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O ENIGMA VIVALDI / Peter Harris
O ENIGMA VIVALDI / Peter Harris

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O ENIGMA VIVALDI

 

O rosto macilento, o nariz afilado e os olhos encovados configuravam umas feições tão doentias que mostravam, sem dúvida nenhuma, que àquele homem lhe restava muito pouco tempo de vida. A morte já andaria à espreita pelas sombrias vielas do bairro que se abria no fim da Kárntnerstrasse e se esparramava em direcção a uma das portas mais antigas da cidade até às muralhas de Viena. As mesmas que em tantas ocasiões tinham permitido resistir aos embates dos turcos e salvar, uma e outra vez, a capital dos Habsburgo de cair nas mãos dos sultões otomanos.

Há pouco tempo a viúva Wahler tinha subido até às águas-furtadas, onde o moribundo agonizava, para o reconfortar com uma malga de caldo em cuja preparação se tinha esmerado. Enquanto se esforçava para que o tomasse, colher a colher, com uma infinita paciência e como se tratasse de um membro da sua própria família, tinha-lhe sussurrado palavras de alento que eram uma pura mentira.

- Hoje está com melhor aspecto! Vai ver como com uns dias de repouso e uma alimentação adequada se livrará destas febres! Vai ver se não será assim!

com um grande esforço o doente tentava beber o caldo oferecido por aquela mulher que conhecia apenas há uns meses, quando lhe alugara por módica quantia as dependências que se tinham transformado no seu lar, e que era o melhor que as suas precárias economias lhe permitiam usufruir.

A viúva Wahler, que tinha sido mulher de um correeiro, recebeu-o como hóspede em sua casa, não só porque o aluguer pressupunha uma parcela adicional para as suas magras economias, como também porque lhe tinha causado um certo respeito o facto de que a pessoa que lhe solicitava hospedagem tivesse a condição de sacerdote. Só acreditou nisto quando o pároco de San Esteban, paróquia a que pertencia a sua casa, garantiu que, efectivamente, aquele indivíduo era quem dizia ser. Tratava-se de um clérigo italiano, dissera-lhe o padre Stõfel, ainda que por certo um clérigo um tanto singular, não só pelo seu aspecto, como também pelas suas maneiras. Usava peruca, já fora de moda e muito danificada, vestia labita, calções justos e meias. Tudo muito coçado e gasto, como se se tratasse de um artesão a passar por um mau momento e vestisse a sua roupa de domingo para passear.

Contudo, não era o seu aspecto o que chamava mais a atenção naquele clérigo, mas as estranhas visitas que recebia, algumas delas a horas intempestivas, de gentes da mais variada laia e condição. Em algumas ocasiões, tratava-se de personagens enigmáticas que cobriam o rosto com chapéus bem inclinados e com o embuço das suas capas. Como é óbvio eram pessoas que não desejavam ser identificadas e, por isso, gentes que pelo seu aspecto estariam pouco de acordo com a condição eclesiástica de quem visitavam. Muitas vezes, as reuniões pareciam conciliábulos onde se deveria urdir alguma estranha trama ou tratar-se de algum assunto extraordinário. Isso era, pelo menos, o que a imaginação da viúva Wahler criava na sua cabeça.

Tanta perturbação lhe provocavam aquelas visitas que chegou a duvidar da condição do seu hóspede e, numa ocasião, foi tal a angústia que tudo aquilo despertou no seu espírito que procurou o padre Stõfel para lhe comunicar a sua ansiedade. O pároco de San Esteban tranquilizou-a, dizendo-lhe que não devia preocupar-se; que o maister Vivaldi era um clérigo italiano, veneziano para ser mais específico, cuja dedicação à música tinha sido o centro da sua vida. Era, dissera-lhe o padre Stõfel, um consumado violinista, um dos melhores da Europa, e a sua música ouvia-se nas óperas dos mais celebrados teatros e tocava-se nos mais requintados serões das cortes principescas.

As explicações do padre Stõfel tinham serenado um pouco o espírito da viúva porque coincidiam com algumas das actividades do seu hóspede. Passava muitas horas a tocar violino e fazia-o verdadeiramente de forma extraordinária. Era uma música celestial, aquela que arrancava às cordas do seu instrumento, uma música que fazia transportar o espírito, elevando-o muito acima das vulgaridades que a vida lhe trazia, diariamente.

Apesar da tranquilidade que as palavras do pároco lhe tinham proporcionado, as inquietações não haviam desaparecido de todo porque não deixavam de lhe provocar um certo desassossego as estranhas visitas que o sacerdote recebia. Sobretudo quando estas aconteciam fora de horas.

Estes inconvenientes não haviam perturbado as relações entre a dona da casa e o seu hóspede. Maister Vivaldi tinha sido sempre pontual no pagamento do gulden semanal acordado pelo alojamento e pelas três refeições - pequeno-almoço, almoço e jantar

- estipuladas. Nunca, além disso, se tinha queixado da quantidade ou da qualidade das ditas refeições, ainda que fosse também verdade que não havia motivo para a queixa porque a viúva do correeiro era uma excelente cozinheira, que honrava as delícias culinárias vienenses, e nunca tinha escasseado nas quantidades. Era sabido na vizinhança que o defunto Wahler exibira em vida uma rotunda figura que a sua mulher cultivava com esmerado empenho. Dizia-se que o correeiro tinha ido parar à cova por não ter conseguido superar a indigestão que lhe provocara um enfartamento de salsichas na brasa, acompanhadas por uma suculenta salada de repolho, regada com abundante cerveja e coroada com um strudel, em cuja elaboração frau Wahler se mostrava como uma consumada doceira.

Apesar de maister Vivaldi ter conseguido ingerir, com grande esforço, uma parte não pequena da malga de caldo, a viúva tinha ficado impressionada pelo estado em que se encontrava. Era verdade que o clérigo músico nunca tinha sido um homenzarrão como os que se criavam nas margens do Danúbio e que quando ela o conheceu era já uma pessoa abatida pelo passar dos anos. Mas nas últimas semanas em que mal tinha saído à rua, dado o seu estado de saúde delicado e devido ao calor asfixiante que lhes obsequiava aquele rigoroso Verão de 1741, o seu aspecto tinha-se deteriorado de forma alarmante. Só a proeminência da sua barriga tinha ganho em volume e isso não era, propriamente, um bom sinal.

Naquela tarde, enquanto se afadigava batendo com força a massa do que mais tarde se transformaria num empadão de carne, frau Wahler pensou que o mais aconselhável, dadas as circunstâncias, seria avisar o padre Stõfel, a única pessoa a quem se podia dirigir para comunicar o preocupante estado do seu hóspede.

Acabava de tomar a decisão de ir à paróquia, antes que a tarde declinasse mais e as sombras cobrissem a cidade - teria tempo depois de continuar com o seu empadão -, quando ouviu bater a aldraba da sua porta. Importunada por aquele toque que anunciava uma visita inesperada, limpou as mãos, tirou o avental e foi abrir a porta. Tinha a testa franzida e não estava disposta a permitir, sob nenhuma razão, que se perturbasse o doente, cuja necessidade de repouso lhe parecia imprescindível.

Enquanto se arranjava um pouco, voltaram a bater à aldraba com mais insistência.

- Já vai! Já vai! Por San Esteban abençoado, que pressa! Que pressa!

O mau humor que aquele toque tinha provocado no seu espírito acentuou-se com a exigência das batidelas na aldraba. Voltaram a ouvir-se uma terceira vez antes que alcançasse a porta.

A reprimenda que tinha na boca ficou suspensa ao confrontar-se com os autores dos nervosos chamamentos. Na ombreira da porta, recortavam-se as figuras de dois clérigos, esmeradarnente vestidos. Apercebeu-se, pelo aspecto, de que se tratava de membros da companhia de Jesus. O mais velho deles, de uns cinquenta anos, tinha uma barba grisalha, ao passo que o mais jovem se apresentava barbeado. Eram de similar estatura e ambos chamavam a atenção pela magreza, o que, sem dúvida, reforçava o ar atilado que tinham. Não era habitual dar de caras com membros da Companhia de Jesus fora do âmbito da sua casa matriz - que era ao mesmo tempo colégio, no qual se educavam os filhos da nobreza - ou das paróquias que tinham atribuídas, as mais ricas da cidade.

A surpresa estava estampada no rosto da viúva, que tinha ficado com a boca entreaberta e a primeira das suas reprimendas engasgada na garganta, quando o mais velho dos sacerdotes lhe perguntou com voz tranquila:

- É esta a casa onde se encontra hospedado o senhor António Vivaldi?

Antes de responder, a mulher tomou a mão do jesuíta e depositou nela um humilde, mas ao mesmo tempo sonoro beijo, como sinal de respeito à sua pessoa.

- É verdade, reverendo, é verdade. Aqui vive o senhor António Vivaldi.

Haveria algum inconveniente em visitá-lo? - A voz do jesuíta soava doce, envolvente. Era uma voz que formulava uma pergunta, mas com um tom de autoridade que garantia uma resposta de acordo com os seus desejos.

A mulher, que ainda não se tinha recomposto da impressão causada pelo facto de se encontrar à porta de sua casa com dois membros da elitista ordem ignaciana, demorou uns segundos a responder, não porque vacilasse na resposta, mas porque não conseguia sair do seu atordoamento. Foi o tempo necessário para que o sacerdote insistisse:

- Escute, frau, frau...?

- Wahler, frau Wahler - respondeu com muito orgulho a viúva.

- Escute, frau Wahler, sabemos que micer Vivaldi está gravemente doente e tanto o padre Hoffmann - fez um gesto na direcção do outro sacerdote - como eu desejaríamos trazer-lhe um pouco de consolo. Temos uma antiga relação com ele, não tanto pela sua condição de clérigo, mas pelas suas qualidades artísticas. Como a senhora sabe, é um excelente músico e, possivelmente, o melhor violinista de todos os tempos. Em diversas ocasiões compôs obras para serem interpretadas em colégios da nossa Companhia. Tivemos conhecimento do seu estado através do padre Stõfel, o pároco de San Esteban, e é por isso que estamos aqui.

Frau Wahler ouvia as explicações do jesuíta e, atordoada como estava, mal conseguiu responder afirmativamente ao pedido que agora lhe chegava em forma de desculpa:

- Se acha que viemos em má hora, podemos voltar noutra ocasião...

- De maneira nenhuma! De maneira nenhuma! Vossas Reverências estão em vossa casa, se têm por bem considerar como tal este humilde lar! Entrem, Vossas Reverências, façam o favor de entrar!

A viúva desviou-se para um lado, afastando a sua corpulenta figura, e deixou a entrada livre aos dois jesuítas, a quem acompanhou até aos aposentos onde se debatia, entre a vida e a morte, o músico veneziano. Este abriu os olhos com dificuldade quando a sua senhoria o informou da visita.

- Se Vossas Reverências necessitarem de alguma coisa basta chamarem por mim - disse frau Wahler em voz baixa antes de sair do quarto, fechando a porta atrás de si.

Mal tinham passado uns segundos quando se ouviu o bater de nós de dedos na porta do aposento e, quase ao mesmo tempo, apareceu o rosto redondo e carnudo da viúva:

- Perdoem a interrupção, será que uma de Vossas Reverências poderá sair por uns instantes?

Os jesuítas trocaram um olhar de estranheza. Sem dizer uma palavra o mais velho dos dois saiu do quarto.

- Sim?

- Veja bem, Padre, perdoai se vos causo algum incómodo, mas creio que é muito importante o que tenho a dizer-vos. Maister Vivaldi está muito mal. Tão mal, tão mal, que... que - a viúva Wahler tinha dificuldade em pronunciar a palavra que tinha na sua cabeça.

O jesuíta apressou-se a ajudá-la:

- Tão mal que pensais que lhe restam poucas horas de vida, não é assim?

- Assim é, Reverência.

- Mais uma razão - anotou o jesuíta - para que lhe proporcionemos um pouco de consolo nestes últimos momentos da sua vida.

- O que quero dizer a Vossa Reverência é que podereis, se parecer adequado a Vossa Reverência - baixou os olhos em sinal de respeito -, ouvi-lo em confissão. Precisamente quando Vossas Reverências chegaram preparava-me eu para ir ter com o padre Stõfel pedir-lhe que considerasse a possibilidade de lhe administrar os santos óleos; não creio que o maister chegue até amanhã. Está muito mal.

- Não vos preocupeis com isso, ou o padre Hoffmann ou eu próprio o exortaremos a que se ponha de bem com Deus.

Os dois jesuítas estiveram um pouco mais de uma hora no quarto onde o músico veneziano passava as que pareciam ser as últimas horas da sua vida. Durante este período um deles ouviu-lhe uma confissão, enquanto o outro, o mais jovem, aguardava na antessala em oração, segundo se podia deduzir da disposição do seu espírito.

A viúva Wahler, aproximou-se, solícita, algumas vezes para perguntar ao jesuíta que se encontrava fora do quarto se necessitava de alguma coisa. O sacerdote perguntou-lhe acerca das pessoas que visitavam o doente, mas a viúva limitou-se a dizer que não sabia grande coisa sobre essas pessoas até porque o maister Vivaldi era muito reservado em relação aos seus assuntos. Só lhe disse que se tratava de pessoas estranhas e que não conhecia nenhuma delas.

A agonia de Vivaldi prolongou-se um pouco mais do que a viúva Wahler tinha vaticinado. Não morreu, como ela pensara, antes do amanhecer do dia seguinte à visita dos membros da Companhia de Jesus. Viveu três dias mais, tempo suficiente para que o pároco de San Esteban achasse por bem visitá-lo novamente, com o propósito de lhe levar mais um pouco de consolo na sua longa agonia e administrar o sacramento da unção dos doentes.

A sua surpresa foi enorme quando comentou com o padre Stõfel a visita daqueles jesuítas.

- Como dizes tu que se chamavam?

- Um deles chamava-se Hoffmann, exactamente, Hoffmann. Mas o outro não... não me lembro do nome! - Frau Wahler tentou recordar-se, mas em vão.

- E dizes que foram a tua casa depois de terem falado comigo?

- Foi isso que me disseram, Padre, que sabiam do lamentável estado em que se encontrava maister Vivaldi porque o senhor lhes tinha dito.

O padre Stõfel acariciou várias vezes o queixo com ar preocupado; parecia procurar entre as pregas da sua memória esse momento a que se referia a viúva Wahler. Depois olhou-a nos olhos:

- Tens a certeza que te disseram que tinham falado comigo e que não se referiram a nenhum outro sacerdote da paróquia? O padre Osnabríick? Talvez o padre Sintel? Ou, então, o padre Meisser?

- Não, Padre, tenho a certeza que me disseram que foi consigo com quem tinham falado e que lhes dissera que o maister Vivaldi se encontrava muito doente. Disseram que as relações do maister com a sua congregação eram excelentes porque lhes tinha composto algumas peças musicais para os seus colégios. Tenho a certeza que me disseram tudo isso e que se referiram a si. - A viúva Wahler afirmava com enérgicos movimentos de cabeça ao mesmo tempo que denotava um crescente desassossego.

- Bom, bom, neste caso é bom que fiques a saber que não tenho notícia que pela paróquia tenha aparecido algum jesuíta nos últimos dias e muito menos que esses jesuítas tenham falado comigo.

- Isso não é possível, Padre! - exclamou frau Wahler um tanto surpreendida.

O pároco de San Esteban olhou-a outra vez nos olhos:

- Tens a certeza que esses dois homens eram quem diziam ser? Frau Wahler levou a mão à boca como se desse modo pudesse conter a exclamação que lhe escapava. O sobressalto que tinha aflorado ao seu rosto por instantes transformou-se num rubor de vergonha, que cobriu as suas faces redondas. Ainda lhe restou ânimo para dizer ao sacerdote:

- Um deles, o mais velho, confessou maister Vivaldi! Eu vi.

- Estiveste presente na confissão?

- Não, não, pelo amor de Deus! - O tom rosado subia intensamente pelo seu rosto e a sua testa cobriu-se de pequenas gotas de suor.

- Então...?

- bom, Padre, veja bem... Um deles estava a rezar, enquanto o outro confessava o doente. Foi isso que vi! - A viúva estava a passar por um mau bocado.

- Acreditar, eu acredito, mas isso não significa - assinalou o pároco de San Esteban - que aqueles que visitaram há dias o maister Vivaldi fossem quem diziam ser. Mentiram sobre a relação que diziam ter mantido com a minha pessoa, o que significa que tentavam esconder alguma coisa. É possível... é possível que nem sequer fossem sacerdotes.

A mulher pareceu ficar horrorizada com o que acabava de ouvir. Pessoas que se faziam passar por ministros de Deus, sem o serem! Mas isso era um gravíssimo sacrilégio! E tinham estado em sua casa! Santo Deus!

O padre Stõfel chamou um dos sacristãos e dois acólitos, deu-lhes instruções para que se vestissem de forma conveniente porque iam levar o viático e dar a extrema-unção a um moribundo. Saiu da sacristia onde tinha tido lugar a conversa e dirigiu-se ao sacrário, colocou uma hóstia num estojo e pegou num pequeno frasco de vidro. Na rua, juntaram-se-lhe vários fiéis que o acompanharam juntamente com o sacristão, que abria a comitiva levando uma pírtiga rematada por uma cruz de barrocas formas, e com os dois acólitos que alumiavam com candeias protegidas por coberturas de vidro. Um deles fazia soar com ritmo monótono e cadenciado uma sineta. A pequena procissão que se tinha organizado em torno do viático cobriu em poucos minutos a distância que separava a igreja de San Esteban da casa onde Vivaldi agonizava.

Os últimos raios de Sol caíam sobre os inclinados telhados de ardósia preta e sobre as fachadas das casas de Viena, dando uma tonalidade alaranjada aos reflexos de luz dourada que anunciavam a chegada do crepúsculo.

O padre Stõfel recebeu a confissão do músico agonizante, que ainda conservava a lucidez. Manifestou-lhe ter-se confessado há pouco tempo, ainda que no estado em que se encontrava - caía em profundos sonos quando a febre apertava - não pudesse precisar quanto tempo tinha exactamente decorrido, mas não mais de três ou quatro dias. Disse-lhe tê-lo feito com um padre da companhia de Jesus, que o convidou a fazer-lhe uma confissão geral. Assim o fez e nela lhe revelou numerosos aspectos e pormenores da sua vida, ainda que muitos não estivessem relacionados com questões de consciência. Mas Vivaldi - assim o manifestou ao pároco de San Esteban - fez um completo exame da sua vida, animado pelo sacerdote que o escutava, que o convidou, inclusive, a que lhe contasse tudo aquilo que o fizesse descarregar a sua consciência. Disse ao pároco que manifestou ao jesuíta a tranquilidade com que ficara o seu espírito, depois de ter confirmado a notícia de que o último correio que tinha enviado para Veneza, e que segundo ele era de suma importância, chegara ao seu destino.

Quando Stõfel abandonou a casa da viúva Wahler tinha a certeza absoluta de que a confissão que o músico veneziano fizera dias atrás não tinha sido um acto sacramental.

Vivaldi tinha-se confessado com um farsante, que aproveitou a circunstância para ficar a saber dos segredos da sua vida. O que não conseguia perceber era o interesse que podiam ter em sacar-lhe alguma coisa relacionada com a sua pessoa ou a sua vida. O mais provável é que tudo aquilo tivesse relação com as misteriosas visitas que recebia e que tanto tinham preocupado a sua senhoria.

Apesar da estranheza do episódio estava contente por não ter mencionado nada disso ao agonizante músico. Quem sabe como uma revelação daquele calibre teria perturbado o seu espírito! O melhor era que expirasse em paz e entregasse a alma ao criador com a serenidade de espírito que tinha percebido na sua conversa. O mais conveniente era que o segredo de tudo aquilo fosse levado por Vivaldi para a cova quando morresse, coisa que ocorreu na madrugada do dia seguinte.

Emmanuel Stõfel tinha dado mostra de irrepreensíveis princípios de caridade cristã ao actuar daquele modo. Tinha acertado ao descobrir que aqueles jesuítas eram falsos, e que se tratava de gente que tinha obtido, por tão iníquo método, algum segredo importante que o veneziano possuía. Mas o clérigo vienense enganava-se redondamente quando pensava que aquele segredo ia para a cova com Vivaldi.

Veneza vivia o esplendor dourado da sua decadência. Estava em crise a poderosa frota veneziana que, noutros tempos, tinha reinado sobre as águas do Mediterrâneo e levado os seus pavilhões pelo mar Negro e suas costas, onde os capitães venezianos abriam caminho aos seus mercadores para que traficassem com os comerciantes de peles, de madeiras e de âmbar que desciam do Norte da Rússia, pelo mar Egeu e pelas suas ilhas, disputadas com ardor e ferocidade durante séculos, primeiro a bizantinos e, depois, a turcos, para ter apoios em que assentar o seu domínio. O Adriático era um mar veneziano, a maioria das suas costas e ilhas estavam sob o seu controlo militar.

Agora não havia paixão pelo mar, os velhos capitães de guerra, os que abriam caminho aos mercadores, tinham sido substituídos por capitães mercantes, que desejavam segurança e lucros rápidos, coisa que nem sempre era possível. Preferiam a vida fácil nos seus palácios entre os canais e não estavam dispostos a lutar como os seus antepassados.

Apesar das dificuldades para comerciar perante a dura concorrência de outras frotas e de a moleza se ter instalado entre o patriciado veneziano, não mais de uma trintena de famílias, o aspecto da cidade era impressionante. O luxo de que faziam gala esses patrícios, imitado pela pequena nobreza, para além das suas possibilidades, enchia as ruas, as praças e os canais. Mas havia mais casca do que conteúdo. O dogo e o conselho dos dez agarravam-se às velhas tradições sem se aperceberem que, por outras paragens, sopravam ventos de mudança e de renovação. Mantinham uma invejável rede de informadores mas, ao contrário do que se passava noutros tempos, não extraíam todos os dados das informações.

Conservavam o desenvolvimento diplomático que tinha tornado célebre a Sereníssima República durante séculos e que tantas vantagens lhes tinha proporcionado nos assuntos do comércio e da política. Por essa ordem, porque essa era a ordem que interessava aos governantes de Veneza. Como sempre, definiam-se primeiro como venezianos e só depois como cristãos. Fundeadas no canal de São Marcos abanavam, airosas, numerosas galeras onde drapejava ao vento a bandeira da cidade: o dourado leão de São Marcos. Entre elas, um verdadeiro enxame de gôndolas estilizadas, oblongas barcas a remos, alguns faluchos e outras embarcações menores deslocavam-se de um lugar para o outro da Lagoa, dando uma forte sensação de actividade.

Dois indivíduos, que haviam atravessado o limite de terra firme pela zona de Mestre por volta das dez, atracaram no pequeno cais dapzazzetta de São Marcos. Exibiam no seu semblante as marcas do cansaço, mas nos seus olhos brilhava a satisfação.

Como bons venezianos, entraram na basílica do santo padroeiro da cidade para agradecer os benefícios de uma viagem que tinham felizmente concluído. Depois dirigiram-se ao palácio ducal vizinho, onde estava a residência dos dogos. Passaram em frente das horríveis bocas, cravadas na parede, por onde, quem assim o desejasse, se podia introduzir o texto de uma denúncia anónima contra alguém que, supostamente, tivesse praticado alguma acção contra os interesses de Veneza. Era um procedimento terrível, inquisitorial e dava calafrios só de pensar quantas histórias, verdadeiramente trágicas, tinham tido a sua origem num papel sem assinatura depositado por uma mão anónima numa daquelas terríveis bocas.

Instantes antes de, na vizinha torre do Relógio, onde os mouros autómatos manipulavam os seus martelos, soarem, lentas e majestosas, as badaladas do meio-dia, chegavam às portas do palácio. Resolvidas as complexas formalidades e verificadas as respectivas credenciais, foram acompanhados por um funcionário e escoltados por um soldado de vistoso uniforme.

Os dois indivíduos mal tiveram tempo de se arranjarem, salvo no mais essencial que o decoro exige, depois de terem cavalgado três horas desde o amanhecer daquele dia, porque o dogo os ia receber em pessoa. Um acolhimento que revelava a importância da sua missão. Subiram pela chamada escadaria dos Gigantes e penetraram no labirinto de salas do primeiro andar do palácio.

Mal tiveram de esperar na antessala do Salão Nobre do Conselho. O que lhes chamou a atenção porque era do domínio público que os governantes de Veneza, mestres em todas as artes da diplomacia, obsequiavam com longas esperas todos aqueles que tinham de receber. Era a fórmula através da qual se colocavam animicamente muito acima de quem os visitava e que aplicaram, inclusivamente, aos representantes diplomáticos das mais poderosas potências, entre os quais o papado.

No Salão Nobre do Conselho, sentado num trono real, aguarda-os o dogo. Os dois homens sentiram que caía sobre eles, esmagando-os, o peso de longos séculos de História. Aquele enorme espaço estava decorado com um luxo exuberante, em que se destacavam as pinturas de alguns dos grandes mestres venezianos: ali podia ver-se a famosa representação do Paraíso de Tintoretto e a espectacular Apoteose de Veneza - alegoria onde estavam representadas as grandes gestas realizadas pelos venezianos ao longo da sua grandiosa história - de Paolo Veronese. Recebia uma luz, filtrada pelos ricos cortinados, criando uma atmosfera de sonho e que apresentava uma imagem quase irreal do dogo, distante das quotidianas tarefas dos mortais.

Os dois homens avançaram, atormentados pelos nervos, para o setial onde estava entronizado o dogo Contarini. Uma espécie de camarista que os acompanhava, tinha-lhes dado instruções muito precisas sobre a maneira de se comportarem. No salão eram aguardados pelo dogo e por um secretário que, armado dos adminículos próprios do seu ofício, se encontrava sentado diante de uma pequena mesa colocada de forma discreta ao pé do trono e à distância precisa para cumprir com a sua tarefa. Quando chegassem a um determinado ponto - estava marcado no chão - deveriam parar, colocar um joelho em terra e dobrar a cerviz. Assim permaneceriam até que o dogo lhes desse uma indicação.

Não tiveram de esperar muito naquela posição porque, rapidamente, foram convidados a levantar-se:

- Levantai-vos, aproximai-vos e sede bem-vindos.

Também os tinham prevenido que só avançassem uns passos. Assim o fizeram.

O camarista apresentou-os de novo.

- Ludovico Gaspieri e Tibaldo Paccini, enviados a Viena por mandato de Sua Sereníssima, em missão especial.

O dogo fez um gesto de assentimento pouco perceptível. O camarista fez uma reverência cortês e retirou-se do salão andando para trás, até chegar às marcas onde os dois viajantes tinham dobrado os joelhos. Só então virou as costas.

À distância a que Ludovico e Tibaldo se encontravam, o rosto do dogo, que era a única parte do seu corpo que podia ver-se por causa das amplas roupagens que vestia, era uma máscara sulcada por rugas grandes e profundas. Estava coberto com um barrete dourado e vermelho que se ajustava à forma da sua cabeça, do qual emergia uma espécie de corno ou protuberância na parte posterior. Calçava borzeguins de um encarnado carmesim e luvas da mesma cor.

- Congratulo-me que tenhais regressado bem de vossa viagem, espero que a mesma sorte tenha acompanhado a missão que vos foi encomendada. Estou ansioso por saber os resultados. Como está micer António Vivaldi?

Após as palavras do dogo houve uns segundos de silêncio provocado pela indecisão dos dois homens que compareciam diante dele. Houve uma troca de olhares vacilantes e foi Tibaldo Paccini que tomou a palavra com uma voz hesitante.

- Excelência, permiti-nos que, em primeiro lugar, vos manifestemos o nosso mais profundo agradecimento pelo acolhimento que nos haveis dispensado e pelos bons desejos manifestados por Vossa Excelência. é motivo para nós do maior orgulho o facto de...

Paccini viu-se bruscamente interrompido pela palavra cortante do dogo:

- Poupai-nos os cumprimentos e ide directos ao assunto, já que são muitos os temas que requerem a nossa atenção e não dispomos de todo o tempo que seria necessário.

Mudou a coloração do rosto de Paccini e uma palidez marmórea apoderou-se das suas feições. Balbuciou umas desculpas e continuou com uma voz que mal lhe saía do corpo.

- Segundo as instruções que nos foram dadas, deslocámo-nos a Viena para saber do paradeiro de micer Vivaldi e obter uma certa informação secreta. Não nos foi difícil localizar o compositor, porque a sua presença naquela cidade era do conhecimento dos amantes da música, meio onde efectuámos algumas discretas pesquisas que nos permitiram descobrir certos aspectos da sua vida naquela cidade, assim como o seu paradeiro. Para evitar qualquer tipo de suspeitas, apresentámo-nos como músicos de uma pequena orquestra que desejava ter algumas composições do maestro. Sabíamos, por informações anteriores, que andava com falta de dinheiro, até ao ponto de suportar penúria e privações. Em Viena eram públicas as dificuldades económicas que micer Vivaldi atravessava naquele momento e disseram-nos que, nos últimos tempos, foram vários os intérpretes que tinham ido visitá-lo com o propósito de adquirir alguns concertos e obras soltas. Soubemos que se hospedava em casa da viúva de um correeiro, que lhe dava comida e tecto por um preço módico, o que, no entanto, representaria uma pesada carga para o compositor. Obtivemos uma informação adicional que mostrou ser de um valor extraordinário para os nossos propósitos...

- E qual foi? - perguntou o dogo.

- Sabei, Excelência - Paccini tinha começado a suar segundo denotava o seu rosto -, que conseguimos descobrir que micer Vivaldi se encontrava gravemente doente ao ponto de não ser visto há muitos dias num café próximo da catedral, onde costumava ir conversar com algumas pessoas com quem partilhava gostos. A doença tinha de ser de uma certa gravidade, até porque o retinha na cama desde há mais de uma semana.

- E o que fizestes, então? - perguntou o dogo, interessado e adoptando uma postura menos hierática do que aquela que conservara até àquele momento.

- Deixámos que se passassem alguns dias, os quais aproveitámos para recolher mais alguns dados para o nosso propósito, sempre com grande discrição, esperando que a saúde do músico melhorasse e pudéssemos ter um encontro com ele. Mas ao verificarmos que o tempo corria e micer Vivaldi não dava sinais de melhorar, porque tudo indicava que continuava prostrado no seu leito, decidimos pôr em marcha um plano que tínhamos amadurecido com antecedência. Fizemo-nos passar por sacerdotes, concretamente membros da Companhia de Jesus.

- Por jesuítas!? - exclamou o dogo.

- Exactamente, Excelência, jesuítas que tinham relações com o compositor por causa, precisamente, da música. com o aspecto e hábitos da referida Companhia apresentámo-nos na casa onde estava hospedado, explicando que o visitáramos por indicação do padre Stõfel, que era o pároco da igreja onde micer cumpria as suas obrigações religiosas. com aquelas credenciais a viúva Wahler, que é o nome da dona da casa, não colocou objecções a que o visitássemos. Sentiu-se aliviada com a nossa presença porque estava preocupada com o estado de Vivaldi.

- O que teria acontecido caso o plano falhasse? - perguntou o dogo.

- Excelência, teríamos perdido simplesmente tempo que era, obviamente precioso, algum dinheiro e pouco mais, porque aqueles dois jesuítas teriam deixado de existir poucas horas depois.

- Será que puseram de sobreaviso a senhoria de Vivaldi?

- Não o creio, Excelência - Paccini, que continuava a suar copiosamente, mostrava agora, no entanto, um aprumo que ninguém vaticinaria minutos antes -, a senhora Wahler estava acostumada a que aparecessem lá em casa, segundo as informações que tínhamos recolhido, numerosas visitas. Em tais circunstâncias, dois honoráveis membros da Companhia de Jesus não levantariam suspeita alguma numa pessoa que é uma mulher piedosa. Foi ela que nos solicitou que ouvíssemos em confissão o doente e lhe administrássemos os sacramentos.

O dogo não pôde evitar que um malévolo sorriso se desenhasse nos seus lábios:

- Está bem, está bem. Continuai.

- Assim chegámos até Vivaldi, que mal se via debaixo da roupa de cama do leito onde jazia. Apesar do seu estado, mantinha viva a lucidez da mente. Explicámos-lhe a nossa presença ali como enviados do pároco Stõfel para o atender espiritualmente, já que ele tivera de se ausentar por uns dias por causa de um assunto familiar.

- Correstes outro risco ao actuar dessa maneira! E se tivesse aparecido o padre Stõfel ou Vivaldi tivesse recuperado a saúde? protestou o dogo.

- O primeiro foi um risco calculado, Excelência. Se a nossa operação tivesse êxito pouco importaria que Stõfel e a viúva Wahler descobrissem que os dois jesuítas que visitaram o moribundo fossem dois impostores. No pior dos casos, dois impostores no seio de um círculo de estranhas gentes no qual parece ter-se movimentado o nosso homem nos últimos tempos da sua vida. Quanto ao segundo, podemos assegurar-vos que seria impossível, a não ser que Deus Nosso Senhor - benzeu-se ao dizer isto - tivesse disposto outra coisa. O estado de saúde de micer Vivaldi era de alguém a quem lhe restava apenas um fio de vida. Em todo o caso, Excelência, a nossa decisão mostrou-se acertada. Apenas uns dias mais e os nossos esforços teriam sido vãos. Micer Vivaldi entregou a alma a Deus apenas três dias mais tarde.

- Vivaldi morreu?

- É verdade, Excelência, faleceu na manhã do mesmo dia em que nós abandonávamos Viena.

O rosto do dogo não deixava entrever nenhuma emoção. Tinha recuperado o hieratismo inicial. Ninguém poderia dizer qual teria sido o efeito que lhe provocara aquela notícia.

- Continuai - insistiu, uma vez mais, com Paccini.

- Talvez porque a sua extrema debilidade tivesse quebrado a sua vontade, ou talvez porque nas circunstâncias em que se encontrava o desejo de limpar a sua alma fosse superior a qualquer outra consideração, fez com que a nossa tarefa fosse muito mais fácil do que tínhamos imaginado. Vivaldi fez uma espécie de confissão geral ao fazer um exame completo de tudo o que tinha sido a sua vida e, de maneira muito especial, os seus últimos tempos.

- Confessastes Vivaldi? - perguntou o dogo.

- Eu não, Excelência, foi Ludovico quem o fez, ainda que melhor seria dizer que quem o fez foi o padre Hoffmann.

- O padre Hoffmann?

- É verdade, Excelência, o padre Hoffmann. Esse era o nome de um dos jesuítas que visitaram o moribundo.

O dogo Contarini limitou-se a assentir com um ligeiro movimento de cabeça.

- E qual foi o resultado dessa confissão geral? - perguntou o dogo, que tinha outra vez um sorriso malévolo desenhado na sua fina boca.

- Ludovico, Excelência, pode explicar-vos melhor que eu. Ludovico Gaspieri abriu a boca pela primeira vez.

- Excelência, a confissão de Vivaldi durou cerca de uma hora... O dogo limitou-se a intimá-lo:

- Ainda que tenhais de fazer um relatório pormenorizado de tudo isso, como é vossa obrigação, limitai-vos por agora ao essencial.

- com muito gosto, Excelência. Pela boca do próprio micer Vivaldi confirmámos todas as nossas suspeitas. Efectivamente, era membro dessa misteriosa organização, ou seita, a que dão o nome de Fraternitas Charitatis, cujos objectivos estão relacionados com o controlo e ocultação de determinados saberes pelo perigo que esse conhecimento traria para a humanidade.

Apareceu uma leve expressão de tensão no inescrutável rosto do dogo.

- E o que sabeis da Fraternitas Charitatis? - perguntou com um tom de crispação na voz.

- Muito pouco, Excelência.

- Muito pouco, como!? O que é que vos disse Vivaldi a esse respeito? A vossa missão era, precisamente, obter toda a informação possível acerca dessa organização esotérica, uma vez que tínhamos dados confirmados da sua ligação à mesma.

- Perdoai, Excelência, mas, para além de confirmarmos que era membro dessa organização secreta, o que obtivemos foi pouco mais que o nome da mesma e um aspecto importante derivado da sua ligação a ela.

O dogo esteve quase a interrompê-lo outra vez, mas conteve-se e esperou que ele se explicasse.

- Por muito que tentasse penetrar no assunto - continuou Gaspieri - confrontei-me com uma barreira intransponível para os meus propósitos. Só pude saber que a Fraternitas Charitatis tem ramificações que se estendem pelas mais importantes cidades do orbe conhecido e que a sua finalidade é a que assinalei a Vossa Excelência: o controlo de saberes e conhecimentos de importância extraordinária. De tanta importância que a difusão dos mesmos, para além de um círculo reduzido que seja capaz de exercer um férreo controlo sobre eles, traria consequências gravíssimas para a humanidade. Essa é a missão da seita à qual pertencia micer Vivaldi. No que diz respeito à sua relação com a Fraternitas Charitatis, devo dizer-vos que a sua permanência em Viena estava relacionada com a sua vinculação a ela e que, por uma razão que ignoramos, Vivaldi estava na posse de um desses saberes cuja difusão é considerada perigosa pela seita.

- Nada averiguastes a esse respeito?

- Sabemos, Senhor, que as visitas das pessoas que foram vê-lo durante estes meses estão relacionadas com isso. Mas por muito que indagássemos para obter uma pista que nos conduzisse a algum dos seus visitantes, não pudemos tirar nada a limpo.

- Nada conseguistes dessa viúva em cuja casa se hospedava?

- Tentámo-lo, Excelência, mas só conseguimos apurar que não conhecia nenhum dos visitantes e que, na sua opinião, se tratava de pessoas estranhas.

- Haveis dito antes que conseguistes uma informação importante, creio que haveis utilizado essa palavra para a qualificar, acerca da vinculação de micer Vivaldi à Fraternitas Charitatis.

- De facto, Excelência, como suspeitávamos, ainda que não saibamos qual foi a via pela qual chegou a alcançá-lo, Vivaldi descobriu um desses saberes cuja difusão é controlada pela seita a que pertencia.

- Como tendes certeza disso? - perguntou o dogo.

- Porque foi o próprio Vivaldi quem no-lo confessou.

- E de que se tratava? - O interesse brilhava nos olhos do governante.

- Ignoramo-lo, Excelência.

- Quereis dizer que vos confessou que tinha feito uma descoberta de importância tal que era necessário preservá-la do conhecimento do mundo e não vos disse qual era? - Nas palavras do dogo havia uma mistura de irritação e decepção.

- Vivaldi comportou-se como um membro exemplar da seita. Não divulgou algo que não devia ser conhecido fora do círculo de iniciados da Fraternitas Charitatis, excelência.

- Mas estáveis a confessá-lo!

- Excelência, posso jurar-vos pelo mesmíssimo São Marcos que não foi fácil que confessasse a sua ligação à dita organização e que a sua presença naquela cidade estava relacionada com o que acabo de vos dizer.

- Concordareis comigo que a vossa missão apenas trouxe pouco mais do que já suspeitávamos. - O dogo não se dava ao trabalho de esconder os seus sentimentos de desilusão.

- Há algo mais que ainda não vos dissemos, Excelência. Algo que justifica o esforço que a Sereníssima realizou.

- E o que é? Como é que ainda não me haveis dito!

- Perdoai, Excelência, mas tive de responder às diferentes perguntas que Vossa Excelência teve por bem formular-me.

O dogo remexeu-se inquieto no seu cadeirão.

- Está bem, está bem. Escuto-vos e espero, para vosso bem, que isso que ainda vos falta dizer-me tenha mais interesse que tudo o que até agora me haveis contado.

- Excelência, Vivaldi enviou para Veneza, antes de cair doente, uma carta com um texto onde explicava essa misteriosa descoberta que tinha feito e que deveria permanecer oculta a todo o custo. Porque Vossa Excelência deverá saber que os membros da Fraternitas Cbaritatis não desejam que esse conhecimento se perca, mas sim que não se difunda. Pelo menos que não se difunda até que eles o considerem adequado.

- Procurar essa carta será como procurar uma agulha num palheiro - resmungou o dogo.

- Não, Excelência, porque sabemos o nome da personalidade para quem Vivaldi enviou essa carta.

- O nome! Dizei-me o nome dessa pessoa! - Agora o dogo Contarini estava excitado.

- Posso dar-vos algo mais que o nome, Excelência. Temos em nosso poder a carta que a dita pessoa escreveu a Vivaldi acusando a recepção do envio.

- Como é possível que tenhais esse escrito? - Uma sombra de dúvida tinha aparecido no rosto do dogo.

- Durante o tempo que estive a ouvi-lo em confissão pediu-me água em três ocasiões porque tinha a garganta seca e a febre fazia arder o seu corpo. Num determinado momento isto fez-me pensar que podia obter vantagem adicional. A água estava num púcaro colocado sobre uma cómoda onde eu ia sempre que me solicitava aquele alívio e à terceira vez acrescentei à água um narcótico que levava escondido entre as minhas roupas. Despejei a beberagem na água e ficou mergulhado num profundo sono. Aproveitei o momento para revistar o quarto, com a certeza de que Tibaldo guardava a porta e que não se interromperia um sacerdote num acto tão importante como é o da confissão de um moribundo. Os meus esforços foram recompensados porque encontrei esta carta - ao dizer isto tirou de um dos seus bolsos um papel que mostrou de forma ostentatória.

- Entregai-a ao secretário para que proceda à sua leitura. - As palavras do dogo tinham a força de uma ordem que não se discute.

Gaspieri teria gostado de ter sido ele a ler o conteúdo daquelas linhas, mas estava consciente de que tal coisa já não seria possível. Aproximou-se da banca onde o secretário cumpria as suas obrigações, e este, sem perder um instante, iniciou a leitura. O endereço da carta estava escrito com letra grande e com cuidada caligrafia:

Micer António Vivaldi

Karntnerstrasse Satlerisches Haus Kãrntner Tor

Viena

Ao pé do mesmo o remetente do autor:

Tomasso Bellini

Via di Toletta, alia volta delia Chiesa di Santo Trovaso

Campo di Santo Barnaba

Veneza

Querido dom António, faço votos para que a vossa saúde, quebrantada segundo me contais em vossa carta, se restabeleça tão rapidamente quanto eu o desejo. Recebi a vossa incumbência e podeis ficar tranquilo porque, cumpridos os trâmites a que obriga tão importante assunto, tudo será acautelado como deve ser.

Peço à Madona e a São Marcos, nosso santo padroeiro, que vos concedam a saúde e, embora para o bom andamento de assunto tão crucial como aquele que vos levou até essa cidade fosse necessária a vossa presença na mesma, desejo fervorosamente que, tão rápido quanto vos seja possível, e vossa saúde recuperada vos permita, nos vejamos de novo na nossa cidade.

Recebei, como sempre, o afectuoso cumprimento de vosso irmão servidor:

TOMASSO BELLINI

Acabo de receber notícia de Galeazzo Moroni e de Filippo Bembo de que ambos receberam, sem problemas, confirmação do envio que me haveis realizado.

O rosto do dogo Contarini mal podia dissimular a alegria que sentia. De facto, o trabalho realizado por aqueles dois agentes tinha sido esplêndido. Não tinham obtido a informação que micer Vivaldi levara consigo para a cova sobre o misterioso segredo que o conduziu até Viena, mas tinham conseguido uma pista extraordinária, uma vez que tinham os nomes das pessoas que podiam informá-lo acerca daquela questão que parecia ser de importância vital para o conjunto do orbe.

- Haveis cumprido como bons venezianos e a República é generosa com quem a serve, como vós o haveis feito. Recebereis uma generosa recompensa. Agora podeis retirar-vos. Um escrivão tomará nota de todos aqueles pormenores que considereis necessário deverem ficar consignados para memória e recordação deste assunto.

Ludovico e Tibaldo ainda mal tinham iniciado uma respeitosa reverência, quando soou o ruído do abrir da porta por onde haviam entrado no Salão Nobre do Conselho. O camarista que os tinha conduzido à presença do dogo apareceu ao seu lado e acompanhou-os até à saída. O dogo Contarini tinha recuperado o hieratismo e a rigidez da sua figura.

Os dois agentes da Sereníssima abandonavam aquele lugar conscientes de ter prestado um grande serviço. Assim pareciam dizê-lo os mudos rostos das grandes figuras da história da sua cidade que os olhavam da Apoteose de Veneza, imortalizadas pelos pincéis de Paolo Veronese. Também estavam conscientes de que a abertura da porta e a entrada do camarista no momento oportuno indicavam que os olhos e os ouvidos da Sereníssima chegavam até ao próprio salão onde o dogo recebia as suas visitas.

No dia seguinte, um gondoleiro descobriu dois cadáveres que flutuavam nas águas. Tinham sido apunhalados. Foram identificados como sendo os de Ludovico Gaspieri e Tibaldo Paccini.

Os potentes motores do Airbus A-320 da companhia Ibéria roncavam enquanto o avião se deslocava lentamente. Uma vez na pista de descolagem e recebida a ordem, o Airbus levantou voo em poucos segundos. com apenas dez minutos de atraso em relação ao horário estabelecido a partir do aeroporto do Prat de Barcelona, o voo IB 4383, que fazia a ligação entre a capital catalã e Veneza numa hora e cinquenta e cinco minutos, chegaria ao Marco Polo às oito e um quarto da hora espanhola, às nove e um quarto em Itália.

Lúcio Torres, o passageiro que ocupava a cadeira 16 A, ia concretizar, de uma vez só, vários dos sonhos da sua vida. Desde pequeno que desejava conhecer Veneza, que tinha imaginado de formas diferentes, depois de ler tudo o que tinha encontrado referente a tão singular e mágico lugar.

Uma cidade construída sobre uma lagoa!

Se Veneza não tivesse existido - pensara uma vez Lúcio Torres -, Júlio Verne teria imaginado um lugar como aquele para uma das muitas aventuras que, com tanto gozo, lera durante a sua infância. Parecia-lhe tão fantástico como percorrer vinte mil léguas a bordo de um barco que sulcava os mares navegando pelos fundos marinhos, ou tão espectacular como realizar uma viagem até às entranhas da Terra.

com os seus vinte e sete anos, Lúcio Torres, músico graduado pelo Conservatório Superior de Música de Córdova, era já um notável concertista de violino, apesar da sua juventude. Sabia que ainda tinha um longo caminho a percorrer para se transformar no maestro que desde criança sonhara ser, mas sabia que estava no caminho certo para o conseguir. com a sua juventude era já o solista da orquestra de câmara da sua cidade natal, para além de já lhe terem chegado substanciais ofertas que, até ao momento, tinha declinado por questões pessoais. A última delas era a que lhe tinha feito, para integrar a orquestra sinfónica de Espanha, Lucas Briviesca, o grande director da música espanhola, que o convidara por causa de uns concertos extraordinários celebrados na sua cidade natal. Briviesca apercebeu-se, desde os primeiros ensaios, do valor de Lúcio, e o convite tinha ficado em aberto até ao final do ano, numa demonstração de generosidade e também de egoísmo por parte do director, que não desejava renunciar, de modo algum, a ser o impulsionador do talento que acreditava ter descoberto e do virtuosismo que eram capazes de desenvolver as mãos do jovem violinista.

Lúcio Torres também tinha imaginado a sua chegada a Veneza de todas as maneiras possíveis. Os amigos que conheciam a cidade tinham-lhe dito que tentasse, por todos os meios, fazer a sua entrada de noite e pela laguna, a bordo de um vaporetto, numa altura em que a estudada iluminação da cidade lhe oferecesse os perfis românticos dos seus palácios e as silhuetas inconfundíveis dos seus grandiosos monumentos. Aquela era a forma de conservar uma memória indelével de uma das cidades mais belas do mundo, quando as sombras da noite cobriam piedosamente as vergonhas do abandono e da incúria acumulados durante séculos. Muitos dos palácios das grandes famílias venezianas, que tinham dado o nome e o brilho àquele capricho, fruto do empenho e da tenacidade de gerações, não passavam de uma venerável ruína.

Lúcio Torres queria gravar de forma indelével na sua memória as imagens e as sensações daquela Veneza que ia pisar e onde ia viver a partir do dia 18 de Setembro de 2003, uma vez que aterrasse no aeroporto Marco Polo, encravado na zona industrial de Mestre. Apanharia um comboio rápido até à zona de Santa Lúcia e depois tomaria um vaporetto que o levasse pelo Grande Canal até à piazza de São Marcos. Então dirigir-se-ia ao Bucintoro, o alojamento que tinha reservado e que ficava perto, onde pernoitaria as três semanas seguintes, tempo de duração das Jornadas Musicais organizadas pelos "Amigos de Vivaldi", dedicadas ao Barroco na transição do século XVII para o XVIII. Aproveitaria a noite, como lhe tinham recomendado amigos e conhecidos, para percorrer os itinerários que na sua imaginação tantas vezes tinha realizado. Caminharia pelas ruelas, atravessaria canais e pontes e deambularia pela piazza de São Marcos.

