Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O ENIGMA DE COMPOSTELA - P.2 / A. J. Barros
O ENIGMA DE COMPOSTELA - P.2 / A. J. Barros

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

                                           O SEGREDO DE SÃO REMÍGIO

 

                           CAPÍTULO 65

No final do século VI antes de Cristo, o imperador Tarquínio Prisco, conhecido como Tarquínio, o Soberbo, construiu uma grande rede de esgotos, a Cloaca Maxima, para drenar as águas e o lixo da Roma antiga para o rio Tibre que atravessa a cidade e deságua no mar Tirreno. Inicial­mente, era um canal a céu aberto, que foi progressivamente coberto, em função das exigências urbanas, levando Tito Lívio a escrever erroneamente que ela foi escavada no subsolo. Suas medidas variam de 2,70 a 4,50 metros de altura e 2,12 a 3,30 metros de largura e, até hoje, seu desenho original é um desafio para os arqueólogos. Essa fabulosa rede de esgotos só foi pos­sível devido aos avanços da engenharia etrusca, povo que se instalou no Lácio, onde Roma se localiza. Era um povo progressista, e a eles os romanos devem o desenvolvimento das artes, da engenharia, da urbanização e da estratégia militar com a qual dominaram o mundo.

 

 

 

 

Foi no terreno drenado pela Cloaca que se desenvolveu o centro político, econômico e religioso de Roma. O local passou a ser denominado Foro Romano e mais tarde, durante o período de 46 a.C. a 113 d.C., devido à expansão urbana foram construídas outras praças que tomaram o nome de Foros Imperiais, ampliando-se o centro urbano, onde se concentra a maior riqueza arqueológica do país. Diz-se que ali uma cidade de Roma foi edificada sobre outra.

Após a queda do Império Romano, o povo passou a utilizar o material dos antigos palácios para suas próprias moradias e usavam o terreno para o plantio de cereais, vinhas, frutas e legumes, assoreando praças e enco­brindo casas. Vestígios da época atravessaram os séculos, como a muralha de Roma, o templo de Júpiter, no Capitólio, e a maior rede de esgotos até então construída.

A prefeitura de Roma concede autorizações para milhares de obras todos os anos e as escavadeiras representam um grande perigo para os tesouros subterrâneos, que a cada momento surgem de um pequeno buraco. O tra­balho mecânico é evitado sempre que possível e isso aumenta a necessidade de arqueólogos e técnicos. Em 2003, a ONG Discovering the Past contratou um grupo de pesquisadores, incluindo arqueólogos, engenheiros civis, ar­quitetos e historiadores, para levantar todos os princípios teóricos da en­genharia etrusca, em Roma. Nenhum cientista, técnico ou funcionário da Discovering the Past era muçulmano, judeu ou cristão.

Depois de um minucioso trabalho fotográfico e análise de materiais, fo­ram desenhados diversos mapas comparando as redes antigas com a rede atual. Foram também identificados possíveis pontos de eventual conexão com a rede em uso, bem como os pontos de aproximação com as redes de água, luz, gás e com as linhas do metrô. Mas nem todos os túneis que a ONG abria eram mapeados. Quando havia necessidade de sinalizá-los para evitar dúvidas na hipótese de uma vistoria pela prefeitura de Roma, sua indicação não era precisa. Na verdade, a Discovering fazia, por trás da aparência científica, um misterioso trabalho nos subterrâneos de Roma.

 

                                          CAPÍTULO 66

Na época em que a Discovering começou seus trabalhos, Elai­ne já era formada em arqueologia na Universidade de Chicago. Depois de participar de pesquisas no interior da França, inscreveu-se no curso de mestrado da Universidade de Roma. Seu orientador era o professor Sandenberg, um cientista preparado, na faixa dos 40 anos, alto, corpo atlético, loiro, atencioso e excessivamente atento a detalhes. Não foi difícil sentir-se atraída por ele, e os dois começaram um discreto namoro, evitando chamar a atenção, para que sua tese não ficasse sob suspeita.

De início, Elaine pensava que o interesse do professor pelas pesquisas da Discovering era apenas acadêmico, mas aos poucos notou que ele ficava mais animado quando o assunto eram os trabalhos dessa ONG, e procurou uma maneira de ajudá-lo, concentrando suas pesquisas perto do local onde a ONG operava. Mas que interesse especial teria esse grupo pela Cloaca Maxima? Elaine acompanhava o procedimento deles e esperava por uma revelação qualquer. Alguns arqueólogos do grupo estudavam ruínas perto da Igreja de São Clemente, e ela contornou as paredes de modo que não a vissem. Estavam dentro de uma construção de pedra muito antiga, mas cujo teto já não existia. Minutos mais tarde, o chefe do grupo se aproximou e ela pôde ouvi-lo dizer em um sussurro que o plano no Caminho de Compostela estava sendo cumprido e as explosões ocorreriam em breve, tanto lá como na Cloaca.

"Provavelmente estariam fazendo pesquisas nessas duas áreas", pensou Elaine, embora estranhasse o uso de explosões, pois elas destroem os obje­tos antigos. Talvez tivesse entendido errado e prestou mais atenção. Espe­rou que o grupo saísse e entrou na antiga construção para observar o que eles estariam vendo de particular naquela ruína. Em cima das ruínas de uma coluna que antigamente dava sustentação ao teto, havia um pedaço de papel. Era um mapa com o desenho da Cloaca Maxima e alguns túneis que se ligavam a ela. Em sua borda, uma anotação: "Páginas arrancadas do Diário de São Remígio". A Igreja de São Clemente estava indicada sobre um trecho da Cloaca, e ela estranhou essa localização, porque a rede de esgoto se situava entre o Coliseu e o Foro Romano enquanto que a igreja ficava na direção oposta. Guardou o mapa e, no dia seguinte, sem que fosse notada, entrou na Basílica de São Clemente.

Ficou impressionada com o que viu. Já lera sobre as escavações feitas no ano de 1857, pelo padre dominicano irlandês Joseph Mullooly, que dera início à recuperação da Basílica, mas ela não imaginava encontrar tanta riqueza histórica. Era até mesmo possível que tivesse sido ali o local onde os cristãos se reuniram pela primeira vez para celebrar a Eucaristia.

A principal característica da Basílica é que ela se compõe de três pavimentos. São, na verdade, três basílicas sobrepostas, de épocas diferentes, e seus afrescos, esculturas e inscrições revelam a história de Roma em todas as suas fases.

Antes de sair para a visita ao local, Elaine havia lido que as escavações iniciadas por Mullooly, no ano de 1857, tinham sido prejudicadas por uma fonte de água que inundava o primeiro piso. Para secar o local e permitir a continuidade das escavações, foi construído um túnel de 700 metros de comprimento, a uma profundidade de 14 metros, ligando a igreja à Cloaca Maxima. Estava, então, explicado por que aqueles cientistas colocaram em seu mapa a antiga Igreja de São Clemente sobre a Cloaca.

Estava entusiasmada com essa descoberta que podia facilitar sua tese, e se indagava por que não dera mais atenção às informações sobre essa tríplice igreja. Olhava com imensa curiosidade todos os detalhes, deixando passar os grupos de turistas que ouviam as explicações rotineiras dos guias. O barulho da água que escorria embaixo da grade de proteção aumentava a sensação de um lugar úmido e infecto, que afastava os turistas. Ela, po­rém, estava entusiasmada. Tinha de dizer isso ao professor Sandenberg, e com essa idéia voltou o mais rápido que pôde para o centro universitário. Já conhecia a vida de São Remígio, mas passou pela biblioteca para uma consulta antes de ir ao gabinete do professor, que sorriu feliz ao vê-la, mas se mostrou apreensivo com sua história.

Você tem certeza de que falaram em explosão no Caminho de Santiago?

Foi o que ouvi: no Caminho e na Cloaca.

Conforme ela previra, a reação dele mostrou mais do que uma simples curiosidade científica.

Preciso ir lá. Preciso ver alguns desses túneis.

Eu vou com você.

Não, não vai. Acho que existe aí algum mistério que envolve perigo.

Ela não se convenceu.

Por isso mesmo devo ir. Venho estudando os túneis de Roma, sua rede de esgoto atual, e conheço os pontos de conexão dela com a Cloaca Maxima. Sabia que você ia querer ir lá e memorizei todos esses pontos, os ângulos das curvas, as distâncias entre os túneis, e talvez tenhamos de an­dar no escuro. Você vai precisar de mim. Sou capaz, mesmo no escuro, de chegar ao local desses túneis novos indicados no mapa.

Ele aceitou relutante, mas sabia que precisava dela. O lugar era difícil, e uma pessoa sozinha podia se perder, escorregar e precisar de ajuda. Passa­ram o resto da tarde arrumando equipamentos, estudando mapas e a estra­tégia dessa aventura noturna pelos subterrâneos de Roma.

 

                                             CAPÍTULO 67

Eram 10 horas da noite quando eles saíram da estação do metrô do Coliseu e seguiram pela via Labianca. Estava escuro, pouca gente nas ruas, e eles desceram uma rampa que dava para o pátio da frente da Ba­sílica. Um portão com grades de ferro impedia a entrada, mas o professor viera preparado e o abriu com facilidade, como também abriu com cuidado a porta de entrada da igreja para não fazer ruído.

Ela mostrou a abertura lateral, onde ficava a bilheteria de ingressos para turistas, e logo chegaram à escada que dava acesso aos pisos inferiores. O ambiente era fúnebre e foram pisando em túmulos de mártires e santos. Seguiram por escadas úmidas e estreitas até chegarem ao local por onde passava o túnel que se comunicava com a Cloaca Maxima. A grade estava fixada no solo, mas haviam trazido ferramentas, e com um pouco de es­forço ela foi retirada. O professor amarrou uma longa escada de cordões de plástico resistentes em um dos pontos que antes prendiam a grade e desceram. Ambos estavam com roupas apropriadas e impermeáveis, luvas, botas de cano alto e um farolete preso ao boné, de modo que podiam usar as duas mãos. Por dentro da roupa, levavam equipamentos indispensáveis, como óculos para enxergar à noite sem o uso das lanternas.

Ela havia estudado e memorizado todos os detalhes do trajeto, porque sabia que lá dentro, com a umidade e precisando às vezes se utilizar dos dois braços, o mapa não teria muita utilidade. Pôde assim indicar o lugar dos túneis escavados pelo grupo. Aonde iriam dar esses túneis? Teriam co­nexão com linhas do Metrô ou com a rede de água que abastece Roma? O professor ia preocupado. Se suas apreensões se confirmassem, podiam estar enfrentando um grupo de terroristas audaciosos.

O lugar era frio e escorregadio, sem pontos de apoio, e tinham muitas vezes de andar quase se arrastando. Baratas, ratos, aranhas, morcegos e ruídos estranhos eram inquietadores. Paravam em cada túnel que encon­travam e notaram que alguns eram mais largos, como se tivessem sido construídos para uma pessoa passar, e outros eram estreitos como se fos­sem para algum cano ou fio. Elaine mostrava os túneis que não estavam indicados nas plantas arqueológicas da prefeitura e nem no mapa feito pelo grupo. Resolveram entrar por um dos mais largos, embora tivessem de andar agachados. Ali não corria água e o chão era firme. Depois de uns 30 minutos, ouviram ruídos de água corrente e ela explicou que era a rede urbana de esgoto. O túnel, então, interligava a Igreja de São Clemente com a rede de esgotos da cidade.

Continuaram até saírem no imenso canal, onde puderam andar pelas beiradas que serviam de caminho em um nível acima da água do esgoto, que aparentemente descia da estação de tratamento em direção ao rio Tibre. Outro túnel menor surgiu à esquerda deles, sem também estar regis­trado no mapa.

— Elaine, espere-me aqui. Vou verificar rapidamente este túnel e em se­guida retornaremos para a igreja. É melhor sairmos logo deste lugar.

Ele se arrastou uns dez metros apoiando-se nos cotovelos, quando ficou imóvel, por ter ouvido um ruído diferente, que não reconheceu de início. Logo à sua frente o túnel fazia uma pequena curva, e quando percebeu o perigo já era tarde. Entrara em um ninho de serpentes venenosas, e suas luvas de plástico não ofereceram resistência às presas pontiagudas que ata­caram as mãos e o rosto em vários lugares. Tentou gritar para ela fugir, mas a garganta inchou e ele não conseguiu mais respirar.

Elaine estranhava a demora do professor e começou a sentir medo. De repente, teve a impressão de ter ouvido vozes que vinham do caminho que haviam percorrido. O que fazer? Não podia gritar para ele sair e escondeu-se atrás de uma das colunas de sustentação do teto. Apagou a lanterna do boné e colocou os óculos noturnos. As vozes se aproximavam e não podia continuar mais onde estava. Saiu de trás da coluna e seguiu em frente, com cuidado para não escorregar, porque a correnteza das águas poderia difi­cultar a fuga.

Logo adiante, tomou um desvio e saiu para outro canal. Procurou dar mais velocidade aos passos, apoiando-se nas paredes de concreto, e, por alguns minutos, teve a sensação de que as vozes desapareceram. "Será que continuaram pelo canal em que estava antes?", pensou, esperançosa. Pelo que recordava do mapa, havia uma ligação que chegava até a boca da Clo­aca Maxima, no rio Tibre. Suas esperanças aumentaram, mas as vozes vol­taram e ela podia ver a luz de uma lanterna que se movia de um lado para outro à sua procura. Já estava quase em desespero quando encontrou outro túnel, que pelo mapa também daria na igreja. No entanto, para chegar ao Tibre, onde teria mais chance de escapar, precisava continuar na mesma direção. Teve então a idéia de deixar rastros na boca desse novo túnel, e pôs as mãos e os pés como se fosse entrar nele, e saiu de costas.

O ardil deu certo. Seus perseguidores viram as marcas e ela pôde se adiantar. Após alguns minutos, ouviu um ruído mais forte de água, como se dois riachos se encontrassem. Era o túnel que vinha da igreja, e ela es­queceu o perigo das águas e entrou nele correndo. Logo surgiram as luzes das margens do Tibre. Ela redobrou a coragem e correu tropeçando em detritos e escorregando nas pedras lisas. A saída da Cloaca estava quase fechada por acúmulo de sujeira e vegetação, e ela teve de se arrastar, sem pensar em cobras e outros animais repelentes. Conseguiu sair, mas viu as luzes das lanternas dos perseguidores.

Quase chorou de desespero, quando viu a cerca de tela de arame colo­cada logo após a boca da Cloaca para afastar turistas e curiosos. Por sorte, mendigos costumavam usar aquele espaço coberto como alojamento e ha­viam feito nela um grande buraco. Depois de passar pela tela, arrastou-se até a beira do rio Tibre, onde a vegetação alta cobria a margem, e entrou rapidamente na água. Pegou do bolso o caniço de respiração, que sempre trazia em suas pesquisas, e o desdobrou até o máximo de seu comprimen­to. Ficou perto dos arbustos para que a ponta não fosse notada e respirou, compassadamente. Não podia chorar, mas pressentia que algo muito triste devia ter acontecido com o professor pelo qual se apaixonara. Ficou ali du­rante mais de uma hora, contando o tempo pelas batidas do coração.

Ouviu o ronco de um motor de lancha que chegou até perto de onde estava. Pessoas examinavam o lugar e o medo quase a denunciava. O medo aumentava o ritmo da respiração, mas, depois de certo tempo, percebeu que as buscas cessaram. Esperou ainda por cerca de meia hora e levan­tou devagar a cabeça, sem movimentar a água e a folhagem. Ficou imóvel, olhando a outra margem, onde barracas e restaurantes ainda atendiam tu­ristas. Como sair dali? O professor lhe entregara um telefone celular para a hipótese de acontecer alguma coisa. Era só apertar o botão on e um certo Aquiles atenderia. Podia confiar nele e devia seguir suas instruções. O apa­relho estava dentro de um bolso interno, hermeticamente fechado, de sua roupa plástica impermeável, e funcionou normalmente.

 

                                 CAPÍTULO 68

Na embaixada dos Estados Unidos, em Brasília, o em­baixador Williams apreciava o pôr-do-sol. O horizonte colorido era como uma pintura que se desfazia com a noite e voltava no entardecer seguinte com tintas novas. "O Brasil e seus maravilhosos contrastes", filosofou. Sen­tia-se prestigiado por Washington, porque resolvera, sem complicações, aquela conspiração para separar a Amazônia do resto do país, planejada

por um bando de esquerdistas frustrados associados a empresários ganan­ciosos, Passara os últimos meses em contatos para tirar proveito desse seu êxito, já que o governo brasileiro também acabara reconhecendo que, sem a ajuda dos Estados Unidos, o país estaria hoje em uma guerra interna.

Ouviu o telefone tocar. Gostava de saborear os pensamentos, quando tudo dava certo, e só depois de algumas chamadas percebeu que era o aparelho ligado direto com Washington. Só o presidente e o diretor da CIA o usavam.

"O que será?", perguntou-se, preocupado, e atendeu:

- Alô.

— Embaixador Williams?

Reconheceu a voz.

Meu caro diretor, por acaso estaria me convidando para outro Blue Label?

Foi muito boa aquela reunião e pode ser que tenhamos oportunidade de nova comemoração.

"Nova comemoração?" O embaixador não gostou da forma do convite.

Sim?

Estamos precisando do senhor aqui em Washington e com urgência. Poderia vir amanhã?

Pelo que deduzo de sua expressão de que "pode ser que tenhamos oportunidade de nova comemoração", trata-se do mesmo assunto.

O senhor continua com sua fina inteligência e isso é bom, pois estão acontecendo coisas que podem estar conexas.

Depois de desligar o telefone, voltou à janela. O céu azul do planalto central o ajudava a raciocinar. "O que seria? Não gostei do ar de mistério dessa conversa", pensou.

Lembrou os fatos do ano anterior quando um general, chefe da Abin, a Agência Brasileira de Informações, foi assassinado depois de ter levantado a hipótese de que uma conspiração estava em andamento para proclamar a independência do território da Amazônia.

Os acontecimentos se precipitaram e o FBI, a CIA e a embaixada ame­ricana trabalharam junto com os órgãos militares brasileiros para impedir a ação dos conspiradores. Nessa ocasião, conhecera o Dr. Maurício, o res­ponsável pelo esclarecimento e desmantelamento da conspiração.

Seus pensamentos iam mais longe do que lhe permitia o bom senso, mas ele os deixou criar as fantasias que quisessem. Brasília é a capital polí­tica do país, São Paulo é a capital econômica e o Rio de Janeiro, a turística. O resto do Brasil gira em torno desses três pontos principais. Ou, pelo me­nos, girava. Agora as atenções se concentram no importante pólo natural que é a Amazônia, uma preocupação antiga, mas ainda constante para os governos brasileiros.

Não há vôo direto de Brasília para Washington, e o embaixador teve de ir a São Paulo, onde embarcou no aeroporto de Guarulhos, chegando a Wa­shington no dia seguinte pela manhã. Foi recebido pelo assessor especial John Hawkins e conduzido ao salão oval da Presidência.

Não era a primeira vez que se reunia com o presidente de seu país na mais famosa sala de reuniões do planeta. Sóbrio e pouco confortável, como se tivesse sido projetado para que os visitantes fossem logo embora, o pe­queno salão devia ser medido pela importância do número de pessoas ilus­tres que ali estiveram.

O diretor da CIA estava presente e, depois dos cumprimentos, o presi­dente foi direto ao assunto:

Williams — eram amigos de muitos anos, e o presidente o tratava sem cerimônia —, talvez estejamos sendo envolvidos em um sério problema que pode ter relação com aquela República da Amazônia. Depois de muitas investigações, a CIA chegou a uma surpreendente conclusão. O George vai resumir o que sabemos.

O diretor da CIA foi sucinto:

Trata-se de um novo tipo de perigo. A CIA tem um departamento especializado em descobertas de documentos que preferimos que não caiam em outras mãos. Praticamente, em todos os sítios de pesquisas arqueológi­cas, temos agentes especializados que nos enviam informações. Além disso, os melhores estudiosos dos mais variados assuntos, incluindo história me­dieval, religiões e ciências, trabalham incessantemente na reinterpretação da história.

"Reinterpretação da história!", repetiu em silêncio o embaixador, que não estava entendendo aquela preleção.

Há pouco tempo, um arqueólogo da CIA participava de pesquisas na região do Languedoc, no sul da França, e fez algumas descobertas pre­ocupantes. Mandei-o vir imediatamente para Washington, porque outros agentes tinham informações coincidentes. Como de costume, ele não viajou direto para os Estados Unidos, indo antes para o México, onde se hospedou como turista em um hotel no centro da cidade. No dia seguinte, foi encon­trado morto no próprio quarto. Os documentos haviam desaparecido.

Era uma comunicação surpreendente para um início de conversa e foi seguida de outra revelação perturbadora.

Esse agente trazia provas sobre um grupo de fanáticos que pode ter sido responsável por fatos até agora não explicados pelos livros de história. Pelas informações preliminares que ele nos enviou, uma corrente religiosa pode estar por trás desses atos.

O presidente escutava em silêncio e o embaixador concluiu que ele já ouvira tudo aquilo.

A CIA não faz apenas espionagem contemporânea. Dispomos de his­toriadores que procuram buscar no passado razões para fatos presentes. Temos elementos para suspeitar que um grupo de fanáticos com origem em pressupostos da Idade Média estaria promovendo expressivos atos de terrorismo.

Fora enfático na forma de se exprimir e concluiu de modo estranho:

A especialidade desse grupo é usar pessoas inocentes. Elas são condu­zidas a uma iniciativa qualquer, da qual talvez nem tenham conhecimento, e acabam praticando atos planejados por esses fanáticos, que ficam ocultos.

"Aonde será que ele quer chegar?", e sentiu um aperto no coração ao ima­ginar o que estava para vir. Não foi preciso esperar muito.

Estamos chegando à conclusão de que Maurício pode estar sendo le­vado a praticar inconscientemente um ato de terrorismo e desmoralizar o trabalho dos Estados Unidos contra os conspiradores que tentaram procla­mar a República da Amazônia.

Controlou-se, mas o esforço que fez foi visível. Tirou os óculos, começou a transpirar, e o presidente comentou:

Acho que você entende as implicações. Esse Maurício foi pessoa im­portante na solução daquela trama. Se o estão envolvendo em um ato ter­rorista significante, como teme a CIA, as repercussões políticas e diplomá­ticas seriam muito negativas para nós.

Não era difícil de compreender. A primeira implicação seria a acusação de que os Estados Unidos inventaram aquela história de independência da Amazônia, aproveitando-se de um louco, para depois tirar proveito da situação. O país seria acusado, principalmente pelos fundamentalistas do mundo árabe, de montarem uma farsa, reforçando as teses de que a invasão do Iraque fora também uma farsa. E o que não diriam os europeus...!

Era preciso ter calma:

Meu caro diretor! Imagino que o senhor deva ter algo mais concreto para ligar essas coisas com o Dr. Maurício. Poderia explicar melhor?

O presidente, porém, tomou a palavra:

O George já me explicou o assunto e por isso o convoquei. Trata-se de uma emergência e sei que está cansado, mas se puder juntar-se ao grupo hoje seria bom. Assim que chegarem a alguma conclusão, me informem e, se tiverem algo novo, não hesitem em me comunicar.

Realmente estava cansado e com sono, mas as preocupações criaram su­ficiente ansiedade para manter sua mente clara.

 

                                     CAPÍTULO 69

Foram para a sala da diretoria da CIA em um edifício que ficava entre o Congresso e a Casa Branca, onde os professores Anthony e Brandon, especialistas em história do cristianismo e história medieval, os aguardavam.

O assessor Hawkins já era conhecido deles e o diretor apresentou o em­baixador Williams, que representava os Estados Unidos no Brasil. O diretor continuou o relatório, que fora interrompido no gabinete da Presidência:

Logo que Maurício começou o Caminho de Compostela, a polícia da Espanha pediu informações sobre ele à Interpol.

Teve a tentação de perguntar o que ele fizera de errado, mas se conteve.

Depois da tentativa de proclamação da República da Amazônia nós passamos a segui-lo. Aquela conspiração quase levou o Brasil a uma guerra civil e, se isso ocorresse, nós teríamos de nos envolver, como na Revolu­ção de 1964. A participação dele foi decisiva, porém tornou-o um alvo que tínhamos de vigiar. Pois bem. Há questão de alguns dias ele começou o Caminho de Santiago de Compostela, que já tinha feito antes e voltou para lá agora não sabemos por quê.

O embaixador assentiu com a cabeça.

O senhor sabe que esse trajeto, chamado de Caminho de Compostela, é cheio de lendas, milagres, tudo misturado com fatos históricos, presença de templários, cruzadas, monastérios, igrejas históricas e albergues, enfim, um conjunto de coisas que fazem desse percurso um dos mais místicos da humanidade.

Até aí não havia exagero. Ele mesmo sentia, às vezes, vontade de fazer essa grande caminhada em meio aos trigais e rebanhos de ovelhas da Espanha.

Esse misticismo motiva pessoas, e assim como nós fomos encontrar lá no Brasil aquela Ordem dos Templários da Amazônia, também existe no trajeto um grupo que se intitula Templários do Caminho.

A expectativa de uma revelação misteriosa aumentava.

Até agora, não tivemos uma preocupação especial com o Caminho de Compostela. Entretanto, após algumas pesquisas e deduções, achamos conveniente colocar nele alguns postos de vigilância. E quando seu amigo decidiu ir para lá, ficamos alertas.

"Meu amigo! Nem o conheço pessoalmente. Esse diretor ainda vai rece­ber o troco", prometeu a si mesmo o já ansioso embaixador.

Pois bem. Nós designamos algumas pessoas para acompanhá-lo discre­tamente e nos enviar relatórios. Às vezes utilizamos serviços de terceiros, que são contratados sem saber que estão trabalhando para a CIA. Obviamente, quando o assunto merece cuidados, nossos agentes fazem um acompanha­mento mais de perto. Dessa forma, se acontecer alguma coisa, a CIA não estará envolvida e ainda podemos tomar outras medidas. No caso de Maurício, foi organizada uma proteção especial, como expliquei. Uma pessoa, que já nos prestara serviços antes, foi contratada para segui-lo na travessia dos Pireneus, desde Saint Jean Pied de Port até Roncesvalles.

Parou de falar, como se quisesse fazer suspense, e concluiu:

Esse homem foi inexplicavelmente assassinado junto com a filha de 12 anos, que o acompanhava. Ele tinha o hábito de fazer uma caminhada semanal por aquele trajeto, acompanhado da família, a fim de despistar suas atividades de vigilância.

E a mulher não morreu?

Não, porque o acompanhava, guardando uma discreta distância e passava informações. Se houvesse algum perigo para ele, nossos agentes estavam por perto.

"Será que não foi um crime comum?", ia perguntar o embaixador, quan­do o diretor tirou suas dúvidas.

O assunto se complicou porque um padre foi morto, durante a noite, na Colegiata de Roncesvalles enquanto Maurício dormia no albergue dos peregrinos. Pelos dados que nos enviaram, parece tratar-se do mesmo as­sassino. Os peregrinos foram interrogados, mas a polícia espanhola passou a ter interesse especial pelas suas declarações.

Interesse especial? Ele está sob suspeita?

Não pensamos assim, mas o que chamou nossa atenção é que ele sem­pre se mostrou discreto e cauteloso. No entanto, no interrogatório, sugeriu aos investigadores que poderia haver correlação entre as mortes do padre e do nosso agente. Não só isso, como também alertou sobre a continuação dos crimes, porque o assassino teria uma missão a cumprir.

Ele disse isso?!

Na verdade, conduziu o próprio interrogatório. Acho que foi até im­prudente, porque alertou o investigador-chefe da polícia de Pamplona, encarregado das investigações, que ele, o próprio investigador, poderia estar correndo perigo. E ainda forçou o prior da abadia a revelar coisas que estava escondendo.

Será que ele não ficou perturbado com os problemas que teve por aqui?

O diretor era objetivo e gostava de raciocínios mais claros.

Vou ser sincero. Já o estamos seguindo há um ano e ele está muito bem de saúde. O que me preocupa, portanto, é que, apesar de ser um ho­mem discreto, criou esse imaginário em um assunto que não era de sua conta, em um país estranho. Deve ser porque suspeitou de alguma coisa que diz respeito a ele próprio. Não sei se estou sendo claro, mas ele se ante­cipou às conclusões do inquérito e deixou a polícia espanhola preocupada com novos crimes. Parece que de certa maneira estava chamando a atenção da polícia sobre si mesmo, como se buscasse proteção.

Entendo. Em sua caminhada, ele estaria desprotegido em vários luga­res isolados. E quais foram as conclusões da polícia?

Preocupantes. Fizemos algumas pesquisas. O chefe de investigações da polícia civil do distrito de Pamplona é um dos mais argutos e eficientes po­liciais da Espanha, e procurou encontrar-se com Maurício, logo após Pam­plona, como se também fosse um peregrino. Caminharam juntos até Puente la Reina e ficaram em um hotel da cidade. Ali ocorreu o envenenamento de um peregrino e um ato terrorista que destruiu uma ponte milenar.

Outro atentado? Com ele?

O diretor riu da preocupação do embaixador, visivelmente cansado da longa viagem, e respondeu em tom de blague:

Fique descansado. Não foi nada com ele. Ao contrário, mais uma vez ele usou de sua imaginação para ajudar nas investigações. Porém, existe agora um fato novo. Um peregrino holandês, que havia estudado no Brasil, entregou a ele outra charada dentro de um envelope impregnado de vene­no, e morreu.

Outra charada? Houve então uma charada antes? E o que elas diziam?

Desculpe! Esqueci de lhe informar. Em Roncesvalles, o abade entre­gou a ele uma frase que falava de "início" e "fim", algo meio sem sentido. A de Puente la Reina, Maurício decifrou concluindo que haveria o atentado para destruir a ponte. O investigador pediu ajuda e o aparato policial foi grande, até agentes do serviço secreto do exército espanhol apareceram no local.

O governo espanhol deve estar preocupado.

É o que parece. Pode ser que sejamos chamados a ajudar nas investi­gações se eles não tiverem êxito. Devemos estar preparados.

Pelo que entendo de seu raciocínio, como tiveram oportunidades para fazer alguma coisa contra ele e não fizeram, talvez o estejam poupando para algo de maior repercussão.

Pensamos dessa forma e temos a impressão de que ele também.

Ele também!... Mas o Caminho de Compostela tem 800 quilômetros. É uma caminhada muito longa, dispersa. Não estou entendendo como um ato terrorista teria tanto significado. Até agora mataram quatro pessoas e destruíram uma ponte antiga, mas isso não criou uma ameaça contra o resto da humanidade.

Parece simples. É melhor o professor Brandon dar algumas explicações.

 

                                           CAPÍTULO 70

O professor Brandon era especialista em história e ar­quitetura medievais. Fizera seu doutorado depois de percorrer três vezes o Caminho de Compostela e pesquisar a arte sacra ali conservada. Estudara todos os estilos arquitetônicos que se sucederam ao longo dos séculos, des­de as influências dos celtas, suevos, godos e visigodos, vândalos, romanos, árabes e as influências trazidas da Palestina pelos templários.

Começou explicando a evolução da arquitetura, que teve sua glória nos monumentos fúnebres e mausoléus, seguindo-se para os templos religio­sos, palácios, teatros públicos e fortalezas. Dissertou sobre o românico e o gótico, como não podia deixar de ser, e terminou sua exposição fazendo uma afirmação estranha.

Em nenhum outro conjunto religioso do mundo se encontra tanto simbolismo: Roncesvalles, Eunate, Puente la Reina, Fromista, a Via Lác­tea, a Concha Marítima que se transformou no símbolo do Caminho, os equinócios de San Juan de Ortega, as lendas e milagres, como se em seus 800 km, a cada passo, o Caminho fosse um santuário autônomo, sagrado e artístico.

Ele seria então o maior conjunto de símbolos do cristianismo?

Esses elementos fazem do Caminho um conjunto de monumentos que, para a civilização ocidental, significam mais do que as pirâmides do Egito ou a Acrópole da Grécia, porque eles são ao mesmo tempo a síntese e a análise do cristianismo.

"Síntese e análise do cristianismo. Ele tinha de dizer uma bobagem dessas!"

E dão ainda maior significação a esse conjunto os fatos religiosos e culturais que giram em torno dele. O apóstolo São Tiago, o apóstolo Santo André, irmão de São Pedro, as igrejas do Santo Sepulcro que passaram a ser construídas já que Jerusalém estava em mãos dos muçulmanos, milagres, as lendas, a contínua peregrinação por mais de mil anos, ainda hoje muito expressiva, e sua influência na expulsão dos árabes. Goethe chegou a afir­mar que a Europa se fez com o Caminho de Compostela.

Havia certa ansiedade na forma como essas informações eram expostas e o diretor aproveitou um breve descanso do professor para esclarecer:

Não podemos correr o risco de nos arrependermos depois. Talvez tenhamos descuidado um pouco da importância desse ícone, mas um fato de tais dimensões, como o que estamos prevendo, pode ter implicações perigosas, e os Estados Unidos poderão ser responsabilizados.

Eram frases fortes, e o diretor acrescentou:

O Santo Graal teria estado por muitos anos em San Juan de la Pena, e dois outros cálices, o de Leon e o do Cebreiro, disputam a condição de terem sido o cálice de Cristo.

O Santo Graal! — exclamou o embaixador. — O senhor está dizendo que o cálice de Cristo esteve no Caminho de Santiago e que ainda pode estar lá?

O diretor pediu ao professor Brandon para continuar com as explicações.

Uma das versões da história diz que, a partir do século III, o cálice que Cristo usou na Santa Ceia esteve em Huesca e daí levado para San Juan de la Pena, um monastério encravado no alto de uma montanha, no território de Navarra, por onde passava o antigo Caminho de Compostela, onde teria permanecido até o século XVII, e desde então não se tem mais notícia dele.

O embaixador parecia não acreditar no que ouvia.

O cálice que Cristo usou na Santa Ceia estava no Caminho de Santia­go? O Santo Graal? Mas como foram perder uma relíquia tão importante? Se o cálice era verdadeiro, por que não o protegeram?

Existe hoje na capela desse monastério um cálice sobre um pequeno altar de pedra, que dizem ser uma réplica do que esteve ali exposto tanto tempo. Parece que um nobre espanhol o comprou por um pouco de ouro.

O Santo Graal foi vendido por um punhado de ouro? — reclamou, enfim, o assessor.

Na verdade, aparentemente, o cálice não era considerado uma relíquia importante. Ele só foi valorizado no século XIII e ainda assim mais como um ideal de cavalaria do que como relíquia. Foram as histórias do rei Artur e dos cavaleiros da Távola Redonda que o tornaram popular.

Tudo bem — comentou um conformado embaixador —, mas o que essa constatação tem a ver com o Dr. Maurício?

O diretor não quis se aventurar em especulações históricas e olhou para o professor Anthony, que procurou ser didático.

A maior curiosidade histórica em relação ao cálice usado por Cristo é seu esquecimento durante o primeiro milênio. Outra curiosidade é a coin­cidência de ele ser lembrado justamente no Languedoc no período dos cá­taros e dos templários, quando o Santo Graal foi romantizado e o cálice passou a ser a mais importante das relíquias.

Era uma idéia vaga, até mesmo confusa, e ninguém ousou interrompê-lo.

Coincidentemente, o Languedoc também buscava sua independência. Existem registros de que naquela época pessoas que se diziam descendentes de Cristo viviam ali protegidos pelos cátaros, que foram exterminados por ordem do papa. Era a região onde os templários queriam se instalar e criar o país templário. Essa mistura entre templários e linhagem de Cristo pode ter gerado a lenda do Graal. Sir Percival, um dos cavaleiros do rei Artur, tem as características de um templário e seria o protetor do Graal.

O embaixador não sabia o que pensar. Se essa teoria estivesse certa, po­deriam estar enfrentando uma seita que não teria origem isoladamente de cátaros, templários ou dessa linhagem sagrada, mas poderia ser uma fusão dessas três correntes.

O diretor chamou a atenção para o objetivo daquela convocação.

A causa da nossa reunião é a hipótese de que essa seita se julgue her­deira do Sangue de Cristo. O Santo Graal seria o Sangue Real, tendo Cristo como o rei dos reis.

Bem! O Caminho é um longo percurso com inúmeros monumentos históricos. Vocês acham possível que possa ser destruído com atos terro­ristas?

Não precisam destruir todo o Caminho. A peregrinação é uma visita ao túmulo do apóstolo São Tiago, que está na Catedral de Compostela. Bas­ta destruir a Catedral e o Caminho desaparecerá.

 

                           CAPÍTULO 71

O argumento não convenceu o embaixador.

Pelo que foi dito no início, só recentemente a CIA passou a ter interes­se pelo Caminho de Santiago. Alguma razão especial para isso?

O diretor olhou para o professor Anthony, que deu uma explicação como se estivesse propondo a primeira cruzada contra os terroristas.

Quando o Papa Urbano II pregou a primeira cruzada, em 1095, Jeru­salém estava em mãos dos árabes e a peregrinação ao Santo Sepulcro era quase impossível. Hoje Jerusalém pertence a Israel, que submete os turistas a um controle rígido. Então, se antes o problema era com os árabes, agora é com os judeus. Para os cristãos, a situação é quase a mesma. Só que em vez de a Igreja armar uma cruzada contra os judeus, está estimulando a peregrinação a outros lugares santos, como o túmulo de São Tiago em Compostela.

Era uma conclusão até irônica porque os judeus controlavam agora a visita ao túmulo de Cristo, o filho de Deus encarnado, por eles sacrificado. Ainda assim, devia haver outra solução.

Não seria então mais simples retirá-lo de lá?

O diretor respirou fundo, como se buscasse coragem para o que ia dizer.

Esse é o problema. O caso não se resolve.

O embaixador reagiu com firmeza:

Vamos com calma! Vocês não estão pensando em deixá-lo lá como isca para ver se prendem esses neoterroristas, não é? Digo neoterroristas porque estão introduzindo um tipo de terrorismo que desconhecíamos. Mas se falharmos e os atos imaginados acontecerem? Não será pior? Se a espionagem de outros países descobrir que sabíamos desses fatos e os per­mitimos, não estaríamos dando razão às acusações que poderiam levantar contra nós?

Houve um silêncio constrangedor. O diretor tentou ser racional:

Estamos diante de duas situações que confluem para o mesmo inte­resse. Uma delas é que o próprio Maurício demonstra querer ir até o fim. Do contrário, ele já teria saído de lá ou nos teria pedido ajuda. Afinal, ele sabe como chegar até nós e sabe que pode confiar em nós. Então, por que continua enfrentando situações de perigo desconhecido e aparentemente até os provoca, ajudando a polícia espanhola?

Inacreditável! Ele estaria aceitando o desafio e querendo descobrir quem são essas pessoas?

A outra situação é que achamos melhor tirar proveito dos aconte­cimentos para descobrirmos essa organização. Devo dizer que, assim que começamos a imaginar as hipóteses de perigo, nossa primeira reação foi afastá-lo de lá. Mas, se fizéssemos isso, perderíamos a oportunidade de des­truir essa rede de terroristas que já matou vários de nossos agentes.

O embaixador não conseguiu responder a esses argumentos.

Então, quando percebemos que ele tomou conhecimento do peri­go e não se intimidou, ou, se passou a ter receios preferiu enfrentá-los, sentimo-nos encorajados a aproveitar a ocasião e ajudá-lo.

E envolvendo a embaixada dos Estados Unidos no Brasil não estamos nos complicando ainda mais, no caso de ele falhar?

Não temos certeza de nada. O senhor já está a par de todas as nossas preocupações e talvez amanhã possa pensar em algo novo.

O embaixador era homem sagaz, esportista e gostava de desafios. Per­cebeu a complexidade da situação e poderia ter acrescentado um pouco de tempero nas ociosas dissertações históricas daqueles três, mas prefe­riu silenciar.

Primeiro, porque não tinha tanta certeza assim. Precisava verificar aqui­lo melhor. O envolvimento de Maurício podia ter outras razões além da hi­pótese de que os terroristas queriam desmoralizar seu país e o cristianismo. Quase chegou a mencionar a Catedral de Brasília, mas era ainda cedo para aumentar as cismas do grupo.

 

                                       CAPÍTULO 72

"Morar no Brasil, o país do medo, tem suas vantagens — pensou o embaixador. "Acostuma-se a prestar atenção aos movimentos sus­peitos." Estava no centro de Washington, dirigindo-se ao hotel Lincoln, onde sempre se hospedava, e não era comum as pessoas ali andarem precavidas. Mas viu o tipo afroamericano, troncudo, forte, que o observava disfarçadamente, Teve a idéia de fingir que ia atravessar a rua e olhou para os lados. O outro percebeu e dissimulou, como se estivesse andando normalmente.

Dispensara o carro oficial porque queria caminhar. A distância até o hotel era de apenas de 2 mil metros, e estivera muito tempo sentado em aviões e salas de espera. Passara várias horas naquela reunião e precisava movimentar as pernas. Se aquele homem fosse algum segurança, estaria mais perto dele, e o diretor da CIA teria avisado. Um dia de viagem e outro de discussões sobre temas misteriosos podiam ter mexido com seus nervos e ele estaria vendo coisas demais. Em todo caso, ficou alerta. Chegou ao hotel, pegou a chave, observando discretamente as pessoas no grande espa­ço finamente decorado da recepção. Um casal de idosos tomava chá e dois senhores formalmente vestidos discutiam os prejuízos ou lucros na Dow Jones. Teve a impressão de que uma moça bonita, também sentada em um sofá, o olhara surpresa, mas ele não deu atenção e pegou o elevador.

Não estava disposto a ir ao restaurante. Pediu seu jantar no quarto e logo após deitou-se. Dormiu pesadamente e acordou sem saber onde estava. Fi­cou quieto uns instantes e, ao recordar que estava no hotel, acendeu a luz do abajur. Levantou-se bem disposto. Viu um envelope sob a porta e imaginou ser algum comunicado da recepção. Foi ao banheiro, fez a barba e depois, com as duas mãos apoiadas sobre a pia, ficou olhando para o rosto.

Como poderia descrever a si próprio? Sem dúvida, como um americano, pele clara de gente que nasceu em região fria, cinqüenta anos, físico de esportista e altura pouco superior a 1,80 metro. No colégio, teve a grande frustração de não integrar a equipe de basquete por ter menos de 1,90 me­tro. Mas de certa forma foi bom, porque se dedicou mais aos estudos e fez uma brilhante carreira de diplomata.

Ainda meio entorpecido pelo cansaço da viagem, acabou de se aprontar, pegou o envelope e o abriu. Dentro dele, uma folha de papel timbrado do hotel onde estava escrito apenas:

"Preciso lhe falar sobre as páginas arrancadas do Diário de São Remígio."

São Remígio? Deve ser engano. Mas teve aquela sensação indefinida de preocupação. Páginas arrancadas do diário de um santo? As coisas estavam tomando rumos misteriosos. Lembrou-se do afroamericano da véspera. Era melhor não perguntar nada ao hotel.

Será que deveria falar a seus colegas de reunião a respeito dessa mensa­gem? E se eles também a tivessem recebido? Ele ficaria em uma situação desconfortável, se parecesse que fora o único a não ter recebido. Melhor usar a diplomacia. Ela tem uma regra infalível: "Nunca tome iniciativas em situações duvidosas. Estude antes a diplomacia dos outros".

Havia pedido o café no quarto para as 7 horas, porque o diretor ficara de buscá-lo às 8. Tinha ainda meia hora e pegou o jornal para ajudar a passar os minutos, quando o telefone tocou. Era da recepção.

Sr. Williams, está aqui embaixo uma pessoa dizendo que precisa falar com o senhor. Posso colocá-la ao telefone?

Uma pessoa? Não se identificou?

Ouviu o recepcionista perguntar o nome dela.

É uma moça que se chama Elaine e diz ser filha do embaixador Peter Griflin.

Surpreso, ia descer para atendê-la, mas o recepcionista informou que ela preferia subir. Deu uma olhada no quarto e guardou no closet o paletó que estava na cadeira da escrivaninha. Havia uma ante-sala para recebê-la, mas era melhor que tudo estivesse em ordem. Mal acabara de ajeitar o banheiro e a campainha tocou.

Olhou pelo olho mágico e reconheceu a moça bonita que vira no saguão do hotel no dia anterior.

Peter Griffin o havia substituído no Líbano quando ele fora designado para o Brasil. Fora vítima de um atentado em que morreram ele e o filho de 17 anos. Elaine devia ter 15 naquela época, e já tinham transcorrido 10 anos desde aquele dia fatídico.

Abriu a porta.

Elaine, como você cresceu e ficou uma moça bonita!

Ela parecia nervosa e entrou meio apressada, fechando a porta, mas o cumprimentou educadamente:

Embaixador Williams, me desculpe se o importuno e também a ma­neira de vir procurá-lo, mas precisava falar com o senhor.

Ele a olhou compreensivamente e sentaram-se nos sofás que ficavam em torno de uma mesa de centro.

Está bem. Vejo que está nervosa. Quer água, um chá quente? Ou pre­fere café?

Água, por favor, e o café, se não se importar,

Não me importo, Eu também gosto de café, mas aprendi no Brasil que um bom cafezinho tem de ser feito na hora. Eles dizem por lá que café só é bom quando o cheiro chega primeiro. Enquanto isso, se quiser, pode contar o que tem a dizer.

Ele se levantou e pegou o aparelho elétrico de ferver água que estava guar­dado no armário da sala, onde também estavam os pacotinhos de açúcar, chá, café e talheres. Colocou a água para ferver e olhou-a paternalmente.

Então? O que a aflige? Mas diga antes como vai sua mãe. Ela está bem? Estão precisando de alguma coisa?

Ela está muito bem. Não sabe que estou aqui e seria melhor que não soubesse. Ela sempre se diz grata ao senhor pela ajuda que nos deu quando houve aquele triste episódio com papai.

Não fiz mais que minha obrigação. Seu pai era um grande amigo e ti­nha sido o primeiro-secretário da embaixada. Eu gostava muito dele. Aliás, gostava de vocês todos.

Sim, eu me lembro de que estávamos sempre juntos. Depois, ficou tudo triste e até hoje mamãe chora muito. Perdeu o marido e o filho e eu tive de sair de casa para estudar. Procuro visitá-la o mais que posso, mas não é mais a mesma coisa. O senhor foi muito atencioso conosco, nos aju­dando a voltar para cá e a providenciar os papéis para acelerar o recebimen­to da pensão.

Tomou um pouco de água e disse, pensativa:

Foi uma sorte encontrá-lo aqui, logo agora.

Não conteve a emoção e começou a chorar. Alguma coisa séria deveria ter acontecido com ela, e a melhor coisa a fazer era deixar a crise de choro passar. Ouviu o borbuihar da água fervendo e levantou-se:

O café já vai sair.

O embaixador procurava manter a normalidade, mas percebia a ansie­dade dela,

O senhor recebeu o envelope sobre São Remígio?

Quando a vi entrar meio nervosa, imaginava se você tinha alguma coisa com aquele envelope.

Ela contou então sobre os acontecimentos que levaram ao desapareci­mento de seu orientador de mestrado em um túnel subterrâneo da cidade de Roma.

Era nossa intenção ficarmos noivos assim que eu terminasse a tese. Ele era muito ético e achou que não ficaria bem perante a universidade um professor se envolver com uma aluna. Quando se tratava dos trabalhos da Discovering, ele fazia perguntas incomuns. Notei essa preocupação e resolvi ajudá-lo. Não sabia que o estava levando para um perigo sério.

Soluços contidos cortaram sua explanação. Em certas horas, palavras de consolo não resolvem e soam como simples formalidade. Era preferível que ela esgotasse toda sua tristeza para ter a mente lúcida novamente. Sem dú­vida, estava diante de uma moça decidida, culta e inteligente. Ela explicou que o professor lhe havia dado o telefone celular com instruções para ela chamar por 'Aquiles'.

E você telefonou para esse Aquiles'?

Sim.

Ali da margem do rio?

Achei que era mais seguro. Havia restaurantes fazendo barulho do outro lado e aproveitei quando passou um barco a motor.

E qual foi a orientação que ele lhe deu?

Mandou que eu permanecesse exatamente onde estava. Viriam dois senhores com equipamentos de pesca. Deveria trocar de roupa com um deles, que me substituiria enquanto eu sairia com o outro. Ficamos mudan­do de ponto como se estivéssemos pescando, e depois fui conduzida a um monastério, que fica perto da Piazza Bernini, de onde saí três dias depois para o aeroporto Fiumicino, vestida de freira e com um novo passaporte.

Relatava sua aventura com certa excitação.

Quando cheguei a Washington, uma pessoa me buscou no aeroporto e me trouxe para este hotel. Recebi a recomendação para não tomar táxis e não conversar com ninguém. Se precisasse de alguma coisa, devia ligar para Aquiles'. Se ele não estivesse, a secretária me atenderia. Um carro estaria à minha disposição. Deram-me o celular do motorista. Parece que esse Aqui­les' queria falar comigo, mas andava muito ocupado.

E aí, então, me viu entrar. Você não é mais aquela adolescente cuja imagem ficou na minha memória.

Nem acreditei quando o vi no saguão do hotel. Cheguei a duvidar, mas quando se dirigiu ao elevador prestei mais atenção e vi que era o se­nhor mesmo.

O telefone soou novamente. Era a recepção informando que o Sr. George o esperava lá embaixo.

Quer dizer que não conhece esse 'Aquiles'. Acho que posso apresentá-lo.

Depois, pensando um pouco:

Talvez fosse melhor você me acompanhar. Estamos tratando de as­suntos aparentemente relacionados com esse São Remígio e com o profes­sor Sanderberg. Se não estou errado, o nosso Aquiles' está me esperando.

Desceram e, se o diretor ficou surpreso vendo a moça que o acompanha­va, não demonstrou.

Bom dia, Sr. George. Apresento-lhe a senhorita Elaine. Se não estou enganado, já se conhecem por telefone.

Bom dia, embaixador. Senhorita Elaine, é uma honra.

Bom dia, senhor George. É um prazer conhecê-lo. Ver o embaixador Williams no hotel ontem foi uma grata surpresa para mim. Ele era muito amigo do meu pai, Peter Griffin. Acho que sabe do atentado.

O embaixador percebeu que ela falava mais que o necessário para que o outro reconhecesse sua voz.

A senhorita fez bem em contatar uma pessoa em quem pode confiar. Sabemos da forte amizade que havia entre seu pai e o embaixador Williams. Precisamos conversar, mas antes preciso esclarecer certos assuntos.

Diretor George, posso sugerir que a nossa arqueóloga faça uma expo­sição do que aconteceu, na reunião desta manhã? Penso que será útil para todos nós.

E, antes que o diretor da CIA respondesse, perguntou a ela:

Nós temos agora uma reunião com especialistas em histórias do tipo que me contou. São membros da CIA. Se o diretor permitir, você aceitaria fazer um relato minucioso dessa sua experiência?

Com muito gosto. Estou me sentindo inútil neste hotel e cada vez mais preocupada. Se o Sr. George aceitar, posso fazer isso, sim.

Era o mais sensato, e ela entrou no carro, indo com eles para o edifício da CIA, onde cumpriram as formalidades de identificação e se dirigiram para a sala de reunião. O diretor apresentou-a aos professores, que ficaram curiosos. Afinal, tinham agora um caso concreto a ser relatado pela pró­pria vítima.

 

                                       CAPÍTULO 73

De início estava um pouco inibida, mas, à medida que ia relatando os acontecimentos, ganhou desenvoltura e falou sobre o interesse que o professor Sandenberg tinha pelos trabalhos da Discovery. Começou, então, a dedicar especial atenção a esse grupo, pensando que obteria infor­mações arqueológicas úteis para sua tese. Percebeu algumas incoerências, que transmitiu ao professor. Desconfiava que ele investigava o grupo e pre­sumiu que trabalhava para órgãos de segurança do governo. Não sabia que trabalhava para a CIA, mas passou a informá-lo de tudo o que via e ouvia, terminando o relato com o triste desfecho de sua fuga, sem saber o que tinha acontecido ao professor Sandenberg.

Entre eles, o clima de receio aumentou. O diretor viu pela expressão dos rostos que os demais estavam esperando que dissesse alguma coisa, e fez um pequeno comentário.

O que me surpreende é que eles jogaram, vamos dizer assim, uma isca muito forte, como se já soubessem que o professor Sandenberg os investi­gava. Que conclusão podemos tirar disso?

O assessor Hawkins respondeu como se a pergunta fosse dirigida a ele:

Não temos prova para prendê-los e perderíamos a estratégia.

Então, como se tivesse percebido que tinha dito uma besteira, completou com outra:

Certamente, eles desaparecerão.

O professor Anthony voltou ao tema que interessava:

Senhorita Elaine, tenho de cumprimentá-la pela audácia e perspicácia que demonstrou. Foi muito corajosa e pode ter trazido uma contribuição muito grande em um momento de urgência. A história do cristianismo tem sua esteira de especulações, como esse diário de São Remígio. A senhorita poderia nos a dar sua versão sobre esse assunto?

Com modéstia, para não parecer pretensiosa, ela falou:

Minha tese de mestrado é sobre arqueologia religiosa. Para entender os objetos, tive de me aprofundar na história das religiões. Como se não estivesse falando com especialistas na matéria, continuou:

São Remígio foi confessor da rainha Clotilde, esposa de Clóvis I, neto de Meroveu, o rei que deu origem à dinastia merovíngia. A tradição dizia que esses reis carregavam certa divindade e seriam descendentes de Cristo.

Em poucas palavras, lembrou a lenda em que o monstro marinho Quinotauro, não resistindo à beleza da mãe de Meroveu, a levou para o fundo do mar, onde a enxertou. Ela, porém, já estava grávida de Meroveu, que dessa forma acabou tendo dois pais, o rei Clódio e o Quinotauro, que al­guns afirmavam ser Netuno, o deus dos mares.

Os senhores sabem, era uma época em que a Igreja havia sido rees­truturada por Constantino, mas com a queda do Império Romano, ela en­fraqueceu, entrando em um processo de desorganização. Era também uma época em que a superstição se misturava à religião.

