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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O ENIGMA DE GOLDEN STAR / Alec Baurer
O ENIGMA DE GOLDEN STAR / Alec Baurer

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Com o término do café da manhã, o Dr. Richard Goulborn e a mãe dirigiram-se para o deck superior do Golden Star. Sentaram-se e ficaram observando, calmamente, os passageiros.
O Dr. Richard olhou para o mar e reprimiu um bocejo. Tinha dormido pouco mais de uma hora. As coisas não estavam correndo conforme ele planejara. Sim, o cruzeiro era ótimo, o dia estava bonito, mas já fazia duas noites que não dormia.
Oh! Susan... Se você estivesse aqui!
Todos os arranjos haviam sido feitos para que o cruzeiro coincidisse com o período de férias de sua irmã. Mas uma semana antes do embarque, Susan escorregara num tapete e, ferida, fora parar no pronto-socorro. O acidente a deixara hospitalizada e com uma leve cicatriz no ombro esquerdo.
Era uma pena!
O Dr. Richard bocejou e, em seguida, olhou para a mãe. Apesar da idade, Mrs. Goulborn ainda era forte, com um nariz muito particular e uma notável presença física.
— A senhora gostou mesmo da excursão!
— Não havia nada que eu quisesse mais — respondeu Mrs. Goulborn. — Os melhores chefs, as melhores bandas e os melhores shows. Pense só nisso, Rich! Um cruzeiro como esse, saindo de Dubai, passando por Abu Dhabi e Fujairah, e por outros dois países, Omã e Bahrein... É magnífico!
— E caro! — disse o filho com sua fala suave, controlada e persuasiva. — Não é por nada que, mesmo sendo regimes fechados e ditatoriais, com burocracias comuns ao gênero, estejam apostando tanto no turismo!
O Dr. Richard era um homem com feições delicadas, nariz reto e cabelos louros, encaracolados. Considerado um profissional hábil e calejado, ele gostava do que fazia. Tinha em seu currículo cursos de dissecação, análise química e cirurgia. Por isso, seu maior desejo era casar e mudar-se para a Riviera Francesa. Então sim é que seria plenamente feliz!
Mrs. Goulborn olhou para o filho com ternura.
— Você parece exausto — disse. — Por que não vai se deitar? Talvez fosse melhor.
— Todo mundo nesse clima de festa — e eu dormindo? Não, obrigado.
Ela mordeu o lábio.
O Dr. Richard dobrou o cotovelo direito. Levou a mão à testa.
— Está quente demais aqui.
— Vamos mais para lá, filho.
Ele fez um aceno condescendente com a cabeça. Seus olhos pareciam sonolentos.

 


 


Os dois cruzaram o convés e instalaram-se na área dos guarda-sóis listrados. Garçons vestidos de branco se moviam entre os passageiros, oferecendo drinques típicos. Mrs. Goulborn ia dizer alguma coisa, mas, subitamente, atirou a cabeça para trás, num gesto de surpresa.

— Veja ali! Antoine Blancheé, o pianista — exclamou ela, apontando para um homem a alguns metros dali.

O homem mencionado estava parado no meio do convés, curtindo o sol. Usava jeans desbotado, e tinha um barrete de musselina na cabeça. O cabelo negro cuidadosamente cortado, um rosto longo e aristocrático, e olhos azul-claros.

Um excêntrico!

Chocado, o Dr. Richard esforçou-se para não perder a paciência.

— O viúvo, comilão e contador de histórias? — perguntou.

— Não diga essas coisas, Rich! Eu não gosto que você fale mal das pessoas.

— Desde quando falar a verdade é crime?

— Posso dizer que sempre ouvi fazerem muitos elogios a ele — disse Mrs. Goulborn.

— A senhora idolatra todo mundo, mãe. Se olhar atentamente, vai ver que todos têm um ponto fraco. A senhora não é uma boa analista de pessoas, mamãe.

— Você fala como seu pai, Richard.

— Eu não sou meu pai! E o mundo a que ele pertencia não tem nada a ver comigo. Papai só tinha uma ocupação: a fraude, a traição, a astúcia e a malícia. Ele agiu por interesse próprio por toda a vida. Ao que me lembre, eu nunca fui assim.

Ela hesitou, com uma nota inesperada de preocupação em sua voz:

— Eu sei, filho. Você precisa repousar e evitar o estresse, só isso.

— Esse cara foi julgado por matar a esposa, não foi?

— Querido, ele foi inocentado.

O Dr. Richard interrompeu em tom quase áspero:

— Nunca confie numa notícia que é dada de maneira parcial, que apoia só um lado da questão. Ele pode ter sido inocentado, mas não quer dizer que seja inocente. Acontece que a polícia investigou de forma complacente e nem um pouco eficaz.

— Acho horrível e de mau gosto você falar dessa maneira — queixou-se ela amargamente. — Monsieur Blancheé não matou a mulher!

— E se considerássemos os motivos tradicionais? Ela tinha feito um testamento, não tinha?

— Sim...

— Talvez ele estivesse curto de grana. Talvez tenha chegado a falar com ela, mas ela não quisesse socorrê-lo financeiramente. Nesse caso, só lhe restou acabar com ela.

— Essa teoria é muito esquisita — comentou Mrs. Goulborn.

— Mas não negue que eu posso ter razão, mãe.

— Ele tem um rosto tão nobre!

O Dr. Richard deu uma gargalhada.

— Nobre? Ele vive em estupor alcoólico.

— Como é que sabe disso?

— As minhas fontes são muito boas, mãe. Muito boas.

Mrs. Goulborn deu um suspiro.

— Não sei como você consegue ser tão mal-humorado! Eu adoro Monsieur Blancheé.

— A senhora sempre gostou de contrariar todo mundo. Lembro-me daquela vez que papai ficou cinco dias no Hotel Sherwyn em Pittsburgh, dizendo que não ia voltar para casa porque não aguentava mais ouvir seus CDs de piano.

— O seu pai não gostava de nada. A única coisa que ele queria era galgar os degraus do sucesso financeiro. Não admira que tenha sido destruído por sua cobiça pelo dinheiro.

O Dr. Richard debruçou-se sobre a cadeira da mãe.

— Mamãe, não se exalte tanto. Não sabia que a senhora gostava tanto de Monsieur Blancheé.

Ela sorriu encabulada.

— Está tudo bem, mãe? — perguntou ele, hesitante.

— Acho que me esqueci de tomar meus remédios!

— Deixei um frasco de pílulas em seu dormitório, ontem à tarde. A senhora não viu?

— Eu... não sei.

“Mulheres” pensou o Dr. Richard.

Mrs. Goulborn tinha uma capacidade realmente única de esquecer as coisas, difícil de definir. Parecia ser uma bruta amnésia, que ela tinha desde a juventude e que só tendia a piorar.

Ele afastou o pensamento e se focalizou no que se passava a sua volta. Subitamente soltou uma exclamação, concentrou-se e disse:

— Aquele lá não é Edmund Fëll, o detetive?

— Onde?

— Ali!

Mrs. Goulborn prendeu a respiração. Inclinou-se para frente para observar melhor. Examinou especulativamente o homem sentado numa cadeira de vime perto da piscina. Reconheceu-o imediatamente, pois tinha visto seu retrato numa coluna recente do noticiário internacional. A altura, a lente circular do monóculo, a camada plástica de gel no cabelo — era ele mesmo: o ilustre detetive austríaco!

— Oh, eu sempre quis conhecê-lo um dia!

— Tenha dó, mãe.

— Ele é engraçado, não é?

— É um pavão orgulhoso isso sim. Nunca vi nada igual.

— Tem uma moça com ele... Será que é parenta dele?

— Irmã, prima, sobrinha... Tanto faz!

— Ela até que é bonita — disse Mrs. Goulborn, olhando rapidamente para o filho. — Um bom partido, Rich.

— Ela pode ser bonita, mas não é garota para mim. Pensar numa só mulher, e excluir todas as outras, não é comigo.

— Oh, filho, você não deveria falar assim! Beba alguma coisa para elevar o espírito.

Ele fez uma careta; seu rosto parecia zangado.

Enquanto essas palavras eram ditas, Edmund Fëll bufava. Estava pálido e com gotas de suor em sua testa. Olhou para cima onde algumas poucas nuvens cruzavam o céu azul brilhante.

De repente, à sua frente, uma moça saiu da piscina e deixou-se cair sobre a felpuda e grossa toalha de banho. Logo tirou a touca de borracha e fez uns enérgicos movimentos de cabeça.

— O senhor não vem, Mr. Fëll? A água está deliciosa!

Após tomar um longo gole de seu drinque, Fëll recostou-se e olhou para sua nova amiga.

— Não, Miss Saunders. Hoje não.

Fyona Saunders era uma moça jovem e flexível, suave e macia como um pêssego. Os cabelos negros e lisos iam até a cintura, dando-lhe um ar de artista espanhola.

O detetive gostava de sua permanente jovialidade, da sua inteligência, de seu jeito alegre de ser.

Fyona levantou-se. Olhou por um instante para o Golfo Pérsico. As pessoas ao seu redor estavam rindo e conversando — muitas delas se manifestando em línguas diferentes. Ela sacudiu a cabeça, confiante e feliz, e virou-se para seu companheiro.

— Achei que faria a incursão pelo deserto, Mr. Fëll. O senhor não quis ir?

— Não.

— Pois não sabe o que perdeu! Ver o sol se pôr, passear de camelo, praticar sandboard e jantar no meio do deserto, com dança do ventre, narguilé e tudo o mais.

— Essas aventuras não são mais para mim.

Fyona olhou desconfiada para ele, depois começou a rir.

— Ah, vá!

Fëll havia chegado à Dubai dois dias antes.

Um roteiro de sete noites, duas delas passadas com o navio ancorado no porto Rashid. Fëll, logo no primeiro dia, comprara o passeio do Big Bus Tours. Como o bilhete dava direito de usar os ônibus por 24 horas, o detetive tinha explorado um itinerário à tarde e outro na manhã seguinte. Indo pela orla, com paradas em vários pontos, o roteiro incluíra mesquitas, praias e uma das três grandes palmeiras aterradas sobre o mar. Conhecera Miss Saunders no Souk Madinat, um centro comercial ao lado do famoso Burj al Arab, o tal hotel em forma de vela.

A moça deixou-se cair numa cadeira e, num movimento sinuoso, olhou diretamente para o detetive:

— O que um homem como o senhor anda fazendo num cruzeiro?

O que ele andava fazendo no cruzeiro? Não era uma pergunta que Edmund Fëll esperava ouvir.

Ele pigarreou a fim de ter algum tempo para dar uma resposta adequada.

“Deveria contar uma meia-verdade? Ou deveria confiar completamente nela, tornando-a sua cúmplice?”

Deveria dizer que estava fazendo uma investigação? Uma investigação que conferia um novo significado à lendária procura de uma agulha num palheiro?

Antes que pudesse dar uma resposta à moça, os olhos de Fëll passearam pelo convés. Quase sem querer, ele levou um susto. Estaria enganado? Ou era realmente Monsieur Blancheé (o homem que ele vinha espionando) ali de pé, a poucos metros dele?

Neste momento, Fyona soltou um grito de espanto abafado e virou a cara para o outro lado. Aparentemente ela também tinha visto o pianista e, pelo jeito, não queria ser vista por ele.

— Ora — comentou, mantendo o tom de voz baixo de modo que só o detetive pudesse ouvi-la —, é meu ex-padrasto.

Ex-padrasto? Fëll voltou a assustar-se. Não respondeu pois observava atentamente o francês que, pouco depois, mudou de lugar e foi para a proa do navio, como se não se desse conta do que estava fazendo.

Alguns segundos se passaram antes que Fyona Saunders se debruçasse para trás, ainda com o rosto escondido:

— Ele já foi embora?

— Já sim, Miss — disse Fëll.

Ela limitou-se a sorrir vagamente, olhando na direção da proa:

— É que eu não me dou bem com ele.

Fëll ficou atônito com o fato de ela fazer aquela admissão.

— Ele é mesmo seu ex-padrasto?

— Sim. Minha mãe e ele estiveram casados por quase três anos. Mamãe era uma mulher muito fluente com as palavras, captava com rapidez o que ouvia e, além disso, era muito bonita. O problema é que apresentava uma incerteza muito grande com relação a si mesma. Acho que foi por isso que ele preferiu ficar com aquela árabe feiosa.

Depois de uma pequena pausa a moça retomou o assunto interrompido.

— Mas, e quanto ao senhor? Por que está neste cruzeiro?

— Estou aqui — começou Fëll; fez uma pausa estratégica — numa missão secreta, Miss.

No mesmo instante viu a moça balançar a cabeça com uma expressão de espanto. Ela arregalou os olhos.

— Missão secreta?

Fëll acenou com a cabeça, como se não esperasse outra resposta.

— Sim.

— Eu sabia! E... como está indo?

— Realisticamente falando, as chances não são muito boas — disse Fëll. — Para falar com franqueza, no momento estou com as mãos amarradas. Mas onde há vontade, há um caminho.

Fyona fitou-o em silêncio por um minuto, maravilhada. E finalmente sussurrou:

— Mas não vai morrer ninguém, vai?

Fëll ficou enternecido com a pergunta dela.

— Não, Miss. Ninguém vai morrer.

Nos dias que se seguiram, aconteceram várias coisas estreitamente ligadas. Entre elas, um assassinato. Mas ainda era cedo para saber.

Às 13h, o navio zarpou em direção a Omã.


2.

 


Deixando para trás a fortaleza de Al-Jalali a leste e a fortaleza de Al-Mirani a oeste, o navio atracou no porto de Mascate. Uma vez que a maioria dos passageiros desembarcou para seu dia de compras em Muttrah Souk e a exploração dos encantos do sultanato, Edmund Fëll decidiu fazer hora no navio.

Às 20h, quando saiu de seu camarote, Fëll usava uma camisa listrada, aberta no colarinho, com as mangas enroladas até os cotovelos. A lua, quase cheia, estava bem acima no céu e o golfo parecia infinito.

Entrou no restaurante a bordo. Iluminado pela luz que vinha de candelabros altos em formato de lemes, o detetive trilhou seu caminho entre as mesas repletas de gente. Ocasionalmente alguém lhe lançava um olhar rápido e inquisidor, mas ninguém se interessou longamente por ele. Sempre sorrindo, o detetive chegou à mesa onde um homem, usando um bem cortado terno cor de carvão e gravata de seda bege, o esperava.

— Guten Abend, Mr. Akmeed!

— Boa noite.

Alim Akhmeed ergueu-se e foi ao seu encontro, apertando-lhe vigorosamente a mão. Era um homem baixo, gordo e calvo. À primeira vista, parecia não haver nada de extraordinário nisso. O fato, porém, é que Alim Akhmeed era árabe.

Fëll percebeu, quase inconscientemente, que Mr. Akhmeed estava preocupado e que, enquanto voltava a se acomodar, não conseguia disfarçar a irritação que sentia; ele resolveu, portanto, ser afável.

O jantar veio. Fëll deu um olhar desconfiado para as pastinhas e saladas (tabule, humus, etc.). Preferiu ficar no peito de frango e fettucine ao molho de cogumelo.

Depois de dar um gole em seu drinque à base de tequila, Mr. Akhmeed passou imediatamente ao assunto.

— E então, Mr. Fëll, temos algum avanço?

Fëll assumiu uma postura de atenção, como se acabasse de se lembrar do que tinha ido fazer lá. Examinou o outro com um olhar de piedade. E paradoxalmente, também compreensão.

— Não, nenhum avanço.

— Quer dizer que não obteve nada?

— Pouca coisa, Mr. Akhmeed.

O árabe abriu a boca surpreso e a fechou novamente.

— Não... não pode ser sério — ele gaguejou. — Isso não é verdade!

— Receio que sim, Mr. Akmeed.

— Isso é inadmissível! Era só o que faltava — disse Mr. Akhmeed num cochicho.

Seus olhos censuraram Fëll, que respondeu se desculpando:

— Não existe impedimento legal que impeça uma pessoa de usufruir sua liberdade. Seria bom se tudo fosse resolvido num estalar de dedos. Mas as coisas não são assim. Temos que ir com calma. Tentar alcançar todas as metas de uma só vez é a melhor maneira de não alcançar meta nenhuma.

— Está dizendo, então, que não temos nada?

— Até agora não, Mr. Akhmeed. Mas logo teremos... se soubermos esperar.

O árabe manteve a cabeça baixa. Seus ombros tremiam.

— Esperar — disse em tom excitado. — Não, eu não vou esperar. Já esperei demais. Quero resolver esta questão o mais rapidamente possível.

A sua voz era baixa, suave, e um pouco perigosa.

— Tudo que aconteceu parece um incompreensível e desmembrado pesadelo. Pobre Priscila!

Priscilla era o nome da irmã de Mr. Akhmeed. Irmã esta que fora casada por dois anos com Monsieur Blancheé. Ela estava morta, e os familiares queriam a punição do pianista, a quem atribuíam a autoria do crime.

— Temos que acumular provas — dissera Fëll, na ocasião. — Provas reais. Provas infundadas, nas circunstâncias atuais, não ajudariam nada. Temos que ver as coisas com clareza, e então agir com objetividade, rapidez e consciência.

— Vi o senhor esta manhã com uma moça — acrescentou Mr. Akhmeed. — Conhecida sua?

“Está falando de Miss Saunders” pensou Fëll.

— Achei que o senhor não fosse dado a esse tipo de flerte, Mr. Fëll. Ainda mais quando deveria manter os olhos focados em algo mais importante. Algo para o qual nós o contratamos.

Fëll enrubesceu.

— Não estive flertando com ela. Acontece que eu me interesso por gente.

— Se interessa por gente... Devia se interessar por Monsieur Blancheé!

— Mas estou interessado nele! Talvez não saiba, mas Miss Saunders já foi enteada dele.

— Enteada?

— Quando conheceu sua irmã, Mr. Akhmeed, ele ainda morava com a segunda esposa, uma mulher de temperamento extremamente liberal. Essa mulher tinha uma filha, fruto de um casamento anterior.

— Sim, eu sei; nós fizemos nossas próprias pesquisas sobre ela. Mas não apuramos que o sobrenome dela fosse Saunders.

— Pois era.

— Acha que essa moça pode nos ajudar, seja como for?

— Creio que sim.

— Não é uma indicação um pouco vaga demais?

— Talvez, mas já é o primeiro passo.

— Sim, mas não me convence. As coisas não podem continuar assim, não podem! — exclamou Mr. Akhmeed, violentamente.

Um garçom se aproximou com uma garrafa de champanhe dentro de um balde de prata.

— Não! — resmungou Mr. Akhmeed, deixando o pobre garçom espantado.

— Eu aceito — disse Fëll, solícito.

Depois de servir a bebida, o empregado fez uma coisa curiosa. Entregou um envelope azul-claro, com letra floreada, ao detetive. Por uma fração de segundos, este mostrou uma expressão muito humana de incredulidade.

— Com os cumprimentos de Madame Reyngall — disse o garçom, afastando-se.

— Ora! Vejam só! — exclamou Mr. Akhmeed, com desprezo. — Flertes, recadinhos à mesa... O que está acontecendo, afinal?