Aquelas semanas possibilitavam a Lúcio entrar em contacto com os grandes mestres que tinham anunciado a sua ida às Jornadas, como Salvatore Accardo, Maxim Vengerov, Anne-Sophie Mutter, Kyung-Wha-Chung e, acima de tudo, Isaac Stern. Ainda que não fosse a primeira vez que viajasse fora de Espanha para assistir a congressos, jornadas e cursos, aquelas semanas, por serem em Veneza e por serem dedicadas ao Barroco, tinham um interesse particularmente especial. Significavam, além disso, entrar em contacto com a realidade material, os lugares e cantos onde decorrera a vida de quem tinha sido desde sempre o seu ídolo, o compositor mais genial e o violinista mais sublime de todos os tempos: António Vivaldi. Aquela devoção tinha-o levado a estudar italiano até atingir um nível aceitável e a aprofundar a figura do compositor, cuja vida e obra desejava investigar na medida do possível.

O programa das Jornadas, no qual estavam incluídas numerosas actividades sociais, permitir-lhe-ia dispor de tempo livre para penetrar até onde lhe fosse possível na medula daquela cidade. Mas, sobretudo, teria tempo de ir ao Ospedale della Pietà, onde o grande maestro tinha sido professor durante muitos anos da sua vida, em diferentes períodos. Tinha guardada, como ouro em pano, a autorização que lhe havia sido concedida, graças aos esforços levados a cabo por Briviesca, para aceder ao arquivo e à documentação que ali se conservava referente às actividades da famosa instituição musical veneziana e às pessoas que por ela tinham desfilado ao longo dos seus séculos de existência.

Tinha poupado durante meses e conseguido a ajuda de uma instituição privada para dispor, se não de todo o dinheiro que tivesse desejado, pelo menos dos recursos suficientes que lhe permitissem transformar em realidade os seus sonhos de muitos anos, tais como visitas a museus, igrejas e lugares de interesse; conhecer outras das ilhas da laguna Veneta, como Murano ou Torcello; passear numa gôndola a diferentes horas e por distintos canais; tomar os cafés que quisesse, ainda que soubesse que teria de pagá-los a preço de ouro na piazza de São Marcos, deixando-se acariciar pela música das bandas que ali actuavam.

Tinha sonhado tanto com aquela viagem, com aquelas jornadas e com Veneza que pouco restava ao acaso da improvisação. Lúcio era um homem metódico, talvez pela disciplina que obrigara a impor-se a si mesmo durante os longos anos de estudo, disciplina que mantivera sempre como consequência das longas horas dedicadas ao trabalho diário e ao ensaio com o seu violino.

Fazia já três anos que tinha concretizado outro dos seus sonhos: comprar um Tononi, graças à herança de uma tia e à ajuda dos seus pais, que constituiu a base dos seis milhões de pesetas que teve de desembolsar. Encontrou o seu primeiro trabalho numa escola de ensino secundário para leccionar, como professor eventual, a disciplina de Música. Foi uma experiência traumática, tanto pelo estatuto que a disciplina merecia na escola como pela falta de interesse dos seus alunos. Só algumas excepções o compensaram durante aqueles nove meses de padecimento e esforço quase em vão.

O Verão seguinte, altura em que se tinha resignado já a ficar com o emprego, não como a ilusória tarefa de ensinar uns rudimentos musicais a grupos de jovens, mas sim como uma forma de ganhar a vida com o suor mais amargo do corpo, passou-se com uma certa tranquilidade, mas viveu-o sob a ameaça da chegada do mês de Setembro e com a possibilidade de ter de voltar a repetir a desoladora experiência do ano anterior. Por isso, quando recebeu a notícia de que tinha sido admitido como um dos violinistas que formariam parte da orquestra de câmara de Córdova, ainda que o salário fosse inferior ao que receberia como professor de música, sentiu, pelo menos, uma alegria tão grande como aquela que experimentou quando fez a sua graduação.

Tinha vivido aquela época numa completa dedicação à sua grande paixão. Mal tinha dedicado a sua atenção a outra coisa. O seu trabalho na orquestra levou-o, com muito esforço mas também graças às suas qualidades, a transformar-se no primeiro violino habitual, depois num valor fixo e, mais tarde, numa peça fundamental da orquestra, até atingir o posto de solista, o que fazia recair sobre as cordas do seu violino uma boa parte da responsabilidade dos concertos.

Não tinha sido, ainda que pudesse parecer, um caminho fácil.

No decorrer daquele percurso deparou-se com obstáculos difíceis de ultrapassar. As invejas, as rasteiras e as armadilhas derivadas da dura competitividade inerente ao mundo da música foram uma constante. Houve momentos de desânimo e de desilusão, mas tudo isso superou com uma vontade férrea.

Naqueles anos a sua estrela não tinha parado de subir. Passara muito acima da média, de um estudante que se destacava, dotado de "certas qualidades e algumas capacidades", como diziam vários dos seus professores, a uma promessa que não tinha parado de se consolidar, dia após dia. Até que chegou a oferta de Lucas Briviesca: A orquestra sinfónica de Espanha estava ao seu alcance! Um sonho pelo qual muitos dos seus colegas não hesitariam em vender a alma ao diabo.

E ele tinha-se permitido o luxo de dar a si próprio um tempo para tomar uma decisão!

Tinham sido anos de esforço e trabalho, em que vivera alguns romances, com muito sexo e pouco mais. Tinha contribuído para isso, sem dúvida, o encanto de um músico jovem, com grande projecção, dotado de uma fina sensibilidade, valores cotados na maior parte dos meios femininos. Acrescendo a essas particularidades, o seu físico, sem alcançar os níveis dos cânones estabelecidos nos anúncios que enchiam os espaços publicitários ou que apareciam na propaganda de qualquer produto, era aceitável. Um metro e setenta e nove e setenta e quatro quilos de peso conferiam-lhe uma silhueta longilínea e que estava muito de acordo com a sua actividade. Cabelo preto e liso, penteado com risca ao meio e moderadamente comprido. Olhos grandes e negros, de olhar sereno, mas capazes de transmitir a intensidade de uma paixão, rosto comprido e lábios finos. A harmonia só era quebrada com o seu nariz aquilino e a marca que lhe tinha deixado na pele da cara um forte surto de acne juvenil.

Aqueles romances não tinham ido além de atraentes passatempos. Ainda não se atravessara no caminho de Lúcio Torres a mulher que o tivesse deixado apaixonado.

Quando aterraram, Lúcio Torres tirou, com muito cuidado, do compartimento de bagagens de mão que havia sobre a sua cabeça o estojo do seu violino - não era obviamente o Tononi - e saiu do avião. Depois de recolher a sua bagagem no tapete rolante, dirigiu-se para a saída do aeroporto. Apanhou um comboio até ao pequeno cais onde os vaporetti recebiam os passageiros. Informou-se sobre aquele que fazia o percurso pelo Grande Canal e que terminava a viagem napiazza de São Marcos.

Quando entrou no vaporetto tinha consciência do que estava a começar a viver: Veneza, a música de Vivaldi, enlaçados intimamente dentro de si. Era um momento mágico e desejava aproveitá-lo, vivê-lo plenamente. Desejava que a sua viagem se tornasse inolvidável.

Ia ser assim. Mas o que Lúcio Torres não podia suspeitar, nem sequer remotamente, era da razão que tornaria a sua permanência em Veneza inolvidável.

Tinham passado dez dias desde que o jovem violinista chegara a Veneza. Três dias bastaram-lhe para que um monte de sensações se fixasse no seu espírito de forma contraditória. Aquela cidade era um mundo de contrastes. Mas os contrastes vividos por Lúcio Torres não eram somente os que captava através das vibrações que emanavam da cidade, das suas igrejas, dos seus palácios, das suas ruelas, das suas pontes ou dos seus canais. Também tinham a sua origem na actividade que o levara até às margens da costa adriática. As Jornadas Musicais não só não tinham correspondido às expectativas do jovem músico, como tendiam a deslizar pela perigosa curva do desencanto. À desorganização reflectida não só nos pequenos pormenores, como também no próprio coração das Jornadas, acrescentava-se uma falta de respeito pelos horários estabelecidos que raiava o grotesco. A tudo isto havia que acrescentar que algumas das figuras de renome, que eram um dos maiores atractivos, não tinham aceitado participar. Além disso, ninguém dava explicações nem assumia responsabilidades pelo rumo de um evento que estava a converter-se num estrondoso fracasso.

O contraponto, aos olhos de Lúcio, era proporcionado pelas horas que passava no arquivo do Ospedale della Peta, onde chegava a perder a noção do tempo entre as paredes do aprazível espaço onde estava guardada a documentação sobre a instituição que tinha preenchido muitos dos anos da actividade de Vivaldi e que tinha sido, nos séculos XVII e XVIII, um dos mais importantes centros da vida musical veneziana. Ali, as meninas abandonadas pelas mais díspares razões - o Ospedale era, em boa verdade, um orfanato – recebiam uma extraordinária educação musical. As mais capacitadas faziam parte do coro da instituição, cujas actuações constituíam um acontecimento musical na cidade.

Lúcio Torres tinha concentrado a sua atenção não tanto na história do Ospedale mas, sobretudo, na relação de Vivaldi com a instituição, onde aquele que era conhecido pelos seus contemporâneos como o preste rosso - padre vermelho - por causa da cor dos seus cabelos, tinha exercido, em diferentes ocasiões e com intervalos variáveis, a sua actividade de professor e compositor. Lúcio Torres tinha albergado a velada esperança de encontrar e dar a conhecer algumas das composições perdidas do mestre. No meio daqueles poeirentos papéis estava uma boa parte da vida de Vivaldi e ele sabia-o. Como sabia também que havia muitas lacunas na sua biografia e pontos obscuros ou não devidamente explicados por aqueles que se tinham debruçado sobre a sua vida e a sua obra.

Cada vez que abria um dos maços de papéis onde concentrava a sua atenção, mais por intuição que por outra coisa, tinha a esperança de que algo de extraordinário pudesse acontecer. O pó depositado neles era sinal de que decorrera muito tempo sem que uma mão tivesse pousado sobre aqueles papéis.

Também no arquivo do Ospedale se notavam esses contrastes. Perante o valor dos seus maços de papéis, a situação do arquivo era de total abandono. Não havia um catálogo que servisse de orientação - só existia um guia escrito à máquina, que era um índice cronológico com algumas anotações acerca do conteúdo de cada maço - a quem tivesse a ousadia de transitar por aqueles territórios, que davam a sensação de ser terra inexplorada. Lúcio teve, em alguns momentos, a sensação de estar a acabar com um certo tipo de virgindade.

A única coisa positiva que advinha daquele abandono era a paz e a tranquilidade que se respirava na sala onde trabalhava. Tinham tido a amabilidade de levar uma mesa e uma cadeira para a chamada sala do arquivo, um sótão cujas paredes estavam cheias de estantes que iam do chão até ao tecto, onde repousavam os maços de papéis.

 

Ali, naquela solidão, o jovem violinista, emulo do grande Vivaldi era conhecido por "padre vermelho" devido ao facto de o seu cabelo ser ruivo. (NT)

 

Prete rosso, tinha-se sentido tão confortável que acabou por considerar aquela sala como um terreno demarcado para as suas pesquisas.

Quando naquele dia, às seis da tarde, teve de dar por concluída a sua tarefa, porque o edifício onde se guardava a documentação fechava as portas, Lúcio dirigiu-se para a piazza de São Marcos, onde diariamente tomava um capuccino e se descontraía ouvindo a banda que se encontrava naquele local. À noite iria até à sua estalagem porque tinha marcado encontro com uma encantadora veneziana chamada Maria, profunda conhecedora da história da cidade e estudante de línguas românicas, entre elas o castelhano, na faculdade de Filologia da Universidade de Véneto. Tinha partilhado com ela muitas horas nos dias anteriores e visitara lugares que, de outra forma, lhe teriam ficado vedados. Sentia-se muito bem com aquela veneziana.

Maria, que acabara de terminar a sua licenciatura, tinha vinte e quatro anos, era a única filha da dona do Bucintoro, a estalagem onde estava hospedado, e tinha viajado várias vezes por Espanha. Conhecia, razoavelmente bem, cidades como Madrid e Salamanca e, em menor medida, Sevilha e Granada. Falava castelhano com desenvoltura e tinha uma pronúncia perfeita. Por vezes, tinha dificuldades em perceber Lúcio, que falava um correcto andaluz no qual predominava os "esses", abrindo vogais e, por vezes, fazendo desaparecer algumas consoantes finais. Também transformava em ditongos certas terminações do castelhano.

Se Lúcio Torres encontrara uma excelente cicerone para descobrir os encantos que toda a cidade possui e que só é possível conhecer através de um nativo, Maria de Sarto, era este o seu apelido, tinha nele um magnífico companheiro para praticar o seu castelhano com as referidas ressalvas.

com ela tinha passeado por ruelas perdidas entre canais solitários, onde não chegava o bulício dos turistas; tinha descoberto velhos palácios que encerravam atrás das suas paredes, gastas pela água e pelo vento, histórias cheias de força, umas tremendas e outras plenas de lirismo. Tinha conhecido lugares recônditos e também os que serviam de ponto de encontro aos venezianos para tomar uns copos no meio de animadas conversas e muita algazarra. Tinham desfrutado de passeios onde o silêncio era tão eloquente como a mais interessante das conversas.

Lúcio descobrira, graças a Maria, uma Veneza que, de outra forma, lhe teria ficado vedada, oculta aos seus olhos. Estava agradecido às muitas horas que ela lhe tinha oferecido naqueles dias. Pouco a pouco, tinha nascido nele um sentimento que ia para além do agradecimento. Lúcio fazia-se, cada vez com mais frequência, uma pergunta. Sentir-se-ia ela tão bem ao seu lado como ele ao lado dela? Acontecia também que, no meio do seu trabalho, a imagem dela lhe vinha à cabeça, até ao ponto de estar continuamente no seu pensamento. Tomou a decisão de corresponder à generosa disponibilidade que Maria lhe dedicava. Aconteceria com ela algo parecido do que se passava com ele?

Quando chegou ao Bucintoro - a estalagem tinha um nome de fortes ressonâncias da Veneza histórica -, junto ao canal de São Marcos, defronte da ilha de San Giorgio Maggiore, na ribeira dos Santos Mártires, começava a anoitecer. Subiu ao seu quarto e tomou um duche de água tépida, que reconfortou o seu corpo tenso por longas horas sentado numa cadeira incómoda.

Depois de se barbear, vestiu uma roupa confortável - calças largas de uma cor clara, uma camisa de linho de manga comprida, que arregaçou com algumas dobras do punho até ao antebraço, a condizer com as calças - e colocou sobre os seus ombros uma camisola de algodão de uma suave cor rosácea, dando um nó às mangas em torno do pescoço. Calçava uns sapatos muito ligeiros. Tinha gasto menos de um quarto de hora em toda a operação. Olhou-se ao espelho, metendo os dedos da mão no cabelo molhado, puxando-o para trás para lhe dar uma certa forma. O que viu reflectido no espelho satisfê-lo, visto que se ofereceu a si mesmo um sorriso. Olhou para o relógio e reparou que faltavam apenas alguns minutos para as oito. Verificou que tinha o dinheiro suficiente e, sobretudo, que tinha o cartão de crédito com o qual faria frente à factura de Da Fiore, um dos melhores restaurantes de Veneza. Diziam os venezianos que ali se comia o melhor peixe e marisco da cidade, sobretudo o pasticcio di pesce. Estava situado numa tranquila rua do Campo de San Giovanni e San Paoto, e era ali que tinha reservado uma mesa. Tinha vontade de surpreender Maria, sem que pudesse explicar muito bem a causa deste desejo nem os motivos que o levavam a fazê-lo.

Desceu as escadas assobiando alegremente perante a perspectiva de uma noite tranquila e agradável - pela cabeça passou-lhe a ideia, sem que lhe prestasse muita atenção, da causa pela qual se sentia tão bem na companhia daquela italiana. No pequeno e elegante vestíbulo da estalagem, sobriamente mobilado, mas com um gosto algo excessivo, percebeu que Maria já ali se encontrava, ao lado de sua mãe, que atendia um hóspede. Nenhuma das duas mulheres se tinha apercebido da sua chegada. Parou, apenas por instantes, para observar o perfil da jovem, que pela primeira vez vira arranjada para ir a um lugar especial. Lúcio hesitou por um momento se não lhe teria dito alguma coisa sobre ir jantar ao Da Fiore, mas tinha a certeza de não lhe haver dito nada.

Maria era de uma típica beleza veneziana. Proporcionada segundo os cânones estéticos, que ditavam uma cintura estreita, ancas arredondadas e busto generoso. A pele tinha um bronzeado natural e anunciava-se muito suave ao tacto. As feições seriam perfeitas se não fosse uma testa excessivamente alta, que Maria disfarçava através da maneira como penteava o seu cabelo preto com reflexos castanhos naturais. Compensavam o excesso da testa uns olhos que, na opinião de Lúcio - agora apercebia-se que tinha dedicado a eles não poucos dos seus pensamentos -, mudavam de cor em função da luz que recebiam. O conjunto era completado por uns lábios sensuais, carnudos.

Tinha um vestido de malha, de uma só peça, que chegava precisamente até aos joelhos - nesse ponto onde um centímetro a mais ou a menos dá ou tira a elegância - e que se ajustava ao seu corpo como uma luva, permitindo adivinhar as suas formas. Até àquele momento, Lúcio tinha-a visto sempre de calças e de blusas largas. Também, pela primeira vez, havia na sua cara ligeiros toques de maquilhagem. Tinha os lábios pintados de um suave rosa pálido e um risco, que quase não se notava, sublinhava os seus olhos que naquele momento - o violinista estava disposto a jurá-lo - eram verdes.

Quando Maria se apercebeu da presença do músico espanhol, voltou-se para ele e ofereceu-lhe um luminoso sorriso. Lúcio agarrou-a pela ponta dos dedos e dando um passo atrás, como se quisesse ter uma melhor perspectiva, exclamou:

- Estás lindíssima!

- És muito simpático, muito obrigada, tu também não estás nada mal - foi a resposta que recebeu.

Uma vez na rua - os candeeiros de luz amarelenta já estavam acesos e davam uma tonalidade especial à noite de Veneza - Lúcio sentiu-se envolvido por um mar de sensações que fizeram com que o seu estômago se contraísse quando Maria se agarrou ao seu braço, como se fossem um casal. Mal pôde dizer:

- E... é como se tivesses adivinhado que tinha previsto uma pequena surpresa.

Maria voltou a cabeça e olhou-o nos olhos - parecia orgulhosa de ir de braço dado com ele, como se com aquele gesto estivesse a dizer ao mundo que aquele era o seu homem.

- Qual é essa surpresa, se é que já se pode saber? Mas... deixa-me... deixa-me lá ver se sou capaz de adivinhar.

O violinista olhou-a nos olhos e aproximou o seu rosto ao dela até quase roçar com a ponta do seu nariz o de Maria:

- Dou-te três hipóteses.

Nos lábios de Maria desenhou-se um sorriso divertido. Nesse momento, Lúcio apercebeu-se de que ela estava informada do que tinha planeado para aquela noite.

- Telefonaram, não foi?

- Exactamente, confirmaram do Da Fiore, uma mesa para dois, reservada pelo senhor Lúcio Torres, às nove e meia desta noite.

- Ainda que tenha ficado sem surpresa, dou-o por bem empregue, se por causa disto te arranjaste como o fizeste. Estás lindíssima! - Aproximando-se dela, beijou-a suavemente nos lábios.

O jantar no Da Fiore correspondeu às expectativas de Lúcio. A mesa que lhes tinham reservado era num cantinho no andar de cima, junto a uma grande janela. Um dos assentos era um banco de pedra, encostado à janela, no qual se sentou Maria para que Lúcio desfrutasse da vista que aquele lugar proporcionava.

Serviram-lhes uma saborosíssima salada de lavagante e empada de peixe, a especialidade da casa, que era verdadeiramente excepcional. Tudo aquilo foi acompanhado de uma boa garrafa de vinho do ano, da região de Pádua. A sobremesa foi um gelado de café como só os italianos sabem fazer. Falaram de Espanha, de cidades como Granada ou Sevilha, as que Maria tinha visitado, ainda que as conhecesse superficialmente. Também falaram de Córdova e combinaram que ela teria de visitá-la quando voltasse outra vez a Espanha. Mas a conversa centrou-se nos progressos que Lúcio estava a fazer nas suas investigações e pesquisas sobre Vivaldi.

Sinto que o tempo está a esgotar-se e não vou conseguir chegar aonde quero. É tanta a documentação que tenho para ver! Além disso, se o meu italiano fosse melhor avançaria mais depressa. Enfim - acrescentou Lúcio num tom resignado - será um motivo para voltar outra vez a esta cidade.

O único motivo seria Vivaldi? - Maria esboçara um sorriso malicioso.

Lúcio estendeu a mão e apertou fortemente a de Maria, o tacto da sua pele era suave. Notou como se lhe arrepiavam os pêlos da nuca. Aproximou-se tudo o que a mesa - não muito grande - lhe permitiu e sussurrou-lhe quase ao ouvido:

- Não seria Vivaldi o único motivo, nem sequer o mais importante.

Embora não fossem necessárias mais palavras, Maria perguntou-lhe com voz melíflua:

- Pode esta humilde veneziana, aprendiz de espanhol, conhecer esse motivo mais importante que o próprio Vivaldi?

Lúcio colocou o guardanapo em cima da mesa, levantou-se e sentou-se no banco ao lado de Maria, pegou na sua cabeça entre as mãos e beijou-a longamente. Depois sussurrou-lhe ao ouvido:

- O motivo és tu.

E, desta vez, foi Maria quem o beijou, primeiro com doçura e, depois, com deleite, até que a sua língua abriu caminho na boca de Lúcio, a quem a tensão do estômago se transformara num agradável formigueiro.

Decidiram dar um passeio até àpiazza de São Marcos por ruelas, canais e pontes com pouco movimento. Caminhavam muito juntos, abraçados, como dois apaixonados que vivem um momento de felicidade num dos lugares mais românticos do mundo. Tudo colaborava para transformar aquele momento num desses instantes mágicos que muita gente não chega a viver ao longo de toda uma existência e que alguns privilegiados têm a ocasião de desfrutar. A noite estava agradável, própria do início do Outono de Véneto, quando ficou para trás a dureza doferragosto e a brisa sopra suave do Adriático e dá uma nota de frescura à amena temperatura desses dias. A noite estava calma, quase silenciosa. Só o rumor da água dos canais batendo contra as paredes das casas e dos palácios e o chapinhar de uma ou outra gôndola quebravam o silêncio. Alguns candeeiros derramavam uma luz amarelada no meio de uma penumbra ligeiramente coada pela luz de uma lua que ia a caminho de estar pletórica. De um qualquer lugar chegavam ecos de uma melodia.

Quando chegaram à piazza de São Marcos, o Campanile parecia-lhes mais alto, a basílica do padroeiro de Veneza mais bela e os arcos góticos do palácio ducal mais sugestivos. Atravessaram pelo piazzale até ao cais para apanhar uma gôndola e fazer um percurso de ida e volta pelo Grande Canal. Subiriam até ao palácio Vendramín e, depois, desceriam, pela outra margem. Quando se dirigiam para o embarcadoiro parecera a Maria que os Tetrarcas que estavam embutidos na parede do palazzo lhe tinham sorrido.

Em alguns pontos das margens do Grande Canal havia uma notável animação que aumentou muito nas zonas confinantes com a ponte Rialto. Ao passar por debaixo dessa ponte, Maria disse:

- Sabes que em Veneza se conta uma estranha história relacionada com Vivaldí?

Lúcio, que lhe tinha passado o braço pelo ombro, apertou-o suavemente.

- Sobre Vivaldi contam-se muitas histórias estranhas, meu amor. Mas agora estão muito longe.

- Que histórias estranhas conheces sobre ele? - sussurrou Maria.

- Dessas histórias que enfeitam sempre a vida dos génios pela sua singularidade, pela sua excentricidade ou porque criam um halo de mistério em torno da sua pessoa.

- Como por exemplo? - perguntou Maria, aconchegando-se no peito de Lúcio.

- Toda a gente sabe que Vivaldi era sacerdote, chamavam-lhe, por causa da cor do seu cabelo, o padre vermelho.

-prete rosso - disse-lhe Maria.

- prete rosso - concordou Lúcio. - No entanto, um ano depois de receber as sagradas ordens, deixou de dizer missa. É um facto que não deixa de chamar a atenção, ainda que se invocasse como causa a asma que tinha desde que nascera e que o afectava de tal forma que o impossibilitava de celebrar a liturgia com a dignidade requerida para tais cerimónias.

- Essa é a explicação oficial que se quis dar a uma coisa que, como tu disseste, parecia insólita. Mas a verdade é muito diferente.

- Referes-te ao seu amor pela música, na opinião de alguns,

ser muito mais forte que a sua vocação religiosa, e que o facto de cumprir as obrigações eclesiásticas o privava do tempo e da concentração de que necessitava para compor e ensaiar?

- Essa é a versão oficial profana. Mas, como te disse, a verdade é muito diferente.

Lúcio ficou a olhá-la com a surpresa brilhando nos seus olhos. Maria acabava de se converter, precisamente naquela noite, numa revelação no que tocava a Vivaldi.

- Está bem, qual é essa história estranha que se conta de Vivaldi?

- Ah, por fim consegui que o erudito - disse irónica - se mostre receptivo. Já alguma vez ouviste falar de uma sociedade chamada Fraternitas Charitatis?

- Fraternitas quê...?

- Fraternitas Cbaritatis, uma espécie de seita esotérica à qual Vivaldi pertenceu.

Lúcio franziu o sobrolho e, depois de um breve silêncio, respondeu:

- Não, não tinha conhecimento de nada disso.

- Então, ouve com atenção, porque vais ter uma grande surpresa.

A reunião convocada com toda a urgência celebrava-se na cave de uma casa do Campo de San Stefano, entre apiazza de São Marcos e o Grande Canal. O edifício era um armazém de madeiras destinadas a escorar construções. Apesar do movimento de carga e descarga, da presença de negociantes e de compradores, era um lugar, ainda que pareça estranho, que proporcionava uma certa discrição, precisamente por causa do contínuo movimento de gentes que por ali pululavam. O lugar tinha, além disso, a vantagem de fazer uma chanfradura, o que o fazia contar com três entradas, duas por terra e uma pelo canal, que podiam converter-se em três saídas, se as circunstâncias o exigissem.

As sete pessoas reunidas tinham chegado por itinerários diferentes e a horas distintas, entre as dez e as onze e meia da manhã, quando a confusão do negócio era maior e qualquer movimento poderia passar mais despercebido.

A sala onde estavam reunidos ficava completamente isolada do exterior, salvo pela porta de entrada, se não se tivesse em conta uma saída de emergência, dissimulada na parede e que só se podia abrir accionando um mecanismo secreto. Era uma construção sólida de forma quadrada com quinze pés de lado, construída com blocos de cantaria perfeitamente entalhados. A luz era proporcionada por quatro archotes em cada canto. O mobiliário reduzia-se a uma mesa sobre o comprido e aos sete assentos que a rodeavam.

Todos eram pessoas de idade e, ainda que nenhum deles fosse propriamente um velho, para eles a juventude era já uma recordação na distância do tempo.

Tomasso Bellini tomou a palavra para os cumprimentar, mas mal começou teve de ouvir os protestos da maior parte dos presentes, que o acusavam pelo facto de os fazer reunir ali, sem ter tomado as habituais medidas de segurança, o que pressupunha um grave risco. Esperavam que as razões do convocador justificassem a reunião.

Quando a ronda dos protestos terminou, Bellini, com voz calma, começou a sua explicação.

- Como compreendereis, as razões são de peso e fundamento; creio que não demorareis muito a partilhar a minha opinião. Por outro lado, deveis saber que calculei os possíveis riscos que pressupunha esta reunião e tomei todas as medidas ao meu alcance para os reduzir até onde fosse humanamente possível e a verdade é que - olhou para todos, um a um - nos encontramos aqui, sem que tenha acontecido nenhum acidente de percurso. Mas não percamos mais tempo e concentremo-nos no assunto que nos trouxe até aqui.

O rosto de Tomasso Bellini deixava adivinhar uma expressão sombria. A voz do patrono principal do Ospedale della Pietà soou, no entanto, com o aprumo de sempre:

- O nosso irmão Vivaldi fez uma extraordinária descoberta que permitirá revelar um desses mistérios cuja divulgação provocaria uma grande comoção nas gentes comuns.

Perante aquelas palavras os presentes pareciam ter esquecido os seus protestos. Todos seguiram com atenção o que tinha para lhes comunicar.

- O achado que o irmão Vivaldi efectuou é a consequência de longos anos dedicados ao estudo e à meditação. Para fazer determinadas investigações e dar por concluído tudo o que estava relacionado com este assunto, teve de abandonar a nossa cidade e fazer uma viagem a Viena, por ser esse o lugar onde deveria realizar as últimas verificações que confirmassem de forma definitiva a certeza da sua descoberta. Como é natural, a explicação da causa da sua viagem foi a de aceder ao pedido de um mecenas, apaixonado pela sua música, que lhe foi impossível recusar. Já sabeis que correram rumores acerca de tão longa viagem, sem um motivo excepcional, para um homem com a sua idade, perto dos setenta anos. O facto de o irmão Vivaldi ter sido um viajante habitual ajudou, no entanto, a temperar aqueles comentários, assim como o facto de a tradição e a importância da música terem feito daquela cidade um lugar de peregrinação para as pessoas relacionadas com esta arte.

Houve gestos de assentimento.

- Ali, como vos disse, efectuou as verificações necessárias para dar por válido o trabalho realizado. Cumprida a missão que o tinha levado a Viena, realizava os preparativos necessários para regressar à nossa cidade, quando ficou doente. Tratava-se de uma doença grave e, rapidamente, compreendeu que os seus dias estavam contados, a não ser que Deus Nosso Senhor dispusesse outra coisa, pelo que tomou uma decisão de suma importância: remeter-me com todas as garantias ao seu alcance, não fosse a Providência reservar-lhe que o final dos seus dias acontecesse em Viena, um texto onde ficava escrito e salvaguardado o conhecimento que tinha alcançado. O seu desejo, em cumprimento do que nos manda a nossa Santa e Caritativa Irmandade, era que não se perdesse uma importante descoberta e que também não viesse à luz do dia porque, dadas as suas características, está classificada entre as que devem permanecer sob custódia e no segredo até que as circunstâncias nos indiquem, a nós, guardiães do saber, que chegou o momento em que possa ser divulgado.

- Chegou ao vosso poder a encomenda enviada pelo irmão Vivaldi? - perguntou um dos reunidos.

- Exactamente, chegou precisamente há vinte e sete dias

- respondeu Bellini.

- E haveis deixado passar todo este tempo sem nos dar notícia disso? - quem formulava a pergunta não podia evitar nas suas palavras uma carga de estranheza e uma certa indignação.

Ouviram-se murmúrios de descontentamento.

- Acalmai-vos, acalmai-vos - disse Bellini, acompanhando as suas palavras com movimentos de mãos que convidavam à tranquilidade -, há uma série de circunstâncias que serve de cabal justificação a este atraso.

O patrono principal do Ospedale della Pietà teria agora de convencer os seus correligionários da Fraternitas Cbaritatis de que havia uma explicação para justificar o tempo decorrido entre a chegada da mensagem de Vivaldi e a convocatória da reunião que, por ele, nunca se teria realizado. As suas verdadeiras intenções eram as de pôr a salvo o texto que o músico lhe tinha feito chegar e não conta a ninguém da sua existência; desse modo evitar-se-iam numerosas explicações e problemas que, estava seguro, derivariam do facto de dar conhecimento aos outros irmãos da fraternidade do que Vivaldi lhe tinha enviado. A verdade é que se tinha visto obrigado a convocar a reunião, porque os irmãos Galeazzo Vooroni e Filippo Bembo, cada um por sua conta, lhe tinham manifestado a sua estranheza de que não se tivesse procedido à celebração de uma reunião da loja veneziana, tendo recebido uma comunicação tão importante de micer António Vivaldi.

Esses comentários indicaram a Bellini que o astuto músico, como uma garantia mais, tinha dado a notícia a outros fratres do envio que lhe tinha remetido, ainda que não lhes tivesse facilitado informação alguma sobre o seu conteúdo.

O responsável em Veneza da Fraternitas Cbaritatis tossiu ligeiramente para aclarar a voz.

- Os factos acontecidos nas últimas semanas, e de que são conhecedores Moroni e Bembo, explicam a causa do atraso. O envio de Vivaldi consiste num texto em que se dá conta do mistério que conheceu.

- Qual é o conteúdo desse mistério? - perguntava um indivíduo magro de olhar estrábico, cuja barba branca contrastava com o barrete preto que cobria a sua cabeça e que tinha enfiado até às sobrancelhas; o seu nome era Guido della Marca.

- Isso é algo que ignoro - a resposta exerceu em Bellini o efeito de uma libertação. A libertação de uma pesada carga que era, talvez, o motivo do seu sobrolho franzido e da angústia reflectida na expressão do seu rosto.

- Ignorais o seu conteúdo! - A exclamação saíra de várias gargantas ao mesmo tempo.

- Exactamente, meus irmãos. Ignoro o seu conteúdo porque a encomenda foi-me remetida de forma codificada.

- Isso é o normal, de acordo com as normas estabelecidas na nossa irmandade - indicou um dos presentes -, mas decerto far-vos-ia chegar por via diferente a correspondente chave para o decifrar.

- com efeito, com efeito - assentiu Bellini -, e essa é a causa que explica em grande parte o atraso para a celebração desta reunião.

- Não consigo compreender - deixou cair Della Marca, com um ar compungido e um tom que denunciava uma profunda decepção Dava a sensação de que o seu interesse estava centrado exclusivamente no conhecimento da enigmática descoberta realizada por Vivaldi.

- Esperei, ansioso, várias semanas - Bellini parecia dominar a situação -, na expectativa de que chegasse o código. Mas até à data a chave não se encontra em meu poder.

- Pretendeis fazer-me crer que vos enviou um texto codificado, sem que vos tenha dado a cifra para decifrá-lo!? - Quem formulava a pergunta tinha-se colocado de pé. A sua figura era a de um gigante corpulento.

Bellini olhou-o com cara de poucos amigos; a pergunta implicava uma dúvida sobre a verdade do que acabava de dizer.

- Exactamente, irmão. Ignoro a razão pela qual não recebi a cifra, mas a verdade é esta.

- Não me negareis que isso é um tanto estranho - insistiu o gigante.

- Não tenho outro remédio senão dar-vos razão. Mas essa é a realidade com a qual nos confrontamos. Ainda que, talvez, possa haver uma explicação que nos permita vislumbrar um raio de luz.

- Qual é essa explicação? - Foram várias as vozes que a reclamavam.

- Não sei se sabeis que o frater Vivaldi faleceu em Viena.

- gestos de surpresa e movimentos negativos com a cabeça receberam aquela revelação. - O que sei acerca da sua morte é muito pouco. Só sei que o óbito aconteceu poucos dias depois de me ter enviado a sua mensagem e que a sua vida se prolongou o tempo suficiente para que lhe tivesse chegado a carta em que eu acusava a recepção do envio que me tinha efectuado.

- Quando aconteceu, então, a morte de micer Vivaldi?

- Não posso precisar-vos com exactidão a data, mas creio não estar enganado se afirmar que aconteceu pelo menos há uma semana. Eu tive conhecimento disso ontem, ao fim da tarde, através de pessoas que chegaram de Viena. Tendo em conta que a viagem demora cinco ou sete dias, fazei vós mesmos as contas.

- Que a alma do nosso irmão descanse em paz - disse um indivíduo que até então não tinha aberto a boca e que tinha pela indumentária aparência de clérigo.

Todos os presentes responderam com um ámen. Depois, fez-se um silêncio em sinal de respeito, mas que o corpulento Galeazzo Moroni quebrou.

Creio que ofrater Bellini devia mostrar-nos a mensagem que recebeu e que é o motivo desta reunião. Devo dar conhecimento a esta assembleia que tanto o frater Filippo Bembo como eu tínhamos a informação de que o frater Vivaldi fizera chegar uma mensagem ao frater Bellini.

Tomasso Bellini guardou silêncio durante uns segundos, antes de responder. Parecia procurar na sua cabeça as palavras que ia pronunciar.

- Lamento não poder satisfazer o vosso desejo - dirigiu-se directamente a Moroni - porque... porque devo comunicar-vos uma terrível notícia: a mensagem cifrada que Vivaldi me enviou não está em meu poder.

- Que quereis dizer exactamente com isso de não estar em vosso poder? - perguntou um Moroni cada vez mais alterado e cuja intimação era reforçada pelo rumor de desaprovação que surgiu entre os presentes.

- Alguém roubou a mensagem. - A resposta de Bellini provocou um profundo silêncio.

Passados uns instantes, após a surpresa inicial, viveu-se uma agitação generalizada. Todos os presentes, salvo Bellini, falavam ao mesmo tempo. Proferiam exclamações de assombro ou de incredulidade. Quando o burburinho atingira o seu ponto culminante, ouviu-se alguém bater à porta com força.

- Quem é? - perguntou Filippo Bembo, dono do armazém de madeiras e do espaço onde estavam reunidos.

- Meu senhor Filippo, abri rapidamente! É urgente que fiqueis a saber o que se está a passar! Pela santíssima Virgem! Abri rapidamente!

Bembo encolheu os ombros de forma significativa e dirigiu-se rapidamente à porta.

- Não sei o que se poderá passar, mas é a voz de Giusseppe, o encarregado do armazém.

Bembo abriu os ferrolhos que fechavam a maciça porta de carvalho. Apareceu um indivíduo com o rosto desfigurado e com um ar fora de si:

- Senhor, senhor, chegou um oficial à frente de dois batalhões de soldados! Fecharam as portas do armazém para que ninguém pudesse sair. Andam a revistar tudo e a fazer perguntas!

- E o que perguntam?

- Perguntam por vós e por... por...!

- E por quem mais!?

- Por algumas das pessoas aqui reunidas! Perguntam pelo senhor Moroni e pelo senhor Bellini! Devem ter a informação de que se está a celebrar esta reunião!

- Perguntam pelas três pessoas com quem Vivaldi comunicou!

- exclamou Guido della Marca, que parecia ser o mais surpreendido de todos.

Os presentes trocaram olhares entre si. A incerteza, a surpresa ou o medo era o que os seus olhos reflectiam.

- Seguiram-te? - perguntou Bembo ao seu encarregado.

- Não, senhor, pelo menos julgo que não me seguiram. Parece que consegui escapulir-me no meio da confusão originada pela presença dos soldados. Consegui esconder-me atrás de uma pilha de madeira, depois consegui chegar às escadas e atravessei sorrateiramente as duas galerias que conduzem até aqui. Fechei as portas atrás de mim. Mas não demorarão muito tempo até cá chegar, senhor.

- Não devemos perder tempo. Giusseppe, obrigado por me teres avisado. Espero poder pagar-te este favor. Regressa ao armazém e mostra-te surpreendido, faz-te de novas perante a situação que surgir e nega a existência da reunião. Diz que o teu patrão não está em casa. Vamos, rápido!

- Mas, senhor, irão encontrar-vos!

- Giusseppe, faz o que te digo e tem confiança em mim!

O encarregado obedeceu sem dizer uma palavra, tendo partido fechando a porta atrás de si. Galeazzo Moroni foi fechar os ferrolhos. Bembo agarrou-o pelo braço:

- Não faças isso.

- Não fecho a porta?

Por resposta, Bembo dirigiu-se para um dos archotes e gritou aos presentes:

- Pegai nos outros archotes! Rápido!

As suas palavras confundiram-se com o ruído que fazia uma parte da parede a girar sobre si mesma. Abriu-se um buraco por onde se via uma densa escuridão e de onde vinha um forte odor a salitre a mofo. Bembo avançou com decisão para o meio das trevas.

Pegai em qualquer coisa que possa denunciar a nossa presença e segui-me.

Não foi necessário que o repetisse, a negrura daquele buraco Começou a iluminar-se com a luz dos archotes enquanto a sala onde tinham estado reunidos desaparecia na escuridão. Bembo colocou o seu archote numa argola que havia numa das paredes do túnel onde o grupo tinha penetrado. Ouviu-se, outra vez, o ruído da parede a fechar-se.

- Compreendes por que não era conveniente fechar os ferrolhos?

Galeazzo Moroni assentiu com a cabeça.

- Em marcha! - ordenou Bembo. - Não temos tempo a perder!

O grupo constituído por aquelas sete pessoas tinha um ar espectral à luz oscilante dos archotes enquanto avançava por um túnel escavado nos alicerces da casa-armazém do madeireiro Filippo Bembo. Era uma galeria escorada, como as das minas, que tinha apenas espaço para deixar passar uma pessoa de cada vez. Galeazzo Moroni fazia-o com a cabeça inclinada e em alguns lanços tinha de passar de lado. A água escorria aqui e além, embora o aspecto do túnel fosse sólido.

Caminharam em silêncio durante uns minutos, ainda que nenhum deles, colhido pela emoção, pudesse precisar o tempo que estiveram enfiados naquela galeria subterrânea cuja existência todos ignoravam, salvo Bembo, até que chegaram ao final do túnel, que estava fechado por um gradeamento de ferro. Cada um ia mergulhado nos seus próprios pensamentos, cismando sobre tão extraordinária situação: a notícia de que a mensagem de Vivaldi tinha sido roubada e a intervenção de um grupo de soldados na reunião que estavam a celebrar assim como o facto de, pelo menos três pessoas, terem tido notícia, pela mão do próprio Vivaldi, da enigmática mensagem na qual ele comunicava a sua descoberta.

Bembo, que tinha encabeçado a marcha, abriu a fechadura da grade com uma chave que tirou de um dos bolsos e subiram todos por umas escadas íngremes e tão estreitas como o túnel, até que chegaram a um pequeno alçapão de madeira pelo qual acederam a uma sala onde flutuava um nauseabundo cheiro a podre. Acabavam de chegar às caves de um curtidouro situado nas costas da piazza de São Marcos.

Tinham conseguido escapar, momentaneamente, à comprida mão da Sereníssima, mas o medo tinha-se instalado neles e as perguntas que cada um fazia haviam semeado a desconfiança. Era tudo muito estranho e confuso.

Quem mais sabia daquela reunião? Como tinha chegado ao conhecimento das autoridades a sua celebração? Como era possível que soubessem do lugar, do dia e da hora em que tinham encontro marcado? Por que razão conheciam os nomes das pessoas a quem Vivaldi se tinha dirigido em relação ao assunto que os levara a convocar aquela reunião?

A tudo isso, havia que somar a revelação de Bellini. Afirmava não ter recebido a chave para decifrar a mensagem codificada que Vivaldi lhe tinha feito chegar... E, o que era mais grave, dizia ter perdido o texto!

Eram demasiadas perguntas sem resposta. De uma coisa se tinha a certeza. Entre eles havia um traidor porque, de outra forma, seria impossível que as coisas se tivessem passado daquela maneira.

A preocupação era visível em todos os rostos. Além disso, três deles: Bellini, Bembo e Moroni, sabiam que não poderiam regressar aos seus lares. As suas vidas naquele momento não valiam nem a roupa que tinham vestida.

Quando Maria chegou ao ponto da história que retratava o momento em que os membros da fraternidade tinham conseguido escapar dos soldados, depois de abandonar precipitadamente a reunião que celebravam na casa do madeireiro Filippo Bembo, a gôndola em que passeavam pelo Grande Canal tinha chegado ao fim do seu percurso.

O gondoleiro, com a mestria de quem conhece o ofício, aproximou o costado ao embarcadoiro e, depois de cobrar os trinta euros combinados de antemão, ajudou a desembarcar Maria e Lúcio que, abraçados, se dirigiram para a riva degli Schiavoni.

- O que se passou depois da precipitada fuga da casa de Bembo? - perguntou Lúcio, vivamente interessado pela narração.

- Isso vai custar-te um capuccino num café que está justamente nas traseiras do palácio dos dogos, muito próximo da ponte dos Suspiros. Num lugar delicioso e bem a propósito para uns momentos de agradável conversa.

Lúcio beijou-a no pescoço.

- Isso significa um sim à minha proposta?

- Sim, com a condição de receber um adiantamento.

Maria parou, pôs-se em frente dele e colando-se ao seu corpo deu-lhe um apaixonado beijo. A pressão das suas coxas, da sua pélvis e dos seus seios fez com que Lúcio estremecesse de prazer. Depois, retomaram o passeio.

- O que se sabe acerca do que aconteceu depois é muito pouco ou, pelo menos, é muito pouco o que ficou para a história - sublinhou Maria. - Ao que parece, tanto Tomasso Bellini, como Galeazzo Moroni e Filippo Bembo foram detidos nos dias seguintes.

- Ao que parece?

- Sim, porque da única coisa de que há certezas é que desapareceram sem deixar rasto. Tudo aponta para que tenham sido localizados por agentes do governo, detidos e interrogados. O resultado desses interrogatórios não transpirou à luz do dia. Talvez se encontre perdido nos fundos de algum dos nossos arquivos um documento que revele o que se passou, tu já sabes o gosto dos governantes da minha cidade no que toca a deixar memória dos seus actos e andanças. Ainda que seja de imaginar que sobre alguns, pela sua própria natureza, não ficasse nada registado na documentação.

Lúcio assentiu com a cabeça.

- Mas conhecendo os procedimentos que a Sereníssima empregava para alcançar os seus objectivos - anotou Maria - já podes imaginar o que se passou. Ainda que isso não tenha nenhum rigor histórico.

- Sabe-se o que foi a descoberta de Vivaldi?

- Continua a ser um segredo sobre o qual caíra já então um véu de obscuridade que o tempo não fez senão aumentar.

- Não conseguiram arrancar uma confissão a Bellini, a Bembo ou a Moroni? - insistiu Lúcio.

- Não parece que assim tenha sido porque continua a falar-se do enigma Vivaldi, do enigma do prete rosso. Tudo aponta para que nem Moroni nem Bembo soubessem grande coisa acerca da mensagem enviada por Vivaldi aos seus companheiros venezianos da Fraternitas Cbaritatis, a não ser que tinha chegado um texto cifrado a Bellini, que era, para além do próprio Vivaldi, a personagem fundamental desta história. Mas, segundo as suas próprias palavras, não lhe tinha sido enviada ou, pelo menos, não chegara às suas mãos, a chave para o descodificar e, como se isso não fosse o suficiente, também segundo o seu testemunho, alguém roubara o texto.

- Sobre a perda da mensagem enviada por Vivaldi e a chave para descodificar o mistério que continha, só se tem o testemunho do próprio Bellini? - perguntou interessado Lúcio.

- com efeito, o que levantou não poucas suspeitas acerca dessa estranha história. - Depois de uma pausa, Maria sublinhou: - O mais provável é que Bellini levasse o segredo para a cova. Nunca saberemos se realmente lhe tinham roubado a mensagem que Vivaldi lhe enviara e se a chave chegou ou não as suas mãos.

Não teria sido possível que o fizessem falar quando foi detido? Havia torturas muito refinadas e os venezianos tinham fama de serem mestres nisso... Creio que os espanhóis também não ficavam atrás em tais práticas. A Inquisição, que aqui também assentou os seus arraiais, teve ali a sua principal base. - Maria não tinha gostado da alusão aos torturadores venezianos.

Lúcio pediu-lhe desculpa.

- Não estava no meu espírito ofender o teu orgulho quando, além do mais, me tens preso com as tuas histórias.

- com as minhas histórias?

Era a pergunta que o violinista tinha previsto. Voltou-a para ele e beijou-a com força.

- Tonto! - foi a exclamação de Maria quando descolou dos seus lábios.

- Não acreditas que o Bellini falasse?

- O mais provável é que não, porque se tivesse confessado alguma coisa, saber-se-ia das consequências. E não as houve. Sobre o facto de ter resistido às torturas que, presumivelmente lhe aplicaram para o fazer falar, é possível que, sentindo-se perseguido, como de facto estava, tivesse tomado algumas medidas.

- Algumas medidas?

- Estava muito divulgado naquela época o uso de venenos. Desde o Renascimento, os italianos tornaram-se mestres na confecção de venenos, beberagens e preparados; houve, inclusive, um lucrativo comércio de elixires de todo o tipo para diferentes pontos da Europa. É muito provável que Bellini tenha adquirido algum deles, ou já o tivesse preparado e o tomasse, uma vez detido ou, inclusive, antes de o ser, para evitar os tormentos que o aguardavam.

- Mas vejo que são tudo conjecturas. Nada se pode afirmar.

- A voz de Lúcio denotava uma certa decepção.

- Claro que são tudo conjecturas! Por isso se fala do enigma do padre vermelho!

- E como é que se sabe da existência da reunião e da fuga pela galeria até à fábrica de curtumes? - perguntou Lúcio.

- Porque havia um traidor entre os congregados no armazém de madeiras. Foi esse que informou as autoridades de tudo o que te contei. Deixou uma confissão por escrito, que chegou até nós

- Quem era o traidor?

- Guido della Marca. Sabemo-lo porque assinou a declaração nela indicando que era um pároco da igreja de San Giorgio Maegiore.

Tinham chegado a um pequeno café que abria as suas portas numa recatada piazzeta. No lado de trás abria-se uma esplanada cuja vista dava para o Grande Canal. Do outro lado erguia-se uma bela construção com um aspecto conventual. Sentaram-se numa mesa afastada, onde sobre uma toalha aos quadrados vermelhos e brancos estava uma vela acesa protegida por um pequeno quebra-luz. O ambiente prestava-se ao romantismo e às confidências.