O professor Anthony concordou:

Muitos bispos não acreditavam que Cristo era Deus, mas apenas um homem dotado de poderes mágicos como os poderes que a lenda atribui a esses merovíngios. Seria possível que o bispo Remígio tivesse tentado unir as duas correntes, aproveitando essa lenda?

Acredito nisso. São Remígio era bispo de Reims e confessor da rainha, que era cristã, e se aproveitou dessa posição para fazer a aproximação de Clóvis com o Papa, que o reconheceu como único imperador do Império Romano. A partir dessa época o Papa passou a consagrar os reis, que de certa forma ganharam um poder divino, porque o Papa era a ligação de Deus com a Terra.

Pelo que diz, é possível que grupos que se dizem herdeiros dos merovíngios possam estar procurando essas páginas para provar sua origem divina e o direito ao poder.

As páginas arrancadas poderiam trazer registros desse acordo. No livro O Santo Graal e a linhagem sagrada, escrito pelos pesquisadores Michael Baigent, Richard Leigh e Henry Lincoln, há indicações de que os des­cendentes dos merovíngios têm estado por trás dessas heresias.

"Então a CIA não estava imaginando coisas", pensou o embaixador. Po­deria haver uma seita com pretensões a herdeiros do passado. Gostou de ouvir a menina, porque era assim que a via, que continuou:

Mas os merovíngios se enfraqueceram e a Igreja precisava de um bra­ço forte. Foi quando, segundo vários estudos, ela tramou para substituí-los. Essa situação deu origem a uma história mal explicada: o Testamento de Constantino, também chamado de Doação de Constantino, Constitutum Donatio Constantini ou Constituto domini Constatini imperatoris. No sécu­lo XV, esse documento foi considerado falso porque o latim utilizado para sua redação não era próprio do século IV, quando teria sido escrito.

É possível, então, supor que esse pessoal, ou já está de posse desses documentos ou sabe onde poderiam estar? Obviamente, não precisa responder se não quiser emitir uma opinião vaga — aparteou o professor Anthony.

Ela disfarçou o sorriso, orgulhosa de si mesma, porque estava diante de homens poderosos, que viviam discutindo e decidindo os problemas do mundo, enquanto ela não passava de uma simples universitária, sem a tese terminada. Mas notou que davam importância às suas informações e já se sentia como um deles.

Pessoalmente, não acredito que essas páginas ainda existam. Acho que a informação que ouvi, e que nos levou a fazer confirmações naquela noite, foi uma espécie de recado da parte deles para os senhores, aproveitando-se do professor Sandenberg.

Falava com contida emoção e respirava forte, mas o professor parecia insensível ao drama que ela vivera.

Esse documento de Constantino seria verdadeiro ou falso?

Dizem que ele foi forjado pelo Vaticano para outorgar ao Papa po­deres de nomear e destituir reis. Desse modo, o Papa poderia legitimar a linhagem de Carlos Martel, nomeando seu filho, Pepino III, que era o mor­domo do palácio do último rei merovíngio, como novo rei.

Parecia receosa, mas continuou:

São episódios complicados, que geram dúvidas. O testamento de Constantino foi analisado no ano de 1440 e o consideraram falso por con­ter expressões latinas não usadas na época de Constantino. Ora, o latim era a língua dominante, pois o Império Romano abrangia quase todo o mun­do conhecido, e sofria, portanto, influências dos povos conquistados. Seria praticamente impossível que Lorenzo Valia, o analista que considerou falso o documento, mil anos depois de redigido, tivesse conhecimento de todas essas influências lingüísticas.

Entendo. Nem dicionários havia então. As palavras mudavam de sen­tido, outras eram acrescidas, expressões se alteravam, tanto pelo tempo como pelos lugares onde o latim era falado.

A outra dúvida é que, se São Remígio escreveu um diário, quem teria interesse em fazer desaparecer algumas de suas páginas? Tenho procurado resposta a essa pergunta e às vezes penso que existia outro Testamento de Constantino, um documento sobre o qual o bispo Remígio trabalhou para convencer Clóvis, e ao qual ele fez referências nas páginas arrancadas de seu diário.

O diretor assustou-se:

Espere! Haveria então dois testamentos de Constantino: um verdadei­ro, que seria o de São Remígio, e outro falso, do fim do milênio?

O documento falso teria sido escrito entre os anos 750 e 850. Acho que existiu realmente um documento que dava ao Papa poderes para no­mear os imperadores do Ocidente e, com esse documento, nasceu o poder temporal da Igreja.

Ela percebeu o interesse com essa sua nova idéia e continuou, com desembaraço:

O documento original de Constantino pode ter sido redigido de for­ma a não permitir a destituição de reis ou imperadores já consagrados. Clóvis não precisava se unir a uma instituição dividida em Igreja Celta, na Inglaterra, Grega, em Alexandria, Ortodoxa, na Rússia, além de outras que estavam crescendo em várias regiões do mundo. Às vezes nos esquecemos de que Cristo veio da Ásia, e Roma estava no Ocidente, onde predominava a cultura clássica.

O diretor tamborilava os dedos na mesa, revelando o nervosismo.

E em conclusão?

Penso que desapareceram com o testamento original, mas havia um testemunho: o Diário de São Remígio. Pode-se concluir então que, se essas páginas tiradas do diário existirem, elas poderiam provar a autenticidade do primeiro testamento de Constantino e a farsa montada pela Igreja para consagrar uma nova dinastia.

Era uma opinião amadurecida para aquela universitária e condizia com as conclusões que eles também tinham. Mas suas idéias aumentaram os receios de que esse grupo estava desorientando um inocente brasileiro para que ele praticasse algum desatino no Caminho de Compostela. O embai­xador notou que ela não queria que aqueles senhores soubessem de seu relacionamento com o professor Sandenberg, e por isso sempre se referia a ele como "professor". Percebia seu constrangimento enquanto falava e a emoção que sentia. Teve pena dela.

O celular do diretor tocou discretamente. Ele consultou a origem e se afastou da mesa. Voltou com a fisionomia tensa.

Não sei se devia dizer isso agora, mas estamos no curso de uma inves­tigação que se revela a cada hora mais complicada. Os bombeiros de Roma conseguiram abrir o túnel e retirar o corpo do professor Sandenberg. Ele morreu envenenado com picadas de cobra.

Ela não resistiu à angústia. Soltou uma espécie de grunhido para sufocar o grito e desmaiou, a cabeça tombando sobre a mesa.

 

                                     CAPÍTULO 74

Elaine foi rapidamente levada para uma enfermaria onde recebeu tranqüilizantes e ficou em repouso. Os outros permaneceram na sala e a reunião continuou. A informação de que mais um agente da CIA havia sido morto deixou-os tensos. Aquele grupo de assassinos era organi­zado e agia de forma inteligente e profissional.

O diretor desculpou-se:

Devia ter imaginado que a menina podia ter algum sentimento por seu professor. Na hora, o que me ocorreu foi apenas o drama da morte de mais um agente. Acho que precisamos chegar logo a alguma conclusão. O professor Brandon tem alguma coisa a esclarecer? Alguma idéia?

Estamos em busca da origem de uma seita. O problema é: em que ponto da história ela surgiu e quem a representa hoje? Pelo que foi exposto por Elaine, temos de voltar à era de Constantino, que deu início à Idade Média com a fundação de Constantinopla no ano 330, enquanto a tomada de Constantinopla pelos árabes em 1473 marcaria o fim da era medieval.

E, olhando desanimado para os colegas de mesa:

Temos apenas alguns dias para estudar mais de mil anos e não sei em que essas informações podem ajudar.

"Enfim algo sensato: em que isso pode ajudar?", pensou o embaixador, cujo senso de crítica aumentava nos momentos de tensão. Bizâncio, fun­dada pelos gregos no ano de 657 a.C, depois chamada de Constantinopla e agora de Istambul, era uma de suas cidades prediletas. Nela viveu Filon, 200 anos antes de Cristo, quando relacionou as sete obras mais importantes até então construídas por mãos humanas e que ficaram conhecidas como as sete maravilhas do mundo: os Jardins Suspensos da Babilônia, a estátua de Zeus, o Templo de Ártemis, o Mausoléu de Helicarnassus, o Colosso de Rodes, o Farol de Alexandria e as Pirâmides de Gizé.

As explicações do professor lembravam seu curso universitário. Se o cristianismo trouxe uma nova esperança ao povo, por outro lado trouxe um novo tipo de cativeiro: o pecado. A Igreja acrescentou a rigidez das normas cristãs, criando o cativeiro espiritual, com a ameaça do Inferno.

"O cristianismo escravizou a alma humana. Não a liberou do pecado, mas usa o pecado para mantê-la sob constante ameaça." Não gostou desse seu raciocínio 'herético', provocado pelas monótonas explicações do profes­sor, que olhou desanimado para o grupo:

Desculpem se o assunto é um tanto maçante, mas há ainda uma ques­tão interessante. No Languedoc se desenvolveu uma cultura liberal, voltada para o romantismo e a trova. Era um desafio novo para a rigidez dogmática da Igreja. Os templários e os cátaros são da mesma época e quebraram o domínio da razão ditada pelo cristianismo.

Ah! — exclamou Hawkins. — Então o restante dos templários e cáta­ros está agora unido em uma organização secreta.

O comentário não era fora de propósito e o diretor concordou com o assessor.

Em princípio, podemos pensar dessa maneira. E, no momento, ela está planejando algo significativo contra a Igreja Católica, que envolve o Caminho de Compostela.

Desculpem — perguntou o embaixador —, mas a partir dessas diva- gações, vocês chegaram à conclusão de que o Dr. Maurício será usado para praticar um ato de loucura que desestabilizará o Vaticano e fragilizará o cristianismo como um todo?

John Hawkins era luterano, portanto cristão, e, antes que alguém respon­desse, ele interveio novamente.

Por favor, o que quis dizer com "cristianismo como um todo"?

O Vaticano é ainda a estrutura orgânica do cristianismo. As outras igrejas, como os Batistas, os Mórmons, os Luteranos e todos os nomes que tenham, nenhuma delas é uma referência isolada. Ao contrário, todas são apenas protestantes. Lutero não criou o cristianismo, apenas protestou con­tra a maneira de a Igreja de Roma o praticar, mas as diferenças não são fundamentais. Todas as outras correntes cristãs são apenas idéias diferentes do epicentro, do qual irradiaram essas contradições.

O silêncio foi mais prolongado que nos outros intervalos. Não haviam pensado nisso. A desmoralização do Vaticano enfraqueceria também as outras igrejas cristãs. Todo o comportamento das sociedades ocidentais baseia-se na prática do cristianismo, tenha ele a forma que tiver. A moral, o direito, o comércio em todas as suas manifestações adotam leis cujos prin­cípios nasceram do cristianismo, ou foram por ele adotados.

É bom lembrar que a Igreja Católica é a única instituição que sobrevi­veu a dois mil anos de história como uma unidade — arrematou.

De fato, nenhum país nem outra instituição daquela época sobrevivem hoje. A Igreja não só persiste, como conserva seu patrimônio e o restaura. Sua dinastia é divina e com Bento XVI já são 265 papas. Essa conclusão apa­rentemente acadêmica aumentava o terreno pantanoso da dúvida, porque inúmeras instituições surgiram com os erros e acertos da Igreja Católica.

Será que querem apenas prejudicar a Igreja Católica? Será que não pretendem causar dano maior a nossa civilização? Vejam o abalo que a des­truição das Torres Gêmeas causou na sociedade americana. E o que eram aqueles edifícios, comparados com o Vaticano?

Eram perguntas preocupantes, diante da audácia desses neoterroristas.

Não foi o Anjo Gabriel que ditou o Alcorão a Maomé? Para os muçul­manos, Cristo não é considerado o maior de todos os profetas, depois de Maomé? O pensamento religioso é conexo e tem origens comuns.

O embaixador falava como um pregador do Apocalipse.

Trabalhei no mundo árabe e aprendi alguma coisa. Nunca li o Alco­rão, mas consta que o nome de Maria, mãe de Jesus, é citado mais de 30 vezes nesse livro sagrado. Nenhuma outra mulher, nem mesmo a mãe de Maomé, sua esposa ou filhas, são citadas pelo nome. O Novo Testamento não traz tantas minúcias sobre a mãe de Jesus quanto o Alcorão. Há um grande respeito por Cristo e sua família no livro muçulmano.

 

                                 CAPÍTULO 75

O alarme SOOU no serviço de proteção aos agentes da CIA. O agente Yussef Khalil estava em perigo. Imediatamente uma equipe se diri­giu ao apartamento, localizado na rua 92-East, perto do Central Park, mas chegou tarde.

O agente Yussef estava com uma espada atravessada na garganta, caído no chão, diante da escrivaninha. Sua mão segurava uma fita cassete. Os agentes examinaram tudo com cuidado e, depois de adotarem as formali­dades normais, pegaram a fita e se dirigiram para o laboratório da agência, em Nova York.

Nunca se sabe que perigos existem em um pequeno objeto como uma fita gravada, e, por isso, ela foi colocada dentro de um compartimento iso­lado, à prova de explosões e radiações, de onde seu conteúdo foi transmiti­do para o setor de gravações em Washington, que percebeu a gravidade do documento e enviou imediatamente cópia para o gabinete do diretor, com uma mensagem para o seu celular.

Ao ver a mensagem, o diretor pediu licença para sair da sala e voltou logo depois, nervoso, com uma fita cassete nas mãos.

Aconteceu uma coisa inesperada e preocupante.

E devia realmente ser preocupante, por sua maneira agitada.

Quando se fala em Caminho de Compostela, estamos falando essen­cialmente da Espanha, que durante oito séculos foi dominada pelos árabes, depois expulsos pelas forças cristãs, que fizeram o mesmo com os judeus que ali habitavam desde a Diáspora.

Os outros estavam atentos. Era evidente que alguma coisa grave havia acontecido.

Pois bem. Às vezes recrutamos agentes com qualificações especiais.

Balançou a cabeça, como se o que ia dizer escapasse à sua compreensão.

O agente Yussef era muçulmano praticante e muito estudioso. Pedi-lhe para levantar todas as possibilidades de seitas de origem judaica, com pro­pósitos como esse que nos preocupa.

E, com um gesto desanimado das mãos:

Explico melhor. Não adianta pedir a um muçulmano para encontrar terroristas árabes. Em um caso desses, pedimos a um judeu. Por isso incum­bimos Yussef, um muçulmano, de encontrar terroristas de outros credos.

Respirou fundo para conter a tensão.

Ele acabou de ser assassinado. Estudava a Bíblia, que ficou aberta, em cima de sua escrivaninha, no capítulo do rei Salomão. Yussef era estudioso de radicalizações religiosas e não gostava de judeus. Foi morto com uma espada atravessada em sua garganta. A espada era a cruz de São Tiago, o mata-mouros.

A cruz de São Tiago — exclamou o embaixador, traduzindo as preo­cupações de todos.

O perigo, portanto, não rondava apenas no Caminho de Santiago de Compostela.

Mas como podem esses terroristas saber que estamos aqui reunidos para tratar desse assunto? — insistiu o embaixador.

O diretor não respondeu. Turbilhões de pensamentos e receios tritura­vam seu cérebro.

Os assassinos deixaram essa fita. Acho melhor ouvi-la.

Logo nos primeiros momentos, a fita indicava que o agente fora surpre­endido em seu gabinete de trabalho.

Quem são vocês? Quem são vocês? Não tenho muito dinheiro comigo, mas podem levar o que quiserem.

Um curto silêncio fazia pressupor que estavam com armas apontadas para ele.

Vocês não vieram roubar. Querem outra coisa. Por que não dizem logo?

Uma voz respondeu:

Você vai levar um recado a seus chefes. Mas não faça nenhum movi­mento suspeito, pois do contrário eu lhe atravesso o pescoço com esta espada. Você a conhece. É a cruz de São Tiago, que matou muitos fanáticos muçul­manos na Espanha, mas devia ter matado a todos. Não devia ter deixado nenhum infiel vivo.

Então, alguém já estava perto do agente e o ameaçava com uma espada.

Você devia ler com mais atenção a Bíblia escrita por Moisés, porque Maomé apenas misturou o Antigo Testamento com os evangelhos cristãos. Depois inventou aquela história de que o anjo Gabriel apareceu para ele em sonhos e ditou uma nova religião.

De novo, um pequeno silêncio, como se o interlocutor esperasse uma reação de Yussef, que não veio.

Para angariar adeptos entre os cristãos, Maomé disse que Cristo nas­ceu da Virgem Maria e, para agradar aos judeus, disse que Cristo não era o messias, mas apenas um profeta, inferior a ele, Maomé, porque os judeus consideram Cristo um falso messias.

Aparentemente, Yussef conseguiu se controlar e não respondia às provocações.

Lembre a seus chefes que Maomé, no início, mandou seus seguidores rezarem voltados para Jerusalém, mas, como não obteve o apoio dos judeus, mudou de idéia e mandou que rezassem voltados para Meca, onde estava o templo pagão Caaba, com a pedra adorada pelas tribos árabes, que é apenas um pedaço de meteorito.

Não estou entendendo — era a voz de Yussef.

Sim, está. Maomé não criou uma religião, mas um exército de fanáti­cos aos quais prometeu o céu, quando morressem em combate, e o direito de tomarem tudo o que pudessem dos vencidos. Deu-lhes o direito de ter várias mulheres, de matar e ainda roubar aqueles que perdiam a guerra. Maomé consagrou a violência no mundo árabe, e o mundo só terá paz quando todos vocês desaparecerem.

Novamente um curto silêncio.

Vocês, árabes, são descendentes de Ismael, um bastardo filho de Abraão com uma escrava egípcia. Ou esqueceu o incesto de Lot com suas duas filhas e que, desse incesto, nasceram dois filhos, que deram origem a tribos árabes que habitavam perto de Israel? Por que vocês não leem o Velho Testamento, se foi inspirado nele que Maomé escreveu o Alcorão?

A mão! Essa mão! Conheço sua mão... — Yussef balbuciou.

No mesmo instante ouviu-se um grunhido, como um gemido, e, logo em seguida, o baque de um corpo caindo. A fita parava aí.

 

                                 CAPÍTULO 76

O diretor olhou transtornado para o grupo.

O assessor Hawkins vigiava os lados discretamente e não escondia o medo.

O embaixador comentou:

Eles podiam ter cortado a frase final na qual o agente Yussef identifi­cou a mão do assassino. Se não o fizeram, é porque queriam deixar o recado de que já estão infiltrados na CIA.

E depois de pensar alguns minutos:

Não vejo lógica nisso. Um agente da CIA cometeria o erro de iden­tificar um assassino que já estava com uma espada em sua garganta? Isso parece montado. Podemos ouvi-la novamente?

A fita foi ouvida, e o diretor concordou com o embaixador.

Em princípio, eles queriam que Yussef passasse uma mensagem. Aparentemente, portanto, não queriam matá-lo. Acho que entendo o que o senhor quer dizer. Essa fita foi montada.

Um estudo comparativo do som da fita com a voz de Yussef foi solicitado ao laboratório da CIA.

O agente Yussef não era o único a fazer estudos de radicalização re­ligiosa. O rabino Chaim, da sinagoga de New Jersey, aqui em Washington, que nos presta alguns serviços do gênero, está para chegar. Aliás, Yussef também deveria vir amanhã aqui fazer uma exposição pessoal. Alguns agentes estiveram na sinagoga para ver se não aconteceu nada ao rabino, mas ele já havia saído e deve estar chegando, assim espero.

Para alívio geral, o rabino foi anunciado.

"Estranho", pensava o embaixador. "Por que teriam deixado o rabino em paz e assassinaram o agente Yussef?"

Um homem alto, barbas longas e nevadas, dentes amarelados pelo cha­ruto e a calvície disfarçada pelo quipá, entrou na sala.

O diretor fez um breve relato do que havia acontecido com o agente Yus­sef para que o rabino soubesse do acontecido, e rodou a fita. O rabino co­mentou nervoso:

É mais uma tentativa de comprometer os judeus.

Seria? — perguntou o diretor.

Eu ia alertar para esse lado agressivo do islamismo, como está muito claro na fita. Mas que coisa esquisita! — começou o rabino.

A iniciativa de trazer palestrantes tinha sido do diretor, que pediu ao rabino para dizer o que quisesse. Na dúvida, o grupo faria perguntas.

Bem! Não é fácil. Na verdade, todas as religiões começam com dúvi­das e violências. Ou não foi a morte de Cristo que deu origem aos poderes que o Vaticano tem até hoje?

O assessor Hawkins mexeu-se na cadeira.

Vejam, também, o que diz a Bíblia cristã sobre a origem de árabes e judeus. Abraão teve dois filhos. Um deles, com sua escrava egípcia, Hagar, a quem deu o nome de Ismael, que em hebraico significa "Deus ouvirá". O outro, Isaac, que significa "gargalhada", nasceu de sua legítima esposa, Sara, porque dizem que Sara riu quando soube que ia ter um filho, já que ela e o marido estavam muito velhos.

Embora fosse uma introdução desconfortável e aparentemente sem sen­tido, a esperança de que o rabino lhes trouxesse alguma luz os mantinha atentos, sem interrompê-lo.

Os senhores sabem a história. Isaac, sendo o legítimo herdeiro de Abraão, formou o povo judeu enquanto Ismael, filho da escrava, deu ori­gem ao povo árabe.

"Aonde será que esse rabino quer chegar?", — indagava-se o embaixador.

Mas o rabino continuou com suas estranhas narrações:

Outros dizem que a Bíblia é um repertório de licenciosidades e não pode ser um livro sagrado. Lembram o incesto de Lot com suas duas filhas, que embebedaram o pai e deitaram-se com ele. Desse incesto nasceram dois filhos que deram origem a tribos árabes que habitavam perto de Israel, os moabitas e os amonitas.

O diretor também não estava gostando daquela explanação:

Mas, especificamente, em relação ao tema que lhe foi confiado, em que pode nos ajudar?

Ia justamente chegar lá. A maldição divina recaiu sobre os descen­dentes de Salomão, filho de Davi. Coincidentemente, o agente Yussef lia o Livro de Salomão quando morreu. Nesse livro está toda a mensagem que o Templo nos dá ao longo da história.

A palavra 'templo' ligada à morte do agente reanimou as atenções.

Apesar de algumas contestações, quando os judeus saíram do Egito, Deus entregou a Moisés, no Monte Sinai, os Dez Mandamentos e mandou que fossem guardados numa arca, a Arca da Aliança. Estava nos planos de Davi a construção de um templo para guardar a Arca, mas Deus não permi­tiu que ele o construísse porque Davi era adúltero. Ele havia mandado Joab, o comandante dos seus exércitos, colocar Urias isolado, perto do inimigo, para tomar a sua esposa. Foi seu filho, Salomão, cujo nome significa "paz", quem construiu o templo, no ano de 950 a.C.

"Davi está na relação de santos emitida pelo Vaticano no ano de 2001. Como poderia ele ser santo?" — indagava-se o embaixador.

Salomão se apaixonou por muitas mulheres de outras raças e tribos pagãs, como a filha do Faraó e mulheres de tribos árabes. Deus havia proibido que os filhos de Israel tomassem mulheres dessas nações, porque elas os levariam à idolatria dos seus deuses pagãos. Mas Salomão tomou 700 mulheres dessas tribos, que tratava como rainhas, e mais 300 concubinas. Como Deus havia previsto, Salomão edificou templos aos deuses pagãos, sendo um deles a Camos, deus dos moabitas, e outro a Moloque, deus dos amonitas.

"Então o povo árabe, segundo a Bíblia, não teve origem apenas no filho enjeitado de Abraão, mas também no incesto de um pai com suas duas filhas. Ora, ora! E Cristo seria descendente de um adúltero, o rei Davi!", ruminava o embaixador, que era cristão praticante e não estava gostando daquele relato.

Salomão, filho do rei Davi e de Bethsabá, reinou entre 1009 e 922 a.C. e não foi apenas mais sábio que seu pai, mas também mais promíscuo. E, devido aos pecados de Salomão, o Templo foi destruído várias vezes. Deus nunca quis o Templo de pé.

O rabino continuava sua pregação, sem perceber as preocupações do grupo.

Por isso veio a grande catástrofe. Os judeus se rebelaram contra o do­mínio de Roma e foram massacrados. Os romanos destruíram o Templo e levaram tudo o que havia de mais sagrado. Entretanto, não se tem registro de que tivessem encontrado a Arca da Aliança com as duas pedras em que estavam escritos os mandamentos ditados por Deus a Moisés.

E fez uma conclusão surpreendente para um rabino:

E por isso que os inimigos do povo eleito dizem que Moisés inven­tou os Dez Mandamentos para manter iludidos os judeus, que ele levara para o deserto quando fugia da acusação de um assassinato que cometera no Egito.

Com um gesto teatral, mostrou sua tristeza pelo destino do Templo:

Tudo o que restou dessa destruição é o atual Muro das Lamentações, como se a história confirmasse a lenda de que o demônio Asmodeus foi o arquiteto do Templo.

O diretor já pensava que cometera um erro ao convidar o rabino e espe­rava que ele terminasse logo sua pregação.

Na costa ocidental do Mar Morto eleva-se o majestoso monte Massada. Cercados pelas tropas romanas, mil zelotes anteciparam da maneira mais trágica o que aconteceu no Montsegur, com os cátaros. Os pais ma­taram suas esposas e filhos e, quando sobraram apenas os homens, foram sorteados dez deles para matar os outros e, depois de cada um ter cumprido sua tarefa, um deles foi sorteado para matar os nove finais e, em seguida, se suicidou.

Sua voz tremia através da respiração forte.

Mulheres e crianças punham as mãos nas costas e levantavam a ca­beça para facilitar o corte da garganta pelos punhais afiados. O sangue de milhares de suicidas lavou as encostas do Monte Massada.

E proclamou, desafiador:

Massada! Sim. Nunca esqueçam, Massada. Foi o maior suicídio cole­tivo de toda a história da humanidade.

Em outras circunstâncias, aquela narrativa teria despertado suspeitas. No entanto, a morte de Yussef os deixara transtornados. O estado de tensão já estava além dos limites. O diretor olhou para o relógio e o rabino enten­deu aquilo como um recado e concluiu:

Mas a maior afronta para o judaísmo é a frase atribuída a Cristo de que ele destruiria o Templo e o reconstruiria em três dias, profetizando sua ressurreição no terceiro dia depois de morto.

Se foi um alívio quando o rabino chegou, foi outro agora ao se despedir e sair.

 

                               CAPÍTULO 77

O movimento das cadeiras encobriu o suspiro que todos de­ram. O assessor Hawkins desabafou:

Não entendo mais nada. Afinal, o que estamos descobrindo? Que as religiões são a causa de toda a violência do mundo? Como pode um rabino afirmar que os Dez Mandamentos foram uma invenção de Moisés e que a Arca da Aliança não existiu? A Bíblia virou de repente um manual de violên­cias e promiscuidade? E por que ele usa a expressão Bíblia cristã e não fala em Talmude, a Bíblia dos judeus, nem tocou no Alcorão, a Bíblia dos muçul­manos? Não agüento mais isso. Vou pedir ao presidente para me substituir.

Todos estavam inquietos e a dúvida do diretor era a mesma dos outros.

O que será que não me convence nessa história?

Seu rosto estava vermelho e os olhos pareciam sair pelas órbitas, mas sabia que tinha de coordenar todas essas emoções de maneira equilibrada:

Melhor ouvir de novo a fita de Yussef, mas, antes, vamos passar a gra­vação dessa conversa com o rabino.

Um aparelho começou a repetir o monólogo do rabino. Em certo mo­mento o embaixador pediu meio agitado:

Podia voltar esse trecho?

Ouviram de novo:

Outros dizem que a Bíblia é um repertório de licenciosidades e não pode ser um livro sagrado. E lembram o incesto de Lot com suas duas filhas e que, desse incesto, nasceram dois filhos, que deram origem a tribos árabes que habitavam perto de Israel.

Aí, aí mesmo! Essas palavras: "...o incesto de Lot com suas duas filhas e que desse incesto nasceram dois filhos, que deram origem a tribos árabes que habitavam perto de Israel."

Não foi preciso pedir explicações. O diretor imediatamente rodou a fita encontrada no corpo do agente Yussef e lá estava a mesma frase: "...o incesto de Lot com suas duas filhas e que, desse incesto, nasceram dois filhos, que deram origem a tribos árabes que habitavam perto de Israel."

O diretor olhou pálido para o embaixador, que apenas acrescentou:

Há um certo timbre nessas vozes, uma semelhança de entonação e não pode ser coincidência a repetição das mesmas palavras. É como se o discurso tivesse sido decorado e uma frase foi colocada como um desafio semelhante às charadas encontradas por Maurício.

Foi acionado o alarme, mas já haviam passado uns quinze minutos e ninguém mais viu o rabino. Mais tarde, o Departamento de Trânsito, ao guinchar um carro cujo prazo de permissão para estacionar estava venci­do, encontrou no porta-malas um rabino inconsciente e seus documentos haviam desaparecido.

Pouco se produziu naquele dia. O atrevimento dos assassinos era atordoante.

O assessor exclamou:

Mas isso é demais!

Tudo leva a crer — completou o diretor — que o diálogo com o agente Yussef seja falso. Gravaram sua voz e a imitaram para fabricar a fita antes do crime. Yussef não teve tempo para aquele diálogo.

Era difícil de acreditar que um terrorista tivesse invadido o coração da CIA. Era demais para o diretor, que reconheceu, aturdido:

Todo o nosso sistema de segurança foi violado. Passar pelos controles de identificação e chegar até esta sala!... Incrível! A tecnologia mais avança­da criada pela CIA está sendo usada contra ela.

Estamos perdidos. É o apocalipse final. Já ouvi falar de vários apoca­lipses, mas esse será o último — Hawkins quase se virou para Meca em uma oração ao Profeta, esquecendo-se de suas convicções luteranas.

O diretor estava desorientado.

Esse falso rabino criticou ao mesmo tempo o cristianismo, o judaísmo e o islamismo. O que será que ele pretendia com isso?

O embaixador não estava tão abalado. Afinal, pertencia ao mundo diplo­mático e não à espionagem. Por isso, levantou uma hipótese inesperada.

É possível — disse — que ele tivesse vindo até aqui nos trazer uma mensagem. Ao criticar o cristianismo, o islamismo e o judaísmo, conforme o senhor resumiu, deixou o recado de que sua organização não pertence a nenhum grupo ligado a essas religiões.

É verdade! Concordo com esse raciocínio. Mas aonde vamos encon­trar grupos fanáticos que não estejam ligados à religião e à ideologia?

Além de preocupado, estava mortificado pela intrusão do falso rabino em seu gabinete e tentou justificar-se.

Todos os órgãos de espionagem correm esse risco. Estão tentando desviar nossas atenções ao mesmo tempo em que nos trazem novas pre­ocupações, como essa menção ao Montsegur. Estão jogando uma religião contra a outra para que elas se acusem mutuamente dos atos de terrorismo que estão planejando.

Não conseguiu, porém, convencer. A autoconfiança da CIA ficara aba­lada, porque estavam convencidos de que o assassinato do agente Yussef tivera por finalidade criar um momento de desorientação para facilitar o trabalho do falso rabino.

 

                                 CAPÍTULO 78

O assessor Hawkins não escondia o ceticismo:

Afinal, esta é uma reunião da CIA para descobrir um complô histó­rico ou é um Concilio Ecumênico? Se nós estamos aqui preocupados que esse Dr. Maurício venha a ser induzido a praticar um ato de terrorismo, de que maneira fará isso? Ele explodirá uma bomba, terá explosivos amarra­dos no corpo, ou o que mais pode ser?

E levantou uma questão aparentemente óbvia:

E se não for Maurício? E se ele já estiver morto e no lugar dele está um sósia como o falso rabino?

O diretor respondeu com serenidade:

O DNA dele vem sendo colhido sempre que o perdemos de vista. Não se preocupe. Um fio de cabelo é o bastante para essa análise, e em todas as camas em que ele dormiu foram colhidas amostras.

Com essa observação, o diretor dera a entender que deviam voltar a seus estudos. A questão religiosa assumia agora uma relevância maior com a morte do agente e o discurso do falso rabino. O professor Brandon descon­siderou o rosto franzido do assessor, quando levantou a questão da auten­ticidade dos evangelhos.

Uma das grandes dúvidas dos estudiosos do cristianismo é se todas as lições que atribuímos a Cristo partiram realmente dele. Ele não deixou nada escrito e os evangelhos, que deveriam trazer o seu pensamento, só apare­ceram quase cem anos depois e, como não podia deixar de ser, são contra­ditórios. A mensagem de Cristo, portanto, foi passada de boca a boca, sem documentação segura. Diziam que Ele era Deus, ressuscitou mortos, curou cegos, mudos, surdos, leprosos, expulsou demônios, transformou a água em vinho, multiplicou alimentos para saciar a fome dos seus seguidores e outros fatos, lembrados apenas pela tradição oral até merecerem a escrita cem anos depois.

O Assessor Hawkins era evangélico praticante e contestou:

Permita-me informar. Os registros mais fiéis — disse, em tom crítico —, e que talvez não sejam os da CIA, indicam que o Evangelho de Mateus foi escrito na cidade de Lugar, em Israel, no ano 50. O de Marcos, que não foi discípulo de Cristo, mas de Pedro, foi escrito por volta de 65. O de Lucas, que por sinal não era judeu, mas romano, data do ano 70, enquanto que o de São João foi escrito em Éfeso, entre os anos 95 e 100.

Pois é justamente isso — retrucou Brandon. — Ainda que haja diver­gências de datas, Cristo não escreveu a sua mensagem, e o que foi escrito mais tarde foram interpretações transmitidas por pessoas que sequer ouvi­ram Cristo.

O professor insistia em sua pregação antievangélica.

E agora vem outra questão séria. Muito séria. Quero pedir aos se­nhores que me entendam. Nós não estamos aqui para aceitar as verdades ditadas pela fé, mas sim para descobrir a verdade. Se queremos um milagre, devemos ir a uma igreja e deixar o problema por conta de São Tiago.

O recado foi entendido e ele continuou como um algoz daquelas consciências.

Pois bem, se já existem dúvidas de que os primeiros evangelhos não traziam o verdadeiro pensamento de Cristo, essas dúvidas aumentam em relação aos evangelhos que adotamos hoje, porque o imperador Deocleciano, no ano 303, ordenou a destruição de todos os escritos e símbolos que dissessem algo sobre o cristianismo. Os evangelhos foram queimados e consta que foram reescritos por ordem de Constantino dezenas de anos depois, sob sua orientação.

O embaixador resolveu intervir, concordando com o professor, mas em tom moderado para acalmar Hawkins.

Por essa explicação, os primeiros evangelhos já poderiam estar con­taminados pelos defeitos da tradição verbal, mesmo quando foram destru­ídos por ordem de Deocleciano. A partir de então teriam sido reescritos para seguir o pensamento que interessava à elite religiosa dominante.

Essa é a dúvida. A tradição oral trouxe seus defeitos em uma primeira fase e, posteriormente, o que temos pode ter sido uma reinvenção, que to­mou por base o que talvez já nem fosse verdadeiro.

Sei, sei — continuou o embaixador —, mas, além desse seu raciocínio, existe algum outro fato que possa reforçar essa tese?

Os pergaminhos descobertos em 1948 na localidade de Nag Hammadi, em Qumran, no Alto Egito, trazem evangelhos escritos por Maria Madalena, Pedro e Felipe, que não figuram entre os quatro evangelistas. A descoberta desses pergaminhos trouxe novos debates sobre o cristianismo e o mais importante para os pesquisadores não é o que está escrito neles, mas sim quem os escondeu.

Um raciocínio levava a outro e o diretor deu uma explicação.

Não havia segredo nas religiões antigas, como o budismo ou bramanismo. As perseguições religiosas surgiram com o cristianismo e criaram o segredo religioso. Por isso as informações, entre os primeiros cristãos, eram passadas pela via oral e os documentos eram destruídos ou escondidos. As­sim como esses pergaminhos encontrados no Egito, temos certeza de que outros existem e, quando encontrados, desmistificarão esse passado, que ainda domina o comportamento da humanidade.

Depois de dizer isso, o diretor ficou alguns segundos em dúvida, mas concluiu:

O cristianismo vive hoje o mesmo dilema dos tempos de Constantino. A pesquisa científica tenta provar que era impossível Cristo ter ressuscitado. E, se a ciência conseguir essa prova, Cristo seria ainda considerado Deus? E não sendo Ele Deus, como fica o mistério da Santíssima Trindade?

 

                                   CAPÍTULO 79

O embaixador aproveitou o entardecer para pôr suas idéias em ordem. Não bastassem aquelas discussões que destruíam com rapidez tudo aquilo em que sempre acreditou, não conseguia esquecer a imagem daquela moça que vira através do olho mágico da porta do hotel. Não a en­controu mais e sentia um aperto no coração cada vez que se lembrava dela. Seus passos lentos o guiaram até o memorial em frente à Casa Branca, onde

Lincoln, sentado em uma grande cadeira, olha para George Washington, na outra ponta do espelho d'água.

Aqueles monumentos exerciam sobre ele um grande fascínio e seu pa­triotismo crescia, quando lembrava os fatos heroicos da vida desses homens, ainda hoje as duas grandes colunas de sustentação de seu país. Para ele, George Washington era como Deus, que criara a grande nação, e, Lincoln, o Cristo que morrera por ela. Washington criou a democracia americana, mas Lincoln morreu por defender a igualdade de todos que nela vivem. Sim. Podia pensar assim, porque enquanto o monumento de Washington aponta diretamente para o céu, Lincoln parece um Cristo coroado em sua cadeira, olhando para o Criador.

Os acontecimentos se precipitaram e medidas adicionais de segurança, revisão de sistemas e estratégias tomavam agora muito tempo do diretor. Nos últimos dois dias, cada participante do grupo recebera tarefas especí­ficas para levar conclusões na reunião seguinte. Não conseguiam sair dos mesmos temas, como se aquelas reuniões fossem uma areia movediça.

Fazia um esforço maior agora para se concentrar, porque sua mente às vezes fugia para um campo ao mesmo tempo desconfortável e agradável. Como acontecem essas coisas? Estava sossegado em Brasília, contemplan­do o pôr-do-sol, esse grande companheiro dos solitários. De repente, reen­contra uma menina que há alguns anos se sentava em seu colo e, agora, o código das prioridades mudara.

O canal silencioso que ligava os monumentos de Lincoln e Washing­ton parecia um grande leito onde as alegrias e tristezas se revolviam em sonhos e pesadelos. Não gostava das idéias discutidas naquelas reuniões e sentira-se um herege quando o professor Brandon contestara a autentici­dade dos evangelhos.

Ele era implacável em sua objetividade, mas, para o embaixador, pouco interessava agora se os primeiros cristãos tinham dificuldade de entender que Deus era pai de Cristo, pois se Cristo já era Deus, não podia gerar a si mesmo. E como podia ser gerado de novo, se já existia antes? Como enten­der também que Cristo fosse tão velho como o pai e o pai tão novo quanto o filho? E como pode o Espírito Santo ser anterior ao Pai e ao Filho, mas ter a mesma idade dos dois?

Seu raciocínio não progredia. A figura de Elaine se interpunha e compli­cava essa matemática em que um Deus era três e três deuses eram apenas um. Isso era um assunto para teólogos. Olhou discretamente para George Washington, que parecia agora o diretor da escola primária onde estudou. Do outro lado, Lincoln lembrava o professor austero de giz na mão. Há quanto tempo tinha ocorrido aquilo? Certo dia não fizera a lição de casa e ficara encolhido na cadeira com medo de o professor o chamar. Por que as pequenas faltas da infância ficam na memória como uma condenação que se carrega a vida toda?

Um carro preto com quatro passageiros já dera várias voltas em torno dos dois memoriais e vários agentes circulavam disfarçadamente. Esse era seu país. Aqueles homens estavam ali para protegê-lo e não podia esque­cer a lição de casa. Mas por que não discutir esses assuntos com Elaine e com champanhe?

O espelho d'água do canal exercia um efeito hipnótico sobre sua mente e, aos poucos, ele foi lembrando detalhes das reuniões e das leituras que tinha feito. A figura do imperador Constantino o perturbava.

O Império Romano já estava decadente quando sua sede saiu de Roma para Bizâncio, na atual Turquia. Por sua vez, o cristianismo dominava as ca­madas mais pobres da população e começava a exercer sua influência sobre as classes dominantes. Constantino percebeu que essa nova religião podia ser a salvação do Império Romano e procurou trazê-la para si. Os bispos, porém, discordavam em um ponto fundamental: a divindade de Cristo.

O Papa Silvestre convenceu-o de que era preciso unir os cristãos em tor­no dessa divindade, pois se Cristo não fosse o Deus único, criador do uni­verso, o cristianismo se desfaria em várias religiões e comprometeria ainda mais a união do Império. Constantino convocou o concílio de Niceia, em 325. Apenas 18% de todos os bispos do império romano ocidental compa­receram. Os outros eram bispos submissos a Constantino, que já decidi­ra que só um Deus poderia fundar uma religião tão profunda e universal como o cristianismo. Ai de quem ficasse contra essa decisão!

Lembrou-se de que o assessor mostrara sua indignação de democrata contra essa explicação:

Então os bispos convocados eram todos partidários de Constantino? O senhor quer dizer que esse dogma não chegou a ser uma conclusão, dirí­amos, religiosa, mas sim política? E, ainda, sem liberdade de votação?

Com a pressão do imperador, vários bispos abandonaram o concilio para não sofrerem sanções e, foi, então, criado o Credo de Niceia que diz: "Creio em Um só Deus, Pai Onipotente, Criador do céu e da terra e de todas as coisas visíveis e invisíveis. E em Um só Senhor, Jesus Cristo, o Filho unigênito de Deus, gerado do Pai antes de todas as coisas...".

Estou cada vez mais confuso. Passamos de Compostela para Bizâncio e não chegamos a nada.

Pouco importava ao professor a crença de cada um:

Para Cristo ser Deus ele tinha de ressuscitar. Mas em que dia Cristo ressuscitou? Os senhores ficarão surpresos. Foi Constantino que oficializou a ressurreição, decretando que ela ocorrera em um domingo e, daí, surgiu o domingo de Páscoa. Acontece que o domingo é o dia do deus pagão Sol Invictus, adorado por Constantino.

Como conhecer a verdade? Deixar tudo por conta da fé? Mas fé em quem? O professor levantara mais uma estranha coincidência.

Os cristãos celebravam o nascimento de Cristo no dia 6 de janeiro, mas Constantino mudou para o dia 25 de dezembro, que era o dia de co­memoração do Sol Invictus, os chamados festejos de Natalis Invictus. Daí o nome de Natal ao dia do nascimento de Cristo.

Esse raciocínio absurdo indicava que Constantino moldou o cristianis­mo às suas práticas pagãs. Eram temas sensíveis, que alteravam séculos de crença religiosa, mas se alinhavam com as pesquisas de vários historiado­res. E o professor chegou a uma conclusão estonteante:

Constantino era pagão e se julgava o Sumo Sacerdote do Sol Invicto. Portanto, foi um pagão que criou o cristianismo que praticamos hoje. Ele se converteu apenas na hora da morte e foi um dos momentos mais im­portantes para o cristianismo, porque foi quando a cruz virou um símbolo religioso. Antes era apenas um instrumento de execução de condenados, como a espada ou os leões.

Segundo o bispo Eusébio de Cesareia, considerado o primeiro historia­dor cristão, Constantino, ao morrer, lhe confessou que teve duas visões. A primeira delas aconteceu nas vésperas da batalha de Saxa Rubia, quan­do teria visto uma cruz nas nuvens e ouvido uma voz dizer In Hoc Signo Vinces, ou seja, "com este signo vencerás". Venceu a batalha, mas a guerra continuou, e antes de outra batalha, que ocorreria na Ponte Milvio, sobre o rio Tibre, na entrada de Roma, no dia 28 de outubro de 312, ele teria ou­vido a mesma voz ordenando que substituísse a águia romana dos escudos dos soldados pelas letras "chi", "c", e "rho" que é "p", letras essas que eram as iniciais gregas da palavra Cristo. Constantino venceu a guerra e Maxêncio morreu afogado no Tibre.

Mas havia outras versões para esses signos.

Eusébio era o bispo de Roma e, portanto, o Papa. E só ele ouviu de Cons­tantino essa história. Os historiadores, no entanto, dizem que Constantino mandara seus soldados colocarem esses sinais nos escudos, em lugar da águia romana para não se confundirem com o inimigo durante a batalha, porque os soldados de Maxêncio também eram romanos e tinham a águia em seus escudos. Constantino saiu vencedor na disputa pelo título de im­perador e inventou mais esse milagre para ter o apoio dos cristãos.

O professor levantava questões que eles tinham de analisar, porque um fato previsível e que precisava ser evitado estava para acontecer em Compostela:

— Estamos há mais de mil e quinhentos anos desde esses fatos e quem somos nós para decidir o que de fato aconteceu? Mas devemos lembrar também que foi a mãe de Constantino, Santa Helena, quem descobriu a cruz na qual Cristo foi crucificado. Foi ela também que decidiu em que lugar Cristo foi crucificado e morto, e foi ela que mandou construir o Santo Sepulcro. Em 381, o imperador Teodósio convocou o concilio de Constantinopla para o qual foram chamados apenas os bispos trinitaristas, ou seja, aqueles que apoiavam o mistério da Santíssima Trindade. Compareceram 150 bispos, que votaram uma alteração no Credo de Niceia para incluir o Espírito Santo como parte da divindade. Os bispos dissidentes foram ex­pulsos da Igreja e excomungados.

Fora demais para um dia só.

Constantino marcou a data do nascimento de Cristo, decretou o domin­go como o dia da Ressurreição, impôs a divindade de Cristo, divinizou a cruz, proibiu as outras religiões, construiu a Basílica do Vaticano, reescreveu os evangelhos, enfim, sem ele não existiria o cristianismo. Com tantas dúvidas, talvez depois daquelas reuniões, o nome de "cristianismo" devesse ser mudado para "constantinismo".

 

                                    CAPÍTULO 80

Já entardecia e o embaixador contemplou por mais alguns minutos aqueles dois monumentos e voltou para o hotel. Deitado de costas, com as mãos sob a cabeça, pensava em Elaine. As reuniões com ela tinham sido mais proveitosas. Estava sonolento e sua mente cansada.

Não gostava daquele Constantino. Como um sujeito tão ruim podia ser canonizado? Nem bem tinha imposto a divindade de Cristo, mandou matar seu próprio filho, Crispus. Depois sufocou sua esposa, Fausta, em um banho com água fervendo, mandou estrangular o marido de sua irmã favorita, chicoteou até a morte o filho dela e se deliciava, tanto quanto Nero, assistindo a combates mortais de prisioneiros de guerra com animais selvagens.

Sua mente distraída foi substituindo Constantino pela estranha história da esposa do rei sicâmbrio Clodio, que fora violentada por um monstro marinho. A sonolência guiou seu subconsciente para um horizonte distan­te, onde o azul do mar refletia as cores do céu. Ele era agora o deus Netuno e vigiava o oceano quando viu aquele corpo nu, de curvas tentadoras, na­dando nas ondas preguiçosas da praia. Os raios sensuais do sol douravam a pele alva e ele foi tomado por uma inquietude que o fez mover-se até a superfície das águas. Aproximou-se, furtivo, e a envolveu com seus longos tentáculos. O pequeno corpo macio e frágil tentou desesperadamente esca­par, mas ele o manteve preso e com cuidado. O olhar que o enternecera an­tes refletia agora um intenso pavor que o excitou ainda mais. Ela desmaiou e não pôde ver que ele a levara para o trono de Netuno, e lá, no fundo das águas, fez seu sangue de deus dos mares se misturar com o sangue de uma criança que já crescia dentro dela.

Realizado e calmo, subiu à superfície e a depositou na areia branca da praia, onde os soldados do rei que procuravam pela rainha fugiram apavo­rados, quando o viram. Ele a olhou com ternura e disse:

De você nascerá uma dinastia de deuses. Seus cabelos serão longos e seus dedos cheios de magia. Seus descendentes serão superiores aos de sua espécie e cuidarão da terra enquanto eu cuido dos mares. Seremos dois poderes unidos em um só mundo.

O embaixador acordou sobressaltado. Fora um sonho curto e agradável que o impressionou. A cena ainda continuava viva em sua memória, mas era preciso esclarecer algumas coisas que o desorientavam. Voltou a pensar em Elaine. Ela parecia ter mais sensibilidade para interpretar a dramaticidade daqueles momentos. Será que já estava em condições de voltar a discutir aqueles assuntos?

Ligou para o quarto onde ela deveria estar. Uma voz delicada atendeu:

Alô!

Elaine! É o embaixador Williams. Poderíamos nos encontrar agora no bar do hotel para conversarmos um pouco?

Claro! Com prazer. Estarei pronta em quinze minutos. Estava mesmo ansiosa por alguma atividade.

Quando ela desceu, ele já estava em uma mesa meio afastada, onde po­deriam conversar livremente. Cumprimentaram-se, e ele perguntou se ela aceitaria uma taça de champanhe.

Mas o senhor não prefere uísque? O champanhe para mim está bem.

Vou acompanhá-la em uma taça de Don Pérignon enquanto con­versamos.

O champanhe chegou e brindaram o reencontro deles, em Washington, depois de vários anos sem notícia, desde o trágico incidente em que ela perdera o pai. Ele a olhava com a sensação de que aqueles cabelos louros bem penteados, que desciam sobre os ombros, e os olhos claros, que so­bressaíam na pele rosada do rosto, eram os mesmos da mulher com a qual sonhara minutos antes. Elaine era uma moça realmente bonita, e o leve enrubescer de suas faces denunciou que percebera a maneira inesperada de como a examinava. Mas o embaixador ficaria muito surpreso se pudesse ler seus pensamentos.

Na verdade, ela enrubescera porque, enquanto ele a examinava, ela o viu como um homem maduro, elegante, educado e bonitão. Sofria pelo pai e pelo noivo, mas se sentia desamparada. Reuniu o resto de suas forças mo­rais e deu um suspiro que ele entendeu como de alívio por ele ter desviado os olhos de seu bonito rosto e, então, fez um comentário displicente para iniciar a conversa:

Sabe? Estou achando que no mundo de hoje talvez valha mais a pena ir ao bar do que à igreja. O bar é um teatro onde os artistas são autênticos.

E, levantando o copo para o brinde:

Pelo menos me sinto melhor diante de um copo do que no con­fessionário.

O senhor veio inspirado. Comparar bar com igreja e copo com con­fessionário é bastante original. Um copo solitário talvez ajude o exame de consciência.

Ele riu, mas entrou no assunto que o levara a esse encontro.

Aquela história do monstro marinho com a rainha sicâmbria tem algo semelhante à anunciação de Nossa Senhora. O que você me diz sobre isso?

É uma das histórias mais fantásticas do cristianismo e tem servido para interpretações de todos os tipos.

Estou mais preocupado com aquele documento do imperador Cons­tantino. Acho que você tem mais coisa a dizer.

"Um rosto bonito não precisa desse sorriso", pensou, "mas fica melhor com ele."

O tema era sensível para ela, mas precisava perguntar:

Desculpe se a minha pergunta lhe traz recordações tristes, mas esta­mos em um momento de urgência. Você acha que o pessoal daquela ONG estaria procurando esse documento em algum lugar de Roma?

A pergunta de fato a desconcertou, mas respondeu:

Só podia ser isso. Um documento desses teria efeito devastador na credibilidade do Vaticano. Não entendo, porém, o que eles estavam fazendo nos subterrâneos de Roma. Ainda que conseguissem cavar um túnel para chegar ao arquivo secreto do Vaticano, como saberiam onde encontrar esse documento, se ele de fato existir?

A não ser que tenham alguém lá dentro para ajudá-los. Não sei se me entende, mas a cada dia penso que é assunto complexo demais para a CIA. Minha esperança é uma mente privilegiada que, no momento, anda sozi­nha pelos campos bucólicos do Caminho de Santiago.

 

                               CAPÍTULO 81

Na tarde do dia sequinte, o embaixador caminhava amargura­do. Saíra de mais uma infrutífera reunião e, quando chegou ao hotel, ligou para o quarto de Elaine. Teriam tempo para discutir suas preocupações até a hora do jantar.

Logo ela apareceu com um sorriso confiante. Após umas palavras de elo­gios à sua beleza e elegância, ele começou:

Sabe? Sempre aceitei os evangelhos como uma verdade que não devia discutir. É como se ainda fosse o tempo das heresias, quando nem a Bíblia se podia ler.

Ela preferia continuar nos elogios, mas ouviu com atenção.

Três situações criaram um impasse para as nossas discussões: a falta de conhecimento da vida de Cristo, o fato de que os evangelhos foram es­critos muito tempo depois que ele morreu e a interferência de Constantino. Por que apagaram da história toda a vida de Cristo? Estudamos a vida dos imperadores romanos, como César, Nero, ou de Ramsés e Tutancâmon, que viveram há milhares de anos. Então, por que motivo não sabemos nada sobre Cristo?

Era um tema delicado até para os dias de hoje e ela concordou com ele.

Quando se toca nesses assuntos, existe ainda o risco de sermos con­siderados ateus. Mas Cristo não proibiu a busca do conhecimento. Muito pelo contrário, Ele próprio estudou a lei mosaica e modificou o enten­dimento dela. Alterou a religião dominante. Enfrentou os doutores da lei e foi perseguido porque tinha idéias novas. Ele deu o exemplo de que religião não pode ser dogmática e imutável, como impôs a Igreja durante dois mil anos.

Todo tipo de informação que pudesse apresentar Cristo como um ser humano comum foi destruído. Os evangelhos foram escritos sob certa emoção, quando já se acreditava que Ele tinha ressuscitado e era Deus. En­tão, qualquer fato que indicasse o contrário, era imediatamente repudiado.

Ele ficou em silêncio, como se quisesse limpar a mente de coisas que o perturbavam, e ela entendeu que o grupo mergulhava nas profundezas do cristianismo, sem saber o que procurar, mas teve de admitir.

Os evangelhos sempre foram apresentados como uma verdade abso­luta, que ninguém se atrevia a contestar.

Podiam não contestar os evangelhos, mas tinham comportamentos diferentes diante deles. De onde você acha, por exemplo, que surgiu a cren­ça de que os merovíngios eram descendentes de Cristo?

