cordão, ele terá observado sarcasticamente: ”Que maldispostos estão estes cães; o dono não os tem alimentado bem ultimamente?”

 

Nesse dia, os senadores discutiram a conduta desleal dos prisioneiros, declarando-os culpados. Se isto constituiu ou não um julgamento legal, foi uma questão que se arrastou durante anos e que ainda prossegue. Os senadores votaram igualmente atribuir recompensas substanciais aos Alóbroges e a Voltúrcio.

 

Nas lojas, nas tabernas e nas praças públicas começaram a circular pormenores acerca da insurreição, aparentemente calendarizada de forma a coincidir com as Saturnalia. Todo o Senado seria assassinado, juntamente com o maior número possível de cidadãos, em carnificina indiscriminada; só os filhos de Pompeu seriam presos, para serem usados como reféns, a fim de impedir que o grande general ripostasse. Tinham sido recrutados cem homens para atear fogueiras em toda a cidade e demolir os aquedutos, para que os incêndios não pudessem ser apagados; quem quer que tentasse apagá-los devia ser imediatamente morto. De todos estes pormenores, quais seriam autênticos e quais seriam fantasiados? Era impossível saber, porque assim que surgia um boato, logo outro vinha contradizê-lo. Um mercador de prata que tinha a sua banca junto do Fórum contou-me que vira com os seus próprios olhos o enorme esconderijo de espadas novas e de material incendiário que fora descoberto na casa de Cetego, composta por uma roda de gladiadores altamente treinados; alguns passos adiante e momentos depois, um mercador de vinhos que afirmava ter visitado Cetego apenas dois dias antes de ele ser preso disse-me que as únicas armas que ele tinha em casa eram uma colecção de armas cerimoniais inofensivas que pertenciam à família há várias gerações, que ele apenas dispunha de uma mão-cheia de guarda-costas (como qualquer senador) e que em sua casa não havia mais objectos inflamáveis do que em qualquer outra.

 

Os boatos mais recentes afirmavam que Lêntulo, Cetego e os restantes presos planeavam fugir. Os cativos tinham sido colocados em prisão domiciliária, à custódia de diversos senadores. Mas dizia-se que os libertos de Lêntulo vagueavam pelas ruas, tentando incitar trabalhadores e escravos a erguerem-se e a libertarem o seu patrono, e o suposto exército de gladiadores de Cetego tentava juntar forças com os bandos contratados da cidade para atacarem a casa onde ele se encontrava preso. Consequentemente, o cônsul ordenou que mais tropas da guarnição rodeassem as nove casas onde os acusados se encontravam encarcerados. A presença de tantos homens armados nas ruas lançou ainda mais boatos em circulação.

 

Ao pôr do Sol, Cícero foi banido da sua casa no Palatino por razões que nada tinham a ver com a crise. Era a noite do rito anual da Deusa dos Bens, Fauna, uma cerimónia estatal tradicionalmente presidida pela mulher do cônsul e a que assistiam as Virgens Vestais. Dado que os homens eram excluídos do rito, Cícero passou a noite em casa do seu irmão Quinto. Entre as Vestais participantes, encontrava-se a cunhada de Cícero, Fábia, que fora julgada e ilibada dez anos antes por causa da sua ligação a Catilina; segundo Betesda, o principal tópico de coscuvilhice entre as mulheres de Roma centrou-se naquilo que Fábia devia sentir numa noite como aquela. Por mim, sentia mais curiosidade pela mulher de Cícero, Terência. Quer acreditasse mais em Fauna do que o seu marido em Júpiter, quer não, a verdade é que era tão circunspecta como ele relativamente aos presságios; quando pareceu que a chama dedicada à deusa se apagara, voltando depois a acender-se subitamente, Terência enviou imediatamente uma mensagem ao seu marido, advertindo-o de que a Deusa dos Bens lhe enviara um sinal para que fosse misericordioso com os inimigos de Roma.

 

As Nonas de Dezembro amanheceram brilhantes e frias. Uma roda de homens armados reuniu-se diante do Templo da Concórdia. Um por um, os senadores foram chegando, deixando as suas comitivas para trás, no meio da multidão, enquanto eles próprios subiam os degraus sob o semblante sério de Júpiter e desapareciam no interior do templo para decidir o destino dos conspiradores. Crasso estava conspicuamente ausente, como estavam muitos senadores do partido populista, mas César esteve presente, abrindo caminho pelo Fórum com um grande corpo de seguidores.

 

Enquanto o Senado se reunia, a multidão nervosa congregada no Fórum esperava pelo resultado. Os homens especulavam imensamente acerca do debate que estava a ser encenado lá dentro, e circulavam rumores excitados que Lêntulo fugira, que Cetego fora estrangulado durante a noite, que Crasso se suicidara, que Catilina e um imenso exército atravessavam a Ponte Mílvia, que partes da cidade se tinham revoltado e tinham sido incendiadas, que César fora atacado e morto no interior do Templo da Concórdia. Este último boato provocou um pequeno tumulto entre os partidários de César, que tentaram tomar de assalto o templo e só se acalmaram quando César apareceu pessoalmente nos degraus para mostrar que estava vivo e de boa saúde.

 

Dei por mim a desejar que Rufo nos tivesse feito entrar às escondidas, como fizera no dia do aniversário de Meto, para que pudéssemos ouvir os discursos. Porém, só mais tarde ouvi os pormenores, grande parte deles da boca de Rufo, mas também por ter lido os próprios discursos; é que Cícero, que tinha a mania da vigilância e que no seu primeiro discurso contra Catilina proclamara ”Que as opiniões políticas de todos os homens sejam escritas na sua testa, para toda a gente ver”, mandara colocar um exército de secretários entre os senadores para registarem todo o debate, uma coisa que nunca antes fora feita. Estes secretários tinham sido formados pelo próprio Tiro, de acordo com o método chamado ”estenografia” de Tiro, através do qual palavras e frases inteiras são registadas com um único sinal. Utilizando esta nova invenção, eles conseguiam assentar todas as palavras, e assim os sentimentos de todos os senadores ficaram registados nos arquivos de Cícero.

 

Silano, o cônsul eleito, deu início ao debate com uma inflamada condenação daqueles que tinham mergulhado Roma nas ruínas da guerra civil; conjurou imagens de crianças despedaçadas diante dos pais horrorizados, de mulheres violadas diante dos maridos castrados, de rapazes e raparigas brutalmente violentados, de templos saqueados, de casas queimadas e destruídas. Nenhuma solução satisfaria os deuses, argumentou, excepto a imposição da ”pena capital” aos prisioneiros.

 

Os oradores subsequentes concordaram com ele e mostraram-se inclinados em se superar uns aos outros com as suas expressões de ultraje, até que a proposta foi contrariada por César, que salientou que a lei romana permite a um cidadão condenado trocar a execução pelo exílio. Não argumentou que os homens condenados merecessem viver, mas que a lei devia ser escrupulosamente respeitada, em nome da tradição. ”Considerai o precedente que estabelecereis, porque todos os maus precedentes tiveram origem em medidas boas em si mesmas. Estais dispostos a infligir uma pena extraordinária a homens culpados que indubitavelmente a merecem. Mas o que acontecerá quando o poder passar para as mãos de homens menos dignos do que vós, e eles quiserem infligir a morte a homens que a não mereçam? Eles apontarão o precedente por vós estabelecido e ninguém poderá detê-los”. E foi assim que César, que muitos pensavam estar conluiado com os conspiradores, conseguiu defender a clemência sem propriamente defender os acusados. Propôs que, em vez de eles serem executados, os seus bens fossem confiscados e eles fossem expulsos para cidades longínquas e mantidos sob vigilância até Catilina ser derrotado no campo de batalha ou até a crise ter passado.

 

Cícero voltou a enunciar a sua proposta, dizendo que o único período seguro de prisão para homens como aqueles era a prisão perpétua, para a qual não havia precedentes, e que todas as leis que protegiam a vida dos cidadãos tinham deixado de se aplicar aos homens em questão, ”porque um homem que é um inimigo público deixa de poder ser considerado um cidadão”.

 

No entanto, César foi de tal maneira persuasivo, que o próprio Silano se desdisse, afirmando que nunca pretendera advogar a morte para os prisioneiros, já que no caso dos senadores romanos, como eram Lêntulo e Cetego, a ”pena capital” significava a prisão. Estas declarações foram recebidas com gargalhadas grosseiras e gritos de desdém de todos os lados.

 

Seguiram-se novos discursos, e parecia que os presentes estavam profundamente divididos entre a execução e o exílio. Tibério Nero suscitou gritos de aprovação quando argumentou que não se devia tomar uma decisão tão drástica como a da execução no calor do momento e que o caminho proposto por César era o melhor; ”não se devia fazer coisa alguma sem haver um julgamento estritamente legal”, dizia ele, ”e não seria possível realizá-lo enquanto Catilina não fosse exilado para sempre ou derrotado no campo de batalha”.

 

Nesta altura, Marco Catão ergueu-se para falar. Embora as transcrições não registem o facto, podemos imaginar o gemido colectivo da assembleia. Marco Catão era a autonomeada consciência do Senado, que exortava constantemente os seus colegas a respeitaram os sérios princípios morais que ele herdara do seu famoso bisavô.

 

Já muitas vezes falei diante deste corpo começou ele e muitas vezes censurei os meus concidadãos pela sua falta de verticalidade, pela sua sensualidade, indolência e ganância. Ao fazê-lo, conquistei muitos inimigos mas, como nunca me desculpei pelas minhas faltas, não vejo razão para desculpar as faltas dos outros. Conheceis os meus sentimentos. Já os ouvistes muitas vezes, e vejo-vos revirar os olhos perante a perspectiva de voltardes a ouvi-los. Os homens não gostam de ouvir dizer que perderam as virtudes dos seus antepassados, especialmente quando isso é verdade. Os nossos antepassados construíram este império trabalhando arduamente, governando com justiça no estrangeiro e com integridade dentro desta câmara. Hoje em dia, vós acumulais fortunas pessoais, enquanto o Estado se encontra na bancarrota. Lugares de honra, que deviam ser atribuídos como recompensa pelo mérito, são vendidos a intrigantes ambiciosos. Nas vossas vidas privadas sois escravos do prazer e aqui no Senado sois meros instrumentos do dinheiro e da influência. Resultado? Quando alguém ataca a República, não há quem a defenda! Toda a gente olha em volta, tremendo confusa, à espera que os outros ajam!

 

”Ao longo dos anos, tendes prestado pouca atenção às minhas exortações. Encolhestes os ombros e regressastes à vossa vida estouvada. Felizmente, graças aos sãos fundamentos colocados pelos nossos antepassados, o Estado suportou os vossos caprichos e até prosperou. Mas o que agora está em causa não é uma questão de moralidade, ou de saber se o nosso império deve ser maior e mais rico do que já é. O que está em causa é saber se o nosso império continuará a ser aquilo que é ou se o perderemos para os nossos inimigos! Numa crise como esta, que louco se atreve a falar-me de clemência e de compaixão?

 

”Desde há algum tempo a esta parte que deixámos de chamar as coisas pelos seus nomes. Oferecer os bens de outros é generosidade; as ideias sediciosas são inovações; a ousadia criminosa é aplaudida como coragem. Não é de espantar que tenhamos sido conduzidos a uma situação como esta! Muito bem, sejamos liberais à custa daqueles que pagam impostos e clementes com aqueles que pilham o tesouro público. Mas devemos oferecer o nosso sangue àqueles que nos assassinam? Deveremos poupar uma mão-cheia de criminosos, para lhes permitir que venham a destruir homens bons e honestos?

 

”Fomos aconselhados a aguardar, a deixar arrefecer as paixões, a esperar por uma perspectiva mais clara no próprio momento em que nos encontramos diante das goelas de um abismo! Fomos exortados a aderir à letra da lei, a esperar por um julgamento formal, a conceder a homens culpados a opção do exílio enquanto medas inflamáveis são amontoadas à volta das nossas casas! Outros crimes poderão ser punidos depois de terem sido cometidos, mas não este. Abafai-o à nascença, ou será tarde de mais. Permiti que esses traidores tomem o poder e nunca mais vos será permitido invocar a lei. Quando uma cidade é capturada, os seus habitantes derrotados perdem tudo. Tudo!

 

”Se não vos deixais instigar pelo patriotismo, então talvez possais reagir ao interesse próprio. Permiti-me que me dirija àqueles de entre vós que sempre se preocuparam mais com as suas dispendiosas villas, as suas obras de arte e a sua prata do que com o bem do nosso país. Em nome de Júpiter, homens, que quereis manter essas preciosas possessões que tanto significam para vós, acordai enquanto é tempo e estendei a mão para defender a República. Não estamos a falar de impostos exagerados nem do mal feito a povos submetidos. Aqui e agora, são as nossas vidas e a nossa liberdade que estão em causa!

 

”Podemos reagir a esta crise com força ou com fraqueza. Mostrar fraqueza seria o mais perigoso curso de acção, porque a clemência que mostrardes para com Lêntulo e os outros prisioneiros será um sinal claro para Catilina e para o seu exército. Quanto mais rigoroso for o vosso juízo, mais abalada ficará a coragem desses homens. Mostrai fraqueza e, como uma matilha de cães, eles cairão sobre vós e despedaçar-vos-ão. E, quando isso acontecer, não penseis em pedir ajuda aos deuses. Os deuses só ajudam aqueles que se ajudam a si próprios!

 

”Exílio? Prisão? Que meias-medidas tão absurdas! Esses homens devem ser tratados exactamente como se tivessem sido apanhados a praticar os crimes que conceberam. Se apanhásseis um homem a pegar fogo a vossa casa, estaríeis dispostos a recuar e a reflectir sobre a vossa reacção... ou atacá-lo-íeis imediatamente? Quanto ao senador que defende uma punição mais suave... bem, talvez ele tenha menos razões para temer do que nós!

 

Tratava-se de uma clara sugestão de que César estava de alguma maneira relacionado com os conspiradores, e aqueles que estavam sentados à volta de César reagiram com grandes apupos e assobios, até que o próprio César se pôs de pé e se envolveu com Catão em aceso debate acerca dos méritos da sua proposta. Não se disse nada de novo nem foram trocados insultos memoráveis até que, enquanto Catão discursava, um dos secretários de César lhe entregou uma carta. Ele começou por lê-la atentamente, apertando-a ao peito como se contivesse um grande segredo. Catão, aparentemente convencido de que se tratava de uma nota de alguém envolvido na conspiração, suspendeu o seu discurso e exigiu que César lesse a carta em voz alta. César objectou, mas Catão insistiu veementemente, até que César entregou a tira de pergaminho ao seu secretário, para que a passasse para o outro lado da ilha, dizendo:

 

Lê-a tu, em voz alta se te parecer.

 

Catão arrancou a carta das mãos do secretário, ergueu-a diante dos olhos e leu-a apressadamente. Com o Senado inteiro suspenso, corou até ficar da cor da tira roxa da sua toga. Diz-se que César quase conseguiu impedir-se de sorrir enquanto Catão, a espumar de raiva, amarrotava o pergaminho com o punho e o lançava a César gritando:

 

Toma lá, seu bêbedo imundo!

 

No meio de um debate acerca da vida e da morte e do futuro de Roma, César recebera uma carta de amor lasciva da meia-irmã do próprio Catão, a caprichosa Servília, que era uma fonte constante de vergonha para o grande moralista. Teria esta cena sido planeada por César para descompor o seu opositor em plena sessão deliberativa? Ou teria Servília, que estiolava fechada na sua casa do Palatino e se sentia jovialmente indiferente à crise que paralisava toda a cidade, procurado por acaso atrair as atenções de César com particular intensidade naquela tarde? Nem o mais extraordinário comediógrafo se teria alguma vez atrevido a compor uma cena tão pungentemente absurda.

 

Por fim, foi Catão, por muito humilhado que tivesse sido, quem ganhou o dia. O Senado votou impor a pena capital a cinco dos nove prisioneiros. Entre estes, estavam incluídos os dois senadores, Lêntulo e Cetego; dois cavaleiros, Lúcio Estatílio e Públio Gabínio Capito; e um cidadão comum, Marco Cepário.

 

Os senadores temiam que a noite trouxesse consigo alguma tentativa para libertar os prisioneiros, pelo que não perderam tempo a executar a sentença. Enquanto os pretores iam buscar os outros, o próprio Cícero, flanqueado por numerosos senadores e uma escolta armada, foi buscar Lêntulo à casa do Palatino onde ele se encontrava preso. Os senadores formaram um cordão móvel, enquanto Cícero escoltava o antigo cônsul através do Fórum. Eu estava entre a multidão, contendo a respiração, ouvindo bater o meu próprio coração, alerta aos primeiros sinais de tumulto, atento aos gritos de insurreição. Mas a multidão manteve-se calma e apenas emitiu um rugido apagado e desprovido de palavras, semelhante ao marulhar do oceano. Eu nunca vira uma multidão tão mansa no Fórum. Olhei para os homens que me rodeavam e vi nos seus rostos aquele temor que toma conta dos homens que assistem a um espectáculo terrível. O solene ritual da morte mantinha-os suspensos. Voltei a recordar-me do teatro, do seu estranho poder de afastar os homens da realidade, ao mesmo tempo que os coloca face a face com algo mais vasto do que eles próprios. O Senado de Roma realizava a sua vontade e não havia poder sobre a terra que pudesse impedi-lo.

 

Eco e Meto estavam comigo. Eu ter-me-ia contentado em me manter à distância, mas Meto quis abrir caminho até junto da procissão. Para além dos escudos e das espadas erguidas da escolta, através de um breve intervalo no mar de togas debruadas a roxo, tive um vislumbre de Cícero. Tinha um braço estendido ao longo do corpo e o outro erguido até ao peito, agarrando a bainha da toga. Levava o queixo solenemente erguido e olhava em frente sem pestanejar.

 

Ao seu lado seguia um homem mais velho, igualmente em traje de senador, cuja postura e expressão eram exactamente as mesmas. Lêntulo não dava sinais daquele irascível sarcasmo que lhe tinha granjeado a sua alcunha, mas também não inclinava a cabeça de vergonha nem tremia de medo. Se eu não soubesse qual deles era o cônsul e qual era o prisioneiro, não teria sido capaz de os distinguir. Então, Lêntulo voltou por acaso o rosto na minha direcção. Eu tive um vislumbre dos seus olhos e percebi que observava um homem cujo fim se aproximava.

 

Junto do Templo da Concórdia, construída na pedra dura do Capitólio, fica a antiga prisão de Estado de Roma. A cadeia fora construída no tempo em que a cidade era governada pelos reis, e destinava-se a albergar os seus inimigos. Quando Roma se transformou numa república, a cadeia passou a albergar os inimigos de Roma, depois de conquistados. O seu mais famoso habitante durante o meu tempo de vida foi o rei Jugurta da Numídia; depois de ter sido arrastado pelas ruas de Roma preso com grilhões, ele e os seus dois filhos foram levados para a prisão e lançados a um poço a quatro metros de profundidade, sem luz nem ar, ao qual apenas se tinha acesso por um orifício no seu telhado de pedra. Ali ficaram durante seis dias, sem água nem comida, antes de serem estrangulados pelos seus carcereiros.

 

Lêntulo não teria de esperar tanto tempo. No interior da prisão, para onde já tinham sido levados os outros quatro prisioneiros, foi despido da sua toga e escoltado até ao mesmo poço onde o rei da Numídia encontrara o seu fim. Tendo em conta o seu estatuto, Lêntulo foi o primeiro a ser descido pelo orifício. Logo que os seus pés tocaram o chão, os carrascos estrangularam-no com uma corda. Um por um, os quatro condenados foram descidos até ao poço, para se juntarem a ele na   morte.

 

Quando as execuções terminaram, Cícero emergiu da prisão e anunciou à multidão silenciosa: ”Eles viveram as suas vidas” a forma tradicional de falar da morte sem pronunciar a palavra de mau agouro, a fim de não provocar as Parcas nem despertar as lémures perturbadas dos mortos.

 

Quando os carrascos terminaram, uma grande tensão abandonou a cidade, como acontece quando são pronunciadas as últimas palavras de uma tragédia e os actores abandonam o palco. A noite caía. A multidão começou a dispersar. Rodeado pela sua escolta, Cícero atravessou o Fórum. Súbitos gritos de aclamação encheram o ar. Alguns homens correram para Cícero, chamando-lhe salvador da cidade. Quando ele saiu do Fórum e se dirigiu para sua casa passando pelo luxuoso bairro do Palatino, as matronas ricas correram à janela para o ver e mandaram escravos colocar lamparinas e tochas à entrada das casas, para que o seu caminho estivesse fortemente iluminado. Ele abandonara a sua expressão severa; sorria e acenava à multidão, como fazem os generais nas suas paradas triunfais.

 

E assim terminaram as Nonas de Dezembro, o dia mais grandioso da vida de Cícero. Vendo a multidão aplaudi-lo enquanto descia o Palatino, seria de crer que o seu triunfo era interminável e absoluto. Mas, quando regressámos a casa de Eco, no Esquilino, não vimos comemorações na Subura, em cujas ruas sujas e mal iluminadas reinava um silêncio sombrio.

 

O ano foi chegando ao fim e o Inverno foi ficando mais rigoroso. Do norte sopravam ventos frios. O granizo fustigava as portadas durante a noite. O gelo cobria a terra e a noite parecia cair mesmo antes de o dia ter começado.

 

A escassez de feno na quinta agudizou-se.

 

Temos de começar a favorecer os animais mais jovens e mais saudáveis disse-me Arato e a pensar na possibilidade de abater alguns dos outros para os comer, ou então de tentar vendê-los no mercado, mesmo com prejuízo; será preferível a vê-los enfraquecer e definhar. Os animais mal alimentados serão presa fácil de um Inverno rigoroso. Morrerão de doenças, se não morrerem de fome. É melhor retirar deles algumas vantagens do que vê-los morrer lentamente.

 

De vez em quando, víamos soldados marchar pela Via Cássia acima, em direcção ao norte, ataviados com adornos de batalha e embrulhados nas suas mantas de marcha. As tropas do Senado reuniam forças para um confronto. Certo dia em que passava por nós uma companhia de legionários, eu fui descobrir Meto e Diana na cumeeira. Ele apontava para as fileiras de soldados que passavam lá em baixo e dizia-lhe o nome e explicava-lhe a finalidade das diversas armas e das diferentes partes das armaduras. Quando percebeu que eu estava atrás dele, calou-se e afastou-se. Diana correu atrás dele, depois voltou para o pé de mim. Inclinou a cabeça e franziu o sobrolho.

 

Papá disse ela por que estás com um ar tão triste?

 

Eco mandava-me mensagens da cidade, mantendo-me informado dos desenvolvimentos. Continuava a haver notícias de insurreições em pontos tão longínquos como a Mauritânia e Espanha, mas no seguimento das execuções em Roma muitos dos apoiantes de Catilina tinham-no abandonado imediatamente. Ainda assim, alguns perseveravam na sua lealdade, e houve muitas sublevações, mesmo no seio das famílias. Especialmente aterradora foi a história do filho de um senador, Aulo Fúlvio, que partira de Roma para ir juntar-se a Catilina. Aulo foi detido, levado novamente para Roma e executado pelo seu próprio pai.

 

As Saturnalia chegaram e passaram sem derramamento de sangue. A festividade de meio do Inverno foi celebrada em Roma como um dia de libertação. Catão declarou à multidão reunida no Fórum que Cícero devia ser saudado como Pai da Pátria. A multidão repetiu a aclamação sem hesitações, e mais tarde o Senado aprovou essa resolução, elevando-a à categoria de lei. Teria Cícero previsto, no início do seu ano consular, mesmo nos seus sonhos mais ousados, que atingiria tal glória?