Pediram dois capuccinos e ficaram em silêncio. Maria olhava para Lúcio, que parecia ter uma ideia às voltas na sua cabeça. Instantes depois, perguntou:

- O que contaria Vivaldi a Bellini nessa mensagem? Maria olhou-o nos olhos e esboçou um sorriso irónico:

- Essa, sim, é que é uma boa pergunta! Esta cidade, caro mio, é a cidade dos segredos. A cidade dos mistérios. Veneza não seria Veneza se, ao longo da história, o mistério não a envolvesse. Em nenhuma outra parte do mundo se contam histórias como as que se passaram aqui e em todas elas há um fundo comum: o mistério, o segredo. Eram misteriosas as celebrações. As suas instituições estiveram durante muito tempo envolvidas por um halo e um secretismo que as tornou singulares, entre os governos da época. O mistério envolveu durante muito tempo as suas deliberações... E diz-me o que é, à posteriori, o carnaval, senão uma festa onde o misterioso é a parte essencial.

- Devia ser algo de grande importância para o governo veneziano, uma vez que este o perseguiu com tanto afinco.

- Devia ser, de facto. Mas tudo o que se diga a esse respeito não são mais do que especulações. E, como não podia ser de outra forma, algumas acabaram por surgir. - As últimas palavras de Maria foram ditas com a clara intenção de captar a atenção de Lúcio. Tiveram o efeito desejado, porque a pergunta irrompeu rápida.

- Como por exemplo?

Pensou-se - disse Maria - que podia tratar-se da famosa fórmula do chamado fogo grego. Como sabes, a substância que os bizantinos utilizaram para incendiar as frotas inimigas. Dizem que o levavam nos seus barcos e lançavam com umas mangueiras sobre as embarcações com que lutavam. Até a água ardia, segundo contam as crónicas da época. Em diferentes ocasiões o fogo grego permitiu-lhes mudar a seu favor o curso das guerras que lhes eram desfavoráveis e, graças a ele, salvaram-se de situações muito difíceis.

- E qual era a fórmula desse fogo grego?

- Perdeu-se, como tantas outras coisas, após a queda de Constantinopla sob o poder dos turcos em 1453. Não se sabe em que consistia.

- Não se fizeram ensaios químicos para encontrar essa fórmula?

- Parece que se fizeram, e muitos, mas sem resultados satisfatórios. O fogo grego continua a ser um mistério. Imaginas o que significaria para uma potência como Veneza, que baseava a sua força no poderio das frotas? Pensa no que teria sido contar com uma arma tão poderosa como esta, num determinado momento, em meados do século XVIII, em que o seu declínio era uma triste realidade.

- Os governantes de Veneza dessa época teriam dado tudo e mais alguma coisa para conseguir uma arma como aquela - corroborou Lúcio.

- Também se disse que a descoberta de Vivaldi estava relacionada com o chamado tesouro dos templários, cujas fabulosas riquezas se perderam quando a poderosa ordem militar foi atacada por Felipe IV de França, sempre com necessidade de dinheiro, e foi dissolvida pelo papa Clemente V, em conivência com o monarca francês, ao acusar os templários de heresia.

- Dizes que perderam as suas riquezas?

- Na realidade, o que se passa é que se desconhece o paradeiro dessas riquezas, que os templários tiveram tempo de colocar a salvo. Foram objecto de uma busca contínua desde o momento do seu desaparecimento, em 1314. Durante séculos correu um rumor insistente: o tesouro dos templários foi escondido no sul de França, numa zona próxima de uma pequena povoação chamada Rennes-le-Château. Ao que parece, Vivaldi viajou em várias ocasiões para essa região do midi francês. Segundo alguns a sua mensagem forneceria a chave para chegar até este exacto ponto, onde os templários esconderam o seu ouro.

- Outro assunto tentador para qualquer governo - disse Lúcio.

- É verdade, mas como te digo são puras elucubrações, sem o mais pequeno fundamento para além da fantasia de quem as propôs. Em todo o caso tratava-se de algo com uma importância extraordinária. Tanta que levou Vivaldi a Viena para ligar as pontas que ainda estavam soltas, já numa idade avançada, e uma vez feitas as necessárias comprovações decidiu pô-las a salvo, nas mãos da Fraternitas Charitatis, a organização secreta a que pertencia e cujo fim primordial era ser a guardiã de um tipo de conhecimento que não se devia perder, mas que também não devia ser difundido.

- O que se sabe da Fraternitas Charitatis? - perguntou Lúcio.

- O que eu já te contei. Ao que parece a sua existência é muito antiga. Alguns fazem remontar a sua origem à época helenística, por volta do século iII antes de Jesus Cristo, na cidade de Alexandria, onde existia uma intensa vida cultural e onde se encontravam gentes portadoras de algum tipo de saber. Ali encontraram abrigo e meios para desenvolver o seu trabalho sábios procedentes das escolas gregas. Seguidores de Pitágoras, discípulos de Platão e de Aristóteles, bem como pessoas que tinham informações sobre o conhecimento hermético do Egipto dos grandes faraós. Também foi ali que chegaram os últimos representantes do saber dos povos estabelecidos na Mesopotâmia, restos das culturas surgidas nas margens dos rios Eufrates e Tigre; povos cujos conhecimentos sobre astronomia, astrologia, matemática, botânica ou medicina ainda hoje nos causam espanto. Como tu sabes, na biblioteca desta cidade...

- A famosa biblioteca de Alexandria!

- Onde estava depositado - continuou Maria - todo o saber acumulado durante séculos pela humanidade, tendo sido organizada no início do século iII antes de Cristo por Demetrio de Falera, e dando guarida nos seus salões a setecentos mil exemplares. Todo o saber da humanidade! Um saber que tinha permitido teorizar sobre a esfericidade da terra, sobre os movimentos dos planetas, sobre a descoberta de sete desses planetas; formular importantes princípios de física, que permitiram progressos que depois se perderam e que a humanidade demorou séculos a voltar a descobrir e a estabelecer cientificamente.

Sabia-se assim tanto nessa altura? - perguntou-lhe um intrigado Lúcio.

-Imagina, Demócrito, por incrível que te pareça, falava já da estrutura atómica da matéria.

Lúcio ouvia atónito o caudal de conhecimentos que Maria demonstrava com aquela explicação.

- Era um saber que, por exemplo, tinha permitido construir a famosa pirâmide atribuída ao faraó Kéops, cuja técnica de construção continua a surpreender-nos cinco mil anos depois e cujas medidas ocultam, para aqueles que possuem as chaves adequadas, muitos mais mistérios, daqueles que nem sequer estamos em condições de imaginar.

- Fantástico! - suspirou Lúcio.

- Mas, por outro lado, dizia-se em segredo que ali haviam sido depositados livros muito especiais, cujo conteúdo daria ao seu possuidor um poder ilimitado. Entre esses livros encontrava-se a História do Mundo, de Beroso.

- Quem era Beroso? - Lúcio estava preso à conversa.

- Era um sacerdote babilónio do deus Baal-Marduk que, perseguido no seu país natal, encontrou refúgio na Grécia. Foi contemporâneo de Alexandre Magno e deixou-nos memória das suas experiências com seres extraordinários, a quem deu o nome de Akpalus. Eram metade peixes e metade homens. Eles ensinaram tudo o que se referia às grandes civilizações do mundo antigo. Também havia ali obras de um tal Manethón, sacerdote egípcio de quem se diz que conhecia os segredos de Toth. É, inclusive, possível que ali se encontrasse o Livro de Toth.

Para Lúcio era como se um mundo sobre o qual nunca tivesse tido conhecimento se abrisse diante dele.

- Mas nada disso, no entanto, chegou até nós. Como sabes prosseguiu Maria -, a biblioteca sofreu vários incêndios que acabaram por transformar em fumo e cinzas boa parte do conhecimento ali depositado. É como se uma espécie de conspiração tivesse procurado, até conseguir, o desaparecimento de conhecimentos em relação aos quais havia interesse em que não fossem difundidos.

- Tu acreditas que há gente assim? - O violinista continuava surpreendido.

- Obviamente. O primeiro incêndio foi levado a cabo por soldados de Júlio César. Ao que parece, salvou-se uma parte importante da biblioteca. Outro ataque foi o da imperatriz Zenobia, mas também nesta ocasião se conseguiu salvar da destruição uma boa parte dos documentos. No final do século iI depois de Cristo, o imperador Diocleciano deu-lhe um novo golpe na sua tentativa de destruir todos os textos que fornecessem alguma pista sobre o fabrico de ouro ou de prata que, segundo se dizia, era um dos saberes alcançados pelos antigos egípcios. O seu objectivo era evitar que um possível inimigo alcançasse um tal conhecimento que o convertesse numa ameaça para o império que governava.

- Não posso crer! - Lúcio fazia movimentos negativos com a cabeça.

- Acredita! A lenda diz que os autores de alguns desses manuscritos eram o próprio Hermes Trismegisto, o sábio Salomão, ou o misterioso Pitágoras. A destruição definitiva aconteceu no ano

646 e foi levada a cabo por ordem do califa Ornar, que considerou que todo o conhecimento que não estivesse no Alcorão era desnecessário ou era mau, pelo que devia ser destruído. Se algum desses valiosos tesouros para o saber humano conseguiu escapar às arremetidas dos inimigos da biblioteca, foi zelosamente guardado.

- O que tem a ver a Fraternitas Charitatis com tudo isto que me estás a contar em relação à biblioteca de Alexandria, para além de a origem desta misteriosa organização ser contemporânea da fundação da biblioteca?

- Diz-se que foram os seus membros que mexeram os cordelinhos necessários para que a mesma fosse destruída.

- Essa é uma história à qual não nego a sua parte de interesse, mas que não tem fundamento! Uma espécie de conspiração urdida para controlar à sua vontade determinados conhecimentos! Não me venhas com histórias, Maria! - exclamou Lúcio de forma desdenhosa.

- É esse, por incrível que te pareça, o objectivo da Fraternitas Charitatis. Vejo que seguiste com interesse tudo o que te contei respondeu Maria com uma certa ironia, mas deixando transparecer algum aborrecimento.

Lúcio estendeu a sua mão para pegar na de Maria que repousava na a toalha, mas esta retirou-a. Estava aborrecida e naquele momento não desejava carícias. Lúcio apercebeu-se de como tinha sido pouco delicado ao ter dito o que dissera. Não hesitou em pedir-lhe desculpa.

Lamento, acredita que lamento. Não quis ofender-te e o meu comportamento foi grosseiro. É que é tudo tão incrível! - Lúcio estava visivelmente perturbado.

Depois de um breve silêncio, Maria retomou a conversa. O aborrecimento ficara para trás.

- Não sei se a Fraternitas Charitatis estava por detrás das sucessivas destruições sofridas pela biblioteca de Alexandria. Limitei-me a contar-te algo do muito que li acerca dessa misteriosa seita da qual, ao que parece, Vivaldi foi um membro activo. Mas deves saber, porque há documentos que o avalizam, que esta organização existiu. Será melhor deixarmos as coisas por aqui, esta noite é demasiado bela para ficar estragada por uma sociedade secreta que existiu para preservar o mundo de não sei quantos males que podiam abater-se sobre ele. Como compreenderás, pessoas como estas, que se consideram acima do comum dos mortais, aos quais pertencemos tu e eu, não gozam das minhas simpatias! Comportavam-se como os ditadores, para quem os povos são sempre menores de idade e, portanto, não se lhes pode permitir nem que vivam em liberdade, nem que escolham o seu próprio destino!

O passeio de regresso à estalagem recompôs a magia de uma noite maravilhosa. Enquanto regressavam, Lúcio colocou a si mesmo a hipótese de propor a Maria que passassem a noite juntos. O que mais desejava no mundo era apertá-la entre os seus braços, mas pôs de parte essa possibilidade, já tinha cometido uma estupidez a propósito da Fraternitas Charitatis e não queria cometer outra. Não conhecia suficientemente aquela mulher, que tanto o atraía, e não sabia qual a sua possível reacção. Preferiu não arriscar e deixar que as coisas seguissem o seu próprio caminho. A culpa era daquela surpreendente e maldita Fraternitas Charitatis.

Os dias decorriam a uma velocidade muito maior do que desejavam Lúcio e Maria. O que tinha começado entre eles como um encontro casual convertera-se numa coisa mais profunda. Lúcio sentia-se tão bem com o tempo que passava com Maria que o seu maior desejo - quem poderia dizê-lo durante os longos preparativos da viagem! era estar com ela. Pela sua cabeça passavam projectos e planos de futuro nos quais Maria estava sempre presente. Na sua cabeça e também no seu coração não parava de bulir o desejo de partilhar com aquela mulher o seu tempo e a sua vida. O que se tinha passado com ele era, simplesmente, que se apaixonara.

Agora, uma das suas maiores preocupações era a maneira como havia de dizer-lhe quanto a amava e o que aquele amor significava para ele. Tinha medo de não saber expressar o que sentia por ela e, sobretudo, aterrorizava-o a ideia de que ela não lhe correspondesse. Pensava, uma e outra vez, nos seus gestos, nas suas palavras, no brilho dos seus olhos em determinados momentos ou na maneira como lhe sorria, para tirar algumas conclusões e ter ilusões de que podia ser correspondido nos seus sentimentos. Quase sem se dar conta, Maria tinha-se transformado na coisa mais importante da sua vida e declarar-lhe o seu amor era, desde logo, uma coisa muito mais difícil do que jamais pensara. Só de imaginar que ela podia repudiá-lo enchia-o de angústia, oprimia-lhe o peito, provocava-lhe febre. Sentia medo de não ser correspondido por aquela mulher que lhe roubara o coração.

Depois da noite do Da Fiore tinham passado dois dias maravilhosos em que aproveitaram todos os momentos possíveis para estarem juntos. No segundo dia, Lúcio tomara a decisão de abandonar a sua participação nas Jornadas. A penosa impressão que recebeu desde o primeiro momento não tinha feito senão acentuar-se com a passagem dos dias, e assistir às sessões significava uma lamentável perda de tempo, que não estava disposto a assumir. Se naquele momento havia algo que por nada deste mundo estava disposto a perder era tempo. Esse tempo que se lhe escapava por entre as mãos que desejava partilhar com Maria.

Na tarde do dia em que tinha decidido pôr ponto final na sua participação nas Jornadas Musicais tomou outra decisão muito mais importante: declarar a Maria o seu amor, dizer-lhe quais eram os seus sentimentos por ela. Como nos dias anteriores - Lúcio animava-se a si mesmo, lembrando-se que ela não recusava as suas propostas de percorrerem juntos Veneza -, combinaram em sair quando ele regressasse das suas pesquisas no arquivo. Maria, que era quem planificava o passeio, tinha previsto percorrerem a riva degli Scbiavoni e perderem-se pelo dédalo de canais, ruelas e pontes que desembocavam nela. Havia numerosos cantos cheios de beleza e mistério. Em cada esquina, em cada recanto, em cadapiazzeta presenciavam um pedaço da história daquela cidade. Quase sem se dar conta, a noite tinha caído sobre Veneza e os candeeiros reflectiam a sua luz sobre as águas da laguna e sobre os canais, e era aprazível, quase silenciosa; os turistas concentravam-se noutros lugares. Lúcio não parava de ganhar confiança. Num determinado momento apertou com força a mão de Maria e, como se sussurrasse umas palavras ao vento, proferiu:

- Amo-te, Maria - a afirmação ganhou na sua boca um tom transcendental. - Apaixonei-me por ti. Não sei como aconteceu, mas apaixonei-me por ti.

Ao ouvir aquelas palavras, Maria deteve-se. Lúcio sentiu o coração pulsar loucamente. Estava com o pensamento suspenso, os segundos passavam com uma terrível lentidão e, perante o silêncio e a quietude de Maria, eram de uma duração insuportável. Aquele silêncio fê-lo pensar no pior. Estava a formar-se-lhe um nó na garganta e sentia que a sua vida estava presa por um fio.

Foi, então, que chegou aos seus ouvidos a voz de Maria, suave como veludo.

- Quanto tempo tardaste!

Lúcio olhou-a nos olhos sem saber o que dizer. com muita dificuldade conseguiu perguntar com voz quebrada:

- É um sim? A resposta chegou-lhe com um apaixonado beijo.

Lúcio decidiu reorganizar o seu programa porque, ao contrário do que se tinha passado com as Jornadas Musicais, o trabalho no desordenado arquivo da Pietà satisfazia-o mais do que alguma vez imaginara. Nunca poderia agradecer suficientemente o pedido feito por Briviesca para que lhe abrissem as portas daquela instituição desmantelada há algum tempo, mas que conservava, ainda que isso fosse dizer muito atendendo ao esquecimento e ao abandono, os seus ricos arquivos.

Durante as manhãs ia para a Pietà, depois de tomar um copioso pequeno-almoço. Ali, afadigava-se nas suas pesquisas sobre o genial músico veneziano. Uma gorjeta ao porteiro do imóvel que, embora fosse propriedade da Igreja, tinha no rés-do-chão uns escritórios relacionados com a Segurança Social - talvez como recordação da função de hospício que noutra época desempenhou aquele espaço -, tinha conquistado a sua simpatia. No último andar, que também era um misto de sótão, encontrava-se o arquivo; ali, o silêncio, a tranquilidade e o recolhimento eram as notas dominantes e inestimáveis. Podia, naquele lugar, dar azo à sua curiosidade, sem nenhum tipo de controlo nem de vigilância. Tinha a certeza de que se, um dia, decidisse ficar para além das seis da tarde, hora de fecho do imóvel, poderia fazê-lo sem nenhum problema. Em poucos dias, as duas salas cheias de estantes que continham a história da instituição nas suas paredes, tinham-se transformado nos seus domínios, onde podia fazer e desfazer segundo o seu critério e entendimento.

Para se decidir entre um maço de papéis e outro, guiava-se apenas pela sua intuição. A única ajuda que tinha era a que lhe proporcionavam várias páginas escritas à máquina e agrafadas, formando um caderno, nas quais se assinalava o que noutra época - pelo tipo de letra da máquina com que se tinha escrito seria dos anos vinte ou trinta, uma Underwood ou uma primitiva Olivetti - foram sessões de arquivo. Mas, por alguma razão, os cartõezinhos dos maços de papéis indicando essas sessões tinham-se perdido em muitos casos. Para maior infelicidade, em alguma mudança ou por um outro motivo desconhecido, os maços de papéis que deviam estar ordenados por sessões tinham sido mexidos. O resultado era uma confusão de documentos onde, juntamente com contas e facturas, havia actas das reuniões da direcção da instituição. Todos aqueles imponderáveis não impediam, no entanto, que, de vez em quando, manasse a fonte que esperava. Notas relacionadas com o maestro; recibos pelo seu punho e com a sua letra; petições dirigidas por Vivaldi à direcção; minutas em que informava a direcção sobre a realidade do coro, os problemas da aprendizagem, as obras que se preparavam e, por vezes, cópias de partituras das suas obras.

Cada vez que Lúcio pegava num maço de papéis entre as suas mãos, o pó, acumulado não poderia precisar-se ao longo de quantos anos, mas com toda a certeza seriam muitos, sujava as suas mãos, enegrecendo-lhe os dedos. Mas, ao mesmo tempo, era motivo de veneração, por tudo quanto significava pôr as mãos sobre velhos papéis onde palpitava a história em cada uma das suas linhas. Mas não tinham nada que ver com a actividade musical do Ospedale ou sobre as relações mantidas por Vivaldi com a instituição. Nove de cada dez maços de papéis inspeccionados não tinham qualquer valor para os seus propósitos. Entregara-se ao trabalho como o teriam feito os exploradores de ouro nas águas de um rio, que tinham de peneirar grandes quantidades de areia para obter umas pepitas do precioso metal. Mas, tal como aqueles exploradores, a descoberta de qualquer informação válida para o seu fim compensava-o de tanto esforço despendido.

Por volta da uma e meia descia até à rua e comprava uma fatia de pizza numa tavola calda que havia no mesmo passeio do edifício onde passava as horas de pesquisa. Geralmente comprava duas fatias médias, para dar alguma variedade ao seu almoço, das doze especialidades que havia nas vitrinas. Acompanhava a comida com uma lata de birra e, como sobremesa, um espresso. Sem se entregar muito ao descanso, regressava ao trabalho até que chegasse a hora de fechar.

Lúcio olhou para o relógio. Eram quatro da tarde quando colocava no sítio o maço de papéis que acabava de investigar sem qualquer rendimento e pegava no seguinte para levá-lo até à mesa de trabalho. Por um instante, amaldiçoou-se por estar fechado entre aquelas quatro paredes em vez de estar com Maria, passeando pela cidade que ela andava a mostrar-lhe, como jamais tinha imaginado conhecer, entre beijos, carinhos e sussurros de amor. Também pensava que poderia estar a dar rédea solta aos seus sentimentos ou a fazer amor. Disse a si mesmo em voz alta - só ele ouviria - que era um pateta. Embora se tivesse imposto como obrigação aproveitar cada dia até às seis, decidiu que aquele seria o último maço de papéis do dia. Abriu-o com displicência e deu de caras, em primeiro lugar, com um grosso livro de contas, que tinha perdido as capas. As últimas páginas não tinham sido utilizadas. Por casualidade, os seus olhos fixaram-se na página que fechava as anotações de um mês, 30 de Junho de 1741, e numa assinatura com rubrica que, com letra legível, dizia: Tomasso Bellini.

- Tomasso Bellini, Tomasso Bellini - disse como um sussurro que mal lhe saiu da boca. - O que me faz lembrar este nome? Tomasso Bellini.

Tentou lembrar-se daquele nome, mas não lhe veio nada à memória.

- Bah! Tê-lo-ei visto num outro livro de contas - falava sozinho.

Fixou a sua atenção no documento seguinte e começou a ler. Tinha avançado apenas umas linhas - tratava-se da carta de um provedor, reclamando o pagamento de certas quantias atrasadas quando se apercebeu logo que era algo que não tinha interesse para os seus propósitos. Os outros documentos daquele maço de papéis também não tinham informação alguma que lhe fosse útil. Fechou as capas do maço, deu um nó ao cordão vermelho e levantou-se para colocá-lo no seu lugar. Eram quatro e um quarto, mas tinha prometido a si mesmo que aqueles seriam os últimos papéis do dia que bisbilhotaria. O trabalho tinha acabado. A única coisa que desejava naquele momento era estar com Maria.

Dirigia-se para a porta quando lhe veio à cabeça a data do documento onde se reclamava o pagamento: 14 de Agosto de 1741. Pouco depois da morte de Vivaldi, pensou e... e... bateu com o punho fechado na palma da outra mão.

- Tomasso Bellini! Tomasso Bellini!

Este era o nome do indivíduo para quem Vivaldi tinha enviado de Viena a carta que continha o segredo que fora apurar naquela cidade onde a morte o surpreendeu!

Como é que não se tinha apercebido antes!

Lúcio lembrou-se de Maria lhe ter dito que Bellini, para além de ser membro da Fraternitas Charitatis, era o principal patrono do Ospedale della Pietà. Aquele livro de contas estava fechado pelas mesmas datas em que aconteceu a estranha história associada a Vivaldi. Estava a suar. Olhou para o relógio e hesitou uma vez mais entre ir-se embora ou voltar a pegar naquele maço de papéis. Na realidade, aquilo não tinha nada de particular. Tratava-se de um livro de contas, era um dos muitos mais que estavam guardados naquelas estantes. Se Maria não lhe tivesse falado de Bellini não teria reparado nele, ainda que fosse verdade que a data se revelasse interessante. Mas "interessante em que sentido?", questionou-se. Vivaldi não tinha naquele momento nenhuma relação com a Pietà; além disso, nem sequer estava em Veneza. Hesitou uma vez mais entre ir-se embora ou dar uma vista de olhos àquele livro de contas.

Pegou no maço de papéis, colocou-o sobre a mesa, sentou-se e abriu-o lentamente. Sem saber porquê, tinha ficado tenso. Uma patetice, mas era assim, estava tenso e tinha as palmas das mãos húmidas. O volumoso livro de contas que tinha diante de si começava a 19 de Dezembro de 1740 e não tinha nada de especial. Depois de uma breve introdução, cujo escrivão se tinha esmerado na caligrafia, explicava-se que era um livro de anotação e contabilidade das "Entradas e despesas do Ospedale della Pietà, onde se acolhem meninas órfãs ou abandonadas para lhes dar abrigo e educação, segundo o ordenado pelos estatutos da fundação". Havia em cada página uma coluna com as anotações. Aberto o livro, na página da esquerda consignavam-se as entradas, na da direita as despesas. Estas últimas eram mais numerosas, embora a quantia dos assentos fosse mais pequena. Fechavam-se os capítulos por meses e o desequilíbrio entre uma coluna e outra rasurava-se, inutilizando com três linhas ziguezagueantes o espaço que restava em branco na parte correspondente às entradas.

Lúcio passava as folhas, sem se deter muito nos conceitos ali anotados. Era algo que não lhe interessava. Compreendeu que, ao fim e ao cabo, tinha sido tudo uma perda de tempo. Após uns minutos a passá-las em revista, ficara tranquilo. Tinha folheado mais de metade do volumoso livro quando pensou que estava na altura de parar. Pegou com a mão esquerda nas folhas que ainda não tinha passado, curvou-as e deixou correr a borda das mesmas pelo seu polegar. Aquele movimento fez com que um papel solto saltasse graças ao impulso que as próprias folhas lhe davam. Lúcio seguiu-o com o olhar, vendo-o planar e pousar suavemente no chão. Pegou nele e ao desdobrá-lo verificou, com certa surpresa, que se tratava de uma partitura.

Um livro de contas era um lugar pouco adequado para guardar uma partitura, mas tratando-se das contas de uma instituição musical nada tinha de anormal e ainda menos se se considerasse a desordem que imperava em toda a documentação. A partitura não tinha título, o que o levou a pensar que se tratava de uma parte de uma composição maior. Começou a lê-la. Era uma partitura para violino. Aquela música não era nada do outro mundo, era antes um conjunto de notas pouco harmoniosas. Talvez fosse o exercício de algum aprendiz. Nada que merecesse muito interesse. Seguia com os dedos o compasso e cantarolava a música quando, de repente, viu algo que o fez sacudir a cabeça.

Fixou-se naquelas notas. O que ali estava escrito tinha de ser obra de um principiante. Mais do que um principiante, quem o fizera era um ignorante, de acordo com a escassa qualidade que dominava a composição. Mas uma coisa era uma má composição e outra muito diferente o que tinha diante dos seus olhos. Talvez fosse uma brincadeira porque só dessa forma o escrito podia ter uma explicação. Ainda que, pensando bem, não fosse assunto para levar a brincar. Voltou a olhar e viu as notas, nítidas e desafiantes. Pensou que era um erro. Olhou outra vez a partitura e de novo os seus olhos se concentraram naquele grupo de notas. Ali estavam, como se a sua presença fosse um repto ao bom senso.

Improvisou a partitura e na sua cabeça começaram a tomar corpo uns acordes, aos quais não podia dar o nome de melodia, sendo tão pouco harmoniosos, para qualificá-los com uma certa benevolência. Era uma música estranha, fruto do mau gosto de alguém que não sabia muito bem o que fazia. Tudo soava mal, mas quando chegou às notas que tanta perplexidade lhe tinham provocado, um som terrível vibrou na sua cabeça. Foi como uma dolorosa picadela que lhe provocou dano físico, uma dor instantânea que durou apenas uns segundos, mas que atingiu o insuportável.

Era um som desagradável, horrífico! não conseguia encontrar uma explicação para que alguém tivesse composto uma coisa tão horrível.

O coração batia-lhe aceleradamente, como se tivesse feito um grande esforço físico. Tinha o pulso alterado e a cabeça começava a doer-lhe. Estava desconcertado. Sem pensar muito bem no que fazia fechou o livro e deu um nó ao nastro. Tinha deixado de fora a estranha partitura. Colocou o maço de papéis no lugar onde tinha repousado, sabe-se lá há quantos anos, e tomou a decisão de ficar com ela, consciente de que o que fazia não era correcto. Pensou nas consequências que teria de enfrentar se descobrissem que tinha roubado um papel do arquivo. Não seria nada de bom, obviamente. Mas também pensou que era muito difícil que alguém desse pela sua falta. Ali imperava a maior das desordens! Também não era provável que o revistassem à saída. Nunca o tinham feito nos dias anteriores. Por um momento, sentiu um calafrio a percorrer-lhe a espinha.

Guardou a partitura no bolso e abandonou o arquivo. Sentia o sangue a latejar-lhe nas fontes com força. Conforme descia as escadas aumentava o nervosismo que tinha tomado conta de si. Houve um momento, antes de chegar ao rés-do-chão, que pensou em voltar, deixar o maldito papel onde o tinha encontrado e esquecer-se do assunto. Mas foi maior a tentação de o levar consigo. Era uma partitura de violino e queria interpretá-la, apesar de na sua cabeça soarem uns horríveis acordes. Deixava já o primeiro andar quando decidiu que faria uma cópia e depois devolveria o original ao seu lugar. Era o melhor perante a possibilidade de que se descobrisse que levara um documento do arquivo.

- Signore Lúcio!

A voz do porteiro chegou até aos seus ouvidos como uma maldição. Tinha a certeza de que ele ia dar-se conta de que levava aquele pedaço de papel. Quem é que o mandara voltar atrás para ir ver aquele livro de contas, quando já tinha dado por concluída a sua tarefa?

- Signore Lúcio! Vejo que terminou o seu trabalho mais cedo que nos dias anteriores.

Não sabia se havia de começar a correr pelas escadas acima, se atirar-se ao pescoço do porteiro e começar a chorar. O pânico devia ser algo muito parecido com o que estava a sentir naqueles momentos. Mas a realidade é que os seus pés desciam as escadas e o seu corpo seguia-o como um autómato. Mal ouvia a voz do porteiro qUe continuava a perorar. O que quer que fosse que estivesse a dizer tinha a ver com uma bela veneziana. Prestou atenção.

- De certeza, de certeza que terá a ver com uma bela veneziana:

Era exactamente isso o que estava a dizer. Aquilo, sem que percebesse muito bem porquê, deu-lhe ânimo.

- Você acertou em cheio! As suas conterrâneas são uma tentação irresistível.

- Meu querido amigo, uma jovem bela é sempre uma tentação. Um sério perigo para qualquer homem. Mas também um belo perigo face ao qual o melhor é perecer. Foi assim toda a vida e continuará a ser enquanto existirem belas mulheres.

O porteiro devia considerar aquelas palavras como uma amostra da sua filosófica eloquência porque, ensimesmado no seu próprio discurso sobre o amor, mal reparou na agitação interior de Lúcio, quando passou próximo dele, sem dizer outra coisa que um formal:

- Buona será,

- Buona será, caro amico.

Lúcio caminhou depressa, olhando em frente, ainda que não visse nada. Conforme se distanciava da porta do edifício notava como se descontraía e como o suor lhe empapava a roupa.

Tocou no bolso, num estúpido gesto de verificação. Ali estava o papel que tanta angústia lhe tinha provocado. Ali estava aquele maldito papel. Sim, maldito papel porque a partitura continha uma música proibida, da qual não era capaz de se abstrair.

Recordou as suas aulas de teoria quando era estudante no conservatório. Aquela era uma música condenada pela Igreja! Era a música do diabo!

Mal se afastou do edifício que, um dia, albergara o Ospedale della Pietà tentou recuperar a serenidade. Decidiu dar um passeio, daqueles que não levam a lado nenhum; deixar-se ir pelas ruas para superar a angústia que o atormentava. Pouco a pouco foi recuperando a calma e verificou que, pouco a pouco, a sua mente superava a tensão vivida, mas também que soava cada vez com mais força na sua cabeça a estranha música contida na partitura que guardava no bolso.

Andou a deambular pelas ruelas durante mais de uma hora. Embora o passeio tenha exercido um efeito saudável no seu espírito alterado, a dor de cabeça, pelo contrário, não parara de aumentar. Comprou uns analgésicos e tomou dois acompanhados de um capuccino num pequeno café da riva del Carbón, muito próximo da ponte Rialto. Nas águas do Grande Canal e nas suas margens havia a agitação de sempre: aglomerações de gente nas pontes, vendo as gôndolas a passar, vaporetti ou lanchas que deixavam à sua passagem rastos de espuma sobre o escuro verdor das águas. Subiu a ponte Rialto e conseguiu, aos encontrões, abrir espaço entre as pessoas num dos parapeitos para ver o canal a partir de cima. Ali, de cotovelos encostados, deixou passar os minutos, verificando com um certo deleite como a sua mente se tranquilizava ao ponto de se alhear do barulho e do ruído que o rodeava, mas, ao fim de uns momentos, a música da partitura voltou a golpeá-lo como uma dolorosa picada. Já passava das cinco e meia, pelo que decidiu dirigir-se para o Bucintoro. Agora caminhava rapidamente porque o seu maior desejo era estar quanto antes na estalagem, que se apresentava naquelas circunstâncias como um agradável refúgio. Quando chegou estava esgotado. Doía-lhe todo o corpo, dos pés à cabeça uma vez que os analgésicos ainda não tinham produzido efeito. Cumprimentou a mãe de Maria com um buena será, signora Giulietta, muito diferente da simpática conversa que com ela costumava manter. Pegou nas chaves e subiu as escadas com o propósito de tomar um longo duche.

Aquilo dar-lhe-ia a força suficiente para interpretar no seu violino a música que estava escrita nos pentagramas.

O seu pequeno quarto encheu-se de vapor, criando uma atmosfera enevoada e húmida, embaciando janelas e espelhos. O duche, como desejava, tinha exercido um efeito tonificante no seu corpo e também no seu espírito. O som estridente do telefone sobressaltou-o.

- Sim?

- Sou eu, Maria.

- Ah, és tu.

- A minha mãe disse-me que tinhas chegado e que subiste rapidamente para o teu quarto sem te deteres sequer um momento. Estás bem?

Lúcio hesitou um momento antes de responder. Tinha pensado várias vezes como contar a Maria o que lhe acontecera naquela tarde, mas não sabia como fazê-lo, como contá-lo. Que pensaria uma pessoa como ela, apaixonada pela história, de um indivíduo que se apropriava de um documento de arquivo? Qual seria a sua reacção? Por outro lado, tinha muito más vibrações. Quem quer que tivesse composto aquela música tinha utilizado a quarta trítono. Um agrupamento de notas que provocava um som horrível. Um som tão detestável que tinha sido proscrito. A Igreja, inclusive, tinha-o amaldiçoado. Aquela partitura era uma heresia musical!

O silêncio que se tinha feito no fio telefónico fez com que Maria voltasse a perguntar:

- Lúcio, estás bem? Passa-se alguma coisa? - A voz dela soou preocupada.

- Sim, sim, estou bem. Embora tenha uma coisa para te dizer. Uma coisa muito importante.

- O que tens para me dizer? - Agora notava-se um fundo de angústia na voz de Maria.

- Não quero dizê-lo ao telefone. Vemo-nos dentro de meia hora? Estarei no vestíbulo.

E desligou o telefone.

Embora a jovem ouvisse que a comunicação tinha sido cortada não pôde deixar de responder:

Está bem, dentro de meia hora no vestíbulo.

Maria sabia que os trinta minutos daquela meia hora se tornariam intermináveis. Ela também estava apaixonada. Aquele spagnolo de maneiras suaves e fina sensibilidade tinha sobre ela um poder arrebatador. Tinha passado ao lado dele uns dias maravilhosos, ao ponto de a sua vida ter ganho uma nova dimensão. Tinha-lhe entregado o coração sem reservas e, ao longo daquele dia, não deixara um momento de pensar na maneira de lhe dizer que desejava deitar-se com ele, não só pelo sexo, mas também por algo muito mais belo que desejava partilhar.

Não queria nem pensar que o que Lúcio tinha para lhe dizer era que tudo terminara. Espantava-a que ele ainda não lhe tivesse proposto fazerem amor e não sabia muito bem qual seria a causa. Entretinha-se pensando que o motivo estaria na sensibilidade com que ele tratava tudo e que só se tinha quebrado uma vez, quando lhe estava a contar o que sabia acerca da Fraternitas Charitatis. Sentia-se contente, ainda que desejasse ardentemente fazer amor com ele, mesmo que não tivesse sido uma proposta imediata de Lúcio. Maria estava alarmada pensando que o que Lúcio lhe ia dizer era que tudo aquilo não passava de uma aventura, que tudo tinha sido um sonho e que ele regressaria ao seu país, à sua música, e que o seu violino e Vivaldi estavam acima de qualquer outra coisa no mundo.

Maria ficou com um nó na garganta e teve de fazer um verdadeiro esforço para que as lágrimas, que lhe subiram aos olhos, não corressem também pelas faces diante da sua mãe, a cuja perspicácia não escapou o mau bocado por que passava a filha. Não foi nada fácil para Giulietta guardar um respeitoso silêncio.

Sem dizer uma palavra, Maria fechou-se no quarto, situado numa ala do primeiro andar, destinada à casa da família. Ali, não conseguiu conter o choro e deu rédea solta ao seu desconsolo.

Tinham passado quinze minutos quando aos ouvidos de Maria chegaram, como de outras vezes, as notas do violino - o quarto de Lúcio estava justamente por cima do seu; eram uns sons desagradáveis. Aquilo era tudo, menos música.

Os estranhos compassos tiveram a virtude de fazê-la esquecer por momentos a angústia que lhe oprimia o coração. Não entendia que é que podia estar a passar pela cabeça de Lúcio. De repemte chegou até aos seus ouvidos um som estridente que provocava uma picada desagradável.

Depois, a música parou.

Acabavam de dar as sete e meia no relógio da torre do sino da igreja da Santíssima Trindade quando Maria e Lúcio saíram da estalagem. Ela vestia calças de ganga, muito justas, e uma camisa de linho de cor salmão, com mangas japonesas e um pouco cintada, o que realçava o seu busto. Tinha apanhado o cabelo num rabo-de-cavalo e tinha, coisa rara, a cara maquilhada, e muito acentuada a linha dos olhos. Lúcio também vestia calças de ganga e uma camisa larga de malha, tipo pólo, de manga comprida. Ainda trazia o cabelo húmido do duche e no seu rosto reflectia-se a tensão daquelas horas.

Atravessaram uma das pontes sobre o rio Nuevo e dirigiram-se para San Simeón Piccolo, nas margens do Grande Canal, defronte da estação de caminhos-de-ferro de Santa Lúcia.. Iam de mão dada e durante vários minutos não trocaram uma só palavra. O silêncio começava a ser embaraçoso quando Maria lhe perguntou:

- O que estavas a tocar há pouco? Soava muito mal, sobretudo as últimas notas.

- São um horror, não são? - concordou Lúcio. Maria afirmou com movimentos de cabeça.

- É precisamente disso que te quero falar. - A voz de Lúcio era como um sussurro.

- Dessa música horrível? - A pergunta de Maria denotava surpresa.

- Sim, dessa música horrível.

- Era disso que não querias falar ao telefone?

- Era.

Maria não sabia se devia rir ou desatar a chorar. Nos seus olhos apareceram lágrimas de felicidade.

- Não posso acreditar.

- O que não podes acreditar? - Lúcio olhou-a nos olhos e apercebeu-se de que as lágrimas estavam quase a saltar.

"Meu amor, passa-se alguma coisa contigo?"

Ela Já não conseguia conter as lágrimas. Maria e Lúcio abraçaram-se Enquanto ela desabafava no seu ombro, ele não sabia muito bem o que fazer, para além de beijá-la sem parar. Uma e outra vez tentou inclinar a cabeça de Maria para trás, mas ela resistia e apercorn toda a força para não sair do seu ombro.

O que se passa contigo, meu amor? - repetia Lúcio sem hter resposta porque Maria estava lavada em lágrimas.

As pessoas que passavam ao lado olhavam, curiosas, para aquela rena. Eles não estavam nada preocupados com o que aquelas pessoas pudessem pensar. Era como se no mundo, naquele momento, existissem só eles.

Quando Maria deixou de chorar, o rímel escorria-lhe pela cara. Limpou os olhos com um lenço que Lúcio lhe deu e este, depois de deixar passar uns instantes providenciais, acariciou-lhe a face e olhou-a com toda a ternura de que era capaz.

- O que se passa, Maria?

- Nada, sou eu que sou uma tonta! É apenas isso, sou uma tonta!

Secando com as costas da mão o que restava da humidade das lágrimas, disse com uma voz entrecortada:

- O que tens para me contar sobre essa música tão estranha?

- É uma história um bocadinho comprida, mas presta muita atenção e, por favor, não me interrompas. Encontrei nos papéis da Pietà uma estranha partitura sem título e sem nome de autor. Encontrava-se entre as páginas de um livro de contas de 1741, data em que Tomasso Bellini era o patrono do Ospedale delia Pietà.

Lúcio narrou-lhe com todo o detalhe como tinha tropeçado com o nome de Tomasso Bellini e com a descoberta da partitura que continha aquela música horrível. E também a sua decisão de ficar com a partitura. Depois referiu-se à angústia vivida e ao mau momento que tinha passado ao sair do edifício. Para sossego de Lúcio, Maria não fez nenhuma alusão ao facto de ter desviado um papel de um arquivo. Quando concluiu, Maria perguntou-lhe:

- E dizes que a partitura não tem nem título nem nome do autor e que estava num livro de contas de 1741?

- Efectivamente, é tudo muito estranho, mas ainda mais estranho é a música que está escrita nessa partitura, digo música para classificar de alguma maneira o conteúdo desses pentagramas.

- Os sons que essa partitura encerra eram os que estavas a interpretar há pouco no teu quarto? - voltou a perguntar Maria.

- Aquilo que ouviste é o que está escrito no papel - disse Lúcio com o olhar perdido no vazio.

- Pois posso assegurar-te que se trata de algo muito desagradável. O final é verdadeiramente horrível.

- Trata-se de uma música muito estranha. A partitura contém uma combinação de notas expressamente condenada pela Igreja.

- A Igreja também condenava a música?

- Proibiu que se fizessem determinados agrupamentos de notas, considerando que era obra diabólica. As notas assim agrupadas provocavam um som tão horrível que foram catalogadas como algo satânico.

- Satânico, foi o que disseste?

- Sim, esse tipo de música denominou-se música do diabo.

- O que disseste?

- Que é a música do diabo - repetiu Lúcio.

- Queres explicar-me o que é isso da música do diabo? - perguntou inquieta, Maria.

Lúcio baixou a voz.

- Nas composições musicais as notas podem estar separadas umas das outras por mais de um tom. Há passagens, no entanto, que foram consideradas proibidas ao longo da história. A mais importante dessas proibições era passar de dó e fá sustenido, é o que se chama uma quarta aumentada ou quarta trítono. Produz um som horrível.

- É o som que eu ouvi? - interrompeu-o Maria.

- Sim, esse é o som que produz e esse som é conhecido com o nome de música do diabo; que se relaciona com o inferno. A Igreja católica proibiu expressamente o uso da quarta trítono por considerar que se tratava de um som satânico.

- Tens contigo a partitura? - perguntou a Maria.

- Tenho-a guardada no bolso.

- Vamos, se achares bem, para um local recolhido, onde possamos vê-la com tranquilidade.

Depois de submeter a um minucioso exame a estranha partitura, Lúcio e Maria tiraram algumas conclusões.

Primeiro, na opinião dela, a partitura estava escrita num papel antigo, que podia ser perfeitamente do século XVIII. Mas para poder determinar este dado com exactidão haviam decidido chamar um amigo dela, proprietário de uma loja de gravuras, objectos e livros considerados antiguidades, um grande especialista em documentos antigos. Era a pessoa indicada para extrair daquele papel uma substancial informação. Chamava-se Giorgio Cataldo e tinha o seu negócio no campo de Santa Margarita, próximo do canal Foscari. Cataldo tinha prometido ir ao Vino Vino, a tasca onde se encontravam, situada à sombra do famoso restaurante Antico Martin, logo que fechasse a sua loja. Como não se encontrava longe, poderia estar ali, em meia hora pouco mais ou menos.

A segunda conclusão a que tinham chegado era que a partitura rompia com todos os cânones estabelecidos. Aquilo não era propriamente música. Estavam convencidos de que as notas escritas nos pentagramas encerravam um mistério, que continham alguma coisa que lhes escapava. Lúcio insistia que musicalmente aquilo não fazia sentido nenhum e ao utilizar a quarta trítono o compositor entrava num terreno escabroso, proibido, sobretudo se a partitura tivesse sido escrita no século XVIII. Portanto, se não era uma travessura, embora com umas notas cuja conjunção tinha ressonâncias satânicas, havia de ter um significado que não era musical.

Por último, tinham reflectido acerca das circunstâncias que envolviam o achado realizado por Lúcio. A partitura estava num livro de contas que chegava até Agosto de 1741, data em que Tomasso Bellini tinha desaparecido sem deixar rasto. Encontrava-se no arquivo daquela instituição, mas num lugar que não lhe correspondia e, além disso, era uma loucura musical, com indícios diabólicos, num centro consagrado à música religiosa. Definitivamente, ali havia qualquer coisa que não encaixava, ainda que não conseguissem sequer vislumbrá-la.

Giorgio Cataldo chegou à hora que tinha combinado. Era um tipo extrovertido que andaria pelos quarenta anos; talvez ainda não os tivesse cumprido, embora o seu cabelo encanecido, completamente branco, parecesse indicar o contrário. Mas a lisura da sua pele não deixava grande margem para dúvidas. Muito magro, vestia com uma informalidade a que faltava pouco para chegar à extravagância. Cumprimentou Maria com dois beijos, depois pegou numa das suas mãos, deu um passo atrás, como se dessa forma melhorasse a sua perspectiva, e exclamou:

- Bella, bellíssima Maria.

Beijou-lhe a ponta dos dedos e apresentou-se a Lúcio, como Giorgio, o adeleiro amigo de Maria.

- bom, onde está essa jóia em papel do século XVIII?

Sem esperar uma resposta, chamou o empregado de mesa, agitando um braço erguido, e pediu-lhe um martini bianco com gelo.

Enquanto o serviam, falaram de banalidades. Giorgio interessou-se pelo motivo da presença de Lúcio em Veneza e congratulou-o por se dedicar a uma arte tão nobre como a música. Quando o empregado de mesa se retirou, Lúcio estendeu-lhe o papel. As dobras estavam marcadas pelos longos anos de repouso entre as páginas do livro de contas.

O antiquário abriu-o cuidadosamente, como quem teme estragar algo muito delicado. Friccionou-o, apalpando-o suavemente pelos dois lados ao mesmo tempo, com a ponta dos dedos, para perceber a sua textura. Fixou a sua atenção na beira, onde diminuía a grossura até se tornar quase transparente em algumas zonas. Depois levou-o ao nariz e cheirou-o, como se tentasse sentir algum aroma. Examinou várias vezes a frente e o verso. Esteve vários minutos concentrado no exame daquela folha, sem dizer palavra. Lúcio tinha a sensação de que nesta actuação havia algo de teatral.

Largo

A última coisa que Giorgio fez foi levantar o papel até à altura dos olhos e rodá-lo na direcção de um ponto luminoso. Estava a observá-lo contra a luz. Quando deu por concluído o exame, perguntou:

- Posso saber de onde proveio esta partitura?

Lúcio e Maria trocaram um olhar, que não escapou a Cataldo.

- Não se preocupem, nem vou oferecer-vos dinheiro por ele, nem vou contar a ninguém. A não ser que a partitura tenha um valor que eu não consigo determinar, não é mais do que um papel do século XVIII.

- É do século XVIII?

- É do século XVIII, mas não foi fabricado em Veneza. Este papel foi fabricado em Viena.

- Em Viena!!! - A exclamação soou quase como um grito que, em parte, ficou afogado nas suas gargantas.

- Parece que vos surpreendeu que o papel tenha sido fabricado em Viena - disse Cataldo -, mas deveis saber que não há dúvida a esse respeito. A filigrana desta folha é de Herrmann, que era o fabricante de papel mais importante que houve em Viena entre 1736 e 1752. A sua marca era uma oval, tendo no interior um cavaleiro montado num ginete a brandir uma longa espada por cima da cabeça. Podeis vê-la sem dificuldade na contraluz.

Giorgio voltou a insistir na pergunta que formulara há pouco:

- Posso saber de onde provém esta partitura?

Não era Maria quem devia responder, embora fosse ela que chamara Cataldo. Foi Lúcio que perguntou à queima-roupa:

- Posso confiar nele?

- Sim, até onde o conheço. É meu amigo - foi a resposta de Maria.

- bom, bom, não quero que a minha curiosidade se transforme num problema entre vocês.

Como resposta, Lúcio disse-lhe:

- Esta partitura pertence ao fundo documental do antigo Ospedale dela Pietá.

Cataldo franziu o sobrolho. Foi um movimento instintivo do qual pareceu arrepender-se.

- Estou a compreender. E tem muito valor, musicalmente falando? - deixou cair com uma certa indolência.