Ela pensou um pouco, como se não tivesse certeza do que ia dizer, mas deu uma explicação.

A própria Igreja construiu isso, sem querer. É meio complicado, mas por volta do ano 200 o patriarca de Alexandria engendrou uma espécie de árvore genealógica para nomeação de bispos, dando preferência aos des­cendentes dos apóstolos. Vários candidatos a bispo começaram a forjar genealogias, e é possível que alguns se apresentassem como descendentes de Cristo. Essa pode ser uma das origens da lenda.

Elaine segurava o copo de champanhe, que espumava como as ondas do mar, e ele se lembrou do sonho de Netuno, que levou a rainha sicâmbria para o fundo do oceano. Os lóbulos da orelha dela eram mais bonitos do que o brinco, onde uma pequena pedra de brilhante desaparecia na cor rósea da pele. Os lábios combinavam com a maciez da ponta da orelha e o contorno do rosto tinha uma harmonia que destoava das incoerências do assunto.

Nem mesmo quando ela franziu a testa em um esforço de raciocínio que já havia abandonado, ele voltou à realidade. Sua mente não conseguia se fixar no que falavam e emoções mais fortes nasciam dentro dele. Ela estava concentrada, mas percebeu a distração do embaixador, que parecia absorto.

Embaixador!... Quanto o senhor quer por seus pensamentos?

Ele corou.

Oh! Desculpe. Esse assunto mistura Madalena, Netuno, Cristo, sicâmbrios, e me perdi.

Ela sorriu e cada um foi para seu quarto.

 

                                                         AS CRUZADAS

 

                           CAPÍTULO 82

Maurício andava solitário em uma linda manhã em que as idéias se desviavam das incoerências, em busca de um pouso seguro. Em Burgos, quando elas se encontraram em um ponto comum, ele pôde com­preender qual era o plano do inimigo e aplicara um humilhante golpe nessa organização criminosa. Fora, porém, um feito isolado e embora já começas­se a formar uma teoria sobre o que estava acontecendo, não podia se descui­dar. Algo brutal poderia acontecer para demonstrar que a organização era superior, como em uma espécie de vingança pelo fracasso em Burgos.

Esquivava-se de grupos, porque não sabia que perigo poderia estar entre eles, e, sozinho, podia raciocinar e fazer exercícios de alerta para quando tivesse de tomar iniciativas. A companhia de Patrícia era um apoio que o ajudava nesses momentos, mas alguma coisa a afugentava do inspetor. Poderia ter esperado a conclusão do inquérito em Burgos, mas usara a des­culpa de não gostar de assuntos policiais.

Seu raciocínio trabalhava em um campo imenso de hipóteses. Por que o detetive não aparecera antes de ele chegar a Burgos, como antes de San Juan de Ortega? Teve a leve impressão de que o inspetor Sanchez senti­ra uma pitada de ciúmes, porque se antecipara às investigações policiais e salvara a vida do arcebispo e de outras pessoas naquela catedral. Por outro lado, as charadas passaram a ser outro problema. Não podia confiar na ma­temática dessa organização e procurava uma lógica dentro de todas essas incoerências. Se antes pensava que tinham sido entregues quatro chara­das, agora estava com três, já que as de Irache e de Najera eram mensagens dissimuladoras para que ele se descuidasse em Burgos. Se estivesse certo, faltavam ainda cinco. Qual, porém, o enigma que se esconde por trás delas? A primeira leva à palavra caminho. A de Puente la Reina tem o significado, óbvio, de ponte, e agora surge a palavra tesouro. Três palavras, portanto, já estavam definidas, mas não esclareciam nada.

"Será que o pessoal da CIA entendeu a mensagem de Alexandre Dumas?"

Voltou a se interessar pelo canto dos pássaros e pelo colorido das flores como um elixir para a alma. Vilarejos de nomes pitorescos e solitários como Tradajos, Rabé de las Calzadas, Hornillas del Caminho e outros foram ficando para trás até chegar a Arroyo San Bol, um vilarejo judeu desaparecido.

Ninguém sabe o que aconteceu com a população de Arroyo San Bol, mas é certo que a Igreja não iria tolerar um povoado judeu dentro do Caminho de Compostela. Instintivamente, caminhou até a pequena casa que serve de albergue. Não encontrou ninguém e ficou alguns minutos sentado à som­bra das árvores, junto ao arroio. Sentiu-se melhor, idéias novas se juntaram às que já tinha e voltou a caminhar. Não conseguia encontrar vestígios de Patrícia e quase já se convencera de que não a veria mais, quando finalmen­te encontrou no albergue de Hontanas um bilhete em que ela dizia que não conseguira dormir bem e se levantara muito cedo. Ia reduzir as marchas de cada dia até que ele a alcançasse. Talvez o esperasse em Castrojeriz.

Tomado por novo entusiasmo, levantou-se cedo. Era ainda de manhã quando atravessou o enorme portal que resta nas ruínas do convento de San Anton. A estrada asfaltada continua fiel ao antigo Caminho e as portinholas por onde os monges passavam pão e vinho aos peregrinos resistem à destruição do tempo e do homem. Dali se descortina o castelo de Castro­jeriz, no alto de um morro. O peregrino se depara na entrada desse vilarejo medieval com a Colegiata de Santa Maria, atual santuário de Nossa Senho­ra de Manzano, ou da maçã, porque a imagem apareceu em uma macieira. A igreja é cheia de invocações ao mistério da Anunciação, com a imagem da Virgem Branca.

Mas o Caminho é cheio de surpresas. Um peregrino que não se vê há uma semana surge de repente, e a alegria do encontro é memorável. Alguns andam ligeiro, outros fazem um trajeto mais curto, e, assim, as alegrias do reencontro acontecem. No entanto, para quem vinha com o espírito preve­nido, casualidades geram suspeitas. Ele observava as quatro ferraduras pre­gadas na porta da Colegiata, quando o ciclista que encontrara no albergue de Granhon o cumprimentou.

Senhor Maurício! Bom dia! Não vi quando deixou o albergue em Gra­nhon. O senhor se levantou mais cedo que todos e, pelo visto, saiu quando ainda estava muito escuro.

Explicou que dormira ao relento, vendo as estrelas e a lua.

O senhor é muito corajoso. Dormir sozinho nesses campos! Confesso que o invejo. Ainda vou fazer uma experiência dessas.

Conversaram alguns minutos e o ciclista apontou para as ferraduras.

Sabe que muita gente ainda acredita que essas quatro ferraduras prega­das na porta da colegiata são as ferraduras do cavalo branco de São Tiago?

Ele se referia à Batalha de Clavijo. De acordo com a lenda, São Tiago desceu do céu montado em um cavalo branco para ajudar o rei Ramiro a vencer os mouros, que fugiram em debandada com medo dos golpes mor­tais que o santo desferia com uma espada semelhante a uma cruz. Talvez a batalha nunca tivesse existido, mas a lenda teve grande repercussão e sua divulgação ajudou a expulsar os mouros da Península Ibérica.

Mas você demorou muito para chegar até aqui, estando de bicicleta.

O ciclista riu e explicou:

Fiquei um pouco em Burgos para ajeitar minhas férias. Vou cola­borar esta quinzena como hospitaleiro no albergue de San Nicolau, logo mais adiante.

E, dizendo isso, despediu-se com um Buen camino.

"Burgos? Não o vi por lá. Se chegou antes, em que albergue se hospeda­ra? E como poderia ajeitar férias em Burgos, se trabalha em Madri?"

Patrícia não estava nos albergues de Castrojeriz. Ainda não começara o entardecer e ele atravessou a longa rua medieval, em torno da qual se fez a cidade, na esperança de que a encontraria em outro vilarejo. Ao fim de uma pequena planície, começa a subida do Mostelares, mas ele parou estupefato, ao pé do morro.

Uma pequena placa indicava a direção de Castrillo Matajudios.

"Castelo Mata-Judeus?!...", leu incrédulo. O Caminho teve uma cruzada para matar hereges, um apóstolo para matar os mouros e agora aparece um castelo de matar judeus. Teria a população judia de Arroyo San Bol sido conduzida para esse castelo? Teria o Caminho sido um pretexto para a purificação religiosa da Europa cristã? Ou ele estaria enganado e não seria essa a origem da palavra Matajudios?

Até então vinha se deparando com peças desajustadas de um quebra-cabeças: as vítimas não combinavam, como o caso do espanhol e da menina nos Pireneus e a madre superiora de Najera; o estilo dos crimes era diferen­te em cada assassinato, variando de envenenamento a ritualismo como o de Irache. Apesar dessas aparentes incoerências, no entanto, acabara des­cobrindo alguns pontos que se ajustavam e já começava a formular uma teoria. Subiu o monte e de lá do alto voltou-se para o imenso e distante horizonte que deixava para trás. Estava confiante e lembrou-se do discurso do inspetor em Atapuerca "Sir Francis Drake! Ora, ora!".

 

                                     CAPÍTULO 83

Assim que sobe o Mostelares, o peregrino encontra uma planície com campos cultivados. Os agricultores recolhem as pedras do meio dos campos para facilitar a mecanização da cultura dos cereais e as amontoam na beira do caminho, como se fossem mausoléus. Em alguns lugares, as pedras são arrumadas em forma de cruz, que ali pareciam estra­nhas figuras que o olhavam com suspeita.

Evitava companhias, embora não conseguisse entender como uma pessoa estranha conseguira entrar em sua vida e lhe causar sentimentos profundos. Tinha sonhos conturbados, que não o deixavam dormir direito e continu­avam a perturbá-lo durante o dia. Era uma situação contraditória, porque enfim estava só, como sempre queria estar. Podia agora levantar-se cedo, andar sozinho e buscar a paz interior que sentira no alto dos Pireneus.

Pensar era um de seus prazeres prediletos, e ia se deliciando com um momento desses quando divisou ao longe um grupo de peregrinos reuni­dos em torno de alguma coisa no chão. O que seria? Apressou o passo e, quando se aproximou, viu a bicicleta quebrada ao lado da estrada. Havia sinais de sangue no cascalho.

— Mas que descuido! — exclamava um peregrino. — Derrapar em um lu­gar limpo e plano como este e ainda bater a cabeça no monte de pedras!?...

Pelo que ouviu, o ciclista devia ter um celular e pediu socorro, porque o grupo vira uma ambulância sair dali antes de eles chegarem ao local.

Maurício constatou que a bicicleta era a mesma do ciclista de Granhon. Um duvidoso acidente. Aos poucos, os peregrinos se foram e ele teve mais liberdade para examinar os vestígios ao redor. Não viu sinais de derrapagem do pneu da bicicleta, e o monte de pedras não era tão grande que pudesse ter desmoronado em cima da cabeça de alguém. Examinou as pedras e uma delas tinha vestígio de sangue, como se tivesse sido usada como arma.

Estava claro que o ciclista caíra em uma cilada. Alguém o esperava atrás das pedras e o acertara com um tiro, simulando depois o acidente. A uns vinte metros adiante viu o rastro recente de um veículo, que atravessara os campos e saíra na trilha. Era certamente a ambulância, que devia estar escon­dida por perto e aguardava um aviso do assassino para recolher o corpo.

Por que, no entanto, deixaram a bicicleta?

Não seria outro recado para ele, porque já havia recebido os da cruz que­brada em Monjardim e das unhas do falcão em Najera. Esse era para outra pessoa, mas quem seria essa outra pessoa? E quem seria esse ciclista para ser morto logo depois que o encontrara em Castrojeriz? Não encontrou nenhum papel de bloco com letras caligrafadas em vermelho.

 

                         CAPÍTULO 84

Eram quase cinco horas da tarde quando viu ao longe o singelo edifício da Ermida de São Nicolau, do qual muitos peregrinos pas­sam ao largo, sem saber de sua curiosa liturgia.

O pequeno albergue é provavelmente o mais cativante do Caminho. Consta que suas origens remontam ao século XIII e teria sido fundado pela Ordem de Malta. Durante séculos ficou abandonado, vindo a ser restaura­do pela Confraria de São Tiago. Os hospedeiros revivem a cena do Lavapés e, como Cristo fez com os apóstolos na noite da quinta-feira que antecedeu à Paixão, lavam e beijam os pés dos peregrinos.

Depois de se acomodar, Maurício tomou banho e deitou-se para descan­sar do longo dia de caminhada e calor. Estava aborrecido com o assassinato do ciclista, que parecia relacionado com o fato de eles terem conversado em Castrojeriz, mas não entendia essa morte aparentemente gratuita.

O albergue era um lugar emblemático porque fora fundado pela Or­dem de Malta, também chamada Ordem dos Hospedeiros de São João. Maurício não queria pensar em mais nada, apenas dormir, mas aquele al­bergue fustigava sua memória. Lembranças confusas da visita que fizera a Clermont-Ferrand trouxeram a sua cabeça já cansada trechos do discurso do Papa Urbano II, quando incitou a população da França a organizar exércitos para retomar Jerusalém.

Conforme foi adormecendo, imagens estranhas ocupavam seu sono e ele se viu no meio de uma multidão, que gritava enraivecida:

"Matemos os infiéis. Matemos todos eles em nome do Bom Deus!"

A multidão respondia aos apelos de um pregador vestido de branco, com um grande chapéu em cunha invertida, que do alto de uma montanha le­vantava um crucifixo com as duas mãos e, com voz potente, pregava:

— O sagrado Túmulo do Senhor Cristo está hoje em mãos impuras. Uma raça amaldiçoada dominou aquelas terras cristãs e com ferocidade massa­cra, assassina, tortura e escraviza os peregrinos que vão pacificamente à Ter­ra Santa apenas para visitar o Túmulo do Senhor.

"Mas isso não pode estar acontecendo!", pensou assustado. "Esse parece o discurso do Papa, mas ele está com a fisionomia do inspetor Sanchez.

O Papa, ou o inspetor Sanchez, levantou as duas mãos como se fosse abençoar a multidão, mas em vez disso voltou a falar com voz inflamada:

Esse povo amaldiçoado que tem nomes de turcos, persas, árabes, muçulmanos, islâmicos, ou seja lá que outros nomes o Demônio lhes deu, é amaldiço­ado, digo eu, porque é estranho a nosso Deus, e nega a divindade do Senhor.

A multidão bradava:

Morte aos infiéis! Deus o quer! Deus o quer!

A voz do Papa, ou do inspetor, repercutia pelas montanhas e dava mais energia à raivosa multidão.

Nossas igrejas foram ultrajadas, cristãos foram castrados e seu sangue vertido em pias batismais para escarnecerem do santo sacramento do batismo.

Maurício ouvia incrédulo o inspetor Sanchez incitar a multidão que parecia espumar de desespero, para sair dali em busca da terra sagrada. Ele falava com a mesma convicção de Atapuerca, quando punha a culpa no Caminho.

Abusam de mulheres e crianças cristãs. Roubam os peregrinos, e quan­do os cristãos não têm dinheiro, eles abrem seus ventres com a lâmina da espada em busca de peças de ouro que poderiam ter sido ingeridas e assim escondidas.

O inspetor estava entusiasmado com o êxito de suas palavras e continu­ava cada vez mais incitador.

Esses infiéis amaldiçoados perfuram os umbigos dos cristãos e depois atam suas tripas a estacas e as esticam até outro poste onde as amarram para que os cristãos vejam suas próprias entranhas queimando ao sol, apodrecen­do e sendo consumidas por corvos e vermes. Depois soltam cães famintos para devorá-los ainda vivos.

Mas alguma coisa estava errada. O Papa estava mudando o discurso de Clermont.

Até agora vocês não passaram de desordeiros vagabundos que roubavam os bispados, assaltavam as abadias e estupravam suas freiras. Pois agora, se quiserem ser perdoados por esses vis pecados devem invadir as tendas dos turcos e misturar no sangue das virgens muçulmanas o sangue cristão que corre em suas veias.

E, então, notou estarrecido que o inspetor Sanchez estava vestido como o demônio.

Sereis guerreiros abençoados e todos os pecados que já cometeram e os que vão cometer estão desde já perdoados. Em nome do Senhor Jesus Cristo, eu lhes dou a vida eterna.

No momento em que ele pronunciou o nome de Jesus Cristo, houve uma explosão e agora era ele próprio, Maurício, falava para a multidão, como se fosse o Papa, enquanto o inspetor Sanchez estava em cima de uma colina montado em um bisonte pré-histórico como o Homem de Atapuerca.

Maurício não pôde controlar as palavras que saíam de sua boca e termi­nou levando aquela multidão ensandecida ao paroxismo:

Eu vos prometo que todo aquele que morrer e levar com ele o crânio de um turco se sentará ao lado do Senhor.

Fora um discurso glorioso e, quando o terminou, a multidão gritou em uma voz que se ouviu em todos os recantos do Paraíso:

"Louvado seja o Senhor meu Deus!"

 

                                     CAPÍTULO 85

Devia estar sonhando, mas não conseguia acordar. Era como se uma maldição o obrigasse a assistir a tudo aquilo para compreender os dias de hoje.

Tentou rezar e percebeu, de repente, que suas vestes de cavaleiro se transformaram em roupas de mendigo. Não só ele, mas todos os cavaleiros eram agora mendigos sem armaduras, sem cavalos, sem armas, descalços. Como se tivesse sido empurrado por uma força irresistível, dirigiu-se àquela hor­da de maltrapilhos e começou a gritar ferozmente:

Fui indicado por Deus para levá-los a reconquistar a Terra Santa. Não precisamos de armas, nem cavalos, nem de armaduras, porque a nossa fé nos protege e assim como as muralhas de Jerico ruíram com o som das trombetas tocadas pelos anjos, todas as portas de Jerusalém se abrirão e os inimigos cai­rão mortos ao pronunciarmos o nome do Senhor. Vamos! Sigam-me!

E, então, um bando de esfarrapados, desempregados, desordeiros e men­digos passou a segui-lo. Era venerado como Pedro, o Eremita, e chefiava a cruzada dos Mendigos, uma multidão de vândalos que, por onde passava, depredava, roubava, estuprava e matava aqueles que não lhes entregassem armas, mantimentos e roupas, pois quem se recusasse a ajudar na recon­quista da Terra Santa se equiparava aos infiéis.

Obrigaram os navios de mercadores a transportá-los pelo mar Adriático à Turquia e lá se depararam com o exército turco, que se lançou sobre eles. Um cavaleiro impetuoso veio em sua direção e a única arma que tinha era o cajado, que se transformou no mesmo instante em uma enorme espada com uma cruz no cabo. Montava agora um cavalo branco e avançou sobre os mouros, que fugiram assustados com sua ferocidade.

Dando golpes pela esquerda e pela direita, foi cortando cabeças, rasgan­do intestinos, enquanto gritava para seu exército de 300 mil cruzados:

Matem todos! Matem todos, porque Deus saberá escolher os seus!

Subiu em uma enorme pedra no centro da cidade, onde hasteou triunfante a bandeira do Papa. Era a pedra de onde os muçulmanos acreditam que Maomé subiu aos céus, mas ele, São Tiago, tinha reconquistado a Ci­dade do Senhor.

A carnificina fora tão grande, que o sangue chegava aos joelhos das pesso­as. Não houve piedade, e a sinagoga foi queimada com todos os judeus dentro dela, porque Cristo havia dito: "Quem não está comigo, está contra mim!".

Desesperado, gritava:

Matem todos! Matem todos! Todos aqueles que se diziam cristãos, mas viviam aqui junto com os infiéis, ajudaram a conspurcar o túmulo do Senhor. Matem! Matem! Matem! Todo aquele que convive com um muçulmano, e também o judeu que não aceita a fé pregada pelo Salvador, devem ter o mes­mo destino dos infiéis turcos.

Depois de lavar a Cidade Santa com o sangue dos pecadores, tomou o rumo dos céus. Ele era o apóstolo São Tiago, o Mata-Mouros, que voltava triunfante aos céus para prestar contas da missão que lhe fora confiada por Deus. Guiou seu cavalo branco por entre nuvens úmidas para tirar as man­chas daquele sangue impuro, que não podia entrar no céu. Mas quando lá chegou, o trono de Deus estava vazio.

"Muito esquisito. Deus nunca abandona seu posto! Ele deveria estar aqui saboreando essa vitória contra o Demônio. Então, onde estaria Ele?"

Como que para responder a essa pergunta, as nuvens se abriram e ele viu lá embaixo Deus recolhendo os corpos dos infiéis e os levando um a um para o Santo Sepulcro. Depois do massacre, os muçulmanos que escaparam da carnificina foram obrigados a levar os corpos dos mortos para fora da cidade, onde formaram montes tão altos como as muralhas. Deus agora os trazia de volta para dentro das muralhas da Cidade Santa.

"Mas isso não é possível! Deus está recolhendo os corpos dos infiéis e os guardando no Santo Sepulcro, junto com o corpo de Cristo? Mas por que Ele não leva os corpos dos cruzados que morreram na batalha? Algo está errado."

Um súbito temor o invadiu. Será que havia matado o povo de Deus? Qual seria então o povo escolhido? Mas o Papa havia prometido o paraíso para quem matasse os infiéis! Precisava descer e entender por que Deus estava do lado dos judeus, dos hereges, dos pagãos e tinha abandonado os seus.

Montou no cavalo e começou o caminho de volta à Terra Santa, mas as nuvens se fecharam e apagaram as flechas amarelas. Como descobrir o Caminho, agora? Desceu nuvem por nuvem, assustado e perdido. O cavalo desaparecera e ele estava deitado sobre uma nuvem. A umidade o inquieta­va. Uma gota de água fria lhe caiu sobre a testa.

Tentava se mover, mas não conseguia, como se estivesse sofrendo um ataque cataléptico. De onde vinha essa água, se já não havia mais nuvens? Teve um leve estremecimento e percebeu que alguém passava um pano molhado em sua testa.

O que houve? — perguntou, agitado.

Não se assuste. O senhor teve um pesadelo. Talvez tenha tomado mui­to sol no caminho.

Era uma freira, que não vira quando chegou ao albergue. Olhou para ela e então compreendeu que dormira e tivera sonhos perturbadores, que o acusavam. Sempre criticara a afirmação de Freud de que o sonho é a re­alização de um desejo. Preferia dizer que os sonhos nos acusam de alguma coisa. Quando bem analisados, se vê por meio de suas mensagens que estão nos revelando algo que pesa em nossa consciência.

A freira estava com uma pequena bacia de água e passava uma toalha em sua testa. Estava mais calmo e, então, viu que a freira era uma moça jovem e bela como uma santa. Só mais tarde descobriu que o forte pressentimento que se apossou dele naquele momento era a premonição de outro crime. Talvez por causa da intensidade de como a olhava, ou porque talvez tivesse percebido em seu olhar alguma centelha libidinosa, ela falou:

Nós todos estamos a serviço do Senhor. Cada um tem sua missão a cumprir para que o Bem vença o Mal.

Palavras enigmáticas. Será que ele deixou escapar alguma coisa durante o sonho? O que será que ela quis dizer com "missão a cumprir"?

Obrigado, irmã. Talvez tenha realmente exagerado na caminhada de hoje.

Que Deus o abençoe em sua peregrinação.

Enquanto ela se retirava, viu um corpo perfeito de mulher escondido por dentro de um hábito negro. "Por que pessoas como ela estragam sua vida para dedicar-se aos pobres e infelizes?" E voltou a ter o mesmo pressenti­mento de perigo de quando a vira logo que acordara.

 

                           CAPÍTULO 86

Às sete horas seria a cerimônia do lavapés. Seis cadeiras de cada lado estavam dispostas diante do altar. Maurício sentou-se em uma delas e a freira que enxugara sua testa aproximou-se com uma bacia de água e ajoelhou-se diante dele. Lavou-lhe os pés e depois os beijou simbo­licamente em um movimento rápido, dizendo:

"Em nome de Cristo os acolhemos no hospital de São Nicolau. Que o descanso o conforte e repare suas forças para que continue o Caminho. Amém."

Em seguida, o monge hospitaleiro deu as boas-vindas a todos e convi­dou-os para a ceia, acompanhada de vinho. Fora uma reunião alegre e des­preocupada que lhe fez bem. Deitou-se às dez horas junto com os demais e dormiu um sono reparador até as duas horas da madrugada.

Evitava se mexer sobre o colchão para não fazer barulho e acordar os outros, mas o vizinho roncava e ele não conseguiu mais dormir. Tentou ocupar a mente com um plano para aplicar outro golpe no assassino, como fizera em Burgos. A enigmática morte do ciclista não se encaixava. Quem na verdade seria ele? Se soubesse, muita coisa poderia descobrir.

Seus esforços para dormir não tiveram êxito e quando ele olhou no reló­gio eram quatro horas. Perdera completamente o sono e preferiu ir embora. Gostara da experiência de dormir ao relento depois de Granhon, e o ar frio da noite que sentiu ao abrir a porta do albergue deu-lhe novas energias. Atra­vessou a extensa ponte medieval sobre o Rio Pisuerga, e com a pequena lan­terna procurava as flechas amarelas que apontavam para as curvas do rio.

Ao longo das margens do Pisuerga, o arvoredo formava confusas figuras que se levantavam para o céu, aumentando os receios da noite. Arrepen­deu-se de ter saído tão cedo e talvez tivesse sido melhor não ter parado no albergue da Ordem de Malta. A evocação histórica do lugar o impressiona­ra e seus temores aumentaram.

Um ruído estranho às suas costas o assustou e ele gritou quase sem querer:

— Quem está aí?

Não viu ninguém e o silêncio voltou. Teria sido algum pequeno ani­mal? Os pálidos raios de claridade, que começavam a aparecer, não foram suficientes para reanimá-lo. Continuou andando, com a sensação de que alguém o seguia, como acontecera em Villambista. Estaria tão impressio­nado assim? Não, não estava, e sentiu vontade de voltar correndo para o albergue, quando ouviu passos de gente andando rapidamente por entre as árvores da margem do rio, como se quisesse ultrapassá-lo.

Correu a lanterna pela trilha e viu que as árvores que formavam a senda do Caminho brotavam de dentro de um valo largo, aberto, para escorrer a água da chuva, e algumas se juntavam, criando um vão entre os troncos. Ele escolheu um grupo de árvores e se protegeu no meio delas. Tirou a mochila e a deixou apoiada contra os troncos para simular que continuava ali, mas agachou-se com cuidado e esgueirou-se pelo valo, sem fazer ruído. Depois de ter-se afastado uns 20 metros, ocultou-se no meio de outro agrupamen­to de árvores.

Os passos se distanciaram e o silêncio voltou, mas continuou quieto, pa­rado onde estava, até que ouviu tiros. Desde os Pireneus, incomodava-se com esses sons invasores das sossegadas manhãs de sol, quando os caça­dores iam com seus cães atrás de coelhos e perdizes, mas agora eles o ale­gravam. Talvez tivesse se enganado, porque nada acontecera. O horizonte começou a se encher de cores, dando mais prazer à brisa fresca da manhã. Mas foi um momento de falsa felicidade. Ao aproximar-se de Itero de la Vega, suas pernas bambearam.

Diante da ermida de São Tiago na entrada da cidade, havia alguma coi­sa no chão semelhante a um corpo. Parou bruscamente e o pavor tomou conta de todo seu organismo. Quis gritar para acordar o povoado, mas sua voz não saiu. Seus olhos não acreditavam no que viam. As lindas cores que nasciam daquele bonito amanhecer não combinavam com a cena macabra de um corpo com a cabeça quase separada. Era a freira que cuidara dele no albergue. Estava caída, de costas para o chão, os braços abertos e o pescoço preso ao corpo apenas por uma tira da própria pele. O sangue ainda saía das veias e artérias, indicando que o crime ocorrera há pouco. Os olhos abertos revelavam o terror de quem pressentiu que ia morrer e não teve tempo para gritar, pois, se ela gritasse, ele teria ouvido.

Sentiu lágrimas caírem dos olhos e um sentimento de revolta o fez jurar que não deixaria a morte dela sem vingança, mesmo que tivesse de morrer. São promessas e juras que se fazem em momentos de forte emoção e não se tem certeza de que se poderá cumpri-las, mas uma coragem súbita, que nunca sentira antes, o fizera forte o bastante para pelo menos alimentar esse sentimento de justiça.

E então viu que a mão direita estendida ao lado do corpo segurava um objeto. Abriu os dedos ainda quentes e retirou o papel de bloco, com letras de calígrafo em tinta vermelha. Leu a seguinte frase:

"Os hereges devem ser esmagados como serpentes venenosas".

 

                           CAPÍTULO 87

Na sala de reuniões da CIA, o diretor não tirava os olhos da mensagem que acabara de receber. Em volta da mesa, o assessor Hawkins, os professores Brando e Anthony e o embaixador o olhavam, apreensivos. Algo muito sério devia ter acontecido, porque o diretor estava tenso, a respiração alterada, os olhos vermelhos, quase sem conseguir articular as palavras.

Perdemos mais uma agente. Deve ter caído em uma armadilha. Era uma excelente funcionária que eu mesmo contratei. Foi encontrada por Maurício hoje de manhã em um vilarejo do Caminho, com a cabeça sepa­rada do corpo.

Degolada! — exclamou, com enorme esforço, contendo a emoção.

A notícia os chocou e assustou. O diretor não esperou por perguntas, para explicar:

Conseguimos que a agente Helen ficasse em um albergue perto de Itero de la Vega, disfarçada de freira. Maurício chegou ao albergue ontem à tarde, com a fisionomia carregada e foi dormir. Teve pesadelos e ela o ouviu resmungando palavras sobre as cruzadas.

"Não gostei. Fisionomia carregada e tendo pesadelos? O que será que o levou a isso?", pensou o embaixador.

Maurício saiu do albergue hoje de madrugada. A agente Helen per­cebeu que alguém o seguia e enviou uma mensagem, dizendo que ia ver o que estava acontecendo.

Apesar de a notícia ter abalado o moral do grupo, havia uma certa in­coerência no relato do diretor. O embaixador preferiu ficar em silêncio. Afinal, aquele não era seu ambiente e logo o professor Brandon levantou a questão.

Mas ela é que deveria estar atrás dele, já que o seguia. Como foi que ele a encontrou?

Certamente ela foi capturada e carregada até um ponto mais adiante, onde foi assassinada. Um golpe na cabeça indicou que ela havia sido ataca­da antes. Devia haver mais de uma pessoa para fazerem isso.

Desculpe, diretor George — insistiu o professor —, a CIA deixou uma mulher cuidando disso?

Em certas missões, mulheres são mais eficientes do que homens. Mas o professor tinha razão, pois se tratava de assunto que escapava à rotina dos trabalhos.

Ela não deveria estar sozinha. Um agente fora morto pouco antes de chegar ao albergue. Ele ia iniciar trabalhos de hospitaleiro, tipo de pessoa que recebe os peregrinos. Ela estava esperando por ele e disse no telefone­ma que, provavelmente, a pessoa que estaria seguindo Maurício seria esse nosso agente. Recebemos hoje a informação de que ele fora assassinado com um tiro na testa e que depois bateram com pedras na cabeça dele para deixar manchas de sangue e simular um acidente.

No meio diplomático, uma consternação como essa levaria a infindáveis reuniões antes de reiniciarem os trabalhos. Por isso o embaixador admirou a objetividade do grupo em superar com rapidez o episódio e analisá-lo, como fez o professor:

Se ele estava sonhando com as cruzadas, então deve estar, como nós, fazendo ilações entre o que está acontecendo hoje e o que aconteceu no passado. As cruzadas foram um dos mais tristes envolvimentos do cristia­nismo. Desorganizaram toda a elite dominante na Europa, aprofundaram as dissidências internas da Igreja, endividaram a nobreza e o clero, santificaram o crime e consolidaram o poder árabe sobre a Palestina.

O assessor Hawkins era pouco entendido em assuntos da Idade Média, mas queria às vezes mostrar que estava atento.

Seria isso o bastante para o surgimento de uma seita que queira agora se vingar de coisas que as cruzadas fizeram? Será que essa seita não está ligada à Al Qaeda?

"Mansa ignorância", pensou o embaixador, que, de repente, chamou a atenção do grupo com uma observação.

Acho que estamos deixando o elefante escapar pelos vãos dos dedos.

Como se entendesse a pergunta muda que estava em cada olhar, explicou:

O Dr. Maurício está enviando mensagens desde Roncesvalles, e nós não percebemos isso porque estamos concentrados demais na nossa capa­cidade para resolver problemas.

E, dirigindo-se ao diretor:

O senhor disse outro dia que, no depoimento em Roncesvalles, ele tentou buscar a proteção da polícia espanhola. Começo a pensar de modo diferente. Ele queria chamar a nossa atenção para algo que também não sabia o que era. Ele queria a nossa proteção, pois se quisesse a proteção da polícia local teria pedido expressamente. Entretanto, pelo que tenho ouvi­do, ele vem fazendo um trabalho de esconde-esconde com esse inspetor.

O diretor estava com a testa franzida, procurando pensar com rapidez, e o embaixador continuou:

Por outro lado, não acredito que ele vá nos enviar problemas que possa resolver por lá. O senhor se lembra da República da Amazônia? No momento certo, ele nos enviou um recado convincente e de maneira ines­perada. Ele está como nós, sem saber o que vai acontecer, mas está atento e nos informando.

Como nos informando? — perguntou Hawkins.

Por suas atitudes. Sua presença contínua e participativa, em todos esses episódios, é como um relatório permanente que ele espera que saiba­mos interpretar.

O diretor passou as mãos pelo rosto.

Incrível! Como não pensamos nisso antes? E claro que ele sabe que o estamos vigiando e que tomaríamos conhecimento de tudo o que dissesse ou fizesse. Sem dúvida, suas atitudes são como uma espécie de mensagens, mas ficamos anestesiados com tantas notícias alarmantes.

O diretor olhou para o embaixador com respeito.

O senhor consegue ver alguma ligação das cruzadas com essa seita, admitindo que seja uma seita que esteja por trás desses crimes?

Estava justamente pensando nisso. As cruzadas não foram uma or­ganização, como os templários, nem uma instituição, como a Inquisição, ou mesmo um agrupamento permanente, como os cátaros. Não houve por parte de reis ou da Igreja nenhuma perseguição contra os cruzados, como a que houve contra a Ordem dos Templários.

O embaixador teve a sensação de que estava perto de uma importante conclusão, quando o professor Brandon o atrapalhou com suas explicações.

É importante entender a situação da Europa quando surgiu o movi­mento das cruzadas. Havia muitos nobres sem bens, porque a herança era do primogênito, e esses nobres deserdados se transformaram em assaltan­tes que não poupavam igrejas, monastérios e abadias. A produção de ali­mentos era escassa e os senhores feudais formavam exércitos para invadir as terras dos vizinhos. O número de mendigos e crianças abandonadas era enorme. A miséria e o sofrimento eram tais, que a única esperança era a salvação eterna.

Eram fatos conhecidos, mas o grupo ouviu, paciente, o professor.

O Papa Urbano II era um nobre francês e percebeu que tinha de levar para longe aqueles desordeiros. Teve então a idéia de uma guerra santa com a promessa do paraíso e propriedade das terras e bens dos mouros àqueles que os conquistassem. É fácil imaginar o que aconteceu. Foram ao todo nove movimentos reconhecidos como cruzadas, que durante dois séculos se dirigiram à Terra Santa em busca do céu e de fortuna.

Foi lembrado um triste episódio que colocou uma mancha indelével nes­se movimento cristão. Por falta de alimentos, muitas crianças na idade de dez a doze anos viviam como mendigos. Para se livrar delas, o rei Felipe, da França, foi convencido de que Deus havia escolhido as crianças para liber­tar a Terra Santa porque eram puras. As espadas e as lanças dos infiéis não as atingiriam porque Cristo proclamara: "Vinde a mim as criancinhas". Um espertalhão chamado Estevão foi incumbido de guiá-las para a Terra Santa, mas no meio do caminho as crianças foram vendidas aos próprios mouros.

O embaixador se arrepiou, como se estivesse ouvindo os gritos lanci­nantes de milhares de meninas sendo estupradas e garotos castrados pelas afiadas adagas muçulmanas para servirem de eunucos.

Por sorte, a voz enérgica do diretor o retirou daquelas tristes imagens.

É incrível! A Igreja sobreviveu, não resta dúvida. Mas a que preço? Com assassinatos, conspirações, guerras, genocídios, torturas, Inquisição, traições como a dos templários?

Calou-se. Sua face estampava a amargura que sentia pela morte cruel de sua agente.

E agora os senhores querem o quê? Pois eu estou realmente convenci­do de que os crimes que ameaçam o Caminho de Compostela são parte de um plano mais amplo para se vingar dessa secular esteira de barbaridades.

Estava aturdido e parecia desanimar. Colocou o cotovelo direito sobre a mesa e apoiou nele o queixo. Olhava para a parede como se estivesse vendo o corpo de sua agente com a cabeça separada, em uma estrada distante dali, sem sequer uma homenagem post mortem, enquanto reis viravam santos.

 

                                 CAPÍTULO 88

O assassinato da freira hospitaleira o atrasou e Maurício teve de pousar em Boadilla del Camino, que se destaca pelo pelourinho gótico, do fim do século XV.

Assaltantes e até mesmo peregrinos ficaram expostos à vergonha e à ex­posição pública, presos àquela imponente coluna por correntes e argolas. Nessa época, o Caminho entrava em decadência e a fé era substituída por uma justiça severa e punitiva, imposta pela Inquisição. O peregrino admira o pelourinho, tira fotografias e sai imaginando como pode uma obra de arte como aquela ter servido para a morte.

No dia seguinte, saiu antes do alvorecer. Algo o impulsionava para frente e ele respirava o ar adocicado que chegava com a brisa fresca dos campos. A lua ainda disputava com as estrelas o espaço do firmamento e ele parou vá­rias vezes para contemplar a Via Láctea, que se estendia sobre o Caminho, como um véu protetor do peregrino.

O amanhecer é sempre uma renovação, como se Deus recriasse o Uni­verso. Novas esperanças substituem os desencantos passados e Maurício acompanhou o Canal de Castilla pisando a mesma trilha usada pelas mulas que, amarradas a cordas, puxavam as barcaças, uma de cada lado do canal, em um trajeto de 207 quilômetros, no século XVIII.

O coração começou a alterar o ritmo das batidas ao se aproximar de Fromista, onde se dirigiu até o albergue e perguntou se uma peregrina cha­mada Patrícia pernoitara ali. A simpática anfitriã o encheu de esperanças:

Ah! É o senhor Maurício? Ela saiu há pouco e pediu para lhe dizer que o estaria esperando na Igreja de San Martin.

Ela disse isso?

Sim! Desse jeito.

Agradeceu e se dirigiu à igreja. "Como ela sabia que eu ia parar no alber­gue? Imaginou isso ou teria sido um ato falho?"

A Igreja de San Martin de Fromista estava mais para um templo de ini­ciados do que para uma igreja cristã. Erigida em 1066, suas três naves para­lelas são cortadas por um transepto sobre o qual o signo octogonal domina o ambiente. Toda a sua construção é um mistério e o simbolismo do teto sugere a criação de códigos e significados.

Era grande o número de igrejas com simbolismos iconoclásticos ou ma­temáticos, que transformavam o Caminho em uma espécie de tabuleiro de xadrez. Novamente ali estava o octogonal, como um signo que o desafiava.

O românico orientava suas construções com o altar voltado para o leste, de onde vinham as primeiras luzes da manhã, que venciam as trevas do pe­cado. A cúpula representa os céus e tem dois orifícios para o lado oeste, por onde entram os últimos raios do sol, simbolizando o juízo final. Ê por isso que o Caminho é chamado de Via Láctea, ou Caminho de Leite, porque segue essa longa mancha branca no céu, que se estica de leste para oeste, com mais de duzentos bilhões de estrelas e das quais o sol é apenas uma.

Ali, no meio da nave, olhando para cima com um interesse que ele não notara nela antes, Patrícia observava aqueles desenhos, mais como uma pesquisadora voltada para a iconografia do que como estudante de letras.

Um "bom dia" surdo, como se não quisesse quebrar o encantamento da­quele encontro, soou pela nave da igreja e repercutiu por todos os capitéis.

Ela voltou-se para ele e sorriu. Foram comedidos nas manifestações, em respeito ao ambiente.

Pensei que não a encontraria mais.

Estou feliz em vê-lo. Mas você não parece muito contente, mas sim cansado e desanimado.

Depois eu conto. Agora que estamos aqui, vamos estudar essa igreja, que é considerada um dos elementos mais emblemáticos do Caminho.

Ela apertou os lábios e balançou a cabeça.

Pensei que você ia dizer que estava com saudades de mim. Que sentiu a minha falta. Que ia me chamar de fujona, mas você gosta mesmo é de igrejas e símbolos.

Ele corou. Era verdade. Não fora gentil nem cavalheiro. Pediu desculpas e ela percebeu seu embaraço e sorriu. Deu-lhe um beijo em cada bochecha.

Estava vendo tudo isso com cuidado para lhe explicar quando o encontrasse.

Ah! Como foi gostoso ouvir aquilo: "quando o encontrasse".

Um folheto informava que a igreja, dedicada a São Martinho, fora cons­truída no fim do século XI e restaurada há questão de cem anos.

Restaurada há cem anos? Não gosto disso. A obra perde sua men­sagem.

Você esperava encontrar alguma mensagem nesse teto?

Ele balançava a cabeça de um lado para outro, desanimado.

Se os capitéis foram raspados, então eles perderam a espiritualidade. Esta igreja perdeu o misticismo. As almas dos peregrinos que morreram no Caminho viviam nesses pequenos relevos da igreja. São mais de 300 no beiral do lado de fora. Como podem ter feito isso? Arrancaram a espiritua­lidade que havia neles e só restou a formosura da arte. Eles deixaram de ser uma fonte de esoterismo cristão.

Ela não resistiu.

Esoterismo cristão?!... As almas de peregrinos que viviam nesses capitéis?!

Você não entende, não percebeu ainda. Preste atenção nessas figuras.

De onde surgiram elas? Os artistas da época precisavam se espelhar em alguma coisa. E o que era mais importante para eles no Caminho de Compostela se não o próprio peregrino? A peregrinação valorizou quem andava pelos campos e se sacrificava por ela. Para esses artistas, o peregrino que morria anonimamente no Caminho é que merecia a santificação. Como a Igreja canonizava os nobres e os membros do clero, os escultores santificaram os peregrinos anônimos. Por isso ninguém se atrevia a mexer nessas representações. Ultimamente existe um furor de restauração e os símbolos perderam sua riqueza espiritual. Restou apenas a arte, como uma lápide sem vida.

Pelo amor de Deus, nunca tinha pensado nisso — exclamou Patrícia horrorizada.

Existe uma invocação ao misticismo, não apenas nos crimes, mas em tudo que esse pessoal está fazendo. Essa igreja já não esconde nada do pas­sado e, pelas conclusões a que estou chegando, elementos novos ou restau­rados não participam desse jogo. Acho que podemos ir embora.

É bom mesmo sair deste ambiente. O que houve? O inspetor encheu sua cabeça de idéias?

Ele voltou à realidade.

Estou um pouco transtornado. Aconteceu uma coisa que me abalou profundamente. Ninguém volta a ser o mesmo depois de ver uma freira degolada em um amanhecer solitário no Caminho para Compostela.

Ela não conseguiu esconder a reação.

Freira?!... Era uma das monjas que cuidavam do albergue? Uma freira nova e bonita? Como é que ela era? Morena? Lembra a cor dos olhos? O cabelo?

Ele contou o ocorrido e descreveu a monja o melhor que pôde.

Você parece perturbada com a morte dela. Por acaso esteve nesse al­bergue também?

Não, não! Apenas fiquei realmente muito chocada com tamanha violência.

Mesmo depois de continuarem a caminhada, era visível o esforço que ela fazia para se controlar. A morte da freira a afetara profundamente. Ele preferiu manter a normalidade da conversa para aliviar a tensão e con­versava apenas para raciocinar melhor, mas era muito estranho que ela perguntara pelo cabelo da freira. Freiras não mostram cabelo.

Deve existir uma explicação para essas mortes. Não é um assassino agindo isoladamente, do tipo desses serial killers. Existe uma organização por trás disso. Há uma mensagem profunda nessas mortes. É como se al­gum fantasma viesse do fundo da história para nos assombrar hoje.

Mensagem? Então puseram uma charada no corpo dela?

Maurício entregou o papel que encontrara na mão da freira e ela leu:

"Os hereges devem ser esmagados como serpentes venenosas", mas o que isso quer dizer?

No ano de 1252, o Papa Inocêncio IV publicou um documento cha­mado Ad extirpanda, no qual afirmou que "Os hereges devem ser esmagados como serpentes venenosas". O Papa se referia aos cátaros.

 

                                 CAPÍTULO 89

Em todo esse extenso museu de arte sacra em que se resume o Caminho, o peregrino mantém vivas as emoções que sentiu ao atravessar os Pireneus e assistir à missa em Roncesvalles. Os milagres, os fantasmas ocultos pelas ruínas, trilhas regadas por mais de um milênio de lágrimas e suor saídos de dores, doenças, tristezas e desgraças produzem uma inexpli­cável energia que impulsiona o peregrino para frente.

Era para viver e sentir essas emoções que Maurício pensara em fazer o Caminho. Desde o início, porém, teve de substituir esse prazer pelo alerta contra um perigo desconhecido. O brutal assassinato da freira ofuscara a alegria do reencontro com Patrícia. O clima de tensão já se instalara nos 800 quilômetros do Caminho e alguns peregrinos tinham até mesmo desis­tido da peregrinação, porque não se sentiam seguros.

Mas, para quem continuou, o Caminho era longo e convidava ao movimento.

Era pouco mais de meio-dia quando chegaram a Villalcazar de Sirga. O sol quente, o cansaço, a fome e as tensões do dia os conduziram instintiva­mente a um pequeno restaurante na praça, e, dali, Maurício ficou estudan­do a igreja de Santa Maria la Blanca.

A igreja é considerada um dos góticos mais bonitos da Espanha, e sua imponente fachada tem uma atração especial. Existia antes naquele lugar um antigo monastério dos templários, que se reuniam onde hoje é a nave da igreja. Com o terremoto de Lisboa, em 1755, que refletiu até nessa região da Espanha, grande parte do edifício foi destruído e o remanescente foi transformado na igreja.

Quando as emoções se sucedem sem descanso e se misturam a pres­sentimentos e receios, a percepção se distrai. Era quase uma hora da tarde quando eles entraram na igreja, e nesse horário não é comum ver padre celebrar missa. Muitos peregrinos, no entanto, são sacerdotes e aproveitam os templos que ficam abertos para cumprirem a obrigação cotidiana desse santo sacramento. A riqueza interior deslumbra o despojado peregrino que anda em torno da nave e se fixa no precioso retábulo sobre o altar. Em re­ação ao protestantismo, que proibiu o culto às imagens, a Igreja começou a divulgar a vida dos santos por meio dos retábulos, tipos de painéis pinta­dos, porque o povo não tinha cultura suficiente para ler.

Eles admiraram o retábulo e andaram pela igreja, conversando em voz baixa para não perturbar o padre que rezava a missa. Maurício examinava tudo com cuidado, sem que nada de especial lhe chamasse a atenção. Che­gou à conclusão de que estava exagerando em suas preocupações e saíram da igreja.

Um peregrino mexicano, ajoelhado na escadaria em frente à porta, esta­va com um manto de Nossa Senhora de Guadalupe estendido à sua frente e repetia em tom monótono:

— Senhora de Guadalupe, ajude sua irmãzinha Santa Maria la Blanca a tirar o demônio de dentro da igreja. O demônio descobriu que o cajado é mais forte que a cruz. Senhora de Guadalupe, expulse o demônio do cajado que está profanando o sacramento da Eucaristia.

Maurício parou, estupefato. Quis perguntar ao peregrino onde estava o demônio do cajado, mas lembrou-se de que, enquanto mostrava à Patrícia o túmulo do último dos mestres templários do monastério, que estava en­terrado na abside da igreja, teve a impressão de que o padre rezara um Pai Nosso diferente, mas ele não imaginava que o perigo podia estar no padre. Em vez de ter dito "Pai Nosso que estais no céu, santificado seja o vosso nome...", o celebrante dissera "Pai santo, Justo Deus dos Bons...".

Aquele era o Pai Nosso dos cátaros e ele não atentara para o detalhe. Esqueceu o peregrino da escadaria e voltou correndo para a igreja. Lembrou-se de que o padre era um homem alto, forte, tez morena e disfarçava a fisionomia com trejeitos e um capuz. Ele devia ser o peregrino do cajado, o assassino que matara o padre Augusto, em Roncesvalles. O altar, porém, estava vazio. Nenhum padre e nenhum vestígio do celebrante.

Patrícia o acompanhava, mas Maurício se voltou para fora da igreja.

A escadaria! O peregrino mexicano! Precisamos encontrá-lo. Como fui cair nessa? Como esse mexicano sabia do cajado do demônio?

O manto, com a imagem de Nossa Senhora de Guadalupe, estava aberto sobre os degraus da enorme escadaria na frente da igreja, mas o peregrino desaparecera.

O sol estava quente. O uso secular do solo para a produção de cereais só deixou umas distantes e poucas árvores. Mas o Caminho se alimenta da solidão e o silêncio ajuda a recompor as idéias. Não havia mais nada a fazer, e eles seguiram adiante.

Depois de alguns quilômetros, em que cada um se bastava a si mesmo, Patrícia resmungou mal-humorada:

Desta vez não houve charada.

E, não agüentando mais a pressão, sentou-se no barranco e chorou.

 

                              CAPÍTULO 90

O embaixador não tirava a catedral de Brasília da cabeça.

Aqueles símbolos esquisitos sobre o altar, lembrando o útero materno, podiam estar ligados a essa concepção sangüínea do Santo Graal. Havia indicações de que os templários tiveram papel ativo no descobrimento do Brasil, e, nesse caso, não seria difícil que alguns cátaros os tivessem acom­panhado. Essa linha de raciocínio poderia levantar suspeitas. Seria Maurí­cio um descendente de cátaros?

O diretor também não escondia o desconforto.

Tenho de reconhecer que ele tem uma rapidez de raciocínio que me impressiona, e, apesar de me sentir humilhado, às vezes dá vontade de cha­má-lo para trabalhar na CIA.

Notou o olhar estranho dos outros e justificou:

Pois vejam. Essas charadas são como um desafio que ele aceita e acaba desvendando. Mas por que ele?

O embaixador tinha outras dúvidas.

E essa senhora chamada Patrícia, aliás uma americana que estudou literatura no Brasil? Ao que parece, ela se tornou companheira dele durante a viagem. Há informações mais completas sobre essa moça?

O diretor o olhou como se suspeitasse da pergunta.

O senhor tem alguma idéia nova?

Os vitrais da Catedral de Brasília representam um ovo rodeado de doze anjos simbolizando a Anunciação.

Na Catedral de Brasília?

O projeto inicial era de um templo ecumênico que em vez de torre teria uma coroa imitando a Estátua da Liberdade. O projeto foi mudado porque o Brasil é considerado o maior país católico do mundo e precisava de uma catedral católica. A coroa da Estátua da Liberdade foi, então, o mo­delo para a coroa de Nossa Senhora Aparecida, que é a padroeira do Brasil. Será que por trás dessa construção já não havia um simbolismo regional ligado a essa história? Por que uma seita com origem cátara o escolheria para uma missão terrorista?

Como se estivesse se justificando, concluiu:

Embora pouco plausível, é como o senhor diz: todas as idéias preci­sam ser postas sobre a mesa.

O diretor ficou pensativo e logo em seguida fez uma ligação do aparelho que ficava na mesa, mantendo o som para que todos ouvissem.

James. Os estudos de DNA daqueles grupos de Roma. Você tem algu­ma novidade?

Os arqueólogos da ONG Discovering the Past têm o DNA dos habitan­tes de uma região do sul da França, perto de Carcassonne.

E o DNA desse Maurício?

Não combina com os demais.

O embaixador não estava satisfeito.

E qual a origem desse Maurício? Seus antepassados estariam, por al­gum laço sangüíneo, ligados ao sul da França, nobreza francesa, enfim, a essas coisas das quais estamos falando?

A resposta foi precisa:

Ele vem de um tronco escandinavo, um imigrante que aportou no Brasil no início do século XVII e sem nenhuma relação com cátaros ou templários.

Com as mesmas dúvidas sem respostas, o embaixador mudou a questão:

Será que o episódio de San Juan de Ortega esclarece definitivamente a frase do padre: a prata não pode refletir a luz?

Não, não acho! — respondeu o diretor. — O que aconteceu em San Juan de Ortega foi uma dissimulação para dar a entender que a frase tem a ver com equinócio da primavera. Todas as simulações feitas e hipóteses levantadas não esclarecem o assunto. O padre conseguiu dizer apenas um pedaço da frase.

A lembrança da frase deixou-os frustrados. Estiveram todo esse tempo envolvidos com a história do cristianismo e a haviam esquecido. Sem saber o que significavam aquelas palavras, não conseguiriam decifrar o enigma.

 

                               CAPÍTULO 91

Na manhã seguinte, o grupo já estava reunido em torno da mesa quando o diretor entrou. Após um formal cumprimento, sentou-se, a secre­tária trouxe o café expresso que já servira aos outros e saiu. Sem disfarçar a ansiedade e a preocupação, ele distribuiu algumas fichas e esperou por alguns minutos.

Para mim, foi difícil acreditar nas conclusões dos nossos analistas. E talvez os senhores, em um primeiro momento, pensem como eu pensei.

Olhava para a xícara ainda com o café quente e se expressava como se ainda não acreditasse no que ia dizer.

Ou esse Maurício está brincando com os meus nervos, ou é possível que ele tenha nos enviado uma mensagem, o que não deveria nos causar impacto, porque de certa forma é o assunto que vimos estudando. Eu ainda tinha esperança de que essa organização não fosse tão perigosa, que nossos raciocínios ficassem no campo da fantasia.

Era normalmente um homem controlado e não podia deixar de ser de outra forma para o cargo que ocupava. O que então o preocupava tanto agora?

Como já viram, essas fichas resumem um conjunto de treze livros chamado Memórias de um médico, no qual Alexandre Dumas relata de ma­neira romanceada a Revolução Francesa.