 

A primeira nota de desconcerto surgiu no começo do novo ano, quando Cícero foi obrigado a abandonar o cargo. A tradição exigia que ele fizesse um juramento, proclamando que fora fiel ao serviço de Roma e que em seguida fosse autorizado a fazer um discurso de despedida nos Rostra. Que discurso não estaria Cícero a planear! Tendo certa vez passado vários dias em sua casa, enquanto Cícero compunha o seu discurso em defesa de Sexto Róscio, eu imaginava-o na sua opulenta biblioteca, andando de um lado para o outro, ensaiando uma frase e outra, mandando Tiro buscar diversos livros para conferir todas as citações, polindo e voltando a polir aquela que seria a oração suprema do maior orador de Roma, a sua declaração para a posteridade dos seus magníficos feitos enquanto cônsul.

 

Mas não havia de ser assim. Dois dos novos tribunos, que já tinham assumido o cargo, utilizaram o seu poder para impedir Cícero de pronunciar o seu discurso de despedida, citando um pormenor técnico da lei e argumentando que um homem que tinha condenado à morte cidadãos romanos sem o devido processo judicial não podia ser autorizado a fazer um discurso de despedida. Ocuparam os Rostra e não queriam deixá-lo subir à plataforma. Finalmente cederam, mas apenas para o autorizarem a pronunciar o juramento de abandono do cargo. Enquanto os tribunos assistiam, prontos para o afastarem fisicamente, ele deu início ao juramento e depois começou rapidamente a improvisar: ”Juro... que salvei o meu país e fiz com que ele continuasse a ser grande!”

 

Cícero poderá ter tido a última palavra nesse dia, mas a sua amargura pelo facto de ter sido privado do seu discurso de despedida deve ter sido muito grande. Há quem diga que César e os populistas estavam por trás do incidente. Outros dizem que foi a facção de Pompeu, que já estava farta de ouvir Cícero proclamar que a sua execução dos traidores era um feito tão grandioso como as conquistas de Pompeu no Oriente, e achava que o Senador Grão-de-Bico devia ser posto no seu lugar.

 

Não fiquei surpreendido quando Meto entrou na biblioteca certa manhã de muito frio e me disse, sem me olhar de frente, que desejava abandonar a quinta durante algum tempo e ir para a cidade, para casa do seu irmão.

 

Considerei o pedido por momentos.

 

Está bem, se Eco estiver de acordo...

 

Está disse Meto rapidamente.

 

Sei que sim, porque lho perguntei quando estivemos em Roma o mês passado.

 

Percebo.

 

Não faço grande falta aqui na quinta. Tens ajudas suficientes.

 

Sim, suponho que conseguirei sobreviver sem ti. Diana vai sentir a tua falta, claro.

 

Talvez volte em breve. Ele suspirou e ergueu as mãos. Oh, Papá, não vês que eu preciso mesmo de sair daqui?

 

Sim, percebo-o claramente. Tens razão, provavelmente é melhor que vás para a cidade. Já és um homem. Precisas de descobrir o teu próprio caminho. E eu sei que posso confiar em Eco, que ele olhará por ti. Qual dos escravos queres levar contigo?

 

Ele voltou a desviar os olhos.

 

Estava a pensar ir sozinho.

 

Oh, não, com o país agitado como está, nem pensar! Não podes viajar sozinho. Além disso, não posso mandar-te para casa de Eco sem enviar contigo um escravo, para compensar o trabalho a mais que a tua presença ocasionará. Que tal Orestes? É jovem e forte.

 

Meto limitou-se a encolher os ombros.

 

Partiu quase imediatamente, dado que já tinha arrumado as suas coisas na noite anterior. Betesda só começou a chorar depois de ele partir. Pensou que Meto e eu tínhamos tido uma grande discussão e atormentou-me para que lhe contasse os pormenores. Quando eu neguei e tentei consolá-la, ela enxotou-me do quarto e fechou-me a porta na cara.

 

Talvez eu também devesse fugir para Roma murmurei. O Inverno estava a revelar-se particularmente difícil.

 

No dia seguinte, dei um longo passeio pela periferia da quinta, pensando que o cansaço e o ar fresco poderiam aliviar-me da minha depressão. Dirigi-me à Via Cássia e segui para norte até ao baixo muro de pedra que separava as minhas terras das de Mânio Cláudio. Que criatura peculiar, pensei eu, recordando-me da cena que ele fizera na festa de Meto. Roubar bocados de comida para levar para casa, atrevendo-se depois a insultar-me em casa do meu próprio filho! Provavelmente estaria em Roma por esta altura. Cláudia dissera que ele preferia a cidade, especialmente nos meses mais frios.

 

Os escravos tinham feito um bom trabalho de reparação do muro durante o Verão, mas as chuvas e o gelo já estavam a cobrar os seus direitos; observei diversas rachas na argamassa, aqui e ali. Olhei os campos abertos que se erguiam gradualmente até minha casa, de onde o fumo das lareiras se erguia no ar. Aquela distância, e com a cumeeira por trás, a quinta parecia a própria imagem do retiro pacífico de um homem abastado da cidade.

 

Cheguei ao ribeiro e voltei para sul. À excepção das sempre-verdes, todas as árvores ao longo do seu curso tinham sido despidas pelo Inverno, e a superfície do ribeiro gelara, bloqueando o moinho de água até ao degelo. Algum dia, pensei, a controvérsia acerca do ribeiro ficará resolvida de uma vez para sempre e eu poderei visitar as suas margens sem pensar em advogados, em tribunais e no semblante azedo de Públio Cláudio. Uma colina obscurecia a minha visão da sua propriedade, mas consegui avistar uma coluna de fumo saindo de sua casa. O que estaria o meu vizinho a fazer num dia como aquele? Provavelmente a manter aquecida a sua pequena Libelinha, pensei. A recordação da minha breve visita a sua casa fez-me estremecer.

 

Seguindo o curso do ribeiro, cheguei à mata situada no canto sudoeste da quinta, o ponto secreto onde enterrara Nemo. No meio dos ramos despidos, não foi difícil encontrar a sua esteia. Quem fora ele, afinal um peão de Cícero, de Catilina ou de Marco Célio? Perto dali, tínhamos enterrado o corpo de Fórfex. Embora soubéssemos o seu nome, eu enterrara-o como um escravo, apenas com uma pedra a assinalar o local.

 

Subi à cumeeira e olhei à volta sobre toda a propriedade. A paisagem era agradável, mesmo a um olhar melancólico, com as suas sombras mudas de cinzento e âmbar. Gostaria de ter ficado mais tempo na colina, mas comecei a sentir frio nos dedos das mãos e dos pés e voltei para casa.

 

Arato foi ao meu encontro.

 

Senhor disse ele em voz baixa tens uma visita à tua espera na biblioteca.

 

Da cidade? disse eu, sentindo uma ponta de receio.

 

Não, senhor. A visita é o teu vizinho, Gneu Cláudio.

 

O que quererá ele, em nome de Júpiter? murmurei.

 

Tirei a capa de cima dos ombros e encaminhei-me para a biblioteca. Encontrei Gneu sentado na cadeira sem costas, passando os dedos com um ar entediado pela pequena etiqueta presa a um rolo de pergaminho arrumado no respectivo orifício como se nunca tivesse visto um documento escrito. Ergueu uma sobrancelha quando eu entrei, mas não se incomodou a levantar-se.

 

O que desejas, Gneu Cláudio?

 

Que tempo horrível que temos tido observou ele, num tom de conversa.

 

Tem a sua beleza, embora seja um pouco rigoroso.

 

Sim, rigoroso, era isso que eu queria dizer. Tal como a vida no campo em geral. É difícil gerir uma quinta, especialmente para quem não tem uma casa na cidade para onde possa retirar-se. As pessoas da cidade lêem uns poemas e imaginam que são tudo borboletas e faunos escondidos nos bosques. A realidade é muito diferente. De um modo geral, julgo que tiveste um ano difícil aqui na velha quinta do primo Lúcio.

 

De onde te vem tal ideia?

 

Foi o que me disse a minha prima Cláudia.

 

E que tens tu a ver com isso?

 

Talvez possa ajudar-te.

 

Não me parece, a não ser que tenhas feno para me vender.

 

Claro que não tenho! Sabes bem que na montanha não há campos onde se possa cultivar feno!

 

Então de que estás a falar?

 

A sua súbita veemência dissolveu-se subitamente num sorriso.

 

Gostaria de te fazer uma oferta para te comprar esta quinta.

 

Não está à venda. Se Cláudia te disse que sim...

 

Apenas presumi que estivesses disposto a desistir e a regressar onde pertences.

 

Eu pertenço aqui.

 

Não me parece.

 

Não me interessa o que te parece.

 

Isto é terra dos Cláudios, Gordiano. E terra dos Cláudios desde...

 

Vai dizer isso ao espírito do teu falecido primo. Foi vontade sua que esta terra fosse minha.

 

Lúcio sempre foi diferente de nós. Tinha mais dinheiro e tomava todas as coisas como certas. Não valorizava a sua posição; não compreendia a importância de manter os plebeus no seu lugar. Teria deixado esta terra a um cão se o cão fosse o seu melhor amigo.

 

Acho que é melhor ires-te embora, Gneu Cláudio.

 

Vim aqui disposto a fazer-te uma oferta razoável. Se estás preocupado com a possibilidade de que eu te engane...

 

Vieste a cavalo? Vou pedir a Arato que to vá buscar ao estábulo.

 

Gordiano, seria preferível para todos os envolvidos...

 

Vai-te embora, Gneu Cláudio!

 

No dia seguinte, ainda eu matutava sobre a visita de Gneu Cláudio, quando chegou um mensageiro com uma carta de Eco. Fossem quais fossem as notícias, alegrar-me-ia ouvir em espírito a sua voz doce e áspera. Talvez Meto também tivesse juntado alguma nota, pensei. Retirei-me para a biblioteca e apressei-me a quebrar o selo.

 

Querido Papá,

 

O teu escravo Orestes chegou a minha casa sem uma explicação plausível para a sua presença. Afirma que partiu ontem da quinta com Meto, mas que Meto voltou atrás, ordenando-lhe que prosseguisse para Roma sem ele e que me dissesse que era um presente teu. Parece que, originalmente, Orestes pensou que acompanharia Meto até Roma, mas de qualquer maneira diz que tu pretendias que ele ficasse definitivamente em minha casa. (É forte como um touro, admito-o, mas não é muito inteligente.) Podes explicar-me o que se passa?

 

A disposição na cidade continua a oscilar imensamente. Não me parece que possa haver um regresso à normalidade enquanto Catilina não for definitivamente derrotado. Por vezes, isto parece inevitável, mas outras vezes há rumores de que as forças de Catilina incluem actualmente milhares de escravos fugitivos e de que o seu exército é maior do que o de Espártaco no seu auge. É difícil saber em quem acreditar. Parece haver agora uma espécie de reacção contra Cícero, pelo menos por parte daqueles que não estão ocupados a proclamar que ele é o maior romano de sempre...

 

Continuei a ler muito depois de as palavras terem deixado de fazer sentido para mim. Quando finalmente poisei a carta reparei que tinha as mãos a tremer.

 

Se Meto não estava em Roma, onde estava ele?

 

No momento em que me permiti fazer a pergunta, soube a resposta.

 

A que distância estão eles? Quanto tempo vais estar ausente? perguntou-me Betesda.

 

A que distância? Algures entre aqui e os Alpes. Quanto tempo? Não posso saber.

 

Tens a certeza de que ele foi juntar-se a Catilina?

 

Tanta como se ele mo tivesse dito directamente. Que louco fui! Betesda não me contradisse. Enquanto eu reunia apressadamente as   coisas de que precisaria, ela observava-me da porta de braços cruzados, com as costas direitas mas com uma violência latente nos olhos, que me indicava que estava secretamente perturbada e que lutava por escondê-lo. Eu raramente a vira tão transtornada; olhar para os seus olhos enervava-me.

 

O que faremos nós sem ti e sem Meto? Pode haver perigo, escravos fugitivos, soldados. Talvez eu devesse ir com Diana para a cidade...

 

Não! Neste momento, as estradas são demasiadamente perigosas. Não confio na protecção dos escravos.

 

Mas confias que eles nos protegerão aqui em casa?

 

Betesda, por favor! Eco não tarda aí. Já lhe escrevi. Poderá cá estar já depois de amanhã, ou mesmo amanhã ao fim do dia.

 

Devias ficar até essa altura, para teres a certeza de que ele chega.

 

Não! Cada minuto que passa... a batalha pode já ter começado, neste preciso momento... queres que Meto regresse, não queres?

 

E se nenhum de vocês regressar? A sua voz ficou subitamente esganiçada. Ela encostou as costas da mão aos lábios e estremeceu.

 

Betesda! Agarrei-a e apertei-a com força contra mim. Ela começou a soluçar.

 

Desde que saímos da cidade, foram só problemas... Subitamente, senti um puxão na minha túnica e olhei para baixo,

 

onde vi os imensos olhos castanhos de Diana olhando fixamente para mim.

 

Papá disse ela, ignorando a angústia da sua mãe Papá, anda ver!

 

Agora não, Diana.

 

Não, Papá, tens de vir ver! Havia qualquer coisa na sua voz que me impeliu. Betesda também ouviu, porque recuou, contendo as lágrimas.

 

Diana correu à nossa frente. Nós seguimo-la pelo átrio e saímos pela porta principal. Ela fez uma pausa diante do estábulo, acenou-nos para que nos apressássemos, e prosseguiu a correr. O meu coração começou a bater furiosamente.

 

Chegámos ao outro lado do estábulo e voltámos a esquina, ficando fora do alcance da vista de quem estivesse dentro de casa. Havia uns barris vazios encostados ao muro. Diana passou para o outro lado, apontando para qualquer coisa que nós não conseguíamos ver. Eu dei mais um passo. Do outro lado dos barris, encostados contra o muro do estábulo, vi dois pés descalços.

 

Oh, não. Mais um passo, e vi as pernas. Não, não, não! Mais um passo e vi um tronco branco e sem sangue. Agora não, aqui não, outra vez não... é impossível! Dei mais um passo e não havia mais nada para ver.

 

Era outro cadáver, novamente sem cabeça.

 

Enterrei o rosto nas mãos. Estranhamente, Betesda pareceu recuperar a compostura com a horrenda visão. Inspirou profundamente.

 

Quem poderá ser?

 

Não faço ideia disse eu.

 

Diana, cumprida a sua missão, deu a mão à mãe. Olhou para mim com uma expressão de suave acusação e desapontamento.

 

Se Meto cá estivesse disse ela ele havia de descobrir quem era!

 

”O homem que viaja sozinho tem um louco por companheiro”, diz o antigo provérbio, mas no calor da minha urgência de encontrar Meto eu sentia-me estranhamente invencível, como se nenhum vulgar obstáculo da estrada, nenhum bando de malfeitores que me apanhasse de surpresa, nenhum grupo de escravos fugitivos e desesperados pudesse deter-me.

 

Era uma ilusão, evidentemente, e uma ilusão perigosa, e a parte mais sensata de mim sabia que assim era, mas que me deu forças para deixar para trás os escravos que poderia ter levado comigo como guarda-costas, e que assim ficaram a proteger a quinta. Se ao menos pudesse confiar neles! Supostamente, um escravo devia ter estado de sentinela em cima do telhado na noite anterior, e se isso tivesse acontecido ele poderia ter percebido como fora o corpo sem cabeça parar à minha propriedade e quem o colocara lá. Dizendo-me que a noite se tornara demasiado fria, com lágrimas nos olhos, o escravo contara-me que tinha abandonado o seu posto e suplicara-me que não deixasse Arato espancá-lo. Que outra coisa poderia eu esperar? O homem era um escravo, não era um soldado. Ainda assim, confiei a punição a Arato, que encarreguei de verificar que não haveria lapsos semelhantes na minha ausência, pois de outro modo eu vendê-lo-ia para as minas. Estava irritado quando o disse e devo ter parecido convincente; Arato ficou da cor do giz. Quanto ao novo cadáver que Diana descobriu, não consegui detectar nada de significativo a partir de uma inspecção superficial. Disse a Arato que não enterrasse o corpo antes da chegada de Eco; talvez ele conseguisse aperceber-se de qualquer coisa.

 

É   uma estranha experiência viajar sozinho através de um país preparado para a guerra no pico do Inverno. Os campos em repouso por onde passava estavam vazios e abandonados, tal como a própria estrada. Normalmente, haveria algum trânsito, apesar do frio, especialmente porque o céu estava limpo e não havia perspectiva de chuva, mas durante horas não vi ninguém. As quintas por onde passei tinham as portas fechadas e as portadas das janelas corridas, os animais metidos nos celeiros ou em currais, escondidos da vista de quem passava pela estrada. Nem sequer se ouviam cães a ladrar, em saudação ou advertência. Os únicos sinais de vida eram as inevitáveis colunas de fumo que se erguiam das lareiras domésticas. Os habitantes não desejavam mostrar sinais de riqueza nem da existência de provisões, nem sequer da sua presença, a quem passasse na estrada. Eram como aquelas avestruzes que por vezes se vêem nos espectáculos no Circo Máximo, que abrem um buraco na areia e enterram nele a cabeça, julgando esconder-se da multidão ululante. Não tinha eu feito a mesma coisa, quando pensei que poderia fugir de Roma e esconder-me na minha quinta? Mas, para mim, isso não tinha resultado. Nem resultaria para aquelas gentes nervosas, pensei, se passasse por ali um exército devastador. Mas que alternativa tem uma ave que tem asas mas não consegue voar a não ser que convoque a sua vontade de combater, pensei.

 

As cidades pelas quais passava pareciam-me por vezes tão abandonadas como as quintas, com todas as casas bem fechadas e ninguém nas ruas. Mas todas as cidades tinham uma taberna ou duas, e era aí que a vida parecia ter-se concentrado. Dentro destes estabelecimentos, havia intermináveis discussões entre os habitantes locais, que se congregavam para garantirem uns aos outros que todas as batalhas seriam travadas noutros sítios e que as tropas requisitariam as suas provisões a outra cidade infeliz. Pediam ansiosamente notícias a qualquer estrangeiro que por ali passasse, mas eu não tinha grande coisa para lhes dar. E, embora estivesse a passar pela região onde Catilina podia afirmar ter maior apoio, poucas palavras ouvi em seu favor. Os mais entusiastas pela sua causa já deviam ter ido juntar-se a ele, pensei, ou então tinham-no feito para depois o abandonarem e voltarem ao seu local de origem.

 

Fiz a viagem por etapas longas e duras, parando em cidades cujos nomes desconhecia, sempre à procura de novidades dos movimentos de Catilina. Desde as execuções em Roma que o seu exército andava de um lado para o outro, entre Roma e os Alpes, evitando confrontar-se com os exércitos regulares enviados para o atacar. Pensava-se que, a certa altura, as suas forças teriam ascendido a duas legiões completas, ou seja, doze mil homens, mas depois das execuções e do fracasso do levantamento geral em Roma, os oportunistas e os aventureiros tinham desertado rapidamente. Exaustos pelas marchas forçadas, famintos pela falta de provisões, até os mais dedicados à sua causa começaram a abandonar o exército rebelde, ficando apenas aqueles que não podiam voltar atrás. ”Não me parece que encontres Catilina e Mânlio com mais do que cinco mil homens, se tanto, e muitos deles mal-armados”, disse-me um taberneiro de Florentia. Também me disse que o exército romano comandado por António, o colega de consulado de Cícero, passara por ali uns dias antes, perseguindo Catilina em direcção ao Norte.

 

Encontrei-os acampados no sopé dos Apeninos, à entrada de uma pequena cidade chamada Pistoria. A força de António, que era muito maior, estava apenas a alguns quilómetros. Para chegar a Catilina, tive de dar uma grande volta por estradas laterais e atravessar campos abertos, a fim de evitar os homens de António.

 

Temia ser desafiado e atacado quando descesse à vista de todos a rochosa encosta em direcção à aldeia de fogueiras e tendas, mas ninguém reparou num homem solitário a cavalo, embrulhado numa capa pesada e sem armadura. Quando entrei dentro do campo, dei por mim rodeado por uma série de homens que tinham tanto aspecto de soldados como eu, e cujas únicas armas pareciam ser lanças de caça e punhais de escultura, ou estacas mal afiadas. Alguns eram mais jovens do que eu, mas muitos eram mais velhos. Entre estes, encontravam-se os veteranos de Sula, muitos dos quais vestiam armaduras antigas que talvez lhes tivessem servido há uns anos, mas que agora lhes estavam apertadas, Misturados com os bandos de ralé, havia grupos de homens adequadamente vestidos de legionários, com armaduras e armas de qualidade, que tinham aspecto de serem tropas disciplinadas.

 

O estado de espírito era menos sinistro do que eu pensara. A atmosfera era colorida por aquela sensação de resignação partilhada que faz com que até os estrangeiros pareçam parentes de sangue. Os homens riam-se e sorriam, sentavam-se junto das fogueiras para se aquecerem e falavam uns com os outros em voz baixa. Tinham expressões cansadas e sombrias, mas os olhos brilhantes. Pareciam falhos de esperança, mas não desesperados falhos de esperança no sentido de terem vindo parar a um sítio onde não havia esperança, ou seja, sem falsos sonhos ou vãs ambições. Tinham voluntariamente seguido Catilina até aqui e os seus rostos não exprimiam qualquer ressentimento.

 

Procurei entre eles aquele que buscava, sentindo-me subitamente perdido. Entre tantos milhares de homens, como conseguiria eu descobrir Meto, se é que de facto ele aqui se encontrava? Estava cansado, chegara ao fim de uma longa jornada, e subitamente pareceu-me que já não me restava ponta de energia. Mas, embora me sentisse tomado pela incerteza, descobri que os meus pés me tinham conduzido até ao centro do acampamento, a uma tenda que se destacava de todas as outras. Tinha galhardetes vermelhos e dourados postados nos cantos e diante dela, montada no topo de um alto padrão, via-se a águia de prata que Catilina trouxera consigo de Roma. À luz fria e brilhante do Sol, parecia quase viva, como a águia que descera sobre a terra no Auguraculum, no dia da maioridade de Meto.

 

Dois soldados com insígnias de legionários barraram-me a entrada.

 

Digam a Catilina que eu quero falar com ele pedi eu calmamente. Eles mostraram-se cépticos. Digam-lhe que o meu nome é Gordiano, o Descobridor.

 

Eles olharam um para o outro, irritados. Finalmente, o oficial de posição superior encolheu os ombros e entrou dentro da tenda. Depois de uma longa espera, levantou a aba e fez-me sinal para entrar.

 

O interior da tenda estava cheio mas ordenado. Os beliches tinham sido afastados para um lado para dar lugar a pequenas mesas dobráveis, sobre as quais tinham sido desenrolados mapas, com pesos para segurar os cantos. Viam-se bolsas de couro cheias de documentos. Cuidadosamente pousados sobre uma mesa, como que em exibição, estavam os machados cerimoniais e outras insígnias que, de acordo com a tradição, apenas podiam ser levadas para o campo de batalha por um magistrado legalmente eleito; Catilina devia tê-los trazido de Roma pensando que, através desses sinais, poderia instilar nos seus homens um sentimento de legitimidade, ou talvez convencer-se a si próprio disso.

 

Entre o pequeno círculo de homens sentados a conferenciar no centro da tenda, reconheci primeiramente Tongílio, que olhou para mim e inclinou a cabeça. Estava resplandecente, na sua brilhante cota de malha e capa carmesim; com o cabelo desalinhado e descuidadamente afastado do rosto, parecia um jovem Alexandre. Outros rostos voltaram-se para olhar para mim e entre eles reconheci vários dos jovens juntamente com quem me abrigara da tempestade na mina de Gneu. Havia ainda um homem enorme de ombros largos, de cabelo e barba brancos. O seu rosto redondo e rosado recordou-me o de Marco Múmio. Só podia ser Mâníio, o centurião grisalho que organizara os veteranos descontentes de Sula e era agora o seu general.