- Não é o que tu imaginas - respondeu Maria um tanto incomodada -, trata-se de uma das muitas partituras que se podem encontrar no arquivo de uma instituição como esta.

- E entre tantas que existem, porquê precisamente esta? Lúcio, que não estava a gostar nada do rumo que a conversa começava a levar, respondeu com certa veemência:

- Esta partitura contém uma estranha composição. Não eram habituais, nem nessa altura nem hoje, certos agrupamentos de notas como as que nela aparecem. Não se sabe de quem é, nem tem nome. Como poderás verificar não está assinada e musicalmente é bastante má.

Então, porquê tanto interesse? - perguntou o italiano.

Devido a esses estranhos agrupamentos de notas - respondeu Lúcio.

pez-se um breve silêncio que foi quebrado pelo espanhol.

Sabes alguma coisa de música?

Muito pouco.

Nesse caso, posso dizer-te que há distâncias tonais que não se usam. E mais, há uma certa repugnância em usá-las.

- O que é que está na origem disso?

-- A música é, antes de tudo, harmonia. Há, no entanto, agrupamentos de notas onde a harmonia não existe e, em alguns casos, não só não existe, como também o resultado é francamente desagradável.

- E nessa partitura utilizaram-se distâncias tonais cujo resultado é um som desagradável - anotou Cataldo.

- É exactamente isso que há nesta partitura, o que a converte numa coisa estranha - assinalou Lúcio, dando por concluída a explicação. Não lhe tinha escapado que, para quem sabe pouco de música, Cataldo tinha utilizado uma expressão como distâncias tonais.

Se bem que Giorgio Cataldo tivesse gostado de fazer algumas perguntas mais, tais como a razão por que tinham tanto interesse em conhecer certos pormenores sobre a estranha partitura, ou lhes causara tanta surpresa saber que o papel fora fabricado em Viena, decidiu não insistir mais no assunto. Ainda que não estivesse disposto a esquecer um só pormenor do que escutara naquela mesa do Vino Vino.

Giorgio olhou para o relógio e disse:

- Creio que ganhei um calzone, depois de tudo o que vos contei sobre esse papel.

Aquilo significava que estava disposto a partilhar um jantar com Maria e Lúcio, que também pediu calzone. Tinha ficado a gostar desta espécie de empada feita de massa muito fina, insuflada, que no seu interior levava uma pasta de verduras, de carne picada ou de recheio de ovo com salmão ou atum e na qual o queijo fundido era parte importante, ainda que não fosse imprescindível. Maria pediu um creme de espargos. O vinho foi um excelente bianco di Custoza.

Era cerca da meia-noite quando Lúcio e Maria atravessavam a piazza de São Marcos - os pequenos grupos musicais já se tinham recolhido - a caminho da rua degli Schiavoni, em direcção ao Bucintoro. Deixaram para trás o hotel Danieli.

- Sabes no que estou a pensar? - disse Lúcio.

- Que me amas com toda a tua alma!

Lúcio parou, olhou-a, puxou-a e levou-a para uma zona encoberta na penumbra. Mal passava gente por ali. Beijou-a no pescoço suavemente, depois procurou a sua boca e a sua língua. Abraçaram-se. Lúcio desabotoou os botões da camisa de Maria e procurou os seus seios, quando sentiu a suavidade dos mamilos não pôde reprimir um gemido de prazer.

- Queres que passemos a noite juntos? - sussurrou-lhe Maria ao ouvido.

- Isso é o que mais desejo neste mundo. Maria abotoou a camisa e retomaram o caminho.

- Agora, se quiseres, digo-te no que estavas a pensar, quando mo perguntaste há instantes - disse Maria.

Lúcio olhou-a com olhos interrogativos.

- Pensavas no que nos tinha dito Giorgio sobre essa partitura que tens no bolso.

Lúcio deteve-se por um instante.

- Como sabias?

- Porque começo a conhecer o homem que amo. Voltou a beijá-la e a seguir perguntou-lhe:

- O que pensas tu desta partitura?

- Que é de Vivaldi - respondeu Maria tranquilamente.

- Queres dizer que esta partitura foi escrita por Vivaldi!?

- Foi exactamente isso que eu disse.

- Vivaldi não podia escrever uma coisa destas! - Lúcio falava com veemência. - O que há nestes pentagramas é puro lixo e Vivaldi era um génio! Era um violinista excepcional e um dos melhores compositores que existiram. Insultas a sua memória ao atribuir-lhe este aborto!

- O que Vivaldi escreveu aí não era música - Maria mostrava uma calma absoluta.

- Continua - animou-a Lúcio.

- O que há nesses pentagramas não é música, disso não tenho a menor dúvida. O papel foi fabricado em Viena, numas oficinas que estavam em funcionamento na altura em que Vivaldi permaneceu nessa cidade. Encontraste-a num livro de contas do Ospedale della Pietà datado da época em que Tomasso Bellini era o primeiro patrono desta instituição. Sabemos que Vivaldi escreveu a Bellini uma mensagem cifrada na qual lhe comunicava uma misteriosa descoberta, na sua qualidade de membro da Fraternitas Charitatis.

Maria ficou em silêncio durante uns instantes e Lúcio estimulou-a a continuar.

- Vivaldi sabia o suficiente de música para se valer dela como meio para enviar uma mensagem cifrada. Não me dirás que não é um bom procedimento para esconder o conteúdo de um texto que não se deseja divulgar. Por último, sabemos que o próprio Bellini, sem que possamos confirmá-lo nem negá-lo, disse que o texto em cifra que Vivaldi lhe enviara havia sido roubado. Em todo o caso este texto tinha-se perdido.

Instalou-se outro momento de silêncio que foi quebrado por Maria:

- Estou convencida de que essa é a mensagem que Vivaldi enviou em 1741 de Viena.

- Segundo a tua opinião, nesta partitura - apalpou o bolso das calças - encontra-se o enigma do padre vermelho?

- É exactamente isso, é o que penso.

Enquanto avançavam, abraçados, na direcção do Bucintoro, Lúcio pensava no inverosímil que consistia no facto de falarem de um assunto como aquele, precisamente quando se dirigia para uma noite de amor com a mulher que amava.

- Mesmo supondo que tenhas razão - ao fim de uns instantes Lúcio tinha regressado a Vivaldi - e que esta partitura seja a mensagem recebida por Bellini, contendo o segredo descoberto pelo compositor, o enigma continuaria a existir, porque não possuímos a chave para poder decifrá-lo. Ao fim e ao cabo a única coisa que temos é um punhado de notas musicais, que só posso classificar como desconcertantes.

- Talvez devêssemos fazer uma tentativa. Não íamos perder nada com isso - disse Maria quando chegaram à porta da estalagem.

O que prometia ser uma noite de amor começou como uma noite detectivesca. A sala de jantar familiar de Maria transformou-se no centro das operações. Munidos de um termo de café e muito entusiasmo, tentaram estabelecer um método. Mas todos os ensaios que realizaram fracassaram um atrás do outro. Fizeram corresponder letras às notas, mas havia muito mais daquelas do que destas. Tentaram depois com as escalas, confrontando-se com um fracasso semelhante. Fizeram algumas combinações de escalas e tons, mas era tão complicado que todos os seus esforços se tornaram inúteis.

Depois de quatro horas de esforços e resultados nulos, decidiram parar.

- Bellini disse que não tinha recebido a chave. Mas talvez o dissesse com o objectivo de colocar obstáculos à partilha da encomenda de Vivaldi com os seus irmãos da Fraternitas Charitatis disse Maria.

- Estás a pensar em quê?

- Que seja possível, talvez provável, que a chave se encontre também escondida entre os papéis do arquivo da Pietà.

Lúcio semicerrou os olhos:

- Seria como procurar uma agulha num palheiro. Não fazes a mínima ideia da desordem que impera no fundo documental, além disso a chave não estará encabeçada por uma linha que diga: "Cifra para descodificar a mensagem secreta que o senhor Vivaldi enviou ao senhor Bellini."

Maria deu-lhe um tabefe:

- Não gozes comigo, olha que não estou nem para graças nem para nada.

- Para nada, para nada?

- Ainda nos resta uma possibilidade - assinalou Maria, que continuava concentrada na partitura.

- E qual é, pode saber-se?

- Isso fica para amanhã. Agora, vais saber o que é bom. Maria agarrou-o pela mão e levou-o para o seu quarto.

 

As últimas vinte e quatro horas da vida de Lúcio Torres tinham sido as mais intensas dos seus vinte e sete anos de existência. Tinha encontrado uma estranha partitura, onde estava contida a música do diabo. Tinha vivido a angústia de retirar um documento de um arquivo. Tinha tido a melhor experiência da sua vida partilhada com uma mulher. Maria era uma mulher maravilhosa pela sua inteligência, pela sua perspicácia e intuição. Também como amante não tinha comparação com tudo o que conhecera até então.

Depois do seu fracasso como descodificadores de mensagens criptadas, tinham partilhado algumas horas maravilhosas. Tinham feito amor, primeiro com frenética paixão e depois com uma prodigiosa tranquilidade. Sentia que o seu espírito flutuava; se aquilo era estar apaixonado, o amor era a mais sublime das sensações que um ser humano podia experimentar. Tinha sido como um bálsamo para o seu espírito, depois da agitação suportada.

Tinha dormido apenas algumas horas quando Maria o acordou. Tentou fazê-lo beijando-o suavemente. Mas, por fim, teve de utilizar um procedimento mais expedito. Um bom duche despertou-o, pelo menos momentaneamente. Depois desfrutou de um agradável pequeno-almoço na esplanada do salão de jantar da estalagem, onde estava preparada uma pequena mesa para duas pessoas. Graças à sua orientação recebia, durante as primeiras horas da manhã, se o dia estava limpo, uma belíssima luminosidade e o calor temperado dos raios de sol de Outono.

Ali, sem pensar muito, Lúcio pediu a Maria que se casasse com ele. O coração estava prestes a saltar-lhe pela boca quando ouviu dos lábios dela um sim que era ao mesmo tempo rotundo e suave Nesse momento teria desejado poder fundir-se num abraço que os transformasse numa só pessoa e gritar também ao mundo quais eram os seus sentimentos. Era um homem plenamente feliz. Colocaram a possibilidade, ainda que sem concretizar nada, de contrair matrimónio antes do próximo Natal. Iriam viver para Córdova ou talvez para Madrid, se a proposta de Briviesca, o director da sinfónica, se transformasse em realidade.

Voltaram a concentrar-se na mensagem da partitura. Maria propôs um plano para decifrá-la. Disse-lhe uma vez mais que não tinha dúvidas de que se tratava do segredo que Vivaldi confiara a Tomasso Bellini.

Contou a Lúcio que conhecia um professor de paleografia e de línguas proto-românicas, que lhe tinha dado aulas durante vários anos e com quem tinha assistido também a um curso de Verão. Era um especialista não só em paleografia e diplomacia, mas também os seus conhecimentos de criptografia o tinham levado, na época da guerra fria, a trabalhar para a NATO na decifração de mensagens codificadas, utilizadas pelo Pacto de Varsóvia.

Graças à sua perícia - contou-lhe Maria - tinha-se desmantelado uma rede de espionagem, cujo centro era a embaixada soviética em Roma, e desmascarado um agente duplo que durante mais de cinco anos passara informações militares de capital importância para os russos. Também fora decisiva a sua colaboração para conhecer o código que utilizava a mencionada embaixada quando transmitia informações secretas. Até os russos se aperceberem de que o seu sistema de cifra tinha sido descodificado, os ocidentais gozaram de uma posição privilegiada em assuntos de grande importância num momento em que a partir de Itália, mais concretamente do Vaticano, se levavam a cabo medidas de apoio ao sindicato Solidariedade e às suas acções para acabar com o regime comunista da Polónia. Lech Walesa e os seus contaram com uma ajuda vital para planificar as suas acções graças ao magnífico trabalho realizado por Stefano Michelotto, que era o nome do professor em questão.

Num curso de Verão da Universidade de Ravena sobre "Diplomacia e paleografia no reino Lombardo durante a época dos carolíngios", dado por Michelotto, Maria teve ocasião de o conhecer para além do âmbito académico, durante as conversas e nos tempos livres que neste tipo de seminários e cursos acontecem entre professores e alunos. Isto tinha sido há quatro anos, Maria tinha então dezanove e o dottore Michelotto, a maior eminência de Itália em naleografia, que rondava os sessenta, revelou-se, naqueles momentos que partilhava com os seus alunos, como um excelente conversador e uma verdadeira caixa de surpresas. Ainda que os meios de comunicação lhe tivessem dedicado espaço e entrevistas relacionados com a sua actividade de descodificador, tal faceta da sua carreira, que lhe conferia uma aura de mistério, foi descoberta pela maior parte daqueles alunos nas conversas mantidas nas esplanadas dos cafés e em bares da Ravena estival.

Depois, Maria manteve aquele contacto porque o dottore Michelotto tinha sido o seu professor de Paleografia I e Paleografia II na faculdade e porque tinha assistido a alguns dos seus seminários para a obtenção de créditos opcionais.

Saíram juntos do Bucintoro e, numa casa de fotocópias, fizeram cinco cópias da partitura. Haviam decidido voltar a colocá-la no mesmo lugar onde Lúcio a tinha encontrado e trabalhariam com as cópias. Depois, ele foi para o arquivo da Pietà procurar, embora não soubesse como fazê-lo, a chave da mensagem. Maria não descartava a hipótese de que pudesse estar ali, nem que a mesma casualidade que lhes tinha proporcionado aquele texto cifrado fizesse com que deparassem com outra surpresa semelhante à da chave.

Enquanto ele procurava nos maços de papéis, ela iria até à sua faculdade na esperança de encontrar o dottore Michelotto, ou pelo menos alguém do seu departamento que a pudesse pôr em contacto com ele.

Tinham ficado de se encontrar às duas no buffet do hotel Metrópole, que tinha preços acessíveis e estava muito próximo da Pietà, pelo que Lúcio disporia de mais tempo para esquadrinhar nos fundos do arquivo. A única coisa negativa era o bulício que se verificava ali à hora do almoço. Verdadeiras aglomerações de turistas, que procuravam comida rápida, para não perder tempo, e económica, porque não podiam permitir-se pagar serviço de mesa em sítios como a Terraza del Danieli, La Caravella, Da Fiore - um luxo que Lúcio se tinha permitido por um dia - ou Noemi. Também ali paravam muitos venezianos que, por razões diferentes dos turistas, procuravam igualmente economia de tempo e de dinheiro.

Cinco minutos antes da hora marcada, Lúcio estava à porta do Metrópole. O bulício na riva degli Schtavoni era muito grande, massas humanas movimentavam-se em ambas as direcções. Grupos de turistas seguiam os seus guias, comprimindo-se em volta deles, ou espalhados em longos cordões.

Também havia muita gente concentrada nas lojinhas de souvenirs onde, para além das imprescindíveis gravatas de design italiano pura seta, podiam encontrar-se colunas coroadas pelo leão de São Marcos, chapéus de gondolieri, figuras variadas em cristal de Murano reproduções de gôndolas e... postais, muitos postais.

Lúcio esperava que Maria tivesse tido mais sorte na sua tarefa porque ele, como era de esperar, tinha fracassado no seu propósito. Tinha visto, folha por folha, dezanove maços de papéis, sem nenhum resultado prático. Tendo em conta que havia setecentos e trinta e oito, necessitaria no mínimo de três semanas para verificar superficialmente todos os fundos do arquivo.

A verdade é que tinha assumido aquela tarefa para agradar a Maria. Aquilo nada trazia à música de Vivaldi, se é que o grande maestro tinha algo que ver com aquele aborto. Era verdade que em algumas das biografias do compositor se dizia que era um tanto estranha a viagem que fizera a Viena em tão avançada idade, mas não se lhe tinha dado maior importância que a outros acontecimentos também chamativos da sua vida, como o facto de pouco depois de ter recebido a ordem sacerdotal ter deixado de dizer missa. Atraíra a atenção dos seus biógrafos o caso de Vivaldi se ter transformado num empresário de ópera, ainda que não fosse o primeiro clérigo, nem pouco mais ou menos, a dedicar-se a negócios profanos, como também não o era o facto de ter mantido uma relação sentimental com Ana Giro, uma famosa cantora que o acompanhava profissionalmente.

A história da Fraternitas Cbaritatis e da vinculação de Vivaldi a tão estranha e secreta sociedade era algo que para o objectivo de mergulhar na investigação da sua música não tinha qualquer interesse. Outra coisa era que a sua devoção pelo grande violinista o impelisse a conhecer tudo o que estivesse relacionado com a sua obra e, em menor medida, com a sua vida. Ele era um violinista, não um historiador de música. Só o facto de ficar a saber qual era o enigma que, ao que parece, tinha descoberto e cuja importância recomendava mantê-lo no maior dos segredos, atraíra-o, mas estava desanimado porque, apesar do entusiasmo de Maria, acreditava que não tinha a mais pequena possibilidade de encontrar a solução daquele mistério.

Abstraído primeiro na observação dos turistas e, depois, mergulhado naquelas elucubrações, perdeu a noção do tempo. Quando olhou para o relógio verificou que já eram duas e um quarto. Maria estava a atrasar-se. No céu, as nuvens mostravam-se compactas e escuras até toldar o céu de Veneza de um cinzento chumbo. A brisa do Adriático era forte. Não seria de estranhar que, dentro de instantes, começasse a chover.

O seu coração alegrou-se quando distinguiu, entre a multidão que por ali deambulava, a silhueta de Maria. Até a sua forma de andar lhe parecia diferente da do resto das pessoas; aquela veneziana, inteligente, bonita e elegante fazia-o sentir-se perdidamente apaixonado. Avançou para ela e beijou-a na boca.

- Desculpa-me o atraso, meu amor, mas na faculdade esperei até não aguentar mais - murmurou Maria em jeito de desculpa.

- Conta-me. Como te correram as coisas? Pelo que acabas de me dizer deduzo que não muito bem.

- Francamente mal - foi a sua pronta resposta. - E contigo, que tal?

- Não foi melhor. Já te tinha dito que isto era como procurar uma agulha num palheiro e... claro, a agulha não apareceu. Mas, creio que o melhor é irmos comer. Veremos tudo com outra cor diante de um bom chianti rosso e de uns fetucini alla carbonara.

Conseguiram uma mesa, algo que não foi fácil, e Maria contou-lhe o que tinha feito durante a manhã.

- Cheguei à faculdade e subi ao departamento do professor Michelotto, onde me disseram que estavam à espera dele por volta do meio-dia. Tem alguns assuntos pendentes antes do início das aulas, que será dentro de uma semana. Como tinha tempo - eram pouco mais das dez e meia - fui à biblioteca e procurei bibliografia sobre algo que nos pudesse interessar. Vi algumas coisas na Enciclopédia de Criptologia de um tal David E. Newton, mas não me trouxe nenhuma luz, como também não consegui nada de positivo num manual de Criptografia de Smith no qual, não obstante, há cento e cinquenta problemas criptográficos. Vi alguns deles e a única coisa que tirei a claro é que as mensagens cifradas podem descodificar-se a partir da correspondência de letras ou valores numéricos que, depois, se passam a letras. Também fiquei a saber qUe por vezes, para manter em segredo algo que se quer comunicar, se utilizam códigos, que são palavras às quais se dá de antemão um significado acordado entre quem envia a mensagem e quem a vai receber.

- Como é isso? - perguntou Lúcio.

- É muito fácil. Imagina que tenho de comunicar-te que nos temos de ver amanhã às oito da manhã, ou dizer-te que não vás porque pode ser perigoso, mas não quero que ninguém o saiba e tenho de ter a confirmação de uma coisa e de outra. De antemão, podemos estabelecer que a palavra "primavera" significa confirmação e que a palavra "outono" que não te passe pela cabeça ir. O envio de uma ou outra palavra encerra uma mensagem que só tu e eu conhecemos porque, previamente, estabelecemos um código. Neste caso não existem chaves.

- Espero que a nossa partitura não seja um código - disse Lúcio.

- Não, não é. Os códigos servem para transmitir mensagens muito curtas e a partitura, pelo menos aparentemente, não o é. Além disso, Vivaldi enviou uma chave. Portanto, não tinha um acordo prévio com Bellini.

- Do mal o menos. Porque se tivesse sido um código, as nossas escassas possibilidades teriam ficado pulverizadas.

Maria limitou-se a concordar com a cabeça e prosseguiu o seu relato:

- Pouco antes do meio-dia, subi ao departamento. Esperava que Michelotto tivesse uns minutos para mim, mas disseram-me que ainda não tinha chegado. Estive à espera dele até às duas, hora a que a sua secretária se foi embora - Maria franziu o sobrolho. - É uma estúpida, não me facilitou o contacto com ele. Negou-se a dizer-me se o professor tinha telefonado ao longo da manhã, avisando que chegaria atrasado ou dando conta de algum outro impedimento para que não pudesse ir à faculdade. A única coisa que consegui foi deixar-lhe o meu nome e o número do meu telemóvel para que dissesse ao seu chefe que eu tinha urgência em falar com ele sobre um assunto de grande importância. Limitou-se a dizer-me que todos os alunos têm urgências e coisas importantes para contar ao dottore. Se pudesse estrangulá-la, juro-te que o teria feito! Mas limitei-me a dizer-lhe que não era sua aluna, que o tinha sido, mas que agora éramos colegas - esboçou um sorriso que lhe atenuou a crispação visível, só pelo facto de recordar o que se tinha passado. - Só então levantou a cabeça e olhou para mim. O que anteriormente não se dignara fazer. Não sei o que terá feito com o papel onde deixei o meu nome e o número do telefone - concluiu Maria. - Depois vim o mais depressa que pude, sabendo que tu estavas à minha espera. Nem ânimo tive para te dizer por telefone que ia chegar atrasada!

Quando Maria concluiu, Lúcio perguntou-lhe, enquanto lhe acariciava a mão:

- Achas que esta partitura merece a pena o esforço que estamos a fazer?

- Para te dizer a verdade, não sei - Maria encolheu os ombros -, mas talvez nunca compreendas o que para mim, uma apaixonada da história da minha cidade e de tudo o que esteja relacionado com ela, significou o momento em que me disseste que tinhas encontrado essa partitura. Estudei línguas românicas, mas a minha verdadeira paixão é a História e sobretudo a história de Veneza. E fascina-me a história das seitas e das organizações secretas. Vivaldi, para ti é um músico, mas é um dos filhos mais ilustres desta cidade e, além disso, embora isto o saiba muito pouca gente, foi membro da enigmática Fraternitas Charitatis. Imaginas o que seria se descobríssemos o seu segredo?

Lúcio, que tinha o olhar cravado nos seus olhos, apertou a sua mão com mais força.

- Tenho a certeza absoluta - continuou Maria - de que essa partitura é a mensagem que enviou a Bellini. Nas horas de espera em frente do gabinete de Michelotto pensei nas imensas coincidências que aconteceram nestes dias. É algo de extraordinário!

- Conta-mo. Gostaria de ouvir da tua boca. - Lúcio estava embevecido.

Maria fechou os olhos e roçou com os lábios a sua boca.

- A primeira coisa foi o facto de te teres atravessado no meu caminho. Um músico espanhol que fisicamente me pareceu muito atraente, apaixonado pela minha cidade. Não deixa de ser uma coincidência que eu tenha estudado espanhol e que saíssemos juntos, não me lembro de o ter feito com clientes da estalagem O resultado é que me apaixonei por este músico. O músico também perdeu a cabeça por esta veneziana, ao ponto de lhe pedir que se case com ele. Meteste-te de tal maneira na minha vida que a tua agitação de ontem interpretei-a como um arrependimento dos teus compromissos.

- Ontem pensaste isso? - Os olhos de Lúcio abriram-se.

- Sim, e passei um mau bocado desde que telefonei para o teu quarto até ao momento em que me contaste qual era a razão do teu estado de espírito. Num instante, o que se chama um instante, passei da mais negra angústia à maior das alegrias - Maria bebeu um gole de vinho. - Esse músico, pelo qual me apaixonei, dedica uma boa parte do seu tempo a estudar Vivaldi, aproveitando o acesso que tem às fontes do arquivo da Pietà. Por outra coincidência, e já não sei quantas vão, dá de caras com uma estranha partitura que lhe provoca um extraordinário desassossego. Desde o primeiro instante não tive nenhuma dúvida acerca do valor do papel que tinhas no teu bolso. Tenho gravadas na minha cabeça as tuas palavras desse momento, não creio que jamais as esqueça: "Encontrei uma estranha partitura sem título, sem o nome do autor, num livro de contas de 1741, quando Tomasso Bellini era o patrono do Ospedale della Pietà". É possível - continuou Maria - que estejas um pouco confundido com a minha atitude de ontem. Uma noite em que me senti transportada para um mundo de sonho, e depois pedes-me que me case contigo, que seja tua mulher, que é o maior dos meus desejos. Uma noite em que decidimos entregarmo-nos um ao outro e na qual, no entanto, te propus procurar uma possível chave para decifrar esta partitura. Quero que saibas, se não consegues compreender o que isto significa para mim, que também eu te amo pela tua infinita paciência para comigo.

- Como terias reagido se ontem à noite me tivesse negado a dedicar o tempo à procura da chave? - interrompeu-a Lúcio.

- Não sei. Mas por nada deste mundo - Maria esboçou um sorriso pleno de malícia - teria deixado de ir para a cama contigo.

- Não há dúvida que o destino nos reserva grandes surpresas. Quem é que iria dizer que o objectivo da minha vinda a Veneza se transformaria numa grande decepção e que esta viagem ia mudar o rumo da minha vida da forma como o fez?

Naquele momento, da bolsa de Maria saiu um estridente ruído do seu telemóvel.

- Pronto?

O tumulto que havia no Metrópole dificultava-lhe a audição. Fez um verdadeiro esforço para saber, pelo menos, quem lhe estava a telefonar.

Pediu-lhe que falasse mais alto. Quando conseguiu perceber o nome, a expressão contraída do seu rosto desapareceu e iluminou-se. Nem podia acreditar. Tapou com a mão o telefone e disse a Lúcio:

- É Michelotto!

- Como? Quando?

- Prego dottore.

Maria tinha tirado uma esferográfica da sua bolsa e anotou num guardanapo de papel umas linhas. Depois leu em voz alta:

- Via dei Foscarii, 283. Bene, bene. Grazia mille, dottore. Maria desligou o telefone e deixou escapar um suspiro. Fechou um punho e com a outra mão fez um sinal de vitória. Na cara de Lúcio estava reflectida a expectativa com que tinha seguido a conversa.

- É Michelotto. A estúpida deu-lhe o meu nome e o meu número de telefone. Disse que me receberá amanhã de manhã, às dez. Em sua própria casa.

 

Maria decidiu abandonar o aspecto de uma aluna e vestir-se como uma senhora que já terminara a sua licenciatura. Vestiu um fato de saia e casaco vermelho, de saia justa e casaco de lapela, o que realçava a sua figura; camisa branca de seda e mala e sapatos de tacão médio vermelhos. Ligeiramente maquilhada e com as pontas do cabelo levemente enroladas para dentro conseguiu um estilo clássico de executiva moderna, mais próximo dos trinta do que dos vinte e quatro anos que tinha.

Lúcio, ao vê-la, ficou impressionado e uma pontinha de ciúmes roçou, como um leve esvoaçar, pelo seu coração. Não pôde conter uma exclamação:

- Lindíssima!

- O que achas que o Michelotto pensará?

- Que o teu propósito é seduzi-lo!

Maria deitou-lhe a língua de fora num gesto infantil.

Na rua, a atmosfera estava carregada de humidade e fazia mais fresco do que noutras manhãs; tinha chovido durante a noite e o céu estava coberto. O Outono começava, sem dúvida, a ganhar a partida ao Verão.

Caminharam de braço dado até uma paragem de vaporetti que havia muito próximo do Bucintoro, no canal de São Marcos.

Tiveram de esperar uns minutos até que chegasse um daqueles transportes aquáticos.

- Tens a certeza de que será melhor não te acompanhar? - A pergunta de Lúcio tinha o tom de uma súplica.

Tenho a certeza de que seria muito melhor, que eu saiba Michelotto não é um especialista em música e o que vamos ver é uma partitura. Mas ontem, com os nervos e com o barulho, não lhe disse que me acompanharia outra pessoa.

- Isso também não é nenhum crime!

- Não, obviamente que não. Mas não tenho confiança com o dottore para me apresentar em sua casa com um desconhecido... Se fosse no seu gabinete da faculdade, seria outra coisa.

- com um desconhecido, hem? - As palavras de Lúcio estavam a meio caminho entre a ironia e a ofensa.

- Não sejas tonto, quando falo de um desconhecido, estou a referir-me a ele. E, além disso, Lúcio, é a sua casa! Parecer-me-ia de péssimo gosto apresentar-me ali com outra pessoa. Prometo-te que, na primeira oportunidade que tenha, dir-lhe-ei que conheço um especialista em Vivaldi que pode prestar-nos a sua colaboração.

Naquele momento chegava o vaporetto que Maria deveria apanhar, verificou que levava na sua mala um pequeno guarda-chuva desdobrável e despediu-se de Lúcio com um ligeiro beijo nos lábios. As últimas palavras deste, enquanto ela percorria a passarela, chegaram aos seus ouvidos misturadas com o ruído do motor e o bater da água no casco da embarcação:

- Telefona-me logo que saíres da reunião. Estou na Pietà à procura da agulha, porque talvez...

A casa de Stefano Michelotto era um paazzo antigo, provavelmente do final do século XVII. O andar de baixo articulava as suas salas em redor de um pátio quadrado envolvido por um claustro abobadado, sustido por colunas sobre as quais cavalgavam arcos de meio ponto. No centro havia uma fonte de formas rebuscadas, coroada por uma taça, da qual brotava um repuxo de água. Os tectos das salas eram muito altos, ao gosto veneziano, e estavam decorados com complicadas composições de boa técnica, pintadas a têmpera, onde se punha em relevo a sumptuosidade própria do barroco. O mobiliário podia definir-se com uma só palavra: fantástico. O andar principal abria à fachada uma fileira de varandas. Cada um dos vãos estava coroado por um arco de meio ponto, criando um movimento gracioso e elegante, que se complementava com o conjunto de varandas corridas do segundo andar, também limitadas por arcos de meio ponto.

A porta exterior era constituída por duas pesadas folhas de madeira, tachadas com reluzentes adornos de bronze. Havia uma campainha numa delas e na outra uma ranhura para depositar o correio. Maria olhou para o relógio, faltavam dois minutos para as dez Inspirou ar e carregou na campainha com intercomunicador, que se encontrava na ombreira da porta, duas vezes com um intervalo de uma fracção de segundo.

Passou quase meio minuto sem resposta.

Quando ia para tocar de novo, uma voz, distorcida pela tecnologia, perguntou:

- Pronto? - bom dia. Sou Maria dei Sarto e combinei com o dottore Michelotto às dez.

Ouviu-se um ruído na fechadura da porta ao soltar-se o trinco. Maria empurrou a pesada folha de madeira de carvalho e entrou num saguão diante do qual se abria uma bela porta de ferro com vidros fumados, e através deles passava uma matizada claridade que vinha do interior. As paredes estavam cobertas na parte inferior por um friso de mármore esverdeado e pintadas de um verde mais suave até a uma fina grega, adornada com motivos vegetais, que estava a uns dez centímetros do tecto. No centro pendia um candeeiro de ferro forjado com motivos que jogavam com a porta de ferro.

Uma mulher de bom aspecto, vestida de preto, com touca e avental de renda, abriu a porta de ferro e convidou-a a entrar. Conduziu-a até a uma salinha e perguntou-lhe se desejava tomar alguma coisa.

- Não, muito obrigada.

Pediu-lhe que aguardasse ali um momento, o dottore recebê-la-ia já de seguida.

Passaram alguns minutos, que Maria aproveitou para bisbilhotar pela sala. Numa das paredes havia um soberbo exemplar de espelho veneziano que não tinha menos de duzentos anos, e flanqueavam-no uns apliques de estilo imperial em bronze e cristal. Nas outras paredes estavam pendurados grandes quadros da escola veneziana. Havia um sofá de formas clássicas, forrado a damasco vermelho, que combinava com as cortinas que emolduravam a janela que iluminava a sala a partir do pátio da casa, e de ambos os lados da porta havia grandes cadeiras estilo império. O dourado já madeira denotava a passagem do tempo, mas a tapeçaria, também em damasco vermelho, tinha sido renovada. No centro, uma pequena mesa de carvalho escocês, de pés torneados e de forma ovalada. Sobre ela, uma delicada peça de capodimonti.

Estava a observar um dos quadros - uma cena mitológica de ninfas e sátiros - quando a senhora apareceu de novo e pediu-lhe que a seguisse. Saíram para o pátio e caminhando ao longo do claustro chegaram a uma porta decorada com enfeites, que se abria num dos cantos. A criada bateu suavemente com os nós dos dedos e, sem esperar resposta, abriu uma das portas o suficiente para espreitar com a cabeça.

- Senhor, a visita que esperava.

Abriu completamente a porta e colocou-se de lado para dar entrada a Maria.

Stefano Michelotto estava fisicamente entrincheirado atrás de uma mesa de escritório de grandes proporções onde reinava, para além das resmas de papéis empilhados de cada um dos lados, a mais completa desordem. Havia livros espalhados, uns abertos e outros fechados. Papéis, lápis, algumas canetas, algumas cartas e outros objectos que completavam um ambiente de trabalho.

Fisicamente, Michelotto parecia mais jovem do que na realidade era. Vestia impecavelmente e a sua figura magra e esbelta era atraente. Tinha conservado o cabelo, cuja brancura total dava à sua imagem um toque de distinção. Os olhos, azuis e grandes, eram frios. Os seus modos, delicados. Era um homem do mundo a quem a vida, pelo menos aparentemente, não tinha tratado mal.

- Minha querida Maria! Não sabe - Michelotto tratava sempre os seus alunos por você - o prazer que me dá vê-la! - tinha-se levantado, como se a presença da jovem fosse uma completa surpresa para ele. Havia algo de estudado na sua atitude cordial.

- O prazer é meu, dottore. Quero, além disso, agradecer-lhe mais uma vez o seu telefonema de ontem - respondeu Maria com uma correcção calculada.

- Não tem importância nenhuma! No momento em que a minha secretária me comunicou que tinha ido ver-me, foi um prazer entrar em contacto consigo. É tão grato receber visitas de antigos alunos! Isso significa que não semeámos no deserto, como por vezes temos a impressão que acontece.

Pegou com elegância na mão de Maria pela ponta dos dedos e beijou-a, roçando apenas ao de leve com os lábios.

- Sente-se, por favor, sente-se! - com o braço estendido apontava-lhe para um par de cómodos cadeirões forrados a pele.

Maria sentou-se na beira do cadeirão, as pernas juntas e inclinadas para um lado. Deixou a bolsa no colo e uniu as mãos, entrelaçando os dedos. Stefano, antes de se sentar, perguntou-lhe:

- O que vai tomar? Um café? Chá? Um sumo, talvez? A criada esperava à porta por alguma instrução.

- Muito obrigada, dottore, tomarei um sumo de laranja, se for possível.

- Carla, um sumo de laranja para a menina, por favor.

- O senhor toma alguma coisa?

- Não, não, muito obrigado.

Uma vez sós, Stefano Michelotto disse:

- Há pouco mais de um ano que não nos víamos, não é verdade? Desde o final do curso anterior.

A estúpida da secretária, pensou Maria, dera-lhe toda a informação que necessitava para passar por anjinho.

Não lhe dando tempo para que confirmasse o seu comentário, Michelotto perguntou sem mais preâmbulos: - bom, minha querida Maria, diga-me, qual é o motivo que deu azo a tão agradável visita?

Era o mesmo dottore de sempre: extrovertido, enérgico e disposto a abordar de frente qualquer assunto, por muito complexo que fosse.

- Olhe, dottore, antes de lhe dizer a razão pela qual lhe pedi que me recebesse, permita-me que lhe agradeça que o tenha feito com tanta rapidez, na sua própria casa e sem saber qual o assunto que lhe quero dar a conhecer.

- Maria, poupe-me a explicações vãs. A verdade é que não tenho muito tempo, mas reitero-lhe que foi um prazer recebê-la. E agora vamos ao que interessa!

- Muito bem - respondeu Maria. - A razão pela qual recorri a si está relacionada com os seus conhecimentos de criptografia. Nunca esquecerei tudo o que nos contou naquele curso de Verão, em Ravena.

Stefano Michelotto franziu o sobrolho:

- Pelos meus conhecimentos de criptografia?

Naquele momento ouviram-se uns suaves toques na porta, seguidos do aparecimento da criada, que trazia uma pequena bandeja de prata com um copo de sumo de laranja, que colocou numa mesinha auxiliar junto ao cadeirão onde estava sentada Maria.

Mais alguma coisa, senhor?

Nada mais, Carla, muito obrigado. Feche as portas quando sair. Maria, dizia-me...?

- Olhe, dottore, chegou ao meu poder uma estranha partitura musical. Se o desejar, mais à frente posso explicar-lhe como tudo aconteceu. Estou convencida de que encerra uma mensagem codificada.

- Por que pensa isso, Maria?

- Conhece a história que se conta acerca de Vivaldi pertencer à Fraternitas Charitatis

- A Fraternitas Charitatis? - perguntou Stefano, recostando-se no seu cadeirão.

- Sim, uma sociedade secreta cuja missão era controlar determinado tipo de conhecimentos, cujos membros desejavam, por determinado motivo, que não tivessem difusão.

- Gentes que controlavam o saber, segundo os seus critérios?

- perguntou o dottore com manifesto interesse.

- Mais ou menos.

- O que sabe você dessa... dessa...?

- Fraternitas Charitatis? - ajudou Maria.

- O que sabe da Fraternitas Charitatis?

- Trata-se de uma sociedade esotérica ou mística, cujos membros mantêm em segredo a sua adesão. Afirma-se que surgiu numa época muito antiga, antes de Jesus Cristo, em Alexandria, em torno da famosa biblioteca. Ali, ao que parece, exerceram um primeiro trabalho de controlo sobre determinado tipo de saberes, cuja difusão consideravam que podia tornar-se perigosa.

Stefano Michelotto assentia com leves movimentos de cabeça. Ainda que tivesse o rosto ligeiramente contraído, parecia desfrutar daquilo que Maria lhe estava a contar. Para já, tinha perdido a vontade de ir direito ao assunto com que a tinha apressado há apenas uns instantes.

- Esta sociedade - continuou Maria - estendeu os seus tentáculos por todas as cidades importantes do mundo e, ao que parece, pertenceram a ela muitas personalidades relevantes de todos os tempos. Como lhe disse, Vivaldi foi um deles. Parece que a sua viagem a Viena, realizada nos últimos meses da sua vida e numas condições muito difíceis, está relacionada com uma descoberta extraordinária que fizera...

- O que está a contar-me é extremamente interessante. O qUe tinha descoberto Vivaldi?

- Não o sabemos, dottore.

- Que pena - exclamou Michelotto, que parecia lamentá-lo sinceramente.

- É aí que entra em jogo a partitura de que lhe falei.

- Ah, a partitura codificada!

- Era nessa partitura que Vivaldi dava a conhecer, através de um texto cifrado, o que é que tinha descoberto.

- Como tem tanta certeza de que essa partitura, que, digo-lhe desde já, é uma forma estranha de cifrar uma mensagem, contém esse tal segredo de Vivaldi?

- Veja, dottore, há muitos dados que apontam para isso. Quem conhecer os avatares da relação de Vivaldi com a Fraternitas Charitatis sabe que o músico enviou para Tomasso Bellini, que era naquele momento o primeiro patrono do Ospedale della Pietá, uma mensagem cifrada, comunicando-lhe o seu segredo. É o que se conhece como o segredo do padre vermelho. Há notícia de que Bellini recebeu o texto de Vivaldi e que houve uma reunião dos membros venezianos da enigmática seita para tratar o assunto. Bellini afirmava que não tinha chegado ao seu poder a chave para decifrar aquela mensagem e, o que era mais grave, que a mensagem tinha sido roubada. Por qualquer circunstância, o governo da Sereníssima tivera conhecimento daquele envio e tentou, por todos os meios ao seu alcance, saber qual era o segredo que tão zelosamente Vivaldi pretendia ocultar. A partir desse momento perde-se toda a informação sobre Bellini, sobre outros dois membros venezianos da seita e o texto cifrado remetido de Viena.

- Ainda não me disse por que pensa que essa partitura de que me falou é o texto que contém a mensagem do compositor. Mas antes, minha querida Maria, esclareça-me uma dúvida. Se Vivaldi desejava que o segredo ocultasse o que quer que fosse que tinha descoberto, como é que o dava a conhecer ao tal Bellini?

- Porque a Fraternitas Charitatis não tinha como objectivo que tais saberes se perdessem, mas pretendia, isso sim, controlá-los. Ainda que não o possa afirmar, a estranha sociedade difundiu conhecimentos, que tinha controlado durante séculos, quando considerava que já não constituíam um perigo.

Permite-me outra pergunta? - Michelotto mostrava-se solícito.

-- As que quiser, dottore.

-- Observei que quando fala da Fraternitas Charitatis - já tinha aprendido o nome - umas vezes fá-lo no presente e outras no passado. Sabe se actualmente a sociedade continua a existir?

- Lamento não poder responder-lhe a essa pergunta. Ainda que não tenha nenhuma razão para pensar que tenha desaparecido.

Stefano Michelotto assentiu em silêncio, enquanto passava a mão pelo queixo numa atitude meditabunda.

- Conta-me o que se passa com a partitura?

- A música não tinha segredos para Vivaldi. Ler num pentagrama era o mais normal do mundo para uma pessoa como ele. Portanto, não deve parecer estranho que utilizasse uma partitura para esconder uma mensagem codificada. Bellini era, como lhe disse, o patrono principal da Pietà. O envio de Vivaldi efectuou-se em

  1. A partitura de que falo apareceu nas profundezas documentais do arquivo da Pietà.

- Isso é interessante - anotou Michelotto.

- Mas ainda há mais. Estava escondida num livro de contas; adivinhe de que ano era o livro?

- Mil setecentos e quarenta e um?;. - Exactamente.

- Perdoe-me, Maria, se lhe pareço indiscreto ou intrometido, mas como é que encontrou a partitura?

- Na realidade não fui eu que a descobri.

Os olhos, frios e penetrantes de Stefano, abriram-se ao mesmo tempo que arqueava as suas brancas e finas sobrancelhas:

- Isso significa que alguém mais está ao corrente de todo este assunto?

- Trata-se de um músico espanhol. Um violinista, devoto de Vivaldi, chamado Lúcio Torres, que veio à nossa cidade para assistir a umas Jornadas Musicais e também investigar a obra desse músico. Foi-lhe permitido aceder ao arquivo da Pietà e, por casualidade, deu com a partitura.

- Esse músico espanhol conhecia a relação de Vivaldi com a Fraternitas Charitatis?

- Não, não sabia nada a esse respeito - respondeu Maria

- Nesse caso, como é que relacionou a partitura com a suposta mensagem que o músico enviou a Bellini? Devo pedir-lhe desculpas, uma vez mais, pelas minhas perguntas. Por nada deste mundo minha querida Maria, gostaria que tivesse a sensação de que estou a submetê-la a um interrogatório inquisitorial, ou sequer a fazer-lhe um exame. Mas parece-me tão apaixonante tudo o que está a contar-me...!

- Não tem de pedir desculpa, dottore, fui eu que vim pedir-lhe ajuda. Já lhe disse que a partitura é muito estranha do ponto de vista musical. É uma composição que carece de harmonia; e mais, trata-se de notas cuja interpretação é um conjunto de sons pouco agradáveis. Em determinado momento os sons são horríveis. Segundo Lúcio Torres ultrapassaram-se todas as normas. Utilizou-se a chamada quarta trítono.

- A quarta trítono! - exclamou Michelotto.

- Exactamente, dottore, a combinação de notas que era proibida pela Igreja. Era considerada a música do diabo. Foi precisamente tudo isto que fez com que Lúcio Torres reparasse naquela partitura e mo contasse.

- Como conheceu Lúcio Torres?

Não passou despercebido a Stefano Michelotto o rubor que cobriu o rosto de Maria, um rubor que a maquilhagem não conseguia dissimular.

- Não tem de me responder. Foi uma impertinência da minha parte.

- Não, dottore, não se preocupe. Conheci o Lúcio - Michelotto reparou que se referia ao espanhol pelo seu nome de baptismo

- porque está hospedado na estalagem da minha família, o Bucintoro. E entendemo-nos muito bem.

- Por que não a acompanhou o senhor Torres? Deve ter muito para dizer sobre este assunto, não lhe parece?

- Não me pareceu correcto que viesse a uma entrevista que eu tinha solicitado a título pessoal e que, ainda por cima, ia realizar-se em sua própria casa.

- Não me teria incomodado absolutamente nada, dadas as circunstâncias. Enfim, espero conhecê-lo porque, tenho a certeza, vamos ver-nos nos próximos dias. Não sei se esse era o seu propósito, Maria, mas conseguiu excitar a minha curiosidade a um ponto que nem sequer pode suspeitar. Trouxe consigo a partitura?

- Tenho aqui uma cópia - Maria abriu a sua bolsa, tirou a fotocópia que levava e entregou-a ao professor.

Michelotto desdobrou o papel e fixou a atenção nos pentagramas e nas notas que os enchiam. Tinha o olhar cravado no papel, a respiração contida, o corpo imóvel. O silêncio era total, absoluto. Maria deu-se conta de que, também ela, tinha a respiração suspensa e permanecia tão imóvel como o dono daquela belíssima casa. Não poderia dizer quanto tempo decorreu até que Stefano levantou a vista, olhou-a nos olhos e perguntou:

- Sobre a chave, não se sabe nada?

- Nada - Maria acompanhou a sua lacónica resposta com movimentos negativos de cabeça.

- Tem algum inconveniente que fique com esta cópia?

- De forma alguma, trouxe-a para si. Posso perguntar-lhe o que lhe parece?

Stefano Michelotto meditou na resposta antes de responder. Maria temia ter sido inoportuna.

- Creio que será preciso trabalhar a fundo. Mas é um repto fascinante e, além disso, toda essa história da Fraternitas Charitatis e os segredos e mistérios que a rodeiam... Não será fácil. Mas asseguro-lhe que vamos arrancar ao prete rosso o seu mistério, o seu segredo. Logo verá.

- Tenho a certeza disso - disse Maria em voz baixa.

- Várias coisas antes de se ir embora - Michelotto dava a reunião por concluída. - Em primeiro lugar, proponho-lhe que nos tratemos por tu. Eu tratar-te-ei por tu a troco de reciprocidade. Vamos ser colegas! Aceitas?

Maria estava um pouco perturbada. Mal pôde balbuciar um sim.

- Em segundo lugar, proponho-te que nos encontremos depois de amanhã aqui, em minha casa, à mesma hora de hoje. Às dez. Parece-te bem?

- Parece-me perfeito.

- Em terceiro e último lugar, gostaria que a essa reunião viesse Lúcio Torres. Terias a amabilidade de o convidar?

O rosto de Maria ficara iluminado. Foi algo que também não passou despercebido a Michelotto.

- Creio que aceitará com todo o agrado.

- Bem, nesse caso, terás de desculpar-me. Mas é quase meio-dia e tenho outros compromissos. Espero ter notícias agradáveis depois de amanhã quando nos voltarmos a encontrar.

- Quero agradecer-lhe muito pelo seu interesse, dottore. Maria pôs-se de pé.

- Que-ro agra-de-cer-te S-te-fa-no. Foi o que combinámos, não?

- Quero agradecer-te, Stefano - repetiu Maria.

- Assim está melhor. Acompanho-te à porta.

Quando o dottore Michelotto regressou ao seu escritório tirou uma agenda de pele de uma das gavetas da sua secretária e procurou cuidadosamente. Depois marcou um número de telefone.

- Herr doctor Drexler? Herr doctor Karl Drexler, de Munique?

- Quem quer falar com ele, por favor?

Michelotto admirou-se com aquela pergunta. Esteve quase a desligar, mas respondeu:

- O dottore Stefano Michelotto, de Veneza.

- Aguarde um momento, por favor.

Pareceu estranho a Stefano que alguém tivesse atendido o telefone que não fosse o próprio Karl. Anotou na sua mente que teria de perguntar-lhe a razão de tal. Decorreu um tempo excessivamente longo para uma espera telefónica. Mas Michelotto não parecia ter pressa. Olhava para a partitura que tinha em cima da mesa e desenhava sobre um papel, com uma lapiseira, linhas que não formavam nenhuma figura. Era uma forma de entreter-se enquanto aguardava a resposta à sua chamada. Por fim, ouviu uma voz forte.

- Stefano?

- Karl?

- Sim, sou eu. Disseram-me agora que estavas a telefonar-me, como é que estás?

- Perfeitamente. E tu, que tal estás? E a Gertrud?

- Estamos todos muito bem. Diz-me!

- Terás de vir a Veneza o mais rápido que te seja possível.

- O que se passou?

- Não posso explicar-te por telefone, mas é um assunto do máximo interesse, caso contrário não te teria telefonado. É urgente que venhas a Veneza quanto antes, acredita em mim.