Mas o que tem Alexandre Dumas com o Caminho de Compostela? — perguntou Hawkins.

A surpreendente resposta veio do professor Anthony.

A Revolução Francesa começou em Marselha e Alexandre Dumas si­tuou o tesouro do conde de Monte Cristo também em Marselha. Curiosa­mente, é o lugar para onde teria ido Maria Madalena com José de Arimateia depois da morte de Cristo.

"Será que o Dr. Maurício não está exagerando?", pensou o embaixador, que achou melhor tirar suas dúvidas.

Por acaso os analistas da CIA estariam entendendo que Alexandre Dumas baseou seu livro na hipótese de o tesouro do conde de Monte Cristo ser o tesouro dos templários?

O diretor apoiava a cabeça com a mão direita.

Essa é a questão. Se for uma mensagem, ele nos mandou descobrir de onde Alexandre Dumas tirou a idéia de um imenso tesouro escondido na região de Marselha. Com isso, vai-se consolidando a tese de que esta­mos diante de uma antiga organização secreta cujos poderes atravessaram a história.

Embora já viessem estudando a probabilidade de uma instituição cri­minosa com origens no passado, não queriam aceitar que ela pudesse atra­vessar os séculos sem ter deixado vestígios. Atentados, crimes políticos e outras atitudes que chegaram a provocar guerras fazem parte da história. No entanto, suas origens ou quem os cometeu ficaram conhecidos. A situ­ação agora era diferente. Um homem inteligente, participando dos fatos, os alertava de que Alexandre Dumas já tinha essa visão e que, portanto, uma organização poderosa, oculta no anonimato, vinha agindo ao longo da his­tória e até mesmo a escrevendo.

O embaixador estava cada vez mais perplexo. Quando lera Memórias de um médico, não estava interessado em cátaros, templários e Caminho de Compostela, mas teve de admitir:

Nessa história, a Revolução Francesa é relatada como tendo sido obra de uma organização secreta, a Ordem dos Iluminados, liderada por um mago, um homem com poderes sobrenaturais, que em vinte anos acabaria com a monarquia na França. Vinte anos, disse o feiticeiro de Alexandre Dumas, "... para destruir um mundo velho e reconstruir um mundo novo".

Voltava às já discutidas teses de sociedades ocultas.

Um misterioso personagem chamado José Bálsamo circulava pelo con­tinente e se fazia passar pelo conde Cagliostro. Seu sinal secreto era L.P.D.

O diretor voltou ao estudo das fichas.

Notem algumas circunstâncias interessantes, como a visão de Maria Antonieta sobre sua morte na guilhotina. Ela se dirigia a Paris para se casar com o delfim, Luís XVI, quando teve de parar no castelo de um nobre, onde encontrou esse mago, que a mandou olhar uma garrafa. O vidro da garrafa espelhava sua imagem na guilhotina, com a cabeça cortada.

Então, segundo Alexandre Dumas, a Revolução Francesa não teria sido uma revolta espontânea do povo contra a tirania, conforme diz a Marselhesa, mas uma conspiração induzida por alguma organização?

Em vez de esclarecimentos, o diretor acrescentou outra dúvida:

Pode ser que os jacobinos, a facção mais agressiva, tenham tirado seu nome de Jacques De Molay, que é Jacobus, em latim. Outra coincidên­cia é que os jacobinos queriam que Luís XVI ficasse preso no Templo, a antiga fortaleza dos templários, em Paris, como uma espécie de humilha­ção final, porque foi um rei da França que traiu os templários. Vejam estes versos da Marselhesa.

E passou uma ficha, onde se lia:

 

"Ouvis nos campos rugirem

Esses ferozes soldados?

Vêm eles até nós

Degolar nossos filhos, nossas mulheres."

 

A Marselhesa foi composta por um oficial francês chamado Claude-Joseph Rouge de Lisle, em Estrasburgo, na noite de 25 de abril de 1792, e foi chamado inicialmente de "Canto de guerra para o exército do Reno". Nessa região houve uma bárbara perseguição contra os cátaros, com In­quisição, fogueira e tudo o mais. Se lermos com atenção, veremos que a letra é quase um relato daquilo que os soldados do rei praticaram contra os cátaros.

Então, a Marselhesa não é de Marselha? — perguntou o assessor Hawkins, mas o diretor ignorou a pergunta.

No início do primeiro volume, Alexandre Dumas fala em "soberano das lojas do Oriente e do Ocidente", já indicando que se tratava de uma or­ganização que pretendia a destruição da monarquia francesa. Cria até um símbolo L.P.D., que significa Lilia Pedibus Destrue, ou seja, 'arranque os pés de lírios'.

L.P.D. — lembrou o embaixador, era uma espécie de código desse José Bálsamo.

Lilia, ou lírio, seria a flor-de-lis, que é o símbolo informal da mo­narquia francesa. Há quem diga que Lis deriva do nome do príncipe Luís, posteriormente Luís VIII, que pela primeira vez usou, no ano de 1211, o desenho dessa flor em seu sinete. Então, destruir os pés de lírio sugere a destruição da monarquia francesa.

O diretor parecia compreender que uma certa frustração se instalara na sala. Afinal, esse Maurício parecia um maestro regendo o pensamento deles.

Ele deve ter estudado a Revolução Francesa e certamente leu um resu­mo desses livros. Aparentemente, ele não tem certeza de nada, assim como nós. Mas como é ele que está vivendo o drama, sempre que chega a uma conclusão que faça sentido, ele a transmite para nós. Temos de reconhecer, porém, que há coerência em seu comportamento e em seu raciocínio.

O celular do Diretor o chamou novamente. Pouco depois ele abanou a cabeça com um sorriso.

O pessoal demorou um pouco para saber se havia algum significado, mas logo que chegou a Burgos ele entrou em uma livraria, ficou uns trinta minutos lá dentro, folheando livros. Depois que saiu, uma agente procurou saber que assunto o estaria interessando. Os livros eram A Heresia dos Cá­taros e Cruzada contra o Graal.

Como era de esperar, os analistas já haviam feito estudos desses livros e passaram para o grupo os pontos de interesse.

O diretor abanou a cabeça.

É incrível! O livro Cruzada contra o Graal informa que um homem ves­tido com uma túnica negra, durante a revolução em Paris, estocava com um punhal os padres que encontrava na rua e gritava:"Esta é pelos albigenses, esta pelos templários!", e quando a cabeça de Luís XVI foi cortada pela guilhotina, ele molhou os dedos no sangue do rei e esparramou sobre a multidão gritando: "Povo da França, batizo-te em nome de Jacques De Molay e da liberdade!".

Impressionante! — foi uma exclamação geral.

Faltava um livro, e o silêncio era uma pergunta muda.

Neste outro livro, A Heresia dos Cátaros, há uma informação preocu­pante. Hitler e seus conselheiros pertenceriam a uma sociedade secreta neocátara, e o teórico nazista Alfred Rozenber teria sobrevoado o Montsegur, no dia 16 de março de 1944, para lembrar os 700 anos da tomada dessa fortaleza pelos cruzados. Há indicações de que os nazistas consideravam os cátaros como arianos e se identificavam com eles.

Cada diálogo ressuscitava esqueletos do passado e o diretor trouxe uma informação interessante sobre os trabalhos da CIA nesse campo.

Já há algum tempo vimos trabalhando com o imaginário de muitos autores. Imaginário, diria eu, é o campo das imaginações e não o campo das hipóteses. Mesmo para este caso.

Ao embaixador, aquilo pareceu um exagero.

O senhor está querendo dizer que a CIA estaria dando credibilidade a romances que tentam reinventar a história a partir da imaginação?

O senhor mesmo está usando a palavra hipótese. Absurda ou não, podemos estar dentro de um novo campo de hipóteses: o das hipóteses absurdas.

O professor Brandon interveio:

O que o diretor quer dizer é que a criatividade da fantasia pode ajudar a pesquisa científica. É mais ou menos o que fez Júlio Verne, imaginan­do foguetes indo à lua, quando ainda não existia o avião, ou Conan Doyle criando a criminologia a partir de Sherlock Holmes.

Quer dizer que esse chamado "imaginário de hipóteses" nascido da ficção já vinha alertando sobre uma organização que há tempos pode estar influindo nos acontecimentos mundiais? — indagou o embaixador. — É o que eles querem dizer?

E continuou em tom grave:

Tudo isso me espanta. Se Alexandre Dumas, ao contar a história da Revolução Francesa, ainda que de forma fantasiada, alerta para a possi­bilidade de uma organização secreta ter induzido o povo a essa revolta, o mesmo pode estar acontecendo hoje.

 

                                       CAPÍTULO 92

Naquela tarde, o embaixador parecia deprimido. Elaine chegou sor­ridente e, depois de se acomodarem, o embaixador levantou o copo para o brinde costumeiro.

Acho que vou perder um amigo antes de conhecê-lo.

Não há como salvá-lo?

Temo que não. Continuamos divagando sem nada de objetivo. Te­nho certeza de que ele é vigiado de perto por nossos agentes, mas estamos de mãos amarradas. Não podemos tirá-lo de lá, porque isso seria pior até para ele. Seria eliminado posteriormente em um acidente qualquer. Para o governo americano isso também não resolve. O fato é que ele está sendo usado por nós, como isca, e parece que sabe disso.

O champanhe estava bem gelado, como gostava.

Recebemos hoje uma mensagem em que ele nos manda ler um conjun­to de livros de Alexandre Dumas. Não sei se já leu Memórias de um médico.

Ela acariciava o pé da taça com os dedos macios, como se quisesse acal­mar as bolhas nervosas que subiam do fundo.

Pois é. Alexandre Dumas levanta a suspeita de que a Revolução Fran­cesa foi uma revolta induzida por uma organização secreta ligada aos tem­plários. E, entre outras deduções, estranhamos que Alexandre Dumas ti­vesse encontrado o tesouro do conde de Monte Cristo em Marselha.

É verdade! Maria Madalena, o Languedoc! Vocês imaginam que Ale­xandre Dumas teve a idéia do livro O Conde de Monte Cristo baseado no tesouro dos templários?

Ou dos cátaros. Existem também referências de que Hitler poderia estar ligado a uma seita cátara.

O senhor está brincando!

O garçom se aproximou para repor o champanhe nos copos.

O jantar foi silencioso, com algumas palavras amenas, como se não qui­sessem tocar mais naqueles assuntos. Terminado o café, tomaram o eleva­dor e subiram para seus quartos. Ela ficava em um andar abaixo do dele e, quando a porta do elevador se abriu, trocaram o costumeiro beijo de boa-noite.

Durma bem, senhor Williams. — E completou sorrindo: — Está tudo muito interessante. Gostaria de poder ajudá-lo mais.

Teve a impressão de que ela demorou um pouco mais para sair do eleva­dor e quase a convidou para continuar com o champanhe em seu quarto, mas Elaine saiu e ele apenas disse:

Você está ajudando muito. Bons sonhos para você também.

 

                               CAPÍTULO 93

Igreja abandonada é um desafio ao demônio, que sempre tenta in­vadir o território de Deus. A majestosa igreja, que se erguia sobre um morro banhado pelo rio Cueza, tinha uma nova imagem ao lado do altar naquela noite. Estava escuro, e quando o sino deu as 12 badaladas da meia-noite, um cão uivou encobrindo o ranger da enorme porta de madeira.

Um vulto encapuzado entrou e, com passos moderados, chegou até per­to do altar. Ajoelhou-se e dobrou a cabeça até encostar a testa no chão, com as mãos na frente, como se fosse um piedoso cristão. Ficou assim em silên­cio, reverenciosamente, diante da imagem da qual saiu uma voz trêmula e disfarçada:

Falhamos em Burgos. Ele foi melhor do que nós.

Vim receber o castigo, Respeitável mestre, porque subestimei o adversário.

O humilde vulto aguardava as chibatadas com pontas agulhadas, como ele próprio já castigara muitos outros e alguns deles até o suspiro final, quan­do nem mais a cor embaçada dos olhos consegue dar sinais de sofrimento.

Ouviu, porém:

Seu trabalho em Itero de La Vega foi levado em consideração.

Não mereço o perdão, Respeitável mestre, e por isso me desdobrarei em todos os meus esforços.

A imagem continuava imóvel e a voz passava por ela como o eco de ou­tro som, que vinha de um ponto diferente.

Qual foi a reação dele diante do corpo da monja?

Indignação, senhor. Mas logo voltou a sua normal objetividade. Como era esperado, ele desprezou os símbolos de Fromista e agiu com rapidez em Villalcazar de Sirga.

Acha que ele já está preparado para a revelação?

Em Castrojeriz, senhor, ele mostrou que tem idéias sobre nossos ob­jetivos, mas precisa da revelação para confirmá-las. Observei-o em Arroyo

San Bol e na porta da igreja de Castrojeriz. Depois ele parou significativa­mente diante da placa para Castrillo Matajudios.

E como se comporta a mulher?

Ela ficou impressionada com a degola da monja, mas cumpre sua tare­fa. Continua com a mesma câmera e pede que ele tire fotos com ela.

E aquele policial, o inspetor Sanchez?

O vulto tinha as respostas prontas.

Ele hesita um pouco, mas é muito perspicaz.

O silêncio voltou à nave da igreja e, só quando ao longe o vulto ouviu os uivos de um cão assustado, levantou a cabeça. A imagem desaparecera. Ele recuou para a porta de entrada e também se escondeu na noite.

 

                                CAPÍTULO 94

Maurício tinha pressa de chegar a Leon. Já haviam deixado para trás Carrion de los condes, Terradillos de templários, Burgo Reneros, Sahagun e vários vilarejos sossegados, onde gostaria de ficar.

Já haviam percorrido mais da metade do Caminho e logo alcançariam o fim.

Tinha esperança de descobrir nos vitrais da catedral de Leon algum ele­mento novo, algum tipo de código em que pudesse enquadrar as charadas. Em um total de 737, todos eles dos séculos XIII a XV e distribuídos por 125 janelas, que somam um total de 1.750 m2, passaram a ser conhecidos como a 'teologia de Deus' por suas inúmeras representações bíblicas e sacras.

E foi com essa expectativa que venceram mais de 30 quilômetros sob o sol escaldante para chegarem cansados ao albergue beneditino das Irmãs Carbajalas, na Praça de Santa Maria do Caminho. Mas o jantar no boêmio Bairro Húmido, assim conhecido pelo consumo de vinho e cerveja, foi compensador.

Logo cedo tomaram a direção da Catedral. Maurício tinha certeza de que aqueles elementos bíblicos lhe fariam alguma revelação, mas quando entraram na igreja, ele foi tomado de profunda frustração. Os vitrais ir­radiavam seu esplendor e a nave parecia um reflexo do Paraíso. Chocado com aquela beleza que já tinha visto antes, mas não apreciara com tanta atenção, sentou-se em um banco, desanimado.

Patrícia sentou-se ao lado dele.

Em Fromista, você me disse que os crimes estavam ligados ao misti­cismo, mas isso aqui é deslumbrante demais. Essa exuberância não combi­na com misticismo.

Com a mão esquerda amassando as bochechas, ele olhava os vitrais, o altar, o teto e, por fim, balançou a cabeça.

De fato não combina. O peregrino não passa mais de algumas horas em cada lugar, e esses símbolos e representações são quase infinitos. Seria quase impossível para uma pessoa descobrir alguma referência aí em ape­nas um dia. Até agora as cenas foram rápidas e as charadas estavam à vista. Vamos ao Monastério de Santo Izidro.

No museu do monastério, uma misteriosa peça do século I desafia as lendas do Santo Graal.

Um cálice folheado a ouro em seu interior, adornado por pedras precio­sas na parte externa e um camafeu romano do tempo de Cristo, chamado de cálice de Dona Hurraca', uma senhora da nobreza medieval, foi o objeto que mais chamou a atenção de Maurício. Ele examinou a peça e explicou a Patrícia que aquele cálice era da época em que Cristo morreu. Saiu, porém, do museu, com mais dúvidas do que quando entrou. Estavam agora senta­dos na praça em frente do monastério e Patrícia pensava no cálice.

A peça é simples e seria do tempo de Cristo, mas foi adornada com ri­cas pedras preciosas. Teria sido esse o cálice que Cristo usou na Santa Ceia?

Maurício estava mergulhado em pensamentos, olhando a torre do mo­nastério onde um galo substituía a cruz.

Você está vendo o galo, lá em cima? Ele é o símbolo da esperança. Seu aspecto arrogante, sua plumagem, seu grito estridente e sua vigilância que se inicia ao nascer do dia, o associam à luz e ao fogo. Na liturgia medieval, ele era o símbolo de Cristo, com seu peito estufado desafiando sem medo o frio, a escuridão, os ventos e as tormentas, como Cristo desafiou o demô­nio, o deserto, as hostes romanas, os fariseus e a cruz.

Ela não sabia o que ele queria dizer e esperou por uma explicação que não veio.

O galo foi também o inspirador do sino, com seu forte cântico ao amanhecer.

Ai, ai! Assim não dá! Da teologia dos vitrais para o cálice de Dona Hurraca, e do cálice para o galo. O que esse galo tem a ver com tudo isso?

Ele se levantou e pegou a mochila. Olhou para o galo novamente e, com uma calma que a impressionou, disse:

Tudo vai ficando mais simples. Devemos apenas estar preparados para as novas revelações.

 

                                   CAPÍTULO 95

O embaixador não conseguia prestar atenção aos incansá­veis relatos de cruzadas, heresias e templários. Sua mente fugia da história do cristianismo para os encontros com Elaine, e mal conseguia disfarçar a ansiedade para sair dali.

Ela parecia mais bonita a cada novo dia, e eles já entremeavam algumas danças ao som da música ao vivo, na pequena pista redonda do bar do ho­tel. Tratavam-se com mais intimidade e ela o chamava de Williams.

Foi um alívio quando pôde enfim voltar ao hotel. Chegara um pouco mais cedo e, em vez de ir direto ao bar, como fazia sempre, subiu até o apar­tamento, tomou um banho, pôs uma roupa leve, dessas que os americanos chamam de casual, e desceu.

Não esperou muito e ela apareceu com o costumeiro sorriso, que pare­cia agora mais bonito. Seu caminhar gracioso chamava a atenção por onde passava, e ele se levantou para recebê-la.

Dom Pérignon, senhor? — perguntou o garçom.

Ele olhou para ela, que concordou com um sorriso e demonstrou certa intimidade.

Você hoje está mais esportivo. Fica melhor assim, mais jovial e mais bonitão.

Você também está muito bonita. Aliás, sua beleza e elegância chamam a atenção.

Era pesaroso voltar aos temas anteriores, mas o início da conversa já fora bastante para quebrar a formalidade entre eles. Os olhos, os gestos, os sorrisos e as expressões faciais criavam um diálogo paralelo.

O garçom serviu o champanhe e os copos se tocaram suavemente, como o sorriso cúmplice que acompanhou o brinde. Ele comentou:

Bem! Foi um longo dia de assuntos repetidos.

Ela respirou fundo, com o olhar perdido nas bolhas do champanhe.

Imagino que as pesquisas da CIA levem a várias direções que confir­mam as preocupações de vocês. Presumo que o tempo termina quando ele chegar a Santiago de Compostela.

Por isso vivemos repetindo frases, como se estivéssemos contando os passos dele.

Ela riu da comparação, e ele perguntou:

Como pode um passado tão complicado ressuscitar de repente?

Ela não respondeu, mas olhou com um olhar profundo, como se um tratado de filosofia estivesse impresso neles. Parecia mais bonita quando estava séria, e ele quase não entendeu o que ela disse:

Se realmente existe a possibilidade de estar acontecendo o que a CIA suspeita, acho interessante lembrar a maldição de Jacques De Molay. Quan­tas gerações mesmo ele amaldiçoou e quantos foram os reis da França de­pois dessa maldição?

Foram 13 gerações e a França não teve tantos reis. A vingança contra os pecados de Felipe IV e do Papa Clemente V pode recair sobre as gera­ções presentes. É isso o que teme a CIA.

Ela fez então uma pergunta, com ar malicioso.

O que você sabe sobre o pecado?

"Será que o champanhe de hoje tem mais álcool que o de ontem? Ou será que esse rosto bonito tem mais álcool que o champanhe?", pensava ele, que já se torturava por dentro, e apenas repetiu:

O pecado?

Ela mostrou naturalidade:

Sim. O pecado e também o confessionário.

Confessionário? — ele parecia não estar entendendo, embora estives­se gostando do assunto.

O pecado não foi instituído por Cristo. Aliás, para Cristo o pecado era uma coisa natural. Não foi ele que, para proteger a pecadora, disse: "Quem nunca pecou que atire a primeira pedra"?

Mas, então, quem instituiu o confessionário?

Foi um bispo. O bispo Calixto de Roma, no início do século IV, deci­diu que o clero podia perdoar os pecados, até mesmo os mais graves, como o adultério ou a apostasia. Antes dessa decisão, entendia-se que o cristão depois de batizado não podia pecar. Se cometesse pecado grave, tornava o batismo sem efeito e iria para o Inferno.

A palavra inferno não combinava com aquele momento de ilusões, mas ela continuou:

O martírio era o meio mais seguro de os cristãos irem para os céus, mas com a oficialização do cristianismo não houve mais martírio e, então, os cristãos o substituíram pelo autoflagelo, o autossuplício. Depois, para tornar menos sacrificada a vida dos cristãos, o auto-flagelo foi substituído pela penitência, dando origem ao confessionário. Esse medo do Inferno levou os papas a criarem as indulgências e, desse modo, arrecadar dinheiro para construir o Vaticano e enriquecer bispados.

Tudo parece muito artificial, muito fabricado. Por isso Lutero quis a Reforma.

Ao longo da História, e a História é longa, parece que as coisas foram sendo construídas, já que Cristo não está mais aqui para dizer se aprova ou não certas inovações.

Inovações? — evitava entrar na discussão de temas e preferia extasiar-se com toda a beleza de Elaine.

Sabia que o purgatório foi uma invenção da Igreja porque na Idade Média as penitências, às vezes, eram intermináveis e impossíveis de serem cumpridas? Para não ser preciso dar penitências impossíveis, criou-se o purgatório, e as doações patrimoniais começaram a redimir os pecados.

O jantar, à luz de velas, no elegante restaurante do hotel, foi acompanha­do de olhares e sorrisos maliciosos, e, antes de pedirem os dois expressos e a conta, foram para a pista de dança.

O champanhe e a música criaram novas emoções, e, quando o ritmo se transformou em uma suave música romântica, eles naturalmente se apro­ximaram mais, dançando com passos lentos, rosto colado e as mãos se encontrando em carinhosos afagos. Ele pôs a mão atrás do pescoço de Elaine e os lábios se encontraram em um terno beijo. Foi um momento extasiante, que repetiram ao compasso de músicas lentas, e, quando vol­taram para a mesa, o embaixador pediu a conta, que parecia nunca ter demorado tanto a chegar.

Naquela noite, o elevador não parou no andar de Elaine.

 

                                 CAPÍTULO 96

Uma longa ponte de pedras, construída pelos romanos em Hospital de Órbigos, lembra a estranha história de um nobre chamado D. Suero, que lutou durante um mês contra setenta adversários, em honra de uma dama cujo nome não se conhece.

O sonho de D. Quixote era vencer tantos adversários como D. Suero, e, não o conseguindo, desabafou sua frustração com uma frase que está ins­crita em uma placa ao lado da ponte: "Digam que são mentiras as lutas de Suero de Quinones del Pasol".

Todo lugar de grande simbolismo histórico, como a ponte sobre o rio Órbigo, podia ser palco de novo ato criminoso. Mas eles a atravessaram sem que nada acontecesse, e seguiram para Astorga, a Asturica Augusta, cidade que conserva ainda tradições romanas. Até hoje, em toda segunda quinzena de agosto, Astorga elege um César Augusto, imperador.

A paisagem da enorme muralha no alto de uma colina, com o palácio episcopal e as torres da catedral, anima o peregrino a apressar os passos.

A Península Ibérica teve a contribuição cultural e genética de vários po­vos. Os celtiberos eram celtas que habitavam a região em torno dos Pireneus. No ano de 409, os vândalos e suevos a invadiram e, enquanto os vândalos desceram para o sul, até a Vandaluzia, hoje, Andaluzia, os suevos ficaram no norte e fundaram a Galícia.

Era uma linda manhã quando deixaram Astorga, e Patrícia não resistiu ao espetáculo da fachada barroca da catedral projetada contra os raios do sol.

Ah! Quero uma foto comigo no meio dessa paisagem, mas com a minha máquina. Você tira?

Era um aparelhinho complicado, um tipo de máquina fotográfica que ele nunca tinha visto, mas ela sempre pedia para ele tirar fotos com aquela geringonça.

Continuaram depois o Caminho, e o dia correu tranqüilo, sob a proteção de nuvens benfazejas. Em Rabanal Del Camino, acabam as monótonas pla­nícies de Leon Y Castilla e começa a paisagem das montanhas.

As ruas silenciosas de Foncedabon, no Alto do Irago, surpreendem o cansado peregrino, que, desde o começo de sua caminhada, vive a expecta­tiva de passar por esse assombrado vilarejo e chegar à Cruz de Ferro, onde ele para, atira uma pedra ao pé da cruz e faz um pedido.

No início do século XI, um ermitão chamado Guacelmo colocou uma cruz de ferro no alto do Irago, a 1.531 metros de altitude, o ponto mais alto do Caminho. Com o tempo, ela se transformou em um dos locais mais sa­grados e mais carregados de forças espirituais do mundo das peregrinações.

Patrícia estava animada.

Não vejo a hora de chegar à Cruz de Ferro e jogar uma pedra carrega­da de desejos e esperanças.

A invocação das forças espirituais da natureza já era professada pelos po­vos asiáticos e árticos, na Antigüidade, e chegou até o Alto do Irago, onde se encontrou com a magia da peregrinação. Desde muito, o homem passou a acreditar no espírito das montanhas e no simbolismo das pedras. A pedra tem seus mistérios, esteja ela no alto dos morros, no leito dos rios, nas mu­ralhas dos castelos, nas pirâmides do Egito, nos templos, nos túmulos, nas estradas, nas pontes, nas torres das igrejas, nos monumentos, nos anéis dos reis e nos enfeites dos pobres.

Presságios brotavam daquelas casas de madeira velhas e abandonadas. Janelas abertas mostravam um interior escuro e Maurício sabia que olhos de bruxas os vigiavam. Os gatos magros e cães disformes deitados nas cal­çadas davam a impressão de que estava atravessando um mundo fantasma­górico. Patrícia foi aos poucos perdendo sua animação, talvez pelo cansaço da subida, talvez influenciada pelo silêncio do companheiro.

Que lugar! — exclamou. —Não sei se estou cansada ou se estou presa a esse chão de pedras antigas por uma força misteriosa. O passo não rende!

O alívio de deixar para trás o cenário irreal de Foncedabon melhorou os ânimos, e logo chegaram à esperada Cruz de Ferro.

Muitos peregrinos trazem de seus países uma pequena pedra para lançar ao pé da cruz e levar com eles uma daquelas já carregadas de espirituali­dade. Eles não tinham trazido pedras, mas pegaram uma do redor, e com um sorriso cúmplice, como se tivessem feito o mesmo pedido, cumpriram a tradição de jogá-las ao pé da cruz.

 

                                  CAPÍTULO 97

Assim que saíram de Foncedabon, um jovem rapaz francês caminhava devagar, consultando o Guia do Caminho, quando outro peregrino, alto, forte, vestido com um capuz que o protegia do sol e lhe escondia o rosto, se aproximou.

Bom dia — cumprimentou o estranho, cortesmente.

O rapaz respondeu e o outro perguntou:

Esta cidade abandonada me dá arrepios. Você acredita em demônios?

O rapaz sorriu e respondeu:

Há quem diga que eles existem, há quem diga que não, mas não gos­taria de me encontrar com um deles.

O outro acompanhou os passos vagarosos do rapaz e, depois de alguns minutos, começou a falar com voz soturna.

Eles existem, sim. Além daqueles que Deus expulsou do Paraíso, o próprio homem se encarregou de fabricar muitos outros.

O jovem olhou de soslaio.

Quando o imperador romano Teodósio se converteu ao cristianismo, ele proibiu todas as outras religiões em seu reino. Mas as religiões antigas, como as atuais, também tinham seus deuses. Adoravam o sol, a lua, o fogo, as montanhas inacessíveis, o raio violento das tempestades e o ribombar dos trovões. As florestas eram perigosas e surgiram os deuses animais.

Falava em um tom misterioso, com voz solene, como um pregador, e cativou o rapaz, que o ouvia com atenção.

Era infindável o número de templos dedicados a deuses poderosos, que impunham medo nos reis e imperadores. O povo lhes levava oferendas, e piras acesas alimentavam esses espíritos da eternidade.

Lembrou que sociedades adiantadas cultivavam seus deuses. Ísis e outros eram adorados pelos egípcios. Os gregos tinham Zeus, os romanos Júpiter. O fogo era um deus poderoso e, para muitos, ainda é. O rapaz parecia confu­so e não sabia o que responder enquanto o peregrino dava sua explicação.

Você já ouviu falar dos Eloins? Pois é. A própria Bíblia fala dessas di­vindades misteriosas como se fossem seres de outro planeta que chegaram à Terra e se apaixonaram por nossas mulheres e, por isso, queriam matar todos os homens.

O rapaz nunca tinha ouvido falar dos Eloins e pensou em procurar um ciber café, na primeira cidade, para pesquisar na internet.

Quando o imperador Teodósio baniu todos esses deuses de seu reino, como Deus fez com Lúcifer e os outros anjos maus, eles não deixaram de existir só porque foram expulsos do Império Romano. Lúcifer e seus com­panheiros também não desapareceram. Os deuses antigos existiam, tinham vida, tinham adeptos, o povo os via constantemente e foram chamados de deuses pagãos pelo cristianismo.

O rapaz olhou as montanhas da Galícia que circundam Foncedabon e começou a estranhar a insistência do peregrino.

Todos esses deuses se transformaram em demônios, como o anjo Lú­cifer e seus asseclas, depois que foram banidos pelo imperador romano. Al­guns se refugiaram no interior dos mares, provocando maremotos terríveis como não havia antes, outros se transformaram em monstros marinhos.

Alguns se esconderam no alto das montanhas e começaram a provocar avalanches. Os desertos se encheram de perigo e as cidades se tornaram violentas porque Teodósio encheu o mundo de demônios que não existiam antes. Os deuses faziam o bem, mas foram transformados em demônios, que passaram a lutar para voltar a seu altar.

Por um momento, o rapaz compreendeu que o mundo de hoje tem mais demônios do que o mundo antigo e que o ser humano vem criando demô­nios a cada dia. Instintivamente, começou a seguir o peregrino, que aban­donara a voz misteriosa e falava com humildade.

Mas existem pessoas boas, e uma pessoa boa afasta os demônios de perto dela. Quando estamos perto de uma pessoa boa, estamos longe dos demônios.

Conversavam displicentemente e logo chegaram à Cruz de Ferro. O pe­regrino mostrava-se emocionado.

Não podemos ir embora sem uma foto ao pé da cruz. Vou tirar um foto de você, com sua máquina, e depois você tira uma de mim, com a mi­nha. De acordo?

Claro. Aqui está. É só apertar este ponto.

Ótimo. Vai ser fácil. Já vi fotos dessa cruz, mas as melhores são aque­las em que o peregrino se abraça ao mastro, deste jeito.

Para explicar melhor, fez um movimento por trás das costas do rapaz e colocou nas alças de sua mochila um pequeno papel.

Mas abrace bem a cruz. Gosto de imagens místicas. Depois que você tirar a minha foto, jogaremos as pedras, como é da tradição, e faremos um pedido pelo bem da humanidade.

O rapaz subiu o monte de pedras, agarrou-se ao pé da cruz e olhou para o peregrino, que já estava com a máquina preparada e sorria agora, sem o olhar misterioso de antes. Ia ser uma foto bonita, porque a posição do sol era favorável, pensava o rapaz, que, em uma fração infinita da eternidade, viu o brilho relâmpago de uma câmera fotográfica voltada para ele, mas não teve tempo de perceber que dela saía uma bala calibre 22, que lhe atraves­sou a testa, no meio dos olhos. Apenas continuou por uns segundos preso à cruz. O peregrino saiu do lugar onde estava e foi se aproximando da pe­quena Capela de São Tiago, que fica perto da Cruz de Ferro, agachando-se às vezes, como se estivesse procurando uma pedra maior para jogar ao pé do cruzeiro, e desapareceu.

 

                                CAPÍTULO 98

Cada ponto do Caminho é um objetivo ao qual o peregrino chega como uma conquista, uma vitória sobre si mesmo. Mas alguns pon­tos, como aquela cruz solitária no alto da Galícia, têm um significado sim­bólico intraduzível. Simples, pequena, sem beleza, isolada, ela criou para o lugar uma atração indesvendável. Assim que passa por ela, o peregrino começa a sentir uma nostalgia que o acompanhará toda a vida e, por isso, volta-se para vê-la mais uma vez, em uma última despedida.

Ela é uma espécie de talismã que atrai e retira um pedaço do tempo da vida do peregrino para depois ir devolvendo ao longo do Caminho, como se não quisesse ser esquecida. Quem passa pela Cruz de Ferro sabe que não vai esquecê-la e que talvez não a veja mais.

Maurício e Patrícia tiveram essa percepção e, depois de andarem alguns minutos, voltaram-se para um último adeus. Lá estava a Cruz de Ferro sen­do venerada por aqueles que tinham fé e por aqueles que não tinham.

Patrícia olhou para a cruz e não resistiu à melancolia que aquele momen­to despertava:

É muito triste não ver mais aquilo que não se consegue esquecer.

Maurício prestava atenção no rapaz abraçado à cruz, como se não qui­sesse mais sair dali. Ela percebeu o nervosismo que tomou conta dele.

O que houve? A cruz o impressionou tanto assim?

Ele apontou para o peregrino ajoelhado.

Veja aquele rapaz.

O que tem ele? Está abraçado à cruz.

O rapaz começou a escorregar, o corpo rígido e a testa sangrando. Os pe­regrinos que antes pediam para que ele saísse, porque também queriam tirar fotos, começaram a perceber que algo de estranho estava acontecendo. Logo os ventos do Irago levaram com eles o grito histérico de uma mulher.

Maurício subiu correndo o monte de pedras e tomou o pulso do rapaz, embora soubesse que era tarde. O corpo tinha descido lentamente e fica­do em posição de oração. Olhou tristemente para ele e pediu a Deus que recebesse a alma daquele jovem, que viera ao Caminho em busca de paz. Não se surpreendeu com o papel de bloco, com letras caligrafadas em tin­ta vermelha, enganchado na alça da mochila. Guardou-o sem que outros percebessem. Não fazia muito tempo que o rapaz levara o tiro e o assassino devia estar por perto. A Capela de São Tiago parecia olhá-lo como uma testemunha do que acontecera. A porta estava semi-aberta e ele entrou, mas não havia ninguém lá dentro. Deu a volta na igreja e viu o rasto de alguém que descera correndo o morro embrenhando-se na pequena mata. Teve a impressão de ver lá embaixo, já distante, folhas de arbustos se mexendo. Patrícia aproximou-se.

Mas o que será que houve?

Alguém se ofereceu para tirar uma foto do rapaz e deu-lhe um tiro com um silenciador. Não há mais nada a fazer e é melhor seguirmos. Al­guém chamará a polícia.

Voltaram para o monte de pedra, onde o rapaz continuava agarrado ao pé da cruz.

Vi quando você pegou a folha de papel que estava na mochila do rapaz.

Não tinha como evitar.

É outra charada. Consegue traduzi-la?

Ela pegou o papel e leu.

"Até quando, Senhor, prorrogas o prazo de fazermos justiça e vingarmos nosso sangue?"

Não gosto de charadas. Mas que coisa macabra está acontecendo! Não entendi essa mensagem.

Tenho a impressão de que você vai encontrar alguma coisa parecida no Apocalipse, de João. Talvez esteja no Livro dos Sete Selos, quando ele fala dos mártires.

Mártires? Mas quais mártires?

Imagino que sejam os cátaros. O mistério fica mais claro na medida em que nos aproximamos de Compostela.

Como é que você desconfiou do peregrino ajoelhado? Como sabe que o assassino se ofereceu para tirar foto dele? Como adivinhou isso? Acho que me deve uma explicação e isso já está muito perigoso. Em Najera não foi diferente. Você desconfiou muito depressa daquele papel no vaso de flo­res. E, agora, como você adivinhou que este peregrino estava morto?

Não sei, não sei. Durante a caminhada o misticismo vem crescendo e quando o peregrino chega a essa cruz já está carregado de impressões.

Credo! Pare de me assustar com seu fanatismo e me explique como adivinhou que o rapaz estava com problemas.

Mas é isso que tento explicar. Eu tinha certeza de que alguma coisa grave aconteceria aqui e já estava me sentindo aliviado, quando me afas­tava, sem que nada acontecesse. Foi essa minha preocupação que fez com que, enquanto você via um peregrino ajoelhado ao pé da cruz, eu visse um homem se apoiando nela para não cair.

Ela parecia frustrada por não ter tido a mesma percepção e ele com­pletou:

O assassino sabia que iríamos parar e olhar para trás. Todos os pere­grinos fazem isso.

Essas câmeras digitais têm a vantagem de se ver a foto na hora. Vamos ver se identificamos alguém.

Tinham tirado fotos nas duas câmeras, na dela e na dele. Perto de umas dez fotografias, porém nenhuma delas mostrava pessoas suspeitas. Nem mesmo o peregrino morto aparecia nas fotos.

Com certeza, o assassino fez contato com o rapaz, pouco antes de termos chegado à cruz e preparou a encenação.

Ela estava assustada:

Quem será esse misterioso assassino? Como pode praticar esses cri­mes e desaparecer?

Fugiu por entre os arbustos.

Esse bandido é de uma impressionante precisão, não apenas na pon­taria certeira na testa da vítima, mas na maneira como conduziu a situação. Ele escolheu uma vítima, convenceu-a e aproveitou com muita eficiência o pouco tempo que teve desde que saímos de perto da cruz e paramos para olhar para trás. Credo! Nunca imaginei passar por uma coisa dessas.

 

                                   CAPÍTULO 99

Caminhar no alto daquelas montanhas, vendo ao longe os picos verde-escuros, envoltos em um véu de neblina, era um privilégio reservado a poucos. As rasteiras flores roxas e amarelas cobriam o cume da montanha como um tapete colorido, e trouxeram de volta o encanto do Caminho. Quando começou a longa e penosa descida do Irago, suas atenções se voltaram para as pedras e buracos. Nem quando vê lá embaixo a histórica cidade de Molinaseca, lembrada desde os primeiros séculos, o peregrino se alegra, porque lá de cima ele calcula a distância desse perigoso trecho. Sua alegria volta quando começa a atravessar a maravilhosa ponte de estilo românico sobre o rio Meruego.

"Ponte é uma ligação entre dois pontos. Em teoria, é, portanto, um fator de coerência. Por enquanto, só tenho um ponto. Sei de onde sair. Mas aon­de chegar?" Não sabia ao certo de que serviam esses seus raciocínios, mas os fazia para manter a mente alerta.

Chegaram a Ponferrada a tempo de visitar o Castelo dos Templários, uma das mais imponentes fortalezas da Ordem. Depois do banho, Patrícia estava mais animada.

Temos de seguir a rotina dos peregrinos. Não quero perder esse cas­telo. Gosto de visitar castelos. Para mim é como se eles fossem os bastiões da história. Nenhum tratado de história me causa tanto impacto como um castelo.

Ele continuou massageando os pés com um creme bactericida e riu com esse comentário.

É verdade. Na época, eles eram os últimos recintos de segurança. Ca­bia às suas paredes grossas a responsabilidade de preservar o poder e de­fender a comunidade. Não importa se os nobres, que nele moravam, explo­ravam o povo. As muralhas do castelo estavam ali para preservar o poder. Hoje existem os mísseis teleguiados, os submarinos, os navios de guerra, os computadores, os arsenais atômicos, enfim...

Respirou fundo e concluiu:

Castelo é um desafio à imaginação. Ele esconde a formosura das don­zelas e a elegância de cavaleiros protegendo um príncipe encantado. O cas­telo representa tudo. O poder, a riqueza e a segurança de uma construção sólida e bonita, sempre no alto de um morro. É uma espécie em extinção. Ninguém mais constrói castelos.

Muito antes, no lugar onde hoje é o castelo dos templários, havia um pequeno refúgio cercado de muros de pedra, um castrum, palavra que deu origem a castelo. Os romanos chegaram a levantar ali uma fortaleza, que foi destruída na invasão dos godos. O lugar adquiriu importância com o Caminho de Santiago. No ano de 1178, o povoado foi doado à Ordem dos Cavaleiros do Templo, que reconstruiu a fortaleza romana destruída pe­los godos, transformando-a em um portentoso castelo, e dali os templários passaram a proteger os peregrinos.

Ainda não existia a artilharia, e a ameaça dos atacantes se resumia a fle­chas ou catapultas para lançar pedras. Surgiram os alquimistas que, de tan­to fazerem experiências para descobrir a pedra filosofal, que transformaria tudo em ouro, acabaram por inventar o fósforo, e, ao tentarem criar o elixir da longa vida, descobriram o álcool. A pólvora apareceu na China no sécu­lo IX, e pouco depois os árabes também a empregaram, passando em segui­da para a Europa, onde os monarcas a usaram para se protegerem contra os senhores feudais. A pólvora deu origem aos canhões e levou ao reforço das muralhas, que antes estavam preparadas para flechas e catapultas.

A fachada do castelo com suas belas torres dominava a paisagem urbana, apesar das edificações modernas. Eles ficaram por alguns minutos admi­rando sua imponência e, depois, subiram a rampa de acesso protegida, à esquerda, pela torre dos Caracóis e, à direita, pela torre das Cabras. O cas­telo lembrava contos de fadas e a corte do rei Artur. Para o peregrino que desde Roncesvalles convivia com as lendas e mistérios do Caminho, o con­junto semi-ovalado de muralhas protegidas pelo Vale do Sil traz à mente a pergunta que a história ainda não respondeu: como puderam os Cavaleiros do Templo terem sido dominados com tanta facilidade?

 

                                  CAPÍTULO 100

Assim que passaram pelo portão de entrada, foram toma­dos pelo clima de mistério que fomenta as lendas sobre esses guerreiros e sobre a ignóbil traição que os levou à extinção.

A senhora que tomava conta do guichê apontou um grupo de turistas com um guia e, se eles se apressassem, teriam tempo de segui-los. Aproxi­maram-se quando o guia já cumpria seu papel de entreter os visitantes com as curiosidades do templo.

Todas as edificações medievais que ocupavam essa área em frente de vocês foram derrubadas para a construção de um campo de futebol. Se observarem melhor, podem ver que o arco do portão, do século XIV, foi destruído para poder passar os caminhões.

O guia informava que as construções dos templários eram do século XII e feitas com pedras de cantos arredondados. Depois da extinção da Ordem, o novo senhor, Pedro Fernandez de Castro, construiu outro castelo, em um dos extremos da área, quando então se deu início às edificações com pedras quadradas e retangulares.

Subiram até o alto da torre construída por Fernandez de Castro, onde o guia explicou a origem do culto à Nossa Senhora de Encina.

Quando os templários cortavam madeira, na margem do rio Sil, para construir o castelo, encontraram uma imagem de Nossa Senhora no tronco de uma 'encina'. Daí o nome da padroeira da cidade. A encina pertence à família dos carvalhos.

Enquanto o grupo olhava para a torre da bonita catedral, o guia fez uma pergunta:

Vocês sabem de onde vem a tradição de que sexta-feira 13 é dia de azar?

Ninguém respondeu.

Foi em uma sexta-feira 13 que os templários foram presos à traição e condenados à fogueira. Vem desse episódio a tradição de que esse é um dia de azar.

Era uma informação apropriada para um castelo dos templários e o guia passou a explicar a função de cada torre, os brasões, os corredores para as rondas, enquanto davam a volta pelas muralhas até chegarem de novo ao portão de entrada, por onde subiram uma rampa, à direita, junto à muralha de pedra, até uma porta lateral, que estava trancada. O guia a abriu e, de­pois que eles entraram, trancou-a de novo. Desceram uma escada de pedra de aproximadamente seis metros e chegaram a uma sala retangular. Maurí­cio se lembrava de já ter estado ali antes, mas naquele ano era uma espécie de porão aberto. O castelo agora vinha passando por uma restauração que nada tinha com suas características históricas, e o local estava coberto com um teto de madeira.

O guia adotara uma postura solene e sua voz soou como se estivessem em uma cerimônia:

Esta sala era a capela do Templo onde também se fazia a iniciação. Os iniciados tinham a percepção da divindade e deviam usar essa percepção para distinguir o falso do verdadeiro, assim como Deus reconhece os seus.

O grupo não se manifestava nem tinha em suas faces aquela curiosidade que os turistas normalmente têm por cultura descartável. A voz mudara para um tom acusador.

O Caminho foi o único culpado pelo genocídio contra os cátaros, foi também o único culpado pelos crimes contra os templários e pelos crimes praticados pela famigerada Inquisição.

Maurício observou discretamente aquelas pessoas. Tinham idade de 20 a 40 anos e usavam tênis e roupas próprias para ginástica. Seu instinto não o enganara em Foncedabon e o alertava novamente. Por que o guia tran­cara a porta quando entraram? Por que essa história de iniciação? Por que também lembrar ali a ordem do abade Amaury, quando ordenou a morte de todos os habitantes da cidade de Bezier: "Matem a todos que Deus reco­nhecerá os seus"?

Todos os peregrinos tinham de passar pelo Languedoc e, quando ali chegavam, descobriam um modelo de cristianismo puro, que os tocava na alma e suas aflições se acalmavam.

Patrícia parecia indiferente.

A Igreja tinha perdido Jerusalém e os árabes avançavam inexoravel­mente sobre os territórios cristãos. O trono papal estava ameaçado com a conquista da Península Ibérica. O Islã já se aproximava do Vaticano. O sopro de esperança que nascera com a descoberta do túmulo do apóstolo São Tiago, de renovação do cristianismo, passou a ser o maior perigo para a Igreja, porque a religião praticada pelos cátaros se espalhava com rapidez por toda a Europa, por intermédio dos peregrinos, e a atingia em seus pon­tos mais vulneráveis.

A voz tinha agora uma sonoridade messiânica.

Os peregrinos caminhavam meses apreciando a vida simples dos campos e quando chegavam ao Languedoc entravam em contato com os cátaros. Ali descobriam um cristianismo puro praticado como nos tempos dos apóstolos, sem o luxo, a avareza e a corrupção do clero. Eles passavam por aquele território, tanto na ida como na volta de Santiago. O Papa com­preendeu que enfrentava uma ameaça em seu próprio terreno. Organizou, então, uma campanha violenta, a Cruzada Albigense, que praticou o geno­cídio dos cátaros.

Maurício mantinha o rosto inexpressivo, como os demais.

Os templários eram o exército mais forte de toda a Europa e dis­punham de uma grande fortuna. Quando o Papa Inocêncio III criou a Cruzada Albigense, os templários se recusaram a lutar contra os cátaros, alegando que a Ordem fora criada para proteger a Terra Santa e não para matar cristãos.

As palavras pareciam ribombar no teto e cair sobre eles, como uma acusação.

E foi porque os templários se recusaram a participar dessa carnificina, que Felipe IV e Clemente V urdiram a inominável e cruel traição contra os Pobres Cavaleiros de Cristo.

Sua voz aumentou o tom de indignação quando falou da Santa Inquisição.

Mas não ficou só nisso. Para garantir o completo extermínio dos cátaros e de todos aqueles que com eles simpatizassem, o Papa criou um órgão especializado na tortura, o mais terrível instrumento de crueldade que o mundo já conheceu. Na cidade de Toulouse, capital do Languedoc, terra dos cátaros, foi criado o Tribunal do Santo Ofício, que passou a ser chamado de Inquisição, pois sua especialidade era inquirir até que a víti­ma não suportasse mais os sofrimentos e assinasse uma confissão ditada pelos inquiridores.

Passou para um estilo professoral, sem alterar o tom de ameaça.

Acho que vocês compreendem agora por que o Caminho para Santia­go foi o culpado dos crimes contra os cátaros, dos crimes contra os templá­rios e de todos os crimes praticados pela Inquisição, pois se não houvesse essa peregrinação os cátaros e os templários não seriam exterminados.

Ninguém perguntou nada, como se tudo estivesse combinado, e ele concluiu:

Enganam-se, porém, aqueles que pensam que a luta pelo Reino acabou.

Sem mais comentários e até mesmo de maneira abrupta, abriu a porta e, quando eles saíram no pátio, o grupo se dispersou com a polidez de mú­mias sorridentes.

Lá embaixo, o vale do rio Sil parecia uma grande moldura de despedida do sol.

 

                               CAPÍTULO 10

Ao saírem do castelo, passaram pela praça central e entraram em um restaurante italiano. Maurício sempre acreditou que não existe dia difícil que um bom vinho não possa alegrar, mas se enganara. Ele pedira um Chianti clássico e, quando os copos se tocaram na alegre melodia do brinde, ela foi lacônica:

Guia esquisito, não?

Você reparou que não havia outros grupos de turistas no castelo?

O quê!?... Não me diga que prepararam uma recepção só para nós?

É o que me parece. Ele não era um guia e aquele grupo não era de turistas. Aquilo foi apenas uma representação.

Ela conteve a crise de nervosismo enquanto Maurício levantou o copo contra os últimos raios de sol que saíam do Vale do Sil, como se quisesse ler, no colorido do vinho, o que passava na cabeça do guia.

Gente misteriosa — disse ele por fim. Eles dirigem toda sua raiva contra a Igreja Católica. Para eles, a Igreja concentrava todos os poderes da época, tanto o poder temporal como espiritual, e, portanto, caberia a ela, mesmo hoje, a responsabilidade pelo que ocorreu no passado.

Mas estamos tão longe desse passado!...

Engano seu. Ele não desgruda do presente. Aquele guia parecia apres­sado e deixou de mencionar que o Papa que determinou a Cruzada Albi­gense foi o cardeal Lotário di Conti di Segni, um barão eleito Papa Inocêncio III. Ele era sobrinho do Papa Clemente III e tio de seu próprio sucessor, Gregório IX.

Ora, ora! Transformaram o papado em dinastia?

Eis aí o delicado detalhe da história. Os papas pertenciam à nobreza medieval e estavam, dessa forma, comprometidos com o feudalismo. Era o sistema feudal que lhes garantia o poder.

Sim, eu sei, era no papado que se concentravam os poderes temporal e religioso. E o que tem isso a ver com o guia?

Os cátaros eram contra o juramento, porque o juramento era um compromisso material e, para eles, a matéria foi criada pelo Deus do Mal. Ocorre que o juramento era o instrumento da vassalagem entre os feudos menores e os maiores, ou com os senhores feudais e o rei. O juramento de vassalagem era o único instrumento que unia a sociedade da época. O vassalo prestava o juramento em uma cerimônia formal e unia o senhorio e a nobreza, e toda essa estrutura se ligava à Igreja.

De onde você tira essas idéias malucas?

Como esses papas eram senhores feudais, eles não estavam preocupa­dos apenas com a fé, mas também com o juramento. Fé e juramento eram as molas da Igreja na Idade Média.

Patrícia deixou a ironia de lado.

Não é que você pode ter razão! Os cátaros eram contra a fé e contra o juramento. Eles diziam não precisar da fé por terem contato direto com Deus. Então, além de praticarem um tipo de cristianismo, que comovia os peregrinos e punha em risco a fé católica, eles representavam uma séria ameaça ao poder medieval por serem contra o juramento de vassalagem.

É uma curiosa fatalidade geográfica e histórica: os cátaros estavam no lugar errado e no momento errado, ou seja, habitavam um ponto de passagem obrigatória dos peregrinos e, ainda, viveram em uma época em que os papas pertenciam à nobreza. A fé e a vassalagem, ou seja, a Igreja e a sociedade feudal se uniram contra eles.

E a que reino você pensa que ele se referia?

Os templários eram a maior força organizada da Idade Média. Sua ri­queza era imensa e foram eles os fundadores do sistema bancário. Existem referências de que, após a tomada de Jerusalém pelos árabes, eles preten­diam fundar um reino templário no Languedoc. Consta que seria um país livre, governado pelos herdeiros merovíngios e com liberdade de religião. Para a Igreja e para o reino da França, era o que podia acontecer de pior.

Naquele momento, viram o guia do castelo entrar no restaurante e cum­primentá-los com um gesto de cabeça.

Olha o problema. O que esse guia veio fazer aqui? Depois do jantar, vou até a mesa dele. Chega de recados misteriosos! Já estou com raiva disso.

E pensar que estou aqui para fazer o Caminho!... — disse Patrícia, que suspirou e, distraidamente, esbarrou no copo de vinho, manchando as bermudas.

Oh! Que pena! Vou procurar um banheiro para me lavar.

O garçom veio imediatamente e recompôs a mesa.

Pouco depois ela voltou, mostrando bom humor. O guia ainda continuava lá e não tinha sido servido. Sobraria tempo para conversar com ele depois.

O tempo passou, e esperavam a sobremesa, quando ouviram o ruído de vidro quebrado. O guia também deixara cair o copo, que se espatifou no chão.

Hoje parece ser o dia dos copos — ironizou Patrícia.

O guia estava com a cabeça sobre a mesa e os braços caídos de lado, sem dar sinais de vida. Maurício correu e tomou-lhe o pulso que já estava fraco e logo parou. O guia se sentara de costas para uma janela envidraçada e levara um tiro na nuca. Maurício olhou para os lados da rua e não viu nin­guém correndo ou se escondendo.

Ao lado do guardanapo, estava o conhecido papel de bloco com letras em vermelho caligrafadas:

"Repartiram meus vestidos entre si e lançaram sorte sobre a minha vestidura".

Escondeu o papel e ia chamar o garçom, quando dois homens entraram de maneira abruta e o derrubaram.

Um deles ordenou:

Mantenha-se deitado, Dr. Maurício. Nós já comunicamos o inspetor Sanchez, mas o senhor não deve expor-se assim.

Ele está na cidade?

