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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O ENÍGMA DO SANTO SUDÁRIO / David Zurdo
O ENÍGMA DO SANTO SUDÁRIO / David Zurdo

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

Em fins do século XIX, sob a Pont au Change de Pa­ris, no leito do Sena, foi encontrado um misterioso meda­lhão de chumbo. Nele estavam gravados os escudos das casas de Charny e de Vergy, e, entre eles, a imagem do Santo Sudário de Cristo.

O medalhão foi estudado por um professor da Univer­sidade de Sorbonne. Ali, escondido em seu interior, gra­vado no metal, ele descobriu uma enigmática mensagem templária.

Atualmente há uma cópia do medalhão exposta no Mu­seu de Cluny em Paris.

 

 

 

 

                                 1502, Florença, Roma

A luz transparente da manhã fazia cintilar a água da fonte que ficava no centro da Piazza delta Signoria, em Florença; essa mesma praça que, alguns anos antes, havia presenciado a morte na fogueira do iluminado Savonarola e que abrigaria orgulhosa, pouco depois, o colossal David, de Michelangelo. Passeando em volta da fonte, um homem impecável e elegantemente vestido, com uma ampla túnica rosada, parecia estar absorto em seus pensamentos, alheio à agita­ção da praça, ao som das rodas das carruagens nos paralelepípedos, às vozes dos mercadores e das vendedoras, ao movimento dos fun­cionários do Palazzo Vecchio e da Logia delt'Orcagna. Distinguia-­se por seu tamanho, e a barba prateada que ostentava inspirava res­peito, que era acentuado pela expressão de seu rosto, de rara beleza, pelo seu olhar profundo e seu caminhar majestoso. Era o Divino Leo­nardo Da Vinci, que contava então com 50 anos e há vários meses traba­lhava como engenheiro militar, a serviço de César Bórgia.

Leonardo refletia sobre uma nova ordem de seu patrão, uma obra de difícil execução e complexa, que ficava entre a arte e a ciên­cia. A confiança de Bórgia em suas aptidões era grande, já que havia conseguido planejar com êxito a defesa das fortalezas que aquele possuía em Roma. Mas isso era muito diferente, uma incumbência que devia ser mantida sob o maior sigilo e que Leonardo não estava certo de poder cumprir.

À medida que o sol de fim de verão, esplendoroso, desenhava seu arco sobre o horizonte, o movimento da praça ia diminuindo. Era meio-dia, e quase todos estavam almoçando ou descansando do tra­balho da manhã. Mas Leonardo seguia, imperturbável, dando voltas tranqüilas ao redor da fonte, com o olhar longe, sossegado, perdido em lugares muito distantes.

Subitamente, o Divino levantou os olhos, muito abertos, na di­reção do Astro Rei. Suas pupilas se contraíam ao receber a fúlgida luz. Deslumbrado, virou os olhos, baixando a cabeça, e os fixou no piso da praça. Manteve-se imóvel por alguns instantes e depois saiu correndo. Suas passadas eram largas; teve de levantar a túnica com as mãos para que não tropeçasse nela e caísse. Em seu rosto, a ex­pressão de um menino entusiasmado.

Atravessou a praça, passando em frente ao Palazzo Vecchio e deixando para trás os grandes arcos da Logia, e dirigiu-se a toda velocidade a seu ateliê, situado muito perto dali. Quase foi atropela­do por uma carruagem ao virar a esquina, mas nem isso o deteve. Parecia possuído, talvez pelo gênio criador de um artista incomparável.

E, ainda que costumasse parecer tranqüilo, sereno, sempre pen­sativo, quando uma idéia com a força de uma torrente o invadia, era capaz de comportar-se como um rapazote.

Às vezes, em seu trabalho, a energia parecia tomar conta dele, enquanto em outras ocasiões passava horas e horas, até mesmo dias, em um estado contemplativo. A inspiração era metade de sua genialidade; a outra metade, a reflexão intelectual. Por isso havia ad­quirido fama de artista lento e parcimonioso, o que demonstram os três anos investidos em pintar sua obra-prima, a Santa Ceia, em uma parede do refeitório de Santa Maria delle Grazie, em Milão.

Uma semana antes, César Bórgia o havia feito ir até Roma. Apesar de Leonardo estar a serviço dos Bórgia, que não eram muito populares em Florença, ele conseguira permissão para viver na cida­de que era tão próxima a Vinci, sua cidade natal. No meio da noite um emissário o despertou com uma mensagem de César: deveria acompanhá-lo imediatamente, sem perder tempo com preparativos.

Leonardo tinha um espírito afável, porém reservado e indepen­dente, e por isso sentia-se contrariado quanto tinha de atender aos caprichos dos diferentes patrões para quem trabalhara ao longo de sua vida. E César Bórgia era, além disso, uma figura intrigante. A auréola que o rodeava e a fama dos terríveis crimes que possuía faziam estar sempre alerta quem se relacionasse com ele. Era difícil saber o que se passava em sua mente, já que seu rosto nunca expressava suas íntimas e verdadeiras intenções. Podia estar sendo devorado pelos lobos e, ainda assim, sorrir e disfarçar a dor; um homem brilhante e perspicaz, que, não obstante, raras vezes se comportava com autêntica naturali­dade, sempre oculto sob a impassível máscara da astúcia e do cinismo.

Quando Leonardo chegou a Roma, foi conduzido diretamente ao palácio do Vaticano, residência do Sumo Pontífice. Ali, César e seu pai, Rodrigo, papa com o nome de Alexandre VI, o esperavam com impaciência. Naquela época, a fama de Da Vinci já era grande na Itália, França e no restante da Europa. Todos o apreciavam como artista magistral e competente engenheiro, sendo que em um sentido moderno quase poderia ser considerado o pai da engenharia. E, ain­da que a admiração de seus contemporâneos não o envaidecesse, fazia com que fosse tratado com profundo respeito. Por isso, os Bórgia demonstravam consideração e amabilidade, tratando-o com delica­deza, algo que não costumavam fazer com a maioria de seus servido­res ou protegidos.

A agitação dos dois cabeças da poderosa família se devia a um fato ocorrido nos dias anteriores, instigado por eles mesmos tempos atrás, mas que tivera um resultado repentino e inesperado. César havia tomado conhecimento, em livros e documentos que estavam guar­dados na Biblioteca Vaticana, de lendas que relatavam os poderes do mítico Sudário com a imagem de Jesus, o Lençol no qual o humilde galileu fora amortalhado após morrer na cruz e no qual havia estado envolvido, segundo as Escrituras, duas noites e um dia antes de sua ressurreição. Desde a metade do século XV, o tal sudário encontra­va-se sob possessão de uma das dinastias italianas mais poderosas, os Sabóia, que, após um grande número de disputas, o haviam recebido como legado de seus anteriores curadores, os franceses Charny.

César queria ter o Sudário para si, o símbolo protetor que con­servaria e aumentaria seu poder e talvez apagasse os vestígios de suas atrocidades. Mas os Sabóia eram seus inimigos, e inimigos po­derosos que não permitiriam que lhes tomassem tão apreciada relí­quia. Somente a refinada astúcia do jovem Bórgia poderia traçar um plano para consegui-la. E esse plano tomou-se, no fundo, mais sim­ples do que ele havia imaginado, já que apelava a um dos aspectos mais íntimos e acerbos da natureza humana, ao mais baixo instinto do homem: a lascívia.

Os Bórgia enviariam uma mulher jovem, bonita e sem escrúpu­los para seduzir Carlos, o jovem filho de Filiberto, duque de Sabóia; este, encantado pela irresistível fêmea, a um pedido seu, lhe mostraria o Sudário, cuidadosamente guardado, satisfazendo nela um desejo que seria recompensado com o prêmio da carne. A mulher lhe ado­çaria os lábios, obrigando-o a concessões cada vez maiores, até o momento em que subtrairia a relíquia e fugiria de Chambéry, levando-­a consigo.

O plano tinha dado certo. Inclusive antes do que César havia previsto. Carlos de Sabóia, mesmo sendo somente um garoto, su­cumbiu aos encantos da pérfida agente dos Bórgia. Deixou-se envol­ver, em sua ingenuidade, pelas falsas palavras de amor e permitiu que o estimado Sudário fosse roubado. Isso resultou em uma reação da famí1ia, reação que César previra. Em primeiro lugar, manteriam o ocorrido em segredo, tanto para preservar o bom nome do rapaz como para evitar a revolta do povo, que venerava a relíquia, ainda que ela houvesse sido mostrada em pouquíssimas ocasiões. Porém, além disso, tentariam descobrir quem estava por trás do roubo, já que era improvável que uma só pessoa houvesse tramado tudo, con­seguido autorizações falsas para penetrar em território saboiano e recebido as informações necessárias e precisas para realizar seu in­tuito. E era justamente isso que causava agitação entre os Bórgia: necessitavam fazer depressa uma cópia do Lençol, tão exata que nin­guém pudesse distingui-la do original; assim poderiam devolvê-la aos Sabóia, alegando que a ladra não havia sido presa em seus territó­rios. Ficariam com a relíquia autêntica e ainda obteriam uma vanta­gem diplomática.

Mas César, apesar de não ser um expert, como homem do Renascimento, culto, refinado e capaz, sabia que não seria fácil pintar uma cópia idêntica da tênue imagem do Sudário. Nesse ponto entra­va Leonardo, o mais admirado pintor da Itália, um homem de grande bagagem artística e científica, mestre da naturalidade, da figura inte­grada ao ambiente, do sfumatol (Técnica aplicada na arte da pintura para designar paisagens esfumaçadas, que não são muito nítidas). Se alguém poderia consegui-la, sem dúvida esse alguém era ele.

- Bem-vindo, querido mestre - disse o papa Alexandre, quan­do Da Vinci se aproximou dele e lhe fez uma cortês reverência beijando seu anel. - Queira perdoar meu filho. É sempre muito im­pulsivo.

- Sua Santidade não necessita pedir desculpas a vosso humilde servidor. Explicai, se achardes que deveis, o motivo de tanta ur­gência - respondeu Leonardo docemente, mas com uma ponta de irritação.

César, um pouco afastado, observava os dois, com seu olho de ave de rapina, escrutador, capaz de atravessar a alma dos homens com um olhar. Pela primeira vez interveio, em seu tom habitual, mais enérgico que o de seu pai, quase ameaçador:

- Da Vinci, temos uma incumbência para vós. Deveis avaliá-la sem mais rodeios.

- Pois bem, senhor. É melhor economizar cerimônia. Mostrai­-me, pois, de que se trata.

- Antes de satisfazer vossa curiosidade, dizei-me somente: que sabeis do Santo Sudário?

Leonardo compreendeu imediatamente muito mais do que deu a entender com sua resposta. Preferiu deixar-se levar por César; não era conveniente demonstrar uma sagacidade que só aquele em sua soberba acreditava possuir.

- Conheço o mito - disse com desinteresse. - Uma tela que mostra a imagem de um corpo. É venerada como se fosse a imagem de Cristo - notou como o rosto de César se incendiava ligeiramen­te, ainda que este não perdesse a calma.

- Nada mais?

- Nada... Na realidade, sim. Creio que pertence à casa de Sabóia, não é isso? Embora haja cópias espalhadas por toda a cris­tandade.

Dessa vez, César preferiu não responder às palavras de Da Vinci, cheias de uma insolência sutil o suficiente para evitar qualquer ataque direto. Dirigiu-se lentamente a um baú de prata, abriu-o e tirou dele o Sudário dobrado em quatro, modo tradicional de conservá-lo desde os tempos de Edessa (Antiga cidade da Mesopotâmia, de religião muçulmana) e que recebe o nome grego de tetradiplon.

Ao ver o conhecido rosto de Jesus, que ocupava o centro da metade superior - el Mandylion (Relíquia venerada em Bizâncio durante séculos e que é associada ao Santo Sudário) -, Leonardo ficou maravilhado com a delicada imagem, sem dor, solene e cheia de paz. Se ele já houvesse visto antes esse rosto, não teria conseguido disfarçar. Tinha a expressão do artista que contempla uma obra superior e compre­ende claramente que ela o é. Só conseguiu exclamar:

- Oh! Que beleza tão serena!

O papa Alexandre lançou um olhar de aquiescência a seu filho, e ele, ainda que ferido pela ironia de Leonardo, retribuiu friamente. Era fácil perceber quem comandava verdadeiramente a família Bórgia.

- Vejo que também partilhais da admiração de todos os que a viram - disse César com desdém.

- Agora o compreendo, agora o compreendo... – Leonardo estava completamente absorto devorando a Imagem com o olhar.

- Que é que compreendeis? - perguntou-lhe então o papa.

- Compreendo por que a chamam ''figura não pintada por mão humana" - respondeu Da Vinci ainda envolvido na contemplação. - Seria impossível que um homem a houvesse criado.

A expressão de César mudou ao ouvir essas palavras. Seu ges­to altivo e vão tomou-se extremamente grave.

- Pois deve haver quem a copie - interveio irritado, quase gri­tando.

Na ampla habitação, ricamente decorada, tudo silenciou. Pare­cia que os anjos do afresco que decorava o teto haviam feito uma pausa em seu trabalho alegórico, observando-os desde as alturas celestiais e esperando uma solução. Os grandes espelhos, de doura­da moldura, situados no centro de cada parede, refletiam impassíveis a imagem dos três homens e criavam um ambiente onírico irreal.

Logo, Leonardo disse com uma infinita franqueza:

- Eu não sou o artista adequado. Não poderia imitar o Sudá­rio. Falai com Michelangelo; talvez...

- Esquecei Michelangelo! Como me falais dele, que tanto vos deprecia? Sois um homem com talento, mas totalmente irreflexivo e caprichoso - vociferou César encolerizado.-- Não vos pago para que digais que não se pode fazer. Não vos pergunto se é possível fazer: pergunto-vos quanto tempo ireis demorar.

A existência de Leonardo Da Vinci, no aspecto pessoal, basea­ra-se em evitar a todo custo qualquer confronto. De fato, buscava sempre reconciliar-se com todos os que, muitas vezes por rivalidades incitadas por terceiros, iniciaram alguma disputa ou discórdia. Inclu­sive estava disposto, quando necessário, a rebaixar-se, a assumir parte de uma culpa que muitas vezes nem tinha, pois era de natureza cordial e amável, em nada vaidoso ou orgulhoso. E ainda que essa atitude lhe houvesse proporcionado alguns episódios infelizes, sobretudo com Michelangelo Buonarotti - a quem, em segredo, admirava -, pre­feria continuar mantendo essa postura.

- Está bem - aceitou Leonardo, inclinando a cabeça. - Tenta­rei fazer o que me pedis, senhores. Mas não posso prometer nada. E, quanto ao tempo, necessitarei de pelo menos um ano; pode ser que mais...

- Tereis quatro semanas ao todo - disse César já aparente­mente calmo. - Não dispomos de mais tempo.

- Sabemos que o fareis com vossa costumeira mestria - in­terveio o papa. E, tentando lembrar-se, perguntou: - Como era mes­mo vossa divisa, Leonardo?

- Obstinato rigore, santidade - respondeu este com um fio de voz.

- Obstinado rigor de alcançar a perfeição. É isso: obstinado rigor.

 

                                   1888, Paris

A noite estava fria e desagradável. A Cidade Luz, Paris, toma­va-se, nessas horas, um manto de sombras, no qual a iluminação da rua quase não podia penetrar. A iluminação a gás ainda não havia chegado àquela parte da cidade. No ar, um fétido cheiro de mofo que exalava do Sena se misturava com o repugnante aroma de peixe po­dre das mercearias e das imundícies que eram jogadas no rio. E para completar o fedor de cerveja rançosa que vinha das pouco recomen­dáveis tabernas. Aquele era o lugar onde assassinos, bêbados e pros­titutas se divertiam até amanhecer e onde terríveis figuras tramavam intrigas e mortes.

Jean Garou ia para casa, como todas as noites, porém um pou­co mais tarde que de costume. Administrava uma peixaria que havia pertencido à sua família durante gerações, próxima ao cais: uma casi­nha de madeiras podres que já tivera melhores dias. Dirigiu-se ao cais, olhando para todos os lados com medo e tentando examinar as sombras. Já fora atacado várias vezes; em uma delas inclusive ficou ferido gravemente. Ao se lembrar desse fato, passou a mão pelo ros­to quase se esquecendo da cicatriz que lhe atravessava as boche­chas. "São maus os tempos para os homens de bem", sussurrou. Ouviu ao longe o uivo de um melancólico cão, como se este quisesse confirmar suas palavras.

Jean olhou para o céu. As nuvens cobriam grande parte dele, ainda que às vezes a lua cheia conseguisse mostrar-se. Sua luz ilumi­nava a catedral de Notre Dame, que ficava a leste, na ÎIe de la Cite, dando-lhe uma silhueta fantasmagórica. Havia muitas lendas a respei­to dessa catedral, antigos mitos sobre sociedades secretas e podero­sos cavaleiros. Garou perguntava-se sempre o que haveria de real naqueles contos de bruxas.

Algo aconteceu quando a lua apareceu novamente entre as nu­vens. Por um breve instante, Jean pensou ter visto algo brilhando no rio. Foi até a beirada do cais, entre curioso e com medo. Tentou enxergar entre as águas escuras, mas não pôde ver nada. Ajoelhou-­se e observou com mais atenção. Intrigado, inclinou-se até que seu nariz quase tocasse a água do rio.

- Onde...?

Ouviu passos atrás de si, seguidos de gargalhadas grotescas e ameaçadoras. O barulho o surpreendeu, fazendo-o perder o equilí­brio e cair no rio. De repente viu-se envolvido pela mais completa escuridão. A água gelada enrijeceu seu corpo, enquanto movia rapi­damente os braços e as pernas tentando em vão chegar de novo à superfície. Havia algo prendendo sua perna, que o impedia de sair. Estava aterrorizado: tanto, que se esqueceu de onde estava; e gritou, gritou com todas as suas forças. Mas só conseguiu ouvir um som abafado e estranho. A fétida água entrou em seus pulmões pelo nariz e pela boca. Estava afogando-se e, mesmo assim, sentindo náuseas. Estava perdendo os sentidos; sentia como se sua consciência se dis­solvesse na mesma água que o estava matando. Olhou pela última vez para o céu. A lua apareceu entre as nuvens, rodeada por uma auréola esverdeada, distorcida... foi nesse momento que o viu. Encontrava-­se diante dele. Com as poucas forças que lhe sobravam, estendeu o braço lentamente. Sentiu sua superfície fria nas pontas dos dedos e um calafrio percorreu seu corpo quando, finalmente, o segurou. Nes­se momento sentiu-se livre. O que quer que estivesse segurando sua perna simplesmente o havia soltado. Quando conseguiu chegar à su­perfície, inspirou o ar com tanta força que sentiu dor no peito. Com dificuldade, conseguiu chegar ao cais, onde permaneceu imóvel du­rante algum tempo, vomitando água e tentando recuperar o fôlego.

 

                             1502, Florença

O ateliê de Leonardo Da Vinci ficava no centro da vida florentina. Era um lugar em que se discutiam os princípios da arte entre o baru­lho dos cinzéis; um lugar em que os alunos faziam trabalhos domésti­cos, além dos artísticos, e criavam um ambiente tão renascentista quan­to o próprio Duomo de Brunelleschi (Um dos monumentos italianos mais conhecidos; é uma trilogia: a catedral, a campanha e o batistério. Brunelleschi, arquiteto italiano, é considerado o maior fundador da Renascença).

Leonardo chegou agitado e ofegante pela corrida. Ao entrar, somente Salai, seu aluno preferido - ainda que não por sua habilida­de -, estava trabalhando. Modelava, em uma das tarefas de sua aprendizagem, uma reprodução pouco feliz do cavalo que seu mestre havia desenhado para a estátua eqüestre de Francisco Sforza, duque de Milão, que na realidade nunca chegou a ser concluída e na qual o Divino continuava a fazer modificações há anos.

- Claro! Claro! Como não percebi antes...!

- Mestre! - exclamou Salai assustado ao ouvir os gritos. ­Que está acontecendo?

- Pare o que está fazendo, querido, temos trabalho.

Após sua conversa com Rodrigo e César Bórgia, Leonardo havia entrado num estado de prostração. Quatro semanas eram muito pou­co tempo para realizar a cópia. Mesmo que fosse um quadro de ou­tro artista ou uma figura natural. Mas aquele Lençol não havia sido pintado pela mão humana. Esse assunto ficava martelando em sua cabeça, como uma obsessão. Teria de analisá-lo profundamente, decidir a técnica que empregaria, o material, as cores... Era necessá­rio fazer uma sobreposição: o maior trabalho de sua vida seria tam­bém o maior desafio.

Quando examinou cuidadosamente o Sudário, comprovou que se tratava de linho, tecido de um modo especial conhecido como "espinha de peixe". É um tecido de grande beleza, mas pode tornar-­se menos resistente se não se domina a técnica de produzi-lo. Assim, Leonardo mandou confeccionar um tecido similar em uma oficina da cidade, muito bem conceituada, pertencente à família Scevola, que possuía tradição de mais de um século produzindo os mais finos gê­neros de Florença e de toda Toscana.

Sob o olhar atento de Leonardo, a Impressão parecia um deta­lhe do próprio tecido, uma marca no linho devido à ação do tempo. Não havia indício de pintura ou outro tipo de tingimento, embora tenha encontrado manchas de sangue, rodeadas pelo líquido oleoso que o acompanha quando sai de uma ferida recém-aberta. Em diver­sos pontos encontrou também respingados de cera que supôs ser das velas usadas em seu funeral, assim como queimaduras, desfiados e partes rasgadas. E, quanto à própria imagem, à Impressão, o cadá­ver estampado nela parecia haver sido horrivelmente torturado. O rosto revelava grande sofrimento. O lado direito do rosto estava in­chado e havia marcas de ferimentos e contusões pelo corpo todo. A legendária coroa de espinhos havia deixado um rosário de pequenas manchas de sangue em volta da cabeça. Um grosso e sinuoso fio de sangue descia pela testa do morto. As chicotadas, o terrível golpe com lança em suas costas... Tudo muito impressionante.

Leonardo era um grande anatomista. Alegrou-se de já haver realizado mais de vinte dissecações de cadáveres, algumas delas acom­panhado de seu antigo mestre, Verrocchio. Isso o ajudou a compreender a estranha posição do cadáver, a origem e formação das feri­das, as mãos inchadas e com os polegares para dentro ou as pernas de diferentes comprimentos, sem se deixar influenciar pelas histórias contadas, durante séculos, que inclusive supunham que Jesus era coxo. Ainda que, surpreendentemente, muitas pinturas antigas que mostra­vam Cristo crucificado fossem coerentes com o que, com um simples olhar, se notava na Síndone. E, em sua própria época, a Crucifica­ção, de Masaccio, também mostrava um Jesus com uma cabeça incorpórea, cabelos sem corte, segundo o costume hebreu, e pernas de diferentes comprimentos, uma delas dobrada para ficar do tama­nho da outra e permitir que um só prego atravessasse os dois pés. Mas nem tudo coincidia, já que no Sudário se podia enxergar perfei­tamente as perfurações dos pregos nos pulsos do cadáver, que sem­pre foram representadas na palma das mãos.

Porém, acima de tudo, o que mais surpreendeu ao notável pin­tor foi que a imagem era clara nos pontos em que deveria ser escura, e escura nos lugares em que deveria ser clara. Isso o fez refletir muito, dando mais e mais voltas. Parecia algo incompreensível e, por mais que tenha tentado entender, não conseguiu. A resposta ficaria oculta por quase quatro séculos, até que um advogado de Turim contemplasse pela primeira vez o rosto de Jesus em positivo.

Quando Leonardo deixou Roma levando consigo o Santo Su­dário, escoltado pelos guardas do Vaticano, experimentava uma mis­tura de sensações difícil de definir. Como pessoa agnóstica, aquele Lençol lhe causava grande confusão; abria uma nova porta para a reflexão dos fatos ocorridos na Judéia no início de nossa era. Como artista, sofria a dupla excitação de ter diante de si uma tarefa comple­xa e ao mesmo tempo um grande desafio, medo e desejo simultâ­neos. Como homem da ciência, via-se frente a um mistério aparente­mente impossível de ser desvendado.

Antes de observar o Lençol com mais calma, antes inclusive de uma simples análise, Leonardo lembrou-se de um antigo experimento que havia realizado poucos anos atrás, em Milão, e que talvez lhe servisse, se fosse aperfeiçoado, para copiar o Sudário. O processo que, inspirado em velhos livros árabes de alquimia, consistia em co­brir um tecido ou pergaminho com certos sais de prata, que se escureciam, ficando impressos ao entrar em contato com a luz. Fez alguns testes muito interessantes, sobretudo na câmara escura, na qual, posicionando a placa sensível a uma distância adequada da abertura, conseguia reproduzir imagens reais com certa fidelidade, apesar de meio borradas e de uma cor só. Infelizmente, não encontrou um meio de melhorar a qualidade das imagens impressas, que ficaram um pou­co espalhadas, confundindo-se com o fundo. Quando saiu de Milão não trabalhou mais para os Sforza e abandonou a idéia, como fez com tantas outras que povoavam a genial cabeça do toscano, ilumi­nando-a por um breve espaço de tempo e desaparecendo depois, substituídas por novas invenções.

A Impressão do Sudário e seus luximagos, como passou a chamá-los - ou seja, "imagens formadas pela luz" -, tinham em comum a mais estranha característica que a imaginação poderia con­ceber: ambos mostravam a figura dando uma impressão de relevo, como se realmente não fossem planas. Mas, diferentemente das pro­vas de Leonardo, a Síndone não tinha "perspectiva"; não se notava nenhum foco de luz localizado. O motivo esteve oculto à sua sagaz mente até que compreendeu algo fundamental e de lógica indiscutível, embora nem por isso menos desconcertante. Se o cadáver emitira por si mesmo algum tipo de luz, não havia necessidade de nenhuma iluminação externa, o que explicaria as diferenças de intensidade da imagem em partes mais ou menos distantes do Lençol, como a órbita dos olhos ou as costas e o nariz ou as mãos.

Durante a primeira semana de trabalho, Leonardo se dedicou totalmente a fazer desenhos do Sudário em escala, alguns inteiros, outros de detalhes. Se conseguisse fazer a Impressão no linho dos Scevola, do que não estava inteiramente seguro, ainda teria de copiar as manchas de sangue e cera, as queimaduras, as marcas das dobras e as rasgaduras. Além disso, a delicadeza da imagem do corpo com relação ao fundo do tecido o obrigaria a realizar um bom número de esboços, até conseguir o efeito desejado. Mas ainda assim não podia imprimir nitidamente a tela, e sem conseguir isso não podia continuar.

 

                               1888, Paris

Jean voltou a si completamente desorientado. Com a vista em­baçada, olhou ao redor tentando certificar-se de onde estava. Tinha o corpo dolorido e tremia de frio. Por um instante pensou que o haviam atacado novamente. Recordava vagamente de umas risadas e depois... nada. Sua mente parecia recusar-se a revelar o que havia ocorrido momentos antes. Somente podia lembrar-se de que, de al­gum modo, havia caído no rio.

Percebeu aliviado que a rua estava deserta. Sua visão foi clare­ando aos poucos e voltou a cair no chão. Sentia-se fraco e tonto. Só conseguiu reunir forças para sentar-se. Ao apoiar-se com as mãos, percebeu que estava dolorida. Estava coberta por um lodo esverdeado, com algumas manchas de sangue ressecado. Limpou-as na roupa e pôde ver que tinha umas feridas estranhas na palma: pareciam duas meias-luas, uma abaixo dos dedos e outra próxima ao polegar. Ob­servou as marcas entre apreensivo e incrédulo, perguntando-se como as havia feito.

Um vento gelado vindo do rio açoitou-lhe o rosto, fazendo-o tremer de novo. Os dentes se batiam emitindo um som assustador, que parecia amplificar-se à noite. Um calafrio lhe percorreu as costas e fez arrepiarem-se os pêlos da nuca. Virou a cabeça com tanta força que seu pescoço rangeu pelo esforço. Sentia-se observado, apesar de não ver ninguém à sua volta.

Levantou-se tão bruscamente que quase perdeu o equilíbrio e caiu outra vez. Então ouviu um ruído surdo a seus pés. Quando bai­xou os olhos viu que havia uma forma escura no chão. Recolheu o objeto sem ao menos olhá-lo e meteu-o no bolso. Depois saiu cor­rendo em direção ao Pont au Change, cruzou o rio o mais rápido que pôde e não diminuiu a marcha até que não pôde mais correr. Quando chegou a sua casa, ainda estava ofegante pelo esforço. As­sim que se viu dentro de casa, fechou a porta bruscamente e percor­reu os dois andares como um louco, trancando as janelas e certifican­do-se de que estava sozinho.

Mais tranqüilo, vestiu uma camiseta e limpou o lodo que cobria boa parte de seu rosto e dos braços. Acendeu a lareira antes de desabar exausto em uma cadeira de madeira que havia junto dela. Na mão, tinha o objeto que recolhera do chão.

A casa era humilde, mas já fazia tempo que tinha água encanada, graças às reformas da determinação Haussmann. Os móveis eram toscos e escassos; na parede se viam vestígios deixados pela umidade e pelas goteiras. A cozinha ocupava quase todo o andar inferior, que dividia com uma despensa e com uma pequena sala que era usada como banheiro. No segundo andar estava o quarto, onde havia uma cama e um maltratado armário do qual faltava uma porta. Garou era solteiro e nunca se preocupou em arrumá-lo.

Perto da lareira estavam empilhados muitos troncos. Jean to­mou um e o colocou no fogo para avivá-lo. Ainda sentia frio. Olhou demoradamente para o objeto que tinha nas mãos. Era de formato circular, ainda que seu contorno fosse irregular. Uma cobertura esverdeada o cobria quase por completo, assim como a corrente que parecia unida à peça central. Nesse momento, uma idéia passou em sua mente. Com a mão trêmula, colocou o objeto sobre a palma direita. As marcas da mão eram iguais às bordas do objeto. Parece que apertara com tanta força o objeto que ele se cravara em sua carne.

A lembrança do ocorrido o atingiu de repente. A impressão foi tanta que, por um momento, não pôde sequer respirar. Como havia feito no rio, abriu a boca tentando conseguir um pouco de ar. Nova­mente sentiu náuseas, inclusive sentiu o gosto da água podre outra vez. Com um gesto brusco, soltou o medalhão. Ao bater contra o chão, uma parte da cobertura verde se soltou, deixando à mostra algo de aspecto metálico. Estava muito assustado. Permaneceu imó­vel na cadeira observando, horrorizado, o objeto. Não se atrevia a mover-se, mas tampouco queria que o objeto permanecesse um ins­tante mais em sua casa. Reunindo toda a coragem que lhe restava, atreveu-se a levantar-se novamente e a vestir-se. Suas roupas ainda tinham cheiro de lodo e estavam úmidas. Enquanto se vestia, não deixou de observar o objeto que jazia no chão, no mesmo lugar em que o havia jogado.

Tomou o atiçador de fogo e, com ele, agarrou o objeto por um elo da corrente. Depois pegou um pequeno saco de pano onde guar­dava o pão e o introduziu com cuidado dentro dele, tentando de qualquer maneira não tocá-lo.

 

                                       1502, Florença

A inclinação de Leonardo pelo conhecimento em qualquer de suas manifestações ia além da curiosidade. E, mesmo que em sua época não fosse possível realizar pesquisas aprofundadas, o vôo livre do intelecto - ao menos em sua face mais esotérica -, o Renasci­mento fez com que diminuísse o controle que a Igreja exercia sobre o conhecimento. Ainda assim, tudo o que significasse o pensamento em seu estado puro poderia ser interpretado como heresia ou blasfêmia, e a Inquisição papal tinha autonomia para decidir sobre os desvios e sobre o que pudesse considerar um risco para a doutrina. Da foguei­ra à aceitação havia uma pequena distância, que marcava a frontei­ra entre a ortodoxia da religião e as idéias que ameaçavam sua he­gemonia.

Contudo, o toscano sentia tanto desejo de saber, de investigar a essência do mundo e as maravilhas que ele contém, que não despre­zava nenhuma oportunidade de adquirir novos conhecimentos. E eram justamente as matérias proibidas, os conhecimentos ocultos e ele­mentares os que mais despertavam interesse nos homens de sua épo­ca. A alquimia ocupava um lugar de destaque entre as disciplinas esotéricas, e, apesar de muitas vezes ser considerada uma espécie de magia sem fundamento, como costuma acontecer com o que se des­conhece ou se teme, havia quem assegurasse que sua prática já alcançara maravilhas.

A primeira vez que Leonardo entrou em contato verdadeiro com os alquimistas foi em Milão, quando estava a serviço do duque Ludovico, o Mouro, chefe da dinastia dos Sforza e filho de seu fundador, Francisco, que conquistou o ducado em 1450 e criou um es­tado próspero e poderoso. Ali, o Divino conheceu a um senhor, de baixa estatura e aparência descuidada, mas com uma força moral que o impressionou. Seu nome era Ambrósio de Varese, mas exigia ser chamado de Grande Taumaturgo e desempenhava o papel de as­trólogo-médico do Mouro. Muitos diziam que ele tinha mais de duzen­tos anos e que, com efeito, realizava maravilhas.

Pelo que Leonardo conseguiu descobrir, Varese era de origem judaica, convertido ao cristianismo, junto com toda sua família, sob os auspícios do bispo de Palermo, Giácomo Varese, de quem havia tomado o sobrenome (ninguém sabia o verdadeiro). Percorrera toda a Itália e grande parte da Europa, África do Norte e o Oriente. Fala­va dezenas de idiomas e possuía conhecimentos insondáveis. Em Milão, fora de seu serviço com os Sforza, havia fundado uma loja juntamen­te com um grupo de discípulos que praticavam alquimia, além de uma estranha ginástica oriental. Essa sociedade era bem conheci­da, mas o que se praticava nela era mantido sob o mais absoluto sigilo.

Os membros da loja, que se consideravam irmãos, tinham fama de ascetas e homens de bom caráter, comedidos e justos, firmes na busca da sabedoria e do equilíbrio, tanto físico como psíquico. Seu interesse se concentrava em alcançar a perfeição moral, e não o des­cobrimento da pedra filosofal ou a panacéia universal, que para eles era o único meio de o ser humano transformar-se em uma criatura superior, acima de todo o materialismo. Além de prolongar a existên­cia carnal, ansiavam o pleno desenvolvimento do espírito, a purgação da alma.

Seu símbolo era o ovo, incomparável emblema da energia e da vida, e referiam-se a suas práticas, disciplina e filosofia como Ciên­cia Régia. Seguiam regras muito rigorosas e tinham uma escrupulosa conduta, cercados pelos rituais de uma estranha simbologia. Em seus escritos usavam uma escrita hermética chamada de Alfabeto de Honório de Tebas, cuja origem se atribuía ao princípio da era cristã. Para eles, as doze operações alquímicas tinham um sentido também espiritual, e as praticavam como uma maneira simbólica de alcançar o progresso interior. Seu estatuto, aceito por todos os membros, con­tinha quatro obrigações básicas: Não se dedicar a outra profissão senão a de curar e melhorar a vida; reunir-se na loja com todos os irmãos no primeiro domingo de cada mês; ter sob sua responsabilidade um discípulo; e guardar os segredos da sociedade mesmo cor­rendo risco de morte.

Foi o próprio Varese quem entrou em contato com Leonardo, ao saber que este havia ido a Milão para trabalhar para o Mouro. Sua grande mestria interessava ao sábio, e logo ele também desper­tou interesse em Leonardo. Inclusive, chegaram a ser amigos íntimos. Os dois tinham personalidades muito diferentes e até contrárias, ain­da que no sentido espiritual tenham alcançado grande comunhão, e isso é o que verdadeiramente une os homens excepcionais. Na práti­ca Varese não tolerava o rigor especulativo de Leonardo, que beira­va a intransigência, e este tampouco compreendia a utilidade das filo­sofias orientalistas de Varese. Apesar disso, a contribuição recí­proca foi muito enriquecedora para ambos.

As idéias para conseguir imagens por meio da luz chegaram a Leonardo por intermédio de Varese. Este possuía verdadeira devo­ção por um médico árabe chamado Abu Musa al Sufi, o maior alqui­mista de todos os tempos, segundo ele. Em suas pesquisas, o árabe empregava os princípios clássicos dos alquimistas, ouro, mercúrio, arsênico, enxofre, sais e ácidos, e havia descoberto diversas substân­cias reagentes, desconhecidas anteriormente. Entre elas se encontra­vam os sais de prata que reagiam quando em exposição prolongada à luz, ainda que ele nunca houvesse encontrado uma aplicação prática para tão interessante descoberta.

Foi Leonardo que primeiro realizou experimentos com perga­minhos cobertos por esses sais, imprimindo-os na câmara escura. Os resultados foram aceitáveis, ainda que existisse um problema que o toscano não fosse capaz de resolver: as imagens que se formavam ficavam desbotadas. Durante alguns meses, contrariando seu espírito genial mas pouco constante, tentou de diversas formas solucionar esse defeito, porém não conseguiu chegar a nenhum resultado positivo. Quando, algum tempo depois, deixou Milão, esqueceu-se dessa téc­nica que tanto o havia entusiasmado e frustrado ao mesmo tempo.

Agora, diante da incumbência dos Bórgia, todo seu talento es­tava dedicado a realizar a tarefa encomendada, e finalmente uma idéia surgia em sua mente, um pensamento tão difuso como as imagens produzidas na câmara escura. Contudo, algo lhe dizia que estava no caminho certo.

Leonardo já estava há muito tempo trabalhando com lentes em um de seus inventos mais importantes, que tentava aperfeiçoar a anos: o telescópio. Desenhou novos modelos e métodos para melho­rar seu polimento, seu formato e sua geometria. Havia comprovado que, além de sua possibilidade de aumento ou diminuição, as lentes permitiam corrigir distorções da luz.

Não tinha tempo a perder, pois já consumira mais da metade das quatro semanas que César Bórgia lhe dera para realizar a cópia do Santo Sudário. Ao chegar a seu ateliê, pediu a Salai que o ajudas­se a testar todas as lentes que estivessem polidas. Algumas estavam encaixadas em tubos de diversos tamanhos, pintados de preto por dentro para evitar reflexos. Outras ainda não estavam prontas para ser usadas, presas em algum ponto intermediário do processo de fa­bricação.

Os testes de Leonardo com o telescópio haviam sido amplos, e ele tinha mais de vinte lentes prontas. A metade foi descartada por seu tamanho inadequado ou por baixa qualidade. Com as dez que sobraram, o Divino começou a realizar testes. Inseriu-as, uma a uma, na câmara escura, que era nada mais que um cômodo fechado, que possuía em uma de suas paredes um orifício. O buraco dava em outro cômodo, onde havia grandes janelas laterais, e no qual vários espelhos esféricos concentravam a luz em um ponto central oposto à abertura. É provável que ninguém em todo o mundo tivesse uma câmara escura de tais dimensões.

As chapas que Leonardo utilizava eram pergaminhos de cin­qüenta centímetros por cinqüenta, envernizados com uma cobertura de iodeto de prata. Era um processo lento, já que a sensibilidade do reagente era muito limitada. Por isso o uso dos espelhos, que esta­vam dispostos de um modo que aumentava a iluminação do objeto. Passado o tempo necessário para que a impressão fosse feita sobre o pergaminho, este era exposto a vapores de mercúrio, um dos ele­mentos preferidos dos alquimistas, que eles denominam de hidroargentum, ou seja, prata líquida. Por último, para evitar que a imagem continuasse reagindo à luz que recebesse posteriormente, devia ser lavada com uma solução concentrada de sal comum. Isso detinha o processo e faltava somente lavar a chapa com água, o que fazia aparecer nela uma imagem positiva, formada por manchas de dife­rentes tons de marrom.

Salai preparou um pergaminho e fizeram um teste com a primei­ra lente. Passado o tempo necessário, usando o modelo da escala do cavalo de Francisco Sforza como objeto, uma nova lâmina substituiu a primeira, e a segunda lente ocupou o orifício da câmara escura. Esse processo foi repetido até que todas as lentes foram testadas.

A agitação de Leonardo era muito grande, porém, à medida que os pergaminhos mostravam suas imagens, a excitação se trans­formava em desânimo até tomar-se frustração e desgosto. Somente uma lente havia formado uma figura reconhecível, e não se podia di­zer que havia ficado muito melhor que as outras. Mas Leonardo se controlou, evitou irar-se ou desanimar-se e começou a analisar cada pergaminho, refletindo sobre as causas do fracasso.

A primeira conclusão a que chegou foi que nem todas as partes impressas da lâmina eram iguais. Algumas não haviam sido completa­mente expostas e tinham um círculo iluminado no centro. Em outras, que estavam totalmente impressas, as imagens distorcidas apresenta­vam manchas parecidas, mas de tamanhos diferentes.

Em algum ponto se enganara, disso estava certo. Leonardo era tão sábio justamente porque não se achava infalível. E, no entanto, não conseguia vislumbrar uma solução.

 

                             1888, Paris

- Já vou,já vou, tenha paciência!

O pároco da igreja de Saint Germain se perguntava mal­ humorado quem poderia ser a uma hora daquelas. Estava dormindo quando fortes golpes na porta principal o fizeram despertar assustado.

- Pare de espancar a porta - gritou sem esperar ser atendido. O sacerdote veio da sacristia e entrou na nave central. Ajoe­lhou-se diante do altar e benzeu-se antes de abrir a porta. Levava um candeeiro nas mãos, com o qual iluminava o caminho. Seus passos apressados faziam um ruído que ecoava nas paredes de pedra. Quan­do finalmente chegou à porta, as batidas cessaram.

- Quem é você? E o que deseja a horas tão impróprias? ­perguntou sem abrir a porta. - Por acaso há algum demônio o per­seguindo? - acrescentou com ironia.

A resposta lhe chegou como se viesse de muito longe, abafada pela grossa madeira. Quase não pôde compreender o que lhe dizia o homem. "Você disse tudo? Foi isso que ouvi?", perguntou-se o pa­dre. Correu os inúmeros ferrolhos e abriu a porta devagar. Através da estreita abertura podia ver um homem baixo e gorducho. Por sua aparência e pelas roupas, parecia um homem simples. Tinha o rosto completamente hirto e transtornado. Uma cicatriz mal costurada cru­zava sua bochecha direita. Em uma de suas mãos tinha um pequeno saco ao qual olhava com medo, tentando mantê-lo o mais distante possível de seu corpo.

- Repito, quem é você?

- Desculpe-me por incomodá-lo, padre. Sou Jean Garou, te­nho uma peixaria perto do cais e moro...

- Não é necessário que me conte toda sua vida - ironizou o clérigo, levantando a mão com um gesto displicente. - O que tem aí dentro?

- Es... estava no rio, padre. Cre... creio que tem algum poder maligno - gaguejou Garou, apavorado.

- É mesmo? E você o encontrou no rio? Não haverá sido no fundo de uma jarra de cerveja, senhor Garou? - a paciência do pároco se esgotava.

- Acredite em mim, pelo amor de Deus. Juro que não bebi uma gota. Sou um homem honesto. Caí no rio e o encontrei.

Jean não compreendia por que o sacerdote não o ajudava. Es­tava certo de que havia um poder demoníaco preso naquele objeto e que só um servo de Deus poderia acabar com ele. Por esse motivo é que decidira sair de casa no meio da noite para procurá-lo.

- Eu imploro, padre... - disse soluçando.

O clérigo o observou demoradamente, sem dizer nada. Parecia estar refletindo sobre suas palavras. Por fim, abriu a porta completa­mente e pôs-se de lado.

- Está bem, pode entrar.

Quando Jean entrou no templo, o padre o conduziu até o altar.

Ali, voltou a ajoelhar-se e a fazer o sinal-da-cruz; Jean o imitou e logo o seguiu por uma porta lateral que conduzia aos aposentos do sacer­dote. Este o levou a uma pequena cozinha e pediu que se sentasse enquanto reavivava as brasas do fogo. Jean obedeceu sem dizer nada, observando o clérigo com um olhar perdido. Deixou o saco no chão a uma distância segura, mas sem perdê-lo de vista.

- Tome isso, senhor Garou - disse-lhe o padre, oferecendo-­lhe uma caneca fumegante. - É canja que a governanta preparou.

      Vai se sentir bem.

- Obrigado, padre.

- E agora faça o favor de contar-me essa história direito.

Jean contou ao sacerdote o que acontecera naquela noite, des­de quando fechou sua peixaria para ir para casa até o momento em que chegou à igreja. O pároco não deixou de observá-lo em nenhum momento, com um olhar ora curioso, ora inquisitivo; principalmente quando falou de como algo havia prendido suas pernas até que agar­rou o objeto. Houve momentos em que precisou incentivá-lo a continuar, porque Jean parecia não conseguir. Quando terminou, o clérigo se manteve em silêncio por alguns instantes, enquanto Garou termina­va de tomar a canja.

O sacerdote não sabia o que pensar. O homem parecia dizer a verdade. "Afinal, por que mentiria?", perguntava-se. Entretanto, ha­via aspectos estranhos na história: o brilho dentro da água quando quase não havia luz, o poder que o objeto parecia exercer... nada fazia sentido. Talvez se tratasse simplesmente de um louco. O clérigo pensou, não sem certa tristeza, que, em outros tempos, condenariam esse homem por bruxaria se contasse uma história dessas. A Igreja nem sempre fora tão piedosa como agora.

- Pode mostrar-me o objeto? - perguntou o clérigo.

Jean hesitou por um instante. Fosse ou não um louco, não se podia negar que estava bastante assustado.

- Está aí dentro - conseguiu dizer, sinalizando com a cabeça. - Por favor, fique com ele e faça o que achar mais conveniente. Eu só desejo livrar-me dele.

- Como queira - o pároco recolheu a sacola e a colocou em um armário junto ao fogão. - Vá em paz, então, que eu cuidarei do resto.

O sacerdote quase pôde sentir o alívio de Jean ao ouvir suas palavras. Em seu rosto cansado desenhou-se, por um momento, um vestígio de sorriso.

- Não sei como agradecer... - começou a dizer quase cho­rando.

- Ora, vamos, senhor Garou, não tem de me agradecer. Agora volte para casa e tente descansar e esquecer tudo.

O clérigo o acompanhou até a saída, voltando pelo mesmo ca­minho pelo qual haviam entrado. Dessa vez, Jean não se limitou a ajoelhar rapidamente diante do altar, mas permaneceu ali por um bom tempo, banhado pela escassa e amarela luz das velas. Sem dúvida, agradecendo ao Altíssimo por sua infinita bondade. O pároco se sur­preendeu ao perceber que desejava que o peixeiro se fosse logo, para que ele pudesse ver de perto aquele objeto que tanto impressi­onara o assustado homem. No entanto, respeitou sua oração e se manteve a seu lado até que terminasse. Ao levantar-se, o sacerdote percebeu que havia lágrimas em seus olhos. Após agradecer uma vez mais pela ajuda, Jean deixou a igreja. O clérigo o observou até que desaparecesse em uma esquina.

Depois de fechar de novo a pesada porta, dirigiu-se a seus apo­sentos. Quando chegou, o fogo já estava quase apagando e a cozinha estava fria e escura. Só um círculo em volta da fogueira permanecia iluminado, emitindo pequenos estalos. A sacola ainda estava onde a havia deixado, ainda que envolvida em sombras, com exceção do lado que estava mais próximo do fogo. O sacerdote limitou-se a lan­çar mais dois troncos à fogueira, sem se preocupar em acender se­quer alguma lâmpada. Sentou-se em uma robusta cadeira de pinho e colocou a sacola em seus joelhos.

- Vamos ver o que temos aqui - disse para o cômodo vazio.

Introduziu a mão na sacola e tateou o interior até encontrar o objeto. Era áspero e úmido, ainda que, curiosamente, não fosse todo desagradável de se tocar. Ao contrário, sentia algo estranho que lhe percorria todo o braço, começando na ponta dos dedos, um leve formigamento, talvez. O clérigo disse a si mesmo que tudo aquilo era fruto de sua imaginação. Parecia que o peixeiro o contagiara com sua insensatez.

Quando o tirou do saco, aproximou-o do fogo para vê-lo me­lhor. Como Jean havia dito, tinha uma cobertura esverdeada. Prova­velmente não passava de lodo e algas, acumulados durante o tempo que permanecera sob as águas do rio. Era estranho que houvesse brilhado, ainda que um pedaço da casca estivesse levantado e dei­xasse ver uma parte do metal. O pároco pôs o objeto no chão. De­pois, com muito cuidado, foi batendo com o atiçador do fogo. Não pôde evitar um sorriso quando a cobertura começou a se soltar, dei­xando ver o que havia em seu interior.

Cheio de curiosidade, observou o que parecia ser um meda­lhão. Era cinza e muito pesado para seu reduzido tamanho, por isso deduziu que devia ser de chumbo. Tinha uma corrente que estava quebrada, como se o medalhão houvesse sido arrancado brusca­mente do pescoço de quem o usava. Uma de suas faces estava per­feitamente polida, enquanto a outra apresentava o que, a princípio, julgou ser simples rugosidades.

Não percebeu o que era realmente até que pôs água em uma bacia para limpar o medalhão. O que viu deixou-o tão perturbado que desabou na cadeira tentando assimilar aquilo. Terminou de lim­par o medalhão com a manga de seu próprio hábito e aproximou-o dos olhos para comprovar o que acreditava ter visto.

- Céus! - sussurrou maravilhado.

 

                                         1502, Florença

Aquela foi uma noite ruim para Leonardo. Todos os fantasmas se reuniram para castigá-lo em um tormento sem piedade. Teve pe­sadelos, repletos de figuras grotescas, diabólicas e monstruosas. O tempo, simbolizado por um relógio de perversas esferas, avisava cons­tantemente o passar das horas. Um abismo escuro e profundo traga­va milhares de seres perdidos que, atraídos por um magnetismo pavoroso, se desvaneciam com um gemido de dor.

A figura de César Bórgia também estava presente no sonho, vívida e opressiva, rindo a gargalhadas enquanto os mortais caíam no buraco. Seu riso estridente se transformava em um agudo lamento, em um grito angustiante, vindo da distante escuridão. Mas Leonardo não sentia medo. Notava que as ameaças de César estavam cheias de deboche; Bórgia estava perdido e, como um animal vítima de terríveis feridas, tentava defender-se com suas últimas energias, simu­lando uma ferocidade que já não possuía.

A mente castigada do Divino, presa de uma estranha sensação de vertigem, produzia cenas dantescas, mórbidas, carregadas de fa­talismo. Mas logo uma luz celestial inundou o espaço onírico. Das alturas surgiu uma imagem tênue, fantasmagórica: era parecida a um dos muitos desenhos com que costumava apresentar seus inventos e artefatos, uma espécie de plano superior em que o cavalo de Francis­co Sforza era visto de ambos os lados de uma grande lente luminosa. Então, Leonardo o viu claramente.

Assustado e molhado de suor, o Divino despertou de seu so­nho. Ficou por uns instantes quieto no leito, com os olhos muito aber­tos. Seu coração palpitava freneticamente. Não sabia se estava total­mente acordado, se havia voltado à realidade e saído do mundo dos sonhos.

Por algum tempo tentou assimilar a idéia que se apresentara tão clara e evidente. As peças se uniram sozinhas, sem esforço, e ele finalmente compreendeu, com o fulgor de um relâmpago, de modo repentino, como um autêntico pensamento racional e não um mero pensamento: seu erro estava na distância em que havia posto o mo­delo e a lâmina sensível, de cada lado da lente, na câmara escura. Por isso as imagens saíam tão desproporcionais e distorcidas.

Com um ânimo inesperado, no meio da noite, Leonardo pulou da cama como um rapaz que fosse visitar, em segredo, sua amada. Apertou a cabeça com as duas mãos, pensando como podia haver sido tão estúpido. E ao mesmo tempo estava feliz e satisfeito consigo mesmo. Não havia problema que não pudesse solucionar, nem desa­fio difícil o suficiente para escapar de sua genialidade. Todo artista leva em seu interior um céu e um inferno.

Quando, na manhã seguinte, Salai despertou, seu mestre já es­tava há horas fazendo cálculos e desenhos. Estava desenhando uma lente esférica que permitisse obter uma imagem na mesma escala do objeto material. Para isso teve de medir a profundidade da câmara escura, entre o orifício e a parede que ficava do outro lado. No cô­modo ao lado fez uma marca no chão, que tinha aproximadamente a mesma distância.

Para provar sua teoria, Leonardo mandou que Salai e outros dois discípulos - que desconheciam completamente o projeto de seu mestre -, César de Sesto e Zoroastro, preparassem com rapi­dez uma nova lente segundo suas orientações. Se o resultado fosse satisfatório, o Divino compraria um bloco de vidro veneziano da melhor qualidade, o poliria com o máximo de cuidado e mediria com exati­dão a distância a que deveria estar da Síndone.

Mesmo que tudo isso desse certo, teria ainda um outro proble­ma para solucionar: a direção exata do modelo. A lâmina impregnada de iodeto de prata deveria estar exatamente paralela à que sustentas­se o Sudário. E ambas teriam de estar perpendiculares ao eixo da lente em seu centro. Se não fosse assim, a imagem da cópia ficaria deslocada ou distorcida, reduzida ou ampliada em algumas partes, como se se observasse de uma certa perspectiva.

Com extremo cuidado, e ao mesmo tempo com rapidez, Leo­nardo fixou a lente recém-terminada na posição adequada. Depois, após colocar uma lâmina sensível na câmara escura, efetuou a expo­sição. Foram momentos de tensão. Com exceção de Salai, seus dis­cípulos estavam admirados com tanta expectativa. Mas Leonardo era um homem de personalidade rara, humor instável e certa excen­tricidade, que em público ficava oculta sob sua notável elegância.

Dessa vez não houve erros. Leonardo já havia compreendido o problema, e a solução para ele era certa. Com a nova lente prepara­ da por seus ajudantes, a imagem projetada na lâmina sensível ficara muito mais definida do que nos testes anteriores. E também havia sido correto o cálculo das distâncias, já que entre o modelo e a cópia a diferença de tamanho era quase imperceptível. Sem tempo a per­der, já totalmente livre de seus medos e dúvidas, exultante, o Divino entregou a Salai cem ducados de ouro, quantidade mais que suficien­te, fosse qual fosse o preço, e o enviou a Veneza para comprar um bloco de vidro da mais alta qualidade existente. Enquanto isso, ele se encarregaria de construir armações para a Síndone e o lençol dos Scevola e desenharia o sistema de localização espacial de ambos os lenços.

Os venezianos produziam os melhores vidros de toda a Europa, tanto em sua qualidade material como em seu corte e decoração. Apesar disso, Leonardo deu a seu enviado algumas indicações muito precisas para a fabricação do bloco em que lavraria a lente. Durante o processo, o vidro deveria ser tratado com manganês para eliminar a cor devido às impurezas e ao mesmo tempo aumentar sua transpa­rência; também seria necessário acrescentar arsênico, já que esse elemento impede a formação de bolhas, um ponto muito essencial na fabricação de lentes, e finalmente deveria ganhar um segundo cozimento para eliminar tensões internas e aumentar sua homogeneidade.

Salai demoraria, se não houvesse nenhum contratempo, ao me­nos três dias entre a viagem a Veneza e o regresso a Florença com o bloco de vidro, um dia para ir, um para esperar que se fabricasse o material e outro para voltar. Portanto, esse era o tempo que Leonar­do investiria no desenho e na construção das armações.

Em primeiro lugar, confeccionou uma armação de grossos sarrafos de carvalho perfeitamente perpendiculares. Depois colocou, com pregos muito finos e uma borracha que ele mesmo havia inventa­do, travessões na largura e no comprimento de toda a armação, acer­tando os que se cruzavam com os que já estavam acoplados para que todos juntos formassem uma malha plana. Alisou toda a superfí­cie com uma escova de carpinteiro e lixou-a tomando cuidado para que nenhuma farpa se levantasse. Para assegurar-se ainda mais, envernizou a estrutura com uma substância resinosa que ao secar adquiria extrema dureza e que Leonardo costumava empregar quan­do pintava murais, já que odiava a técnica do afresco.

Leonardo realizara, desde quando era jovem, muitos estudos sobre a gravidade. Mesmo que nunca tenha chegado a justificar seu sentido físico, pôde pelo menos compreender suas propriedades. Se­guindo um de seus lemas favoritos - mais longe, mais difícil, mais novo, mais pessoa l-, realizou testes em vários períodos de tempo ao longo de toda sua vida. Comprovou que todo corpo tende a cair sobre a superfície da Terra na direção de seu centro, e sempre pelo caminho mais curto, percorrendo o caminho vertical, ou seja, seguin­do a linha imaginária que une o zênite e o nadir. De fato era isso que acontecia, exceto quando forças interiores interferiam, como no lan­çamento de um projétil, cuja trajetória é regida pelo impulso inicial e a atração gravitacional. .

Seu amigo Paulo del Pozzo Toscanelli (Cosmógrafo florentino que defendia a teoria de que o Atlântico fosse estreito e portanto que seria possível chegar à Ásia pelo Oci­dente, por um caminho mais curto), autor do mapa que se supõe haja instigado a imaginação de Cristóvão Colombo, estava convencido de que a força da gravidade se devia à falta de equilíbrio entre os céus e os infernos. O homem, e tudo que é material, marca­do com o estigma do pecado, era atraído para o reino das profundi­dades e das trevas.

A parede de fundo da câmara escura não era perfeitamente lisa, e a lâmina sensível deveria estar apoiada nela, à mesma altura que a Síndone no cômodo ao lado. Leonardo resolveu esse pequeno problema aplicando uma nova camada de gesso cuidadosamente plana e sem ondulações.

Depois, com a ajuda de uma comprida vara, o Divino mediu a distância entre a parede com o orifício da câmara escura e a parede oposta, no interior do cômodo fechado. Para obter a verdadeira dis­tância perpendicular, a mínima, pôs a vara no chão e fixou uma de suas pontas. Logo traçou com ela um arco e procurou o ponto em que a parede a impedia de continuar. Foi aparando a vara aos pou­cos até que ficasse exatamente do tamanho que tocasse as duas pa­redes, porém sem ficar presa. Depois, transportou essa distância para o cômodo ao lado, repetindo o processo com a vara fixa em vários pontos diferentes da parede e da lente, e foi marcando no chão com giz o traço de cada um desses pontos. Dez repetições foram suficien­tes para que conseguisse que a superposição dos arcos se asseme­lhasse a uma linha reta.

Na frente do risco de giz colocou logo uma base de madeira formada por um grosso travessão que tinha mais de um palmo de altura. Sua altura era maior que a largura da armação do Sudário. Prendeu-o no chão por trás, onde havia feito uns rebaixamentos, e marcou nele, mais ou menos, a linha que definiria o eixo da lente, uma vez presa à parede. Tendo essa marca como centro, e com a ajuda de uma corda, transportou ao travessão a posição dos orifícios da placa metálica superior da armação. Antes de pendurar o Lençol, tinha de projetar os tais pontos no teto na mesma posição vertical que eles ocupavam abaixo. Isso ele conseguiu fazer facilmente, usando um prumo muito bem alinhado, por aproximações sucessivas, até que seu extremo apontou com exatidão para as marcas na tábua.

Como a armação pesaria mais do lado em que estivesse o Su­dário, este se inclinaria um pouco quando estivesse pendurado. Para evitar que isso acontecesse, Leonardo havia pensado em pendurar pequenos pesos em sua face contrária o mais embaixo possível, onde exerceriam mais força, compensando a desigualdade de massa do conjunto. No instante em que o sarrafo inferior da armação tocasse o travessão preso ao solo, a Síndone haveria alcançado sua localização ideal.


Ainda não estava pronto. Outro problema que o Divino teve de solucionar foi medir a altura e a posição em que deveria colocar a lente. Em testes anteriores, o orifício da câmara escura, ao ser fixado em uma parede, não mudava sua posição, e eram os objetos que se elevavam ou se deslocavam para a direita ou para a esquerda até ficarem alinhados com seu centro, ou seja, com o eixo da lente que estava ali fixa. Porém, o tamanho da Síndone impossibilitava fazer o mesmo, por isso Leonardo precisou tapar a abertura original e abrir outra, cujo centro coincidia, em projeção horizontal, com o mesmo ponto da armação já instalado, ou seja, a intersecção das diagonais, e elevado a altura adequada do solo. Para isso empregou um grande esquadro de madeira, que construiu com o lado maior igual ao com­primento da vara usada antes.

Se tudo parecia difícil, ao menos havia algo que seria relativa­mente simples, que era expor o lençol novo envolvido em iodeto de prata até que registrasse a Impressão da Síndone. Para isso, bastaria conferir a cada certo tempo o grau de escurecimento do suporte, entrando na sala mesmo que isso fizesse penetrar nela um pouco de luz exterior, pois o iodeto de prata era um reagente tão lento que as verificações ocasionais não o deteriorariam.

 

                                 1888, Paris

O sacerdote contemplou o medalhão uma vez mais à luz do fogo. O que havia pensado que eram simples arranhões eram, na realidade, símbolos. Dois deles pareciam um tipo de escudo, ainda que não tenha conseguido identificá-los. Os emblemas rodeavam uma imagem, que era a verdadeira causa da agitação do clérigo. Os tra­ços da gravação em forma de espinha de peixe o deixavam inconfun­dível. Tratava-se do desenho de uma das mais estimadas relíquias da cristandade: o Santo Sudário de Cristo, o Lençol em que o filho de Deus foi amortalhado após sua morte na cruz.

A mente do sacerdote era um verdadeiro turbilhão no qual se amontoavam perguntas que ele não era capaz de responder: De onde provinha o medalhão? Como fora parar no rio? A quem pertenciam os emblemas que guardavam o Lençol? Ele não possuía os meios nem os conhecimentos necessários para desvendar os mistérios do medalhão, mas conhecia alguém que talvez pudesse. Seu nome era Gilles Bossuet. Ele o conhecera alguns anos antes, quando ambos estudavam na Sorbonne: Gilles na Academia de Ciências e ele na de Teologia. Desde então, encontravam-se sempre, pois Bossuet traba­lhava como professor na Universidade, a mesma onde havia estuda­do, e que ficava próxima à igreja de Saint Germain. O pároco o con­siderava um verdadeiro amigo, apesar de Gilles ser um dos mais re­calcitrantes ateus que já conhecera.

Decidiu dormir e levar o medalhão para seu amigo na manhã seguinte. No entanto, passou quase toda a noite em claro, emociona­do pela descoberta e fazendo-se perguntas, perguntas que quase nun­ca se permitia imaginar. Quando finalmente conseguiu dormir, teve um sonho estranho. Nele podia ver um homem de pele queimada, vestido com exóticos trajes de seda, que sorria de um modo afável, conforme outra pessoa se aproximava lentamente. O sacerdote não conseguia distinguir o rosto do segundo homem, cuja túnica branca ondulava-se ao sabor do vento, pois parecia impreciso, distorcido de algum modo.

O pároco já estava acordado quando o sol saiu. Na sacristia, vestiu rapidamente a estola e dirigiu-se à igreja para realizar a missa da manhã, que naquele dia foi de uma brevidade incomum. Depois,já de batina, foi à cozinha. Ali, preparando o café da manhã, se encon­trava a senhora Du Champs, sua governanta.

- Bom dia, padre, dormiu bem? Está com uma aparência can­sada - censurou-o em tom maternal. - Tome seu café da manhã. Tenho certeza de que depois se sentirá melhor.

A senhora Du Champs cuidava dele desde que se tomara responsável pela igreja, dez anos antes. Era uma cozinheira maravilhosa e uma mulher encantadora, que o tratava como se fosse sua mãe. De fato, acreditava que para a pobre mulher ele talvez fosse o filho que ela nunca chegara a ter.

- Bom dia, senhora Du Champs. Sinto muito, mas esta manhã não vou comer nada. Tenho de fazer algo urgente.

A mulher encarou-o com uma expressão séria, incapaz de acei­tar que algo pudesse ser tão importante para que o pároco não to­masse seu desjejum.

- Não se preocupe - tentou animá-la -, comerei na hora do almoço.

Sem dar tempo para que ela replicasse, mesmo se sentindo um pouco culpado, o sacerdote vestiu o barrete e se foi, caminhando apressado. Ao sair à rua, a luz do solo cegou por um momento. Fazia um dia realmente magnífico. Antes de pegar a alameda que levava à Sorbonne, pôs a mão no bolso e assegurou-se de que levava o saco com o medalhão. Logo desceu a Rue des Écoles e dirigiu-se à entrada da Universidade.

Apesar do tempo que havia passado naquele edifício, não po­dia deixar de admirá-lo a cada vez que o visitava. A fachada era imponente, apesar de sua sobriedade, com arcos românicos entre duas torres, coroadas por grandes capitéis circulares. Sobre os arcos abriam-se grandes janelas, e havia outras menores no andar superior. a clérigo atravessou os arcos e entrou no vestíbulo, uma enorme sala de mais de quarenta metros de comprimento por dez de largura, de cujo teto abobadado pendiam grandes lustres de ferro fundido. À frente estavam as escadas de honra, que davam acesso ao grande anfiteatro e à sala de recepção. Duas estátuas de pedra, uma de Arquimedes e outra de Homero, pareciam cuidar do local, observan­do com expressão imperturbável a todos que entravam no edifício.

O pároco se dirigiu à galeria Gerson, uma antiga rua coberta e que separava as faculdades de letras e de ciências. Com passos rápi­dos percorreu-a em direção às dependências do reitorado. Ali se encontrava o escritório de seu amigo Bossuet. Bateu suavemente na porta antes de entrar.

- Já vou atendê-lo. Pode sentar, se desejar.

A voz vinha de uma pequena sala anexa. Era Gilles, que devia estar terminando de fazer algo em sua sancta sanctorum (Santo dos Santos, o lugar mais sagrado), como costumava referir-se. Era nesse lugar que guardava seus objetos mais estimados: papéis e manuscritos antigos, peças arqueológicas raras, inclusive umas pequenas cabeças de missionários, reduzidas por de­sagradáveis índios sul-americanos, que para o clérigo eram assustadoras.

Enquanto aguardava, distraiu-se observando o ambiente. Esta­va como de costume. Sua decoração era de austera elegância, como a de todo o resto da Academia de Ciências, o que contrastava com a pompa e o estilo carregado da de Letras. Com exceção da parede de fundo, em que se abria uma ampla janela com vista para a Rue des Écoles, estantes simples de carvalho ocupavam toda a sala. Nelas se amontoa­vam inúmeros livros, aparentemente sem nenhum critério de organização. Uma robusta mesa, cheia de papéis, ocupava uma posição central junto à janela e parecia ser muito grande para aquele escritório.

- Oh! Bom dia, Jacques, é você! - disse Bossuet com um gesto contrariado, enquanto saía da sala anexa. - Pensei que fosse aquele insuportável arquiteto de novo. Se soubesse que era você, não o teria feito esperar. Creio que me perdoa.

Gilles se referia a Anatole de Baudot, um dos arquitetos respon­sáveis pela obra de ampliação da Universidade. Jacques não sabia por que Bossuet não gostava dele, mas suspeitava que tivesse algo a ver com sua fama de pretensioso e agourento. Odiava novas tendên­cias e tudo o que cheirasse a novidade; inclusive se atrevera a desa­fiar o grande Alexandre Gustave Eiffel, apostando uma alta soma em dinheiro que sua imponente torre, que estava sendo construída para a Exposição Universal do ano seguinte, não poderia sustentar-se em pé sem o uso de concreto.

- Não tem problema - disse fazendo um pequeno gesto com a mão. - Vim trazer um pequeno presente para você.

- Verdade? Que é?

- Aí está o problema, meu bom amigo: não sei. Por isso o trago.

Gilles olhou-o surpreso, como um filho à espera de um doce. Jacques podia sentir a emoção do acadêmico. Com freqüência se perguntava o que não poderia fazer aquele homem se tivesse um pouco de fé. O clérigo desamarrou o nó que havia feito na sacola do peixei­ro e, com todo cuidado, tirou dela o medalhão e o entregou a Bossuet. Este o observou com muita atenção, de um modo quase reverente que, por alguma razão, emocionou o pároco.