 

Estes homens apenas me olharam por momentos, voltando depois novamente a sua atenção para o homem que estava sentado de costas para mim, falando com eles em voz baixa: Catilina. Olhei à volta e subitamente reparei noutra figura, sentada sozinha em cima de um beliche a um canto da tenda, debruçada sobre um pedaço de uma armadura, que polia furiosamente. Embora estivesse de costas, reconheci-a imediatamente e o coração saltou-me até à boca.

 

Houve uma súbita explosão de aclamações por parte do grupo de homens que rodeavam Catilina, que terminara a sua alocução. Os homens ergueram-se e saíram rapidamente da tenda, em fila indiana. Tongílio sorriu-me ao passar por mim.

 

Catilina voltou-se na cadeira. Os seus malares repuxados e os seus olhos febris davam-lhe um aspecto mais atraente do que nunca, como se a tensão dos últimos dias tivesse refinado e purificado as suas belas feições. Ele sorriu-me zombeteiramente. Eu firmei os músculos do maxilar para me impedir de responder com outro sorriso.

 

Bem, Gordiano, o Descobridor. Quando o guarda me murmurou o teu nome ao ouvido, eu tive dificuldade em acreditar. O teu sentido de oportunidade é inacreditavelmente delicado. Vieste espiar-me? Tarde de mais! Ou decidiste finalmente, à tua perversa maneira, apostar em mim no último momento possível?

 

Nenhuma das coisas. Vim buscar o meu filho.

 

Receio que seja tarde de mais disse Catilina suavemente.

 

Papá! Concentrado no seu trabalho, Meto não ouvira Catilina dizer o meu nome, mas ao ouvir a minha voz pousou a armadura que estava a polir e voltou a cabeça. Uma sucessão de emoções animaram o seu rosto, até que ele se ergueu com brusquidão e saiu rigidamente da tenda.

 

Eu voltei-me para o seguir, mas Catilina agarrou-me no braço.

 

Não, Gordiano, deixa-o ir. Ele voltará quando achar bem.

 

Eu cerrei os punhos, mas a parte mais sensata de mim ouviu Catilina e obedeceu.

 

O que está ele a fazer aqui? Não passa de um rapaz! murmurei eu.

 

Mas ele quer desesperadamente ser um homem, Gordiano. Não percebes?

 

Um sentimento terrível de temor abateu-se sobre mim.

 

Nada disso importa! Recuso-me a deixá-lo morrer contigo! Catilina inspirou audivelmente e desviou os olhos. Eu pronunciara a palavra malfadada.

 

Oh, Catilina! Por que não fugiste para Massilia como prometeste? Por que ficaste em Itália, em vez de aceitares o exílio? Achaste realmente...

 

Fiquei porque não me deixaram partir! O caminho estava bloqueado. As forças do Senado na Gália cortaram todas as passagens através dos Alpes. Cícero não tinha qualquer intenção de me deixar fugir com vida. Ele queria um confronto final. Não tive alternativa. Fui manobrado disse ele, deixando que a sua voz caísse para um sussurro rouco. Fui manobrado em todas as voltas. E os meus chamados correligionários de Roma... que bando de loucos, deixando-se enganar naquele escândalo com os Alóbroges! Isso foi o fim. Depois disso... Mas tu estavas lá, não estavas? E Meto também. O relato que me fez foi espantosamente vivo. O teu filho compreendeu muito bem tudo o que aconteceu. É incrivelmente maduro para a sua idade. Devias sentir-te orgulhoso disso.

 

Orgulhoso de um filho que não compreendo, que me desafia desta maneira?

 

Como é possível que não o compreendas, Gordiano, se ele é exactamente como tu? Ou como tu eras, ou podias ter sido, ou ainda podes ser. Corajoso como tu. Compassivo como tu. Comprometido com uma causa, como tu serias se te permitisses. Sedento por tudo aquilo que a vida tem para oferecer como tu deves ter sido.

 

Por favor, Catilina, não me digas que também o seduziste. Ele fez uma pausa por um longo momento, depois sorriu melancolicamente.

 

Muito bem, não o farei.

 

Eu dirigi-me cegamente ao beliche onde Meto tinha estado sentado. Peguei na couraça que ele estivera a polir. Por momentos, estudei o meu reflexo, distorcido por entre os floreados martelados de cabeças de leões e grifos, depois atirei a couraça para o outro lado da tenda.

 

E agora mandaste-o polir a tua armadura, como se ele fosse um escravo!

 

Não, Gordiano, essa não é a minha armadura. É a sua. Ele quer que ela esteja brilhante para a batalha.

 

Eu olhei fixamente para as diversas peças que estavam espalhadas sobre o beliche as caneleiras, o elmo emplumado com a viseira, a espada curta metida na bainha. As peças eram uma miscelânea que devia ter pertencido a homens de diferentes categorias; até eu percebia como aquilo era tudo improvisado. Tentei imaginar Meto com ela posta e não consegui.

 

Por falar de moda disse Catilina ouvi dizer que o Senado encenou uma espécie de cerimónia em minha honra, pondo de lado as togas habituais e vestindo um fato especial enquanto a crise durar, e que exortou o povo a fazer o mesmo. É verdade?

 

Eco mencionou qualquer coisa numa carta disse eu lentamente, olhando para os pedaços de armadura. Subitamente, senti-me delirante.

 

Imagina! Bem, eles andam sempre a recuperar essas cerimónias e esses costumes antigos de que já ninguém se lembra. Alguns são bastante ridículos, mas confesso que este até me agrada. Sempre me consideraram um árbitro da moda e isto prova que era verdade; até consegui que o pesado Catão mudasse de traje! Eu ergui a cabeça e olhei-o fixamente. Ele abanou a cabeça. Não, Gordiano, não estou louco. Mas um epigrama descontrai-me sempre antes de uma batalha.

 

Uma batalha?

 

Dentro de uma hora, segundo os meus cálculos. Mânlio e Tongílio estão a reunir as tropas para eu lhes falar. Chegaste mesmo a tempo. Imagina, se tivesses perdido o meu discurso... nunca poderias perdoar-te! Apesar disso, se quiseres partir antes de ela começar, para poderes evitar a carnificina, não te quererei mal por isso.

 

Mas aqui, agora...

 

Sim! Chegou o momento. Eu esperava poder voltar a adiá-lo, para ganhar um pouco mais de tempo. Era minha intenção atravessar estas montanhas e conseguir, de alguma maneira, chegar à Gália, tomando estradas secundárias para evitar o combate, atravessando as passagens à força, se fosse necessário, sobrevivendo às tempestades de neve, se pudéssemos. Mas, quando chegámos à passagem lá acima, sabes o que vimos à nossa espera, do outro lado? Outro exército romano. Decidi então voltar cá abaixo e enfrentar este. É o comandado pelo cônsul António, percebes? Antigamente, ele tinha simpatia pela minha causa. Ouvi dizer que Cícero o comprou, desistindo do governo a que tinha direito no final do seu consulado e entregando-o a António. Ainda assim, nunca se sabe; no último momento, António poderá decidir juntar-se a mim. Sim, Gordiano, eu sei que é impossível, mas não o digas em voz alta! Chega de palavras malfadadas dentro desta tenda, por favor. Mas olha, tal como eu te disse: aí está o teu filho.

 

Meto estava de pé à entrada.

 

Vim vestir a minha armadura disse ele.

 

Vem primeiro ajudar-me a vestir a minha. Não demora mais do que um momento. Catilina ergueu-se e levantou os braços, enquanto Meto lhe punha a couraça à volta do tronco e a apertava, ligando-lhe em seguida uma longa capa carmesim. Pegou num elmo dourado com uma esplêndida pluma vermelha e colocou-o na cabeça de Catilina.

 

Pronto! disse Catilina, observando o seu reflexo num prato polido. Não digas a Tongílio que eu te deixei vestir-me, senão ele fica cheio de ciúmes. Tirou os olhos do espelho e lançou-nos um olhar demorado e firme, como aquele que se pousa sobre os amigos quando se vai partir para uma longa viagem. Deixo-vos a sós. Não demorem muito.

 

Meto viu-o partir e depois dirigiu-se ao beliche onde estava a sua armadura.

 

Meto...

 

Vá, Papá, ajuda-me. Não te importas de me trazer a couraça? Não sei como é que foi parar do outro lado da tenda.

 

Eu peguei nela e fui ter com ele. Ele ergueu os braços.

 

Meto...

 

É mais simples do que parece. Alinha as faces de couro que têm os fechos e aperta primeiro o par superior de cada lado.

 

Fiz como ele me dizia, como se me movesse num sonho.

 

Perdoa-me por te ter enganado, Papá. Não me lembrei de nenhuma alternativa.

 

Meto, tens de sair daqui imediatamente.

 

Mas é aqui que eu pertenço.

 

Peço-te que voltes para casa comigo.

 

E eu recuso.

 

E se eu te ordenar, como pai?

 

Com a couraça toda apertada, Meto recuou e olhou para mim com uma expressão simultaneamente triste e rebelde. ”Mas tu não és o meu pai.

 

Oh, Meto gemi eu.

 

O meu pai era um escravo que eu nunca conheci, eu próprio era   um escravo.

 

Até eu te alforriar e te adoptar!

 

Ele pousou os pés em cima do beliche, um após outro, a fim de apertar as caneleiras.

 

Sim, a lei diz que és meu pai, e de acordo com a lei tens o direito de me dar ordens, ou até de me matar se eu te desobedecer. Mas ambos sabemos que, aos olhos dos deuses, tu não és realmente o meu pai. O teu sangue não corre nas minhas veias. Eu nem sequer sou romano, sou grego, ou uma mistura qualquer...

 

És meu filho!

 

Nesse caso, também sou um homem, um cidadão livre e tomei uma decisão.

 

Meto, pensa naqueles que te amam, em Betesda, em Eco, em Diana...

 

Lá fora, ouvi soar uma trombeta.

 

É o sinal para o discurso de Catilina. Tenho de ir ouvi-lo. Talvez seja melhor ires-te embora, enquanto ainda há tempo, Papá... Ele mordeu a língua, como que para retirar aquilo que me tinha chamado, depois acabou rapidamente de se equipar. Quando ficou pronto, contemplou-se no prato polido e pareceu gravemente satisfeito. Voltou-se para mim. Bem, o que te parece? disse ele, com um vestígio de timidez.

 

Estás a ver, és meu filho, pensei eu; senão, não procuravas a minha aprovação. Mas, em voz alta, lancei-lhe:

 

Que importa? Ele baixou os olhos e corou, e foi a minha vez de morder a língua; teria sido pior se eu lhe tivesse dito o que realmente pensava, porque quando olhava para ele vestido com aquela armadura brilhante e mal combinada, aquilo que eu via era um rapazinho equipado com um fato a fingir, fingindo que ia para a guerra. A ideia de que outros poderiam olhar para ele e ver um soldado verdadeiro, que matariam se tivessem oportunidade de o fazer, provocou-me um arrepio no coração.

 

Não posso perder o discurso disse ele, passando rapidamente por mim. Eu segui-o para fora da tenda e através do campo, até um lugar onde uma depressão na vertente rochosa formava um anfiteatro natural. Abrimos caminho por entre a densa multidão, até ficarmos suficientemente perto para conseguirmos ver. Houve um toque de trombetas para silenciar a multidão e Catilina avançou, resplandecente na sua armadura e com um sorriso triste no rosto.

 

Nenhum discurso do seu comandante, por muito vibrante e eloquente que fosse, alguma vez transformou um cobarde num homem corajoso ou um exército indolente num exército entusiasta, ou deu a homens sem razões para combater uma causa para o fazerem. No entanto, é costume o comandante fazer um discurso às suas tropas antes da batalha, e eu assim farei.

 

”Suponho que uma das razões para haver um discurso é o facto de em muitos exércitos a maioria dos soldados poucas vezes ter visto o homem que supostamente os comanda, muito menos falado com ele ou ouvido a sua voz, por isso pensa-se que o discurso estabelece uma certa ligação entre eles. Essa justificação para o discurso não se aplica hoje aqui, porque duvido de que haja um só homem entre vós que eu não tenha pessoalmente recebido e acolhido nas fileiras deste exército, ou com quem não tenha partilhado momentos de dureza ou de triunfo nesta luta. No entanto, é costume o comandante fazer um discurso às suas tropas antes da batalha, e eu assim farei.

 

”Disse atrás que as palavras não podem encher um homem de coragem. Julgo que todos os homens possuem um certo grau de intrepidez, seja inata ou cultivada pelo treino; é essa intrepidez, e apenas essa, que eles normalmente exibem no campo de batalha. Se um homem não estiver animado pela perspectiva da glória ou pela iminência do perigo, será um mero desperdício de saliva exortá-lo através da retórica; o medo no coração fecha os ouvidos. No entanto, é costume o comandante fazer um discurso às suas tropas antes da batalha, e eu assim farei.

 

Que peculiar, pensei eu, era ouvir um orador romano iniciar um discurso escarnecendo da sua importância, satirizando uma oração precisamente enquanto a pronunciava, ser ousadamente honesto diante de uma multidão de ouvintes!

 

A expressão de Catilina ficou sombria.

 

Expor-vos-ei com toda a clareza possível a perspectiva que temos diante de nós e aquilo por que lutamos.

 

”Sabeis que os nossos aliados de Roma nos traíram, conheceis a falta de discernimento e de iniciativa de Lêntulo e dos seus amigos, e como ela foi desastrosa, para eles e para nós. A nossa situação actual é tão óbvia para todos vós como é para mim. Dois exércitos inimigos impedem-nos a passagem, um entre nós e a Gália, o outro entre nós e Roma. Não podemos continuar onde estamos, porque se nos acabaram os mantimentos. Seja qual for o caminho que decidamos tomar, teremos de o abrir a golpes de espada.

 

”Por isso, aconselho-vos a serdes resolutos e a chamardes a vós toda a coragem que possuís. Quando estiverdes no campo de batalha, recordai-vos das riquezas, da honra, da glória e, o que é mais, da vossa liberdade e do futuro do vosso país, que dependem da mão com que manejais a arma. Se vencermos, obteremos tudo aquilo de que necessitamos para prosseguir; as cidades abrir-nos-ão as suas portas com gratidão e seremos inundados de mantimentos. Novos recrutas juntar-se-ão a nós e voltaremos a ser mais numerosos e mais fortes. A maré que corre contra nós virar-se-á e conduzir-nos-á à glória. Mas, se o medo nos fizer vacilar, todo o mundo se voltará contra nós; ninguém protege um homem quando o seu próprio braço o não protegeu.

 

”Tende em mente que os nossos adversários não são compelidos pela mesma necessidade que nos move, nem por uma causa tão justa como a nossa. Para vós e para mim, estão em causa o país, a justiça e a liberdade. Eles, por seu lado, foram enviados para o campo de batalha para protegerem uma elite governante pela qual não podem ter grande amor. Nós escolhemos o nosso caminho glorioso; suportámos o exílio e as dificuldades, proclamámos ao mundo que não voltaremos a Roma com as cabeças inclinadas de vergonha, dispostos a viver as nossas vidas como súbditos servis de governantes indignos. Os homens com quem vamos confrontar-nos, por seu lado, já se submeteram ao jugo dos seus senhores e fecharam os olhos a qualquer outro caminho. Qual destes exércitos terá maior energia, pergunto-vos eu, o daqueles cujos olhos estão mansamente baixos ou o daqueles cujos olhos se fixaram nos céus?

 

Como resposta a esta pergunta, Catilina recebeu um grande aplauso e, entre as outras vozes, chegou-me aos ouvidos a de Meto, gritando o nome do seu comandante. O ruído prosseguiu interminavelmente. Os homens batiam com as espadas contra os escudos, produzindo um som metálico e ensurdecedor. O barulho foi diminuindo, mas voltou a aumentar, num enorme bramido que me arrepiou. Finalmente, Tongílio avançou e ergueu os braços pedindo silêncio, para que Catilina pudesse continuar.

 

Ele iniciara o seu discurso num tom seco e sardónico, como se pelo seu exemplo de impertinência pudesse emprestar energia aos seus homens. Mas acho que se sentiu comovido pelos aplausos, pois terminou com um requebro na voz.

 

Quando penso em vós, soldados, e considero aquilo que já realizastes, tenho grandes esperanças de vitória. A vossa ousadia e a vossa coragem dão-me confiança. Travaremos a batalha numa planície. À nossa esquerda teremos as montanhas, e à nossa direita um terreno duro e rochoso. Neste espaço confinado, embora seja superior em número, o inimigo não poderá cercar-nos. Confrontar-nos-emos com ele homem a homem, tendo na coragem e numa causa justa as nossas armas mais fortes. Mas se, apesar disso, a Fortuna não der ao vosso valor a sua justa recompensa, vendei cara a vida. Não vos deixeis apanhar e massacrar como animais! Combatei como homens: que o derramamento de sangue e as lamentações sejam o preço que o inimigo tenha de pagar pela sua vitória amarga!

 

Ergueu-se no ar outra aclamação, que ecoou por entre as colinas dos dois lados. A sessão terminou com o toque de trombetas, indicando às tropas que formassem para a batalha. À nossa volta, os homens começaram a mover-se com rapidez e determinação. Meto apertou-me o braço com toda a força.

 

Agora vai-te embora! Se levares o cavalo, poderás fugir como vieste, ou então dirigir-te para a passagem e descobrir um trilho que te permita voltar quando a batalha terminar.

 

Vem comigo, Meto. Mostra-me o caminho.

 

Não, Papá! O meu lugar é aqui.

 

Meto, esta é uma causa perdida! Esquece o discurso de Catilina. Se tivesses ouvido a maneira como ele me falou dentro da tenda...

 

Papá, não há nada que tu saibas e que eu não saiba. Eu tenho os olhos bem abertos.

 

E fixados nos céus, pensei eu.

 

Então muito bem. Tens alguma armadura com que eu possa equipar-me?

 

O quê?

 

Se vou ficar aqui e lutar ao teu lado, gostaria de ter algo mais adequado do que o punhal que tenho no cinto, embora me pareça que muitos destes desgraçados não têm nada melhor.

 

Não, Papá, não podes ficar!

 

Como te atreves a dizer-me isso! Estás disposto a manter-te firme e queres negar-me a mesma honra?

 

Mas tu não meditaste sobre o assunto...

 

Não, Meto, na viagem até aqui tive muitas horas para pensar. Imaginei este momento muito antes de ele se concretizar. Na minha imaginação, ele passava-se por vezes de maneira bem mais adequada aos meus desejos, mas outras vezes corria muito pior... pensei que poderia encontrar-te morto sem sequer te voltar a ver, ou encontrar apenas um poço cheio de cadáveres, sem nada que me permitisse saber qual era o teu. Isto é melhor do que isso e não é tão mau como eu temia. Por um lado, não estou tão assustado como julguei que estaria, pelo menos por enquanto. Não, Meto, esta é uma decisão deliberada e premeditada, combater ao lado do meu filho.

 

Não, Papá, tem de ser por Catilina, por aquilo que ele representa, para que tenha algum significado!

 

Essa é a tua causa, Meto; mas muito bem. Lutarei por Catilina. Por que não? Queres saber a verdade, Meto? Se eu tivesse o poder de Júpiter, lançaria um raio e daria a Catilina tudo aquilo que ele quer. Por que não? Ressuscitaria Espártaco do pó e também lhe concederia a sua vontade. Reverteria o tempo e faria com que Sula nunca tivesse nascido, nem Cícero, já agora. Mudaria o mundo com um piscar de olhos, para melhor ou para pior, apenas para o ver mudado numa coisa diferente. Mas não posso fazer essas coisas, nem eu nem ninguém. Por isso, o melhor será pegar numa espada enferrujada e correr para a batalha a gritar, ao lado do meu filho, pela glória daquilo que ele ama com todo o seu jovem e tolo coração.

 

Meto olhou para mim durante muito tempo com uma expressão indecifrável. Devia achar que eu era louco, ou que estava a mentir, ou ambas as coisas, pensei eu. Mas, quando finalmente falou, disse:

 

Tu és de facto o meu pai.

 

Sim, Meto, e tu és o meu filho.

 

Os homens corriam como loucos à nossa volta. Os cavalos relinchavam, o metal ressoava no metal, os oficiais gritavam, as trombetas tocavam.

 

Anda depressa, acho que há armaduras suficientes na tenda de Catilina para conseguirmos montar qualquer coisa para ti!

 

E foi assim que, aos quarenta e sete anos, eu me transformei num soldado pela primeira vez na minha vida, equipado com pedaços dispersos de armaduras, com uma cota de malha sem metade das escamas e um elmo todo amolgado que parecia uma abóbora deitada ao chão, empunhando uma espada embotada por uma causa desesperada, às ordens de um comandante condenado. Sentia que devia estar a aproximar-me do coração do Labirinto; quase consegui sentir o bafo quente do Minotauro no pescoço.

 

Não sou capaz de fazer grandes descrições da batalha, porque nunca percebi muito bem onde me encontrava nem o que estava exactamente a acontecer. Parece que Catilina dividiu as suas forças em três partes, com Mânlio de um dos lados, outro comandante do outro e ele próprio no centro, rodeado pelos seus jovens e fogosos seguidores e um corpo escolhido de combatentes bem armados, a que Meto e eu nos juntámos. Avançámos, Tongílio transportando o estandarte com a águia, até Catilina escolher o ponto onde tomaria posição e onde Tongílio espetou o estandarte no chão. Não havia cavalaria, mas apenas infantaria, porque antes da batalha Catilina mandara recuar todos os cavalos para as montanhas. Com essa ordem, pretendia mostrar aos seus homens que os seus comandantes não poderiam fugir e que o perigo seria partilhado por todos.

 

O perigo aproximou-se como uma grande maré carmesim e prata, dirigindo-se a nós com um rugido que não se assemelhava a coisa alguma que eu já tivesse ouvido. Sei agora como devem sentir-se os inimigos de Roma quando vêem aproximar-se a sua condenação. Eu senti respeito e horror, mas não tive medo. O medo parece inútil perante uma catástrofe assim. Por que há-de um homem simples encolher-se com medo pela sua vida simples, quando o mundo inteiro está prestes a terminar numa loucura gritante?

 

Não lamentava coisa alguma, mas sentia-me um bocado tolo, porque não conseguia deixar de pensar: seu estúpido, Betesda nunca te perdoará por isto. E era isso que eu temia, mais do que o muro de dentes de aço que se abatia sobre nós.

 

Deixei-me estar junto de Meto, que estava junto de Catilina. Houve muitas corridas, por vezes de um lado para o outro, outras vezes para diante, mas nunca para trás. Lembro-me de uma seta que me zumbiu aos ouvidos e atingiu um homem que estava atrás de mim com um baque doentio. Lembro-me dos soldados, homens que eu nunca tinha visto, a correrem para mim com espadas na mão e a morte nos olhos; tudo aquilo parecia tão improvável, que eu só queria que o pesadelo terminasse. Mas a espada que eu tinha na mão parecia saber o que devia fazer, por isso eu segui-a cegamente.

 

Lembro-me do sangue espumoso que me borrifou a cara e que era parecido com a espuma do mar a bater. Lembro-me de ver Catilina, de rosto contorcido numa careta terrível, com o braço da espada a mover-se implacavelmente, com uma seta projectada do ombro esquerdo e o sangue correndo-lhe sobre a couraça brilhante. Lembro-me de ver Meto correr para o lado de Catilina com uma feroz determinação estampada no rosto, abrindo caminho com a espada como se toda a vida não tivesse feito outra coisa. Corri atrás dele mas tropecei em qualquer coisa sólida e carnal. Quando me voltei, avistei Tongílio entre os homens que se aglomeravam atrás de mim, erguendo o estandarte da águia porque, seguindo atrás de Catilina, tínhamos aberto caminho por entre as linhas inimigas. Voltei a pôr-me de pé e procurei Meto freneticamente, mas ele tinha desaparecido no meio do caos.