O senhor deve seguir o Caminho. Ele o encontrará quando preciso.

 

                               CAPÍTULO 102

A sugestão de seguir o Caminho, porém, só foi possível no dia seguinte, e saíram o mais cedo que puderam. Chegaram à Villa Franca Del Bierzo e Maurício parou diante de uma grande mansão branca na calle del Água. Ali estava a casa de Tomás de Torquemada, o terrível inquisidor, cujo nome passou a simbolizar a tortura e a crueldade.

Não é que o guia de Ponferrada pode ter razão? Por que motivo o mais temível chefe da Inquisição tinha uma residência bem no meio do Caminho?

Patrícia estava indignada.

É incrível como essas coisas podem ter acontecido. Acreditavam tanto que o fogo purificava os hereges, que chegavam a desenterrar cadáveres para serem queimados. Davam a essas representações macabras o nome de Autos-de-fé, que também ficaram conhecidos como "festas da morte".

Maurício pensava no guia assassinado. Ele não devia fazer parte do grupo de assassinos; fora contratado para aquela representação teatral e, depois, levaria a mensagem ao restaurante. Talvez tivesse recebido instruções para deixar a folha de papel em cima da mesa quando saísse, porque quem o con­tratara sabia que Maurício iria prestar atenção em tudo que ele fizesse. Mas o guia tornou-se uma testemunha incômoda e por isso o eliminaram.

Suas atenções se voltavam agora para o Cebreiro, um dos pontos mais místicos e emblemáticos do Caminho. A imagem do rapaz, ao pé da Cruz de Ferro, o entristecia. Essa seita não iria deixar passar em branco o Cebrei­ro, assim como não deixara em branco a Cruz de Ferro. Mas como poderia ele evitar novos crimes se não sabia como seriam praticados? Mesmo a po­lícia, que o vinha seguindo, não estava tendo êxito.

E, ao se lembrar da polícia, desceu a mochila e pegou um mapa.

O que é isso?

Um presente do inspetor.

Era um mapa da Idade Média com as cidades de onde saíam os peregri­nos. Eles vinham da Rússia, Finlândia, Noruega, Suécia, Inglaterra, França, Grécia, Itália, enfim, de todo o mundo cristão.

Patrícia olhava o mapa, com curiosidade.

Que coragem! Os peregrinos chegavam a andar milhares de quilô­metros para ir até Santiago. O guia do castelo tinha razão. Todos passavam pelo Languedoc, tanto na ida como na volta.

Maurício comentou preocupado:

Ele sabe tudo a meu respeito. Fez até uma curiosa observação sobre Oliveira do Conde, uma pequena e bonita cidade do norte de Portugal.

Não gosto desse homem. Ele me parece traiçoeiro. Você deve tomar cuidado quando estiverem conversando. Ele está buscando algum detalhe de sua vida para fazer ligação com esses crimes. Polícia é assim. Eles pre­cisam acusar alguém para se livrarem do problema, e por isso muitos ino­centes foram condenados.

Ao falar de inocentes condenados, ela olhou de novo para a grandiosa mansão do inquisidor Torquemada e se lembrou de uma jovem inocente, queimada viva pela Inquisição.

 

                                   CAPÍTULO 103

No ano de 1430, mais de um século depois de terem cometido os crimes contra os templários e do martírio de seu grão-mestre, Jacques De Molay, a França e a Igreja se uniram para praticar outro pavoroso assassina­to, que repercutirá para sempre, nos ecos da história. Um ano depois desse crime, o Papa Eugênio IV rezava em sua capela, pedindo ajuda do bom Deus para resolver a crise pontifícia, que surgiu com a eleição do antipapa Félix V por seus adversários.

O cardeal-secretário interrompeu suas meditações com a informação de que o bispo Couchon estava no palácio e pedia uma audiência com ur­gência. O Papa sabia que o bispo presidira o Tribunal da Inquisição que mandara queimar na fogueira, na cidade de Rouen, a jovem Joana d'Arc, a grande guerreira, nascida em Dom Remy, que se dizia guiada por Deus e que, com essa fé, salvara o Reino Cristianíssimo da França.

O visitante estava com as feições encrespadas, exibindo uma grande ten­são, quando pediu para se confessar. O Papa sentiu o olhar angustiado de um ser prestes a cair no desespero e levou-o a seu gabinete. Assim que en­traram na sala particular, o bispo caiu de joelhos e implorou:

Vossa Santidade me perdoe, mas já me confessei várias vezes, com o meu capelão, com outros bispos e até mesmo com cardeais, mas minha consciência pesa e pesa cada vez mais, e minha cabeça dói. Por isso estou aqui, prostrado diante de Vossa Santidade, porque sei que devo expor a minha consciência diretamente ao Papa, o sucessor de São Pedro, único representante de Deus neste mundo. Eu peço humildemente que aceite a minha confissão e conceda o perdão dos meus pecados.

O comportamento do prelado indicava que uma importante revelação iria ser feita e abençoou o bispo.

Como sacerdote de Cristo, estou pronto para ouvir sua confissão.

O bispo Couchon mostrou-se aliviado:

Faz um ano que não durmo direito e durante todo esse tempo tenho tido sonhos perturbadores. O arcanjo Miguel, príncipe da milícia celeste, juntamente com Santa Margarida e Santa Catarina, os mesmos mensagei­ros que a herege Joana disse que lhe tinham aparecido, aparecem agora nos meus sonhos e me acusam de ter derramado o Sangue de Cristo.

O Papa teve um estremecimento e o bispo continuou:

No julgamento em que foi condenada como herege, ela jurou que os mensageiros lhe fizeram relatos da situação triste em que estava a França e que ela deveria ir em seu socorro, porque a cristandade estava em peri­go. Apesar de argumentar que nunca havia montado em um cavalo, nunca havia empunhado uma espada e que era uma simples camponesa de Dom Remy, na Lorena francesa, ela insistia que os mensageiros divinos lhe trou­xeram ordens para ajudar o herdeiro do trono, o delfim Carlos.

O assunto já era conhecido do Papa, que escutava em silêncio.

Agora esses mensageiros gritam comigo, todas as noites, que fora o próprio Cristo Nosso Senhor quem enviara a jovem Joana, porque os exér­citos da França estavam sendo dizimados pelos ingleses. Eles dizem que eu cometi um crime ao condená-la por bruxaria. Mas eu não entendo, eu não entendo porque todo o seu comportamento era de uma bruxa guiada pelo Diabo. Coisas muito estranhas envolviam suas atitudes, como o momento em que ela entrou no castelo de Chinon e reconheceu o rei.

Couchon tremia.

Vossa Santidade sabe do episódio. A menina entrou no palácio, como se estivesse acostumada àquela vida, e, sem nunca ter visto antes o rei Car­los, reconheceu-o no meio de 300 nobres. O rei sabia de sua vinda e sabia também que ela se dizia enviada por Deus e deixou então outro nobre no trono, parecido com ele, para confundi-la e testar seus poderes. Foi grande o assombro de todos, quando ela entrou no salão, e, em vez de dirigir-se ao trono, foi onde estava o delfim Carlos e fez uma reverência.

O bispo se benzeu, antes de continuar.

Os mensageiros me atormentam, me apavoram e repetem constante­mente que eles deram a Joana a descrição do delfim Carlos para que ela não se enganasse. Eles insistem que ela era portadora de um segredo divino e foi por causa desse segredo que Carlos se convenceu de que a salvação da Fran­ça dependia dela, entregando-lhe então o comando do exército francês.

O bispo parou de repente, como que assaltado por um medo súbito. O Papa havia sido eleito há apenas dois meses e aquelas revelações também o assustaram, mas procurou incentivar o bispo:

Pois, continue.

Não é possível que seja verdade, mas, a cada aparição, o arcanjo Ga­briel me acusa de não ser digno do Reino dos Céus, de ter mandado matar a herdeira do sangue de Cristo, que lhe fora passado por descendentes de Sigisbert, o protegido dos cátaros. Esses reis franceses sempre foram su­persticiosos e ainda hoje acreditam que os merovíngios são os verdadeiros herdeiros do trono.

O Papa tentou compreender.

O senhor bispo acha que, diante dessa situação, Carlos preferiu acre­ditar em Joana e confiou-lhe o comando do exército. E uma menina, que nunca teve uma espada nas mãos operou o grande milagre de levar a Fran­ça à vitória?

Houve um momento de reflexão, que nenhum dos dois queria quebrar. Mas o bispo estava com a consciência pesada:

Logo na primeira batalha, ela ficou sozinha diante do exército inglês e começou a murmurar palavras que os soldados franceses não puderam ouvir, e aconteceu algo incrível, inacreditável, um verdadeiro milagre. O exército inglês debandou e o rei foi salvo.

Aconteceu um milagre. Mas milagre é um ato divino.

Sim. Ou melhor, bruxaria, pois assim foi decidido pelo Tribunal, que a considerou uma feiticeira, uma adivinha. Tinha poderes demoníacos e, com eles, enfeitiçava os soldados. Agia de modo estranho, vestia-se como homem e, no meio de tantos homens, era uma permanente tentação ao pecado. O duque Jean d'Alençon, que fora comandado por ela, chegou a ver seus seios e eles eram belos, muito belos. Por isso ela não podia ter sido enviada por Deus, mas sim pelo Demônio, que mandou aquela tentação, aquele corpinho novo, bonito, sensual...

Bispo Couchon! — falou o Papa, em tom de censura.

O bispo estava visivelmente atormentado e tentava justificar o crime que cometera.

Ela era uma bruxa e previu a própria morte, porque depois da vitória retumbante sobre os ingleses, alertou o delfim para ir logo a Reims a fim de ser coroado, porque os mensageiros lhe haviam profetizado que ela morre­ria em menos de um ano, e não estaria ali para ajudá-lo. Agora os mensa­geiros me comparam a Judas, como um novo traidor do sangue de Cristo.

O Papa não sabia o que dizer, e aquelas apreensões do bispo eram pe­rigosas. Se fossem divulgadas, poderiam criar novo cisma, numa Igreja já abalada por tantas dúvidas. A maneira histérica como o bispo relatava os fatos já o estava contagiando.

Vossa Santidade talvez não compreenda, mas a vitória sobre os ingle­ses em Orleans era militarmente impossível. Alguns soldados testemunha­ram no julgamento que bastava que ela desse um leve aperto nos arreios e seu cavalo avançava como um dragão soltando fumaça pelas narinas e corria, sem sequer tocar o solo com as patas. Foi terrível, terrível, mas essas eram as descrições dos soldados que fugiam apavorados.

Soldados de que lado? Dos ingleses ou dos franceses?

Dos ingleses, sem dúvida. Mas os ingleses também eram cristãos e Deus não mandaria uma mensageira para matar cristãos. Por isso aquela vitória foi julgada pelo Tribunal do Santo Ofício como diabólica, pois só os demônios poderiam formar um exército para derrotar os ingleses, também protegidos por Deus. Uma bruxa, uma bruxa, uma bruxa, e para a bruxaria só há um remédio, a fogueira — exclamou o bispo, exaltado.

O Papa levantou dúvidas.

Talvez os ingleses não fossem tão católicos. Eles defenderam os cá­taros. Eleonor de Aquitânia vivia assediada pelos trovadores que freqüen­tavam o castelo dos condes de Toulouse. Os trovadores eram cantores licenciosos, vagabundos, devassos, que viviam fofocando intrigas contra a Igreja. O casamento de Eleonor com o rei Luís VII da França foi uma farsa para aumentar seu poder. Ela rejeitou um rei cristão, que organizou a Se­gunda Cruzada, e se casou com Henrique d'Anjou em 1152, que se tornou o rei Henrique II da Inglaterra. Eleonor levou para aquele país os territórios da Normandia, a Aquitânia, o Limousin e o Perigord. Ela era mãe de Ricar­do, Coração de Leão, o mais festejado guerreiro, cantado em gesta como o próprio rei Artur e superior até mesmo a Carlos Magno! Há suspeitas de que praticava atos libidinosos com seus soldados.

Mas, mas... — gaguejava o bispo — Ricardo foi um cruzado, foi à Palestina libertar o Santo Sepulcro das mãos dos infiéis, lutou contra Saladino e o venceu.

Ricardo pretendia ampliar seus domínios sobre todo o mundo cristão, e uma das formas de conseguir isso era através do casamento de sua irmã com Malek-Adel, irmão de Saladino. Ele queria outra ordem mundial, um mundo cristão-muçulmano. Todos nós sabemos que Saladino profanou o Santo Sepulcro substituindo a Cruz pelo Crescente, o símbolo muçulmano. Foi necessária uma ação imediata da Igreja e dos reis aliados para que ele não se tornasse cunhado de Saladino.

Pelo que Vossa Santidade me diz, os hereges eram então os ingleses.

O tom de voz do Papa não escondia uma forte censura ao apavorado bispo.

O poderoso Ricardo Coração de Leão, rei da Inglaterra, rei da Irlan­da, rei de Anjou, de Aries e de Chipre morreu excomungado, sem receber as orações e as bênçãos da Igreja. E, por ter sido excluído da comunidade cristã, com certeza está agora aos gritos no Inferno.

Ao ouvir a palavra inferno, pronunciada pelo Papa, o bispo jogou-se ao chão e pediu perdão pelo crime que cometera.

Perdoe-me, Vossa Santidade, em nome do céu. Preciso me redimir desses pecados e de outros que também cometi. Prometo abandonar a luxúria, terei menos mulheres em meu leito, vou dar aos pobres uma pequena parte da minha riqueza. Vou fazer penitência uma vez por ano, mas, pelo amor de Deus, alivie a minha consciência e peça a Ele para não me mandar para o inferno, onde o fogo não apaga.

O Papa pensou no sofrimento da menina sendo queimada viva por ter sido acusada por esse bispo de mentirosa, perniciosa, abusadora, supersti­ciosa, blasfemadora, presunçosa, idolatra, cruel, dissoluta, invocadora de diabos, apóstata, cismática, herética e outras invenções.

Logo após o julgamento, ela entrou com um recurso que deveria ser encaminhado ao Vaticano, como era normal no caso, mas o bispo Pierre Couchon, que agora estava diante dele tentando se livrar dos remorsos com uma simples confissão, indeferiu o recurso dizendo: "O Papa está muito longe". E aplicou a pena capital contra a jovem aldeã, em circunstâncias pouco edificantes para o rei da França, Carlos VII, que não seria rei e nem mesmo existiria mais a França, se não fosse Joana, a pequena aldeã.

Ela foi vendida aos ingleses para ser condenada como herege e bruxa, porque era preciso destruir o mito de uma enviada de Deus. Foi levada à fo­gueira na cidade de Rouen em 30 de maio de 1431. No momento da morte gritou que: "As vozes não mentiram! Jesus! Jesus! Jesus!".

Seu corpo foi inteiramente queimado pelas chamas, mas, apesar das in­sistências do carrasco em pôr mais lenha, enxofre e carvão, seu coração permaneceu intacto e com sangue. Perante o povo comovido, os ingleses mandaram jogar o coração de Joana no rio Sena, dentro de um saco, para que não servisse de relíquia, e criou-se então a lenda de que esse coração será encontrado quando houver a restauração espiritual e moral do Reino de Deus.

O Papa também estava preocupado e suas mãos transpiravam.

É bem possível que Deus Nosso Senhor tenha mandado a menina Joana com poderes divinos para mostrar aos ingleses o caminho da Fé. Sa­bemos de movimentos preocupantes naquele país.

Pessoas estranhas divulgavam presságios de que o Reino da França iria desaparecer. Pouco adiantava agora admoestar Couchon, porque o mal já estava feito. O mais importante era uma solução que apaziguasse o clero e o povo franceses. Sua mente trabalhava febrilmente e quase não ouvia o bispo, que continuava choramingando:

Ando cada vez mais assustado. Os membros do tribunal estão tendo um destino misterioso. O promotor Jean d'Estivert, que fez as acusações contra ela, morreu afogado em um esgoto da cidade de Rouen, e o cardeal de Winchester, que veio da Inglaterra para me ajudar no julgamento, fi­cou louco. João de Luxemburgo, que vendeu Joana aos ingleses, teve morte inexplicável, e o confessor dela morreu de mal súbito dentro de uma igreja, na Basiléia, onde se isolou, atacado por um medo estranho.

Com o martírio de Joana houve uma reviravolta na situação. É como se, mesmo depois de morta, ela continuasse a defender a França, porque o crime repercutiu entre as hostes inimigas, onde muitos combatentes a admiravam. Os ingleses perderam o ânimo de lutar, talvez já esgotados por tantos anos de guerra, talvez pela consciência de que tinham nas costas o peso daquele martírio injusto.

Corria a história de que Carlos VII havia acreditado que realmente ela era descendente de uma linhagem divina e só a abandonou porque não queria dividir o poder. Dizem que ele chegou a pensar em desposá-la e le­gitimar o trono com um sopro de divindade, mas não lhe agradava a idéia de casar-se com uma mulher que seria mais respeitada do que ele. A mãe da menina, Isabelle Romée, reclamou a revisão da pena e a reabilitação da memória da maior heroína da França. Para isso, contou com o apoio de um arrependido Carlos VII.

A confissão de Pierre de Couchon foi esclarecedora e dava ao Papa a oportunidade de reparar o erro e esperar que Joana o ajudasse lá do céu na nova luta que a Igreja enfrentava com as heresias que surgiam na Alemanha.

O Papa deu a absolvição ao bispo:

Pelos poderes que o Senhor Deus transmitiu ao primeiro Papa, eu o perdôo. Como penitência deverá recolher-se a um convento pobre e simples, levar uma vida monástica, respeitar seu celibato, jejuar todos os dias e divul­gar a santidade de Joana. Deverá doar todos os seus bens, e não apenas parte deles, aos pobres de Roma. Eu mesmo conferirei seu comportamento.

O bispo saiu resmungando contra o rigor da penitência, e o Papa desig­nou uma comissão formada pelo arcebispo de Reims e pelos bispos de Paris e de Coutances para rever a sentença contra Joana, tendo essa comissão chegado à conclusão de que os processos de Rouen contra a donzela Joana d'Arc estavam cheios de "...calúnia, de maldade, de injustiça, de contradição, de violações do direito, de erros de fato", e a declararam inocente.

 

                                     CAPÍTULO 104

A reunião da CIA naquela manhã foi ocupada por uma informação aparentemente sem nexo com os fatos que estavam discutindo. Um agen­te enviara de Oliveira do Conde um pequeno relato sobre fatos curiosos ocorridos naquela pequena aldeia do norte de Portugal. Uma folha de pa­pel estava diante de cada um dos participantes. O agente teria encontrado referências de que a pedra fundamental da pequena Igreja de São Pedro, no centro da aldeia de Oliveira do Conde, no Carregal do Sal, fora colocada por São Paulo quando por ali pregava. Uma gramínea chamada de 'carrega', abundante naquela época, deu o nome de Carregal ao local onde havia sa­linas exploradas pelos romanos.

Dólmens de seis mil anos e círculos misteriosos de cerimônias esotéricas registram a presença dos druidas na região de Carregal do Sal. Desde a era pré-cristã, os druidas habitavam as cavernas dos Pireneus e eles ajudaram a esconder os últimos remanescentes dos cátaros.

Vestígios de estradas antigas cortam Oliveira do Conde, como provável ramificação da Via Dominitia, a antiga rota construída pelos romanos, na Galícia, no II século a.C, ligando a Península Ibérica a Roma, para onde foi escoada a grande produção de ouro da região e cujas escavações são conservadas hoje como patrimônio da humanidade. Foram encontradas referências de que a filha de D. João IV, Catarina de Bragança, depois de re­jeitada pelo rei Carlos II, da Inglaterra, com quem se casara, levando como dote a índia, passara a freqüentar cerimônias druidas, no então vilarejo de Oliveira do Conde.

Entretanto, o que mais chamava a atenção era o estranho episódio que envolveu Napoleão e um sarcófago de alabastro construído no ano 1439, em estilo gótico, em que está enterrado Fernão Gomes de Góes, nobre pro­prietário de terras no Carregal do Sal. Segundo as crônicas locais, no mês de agosto do ano de 1617, morreu Dom Luís da Silveira, terceiro conde de Sertelha e bisneto do rei Dom João II. Depois de morto, ou seja, quase du­zentos anos depois da morte de Fernão de Góes, Dom Luís foi amortalhado e levado até a localidade de Carvalhal Redondo para o carpinteiro fazer o caixão. O mistério está nessa circunstância de ele ter sido levado, já envolto em mortalhas, para Carvalhal Redondo, em vez de esperar o caixão em Oli­veira do Conde. Dessa outra cidade, seu corpo voltou para ser enterrado ao lado do sarcófago de Fernão Gomes de Góes, dentro da igreja de São Pedro, em uma campa rasa. O fato de o enterro ter sido discreto e a distância entre Oliveira do Conde e Carvalhal Redondo têm levantado especulações, porque no mês de agosto o clima é quente e o corpo não resistiria à decomposição.

Com o fracasso da invasão de Portugal e pouco antes da batalha do Bu- çaco, no ano de 1819, perto de Oliveira do Conde, Napoleão mandou seus soldados destruírem o sarcófago de Fernão Góes e examinar o que havia dentro. Cumprindo essas ordens, os soldados forçavam e danificavam a va­liosa peça, sem conseguir abri-la, quando misteriosamente aproximou-se deles uma velha senhora, vestida de negro, caminhando silenciosamente. Ninguém viu de onde ela veio e como pôde, de repente, aparecer ali, sem ser notada. Ela caminhou até o sarcófago e levantou a tampa com facilida­de. Os invasores fugiram apavorados como se fosse coisa de assombração.

O relato do agente parava aí.

O assessor coçava a cabeça sem saber o que dizer. Os outros ficaram em silêncio, mas Hawkins não resistiu:

— Bonita história, mas não entendi nada. Em que ela nos interessa? Po­dia ter acontecido com a Fontana di Trevi, em Roma.

O diretor esfregava o rosto com as palmas das mãos como se quisesse acordar de um torpor. Depois desse pequeno exercício de volta à realidade, comentou:

O inspetor fez essa referência a Oliveira do Conde de uma maneira insidiosa. Parece que ele ainda suspeita do Dr. Maurício e vem pesquisando toda sua vida particular.

Ele continuou falando como se já tivesse suas conclusões e aguardava a concordância dos demais.

Só faltava Napoleão! Na verdade, ainda hoje alguns imperadores são tratados como divindade. Napoleão se considerava um ente superior, mas precisava de sangue divino. Segundo o que temos lido, ele tentou por todos os meios provar sua origem merovíngia. Não só se dizia um deles, mas fa­zia acordos de casamento com nobres de origem merovíngia, como Carlos Magno e outros reis da França também fizeram. A preocupação merovíngia é ainda um drama na história da França.

O assessor Hawkins tentava compreender. O professor Brandon segura­va os óculos com os cotovelos na mesa e olhava o vazio da parede.

Bem — suspirou o embaixador —, temos então uma conexão com o presente. A hipótese de uma seita não está assim tão errada.

A questão — disse o professor Brandon — está no campo das imagi­nações. Se há quem acredite que Simão Cireneu morreu no lugar de Cristo, nós podemos levantar outra hipótese nessa questão de Oliveira do Conde.

E pensou um pouco antes de falar, com receio de alguma crítica:

Será mesmo que na carroça voltou o corpo amortalhado de D. Luís, o terceiro conde de Sertelha? Será que em vez do corpo não vieram docu­mentos, atrás dos quais estava Napoleão? Afinal, por que o levaram para Carvalhal Redondo, se podia esperar o caixão em Oliveira do Conde? Por que D. Luís foi enterrado junto ao sarcófago de D. Fernando? Haveria al­gum túnel por baixo desses dois túmulos? Se havia, deve ter desaparecido com o terremoto de Lisboa.

Curioso como esse inspetor entra em certos detalhes — comentou o embaixador.

Ele tem um estilo peculiar. Descobre esses detalhes e vai destilando veneno para enfraquecer a mente do suspeito. Nos trabalhos para a Interpol e mesmo em alguns da CIA, dos quais participou, sempre agiu dessa forma e deu resultado.

O diretor já tinha identificado os cacoetes de cada um, e toda vez que o diplomata alisava o queixo com a mão direita, ele sabia que alguma idéia nova viria dali. E estava certo mais uma vez.

Fico imaginando como é que essa organização recruta seus membros. É claro que eles não têm uma universidade de preparação para entrar nessa Ordem. O senhor disse há poucos dias que gostaria de tê-lo trabalhando para a CIA.

Sua observação chamou a atenção do grupo.

Não é fácil formar uma pessoa como ele: culto, inteligente, raciocínio rápido, sempre alerta, esportista, entre 45 e 50 anos de idade, poliglota, com tese de doutorado em Direito, homem que já exerceu funções de relevância e suficientemente maduro para ocupar uma posição-chave em qualquer organização, até mesmo secreta.

Entendo. Ele pode estar sendo testado.

Um teste de dupla finalidade, penso eu. Se for aprovado, é porque evi­tou os atos terroristas e a seita escolheu o homem certo. Se não evitar esses atos, é porque pereceu junto e foi reprovado.

Logo depois desses comentários, ficou preocupado. O olhar frio do dire­tor indicava que, se ele passasse nos testes, a CIA teria de eliminá-lo, porque não poderia correr o risco de ele integrar essa organização.

 

                                       CAPÍTULO 105

À medida que se aproximavam de Compostela, a situação ficava mais tensa. A morte da monja, a falsa missa de Villalcazar de Sirga, a morte do rapaz na Cruz de Ferro e, por último, o guia em Ponferrada.

O Cebreiro era outro lugar cheio de mistério e lendas. Tinha agora de volta aquela mesma percepção de perigo de quando se aproximava de Foncedabon e, por isso, quando chegaram ao Cebreiro, não ficou surpreso ao ver o carro de polícia.

Senhor Maurício, como está? Fez uma boa caminhada?

Boa tarde, detetive Sanchez.

O detetive cumprimentou Patrícia e justificou-se:

Não me deixam inativo. A cada dia surge uma coisa nova. Fiz uma série de investigações e, se me permite, preciso fazer-lhe algumas pergun­tas. Tomei a liberdade de reservar dois quartos para vocês na casa de uma família amiga. Depois que se alojarem, podemos jantar e tomar um bom vinho.

Estavam diante do monumento ao Graal, levantado na entrada do Ce­breiro. O inspetor leu em voz alta a inscrição colocada no momento:

"Contam que um peregrino alemão, perdido nas paragens do Valcarce, em meio a nuvens densas, parou e escutou vindo de longe, bem do alto, o som de uma gaita. Era como um "alalá", que neste lugar tocava um pastor que com suas notas sonoras guiou o peregrino até o Santo Graal".

E com a mesma voz pastosa de quando quer provocar:

Aqui no alto do Cebreiro existem mistérios que se escondem nas do­bras do passado.

Mas, notando a testa franzida de Maurício, soltou uma forte gargalhada.

Não se impressione! Esses Pireneus me fascinam com suas lendas. Segundo uma delas, Artur, o rei dos celtas britânicos, incentivava seus ca­valeiros a procurar o Santo Graal, que somente poderia ser encontrado por uma alma pura e sem maldade. Um desses cavaleiros, sir Galahad, saiu à sua procura e, depois de vencer várias dificuldades, chegou até um sítio onde uma moça muito linda o tentou. Mas sir Galahad resistiu e, como re­compensa por suas virtudes, foi guiado até este ponto, no alto do Cebreiro, onde encontrou o Santo Graal.

Quando o inspetor fazia suas exibições de conhecimento, ele sempre acrescentava alguma interpretação, e Maurício ficou imaginando o que po­deria vir agora. E de fato o homem tirou os olhos do monumento e levantou uma dúvida.

Acho isso tudo muito contraditório. Existem registros históricos de que o cálice de Cristo esteve no monastério de San Juan de la Pena desde o início da Idade Média, desaparecendo lá pelo século XVII. Ora, se o Graal estava em lugar certo e sabido quando Chrétien de Troyes, no sécu­lo XII, divulgou as lendas do rei Artur, então a busca do Santo Graal não era para encontrá-lo.

E qual seria o objetivo dessa busca?

O policial encarou Maurício e deu uma resposta de quem preferia escon­der a própria opinião:

Pois sabe que eu não tinha pensado nisso?

Depois dessa encenação, ele se ofereceu para levá-los até a casa, na viatu­ra, mas Maurício e Patrícia recusaram com educação, porque é um princí­pio dos peregrinos fazer todo o Caminho a pé. Só em emergências usariam outro tipo de transporte. No Cebreiro existem várias residências que alu­gam quartos, e algumas delas são até bastante confortáveis, como a que o detetive havia escolhido.

Pouco se via do horizonte, escondido sob nuvens ameaçadoras. Mau­rício abriu a janela, e morros misteriosos, como o passado desse vilarejo, buscavam abrigo sob o manto frio da noite. Imaginou quantas trilhas e es­conderijos poderiam existir naquelas montanhas e desceu a guilhotina de vidro que havia levantado, trancando a veneziana com a cremona.

O restaurante indicado pelo inspetor estava cheio de peregrinos, mas ele já os esperava em uma mesa, a um canto. As mesas próximas comentavam o inusitado policiamento do Caminho e a 'rádio peregrino' falava da possi­bilidade de outros atentados. Alguns relâmpagos assustadores prenuncia­ram a tempestade, que não tardou.

Depois do jantar, o detetive quis conversar com Maurício a sós, nem que fosse por alguns minutos. Reconheceu que ele estava cansado, mas queria trocar algumas idéias. Por causa da chuva, a viatura levou Patrícia para a casa onde se hospedara.

Bem! — começou o policial — Posso entender que não quis se envol­ver com os crimes de Irache, Najera e da Cruz de Ferro. Temos acompanha­do seus passos e acredito que tenha coisas a nos dizer.

Não havia o que esconder e nem o que esclarecer. Fez um pequeno resu­mo dos fatos que acompanharam sua caminhada, sem entregar as charadas. Elas já eram em número de 7 e levariam a uma conversa sem fim.

O senhor é muito observador e isso vai nos ajudar. O Cebreiro é outro lugar místico e devemos estar preparados para evitar surpresas.

O cansaço e o vinho começaram a pesar e Maurício pediu licença para ir dormir. Sentiu-se bem no quarto bem arrumado. Foi ao banheiro, escovou os dentes, preparou-se para dormir e deitou-se na cama macia e limpa. Os lençóis brancos e o travesseiro agradável eram diferentes dos leitos dos al­bergues. Deitou-se de costas, com as mãos sob a cabeça, tentando ver o teto forrado de pinho. A chuva caía e ele ouvia a água escorrendo pelo telhado enquanto o vento fazia barulho na janela.

"Isso está meio chato", e levantou-se para colocar um calço de papel na janela e parar o barulho.

"Coisa estranha. Por que a cremona não está encaixada lá em cima? Eu me lembro de tê-la fechado e ninguém entrou aqui depois, porque o quarto já estava arrumado quando saí."

Assustou-se. Com certeza alguém entrara ali e saíra pela janela. "Ou será que entrara por ela?" Olhou debaixo da cama e não encontrando nada sus­peito correu até o quarto de Patrícia e bateu na porta.

Sou eu, Maurício. Está tudo bem aí? As janelas estão bem fechadas?

Ela abriu a porta. Estava vestida com as bermudas que ia usar no dia seguinte e uma camiseta que realçava os seios sensuais. Ele fingiu não ter notado:

Desculpe acordá-la, mas alguém entrou no meu quarto. Posso fazer uma vistoria no seu?

Claro. Claro, mas será que esse detetive não o está assustando demais?

Olhou debaixo da cama, forçou as duas folhas da janela, movimentou a cremona várias vezes para fazer o trinco correr para cima e para baixo e chegou à conclusão de que talvez ela estivesse certa.

É! Acho que você tem razão.

Deu-lhe um beijo de boa-noite e voltou para o quarto, onde encontrou tudo bem trancado, como havia acabado de deixar. Deitou-se de lado, e des­ta vez colocou a mão sob o travesseiro como, às vezes, fazia antes de dormir, para a cabeça ficar bem apoiada. Sentiu uma lâmina afiada e com um movi­mento ágil pulou da cama. Acendeu a luz e levantou o travesseiro.

Lá estava o papel que ele temia ver. O mesmo bloco com letras caligrafadas em tinta vermelha e uma clara ameaça:

"A vingança do Graal".

Olhou o relógio. Eram ainda 10 horas, estava cansado, precisava des­cansar o corpo e a mente para estar preparado. Estava confuso, mas previa algo terrível. A mensagem era curta, fria e ameaçadora. O que seria agora e como conseguiram entrar no quarto?

A janela! Alguém entrara pelo lado de fora enquanto eles estavam jan­tando. Ou então alguém tinha a chave da porta e depois saiu por ela. O quarto era no segundo andar, mas havia uma sacada por onde o intruso poderia descer.

Invejou a normalidade que vinha lá de fora, com os ruídos naturais da vila, onde os peregrinos andavam e conversavam, apesar da chuva. O racio­cínio precisava de um cérebro que não estava funcionando mais. Sentou-se à beira da cama e encostou a cabeça sobre as mãos abertas, com os cotove­los apoiados nos joelhos, até que o efeito do vinho e do cansaço acabou to­mando conta dele, e se deitou. Foi logo dominado por um sono profundo, e sonhou que tinha subido o morro do Cebreiro para assistir à missa, mas, quando entrou na igreja um monge, coberto de uma veste negra, cortava a hóstia com um grande bastão de metal.

Acordou suado e se sentou na cama. Agora só se ouvia o ruído da chuva. A janela não fazia barulho, mas o vento uivava. Era quase meia-noite. Ves­tiu a calça impermeável e colocou as botinas. Fizera bem em ter ido jantar com as sandálias, pois do contrário as botas estariam molhadas. Pegou a capa e saiu do quarto, fechando a porta silenciosamente. Desceu a escada com cuidado e não acendeu a luz do corredor. Tinha uma chave da porta da rua que abriu, sem fazer ruídos. O vilarejo estava escuro. O Cebreiro não tem iluminação pública, apenas algumas lanternas nas paredes das casas. A chuva e a escuridão criavam uma atmosfera de medo, mas ele precisava seguir. Pela lógica de tudo aquilo, sabia que ele próprio não corria perigo, mas estava certo de que haveria vítimas. Caminhou em direção à igreja, que ficava mais ao alto, a uns 50 metros da casa onde se hospedara, e como esperava, ouviu passos. Alguém o seguia. Agachou-se para não ser visto, mas um raio desceu do céu como se o carroção de fogo do profeta Elias tivesse voltado à Terra. A iluminação permitiu uma visão ampla do lugar, e ele conseguiu ler, no portão de pedra de uma casa, a placa da Irmandade do Sagrado Sacramento.

"Irmandades, sociedades secretas, confrarias, ordens religiosas. Cada uma com seu mistério."

A chuva caía torrencialmente. Nem os cães se atreviam a sair e, se al­gum deles o viu, preferiu continuar em seu canto a se importunar com um peregrino imprudente. Era preciso pensar com a mente do assassino, por­que sabia que estava lidando com um criminoso cheio de artifícios e dissi­mulações. Não havia mais motivos para precauções, porque estava sendo seguido. Passou o portão do grosso muro de pedras que circunda a igreja e, em passos largos, chegou à porta da igreja, que, como supunha, estava destrancada. Abriu-a com rapidez e jogou-se ao solo, ocultando-se atrás de um banco, quando viu o inspetor entrar correndo, em ziguezague, com a lanterna acesa, e se agachar perto dele.

 

                                 CAPÍTULO 106

O silêncio dentro do santuário era quebrado apenas pelo barulho dos trovões e pela chuva no teto. Não era conveniente deixar o assassino tomar a iniciativa, e Maurício pediu para o inspetor focalizar os interruptores que estavam perto da porta. Assim que o facho de luz os loca­lizou, levantou-se rápido e, com um salto, acendeu as luzes e caiu deitado no chão da igreja, rolando em seguida para baixo de um banco.

Ninguém! Nenhum ruído, nenhum movimento. Mas alguém havia en­trado na igreja, pois a porta estava aberta. O cálice ficava guardado dentro de uma proteção de vidros inquebráveis, com alarme eletrônico, e não ha­via sinais de arrombamento. Subiu a escada do coro, mas não havia nin­guém por lá.

Estranho. Deveriam ter roubado o cálice. Por que não o roubaram? O senhor estava esperando uma coisa dessas, não estava, inspetor?

Tinha minhas suspeitas. O misticismo do Cebreiro e esse lendário cálice levavam à conclusão de que alguma coisa aconteceria aqui. E, pelas nossas conclusões, fosse lá o que fosse, só aconteceria depois que o senhor chegasse. Algum mistério o protege, e pensei, então, que poderíamos pren­der esse assassino, mas ele não agiu como esperávamos, porque não roubou o cálice. Ou será que chegamos muito cedo?

Falou como se pedisse desculpas, mas em um tom de voz de quem está ocultando alguma coisa. O momento não era para polidez, e um pensamen­to fugaz passou por sua mente sonolenta. Olhou para o policial, que se mos­trava preocupado, e então compreendeu tudo. Não pensou mais e gritou:

A casa do padre! Vamos lá, antes que seja tarde. Este cálice é uma cópia.

Saíram às pressas para uma casa antiga de pedra, ao lado da igreja.

A porta estava entreaberta e eles entraram. O padre morava com uma freira que era sua irmã, e, com isso, dispensava serviços de empregada do­méstica. Ela tomava conta da igreja e da casa paroquial.

Subiram a escada que levava ao piso superior, e notaram a fresta de luz que saía debaixo de uma porta. Se alguém estivesse ali, ou já teria saído ao ouvir o barulho que fizeram nos degraus, ou estava preparado para recebê-los. Como ninguém apareceu, o inspetor abriu a porta e jogou-se ao chão com a arma preparada.

A cena impressionava.

O corpo do padre estava caído perto do guarda-roupa com uma meia em volta do pescoço, a língua para fora, os lábios roxos e os olhos saltando das pupilas. Fora estrangulado com as meias de dormir. O corpo da freira pendia, de frente, sobre a guarda dos pés da cama. Não havia sinal de luta e nem gavetas abertas e revoltas. O detetive verificou a pulsação de ambos e abanou a cabeça.

Estão mortos.

Maurício teve a intuição do que podia ter acontecido e gritou para o policial que parecia estar em transe.

Inspetor! Acho que o cálice não estava aqui. Com esses crimes, o se­nhor deve ter pedido ao padre para tirá-lo da igreja. Aquele que está ali é uma réplica de segurança para situações como esta. O padre não guardaria o verdadeiro neste quarto. Alguém mais pode morrer se não agirmos com rapidez. O senhor preparou o terreno antes de eu chegar ao Cebreiro e deve saber onde está o verdadeiro cálice.

O policial apenas abanou a cabeça.

Quem mais poderia ser responsável por uma peça tão sagrada para o Caminho? Tem de haver alguém a quem o padre confiaria o cálice. O senhor deve saber disso, vamos logo para lá.

Eu não sei, eu não sei. Pensava que o padre ia guardá-lo.

Mas se não estava com o padre, então onde está? O assassino conse­guiu essa informação e está indo para lá. Vamos! Acorde! Não existe uma irmandade, uma associação, algo assim?

Veio-lhe de imediato à lembrança a placa da Irmandade do Sagrado Sa­cramento que ele vira com a claridade do relâmpago. O padre entregara o cálice para a irmandade. Só podia ser isso.

Vamos sair daqui. Acho que sei onde pode estar o cálice.

Desceram as escadas, pulando os degraus e logo estavam diante da casa térrea, de pedra, reforçada, e com uma placa na porta indicando Irmanda­de do Sagrado Sacramento.

A porta estava fechada, mas destrancada. Alguém entrara por ela, por­que os moradores não costumam dormir com a porta aberta em um povo­ado por onde passam tantos estrangeiros. Entraram e se jogaram imedia­tamente ao chão, o que os salvou de serem atingidos pelos tiros abafados por um silenciador. O assassino estava dentro da casa e havia esperanças de prendê-lo. A prudência nunca está preparada para acompanhar a coragem, e Maurício procurou movimentar-se entre os móveis, jogando os objetos que encontrava para os lados e desorientar o bandido.

Estava escuro, e o detetive hesitava em atirar, com receio de ferir os mo­radores. Mas o assassino não tivera essa preocupação, e a dona da casa fora atingida. O bandido continuava atirando às cegas, para dificultar a persegui­ção, e correu para a cozinha. Ele havia pensado em tudo e também deixara a porta da cozinha aberta. Com a rapidez de atleta bem treinado, saiu corren­do e pulou o muro do quintal, desaparecendo na escuridão da noite.

Maurício e o detetive voltaram para a casa para socorrer a mulher, mas o marido já tinha chamado uma ambulância. Eles saíram pela porta da sala e, enquanto corriam para o largo da igreja, ouviram dois tiros.

Acho que o acertaram. Trouxe para cá os melhores atiradores. O ruído dos tiros veio do cemitério ao lado da igreja. Vamos para lá — disse o inspetor.

Será? Ele goza do benefício da escuridão e seus guardas estão farda­dos. São um alvo fácil para ele.

Essa probabilidade deixou o policial mais agitado e, enquanto dava or­dens pelo celular, procurava acompanhar Maurício que, em vez de ir para a esquerda, onde estava o cemitério, passou pela frente da igreja, contornou a casa paroquial pela direita, fazendo uma curva contrária à direção que os policiais tinham tomado. Quase nada se via, porque a chuva e a iluminação fraca ajudavam o bandido, que aproveitava bem a escuridão da noite. Se os guardas o pegaram, tudo estava resolvido, mas Maurício sabia que aquele assassino era inteligente demais para se deixar atingir tão facilmente. Não havia lógica na direção daqueles tiros. Quando chegaram ao local, encon­traram os corpos de dois guardas estendidos no chão. A situação ficou dra­mática e o detetive ajoelhou-se para cumprir o ritual macabro de colocar o dedo na aorta de cada um. Ali, no chão, estavam dois de seus melhores auxiliares. Cada um tinha dois ferimentos: um na testa e outro no peito. Estava confuso e triste. Quase chorando, perguntou a Maurício:

Como o senhor explica isso? Por que dar mais um tiro em cada um?

Maurício olhou para o pobre homem, que já não conseguia raciocinar direito. Com voz de quem também estava estupefato diante da situação, deu sua versão:

Ele pegou os policiais de surpresa e atirou primeiro com a própria arma, que tinha silenciador. Depois de matá-los, deu mais um tiro em cada um, com a arma deles, porque sabia que os estampidos nos trariam para cá. A autópsia vai dizer que os tiros no abdômen foram das armas dos policiais e esses tiros na testa pertencem a outra arma. Nós ouvimos apenas dois tiros e, portanto, dois outros foram dados com silenciador.

Mas qual a lógica disso? Por que esse procedimento tão estranho?

Pense bem. O melhor caminho para uma fuga não seria aqui, na es­trada asfaltada, onde seria mais fácil encontrá-lo. Ele deve ter descido para o fundo do vale. Com essa chuva e essa escuridão, vai ser quase impossível encontrá-lo nas trilhas sinuosas dessas montanhas.

Mas então, por que veio até aqui cometer esses dois crimes?

Maurício compreendia que o inspetor não conseguia raciocinar.

Ele deve ter estudado a posição de seus policiais e...

Não teve coragem de concluir o que ia dizer, mas o inspetor acordou de seu estupor e perguntou, nervoso:

O que o senhor ia dizendo? Espero que não seja o que estou pen­sando!

Só há uma explicação. Ele matou estes dois para nos desviar de seu caminho e nos entreter aqui. Se existe algum policial isolado... Acho que o senhor entende. Ele precisa de um disfarce, e nada melhor agora do que o uniforme da polícia até chegar a seu esconderijo e trocar de roupa.

O detetive o olhou, quase desesperado.

Meu Deus! Mas é o demônio em pessoa. Deixei um guarda tomando conta da antiga palhoça celta, que é hoje o museu do Cebreiro. Será que vou perder mais um dos meus homens?

Deu ordens aos guardas para não se separarem e percorrerem os locais ali por perto enquanto eles corriam para a palhoça celta, onde encontraram o corpo de um policial, sem uniforme.

Maurício olhou para o fundo do vale, mas nada se via. Escuridão, chuva e um macabro silêncio.

Uma ambulância chegou de Villa Franca del Bierzo para atender a mu­lher. Felizmente, o tiro não havia atingido nenhum órgão vital.

O mestre da Irmandade mostrou onde estava guardado o cálice. Era um compartimento de pedra hermeticamente fechado com um cofre eletrô­nico, que só responde aos códigos de abertura em horários pré-estabelecidos. O cálice ainda estava lá. Aparentemente, o assassino não sabia disso. O cálice estava salvo, mas custara a vida de cinco pessoas. Logo chegaram reforços das cidades próximas, e uma intensa busca começou a ser feita por toda a redondeza. Maurício sabia que aquela busca seria inútil, mas, ainda assim, ficou acordado em solidariedade ao inspetor, que não se conformava com o fato de que aquilo tudo tinha acontecido diante de seus olhos. Fazia perguntas a Maurício, como se estivesse se preparando para uma sabatina, porque seus superiores e a imprensa não o perdoariam.

O senhor deduziu corretamente que o cálice podia não estar na igreja. Infelizmente, chegamos tarde para salvar a vida do padre e da freira. Mas não consegui entender qual foi seu raciocínio naquele momento.

Procurou falar com cuidado para não parecer mais sagaz que o policial.

Existe uma comunicação entre a igreja e a casa paroquial. Enquanto o padre rezava a missa, o assassino entrou na casa e traçou seu plano. Depois, voltou para a igreja, ocultou-se, esperou o padre trancar a porta de comu­nicação com a casa paroquial e, assim que ele saiu, foi até a porta principal da igreja e destrancou-a, porque a chave fica do lado de dentro.

Destrancou a porta por dentro? Mas por que esse risco desnecessário? Não era mais fácil ficar lá no quarto do padre?

O assassino precisava de tempo. A porta aberta nos confundiria, dan­do a impressão de que ele entrara por ela e ainda poderia estar lá dentro. Ele raciocinou que nós ficaríamos em dúvida e, dessa maneira, ganhou alguns minutos. Estudou o cálice e desconfiou de que era uma réplica. Foi, então, atrás do original e tomou precauções para retardar quem o perseguisse, usando a estratégia de deixar a porta aberta.

Mas isso não explica como o senhor calculou que o padre não estava com o cálice. Não consigo entender como percebeu isso.

Como explicar aquilo para um detetive? Às vezes tudo vem com rapidez à mente. Como explicar uma intuição?

Vou tentar explicar o que me ocorreu na hora. A irmã deve ter ouvido barulho e entrou no quarto, que estava com a porta meio aberta. O senhor se lembra de que o padre estava perto do guarda-roupa, estrangulado com uma dessas meias compridas de dormir, enquanto ela estava no pé da cama, mais perto da porta, o que indica que chegou depois. Imagino que o assas­sino ameaçou enforcar o padre com a meia se ela não dissesse onde estava o cálice, ou então ameaçou matar a freira para pressionar o padre.

Mas o senhor acha que ela sabia onde o cálice estava guardado?

Sim. Por isso levou um tiro na testa e outro no peito, caindo de bruços sobre a guarda da cama. Quando a irmã percebeu que o padre já estava ficando roxo, ela tentou salvá-lo. Depois que teve essa informação, o assas­sino atirou primeiro nela para que não gritasse, já que o padre não tinha mais como reagir.

Maurício estava cansado e com sono. Também já estava com raiva desse detetive, que, às vezes, parecia inteligente e, outras vezes, cometia burrices como essa de hoje, e agora parecia arrependido.

Depois de um silêncio constrangedor, Maurício despediu-se:

Estou cansado. Boa noite, inspetor.

No dia seguinte, o trajeto até Tricastella tinha apenas vinte quilômetros, mas era um trecho difícil. O Alto do Polo fica a 1.313 metros de altitude, e, depois, uma longa descida força os joelhos até Tricastella.

 

                               CAPÍTULO 107

Já eram mais de 3 horas da madrugada quando Maurício foi dormir. O corpo cansado e dolorido não permitiu um sono reparador. Teve sonhos estranhos e acordou assustado às 9 horas. Quando se levantou, viu o bilhete embaixo da porta:

"Achei melhor não acordá-lo. Também não quero servir de estorvo para suas confidências com esse seu amigo. Espero-o em Tricastella. Beijos, Patrícia."

Com uma pontada de desgosto, conferiu todos os seus pertences e ar­rumou a mochila. Examinou o quarto com cuidado, mas não encontrou a folha de papel com a charada que havia deixado em cima da cama antes de sair para a igreja. Alguém a pegara. Quem teria sido e por quê?

Passou pela praça da igreja onde o inspetor o esperava na viatura. Cumprimentaram-se, e Maurício perguntou se tiveram algum êxito:

— Até agora só encontramos a farda do soldado assassinado. Estava escondida em uma moita pouco afastada da estrada. A chuva apagou os rastros e o cheiro. Por enquanto, nem os cachorros estão sendo úteis.

Conversaram um pouco e, apenas por gentileza, porque sabia que Mau­rício não ia aceitar, ofereceu-se para levá-lo até Tricastella.

Maurício agradeceu e seguiu.

Talvez tivessem sido os 20 quilômetros mais difíceis de toda a jornada. Havia dormido mal e o corpo doía com os ventos frios do Alto do Polo. A chuva dera lugar a um nevoeiro branco que cobria o verde vale de Tri­castella, onde entrou às 4 horas da tarde, depois de uma longa descida. A cidade estava cheia de estudantes. Procurou o albergue, mas não encontrou Patrícia. Olhou a relação das pessoas hospedadas e não viu o nome dela. Estudantes deitados por todos os lados, esticados em seus sacos de dormir, ocupavam todos os espaços.

"Onde será que ela se meteu?" As pensões estavam cheias e não en­controu nenhum recado. Lembrou-se de que na peregrinação anterior também havia muita gente nessa cidade e algumas pessoas estavam aloja­das no interior da igreja. Foi até lá. De fato, muitos peregrinos já estavam deitados no chão e nos bancos da igreja, em sacos de dormir. Algumas escolas tinham levado os alunos para percorrerem parte do Caminho de Compostela, começando por Tricastella. Desanimado, entendeu que não ia encontrá-la.

Estava com fome, sem almoço, e para continuar o Caminho precisava se alimentar e comprar um pouco de provisões. Havia um prédio na entrada da cidade, com um restaurante. Certamente estaria cheio, mas devia ir até lá, pois não podia cometer a imprudência de seguir sem provisões. Entrou e levou um susto. O lugar estava cheio de peregrinos, e, ao verem-no, todos começaram a falar em vários idiomas. Uma bagunça! O que será que po­deria ter acontecido? Olhava para eles, sem entender aquela gesticulação, quando um senhor falou em espanhol:

Senhor Maurício. Não fique nervoso, mas a senhora Patrícia reservou um quarto para o senhor no andar de cima. Ela está lá e pediu que não o deixássemos ir embora. É isso que todos estão querendo dizer em alemão, francês, holandês, espanhol e outros idiomas.

Ele respirou aliviado, agradeceu e começou a subir a escada, raciocinan­do que sua amizade com ela já era assunto para a 'rádio peregrino'.

No alto da escada, chamou por ela porque não sabia o número do quarto.

Não faça escândalos!

Maurício sentiu a ternura daquele momento e, sem saber por que, uma profunda tristeza tomou conta dele. Já estava amando aquela mulher e gos­tava de tê-la por perto. Sofria com sua ausência e se alegrava quando esta­vam juntos.

"Bem que ela podia ter reservado um quarto só", e assim pensando, apro­ximou-se e a abraçou. Beijou-a e discretamente a empurrou para dentro do quarto, e ali trocaram longas carícias, mas ela o afastou, justificando:

Você anda muito atormentado e precisa primeiro encontrar sua paz interior. Desculpe, mas não quero apenas ser uma espécie de remédio para sua consciência.

E, como se tivesse ficado arrependida da maneira como falara:

Sabe? Acho que o estou amando muito. Não agüento mais ficar longe de você.

Ele a olhou e novamente seus lábios se encontraram, em um beijo cheio de angústia, de apaixonados separados por temores que não entendiam.

Você é muito bonita. Nem acredito que, com tantos jovens vistosos por aí, eu tenha a sorte de merecê-la.

Bobo. Você talvez possa ser a coisa mais bonita que me aconteceu, e não quero perdê-lo.

Ela quis saber o que houve no Cebreiro e ele contou de maneira resumi­da. Ela já sabia da morte do padre e da freira, mas os relatos fantasiados dos demais peregrinos comentavam outras mortes misteriosas.

 

                         CAPÍTULO 108

O diretor da CIA trouxe novas informações.

Se quiserem notícias do nosso amigo Maurício, ele se envolveu em novos episódios. O Cebreiro, um lugar na Galícia, tem um cálice misterio­so, que alguns acreditam que seja o Santo Graal. Parece que foi inspirado nesse cálice que Wagner escreveu a ópera Parsival, o cavaleiro do rei Artur, que ficou encarregado da guarda do cálice de Cristo.

Falava em um tom meio solene, como que emocionado com a hipótese de que toda a santidade da vida humana pudesse de repente perder o sentido.

Ainda faço o Caminho de Compostela!

Fez que não viu o olhar irônico do embaixador e tentou explicar:

O Cebreiro é um lugar muito místico, situado a 1.293 metros de alti­tude logo que se entra na Galícia pelo Caminho de Compostela. Existe ali uma pequena igreja dedicada a Santa Maria Real, que dizem ser reminiscência de um monastério pré-românico. Vocês sabem o que isso significa?

Ninguém respondeu.

No inverno, o Caminho fica coberto de neve. Em uma dessas noites rígidas de frio e também de muita chuva, um camponês subiu o morro para assistir à missa que um padre pouco crente celebrava para cumprir sua obrigação. Quando viu o pobre homem tremendo de frio entrar na igreja, pensou: "O que será que esse imbecil veio fazer aqui com essa tempestade? Só para ver um pedaço de pão e um pouco de vinho?"

"O que será que deu nele? Ficou piegas, de repente?" — pensava o embaixador.

Nesse instante ocorreu o milagre do Cebreiro. Foi como se Deus qui­sesse mostrar ao mundo, mais uma vez, que a salvação está no sacrifício e, naquele momento, quando o padre ironizava a fé do camponês, o pão se transformou em carne e o vinho se transformou em sangue.