- Onde o encontrou? - perguntou por fim sem tirar os olhos do medalhão.

- Se eu disser, você não vai acreditar - afirmou o sacerdote um pouco divertido.

Gilles levantou os olhos por um momento para encarar o amigo. Quando percebeu que este não estava brincando, perguntou:

- Por que não tenta?

- Está bem, como queira. Um peixeiro o trouxe ontem à igreja no meio da noite. Contou-me que um brilho o atraiu até o rio. Não se lem­brava como, mas acabou caindo na água. Então algo agarrou sua perna e não a soltou até que ele encontrou isso - disse apontando o meda­lhão.

- Ora, vamos, pelo amor de Deus! - exclamou Bossuet se­gurando o riso. - O hospital de loucos não fica perto da sua igreja? Quem sabe não escapou algum dos lunáticos veteranos de guerra ­conseguiu acrescentar antes de cair na gargalhada.

- Eu disse que você não acreditaria - sentenciou o clérigo com toda tranqüilidade quando o riso cessou.

- Desculpe-me, Jacques, sinto muito mesmo - disse Gilles, esforçando-se para não explodir outra vez.

- E então? Que me diz?

Mais calmo, Bossuet girou o medalhão entre os dedos. Obser­vou a corrente e as duas faces, detendo-se um bom tempo na que estava gravada. Com rosto sério, pegou seus óculos em uma gaveta da escrivaninha e aproximou a peça dos olhos para vê-la mais de perto. O pároco notou que uma expressão de surpresa tomava conta do rosto do acadêmico, mas que desapareceu tão rápido quanto ha­via surgido.

- Tenho de fazer alguns testes para ter certeza, mas creio que o medalhão é de chumbo - disse sentindo seu peso. - Esses sím­bolos laterais são escudos heráldicos, antigos, provavelmente france­ses. Quanto à imagem central, parece uma reprodução do...

- Santo Sudário - concluiu o sacerdote.

- Sim, pode ser. Já vi que o presente não é só para mim­ disse com um sorriso nos 1ábios. - Parece que meu bom amigo Jacques também está interessado no medalhão. Estou enganado?

- Não, não está enganado - reconheceu o pároco sorrindo.

      - Para lhe ser franco, estou intrigado com essa história do peixeiro e...

-E?

- Nada, não tem importância.

O clérigo esteve a ponto de contar-lhe o que ele mesmo sentiu ao tocar o medalhão, e aquele estranho sonho que havia parecido tão real. No entanto, conteve-se; preferia guardar essa parte só para ele.

- Está bem. Assim que tenha tempo, começarei a analisá-lo. Não imagina a quantidade de papéis que tenho de preencher. A buro­cracia, meu amigo, é a perdição do mundo.

- Obrigado, Gilles - disse o pároco levantando-se.

- Não tem por que me agradecer. Eu o manterei informado de minhas descobertas.

Bossuet acompanhou o sacerdote até a porta do escritório e se despediu dele com um cordial aperto de mão. Quando fechou a por­ta, pôde ouvir seus passos distanciando-se pelo corredor. Sentou-se na poltrona tomando de novo o medalhão. A luz que entrava pela janela não era suficiente para fazer brilhar sua superfície, de um cinza azulado e opaco.

- O Santo Sudário... - repetiu Gilles, lembrando-se divertido das palavras do clérigo.

Por um momento, um leve formigamento percorreu-lhe a mão. "Sem dúvida", pensou, "deve ser pela eletricidade estática acumula­da pelo medalhão. Sem dúvida. Ainda que o chumbo não seja bom condutor de eletricidade. É um fato interessante", disse a si mesmo.

Quando deixou o escritório de Bossuet, o sacerdote se dirigiu à galeria Sorbon, assim chamada em homenagem ao fundador da Uni­versidade. Ela dava acesso a um pátio interior, cercado pelas dependências acadêmicas e pela igreja de Sorbonne, situada no lado opos­to. O pároco atravessou a distância que o separava dela e subiu as escadas de pedra até a porta principal, ladeada por enormes colunas de estilo coríntio.

O interior da igreja estava fresco e silencioso. Na intersecção das naves, no chão, podiam ver-se uns ovais de luz que vinham das janelas da cúpula. Os raios luminosos faziam brilhar suavemente pequenas partículas de poeira suspensas no ar, que pareciam flutuar por algum efeito mágico. O lugar inspirava a mais absoluta paz. O pároco se dirigiu, pela esquerda, até o fundo da nave. Em seu caminho estava o túmulo de Richelieu, em que a figura do cardeal era amparada pela Pietà no momento do juízo final, enquanto a Doutrina, aduladora, o observava a seus pés e dois anjos sustentavam seu escudo de armas.

O sacerdote não lhe prestou muita atenção e seguiu na direção do altar, onde se pôs de joelhos e começou suas orações.

Quando terminou, já era quase meio-dia. A essa hora o sol ilu­minava o pátio perto de seu zênite, por isso os edifícios que o rodea­vam faziam pouca sombra. Deveria apressar-se em voltar à sua igreja ou a senhora Du Champs ficaria preocupada. Nunca se atrasava para o almoço. Já havia atravessado quase todo o pátio quando olhou para o alto. Em cima, na base do telhado, havia um relógio de sol. Na parte inferior, emoldurada em bronze dourado, podia ser lida uma frase das Escrituras: Sicut umbra dies nostri [Nossos dias passam como uma sombra].

O sacerdote sentiu um calafrio, apesar da ensolarada manhã.

 

                                   1502, Florença

Salai retomou a Florença quatro dias depois de haver partido. Demorara um pouco, conforme explicou a seu mestre, por causa de um temporal que o pegou de surpresa no caminho de volta e o fez abrigar-se por algumas horas em uma gruta. Leonardo, apreensivo, observou o bloco de vidro que seu discípulo trouxera. À primeira vista parecia de muito boa qualidade, o que só poderia comprovar após fazer seu polimento; então saberia.

Sempre prudente, Leonardo pediu ao rapaz que lhe devolvesse o dinheiro que havia sobrado, mas este garantiu que o bloco de vidro havia custado exatamente as cem peças de ouro que levara. Era ver­dade, justificou-se com grande encenação, inclusive tivera de pechin­char com o dono da oficina para que fizesse por aquele preço, que era inferior ao cobrado a princípio. Porém, como ele amava muito a seu mestre, aceitou trabalhar ali a manhã inteira para pagar a dife­rença.

O rapaz esperava uma recompensa, mas Leonardo, com certe­za, não havia acreditado em uma só palavra daquela história. Nem sobre o preço do vidro, nem sobre o temporal. Estava certo de que Salai, ao qual sempre se referia como "ladrão, mentiroso, cabeça-­dura e guloso", havia gasto o dinheiro que sobrara, que não devia ser pouco, em alguma farra com mulheres de vida fácil e em vinho. Ele amava esse garoto difícil, arisco e sem talento para a arte, mas de grande beleza física. E Salai, consciente disso, se aproveitava de seu mestre. Se ser mal-agradecido é um defeito lamentável, ser ingrato é ainda mais, pois não apenas não merece os benefícios recebidos como nem sequer os reconhece.

Apesar de tudo, o Divino era incapaz de castigar a Salai, pelo menos como este merecia, e limitou-se a esquecer imediatamente suas mentiras e o quanto elas o ofendiam. Além disso, tinha coisas mais importantes para fazer, já que o corte da nova lente tinha de ser cui­dadoso e delicado.

Como em quase todos os aspectos nos quais o ser humano de seu tempo fixou seu interesse, Leonardo também pesquisara os pro­cedimentos mais adequados para polir lentes. Estudou e aperfeiçoou as técnicas a ponto de alcançar maior perfeição em seu corte e poli­mento que na fabricação do próprio vidro. Após extrair, como um escultor de seu silhar de mármore, a futura lente do bloco de vidro, cortando-a com cinzéis de ponta de diamante, era necessário poli-la com abrasivos cada vez mais finos. Esse era o momento mais crítico, pois, se o vidro tivesse defeitos, poderia rachar-se e ficar inútil.

Uma vez formada a inicial e tosca lente vítrea, Leonardo come­çava seu polimento com uma grossa lima de ferro, com a qual elimi­nava as irregularidades mais grosseiras. Depois utilizava pedras de esmeril, ligeiramente côncavas, cujo grão ia diminuindo. Por último, no polimento mais delicado, empregava um método inventado por ele, que consistia em friccionar a superfície da lente com uma ferra­menta impregnada de breu e fixador vermelho.

Leonardo não queria que nenhum de seus discípulos, exceção feita a Salai, soubesse o verdadeiro motivo de seu projeto. Quanto menos soubessem, menos risco correriam eles e ele também, já que César Bórgia não era exatamente um homem generoso. Entre seus crimes, cada um mais abominável que o outro, estava o de violentar um bispo de quinze anos em sua própria igreja. Também se falava que ele mantinha relações incestuosas com a belíssima Lucrécia, sua irmã, sem que o papa Alexandre o censurasse por isso, já que, em troca, este a usava para os mais obscuros fins, intrigas, seduções, enganos, envenenamentos...

O jovem Bórgia, duque da Romania e de Valentinois, que os­tentava a categoria de cardeal e manipulava o papado como bem entendesse, era um homem sem limites, cheio, na mesma proporção, de dúvidas e certezas. Amável e cruel, apaixonado e impiedoso, pos­suía um caráter volúvel, que o fazia, se é que isso fosse possível, mais perturbador. Sua aguçada inteligência e seu grande poder não o con­verteram em um benfeitor, grande e generoso; ao contrário, só servi­ram para fazer dele uma criatura receosa e desconfiada, em constan­te análise psicológica de quem o cercava.

Em algumas ocasiões o Divino se perguntava como havia aceitado trabalhar para ele, porém algo nele o fascinava. Não era seu gosto artístico, já que César Bórgia, quanto à arte, só se preocupava com o desenho de suas armas e dos uniformes dos soldados, devido talvez à sua personalidade forte. Era uma figura exteriormente con­trária a Leonardo, mas com muito mais pontos interiores em comum do que este era capaz de admitir.

Contudo, devia ser cuidadoso, desconfiar daquele homem amoral, impiedoso com tudo o que não fosse capaz de amar ou te­mer, odiar ou admirar, ou que considerasse fora do comum.

Depois de tantas reflexões, depois de tantos testes, parecia que Leonardo enfim seria capaz de fazer a cópia do Sudário. Não sabia se o resultado seria bom, mas estava certo de estar seguindo o único caminho possível. Quando tudo acabasse, a dúvida ficaria resolvida. E esse era precisamente o estímulo do artista que o Divino tinha dentro de si, mais forte que uma tempestade em alto-mar. Se ele abandonava muitas de suas obras sem concluí-las, era porque elas não atingiam a perfeição que ele havia imaginado. Mas isso não o fazia desprezar o trabalho artístico, e sim esforçar-se mais a cada dia, tentando melhorar, tocar o céu, ainda que isso às vezes o levasse ao inferno, em seu obstinato rigore de alcançar a perfeição.

Leonardo decidiu fazer um teste com o Santo Sudário antes de usar o lençol dos Scevola. Para isso, empregou outro lençol de teci­do mais grosseiro, também novo, que colocou na câmara escura, na segunda armação que havia construído. Antes de tirar o lençol de seu baú de prata, ordenou que César de Sesto e Zoroastro deixassem o local, proibindo-os de voltar até que ele os chamasse. Somente quando saíram e Salai trancou a porta com uma grossa corrente, colocou e prendeu a parte da frente do lençol na armação. Seu tamanho, com uma largura de mais de quatro metros, o fizera decidir por esse modo de fazer a cópia. Primeiro imprimiria uma parte, aquela em que se via o rosto de Cristo; depois a que mostrava suas costas.

A lente já estava em seu lugar na parede. Antes de inseri-la, o Divino a prendera em um disco metálico largo e de beiradas planas, o que facilitou a tarefa de orientar seu eixo, já que este poderia des­viar-se do centro do Sudário na armação se não ficasse totalmente em posição vertical na parede. Porém, em sua engrenagem, bastava que este ficasse na horizontal para que a orientação da lente fosse correta.

O tempo de exposição passou muito devagar. Os espelhos que concentravam a luz no Lençol brilhavam resplandecentes. Do lado de fora, o dia estava ensolarado. Talvez fosse um bom presságio, ainda que Da Vinci não fosse supersticioso. Um relógio de areia, que esta­va sobre a mesa, indicava o instante certo de realizar as sucessivas tentativas.

Em um primeiro momento, parecia que os sais de prata não reagiam no linho. Não imaginava uma razão para isso, mas era o que acontecia. Leonardo ficou preocupado; em testes anteriores com o cavalo de Francisco Sforza tudo tinha dado certo. Para seu alívio, começaram a aparecer delicadas manchas pardas, e o Divino com­preendeu de repente o que acontecia: a imagem do Sudário era tão sutil que quase não se notava enquanto se formava lentamente na substância reagente. Às vezes o mais evidente passa despercebido quando a mente está ocupada com mil detalhes.

Uma sensação quase mística se apoderou de Leonardo. Man­teve-se em silêncio o tempo todo, suportando impassível os ruídos que Salai produzia com uns dados que lançava continuamente, jogando consigo mesmo. Ele era uma criatura totalmente sem respeito e consideração, mas já fazia anos que seu mestre havia abandonado a esperança de mudá-lo, e limitava-se, ingenuamente, a esperar que o bom exemplo mudasse seu caráter egoísta, despreocupado e gros­seiro.

Quando finalmente o Divino tirou o lençol com a imagem da Impressão e observou-a à luz do dia, ficou por alguns momentos mudo de admiração. Inclusive Salai, que nunca parecia interessar-se por outra coisa que não fosse libertinagem e diversões, aproximou-se da cópia espantado pela incrível semelhança com o original. Até os menores detalhes eram vistos com a claridade. Não importava que o processo de exposição continuasse; de fato era melhor que a imagem se apagasse por si mesma em vez de ter de queimá-la para destruir a prova.

Naquele mesmo instante, comovido por uma emoção nova, nun­ca antes experimentada, a vida de Leonardo mudou. E, como voto sagrado ao homem cujo rosto presidia o lugar, impassível, penetran­do no mais profundo de seu interior, irradiando uma energia misterio­sa porém quase palpável, decidiu que, quando realizasse a cópia de­finitiva, destruiria a lente e nunca mais repetiria esse processo. Para ele era uma blasfêmia terrível empregá-lo novamente em algo comum.

 

                                           1888, Paris

A biblioteca da Sorbonne ficava nas antigas dependências da faculdade de letras. Antes ficava no colégio Louis lê Grand, na rua Saint Jacques, no lado leste da faculdade. No dia anterior, Gilles ha­via tido a conversa com seu amigo, o pároco de Saint Germain. Dis­posto a descobrir algo mais sobre o medalhão, decidiu consultar a ampla bibliografia daquela biblioteca, cuja profundidade abrangia to­das as áreas do conhecimento humano. A essa hora já não havia nin­guém na enorme sala de leitura. As mesas e os bancos de madeira estavam perfeitamente alinhados ao longo do ambiente e davam ao lugar um aspecto desolado. Ainda penetrava um pouco de luz através das grandes janelas, mas logo seria noite; por isso Bossuet acendeu uma das lâmpadas de gás que havia sobre as mesas.

À sua frente tinha um livro de capas rachadas e dorso castanho; umas letras de um dourado desbotado anunciavam: Genealogia he­ráldica da nobreza francesa. Gilles o solicitara ao bibliotecário al­gumas horas antes, junto com alguns outros volumes que tratavam do mesmo tema. No entanto, ainda não descobrira nada. Talvez os es­cudos, apesar de sua forma tradicional, não fossem franceses, afinal. Poderiam ser italianos ou, mais provavelmente, de nobres aragoneses ou catalães.

Na primeira página do livro havia uma citação de um autor es­panhol do século XVI chamado Juan Flórez de Ocariz, relembrando a origem da nobreza e que dizia: "E ainda que as armas heráldicas testifiquem a nobreza de seu dono, não há um fidalgo com mister para sê-lo; porque as armas não dão nobreza, mas procedem dela".

Tinha os olhos cansados e doloridos. Tirou os óculos e os esfre­gou suavemente com a palma das mãos. Depois que sua vista se clareou um pouco, continuou folheando o livro. Já havia visto mais da metade quando finalmente encontrou os escudos que procurava. Com grande entusiasmo, colocou o medalhão sobre a página, de modo que pudesse vê-lo melhor. Após compará-los cuidadosamente, mes­mo a qualidade da impressão não sendo tão boa, concluiu que, com certeza, aquele era um dos escudos que procurava.

- Até amanhã, professor - disse atrás dele uma voz que o assustou.

Era o bibliotecário. Bossuet estava tão compenetrado que não o escutara aproximar-se. O coração palpitava acelerado em seu pei­to e quase rasgou a página quando se virou bruscamente.

- Deus do céu, Pierre! Quase me mata de susto.

- Desculpe-me, senhor - disse o bibliotecário muito aflito. - Não era minha intenção. Só queria avisá-lo de que já vou e per­guntar se queria algo mais antes que eu vá embora.

- Não se preocupe. Você não teve culpa - tentou tranqüilizá­-lo, ainda que também não estivesse recuperado do susto. – Creio que já tenho tudo que preciso, mas agradeço sua atenção.

- Obrigado, senhor. Até amanhã, então.

- Até amanhã, Pierre.

Novamente sozinho, voltou a concentrar-se no livro. O escudo ocupava boa parte da página. Estava dividido em quatro partes iguais, duas a duas: a parte superior esquerda e a inferior direita tinham o fundo branco com a cruz de Malta vermelha no centro; nos outros dois quadros, de fundo vermelho, um leão amarelo de aspecto amedrontador levantava suas garras. Sob o emblema se podia ler "Escudo de armas da família Charny", cuja descrição heráldica era a seguinte:


 

ARMAS: Escudo em cruz, com cruzes de Malta so­bre fundo de prata e leões inclinados de ouro no campo oposto.


 

Também se incluía no texto um breve resumo histórico, em que se falava de algumas figuras mais representativas dessa família:


 

As origens dos Charny se perdem no início da primei­ra Cruzada, que começou sob os auspícios do papa Urba­no II, no dia 27 de novembro de 1095. Às ordens de Godofredo de Bouillon, duque da Baixa Lorena, e com somente dezessete anos, Cristian de Charny combateu nas sucessivas campanhas que os cruzados realizaram na Terra Santa: após a conquista de Nicéia e a derrota em Doriléia, do numeroso exército russo em Anatólia, parti­cipou do sitiamento e da invasão a Jerusalém, cujos defensores egípcios foram massacrados.

Depois da guerra, Bouillon foi nomeado governador de Jerusalém, onde permaneceu junto de um reduzido gru­po de homens, entre eles, Cristian de Charny. Após a morte do duque, em 1100, Cristian volta à França, a suas pro­priedades ao norte, onde se vê obrigado a lutar de novo. Dessa vez,. ao lado de Roberto II, duque da Normandia, que, um ano depois, invadiu a Inglaterra para conquistá-la para seu irmão Henrique. Depois de cinco anos de fal­sas tréguas, intrigas e batalhas, Roberto é derrotado e a Normandia passa para o domínio de Henrique I, rei da Inglaterra.

Cansado das lutas entre nobres cristãos, une-se às tro­pas de Hugo de Ia Champagne, que se dirigiam à Palesti­na com o objetivo de proteger o reino latino de Jerusa­lém. Durante a longa viagem, estabeleceu amizade com um dos capitães do nobre francês, Hugo de Payns. Em 1118, Cristian e ele, com mais sete cavaleiros, ofereceram seus serviços de proteção a Balduíno II, então rei de Jeru­salém, a quem Payns conhecera durante a primeira cru­zada. Os cavaleiros foram alojados no templo de Salomão, motivo pelo qual receberam o nome de Cavaleiros do Tem­plo ou Templários.

 

Gilles se deteve por uns instantes. Parecia ter ouvido um ruído atrás de si. Levantou-se e olhou ao redor para ver de que se tratava. No entanto, como pôde comprovar, não havia ninguém na sala exceto ele. Somente lhe fazia companhia o retrato de Armand Jean du Pessis Richelieu, que ficava em um dos lados. O poderoso cardeal parecia prestar mais atenção nele do que nas plantas da Sorbonne, que tinha nas mãos, ainda que Bossuet não acreditasse que ele pudesse mo­ver-se. Provavelmente havia sido um estalo das madeiras velhas.

- Permite-me continuar, monsenhor? - perguntou ao religio­so antes de prosseguir.

 

Esta ordem de monges-guerreiros instituiu-se oficial­mente nove anos mais tarde, no Concilio de Troyes de 1127, com o apoio do papa Honório II. Cristian de Chamy continuou pertencente a ela até sua morte, em 1141.

A estirpe dos Chamy esteve, a partir de então, ligada inexoravelmente aos templários. Acredita-se que partici­param do saque a Constantinopla pelos cruzados em 1204, ainda que, depois dessa data, não exista mais nenhum dado sobre a família até cem anos mais tarde, época em que viveu Godofredo de Charny, mestre da ordem templária da Normandia, que foi condenado à fogueira por ordem de Felipe IV da França, junto ao grande mes­tre, Jacobo de Molay, durante o processo que destruiu a Ordem do Templo.

 

O acadêmico surpreendeu-se ao ler o que havia acontecido com Godofredo de Chamy. Perguntava-se que razões levariam o rei fran­cês a acabar, de um modo tão terrível, com os cavaleiros templários e com a vida de seus mais altos representantes.

 

Os anos seguintes foram muito difíceis para a família Charny. Muitos de seus membros, também cavaleiros templários, viram-se despojados de seus bens e obriga­dos a jurar, diante de várias testemunhas e do bispo de Rávena, que não haviam cometido nenhuma heresia. Co­meçou então um outro espaço de tempo em branco, que termina com outro Godofredo de Charny, cavaleiro que morreu defendendo a seu rei, Juan II, na batalha de Poitiers, contra os ingleses. Anos antes, fora preso por estes e conseguira escapar de um modo milagroso da for­taleza onde estava preso. Certo da intervenção divina em sua fuga, ordenou a construção de uma igreja na peque­na localidade de Lirey. Nela mandou edificar uma capela onde se guardaria o Santo Sudário de Cristo que, de um modo nunca esclarecido, havia chegado às mãos da famí­lia Chamy.

 

- É essa a relação! - exclamou o acadêmico em voz alta. - ­Os Charny estavam com o Santo Sudário.

Continuou lendo para tentar confirmar uma suspeita que sua ima­ginação supusera. Segundo o livro, a esposa de Godofredo de Charny era Joana de Vergy. Gilles procurou o sobrenome no índi­ce remissivo.

- Sim! - quase gritou de empolgação ao ver o escudo. ­Aqui está!

No final da lista aparecia o nome Vergy. O escudo dessa família correspondia exatamente ao outro emblema que aparecia no meda­lhão: um torreão sobre fundo vermelho e uma estrela amarela em fundo azul, separados por uma linha diagonal que dividia o escudo da parte superior direita à inferior esquerda, e, no meio, uma pequena insígnia com ondas azuladas. Embaixo se lia:

 

ARMAS: Escudo talhado. Na primeira parte a torre de prata, impregnada de sabre. E na segunda parte um pedaço azul com uma estrela de ouro. Para completar, ondas de azul e prateado.

 

Havia encontrado. Depois de tudo, fora mais fácil do que imagi­nara a princípio. O mistério estava resolvido. Pelo menos ele pensava que sim. Logo descobriria que o mistério estava só começando.

 

                                  1502, Florença

Se o teste com a lente de vidro veneziano havia sido um suces­so, a cópia definitiva no soberbo linho dos Scevola foi ainda mais fiel e perfeita. Nesta segunda réplica, sim, Leonardo teve de concluir o processo de fixação da imagem, expondo-a a vapores de mercúrio, ou azougue, como costumavam chamar naquele tempo, esquentando este metal líquido em uma vasilha para aumentar sua volatilidade, que era muito baixa à temperatura ambiente. Terminou o processo lavando o lençol com água saturada de sal comum, na qual o deixou de molho a noite toda para assegurar-se de seu efeito. "Era possível", pensou, "que, quanto melhor fosse o banho, mais tempo a imagem se manteria".

No lençol falso haviam ficado todas as marcas do original: os espantosos sinais da cruel e desumana tortura de Cristo, as manchas de cera das velas votivas usadas em seu culto, as queimaduras feitas nos incêndios que várias vezes quase o destruíram... Agora, Leonar­do teria de reproduzir tais sinais seguindo o padrão.

O Divino havia percebido, também graças a seus estudos anatômicos e fisiológicos, que as manchas de sangue estavam rodeadas de um fluido oleoso. Nelas, portanto, havia pedaços diferentes, uns mais escuros e definidos, menores, e outros mais espalhados e quase imperceptíveis, algo que só ocorre se o sangue está saindo de uma ferida recém-aberta. Por esse motivo, Leonardo pensou em usar um coelho vivo, fazendo-lhe um corte no pescoço que, abrindo a aorta, deixaria seu sangue pingar em um funil, ao qual uniria um talo articula­do para pintar com ele as marcas no lençol.

Parecia uma boa solução, mas talvez o sangue do coelho, ao secar, ficasse diferente do humano. E também sentia pena do pobre animal, que sofreria uma morte lenta e dolorosa. Por isso, como um tributo indireto ao Homem do Sudário, mudou de idéia e decidiu usar seu próprio sangue, saído de um corte, que faria no braço esquerdo por estar mais bem irrigado pelo coração, sobre o lençol impresso.

As manchas deixadas pela cera eram mais fáceis de reprodu­zir, já que, com o passar dos séculos, as gotas aderidas ao pano se soltavam, deixando somente sua marca no tecido. Só precisou usar uma vela grossa; quando cozinhasse o lençol, mais tarde, a cera derretida eliminar-se-ia sozinha e deixaria umas manchas idênticas às originais.

Quanto às queimaduras e aos rasgos, Leonardo empregou em ambos uma técnica similar. Onde faltava um pedaço de pano, que havia sido devorado pelo fogo ou simplesmente arrancado, ele cor­tou um pedaço com a mesma forma, porém um pouco menor. Depois queimou as beiradas, no caso das primeiras, e o desfiou, no dos se­gundos. Viu-se obrigado também a estragar toda a volta do lençol, pois o tempo havia deteriorado o contorno, mastigando-o com uma dentadura.

Quando tudo estava pronto, concluída por fim sua mais difícil obra, aquela que mais havia mexido com ele, penetrando na espiral de sua complexa mente, Leonardo a observou por um longo tempo, orgulhoso. Quase não querendo afastar-se dele, colocou-o em um grande forno que usava em seu ateliê para cozinhar a cerâmica, do­brada em volta de uns travessões de madeira protegida no interior de um cofre de ferro. Esse processo final daria a impressão de velhice do Sudário, os quinze séculos decorridos desde que o humilde Galileu de Belém havia sido amortalhado nele.

O genial toscano, antes de partir para Roma no dia seguinte, inquieto, lembrou o início de um antigo hino cristão que sua mãe ado­tiva lhe ensinara quando ainda era bem pequeno e que contribuiu para acalmar um pouco seu espírito: Te Deum laudamus; te Dominum confitemur, [A ti, ó Deus, te louvamos; a ti, Senhor, te reconhecemos] .

Leonardo entregou aos Bórgia o Santo Sudário e a cópia com enorme desgosto que, com certeza, não deixou transparecer. Sentia como se entregasse uma filha, que nunca teve, em casamento ao mais lascivo dos homens. Mesmo nunca tendo acreditado muito em Deus, parecia um sacrilégio que aqueles malvados possuíssem o Sudário autêntico. Mas, ao mesmo tempo, se consolou, pois seria mantido em Roma, bem guardado e protegido no Vaticano.

Os louvores que o papa Alexandre e César Bórgia lhe rende­ram ao conferir seu trabalho chegaram a incomodar o Divino, que foi objeto de uma glorificação por demais mundana e repugnante. Se César só o interpretou como um dever cumprido, Alexandre VI pa­recia vítima da mesma ânsia de adulação da qual fora objeto em sua coroação e que tanto o desagradou nesse dia.

No entanto, César era quem deixava entrever maior emoção; uma emoção incomum no caso dele, não fruto da frieza e da arrogân­cia, nascida de seu infinito desejo de poder. Ele acreditava estar dian­te do estandarte para seus futuros triunfos e, muito pelo contrário, logo começaria seu declive.

Durante o tempo em que Leonardo trabalhou na cópia da Síndone, César esperara com grande expectativa, queimando por dentro, que o mestre fosse capaz de realizar sua tarefa. Ele era um homem realista e plenamente consciente de que não seria fácil. Inclu­sive havia imaginado planos obscuros para conservar o Lençol consi­go, ainda que o Divino não conseguisse realizar a cópia ou que ela não fosse perfeita.

Porém sua estrela ainda brilhava no firmamento, e Leonardo conseguira realizar o que lhe fora solicitado. Isso o tranqüilizava, já que poderia seguir seu plano original, perversamente perfeito. A primeira coisa que o jovem Bórgia fez foi enviar um emissário a Chambéry para anunciar que a ladra da relíquia havia sido presa em Roma pela guarda papal, quando tentava conseguir falar com o papa Alexandre VI para vender-lhe o Lençol.

Os Sabóia, como era de se esperar, agradeceram pelo aviso e rogaram, com extrema gentileza, como a situação requeria, já que estavam diante de inimigos declarados, que o devolvessem. Junto com seu pedido, enviaram um valioso presente. César, que era o dono da situação, não pensou duas vezes antes de mandar decapitar a mulher que havia roubado o Sudário para ele e com a qual mantive­ra relações íntimas nos últimos dias e enviar sua cabeça em um cesto junto com o baú de prata que continha a relíquia. Assim o jovem Bórgia realizou seus desejos: possuir o verdadeiro Santo Sudário de Cristo e ainda fazer com que a poderosa Casa de Sabóia ficasse em dívida com sua família.

Entretanto, no ano seguinte, 1503, o papa Alexandre VI mor­reu, talvez até envenenado por sua própria filha, Lucrécia, cansada dos abusos deste; abusos para com ela, à qual usava como uma ma­rionete segundo as vontades de César e da qual desfrutava carnal­mente quando desejava. Este acontecimento afetou negativamente os Bórgia, pois, apesar de ser César o verdadeiro regente da família e quem tomava as decisões mais importantes, sentado na Cadeira de São Pedro, o papa sustentava esse poder.

O momento crucial da decadência dos Bórgia foi a eleição de Giulliano della Rovere como papa, o célebre Júlio II, que incumbiu Michelangelo de pintar o teto da Capela Sistina, no conclave que seguiu ao efêmero papado de Pio III. Júlio II era um inimigo declara­do de César, ao qual destituiu de sua dignidade cardinalícia e mandou prendê-lo, obrigando-o a fugir para Nápoles, que estava em poder dos exércitos castelhanos há mais de um ano.

No entanto, a decisão de estabelecer-se em Nápoles, onde César tinha parte de sua família, não foi muito acertada, já que, inte­ressado em manter boas relações com Roma, o rei Fernando, o Ca­tólico, regente de Castela após a morte da rainha Isabel, mandou prendê-lo. Foi enviado à Espanha por seu captor, Gonzalo Fernandez de Córdoba, onde ficou preso nos castelos de Mota e Chinchilla. Mas conseguiu fugir e refugiou-se em Navarra, de cujo rei, Juan III, era cunhado. Unido a este em sua guerra contra Castela, morreu em 1507 durante o sitiamento de Viana. Foi sepultado em uma igreja, sob uma laje de pedra no centro da nave, pisado pelos pés dos fiéis e talvez esquecido como homem no oceano de sua notoriedade histórica.

 

                                         1888, Paris

Gilles lecionava matemática na Sorbonne, ainda que, como ho­mem da ciência que era, suas atividades não se limitassem unicamen­te a essa disciplina. Além de uma completa formação no campo das letras e humanas, possuía amplos conhecimentos de física e química. Por isso, não surpreendia vê-lo trabalhando em algum dos laborató­rios da universidade, especialmente no dessa última matéria. Isso era tão freqüente, que o catedrático de química costumava chamá-lo ca­rinhosamente de O alquimista e muitas vezes brincava dizendo te­mer que o Bairro Latino de Paris saísse voando com algum de seus experimentos.

Naquela noite, encontrava-se exatamente no laboratório de quí­mica, tentando descobrir algo mais sobre a composição do meda­lhão. Passara-se quase uma semana desde que descobrira a quem pertenciam os escudos gravados nele. Depois disso, não tivera mais tempo para dedicar-se a ele, pois seus compromissos acadêmicos o impediam. Já eram quase onze e meia; somente nessa hora tivera uma folga. Estava sozinho no laboratório.

As paredes da sala eram azulejadas de um branco puro, e no ar flutuava um cheiro ácido e forte: talvez uma mistura de desinfetante e algum tipo de composto sulfuroso. A maior parte do local estava ocupada por mesas, cada uma equipada com uma pequena torneira. Sobre elas, havia vários apetrechos e substâncias empregados nas experi­ências: tubos, garrafas transparentes de produtos químicos com gas­tas etiquetas brancas, isqueiros Bunsen, pinças de vários tamanhos, balanças e, sobretudo, provetas, recipientes de vários tipos, tubos de ensaio e outros recipientes de formas retorcidas que pareciam sofrer as mais horríveis torturas do inferno.

Gilles dirigiu-se para o canto esquerdo da sala. Ali havia uma mesa grande, com várias torneiras e uma infinidade de artefatos. Essa mesa era utilizada pelo professor durante as aulas, e era nela que ele costu­mava trabalhar. Atrás, ocupando toda a parede, havia um espaçoso armário de vidro, em cujas prateleiras estavam, organizados e protegi­dos por chave, os produtos químicos mais caros ou perigosos.

Tudo isso dava ao lugar um aspecto tétrico, o que contribuía para a funesta reputação que possuía, entre os estudantes mais jo­vens, que os veteranos ajudavam a manter. Bossuet riu ao recordar-­se da história que circulava durante as aulas, segundo a qual, muito tempo atrás, ocorrera ali um crime terrível, cometido por um padre que assassinara a própria filha e o amante dela. Desde então, dizia a lenda, os fantasmas dos jovens apareciam toda noite à mesma hora em que foram assassinados.

Pelo que Gilles sabia, jamais ocorrera um crime na Sorbonne e, em todo caso, ele tampouco vira qualquer alma penada no laborató­rio clamando por vingança. "Salvo os próprios estudantes exigindo a cabeça do professor", pensou divertido.

Ainda sorrindo e sentindo-se de bom humor apesar do cansa­ço, tirou o medalhão da pequena sacola onde o tinha guardado. Tra­zia-o para confirmar sua suspeita de que era feito de chumbo. Uma vez mais, observou-o com curioso interesse por alguns momentos, antes de colocá-lo na balança de precisão. Com um estalo, a flecha da balança indicou um valor que Bossuet anotou num papel: 387 g.

- É um pequeno gorducho, meu bom amigo.

Agora precisava de um recipiente de vidro. Correu os olhos pela mesa, procurando, e escolheu um em forma de pêra que estava em uma ponta, ao lado de um punção de aspecto atemorizante. Co­locou o recipiente embaixo de umas torneiras, mas não saiu água quando as abriu. Provavelmente o outro professor fechara o registro, algo que se costumava fazer por precaução. Gilles reconhecia que ele sempre se esquecia de fechá-la novamente quando ia embora. Por isso, como de costume, lembrou a si mesmo que deveria fazê-lo. Entretanto, como de costume, teve a sensação de que seria comple­tamente inútil tentar lembrar-se.

Inclinando-se sobre a mesa, tateou por trás da torneira, debai­xo da pia. Tocou a chave com o dedo, mas não conseguiu abri-la. Inclinou-se um pouco mais para ver se conseguia. Disse um impropé­rio entre dentes quando ouviu um barulho e sentiu que algo lhe espeta­va o ventre. Perguntou-se por que simplesmente não dava a volta na mesa e o fazia por trás. Sem dúvida, seria bem mais fácil. Mesmo assim, com uma última tentativa, conseguiu abrir o registro. A água jorrou imediatamente, acompanhada de um leve sussurro. Em segui­da, notou, enquanto recuperava o fôlego, que era a balança que havia espetado em seu abdome. O objeto estava virado sobre a mesa; a caçoleta superior caíra para um lado e deixava à mostra as peças de sustentação. Pareciam as garras de um fabuloso pássaro metálico criado pela imaginação de monsieur Verne.

Bossuet levantou a balança e a colocou de lado. Depois de en­cher o recipiente de água, introduziu-o dentro de outro um pouco maior, que era graduado. Segurando o medalhão pela corrente, mer­gulhou-o completamente na água. Por último, depositou-o com cui­dado sobre a mesa, junto ao recipiente menor. Bastou observar a graduação do recipiente maior para saber seu volume. Não podia ser mais simples: "O volume de água transbordado por um objeto mer­gulhado é igual ao volume dele". Gilles ficou maravilhado por aquilo ter sido inventado por um grego há mais de dois mil anos. O cálculo posterior, era muito simples: mediante o quociente entre a massa do medalhão e seu volume, obteria a densidade do material de que era composto. Era necessário somente compará-lo com o valor corres­pondente ao chumbo para averiguar se, com efeito, se tratava deste metal.

Embaixo da mesa, no lado do armário, havia uma grande quan­tidade de prateleiras onde se guardavam livros de fórmulas, publica­ções e estudos diversos, normas de reconhecimento de materiais e enormes tratados de química. Uma boa parte das madeiras estava curvada pelo excesso de peso e muitos dos documentos estavam cobertos por uma grossa camada de pó, principalmente os menos utilizados. Gilles pôs a mão no bolso tentando encontrar a pequena chave, que utilizou para abrir a gaveta onde estava escrito "tábuas", que ficava bem à frente. A gaveta grunhiu sonoramente ao ser aberta e de seu interior vinha um cheiro de mofo e papel velho. Dos dois lados, dois cilindros metálicos sustentavam umas pastas de cor sépia, que tinham etiquetas de identificação nas quais se relacionavam múl­tiplos documentos. Uma delas dizia: "Tábuas de densidades".

As folhas que tinha em suas mãos mostravam as densidades relativas de todos os elementos conhecidos até então, em ordem al­fabética e dispostos em colunas. Passou o dedo pela lista até encontrar o chumbo. À direita do nome era indicada sua densidade. Bossuet ficou um pouco decepcionado ao comprovar que não era igual ao que obtivera. E era uma diferença bastante considerável, muito acima do que poderia considerar dentro da margem de erro. Pensou que havia várias causas possíveis para isso: ou o medalhão era composto de outro material, talvez uma liga de metal, ou era oco, ou ambas as coisas.

Apesar do resultado, continuava convencido de que se tratava de chumbo, ainda que pudesse ser algum outro elemento de densida­de parecida. O zinco e o bismuto estavam descartados, já que, salvo em compostos desses elementos, no estado natural um era transpa­rente e o outro rosado. Se não era chumbo, era mais provável que se tratasse de estanho, se bem que seu aspecto não indicava muito que fosse; ou mesmo de tálio. Gilles sabia que esse elemento, assim como o chumbo, adquire uma cor cinza-azulada em contato com o ar; tam­bém, que é mole e maleável. Mas fora descoberto há pouco tempo, exatamente por um professor de Sorbonne, Claude August Lamy, e era mais raro do que o chumbo. Nesse caso, também não adiantari­am os testes com ácidos mais fortes, pois estes não afetavam a ne­nhum dos dois elementos, exceto o ácido nítrico. De maneira que a melhor alternativa seria verificar a temperatura de ebulição, já que aí sim existia uma diferença suficientemente grande para que pudesse chegar a uma conclusão definitiva.

Não pretendia destruir o medalhão, mas necessitava obter uma amostra para o teste. Na realidade, umas poucas raspas seriam mais que suficientes. De uma pequena estante de madeira tirou uma lima de metal. Ao virar-se para pegar o medalhão, sentiu que sua respira­ção se prendia. Sem que percebesse, a ferramenta esbarrou em seus dedos, produzindo um ruído metálico ao chocar-se contra o piso de pedra. Sentiu que a garganta ardia e as têmporas palpitavam com força. Tinha de aproximar-se, tinha de aproximar-se e vê-lo, mas simplesmente não conseguia. Então fechou os olhos o mais forte que pôde e ficou em pé aguardando, desejando que tudo aquilo não pas­sasse de um pesadelo.

 

                         1504, Nápoles, Poblet, Paris

Gonzalo Fernandez de Córdoba, conhecido como o Grande Capitão, duque de Santângelo e comendador da ordem de Santiago, havia sido o principal responsável pela conquista de Nápoles e pela expulsão das tropas francesas que a dominavam anteriormente. Após um período de dois anos na Espanha, regressou à Itália, com a mis­são de dividir os territórios entre franceses e espanhóis, divisão essa estabelecida pelo tratado de Chambord-Granada. No entanto, as hostilidades logo ressurgiram entre os dois bandos opostos. Os fran­ceses eram superiores em número, porém o Grande Capitão mostrou seu incomparável talento para a estratégia militar, contendo com sua infantaria e sua artilharia o avanço dos franceses, até que chegaram re­forços mandados pelo rei Fernando de Aragão, que ao sair vitorioso lhe outorgou o título de vice-rei de Nápoles.

Fernandez de Córdoba pertencia, desde antes da conquista de Granada, à Ordem de Santiago, criada em 1161 por doze cavaleiros leonenses, com Pedro de Arias à frente como primeiro mestre e fun­dador. O objetivo inicial dessa milícia cristã foi proteger os peregrinos do Caminho de Santiago, mas em poucos anos suas atividades se estende­ram à luta contra os invasores sarracenos em toda a península Ibérica.

Assim como os templários, os cavaleiros de Santiago começa­ram a formar círculos secretos dentro da Ordem. Nestes, os mem­bros mais avançados e sábios se dedicavam, escondidos, ao estudo de matérias proibidas, como a magia ou a alquimia. Quando os Reis Católicos incorporaram o mestrado à coroa, tais círculos herméticos continuaram existindo, mas seus membros passaram a ter de ser mais cuidadosos que antes, reunindo-se somente em alguns mosteiros do Cister, ordem monástica da qual herdaram sua organização e carac­terísticas, e que conservava desde os tempos de São Bernardo a essência espiritual das milícias de Cristo.

Exatamente o Grande Capitão foi um dos mais importantes ca­valeiros de Santiago, participante dos saberes acumulados nos cenáculos secretos e grande defensor da comenda. Em suas bata­lhas, era seguido por uma guarda pessoal de doze cavaleiros da or­dem, em homenagem ao número de seus fundadores, vestidos com a capa branca do Cister e a cruz vermelha de Santiago sobre ela, cujo braço esquerdo se transformava na lâmina de uma espada.

Fernandez de Córdoba sentia em suas entranhas o desejo de acabar com o poder do jovem Bórgia na Itália. Ele o considerava uma criatura desprezível e um criminoso monstruoso. Sentiu, de fato, um grande prazer quando seu senhor deu-lhe permissão para prendê-lo sem hesitar: o Rei Católico era um diplomata sagaz, ao mesmo tempo que era um gênio militar, e jamais tomava uma decisão política às pressas, tentando obter, a cada manobra, o maior número possível de benefícios, sempre a serviço do Estado.

Quando o Grande Capitão prendeu César Bórgia em Nápoles, também tomou dele o Santo Sudário. O baú de prata que guardava a relíquia fora escondido por César no porão do palacete em que esta­va instalado, para o caso de ser preso, como de fato foi. O Grande Capitão ordenou então a dois de seus homens de confiança, ambos pertencentes à sua guarda pessoal de cavaleiros de Santiago, que escoltassem o Lençol até a Espanha e o levassem ao mosteiro de Poblet, em terras castelhanas. Ali, o mestre espanhol dos templários decidiria o que fazer com ele.

Após a destruição da Ordem do Templo - levada a cabo no fim do século XIV pelo rei da França, Felipe IV, o Belo, homem vil e traiçoeiro, que desejava possuir os grandes tesouros da Ordem -, os poucos cavaleiros que conseguiram ser absolvidos dos falsos de­litos que lhes foram imputados instalaram-se em mosteiros de Cister e do Hospital. Alguns membros da Ordem de Santiago também per­tenciam aos círculos templários secretos. Foi assim que o Templo continuou existindo em sua vertente esotérica, ainda que apagado da história oficialmente.

Apesar de a maioria dos cavaleiros templários ter sido de catalães e aragoneses até o fim da Ordem, sua origem era francesa. Por esse motivo, sendo já uma sociedade secreta, sua sede se estabeleceu em Paris, em um convento próximo à catedral de Notre Dame, na mar­gem sul do rio Sena.

A viagem de barco dos dois cavaleiros foi tranqüila. O mar es­teve permanentemente calmo, como se forças da natureza, de incal­culável poder, protegessem a relíquia durante a travessia. No entardecer do quarto dia, avistaram no horizonte a costa da Espanha. Subiram até o porto de Barcelona, onde desembarcaram com o baú do Sudário escondido em um caixote de madeira. De lá até Poblet viajaram em uma carroça. Não tiveram nenhum imprevisto, não se encontraram com bandoleiros nem com soldados do rei. Ninguém deveria saber o conteúdo da caixa que transportavam nem a natureza de sua missão.

No mosteiro, o abade e mestre do Templo espanhol, frei Raimundo de Salazar, recebeu a Síndone com grande alvoroço e sur­presa. Fazia muitos anos que seus antigos tutores a haviam cedido aos Sabóia, e ele não podia compreender como e em que circunstân­cias ela caíra nas mãos dos Bórgia. Suspeitou de sua autenticidade até que viu a Impressão de Jesus com seus próprios olhos. A imagem, como fez com todos aqueles que estiveram diante dela, dissipou to­das as suas dúvidas.

Como era seu dever, o monge enviou um dos cavaleiros a Paris, com uma mensagem para o grande mestre do Templo, convidando-o a vir a Poblet para que decidisse o futuro da cobiçada relíquia. A mensagem foi posta em um medalhão com os escudos das casas de Charny e de Vergy, e com o Santo Sudário em seu centro, em home­nagem às casas que abrigaram a relíquia até sua entrega aos Sabóia. Este era um modo de comunicar-se entre os mosteiros. Ninguém sus­peitaria que dentro de um medalhão de metal pudesse haver uma mensagem escondida.

O cavaleiro de Santiago cavalgara freneticamente até a França após o abade de Poblet lhe designar a missão de levar a mensagem ao grande mestre do Templo. À noite, uma pequena pausa de poucas horas era seu único descanso. Nas estalagens por onde passava, tro­cava o cavalo por um mais descansado. Não tinha tempo a perder; o achado do Santo Sudário era muito importante para permitir qual­quer demora.

Ao chegar às imediações de Paris, a gótica figura da catedral de Notre Dame se sobressaía no centro da Île de la Cité, situada no rio Sena, núcleo que deu origem à cidade, conhecida pelos romanos como. Lutecia. O cavaleiro dirigiu-se a uma das pontes que levavam à ilha. O convento templário encontrava-se na outra margem do rio, muito perto da catedral. Mas, ao atravessar a Pont du Change, uma patru­lha de soldados lhe ordenou que parasse. O capitão dos guardas mandou que descesse do cavalo para conferir sua identidade. O monge se negou: sabia que Paris era uma cidade perigosa para os cavaleiros de Cristo, e o maior perigo era a própria monarquia, assim como os braços de seu poder.

A desobediência do cavaleiro fez com que os soldados o rode­assem. Sua única alternativa era fugir. Esporou o cavalo tentando atra­vessar a barreira de soldados. Ao avançar sobre eles, um dos guar­das se atirou sobre ele e quase o fez cair do cavalo, pendurando-se em seu pescoço, o que o fez perder o medalhão com a mensagem, que se afundou nas escuras águas do rio. O monge conseguiu atra­vessar o cerco, mas outro guarda armou sua balestra e disparou con­tra ele um dardo que se enterrou em suas costas, à altura do ombro esquerdo, atravessando-lhe o peito.

O cavaleiro sabia que seu ferimento era muito grave, talvez mortal. A dor o impedia de cavalgar erguido, ainda que soubesse da importância de fazer chegar a mensagem ao grande mestre, o que o fez reunir as poucas forças que lhe restavam e continuar sobre o ca­valo. Quando chegou ao mosteiro, havia perdido muito sangue. Uma grande mancha vermelha escura cobria a metade de sua capa. Conseguiu cumprir valentemente sua missão, mesmo tendo morrido um pouco depois. Suas feridas, apesar da perda do medalhão, serviram para que o grande mestre do Templo confiasse na veracidade da mensagem.

Porém, sem que o monge percebesse, o capitão da guarda ha­via montado rapidamente em seu cavalo e o seguido até o mosteiro em que se escondiam os irmãos da Ordem. Nessa mesma noite, cen­tenas de soldados o cercaram, ordenando a seus membros que aban­donassem o edifício. Ninguém saiu. Os cavaleiros do Templo esta­vam dispostos a sacrificar-se uma vez mais.

Os soldados lançaram então flechas incendiárias contra as jane­las e o telhado, ao mesmo tempo que prenderam uma carroça cheia de palha na entrada do edifício. Poucos minutos depois, as chamas começaram a consumi-lo. Esperavam ouvir os gritos dos cavaleiros. No entanto, lá dentro reinava o silêncio mais sepulcral, que se trans­formou logo depois em um cântico grave e distante, entoado por cen­tenas de vozes condenadas a uma morte pavorosa. Os estalos do fogo e o som das correntes de calor subindo até as alturas davam à cena uma aparência surpreendente.

O edifício estava inteiro tomado pelas chamas quando o cata-­vento do capitel desabou, caindo fumegante muito próximo do chefe dos soldados, cuja montaria empinou e o atirou no chão. Nesse mo­mento, escutou-se um grande trovão, apesar de o céu estar comple­tamente limpo. Muitos soldados se afastaram do convento em pâni­co, compreendendo talvez finalmente o crime que haviam cometido. O comandante jazia no frio piso da rua com o pescoço quebrado, agonizando diante das chamas abrasadoras que consumiam o edifí­cio. Deu seu último suspiro enquanto observava a matança que provocara, com lágrimas nos olhos, pressentindo a proximidade do jul­gamento que com certeza iria condená-lo. Antes de morrer, ainda soltou um grito dilacerado pedindo confissão, mas não houve tempo de administrar-lhe os últimos sacramentos.

Em Poblet, a notícia chegou alguns dias depois. Uma profunda consternação tomou conta dos monges que pertenciam ao Templo, embora tivessem de seguir a vida normal para não levantar suspeitas entre os irmãos não-iniciados. Paris havia caído, e a Catalunha con­vertia-se em principal reduto da sociedade secreta. Já não existiam dúvidas: o Santo Sudário ficaria guardado em Poblet pelos séculos seguintes.

 

                                   1888, Paris

Quando Gilles conseguiu abrir os olhos, tudo havia terminado. No entanto ainda estava sobressaltado pelo que acabara de aconte­cer, se é que realmente havia ocorrido. A verdade é que não era capaz de afirmar com certeza. Doía-lhe o corpo todo. Sentia todos os músculos tensionados e, de repente, estava terrivelmente cansado. Sentia-se estranho, fora do lugar, como se tivesse sido arrastado a alguma esfera além do mundo real. Por um instante acreditou em um pensamento tentador: tudo havia sido fruto de sua imaginação, de sua mente cansada. Seria muito mais fácil convencer-se disso do que continuar vivendo com o que acreditava ter visto. Porém ele era um cientista. Durante toda sua vida combatera exatamente o mesmo tipo de erro que agora estava a ponto de cometer. Não havia luz alguma no medo e na superstição; tão-somente a mais negra e pavorosa escuridão.

Obrigou-se com todas as forças a convencer-se de que devia existir uma explicação racional. Sem dúvida, haveria. Com um gesto brusco, encheu os pulmões de ar e começou a andar com um passo vacilante, apoiando sua mão esquerda na mesa. Não sabia se pode­ria andar sozinho. Depois do que lhe pareceu uma eternidade, che­gou até onde estava o medalhão. Jazia no mesmo lugar em que o havia deixado e voltara ao seu aspecto normal. Engoliu saliva emitindo um sonoro ruído, enquanto estendia a mão trêmula em direção do medalhão. Tocou-o suavemente com a ponta dos dedos e voltou a retirar a mão bruscamente. Estava extremamente frio. No entanto, apenas alguns segundos antes pareceu brilhar com luz própria, como um pequeno sol, emitindo cálidos resplendores. E achava ter ouvido uma voz dentro de sua cabeça, uma voz distante e poderosa que disse algo que foi impossível de entender.

Dessa vez conseguiu alcançá-lo e segurá-lo com os dedos. Com um gesto mais firme, levantou-o com cuidado da mesa para colocá-lo diante de seus olhos. Nada parecia haver mudado. Os escudos continuavam exatamente como ele se lembrava que eram, mas se deu conta de um detalhe que até então não percebera: ao redor de toda a circunferência do medalhão podia-se ver uma fissura quase imper­ceptível. Seu coração começou a palpitar acelerado, e o medo foi dando lugar a uma crescente excitação. Com as mãos desajeitadas      foi tateando toda a mesa em busca de ferramentas.

- Onde diabos estão? - sussurrou entre dentes, irritado.

Quase se atirou sobre elas. Algumas vasilhas caíram no chão, quebrando-se e produzindo um ruído estridente. Mas Gilles nem as ouvia. Quando finalmente encontrou a caixa de ferramentas, quase pulou de alegria. Movimentando-se como se estivesse louco, arran­cou um pedaço de seu próprio avental e embrulhou o medalhão com aquele tecido. As mãos tremiam mais que nunca. Tentou colocar o medalhão sobre um pequeno cepo preso à mesa, mas não o apertou com força suficiente e ele caiu no chão.

- Maldita seja! Maldita seja! - gritou, enquanto se agachava para recolhê-lo.

Quase bateu a cabeça na mesa ao levantar-se. Com tontura e as mãos tremendo, embrulhou novamente o medalhão. Secou o suor que corria pela testa e chegava até as sobrancelhas. Apertou o cepo o máximo que pôde, para certificar-se de que desta vez o medalhão não se moveria. Pegou martelo e talhadeira e bateu com força. Mas nada ocorreu.

Tentou de novo com mais força e, dessa vez, a ponta da ferra­menta pareceu afundar um pouco no metal. Em um estado febril, à beira de um ataque histérico, bateu repetidas vezes até que a talhadeira deslizou livremente. Nesse momento, Gilles estava tão apoiado no cepo que caiu sobre ele, pois não havia mais resistência.

Muito ofegante, permaneceu quieto observando o medalhão em­brulhado. Os braços estavam pendurados languidamente ao lado do corpo, mas ainda segurava as ferramentas. Enxugou novamente o suor, enquanto tentava recuperar o fôlego. Cada vez que inspirava o ar, fazia-o emitindo um assobio doentio.

Distraidamente, colocou sobre a mesa o martelo e a talhadeira. Depois tirou o medalhão do cepo e o levou até a mesa entre as mãos, com doçura, como se o estivesse embalando entre elas. Bem deva­gar, foi tirando o pano até desembrulhá-lo por completo. Sua suspei­ta se confirmava; o medalhão, na verdade, era oco. Podia ver as duas metades sobre o pano branco. E havia algo mais, algo que não espe­rava... Ou talvez sim. Não sabia. Em todo caso, ali estava, descan­sando junto aos restos do medalhão: um pequeno papel dobrado de cor amarelada.

Limpou as mãos no que sobrava de seu avental. Como se pen­sasse que ao tocá-lo pudesse de alguma forma transformar em mundano aquele mistério. Levantou a vista para contemplar o ambiente. Quis comprovar uma vez mais que ainda estava ali, que tudo era real.

Começou a chover forte. A água encheu rapidamente as calhas, que começavam a transbordar. Ao longe, por cima do monótono barulho da chuva, ouviam-se trovões de um temporal que se aproximava.

Estava só a um passo da mesa, mas não sabia onde iria parar se desse esse passo. Pela primeira vez em sua vida sentiu medo. Não aqueles temores cotidianos do ser humano, e sim o autêntico pavor que se sente quando chega o momento de enfrentar a si mesmo, de ter de deixar para trás tudo o que se é, tudo aquilo em que se acredi­ta. Mas não era a única coisa que estava sentindo; havia outra sensa­ção ainda mais poderosa. Não podia explicar de que se tratava... Esperança, talvez.

Os trovões estavam muito fortes agora. Os vidros das janelas retumbavam com cada descarga. O brilho dos relâmpagos inundava o laboratório apesar das luzes acesas. Uma janela, que alguém esquecera de fechar, batia violentamente contra o batente à mercê do vento furioso.

Gilles pegou o papel entre os restos do medalhão. Era áspero e enrugado. Com muito cuidado, de um modo quase reverente, foi des­dobrando o papel, que rangia conforme o abria. Por seu aspecto, devia ser muito antigo. Era um verdadeiro milagre que se conservasse em tão bom estado. As pernas quase não o puderam sustentar quan­do viu, no papel, o que parecia ser uma mensagem. Apressou-se em abri-lo por completo, mas a emoção fazia tremer suas mãos.

O estrondo ensurdecedor de um trovão o assustou. A janela aberta batia com mais fúria do que antes, no mesmo ritmo das batidas de seu coração. Era como se o mundo fosse acabar naquela noite.

Umas letras de cor apagada ocupavam a parte central do papel. Estavam escritas com uma letra perfeita e bonita. À medida que lia a mensagem, em seu rosto se desenhava um sorriso que era fruto da mais pura alegria. Quando terminou, percebeu que estava chorando. As lágrimas corriam pela face, deixando um caminho brilhante por onde passavam. Enquanto isso, lá fora, o temporal começava a afas­tar-se e a chuva diminuía. E então Gilles só pôde sentir-se agradecido.

 

Os caminhos do nosso Senhor são estranhos, e escu­ros são seus desígnios para nós, seus humildes servos. Mas sua infinita bondade nos trouxe a luz, que ilumina com sua divina graça nossos corações impuros, e nos tem per­mitido contemplar o Sudário no qual nosso Senhor Jesus Cristo foi envolvido no Santo Sepulcro, do qual ressusci­tou no terceiro dia, para maior glória de Deus. Rogo-vos que venhais pois, meu bom Mestre, a buscar o que Nosso Senhor concedeu a nosso mosteiro, pois sem dúvida vos­sa sabedoria, que é maior que a nossa, saberá como me­lhor dispor dele.

Mosteiro de Poblet,

 

Quinze de setembro do ano de Nosso Senhor de mil qui­nhentos e quatro.

 

                                 1507, Granada

Na Espanha do início do século XVI, o Santo Ofício detinha um imenso poder, a ponto de ser o único tribunal sobre o qual nenhum foro prevalecia. O primeiro Inquisidor Geral, eleito pelos Reis Cató­licos no final do século XV, o frei dominicano Tomás de Torquemada, prior do convento de Santa Cruz de Segóvia, deu ao Santo Ofício uma organização tão elaborada que nenhuma outra instituição da época podia comparar-se em eficiência. Sua obra teve seqüência com outro dominicano, frei Diego de Deza, arcebispo de Sevilha, que esteve à frente da Inquisição durante quase uma década. Porém, o maior destaque como figura política e religiosa foi o terceiro Inquisidor Geral, Francisco Jimenez, conhecido historicamente como cardeal Cisneros.

O cardeal Cisneros era um homem piedoso e sábio, mas de personalidade forte e vontade irredutível. Cursara teologia e direito em Salamanca e Roma, as duas universidades mais importantes de seu tempo. Membro da ordem franciscana e protegido do cardeal Mendoza, foi confessor e conselheiro principal da rainha Isabel de Castela e arcebispo de Toledo. Suas excelentes relações com a corte castelhana atingiram uma altura tão notável que, quando a rainha morreu, os grandes senhores de Castela o elegeram governador do reino, em oposição à candidatura de Fernando de Aragão, para o qual não deram nenhum apoio. Porém Cisneros, amigo sincero do Rei Católico, encarregou-se de que este obtivesse a regência, acre­ditando honestamente que lhe pertencia por direito. Como recom­pensa, Fernando entregou-lhe a capelania cardinalícia e o nomeou Inquisidor Geral, em virtude do Régio Patronato, em 1507.

Um ano antes de ser nomeado Inquisidor Geral, o cardeal Cisneros ficou sabendo que Gonzalo Fernandez de Córdoba encon­trara o Santo Sudário de Cristo. Um velho soldado do Grande Capi­tão, que ao voltar à Espanha se ordenara franciscano, lhe contara a história. Ele não sabia na realidade o que fora encontrado no palacete de César Bórgia, mas viu como, em uma parede do porão, se forma­ra o que parecia ser o rosto de um homem com cabelos longos e barba. Todos os presentes se ajoelharam, acreditando estar diante da imagem de Jesus Cristo. Fernandez de Córdoba, informado do prodígio, ordenou que todos os soldados abandonassem imediata­mente o palacete. Acompanhado somente pelos cavaleiros de Santi­ago que faziam parte de sua guarda pessoal, quis contemplar a apari­ção pessoalmente. Pouco depois, os cavaleiros tiraram de lá uma caixa de madeira, e dois deles partiram em seguida para a Espanha, levando a misteriosa caixa.

O relato interessou ao cardeal, que não só ficou profundamente intrigado, como viu na atitude do Grande Capitão um possível ato de deslealdade, ao não comunicar as autoridades religiosas espanholas sobre o achado. "Podia ser que", pensou Cisneros, "talvez o rei Fernando tivesse sido informado e preferido manter segredo". Nesse caso, o comportamento do monarca não teria sido menos reprovável que o de seu servo, mas sua dignidade régia o excluía de toda censura.

O soldado mencionou também os nomes dos cavaleiros de San­tiago aos quais se confiara a missão de velar pelo conteúdo do caixo­te. O cardeal fez indagações. Seus agentes não puderam localizar mais que um deles, que trocou a espada pelo retiro monástico. Do outro, nada conseguiu saber. Quando, no ano seguinte, Cisneros foi nomeado Inquisidor Geral, viu uma excelente oportunidade de conti­nuar suas pesquisas. A soberania de uma instituição tão poderosa lhe permitia chegar até o fundo do enigma.

Naquela época, as relações entre o rei Fernando e o Grande Capitão estavam em seu ponto álgido. A confiança do monarca na­quele que havia sido seu mais fiel servidor e o maior gênio militar de seu tempo se quebraram definitivamente. Fernandez de Córdoba perdeu seu título de vice-rei de Nápoles e foi obrigado a regressar à Espanha.

Quando voltou, soube que a Inquisição acabava de prender seu fiel cavaleiro e devoto amigo, frei Bartolomeu de Cépeda. O Grande Capitão sabia que o frei não era católico, e sim descendente de judeus conversos. Pensou que talvez esse fosse o motivo da detenção, já que o Santo Ofício nunca explicava suas razões até que as liam publicamente no auto-de-fé.

A situação era grave. Fernandez de Córdoba não podia tolerar a atuação do tribunal contra um de seus melhores homens, que de­monstrara extrema lealdade e um valor sem igual nas mais difíceis situações. Por isso, assim que soube do fato, dirigiu-se a Granada. O Santo Ofício encarcerava os suspeitos em uma prisão que também servia de palácio ao Inquisidor Geral quando se encontrava ali.

Os processos da Inquisição eram verdadeiramente arrepiantes. Prendia-se o acusado sem que ele ao menos conhecesse seu delito e ele era conduzido ao cárcere sem nenhum tipo de explicação. Seu espírito, nos calabouços secretos, começava a angustiar-se antes mesmo de ser interrogado. Em poucos dias, era levado à presença do procurador fiscal que, auxiliado por um secretário, o notário do segredo, tomava-lhe o depoimento. Não lhe era revelada inicialmen­te a natureza das acusações. Era ele mesmo que devia confessar a natureza de seus supostos delitos.

Frei Bartolomeu esteve preso dois dias antes de seu primeiro interrogatório. Ele era um cavaleiro nobre e endurecido pela luta, e não deixou que o amedrontasse a estada no calabouço. A sala onde os funcionários o esperavam era pequena e suja, sem janelas, ilumi­nada unicamente por uma tocha pendurada em uma das paredes, atrás do secretário. Este, sentado em uma rústica cadeira castelhana, tinha um grosso livro branco sobre uma mesa igualmente sóbria, além de uma pena, um tinteiro, um corta-penas e uma campainha. O fiscal ocupava o melhor assento, elevado sobre um degrau no fundo da sala, sob uma arcada cega que o fazia ocultar-se nas sombras. Am­bos os frades vestiam o hábito preto da ordem de São Francisco, com o capuz cobrindo-lhes a cabeça. O único traço do inquisidor claramente visível era o cordão branco próprio dos franciscanos.

O cavaleiro ficou em pé diante do fiscal, com as mãos amarra­das para trás. O secretário, à sua esquerda, afiava sua pena cuidado­samente. Quando os aguazis (Antigo funcionário militar e judicial) deixaram a sala e fecharam a grossa porta, o fiscal falou pela primeira vez:

- Espero que vossa estada nos calabouços não tenha sido muito incômoda.

- Não tente confundir-me, senhor - respondeu o cavaleiro desafiador. - Conheço os métodos do Santo Ofício. Dizei-me de que me acusais, e assim poderei demonstrar-vos minha inocência.

- Isso não é possível. Há de se seguir o procedimento. Qual é vosso nome?

- Bartolomeu de Cépeda e Garcia Cáceres.

- Estado Civil? .

- Sou religioso. E me orgulho de haver cumprido sempre meu voto de castidade.

- Limitai-vos a responder somente o que vos seja perguntado. Sois católico?

- Não, meus avós foram judeus conversos.

O secretário, que anotava avidamente tudo quanto se dizia, le­vantou seu olhar do papel, observando a figura do cavaleiro, como se tentasse enxergar traços judeus em seu rosto.

- Já que dizeis ser religioso, a que ordem pertenceis?

- Sou cavaleiro da nobre ordem de Santiago de Toledo.

Após uma breve pausa, talvez para dar tempo ao secretário para terminar suas anotações, o fiscal acrescentou:

- Confessai vossos delitos, frei Bartolomeu, não nos deis tanto trabalho - o tom da ordem era o mesmo repetido em inúmeras ocasiões.

- Meu único delito é haver servido a Deus e ao meu rei. Se matei, foi sempre em nome dele e da justiça. Nada mais posso decla­rar ante vós.

- Temo que vossa recusa em confessar obrigue-me a entregá­-lo ao aguazil.

O secretário tocou a estridente campainha que havia sobre a mesa. Logo, os aguazis regressaram e conduziram o frei Bartolomeu à câmara de tortura. Era uma sala muito maior que a de interrogató­rio, o cheiro de carvão, cera e sebo misturava-se com o produzido pelo suor dos carrascos e torturados e pela urina e fezes destes últi­mos. Em uma das paredes havia uma fornalha cujo fogo era avivado por um fole; sobre ela, pendurados viam-se diversos instrumentos de ferro com formas apavorantes. Na sala, podia-se ver ainda um potro, uma mesa para a touca e umas argolas no teto com cordas para o garrote. Na parede oposta à fornalha, uma mesa e duas cadeiras, uma delas mais elevada, esperavam a chegada dos inquisidores para continuar ali o interrogatório.

Frei Bartolomeu foi despido pelos carrascos e amarrado à banqueta do potro. A tortura consistia em apertar as cordas pouco a pouco até que se cravassem na carne. Antes de começar, o fiscal e o secretário, este com o livro e os objetos para escrever, entraram na câmara. A luz ali era mais forte. O cavaleiro pôde vê-los. Quando o fiscal sentou-se, pôde ver seu rosto pela primeira vez. Tinha os olhos brilhantes e cruéis. Os olhos de um fanático, cujo intuito de fazer o bem o fazia cometer as maiores atrocidades. De seu rosto magro, pálido e enrugado, emergia um nariz aquilino, que acentuava a expressão de severidade do inquisidor.

- Confessareis agora? - inquiriu, sem obter resposta do frei Bartolomeu.