— Posso lhe garantir que nem mesmo eu sei — disse Fëll, bastante preocupado.

Dentro do envelope, um papelzinho dizia o seguinte:


“Preciso conversar com o senhor. Venha à cabine 8A, categoria F.

 

Stephanie Reyngall”


Fëll procedeu com muita cautela, e examinou melhor o bilhete, mas não descobriu nada de novo.

— Então?

— É um completo mistério. Leia.

O árabe deu uma lida, resfolegando e grunhindo com violenta desaprovação. “Oh!” disse. Mas falou em um tom que revelava desapontamento.

Então, gesticulando como se espantasse um inseto incômodo:

— Tanto faz; isto não vem ao caso aqui — rosnou baixinho. — O que importa é que o senhor solucione o meu problema. Eu digo mais... Meu avô era um conservador de hábitos rigorosos. Quando fazia uma promessa, ele ia até o fim, haja o que houvesse. Eu... aqui... à sua frente... prometo uma coisa: O assassino não vai se safar. Quer o senhor faça alguma coisa, quer não.

Fëll ficou envergonhado, pois de repente ele se sentiu como um estudante recebendo uma repreensão disciplinar.

— Às vezes as coisas correm em círculos. Não dá para fazer muita coisa a essa altura dos acontecimentos.

— O que... o que significa?

— Significa que o ódio pode obscurecer o julgamento. Eu sei que o senhor deseja que se faça justiça. Acontece que os jurados só julgam o que podem ver. Não podemos manipular o sistema legal.

Mr. Akhmeed começou a tamborilar nervosamente com os dedos.

— Pois eu andei observando o canalha. Ele parece um tubarão. Fica o dia todo aí, dando giros e mais giros pelo navio. Tem que continuar investigando, Mr. Fëll. Continue analisando as pistas, já que é o que nos resta a fazer. A situação ficará mais complicada a cada hora, se não fizermos nada! Temos que terminar com isso, de uma maneira ou de outra. O senhor não tem ideia de com quem estamos lidando. Havia provas abundantes de sua infidelidade. Mas Priscila ia aguentando, cega e surda a tudo. Até que um dia ele enfiou a cabeça dela no fogão a gás. Aquele homem matou minha irmã, e vai matar de novo.

Fëll suspirou. Ele sempre era contratado quando todos os demais métodos comprovados haviam falhado e as pessoas tinham que procurar, em pungente desespero, por uma solução tradicional.

— Se assim for, nossa tarefa será facilitada; poderemos ter a ajuda do maior defeito de um criminoso.

— Que defeito?

— A arrogância — sentenciou Fëll. — Um criminoso que teve sucesso num assassinato geralmente tende a agir da mesma maneira na vez seguinte. Falo por experiência.

Alim Akhmeed disse laconicamente.

— Fique certo de que saberei recompensá-lo. Mesmo que isso signifique uma profunda sangria em minha conta bancária.

Aquilo significava que o árabe continuava determinado. Fëll teve de se conter para não fazer uma careta. Aquela era uma péssima ideia. Ele sabia disso. Sentia isso. Apesar disso, se controlou. De uma forma ou outra, qualquer coisa que dissesse seria inútil.

 

Fëll parou diante da porta 8A, respirou fundo e, erguendo o punho direito, bateu. A porta se abriu, e uma mulher de aproximadamente 35 anos, vestida num roupão, pôs a cabeça para fora.

— Madame Reyngall? — perguntou Fëll.

— O senhor chegou bem na hora. Entre.

Fëll entrou; olhou distraidamente pelo camarote e notou que havia mais gente ali. Primeiro viu um rapaz de costeletas, de rosto encovado e boca fina. Apertando sua mão (o que denunciava a existência de um grau de intimidade), estava uma moça, que se vestia visando o conforto.

Foi a esta última que Madame Reyngall se dirigiu:

— Podem sair um pouco, Elsie? Eu e este cavalheiro temos alguns assuntos para discutir.

— Claro, Madame.

Os dois jovens olharam para Fëll. Embora desconcertados com o pedido, eles atenderam obedientemente e se retiraram.

— Minha camareira e seu namorado — disse a mulher, como que respondendo à dúvida que pairava na mente do detetive.

— Ah...

Edmund Fëll encarou Stephanie Reyngall. Por baixo do roupão ela usava um short branco, com as pontas da blusa amarela enfiadas dentro do cós. Ela piscou, com suas pálpebras tremulando.

— O senhor é Edmund Fëll, não é? — perguntou Stephanie.

— Ao seu dispor, Madame.

— Por acaso, sabe quem eu sou?

— Sim. Já vi sua foto estampada num exemplar do Yorkshire Post.

Stephanie levantou a cabeça, e em seus olhos havia um brilho repentino.

— Fique à vontade, Mr. Fëll — disse em tom de comando.

Ela foi até a lareira; em seguida acomodou-se, indicando com a mão o lugar onde Fëll deveria se sentar.

Stephanie Reyngall foi direto ao ponto.

— Sou franca em dizer que nunca ouvi falar no senhor. Foi o Dr. Richard quem mencionou o seu nome e me deu algumas referências sobre o senhor.

Fëll inclinou a cabeça.

— Esse Dr. Richard é seu amigo?

— Na verdade, não. Ele esbarrou em mim no Promenade Deck. Pessoas presas num navio no meio do mar tendem a se conhecerem com mais rapidez do que se estivessem em terra firme.

— Tem toda razão, Miss.

Alguns segundos se passaram até que Fëll falou novamente.

— A que devo a honra desse gentil convite?

Stephanie Reyngall olhou para ele com olhos vermelhos e não disse nada, mas estava com o lábio inferior contraído.

— Não é um assunto fácil de abordar.

— Temos tempo.

Roçando o pezinho no tapete de padrões entrelaçados, ela disse:

— Preciso que o senhor fale com meu ex-marido, Mr. Fëll! Preciso que o senhor o faça voltar para mim.

— Quem é seu ex-marido?

— Antoine Blancheé.

Fëll se recuperou surpreendentemente rápido do susto, recostou-se na cadeira, e perguntou:

— Monsieur Blancheé, o pianista?

— O senhor o conhece?

“Mais do que imagina”, pensou Fëll; mas o que disse foi:

— Tenho ouvido falar nele.

— Nós nos amávamos — disse Stephanie Reyngall. — Tínhamos tantas coisas em comum. Antoine me amava. Sim, me amava... até ser enlaçado por aquela mulher.

— Está se referindo a Madame Saunders?

— Saunders... Por favor, não pronuncie este nome!

— Como ela era? Jovem? Gorda? Magra?

— O senhor quer mesmo que eu lhe diga? Giselle era louca. Uma mulher emotiva e passional, cada vez mais depressiva. Quando se divorciaram, ela casou-se com um russo chamado Dimitri. Giselle teve que nadar furiosamente para manter a cabeça erguida acima do mar de desgraça que assolou a vida dela.

Stephanie falava calma e pausadamente, mas era possível sentir a sua raiva.

— Pois eu tenho um conselho para a senhora — respondeu Fëll. — Esqueça isso, Madame. Esqueça e volte para casa.

A voz de Stephanie falhou, e Fëll observou a mulher normalmente composta mordiscar o lábio.

— Esse argumento não foi muito persuasivo, Mr. Fëll. Pela maneira como uma pessoa fala, dá para dizer se ela está falando sério ou tentando ser evasiva. Mas o senhor... acredito mesmo que o senhor esteja brincando.

— A senhora se engana. Há momentos em que é melhor tirar o time de campo, por assim dizer.

— Isto é pior ainda!

Ela colocou as mãos nos quadris.

— O senhor não está se esforçando para me entender. Antoine e eu ficamos anos sem nos ver. Para mim, a vida não é algo que eu vivo, mas algo que eu suporto. Não posso mais ficar longe dele. Eu quero trabalhar com ele e estar com ele. Antoine é meu marido. Não tenho mágoa, não tenho rancor, não estou atuando e nem me fazendo de vítima. Eu já o perdoei. Perdoei liberalmente, sem levar em conta todo o dano que me causou.

— Todos nós queremos que o amor brote, nasça, apareça e, de preferência, dure. Mas nem sempre é assim, Madame. Além disso, há muitos outros homens no mundo. A senhora é saudável, goza uma saúde de ferro. Deve haver outros pretendentes, não deve?

— Mas nós nos amávamos... e eu já me decidi! Não acha que é um argumento definitivo?

— As decisões condicionadas pelo sentimento muitas vezes entram em conflito com a razão. Bata a poeira, Madame! Deixe o passado para trás; concentre-se no futuro.

— Não, nada disso!

Ela não gritava. Muito pior: falava baixo, e os olhos pareciam dardejar fogo.

— Se nós tentarmos, eu sei que ele voltará para mim. Sim, eu sei. Antoine

— Não acha que está sendo otimista demais?

— Claro que não. Eu conheço Antoine. O senhor cede. Eu cedo. Por favor, me ajude! Não tenho mais a quem pedir. Sei que ele ainda me ama.

— Mesmo agora? — perguntou Fëll.

— Não sei do que está falando. Por que ele não me amaria?

Fëll inclinou a cabeça para um dos lados e estudou-a pensativamente.

— Muitos fatores podem influir na intensidade do amor de um homem por uma mulher.

— Antoine errou, eu sei, mas ele é um homem decente. Sempre procurou o que é bom nas pessoas. Sempre soube como lidar com qualquer contratempo. Giselle vampirizou a mente dele. Mas o que passou, passou. Sei que ele voltará para mim se souber que eu ainda o quero.

Fëll fez um gesto vago com a mão.

— Ah, mas até as pessoas mais lúcidas perdem a noção das coisas quando estão apaixonadas. Talvez a senhora sofra uma nova decepção.

— Já caí muitas vezes em minha vida. O que importa não é quantas vezes nós caímos, mas quantas vezes nós levantamos.

— Sim, claro. O que eu quis dizer é que é normal querer controlar tudo o que acontece em nossa vida. Mas não dá para fazer isso.

Antes que Stephanie tivesse tempo de responder, alguém bateu à porta. Era o garçom de serviço de quarto.

— Eu trouxe Margaritas para dois, como requisitado.

Fëll bebeu um gole e pôs o drinque sobre a mesa com tampo de vidro.

— Permita-me dizer primeiro algumas coisas, Madame.

— Sim, o que é?

— Em primeiro lugar... e estou quase cem por cento seguro a esse respeito... o fato é que Monsieur Blancheé assassinou sua terceira e última esposa.

— E como o senhor chegou a essa conclusão? Que tal uma prova para apoiar essa afirmação?

— Por enquanto, não posso. Eu lhe contarei quando tudo estiver acabado. Se voltar para ele, não tem medo de que ele possa feri-la?

— Pode ter certeza de que isso não vai acontecer. Sempre penso com antecedência nos perigos que uma situação pode trazer. Conheço Antoine... sei que ele não é um assassino.

— Talvez não seja, Madame. Estou apenas tentando trazer o fato de que ele foi acusado do assassinato. Posso até ajudá-la. Mas não prometo resultados imediatos.

— Não dou a mínima importância para prazos.

Ele levantou-se, nem muito depressa, nem muito devagar.

— Às vezes é melhor conservar a dúvida do que enfrentar a dor da verdade. Em todo caso, como estou habituado a desatar nós complicados, vou checar os fatos e libertar a senhora dessa terrível ansiedade. Já lhe dei o meu conselho. Não posso fazer mais do que isso.

Ela fitou Fëll com os olhos radiantes e o coração cheio de alegria, gratidão e esperança.

— Oh, graças a Deus. Obrigada.

Seu sorriso quase chegava a exprimir triunfo.


3.

 


Fëll bateu. Finalmente a porta foi aberta.

Apareceu um homem alto, de nariz aquilino. Por alguns segundos, seu sorriso flutuou entre a familiaridade e o desespero.

— O que deseja?

Antoine Blancheé tinha uma face marcante, distinta e elegante, suave e sem rugas, ao mesmo tempo severa e significativa. Era considerado charmoso e talentoso pelas fãs e admiradores. Embora, a seu jeito, tivesse um ar um pouco rebelde, conduzia-se com a distinção de quem sabia lidar com os aborrecimentos da vida.

— Posso falar com o senhor um instante?

Monsieur Blancheé estreitou os olhos. Depois de permitir que o detetive entrasse, voltou-se para ele, com seus olhos verde-acinzentados, medindo-o numa mirada rápida mas cuidadosa.

— Quem é o senhor? Não ocupa um cargo público mal remunerado, ocupa?

— Não, Monsieur — respondeu Fëll. — Sou um detetive.

— Ah, um homem de mentalidade criadora.

Monsieur Blancheé percorreu o perímetro da cabine. Serviu um copo de uísque de uma garrafa sobre uma mesa lateral.

— Aceita um drinque?

— Não. Danke.

Fëll sentou-se.

Sentia-se cansado e, após um dia de ida e vindas, começava a afundar num mau-humor irresistível.

À luz da lua, que entrava obliquamente por uma vigia, percebeu que Monsieur Blancheé parecia examiná-lo mais atentamente.

— O senhor é Edmund Fëll, não é? Posso adivinhar o que deseja de mim. Os jogadores têm um ditado: Usar as cartas do jeito que chegam às mãos.

— Perdão — o detetive piscou várias vezes.

— Francamente, estou um pouco decepcionado — disse Monsieur Blancheé. — O senhor dá uma gravidade inesperada a um caso que já foi encerrado.

Falava de modo apressado e irregular. Acendeu o fósforo e deu uma baforada em seu charuto escocês. Um sorriso diabolicamente divertido surgiu em seus lábios.

— O senhor está atrás de mim, não é?

Fëll pareceu surpreso com a pergunta.

— Como? O que disse?

— Ora, Mr. Fëll, vamos ser francos. Eu sei quem é o senhor. Responda-me só uma coisa: quem é que está por trás dos panos? Quem é que o contratou para me seguir?

Fëll limitou-se a baixar a cabeça.

— Ah! Vejo que ficou chocado. Vai haver um rebuliço quando a opinião pública tomar conhecimento disso. Imagine a notícia: “Pianista mundialmente famoso é alvo de investigação ilegal”! Será exposto ao ridículo e ao escárnio, Mr. Fëll. Mas relaxe, não sou tão perverso. Estou só tentando fazê-lo compreender a estupidez que está cometendo. Eu sei de todos os seus movimentos. Isso é coisa de Alim, não é? Será possível que ele não tenha um pouco de coerência e de bom senso?

Fëll olhou para o francês.

— Acho que ele só pensa na perda que a família sofreu.

— Ainda aquela suspeita maluca de que eu matei Priscila? Mesmo isso não justifica uma atitude tão extrema. Pôr um detetive em meu encalço! Eu os entenderia melhor se eles viessem falar comigo pessoalmente ou quisessem me ver. Mas essa tática de me espionar, só esperando que eu saia da linha ou cometa algum desatino! É imoral. O que essa gente pretende conseguir com essa palhaçada?

— Talvez justiça.

— Que piada! O que o senhor está dizendo é bobagem. Mas isso não importa. Infelizmente, o mundo é assim: triste, feio, malfeito, desencorajador. Somos continuamente atacados por acusações internas e externas, acusações que nos depreciam como seres humanos. O mais difícil é que sempre existe alguém disposto a tirar aquilo que você tem.

Monsieur Blancheé estremeceu. Seu rosto retratava impaciência, mas a voz continuava firme e tranquila.

— Eu não matei minha esposa. Tudo o que disserem além disso é especulação infundada. Se tiver paciência de me ouvir, explicarei tudo, de fio a pavio. Estão me usando como cobertura para o verdadeiro assassino.

— Verdadeiro assassino? Quem?

— Não tenho a menor ideia — respondeu Monsieur Blancheé. — Nem consigo... imaginar.

— Se não for impertinência, pode me contar o que aconteceu no dia do assassinato? Conte-me o que puder... mesmo que não se lembre direito, diga tudo o que se lembra.

— Não estou entendendo muito bem aonde o senhor quer chegar, Mr. Fëll, mas vou saciar a sua curiosidade. Eu combinara com Priscila para irmos ao teatro. Um pouco antes de sair, encontrei-a chorando na sala de estar. “Qual o problema?” perguntei. “Nada. Está tudo bem” disse ela. “Aconteceu algo?” insisti. “Não, nada” disse ela. “Podemos ir? Temos que nos apressar, se não vamos perder o primeiro ato” disse eu. Nisso reparei que em seu pulso havia marcas de machucadura. “O que foi isto?” “Está tudo bem, Antoine. Não foi nada”. Quando íamos saindo, no entanto, ela começou a se queixar de dor disso e dor daquilo, algo que nunca havia feito antes. Falei que, se o caso era esse, não iríamos a lugar nenhum, mas Priscila garantiu-me que ficaria bem e que eu deveria ir, já que tinha comprado antecipadamente as entradas. Hesitei, mas diante de seus argumentos, fui assistir à peça. Quando voltei, pus o veículo na garagem e subi. Procurei Priscila e não a encontrei; depois fui para meu quarto. Troquei de roupa e fui para a cozinha. Descobri que a porta estava trancada. Forcei um pouco a maçaneta e bati, mas ninguém respondeu. Foi nesse momento que saí correndo e chamei meu mordomo. Foram vários minutos para derrubar a porta. Do lado de dentro, o cheiro do gás era quase insuportável. Estendido no chão, jazia o corpo de Priscila.

— Bitte — Fëll interpôs uma rápida pergunta. — O seu mordomo é um homem de confiança?

— Inteiramente.

— Mesmo estando em casa, ele não tinha percebido o desaparecimento da patroa?

— Priscila não havia desaparecido. Ela estava lá... morta... por asfixia.

— O senhor não tentou espiar pelo buraco da fechadura, Monsieur Blancheé?

— Tentei sim — respondeu Antoine Blancheé de imediato. — Mas eu não pude ver nada. A chave me impediu.

— A luz estava acesa?

— Estava.

Fëll sacudiu lentamente a cabeça.

— Conforme deve saber, a investigação de uma cena de crime é o ponto de junção entre a ciência, a lógica e a lei. Pelo que consta, em seu julgamento, o senhor defendeu a tese de suicídio.

— Sim, foi isso mesmo.

— E com base em que evidências?

Monsieur Blancheé fez uma pausa. Não havia traços de malícia nele. Somente tensão e seriedade.

— Ela tinha por acaso mostrado sinais de que iria se matar?

— Priscila andava insatisfeita há tempos. Acho que isso vale para alguma coisa, não vale?

— Agora, Monsieur, diga-me por favor onde foi que a conheceu.

— O senhor é meticuloso, hein? Não deixa escapar nada.

— Costumo explorar todas as possibilidades.

— Conheci Priscila durante uma turnê no Egito.

— Nessa época o senhor já estava em seu segundo casamento.

— Justamente.

Fëll balançou a cabeça, como se essa resposta elucidasse algum mistério. A expressão de seu rosto modificara-se de um instante para outro. Levantou-se e anunciou:

— É uma história e tanto!

— De qualquer forma, foi exatamente isso o que aconteceu.

— Retratou tudo de forma muito apropriada, Monsieur. Embora... com todo o respeito, para mim isso soe um pouco vago.