- Está bem. Está bem. Talvez hoje me seja impossível. Mas podes contar comigo amanhã.

- Uma pergunta, quem é que atendeu o telefone?

- Não te preocupes, é o meu ajudante, a pessoa de quem já te falei. Será uma valiosa contribuição.

- Não tenho nenhuma dúvida, mas não deves depositar muita confiança, nem em nada nem em ninguém.

- Otto é uma pessoa de toda a confiança, garanto-te. Se não o fosse não teria atendido o telefone. Eu não podia fazê-lo nesse momento e não queria que a chamada se perdesse, - - Está bem, está bem - anuiu Stefano. - Se te for possível, Karl, é melhor chegares hoje a Veneza do que amanhã - insistiu Michelotto.

- É assim tão urgente?

- Mais do que tu possas imaginar. Até breve, Karl. - Despediu-se e desligou o telefone.

Karl Drexler era um prestigiado cirurgião bávaro, que se tinha feito a si mesmo. O seu pai fora um funcionário do in Reich, morto durante a guerra, assim como a sua mãe e a sua única irmã, num dos bombardeamentos aliados sobre Munique. Tinha treze anos Iquando terminou aquela conflagração, encontrou-se só no meio de um mundo destruído. Pertencia a essa geração de jovens alemães que teve de abrir caminho nos difíceis anos do pós-guerra e meter mãos à obra para reconstruir o seu devastado país. Terminou o seu curso médio e ingressou na faculdade de Medicina de Munique; conseguiu pagar os estudos, trabalhando de noite como guarda de um armazém. Aproveitava as longas noites de vigília para estudar; assistia às aulas de manhã e dormia durante a tarde, e, assim, se passaram seis longos e difíceis anos. O último deles com maiores problemas porque o catedrático de cirurgia, que tinha avaliado o seu valor, permitiu-lhe o ingresso a troco de um modesto pagamento pela prestação de alguns serviços como assistente - mas era a única forma de entrar no fechado círculo da Medicina universitária alemã - no departamento. Aquilo significava permanecer na faculdade de segunda a sexta-feira até às oito da noite. Mal tinha tempo para dormir porque iniciava as suas funções de vigilante à meia-noite e saía do trabalho às sete da manhã, de segunda-feira a sábado. Quando acabava tinha tempo à justa para tomar um duche, o pequeno-almoço e ir à primeira das suas aulas. Recuperava o sono durante os fins-de-semana: entrava de folga na faculdade às sextas-feiras à tarde e dispunha dos sábados das oito da manhã até à meia-noite. Como na noite de domingo não trabalhava no armazém, permitia-se sair nesse dia com Gertrud, uma colega da faculdade que andava dois anos atrás de si.

Aqueles anos de dureza e de disciplina num meio cheio de grandes dificuldades e carências apaziguaram o seu temperamento, moldaram a sua personalidade e prepararam-no para assumir qualquer empresa que tivesse de agarrar no futuro.

Ao concluir o curso, o ordenado de assistente aumentou o suficiente para poder deixar o trabalho no armazém. Dois anos depois ganhava a titularidade no departamento. Após quatro anos de trabalho era um dos cirurgiões mais eminentes da faculdade e a pessoa em quem o seu mestre, Erhard Wilhem, tinha depositado todas as expectativas. Estas tornaram-se realidade ao ficar, apenas com trinta e seis anos, com a cátedra do mestre quando este se jubilou. Já nessa altura tinha mostrado que não só era um excelente cirurgião, como também um investigador de talento.

A sua fama ultrapassou as fronteiras da Alemanha e a sua figura transformou-se numa referência obrigatória em congressos, seminários, jornadas e simpósios. As suas investigações sobre os neurónios cerebrais e sobre a dura-máter tinham aberto novos campos ao conhecimento. Os avanços da equipa que dirigia no terreno da luta contra a doença de Alzheimer eram os mais importantes do mundo. O seu nome soava, desde há alguns anos, como um qualificado candidato ao prémio Nobel da medicina.

Tinha-se casado com Gertrud no mesmo ano em que obteve a titularidade através de concurso e quando ela terminara o seu curso. Tinham quatro filhos.

Stefano Michelotto olhou de novo para a sua agenda e procurou outro número de telefone. Marcou e esperou impaciente, não houve resposta e pousou o auricular, murmurando uma maldição. Procurou outra vez na agenda e marcou novamente um número. Depois de não obter resposta também a esta chamada, o criptólogo ficou de muito mau humor.

Afastou a agenda e tentou concentrar-se na partitura que lhe tinha deixado Maria dei Sarto. Todo o trabalho que havia sobre a sua mesa passara para segundo plano.

 

Maria saiu exultante da casa de Stefano Michelotto, mal se apercebendo da finíssima chuva que caía. Durante as quase duas horas que tinha durado a reunião, a manhã piorara de forma considerável. Só quando uma rajada de vento fez com que umas minúsculas gotas de água lhe batessem na cara é que tomou consciência de que estava a chover, tirou o guarda-chuva que levava na bolsa e, com um movimento ágil, pôs a funcionar o mecanismo de abertura. Mesmo a tempo porque a chuva começava a cair com mais força. Avançou pouco mais de uma centena de metros e decidiu entrar num bacaro que tinha mesmo à sua frente, um desses cafés de bairro onde a meio da manhã iam os trabalhadores da zona, empregados de escritório e funcionários para comer qualquer coisa. O estabelecimento estava cheio e Maria dirigiu-se para o fundo, onde havia uma zona de mesas com menos gente, para telefonar a Lúcio e pôr as ideias em ordem. A sua passagem entre a clientela traduziu-se em olhares lascivos e certos comentários obscenos que provocaram alguma hilaridade e exclamações. Obviamente, Maria não tinha a imagem das pessoas que frequentavam o bacaro. Passou com o olhar altivo e um andar cadenciado que serviu para suscitar maiores desejos. No seu íntimo decidiu que a grosseria daqueles malcriados não iria estragar-lhe o momento que estava a viver.

Mal se tinha sentado quando o empregado de mesa, que era a mesma pessoa que atendia ao balcão, se aproximou solícito para lhe perguntar o que ia tomar. Fê-lo com uma correcção que, com toda a certeza, não dispensava à maioria dos seus clientes. - bom dia, o que é que a senhora deseja tomar?

- Um capuccino, por favor.

- Imediatamente, minha senhora.

Maria ficou pensativa, absorta nos seus pensamentos. Nem podia acreditar que tudo tivesse corrido tão bem. O dottore Michelotto

nos seus lábios esboçou-se um sorriso - teria de se acostumar a tratá-lo por Stefano!, não só a tinha recebido em sua casa, como também estava entusiasmado com o assunto da partitura. Estava convencida de que com a sua ajuda, e pela forma como tinha reagido, iam conseguir arrancar o segredo ao padre vermelho. Ele mesmo lhe tinha dito isso! E tinha-o feito com essa segurança que era uma das características que definiam a sua personalidade. Estaria casado? Como seria a sua vida? Seria rico por parte da família? Era, desde logo, uma personalidade cheia de atractivos. Criptógrafo dos serviços da NATO! Quantos segredos teriam passado pelas suas mãos! Maria estava um pouco orgulhosa que uma pessoa como aquela se tivesse interessado da forma como o tinha feito pela partitura que lhe levara e que, para além de lhe ter dispensado quase duas horas do seu precioso tempo, tivesse iniciado uma relação de colaboração com ela. Tinha ficado impressionada com a distinção, a elegância e o glamour que assinalavam tudo o que o rodeava.

Evidentemente que o estado de espírito de Maria era exultante.

Tirou da bolsa o telemóvel e telefonou para Lúcio. Ficou contente ao verificar que após o primeiro toque surgiu a voz dele.

- Então, Maria! Como é que tudo correu?

- Magnífico! Magnífico!

- Conta-me, por favor! Estou em pulgas para saber!

- Não, não! Por telefone, é melhor não.

- A entrevista durou até agora?

- Até há uns minutos. Quase duas horas.

Naquele momento chegou o empregado de mesa com o café.

- Aqui está o seu capuccino, minha senhora.

- Espera um momento, Lúcio.

Tapou com a mão o microfone do telemóvel e, dirigindo-se ao empregado de mesa, Maria perguntou-lhe o preço.

- São oitenta cêntimos, senhora.

Deu-lhe uma moeda de um euro e com um gesto indicou-lhe que ficasse com o troco:

- O que estavas a dizer, meu amor?

- De que falaram durante tanto tempo?

- Não sejas impaciente. Vou contar-te tudo pormenorizadamente, mas não por telefone. Adianto-te só uma coisa. Combinámos encontrarmo-nos depois de amanhã e também estarás presente na reunião. E tu vais ver, Lúcio, que casa maravilhosa!

- Onde estás agora?

- Estou num café junto ao canal Foscari. Nem sei como se chama. Estou a tomar um capuccino e podemos marcar encontro dentro de meia hora na mesma paragem do vaporetto onde me deixaste esta manhã. Parece-te bem?

- Muito bem. Então, encontramo-nos dentro de meia hora, que me vai parecer eterna. Amo-te, amo-te muito.

- Eu também a ti, meu amor!

Enquanto falara ao telefone, mal se tinha apercebido do ruído era quase uma escandaleira - que havia no estabelecimento. Acabou de beber o capuccino, que era excelente, e saiu do café no meio dos olhares da freguesia. Na rua, a chuva caía com força, utilizou o guarda-chuva como um escudo protector contra o vento e contra a água esquinada e, por sorte, a sua chegada à paragem, coincidiu com a do vaporetti. Quando chegou ao destino, Lúcio já estava à sua espera, refugiado sob o toldo de um restaurante. Tinha o cabelo empapado e a roupa molhada. Ao ver Maria descer, deu uma corridinha até junto dela. Beijou-a com cuidado para não a molhar e pegou no guarda-chuva, que era demasiado pequeno para duas pessoas.

- Onde vamos? - perguntou Lúcio.

- Creio que o que temos mais à mão é o Metrópole.

- Vamos então para lá! - Lúcio apertou-a com o braço, agora parecendo não se importar com a humidade da sua roupa, e colocou o guarda-chuva de maneira que ela se molhasse o menos possível.

- Vais ficar todo encharcado! - gritou ela, tentando que ele se cobrisse um pouco mais.

Aceleraram o passo o mais que puderam. Quando entraram no buffet do restaurante, a chuva forte era já um verdadeiro temporal. A clientela no restaurante era ainda maior que o habitual. Muitos tinham encontrado ali o mesmo abrigo que eles procuravam. Não cabia uma agulha. Eram só encontrões, cotoveladas, uma ou outra pisadela e gritos.

Lúcio deu uma carinhosa mordidela na orelha de Maria e sussurrou-lhe ao ouvido:

- Aqui não podemos falar. Anda!

Puxou-a pelo braço e pegou-lhe na mão. Abriu caminho entre as pessoas, sem ouvir os protestos de Maria, que perguntava onde é que iam com aquele tempo. Assim que deixaram para trás a ruiIdosa multidão e chegaram ao vestíbulo do pequeno, mas encantador (hotel, que se abria às águas da riva degli Scbiavoni, sussurrou-lhe (outra vez ao ouvido:

- Vamos almoçar no restaurante do hotel! - Vai custar-nos uma fortuna! - protestou Maria sem muita convicção porque, no fundo, a ideia parecia-lhe maravilhosa. Encaixava com o seu estado de espírito e aquele restaurante era um sítio selecto de Veneza. As suas amplas janelas em vidro davam para umjardim que era um dos maiores atractivos do hotel. Tudo denotava bom gosto e elegância. As toalhas eram de linho cru e os guardanapos muito grandes; a loiça era de porcelana branca com um fio dourado e a cristalaria fina e sóbria.

- Espero, depois de tudo o que me disseste por telefone, que a ocasião mereça a pena - foi a resposta de Lúcio antes de a beijar, O maitre levou-os até à mesa mais afastada, a um canto, junto as grandes janelas que davam para o jardim. O sítio era perfeito para ter uma conversa tranquila. Entregou-lhes a carta de vinhos, fez-lhes várias recomendações e retirou-se prudentemente. O sossego que se respirava no restaurante era a antítese do pandemónio que havia no buffet. Estavam poucas mesas ocupadas e encontravam-se no outro extremo do salão. Quando, após uma olhadela pela carta a deixaram sobre a mesa, o maitre aproximou-se solícito:

- Os senhores já decidiram?

- Tomaremos um bianco di Custoza - indicou Lúcio.

- Se for possível, que não esteja muito gelado - assinalou Maria.

- com certeza, minha senhora! Aqui vos deixo o menu. Maria decidiu-se por um antipasto de mariscos temperados e um pasticcio di seppiolim. Enquanto Lúcio, que também se inclinou como entrada pelo antipasto, pediu para segundo prato uma braciolona alla zíngara.

- bom, sou todo ouvidos - foi a exclamação de Lúcio quando o maitre se retirou com o pedido, depois de servir o vinho.

- A primeira coisa que tenho para te contar é que me recebeu com todas as honras. Que casa, Lúcio, que casa! Tu vais ver quando formos lá depois de amanhã! E o mais importante, ouviu-me com toda a atenção, tanta que não deixou de me fazer perguntas para se informar a fundo sobre o assunto que lhe estava a expor. - Maria bebeu um gole de vinho e os seus olhos brilharam. - Nem vais acreditar, mas o dottore está entusiasmado com a perspectiva de decifrar a mensagem da partitura.

- Tem a certeza de que essas notas contêm uma mensagem codificada?

Maria ficou em silêncio e demorou uns instantes a responder. Estava a rememorar e sopesava a resposta.

- Está tão convencido disso que a sua afirmação foi contundente: "Vamos arrancar o enigma ao padre vermelho". Parece-te pouco?

- Fez-te perguntas sobre que coisas?

- Perguntou-me pela Fraternitas Charitatis.

- Não sabia o que era? - perguntou Lúcio surpreendido.

- Ao que parece, não. Mas é uma coisa que não tem importância. Ele não é um especialista, que eu saiba, em esoterismo, e muito menos em Vivaldi. Imagina, tu que tens o compositor colocado num altar, não sabias que pertencia à seita e também não conhecias a existência dela! Não sei por que te admiras.

- É verdade - concordou Lúcio -, mas não sei... parecia-me que... Bah!, esquece, é umapatetice. Então fez-te perguntas sobre quê?

- Queria saber sobre a relação de Vivaldi com a Fraternitas Charitatis e também como chegou a partitura ao nosso poder.

- O que lhe contaste?

- O que lhe havia de contar? A verdade! Falei-lhe de ti, das investigações no arquivo da Pietà, da descoberta fortuita e das circunstâncias em que aconteceu. Também lhe expliquei que, musicalmente essa partitura era desconcertante e contei-lhe aquilo da quarta em trítono.

- Qual é a sua opinião acerca de tudo isto?

- A que te disse.

- Não, Maria, não me contaste nada sobre a sua opinião. Só o que tu lhe disseste e as perguntas que te fez.

- Lúcio, contei-te que está entusiasmado! Eu creio que este texto é para ele um repto. Disse-me que não é habitual utilizar-se uma partitura para esconder uma mensagem, ainda que tratando-se de um músico não devesse ser assim tão estranho. Também me perguntou porque lhe referi a relação de Vivaldi com Bellini se não sabíamos nada da chave. A propósito, que tal te correram as coisas?

Mal, muito mal. Gastei as duas horas a ver papéis e mais papéis em busca de algo que, provavelmente, não se encontra ali.

O estado de espírito de Lúcio contrastava com o de Maria. Estava abatido. Podia ser a sensação de perda de tempo com a tarefa que tinha diante de si ou, talvez, o cinzento daquele dia. Maria estendeu a mão e acariciou a dele. Lúcio pegou nela e beijou-lhe os dedos.

- Sabes uma coisa...?

Calaram-se enquanto o empregado de mesa lhes servia os antipasti. Os pratos tinham um aspecto excelente, meia lagosta grelhada, dois lagostins reluzentes e de um tamanho pouco comum, e meia dúzia de gambas a la plancha.

Depois de o empregado de mesa, que voltara a encher os copos de vinho, se ter retirado, Maria disse em voz muito baixa, fazendo uma cara de gozo:

- Isto vai custar-nos uma pipa de massa mas, como tu dizias antes, acho que a ocasião merece a pena!

- O que tens para me dizer? - perguntou Lúcio um tanto melancólico.

- Antes de to dizer, quero que alegres um pouco essa cara. Não temos motivos senão para estarmos contentes.

Lúcio olhou-a com olhos interrogativos.

- Passa-se alguma coisa contigo que eu não saiba? - Pela primeira vez naquela manhã, uma nuvem passou pelos olhos daquela bela veneziana.

- Não, nada, devo estar num mau dia. Talvez tivesse gostado de ter estado nessa reunião. Passei um mau bocado no arquivo.

Maria depositou um beijo na palma estendida da sua mão e soprou suavemente sobre ela em direcção a Lúcio:

- Prometo-te. Esta noite compensar-te-ei com juros por esse mau bocado - piscou-lhe um olho e disse-lhe: - O que queria dizer-te é que tenho um pressentimento.

- Sobre o quê?

- Sobre a chave.

- Que pressentimento?

- Que vais encontrá-la - disse-o com uma segurança tal que Lúcio, a lutar contra a carapaça da lagosta, levantou o olhar:

- Estás a dizer-me isso para me animar? Maria pareceu, outra vez, meditar na resposta:

- Se quisesse animar-te, dir-te-ia que abandonássemos a nossa busca porque com o Michelotto a ajudar-nos a descodificar a partitura, não deveríamos perder muito tempo com a chave. Tenho a certeza que descodificará o enigma que está escondido nessas notas. Ou seja lá o que for.

- É como procurar uma agulha num palheiro, Maria! Pior ainda, porque no caso da agulha sabes o que estás à procura e aqui não! É como andar às cegas!

- Eu não tenho essa opinião.

- Explica-mo, por favor!

- Encontrar a chave não deve ser nem mais fácil nem mais difícil que ter encontrado a partitura...

Lúcio interrompeu-a:

- É verdade, mas eu não estava à procura da partitura, dei com ela por pura casualidade.

- Tens razão, mas nada impede que possas dar com a chave por uma outra pura casualidade.

- A diferença é que eu agora estou à procura dela. O meu esforço está dirigido para a encontrar. com a partitura não havia essa intenção, veio-me parar às mãos sem saber o que é que tinha encontrado realmente. É difícil por um simples cálculo de probabilidades que se dêem dois acasos seguidos. Isso vai contra todas as regras.

- Esse é, no entanto, o sítio mais apropriado para procurar. Da mesma maneira que Bellini deixou a partitura metida num livro de contas, pode ter deixado a chave num outro qualquer maço de papéis, que não tivesse relação nenhuma com o anterior. Era uma boa maneira de poder ser facilmente localizado. Não te esqueças que esse era um dos objectivos da Fraternitas Charitatis. Por outro lado, deixava em aberto a possibilidade, ainda que remota, de alguém poder ficar com os dois papéis. Desta forma cumpria, também, outro dos fins da Fraternitas Charitatis que, como recordarás, era controlar esses conhecimentos, mas também evitar que os mesmos se perdessem. Na minha opinião, Bellini, por alguma circunstância que desconhecemos, não queria que os seus companheiros soubessem o que é que Vivaldi descobrira. Agora sabemos que estava a mentir quando lhes disse que lhe tinham roubado a partitura que o compositor enviara, porque ela apareceu num livro de contas da Pietà, da época em que era o patrono principal, que seria o lugar onde ele a depositaria. Tive sempre a suspeita de que Bellini mentia, não só no que se refere à mensagem cifrada, como também no que diz respeito à chave. Sempre acreditei que a chave que Vivaldi enviou chegou ao seu poder, e suspeito, inclusivamente, que chegou a decifrar a mensagem...

- Por que pensas isso? - interrompeu-a Lúcio.

- É muito simples. A pergunta é por que razão Bellini não queria que os outros membros da Fraternitas Charitatis conhecessem o segredo de Vivaldi? A resposta é que se tratava de algo que ele já tinha tido conhecimento e que, por alguma razão que desconhecemos, não queria partilhar com mais ninguém. Se Bellini -- continuou Maria - não tivesse tido a chave para descodificar a mensagem cifrada de Vivaldi, não teria tido acesso ao seu conteúdo. Nesse caso, o que é que ele pretendia esconder aos outros? Algo que não conhecia? Isso não tem lógica, nenhuma lógica. Ninguém esconde um segredo cujo conteúdo desconhece, a não ser que quem lho tivesse enviado lhe tenha pedido que assim o fizesse. Mas este não é o caso que nos interessa. Vivaldi escreveu também a outros dois fratres como forma de obrigar Bellini a reunir o que podemos denominar o capítulo da Fraternitas em Veneza.

- Por que não fizeste esse raciocínio quando te disse que tinha encontrado a partitura? - perguntou Lúcio.

- Não sei. Penso que naquele momento estava fora de mim devido à descoberta. Estou a ver que ainda não consegues medir o significado que tem para mim o facto de teres encontrado essa partitura. Depois da proposta que me fizeste no sentido de unirmos as nossas vidas, e que é a coisa mais importante que se passou na minha vida, não podes imaginar a vertigem que para mim significa tudo o que se passou em tão poucas horas. Lúcio, isto é um torvelinho. Por vezes, tenho a sensação de que tudo isto não se está a passar comigo, mas que se trata tão-somente de uma ilusão.

Lúcio ouvia, embevecido, o que Maria lhe dizia.

- Quantas mais voltas dou a tudo isto - continuou Maria

- e asseguro-te que a minha cabeça não pára, tiro novas conclusões tenho maiores certezas. Por exemplo, a suspeita de que Bellini mentia quanto ao roubo, já está confirmada. Se a partitura tivesse aparecido noutro lugar, não se poderia demonstrar nada, mas onde a encontraste faz com que se dissipe qualquer dúvida. Agora, o passo seguinte é procurar a chave porque, depois do que sabemos, não há dúvida de que chegou ao poder de Bellini.

- O raciocínio, à partida, é impecável - anotou Lúcio, cujo marisco tinha praticamente desaparecido do prato, enquanto o de Maria, que não tinha parado de falar, estava quase inteiro.

- com o que sabemos neste momento, somando certezas e suspeitas - no meio da conversa tentava degustar a sua meia lagosta -, não me parece despropositado procurar a chave no arquivo da Pietà por uma razão muito simples. Se para Bellini era um lugar seguro para esconder a mensagem, também o seria para ocultar a chave.

- Não estou tão seguro disso - replicou Lúcio.

- Explica-me porquê.

- Porque, aceitando que ele conhecesse o segredo da mensagem visto ter em seu poder a chave e que não quisesse que mais ninguém tomasse conhecimento dele, deixar a chave no mesmo sítio onde escondeu a mensagem era o pior que podia fazer.

Houve um silêncio depois das palavras de Lúcio, não tanto porque Maria meditasse na resposta, mas porque tinha na boca um saboroso pedaço de lagosta. Mastigou-o com gosto e depois molhou os lábios no vinho.

- Em parte tens razão no que acabas de dizer, mas esqueces-te de um pormenor de grande importância. Os membros da Fraternitas Cbaritatis não queriam que os conhecimentos que controlavam se perdessem. Não eram uns bárbaros destruidores, mas sim uma espécie de guardiães do saber. Outra coisa é começar a discutir a ética das suas acções e o direito que tinham em arrogar-se esse papel de guardiães de um determinado conhecimento. Mas nós não estamos perante a casuística dosfratres, mas sim perante as suas acções. Estou convencida de que Bellini deixou também a chave escondida em qualquer lugar do arquivo. Não faço a mais pequena ideia de qual possa ser esse lugar. Nem sequer sabemos se o lugar onde deixou a partitura de Vivaldi é o mesmo onde tu a encontraste. com os avatares que essa documentação parece ter conhecido e o abandono a que tem estado submetida, quem sabe qual foi a mão que a colocou nesse livro de contas onde tu a encontraste?

Creio, Maria, que andamos completamente às cegas. Porque se isso fosse assim desaparecia a conexão entre a partitura e Bellini.

- Às cegas? - Maria parecia irritada. - Não consigo entender-te, na minha opinião nunca ninguém esteve tão perto, como nós estamos, de desvendar o segredo que Vivaldi descobriu no final da sua vida. Ninguém, em duzentos e cinquenta anos, teve em seu poder a partitura onde se esconde o segredo do que quer que seja que ele tenha ficado a saber. Agora, a pergunta é muito mais apaixonante, Lúcio. A pergunta, neste momento, em que com a colaboração de Michelotto, estamos a tocar com a ponta dos dedos no segredo de Vivaldi, é, precisamente, qual esse segredo? O que foi que o levou até Viena numa idade tão avançada como a sua? Imagina o que era então uma viagem de Veneza a Viena, com os meios de transporte que havia e com os inconvenientes que semelhante viagem implicava! Teve de ser algo extraordinário! Depois temos a atitude de Bellini. Que foi que descobriu que o levou a comportar-se daquela maneira?

Maria deu conta do resto da lagosta e, após um instante de silêncio, olhou Lúcio nos olhos.

- Não sentes que estamos perante algo que é verdadeiramente extraordinário? Que temos ao alcance da nossa mão a possibilidade de desvendar um enigma que durante muito tempo atraiu a atenção de investigadores que dariam tudo, sei lá, para estarem no lugar em que nós estamos? Vejo-te preocupado, meu amor, o que é que se passa contigo?

Lúcio deixou os talheres sobre o prato, no qual só restavam cascas de marisco.

- Não sei, tenho um mau pressentimento. É como se estivesse a perturbar algo que está em repouso há muito tempo. Queremos desvendar um mistério que dois séculos e meio respeitaram. E... é como se estivéssemos a abrir uma porta que deveria permanecer fechada.

Após aquelas palavras fez-se um silêncio que não era como os silêncios anteriores. Maria pousou os talheres em cima do prato como se já tivesse terminado. Uma sombra de tristeza aparecera no seu rosto. Não era a Maria exultante que tinha saído do encontro com Michelotto. O empregado de mesa pediu autorização para retirar os pratos.

- Sim, sim, pode retirá-los - disse Maria em voz muito baixa. Também se notava a tristeza no fundo da sua voz.

- Se quiseres, telefono agora mesmo para Michelotto e digo-lhe que esqueça tudo, assim como nós também esqueceremos.

Ficou em silêncio por uns instantes e depois disse com a tristeza a ensombrar o seu olhar:

- Tenho muito interesse em saber - a sua voz soava solene

- o que é que Vivaldi escondeu atrás dessas notas. Desde os meus doze anos, em que li um livro sobre sociedades secretas e tive conhecimento da existência da Fraternitas Charitatis, que descobri a existência do enigma do prete rosso. Não podes imaginar quantas noites adormeci a pensar nisso. A minha imaginação levava-me a viver aventuras incríveis, como as de Indiana Jones, procurando o segredo que o genial compositor tinha guardado tão zelosamente. Houve momentos em que chegou a obcecar-me. Mas quero que saibas que, por nada deste mundo, desejo fazer alguma coisa que te provoque o desassossego que, neste momento, vejo reflectido no teu rosto. Quero-te demasiado para te fazer sofrer, nem por isto nem por outra coisa qualquer. Disse-to antes e repito agora: uma palavra tua e esquecemos tudo isto.

Lúcio Torres tinha ficado com um nó na garganta. Estava imóvel, com o olhar cravado nos olhos de Maria. Retirou o guardanapo do regaço, levantou-se, aproximou-se de Maria e abraçou-se a ela, beijando-a.

O empregado de mesa, que vinha com os segundos pratos, quando viu a cena que tinha à sua frente deteve-se e decidiu, prudentemente, não importunar, retirar-se e aguardar o desenlace.

- Sou um imbecil. É o que eu sou, um imbecil. - Lúcio sentiu que as palavras se lhe entaramelavam na boca.

Àquela mesma hora, Stefano Michelotto conseguia falar com Paris. Tinha tentado por três ocasiões, até que a sua insistência obteve recompensa. Conseguiu comunicar com Etienne Clermont-Lafargue, um rico empresário, com importantes interesses na indústria da construção aeronáutica. Vivia num luxuoso andar da Place Vendôme, ainda que passasse longas temporadas numa quinta situada a pouco mais de duas horas de Paris, cuja casa ficava situada nas margens do Loire. A sua paixão eram as antiguidades e os cavalos. A sua mulher, uma dama aristocrata aparentada com o conde de Artois, passava boa parte do ano na Riviera, onde possuíam uma mansão.

Após a surpresa inicial perante o telefonema de Michelotto

- não se falavam há sete meses -, Clermont-Lafargue prometera-lhe estar no dia seguinte em Veneza. "Almoçaremos juntos, Stefano", tinham sido as suas palavras.

Menos felizes se revelaram, até àquele momento, as tentativas de comunicar com Alister MacFarlaine, a terceira pessoa com quem tinha necessidade urgente de falar. Decidiu voltar àquela maldita partitura.

Durante quase duas horas concentrara a sua atenção nela e só tinha conseguido familiarizar-se com as notas penduradas nos pentagramas, mas nem uma ponta de informação. O prete rosso tinha utilizado uma fórmula pouco habitual, notas musicais, para preservar de olhares indiscretos o que tinha escondido ali.

Sentiu um aperto no estômago, tinha chegado a hora de tomar algo e repor energias. Levantou o olhar e deixou-o perdido no vazio.

Ainda que tenhas fechado o teu segredo com as sete chaves do inferno, eu abri-las-ei uma a uma! Por muito que te empenhes, o teu segredo, mais tarde ou mais cedo, deixará de o ser! Fortalezas mais difíceis consegui derrubar!

A maneira como Maria lhe dissera que ele era o mais importante da sua vida fez com que Lúcio fosse buscar as reservas de energia que lhe restavam para continuar a sua busca no arquivo da Pietà. Ainda que não guardasse qualquer esperança de que o seu esforço servisse para alguma coisa, aplicou-se na busca com grande concentração. Era a única forma que tinha para responder a Maria.

Durante a tarde, enquanto ele passava em revista uma boa quantidade de maços de papéis, entre eles numerosas actas correspondentes às reuniões do patronato, através das quais se podia seguir o pulso da instituição no que se referia ao seu governo e funcionamento - renunciando ao caudal de informação que ali havia sobre Vivaldi -, Maria regressou ao Bucintoro, onde tinha de ajudar a mãe em assuntos relacionados com a estalagem.

Stefano Michelotto tinha conseguido falar às quatro e meia com Alistar MacFarlaine.

- Está bem, Stefano, verei como posso organizar a viagem. Irei ver a maneira mais rápida de chegar a Londres e depois a Veneza. Espero que tanta pressa mereça a pena. Não me podes adiantar nada, nem uma pequena pista em jeito de antecipação?

- Já alguma vez te defraudei? - atirou-lhe o veneziano que, a seguir, se despediu e desligou o telefone.

Aquele escocês resmungão tinha algo de boçal. Era um sujeito de contrastes, que tinha revelado, por cima da estupenda educação que recebera em Eton, o sangue terrível de um dos clãs que maior resistência tinha oferecido a tudo o que cheirasse a inglês nos verdes vales, nos azuis lagos e nas velhas montanhas da sua Escócia natal. Era imensamente rico. Tanto que não sabia muito bem a quanto ascendia a sua fortuna, distribuída por propriedades em meio planeta, nas quais explorava madeiras preciosas nas selvas amazónicas, plantações de açúcar nas Antilhas, borracha na Nova Guiné e culturas avançadas em várias zonas da Califórnia. Quanto a acções em companhias petrolíferas, dizia-se que possuía dois por cento da British Petroleum e que era accionista maioritário de uma concessão de gás na Argélia. Também eram importantes os seus conjuntos de acções em empresas de comunicações, onde se empregava a tecnologia mais avançada. Tinha casas nas principais capitais do mundo, ainda que a sua residência estivesse fixada na sua querida Edimburgo, onde vivia a maior parte do ano. Dizia-se, também, que algumas dessas casas nunca as tinha visto na vida.

Era um solteirão empedernido a quem se tinha conhecido numerosas mulheres ao longo da sua já prolongada existência, mas nenhuma conseguira fazê-lo passar pelo altar, apesar de denodadas tentativas que algumas delas fizeram. Tinha um verdadeiro enxame de sobrinhos e sobre o seu testamento corriam as mais variadas versões - algumas inverosímeis -, mas a verdade era que ninguém conhecia o seu conteúdo. Circulavam rumores que apontavam, inclusivamente, para a não existência de testamento algum. Era o protector cultural de meia dúzia de instituições culturais e de beneficência, às quais entregava anualmente substanciais donativos. Quando ia a alguns actos sociais, muito poucos, e sempre relacionados com essas sociedades de que era mecenas, fazia-o invariavelmente com as roupagens e com todos os acessórios da mais estrita e velha etiqueta escocesa. Pertencia à Ordem de Santo André e contavam-se histórias acerca da sua vinculação à oficialmente extinta Ordem do Templo, sobre a qual se dizia que, na Escócia, tinha desafiado a passagem do tempo e os ditames da Igreja católica. Do que não havia qualquer dúvida era o seu gosto pelo whisky, ainda que ninguém pudesse afirmar que alguma vez o tivesse visto bêbado.

Stefano Michelotto estava confortavelmente sentado num cadeirão do seu escritório, fumando um aromático tabaco holandês de cachimbo e tomando um chá ao qual acrescentava sempre um pouco de leite. Eram os primeiros minutos em que se entregava ao lazer, desde que, de manhã, recebera a visita de Maria dei Sarto.

Não imaginava que aquela encantadora criatura fosse alterar os seus planos da maneira que o tinha feito. Depois de ter assegurado a presença em Veneza, em menos de vinte e quatro horas, de Drexler, de Clermont-Lafargue e de MacFarlaine, podia aliviar a tensão durante uns minutos. Aquela partitura que Maria deixara sobre a mesa não cessava, no entanto, de soar na sua cabeça, e não lhe permitia um instante de repouso.

Fez um esforço e tentou pôr a mente em branco como forma de se distrair. Pensou que, depois de um momento de descanso, ainda disporia de algumas horas antes de se vestir adequadamente para ir à inauguração da temporada de ópera no La Fenice, que era, além disso, a estreia do famoso palácio da música veneziana, depois do pavoroso incêndio que o destruíra oito anos antes. Se a estreia da temporada de ópera era, juntamente com a Mostra de cinema, o baile de Carnaval no Casino e a Festa do Mar, um dos grandes acontecimentos da cidade, esta ocasião revestia-se de uma importância particular, La Fenice voltava a abrir as portas. Para ser alguém em Veneza era obrigatório estar nestes eventos, onde se reuniam aqueles que verdadeiramente tinham poder. Agora, com a reabertura da ópera, depois de anos de obras e restaurações, só os eleitos teriam lugar naquela noite.

A Companhia de Dança, Música e Opera de Veneza iniciaria a temporada com uma estreia de arromba, como não podia deixar de ser: La Bobème, de Puccini, a que se seguiria A Flauta Mágica, de Mozart e, para fechar o programa de Outono, Verdi e o seu Nabucco. Se ir à estreia da temporada era um acto social ao qual não podia deixar de assistir, ouvir a música de Verdi era para ele como uma liturgia. Além disso, Nabucco trazia-lhe sempre recordações da sua infância. Quando a ouviu pela primeira vez com o seu avô paterno, era então um menino de dez anos, ficou a conhecer a história da sua estreia em Milão, quando uma boa parte de Itália estava submetida ao poder da Áustria. A representação transformou-se num acto de exaltação patriótica para os nacionalistas italianos, que suspiravam pela unidade da pátria e pela expulsão do dominador estrangeiro. O seu avô contou-lhe ter ouvido da boca de quem sabia como à saída do Scala as ruas da capital lombarda se encheram de manifestantes que gritavam Liberdade! E exigiam a saída do opressor austríaco. Eram os tempos de Victor Manuel, de Camilo Benzo, mais conhecido pelo nome de Cavour, que era o título nobiliárquico da sua família, je Massini, de Garibaldi, de D'Azzeglio e de Verdi. Gigantes que fizeram que a ália, até então retalhada, se convertesse numa realidade.

Aqueles pensamentos tinham-lhe proporcionado uma distracção de vários minutos, exercendo sobre o seu agitado espírito um efeito benéfico. Deu os últimos goles na chávena de chá e fumou vagarosamente. Encantava-o ver-se envolvido pelo aroma do seu próprio fumo. Eram cinco e meia quando deu por concluído o descanso. Abandonou a comodidade do cadeirão onde estava, sentou-se à sua secretária de trabalho e à luz de um potente candeeiro, que iluminava as notas daqueles pentagramas, concentrou-se outra vez na sua tarefa. Apesar da sua experiência como criptógrafo, todo o esforço realizado até então só lhe tinha servido para verificar que ali não existia música, mas sim umas notas cuja finalidade era esconder algo. A jovem que o tinha envolvido naquilo tinha toda a razão ao denominar como ruídos desagradáveis o que ali surgia e afirmou que alguns compassos eram verdadeiramente horríveis.

Quando, às sete, deu por concluída a sua tarefa, sem nenhum avanço, estava com um princípio de enxaqueca e os membros entumecidos por causa da concentração. Iria tomar um duche e vestir um smoking adequado para a ocasião. O início da representação estava marcado para as nove.

Os esforços de Lúcio Torres na Pietà foram tão infrutuosos como os de Stefano Michelotto.

Tinha folheado minuciosamente outro punhado de maços sem conseguir encontrar nada. Maria tinha a certeza de que apareceria no momento mais inesperado, como se passara com a partitura. Mas como dizia Lúcio, uma coisa era encontrar por acaso algo que não se procura e outra, muito diferente, era procurar, contando com o acaso, algo que se pensa que não se vai encontrar.

Apesar de considerar o seu esforço inútil, naquela tarde o violinista espanhol tinha realizado a sua busca com mais vontade. Sem dúvida nenhuma, o almoço no Metrópole contribuíra muito para isso. Como é que não estaria disposto a fazer o pequeno sacrifício que representava aquela tarefa, em que a única coisa que tinha a lamentar era o tédio e a perda de tempo, pelo amor que sentia por aquela mulher!

O passar folhas de maços de papéis transformara-se em algo rotineiro. Havia momentos em que passando as folhas - o que era um risco para alcançar o que procurava - a sua mente divagava e ia ter a outro sítio. Que diferentes estavam a ser aqueles dias de tudo em que tinha imaginado e planeado! As Jornadas Musicais que haviam sido a razão principal da viagem tinham desaparecido do mapa Estava há seis dias sem assistir a elas. O mais curioso de tudo é que não lhe interessavam absolutamente nada e não se importava com isso. Desde logo contribuíra para isso a desorganização, as ausências de algumas das atracções do programa e a falta de aliciantes durante os dias em que participou. Pelo que tinha lido na imprensa a situação não tinha melhorado e as críticas iam crescendo. Só se salvava o concerto de Anne-Sophie Mutter, a prestigiada violinista alemã que alguns meios de comunicação classificavam de sublime. Lamentava não ter estado lá, mas nem sequer se tinha lembrado disso na altura. O concerto coincidiu com a tarde em que tinha descoberto a partitura e com tudo o que se passara nas horas seguintes. Talvez fosse ao encerramento porque estava prevista a presença de Isaac Stern e isso era de grande importância.

Noutros momentos era a sua imaginação que começava a funcionar e tentava vislumbrar como seria a sua vida com Maria. Passara-se tudo tão depressa! Numa certa altura pensou se não se teria precipitado, se não se teria excedido. Mas, rapidamente, afastou da cabeça estes pensamentos. Estava tão apaixonado! Depois do Natal, e só faltavam três meses, já teria casado com Maria. Que surpresa iam ter os seus pais quando lhes contasse tudo aquilo!

Um pouco antes das seis decidiu que, por aquele dia, era tempo de pôr um ponto final na infrutífera busca. Voltaria ao Bucintoro, onde tinha combinado com a Maria às sete. Estar com ela era o que verdadeiramente lhe apetecia. Falar, ainda que fosse daquela partitura que não tinha voltado a tocar, fazer projectos sobre o futuro, acariciá-la, beijá-la e fazer amor. Quando se lembrava que tinha começado a última semana da sua estada em Veneza ficava com uma sensação de tristeza, que procurava afastar rapidamente porque isso o deixava abatido.

A estreia de La Bohème estava a ser um grande êxito. Stefano Michelotto aproveitou a ocasião para ter um momento a sós com Camila Strozzi; tinha decidido não lhe telefonar porque sabia que encontraria com ela no La Fenice e preferia dizer-lhe de viva voz o que tinha para lhe comunicar.

O eminente paleógrafo chegou ao pequeno salão, onde no intervalo se encontravam os vips, quando este estava já muito concorrido. Cumprimentou com gestos de cabeça e sorrisos, alguns apertos de mão e uma ou outra frase amável, enquanto procurava Camila com o olhar. Encontrou-a no meio de um grupo, no momento em que um dos empregados de mesa lhes oferecia taças de champanhe.

Como sempre, Camila Strozzi resplandecia. Era uma mulher de um magnetismo natural que transparecia em todos e em cada um dos seus gestos, a que se juntava uma beleza pouco comum. Nas suas maneiras e modos estava impressa a passagem de gerações de aristocratas; aquilo era algo que não se aprendia, herdava-se.

Tinha um vestido de gala preto, comprido e ajustado ao corpo; sem nenhum adorno e com um generoso decote nas costas. Um esplêndido colar de pérolas ao pescoço com brincos a condizer e um relógio quadrado com um design avançado. O verde dos olhos marcava um insinuante contraste com o negro intenso, quase azulado, do cabelo. Tinha-o muito curto, tanto que só uma beleza como a sua era capaz de aguentar.

Michelotto aproximou-se do seu objectivo, cumprimentando à direita e à esquerda. Quando chegou ao grupo onde estava Camila, brilhante como uma deusa, não teve dificuldade em solicitar-lhe um momento da sua atenção, sem se importar com a conversa que mantinha o grupo. Não estava para mais cumprimentos para além dos que fossem imprescindíveis.

- Querida Camila, como sempre és um prazer para os olhos disse-lhe tomando a mão que ela estendia. - Acaso podes conceder-me um instante, com a permissão, naturalmente, destes cavalheiros?

Camila Strozzi era uma das belezas oficiais da alta sociedade veneziana. Rondaria os quarenta anos. Combinavam-se nela a elegância natural, a beleza no sentido mais clássico e o bom gosto para se vestir e enfeitar. Dizia-se que fora a tentação de Versace e que as ofertas para ser a musa do famoso estilista se tinham traduzido na entrega de um cheque em branco para ela pôr a quantia que quisesse. Fora uma vã ilusão. A fortuna dos Strozzi era uma das maiores de Itália e Camila tinha considerado pouco próprio trabalhar como modelo.

Mal se tinham afastado do grupo do qual Michelotto a retirara quando a sua voz, melosa ao ponto de parecer sussurrar, disse:

- Meu querido Stefano, estás tão elegante como sempre. A que devo a honra da tua atenção?

- Durante o dia de hoje falei com Drexler, com Clerrnont-Lafargue e com MacFarlaine. Estarão todos amanhã em Veneza

Camila olhou-o com os olhos semicerrados, como se a incomodasse a luz, e perguntou-lhe surpreendida:

- Que razão há para que venham todos amanhã a Veneza?

- Os acontecimentos precipitaram-se - respondeu o criptógrafo, enquanto pegava num canapé de caviar.

Neste momento, Camila olhou-o fixamente nos olhos, tentando esquadrinhar os seus pensamentos.

- O que queres dizer com isso dos acontecimentos se terem precipitado? - A sua voz tinha perdido a doçura cortesã de que fazia gala, sempre que a modelava para que fosse ouvida em público.

- Aconteceu - esboçou um sorriso hipócrita a alguém que o cumprimentava de longe - uma coisa inesperada. Todo o trabalho que realizámos revelou-se, uma vez mais, falso. Seguimos um caminho errado.

As palavras de Stefano deveriam ter-lhe provocado um grande efeito porque, sem se dar conta, tinha elevado o tom de voz.

- Como é que seguimos um caminho errado?! Em várias ocasiões tinhas-nos assegurado que, finalmente, transitávamos pelo caminho correcto!

- Acalma-te, minha querida. - A voz de Michelotto era muito baixa. - As pessoas estão a olhar para nós. - E dizia isto com um sorriso cristalizado nos lábios.

- Explica-me o que é isso de termos seguido um caminho errado! - O tom de voz era agora mais baixo, mas o fundo de mau humor era o mesmo. Nesta altura, foi Camila que sorriu a alguém, saudando com um gesto da mão.

- Agora não posso dar-te muitas explicações, querida. Somos já assunto de conversa desta gente toda... Mas posso antecipar-te, coisa que não fiz com nenhum dos outros, que para além de descobrir que uma vez mais não estávamos a fazer as coisas correctamente, o assunto deu uma volta de cento e oitenta graus. É tão importante o que se passou que considerei necessárias aqui a presença de Drexler, de MacFarlaine e de Clermont-Lafargue, com carácter de urgência. Nem é preciso dizer que a tua presença é tão necessária quanto a deles. Amanhã reuniremos às duas em minha casa. Espero não alterar de forma grave os planos que já tivesses feito.

- Mas o que se passou? Não me deixes assim!

- Insisto em que a pista que seguimos era falsa. Não me perguntes agora porque faço esta afirmação, mas não tenhas qualquer dúvida que é como te digo, minha querida. Estávamos completamente equivocados, mas agora sabemo-lo e sabemos muito mais...

- Isso quer dizer que todo o nosso esforço e tempo foram em vão? Que também perdemos os últimos quatro anos?

- Quer dizer exactamente isso, mas também que há notícias que irão parecer-te incríveis - disse aquilo com tal tranquilidade que conseguiu irritar ainda mais Camila.

- Vejo-te muito seguro do que dizes. Não estaremos uma vez mais no início de outro caminho errado? - Havia uma calculada malícia nas suas palavras. Uma ironia que tinha tornado Strozzi digna de ser temida.

Stefano Michelotto acusou o toque porque, ao contrário da resistência que tinha mantido com os outros convocados para sua casa, decidiu adiantar algo do que sabia.

- Não, não estamos no início de outro caminho errado porque hoje mesmo, de manhã, chegou-me, agora não vou contar-te como, a informação de que, por pura casualidade, um violinista espanhol descobriu o verdadeiro texto que guarda o segredo do préte rosso.

A taça de champanhe que Camila segurava na mão caiu e estilhaçou-se no chão com um grande estrépito. Muitos dos presentes olharam descaradamente para eles e vários aproximaram-se, solícitos.

 

Camila Strozzi era a única filha e herdeira do general Giambattista Strozzi, que tinha desempenhado vários cargos de alta responsabilidade no exército italiano. O primeiro, depois de uma brilhante folha de serviços, foi o comando da base militar de Tarento, a peça fundamental do sistema defensivo da NATO em Itália. Depois fez parte do Alto Comando da Aliança Atlântica em Bruxelas e, por último, foi o Chefe do Estado Maior italiano. Uma brilhante carreira com que tinha cumprido, como vários dos seus antepassados, a tradição dos Strozzi que ditava que um membro da família seguisse a carreira das armas. Assim tinha sido desde a época em que, de Piamonte, Victor Manuel II tinha impulsionado a unidade italiana.

A sua única descendente era Camila, pelo que a tradição familiar deveria continuar por outro dos ramos uma vez que, ainda que Camila pudesse ter ingressado no exército, se negou a satisfazer qualquer expectativa nesse sentido. A decepção inicial que no seu pai tinha provocado o nascimento de uma filha, aumentada com a notícia de que a sua esposa depois daquele parto ficara impossibilitada de voltar a conceber, foi diminuindo com o passar do tempo, até se transformar em orgulho. Revelou-se, primeiro, como uma menina inteligente e dotada de grandes capacidades e, depois, quando Camila deixou para trás a adolescência, transformou-se numa mulher belíssima. Na família dizia-se que nunca tinham visto o general tão ufano como quando a levou de braço dado à sua festa de debutante, ao ser apresentada em sociedade. Nela recaiu o título familiar - desde a morte de seu pai era condessa Strozzi.

Camila tinha estudado Direito na Universidade de Bolonha e Arte na de Roma. Era uma mulher cultíssima, a quem se conhecia um único erro, o seu casamento. Converteu-se, em menos de um ano, num rotundo fracasso - tinha apenas vinte e quatro anos -, mas serviu para realçar perante o mundo a sua determinação e mostrou até onde era capaz de chegar se tivesse que enfrentar alguma coisa ou alguém. Deixou bem sublinhado que era melhor não tê-la como inimiga. Desde então ganhou fama, nos círculos onde se movimentava, de ser uma mulher altiva, perigosa e, caso fosse necessário, sem muitas contemplações. Não eram poucos os que, apesar do magnetismo da sua figura e beleza, preferiam não estar muito próximo dela. Também tinham chamado a atenção as longas viagens que realizava - que a retiravam de circulação durante meses - sem que se soubesse o seu paradeiro, criando à sua volta uma atmosfera que envolvia a sua figura de mistério.