O cavaleiro foi submetido à tortura. Seus gritos dilacerados en­cheram o ambiente. Porém, ali não havia quem fosse capaz de como­ver-se. Não tinha escolha: a confissão ou a tortura. E, caso confes­sasse, talvez a fogueira. Mas frei Bartolomeu não sabia o que confes­sar, exceto que seus avós se converteram ao cristianismo antes que a lei os obrigasse. Não o fizeram para manter riquezas, que não possu­íam, e sim por convicção. Cada vez que o torturador relaxava seus braços, o fiscal interrogava novamente o torturado; porém, este se mantinha em silêncio. De sua boca não saiu palavra alguma: so­mente gemidos e lamentos de um homem ao qual não era permiti­do defender-se.

Depois do potro, o carrasco se aproximou do fogo. Pegou um ferro da parede e o colocou entre os carvões em brasa. Após alguns instantes, o ferro estava de um vermelho vivo. O carrasco tomou-o fortemente por um lado e voltou ao potro, onde o cavaleiro continu­ava amarrado. Duas vezes marcou seu peito com o ferro incandescente, e duas vezes frei Bartolomeu suportou a dor com firmeza.

O carrasco parecia decepcionado. Ficava contrariado com a firmeza do cavaleiro, que talvez o desmerecesse perante os inquisidores. Devolveu o ferro ao gancho e tomou umas grandes pin­ças de ponta afiada. Tampouco dessa vez conseguiu que frei Bartolomeu confessasse, mesmo marcando seu braço inteiro com beliscões.

- Parece que sois um homem duro. Veremos se resistis ao garrote - interveio o fiscal e acrescentou dirigindo-se ao carrasco: - Já me escutastes; desatai-o do potro e fazei o que mando.

O garrote era um mecanismo de tortura no qual se pendurava a vítima pelos pulsos, que estavam presos para trás. Depois de ergue-­la vários metros, soltava-se a corda, que era detida de repente durante a queda, o que fazia dilatar os músculos dos braços e chegava a deslocá-los. Durante essa tortura, frei Bartolomeu vomitou e esteve a ponto de desmaiar. Depois de vários solavancos, o fiscal voltou a perguntar, de pé, quase gritando:

- Confessareis agora, em nome dos Céus?

- Só servi a Deus e ao rei. Essa é minha confissão.

O interrogatório teve de ser suspenso, pois o cavaleiro chegara ao limite de sua resistência e continuar não teria nenhum resultado. Frei Bartolomeu foi devolvido à sua cela, onde foi visitado por um dos médicos da prisão, que lhe aplicou ungüentos nas feridas e nos braços.

 

                                   1888, Paris

O pároco da igreja de Saint Germain acabava de celebrar a missa da manhã. O tema da homilia havia sido a redenção dos peca­dores que se arrependem de suas faltas e deixam o mau caminho para seguir os ensinamentos de Jesus Cristo. O número de paroquia­nos naquele dia fora maior que o habitual. De fato, normalmente vi­nham somente quatro ou cinco beatas que tinham tantos anos quanto fé. Não sem certa ironia, o pároco pensou que o motivo era a terrível tempestade que ocorrera na noite anterior. O medo da morte podia não ser uma razão muito piedosa para buscar o Senhor, mas sem dúvida era muito eficaz.

Levantara-se muito cedo naquela manhã, pois perdera o sono, e esteve em orações até a hora da missa. Já com suas roupas nor­mais, foi tomar o café da manhã que a senhora Du Champs prepara­ra. Quando entrou na cozinha, não havia ninguém. Provavelmente a mulher saíra para fazer alguma coisa ou para comprar algo para o almoço.

O sacerdote sentou-se em seu lugar habitual, próximo à janela. Sobre a grosseira mesa, esperavam-no uma grande xícara de leite fumegante e um prato com três rabanadas generosamente cobertas de mel. Enquanto comia, pôs-se a olhar pela janela; ainda que, na verdade, não houvesse muito o que ver. Os muros exteriores eram tão grossos e a abertura tão reduzida que se podia ver somente um pequeno pedaço da rua. Somente um olhar jovem e aguçado seria capaz de enxergar, entre os edifícios, um pouco do verde dos jardins próximos do Palácio de Luxemburgo. Fazia tempo que o clérigo só ficava imaginando-os, mais além do burburinho da rua de Rennes e do bulevar de Saint Germain. Já estava terminando o último pedaço de pão quando teve a impressão de haver visto um rosto conhecido entre os transeuntes. Era um homem que caminhava com ar decidido, dando passadas largas, se bem que o fizesse com o corpo um pouco inclinado para a frente. À distância que estava, ainda não era capaz de reconhecer quem era, porém, sem dúvida, o conhecia. O pároco se levantou para aproximar-se da janela e ver um pouco melhor.

- Gilles?

Se não fosse ele, era alguém muito parecido. Entretanto, não era comum que o professor o visitasse a tal hora. Bossuet costumava dar aulas pela manhã ou realizar tarefas burocráticas de sua cátedra. O clérigo nem terminou de comer a última rabanada, que jogou no prato para sair correndo em direção ao amigo. Ainda estava no meio do caminho, na nave central, quando viu que Gilles entrava no templo.

- Bom dia, meu bom Jacques! - cumprimentou o professor, ao se aproximar dele.

O sacerdote franziu a testa ao ouvir a voz do professor. Soava como se viesse de um profundo abismo. E seus olhos... "Que aconte­cia com seus olhos?", perguntou-se o clérigo assustado. Estavam fun­dos, rodeados de olheiras de uma cor acinzentada. Pareciam res­plandecer na penumbra, com um brilho inquietante que arrepiava os cabelos: o brilho da loucura.

- Que aconteceu com você, Gilles? Você está bem? - per­guntou, sem conseguir esconder a preocupação.

- Hã? Ah! Nada, Jacques, encontro-me perfeitamente bem - afirmou como se saísse de um transe, sorrindo de um modo nervoso.

O pároco não acreditava que Bossuet se sentisse bem. De fato, estava convencido de que tudo ia verdadeiramente mal. Havia algo irreal naquela conversa. Não sabia explicar por que, ainda que tives­se uma vaga impressão. Não fazia muito tempo vira um olhar igual àquele que seu amigo tinha agora. Mais inquieto, ocorreu-lhe uma idéia.

- Não terá algo a ver com o...?

- Que você sabe do mosteiro de Poblet? - interrompeu o professor.

- Quê?!­

- O mosteiro de Poblet. Que você sabe dele? - repetiu com voz calma, a mesma que usaria para falar com uma criança.

      - Antes você tem de me explicar o que aconteceu com você e para que quer saber isso.

      Gilles balançou lentamente a cabeça de um lado para outro, ao mesmo tempo que punha as mãos nos ombros do sacerdote.

      - Não há tempo para isso, meu amigo. Confie em mim.

      O pároco ia insistir, mas deu-se por vencido. A teimosia era um dos principais defeitos do professor.

      - Está bem. Que você quer saber de Poblet?

- Onde fica? Ainda existe? - interrogou após o assentir do padre.

- Não sei ao certo. Mas seu nome me é familiar. Talvez tenha ouvido falar dele nos tempos de seminário, ou quando estive em Sorbonne. Não me lembro. Precisaria consultar alguns livros.

Bossuet o observou com uma expressão de impaciência. "E o que está esperando?", dizia seu olhar. Dando um profundo suspiro, o sacerdote foi até seu quarto, fazendo a Gilles um gesto para que o seguisse. Os dois caminharam em silêncio pela nave, um ao lado do outro. A quietude era tal que o clérigo podia ouvir a ofegante respira­ção do professor conforme caminhavam. Tentando não continuar imaginando o que poderia ter ocorrido, o pároco ocupou sua mente tentando lembrar-se onde tinha ouvido falar do mosteiro. Estava tão absorto em seus pensamentos, que nem percebeu que Gilles ficara para trás. Só deu falta dele quando chegou no altar.

Assustado, correu a igreja com os olhos em busca do amigo. Estava tão nervoso que nem pôde enxergá-lo num primeiro momen­to. Muito nervoso, começou a voltar para trás, indo de um lado para outro, sem saber para onde ir. Quando finalmente o encontrou, não conseguiu acalmar-se; pelo contrário, ficou mais espantado. Gilles encontrava-se a uns dez metros do altar, do outro lado da nave. Es­tava completamente imóvel observando um quadro. O sacerdote se aproximou dele devagar. Não sabia se era porque estava assustado ou porque não quisesse interromper o aparente encantamento em que se encontrava seu amigo. Este pareceu não perceber que ele se aproximava. Com olhar penetrante, observava uma gravura pendu­rada em um pilar, iluminado pela luz fraca de uma vela.

- Estou desejando vê-la - afirmou, voltando-se para o clérigo, assustando-o. 

Depois simplesmente virou-se na direção dos cômodos interio­res. O pároco, por sua vez, aproximou-se da coluna de pedra para observar mais de perto o quadro que já havia contemplado em tantas outras ocasiões. Nele, Jesus Cristo subia ao céu, envolvido por um halo divino, acompanhado por um coro de anjos. A seus pés, de joelhos, uma mulher que devia ser Maria Madalena segurava entre suas mãos o Santo Sudário. Virou a cabeça bem a tempo de ver o professor desaparecer por uma porta. Antes de segui-lo, contemplou uma vez mais a gravura e, mecanicamente, fez o sinal-da-cruz.

Jacques levava uma vida austera e humilde, de acordo com seus votos sacerdotais. Uma das poucas coisas que se permitia desfrutar sem limites era a leitura. Ao longo de sua vida, foi reunindo pacientemente uma boa coleção de livros. Quase todos vinham de doações de pessoas mais aficionadas por vinho e pelos prazeres mundanos do que pelos ensinamentos dos clássicos. Perto de seu dormitório, na ala norte da igreja, havia uma sala que fazia as vezes de biblioteca. Nela gastava a maior parte de seu tempo livre. Especialmente nas noites frias de inverno, nas quais acendia a lareira e passava horas desfrutando de um bom livro.

Gilles conhecia bem aquele lugar. Muitas vezes passaram longas horas ali conversando ou discutindo sobre os mais variados assuntos. Quando o clérigo entrou na sala, o professor estava lendo os títulos dos volumes.

- Oh, já está aqui - disse indo para um lado e sentando em uma cômoda poltrona.

O pároco sabia muito bem a posição de cada um de seus livros. Sem responder, examinou as estantes com inusitada destreza, em busca dos que lhe podiam servir. Enquanto isso, Bossuet o observava da poltrona com ar distraído. Após alguns minutos, o sacerdote aproxi­mou-se dele, ao mesmo tempo que depositava uma grande pilha de livros sobre a mesa. Um deles ficou na beirada da mesa e caiu no tapete com um barulho amortecido, levantando uma nuvem de pó.

- Bom, você será o primeiro, já que é tão impaciente - disse o clérigo ao livro.

Gilles concordou divertido, aproximando a poltrona para poder ver melhor. O título dizia Mosteiros da Cristandade. Era uma cópia do original escrito por um monge do mosteiro de Clairvaux, do qual, conforme explicou o sacerdote, fora o abade São Bernardo de Clairvaux um dos fundadores e mais ativos personagens da ordem do Cister. Tratava-se de uma enorme e grossa obra, encadernada em capas de pele desgastadas pelo manuseio. As bordas tinham buracos e dobras, e estava comido por traças em algumas partes.

O clérigo o abriu em busca de algum tipo de índice. As folhas eram finas e ásperas, e de uma cor pálida, o que lhes dava um aspec­to enganosamente frágil. A relação de conventos e abadias encontrava-se depois das páginas iniciais, nas quais se incluía um breve co­mentário sobre a obra, mantido em seu idioma original, o latim. Não estavam em ordem alfabética, tomando a procura mais demorada. Com paciência, foram lendo os nomes um por um, até que deram com o mosteiro de Poblet.

- Aí está! - gritou entusiasmado o professor.

Contagiado pela alegria de seu amigo, que parecia menos ator­doado, o pároco procurou a página indicada. Bossuet se levantara de seu assento e se sentara sobre a mesa. Com voz trêmula pela emoção e tom jovial, o sacerdote leu em voz alta:

 

O mosteiro de Santa Maria de Poblet foi fundado em 1151 pelos monges do mosteiro cisterciense de Fontfreda, aos quais Ramón Berenguer IV, príncipe de Aragão e conde de Barcelona, havia concedido umas terras. Situado no Vale de Barberà, na Catalunha, foi instituído panteão real por Pedro III, o Grande, quarto rei da coroa de Aragão.

 

Não havia muitas informações sobre o mosteiro. Tiveram de consultar os outros livros que o clérigo selecionara para averiguar sua localização exata e alguns outros dados adicionais que Gilles deseja­va saber. Após as investigações, chegaram à conclusão de que a aba­dia ficava perto da pequena localidade de L' Espluga de Francoli, a sudeste da cidade de Lérida.

 

As pesquisas os ocuparam o resto da manhã. Pouco antes da hora do almoço, o sacerdote acompanhou seu amigo até a porta da igreja para despedir-se dele.

- Vai dizer-me agora o que aconteceu com você, Gilles? ­tentou mais uma vez.

Bossuet, que já estava na metade da escada de acesso, virou-­se para o pároco. Levava nas mãos uns papéis com anotações sobre o que haviam descoberto, que se moviam suavemente com o vento. Dirigiu-lhe um cálido sorriso e, por um instante, voltou a ser Gilles, o amigo com quem compartilhara muitos momentos bons durante to­dos aqueles anos.

- Iluminação, meu bom Jacques, iluminação...

O sacerdote viu-o sumindo na rua deserta, com uma exígua som­bra de meio-dia espremendo-se atrás dele. De repente, deteve-se na metade do cruzamento. O clérigo pensou que ia dar meia-volta; de­sejou que o fizesse, mas Bossuet reiniciou seu caminho enquanto le­vantava a mão direita por cima do ombro. Quase chorando, o páro­co levantou também a sua e, ainda que estivesse seguro de que ele não podia ouvi-lo, sussurrou:

-Adeus, meu amigo.

E nesse momento soube que jamais voltaria a vê-lo.

 

                                   1507, Granada, Poblet

Frei Bartolomeu esteve no calabouço por dois dias, acorrentado a uma das paredes. A distância das correntes não lhe permitia mais que estar curvado ou ajoelhado. O ambiente fedia a excrementos e o chão estava úmido de urina. Uma vez por dia, o carcereiro abria uma pequena janela no pé da porta e passava uma vasilha com um pedaço de pão amanhecido, um pedaço de toucinho e um pouco de água.

A dor do corpo, flagelante a princípio, tornou-se surda, distan­te. Suas roupas estavam sujas e ensangüentadas. Como homem, fora reduzido a um estado infame. Não compreendia como se podia agir de tal modo em nome da religião. O poder, o poder secular, político, necessitava braços executores que garantissem sua conservação, porém não se deviam valer de qualquer meio para chegar a seus fins.

Se ele lutara por tudo isso, ainda que sem saber, sem sofrer em sua própria pele, agora se arrependia. A glória é somente uma miragem; a maldade e a barbárie humanas prevalecem.

Assim, sozinho na cela, sozinho realmente e pela primeira vez em sua vida, frei Bartolomeu fez uma promessa orgulhosa a Deus, seu único interlocutor nesses terríveis momentos: entregar sua vida sem fraquejar, suportar as torturas e humilhações, ser sempre fiel a Seu nome.

O segundo interrogatório começou do mesmo modo que o pri­meiro. Os aguazis foram buscar frei Bartolomeu no calabouço e o conduziram a um mesquinho cômodo onde os inquisidores o espera­vam novamente. Só havia mudado uma coisa: a arrogância do cava­leiro, vencida pelo tormento e convertida em serena resignação. Sua roupa também mostrava um aspecto tão apagado quanto seu es­pírito.

- Estais hoje disposto a colaborar, frei Bartolomeu? Compreendeis que a nós dói tanto quanto a vós tudo isso - disse o fiscal com falsa doçura.

- Estou certo disso, senhor - respondeu o cavaleiro ironica­mente com um fio de voz e com o olhar fixo no chão.

O fiscal calou-se por uns instantes. Esse caminho não era o mais adequado. Depois de uma pequena reflexão, falou de novo:

- Eu vos perguntarei uma vez mais: estais disposto a confessar vossos delitos?

- Meus delitos são haver defendido a Deus e a meu rei. Eu já disse...

-Chega! - gritou encolerizado o inquisidor. - Se não quereis confessar, eu vos lerei vossa acusação.

- Quem me acusa?

- Calai agora! Isso não importa. Respondei somente às per­guntas que eu vos faça.

Frei Bartolomeu sabia que, em determinado momento, o tribu­nal deveria comunicar ao processado suas acusações. Mas também estava certo de que, nesse ponto do processo, devia estar presente um advogado defensor.

- Onde está meu advogado? - protestou, levantando um pouco a voz.

O fiscal o encarou, levantando-se de seu assento. Sua cabeça encapuzada saiu um pouco das sombras. Frei Bartolomeu esperava seus gritos, porém o inquisidor falou com calma:

- Não estais em posição de exigir nada deste tribunal. Respondei a nossas perguntas com sinceridade, rogando a Deus que vos ilumi­ne, e tudo terminará logo - voltou a seu lugar na cadeira e começou a formular as acusações: - É verdade que estivestes em Nápoles junto do general Fernandez de Córdoba no dia em que prendeu César Bórgia?

O cavaleiro esteve a ponto de responder, mas não o fez. A prin­cípio a pergunta pareceu trivial, porém logo compreendeu a causa de seu processo. Não eram seus antepassados judeus nem a suspeita de heresia: de algum modo a Inquisição se inteirara do encontro do San­to Sudário em Nápoles. Ante sua negativa em responder, o fiscal continuou fazendo as perguntas que levavam implícitas as respostas, elevando pouco a pouco a voz até gritar:

- É verdade que, numa das paredes do porão de sua residên­cia, apareceu o rosto de Jesus Cristo Nosso Senhor? É verdade que o que foi encontrado atrás da parede foi trazido por vós e por frei Domingo Lopez de Tejada à Espanha? É verdade que o Grande Capitão ocultou isso do rei Fernando?

O inquisidor estava tão enfurecido e falava tão rapidamente que o secretário quase não podia tomar nota de todas as suas palavras. Afinal pôs-se de pé e, aproximando-se do cavaleiro, acrescentou:

- Mais vale para vós confessar e dizer-nos o que foi encontra­do e onde está agora. Do contrário, seremos obrigados a torturá-lo de novo.

Frei Bartolomeu continuou em silêncio. Percebeu que o inquisidor não sabia tanto quanto ele pensou a princípio. Além disso, com toda certeza sua sentença já estava dada antecipadamente. O processo só tinha o objetivo de arrancar-lhe a informação que o fiscal queria. Mas ele não cederia: manter-se-ia firme em sua promessa ao Senhor e fiel a seus princípios como cavaleiro.

 

A nova sessão de tortura foi ainda mais terrível que a anterior. Na câmara de tortura, os aguazis amarraram frei Bartolomeu a uma estreita mesa de madeira. O carrasco tinha um trapo úmido na mão, que introduziu na boca do cavaleiro até que chegou ao fundo de sua garganta. Então colocou um funil sobre ele, sobre o qual começou a derramar água. O trapo tinha como função impedir que o torturado cuspisse o líquido, que o encheria dolorosamente.

Durante a tortura, frei Bartolomeu urinou para cima e caiu-lhe sobre o ventre. O ar, por si só já viciado, tornou-se irrespirável. Era o fedor do sofrimento e do medo, um fedor tão agradável aos inquisidores como o aroma das mais frescas rosas, pois indicava que a vítima começava a fraquejar. Porém, o cavaleiro não o fez. Por mais jarras de água que o tenham feito engolir, não revelou nada do que o fiscal queria saber. Somente repetiu uma vez mais, entrecortadamente e entre soluços, com os olhos cheios de lágrimas, que seu único delito fora servir a Deus e ao rei.

 

Durante o suplício do cavaleiro, o Grande Capitão havia viaja­do a Granada para falar pessoalmente com o cardeal Cisneros e exi­gir que o libertasse. Mas o Inquisidor Geral se recusara a recebê-lo por dois dias. No terceiro dia, Fernandez de Córdoba não estava dis­posto a esperar mais. O tempo era vital, já que cada hora que passava fazia diminuírem as chances de encontrar frei Bartolomeu com vida.

Apesar de o Grande Capitão ter sido destituído de sua autori­dade em Nápoles e de seu poder diminuir muito em razão das dispu­tas com o rei Fernando, seu nome seguia inspirando enorme respeito, sobretudo nas esferas militares. Os soldados de guarda no palácio de Cisneros foram proibidos de o deixar entrar; no entanto, não se atre­veram a impedi-lo quando, chegando ao cúmulo de sua paciência, desembainhou sua espada e invadiu o palácio.

- Eminência - disse com desprezo ao entrar no salão onde o cardeal despachava os assuntos do dia -, não me deixais outra opção senão entrar à força.

No rico ambiente, Cisneros estava sentado atrás de uma grande mesa de nogueira com incrustações de diferentes tipos de mármore. Conversava com um monge dominicano quando o Grande Capitão entrou. Sobressaltado porém tranqüilo, o cardeal fez um gesto para que o frade os deixasse sozinhos.

- Compreendei, meu senhor, que as ocupações me impedi­ram de receber-vos. Mas esperava com impaciência o momento de ver-vos.

O Inquisidor Geral era extremamente magro. Seus membros pareciam os galhos de uma velha árvore seca. As mãos sobressaíam, compridas e ossudas pela manga de sua roupa. Tinha os cabelos pra­teados e fartos, salvo no topo da cabeça, que tinha barbeado. Sua cabeça era estreita e comprida, e seu nariz, aquilino. Era a imagem de um homem fanático e implacável.

- Exijo-vos que liberteis ao frei Bartolomeu de Cepeda - disse o Grande Capitão dando um soco na mesa de Cisneros. - Ele não é um criminoso nem um herege. Eu afirmo que é cristão e bom servidor da Espanha. Dou minha palavra como fiança.

- Não duvido de vossa palavra, general. Porém, deveis com­preender que, ainda que agis de boa-fé, podeis estar equivocado - ­respondeu Cisneros. - Sinto recordar-vos, além do mais, que já não desfrutais da proteção do rei. Consolai- vos pensando que pode­ria ser vós o processado.

- Ousais ameaçar-me, cardeal? Não percebeis que poderia degolar-vos aqui mesmo como a um porco?

- Compreendo vossa dor; sinceramente. Serei indulgente com vós e esquecerei essas palavras. Contudo, quanto a vosso cavaleiro, havereis de esperar que se finalize o processo contra ele.

- Dizei-me ao menos de que ele está sendo acusado. Já vos disse que creio cegamente em sua inocência.

- Não posso revelar os delitos. Sabê-los-eis quando se cele­bre o auto-de-fé. Isso acontecerá logo.

Nesse instante, vários guardas entraram no salão empunhando suas espadas. Rodearam o Grande Capitão e o chefe pediu que os acompanhasse. Fernandez de Córdoba percebeu que os soldados agiam assim porque seguiam ordens, pois em seus olhares podia ver o desgosto que lhes causava tudo aquilo. Preferiu então embainhar de novo sua espada e fazer o que lhe pediam. Antes de sair, no entan­to, dirigiu-se ao cardeal pela última vez:

- Sois na terra o braço executor de Deus Todo-Poderoso, e um dia tereis de responder perante o Senhor por vossos crimes.

Cisneros lançou um olhar severo ao Grande Capitão, enquanto os guardas o levavam do salão. Quando ficou sozinho, refletiu por uns momentos, com os olhos fechados. Depois se levantou de sua cadeira e dirigiu-se ao vestiário, que ficava no cômodo ao lado. Ali, trocou suas roupas de seda e pele de arminho pelo tosco hábito franciscano. Acionou um mecanismo escondido em uma lareira e uma entrada secreta se abriu na parede, fazendo um barulho assustador e oco, o barulho das pesadas lajes que fecham os túmulos para sempre.

Antes de entrar pela passagem secreta, o cardeal cobriu a ca­beça com o capuz do hábito e pegou um candelabro para iluminar o caminho. Desceu por uma escada em caracol, muito estreita e empi­nada, até uma pequena câmara sem saída. A pedra estava muito fria e úmida. Abriu com cuidado um ralo que havia na parede e, quando teve certeza de que não havia ninguém do outro lado, apagou cuidadosamente as velas do candelabro e acionou um novo mecanismo, que deu acesso à sala de interrogatórios, exatamente atrás da cadeira que ocupava durante os interrogatórios.

As forças do cavaleiro de Santiago se haviam extinguido. Pe­rante os inquisidores, parecia uma sombra; a sombra de um ser hu­mano transformado por seus semelhantes em um frade leigo.

Cisneros, que atuara como procurador fiscal em todos os inter­rogatórios, decidiu que este seria o último. Se não conseguia obter de frei Bartolomeu a informação que desejava, era melhor acabar de uma vez por todas. Sua única esperança era que a tortura, a reflexão durante o tempo passado nos calabouços e o medo de novos tor­mentos o tivessem abrandado. O cardeal não era tão ousado a ponto de processar o Grande Capitão. Ainda que este o merecesse. Seus insultos não o ofendiam pessoalmente, mas a Deus que o havia feito seu representante na Terra.

- Ainda não estais disposto a confessar o que desejo saber? - perguntou Cisneros, de sua cadeira coberta pelas sombras, já conformado de que frei Bartolomeu agüentaria até o final e levaria seu segredo à tumba.

- Já encomendei minha alma a Deus, senhor - disse o cava­leiro entre tosses secas, dessa vez sentado em uma pequena banqueta, pois não era capaz de sustentar-se em pé.

- Meu dever é, então, submeter-vos novamente à tortura. Es­pero que não me obrigueis a fazer isso, frei Bartolomeu. Podeis aca­bar com isso se colaborardes.

- Sou um mártir nas mãos de pastores de minha própria reli­gião. Espero com a consciência tranqüila o Juízo Final. Podeis vós dizer o mesmo?

Fez-se silêncio total no ambiente. Um silêncio tenso. O cardeal se remexeu em sua cadeira ao ouvir a pergunta do cavaleiro e assimila-la realmente. Porém, seu trabalho como inquisidor, seu afã de glória beatífica acima de todo anseio pessoal dissiparam as dúvidas, que por um instante oprimiram seu peito e seu coração. O Reino dos Céus estava destinado, sem dúvida, aos fiéis servidores de Deus, como ele achava que era.

- Prometo-vos que isso ocorrerá muito em breve... - sem sequer perceber que falava em voz alta. - Não tardareis muito em sofrer um julgamento muito mais severo que este.

Frei Bartolomeu foi torturado uma vez mais. Os suplícios foram tão cruéis que os próprios carrascos se espantavam de que seu cor­po agüentasse, negando-se a entregar a vida. Porém, o desenlace era só uma questão de tempo. As feridas e as lesões eram tão graves, que somente um milagre podia evitar o inevitável. E, por sua expe­riência, sabia que esses milagres não costumavam acontecer.

O cardeal fracassara. Porém, o fanatismo dele ainda deixava um resquício da autêntica grandeza de espírito, e não pôde deixar de admirar-se com o comportamento do cavaleiro, fiel até o fim a seus votos e à sua consciência. Talvez tivesse sido duro demais com ele. Devia soltá-lo, ainda que a morte fosse iminente e certa; em todo caso, pensou; se morresse por causa do processo, seria um mártir acolhido pelo senhor em seu seio.

Por isso a Inquisição sempre fazia o bem.

Gonzalo Fernandez de Córdoba sabia que suas possibilidades eram escassas. Não podia recorrer ao rei Fernando, que injustamen­te, movido por ciúmes absurdos com relação a ele e instigado por conselheiros invejosos e traidores, perdera a confiança nele e havia-­lhe tirado seu mais estimado dom: o vice-reinado de Nápoles. O Gran­de Capitão amava a Itália. Era verdade que os italianos não eram tão valentes como os espanhóis, não tinham sua coragem, mas aquelas pessoas, mesmo as mais simples, eram amáveis e cordiais, agiam com mais desenfado e elegância, e seu país era mais bonito, tanto em sua. natureza como em sua arquitetura.

O povo da Espanha adorava Fernandez de Córdoba. Talvez os espanhóis da época não compreendessem bem nem lhes interessasse a arte ou a ciência, mas sabiam reconhecer um verdadeiro gênio mi­litar. Pode ser que fosse a única coisa que respeitassem de verdade. Rei não coroado da Itália e Grande Capitão, chamavam-no, e sen­tiam-se orgulhosos de suas vitórias. Vencera os franceses, suíços e alemães, muitas vezes estando em desvantagem de forças. Conquis­tara a metade da Itália e entrara em Roma triunfante, na Urbe, berço do Império que deu cultura e sentido histórico à Europa. Mas o rei Fernando tinha ciúmes. Ciúme de que seu servo fosse amado e admi­rado pela rainha Isabel, não por linhagem real, e sim por seus atos, sua nobreza e seu valor.

Decidido a resgatar à força, se fosse necessário, frei Bartolomeu das garras do Santo Ofício, Fernandez de Córdoba reuniu uma vinte­na de homens leais, dispostos a segui-lo e a arriscar suas vidas. A autêntica fidelidade não se baseia em votos, deveres ou juramentos, nem é somente dos servidores para com os senhores; a fidelidade verdadeira é sempre uma escolha livre do espírito que não conhece status nem classe.

Quando o Grande Capitão chegou diante do palácio de Cisneros, este já havia dado ordens para que o levassem até seu escritório caso viesse. Disposto como em suas cem batalhas, porém prudente, Fernandez de Córdoba aceitou falar de novo com o cardeal. A deci­são de liberar frei Bartolomeu estava tomada, e, mesmo que cada minuto fosse importante, era necessário evitar derramamento de san­gue a todo custo.

Cisneros aguardava em seu escritório lendo uma comédia de Torres Navarro, a Soldadesca, apesar de não ser um livro muito apreciado pelo Santo Ofício. Talvez, justamente para lutar contra o pensamento proibido, para censurá-lo com exatidão, fosse preciso conhecê-lo bem antes. No entanto, o cardeal ria com a obra.

- Oh, meu bom general! - exclamou Cisneros, ao perceber que Fernandez de Córdoba havia chegado, acompanhado por dois guardas do palácio. - Eu vos esperava com impaciência. É sempre gratificante conversar com alguém como vós.

- Economizemos os cumprimentos, cardea1- disse o Grande Capitão com atitude grave. - Se concordei em vir falar com vossa eminência é somente para tratar de um assunto: a liberdade de frei Bartolomeu de Cépeda. Espero que já não seja tarde...

- Frei Bartolomeu ainda está vivo. Eu o entregarei. Mas antes respondei-me uma pergunta: Que encontrastes no palacete de César Bórgia quando o prendestes? Que se escondia atrás do rosto de Cristo?

As palavras do cardeal pareceram ecoar no ambiente. Fernandez de Córdoba o olhou com grande surpresa. Não havia se­quer suspeitado que o processo do cavaleiro pudesse ter algo a ver com isso. Nem, tampouco, como o havia descoberto. Estava confu­so. Para negar a evidência era necessário ter argumentos, mas seus votos como templário o impediam de responder.

- Não posso dizer-vos nada sobre isso, eminência.

- Agradeço que não tentais enganar-me com mentiras. Não creiais que sou insensível pelo cargo que ocupo. Admiro o valor de frei Bartolomeu e agora o vosso. Quando os médicos terminem de fazer-lhe os curativos, eu o entregarei. Espero sinceramente que con­siga sobreviver. Oficialmente, seu nome ficará limpo.

Como havia dito Cisneros, o estado de frei Bartolomeu era crítico. Sua força física e moral fê-lo debater-se entre a vida e a morte durante toda a noite seguinte à sua liberação, mas suas terríveis le­sões eram irreversíveis. Antes de morrer, no entanto, pôde dizer ao Grande Capitão que não havia confessado nada sobre o Santo Su­dário. Isso reconfortou seu espírito antes do fatal desenlace.

Fernandez de Córdoba providenciou para que fosse enterrado com honras militares, como a um valente soldado abatido em comba­te. Chorou amargamente sobre seu túmulo, como já havia feito em muitas outras ocasiões. Cada vez que perdia um homem, seu cora­ção sofria; se o homem era seu amigo, a dor era em dobro. Por mais vezes que tivesse de se despedir de valentes soldados, de camaradas e companheiros, sua alma nunca deixava de padecer, não endurecera

pelo verniz do costume. Ainda que nesses momentos sempre se recordasse, pois isso o confortava, de um de seus lemas favoritos: Melhor morrer jovem que viver sem honra. E frei Bartolomeu de Cépeda conservara sua honra até o final.

Terminado o funeral, o Grande Capitão deixou Granada e se dirigiu a Poblet, a nova matriz do Templo secreto. Se até então a vigilância da Síndone fora cuidadosa, a partir de então teria de ser redobrada. Os homens, inclusive os mais piedosos, eram capazes de matar para consegui-Ia, e assim mantinham seu simbolismo: a imagem do pecado humano.

Em Poblet, Fernandez de Córdoba trocou seu uniforme militar pelo áspero hábito do Cister. O abade o esperava em um lugar se­creto dos porões e já fora informado uns dias antes do que ocorrera com frei Bartolomeu. Desde então, o mestre dos templários não dei­xara de rogar a Deus por sua salvação. Contudo suas súplicas não receberam resposta, ao menos terrena.

O sancta sanctorum do mosteiro era um cômodo muito am­plo, de pelo menos dez metros de comprimento. Chegava-se ali por uma ante-sala escondida na escuridão, atravessando umas cortinas de seda de cor púrpura. Logo após a soleira, à direita e à esquerda, as colunas salomônicas de Jachim e Booz guardavam a entrada. Na parede oposta, em uma grande cadeira com enfeites góticos, o mes­tre do Templo aguardava a chegada do Grande Capitão. Atrás dele, como se fosse um altar, havia um tapete com o símbolo dos três graus básicos dos companheiros construtores, os artesãos edificadores das catedrais, precursores de uma franco-maçonaria. Na parte mais alta, gravado na pedra, o Olho Divino onisciente presidia o lugar rodeado pelas estrelas da constelação de Gêmeos, um dos mais importantes símbolos esotéricos dos templários.

Fernandez de Córdoba estivera ali muitas vezes. Aproximou-se do mestre com solenidade, saudando com um olhar aos demais ir­mãos presentes, que ocupavam as laterais do salão, portando, estes, estandartes e escudo de armas. Todos eles trajavam capa branca com a vermelha tau (. Figura heráldica em forma de T que os cônegos de Santo Antão usavam em seus hábitos) templária sobre o ombro esquerdo. Ao chegar junto do mestre, sob a bandeira Baussant da Ordem, o Grande Ca­pitão desembainhou sua espada e a colocou diante dele, de pé, como uma cruz de aço e ouro; apoiou seu joelho esquerdo no chão e incli­nou a cabeça em sinal de obediência.

- Bendizei-me, meu senhor!

- Levantai-vos, irmão meu! - disse o mestre, pondo a mão em sua cabeça.

Fernandez de Córdoba não pôde conter as lágrimas. A perda de seu companheiro e amigo o fazia sentir-se impotente. Ele, que havia sido um dos homens mais poderosos da nova Espanha imperi­al, sentia a injustiça e o fanatismo dos homens pelos quais lutara. "O ser humano", pensou, "é muito diferente das bestas selvagens. Quan­do lhe convém, mostra uma hipócrita aparência de civilizado; porém, se lhe permite liberar seus impulsos mais ocultos, quebra essa másca­ra e lança o uivo de morte primitivo."

- Os tempos que correm são obscuros, Gonzalo - disse o mestre profundamente comovido. - Perdemos a um de nossos mais queridos irmãos. Entregou sua vida em nome daquilo em que mais acreditava. Todos sabemos, quando fazemos nossos sagrados votos, os perigos que vêm juntos. Nosso irmão morreu: que o Todo-Pode­roso o acolha em seu seio. Mas temos o consolo de que o Santo Sudário de Nosso Senhor Jesus Cristo estará, com a ajuda de Deus, seguro para sempre em Poblet.

 

                                   Século I, Jerusalém

Poucos dias antes da última Páscoa que Jesus celebraria entre os homens, chegou a Jerusalém Labeu, embaixador da cidade de Edessa. Tempos atrás, o rei da tal cidade, o jovem Abgar Ukhamn, ouvira falar, por viajantes e comerciantes, a respeito do rabi da Galiléia, de seus ensinamentos e parábolas. Movido pelo desejo de acolher aquele homem santo, odiado em sua terra, chamado de falso profeta, o rei decidiu enviar um embaixador com a missão de convencê-lo a deixar a Galiléia e a instalar-se em Edessa, onde poderia expressar e divulgar sua doutrina livremente.

Os caminhos da Judéia eram ermos e rudes. O sol do meio-dia, apesar da época do ano, abrasava os caminhantes, que tinham de manter a cabeça coberta e o resto do corpo com roupas amplas e de cor clara. Quando Labeu chegou à muralha de Jerusalém, incomoda­va-o a poeira da viagem que penetrara em suas sandálias e parecia entrar por todos os seus poros. Tinha a boca seca e os olhos avermelhados, a barba esbranquiçada e os cabelos sujos e ásperos, pela mistura de suor, gordura e pó.

Deteve-se uns instantes na fonte de Gihon, a sudeste de Jeru­salém, do lado de fora da muralha. Sacudiu suas sandálias e sua túni­ca, tirou o capuz e lavou bem os braços e o rosto. Ao refrescar a nuca, as forças pareceram retornar um pouco a seu cansado corpo. A viagem havia sido muito longa e cansativa, porém seu destino já estava muito próximo.

Depois de observar a cidade por alguns momentos, entrou nela atravessando a muralha pela Porta das Águas, que ficava bem perto da fonte de Gihon. À sua direita levantava-se o Templo de Jerusalém, imponente amontoado de pedra de bela serenidade, e à sua esquerda ficava o bairro conhecido como Cidade Velha de Davi, fundada pelo mítico rei hebreu em tempos imemoriais e mais felizes para os filhos de Judá.

Enquanto caminhava, Labeu encontrou-se com uma patrulha romana que saía de um dos estreitos becos da Cidade de Davi, com­posta por dez legionários e um decurião (Chefe da decúria, corpo militar da cavalaria e infantaria entre os Romanos). Este levava o capacete nas mãos e esfregava a calva cabeça tentando enxugar o suor. O calor era quase insuportável. Em seu rosto se notava o ódio àquela região, mais provavelmente por sua dureza geográfica do que por sua gente.

O embaixador tentou informar-se com o decurião, mas este o afastou com o braço quando se dirigiu a ele com um perfeito latim. Talvez para os romanos todo o mundo fosse escravo seu em certo sentido, e Labeu nem sequer teve a oportunidade de dizer quem era. Contrariado pela atitude do militar, continuou andando até o palácio dos Asmoneos, situado no centro de Jerusalém. Ali, perguntou a um mercador pela residência do governador romano da região. O ho­mem hesitou por uns instantes, acreditando tratar-se de uma brinca­deira, mas finalmente lhe respondeu com muita amabilidade. Certamente eram suas roupas, iguais às de qualquer outro hebreu, que o faziam parecer pessoa comum, ocultando sua verdadeira condição.

A residência do governador romano estava localizada junto ao muro norte do Templo. Era a chamada Torre Antônia, uma colossal massa pétrea que se erguia majestosa e ameaçadora muito acima da muralha da cidade. Para chegar a ela, Labeu teve de percorrer toda a frente do Templo. Em sua esplanada interior, os mercadores judeus e gentios - ainda que estes últimos não pudessem adentrar ao interior do santuário - vendiam cordeiros e cabras para o sacrifício pascal, além de todo tipo de artesanato, ferramentas, tecidos, enfeites e miu­dezas. Labeu observou o trânsito no Templo e pensou que tais ativida­des não correspondiam a um lugar sagrado e de culto como aquele.

Antes de chegar à Torre Antônia, Labeu teve de deter-se para que passasse uma guarnição romana que retornava ao quartel. As pessoas, sem muito entusiasmo, cessaram suas atividades, transfor­mando-se em espectadores de um acontecimento que presenciavam há anos. Seus rostos revelavam cansaço e resignação, a expressão da dor que se padece por tanto tempo que até se torna crônica.

O embaixador tinha a seu lado um homem de porte altivo, con­trastando com seus outros compatriotas, ainda jovem, alto, moreno e de aquilino e proeminente nariz.

- Todo dia a mesma coisa... - ouviu dizer uma voz recolhida, triste e apagada, melancólica.

- Vejo que não se conforma, como os demais, com o domínio imperial- disse Labéu, dirigindo-se ao desconhecido.

O homem o encarou com um leve sorriso, que expressava ao mesmo tempo dissentimento e ironia.

- Não sei quem é você nem de onde vem, estrangeiro, mas se conhecesse bem os judeus saberia que nunca estarão satisfeitos vi­vendo sob o domínio de outro povo. Assim tem sido durante toda nossa história e assim continuará sendo para sempre.

- Suponho que conhece bem a seu povo e deve ser como diz. Meu nome é Labeu e venho como embaixador de Edessa à procura do rabi conhecido como Jesus de Nazaré.

- Se você procura esse homem, creio que não posso ajudá-lo, Labeu. Ninguém sabe onde estará nem quando. É seguido por vários homens aos quais chama de discípulos. Usam qualquer colina para suas pregações. Mas, antes de ir, permita-me que me apresente: meu nome é Simão Ben Matatias, e pertenço ao Sinédrio (Entre os antigos judeus, era o tribunal, em Jerusalém, formado por sacerdotes, anciãos e escribas, que julgava as questões criminais e administrativas de uma cidade). Dar-me-ia a honra de almoçar em minha casa, Labeu? Lá conversaremos mais sobre Jesus.

- Agradeço o convite. A honra seria minha. Mas antes devo ir à residência do governador Pôncio Pilatos para entregar-lhe uma carta do meu rei.

- Esperarei que termine sua missão, então. Minha casa não fica longe da Torre Antônia. Permita-me acompanhá-lo e no caminho lhe mostrarei onde moro.

 

Simão era um nobre judeu, amável e cordial, sinedrita (Membro do Sinédrio) e reli­gioso, mas com uma capacidade de percepção que adivinhava que algum dia a paciência de seu povo chegaria ao fim. O Sinédrio era tolerante com os invasores romanos graças a um acordo que lhe per­mitia manter a autoridade religiosa e moral. E apesar de ter influência em algumas decisões da justiça, eram os romanos que davam a última palavra, assim como a determinação e execução das penas.

Quando Labeu chegou à entrada principal da Torre Antônia, dois legionários montavam guarda, com seus compridos pilum cru­zados sob o sufocante calor. Até o entardecer, o sol maltratava sem piedade esse lado da torre. Ao aproximar-se deles, cruzaram suas lanças e um deles perguntou com desprezo:

- Aonde pensa que vai, judeu?

- Venho em uma missão diplomática de Edessa, capital do reino de Osrhoene, enviado por meu rei, Abgar. Tenho uma carta para o governador - respondeu Labeu em bom-tom, mas com cer­ta aspereza: estava cansado de tanta prepotência. E mostrou o selo de Edessa no exterior do pergaminho enrolado.

- Está bem... Decurião! - gritou o guarda para o interior da torre.

Em seguida apareceu um homem sem couraça, de aparência desalinhada e cabelo curto e ralo, de intensa cor negra. Os legionários da entrada lhe explicaram quem era Labeu, que finalmente foi conduzido a uma sala para esperar que Pôncio Pilatos pudesse atendê-lo.

O embaixador e o soldado que o conduzia atravessaram um longo corredor, decorado com esfinges de brilhante mármore branco que representavam os imperadores romanos. A maior de todas, que ocupava o lugar central, ricamente enfeitada com uma coroa de louro feita de ouro, era de Tibério, o imperador recolhido em Caprim, que desconfiava de sua própria sombra. Mais à frente havia uma sala retangular, vigiada por um soldado de ar severo, que dava acesso a umas escadas. O decurião pediu a Labeu que o aguardasse ali e de­sapareceu pela escadaria.

O embaixador sentou-se em uma das sóbrias cadeiras sem en­costo, com assento de couro, que rodeavam as paredes laterais. Teve de esperar, sempre observado pelo insolente legionário, por mais de meia hora, até que o decurião apareceu de novo para informá-lo de que o governador havia lido a carta de seu rei, mas não podia recebê­-lo nesse dia. Recebê-lo-ia com muito prazer no dia seguinte, à tarde, ainda que estivesse muito ocupado com os preparativos da Páscoa, para uma conversa rápida.

Labeu pensava que Pôncio Pilatos o receberia com maior cor­dialidade. Sabia que a Páscoa judia congregava a milhares de visitan­tes em Jerusalém, e isso fazia aumentar o risco de revoltas. Por outro lado, os zelotes, grupo subversivo e ativamente contrário à domina­ção romana, talvez pudessem ter preparado algum ataque ou até mesmo, como se temia, um levante geral. Mas ainda assim achou estranho que o governador não tivesse dado seu parecer sobre a petição do rei Abgar. Teria de aguardar até o dia seguinte para dissi­par suas dúvidas.

 

Após a espera na Torre Antônia, Labeu dirigiu-se à casa de Simão Ben Matatias. Este vivia na região nobre de Jerusalém, situada a oeste do quartel-general romano, entre o palácio de Herodes e a muralha norte. O sinedrita indicara-lhe o caminho que devia seguir e como era sua casa, uma mansão de arquitetura levemente retangular e de dois andares, coroada por um terraço com uma achatada cúpula central.

Ao chegar, Labeu apresentou-se a um jovem criado, quase um menino, que vestia uma toga listrada e usava um capuz cobrindo seu cocuruto. O garoto avisou a seu senhor e voltou em seguida para levar o embaixador ao interior da casa. Simão o aguardava recosta­do em uma espreguiçadeira de estilo romano. Toda a casa unia a arquitetura judia com os importados costumes imperiais, acolhidos com mais entusiasmo pela aristocracia do que pelo povo. Simão le­vantou-se ao vê-lo e pediu que se sentasse junto dele, demonstrando grande hospitalidade. Na mesa, suculentos manjares, carne assada, lagostas e todo tipo de frutas os esperavam.

- Você falou com Pilatos, Labeu? - perguntou Simão, ao mesmo tempo que fazia um gesto com a mão para que enchessem suas taças com um doce vinho importado da Sicília.

- Ele não pôde receber-me - suspirou o embaixador. ­Parece que está muito ocupado com a Páscoa. Tive de esperar en­quanto lia a carta de meu rei, mas não o vi pessoalmente.

- Acho que você sabe que a celebração da Páscoa é uma época difícil para os romanos. Jerusalém fica cheia de visitantes e o risco de tumultos aumenta. Além disso, Pilatos é um homem que go­verna de frente para o imperador. Prefere ser duro e inflexível para simular uma ordem que não pode conseguir por meio da justiça. Mas não falemos mais da política da Judéia. Você veio à procura de Je­sus... Ainda que ele também tenha a ver com política.

- É um homem santo. Assim acredita meu rei. Por isso estou aqui, para convidar Jesus a estabelecer-se em Edessa.

- Sim, com certeza Jesus é um homem santo. Contudo, ao apresentar-se como Messias, tem despertado o desejo de vingança dos grupos violentos, que desejam ver-se livres do jugo romano. Ainda que não tenha essa intenção, está inevitavelmente envolvido nos mo­vimentos subversivos.

- Creio que você sabe mais de Jesus do que havia dito esta manhã, caro Simão.

- É verdade... Dói-me ver como um homem justo e honrado caminha para a autodestruição. No Sinédrio há vozes poderosas que estão contra ele. Vai chegar um momento, e talvez esteja muito próxi­mo, em que vão instigar todo o Conselho para que o acuse de blasfê­mia, apesar de para os romanos esse delito não merecer a morte. Isso me tranqüiliza um pouco, ainda que haja algo no ar que não sei explicar e que me faz esperar pelo pior.

- Tem alguma idéia de onde Jesus possa estar agora?

- Não com certeza, mas há um membro do Sinédrio, José de Arimatéia, que é um amigo muito querido de Jesus. Creio que Jesus visita sua casa com freqüência. Ouvi dizer que ele e seus apóstolos estão preparando a Páscoa ali.

De repente, um chiado chamou a atenção de Simão e de Labeu.

Era o filho de Simão, que brincava perto deles com uma argola de metal.

- Fique quieto, José! - exclamou o sinedrita com carinhosa autoridade. - Venha aqui, filho, quero apresentar você a um amigo que vem de muito longe.

O menino parecia um pouco tímido. Fez menção de sair corren­do, mas diante do olhar fixo de seu pai preferiu desistir de sua inten­ção e aproximou-se da mesa.

- Um menino muito bonito - disse Labeu quando o teve di­ante de si.

- É a alegria de minha casa, acredite. Se não fosse por ele e por seu futuro, há tempos eu viveria isolado no campo, longe desta Jerusalém desnaturada.

Simão falava de novo em seu particular modo lúgubre, quase dramático. Labeu pensou, sem que ele o fizesse duvidar da veracida­de de suas palavras, que poderia haver feito carreira no teatro se houvesse nascido, por exemplo, na Grécia.

- Sempre é melhor enfrentar a adversidade que fugir dela­ - sentenciou Simão após uma breve pausa.

- Você disse tudo. Aquele que se entrega antes de lutar não merece ser livre, e sim escravo. No entanto, às vezes é melhor espe­rar, deixar que os acontecimentos sucedam por si mesmos, não acha?

- Mas só para observar, para averiguar os pontos fracos do adversário, para surpreendê-lo e minar suas forças, para procurar, em definitivo, o melhor momento para destruí-lo. Nosso destino é um barco que podemos governar ou deixá-lo guiar-se ao capricho das ondas: somos nós mesmos que devemos decidir entre um e outro.

Simão era um excelente orador. Notava-se claramente que, além de seus dotes naturais, tinha uma experiência muito ampla, talvez ad­quirida nos debates do Sinédrio, onde uma sutileza quase imperceptível e trivial proporcionava grandes discussões que se prolongavam até a saciedade, e que inflamavam os ânimos dos contendores sem que se importassem com o motivo em si.

- Mas Jesus não é um provocador; é um homem de paz que só quer salvar almas. A liberdade que ele prega é uma liberdade espi­ritual- continuou Simão mais tranqüilo, profundo. - Os interesses são muito fortes. Ele não deixa ninguém indiferente. Tem uma verda­de, talvez equivocada, não sei, mas é uma verdade que o torna peri­goso.

Nesse momento José, o filho de Simão, tropeçou enquanto brin­cava e caiu no chão. Seu choro inundou o ambiente, e prontamente seu pai o levantava e tentava consolá-lo. Só arranhara levemente uma das mãos ao cair, mas a dor e a visão do sangue impressionaram o menino.

Labeu, entretanto, refletia sobre as últimas palavras do sinedrita. Simão parecia um homem justo, ainda que um pouco confuso. Sua perfeita e calculada oratória, sua habilidade para discursar eram no­táveis, não se podia negar esse fato. Parecia evidente que o destino de Jesus de Nazaré, fosse qual fosse, estava ligado, inevitavelmente, conscientemente ou não, ao que o povo judeu havia de encontrar.

 

                               1888, Poblet

Gilles sentou-se em uma rocha na beira do caminho de saída de L'Espluga de Francoli. Naquele ponto, o atalho se bifurcava em ca­minhos que subiam serpenteando as ladeiras das serras próximas. Vestia um rústico traje de peregrino e deixara crescer a barba e o cabelo. Deixando de lado o cajado que utilizava e a sacola de via­gem, tirou as sandálias para descansar um pouco os pés doloridos.

Tinha a sensação de que se passara muito tempo desde que saíra de Paris. Não havia sido fácil convencer o reitor de Sorbonne para que lhe concedesse uma breve licença. Tinha muitas obrigações e o ano letivo estava terminando, mas ele conseguiu afinal. Durante uma semana ficou planejando o que faria. Informou-se sobre a me­lhor maneira de chegar ao mosteiro e foram muito úteis os dados fornecidos pelo seu amigo pároco. Principalmente saber se o mostei­ro oferecia comida e abrigo aos peregrinos que chegavam a ele. Esse era o principal motivo de haver decidido ir caminhando desde a fron­teira. Assim teria tempo suficiente para familiarizar-se com seu disfar­ce e tomar sua história mais convincente, pois havia atravessado de verdade os mesmos lugares que um autêntico peregrino.

- Bom dia! - disse um transeunte, fazendo-o despertar de suas lembranças.

Bossuet levantou a vista em direção ao lugar de onde vinha a voz. De um carro de bois, um homem de aparência simples o obser­vava sorridente.

- Os caminhos do Senhor são duros, não é? - disse amplian­do ainda mais o sorriso e deixando ver vários espaços em sua denti­ção. - Quer que o leve para algum lugar?

Gilles apressou-se em calçar novamente as sandálias, quase ao mesmo tempo que se levantava, fazendo ranger os ossos de seu corpo.

- E como não! - concordou rindo, com as mãos nos rins. ­Estou indo para o mosteiro de Poblet. Pode levar-me até lá?

- Oh, suba então! Não vou ao mosteiro, mas ao albergue que fica um pouco antes, mas economizará parte do caminho.

Dando graças aos céus por lhe enviar aquele homem rústico, Bossuet subiu ao carro e sentou-se ao lado do aldeão.

- Eu me chamo Pere - apresentou-se, estendendo uma mão enorme e cheia de calos.

      - Muito prazer em conhecê-lo, Pere. Meu nome é Gilles.

      Pere golpeou suavemente os bois com uma longa vara, ao mes­mo tempo que emitia um ruído com a boca. Obedientes, os animais retomaram sua marcha, tomando o caminho da esquerda.

      - Vêm poucos como você por aqui. Peregrinos, quero dizer. Você é francês, não é?

- Sim. De Paris.

O camponês assentiu e logo olhou para cima com ar piedoso, como se houvesse que pedir desculpas ao Senhor só pelo fato de pronunciar esse nome. Bossuet riu com vontade do ocorrido. Pere não demorou em unir-se a ele, emitindo sonoras gargalhadas ao mes­mo tempo que batia na perna com sua imensa mão.

- Se você vai a Santiago - disse o camponês ainda sorriden­te, apontando com o dedo à vieira do cajado -, distanciou-se um pouco do caminho.

- Eu sei. Uns peregrinos me falaram deste lugar quando atra­vessei a fronteira e resolvi desviar-me para visitá-lo antes de continu­ar em direção a Compostela.

- Fez bem - felicitou-o, dando-lhe uma palmada nas costas. - Este é um bom lugar para encontrar a paz de espírito, amigo francês.

E parecia realmente. Mantiveram-se em silêncio pelo resto do caminho, o que permitiu a Gilles desfrutar a paisagem que iam atra­vessando. De ambos os lados se levantavam imponentes serras, em cujas ladeiras cresciam carvalhos e pinheiros. Nos picos mais altos, grandes nuvens de resplandecente cor branca se agrupavam sobre as rochas.

- Já chegamos - informou Pere saltando do carro.

Era verdade. À sua direita, Bossuet pôde ver um conjunto de edificações, algumas das quais ainda em construção. Os telhados claros e as paredes recém-caiadas, impolutas, sobressaíam entre a cor da vegetação que rodeava o albergue.

- Muito obrigado pelo passeio.

- Não tem do que agradecer - afirmou o camponês. – É bom ter outra companhia que não sejam os bois, de vez em quando.

Despedindo-se de Gilles com um novo aperto de mãos, o cam­ponês indicou-lhe o caminho que deveria seguir para chegar ao mostei­ro, que, pelo que disse, encontrava-se a apenas um quilômetro dali.

Outra vez no caminho, Bossuet não demorou para sentir os pés. A proximidade da abadia não parecia ser uma razão suficiente para convencê-los de que deveriam deixar de maltratá-lo. Não havia an­dado muito quando, ao longe, distinguiu entre as árvores o que pare­cia ser o mosteiro. No entanto, quase não podia ver, pois o espesso manto de folhas tirava-lhe a visão. Ansioso por chegar a seu destino, acelerou o passo, ignorando as queixas de seus machucados pés.

Um pouco mais adiante o caminho se estreitava. As suaves la­deiras ficavam esburacadas nesse lugar, formando um profundo bar­ranco que se estendia à direita e à esquerda, além de onde a vista alcançava. Uma estreita ponte era o único ponto por onde parecia ser possível atravessar. Junto a ela se erguia um rústico poste com uma placa de madeira, na qual se podia ler: BARRANCO DE SÃO BERNARDO.

Gilles não pôde evitar deter-se no meio da ponte e espiar por cima da borda de pedra para ver lá embaixo. No fundo, enormes pontos circulares e ramos de árvores descansavam no leito de um pequeno córrego, que provavelmente era muito mais caudaloso no inverno. Bossuet surpreendeu-se gritando seu nome para as monta­nhas, que o repetiram obedientemente com uma voz cada vez mais abafada, até que se extinguiu por completo. Sorridente e alegre, como só pode estar um garoto quando faz uma travessura, chegou ao outro lado do barranco. A pedra da ponte deu lugar novamente ao casca­lho e à poeira do caminho, que uns cem metros mais adiante se bifur­cava. Segundo estava escrito nos cartazes, um conduzia a um lugar chamado La Pena e o outro, a umas fontes. Bossuet tomou esse últi­mo, ainda que o fizesse desviar-se um pouco de seu caminho. A ima­gem da água cristalina da montanha, emanando de um cano metálico cravado na rocha, era muito tentadora para se resistir.

Mas não conseguiu bebê-la quando chegou ao local. Ficou des­lumbrado pela beleza da paisagem que se estendia diante de seus olhos. Dali se via uma boa parte das aldeias do Vale de Barberà. Ao redor dela, as montanhas de Prades se recortavam no céu do formo­so entardecer de final de primavera. E, em meio a tudo isso, erguia-se majestosamente a sóbria figura do mosteiro, rodeado por bosques de flores brancas que chegavam até seus muros. Dentro, limitadas a leste por um muro mais baixo, alinhavam-se fileiras de vinhas, entre as quais se moviam afanosas figuras pardas.

Gilles estendeu os braços e inspirou profundamente. O ar chei­rava a tomilho e a dezenas de outros aromas que quase não era capaz de reconhecer. Podia sentir o calor dos últimos raios de sol em seu rosto, enquanto o doce canto dos pássaros enchia o ar com sua mú­sica. Nunca na vida se sentira tão vivo como naquele momento. En­tão se perguntou como chegara ali e o que o havia feito ir realmente... e não encontrou uma resposta. Apesar de todos os motivos que se tinha dado, apesar de repetir para si mesmo várias vezes que aquilo não passava de uma investigação científica, apesar de tudo. Nesse instante, ao ver o mosteiro, percebeu intensamente algo que acredita­va já ter sentido antes, mas que não se atrevera a reconhecer, enter­rando-o embaixo da razão e da lógica. Parecia um absurdo, uma autêntica loucura, mas não podia evitar acreditar que tudo aquilo ti­nha algum sentido. Não podia evitar crer que, de algum modo, existia uma força que controlava seu destino desde o instante em que o me­dalhão chegara a suas mãos. Ou até mesmo antes. Abaixou os bra­ços de novo, lentamente, ao mesmo tempo que o sol se escondia atrás dos cumes das montanhas, e permaneceu ali até que o astro desaparecesse por completo.

 

Quando Bossuet atravessou as muralhas exteriores do mostei­ro, já era noite. A porta de acesso conduzia a uma praça, ao redor da qual se levantavam modestos edifícios, que deviam abrigar os trabalhadores da abadia. Do outro lado da praça havia uma pequena ca­pela, adjacente a uma nova entrada. Gilles chamou à porta de um edifício próximo, também muito pequeno, de onde saiu um homem de aparência rude e sonolento, que se aproximou dele enquanto es­fregava os olhos com as mãos.

- Boa noite! Que deseja? - disse entre bocejos.

- Boa noite! Soube que oferecem alojamento aos peregrinos neste lugar. É verdade?

O homem olhou Gilles de cima a baixo com desconfiança e logo o encarou. A verdade é que não imaginara que pudessem duvidar de sua história. Haveria como distinguir um peregrino verdadeiro de um farsante como ele? Tentando não deixar transparecer seu nervosis­mo, conseguiu sustentar o olhar do receoso porteiro e voltou a per­guntar:

- Isso é verdade?

- Sim, é verdade que damos abrigo aos peregrinos.

O homem reforçou especialmente a última palavra, mas Bossuet não demonstrou que percebera e limitou-se a concordar adotando a expressão mais piedosa possível. A cena não deixava de ser um pouco cômica, mas Gilles tentou não pensar nisso. Se começasse a rir, não tinha dúvida de que o porteiro o expulsaria do mosteiro a chutes.

- É por essa porta - disse por fim com voz gélida, indicando um portal de metal incrustado na pedra de uma outra muralha. - À direita da praça encontrará a hospedaria. Pergunte pelo irmão Alessandro.

Não era preciso que Bossuet se virasse para saber que o por­teiro continuava observando-o enquanto caminhava em direção ao lugar que este lhe indicara. Sentia seu olhar na nuca, como se tentasse penetrar em sua cabeça para fazê-lo confessar sua farsa. O portão dava acesso a outra praça, muito maior que a primeira. À frente se erguia uma esbelta cruz de pedra sobre uma base com degraus. Um pouco mais à frente, guardada por duas torres hexagonais, abria-se outra porta, que conduzia ao verdadeiro núcleo do mosteiro, separado do resto por uma muralha.

Conforme disse o porteiro, à sua direita havia um conjunto de edifícios, entre os quais devia estar a hospedaria. Gilles dirigiu-se ao único que tinha uma luz acesa. O arco românico da entrada era tão baixo que teve de agachar-se um pouco para não bater a cabeça. Ao levantar os olhos de novo, quase tropeçou em um dos monges.

- Perdão - desculpou-se. - Posso falar com o irmão Alessandro?

- Eu sou o irmão Alessandro - afirmou o frade com arrogân­cia. - E você, quem é?

Bossuet teve a impressão de já haver passado por aquilo. Co­meçava a acreditar que não havia ninguém sensato naquele lugar. ''Tal­vez", pensou, "fosse por causa de seu sotaque francês." O monge tinha um rosto severo, de feições angulosas, e o observava com um ameaçador olhar de desprezo. Seu cabelo, completamente negro, apesar de aparentar uns cinqüenta anos, contrastava com a impoluta brancura de seu hábito. A seu lado, visivelmente contrariado pela ati­tude de seu superior, estava um frade mais jovem, que se atreveu a dizer:

- É um peregrino, frei Alessandro. Não vê suas roupas e seu cajado? Sem dúvida deseja alojamento e um pouco de comida quen­te. Estou enganado? - perguntou, dirigindo-se a Gilles.

O irmão Alessandro virou-se para o mais jovem, desviando sua atenção de Bossuet por alguns instantes. Não disse nada, ainda que seu olhar de reprovação bastasse para amedrontar o rapaz.

- Com efeito, sou um peregrino- disse Gilles, tentando recu­perar a atenção do irmão Alessandro. - Meu destino é Santiago de Compostela, mas desejava passar uns dias aqui, se for possível, para desfrutar da paz deste lugar e preparar meu espírito.

- Está bem, está bem, não precisa dizer mais nada. Pode ficar - informou o frei Alessandro com visível má vontade. - O irmão José - disse indicando o jovem frei, ao qual lançou outro olhar fu­rioso - o conduzirá à sua cela.

Não tinha certeza de que sua atuação tivesse sido muito convin­cente, apesar de ter funcionado. Frei Alessandro deixou-os a sós, dirigindo-se para a porta da igreja, que também dava para a praça.

- Espero que perdoe o irmão Alessandro - rogou frei José. - É um fiel servo de Deus, mas não tem muita simpatia pelos france­ses. Não me pergunte por quê. Enfim - disse com um suspiro -, se quiser acompanhar-me, eu o levarei ao seu quarto.

O jovem monge devia ter por volta de vinte e cinco anos. Seu afável rosto estava coroado por um cabelo ondulado e negro, e a ex­pressão ingênua de seus olhos contrastava com o rude olhar de seu supe­rior. Com um gesto decidido, tomou uma pequena lâmpada que estava pendurada na parede e, depois de acendê-la, entrou por um corredor.

- O corredor é muito escuro - esclareceu, ao mesmo tempo que desaparecia sob um arco de pedra.

Bossuet apressou-se atrás dele, e ambos penetraram em uma estreita passagem. Conforme se distanciavam da entrada, as som­bras se tomavam mais impenetráveis, de modo que a luz amarelada era suficiente apenas para iluminar o caminho à frente de frei José, permitindo-lhes apenas ver as escuras lajes que cobriam o chão e os grandes blocos de pedra da parede e do teto abobadado.

- É aqui - afirmou o frei, detendo-se repentinamente e olhan­do para Bossuet.

Sua voz ecoou no silêncio do corredor, apesar de não ter mais que sussurrado. Isso contribuía para dar ao monge um aspecto fantasmagórico, junto com seu hábito branco e seu rosto envolvido em claridade e sombras que se moviam sob os caprichosos movi­mentos da chama.

Após procurar em seus bolsos por um bom tempo, o frade tirou uma enorme chave de ferro que exibiu com gesto triunfal. A chave pendia de uma argola metálica, entre um enorme molho de muitas outras que para Gilles pareciam todas iguais.

- Nossa! - exclamou. - Isso tem um aspecto realmente pesado.

- Sim - concordou frei José sorrindo, enquanto abria a porta da cela -, mas a gente acaba acostumando. Além disso, é uma gran­de honra que o abade me confie todas as chaves do mosteiro. Bem - acrescentou depois de reconsiderar por uns instantes -, de qua­se tudo. Há lugares onde só podem entrar ele e alguns dos irmãos superiores.

Ao ouvir isso, Bossuet soube imediatamente que aquele último comentário era importante.

- Verdade? - interrogou tentando adotar um tom indiferente. - Sim, a todos os demais é completamente proibido fazê-lo. - E o frei Alessandro?

- O irmão Alessandro... - o jovem ficou pensativo durante uns segundos; provavelmente estava imaginado a bronca que o espe­rava. - Ele é um dos que têm permissão - continuou finalmente.

Gilles sentia uma crescente agitação. Talvez, depois de tudo, a atitude de frei Alessandro não se devia a uma personalidade intratável, e sim a algo muito mais calculado: um estranho supunha perigo poten­cial se se tivesse algo a esconder.

- ... quarto - ouviu o monge terminar de dizer, pondo fim a tão perturbadoras reflexões.

O irmão José entrou no quarto e, momentos depois, iluminou-­se seu interior. Quando Bossuet entrou, o monge estava acendendo outra vela, que descansava sobre outro castiçal, em uma prateleira.

- Como pode ver, não tem muito luxo - disse, mostrando o quarto com os braços estendidos e com as palmas das mãos abertas. - Mas, como disse Nosso Senhor, "Bem-aventurados, vós, os po­bres, porque vosso é o reino de Deus".

- Amém! - sentenciou Gilles com um sorriso. - Uma cama é tudo de que preciso. Muito obrigado.

- Oh, quase me esqueço! Você está com fome? Lamento que já tenha passado a hora da janta; mas posso buscar algo para comer na cozinha.

      - Não é necessário. Estou muito cansado e gostaria de dormir.

      - Está bem, como queira. O café da manhã é às seis em ponto. Posso vir avisá-lo se quiser.

      - Sim, claro, obrigado novamente.

      - Até amanhã, então. Durma bem - desejou antes de fechar a porta de madeira.

Bossuet ficou sozinho no quarto. A cela era de total austeridade. O lugar não tinha mais que uns três metros de comprimento por dois e meio de largura. Uma pesada cama de pinho coberta por uma puída manta cinza estava encostada à parede da esquerda. A seu lado, ha­via um oratória e, sobre ele, abria-se uma pequena janela com um batente de madeira carcomido. Devido à grossura dos muros, havia um oco de aproximadamente um metro entre a parede interior e a janela. Ali se encontrava um livro de capa negra que devia ser uma Bíblia.

Encarapitou-se pelo vão do muro e abriu a janela. No mesmo instante penetrou uma fresca e agradável brisa. A vista, no entanto, era um pouco frustrante: a poucos metros do edifício erguiam-se im­ponentes muralhas iluminadas pela lua cheia, que impediam ver as montanhas que se estendiam mais além; à esquerda se divisava uma das torres do perímetro amuralhado, e, do outro lado, podiam ver-se as escuras silhuetas dos outros edifícios do mosteiro. Como pôde comprovar, sua janela se encontrava no andar inferior, a poucos metros do chão.