Antoine Blancheé se virou com os olhos estreitados de ódio.

— Pois bem. Qual é a objeção? O que o senhor vê é o que eu sou. Sem mistérios a ser solucionados. Sem segredos. Sem mentiras. Eu não a matei. Farei o que for necessário para provar isso.

— O que for necessário?

Monsieur Blancheé ficou imediatamente desconfiado.

— O que o senhor sabe que eu não sei.

— O que o faz pensar isso?

— O senhor parece saber mais do que eu. E, pelo jeito, gosta disso.

— Eu apenas presto mais atenção — disse Fëll humildemente. — Em todo caso, Monsieur, não é por causa disso que vim aqui.

— Ah! Não?

— Vim porque Madame Reyngall quis que eu viesse.

Monsieur Blancheé reclinou-se para trás, demonstrando surpresa. A resposta foi imediata.

— O senhor falou com... Stephanie?

— Sim.

— E onde ela está?

— Neste navio.

— Suponho que esteja querendo brincar comigo.

— De forma alguma.

O francês manteve-se calado, ainda que o episódio lhe causasse temor e indignação.

— O senhor não parece muito animado — comentou Fëll.

— Eu nem sei o que pensar! Há anos que eu não tenho contato com Stephanie. Quando nos casamos, imaginávamos que teríamos uma vida cheia de amor e de momentos agradáveis. Mas o compromisso com o nosso casamento foi enfraquecendo com o tempo, e nós parecíamos estar nos afastando um do outro. Compromisso envolve esforço e abnegação. É preciso estar disposto a abrir mão de nossas próprias preferências para agradar o cônjuge. Algo que se tornou impossível para mim, já que eu sempre estava entretido com minha agenda de shows e gravações. Eu percebi que Stephanie estava emocionalmente distante de mim e me tratava com frieza. Foi nessa época que conheci Giselle.

— Isto é, Madame Saunders!

— Sim.

Monsieur Blancheé ergueu o olhar, com raiva e frustração. Em pensamento, vislumbrou o rosto de Stephanie, o oposto do que ele era. Do que ele havia se tornado.

— Eu daria tudo que tenho se pudesse me redimir — acrescentou, mais devagar. — Soube que Stephanie foi cortejada por diversos candidatos nos anos que se seguiram ao nosso rompimento.

— Importa dizer que permanece sozinha.

— O senhor, então, veio com esse propósito. Convencer-me a reatar com minha ex-mulher!

— Eu não diria reatar, mas interceder para que pelo menos fale com ela. Contanto que queira fazê-lo, claro.

— Quero e o farei, já que é o que ela deseja. Temo, porém, que seja tarde demais para uma reconciliação.

— Suponho que caiba aos dois juntos decidirem isso.

— Além do mais — emendou Monsieur Blancheé —, não creio que seja a melhor solução.

Fëll deu de ombros.

— Compreendo.

Monsieur Blancheé passou uma das mãos pelo centímetro de punho da camisa, certificando-se de que o tecido estava alinhado.

— Bom, eu tenho mais coisas a fazer. Se puder me dar licença, fui convidado para uma breve apresentação no Salão Rendez-Vous.

— Perfeitamente, Monsieur — respondeu Edmund Fëll, retirando-se.


4.

 

Monsieur Antoine Blancheé partiu para a vila de pescadores, às oito horas, na manhã seguinte. Stephanie Reyngall, parada na popa do navio, acompanhou com o olhar o táxi, desaparecendo na multidão. Ela suspirou, inclinou-se contra o parapeito da varanda e olhou para o mar.

Edmund Fëll também resolveu fazer um passeio, no museu Bait al Zubair, onde um bom acervo sobre a cultura local contava a história da população de Omã, seus costumes, roupas e armas. Turistas lotavam o lugar, andando vagarosamente para todas as direções.

Quando saiu do museu, um casal de jovens tomava um táxi e convidou Fëll para seguir junto. Foi só depois de embarcar que o austríaco lembrou-se dos dois: era o mesmo casal que ele tinha visto na noite anterior no camarote de Madame Reyngall. O rapaz com costeletas havia nascido em Gunsbach, na Alsácia; era alto, de cabelos louros e olhos verdes. Sobre o nariz, tinha uma série de sardas marrons. Já a namorada era uma moça com pouco mais de vinte e cinco anos, olhos grandes, com cabelos negros um pouco longos e em desalinho; usava um suéter cor-de-rosa e uma saia reta verde-escura.

— Meu nome é Elsie. Elsie Wexster — disse ela.

— E eu sou Graig Butscher — disse o rapaz.

— Graig vai formar-se em Fisioterapia pela Universidade de Stanford.

Fëll também se apresentou e a partir daí a conversa se tornou mais descontraída.

— Vimos o senhor, ontem à noite, com Madame Reyngall — continuou Elsie. — Conte-me sua impressão sobre ela.

A voz dela era cordial e afetuosa.

— É uma mulher muito acessível — disse Fëll.

— Escutou essa, Graig. Ele diz que Madame Reyngall é acessível!

— A senhorita parece não gostar muito dela, Miss.

— Sim, é verdade — respondeu Elsie, um tanto bruscamente. — Eu a odeio. Ela é a mulher mais mesquinha, vulgar e mandona que existe. Às vezes tenho vontade de esganá-la. Esganá-la assim...

— Elsie! — interveio Graig. — Não seja tão mal-agradecida. Não se esqueça de que ela já fez muita coisa por você.

— Humpf!

— A senhorita trabalha há tempo para ela?

— Muito, muito tempo. Meus irmãos dizem que eu sou louca por permanecer nesse emprego. Dizem que só eu mesma para aguentar tanta humilhação.

— Seus irmãos morrem é de inveja. É por isso que falam essas bobagens.

Sempre simpático, Fëll gentilmente trocou de assunto.

Desceram num mercado onde se vendiam especiarias, joias e peças em prata. Enquanto o jovem casal se embrenhava entre as barracas, Fëll viu uma dama de chapeuzinho vermelho passar por ele. Logo atrás dela, um homem a seguia todo empertigado.

O detetive não pôde deixar de reconhecê-los. Era Madame Goulborn e o filho... só não conseguia lembrar-se do nome dele.

Madame Goulborn não se deu por achada, mas o filho, assim que viu Fëll, dirigiu-se em sua direção, erguendo educadamente o chapéu.

— Bom dia — disse ele.

Fëll examinou-o por um instante: um homem de boa estatura, olhos inquietos e com a boca constantemente crispada numa careta sarcástica.

— Guten Morgen!

— O senhor não deve me conhecer. Sou o Dr. Richard Goulborn.

Antes que Fëll pudesse dizer qualquer coisa, o Dr. Richard virou-se e, com voz vibrante, gritou:

— Mamãe! Venha até aqui!

Madame Goulborn parou ao ouvir o nome sendo chamado. Usava um tailleur cinza com sapatos de salto alto e pouco confortáveis. Quando viu Fëll, seus olhos se iluminaram e ela respirou profundamente.

— Oh! — exclamou, acenando os braços. — Vejam só! É Mr. Fëll!

— Mamãe é uma grande admiradora sua.

— Sehr erfreut, Madame! — disse Fëll, inclinando-se.

— Oh! Que emoção — disse Madame Goulborn, com entusiasmo. Ela ajeitou a bolsa a tiracolo e parou à sua frente. — Quando estivemos em Paris, o Marquês de Carthew elogiou muito o seu trabalho. Fico honrada de finalmente tê-lo conhecido.

Fëll acenou com a cabeça.

— É muita bondade.

— O senhor é um herói.

— Bem que gostaria de ser, Madame. Mas, na vida real, não há heróis nem heroínas. Somos todos personagens comuns.

Ela olhou para o filho e suspirou:

— Ele não é encantador, Rich?

O Dr. Richard levantou um lado da boca em um sorriso irônico.

— Certamente, mamãe. Certamente.

— Nunca achei que um detetive fosse dado a viajar por aí. Espere... — a boca de Madame Goulborn se entreabriu. — O senhor está conosco no navio porque tem um novo caso, não tem?

— Para dizer a verdade, sim.

— Podemos saber do que se trata?

— Mamãe! — advertiu o filho. — Pare de bisbilhotar a vida dos outros. Isso se chama fraqueza de caráter.

— Não, tudo bem — disse Fëll. — Estou investigando um assassinato.

— E acha que o assassino está a bordo?

— Isso é altamente provável.

— Oh! — A voz da mulher morreu em meio a um som queixoso que expressava um medo indisfarçável.

— Mas nós não corremos nenhum risco, corremos?

— Não, doutor. Risco nenhum.

— Talvez o senhor tenha razão — respondeu Madame Goulborn. Ela mordeu o lábio inferior e, em seguida, disse: — Mas é preferível não contarmos com essa hipótese. Um assassino furioso pode atacar qualquer um que apareça em seu caminho.

— Não este — sorriu Fëll. — Não se preocupe com isso, Madame — disse, em tom tranquilizador. — Tudo vai dar certo.

— Calma, mamãe. Não importa o que aconteça, estarei lá para protegê-la!

Fëll levantou as sobrancelhas.

— Parece um homem de atitudes práticas, doutor.

— É como temos que ser, não é? Se a gente não aprender a praticar a ação correta, perde a liberdade, perde a autonomia, torna-se escravo das circunstâncias e da ajuda dos outros. Torna-se um dependente da vontade alheia. Perde o valor pessoal. É graças à vontade que sobrevivi, e não pretendo abrir mão disso.

— Acho que devemos ter conhecidos em comum.

— Ah, é? Quem?

— Madame Reyngall — disse Fëll.

— Madame Reyngall? Confesso que não me lembro de quem seja. Eu estou, francamente, um pouco desorientado porque tenho dormido pouco.

— Coitadinho — ajuntou Madame Goulborn. — Rich tem tido péssimas noites de sono. Desde o dia do acidente, não é mesmo, Rich querido?

— Eu lamento... não sabia...

— Oh! Não é o que está pensando... a coisa não foi comigo — disse o Dr. Richard. — Foi minha irmã... Ela escorregou no tapete e levou um tombo. Nada grave.

— Mas poderia ter sido, Rich — disse a mãe. — Se você não estivesse lá, e não tivesse ligado logo para a emergência! Você praticamente salvou a vida de Susan, não foi?

Ele pareceu genuinamente surpreso pela sugestão.

— Só fiz o que tinha que ser feito, mãe. Quantas vezes tenho que lhe dizer isso? O que você esperava que eu fizesse?

Madame Goulborn sacudiu a cabeça; parecia contrariada.

— Está bem, filho. É que achei aquilo tão... heroico.

Fëll examinou o doutor atentamente. Aquela mudança quase imperceptível na expressão de seu rosto... O modo como respondera à mãe...

Interessant! Sehr interessant...

O que será que havia por trás daquilo?

De repente, Graig e Elsie estavam de volta, e todos seguiram seu caminho. Os Goulborn em busca de alguns suvenires e Fëll e seus companheiros rumo à mesquita de Al Lawatiya, com seu exótico e vistoso minarete azul.

— Oh! Que lugar lindo — disse Elsie, com veemência.

— É um lugar como outro qualquer — respondeu Graig.

— Há sempre um lado oculto. Em tudo. E em todos. Não é mesmo, Mr. Fëll?

— Creio que sim, Miss.

Após o almoço, Fëll estava parado à porta que levava ao terraço do Golden Star quando, pelo tombadilho, apareceu Stephanie Reyngall. Usava uma saia azul-marinho e um elegante chapéu de feltro, com aba mole, que emoldurava o seu rosto.

— O capitão diz que a previsão do tempo é excelente — anunciou ela, olhando para o céu.

Fëll fez uma reverência:

— Pelo jeito, é mesmo — concordou. Deu uma piscadela e disse: — Hoje de manhã encontrei um amigo seu, Madame.

— Quem?

— O Dr. Goulborn.

— Dr. Goulborn?... Ele não é meu amigo. Eu me recuso, rigorosamente, a falar sobre esse homem.

— Por quê?

— Não gostei da cara dele. No início ele foi ridiculamente formal! Depois começou a dar em cima de mim. Não suporto esse tipo de gente.

Ela mordeu o lábio como se estivesse tentando reprimir palavras que lutavam para sair.

— O senhor fez o que eu pedi? — perguntou por fim.

— Fiz, Madame.

— Pois não parece. Antoine evitou-me a manhã toda e, nas vezes em que cheguei perto, saiu correndo como se eu fosse uma assombração. Às vezes tenho vontade de gritar de frustração.

— A senhora precisa exercer o autodomínio — disse Fëll, sorrindo. — Nem redenção nem amor podem ser conquistados. São coisas que se obtém livremente. A bem dizer, Monsieur Blancheé não me deu uma resposta concreta... talvez ainda esteja analisando o que eu disse a ele. Há coisas, seja dito desde já, que não se resolve assim, de uma hora para outra.

— O senhor acha mesmo?

Fëll fez um gesto afirmativo.

— Acho, Madame.

Cerrando os dentes, Madame Reyngall ergueu o queixo e virou-se de modo brusco.

— Como... como foi que ele reagiu quando o senhor falou sobre mim?

— Ficou surpreso... ou fingiu ficar.

— Algo... mais?

— Ele disse que ia pensar no caso — mentiu Fëll. Fez uma pausa longa e depois acrescentou: — O que já é alguma coisa!

Ele a viu estreitar os olhos e fitá-lo com uma raiva incontida.

— Antoine disse que ia pensar? Pensar no quê?

— No que a senhora pediu que eu lhe dissesse.

— Acha que ele vai me querer?

— Por que não? A senhora tem dois braços, duas pernas e, o principal, a senhora o ama. Só quero que se lembre do que eu lhe disse.

— Sobre o quê?

— Sobre o crime.

— Mas Antoine não foi formalmente acusado de nenhum crime. Eu li que aquela mulher se suicidou.

— Tem gente que acha o contrário.

— Antoine sabe que eu o amo e que faria qualquer coisa para ficarmos juntos. Eu me sinto tranquila com o que vier, não porque sou forte, mas porque é parte da vida. Não há nada que eu deva temer. Eu confio em Antoine. E confio em meu coração.

— O coração é traiçoeiro, Madame.

— Eu conheço Antoine. Sei que Antoine não me fará mal.

Madame Reyngall fez um gesto brusco com a mão esquerda.

— O senhor é uma espécie de mágico emocional. Por que está me provocando?

— Não estou provocando — murmurou Fëll, inclinando-se contra a balaustrada da proa. — As pessoas têm uma tendência inata para seguir o caminho largo, que conduz à destruição. Acho que é um dever humanitário alertá-la do perigo.

— Estou disposta a ir a qualquer lugar e fazer qualquer coisa por Antoine. Ninguém o ama como eu o amo.

Ela falava agora com evidente segurança. Havia na sua fisionomia uma exaltação de felicidade, um entusiasmo rígido, fanático.

O seu entusiasmo era tão genuíno que Fëll não pôde deixar de sentir-se sensibilizado.

— Está bem, Madame. Faça como quiser.

— Bem, muito obrigada. É gentil de sua parte dizer isso — respondeu Madame Reyngall. — Isso faz com que eu me sinta imensamente melhor.


5.

 


Stephanie Reyngall havia levado um livro para o jantar, e fingia que estava lendo avidamente. A ilustração da capa mostrava uma garota de olhos negros e profundos, um cabelo igualmente negro, contrastando com a cor de seu vestido de noiva. Embaixo, a legenda dizia:

Meu casamento foi a história da Gata Borralheira. Lá estava eu, naquele lindo vestido de seda, com um grande buquê de crisântemos nas mãos.

Ao ler a frase, uma súbita onda de melancolia invadiu Madame Reyngall. Lembrou-se do próprio casamento... do bufê... dos doces embrulhados em tule com lacinho de fita... tantos anos atrás!

Neste momento, Mrs. Goulborn aproximou-se dela e parou à sua frente. Demorou um pouco para reconhecer quem era.

— Oh, querida! — A velha senhora fez uma careta e estremeceu de modo dramático. — Desculpe-me por atrapalhá-la! Não sabia que estava lendo.

— Não, tudo bem. Em que posso ajudá-la, Madame?

— Será que eu poderia... — começou Mrs. Goulborn, e depois hesitou, surpreendida com a própria ousadia.

— Ah! Claro... Sente-se.

Mrs. Goulborn abanou a cabeça, agradecida. Ela tinha os cabelos totalmente grisalhos, mas usava-os curtos e soltos.

— Obrigada — disse animadamente e deixou-se cair em uma cadeira no lado oposto da mesa. — Perdoe minha indiscrição, mas eu a vi tão só e abandonada! Murmurei para Rich: “Vou lá falar com ela”. E aqui estou eu!

“Já que tem que ser, que seja logo” pensou Madame Reyngall resignadamente.

— Que bom — respondeu, sem muita empolgação.

— Você já veio a Omã antes?

— Sim, um ano atrás.

— Dizem que amanhã vamos excursionar. Oh! Mal posso esperar. Temos que fazer com que o dinheiro gasto nesta viagem valha a pena.

— A senhora deve ser uma aventureira.

Mrs. Goulborn balançou a cabeça com um ar de aprovação total.

— Sou mesmo. Por que iria renunciar às coisas boas da vida? Mas faço tudo com moderação. Rich está sempre me alertando para não maltratar o coração, porque pode haver arritmia... e outras coisas das quais não lembro o nome.

— A senhora e seu filho se dão muito bem!

— Você acha, meu bem? Pena que seja tão raro eu e Rich ficarmos juntos. Tem sido assim há anos. O emprego que ele tem exige muito dele. Vale que o salário é bom. A mulher que se casar com Rich terá tudo do bom e do melhor.

Stephanie sentia-se perplexa. Inclinou-se para a frente, tentando entender o significado daquelas palavras.

— Deve ter muito orgulho dele, Mrs. Goulborn.

— Nenhum outro homem já me deu tanto amor. Meu marido... sabe?... vivia só para os negócios. Negociava o que dava mais lucro. E o pior... queria ter uma vida acima de suas posses. Mas... oh! O que é isso? Que lindo o seu bracelete!

— A senhora gostou?

— Adorei — garantiu Mrs. Goulborn, demonstrando um interesse genuíno. — Deve valer uma fortuna!

— Uns 5 000 euros.

— Que coisa fantástica. Não tem medo de que alguém o roube?

— Não, afinal eu o uso muito raramente... além do mais está no seguro.

— Mas nunca se sabe, não é?

Stephanie Reyngall assentiu, aturdida demais para falar. Havia um tom hesitante na voz quando respondeu:

— É inspirado em um ramo de oliveira, símbolo de paz e abundância.

A velha lançou-lhe um olhar rápido e interessado, que fez Madame Reyngall retrair timidamente o braço.

— De ouro?

— Dezoito quilates.

Mrs. Goulborn sorriu. Por entre suas pálpebras enrugadas apareciam uns olhos cobiçosos.

— Você talvez se espante com o que eu vou dizer — acrescentou ela em seguida —, mas eu sinto, olhando para você, que por trás dessa joia, você parece triste, insegura. Eu posso ajudar em alguma coisa?

Por esta Stephanie não esperava! Olhou para a outra sem saber o que dizer, sentindo-se como uma colegial apanhada em flagrante fazendo uma arte.