Respirou fundo e completou:

O padre e o camponês estão enterrados na Capela dos Milagres, nessa mesma igreja.

Era o diretor da onipotente CIA falando de milagres como se acreditasse neles. O que, no entanto, os impressionou foi o tom emotivo da voz.

Mas os milagres não pararam. O cálice com o qual o padre celebrava aquela missa começou a ser venerado como sendo o Santo Graal. Dizem que a rainha Isabel, a Católica, quis se apossar dele e ia levando-o embora na carruagem real, mas, ao chegar ao lugar chamado Pereje, logo abaixo do Cebreiro, aconteceu outro fenômeno espantoso: os cavalos pararam e se recusaram a continuar. Ela compreendeu que estava cometendo um grave pecado e pediu ao cocheiro para voltar. Os cavalos obedeceram docilmente ao comando de volta e ela devolveu o cálice à pequena igreja. Depois os cavalos passaram por Pereje sem nenhum problema, rumo a seu castelo.

Os demais começaram a pensar se o drama que a CIA estava passando não seria demais para o diretor, e ficaram aliviados quando ele ponderou:

Um dia vocês vão me entender. Eu não tenho o direito de ter fé, não posso acreditar em Deus e menos ainda em milagres. A CIA é seu próprio Deus e tem de encontrar soluções até mesmo quando elas parecem não existir. Não temos o direito de lamentar mais tarde que não estávamos pre­parados para o desafio.

Entenderam. O diretor não estava emocionado com o milagre do Ce­breiro, mas sim porque crimes e fatos estranhos criavam um mistério cada vez mais complexo, e a CIA seria acusada de incompetente se não soubesse interpretá-lo. Para ele, a competência era a única fonte de milagres.

                                   CAPÍTULO 109

Logo adiante de Tricastella, por um caminho que segue à es­querda, ergue-se o monastério beneditino de Samos, um conjunto monumental cujas origens remontam ao século VI, anterior ao Caminho e à invasão dos árabes na Espanha. O nome Samos deriva de Samamos, que significa lugar onde os monges vivem em comunidade.

Um padre de aproximadamente 70 anos organizava um grupo de turis­tas, aos quais se juntaram. Foram levados para o segundo piso e o padre começou a explicar o grande painel de pinturas nos corredores que antece­dem ao claustro. Em uma das paredes, fotografias mostravam os estragos do incêndio ocorrido em 25 de setembro de 1951, quando um dos grandes tambores de álcool para a fabricação de licores pegou fogo e o monastério foi quase totalmente destruído. Só foi possível salvar a sacristia, a igreja e alguns poucos pontos. As fotografias das ruínas, emolduradas e protegidas por vidros, formavam um painel melancólico.

Maurício examinava uma das fotos quando viu refletida no espelho a imagem de um monge que lhe pareceu conhecido. Virou-se assustado, mas nada viu. "Muito estranho". Estaria ficando obcecado com as idéias de uma conspiração? Não. Não estava. Tinha realmente visto um rosto conhecido, mas não havia ninguém no corredor. Estudou melhor a posição do quadro, e o vidro refletia uma porta fechada do claustro. Não adiantava ir até lá porque, se alguém o vigiava, não iria deixar-se ver.

O padre conduziu-os de volta ao piso inferior, onde ficavam a sacristia e a nave da igreja, com a estátua do rei Afonso II. Ele era ainda criança quando o pai foi assassinado e a mãe o levou a Samos para que os monges o escondessem. Depois de adulto, reivindicou o trono e retribuiu os favores a Samos, que prosperou. Foi o rei Afonso II o primeiro peregrino ao túmulo de São Tiago. Assim que soube da descoberta, ele, sua esposa e toda a corte dirigiram-se ao local. Foi ele também que decretou que São Tiago seria o padroeiro da Espanha.

Assim que entraram na sacristia, Maurício sentiu todo o impacto de suas preocupações. Uma imensa abóbada octogonal distribuía luzes celestiais que clareavam o ambiente, e justamente embaixo do centro da cúpula esta­va uma mesa octogonal.

— Dois símbolos octogonais?!... — deixou escapar.

O padre o olhou com atenção e explicou:

Logo que pararam as perseguições religiosas, no tempo do Império Romano, os cristãos começaram a construir igrejas que seriam uma espécie de trono divino aqui na Terra. Era preciso representar o céu e por isso todas as igrejas têm uma cúpula abobadada. Mas, para ser de fato uma abóbada harmônica, foram necessárias as oito nervuras que lhe dão forma e se con­centram em um único ponto para simbolizar o caminho direto para o céu.

E, dizendo isso, aproximou-se da mesa:

Olhem essa obra de arte. Ela tem a forma octogonal e estilo barroco. Notem que suas nervuras se concentram em um ponto exatamente embai­xo do ponto central da cúpula, de onde descem os raios solares.

O padre, de baixa estatura, inclinou-se sobre a mesa, esticando o braço para alcançar o centro. Maurício olhou para cima, acompanhando a expli­cação, quando viu que um grande bloco de pedras estava se despregando do alto da cúpula. Com um gesto rápido e brusco agarrou o padre e puxou-o. A pedra desceu com velocidade e caiu com estrondo no centro da mesa, destruindo-a. O barulho foi grande e pedaços de pedra se espalharam pela sacristia, causando ferimentos leves em algumas pessoas.

O padre estava pálido e parecia mais velho que Noé. Conseguiu balbuciar:

O senhor salvou a minha vida.

Patrícia molhou um lenço na pia de água benta e passou no rosto do sacerdote, que logo se reanimou. Era um velhinho alegre, que riu do fato e comentou:

Posso entender isso como sendo uma mensagem de Deus. Ele não me quer lá em cima por enquanto. Preciso fazer mais penitências aqui na Terra para merecer o céu.

E, ainda sorrindo:

Até que não acho ruim, não!

Curiosos apareceram e eles saíram para visitar uma igrejinha de estilo pré-românico à margem do rio Sarriá, perto do monastério, de onde segui­ram o Caminho por trilhas estreitas e em meio a bosques verdejantes, ao longo dos quais se distribuíam ruínas e casas abandonadas.

Ao passarem por um muro de pedras, Maurício, que ia à frente, voltou-se e ficou imóvel diante dela. Patrícia ficou um tanto embaraçada, esperando que ele fosse beijá-la, mas ele a olhava, como se não a visse, e apenas murmurou:

Era o abade de Roncesvalles. Agora reconheço aquela fisionomia. Mas o que ele estava fazendo nesse monastério? E por que se escondeu quando me viu? Ele estava refletido no vidro da fotografia.

Ela reagiu com nervosismo:

E o que tem de especial um abade a mais em um monastério? É a casa deles! Deixe de besteira. Vamos seguir o Caminho. Assim não dá. Você já está maníaco.

Pode ser que sim. Mas eu me lembro da fisionomia que ele tinha quando me entregou a primeira charada, depois do meu depoimento em Roncesvalles. Existe uma lógica no comportamento desses assassinos. Al­guns pontos começam a se encaixar, como a cúpula octogonal.

Ora! Não me venha com as bem-aventuranças de novo.

Ele, porém, estava sério. Não gostara do comportamento do abade em Roncesvalles, e a sua aparição no Monastério de Samos era um mau agouro.

 

                               CAPÍTULO 110

Cinco quilômetros antes de Santiago está o monte do Gozo. O nome traduz a alegria dos peregrinos quando ali chegavam e viam as torres da catedral, que despontavam no horizonte. Devido à urbaniza­ção, não se consegue hoje ver dali as torres, mas, ainda assim, ao chegar ao Alto do Gozo, o peregrino é tomado por uma sensação de triunfo sobre todas as dificuldades do Caminho.

A sede, o cansaço, a fome, o frio, a chuva, encontrar um lugar para dor­mir ou comer, os perigos dos buracos nas trilhas, as escarpas para subir ou descer, as noites mal dormidas, as pequenas inconveniências dos alber­gues que vão se somando ao longo da caminhada, o desânimo que às vezes atormenta, dores musculares, bolhas, a mochila nas costas, o sol forte, os ciclistas que surgem de surpresa imaginando que o Caminho é só para eles ou, ainda pior, os cavaleiros a galope jogando os animais sobre os peregrinos, enfim, os 800 quilômetros do Caminho justificam o nome desse pequeno morro.

Era o entardecer de um sábado. Existe ali um albergue para aqueles que preferem adiar a alegria da chegada, como se guardassem com carinho o prazer de ler a última página de Dostoievski. O enorme conjunto moderno em que se tornou o Gozo tirou-lhe as características de albergue de pere­grino, mas, pelo menos, Maurício e Patrícia poderiam chegar a Santiago no dia seguinte e assistir à missa do meio-dia, quando apresentam o espetácu­lo do botafumeiro.

Assim que o dia amanheceu, eles saíram sem pressa e chegaram à praça do Obradoiro, que leva o nome da fachada da catedral. Os detalhes tão minuciosos e artísticos das três portas lembram trabalho de ourives e, por isso, o nome "obra doiro". Turistas se misturavam aos peregrinos de mo­chilas nas costas, e eles acharam que já era hora de terem um bom descan­so. Na mesma praça da catedral está o Paradouro dos Reis Católicos, cuja propaganda diz ser o hotel mais antigo do mundo. Verdade ou não, era um luxuoso hotel que poderia recompor todas as suas energias.

Maurício lembrou-se de que na peregrinação anterior, quando fizera so­zinho o Caminho e sem as preocupações de agora, sentira uma profunda frustração. Por um lado sentia a realização de ter percorrido os 800 quilô­metros mais místicos da cristandade, mas havia o outro: o Caminho termi­nara, e com ele as lendas, o companheirismo das trilhas e das noites nos al­bergues. Foi até mesmo estranho que tivessem alugado quartos separados, quando pareciam estar ansiosos por momentos íntimos. O olhar confuso que ela lhe lançou o deixou mais frustrado, contudo, pensou ele, há tempo para tudo. Depois de se alojarem nos confortáveis apartamentos do Para­douro, saíram para assistir à missa do meio-dia.

Curtiam a alegria de terem terminado o Caminho e também a frustração de tê-lo acabado. Mas essa frustração era ilusória. O Caminho é como o ho­rizonte, que nunca alcançamos, e é ilusão pensar que ele acaba em Santiago.

Quando esteve ali antes, era o Ano Santo Jacobeu, que foi instituído na Idade Média. Essa celebração acontece sempre que o dia 25 de julho, dedicado a São Tiago, coincide com um domingo. Nos anos santos, o peregrino passa pela Porta do Perdão, que fica no lado da igreja que dá para a praça Quintana, e recebe as indulgências.

Pessoas dos mais variados cultos e idéias fazem o Caminho para Compostela, que não tem mais hoje o espírito de peregrinação da Idade Média, mas mantém o misticismo que empolga os que o completam.

Desculpe perguntar, mas você é católica?

A pergunta desconcertou Patrícia, que pensou um pouco e respondeu:

Católica, propriamente, não. Tenho minhas convicções, considero-me cristã, uma seguidora de Cristo, mas não gosto de dogmatismos.

E, em tom irônico:

Nos tempos antigos talvez seguisse um cristianismo do tipo dos cáta­ros, mas não seria uma perfeita.

No século 1100, o bispo Gelmirez iniciou a construção de uma gran­de basílica românica para substituir o velho templo, e o mestre Mateus foi incumbido de aumentar a porta da entrada principal, que se tornou insu­ficiente para o grande número de peregrinos que chegavam. Foram cons­truídas três portas com três arcos, e no majestoso arco central estão Cristo e os evangelistas circundados pelos 24 anciãos do Apocalipse.

Os peregrinos apoiavam-se no pórtico, e os anos se encarregaram de moldar aquele ponto com o formato de uma mão. O que antes era apenas um gesto de apoio tornou-se uma tradição, e todo peregrino, ao entrar na igreja, coloca a mão ali. A estátua em oração na base posterior da coluna é o próprio mestre Mateus, que quis assim assinar essa obra imortal com sua própria imagem. Cumpriram essa formalidade e se misturaram aos milha­res de peregrinos e turistas que admiravam a beleza da catedral. Maurício prestava atenção aos detalhes e parecia procurar por alguma coisa que não encontrava. A charada de Roncesvalles falava de início e fim. O Caminho deveria terminar em Santiago de Compostela porque ali está o túmulo do apóstolo, o motivo da peregrinação. Se o fim era ali, então a prova final tinha chegado e todo o exercício físico e mental do Caminho seria agora posto à prova.

Antigamente não havia os cuidados higiênicos de hoje e os peregrinos entravam na igreja como maltrapilhos sujos e malcheirosos. O bispo da época mandou então construir um turíbulo de 1,6 metro por 80 centíme­tros, de latão prateado, que existe até hoje e precisa de oito homens treina­dos para levantá-lo até o mais alto da igreja para que a fumaça do incenso perfume o altar. O botafumeiro, como passou a ser chamado o turíbulo, é a maior curiosidade do Caminho. A igreja estava toda iluminada e a solene missa comovia turistas e peregrinos. Quando os oito homens vestidos de roxo começaram a levantar o imenso turíbulo, muitas pessoas derramaram lágrimas de emoção. A peregrinação em si própria pode ser considerada um milagre, e muitos que ali estavam não acreditavam que tinham vencido a grande distância de 800 quilômetros.

No entanto, a iluminação, o prateado do botafumeiro e o espiritualismo denso do momento, incomodavam Maurício. "A prata não pode refletir a luz", pensava preocupado. "A prata do botafumeiro? As luzes? Não. Será que não me enganei? A frase podia mesmo se aplicar ao fenômeno de San Juan de Ortega. Será que tudo acabou lá mesmo? Não pode ser, pois houve vários crimes depois de San Juan."

A missa terminou com o "Ide in pace", e eles acompanhavam a multidão que ia descendo a escada do Obradoiro quando um peregrino se desequi­librou e caiu em cima de Patrícia, que só não rolou escada abaixo porque se apoiou nas pessoas em volta. Ela fez uma careta de dor e não conseguiu levantar-se. Várias pessoas se aproximaram, em solidariedade. Ela torcera o pé e, com custo, sentou-se em um dos degraus. O peregrino que provoca­ra o acidente pediu imensas desculpas, estava desconcertado, e devolveu a máquina fotográfica que havia caído das mãos dela. Apoiada em Maurício e, com um pouco de esforço, conseguiram chegar ao hotel, ao lado da igreja.

— Que pena! — lamentou ela. Logo agora que eu ia visitar o túmulo. Queria tanto tirar uma fotografia do local.

Maurício foi cavalheiro e disse que não iria sem ela. Poderiam esperar até que se recuperasse. O hotel providenciou um hospital, onde um médico a examinou com cuidado. Por sorte, não houvera fraturas.

Em três dias a senhora já poderá andar, sem forçar muito esse pé, mas por enquanto deve ficar em repouso — foi a recomendação do médico.

Ela lamentava não poder ver o túmulo do apóstolo e pediu que ele ti­rasse uma fotografia com a máquina que trouxera. Agora, só faltavam as de Compostela para que ela tivesse uma seqüência própria de fotografias.

Pois é. Podíamos ter visitado o túmulo antes da missa, mas a fila era muito grande. Esperava que à tarde o movimento fosse menor. Que pena! Você vai tirar uma bem caprichada, não vai?

Pode deixar. Vou levar as duas máquinas, a minha e a sua, porque da última vez, devido a uma falha, eu não tirei fotos do túmulo.

Começou uma leve chuva e ele entrou na igreja. O número de pessoas ainda era grande, mas, como os peregrinos passavam rapidamente diante do túmulo e apenas se benziam ou tiravam uma foto, a fila andava ligeiro. O túmulo ficava em uma cripta, e diante dela um genuflexório para os fiéis se ajoelharem, se benzerem e saírem. Enquanto descia as escadas para chegar ao genuflexório, ele preparou as máquinas porque seria descortês segurar a fila. Ajeitou primeiro a sua câmera, pois assim treinaria para uma foto melhor com a dela. Logo estava diante do túmulo de prata do chamado apóstolo do trovão, um dos doze apóstolos de Cristo, decapitado por Herodes Agrippa I, filho de Aristobulus e neto de Herodes, o Grande, que antes mandara matar todas as crianças do reino para que Cristo não ameaçasse seu trono.

Ligou o flash e apertou. Viu logo que a foto ia ser perfeita. A iluminação que se refletiu no sarcófago de prata trouxe toda a imagem para dentro da máquina, que a registrou para sempre. Mas assim que viu o sarcófago refletido na pequena tela da máquina fotográfica digital, levou um choque. Ficou paralisado enquanto um frio inquietante percorria sua espinha. Não conseguia tirar os joelhos do genuflexório para se levantar, porque os olhos estavam fixos no sarcófago do santo. Os demais peregrinos o olhavam es­pantados. Um deles perguntou:

O senhor está bem? Precisa de ajuda?

Ele não estava bem, mas não precisava de ajuda. Agradeceu e saiu andan­do, como um autômato. Foi até a frente da igreja e sentou-se nos degraus.

Agora entendia o que o padre queria dizer com a frase: a prata não pode refletir a luz". Entendia também agora o comportamento de Patrícia. Ela representara durante todo o Caminho. Conquistara-o, brincara com seus sentimentos e, quando pedia para ele tirar fotos, estava apenas preparando-o para esse momento. Deveria parecer natural que pedisse para ele tirar uma foto do túmulo com aquela máquina. O comportamento dela era às vezes estranho e ele percebera várias situações de incoerências, mas não podia acreditar em tamanha falsidade. Desde o início ela estava agindo friamente e preparando o momento certo. O tombo na escadaria teve o propósito de buscar uma justificativa para que ele tirasse a fotografia e explodisse a catedral de Santiago enquanto ela desaparecia. Ele vinha desconfiando de algo, mas não imaginava uma armadilha tão audaciosa. Aquele tropeço na cama em Roncesvalles era apenas um álibi na hora do crime. Ela o envolvera durante todo o Caminho para que achasse normal tirar aquelas fotos, e em Ponferrada, quando derrubou o copo, foi para sair da mesa e telefonar para alguém, avisando que ele ia questionar o guia depois do jantar. Mas por quê? Por que toda essa armação para que ele participasse desse ato de terrorismo? Por que tinha de ser ele a explodir o templo de Santiago?

Não sabia responder a essas perguntas e estava angustiado. Quem o visse ali, com os olhos vermelhos, podia imaginar um peregrino emocionado por ter concluído a grande jornada. Estava traumatizado demais para per­ceber a chegada do inspetor, que o cumprimentou educadamente:

Boa tarde, Senhor Maurício. A senhora Patrícia ainda está na igreja?

Maurício balançava a cabeça de um lado para o outro, deixando o ins­petor intrigado. Apertava os lábios para não chorar de raiva. Conseguiu dizer apenas:

Esta máquina pertence a ela. Era para eu tirar as fotografias do túmulo do apóstolo porque ela não tinha condições de enfrentar a fila, devido a um acidente com o pé.

E, sem disfarçar a tristeza:

Não tirei as fotos. Não com essa máquina.

O inspetor o olhou de forma estranha e Maurício continuou:

Naquele instante eu me lembrei da frase do padre. A prata não pode refletir a luz. A prata é o revestimento do túmulo e a luz é o flash que ia de­tonar o dispositivo que está dentro da máquina e explodir a igreja comigo dentro. Ela simulou a queda na escadaria para não ir comigo.

Não é possível! O senhor deve estar enganado.

Maurício balançou a cabeça de um lado para outro, e o detetive, meio abobalhado com essa revelação, expressou com voz pausada e clara, como se fabricasse cada uma das palavras:

A senhora Patrícia, a assassina? Não podemos fazer uma acusação dessas sem examinar essa máquina. É muito sério. Trata-se de uma cidadã americana, e teríamos mais problemas do que soluções.

O inspetor esperava por tudo, menos por aquela situação, pois parecia um ator de teatro que havia esquecido seu papel no meio da cena. Dava ordens pelo celular, com a cabeça erguida, e pediu que um agente fosse até onde estavam. Maurício lhe passou a câmera, que ele pegou com cuidado.

É preciso antes fazer uma perícia neste aparelho, mas, por precaução, vamos vigiar o hotel. Fique sossegado, mas espero que desta vez o senhor esteja enganado.

O inspetor andava de um lado para outro, diante de Maurício, que con­tinuava sentado e deu uma sugestão:

Acho que o senhor está muito otimista. Não vai ser fácil encontrá-la. É melhor eu voltar para o Paradouro dos Reis Católicos e tomar um bom vinho. Não quer me acompanhar?

Saíam para o restaurante do hotel quando o telefone chamou o inspetor:

O quê? Ela não está mais hotel? Não sabem para onde foi?

Maurício apenas esboçou um sorriso melancólico.

 

                                                 A ÚLTIMA MENSAGEM

 

                     CAPÍTULO 111

Maurício acordou com a cabeça pesada devido aos Gran Reserva da lista de vinhos do paradouro. O inspetor insistira ainda que ele experimentasse a queimada, uma bebida de aguardente, com casca de limão e açúcar, fervidos em um grande caldeirão, que os druidas toma­vam para espantar os maus espíritos. Ficou esfregando o rosto no travessei­ro, pensando no que fazer, e acabou cochilando mais um pouco. Abriu os olhos, disposto, e foi tomado por uma profunda frustração. Sentia-se humi­lhado e triste. Sonhara com o direito de ser feliz, porém o destino brincara com ele. Pior ainda era aquela sensação de coisa inacabada. Durante todo o Caminho sabia que ia enfrentar um momento final, mas não sabia qual nem onde. Mas, então, valia a pena lutar pela vida. Agora, porém, não tinha mais por que lutar.

Sua tristeza foi aos poucos substituída pela mágoa e lembrou o juramen­to que fizera ajoelhado diante da monja degolada em Itero de La Vega. Não podia permitir que esses crimes continuassem, e um sentimento novo, uma vontade de se vingar, de se mostrar superior a esses assassinos, deu-lhe um desconhecido vigor, movido mais pelo brio do que pelo senso de justiça. Mas estava realizado, pois aplicara outro golpe contra essa seita. A Catedral de Santiago de Compostela continuava de pé.

Nos tempos dos antigos romanos e celtas, existia uma rota de peregrinação que ia do leste até o extremo oeste da Espanha. Era a viagem do Sol, e os anti­gos acreditavam que ele nascia no Oriente e se afogava no oceano, em Finis-terre, o fim da terra, para dar a volta ao mundo e renascer no dia seguinte.

Todos aqueles acontecimentos se deram em lugares enigmáticos e Finis Terrae era um desses pontos, lá era o Marco Zero, o fim de tudo. Tinha certeza de que encontraria o assassino lá, onde o sol se afoga para renascer na manhã seguinte. Ele também precisava renascer, e a melhor maneira era fazer a viagem do Sol, de onde voltaria ressuscitado. Quando saiu do hotel, com a mochila nas mãos e pronto para continuar a caminhada, o inspetor o esperava na Praça do Obradoiro.

Aonde vais, senhor?

Completar o Caminho, ou melhor, fazer uns exercícios até Finisterre.

Compreendo. Acho melhor levar um telefone celular. Antes, havia o da senhora Patrícia. Já percebi que não gosta de carregar esses aparelhinhos, mas pode precisar de ajuda, e daqui a Finisterre são mais 90 quilômetros.

Ora. Não tinha pensado nisso. Muito obrigado.

Aceitou o celular oferecido pelo inspetor e prosseguiu.

Para os antigos, a terra era plana e a água do mar caía em uma grande cachoeira que engolia os barcos que se afastavam. Alguns mais corajosos se atreveram a desafiar os monstros marinhos e provaram que a Terra é redonda. Ele estava ali, como um desses aventureiros, mas, se para os anti­gos, os fantasmas, os monstros e os mistérios do mar não apareceram, ele ao contrário logo iria encontrar um demônio verdadeiro. Seriam mais 90 quilômetros de caminhada, que planejou fazer em três dias. Poderia ter ido de ônibus ou de carro, mas queria enervar um pouco o inimigo, ao mesmo tempo em que estudaria, com calma, a maneira de enfrentar esse desafio. Nesse trajeto, o número de peregrinos é pequeno, porque a peregrinação termina em Santiago de Compostela. Procurou andar cadenciadamente, parando às vezes no alto das montanhas para respirar e se alongar.

A distância gera o mito, mas agora se aproximava do Marco Zero, junto ao Farol do Fim do Mundo, onde a distância já não existe e o mito não tem onde se esconder. A realidade destrói as lendas e ele ia ter diante de si apenas uma realidade para a qual se preparara durante o Caminho. Os quilômetros se escondiam atrás dele como os mitos no passado. Depois de caminhar quase mil quilômetros desde Saint Jean Pied de Port, chegou à cidade de Finisterre, três quilômetros antes do Farol. Preferiu acomodar-se por ali, fazer relaxamento e preparar a mente para enfrentar a luta que teria logo ao amanhecer.

Estava escuro quando se levantou e se dirigiu para onde imaginava ser sua última arena. Daí em diante, não precisaria mais lutar, pensava. Tinha certeza de que o ponto de encontro seria diante do Marco Zero. Tudo era muito intrigante naquele jogo de mistérios, e a sensação de que ia enfrentar o assassino e completar sua missão dava-lhe uma coragem que não conhe­cia. Sim, ele tinha agora uma missão. Se a missão daquele assassino era es­palhar a morte e o terror pelo Caminho, a sua era acabar com esses crimes. Para isso, no entanto, tinha de ser ele a definir as regras desse jogo. O medo, o desânimo, o desencanto e a dúvida são como tabuleiros pantanosos, onde sombras disformes e escuras protegem o inimigo. Precisava levar o inimigo para campos que ele dominava melhor que o outro.

O assassino era uma pessoa com a mente perturbada, dominado por fan­tasmas interiores que o impediriam de raciocinar corretamente. Iludira-se com o tabuleiro da felicidade cujas peças coloridas são como pétalas que murcham de repente e, depois que perdem a cor, exalam o triste odor da frustração. Nenhuma inquietude podia distraí-lo, e nem mesmo se sentiu incomodado com a lembrança súbita do sorriso irônico de Patrícia, que o encantara durante todo o mês. Era como se tivesse vencido o medo da mor­te e se julgasse superior a ela. Mas por que esse entusiasmo, se ia enfrentar um perigo que sequer sabia como era? Perdera o encanto pela vida ou já se acostumara com desafios? Estaria em busca de justiça ou frustrado porque se deixara enganar como uma criança? Ou esperava vê-la junto com o as­sassino para desabafar toda sua raiva? Fosse o que fosse, havia jurado diante do corpo da monja degolada na estrada, em Itero de La Vega, que a vingaria, e precisava cumprir o juramento. Concentrou-se novamente, despindo-se de sentimentos contraditórios.

 

                                 CAPÍTULO 112

Oito figuras postaram-se diante de uma mesa de pedra, no interior de uma gruta oculta entre as florestas dos montes galícios. A cavidade na rocha tinha as dimensões de um grande palácio, cujos salões eram separados por correntes de água ou grossas colunas de estalagmites. Era o Tribunal da Ordem do Graal, reunido para um julgamento. Bem no fundo do túnel, onde apenas os morcegos e os répteis se atreviam a ir, as oito figuras, com capuzes que escondiam suas faces e distantes das velas que emitiam uma luz suficiente para que eles vissem o réu prostrado como um gafanhoto a 10 metros de distância, já tinham decidido qual seria a sentença. Uma voz trêmula e rouca fez uma única acusação e não precisava de mais crimes para a punição.

Você não podia ter deixado que ele continuasse com sua máquina fotográfica. Falhou e sabe qual será o castigo.

O réu esperou um pouco para responder:

Sim, Respeitável mestre, eu e minha equipe falhamos. Eles já se puri­ficaram com o auto-flagelo, e eu ajudei aqueles que não tinham mais forças para entrar no campo da felicidade eterna. Eu deveria ter me purificado como eles, mas recebi ordens para comparecer a esta sessão do Sacro Tri­bunal da Ordem.

Aquelas pessoas não tinham pressa. Sentiam-se seguras e as frases guar­davam minutos entre elas.

Os perdedores não merecem complacência. São pessoas insatisfeitas, e ele é um perdedor perigoso. Pelo que sabemos a seu respeito, o alvo não vai sossegar enquanto não descobrir quem matou a menina e a monja.

A sonoridade áspera da voz ecoou pela caverna, assustando pequenos vultos que esvoaçaram às cegas pela escuridão. O assassino guardou um amedrontado silêncio.

Mas ele é um perdedor que não teve a percepção do último momento e tomou a direção errada, indo a Finisterre à sua procura.

O assassino compreendeu a nova responsabilidade. O alvo não podia continuar vivo.

Compreendo, Respeitável mestre, que deverei reparar o meu erro, eliminando o inimigo. Será minha última missão. Depois me sacrificarei diante de vós.

Mas o Tribunal tinha outro propósito.

O caminho para a vida eterna é a consciência. A dele é leve, como a dos que estão cumprindo seu dever. Mas você conhece seu pecado.

Meus pecados, Senhor, meus pecados, como posso me livrar deles?

Ninguém se livra do pecado, quando ele prejudica outras criaturas. Se, com o pecado você prejudicou a si mesmo, o sacrifício poderá levar à salvação. Mas você prejudicou a Ordem e, dessa forma, prejudicou todo o esforço que ela vem fazendo para salvar a humanidade. Não há perdão para o pecado que prejudica as outras pessoas.

Aquele corpo de joelhos no chão e mãos postas como um louva-deus, implorando um perdão no qual não acreditava mais, começou a estrebuchar. Queria falar, mas de seus lábios saía apenas:

Senhor, Deus do Bem! Senhor, Deus do Bem!

A caverna escura, cheia de morcegos em vôos rasantes, lembrava as pro­fundezas do inferno. A voz agora saía de outro vulto. O assassino sentiu naquele novo tom um pouco de esperança, para o seu desespero.

Você precisa de um guia para chegar ao céu. Sua alma deverá se agar­rar à dele.

O assassino apertou as duas mãos convulsivamente, não acreditando no que ouvira. Não tinha receio do flagelo ou do pior dos castigos, porque sa­bia que por meio do sofrimento chegaria à glória eterna. Mas, como dissera aquele mestre, prejudicara a Ordem, e seu pecado não teria perdão. O so­frimento na Terra era temporário, mas o sofrimento eterno o amedrontava. Agora, porém, o Tribunal lhe dava a oportunidade de encontrar uma alma que não tinha pecados e lhe mostraria o caminho dos céus.

Se falhar novamente, Respeitável mestre, suplico o mais cruel castigo para que minha alma se livre de todos os pecados e não volte a ser esta matéria impura.

Não haverá perdão para outra falha, pois, se houver, nem os poderes da Ordem perante Deus o livrarão do castigo eterno.

Foi a maneira que a seita encontrou para se livrar de um problema sem deixar vestígios. As velas se apagaram e, no reino da escuridão, figuras dis­formes se distanciaram umas das outras e tomaram caminhos diferentes, como se enxergassem à noite, como os morcegos.

 

                               CAPÍTULO 113

Maurício chegou ao alto do morro e divisou dali o Farol do Fim do Mundo. Estava ainda escuro e não viu ninguém por perto. Ha­via chegado a um grande pátio de estacionamento onde estava o escritório de turismo de Finisterre, mas não viu nenhum veículo, nenhum sinal do assassino. Cauteloso, atravessou o estacionamento e logo adiante viu o pe­regrino forte, sentado no banco de cimento que fica no meio da praça em frente do farol, com um cajado comum, sem lâminas afiadas na ponta. Era sem dúvida o assassino. Sabia que aquilo iria acontecer a qualquer momen­to, porque eles fracassaram em Santiago. Não adiantava fugir. Estava diante de um assassino profissional, e viera até ali justamente para encontrá-lo. Gostou de ver que não estava com medo. Saberia agora por que o estavam envolvendo em coisas tão sinistras.

O assassino não perdeu tempo e começou a falar:

Você provou que é inteligente e esperto, mas traiu a causa.

Não estava preparado para uma frase boba dessas. O inimigo era mais alto que ele, tinha braços fortes, corpo atlético e próprio da agilidade. Era um adversário implacável que tinha certeza de que sairia vencedor. Mas qual seria sua artimanha? Não gostara da acusação de que traíra a causa. Que causa seria essa? Era preciso cautela, porque parecia que tudo fora montado para um ritual messiânico e, em todo ritual, a força que mais impressiona é o poder da mente, e, por isso, precisava se concentrar. O detalhe, a atenção, o auto-controle, essas seriam suas armas, as peças de seu tabuleiro.

Você traiu a causa. Você tinha sido escolhido porque, com sua ajuda, nós iríamos destruir os grandes símbolos da maior heresia da história e restaurar a pureza do cristianismo praticado pelos cátaros.

Sorriu de satisfação, porque novamente tinha adivinhado a respeito da seita e enviara os recados certos para a CIA. Um pensamento turvo lhe veio à mente, porque usara a pessoa errada para diversos desses recados. Mas por que o assassino dava essas explicações? Seria para deixá-lo nervoso? O momento era de aplicação e estratégia. O banco retangular de cerca de oito metros de comprimento os separava, e o assassino ficou parado a certa distância. Maurício segurou firme o cajado. Era a única arma de que dispu­nha, mas na juventude aprendera a lutar varapau. Sabia alguns golpes e até mesmo treinava com amigos que gostavam desse esporte.

Aproveitou a parlapatice do assassino para arrancar mais informações.

Era muita pretensão de vocês pensarem que explodir igrejas e matar padres seria suficiente para acabar com o catolicismo.

Engano seu. A Igreja está condenada e nós temos contribuído muito para isso. Nossa luta não é de hoje, e um dia a história mostrará todos os nossos êxitos.

Aquilo não era coerente com os cátaros. Eles praticavam uma religião pura, sem maldade e nem mesmo usavam armas para se defenderem. Quando o Papa lançara contra eles a cruzada e a Inquisição, sequer se de­fenderam. Escondiam-se e, quando eram presos, enfrentavam a fogueira, mas não lutavam. Os cavaleiros excomungados que viviam entre eles é que se encarregaram de combater os soldados da Igreja.

Vocês não são cátaros. São apenas uma seita fanática. Os cátaros eram humildes e santos. Eram chamados de bons homens e praticavam apenas o bem. Foi você que matou a criança lá nos Pireneus, matou o padre, a monja do albergue e também os outros, não foi?

O bandido não atacava e isso era estranho. Esse assassino já deveria ter avançado sobre o banco com o cajado. Por qual motivo continuava parado e o olhando, como se esperasse que um raio caísse do céu para dessa vez fazer seu trabalho? Se ele não começava a luta, alguém teria de fazê-lo, e Maurício rodeou o banco que estava entre eles, mas o bandido afastou-se. Ficaram, agora, em frente um do outro, cada um segurando o cajado. Ob­servou o inimigo com atenção. Era um sujeito forte, acostumado com a luta e com a morte enquanto ele era apenas uma fera acuada e sem o mesmo preparo. Contava, porém, com a autoconfiança do inimigo, e começou a fingir-se assustado. Segurava o cajado com displicência. Tinha de acertá-lo no primeiro golpe, porque não teria a oportunidade do segundo. Ao mos­trar sua habilidade nesse tipo de luta, deixaria o adversário prevenido e poderia não haver oportunidade para o segundo golpe. A resposta do outro mostrou a face da seita:

Chegou a hora da vingança e nós voltaremos a reinar. A bondade de antigamente será substituída pela justiça.

Mas se esse fanático estava ali para matá-lo também, por que essas expli­cações? Devia tirar vantagem disso:

Essa história de cátaros não convence ninguém. Já que você vai me matar, acho que pode dizer quem vocês são, na realidade.

Ficaram andando em círculos e Maurício teve uma impressão macabra. O assassino fora ali para morrer, porque fracassara em sua missão. Será que tinha de matar e morrer junto, porque já tinha recebido sua sentença final? Ele não respondeu a sua pergunta, mas disse outra coisa incoerente:

Você fracassou na missão e por isso precisa morrer.

Mas não entendo. Afinal, traí a causa ou fracassei na missão? E qual é essa causa, ou melhor, essa missão? Isso não está muito claro. Ora, se sou um de vocês, por que deveria morrer junto com a explosão da igreja de Compostela?

É a causa. É o martírio.

Parecia meio dopado, às vezes balbuciava coisas sem nexo e estava com os olhos vermelhos e estufados. Será que estaria em uma missão suicida? Estariam reeditando a seita dos Assassinos do Velho da montanha'? Pensa­ra nisso durante o Caminho e talvez estivesse certo. Nesse caso, esse bandi­do poderia estar realmente dopado. Se fosse isso, ele não teria mais todos os reflexos, o que seria bom, e uma idéia lhe passou pela cabeça:

Você veio aqui para uma revelação. É por isso que não está lutando.

Você não se mostrou digno da revelação.

E qual é o mistério?

Certa ansiedade tomou conta de Maurício. O que será que esse sujeito podia revelar de tão importante?

A última mensagem.

Última mensagem?!... Qual é essa última mensagem?

Você não a compreendeu. Tudo já lhe foi revelado, mas cometeu uma falha.

"Última mensagem? O que seria? Aquelas charadas todas eram mensa­gens que ele decifrara, mas não recebera nenhuma outra charada. Então, que mensagem seria essa?" Precisava sair dali com urgência. Não era mo­mento para tentar decifrar enigmas, mas o assassino apenas bloqueava seu caminho e não lutava.

Sua luta é inútil. Nossa missão já acabou.

Nossa missão?!... A sua também já acabou? Então, o meu fracasso é também seu fracasso e morreremos juntos?

Era como imaginava, mas não podia perder tempo e tomou a iniciativa do ataque. Abriu as pernas para ter mais firmeza e pegou o cajado com as duas mãos, mantendo-o firme na horizontal, em frente do corpo, como se estivesse apenas preparado para se defender. Mas o bandido ficou parado a uma distância de dois metros e apenas fazia gingas com o corpo, como se participasse de uma dança macabra. Era o momento. De surpresa, avançou, dando a impressão de que ia atingir a cabeça e, quando ele se desviou, co­locou rapidamente o cajado no meio das pernas, derrubando-o. O bandido levantou-se, com agilidade e enfurecido, sem o cajado, que ficara no chão, para se agarrar a Maurício. Esperava essa reação e, no mesmo instante, co­locou o cajado embaixo do pé esquerdo do bandido, que estava meio le­vantado e se desequilibrou, mas ainda assim esticou os longos braços para envolvê-lo. Nesse movimento de esticar o braço, o bandido descuidou-se do rosto e Maurício deu-lhe uma bordoada violenta, cortando-lhe o canto da boca. O bandido ficou estonteado e caiu.

Fora mais fácil do que temia. Não podia ficar ali, porque precisava des­cobrir que mensagem era essa que não recebeu. Jogou o cajado contra o assassino e correu.

Não adianta correr. Nós temos de ir juntos, precisa me esperar. Você é um dos eleitos, e sei que não conseguirei entrar no paraíso sozinho. Minha alma não sabe chegar lá. A explosão não pode levá-lo sozinho.

"Explosão? De onde ela viria?" E novamente teve a desconfortável sen­sação de que o derrubara com facilidade. O assassino era um homem forte, alto, treinado a lutar, mas se manteve passivo naquele encontro.

Nossas almas precisam seguir unidas para o céu, e para isso precisa­mos morrer abraçados. Você é puro, é um eleito, não me deixe aqui.

"Então foi isso. O tombo fora uma artimanha para ele me agarrar e em seguida explodir a bomba para ir comigo para o céu. Ora, ora, em que brin­cadeira me meti!"

Enquanto o outro choramingava suas estranhas explicações, Maurício correu o mais rápido que pôde para ficar longe da explosão. A escarpa pe­dregosa morria nas ondas revoltas do oceano, mas não tinha alternativa. A distância entre os dois diminuía e ele correu até a escada, que fica ao lado do farol, mas preferiu descer o terreno inclinado ao lado dela e pulou para uma parte plana do penhasco. Passou perto de uma cruz de pedras e continuou por uma trilha perigosa, estreita, lisa e com pedras soltas. Sua intenção era dar a volta ao farol, andando sobre as rochas, e para isso tomou o rumo da direita.

O morro era íngreme e pedras enormes o atrapalhavam porque precisa­va contorná-las ou até mesmo pulá-las, porque o outro se aproximava. O bandido podia se livrar do martírio com o suicídio, mas havia o fanatismo, ele tinha medo das maldições que o perseguiriam. Alguma conseqüência existia que o assustava. Alguma ameaça pesava contra ele, se não morres­sem juntos. Era um grupo de fanáticos supersticiosos, que durante séculos chafurdaram em um misticismo próprio que se alimentava do crime. Não podia ficar ali, mas seria alcançado facilmente.

Pare! — gritava o bandido, já bem perto.

Era uma voz desesperada, que aumentava suas energias, e Maurício con­tinuou, pulando pedras, rolando pelo chão, sentindo a umidade da jaqueta, até que chegou a um ponto sem saída. Estava sobre uma enorme pedra e não tinha mais para onde fugir. Vinte metros abaixo, ondas raivosas se batiam contra as rochas. E era ali, no meio da batalha, que o mar travava contra as muralhas de pedra em seu eterno esforço para destruir a terra, que ele tinha de entrar. Aquele instante de hesitação foi o suficiente para o assassino agarrá-lo pela jaqueta e, então, instintivamente, estendeu os bra­ços para trás e a jaqueta escorregou para as mãos de seu perseguidor.

De lá de cima do penhasco e sem saber que tipo de morte o esperava, deu um grito de desespero e se lançou o mais longe que pôde, no meio das ondas. Já estava perto da espuma branca quando ouviu a explosão. Quase no mesmo instante, sentiu o impacto atordoante com a água fria. Enquanto caía, encheu os pulmões de ar e seu corpo desceu às profundezas. Tudo ficou escuro e a última coisa que lhe veio à mente foi uma sensação intensa de felicidade, como se um anjo de longos cabelos negros o estivesse tirando do fundo do oceano.

 

                                       CAPÍTULO 114

O que é a existência? Seria a dor? A alegria? Não. Talvez fosse respirar. Talvez fosse ouvir. Talvez fosse o perfurar de uma lânguida agulha procurando satisfazer-se com a dor alheia. Ou o que seria? Parece outra coisa e era essa outra coisa que lhe dava a impressão de que existia. Existia? Ou vivia? Que sensação era essa que lhe dava a idéia de que ainda vivia e que, portanto, existira antes? Respirava! Era isso. Respirava. O que era antes então? A única coisa de que se lembrava era o frio. Mas tinha aprendido que o inferno era de fogo, então não tinha ido para o inferno. Mas aquele frio o sufocava. A água lhe entrava pelo nariz e o afogamento era aflitivo. O que estava acontecendo? Sentiu de novo alguma coisa que o afagava e se lembrou do anjo que o guiara, no fundo do mar. Estava, então, no fundo do mar. Mas que mar era aquele que não tinha sal? Não sentiu o gosto de sal quando o ar dos pulmões acabou e ele tentou respirar, mas não encontrou o ar que pulsa o coração e mantém a vida sobre a terra. O anjo desaparecera. Também não havia mais água. Conseguia enfim respirar, mas não enxer­gava nada.

Ah! Que tristeza profunda! Por que estava ali sentindo essas coisas, quando todos os sofrimentos tinham desaparecido nas águas profundas do mar? Nunca tinha ouvido falar que anjo sabia nadar. Ou as sereias seriam os anjos do mar? Agora estava ali de novo, triste e só. Só?!... Não pode ser! Alguém passava suavemente alguma coisa sobre as costas de sua mão. Será que voltara a existir? Mas para que existir, se já tinha ido embora? Será que existir era importante para alguém mais? Não queria existir. Já tinha per­dido a consciência do que era viver, e, se um anjo o acolhera, é porque já estava nos céus, onde sua mãe dizia que tudo era bonito.

Respirou. Tentou piscar e a mão passava mais forte sobre a sua. Uma mão sobre a sua. Agora eram duas mãos e ele descobriu que também tinha outra mão. Duas mãos acariciavam suas duas mãos. Não conseguia piscar. Estranho. O que seria isso? Havia ainda algo diferente em sua cabeça. Som. Sim. Som! Mas o que é o som? Vinha tudo meio de repente. Começou a perceber que estava ressuscitando. Deus não o quis no paraíso. Mas por quê? Também não estava com vontade de ir ao paraíso.

Querido — ouviu.

"Querido?!... Por que esfregam com tanta força as minhas mãos?"

Uma emoção profunda o dominou. Sentiu a respiração mais forte e seus olhos se umedeceram. O desconsolo das lágrimas! Não conseguiu piscar, mas alguém esfregou ainda com mais força suas mãos. Ouviu uma palavra.

Maurício, acorde! Fale comigo.

Havia tristeza ali também. Que bom! Não era o único triste. Mas "Mau­rício? Quem seria Maurício?". Muita água nos pulmões. Não conseguia res­pirar. O anjo foi embora e roncos de motores o ensurdeciam.

"Mensagem. A última mensagem!"

Sensação desagradável de obrigação que não cumprira.

Querido. Eu te amo. Não me deixe sozinha. Lembra quando eu lhe disse que você poderia ser a coisa mais bonita que aconteceu em minha vida? Por favor, não me decepcione.

Engraçado. Decepção foi o que sentiu quando fugiu daquele assassino. Mas por que então ficara tão feliz quando pulou na água, sem o casaco? Horrível a água do mar que sai dos pulmões através dos olhos. Alguém passou um pano sobre seus olhos e enxugou a água do mar. Não se lembra­va do sal, mas sabia que as lágrimas estavam salgadas. O pano limpou seu nariz, porque dali também saíam lágrimas. Não gostou daquilo. Muco de nariz não é coisa educada. Balançou a cabeça e alguém gritou:

Ele se movimenta, graças a Deus. Ele está vivo.

Aquele som era conhecido. Mas por que ficou feliz em ouvi-lo? Ouviu outro som. Som! Som era voz. Queria viver de novo e agradecia o anjo por ter ido embora. Mas o outro som lhe trouxe grande tortura interior. Tinha uma vibração que o fazia lembrar coisas que o inquietavam.

Sem dúvida, ele está se recuperando — disse uma voz comum a todos os médicos.

Não sentiu alegria naquela voz. Gostara mais do tom triste do "Querido".

O tempo. O que é o tempo? O tempo é vida, costumava dizer. Perder tempo é perder a própria vida. Mas então, não podia perder tempo. Tinha de acordar. Sabia que lá fora havia flores, gente, céu, sol. Luz. Luz?!... Sim, luz! Luz, disse Goethe, ao morrer, mandando abrir as janelas. Mas Goethe o lembrou de algo. O que seria? Precisava de claridade para se livrar da angústia que vinha do fundo escuro do mar.

Luz...

Foi como uma tempestade que revirou mesas, cadeiras, cortinas, e ele ouviu o barulho irritante de persianas. Não gostava de persianas. Sempre tivera dificuldade de fechá-las. Mas por que então existiam persianas ali, na escuridão do fundo do mar?

Oh! Meu São Tiago, eu vos agradeço esse milagre.

Sim! Era voz feminina. A outra voz então era masculina. Começava a entender o que estava em volta dele. Esboçou um sorriso, porque conhecia essa voz e, antes ela não era assim tão cheia de fé, antes era irônica e críti­ca. Seu sorriso foi como uma resposta, e ele sentiu os lábios dela roçando os seus.

Eu quase acreditei que você ia me pregar essa peça, seu malandro. Agora trate de acordar. Já chorei e rezei muito.

Uma escuridão profunda tomou conta dele. Mas depois dessa escuridão, acordou e abriu os olhos. Olhou para o teto, depois para os lados. Como pensara, era um quarto de hospital e estava vivo. Mas como o haviam tirado do fundo do mar? Estava vivo, quando se julgava morto. Moveu a cabeça e viu. Não havia dúvidas de que era o mesmo anjo, mas não tinha mais as asas. A fisionomia, o corpo belo, até mesmo as roupas brancas e a face celestial. O anjo que o salvara estava junto dele. Sorriu e teve a percepção de quanto era bom viver. O anjo pegou suas duas mãos e também havia lágrimas em seus olhos.

Querido! — foi só o que ouviu, afundando novamente no oceano.

Três dias se passaram enquanto ele se dividia entre a luz do dia e a es­curidão das profundezas do mar. Seus sinais vitais e todo seu organismo funcionavam regularmente. Mas o cérebro lutava para mantê-lo afastado, como se receasse revelações tormentosas.

Quando será que ele volta à normalidade, doutor, o senhor não tem como saber? Por que ele não fala, não acorda, não abre os olhos? Oh! Meu Deus!... Ele chegou a falar antes, abriu os olhos antes e, de repente, parou.

Reconheceu a voz de Patrícia. Ela parecia preocupada com ele.

Em um momento desses, precisamos acreditar em três coisas: pri­meiro em Deus, depois no paciente e, por último, na medicina. É ele que precisa querer voltar a viver. Se alguma coisa em seu cérebro o alerta que a volta à normalidade pode feri-lo mais que a escuridão desse ostracismo, vai ser difícil, muito difícil.

"Mas o que pode me ameaçar? Nada está me ameaçando. Preciso voltar. Preciso voltar. Eu tenho urgência de voltar. Então, por que não volto?"

Doutor, parece que ele está chorando.

O médico pegou o pulso.

Estranho. O pulso está acelerado. O coração está acelerado. Alguma emoção forte o perturba. Isso é bom. Isso é bom.

Maurício deu um profundo suspiro e abriu os olhos.

Patrícia.

A emoção na sala foi grande. Médico, enfermeira, auxiliares, mostravam sua alegria da forma mais diversa. Uns riam, outros falavam e uns chora­vam, como ela. Mas ele repetiu, como se fosse urgente:

Patrícia, escute, é muito importante. O inspetor Sanchez.

E como se tivesse feito um enorme esforço, voltou a dormir.

Ela pôs a mão na cabeça dele e segredou em seus ouvidos:

Eu sei, eu sei.

E depois para o médico:

E agora, doutor?

Ele voltou à realidade. Sua saúde está boa e, principalmente, parece que seu cérebro funciona otimamente. Acho que a senhora recebeu um recado e isso demonstra clareza de raciocínio. É questão de uma ou duas horas.

 

                           CAPÍTULO 115

O médico estava dando as explicações sobre seu estado de saúde.

O senhor caiu de uma altura muito grande nas águas geladas de Finisterre. Chegamos também à conclusão de que caiu de cabeça. Teve muita sorte em não bater em uma pedra, mas o choque foi grande e ficou desa­cordado. Acabou bebendo muita água e foi salvo por um helicóptero da Marinha espanhola, que estava rondando a região. Mas já se recuperou, não teve problemas de fratura ou lesões corporais, e está pronto para sair.

Sentia-se realmente bem, e Patrícia o levou para o Paradouro dos Reis Católicos. Uma suíte presidencial estava reservada por conta da Coroa Es­panhola. Ele chegou andando e observando tudo com cuidado. Sabia que não podia mais errar, agora que compreendera o enigma.

Os dois ficaram a sós e se sentaram no sofá da sala espaçosa e bem deco­rada. Trocaram um beijo carinhoso e ela o criticou sorrindo:

Você chegou a duvidar de mim, não foi?

Ele se lembrou do que o médico disse a respeito de o cérebro não querer que ele voltasse à normalidade, e respondeu também sorrindo:

Eu a imaginava uma agente da CIA e a usava para mandar recados. Mas na hora de tirar a fotografia compreendi a mensagem do padre que estava morrendo. Lembra qual era a mensagem? Seus amigos devem tê-la informado.

"A prata não pode refletir a luz'? Mas o que tem isso a ver? Agora você me deixou ansiosa.

Ele explicou que compreendeu, na hora da fotografia do túmulo de São Tiago, que a câmera dela era um explosivo. E, então, acreditou que ela fazia parte do grupo de terroristas.

Ela dissimulou o ressentimento e perguntou:

E quando foi que você voltou a acreditar em mim?

Ele descreveu a luta que teve com o assassino e que compreendera tudo no momento da explosão.

Parece que ele era um desses fanáticos suicidas e, se sua missão fra­cassasse, teria ao menos de morrer comigo. Ele tinha de me agarrar para eu explodir junto, mas, quando ele puxou a minha jaqueta, eu soltei os braços e ela saiu.

Ela se sentia culpada por ter fugido sem lhe dar notícias.

O inspetor Sanchez me deu um celular que estava na jaqueta. Era por isso que o assassino queria ficar sempre perto de mim. O ardil da máquina fotográfica na catedral não funcionou, e ele preparou o celular. Por sorte, a jaqueta saiu e pulei em tempo. Quando caía na água, compreendi que o chefe do grupo de terroristas era ele, e você era inocente. Lembro-me de ter sentido uma felicidade muito grande, como uma aura celestial, porque não ia morrer decepcionado.

Maurício segurou as mãos dela, que não parecia muito feliz.

Então, por que demorou tanto para voltar a si no hospital? Eu já não estava mais agüentando. Não podia ter feito isso comigo.

Não sei se meu cérebro duvidava de que era feliz ou ainda estava con­fuso. Mas e quanto a você? Por que escondeu de mim que era uma agente da CIA?

Ela se levantou.

Eu não escondi nada de você. Você fingia que não sabia e ficava me estudando o tempo todo. Não me falava das charadas, a não ser quando queria que enviasse relatórios. Todos os seus comentários sobre o Santo Graal, os templários, os cruzados, a Inquisição, o cristianismo, tudo aquilo era para eu dizer a Washington o que você estava pensando. Mas ainda as­sim duvidou de mim. Claro. Imagino sua confusão, o esforço de raciocínio e seu permanente estado de alerta, que enfim o salvou.

Ela tentava evitar que os acontecimentos criassem um obstáculo entre os dois.

Mas você não tinha tanta certeza. Sei disso. Às vezes acreditava mais no inspetor do que em mim. E, quando a informação era importante, você passava para os dois, como foi lá em Burgos com aquela história de Alexan­dre Dumas.

E por que você estava me dando proteção? Por que levaram aquele espanhol e sua filha à morte? Os peregrinos que a acompanhavam eram também da CIA. Não puderam evitar aquele crime?

Ela não aguentou o peso daquela lembrança e lágrimas tristes saíram de seus olhos.