Fechou novamente a janela e se atirou na cama. Teria de pensar qual seria seu próximo passo. Os comentários do frade pareciam reveladores, ainda que pudessem não significar nada. Tentou concentrar-se nesses pensamentos e dar-lhes forma, mas o cansaço e o sono logo o fizeram adormecer. Entretanto, antes de dormir achou ter ouvido vozes entoando um belo cântico, ao longe, amortecido pelos grossos muros de pedra. E, nesse estado de semi-consciência, passou por sua mente a absurda idéia de haver morrido e que um coro celestial de anjos cantava um salmo de boas-vindas.

 

                                   Século I, Arimatéia

Depois do almoço com Simão Ben Matatias, que foi menos pro­longado do que Labeu desejava, para evitar que a noite o surpreendes­se no caminho, este se dirigiu à casa de José de Arimatéia, o membro do Sinédrio pelo qual Jesus tinha profundo carinho e que vivia fora dos muros da cidade. Ainda que o edesseno (Habitante da cidade de Edessa) tenha resistido, acreditando já estar abusando de sua amabilidade, Simão o obrigou a instalar-se em sua casa durante o tempo que ficasse em Jerusalém. A hospitalida­de judia era bem famosa e não havia como resistir a ela.

José morava, quando não estava em Jerusalém, em sua aldeia natal, Arimatéia, situada a uns trinta quilômetros a noroeste da cida­de, perto da estrada que a ligava a Jafa, na costa mediterrânea. Mes­mo o terreno não sendo muito acidentado, os duros e áridos cami­nhos e o clima seco e quente davam a impressão de aumentar a dis­tância. Além disso, era muito provável que Jesus não estivesse ali. Simão só havia dito que o rabi e José de Arimatéia eram bons amigos e que a Páscoa seria preparada na casa deste último. Mas não tinha garantia de encontrar a quem buscava com tanto interesse. Talvez até pudessem pensar que era um espião. Talvez corresse perigo. Porém, apesar dos pensamentos mais negativos, Labeu desejava cumprir a missão de seu rei na mesma medida em que ansiava conhecer por fim ao homem santo a quem todos pareciam odiar ou temer.

No meio do caminho, o embaixador viu um homem sentado junto à estrada. Vestia uma gasta túnica negra e levava uma vara de azevinho, que tinha apoiada sobre seus joelhos numa posição horizontal; estava encurvado, com a cabeça baixa, distraído. Seu olhar estava vidrado e se perdia na estrada poeirenta. Quando chegou até o indivíduo de tão miseráveis vestimentas, Labeu se deteve para perguntar se estava no caminho certo para Arimatéia. Então percebeu que o homem tinha no rosto os sinais da mais terrível das enfermidades, a lepra, que consumia sua carne e seu espírito pouco a pouco, implacavelmente.

Diante da expressão horrorizada do embaixador, o homem vol­tou à realidade, olhou para ele e sorriu com doçura.

- Não tema, caminhante - disse com voz pausada, a voz de um homem cuja alma está em paz. - As marcas de meu corpo reve­lam somente um padecimento distante.

- Mas... a lepra não tem cura... Como pode haver-se curado? - perguntou Labeu intrigado e ainda temeroso.

- O que para o homem é impossível, é insignificante para Deus Todo-Poderoso. A salvação de minha carne e de meu espírito eu devo a seu enviado, Jesus de Nazaré, o Messias - proclamou o homem de dentro de si.

- Você conhece a Jesus? Estou procurando por ele.

- Uma vez se aproximou de mim e disse: "A enfermidade de que padeceis vos faz sofrer, mas em verdade vos digo que esse sofri­mento vosso, se tendes fé no Pai, se tomará felicidade no céu". De­pois passou a mão pelo meu rosto e a lepra se deteve. Foi um milagre que mostrou aos incrédulos o poder do Filho de Deus.

Labeu não era de se impressionar com facilidade, mas aquilo, se era como dizia o leproso curado, o deixou atônito. A lepra não parava antes de haver comido todo o corpo, sem piedade, até que este não pudesse agüentar-se mais e chegava o seu fim, carcomido, transformado em morto vivo, em um espectro grosseiro e repulsivo.

- Você deve estar muito agradecido a Jesus. O que fez com você é, como se diz, um verdadeiro milagre. Você sabe se ele está agora na casa de José de Arimatéia?

O homem voltou de seu êxtase contemplativo, produzido em sua mente pelas recordações de Cristo, e logo mudou de expressão, apesar de não variar seu doce tom ao dizer:

- Para que o procura? Que quer dele?

- Sou embaixador de um distante reino do norte. Meu rei ama a doutrina de Jesus e envia-me para oferecer a Jesus a sua proteção real, caso ele me acompanhe até meu país.

- Que pouco você sabe a respeito de Jesus...

- Por quê? Falei algo que o ofendeu?

- Não, meu bom caminhante, não. Mas Jesus não irá com você. Ele se negará a deixar a Judéia: aqui o aguarda seu destino. Ele mesmo me revelou isso.

      - Ainda assim, gostaria de falar com ele. Tenho de cumprir as ordens de meu senhor.

      - Está certo. Eu o compreendo. Mas ainda assim lhe digo, todos os seus esforços serão inúteis.

Havia nas palavras daquele homem certa comiseração talvez por ter certeza de que um estrangeiro fosse incapaz de compreender em sua verdadeira dimensão a figura do rabi.

- Se você for por esse atalho andando rápido, em menos de uma hora estará em Arimatéia. Ali, pergunte novamente por José. Mas sua casa é fácil de ser identificada, já que é a maior do povoado e ocupa mais ou menos seu centro.

Após o encontro com o ex-leproso, chamado Sem, como o filho de Noé, nome que deriva dos semitas, Labeu seguiu seu cami­nho. Não sabia por que, mas uma profunda sensação de calma en­chia seu coração. Caminhava alegre; sem um motivo aparente, mas transbordando de vigor. Pela primeira vez olhava o caminho pedre­goso e empoeirado que tinha pela frente sem desanimar. Estava ansi­oso por encontrar Jesus, falar com ele, conhecer a seus discípulos e escutar seus ensinamentos.

 

Arimatéia era um povoado que tinha apenas vinte casas. A mai­oria apresentava um aspecto limpo e bem-cuidado, contornando seu desenho cor de cal com os tons pardos do terreno. De um lado do povoado, várias fileiras de ameixeiras se estendiam até adentrar a mata próxima. Entre elas também havia algumas figueiras e abricoteiros.

Como havia dito Sem, Labeu se dirigiu para a casa que ocupa­va o centro de Arimatéia. Comparada com as pobres construções da aldeia, era uma mansão, rodeada por uma cerca que circundava um pequeno jardim: a residência digna de um homem rico como era José. O embaixador foi adentrando pelo jardim tentando ver alguém, mas não parecia haver ninguém ali. Aproximou-se com cuidado do arco que dava acesso à casa. Começava a esfriar. O sol tocava o horizon­te, próximo a seu ocaso. A quase extinta luz produzia um efeito c1aro-­escuro entre a fachada e o interior. Quando Labeu chegou à varanda, um braço forte o deteve e um rosto feroz apareceu entre as sombras.

- Quem é você? - gritou o homem que vigiava a entrada. Labeu se assustou pela repentina aparição e pela voz. Mas não sentia medo. Olhou ao guardião e disse levantando as mãos:

- Não tenha medo de mim. Venho em paz. Procuro por Jesus de Nazaré.

- Está procurando Jesus? E para quê? - inquiriu o homem com gravidade, sisudo, apertando o braço de Labeu.

O embaixador ia explicar quem era e qual era sua missão quan­do, do interior da casa, ouviu-se uma voz doce, serena e bela, que disse:

- Pedro, deixe esse homem entrar. Vem de muito longe para falar comigo.

Labeu supôs na mesma hora que aquela voz pertencia ao ho­mem a quem procurava. Somente ele poderia irradiar luz e calor em meio à escuridão e ao frio da iminente noite. Somente ele poderia saber que vinha de um distante reino do norte.

Pedro obedeceu à ordem resmungando. Fez menção de con­testar, mas finalmente se sentou junto à entrada com um gesto de enfado. Uma pequena lamparina de azeite iluminava o lugar. Os olhos do embaixador foram acostumando-se à pouca luz. A sensação de paz que inundava o ambiente se acentuava pelo envolvente cheiro de incenso e óleos aromáticos. Ao fundo, Labeu pôde distinguir a figura de Jesus, sentado em uma saliência da parede. Vestia uma túnica cla­ra e parecia refletir, com o queixo apoiado em um dos pulsos e o cotovelo sobre a perna. Seus longos cabelos resplandeciam sob a tênue chama da lamparina.

- Aproxime-se, não tenha medo de nada - disse virando a cabeça para o embaixador.

Labeu viu pela primeira vez os olhos de Jesus. Eram grandes e vivos, brilhantes e acolhedores, majestosos. Seu olhar transmitia gra­vidade e sabedoria, doçura e bondade. O embaixador sentiu-se como um menino que tem diante de si a autoridade do pai. Devagar, sem desviar seu olhar do de Jesus, aproximou-se dele. Mais perto, pôde perceber seu belo rosto, suas feições nobres e a expressão de infinita ternura. Sentiu vontade de chorar, profundamente emocionado, mas conseguiu conter-se. Nesse momento, Jesus se levantou e falou de novo:

- Siga-me, meu amigo, deve transmitir-me uma mensagem e prefiro que estejamos sozinhos.

Ao ouvir essas palavras, Pedro saltou como um relâmpago e disse com veemência, afobadamente:

- Mestre! Não sabeis quem é esse homem. Deixai-me ao menos que o reviste. Já ouvistes seu sotaque; pode ter sido mandado pelos romanos. Pode ser um assassino...

- Não, Pedro. Tire o medo do seu coração. Meu destino per­tence ao Pai. Nada tema, pois.

Jesus conduziu Labeu a um lugar reservado, um pequeno quar­to no qual havia somente uma mesa sem adornos e duas cadeiras de pesada madeira. Ali estiveram por um longo tempo, enquanto a agita­da imaginação de Pedro concebia os mais absurdos disparates.

Quando Jesus e o embaixador saíram, os demais discípulos os esperavam junto a Pedro. Haviam regressado de Jerusalém, onde José precisara permanecer para uma assembléia do Sinédrio, pouco depois da chegada de Labeu, e o fiel Pescador lhes havia contado como Jesus se negara a revistá-lo. Muito agitado, mesmo sendo in­capaz de fazer uma maldade, tentou convencer os outros para que entrassem a procurar Jesus, falando de grandes perigos imaginários. Mas Paulo, sempre prudente, encarregou-se de esfriar os ânimos de seus companheiros, assustados pelo exagero de Pedro.

Depois da conversa com o rabi, o rosto de Labeu se transfor­mara. Seus olhos pareciam perdidos, vislumbrando talvez um mundo distante e melhor. Nenhum dos dois falou nada sobre o que conversaram. Quando Pedro perguntou a seu mestre o que havia sucedido, ele se limitou a sorrir e responder: "Estivemos falando sobre muitas coisas. Labeu é um bom homem".

Jesus convidou o edesseno a jantar com eles e pediu-lhe tam­bém que passasse a noite ali. Os caminhos não eram seguros na es­curidão, e o frio também desaconselhava a viajar a essas horas. Du­rante esse tempo, Jesus e Labeu não voltaram a conversar, porém todos percebiam como este último olhava para o Mestre. O coração de Labeu nunca mais abandonaria aquele lugar nem deixaria de amar aquele homem. Algo mudara em seu coração e em sua mente; já não era o mesmo Labeu que havia chegado naquela mesma tarde a Arimatéia.

 

                              1888, Poblet

Na manhã seguinte, umas batidas na porta despertaram Gilles. Ainda sonolento, conseguiu levantar-se e sentar na beirada da cama. Olhou seus pés com os olhos semi-abertos e percebeu que nem ao menos havia tirado as sandálias para dormir.

- Bom dia! - ouviu frei José dizer do outro lado da porta, acompanhando suas palavras de leves batidas.

Desajeitadamente, Gilles se dirigiu até ela. Ao abri-la, percebeu que o monge estava parado no meio do corredor a observá-lo.

      - Bom dia! - repetiu. -Como está esta manhã? Dormiu bem?

      - Muito bem, obrigado. Só que, antes de dormir... - come­çou a dizer, mas interrompeu, levantando a mão e sacudindo a cabe­ça, como se pensasse tratar-se de uma idéia absurda.

- Sim?

- Bem, pareceu-me ouvir alguém cantando...

- Oh, sim, claro! Não comentei nada ontem porque você me disse que estava muito cansado, mas todas as noites, às nove, cele­bramos a liturgia de Completas e cantamos Salve na igreja, antes de dormir. Se quiser, pode acompanhar-nos hoje.

- Sim, claro. Ficaria encantado.

- Excelente. Vejo que já se vestiu - disse observando de cima a baixo.

- Mais ou menos - afirmou Bossuet com um sorriso.

O frade o encarou com expressão interrogativa, mas não fez nenhuma pergunta.

- Bem, vamos então tomar o café da manhã.

Depois de fechar a porta da cela, dirigiram-se à entrada do edi­fício percorrendo, de volta, o mesmo caminho do dia anterior. O sol ainda não havia saído completamente, mas já se podiam ver pedaços claros no céu. O ar era fresco a essas horas, e o canto dos pássaros ressoava ao redor, ampliando o ar diáfano da manhã.

Gilles esfregou os olhos para terminar de clarear a visão. A pra­ça onde estava era muito grande; maior ainda do que parecera na noite anterior. Seguindo os passos do frei José, dirigiu-se até as mu­ralhas do perímetro interior do mosteiro. Em seu caminho, passaram ao lado da cruz que havia sido fixada no dia anterior.

- Esta cruz é do abade João de Guimera - informou o irmão ao perceber que Gilles a estava olhando. - Creio que tem uns du­zentos anos.

Dito isso, o frade subiu os degraus que separavam do solo a base da cruz e, surpreendentemente, deu três voltas ao redor dela antes de descer de novo e convidar Bossuet a fazer o mesmo. Dessa vez foi este quem lhe dirigiu um olhar perplexo. O monge riu com vontade ao ver seu espanto.

- É uma velha tradição - explicou por fim. - Conta-se que quem dá três voltas ao redor da cruz voltará algum dia a Poblet.

- Nesse caso... - disse Gilles, dando as voltas -, voltare­mos a nos ver.

O acesso ao núcleo central do mosteiro era feito pela porta que se conhecia como Porta Real, uma abertura arrematada na parte superior por um arco românico, e fechada por um portão de madeira reforçado com pregos e chapas de metal. A porta se abria em uma muralha de mais de dez metros de altura, que estava coberta, em uma parte, por algum tipo de planta trepadeira. Segundo o frade, a mura­lha rodeava a igreja e as dependências dos monges, como se fosse uma fortaleza. De ambos os lados da porta se erguiam duas torres de forma hexagonal, iguais ainda que menores do que as outras que se viam em outros lugares do perímetro amuralhado. Esta entrada conduzia a um pequeno pátio interior, que eles atravessaram em direção à porta do vestíbulo, situada na extremidade esquerda. O lugar era amplo e sóbrio, com duas fileiras de arcos que lhe davam um aspecto solene.

- Por aqui se vai aos nossos dormitórios - disse-lhe o irmão apontando umas escadas. - E essa é a cozinha - acrescentou, indicando uma porta que estava a poucos metros deles.

Saindo da cozinha, avançaram por um corredor que desembo­cava em um grande claustro, em volta do qual se erguiam finas colu­nas que sustentavam arcos de médio porte, nos quais se misturavam os estilos gótico e românico.

- É um... - começou Gilles até que frei José fez um sinal para que se mantivesse em silêncio.

Assim, sem falar, contornaram até o corredor à esquerda do claustro, em direção a um pequeno templo poligonal, rodeado por colunas de pedra e arcos românicos. Em seu interior encontrava-se uma fonte com uma peça em forma de pia batismal da qual emanava água. Uma grande quantidade de monges a rodeava, lavando as mãos com vontade. Frei José aproximou-se para fazer o mesmo e Gilles o imitou.

O refeitório ficava ao lado desse pequeno templo, à esquerda do claustro. Era uma sala ampla, de uns trinta metros de comprimen­to por quase dez de largura. As mesas estavam dispostas ao longo do perímetro, ficando vazio o espaço central. Uma grande abertura, que se estendia praticamente de um extremo a outro de uma das paredes, comunicava-se com a cozinha, na qual uma dúzia de jovens frades se movimentava freneticamente de um lado a outro, sob as ordens que gritava sem parar um irmão gordo e de aparência enfurecida. De um lado, fomos gigantescos ocupavam boa parte da parede, e deviam ser a origem do delicioso aroma que inundava o refeitório.

- Sinto muito por havê-lo feito calar-se - desculpou-se frei José -, mas é proibido falar no claustro. Que me estava dizendo?

- Desculpe-me, não sabia - disse Gilles, desviando sua aten­ção da cozinha. - Não era nada importante, na realidade. Só ia dizer que é um bonito claustro.

- É verdade - concordou o monge com orgulho. - Ele co­meçou a ser construído no início do século XIII e é de estilo români­co. Terminá-lo demorou mais de um século, e por isso as colunas e os enfeites da maior parte do claustro são de estilo gótico. Há mais outros dois no mosteiro, o de Santo Estêvão e o do locutório, mas não são tão bonitos quanto este.

O frade permaneceu de pé por alguns instantes, contemplando o claustro como se fosse a primeira vez que o via. Quando finalmente se virou, Bossuet lhe perguntou:

- Qual é minha mesa?

- As do fundo e as da direita estão reservadas para os irmãos do mosteiro. Pode sentar-se em qualquer outro lugar.

Quase todas as mesas estavam ocupadas. Ao menos as dos monges, pois as que correspondiam aos peregrinos estavam comple­tamente vazias. Ao que parecia, ele era o único que se encontrava no mosteiro naquele momento. Isso fez com que tivesse dúvidas de novo: talvez aquela não fosse uma época comum de peregrinação a Poblet No entanto, disse a si mesmo que esse era um pensamento absurdo e que devia ser somente uma coincidência... "Ou coisas do destino", pensou, sem que fosse capaz de dizer se realmente acreditava naquilo ou não.

Escolheu a mesa mais próxima da parede do fundo, junto à dos frades. O irmão José não pôde sentar-se na mesa que ficava ao lado da sua porque já estava ocupada e teve de ocupar uma que ficava no outro extremo do refeitório. No momento em que Bossuet se sentou, entraram pela porta meia dúzia de monges, que traziam bandejas nas mãos. Com uma rapidez e habilidade inusitadas, começaram a distribuir o café da manhã entre as mesas: uma xícara de leite e duas rabanadas.

Gilles ia começar a comer quando um ancião de aspecto vene­rável se levantou de repente de uma mesa. A seu lado se encontrava frei Alessandro, que fez um pequeno cumprimento com a cabeça a Bossuet. Ele devolveu o cumprimento com cortesia, para logo voltar a atenção ao ancião que, sem dúvida, deveria ser o abade do mostei­ro. Tinha o cabelo totalmente cinza, e uma longa barba de aspecto descuidado cobria-lhe grande parte do rosto. Neste brilhavam uns inteligentes e piedosos olhos escuros, que o abade fechou ao mesmo tempo que estendia os braços a ambos os lados do corpo, com a palma das mãos para cima. Nesse momento, todos os demais frades colocaram suas mãos em posição de oração e inclinaram respeitosa­mente as cabeças. Gilles os imitou, mas manteve os olhos abertos, observando o abade. Não sabia nada de homens santos; até então nem imaginara que este tipo de homens existisse. Mas, nesse mo­mento, não teve a menor dúvida de que se encontrava na presença de um. Tal era a sabedoria que se podia notar em cada ruga de seu afável rosto, e a majestosidade de sua presença, da qual parecia emanar uma estranha e reconfortante energia.

- Obrigado, Senhor, por estes alimentos que vamos ingerir ­rogou com uma voz suave e ao mesmo tempo poderosa - e por nos permitir desfrutar por mais um dia de tua Graça, enquanto esperamos tua volta no final dos tempos.

- Amém! - disseram em coro todos os monges.

Depois da ação de graças, o abade voltou a sentar-se e os fra­des começaram a comer. Um irmão, enquanto isso, lia as Sagradas Escrituras com voz pausada. Obrigando-se a desviar a vista do an­cião e concentrar-se, também, no café da manhã, Gilles se repreen­deu por sua grosseria. Esteve a ponto de começar a comer sem es­perar a oração de agradecimento. Apesar de desconhecer tudo o que era relacionado com a igreja ou os mosteiros, devia imaginar que os frades faziam algum tipo de ritual antes de comer. Supunha-se que era um peregrino, mas não se comportava como um. Não podia vol­tar a cometer um erro semelhante ou, do contrário, poderia entrega-­se. Tinha certeza de que nem todos os monges da abadia eram tão amáveis e de boa vontade como frei José.

Apesar de sua irritação consigo mesmo, não demorou a come­çar a saborear o café da manhã. O pão era branco e macio e ainda estava quente. Pensou que com certeza o faziam no próprio mostei­ro, nos grandes fomos que havia visto momentos antes na cozinha. Comeu as duas rabanadas com avidez e depois tomou o leite, forte e grosso, quase de um só gole. Estava faminto; afinal de contas, não havia comido nada desde meio-dia do dia anterior.

Entretanto, não pôde evitar de se sentir um pouco envergonha­do ao perceber que os monges ao redor dele mal haviam começado a tomar seu café da manhã. Felizmente, nenhum deles parecia reparar nele. Com exceção de seu jovem acompanhante, frei José, que o observava do outro lado do refeitório. Mas pior foi quando percebeu que o irmão Alessandro também o observava com uma expressão de reprovação. Sentindo-se mais envergonhado que nunca, Bossuet desviou seu olhar do monge e o dirigiu ao claustro, fazendo de conta que estava muito interessado na fonte do pequeno templo.

Em poucos minutos, voltaram a entrar os monges da cozinha e recolheram as mesas de um modo tão diligente quanto o que haviam empregado para repartir o café da manhã. Os frades foram levantan­do-se um a um e dirigindo-se para a saída. Gilles procurou o irmão José entre eles e o encontrou junto à mesa do abade, falando com frei Alessandro que, durante a conversa, apontou várias vezes para o lugar onde se encontrava Bossuet. O jovem monge estava de costas para ele, de modo que Gilles não podia ver a expressão de sua face ante o que o outro monge lhe estava dizendo e tentar averiguar de que falavam, ainda que suspeitasse não ser nada bom. Seus receios se dissiparam, entretanto, assim que frei José se virou e caminhou até ele sorridente.

- Frei Alessandro me desincumbiu de minhas obrigações en­quanto você estiver aqui. Quer que o acompanhe aonde vá - comu­nicou quando aproximou-se dele.

- Isso é excelente. Assim poderá ensinar-me mais coisas so­bre o mosteiro - disse sorrindo.

Contudo, no fundo, Gilles não achava uma boa notícia. A única coisa positiva era que agora, ao menos, tinha certeza de que frei Alessandro o queria vigiado. Por que não designaria um guia perma­nente a alguém com quem se mostrava tão arisco? Não acreditava que o bondoso irmão José tivesse consciência do verdadeiro papel que desempenhava. E mais, Bossuet estava começando a suspeitar que, fosse o que fosse que tentavam ocultar, somente um pequeno grupo de monges tinha conhecimento. Os mesmos que, segundo o jovem frade, tinham acesso aos lugares proibidos do mosteiro. De qualquer maneira, mesmo que fosse isso, seria muito difícil investigar tendo o frei como acompanhante o dia todo.

- Gostaria de ir à biblioteca? - perguntou jovialmente o ir­mão José.

- Sim, claro - respondeu com voz lacônica, com pesar, ab­sorto em seus pensamentos.

O monge não pareceu perceber, no entanto, e o conduziu pelo corredor esquerdo do claustro, tomando o sentido contrário ao ca­minho do vestíbulo. Entraram em um novo corredor, o locutório, que ligava o claustro principal e o de Santo Estêvão, no qual pequenos grupos de monges conversavam em voz baixa. Frei José abriu uma pesada porta de madeira que ficava de um lado do corredor e com um gesto o convidou a entrar.

Quando entrou, o frade apressou-se em fechar novamente, de­volvendo ao lugar a absoluta quietude que reinava nele. A sala era ampla. Quase tanto quanto o refeitório, com um alto teto de arcos cruzados sustentados por fileiras de colunas. Entre elas, frades ainda mais jovens que o irmão José se dedicavam com grande afinco a seu trabalho. Nas mesas podiam-se ver enegrecidas e velhas lâmpadas de azeite que, a essas horas, estavam apagadas, pois a luz que entrava pelas janelas de arcos românicos era mais que suficiente. Estas ocupa­vam as duas paredes laterais, enquanto na do fundo havia outra porta.

- Para onde conduz? - perguntou Bossuet, apontando para ela.

- Leva ao scriptorium, mas só podem entrar ali o bibliotecá­rio e seus ajudantes. É o lugar onde são guardados os livros e os manuscritos, e onde, ainda hoje, continuam copiando à mão alguns deles. Os frades que você vê nesta sala são neófitos que se encarre­gam dos trabalhos menores ou dos que não apresentam grandes difi­culdades. Antigamente, trabalhavam aqui os filhos dos nobres e ho­mens ricos que entravam na abadia. Os que vinham de famílias mais humildes realizavam tarefas mais pesadas, como as da cozinha; ou trabalhavam nos vinhedos, junto aos camponeses que estavam a ser­viço do mosteiro. 

Nesse momento, abriu-se a porta do scriptorium e por ela sur­giu uma roliça figura que Gilles reconheceu de imediato. Tratava-se do cozinheiro que ele vira no café da manhã. Tinha os cabelos lisos e castanhos e usava uns protetores oculares redondos que pareciam ridiculamente pequenos para sua enorme e rosada cara de feições arredondadas.

- Bom dia! - disse com voz suave e elegante, de algum modo incongruente com sua aparência rude.

- Bom dia, frei Agostinho! - respondeu o outro monge. ­Gostaria de apresentar-lhe a um peregrino francês que chegou ontem e que vai passar uns dias conosco.

- Gilles Bossuet - apresentou-se, oferecendo sua mão a frei Agostinho. - Muito prazer em conhecê-lo.

- É um prazer - disse apertando com força a mão estendida. - Sim, creio que o vi no refeitório esta manhã, quando estava na cozinha - acrescentou com sua desconcertante voz de tenor e olhar distante, ao mesmo tempo que acenava levemente com a cabeça.

- Sim, eu também o vi - disse Bossuet sem poder evitar sen­tir-se um menino respondendo a um adulto.

- O irmão Agostinho é nosso bibliotecário - interrompeu frei José -, além de chefe-de-cozinha.

Gilles achou certa graça em um mesmo frei exercer duas ativi­dades tão diferentes, mas se conteve e não deixou que tão inoportu­no pensamento se refletisse em seu rosto. Frei Agostinho não deu atenção ao comentário do jovem monge e, com seus olhos fixos nos de Bossuet, perguntou:

- E a que se deve sua presença em nossa humilde biblioteca? - pela maneira como disse, estava claro que não lhe parecia humilde em absoluto. - Vem só visitar ou está interessado em algum de nos­sos volumes?

- A verdade é que eu gostaria de consultar alguns livros ­reconheceu Bossuet -, exatamente os que falam sobre o mosteiro. Queria saber mais sobre ele, e suponho que tenham vários que pos­sam servir-me.

- Oh, sim. Temos - afirmou o obeso frade com um certo tom de indignação, como se o simples fato de duvidar disso fosse um insulto. - Direi a meu ajudante que os procure para que você possa vir buscá-los esta tarde, depois do almoço.

- Obrigado, agradeço muito. E perdoe se o ofendi. Garanto que não era minha intenção - desculpou-se, tentando corrigir seu inconveniente comentário; a última coisa que queria era conquistar um novo inimigo.

- Não tem por que desculpar-se - disse secamente. - Bem, agora devo ir. Encantado de havê-lo cumprimentado.

O grosso monge os deixou sozinhos, encaminhando-se para a porta de saída. Bossuet o seguiu com o olhar, hipnotizado pelo suave balanço de seu enorme hábito.

- Como é que o cozinheiro da abadia exerce também a função de bibliotecário? - perguntou intrigado ao irmão José, quando o outro deixou a sala.

- Frei Agostinho foi durante muitos anos o ajudante do antigo bibliotecário, o irmão Nícolas, e, quando este morreu, ele se encarre­gou da biblioteca. Quanto à cozinha, foi uma simples coincidência. Devido à desamortização de Mendizábal, o mosteiro perdeu muitos de seus bens, e uma parte de seus frades viu-se obrigada a ir para outros conventos, pois já não havia recursos suficientes para todos. Foi uma época difícil e de grande confusão, e a abadia teve de abrir mão de quase todos os seus servidores e criados; entre eles, o cozi­nheiro. Frei Agostinho, que era um dos poucos irmãos que sabiam algo de cozinha, ofereceu-se como voluntário para ocupar o cargo. Era para ser temporário, até que o mosteiro pudesse contratar um novo chefe-de-cozinha. Entretanto, durante longo tempo não houve recursos suficientes e, além disso, frei Agostinho aceitava de bom grado suas duas funções e por isso nunca foi substituído.

- Sim, logo se vê que não se incomoda de estar na cozinha­ brincou Gilles.

O monge riu sonoramente com o comentário, assustando os jovens frades da biblioteca, que pararam por um instante seu incan­sável trabalho para observá-lo com uma expressão entre surpresos e contrariados.

- Vocês franceses têm uma língua afiada, se me permite dizer - conseguiu dizer entre risos.

- Obrigado - disse Bossuet, contagiado pelo riso do monge, e tomando suas palavras como um elogio -, apesar de temer que, depois disso, teremos de nos confessar. Alguém fala francês nesse lugar? Existem pecados que não se pode dizer em espanhol.

Esta última observação não fez mais que aumentar as gargalha­das de irmão José e provocar novos olhares, dessa vez claramente furiosos, por parte dos frades da sala. Percebendo isso, o monge se dirigiu ainda sorrindo para a porta e saiu outra vez ao locutório, se­guido por Gilles.

Passaram o resto da manhã percorrendo os vinhedos e as de­pendências externas do mosteiro, apesar de Bossuet haver pedido a frei José que lhe mostrasse a igreja. Este insistiu que não a visse até a noite, na liturgia de Completas, pois garantiu-lhe que era o melhor momento para visitá-la.

 

                       Século I, Arimatéia, Jerusalém

Pela manhã, ao despontar da aurora, Labeu lavou-se e vestiu­-se rapidamente e logo foi procurar Jesus para despedir-se. Tinha de estar na Torre Antônia em algumas horas. Não podia atrasar-se em sua audiência com o governador romano, programada para a hora décima, ou seja, às quatro da tarde. Quando chegou à sala onde haviam jantado na noite anterior, o rabi estava tomando o desjejum com vários de seus discípulos. Alguns ainda dormiam ali mesmo, en­rolados em mantas de fina lã. O sol estava começando a surgir no horizonte e a brisa da manhã estava fria.

- Vejo que já se levantou, meu amigo - disse Jesus ao ver Labeu. - Ia despertá-lo, mas ainda é cedo. Tome o café da manhã conosco.

A esposa de José e uma jovem haviam posto na mesa pães com mel, abricós em calda de açúcar, queijo de cabra e um grande cântaro de barro transbordante de leite recém-ordenhado. Judas Ta­deu encheu os copos de Jesus e dos demais. Enquanto o fazia, a jovem, uma garota órfã de origem grega chamada Helena, de longos cabelos pretos lisos e grande beleza, acolhida na casa de José, trope­çou e derramou acidentalmente uma vasilha de mel sobre o peito do rabi. Labeu olhou para Jesus instintivamente, pensando que este cen­suraria a jovem, ainda que ela não tivesse feito de propósito. Mas ele a olhou com uma expressão de indulgência e autêntica diversão, emi­tindo em seguida uma sonora gargalhada. Pedro e Tiago, no entanto, mais sérios, não ocultaram sua contrariedade, ainda que seus rostos não expressassem aborrecimento.

- Conseguiu descansar, Labeu? - inquiriu Jesus.

- A cama era muito confortável- respondeu o embaixador, sem conseguir esconder seu incômodo. - Entretanto, quase não pude dormir.

- Tranqüilo, amigo, tranqüilo. O destino de todos está nas mãos do Pai. Tire o medo de seu espírito. Faça o que tenha de fazer e assim cumprirá sua missão. Siga sempre a voz do seu coração. Você é um homem bom. Agradeça, por mim, ao convite de seu rei, mas o meu lugar é aqui. Não se preocupe, Labeu, um dia estará comigo na Glória, quando eu ocupar meu lugar à direita de meu Pai.

Pouco a pouco, à medida que a luz e o calor inundavam o ambiente, os discípulos que ainda dormiam foram despertando e jun­taram-se a eles na mesa. Falaram da celebração da Páscoa e de onde se reuniriam. A maior parte deles pensava que a casa de José fosse o lugar ideal, mas Jesus anunciou que o fariam em Jerusalém, perto do palácio de Herodes, a sudeste da cidade. Encarregou Felipe, Bartolomeu, Mateus e o jovem João de irem na frente para preparar tudo. Junto a Porta dos Essênios os estaria esperando um homem com uma ânfora cheia de água. Era um amigo de José de Arimatéia e podiam confiar nele. Ele os levaria à sua casa. Ali, no andar superior, deveriam arrumar o necessário para o rito e esperar a chegada de Jesus e seus discípulos.

 

O caminho de volta a Jerusalém parecia interminável, apesar de os discípulos e o embaixador caminharem juntos e a conversa ajudar a diminuir o cansaço. Labeu preferiria ficar com Jesus e esquecer sua audiência com Pôncio Pilatos, mas o que havia recomendado seu rei deveria ser cumprido. Ele sempre o servira com fidelidade, e nessa ocasião se via duplamente comprometido. Se os temores de Simão Ben Matatias e os perigos de que lhe falara fossem verdade, talvez Pilatos desempenhasse o papel decisivo nos próximos acontecimen­tos. Tinha de convencê-lo de que o rabi era inofensivo para o poder romano e que era um homem justo e bondoso com o qual todos poderiam aprender.

Era quarta-feira, a véspera da Páscoa. Em Jerusalém, nessa tarde, havia muito mais pessoas que no dia anterior, quando Labeu chegou à cidade. Judeus de todas as partes da região, além de muitas pessoas que estavam visitando a cidade e centenas de legionários romanos, enchiam as ruas. O mercado do templo também estava transbordando de compradores, que gritavam e pechinchavam com grande teatralidade, sobretudo por parte dos vendedores. Famílias inteiras, com carroças abarrotadas prestes a arrebentar-se, tentavam chegar à casa de seus parentes. Era um ambiente de festa que não parecia pressagiar os fatos que aconteceriam em breve.

Como pôde, apertado entre as pessoas que abarrotavam as ruas, Labeu chegou à residência do governador. Apresentando-se de novo a seus guardas, foi conduzido outra vez à mesma sala na qual havia esperado no dia anterior. Nessa ocasião Pilatos o fez entrar rapidamente. O governador era um homem baixo e rechonchudo, de cabelos castanhos-claros e calvície incipiente. Sua cabeça, redonda e achatada, assemelhava-se a uma cabaça e era desproporcionalmente grande em relação a seu corpo. Não tinha barba nem bigode, luzia uma capa vermelha e trazia sobre o peito um colete acobreado e reluzente. Quando Labeu entrou em suas dependências, estava de costas, em pé diante de uma mesa cheia de pergaminhos.

- Senhor, permiti que me apresente: sou Labeu, embaixador do reino de Osrhoene e súdito do rei Abgar Ukhamn. Apresento-vos seus respeitos e vos agradeço que me tenhais recebido em seu nome.

- Economizai os cumprimentos, embaixador - disse Pilatos sem virar-se, mas em tom muito educado e cortês. - Não sou muito dado a cerimônias. Sinto não vos ter recebido ontem. As ocupações de estado me impediram. Suponho que tenhais visto a cidade. Está fervilhando de gente. O perigo aumenta... - o governador calou-se por um instante. Logo virou-se e continuou: - Mas não vos quero importunar com meus problemas. No entanto, devo dizer-vos que tendes vindo pedir-me algo que não vos posso dar.

- Jesus é um homem santo, excelência. Vós podeis, se for preciso, evitar que sofra algum mal. A justiça de Roma é sempre im­parcial. - Labeu pensava que a bajulação, administrada em peque­nas doses, poderia servir a seus propósitos.

- Roma, Roma, Roma... - suspirou Pilatos. - O Império não se sustenta na justiça, embaixador, e sim na dominação, na força. Roma é poderosa porque seus braços também são. Além disso, a justiça na Judéia com relação à religião é responsabilidade do Sinédrio.

- O Sinédrio odeia Jesus... - começou a dizer Labeu.

- Eu sei! - exclamou Pilatos, antes que o embaixador termi­nasse. - O Sinédrio e esse maldito Caifás não querem que ninguém se meta em seus assuntos políticos. E a religião é política para eles, mesmo que rasguem suas roupas em público na primeira oportunida­de. Se o imperador me desse maior liberdade...!

- Então, excelência, estais de acordo comigo em proteger Jesus de seus inimigos.

- Oh, não! Eu não posso mover um dedo nas decisões do Sinédrio. Isso é política. Vós deveríeis saber.

- Meu reino é pequeno e nosso rei é justo. Ali ninguém faria o contrário do que pensa.

- Cuidado, embaixador! Estais pisando em terreno escorre­gadio. Pôncio Pilatos pode destruir o Sinédrio e não deixar pedra sobre pedra; eu sou aqui a máxima autoridade. Mas o governo con­siste em afrouxar a correia quando é necessário para evitar que se arrebente. É bom conceder um pouco de liberdade aos subjugados para conservar o poder: custa menos legionários e menos sestércios (Antiga pequena moeda de cobre dos romanos).

Labeu manteve-se em silêncio diante das últimas palavras de Pilatos. Era um autêntico cínico, um político ardiloso e astuto, interes­sado somente em si mesmo. Compreendeu que não obteria dele nenhuma ajuda e optou por não insistir mais.

- Espero que desfruteis vossa estada na Judéia - disse Pilatos, terminando a conversa. - Agora deveis deixar-me. Tenho muitos assuntos para despachar.

O governador fez um gesto aos guardas que permaneciam na sala, vigiando a porta, para que acompanhassem a Labeu. Este, antes de sair, repetiu com tristeza:

- Jesus é um homem santo. Só vos peço que se lembre...

 

O embaixador estava desolado. As palavras de Simão Ben Matatias ecoavam em sua cabeça como os trovões de uma tempes­tade. E sua conversa com Jesus... Parecia disposto a encontrar-se com seu destino. Porém, qual era seu destino? Teria relação com os perigos que o espreitavam das sombras? Tinha realmente consciência do poder de seus inimigos? Fosse o que fosse, Labeu sentia uma arrepiante vertigem ante a impotência de movimentar qualquer pedra do tabuleiro. Mas esse era um jogo de pessoas de carne e osso, com medos humanos e debilidades humanas.

Labeu não tivera tempo para comer, apesar de sua audiência com Pilatos tê-lo deixado sem nenhum apetite. Dirigiu-se à casa de Simão para falar com ele e tentar encontrar um caminho, uma possi­bilidade que evitasse a precipitação dos acontecimentos.

Quando o embaixador chegou à casa de Simão, este parecia desassossegado e cheio de preocupação. No ambiente religioso se respirava um aroma de tensa calma, uma calma que podia anunciar grandes desastres. Na tarde anterior, enquanto Labeu estava na casa de José de Arimatéia, os fariseus, encabeçados por Caifás, acende­ram os ânimos dos membros do Sinédrio com suas falácias. O Sumo Sacerdote - o Ab-Beth-Din - conseguiu convencer a Assembléia de que Jesus era perigoso e blasfemo e deveria ser preso. Porém, não durante as festas, para evitar revoltas que seus discípulos ou simpatizantes pudessem instigar. O ancião José de Arimatéia e o próprio Simão, junto com os poucos defensores da justiça, opuseram-se ao Conselho, mas suas vozes foram abafadas pela maioria, cega de ira contra quem, sem ser um rabi canônico, havia denunciado todas as irregularidades de um Sinédrio deformado pela política e suas astúcias.

Caifás conseguira que o Conselho condenasse Jesus por blas­fêmia. Esse delito, em outras épocas, determinaria a morte do réu, mas desde que os romanos invadiram a Judéia sua pena era menos severa. Não obstante, o Sumo Sacerdote parecia esconder algo, já que não era provável que se contentasse com um simples castigo.

- Os fariseus são como praga de lagosta - disse Simão, lúgu­bre. - Sua vaidade os faz ver somente o que querem ver. Conside­ram-se intérpretes infalíveis de uma lei que adulteram e falsificam em seu próprio benefício. Foi para isso que lutaram reis como Davi e Salomão?

- Jesus caminha para um destino cruel- interveio Labeu. ­Mas parece não tentar desviar-se dele. Não podemos fazer nada?

- Só podemos confiar em que Pilatos cumpra a lei romana. Caifás tentará fazer com que Jesus seja executado, mas não tem po­der suficiente para obrigar o governador. É bem provável que envol­va Herodes Antipas, mesmo que Jesus seja Galileu e esteja fora da jurisdição da Judéia. Não sei. Pilatos não me inspira confiança.

Labeu contou a Simão sobre seu encontro com o governador e como este deixou claro que não tomaria uma posição firme diante do problema. Estava disposto a se deixar levar para evitar qualquer tipo de revolta e, se fosse o caso, talvez deixar o Sinédrio decidir. Somen­te poderia esperar e ter fé.

- Minha missão na Judéia terminou - disse Labeu a Simão. - O destino de Jesus está aqui. Devo regressar a minha pátria. O rei Abgar deveria ter escolhido outro. Eu não pude convencer Jesus a me acompanhar a Edessa e lamento muito por isso. Sua decisão de ficar é firme.

Simão conseguiu convencer a Labeu de, ao menos, permanecer em sua casa para a Páscoa, que seria celebrada no dia seguinte. A viagem de regresso era longa e não fazia diferença um dia a mais ou a menos. Suas reticências, entretanto, deviam-se mais ao fato de que, se nada podia fazer para ajudar Jesus, não desejava assistir à sua destruição. Amava-o demais para isso.

 

                                     1888, Poblet

Depois de um frugal ainda que saboroso almoço, Gilles dirigiu-­se novamente à biblioteca junto do irmão José para buscar os livros que frei Agostinho lhe havia prometido. Antes do almoço, quando ia para sua mesa, espiara pela abertura do refeitório que dava para a cozinha, como fizera pela manhã. A cena que contemplou não era muito diferente da que vira então: os jovens frades continuavam cor­rendo desenfreadamente, transportando bandejas e caçarolas de um lado a outro, e frei Agostinho os observava com ar severo, como o de um oficial assistindo ao desfile de sua tropa. No entanto, notou algo diferente quando o bojudo monge percebeu sua presença. Quando seus olhares se cruzaram, frei Agostinho fez-lhe um leve cumprimento com sua rechonchuda mão, acompanhando-o com um enigmático sorriso, que Bossuet não soube interpretar, ainda que tivesse a im­pressão de que não fosse por um bom motivo.

Suas suspeitas se confirmaram quando chegou à biblioteca, e um irmão, muito magro e de aspecto frágil, lhe disse com voz cansa­da: "Aqui estão os livros que pediu", ao mesmo tempo que apontava uma pilha enorme, que talvez tivesse mais de vinte exemplares. Al­guns deles eram tão grossos e pareciam tão pesados, que Gilles se admirou de que o esquálido monge fora capaz de levantá-los. Nesse momento compreendeu por que frei Agostinho lhe sorrira daquele modo. Tinha certeza de que ele se encarregara pessoalmente de en­contrar os volumes para demonstrar quão inadequado tinha sido o comentário que fizera quando se conheceram. Ao que parecia, suas desculpas não adiantaram muito, pensou resignado.

Devido à grande quantidade de livros, o mais recomendável foi realizar uma seleção prévia. Mas Bossuet decidiu levar todos para não se ver obrigado a explicar a frei José o que pretendia encontrar e não queria levantar suspeitas. Além disso, era uma questão de orgu­lho: ele os levaria dali nem que fosse carregando-os nas costas para não dar a frei Agostinho a satisfação de vê-lo desistir.

- Você tem um carrinho, ou algo parecido, em que eu possa transportar tudo isso? - perguntou ao esquelético monge.

O ajudante do bibliotecário assentiu levemente com a cabeça como em toda resposta e a seguir desapareceu pela porta do scriptorium, movimentando-se com uma exasperante lentidão, a de uma alma penada condenada a vagar eternamente pela biblioteca. Gilles já começava a achar que ele desaparecera, mas o ajudante entrou novamente na sala de frades jovens arrastando um pequeno carro de madeira com rodas de metal, semelhante aos que se usavam nas peixarias. Incapaz de esperar novamente sua via-crúcis através da sala, apressou-se até ele, oferecendo-se da maneira mais cortês possível para levar o carrinho e carregá-lo com a ajuda do irmão José. O estranho frade concordou com um novo gesto afirmativo da cabeça.

- Devolva-me assim que terminar - disse, despedindo-se com sua voz monótona, e logo desapareceu pela porta do scriptorium.

Frei José o ajudou a colocar os livros sobre o carrinho, e Bossuet não demorou muito para arrepender-se por se oferecer para fazê-lo. Demoraram poucos minutos, mas, quando terminaram, Gilles estava ofegante e seus rins se ressentiam do esforço. Esgotado, fez-se pro­meter que, quando voltasse a Paris, faria algum outro exercício que não fosse passar o dia todo sentado no escritório.

- Deixa que eu levo - insistiu o monge, agarrando os puxa­dores do carro e colocando os apetrechos de escritura e um rolo de papel sobre a montanha de livros.

- Obrigado - conseguiu dizer entre bufadas. - Não passe dos trinta.

- Tentarei - afirmou o irmão. E brincando acrescentou: ­ Se você quiser, pode subir no carro também.

Gilles, que estava encurvado, com as mãos apoiadas nas pernas e olhando para o chão, levantou a cabeça para observar o rosto do monge.

- Vá aprendendo, sim, senhor, realmente vá aprendendo ­disse o monge com um sorriso. - Depois de tudo, talvez possa fazer de você um homem útil - sentenciou, ao mesmo tempo que se obri­gava a levantar de novo.

Com o frade à frente puxando o carro, saíram da biblioteca, atravessaram o claustro e encaminharam-se até o exterior do recinto amuralhado, em direção à hospedaria de peregrinos e pobres onde estava a cela de Bossuet.

Usando como pretexto o fato de que estava cansado e de que queria descansar um pouco, conseguiu fazer com que o irmão José o deixasse sozinho em seu quarto. Com dificuldade, passou entre o carro de livros e a cama para acender as velas que estavam na prate­leira. Sentou-se na cama soltando um suspiro de cansaço e logo to­mou o primeiro tomo da montanha e colocou-o sobre os joelhos. Sentindo uma coceira no nariz, devido ao pó acumulado em suas folhas, abriu a capa de couro e começou a ler.

Ao longo das páginas amareladas pelo tempo, narrava-se a fundação da abadia por Ramón Berenguer IV e como, com o passar dos séculos, foi aumentando seu poder e influência, graças às doa­ções dos reis e da nobreza de Aragão. Ao que parecia, na época de máximo esplendor do mosteiro, alguns de seus abades chegaram in­clusive a ocupar cargos políticos, como o de presidente da Generalitat.

Em muitos casos, tratava-se de livros miniados (Escritos com mínio, óxido vermelho de chumbo usado como pig­mento), verdadeiros prodígios do artesanato e da paciência que, sem dúvida, tomaram meses de trabalho de seus tenazes autores. Demorou mais de três horas para encontrar uma planta completa do mosteiro, porque qua­se todas as gravuras representavam cenas religiosas, em vez de mos­trar o convento. A planta até que era bem-feita, mas a Antigüidade do livro deixava algumas partes borradas ou apagadas. Apesar de datar do século XIV, Gilles não encontrou diferenças significativas na divi­são atual do mosteiro; ao menos, não com relação às dependências que ele conhecia. De qualquer maneira, ainda faltava ler mais da me­tade dos volumes, e talvez encontrasse em algum outro uma planta melhor.

Copiou o desenho em uma folha, colocando uma vela por trás da página do livro. Uma vez concluída a cópia, observou-a contra a luz para conferir o resultado. A reprodução ficou um pouco grosseira, com linhas de diferentes espessuras e pouco precisas; inclusive com manchas de tinta em alguns pontos. Mas era suficiente para o que pretendia. Satisfeito, examinou a planta por alguns instantes e depois circulou os nomes dos lugares que lhe havia mostrado o irmão.

Tivera essa idéia assim que o irmão José se ofereceu para mos­trar-lhe a biblioteca. Com uma planta do mosteiro seria possível investigá-lo sem medo de se perder. Seria melhor fazê-lo durante o dia, porque não levantaria tantas suspeitas se o surpreendessem. No entanto, o jovem monge o seguia para todos os lados como uma sombra; assim, essa opção estava descartada. A única maneira de realizar suas investigações era à noite, quando todos os irmãos esti­vessem dormindo.

- Boa tarde. Está acordado? - assustou-lhe a voz de frei José no corredor. - É hora de jantar.

- Sim, vou agora mesmo - disse, guardando a cópia da plan­ta no bolso.

Gilles deixou sobre a cama o livro que estava lendo e levantou-­se espreguiçando. Uma cama não era o melhor lugar para ficar lendo durante horas. Apagou com um sopro as velas e foi até a porta guian­do-se pela luz da lamparina do monge, que entrava por baixo dela.

A temperatura caíra consideravelmente desde que voltara à sua cela com os livros. Parecia que o tempo iria mudar; Bossuet podia sentir isso no ar noturno, quando saíram na grande praça. Com passos rápidos se dirigiram ao refeitório, não passando desta vez pelo vestíbu­lo, pois tomaram um atalho pelo curto corredor que dava para o claus­tro maior. Já no refeitório, e de acordo com o que se tomara uma tradição, procurou na cozinha a corpulenta figura de frei Agostinho, até encontrá-lo tirando do forno uma bandeja com um enorme peixe. Gilles exibiu então o melhor de seus sorrisos e o cumprimentou como se fosse um velho amigo ao qual não visse há muitos anos, ao mesmo tempo que pronunciava um silencioso e exagerado "obrigado". Sem responder, frei Agostinho adquiriu uma expressão de contrariedade e virou-se imediatamente para repreender a um jovem monge que teve a má sorte de passar a seu lado nesse exato instante.

Com grande satisfação, fruto do doce prazer da vingança, Bossuet sentou-se à sua mesa, pela terceira vez naquele dia, para desfrutar um suculento jantar.

Terminaram às oito e meia. Alguns minutos depois, perto das nove, entravam na igreja pelo lado norte do claustro. A igreja estava quase às escuras, iluminada somente pela escassa luz de várias tachas, que lhe davam um aspecto mais típico da Idade Média do que do século XIX. Somente o altar estava mais iluminado, como um porto na escuridão do oceano. Não se ouvia nenhum ruído, exceto o que produziam os lentos passos dos frades ao caminhar e o rangido me­lancólico dos bancos de madeira quando se sentavam.

- Você deve ficar aqui - disse em voz baixa o irmão José, apontando um banco e dirigindo-se em seguida para seu lugar.

Os lugares dos monges estavam dispostos de ambos os lados do altar e separados do resto da igreja por uma enorme grade feita de grossas barras de ferro fundido. O lugar em que estava sentado Gilles ficava do outro lado da grade, na interseção do cruzeiro e da nave central. Olhou ao seu redor para ver se havia chegado algum outro peregrino. Viu cinco ou seis pessoas a mais, sentadas alguns bancos atrás do seu. Suas roupas eram formais, ainda que pareces­sem ter saído do século anterior. Bossuet pensou que deveriam ser agricultores, provavelmente diaristas do mosteiro, mais que peregri­nos. Seus rostos, sérios e maltratados, apenas se dignaram a olhá-lo rapidamente, absortos que estavam nos movimentos dos irmãos.

A igreja era dividida em três naves, separadas pelos descomu­nais pilares de apoio dos arcos. O cruzeiro as atravessava perpendi­cularmente, formando assim, junto com a nave central, o desenho da cruz. Ao fundo do abside (Local do altar-mor nas igrejas), atrás do altar, erguia-se um belo painel de alabastro branco, no qual apareciam esculpidas figuras de santos ao redor da imagem da Virgem Maria. A seus pés, sobre uma simples mesa de pedra, descansava o tabernáculo e, uns metros mais à fren­te, encontrava-se o atril.

Sentados em seus lugares, concentrados em uma profunda me­ditação, os frades murmuravam inaudíveis palavras de suas orações. Um deles, ao qual Gilles não conhecia, encaminhou-se até o atril e, após virar umas páginas, começou a ler pausadamente:

- Evangelho de São Marcos: "Já caíra a tarde. Era o dia da preparação (isto é, a véspera do sábado). Por isso, José de Arimatéia, membro respeitável do Sinédrio, que também esperava o Reino de Deus, cheio de coragem foi a Pilatos pedir o corpo de Jesus. Pilatos ficou admirado quando soube que Jesus estava morto. Chamou o centurião (Comandante da tropa romana) e perguntou se tinha morrido fazia muito tempo. Informado pelo centurião, Pilatos entregou o corpo a José. José comprou um lençol de linho, desceu Jesus da cruz, envolveu-o no lençol...'' (Mc 15,42-46. Bíblia sagrada, tradução da CNBB, 2ª. edição).

Bossuet não pôde evitar um estremecimento ao ouvir essas palavras. Novamente, teve a sensação de que uma força o estava gui­ando, conduzindo-o em direção a algo para o qual não sabia se esta­va preparado. Perguntou-se se não seria mera casualidade que a lei­tura falasse exatamente do Santo Sudário. Talvez fosse. Pode ser que se tratasse de simples coincidência; outra mais. Ainda que pudesse ser também uma armadilha. Talvez frei Alessandro suspeitasse dele e estivesse querendo testá-lo, para ver como reagia. Nesse caso, não tinha dúvida de que se entregara. Aquela idéia parecia fruto de uma mente atordoada, mas não conseguiu afastá-la por completo. Confu­so e, de certa maneira, também preocupado, dirigiu seu olhar para frei Alessandro, esperando encontrar em seus olhos a confirmação de suas suspeitas. Contudo não havia neles mais que atenta concen­tração nas palavras do outro monge. Nem sequer estava olhando para Gilles. E isso foi o que mais o assustou.

- Palavras de Deus - concluiu o irmão, sem que Bossuet conseguisse ouvir o restante da leitura.

- Nós te louvamos, Senhor! - disseram os demais, fazendo­-o saltar no banco.

Depois começaram a cantar. As vozes solenes e melodiosas dos frades se elevaram, enchendo a igreja com suas súplicas. Era o Salve de que havia falado o jovem monge. Gilles sentiu-se comovido e, enquanto durou aquele ato, todos os seus medos se dissiparam e suas preocupações tomaram-se triviais diante da humilde beleza do canto e da generosa devoção daqueles homens. Quando as vozes calaram, o cântico ainda ecoou por um instante nos muros de pedra, antes de desaparecer por completo. E então o silêncio lhe pareceu mais profundo.

Os irmãos prosseguiram com suas orações, até que o mesmo monge que lera levantou-se para acender três grandes círios e apagar as demais luzes, com exceção da vela vermelha do sacrário. Nesse momento, o abade se aproximou do atril. Na penumbra do altar qua­se não se via seu rosto, mas sua figura continuava irradiando, com mais intensidade que nunca, esse estranho poder que Bossuet percebera no refeitório.

- Eu vos bendigo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo - disse com voz profunda e fazendo o sinal-da-cruz com a mão. - Podeis ir em paz.

Os irmãos começaram a deixar seus assentos ordenadamente e a dirigir-se para a saída. Frei José, que foi um dos últimos a sair,

m innaproximou-se de Gilles para informar-lhe de que era hora de dormir.

- Gostou do Salve? - perguntou ao saírem da igreja.

- Oh, sim, gostei muito - assegurou de imediato.

- É um velho cântico - explicou o monge ao perceber a sin­ceridade de suas palavras. - Nele, rogamos a Deus que nos permita viver um dia mais, para continuamos a servi-Lo e a render-Lhe graças.

- É uma verdadeira maravilha - reafirmou Bossuet.

A temperatura caíra mais ainda enquanto estiveram na igreja.

Automaticamente Gilles meteu as mãos nos bolsos e apalpou o papel da planta. Quase se esqueceu de que o tinha ali. Atravessou rapida­mente o claustro, sem falar mais com o monge, até que chegaram ao vestíbulo, ao pé das escadas que levavam ao dormitório dos irmãos.

- Quer que eu o acompanhe até sua cela? - perguntou o frade.

- Não é preciso, obrigado. Já conheço o caminho.

- Está bem, como queira. Então nos veremos amanhã. Vou chamá-lo para o café da manhã. Boa noite.

- Boa noite - respondeu Gilles, despedindo-se com um ace­no de mão. Manteve-se quieto onde estava, observando como os frades se retiravam, para assegurar-se de que todos iam dormir. De­pois do que lhe pareceu um tempo prudente, remexeu no bolso para procurar a planta do mosteiro, mas não a encontrou. Revistou o ou­tro bolso, ainda que estivesse certo de que, momentos antes, estava no da direita. Tentou imaginar como o perdera, tentando reconstituir o que fizera desde que entrou no claustro... "Ao despedir-me; deve ter sido ao despedir-me!", pensou. Inclusive fez o gesto involuntariamente. Lembrava-se de haver tirado a mão do bolso para dar adeus ao irmão José. Tinha certeza de que a planta havia caído do bolso nesse momento, sem que ele percebesse.

Acabava de agachar para ver se o encontrava, quando uma voz que reconheceu de imediato falou atrás dele:

      - Boa noite, senhor Bossuet.

      - Boa noite, frei Alessandro - respondeu, ainda de costas para o monge.

- Você está procurando algo? - perguntou. - Este papel, talvez? - acrescentou friamente no momento em que Gilles estava prestes a dizer que não.

Seu coração deu pulos, e sentiu que os batimentos se acelera­vam quando viu o papel. O monge o sustentava de uma forma amea­çadora, agitando no alto com sua mão direita, como se fosse uma arma e não uma folha de papel.

- Por acaso você fez ultimamente algum voto de silêncio que o impeça de falar? Ou é porque não sabe o que dizer? - insistiu o irmão Alessandro. - Na verdade, não sei qual das duas coisas me surpreenderia mais. Tenho a impressão de que você acredita conhe­cer todas as respostas. Estou enganado? Mas às vezes - continuou sem esperar que Gilles falasse -, em mais ocasiões do que imagina, são mais importantes as perguntas do que as respostas. E você é incapaz de perceber isso. Agora, senhor Bossuet, diga-me - acres­centou, aproximando-se dele e diminuindo o tom de voz até sussurrar -, para que você veio a este mosteiro?

Gilles percebeu que estava assustado. Não porque frei Alessandro, ao que parecia, descobrira suas intenções, ou pelo me­nos tivesse uma razão para suspeitar dele. Não por isso, e sim por­que estava certo das verdades encerradas nas palavras daquele se­vero frade, e isso só podia significar que algo mudara. Bossuet ainda não compreendia até que ponto era diferente daquele homem que saíra de Paris dez dias antes, mas já não era capaz de afirmar que fosse o mesmo. Pensou que a pergunta do monge era mais profunda do que aparentava e que, de alguma forma, frei Alessandro o sabia.

- Como já lhe disse, sou um pere... - começou a dizer sem conseguir olhar nos olhos do frade.

- ...Um peregrino que se dirige a Santiago e que parou aqui para descansar seu espírito e seu cansado corpo. Ou era só o seu espírito que estava maltratado? - concluiu o irmão Alessandro ironi­camente. - Sim, eu sei. Isso eu já sei... - acrescentou com voz inflexível e expressão desconfiada. - Aqui tem sua planta, senhor Bossuet - disse ao mesmo tempo que estendia o braço para entre­gar-lhe. - Não volte a perdê-la. A gente nunca sabe quem a poderia encontrar e para que fins poderia usá-la. Não é?

- Sim - foi tudo o que Gilles conseguiu responder.

O monge concordou levemente com a cabeça e deu a volta para dirigir-se a uma porta que ficava no fundo do vestíbulo. Antes de atravessá-la, voltou-se mais uma vez a Bossuet e o aconselhou:

- Não se esqueça. Pergunte-se o que faz aqui realmente e, por favor, quando o souber, não hesite em comunicar-me.

Gilles ficou sozinho. Tinha a planta em sua mão direita. Segura­va-a com muita força, como se pensasse que poderia escapar. Afrou­xou um pouco a pressão quando percebeu e, de um modo cansado, baixou os olhos até ela, observando-a por alguns instantes com uma expressão pensativa. Logo levantou seu olhar em direção à porta pela qual desaparecera frei Alessandro, ao mesmo tempo que guar­dava a planta no bolso.

 

                                   Século I, Jerusalém

A celebração da Páscoa foi tranqüila em Jerusalém. Labeu não conhecia o ritual e ficou feliz por Simão Ben Matatias havê-lo convi­dado. Era uma importante festividade que começava ao entardecer do dia 14 do mês de Nisan (O sétimo mês do calendário judaico, que recai entre os meses de março e abril dos calendários juliano e gregoriano), no equinócio da primavera. Comemo­rava o êxodo do povo judeu, libertado da dominação egípcia, a pas­sagem do mar Vermelho e a longa viagem pelo deserto de Israel, a Terra Prometida, guiado por Moisés.

Sua origem estava enraizada na vingança de Javé contra o Egi­to, cujo faraó Ramsés II se negava a libertar os judeus da escravidão, enviando o Anjo Exterminador, que ceifou a vida de todos os primogênitos. De todos, exceto daqueles que tiveram a entrada de suas casas marcadas com sangue de cordeiro, para que o anjo pu­desse identificar os lares dos servos de Deus.

Após a celebração, aparentemente simples, mas carregada de uma rica simbologia, foram descansar. Labeu demorou para dormir, mas finalmente o cansaço e o sonho o venceram. Na noite anterior, na casa de José de Arimatéia, quase não conseguira descansar. Sua cabeça estava repleta de dúvidas e temores. Estes não o abandona­ram, mas a resistência física tem seu limite. Por isso não ouviu as batidas na porta, de um dos membros do Sinédrio leais a Simão, que fora à sua casa para avisar da prisão de Jesus em seu amado horto do Getsêmani e da reunião do Conselho para julgá-lo de um modo co­varde e pouco ortodoxo, com a conivência das sombras.

Durante a noite, em que o embaixador de Edessa teve seus so­nhos povoados de imagens assustadoras, Jesus havia sido abando­nado por seus discípulos, após orar amargamente no horto das Oli­veiras, quando foram prendê-lo guiados pelo traidor Judas Iscariotes. Levado ao palácio do Sumo Sacerdote, o Sinédrio presenciou a re­pugnante farsa representada pelas falsas testemunhas que acusaram o rabi de diversos crimes contra a lei hebraica. Ali, Caifás perguntara a Jesus se ele acreditava ser verdadeiramente o Filho de Deus, ao que este respondeu, com serenidade e grandeza: "Você o tem dito".

O Sumo Sacerdote, fazendo uma vez mais o gesto que daria triste notoriedade a toda sua facção de adeptos, rasgou-se as vestes gritando repetidas vezes, vítima de uma cólera fanática: "Blasfêmia!". Ao que a maioria dos membros da Assembléia respondeu, em um rumor de ódio e maldade sem limites: "É réu de morte!". Apesar de não haver mais de quarenta membros presentes, dos setenta e um que compunham o Conselho, a decisão era válida por ter sido apro­vada por mais da metade dos membros.

Depois, Jesus foi conduzido a um cômodo escuro, em que só uma clarabóia, oposta à entrada, quebrava a monotonia das opacas paredes que um dia foram brancas. Ali, os sinedritas mais jovens, ajudados pelos guardas do palácio, deram uma tremenda surra no con­denado, dando-lhe socos, chutes e pauladas, acompanhados de zomba­ria, cuspidas e insultos, que o Galileu suportou com mansidão e valentia.

Cansados já os ofensores do terrível castigo, e temendo que o réu pudesse morrer em suas mãos, o que não desejavam, pois impe­diria seu escárnio público, que serviria como exemplo para outros "messias", decidiram esperar até o amanhecer e levar Jesus ante a autoridade romana. Pôncio Pilatos era o único que podia confirmar a sentença de morte e ordenar sua aplicação, proibida aos judeus.

Os membros do Sinédrio não quiseram entrar na residência do governador, pois, segundo acreditavam, isso os faria impuros e os impediria de celebrar a Páscoa. Pilatos teve de sair para atender às suas petições. Contrariado e com má vontade como sempre, pergun­tou aos sacerdotes que crime Jesus cometera, mas estes responde­ram com evasivas: "Se ele não fosse um criminoso, não o traríamos perante ti". O governador, astuto e querendo livrar-se do problema logo, lembrou aos sinedritas que a autoridade religiosa era deles e que podiam castigar o réu segundo suas leis, ainda que ele soubesse que o que queriam era a morte de Jesus, e para isso necessitavam de sua aprovação.

A insistência dos sacerdotes não diminuía. Queriam a todo cus­to que Jesus fosse crucificado. Era um método de execução trazido pelos romanos, mas não rasgariam as roupas por isso nessa ocasião. Pilatos decidiu interrogar o acusado pessoalmente. Voltou a seus apo­sentos e fez que o trouxessem. Seu aspecto era lamentável: tinha he­matomas e manchas de sangue no rosto; suas roupas - a túnica que sua mãe havia costurado para ele - estavam sujas e mancava um pouco. Ainda assim, não perdera a serenidade e o ar majestoso.

Pilatos o interrogou sobre as acusações de blasfêmia. Jesus, disseram-lhe, afirmava ser rei, e isso interessava ao governador, te­mendo tratar-se de um líder revolucionário. Entretanto, seus infor­mantes falaram do Galileu como um homem tranqüilo que pregava a paz e o amor. E a paz e o amor não eram perigosos para César, ao menos aparentemente. A resposta de Jesus para sua pergunta foi: "Sou rei; mas meu reino não é deste mundo". O governador o achou apenas um maluco inofensivo e, sem encontrar nele delito algum, ten­tou convencer os sinedritas de sua inocência. Mas eles, Caifás à frente, insistiram, vencendo a omissão de Pilatos, que preferia a injustiça à inimizade com o poderoso Sinédrio.

Minutos depois, na praça ao lado da Torre Antônia, transbor­dante de judeus pagos pelo Sumo Sacerdote, representou-se uma comédia tão repugnante como nunca houve outra igual na História. Era costume que, na Páscoa, o governador romano liberasse um con­denado à morte. Naquela ocasião, além de Jesus, havia mais três réus nessas condições: Barrabás, um zelote subversivo, que havia assassinado um legionário romano em uma briga; Dimas, um pobre ladrão que roubava para comer; e Saul, outro ladrão, especializado em roubos noturnos. Barrabás nunca fora, realmente, mais que um ordi­nário agitador, mas se convertera em herói por sua sangrenta façanha.

Pilatos ordenou que tirassem os condenados dos calabouços e os levassem à sua presença. Diante da multidão ali reunida, diante dos miseráveis homens e mulheres que por umas moedas seriam ca­pazes de vender seus pais e suas mães, o governador perguntou de sua tribuna: "Quem vocês querem que seja libertado, o assassino cha­mado Barrabás, os ladrões Dimas ou Saul, ou a este pobre louco, que acredita ser rei dos judeus?". As poucas vozes que se levanta­ram pedindo a liberdade de Jesus foram cobertas pelos gritos que faziam coro pelo nome de Barrabás. O dinheiro pode tudo nos espí­ritos mesquinhos.