Contava-se que tinha tido vários amantes, mas eram relações passageiras das quais se desligava com facilidade. Os automóveis eram uma das suas paixões. Durante algum tempo viveu muito de perto o circo que envolve o mundo do automobilismo de Fórmula Um. Uma vez por ano, depois do Carnaval, com a chegada da Primavera dava um baile de máscaras no seu palácio de Veneza, junto ao Vendramín, que naquela altura do ano se convertia no casino da cidade. Era uma reunião de pessoas muito heterogéneas, desde políticos a escritores, gente da boémia ou indivíduos que marcavam a agenda no mundo da melhor sociedade; ali se reuniam desportistas, tubarões do mundo dos negócios, artistas ou simplesmente amigos de Camila, o que não era coisa pouca. Todos os anos surpreendia os seus convidados com uma novidade. Uma ou outra causaram um verdadeiro escândalo, como quando contratou uma dúzia de prostitutas de luxo, que passaram por elegantes modelos. Durante a refeição que precedia o baile foram tirando a roupa, a pouco e pouco, até ficarem completamente nuas; os convidados estavam estupefactos. Não era uma ideia original, tinha-a copiado de Harold Robbins, o romancista americano, famoso autor de bestsellers. O escândalo foi monumental. Durante semanas não se falou de outra coisa em certos círculos venezianos. Alguns rumores faziam-na consumidora de cocaína e relacionavam-na com grupos mafiosos, mas nunca ninguém conseguira provar nada.

Camila Strozzi chegou a casa de Stefano um minuto depois das duas. Tinha dito ao seu motorista que abrandasse o andamento Seria melhor dez minutos depois que um minuto antes. O mordomo acompanhou-a até à biblioteca. Abriu a porta e, anunciando a senhora, fê-la entrar. Lá estavam os três convidados: Alister MacFarlaine, Etienne Clermont-Lafargue e Karl Drexler. A conversação que mantinham foi interrompida e Stefano dirigiu-se a ela:

- Minha querida Camila! Muito me honra! - Aproximou os lábios da mão que ela ofereceu com uma certa languidez.

- O senhor deseja alguma coisa?

- Não, Angelo, nada, muito obrigado. Certifica-te de que no salão de jantar esteja tudo pronto quando formos para lá.

- Não se preocupe, senhor - Angelo fez uma respeitosa inclinação de cabeça e retirou-se, fechando atrás de si a porta de artesoada lavrada.

Os três cavalheiros cumprimentaram Camila com um afecto discreto e uma estudada consideração. O que em Drexler foi uma ostentosa reverência que o levou a inclinar-se a partir da cintura, ao mesmo tempo que os seus tacões se uniam num cumprimento que tinha algo de prussiano, em Clermont-Lafargue converteu-se numa inclinação de cabeça e num expressivo sorriso. Alister MacFarlaine cumprimentou Camila com um beijo na face; era uma mistura da fleuma que tinha aprendido em Eton e do passado que agitava o seu sangue escocês.

Stefano convidou-os a sentarem-se. Havia dois cómodos cadeirões de orelhas, forrados a couro, que faziam parte do mobiliário da biblioteca, e outros três, tipo chester, forrados a veludo verde, que tinham sido colocados ali para a reunião. Todos esperaram que Camila se sentasse. Uma vez mais fazia gala da fama de mulher elegante que a acompanhava. Levava um fato de saia e casaco verde muito claro, com botões que subiam até ao pescoço, brincos de esmeralda e um relógio Cartter no punho.

- Antes de passarmos ao salão de jantar creio que devo transmitir-vos alguns pormenores sobre a necessidade desta reunião e a urgência da mesma - Stefano não conseguia dissimular a satisfação que o inundava. - Quero, em primeiro lugar, agradecer-vos novamente a todos por estarem aqui; por terem vindo a meu pedido, deixando de lado outras coisas sempre importantes. Mas o quetenho para vos comunicar, como irão ter a ocasião de verificar, obrigou-me a convocá-los com urgência.

- Diz lá o que se passa de uma vez, Stefano! - O sangue escocês de MacFarlaine tinha-se revelado com toda a sua energia.

- Como sabeis, a nossa irmandade encarregou-nos, às cinco pessoas aqui presentes, de dedicar o nosso esforço à descoberta do enigma do padre vermelho. - A voz de Stefano Michelotto ganhara um tom de solenidade. - Esse pedido já nos chegou há vários anos. Estava-se então, como todos se lembrarão, em vésperas do Natal de 1995. A razão prendia-se com o facto de haver numerosos indícios em relação ao intenso trabalho de vários grupos de investigadores sobre os templários e a possibilidade de desvendarem o segredo da ordem. Um segredo que, na nossa fraternidade, tem sido tradição vincular ao enigma Vivaldi. Para levar por diante a nossa tarefa, a única coisa que tínhamos eram as referências históricas de que o mistério descoberto pelo padre vermelho tinha alguma das suas chaves em Viena, para onde tinha ido e onde a morte o surpreendera. Também se sabia que tinha enviado a Tomasso Bellini, companheiro da Fraternitas Charitatis, um texto em código, onde explicava a misteriosa descoberta que realizara. Investimos muito tempo, muito esforço e muitos meios para encontrarmos uma pista segura que nos conduzisse ao nosso objectivo. Uma após outra, não tenho necessidade de vos dar pormenores, as hipóteses com que trabalhámos caíram como castelos de areia. Ultimamente tínhamos seguido um caminho que nos fez ter fundadas esperanças de nos aproximarmos do nosso objectivo perto de Edimburgo. Neste momento, como já vos adiantei, estou em condições de afirmar que, uma vez mais, os nossos esforços foram ineficazes.

O silêncio na biblioteca era total, absoluto, só se ouvia a respiração agitada de MacFarlaine. As palavras de Stefano ficavam como que afogadas entre as estantes que enchiam as paredes forradas a livros, do chão ao tecto, e os pesados tapetes que cobriam o chão.

- Estareis todos a perguntar-vos que não vos terei feito vir com toda a urgência para vos dizer que nos equivocámos outra vez.

Fez uma pausa para aumentar a expectativa e pronunciou a frase que tinha preparado para a ocasião:

- Descobri o nosso fracasso porque alcançámos o nosso objectivo.

- O que queres dizer com isso de termos alcançado o nosso objectivo? - MacFarlaine havia franzido o sobrolho.

- É muito simples, meu querido Alister; por uma via inesperada e desconhecida por nós até ontem, chegou ao nosso poder o documento que encerra o enigma de Vivaldi. Meu querido amigo temos nas nossas mãos o mistério do prete rosso.

Étienne Clermont-Lafargue levantou-se do cadeirão chester, no qual estava sentado, e, olhando para Stefano sem pestanejar, perguntou-lhe:

- Temos em nosso poder o documento que nos revela o segredo de Vivaldi? - Nas suas palavras pulsava a incredulidade.

- Eu não disse que tínhamos o documento que revela o segredo de Vivaldi, mon cher ami.

A ilusão que tinha notado nos olhos dos três homens desvaneceu-se de forma instantânea. Nos olhos do anfitrião brilhava, no entanto, uma alegria que contrastava com o que acabava de dizer. Deixou passar alguns segundos antes de se explicar. Ao fazê-lo a sua voz soava tão solene como ao princípio:

- O que disse é que temos o documento que encerra o segredo de Vivaldi, não que esse documento nos dê a conhecer o segredo. Existe uma notável diferença entre uma coisa e outra.

Quem agora se pôs de pé foi Drexler.

- Creio, Stefano, que o melhor que poderias fazer era explicar com pormenor tudo o que diz respeito a este assunto!

- Sentai-vos um momento, suplico-vos. É tão simples o que vou dizer-vos que só necessitarei de alguns minutos.

O francês e o alemão sentaram-se.

- O que temos em nosso poder é o documento; na realidade trata-se de uma fotocópia, onde Vivaldi deixou consignado o seu segredo. Esse documento está em código e será necessário decifrá-lo.

- Onde está esse documento? Podemos vê-lo? - MacFarlaine deu um longo trago no seu copo de whisky.

- Obviamente que sim.

Stefano levantou-se, dirigiu-se a uma pequena escrivaninha mbutida entre as estantes e retirou cinco cópias da partitura, cada uma delas protegida por um plástico. Sem dizer uma palavra, distribuiu-as entre os presentes e ficou com uma delas. Foi MacFarlaine quem rompeu o silêncio que se tinha instalado. As suas palavras soaram numa voz colérica:

Por todos os demónios do inferno, Stefano, isto é uma partitura!

Uma partitura onde Vivaldi escondeu o seu segredo - as palavras do paleógrafo soaram tranquilas, num tom de quem domina a situação.

- Uma partitura? - perguntou surpreendido Drexler.

- Que melhor forma de se exprimir para um músico? - foi a resposta de Michelotto.

- Como sabes que este papel - Camila agitou a sua cópia é o que guarda o enigma do prete rosso?

- É uma boa pergunta - sublinhou o escocês.

Fazendo gala de uma capacidade para resumir que punha em relevo os dotes pedagógicos de Stefano, este explicou-lhes como tinha chegado ao seu poder aquela partitura, a estranha música que continham aquelas notas e a forma como se dera a descoberta.

- Um golpe de sorte! A sorte que durante anos nos foi alheia aliou-se a nós! - disse Drexler.

- Não sei como não nos lembrámos de procurar na Pietà A nossa obsessão com os templários levou-nos a Paris, a Rosslyn, a Rennes-le-Chateau!

- E a chave? Onde está a chave? - perguntou Camila.

- Isso é algo secundário, querida, tendo à nossa disposição tudo o que Stefano sabe - afirmou MacFarlaine.

- Não temos a chave. Nesse caso já possuiríamos o segredo. Precisamente a rapariga de que vos falei veio ter comigo para que a ajude a decifrar a mensagem que aqui se esconde.

- Qual é o grau de dificuldade para decifrar o texto? - perguntou Clermont-Lafargue.

Antes de responder, Stefano Michelotto meditou na resposta:

- Ainda que não tenha sido muito o tempo que lhe dediquei, apenas há vinte e quatro horas que está em meu poder, não tenham dúvida que descobriremos o segredo que estas notas contêm. Não sei quanto tempo demoraremos, espero que não seja muito. Mas podem ter a certeza que estamos no fim do nosso percurso.

Todos assentiram com a satisfação estampada no rosto. Só as feições de Camila eram inescrutáveis. A sua pergunta, quando todos se preparavam para irem almoçar, soou como uma chicotada:

- E se isto fosse falso? - E, dizendo isto, levantou a sua partitura.

- Isso não é possível - replicou contrariado Michelotto.

- Por que razão não é possível!? - Camila fez esta afirmação com aprumo. - Isto nem sequer é um documento original que pelo menos, nos permitisse algumas certezas!

Stefano limitou-se a responder que tinha plena confiança na pessoa que lhe tinha feito chegar a partitura e, já um pouco recuperado deste embate, deixou no ar, à laia de repto:

- O que é que essa rapariga ia ganhar ao contar-me uma mentira?

Camila, que era um duro adversário, replicou:

- E por que viria contar-to?

- Porque sabe que me dediquei à criptografia, que houve uma época em que fui um dos melhores da Europa. - Por fim tinha encontrado um argumento que lhe permitia fazer face ao ataque da Strozzi. Olhou para o relógio, dando a entender que a questão estava esclarecida: - E agora, meus queridos amigos, chegou o momento de passarmos ao salão de jantar.

As sombras lançadas por Camila tinham, no entanto, semeado a desconfiança no grupo.

- Temos a possibilidade de esclarecer as dúvidas razoáveis que Camila apresentou acerca da autenticidade do documento? Haveria alguma forma de aceder ao documento original da partitura?

- A maior possibilidade - Stefano respondeu displicentemente - encontra-se na reunião que amanhã vamos ter, tanto com essa jovem que colocou nas minhas mãos o documento, como com esse violinista espanhol que foi, segundo vos disse, quem o encontrou no arquivo do Ospedale della Pietà. Não creio que haja obstáculos para aceder ao documento original.

- Tinhas previsto essa reunião de antemão? - perguntou Camila.

- Estava prevista e espero que sirva para clarificar qualquer dúvida sobre a autenticidade da partitura.

O que faremos com esses dois jovens? - perguntou Drexef com um ar sombrio.

Sobre esse aspecto concreto falaremos mais tarde. Agora vamos almoçar.

- A que horas é a reunião? - insistiu Camila.

- Às dez em ponto e todos vós assistireis a ela.

O almoço serviu para relaxar a tensão que tinha aflorado minutos antes. O salão de jantar era uma divisão longa, muito luminosa, que dava para umas galerias do pátio central. Como toda a casa, estava mobilada com um gosto fantástico. As paredes arrancavam de uma base de madeira de nogueira que chegava a uma altura um pouco acima de um metro. Era constituída por grandes painéis, separados por meias colunas. O resto da parede estava forrada a seda. O mobiliário do salão era de estilo espanhol. Cadeiras e cadeirões com assentos e espaldares de couro finamente trabalhados e policromados.

Todos os móveis denotavam elegância e bom gosto: sobre a toalha de linho branco com minúsculos bordados, talheres de prata e pratos de porcelana branca, brilhavam soberbos cristais venezianos em tons rosáceos debruados a dourado. O almoço, que não podia ficar atrás, foi pensado para reconfortar adequadamente os comensais: vichyssoise, carpaccio de salmão decorado com angulas e lombo de vaca com cogumelos. À sobremesa, delicados mil-folhas com uma leve camada de baunilha. Tudo acompanhado de vinhos da região escolhidos a dedo.

Durante todo o almoço ouviram-se suavemente, como música de fundo, várias das sonatas para violino, o concerto 121 em ré maior e o concerto para bandolim e orquestra de cordas, tudo de Vivaldi.

À mesma hora que no palazzo de Stefano Michelotto o anfitrião recebia os seus convidados, numa trattoria da riva degli Schiavoni, numa zona próxima da praça de São Marcos, Maria e Lúcio despachavam umas pizzas regadas com cerveja no meio da gritaria da clientela e dos empregados do estabelecimento. Mal acabassem apanhariam o primeiro vaporetti que saísse para as ilhas. Maria ia mostrar-lhe as duas mais importantes que estavam em frente ao canal de São Marcos, a de Murano, onde em tempos se tinha concentrado toda a indústria do famoso cristal e que ainda conservav algumas das oficinas e fábricas de tão reconhecidas peças. Iriam também a Torcello, a primeira sede episcopal de Veneza. Maria tinha especial interesse em mostrar-lhe duas belas igrejas, a catedral, com uns extraordinários mosaicos, dedicada à Assunção, e Santa Fosca, magníficos exemplares de estilo bizantino, onde estavam algumas das raízes da arte veneziana. A mãe de Maria tinha uma casa naquela ilha, que era um lugar ideal para se retirar e descansar alguns dias.

Giulietta dei Sarto ficara viúva há seis anos. O seu marido tinha morrido num acidente de automóvel, deixando a esposa e filha numa confortável posição económica: uma simpática conta bancária, algumas acções, um negócio bem gerido, como era o Bucintoro e algumas propriedades mais, entre as quais se encontrava a casa de Torcello. Apesar da boa relação que Maria tinha com a mãe, Lúcio e ela tinham decidido manter em segredo a sua decisão de se casarem, até que entendessem que tinha chegado o momento adequado para lhe dizer; esta decisão também era válida para a família do músico.

Maria, perante as perguntas de Giulietta acerca das suas saídas e da sua relação com o violinista espanhol, tinha-se limitado a dizer-lhe que se sentia muito bem ao seu lado, que tinham gostos comuns e que lhe parecia uma pessoa atraente e encantadora. Essas duas palavras eram exactamente as que tinha utilizado para o definir, a sua mãe não teve necessidade de perguntar mais nada.

Para Lúcio aquela era uma tarde muito desejada, não só porque ia partilhá-la com Maria, mas também porque não teria de dedicar-se à infrutuosa busca da chave de Vivaldi.

 

Quando Maria e Lúcio chegaram a casa do dottore Michelotto, o mordomo acompanhou-os até à biblioteca, onde lhes perguntou se desejavam tomar alguma coisa:

- Uma infusão? Um sumo?

- Nada, nada, muito obrigada - respondeu Maria.

- Nesse caso, peço-lhes que fiquem à vossa vontade, o senhor virá já. Estejam como na vossa própria casa. - Angelo era uma pessoa que correspondia ao perfil do mordomo difundido pelo cinema britânico: elegante, atento, circunspecto se fosse o caso, e sempre no seu lugar, desempenhando o papel que lhe cabia.

No centro da biblioteca via-se uma mesa, que lá não estava no dia anterior, e os cadeirões eram sete. Aguardaram durante dez minutos, tempo passado a bisbilhotar nas estantes, olhando os livros, uma ampla e cuidada selecção de obras variadas. Havia uma boa representação de romancistas do século XIX: italianos como D'Annunzio, Manzzoni ou Leopardi; os franceses eram representados por Victor Hugo, Flaubert e Balzac; os espanhóis incluíam Valera e Galdós, e entre os ingleses encontravam-se Dickens, Wilde e Walter Scott. Uma antiga edição em inglês de O Paraíso Perdido, de Milton. Um primoroso exemplar de Os Emblemas, de Alciato. Numa das prateleiras havia obras dos cientistas do Renascimento e do Barroco, Kepler, Galileu, Copérnico, Newton. Maria estava mais interessada que Lúcio, que se tinha entretido com um exemplar - edição fac-símile - do Civitathd Orbis Terrarum. Folheava as esplêndidas vistas das mais importantes cidades da Europa de meados do século XVI, quando Maria o chamou, excitada:

- Lúcio, Lúcio, olha! Olha o que há aqui!

O que tinha descoberto era o que podia denominar-se a secção de criptografia da biblioteca. Havia numerosos títulos - possivelmente, tratando-se de Stefano Michelotto, tudo o que tivesse sido publicado sobre o assunto - de criptografia e criptologia; assim como a célebre obra de David Kahn, The Codebreakers (Os Decifradores de Códigos), e Cryptology, de Albreecht Beutels Pacer.

Pegou num volume com o título Cryptoanalysis, de Helen Fouché Gaines, e verificou que se tratava de um estudo dos números e sua solução, e que contava com um apêndice em que havia uma numerosa série de tabelas. Mas não viu nada referente a códigos ou a cifras em que se utilizassem notas musicais. Colocou-o no seu lugar. Os seus olhos desviaram-se para um título sugestivo: The Cryptografic Imagination. Quando estendia a mão para pegar nele, sentiu abrir-se a pesada porta de madeira da biblioteca.

O aparecimento de Michelotto no umbral fê-la corar, como se a tivessem surpreendido a cometer uma má acção. Essa sensação, no entanto, desapareceu rapidamente no momento em que viu atrás do dottore entrarem outras quatro pessoas. Ao rubor seguiu-se a surpresa.

- Minha querida Maria, que prazer em ver-te de novo! - Stefano mostrava-se cortesão. Aproximou-se da jovem e beijou-a com naturalidade. - Este é, suponho - dirigiu-se a Lúcio - o violinista espanhol, engano-me?

- É, de facto, Lúcio Torres, a pessoa de quem lhe tinha falado

- disse Maria, ainda surpreendida e numa grande perplexidade, que tentava dissimular.

Michelotto aproximou-se de Lúcio com a mão estendida:

- É um prazer conhecer-te pessoalmente. Não podes imaginar a importância que para um veneziano tem o facto de se estudar Vivaldi!

Lúcio respondeu, apertando a mão que ele lhe oferecia, com um conciso:

- O prazer é meu.

Stefano voltou-se para Maria e chamou-lhe a atenção:

- Creio, minha boa amiga, que tínhamos combinado tratarmo-nos por tu - o tom era de um professor que repreende com carinho uma aluna. Mudando o registo da voz e voltando-se para onde estavam Camila e os três homens, procedeu às apresentações.

Permiti-me que vos apresente. Eles são a Maria e o Lúcio,

os jovens que puseram nas minhas mãos a extraordinária partitura de que vos falei.

"Então já lhes falou da partitura de Vivaldi. Por que o terá feito?" - A voz de Michelotto tirou Maria desta reflexão.

Ela é Camila Strozzi. Suponho, Maria, que tu a conhecerás.

Sem esperar uma resposta continuou:

-- Estes são Alister MacFarlaine, Étienne Clermont-Lafargue e Karl Drexler.

Houve inclinações de cabeça e gestos de cumprimento, mas tudo à distância.

- Trata-se de uns amigos meus - continuou Michelotto que por uma razão ou outra estão interessados na descoberta que haveis realizado. Uns são devotos de Vivaldi, outros são de Veneza e um foi meu colega nas tarefas de descodificação de textos cifrados

- não fez nenhuma especificação acerca dos gostos concretos de cada um. - Espero que não vos incomode a sua presença. Serão, seguramente, de grande ajuda, como podereis ver!

Michelotto tinha-se apercebido de que Maria tivera uma desagradável surpresa e tentava que ela superasse essa situação.

- Sentemo-nos, a Maria e o Lúcio ficam aqui, ao meu lado. Houve deslocações de cadeirões que mal fizeram ruído sobre o grosso tapete de lã. Naquele momento apareceu o Angelo acompanhado por duas jovens que conduziam grandes carrinhos de serviço, com termos de café, chá, água e sumos, algumas bandejas com bolachas e uns diminutos pastelinhos. Colocaram as bandejas e os termos sobre a mesa e, à frente de cada um dos presentes, uma chávena e um copo.

Quando o pessoal se retirou, Michelotto cumpriu o seu papel de anfitrião, tomando a palavra. Lúcio e Maria estavam estarrecidos.

- Antes de mais nada quero agradecer a Maria e a Lúcio o facto de terem posto nas minhas mãos uma partitura que é muito mais do que isso. Lúcio é um excelente violinista - fazia aquela afirmação, embora nunca o tivesse ouvido tocar -, um profundo conhecedor da música de Vivaldi e um apaixonado pela nossa cidade de Veneza. Actualmente realiza uma importante investigação - na realidade, não fazia a mínima ideia sobre o que ele estava a investigar – sobre o nosso prete rosso. Foi, precisamente, por essa razão que chegou ao conhecimento da dita partitura que é o motivo da reunião que honra a minha casa. À Maria liga-me uma velha relação. Foi minha aluna e devo dizer que uma das melhores que passaram pelo meu departamento - seguramente que não podia lembrar-se de que classificação obtivera - e que, conhecedora do... digamos da descoberta de Lúcio veio visitar-me para que fizesse a descodificação dessa estranha partitura. Mas creio, amigos - Stefano estendeu as mãos apontando para o casal - que muito melhor do que eu, Lúcio e Maria poderão explicar-vos como chegaram à partitura em questão. Fez uma pausa, convidando um dos jovens a tomar a palavra. O silêncio, no entanto, prolongava-se para além do que era devido, pelo que foi Camila que convidou Maria a falar.

- Maria, minha querida, estou desejosa que nos contes tudo o que sabes acerca dessa partitura e quais são as tuas impressões.

O expectante silêncio de todos os presentes havia acrescentado ao seu mau humor um certo nervosismo. Sentiu como Lúcio roçava o joelho no seu, dando-lhe ânimo.

- Tudo começou há três dias quando o Lúcio encontrou fazia todo o possível para conter os nervos - uma partitura num livro de contas, correspondente ao ano 1741, no arquivo da Pietà. Não era, obviamente, o lugar mais adequado para uma partitura, mas também não era assim tão estranho, dada a vocação musical dessa instituição, onde Vivaldi exerceu durante muitos anos a sua actividade como músico. Nesse ano de 1741, ano da sua morte, era primeiro patrono da Pietà Tomasso Bellini a quem, segundo consta documentalmente, Vivaldi enviara de Viena um escrito cifrado, comunicando-lhe uma importante descoberta que tinha realizado. Como todos os senhores sabem, o compositor veneziano era frater de uma ordem, ou seita mística, chamada Fraternitas Charitatis, cuja missão era exercer uma espécie de controlo sobre determinados saberes para evitar a sua divulgação. Saberes, que não era aconselhável, por alguma razão que só eles conheciam, que fossem do domínio público. Por outro lado, faziam tudo para evitar que tais conhecimentos se pudessem perder.

- Quer você dizer que há uma espécie de ordem que protege certo tipo de conhecimento ao mesmo tempo que evita que se divulgue? - Tinha sido Alister MacFarlaine quem formulara a pergunta.

O senhor percebeu na perfeição. - Agora não havia nervosismo nas palavras de Maria, mas sim uma ponta de ironia.

Permita-me que lhe diga, minha querida amiga, que isso encerra uma contradição. A melhor forma de salvaguardar um conhecimento é divulgá-lo. Quanto mais gente o conhecer e maior memória haja do mesmo, maiores garantias de conservação!

- Mas essa contradição é só aparente - replicou Maria cada vez mais animada - porque os membros dessa seita, ou ordem secreta, estavam tão preocupados com a conservação desses conhecimentos como com o controlo da sua difusão.

-- E quais eram os motivos pelos quais tais indivíduos tinham chamado a si essa tarefa? - insistiu MacFarlaine.

- Essa, meu caro senhor, é uma pergunta muito difícil de responder. Pelo menos para mim é muito difícil. Teria de a formular a um membro da Fraternitas Cbaritatis.

- Existe actualmente essa fraternidade? - Quem tinha feito a pergunta era o eminente cirurgião de Munique.

- Isso é uma coisa que não sei. O carácter esotérico da organização e a sua subterrânea actuação faz com que não seja grande coisa o que se filtrou acerca da sua existência e da sua actividade.

- Sabe-se qual é o tipo de conhecimento que tentam controlar e preservar? - Drexler parecia vivamente interessado em conhecer pormenores acerca de Fraternitas Charitatis.

Naquele momento, Michelotto interveio:

- Creio que, com as nossas perguntas, estamos a fazer com que a Maria se desvie da sua explicação por caminhos que não são os que neste momento nos interessam. Tanto ela como Lúcio vieram aqui para falar da partitura e das possibilidades de decifrar a mensagem que se oculta entre as suas notas.

- É verdade o que dizes, meu caro Stefano, mas não negarás que o que Maria nos está a contar é tão... tão sugestivo que dificilmente se pode evitar que as perguntas acudam à boca - argumentou o escocês.

- Creio que o Stefano tem razão - assinalou Étienne Clermont-Lafargue -, devemos deixar que Maria se explique sem interrupções. Depois, suponho que não haverá inconveniente em falarmos de qualquer assunto que possa ter relação com esta seita.

A intervenção do aristocrata francês pareceu ter deixado a questão resolvida. Maria retomou a sua explicação.

- Resumindo, Vivaldi enviou a Bellini, pouco antes de morrer, em 1741, uma mensagem cifrada, explicando-lhe o conhecimento que tinha alcançado ou o mistério que tinha descoberto Fê-lo em chave e sabe-se que chegou até ao seu destinatário Mas, devido a uma série de acontecimentos, esta mensagem perdeu-se e perdida permaneceu durante mais de dois séculos e meio até que Lúcio a encontrou há três dias. Anteontem vim ver o dottore Michelotto, sabedora dos seus conhecimentos em criptografia com a esperança de que decifrasse a mensagem que se oculta atrás das suas notas. Depois de lhe explicar a ele o que acabo de vos contar, combinámos reunirmo-nos hoje. Viemos a este encontro e devo confessar a minha estranheza ao verificar a presença dos senhores nesta reunião, o que, sem qualquer dúvida, só prova a importância do conteúdo da partitura que deixei ao dottore.

A nenhum dos convidados de Michelotto escapou a perspicácia e a ironia que encerravam aquelas palavras. O cerrado sotaque de Drexler não era dissimulado pela musicalidade do italiano que falava com desenvoltura.

- Se Maria concluiu a sua explicação, gostaria de lhe perguntar uma coisa.

- Pode perguntar o que quiser, pela minha parte logo verei se posso responder. - O aprumo de Maria era cada vez maior.

- Obrigado. Segui com grande atenção o que nos contou. Sou um devoto de Vivaldi, um apaixonado de Veneza e um adepto da criptografia, ciência em que Stefano é um grande especialista e que foi, há anos, o elo de união que nos permitiu estabelecer uma amizade que explica a minha presença aqui.

- Karl, dizer que é um adepto da criptografia é um excesso de modéstia - interrompeu-o Michelotto.

O alemão fez um gesto cortês com a cabeça e prosseguiu:

- Descobrir uma partitura de Vivaldi é algo que aconteceu com certa frequência, dada a extensa produção musical que nos deixou. É possível que no futuro continuemos a deparar-nos com agradáveis surpresas nesse sentido. Mas é uma coisa muito diferente que a partitura encontrada seja, precisamente, a que enviou de Viena para... para... Bellini. Que provas temos de que a partitura encontrada por Lúcio seja a de Vivaldi? E o que agora é mais importante, que provas temos que nas suas notas haja algo mais do que música? Definitivamente, que provas há para afirmar que essa partitura contém o chamado enigma do padre vermelho?

Creio, senhor Drexler, que Lúcio pode responder melhor que eu.

a essas perguntas - assinalou Maria.

O violinista sussurrou algo ao seu ouvido. Depois pediu desculpas e indicou que seria Maria a explicar porque o seu italiano era melhor.

- Há fundadas razões para afirmar que estamos em presença da partitura que guarda o segredo de Vivaldi - Maria mostrava um aprumo que distava muito do seu nervosismo inicial. - A primeira é o lugar onde aparece. O livro de contas é da mesma data em que Vivaldi efectuou o seu envio. A segunda é que o seu destinatário era ao mesmo tempo o patrono principal da instituição onde apareceu a partitura. A terceira, e a mais importante, é a própria partitura. Nela não há música, as notas não correspondem a nenhum critério de harmonia. E mais, em algumas delas quebraram-se todos os esquemas estabelecidos e usou-se a quarta trítono que, como os senhores sabem, é algo que estava proibido e que se denominava a música do diabo. Se as notas dessa partitura não contêm música, devem, então, conter outra coisa!

Após a última afirmação de Maria houve silêncio.

- Aceitemos que é uma partitura estranha e que as suas notas encerrem algo que seja diferente de música - admitiu Drexler -, mas que apareça num livro de 1741 um papel escondido, guardado, ou esquecido não é uma garantia de que seja dessa data. Quantas vezes se guarda um papel entre as páginas de um livro que é de uma data muito posterior! - As suas últimas palavras soavam a desafio.

- Verificámos que o papel onde está escrita a partitura é do século XVIII - respondeu com tranquilidade Maria.

- Mas o século XVIII tem cem anos, minha querida amiga!

- Sim, mas esse papel, o da partitura, foi fabricado entre 1736 e 1752.

- Como sabe? - perguntou intrigado o alemão.

- Pela filigrana do papel, que tem a marca do fabricante. Mas ainda há mais, o papel foi fabricado em Viena, pela casa Herrman.

- Em Viena? - perguntou Drexler.

- Em Viena, a cidade onde Vivaldi se encontrava quando enviou a Bellini a sua mensagem codificada - Maria estava a divertir-se

- Isso é muito interessante, muito, muito interessante -- Sublinhou o alemão.

- Deve saber também que na Pietà o papel utilizado era o papel fabricado em Veneza. Não era importado de Viena.

Foi o golpe definitivo. Stefano começou a aplaudir.

- Excelente, Maria, excelente. Uma defesa brilhante. Creio que ficou resolvida qualquer dúvida sobre estarmos perante o documento que contém o enigma do padre vermelho. Agora, a nossa tarefa deverá ser a descodificação dessas notas.

- Haveria a possibilidade de vermos a partitura original? - era Etienne Clermont-Lafargue quem formulava a questão. - O que vimos são simples fotocópias.

"Então, o Michelotto já lhes reproduziu a cópia que eu lhe dei", foi o que passou pela cabeça de Maria. Ainda não percebera muito bem o que é que aquela gente estava ali a fazer e as vagas explicações de Stefano não tinham esclarecido as suas dúvidas. Aquelas pessoas não eram vulgares. Só a presença de Camila Strozzi era algo extraordinário.

Foi Lúcio, com a ajuda de Maria, quem deu resposta àquela pergunta.

- O arquivo do Ospedale della Pietà não está aberto ao público. O acesso que tenho foi-me dado através de um pedido particular feito a partir de Espanha. Portanto, ignoro as dificuldades que haverá nesse terreno. Ainda que tratando-se de um arquivo privado, suponho que tudo dependerá da vontade dos seus responsáveis.

- Creio que podemos aceder ao arquivo - anotou Michelotto.

- Hoje mesmo tentarei fazer algumas diligências nesse sentido. E agora abordemos o assunto mais importante desta reunião que é o do conteúdo desta partitura.

Stefano Michelotto levantou-se e tirou de uma gaveta cópias da partitura para todos os assistentes. O pequeno intervalo foi aproveitado pelos presentes para se servirem de sumo, café ou de uma tisana. Maria e Lúcio pensavam que aquele momento nunca mais ia chegar. Tinha sido para isso que visitaram o eminente criptógrafo e não para discutir com uns desconhecidos o valor do documento que o destino colocara nas suas mãos.

Esta é - começou Stefano - a partitura de que temos estado a falar. Estas são as notas que contêm um segredo zelosamente guardado. Devo dizer-vos, tanto aos que comigo partilham interesse pela criptografia e haveis dedicado a ela o vosso tempo, o vosso interesse e o vosso esforço, como aos que sois profanos nesta matéria, que não é habitual que uma mensagem se cifre através de notas musicais. Ao longo da história utilizaram-se os mais variados processos para ocultar um texto a olhos não desejados, desde escrever a mensagem na cabeça rapada de um homem que depois deixa crescer o cabelo e, chegado ao seu destino, torna a rapá-la para se ler, até tintas invisíveis, chamadas simpáticas, que escondiam textos a todos os que desconheciam tais processos. Para se poderem ver deveriam ser tratados com sumo de limão. São muito antigas as técnicas, não para esconder mensagens, mas para disfarçá-las de maneira a tornarem-se incompreensíveis a quem não tivesse a chave correspondente. Usou-se desde a transposição de letras, ou seja, mudar umas por outras, segundo critérios previamente estabelecidos, até substituir letras por números, também segundo critérios prévios. Poderia fazer um longo discurso acerca da variedade de processos utilizados, mas que ninguém se preocupe, nem estamos aqui para isso, nem tão-pouco é esse o meu desejo. Todavia considerei necessárias estas informações para vos dizer que não é habitual que se utilizem notas musicais como um meio para esconder mensagens, ainda que neste caso - um sorriso malévolo desenhou-se nos seus lábios - pudéssemos dizer que era quase obrigatório que assim fosse. E devo dizer que o seu autor foi sumamente habilidoso no momento de esconder o que não desejava que se conhecesse, a não ser com a chave que permitisse descodificar o texto.

- Quer isso dizer, dottore, que estamos em presença de um texto cuja descodificação é extremamente complicada? - Maria nem queria acreditar que da sua boca tivesse saído aquela pergunta. Não tanto por formulá-la, mas antes por conduzir à interrupção de quem estava a falar.

- Não se trata de um texto extremamente complicado, minha cara Maria, fazendo uso das mesmas palavras que tu utilizaste, mas depois de quarenta e oito horas, das quais dediquei um bom número delas a procurar uma chave que nos permitisse revelar-nos o seu conteúdo, o meu fracasso foi rotundo. Não fui capaz de dar um só passo firme na conquista do nosso objectivo. Neste momento devo confessar que o segredo do padre vermelho está bem guardado e que, embora seja obviamente cedo para o dizer, estamos perante um repto cheio de dificuldades. Todos os processos para encontrar uma chave quebraram-se estrepitosamente contra as defesas utilizadas pelo autor dessa partitura.

- Até onde podemos ter a certeza de que não se trata de uma brincadeira de mau gosto? - A pergunta de Étienne soou fria e demolidora.

- Uma brincadeira de mau gosto? - As palavras de Maria, carregadas de cólera, não tinham nada de pergunta, eram tão-só uma clara recusa a admitir tal possibilidade.

- Sim, que alguém tivesse composto essa partitura com o fim de zombar de quem a encontrasse. Alguém que conhecesse a história que você nos contou e a utilizasse com esse fim - insistiu o francês.

Ainda que o italiano de Lúcio não fosse bom, percebia o suficiente para ter captado a intencionalidade daquelas palavras. O espanhol interveio, contrariado:

- Não estará o senhor a insinuar que tudo isto é uma grotesca ficção que a Maria e eu preparámos!?

- Eu não insinuei nada, meu caro amigo. Foi você que o disse.

- O francês afirmou aquilo com toda a frieza.

- O senhor é repugnante! - gritou Lúcio, pondo-se de pé.

- Você não? - Clermont-Lafargue era, obviamente, mais fleumático que MacFarlaine.

Michelotto, utilizando maneiras suaves, tentou acalmar Lúcio, mas a sua intervenção não fez senão exaltar ainda mais o violinista.

- Não creio que o monsieur Clermont-Lafargue tenha querido ofendê-lo.

- Não quis!? O que é que fez então quando primeiro insinuou e, de certo modo, ratificou depois que tudo isto era uma montagem para nos divertirmos? - Lúcio estava muito alterado.

- Creio que você interpretou mal as palavras de Étienne, meu amigo. Não é verdade, Étienne?

- A verdade é que nas minhas palavras não havia a intencionalidade que o senhor Torres lhe deu mas, em função da sua reacção, creio que a interpretação que fez das minhas palavras pode corresponder à realidade.

A possibilidade levantada pelo francês fez transbordar o cálice.

Também Maria se sentiu ofendida e pôs-se de pé.

É intolerável a sua atitude, monsieurl E, obviamente, não viemos a esta casa para sermos insultados! Creio que o melhor é dar esta reunião por concluída!

Perante aquilo, todos se puseram de pé, excepto Camila Strozzi. Michelotto suplicava que se sentassem, mas todos os seus esforços foram inúteis.

Lúcio e Maria saíram da reunião, na qual desde o primeiro momento se sentiram incomodados e, no fim, praticamente acossados.

Quando, na biblioteca, ficaram apenas Michelotto, Camila Strozzi e os outros três membros da Fraternitas Charitatis, a satisfação flutuava no ambiente.

- Foi mais fácil que o previsto - disse o francês -, eliminaram-se a eles próprios.

- Sim, mas não devemos perdê-los de vista, sabem demasiado e poderiam tornar-se perigosos. - Camila Strozzi, visivelmente, era a menos satisfeita.

- Este casalinho, perigosos? - O francês divertia-se à grande.

- O casal não, o que sabem sim - anotou Drexler. - Estou de acordo com Camila. Devemos tê-los sob controlo.

 

O jovem casal estava estupefacto, sobretudo Maria, que não conseguia explicar como tudo aquilo podia ter acabado assim. Lúcio estava muito alterado. Depois de abandonar a casa de Michelotto, dirigiram os seus passos para o mesmo bacaro aonde ela tinha ido dois dias antes com um estado de espírito completamente diferente daquele em que se encontrava agora. O ambiente era idêntico ao do outro dia e, como então, dirigiram-se para a relativa tranquilidade das mesas que havia ao fundo do estabelecimento.

Depois de terem pedido os capuccinos fez-se um prolongado silêncio.

- Não sei por que é que o dottore organizou esta reunião. Eu... Eu... não consigo compreender o que pretendeu com isto... - as lágrimas estavam quase a saltar dos olhos de Maria.

Após um silêncio em que parecia ruminar a sua cólera, Lúcio deu-lhe uma resposta.

- Tenho a sensação que o teu dottore é um farsante. Creio que nos utilizou de uma forma vil.

- Não digas isso, Lúcio. Michelotto é uma pessoa muito agradável... É tão... tão gentil!

- Pode ser muito gentil ou o que tu quiseres, mas isto foi uma armadilha! Não tenho outra explicação - enquanto Maria mostrava um estado de espírito cada vez mais abatido, Lúcio continuava muito exaltado - para a quantidade de obstáculos que desde o primeiro momento nos colocaram. Creio que tinham tudo isto estudado para nos provocar. Quem é aquele franciú de merda para duvidar de nós? Pouco faltou para nos acusar de falsificadores! Que grande cabrão!

Maria, que parecia ausente e tinha o olhar perdido, deu um gole no seu capuccino e deixou uma pergunta no ar:

- E agora o que vamos fazer?

Lúcio encolheu os ombros.

Não sei, mas se, por qualquer acaso, encontrasse a chave, eles não iriam ficar a saber de nada!

O semblante de Maria era a imagem da desolação. Após outro prolongado silêncio, que Lúcio interrompia uma e outra vez com insultos variados, disse:

- E se voltássemos lá?

Se uma chicotada tivesse passado pelas costas de Lúcio não teria tido um efeito mais fulminante.

- Nem morto! Eu com essa gente não me volto a sentar! Maria não respondeu àqueles arrebatamentos. Ao fim de uns instantes disse com um fio de voz:

- Creio, em todo o caso, que não nos devemos precipitar nas nossas decisões... Se... se realmente esta reunião foi, como tu pensas, uma armadilha que nos tinham preparado, é provável que tenham alcançado o seu objectivo. Ao saírmos de lá fizemos o jogo deles. Acabámos por sair do jogo...

- Qual jogo?

Maria respirou como forma de serenar o seu espírito.

- O que descobriste na Pietà, Lúcio, tem uma importância que não estamos em condições de medir, mas é suficientemente importante para que, para além da contessa Strozzi, estivessem ali um escocês, um alemão e um francês. Fomos ingénuos ao pensar que o segredo de Vivaldi era só uma questão de importância histórica para um punhado de sonhadores ou de românticos. Deve ser uma coisa que ainda hoje possui uma importância capital, para juntar em Veneza essa gente.

- O que estás a pensar?

Lúcio parecia um pouco mais descontraído e Maria um pouco mais animada.

- Este é um assunto de muito maior envergadura do que eu ou tu possamos imaginar. Talvez tenhas razão quando há pouco dizias que nos tínhamos comportado como dois pardalinhos, a quem deixaram fora de combate logo nos primeiros momentos. É possível que nos tenham provocado para que reagíssemos como o fizemos. Nós, sozinhos, é que nos pusemos a andar! Creio... creio que fomos uns imbecis.

- Agora a coisa já não tem remédio - disse Lúcio à laia de desculpa.

- Tem, sim.

- Como?

- Vamos regressar a casa do Michelotto!

- Nem morto! Estás a ouvir-me? Nem morto!

- Não sejas criança, meu amor. Têm a partitura e não terão nenhum problema para aceder ao arquivo do Ospedale della Pietà. Essa gente tem muita influência. O mais provável é que a ti te neguem agora o acesso. Já terão percebido que se a partitura se encontrava ali, também ali poderá estar a chave. com os meios que têm poderão localizá-la em muito pouco tempo!

- Para mim será um alívio deixar de mexer em maços de papéis! - disse Lúcio.

- Se eles te parecem tão filhos da puta e tão cabrões, por que é que te empenhas em fazer o jogo deles? Não te apercebes que nos comportámos como eles queriam? A única maneira que temos de estragar os seus planos é voltar de novo a estar com eles e pedir-lhes desculpas!

- Pedir-lhes desculpas! Nem pensar! Já te disse que nem morto volto a reunir-me com esses sacanas!

O lugar onde estava reunido aquele grupo de pessoas era um amplo gabinete de um dos pisos do andar nobre de um moderno edifício de escritórios no campo de San Barnarba. Tudo ali era moderno e sofisticado. Predominava o aço, o metacrilato, a fibra de vidro e o vidro; estava tudo informatizado. O rés-do-chão do imóvel era um elegante centro comercial, onde prestigiadas marcas de cosméticos e perfumaria, alta costura, lingerie ou acessórios tinham as suas lojas. Casas como Lancôme, Chanel, Rochas, Balenciaga, Versace, Loewe, Calvin Klein, Dutti ou Bulgari.

À entrada do andar onde se celebrava a reunião podia ler-se numa polida e reluzente placa B & T, sem mais informação. Tudo indicava que um dos objectivos era que ninguém tivesse conhecimento das actividades que ali se realizavam. O mobiliário era funcional, na maior parte das mesas havia computadores, dotados dos mais modernos equipamentos.

A sala de reuniões era muito grande e a decoração variava substancialmente das restantes salas: móveis de estilo, antigos, mas bem conservados, quadros pendurados nas paredes e objectos de decoração que denotavam bom gosto; ao centro, uma mesa ovalada rodeada de cadeirões forrados a pele preta onde se sentavam os congregados. Chamava a atenção pelos seus primorosos relevos - uma verdadeira jóia em madeira - uma estante cheia de livros, muito usados, segundo mostravam as suas lombadas. A um canto havia uma pequena secretária.

A pessoa que parecia presidir à reunião, ainda que nenhum sinal de privilégio desse a entender a presidência, tomou a palavra:

- Não devemos perder um instante porque o tempo não corre, de facto, a nosso favor. Queridos fratres, ides permitir-me que faça uma breve introdução antes de dar a palavra ao nosso irmão - dirigiu o olhar para um indivíduo de uns trinta e cinco ou quarenta anos e de cabeleira branca - que possui uma informação que é a causa desta precipitada e não prevista reunião. Até ao dia de hoje permaneceu perdida, sem que nada se soubesse do paradeiro da mensagem de Vivaldi. São muitos os que acreditam que desapareceu definitivamente.

O homem que estava a falar passeou o olhar pelos presentes.

O silêncio era pesado e todos estavam atentos às suas palavras para não perderem um só pormenor. Não sabiam onde é que queria chegar com aquela comunicação sobre um assunto que, tantas e tantas vezes, fora falado em reuniões da irmandade.

- Bem, o enigma do prete rosso ganhou uma nova dimensão. Ainda que ninguém tivesse aberto a boca tornou-se perceptível uma certa agitação entre os presentes, quase todos eles se mexeram nas suas cadeiras. O que era isso de o enigma Vivaldi ter ganho uma nova dimensão?

- Há dois dias, o frater Giorgio, aqui presente - olhou outra vez para o homem de cabelos brancos -, deu-me uma notícia verdadeiramente extraordinária: tinha tido nas suas mãos possivelmente o texto que Vivaldi enviara de Viena para Bellini, comunicando-lhe a descoberta que havia realizado.

As suas últimas palavras foram recebidas por um murmúrio que se elevou entre os presentes.

Quem falava esperou, satisfeito, observando o efeito que aquela notícia tinha provocado. Do outro extremo da mesa chegou uma pergunta.

- Como é isso?

- O que acabas de dizer é de uma importância extraordinária tanta que se torna quase incrível que possa ser verdade e digo isto sem querer, de maneira nenhuma, ser ofensivo. No entanto, perante uma notícia como essa, o mínimo que pode provocar-me é uma grande alegria. Mas surgem-me numerosas dúvidas. A primeira é como sabemos que o documento a que se refere o irmão Giorgio é o que Vivaldi enviou para Bellini? Como apareceu? Onde o encontraram? Quem o tem? Como é que o irmão Giorgio teve conhecimento da sua descoberta? Como sabemos que não é obra de um louco ou de uma brincadeira de mau gosto? Ou, o que é pior, como sabemos que não se trata de um acto planeado premeditadamente contra a Fraternidade? Como sabemos que não se trata de uma armadilha... preparada pelos nossos inimigos?

- Creio que são razoáveis todas as tuas dúvidas, todas essas perguntas e muitas mais daquelas que formulou o irmão Pietro disse quem presidia àquela reunião da Fraternitas Charitatis veneziana -, por isso na minha intervenção disse que só desejava pronunciar algumas palavras para explicar o motivo desta reunião extraordinária. Será o próprio Giorgio que dará uma explicação cabal a todas essas perguntas que formulaste.

com um eloquente gesto de cabeça, o frater Luigi Maretti indicou a Giorgio que podia falar quando quisesse.

- Há três dias recebi um telefonema de uma amiga, pedindo-me que fosse ter com ela a um café para que a ajudasse a determinar a autenticidade de um papel que, casualmente, tinha chegado às suas mãos. Trata-se de uma coisa normal no exercício da minha actividade. Era pouco antes das oito quando me telefonou e fui ter com ela depois de ter fechado o meu estabelecimento. Não esperava, nem de perto nem de longe, dar de caras com o que ela me pôs diante dos olhos. Tratava-se de uma partitura para violino, cujo conteúdo musical era muito deficiente, segundo me disse um músico espanhol que acompanhava a minha amiga e que era quem a tinha encontrado, quando realizava uma investigação. A surpresa seguinte foi saber o local onde aparecera: tratava-se do arquivo do Ospedale dela Pietá, que, como todos sabeis, ia ser objecto das nossas pesquisas proximamente. O que a minha amiga queria saber era se o papel da partitura pertencia ao século XVIII. E era, com efeito, desse século. Mas pude verificar muito mais, o papel tinha sido fabricado em Viena, entre os anos 1736 e 1752. Sabemos que o papel que se utilizava na Pietà era veneziano. Portanto, tratava-se de uma partitura escrita em Viena e enviada para Veneza num determinado momento, o que encaixa perfeitamente com a data em que Vivaldi enviou a sua mensagem para Bellini, que, nessa altura, era o patrono principal do Ospedale.

- O texto cifrado é uma partitura? - A pergunta surgiu entre os assistentes.

- É o que parece. O que não é estranho, tratando-se de Vivaldi.

- E a chave? Sabe-se alguma coisa da chave?

- Só conheço a partitura que descrevi - respondeu Giorgio Cataldo.

- Não pode tratar-se de um estratagema para nos levar a algum tipo de armadilha? - O frater Pietro não se dava por vencido.