 

Depois, pelo canto do olho, vi a lança aproximar-se. Lembro-me de a observar, petrificado, enquanto ela se aproximava zunindo da minha testa. Parecia mover-se muito lentamente, e tudo o que existia neste mundo, incluindo eu próprio, parou subitamente à espera da sua chegada; ela foi-se aproximando com tal lentidão, que eu me senti como um homem no cais à espera da chegada de um barco. Estava cada vez mais perto, e quando estava mesmo, mesmo perto, subitamente, o mundo deu um puxão para trás num movimento frenético. Tive o pensamento absurdo de que devia realmente esforçar-me um pouco mais por me afastar daquela coisa e depois a lança atingiu o alvo com um peculiar som de cedência do metal, e subitamente eu voei para trás. Ao meu lado ou acima de mim as direcções tinham deixado de ter qualquer significado, tive um vislumbre do estandarte da águia, que vacilava e oscilava e se esmagou no chão como eu, e depois o mundo vermelho-sangue transformou-se no preto mais escuro.

 

Eu estava sentado numa rocha dura, rodeado por muros entalhados de pedra escura, com pedras escuras aos pés e acima da cabeça. A princípio, pensei que se tratava de uma gruta, mas as paredes eram demasiado angulares para serem naturais e o ar era quente, em vez de ser frio e húmido. Talvez fosse a velha mina de prata no alto do monte Argênteo, pensei eu, mas isso não fazia sentido. Estava no famoso Labirinto de Creta, evidentemente, porque o próprio Minotauro olhava para mim com atenção do outro lado de uma esquina, e os seus cornos provocavam uma sombra enorme na parede que ele tinha por trás.

 

A coisa estava bastante perto de mim, tão perto que eu conseguia ver a carne brilhante das suas imensas narinas escuras e o reflexo dos seus olhos pretos. Eu devia estar louco de medo, mas estranhamente não estava. Só conseguia pensar que as narinas do animal, húmidas e porosas e de onde saíam alguns pêlos grosseiros, pareciam muito delicadas e sensíveis, e que os seus olhos eram belos, à sua maneira bovina. Tratava-se de uma criatura viva e, no meio de toda aquela pedra dura e morta, qualquer coisa que fosse feita de carne viva pareceria preciosa e rara, algo que devia ser estimado e não temido. Apesar disso, quando o animal dobrou a esquina e se aproximou, com os dois cascos a bater na pedra, eu fiquei um pouco enervado com a visão de um touro que caminhava de pé e tinha um torso humano. Reparei igualmente que os seus cornos altos e curvos tinham as pontas muito aguçadas e estavam marcados por uma mancha cor de ferrugem.

 

O Minotauro resfolegou, deitando vapor pelas narinas escuras e gotejantes. Parou a alguns passos de distância e inclinou a cabeça. Quando falou, fê-lo numa voz que parecia disfarçada, pois tinha uma entoação rouca e pouco natural.

 

Quem és tu? disse ele.

 

O meu nome é Gordiano.

 

Não és daqui.

 

Vim à procura de qualquer coisa.

 

Isso foi uma tolice. Isto é um labirinto, e o objectivo de um labirinto é as pessoas perderem-se.

 

Mas eu encontrei-te.

 

Ou fui eu que te encontrei a ti?

 

Tive um arrepio, não de medo, mas de incerteza, tão profundo que me fez doer a cabeça. Fechei os olhos por momentos. Quando voltei a abri-los, senti que qualquer coisa tinha mudado e percebi que os muros de pedra que me rodeavam tinham desaparecido. Apesar disso, continuava bastante escuro. Eu estava no alto de uma colina, sob um céu coberto de estrelas, a olhar para uma paisagem campestre, um ribeiro com um moinho de água, um pequeno muro ao longe, uma estrada, uma casa de campo. Percebi que se tratava da minha quinta, embora eu estivesse a vê-la de um ângulo que não me era familiar. Parecia que estava numa cumeeira, mas não era a cumeeira onde costumava estar. A visão era estranhamente inclinada e oblíqua.

 

Já não estávamos sozinhos. Voltei-me e vi três corpos nus e sem cabeça sentados em três cepos alinhados, com as mãos pousadas no regaço, como espectadores no teatro ou juizes no tribunal.

 

Quem são eles? O que estão aqui a fazer? perguntei ao Minotauro num tom de voz sussurrado e confidencial, embora os outros fossem claramente surdos, cegos e mudos. Tu sabes, não sabes?

 

O Minotauro acenou com a cabeça.

 

Então diz-me.

 

O Minotauro abanou a cabeça.

 

Fala!

 

O animal resfolegou pelas suas narinas grandes e pretas que emitiam vapor, mas nada disse. Ergueu um braço humano e apontou para qualquer coisa no chão, ao meu lado. Eu olhei para baixo e vi uma espada. Peguei nela e tomei-lhe o peso, satisfeito com a maneira como ela brilhava à luz das estrelas.

 

Fala, ou vais ter com eles disse eu, apontando com a espada para as três testemunhas sem cabeça.

 

O Minotauro continuou mudo. Eu ergui-me e brandi a espada.

 

Fala! disse eu e, como o animal se recusasse, fiz girar a espada com toda a força e cortei-lhe aquele enorme pescoço de touro. Quando a cabeça lhe caiu, vi que o Minotauro era oco; o seu corpo era apenas um fato e a sua cabeça uma máscara. A verdadeira cabeça começou a emergir do interior. Eu recuei, com as têmporas a doer-me por causa da expectativa.

 

Depois percebi a verdade.

 

Foi então que acordei, com uma dor de cabeça martelada, que me cegava. Alguém me tocou no ombro e me disse em voz baixa.

 

Deixa-te estar, não te mexas. Estás a salvo. Consegues ouvir-me? Abri os olhos, mas voltei a fechá-los por causa da brutalidade da luz.   Se me mantivesse quieto, a dor recuava. Recuperei o fôlego e ouvi-me gemer. Pus a mão em cima do rosto e voltei a abrir os olhos, cautelosamente, não para a desagradável luz do Sol, como pensara, mas para a suave e filtrada luz do interior de uma tenda. Por momentos, pensei que regressara à tenda de Catilina, e perguntei a mim próprio como teria ido ali parar. Se a tenda dele ainda estava de pé, se o acampamento estava intacto, então...

 

Baixei a mão e vi um rosto tão inesperado, que fiquei totalmente confuso. Uma mancha de cabelo ruivo, um nariz elegante coberto de sardas e um par de olhos castanhos e brilhantes, que olhavam para os meus: era o meu amigo, o augure Marco Valério Messala Rufo.

 

Rufo?

 

Sim, Gordiano, sou eu.

 

Estamos em Roma?

 

Não.

 

Então onde é que estamos?

 

Bastante mais para norte, perto de uma cidade chamada Pistoria. Houve uma batalha...

 

Estamos no acampamento de Catilina?

 

Ele suspirou, de tal maneira que eu percebi que já não existia nada a que pudesse dar-se esse nome.

 

Não. Este é o acampamento de António.

 

Então...

 

Tens muita sorte em estar vivo, meu amigo.

 

E Meto? O meu peito apertou-se.

 

Foi Meto quem te salvou.

 

Sim, mas...

 

Ele está vivo, Gordiano disse Rufo, apercebendo-se do meu temor.

 

Graças aos deuses! Onde está ele?

 

Não tarda a chegar aí. Quando vi que te agitavas, mandei um homem buscá-lo.

 

Sentei-me, cerrando os dentes por causa da dor de cabeça. Parecia-me ter os braços, as pernas e o tronco intactos. Olhei à minha volta e vi que não havia mais ninguém na tenda, para além de Rufo, a não ser que contássemos as galinhas que cacarejavam dentro das gaiolas amontoadas junto à entrada. Subitamente, ao olhar para elas, senti-me esfomeado.

 

Há quanto tempo foi a batalha?

 

Foi ontem.

 

Como é que eu vim parar aqui?

 

O teu filho é um jovem muito corajoso. Quando te viu cair, correu para ti e carregou-te para uma zona por trás das linhas, lá em cima, entre os pedregulhos da encosta, para além do acampamento, onde ficasses fora de perigo. Deve ter ficado totalmente exausto. Consegues imaginar quanto deviam pesar os dois, com aquelas armaduras? E tu eras um peso morto. E, claro, ele também sangrava por causa dos seus próprios ferimentos...

 

Os seus ferimentos?

 

Não tenhas receio, Gordiano, foram ferimentos sem importância. Ele colocou-te longe do perigo; depois deve ter sucumbido de exaustão. Foi encontrado inconsciente ao teu lado.

 

Por quem?

 

Depois da batalha, António mandou as suas reservas esquadrinhar as montanhas. Ordenou-lhes que fizessem prisioneiros todos os homens que estivessem dispostos a entregar-se e que só combatessem aqueles que tomassem essa iniciativa. Sabes com quantos prisioneiros eles regressaram? Exactamente dois: tu e Meto, ambos inconscientes. De todo o exército de Catilina, só sobreviveram vocês os dois... foi um auspício tão curioso, que se pensou que devia ser examinado por um augure. Eu fui convocado e percebi imediatamente de quem se tratava; coloquei-vos sob a minha protecção e mandei-vos trazer para a minha tenda. Quando acordou, Meto explicou-me por que razão vocês se encontravam os dois no acampamento de Catilina. Ele saiu há bocadinho para ir buscar qualquer coisa para comer.

 

Então espero que traga qualquer coisa consigo disse eu, agarrando o estômago. Não sei qual dos dois está mais vazio, o meu estômago ou a minha cabeça! Só nós os dois, dizes tu; nesse caso, Catilina...

 

Morreu, como todos os outros. Até ao último homem, todos mortos corajosamente e levando consigo muitas vidas. Toda a manhã os soldados aqui do acampamento têm falado sobre isso, dizendo que nunca tinham encontrado tamanha resistência por parte de inimigo tão inferior em número. Todos os comandantes de Catilina morreram nas fileiras da frente. Todas as posições foram mantidas até os homens que as defendiam estarem todos mortos, e todos os seus ferimentos eram na frente. Cobraram um preço terrível; antes de a batalha acabar, os melhores combatentes de António estavam todos mortos ou gravemente feridos.

 

E Catilina? Como é que ele morreu?

 

Foi encontrado longe dos seus homens, bem dentro das fileiras dos inimigos, rodeado pelos corpos dos seus adversários. Tinha as vestes, a armadura e a carne todas da mesma cor, empapadas de vermelho por causa do sangue. Tinha mais ferimentos do que aqueles que era possível contar, mas ainda respirava quando o descobriram. Chamaram-me para ouvir as suas últimas palavras, se ele quisesse falar; mas ele não voltou a abrir os olhos nem pronunciou uma única palavra. Porém, pela sua expressão, percebia-se que continuou igual a si próprio até ao fim. Manteve até ao último suspiro aquela expressão de arrogante desafio que fez com que tantos homens o odiassem.

 

E fez com que outros o amassem disse eu suavemente.

 

Sim?

 

Conheço essa expressão. Gostaria de tê-la visto.

 

Ainda podes fazê-lo disse Rufo. Antes que eu pudesse perguntar-lhe o que queria dizer, chegou até mim, vindo do exterior da tenda, um súbito queixume de sofrimento, tão violento que me fez gelar o sangue nas veias. Tem sido assim a manhã toda disse Rufo. Não se ouvem gritos de júbilo nem de vitória, apenas lamentações. Os homens vagueiam pelo campo de batalha, alguns para tirar as armaduras aos mortos, outros para ver a cena à luz do dia seguinte, como costumam fazer nos lugares onde lutaram. Voltam ao contrário os cadáveres retalhados do inimigo e o que descobrem? O rosto de amigos e parentes, ou de rapazes com quem cresceram. Foi uma vitória terrível e amarga.

 

E tu por que vieste, Rufo?

 

Para servir de augure, claro. Para ler os auspícios antes da batalha.

 

Mas tu porquê?

 

Fui nomeado pelo Pontifex Maximus disse ele, e depois olhou para mim judiciosamente. Que é outra maneira de dizer que vim a mandato de César.

 

Para seres os seus olhos e os seus ouvidos.

 

Se quiseres. Como augure, posso participar em todos os acontecimentos sem sujar as mãos com sangue romano. Tenho assento nos conselhos de guerra, mas não participo nas batalhas. Limito-me a interpretar a disposição dos céus.

 

Por outras palavras, estás aqui como espião de César.

 

Se é que um homem pode ser espião quando toda a gente conhece o seu papel.

 

A intriga nunca terminará?

 

Nunquam disse ele, abanando gravemente a cabeça. Nunca.

 

Suponho que António não teve a mínima hesitação em destruir o seu antigo colega. Catilina tinha esperanças de que ele vacilasse.

 

E vacilou, à sua maneira. Teve um violento ataque de gota, mesmo antes da batalha, e entregou o comando a um dos seus lugares-tenentes. Durante o combate propriamente dito, António esteve de cama, com a aba da tenda baixada. Ninguém poderá dizer que ele não perseguiu o seu velho amigo Catilina, como o Senado o encarregara de fazer; mas, estritamente falando, também ninguém poderá dizer que ele participou na destruição de Catilina. Dentro em breve, o velho sátiro irá usufruir o lucrativo governo da Macedónia que Cícero lhe cedeu e haverá um hipócrita a menos a atravancar o Fórum.

 

Eu abanei a cabeça, depois estremeci por causa do relâmpago que senti por trás dos olhos.

 

A minha cabeça parece uma abóbora madura de mais.

 

E o aspecto condiz sorriu Rufo. Tens um galo na testa do tamanho de uma noz.

 

Ouvi um ruído na aba da tenda. Voltei a cabeça com demasiada rapidez e caí para trás, contra o beliche, a gemer. O som deve ter sido mais assustador do que a dor que o provocou, porque Meto correu para o meu lado, abraçando-me e perguntando a Rufo entredentes:

 

Ele está...

 

O teu pai está bem, à excepção da dor de cabeça.

 

Abri os olhos e vi Meto, apenas por um instante, antes de a sua imagem ficar enevoada pelas lágrimas. As lágrimas parecia levarem consigo uma parte da dor que eu tinha por trás dos olhos, o que era óptimo, porque eu tinha muitas lágrimas para derramar. Mas as lágrimas não me devolveriam Meto como ele era anteriormente. Rufo dissera-me que os seus ferimentos eram pequenos e, dada a escala do sofrimento que nos rodeava, tinha razão, porque Meto andava e respirava e não tinha perdido nenhum membro. Mas a lâmina que lhe cortara um pedaço da orelha esquerda e abrira um golpe profundo até ao canto da sua boca deixaria uma cicatriz que nunca mais o abandonaria.

 

Era pouco prático e pouco aconselhável Meto falar, porque o movimento do maxilar repuxava-lhe a carne rasgada da ferida. Rufo fizera-lhe uma ligadura simples para ele atar à volta da cabeça, que o obrigava a manter a boca fechada e também cobria o golpe. Quando eu o vi, ele tinha tirado a ligadura durante algum tempo, para comer e beber um pouco de água.

 

Também não era muito mais fácil para mim falar, ou ouvir, diga-se em abono da verdade, por causa das palpitações que tinha na cabeça. Talvez fosse melhor assim, porque as palavras poderiam ter obscurecido os sentimentos que passaram de um para o outro quando ele se sentou na borda do meu beliche, segurando-me a mão.

 

Eu consegui falar-lhe do último cadáver, que aparecera quando eu estava a sair da quinta, bem como do sonho do Minotauro e daquilo que ele me permitira concluir. Já sabia quem deixara os cadáveres na quinta, e por quê e com a ajuda de quem. Meto começou por ficar espantado, recusando-se a acreditar, e fazendo-me perguntas entredentes, mas à medida que eu lhe ia apresentando as provas de que me ia recordando, foi obrigado a concordar com aquilo que o sonho me revelara.

 

Eu ansiava por voltar para casa. Agora que Meto estava são e salvo, não parava de pensar na segurança de Betesda e de Diana, que deixara à mercê do Minotauro. Teria Eco ido para lá, como eu lhe pedira? Mas mesmo que tivesse, levando consigo Belbo e uma dúzia de guarda-costas, eu temia que ele não conseguisse protegê-las, porque não sabia de quê. O Minotauro estava a ficar cada vez mais desesperado e tortuoso. Mas, quando me levantei e tentei

vestir-me, quase não consegui cambalear outra vez para a cama. Cavalgar a galope teria sido um tormento insuportável.

 

Rufo ofereceu-me

nepentes para a dor e para me ajudar a dormir. Eu recusei, dizendo-lhe que haveria certamente no acampamento homens feridos com dores muito mais agonizantes do que as minhas, que podiam usar as mesmas gotas de esquecimento para facilitar a sua caminhada de libertação para a morte. Ainda assim, acho que ele deitou algum sumo de papoila no vinho que me trouxe mais tarde porque, apesar das dores e do tumulto de preocupações, eu consegui dormir um sono medicinal e conciliador, não assombrado por Minotauros ou outros monstros.

 

Só acordei uma vez durante a noite, numa escuridão iluminada por uma única lamparina e para o som de duas vozes conversando em voz baixa.

 

Sim, concordo que eram sinais, e que os leste adequadamente dizia Rufo. Era vontade dos deuses que combatesses ao lado de Catilina.

 

Mas devia ter ficado com o Papá! Acabei por arrancá-lo de junto de Betesda e de Diana, quando elas mais precisavam dele... e elas precisam da nossa protecção. Se alguma coisa terrível tiver acontecido na quinta...

 

Não poderás censurar-te, Meto. Há forças maiores do que nós, que nos orientam neste mundo, da mesma maneira que os ventos conduzem as embarcações à vela e fazem dançar as sementes no ar. Teres-te submetido ao vento que te trouxe até aqui não foi uma loucura.

 

Mas, se esse era o meu destino, eu devia ter morrido em combate ao lado de Catilina! Foi o que eu pensei que aconteceria. Estava pronto, não tinha medo. Mas quando vi cair o Papá, tive de ir socorrê-lo. Quando percebi que ainda estava vivo, não consegui deixá-lo ali. Larguei a batalha e levei-o para lugar seguro com intenção de voltar, mas as minhas forças abandonaram-me e o inimigo encontrou-me inconsciente. Devia deixar-me cair sobre a minha espada com a vergonha!

 

Não, Meto. Tu disseste-me uma coisa acerca do estandarte com a águia. Disseste que, mesmo antes de ires ter com o teu pai, viste o estandarte balançar e cair.

 

Sim, Tongílio foi ferido num olho por uma seta. O estandarte caiu e não havia ninguém para voltar a pegar nele.

 

Estás a ver? Apareceu-nos a todos uma águia no Auguraculum, para assinalar o começo da tua masculinidade. Quando viste a águia de prata de Catilina pela primeira vez, reconheceste o presságio e seguiste-o até aqui e até ao campo de batalha. Mas, quando a águia caiu, para não voltar a levantar-se, ficaste liberto. Tinhas feito aquilo que estava destinado que fizesses. Era a maneira de os deuses te dizerem que deixasses Catilina, que nem os próprios deuses podiam continuar a ajudar, e que fosses ter com o teu pai, que só tu podias ajudar. Fizeste o que devias.

 

Achas realmente, Rufo?

 

Acho.

 

Então não sou apenas um cobarde ou um tolo?

 

Seguir um sonho nunca é um acto de cobardia; pôr esse sonho de lado quando o tempo se cumpre é o oposto da tolice. Atravessar um campo de batalha com um homem aos ombros não é um acto de um cobarde; tê-lo feito pelo teu pai faz de ti, não um tolo, mas um romano, Meto. Ah, o teu pai parece estar a agitar-se. Gordiano? Não, continua a dormir. Mas olha, está a sorrir; a dor deve ter acalmado, para ele estar a ter sonhos tão agradáveis.

 

Na manhã seguinte, sentia-me extraordinariamente melhor. As longas horas de sono e as gotas de nepentes deviam ter ordenado os humores que se confundiam dentro da minha cabeça, e a noz da minha testa tinha milagrosamente diminuído para o tamanho de um grão-de-bico. Rufo mostrou-se inquieto, afirmando que eu ainda não estava em condições de viajar, mas quando eu insisti disse que ia dar ordens para que nos preparassem os cavalos.

 

Quer dizer que não somos prisioneiros? Podemos partir à vontade? disse eu.

 

Rufo sorriu.

 

Um augure que representa pessoalmente o Pontifex Maximus tem certos privilégios. Digamos que, tal como a nepentes, eu induzi o esquecimento. Oficialmente, nenhum de vocês existiu. Não houve prisioneiros na batalha de Pistoria; todos os homens de Catilina morreram em combate. Será isso que o Senado ouvirá dizer e que os historiadores registarão. Sois ambos espantosamente afortunados, não apenas por estardes vivos, mas por vos terdes um ao outro. A Fortuna sorriu-te, Gordiano.

 

Então rezo para que assim continue disse eu, pensando na quinta e em tudo o que poderia ter acontecido na minha ausência.

 

Ninguém reparou em nós, quando montámos os cavalos e partimos pelas ruelas improvisadas abertas por entre as tendas e as fogueiras. A disposição predominante era sombria, mas havia também aquela sugestão de anarquia que atravessa os acampamentos quando a batalha foi ganha e o perigo passou. Os homens estavam sentados em grupos, bebendo vinho, discutindo pormenores da batalha, jogando e regateando os despojos que tinham tirado aos mortos.

 

Na extremidade do campo, o nosso caminho passava pela tenda do comandante. Continuaria António escondido lá dentro, incapacitado por causa da gota? Sorri ao pensar nisso, mas o sorriso morreu-me nos lábios quando vi o trofeu espetado num poste à entrada da tenda. Meto deve tê-lo visto no mesmo instante, porque o ouvi inspirar audivelmente por entre os dentes cerrados.

 

Percebi então o que queria dizer Rufo ao comentar que talvez eu voltasse a ver o rosto de Catilina.

 

Tinham-no guardado, para o levarem para Roma e o mostrarem ao Senado e ao povo, como prova da sua morte. Aqueles que o temiam veriam os seus temores suavizados; aqueles que tinham desejado o seu triunfo veriam os seus desejos destruídos; aqueles que pensassem em emulá-lo receberiam uma viva advertência. ”Vejo dois corpos, um é magro e está enfraquecido, mas tem uma grande cabeça, o outro não tem cabeça, mas é grande e forte”, dissera ele ao Senado. ”Por que razão é tão medonha a possibilidade de que eu me transforme na cabeça daquele corpo que precisa dela?” Mas agora a cabeça de Catilina, ensanguentada e cortada pelo pescoço, estava montada numa estaca à entrada da tenda do seu conquistador, e não teria utilidade para mais ninguém. A expressão de arrogante desdém fixada nos seus lábios era desperdiçada com as insensíveis moscas que zuniam à volta dos seus olhos e dos seus lábios.

 

Eu engoli em seco. Ao meu lado, Meto emitiu um som peculiar, um enorme soluço, abafado pela ligadura que lhe mantinha a boca fechada. Fizemos uma pausa, olhando para Catilina pela última vez. Meto foi o primeiro a afastar-se, fazendo estalar as rédeas e pondo o cavalo a galope. Atravessou rapidamente o campo e eu segui atrás dele, passando por entre soldados surpreendidos, que agitaram os punhos e nos amaldiçoaram, e por escravos que se inclinaram para apanhar os fardos dispersos. Meto só abrandou a corrida muito depois de ter saído do acampamento e de ter entrado na estrada, onde o céu frio e cinzento e os campos vazios parece terem-lhe oferecido uma espécie de consolo.

 

Ao viajar para sul, não encontrei no campo um estado de espírito diferente daquele que presenciara quando me dirigia para norte, porque nós avançávamos à frente da notícia de que Catilina fora derrotado e morto. Eu não tinha qualquer desejo de ser o portador da novidade, fosse ela bem ou mal recebida, e mantive a boca fechada nos pontos onde parámos. Era uma tarefa difícil quando ouvia homens falar acerca do grandioso futuro que Catilina traria, ou contar as mesmas piadas gastas acerca da ruína da Virgem Vestal, ou ainda arengar contra os seus hábitos viciosos e os seus planos loucos. Temi que Meto se sentisse levado a gritar e a argumentar, e que isso pudesse reabrir-lhe a ferida, mas ele suportou tudo o que se dizia acerca de Catilina com o estoicismo taciturno e silencioso de um verdadeiro romano.