A decisão do povo estava clara para o governador. Deixou que a multidão vociferasse, infame, por bastante tempo, observando-a com uma crescente aversão que não estendia a si mesmo, ainda que fizesse parte daquela farsa vergonhosa. Por fim, concedeu. Mandou levar Jesus ao pátio de armas, longe das vistas da plebe, para que fosse castigado segundo os costumes romanos. Acreditando que um duro castigo comoveria seus compatriotas, não estabeleceu limites ao número de açoites, apesar de advertir ao centurião encarregado do procedimento que Jesus não deveria morrer nem ficar impossibilitado de sustentar-se de pé.

No centro do pátio o rabi foi despido e acorrentado pelos pul­sos a um poste de pouca altura. Assim, encurvado e com as costas expostas ao sol da manhã, Jesus foi açoitado por dois carrascos, que se revezavam, até o limite do que pode um homem agüentar. Mas Ele, de forte constituição, suportou mais da metade dos golpes sem cair. Suas costas e seus ombros estavam cobertos de sangue. Quan­do não pôde mais se manter de pé e caiu no chão, os carrascos continuaram o flagelo sem piedade.

Temendo por sua vida, o centurião cessou o castigo. Os carras­cos soltaram os grilhões e, como puderam, puseram-no de pé. Po­rém, o galileu estava tão debilitado e perdera tanto sangue que caiu de bruços sobre o pavimento e bateu o rosto, já ferido pelos socos e pauladas que sofrera no palácio do Sinédrio.

Vários legionários que presenciavam o castigo aproveitaram a ausência do centurião, que foi avisar Pilatos, para cobrir Jesus com um velho manto de cor vermelha e sentá-lo em um banco de pedra do pátio. Zombavam dele dizendo: "Salve, rei dos judeus", e cuspi­am e davam bofetadas em seu rosto. Um deles afastou-se do grupo e trançou uma coroa com ramos de um arbusto muito comum na re­gião. Logo voltou para onde estava o rabi, pôs em sua cabeça a coroa e deu várias pauladas para que os espinhos se enterrassem na carne. Todos riam e zombavam, exceto Jesus, cujo olhar se perdia no extremamente próximo horizonte da perversidade humana. E então as lágrimas encheram seus olhos. Mas não chorava de dor ou de humilhação, e sim por aqueles a quem fora redimir.

O centurião regressou com novas ordens de Pilatos. Este queria mostrar Jesus ao povo mais uma vez antes de tomar uma decisão definitiva. Os soldados voltaram a vestir-lhe suas roupas, mas deixa­ram a coroa de espinhos em sua cabeça. Em seguida, sua túnica, que um dia fora de um branco puro, começou a manchar-se de sangue em alguns pontos. A flagelação o deixara à beira do desvanecimento e da desidratação. Não podia sequer caminhar, quanto menos er­guer-se. Porém, a multidão contratada por Caifás não se apiedou dele, e continuaram uivando para pedir a crucificação, e muitos riam, dizendo: "É este o que se achava um rei?".

Pilatos não podia demorar mais para dar um veredicto. E optou pelo caminho mais simples e adequado politicamente. Mas, tentando apagar os vestígios de um delito indelével, ordenou que trouxessem uma bacia com água à sua tribuna e, nela, lavou as mãos dizendo: "Eu não sou culpado por essa morte. Que recaia sobre vós, que optastes por ela. Jesus será crucificado hoje mesmo, como pedis à autoridade romana, à hora sexta no monte Calvário".

 

A morte de Jesus estava programada para o meio-dia. Falta­vam ainda, portanto, mais de duas horas para esse momento. Simão Ben Matatias regressou à sua casa com alguns de seus leais. Quando chegaram, Labeu acabara de despertar e tomava o desjejum com muita impaciência, pois os criados o informaram da apressada saída de seu senhor no meio da noite. Somente uma circunstância muito grave, pensava, poderia justificar tanta urgência.

Simão contou ao embaixador os fatos ocorridos desde a reu­nião do Sinédrio até a flagelação de Jesus. José de Arimatéia, numa última tentativa de salvá-Lo, ficara na Torre Antônia e solicitara uma audiência com Pôncio Pilatos. Sua última esperança era que o gover­nador revogasse a condenação, apesar de ninguém acreditar que fosse possível devido ao desenrolar dos acontecimentos. Além disso, ne­nhum dos discípulos do rabi defendeu seu mestre. Agora, estava só e desamparado ante a injustiça que contra Ele seria cometida.

 

Do lado de fora da Torre Antônia, as legiões de soldados roma­nos vigiavam a multidão reunida para assistir à crucificação do rei dos judeus. Com uma pequena antecipação, a comitiva de condenados apareceu guiada por vários legionários e pelo centurião encarregado das execuções. Amarrados entre si pelos tornozelos, precediam Je­sus os outros dois homens, os ladrões Dimas e Saul, que foram pre­sos roubando pouco antes da Páscoa e condenados à morte de for­ma sumária.

Cada um dos homens carregava nas costas um grosso e longo madeiro, o patibulum, o braço horizontal da cruz. Jesus, por sua envergadura, levava o maior dos três. Sua túnica estava tingida de manchas vermelhas em quase toda a sua extensão. Caminhava deva­gar, cambaleante e com os joelhos t1exionados. Estava muito debilita­do para carregar a pesada viga. Mas tirava força de sua presença de espírito para continuar. Em seu rosto, o sangue que saía das feridas produzidas pelos espinhos da burlesca coroa de espinhos se confun­dia com as feridas e contusões que o desfiguravam totalmente. Inclu­sive lhe haviam arrancado parte da barba.

O caminho até o Gólgota era longo e deveria ser mais penoso para os condenados. As estreitas ruas que levavam, em volta do Tem­plo de Jerusalém, à Porta Judiciária, estavam cheias de judeus e gen­tios, homens, mulheres e crianças, que dificultavam a passagem da comitiva. Os legionários iam à frente dispersando a população e abrin­do caminho.

Em determinado momento, Jesus caiu no chão, incapaz de sus­tentar o patibulum. Quase derrubou também os dois condenados, que estavam amarrados a ele pelos tornozelos, mas os soldados o impediram. O centurião, sentindo pena do rabi, pediu em voz alta que algum dos presentes levasse o madeiro a partir daquele pedaço. Do meio das pessoas, surgiu um homem robusto e ordinário, um simples agricultor, que se ofereceu voluntariamente. Jesus, erguido pelos sol­dados, pôde continuar caminhando, apesar de emanar um espesso e escuro fio de sangue de uma nova ferida em seu rosto.

Labeu estava horrorizado de ver naquela situação um homem que pouco antes conhecera em sua plenitude. Ele, Simão e José se­guiam os réus como podiam. Ao chegar à Porta Judiciária, milhares de pessoas de todas as classes sociais esperavam em atitude hostil, praguejando contra Jesus. O centurião fez sair da cidade duas decú­rias (Corpo militar da cavalaria entre os romanos), espada na mão, para prevenir revoltas ou ataques contra os condenados. Dali até o alto do Gólgota faltavam apenas poucos metros.

O rabi parecia ter recuperado suas forças. O centurião decidiu, por isso, devolver-lhe o patíbulo, convencido de que ele seria capaz de carregá-lo pela última parte do trajeto. O primeiro trecho era de leve descida, o que atenuava um pouco o sofrimento dos condena­dos. Depois, o terreno se nivelava e começava a subida. Em cima, no ponto mais alto, as stipes, levantadas para o céu como tenebrosas colunas de morte, esperavam impassíveis os que seriam crucificados essa tarde.

O sol, resplandecente pela manhã, escureceu de repente. Uma brisa, de crescente intensidade, levantava a poeira do terreno e fazia girar os mesmos secos arbustos com que fora confeccionada a coroa de espinhos de Jesus. Esses sinais inquietavam os romanos, de natu­reza muito supersticiosa. Parecia que os elementos da natureza se rebelavam contra os homens, culpados do maior de todos os crimes: a injustiça.

A subida foi penosa. Os dois ladrões que acompanhavam Je­sus, ao ver tão próxima a hora de sua morte e o tormento a que seriam submetidos, gritavam e soluçavam, negando-se a continuar andando. Sua resistência foi vencida à base de chicotadas e golpes. Quase no topo, umas mulheres esperavam os condenados com um benzimento lenitivo e anestésico, composto de vinagre e mirra, que se davam àqueles que tinham de suportar grande dor. A partir desse ponto, os legionários isolaram o local e impediram a passagem das pessoas.

Os ladrões beberam o ácido líquido. Jesus, entretanto, negou-­se a ingeri-lo. O centurião o observou por uns instantes. Estava co­meçando a sentir certa admiração pela valentia daquele homem, le­vado à morte por culpas que pareciam absurdas. Pensou em obrigá­-lo a beber, misericordiosamente, mas o rabi o encarou por um instan­te e o centurião compreendeu que em seus olhos não havia nenhum indício de loucura. Impressionado de novo, preferiu não interferir e assim respeitou a decisão do condenado.

O vento ficava cada vez mais forte. As trevas cobriam Jerusa­lém e toda a região onde a vista alcançava. Sem mais demora, os legionários desamarraram os réus de seu patíbulo e os despiram. Deitados no chão, o carrasco foi pregando cada um deles ao poste pelos pulsos, com os braços abertos. Os enlouquecedores uivos de dor dos ladrões cortaram o ar. A multidão estava em silêncio. Jesus não gritou. Depois, vários soldados levantaram os condenados e en­caixaram os travessões nas stipes. Por último, pregaram-nos ao pos­te pelos pés, superpostos, com um único prego.

Terminado o processo, um legionário, que carregava uma tabu­leta feita por ordem de Pilatos, levantou uma tosca escada, apoiou-a na cruz do rabi e a fixou na extremidade da stipes. Nela estava escri­to: IESUS NAZARENUS REX IUDAEORUM, "JESUS NAZARENO, REI DOS JUDEUS". Os sacerdotes se escandaliza­ram e sentiram-se ofendidos. Um murmúrio crescente de indignação subiu até as cruzes.

Detidas pelo cerco de soldados, três mulheres assistiam à cruci­ficação junto ao jovem João, o mais novo dos discípulos do rabi, e o único que fora ao seu encontro ou, ao menos, o único que se deixava ver. José de Arimatéia explicou a Labeu que as mulheres eram a mãe de Jesus, a irmã dela e Maria Madalena, uma prostituta redimida de seus pecados.

 

                                  1888, Poblet

Demorou muito para Gilles conseguir dormir. A chuva, que fi­nalmente havia chegado ao mosteiro, golpeava com insistência sua janela, fazendo-o despertar a cada momento. No meio da noite, o estrondo de um trovão o assustou e fê-lo saltar da cama. A escuridão era tanta que, por um momento, não tinha certeza de estar com os olhos abertos. Só pôde saber quando o quarto foi iluminado pela luz de um relâmpago. Sentia o suor escorrendo pelas costas, apesar do clima fresco que havia na cela. As últimas imagens de um sonho se desfaziam em sua mente, desaparecendo antes que ele conseguisse retê-las.

Gilles tentou dormir novamente, mas não pôde. Fora, o barulho do temporal aumentou. Os vidros vibravam com cada nova descarga do céu, ameaçando quebrar-se em mil pedaços. Permaneceu na cama por uns instantes mais, com os lençóis jogados de lado e os olhos fechados. Achava que, mesmo que não pudesse dormir, desse modo poderia pelo menos descansar um pouco, e isso era melhor que nada. Mas não demorou muito tempo para levantar e acender a luz. Não estava acostumado a ter insônia. De fato, não se lembrava de ter sofrido insônia jamais, nem mesmo nas épocas de exames, quando era um jovem e nervoso estudante.

Sentado na cama, pegou outro dos livros que o bibliotecário lhe emprestara. Pensou que lendo um pouco talvez fosse mais fácil con­ciliar o sono. O livro parecia realmente antigo e frágil. Bossuet abriu­-o cuidadosamente, com medo de que se rasgasse. O prólogo, escrito por um tal de Inácio de Vilhena, datava de princípios do século XI, ou seja, mais de um século e meio antes da fundação do mosteiro de Poblet, e nele se falava de um castelo, o de Santa Ana. A princípio Gilles pensou que o frei Agostinho lhe dera esse livro por engano ou, pensando bem, que o havia dado intencionalmente, para que ele car­regasse um volume a mais. No entanto, lendo o prefácio, percebeu que a fortaleza que estava desenhada no livro também estava situada no Vale de Barberà, perto de L' Espluga de Francoli, e, pela descri­ção do lugar onde esteve assentada, Bossuet poderia jurar que era exatamente no mesmo lugar em que agora ficava o mosteiro.

Nas páginas seguintes era contada a história do castelo de San­ta Ana, que, ao que tudo indicava, fora fundado no início do século X, cem anos antes da data em que o livro havia sido escrito. Segundo se contava nele, a identidade do benfeitor nunca foi esclarecida, ainda que algumas fontes afirmassem que a fortaleza nasceu como uma pequena capela, construída naquele local em agradecimento por uma vitória contra os infiéis. O castelo servia de refúgio para os habitantes das comarcas vizinhas, e a partir dele eram organizadas as pequenas batalhas realizadas contra os muçulmanos. No entanto, num infeliz dia, um exército de infiéis sitiou a fortaleza, assediando-a por mais de uma semana até que se renderam. Em represália pela tenaz resistên­cia que ofereceram seus defensores, o comandante das tropas mu­çulmanas ordenou que o castelo fosse destruído por completo e que todos os sobreviventes fossem torturados e assassinados, inclusive mulheres e crianças. Apenas algumas mulheres sobreviveram, mas ainda assim sofreram um terrível destino, tendo de fazer parte de um harém. O autor recordava que ainda existiam canções da região nas quais era narrado o terrível suplício que padeceram os defensores da fortaleza de Santa Ana.

Bossuet percebeu que estava começando a amanhecer. O tem­poral cessara e já não chovia, mas a manhã se mostrava triste e cinza. Pensou que não devia faltar muito para que o frei José viesse chamá-lo.

Os povoadores do Vale de Barberà reconstruíram o castelo. sobre os restos da antiga fortaleza. Porém, horrorizados com o acon­tecido e para que não voltasse a acontecer uma tragédia semelhante, decidiram construir, no mais absoluto sigilo, uma câmara subterrânea sob o mosteiro, que se comunicaria com o exterior por meio de um túnel, que teria saída por trás das fileiras de um possível exército inva­sor. Assim, em caso de emergência, seria possível enviar um emissá­rio para pedir ajuda.

Gilles estava começando a pegar no sono, mas, quando leu aquele parágrafo, despertou completamente. Pegou em sua jaqueta a planta do mosteiro de Poblet e colocou sobre o livro para comprovar o que já sabia: na planta não havia nenhuma câmara subterrânea. Todos os seus sentidos se aguçaram de repente. Com um gesto brusco, levan­tou-se da cama sem soltar o livro, incapaz de permanecer sentado. Invadido por um incontrolável delírio, releu as últimas palavras para ter certeza de que não estava enganado. Enquanto o fazia, passeava de um lado a outro, entre a parede e a montanha de livros. Nesse espaço tão reduzido, parecia uma besta enlouquecida trancada em sua jaula. Sua mente era um turbilhão de idéias e perguntas, presas escorregadias que fugiam para não ser caçadas. Disse a si mesmo que precisava organizar os pensamentos; fê-lo em voz alta, acredi­tando que o som de sua própria voz poderia acalmá-lo. Conseguiu somente em parte, mas foi suficiente para que pudesse perguntar-se se ainda existiria aquela câmara subterrânea e o túnel que conduzia a ela. Gilles estava convencido disso. Ele sabia. E se no mosteiro de Poblet estava guardado o Santo Sudário, que melhor lugar para escondê-lo? O raciocínio era tão óbvio e simples que tinha de ser o certo. Esse fato o levava, além disso, à conclusão de que frei Agosti­nho, o bibliotecário, não conhecia o segredo do convento, pois, se soubesse, nunca teria permitido que ele lesse esse livro. Outra possi­bilidade era que simplesmente tivesse cometido um erro, mas Bossuet descartou logo essa hipótese. Se o Sudário de Cristo havia permane­cido no mosteiro por tanto tempo como ele acreditava, não havia dúvidas de que seus guardiões eram homens extremamente cuidado­sos e precavidos, que nunca cometeriam uma tolice semelhante. Mui­to alterado, obrigou-se a sentar-se de novo e a continuar lendo.

O livro dizia também que, à medida que avançou a Reconquis­ta, o castelo de Santa Ana foi perdendo sua importância, e o número de seus ocupantes foi-se reduzindo cada vez mais ao não ser neces­sário proteger suas muralhas. Desse modo, no início do século XI, quando foi escrito o volume que Bossuet tinha nas mãos, o abandono da fortaleza causara sua ruína. Gilles já conhecia o resto da história: cento e cinqüenta anos mais tarde, foi solicitado aos monges do Cister que fundassem uma nova abadia nesta comarca, e estes mandaram construí-la sobre os restos do velho castelo de Santa Ana.

A relativa calma que se impusera transformou-se em uma tre­menda exaltação quando encontrou uma rústica gravura com a planta de Santa Ana. A distribuição das dependências interiores era muito parecida à de Poblet, e a muralha que rodeava ambas as construções tinha exatamente a mesma forma. Gilles pensou que, muito provavel­mente, as muralhas do mosteiro de Poblet tinham sido construídas sobre as antigas para aproveitar as bases e as partes que não foram destruídas por completo.

- Meu Deus! - exclamou entusiasmado.

Ali estava. Parecia bom e simples demais para ser verdade, mas ali estava. De uma torre do lado sul do convento saíam duas linhas em direção ao sopé das montanhas vizinhas, perpendicularmente à muralha. Entre elas, escrito com uma letra irregular, aparecia a palavra ''TÚNEL''. Bossuet esteve a ponto de começar a chorar. Jamais pen­sou que pudesse se alegrar tanto por ver uma simples palavra. Na margem inferior da gravura aparecia um segmento com o número dez sobre ele, como se fosse uma elementar escala gráfica para determi­nar as dimensões do desenho. As letras estavam tão apagadas que quase encostou o nariz na folha para poder ler. Não tinha nenhuma régua à mão, mas calculou que a entrada do túnel ficava a mais ou menos cinqüenta metros da muralha. Na ilustração, junto à passagem subterrânea, havia a imagem de uma mulher de joelhos, com as mãos unidas em posição de oração. Bossuet pensou que devia tratar-se de alguma ilustração; talvez inclusive da própria Santa Ana, padroeira da velha fortaleza.

 

Quando o irmão José foi chamá-lo em sua cela, Gilles já estava vestido. No refeitório, quase não tocou no café da manhã. O que havia descoberto ficava dando voltas em sua cabeça, e, por isso, ele estava morrendo de vontade de ir procurar a passagem. O frade deve ter notado algo estranho, pois perguntou-lhe várias vezes se estava tudo bem. Bossuet percebeu que frei Alessandro o esteve observan­do durante todo o café da manhã, apesar de não lhe ter dirigido uma única palavra.

- Que gostaria de fazer hoje? - perguntou irmão José, após deixarem o refeitório. - Não sei mais o que lhe posso mostrar; você já conhece praticamente todo o mosteiro.

Gilles viu que aquela era uma oportunidade perfeita. Já que não podia livrar-se do frade, ao menos lhe tiraria melhor proveito.

- Bom - respondeu com expressão pensativa, como se aca­basse de ter uma idéia -, ainda não vi as imediações do mosteiro, nem as muralhas exteriores.

- Verdade que quer ver tudo isso? E com esse tempo? ­interrogou o monge não muito convencido. - Há alguns lugares pi­torescos nos arredores, como La Pena, de onde se tem uma vista fabulosa, mas as proximidades do convento não têm nada interessan­te. E as muralhas também não têm nada de especial. Creio que anti­gamente eram rodeadas por um fosso, mas faz muito tempo que ele deixou de existir.

- Não importa - insistiu Bossuet, tentando não deixar transparecer sua impaciência. – Tenho certeza de que a vista será muito instrutiva.

- Está bem. Se você quer... - terminou por render-se o ir­mão José.

      - Fantástico! - exclamou Gilles acelerando o passo.

O frade voltou a lançar-lhe um olhar interrogativo. Abriu a boca como se fosse perguntar algo, mas não chegou a fazê-lo. E limitou-se a apertar o passo para alcançar Bossuet.

Ao redor do perímetro exterior corria um estreito e pouco tran­sitado caminho de terra, invadido em muitos trechos por plantas sil­vestres. Gilles se alegrou de que tivesse pensado em trocar as san­dálias por um calçado mais apropriado ao deplorável tempo. A chuva noturna havia piorado mais ainda o estado do caminho e o transformara em um traiçoeiro lamaçal. Diante deste panorama, frei José tentou convencer Gilles a voltar ao acolhedor e seco abrigo do mosteiro, mas voltou a ceder diante de sua obstinada insistência.

Contornaram a muralha começando pela região norte. Bossuet ia na frente em bom ritmo, com o monge, que havia arregaçado os saiotes de seu hábito até quase os joelhos para evitar sujá-los com barro, uns metros mais atrás, tentando a duras penas segui-lo.

- Você parece uma das senhoritas de monsieur Lautrec - dis­se Gilles divertido.

O frade pareceu não o ouvir, porque não fez nenhum comentá­rio. Sua vista estava pregada no chão e em seu rosto havia uma ex­pressão séria enquanto saltava de um lado a outro para evitar as po­ças. Bossuet resistiu à tentação de zombar de novo do irmão, mas a graciosa imagem do frei José dançando o can-can no Moulin Rouge ficou em sua mente por um bom tempo.

Como lhe dissera o monge, não havia nada interessante nas muralhas, e praticamente não se distinguiam das que já vira na praça maior: muros de mais de dez metros de altura com grandes silhares de pedra, onde havia uma ou outra torre. Só a parte meridional se diferenciava do restante. Nela, sobressaía do muro um enorme torreão de formato quadrado, em cujos pés se encontrava um grande portão de madeira. Bossuet lembrou-se de haver visto essa estrutura na gra­vura do livro. Aquele era o lugar de onde deveria medir a distância até a entrada da passagem.

- Esta era a entrada dos fundos do mosteiro - informou o frade, enquanto tentava tirar o barro do sapato, batendo-o contra o muro. - A torre se liga diretamente com o cruzeiro da igreja ­acrescentou, olhando com inquietação o céu cinzento, que anunciava um novo temporal.

Dissimuladamente, Gilles encostou-se na porta e começou a contar em silêncio os passos que dava. Cada um deles equivalia a um metro. Ao fazer isso, ia observando a paisagem ao seu redor para dar a impressão de estar só passeando. Dos lados erguiam-se pequenos arbustos e uma ou outra árvore. Só mais à frente, no sopé da monta­nha, se enxergava o início de um denso e escuro bosque, que abran­gia toda a encosta, chegando quase ao topo. Enquanto isso, o monge não prestava nenhuma atenção a ele e continuava de pé ao lado da muralha, tentando dessa vez limpar o barro que, apesar de seus es­forços, grudara na barra de seu branco hábito.

- ...quarenta e nove, cinqüenta - sussurrou Gilles.

O lugar era aquele, mas não havia nenhuma entrada ou nada que se parecesse com uma. Tentou descobrir onde havia errado, e o resultado não foi muito animador, pois percebeu que a lista de possibilidades era longa. A passagem podia estar há anos sepultada ou talvez já não fosse mais acessível mesmo que ainda existisse. Talvez, até, a planta de sua localização fosse falsa ou estivesse errada. Bossuet se surpreendeu de não haver pensado antes nessa possibilidade.

Na melhor das hipóteses, disse a si mesmo, a entrada continua­va ali e a planta estava correta, porém ele teria cometido algum erro. Provavelmente havia um erro ao não seguir uma trajetória estritamen­te perpendicular à muralha. Mas aquilo não podia significar, ao todo, mais que uma dezena de metros e, nessa área ao seu redor, a paisa­gem era quase idêntica e não havia o menor vestígio da entrada. Retrocedeu seus passos até a muralha, contando-os novamente um por um, ainda que achasse que aquilo não fazia o menor sentido.

- Você está bem? - perguntou frei José preocupado. - Está com uma cara...

- Sim, estou perfeitamente bem - mentiu Gilles, conseguindo esboçar um leve sorriso. - É que está fazendo muito frio. Vamos voltar ao mosteiro.

O monge concordou imediatamente, dirigindo-se de novo pelo lamacento caminho. Bossuet o seguiu cabisbaixo e com passo lento. Pouco antes, tinha certeza de que encontraria a entrada. Sem dúvida, esperava que fosse pouco visível, ou nunca teria pensado em ir com o irmão, mas não estava preparado para não encontrar nada. Sentia-se profundamente decepcionado, e o pior de tudo é que não sabia o que faria depois. Em todo caso, teria de examinar novamente a gravura e refazer os cálculos. Também leria os livros que faltavam, para ver se algum deles mencionava o castelo de Santa Ana, para tentar desco­brir outras pistas que pudessem ser úteis. Tinha certeza de que nada disso adiantaria, mas faria de qualquer jeito.

Novamente no mosteiro, após o almoço, Gilles voltou a retirar-­se em sua cela. Frei José tentou acompanhá-lo. Sabia que Bossuet não estava bem, apesar das negativas deste. Durante todo o caminho, Gilles percebeu que o monge tentava animá-lo contando anedo­tas sobre o mosteiro e fazendo contínuas perguntas sobre Paris. Mesmo que Bossuet estivesse realmente grato a ele por isso, suas palavras não conseguiram animá-lo. Não fazia nada mais que repetir a si mes­mo uma e outra vez que tinha certeza de que encontraria a entrada, e não podia desviar-se desse pensamento.

- A tertúlia! - exclamou o frade com um gesto triunfal.

- Como? - inquiriu Gilles, sem saber do que falava o irmão.

- Já sei o que vai animá-lo - disse o frei José com grande otimismo, convencido de suas palavras. - Todas as sextas-feiras, antes do jantar, reunimo-nos na sala capitular; um lugar que fica em frente à biblioteca, junto ao claustro. Normalmente se propõe um tema para discussão, mas é muito comum que surjam outros temas a partir das argumentações de uns e outros. É muito interessante, e estou certo de que você se divertirá.

Bossuet não achava que fosse assim; participar de infindáveis dissertações dogmáticas era a última coisa que queria fazer, e muito menos nesse dia. Recusaria o convite, mas não pôde. Simplesmente não teve coragem ao ver a expressão de entusiasmo nos olhos do jovem frade.

- Sim, claro, irei - afirmou Gilles, demonstrando toda a emo­ção que foi possível.

- É assim que eu gosto! Não se arrependerá. Então, depois nos encontraremos no claustro maior. Às seis e meia. Combinado?

      - Muito bem. Ali nos encontraremos.

      A primeira coisa que Bossuet fez ao voltar à sua cela foi conferir as medições. Para isso, marcou novamente na beirada da folha a longitude do segmento de referência, repetindo a operação várias vezes e tomando especial cuidado para que o final de um segmento coincidisse exatamente com o início do outro. Utilizando o método de Tales, dividiu cada segmento marcado em dez partes idênticas e, por último, colocou a improvisada régua sobre a gravura do livro, para determinar a distância do torreão até a entrada da passagem. O valor que obteve tinha menos de um metro de diferença do que havia calculado antes, o que era mais que aceitável.

Não conseguiu encontrar nenhuma outra referência à fortaleza de Santa Ana nos demais livros. De fato, a maior parte deles relatava quase os mesmos acontecimentos já lidos por Gilles nos outros volumes; dados sobre o mosteiro de Poblet, que conhecia muito bem e não traziam nenhuma luz.

Mais desiludido que nunca, dirigiu-se pouco antes das seis e meia para o claustro, para encontrar-se com frei José. A praça maior tinha um aspecto desolado, afogada em uma penumbra cinza-chum­bo que parecia cobrir tudo e que quase o fez duvidar sobre onde terminava a pedra e começava o céu. Aquele tempo horrível era o perfeito reflexo de seu ânimo. Cinza sobre cinza. E, pensou, ele tampouco se diferenciava do resto.

Quando chegou ao claustro, o monge já estava esperando por ele. Estava de pé perto de um arco. Dos dois lados, abertas para o claustro, havia duas janelas através das quais se podia ver a sala capitular, um cômodo quadrado em que umas colunas centrais, dispostas em pares, sustentavam o teto de arcos. Dentro dele, os irmãos dirigiam-se a seus assentos com sua habitual parcimônia. Não entrou ninguém mais depois de Gilles e frei José, e no entanto estavam livres quase todos os bancos. Somente três fileiras, na parte oposta à entrada, estavam ocupadas.

- Bem-vindos, irmãos - ouviu-se dizer um dos monges.

Gilles se levantou de seu assento e espiou entre as coroas ras­padas dos monges para vê-lo. Quem falava era o mesmo frade que lera o Evangelho na igreja na noite anterior. Estava sentado à esquer­da do abade em uma cadeira de madeira de aparência incômoda e com um encosto que se estendia acima de sua cabeça. Suas mãos, elegantes e de longos dedos, penduravam-se languidamente para fora dos apoios de braço da cadeira. Do outro lado do abade, como de costume, se encontrava frei Alessandro. As três figuras estavam situ­adas sobre um tablado, elevados uns centímetros do solo, como mostra de sua dignidade hierárquica. Bossuet passeou os olhos de um lado a outro e percebeu que o frade que estava falando desviava seu olhar quando se fixou nele. "Afinal, reuniram-se os implacáveis guardiões", pensou Gilles. Eram eles três, somente esses três frades. Apostaria sua vida nisso. Os demais monges não eram mais que meros expectadores, peões manipulados pelas mãos espertas de tão consu­mados jogadores na partida que Deus, ou quem fosse, lhes oferecera.

Bossuet notou que a inquietação crescia em seu interior. Só en­tão começava a perceber o que significava não ter encontrado a pas­sagem secreta: tudo aquilo que acontecera, tudo aquilo que o levara a terras tão distantes estava perdido. De repente. Como se um maléfi­co vento o tivesse arrebatado e deixado somente um profundo e ter­rível vazio que o fazia perguntar-se como poderia continuar vivendo. O vazio deu lugar à fúria, uma fúria sem autênticos culpados; o único sentimento suficientemente poderoso para combater sua dor. E a di­rigiu contra a soberba desses três homens, esses homens que acredi­tavam ter o direito de ocultar a verdade em nome de seu Deus.

- Hoje falaremos da virtude de ser justo - continuou o frade. - De acordo com os ensinamentos de Santo Agostinho...

- Justiça? - exclamou Gilles entre dentes, levantando-se, in­capaz de controlar por mais tempo sua ira.

O movimento foi tão repentino que frei José deu um salto, as­sustado. Ao ouvir as palavras de Bossuet, permaneceu um instante em pé, em dúvida se deveria sentar-se ou não. Finalmente voltou a seu lugar, mas em nenhum momento deixou de observar Gilles com uma expressão de absoluta incredulidade, como se pensasse que este havia enlouquecido.

- Faça o favor de sentar-se - bronqueou o frade com voz severa. - Ainda não terminei minha exposição.

- Justiça - repetiu Bossuet quase murmurando, saboreando a palavra. - Que sabeis vós de justiça? - inquiriu desafiante. Seu rosto estava incendiado pela cólera.

A pergunta de Gilles obteve como resposta um murmúrio de reprovação por parte dos monges. O irmão José permaneceu em silêncio. Também se mantiveram calados o abade e frei Alessandro, ainda que este se tenha remexido incomodado em sua cadeira.

- Como se atreve a profanar este lugar sagrado com o veneno de suas palavras? - rosnou o frade, com cara de poucos amigos. ­- Se bem que não é de se estranhar - prosseguiu, dirigindo-se à con­gregação em um inquietante tom de confidência. - Estas são as aber­rações que produz esse lugar de perdição! - gritou ainda mais alto levantando seu punho. - Paris! Como não? A cidade dos sete peca­dos capitais, chamam-na. E em verdade vos digo, assim é. Como pode então um francês - disse apontando a Bossuet com desprezo - vir a dar-nos lições de justiça?

Os cabelos do frade, que caíam lisos de ambos os lados da cabeça, encontravam-se agora alvoroçados. Uma grossa mecha de cabelos estava grudada em sua suada testa, sobre as povoadas so­brancelhas. Os irmãos concordaram veementemente com as pala­vras do monge, ao mesmo tempo que aumentavam o volume de seus comentários. Seus rostos abandonaram o frade do tablado para diri­girem-se outra vez a Gilles, esperando sua resposta. Frei José apro­ximou-se dele e, dissimuladamente, puxou-lhe o saiote enquanto lhe implorava que se sentasse em uma voz quase inaudível e olhando para a frente.

- Ah! - proferiu Gilles, com um sorriso macabro, ignorando o conselho do irmão José. -A cidade dos sete pecados capitais? Valha-me Deus! Por acaso esteve alguma vez em Paris?

- Não é preciso! - bradou o monge. - Posso notar daqui sua pestilência.

- Eis aí a justiça espanhola - disse Bossuet, apontando para o frade com os braços estendidos, em um tom surpreendentemente tranqüilo -, ou a justiça divina - acrescentou -, que para os espa­nhóis é a mesma.

Dito isso, voltou-se para o frei José e em voz baixa disse:

- Sinto muito.

Depois, sem dizer mais uma palavra, dirigiu-se para a saída com passo firme, entre o rebuliço generalizado dos monges.

- Senhor Bossuet! - trovejou uma voz em suas costas, dife­rente da do frade do tablado. - Gilles - chamou a voz com doçura quando este continuou andando.

Bossuet se deteve no meio do corredor e virou-se lentamente. Era o abade quem falava. Havia descido do tablado e se encontrava também no corredor, a poucos metros dele. Gilles contemplou a no­bre figura do ancião. Apesar de sua terrível fúria, não podia deixar de fazê-lo. Então ouviu uma voz em seu interior, uma voz amável que tentou acalmá-lo, dizendo-lhe que estava confuso e que suas duras palavras não eram tão honestas quanto ele achava. Aquela voz lhe soou um tanto familiar. Como uma que achou ter ouvido certa vez, fazia muito tempo, em um laboratório de química em sua distante e querida universidade.

- Gilles - começou a dizer o abade -, você deve deixar este mosteiro para que a paz volte a reinar nele - não havia rancor em suas palavras, e sim um profundo pesar que surpreendeu Bossuet. ­Pode ficar ainda esta noite, se desejar, e...

- Que se vá agora mesmo! - interrompeu o frade com o qual Gilles havia discutido.

O abade o fez calar com um gesto e voltou a repetir seu ofere­cimento:

      - Pode ficar esta noite e sair amanhã pela manhã.

      - Eu agradeço - disse Bossuet sinceramente. - Assim o farei.

Todos os irmãos observaram a cena em silêncio, inclusive frei José. A tristeza de seu rosto cortou o coração de Gilles. Mas não havia como voltar atrás; todos os seus navios jaziam queimados no fundo do mar.

Tão logo deixou o local, começou a ouvir de novo os comentá­rios dos monges. Acelerou o passo e atravessou o claustro como alma que transporta o diabo, e não voltou a olhar para trás até chegar a sua cela.

 

                           Século I, Jerusalém, Arimatéia

A pior das hipóteses se consumara. Só restava esperar que o desenlace acontecesse o mais rápido possível. Jesus já havia sofrido além do imaginável, e a morte seria para ele uma libertação da dor.

Labeu não conseguiu continuar presenciando o espetáculo atroz e abandonou o Gólgota acompanhado por Simão Ben Matatias e pelo ancião José de Arimatéia. Este se separou deles para ir até o mercado, onde comprou um fino lençol de linho sírio de um mercador de Damasco. Assim que Jesus expirasse, reivindicaria seu corpo e o enterraria em um sepulcro novo que possuía em suas terras, reserva­do para ele mesmo, que já se sentia próximo do fim. José também era discípulo do rabi, apesar de o não ter revelado até então por medo do Sinédrio. Agora, em compensação, arriscar-se-ia por seu mestre, ainda que fosse a única coisa que pudesse fazer, o que o deixava profundamente triste. Ele devia isso ao homem que estava entregan­do sua vida por toda a humanidade.

Enquanto isso, Simão e Labeu, mudos pelo horror, perturba­dos pela infâmia, esperavam José na casa do primeiro. Passaram-se três horas desde que Jesus fora crucificado. Aproximava-se a hora nona - três da tarde -, quando em toda Jerusalém se ouviu um grito dilacerado, terrível, seguido de um grande trovão proveniente das grandes nuvens negras que cobriam o céu. Jesus havia expirado.

Pouco depois, José chegou à casa de Simão acompanhado por Nicodemos, um fariseu renegado amigo de José e que, como ele, também abraçara a fé em Jesus. Nicodemos comprara mais de trinta quilos de mirra e aloés para o corpo do rabi e para o interior do sepulcro, que, segundo o costume judeu, deveriam ser cobertos com essas resinas aromáticas. Ambos estavam muito abatidos, apesar de tudo estar acontecendo conforme as Escrituras dos profetas.

 

Perto do anoitecer, as súplicas de José de Arimatéia para que Pôncio Pilatos consentisse que o ancião sinedrita recuperasse o cor­po de Jesus, morto há várias horas, foram atendidas.

Acompanhado por Nicodemos e pelo jovem João, José subiu ao monte Calvário. O negro manto da noite cobria o céu por comple­to. Somente a luz das tochas os guiava até o lugar da execução. No alto, as quase invisíveis figuras das três cruzes pareciam irreais e dis­tantes. Ao aproximar-se o suficiente para distinguir com clareza a imagem de Jesus, os dois homens e o rapaz romperam em lágrimas. João inclusive correu até seu mestre, transtornado e cego de dor, tropeçando numa pedra e indo cair aos pés da cruz em meio a solu­ços. José e Nicodemos o observavam comovidos.

Passando pelos piores momentos de suas vidas, os três amigos e discípulos de Jesus começaram a árdua tarefa de despregá-lo da cruz. Nicodemos apoiou na stipes a mesma escada que usara, pela manhã, o legionário romano que colocou a legenda com a inscrição INRI. Com a ajuda de um martelo, extraiu primeiro o prego do pulso esquerdo. O corpo do rabi se desprendeu inerte, enquanto João e José o seguravam embaixo. Depois soltou o braço direito e desceu da escada. No chão, retirou por último o prego que fixava os pés. Com grande cuidado, depositaram o cadáver de Jesus sobre o lençol de linho que José de Arimatéia comprara e o levaram ao terreno des­te último, do outro lado da ladeira do Gólgota.

O corpo do Galileu era muito pesado. Não era em vão que sua altura e força física o distinguissem da maior parte dos judeus e inclu­sive dos invasores romanos, mais robustos em geral que os primei­ros. O caminho foi lento e penoso. Tendo chegado ao sepulcro esca­vado na rocha, introduziram o cadáver e o deixaram em uma mesa de pedra localizada no centro. José retirou o lençol que cobria o rabi, e Nicodemos o ungiu com mirra e aloés. Enquanto isso, José de Arimatéia prendia o cabelo de Jesus e colocava umas pequenas mo­edas sobre seus olhos. O antigo fariseu espargiu o que sobrava das resinas aromáticas pelo chão e paredes do sepulcro. Por último, vol­taram a cobrir Jesus com o lençol, saíram da cova e fecharam a en­trada com uma pesada pedra circular.

 

Labeu decidiu postergar uns dias sua partida. Desejava receber o batismo das mãos de um dos discípulos de Jesus, porém todos, exceto João, que ainda era um garoto, se encontravam desapareci­dos. José de Arimatéia não teve notícias deles até a noite de sábado, quando Pedro o procurou e revelou onde estavam escondidos. Mas José não disse nada a ninguém até a segunda-feira seguinte, um dia depois da Ressurreição.

Por sua vez, Simão Ben Matatias tomara a firme decisão de re­nunciar a seu lugar no Sinédrio. Depois do que havia acontecido, não desejava pertencer ao Conselho, impuro e criminoso, que se esque­cera do verdadeiro sentido das leis antigas. Com sua respeitável for­tuna, compraria outra fazenda longe de Jerusalém, conforme pensara fazer em tantas ocasiões, pois assim terminaria seus dias dedicado totalmente ao cultivo de sua horta e ao estudo das Escrituras. O povo judeu, tão amado por ele, mostrara não merecer seu trabalho nem seu esforço. Talvez fosse melhor que os romanos, mesmo sendo idó­latras e mesquinhos, mantivessem seu domínio para sempre.

A morte de Jesus e as circunstâncias tão deploráveis em que se produzira mostravam muito mais do que se podia imaginar. Nas pio­res e mais difíceis situações é que os homens mostram seu verdadeiro interior. O homem nobre redobra sua grandeza de espírito, enquanto o ruim, sua vilania. E parecia que, entre os filhos de Israel, havia pou­cos homens que mereciam ser chamados de nobres. Jerusalém parecia haver-se convertido em uma nova Sodoma pela iniqüidade, bai­xeza e degradação de seus habitantes, que auguravam desastres ter­ríveis e maiores que os jamais visto antes. Pois o agricultor, ao podar e arrancar o sarmento seco, favorece as futuras colheitas; porém, se abandona sua terra, dela só obterá poucos frutos e, mesmo assim, enfermos, e a erva daninha se enraizará.

A vida sempre continua, mesmo que se perca o melhor dos ho­mens. No entanto, Labeu contemplava com repulsa as pessoas de Jerusalém. Pouco antes, exatamente como lhe contara Simão, acla­maram a chegada de Jesus; agora, pareciam tê-lo esquecido, antes mesmo que o corpo se esfriasse em seu túmulo. Sua lembrança se reduzia aos prodígios ocorridos durante a crucificação: a repentina mudança no tempo, os fortes trovões sem sinal de temporal, o pe­queno tremor de terra. Todos estavam intrigados com o fato de que, ao expirar o rabi na cruz, se houvesse rasgado em duas partes, de cima a baixo, o véu sagrado do Templo... Além disso, havia também o suicídio de Judas Iscariotes, o traidor, desesperado pela insu­portável culpa. Parecia que os judeus necessitavam sempre de um sacerdote para interpretar os sinais de Deus, por mais evidentes que fossem.

 

Na segunda-feira seguinte à morte de Jesus, uma notícia corria pelas ruas de Jerusalém. Dizia-se que o rabi ressuscitara na manhã do domingo, ao terceiro dia, conforme as profecias anunciaram. Mas ninguém parecia acreditar. Para uns, era evidente que seus discípulos haviam roubado o corpo e espalhado o boato da ressurreição. Ou­tros se opunham a isso, explicando que Pilatos mandara legionários para vigiar o sepulcro. Para estes últimos parecia mais provável que Jesus nem sequer tivesse sido enterrado nele, e sim escondido em outra parte. Alguns, muito poucos, se mostravam céticos.

O embaixador não sabia o que pensar. Entendia que Jesus havia sido crucificado. Tinha certeza de que ele estava morto; caso contrá­rio, os romanos não permitiriam que José levasse o corpo. Porém, a Ressurreição... Em sua mente de homem não cabia uma idéia assim. E, entretanto, algo lhe dizia que aquele Galileu, simples e sábio, era realmente o Filho de Deus, e não um mero profeta enganador. De fato, um farsante nunca se teria entregado com tanta mansidão às autoridades que podiam executá-lo...

Tudo era muito confuso. A idéia de que Jesus tivesse, realmente, ressuscitado dentre os mortos era muito perturbadora e, ao mesmo tempo, fascinante. Ninguém pode ficar alheio ao encanto que exer­cem os milagres ou sua simples possibilidade. Por isso, tentando ave­riguar o grau de veracidade dos rumores, Labeu foi de novo a Arimatéia, à casa de José, que já retornara de Jerusalém, para tentar obter alguma informação do ancião.

Para sua surpresa, o embaixador encontrou Pedro ali, que, mui­to alterado e nervoso, explicou como entrara no sepulcro, no domin­go de manhã, e encontrara o Lençol da mortalha vazio. Maria Madalena o alertara para a estranha ocorrência. Essa mulher, muito querida por todos os discípulos, foi até o sepulcro para orar e o en­controu aberto. Os guardas encarregados de vigiá-lo haviam desaparecido. Era muito estranho. Nesse momento, um anjo do Céu, res­plandecente, apareceu e anunciou a Ressurreição do Filho de Deus.

Pedro tinha ido até o Gólgota e corrido até o sepulcro o mais rápido que pôde. Só o acompanhava João, que chegou antes mas não se atreveu a entrar na gruta. Mais decidido, o Pescador foi até o interior. O mais estranho era que o Lençol, cheio de manchas de sangue, estava dobrado na mesma posição em que ficara após envol­ver Jesus. Mas o cadáver não estava ali. Só havia um par de moedas de bronze. Pedro não soube interpretar esse fato curioso, até que José lhe explicou que eram as que havia usado para tapar os olhos do rabi.

Não havia motivos para duvidar da palavra de Maria. Isso era evidente para todos. Porém ela, talvez em sua dor, poderia ter inven­tado a história que relatou aos discípulos. Todos eles viram Jesus operar milagres e prodígios; escutaram de sua boca as profecias já cumpridas e, ainda assim, desconfiavam. Inclusive o próprio Pedro, depois de jurar que nunca abandonaria o rabi, o renegara em três oportunidades na mesma noite de sua prisão.

Diante das profundas dúvidas, inimigas da fé que Jesus pregara:, os discípulos esperavam novidades. Temendo que o Sinédrio se vol­tasse também contra eles, depois de acabar com o Mestre, esconde­ram-se em uma gruta que ficava entre Arimatéia e Emaús. Labeu pe­diu a Pedro que permitisse que ele o acompanhasse de volta a seu refúgio secreto. Ele achava que, sendo impuro e repulsivo para os judeus o Lençol utilizado no sepultamento, talvez aceitassem entregá­-lo a ele como recordação. Ele o levaria a seu rei em Edessa e ali seria venerado com a maior devoção. Além disso, antes de sua partida, queria ser batizado e abraçar a fé em Cristo. Pedro não se opôs ao desejo do embaixador. Apesar de seu jeito rude e desconfiado, tinha um grande coração. Compreendia que Labeu amava realmente a Je­sus e podia considerá-lo mais um de seus discípulos.

O embaixador edesseno foi batizado no dia seguinte por Judas, de quem recebeu o nome, e se chamou a partir de então Tadeu em vez de Labeu. Os discípulos atenderam a seu pedido com relação à mortalha do rabi. Sabiam que suas intenções eram piedosas e esta­vam certos de que seria conservada em Edessa para a memória das futuras gerações. A custódia da outra grande relíquia de Jesus, o San­to Graal, foi confiada ao ancião José, como agradecimento por sua valentia e coragem nos momentos mais difíceis.

Antes de partir de volta à sua pátria, Labeu, já como Tadeu, foi novamente a Jerusalém. Queria despedir-se de Simão Ben Matatias e sua fann1ia, que com tanta hospitalidade o haviam acolhido, mesmo sendo ele um estrangeiro. Na casa de Simão viu pela última vez o filho deste, o pequeno José, testemunha em sua infância da morte de Jesus e que anos mais tarde assistiria à destruição do Templo de Je­rusalém e ao extermínio de uma grande parte da população israelita. Um menino que, já homem e cidadão de Roma, daria testemunho de todos aqueles acontecimentos e que entraria para a História com seu nome latino: Flávio Josefo.

 

                           1888, Poblet

Gilles não conseguiu dormir bem também naquela noite. A água da chuva correndo pelos canos metálicos fazia um barulho perturbador, que se misturava com as ameaçadoras imagens de seus pesadelos.

Quando despertou na manhã seguinte, estava coberto por um suor frio e desagradável. Tinha o corpo dolorido, como se tivesse passado a noite em uma batalha, em vez de na cama. Levantando-se com dificuldade, vestiu-se antes de recolher as poucas coisas que trouxera ao mosteiro. Com cuidado, voltou a colocar no carrinho os livros que o bibliotecário lhe emprestara. Pensou em devolvê-los, mas estava chovendo e não tinha como cobri-los; portanto, achou melhor deixá-los ali. Concluiu que, cedo ou tarde, alguém iria buscá-los. Seu cajado descansava em um canto, no mesmo lugar em que o deixara na noite em que chegou ao mosteiro. Não se preocupou em tomá-lo. Já não necessitava; a farsa havia terminado.

Só faltava despedir-se de frei José, ainda que não tivesse certe­za de que ele quisesse fazê-lo. Esperou que ele fosse despertá-lo naquela manhã, como fizera em todas as anteriores, mas já era dia e ele não chegava. De qualquer maneira, acontecesse o que aconte­cesse, ao menos queria tentar. Não sabia onde poderia estar, e pen­sou que a igreja seria um bom local para começar a procurá-lo. Se não o encontrasse, não teria outra saída senão perguntar a algum frade, apesar de torcer para não precisar fazer aquilo, porque achava que não responderiam.

Da praça maior, subiu ao templo. Só umas dezenas de metros separavam a igreja da hospedaria dos peregrinos, porém foram sufi­cientes para que o cabelo de Gilles ficasse todo molhado. E o que era pior: enfiou o pé em uma poça e tinha os sapatos cheios de água. Fazendo um barulho irritante, dirigiu-se ao muro situado à sua es­querda. Apoiou-se com uma mão na parede, enquanto com a outra tirava um dos sapatos e despejava a água que havia dentro dele. Ao agachar-se, Gilles percebeu umas marcas nela. Aproximou-se para observá-la melhor e leu em voz alta:

-Rodrio.

- Rodrigo - corrigiu a voz de frei José.

O monge o observava da nave central com um rosto amigável, apesar de entristecido.

- Era um pedreiro - continuou o frade -, um entre as cente­nas que moldaram essas pedras. Muitas têm o nome do homem que as talhou. E quer saber mais? Todas elas foram cortadas usando como medida uma pessoa. Chamava-se Martin de Tejada e foi uma perso­nalidade muito influente nesta comarca no século XI. Conta-se que era um verdadeiro gigante de quase dois metros de altura e que seu tamanho foi durante duzentos anos o padrão de medida em toda a região do Vale de Barberà. Consegue imaginar?

O significado das palavras do frade o atingiu com violência, e então compreendeu tudo. Essa era a resposta que procurava e esti­vera sempre ali, ao alcance de sua mão, gravada nas imperturbáveis pedras da igreja. Sentia-se ao mesmo tempo agradecido e confuso, atordoado e maravilhado e também um perfeito estúpido. Ele sempre fizera seus cálculos em metros. Por isso não encontrou a entrada da passagem. Só agora percebia quão torpe havia sido. Era evidente que não se tratava de metros, pois essa unidade de medida tinha pouco mais de cem anos. "A altura do corpo de um homem", repetiu para si mesmo. Encontrava-se tão absorto e surpreso que ficou olhan­do o monge com perplexidade. Mas havia algo que não se encaixava, um buraco vazio naquele complicado quebra-cabeça.

- Você sabia - dirigiu-se a frei José. - Sempre soube de tudo, não é? Desde o princípio.

Bossuet não conseguia acreditar em suas próprias palavras, mas não podia ser de outro modo: o irmão José tinha de saber da existên­cia da passagem. Ele devia saber o que Gilles procurava naquela manhã na muralha sul. Só assim para justificar o motivo de haver falado de Martin de Tejada.

- Por quê? Por que não me contou? - perguntou ao frade com profunda curiosidade.

Naquele momento o rosto do frade lhe pareceu mais velho, e seu olhar, muito mais sábio e distante.

- Essa é uma boa pergunta - disse com amável sorriso. ­ Adeus, meu bom amigo. Voltaremos a nos ver.

- Que encontrarei nessa câmara subterrânea? – conseguiu gritar Gilles com uma voz cortada, quando o monge já se distanciava.

O irmão José se virou para ele, lenta e majestosamente, e falou com uma reconfortante serenidade:

- Isso depende de você, Gilles. Só de você.

Bossuet não disse mais nada. A emoção pelo que acabava de descobrir o embargava e produzia um nó em sua garganta que o im­pedia de falar. Simplesmente ficou ali, escutando o som da chuva golpeando as vidraças.

 

Quando Gilles chegou à muralha sul do mosteiro, não chovia mais, apesar de o céu permanecer cinza e o clima estar frio e desa­gradável. Seu calçado estava cheio de barro, que aumentava um pouco mais a cada passo. Sentia os pés pesados, como se seus sapatos fossem de chumbo e não de couro, e a água se infiltrava neles. Ape­sar de tudo, sentia-se alegre.

Tomando como medida a altura do homem de quem lhe falou o monge, a distância a que devia estar a entrada da passagem era pra­ticamente o dobro da que Bossuet calculara no dia anterior. Apoian­do suas costas na muralha do torreão, começou a contar novamente os passos. Desta vez seriam cento e cinqüenta. Conforme avançava, aproximava-se do núcleo do bosque que se estendia à sua frente. Ao chegar aos setenta passos, encontrou as primeiras árvores e, ao al­cançar os cem, estava no interior do bosque. Apesar de não se en­contrar a mais de trinta metros da parte descoberta, a neblina era tão densa e as árvores cresciam tão perto umas das outras que não con­seguia ver a claridade. Tampouco podia ver as muralhas da abadia. Se não tivesse certeza de que acabara de entrar no bosque, poderia jurar que este se estendia por dezenas de quilômetros em todas as direções.

Olhou ao seu redor atentamente. Ainda existia o erro da perpendicularidade de sua trajetória, que o fizera desviar vários metros da entrada do túnel, mas esperava que não fossem muitos, já seria bastante complicado encontrá-la naquela manhã.

Gilles não percebeu da primeira vez que a viu. Principalmente porque estava procurando no chão e porque se encontrava muito perto dele. Quase passou por ela uma segunda vez, mas seu desenho pareceu estranho. Repetindo a si mesmo que não podia ser, começou a caminhar de costas sem desviar os olhos. Uma raiz que saía fora do terreno quase o fez cair, mas conseguiu equilibrar-se fazendo cômicos movimentos com os braços. Uns metros mais atrás, parou. Com a boca aberta e sem acreditar no que via, contemplou a nova surpre­sa que lhe reservava o dia: entre duas esbeltas árvores erguia-se uma menor, cujo grosso tronco seco estava rasgado de ponta a ponta por uma brecha sinistra e escura: a marca do raio que acabou com a árvore. Só dois galhos partiam do tronco e logo se juntavam como dois braços unidos e imóveis em eterno gesto de oração. A parte de cima da árvore estava coroada por uma região bulbosa, que sobres­saía até a lateral, dando a impressão de uma cabeça ligeiramente in­clinada. Na lateral podia-se ver o início de duas grossas raízes, que se enterravam no chão, formando um arco fechado, como os joelhos de um penitente. "A mulher do mapa", pensou Gilles fascinado. Esta­va vendo a mulher que o autor do livro desenhara perto da entrada da passagem.

Dirigiu-se correndo até a árvore, que estava a uns vinte e cinco metros. Ajoelhou-se no chão quando chegou junto dela e começou a engatinhar entre os ramos que ficavam em volta. Os altos galhos saí­am por cima de sua cabeça e as folhas batiam em seu rosto. A terra, fofa e esponjosa, se afundava com seu peso e fazia um ruído de suc­ção a cada vez que Gilles levantava as mãos e os joelhos.

Só dera meia-volta quando percebeu que algo no terreno era diferente. Tratava-se de uma pequena claridade na densa espessura de ramos, um quadrado vazio de apenas meio metro de lado. Bossuet nem sequer o teria percebido se não estivesse de joelhos. Aproxi­mou-se com cautela e, com o mesmo cuidado, passou delicadamente a mão sobre esse pedaço do terreno. O solo era diferente ali, mais duro. Aumentou um pouco a pressão e quase não saiu água entre seus dedos. E nas beiradas havia algo mais, uma sensação curiosa, como se a terra respirasse e Gilles pudesse sentir seu hálito nas mãos. Inclinou-se até que sua orelha quase tocasse o chão. Então seu rosto se iluminou com uma expressão feliz. Não era mais que um tênue assobio, como o vento que penetra por uma janela do outro lado de um grande cômodo... O som da entrada de uma passagem.

Agora tinha certeza. Aquele era o lugar. Não se viam pegadas recentes à sua volta, mas havia algo de artificial naquela excessiva concentração de plantas. Gilles estava convencido de que havia ou­tro acesso ao interior do mosteiro, mas também que os monges man­tinham essa entrada em perfeitas condições. Sem dúvida, com a mes­ma idéia que levou, quase um milênio antes, a construir a passagem subterrânea: utilizá-la como uma via escapatória em caso de emer­gência.

Lançou-se sobre ela com uma incontrolável determinação. Afun­dou seus dedos na terra e começou a cavar cada vez com mais ímpe­to. Gilles respirava ofegante; seu hálito produzia uma pequena nuvem de vapor no ar úmido, apesar de ser o entusiasmo, e não a fadiga, a razão de sua agitada respiração. A uns vinte centímetros da superfí­cie, a ponta dos dedos atingiu uma parte mais dura. Aumentou rapi­damente o buraco e limpou a região com a palma da mão. Seu cora­ção quase saltou do peito quando viu que era uma laje de pedra. Rindo, bateu na tampa com os nós dos dedos só pelo prazer de escutar o som oco que emitia.

Segurou a pedra pelos dois extremos com ambas as mãos e a puxou para cima, mas ela nem se mexeu. Era evidente que quem a colocara ali o fizera pensando em abri-la de dentro para fora, e não o contrário. Respirou profundamente e tentou de novo, endireitando o corpo para conseguir fazer mais força. Os tendões de seu pescoço se enrijeceram pelo esforço e sentiu que o sangue lhe subia às faces, nublando-lhe a visão.

Estava quase desistindo outra vez quando a entrada se abriu com um ruído amortecido e grave. Nesse instante, uma suave corren­te de ar vinda do buraco refrescou seu rosto. Enquanto contemplava a escuridão do poço, passaram por sua mente imagens de tudo quan­to passara para chegar até ali: o medalhão que aquele peixeiro en­contrara no Sena e que Jacques levou a seu escritório na Sorbonne, o bom Jacques; o extraordinário fenômeno que presenciou quando es­tava analisando o medalhão e a mensagem que guardava em seu inte­rior; sua chegada ao mosteiro de Poblet e os personagens que lá havia conhecido; o irmão José; os desalentos e as esperanças; os enganos e as revelações. Tudo isso se apresentou novamente diante de seus olhos, e disse a si mesmo que valera a pena. Ainda que fosse somente por esse instante, pela promessa do mistério que encerrava a tenebrosa escuridão da passagem.

Aproximando-se da entrada, pensou ter visto um degrau esca­vado na parede de pedra e algo similar a umas barras metálicas dos lados. Deslizou para o interior do poço, fazendo força com os braços para sustentar-se no vazio, enquanto seus pés exploravam torpemen­te a parede em busca de um lugar onde apoiar-se. Apesar do esforço que tinha de fazer, não relaxou a tensão dos braços até ter certeza de que o degrau feito na parede era um apoio seguro. Começou a des­cer devagar, cuidando sempre da segurança a cada degrau e tentan­do não depositar todo seu peso nas corroídas barras. Antes de intro­duzir-se por completo no buraco, respirou fundo sem perceber, como se fosse mergulhar. A ausência repentina de luz o cegou por uns mo­mentos, apesar de não demorar muito para acostumar-se à escuri­dão. Agora podia ver o contorno das barras de segurança e era ca­paz de dirigir seus pés com mais destreza até os degraus, mas ainda não podia ver o fundo.

Gilles olhou para cima, na direção do quadrado de luz sobre sua cabeça. Pensou que aquela era a cena que veria um cadáver se des­pertasse de repente em seu enterro. Obrigando-se a afugentar de sua mente tão mórbidos pensamentos, olhou novamente para baixo e continuou descendo, apesar de se sentir tentado, por várias vezes, a voltar para cima e ir em busca de uma luz que lhe permitisse ver melhor naquela escuridão.

Havia perdido completamente a noção de espaço. Não sabia se faltava muito ou pouco para chegar ao chão. Querendo chegar logo, aventurou-se a descer um pouco mais rápido, apesar do risco que corria. De repente, sua perna afundou em uma gélida água. Bossuet pronunciou entre dentes um impropério enquanto a retirava rapida­mente. Com as costas apoiadas na parede, tentando recuperar um pouco o fôlego, analisou a situação em que se encontrava: o resto do poço parecia estar inundado; a pergunta era: que profundidade teria? Chegou à conclusão de que só havia uma forma de saber, ainda que sentisse arrepios só de pensar em entrar na água. Não era nem por­que estivesse gelada, e sim porque não sabia o que haveria nela. Convenceu-se de que era melhor fazê-lo o quanto antes, ou não se atreveria se parasse para pensar. Fazia caretas enquanto se introdu­zia muito devagar na água, assoprando e murmurando novos e mais floridos juramentos, que se intensificaram quando a água atingiu seu abdômen. Depois de uns momentos intermináveis, e submergido até quase o peito, Gilles chegou ao último degrau. O fundo do poço es­tava tão perto, que ele pisou com muita força, esperando encontrar um novo degrau. Investigou cuidadosamente com um pé antes de descer o outro. O chão era irregular, cheio de altos e baixos. Demo­rou um pouco a perceber que não era pedra, e sim que parecia estar coberto pelas barras de uma grade. Podia sentir em seus pés a leve sucção que provocava a água ao entrar por ela.

 

Estava duro de frio. Os dentes batiam com força e tinha os bra­ços cruzados com as mãos embaixo das axilas, em uma tentativa de dar-se um pouco de calor. Virou-se sem sair do lugar para inspecio­nar o fundo. A escuridão era tanta, que quase não viu um corredor que havia atrás de si. Antes de entrar por ele, olhou pela última vez para cima. A abertura parecia muito pequena vista lá de baixo, e achou que suas beiradas estavam de alguma maneira arredondadas. Era só um efeito visual devido ao contraste entre a luz do dia e a escuridão do poço, mas nem por isso deixava de ser perturbador.

Um pequeno arco dava acesso ao corredor, cuja altura era exí­gua. Tanto que Bossuet se viu obrigado a caminhar ligeiramente encurvado. Tinha os pés gelados e sentia o corpo endurecido pelo frio. Cada passo exigia um grande esforço para superar a força da água. O ar úmido tinha um cheiro diferente por causa da má ventila­ção, que se acentuava à medida que adentrava mais e mais a galeria subterrânea. Gilles caminhava com os braços estendidos, tateando às cegas as paredes e sentindo sua textura áspera. Entre as pedras cor­riam fios de água que se infiltravam do terreno. Do teto, caíam inces­santemente gélidas gotas que produziam um incomodo ruído ao cho­car-se contra a superfície da água. Em muitos lugares, os blocos de pedra estavam cobertos por musgos ou alguma planta similar, de tex­tura desagradável. Bossuet também notara outras coisas, que se amas­savam com um horrível rangido quando ele apoiava as mãos, soltan­do pegajosos e repugnantes fluidos. Achava melhor nem pensar muito sobre o que poderiam ser, nem ficar tentando imaginar de que tipo de seres imundos poderia tratar-se.

O onipresente som que produzia o gotejamento intensificou-se. Estava chovendo outra vez. Só então Gilles percebeu que o chão da galeria não era plano, mas que estava construído em uma leve incli­nação quase imperceptível, suficiente para que a água corresse de um modo vertiginoso. No entanto, felizmente, o nível de água era menor e diminuía conforme Bossuet avançava. Chegou um momento em que o fluxo de água do teto parou. E foi de um modo tão repen­tino que só podia ser porque já se encontrava sob os porões do mosteiro.

Gilles percebeu que além de inclinada a passagem fazia uma progressiva curva para a direita. Por esse motivo não viu a fraca luz que vinha do fundo antes de percorrer um bom pedaço. A princípio sentiu-se aliviado por aquela impenetrável escuridão ter realmente um fim, mas não demorou a perceber a ameaça que poderia repre­sentar. Subitamente assustado, grudou as costas na parede e se man­teve quieto. Essa era a única maneira de averiguar se a luz se dirigia ou não a ele. Ficou observando durantes vários e tensos minutos, mas a luz se manteve imóvel. Deu graças a Deus por isso, pois só a idéia de ter de voltar lhe era insuportável.

Com cuidado, continuou avançando. Com alívio comprovou que a passagem terminava um pouco mais à frente em uma escadaria de pedra, que levava à sala de onde vinha a claridade. Os degraus bri­lhavam pelo desgaste e tinham as bordas quebradas, como se já ti­vessem sido utilizados muitas vezes. Na parte central, havia inclusive uns pedaços afundados, devido às pisadas. Aquilo dava a idéia do tempo e do esforço que exigiu a construção da passagem.

Bossuet subiu os degraus conservando-se junto à parede e dei­xando em seu caminho as úmidas marcas de seus sapatos. De onde estava, perto de um dos pilares do arco de acesso, viu o que parecia ser uma ante-sala. O chão estava coberto por grandes pedras poli­das, que contrastavam com a sobriedade dos opacos muros de gra­nito. Ali, sustentadas precariamente por aros comidos pela ferrugem, havia três pares de tochas, que iluminavam uma imagem de Cristo crucificado e um pequeno altar, coberto por um pano com o símbolo da cruz. No lado oposto à passagem, abria-se uma estreita e baixa porta de metal, salpicada em muitos lugares por marcas de corrosão, como se se tratasse de uma enfermidade que a estivesse consumindo pouco a pouco. Na parte superior, tinha uma pequena abertura de finas barras de ferro, que antigamente devia ter servido para averi­guar a identidade de quem entrasse pela passagem.

As roupas de Gilles estavam completamente encharcadas e sua tremedeira havia piorado. Aproximou-se o mais que pôde das tochas, agradecendo pelo morno calor que saía delas. Tinha tanto frio que, por uns instantes, nem se importou com o fato de poder entrar alguém e descobri-lo. Desejava somente ficar sob o calor da chama ardente e teve de usar toda sua força de vontade para obrigar-se a sair dali. Ainda gelado, aproximou-se da grade da porta para ver através dela a sala ao lado. Era muito maior que o lugar onde estava ele, ainda que não pudesse vê-la inteira. Também podia ver só o começo de uma escadaria na parede oposta. O cômodo estava quase às escuras, e vazio, com exceção de um pequeno móvel ao lado da escadaria.

Gilles não via ninguém do outro lado, apesar de haver a possibi­lidade de ter alguém escondido nas partes mais aprofundadas que ele não podia enxergar. Movimentou-se de um lado a outro da grade para fazer uma última investigação e então notou uma fresta de luz nas bordas da porta. "Está aberta", pensou surpreso. Sem dúvida não esperava que fosse tão fácil. A sorte lhe sorria apesar de, depois do que acontecera nos últimos tempos, estar convencido de que a sorte tivesse pouco a ver com tudo aquilo e que tudo o que acontece tem sua razão. Ainda assim, não pôde evitar sentir-se como um profanador de túmulos quando empurrou suavemente a porta e esta se abriu com um leve rangido.

A porta de ferro que atravessara estava embutida no grosso muro, em um nível inferior ao do chão da sala anexa, de modo que Bossuet ficava poucos metros acima do piso. Naquele alçapão se sentiu vulnerável e olhou nervosamente para todos os lados para ter certeza de que estava sozinho ali. Sem perder de vista a escadaria da sala, subiu por uns inclinados e estreitos degraus e se moveu sem fazer o menor ruído até uma região mais escura. Provavelmente não adiantaria muito se alguém aparecesse, mas o cômodo estava tão vazio que essa era a única maneira de esconder-se. Inclusive as pare­des estavam quase nuas, enfeitadas somente pelas tochas, mais funci­onais que decorativas, que emitiam uma luz azulada. Pensou que tan­tas precauções talvez não fizessem o menor sentido. Afinal, o irmão José sabia que ele tentaria entrar na câmara subterrânea. Contudo, se o frade lhe confessara o segredo da passagem, que sentido teria ago­ra delatá-lo? Gilles pensava que nenhum; mas ainda assim o mais prudente era continuar sendo cuidadoso e fazer o possível para não ser descoberto.

Como lhe parecera quando olhou pela grade, a sala era espa­çosa. O teto, baixo e abobadado, era formado por pequenos peda­ços de pedras tão próximos que nem parecia haver argamassa entre eles. O acesso a uma nova sala ficava à esquerda. Nessa parede se abria uma grande porta de madeira ricamente talhada e dividida em duas folhas que se encontravam abertas, presas por cordéis de uma intensa cor vermelha. Bossuet inclinou-se ligeiramente para a frente para tentar ver, de onde estava, o interior da sala. Mas não conse­guiu; as grossas e volumosas cortinas de cor púrpura o impediam. Foi até elas, caminhando sempre pelas sombras e parando várias vezes para vigiar as escadas e escutar se vinha algum barulho do andar superior. Com a mão trêmula, não sabia se pelo frio ou pelo nervoso, separou as cortinas um pouco para observar a sala através da fresta.