— Como... como?

— Oh! Não fique tão envergonhada. Tenho muita sensibilidade para perceber essas coisas. Pode desabafar, meu bem... Não há nenhum mal nisso. Não precisa se apressar. Temos todo o tempo que quiser.

Aquela voz... tão suave... e compreensiva! Talvez aquela velha não fosse o dragão que Madame Reyngall imaginara, afinal.

— Eu devo estar envolvida por algum mal. Chego a crer que estou amaldiçoada.

— Não diga isso, meu bem.

— Vim aqui para restabelecer minha vida... e até agora, nada!

Madame Reyngall se endireitou na cadeira e secou os olhos com um lenço.

— Às vezes tenho uma ânsia selvagem de pular do navio e dar meia-volta antes que seja tarde demais. Sempre fui tão calma, tão autoconfiante! Pela primeira vez em minha vida sinto-me como uma folha soprada pelo vento. Mas... mas não posso recuar agora.

— Recuar do quê?

— Do que vim fazer.

— E o que você veio fazer?

— Vim buscar uma coisa que me pertence.

Houve um momento de pausa, e então Stephanie se pôs às gargalhadas.

— A senhora deve achar que eu sou louca!

— Não, não, querida — Mrs. Goulborn balançou enfaticamente a cabeça, negando. — Tenho certeza que você não é louca.

— Isso não se faz, mamãe. Fez a mulher chorar!

Stephanie Reyngall virou-se ligeiramente. O Dr. Richard, em um paletó azul de poliéster, com gravata, olhava para elas, de pé junto à mesa. Ele sorriu, um sorriso curioso, que a fez sentir-se vagamente desconfortável.

O médico meneou a cabeça em um cumprimento casual e perguntou:

— Posso me juntar a vocês?

— Claro... — murmurou Madame Reyngall.

— Sobre o que estavam falando?

— Ah! Não podemos lhe contar, Rich — disse a mãe, com um laivo misterioso. — Coisas de mulher!

— Coisas de mulher... Sei!

— Nós, mulheres, temos que manter as reservas táticas. Não é mesmo, querida?

— Sim — disse Madame Reyngall, um pouco deslocada.

— Está se sentindo melhor, Rich?

— Céus, mãe! Como a senhora se preocupa comigo...

— O que houve?

— Oh! Rich tem dormido tão pouco ultimamente — respondeu Rebecca Goulborn. — Ontem à noite foi acordado pelo horrível ruído da corrente da âncora sendo erguida.

— Vocês estão numa cabine mais próxima da linha do mar?

— Na verdade, querida, escolhemos uma cabine nos andares inferiores porque era mais barata.

— Nós adoramos o ruído da turbina e das âncoras! — disse o Dr. Richard, com um tom levemente zombeteiro.

— Pena que fique tão afastada das áreas mais populares do navio, como os restaurantes e piscinas! — disse Mrs. Goulborn.

Ela foi interrompida pelo filho, bufando de irritação.

— Mas tem elevador, mamãe.

Mrs. Goulborn ficou em silêncio por um momento e depois disse, entusiasmada:

— Lá isso é!

— Que bom — falou Madame Reyngall com fingida admiração.

— Oh! Não ligue para ela — disse o Dr. Richard. — Ao papel de mãe, Mrs. Goulborn combina o trabalho como enviada especial do Alto Comissariado da ONU para refugiados. Ela já viajou para inúmeras regiões de conflito, como Líbano, Ruanda e República do Congo.

A piada pareceu irritar a mãe, que franziu a testa, chateada.

— Algumas vezes fico espantado com você, filho.

— Por quê?

— Pelas coisas que você diz.

Por uma medida de estratégia, Stephanie Reyngall ergueu o dedo e apontou para uma mesa à direita, onde um homem de monóculo jantava acompanhado de um sujeito gordo e careca.

— Vejam! Aquele ali não é Mr. Fëll?

— Sim... é.

— Ele é casado?

— É solteiro... acho.

— Tenho pena dele — disse Mrs. Goulborn. — Deve ser triste não ter ninguém para amar.

Tomaram algum tempo discutindo, com ar de veteranos, a vida romântica do detetive. Até que, por fim, o Dr. Richard levantou-se, dizendo:

— Que tal a gente dar uma volta por aí, mamãe? Lembre-se de que precisamos cumprimentar aquele casal americano que conhecemos no mercado.

— Você vai ficar bem, querida?

— Vou sim — disse Madame Reyngall.

Os dois se afastaram, deixando a inglesa entregue aos seus próprios pensamentos. Ela sentia um cansaço como se tivesse trabalhado fisicamente por muitas horas, como se uma intensa inquietação se fortalecesse em seu íntimo.

Voltou a refletir em sua situação... de por quê estava no navio... de qual era seu propósito ali.

Se houvesse um modo de resolver o caso! Se houvesse um jeito...

Como que em resposta aos seus pensamentos, uma nova sombra entrou em seu campo de visão. Ela virou a cabeça um pouco aborrecida, mas quando reconheceu quem era pareceu levar um susto tremendo.

— Olá, Stephye!

— Antoine!...

— Não me convida para sentar? — perguntou Monsieur Blancheé, com sua voz aguda.

O gesto de Stephanie foi tão rápido que se verificou antes que o susto paralisasse seu raciocínio.

— Claro.

— Quer dizer que você queria falar comigo... — Ele sentou-se com ar determinado, estudando-a atentamente. — Em recordação dos emocionantes momentos que vivemos juntos, eu suponho.

Ela olhou para ele. Em suas bochechas pálidas surgiu um vislumbre de vermelhidão.

— Que bom vê-lo, Antoine. Estava com... saudades.

— Jura?

— Você sabe que eu não sei guardar rancor.

— Nem mesmo depois do que eu fiz?

— Oh! Eu já esqueci aquilo... Você deve admitir que a vida em si é um prêmio muito bom.

O rosto de Monsieur Blancheé continuou impassível. Passou a mão pela testa.

— Acabei de enterrar minha esposa, Stephye. Sobre o que você quer conversar?

— Poderia começar me falando sobre ela.

— Melhor não.

— Ela era bonita?

— Sim, mas de uma maneira não muito calculada.

— Quem é que a matou? Já tem alguma pista?

— Eu não sei, Stephye... Não sei.

— Por que não me conta, Antoine?

— Contar o quê? Não há o que contar! Por que você está fazendo isso comigo, Stephye? Por quê?

— Que está dizendo, Antoine? Pense, Antoine... Você se lembra como a nossa casa se enchia de risos, gritinhos de crianças, muitas lembranças em comum, muitos segredinhos, muitas histórias e fofocas? Eu o amava, Antoine! E, pelo que sei, você também disse que me amava.

— Ah, é? — disse ele, em tom agressivo. — Não resolve nada relembrar essas coisas... Vamos, deixe o passado para trás. Quem é que lhe garante que eu não estava mentindo?

Stephanie se assustou. Suas feições começaram a se contorcer e era óbvio que dentro de instantes iria desatar em pranto.

Monsieur Blancheé suspirou e, inclinando a cabeça para um lado, estudou-a por um longo momento. Agora se deparava com a possibilidade muito real de ter cometido um grande erro ao vir até ali.

— Eu não quis falar desta forma, querida. Peço desculpas pelo que eu lhe tenha feito e pelos tantos aborrecimentos que causei. Vamos continuar essa discussão mais tarde, está bem? Escute, Stephye. Falo com você daqui a meia hora... no Calypso Deck. Está bom assim?

— Daqui a meia hora? Sim, querido... É claro que sim.

— Combinado, então...

Ele retirou-se. Stephanie riu aliviada. Para si mesma, disse:

— Você é doida, Stephye. Totalmente doida!

Ela experimentou uma súbita e inebriante sensação de felicidade.

 

Edmund Fëll percorreu o trajeto de volta ao seu camarote. A luz da lua dançava na superfície da água num brilho prateado.

Fëll parou, olhou para trás no corredor parcamente iluminado, como querendo se certificar de que ninguém o seguia. O austríaco não entrava num navio havia mais de cinco anos, então, mesmo o menor balanço do navio fazia seus joelhos tremerem.

Chegou à sua cabine. Deslizou o cartão-chave dentro do compartimento, tirou-o novamente e abriu a porta. Olhando em volta, meneou a cabeça e suspirou.

“Que suíte incrível!” pensou Fëll. “É maior do que uma casa.”

Foi lavar-se na pia. Satisfeito, olhou para seu reflexo no pequeno espelho retangular e murmurou:

— Nach getaner Arbeit ist gut ruhn.

Reclinando a cabeça contra uma almofada, sentiu-se cansado e um tanto deprimido. Seus olhos vaguearam pela cabine. As paredes eram pintadas de um tom vibrante, e enfeitadas com quadros de ilhas tropicais, navios e até mesmo cenas simples do mar.

O barulho da água contra o casco era incrivelmente baixo.

Às onze e vinte, foi para o quarto, onde encontrou sua própria cama feita e, como estava muito cansado, se deitou. Eram onze e meia quando apagou a luz.


6.

 

Na manhã seguinte, Monsieur Blancheé acordou assustado, sem noção da hora. Olhando para o relógio, percebeu que eram sete e quinze. O sol despontava no horizonte. O ar estava fresco.

Metido num chambre listrado, tomou o café da manhã e foi para a coberta do navio.

Dois homens descalços, vestidos com longas túnicas brancas, caminhavam ao longo da costa. Antoine Blancheé olhou para eles. Uma corrida pela praia até que faria bem!

Fez menção de ir para a prancha de desembarque, mas um grito o deteve instantaneamente. Monsieur Blancheé parou e virou-se para ver o que estava acontecendo.

Um homem de camisa vermelha e calça branca, usando um crachá da Sea-Litts, veio até ele. Sua face apresentava uma palidez doentia e ele tremia de cima a baixo, parecendo que havia tomado o maior susto de sua vida. Olhou com curiosidade para o francês e perguntou, abruptamente:

— O senhor é Monsieur Blancheé?

— Sou eu mesmo. Tudo bem? — perguntou Monsieur Blancheé e, no mesmo instante, viu que não estava tudo bem.

— Poderia fazer a gentileza de vir comigo?

— Faço o que o senhor quiser, contanto que me diga por que.

— Creio que não posso fazer isso, Monsieur. Mas, se vier comigo, logo vai saber.

— Seja como for...

Mas o homem apenas sacudiu a cabeça, murmurou algo que Monsieur Blancheé não conseguiu entender e se afastou.

Monsieur Blancheé ficou parado por um momento no convés, parecendo perdido e, então, foi atrás do funcionário.

Após descer um andar, o homem da Sea-Litts precedeu-o através de um corredor, segurou a porta de um das cabines, franqueando a entrada do francês. Dentro havia um personagem de bigode, de rosto rosado, de uns 65 anos. Este se levantou e veio até a porta.

— Bonjour — disse Monsieur Blancheé.

O personagem de bigode retribuiu com um cumprimento seco — era o reumatismo que o tornava tão rígido —, virou-se e, sem dizer uma única palavra, voltou para o lugar de onde viera.

— Sinto muito pelo transtorno, Monsieur. Obrigado por ter vindo. Queira sentar-se...

Antoine Blancheé se sentou abruptamente. Olhou ansiosamente para seu interlocutor.

— Quem é o senhor?

— Eu sou o Juiz Warning.

— Muito bem, juiz Warning. Será que o senhor poderia me dizer o que significa isso?

O magistrado olhou-o com toda severidade.

— Queira me desculpar, Monsieur, mas há certas formalidades a serem cumpridas. Consegui seu nome com o comissário de bordo. Preciso de algumas informações.

— Informações?

— Sobre sua ex-mulher, com quem jantou ontem à noite.

— O que deseja que eu lhe diga? Que estamos legalmente separados... e que ficamos sem nos falar durante anos?

— E, ainda assim, o senhor foi até a mesa dela, onde ficou proseando como se fossem bastante íntimos!

— E o que há de errado nisso? Já fomos casados; separamos, mas nunca tivemos uma contenda séria. Não vejo razão para essas perguntas.

— Mas há uma razão.

— Bem, se o senhor tiver a bondade de revelá-la.

O juiz lançou-lhe um olhar arguto e deu um leve grunhido.

— A razão é que essa mulher foi assassinada de madrugada.

O pianista foi dominado por um sentimento súbito de pânico. Seus joelhos tremeram, como se o assoalho tivesse perdido a consistência.

— Assassinada?

— Sim.

Houve um longo momento de silêncio antes que o francês dissesse:

— O que quer dizer com assassinada?

— Que Madame Reyngall foi encontrada morta, esta manhã cedo. Morta com um tiro na têmpora. E assassinato é algo sério. Se alguém se mete nisso, deve estar preparado para suportar as consequências.

— Stephanie... morta...

— Sim.

— Na cabine dela?

— Exatamente.

— O corpo ainda está lá... agora?

— Eu acabei de deixá-lo lá, há mais ou menos dez minutos.

O juiz Warning continuou a fitá-lo, em silêncio, por um longo momento.

— Vê agora, Monsieur, por que estou ansioso por qualquer informação que possa obter? Tenho certeza de que pode surgir uma colaboração frutífera entre nós.

— O que propõe?

— Que o senhor responda a algumas perguntas. Jantou com ela, não foi?

— Não é bem assim. Eu só estive na mesa dela... conversamos...

— E lembra-se do que aconteceu?

— Lembro-me, mas...

— Mas o quê?

— Por que pergunta o quê? Não há nenhum o quê.

— O senhor a viu depois do jantar?

— Por Deus, não!

— Notou ou ouviu alguma coisa fora do comum?

— Não senhor; não notei nada. Estava dormindo.

— Sabe de alguém que tivesse algo contra ela?

— Não senhor. Não tenho a menor ideia.

Ouviu-se uma batida na porta do compartimento. O juiz Warning franziu as sobrancelhas e abriu-a cerca de quinze centímetros.

— O que há? — perguntou, antes de deixar cair o queixo. — Ora, mas se não é meu amigo Fëll!

— Juiz Warning!

A porta se abriu um pouco mais e permitiu que o visitante entrasse. Edmund Fëll conhecia o juiz Warning há mais de vinte anos. Na verdade, desde o dia em que a abjeta mulher de um rajá indiano fora assassinada num hotel em Bad Hofgastein.


Fëll adiantou-se, lançando um olhar vivo e enviesado para Monsieur Blancheé, um lampejo de algo que não era nem benigno nem majestoso.

— Monsieur!

— Mr. Fëll.

— O que veio fazer aqui? — perguntou o juiz Warning em tom desconfiado.

— Vim para ver se posso ser de alguma ajuda.

— Mas é claro. Estou grato por tê-lo por perto.

Fëll ergueu as sobrancelhas num gesto interrogativo:

— O que aconteceu?

— Aconteceu que uma mulher foi morta. Alvejada com um tiro em sua própria cabine.

Fëll franziu a testa, como se não tivesse compreendido.

— Quem?

— Stephanie Reyngall. Conheceu?

Fëll abanou pesarosamente a cabeça.

Lembrou-se perfeitamente da entrevista que tivera com a referida mulher, duas noites atrás: a angústia em seus suspiros, a incerteza em sua voz; ainda podia ouvi-la dizendo:

— O senhor cede. Eu cedo. Por favor, me ajude! Não tenho mais a quem pedir... — E a expressão ansiosa em seu rosto.

“Isso é pura loucura” pensou Fëll, encerrando bruscamente as suas meditações.

— Aparentemente a criada, uma tal de Elsie... Elsie Wexster... encontrou o corpo. O comandante, assim que soube do ocorrido, veio falar comigo. Está apavorado. Quer que eu dê uma averiguada, mas que tudo decorra no mais completo sigilo.

— Duvido que seja possível. Cedo ou tarde, a casca rompe e aí o vazamento é inevitável.

— Se Stephye foi mesmo assassinada — interveio Monsieur Blancheé, saindo de sua letargia —, eu mesmo vou exigir a imediata investigação do crime.

Fëll olhou para ele através de sua única lente.

— Essa sugestão é muito oportuna. O jeito é averiguar. E quanto antes esclarecermos isso, melhor.

— Nisso estou de acordo — disse Warning. — Vou pedir que o senhor faça a gentileza de nos acompanhar, Monsieur.

— Eu preciso? — perguntou Monsieur Blancheé em um tom de voz baixo.

— Alguém deve identificá-la — disse o juiz Warning —, e uma vez que o senhor já foi marido dela... — pigarreou em tom significativo.

Os três dirigiram-se para o elevador.

Alguns minutos mais tarde chegaram ao camarote 8A. A mesinha quadrada, com o tampo de vidro... no chão, o mesmo tapete de padrões intrincados. Tudo parecia igual — menos uma coisa. Parado ao lado da cama, estava o Dr. Richard Goulborn.

O médico recuou para dar-lhes passagem.

— Olá, doutor! Dr. Goulborn, este é meu colega, juiz Warning. Juiz, o Dr. Goulborn. Creio que já conhece Monsieur Blancheé.

— Sim...

— Prazer — disse Warning.

— Qual é a sua impressão, doutor? — perguntou Fëll de imediato.

A mandíbula do Dr. Richard estremeceu de leve:

— O tiro que provocou o ferimento, pelo calibre que apresenta, foi disparado por uma pistola curta e de cano largo. Do tipo que, nos filmes de faroeste, um jogador trapaceiro leva dentro da manga. Vejam — ele inclinou-se e apontou a cabeça da vítima. — Um estrago de média monta, mas grande o suficiente para matar.

A sua voz estava embargada, o que surpreendeu Fëll, que considerava a classe médica imune a tais tipos de emoção mundana.

— Ela lutou contra o agressor — acrescentou o Dr. Richard —, há marcas onde ele pressionou o braço dela. O assassino atirou nela de muito perto. Há resquícios de pólvora em sua fronte.

Fëll aproximou-se da cama. Lá, estendido de maneira grotesca, estava o corpo de Stephanie Reyngall, um esgar no rosto, as articulações fixadas em ângulo reto. Acima da têmpora, como um pedaço oval de ferrugem, uma mancha de sangue coagulado.

Monsieur Blancheé deteve-se logo atrás, visivelmente emocionado.

— O que será que aconteceu aqui? — perguntou, depois de um silêncio prolongado.

A ansiedade disfarçada na sua voz não escapou aos ouvidos atentos de Fëll, que sem rodeios disse:

— Para dizer a verdade, nem sei o que pensar. Faço votos de que encontremos uma explicação.

Depois de algum tempo, acrescentou:

— Cabe ponderar que se trata de um assassinato cometido por alguém que entrou aqui com a permissão da vítima.

— Por que... diz isso?

— Há um argumento de peso a favor dessa hipótese — apressou-se o detetive em explicar. — Cada porta deste navio só abre com um cartão específico. E, pelo que vi, não há sinais de arrombamento na porta do camarote.

— Ah! — disse Monsieur Blancheé.

Arquejante e com o rosto afogueado, o juiz Warning disse:

— Também já tinha reparado nisso.

— O que leva a crer — disse Fëll — que o assassino é alguém que Madame Reyngall conhecia. Do contrário, ela não teria deixado que entrasse.

— Concordo.