 

Na manhã do nosso regresso, quando finalmente nos aproximávamos da quinta e a paisagem se nos tornava mais familiar, senti o espírito aligeirar-se. Um suave nevoeiro cobria a terra, anulando as subtis cores do Inverno e suavizando as pontas mais agudas do mundo. O ar que me entrava nos pulmões era frio e revigorante. Estávamos quase em casa. O que estava feito estava feito, e a vida poderia recomeçar. Claro que havia a pequena questão do Minotauro mas, desde que não tivesse havido nenhum acontecimento terrível na minha ausência, eu quase ansiava por esse encontro. Pelo menos, ele poria fim à crescente colecção de cadáveres indesejados que tinham sido colocados na minha propriedade, bem como às minhas exibições continuadas de deduções mal orientadas.

 

Meto também estava satisfeito por voltar a casa. Quando saímos da Via Cássia para a estrada de terra, ele desatou a galopar e eu fui atrás dele. Havia um escravo postado no telhado do estábulo, que se ergueu para nos examinar minuciosamente quando nos aproximámos. Óptimo, pensei eu, mantinham uma vigilância apertada, mesmo durante o dia, como eu ordenara. Quando nos reconheceu, o escravo começou a gritar:

 

É o Senhor! E o jovem Meto!

 

Quando desmontávamos diante do estábulo, Eco saiu de casa. Eu sorri-lhe, mas ele não me correspondeu. Deve ter reparado na ligadura de Meto, pensei eu, e ficou preocupado. Mas depois Betesda saiu a correr atrás dele. Ainda não podia ter visto a ligadura de Meto, mas tinha o rosto vermelho de chorar. Passou a correr por Eco, que se dirigia a nós como se cada passo lhe causasse dor. Ela agarrou-me nos braços com tanta força, que eu pensei que as suas unhas iam rasgar-me as mangas da túnica.

 

Diana! disse ela, numa voz rouca de choro. Diana desapareceu!

 

Tudo mudou num instante, como se a noite tivesse caído num abrir e fechar de olhos, ou se o ar tivesse subitamente congelado.

 

Desapareceu? disse eu. Queres dizer...

 

Não conseguimos encontrá-la disse Eco.

 

Há quanto tempo? Betesda falou apressadamente.

 

Desde ontem. Estive com ela toda a manhã, ao meio-dia comeu, mas depois disso... só a meio da tarde é que eu percebi que ela tinha desaparecido. Eu fiz uma sesta... quem me dera não a ter feito. Procurei-a por toda a parte, gritei até ficar rouca, até muito depois do escurecer, mas não tive resposta e ela não apareceu. Como é que ela podia ter-se perdido? Ela conhece todas as partes da quinta, e sabe perfeitamente que não pode ir passear para além dos seus limites. Não compreendo...

 

Olhei para Eco.

 

O poço? disse eu. Ele abanou a cabeça.

 

Procurei aí e em todos os sítios onde ela pudesse ter caído ou ter-se magoado. Os escravos passaram a propriedade a pente fino de uma ponta à outra, mais do que uma vez. Não há sinais dela.

 

Meto! gritou Betesda subitamente, vendo a ligadura pela primeira vez. Afastou-se de mim e pôs os braços à volta dele.

 

E os vizinhos? disse eu a Eco.

 

Fui falar com os quatro. Todos eles afirmam não fazer ideia do que quer que seja, mas quem sabe? Se eu tivesse alguma razão para desconfiar de algum deles, não teria hesitado em pegar-lhe fogo à casa para o obrigar a dizer-me a verdade.

 

Quem foi a última pessoa a ver Diana?

 

Ela não ficou satisfeita com a papa do meio-dia e foi pedir mais. Betesda estava a dormir, por isso Diana dirigiu-se à cozinha para pedir outra dose. Côngrio diz que se meteu com ela por ser tão gulosa, mas deu-lhe outra taça. Ela comeu-a ali na cozinha, e depois correu lá para fora, para ir brincar. Mas ninguém parece tê-la visto...

 

Meto! gritou Betesda, quando ele se afastou dela e correu para a casa.

 

Depressa, Eco, antes que ele o mate! gritei eu, correndo atrás de Meto.

 

Quando chegámos à cozinha, Côngrio já fora atirado ao chão. Estava deitado de costas, com uma expressão de pânico surpreendido e as mãos diante do rosto, para se proteger. Meto tirara do forno um enorme espeto de ferro e fazia-o girar sem constrangimento. O metal fazia um som curioso e agradável quando tocava na carne mole que almofadava o corpo de Côngrio.

 

Onde está ela? Onde está ela? rugia Meto entredentes, enquanto Côngrio gemia e gritava.

 

Meto, eu já o interroguei protestou Eco, que fez um gesto para pôr fim à tortura, e depois recuou, porque Meto fez girar violentamente o espeto. Com Eco fora do seu caminho, Meto retomou a tareia, batendo no gordo cozinheiro uma vez e outra. Eu não precisava de lhe ver o rosto, para conhecer a satisfação que ele sentia ao dar largas a uma violência tão descontrolada, pois partilhava esse prazer. Todo o seu desespero e a sua amargura estavam a ser desabafados no corpo indefeso que gritava e esperneava no chão.

 

Papá, obriga-o a parar! Ele vai matar o pobre escravo! gritou Eco.

 

E pode perfeitamente fazê-lo, mas só depois de termos descoberto aquilo que ele sabe disse eu. Muito bem, Meto, já chega. Já chega! Com as mãos diante do rosto, eu consegui intervir e agarrar o braço de Meto quando ele o ergueu para dar outra pancada. Ele lutou contra mim por momentos, depois transferiu desajeitadamente o espeto para a outra mão, como se tencionasse continuar a bater em Côngrio, mas Eco conseguiu tirar-lhe a arma, e eu consegui segurar-lhe os braços ao longo do corpo tempo suficiente para ele se controlar. Entretanto, Côngrio jazia no chão, arfando e chorando.

 

Tortura-o, Papá! Obriga-o a falar! rosnou Meto.

 

Assim farei, se for preciso. Voltei-me para Côngrio, com a intenção de lhe aplicar uma pancada com toda a minha força, mas o seu aspecto era de tal maneira patético, que eu hesitei.

 

Por favor, Senhor, não me faças mal! gemeu ele, e quando Meto se aproximou dele ameaçadoramente, guinchou. Eu não sei nada!

 

Mentiroso! Nessa altura não consegui resistir a dar-lhe um pontapé. O guincho que ele deu permitiu-me partilhar a alegria de Meto. Mentiroso! Eu já sei o que tu andaste a fazer. Terás muita sorte se eu te deixar com vida depois do que fizeste. Agora, diz-me o que aconteceu a Diana senão, por Júpiter, hei-de torturar-te até que o faças!

 

A partir dessa altura, Côngrio mostrou-se muito comunicativo.

 

Não podemos mostrar-nos cedo demais disse eu a Eco e a Meto enquanto dirigíamos os nossos cavalos para a saída da Via Cássia. Belbo também ia connosco, juntamente com mais dez escravos, a maioria homens corpulentos e fortes que Eco trouxera consigo de Roma, e todos eles armados com punhais. À nossa frente, praticamente escondida pela mata, estava a pequena casa da quinta. Erguia-se da casa uma tira de fumo, o que significava que a nossa presa ainda estaria provavelmente por ali, e não tinha fugido para Roma ou para qualquer outro sítio. Eu rezei para que Diana também estivesse dentro da casa, mas o pensamento de como a encontraríamos fez com que o meu peito se apertasse e o estômago se me enchesse de nós.

 

Dado que ontem já cá estiveste a fazer perguntas, Eco, talvez eles não fiquem muito surpreendidos por te voltar a ver. O importante é entrar dentro de casa, e depois começarmos a mover-nos com grande rapidez.

 

Não te preocupes, Papá, já falámos disto antes de sairmos de casa disse Meto. Sabemos bem o que temos de fazer.

 

Na mata, escondidos pelos ramos densos e nus das árvores, os escravos desmontaram e prenderam os cavalos. Meto, Eco e eu avançámos sozinhos. Era a hora de calma que se seguia ao meio-dia, e não havia ninguém a trabalhar no exterior. Quando chegámos junto da casa, desmontámos e Eco bateu à porta. Uma velha escrava de cabelo grisalho veio abri-la.

 

Ah, és tu disse ela, reconhecendo Eco, e depois olhando para além dele, para Meto e para mim.

 

O meu pai e o meu irmão acabam de regressar de uma grande viagem disse Eco. Vieram indagar sobre a minha irmã, tal como eu. Para sua própria satisfação, compreendes?

 

A escrava acenou com a cabeça, hesitante.

 

Ah, sim. Bem, deixa-me ir dizer...

 

Eco, és tu outra vez? cacarejou uma voz conhecida de lá de dentro. Uma figura indistinta surgiu no interior da casa escura e aproximou-se de nós. Oh, meu querido rapaz, quem me dera ter novidades para ti, mas receio bem que não... oh, e o teu pai também. E Meto, com uma ligadura horrível! disse ela, avançando para a luz da entrada, e afastando do rosto uma madeixa de cabelo ruivo.

 

Sim, Cláudia, viemos pedir a tua ajuda disse eu.

 

Quer dizer que a pobre Diana ainda não apareceu?

 

Não.

 

Oh, céus, eu tinha tantas esperanças que ela aparecesse em vossa casa ontem antes do anoitecer. Devem estar horrivelmente preocupados.

 

Estamos de facto.

 

Especialmente Betesda. Eu nunca conheci as alegrias nem as dores da maternidade, mas ela deve estar totalmente desfeita! Porém, eu receio nada ter para vos dizer. Mandei os escravos esquadrinhar a propriedade, como tu me pediste, Eco, mas eles não encontraram nada. Se quiserem, mandem alguns escravos vossos procurar... só para ficarem satisfeitos. Compreendo isso.

 

Permitirias isso, Cláudia?

 

Claro.

 

Deixavas-nos procurar dentro do estábulo e dos anexos?

 

Se quiserem. Não vejo como é que ela poderia ter entrado em algum desses sítios sem os meus escravos saberem, ou lá permanecer sem ser vista, a não ser que estivesse a esconder-se intencionalmente por qualquer razão mas procurem se quiserem.

 

E deixas-nos procurar também dentro de tua casa, Cláudia? A máscara deslizou um pouco.

 

Bem...

 

Nos teus aposentos privados, no teu quarto, por exemplo? Em compartimentos onde um estranho normalmente não entraria?

 

Não estou a ver bem o que queres dizer, Gordiano. A criança dificilmente poderia estar em minha casa sem eu saber, pois não?

 

Não, acho que não.

 

Por instantes, os seus olhos ficaram duros e brilhantes, depois Cláudia juntou as sobrancelhas e fez um beicinho docemente tolerante.

 

Oh, Gordiano, deves estar muito perturbado para me falares dessa maneira. Certamente, procurem onde quiserem! Façam-no sem demora, para acalmarem o espírito e depois poderem prosseguir as vossas buscas noutro sítio.

 

Assim faremos disse eu e, tão rápida e seguramente quanto pude, como se estivesse a tomá-la nos braços e a beijar-lhe o pescoço, fi-la girar e levei-lhe o punhal ao pescoço. Ela abriu a boca e distendeu o pescoço para fazer um ruído, mas encolheu-se ao toque da lâmina afiada e sufocou. Eu puxei-a para fora da casa, para a luz fria do Sol, enquanto Meto corria lá para dentro e Eco chamava os escravos.

 

Não deparámos com qualquer resistência. A idosa escrava da porta gritou assustada e os escravos de Cláudia acorreram, alguns com punhais e maços, mas quando viram a situação desagradável em que se encontrava a sua senhora, recuaram e ficaram a observar, mudos, enquanto os meus homens revistavam o estábulo e a prensa do vinho, os alpendres das ferramentas e os alojamentos dos escravos, e depois a casa.

 

Estás a cometer um erro terrível disse Cláudia.

 

O erro terrível será teu, se lhe fizeste algum mal lançou Eco, correndo para dentro de casa para se juntar aos outros na busca.

 

A criança não está aqui.

 

Mas foi trazida para aqui disse eu. Não vale a pena mentires, Cláudia. Côngrio atraiçoou-te. Vá, continua a bater com os pés e a espernear; se cortares o pescoço, a culpa será tua.

 

Ela roncou, e eu senti a vibração do seu pescoço contra a lâmina.

 

Eu não tenho nada a ver com o facto de o teu cozinheiro te estar a mentir!

 

Não foi uma mentira, foi a verdade, Cláudia. Ontem, mandaste um dos teus homens a minha casa, um escravo da cozinha, ostensivamente enviado para trocar alguns produtos teus por outros meus, uma coisa que está sempre a acontecer, uma coisa tão comum que ninguém repara no homem que circula entre as duas casas. Mas na verdade ele foi lá para combinar com Côngrio o passo seguinte, uma coisa que já acontecera várias vezes. Segundo Côngrio, o teu plano mais recente tem qualquer coisa a ver com veneno. Isto foi demasiado para Côngrio e ele recusou-se, pelo menos é o que ele diz, por isso o teu homem continuou a argumentar com ele. Não havia mais ninguém na cozinha, Eco estava fora de casa e Betesda estava a dormir a sesta, por isso eles falaram à vontade, em voz baixa, até que subitamente se aperceberam de que Diana estava ali, a menos de um metro de distância, a ouvi-los sabe-se lá há quanto tempo.

 

”Entraram em pânico. Côngrio meteu-lhe um trapo na boca e amarrou-a com um pano comprido. O teu homem viera numa carroça. Eles conseguiram levá-la lá para fora, metê-la dentro da carroça e amarrá-la, e depois ele foi-se embora a toda a velocidade. O meu vigilante afirma que viu o homem ir-se embora, mas acho que estava a mentir para que eu não o castigasse, a não ser que seja surdo e meio cego; imagino que, mesmo amarrada e com a boca cheia, Diana devia conseguir fazer algum barulho e abanar a carroça. Apesar disso, o homem conseguiu fugir sem ninguém reparar. Ia lá tantas vezes, que os meus escravos nem se lembram de ele ter lá estado. Era um agente teu, Cláudia, conspirando com o meu cozinheiro! Portanto, como vês, eu sei a verdade, ou pelo menos o suficiente para ter descoberto que a pista de Diana vinha dar a tua casa. Onde está ela?

 

Pergunta a Côngrio gritou ela. Esse escravo mentiroso! Não vês que ele fez qualquer coisa inconcebível à tua filha e não quer confessar? Em vez disso, inventou esta história ridícula. Como te atreves a suspeitar de mim?

 

Como te atreves a continuar a mentir! disse eu, sentindo dificuldade em não lhe atravessar o pescoço com a lâmina.

 

Se achas que ela está aqui, então descobre-a. Vá, procura até estares satisfeito. A tua filha não está aqui. Nada encontrarás, estou-te a dizer.

 

Subitamente, percebi que ela devia estar a dizer a verdade. Diana fora trazida para aqui, disso eu não tinha qualquer dúvida, mas estaria ainda aqui? Não, Cláudia era demasiado esperta e cautelosa para se arriscar a que Diana fosse encontrada na sua propriedade. Então, onde estaria? Onde poderia ela esconder uma criança ou o corpo de uma criança?

 

Na minha distracção, devo tê-la soltado um pouco, porque subitamente ela libertou-se. Quando tentei agarrá-la, mordeu-me a mão. Eu gritei e Meto e Eco vieram a correr, mas tarde de mais para a apanharem. Ela lançou-se para o meio dos seus escravos, que formaram um círculo à sua volta, erguendo as armas.

 

Eco chamou os seus homens, que vieram a correr.

 

Podemos dominá-los, Papá. Os escravos dela desatam a gritar e a correr à primeira gota de sangue.

 

Se me atacares, eu não serei responsável pelo que se seguir, Gordiano disse Cláudia, arquejando. Queres realmente uma rixa de sangue com os Cláudios?

 

     Basta tu dizeres, Papá! disse Meto, apertando o punhal com tanta força, que os nós dos dedos lhe ficaram brancos.

 

Não, Meto! Derramamento de sangue não! O castigo ficará para mais tarde. Agora, a única coisa que importa é descobrir Diana, e eu acho que sei onde ela está. Eco, fica aqui com os teus homens. Não deixes Cláudia mexer-se até nós regressarmos. Meto, monta o teu cavalo e vem comigo.

 

Cláudia devia conhecer a mina de toda a vida. Devia ter-se lembrado imediatamente dela como esconderijo remoto. Era o que eu pensava quando galopávamos pela Via Cássia. Era o que eu esperava, e o que eu temia.

 

Passámos pelo caminho escondido que Catilina utilizara. Seria demasiadamente lento e eu não tinha razões para me esconder. Em vez disso, tomámos o caminho aberto que entrava nas terras de Gneu, subimos as colinas e atravessámos as matas, passámos pela casa dos cabreiros onde vivera o pobre Fórfex, pela tristonha villa de Gneu, onde os seus cães se agitaram e ladraram para assinalar a nossa passagem.

 

Chegámos ao fim da estrada, prendemos os cavalos e continuámos a pé. Nenhum de nós falava. Os nossos pensamentos estavam muito próximos e não nos atrevíamos a dizer em voz alta aquilo em que estávamos a pensar.

 

O ribeiro no topo da queda de água fluía rápido e frio. A água dava-nos pelos joelhos. Quando cheguei à outra margem, tinha os pés entorpecidos de dor, mas esqueci-me disso rapidamente quando começámos a subir os íngremes ziguezagues, e depois o flanco da montanha.

 

E se ela lá não estivesse? O coração batia-me com demasiada força e eu respirava tão ofegantemente, que não conseguia pensar no que faria a seguir. E se ela lá não estivesse? Certamente teria conseguido sobreviver uma noite, pensei eu. Podia passar sem comer e estaria abrigada do vento e do frio. Mas em que condições a teria Cláudia deixado, e que género de terrores teria ela enfrentado, sozinha na escuridão? E se tivesse saído de lá, se tivesse caído num abismo...

 

Cada passo que eu dava transformava-se num tormento sempre maior, de tal maneira que deixei de conseguir perceber se a angústia que sentia provinha da exaustão ou do temor. Meto corria à minha frente. Por momentos, eu tive vontade de me deixar cair sobre os joelhos, de ficar passivamente à espera, de o deixar descobrir o que havia a descobrir e vir depois dizer-me. Mas parar nesta altura era impossível. Eu prossegui penosamente, amaldiçoando Cláudia, odiando os deuses e murmurando orações à Fortuna.

 

Finalmente, avistei a entrada da mina. Meto desaparecera. Já devia ter trepado para o outro lado do muro que fora construído para impedir a entrada de cabras perdidas e que facilmente manteria prisioneira uma rapariguinha. Eu comecei a correr, embora tivesse a sensação de que os meus joelhos iam explodir. Estás velho e és louco, disse a mim próprio. Voltaste as costas ao mundo, e olha como o mundo se vingou de ti! Tudo aquilo que amas foi levado até à beira do desastre por causa da tua negligência e da tua teimosa recusa em ver as coisas claramente. A tua vaidade sobrepôs-se ao teu discernimento, e agora estás a pagar o preço. Depuseste a tua inteligência como um gladiador depõe as armas; mas um gladiador não tem alternativa se não combater ou morrer, e tu não tens alternativa se não descobrires o teu caminho por entre as decepções deste mundo vicioso ou seres destruído. Que loucura fugires de Roma, tendo em conta que a tua fuga te conduziu a isto. Diana!

 

Cheguei ao muro, com vontade de gritar o seu nome e o de Meto, mas com medo da resposta. Estendi as mãos para o cimo do muro e caí contra ele, demasiado cansado para me içar. Inspirei profundamente e ergui-me para cima do muro. Do outro lado, vi Meto apertando qualquer coisa nos braços. Ele voltou o rosto para mim e eu vi lágrimas brilhando nos seus olhos.

 

Oh, não, Meto gemi eu.

 

Papá, Papá, vieste buscar-nos! Eu sabia que virias! A coisa que Meto apertava nos braços começou a contorcer-se com toda a força, e Diana libertou-se do seu abraço e estendeu os braços para mim. Eu saltei do muro e caí no chão, abraçando-a.

 

Eu bem lhes disse que tu havias de vir, eu bem lhes disse! chorava ela. Eu afastei-a de mim para olhar para ela. Estava suja e tinha a roupa rasgada, mas de resto estava bem. Eu apertei-a a mim e encostei-me ao muro, com o rosto coberto de lágrimas, de tal maneira cansado e aliviado, que pensei que ia dissolver-me em pedra.

 

Eu bem lhes disse, eu bem lhes disse repetia ela, até que eu lhe perguntei de quem estava ela a falar.

 

Dos outros! disse ela.

 

Os outros?

 

Os outros rapazinhos e rapariguinhas. Ao crepúsculo sombrio da mina, ela apontou para uma colecção de crânios cuidadosamente amontoados contra uma parede, os restos de escravos mortos há muito.

 

Não me lembro de os ver amontoados daquela maneira quando estivemos aqui com Catilina; e tu, Meto? disse eu, intrigado.

 

Também não murmurou ele.

 

Fui eu disse Diana. Fui eu que os empilhei.

 

Mas porquê? perguntei eu.

 

Porque eles se sentiam sozinhos, e eu também. Ontem à noite, tive frio, Papá, mas imagina o frio que eles devem sentir, sem a pele.

 

Eu olhei para ela cuidadosamente.

 

O que é que tu achas que eles são, Diana?

 

São os outros rapazinhos e rapariguinhas, claro. Aqueles que o rei malvado trouxe para o Minotauro comer. Olha, ele comeu-os todos e só deixou os ossos! Pobres rapazinhos e rapariguinhas. Quando os escravos de Cláudia me trouxeram para aqui ontem, eu percebi que isto devia ser o Labirinto. Eles atiraram-me por cima do muro e não quiseram ajudar-me a passar outra vez, embora eu tenha gritado com eles e lhes tenha dito que haviam de se arrepender. Achas que eles pensaram que o Minotauro vinha comer-me?

 

Oh, Diana disse eu, apertando-a com toda a força deves ter tido tanto medo!

 

Nem por isso, Papá.

 

Não?

 

Não. Provavelmente Meto tinha ficado assustado, porque teria medo do Minotauro, mas eu não.

 

E porquê, Diana?

 

Porque o Minotauro morreu!

 

Como é que sabias?

 

Porque tu me disseste, Papá. Não te lembras?

 

Sim. Lembro-me sim disse eu, recordando-me de um dia quente de Verão em que Diana me fora chamar por causa de um visitante inesperado que chegara de Roma, e acabáramos por conversar acerca do Minotauro porque Meto tinha andado a meter-lhe medo. Eu disse-te que um herói chamado Teseu tinha morto o Minotauro?

 

Exactamente. E foi por isso que eu não tive medo, só tive frio, e senti-me um pouco sozinha porque as outras crianças, coitadas, não podiam falar comigo. E fome. Papá, tenho tanta fome. Não podes ir buscar qualquer coisa para eu comer? Mas não peças a Côngrio... Côngrio quer envenenar-nos...

 

Meto achava que eu devia trinchar Côngrio em filetes e fazer um banquete com ele. Eu salientei que seria um jantar com demasiada gordura; além disso, ele podia conseguir envenenar-se primeiro, e assim envenenar-nos-ia quando o comêssemos. Betesda achava que devíamos atirá-lo ao poço e vê-lo morrer de fome lentamente, dia após dia. Mas para quê voltar a poluir o poço? Eco, sempre prático, sugeriu que escolhêssemos um inimigo da família e nos oferecêssemos para vender Côngrio a esse indivíduo confiante, sabendo nós como ele era traiçoeiro. Isso era boa ideia, pensei eu, mas quem detestávamos nós assim tanto?