Nesse momento estava muito exposto à luz e, muito agitado, alternava o olhar entre as escadas às suas costas e a sala. Pôde ver que se tratava de uma sala muito ampla, quase toda envolta na pe­numbra, com sombras ameaçadoras e impossíveis de investigar e que ocultavam grande parte do ambiente. Dos dois lados da entrada, após as cortinas, erguiam-se duas grossas e altas colunas de estrutura retorcida que pareciam não combinar com a sóbria arquitetura do mosteiro, como se tivessem aparecido ali vindas de um distante e exótico país. Mas o mais insólito de tudo era o altar que havia na parede em frente, apesar de não estar certo de que esse era o nome que deveria dar-lhe. Ocupando um lugar central, havia uma grande cadeira de aspecto maciço muito parecida com as que vira na tribuna da sala capitular. Atrás dela, pendurado na parede, um belo tapete com desconhecidos e raros símbolos e, sobre ele, gravados na pe­dra, apareciam um triângulo com o onisciente Olho de Deus e uns desenhos em forma de estrela a seu redor, que Gilles, como bom matemático e astrônomo, reconheceu de imediato: era a constelação de Gêmeos. Aquela parte do cômodo estava iluminada por uma luz quente e fantasmagórica que não parecia sair das tochas na parede. Bossuet contemplava a cena maravilhado e só então compreendeu realmente. E, no mais profundo de seu coração, perdoou aos homens que havia chamado de injustos e pediu perdão também para ele mes­mo ao Deus que por tanto tempo negara.

Entrou na sala com passo decidido, sem esconder-se, pois já não sentia medo nem temor algum. As velhas bandeiras penduradas nos muros de pedra junto aos escudos de armas se agitaram leve­mente, movidas por uma brisa tão súbita como inexplicável. O ambi­ente se encheu com envolventes odores suaves e vozes de tempos passados. Vozes amigas, que lhe davam as boas-vindas. A luz das tochas se extinguia conforme ele passava, deixando para trás um ras­tro de escuridão. Quando chegou ao fundo da sala, o estranho fulgor que vira antes se tornou mais intenso por um momento antes de des­vanecer. A sala ficou então em completa escuridão enquanto Gilles aguardava ansioso, com os olhos muito abertos. Da parede surgiram, de repente, dois fios de luz paralelos no lugar onde estava pendurado o tapete. Dirigiu-se até eles desviando-se da cadeira mesmo não po­dendo vê-la. Depois estendeu o braço e a escuridão pareceu aumen­tar. Era o tapete que se afastava, deixando ver o portal que escondia. O acesso era estreito e coroado por um baixo arco de meio ponto. Bossuet teve de agachar-se para atravessá-lo, levantando-se logo do outro lado. A luz era escassa, mas deslumbrante diante da escuridão da qual saíra. Não conseguia identificar os detalhes do interior da sala. Uma parede esbranquiçada ao fundo, oposta à entrada, era a única coisa que podia ver. No entanto, à medida que seus olhos se acostumavam à luz, um desenho vaporoso e quase imperceptível foi aparecendo diante dele. Era o Lençol Sagrado, o Sudário de Cristo, sua Impressão; a relíquia que buscava há tão pouco tempo e que, no entanto, parecia que fazia muito.

Emudecido pela emoção e por uma veneração que ele mesmo não era capaz de compreender, como uma cor nova e nunca vista, sentiu que estava à beira de um desmaio. Cambaleou estremecido, atingido por um turbilhão de idéias tão tênues quanto a imagem do Lençol. E, movido por uma força tão clara e evidente como sua pró­pria vida, mas inexplicável e misteriosa, ajoelhou-se com os olhos cheios de lágrimas. Em vão tentou lembrar-se das orações que apren­dera quando criança. Nunca fora um homem religioso. E, no entanto, orou. Orou sem palavras, com o coração, elevando uma prece inefá­vel e verdadeira, cheia de sinceridade.

De repente uma voz o assustou. Era o abade do mosteiro, sen­tado em uma cadeira lavrada na pedra, atrás dele:

      - Eu o estava esperando - disse sossegadamente, majestoso.

Gilles não soube o que responder. Por uns momentos os dois homens se mantiveram em silêncio, enquanto contemplavam a ima­gem do Sudário.

- É bela, não? - falou de novo com seu tom de voz suave.

- Sim, muito - conseguiu responder Gilles, sem se virar.

- Tinha certeza de que conseguiria, meu amigo. E que suas inten­ções eram piedosas. Vi isso escrito em seu rosto, quando chegou.

- Sou somente um professor de matemática. Um parisiense acostumado com o barulho do mundo. Um ateu... - Gilles abaixara a cabeça e tinha os olhos fechados. As lágrimas escapavam por entre as pálpebras e percorriam-lhe as faces até precipitar-se ao estranhamente cálido chão de pedra.

- Verdade? - perguntou o abade já sabendo a resposta. ­Os ateus não costumam ajoelhar-se diante das imagens sagradas - ­disse levantando-se e aproximando-se de Bossuet, colocando afa­velmente a mão em seu ombro. - Nem orar. Muito menos com devoção. Diga-me, meu filho, não sente a energia que sai dele? - ­falou, observando o Lençol com verdadeiro amor.

A voz do abade ecoou no ambiente, profunda e bondosa, como a expressão do rosto do homem do Santo Sudário. E Gilles pensou que assim era, podia sentir seu poder. O coração batia com fúria no peito, apesar de sentir uma sensação de paz profunda e indefinível. As lembranças de toda sua vida passaram, agitadas e vertiginosas, por sua mente. Parecia estranho a si mesmo. Havia mudado, quase de repente. Ou talvez não? Pela primeira vez em sua existência era incapaz de julgar racionalmente o que acontecia. Isso perturbaria e irritaria o velho Gilles Bossuet. Porém agora, nas profundidades da­quele mosteiro, sentiu como se tivesse encontrado algo que perdera há muito tempo; encontrara a si mesmo, e soube naquele momento que jamais se afastaria da Imagem de Cristo.

 

                               1997, Madri

- Perdão, senhor. Poderia apertar o cinto?

As últimas imagens de um sonho ainda não se haviam desfeito quando Henrique Castro abriu seus olhos. Durante alguns instantes ficou sem saber onde estava, até que viu o rosto de uma aeromoça que o observava com uma expressão amável e tocava seu braço su­avemente.

- O cinto, sim, claro... - disse Henrique, tentando acordar totalmente e obedecendo a aeromoça.

- Também deve fechar sua bandeja - acrescentou a jovem. - Vamos aterrissar em poucos minutos.

Automaticamente, Henrique olhou pela janela do avião. Ao lon­ge, podia ver a cobertura urbana de Madri, da qual sobressaía meia dúzia de edifícios altos. Aquela cena lhe era familiar. De fato, depois de sua Cidade do México natal, Madri era o mais parecido a seu lar. Com uma certa nostalgia lembrou-se da primeira vez que esteve na capital espanhola. Como ocorre com muitos acontecimentos impor­tantes da vida, deveu-se a uma série de casualidades interligadas. Uns meses antes daquela primeira visita, havia-se licenciado cum laude (com louvor) em filosofia e letras pela Universidade Nacional Autônoma do México, o mais antigo e prestigiado centro de estudos superiores do país. Sua intenção era realizar o doutorado na própria universida­de. Era curioso que nunca conseguisse lembrar-se de que tema desenvolveria. Um dia foi até a secretaria da faculdade e, enquanto es­perava para fazer a matrícula de seu doutorado, começou a ler o painel de anúncios, mais para distrair-se do que por outro motivo. Entre as inúmeras ofertas de cursos e estágios, os avisos de prazos de matrícula e alguma outra proposta extravagante, havia um peque­no cartão escrito com uma bela letra no qual se anunciava uma confe­rência que se realizaria nesta mesma tarde. O palestrante era um tal de Eduardo Martins, da Universidade Complutense de Madri, e o tema era "Ascensão e queda dos cavaleiros templários".

Nesse momento ouviu-se pelo alto-falante a voz do comandan­te que anunciava aos passageiros que aterrissariam em poucos se­gundos no aeroporto de Barajas. O avião fez o contorno para ali­nhar-se na pista, e os papéis que Henrique tinha sobre a bandeja escorregaram. Com um movimento rápido, conseguiu agarrá-los quan­do estavam a ponto de cair no chão. Segurando-os nas mãos, apres­sou-se em tomar a maleta que tinha debaixo do assento da frente e introduziu os documentos nela, sem preocupar-se muito em organiza-­los. Com exceção de um dos papéis, que observou por alguns instan­tes antes de guardá-lo com cuidado em um dos bolsos da maleta.

Mais de dez anos antes, Henrique não sabia quase nada sobre os templários; seus conhecimentos se reduziam a identificá-los como uns monges guerreiros que, segundo acreditava, tiveram certa importância na Europa durante a Alta Idade Média. E isso era tudo. Recor­dava-se de quanto se aborreceu quando chegou sua vez na secretaria e soube que deveria voltar mais tarde porque o funcionário não esta­va encontrando seu prontuário. Pensou em ir para casa comer, mas acabou decidindo ficar na faculdade e comer qualquer coisa na lan­chonete. Sua casa ficava muito longe para ir e voltar rapidamente, e assim demoraria menos em resolver seus trâmites burocráticos. Ter­minado seu rápido almoço, não tinha nada para fazer, então se lem­brou da conferência sobre os templários. Talvez fosse interessante, e servir-lhe-ia para passar o tempo que faltava para que abrissem no­vamente a secretaria. Quando entrou na sala a conferência já havia começado. No local, que estava praticamente às escuras, não havia mais de uma dúzia de pessoas. Uma grande tela situada no fundo da sala exibia a imagem de uma gravura que, segundo explicou o palestrante, representava a batalha de Nicéia, na cruzada do ano de 1095. Essa foi a primeira vez que Henrique ouviu falar de Hugo de Pains, Godofredo de Saint Omer e outros sete cruzados que funda­ram a Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo, mais conhecidos pelo nome de templários. Os homens que, para ele, com o tempo se trans­formaram em pessoas mais reais e mais próximas do que muitas das pessoas que o cercavam. A conferência se estendeu por mais de duas horas e foi para Henrique uma das melhores coisas que presenciara em sua vida. Desde então se dedicou ao estudo dos cavaleiros templários, do mesmo modo como eles haviam feito mil anos antes pelos ideais que inspiraram sua Ordem. Ele sempre fora um jovem impulsivo, mas nunca chegara a tais extremos. Abandonou todos os projetos que idealizara durante anos e lutou para realizar seu douto­rado na Universidade Complutense de Madri. Sua tese de doutoramento, que publicou anos mais tarde, e cujo orientador foi o mesmo Eduardo Martins, tinha por título em homenagem a este pro­fessor: "Ascensão e queda dos cavaleiros templários".

Nos anos seguintes, conseguiu uma vaga de professor na cáte­dra de Filosofia e Letras da Universidade Autônoma do México, o mesmo lugar onde estudara. Alternou seu trabalho com uma intensa atividade investigatória, que não abandonara e que o levou a várias partes do mundo em busca de informações sobre a Ordem do Tem­plo. Agora, muito tempo depois daquela conferência, voltava uma vez mais a Madri, e a causa continuava sendo a mesma: a mais céle­bre militia Christi. A folha que guardara com tanto cuidado em sua maleta continha uma lista de obras, fruto de inumeráveis conferên­cias, pesquisas e conversas através da Internet com estudiosos do mundo todo. Especialmente com experts espanhóis, pois foi na Espanha que os templários tiveram mais influência e alcançaram maior poder, excetuando somente a França. Uma boa parte desses volu­mes se encontrava na Biblioteca Nacional de Madri. Eram aquisições muito recentes que ainda não analisara e fazê-lo constituía a razão principal de sua visita.

Apesar de sua acreditada condição de pesquisador, não foi fácil convencer ao reitor e ao patrono universitário para que concedessem uma bolsa e custeassem os gastos durante o tempo em que se prolongassem os estudos. Porém, conseguiu; a aprovação foi comunicada pelo coordenador da Área de Humanas da Universidade, somente dois dias antes. O tempo justo para providenciar os detalhes como a passagem de avião, o hotel onde se hospedaria ou o envio à Bibliote­ca Nacional dos documentos necessários para a renovação de seu vencido documento de pesquisador. Este era imprescindível para ter acesso à sala Miguel de Cervantes, lugar onde eram guardados ma­nuscritos, documentos e os mais preciosos tesouros da biblioteca.

Quando Henrique saiu do terminal do aeroporto em direção ao ponto de táxi, teve de tirar imediatamente a jaqueta. Era o início do verão e, nas primeiras horas da tarde, o calor era insuportável. Suan­do muito, mesmo não tendo esperado mais de cinco minutos, atirou-­se rapidamente para dentro do carro, agradecendo pelo frescor do ar-condicionado. No caminho, viu que haviam construído novas vias desde sua última visita e percebeu que o interior da cidade também mudara. Seu hotel ficava na praça de Santo Domingo. Após regis­trar-se na recepção, subiu para seu quarto, tomou uma ducha e tro­cou de roupa. Não saiu até o fim da tarde para evitar o calor. No fim do dia a temperatura era realmente agradável e decidiu ir andando até o Palácio do Oriente. Percebeu que suas imediações estavam muito diferentes do que recordava. Agora, a rua Bailén passava por baixo de uma praça austera e ampla somente para pedestres, que dava acesso por um pequeno jardim, cheio de estátuas, ao Teatro Real. Sua fachada branca e sua aparência de mausoléu tentavam em vão competir com a elegância do Palácio Real, sereno e belo. Visitou também os jardins de Sabatini e desceu pela costa de São Vicente até o Campo Del Moro. Já noite, dirigiu-se até à praça Maior e jan­tou em um restaurante mexicano próximo a ela, que descobrira quan­do fazia seu doutorado. Comer um bom pollo al chipotle (frango com molho feito com a pimenta que dá nome ao prato) era sua terapia particular para vencer a saudade de sua terra.

De volta ao hotel, tomou outro banho e deitou-se em seguida. Estava cansado pela longa viagem, e, além disso, no dia seguinte muito trabalho o esperava na Biblioteca Nacional. Adormeceu rapidamen­te, apesar do barulho que fazia o ar-condicionado do quarto e da luz que entrava pelas cortinas por mais que tentasse fechá-las.

 

Despertou muito cedo na manhã seguinte. A Biblioteca Nacio­nal abria às nove e ele queria aproveitar o máximo de tempo possível. Tomou o café da manhã rapidamente e entrou num táxi que o levou até a praça de Colombo. Dirigiu-se até o portão de entrada da bibli­oteca, protegida por uma guarita de vigilância e uma barreira para os automóveis, apesar de o guarda não lhe haver feito nenhuma pergun­ta. A fachada do edifício continuava como sempre. O desajuste de suas ordens clássicas era um tanto excêntrico, apesar de Henrique haver passado a apreciá-la com o tempo. O acesso à biblioteca se encontrava no andar térreo, em um lugar que passava quase desper­cebido ante a magnificência de uma grande escadaria de pedra que subia até três enormes portas na parte central da fachada. A entrada era uma horrorosa estrutura triangular de grandes vidros. Atravessou a porta e logo, sob o olhar atento de um novo segurança, passou por um detector de raios X. Entrou na sala da esquerda e se encaminhou até o extremo oposto. Ali, em um canto, se encontrava a secretaria.

- Bom dia! - disse a uma senhora de aspecto afável.

- Bom dia. Que deseja?

- Meu nome é Henrique Castro. Sou da Universidade Autô­noma do México. Meu documento de pesquisador venceu há alguns meses e acredito que minha universidade providenciou com vocês a renovação.

      - Sim, espere um momento, por favor - pediu a senhora. ­Perdão, qual é seu nome?

      - Castro Burgoa. Henrique Castro Burgoa.

      A eficiente funcionária consultou umas fichas que tinha sobre a mesa. Após revisá-las pelo menos duas vezes, apareceu em seu rosto uma expressão contrariada. Desculpando-se, levantou-se e desapare­ceu por uma passagem sem porta que dava acesso a uma sala adjacente. Uns instantes depois, ressurgiu, sorridente e com um papel nas mãos.

- Encontrei! - anunciou triunfante. - Pode preencher isto, por favor? - perguntou, entregando-lhe um impresso de cor azul.

Henrique folheou-o antes de começar a responder as pergun­tas, que se centravam basicamente em seus dados pessoais e aspec­tos relativos a tema, natureza e duração do estudo que pretendia rea­lizar. Uma vez completada a solicitação, entregou à senhora, que pro­videnciou então a confecção de uma nova carteirinha, utilizando para isso uma antiga máquina de escrever elétrica.

- Aqui está - disse a funcionária.

Agradecendo-lhe, Henrique passou para outra sala, bem menor que a da entrada. À sua esquerda havia outro acesso à biblioteca, também protegido por seus inevitáveis detectores. No lado oposto, encontrava-se uma mesa com o vigilante, que lhe entregou um adesi­vo alaranjado com a etiqueta de "LEITOR", depois de verificar sua carteirinha. Henrique grudou o adesivo no peito, sobre o bolso da camisa de mangas curtas, e seguiu em direção ao elevador por um longo e estreito corredor, repleto de arquivos e pastas, com antigas e conservadas prensas em alguns lugares. Em cima dele e abrangendo toda sua extensão, sustentada por finas colunas metálicas, havia uma passarela também de metal, cujo acesso era reservado para os funci­onários da biblioteca.

Chegava num ponto em que o corredor se alargava ligeiramente antes de continuar. Ali havia dois elevadores de aspecto moderno. Entretanto, seu interior era coberto por uma chapa metálica com um desenho de losangos e da cor de ferrugem, em que se via um espelho redondo. Tudo isso dava ao elevador uma aparência de vagão de trem antigo. Essa coexistência entre o velho e o atual era uma carac­terística de todo o edifício. Henrique desceu no segundo andar e en­trou por um curto corredor à direita. Ao final deste, havia uma porta alta e estreita que dava acesso às salas de pesquisa. Após passar por uma mesa de controle e um novo segurança, atravessou duas salas de tamanho e aspectos muito similares em seu caminho até a sala Miguel de Cervantes, situada no outro extremo. Esta era praticamente idên­tica às outras duas, e sempre o fazia lembrar da biblioteca do profes­sor Henry Higgins, em Pigmalion. As figuras dos enormes quadros pendurados nas paredes observavam imperturbáveis as mesas, dis­postas ordenadamente na sala, ocupando todo o espaço. Embaixo dos quadros, encostados às paredes, havia altos móveis de madeira de aspecto nobre, com uma infinidade de livros velhos em suas prate­leiras. Às partes de cima se chegava por uma passarela de metal sem brilho, que rodeava a sala a uns três metros de altura, à qual se subia por uma escada em forma de caracol fabricada em ferro fundido.

Em uma mesa, a um lado da sala, junto aos leitores de microfichas, estava sentado um funcionário ao qual Henrique entre­gou sua carteirinha. O homem guardou-a e deu-lhe um grande cartão plastificado de cor sépia com o número de identificação da escrivani­nha na qual Henrique deveria sentar-se. Antes de ir para a sala anexa, onde estavam os catálogos, Henrique tomou de uns recipientes plás­ticos uns folhetos pequenos e um outro um pouco maior. Tinha de preencher um deles a cada livro que solicitasse, indicando os dados do livro e os dele mesmo. O impresso maior era um resumo dos exemplares solicitados.

Os arquivadores com as fichas ficavam na sala anexa. Também estavam ali os terminais de computador nos quais se podia consultar o catálogo informatizado da Biblioteca Nacional, conhecido pelo nome de ARIADNA. Nele conseguiu localizar todos os livros que procura­va, menos um, que encontrou nas fichas sistemáticas. A que correspondia ao exemplar que desejava parecia haver sido incluída há pouco tempo já que, diferente de todas as outras, não apresentava uma cor amarelada e estava escrita à mão, em vez de com as carac­terísticas letras das antigas máquinas de escrever mecânicas.

Uma vez preenchidos os dados dos impressos, entregou-os à bibliotecária, que ficava sentada em uma mesa entre os terminais de computador e os arquivadores, para que os assinasse. Logo voltou à outra sala e os entregou ao funcionário que ficara com sua carteirinha. Este os observou por alguns segundos e disse com um sorriso amável que os levaria à sua mesa em uns vinte minutos ou, no máximo, meia hora, tempo que Henrique aproveitou para tomar um refrigerante na lanchonete do subsolo.

Quando voltou, os exemplares já estavam em sua escrivaninha, repousando sobre sua tábua levemente inclinada. Ainda que já tives­se lido muitos livros antigos em sua vida, sempre se emocionava ao vê-los e pensava que as palavras encerradas neles eram a única coisa que restava dos homens que os escreveram.

A informação contida nos velhos tomos era de valor incalculá­vel. Henrique se sentia aflito e contente ao mesmo tempo pela quan­tidade de dados, dos quais tomava nota sem parar. Utilizando, isso sim, um lápis para fazê-lo, pois as normas da biblioteca proibiam outros utensílios de escrita na sala Miguel de Cervantes, por motivo de conservação dos manuscritos. A leitura se tornava tão envolvente que não parou até bem depois das três da tarde. Os olhos doíam e estava faminto, porém valeu a pena. Nesse pouco tempo lera coisas que desmentiam teorias sustentadas por anos, apresentavam ignora­dos e surpreendentes achados sobre épocas e temas obscuros, e traziam novos enigmas que levariam gerações para ser desvendados. Aquele era o mais valioso e genuíno prêmio da investigação histórica. Em nenhum outro lugar como no silêncio de uma biblioteca, cercado pelo estranhamente acolhedor aroma de papel antigo, se sentia mais feliz e mais próximo dos grandes personagens que foram testemunhas e protagonistas da História.

 

Depois de comer com pressa na lanchonete da biblioteca, ansi­oso por continuar a leitura, voltou à sala Cervantes. Demorou várias horas revisando outros dois livros. O terceiro era um manuscrito consideravelmente mais grosso do que os que havia lido até o momento. Tratava-se de uma rara e bela cópia da Crônica de Jaime I, o Con­quistador, feita em finais do século XIV em um mosteiro catalão. Infelizmente o livro estava mal conservado, inclusive se podiam ver as marcas de queimaduras em muitas partes. Cada vez que via um livro assim, Henrique se perguntava intrigado qual seria sua história, por quais terríveis acontecimentos passara e que segredos escondiam suas feridas.

Jaime I, filho de Pedro II e Maria de Montpellier, foi o terceiro rei da Coroa de Aragão. O interesse principal de Henrique nessa figura se devia precisamente a esse fato. O reino de Aragão foi um dos principais centros de poder do Templo e o lugar para o qual fugiram muitos cavaleiros franceses quando os máximos dirigentes da Ordem morreram queimados em Paris, no início do século XIV. Des­de a fundação do Templo, os reinos cristãos da Espanha, em uma cruzada nacional, a Reconquista, atraíram muitos templários, que ter­minaram por fixar-se no novo país que estava se formando, graças à generosidade que demonstraram com a militia Christi grandes se­nhores como os reis de Aragão e os condes de Barcelona e Urgel, concedendo-lhe castelos e privilégios.

Outro aspecto da vida desse monarca que lhe interessava foi sua tentativa de criar na Palestina um reino cristão que, mesmo que não tenha chegado a se consumar, estreitou ainda mais seus laços com os templários, guardiões dos reinos latinos da Terra Santa.

Henrique foi devorando com verdadeiro fervor as façanhas do poderoso rei e seus vínculos com os Pobres Cavaleiros de Cristo. Perto do final da primeira parte do livro havia um salto inesperado no texto, de modo que a última frase de uma folha não tinha continuação na seguinte. Aquilo não era muito estranho, na realidade. Às vezes, os livros tinham folhas arrancadas e, sobretudo nos manuscritos, era possível que uma gota de cera ou a própria tinta não se secasse direi­to, o que fazia com que as páginas ficassem grudadas. Henrique le­vantou a folha e observou de perto suas bordas. Como pensava, as duas folhas estavam grudadas; podia ver uma fina linha na região de contato. Sua primeira idéia foi avisar ao funcionário, já que sabia por experiência que era preciso separar as folhas com extremo cuidado. Do contrário, corria-se o risco de rasgá-las. Entretanto, observando a sala, comprovou que o homem ainda não voltara. Uns minutos an­tes o vira indo para a sala anexa. Levantou-se da cadeira para olhar e tentar localizá-lo, mas tampouco o encontrou lá, e a mesa da bibliote­cária também estava vazia. Esperou por mais alguns minutos antes de decidir-se a separar ele mesmo as folhas. Assim evitaria que retiras­sem o livro da sala, se bem que não se atreveria a fazer aquilo se não tivesse feito outras vezes, sobretudo na biblioteca de sua Universidade.

Tirou a carteira do bolso e remexeu nela para encontrar um de seus cartões de visita. Era plano e resistente, e suficientemente fino para o que necessitava. Segurando-o entre os dedos, introduziu-o com sutil delicadeza em uma parte em que as duas folhas estavam ligeiramente separadas. Assim, muito lentamente, foi inserindo-o cada vez mais, separando as folhas. Chegou um momento em que o cartão se tornara pequeno demais para continuar, e então usou a identifica­ção de seu número de mesa, que tinha um tamanho consideravelmen­te maior. Quando conseguiu separar totalmente as páginas, achou que entre elas havia outra mais, que se mantinha aderida a uma delas. Seu tamanho era menor - por isso não a vira ao olhar a borda das folhas grudadas - e apresentava uma tonalidade clara, diferente da cor sépia que tinham as outras páginas do manuscrito.

Descobriu com surpresa que a folha estava escrita em francês. Sentindo curiosidade, apressou-se em terminar de desgrudá-la para ler o que dizia. O papel era mais fino, e sua textura e formato eram diferentes, muito mais modernos. A letra, elegante e bela, estava es­crita em tinta azul e não sépia ou preta. Henrique, que vira centenas de livros e manuscritos de todas as épocas, calculou que aquela folha tinha por volta de cem anos. Parecia que alguém do século passado a havia deixado dentro do livro e logo esquecido que a pusera ali. Intri­gado, começou a lê-la, mas isso o deixou mais perturbado:

 

Querido Gilles:

Já faz quase um ano que não tenho notícias suas. Sei que me havia dito, em sua primeira carta, que também seria a última. Mas tenho certeza de que você ficará con­tente em ler estas letras que lhe escrevo.

Continuo perguntando-me, e não deixei de fazê-lo durante todos estes meses, se você realmente encontrou a Síndone. Ainda que você não mencionasse nada a respei­to em sua carta, não vejo que outro motivo poderia fazer com que ficasse em Poblet, abandonando sua vida ante­rior e a cátedra na Sorbonne, e decidindo-se a ordenar-se frei. Você, que sempre foi um ateu praticante. Agora me lembro com nostalgia de todas as discussões, acaloradas e irreconciliáveis, que mantivemos em outros tempos. E não é porque eu o prefira ateu, e sim porque discutir com você significaria vê-lo de novo.

Em mais de uma ocasião pensei em visitar você em Poblet. Contudo suponho que tenha razões contundentes para me haver proibido expressamente. Mas ainda assim gostaria de vê-lo.

Paris continua sendo o fervedouro de gente e baru­lhos de sempre. Deveria ver a magnífica torre Eiffel. Tal­vez seja um pouco futurista para meu gosto, mas suponho que te alegrará de saber que o pedante Baudot tenha perdi­do sua aposta: está de pé e é um orgulho para a França.

Vem-me agora à memória a noite em que aquele po­bre e assustado peixeiro trouxe o medalhão à igreja. Re­cordo-me que pensei que estivesse bêbado. Você sabe como são as pessoas do rio. Também me recordo do dia em que o levei para você na universidade... Mas não quero entristecê-lo com minha nostalgia.

Só desejo parabenizá-lo outra vez, depois de tudo, por sua decisão. E esperar da Providência que o proteja e guie para sempre, agora que compreende, e compartilha comigo, os benefícios da vida na fé.

Sempre seu amigo, Jacques

 

             Século I, Edessa 944

Constantinopla 1204, São João do Acre

O Santo Sudário foi levado a Edessa por Tadeu. Ali, o rei Abgar, entristecido pela morte de Jesus, ordenou que fosse construído, junto ao rio Daisan, um pequeno santuário consagrado à relíquia. Nele, uma chama acesa permanentemente em memória do rabi daria teste­munho de sua veneração.

Mas a chama, com o passar dos séculos, extinguiu-se. Durante mais de trezentos anos o Santo Sudário, transportado à parte mais alta das muralhas da cidade para ser protegido de uma inundação, ficou esquecido. A Impressão de Cristo ainda não desaparecera do tecido. Somente durante uma guerra, estando a cidade cercada, redescobriu-se entre os muros, com a milagrosa e estranha imagem, à qual se atribuíram a resistência e a vitória de Edessa contra os inimi­gos. Em toda a cristandade houve notícia do Lençol: a Impressão Edessena, o Sudário com que se amortalhou Jesus no sepulcro, per­dido durante séculos.

Edessa conservou o Lençol durante quase mil anos, cercada de lendas e inspiradora de narrações fantásticas. Porém, em 943, es­quecida já a febre iconoclasta dos Isáurios, Romano Lecapeno, im­perador de Bizâncio, ordenou que o Sudário lhe fosse entregue. Os edessenos se negaram veementemente a isso: o imperador não tinha direito algum de exigir a relíquia, que pertencia a Edessa desde tem­pos imemoriais.

Romano Lecapeno, com as notícias de seus embaixadores, res­pondeu mandando um exército que sitiou a ousada cidade que se atrevia a desafiar seu poder. O bloqueio durou quase um ano. Duran­te esse período os edessenos tentaram confundir o imperador em várias ocasiões, com cópias pintadas do Lençol. Porém este, mesmo quando ainda não havia visto a Impressão de Cristo, não se deixou enganar com as grotescas imitações. O cerco se prolongou até 944, quando, exausta e vítima de todo tipo de penúrias, Edessa se rendeu e não teve outra opção senão entregar a relíquia a Bizâncio.

Romano Lecapeno regressou à capital do Império, Constantinopla, com o Sudário em seu poder. Era 16 de agosto. A entrada foi triunfal. Todos os cidadãos saíram às ruas para receber seu imperador. A curiosidade e o fervor religioso, em partes iguais, faziam aumentar a expectativa nas pessoas. Romano foi aclamado como um conquistador que voltava, de uma terra distante, trazendo consigo os maiores despojos de guerra que se pode imaginar. Muitos cidadãos o esperavam nas ruas; outros, sobre as mais altas muralhas. Milhares de almas se aglomeravam ao longo do itinerário que o Len­çol Sagrado deveria percorrer.

O exército imperial entrou em Constantinopla pela Porta de Ouro. Após passar pelo umbral, Romano entregou a relíquia às autoridades religiosas, que a conduziram, escoltada também pelos senadores, até a igreja de Santa Sofia. Ao chegar, diante da entrada principal, o Sudário foi desdobrado com grande cerimônia e mostrado ao povo, ansioso por ver a Impressão de Cristo o mais perto possível. Muitos ficaram decepcionados. A imagem era tão tênue que se tornava qua­se invisível. Só viam as manchas de sangue. Alguns, muito poucos, no entanto, puderam compreender o significado da vaga e nebulosa figura.

Antes de anoitecer, em solene procissão, o Santo Sudário vol­tou a ser dobrado e foi conduzido ao Bucoleon, palácio e residência do imperador.

O sol estava próximo do ocaso, acobreado e flamejante no ho­rizonte, quando a maior relíquia da cristandade atravessava as portas do Bucoleon para descansar na capela imperial de Santa Maria do Farol. Em dois séculos e meio ninguém voltaria a vê-la fora desse lugar.

 

Em Constantinopla, o Santo Sudário foi conservado até 1204. Um ano antes, a cidade fora saqueada pelos cruzados com a aliança de Veneza, fartos de seus abusos com os peregrinos nas estradas para a Terra Santa e de sua pirataria no mar. O ataque foi feito apro­veitando a fragilidade do Império Bizantino provocada pelas lutas internas entre dinastias reais.

Contudo, o saque de 1203 foi somente um anúncio da invasão que seria realizada no ano seguinte. Os cruzados, em sua maioria franceses, tomaram Constantinopla e fundaram um reino latino. A seu lado, além do apoio naval veneziano, lutou um bom número de cava­leiros da Ordem do Templo. Guilherme de Charny comandava a tro­pa templária, enviada para reforçar o exército de seus irmãos francos pelo grande mestre Felipe de Plaissiez.

Guilhenne de Charny, cavaleiro da Suprema Ordem de Sabóia, tinha em sua linhagem o parentesco com os duques de Borgonha. Homem valoroso e capaz, destacara-se na Terra Santa como um grande guerreiro. Ele era o único entre os templários que conhecia o verdadeiro motivo de a militia Christi se misturar aos cruzados e suas obscuras intenções na conquista da capital do Império do Ori­ente: o Santo Sudário.

Felipe de Plaissiez conhecera em São João do Acre o ancião e destronado rei Amauri de Jerusalém. Sendo este um jovem monarca, foi convidado a Constantinopla pelo imperador Manuel Comneno. Amauri, crente fervoroso, manifestou um grande interesse em ver o Santo Sudário. Diante do pedido sincero do piedoso rei, Manuel con­cordou. Conduziu-o ao lugar mais sagrado do Bucoleon, onde esta­va guardada e vigiada a relíquia. Era um privilégio inusitado, já que somente a família imperial e as mais altas autoridades religiosas podi­am entrar no santuário.

Amauri ficou emudecido pela intensa emoção de ter diante de seus olhos o objeto milagroso. Porém, apesar da excepcional atitude de Manuel, no espírito do rei de Jerusalém começaram a crescer certas dúvidas que o atormentavam. Era certo esconder um objeto sagrado que poderia oferecer tão alto e verdadeiro testemunho de Cristo aos fiéis? Era lícito que só o imperador de Bizâncio e uns pou­cos dignitários do Império pudessem contemplar o Lençol? Amauri, com sua infinita simplicidade, compartilhou seus pensamentos com Manuel. A sinceridade sempre é ousada, assim como a ignorância, e o jovem rei não fez senão ofender ao imperador, que lhe pediu que fosse embora.

Em sua senilidade, Amauri narrou ao grande mestre do Templo sua experiência. Acreditava que ele fosse um homem reto e leal e um verdadeiro amigo. Explicou-lhe o lugar onde se guardava a relíquia, oculta na câmara subterrânea secreta, à qual se entrava pela capela do palácio imperial, descendo por uma escura passagem. A entrada estava disfarçada sob o belíssimo altar, de mármore de Pentelikon (mármore de grãos finos e translúcidos). Nele estava gravada, em baixo-relevo, a figura dos doze apóstolos, cada uma delas coroada por um selo com seu nome. Apertando os selos adequados e na combinação certa –que Amauri ignorava -, o altar ficava livre de algum tipo de mecanismo de trava. Então, empur­rando com força até o painel, de maravilhosos símbolos, situados exatamente atrás, o altar se deslizava e dava acesso à escadaria que conduzia ao cômodo subterrâneo. Ali embaixo, sobre um pequeno altar e entre paredes revestidas de ouro e pedras preciosas, o Lençol - chamado em Bizâncio Mandylion - mostrava-se tetradiplon, ou seja, em quatro dobras que só deixavam visível o rosto do Cruci­ficado.

A situação do Império Bizantino era cada vez mais grave e pre­cária. Seu território diminuíra nos últimos cinqüenta anos, e com ele seu poder, debilitado mais ainda pelas lutas internas. Este fato não passava despercebido pelas nações ocidentais nem pelos turcos. Cedo ou tarde, uma potência estrangeira se apossaria da cidade de Constantino, à qual seu fundador chamou Nova Roma, prevendo seu futuro esplendor. Se isso ocorresse, e parecia inevitável, era preciso impedir que caísse em mãos infiéis. E, sobretudo, proteger o Santo Sudário de Cristo.

O rei Amauri confiava nos templários, monges-guerreiros ínte­gros e honestos. Se fossem eles a encontrar o Lençol no Bucoleon, tinha certeza de que procederiam da maneira mais adequada. Se fos­se encontrado por outros... Só Deus sabia o que poderiam fazer com a sagrada relíquia. E o Lençol devia pertencer a toda a cristandade, e não a uns poucos poderosos.

Com efeito, as suspeitas de Amauri sobre Bizâncio tinham fundamento e se confirmaram dois anos depois da conversa que teve com o grande mestre do Templo. Depois do primeiro saque à capital e ante a iminente tomada definitiva dela, Felipe de Plaissiez chamou para uma reunião seus homens mais próximos. Entre eles se encon­trava Guilherme de Charny, o mais jovem de todos, mas distinguido com grande honra por seus méritos, sua sensatez e prudência, de­monstradas estas últimas nas situações mais difíceis.

O grande mestre revelou a seus irmãos a localização do Santo Sudário e encarregou a Charny de comandar um grupo de cavaleiros que se uniriam, quando chegasse a hora, às forças invasoras. Uma vez dentro das muralhas, alguns deles se disfarçariam de simples ci­dadãos e, infiltrando-se nas tropas, se dirigiriam ao palácio imperial, onde se apoderariam da relíquia. Ninguém, exceto eles, devia saber do plano. Se alguém os visse, nunca saberia que, na realidade, eram cavaleiros do Templo.

 

                             1997, Madri

A misteriosa folha que Henrique encontrara no manuscrito não tinha o selo da Biblioteca Nacional, nem de nenhuma outra. Isso não significava necessariamente que não estivesse catalogada, pois não se marcam todas as folhas dos manuscritos, mas somente algumas delas. No entanto, e apesar de pensar que o ceticismo era em geral a atitude mais coerente para um pesquisador, tinha o pressentimento de que encontrara algo realmente genuíno.

Henrique releu a folha, detendo-se especialmente na frase que mencionava a Síndone. A verdade era que não sabia muita coisa so­bre ela; não muito mais, em todo caso, que uma pessoa qualquer. Apesar de ter certeza de que o Santo Sudário, o oficialmente autên­tico pelo menos, estava desde o século XV em poder da Casa de Sabóia, que a trasladara de um lugar a outro durante mais de um século até seu repouso definitivo na Duomo de Turim. Sabia tam­bém, e isso sim era menos conhecido, que antes dos Sabóia o Sudá­rio de Cristo fora custodiado por gerações pelos Charny, cuja estirpe sempre estivera ligada aos templários. De fato, um deles, Cristian de Charny, foi um dos nove cavaleiros fundadores da Ordem.

Sem dúvida, a Síndone de que falava a carta não era mais que uma das inúmeras réplicas do Santo Sudário espalhadas por paró­quias e igrejas de todo o mundo nos séculos passados. Mas ainda assim Henrique não podia deixar de sentir-se agitado. Havia algo comovente nas palavras de Jacques, o autor, uma mistura de tristeza resignada e de júbilo que não podia compreender. Tampouco enten­dia o estranho comportamento do homem ao qual a carta era dirigida, Gilles, e perguntava-se o que o fizera pedir, a alguém que parecia ser um amigo tão estimado, que não voltasse a lhe escrever, e, sobretu­do, como um ateu se convertera em monge e que relação teria tudo aquilo com o medalhão de que falava Jacques. Disse a si mesmo que não deviam ser mais que vidas comuns de pessoas comuns, mas, afinal, que era a História senão o resumo de todas elas? No en­tanto, havia algo mais: o nome do mosteiro que aparecia na carta. Esse nome... Poblet. Não lhe era estranho. E mais, tinha certeza de que ouvira falar dele em outro lugar, apesar de não se lembrar onde.

Após observar a folha contra a luz e certificar-se de que não tinha nenhuma marca d'água, copiou-a cuidadosamente em seu ca­derno de anotações e continuou fazendo conjecturas sobre ela du­rante o resto da tarde. Nesse tempo, descobriu alguns dados interes­santes. Como suspeitara antes de ler o conteúdo da carta, sua idade devia ser de pouco mais de cem anos, pelo menos era isso que indi­cavam as palavras de Jacques. Este, que Henrique supunha ser um sacerdote, falava da torre Eiffel como se acabasse de ser construída, e também de um tal de Baudot. Procurando este nome em uma enci­clopédia, descobriu que Anatole de Baudot foi um famoso arquiteto racionalista que participou da reconstrução da Universidade de Sorbonne e que pretendia renová-la totalmente à custa inclusive do antigo colégio do cardeal Richelieu e da capela. Outro grande arqui­teto, que finalmente terminou impondo sua vontade, oposta à de Baudot, e verdadeiro artífice da Sorbonne moderna, foi Henri-Paul Nénot, com quem Baudot manteve ácidas e contínuas disputas; as­sim como com o mais conhecido de todos os arquitetos franceses: Alexandre Gustave Eiffel, que, mais ou menos nessa mesma data, estava finalizando a construção de sua célebre torre para a Exposi­ção Universal de Paris de 1889. Pelo que podia deduzir também da carta, Gilles, o professor da Sorbonne, não parecia ter muita simpatia por Baudot. Isso fez Henrique pensar que Gilles também fora vítima do arquiteto assim como os demais.

Tinha consciência de que tudo aquilo podia ser pura perda de tempo - pelo menos com relação à razão de sua estada na Espanha -, mas acreditava que, dadas as circunstâncias, talvez valesse a pena. Quando o guarda veio avisar que a biblioteca já ia fechar, Henrique quase foi dominado pela tentação de esconder o manuscrito em sua maleta e levá-lo embora. Inclusive passou por sua cabeça, por um mo­mento, a absurda idéia de escondê-lo embaixo de suas roupas para evitar os raios X. Mas, na realidade, não pretendia roubá-o, somente tê-lo nas mãos por mais algum tempo. Com o tempo, conforme seus estudos se aprofundaram, concluíra que o conhecimento era como uma droga; talvez não tão destrutivo, ainda que igualmente venenoso e irreprimível. No entanto, ele era um homem honrado e mantinha a firme convicção de que os bens históricos deveriam estar disponíveis para todos aqueles que desejassem estudá-los, e não somente ao alcance de um colecionador ou de uns poucos privilegiados. Portan­to, arrumou suas coisas e, depois de devolver os livros ao funcionário e tomar de volta sua carteirinha, encaminhou-se à sala adjacente, em direção à mesa da bibliotecária.

- Pois não? - perguntou a Henrique, ao notar sua presença, levantando os olhos de um livro e ficando em pé diante dele. - Em que posso ajudá-lo?

Não era a mesma mulher que o atendera pela manhã. Devia ter por volta de quarenta anos e vestia-se de um modo que o fazia lem­brar Isadora Duncan (Professora de dança, nascida em 26.5.1877, na Califórnia, que depois tornou-se inimiga do balé).

- A verdade é que parece que sou eu que vou ajudá-los - disse Henrique com um sorriso.

- Desculpe-me, como disse? - inquiriu a bibliotecária sem compreender de que ele estava falando.

Como resposta, Henrique entregou-lhe a carta que havia en­contrado no livro. E acrescentou:

- Encontrei-a no manuscrito das Crônicas de Jaime I. Esta­va... entre as folhas - mentiu no último instante.

- Entre as folhas... - repetiu a bibliotecária fixando seus pe­netrantes olhos azuis nos olhos dele e balançando a cabeça devagar.

- Estava... - sentenciou, olhando de novo para a carta.

Henrique achava que ela suspeitasse de algo, apesar de parecer disposta a fingir que não. Esperou com paciência que a bibliotecária terminasse de ler a carta, que segurava com uma mão ao mesmo tempo que, com a outra, colocava descuidadamente o longo cabelo louro atrás da orelha. Seu rosto revelava uma expressão concentrada e pensativa.

 

- Teremos de comprovar sua procedência e datar sua origem, caso não esteja catalogada - disse mais para si mesma do que para Henrique, quando terminou de ler. - Em nome da biblioteca, agra­deço que não a tenha levado - acrescentou, com voz sincera e olhan­do fixamente. - Você é muito gentil.

- Ora, não importa; qualquer um haveria feito o mesmo ­disse ele, apesar de ambos saberem que não era bem assim. – Só gostaria que me informassem, caso descubram algo, se for possível. Ficarei bastante tempo em Madri e virei aqui todos os dias; portanto, nem seria preciso procurar-me.

- Sim, claro. Como não? - assegurou a bibliotecária com veemência.

O segurança entrou novamente na sala e avisou pela segunda vez que deveria deixar a biblioteca.

- Obrigado - disse à bibliotecária, dirigindo-se à saída. – E boa noite!

- Obrigada a você, senhor...

- Castro. Henrique Castro.

 

Henrique estava jogado sobre a cama de barriga para cima, pensando na carta. Na realidade, não deixara de fazê-lo desde que saíra da biblioteca. A única coisa que sabia de Jacques é que prova­velmente fora um sacerdote. Mais intrigante era a figura de Gilles, o ateu a quem algum acontecimento, sem dúvida extraordinário, levara a converter-se em monge e a desprezar o barulho do mundo, inclusi­ve as palavras de seu bom amigo. Como se fosse uma ladainha, Henrique se perguntava uma e outra vez o que teria ocorrido e que papel desempenhava aquele misterioso medalhão em tudo isso. Tinha os olhos completamente abertos, embora o quarto estivesse às escu­ras. Todo esse entusiasmo era agradável, empolgante, mas também o impedia de conciliar o sono. Uma vez mais acendeu a luz do despertador que havia sobre o criado-mudo para ver que horas eram, como se desse modo pudesse acelerar o tempo. Ainda eram duas da ma­nhã. Obrigou-se a fechar os olhos com um suspiro e tentou deixar a mente em branco. Não conseguiu totalmente, mas em algum momen­to deve ter adormecido, pois despertou com um sobressalto horas mais tarde.

- Arranz! Como pude esquecê-lo? German Arranz! - excla­mou, levantando-se bruscamente e começando a caminhar de um lado para outro para tentar acordar, enquanto sentia em seus pés descalços a maciez do carpete.

A luz do sol já entrava pelas frestas da cortina. Henrique parou de repente no meio do quarto, olhando para a janela sem vê-la real­mente. Estava concentrado em um pensamento escorregadio que ten­tava tirar do profundo poço do esquecimento e achava que manten­do-se quieto poderia de alguma forma segurar também os pensa­mentos. Apesar de absurda, a idéia funcionou. Ao acordar, aquele mesmo assunto povoou seus pensamentos, fazendo-o levantar-se da cama de um modo tão repentino, mas agora finalmente aparecia cla­ramente diante de seus olhos. Sua mente devia ter ficado trabalhando sozinha enquanto ele dormia, vasculhando na memória o que não pudera recordar na noite anterior. Aconteceu em Monterrey, nove anos antes, em 1988, durante um congresso dedicado ao Templo. Agora se lembrava de que a exposição do padre Arranz fora a última da convenção. Henrique nunca chegou a saber se os organizadores fizeram de propósito, apesar de, vendo o rebuliço que causou a pa­lestra do religioso, não estranharia se assim fosse. Aquele era o pri­meiro congresso importante de que Henrique participava depois de terminar o doutorado. Entre os palestrantes estavam quase todos os maiores experts no assunto, inclusive o padre Arranz, um rigoroso professor de história medieval pertencente à Ordem dos Sacerdotes do Coração de Jesus, conhecidos popularmente como Padres Repa­radores (Congregação fundada em 1878 pelo padre León Dehon). Naquele tempo, o religioso lecionava na Faculdade de Ge­ografia e História da Universidade Complutense de Madri, mas de­pois de tantos anos já devia estar aposentado, porque já era velho naquela época. Inclusive era possível que o tivessem enviado a algum lugar no exterior e que nem se encontrasse na Espanha.

Henrique quase perdera a conferência do padre Arranz porque, quinze dias antes, sua irmã sofrera um acidente automobilístico e fica­ra internada. Pensou que talvez por isso esquecera-se do religioso, na tentativa de apagar momentos tão difíceis.

Aos olhos de quem se dedique à pesquisa histórica, a polêmica que suscitou o padre com sua tese no congresso de Monterrey pode­ria parecer excessiva ou completamente infundada. No entanto, para muitos estudiosos dos templários, suas declarações foram demolidoras e inaceitáveis. Mais que as afirmações em si, pois muitas delas não eram novidade, o que causou indignação generalizada foi que elas partissem de alguém que todos consideravam uma das maiores auto­ridades mundiais no assunto. Muitos historiadores ortodoxos e de grande prestígio condenaram cruelmente o padre Arranz por se atre­ver a elevar ao patamar de verdade histórica o que até o momento não havia sido mais que conjecturas de alguns estudiosos aventureiros.

Os primeiros rumores da ligação dos templários com práticas esotéricas eram muito antigos. Em alguns trabalhos se narrava com riqueza de detalhes a relação dos Pobres Cavaleiros de Cristo com alquimistas, gnósticos e muitos outros grupos quase desconhecidos que, como eles, mantinham sob o mais absoluto sigilo suas misterio­sas práticas; além de sua relação com os companheiros construto­res, estreitamente ligados ao Templo. A maçonaria foi considerada tradicionalmente como a herdeira dos pensamentos e rituais dos templários, depois da abolição da Ordem na França. As primeiras lojas clandestinas de maçons surgiram na Inglaterra no século XIV, o que transformou o país, de acordo com as versões históricas do mo­mento, no novo baluarte dos templários na Europa.

No entanto, em sua exposição, o padre rejeitou essa teoria. Não negava que os ideais maçons estivessem inspirados em uma cer­ta interpretação dos princípios do Templo, mas sustentava que os templários sobreviveram à catástrofe que atingiu a Ordem com a exe­cução de seus dirigentes em Paris. Não como uma versão dos cava­leiros templários, tal e qual pretendiam seus colegas historiadores, e sim como eles mesmos, com muitos símbolos tomados dos constru­tores das catedrais, mas conservando suas mesmas práticas e ritos... "e seu mesmo poder".

Henrique se lembrava perfeitamente daquela frase pronunciada pelo padre Arranz. Ela se fixara em sua mente de um modo indelével e agora, da mesma forma que nove anos atrás, pareceu-lhe enigmáti­ca. Os dirigentes templários morreram; suas cinzas voavam com o vento de Paris enquanto os cavaleiros da Ordem fugiam apavorados, temendo ter a mesma sorte de seus irmãos. Suas igrejas e castelos caíram nas mãos do Estado francês, e os Pobres Cavaleiros de Cris­to foram humilhados em toda parte. E, entretanto, o padre Arranz afirmou na conferência que mantiveram seu mesmo poder. Henrique nunca conseguiu saber que poder era aquele de que falava o religio­so, posto que seu secular poder terreno havia acabado.

Essa afirmação foi só a primeira de muitas igualmente polêmi­cas. Admitia que muitos templários fugiram para Aragão e Catalunha. E mais, que no século XIV a maior parte dos irmãos do Templo era originária desse e de outros reinos da Espanha. Mas o padre Arranz ia mais longe em suas teorias. Segundo elas, foi Catalunha o lugar para o qual se transferiu o centro de poder do Templo após sua des­truição na França; mais precisamente a um mosteiro de Tarragona: Santa Maria de Poblet. Essa foi a primeira vez que Henrique ouviu falar o nome do mosteiro e não voltou a saber dele até a tarde ante­rior, quando encontrou aquela carta entre as páginas do manuscrito.

O religioso sustentava que houve outros centros antes, um na própria cidade de Paris, obviamente clandestino, e outro de menor intensidade em Londres. Mas que ambos foram destruídos de algu­ma forma, e ficara somente o de Poblet. Como prova, apresentou imagens de objetos e documentos, encontrados nas câmaras subter­râneas de um convento inglês e de outro situado na Île de la Cité de Paris, que testemunhavam a presença dos templários em épocas mui­to posteriores ao século XIV. Falou também de uma pequena igreja medieval que fora derrubada no povoado inglês de Templecombe. Atrás de um antigo altar de madeira estava escondida uma imagem de surpreendente semelhança com a do homem do Santo Sudário. Essa foi uma das revelações que mais chamaram a atenção de Henrique, pois o estranho rosto que o Sudário ocultava fora visto pela primeira vez, em 1898, por um advogado italiano no negativo de uma foto que ele tirou do Lençol. O padre Arranz apresentou uma grande quantidade de evidências documentais para confirmar suas teorias, e todas elas concluíam o relevante papel que desempenhou o mosteiro de Poblet na continuação da obra do Templo.

Henrique nunca ouvira uma exposição tão precisa e tão cheia de paixão. Nem voltou a ouvir em todo o tempo que seguiu aquela Conferência. Lembrava-se de ter feito várias perguntas ao religioso durante seu discurso, e também ao final dele. Mas não chegou a ouvir a última resposta; tais eram os gritos e as vaias de seus colegas. Du­rante meses depois do congresso de Monterrey, estes se encarrega­ram de desmentir, em todas as revistas especializadas possíveis, as teorias e provas do padre Arranz, e ele nunca mais foi convidado para um congresso. Interessado pelo assunto, Henrique tentou con­seguir mais informações em artigos ou publicações do religioso. Mas foi em vão; o congresso de Monterrey parecia ser o primeiro e último lugar em que o padre Arranz exporia suas pesquisas sobre o mosteiro de Poblet. Por isso, Henrique pensou em algumas ocasiões entrar em contato com ele, apesar de nunca ter chegado a fazê-lo. Com o tem­po, desistiu de voltar a tentar... até agora.

Tomou o café da manhã rapidamente no restaurante do hotel e ligou para o serviço de informações telefônicas para descobrir o nú­mero da Faculdade de História da Complutense. Falou com alguém da secretaria que confirmou que o padre Arranz se aposentara uns anos antes. A funcionária não sabia de seu paradeiro atual e parecia não querer dar-lhe o último endereço do padre; mas, diante da insis­tência de Henrique, terminou cedendo. Tratava-se de um colégio da ordem dos Padres Reparadores: o Frei Luís de Léon, que, segundo pôde comprovar pelo nome da rua, ficava em um lugar muito próxi­mo do templo de Debod e da popular praça de Espanha. Disse a si mesmo que o mais conveniente seria ligar primeiro, não só por uma questão de cortesia, mas também porque não tinha certeza de que o religioso estivesse ali.

Estava nervoso, como se voltasse à escola e cometesse a ousa­dia de ligar para a casa do professor. Só conseguiu discar o número correto após duas tentativas frustradas. O telefone chamou pelo me­nos umas dez vezes antes que se escutasse uma voz irritada e estri­dente. Dava a impressão de que interrompera a recepcionista em alguma atividade e que deveria sentir-se culpado por isso. Apressado pela senhorita, apresentou-se de um modo um pouco atropelado e, quando começava a explicar que estava procurando o padre Arranz, a recepcionista o interrompeu com um lânguido "vou passar para ele".

Henrique quase nem teve tempo de felicitar-se pela sorte que tivera, pois logo escutou, do outro lado da linha, uma voz pausada e profunda:

- Diga... - inquiriu German Arranz, com seu tom inconfundí­vel, apesar de talvez menos enérgico que uns anos atrás.

Henrique descobriria logo que a sorte de encontrá-lo fora maior ainda, já que o religioso, na verdade, morou no colégio quando dava aulas, mas agora só estava de visita em Madri, e que sua residência atual ficava no centro que a Ordem tinha em Salamanca.

- Padre Arranz! - cumprimentou Henrique muito contente.

- Sim, sou eu - afirmou a voz, no mesmo tom jovial e cheio de ironia. - E você, quem é? - interrogou com uma voz novamente séria.

- Não creio que se lembre de mim - disse Henrique, sentin­do-se mais nervoso. - Sou Henrique Castro, aquele jovem profes­sor mexicano que o encheu de perguntas em Monterrey, no congres­so de oitenta e oito sobre o Templo.

- Sim, recordo-me do congresso... afirmou o religioso pensa­tivo. - Henrique... Castro? - prosseguiu depois de um incômodo silêncio. Parecia que o padre não se lembrava quem era Henrique. Contudo, de repente, exclamou: - Oh, sim, o professor Castro da Autônoma do México! Já me lembro. Você parecia um jovem real­mente promissor...

- Obrigado - disse Henrique de todo o coração, sentindo-se profundamente lisonjeado por quem pronunciava aquelas palavras.

- Não tem por que agradecer. E, diga-me, que deseja?

- Encontrei algo que talvez possa interessar-lhe.

- Verdade? - perguntou o religioso com ceticismo.

- É sobre o mosteiro de Poblet - Henrique fez uma breve pausa, para que o velho professor pudesse considerar suas palavras. - Trata-se de uma carta que estava oculta em um manuscrito do século XIV, presa entre duas páginas - não sabia por que havia usado a palavra "oculta", mas percebeu que era muito conveniente para atingir seus objetivos.

- Sobre Poblet? E uma carta escondida em um manuscrito, você diz? - Henrique percebeu que o padre pretendia manter um ar de indiferença, mas sem conseguir.

- Isso mesmo - exclamou Henrique, tentando transmitir com palavras todo o entusiasmo que sentia.

- Está bem - cedeu finalmente o religioso, após refletir por uns instantes. - Tenho de ir hoje ao arcebispado, mas podemo-nos encontrar antes, se você quiser.

- Oh, sim, claro, quando o senhor quiser - conseguira. Havia conseguido chamar a atenção do duro professor.

      - Às quatro, então? Aqui mesmo no colégio, se não o incomodar.

      - Muito bem, estarei aí às quatro em ponto- afirmou Henrique radiante. - Muito obrigado, professor.

      - Obrigado a você, meu filho. E fique com Deus! - disse o padre Arranz, despedindo-se antes de desligar.

 

                               1204, Constantinopla, Pecs

A batalha dos cruzados contra o exército bizantino foi breve, porém cruel. As tropas de ambos os lados se encontraram diante das muralhas de Constantinopla pelo noroeste. No porto, o grande Chi­fre de Ouro, a armada veneziana, encurralou os navios imperiais. A superioridade numérica cruzada era esmagadora, e logo o exército bizantino bateu em retirada, indo para o interior da cidade. No cam­po de batalha ficaram centenas de homens mortos, sacrificados em uma luta inútil e que estava perdida antes de começar.

A resistência dentro dos muros também não se prolongou mui­to. Nos corações dos sitiados, o desânimo aumentava rapidamente. Seu antigo poder acabara. O grande império de outrora jazia agora desfeito em mil pedaços. Além disso, a idéia de ser conquistado pe­los cruzados não era tão ruim. Ao menos para os cristãos, como eles, apesar de terem características um pouco diferentes. Em qualquer caso, era melhor que fossem eles do que os turcos, sanguinários e infiéis.

O número de cavaleiros do Templo que se uniram às tropas cruzadas era de cem, totalmente equipados, armados e com monta­rias turcomanas, as melhores do mundo para a guerra. Antes da bata­lha, Guilherme de Charny escolheu oito desses cavaleiros para que o acompanhassem em sua missão secreta, todos eles de absoluta con­fiança. Cada um deles foi recrutado da mesma maneira: ele pergunta­va se o cavaleiro desejava ir com ele e, caso não quisesse, que man­tivesse o segredo com a ajuda de Deus. Todos aceitaram.

Os templários lutavam na frente do exército invasor. Por isso, foram os primeiros a cruzar as portas de Constantinopla, vencida sua frágil resistência. Nenhum caiu na batalha. Eram soldados bravos e experientes, endurecidos nas guerras da Terra Santa contra os sarracenos. Uma vez lá dentro, os oito cavaleiros e Charny se sepa­raram furtivamente dos demais e trocaram seus trajes militares por túnicas de fino linho. Para orientar-se na cidade, tinham um mapa desenhado por um turcople (soldado indígena) convertido ao cristianismo, que a co­nhecia bem e que costumava desenhar mapas para um grande mestre do Templo.

O caminho que deveriam seguir, se não aparecesse nenhum con­tratempo, estava traçado de antemão. As vielas escolhidas eram tão tortuosas e secundárias que com certeza evitariam encontros com soldados bizantinos. Em todo caso, estava previsto um caminho alternativo se a situação obrigasse a isso. Era de vital importância que chegassem ao palácio misturados entre os assustados moradores da cidade.

No porto, uma densa fumaceira e um forte resplendor anuncia­vam a destruição da frota imperial. As ruas estavam lotadas de cida­dãos, que corriam apavorados com alguns de seus pertences, os mais valiosos. A gritaria era ensurdecedora e quase cobria o barulho das explosões. Boa parte dos edifícios situados na região da muralha pela qual se empreendera o ataque ardia em chamas.

Charny e seus homens avançavam com rapidez entre a multi­dão. Na confusão que reinava, passavam despercebidos. Ninguém reparava neles, exceto para dizer-lhes que fugissem e se salvassem. O caminho foi longo: Constantinopla era uma das maiores cidades do mundo antigo. Porém, enfim apareceu, diante de seus olhos, o Bucoleon, cheio de harmonia, beleza e grandiosidade.

Os poucos soldados que guardavam o palácio estavam muito ocupados em seus postos para proteger a capela imperial; apesar de ser totalmente inútil, pois o imperador, vendo que a situação estava perdida, fugira dali. Por isso, Charny e seus homens tiveram muita facilidade para entrar sem que ninguém notasse, já que só tiveram de acertar e deixar sem sentido apenas dois guardas que vigiavam a en­trada de carruagens.

Se o exterior do Bucoleon era belo, o interior refletia todo o antigo esplendor, luxuoso e deslumbrante, do Império do Oriente. Sigilosamente, os cavaleiros atravessaram o pátio de armas e alcan­çaram a igreja sem nenhum contratempo. Dentro dela já não havia ninguém. Nenhum sacerdote permaneceu no lugar de seu ministério. Parecia que a fé se quebrava facilmente diante dos exércitos terrenos.

Conforme o relato do rei Amaury, o altar de mármore, tão bri­lhante como os carros dourados da aurora e tão branco como a pu­reza, estava diante deles, no fundo da nave. Apressando-se, os cava­leiros se aproximaram e retiraram o Lençol que o cobria. Embaixo surgiram as figuras dos Apóstolos, cada um com seu selo correspon­dente. O rei de Jerusalém havia dito ao grande mestre que era neces­sário apertar vários selos de uma vez; mas não se lembrava quais. De fato, nem sequer os vira diretamente quando lhe foi mostrada a Síndone, já que estava do outro lado do altar.

O tempo corria. Charny tinha a idéia preconcebida de apertar o primeiro selo e, sem soltá-lo, ir apertando os outros. Se não desse certo com o primeiro, tentariam com os demais da mesma maneira. Se a combinação que acionava o mecanismo de fechamento era com­posta somente por dois selos, aquilo deveria abrir em algum momen­to. Porém, como suspeitava, o sistema não era tão simples. Fizeram as mesmas tentativas com três selos e o resultado era o mesmo. O tempo estava acabando, e não conseguiam mover o altar.

Os cavaleiros estavam nervosos e abatidos. Seu plano funcio­nara perfeitamente até aquele instante, e seria muito triste ter de ir embora sem alcançar o objetivo. Alguns pressionavam os selos alea­toriamente, sem que a pesada rocha se abrisse. Enquanto isso, Charny refletia, tentando pensar em alguma coisa, já que o caminho dos selos não tinha dado certo.

De repente, como a asa de um pássaro fugaz, um pensamento tão claro e óbvio quanto absurdo roçou sua mente. Após uns segun­dos de meditação, já que não havia tempo para mais, explicou sua idéia aos outros. Era muito simples, mas antes de pô-la em prática todos se ajoelharam e se benzeram.

- Perdoe-nos, Senhor, pelo sacrilégio que vamos cometer­ disse Charny, elevando ao céu sua prece.

Dito isso, fez um sinal aos cavaleiros mais fortes para que fizes­sem o que haviam combinado, seu último recurso. Os dois homens, grandes como montanhas, agarraram com firmeza pesados candela­bros de ferro, da altura de uma pessoa, e começaram a bater com golpes terríveis contra o altar. Os pedaços de mármore pulavam, ar­remessados a distâncias inimagináveis. Aos poucos, com um barulho estrondoso, aumentado pelo eco da nave, o altar começou a rachar. Depois de uma dezena de golpes, a sagrada mesa se desfez em duas partes.

Sob os fragmentos, retirados pelos cavaleiros, apareceu a en­trada, exatamente como dissera Amaury. A escuridão era total. Charny pegou uma tocha e introduziu-se na passagem. Um de seus homens o seguia com outra tocha. A descida, por uma escada em caracol, era longa. A câmara subterrânea devia estar a uma profundidade considerável.

Por fim, abriu-se diante de seus olhos um espaço que quebrava a monotonia aborrecedora e angustiante da escadaria. O lugar era maior do que suspeitavam. O ouro e as pedras preciosas cintilavam à luz das chamas. No centro do local, sobre uma espécie de coluna grossa e achatada, o Lençol repousava coberto por um véu de seda quase transparente. Tudo parecia irreal, criado num mundo de so­nhos e fantasia.

Os dois cavaleiros se ajoelharam diante do Sudário, murmuran­do, cada um, uma improvisada e fervorosa oração. Recobrado do encantamento que a relíquia e o lugar produziam, Charny retirou o suave véu e, com muito cuidado, levantou-o, pondo-o em cima de seu braço direito, enquanto com o esquerdo segurava a tocha. Quan­do retomaram à superfície, todos os demais ajoelharam-se, piedosa­mente, diante do estranho e maravilhoso rosto de Jesus Cristo.

Conseguiram. Mas ainda tinham de sair do palácio, e o tempo se esgotava. Cada vez era mais próximo o barulho da batalha. Termi­nada a breve adoração, em honra ao Filho de Deus, Charny colocou a Síndone em seu peito, sob suas roupas. Esse era o melhor modo de transportá-la sem risco de perdê-la. Sua proteção não poderia ser melhor, pois, se tentassem tomá-la, teriam antes de arrancar-lhe a vida.

Satisfeitos pelo êxito de sua missão, os templários conseguiram deixar o Bucoleon sem a menor resistência. As tropas invasoras ain­da não haviam chegado ao palácio quando eles saíram. Não havendo mais nada a ser feito, os nove homens dirigiram-se a um lugar próxi­mo ao porto. Ali esperaram outros irmãos que trariam seus cavalos e roupas. Novamente como cavaleiros templários, Chamy e seus ho­mens deixaram Constantinopla. Tinham orientação para levar a Síndone à França, onde estava estabelecido o núcleo político eu­ropeu do Templo.

Os cavaleiros cavalgaram desde o estreito de Bósforo até o noroeste, atravessando os Bálcãs. Passaram pela Macedônia e Sérvia. Ao parar para descansar durante a noite, algumas vezes o faziam em casas do Templo e outras pelo caminho, agasalhados por grossas mantas de lã. Na Hungria, reino libertado há vinte e cinco anos do jugo bizantino com a morte do imperador Manuel Comneno, hospe­daram-se em um convento templário situado aos pés das montanhas de Mecsek, muito próximo à cidade de Pecs, que era conhecida pelos monges por seu nome alemão, Fünfkirchen, ou seja, "Cin­co Igrejas".

Ali, Charny encontrou-se com um velho amigo, o companheiro construtor Laszlo de Oroszlany. O recém-eleito rei da Hungria, André II, decidira reformar a catedral românica, abalada por um terremoto, como oferenda a Deus por sua ascensão ao trono e como ação de graças pela libertação de seu povo, e era normal que a Ordem do Templo desse asilo e proteção aos companheiros construtores. De fato, os homens mais bem preparados e sábios de ambos os grupos compartilhavam conhecimentos e aspirações e estavam unidos por fortes laços de amizade que, com o passar do tempo, ficavam cada vez mais estreitos.

Laszlo era um homem franco e afável, simpático e muito amigá­vel, que parecia mais jovem do que era por sua forte constituição física. Ascendeu de suas origens humildes, como simples pedreiro, a mestre de obras, um grau muito respeitável que testemunhava suas aptidões como arquiteto. Guilherme de Charny e ele se conheceram dez anos antes em Magúncia, durante a construção de uma casa templária.