- A possibilidade existe, obviamente, mas as suas probabilidades são mínimas. Conheço Maria dei Sarto, é assim que se chama a minha amiga, e sei que não me mentiu quando me disse que a pessoa que estava com ela era um músico espanhol. Trata-se de um jovem que está hospedado na estalagem da sua mãe, o Bucintoro, e tem-se relacionado com ela de uma forma muito especial. Chegou a Veneza há dez ou doze dias e está inscrito nas Jornadas Musicais que se celebram em honra de Vivaldi, de quem é um venerador.

- Como sabes tudo isso? - perguntou um dos presentes.

- Não perdi tempo nestes dias, quando tinha perante mim uma informação como aquela que o destino depositara nas minhas mãos. Fiz algumas pesquisas e obtive certas informações que me permitiram verificar determinadas afirmações da minha amiga Maria dei Sarto.

- Todos esses dados, Giorgio, avalizam as tuas informações, mas podemos ter a certeza de que a partitura que viste seja o texto onde Vivaldi guardou o seu segredo? - Quem falava era um indivíduo magro com um pronunciado nariz aquilino que dominava o seu rosto e que era uma extraordinária plataforma para o suporte de uns óculos cujas lentes denotavam muitas dioptrias. O seu nome era Romano Licci.

- Isso é verdade. Não podemos ter a certeza absoluta, mas creio estar em condições de afirmar que as possibilidades são muito elevadas.

- Como é que esse documento original do século XVIII estava em poder do músico espanhol? - quem fazia a pergunta era novamente o frater Pietro.

- Tinha-o tirado do arquivo - foi a lacónica resposta de Giorgio.

- Assim, sem mais... - disse alguém.

- Sabemos neste momento onde está a partitura? - insistiu Pietro.

- Isso não sei. Não sei se continuará em poder do casal. Pelo que me disseram tinham resolvido devolvê-lo ao arquivo da Pietà, mas não sei se optaram por outra decisão.

Após aquela resposta não se formularam mais perguntas. Os presentes pareciam esperar uma indicação que assinalasse o que deveriam fazer, porque era claro que aquela não era uma reunião apenas informativa. A informação que tinha sido posta na mesa obrigava a traçar um plano que deveria ser executado com a maior celeridade.

Luigi Maretti tomou a iniciativa.

- Creio que o nosso objectivo fundamental é encontrarmos esse documento. Se se tratar da mensagem de Vivaldi e eu tenho a convicção que sim, essa partitura pertence moralmente à nossa Fraternitas. Todavia, haverá outros que tentarão apoderar-se dela. A nossa vantagem está na rapidez com que actuarmos. O primeiro passo é saber em poder de quem está neste momento e não olhar nem a gastos nem a meios para ficarmos com a partitura. Aqueles que tiverem de passar à acção que o façam sem dúvidas ou considerações, está entendido?

Houve um assentimento geral de cabeças.

- Bem - continuou Maretti -, o frater Romano encarregar-se-á da planificação e o Giorgio levará a cabo as acções necessárias para nos apoderarmos da partitura, podereis procurar a ajuda que considereis necessária. Voltaremos a reunir-nos quando houver notícias para vos comunicar.

Antes de os presentes abandonarem a sala de reuniões, Maretti pediu uma última informação. Que fosse a última não significava que não fosse a mais importante.

Obviamente, o comendatore tem uma informação detalhada de como se estão a desenvolver os acontecimentos.

O assentimento geral que provocou indicava de forma inequívoca que aquilo não podia ser de outra forma.

Maria tocou duas vezes, quase consecutivas, na campainha do intercomunicador da casa de Stefano Michelotto. Quase imediatamente chegou-lhe a resposta:

- Prego?

- Maria dei Sarto e Lúcio Torres, pode abrir-nos a porta, por favor?

Não obteve resposta, o que foi aproveitado por Lúcio para resmungar um protesto mais, por vir reunir-se de novo com aquela gente. Os segundos passaram sem que ninguém viesse abrir-lhes a porta. Lúcio impacientava-se cada vez mais.

- Fazem-no, seguramente, para nos humilhar por termos batido com a porta! Vês como eu tenho razão, não deveríamos ter vindo!

Maria começava a perder a paciência quando uma das pesadas portas de madeira se entreabriu e apareceu o mordomo:

- Os senhores têm algum encontro marcado?

- Se temos o quê? - o grito de Lúcio surgiu acompanhado de um olhar iracundo.

O mordomo insistiu, imperturbável:

- Pergunto se os senhores têm algum encontro marcado.

- Veja bem! Acabámos de sair há uns momentos! Já não se lembra de nós? - Lúcio aproximou a sua cara da do mordomo, que não mexeu um só músculo e limitou-se a dizer com o mesmo tom de voz das duas vezes anteriores:

- Insisto, acaso os senhores têm algum encontro marcado? Maria adiantou-se à brutidão com que Lúcio ia responder.

- Sim, tínhamos um encontro. Era às dez.

- Perdoe-me, minha senhora, mas é quase uma hora... a senhora compreenderá que...

- O que eu tenho de compreender? - perguntou Lúcio.

- Que alguém como os senhores não podem fazer esperar o dottore quase três horas.

- Alguém como nós, como assim!? - Pela primeira vez sentia-se a indignação nas palavras de Maria. - Quem pensa que é para nos ofender dessa maneira?

O mordomo fez um gesto com a cabeça e, sem dizer palavra, deu a volta e fechou a porta atrás de si.

- Filho da puta! - gritou Lúcio, enquanto batia com os punhos nas pesadas portas de madeira. Depois tocou várias vezes na campainha com tal força que parecia que a sua vontade era furar a parede.

- Deixa, Lúcio! Não vale a pena! - gritou-lhe Maria. -- Agora é muito mais importante que actuemos com tranquilidade.

- com tranquilidade, é o que estás a dizer?

- Sim, com tranquilidade. Se tu tens razão e estes tipos, que devem ser peixes graúdos, tendo em conta que entre eles se encontrava a Strozzi, nos provocaram para nos afastarem deles, é porque a partitura encerra algo que ainda hoje tem uma grande importância.

- Onde queres chegar? - perguntou Lúcio um pouco mais calmo.

- Ouve-me com atenção. Se quisermos ganhar a partida temos de o fazer com habilidade. Eles são poderosos e têm muito mais meios. Além disso, Michelotto descodificará o segredo que encerra a partitura, se é que não o fez já.

- Nesse caso?

- Mesmo nesse caso, creio que teríamos uma carta a nosso favor.

- O que eu penso é que esta embrulhada não pode trazer-nos nada de bom. Se bem que, depois de ter visto a atitude destes tipos, gostaria muito de lhes dar na cabeça.

- Então, se é essa a tua vontade ouve-me com atenção e não me interrompas, porque a possibilidade que temos de lhes dar na cabeça, como tu dizes, depende da velocidade com que actuarmos.

 

Só a vontade de fazer alguma coisa que o deixasse por cima daquela gentalha de luvas brancas, segundo as suas próprias palavras e o desejo de satisfazer Maria, é que levaram Lúcio, uma vez mais, ao arquivo da Pietà. Maria tinha-o acompanhado até à porta do antigo Ospedale e pedira-lhe que procurasse o que era já um cobiçado objecto de desejo, num lugar concreto.

Lúcio pensava que não tinha muito sentido o que Maria lhe propusera, estava unicamente de acordo que o devia fazer sem perder um instante. Michelotto e aquela gente começariam a mexer-se, se é que não o tinham feito já.

- O que te peço não vai levar-te mais de quinze minutos e, como te disse, não seria a primeira vez que alguém actuava desta maneira. Não perdemos nada ao tentá-lo. Sei que a possibilidade é remota, mas será muito mais fácil do que continuar essa busca que te é tão penosa. Além disso, não creio que disponhamos de muito mais oportunidades para procurar nos fundos documentais que estão aí guardados. Michelotto, se a tua hipótese está certa, moverá todos os fios da sua influência para ser ele a poder aceder ao segredo que se esconde atrás desses papéis. Esperar-te-ei, enquanto vou dar um passeio por aqui.

Quando Lúcio Torres subia pelas marmóreas escadarias que o conduziam ao sótão onde se encontrava o arquivo - não tinha tido nenhum problema com o porteiro, que era, à partida, um dos seus medos - notou como o coração lhe batia cada vez com mais força. A sensação começava a transformar-se numa coisa desagradável e aumentava a sua angústia em cada segundo que passava. Pela sua cabeça passavam as angústias que vivera na tarde em que saiu com o arquivo, levando aquela maldita partitura. Percebeu que a causa da sua inquietação se encontrava nas últimas palavras que Mari lhe tinha sublinhado: "Em todo o caso não te esqueças da partitura."

Teria de sair outra vez dali nas mesmas condições em que o tinha feito anteriormente. Não queria nem pensar nisso, sentia como o seu corpo ardia e tinha começado a suar. Sentia-se francamente mal.

Estava a subir os últimos degraus quando pensou em ir-se embora e na razão que o levara a não utilizar o elevador. Respirou até encher os pulmões e meteu a chave na fechadura da porta. Mantinha-se intacta a confiança que o porteiro tinha nele. Pensou nisso como uma forma de ganhar ânimo. Uma vez dentro do arquivo conseguiu acalmar-se. Sentou-se durante uns instantes, sem fazer nada, tentando desanuviar a cabeça.

Procurou o livro de contas onde tinha encontrado a partitura e levou-o para a mesa, abriu-o e passou as páginas que o levaram ao que procurava. Ali estava a partitura. Afastou-a com cuidado e começou a ler o texto daquelas contas, sem encontrar nada que lhe desse uma pista. A intuição de Maria de que Tomasso Bellini tivesse deixado ali algum tipo de mensagem que permitisse aceder à chave desvanecia-se conforme passava as páginas. Só havia duas colunas com anotações de contabilidade.

Duas peças de pano branco para lençóis: 4 ducados e meio.

Uma arroba de sal: meio ducado.

Quatro cobertas de lona listada para colchões: 2 ducados e um quarto.

Quarenta libras de bolachas: 8 ducados.

Seis quarteirões de madeira de pinho para diversas reparações: 3 ducados.

O salário do porqueiro correspondente ao mês passado: 4 ducados e meio.

Ali não havia nada a fazer, Bellini não tinha deixado nenhuma pista. com o ânimo em baixo, pegou na partitura, fechou o maço de papéis e levantou-se para o colocar na estante. Algo passou pela sua cabeça que o levou a parar e a voltar à mesa. Abriu o livro na página onde tinha lido as notas e começou a passar as folhas. Em todas elas as invariáveis colunas de assentos contabilísticos.

Chegou à página onde estavam as anotações que fechavam o mês e a assinatura de Tomasso Bellini. Ali estavam umas linhas em que se dizia que se fechavam os assentos correspondentes ao mês da data, se fazia o resumo das despesas e entradas havidas. Apresentava um saldo negativo e invocava-se a Nossa Senhora da Pietà para que cobrisse com o seu manto protector a benéfica instituição. Lúcio fixou-se na data, a 30 dias do mês de Setembro do ano do nascimento de Nosso Senhor de 1741.

Semicerrou os olhos, como se aquele gesto o ajudasse a pensar. A 30 de Setembro era possível que Bellini já tivesse desaparecido. A morte de Vivaldi tinha ocorrido a 28 de Julho. Fixou-se na assinatura que fechava as contas daquele mês e não era a de Bellini!

Buscou na sua memória para recordar como vira a partitura da primeira vez e deu-se conta de que a tinha visto sair do livro.

Portanto, não poderia determinar em que página se encontrava! Mas se Bellini desapareceu pouco depois da morte de Vivaldi, provavelmente isso ter-se-ia passado durante o mês de Agosto, porque o mestre tinha falecido a 28 de Julho.

Passou um maço de folhas para trás e procurou o final de Agosto. Deu de caras com aquele tipo de contas que também não tinham sido assinadas por Bellini. Procurou no mês anterior e ali estava a assinatura do homem a quem Vivaldi tinha confiado o seu terrível segredo. No entanto, contrariando o prognóstico de Maria, ali não havia nenhum dado que revelasse algum indício relacionado com a chave da partitura do prete rosso. Leu o remate das contas mensais. O saldo era positivo, invocava-se a protecção da Madonna della Pietà e fechava-se com a data de final de mês a 30 dias do mês de Julho do ano do nascimento de Nosso Senhor de 1741.

Não havia nada a fazer. Maria tivera um palpite, mas não passava disso. Tinha pensado que Bellini, seguindo os ditames da Fraternitas Charitatis, teria deixado alguma pista para que se pudesse procurar a chave. Mas não tinha sido assim. Lúcio fechou, desiludido, o volumoso livro de contas, pegou no maço e colocou-o na estante correspondente. Deu uma olhadela aos maços de papéis com uma ponta de nostalgia. Tinha consciência de que era difícil voltar àquele lugar, onde tinha vivido momentos de fascinação e muitos outros de tédio. Pegou na partitura e guardou-a no bolso. com ela em seu poder, talvez pudessem dar uma cartada na partida que, sem dúvida, Michelotto estava a jogar. Pensou também nos instantes que ia passar até se encontrar na rua; só o amor que sentia por Maria lhe dava forças para repetir tal coisa.

Fechou a porta do arquivo e começou a descer as escadas lentamente, como se temesse chegar ao fim dos degraus. Começou a sentir outra vez esse calor que lhe indicava o aumento de uma tensão difícil de controlar, percebeu que começava a suar e a sentir um tremor nas mãos. Se a tremura aumentasse quando chegasse ao vestíbulo iria parecer um alucinado. Decidiu sentar-se num dos degraus. Tentou, uma vez mais, não pensar em nada, há pouco tinha resultado como um bálsamo para o seu agitado espírito, mas não podia. Pensou na última assinatura de Tomasso Bellini como patrono maior da Pietà. Sentiu um abanão, o seu cérebro estava a avisá-lo de qualquer coisa. Deu um pulo e pôs-se de pé. Como não se tinha dado conta! Como uma mente tão analítica como a sua não se apercebera de algo tão importante como aquilo! Subiu os degraus de dois em dois. Era possível que a Maria tivesse razão!

Entrou no arquivo, pegou no livro de contas de 1741 e procurou, avidamente, a página onde se encontrava as correspondentes ao mês de Julho.

A 30 dias do mês de Julho do ano do nascimento de Nosso Senhor de 174

Ali estava a chave!

Procurou as páginas em que se fechava cada mês: 31 de Dezembro, 31 de Janeiro, 28 de Fevereiro, 31 de Março, 30 de Abril, 31 de Maio, 30 de Junho, 30 de Julho...

Julho tem 31 dias! Por que razão tinha Tomasso Bellini fechado as contas um dia antes do mês acabar? Ali estava a chave que Bellini, por sua vez, tinha deixado para chegar à chave que permitiria descodificar o enigma do padre vermelho! Malditos venezianos! Ali nada era o que parecia ser e nunca nada era claro, tudo precisava sempre de ser interpretado!

Mas o que indicava aquele dia 30? Onde tinha de procurar?

Reparou que os fólios dos livros de contas estavam paginados. Talvez a página 30? Procurou apressadamente, mas ali não havia nada. Na página da esquerda notas de despesas e na direita notas de entradas. A cor das notas era castanha, mas de intensidade muito diferente, em função da quantidade de tinta que, em cada momento, teve a cana, e de traços muito fortes. Como em tantas outras páginas as anotações correspondentes às entradas eram muito menores e mais de metade da página ficava em branco.

Bellini estava a indicar outra coisa que não a página 30 com aquele número! Mas, se não era a página, o que poderia ser?

Maldito Bellini! - Lúcio deu-se conta de que tinha amaldiçoado em voz alta.

Entretanto, tentava procurar a explicação para o número 30. Chamou-lhe a atenção que a zona da página que sobrava estivesse em branco porque tinha observado que as partes que ficavam em branco, pela diferença do número de assentos contabilísticos, eram inutilizadas com umas linhas ondulantes de cima abaixo, de forma a evitar que se anotassem coisas posteriormente. Mas aquela tinha ficado em branco. Acariciou distraidamente o papel e notou na ponta dos dedos o relevo da tinta. Os seus dedos passaram também pelo papel em branco. Notou algo estranho. Olhou o fólio e voltou a acariciá-lo, agora com uma clara intenção. Verificar que a sensação obtida pelo seu tacto não tinha sido uma ilusão. Passou os dedos várias vezes, com muita suavidade, pelo papel e confirmou que a parte que estava em branco apresentava ao tacto a existência de uns traços. Mas ali não havia nada escrito!

Não havia nada escrito?

Recordou ter lido em algum lado ou talvez tivesse ouvido dizer a Maria? Não, tinha-o ouvido de Michelotto que para esconder mensagens se utilizava uma tinta invisível! Uma tinta que tinha um nome especial que agora não se lembrava. Mas lembrava-se que para a tornar visível era necessário passar pela escrita sumo de limão.

Lúcio sentia que o coração ia sair-lhe pela boca. A Maria tinha razão! O Bellini tinha deixado uma pista que, sem dúvida, conduziria até à chave! Tinha descoberto a pista, mas não podia aceder a ela naquele momento em que o tempo corria contra si!

Sumo de limão! Onde poderia encontrar sumo de limão?

Não sabia de quanto tempo disporia porque tinha a convicção de que Michelotto estava a dar os passos necessários para aceder ao arquivo, mas não tinha outro remédio senão conseguir um limão. Precisava de um vulgar limão. Tirou a partitura que tinha no bolso e meteu-a no livro numa página diferente da 30 - todas as precauções nas circunstâncias em que se encontrava lhe pareciam poucas. - Marcou o número do telemóvel de Maria e disse-lhe, sem mais explicações:

- Maria, sou eu, preciso de um limão.

- O que estás a dizer?

- Que preciso de um limão! Não percas tempo! Tenta arranjar-me um enquanto desço! Haverá aí por perto uma mercearia, digo eu!

- Mas para que queres...? - ficou com a palavra na boca porque a comunicação tinha sido cortada.

Maria esperava, passeando rua acima e rua abaixo, bisbilhotando as montras para matar o tempo e disfarçar a espera. Procurou com o olhar uma mercearia, mas não viu nenhuma. Entrou na loja cuja montra bisbilhotava e perguntou à empregada.

Havia uma, dois quarteirões abaixo, à esquerda. Maria caminhou o mais depressa que pôde. A saia estreita abaixo dos joelhos que tinha vestida - elegância de acordo com Michelotto - não lhe permitia correr. Chegou à mercearia e comprou dois limões, que pagou a um preço exorbitante, porque não esperou para receber o troco. Sabia que a busca que estavam a fazer era contra-relógio. Pensou na razão que tinha levado Lúcio a pedir-lhe um limão e chegou à conclusão, enquanto regressava à porta do velho Ospedale delia Pietà, que aquilo era um bom sinal. Quando viu Lúcio que a esperava impaciente, percebeu por que necessitava de um limão. Tinha descoberto algo que estava escrito com tinta simpática.

- O que encontraste? - perguntou-lhe com ansiedade.

- Creio que agarrámos o maldito Bellini, mas não posso perder um instante. Dá-me o limão! Creio que demorarei um pouco!

- Não podes dizer-me alguma coisa? - Maria estava ansiosa.

- O que não posso é perder tempo!

Quando Lúcio se voltou para entrar no edifício, Maria não pôde conter-se:

- Tem cuidado! Não deixes nenhuma pista!

Sem se voltar, Lúcio disse-lhe que sim com vários movimentos de cabeça, indicando, assim, que tinha recebido a mensagem.

Quando chegou ao sótão que albergava o arquivo deu-se conta de que, com os nervos e com as pressas, não tinha procurado nenhum instrumento cortante. Partiu o limão, utilizando a fivela do cinto. Foi o suficiente para que o sumo do fruto começasse a gotejar sobre o papel. Socorrendo-se de uma folha de papel, espalhou-o na superfície branca da página e como por arte de magia as palavras foram ganhando corpo. Em muito pouco tempo tinha aparecido um texto em que se podia ler o seguinte:

A chave para decifrar a mensagem do frater Vivaldi, contida na partitura que poderá encontrar-se entre as páginas deste livro, está sob a protecção dos santos Giovanni e Paolo, sob os pés de San Sebastiano e oculto por San Vincenzo Ferreri, graças ao meu antepassado, Que Deus Nosso Senhor perdoe os meus pecados e tenha piedade da minha alma.

- Que grande confusão! Maldito Bellini!

Lúcio copiou aquele texto num papel. Antes de fechar o livro lembrou-se das últimas palavras de Maria "Não deixes nenhuma pista!". Ainda que não fosse fácil chegar àquele texto, se ele o tinha conseguido, qualquer outro podia fazê-lo e Michelotto não era um qualquer outro. Além disso, ele tinha facilitado o trabalho a outros que procurassem o mesmo ao pôr a descoberto o que Bellini deixara oculto.

Não sabia o que fazer para levar à prática o conselho de Maria. Naquele momento tocou o telemóvel. O som indicou-lhe que era Maria que estava a telefonar-lhe. Não pôde conter uma exclamação:

- Que impaciência! Premiu a tecla e soltou-lhe um:

- Não sejas impaciente, meu amor. Irei descer numa questão de minutos!

- Escuta-me, Lúcio! O Michelotto e outros três tipos que não conheço acabam de entrar na Pietà Pelo que consigo ver estão a falar com o porteiro. Tens tempo à justa para te vires embora! Corre!

- Escuta-me com atenção! Não desligues o telefone e diz-me quando eles entrarem no elevador!

Sem pensar muito, Lúcio riscou com a esferográfica o texto escrito com a tinta simpática, até torná-lo ilegível. Depois, guardou no bolso a partitura e o papel onde tinha copiado o texto de Bellini. Fechou o calhamaço e colocou-o no seu lugar, com muita dificuldade ao fazê-lo com uma só mão; com a outra agarrava o telefone que estava colado à orelha. Justamente quando acabava, ouviu a voz de Maria:

- Lúcio, eles estão a entrar no elevador! O que estás a fazer?

- perguntou angustiada.

- Espera-me aí em baixo! - gritou-lhe ao telefone e desligou-o.

Saiu rapidamente e viu que o elevador vinha no quarto andar. Fechou a porta e lançou-se escadas abaixo procurando não fazer ruído. Tinha chegado ao primeiro lanço quando ouviu o barulho do elevador a parar. Continuou a descer as escadas, que o afastavam do perigo, enquanto ouvia abrir-se a porta e palavras soltas da conversa entre Michelotto e os seus três acompanhantes. Quando sentiu bater à porta do arquivo, tinha descido mais dois lanços de escada. Um grito maldito chegou aos seus ouvidos quando estava a chegar ao rés-do-chão. O porteiro não se encontrava ali, isso significava que tinha subido, acompanhando Michelotto. A isto chamava-se ter sorte. Deixou a chave sobre a mesa da portaria e saiu a toda a pressa. Na rua, Maria aguardava-o no passeio em frente. Atravessou sem olhar e puxou-a pela mão. Dobraram a primeira esquina que encontraram. Tinham conseguido escapar por segundos, mas estavam conscientes de que em Veneza havia poucos cantos seguros para eles. Afastavam-se com toda a rapidez que lhes permitia a saia de Maria e com a discrição que tinham de aparentar. Não deixar pistas! Não chamar a atenção!

Decidiram ir ao Bucintoro para irem buscar o estritamente necessário e procurar um lugar seguro. Enquanto caminhavam, de mão dada, Maria perguntou:

- Diz-me o que encontraste, por favor, não aguento mais esta incerteza!

- Temos a partitura original e localizei uma mensagem de Bellini, onde indicava o lugar da chave.

Iluminou-se a cara de Maria, dando um apertão na mão de Lúcio.

- Conseguimos! Vamos saber qual é o segredo de Vivaldi! Tinha a certeza de que Bellini recebeu a chave de Vivaldi e que, por alguma razão, não quis partilhar com os seus companheiros da Fraternitas Charitatis esse segredo. Não achas que tem de ser algo de extraordinário para que se comportasse daquela maneira?

- Suponho que sim. Mas vá lá saber-se o que era algo extraordinário para um indivíduo do século XVIII. Talvez, agora, nos pareça uma brincadeira de crianças.

Continuaram a caminhar e Lúcio, sem parar, virou a cara e olhou-a. Estava radiante, transformada. Ainda que não quisesse desiludi-la, Lúcio pensou que lhe devia contar tudo.

- Não cantes vitória tão depressa. É uma gente enigmática e complicada.

- Porque me dizes isso?

Porque Bellini deixou-nos, por sua vez, outra chave para chegar à mensagem de Vivaldi.

- Não posso acreditar nisso!

- Pois acredita, porque é a pura verdade!

- E o que diz essa chave?

- Maria, meu amor, já fiz o bastante em copiá-la e riscá-la para que quem a procure não possa encontrá-la.

- O que riscaste?

- A chave de Bellini. O grande espertalhão tinha-a escrito com tinta invisível...

- Então era para isso que querias o limão!

- Precisamente para isso.

- E o que riscaste?

- Segui o teu conselho: Não deixar nenhuma pista! Lembras-te?

- Sim, mas riscá-la!

- Maria, por favor! O que querias que eu fizesse com o Michelotto a pisar-me os calcanhares!

- Como descobriste onde se encontrava o texto de Bellini, se era invisível?

- Porque deixou uma pista quando assinou o encerramento das contas correspondentes ao mês de Julho, que foram as últimas que assinou. É incrível, mas assinou-as a 30 de Julho.

- A 30 de Julho? E o que isso tem de particular?

- Que não é o último dia do mês. Julho tem 31 dias. Todos os outros meses estavam assinados no último dia de cada um deles.

- Como te apercebeste disso? - Os olhos de Maria tinham um brilho especial.

- Não sei, chamou-me a atenção ao observar o final de todos os meses e as assinaturas.

Maria, sem deixar de andar, beijou-o no pescoço:

- Meu querido, acabarás por ser um magnífico detective. E aonde te conduziu essa data?

- Fui à página 30 daquele livro. Ali, como em muitas outras porque os assentos das entradas são menores que os correspondentes às despesas e para evitar que o livro ficasse desequilibrado deixavam espaços em branco mas, ao contrário de outras páginas não tinham inutilizado o espaço que não estava escrito para evitar anotações posteriores. E isso alertou-me.

- E como te deste conta de que ali havia um texto escrito?

- Pelo tacto. As pontas dos meus dedos sentiram o tacto da escrita oculta. Também descobri que os assentos no livro de contas se faziam com um certo atraso.

- Por que dizes isso?

- Porque a página. 30 tem assentos de Fevereiro e Bellini não pôde escrever aquilo antes de Julho. Se os assentos tivessem sido feitos à data teria inutilizado o papel com linhas ondulantes de cima abaixo. Talvez tivesse posto em dia a contabilidade quando se tornou consciente do perigo que corria, após receber a mensagem de Vivaldi.

Tinham chegado ao Bucintoro. Ali, aguardava-os uma desagradável surpresa.

 

Lúcio encontrava-se a meio caminho entre o assombro e o medo. O seu quarto no Bucintoro tinha sido revistado sem nenhum tipo de contemplação. Estava tudo remexido. As roupas espalhadas pelo chão, o colchão fora do sítio, assim como a roupa da cama. O mais doloroso de tudo é que tinham feito em fanicos o seu violino.

Ainda bem que não se tratava do seu adorado Tononil Mas a única coisa de que sentiu a falta, depois de verificar toda aquela confusão, foram os papéis nos quais anotara todos os dados de interesse investigados no arquivo da Pietà e as três fotocópias que guardava da partitura de Vivaldi. Aquela era a única, mas importante pista que os ladrões tinham deixado. Era como um cartão de visita em que mostravam que o seu interesse estava relacionado com a estranha partitura que Lúcio encontrara entre os papéis do arquivo.

- O que não consigo compreender - dizia Maria, enquanto ajudava Lúcio a apanhar a roupa e a pô-la na mala - é como sabiam qual era o teu quarto. A minha mãe está a perguntar ao pessoal da estalagem para ver se encontra alguma explicação para tudo isto.

- Talvez alguém tenha falado de mais - disse-lhe Lúcio, que não parava de arrumar a roupa. - O que não há dúvida é que se trata de alguém ao serviço do Michelotto e dos seus amigos. Ninguém mais sabe da existência da partitura. Porque também não há qualquer dúvida de que é disso que andam à procura.

- É possível. Mas, nesse caso, o Michelotto não encaixa - afirmou Maria.

- Não encaixa? - Lúcio franziu o sobrolho.

- Para que quer o Michelotto uma partitura que já tem! Lúcio parou por instantes e olhou-a fixamente.

- Talvez desejasse ficar com o documento original - e acrescentou num tom de gozo: - Para uma pessoa tão requintada as fotocópias devem ser coisa sem valor!

- Não sejas parvo... Mas é possível que tenhas razão. O dottore é um paleógrafo e, portanto, um amante de documentos. Uma fotocópia não deixa de ser um mau sucedâneo. É possível que isso explique a sua presença na Pietà. O que me leva a pensar que não devemos perder um instante.

Naquele momento, os nós de dedos a baterem à porta anunciavam a presença de alguém.

- Sim? - disse o Lúcio.

- Sou Giulietta, posso entrar?

Lúcio foi, solícito, abrir a porta à mãe de Maria.

Giulietta, embora se aproximasse dos cinquenta anos, conservava uma esplendorosa beleza. A sua elevada estatura fazia com que as suas opulentas formas lhe dessem um ar muito atraente. A tudo isto juntava-se uma elegância natural, a mesma que a sua filha Maria tinha herdado.

- Passa-se alguma coisa, mamã? - perguntou a jovem.

- Depois de falar com todo o pessoal da casa e para alguns deles telefonei para suas casas, sabemos algo sobre quem fez esta... esta... - olhou em volta - esta visita.

- O que conseguiste averiguar? - Maria tinha deixado de dobrar peças de roupa.

- Esta manhã, cerca do meio-dia, enquanto eu saí para ir às compras, dois homens que disseram ser colegas das Jornadas Musicais, nas quais Lúcio participava, perguntaram por ele. A Lorena, que estava na recepção, telefonou para o quarto sem obter resposta. Devido a esse procedimento, dado que o telefone está em cima do balcão, puderam saber de que quarto se tratava. Depois, irem até lá deve ter sido fácil, hoje foi um dia de muita azáfama e, num momento de descuido, alguém podia ter subido.

Maria olhou de uma maneira reprovadora para a sua mãe e esta acusou o toque. Giulietta fez uma cara compungida e sussurrou, à laia de desculpa:

Prometo que desta não passa e que iremos modernizar as nossas fechaduras.

- Mamã, já disseste isso demasiadas vezes para que eu acredite.

Não podemos continuar com chaves do século XIX. - A voz de Maria soou fatigada.

bom, bom, creio que isso não é agora o mais importante -

Giulietta não tinha muita vontade de falar sobre tal coisa. - A questão fundamental é saber quem foram os autores e, sobretudo, porque o fizeram. Creio que o melhor é avisar a polícia.

- De maneira nenhuma, mamã! Que nem te passe isso pela cabeça!

Giulietta fez um gesto de surpresa, mas o que ia a dizer ficou-lhe atravessado na garganta porque, naquele momento, o rapaz que prestava serviço na estalagem pediu licença para entrar no quarto e sussurrou-lhe algo ao ouvido.

- O que lhe disseste?

- Nada, senhora. Que ia procurá-la. Cravou os seus olhos em Lúcio e Maria:

- Algum de vocês chamou os carabinieri!

Os dois negaram com movimentos enérgicos de cabeça.

- O que se passa? - perguntou Maria.

- A polícia pergunta por Lúcio.

- A polícia pergunta por Lúcio?

- Sim, é verdade; e vais explicar-me o que se está a passar aqui.

- Giulietta tocou várias vezes com a ponta do dedo no peito da filha.

- Agora não temos tempo, mamã - a voz de Maria era pouco mais do que um sussurro -, tens de os mandar embora seja como for.

- Tenho de mandar embora a polícia, em vez de denunciar o assalto de que foi objecto a minha casa!? - Giulietta estava irritadíssima.

- Mamã, acredita em mim e dá-lhes uma explicação para que se possam ir embora! Por favor, fá-lo por mim! - Maria juntou as mãos num gesto de súplica com o qual reforçava o seu pedido.

- Não, não sem me explicarem que confusão é esta - Giulietta cruzou os braços, dando a entender que a sua decisão era firme.

- Senhora, o que digo aos carabininiri - O rapaz mal deixou ouvir a sua voz.

- Sei lá, Antonello! Diz-lhes que já desço! Quando o rapaz saiu do quarto, Giulietta insistiu:

- Se não me contarem o que se passa aqui, eu não desço! E, então, é possível que eles subam. Não sei se têm um mandato judicial, nem qual é a razão por que perguntam pelo Lúcio.

- Está bem, mamã - Maria fez um gesto de resignação

- Toda esta confusão está relacionada com uma valiosa partitura que o Lúcio descobriu.

- Uma partitura?

- Sim, foi isso por que me encontrei com o Michelotto. A partitura tem muito valor e são muitos os que desejam conhecer o seu conteúdo.

- Tudo isto por causa de uma partitura? - Giulietta fez uma careta.

- Sim, mamã, por causa de uma partitura. Por causa de uma partitura de Vivaldi. O seu valor pode ser incalculável. Por isso, aqueles que andavam à procura do Lúcio esta manhã eram músicos.

- Está bem - Giulietta assentiu com a cabeça e apertou os lábios -, ainda que não me convenças de todo; aqui há gato escondido! vou descer para falar com a polícia. Esperem aqui e não façam barulho.

Mal a sua mãe saiu, a Maria disse:

- Acaba de arrumar as tuas coisas, enquanto eu vou ao meu quarto buscar alguma roupa para levar, demoro apenas uns minutos. Temos de nos ir embora o mais rapidamente possível. - Beijou-o suavemente nos lábios.

Uns minutos depois, Giulietta entrava no desordenado quarto do músico espanhol com as feições alteradas. Sem nenhum preâmbulo declarou:

- Fizeram uma denúncia contra o Lúcio! Os carabinieri queriam saber onde estavas! Disse-lhes que não sabia e o mais provável era que só viesses à noite. Creio que ganhei algumas horas, mas comprometi-me a avisá-los mal chegasses e a comunicar-te que deverias esperá-los aqui. Virão interrogar-te.

Lúcio olhou para Maria e perguntou:

Interrogar-me porquê?

Giulietta encolheu os ombros.

Não me disseram nada. Mas creio que estará relacionado com todo este assunto que a Maria e tu têm entre mãos. Isso não pode trazer nada de bom! com os mortos o melhor é deixá-los descansar em paz e não andar para aí a remexer neles!

Maria colocou o braço por cima do ombro da mãe e deu-lhe um beijo na testa. Mostrou-se muito melosa.

- Mamã, tens de nos ajudar. Precisamos de tempo.

- Precisam? Mas a polícia não perguntou por ti!

- Mas eu vou com ele. - O tom de Maria era contundente.

- E para onde vão? Maria voltou a beijá-la:

- Não adivinhas?

- Não sei se será uma boa ideia. Creio que o melhor, se não têm nada a esconder, é falar com os carabinieri. Eles irão ajudá-los. Eu poderia... Ou têm alguma coisa a esconder?

- Mamã, já to disse. O Lúcio encontrou uma partitura de grande valor e isso desencadeou a ambição de muita gente.

- E vocês vão fazer frente a essa gente! Tu estás é louca, completamente louca!

Lúcio assistia à discussão entre mãe e filha que, durante um bom bocado, continuaram com aquele confronto dialéctico. Naquelas circunstâncias o melhor era ser convidado de pedra. Depois de vários minutos, Maria decidiu dar por acabada a discussão.

- Está bem, mamã, vais ajudar-nos ou não? Temos pressa e não podemos perder um minuto mais. Se me deres as chaves da casa de Torcello, ficaremos ali o tempo necessário para esclarecer tudo. Se não, procuraremos outro sítio.

A última coisa que Maria guardou na improvisada bagagem foi o seu computador portátil, um dos seus haveres mais valiosos; presente da sua mãe no seu último aniversário. Não ocupava espaço e seria sempre útil para se manter ligada ao mundo através da Internet.

Stefano Michelotto mal podia conter a sua ira. Só a sua requintada educação, que fazia parte da sua personalidade, lhe permitia manter as maneiras. Aquele músico espanhol tinha-se-lhe escapado por uma unha negra. Não perdeu tempo a procurar no arquivo.

Fá-lo-ia mais tarde. Embora não tivesse provas inquestionáveis para sustentar a acusação, tinha-se dirigido, sem perder um instante à primeira esquadra de polícia que encontrou; estava a muito poucos metros da Pietà, e fez uma denúncia. Falara com o comissário e só a sua influência tornou possível que, sem uma base substancial, em muito poucos minutos dois inspectores se tivessem apresentado no Bucintoro à procura de Lúcio Torres.

O que o dottore Michelotto tinha declarado era pouco consistente mas tinha sido suficiente para que o comissário agarrasse com as duas mãos aquela denúncia. Em síntese era que um músico espanhol chamado Lúcio Torres, de passagem por Veneza, tinha descoberto uma partitura no arquivo do Ospedale della Pietà - Michelotto tinha afirmado que a partitura era de Vivaldi com o objectivo de reforçar a sua denúncia - e que se apropriara dela. Ainda que não pudesse apresentar provas, a acusação - apropriação de um objecto de grande valor histórico e artístico - e a sua pessoa eram suficientemente importantes para que se actuasse. A urgência era aumentada pela qualidade de estrangeiro do denunciado que, em qualquer momento, podia abandonar Itália.

- Alguma prova, dottore? - tinha perguntado o comissário.

- Parece-lhe pouco a minha palavra e as consequências que poderiam derivar de uma possível negligência na acção policial? Imagine que o assunto sai para os meios de comunicação social!

Quando Michelotto disse ao comissário que desejava apresentar a denúncia por escrito, para que constasse, as poucas dúvidas do polícia sobre o facto de estar a iniciar uma actuação legítima, dissiparam-se. Todavia recomendou aos dois homens que mandou ao Bucintoro, depois de confirmar pelos dados dos hospedados na cidade, que naquela estalagem se encontrava um espanhol chamado Lúcio Torres, que fossem prudentes porque tudo aquilo poderia ser um embuste.

- Aqui não há nada de interesse! - Os olhinhos míopes de Romano Licci eram muito mais pequenos sem os óculos atrás dos quais se refugiavam. - Só se trata de apontamentos sobre a actividade de Vivaldi como professor de música no Ospedale della Pietà.

Aqui não há o mais pequeno indício dessa partitura que tiveste nas tuas mãos, Cataldo! O risco que corremos no Bucintoro não serviu para nada!

Nas últimas palavras de Licci adivinhava-se uma ponta de censura. Nesse momento, Giorgio Cataldo tirou do seu bolso as três fotocópias da partitura de Vivaldi:

Aqui tens. Não uma, mas sim três cópias da partitura que procurávamos. É suficiente? Procura um bom músico que a interprete.

O olhar que Licci lhe dirigiu estava cheio de ódio. Tinha-o ridicularizado de forma humilhante.

- E a chave? Onde está a chave? - perguntou-lhe azedamente, defendendo-se. Licci, que tinha posto os óculos, voltou a tirá-los, para olhar Cataldo fixamente nos olhos. Suavizando o mais que pôde o seu tom de voz, disse: - Creio que deveríamos ir ao arquivo da Pieta. Talvez, ali, encontremos o que procuramos. Conheço dois irmãos que são arquivistas, poderíamos pedir-lhes que fizessem a busca. Enquanto os localizo e os informo do que têm a fazer, monta uma discreta vigilância a esse casal de pombinhos, é possível que nos conduzam a algum lugar interessante.

Sem responder, Giorgio levantou-se e abandonou a sala onde Licci tinha montado o centro de operações, um discreto andar que a organização possuía na zona de Mestre, numa urbanização dormitório da Grande Veneza, onde as entradas e saídas passavam mais despercebidas a olhos indiscretos. Era evidente que entre Cataldo e Licci não havia a melhor das sintonias para realizar o trabalho que lhes tinha sido encomendado.

Maria e Lúcio tinham-se instalado no refúgio que era para eles a casa que a mãe dela possuía em Torcello. Tinha dois andares e Giulietta mantivera nela, quando a restaurou, todo o encanto da arquitectura rural. A ilha, que em tempos longínquos tinha tido uma população de cerca de 20 000 pessoas, era agora um lugar paradisíaco onde algumas famílias possuíam uma casa de campo, no meio da verde paisagem e sob a sombra das monumentais construções da praça principal. O problema mais grave era a escassez de serviços. Mal havia comércio e os únicos pontos de vendas eram lojas de recordações para turistas, para além de um excelente restaurante, o Locanda Cipriani.

No andar de baixo encontrava-se toda a zona social, cozinha, casa de jantar, um amplo salão onde, num dos cantos, se destacava uma soberba lareira, casa de banho, um pátio com algumas árvores e um telheiro para guardar lenha e os inevitáveis trastes que não serviam para nada. Sobre o pátio estendia-se um terraço onde se desfrutava uma esplêndida vista sobre a lagoa e a paisagem verdejante da ilha. No andar de cima havia quatro quartos em torno de uma antessala e duas casas de banho. A casa estava mobilada com admirável gosto e dotada de todos os elementos para uma vida confortável. O melhor, no entanto, era o silêncio e a paz que ali se respirava juntamente com a simpatia dos vizinhos, alguns dos quais conhecidos de Maria. Ninguém estranhou a sua presença. No máximo poderia haver alguns comentários acerca do jovem que a acompanhava.

Escolheram para dormir um quarto que tinha uma enorme cama de casal talhada em madeira de nogueira e, depois de colocarem no armário e numa cómoda a roupa que tinham metido de qualquer maneira nas malas, decidiram fazer amor e estudar mais tarde a chave de Bellini. Naquela belíssima cama brincaram gostosamente durante uma hora. Suados e ofegantes, mas com uma agradável satisfação reflectida nos seus rostos, permaneceram entrelaçados durante longos instantes. Foi Lúcio quem quebrou o silêncio.

- Concordas com a razão que te dei para explicar por que Michelotto revistou o meu quarto?

- Pode ser que sim. Não se conforma com uma fotocópia da partitura. Quer o original - respondeu Maria.

- Mas assaltar o meu quarto significa que pressupõe que eu fiquei com a partitura. Então, a pergunta é: por que foi à Pietà?

Após um breve silêncio, Maria disse:

- É possível que fosse à Pietà, depois de não ter encontrado nada na revista que fez ao teu quarto.

Lúcio acariciou o peito de Maria e ela respondeu-lhe, beijando-o no pescoço. Apertaram-se um contra o outro, como se quisessem fundir-se num só.

- Mas há qualquer coisa que não encaixa - disse Lúcio.

- O que é que não encaixa?

Por que levaram os meus apontamentos e as três fotocópias da partitura? Ele podia ter todas as que quisesse!

Maria permaneceu uns instantes em silêncio, procurava uma resposta.

- É possível que quem entrou no quarto tivesse instruções de levar todos os papéis que encontrasse! Vá lá saber-se que tipo de gente ali esteve!

- Isso é possível - concordou Lúcio.

Maria soergueu-se e ele olhou-a extasiado. Nesse momento o telemóvel de Maria soou de forma estridente. Levantou-se, exibindo o seu belo corpo, e procurou o telefone na bolsa.

- Prego?

Respondeu uma voz roufenha, num tom ameaçador:

- Não penses que será fácil escapar-nos, tens algo que queremos e vamos consegui-lo. Será melhor que te mostres disposta a colaborar e nós seremos generosos. Mas se resistires, terás problemas tão graves que nem sequer podes imaginar.

Maria tinha ficado transfigurada. Lúcio apercebeu-se de que algo muito sério estava a passar-se.

- Oiça! Quem é você? Como se atreve...?

- Escute-me com atenção e leve-me a sério. Dê-nos aquilo que você e esse músico que a acompanha têm. Já sabe a que me refiro. Só assim vos deixaremos em paz.

- Você é um canalha! O que vou fazer é denunciá-lo à polícia! - gritou Maria.

- Quem é que você vai denunciar? Uma voz? Deixe-se de patetices e tome atenção! Quem foi denunciado foi esse músico, por ter roubado um documento de alto valor histórico! Isso é um delito!

- O mesmo documento que vocês querem! - voltou a gritar Maria.

- É verdade, mas contra nós não se pode apresentar nenhuma acusação. Quem bisbilhotou no arquivo da Pietà foi esse Lúcio Torres que está tão ligado a si!

- Você é um canalha!

- É verdade, infelizmente para si. Amanhã voltarei a telefonar-lhe. Tem vinte e quatro horas para reflectir e ser uma boa rapariga.

Se for uma questão de dinheiro pode ser que cheguemos a um acordo, desde que você seja razoável.

- Está!? Está!?

Já não houve resposta.

Maria atirou o telemóvel para cima da cama. Tinha os olhos lacrimosos.

- Quem era?

- Um chalado!

- O que te disse? - Lúcio tentava manter a calma. Abraçou-a com força e ternura ao mesmo tempo. Maria desatou a chorar e ele tentou tranquilizá-la, acariciando-lhe suavemente a cara e o cabelo. Teve de esperar vários minutos até que ela começasse a falar e lhe contasse as ameaças que tinha recebido se não entregassem a partitura. Mas também estavam dispostos a oferecer-lhe uma quantia em dinheiro.

- Deram-nos um prazo de vinte e quatro horas - gemeu. Tomaram um duche e vestiram-se. Maria parecia um pouco mais tranquila, mas a tristeza que velava os seus olhos deixava bem claro qual era o seu estado de espírito. Lúcio propôs-lhe que saíssem para tomar alguma coisa.

- Penso que haverá algum sítio onde possamos jantar.

- Não, aqui em Torcello não há nenhum sítio salvo no restaurante de Locanda Cipriani, uma estalagem para personalidades da alta. Mas temos alguma comida no frigorífico e o que a minha mãe nos preparou. Prefiro ficar aqui.

- Estás com medo de sair? Pensas que podem saber onde estamos?

- Não, não creio que o saibam, pelo menos por agora. Contudo estou convencida que irão averiguá-lo. E o medo já me está entranhado no corpo. Nem podes imaginar como é o tom de voz desse indivíduo. É simplesmente pavoroso.

Aprovisionaram o frigorífico com o que lhes tinha preparado a mãe de Maria, dois sacos com comida, mais do que suficiente para se alimentarem durante vários dias. Improvisaram um jantar - salada, uma omeleta e fruta - e comeram em silêncio na mesa da cozinha. A tristeza de Maria estava a contagiar Lúcio. Nunca poderia ter suspeitado que a sua viagem a Veneza tomasse aquele rumo, sentia saudades de Córdova, dos seus amigos, e pensava nos seus pais.

Meteu a mão no bolso e apalpou o papel. Ali tinha a partitura, a chave de Bellini e, possivelmente, um bálsamo para o abatido ânimo de Maria.

- Queres conhecer a chave de Bellini?

Um brilho de ilusão iluminou os olhos de Maria, que assentiu com um movimento de cabeça. Lúcio desdobrou o papel, dando aos seus gestos um ar misterioso. Queria arrancar-lhe um sorriso. Ela apercebeu-se dos seus esforços, lançou-lhe um beijo e ofereceu-lhe esse sorriso.

A chave para decifrar a mensagem do frater Vivaldi, contida na partitura que poderá encontrar-se entre as páginas deste livro, está sob a protecção dos santos Giovanni e Paolo, sob os pés de San Sebastiano e oculta por San Vincenzo Ferreri, graças ao meu antepassado. Que Deus Nosso Senhor perdoe os meus pecados e tenha piedade da minha alma.

- Queres repetir-mo outra vez?

Lúcio fê-lo lentamente, para poder absorver o conteúdo de cada uma das palavras do texto.

- A primeira coisa que, de forma clara, aqui está é que, apesar do que a história nos conta acerca de Bellini ter dito que não recebera a chave, a verdade é que a recebeu e a ocultou. Estamos de acordo?

Lúcio concordou com a cabeça.

- Também sabemos que, ao ter a chave, pôde aceder ao segredo descoberto por Vivaldi.

- Exactamente - corroborou Lúcio.

- Creio que podemos não só supor, mas também afirmar continuou Maria - que o que Vivaldi descobriu devia ser algo perigoso para Bellini actuar da forma como o fez.

- Podemos afirmá-lo com muito fundamento. Ainda que o conceito de perigoso se possa ter alterado com o tempo - advertiu Lúcio.

E, desta vez, foi Maria que concordou.

- O que nos diz a seguir é o lugar onde guardou a chave há mais de dois séculos e meio.

Lúcio leu, uma vez mais, a segunda parte do texto:... sob a protecção dos santos Giovanni e Paolo, sob os pés de San Sebastiano e oculta por San Vincenzo Ferreri, graças ao meu antepassado.

- O que quererá dizer-nos com isto? Que podem ter em comum São João, São Paulo, São Sebastião e São Vicent Ferrer?

- Chama-me muito a atenção - disse Lúcio - a frase final. Soa de uma forma trágica. - Voltou a lê-la: - Que Deus Nosso Senhor perdoe os meus pecados e tenha piedade da minha alma. Como se sentiria Bellini para fazer uma declaração como esta?