 

Quanto a Cláudia, nenhum castigo parecia suficientemente severo. Foram discutidas numerosas ideias, a maioria fantasias elaboradas que começavam com um rapto a meio da noite e terminavam com visões de requintada crueldade e horror, que rivalizavam com os piores excessos de Sula. Betesda era especialmente criativa na invenção de tormentos, o que me pareceu estranho, dado que os Egípcios são um povo relativamente civilizado e brando, em comparação com os romanos. Mas ela era agora uma verdadeira matrona romana, tão certo como Meto provara ser um soldado romano no campo de batalha de Pistoria. Éramos todos romanos; por isso, pensei eu, por que não recorrer a essa grande instituição romana que é a lei?

 

A sugestão foi recebida sem nenhum entusiasmo. Já uma vez tínhamos derrotado os Cláudios nos tribunais, concedeu Eco, mas isso fora porque tínhamos um testamento do nosso lado e a ajuda de Cícero. Não podíamos estar certos de voltar a vencê-los e, além disso, olha para a indolência com que os tribunais têm tratado a disputa sobre o ribeiro. Os tribunais romanos e a justiça romana tinham-se tornado simples instrumentos com que os homens poderosos se atacavam uns aos outros, mais susceptíveis aos subornos e à intimidação do que às exigências da verdade e da justiça. Tal como nos dias anteriores à República, os homens estavam a ser levados a tomar a justiça nas próprias mãos se queriam ser satisfeitos, que era o que nós teríamos de fazer se quiséssemos que Cláudia sofresse por aquilo que tinha feito.

 

Era necessário, evidentemente, ter em conta os outros Cláudios, que nos cercavam como um exército inimigo, salientei eu. Não me parecia provável que algum deles se mantivesse quietinho se fizéssemos mal a Cláudia, fosse qual fosse a justificação. Eles já nos odiavam suficientemente, o que fariam se houvesse derramamento de sangue Cláudiano? Queríamos passar os próximos anos a matar-nos e a raptar-nos mutuamente? Que género de vida seria essa?

 

Foi bom deixar toda a gente gritar e lançar os braços ao ar e incitar-se mutuamente a inventar tormentos cada vez mais terríveis para os culpados. Depois da luta que tínhamos travado, precisávamos de partilhar o alívio. Isso também me dava algum tempo porque, depois de termos encontrado Diana, todos eles se mostraram ansiosos por tomar imediatamente medidas drásticas. Mas eu queria deixar passar aquela noite e pelo menos mais um dia e uma noite antes de tomarmos qualquer decisão. Enquanto a nossa irritação arrefecia e nos permitia pensar com mais clareza, Cláudia poderia passar um par de noites sem dormir, perguntando a si própria o que estaríamos nós a tramar.

 

Na segunda manhã depois de termos salvo Diana, tendo ouvido todos os argumentos e as exigências de acção, eu exerci a minha prerrogativa de chefe da família e anunciei que trataria do caso à minha maneira. As minhas decisões seriam definitivas e não estariam sujeitas a apelo. Tendo deixado isto claro, retirei-me para a biblioteca e escrevi uma breve nota, depois mandei um escravo entregar a mensagem, dizendo-lhe que tivesse o cuidado de se aproximar da casa de Cláudia com as mãos ao alto e anunciando que ia armado apenas com uma carta:

 

Cláudia

 

Há algumas questões que temos de discutir em privado e em terreno neutro. Vem ter comigo ao meio-dia no nosso ponto habitual de encontro na cumeeira. Eu irei sozinho e desarmado e juro pela memória do meu pai que não te farei mal. A tua presença indicará que te submetes às mesmas condições. Nada temos a ganhar com mais azedume e julgo que poderemos chegar a um acordo. É essa a sincera esperança do teu vizinho

 

Gordiano

 

O dia estava encoberto, e não havia vento na cumeeira, como eu temi que houvesse. De um modo geral, era um dia suave para Januarius, um mês que já assistira a perturbações suficientes para o ano inteiro.

 

Sentei-me num cepo e contemplei a quinta; era um cenário tão plácido, que era difícil acreditar quanta traição e perversidade podiam esconder-se entre as inocentes vinhas e o ribeiro frio e gorgolejante. O Sol ia baixo e parecia imóvel enquanto eu esperava. Esperei muito tempo, tanto que pensei que a minha convidada recusara o convite. Depois ouvi um sussurro por entre os ramos e Cláudia emergiu dos arbustos.

 

Tinha o seu aspecto habitual, com os dedos grossos, as faces coradas, o nariz redondo e as farripas de cabelo cor de laranja descuidadamente presas no alto da cabeça. Vestia uma túnica comprida de lã e vinha embrulhada numa pesada capa. Aproximou-se sem uma palavra, sentou-se num cepo ali ao pé e juntou-se a mim na contemplação da paisagem. Eu olhei de frente para ela, mas ela não me devolveu o olhar. Reparei nos golpes horizontais que tinha no pescoço, nos sítios onde eu carregara excessivamente na lâmina. De vez em quando, erguia a mão para tocar nessas marcas.

 

Momentos depois, disse:

 

Por onde queres começar?

 

Pelo princípio. Antes de passarmos a outra coisa, quero que me digas a verdade: tiveste alguma coisa a ver com a morte do teu primo Lúcio?

 

Isto fê-la voltar a cabeça e olhar-me nos olhos, mas apenas por momentos.

 

Como é que podes ter pensado... Eu ergui a mão.

 

Poupa-me os protestos de indignação, Cláudia. A pergunta requer apenas uma resposta simples: sim ou não.

 

Se eu assassinei Lúcio? Que pergunta! Não, claro que não. Ele morreu no Fórum, com centenas de pessoas à volta, agarrado ao peito por causa da dor que sentia. Todos os dias morrem homens dessa maneira. É uma morte perfeitamente natural.

 

Não fizeste nada para ajudar a natureza? Um pouco de veneno...

 

Gordiano, não!

 

Eu estudei-lhe o perfil enquanto ela olhava para baixo, para a quinta.

 

Acredito em ti. Não tinha nenhuma razão especial para pensar que tivesses assassinado o pobre Lúcio, mas queria ter a certeza. Ele era meu amigo, como sabes. Seria importante para mim se alguém tivesse causado a sua morte.

 

Ambos contemplámos a paisagem por momentos, em silêncio. Era claro que eu faria perguntas e que ela responderia. Eu não tinha pressa.

 

Quando eu te emprestei Côngrio para te ajudar a preparar para a tua reunião familiar disse eu por fim foi nessa altura que o subornaste, não foi?

 

Ela encolheu os ombros.

 

Não foi difícil. Côngrio não gosta de ti e despreza a tua mulher. Alguns escravos não suportam trabalhar para uma ex-escrava. Côngrio detestava, por uma simples questão de princípio. O talento, que ele tem em abundância, como certamente concordarás, promove o orgulho. Toda a sua vida ele trabalhou na casa respeitável de um senhor patrício, e depois subitamente deu por si propriedade de... bem, Gordiano, a tua ascendência não é propriamente digna de menção, pois não?

 

Preferia que tu não mencionasses os meus antepassados, isso é verdade. Portanto, disseste a Côngrio que, se ele aderisse aos teus planos, tu poderias resolver a situação e passar a ser a sua nova senhora. Ele concordou em tornar-se o teu agente dentro da minha casa.

 

Foi mais ou menos isso.

 

Queres acreditar que, durante algum tempo, suspeitei de que era Arato quem me traía?

 

Arato? disse Cláudia. Não devias. Lúcio sempre me disse que ele era o escravo mais constante e leal que ele possuíra. Nenhum homem poderia esperar ter melhor encarregado para a gestão da sua quinta.

 

Fui-me apercebendo gradualmente disso. Mas voltemos a Côngrio: quando o primeiro corpo sem cabeça apareceu no meu estábulo, foi Côngrio quem o pôs lá, não foi?

 

Por que me perguntas? Ele já deve ter-te contado a história.

 

Contou-me uma parte da história. Outras partes fui eu descobrindo, mas há coisas que só tu sabes, Cláudia. Muito bem, tudo começou no dia do primeiro fardo de feno com míldio. Houve uma série de fogueiras nas minhas terras e havia muito fumo no ar. Um dos teus escravos apareceu, ostensivamente para me trazer um presente de figos da tua quinta, em troca dos quais eu te enviei uns ovos frescos. Pensei que o homem tinha vindo ver o que era todo aquele fumo; na realidade, ele viera conferenciar com Côngrio e fazer planos para a entrega do corpo.

 

Lembro-me de que ele ficou muito tempo na cozinha; pensei que estava apenas a provar o leite-creme de Côngrio.

 

”No dia seguinte, chegou a carroça cheia de provisões. Côngrio disse-me que vindo de Roma e que ele tivera de passar por cima de Arato para mandar vir as coisas de que precisava. Isso fez-me ficar irritado com Arato e distraiu-me de Côngrio. Apesar disso, perguntei a mim próprio por que teria ele insistido em descarregar pessoalmente a carroça. Mas depois percebi: havia um corpo morto no meio dos potes e das panelas. A carroça vinha da tua casa e não de Roma. Côngrio descarregou o corpo, conforme as instruções que recebera do teu agente no dia anterior. Conseguiu escondê-lo na cozinha e mais tarde pô-lo no estábulo. Não era de espantar que estivesse a suar e a tremer; eu limitei-me a pensar que estivesse ofegante e irritado com Arato. Abri as mãos sobre o regaço. Por isso, já sei como é que o corpo cá chegou e quem ajudou. Mas quem era Nemo?

 

Nemo?

 

Foi o nome que eu dei ao cadáver sem cabeça, dado que ele não tinha nome. A partir do corpo, era difícil dizer se era livre ou escravo. Se era um escravo, não se dedicava a trabalhos pesados nem trabalhava ao ar livre. Nemo era o teu cozinheiro, não era?

 

Cláudia olhou para mim de esguelha.

 

Como é que sabias? Eu nunca o disse a Côngrio.

 

Foste tu própria que me disseste, mas eu não prestei atenção. Lembras-te do recado que mandaste por Côngrio, agradecendo-me por to ter emprestado? Tirei o pedaço de pergaminho do interior da minha túnica. Guardei-o, não sei bem porquê, talvez por teres sido tão efusiva nos teus agradecimentos que lhe chamaste ”uma nota promissória”, que eu poderia utilizar para te pedir qualquer favor no futuro. Foi uma atitude sentimental da minha parte dar-lhe importância, confesso, mas senti-me comovido pela tua gratidão. Nessa nota, também me dizias outra coisa. Deixa-me ler-te: ”Saudações, vizinho, e a minha gratidão pelo empréstimo dos teus escravos.” Et cetera, et cetera, ”em especial o teu chefe de cozinha, Côngrio, que nada perdeu da sua destreza desde os dias em que servia o meu primo Lúcio. Sinto-me duplamente grata porque o meu cozinheiro adoeceu no meio dos preparativos, pelo que Côngrio acabou por ser, não apenas uma grande ajuda, mas totalmente essencial”. Quer dizer que o teu cozinheiro principal estava doente. Mais tarde, morreu.

 

Como é que sabes?

 

Foste tu que me disseste! Foi aqui na cumeeira, do lado leste. Estávamos todos a observar a Via Cássia, tu, Meto e eu, e tu serviste-nos bolos de mel. ”Feitos pelo meu novo cozinheiro esta manhã”, disseste tu. ”Ai de mim, não é Côngrio, mas tem mão para os doces.” O teu novo cozinheiro, porque o antigo, aquele que estava doente, tinha morrido e tu substituíste-o. E, porque odeias desperdiçar o que quer que seja nem sequer suportaste desperdiçar um bocado de um bolo de mel! até descobriste uma utilização para o corpo do teu cozinheiro, pensando que ele poderia ser um instrumento para me assustar e correr comigo da quinta, ou pelo menos um começo. Quer dizer que Nemo não foi assassinado, pois não? Morreu de doença e, depois de ter morrido, tu mandaste-lhe cortar a cabeça para que ninguém pudesse identificá-lo quando ele aparecesse na minha quinta. Um dos escravos da cozinha que eu te emprestei podia tê-lo visto, e portanto poderia reconhecer o rosto do morto.

 

Compreendes tudo, Gordiano. Mas o aparecimento do corpo não te assustou mesmo nada?

 

Assustou-me imenso, mas na altura eu tinha razões para pensar que sabia quem o plantara, e por quê, e isso nada tinha a ver com os meus vizinhos ou com o facto de eu ficar na quinta. Ocultei o incidente aos escravos, incluindo Côngrio. Foi muito irritante ver que Côngrio nada tinha a relatar ao teu homem quando ele cá voltou?

 

Bastante.

 

Entretanto, eu tinha todas as razões para pensar que podia confiar em ti, porque os escravos da cozinha que te emprestei me fizeram relatos entusiásticos da forma como tu me defendeste diante dos teus primos. Foste tu que lançaste no meu espírito a ideia de que eu podia usar esses escravos como espiões na tua reunião de família. Disseste uma piada acerca da possibilidade de eles envenenarem os teus primos; bem, eu nunca faria isso, mas disse aos meus escravos que se mantivessem atentos. E por isso eles ouviram-te ”por acaso” defender-me diante de Gneu, de Mânio e de Públio. Mas tu querias que eles te ouvissem, não querias? Querias que eu pensasse que eras minha aliada e que, por isso, quando essas coisas horríveis começassem a acontecer na minha quinta, eu suspeitasse fosse de quem fosse menos de ti. E, se alguma vez eu me dispusesse a vender a quinta, levado pelo desespero... bem, voltar-me-ia para a única vizinha que me defendera, claro.

 

Cláudia mexeu-se no assento duro.

 

Era mais ou menos isso disse ela suavemente.

 

O primeiro corpo sem cabeça apareceu a meio dejunius. Depois, durante algum tempo, não aconteceu nada. Tendo entendido mal o sinal e a sua origem, eu pensei que isso se devia ao facto de eu ter acedido a determinadas exigências que me tinham sido feitas. Na realidade, nada aconteceu nesses dias porque tu estiveste ausente. Partiste para Roma para supervisionar os trabalhos na casa do Palatino que herdaras de Lúcio, por isso não podias provocar estragos aqui.

 

”O segundo corpo só apareceu depois de meados de Quinctilis, quando regressámos de Roma, a seguir ao aniversário de Meto e às eleições. Tinhas planeado ficar em Roma durante todo esse tempo, mas voltaste mais cedo, antes de nós; disseste-me na festa de Meto que estavas de partida nesse mesmo dia. Também fizeste o possível por que eu conhecesse o teu encantador primo Mânio, com resultados previsivelmente muito desagradáveis, que uma vez mais te retrataram como amiga e aliada. Voltaste mais cedo, por isso estavas cá quando o teu primo Gneu matou o pobre Fórfex num acesso de raiva. Talvez não tivesses intenção de plantar um segundo corpo nas minhas terras, mas quando a oportunidade se apresentou, como se fosse um presente dos deuses, uma vez mais não conseguiste suportar o desperdício. Mandaste roubar o corpo do local onde os escravos de Gneu o tinham enterrado, junto da margem rochosa do ribeiro. Uma vez mais, o corpo foi entregue pelo teu escravo, quando veio visitar Côngrio, provavelmente num carrinho de mão. O homem tinha relações tão regulares com Côngrio, trocando com ele mantimentos de vez em quando, que ninguém reparou na sua presença.

 

”Sabias que eu conhecera Fórfex, por isso foi novamente necessário cortar-lhe a cabeça, para esconder a identidade do cadáver. Também lhe devias ter retirado as mãos, mas como poderias adivinhar que Meto se recordaria daquela marca de nascença em forma de triângulo que Fórfex tinha nas costas da mão esquerda? Isso levou-me até Gneu. Ele admitiu ter morto Fórfex, coisa a que tinha direito como senhor do escravo, mas negou ter atirado o corpo para dentro do meu poço. Não parecia estar informado de nada.

 

E não estava reconheceu Cláudia.

 

Foi o que eu pensei. Uma vez mais, eu tinha razões para suspeitar de outra pessoa, mas a relação com Gneu deixou-me hesitante e confuso.

 

Continuei a dedicar-me à gestão da quinta, apesar do míldio no feno, apesar da deliberada poluição do meu poço. Continuei a construir o moinho de água...

 

Essa engenhoca absurda! lançou Cláudia.

 

Sim, percebo agora como deve ter sido frustrante para ti, sempre que vinhas aqui à cumeeira para observar a minha quinta, cheia de ganância por ela, imaginando que poderia ser tua, desprezando-me por ela ser minha, fazendo o que podias, à tua maneira cobarde, para me expulsares, e entretanto veres a construção do moinho prosseguir de dia para dia, como símbolo tangível da minha firme intenção de ficar e de me apossar desta propriedade. Que ódio deves ter sentido quando eu te convidei para ires vê-lo, depois de terminado! Eu percebi claramente a tua repugnância, mas pensei que tinha a ver apenas com o moinho propriamente dito. Tu sabes esconder os teus sentimentos.

 

Uma mulher aprende a esconder os seus sentimentos para conseguir o que quer quando não tem um pai nem um marido que lho dêem nem tem filhos que a defendam! disse Cláudia

 

A amargura que ela tinha na voz era surpreendente, e de repente eu vi uma mulher de olhos duros, tão profundamente diferente da matrona alegre e bem-disposta que eu conhecia, que quase fiquei assustado, como quando uma máscara bonita cai e revela um rosto hediondo por trás. Durante duas noites de insónia, eu sentira-me espantado com o enigma da responsabilidade de Cláudia por todas aquelas atrocidades. Agora via outra mulher por trás daquela que pensava conhecer, que procedia por meio da astúcia e da fraude, e escondia a sua raiva e os seus apetites. De que outra maneira poderia uma mulher ter obtido o que queria numa família como aquela e num mundo como aquele? Pela primeira vez, senti a realidade da culpa de Cláudia.

 

Voltei a ficar confuso quando Gneu se ofereceu para me comprar a propriedade disse eu embora perceba agora que foste tu que o convenceste a isso. Ele chegou mesmo a dizê-lo, de uma forma oblíqua, quando mencionou que tu lhe contaras que eu estava a ter um Inverno difícil, mas eu pensei que isso não passava de coscuvilhices entre primos. Na verdade, tu usaste-o para me experimentar antes de dares o passo seguinte, para veres se eu já estava farto de cadáveres sem cabeça e de águas envenenadas e da dureza do Inverno. Depois da sua grosseira oferta de me aliviar da quinta, voltei a suspeitar de Gneu, especialmente porque, logo no dia seguinte àquele em que o expulsei de minha casa, apareceu um terceiro cadáver por trás do meu estábulo. Eu estava a preparar-me para partir de viagem; não podia de maneira nenhuma ficar para resolver o assunto. Talvez tenha sido melhor assim pois, de outra maneira, poderia ter atacado Gneu sem ter razões para isso.

 

”O terceiro cadáver sem cabeça era outro dos teus escravos, não era? Não mataste Nemo, que morreu de doença. Nem mataste Fórfex; isso foi Gneu. Mas assassinaste este escravo, não é verdade, Cláudia?

 

Por que dizes isso? disse ela, olhando-me de esguelha.

 

Porque precisavas de testar o teu veneno em alguém. Já o tinhas testado uma vez, num pobre escravo idoso chamado Demento, que me pertencia. Ele vira qualquer coisa na noite em que Côngrio lançou o corpo de Fórfex ao poço. Tinha uma memória vaga e confusa, mas para um escravo como Côngrio, culpado de conspirar contra o seu senhor, até o velho Demento deve ter parecido uma ameaça terrível. Côngrio tinha de se livrar dele de forma simples e discreta. Tu forneceste-lhe o veneno... estricno, a mortal sombra nocturna. Isso explica os lábios azuis, os vómitos e a fala arrastada que afligiram Demento antes de ele morrer. Eu sempre suspeitei de que ele recebera um empurrão. Agora tenho a certeza, porque Côngrio confessou tudo.

 

”Ainda assim, um veneno capaz de matar um escravo velho e trémulo poderia não resultar num homem forte de quarenta e sete anos, por isso experimentaste-o num dos teus infelizes escravos, não foi, Cláudia? Como é que escolheste o desgraçado? Andava a dar sinais de preguiça, ou estava enfraquecido nas articulações, ou tinha-te ofendido de alguma maneira? Ou era simplesmente parecido comigo, mais ou menos do mesmo tamanho e da mesma idade que eu, de forma a que pudesses perceber o que seria uma boa dosagem para dares cabo de mim?

 

Ela olhou fixamente para o horizonte, mas não respondeu.

 

Infeliz escravo, que tem uma tal senhora! Depois de o teres morto com o veneno... bem, mais valia não desperdiçar o cadáver, não era? Enviemos outro sinal a Gordiano! Uma advertência relativamente ao futuro! Uma vez mais, cortaste-lhe a cabeça para evitar a possibilidade de ele ser reconhecido, e plantaste-o aqui via Côngrio. Tal como Nemo, ele foi descoberto pela minha filha. Não sentes nada ao pensares que provocaste um choque como esse a uma criança? Suponho que não, conhecendo as monstruosidades que te mostraste capaz de cometer.

 

Cláudia ergueu-se abruptamente.

 

Não vim aqui para ser julgada, nem por ti nem por ninguém. A tua mensagem dizia que querias chegar a uma resolução e indicava que tinhas uma proposta a fazer-me. Despacha-te a fazê-la e poupa-me as acusações e os gestos de mão.

 

Senta-te, Cláudia. Fraca assassina é aquela que não é capaz de ouvir recitar os seus crimes.

 

Envenenar um escravo não é crime!

 

Ah, mas raptar uma criança livre é com toda a certeza um crime.

 

Chega! disse ela, e voltou-se para partir. Eu agarrei-a pelos ombros e obriguei-a a sentar-se no cepo.

 

Juraste que não me fazias mal! guinchou ela, e tirou um punhal comprido e fino. Eu arranquei-lho da mão e ela cobriu o rosto. Eu olhei à volta, preocupado, mas não vi ninguém nos arbustos. Ela viera armada, mas sozinha.

 

Sim, Cláudia, jurei e estava a falar a sério, embora nem deuses nem homens objectassem a que eu te estrangulasse aqui mesmo! Podes abandonar esses ares altivos; não te ficam bem. Vais ouvir tudo aquilo que eu tiver a dizer, e chegaremos juntos à verdade. Não poderemos prosseguir antes disso, portanto não negues que tencionavas envenenar-me. Côngrio confessou! Começaste a ficar impaciente. Os meses passavam, as intimidações não tinham conseguido afastar-me e tu sentiste-te finalmente disposta a recorrer ao assassínio de um cidadão livre... ah, mas que não passava de um plebeu novo-rico! Achaste que, se eu morresse, terias mais facilidade em convencer Betesda e Eco a venderem-te a quinta? Ou também estavas disposta a envenená-los?

 

”Querias que Côngrio me envenenasse. O teu representante atormentava-o, mas Côngrio resistia. Isso era demasiado para ele, era muito perigoso. Ele envenenara Demento para se proteger, mas envenenar o seu senhor era um pecado demasiado grave. E depois, o desastre... Côngrio e o teu agente foram indiscretos e a sua conversa foi ouvida por uma criança. Conheces o resto da história. Aquilo que eu não sei era em que estavas tu a pensar quando mandaste os teus homens abandonar Diana na mina. Querias que eles a estrangulassem e deixassem o corpo ali? Querias que a abandonassem viva e a deixassem morrer à fome, lentamente? Ou tê-la-ias salvo a tempo e vendido como escrava, enviando-a para uma cidade distante num navio saído de Óstia, enquanto os seus pais choravam a sua morte?

 

Os olhos de Cláudia chispavam. Eu aproximei-me, impedindo-a de fugir.