— Outra coisa. Notem... Vestido de tricô, colar de acrílico, botas de couro... A mesma roupa que ela usava à mesa do jantar. Não é mesmo, Monsieur?

Monsieur Blancheé balançou a cabeça com uma melancolia profunda.

— É... — murmurou. Ato contínuo, com os lábios trêmulos, acrescentou jocosamente: — Se bem que...

— O quê, Monsieur?

— O bracelete. Olhem... Falta o bracelete!

— Tem certeza?

— Tenho. Stephye possuía uma porção deles. Ela nunca se privava dos gostos refinados. Esperem... eu vou mostrar.

Monsieur Blancheé foi até uma cômoda. Apanhou uma caixa de mogno, com ferragens de latão dourado. Abriu-a e, depois de dar uma olhada, entregou-a para o detetive:

— Pegue... Veja o senhor mesmo.

Havia colares longos de ouro, ônix e madrepérola, anéis, gargantilhas e...

— ... um bracelete banhado a ouro com ônix — murmurou Fëll. — Outro, de ágata negra com cachalon.

— Stephye adorava braceletes. Falta um aí. O que ela usava a noite passada.

Foi a vez de Fëll abanar a cabeça.

— Não é muito.

— Mas é sugestivo!

— Eile mit Weile.

— O quê? — perguntou Monsieur Blancheé para Fëll.

— Temos que ir com calma, Monsieur. É claro que, se for verdade, é um sumiço estranho. Mas não acho que, quem quer que seja o assassino, tenha entrado aqui só para roubar um bracelete.

— Bom... Quem sabe?

— Também pensa assim, juiz?

— Se eu penso o quê? — perguntou Warning.

— Que foi latrocínio...

— De jeito nenhum. Para mim, quem a matou já veio com propósito definido. Não faço ideia de quem esteja por trás disso, mas é lógico que o crime foi muito bem planejado.

— Também acho — disse Fëll. — Por alguma razão, o assassino queria Madame Reyngall morta, e conseguiu. Ele vem pelo corredor, bate à porta, é recebido aqui dentro e, então, ataca. Fora os hematomas mencionados pelo doutor, não há outros indícios de violência. Você disse, meu caro, que foi a criada quem descobriu a vítima. Chegou a falar com ela?

— Não. Eu soube de tudo pelo comandante.

Fëll girou bruscamente sobre os calcanhares.

— Doutor, a que horas acha que ela morreu?

O Dr. Richard levou algum tempo para compreender a finalidade da pergunta.

— Difícil dizer. Pela tonalidade descolorada em algumas áreas, e a cor arroxeada onde se deu o acúmulo do sangue, eu diria que entre às onze e uma hora da madrugada.

— Não pode ter sido antes?

— Como eu disse, não dá para fazer uma estimativa muito exata.

Fëll ficou pensativo por um longo tempo, repassando lentamente alguns acontecimentos. Olhou para Monsieur Blancheé, lembrando-se de um alerta feito por Mr. Akhmeed:

— O homem matou minha irmã, e vai matar de novo.

Será que o árabe estava certo?

Fëll deixou os olhos vaguear pelo camarote. Havia uma lareira, um bar de canto, penteadeira, televisão, cofre, secador de cabelo, cabines comunicadas. Não era à toa que a maioria dos passageiros havia ficado impressionada com a decoração luxuosa no navio!

Sua reação seguinte foi puramente automática. Agindo instintivamente, Fëll começou examinando fragmentos de coisas que caíram no chão. Seguiram-se algumas poucas frases sucintas que foram ditas com voz animada. Depois disso, foi e abriu o guarda-roupa; os trajes de Madame Reyngall lotavam o compartimento enorme e espaçoso. Por um instante as suas feições se suavizaram um pouco.

— E? — perguntou Warning, lançando-lhe um olhar de encorajamento. Parecia esperar que o austríaco dissesse alguma coisa.

— Não sei — respondeu Fëll. — Posso formular uma hipótese. É claro que, por enquanto, esta não se apoia em qualquer prova; mas é possível que ainda acabemos encontrando essa prova.

— Que hipótese?

— Deixe para lá — disse Fëll em voz baixa e em tom hesitante. Fez uma pausa e depois recomeçou: — O que Monsieur Blancheé disse já nos proporcionou uma pista interessante.

— Muito bem, meu caro! — disse o juiz Warning em tom irônico. — O fato é que temos de fazer alguma coisa. Não nos adiantará nada ficar apenas especulando. Caramba! Temos de fazer alguma coisa!

— Calma, Herr Richter. Eu suponho que o pouco que sabemos não serve de nada. Acho que devemos primeiro começar tratando dos aspectos práticos do caso. Depois, dependendo das circunstâncias, podemos elaborar nossa primeira teoria.

— De quais aspectos práticos está falando?

— Firmar uma lista de nomes das pessoas no navio que eram chegadas à vítima. Pessoas que, de uma forma ou outra, teriam entrada franca nesta cabine. Parece o mais óbvio a ser feito.

— Era justamente o que eu ia sugerir.

— Senhores! — interveio Monsieur Blancheé, usando um tom que não era habitual. — Se me permitem, posso ir agora? Tenho que tomar um ar puro.

— Está bem — disse Fëll.

Sem dizer mais nada, o francês retirou-se, fechando a porta atrás de si.

— E quanto a mim, senhores? Creio que já dei minha assistência. Podem me liberar também?

— Claro, Dr. Goulborn — respondeu o juiz. — Obrigado por tudo. É possível que mais tarde voltemos a precisar do senhor. Peço-lhe que se mantenha de prontidão.

— Até logo, então.

O médico, agradecido, saiu.

— Bem, não há nada mais a ser dito ou feito — ponderou Fëll, quando Warning e ele ficaram a sós. — Se terminamos aqui, poderíamos voltar à sua cabine, mein Freund. Não adianta ficarmos discutindo sobre ninharias, perdidos em escaramuças técnicas e legais sobre o caso. Além do mais, não gosto de teorizar antes da hora. Seria prematuro nesta altura dos acontecimentos; imprudente e perigoso até. Estamos num navio com milhares passageiros. Pode ter sido qualquer um. O que acha disto aqui? — e estendeu um pedacinho de papel ao seu companheiro.

— Onde encontrou isto?

— Estava ali no chão. O que supõe que seja?

— Parece uma letra do alfabeto — disse Warning.

— Que letra?

— Um S invertido.

— Não, não é um S. É uma clave de sol.

— Clave do quê?

— Clave de sol — explicou Fëll. — É um símbolo musical que indica a posição da nota sol em uma pauta.

— Se você diz... Alguma ideia do que signifique?

— Nenhuma por enquanto. Bem, não importa; chegará a hora em que descobriremos. Vamos indo! Não temos tempo a perder. Há três ou quatro depoimentos que precisamos ouvir.

— Por quem quer começar?

Fëll deu de ombros.

— Que tal se nós começássemos por Miss Wexster?

Warning balançou a cabeça.

— Por que não?


7.

 

A porta abriu-se e Elsie entrou. Manteve o rosto voltado para trás, como se quisesse ver se alguém a seguia.

Fëll e o juiz Warning perceberam que ela murmurava para si mesma. Apenas fragmentos eram inteligíveis, pontuados por gemidos e pela respiração ofegante.

— Algum problema, Miss? — perguntou Fëll.

Elsie apertou os olhos, surpresa.

— Não, não... Problema nenhum.

— Nesse caso, entre, bitte — convidou Fëll. — Se puder dispor de alguns minutos, gostaríamos de tomar o seu depoimento. Queremos saber o que aconteceu hoje de manhã.

Elsie instalou-se numa cadeira de frente para eles. Ela ficou imóvel, de olhos baixos, um pouco trêmula.

— Tudo bem.

— Mas antes, deixe-me lhe perguntar uma coisa.

— O quê?

O detetive cruzou as mãos atrás das costas e começou a andar, com passo de ganso, para cima e para baixo. Seus ombros se entesaram:

— Quando encontrou o corpo de sua patroa, a senhorita estava sozinha ou acompanhada de seu namorado?

— Estava sozinha.

— E que horas eram?

— Não sei — disse Elsie.

— Eram seis e meia — disse Warning.

— Wunderschoen. Quer dizer que a senhorita chegou ao camarote de sua patroa às seis e meia. O que foi fazer lá tão cedo?

— Eu sempre ia àquela hora. Ajudava Madame Reyngall a se arrumar e então íamos juntas tomar café. Depois ia ao camarote de Graig ver se ele já estava acordado.

— Como conseguiu entrar?

— A porta... estava entreaberta — gaguejou Elsie.

— Ah! Esse é um detalhe importante. Então foi assim que a senhorita obteve acesso à cabine! Qual a primeira coisa que viu?

A resposta veio cheia de sinceridade.

— No início não acreditei que fosse possível. Sabem como é... Madame era muito cuidadosa; ela vivia checando se as portas e janelas tinham sido bem fechadas, se as trancas estavam no lugar. Entrei e olhei em volta. Quando a vi na cama, achei que ela estivesse dormindo. Só quando cheguei mais perto é que notei... notei...

— Deve ter sido um susto e tanto!

— Senti o coração quase parar. Os olhos dela... tão bonitos... estavam abertos. Olhavam para cima... Membros rígidos, dedos deformados — como se ela tivesse morrido num ataque de pavor e pânico! Aí eu vi... o sangue! Eu congelei, fiquei atônita. Não conseguia me mexer. Que horror! — disse Elsie. — Que horror! Pobre Madame Reyngall, uma mulher tão inteligente! Para alguns homens, a única coisa que as mulheres sabem fazer é bater o carro, queimar o jantar, passar o tempo todo jogando cartas ou batendo papo com as amigas. Madame não; ela gostava de trabalhar e era completamente independente.

Elsie fez uma pausa, que Fëll aproveitou para perguntar:

— É essa a sua opinião sobre ela, Miss?

— Sim...

— Não foi bem isso o que a senhorita falou ontem.

Dominada por uma frenética empolgação, a moça disse:

— Oh! Aquilo... Eu estava zangada. Uma mulher precisa estar pronta para exercer a coragem de correr riscos, perseverar no que faz e remover obstáculos. Madame era assim. Os senhores nunca terão a chance de conhecê-la e sentir quão amável e graciosa ela era. Mas... às vezes... Madame ficava tão estranha! Oh! Isso me irritava tanto...

— Ficava estranha? Como?

— Não sei, é tão difícil de explicar! Mas era como se ela... de alguma forma... temesse por sua vida.

— Está dizendo, Miss, que alguém já vinha rondando Madame Reyngall há mais tempo?

— Sim... sim... Havia dias em que ela estava bem, mas tinha horas em que ficava lá sentada... olhando — Deus sabe lá para onde! — Elsie começou a gaguejar irremediavelmente: — Estava sempre vigilante... alerta... incapaz de se descontrair. Lembro-me de tudo... como cenas granuladas em preto e branco... como um sonho há muito passado. Acho que ela sofria de... uma perigosa melancolia. Talvez Madame soubesse...

— Soubesse o quê?

O semblante de Elsie empalideceu um pouco ao responder:

— Soubesse que ia ser morta!

Quando ela terminou seu desabafo, Fëll balançou a cabeça num gesto solene.

— O que acabou de dizer, Miss Wexster, é um rico conjunto de informações que possibilitam vislumbrar o que aconteceu. Acho, porém, que a senhorita sabe mais do que está disposta a admitir.

Elsie cravou nele um olhar medonho.

— O senhor... é mesmo um detetive?

— Sou sim, Miss. Investigo qualquer coisa; desde raptos covardes até assassinatos cometidos por uma brilhante mente criminosa.

Elsie olhava fixamente para frente, com expressão séria e imperturbável.

— Como pude ser tão idiota!? — exclamou, interrogando-se e batendo contra a testa. — Vocês acham que fui eu que a matei, não é isso?

Hurra! pensou Fëll, parte com sarcasmo, parte surpreso consigo mesmo. Lá vamos nós!

— Miss Wexster, neste momento é preciso ser o mais objetivo, concreto e específico possível. Não podemos nos fundamentar em generalizações. Não achamos que foi a senhorita! Estamos só fazendo algumas perguntas, verstehen Sie das?

— E daí? Vocês estiveram na cabine de Madame Reyngall... vocês viram o que aconteceu com ela. Por que estão fazendo essas perguntas para mim?

— Eu vou explicar por quê, Miss. Durante todo o processo investigativo, a prova física é somente parte da equação. O objetivo final é a condenação do assassino. Mas para chegar a isso, é preciso obter provas.

— Não, não! — teimou Elsie. — Está mentindo! Vocês acham que fui eu quem atirou nela. Pois estão errados! Jamais apontei uma arma contra quem quer que fosse.

As feições dela se tornaram tensas. Era só uma questão de tempo até que a represa estourasse.

— E seu namorado... Acha que se ele seria capaz?

— É claro que não! Graig... um assassino? Está querendo denegrir o nome dele, Mr. Fëll? Como se atreve, Mr. Fëll?

— Recriminações não ajudam, Miss. O que importa é a dedução racional.

— Oh! Acho tudo isso um disparate.

— Mas pode ter sido Mr. Butscher, não pode?

— O senhor... acredita... nisso?

— Miss, eu acredito que muitas coisas sejam possíveis. Acredito que a sociedade humana é um mar de pecados, perversão e corrupção. Acredito também que, para alguns homens, uma arma é símbolo de masculinidade. E, por último, acredito que alguns sentimentos, quando atingem uma determinada dimensão, só podem levar a uma coisa: à catástrofe. Assim sendo, apenas lhe peço que responda à minha pergunta — prosseguiu Fëll. — Acha que pode ter sido Graig Butscher ou não?

— Ora... ora... O senhor está louco!

— Não, não estou. Não quer mesmo nos contar mais alguma coisa, Miss Wexster?

— Não.

— Por que não?

— É uma questão de orgulho!

— O orgulho sempre precede a queda, Miss Wexster — disse Fëll candidamente.

Fëll repetiu a pergunta, variando a entonação.

— Vai contar ou não vai?

Elsie soltou uma risada.

— Quer saber de uma coisa? — disse. — É impossível. Por mais que o senhor peça, não direi nada. Sinto-me feminina e firme nas escolhas que estou fazendo, por mim e por Graig.

Elsie Wexster levantou-se. Seus olhos chamejavam, mas uma vontade quase sobre-humana obrigou a voz a não revelar o furacão sentimental que lhe varria a mente.

— Algo mais que possa fazer pelos senhores?

— Danke!... Nada mais, mesmo.

Elsie saiu batendo com força os pés.

Com os braços caídos, Warning simulou uma salva de palmas.

— Bravos! — disse. — Viu o que acabou de fazer? Creio que você a assustou.

— Não íamos nos vergar aos seus caprichos, não é? Achei que era imperativo que mostrássemos isso a ela.

— Mas que extraordinário exemplo de insensibilidade! — sorriu Warning. — Está dizendo isso para justificar a sua falta de visão, eu suponho. Você sabe que, teoricamente, tenho poder para vetar esse tipo de interrogatório.

— Sei — respondeu Fëll.

— Acha que foi ela quem matou Madame Reyngall?

— Hmm... Não dá para excluir a hipótese.

 

— Contem comigo, senhores — disse Graig Butscher e acenou ligeiramente com a cabeça. — Perguntem o que quiserem.

Havia em seu sorriso qualquer coisa que desarmou o detetive.

— Não parece muito abalado com o assassinato.

— Nem um pouco. Deveria estar?

— É rico, Mr. Butscher?

— Não sou e prefiro nem ser. Hoje em dia, é fácil complicar a vida com muitas coisas. Comprar, pagar, usar, manter e proteger nossos bens exige muito tempo e esforço. Não deixo que coisas materiais desnecessárias me atrapalhem. Eu ainda era pequeno quando fui incentivado a sair de casa pelos meus pais. É engraçado; eles acreditavam piamente que eu me beneficiaria se aprendesse a me virar sozinho, seja lá como fosse.

— Desde quando namora Miss Wexster?

— Uns cinco, seis meses.

— Acha que ela pode ter alguma coisa a ver com o crime?

— Elsie? Nem por sonho. Por que ela faria isso?

— Não sei — disse Fëll.

Warning revirou os olhos. De novo aquela mesma linha inquisitorial!

— A-rã! — pigarreou, intervindo na conversa. — Esperem aí, posso fazer algumas perguntas?

— Sim, creio que sim — disse Fëll num tom indeciso. — Vá em frente...

— Obrigado. — O juiz virou-se para o rapaz: — O que fez ontem à noite, Mr. Butscher?

— Eu e Elsie zanzamos por aí. Estivemos no Promenade Deck, onde uma multidão de passageiros passeava ao redor das lojas. Daí fomos para o tombadilho; o céu estava estrelado e as luzes coloridas brilhavam nas extremidades do deck.

— Que horas eram?

— Devia ser quase meia-noite.

— E depois?

— Depois descemos e fomos dormir.

— Por acaso não passaram perto da cabine de Madame Reyngall?

— Não.

— Como é que soube do crime?

— Elsie veio me dizer. Ela parecia toda nervosa e irritada. Não, melhor dizendo, ela estava consumida pela culpa e dizia que tínhamos que chamar a polícia. Achei a sugestão um absurdo; afinal, chamar a polícia aqui... como? Não cabia a nós tomar essa providência. Daí, para não piorar as coisas, fomos comunicar o fato ao cabineiro. Enquanto falávamos com ele, lembrei que havia um detetive a bordo. Por isso fui atrás do senhor, Mr. Fëll.

— Ah! — exclamou Fëll. — Chegamos à parte boa da historia.

— Por que boa? — perguntou o juiz.

— Porque foi logo depois disso que o comandante veio falar comigo.

— Ele fez isso?

— Pois se estou lhe dizendo!

— O quê? Como? Pelo que me lembro, quando chegou, você disse que não sabia quem era a vítima.

— Ora, havia alguém com você naquela hora!

— Monsieur Blancheé — disse Warning. — E daí?

— Às vezes temos que ser leais ao código, não é?

— Que código?

— Da discrição — disse Fëll, as faces coradas.

Warning sacudiu a cabeça, perplexo.

— O senhor é de onde, Mr. Butscher?

— Por que querem saber?

Graig não estava mais contente. Agora parecia perturbado, até mesmo amargurado.

— Eu é que faço as perguntas, se não se importa — disse Fëll.

— Ah, sim... Desculpe-me... Nasci em Korsnäs, perto da cidade de Falun, no extremo norte da Suécia. — Em tom hesitante, acrescentou: — Há uma coisa que eu não entendo... Por que estão tão alvoroçados com esse... crime?

— Estamos alvoroçados porque esse crime talvez pudesse ter sido evitado, Mr. Butscher!

Graig atirou violentamente a cabeça para trás e interrompeu Fëll em tom áspero:

— Ninguém poderia ter evitado essa desgraça ou feito qualquer coisa. Aquela mulher era uma víbora! Ela tratava Elsie como uma indigente. “Junte tudo e ponha aqui”, “Pegue as roupas... maneje-as com cuidado”! Elsie tinha que satisfazer todos os seus mínimos desejos. Está na cara que, algum dia, alguém ia acabar com ela.

— É o único a pensar assim ou essa é a opinião corrente?