Foi necessário. O embaixador dos Estados Unidos no Brasil exigiu proteção especial para você e sua família. Fora um pedido do Exército bra­sileiro, por causa da sua participação contra um grupo de conspiradores, e alguém poderia tentar represálias.

Tinha a voz triste, como se estivesse confessando a culpa por aqueles fatos.

Às vezes, nós precisamos de situações de dissimulação. Então con­tratamos uma pessoa que fazia esse serviço, rotineiramente, para acom­panhá-lo de perto. Ele fazia parte de uma organização altruística que se dizia originária dos templários, mas nós estávamos por perto, em locais estratégicos da travessia dos Pireneus.

Ele pareceu satisfeito com a resposta dela, mas voltou a perguntar:

E o tombo em Roncesvalles? Por que aquela encenação?

Fez parte da estratégia. Um dos nossos viu a polícia subindo os Pi­reneus, e procurou informar-se. Criei uma situação de segurança, diria de alerta, e com registro de horários, porque haviam matado uma pessoa contratada para lhe dar proteção. Não dormimos naquela noite nem saí­mos do albergue.

Era evidente o desconforto daquele diálogo, e ela mudou de assunto:

Perguntei ao médico se havia alguma restrição de alimentação para você.

E com um tom de voz brincalhão:

Falei que você gostava dos bons vinhos espanhóis e ele me respondeu que vinho é o sangue de Cristo, e isso só lhe fará bem.

Essa história de sangue de Cristo já está monótona, mas o que está sugerindo?

O hotel havia providenciado uma pequena adega na suíte, da qual ela retirou uma garrafa de Vega Sicília — Único, safra 1991.

Olhe que preciosidade. Oferta do rei da Espanha.

Abriu a garrafa com o carinho de um somelier diante de uma raridade.

Você vai acabar sendo eleito o salvador de países. Primeiro, o Brasil, agora a Espanha.

Ele foi até a janela e ficou observando as duas torres da catedral que se projetavam contra o céu azul. Que mistérios poderiam elas esconder?

Em que está pensando?

A CIA não desconfiava do inspetor Sanchez?

Ela balançou a cabeça, decepcionada.

Eu o considerava um tanto estranho, mas a ponto de ser ele o respon­sável por esses crimes? Uma pessoa de sua posição? Sempre tentando escla­recer os fatos e com equipes de policiais e técnicos? A CIA tem o currículo de todas as pessoas envolvidas em uma situação dessas, e tenho certeza de que os dados desse inspetor são insuspeitos.

Mas, então, como é que foram desconfiar dele, afinal?

Você estava sendo seguido na fila dos peregrinos para entrar na igre­ja, e o nosso agente percebeu sua reação diante do túmulo do santo. É um agente especializado em leitura de lábios a distância, e sua conversa com o inspetor, a meu respeito, levantou a suspeita, pois, se ele vinha nos se­guindo, como não sabia do acidente na escadaria? Na dúvida, me tiraram rapidamente do hotel e passaram a vigiá-lo, mas ele tinha tudo preparado. Depois que você foi para Finisterre, ele desapareceu.

Ele sabia que você pertencia à CIA e sabia também sobre seus amigos.

De onde você tirou essa conclusão? Se ele sabia, por que provocou aquele incidente e não me deixou ir com você tirar a fotografia? O resultado seria até melhor.

Não, não! Ele é sutil, inteligente. Se você morresse no local, seria uma vítima. Não era isso que ele queria. Vítima ele já tinha uma, e era eu. Essa organização queria envolver a CIA. Afinal, seria fácil acusá-los de terem preparado tudo isso, de terem matado padres, freiras e crianças como parte de um atentado para culparem os árabes.

Ela estava lívida.

Agora que tudo se esclareceu, entendo por que ele pronunciou bem as palavras de uma frase como se quisesse que alguém mais a entendesse. Lembro-me de ele ter dito bem devagar: "A senhora Patrícia, a assassina?".

Meu Deus! Você pode ter razão. Ele queria que os meus colegas ouvis­sem ou lessem o diálogo, e deu tempo para me tirarem do hotel.

Maurício lembrou-se do acidente que ela sofrerá.

Mas e você, como se sente? Estamos falando muito de mim, e seu pé, ficou bom?

Com muito gelo e três dias de repouso, já estava bem melhor. Você não esqueceu que fiquei no hospital ao seu lado, não é? Cuidaram de mim também. Como vê, já posso andar com certa naturalidade. O inspetor já está sendo procurado. Não acho que será fácil encontrá-lo.

Ele não parecia confiante. Serviu-se de mais vinho e chegou até a janela. Olhava a praça do Obradoiro, onde vira o inspetor pela última vez. No auge da peregrinação, durante a Idade Média, havia milhares de tendas em volta da catedral para os peregrinos se lavarem e jogarem fora suas roupas sujas, que eram queimadas todos os dias em uma grande fogueira.

Pensamentos misteriosos começaram a aflorar em sua cabeça, e ele des­ceu o copo até os lábios com os olhos fixos em um ponto inexistente. Pare­cia triste e frustrado, como se tivesse perdido um amigo.

Não acredito que tivessem criado um plano tão sofisticado para simplesmente acabar na fuga desse policial ou na morte do assassino em Finisterre.

Colocou o copo novamente no espaço entre as torres e disse:

Durante trinta dias estudei o comportamento desse sujeito. Alguma coisa mais séria deve estar reservada para mim.

Ela reagiu preocupada:

Para você? Não entendi.

Não sejamos inocentes. Parece que todos esses acontecimentos eram uma espécie de teste como se fossem os Doze Trabalhos de Hércules. Acon­tece que passei em todos.

E olhando para as torres da igreja:

Até aqui.

Como assim? Vamos parar com essa mania. Como até aqui?

Mas ela própria compreendeu que o perigo podia continuar e ameaçava também seu país, os Estados Unidos da América, do qual tinha tanto orgu­lho. Os dois viveram juntos uma seqüência de fatos inesperados, e ele tinha razão, não podia ser inocente:

Acho que pode estar certo. Não se trata apenas de sua ou da minha segurança, mas também do envolvimento dos Estados Unidos em um as­sunto que não sabemos ainda qual é. Se você tem alguma coisa em mente, por favor, me diga. Estamos nisso juntos, e esse Sanchez chefia um grupo perigoso.

Ele pensou no poder de ação que ela tinha naquele momento. Uma in­formação mais séria, que passasse para a CIA, podia movimentar agentes em várias partes do mundo. Mas como se desviasse de assunto, perguntou:

Desculpe se essa pergunta lhe causa tristeza. A monja do albergue de São Nicolau era a sua amiga que nos separou em Santo Domingo de la Calçada, não era?

Os olhos dela se encheram de lágrimas.

Sim. Era uma colega de trabalho, e nós entramos juntas na CIA. Par­ticipamos de algumas missões.

Controlou-se e disse o que ele já esperava:

Eu tinha instruções para ela, que só podia dar pessoalmente.

Ele achou melhor voltar aos problemas que já tinham:

Pelo que imagino, devo passar por um teste final, que não será aqui em Santiago. Sei que corro perigo, mas tudo isso é irreversível. A situação está de um jeito que, ou eu enfrento o perigo, ou ele me alcança. Não tenho como fugir.

Mas por que você diz que não será aqui? Como você sabe disso?

As mensagens.

As charadas? Mas elas já não foram decifradas? O que mais existe nelas?

Não sei. Mas não estou tranqüilo. Falta alguma coisa. Elas levam a palavras isoladas, que nada significam para mim. Não estou satisfeito.

Ela se levantou e pegou o copo.

Quase ia me esquecendo do vinho. Uma preciosidade dessas. Mas também você fica aí com esse olhar messiânico, como se esperasse alguma mensagem do Além!...

Sentados agora no sofá, fizeram um pequeno gesto com os copos que se encontraram em um brinde ainda atormentado e sorveram devagar o bom vinho da Espanha. Ele aspirou a delicadeza do bouquet, que despertava sensações de frutas silvestres escuras, mas sem a alegria que um momento como aquele devia despertar.

Foi novamente até a janela e levantou o copo para ver, entre as cores do vinho, o céu azulado. Os peregrinos continuavam chegando com suas mochilas nas costas, em um desafio aos séculos. Olhavam gloriosos para a monumental fachada e entravam na catedral para depois procurarem o escritório da Associação do Caminho, em busca da Compostelana, na Praça das Platerias. O Portal das Platerias é o único dos três portais que conserva seu estilo primitivo. É um arco romano perfeito e, no centro, tem um monograma de Cristo em que as letras alfa e ômega estão invertidas, como se quisessem dizer que o fim não era ali.

"Mas se o fim não é aqui, onde seria?"

Distraidamente, levou o copo aos lábios, mas teve a impressão de sentir o cheiro de rolha encharcada. "Cheiro esquisito! O vinho estava tão bom, há pouco." Tomou um gole, e o acentuado cheiro de rolha encharcada se transformou em sabor de enxofre. Ele afastou bruscamente o copo e ficou olhando a praça com os olhos esbugalhados e a testa enrugada. Entendera agora o discurso do inspetor em Puente la Reina quando disse que, no auge da peregrinação, o Caminho adquirira um simbolismo perigoso porque se dirigia para o lado oposto a Roma.

O que você tem? Vou chamar o médico.

Não! Estou bem.

Com a voz trêmula e a respiração apressada, exclamou:

Foi o Diabo. Ele apareceu, enfim!

O Diabo? Você viu o Diabo? Acho que não devia ter saído do hospital.

O Diabo deixou o rastro para eu segui-lo. Ele quer que eu o encontre em um determinado lugar, e marcou onde é.

Não é possível!

Sim, é verdade. Agora entendo por que o assassino disse que não me mostrei digno da revelação. Ao se despedir de mim, o inspetor na verdade dava o endereço de onde me seria feita a última revelação.

Oh! Deus! — foi o que ela conseguiu exprimir.

 

                           CAPÍTULO 116

Ela o olhava, incrédula.

Mas será que isso não acaba nunca? Você quase morreu e vários cri­mes aconteceram. Há pouco, eu pedi para dizer o que você pudesse ter em mente para prender esse assassino, mas me sinto desencorajada. E que lugar é esse, aonde tem de ir?

Quando olhava a Praça do Obradoiro, lembrei-me de que ele me es­perava ao sair do hotel e se despediu de mim com uma frase que dá signifi­cado a tudo o que ele aprontou: "Aonde vais, senhor?".

Patrícia não conseguia articular as palavras e o nervosismo se espalhava por seu rosto tenso.

Ele está em Roma, me esperando. "Domine! Quo vadis?" Dizem que São Pedro ia fugindo das perseguições em Roma e, em sua fuga, encontrou Cristo, que vinha em sua direção, com uma cruz nas costas. São Pedro assustou-se ao vê-lo e perguntou "Aonde vais, senhor?". E Cristo respondeu: "Vou voltar para junto do meu povo, que você está abandonando".

Ela se levantou e passou a andar de um canto para outro. Não queria pensar e, com muito esforço, evitou uma crise de choro. Era uma agente da CIA, preparada e informada. Sabia o que estava por trás daquela simples frase. A aparição de Cristo foi na Via Apia Antiqua, em Roma, e lá estava o Vaticano. A voz de Maurício a fez estremecer.

Até agora foram sete charadas. Falta portanto a última para completar o signo octogonal, que forma o enigma de Compostela.

Enigma de Compostela? Signo octogonal? Então era por isso que você ficava olhando o teto das igrejas? Por que não me falou nada disso antes?

Cada charada representa uma palavra. Em Roncesvalles, foi caminho, em Puente la Reina, ponte, as charadas de Irache e de Najera eram para dissimular o envenenamento do arcebispo em Burgos, onde podemos tirar a palavra tesouro, com El Cid.

Hesitou um pouco ao lembrar a moça degolada e mencionou rapida­mente apenas o nome da cidade:

Em Itero de la Veja, temos Inquisição. Em Foncedabon, a charada da cruz de ferro falava de herege; a de Ponferrada obviamente são os templá­rios, e a última que temos é a do Cebreiro, que lembra eucaristia.

E que montagem podemos fazer com caminho, ponte, tesouro, Inqui­sição, herege, templários e eucaristia? Mas se são oito palavras, ainda falta uma. Será que ele quer que você a adivinhe?

Não. Não penso assim. O inspetor reservou a última para dizer pesso­almente. Será o teste final. Talvez nem seja palavra, talvez seja um símbolo. Como eu lhe disse, ele é imprevisível, mas acabou semeando uma lógica que temos de colher.

Teste final? Você me enlouquece com essas coisas.

E desta vez não conteve o choro convulsivo. Estava desgastada por um mês inteiro em que não dormia para ficar vigilante, de dia ou de noite.

Vão matá-lo. Eu sei disso. Mataram todas essas pessoas como um avi­so. Não vou deixá-lo ir. Vou pedir à CIA para protegê-lo. Você agora é meu, precisamos um do outro. Já sofri muito no hospital.

Ele a abraçou carinhosamente, passou as duas mãos por seus cabelos e tranquilizou-a:

Não vão me matar. Esses crimes foram praticados para testar o meu temperamento. Durante todo o Caminho, eles estudaram o meu raciocínio e o meu comportamento emocional. Eles precisam de uma pessoa razoa­velmente culta, suficientemente amadurecida e que mantenha a frieza dian­te de situações aflitivas. Para o quê? Tenho meu palpite, mas preciso ir só.

Era até mesmo desnecessária a pergunta, mas assim mesmo ela a fez:

Mas por que Roma?

Lá está o Vaticano. O Enigma de Compostela é a palavra Vaticano. Não conseguiram explodir a catedral de Santiago, mas, estavam preparados para um lance mais espetacular. Preciso estudar charada por charada e ex­plicar o significado de cada letra da palavra Vaticano. As charadas formam um acróstico e o enigma está dentro dele, dentro da palavra Vaticano. Será o teste final que se completará com a última charada, mas pelo que concluí durante todos esses dias, acho que disponho de tempo suficiente para isso.

E com um beijo silencioso e cheio de ternura, que também revelava sua tristeza, disse:

Você precisa ir embora. Volte para Washington e conte tudo o que aconteceu, mas peça para não interferirem, não colocarem guarda-costas, porque isso seria fatal para mim. O resto é com vocês. Sabem como agir, só não podem me seguir.

Os dois continuaram abraçados e os beijos foram se alongando e se transformaram em carícias, às quais não resistiram e se entregaram em um merecido momento, que as dúvidas e perigos do Caminho não haviam até então permitido.

 

                                                       A ORDEM DO GRAAL

 

                         CAPÍTULO 117

A reunião no gabinete do diretor da CIA, em Washington, tinha agora uma agente especial que havia acompanhado Maurício durante todo o Caminho. Um tanto ansiosa, ela tentava resumir para aqueles homens o que havia acontecido e quais providências Maurício sugeria.

O diretor parecia incrédulo:

Então, ele chegou à conclusão de que haveria alguma coisa na Itália, porque as charadas revelavam circunstâncias, cujas primeiras letras forma­vam um acróstico: a palavra Vaticano.

Ele já vinha alertando que as charadas eram incoerentes e que cada uma devia ser parte de um código. As charadas de Irache e de Najera se­riam na verdade uma só, e ainda falta, segundo ele, a charada da letra "O".

Ela parecia preocupada quando concluiu:

Essa mensagem lhe seria revelada no momento final, em uma espécie de ritual.

Ritual — exclamou o embaixador. — Não gosto dessa palavra. Cheira a mistério, mas, enfim, é o que estamos vivendo. E esse inspetor Sanchez é mesmo complicado. Ele enviou oito enigmas, mas reduziu-os a sete para confundir Maurício, que não teria ido a Finisterre enfrentar a morte se ti­vesse entendido isso antes.

Sim. Por sorte ele desconfiou do número oito desde o início, quando o inspetor dissertou sobre a ermida de Eunate, no primeiro dia em que caminharam juntos.

Então, já em Eunate, ele começou a suspeitar do inspetor, mas no mesmo dia a senhora se apresentou, em Puente la Reina, e dividiu com ele as desconfianças.

Houve momentos muito difíceis, conforme o relatório que enviei so­bre Ponferrada. Estávamos trancados dentro de um recinto com um grupo que pertencia a essa seita.

Trancados junto com os assassinos? — perguntou Hawkins. Era evi­dente que a CIA não comunicara aos demais participantes do grupo que a mulher que acompanhava Maurício era uma agente.

Foi assustadora a maneira indignada como o guia acusou o Caminho pelos crimes da Inquisição, pelo genocídio dos cátaros e pelo fim dos templários. Ao passar pelo território dos cátaros, os peregrinos entravam em conta­to com essa forma de cristianismo e a divulgavam pela Europa, dando causa a outras heresias. A solução encontrada pela Igreja foi acabar com eles.

Os demais ouviam em silêncio, diante dessa impressionante revelação de que o místico Caminho de Compostela dera também causa a crimes horrendos para salvar o cristianismo.

O guia falava como um messias pregando um novo reino.

E, em que momento ele passou a desconfiar de você novamente? — interrompeu-a o diretor.

No restaurante, ele ia conversar com o guia. Fiquei preocupada e simu­lei a queda do copo para ter uma desculpa e poder sair para avisar os outros agentes. Logo em seguida, o guia foi assassinado e voltei a ser suspeita.

— De fato, era uma situação de dúvidas — comentou o professor Anthony.

E essa suspeita o martirizou durante todo o Caminho. Ele fez várias tentativas em busca de uma certeza. Percebi que não adiantava dizer que era uma agente da CIA, porque ele estaria entre desconfiar de um graduado policial espanhol ou de uma espiã americana. Só quando ele pulou no mar e o celular dado pelo inspetor explodiu é que ele encontrou a certeza.

Homem corajoso — comentou o embaixador.

O diretor não estava muito seguro. As providências sugeridas por esse Maurício eram melindrosas e havia o risco de ele estar errado. Mas não tinha alternativa e parecia o melhor plano a seguir.

Você acha que devemos seguir o instinto dele, ou melhor, sua capaci­dade de percepção e de análise?

Ele percebeu desde o início que ia enfrentar um problema desconhe­cido e se armou de todo raciocínio possível. Quem mais iria imaginar que a pergunta do inspetor, quando ele saiu para Finisterre, era uma mensagem?

Você se lembra de mais alguma coisa que ele possa ter dito de útil?

Ele não era muito claro, como se tivesse receio de dar a mensagem à pessoa errada. Falava por parábolas, como Cristo. Em Najera, por exemplo, ele concluiu que o assassino agia de maneira previsível, dentro do imprevi­sível, e perguntou se eu conhecia a teoria da imprevisibilidade.

Não é muito, mas pode ajudar. Ele estudou a psicologia do assassino durante um mês. Conviveu com ele.

E encerrou a reunião com uma atitude positiva.

Vamos aos trabalhos. Talvez eu tenha de passar pelo constrangimento de cumprimentar esse tal de Maurício, mas é preferível isso a ser derrotado por esse inspetor.

 

                                     CAPÍTULO 118

O Boeing 747- 400, saindo de Madri para Roma, pousou no aero­porto de Fiumicino. Embora fosse um vôo interno da Comunidade Euro­péia, todos os passageiros tiveram de passar pelo Serviço de Imigração.

Medidas especiais de controle estavam sendo tomadas. Maurício apre­sentou seu passaporte e o oficial consultou a tela do computador.

Seu endereço em Roma?

Hotel da Colina.

Depois que devolveu o passaporte, o oficial transmitiu uma mensagem em código pelo celular, informando a chegada do alvo e onde ficaria hos­pedado.

Da sacada da suíte 503, Maurício apreciava agora o entardecer que der­ramava sobre as sete colinas de Roma o colorido de um sol que se ajeitava preguiçosamente no horizonte. Patrícia havia providenciado sua hospeda­gem naquele hotel, alegando que era fator de segurança.

Ela não aceitara facilmente que ele devia agir sozinho. A CIA não fora capaz de decifrar os mistérios que tinham acontecido no Caminho e pode­ria se precipitar, pondo tudo a perder. Com CIA ou sem CIA, o perigo era o mesmo, talvez maior com ela.

Eram 6 horas da manhã quando começou a descer os 136 degraus da Scalinata di Trinitá dei Monti, construída em 1726 para ligar a Piazza di Spagna ao alto da Colina Pincio. Passou pela famosa barca construída por Bernini em 1626 e desceu a Via Condotti até chegar à Via dei Corso, onde virou à esquerda.

Durante a noite, haviam colocado um envelope sob sua porta com ins­truções sobre o trajeto que devia fazer, e as seguia rigorosamente. Contor­nou a Piazza Venezza à direita e seguiu pela Via dei Teatro Marcello, que serviu de modelo para a construção do anfiteatro do Coliseu. Os romanos construíam os teatros como uma meia-lua enquanto os anfiteatros eram redondos, como se juntassem dois teatros, fechando um círculo para ligar as duas pontas.

As atitudes daquele sujeito eram todas simbólicas e até o trajeto que indi­cara tinha esse propósito. Era como se o estivesse alertando de que o cerco se fechava, ligando as duas pontas: o começo e o fim, da primeira charada. Por isso o fizera passar pela primeira metade, o teatro, e, em seguida, o grande círculo, o anfiteatro do Coliseu. O roteiro incluía a "Boca da Verda­de". Devia ir até lá.

Na entrada da igreja de Santa Maria in Cosmedin, ao lado do Coliseu, estava a Boca da Verdade. Uma carranca com a boca aberta engolia a mão de quem mentia. Fora advertido de que não devia ser seguido, não podia levar armas, nem podia ter chip ou dispositivo eletrônico em qualquer lu­gar do corpo ou das vestes.

Na Boca da Verdade receberia outras instruções. As grades que protegem o pórtico da igreja estavam trancadas com cadeado. Uma placa indicava que a igreja seria aberta às 9h30. Logo, turistas de todo o mundo chegariam para tirar fotos com a mão na Boca da Verdade. Eram 6h30 e ele esperou pacientemente, andando de um lado para outro, e, de repente, percebeu que o cadeado estava destrancado. Mas como alguém poderia tê-lo aberto? E se a CIA tivesse mandado alguém segui-lo, apesar das recomendações em contrário? Nesse caso ele seria vítima da Boca da Verdade.

Venceu os fantasmas que sua mente criava e chegou até a parede onde estava a carranca, que simbolizava um deus pagão. Estendeu o braço e pôs a mão devagarzinho, com receio de uma picada de escorpião, aranha, cobra ou até mesmo de uma agulha envenenada. Arrepios tomaram conta de seu corpo, como se estivesse com febre, mas percebeu que tocava em uma folha de papel.

Aliviado, retirou-o com as pontas dos dedos e procurou ler o que nele estava escrito. Nada. Nenhuma palavra. Entendeu o recado de que não pre­cisava de mais instruções e só o mandaram ali para que tivessem tempo de verificar se não estava sendo seguido.

Tomou a Via de Cerchi em direção ao Palatino. Os romanos, antigamen­te, moravam no alto de sete colinas, chamadas de Campidoglio, Quirinale, Viminale, Esquilino, Célio, Aventino e Palatino. Ele seguiu pelo vale entre o monte Palatino e o Aventino, passando diante das ruínas do Circo Ro­mano, que tinha capacidade para 250 mil pessoas, um quarto da cidade de Roma antiga. Logo adiante estavam as ruínas das Termas de Caracala, outra gigantesca obra para 1.500 banhistas. Deixava a mente passear livremente por aquelas paisagens, porque ia em breve exigir muito dela.

"Domine! Quo Vadis?"

Por que aquele maluco escolhera esse lugar para o encontro final? Estaria querendo dizer que o Papa abandonara o rebanho de Cristo?

Já haviam se passado mais de duas horas desde que deixara o hotel quando chegou à encruzilhada onde Pedro encontrou Cristo e hoje existe uma capela, mandada construir pelo Papa Urbano VIII, no ano de 1600. Aproximou-se devagar, examinando tudo com cuidado. A porta da igreja estava fechada, mas destrancada. Entrou. A pequena claridade matinal não produzia uma boa iluminação. Logo na entrada, em uma pedra protegida por armações de metal, estavam réplicas das pegadas que Cristo deixou quando se encontrou com Pedro. A pedra original está guardada na igreja de São Sebastião, não longe dali. Ele teria dito a Pedro que estava voltando a Roma para ser crucificado de novo, e desaparecido em seguida, deixando as marcas de seus pés em uma pedra da Via Apia.

O silêncio pesava e ele se ajoelhou diante do pequeno altar. Depois que os olhos se acostumaram com a pequena escuridão, ele viu na parede um afresco de São Pedro, crucificado de cabeça para baixo, porque dissera aos carrascos que não merecia morrer da mesma maneira que o mestre.

Um ruído de portas sendo trancadas o fez voltar-se. A armação de fer­ro que protegia as pegadas de Cristo movia-se lentamente. Levantou-se e dirigiu-se para lá.

"Não é possível!"

Uma escada de pedra começava bem embaixo do lugar sagrado onde Cristo teria pisado. "Muito inteligente. Ninguém pensaria em profanar um lugar destes."

 

                                   CAPÍTULO 119

Ficou parado por alguns instantes, cheio de dúvidas, mas criou coragem e desceu uma longa escada de pedra. Ouviu novamente o ruído da grade de ferro, que protegia as pegadas de Cristo, se fechando atrás dele. A escadaria tinha inclinação de 45 graus, com degraus de apro­ximadamente 40 centímetros de altura. Tochas a iluminavam e, depois de descer 20 degraus, Maurício tomou um corredor à direita. Era um labirinto com outros corredores fazendo comunicação entre si, mas só havia um de­les iluminado.

Havia sinais de túmulos nas paredes, portanto devia estar em uma das grandes catacumbas que se localizavam naquela região. O corredor foi fi­cando mais largo e logo se viu diante de um enorme portão de bronze. Era uma peça dos tempos do Império Romano, tendo no alto a águia de Roma e mais embaixo a cabeça de César. Na parte inferior, havia um cálice achatado com uma pequena base. O portão estava semiaberto. Ele passou pelo enorme arco de metal e entrou em um salão espaçoso. Seu coração co­meçou a bater acelerado. Imaginava se teria coragem suficiente para aquele encontro, que prometia ser um ritual. Seria ele uma vítima a ser imolada como sacrifício a algum deus qualquer? Não podia, porém, deixar que esses temores antecipassem o sofrimento que viesse a ter.

Conforme previra, esse pessoal soubera de sua chegada a Roma no mo­mento em que entregou o passaporte na imigração. O inspetor Sanchez tinha meios de acompanhar seus movimentos, e puseram debaixo da porta durante a noite a mensagem com um mapa do lugar aonde deveria ir. Era óbvio, também, que se o próprio inspetor estava em Roma é porque esse grupo tinha ramificações na Itália. O que pretendiam com ele, então? Po­deriam tê-lo matado no Caminho e não o fizeram. Fora poupado até agora, mas já não podia mais confiar nisso. Estava preparado para todo tipo de desafio, inclusive o da morte, como em Finisterre. Mas em Finisterre ele já não tinha mais motivos para continuar vivendo, e a morte não o impressio­nava. Agora Patrícia voltara e, como na lenda do sol, ele também se afogara nas águas de Finisterre e renascera.

O salão onde acabara de entrar era enorme, antigo, e essa seita o desco­briu e provavelmente o adaptou para cerimônias e rituais. O que será que haveria por ali? Estava em uma espécie de antessala, o que previa outras salas para onde seria conduzido. Sua vista acostumou-se à penumbra e ele viu o vulto logo adiante. Parecia estar sentado em um trono de pedra.

— Bom dia, inspetor Sanchez. Em alguns momentos da nossa caminha­da, tive simpatia pelo senhor, apesar de achá-lo um tanto messiânico.

O outro não respondeu, e o silêncio e o medo começaram a consumi-lo. Precisava de coragem e não podia dar demonstrações de fraqueza para aquele assassino. Duas enormes portas laterais estavam fechadas. Aonde será que iriam dar? Continuou avançando com cuidado, olhando para o chão, para cima, para os lados, com receio de alçapões, setas envenenadas e outras armadilhas. Já podia ver a face do inspetor quando este se levantou:

Por favor, poderia parar onde está?

A pouca claridade das luzes foi enfraquecendo ainda mais e a abóbada do salão se encheu de estrelas. A vista se acostumou e ele pôde ver a Via Láctea. Teve a impressão de que a voz agora veio de outra sala e olhou para o trono. Estava vazio.

Sabia que nos veríamos novamente. Estamos felizes por termos esco­lhido uma pessoa que honrará a Ordem. Seu teste em Finisterre foi gran­dioso. O grupo de executores precisava desaparecer e deixamos para o se­nhor o privilégio de se livrar do mais perigoso deles.

"Mais essa!", pensou. O assassino tinha concluído sua missão e precisa­va morrer. Coube então a ele, Maurício, essa incumbência enquanto essa Ordem ficava com as mãos limpas. O "grupo de executores" devia ser os ajudantes do assassino nos crimes do Caminho. Pelo visto, todos eles agora estavam mortos.

No entanto, para chegar ao teste final, precisa explicar o enigma que se esconde por trás das charadas.

Houve um momento de silêncio, como se o próprio inspetor hesitasse em lançar o desafio. Era como se ele preferisse continuar movimentando a diabólica esteira de crimes e mistérios que assombrou o Caminho durante um mês, e agora se sentia pesaroso por esse jogo estar no fim. Porém, com voz firme, perguntou:

Qual o significado da primeira?

Luzes mais fracas se acenderam e a claridade aumentou, mostrando a porta por onde saíra o inspetor. Estava aberta e teve ímpetos de entrar logo nela, mas era melhor desafiar aquele terrorista mostrando que estava cal­mo. Caminhou devagar e falou com calma:

Aquele seu jogo complicado de charadas me manteve ocupado du­rante todo o Caminho. Não fossem os crimes, até que seria divertido. A charada não era tão enigmática. Tudo que tem um começo tem um fim. O começo era conhecido, mas caberia a vocês dizer qual seria o fim. Só no hospital, depois do acidente em Finisterre, é que me ocorreu que havia outra mensagem por trás daquelas charadas. Nessa primeira, em Roncesvalles, entendi que as palavras "início" e "fim" sugeriam um caminho. Ora, eu estava começando o Caminho de Compostela, que é também chamado de Via Láctea, cuja primeira letra é "V".

O silêncio dominou o ambiente. Lampiões se acenderam em uma porta lateral que dava para outro salão semi-iluminado. Levou um susto quando se viu de frente com as ruínas de uma ponte caída sobre o rio Arga. Era a ponte de Puente la Reina, em dimensões menores, depois da explosão.

O senhor me enganou aqui também. O que eu fiz de errado para que desconfiasse de mim assim tão cedo?

Aquela humildade traiçoeira não o iludia. Conviveu com ela em várias situações. Manteve a altivez de suas respostas, como se estivesse dando au­las de lógica a um aluno displicente.

Confesso que ali foi mais complicado. Diria que foi mais uma adivi­nhação que a decifração dessa charada. Depois de descobrir algumas letras ficou mais fácil preencher as lacunas. Quando concluí que as charadas cria­vam um acróstico de Vaticano, tentei descobrir o que significava esse "A", seguindo a lógica de seu comportamento.

Lógica do meu comportamento?

Desde o início, comecei a registrar pontos de coerência que levavam aos cátaros e ao Languedoc. Comecei a catalogar e ligar os fatos. Tive um mês para isso, e confesso que foi um desafio muito penoso decifrar chara­das e fazer adivinhações a partir de crimes violentos e desnecessários. A frase em Puente la Reina dizia: "Os caminhos se unem em uma só ponte para renegar o passado".

E qual sua dedução?

Não se trata de ponte, mas de pontífice.

E onde está a letra "A", em ponte ou pontífice? — perguntou o outro, desafiador.

Bem valeram os pressentimentos que sentiu ao explicar para Patrícia o significado da palavra pontífice quando saíam de Cirauqui, depois de Puente la Reina. Como também valeram as cismas que o assaltavam quan­do contemplava as majestosas pontes do Caminho.

Sem dúvida foi uma idéia engenhosa. Os imperadores se auto-deno­minavam "Pontifex Maximus", porque, ao vencer os rios, os brejos e os desfiladeiros, a ponte vencia a natureza. Com a queda do Império Romano, o Papa Leão I, no século V, apropriou-se dessa expressão para indicar que o poder do Papa era maior que o dos imperadores, porque ele era a ponte que ligava o homem a Deus. Portanto, ao destruir a ponte, vocês estavam simbolizando a destruição do Sumo Pontífice.

O senhor não respondeu a minha pergunta.

Não foi fácil chegar a uma explicação para a letra "A". Eu sabia que meu teste final seria a identificação de cada charada com uma letra da pa­lavra Vaticano. Perguntei-me muitas vezes o que poderia ter acontecido com a letra "A" para despertar em vocês um desejo tão grande de vingança contra o Papa. Convenci-me de que só podia ser a Cruzada Albigense, da qual os templários se recusaram a participar e que extinguiu os cátaros e levou à Inquisição.

Maurício não tinha pressa e precisava cansar o inimigo, que permaneceu em silêncio.

Não existia lógica nas charadas, mas um simbolismo com o qual eu tinha de trabalhar. Destruir a ponte foi um simbolismo contra o poder do Papa, aliás, muito interessante. Seria como apagar o passado do cristianis­mo para a construção de um novo Caminho. A letra "A" é a inicial de Albi, a cidade, ou de albigense, o povo que lá morava.

Muito brilhante. Mas por que escondeu essas conclusões? Havia mo­tivos para desconfiar de mim? Fui tão transparente assim?

Ele parecia magoado.

O telefone celular. A ponte explodiu no momento de seu telefonema. Lembra-se de que eu quis telefonar para o comandante e não me deixou?

Você teve receio de que eu desconfiasse de alguma coisa na hora de pegar o aparelho. Esse golpe de acontecer uma explosão no momento de um te­lefonema não é novo.

 

                                       CAPÍTULO 120

As poucas luzes se apagaram e tudo ficou em um silên­cio sepulcral. Como se fosse para lhe causar arrepios, uma música fúne­bre parecia sair debaixo da terra. Outras luzes se acenderam perto de uma abertura de onde saía uma escada levemente inclinada que conduzia a um compartimento inferior.

Tomou essa direção e deparou-se com um espaço amplo. A parede em frente era uma bela paisagem do Montsegur, o morro que passou a ser o Gólgota dos cátaros. Diante do quadro, aos pés dele, feixes de madeira iluminados imitavam fogueiras, queimando bonecos que se contorciam e gemiam. Chiados de lenha verde soavam pela sala e um cheiro forte de betume fazia arder as narinas.

O senhor reconhece o homem logo na frente?

Não. Não sei quem é.

É o perfeito Olivier, o legítimo portador do Sangue de Cristo.

Maurício nunca tinha ouvido falar desse Olivier.

Alguns dias antes de morrer, o perfeito Olivier, o herdeiro da coroa merovíngia, enviou para lugar seguro a perfeita Michelle, grávida de seu filho. Ele foi cuidado por um amigo de Olivier, o lendário Homem da Flo­resta, que protegeu a criança até que a Confraria Negra o recolheu e a li­nhagem foi salva.

Maurício não respondeu.

Vou esclarecer um pouco suas dúvidas. O tesouro dos templários foi levado em 18 galeras para a Escócia e algumas ilhas seguras. Foi assim que financiamos e ajudamos a Inglaterra a enfraquecer o trono da França para que ele caísse humilhantemente com a Revolução Francesa. Ah! Aquela foi uma brilhante vingança da Ordem.

Era uma informação estarrecedora. Essa Ordem aparentava dispor de poderes e riquezas capazes de abalar o mundo. Teria sido mesmo ela que organizara a Revolução Francesa? Procurou ser cauteloso.

Só não entendo por que estou sendo envolvido nisso.

O senhor vem sendo observado, e a Ordem precisa de seus serviços. A fase da iniciação está quase no fim.

Era um absurdo que não sabia como contestar. O inspetor apontou para o quadro na parede.

Em Burgos, o senhor salvou a Igreja de ser acusada de matar seus fiéis. Explique como interpretou as charadas de Irache e Najera.

Estava em uma situação da qual não tinha como sair. Não convinha au­mentar os desafios e deu sua versão.

Existe aí uma mistura do evangelho de Mateus com o de João para fazer uma única charada. Talvez a letra "T" se aplique a tesouro, que tanto pode ser dos cátaros, dos templários ou de El Cid. No evangelho de Mateus, que está na charada de Irache, vinha a indicação do momento em que sua organização cometeria um crime. Vocês sabiam que eu iria visitar a Cate­dral de Burgos. A encarregada do albergue convencera Patrícia a assistir à missa solene. Há um exagero de simbolismo em tudo que vocês fazem. O evangelho de João, que vem na charada de Najera, tem uma introdução: "No princípio era o Verbo". Os cátaros preferiam o evangelho de João e, então, imagino que estejam fazendo referência à palavra que o Papa não respeitou no tratado que fez com o rei Clóvis.

O outro não respondeu e ele preferiu encerrar esse tema:

E aí está, portanto, a letra "T", de tesouro, para compor a palavra Vaticano.

Maurício lutava para não se deixar dominar pelo desânimo que tomava conta dele. Esperava por um desafio do qual pudesse sair. Estava, porém, preso dentro de um imenso subterrâneo, passando por uma sabatina de interpretação de charadas e sem ter idéia de como aquilo ia acabar.

"Esse maluco está querendo me deixar nervoso."

As luzes o conduziam agora por um corredor, que não tinha visto antes, e chegou a uma praça, onde a Inquisição queimava hereges em um auto-de-fé.

Clérigos bem vestidos, com mitras e vestimentas coloridas, rezavam pelos que morriam na fogueira. A cena era horrorosa.

Embora se tratasse de bonecos, o cheiro de carne queimada e gritos lan­cinantes imitavam de forma autêntica a realidade. Sentiu uma leve tontura e hesitou. Não queria ver aquilo, mas a porta já estava fechada. Voltar seria também uma tentativa vã. Voltar para onde? Era certo que todas as entra­das por onde viera estavam agora trancadas. Tinha de avançar, e, já que tinha de avançar, melhor fazer isso com destemor.

Os exercícios de respiração diante daquele cenário dantesco o ajudaram a adotar uma postura de indiferença. O barulho era forte, e até que as fo­gueiras se apagassem e os 'hereges' morressem, trazendo silêncio à grande sala, demorou mais de uma hora. As provas vieram em um crescendo e aquela experiência foi a mais forte. E então ele reparou no cardeal que con­duzia o auto-de-fé: era o abade de Roncesvalles. Estava fincado de pé, em estacas de madeira que se moviam lentamente para frente e para trás, e o sangue coalhado no chão era autêntico. O padre devia ter sido morto ali mesmo, com a estaca fincada em seu corpo, ainda vivo.

O senhor não se sente muito confortável — ouviu o inspetor dizer.

Teve ânsias de vômito e não conseguiu falar.

Esse é o prêmio da traição. E dado a todos aqueles que traem a causa depois de se filiar à Ordem. O abade tentou encontrá-lo em Samos. O se­nhor o reconheceu porque viu o reflexo em um dos quadros de fotografias do corredor do claustro.

Então era isso. O abade o procurara para tentar salvá-lo e revelar o plano do inspetor, que interrompeu seu estupor com uma pergunta brusca:

E então? Qual é a charada?

Ele não resistiu à indignação:

Por que tantos crimes? E dessa maneira horrível? Suspeitei do com­portamento do abade desde os primeiros momentos. Mas ele não sabia do plano completo, não é verdade? Devia dizer apenas a frase "A prata não pode refletir a luz" e me entregar a charada. O comportamento dele du­rante o interrogatório me pareceu teatral, ensaiado, e, por isso, me voltei da porta, quando ia saindo. Como eu previra, ele me olhava de maneira te­merosa e me entregou a charada. Também desconfiei do fato de o assassino do padre ter entrado facilmente no monastério e chegado até o claustro. O abade facilitara as coisas para ele.

Maurício balançou tristemente a cabeça:

Ele me entregou a primeira charada e agora faz parte da última. Ele esteve no começo e agora está no fim. A consciência do velho sacerdote não suportou o peso dos crimes dos quais era conivente.

Mas, repito, qual é a charada?

O tom de voz já não era tão cortês.

Maurício lembrou-se da monja degolada e sua reação foi de revolta. Não podia fazer nada além de acusá-lo, e o fez:

O senhor é um débil mental que faz do crime uma diversão, e usou a bula do Papa Inocêncio IV Ad Extirpanda para esse crime. Certamente se arrogou no mesmo direito previsto naquela horrível ordem papal de que "...os hereges devem ser esmagados como serpentes venenosas", que era a mensagem deixada na mão da monja degolada em Itero de la Vega. Ob­viamente está se referindo à Inquisição.

Inquisição! O Santo Ofício! Os autos-de-fé! A fogueira! O confisco de bens! O uso de mulheres que tinham de se sujeitar ao clero para não serem queimadas vivas! Quantos crimes! Quantos crimes! Se passar no teste final, o senhor terá uma missão.

Missão. Você só fala em missão. Que missão é essa, que já começa com tantos crimes?

Pois essa é a nossa missão. Onde houver paz, vamos promover a guer­ra, e onde houver amor, vamos transformá-lo em ódio, até que os maus desapareçam. Caberá às gerações fúturas decidir o momento de reconstruir o Templo.

Maurício sentiu um arrepio com o ódio que parecia transpirar daquelas palavras.

A letra então é o "I", de Inquisição. Ou pensa que é outra coisa?

Era a voz de uma pessoa que parecia tão indignada com os crimes da Igreja contra os hereges, que via nessa indignação a justificativa para os que ele praticava. Maurício procurou assumir o controle da situação.

— Tem razão. Mas podemos seguir. Ainda faltam três charadas conheci­das e uma que desconheço.

Pequenas luzes foram se acendendo em um corredor mofado, estreito e alto, cavado no fundo da terra. Esse grupo descobrira essas escavações, cuja entrada só era possível pelo túnel embaixo das pedras que tinham as marcas dos pés de Cristo, e o mantiveram em segredo.

Mas onde esses túneis iriam sair? Pelo que lembrava, descera 20 degraus de 40 centímetros de altura, então estava a oito metros de profundidade. Avançara oito metros em direção à esquerda do altar, ou seja, só para descer a escada andara oito metros em direção à Via Apia. Contara os passos em cada corredor e em cada salão, e devia ter progredido 25 metros subterrâ­neos do outro lado da Via Apia. Estava, portanto, sob uma pequena colina, com construções velhas e abandonadas, do outro lado da estrada. Haveria ali uma saída para esses túneis?

Seguiu as luzes e deparou-se com outro grande salão, tendo, no centro, uma pequena construção representando a igreja de Madalena na cidade de Béziers, onde a população procurou abrigo para tentar escapar da selvageria dos cruzados cristãos. As paredes estavam queimadas, em ruínas, e, dentro delas, bonecos de plástico mutilados. A ordem do legado papal era matar todos os habitantes, porque Deus saberia distinguir os cristãos, levando-os ao céu, e mandaria os hereges e judeus para o inferno.

O cenário ao redor da igreja era horrível. Crianças com espadas atra­vessadas na barriga, mulheres grávidas com as pernas cortadas ou com o ventre rasgado de cima a baixo, velhos com lanças atravessadas em seus corpos, casas queimando e até padres e bispos sendo executados. Sem dú­vida, tudo aquilo era um processo de vingança, e vingança caprichosa, bem planejada, para ter repercussões e não ser esquecida. Maurício já estava enojado dessas representações. Era inconcebível que mais crimes fossem cometidos em nome de outro fanatismo. Aquela indignação, que tomou conta dele quando vira a monja degolada, voltou com força. Tinha de dar um jeito de pôr fim a esses novos atos de crueldade, e disse com firmeza:

Era preciso todo esse exagero só para mostrar os horrores que os cru­zados praticaram em Béziers, na França? Não há necessidade de explicar a charada. Você já tem a letra "C", que tanto pode ser o "C" de cruzados como de cátaros.

O silêncio mostrava que o inspetor não estava mais ali. Para onde teria ido? Que surpresa nova o esperava? Aguardou com paciência, e uma fresta de luz mostrou outra passagem. Deparou-se com um grande salão de ba­nhos, com água em quase toda a área, e, no centro, uma espécie de ilha com uma fogueira acesa envolvendo um cavaleiro templário, magro e velho. A água era corrente como se fosse um rio, e a pequena ilha parecia a ilha de Vert Gallant, onde De Molay fora queimado.

A cena era impressionante, e, enquanto o boneco se contorcia no fogo, uma gravação gritava ameaçadoramente:

— Papa Clemente... Cavaleiro Guillaume de Nogaret... rei Filipe!

Malditos! Malditos! Todos malditos até a décima terceira geração!!!

"Será que essa água é de alguma corrente subterrânea? Não estamos muito longe da Cloaca Maxima e do rio Tibre, talvez uns três quilôme­tros, mas em um nível superior. Essa água então não podia ser um ca­nal subterrâneo que chegava até Cloaca Maxima, mas uma pequena fon­te com a qual fizeram essa encenação. Então, não adianta pular no rego d'água e tentar a fuga."

Entretanto, não queria perder tempo. Estava tenso, e aquelas exibições de crueldade indicavam um final estapafúrdio e perigoso. Sabia que aquele maníaco estava por ali e não esperou para dar sua versão.

Vocês buscaram novamente no evangelho a mensagem de Ponferrada, que dizia: "Repartiram meus vestidos entre si e lançaram sorte sobre a minha vestidura". Trata-se da túnica inconsútil de Cristo que os soldados sortearam entre eles depois de o terem crucificado, segundo o evangelho de João, seu preferido.

Mas o que isso significa?

É outro simbolismo mistificado pelo qual tenta dizer que o patrimônio dos templários foi sorteado entre a Igreja e o rei da França. A túnica sem cos­tura indicaria que os templários eram também uma unidade sem costuras, sem divisões, e que a Ordem continua inteira, indivisa, apesar da traição.

O outro ficou em silêncio, como se esperasse mais explicações, e Maurí­cio o provocou:

Afinal, quem são vocês? Templários? Herdeiros de Cristo? Cátaros? Não está muito confusa essa sua Ordem?

O senhor sabe que não. Os templários se preparavam para dominar o Languedoc sob a coroa de um herdeiro de Cristo, porque os Cavaleiros do Templo eram os protetores do Santo Sepulcro. E os cátaros poderiam con­tinuar praticando sua religião, porque foram eles que esconderam e prote­geram o Sangue Real. Por isso continuamos unidos e somos até hoje uma túnica inconsútil.

Maurício compreendeu que, se isso fosse verdade, estava sendo convoca­do para entrar em uma organização poderosa e anônima. O inspetor dera essa informação para ajudá-lo a se decidir.

Estamos diante da maldição De Molay, que caiu sobre a cabeça do Papa e do rei. De Molay foi o vigésimo segundo e último grão-mestre dos templários e morreu da forma como está representado. Aqui também tive de fazer deduções. A palavra Vaticano já estava clara na minha mente. De onde viria então o segundo "A", a não ser de Avignon, onde o Papa Clemen­te V tramou com o rei a traição contra os templários?

Muito bem. Estamos nos aproximando dos momentos mais emocio­nantes da nossa entrevista.

 

                                 CAPÍTULO 121

Na época das perseguições religiosas, os cristãos se reuniam dentro das catacumbas para rezar e celebrar a missa. Faziam cavi­dades em suas paredes, onde construíam pequenos altares e representavam a Santa Ceia. Essas cavidades, abaixo do solo e junto com os mortos, foram as primeiras igrejas cristãs.

Atrás de uma pedra improvisada de altar, um boneco paramentado par­tia a hóstia. Era a lenda do Cebreiro, mas a representação era diferente. O celebrante tinha a fisionomia do padre assassinado junto com a irmã e o cálice era uma árvore de cujas folhas pingavam gotas de sangue.

O senhor foi esperto no Cebreiro. Desconfiou logo que o cálice fora trocado e entendeu com facilidade como o padre e sua irmã morreram. Também salvou o cálice que eu ia levar para desmoralizar o Caminho. Sei que vai dizer que se trata da letra "N". Mas o que significa essa letra agora?

Parecia um diálogo normal, de pessoas adultas. Mas tinha também a sensação de exame vestibular para entrar em uma universidade.

Tive tempo para estudar sua psicologia. Sua atuação em Roncesval- les, fingindo desconhecer a morte do espanhol e da menina nos Pireneus, não me convenceu. Depois, o pobre do padre ouviu sua conversa com o assassino, mas não acreditou no que ouvira. Para ele, o chefe de polícia de Pamplona não podia estar envolvido em um plano terrorista, e por isso não passou adiante a informação. Essas coisas me vinham à cabeça e para mim era difícil também acreditar em seu envolvimento.

Fez outra acusação.

Foi o técnico que morreu no helicóptero quem fez a bomba para San Juan de Ortega, não foi? Ou pensou que iria me convencer com aquela farsa?

Mas foi o senhor que concluiu que a frase do padre se referia ao solstício da primavera.

"Esse assassino não merece ser tratado por senhor", decidiu Maurício.

Era o que você queria que eu pensasse. Por que não fazer seu jogo? A desconfiança é uma hipótese que precisa ser provada. Diante de acon­tecimentos suspeitos e ainda sem prova, é preciso ampliar o campo das desconfianças. Tinha minhas dúvidas, mas deixei-o acreditar durante todo o Caminho que confiava em você.

O silêncio tomou conta da sala por alguns minutos, mas era evidente que, apesar de contido, o inspetor se sentia humilhado pelo fato de não ter percebido que despertara essas desconfianças. Quanto mais enfraquecido o inspetor se sentisse, menos segurança teria naquilo que pretendia fazer, e era essa a intenção de Maurício.

Também foi você que provocou aquele acidente com Patrícia, na por­ta da igreja de Santiago. Em Atapuerca, envenenou a água da fonte. Outro artifício infantil para conquistar minha confiança, demonstrando que tam­bém seria uma vítima, como se quisesse mostrar que eu estava certo quan­do o alertei, no meu interrogatório em Roncesvalles.

Maurício percebeu que o inspetor estava desorientado e pressionou ain­da mais:

Minhas suspeitas também aumentaram no Cebreiro, quando você se negou a informar sobre a irmandade. Eu lhe disse que o assassino havia conseguido essa informação, mas você ficou quieto e não me disse nada para ganhar tempo. Mais tarde, comecei a pensar como você poderia ter tomado tantos cuidados para proteger o cálice e não saber dessa irmanda­de. O padre foi esperto e deu o cálice para outro guardar. Você dera outras instruções, mas ele não confiou.

Mas o que significa a letra "N"? Sem esse esclarecimento, seu teste termina aqui.

O esforço que fez para ser imprevisível gerou sua própria lógica. Seu comportamento passou a ser transparente. A lenda do Cebreiro é a renegação da fé. Aquele encontro na Fuente del Reniego, depois de Pamplona, me chamou a atenção. Por que ali? Você gosta de se revelar em simbolismos, e eu fui catalogando isso. O padre que rezou a missa no Cebreiro não teve fé o suficiente, e não entendeu o sacrifício do pobre camponês, que tinha subido o morro, durante uma noite chuvosa, para assistir à missa. Então, aí está sua letra "N", de renegar, ou de negar, o que dá no mesmo.

Mas a explicação não está completa.

Nem é preciso explicação. Você já a deu agora há pouco. Consideram-se herdeiros do sangue de Cristo, nessa lenda em que Madalena teria sido espo­sa dele. O Santo Graal não seria o cálice de Arimatéia, mas a própria árvore genealógica à qual vocês pensam pertencer, e é por isso que essa árvore aí sangra, em um simbolismo genealógico com o sangue de Cristo.

Falta o significado da charada. O que o Cebreiro tem a ver com o desafio da fé?

Maurício balançou a cabeça, pesaroso:

Quanto bem uma organização como a sua poderia ter feito para a humanidade! A fé que vocês têm de que vencerão essa luta está agora se alimentando do sangue derramado por crimes injustificáveis. A letra "N" é de negação da lenda do Cebreiro, porque o sangue de Cristo não está na hóstia, mas em vocês.

Já estava farto daquilo e devia estar preparado para o momento final. O assassino em "Finisterre" havia se referido a uma "última mensagem". Qual seria essa última mensagem, que não aparecera até agora? Seria ela a revelação final?

 

                               CAPÍTULO 122

No gabinete do diretor da CIA, especialistas em tráfego aéreo, informática, telefonia móvel e fixa, criptógrafos e outras formas da mais sofisticada tecnologia estavam agora assessorando o grupo, que se mostrava visivelmente agitado. Contavam os minutos finais para uma grande catástrofe, mas não tinham certeza ainda de como seria, nem onde e nem quando. Grande número de conjecturas fora levantado, mas pareciam dependentes do raciocínio de uma única pessoa.

O diretor informou Patrícia:

Ele acabou de entrar em uma igrejinha, na Via Apia Antiqua, perto do local onde, segundo o cristianismo, Pedro perguntou a Cristo: "Domine, quo vadis?". Entendo que, se foi até esse lugar, é porque recebeu instruções dessa seita. O raciocínio dele, então, estava certo.

O alívio na sala foi grande. A capacidade de perceber o detalhe do recado do inspetor, na saída do hotel em Santiago, e a conclusão de que, se escapas­se vivo do atentado em Finisterre, deveria ir a Roma encontrar-se com os terroristas, trazia um pouco de certeza de que ele poderia se sair bem outra

vez. Logo em seguida, o celular do diretor chamou e ele atendeu. Todos perceberam que ele ficou tenso e quase gritou:

Impossível. Tem de haver algo errado. Descubram alguma coisa, porque o tempo está passando. Hoje é o último dia e temos até as 6 horas da tarde.

A informação desanimou-os:

Não foi encontrado nenhum operador de voo no aeroporto de Fiumicino com DNA dos cátaros ou de outros que catalogamos como a eles relacionados. Foram verificados todos os aeroportos próximos e nada foi encontrado de suspeito. Nenhum operador de voo foi contratado recen­temente e nem mesmo diretores, supervisores ou chefes de grupo foram substituídos nos últimos dias.

A informação caiu com, uma ducha fria sobre todos eles. Maurício havia explicado a Patrícia que o símbolo octogonal da ogiva das igrejas, tendo um ângulo aberto no centro do teto, indicava a subida aos céus. O Vaticano simbolizaria esse ângulo, e era possível que oito aviões fossem lançados sobre o Vaticano.