 

Disse que não te faria mal, Cláudia, e estava a falar a sério, embora neste momento lamente ter feito essa promessa. Devias ser castigada, Cláudia... pela tua duplicidade, pela tua arrogância, pelo assassínio, por raptares a minha filha e deixares a minha mulher louca de preocupação. Mas onde é que isso ia acabar? Os teus primos têm demasiado mau génio e demasiado tempo livre; eu nunca mais voltaria a sentir-me a salvo se exercesse a minha justa vingança sobre ti. Se pudéssemos confiar nos deuses para restabelecerem o equilíbrio e se vingarem de criaturas como tu! Mas eu já vivi tempo suficiente para confiar na justiça, seja ela humana ou divina. Fazemos a nossa própria justiça, à nossa maneira, por isso tu e eu vamos resolver as coisas fazendo um contrato, aqui e agora.

 

Um contrato?

 

Um acordo, Cláudia, a partir do qual prosseguiremos com as nossas vidas sem olharmos para trás. Os meus filhos não ficarão satisfeitos. Eles acham que tu deves ser destruída como um cão selvagem. E Betesda também não ficará feliz. Ela gostaria de te arrancar os olhos e de tos obrigar a engolir. Mas aceitarão a minha decisão. E a minha decisão é que fiques com esta quinta.

 

Ela olhou para mim com uma expressão de tão grande confusão, que eu pensei que não me tinha ouvido. Depois olhou para a quinta e eu vi um brilho nos seus olhos.

 

Isso é algum truque, Gordiano?

 

Não é um truque, é um contrato. Tu ficas com a quinta, como querias. Vamos a Roma, ao Fórum, àquele sítio onde se guardam os registos, e eu assino a escritura passando-a para o teu nome. Em troca...

 

Ela voltou a cabeça e olhou atentamente para mim.

 

Em troca, dás-me a casa do Palatino que herdaste de Lúcio, com tudo o que ela tem.

 

Nem pensar!

 

Não? Para que queres tu aquela casa? Ela não significa nada para ti.

 

É   uma excelente casa, que vale uma fortuna considerável!

 

Sim, provavelmente mais do que a minha quinta, tendo em conta a estatuária que Lúcio coleccionou e os mármores finos que mandou instalar, e a forma elegante como está mobilada e a excelente localização no Palatino. É de facto uma casa bastante valiosa. Estou certo de que achas que um zé-ninguém como eu não merece ir viver para uma casa como aquela, como não merecia herdar a quinta de Lúcio, mas o facto é que Lúcio queria que eu recebesse um legado seu, e assim será.

 

Ele queria que fosse esta quinta, porque achava que a quinta me agradaria. E agradou-me, mas também me trouxe muitos sofrimentos.

 

”Tu, por teu lado, deves desejar extraordinariamente a quinta, tanto que intrigaste desta maneira persistente para ma arrancares. Ficarás com uma propriedade com o dobro do tamanho e terás terras de ambos os lados da cumeeira. Serás a inveja dos teus primos, embora, conhecendo os teus primos como conheço, eu não gostasse que eles me invejassem. Por isso, estás a ver, é uma troca equitativa. Consegues pensar noutra solução para o impasse a que chegámos?

 

Ela estava sentada, olhando fixamente para a quinta, e começou a tremer.

 

Condenas-me por ter intrigado contra ti, Gordiano, mas como é que podes saber o que esta terra significa para mim? Desde pequenina que a quero. Costumava sonhar durante horas que era minha. Mas a terra ficou para Lúcio. Cada ano que passava sem ele se casar nem ter filhos, eu alegrava-me, porque havia sempre a possibilidade de que ele ma deixasse, se eu lhe sobrevivesse. Paciência, paciência! Mas depois Gneu começou a queixar-se acerca da sua parte nos conselhos de família, e ficou tacitamente decidido que ele seria colocado em primeiro lugar nos nossos testamentos. Apesar disso, ainda havia uma possibilidade de que, com o tempo, a terra me viesse parar às mãos. Paciência e esperança! Depois, quando Lúcio morreu e deixou a propriedade a um forasteiro da cidade... oh, não imaginas o choque que foi! Tinha-me escapado das mãos para sempre! Mas agora...

 

Quer dizer que aceitas o contrato. Ela inspirou profundamente.

 

Dizes que queres que eu deixe a casa do Palatino intacta, com tudo o que ela tem. Farás o mesmo com a quinta?

 

Com que facilidade ela passava da nostalgia para uma negociação dura, pensei eu.

 

Naturalmente. Para que quero eu apetrechos rurais na cidade?

 

E os escravos? Também estão incluídos?

 

À excepção dos escravos domésticos que eu trouxe comigo. Sim, também ficas com os escravos dos campos.

 

Incluindo Arato?

 

Odiava deixá-lo nas mãos de uma tal senhora! Mas o que faria Arato sem a quinta que geria há tantos anos?

 

Sim, Arato também fica.

 

E Côngrio?

 

Eu olhei para o céu sem nuvens.

 

Pela lei, eu devia matá-lo disse eu suavemente.

 

Ninguém poderia censurar-te disse Cláudia pensativamente, estudando as cutículas. Embora eu saiba que terias dificuldade em o matar. Vai contra a tua natureza.

 

Não teria de o fazer pessoalmente. A traição de Côngrio foi inconcebível... conspirou contra o seu senhor, raptou a filha do seu senhor. Se eu publicitasse os seus crimes, tenho a certeza de que conseguiria reunir um grande número de cidadãos que não se importariam de contribuir para o apedrejamento de um escravo desses até à morte, como exemplo para outros. Mas, claro, isso implicaria igualmente publicitar o teu envolvimento.

 

Cláudia mordeu uma das cutículas, pouco à vontade.

 

Também podia vendê-lo, apenas para me ver livre dele disse eu. Um cozinheiro com aquele talento proporcionar-me-ia uma bela soma. Mas como poderia eu soltar aquela víbora na casa de outro homem sem o avisar, e que homem compraria um tal escravo se conhecesse a verdade? Não, pensei bem nisso a noite passada, enquanto decidia a minha proposta. Côngrio ficará na quinta, quer tu queiras, quer não.

 

Os seus olhos iluminaram-se. Poderia ela voltar a comer os cozinhados de Côngrio, conhecendo os actos de traição de que ele era capaz? Então que ficasse com ele! As víboras que fizessem ninho juntas!

 

Aceitas a minha oferta, Cláudia?

 

Ela inspirou profundamente, depois expirou.

 

Aceito.

 

Óptimo. Então olha a quinta pela última vez e volta para tua casa. A propriedade ainda não te pertence, e até que isso aconteça quero-te longe de mim e da minha família, a ti e aos teus primos. Deixaremos os nossos advogados resolverem o assunto. Nunca mais quero ver a tua cara.

 

Ela ergueu-se, contemplou lentamente a paisagem, depois voltou-se e começou a afastar-se mas, tendo dado alguns passos, parou e voltou-se novamente para mim, embora não o suficiente para que eu lhe visse o   rosto.

 

Gordiano, acreditas nos deuses? Acreditas que a Fortuna decreta se prosperamos ou sofremos, e que as Parcas determinam a hora da nossa morte?

 

O que queres dizer, Cláudia?

 

Quando eu era jovem, ainda mal tinha idade para isso, tive um filho. Não interessa de quem, nem como é que aconteceu. O meu pai ficou furioso. Disse que ninguém podia saber, por isso escondeu-me e, quando a criança nasceu, ele tirou-ma pessoalmente e foi abandoná-la num sítio deserto e escondido, no monte Argênteo. Eu gritei e chorei, porque era jovem e estava a sofrer, e não percebia bem o que se passava. Disse-lhe que ele tinha morto o meu filho, mas ele respondeu-me que se limitara a expô-lo aos deuses e que se ele morresse era porque essa era a sua vontade.

 

”Não vou pedir desculpa por nada daquilo que fiz para conseguir a coisa que mais quero no mundo. As minhas desculpas não teriam qualquer significado para ti, Gordiano, e para mim também não. Mas quero que saibas que eu nunca teria morto a tua filha. Quando aquele louco do Côngrio ma mandou, o que havia eu de fazer? Decidi mandá-la para a montanha, para dentro da mina.

 

Onde ela poderia ter caído e encontrado a morte! disse eu. Ou ter morrido à fome, ou de frio.

 

Sim, mas nenhum desses fins teria sido obra minha. Não percebes? Deixei as coisas nas mãos dos deuses. E o resultado foi este. A tua filha foi salva e tu ficarás com uma excelente casa em Roma e eu ficarei com a quinta. Afinal, o que eu fiz foi bem-feito.

 

Cláudia disse eu, inspirando profundamente e apertando os punhos acho que é melhor desapareceres daqui muito depressa, senão eu quebro o meu juramento, e com ele o teu pescoço!

 

Papá, está um homem à porta para te ver! disse Diana sem fôlego, por ter vindo a correr.

 

Eu poisei o rolo de pergaminho que estava a ler.

 

Diana, quantas vezes é que eu tenho de te dizer que nós temos um escravo para atender à porta? Não quero que sejas tu a fazer isso. Aqui na cidade...

 

Porquê?

 

Eu suspirei. Pelo menos, a má experiência que tivera com Côngrio não a tornara receosa. Bocejei, estendi os braços acima da cabeça e olhei para a estátua de Minerva colocada na outra extremidade do jardim. Era uma estátua de bronze, mas estava pintada de forma tão realista que eu muitas vezes pensava que a via respirar. Era a única mulher desta casa que não me dava respostas embora, tal como as outras, também não parecesse ouvir-me. Lúcio devia ter pago uma grande soma por ela.

 

Além disso, Papá, reconheci o homem. Ele diz que é nosso vizinho.

 

Grande Júpiter, mas não é certamente um dos nossos antigos vizinhos da quinta. Imaginei um dos Cláudios à porta de minha casa e senti um tremor de alarme. Levantei-me da cadeira e atravessei o jardim com Diana colada a mim.

 

O homem que estava à porta eram afinal dois homens, acompanhados por uma comitiva de escravos. Aquele que Diana reconhecera era Marco Célio. Calculei mentalmente os meses que tinham passado e concluí que fazia quase exactamente um ano que ele fora à quinta solicitar-me que pagasse a minha dívida para com Cícero. Não sei como é que Diana o reconhecera, porque Célio já não tinha barba e tinha um corte de cabelo vulgar; este Verão já ninguém usava a moda que Catilina e o seu círculo tinham iniciado em Roma no ano anterior.

 

O cidadão que estava ao lado dele era Cícero. O antigo cônsul estava um pouco mais gordo desde a última vez em que eu o vira atravessar o Fórum depois de ter morto os conspiradores.

 

Estás a ver disse Diana apontando para Célio bem te disse que o conhecia.

 

Cidadãos, desculpem a falta de maneiras da minha filha.

 

Que disparate disse Cícero. Nunca fui recebido por uma pessoa tão encantadora. Podemos entrar, Gordiano?

 

Enquanto as comitivas ficavam lá fora, Cícero e Célio seguiram-me até ao jardim. Um escravo trouxe taças e uma garrafa de barro e, enquanto bebíamos o vinho, eu observei os dois homens avaliando o que os rodeava. O olhar de Cícero deteve-se na estátua de Minerva. Eu sabia que ele também tinha uma estátua da deusa em sua casa, mas suspeitava de que a minha era consideravelmente mais valiosa. Sorri ao pensar nisso.

 

A tua nova casa é bastante impressionante disse Cícero.

 

Bastante repetiu Célio.

 

Obrigado.

 

Quer dizer que desististe da quinta disse Cícero. Depois de eu me ter esforçado tanto para que ficasses com ela.

 

O teu esforço não foi desperdiçado, Cícero. A quinta transformou-se nesta casa, como a lagarta se transforma na borboleta.

 

Tens de me explicar isso um dia destes disse Cícero. Entretanto, bem-vindo à cidade. Não percebo como pudeste pensar que aguentarias deixá-la. Agora somos vizinhos, imagina. A minha casa é mesmo aqui ao pé.

 

Sim, eu sei. Da varanda do meu quarto, no andar de cima, tenho uma vista esplêndida de tua casa, com o Capitólio por trás.

 

E eu também sou teu vizinho observou Célio. Acabo de arrendar um apartamento num edifício ao virar da esquina. A renda é exorbitante, mas eu recebi uns dinheiros há pouco tempo.

 

A sério? disse eu, achando que seria pouco delicado perguntar de onde lhe viera o dinheiro.

 

Que belo jardim disse Cícero. E que linda estátua da deusa. Se alguma vez quiseres desfazer-te dela, estou certo de que poderei oferecer-te...

 

Não me parece, Cícero. Tal como esta casa, chegou-me às mãos vinda de um amigo muito querido, já falecido.

 

Percebo, claro. Ele bebeu um golo do vinho. Mas não viemos aqui apenas para admirar a tua sorte, Gordiano. Tenho um pequeno favor a pedir-te.

 

Tens? disse eu, sentindo um arrepio, apesar do Sol quente de Verão.

 

Tenho. Ele parecia vagamente incomodado. Ah, mas primeiro, pergunto a mim próprio se as instalações privadas serão tão impressionantes como as públicas.

 

Tens uma privada ao fundo desse corredor disse eu. Cícero pediu licença.

 

Célio inclinou-se para diante.

 

Dispepsia disse ele confidencialmente. E soltura dos intestinos. Tem piorado no último ano. Sabes uma coisa, às vezes pergunto a mim próprio como é que Cícero consegue terminar um discurso no Senado.

 

Obrigado por me fazeres essa confidência, Marco Célio. Ele riu-se.

 

Na verdade, as suas digestões melhoraram consideravelmente durante algum tempo depois de o Senado ter aprovado aquela lei na Primavera.

 

Que lei?

 

Aquela que perdoou a todos os implicados na condenação à morte dos conspiradores.

 

Ah, sim, eu ainda não tinha regressado à cidade quando isso aconteceu. Mas o meu filho escreveu-me a contar os pormenores: ”A todos os membros de Senado e a todos os magistrados, testemunhas, informadores e outros agentes envolvidos em quaisquer violações da lei que possam ter sido cometidas relativamente à execução sem julgamento de Públio Corrélio, Lêntulo Sura, Gaio Cornélio, Cetego, et allii, o Senado de Roma concede permanente imunidade contra quaisquer perseguições.” Por outras palavras, o Senado libertou toda a gente sem excepção.

 

Ainda bem para Cícero. Durante algum tempo, ele teve um certo receio de ser levado a tribunal por assassínio.

 

E por que não? As execuções foram completamente ilegais.

 

Por favor, Gordiano, não digas isso quando Cícero voltar! Ou pelo menos espera que eu me vá embora.

 

Vais-te já embora?

 

Não posso demorar-me. Tenho de ir encontrar-me com um homem na Rua dos Tecelões para comprar umas mantas para o meu apartamento novo. Ele usa uma tinta nova que mais ninguém conhece e que reproduz exactamente a cor dos olhos de uma certa viúva que eu ando a tentar impressionar.

 

Sempre tiveste um gosto tão refinado, Marco Célio...

 

Obrigado.

 

... que eu fico confuso com a tua escolha de lealdades. Conhecendo-os ambos tão bem como tu deves tê-los conhecido, e tendo vacilado entre ambos, como é que acabaste por preferir Cícero a Catilina?

 

Gordiano, francamente! Essa pergunta é uma prova da tua própria falta de gosto.

 

Por impugnar o teu idealismo de juventude?

 

Não, por impugnar o meu bom senso. Por que haveria eu de preferir estar do lado do perdedor num conflito como este? Oh, sim, percebo o que queres dizer acerca de Catilina e de Cícero. Mas por vezes, Gordiano, a conveniência supera o bom gosto. Ele bebeu um golo de vinho. Vigiando a porta por onde Cícero saíra, inclinou-se para diante, falando em tom confidencial. Mas, se queres saber a verdade, a verdade verdadeira...

 

Por oposição à verdade falsa?

 

Exactamente. O facto é que, ao longo do último ano, eu não estive ao serviço de Catilina nem de Cícero, embora ambos tenham acreditado que eu lhes era fiel.

 

De nenhum deles? Então estiveste ao serviço de quem?

 

Do meu antigo mentor, Crasso. Quando viu a minha expressão de descrença, Célio encolheu os ombros. Bem, ele precisava de alguém que vigiasse Cícero e Catilina e que lhe relatasse o que quer que pudesse interessar-lhe; eu desempenhei ambas as tarefas. Achas que Cícero é o único homem que tem espiões em Roma inteira? E Crasso paga consideravelmente melhor.

 

Tu deves saber, já que recebias dos três. Suponho que por vezes ficasses um pouco confuso e acabasses por te espiar a ti próprio. Dizes que era Crasso?

 

Ele sorriu.

 

Conto-te isto confidencialmente, Gordiano, porque sei que és um dos poucos homens de Roma que sabe guardar um segredo. E também porque sei que não tens bem a certeza se deves acreditar em mim ou não.

 

Pergunto a mim próprio, Célio, se tu saberás quem realmente serves.

 

Ele encostou-se, com uma expressão divertida no rosto jovem e belo.

 

Sabes, Gordiano, acho que te adaptas melhor à cidade. Pareces muito mais descontraído, muito mais vivo do que quando nos encontrámos na tua quinta.

 

Momentos depois, Cícero voltou a juntar-se a nós, parecendo aliviado. Célio ergueu-se e despediu-se.

 

Já vais? disse Cícero.

 

Ele tem uma coisa qualquer a resolver com mantas e olhos verdes expliquei eu.

 

Cícero sorriu para esconder o espanto e Célio foi-se embora.

 

Bem, como eu estava a dizer, tenho um pequeno favor a pedir-te, Gordiano.

 

Não tinha consciência de que te devia algum favor.

 

Gordiano, olha à tua volta! disse ele, indicando o esplendor do jardim, com as suas estátuas e as suas fontes. Tu próprio me atribuíste crédito por...

 

Esse crédito já foi pago. Acredita em mim, Cícero, esta casa fui eu que a ganhei, até à última pedra! Falei com tal paixão, que ele recuou, para reconsiderar o seu impulso retórico.

 

Muito bem. Mas ouve o favor que te peço antes de o rejeitares.

 

Parece-me que, se algum de nós está em dívida para com o outro, és tu para comigo. Chama-lhe reparação, se quiseres. Há uns meses, quando eu ainda vivia no campo, uns homens de Roma provocaram danos consideráveis em minha casa. Perseguiam Catalina e julgaram poder encontrá-lo sob o meu tecto. Quem lhes teria encomendado esse recado? Quem os terá autorizado a revistar a minha casa e a causar tantas perturbações, à minha família e a mim próprio? Se o tivessem encontrado, não tenho dúvidas de que teriam assassinado Catilina ali mesmo. Mesmo então, pareceu-me que esse acto teria de ser considerado um assassínio.

 

Cícero fez uma careta. Ou era eu que começava a irritá-lo, ou era a dispepsia que voltava a atacá-lo.

 

Muito bem, digamos que eu te devo um favor, Gordiano. Será uma coisa assim tão terrível, o Pai da Pátria dever-te alguma coisa? E não estarás disposto a conceder-lhe mais um favor, sabendo que ele tem crédito? Queres ouvir-me ou não, Gordiano?

 

Eu poisei o vinho e cruzei os braços. Cícero sorriu.

 

Na verdade, é uma coisa muito simples. Bem, oficialmente, não houve sobreviventes do exército de Catilina depois da batalha de Pistoria...

 

Foi o que ouvi dizer disse eu, com a mente subitamente inundada por recordações de sangue e de aço. Morreram todos com ferimentos na parte da frente.

 

Sim. Romanos até ao fim, por muito funestamente enganados que estivessem. No entanto, oficiosamente, chegou aos meus ouvidos que tinha havido pelo menos dois sobreviventes dessa batalha, um homem e o seu filho?

 

A sério? E como é que sabes?

 

Continuo a ter os meus espiões, Gordiano. Gostava que esses sobreviventes me fizessem uma coisa.

 

Não se trata de novas vinganças, espero. Já houve julgamentos e purgas suficientes nos meses que se seguiram à derrota de Catilina, não achas? Pensei que os inimigos do Estado já tinham sido todos reunidos e castigados.

 

Não, não é nada disso. Apenas gostaria que esses sobreviventes me entregassem as suas memórias do discurso de Catilina.

 

Do discurso?

 

O discurso que ele proferiu às suas tropas antes da batalha. Ele deve ter feito um discurso; todos os generais romanos o fazem.

 

Talvez. Por que estás tão interessado nisso?

 

Para completar os registos do meu ano de consulado. Tenho cópias de todos os discursos que fiz contra Catilina, e Tiro e a sua equipa fizeram uma transcrição completa de todos os debates que tiveram lugar no Senado antes das execuções. Tenho cópias das cartas incriminatórias que condenaram os conspiradores e uma cópia do discurso que o lugar-tenente de António fez às suas tropas antes da batalha.

 

Porque António tinha uma unha infectada.

 

Teve um ataque de gota! disse Cícero, com o tom de simpatia de um homem que sofre de dispepsia crónica. Mas não tenho, nem eu nem ninguém, uma cópia do discurso que Catilina fez às suas tropas. Esquece que eu te pedi um favor; teria todo o gosto em recompensar com prata o homem que pudesse recordar-se desse discurso.

 

Isso tem alguma coisa a ver com as tuas memórias, Cícero?

 

Talvez. Por que não? A conspiração de Catilina contra o Estado foi um dos acontecimentos mais cruciais de toda a história da República.

 

Quanto ao papel que eu desempenhei na sua supressão, há quem vá ao ponto de dizer que, durante as horas em que tive o poder absoluto, eu realizei a visão de Platão do filósofo-rei. Talvez exagerem, mas ainda assim...

 

Por favor, Cícero! Agora era eu que me sentia dispéptico.

 

Aquilo que pretendo, Gordiano, é uma transcrição do discurso de Catilina, para a posteridade. Feita quando quiseres, como quiseres. Podes escrever umas notas nos teus tempos livres ou, se preferires, eu mando-te Tiro para escrever o que tu lhe ditares.

 

Na sua famosa estenografia?

 

Se falares muito depressa.

 

Eu enruguei o nariz perante a ideia de colocar as últimas palavras públicas de Catilina nas mãos do seu destruidor. E, no entanto, por que havia de deixar que essas palavras se perdessem para sempre? Que outro legado dele sobreviveria? Nunca seriam erigidas em Roma estátuas de Catilina; nunca seriam escritas histórias em seu louvor; ele não deixara filhos que pudessem transmitir o seu nome ou a sua causa. Dentro de poucos anos, apenas restaria de Catilina uma colecção de discursos vilipendiando-o diante do mundo.

 

Também havia o moinho de água, claro. Lúcio Cláudio fora a sua fonte de inspiração e Catilina resolvera o enigma do projecto. O moinho de água era o meu monumento privado em honra de ambos. Antes de ter entregue a quinta a Cláudia, considerara seriamente a possibilidade de pegar fogo ao moinho, achando que ela não era digna de o possuir. Chegara mesmo ao ponto de equipar os escravos com tochas e martelos, com a intenção de o demolir. Mas a visão da roda girando elegantemente sob o impulso da água levara-me a desistir da ideia. Decidi deixá-lo ali, como monumento a todos os que tínhamos participado na sua criação.

 

O som de Cícero a pigarrear chamou-me de volta ao presente.

 

Ainda que eu tivesse estado presente em Pistoria disse eu e ainda que quisesse ajudar-te, Cícero, o que te faz pensar que eu me recordo do discurso de Catilina?

 

Estou certo de que te recordas, Gordiano. A tua memória para esse género de coisas é muito penetrante. Está na tua natureza e na tua vocação recordares-te dos pormenores, especialmente de palavras. Ouvi-te muitas vezes citar, palavra por palavra, argumentos e declarações pronunciados anos antes.

 

Isso é verdade, Cícero. Um homem não pode fugir à sua memória. Sabes do que eu me lembrei há bocadinho, quando te vi à entrada de minha casa? De umas palavras ditas há uns anos por um homem morto há muito tempo. Sim, foi há pouco mais de dezoito anos, na tua antiga casa do Capitólio, na noite a seguir ao julgamento de Sexto Róscio. Lembras-te? Chegámos a tua casa, tu, eu e Tiro, e encontrámos a escolta e os lacaios de Sula à porta e o ditador à nossa espera na tua biblioteca.