— Opinião corrente? Que diabos é isso?

— Estou querendo saber se mais pessoas pensavam assim ou só o senhor.

— Não venha com essa! O senhor não ouviu o que Elsie disse no táxi, ontem de manhã? Ela odiava aquela mulher.

— Acha que sua namorada matou Madame Reyngall? Fale...

— Mas o que há? O senhor não está prestando atenção ao que digo?

— Não se perca em aspectos secundários, Mr. Butscher. Formulei uma pergunta, e exijo uma resposta.

O juiz Warning não se lembrava de ter ouvido Fëll falar em tom tão enérgico. Ficou refletindo sobre se ele mesmo não deveria tomar alguma providência em relação ao caso.

— É claro que não! — disse Graig ligeiramente e entesou o corpo, mostrando pela primeira vez seu porte altivo. — Eu já falei que não. Não me peçam para repetir tudo outra vez!

— Precisamos dissipar o véu de mentiras, Mr. Butscher.

A boca de Graig estava ressequida.

— Por que estão me tratando assim? Acham que nós... Não, eu lhes garanto que não! Nós não poderíamos...

— Só mais uma pequena informação para não precisar incomodá-lo mais. Qual seu endereço?

— Amsterdam, Holanda.

— Idade?

— Vinte e seis.

— Está dispensado, meu rapaz. Vá...

Graig ficou de pé, mantendo os joelhos bem juntos, para impedi-los de tremer. Às pressas, saiu do camarote.

O juiz Warning pigarreou e exclamou secamente:

— Que brabeza! Não sabia, meu amigo, que havia inovado suas técnicas de interrogatório.

— Não gosto de me arriscar — justificou Fëll. — Se for para obter respostas, que elas sejam pelo menos conclusivas.

— Pareceu ser uma coisa meio imprudente. Além disso, continuamos na estaca zero! Interrogar esse cara não nos ajudou lá muita coisa.

— Não creio que ele tivesse algo a revelar.

— Pois eu não concordo. Acho que ele construiu um castelo de mentiras para esconder o que sabe. Cá entre nós, acha possível que ele esteja por trás do assassinato?

— É bem pouco provável. De qualquer forma, não vai ser difícil confirmar.

— Bem!... Tomara. O que me assusta é o fato de ainda não havermos estabelecido nada.

Fëll sorriu com ar de quem tinha a situação sob controle.

— Há mais de uma maneira de esfolar um urso. Assumindo que os meios e recursos adequados estão disponíveis, vamos à nossa próxima depoente.

— Quem?


8.

 

Bateram na porta.

— Um cavalheiro deseja vê-los, senhores — anunciou o cabineiro.

— Quem é? — perguntou Fëll.

— Mr. Akhmeed.

— Mande-o entrar.

— Espere um segundo — interrompeu Warning. — Diga-me uma coisa... A polícia já apareceu?

— Já, sim senhor — disse o cabineiro.

— Ótimo. — O juiz virou-se para Fëll: — Me dê alguns minutos; vou lá dar uma espiada.

— Está bem.

Fëll esperou que o juiz saísse. Levantando-se, foi até a porta:

— Que bom que tenha vindo, Mr. Akhmeed. Entre...

— Está vendo como eu tinha razão? — adiantou-se o árabe. Ele estava tremendo e seus olhos estavam arregalados. — Eu não falei que ele mataria de novo? Acredita em mim agora?

— Ainda não há provas de que foi ele — disse Fëll, devagar.

— O senhor não se rende facilmente hein? Houve um assassinato, não houve?

— Não é o suficiente, temos que saber os fatos exatos.

— Fatos exatos! — disse Mr. Akhmeed em tom indignado, saltitando nervosamente de um lado para outro. — Não vê que agora aquele canalha deixou sua assinatura ao cometer o crime? Ele se expôs.

— Não vejo... ?

— Quer fazer o favor de me deixar falar até o fim? Aquele sujeito é paranoico. Tem traços de obstinação. É irracional. Ele é tudo isso... e muito mais. Esse assassinato confirma inteiramente o alerta que eu lhe fiz, não confirma? Agora cabe ao senhor fazer alguma coisa, Mr. Fëll. Ou o senhor quer que essa situação se perpetue? Quer que mais gente morra?

Fëll olhou-o com severidade.

— Não me preocuparia muito com isso, se fosse o senhor! Não acabou de dizer que o assassino deixou sua assinatura ao cometer o crime? Se tiver sido mesmo Monsieur Blancheé, ele já deve saber, com toda certeza, que nós sabemos de tudo! Ele já deve saber que não pode mais nos enganar com seus artifícios. Duvido que, com essa óbvia restrição, ele mate mais alguém.

— Talvez ele não mate aqui, mas e lá fora? Depois que desembarcar e estiver... livre!

Interrompendo-se, Mr. Akhmeed abaixou a cabeça, engolindo em seco.

— Não se esqueça de tudo o que falei ao senhor!

— Não vou esquecer — disse Fëll. — Mas, quanto ao que está pedindo, não há nada a ser feito.

O árabe ficou um tanto desconcertado com a recusa intransigente do austríaco.

— Posso saber por que não?

— Porque falta um motivo.

— Um motivo? E o fervor, a fúria, a insanidade, as emoções descontroladas... Isso não conta? Desde quando um assassino precisa de motivos? Veja, eu odeio, na verdade me sinto ofendido, com a sua indolência.

Fëll inclinou a cabeça, absorto. Estava pensando.

— Eu entendo o seu ponto-de-vista, Mr. Akhmeed. Talvez Monsieur Blancheé seja um patife. Perdoe a minha vulgaridade, mas eu vou lhe dizer uma coisa. Por mais bem elaboradas que sejam, suspeitas não bastam para incriminar Monsieur Blancheé.

— Foi um tiro, não foi?

— O quê?

— A morte... Foi um tiro?

— Sim, foi.

— Mas aí está. Vão à cabine dele... façam uma busca... ponham tudo de pernas para o ar! Tenho certeza que a arma está lá.

O olhar de Fëll revelou prontamente o seu assombro.

— Isso dificilmente daria certo — justificou. — Estamos aqui à deriva... cercados de água por todos os lados. Fácil, portanto, descartar uma arma sem dar na vista.

— Mas o senhor aceitou o meu caso — cobrou Mr. Akhmeed, com o semblante carregado. — Prometeu que ia me ajudar a comprovar a culpa desse cretino. Disse que me ajudaria a levá-lo ao tribunal. O senhor me deu sua palavra!

— Espere um minuto. Dei minha palavra, e vou mantê-la. Mas não se iluda muito. Linguisticamente falando, eu disse que, se ele fosse o culpado, iriamos levá-lo ao tribunal.

— Raios me partam! Quer dizer então...

— Calma, não vamos nos precipitar. Se ele tiver alguma relação com os crimes, haveremos de conseguir as provas.

— Em vista do que aconteceu até aqui, começo a achar que é cada vez mais improvável. Saiba que tudo o que vem dizendo desde que embarcamos não me satisfaz, Mr. Fëll. Não me satisfaz nem um pouquinho! O senhor está atrás de uma teoria que não mancha, não desbota, não empena, não rasga e não racha! Nunca vai achá-la!... Nunca! Nunca!

Fëll empalideceu.

— Lamento por isso, Mr. Akhmeed. Vou mantê-lo informado sobre os progressos alcançados. As explicações virão a seu tempo...

— Basta, Mr. Fëll! Já ouvi o bastante. Passar bem!

Alim Akhmeed retirou-se ainda meneando enfaticamente a cabeça. Aquilo despertou em Fëll um vago sobressalto.

— Que homem! Ufa.

O detetive tocou a campainha e instruiu o cabineiro a procurar Mrs. Goulborn, sua próxima depoente.

Warning e Mrs. Goulborn apareceram praticamente juntos.

— Tudo certo — disse o juiz. — A remoção do corpo foi marcada para as onze horas. Tudo como manda o figurino, mas mesmo assim com a necessária cautela, de modo a não causar um pânico generalizado.

— Então é verdade? — perguntou Mrs. Goulborn. — Aquela mulher... com quem conversei ao jantar... morreu mesmo?

Fëll deu um passo à frente.

— Desculpe o incômodo, Mrs. Goulborn. Bitte, venha, sente-se.

Com esforço, a velha senhora se recompôs. Movida por um impulso repentino, obedeceu passivamente. Embora com a voz engasgada, falou com coragem:

— Estou tão nervosa! Sempre me surpreendo como essas coisas acontecem rápido. O bom Deus não devia permitir que as pessoas morressem dessa forma.

— Dessa forma como?

— Infarto. Ela morreu de infarto... foi o que Rich disse.

Fëll e Warning se entreolharam.

— Senhora, receio que seu filho não tenha sido muito... fiel aos fatos. A coisa não é tão simples assim.

— Não?

— Infelizmente... Por isso mesmo queremos ouvir o seu lado da história.

— Não estou entendendo...

— Antes de contar por quê, preciso saber se não sofre de palpitações, taquicardia, ou coisa parecida.

Rebecca Goulborn semicerrou os olhos. A pergunta de Fëll suscitou nela um novo desassossego.

— N-não... Por quê?

Fëll curvou-se para ela.

— Porque, em verdade, aquela mulher não morreu de infarto. Ela foi morta por um disparo de revólver.

Uma expressão de pavor surgiu no rosto de Mrs. Goulborn.

— Ela... se matou?

— Temo que não, Madame.

— Mas quem... Quem teria um ódio tão feroz e abundante para fazer uma coisa dessas?

— Ainda não sabemos. É isso o que queremos descobrir. Se não me engano, a senhora falou com Madame Reyngall ontem à noite, ao jantar.

— Sim. Oh! Ela era tão adorável...

— Já tinha falado com ela antes disso?

— Nunca. Embora, por alguma razão, me lembrasse dela...

— Quer dizer que a conhecia!

— Pessoalmente não. Mas eu já a tinha visto em algum lugar... só não sabia onde. Foi só quando vi Monsieur Blancheé e ela juntos na proa que me lembrei de quem ela era.

Fëll inclinou-se.

— A senhora os viu na proa?

— Vi.

— A que horas foi isso?

— Por volta das dez e pouco.

— Tem certeza que era Monsieur Blancheé?

— Claro que sim. Sou uma grande fã dele.

— E eles a viram?

— Não.

— E o que eles estavam fazendo?

— Não muita coisa. Estavam rindo...

— Ambos?

— Ela mais do que ele.

— Pareciam felizes?

— Extremamente.

— A que horas a senhora se recolheu?

— Precisamente às dez e meia.

— Dormiu logo?

— Sim.

— E seu filho?

— Rich eu compartilhamos a mesma cabine. Eu durmo na cama de casal e ele, no beliche. Rich não desceu comigo; ficou fumando no convés.

— Posso fazer outra pergunta? — disse Fëll de repente.

— O que é?

— Não ouviu ou viu nada durante a noite, Madame Goulborn?

— Como poderia? Dormi como uma pedra.

— Gut. Quanto a hoje de manhã... Quem foi que veio chamar seu filho?

— Creio que um dos membros da tripulação.

— Quando voltou, ele lhe contou aonde havia ido?

— Rich disse que Madame Reyngall sofrera uma morte súbita. Mas eu jamais imaginei que tivesse sido dessa maneira. Não consigo acreditar! Por que alguém iria matar a coitadinha? Estou tão chocada!

— Não mais do que nós, Madame. Entretanto, foi o que aconteceu. Violência gratuita, mortes sem sentido... A maldade está generalizada e muitos fatores contribuem para isso. É esse o nosso mundo atual.

— Foi para roubá-la?

Ela pronunciou roubá-la com uma inflexão estranha. Fëll coçou o braço e olhou para Warning.

— Por que acha isso, Madame?

— É o que geralmente acontece, não é? As pessoas tentam roubar e, então, algo dá errado. Daí a única saída é matar quem se interpõe no caminho.

— Talvez. Mas essa hipótese dificilmente será sustentável depois de tudo que já sabemos. É por isso que temos que colocar-nos na posição do assassino, explorar suas ações e sua disposição pessoal. Só assim para chegar a compreender seus motivos. É tudo, Madame.

Mrs. Goulborn levantou-se. Fëll abriu gentilmente a porta para que ela saísse.

Warning limpou a garganta e murmurou:

— Negócio complicado. Se eu soubesse que teria férias tão conturbadas, teria ido para o Vale dos Reis... ou para Dorchester. Pobre mulher! Morrer daquela maneira, como se fosse um bicho qualquer. O tiro na cabeça... as pernas espichadas... os olhos fixos no teto... olhos sem vida... sem nada.

Entortando-se para trás, o juiz imitou a posição em que encontrara o cadáver. Foi uma cena grotesca, Warning fazendo cabriolas e Fëll, sério, olhando-o sem compreender nada.

De repente as sobrancelhas de Fëll se elevaram.

— Uma pergunta — disse. — Foi assim que você a encontrou?

— Exatamente assim!

— Dessa forma: pernas retas... o braço direito para trás... braço esquerdo para cima?

— Sim, sim... Algo errado?

— Bem, eu não sei explicar. Quer dizer... Não sei... ah, meu Deus, não sei como...

— O que houve? — perguntou Warning. — Que cara é essa?

Fëll ofegou. Em seus olhos surgiu uma expressão de insegurança, mas logo se tornaram firmes.

— Não estou completamente certo, mas acho que sei onde foi parar o bracelete que sumiu.


9.

 

Juntos, caminharam pelo sétimo deck, em direção à popa. De acordo com os quadros emoldurados que continham as plantas detalhadas do navio, era por ali que ficava a cabine de Fyona Saunders.

Subitamente, à frente deles, uma moça abriu a porta e saiu para o corredor, quase colidindo com um garçom de serviço de quarto. Estava de sombra nos olhos, unhas pintadas de roxo; vestia um short com sandália de dedão de fora.

— Miss Saunders! — saudou Fëll.

— Mr. Fëll!

Fyona aproximou-se. Numa atitude quase automática, e principalmente em virtude do nervosismo, perguntou:

— Aconteceu... aconteceu... um crime?

Havia um tom de espreita em sua voz.

— Sim — disse Fëll. — Aconteceu.

— Ai! — exclamou Fyona com um olhar de êxtase e horror. — Quem... quem morreu?

— Madame Reyngall — informou Fëll, brutalmente.

Fyona prendeu a respiração. Ela se inclinou ligeiramente; seu rosto mostrava, ao mesmo tempo, um ligeiro escárnio e um real alarme.

— Está falando de Stephanie Reyngall?

— Temo que sim.

— Como... como foi?

Fëll explicou; Fyona virou o rosto para a brisa que vinha do mar. Lá embaixo, ondas batiam no casco do navio.

— Conhecia a mulher, Miss? — perguntou Warning, olhando-a com ar interrogativo.

— Não... quer dizer, sim — respondeu Fyona.

— De onde?

— Anos atrás, minha mãe teve um momento de loucura e acabou casando com o marido dela.

— Com Monsieur Blancheé? — surpreendeu-se Warning.

— O senhor não contou a ele? — perguntou Fyona, voltando-se para Fëll.

— Preferi não antecipar nada — disse Fëll. — Viemos aqui exatamente para que a senhorita nos esclareça sobre isso.

— Eu? Essa é nova!

— Não se importa se eu tomar nota, não é?

— Por mim, tudo bem.

— Primeiro queremos saber se a senhorita chegou a ver Madame Reyngall ou, mais especificamente, a falar com ela nesses últimos dias?

Fyona Saunders negou com a cabeça.

— Nem uma coisa nem outra. Acho que uma pobretona como eu não poderia frequentar os mesmos lugares que ela, poderia? E se considerarmos que mamãe foi a responsável pelo fim do casamento dela, devem convir que nossas relações não seriam... como é que vou dizer?... muito amistosas.

— É claro... claro — murmurou Fëll. — Viemos vê-la por um outro motivo, Miss Saunders. Lembra-se que, ontem ou anteontem, a senhorita me perguntou por que eu tinha vindo nesta viagem?

Enquanto falava, o rosto de Fyona se iluminou:

— Sim; o senhor disse que estava numa missão secreta.

— Pois minha missão tem a ver com Monsieur Blancheé.

— Por quê?

— Isso não vem ao caso agora, Miss. Só gostaríamos que nos contasse o que sabe sobre ele.

Fyona encostou-se à amurada de ferro.

— Mas eu nunca estava em casa... como poderia saber alguma coisa?

— Com que então não viu ou ouviu nada.

— O que eu sei é que ele só pensava nele mesmo. Tanto que mamãe não aguentou. Disse que iria deixá-lo se ele não rompesse com a outra.

— Que outra?

— A árabe, Mr. Fëll. A árabe! Mamãe disse que não estava a fim de viver um menage a trois! Ele nem se importou quando ela partiu. Só de pensar nisso, eu tremo de ódio. Mas... oh! Eu não quero falar sobre isso! O passado está morto; que descanse em paz.

— Como é que a senhorita reagiu a tudo isso?

— Foi uma experiência moderadamente dolorosa, da qual felizmente já me recuperei.

— Nunca pensou em se... vingar? — perguntou Fëll.

Fyona olhou para o detetive, visivelmente magoada com a insensibilidade dele.

— Me vingar? Ei, eu não sou tão má assim! Sua psicologia não é muito boa, Mr. Fëll. Acho que está ficando velho demais para esse serviço.

Fyona conseguia dizer coisas, coisas inesperadas, que perturbariam até Sua Majestade!

Fëll enrubesceu:

— Bom, agora escute, Miss Saunders. Há mais uma coisa que desejamos saber. Sobre seu ex-padrasto pesa a suspeita de que tenha matado a árabe, como a senhorita a chamou. Acha que pode ter sido ele?

— Oh, não! Alguém que mata uma pessoa pode ser preso, julgado e, se for comprovada a sua culpa, pode ser condenado à prisão, não é verdade?

— Sim, é verdade.

— Se Monsieur Blancheé tivesse matado aquela pata choca, é provável que fizessem isso com ele, não é?

— Hã? Não entendi.

— O que quero dizer é que não acho que um artista, famoso e tal, mataria alguém sabendo que isso poderia arruinar a própria carreira.

Fëll e Warning se entreolharam. Encorajado, Warning disse:

— Miss, sua teoria é boa. Definitivamente boa. Mas está desconsiderando o fato de que muito artistas já mataram, quer fossem jogadores, atores ou mesmo músicos conhecidos mundialmente.

— Vocês acham, então, que ele matou Madame Reyngall?

— Não exatamente — disse Fëll. — O crime pode ter sido por roubo. Mas ainda temos que analisar bem as coisas.

— Pois façam isso, senhores — disse a moça, um tanto sem fôlego, encarando-os sem piscar. — Enquanto isso, vou pegar um pouco de sol. Chamem-me se precisarem de mim.

— Hum-hum — fez Fëll.

— Oh! Este cruzeiro é uma delícia... Vistos, carimbos, moedas diferentes, choque cultural... Não é fascinante!

Fyona se afastou, deixando os dois companheiros com os olhos ligeiramente arregalados.

Warning voltou-se para o austríaco.

— Não quero ser impertinente, mas tenho a leve impressão de que você está me ocultando alguma coisa.