Outra informação veio em seguida, criando mais desânimo:

Todos os dados da ONG Discovering the Past desapareceram dos re­gistros da Prefeitura de Roma. É como se ela não existisse.

As alternativas eram escassas e o diretor corria atrás do tempo:

Não podemos pedir ao aeroporto de Fiumicino que desvie rotas de avião sem uma prova, sem um indício mais forte. Iriam nos chamar de loucos.

O assessor Hawkins levantou-se:

Preciso avisar o presidente.

O embaixador, porém, disse ríspido:

Sente-se aí e ajude a pensar. O presidente não vai resolver o problema.

E dirigindo-se para o diretor:

É um desafio para nós todos. Ele sozinho chegou à conclusão sobre a palavra Vaticano e também quanto ao momento do atentado: 18 horas, horário em que De Molay foi levado à fogueira, e o dia 13, dia da traição

contra os templários. Ele enfrentou perigos sem que pudéssemos ajudá-lo. E nós, com tantos recursos, estamos amarrados, sem uma idéia sequer? Não posso acreditar nisso.

Pôs os cotovelos sobre a mesa para apoiar a cabeça, também desanima­do, quando teve um sobressalto:

— Estamos falhando em algum raciocínio. Devemos fazer o que ele fez todo esse tempo. Criar alguma coisa nova.

 

                               CAPÍTULO 123

Luzes mostraram uma escada íngreme e longa ao lado do altar. Contou 30 degraus de aproximadamente 40 centímetros de altura, o que indicava que subiram agora 12 metros. Diante dele, surgiu um corredor largo e, em seguida, uma porta de bronze. Parou hesitante. Teria coragem suficiente para suportar o encontro final daquele ritual macabro? O que pretendiam com ele? Poderiam tê-lo matado no Caminho e não o fizeram. Mas matá-lo estava nos planos dessa gente porque assim planejaram em Compostela e em Finisterre. Não faltava muito para descobrir e teria de resolver tudo sozinho. Se agentes da CIA estivessem por perto, esses crimi­nosos adiariam a execução do plano.

O medo faz o coração bater mais forte, a pele ficar pálida, a voz tremer e as pernas bambearem. Se estava sentindo tudo isso, então estava com medo. Estivera perto da morte e quase morrera em Finisterre, mas lá não sentira medo. Por que estava com medo agora? A morte sequer é uma percepção de que se parou de viver. Quando se encontra com ela já não se sente mais nada, mas esse pessoal pensava em vingança, e vingança naquelas circuns­tâncias sugeria a imitação do que tinha visto nas salas anteriores. Não é a morte que assusta, mas o que vem antes dela. Respirou aquele ar úmido, frio e funéreo enquanto sua vista se acostumava com o ambiente, e passou pelo umbral da enorme porta, que se fechou atrás dele.

Estava um tanto escuro, mas viu ao fundo um trono de mármore e sobre ele um grande crucifixo, com uma coroa de ouro na cabeça de Cristo, que tinha os pés apoiados sobre um pedestal de jade. O braço esquerdo segura­va um bastão de metal apoiado no chão de pedra, semelhante ao cajado do peregrino assassino, dando sustentação a um Cristo que não estava pregado ou amarrado na cruz.

"Coisa esquisita!", pensou. Então, notou que a ponta do cajado, que apoia­va o crucifixo contra o chão, era a ponta de uma lança. Sentiu arrepios. A lança que matara Cristo era agora um cajado, e Cristo passara a ser um pe­regrino com uma lança assassina. Foi avançando devagar e olhando para os lados. Não era possível que o inspetor estivesse sozinho ali. Ao aproximar-se mais, viu o vulto sentado no trono, como um soberano, esperando que o súdito se aproximasse e se ajoelhasse diante de seu senhor.

"Roupa de cerimônia. Ele está com o uniforme de um cavaleiro templário, mas a vestimenta tem na frente um cálice vermelho, em vez da cruz."

Assustou-se com a voz solene do inspetor.

A última mensagem. A palavra Vaticano não está completa.

Sim! Faltava a letra "O", a última letra, a última charada. Tinha de pensar rápido para descobrir de onde viria.

Olhou para o crucifixo e se assustou. Sobre sua cabeça não estavam as letras INRI, que significam "Iesus Nazarenus Rex Iudeorum", mas "INRC". Estariam dizendo que Jesus Nazareno não era o rei dos judeus, mas rei dos cátaros, porque essa seita acolheu Sigisbert, o último merovíngio? A letra "C" só podia ser de "Cathororum", o genitivo plural de "Cathorus". Embora essa palavra não existisse no latim da época de Cristo, eles a acrescentaram na Idade Média, como muitas outras palavras que foram enriquecendo esse idioma durante os séculos em que foi a língua oficial da Igreja e da ciência.

Mas não existia ali nenhuma mensagem. A sala era uma grande abóbada celeste, e pequenas luzes simulavam as estrelas da Via Láctea e mantinham a semiescuridão do ambiente. Estava tenso. Um leve tremor tomou conta de seu corpo quando a voz quebrou de novo o silêncio:

Gosto de sua objetividade. O óbvio não o amesquinha como a mui­tos terrenos. E claro que se trata da letra "O", isso é óbvio. Mas onde ela está escrita?

"Terrenos? Então ele já se julga um ser celestial?"

E, então, percebeu o deslize que o inspetor deixara escapar ao dizer que a letra "O" estava escrita. O esforço para manter a mente aberta fora re­compensado. O inspetor se entusiasmara com seu messianismo e deixara escapar que a mensagem estava escrita naquele lugar. Onde mais poderia estar escrita a letra "O", se não no círculo formado pela abóbada da sala que, ao simular o universo, descrevia com as linhas do horizonte um "O"? Lembrou-se do raciocínio que fizera sobre o anfiteatro. O círculo se fechava ligando as duas pontas: o começo e o fim. Era essa a mensagem. Observou melhor aquele céu e notou os sucessivos elementos octogonais em volta de um ângulo central semelhante às igrejas do Santo Sepulcro de Roncesvalles, Eunate e Torres dei Rio. O simbolismo daquela abóbada artificial lembrava a crença antiga de que quem fosse enterrado sob ela chegaria mais facil­mente aos céus. Não gostou daquela conclusão porque estava justamente no centro. O padre, no monastério de Samos, ia sendo uma vítima des­ses fanáticos porque estava bem embaixo da cúpula. Mas precisava ganhar mais tempo para que Patrícia desse um jeito de tirá-lo dali.

Foi o teste mais difícil que a Ordem fez para escolher um de seus Mes­tres. O senhor foi o único, entre todos os candidatos, que sobreviveu nos últimos anos. Só falta decifrar o enigma final para ser escolhido como um dos oito Mestres da Ordem do Graal.

E já em tom reverente:

O senhor está de parabéns, mas seu principal teste não foi vencer as dificuldades que criamos, mas a demonstração de frieza e raciocínio em situações adversas e tensas, como a que acabou de passar.

Ficou indignado.

Quer dizer que expôs deliberadamente a minha vida em risco para me testar? E para isso cometeu todos esses crimes? E o compromisso com seu país, com a Espanha? E seu juramento de policial? Nada justifica o crime bárbaro contra aquela criança nos Pireneus.

Os juramentos da Terra não se sobrepõem a Deus.

Estava preparado para tudo, mas a perplexidade obscurecia a perspicácia e desorientava o raciocínio. O que pensar e falar sobre um absurdo desses?

Para aquele louco, todos os crimes e as coisas misteriosas que lhe foram impostas no Caminho eram simples provas de concurso público.

O senhor sabia que alguma coisa o esperava. Em certo momento, che­gou até mesmo a desconfiar de mim. Depois, quando provocamos o aci­dente com a senhora Patrícia para substituir a câmera fotográfica, mostrou mais uma vez sua sagacidade e não explodiu a catedral de Santiago. Porém, aconteceu o que temíamos. Passou a suspeitar dela e, naquele momento, achamos que não estava preparado para a verdade. Mas seu desempenho em Finisterre comprovou que escolhemos a pessoa certa.

Desempenho? Escolha certa? Mestre? Que história é essa? Você está maluco.

O senhor foi eleito um dos oito Mestres da Ordem do Graal. O senhor se lembra do quadro do Montsegur? Pois bem! Naquela época foi criada a Confraria Negra para dar continuidade à luta. Descobrimos que o Deus do Mal tem muitos guerreiros em seu favor. O amor, que é a única arma do Deus do Bem, só vai conseguir salvar a humanidade se antes enfraquecer­mos o Mal. Os cátaros acolheram o Sangue Real e praticavam o amor puro na esperança de que só o amor seria suficiente para vencer o Mal.

Era uma coisa inconcebível. Esse pessoal colocava o Bem e o Mal como uma equação matemática. Se o reino do Mal ficasse enfraquecido, o Bem venceria.

Nossa missão é destruir todos aqueles que praticam o mal. Quanto menos gente ruim na Terra, mais fácil será para que o amor cumpra sua missão. Nós eliminamos os injustos, os impuros e os que agem em favor deles para que os bons sejam maioria e o Deus do Bem tenha um exército maior do que o Deus do Mal.

Pelo visto, também podia se considerar condenado, porque não seguiria esses malucos.

Por sua inteligência, bravura nos momentos de perigo, raciocínio, cul­tura, perseverança e outras qualidades que estudamos durante o Caminho, decidimos que deverá ocupar a vaga. Fui escolhido apenas para acompa­nhar seu desempenho, porque os testes já estavam definidos pela Ordem.

Decidiram? Sem me consultar? Eu não faço parte de seu mundo, não sou um merovingio e sigo outros princípios.

Esse é seu teste final. Qual o enigma que se esconde por trás da letra "O" e onde ela está?

Estamos no centro do enigma.

 

                                       CAPÍTULO 124

No gabinete do presidente dos Estados Unidos da América, em Washington, um grupo selecionado olhava também, sem disfarçar a ansiedade, a tela de um home theater digital.

O diretor dava explicações.

O que vamos ver agora é o mesmo cenário que será transmitido em Roma.

As redes de televisão apresentavam suas programações normais do pe­ríodo da tarde com estudantes ganhando prêmios para responder acertadamente sobre curiosidades. Não demorou muito, um canal interrompeu para dar notícias urgentes. Aviões desgovernados caíram sobre o Vaticano, provocando cenas dantescas. Já haviam caído cinco aviões, que incendia­ram tudo em volta. Não havia informações se o Papa tinha morrido, mas as esperanças eram poucas, porque era o horário da Ave Maria, e ele devia estar rezando junto ao altar da Santíssima Virgem.

A histeria e o desespero tomaram conta da chamada 'cidade das sete co­linas'. O pavor aumentou quando outros três aviões começaram a descer como enormes flechas em direção à Santa Sé. O que se assistiu foi estarrecedor. Cada avião daqueles transportava perto de 400 toneladas de combus­tível, e cada choque provocava explosões que levantavam chamas aos céus como se o fim do mundo tivesse chegado.

O presidente não se conteve:

Vocês têm certeza de que essa encenação vai funcionar?

Foi tudo meticulosamente preparado. Não há hipótese de erro.

No entanto, novamente, o embaixador não parecia satisfeito. O presiden­te conhecia seu amigo.

O que o perturba, Williams?

Ele respirou pensativo e respondeu:

Estamos quase em cima da hora, mas, e se estivermos errados? E se o plano for outro?

O que você acha que está errado?

Muito previsível. Como é mesmo aquela história da imprevisibilidade? Não é possível que esse grupo não saiba que nós podemos controlar pelo satélite os aviões que passam pelos céus de Roma. Ele deixou muitas pistas sobre signo octogonal e o Vaticano. É claro que nos está induzindo a fazer alguma coisa enquanto prepara outra.

Patrícia compreendeu a dúvida do embaixador.

Penso como o senhor. O plano não deve ser esse. Os fundamentos dessa ação terrorista talvez sejam os mesmos, isto é, explodir o Vaticano, mas o plano pode ser outro. Esse homem é muito inteligente e chefia uma organização sofisticada. Todos nós sabemos disso e acho que estamos cain­do em uma armadilha. Talvez devêssemos manter o plano dos aviões para desorientá-lo, mas quais as alternativas?

A imprevisão! — começou a falar o embaixador, como se pensasse em voz alta. Nós não estamos tratando de imprevisibilidade em geral. A nossa imprevisibilidade está limitada ao fanatismo. Essa é a área de estudo dessa imprevisibilidade. Como se comportam os fanáticos? O que a história nos conta sobre eles?

Olhou para os dois professores, que estiveram presentes em todas as reu­niões, e fez uma pergunta:

O que diz esse "campo de imaginação dos autores", do qual os senho­res falaram logo nos primeiros dias, a respeito do comportamento dos fanáticos?

E adiantando-se a qualquer resposta:

Podemos dizer que os primeiros cristãos eram fanáticos e queriam o martírio para se santificar. Os cátaros corriam alegres para as fogueiras na expectativa de morrerem queimados e irem para os céus. São muitos os fanáticos suicidas no Oriente Médio nos dias de hoje.

O diretor o olhava com um interesse novo e os outros pareciam pensar no que responder quando o embaixador bateu o punho direito sobre a mesa.

Esperem! Aquele falso rabino deixou um recado. Lembro-me de ele ter dito "Nunca esqueçam Massada. Foi o maior suicídio coletivo de toda a história da humanidade". Os zelotes são hoje considerados como o primeiro grupo terrorista, uma organização criminosa, e consta que Judas Iscariotes tenha sido um deles. Tudo combina: terrorismo, sectarismo, suicídio.

Lutavam contra o tempo, e toda idéia nova vinha carregada de ex­pectativas.

Vocês entendem? Eu falo de um atentado suicida. É como disse Mau­rício, existe uma previsibilidade dentro das imprevisões desse maluco.

Patrícia estranhou a referência ao falso rabino.

Do que o senhor está falando?

O diretor contou sobre o assassino do agente Yussef e sobre o episódio do rabino.

Isso é incrível! Um terrorista entrar no gabinete do diretor da CIA e fazer uma palestra?!... É, sem dúvida, uma tentativa de suicídio, porque, se fosse preso, teria de responder por atos que, nos Estados Unidos, levam à condenação, à morte. Acho que isso confirma a opinião do embaixador. Mas como se daria isso?

Caminhão! — exclamou o assessor. — Precisa ser uma bomba muito grande para explodir o Vaticano.

Precisamos de um óbvio simples como esse, porém viável. Não creio que seja caminhão. O poder de destruição de um caminhão ou outro veícu­lo terrestre é limitado para o que pretende essa organização. Estamos há um mês discutindo complexidades: charadas, crimes, encenações, explosões, mensagens misteriosas, e por que isso? Esse grupo de fanáticos nos levou a um profundo estudo de história certamente para nos afastar do óbvio.

O diretor mantinha um silêncio estranho, como se esperasse conclusões melhores, e Patrícia comentou nervosa:

Um helicóptero poderia levar uma carga de explosivos e é um óbvio que une três fatores indispensáveis para um atentado desses: carga, suicídio e facilidade de aproximação do alvo.

Uma das especialidades da NSA — National Security Agency, à qual per­tence a CIA, é sua capacidade de captar informações transmitidas por telefo­ne, e-mail, fax, telex. Todo telefonema, fax, acesso à internet ou outro equi­pamento de comunicação, que for acionado em qualquer ponto do mundo, pode estar sendo anotado pela NSA. Essa incrível capacidade de escuta, re­gistros e análise está ainda apoiada em acordos com os países mais adianta­dos, formando uma rede de reação instantânea a qualquer alerta. Todos os serviços de inteligência dos países do Tratado do Atlântico Norte, a OTAN, trabalhavam febrilmente, naquele momento, a pedido da CIA.

 

                                     CAPÍTULO 125

Maurício sabia que quanto mais longos os diálogos com o inspetor, mais tempo a CIA teria para chegar ao local. Patrícia havia infor­mado que todos os lugares por onde passasse ou onde entrasse em Roma seriam registrados por satélite. Equipes de especialistas acompanhariam seus movimentos com aparelhos de alta precisão. Mas o tempo estava se esgotando e logo seriam 18 horas.

Daqui a pouco o senhor será espectador de um grande caos.

Mas você está enganado. Não vai acontecer mais nada.

O curto silêncio foi interrompido pela observação do inspetor:

Talvez não vejamos, pois, como eu já disse, seu raciocínio e suas artimanhas surpreendem. Mas explique então o plano representado pelas charadas.

São oito aviões que vão cair sobre o Vaticano, hoje, uma sexta-feira, dia 13, dia da traição contra os templários. A abóbada desta sala representa as abóbadas das igrejas do Vaticano e por isso também lembram a última letra que fecha o círculo.

Eu esperava por essa resposta. Mas a que horas?

Por que não gostou do tom de voz do inspetor? Um pouco cético sobre as previsões que fizera, respondeu:

Pergunta inocente. Só pode ser às 18 horas, momento em que De Molay, o último grão-mestre dos templários, foi queimado em uma fogueira na pequena ilha de Vert Gallant, do rio Sena, como foi representado em uma das salas que atravessamos.

Impressionante. Mas falta alguma coisa. Acho que sabe a que me refi­ro. Por que esperou vários dias para vir a Roma?

Maurício sorriu.

Se não fossem os crimes cometidos, eu diria que você é até mesmo infantil. O número 8 da cúpula octogonal simboliza também o mês. Outu­bro é o mês dez no calendário gregoriano, mas era o mês oito no calendário romano. O calendário romano começava com o mês de março, mas o in­verno era muito longo e por causa disso foram criados os meses de janeiro e fevereiro. Não adiantava eu vir para Roma antes, porque sabia que você tinha escolhido essa data. O número 8 é seu número e o dia 13 é emblemá­tico para vocês.

É por ter conquistado o nosso respeito que o senhor foi eleito para figurar na história como uma dessas pessoas que revolucionam o mundo. A Ordem do Graal não exige que seus mestres sejam da linhagem sagrada. Desde que foi criada para substituir a Confraria Negra, a Ordem do Graal teve seus componentes selecionados entre todas as forças sociais.

Não gostou do que ouviu e replicou:

Entretanto, lamento dizer-lhe que não haverá o espetáculo que você programou. A CIA já deve ter providenciado a prisão de seus colegas no aeroporto de Fiumicino.

Levou um susto com a risada histérica do inspetor, como se ele estivesse celebrando sua vitória sobre o Apocalipse. Pensava ter esclarecido o assun­to, mas parece que o maluco tinha uma surpresa. A imprevisibilidade era uma arma desse policial, que falou com voz triunfante:

Enfim, os derrotei. No entanto, parabéns pela decifração da charada. O senhor é um privilegiado e está aqui para assistir ao maior ato de vingança pelos crimes que foram cometidos contra os nossos antepassados. Hoje, dia 13, uma sexta-feira, e daqui a apenas duas horas, a sede do Vaticano será destruída, como se todos os cavaleiros templários e os defensores de Montsegur atacassem aquele edifício maldito, com todas as suas armas, no maior grito de vingança e raiva que o mundo jamais assistiu.

"Não era possível!"

O plano era aquele que havia passado para Patrícia e a maneira de exe­cutá-lo também, com os oito aviões. Mas os aviões não seriam levados por alterações de plano de vôo feitas no aeroporto de Fiumicino, como pensara. Mas que diabo! Como poderia agora descobrir o plano desse louco, preso naquela sala?

Já estava desesperado, mas não podia deixar que o outro sentisse a preo­cupação que transparecia de seu silêncio e da respiração nervosa. Era pre­ciso fazê-lo falar. A jactância pode trazer revelações.

— Mas, afinal, se o plano era esse, por que me trazer aqui? Não creio que foi só para me fazer assistir a um espetáculo diferente. Isso eu veria pela televisão e talvez com mais conforto.

A resposta foi outro riso histérico de quem sabia que tinha vencido. Já não agüentava a insana alegria daquele fanático.

Vamos ver pela televisão também, porque tenho aparelhos nesta sala. Mas daqui, por essa fresta aí em cima, que tem uma tela de captação e am­pliação de imagens por satélite, você vai ver um espetáculo que jamais es­quecerá. Em breve, a Capela Sistina e a Igreja de São Pedro serão simples fumaça no céu. Ah! O mundo vai esquecer as Torres Gêmeas e vai começar a tremer. Sei que, ao comprovar a nossa vitória, irá escolher o lado certo, porque é um vitorioso, e os vitoriosos sempre formaram uma casta unida.

O tratamento de "senhor" era intrigante e reverencioso. Certamente imaginava que aceitaria ser um dos oito mestres dessa Ordem.

Mas havia necessidade de todas essas mortes? Não seria mais fácil me chamar para uma reunião e esclarecer esse assunto, sem tanta malda­de e encenações?

Esperava por essa pergunta. Mas talvez nem fosse necessário respondê-la. A Ordem aproveitou seus testes para demonstrar ao mundo mais uma vez que não pode ser derrotada.

Mas por que não explodir logo a Igreja de Santiago e o Vaticano em vez de fazer esse teatro de crimes desumanos?

Era outra pergunta desnecessária, mas precisava ganhar tempo.

Não teria a mesma repercussão e nem a ressonância histórica. Ima­gine o World Trade Center sendo destruído por uma bomba. Não acha que foi mais espetacular os aviões atravessarem as torres e assombrarem o mundo? Bin Laden praticou um ato que será lembrado para sempre. Nós assustamos os padres, os peregrinos, a CIA, o governo espanhol, durante um mês. Criamos o medo, movimentamos governos e agora vamos semear o pânico e o desespero.

De fato, aviões lançados sobre Roma e destruindo a Santa Sé era um fato que despertaria a comoção do mundo.

Após a cerimônia da iniciação, verdades lhe serão reveladas, mas não existirá perdão para a traição após a revelação.

Não haveria perdão para a traição! Por que simples frases podem criar tanto medo? No entanto, só poderia haver traição se ouvisse essas verdades, mas para ouvi-las teria de aceitar o cargo de mestre para então ser iniciado. E, se não aceitasse, o que aconteceria? Era isso que o preocupava agora.

Podia ter deixado Patrícia explodir a igreja de Santiago. Você não acha que teria mais impacto um atentado praticado por uma agente da CIA?

Ela era a mensageira do Diabo e precisava levar seus recados a ele. Não era digna dos planos.

"Como pensei, esse imbecil sabia de tudo! Teria essa organização ele­mentos dentro da CIA? Era bem provável." Não podia deixar, no entanto, que se sentisse tão vitorioso. Começava a adivinhar os passos que seriam dados e precisava ganhar tempo.

E se eu não quiser o cargo de mestre da Ordem?

Vou responder à sua pergunta e ajudá-lo em sua decisão. Sei que vai aceitar o cargo porque é bastante inteligente para isso.

E de que jeito vai me convencer?

Simples. Se não aceitar, será preso no local do crime como um agente camuflado da CIA que explodiu o Vaticano para pôr a culpa nos árabes. Se aceitar o cargo de mestre, ouvirá revelações que o impressionarão e acaba­rão por convencê-lo.

E você acha que alguém vai acreditar nisso?

Tudo já foi cuidado. Vários artigos na imprensa darão essa versão, e o senhor sabe, uma mentira repetida várias vezes torna-se verdade. A Interpol e a polícia italiana o encontrarão aqui, sentado neste trono. A imprensa estará presente e o cenário será muito convincente.

Não me convence. O artifício já está muito batido. Pôr a culpa nos árabes? Não vai colar.

Pensa realmente assim mesmo?

"Oh! Deus! O que será que esse fanático planejou?"

O Vaticano continua com as suas cruzadas e com a Inquisição con­denando inocentes. A nossa especialidade foi semear a dúvida para depois colher a discórdia. O Vaticano é hoje tão criticado como o governo ameri­cano. Só os católicos praticantes apoiam o Vaticano e só os americanos não odeiam os Estados Unidos.

 

                                 CAPÍTULO 126

No ano ds 1861, Vittorio Emanuele II unificou os reinos da Itália com a ajuda de Giuseppe Garibaldi, o guerreiro de vários continentes, que também ajudou o Brasil na guerra contra o Paraguai. Ficou lendária sua companheira, Anita Garibaldi, que o acompanhava nos campos de batalha. Com a proclamação da República, os herdeiros varões da casa real não pu­deram mais ficar na Itália, e Umberto, rei titular, nunca mais voltou a seu país. No ano de 2002, porém, essa proibição foi revogada e o filho de Um­berto, também Vittorio Emanuele, herdeiro do trono, pôde pela primeira vez visitar seu reino.

Eram 17 horas quando um helicóptero UH-145, de fabricação da Eurocopter, saiu do aeroporto de Pescara levando a bordo uma pessoa que se intitulava herdeira do trono para uma audiência às 18 horas com o Papa. Trinta minutos depois, outro helicóptero, também UH-145, do grupo de salvamento marítimo, esquentou os motores na base aérea de Civitavecchia e levantou vôo para cumprir as rotinas de fiscalização costeira. Voava baixo e estava carregado de explosivos com a força destrutiva de uma pequena bomba atômica.

Logo após alçar o ar, esse helicóptero recebeu instruções da torre do ae­roporto de Fiumicino e desviou-se da rota dos aviões. Obediente, seguiu a orientação dada e afastou-se até manter a distância indicada de cinco qui­lômetros da praia. Ele tinha tempo ainda para retornar e sobrevoar o Vati­cano, onde deixaria sua carga e se afastaria rapidamente para não sofrer as conseqüências da enorme explosão que destruiria não só a Basílica de São Pedro, mas também uma grande área em volta.

O piloto sabia que o helicóptero que saíra de Pescara às 17 horas criara uma situação de segurança para que, se surgisse algum imprevisto, as sus­peitas caíssem sobre o membro da família real que tinha um compromisso com o Papa. Embora tivesse plano de voo para Roma, o helicóptero que saíra de Pescara se desviaria alguns quilômetros antes, porque também ti­nha conhecimento da explosão. Vários telefonemas haviam sido feitos para simular essa reunião do herdeiro do trono com o Papa, e esse era o plano de desorientação. As vozes foram compostas em computador para dar a maior semelhança possível, mas a CIA perceberia a simulação e concen­traria suas suspeitas no aparelho que saíra de Pescara, perto do Adriático. Uma reunião do herdeiro do trono italiano com o Papa, naquele dia e na­quela hora, seria vista como suspeita, e todas as atenções se dirigiriam para o helicóptero de Pescara enquanto ele ficava livre para sobrevoar Roma e chegar ao Vaticano. Ninguém iria desconfiar de uma aeronave da Marinha em serviço de rotina diária.

Assim raciocinando, ouviu outro helicóptero receber orientações da tor­re. Devia mudar seus planos de voo para deixar livre o espaço para aviões da Força Aérea que estavam fazendo exercícios de voos rasantes. Estava atento a todas as circunstâncias e anotou as coordenadas dadas pela torre. Era estranho, porque não fora avisado desses exercícios da Força Aérea. Imediatamente calculou que, pelas novas coordenadas, o outro aparelho ficaria a apenas 50 metros de sua esquerda, voando à mesma altitude. Viu o aparelho aproximar-se e chamou a torre:

UH-145 do Salvamar chamando Torre de Controle.

Torre de Controle na escuta.

As coordenadas que você deu ao último helicóptero estão dentro da minha zona de segurança de voo. Corrija isso, por favor.

Entendido. Desligo.

Em vez da alteração solicitada, ouviu orientação dada a outro helicóptero de uma empresa de investimentos financeiros que voava à sua frente e que certamente levava executivos de volta para casa. Anotou as coordenadas desse outro helicóptero e o alarme soou em sua mente. Já estava afastado uns 5 mil metros da costa sobre o mar Tirreno e a cor branca dos barcos contrastava com o azul do mar.

Chamou novamente a torre, que não respondeu. Mas, quase no mesmo instante, percebeu outro helicóptero voando em uma altitude pouco maior que a sua, e já eram então três aparelhos muito próximos a ele. Aquilo não era normal. Olhou para cima e notou que esse terceiro helicóptero era um poderoso A109 Power, de fabricação americana. Um helicóptero militar! Precisava sair dali. Deu uma guinada para tomar a direção da cidade, mas então percebeu que em cada helicóptero havia um atirador com um fuzil e, naquela distância, só podia ser uma arma do tipo Mac Millan que atinge com precisão um alvo a 2 mil metros de distância. O plano saíra errado e as forças militares da Itália exigiam que ele se afastasse para o alto-mar.

Dispunha, no entanto, de um arsenal de grande poder de destruição e re­cebera ordens para ao menos provocar uma grande explosão, ainda que não atingisse alvos. Ele morreria na explosão, mas destruiria os aparelhos que o prenderam, e essa notícia causaria impacto. Manobrou os manches e afun­dou em direção à água ao mesmo tempo em que acionava os dispositivos de ação. Tinha sido preparado para essa missão como um suicida e sabia que a morte na explosão não era dolorosa se comparada com o que aconteceria se fosse preso. A Ordem não perdoa os fracassos, e nem mesmo na prisão se livraria do castigo. A explosão levantou ondas até a beira da praia e os helicópteros que o perseguiam se desequilibraram e caíram no mar. Barcos menores que estavam próximos foram destroçados e os navios ancorados foram jogados uns contra os outros e até mesmo contra as pedras do cais.

 

                             CAPÍTULO 127

Às 17h30, o inspetor ligou dois grandes aparelhos de televisão. Continuava sentado no trono e Maurício pensava no que fazer. Podia atacá-lo e tentar algum lance, mas qual? E como? Não tinha nenhuma arma.

Naquele momento a televisão passava um filme do Bruce Willis em que terroristas tinham dominado um enorme edifício e inutilizara as ações do FBI e CIA. Mas ele era Maurício, e não Bruce Willis, e não tinha como sair porque todas as portas e saídas estavam fechadas. Se Bruce Willis represen­tava uma situação fictícia, ele estava vivendo a realidade.

Uma dúvida começou a intrigá-lo: por onde fugiria esse sujeito? Exami­nou o chão, o trono, as paredes, porque é nelas que normalmente alguma pedra se move para uma saída secreta. Pelo menos é assim nos contos de mistério. Mas ele teria de apalpar todas as pedras e objetos daquela sala para descobrir alguma coisa. Não havia tempo para isso. Apesar das mu­danças de direção dentro do circuito seguido, calculou que se afastara 50 metros da entrada do túnel que iniciava nas pegadas de Cristo e, provavel­mente, estava pouco acima do nível do solo, do outro lado da Via Apia e sob uma colina. Portanto, se houvesse saída, seria na saia do morro além da estrada.

Ouviu a voz vitoriosa novamente:

— Como o momento sagrado está chegando e não há mais tempo para modificar o destino programado por Deus, vou lhe dizer uma coisa. Existe realmente um grupo de especialistas nossos entre os programadores de vôo no Fiumicino. Mas nenhum deles tem o DNA dos cátaros. Nós sabíamos que vocês iam estudar o DNA dos arqueólogos da Discovery. Não sou eu o único membro da Ordem a ocupar cargo estratégico nos órgãos de segu­rança. Temos instituições em todos os países. Vocês desconhecem o nosso poder e as nossas fontes de informação.

O inspetor voltara a falar em tom solene como se estivesse em uma missa fúnebre.

Está na hora de tomar sua decisão e sei que irá para o lado certo. O momento da escolha está próximo. O senhor terá de optar em ser um mes­tre da Ordem ou ser responsável pela destruição do Vaticano e pelas mortes no Caminho.

Estaria essa besta pretendendo injetar nele algum sonífero para colocá-lo no trono e depois sair? Mas faria isso sozinho? Era estranho que ninguém mais estivesse ali. Voltou a pensar em Bruce Willis quando seus pensamen­tos foram interrompidos para uma notícia de última hora. Informavam que o movimento de aviões no aeroporto Fiumicino tinha aumentado. O tráfe­go estava congestionado. A mensagem foi curta.

Está vendo? Logo teremos mais novidade.

Soltou uma risada feia, como a de uma hiena comendo os filhotes para não amamentá-los. Alguns segundos depois das 18 horas, a televisão co­meçou a mostrar cenas horrorosas de aviões caindo sobre a Cidade Eter­na. Maurício assistia estarrecido. Um grande jumbo apareceu na tela e se dirigiu para o Vaticano. Logo, mais outros surgiram e as cenas que assistiu eram terríveis. Os canais de televisão interromperam suas programações e passaram a detalhes que deixavam o inspetor enlouquecido de felicidade.

Vocês perderam, vocês perderam. Eu sabia que não conseguiriam chegar ao plano. Vocês erraram. Estais vingado, De Molay!

Pulava e dançava como um bailarino ensandecido e gritava:

Eu sabia, eu sabia. Sua amiga CIA está tentando me enganar com essa encenação ridícula para ganhar tempo.

Aquilo não podia estar acontecendo. Precisava dar um jeito de sair dali com urgência porque, se fosse preso naquele lugar, acabaria levando a culpa de tudo. Nem haveria como explicar para o mundo o que acontecera na verdade, porque ninguém acreditaria em uma versão tão absurda, e, com certeza, ele morreria antes. Assim que voltasse ao normal, o inspetor iria tentar a fuga. Antes disso alguma coisa iria ser injetada nele, ou algum aci­dente iria deixá-lo desacordado para que fosse colocado no trono, como era o plano deles. Certamente os comparsas desse maníaco deveriam aparecer para esse serviço. Tinha de aproveitar o momento de êxtase em que dança­va e gritava como um folião alucinado, e foi-se aproximando. Já estava per­to quando o inspetor pressentiu o perigo e se virou, mas Maurício pulou em cima dele, segurando-o. Era preciso imobilizá-lo para evitar que acionasse algum dispositivo de emergência que certamente tinha preparado.

Mas o outro era esperto e ágil. Afastou-se rapidamente para o lado e estendeu a perna. Maurício não chegou a cair, porque se equilibrou com as mãos no chão, levantando-se em tempo de ver o inspetor correr para o crucifixo. Quando viu que ele queria pegar a lança de Cristo, gritou:

Não faça isso!

É a vingança do Sangue Real. Tenho de fazê-lo. Foi com essa lança que o mataram e com ela o mundo será destruído.

"A lança. Como não pensei nisso?" Não podia deixar que ele a movimen­tasse, pois certamente a lança movimentaria alguma parede, alguma porta secreta, por onde ele fugiria.

Correu o mais rápido que pôde e agarrou as pernas do inspetor, que já tinha subido no patamar do trono e com a mão direita segurava a lança. Levantou a perna dele e o arrastou, mas com isso a lança se despregou do Cristo. Um ruído estranho na parede mostrou a iminência do perigo.

O inspetor conseguiu pegar a lança e deu um golpe na cabeça de Mau­rício, que sentiu o impacto. O inspetor aproveitou-se disso e avançou com a arma apontada contra seu peito, mas Maurício esquivou-se, pulando de lado ao mesmo tempo em que agarrou a lança com as duas mãos e, com um movimento brusco, puxou-a para frente, jogando-o ao chão. Ao cair, o policial soltou a lança e Maurício chutou-a para longe. Antes que ele se levantasse, correu e a pegou, esperando o revide. O inspetor perdera o do­mínio da situação, mas estava agora de pé e o encarou, desafiador:

Vamos! Ataque! Assim, morreremos os dois. Isso aqui vai se encher logo de gás e uma faísca elétrica explodirá a sala. Tudo estava previsto. Se o plano falhasse em alguma coisa, não poderiam restar vestígios. Eu me entusiasmei com o meu êxito e me descuidei de você. Não há perdão para o erro. Mas o plano funcionou e o Vaticano será destruído. Vocês perderam!

E você está falando demais. Não quero morrer e nem você pretende isso. Sua missão é destruir o mundo e não deixar que ele o destrua, não é? Então, seja inteligente, vamos sair logo pelo túnel que você tinha preparado para a fuga. Não vai adiantar morrer.

Mas não parecia ser essa a filosofia do inspetor.

Sou um mestre da Ordem do Graal e devo seguir o exemplo do rei Olivier. Para proteger os herdeiros do trono, seguimos um princípio rígi­do. Viveremos sempre com a vitória ou morreremos com a derrota. Essa é a diferença entre nós. Vocês estão acostumados apenas com a vida. Re­jeitam a morte, porque não foram preparados para ela. Há séculos nós estamos vivendo para morrer, e a vida para nós é apenas uma celebração dessa expectativa.

Tem razão. Não estou preparado para a morte e não tenho motivos para morrer. Vamos! Siga na frente. Você vai ter de sair comigo.

Não farei isso. Se for preso, desonrarei a Ordem. Lembra do cátaro de Finisterre? Ele morreu sabendo que o céu é a recompensa final. O Papa não prometeu os céus para os cruzados? Maomé não prometeu o paraíso para os soldados que morressem na luta contra os cristãos? Deve existir al­guma verdade em tudo isso e minha fé diz que, morrendo pela causa, serei recompensado.

Com um grito desesperado em busca de novas energias, o policial avan­çou com rapidez sobre Maurício, que já o esperava e deu-lhe um golpe na cabeça. O inspetor caiu de costas e imediatamente Maurício colocou o pé esquerdo sobre seu peito e, com a ponta da lança em sua garganta, excla­mou com raiva:

Foi assim que vocês mataram o espanhol, não foi? Pois vou fazer a mesma coisa com você agora, seu infeliz. Se eu tiver de ir para o inferno por tirar deste mundo um terrorista monstruoso como você, irei com gosto, mas tenho certeza de que Deus me perdoará. Sim! Esteja certo disso, por­que Ele saberá distinguir os seus, e você não é um deles.

Sentia realmente vontade de enfiar aquele pedaço de metal na garganta do inspetor e talvez tivesse de fazer isso para tentar sair dali, porque os ru­ídos aumentavam e a porta por onde entrara já estava estalando. Não era, porém, um assassino, e não iria cometer essa atrocidade. Precisava ao me­nos imobilizá-lo, e agiu com rapidez. Afastou a lança do pescoço e enfiou-a na coxa dele com força. O homem gritou de dor e tentou sentar-se, mas Maurício deu-lhe uma cacetada com o cabo da lança, desacordando-o.

Foi quando olhou em volta e viu a parede onde o Cristo estava rachar-se, e um cheiro forte de gás causou-lhe náuseas. O inspetor devia ter alguma saída de emergência e ele não podia ficar mais ali. Os ruídos junto à porta cresciam e ele parecia estar no centro de um terremoto. O cheiro de gás au­mentava e talvez realmente tudo fosse explodir. Teve a idéia de que era me­lhor ficar perto da porta porque, se ela caísse, pelo menos tinha o caminho da volta. Os ruídos ficaram mais fortes e ele correu para lá, encostando-se na parede, pouco atrás do enorme batente de madeira. O barulho confuso de coisas lançadas contra a porta se misturava com um ruído de motores. Mas motores, ali?

O que seria isso? Não parecia ruído de paredes desmoronando. Olhou para o teto, que ainda parecia firme, assim como as paredes do salão. Ape­nas o local da lança de Cristo desmoronava e dele saía uma nuvem branca. Pôs o lenço no nariz e prendeu a respiração. Uma leve percepção transfor- mava-se em esperança, e sua fé aumentou. Em uma hora dessas é preciso acreditar. É preciso ter fé. "Não é para mim, Senhor, mas para a glória do Teu Nome", lembrou a profissão de fé dos templários. Disse isso em tom de oração e esperava que Deus a ouvisse.

Ficou atrás do espesso e forte batente, encostado na parede, com a espe­rança de que a porta caísse e aparecesse uma saída. Novamente, o estranho ruído. A parede não estava rachando nem pedras estavam caindo. O que seria então? De repente, com um forte estalo, a porta caiu para dentro da sala e policiais do Corpo de Bombeiros, com máscaras de gás, entraram com cuidado. Ele gritou, apontando o lugar onde estava o inspetor ainda deitado no chão, mas não pôde acompanhar mais nada, porque colocaram uma máscara em seu rosto.

Com a queda da porta, pedras e torrões começaram a cair e os poli­ciais armaram uma barreira de proteção com barras de metal que pareciam escudos enquanto ele era arrastado por aquelas salas que o aterrorizaram horas atrás, e saíram na Via Apia por um corredor que não tinha notado. O trabalho foi rápido porque, como era esperado, o gás estava preparado para explodir assim que o ambiente ficasse cheio dele.

Lá fora uma ambulância o esperava. Caminhões do Corpo de Bombeiros jogavam jatos de água sobre focos de incêndio que se alastravam, e médicos o deitaram em uma cama e começaram a apertá-lo por todos os lados. Um deles colocou o aparelho de pressão, outro a máscara de oxigênio para que sua respiração voltasse ao normal e, assim, com o nariz e a boca fechados, não pôde sequer gritar para aqueles idiotas que ele estava bem, muito bem e também muito feliz por vê-los.

Deram-lhe um sedativo, e em seus sonhos ouviu sirenes e gritos enquan­to prédios caíam e carros colidiam uns contra os outros em uma imensa procissão em direção às grandes chamas do inferno. Cenas de aviões cain­do e de cátaros sendo queimados se misturavam em seu cérebro enquan­to ele assistia a tudo amarrado a um pelourinho gótico no centro de uma enorme fogueira. Permaneceu na Unidade de Terapia Intensiva do Hospi­tal Metropolitano durante algumas horas, e, depois de vários exames, foi levado para um quarto. Estava agitado e os médicos preferiram mantê-lo sedado até o dia seguinte.

 

                                       Capítulo 128

Acordou e, ainda sonolento, perguntou para o vulto na beira da cama:

— Há quanto tempo estou aqui?

E só então percebeu a mão macia de Patrícia em sua testa. Acordou por completo e ficou subitamente consciente:

Você, de novo? Será que não podemos marcar um encontro, sem ser em um quarto de hospital?

Ela riu e o beijou nos lábios.

Lembrou-se de tudo e sentou-se bruscamente na cama.

O Vaticano! O inspetor! Meu Deus!

Ela tornou a sorrir e disse:

Fique calmo. Não aconteceu nada. Você apenas assistiu a um filme que a CIA colocou na tela da televisão daquele maluco para desorientá-lo. Não se pode negar que o sujeito era preparado e chefiava uma organização eficiente e perigosa.

Chefiava?

Ela demorou um pouco para responder. Sabia que entre o inspetor e Maurício havia se desenvolvido um antagonismo de desafios que gera esse tipo de relacionamento difícil de explicar. Havia respeito entre eles.

Ele morreu no cumprimento do dever. Você sabe o que quero dizer. Os soldados do Corpo de Bombeiros conseguiram retirar o corpo dele an­tes da explosão, e o enviamos para seu país.

Isso era previsível. O inspetor tinha se suicidado. Fingira o desmaio e de­via ter tomado algum comprimido. Não havia como acusar mais ninguém. O assassino morrera em Finisterre. Não se conheciam os outros membros dessa Ordem e, para sua própria segurança, agora era melhor fingir que essa organização não existia mais, e que talvez nunca tivesse existido.

Acho que está ansiosa para dizer que a CIA descobriu que o plano não incluía aviões. Quando vi a destruição que a TV do inspetor mostrava, senti na hora um impacto, mas pela reação dele percebi que aquelas cenas eram falsas.

Ela pensou um pouco como se estivesse estudando as palavras:

Você é incrível. Nós perdemos muito tempo para entender suas men­sagens. O embaixador Williams foi quem nos alertou de que você não podia usar telefone, internet, correio ou outros meios que pudessem ser revelados.

Embaixador Williams? O embaixador dos Estados Unidos no Brasil?

Sim. Ele está em Washington desde os crimes de Roncesvalles. Seu depoimento lá despertou a atenção da CIA. Foi o embaixador que explicou

que aquele depoimento era uma espécie de mensagem e que você começa­ria a enviar mensagens por códigos, como por exemplo Memórias de um médico, de Alexandre Dumas.

Puxa! Cheguei a recear que americanos não lessem escritores franceses.

Aquela história de que o inspetor Sanchez gostava de preparar desa­fios de inteligência. Em dado momento, percebemos que estávamos trans­ferindo para você toda a lógica dos acontecimentos, limitando-nos a traçar nossos planos a partir de suas mensagens.

Ela ia começar as explicações, mas percebeu que era desnecessário.

Você está brincando comigo. É claro que já deve ter imaginado tudo o que fizemos. Conseguiu decifrar charadas, prever o comportamento do inspetor e várias de suas ações, então não vá me dizer agora que precisa de explicações.

Ele havia se levantado e estava perto da janela. Ao longe um helicóptero cruzava os céus de Roma e seu comentário indicava que ela estava certa. Ele não precisava de informações:

Não entendo como admitem essas coisas por cima desta cidade.

E continuou falando, como se não acreditasse que tinha passado por tudo aquilo:

Parece que saí de um pesadelo. Parece, não, saí mesmo. Fiquei impres­sionado com o poder dessa organização. Aquelas salas subterrâneas e todo o aparato das representações, aquilo não é coisa de principiante. Imagino que vocês se utilizaram desses aparelhos novos que fotografam o subsolo e estudaram o lugar, não foi isso? Os geólogos andaram aplicando esses apa­relhos para descobrirem cidades soterradas no Egito.

Assim que cheguei a Washington com seus recados, o governo ame­ricano informou os Serviços de Inteligência da Itália e pediu o apoio da OTAN. Tudo o que existe de mais sofisticado em tecnologia de solo e es­pionagem foi usado. Graças a isso pudemos chegar a tempo. Um discreto e eficiente serviço de análise de movimentação de navios, lanchas, helicópte­ros e tudo o mais começou a ser feito com o auxílio das Forças Armadas da Itália e da OTAN. Um dos pilotos do serviço de salvamento da Marinha fi­cara doente, alguns dias atrás, e o substituto ficou sob suspeita, assim como outros em situações semelhantes.

Mas você não me parece muito segura. Nem me chamou de bobo ainda. O que houve? Já sei. Está preocupada porque a organização continua e a CIA não sabe como chegar a ela, não é?

É isso mesmo. Mas você, ao contrário, parece muito tranqüilo para uma pessoa que passou por tantos perigos e que talvez possa ser alvo de vingança.

Não acredito. Fui leal a eles. Não sei dos mistérios dessa Ordem e não me foi feita nenhuma revelação. Tenho até a impressão de que eles conse­guiram o objetivo, que é deixar a CIA e o mundo moderno preocupados. Pode dizer a seus companheiros que, se um dia eles tiverem uma relação dos dirigentes dessa Ordem, ficarão muito surpresos. Talvez alguns de seus membros façam parte da CIA e do FBI.

Um sentimento de pesar tomou conta dele, como se tivesse perdido algo com o fim dessa aventura.

Não! Não me querem mais. Já me usaram para dar seu recado. Esta­mos livres. Até vejo o grupo de oito mestres reunidos para selecionar dois substitutos, um para o inspetor Sanchez e outro para mim.

O helicóptero era agora um distante ponto no horizonte. Maurício sen­tia-se como se tivesse traído uma pessoa que confiava nele. O inspetor acre­ditava realmente que ele ia fazer parte da Ordem e tinha também uma saída de emergência daquela sala, porque estava muito confiante. Quem fez todo aquele aparato obviamente tinha preparado alguma fuga espetacular, que não pôde usar.

Um longo silêncio se interpôs entre eles, mas aos poucos voltaram ao normal.

Ela o olhava ternamente e foram se aproximando um do outro. Ela co­meçou a roçar seus lábios nos dele, como se estivesse brincando, e então se abraçaram em um incontido entusiasmo.

Ele mordeu de leve o lóbulo de sua orelha esquerda e sussurrou:

Quarto de hospital não é nada romântico! Sabe de uma coisa? Deixei reservada no hotel uma garrafa de Brunello di Montalcino Biondi Santi, safra 1990, para comemorarmos o fim disso tudo. Foi uma safra muito es­pecial de 580 caixas apenas.

Ela respondeu, sem esconder a excitação:

Biondi Santi? Então o que estamos fazendo aqui neste hospital?

 

                                 CAPÍTULO 129

No bar do Hotel Lincoln, em Washington, o embaixador e o diretor da CIA estavam novamente sentados em torno de uma mesa para o happy hour.

O garçom havia trazido o Blue Label com o qual já tinham comemorado a vitória sobre os conspiradores da República da Amazônia. Copo baixo, uísque on the rocks, mexiam as pedras com os dedos, no estilo brasileiro, conforme aprendera o embaixador, e estavam relembrando os aconteci­mentos em que estiveram envolvidos.

O diretor parecia admirado:

Então, em sua opinião, ele ficou preocupado desde o assassinato do espanhol, nos Pireneus, e aproveitou o inquérito em Roncesvalles para apa­recer demais, como se estivesse nos enviando um recado.

Ele sabia que tinha proteção especial, porque o nosso agente do FBI no Brasil o avisou.

Muito ardiloso. Entrava em livrarias para ver livros que tratavam do assunto que o preocupava, ou mandava os mesmos recados pela nossa agente e pelo inspetor, porque não sabia em qual confiar.

E depois de pensar um pouco:

Imagino o medo, as tensões que ele passou, sabendo que era alvo de grupos terroristas ou seitas religiosas querendo se vingar. Essa vida de Cris­to precisa ser desvendada, precisa sair do mistério, pois do contrário sem­pre vão aparecer novos fanáticos.

Mas o embaixador estava longe. Lembrava-se dos bons momentos que passara com Elaine. Com sua ajuda, ela agora estava em Paris para comple­tar seu sonhado mestrado em arqueologia. Ficaram de se encontrar por lá de vez em quando.

A lembrança de Elaine fez seus pensamentos saírem de Paris e voltarem para Compostela. Em toda aquela história um assunto ficara pendente. Não se falara mais no Diário de São Remígio, e esse silêncio da CIA era suspeito. O diretor mantinha um ar de mistério, como se estivesse escondendo algu­ma coisa. Achou melhor esclarecer.

Aquela história do Diário de São Remígio não está ainda explicada. Surgiu alguma notícia sobre as páginas que desapareceram?

O diretor pigarreou, constrangido.

Seu amigo, sabe? Ele complica muito as coisas.

O embaixador o olhou, perplexo.

Não vá me dizer que ele descobriu as páginas perdidas do Diário?

Não, não. Ele não descobriu, mas indicou onde estavam.

Aquilo era incrível. As páginas arrancadas do Diário de São Remígio, que poderiam ainda aumentar as suspeitas de que a Igreja estaria envolvida no assassinato do rei Dagoberto, teriam sido encontradas?

O diretor não esperou pela pergunta óbvia e completou:

Quando passavam em frente da catedral de Viana, seu amigo mostrou o túmulo de César Bórgia à nossa agente Patrícia e convenceu-a de que aquele túmulo era falso. Segundo ele, o túmulo de César Bórgia deveria ter documentos importantes.

E ele sabia que o Diário estava lá?

Bem a contragosto, o diretor concordou.

Não, ele não sabia, mas teve a intuição de que alguma coisa poderia estar escondida naquele túmulo. Não podemos dispensar hipóteses, mesmo porque a sugestão que ele dava era bastante coerente. Já lhe disse que não gosto desse Maurício. Por vezes ele me deixa acabrunhado. Mas pedimos licença ao Vaticano para pesquisar a Catedral de Viana. Abrimos discreta­mente todos os túmulos, trabalhando à noite, para não despertar suspeitas e deixando tudo arrumadinho para o dia seguinte.

E isso foi feito durante o período de nossas reuniões?

Desculpe, mas não podíamos abrir todo o jogo. Poderia não ser ver­dade e nem todos os assessores podiam saber disso. Conto agora para o senhor porque nos ajudou muito.

O embaixador manteve a fleuma diplomática e o diretor falou pausadamente, como se ele próprio não acreditasse:

Foram encontrados manuscritos que podem ser as páginas que faltam no Diário de São Remígio. As análises indicam que são da época em que ele viveu. Temos cerca de dez pedaços que não podem ser considerados pági­nas, porque se partiram com o tempo. Elas estão ainda sendo estudadas, mas pelo que já foi pesquisado são muito comprometedoras.

E o Vaticano certamente quer esses documentos.

Sim, sem dúvida, e serão entregues depois de bem estudados, concor­dou o diretor com um tom de voz misterioso.

Entendo, entendo!

O diretor riu, bonachão.

Todos os originais das páginas arrancadas do Diário de São Remígio serão encaminhadas ao Vaticano para serem guardadas na Riserva.

Fez uma pausa e completou:

Com algumas correções, claro.

O embaixador sorriu. A CIA iria preparar documentos que podiam ser identificados como da mesma época de São Remígio, mas ficaria com os originais. Os documentos entregues ao Vaticano seriam falsos, como falso era o segundo testamento de Constantino.

Sabe, embaixador, um dia os arquivos do Vaticano terão de ser aber­tos. E preferível que algumas coisas não estejam lá. Por outro lado, também é bom que nós tenhamos alguns trunfos contra o clero. O Papa às vezes exagera quando critica o nosso sistema capitalista.

Os dois riram e levantaram os dois copos para um brinde a esse final feliz quando o garçom chegou com um telegrama para o embaixador Williams.

Telegrama? Aqui?

Abriu e deu uma gostosa gargalhada. Passou para o diretor, que leu em voz alta: "Posso sugerir que desta vez excluam o Brasil de seu mapa? (ass.) Maurício."

O diretor espantou-se.

Mas como ele sabe que nós fizemos aquele brinde dizendo "América para os americanos"?

O senhor é o homem da CIA. Quem poderia ser, além do mordomo?

Seria o garçom? De fato, o garçom não é o mesmo de um ano atrás. Sim, aquele maroto devia estar ouvindo a nossa conversa. Pensamos estar imunes a uma espionagem brasileira e nos surpreendemos. Uma hora é esse Maurício, outra hora é um garçom que, certamente, estava com documen­tos falsos. Será que a Abin, a Agência Brasileira de Informações, seria tão eficiente assim? Será que esse telegrama é mesmo dele? Deixe-me conferir.

Sim. Sim. É de Roma.

O embaixador pegou o copo e, em tom contemporizador, disse:

Mas, meu caro diretor, não acha que ele merece uma concessão?

E, sem esperar pela resposta:

Por que não o atendemos e mudamos o brinde?

Levantou o copo e brindou:

O Brasil para os brasileiros!

E, quando os copos se encontraram, o diretor completou:

Mas a América para os americanos! 

 

                                                                                A. J. Barros 

 

 

                                         

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

              Biblio"SEBO"