O encontro com o amigo fez nascer uma idéia na mente do ca­valeiro: o Santo Sudário necessitava de um baú onde se pudesse transportá-o e protegê-lo como merecia. O cofre deveria ser fundido em metal nobre, mas a falta de condições de Charny nesse mo­mento e a delicada situação financeira do convento de Pecs o obriga­ram a optar pela prata, que talvez não fosse o metal mais adequado para uma das maiores relíquias da cristandade, mas a fé e a devoção dignificariam o metal.

Quando Charny pediu a Laszlo que fizesse o baú, este estra­nhou que o pedisse a ele, que trabalhava com pedras, e não com metais; além disso, queria saber para que uso se destinaria. O cava­leiro respondeu que guardaria relíquias sagradas. O esclarecimento satisfez o mestre construtor, incapaz de imaginar o verdadeiro con­teúdo do cofre uma vez fundido. E, sobre a pergunta que o mestre fizera sobre a escolha dele para tal atividade, Charny disse que o considerava um artista e que na arte a única coisa que importa é a inspiração. Essas palavras não solucionavam o problema, mas Laszlo agradeceu muito os elogios de seu amigo, absolutamente sinceros.

Na casa do Templo havia uma forja. O mestre, informado por Charny de sua necessidade de usá-la, não pôs objeção alguma a isso, apesar de tampouco ter recebido uma explicação mais detalhada do que aquela que o mestre de obras recebera. Este usara uma rocha, oca em seu interior, para lavrar o modelo do baú. Por indicação de Charny, estava decorada com baixo-relevos dos Apóstolos. Depois, com argi­la de alta qualidade, fez o molde. Uma vez endurecido no forno, a prata foi despejada com a ajuda de um ferreiro do convento. A ope­ração foi um sucesso. Lasz10 usou o mesmo sistema para confeccio­nar a tampa do cofre, unida a este por duas dobradiças, e prendeu finalmente uma fechadura de tranca vertical que se encaixava em uma saliência da caixa.

A prata utilizada era de lei, muito boa para a época, mas con­tinha certas impurezas que lhe davam levemente uma cor de palha. O trabalho estava aceitável; talvez não fosse uma obra de arte, mas estava apresentável, levando-se em conta as circunstâncias. Após agradecer a Laszlo pelo trabalho e ao mestre da casa de Pecs pela ajuda, Charny seguiu viagem junto dos demais cavaleiros que o acom­panhavam até então.

Atravessaram lentamente as amplas terras germanas, contor­nando os Alpes, e chegaram por fim à França, término de sua jorna­da. Ali, a família dos Charny possuía extensas e ricas terras. O grande mestre do Templo ordenara a Guilherme que escondesse a relíquia em sua casa por um tempo. Era prudente esperar pelos próximos acontecimentos. Os templários não deviam se ver envolvidos no de­saparecimento do Sudário. Ninguém deveria ter notícias dele até que a situação se acalmasse.

 

                               1997, Madri, El Pardo

O táxi parou no cruzamento das estreitas ruas Martin de las Heras e San Miguel. Henrique desceu em uma esquina. A porta era de ferro fundido. Nela, com letras formadas por pedaços de pedra, como um mosaico, dizia: "Colégio Frei Luis de Leon". Era um edifí­cio de cinco andares, sério e austero, que exibia em uma parte de sua fachada, como uma grinalda sobre o andar de baixo, desenhos abs­tratos próprios dos anos sessenta, que causavam um contraste peculiar.

A porta de entrada dava para um vestíbulo que, ao fundo, se transformava em um corredor. À direita, um busto de bronze do fundador da Ordem parecia estar colocado para observar e assustar os alunos que passassem por ele: "A partir daqui, comporte-se bem", À esquerda, junto a umas escadas que desciam, havia uma cabine, com a recepcionista em seu interior. Henrique se dirigiu a ela e perguntou pelo padre Arranz. A mulher tirou o fone de ouvido e avisou o sacer­dote; depois disse a Henrique que ele desceria em seguida.

Poucos minutos depois, a figura solene do religioso apareceu, vindo pelo corredor. Vestia calças e camisa preta e usava colarinho clerical, um costume quase perdido entre os padres seculares. Dava uma sensação de Antigüidade, de anacronismo. Seu rosto estava en­velhecido e caminhava devagar, com alguma dificuldade, ainda que harmoniosamente. No entanto, seu braço direito parecia sofrer uma leve tremedeira, que se acentuou ao estender a mão a Henrique: era o sinal evidente do mal de Parkinson, ainda incipiente.

- Espero que desta vez suas perguntas sejam sensíveis ­disse o padre, com gesto amável.

- E eu que suas respostas sejam menos complexas - acres­centou Henrique sorrindo. Alegrava-se realmente de ver aquele ho­mem cujo modo de expor os fatos históricos o entusiasmou tanto, apesar de ter assistido somente a sua última conferência.

O padre Arranz pediu a Henrique que o acompanhasse. Con­duziu-o até uma pequena sala, cuja porta ficava no corredor que le­vava à igreja paroquial. As paredes estavam decoradas por grandes avisos emoldurados dos diferentes eventos do centro.

- Bem, Henrique, que diz a carta de que me falou e que tanto o intriga? - inquiriu o padre, quando se sentaram em sóbrias poltro­nas de tecido verde.

- Com certeza deve ser uma pista falsa. Como disse, encon­trei em um velho manuscrito - disse, passando a cópia do docu­mento ao religioso e tentando disfarçar a excitação.

O padre Arranz pôs uns pequenos óculos, que tirou do bolso de sua camisa, e leu a carta com atenção. Teve de segurá-la com a mão esquerda para evitar o movimento causado por seus tremores. Seus vivos olhos se moviam atrás das lentes seguindo as palavras.

- Interessante... Papel francês. De final do ano 1889, con­cretamente.

Henrique estava surpreso. Todos esses dados eram tão corre­tos. Apesar de logo reconsiderar e concordar que um homem com a sabedoria de Arranz era capaz de reconhecer o tipo de papel sem duvidar e deduzir a data pela referência à torre Eiffel. Mas se espan­tou de que, aparentemente, não houvesse prestado muita atenção à menção ao Santo Sudário.

- De fato, professor. Suas deduções são exatas. Mas o que me chamou a atenção...

- É a linha que fala da Síndone. Estou enganado? – interveio o padre Arranz, terminando a frase de Henrique.

- Não, não está. Deixe-me explicar-lhe minhas averiguações. Comprovei que o Santo Sudário se encontra, desde 1453, em poder dos duques de Sabóia. Estava em Chambery e depois em Turim. Nesta última cidade está guardado desde 1578.

- Continue.

- Bem, sei que em toda a Europa há uma infinidade de cópias da Síndone espalhadas por todos os lados. Isso, supondo que se conservava a mortalha de verdade, naturalmente. Em geral, admite-­se que esta, a de Turim, seja a verdadeira. Mas recentemente sua origem foi datada como do século XVI. Alguns estudos, mais super­ficiais e não concludentes, são capazes de localizá-la no tempo. Por outro lado, os templários, mais precisamente a Casa de Charny, guar­daram a relíquia por mais de um século. E por isso queria vê-lo. Esta manhã me lembrei de sua palestra em Monterrey, onde citava o mos­teiro cisterciense de Poblet: o mesmo que se menciona na carta. Acre­dita que poderia haver uma cópia do Lençol não catalogada?

O padre Arranz olhou para Henrique com um sorriso maroto.

- Ou o Lençol verdadeiro.

As palavras do padre Arranz ecoaram na mente de Henrique como todos os sinos de uma catedral. Em sua primeira conversa, o religioso dispunha de pouco tempo, já que tinha de estar no arcebispado uma hora depois do horário do encontro com Henrique. O caso que lhe apresentou o professor mexicano o interessou pro­fundamente, e quis que voltassem a se encontrar o quanto antes. Como tiveram de terminar logo a conversa, combinaram de almoçar juntos no dia seguinte.

 

Almoçaram em um bonito restaurante de El Pardo, um pequeno povoado situado a dez quilômetros de Madri, cercados de natureza. Ali falaram tranqüilamente sobre suas vidas e experiências, deixando a Síndone de lado por um tempo. O padre Arranz contou a Henrique como lutara para esclarecer a verdade sobre os templários, mas sem­pre batia contra as esferas mais ortodoxas da pesquisa histórica. Ele, por sua condição de sacerdote, tinha ainda mais dificuldade. Era difí­cil de entender como as mentes mais capazes são às vezes também as mais obcecadas. Nunca defendera opiniões pessoais: somente fatos. A história se compõe de fatos, e não de hipóteses, apesar de estas sempre estarem na frente daqueles.

Terminado o suculento almoço, por conta da Universidade Au­tônoma, Henrique e o padre Arranz foram dar um passeio. O dia não estava muito quente e convidava a isso. O restaurante ficava em um belo e bem-cuidado jardim que em outros tempos pertencera ao ge­neral Franco, ao lado da rodovia que conduz ao mosteiro dos padres capuchinhos de EI Pardo, famoso por seu Cristo de Gregório Hernandez. Diversos tipos de árvores, como salgueiros, abetos e choupos, ofereciam uma esplêndida sombra.

- Ontem me disse o que sabia, Henrique; agora deixe-me contar o que sei - disse o padre Arranz, com uma expressão séria. – É curioso como, em algumas ocasiões, vêm à memória dados ou fatos que pareciam escondidos para sempre no passado. Quando você mencionou a Síndone e Poblet, e minha conferência sobre a sobrevi­vência do Templo depois de ser abolido oficialmente, não disse algo que talvez seja importante para sua investigação.

Na parte mais baixa do jardim, havia uma fonte com uma está­tua decapitada no centro. Henrique e o padre Arranz se sentaram em um dos bancos de pedra que a rodeavam.

- Como lhe dizia, ontem veio à memória um dado que agora parece fazer sentido. Pela quantidade de fatos, que demonstrei cate­goricamente, o mosteiro de Poblet é o centro templário mais moder­no que se conhece. Poder-se-ia dizer que há muitos outros na Euro­pa. Mas existem certos elementos, certos símbolos, que são genuínos e inconfundíveis para o olhar experiente. Pois bem, quando eu era um jovem sacerdote que estudava teologia em Roma, tive acesso a um documento na Biblioteca do Vaticano, que já naquela época me cha­mou a atenção, mas agora, meio século depois, assume um novo significado.

O padre Arranz explicou a Henrique como encontrara uma an­tiga compilação de documentos papais da época de Alexandre VI, o valenciano Rodrigo Bórgia. No livro havia cartas pessoais, anota­ções de diário, reflexões e todo tipo de papéis, todos eles escritos de próprio punho, que não era possível classificar de outro modo. Al­guns escritos faziam enrubescer, pois tinham características aberta­mente eróticas ou ímpias, em um tom de absoluta naturalidade. Po­rém, o que realmente tinha interesse neste caso era uma anotação descuidadamente escrita, concluída poucos dias antes da morte do pontífice e escrita em catalão, que dizia o seguinte e que o religioso pôde recordar, em parte, graças à sua memória fotográfica:

 

Meu filho já me disse que tudo deu certo. Não quero nem pensar na pobre garota que... perdeu a cabeça. César é tão impulsivo. Tenho de tentar domá-lo. Apesar de ser ele quem já me domesticou.

Nudos, como sempre, fez um trabalho soberbo; ape­sar de só tê-lo visto por um momento. Às vezes sinto que a cadeira de São Pedro é um pilar inacessível que os ho­mens não se atrevem a escalar. Ou que não querem esca­lar. Sou um pobre escravo vestido com pele de arminho.

 

Não sei o que César fez com o Lençol. É egoísta, e o quer para ele. É ambicioso... Nunca me diz nada, exceto quando necessita meu selo e o poder de meu cargo. Disse­-me que os Sabóia estão contentes. Que continuem assim!

 

Mais adiante, na mesma página, o papa continuava falando de sua filha Lucrécia e de seus sentimentos por ela, que a prudência aconselhava não mencionar.

- Isso lhe diz algo? - inquiriu o padre, quando terminou de narrar o conteúdo da anotação.

- Bom, mencionava um lençol. Será que se referia à Síndone?

- No papel, disso me recordo perfeitamente, lençol estava escrito com letra maiúscula; mais precisamente Llençol no original. Mas o que agora me interessa é a referência a seu filho César. Como deve saber, César Bórgia, após a morte de Rodrigo, fugiu para Ná­poles. Ali foi capturado por Gonzalo Fernandez de Córdoba, o Grande Capitão. Conjectura-se que este personagem, pertencente à Ordem de Santiago, foi na verdade templário, de uma ordem herdeira do Templo que sobreviveu ao século XIV e que poderia ter seu centro em Poblet.

- Não consigo entender. Que relação há entre tudo isso?

- É evidente, querido Henrique. Se refletir sobre o conteúdo do documento, verá que fala da Síndone. Depois, ao que tudo indica, César Bórgia pôde tê-la em suas mãos. Se isso aconteceu realmente, e acreditarmos que o Grande Capitão a resgatou, para onde crê que a levou?

- Para Poblet, sim, talvez; apesar de serem somente suposi­ções...

- Pois é. A sua missão é derrubar as suposições e transformá­-las em fatos.

O padre Arranz olhava para Henrique como um velho professor que repreende um aluno por não haver ido bem em um exame. Seus olhos brilhavam de entusiasmo.

- Mas como lhe passou despercebido quando a leu? - bal­buciou Henrique, desconcertado pela profundidade intelectual do re­ligioso. - Parece ser capaz de deduzir tudo o que...

- Porque, quando eu a li, não pude relacionar a Síndone com Poblet. A carta que você encontrou é o elo que me faltava. Agora você deve continuar a investigação. Eu estou muito velho e doente para ajudá-lo - parou por uns instantes. - Com certeza deve ter chamado sua atenção a frase que diz que "Nudos" fez um bom trabalho.

O sacerdote tinha razão. Essa parte do texto confundira Henrique, apesar de pensar, simplesmente, que o autor cometera um erro ao escrever, vítima de um lapsus cálami (Escorregadela. Literalmente, significa "escorregadela da pena", um erro de escrita). Antes que o mexica­no pudesse responder, o padre Arranz continuou:

- "Nudos", em catalão, é Nusos. Não se esqueça do costu­me, hoje superado, de traduzir os nomes e sobrenomes para as dife­rentes línguas ou adaptá-las para obter um som mais de acordo com o que se pronunciava.

- Não entendo.

- Está bem claro, meu amigo. Como se diz ''Nudos'' em italiano?

Henrique refletiu um pouco. A pergunta era muito simples:

- Vinci! - exclamou, ao se dar conta do sentido da palavra.

- Exatamente: Vinci. Agora vejamos, isso significa que Leo­nardo da Vinci teve alguma participação? Quem sabe fazendo uma cópia do Lençol? Aqui tem outro ponto para investigar.

 

Henrique acompanhou o padre Arranz até o "Frei Luis" e pro­meteu mantê-lo informado de tudo que descobrisse. Ali, antes de se despedir, o sacerdote lembrou-lhe de que Poblet fora um território forte do exército republicano durante a Guerra Civil. Após a Batalha do Ebro (Essa batalha foi a mais trágica, mais mortífera e decisiva de todas as grandes batalhas travadas durante a Guerra Civil espanhola), que se iniciou no verão de 1938, a República foi perden­do terreno. No Natal desse mesmo ano, Poblet foi utilizado como fortaleza contra as tropas nacionais. Os bombardeios e incêndios o deixaram em ruínas. Todos os monges foram assassinados. E leva­ram seu segredo para o túmulo.

 

                   1314, Paris - 1315, Champenard

O Santo Sudário ficou escondido na França durante mais de um século. Depois, até 1350, sem que soubesse como havia chegado a suas mãos, Godofredo de Chamy - filho de Pedro, irmão do último mestre do Templo da Normandia, chamado também Godofredo - e sua esposa, Joana de Vergy, mandaram construir uma capela em Lirey, dentro de seus territórios, onde o Lençol ficou exposto para que todo peregrino que desejasse pudesse vê-lo.

A Casa de Charny estivera ligada ao Templo desde 1118, data de sua fundação na Terra Santa. Em suas origens, a Ordem dos Po­bres Cavaleiros de Cristo era composta por somente nove cruzados franceses, entre os quais estava Cristian de Charny. Sua criação par­tiu de uma exigência que se tornara iniludível para a cristandade: a proteção dos peregrinos do Ocidente que a cada ano visitavam os Lugares Santos; milhares de viajantes indefesos diante de bandidos e assassinos que os espreitavam nas perigosas rotas que tinham de atra­vessar. Para isso, o reduzido grupo de cavaleiros, encabeçados por Hugo de Payns e por Godofredo de Saint Omer, solicitou ao rei de Jerusalém, Balduíno I, sua aprovação e sua ajuda na fundação da Ordem, uma militia Christi de monges-guerreiros; homens que aos votos de pobreza, castidade e obediência uniriam o combate ao infiel com fogo e espada.

O rei Balduíno concordou com os princípios da Ordem, enunci­ados por seu primeiro mestre, Hugo de Payns. Seu apoio se concre­tizou em algum dinheiro para início das atividades e um mosteiro em Jerusalém, a casa presbiterial da milícia, que não era mais que uma parte do Templo de Salomão, um pequeno edifício que posterior­mente daria nome aos templários.

Durante os primeiros anos, os templários foram aumentando seu efetivo rapidamente. Dos nove cavaleiros fundadores, logo o número passou para alguns centos, a maioria procedente da nobre­za francesa. Sua missão, a proteção das rotas de peregrinação e o amparo aos cristãos que por elas circulassem, começou a merecer a atenção de todos. Os Cavaleiros de Cristo cumpriam sua função admiravelmente. Isto os fez ganhar a simpatia de São Bernardo de Clairvaux, que lhes deu normas próprias, apoiou-os no concílio de Troyes e inclusive escreveu-lhes uma homilia: "Elogio à nova cava­laria". A partir de então, o Templo passou a gozar dos favores pa­pais.

Até o concílio de Troyes, celebrado em 1128, os templários seguiam as normas de Santo Agostinho. Por intervenção e conselho de São Bernardo, passaram a seguir a mais austera do Cister, com algumas pequenas variações com relação à original. E vestiram a bran­ca clâmide (Manto usado pelos antigos gregos, que se prendia com um broche ao pescoço ou ombro direito), feita de lã crua, sem tingimento, símbolo da pureza, da santidade e da pobreza a que se consagravam os cavaleiros. Algum tempo depois se incorporaria à sua vestimenta a vermelha cruz anco­rada sobre o ombro, no lado do coração, para significar voto perpé­tuo à cruzada.

A criação e a aceitação da Ordem do Templo significavam uma grande controvérsia da cristandade. A Igreja nunca admitira que se matasse nenhum homem. Neste caso, além de tudo, eram monges os que atuavam como guerreiros, pois as demais ordens existentes, como a do Hospital ou dos Cavaleiros Teutônicos, tinham um caráter emi­nentemente caritativo, e não militar. Este problema levou a uma conclusão importante: os cavaleiros templários só combateriam infiéis, em defesa da fé em Cristo. Dentro das nações cristãs seriam neutros e não lutariam nas guerras a favor ou contra nenhum lado.

Com o passar dos anos, os templários aumentaram seu poder. Dependiam unicamente da autoridade do papa, estavam isentos dos impostos aos bispos das dioceses locais e recebiam substanciosas doações em terras e dinheiro das províncias européias. Iniciaram um sistema bancário e criaram sua própria frota. Os reis confiaram neles como tesoureiros e conselheiros e eram procurados quando um pac­to deveria ser selado na presença de um homem honrado.

Porém, logo também começaram a circular boatos de que ti­nham posse de conhecimentos herméticos e ocultos para a maioria dos homens, de realizar obscuras práticas alquímicas e mágicas, de adorar a demônios e criaturas do mal. Os peregrinos e soldados, em seu regresso à Terra Santa, contavam histórias que falavam de anti­gos rituais, do segredo da imortalidade, da Grande Obra... O misté­rio envolvia os cavaleiros do Templo, sempre fechados em si mes­mos, enigmáticos e distantes.

Apesar destas práticas constituírem delitos muito graves, a Igreja não quis interferir enquanto a Ordem continuava sendo forte nos es­tados latinos do Oriente. Mas, quando estes foram extintos, em prin­cípios do século XN, a situação mudou. Nessa época, o Templo se tornara um incômodo para os grandes monarcas do Ocidente, pela acumulação de riqueza e pelo imenso poder que adquiriram.

Após a expulsão dos cristãos dos Lugares Santos, a Ordem do Hospital foi recebida por Malta, a Ordem Teutônica formou um esta­do soberano na Alemanha, e o Templo regressou para a França, na­ção à qual, junto com a Espanha, pertencia a ampla maioria de seus membros, bem como seus fundadores. Porém, na França o rei Felipe IV, o Belo, homem vil e traiçoeiro, ansiava em pôr as mãos no tesou­ro da Ordem, ao mesmo tempo que temia que o Templo criasse em sua nação um estado próprio, como acontecera com os cavaleiros hospitaleiros e com os teutônicos.

Os cofres franceses estavam vazios, e a idéia de imputar ao Templo terríveis crimes parecia um modo perfeito de dar um golpe definitivo contra seu debilitado poder, ao mesmo tempo que suas ri­quezas seriam confiscadas. E não seria muito difícil concretizar as acusações, já que os templários estavam cercados de lendas e boa­tos que poderiam, se agissem com astúcia, fazer com que o povo se convencesse de que eram realidade. A tortura era capaz de abrir a boca dos homens, mesmo que seus corações fossem limpos e puros.

Era o ano de 1307. Naquele tempo, era mestre da Normandia Godofredo de Charny, ilustre descendente do cavaleiro que havia resgatado o Santo Sudário durante a tomada de Constantinopla e ao qual foi confiada sua guarda posteriormente. Juntamente com Jacobo de Molay, grande mestre da Ordem, e outros cavaleiros importantes, Charny foi um dos dirigentes templários acusados por Felipe IV, inci­tado por seu conselheiro Guilherme de Nogarte, que odiava demasi­adamente a Molay e aos templários.

Quando se iniciou o injusto processo contra o Templo, instiga­do pelo monarca francês com a conivência do Sumo Pontífice, Cle­mente V, a Ordem foi acusada de renegar a Cristo em ímpios rituais iniciáticos, nos quais, além de tudo, os cavaleiros adoravam a ídolos demoníacos, como ao anão, barbudo e chifrudo, Bafomet. Foi dito que em seus conventos havia símbolos da Cabala, hebreus e muçul­manos, feitos de pedra; que eram alquimistas e necromantes, que faziam bruxarias e todo tipo de ritual satânico. Foram denunciados como bruxos e feiticeiros, que se reuniam a portas fechadas nas ca­pelas da Ordem para escarnecer o Crucificado e praticar todo tipo de aberrações, cercados pelos símbolos ocultistas.

A Inquisição participou ativamente da causa. Desde o ano de 1231, era encarregada de zelar pela ortodoxia e pela manutenção da fé cristã. Não fazia muito tempo que as primeiras fogueiras, instituídas pelo imperador Frederico II do Sacro Império Romano-Germânico, haviam devorado homens e mulheres que, por expressar seus pensa­mentos ou por motivos simplesmente absurdos, foram perseguidos em nome da religião e da fé. Durante sete longos anos, 1307 a 1314, Jacobo de Molay e Godofredo de Charny lutaram para preservar a honra e o bom nome da Ordem. Sofreram longos períodos de prisão e tortura. Foram perdendo as forças pouco a pouco. Por fim, prefe­rindo a morte a continuar padecendo, sabendo que nada mais pode­riam fazer, resignaram-se ao inevitável e confessaram os delitos que o rei Felipe inventara. Era verdade que seus rituais eram esotéricos e que praticavam alquimia, mas somente porque estavam abertos a to­dos os caminhos do conhecimento. Era verdade que renegavam a imagem de Cristo na cruz, mas somente como demonstração de que haviam alcançado um grau mais elevado de compreensão, que não precisava de ícones. Era verdade, inclusive, que suas construções exibiam símbolos herméticos, mas isso não fazia deles adoradores do demônio. De necromancia, bruxaria, aberrações e satanismo não ha­via nada. Se não mantiveram, em seus círculos mais avançados, a ortodoxia cristã, se se desviaram da Igreja oficial, era somente por seu desejo de aumentar os dons que são concedidos a cada homem quando nasce, e sempre com o propósito de glorificar a Deus.

Uma vez mais na História, o mal ganhou a partida sob a hipócri­ta máscara do bem. Nunca foram cometidas maiores atrocidades que as feitas em nome dos mais altos ideais. Jacobo de Molay, Godofredo de Charny, Hugo de Peraud e Godofredo de Guneville foram quei­mados publicamente ao fim do processo. Quando estavam diante da população de Paris, renegaram suas confissões, arrancadas mediante tortura, confirmaram sua fé em Deus e lançaram contra seus carras­cos, Felipe IV e Clemente, a mais terrível e antiga das maldições, o Mancbenach, proveniente dos tempos de Salomão. Depois, entre­garam suas vidas com inteireza, serenidade e valor, dignamente, como haviam vivido.

O papa Clemente morreu após trinta e sete dias, e o rei Felipe, oito meses depois.

 

Godofredo de Charny tinha um irmão, chamado Pedro. Este morava em Paris, apesar de possuir ricas terras na Normandia. Os irmãos eram muito diferentes: Godofredo era movido pelo espírito religioso, enquanto Pedro era dado ao desfrute terreno. Se para o primeiro a existência só poderia fazer sentido como a transição para a vida ultra-terrena, para o segundo, só tinha como finalidade o gozo, o desfrute de cada momento. Assim, os irmãos passaram mais de dez anos sem se falar, opostos no mais íntimo de suas personalidades.

No entanto, Pedro sofreu muito durante o processo contra a Or­dem do Templo. Sempre vira o irmão como um homem reto e santo e não podia acreditar nas acusações que eram feitas contra ele e os demais cavaleiros. Tentou utilizar sua influência para libertar Godofredo da prisão. Mas tudo foi em vão: os inimigos da Ordem eram muito poderosos. E quando Godofredo foi queimado na fogueira, em 19 de março de 1314, Pedro entrou em um profundo estado de pros­tração.

Já fazia mais de um ano que isso ocorrera, somente alguns me­ses depois do falecimento de sua esposa. Desde então, Pedro vivia retirado no campo, longe da vida desregrada e fútil que tanto o agra­dara antes. Seu espírito sofria uma dor intensa e pulsante. Toda noite se lembrava de ambos e fazia uma sentida oração por eles a um Deus no qual não tinha depositadas suas esperanças. Era o mínimo que podia fazer em sua memória. Tinha certeza de que lhe agradeceriam se pudessem.

Na noite de São João de 1315, um forte temporal caiu de ma­drugada. Pedro acordou assustado pelos trovões. Começava o ve­rão, o calor fazia com que dormisse com a janela de seu quarto aber­ta, aspirando os doces aromas dos campos floridos. Levantou-se da cama para fechá-la, maldizendo aos céus por o importunarem, e en­tão, no bosque que ficava bem perto da casa, achou ter visto uma sombra na luz de um relâmpago. Forçou a vista, tentando enxergar na escuridão. Um novo relâmpago afugentou sua estranha impressão. Não havia ninguém do lado de fora. Quem seria louco de andar a essas horas tão intempestivas embaixo de semelhante aguaceiro?

Porém, quando voltou para a cama, uma imagem espectral o surpreendeu de repente. Diante dele, na entrada do quarto, estava o fantasma de seu irmão, com um resplandecente hábito branco e sem­blante acinzentado. Sua voz soou grave e distante quando falou, como se saísse de um poço profundo. Pedro ajoelhou-se tomado pelo pâ­nico. Não sabia se a imagem era realmente de Godofredo ou se se tratava de uma artimanha do demônio para arrastá-lo ao Inferno.

- Irmão meu, irmão meu... - dizia o fantasma sem parar, cha­mando-o desconsolado.

Pedro não era capaz de reagir. Estava paralisado e mudo pelo medo. A visão persistia e a voz... essa voz de além-túmulo parecia chegar até o último canto de sua mente.

- Que quer de mim? - conseguiu dizer por fim, gritando como um louco.

- Escute-me bem. Vim do purgatório para implorar sua ajuda. Pequei em vida e agora devo pagar minhas dívidas. Reneguei meus votos e traí meus companheiros... Se você tem alguma estima por seu irmão, vá ao antigo convento do Templo em Paris. Atualmente é um palácio do rei. Vá à noite e leve uma alavanca de ferro. Não leve tocha. Ninguém deve vê-lo. Conte as pedras da fachada que dão para o jardim, começando pelo lado direito. Pare na nona pedra. Tire-a do muro. Agache e meta o braço no buraco. Encontrará um baú de prata. É pesado. Tome-o e embrulhe-o em um pano. Saia dali o mais rápido possível. Volte para sua casa e esconda bem o baú. Você não deve abri-lo. Deverá dar como legado a seu filho Godofredo quando se case. Ele não deve abri-lo antes da cerimônia. O conteúdo do baú está destinado a ele por Deus. Guarde para você o segredo. Não diga nem sequer a seu filho como o conseguiu. Faça o que lhe peço, irmão meu. E mande rezar uma missa por minha alma. Não sofra por sua esposa: ela goza da companhia do Senhor. Mande re­zar uma missa por minha alma. Adeus, meu irmão. Não me esqueça...

Terminada a súplica desesperada, a visão se dissolveu tão re­pentinamente como surgira. Pedro se levantou como pôde, transtor­nado e perdido. Cambaleando, chegou até a cama e se sentou nela. A cabeça dava voltas; parecia que iria explodir. Estaria louco? Seria a imagem de Godofredo fruto de sua mente perturbada? Mas tudo parecia tão real...

Na manhã seguinte, Pedro acordou com um sobressalto. Como uma violenta correnteza que desce da montanha, a lembrança da vi­são voltou à sua consciência brutalmente. Sentiu então, novamente, o pavor que sentira à noite. Lembrou-se da figura fantasmagórica de seu irmão morto, e suas palavras o atingiram como pedras ao recordá-las.

Nada daquilo fazia sentido. Devia ter sido um sonho, um sim­ples pesadelo. Tinha de ser. Na noite anterior se excedera no jantar. Sim, isso explicava tudo, disse a si mesmo, tentando tranqüilizar-se. No entanto, quando se levantou e foi lavar o rosto, suas desculpas caíram por terra: nas palmas de suas mãos estavam gravadas, como estigmas, cruzes vermelhas do Templo.

 

                             1997, Poblet

Henrique dirigia pela Nacional II, em direção a Lérida. O mo­nótono barulho do motor sempre lhe causava uma leve sonolência. Entretanto, dessa vez se encontrava totalmente acordado, apesar de quase não haver dormido na noite anterior. Estava intrigado, profun­damente intrigado. Seu espírito inquieto estava extremamente altera­do, sobretudo após sua conversa com o padre Arranz. Na noite pas­sada, enquanto tentava em vão dormir pela segunda vez nos últimos dias, ficou remoendo suas palavras, tentando preencher os vazios que ficavam entre tantas perguntas sem resposta e tantos mistérios ocultos; mas não conseguiu, por mais que se esforçasse.

Assim que despertou pela manhã - se é que havia realmente dormido -, dirigiu-se à recepção do hotel com sua. bagagem para devolver as chaves do quarto e perguntou se poderiam providenciar o aluguel de um carro para ele.. Isso cinco horas antes, às sete da manhã. Agora, segundo dizia uma placa na rodovia, faltavam dezessete quilômetros para chegar a Lérida. Ali, pegaria uma estrada que se ligava com a N- 240 e, uns cinqüenta quilômetros mais adiante, segui­ria por uma rodovia local até L’Espluga de Francoli, para daí seguir em direção a Poblet.

Estava tudo marcado em um mapa que tinha aberto no banco do carona do pequeno Citroen. Só faltava um detalhe e, a essas ho­ras, estava padecendo amargamente sua ausência. Pela manhã, infor­maram que a agência Hertz não teria disponível nenhum carro com ar-condicionado até o dia seguinte, porque estavam todos alugados. Também disseram que poderia tentar na Avis ou em alguma outra agência se quisesse, mas que nesse caso teria de fazê-lo pessoalmen­te. Henrique descartou a última oferta e aceitou o automóvel sem ar­-condicionado que já estava disponível. Refletindo sobre isso, com o incômodo barulho que fazia o ar ao entrar pelas ventarolas abertas, perguntava-se por que simplesmente não esperou um dia mais. A úni­ca resposta que lhe ocorreu foi que, se houvesse esperado, talvez mudasse de opinião e perdesse a oportunidade, remota ainda que possível, de encontrar alguma resposta.

Chegou a L’Espluga de Francoli depois da uma da tarde. Estacio­nou o carro próximo de uma humilde igreja que parecia estar em obras. Estava faminto e, além disso, precisava encontrar um lugar onde hospedar-se; portanto, dirigiu-se a um restaurante de aparência tranqüila.

A comida estava ótima, assim como a sobremesa, que era um doce típico daquela região, chamado carquinyolis, que lhe sugerira enfaticamente o dono do estabelecimento e que Henrique foi incapaz de descobrir do que era feito. Quando o simpático homem lhe trouxe o comprovante do cartão de crédito para que assinasse, aproveitou para perguntar:

- Sabe onde posso hospedar-me aqui?

O homem coçou a barbicha com sua mão forte e grosseira, ao mesmo tempo que seu rosto assumia uma expressão séria e concen­trada. Em sua mão direita ainda estava o pires com o recibo. Henrique teve de segurar-se para não rir, porque qualquer um diria que havia lançado ao dono do restaurante um enigma matemático quase impos­sível de resolver, em vez de uma simples pergunta que, sem dúvida, já deviam ter-lhe feito mil vezes.

- Bom - disse por fim o homem com um forte sotaque catalão, saindo de seu transe -, aqui em l'Espluga temos a hospedaria do Senglar. É um lugar muito agradável e limpo, mas um pouco caro. Nas redondezas há mais dois: o hotel Mosteiro e a Masía Cadet, mas são menos recomendáveis.

- Qual é o mais próximo ao convento de Poblet? - pergun­tou Henrique. O rosto do homem mudou subitamente ao ouvir isso. Sua afável campesina expressão deu lugar a outra cheia de medo e desconfiança.

- Não será você um desses? - inquiriu com desprezo.

- Perdão? - disse Henrique perplexo. - Um de quem?

- Sim - respondeu o homem com um tom que beirava o ódio -, um desses endinheirados de Barcelona que se hospedam no bal­neário de Vila Engracia. Vêm aqui aos fins de semana com seus belos automóveis e passeiam por todo o povoado como se este lhe perten­cesse. Devem achar que levarão seu dinheiro no caixão, mas estão muito enganados, pois nem todos os milhões do mundo poderão sal­var suas almas da condenação eterna.

Quando terminou sua inesperada palestra, tinha o rosto trans­tornado. Henrique não sabia se pelo esforço que exigiu o discurso ou se por cansaço. Achava aquilo um pouco exagerado, mas concordou com veemência antes de dizer:

- Oh, não, eu não sou um desses - afirmou como se dizer o contrário fosse impensável e esteve a ponto de começar a rir outra vez diante de situação tão absurda. - Trabalho como professor no México e faço pesquisa histórica. Vim de Madri até aqui para averi­guar mais dados sobre a história do mosteiro de Poblet, que eu acho fascinante.

- Ah é? - o homem o examinou cautelosamente por um mo­mento sem dizer uma palavra. - Nesse caso, seja bem-vindo - acrescentou aparentemente convencido de que Henrique dizia a ver­dade. - Pode ir ao balneário, apesar de reafirmar que não recomen­do - continuou falando como se nada tivesse acontecido. - O al­bergue de Jaime I pode ser que seja mais conveniente. Foi reformado há somente três anos e fica próximo da rodovia, a apenas um quilô­metro da abadia. Fica em um belo local e é muito barato. Antigamen­te havia outro hotel perto do mosteiro, depois do albergue, mas ago­ra se transformou em uma escola de inglês. Você não acha engraça­do? Aqui não entramos em acordo sobre que idioma falar e vêm os estrangeiros para nos ensinar um novo - o homem começou a gar­galhar do que dissera, como se fosse a maior piada do mundo.

Quando conseguiu acalmar-se e recuperado já o bom humor, en­sinou-lhe como chegar ao albergue, não sem antes insistir para que tomasse um licor caseiro que Henrique achou delicioso, apesar de, quando se levantou, quase ter perdido o equilíbrio, o que provocou novas gargalhadas do homem. Seguindo suas indicações, seguiu pela rodovia da esquerda na bifurcação que havia na saída do povoado. Dali, demorou menos de cinco minutos em chegar ao albergue, mas teve de suportar o calor asfixiante pelo caminho, pois, com o efeito do licor que tomou, não se atreveu a passar dos quarenta. Da rodovia já tinha visto os prédios brancos e os telhados de cor clara do albergue. Era formado por vários módulos, entre os quais se destacava um de aspecto mais moderno. Henrique adentrou-o após deixar o carro no estacionamento e foi até a recepção perguntar se havia vagas. Era quin­ta-feira e quase não tinha movimento; somente um ou outro grupo de jovens com suas mochilas. Ainda assim, o atendente demorou um bom tempo para dizer se podia ou não hospedar-se no hotel.

Já em seu quarto, deixou a mala e tomou um banho rápido para refrescar-se um pouco da quente e longa viagem, e também para despertar. Estava ansioso para ver o mosteiro com seus próprios olhos, por isso, apesar do calor, que a essas horas era sufocante, voltou para o carro. Seguiu pela mesma rodovia pela qual viera desde l'Espluga de Francoli. Em dado momento, ela se estreitava muito para passar sobre uma ponte de pedra e, um pouco mais à frente, havia dois desvios: um que indicava "La Pena", que, pelo desenho da pla­ca, era uma região panorâmica, e outro que conduzia a umas fontes, pelo que havia lido. Pensou que, se tivesse tempo, daria umas voltas pelos arredores antes de voltar a Madri. O lugar realmente merecia. A estrada subia até o albergue, mas agora serpenteava ladeira abaixo até o vale, rodeada por densos bosques de pinheiros e carvalhos, tão próximos dela que a sombra das árvores se projetava sobre a pista como um aro protetor.

Através dos vidros, inevitavelmente abertos, podia ouvir o can­to dos pássaros e respirar a agradável fragrância do ar da montanha. O barulho do motor era o único que se atrevia a perturbar, sem o menor constrangimento, a paz e a solidão daquelas paragens. Nada era diferente quando chegou às imediações do mosteiro. Não pôde evitar sentir um leve estremecimento ao vê-lo. As sóbrias e altas mu­ralhas que se erguiam diante de suas vistas transmitiam uma sensação de quietude ainda maior do que a que sentira pelo caminho. Agora começava a entender a indignação do dono do restaurante. Aqueles visitantes endinheirados de fim de semana não eram mais que vampi­ros tentando comprar o sossego como se se tratasse de um produto, maculando a mais valiosa e desinteressada oferenda desse lugar.

Após um cruzamento, deparava-se com um estacionamento, onde havia somente dez ou doze veículos. Um deles de aspecto tão estropia­do que era surpreendente que ainda funcionasse; se é que funcionava. Henrique deixou seu carro ali e foi andando até um restaurante de nome Fonoll, que parecia funcionar também como loja de recordações.

- Boa tarde! - disse ao homem que estava atrás do balcão. O lugar era fresco e no ambiente flutuava um delicioso aroma de doces. As mesas estavam quase todas vazias, assim como todo o lugar. Além disso, no balcão só havia um homem de uns setenta anos, que tomava um café.

- Boa tarde! - cumprimentaram o atendente e o homem ao mesmo tempo.

- Que deseja? - perguntou o primeiro, dessa vez falando somente ele.

- Uma garrafa de água sem gás, por favor. Bem gelada.

- É a primeira vez que vem por aqui, não é? - ouviu de re­pente uma voz a seu lado. Era o senhor do café quem falava.

- Hã...? Sim - admitiu Henrique, desviando seu olhar de uns bolinhos de aparência deliciosa e virando-se para ele.

Henrique esperava que o homem dissesse algo mais, mas ele não o fez; portanto, chamou o atendente para pedir que lhe trouxesse um dos doces, além da água.

- Eu já imaginava - voltou a falar o velho, como se houvesse voltado a viver de repente. - Sabe como descobri? - perguntou, mexendo a mão diante dos olhos de Henrique com o dedo indicador esticado. - Pela expressão de seu rosto ao olhar o mosteiro ­disse, sem esperar que Henrique respondesse.

O homem o observava com uma expressão séria. Tinha o rosto cheio de rugas e seu cabelo, totalmente branco, caía-lhe sobre a tes­ta. Quase sem perceber, Henrique olhou para fora através da janela, perguntando-se como o velho podia tê-lo visto a tal distância.

- Aqui está - disse o atendente, trazendo o que Henrique havia pedido.

- Oh, foi uma excelente escolha - exclamou o homem. ­Esse doce é uma verdadeira maravilha. Posso garantir, afinal estou aqui há mais de cinqüenta anos.

      - O senhor é monge? - inquiriu Henrique.

      O ancião não estava vestido como frade, mas usava uma calça cinza e uma camisa branca de manga curta; apesar de nesses tempos não significar que não fosse.

- Não, não, eu não - disse o homem com um tom estranho, um pouco triste talvez. - Sou somente um leigo. Ocupo-me dos assuntos mundanos da abadia. Meu nome é João - apresentou-se, voltando à voz normal e estendendo-lhe a mão.

      - Henrique Castro - apresentou-se também, apertando-a com firmeza. - Prazer em conhecê-lo.

      - Nossa! Que força! - queixou-se o velho. - Nota-se que o alimentam bem lá onde mora.

      - Desculpe-me, não queria...

      - Não se preocupe, senhor Castro. É assim que os homens devem dar a mão - afirmou com um sorriso, dando-lhe um tapinha no ombro. - Mas, diga-me, de onde vem?

      -De Madri. Estou ali...

      - Ooooh, Madri - interrompeu-o. - É uma cidade preciosa aquela - afirmou com o olhar perdido, como se estivesse evocando imagens de algo que viu um dia.

- Sim, é - concordou Henrique, após ter certeza de que o ancião não ia continuar. - Eu lhe dizia que estou aqui a trabalho. Na verdade, sou mexicano. Pertenço à Universidade Autônoma do Mé­xico e vim à Espanha para estudar uns manuscritos recém-adquiridos pela Biblioteca Nacional, a respeito dos templários.

- Os templários... - disse João com um suspiro respeitoso. - Então você gostará daqui. Lembro-me de que meu avô me conta­va as lendas que ouviu do avô dele sobre os Pobres Cavaleiros de Cristo que andaram por estas terras. Ainda pode encontrar castelos que pertenceram a eles em Barberà e Grafiena. E, sobretudo, nosso mosteiro de Poblet. Ao que parece, este foi um lugar importante para eles durante muitos séculos. Pelo menos era isso que afirmava meu avô. E eu acredito nele, sabe? - afirmou, adotando um tom de cum­plicidade. - Tenho visto muitas coisas estranhas nos porões da aba­dia, onde os visitantes não entravam.

Ao ouvir aquelas palavras, Henrique quase engasgou com o pedaço de doce que estava engolindo.

- Ver. ..dade? - conseguiu perguntar entrecortadamente, sen­tindo que o pedaço de doce ainda estava preso em sua garganta.

O ancião assentiu com solenidade, antes de tomar o último gole de seu café. E, depois de meditar por uns instantes, acrescentou:

- Com exceção dos monges e de mim, somente uma pessoa viu as câmaras subterrâneas. E isso foi há muito tempo. Era um pro­fessor, assim como você; apesar de ser também um sacerdote, se não me engano... Arranz, era seu nome, creio.

- German Arranz? - perguntou Henrique exaltado. Devia ter imaginado.

- É isso mesmo. German era seu nome! - exclamou o leigo.

- Você o conhece?

- Sim, claro - afirmou Henrique com convicção, apesar de tê-lo visto somente três vezes em sua vida. - É um homem fascinan­te, apesar de um pouco anti-social.

- Sem dúvida - sentenciou João. - Sim, um osso duro de roer. Como ele está?

- Bem, está mais ou menos. Sofre tremedeiras por causa do mal de Parkinson, mas conserva intactas a energia e a lucidez.

- Que coincidência! - murmurou o leigo novamente com ar pensativo. - O mundo é realmente pequeno. Dê lembranças minhas a ele quando o ver.

- Darei - assegurou Henrique.

- Gostaria de conhecer o mosteiro? - ofereceu João. – Se é amigo do professor Arranz, também é meu amigo.

      -Com certeza - afirmou Henrique entusiasmado. - Adoraria.

 

                                 1315, Champenard, Paris

Pedro de Charny sofreu uma mudança radical e irreversível em seu modo de ver a vida. O fato de confirmar que a aparição de seu irmão executado não fora um sonho o tocou no mais profundo de sua alma. E alegrou-se de saber que sua querida esposa, separada dele ainda jovem pelas garras da morte, estava na Glória. Sentia-se como um cego que, de repente, recupera a visão; um cego de nascimento que descobre pela primeira vez as cores e as luzes.

A primeira coisa que fez o novo Pedro de Charny foi confessar-­se com o pároco de Champenard, o pequeno povoado da Alta Normandia em que residia desde que chegara a Paris. Seus pecados eram muitos e alguns deles muito graves. Se agora deveria regressar à velha Lutécia e arriscar sua vida cumprindo o desejo de seu irmão, queria estar preparado para o Juízo, no qual apenas um dia antes ainda não acreditava.

Quando o pároco chegou à casa de Charny, parecia muito as­sustado e estava ofegante. Era um homem encorpado, que fora cor­rendo até ali diante do temor que sentia de ter de administrar a extre­ma-unção ao dono da casa. Sua preocupação era mais que compre­ensível: Pedro não era muito piedoso, apesar de cumprir sempre com suas obrigações religiosas e nunca antes ter solicitado a assistência de um sacerdote. Nunca o convidara sequer para uma visita.

Mas o verdadeiro motivo de Pedro para não ir pessoalmente à igreja do povoado era muito diferente do que o clérigo suspeitara. Além da confissão, queria pedir àquele bom homem que ficasse res­ponsável por seu filho e por suas duas filhas caso ele não voltasse. Mesmo assim, não deu muitas explicações ao sacerdote, fazendo-o acreditar que se tratava de um duelo em Rouen. Questão de honra: não podia dissuadi-lo de comparecer. Também encomendou uma missa por Godofredo. Durante todo o dia, Pedro não desgrudou as palmas das mãos do corpo.

 

A aparição de Godofredo acontecera na madrugada do dia an­terior. Seu pedido não poderia demorar a ser atendido. Ao amanhe­cer, Pedro saiu em direção a Paris. Viajou sozinho e com dois cava­los, um para ele e outro para o baú, quando o tomasse... Se chegasse a conseguir. Ao chegar à Île de la Cité, sentiu uma estranha nostalgia. Em seu espírito se misturavam as recordações de suas experiências ali, que haviam sido belas e prazerosas, mas que agora desprezava. Sentia certa pena de si mesmo, apesar de que o que estava feito feito estava.

O convento do Templo ficava no extremo oeste da ilha. Era um palácio cercado por uma pequena muralha, de um lado, e pelo rio, do outro. Antes de anoitecer, Pedro deu um passeio pela região, tentan­do traçar um plano para entrar no jardim. As portas se fechavam ao pôr-do-sol. Isso podia não ser um problema muito grande na hora de entrar, salvo, obviamente, se alguém o visse; para a saída, com o baú, seria diferente. O fantasma de Godofredo lhe dissera que o baú era pesado. Certamente não poderia escalar o muro com ele na cabeça.

Pensou muito e teve várias idéias. Quase todas eram absurdas. Só uma parecia realizável, apesar de complicada. Não tinha certeza de que funcionaria, mas deveria tentar, pois queria cumprir o quanto antes a incumbência que seu irmão lhe designara. Depois, assistiria à missa feita em sua intenção.

Chegada a noite, Pedro dirigiu-se ao palácio do Templo. Estava próxima a lua cheia. Havia muita claridade, mas a decisão de agir estava tomada. Escondido nas sombras, observou o recinto por duas longas horas. Não se via movimento nenhum em seu interior. O edifí­cio estava vazio, e todas as suas riquezas haviam sido confiscadas depois do processo. Não achavam necessário vigiá-lo e por isso ne­nhum guarda ficava ali durante a noite. De qualquer maneira, tinha de tomar cuidado.

Reunindo toda a sua coragem e sabendo que sua atitude não era insensata, Pedro foi até a muralha. Não tinha mais que a altura de um homem e era construída por pedras irregulares. Isso facilitava escalá-la, pois aumentava o número de saliências para se pôr os pés e apoiar as mãos. Pedro começou a subir por um lado não iluminado pela luz da lua. Levava uma alavanca e um grande pedaço de pano.

Logo estava dentro do palácio. Para chegar à fachada do jar­dim, caminhou alguns metros, virou à direita e começou a contar as pedras da primeira fileira, a mais próxima do chão. Parou na nona. Tirou a alavanca que estava embaixo das roupas e introduziu-a entre os espaços dos blocos, dessa vez totalmente regulares. Primeiro tirou os rejuntes e depois tentou mover a pedra. Esta não se desgrudava nem um pouco. Fez mais força, mas não adiantou.

Pedro suava muito. A noite estava quente e o esforço era cansa­tivo. Enxugou as gotas de suor que desciam pela testa. De repente, os latidos de um cão o assustaram. Pareciam muito próximos do lugar em que estava. Ficou imóvel, tentando aguçar o ouvido para saber onde estava. Os latidos pareciam cada vez mais próximos. O animal devia estar, certamente, do outro lado do muro do convento. Isso achava Pedro. Mas estava enganado. Diante dele, no final do muro, surgiu um animal de aspecto feroz e amedrontador, apesar de só poder en­xergar seu contorno e o brilho de seus olhos com a luz da lua.

O cachorro ficou parado por alguns instantes, o tempo suficien­te para registrar a posição de sua presa. Pedro ficou imóvel enquanto o animal, frenético, se lançava latindo sobre ele. Não havia escapató­ria, e ele simplesmente esperou com a alavanca erguida em sua mão direita. Foram momentos breves, mas intensos, de extrema tensão. Porém, quando o cão estava a poucos metros de sua presa, parou de repente, com os olhos saltados. Gemeu e caiu em atitude submissa.

Um sucesso tão estranho não poderia ser fruto do acaso. Era como se uma força invisível e superior protegesse o homem que, clan­destinamente, tentava recuperar o tesouro escondido do Templo. No entanto, era melhor nem pensar naquilo e continuar. O arco da razão tem um limite, e Pedro de Charny estava perigosamente perto de ultrapassá-lo.

Sem perder o animal de vista, que agora o observava apático, Pedro continuou seu trabalho. Introduziu novamente a alavanca entre as pedras, com mais ímpeto que antes, e fez grande esforço para ten­tar mover a pedra. Por fim, ela cedeu um pouco. Isso fez com que suas energias se renovassem. Empurrou o ferro mais para dentro e forçou novamente. O bloco cedeu um pouco mais. Estava conseguindo.

Demorou alguns minutos para extraí-lo completamente. Era tão pesado que foi difícil inclusive arrastá-lo para liberar a passagem no muro. Feito isso, ajoelhou-se e começou a tatear o espaço interior.

Não encontrou nada. Talvez o baú estivesse mais para dentro. Teve de se deitar para conseguir alcançá-lo. Torceu para que o cão não mudasse de idéia e tornasse a ficar hostil.

O buraco parecia não ter fundo. Pedro estava metido nele até a cintura quando tocou uma superfície fria de suaves e lisos contornos. Era o baú. Puxou-o com força ao mesmo tempo que o levantava para que não esfregasse sua base sobre a pedra. Pouco depois, o baú já estava do lado de fora. Não se deteve mais que um instante contemplando-o. Parecia antigo e belo; notava-se o amor do artesão que o fizera, apesar de ser um trabalho característico de um medíocre ourives. Envolveu-o no tecido antes de devolver a pedra ao muro. Depois, prendeu a arca com uma grossa corda, dando voltas ao re­dor e por baixo, até que estivesse bem firme. Amarrou então uma ponta à sua cintura e voltou ao muro do palácio. Como seu irmão dissera, o baú era bem pesado.

Antes de escalar o muro novamente, Pedro olhou pela última vez para o cão que quase o atacara, ainda espantado por sua inesperada atitude. Calculara o comprimento da corda para que pudesse subir sem tirar o baú do chão. Uma vez em cima, assegurou-se de que ninguém o observava e içou cuidadosamente, operação que repetiu de modo in­verso para baixá-lo do outro lado do muro. Depois ele desceu.

Tudo terminara bem. Agora só faltava sair dali depressa, espe­rar o dia amanhecer e voltar a Champenard. A missão de que Godofredo o incumbira estava cumprida.

 

Pedro chegou a sua casa antes do jantar. Subiu direto para seus aposentos. O empregado que estava escovando os cavalos surpre­endeu-se de ver seu senhor tão sujo e despenteado. Perguntou, as­sustado, se acontecera algo, mas Pedro nem o escutou. Tinha a cabeça em outro lugar. Agora que conseguira o baú, via com mais claridade os incompreensíveis acontecimentos recentes.

Em seu quarto, retirou o pano e observou o baú demoradamente. Era de metal; certamente prata, pensou. E, diante dele, teve vontade de abri-lo. Pôs as mãos sobre a tampa e a acariciou com ternura, muito lentamente. Em sua mente ecoavam as palavras de Godofredo: "Você não deve abri-lo...". Conteve-se. Deveria cumprir fielmente as orientações de seu irmão. Ainda assim, perguntava-se que tesouro haveria dentro dele. Seu valor devia ser incalculável, para suscitar tantos cuidados. Pelo menos, ficaria sabendo no dia do casamento de seu filho.

Continuava absorto em suas reflexões e recordações quando um ruído característico em seu estômago lembrou-o de que estava faminto. Não comera nada desde o dia anterior. Embrulhou outra vez o baú cuidadosamente, amarrando-o com um barbante, e o fechou no armário. Pediria que lhe trouxessem o jantar e, enquanto saciava seu apetite, teria tempo para decidir onde o esconderia. Seu filho tinha apenas dez anos, e ainda faltava muito tempo para seu casa­mento.

Estava cansado e tinha sono. Esfregou os olhos com a palma das mãos e percebeu, admirado, que as cruzes haviam desaparecido.

 

                                         1997, Poblet

Depois de pagar, Henrique e o leigo saíram do restaurante. O calor ainda era insuportável, e Henrique agradeceu pela fresca brisa que vinha das montanhas vizinhas.

- Aqueles picos mais altos do fundo pertencem à serra de Montsant - disse João, apontando-os. - E as que rodeiam o mos­teiro são as montanhas de Prades.

Os dois homens caminharam sob o sol em direção a uma porta presa na muralha exterior do convento. Henrique sentia o piso quente através de seus sapatos. João explicou-lhe que a porta se chamava de Prades, assim como as montanhas. Seguiram andando por uma praça mais estreita enquanto o leigo lhe contava a história de tudo que viam, e ele ia anotando e fazendo desenhos em um pequeno ca­derno, que trazia no bolso. Nos prédios baixos, de um lado, viviam antes os trabalhadores e artesãos que trabalhavam para a abadia. Alguém ainda devia ocupar-se dessas atividades, pois viam-se lus­trosas ferramentas em um barracão pelo qual passaram. A praça se abria mais à frente e, nela, ficavam as portas que davam acesso à antiga portaria, agora desativada, e à capela de Sant Jordi, encomen­dada por Afonso V em meados do século XV. Ao fundo, erguia-se uma nova muralha na qual se abria uma porta de duas folhas encapadas de bronze, que recebia o nome de Porta Dourada já que, de acordo com a tradição, fora coberta de ouro para receber o rei Felipe II. As muralhas exibiam os escudos das Coroas de Aragão e Catalunha, e também de Castela, postos ali em homenagem a outros visitantes ilus­tres do mosteiro: os Reis Católicos.

A Porta Dourada conduzia à Praça Maior. No caminho até o recinto interior do mosteiro, passaram junto à loja de recordações. Um grupo de mais ou menos vinte turistas, vestidos com roupas de cores e combinações impensáveis, amontoava-se para ver os obje­tos que o local oferecia e para comprar as entradas para a visita com guia. Em frente estavam as ruínas do antigo edifício da administração do convento e da velha hospedaria de peregrinos e pobres. Ao lado estavam construindo uma nova pousada com a intenção de substituir a antiga, apesar de agora, pensava Henrique, os peregrinos virem de carro e pagarem pela hospedagem, e os pobres nem sequer se apro­ximariam. O leigo o conduziu ao interior da pequena capela de Santa Catarina, de estilo românico, mas não ficaram ali por muito tempo. Novamente na praça, mostrou-lhe a cruz do abade João de Guimera e deram três voltas ao seu redor, o que, segundo a tradição, faria com que voltasse um dia a Poblet.

Henrique estava encantado com tudo o que via. O mosteiro era muito maior do que pensara, e sua conservação, exemplar. Mas per­cebeu que na cruz que tinha visto e em muitos outros lugares, havia uns estranhos entalhes; inclusive nas pedras do chão.

- Que são essas marcas nas pedras? - perguntou a João, com curiosidade.

- Você também percebeu, claro - disse o leigo, como se estivesse esperando a pergunta. - Foi algo realmente surpreendente - afirmou com comovedora tristeza. - Foi no fim de 1938, em plena Guerra Civil, alguns dias antes da noite de Natal. Nunca me esquecerei. Eu tinha - João fechou os olhos enquanto calculava­ - onze anos naquela época. Minha casa ficava a poucos quilômetros daqui, perto de Riudabella. Eu gostava de andar pelas montanhas com meus amigos, apesar de minha mãe ficar furiosa quando sabia disso. Naquele tempo, havia muitos lobos por lá; quase tão famintos quanto nós pela guerra. Agora já não há quase nenhum. Também costumava vir ao mosteiro para ver os monges e os funcionários tra­balhando nas vinhas. Eram muito amáveis comigo e sempre me davam um pedaço de pão, cachos de uvas e, às vezes, até mesmo um pote de mel. Principalmente o abade, um homem muito velho, de quase noventa anos, que falava com um sotaque diferente e se chamava Gilles.

Num primeiro momento, Henrique não soube a quem se referia o leigo, porque pronunciou o nome como "Gi-lles", em vez de "Llils". Mas, quando percebeu, sentiu um estremecimento. Fez um rápido cálculo mental: supondo que, se no fim do século passado Gilles ti­vesse por volta de quarenta anos, e continuasse vivo em 1938, teria aproximadamente noventa anos. Exatamente a idade do monge que João conhecera quando criança. Isso, aliado ao fato de ser um nome tão incomum, só podia significar que aquele frade era o mesmo Gilles a quem um sacerdote francês enviara uma carta há mais de um sécu­lo. A carta que Henrique encontrara no velho manuscrito. Tudo coin­cidia. Sentindo-se muito empolgado, continuou ouvindo com atenção as palavras do leigo:

- Nesse dia começavam as férias, apesar de, na verdade, des­de o começo da ofensiva do Ebro, as aulas já não serem mais tão regulares. Pelos bombardeios, sobretudo, sabe? - Henrique assen­tiu distraidamente, apesar de saber que na realidade aquilo era uma pergunta. - Eu me lembro de que era cedo; o céu estava completa­mente branco e fazia muito frio. Quando se ouviram os primeiros gritos eu estava no calefatório, que é uma pequena sala à qual se entra pela sala de jantar e na qual há uma lareira - explicou. – Fui até o claustro para ver o que estava acontecendo e o que vi me gelou o sangue, eu juro. Os monges correndo pelo pátio de um lado para outro. Pareciam muito assustados e não paravam de gritar: "Os milicianos estão aqui!". A verdade é que, na minha idade, eu não sabia muito de política; só sabia que os nacionais atiravam bombas e que os republicanos não tinham muita simpatia pelos padres. Assim, corri para me esconder na cozinha. Não sei bem por que, mas ainda continuo vivo; portanto, devo ter acertado na escolha.

Sob a sombra de uma árvore, em um banco de pedra no qual se sentaram, Henrique continuava anotando enquanto João falava. Sua letra era irregular, devido à velocidade em que tinha de escrever para não perder nada da história. Mas preferia que fosse assim a ter de interromper o leigo. Enfeitiçado, continuou ouvindo sem fazer nenhum comentário.

- Uns minutos depois, ouviram-se umas batidas terríveis vindas da Porta Real, essa que está ali - disse João, apontando uma entrada que ficava entre duas torres hexagonais. - E logo depois os tiros de verdade. Meu pai tinha uma escopeta de cartuchos e ia caçar com os companheiros de vez em quando, mas nunca me deixou acompanhá-los. Estava terrivelmente assustado. Não sabia se saía correndo ou ficava dentro do armário onde estava escondido. Era um desses que têm compartimentos grandes para guardar o pão, com respiradores nas portas para evitar que se acumule umidade. Minhas roupa estavam cheias de farinha e pensei que levaria uma bela bron­ca quando voltasse para casa e minha mãe me visse daquele jeito. Você consegue imaginar? Os milicianos tomando o mosteiro e eu pensando nessas coisas. Acredito que tenha sido por causa do medo. Aquela era uma forma tão boa quanto qualquer outra de dizer para mim mesmo que sairia dali com vida, mesmo que fosse somente para ouvir as reclamações de minha mãe. Era absurdo, claro, mas você não imagina como me ajudou pensar assim naquele dia.

A ponta do lápis de Henrique estava tão gasta que quase não podia escrever. Procurou ansiosamente nos bolsos e deu graças a Deus quando encontrou uma caneta. Não tinha a menor idéia de como ela tinha ido parar ali; talvez a tivesse tomado na recepção do hotel sem perceber. Mas isso não importava.

- Pelos respiradores podia avistar uma parte do claustro e também quase todo o refeitório por uma abertura que o comunicava com a cozinha. Foi assim que vi como os milicianos entravam no pátio e tomavam posições nele. Escutavam-se ruídos por todas as partes e passos agitados no andar de cima, como se estivessem re­vistando o mosteiro de cima a baixo. Nunca em minha vida passei tanto medo como quando os soldados entraram na cozinha e um de­les abriu o compartimento ao lado. Estavam tão perto de mim que podia sentir seu hálito e o fedor azedo de seus uniformes. Não che­guei a saber o que levaram dali, porque eu estava encolhido em um canto com os olhos fechados e rezando para que não me descobris­sem, mas todas as noites, desde então, dou graças a Deus por terem encontrado o que procuravam. Quando tive coragem de olhar nova­mente pelos respiradores, meu coração se apertou. O abade Gilles estava no meio do claustro diante de um homem vestido com um uniforme que parecia ser o comandante dos milicianos. Ao lado des­te, encontrava-se um outro militar que tentava convencê-lo para que fuzilassem todos os monges, mas o chefe da tropa se recusou a isso. Lembro-me de que, ao ouvir sua resposta, suspirei de alívio com tanta força que a farinha cobriu meu rosto e, por um terrível momen­to, pensei que fosse espirrar e delatar-me. Porém, felizmente não o fiz.

A história era tão apaixonante para Henrique que João às vezes o surpreendia olhando perplexo, com a ponta da caneta apoiada inerte sobre o papel. Depois tinha de fazer um grande esforço para alcançá­-lo de novo, mas era inevitável.

- Fiquei impressionado com a total serenidade que mostrava o rosto do abade quando, momentos antes, os dois milicianos estavam discutindo se iriam ou não matá-lo. Para lhe ser sincero, senhor Cas­tro, e apesar de ter dedicado toda minha vida a Deus, não creio que eu pudesse mostrar, diante da morte, a firmeza e a coragem que de­monstrou aquele homem; não creio que alguém mais pudesse. O abade não era o único monge que estava no claustro. Junto dele vi o frei José, o ancião chefe dos noviços, e em seu rosto tampouco havia medo algum. Recordo-me que, depois de ficar tanto tempo dentro daquele móvel, tinha as pernas doloridas e sentia câimbras por toda parte. Tinha certeza de que, se alguém chegasse a me encontrar, eu não conseguiria correr. Apesar de depois ter de fazê-lo para salvar minha vida - disse em um sussurro, mais para si mesmo do que para Henrique. - Os dois monges pediram aos milicianos que permitis­sem enterrar a um dos frades que, ao que parecia, morrera no dia anterior. Aquilo me surpreendeu muito, e ainda hoje me parece estra­nho. Como lhe contei, eu fui ao mosteiro pela manhã, bem cedo, e não vi nenhum sinal de luto, nem nenhum dos frades comentou nada sobre isso. Eu o estou incomodando com minhas recordações?­perguntou a Henrique de repente, como se acabasse de despertar de uma profunda letargia. - Não tem por que agüentar minhas velhas histórias. Os velhos como eu sempre falam demais. Eu acho que é porque temos medo de morrer e ninguém se lembrar de nós - sen­tenciou, sem que Henrique tivesse certeza de que falava sério ou não.

- Oh, não! Por favor! - exclamou Henrique, temendo que João não terminasse seu relato. - Continue, eu imploro.

- Está bem, como queira, senhor Castro - concordou o lei­go, para alívio de Henrique. - Mas não diga que não o avisei; ape­sar de não restar muito o que contar. Como lhe dizia, o abade e o irmão José pediram permissão ao comandante para enterrar um fra­de morto. Ele concordou, o que causou novas queixas e gritos por parte do lugar-tenente, que o comandante interrompeu, ordenando-­lhe que saísse do mosteiro para organizar o perímetro de defesa. Apesar de eu não ser mais que um menino, pensei que aquilo não ficaria assim. E infelizmente não me enganei. Houve um momento em que o claustro ficou vazio, porque os frades foram fazer os prepara­tivos do funeral e os milicianos simplesmente desapareceram. E quer saber? Aquilo foi o pior de tudo. Pode lhe parecer uma bobagem, mas eu comecei a chorar ao ver o claustro completamente deserto. Aquele lugar que poucas horas antes estivera tão cheio de vida e de atividade. Quando consegui parar, doía-me a garganta pelo esforço de não fazer barulho com meus soluços. Depois desse dia, continuou doendo por muito tempo.

Henrique conferiu inquieto as folhas que faltavam para terminar o caderno. Havia apenas dez, apesar de esperar que fossem suficientes.

- Mais ou menos uns quinze minutos depois que se foram, vi que os monges voltavam. Quatro deles carregavam sobre os ombros um humilde ataúde de madeira de pinho. Caminhavam com passo

lento e solene guiados pelo abade e por frei José. A comitiva estava escoltada por vários milicianos que apareceram no claustro pouco antes dos monges. Isso foi tudo o que pude ver de meu esconderijo na cozinha. Não sei exatamente o que aconteceu depois porque, não muito mais tarde, só pude ouvir os disparos e, ao mesmo tempo, uns desesperados gritos de pânico. Depois de tantos anos, algumas noi­tes ainda acordo coberto de suor, ouvindo aqueles horríveis gritos de dor e de medo. Não posso garantir, mas tenho certeza de que o abade e frei José morreram em silêncio, com a mesma dignidade que devem ter vivido suas vidas. Essa foi a segunda vez que chorei na­quela manhã, mas dessa vez não pude evitar fazer barulho. Chorei por Gilles e pelo irmão José, e por todos os outros monges, e por minhas doloridas pernas, que estavam completamente adormecidas, e sobretudo, chorei pelo absurdo da guerra cujas razões nem ao menos entendia.

Henrique percebeu que o ancião estava chorando. As lágrimas corriam pelo seu rosto seguindo os caprichosos caminhos das rugas. Ele mesmo estava quase chorando também.

- Sinto muito - foi a única coisa que conseguiu dizer. – Não precisa continuar se não quiser.

João enxugou as lágrimas com suas mãos calejadas e logo le­vantou uma delas para Henrique indicando que estava tudo bem, que podia continuar.