— Como assim?

— Segundo o que acabei de ouvir, você parece estar neste navio por uma razão especial.

Fëll acenou com a cabeça; sem pressa, falou a respeito da morte de Priscila Akhmeed, das suspeitas em torno da verdadeira identidade do assassino, e de como, finalmente, havia sido incumbido de investigar o caso.

— É esta a situação, descrita em traços ligeiros — concluiu.

— Está dizendo que os familiares suspeitam que o culpado seja Monsieur Blancheé?

— Isso aí.

Warning o encarou com leve reprovação.

— Fico imaginando quando é que ia me contar sobre isso se eu não tocasse no assunto.

 

O Guardian estava lotado, e o Dr. Richard zanzou a esmo à procura de um lugar à mesa.

Dois homens vieram em sua direção a passo lento mas constante, alheios a tudo e concentrados apenas nele. “Bolas! E agora mais essa.” Logo Edmund Fëll e Warning detinham-se ao seu lado.

Fëll olhou para o médico. Este parecia pálido, bochechas murchas. As noites sem dormir e as preocupações tinham cavado sulcos profundos na pele.

— Suponho que possamos nos sentar com o senhor — disse Fëll, tomando lugar numa cadeira.

— Naturalmente... Fiquem à vontade.

— Gosta de ler, doutor?

— Bastante.

— Este livro — perguntou Fëll — é bom?

— A coisa de sempre — o Dr. Richard deu de ombros. — Um acontecimento aparentemente insignificante aciona uma série de eventos para os quais o detetive é arrastado antes mesmo de se dar conta do que está acontecendo.

— Parece... instrutivo — comentou Warning.

— Tem quem goste — afirmou o médico, retorcendo os lábios.

— Podemos falar um instante com o senhor?

— Claro que sim. Em que posso ser útil?

— É sobre o crime desta manhã. Estivemos fazendo um pequeno interrogatório e, até o presente momento, todo mundo colaborou com respostas bastante detalhadas. Como o senhor bem sabe, não há solenidade e dignidade na morte. Ontem à noite, Madame Reyngall ainda estava viva; riu, jantou como de costume, se divertiu, e fez tudo o resto que uma pessoa normal faz. Mas, então, sem que saibamos como, alguém a matou. A pergunta que mais maciçamente se impõe é essa: quem foi que a matou? Fizemos de tudo, mas ainda não obtivemos uma resposta que nos satisfaça.

O Dr. Richard ouviu atentamente o austríaco. Depois de algum tempo, ponderou:

— Acham que vão solucionar o caso?

— Also! Desde as questões simples até as bem complexas têm solução se refletirmos sobre elas com calma.

— Entendo... entendo... É uma história terrível. Falei com Madame Reyngall duas ou três vezes. Tinha um magnetismo inegável. Não sei como é que pode haver gente que, possuída pelos impulsos, consegue matar uma mulher tão bonita!

— Quem cometeu o crime não é alguém sujeito a impulsos repentinos e incontroláveis, doutor. Tudo foi feito de acordo com um plano. Um plano penosamente moldado.

— Pelo que percebo, vocês já têm um começo!

— Já temos um bom começo — corrigiu Fëll.

— Fico feliz por ouvi-lo dizer isso. Não me levem a mal, mas parece que estamos começando a atrair olhares tortos aqui. Que acham de irmos lá para fora?

Foram para o convés. Uma vez lá, Fëll julgou chegado o momento de explicar quais eram suas intenções.

— Como sabe, doutor, para formalizar uma denúncia temos que obter primeiramente as provas. Eu e meu amigo, o juiz, conseguimos duas ou três pistas, mas ainda falta muita coisa. O que precisamos é de um motivo, e com urgência. Afinal de contas, foi um crime lamentável.

— Um crime lamentável, é verdade! — disse o médico, com os braços cruzados sobre o peito, caindo em um silêncio melancólico.

— Ouvimos o seu relatório, mas há algumas perguntas que gostaríamos de lhe fazer. Se estiver tudo bem.

— Sim, sim, podem perguntar.

— Ótimo — disse Fëll —, é esse o tipo de espírito aberto que apreciamos. Isso tira um grande peso de nossa consciência. Antes de tudo, por que foi até a cabine da vítima?

— Mamãe já deve ter-lhes dito; alguém veio me chamar.

— Lembra-se de quem era?

— N-não... Eu não verifiquei. Mas creio que tenha sido um dos tripulantes. Isso faz alguma diferença?

— Não, não, nenhuma — disse Fëll em tom enfático. — Só queremos evitar qualquer mal-entendido. Continue...

— A única coisa que sei é que estavam requisitando minha presença em algum lugar. E, pelo jeito, parecia ser urgente. Vesti-me e decidi ir lá ver o que estava acontecendo.

— Aquilo o aborreceu?

— Nem um pouco. Sempre fui meio entrosado com causas humanitárias, sabem? Já ajudei até refugiados a conseguir asilo! O que é necessário no mundo? Apenas que ajudemos uns aos outros, da melhor forma que pudermos; nada mais.

— Quando chegou à cabine de Madame Reyngall, havia alguém lá?

— Ninguém.

— Nem mesmo o comandante?

Era essa a tática do detetive: tocar de leve num assunto, depois passar imediatamente para o próximo, formular uma teoria e negligenciar a resposta; uma série de confirmações e negações, feitas rapidamente para desnortear o depoente.

Apesar de tudo, o Dr. Richard não forneceu nenhum detalhe novo além do que já sabiam.

— Acham que dessa maneira descobrirão alguma coisa?

— Esperamos que sim! Embora ainda haja uma ou duas coisas a fazer. O fato é que não queremos correr o menor risco de falhar.

Fëll parecia a ponto de iniciar um discurso prolongado a este respeito, quando aconteceu uma coisa estranha.

Moderando o tom de voz, ele concluiu:

— Não temos mais nada a lhe perguntar, por isso só resta lhe agradecer pela sua cortesia. Lamentamos ter tomado o seu tempo, doutor.

— Imagine... Foi um prazer.

Com um floreio, o médico ergueu o chapéu e virou-lhes as costas.

— Dr. Goulborn! — chamou Fëll antes que ele houvesse se afastado. — Gostaria que nos desse uma última informação.

Uma pausa. Pela primeira vez o impassível médico pareceu contrariado.

— Do que se trata?

— Por que está viajando pelo Oriente?

— Por diversão.

— Hum — murmurou Fëll. — E quanto ao bracelete? Também o pegou por diversão?

— Oh! — exclamou o Dr. Richard, pasmado.

Durante um longo tempo ninguém falou nada. Quando por fim rompeu o silêncio, o médico fez um comentário totalmente imprevisto.

— Eu o peguei. Admito tudo. Mas não foi por ganância, nem por cobiça. Tive uma oportunidade e agi no calor do momento. O senhor tem razão. Eu cheguei à cabine e comecei a inspecionar o corpo. Verifiquei o ferimento à bala e, claro, em menos de dez segundos já sabia que não havia mais nada que pudesse ser feito. Notei que o tripulante que tinha me levado até lá havia ido embora. Coloquei-me ao lado da cama e esperei. Daí, quase sem querer, eu reparei no bracelete semioculto por baixo do corpo. Cheguei mais perto e dei um jeito de tirá-lo cuidadosamente do braço da mulher, enfiando-o logo em seguida no bolso. Bem na hora, porque assim que terminei com aquilo, vocês entraram no camarote. Então...

Ele se virou para Fëll.

— Como o senhor adivinhou?

— Eu não adivinhei. Meu colega, o juiz, me deu a dica quando descreveu, minutos atrás, como tinha encontrado a vítima. O braço esquerdo para cima e — notem! — braço direito para trás. Para trás — ou seja, por baixo do corpo, assim como o senhor acaba de afirmar. Um pouco diferente, portanto, da posição em que a encontramos cerca de meia hora depois, uma vez que o braço de Madame Reyngall nessa hora estava à vista. Tanto assim que, no mesmo instante em que a viu, Monsieur Blancheé logo notou a falta do bracelete. Bastou só juntar os fatos e... a dedução se tornou lógica.

— Na última semana vim bancando o pateta sentimental por causa de Susan. Para uma mulher como ela, viciada em gastar com extravagância, indo de casacos de pele, diamantes até carros, a pior coisa foi submeter-se à recomendação de ficar em repouso. Imaginem o tamanho de sua decepção ao saber que não poderia vir à excursão! Assim, na noite de ontem, quando vi Madame Reyngall com o bracelete, logo fiquei imaginando como ele cairia bem em Susan. Foi pura coincidência que ela fosse assassinada e, de quebra, eu fosse um dos primeiros a chegar ao local do crime. Foi coisa de criança, eu sei, mas achei que não faria falta a ela e... o apanhei.

— Foi o que deduzi. De comum acordo, já havíamos concluído que o assassinato e o roubo constituíam dois fatos separados. Outra coisa que achei bastante esclarecedora é que, embora o bracelete tivesse sumido, o resto das joias estava lá, o que punha por terra qualquer hipótese relacionada a latrocínio. Era óbvio que, quem o tinha apanhado, fizera aquilo num ato impensado, sem nenhuma premeditação.

O Dr. Richard cerrou os dentes. A confissão parecia tê-lo deixado muito nervoso, embora a essa altura procurasse transmitir a expressão de tranquilidade absoluta.

— Que bom que pudemos falar às claras. Eu vou ser... indiciado?

— Não acho que seja o caso.

— Querem que eu traga o bracelete para vocês?

— Seria bom.

O Dr. Richard meneou a cabeça. Depois, girando subitamente nos calcanhares, afastou-se.

— Vejam só... o ogro saiu de seu calabouço! — murmurou o detetive. — O que acha disso, Warning? — perguntou Fëll de repente, como se adivinhasse sobre o que o juiz estava pensando.

Warning replicou desdenhosamente:

— Assusta-me o cúmulo de falsidades que essa gente cria. Eu não sabia que você era tão piedoso! Deixá-lo ir assim... como se nada tivesse acontecido.

— Compreendo sua justa cólera — respondeu Fëll —, mas lhe garanto que isso basta.

— Para mim não! Não me parece muito correto tratar um ladrão dessa forma. A gravidade de um roubo e as suas consequências não podem ser mitigadas por meio de justificativas.

— Oh, compreendo o que quer dizer! — disse Fëll, com uma careta. — Mas pelo que me consta, há circunstâncias atenuantes. A meu ver, um médico ligado a um caso policial e cujo nome e retrato sejam rotulados negativamente, perderia boa parte de sua clientela e credibilidade.

Uma ideia ocorreu de repente a Fëll. Seus olhos encontraram os do juiz Warning e ambos viram que estavam pensando a mesma coisa.

— O cerco está se fechando — murmurou Fëll.

Warning hesitou antes de perguntar:

— Verdade? A meu ver, tudo somado, temos muito pouco até agora.

— Nem tanto. Quero que você pense, meu caro. Siga a sua intuição. A intuição é uma poderosa arma da investigação criminal.

— Quer que eu me console com isso? — replicou Warning, sem conter a irritação. — Olhe aqui, se tem alguma informação, não acha que eu deveria saber? É uma questão de reciprocidade. Uma mão de via dupla. Eu ajudo você e você, de quebra, me ajuda.

Fëll manteve-se calado. Suas mãos começaram a tremer. Usou toda sua força de vontade para superar aquilo. Mas, no fundo, pensava triunfante: “Reciprocidade... Por Jeová que vive! Aí está a resposta a tudo!”


10.

 

Edmund Fëll tivera uma ideia. E essa ideia fora tão nítida que até parecia que já se encontrava há bastante tempo nos escaninhos de sua mente.

Fëll pôs a mão na cabeça.

— Oh! Que asno que eu sou! — gemeu. — Naturalmente. Foi isso mesmo o que aconteceu! Por que não pensei nisso antes?

Fungava. Quis dizer alguma coisa, mas não conseguiu falar. E nem teve necessidade! Warning lançou um olhar espantado e um tanto desconfiado para Fëll.

— O que foi?

— Lembrei-me de uma coisa.

— Seja um pouco mais explícito — pediu Warning.

Mas a antecipação do sucesso havia tomado conta de Fëll. Ele parecia agitado, muito agitado.

— Venha... vamos indo.

— Para onde?

— Ver Monsieur Blancheé.

Saíram do camarote e foram para a área dos elevadores. Enquanto desciam para um nível mais baixo do navio, Fëll bateu um dos pés no chão.

— Es ist noch kein Meister vom Himmel gefallen.¹

 

Acho que finalmente achamos o fio da meada. Agora resta só depurar a minha teoria.

— Que teoria?

— Já vamos descobrir, Herr Richter.

Quando o elevador parou, os dois homens saíram num corredor largo e lindamente acarpetado. As cabines da tripulação ficavam neste deck, mais aos fundos.

Com maestria Fëll rumou diretamente para uma porta, metros adiante. Bateu. A porta estreita abriu-se e apareceu Monsieur Blancheé que, após dar um sorriso de boas-vindas, disse:

— Ah! São vocês... Ouvi vozes aqui fora; até achei que o navio fosse assombrado.

Monsieur Blancheé estava pronto para uma conversa cortês. Foi preciso muito tato para fazê-lo compreender que eles queriam falar do assassinato.

Como se houvesse uma necessidade imperiosa de manter as aparências, o pianista negou obstinadamente saber qualquer coisa adicional sobre o caso.

— É tudo o que tem a dizer? — perguntou Fëll.

— Ouçam... Não achem que sou mal-educado, mas não posso conversar agora. Estou meio ocupado...

— Meio ocupado... como sempre, não é?

— Sou um músico, cavalheiros. Um músico bastante requisitado, vocês compreendem.

— Sim... sim... compreendemos... compreendemos perfeitamente... Não lhe perguntaremos mais nada.

O francês cruzou os braços sobre o peito.

— Por que não falam logo o que vieram fazer aqui, de modo que acabemos logo com isso?

— Vou dizer — respondeu Fëll —, se é o que quer. Viemos fazer uma busca em seu camarote.

— Uma busca? Que espécie de... busca?

— Vestígios... essas coisas.

Fëll falava com brandura. Monsieur Blancheé pegou seu computador portátil:

— Bem, se é só isso, fiquem à vontade. Eu preciso mesmo pegar um pouco de ar.

Dito isso, retirou-se. Fëll deu uma rápida olhada para Warning. Estavam sós na cabine.

Os olhos de Warning se estreitaram.

— O que disse que viemos fazer?

— Procurar — disse Fëll.

— Procurar o quê?

— Isso é o que logo vamos saber.

“Ou não” rosnou Warning. Aquele era o rumo que ele temia que a situação tomasse.

Havia poltronas confortáveis, mesas baixas e um bar totalmente estocado do outro lado da sala. A luz do sol se infiltrava pela vigia de vidro.

— Que navio hein! — exclamou Warning. — Uma verdadeira cidade flutuante. Sistemas de geração e distribuição de energia elétrica, ar-condicionado, sistemas de dessalinização e distribuição de água doce, sistema de coleta e tratamento de esgoto, sistema de distribuição de canais de televisão... Impressionante o que essa gente não inventa!

— Deixe a engenharia humana de lado, meu velho. Temos que ver o que há por aqui.

Palmilharam tudo de alto a baixo; encontraram uma mala com cadeado, uma carteira de viagem, um tablet, um Kindle e, numa pasta, o característico calhamaço de partituras para piano. Após um exame demorado e muito deliberado, não viram nada que despertasse particular suspeita.

Por duas vezes, Fëll segurou seu monóculo para examinar o chão (marcas? alguma sujeira?). Ele ia vagarosamente de um lado para o outro, passo após passo, mantendo o nariz abaixado e olhando cuidadosamente à direita e à esquerda. Warning também foi meticuloso, muito embora tivesse sérias ressalvas sobre a validade do que estavam fazendo ali.

— Precisamos olhar com calma, Herr Richter — disse Fëll.

Warning suspirou. Não tinha certeza se o austríaco estava jogando verde ou simplesmente não queria lhe dar maiores informações.

O tempo parecia correr vertiginosamente, embora, na verdade, só se tivessem passado alguns minutos. Num dado momento, Fëll se debruçou e tateou no bolso do chambre listrado negligentemente jogado sobre a cama.

— Descobriu algo? — perguntou Warning.

— Talvez — fungou Fëll. E, com um breve e ágil meneio de cabeça, disse pela segunda vez: — Talvez.

Fëll pôs-se de pé e, com uma mão atrás das costas, veio para junto do magistrado.

— O que tem aí? — perguntou Warning.

— Ah, percebo que está curioso!

— E quem não estaria?

— Não gosta de um pouco de suspense?

— Não, não gosto. Na maioria das vezes, quando falo com você, sinto-me como se estivesse pedindo um favor à própria Rainha Elizabeth!

— Há motivos para crer que o mistério está prestes a ser esclarecido — respondeu Fëll. — O que acha desta gracinha?

Expondo a mão com a palma virada para cima, mostrou uma pistola curta de cano largo. À vista daquilo, o rosto de Warning exprimiu a mais genuína perplexidade.

— Mas é a arma do crime!

— Provavelmente.

— Igualzinha à descrição feita pelo Dr. Goulborn.

— Sim.

— Mas é... incrível! — Warning não parava de se admirar.

— Penso que é tudo quanto precisamos, não é mesmo? É como eu vivo dizendo... Vontade e objetivo conseguem sobrepujar qualquer adversidade.

— Como adivinhou que encontraríamos isto aqui?

— Foi um palpite.

— Um palpite e tanto, pelo jeito. Ora essa! Primeiro, aquela clave... ou o que quer que seja. Agora a pistola que estávamos procurando. Pianista... Um assassino, isso sim é o que ele é. Logo vi que havia alguma coisa por trás daquela cara de santo. Que sujeitinho esperto hein? Querendo nos enganar. Ah! Mas ele vai ver só. Vou remediar isso já.

Reagindo prontamente, Warning dirigiu-se para a porta do camarote.

— Aonde vai?

— Vou falar com a polícia, claro. Eles que se virem com o resto.

— Não, não — disse Fëll, empertigando-se. — Ainda é cedo.

— Cedo? Não acha que está sendo excessivamente cauteloso?

— Eu já esperava que me dissesse isso. A resposta é não. Temos que ser mais discretos do que nunca.

O juiz torceu a cara.

— Ó Deus, me ajude! Às vezes tenho a impressão que você é um burro teimoso. Quando finca o pé, não há ninguém que o tire do lugar!

— Mas nós não fincamos o pé. Nosso caso foi solucionado.

— Por que, então, não me elucida seja lá o que for? Que coisa deplorável e covarde! Não precisa ser tão repugnante para me impressionar.

— Assim que der, eu conto tudo. Deve compreender que não vou falar disso... ainda não. Pelo menos não pode dizer que não sou honesto. Venha... Apreciaria uma conversa com o comandante.

— Ué! Por quê?

— Para que nos ajude a formar uma pequena reunião com alguns de seus valorosos passageiros.

— Quer dizer que já formou uma opinião sobre o crime?

— Eu diria que cheguei a determinadas conclusões. Conclusões que não podem ser desprezadas.

Pegaram o elevador e subiram; depois de atravessar o tombadilho, chegaram à ponte de comando.