 

Cícero susteve a respiração, como se esse encontro ainda o enervasse.

 

Claro que me lembro. Pensei que nos iam cortar as cabeças e pendurá-las em estacas.

 

Também eu. Mas, para um monstro que acabara de entalar o dedo grande, Sula foi surpreendentemente gracioso, embora não tenha sido particularmente lisonjeiro. Disse-me que eu era um cão que desenterrava ossos, e perguntou-me se eu nunca me cansava de apanhar com vermes e lama no focinho.

 

Ele disse isso? Lembro-me vagamente.

 

Quando o pobre Tiro falou despropositadamente, Sula disse que ele não era suficientemente belo para lhe serem permitidas aquelas liberdades, e sugeriu que o espancasses.

 

Isso parece mesmo dele.

 

E lembras-te do que ele disse acerca de ti? O rosto de Cícero endureceu.

 

Não sei bem o que queres dizer.

 

”És estupidamente atrevido ou loucamente ambicioso, ou talvez ambas as coisas”, disse ele. Que eras um jovem inteligente e um esplêndido orador, precisamente o tipo de homem que ele gostaria de recrutar para as suas fileiras, mas que ele sabia que tu não aceitarias, porque ainda tinhas a cabeça demasiado cheia de virtude republicana e de desprezo pela tirania. E depois disse deixa-me ver se consigo citá-lo literalmente: ”Tens ilusões de piedade; ilusões acerca da tua natureza. Eu sou uma raposa astuta e continuo a ter um faro apurado, e farejo outra raposa nesta sala. Deixa-me dizer-te uma coisa, Cícero: o caminho que escolheste na vida só pode ter um final, que é o lugar onde eu me encontro. O teu caminho poderá não te levar tão longe, mas não te levará a nenhum outro lugar. Olha para mim e vê-te ao espelho, Cícero”.

 

Cícero fixou-me com um olhar gélido.

 

Não me lembro nada dessas palavras.

 

Não? Então talvez não devas confiar na minha capacidade de me recordar do discurso de Catilina.

 

O seu olhar aqueceu um pouco.

 

Mas afinal o que estavas tu a fazer no acampamento de Catilina?

 

Tinha ido buscar um cordeiro perdido, que afinal era um pequeno leão. Mas os teus espiões não te contaram os pormenores?

 

Há algumas coisas que os meus espiões não sabem dizer-me, como aquilo que reside no coração de um homem e sobre o qual ele não se pronuncia. Oh, Gordiano, se eu tivesse previsto que tu serias tão susceptível à corrupção de Catilina, nunca teria mandado Célio pedir-te ajuda. Pensei que tu perceberias imediatamente o que ele de facto era. Afinal parece que ele te seduziu. Mas não literalmente, espero, acrescentou com uma gargalhada.

 

Eu olhei para o outro lado do jardim, para a estátua de Minerva. O seu silêncio brando tinha o dom de me acalmar; o distanciamento da ira faz parte da sabedoria.

 

Não tens nenhum remorso relativamente ao teu ano de consulado, Cícero?

 

Absolutamente nenhum.

 

Não tens dúvidas incómodas acerca dos precedentes que estabeleceste para o futuro desta República esgotada e frágil? Não tens nenhum secreto arrependimento por não teres cortado com os Optimates e lançado um vento de mudança?

 

Ele abanou a cabeça e sorriu condescendentemente.

 

A mudança é inimiga das civilizações, Gordiano. Para quê inovar, quando as coisas estão nas mãos dos Melhores? Aquilo que podes considerar progresso não passaria de retrocesso e decadência.

 

Mas, Cícero, tu és um Homem Novo! Vens de uma família desconhecida e chegaste a cônsul. Tu representas a mudança.

 

Certamente que um recém-chegado com talentos extraordinários pode ocasionalmente ascender e juntar-se aos Melhores, da mesma maneira que um patrício de nascimento como Catilina pode cair na ruína e na desgraça. Tal é o equilíbrio dos deuses...

 

Os deuses! Como podes ser ateu num dia e autoproclamar-te o instrumento de Júpiter no dia seguinte?

 

Estava a falar metaforicamente, Gordiano disse Cícero pacientemente, como se a minha mente literal fosse uma excentricidade que devia ser tolerada.

 

Eu inspirei profundamente e olhei para Minerva, mas a minha equanimidade estava a chegar ao fim.

 

Acho que preciso de ficar só, Cícero.

 

Claro. Estou certo de que conseguirei descobrir a saída. Ele levantou-se, mas não se afastou. Olhou para mim, na expectativa.

 

Muito bem disse eu por fim. Manda-me Tiro amanhã de manhã, se quiseres, com o material de escrita. Reproduzirei o discurso de Catilina de memória o melhor que puder. Cícero acenou com a cabeça e voltou-se para partir com um sorriso nos lábios. E talvez Tiro se recorde das palavras de Sula com mais precisão do que tu, acrescentei, e vi os ombros de Cícero endurecerem quase imperceptivelmente.

 

 

         EPÍLOGO

Passaram quatro anos desde a visita de Cícero à minha nova casa do Palatino.

 

Nessa altura, pensei que a história tinha acabado, na medida em que essas coisas podem acabar. Mas parece-me agora que os últimos acontecimentos lhe deram um fim mais adequado. Tal como a estátua de Júpiter, que demorou anos a ser posta no seu lugar, foi apenas uma questão de tempo.

 

Os últimos anos assistiram a um contínuo aumento do poder de César, que há dois anos formou uma coligação (ou triunvirato, como lhe chamam no Fórum) com Crasso e Pompeu, e que no ano passado foi eleito cônsul, aos quarenta e um anos. Neste momento, César está ausente na Gália, dominando uma tribo incómoda chamada Helvécios. Desejo-lhe felicidades nos seus esforços militares, quanto mais não seja porque o meu filho se encontra com ele.

 

Pouco depois do nosso regresso a Roma, Meto alistou-se sob o comando de Marco Múmio, mas não se juntou a Pompeu e serve actualmente sob o comando de César. O facto de ele ter escolhido uma carreira militar confunde-me, mas há muito que o aceitei. (Sempre se sentiu extraordinariamente orgulhoso da cicatriz de combate que recebeu em Pistoria.) Na última carta que nos escreveu, enviada da cidade de Bibracte, na terra dos Eduos, Meto descrevia a batalha contra os Helvécios de uma maneira que me pôs os cabelos em pé. Como é que o cativante rapazinho que eu adoptei se habituou daquela forma à visão do sangue e das entranhas? ”Antes de se iniciar o recontro”, escrevia Meto, ”César mandou esconder todos os cavalos, a começar pelo seu, colocando assim todos os romanos em igual perigo” um gesto que me recordava a minha própria experiência de batalha sob as ordens de um comandante menos afortunado. Meto garante-me que César é um génio militar, mas isso não dá especiais garantias a um pai que preferia um filho humilde, mas vivo, a um filho coberto de glória, mas morto.

 

Eu escrevo-lhe muitas vezes, sem nunca ter a certeza se as minhas cartas chegarão às suas mãos. A Batalha de Pistoria aproximou-nos, exactamente na medida em que fez aumentar o fosso existente entre nós. É-me mais fácil abrir-lhe o coração por carta, dirigindo-me à imagem que conjuro de memória, do que falar com ele face a face. O meu maior temor é estar a escrever cartas a um jovem que já está morto sem que eu o saiba.

 

Junto cópias de duas das cartas que lhe escrevi com algus meses de diferença, sendo a primeira do mês de Aprilis:

 

Ao meu amado filho Meto, sob comando de Gaio Júlio César, na Gália, do seu dedicado pai, em Roma, que a Fortuna esteja contigo.

 

A noite está quente e ainda mais quente pelo calor que irradia das chamas que se erguem no céu, queimando uma casa aqui perto.

 

Deixa-me explicar-te.

 

Há algum tempo, andava eu ocupado com a minha vida e estava sentado a ler no jardim aproveitando as últimas horas de luz do dia, quando reparei que a escuridão do céu estava estranhamente manchada de vermelho, mas atribuí o facto a um pôr do Sol especialmente adornado. Ia pedir uma lamparina, quando um escravo me veio dizer que estava alguém à porta, e o nosso vizinho Marco Célio me entrou pelo jardim adentro, perguntando-me se eu conseguia ver o incêndio da varanda do andar de cima. Corremos ambos para o meu quarto, onde Betesda já estava na varanda, observando petrificada a casa de Cícero desaparecer no meio das chamas.

 

Uns dias antes, Cícero fugira para o exílio, expulso da cidade por Clódio, um tribuno populista. Há algum tempo que crescia a reacção contra Cícero. Ainda há quem louve a sua virtude e os serviços que prestou a Roma, mas muitos dos seus apoiantes, mesmo os mais dedicados, fartaram-se de o ouvir proclamar continuamente como foi perspicaz e intrépido na destruição de Catilina, em termos tão excessivos que a coisa se estava a tornar um bocado anedótica. E depois, claro, a sua vaidade presunçosa e a sua insolência tornaram-se lendárias. Crasso despreza-o, Pompeu tem dificuldade em o tolerar, e tu conheces os sentimentos do teu amado comandante, César. E, claro, há muitas pessoas de todas as classes que simpatizavam com Catilina, embora nunca tenham aderido à sua causa, e se sentiam amarguradas com a constante jactância de Cícero e com o seu aviltamento (para além do túmulo) de um homem que elas respeitavam.

 

Como tribuno, Clódio tem sido um génio na organização do povo (chamam-lhe o Senhor das Multidões) e na intimidação dos Optimates (que andam aterrorizados). Dizem que o conflito que teve com Cícero começou por ser pessoal (incitado pela mulher de Cícero, Terência, que acusou a irmã de Clódio de tentar destruir-lhe o casamento atirando-se a Cícero imagina!), mas Clódio apercebeu-se rapidamente de que podia atear um incêndio de apoio popular fazendo ataques públicos a Cícero. Para atrair a compaixão, Cícero deixou crescer o cabelo e começou a andar pela cidade vestido de luto, mas Clódio e a sua populaça seguiam-no por toda a parte, escarnecendo dele e atirando-lhe lama, e as hordas de simpatizantes que Cícero esperara que acorressem em sua defesa nunca se materializaram. O que acontecera às massas que poucos anos antes o tinham aclamado como Pai da Pátria? As multidões são inconstantes, Meto.

 

Cícero começou a temer de tal maneira pela sua vida, que fugiu da cidade; no seguimento disso, Clódio conseguiu que a Assembleia do Povo aprovasse um édito condenando Cícero ao exílio ”por ter morto cidadãos romanos que não tinham sido ouvidos nem condenados” e proibindo quem quer que fosse, num raio de setecentos e cinquenta quilómetros de Roma, de lhe dar abrigo. (Indiferente à lei que o Senado aprovara prometendo imunidade geral depois da execução dos conspiradores.) Além disso, foi decretado que quem se agitasse para trazer Cícero do exílio seria considerado um inimigo público, ”a não ser que aqueles a quem Cícero deu ilegalmente a morte sejam trazidos à vida”. Clódio tem um estranho sentido de humor.

 

Por isso, neste momento Cícero vai a caminho da Grécia, Clódio anda num alvoroço e a bela casa de Cícero no Palatino é pasto das chamas. Não te escrevo à luz de uma lamparina, mas das chamas brilhantes e trémulas que iluminam o meu quarto e que me impossibilitariam de dormir, mesmo que eu tivesse sono.

 

Consegues contar-me alguma história de batalhas com os Helvécios mais arrepiante do que esta?

 

Não sei onde conduzirá todo este caos, mas duvido de que seja o fim de Cícero; as raposas sabem regressar sorrateiramente ao covil quando os caçadores se vão embora.

 

Desejo-te todas as bênçãos da Fortuna nos teus combates ao serviço de César, e rezo todos os dias para que voltes são e salvo.

 

Finalmente, esta carta, que leva a data de hoje, os Idos de Sextilis:

 

Ao meu amado filho Meto, sob comando de Gaio Júlio César, na Gália, do seu dedicado pai, em Roma, que a Fortuna esteja contigo.

 

Acabo de regressar de uma viagem ao Norte, a Arretium. É maravilhoso regressar a Roma e ser recebido com alegria por Betesda e pela tua irmãzinha Diana, que dentro de poucos dias celebra os seus doze anos. Elas mandam-te saudades, assim como Eco e Menénia e os gémeos, que estão perfeitamente incontroláveis. (Eu devia ter sido avô quando andava pelos trinta ou pelos quarenta anos, como a maioria dos homens; agora, receio ser velho de mais para isso!)

 

Mas tenho de te contar o que descobri na viagem que fiz ao campo. Há anos que não passava pela Via Cássia; tenho evitado essa estrada, por não ter grande vontade de voltar a passar pela quinta, mas um certo negócio envolvendo uma gargantilha perdida e uma esposa adúltera obrigou-me a ir a Arretium. (Se queres saber os pormenores, abandona a tua vida de soldado, volta para casa e assume a profissão do teu pai!)

 

Quando ia para cima, ia tão apressado, que me limitei a passar rapidamente pela quinta. O monte Argênteo, a cumeeira, a casa, as vinhas, os pomares e os campos senti uma ponta de nostalgia, que se manteve muito depois de ter por lá passado. De regresso, tinha mais tempo, por isso, quando me aproximei do monte Argênteo e da quinta, abrandei o passo.

 

A primeira coisa em que reparei foi que o muro de pedra na extremidade norte da quinta estava a ser demolido. O ar estava enublado por causa do calor e do pó, mas consegui distinguir bastante bem a casa da quinta e os restantes edifícios. Espreitando para além delas na direcção do ribeiro, não consegui avistar o moinho de água, até que finalmente descobri os seus fundamentos em ruínas. O moinho tinha desaparecido.

 

Quase tive a tentação de subir a cavalo até à casa da quinta. Mas limitei-me a parar na estrada, a olhar. Pouco depois, um carro de bois conduzido por um único escravo saiu do estábulo, dirigindo-se à estrada. Quando se aproximou, vi que não se tratava de nenhum dos nossos antigos escravos, por isso perguntei-lhe se pertencia à quinta.

 

Sim disse ele. Estava intimidado e não se atrevia a olhar-me de frente.

 

Então talvez possas dizer-me quando é que a tua senhora começou a deitar abaixo o muro na extremidade norte.

 

Não foi ideia da senhora murmurou ele, parecendo perplexo com a sugestão. Foi ideia do senhor.

 

Do senhor? disse eu, perguntando a mim próprio se Cláudia se teria casado. Como é que ele se chama?

 

Mânio Cláudio. Começou a deitar abaixo o muro logo que herdou a propriedade, ou seja, há um ano. E foi uma tarefa e tanto, deitar abaixo aquela pedra toda e carregá-la dali para fora! Agora que é dono de terras até onde a vista alcança, de ambos os lados da cumeeira, diz que já não precisa do muro.

 

Mas o que aconteceu a Cláudia?

 

Ah, a prima do senhor, a que lhe deixou as terras. Morreu há um ano.

 

Como é que ela morreu?

 

Foi tudo muito repentino. Dizem que foi terrível. Entrou em convulsões e ficou com a língua preta. Dizem que deve ter sido de qualquer coisa que comeu.

 

Eu fiquei silencioso por momentos, absorvendo esta informação.

 

E o moinho de água... por que o mandaram demolir?

 

Isso também foi feito por ordem do senhor Mânio. Ele declarou: ”Essa abominação é um insulto à instituição da escravatura!”

 

Estou a ver.

 

Perdoa-me disse o escravo, olhando para o chão mas tu deves ser o antigo senhor, aquele que estava aqui antes de Cláudia.

 

É   verdade.

 

Os antigos trabalhadores falam do teu tempo como de uma Idade de Ouro.

 

Falam? É costume exagerar a beleza das Idades de Ouro. E parece que elas acabam rapidamente. Diz-me uma coisa, Arato continua a ser o encarregado?

 

Sim, e eu nunca tive outro melhor. É uma mão firme, nos bons e nos maus momentos.

 

É verdade, e só espero que o teu senhor saiba dar-lhe valor. E diz-me uma coisa, Côngrio ainda é o cozinheiro?

 

Era, até pouco depois de o senhor herdar a quinta. Nessa altura, o senhor libertou Côngrio e mandou-o embora para a cidade com uma bolsa de prata à cinta. Acreditas numa coisa dessas?

 

Sim disse eu acho que acredito. Tira as tuas próprias conclusões.

 

Contar-te esta história, pô-la em palavras como se estivesses aqui, encheu-me de saudades tuas, meu filho. Preocupo-me com a tua segurança. Anseio pela tua companhia. Embora tenhamos tido as nossas dificuldades, há coisas que ambos compreendemos e que mais ninguém conhece, e por isso tu és-me muito caro. Sem ti, eu não teria ninguém com quem recordar e que tivesse sido testemunha de certos incidentes que ainda me confundem e me atormentam.

 

Voltar a ver a quinta trouxe-me muitas recordações, que rodopiam na minha cabeça como harpias. Com quem mais posso eu falar acerca dos meus sentimentos por Catilina? Que desperdício, penso por vezes, ter passado um tempo precioso junto dele desconfiando e oferecendo-lhe resistência! Mas há outra parte de mim que diz: E se o tivesses apoiado, se te tivesses entregue a ele de alma e coração onde teria isso acabado? E há uma parte ainda mais céptica que continua a duvidar de tudo aquilo que diz respeito a Catilina e a suspeitar de que ele não passava de um charlatão, encantador e desesperado, em tudo igual aos outros.

 

Que eu saiba, não existe nenhum deus do pesar nem da dúvida; é natural, porque os Romanos não devem ter esse género de sentimentos. E por isso não há altar sobre o qual possa depor esses sentimentos, para que sejam purificados pelas chamas e transformados em cinzas. Em vez disso, vivo com a dúvida e o pesar, sustentado pelo amor dos que me estão próximos, divertido com ironias como o exílio de Cícero e o destino de Cláudia, e continuo a meditar, como certamente tu também farás, no enigma de Catilina.

 

 

NOTA DO AUTOR

Poucas figuras da história suscitaram tanta controvérsia como Lúcio Sérgio Catilina. Uma geração depois da sua morte, ainda Virgílio o retratava na Eneida como uma alma condenada. Ao longo dos séculos, tem sido alternadamente considerado um herói e um vilão, muitas vezes em termos estremados. Duas obras publicadas a centenas de anos e milhares de quilómetros de distância uma da outra ilustram essa dicotomia, apenas pelos seus títulos: Patriae Patrícida: The History of the Horrid Conspiracy of Catiline Against the Commonwealth of Rome, publicada em Londres, em 1683, por um anónimo autor de panfletos; e Catilina: Una Revolution contra Ia Plutocracia en Roma, de Ernesto Palácio, publicada em Buenos Aires em 1977. Em que ficamos: em Catilina, o insurrecto depravado, ou em Catilina, o revolucionário heróico? No destruidor da decência ou no campeão das classes baixas?

Ben Jonson aderiu fielmente às fontes clássicas hostis a Catilina ao produzir Catiline his Conspiracy, uma tragédia estreada em 1611 pelos actores do rei Jaime e retomada na Restauração; a sua temática anti-revolucionária deve ter agradado ao monarca. Voltaire fez de Cícero um exemplar da Idade da Razão e de Catilina um agente do caos na sua peça Rome Sauvée, ou Catilina, que distorce grosseiramente os registos históricos; César é enviado para o campo de batalha, para se confrontar com os conspiradores! (No seu La Conjuration de Catiline, de 1905, ensina-nos Gaston Bossier que Robespierre era chamado Lê Catilina moãerne.) Em 1850, Ibsen produziu um Catilina radicalmente revisionista, que retratava o conspirador como uma espécie de Hamlet lutando com a sua consciência para tomar posição contra a tirania.

O problema com Catilina diz respeito às fontes primárias, que são fortemente tendenciosas contra ele. As quatro famosas orações de Cícero contra Catilina são modelos de invectiva e Salústio, que era um partidário de César, também tinha objectivos precisos quando escreveu a sua história da Bellum Catilinae. O veneno que se encontra nestes relatos deve ser lido com um certo distanciamento. Encontramos nos seus próprios escritos provas de que, antes e depois da conspiração, Cícero encontrou em Catilina diversos motivos de admiração, e Salústio, embora tenha repetido todos os boatos vis acerca de Catilina e dos seus seguidores como um competente repórter de tablóide, nem por isso deixa de apresentar justificações irrecusáveis para os actos desses homens.

Muitos historiadores modernos não vêem grandes dificuldades em aceitar literalmente o retrato negativo de Catilina, embora saibam que foi pintado pelos seus inimigos. Outros seguem orientações revisionistas que procuram ver para além da retórica de Cícero e do melodrama de Salústio. De uma forma geral, a revelação mais clara que emerge da maioria das reconstituições históricas é a do ponto de vista e das lealdades políticas do próprio historiador; Catilina é apenas um arrimo. Ainda mais perturbadores são aqueles historiadores que insistem em ter ”a última palavra” num assunto sobre o qual não pode haver última palavra, pelo menos enquanto as viagens no tempo e a comunicação com os mortos não forem inventadas.

Felizmente, o romancista na primeira pessoa, liberto de qualquer pretensão de omnisciência, pode aderir escrupulosamente à evidência histórica, ao mesmo tempo que dá espaço à interpretação subjectiva. Os pormenores essenciais de O Enigma de Catilina, incluindo os discursos e as diversas manobras políticas, são autênticos. Contudo, o leitor é livre de questionar as percepções de Gordiano e as suas conclusões, tal como faz o próprio Gordiano. Não foi meu objectivo reabilitar Catilina, como Josephine Tey procurou reabilitar Ricardo III em The Daughter of Time. Catilina continua hoje a ser aquilo que deve ter sido no seu tempo: o enigma, ou seja, um enigma.

Os livros geram livros, e eu gostaria de referir aquele que me levou a considerar que um romance acerca de Catilina era dramaticamente realizável, The Conspiracy of Catiline, da autoria de Lester Hutchinson (Barnes and Noble, 1967, que continua a ser a minha reconstrução favorita sob a forma de livro. Entre as obras mais curtas, In Defense of Catiline, de Walter Allen, Jr. (Classical Journal, 1938, reflecte uma singular perspicácia. Também gostaria de referir The Education of Julius Caesar de Arthur D. Khan (Schocken Books, 1986, o próprio título de um dos capítulos, ”A conspiração de Cícero e Catilina”, desafiou-me a voltar de pernas para o ar todas as interpretações que encontrei.

Entre as fontes primárias, a Cícero e a Salústio seguem-se as histórias romanas de Apiano e de Díon e, naturalmente, as Vidas de Plutarco, um tesouro de pormenores sumarentos, incluindo a utilização da estenografia de Tiro para registar o debate no Senado, a altercação de Catão com César por causa da carta de amor de Servília e o conhecido enigma. É uma pena que Plutarco nos não tenha deixado uma biografia completa de Catilina!

Os leitores dos anteriores romances da série ”Roma sub Rosa” que tenham curiosidade em conhecer o benfeitor de Gordiano, Lúcio Cláudio, talvez gostem de saber que ele já figurou em contos pertencentes à mesma série, a maioria dos quais publicado na Ellery Queen Mystery Magazine.

A investigação para este romance foi levada a cabo na Biblioteca Pública de São Francisco e através do sistema de Empréstimo entre Bibliotecas; na Biblioteca Perry-Castaneda da Universidade do Texas, em Austin; e na Biblioteca Widener, de Harvard. Agradeço a Michael Bronski e a Walta Borawski por me terem facilitado o acesso a esta última.

Como sempre, gostaria de agradecer pessoalmente ao meu editor Michael Denneny e ao seu assistente, Keith Kahla; a Penni Kimmel por ter lido o manuscrito; à minha irmã Gwyn, a Guardadora das Disquetes; e, naturalmente, a Rick Solomon, Senhor do Macintosh e de todos os seus mistérios.

 

                                                                                 Steven Saylor  

 

                      

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