- Espero que me desculpe - disse o leigo aflito. - Sou um velho tonto. Fazia muitos anos que não contava essa história a nin­guém; o suficiente para acreditar que poderia suportar dessa vez, mas você já sabe o que dizem a respeito das velhas feridas. Bem, já que comecei, devo terminar - afirmou com resignada determinação. - Não muito tempo depois dos tiros, ou pelo menos acho que foi pouco tempo depois, porque já eu havia perdido totalmente a noção do tempo, ouvi uns estrondos ao longe que a princípio pensei tratar-­se dos trovões de um temporal. Isso foi até que o barulho do motor do avião ecoou estridente por cima do claustro, e soltou uma bomba que deve ter caído um pouco mais para lá do refeitório. Não podia acreditar que estivessem bombardeando o mosteiro. A onda expan­siva foi tão violenta que todas as vasilhas e objetos da cozinha caíram das prateleiras e o armário tremeu, apesar das grossas paredes de pedra que me separavam do local da explosão. Obriguei-me a sair do armário, deixando-me cair ao chão do compartimento que ficava a um metro de altura, mas não pude levantar-me porque minhas per­nas não respondiam. Estavam duras e a dor que senti ao tentar esticá-las foi insuportável. Enquanto estava estirado no chão, o avião pas­sou novamente em vôo rasante, e dessa vez a bomba caiu mais perto, acompanhada de rajadas de metralhadora. Após a explosão, a única coisa que eu conseguia ouvir era um zumbido agudo. E pensei que ficaria surdo para o resto da vida. Não foi assim, mas não ouço muito bem do ouvido esquerdo, que é o que levou a pior parte. Com a segunda detonação, o armário cambaleou de tal modo que achei que iria cair em cima de mim e amassar-me. Estava aterrorizado e, apesar de cada movimento ser um suplício, consegui sair da cozinha arras­tando-me. Havia caçarolas, bandejas, vasilhas, xícaras e tudo mais que se possa imaginar, esparramados pelo chão. O ar estava tão cheio de fumaça e cheirava tanto a pólvora queimada que meus olhos ardi­am. No vestíbulo, a cena era muito pior. As pedras do chão estavam manchadas de sangue e havia membros mutilados por todas as par­tes. E o mais terrível eram os dilacerados lamentos dos feridos, que eram ouvidos mesmo com o estrondo ensurdecedor das explosões. Ninguém prestou atenção em mim. Nem sequer quando pude levan­tar-me e sair do mosteiro a pé. Nem tampouco quando me detive uns instantes junto aos corpos dos monges que jaziam sob aquela cruz que lhe mostrei antes. Recordo-me que corri por essa praça em dire­ção à saída, e durante todo o tempo, até que me vi tremendo atrás de uns arbustos já fora de perigo, achei que uma daquelas mortíferas balas atravessaria minhas costas e que isso seria o fim. Quando os aviões se foram, grande parte do convento não era mais que um monte de ruínas fumegantes, e só então percebi que meu braço sangrava.

Achei que me tivesse manchado com o sangue de alguém, mas ao olhar melhor percebi que tinha uma ferida aberta que quase chegava ao osso; provavelmente devida a um tiro de metralhadora. Ainda te­nho a cicatriz - disse, mostrando a Henrique a marca que cruzava seu braço de um lado a outro. - A única coisa que me lembro depois é que acordei na cama de um hospital de campanha e que minha mãe estava ao meu lado.

- Que você acha que aconteceu? - perguntou Henrique, co­movido pela história do leigo. - Com os monges, quero dizer. Como acredita que morreram?

- Não sei - respondeu João. - Quem sabe? - acrescen­tou com um murmúrio.

Henrique assentiu com o rosto sério. A inesperada e fascinante história o comovera. Olhou para o caderno distraidamente para des­viar a vista dos olhos do leigo, incapaz por algum motivo de sustentar o olhar. Só lhe restava uma folha em branco.

- Você é a primeira pessoa fora de minha família que ouve esta história.

      Henrique assentiu de novo, sem dizer nada.

- Portanto, faça bom uso dela - acrescentou João, tentando recuperar o tom jovial. - Se escrever um livro com ela, ou algo parecido, e ficar rico, não hesite em telefonar-me.

Henrique virou a cabeça para olhar para o leigo. No rosto deste ainda se viam as marcas das lágrimas secas, mas agora estava ilumi­nado por um caloroso sorriso.

      - Noventa por cento para você e dez para mim? – perguntou Henrique.

      João se manteve em silêncio por uns instantes, como se estives­se considerando seriamente a proposta.

      - Em partes iguais - disse por fim. - Se fosse eu que tivesse de escrevê-lo... Valha-me Deus! Valha-me Deus! Melhor nem pensar.

Os dois homens começaram a rir em gargalhadas. Na verdade não pelo comentário do leigo, e sim porque necessitavam fazê-lo para espantar os medos e o sofrimento daquele Natal de mais de sessenta anos atrás, com a promessa de tempos melhores e menos obscuros.

 

                    1327, Champenard - 1453, Lirey

Pedro de Charny tinha motivos para estar contente. Era o dia do casamento de seu filho. A noiva era uma garota doce e bela, cha­mada Joana, da Casa de Vergy. Além disso, saberia finalmente o que continha o baú dos templários. Godofredo não havia dito nada contra o rapaz abrir o baú e mostrar a Pedro o que havia dentro. Ao rapaz estava destinado e ele poderia fazer o que bem entendesse. Não ia negar a seu pai compartilhar tão precioso presente.

No entanto, a alegria de Pedro duraria pouco, como também a própria e natural alegria de um casamento. Durante o banquete, que foi celebrado no jardim de sua propriedade, rindo de uma brincadei­ra, engasgou-se com um osso de cordeiro e morreu asfixiado sem que ninguém pudesse fazer nada para salvá-lo. Como havia ali muitos sacerdotes, que oficializaram o casamento, Pedro pôde receber a extrema-unção enquanto lutava para conseguir um pouco de ar e es­capar das garras da morte. Mas não conseguiu. A felicidade se trans­formou em tristeza; o branco da pureza nupcial, em negro fúnebre.

Naquela mesma manhã, chamara seu filho e lhe mostrara o baú, que durante mais de uma década permanecera trancado no porão, em um cofre da despensa, rodeado de barris e garrafas de vinho. Só lhe disse, repetindo as palavras de seu irmão, que o conteúdo estava destinado a ele por Deus. Godofredo aceitou o presente sem com­preender de que se tratava. Diversas idéias passaram por sua mente, todas elas vagas e equivocadas. Tinha certeza de que era algum tipo de legado familiar, algum objeto muito antigo e valioso; quanto a esta última opinião estava certo, apesar de ser incapaz de suspeitar a ver­dadeira natureza.

A morte do pai deixou Godofredo em uma profunda tristeza. O dia mais feliz de sua vida fora também o mais doloroso. Em Champenard, depois das exéquias, o luto durou um mês inteiro. Mui­tas mulheres do povoado choraram desconsoladamente no enterro. Pedro conquistara a admiração de seus servos por seu temperamen­to alegre e cordial, sempre justo e compreensivo. Apesar de se ter tornado mais sério desde a aparição de seu irmão, não perdeu suas características, mas voltou-as na direção de uma grande devoção religiosa.

Mas é impossível lutar contra as invencíveis leis da vida e do destino. Godofredo teve de ser forte e, junto de sua esposa, vencer a dor e seguir em frente. Joana lhe deu muito apoio e compartilhou com ele a surpresa do legado de Pedro: o Santo Sudário. Nunca soube­ram como fora parar em suas mãos nem o inexplicável segredo que o cercava. Consideravam-se honrados e afortunados por possuí-lo. A Providência trabalharia para iluminar e guiar seus passos.

Ninguém mais teve notícias da Síndone durante outro quarto de século. Godofredo não sabia o que deveria fazer com a relíquia. Con­siderou, incentivado por Joana, a possibilidade de enviá-la ao papa, mas ela estava "destinada a ele por Deus". A grande pergunta estava formulada, e ambos acreditavam que, quando chegasse o momento certo, saberiam o que fazer, pois a solução se apresentaria como uma revelação, de um modo claro e evidente.

Tinham razão.

 

Em meados do século XIV, a França estava em guerra contra a Inglaterra. As hostilidades entre ambas as potências começaram em 1337, pelo direito de sucessão do trono francês, e não terminariam até 1453, ficando conhecidas como a Guerra dos Cem Anos. O rei da França, Felipe VI, filho de Carlos de Valois e sobrinho do vil Felipe, o Belo, e o herdeiro do trono inglês, Eduardo, chamado de o Príncipe Negro pela cor de sua armadura e de seu coração, filho do rei Eduardo III, encontraram-se pela primeira vez na batalha de Crécy, em 1346. Pouco depois, durante a invasão francesa a Calais, Godofredo de Charny foi capturado e mantido refém à espera de um resgate.

Mas Godofredo conseguiu fugir por seus próprios meios, arris­cando sua vida. Era um homem astuto e corajoso que não admitia que sua família tivesse de pagar por sua liberdade. Um dia antes da fuga, teve um sonho estranho, sem figuras ou imagens, no qual uma voz distante e autoritária o incentivava, quase como uma ordem, a tentar fugir, e o aconselhava a confiar no Santo Rosto de Cristo. Quan­do acordou, agitado e molhado de suor no meio da noite, Godofredo jurou construir uma capela em suas propriedades para que se vene­rasse a Síndone. Não sabia por que, mas tinha certeza, absoluta con­vicção, de que esse deveria ser o destino da relíquia que durante vinte e cinco anos guardara como o mais precioso tesouro.

Assim o fez. Ao regressar em 1349, com a aprovação do papa Clemente VI, erigiu a prometida igreja em Lirey, chamada Santa Maria, e nela expôs o Sudário. Pouco a pouco a notícia se espalhou e pere­grinos de toda cristandade foram para lá venerá-la como a autêntica mortalha que envolveu o corpo de Jesus, recolhido por José de Arimatéia, que ressuscitou do sepulcro no terceiro dia após sua mor­te na cruz. Mas também começaram os problemas, já que alguns bispos, com ciúmes dos privilégios outorgados de Avignon pelo Vi­gário de Cristo aos Charny e, sobretudo, pelas esmolas deixadas pelos misericordiosos visitantes, começaram a tramar contra a família sem nenhum pudor. Além disso, a nobre Casa de Sabóia, que tinha laços consangüíneos com os Charny, começou a solicitar que o Len­çol fosse entregue a eles, que eram cabeça da estirpe e, portanto, herdeiros da relíquia.

Godofredo morreu na batalha de Poitiers, em 1356, sendo já rei João II, filho de Felipe VI, que tinha sido capturado pelo Príncipe Negro. Durante o século seguinte, o Lençol continuou em Lirey, sem­pre sob responsabilidade dos herdeiros da família Charny. Nesse tem­po, os duques de Sabóia continuaram reclamando sua posse, até que, em 1453, coincidindo com a passagem de Constantinopla para as mãos do Império Otomano, Margarida de Charny a entregou final­mente após longas disputas.

Essa mulher excepcional, muito à frente de seu tempo e cabeça da dinastia durante muitos anos, sempre se negou a aceitar as exigên­cias dos Sabóia. Os motivos que a levaram finalmente a ceder a pre­ciosa relíquia se devem a uma mesquinha chantagem de que foi víti­ma. Margarida tinha uma filha, que se chamava Catarina, uma donzela doce e delicada, de grande coração e refinada inteligência, mas pou­co favorecida fisicamente. Era muito difícil encontrar marido para uma criatura feia como ela, de cabeça grande e pontuda, olhos caídos pelo raquitismo sofrido na infância e lábios cheios de verrugas que a maquiagem não podia esconder. Assim, aos vinte e cinco anos Catarina continuava solteira, já que, ao contrário do que acontecia a muitos casos como o dela, não acreditava ter vocação para a vida no con­vento.

Entretanto, um dedicado jovem, oficial do rei, começou a mos­trar repentinamente um grande interesse pela moça. Conheceu-a na igreja, onde ia com sua mãe, dando-lhe água benta, e pouco a pouco foi travando amizade com ela e visitando-a com freqüência; uma ami­zade que Margarida via com bons olhos, por ser o pretendente um homem digno e de boa posição. E assim os jovens iniciaram um noi­vado que parecia perfeito. Porém, infelizmente, tudo fazia parte de um plano sujo, frio e perverso, minuciosamente tramado pelo duque Luís de Sabóia.

Catarina caíra nas redes do hipócrita oficial sem suspeitar. O amor cega quem ama, que só vê o que quer e confunde os sonhos com a realidade. Ela sabia que o casamento seria em breve e, enga­nada por seu mentiroso prometido, não pôde resistir ao desejo car­nal. Deixou-se desonrar por ele, entregando-se ao amor sem pensar. O vigarista, então, continuou o noivado como se nada tivesse aconte­cido. Mas no dia do casamento, no momento da consumação do matrimônio, o marido abandonou o leito matrimonial e foi em busca da mãe de sua esposa.

Disse a Margarida que sua filha não era virgem. Que fora deflorada antes do casamento e, nessas condições, não podia aceitar o matrimônio, devendo ao mesmo tempo denunciá-la à Santa Inquisição. A situação que se apresentava era gravíssima. Margarida, sem compreender o que acontecia e em que circunstâncias sua filha cometera tal deslize, tentou subornar o oficial para que mantivesse silêncio. Mas ele, depois de fazer-se de rogado, revelou-se por fim e pediu como pagamento por sua discrição que a Síndone fosse entre­gue à Casa de Sabóia.

Margarida de Charny compreendeu tudo finalmente. Mas não tinha outra saída senão aceitar a chantagem. No entanto, impôs uma condição. O oficial deveria passar pelo menos um ano junto de Catarina como um esposo apaixonado. Depois, com o pretexto de uma batalha, iria para longe, escreveria algumas cartas e logo forjaria sua morte. Catarina sofreria muito, mas pelo menos conheceria a fe­licidade por algum tempo. Além disso, que foi aceito sem hesitar, Margarida escolheu o lugar do encontro. Não queria pisar em territó­rio saboiano. Seria na Suíça, na cidade de Genebra. Em 22 de março de 1453, no palácio de Varambon, o Santo Sudário de Cristo, du­rante tantos anos em seu poder e por uma vil extorsão, deixou de pertencer à nobre Casa de Charny. A partir de então, sua história estaria ligada aos duques de Sabóia até 1502, quando César Bórgia o roubou. Mas eles nunca chegaram a saber e veneraram a relíquia em Chambéry, e depois em Turim, durante os séculos seguintes.

 

                                     1997, Poblet

João acompanhou Henrique até a loja de lembranças para que este comprasse um novo bloco de anotações. Por sorte, já não esta­vam mais ali os turistas estrangeiros; por isso não demoraram muito. No caminho de volta para a Porta Real, Henrique ficou observando a cúpula da igreja, que sobressaía majestosamente por trás do campa­nário. Parecia a sentinela de um castelo medieval. E talvez algum dia tenha sido; mas agora, nas faces de sua estrutura poligonal, abriam-­se enormes arcos em forma de ogiva de uma refinada decoração, em cujo interior se dispunham duas fileiras com três janelas cada uma.

- Pode levar-me lá em cima? - perguntou Henrique ao lei­go, apontando a cúpula. - Deve ter uma vista magnífica.

- Não vejo por que não - concordou João. - Depois de uma história tão triste, a brisa que entra pela cúpula nos fará bem. Espairece a mente, sabe?

O que o leigo havia chamado de "brisa" era na realidade um autêntico vendaval. A vista da cúpula era impressionante, mas Henrique tinha de tapar os olhos com as mãos para poder mantê-los abertos. Do contrário, o vento selvagem o faria chorar sem parar e o impediria de ver a bela paisagem que rodeava o mosteiro. Dessa altura, podia ver os carros no estacionamento, e os novos visitantes que entravam na loja de lembranças eram pouco mais que manchas coloridas. O dia estava completamente aberto, sem nuvens, e era possível enxer­gar com nitidez as distantes montanhas de Montsant e as pequenas vilas que davam a impressão de estar subindo as montanhas com dificuldade. O vento fresco, apesar de persistente, e o calor da tarde proporcionavam uma sensação agradável, relaxante.

Henrique estava dando uma última olhada naquela cena quando percebeu algo que antes não notara. Certamente os muitos tons es­curos que predominavam no ambiente faziam com que aquele algo ficasse camuflado entre a vegetação da região do convento, mas seu tamanho, sim, era bastante grande para fazer com que se destacasse na paisagem.

- Que é aquele prédio ali? - perguntou a João gritando, para que este pudesse ouvi-lo apesar do rugido do vento.

O leigo seguiu com o olhar a direção que apontava o braço de Henrique e logo respondeu:

- É um cemitério. Tem mais de oitocentos anos, mas já não é utilizado. Agora os monges são enterrados em outro, que fica dentro do mosteiro.

- E aquilo de cor verde que se move com o vento? - pergun­tou novamente Henrique.

- Ah, você está falando da parreira - disse João, olhando novamente na direção do campo-santo, a princípio sem entender de que falava Henrique. - Tem tantos séculos quanto o próprio cemité­rio. A verdade é que é um milagre que ainda não tenha secado. Quan­do eu era pequeno, suas folhas cobriam boa parte do cemitério e davam uma boa sombra no verão, mas agora brotam somente algu­mas folhas em volta do tronco. Se prestar atenção, verá que está sustentada por vários pedaços de madeira.

Henrique observou mais detidamente e viu que, realmente, por cima das folhas da parreira e em alguns pontos do perímetro exterior do campo-santo sobressaíam grossos cilindros de madeira pintados de branco. Inclinando-se um pouco para escapar do vento, tirou seu caderninho novo e virou as folhas em que havia anotado informações sobre a igreja antes de subir até a cúpula. Quando encontrou uma em branco, desenhou cuidadosamente nela o cemitério, inclusive os cilin­dros de madeira e uma representação bastante grosseira dos galhos que iam de uns a outros.

Novamente na praça, após descer da cúpula, Henrique sentia os lábios ressecados pela ação do vento e do sol. A luz era mais tênue, pois já começava a anoitecer, mas ainda fazia calor. Decidiram tomar um refresco antes de visitar as câmaras subterrâneas do mos­teiro, momento que Henrique esperava com grande impaciência.

O amplo vestíbulo do convento era muito fresco e, pelo con­traste com a temperatura do exterior, parecia ainda mais frio. En­quanto contemplavam o alto e sóbrio teto da sala, ouviam-se ao lon­ge as vozes dos turistas, que desciam por uma escada de pedra que ficava em um dos lados. O leigo explicou-lhe que ela conduzia a uma sala chamada o Palácio do rei Marti e ao dormitório dos monges. Antes que os visitantes chegassem ao vestíbulo, João o levou por uma porta de madeira, que ficava no lado oposto à entrada. Essa parte estava reservada exclusivamente aos frades da abadia e termi­nava, passando por trás da biblioteca, em uma grande praça. Foram até o extremo direito da muralha leste, em cujos pés se erguia um robusto e grande edifício. Na frente dele havia umas capelas circula­res que pertenciam ao abside da igreja.

Entraram no edifício por uma pequena porta de metal. O inte­rior estava decorado, assim como o restante do mosteiro, com uma sóbria austeridade. Os móveis de madeira pareciam muito antigos e terrivelmente frágeis. Duas fileiras de grossas colunas atravessavam o local de um lado a outro sem janelas. À direita, havia uma grande lareira de paredes enegrecidas, que já devia ter esquentado muitos corpos e uma ou outra vasilha de sopa.

- Pode ajudar-me? - perguntou João, do outro lado da sala.

O leigo tentava mover uma alavanca que parecia muito pesada. Henrique não entendeu o que este estava fazendo até que, ao tirarem a alavanca, João ajoelhou-se e levantou um grosso e empoeirado tapete. Ao fazê-lo, surgiu uma laje retangular de pedra, separada do restante do piso por um oco quase imperceptível que a contornava.

- E agora... - disse o leigo como se fosse apresentar um número de mágica, empurrando uma das pedras da base da lareira - ... olhe bem.

Henrique logo ouviu um barulho de correntes se arrastando e um som oco e grave. Boquiaberto, observou como a laje de pedra se afundava no chão a apenas um metro de seus pés, para logo desapa­recer por um extremo e deixar à mostra uma escadaria de pedras

      oculta na mais absoluta escuridão.

- Incrível! - exclamou Henrique entusiasmado.

- Eram muito prevenidos, hein?

João se dirigiu a um pequeno móvel de carvalho e tirou de uma gaveta uma lanterna de aspecto potente.

      - Siga-me. E tenha muito cuidado por onde pisa. Os degraus estão úmidos e escorregadios.

Ao dizer isso, o leigo começou a descer cuidadosamente pelas escadas da passagem, iluminando os traiçoeiros degraus com a lan­terna e afastando, com a mão livre, as enormes teias de aranha que desciam do teto. Henrique seguiu-o, sem tirar em nenhum momento os olhos dos calcanhares do leigo e das pontas dos próprios sapatos.

- Conta-se que, alguns dias depois do bombardeio, as tropas nacionais tomaram o mosteiro - a voz de João ecoava de modo inquietante na escuridão. - Este edifício ficou praticamente destruído e foi assim que descobriram a entrada da passagem. Também se fala que os soldados encontraram bandeiras e escudos dos templários, além de um estranho tapete com símbolos dos construtores de cate­drais. Ninguém sabe o que fizeram com tudo aquilo, mas o que não conseguiram levar continua aqui, como você vai ver. Nas últimas ba­talhas da guerra, o mosteiro serviu como quartel-general, e a entrada da passagem foi reconstruída com a intenção de usá-la como bunker para o Estado-Maior.

A escadaria terminava em uma ampla sala, tão escura como aquela. Henrique se chocou contra as costas do leigo quando este parou de repente.

- Cuidado com o buraco - disse a Henrique, iluminando o chão do outro lado da sala. Ali, umas estreitas escadas desciam até uma porta de metal muito deteriorada pela corrosão, que ficava no nível abaixo de seus pés. - Essa porta conduz a uma passagem. Antigamente se podia ir por ela até uma saída para o bosque, ao sul do mosteiro, mas agora está bastante deteriorada e é perigoso entrar. Além disso, os soldados fecharam a saída durante a guerra.

Henrique estava fascinado: entradas secretas, passagens, obje­tos misteriosos... Tudo aquilo parecia irreal, fantástico demais para ser verdade.

- Esta é a sala onde encontraram o tapete e as outras coisas - disse o leigo, entrando em um lugar mais amplo que o anterior. ­Vê estas colunas retorcidas? - perguntou mostrando os pilares.

- As colunas de Jachim e Booz, os guardiões do Templo de Salomão - disse Henrique, olhando-as fixamente.

Quando João iluminou as paredes, Henrique pôde ver as mar­cas deixadas pelos escudos, que tinham uma cor mais clara que o restante. E também enferrujados aros portadores de tochas que um dia iluminaram o local.

- O tapete cobria aquela pequena entrada - informou João, ilu­minando um buraco na parede do fundo. - Olhe o que há em cima.

Sobre o estreito e baixo arco, gravados na pedra, havia uns símbolos. Henrique aproximou-se para vê-los mais de perto.

      - O Olho de Deus e... - começou a dizer o leigo.

- Os gêmeos da constelação de Gêmeos - terminou Henrique -, o mais característico símbolo do Templo, que representa os dois cavaleiros montados em uma mesma cavalgadura. Mas, quê...? João, pode emprestar-me a lanterna um pouco?

- Sim, claro. Que aconteceu?

      - Quero ver algo - respondeu Henrique distraído, pondo seu rosto o mais próximo que pôde das pequenas estrelas gravadas na pedra. - Você vê isso? Bem aqui, em volta da estrela Cástor.

      O leigo se pôs ao lado dele para ver o que Henrique tentava mostrar-lhe.

      - Não vejo nada.

      - Está aí! Não vê mesmo? É um círculo escuro. Parece feito     com algum tipo de tinta.

      - Ah, sim, agora vejo! -exclamou o leigo. - Você tem razão.

      Os dois homens procuraram em todas as estrelas, mas nenhuma outra tinha essa marca.

      - Não tenho a menor idéia - João encolheu os ombros. ­

Talvez tenha tido um significado algum dia.

Iluminando seu caderno de notas com a lanterna, Henrique de­senhou os símbolos da parede, tanto o Olho de Deus quanto as es­trelas de Gêmeos e a estranha marca que rodeava a estrela Castor, a cabeça de um dos gêmeos e a estrela mais brilhante da constelação.

- Se isso lhe pareceu estranho - disse o leigo quando Henrique terminou -, venha ver isto - acrescentou, atravessando o baixo arco de pedra da entrada que o tapete escondia.

Henrique o seguiu, obrigando-se a parar de olhar os símbolos da parede.

- Este é o sancta sanctorum - sussurrou João, como se fosse um sacrilégio levantar a voz ali -, o lugar mais secreto e oculto do mosteiro.

      Encontravam-se em uma sala pequena e vazia, de teto alto.

      - O lugar perfeito para guardar uma preciosa relíquia - mur­murou Henrique, observando as nuas paredes de pedra.

 

Quando voltaram para a superfície, já era quase noite. Antes de agradecer efusivamente ao leigo e despedir-se dele até o dia seguin­te, Henrique completou em seu caderninho os dados que faltavam sobre a visita às câmaras subterrâneas.

Enquanto dirigia o carro de volta para o albergue, não deixava de pensar no que vira. Já não tinha nenhuma dúvida sobre a veracida­de das afirmações que o padre Arranz fez sobre o mosteiro de Poblet no congresso de Monterrey. E, ainda que jamais soubesse como vi­veu o misterioso Gilles, descobrira pelo menos como ele morreu. Além disso, tinha certeza de que no mosteiro tinha sido venerada uma có­pia do Santo Sudário. "Ou o Sudário autêntico", pensou, recordando as palavras do professor.

Disse a si mesmo que deveria sentir-se contente, mas foi inútil. Ainda havia perguntas sem respostas; muitas perguntas. Tinha a sen­sação de que aqueles mistérios sem resolver eram o que realmente importava e que algo lhe estava escapando. Apesar do que descobri­ra, continuava sem poder explicar por que um professor ateu da Sorbonne fizera uma longa viagem de Paris até um mosteiro perdido nas montanhas de Tarragona, em busca do Santo Sudário. Também não entendia o que o fizera converter-se ao encontrá-lo ou por que uns monges cistercienses o tinham escondido nas entranhas da terra, num lugar cheio de símbolos templários. Nem tinha a menor idéia de qual era o papel do medalhão de Jacques em todo esse enigma.

 

­Os dois cadernos de anotações repousavam sobre o banco do carona. Henrique desviou um pouco os olhos da estrada para dirigi-­los a eles. Tinha certeza de que a resposta estava em suas folhas, em algum lugar. Já podia ver ao longe as luzes do albergue quando se lembrou de uma frase que o professor Arranz disse em sua conferên­cia, um pouco antes que as vaias de seus colegas impedissem de se ouvir suas palavras: "Às vezes a História nos surpreende com seus feitos e vemo-nos tentados a ocultar a verdade que nos assusta. Mas não devem temer o que já passou; simplesmente mudem...".

- ... seu ponto de vista - murmurou Henrique.

Henrique ficou tão perturbado que perdeu o controle do carro, saiu da estrada e foi bater contra o tronco de uma árvore. Felizmente teve tempo de frear, e o cinto de segurança evitou que batesse a cabeça contra o volante. Durante um angustiante minuto, foi incapaz de respirar e sentia uma forte dor no peito, no lugar onde se havia enterrado o cinto.

Desligou o carro e, depois de várias tentativas, conseguiu acen­der a luz do interior do veículo. Com grande esforço, tomou um dos caderninhos, que agora estavam no chão, onde caíram com o impac­to. Virou as páginas com violência até encontrar o que procurava em uma folha e a arrancou. Logo pegou rapidamente o outro caderninho e começou a virar as páginas com a mesma fúria.

- Onde você está? - perguntou no silêncio da noite, apertan­do com força em seu punho a página que rasgara. - Onde es...? Meu Deus... - sussurrou. - Como não percebi?

Bem devagar, tão assustado por descobrir que tinha razão, co­meçou a pensar que talvez estivesse louco; abriu a mão que segurava a folha arrancada. Estava toda amassada, como uma flor murcha. Henrique a colocou ao lado do caderno aberto sobre seus joelhos e tentou alisá-la com a palma da mão. Quando viu as duas imagens juntas, respirou com força, incapaz ainda de acreditar. Apesar de nem precisar, girou o caderno até que o desenho do campo-santo tivesse a mesma orientação que as estrelas da constelação de Gê­meos. Em outra folha e com um traço tremido, começou a copiar a imagem do cemitério, mas deixando sem unir os pontos do perímetro e traçando as linhas que representavam o tronco da parreira. Como num passe de mágica, surgiram diante de seus olhos atônitos as finas figuras dos dois gêmeos, de mãos dadas e com suas cabeças, Cástor e Pólux, levemente inclinadas para a frente.

Henrique permaneceu uns instantes sentado no carro, com os braços pousados languidamente sobre as pernas e observando com o olhar perdido as luzes do albergue. Logo pareceu recuperar a vida e, com uma inusitada calma, guardou todos os papéis no bolso. Deu partida novamente no carro, tentando sair dali. O motor emitiu um barulho rouco, mas não chegou a funcionar.

Saiu estonteado com uma pequena lanterna na mão, que mila­grosamente encontrara no porta-luvas. A dor no peito já diminuíra, mas começou a sentir uma pinçada no joelho, que batera no acidente. A temperatura caíra bastante e a brisa noturna fê-lo sentir um calafrio. Mancando um pouco, foi até a parte dianteira do carro para abrir o capô e iluminou seu interior com o foco de luz. O radiador estava destruído; a água de seu circuito saía por todos os lados. Olhou na direção do albergue pela última vez e depois deu-lhe as costas para dirigir-se à negra estrada, em direção ao mosteiro de Poblet. A aba­dia ficava a menos de um quilômetro, porém, naquela escuridão, pa­recia estar mais longe. Os galhos das árvores, que durante o dia pro­porcionavam uma sombra agradável, tinham no escuro um aspecto ameaçador. Mais para lá do calçamento, nas frondosas profundidades do bosque, os olhos dos animais desconhecidos brilhavam fugazmente.

Quando chegou ao mosteiro, e depois de atravessar a Porta de Prades, encontrou a praça completamente deserta. Henrique se diri­giu até o barracão das ferramentas que tinha visto ao passar ali pela manhã, olhando com nervosismo para todas as direções, temendo ser descoberto. A entrada estava aberta, mas, antes de entrar, certifi­cou-se de que estava vazio, espiando furtivamente por uma janela. Uma vez dentro, acendeu a lanterna e passeou sua luz pelo lugar, em busca de uma picareta e de uma pá de aspecto resistente. Com elas no ombro e a lanterna apagada outra vez, movimentou-se entre as sombras até alcançar a escura mata que crescia no lado norte do convento.

A temperatura havia caído mais. O céu estrelado foi cobrindo-­se pouco a pouco por espessas nuvens de temporal. Henrique ouviu o distante barulho de um trovão e em sua mente surgiu a imagem de um avião de asas prateadas vomitando fogo e morte.

Demorou pouco mais de dez minutos para atravessar a planície e chegar até o velho cemitério. Estava rodeado por um muro de uns dois metros de altura, composto por pedras de forma irregular que se haviam soltado em alguns pontos. As nuvens já tinham terminado de cobrir o céu sobre sua cabeça, como uma asfixiante laje cinza. Logo que passou pelo portão de barras metálicas, começaram a cair os primeiros pingos de chuva. Se não se enganava, o túmulo que procu­rava devia ficar do outro lado do campo-santo. A escuridão era ago­ra quase total, mas só se atrevia a acender a lanterna de um modo intermitente, por medo de que algum frade o visse pelas janelas do mosteiro. Andando quase às cegas entre as lápides, tropeçava em quase todas. A poucos metros do muro oposto à entrada, enganchou o pé em uma raiz e caiu. A picareta e a pá voaram para a frente e fizeram muito barulho ao chocar-se contra as pedras do muro. A chu­va ficou mais forte. Uns pingos gelados batiam furiosamente contra suas costas, como se quisessem impedir que ele se levantasse.

Conseguiu erguer-se a duras penas, enquanto apalpava a lan­terna em busca do interruptor. Dessa vez não se preocupou em co­brir o foco de luz com seu corpo quando o mexia de um lado para outro para localizar as ferramentas. Estavam junto ao muro, perto de um dos paus que seguravam a parreira. Depois de agachar-se para recolhê-las com um ruído de queixa, o joelho começava a doer de novo. Olhou ao redor e começou a lançar rápidas passadas de luz em todas as direções para tentar localizar-se.

- Pólux - disse com uma voz muito baixa, iluminando um poste que ficava no muro em frente a ele. - E... - sussurrou ainda mais baixo, virando-se.

A mão que segurava a lanterna começou a tremer e teve de segurá-la com a outra para conseguir fixar o foco de luz. O túmulo não tinha lápide. Somente uma cruz improvisada fincada no chão e feita de duas pequenas tábuas, unidas por uma espécie de corda. A horizontal se encontrava levemente inclinada, e nela se podia ler, em letras irregulares e borradas: "Frei Cástor".

Henrique ficou de pé ao lado da sepultura. A água que caía sobre a cabeça e os ombros escorregava pelos braços até a ponta dos dedos. Não conseguia compreender como um professor de his­tória como ele estava prestes a profanar uma sepultura no cemitério de uma abadia. No entanto, sentia-se curiosamente tranqüilo, em paz. Deixou a lanterna de um lado, apontando para a tumba, e tomou a pá. Um trovão ensurdecedor veio do céu no mesmo instante em que a cravou na terra. Continuou cavando sem parar, enquanto a noite era iluminada por descargas elétricas azuladas que deixavam no ar um penetrante cheiro de ozônio, ao mesmo tempo que o rugido dila­cerado dos trovões parecia anunciar o fim do mundo.

Depois de cavar durante mais ou menos vinte minutos, estava todo encharcado. Sentia as roupas pesadas e frias sobre seu corpo. A água se acumulava no buraco e fazia com que seus pés ficassem mergulhados no barro. Mas o temporal começava a distanciar-se na mesma velocidade em que tinha surgido, e a chuva foi perdendo a força até que se transformou em uma garoa quase imperceptível. Aos poucos, cessou por completo. A fraca luz da lanterna, que agora es­tava dentro da vala, aos poucos se desvanecia.

Henrique afundou novamente a pá no barro, mas desta vez ou­viu um barulho diferente ao bater contra o chão. Deixou a ferramenta de lado e ajoelhou-se no fundo do buraco. Desesperado, meteu os braços na água suja e apalpou a áspera superfície de um ataúde de madeira.

Chegou o momento de verificar até que ponto estava certo. Suas suspeitas pareciam absurdas, e Henrique sabia que poucas vezes as coisas absurdas tinham sentido. No entanto, as peças que seu cére­bro foi juntando coincidiam de modo tão exato que descartavam a casualidade. Acreditava que naquele Natal de 1938 não foi um mon­ge que enterraram sob uma cruz de madeira, e sim a mais valiosa relíquia do mosteiro, aquela que Fernandez de Córdoba tirou de César Bórgia: o autêntico Santo Sudário, que Bórgia, de alguma forma, rou­bara dos Sabóia e que ordenara a Leonardo da Vinci que fizesse uma cópia para enganá-los; o Sudário de Cristo, que se manteve escondi­do em Poblet por vários séculos, nas secretas câmaras dos porões, sob o atento cuidado de homens como Gilles. A idéia de enterrá-lo em um túmulo deve ter partido do ancião e valoroso abade. Pode ser que já tivesse tido essa idéia muito antes de chegarem tempos tão obscuros. Henrique não sabia. Mas tinha certeza de que Gilles, como todos os homens sábios, sabia que seu plano não era infalível e en­controu uma solução para a única coisa que poderia fazê-lo fracas­sar: sua morte e a de todos os que sabiam onde estava escondido o Santo Sudário. Se isso chegasse a acontecer, este ficaria sepultado para sempre. Por isso ordenou que enterrassem o Lençol em um lugar determinado do cemitério, junto ao poste que correspondia à estrela de Cástor da constelação de Gêmeos, pois conhecia a pecu­liar forma daquela. E depois fez uma marca na estrela na câmara subterrânea, com a esperança de que, se todos os frades morressem, alguém fosse capaz de encontrar o Santo Sudário seguindo as pistas deixadas por ele.

Agora, quase sessenta anos depois, ele, um apaixonado estudi­oso dos templários, seguiu tais pistas uma por uma e elas o levaram até ali, um humilde ataúde de pinho enterrado sob a terra de um céu estranho.

A maior parte da água que cobria o féretro fora absorvida pela terra sedenta. Henrique podia ver a envelhecida madeira, tão frágil de­pois de tantos anos que quase se desmanchava entre seus dedos. Os enferrujados pregos quase não ofereceram resistência quando usou a picareta para levantar a tampa. Com muito cuidado para evitar que caísse barro dentro do caixão, foi descobrindo-o delicadamente. As batidas de seu coração foram se acelerando ao ver um vulto no fundo. Inclinando-se para a frente, segurou-o pelos lados e extraiu-o com doçura. Estava embrulhado em um pano grosso e ordinário, que Henrique teve de rasgar para poder ver a pesada arca de prata enegrecida pelo tempo. Não tinha grandes adornos; somente uns rele­vos com figuras que deviam ser de santos. Mas era exatamente sua simplicidade que a fazia tão bela, o digno receptáculo de uma relíquia.

Com os dedos tremendo pela emoção, retirou a trava que fe­chava a tampa. Ao abri-la, as dobradiças emitiram um leve rangido, mas não ofereceram resistência. Pegou a lanterna no chão, surpreso por ainda estar funcionando, e direcionou sua luz para o interior da arca. Um pano de seda escuro o impedia de ver o conteúdo. Olhou para suas mãos, que estavam sujas de barro, e esfregou-as na camisa molhada para limpá-las. Depois, voltou a iluminar com a lanterna o baú, enquanto retirava o tecido respeitosamente.

- Oh, Deus! - murmurou, sabendo que não poderia segurar as lágrimas, vendo por fim o que o baú ocultava.

Naquele lugar, chorando de alegria sob um céu de verão coa­lhado outra vez de estrelas, Henrique ficou contemplando o sereno e tênue rosto do Santo Sudário. E só então compreendeu por que, entre todos os homens, Leonardo da Vinci mereceu ser chamado o Divino.

 

                                     1998, Paris

Já fazia seis meses que o professor Henrique Castro tinha envi­ado o Santo Sudário para o Vaticano. Desde então, não ficou saben­do de mais nada sobre ele, apesar de seus pensamentos sempre re­gressarem ao Lençol em busca de paz e sossego para sua alma. As grandes perguntas da humanidade tinham sempre respostas estra­nhas e complexas. Não é simplesmente creditar tudo à razão ou à fé. Talvez o ser humano esteja condenado a não poder entender a si mesmo, cegado irremediavelmente pelo véu de sua essência. Ou pode ser que seja como um peixe no aquário, imerso em um pequeno mun­do sem perceber que, mais além, há um universo insondável. Em todo caso, pensava Henrique, cada homem deve, com verdadeira hones­tidade e na medida de suas possibilidades, levantar seu olhar ao céu para tentar ver o que existe sobre sua cabeça.

O encontro da Síndone fora um ponto de inflexão em sua vida, tanto pessoal e profissional quanto espiritual. Mais de um pilar que acreditava sólido em seu modo de pensar abalara-se, chegando in­clusive a cair, quebrando-se em pedaços. Continuava sendo um ho­mem eminentemente racional, mas agora compreendia que a inteli­gência deve fazer uso de todas as realidades do mundo, sem excluir qualquer delas só porque cause dificuldades na construção do edifí­cio mental. Agora, apesar de seu pensamento estar menos sólido, livrara-se da escravidão da lógica excessivamente rígida e demasia­damente humana.

Às vezes não era capaz de entender como se atrevera a ir tão longe, desenterrando em segredo e em plena noite, sob aquele pavo­roso temporal, o ataúde que continha o Lençol, ou atravessando, no aeroporto de Barajas, os detectores de segurança com ele na mala, camuflado entre suas coisas. Se a polícia aduaneira tivesse descober­to, ele talvez estivesse preso por espoliar o patrimônio histórico-ar­tístico da Espanha. Apesar de a Síndone, pensava, pertencer à huma­nidade como um todo, não devendo, portanto, permanecer escondi­da. Assim pensava também German Arranz, que tanto o ajudara em sua investigação e que concordara que a estudasse a fundo em seu país. Assim, ele guardou na Espanha o baú de prata que abrigou o Lençol até que este foi enviado a Roma. Como historiador, Henrique sempre defendeu a idéia de que todo monumento, livro antigo ou objeto arqueológico deve estar ao alcance de qualquer pessoa. Pro­tegidos de qualquer atentado contra sua integridade ou possível rou­bo, sim, mas não tanto que impeça seu desfrute. O contrário seria quase como perdê-los.

No caso do Santo Sudário, esta idéia era ainda mais forte. Todos, crentes e ateus, deveriam contemplá-lo em sua majestosidade.

 

Henrique estava convicto de que sua decisão, apoiada pelo padre Arranz, de devolvê-lo ao Vaticano, seu legítimo dono moral, fora certa. No entanto, estava admirado de que a assessoria de imprensa do lugar não houvesse noticiado sua recuperação. Um tempo de estudos para comprovar sua autenticidade era compreensível, mas já havia se pas­sado meio ano que o enviara a Roma. E isso, além de ter incluído uma cópia do informativo que, em segredo, ele e diversos colegas da Uni­versidade Autônoma do México, especializados em diferentes áreas, e sem nenhum interesse de notoriedade, realizaram sobre a Síndone, obtendo resultados muito surpreendentes e inclusive desconcertantes.

Suas dúvidas eram profundas. Mas naquela segunda-feira, 25 de maio de 1998, seriam dissipadas. Estava em Paris passando uns dias de férias com Mercedes, sua esposa. Haviam visitado a Torre Eiffel, o "monstro" de ferro forjado que pesava mais de seis mil tone­ladas. Depois de tomar um delicioso, porém caro, café au lait no luxuoso restaurante da torre, foram ao museu do Louvre. Ali contem­plaram a Gioconda, a mais célebre pintura de Leonardo da Vinci, protegida por um grosso cristal blindado para evitar atentados contra sua integridade, o que já acontecera antes. E, como todos que tinham oportunidade de observá-la de perto, ficaram fascinados pela ex­pressão de seu rosto. Seus olhos e seu sorriso podiam evocar tanto uma cândida simpatia como uma perturbadora maldade. Era um enigma que, com certeza, nunca seria elucidado por completo.

A visita ao Louvre foi muito agradável para o intelecto, mas muito cansativa para as pernas. Ao sair, no entanto, e porque sua esposa queria muito, foram até o Sena, onde os populares bouquinistes (livreiros) vendem em seus estandes coloridos todo tipo de ob­jetos antigos, livros, gravuras, moedas... Quase pela hora do almoço, sentaram-se exaustos em um banco na beira do rio. Henrique tinha comprado um jornal e o folheava com desinteresse quando viu uma notícia que lhe chamou a atenção. Era uma pequena crônica da última visita do papa João Paulo II ao Santo Sudário de Turim... O Santo Sudário falsificado no século XVI.

 

JOÃO PAULO II DESAFIA A COMUNIDADE CIENTÍFICA A REALIZAR NOVOS ESTUDOS SOBRE O SANTO SUDÁRIO

 

O papa viajou ontem a Turim para adorar o Santo Sudário de Cristo e reacendeu com suas declarações a controvérsia sobre sua autenticidade.

 

Aclamado por milhares de fiéis, o papa visitou pela terceira vez o Santo Sudário em Turim, acompanhado pelo primeiro ministro da Itália, Romano Prodi, e pelo cardeal Giovanni Saldarini, arcebispo da cidade e responsável pela relíquia. Visivelmente cansado e dando sinais de seu deli­cado estado de saúde, o pontífice ajoelhou-se diante do Santo Sudário, um dos mais venerados símbolos da cris­tandade e pelo qual professa uma devoção especial.

 

O Santo Sudário, custodiado pelos duques de Sabóia na Duomo de Turim há cinco séculos, foi classificado pelo papa como "símbolo do martírio infringido ao Crucifica­do e a milhões de homens pela barbárie de seus semelhan­tes", mas também um inigualável "testemunho do Evan­gelho e prova do amor divino e do pecado dos homens".

 

Em seu discurso posterior, o Sumo Pontífice afirmou que o Santo Sudário é "um desafio à inteligência, que requer de cada ser humano, especialmente dos cientistas, um esforço para desvendar seu verdadeiro significado". Também mencionou o "profundo fascínio que a Síndone exerce, tendo despertado questões transcendentais sobre a relação entre o Santo Sudário e a paixão de Cristo nar­radas pelos evangelistas".

 

O papa desafiou assim mesmo a comunidade científi­ca internacional a realizar novos estudos sobre o Lençol, mais profundos do que os realizados nos anos setenta: "A Igreja insiste que seja realizado o estudo da Síndone sem posturas preconcebidas, com absoluta liberdade e respei­to, seja por parte dos cientistas, seja por parte dos fiéis".

 

SICUT UMBRA DIES NOSTRI

 

Nossos dias passam como uma sombra.

 

Conclusão do estudo da Síndone

Informativo Gilles

Este informativo, denominado Gilles em homenagem ao profes­sor francês que chegou até o Santo Sudário no mosteiro de Poblet, não pretende especular os fatos que se deduzem do estudo da Síndone. As informações aqui apresentadas derivam-se estritamente das ob­servações, testes e ensaios realizados durante seu estudo, exceto quando se indique expressamente que se trata de uma suposição. Qualquer erro que se tenha cometido não se deve, portanto, à trans­gressão das fronteiras demarcadas em toda a rigorosa investigação científica.

Também não se pretende demonstrar a identidade do homem do Lençol, nem se era verdadeiramente Jesus Cristo. Apesar disso, cabe destacar que todos os membros da equipe chegaram à conclu­são, absolutamente pessoal, de que a margem de dúvida é pequena à luz dos resultados obtidos, comparando-os especialmente com os relatos evangélicos. Acima da casualidade e do azar, o homem do Lençol era um ser de qualidades excepcionais. Se o homem que foi amortalhado com esse Sudário, que nós chamamos de Santo Sudá­rio, era ou não o Filho de Deus, é e continuará sendo uma questão de fé; mas se alguém pôde alguma vez sê-lo, esse alguém foi ele.

Por último, como esclarecimento necessário e oportuno, deve ser mencionado que o cabelo encontrado no tecido da Síndone e que foi utilizado na realização de um estudo genético do indivíduo a quem pertencia voltou para o Vaticano, em uma caixa de aço hermética, junto com o próprio Sudário. Além disso, todos os testes de DNA utilizados nos experimentos foram destruídos diante do risco de que, ­podendo cair em mãos indesejadas, pudesse ser tentada a criação de um clone do indivíduo analisado, fosse ele quem fosse.

 

Tecido da Síndone

O Santo Sudário é feito de uma fibra de linho de excelente qua­lidade (Linum ustatissimum), com algumas, ainda que poucas, fi­bras de algodão (herbaceum) misturadas. O tipo de tecido é conhe­cido como sarja de quatro em espiral ou rabo de peixe. Este pro­cedimento de fiação só se conhece na Europa a partir do século XIV, mas as amostras mais antigas que se tem são do século II a.C., encontradas nas tumbas egípcias. Tem-se um lençol similar, não de li­nho, que pertence à 12º. dinastia do Egito, datado entre os séculos XVII e XX a.C.

Foi feita à mão em tear de pedal de liço alto (tipo de tear conhe­cido no Egito desde pelo menos trinta séculos antes de Cristo). O fio da trama contém trinta e oito fibras por centímetro quadrado. O da corrente, vinte e seis por centímetro quadrado. As diferentes espes­suras do tecido mostram que as meadas foram tecidas por pessoas distintas.

O tamanho exato do Lençol é 4,36 m de altura por 1,10 de largura. Talvez se enquadre, quanto à procedência, na cidade de Palmira, o centro mais importante de produção têxtil no século I d.C. Essa cidade fica muito próxima a Damasco, a atual capital da Síria.

O peso do Santo Sudário, de uma leveza extraordinária tendo em vista sua altíssima qualidade, muito flexível e grosso, depende das condições ambientais, especialmente da umidade. Pode, no entanto, girar em torno dos valores limites de 240 e 290 gramas por metro quadrado. Desse modo, o Sudário inteiro pesa algo em torno de 1.150 e 1.390 gramas.

 

Características físicas do homem do Lençol

O homem do Lençol (sem se levar em conta o encurtamento da perna esquerda, produzido por causas relacionadas com sua morte) media entre 181 e 182 centímetros, era antropometricamente perfei­to (não apresenta nenhum defeito físico) e de constituição atlética. Calcula-se que pesava em torno de 80 quilos e que tinha mais ou menos trinta ou trinta e cinco anos.

Pelo estudo de sua fisionomia e suas características corporais, não se pode afirmar com certeza que o homem do Lençol pertencia à raça semita; seus traços só sugerem isso vagamente, e sua altura e constituição física não correspondem à do judeu médio de mais ou menos dois mil anos atrás. É mais fácil enquadrá-lo, ainda que seja menos preciso por sua amplitude, no tipo mediterrâneo.

 

Tortura do homem do lençol

O homem do lençol apresenta marcas de açoite por todo o cor­po, menos na região peitoral esquerda, com o presumível intuito de evitar-lhe uma parada cardíaca. As partes mais castigadas são o pei­to, os ombros e o dorso; um pouco menos, as pernas, nádegas e ventre. No flagelo foram empregados dois diferentes chicotes, cada um com duas correias e cada correia com duas bolas (provavelmente de chumbo ou osso) em suas extremidades, do tipo conhecido como flagrum. Contam-se aproximadamente cento e vinte golpes reparti­dos por todo o corpo.

O homem do Lençol foi pregado (na cruz?) pelos pulsos, entre os ossos do Carpo, sem fraturar o osso semilunar. O prego destina­do ao pulso direito não penetrou bem entre os ossos e se retorceu por motivos desconhecidos; teve de ser pregado pelo menos uma vez mais (talvez inclusive em duas ocasiões). Por isso a ferida no pulso era maior (uns 15 x 20 mm) e de forma oval. Os nervos médios foram machucados pelos pregos, ficaram tensionados e provocaram o estiramento dos dedos e a contração dos polegares para o interior das mãos. Os próprios pregos causaram hemostasia (estancamento do sangue), o que impediu que o homem ficasse exangue.

Os pés foram pregados juntos, um sobre o outro, atravessando o astragalo e provocando um encompridamento da perna direita durante o martírio. O homem do Lençol, definitivamente, não era coxo.

A perna esquerda se apresenta mais curta porque, ao estar flexionada tanto tempo (na cruz?), manteve-se assim posteriormente devido à rigidez post mortem. O joelho esquerdo ficou dobrado sobre o di­reito.

A tristemente célebre coroa de espinhos, usada para escarnecer o condenado, foi na realidade um capacete. Causou lesões na região frontal, parietal-temporal e occipital (testa, têmporas, região superior e nuca) da cabeça do homem do Lençol, em uma distribuição aureolar e homogênea. Contam-se umas trinta feridas diferentes claramente confirmadas. As mais importantes chegaram até a veia frontal e ao ramo frontal da artéria temporal. O maior arranhão, sinuoso, cruza a testa; o sangue é denso. Sua forma se deve à contração do músculo frontal, como reação convulsiva à dor. O arbusto empregado em sua confecção recebe o nome de "Espinho de Cristo", ou Ziziphus spina Christi, cujos espinhos apresentam forma de duplos ganchos pontia­gudos.

Depois de morto (a ferida não mostra turgência em seus lábios), o homem do Lençol recebeu uma incisão profunda na lateral do cor­po, produzida por um instrumento de ponta e cortante, que foi intro­duzido quase horizontalmente. A ferida é bem visível, apesar de o sangue haver deixado uma marca mais difusa e uma coloração pouco intensa. Essa ferida está localizada exatamente no hemitórax (A meia altura da cavidade torácica) direito, com saída de sangue e soro (post mortem), sobre o lado direito e até a região lombar, entre a quinta e a sexta costela. A ruptura, de beira­das abertas e sem aspecto de coagulação, demonstra que foi feita em um cadáver. A lança, provavelmente, foi uma romana, usada habitual­mente pelos legionários da época imperial. A lâmina apresenta um desenho oval, capaz de atravessar músculos e deslocar costelas; é como uma folha vegetal, porém mais longa.

Vê-se um leve afundamento no ombro direito por causas des­conhecidas. É possível que seja por causa de um puxão do carrasco dado na perna direita para pregá-la na stipes (madeira vertical da cruz), admitindo-se a hipó­tese de que o homem do Lençol tenha morrido na cruz.

O homem do Lençol carregou nas costas um pesado madeiro (o patíbulo da cruz?) cujo peso, pelas marcas nas costas e ombros, devia ser entre 60 kg e 70 kg, o que fez com que penetrassem mais os espinhos da "coroa" na região da nuca. Este madeiro deixou uma parte irritada e ferida, quase quadrada, de aproximadamente 9 por 10 cm, no ombro direito (região supra-escapular e acromial). Ou­tra marca parecida, apesar de menor, aparece na região escapular esquerda. A grossura do madeiro devia ser de mais ou menos 15 cm, pelo que, em relação ao peso, se deduz que seu tamanho devia girar em torno de 1,60 m e 1,70 m.

O homem do Lençol foi preso pelos tornozelos (Se não fosse Jesus, poderiam ser os outros dois condenados duran­te a via crucis ao Calvário - Gólgota). Também mos­tra marcas de cordas nos pulsos (mãos atadas e flagelação), braços, axilas e peito, estas últimas possivelmente devidas ao madeiro que teve de ser carregado nos ombros.

Recebeu cruéis golpes no rosto. Vê-se um evidente desvio do nariz para a esquerda, assim como uma região ferida por um golpe enérgico. A região cigomática (bochechas) direita aparece também inchada. O golpe foi desferido por um bastão ou garrote de uns 5 cm ou 6 cm de diâmetro e partiu do lado direito, dado com a mão esquerda (costu­me judeu). Causou danos mais graves no nariz. Outras marcas fortes de golpes se observam no peito e no abdômen. Os lábios estão infla­mados. Uma parte da barba foi arrancada, presumivelmente por um puxão.

O homem do Lençol caiu no chão, várias vezes e em superfícies bastante irregulares (em chão de pedra ou paralelepípedo), durante seus diversos espancamentos. Seus joelhos estão claramente feridos, sobretudo o esquerdo.

O fio de sangue que cruza completamente as costas do cadáver na altura da cintura deve-se à ferida de lança feita no hemitórax e deve ter sido feito ao descer o homem de onde estava preso (na cruz?).

Sobre suas pálpebras, ao amortalhá-lo no sepulcro, foram co­locadas moedas de bronze de tamanho pequeno, quase do tamanho das cavidades dos olhos. Este é um costume judeu, que pode usar moedas ou outro objeto (cerâmica, pedra etc.). As moedas provavelmente eram leptones (moeda de bronze judia).

Antes de envolvê-lo, prenderam a cabeça do cadáver com um lenço por baixo do queixo, para manter a boca fechada na sepultura. O homem do Lençol tinha cabelos compridos e foi enrolada na nuca uma mecha que caía um pouco abaixo do pescoço. Essa forma é típica da cultura essênia da Palestina há dois mil anos.

A rigidez que se observa no cadáver, muito evidente, com a cabeça enterrada no peito, é característica de crucificados, como demonstram diversos testemunhos históricos.

 

Análises do Lençol

Aderidos ao tecido encontram-se restos de cera, fragmentos de insetos, esporas e pólen, lã e pequenos fiapos de seda de cor rosa e azul.

O estudo palinológico (A palinologia é a parte da botânica que estuda o pólen e as esporas, vivas ou fósseis) detectou, entre as fibras do lençol, grãos de pólen de plantas desérticas do tempo de Jesus Cristo e da região da Palestina, idênticos aos encontrados nos estratos sedimentares do lago Genesaré, com uma Antigüidade de dois mil anos.

Também se encontraram grãos de pólen que demonstram sua passagem por Constantinopla, França, Itália, Ásia Menor (Edessa) e Espanha, entre outros menos importantes. Essa diversidade, que não existe de modo natural em lugar nenhum do mundo, demonstra que viajou muito e apresenta provas dos itinerários percorridos. Alguns grãos são de espécies extintas; por isso não serviram para o estudo. Mas outras espécies ainda existem e pertencem a ditas regiões geo­gráficas.

Foi encontrada grande quantidade de partículas de óxido de ferro e de ferro puro (um componente do sangue), em maior quanti­dade sobre as manchas das feridas maiores. Essa quantidade de­monstra que saiu muito sangue. Às vezes transpassa o tecido. O fato de não se espalhar ainda mais no pano indica que era muito grosso (o cadáver estava desidratado). Essas partículas estão em toda a exten­são do Sudário, provavelmente devido ao fato de se guardar o Len­çol dobrado.

As manchas de sangue estão espalhadas por todo o Lençol. Perderam qualquer resto orgânico que pudesse permitir identificá-lo como tal (ainda que sua formação pareça evidente). Também não há vestígio químico de sangue. À luz ultravioleta não se produziu fluorescência; portanto, não há hemoglobina. O teste com bencidina resultou negativo: não houve transformação de cor. Negativo tam­bém o exame micro-espectroscópico em busca de hemocromógeno. Negativa a cromografia de estratos ultrafinos. As proteínas específi­cas do sangue ficam desnaturalizadas e perdem as características que permitem identificá-las. É emitido o espectro de meta-hemoglobina desnaturalizada, ou seja, sangue muito antigo. Pesquisa de bilirrubina, positiva. Com luz refletida, viu-se a cor azul típica de azobilim Ibina. Tes­te de fluorescarnina, positivo. São detectadas proteínas do sangue.

Foram encontradas proteínas animais em algumas regiões do Lençol, mas somente nas manchas de sangue, e não em toda a super­fície, como aconteceria em um Lençol feito por um pintor. Essas pro­teínas estão unidas a outra substância orgânica, a seroalbumina, que somente é encontrada na parte gordurosa do sangue. No teste de dissolução de hidracina, os fragmentos revelaram a cor característica do hemocromógeno.

 

Análise da Impressão do Lençol

A imagem do Lençol é considerada uma impressão no sentido de que se formou por contato, não mediante ação química ou bacteriológica (revelado pelo estudo de raios X). Não há nenhum tipo de pigmento no tecido. Descarta-se, assim mesmo, a natureza térmica da imagem pela época em que se formou.

A imagem é sumamente superficial; não transpassa as fibras mais exteriores do linho, nem mesmo as partes mais escuras. A parte mais escura fica nas regiões onde há mais fibras tingidas (ou seja, que não é mais intensa em cada fibra individualmente). Só aparece imagem na face do tecido que teve contato com o cadáver. Sob as manchas de sangue não há nenhuma pintura.

As fibras que têm parte da imagem estão deterioradas. O linho nessas regiões se desidratou e enferrujou mais rápido que o resto do Sudário. A impressão está marcada por uma decomposição mais ace­lerada de certas partes do linho. A verdadeira cor da imagem é cinza ­neutro. Parece sépia pelo tom amarelado do linho e pela iluminação externa.

A imagem é tridimensional. Suas diferenças de tonalidade só dependem da distância. O grau de intensidade é inversamente pro­porcional à distância do tecido ao corpo.

A impressão é um autêntico negativo fotográfico da figura do ho­mem do Lençol (exceto as manchas de sangue, que estão em positivo). As regiões claras ficam escuras e vice-versa. Mas falta perspectiva (não há foco radiante localizado e preciso). A imagem se formou por uma radiação emitida pelo próprio corpo. Sua natureza é ignorada, e não há nenhuma hipótese que possa anunciar uma teoria satisfatória.

 

Análise genética do homem do Lençol

Neste trecho é conveniente introduzir um resumo explicativo, para que se compreendam com clareza os conceitos mais importan­tes que a ciência genética utiliza. A análise realizada com o homem do Lençol foi feita mediante sua completa cadeia de DNA, obtida de um cabelo encontrado no tecido.

A herança genética dos seres humanos é transmitida de geração a geração, passando cada genitor metade dessa herança aos filhos. Um indivíduo tem pares de unidades genéticas, apesar de, na trans­missão (óvulo ou espermatozóide: os gametas), só intervir uma se­qüência simples. Cada unidade genética é denominada gen, e o con­junto destes, que se encontra nos cromossomos, é o genoma, uma longa hélice enrolada de DNA.

O homem tem vinte e três pares de cromossomos, ou seja, quarenta e seis no total. Cada gen de um cromossomo tem um idêntico a ele: são genes homólogos. Isso é assim porque cada gen ocupa uma posição específica em determinado cromossomo, chamada lucus. Ao longo dos cromossomos localizam-se uns cem mil genes diferentes (vários milhares relacionados com doenças hereditárias), alguns muito pequenos e outros muito grandes. Entre eles há, habitualmente, códi­go genético aparente inútil. Na atualidade se conhece 30% do mapa do genoma ou, dizendo de outro modo, uns trinta mil genes.

Quando um indivíduo possui os dois genes homólogos idênticos de um casal, se diz que é homozigótico. Em caso contrário, sendo cada gen homólogo diferente, o indivíduo é heterozigótico. Cada for­ma diferente de um gen é denominada alelo. E dos dois genes, em caso de serem diferentes, só se manifestará no indivíduo o que tiver características dominantes, ficando oculto o recessivo, e, ainda que o traço não seja evidente, pode ser transmitido aos filhos e a gerações posteriores.

Em alguns casos, um traço determinado depende de vários ou muitos genes (poligenético, em oposição a um só, monogenético) e da combinação de seus alelos. E em algumas ocasiões, inclusive, a combinação de alelos pode induzir a traços intermediários. Deve ser levado em conta que a maioria dos traços mais importantes do ho­mem se deve à soma dos diversos genes.

 

Características físicas

 

- Compleição atlética.

- Alto.

- Ombros e quadris largos.

- Cabeça comprida (dolicocéfalo – índice cefálico inferior a 0,77).

- Pele clara.

- Cabelo castanho-claro, ligeiramente ondulado.

- Barba quase loura.

- Nariz comprido.

- Lábios médios.

- Orelhas pequenas.

- Sobrancelhas negras e arredondadas.

- Olhos verdes acinzentados.

- Grupo sangüíneo AB, fator Rh+.

- Todos os sistemas físicos potencialmente aptos.

- Nenhuma alteração cromossômica.

- Nenhuma anomalia congênita monogênica nem poligênica. - Alta resistência a alergias.

- Ausência de genes de doenças hereditárias.

 

Características psíquicas

 

- Inteligência poderosa. Quociente intelectual, isolando os fatores ambientais, em tomo de 150 (menos de 1 % da população).

- Amplas capacidades indutiva e dedutiva.

- Capacidade de memória elevada.

- Elevada aptidão para a abstração.

- Grande estabilidade emocional.

- Habilidade muito alta em atividades somáticas.

- Excelente coordenação psicomotora. - Nenhuma enfermidade mental hereditária.

 

A conclusão mais relevante do estudo genético foi descobrir que o homem do Lençol não tem nenhum par de alelos recessivos, ou seja, que o sujeito analisado nunca é homozigótico sobre um gen recessivo. Seus genes homólogos são sempre alelos dominantes, ou um dominante e o outro recessivo. Isso supõe que o homem do Len­çol só tem traços contidos nos alelos dominantes ou traços intermedi­ários, já que não é possível que um certo traço se mostre com evi­dência, pertencendo a um alelo recessivo, em um indivíduo heterozigótico a respeito desse gen.

Entre os trinta mil genes conhecidos e localizados no mapa do genoma humano, só 10% foram encontrados em seus diversos alelos. Estes são uns três mil genes nos quais o homem do Lençol apresenta sempre, ao menos, um alelo dominante.

A probabilidade de isso acontecer é de 1 para cada 2 elevado a 3000. Para se ter uma idéia clara da magnitude deste número, é preciso dizer que é infinitamente maior que um gugol (dez elevado à centésima potência), o maior número usado pelos matemáticos. A probabilidade de que todos os seres humanos da Terra fossem agraciados com o prêmio da loteria todos os dias de sua vida é incomparavelmente maior que a do fato exposto.

 

Versão dos Evangelhos

 

Mateus

(No palácio de Caifás.) Então começaram a cuspir-lhe no rosto e a dar bofetadas; outros davam socos, dizendo: "Adivinhe, Cristo, quem te bateu?".

(No palácio de Pilatos.) Então soltou Barrabás; e Jesus, que depois de surrado, foi entregue para ser crucificado. / Depois de des­pi-lo, vestiram-no com uma túnica vermelha e, confeccionando uma coroa de espinhos, puseram-na em sua cabeça. / Cuspiam nele, to­mavam-lhe o cajado com o qual batiam na cabeça do crucificado.

(Via crucis.) Depois de zombar bastante dele, tiraram sua túni­ca, puseram de novo suas roupas e o levaram para ser crucificado.

      (Crucificação.) Os que o crucificaram dividiram suas roupas.

      (Referência ao Santo Sudário.) José [de Arimatéia] pegou o corpo, envolveu-o em um lençol limpo e o pôs em seu próprio sepul­cro novo, que havia mandado construir na rocha.

 

Marcos

(No palácio de Caifás.) Alguns começaram a cuspir nele e a cobrir-lhe o rosto; davam-lhe bofetadas e diziam: "Profetize!". E os criados lhe davam socos.

(No palácio de Pilatos.) Puseram nele um manto púrpura e uma coroa de espinhos e começaram a saudá-lo: "Salve, rei dos judeus!". E batiam em sua cabeça com uma vara, cuspiam nele e, ajoelhados, faziam-lhe reverências.

(Via crucis.) Quando o levavam para ser crucificado, obriga­ram um transeunte a levar sua cruz.

(Crucificação.) Eles o crucificaram e dividiram seus vestidos, dis­tribuindo por sorteio entre eles para ver que parte ficava com cada um.

(Referência ao Santo Sudário.) Comprou este [José de Arimatéia] um lençol, desceu-o da cruz, envolveu-o nele, levou-o até o sepulcro cavado na rocha e fechou o sepulcro com uma pedra.

 

Lucas

(No palácio de Caifás.) Os que o vigiavam zombavam dele e o golpeavam; e, como o haviam coberto com um véu, perguntavam: "Profetize quem te bateu!".

(Via crucis.) Quando o estavam levando [para ser crucificado], obrigaram um tal de Simão de Cirene, que vinha do campo, a levar a cruz atrás de Jesus.

(Crucificação.) Chegando ao lugar chamado Calvário, crucifi­caram-no.

(Referência ao Santo Sudário.) Então um homem chamado José [...], de Arimatéia [...], apresentou-se a Pilatos e pediu o corpo de Jesus; depois de descê-lo, envolveu-o em um lençol e o pôs em um sepulcro cavado na rocha, onde nunca alguém havia sido posto. ! Pedro, no entanto, levantou-se e foi correndo ao sepulcro: ao chegar lá, só viu os lençóis; e voltou para casa espantado pelo que havia ocorrido.

 

João

(No palácio de Pilatos.) Então Pilatos mandou açoitar Jesus. Os soldados fizeram uma coroa de espinhos e puseram em sua cabe­ça, e também um manto púrpura; depois se aproximavam dele e dizi­am: "Salve, rei dos judeus!", e lhe davam bofetadas.

(Via crucis e crucificação.) Pegaram a Jesus que, carregando a cruz, foi em direção de um lugar chamado a Caveira - em hebreu Gólgota -, onde o crucificaram.

(Crucificação.) Os soldados, depois de crucificar Jesus, pega­ram seus vestidos e os dividiram em quatro partes, uma para cada um, e a túnica.

(Lançada.) Quando chegaram até Jesus, ao vê-lo morto, não quebraram suas pernas; mas um dos soldados enfiou-lhe uma lança, e da ferida verteu sangue e água.

(Referência ao Santo Sudário.) Pegaram [José de Arimatéia e Nicodemos] o corpo de Jesus e o envolveram em lençóis com essên­cias, como costumavam sepultar os judeus. Os dois [Simão Pedro e o próprio João?] iam correndo juntos; mas o outro discípulo corria mais que Pedro e chegou antes ao sepulcro e, agachando-se, viu os lençóis jogados, mas não entrou. Em seguida chegou Simão Pedro, entrou no sepulcro e viu os lençóis jogados e o sudário que havia envolvido a cabeça, não jogado, mas enrolado em um lugar separado. 

 

                                                                                David Zurdo

 

 

                                         

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