O comandante era um homem enérgico, dos seus 45 anos, com barba uniforme e cabelos curtos. Virou-se e olhou para os dois intrusos. Quando os reconheceu, porém, o rosto duro ficou inesperadamente suave.

Fazendo um relato dos acontecimentos, Fëll falou sobre os indícios, testemunhas e motivos em torno do assassinato de Madame Reyngall. Em seguida frisou, com prova segura, que já sabiam quem era o assassino.

As pesadas pálpebras do comandante se fecharam por um momento. Maravilhado, soltou uma ligeira interjeição de alívio.

— Eazim! Não suportava mais a tensão. Temia até que fosse enlouquecer.

— Preciso de um favor seu, Herr Kommandant.

— Qualquer coisa que quiser.

— Quero que tenha a bondade de encaminhar alguns passageiros ao Guardian. Fiz esta lista com os nomes: Monsieur Blancheé, Mrs. Goulborn, o Dr. Goulborn, Miss Wexster, Graig Butscher, Miss Saunders e... sim... Mr. Akhmeed.

— Pode deixar. Verei o que posso fazer.

— Creio ter a solução para o caso — completou Fëll —: quero expô-la diante de todos.

 

¹ O saber não cai do céu.


11.

 


Mr. Akhmeed foi o último a chegar ao restaurante.

Um clima hostil se estabeleceu imediatamente, quase fisicamente perceptível entre ele e Monsieur Blancheé.

— O que houve? — perguntou o árabe. — O que significa tudo isso? Queria me ver, Mr. Fëll?

— Sim, Mr. Akhmeed... Obrigado por vir — começou o detetive. — Desculpe-nos chamá-lo. Trata-se, porém, de uma informação que só o senhor pode nos dar.

Fëll transpirava cortesia por todos os poros.

Monsieur Blancheé cruzou os braços sobre o peito numa clássica postura defensiva.

— Por que fomos chamados até aqui? Não compreendo nada — disse ele. — Não compreendo absolutamente. Diga-me — prosseguiu — sabe quem matou minha ex-mulher?

— Vamos dizer que estou cautelosamente otimista.

— Espero que esteja! Não adianta nada filosofar sobre coisas que, por enquanto, não têm explicação.

— Bem!... Vamos ver.

— Só para deixar bem claro — disse Graig, apertando a mão da namorada. — Elsie não tem nada a ver com isso.

— Bom saber, Mr. Butscher.

— Nem nós, não é, Rich? — emendou Mrs. Goulborn.

— Sim, mamãe... Agora fique quieta. Não diga nada.

Fez-se uma pausa. O silêncio só era interrompido vez por outra por um suspiro ou um pigarreio.

O detetive esfregou as mãos e levantou-se.

— Todos conhecem os fatos ocorridos. Madame Reyngall foi encontrada morta, baleada, esta manhã. Foi vista com vida a última vez na noite passada, às onze e meia, quando falou com Monsieur Blancheé. O Dr. Goulborn, que examinou o cadáver, calcula a hora em que ocorreu a morte entre onze e às duas horas da madrugada. De acordo com ele, o ferimento tinha sinais de queimadura... indício que demonstrava que o tiro fora dado com a arma posicionada perto da têmpora da vítima. Esse dado é relevante, pois mostrava que, ao efetuar o disparo, o assassino estava perto de Madame. Supomos assim que ambos estavam de frente um para o outro. Mas o que faziam? Estariam conversando ou... quem sabe... entretidos numa briga? Pela situação geral da cabine, e das marcas de dedos no antebraço da vítima, votamos pela segunda opção. Desta forma, chegamos a uma conclusão bastante curiosa: o assassino tivera permissão para entrar no camarote, mas, por algum motivo, Madame não demorara a se engalfinhar com ele. Por quê? Será que houvera um súbito desentendimento entre os dois, no que A puxara o revólver e atirara nela? Talvez, mas havia outra hipótese mais aceitável. Suponhamos que A fosse alguém estranho para Madame Reyngall; alguém que ela não conhecesse; alguém, principalmente, de quem ela não ouvira sequer falar. Vamos supor agora que essa pessoa, de alguma forma, quisesse matá-la e...

Mr. Akhmeed soltou um grunhido.

— Desculpe, eu não quero ser grosseiro, mas é claro que ela conhecia o agressor! Se se tratava do próprio ex-marido dela! — e apontou acintosamente para Monsieur Blancheé.

Fëll empertigou-se um pouco mais.

— Não se aflija com isso. Proponho que selecionemos e cataloguemos as informações que nos foram fornecidas antes de formular qualquer acusação. Não podemos fazer as coisas pela metade. Como eu ia dizendo, imaginem um estranho batendo na porta da cabine de Madame Reyngall. Um estranho que ela talvez já tivesse visto entre os passageiros, mas de quem nada soubesse. De alguma forma, ele diz algo que desperta a atenção dela. Algo, vamos dizer, relacionado a Monsieur Blancheé, por exemplo. O que ela faz? Abre a porta e deixa que A entre. Tendo conseguido o que queria, este puxa o revólver e, dizendo qualquer coisa como: “Perdão, não é nada pessoal”, dá o tiro. Ouve-se um estampido e... ela cai estatelada no chão.

— No chão não — disse Warning. — Na cama.

— Nein, Herr Richter. Madame Reyngall foi arrastada e posta na cama depois de morta.

— Mas com que propósito o assassino faria isso?

— É justamente isso o que estou tentando demonstrar. Também pensei nisso: “Qual teria sido o propósito do assassino? O que será que ele quisera com aquilo?” É por isso que os convoquei até aqui. Um de vocês assassinou matou Madame Reyngall. Mas quem?

A pergunta quicou pelo recinto como uma pedra jogada em ângulo agudo na superfície da água.

— No centro da teia — acrescentou o austríaco —, a aranha sabe da força do vento, da queda de uma gota de chuva e do bater das asas de uma mariposa. A aranha só faz uma coisa: estende as suas garras e fica à espreita. Agora eu estou no centro da teia. Olho para frente e num dos fios está o Dr. Goulborn. Seria o Dr. Goulborn o assassino? Ele... que com sua pinta de conquistador... deu em cima de Madame Reyngall!

— Eu?! Eu nunca dei em cima dela!

A cabeça de Fëll escorregou de lado, descansando no ombro.

— Será que não? É incrível como algumas coisas se fixam na mente e não saem mais dali. Não foi isso o que ela disse para mim.

Mrs. Goulborn gemeu. Suas pálpebras se estreitaram em fendas, lágrimas corriam dos cantos de seus olhos descendo até as bochechas.

— Não foi Rich! Não, não, mais uma vez não!

— Fique calma, Madame. Estamos só conjeturando. Às vezes é bom abrir novas possibilidades. Muito bem. Passemos a outra hipótese. E se os culpados forem Mr. Butscher e Miss Wexster?

— De jeito nenhum — replicou Graig. — Está sendo injusto. Nunca permitirei que diga isso!

— Tenho que admitir que também não vejo nenhuma ligação — disse Warning.

— Pude ver logo de saída que Miss Wexster não aturava a patroa. Ainda consigo ouvi-la dizendo: “Ela é a mulher mais mesquinha, vulgar e mandona que existe. Às vezes tenho vontade de esganá-la.” Isso foi ontem. Hoje, entretanto, as palavras de Miss Wexster já eram completamente diferentes. Tudo o que ela diz se resume a isso: “Pobre Madame Reyngall, uma mulher tão inteligente!” ou “Vocês nunca terão a chance de conhecê-la e sentir quão amável e graciosa ela era”. Diga-me, por que a senhorita, passado apenas um dia, moderou tão radicalmente o seu discurso?

Já que Elsie se mantivesse em silêncio, Fëll prosseguiu:

— Teria sido porque a senhorita se arrependeu do que disse e, pensando melhor, achou que poderia se ver em apuros se persistisse em seus comentários depreciativos? Ou teria sido porque a senhorita e Mr. Butscher mataram Madame Reyngall e, numa tentativa equivocada de afastar de si as suspeitas, resolveram começar a falar bem dela, como se a convivência entre vocês sempre tivesse sido pacífica e harmoniosa? Há muitas coisas que reforçam a possibilidade dessa teoria. — Fëll curvou discretamente a cabeça e acrescentou: — Como veem, sabemos mais do que pensam.

Graig riu de modo incerto e nervoso.

— Eu não sei o que aconteceu naquela cabine... Mas posso assegurar que, seja lá o que for que tenha sido, Elsie e eu não temos nada a ver com aquilo!

Fëll, impassível, olhou ao redor:

— Desde já, convém salientar que, conforme eu disse, essa foi uma dentre várias outras hipóteses. Antes de qualquer coisa, um detetive deve ir juntando o mosaico para, aos poucos, formar uma imagem. Todos esses elementos, em larga medida, são lugares-comuns numa investigação. Mas, muito mais importante, é saber com quem se está lidando; como o assassino pensa; o que realmente o motiva e como ele planejou o seu crime. E, no presente caso, havia tanto em que pensar! E foi isso o que eu fiz. Pensei, pensei e pensei... Só aí comecei a compreender que uma coisa tremenda devia ter acontecido. O assassinato... o corpo fora de lugar — tudo parecia parte de um cenário previamente montado. Mas montado para o quê? Aos poucos fui me convencendo de que, por trás daquilo, se ocultava alguém que queria que outra pessoa fosse responsabilizada pelo crime! Que queria que a culpa recaísse de propósito sobre Monsieur Blancheé. Alguém, digamos, em resumo e de maneira simples: Mr. Akhmeed.

Por alguns segundos, tudo pareceu estar de pernas para o ar.

Alim Akhmeed pôs-se a rir. De início, foi uma risada hesitante, como se ainda não soubesse por que estava rindo, mas logo se transformou numa estrondosa gargalhada.

— Essa é boa! Muito boa. Não está pensando que eu a matei, não é mesmo? Eu... Escutem...

Depois, interrompeu-se, encolerizado, e, voltando-se para Fëll, gritou:

— Não tenho a dizer nada sobre isso! Ouviram?...

— Sim, o senhor tem qualquer coisa a dizer sim — replicou o detetive, com firmeza. — A verdade!

— O senhor não tem o direito de especular nem a autoridade para me humilhar, Mr. Fëll.

— Tenho, Mr. Akhmeed. Tenho sim.

— Ah é? Quer dizer que agora estou em sua alça de mira? — O árabe estava vermelho de fúria, as veias da testa saltadas. — O senhor deve estar delirando. Eu não cometi crime nenhum. O senhor... é biruta!

— Não, não sou biruta — respondeu Fëll. — Há um elo invisível que conduz direto ao senhor. Vou começar do início, como se diz. Madame Reyngall está morta. De certo modo, eu... dummer Mensch!... me sinto culpado por isso. Eu estava à sua mesa, Mr. Akhmeed, quando o garçom entregou para mim o bilhete de Madame Reyngall. Naquela hora não me contentei em lê-lo... Não! Possuído por um impulso tolo e cego, li o bilhete e o repassei para o senhor. Ich, der große Idiot!... Foi tudo o que bastou para que a fagulha de um plano aflorasse em sua mente. O senhor embarcou neste navio movido por uma convicção interior de que Monsieur Blancheé era o responsável pela morte de sua estimada irmã. O senhor embarcou neste navio com o coração envenenado pelo ódio, guiado por um desejo de justiça a todo custo, de um implacável e irrevogável sentimento de vingança. O senhor, desde nossa primeira entrevista, quis somente uma coisa: que eu fizesse Monsieur Blancheé pagar por todo o mal que lhes causara. O fato, porém, é que não se pode agir à parte da lei, nem acusar ninguém sem ter provas condizentes. Foi essa uma das primeiras coisas que eu lhe disse. Foi uma das primeiras coisas que eu lhe expliquei — não uma, mas diversas vezes. Mas o senhor não queria desculpas; o senhor queria que eu lhe proporcionasse resultados! Resultados imediatos. Em vez de me escutar, o que aconteceu é que o senhor começou a se aborrecer comigo, começou a achar que eu estava embargando o seu justo e correto desejo de levar um assassino à prisão. Mas a pergunta que se impunha era: que assassino? Não há dados, por enquanto, que sustentem tal suposição. E, pior, a minha relutância deixou o senhor irritado, irado até. Pois bem, quando viu o bilhete, uma súbita determinação se apossou de seu ser. Vejam só, agora havia uma alternativa! Existe um lema que diz: Se você não consegue atingir o rival diretamente, atinja-o em seu ponto mais fraco. E qual, hipoteticamente, é o ponto fraco de um homem? A mulher. Ou, no caso de Monsieur Blancheé, a ex-mulher. Ora, aí estava! Se não se podia colocá-lo atrás das grades, Monsieur Blancheé pagaria de outra maneira. Monsieur Blancheé não se safaria impunemente do que havia feito! Tendo-se convencido disso — Fëll voltou-se para seus ouvintes —, Mr. Akhmeed iniciou a elaboração de seu novo plano. O seu plano extra, digamos assim. Sorrateiramente, ficou observando os dois, até que, ontem à noite, os viu juntos. Às onze e meia, ou pouco depois disso, foi ao camarote dela, bateu na porta e disse... acho eu... alguma coisa relacionada ao ex-marido dela. Mas não bastava matá-la; não, era preciso, de alguma forma, fazer com que o crime parecesse ter sido cometido por Monsieur Blancheé. Além de largar um ridículo pedaço de papel com rabiscos de um símbolo musical no camarote de Madame Reyngall, ele, hoje de manhã, desovou a arma do crime no bolso do chambre de Monsieur Blancheé.

“Por pura objetividade, vou explicar por que o senhor fez o que fez. Os motivos são dois. O primeiro: O senhor queria incriminar seu... ex-cunhado! Alegadamente porque ele teria matado Priscila Akhmeed... e a polícia, em sua opinião, cuidara do caso de modo insípido e negligente... desajeitado até. O segundo motivo deve-se à sua convicção de que quem faz o mal, deve ser punido... de alguma forma... seja lá como for. Estou certo?”

— É o senhor que está dizendo! Não tenho nada a declarar.

— Nada a declarar em sua defesa?

— Não!

— Mande vir um guarda, Herr Kommandant.

A ordem do detetive deixou o árabe furioso.

— Esse sujeito... o maldito cão-de-caça... matou Priscila! Matou... Será que o senhor não vê? Olhe bem para ele! Olhe... e veja!

— Quanto a isso — respondeu Fëll —, ainda temos que avaliar minuciosamente os fatos que dizem respeito a esse incidente. Eu sei o que pode acontecer quando passamos por situações aflitivas. Nessas horas, podemos ficar tão arrasados a ponto de deixar de ver as coisas na devida perspectiva. Talvez Monsieur Blancheé tenha matado, talvez não... Antes de emitir um veredito, é preciso abarcar tudo, todas as possibilidades, por menores que sejam. Não podemos ser parciais. Não podemos querer resolver tudo a jato! De início a paciência pode parecer ruim, mas depois acaba sendo algo bom.

Houve um silêncio momentâneo. Um guarda entrou e, providencialmente, levou Mr. Akhmeed para fora.

— Mas que dia! — exclamou por fim Mrs. Goulborn.

— Pelo jeito a senhora já se sente melhor — disse Fëll, em tom tranquilo.

— Sim, bem melhor. De qualquer maneira, espero não viver outra aventura igual.

— O seu relato foi admirável! — elogiou Fyona. — Que bom que tudo correu muitíssimo bem!

Todos olharam com novo respeito para Fëll; este sentiu-se corar.

— Não poderia ser de outra forma — disse Fëll. — Quando tudo coincide com os fatos apurados, a solução do caso se torna se torna só uma consequência.

— Você tem realmente a plena certeza de que ele seja o culpado? — perguntou Warning.

— Essa é a única explicação possível, não acha? Por que essa cara de desgosto, mein Freund!

— Não é desgosto; é que eu não quero ser leviano. É de fundamental importância, tanto para o inquérito como para a apuração de responsabilidades, que todos os detalhes concordem entre si.

— Por falar em detalhes, tenho que parabenizá-lo! Afinal, foi graças às suas ponderações que cheguei ao fundo deste caso.

— Minhas ponderações? Que ponderações?

— Aquela história sobre reciprocidade. Eu faço algo por você, você faz algo por mim... lembra-se disso? Pois é... Quando ouvi você arrazoando sobre isso, me ocorreu que talvez fosse esse o motivo do assassinato de Madame Reyngall. Quem fere, deve ser ferido. Quem traz prejuízo a outros, deve sofrer prejuízo. Assim, em retribuição à sua perda, Mr. Akhmeed causou uma perda semelhante ao seu algoz. Pretende dizer alguma coisa, Dr. Goulborn?

O médico baixou os olhos e respirou fundo para tomar coragem.

— Isto é muito embaraçoso. Mas eu só queria pedir... se for possível... que esqueçam aquele meu pequeno delito. Foi uma fraqueza momentânea...

— Ah, sim! Wunderbar. Quanto a isso, fique descansado.

— De que fraqueza está falando, Rich? — perguntou Mrs. Goulborn, incrédula.

— Não é nada, mamãe. Nada.

— E quanto a mim? — interveio Monsieur Blancheé. — Me dá raiva, muita raiva, supor que ainda exista gente que pense que eu matei Priscila!

Os olhos de Fëll pousaram sobre o pianista.

— Ah, eu não me aborreceria por tão pouco — disse ele gravemente. — Tal como mencionei, não existe nenhuma base documentada para supor que o senhor esteja envolvido naquilo. Na sequência do apurado, ficou devidamente provado e fora de qualquer dúvida razoável que foi um caso de assassinato. Mas as circunstâncias em que o crime foi perpetrado ainda são um mistério.

— Assassinato?... Crime?... — respondeu venenosamente Monsieur Blancheé. — Isso é pura conversa fiada! Eu já lhe disse que ela se matou.

— Eu sei que disse. Mas não é isso o que consta nos autos. Se necessário, vou enviar uma requisição ao Departamento de Justiça francês para que o caso seja reavaliado.

— Rea-va-lia-do? — soletrou Monsieur Blancheé em tom irônico, mas sério. — O senhor deve ser neurótico! Bem, se não há mais nada...

Ele se levantou e saiu. Houve um grito e logo Mrs. Goulborn seguiu correndo atrás dele:

— Monsieur! Monsieur! Um autógrafo, por favor.

Fyona olhou para o Dr. Richard:

— A sua mãe tem uns pulmões! — comentou calorosamente.

— Ela é meio doida — declarou o médico, meio sem jeito. Sorriu: — Perdoe minha ousadia, mas a senhorita não que me ajudar a pôr um pouco de juízo na cabeça dela?

Fyona teve um estremecimento.

— Oh! Seria um prazer...

Os dois se retiraram de braços dados.

Fëll e Warning se entreolharam por uns momentos.

— Bom saber que está tudo liquidado — disse o juiz. — E agora? O que faremos daqui por diante?

— Estamos a caminho de Fujairah, não estamos? — disse Fëll com um débil sorriso. Ele fez uma pausa e mudando o tom, acrescentou: — Agora que podemos considerar encerrado esse desagradável caso, o que acha de seguirmos viagem?

 

 

                                                                  Alec Baurer

 

 

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