- Não te esqueças que era um homem do século XVIII. Nessa altura, a religiosidade vivia-se de uma forma muito diferente, para muitas pessoas era o eixo das suas vidas e era uma sociedade menos materialista que a nossa. É possível, como tu pensas, que conhecer a misteriosa descoberta de Vivaldi o afectasse muito, até ao ponto de ocultá-la. Talvez esteja a pedir perdão pelo que fez, não te esqueças que enganou os outros membros da Fraternitas Charitatis.

- Enfim - o tom de Lúcio era resignado -, o mais importante para nós não é o estado de espírito de Bellini, nem os seus problemas de consciência, mas sim o lugar onde deixou escondida a chave.

Durante várias horas trabalharam com o computador portátil de Maria, procuraram na Internet toda a informação que podiam alcançar através desta via, ainda que aquilo fosse navegar num labirinto de dados não muito fiáveis. com tudo o que conseguiram obter baralharam possibilidades e formularam hipóteses. Mas não conseguiram chegar a qualquer conclusão clara. Aquela combinação de santos não lhes proporcionava nenhuma pista. São João era o discípulo amado de Jesus, para além de um dos quatro evangelistas, os últimos anos da sua vida estavam envolvidos num certo halo de mistério, retirado do mundo na ilha de Patmos para escrever uma obra estranha como o Apocalipse. São Paulo era feroz inimigo dos cristãos, mas uma repentina conversão quando ia a caminho de Damasco mudou completamente a sua vida. Dedicado ao apostolado, pôs tanta paixão na difusão das ideias que antes tinha perseguido que, para muitos, foi um dos pilares básicos na universalização do cristianismo. Também deixou uma importante obra escrita em forma de epístolas. São Sebastião era, por seu lado, um militar romano que, convertido ao cristianismo, se negou a prestar adoração ao imperador, pelo que foi martirizado: alvejado por setas até à morte. Considerado como um protector contra as doenças, o seu culto teve um grande destaque durante a Idade Média. Por último, São Vicente Ferrer era um monge da Ordem Dominicana, versado em teologia; homem apaixonado, defendeu zelosamente a ortodoxia de Roma, assim como o envio de hereges para a fogueira.

Nos seus rostos, após as tensões de um dia como o que tinham vivido, reflectia-se o cansaço acumulado. Talvez o melhor que pudessem fazer era descansar e abordar o texto no dia seguinte com as ideias mais claras. Fora um dia terrível. Tinham-se confrontado com Michelotto e sua camarilha. Tinham levado a partitura do arquivo, ou seja, tinham-na roubado. Tinham sido perseguidos. Fora apresentada uma denúncia contra Lúcio na esquadra da polícia e os seus agentes andavam à procura dele. Fugiram e esconderam-se. Tinham sido ameaçados por telefone. E tinham dado volta aos miolos até à exaustão por causa de um prete rosso e de mfrater, chamado Bellini.

- Creio que o melhor que podemos fazer é irmos dormir disse Lúcio. - Queres um copo de leite antes de te deitares? Posso aquecer no microondas.

- Sim, por favor. Irá cair-me bem.

Enquanto regulava o microondas para aquecer o leite, Lúcio disse, sem lhe dar grande importância:

- Por que razão agradece Bellini ao seu antepassado? O que tem esse outro Bellini a ver com tudo isto?

Maria sentiu uma ideia surgir na sua mente. Era como se o cansaço tivesse posto em baixas rotações todas as suas funções, incluindo as associadas ao pensamento. Levantou-se, rodeou Lúcio com os braços e deu-lhe um beijo apaixonado.

- És fora de série, meu amor! É possível que tenhas desvendado a chave de Bellini. Liga-te à Internet!

- Eu? - Lúcio apontou para si mesmo com o dedo indicador ao mesmo tempo que no seu rosto surgia uma expressão de incredulidade.

- Sim, tu! - reafirmou Maria a um Lúcio que, como estava cada vez mais espantado, não fizera o que ela lhe pedira. - Vamos, não fiques aí com esse ar de parvo! Rápido, liga o computador, é possível que encontremos um dado de grande importância na Internet!

É possível que tenhamos o segredo do prete rosso mais próximo do que poderíamos imaginar!

- Podes explicar-me em que estás a pensar?

- Não percas tempo e faz o que te digo!

Lúcio ligou o computador e accionou a ligação à Internet sem saber o que estava a passar pela cabeça de Maria e o que tinha feito para abrir aquela janela que deixava entrever a solução do misterioso enigma.

 

O porteiro da Pietà tinha sucumbido à generosa gorjeta que lhe dera Stefano Michelotto. Mil euros! Era quase tanto como o seu ordenado de um mês. Em troca devia permitir-lhe o acesso ao arquivo. Não necessitaria mais de dois dias e, possivelmente, só algumas horas se encontrasse o que procurava.

A única coisa que fazia confusão ao porteiro era o facto de aquele poeirento armazém de papéis velhos, onde ninguém punha os pés há anos, estar a ganhar tanta importância. Pensou que, caso surgisse algum problema, poderia defender-se dizendo que o dottore Michelotto era um reputado catedrático da universidade.

Às nove da manhã, Michelotto chegou à Pietà, subiu ao arquivo e pôs-se a vasculhar entre as prateleiras o livro de contas correspondente a 1741. Não teve problemas em dar com ele. Movimentava-se no seu terreno, ainda que nunca na sua vida tivesse posto os pés naquele sótão.

Michelotto procurou a partitura sem a encontrar. O que era só uma possibilidade, utilizada na sua denúncia contra Lúcio, ganhava força. Agora tinha a certeza que a partitura original estava em poder daquele casal de jovens que ignoravam o verdadeiro valor do que tinham entre mãos. Não encontrar a partitura não lhe deu maior frustração do que a de ter deixado escapar aqueles dois sonhadores. Era só uma questão de tempo. Mais tarde ou mais cedo, daria com eles, ainda que tivesse de segui-los até ao lugar mais recôndito da Terra. Não tinha esperado tantos anos para agora, que o destino punha ao seu alcance o objecto de tantos desvelos, deixá-lo escapar!

Segundo a informação que a própria Maria lhe tinha facultado aquele volume servira para ocultar a partitura na qual Vivaldi tinha escondido a sua descoberta. E na Fraternitas Charitatis mantinha-se a crença de que o segredo descoberto por Vivaldi era o mesmo que os templários, tão sigilosamente, tinham mantido oculto durante séculos. Tocara com a ponta dos dedos num êxito que, de maneira nenhuma, lhe escaparia. No meio da sua frustração reconfortava-o o facto de o outro ramo da irmandade, os que se tinham separado em 1870 por não compreenderem que a unidade de Itália estava acima dos interesses políticos do Vaticano, não fazerem a mais remota ideia do curso que tinham tomado os acontecimentos.

Michelotto deleitou-se com aquele pensamento. Se tivessem êxito dariam um golpe mortal nos outros fratres. Ignorava que um outro acaso do destino, comparável ao que acontecera com ele, também os tinha posto na pista do segredo do padre vermelho.

O que não conseguia explicar era como a gerações de companheiros não lhes passara pela cabeça procurar nos arquivos da Pietà o texto que Vivaldi tinha enviado para os seus confrades da Fraternitas Charitatis. Embora estivesse consciente de que as coisas parecem fáceis e lógicas quando alguém dá o passo decisivo para que se faça luz, não conseguia ter uma explicação para este facto.

Folheou o livro, sem saber muito bem o que procurava, uma vez que tinha verificado que a famosa partitura não se encontrava ali. Provavelmente olhava porque, como lhe tinha confessado Maria dei Sarto, Tomasso Bellini também devia ter escondido ali a chave que permitia a sua decifração.

Não teve de passar muitas páginas porque, ao chegar ao número

30, encontrou algo surpreendente. Alguém riscara várias linhas que ali estavam escritas. Aqueles riscos tinham sido feitos com uma esferográfica e a tinta era fresca, bastou apertar com o dedo para que a tinta esborratasse. Tinha sido utilizada tinta vulgar, possivelmente de uma bic convencional. Quem tinha riscado aquilo, fizera-o conscientemente. Não era possível ler nada do conteúdo do texto ocultado à vista desarmada por tão grosseiro processo, mas não haveria dificuldade se fossem usados raios X. Eles permitiriam ler o que estava por debaixo daqueles rabiscos.

O maior problema era o tempo. Não tanto o que demoraria a utilizar os raios X naquele maço de papéis, mas sim a vantagem que levava quem o tinha riscado.

Fez a dedução mais lógica. Segundo o tinha informado o porteiro, naquele arquivo ninguém entrara em muitos meses, salvo o músico espanhol. Assim, ele tinha sido, necessariamente, o autor e só o teria riscado porque continha uma valiosa informação que não podia ser deixada ao alcance de qualquer um. Portanto, Lúcio Torres, era quem detinha aquela informação. Era possível que a tivesse encontrado na tarde anterior, quando estivera quase a surpreendê-lo ali mesmo, e isso significava que levava algumas horas de vantagem; podia ser muito pouco ou podia ser muito, tudo dependia do que revelasse o texto riscado que tinha diante de si. Não podia permitir-se perder um segundo mais, aplicaria os raios X àquele calhamaço. Conhecia vários restauradores que tinham o instrumento adequado para o fazer sem problemas.

com uma outra boa gorjeta ao porteiro fez com que este não "visse" que levava um calhamaço com a promessa de vir entregá-lo posteriormente.

- Será apenas uma questão de horas - prometeu Michelotto, enquanto lhe passava cinco notas de cem euros. O dottore tinha a certeza de que por esse dinheiro aquele indivíduo até lhe teria permitido que ficasse com o maço de papéis.

Lúcio dera-lhe a ideia para descodificar a mensagem que Tomasso Bellini deixara consignada por escrito quando distraidamente disse: "O que tem esse outro Bellini a ver com tudo isto?". Maria lembrou-se, naquele momento, da família de pintores que criaram a escola veneziana de pintura. Gentille Bellini tinha trabalhado na segunda metade do século XV. Também se incluíam Jacobo e Giovanni Bellini. Muitas das suas obras, de fundo religioso, eram dedicadas a santos. Haveria alguma relação entre os santos tão díspares e a obra de algum dos pintores?

Lutando contra o cansaço, tinham navegado durante longos momentos pela Internet, à procura de informação sobre os Bellini. Descobriram que algumas obras de Gentille Bellini estavam na igreja de San Giovanni e San Paolo. Aqueles dois santos eram os dois primeiros aos quais fazia referência a chave de Bellini! Procuraram informações sobre aquele templo. Tratava-se de uma igreja de estilo gótico, começada a construir em 1246, mas que não fora concluída antes de 1430. Desde muito cedo se transformou no panteão dos grandes personagens de Veneza. Ali estavam enterrados, entre outros, vários ãogos da Baixa Idade Média como lacopo e Lorenzo Tiepolo ou Marco Micheli; ali se erguiam os três grandes monumentos funerários dos Mocenigo e o do dogo Alvise e de sua mulher. Também guardava uma das maiores glórias de Veneza; no monumento funerário de António Bragadín, o heróico defensor de Famagusta, encontrava-se a urna que guardava a sua pele, a mesma que os turcos arrancaram ao esfolá-lo vivo.

Quando Maria verificou que um dos altares da igreja era dedicado a São Vicente Ferrer e que era obra de Gentille Bellini, não pôde conter uma exclamação de júbilo:

- Apanhámos-te, Tomasso Bellini!

Deitaram-se muito tarde e mal puderam pregar olho. Três horas depois levantaram-se e tomaram juntos um duche reconfortante. Depois de se vestirem, desceram para tomar o pequeno-almoço.

Enquanto bebiam café e mordiscavam umas torradas de pão de forma com manteiga, traçaram o seu plano de acção antes de saírem para apanhar o vaporetto. Iriam até à igreja. Ninguém os procuraria ali e comportar-se-iam como dois turistas anónimos que admirassem a beleza do monumento e o seu precioso conteúdo. Teriam de examinar de forma exaustiva aquele altar dedicado a São Vicente Ferrer.

Apanharam o primeiro vaporetto que fazia a linha 12, a que ia de Torcello à piazza de São Marcos e atravessaram a laguna. A frescura da manhã tonificou-os como se recebessem uma saudável massagem. Eram dez menos dez quando saíram da embarcação e se dirigiram ao seu objectivo. Atravessaram a piazza e o Canal do Palazzo, depois meteram-se pelo labirinto de ruelas e canais que os conduzia até ao campo de San Giwanni e San Paolo. Deixaram à esquerda a graciosa igreja, toda revestida a mármore branco, dedicada à santa Maria Formosa. Na praça do mesmo nome reinava já uma grande animação nos buliçosos cafés que a rodeavam e, sobretudo, na actividade do mercado de verduras que ali se instalava todas as manhãs, os gritos dos vendedores deixavam-se ouvir acima do rumor e do movimento das pessoas. Seguiram até ao campo de Santa Marina e viraram à direita, atravessaram um pequeno canal e dirigiram-se para a Rua Gallina que os conduzia até à imponente igreja dos dominicanos, dedicada aos'santos Giovanni e Paolo e que os venezianos conhecem popularmente com o nome de Zanipolo. Na praça que abre entre a sua fachada e um canal erguia-se a escultura equestre de Bartolomeu Colleoni.

Aproximaram-se da porta da igreja e verificaram que o horário de visita ao público era às dez e meia. Ainda faltavam dez minutos.

- Sabes de quem é a estátua? - perguntou Lúcio.

- É U Colleoni.

- Colleoni? E quem é esse?

- Foi um condottieri, chamado Bartolomeu Colleone, que lutou ao serviço de Veneza no século XV e que ganhou uma imensa fortuna com as suas vitórias. Os venezianos não estavam dispostos a lutar, mas sim a pagar a quem o fizesse por eles. Quando morreu legou a sua fortuna à cidade com uma condição.

- Qual era essa condição? - perguntou Lúcio.

- Que se erguesse uma estátua em sua honra "na praça diante de São Marcos". O mercenário desejava o seu monumento no lugar mais emblemático de Veneza.

Lúcio olhou para Maria.

- Ficaram com os ducados e não cumpriram a sua palavra.

- Estás enganado.

- Como é que estou enganado! Ergueram a estátua, mas não está na praça de São Marcos, como queria o Colleone!

- Os governantes de Veneza cumpriram com o seu compromisso porque o mercenário tinha posto no testamento "na praça diante de São Marcos". A escultura, a propósito excelente, é de Verrochio, está na praça e em frente à Escola de São Marcos, uma instituição de caridade, que também tinha o nome do padroeiro da cidade.

- Esta cidade é muito complicada! - exclamou Lúcio.

- Muito complicada? - A picardia brilhava nos belos olhos de Maria.

- Tanto como a maneira com que nela me enredaste! Amo-te com toda a minha alma!

- Não terás sido tu sozinho a enredar-te? - Maria abraçou-se ao seu pescoço e beijou-o na cara repetidamente.

Compraram as entradas - os seis euros pagos por cada uma mostravam que continuava vivo o espírito comercial dos habitantes da cidade - e entraram naquele panteão das glórias venezianas, onde, de momento, eram os únicos visitantes. Movimentaram-se com calma, dando a sensação de pessoas interessadas em tão monumental obra. Maria apontou para vários dos impressionantes sepulcros onde tinham apodrecido os restos mortais de alguns dos grandes homens. Circularam pelas três naves da igreja até que pararam no segundo altar da direita, diante de um retábulo cujo centro era ocupado pela figura de um monge dominicano - hábito branco e capa negra - que, com o olhar perdido no infinito, segurava um livro aberto na sua mão esquerda e a maqueta da igreja na direita. Estava flanqueado por um gigante, que atravessava as águas de um rio levando sobre o ombro um menino, e por um santo no momento de sofrer o martírio: nu, amarrado a uma árvore e com nove flechas cravadas no seu belo corpo.

- Aqui o temos - sussurrou Maria.

- Tens a certeza?

- Absoluta. O da direita é São Sebastião, condenaram-no a morrer como alvo de setas por se negar adorar o imperador. É de supor que o monge que está ao meio é São Vicente Ferrer.

- É - afirmou Lúcio claramente.

- Como sabes? - A pergunta denotava suspicácia.

- Porque ali, naquele letreiro diz "Políptico de San Vincenzo Ferreri. Obra de G. Bellini (1464-1468)" - apontou com o dedo.

Os dois sentaram-se no primeiro dos bancos que havia diante do altar, pareciam contemplar extasiados aquela obra do primeiro Renascimento veneziano.

- O texto dizia:... encontra-se sob a protecção aos santos Giovanni e Paolo, sob os pés de San Sebastiano e oculta por San Vincenzo Ferreri, graças ao meu antepassado. Que Deus Nosso Senhor perdoe os meus pecados e tenha piedade da minha alma. Vamos por partes - Maria tentava não perder a tranquilidade, como forma de manter as ideias claras - creio que estamos no sítio correcto: São João e São Paulo, estamos defronte de uma obra de Gentille Bellini, que podemos considerar um antepassado, embora isso não o saibamos com toda a certeza, de Tomasso Bellini. Nesta obra encontra-se São Sebastião, o que há sob os seus pés?

- Podemos partir do princípio que há várias coisas - disse Lúcio -, a terra onde assentam os pés; também podemos tomar em consideração a cidade que se vê ao fundo. Debaixo dos seus pés está a moldura que separa essa pintura da que se encontra logo abaixo. Aquilo não levava a nada.

-oculta por San Vincenzo Ferreri. Mas São Vicente está ao lado de São Sebastião. Aqui há algo que não encaixa.

Os minutos passavam lentamente e Lúcio e Maria não avançavam no que consideravam ser o último passo para chegar ao seu objectivo... Ter-se-ia Bellini enganado e quereria dizer ao lado de São Sebastião? E, ainda que fosse assim, o lado, mas onde?

Aquilo eram as pinturas de um retábulo. Onde poderia estar a chave oculta?

- O da esquerda é São Cristóvão - disse Maria.

- E isso traz-nos alguma coisa de novo? - perguntou Lúcio.

- Não, nada, disse-o só por dizer. Isto é mais difícil do que tínhamos pensado, Lúcio.

- Creio que estamos há muito tempo aqui sentados, é possível que chamemos a atenção de alguém. Seria melhor saírmos, isso ajudar-nos-á a aclarar as ideias.

- E depois entramos outra vez?

- Sim.

- E isso não iria parecer estranho?

Naquele momento uma voz cadenciada, melíflua, soou nas suas costas; apesar do seu tom, sobressaltou-os:

- Reparei que estão muito interessados nesta obra do genial Bellini.

Não foi difícil os raios X revelarem o texto que Lúcio tinha riscado.

A imagem projectada no ecrã foi copiada cuidadosamente por Michelotto. Depois fotografou-a repetidas vezes.

- De que se trata, Dottore? - perguntou um dos técnicos. Michelotto sentiu-se incomodado pela pergunta.

- Encomendaram-me um trabalho e chamou-me a atenção que neste livro aparecesse riscado o texto que trouxeram à luz Como podem observar aparece o nome de Vivaldi.

com aquela explicação deu por clarificada a pergunta. Agradeceu o trabalho realizado e foi-se embora sem mais demoras Ordenou ao seu motorista, um sérvio que também lhe servia de guarda-costas, que o levasse à Pietà. Quando chegou, o porteiro disse-lhe que estavam a passar-se coisas muito estranhas.

- O que se está a passar? - Michelotto tinha debaixo do braço o livro de contas.

- Primeiro, se me dá licença, o livro. O melhor é eu guardá-lo. Pegou nele e olhou para a lombada.

- Um livro de 1741.

- O ano em que morreu Vivaldi - disse distraidamente Michelotto.

O porteiro abriu uma gaveta da sua mesa da portaria e colocou-o ali, fechado à chave.

- Não se preocupe com nada, eu guardá-lo-ei no seu lugar quando não houver olhos indiscretos.

- Olhos indiscretos? - Michelotto estava surpreendido.

- Veja bem, enquanto o senhor esteve ausente vieram aqui dois tipos, arquivistas do Estado, que querem verificar uma informação no arquivo.

Michelotto fez um gesto de contrariedade, mal perceptível. "O que fariam dois arquivistas do Estado a meter ali o nariz?" Ruminava naquele pensamento, ao mesmo tempo que perguntava:

- E o que isso tem de especial?

- Veja bem, meu caro senhor, como já lhe disse passaram-se muitos meses, inclusive anos, sem que ninguém se tenha interessado pelos papéis guardados neste arquivo, esquecido por toda a gente. Agora, de repente, todos procuram informações lá em cima - apontou com o dedo para o tecto. - Está a passar-se qualquer coisa muito estranha, digo eu, que destas coisas ainda sei um pouco.

- Esses senhores deixaram o seu nome?

- Mostraram-me a documentação que os identifica, mas não me lembro como se chamam... O nome de um deles é Nicola... de certeza... Nicola, creio que Martini, mas não posso dar a certeza.

- Agora tenho de me ir, mas gostaria de saber quem são esses dois arquivistas. Como imagina... coisas da concorrência entre investigadores. Não gostaria que se adiantassem ao meu trabalho.

Compreendo-o, doutor, compreendo-o. Vejo que o assunto,

como eu suspeitava, é importante e o senhor deseja obter mais informação - encolheu os ombros e abriu as mãos. - Quem tem informação tem poder!

Aquele sujeito estava a dar-lhe em cima e, além disso, disposto a explorar as possibilidades que tinha ao seu alcance.

- Você encarregar-se-á de colocar discretamente o livro no seu lugar e dar-me-á os nomes desses arquivistas esta tarde. Mandarei uma pessoa a quem você dará a informação. - Puxou da carteira, tirou duas notas de cem euros e deu-lhas discretamente. - Isto é para comprar um presente à sua mulher.

O porteiro disse que sim com a cabeça ao receber o dinheiro. Michelotto estava já a sair pela porta, quando lhe gritou:

- Senhor doutor, não se esqueça que me vou embora às seis... por causa da pessoa que há-de vir.

Aquele indivíduo teria pouco mais de trinta anos. O seu aspecto era muito agradável; alto e magro, tinha as feições um tanto angulosas e quase perfeitas e o cabelo preto estava cuidadosamente cortado. O mais chamativo eram os olhos, pelo contraste que marcavam com a cor do cabelo e com a pele bronzeada; eram de um azul intenso. Vestia de uma forma muito informal: calças cor de caqui e uma camisa aos quadrados, azul e branca, os mocassins que calçava eram de uma pele flexível e não usava meias.

- Lamento que se tenham sobressaltado. Não era essa a minha intenção. Mas vi-os tão enlevados na contemplação dessas pinturas que não resisti à tentação de me aproximar de vós. Permitam-me que me apresente. O meu nome é Guido Ranucci e sou o pároco de San Giovanni e San Paolo. Posso ser-lhes útil em alguma coisa?

Maria e Lúcio tinham passado do sobressalto à surpresa. Quem diria que aquele indivíduo era padre? Parecia, antes, um actor de cinema. Puseram-se de pé e cumprimentaram-no.

- Interessa-lhes Bellini ou esta obra em particular?

- Chamou-nos a atenção esta obra - respondeu Maria. Este São Sebastião é tão belo que uma pessoa não se cansa de o contemplar. Suponho que o santo que está à esquerda de São Vicente é São Cristóvão.

- É, de facto, São Cristóvão, levando o Menino Jesus. - A voz de Guido era envolvente, quente. Maria pensou que seria um prazer escutá-lo numa homilia. - As figuras de cima - continuou o sacerdote - representam o Cristo morto, o arcanjo São Gabriel e a Madonna no momento da Anunciação.

E estas pinturas de baixo, o que são? - Lúcio apontou para as três cenas, em tamanho muito menor, que havia na parte inferior do retábulo.

São três momentos da vida de São Vicente. A mais importante é a que está aos pés de São Sebastião, que tanto impressionou a senhora.

Ao ouvir aquelas palavras, Maria e Lúcio, trocaram um olhar significativo. Acabavam de ouvir as mesmas palavras que Tomasso Bellini tinha deixado consignadas por escrito.

"Será verdadeiramente quem diz ser?". Esta dúvida tinha-lhe chegado de repente. "Não se tratará de uma armadilha?". Sabia por experiência que a incerteza era uma das coisas que pior suportava. Preferia mil vezes saber com o que se confrontava para o bem e para o mal. Por isso a tinha afectado tanto o telefonema da noite anterior.

Uma voz de mulher tirou-a daquelas momentâneas elucubrações.

- Padre Ranucci! Padre Ranucci! Chamam-no ao telefone! Na sacristia! Creio que é do colégio das irmãs dominicanas!

O sacerdote fez um gesto de desculpa, que acompanhou com palavras:

- Sinto muito, mas o dever chama-me. Se desejarem alguma coisa da minha humilde pessoa, já sabem onde me poderão encontrar. Desfrutem da vossa visita.

Dirigiu-se para a sacristia com um andar que destilava elegância. Maria pensou, uma vez mais, que seria um magnífico galã de cinema.

Lúcio aproximou-se da pintura que estava por debaixo de São Sebastião. Era uma cena em que São Vicente Ferrer aparecia milagrosamente a sobrevoar um grupo de pessoas que ia para uma celebração. Observou a pintura com cuidado e concentrou a sua atenção nos bordes. Maria também se tinha fixado naquela cena.

- Como é que não nos demos conta antes?

- O importante é que estamos a chegar ao fim ou, pelo menos, é o que quero acreditar - Maria esquadrinhava a zona lateral do retábulo, tentando calibrar a sua grossura. - Chegou como se fosse uma aparição. Que grande susto que apanhei! Não parece nada um padre, pois não?

- Eu diria que não tem o perfil. Mas, como vês, o hábito não faz o monge e, sobretudo, em Veneza nada é o que parece.

Maria tocou com a ponta dos dedos na pintura. Tratava-se de um painel.

- O que estás a pensar? - perguntou-lhe Lúcio.

- oculta por San Vincenzo Ferreri. Se Tomasso Bellini não estivesse a brincar connosco e creio que não o fazia, a chave de Vivaldi está atrás desta pintura. Quem a esconde é este São Vicente Ferrer.

Naquele momento saiu um ruído da bolsa de Maria. Era o seu telemóvel que tocava com estridência no meio da paz e silêncio que reinava sob as abóbadas da igreja. Ficou imediatamente com o rosto contraído. Pegou no telefone com medo. Nem olhou para ele.

- Não sei o que responder, Lúcio. Tenho medo!

- Dá cá o telemóvel.

O músico não esperou pela anuência de Maria, que tinha ficado quase paralisada.

- Sim?

- Sim, sou eu, Lúcio.

- A Maria está ao meu lado. Quer falar com ela?

- Sim, sim, claro.

Olhou para Maria, estendeu-lhe o telefone e deu-lhe um beijo.

- Não há problema. É a tua mãe. Um sorriso desenhou-se-lhe nos lábios.

- Sim, mamã, passa-se alguma coisa?

Houve um grande silêncio durante o qual Maria ouvia a sua mãe. À medida que o tempo passava o seu rosto ia ficando cada vez mais carregado. Lúcio não podia aperceber-se disso porque tinha concentrado a sua atenção no painel que parecia ser o último obstáculo entre eles e a chave de Vivaldi. Olhou em volta e verificou que no templo só havia outro casal de turistas que olhavam embevecidos a cobertura da nave central. Do padre nem havia rasto, assim como da mulher que o tinha chamado e que, pelo aspecto, devia ser a encarregada da limpeza da igreja. Introduziu a mão pela beira do retábulo, aproveitando um espaço que havia entre a coluna que delimitava a capela e a moldura dourada que emoldurava aquele painel, apalpou cuidadosamente, procurando com os dedos. com a ponta tocou em alguma coisa que sobressaía da superfície lisa que até então tinha sentido - Maria continuava com o telemóvel colado à orelha -, não imaginava o que poderia ser e, além disso, rinha dificuldade em lá chegar. Fez um esforço e esticou a mão o mais que pôde; o braço começava a doer-lhe, mas não atingia o seu objectivo. Tirou a mão e verificou que estava cheia de pó negro. Aquilo era da passagem dos séculos.

Maria fez-lhe um gesto com a mão, indicando-lhe que esperasse. Durante alguns minutos mais viu como ela dizia que sim com a cabeça e respondia com monossílabos e uma ou outra exclamação de contrariedade.

- Sim, mamã, estou com o Lúcio na igreja de Zanipolo. O que estou a fazer aqui? Depois contar-te-ei. Dir-te-ei depois. Eu também gosto de ti, um beijo.

Começava a ficar nervoso, quando Maria, com uma expressão abatida, desligou o telemóvel.

- Pelo amor de Deus! Conta-me! O que se passa?

- Há instantes, a minha mãe recebeu uma chamada telefónica de alguém a ameaçá-la. - A preocupação reflectia-se nos olhos de Maria.

- Quem? Quem o fez?

- Não sabe quem é, mas ameaçaram-na, se nós não entregarmos a partitura de Vivaldi.

- O que é que a tua mãe lhe disse?

- A minha mãe está aterrorizada, não sabe o que fazer. Também me disse que a polícia voltou lá ontem à noite à tua procura e que agora andam atrás de nós.

- Maldito Michelotto! Esse canalha é que tem a culpa de tudo isto! - Sem se dar conta, Lúcio tinha elevado o tom de voz. Os dois turistas que observavam a abóbada olharam para a zona em que se encontravam, mas não prestaram muita atenção.

- No fundo a culpa é minha, por tê-lo procurado. - Os olhos de Maria estavam velados pela tristeza.

Lúcio tomou-a pela cintura, apertou-a contra o seu corpo e sussurrou-lhe ao ouvido:

- Não posso consentir que te tortures desse modo, meu amor. Queres que entreguemos a partitura e coloquemos um fim a tudo isto?

Perante aquela proposta Maria pareceu recuperar um pouco do seu ânimo:

- De maneira nenhuma! Essa gentalha levaria a sua avante' O que estavas a procurar enquanto eu estava ao telemóvel?

- Procurei atrás do retábulo, dessa cena de São Vicente. Mas o meu braço é demasiado grosso para chegar até uma espécie de saliência que consegui apalpar com a ponta dos dedos, sem conseguir agarrá-la. Talvez com o teu braço, que é mais fino...? Poderia pôr-me de maneira a esconder o teu corpo.

Maria concordou com a cabeça e introduziu o seu braço entre a coluna e a beira do retábulo. Esticou o corpo o mais que pôde, enquanto Lúcio, que aos olhos de qualquer pessoa que o visse parecia observar o retábulo de um ângulo esquinado, a cobria completamente.

Depois de grande esforço, Maria exclamou muito baixo:

- Santo Deus! O que está aqui é uma anilha! O que tu achas que acontecerá se puxar por ela?

- Não sei. Mas devemos ter cuidado. Deixa isso e depois pensamos!

Maria tirou o braço e observou de perto a cena da vida do santo que dava o nome ao políptico.

- Vê, Lúcio, ainda que haja muito pó incrustado, eu diria que os bordes da pintura encaixam na moldura como se fosse uma porta.

- Sim, é o que parece.

Maria levou a mão à boca como se quisesse evitar que as palavras que expressavam o que estava a pensar lhe saíssem.

- Lúcio, a manilha! Se puxo por ela de certeza que se passa alguma coisa no retábulo.

- E se faz barulho?

Ambos percorreram a igreja com o olhar. Os dois que observavam a abóbada bisbilhotavam agora no presbitério. Não havia mais ninguém, salvo o padre que se encontrava na sacristia e a mulher que o tinha chamado.

- Achas que teremos outra oportunidade como esta? - perguntou Maria.

- A minha opinião é que poucas vezes isto estará tão solitário como agora e o mais certo é não dispormos de outra ocasião assim. Além disso, voltar outro dia poderia despertar suspeitas no pároco; sabes como é, os roubos de obras de arte são frequentes em igrejas. E se estivermos enganados?

Guido Cataldo estava desesperado, há quase vinte e quatro horas que tinha montado um sistema de vigilância e os resultados eram nulos. Parecia que a Terra engolira Lúcio Torres e Maria dei Sarto. Nem uma pista, nem um sinal, não tinham entrado nem saído do gucintoro. E isso não era normal num espaço de tempo como aquele. Lúcio tinha as Jornadas Musicais, o arquivo da Pietà, conhecer Veneza, muitas coisas para fazer, mas tinha de dormir. Depois de pensar em todas as possibilidades que lhe ocorreram, uma delas ganhava mais corpo na sua cabeça cada minuto que passava: tinham ido para outro lugar, mas não fazia a mais remota ideia nem para onde nem porquê. Essa era a pergunta que formulava a si próprio desde há várias horas, por que razão se tinham ido embora? Alguma coisa estranha estava a passar-se porque depois de ter montado um discreto dispositivo de vigilância, ao fim da tarde do dia anterior, recebera a informação de que um carro da polícia tinha chegado à estalagem e dois inspectores à paisana tinham entrado no Bucintoro. A confirmação de que ali se passava algo de anormal teve-a quando lhe comunicaram que naquela manhã, muito cedo, antes das oito, os mesmos inspectores tinham regressado para uma nova visita.

Mais do que uma vez tinha estado tentado a ligar para a Maria perguntando-lhe pela partitura que ela lhe mostrara no Vino Vino. Mas aquilo significava correr um risco que poderia pôr toda a operação em perigo. O que mais o aborrecia e que constituía a causa principal do seu desespero era ter de reunir-se com o repelente Licci - tinha combinado com ele às duas - e confessar-lhe que não conseguira saber nada de novo. A sua única cartada é que também ele perguntaria pelas pesquisas dos seus arquivistas na Pietà.

Michelotto, com o texto da chave de Bellini em seu poder, tinha regressado a casa. Comunicou por telefone aos companheiros da Fraternitas Cbaritatis - aos mesmos a quem, na reunião que tinham tido após a saída de Maria e Lúcio de sua casa, pedira que permanecessem quarenta e oito horas em Veneza - que os acontecimentos iam precipitar-se. Convidou-os a todos para almoçar em sua casa. Drexler estava alojado no Excelsior, enquanto MacFarlaine e Clermont-Lafargue o tinham feito no Danielli. Também lhes disse que era muito provável que houvesse outras pessoas atrás da pista da partitura.

Sem perder um instante fechou-se no escritório e descarregou no computador as fotografias que tinha feito do texto e leu com atenção o seu conteúdo:

A chave para decifrar a mensagem do frater Vivaldi, contida na partitura que poderá encontrar-se entre as páginas deste livro, está sob a protecção dos santos Giovanni e Paolo, sob os pés de San Sebastiano e oculta por San Vincenzo Ferreri graças ao meu antepassado. Que Deus Nosso Senhor perdoe os meus pecados e tenha piedade da minha alma.

Depois de o ler várias vezes, Michelotto fez uma análise da situação com os dados que possuía até àquele momento. Pôde comprovar que a partitura, cuja cópia lhe tinha sido mostrada por Maria dei Sarto, era a partitura que continha o mistério do prete rosso. Já não havia nenhuma dúvida. Concluiu, igualmente, que, independentemente de alcançar o objectivo de ter em poder da Fraternitas a partitura original por razões de prestígio, as cópias que tinha serviam perfeitamente para desvendar aquele mistério. O único problema nesta matéria era que esbarrara contra os sinais em que Vivaldi se refugiara; apesar das horas que dedicara não tinha conseguido dar um só passo em frente. Também tinha comprovado a veracidade da tese, sustentada durante séculos, de que Tomasso Bellini recebera aquela chave. Tinha a prova diante dos olhos e por alguma razão ele a tinha ocultado, da mesma maneira que o fizera com a partitura. Por fim, também estava em condições de afirmar que a partitura original estava em poder de Lúcio Torres e de Maria dei Sarto, que os dois possuíam a chave deixada por Bellini e que levavam algumas horas de vantagem no conhecimento do texto da chave. Não era pouco aquele material obtido em cerca de setenta e duas horas, quando andavam há dois séculos e meio atrás daquele objectivo. No entanto, não estava satisfeito. Tinha aquela sensação que se vive quando uma ilusão, desejada durante longo tempo, está quase a transformar-se numa realidade, que se toca com a ponta dos dedos. Nesse momento, os dias tornam-se eternos, as horas insuportáveis e o tempo corre com uma lentidão desesperante.

Sabia qual era o motivo da sua insatisfação. Apesar de tudo o que conseguira em tão poucas horas, tinha consciência de que cometera o grave erro de fazer levantar voo os dois pombinhos que lhe tinham servido de bandeja tudo o que conseguira naqueles três dias. Também o incomodava que o casalinho levasse uma vantagem de várias horas. Mas isso não o preocupava, eram uns ignorantes e ele era Stefano Michelotto, o grande Stefano Michelotto.

Agora, sentado na mesa do seu escritório, dispôs-se a atacar o texto de Bellini. Entrecruzou os dedos e apertou as mãos, os ossos estalaram. Começou a trabalhar e a primeira conclusão foi que a solução estava em cinco palavras, que sublinhou: Giovanni, Pado, Sebastiano e Vincenzo Ferreri. Decidiu sublinhar também a palavra antepassado. O que tinha ali eram quatro nomes de santos e uma alusão a um antepassado. Um antepassado de Tomasso Bellini.

O que teria a agradecer a um antepassado naquelas circunstâncias?, pensou Michelotto. Um antepassado não seria o seu pai ou o seu avô; nesse caso tê-los-ia denominado como pai ou avô. Tinha de ser mais ambíguo. Se quando Tomasso morreu era o patrono principal da Pietà e isto passou-se em 1741, quer dizer que nesta data era um homem maduro. Um jovem não desempenharia um cargo como aquele; era também frater de Vivaldi, que tinha nascido em 1678. Tomasso poderia ter nascido por volta dessa data. Se formos para uma data anterior ao seu pai e ao seu avô quer dizer que remontamos quase ao século XVI.

Pegou num lápis afiado, dos muitos que continha o porta-lápis que se encontrava sobre a mesa. Levou-o à boca e mordeu-o com força. Depois anotou num papel:

"Século XVI, Bellini, Veneza".

Os seus olhos iluminaram-se.

- Os Bellini! Os pintores renascentistas! Jacopo, Gentile, Giovanni Bellini! Os Bellini! Os santos! A chave tem de se referir a pinturas realizadas por alguns dos Bellini dedicadas a estas advocações! Têm de ser quadros dedicados a estes santos! Um antepassado pode remontar para além do século XVI!

Michelotto girou o cadeirão e ficou de frente com o ecrã do computador, teclou e abriu a ligação com a Internet. Lembrou-se que existem mais quadros de São João e de São Paulo, do que de São Sebastião e de São Vicente Ferrer. Decidiu-se por este último.

Procurou no Google: Bellini e San Vincenzo Ferreri. Em poucos segundos, a informação estava no ecrã. Tinha várias entradas. Teclou na primeira.

Uma das obras de Gentile Bellini, filho dejacopo Bellini, a quem muitos consideravam como o criador da escola Renascentista da pintura veneziana, é o políptico de San Vincenzo Ferreri. Foi pintado, provavelmente, entre 1464 e 1468. E considerado uma das obras mais importantes do chamado primeiro renascimento de Veneza. Nela é perceptível a influência de Mantegna e sobressai a importância da cor, que será uma das características da obra de Gentile ao longo da sua trajectória artística. O políptico, que apresenta ao centro a imagem de San Vincenzo, flanqueado por San Cristóforo e San Sebastiano, encontra-se na igreja dominicana de San Giovanni e San Paolo, conhecida popularmente como igreja de Zanipolo...

Não leu mais.

- A igreja de Zanipolo. Verificou no texto:

- Sob a protecção dos santos Giovanni e Paolo!

Olhou para o seu relógio de pulso - um elegante Patek Philippe. Era meio-dia e meia. Ainda tinha tempo de ir a Zanipolo antes que chegassem os seus companheiros para o almoço. Se tudo corresse bem iam ter uma grande surpresa!

Carregou no intercomunicador que tinha sobre a mesa e, imediatamente, respondeu a voz do mordomo.

- O senhor deseja alguma coisa?

- O carro, Angelo! Tenho de sair imediatamente!

Havia numerosas pessoas concentradas à porta da igreja de Zanipolo, Dois carros dos carabinierí com as luzes das sirenes acesas e uma fita para impedir a passagem para o interior do templo denunciavam que algo extraordinário se tinha passado.

Michelotto ordenou ao motorista que arrumasse discretamente e que fosse saber o que acontecera. Ele esperaria ali.

O motorista de Michelotto indagou junto de vários grupos de pessoas que se apinhavam à volta da porta. Os comentários coincidiam no facto de ter havido ali um roubo de uma das pinturas que se encontravam na igreja. As versões sobre qual era o quadro e os possíveis autores do roubo eram diversas.

- Uma Madonna con U bambino - exclamava uma mulher que tinha saído para fazer compras. Aquela afirmação era negada por um operário mal-encarado da companhia de gás que dizia ter ouvido da boca do próprio pároco que o que fora roubado era uma pintura que representava um monge dominicano.

Num dos grupos dava-se como certo que o roubo perpetrado tinha acontecido na capela do Rosário, onde algumas pinturas aludiam à derrota sofrida pelos turcos em Lepanto e onde a esquadra veneziana, que lutou sob as ordens do espanhol Juan de Áustria, desempenhara um importante papel. Quem defendia esta hipótese era uma mulher gorda de uns sessenta anos que, ao que parece, era uma paroquiana e dava a informação, em defesa da sua tese, que na tarde anterior, quando fora à missa das oito e meia, tinha visto a bisbilhotar naquela capela três indivíduos que, pelo seu aspecto, lhe tinham levantado suspeitas.

- Ai! Se tivesse avisado dom Guido. Aquela gente tinha muito mau aspecto! Tive como que um palpite!

Um carabinieri que ouviu aqueles lamentos, perguntou-lhe o nome.

- Rosário! Rosário Valente ao seu dispor.

- Que aspecto tinham esses indivíduos? - perguntou o polícia.

- Embora estivessem bem vestidos, não eram elegantes. Dois tinham o cabelo comprido, muito comprido e um terceiro a cabeça rapada.

- Rosário, não se importaria de me acompanhar até ao interior?

- Claro, senhor agente! O que for necessário desde que se descubra quem são os ladrões! - Fez um sinal que tinha algo de repto aos que a ouviram, dando a entender a importância do seu testemunho. O carabinieri pegou-lhe pelo braço e ajudou-a a passar pela fita de plástico amarelo onde se podia ler INGRESSO VIETATO. CARABINIERI.

O mais extraordinário que ouviu foi que o objecto roubado era a pele do defensor de Famagusta, Marco António Bragadín. Algo considerado pelos paroquianos como uma verdadeira relíquia.

O comissário Tarquinio tinha improvisado na sacristia da igreja um pequeno centro de operações. Pela enésima vez pedia ao pároco Ranucci que tentasse reconstruir a cena que tinha vivido com aquele casal que estava tão interessado no políptico de São Vicente. Pela enésima vez também insistia com ele que não esquecesse nenhum pormenor por muito insignificante que lhe parecesse.

Tarquinio insistia em tirar todo o partido das recordações do pároco porque quase não tinha obtido informações de um casal de turistas dinamarqueses, Biorn e Monika Nielsen, e da encarregada pela limpeza do templo e dos seus salões, a senhora Meganta.

As suas declarações não iam para além de que se tratava de um casal de jovens, que os dois estavam vestidos de uma maneira informal, mas com bom gosto, nada de camisas de alças, nem calções do tipo fato de banho, ou calças rasgadas nos joelhos, nem chinelos.

Os dois tinham o cabelo preto e não eram "nem altos nem baixos" nas palavras da mulher da limpeza. O padre Ranucci tinha acrescentado que ela tinha uns lindíssimos olhos verdes e que o olhar do jovem era penetrante. Acrescentou, além disso, um dado de grande interesse:

- O jovem é violinista profissional!

- Violinista profissional? Como é que sabe? Foi ele que lho disse?

- Não, ele não disse nada. Mas sei que é violinista pela marca que tem no pescoço. É inconfundível. É provocada por horas e horas de trabalho.

- Padre, o senhor disse-me antes - Tarquinio era um autêntico investigador - que pareceram ficar assustados quando lhes falou pela primeira vez... Assustar é a palavra correcta?

- Creio que sim. Ficaram obviamente perturbados. Era como se os tivesse surpreendido.

- Como reagiram perante a sua presença?

- Agora que fala nisso, creio que um pouco incomodados. Mas é possível que seja só impressão minha, como consequência do que se passou.

- Por que pensa que eles se assustaram ou ficaram perturbados?

- É possível que fosse pela maneira como os abordei. Estavam sentados no primeiro dos bancos que há na capela, embevecidos na contemplação da obra e eu cheguei por detrás, eles não me tinham visto. Ao começar a falar sobressaltaram-se porque estavam num estado de tensão.

Não parece que a tensão seja o estado de espírito mais adequado para a contemplação de uma obra de arte - anotou o comissário.

Não, não parece - concordou o pároco.

Não acha que podem ter sido outras pessoas os autores do roubo - O comissário tinha insistido várias vezes naquela pergunta.

- Creio que não. Veja, quando descobrimos que faltava a pintura só se tinham vendido quatro entradas. As do casal dinamarquês e as deles.

Tarquinio disse que sim várias vezes com a cabeça. Fez um gesto com os ombros e disse:

- Só temos quatro pessoas, isto partindo do princípio que não tenha entrado alguém por outro sítio.

- Comissário, não encontrámos sinais de ter sido forçada alguma janela, ou porta - disse um dos inspectores que o acompanhavam.

- Pensa que há alguma razão para que tenham roubado este quadro e não outro? Tem algum valor especial aquele que foi roubado? - Tarquinio não queria deixar nada de fora.

- Estranha-me que tenham roubado precisamente este. Trata-se de uma das pinturas de menor interesse do retábulo - respondeu o padre Ranucci.

- Por que pensa, então, que roubaram precisamente este?

- Não sei. Não tenho nenhuma explicação... A não ser...

- A não ser o quê...?

- A não ser que esta pintura se tornasse mais fácil.

- Falando de facilidades... há algo que não encaixa.

- O quê, comissário? - perguntou Ranucci.

- Você disse-me que a pintura roubada é um painel, correcto?

- Trata-se, de facto, de um painel.

- Um painel que tem mais de um metro de comprimento e cerca de metade de largura! - exclamou, surpreendido, o comissário.

- Exactamente, sendo um painel não pode dobrar-se ou enrolar-se como poderia fazer-se com uma tela. No entanto, a pessoa que controla as entradas afirma, sem qualquer dúvida, que reparou no casal à saída, e que não levava o painel. E é de um tamanho que não se pode esconder facilmente!

O comissário acariciou várias vezes o queixo.

- Se formos lógicos, o painel não saiu da igreja. Tiveram de escondê-lo em qualquer lugar para depois virem buscá-lo!

- Mas isso comporta um risco muito grande! Descoberto o roubo, a primeira coisa será procurar por todos os cantos da igreja!

- exclamou o pároco.

- Isso é o que estamos precisamente a fazer. Estamos a passar a igreja a pente fino, padre. Além disso, chegados a este ponto ainda que não encontrássemos a pintura, coisa que eu duvido, se ela ainda estiver na igreja, teriam de vir cá buscá-la e nós já estamos de sobreaviso. - O comissário fez vários gestos de negação com a cabeça. - Aqui há algo que não encaixa, padre! Vamos dar mais uma vista de olhos a esse retábulo!

- Comissário, dá-me licença - quem chamava a atenção de Tarquinio era um carabinieri que fazia um automático cumprimento militar -, na porta está um senhor que diz ter uma informação importante para a investigação!

- Chiça, que vos dê essa informação! - Tarquinio incomodava-se com as interrupções.

- Queira desculpar, senhor comissário. Ele disse que só a dará a si.

- Só a mim, porquê? Ameaça-o com qualquer coisa! Falta de colaboração com agentes da autoridade! Sei lá!

- Não creio que seja muito eficaz, senhor comissário.

- Porquê? - Tarquinio olhou para o carabinieri nos olhos. O agente aproximou-se do comissário e sussurrou-lhe ao ouvido.

- Por que não mo disse antes! - gritou Tarquinio, pondo-se de pé.

- Senhor comissário... eu... o senhor não...

- Leve-me ao dottore

Michelotto, acompanhado de outro carabinieri, observava atentamente o políptico de São Vicente.

- Dottore! - O comissário estendeu a mão a Michelotto, que a apertou, inclinando a cabeça de forma cortês. - Que surpresa! Como é possível...?

- É muito fácil, querido Tarquinio. - A relação de Michelotto com Tarquinio derivava da colaboração que o professor tinha prestado, na sua qualidade de especialista em criptografia e escrita, à polícia veneziana em vários casos onde textos escritos eram peças importantes Para a investigação -, quando ia a passar no meu carro muito próximo daqui, fiquei a saber pela rádio do roubo cometido e que a investigação estava nas suas mãos.

- Muito lhe agradeço o seu interesse, dottore Michelotto fez um gesto com a mão, dando a entender que a sua presença não tinha assim tanto valor.

- Não tem importância, querido amigo. O verdadeiramente importante é que, por uma circunstância puramente confidencial, posso dar-lhe uma informação que, sem dúvida, o ajudará a resolver este... este - olhou para o vazio deixado pela pintura que faltava no retábulo - este roubo.

- Nesse caso é para mim um duplo prazer cumprimentá-lo. Michelotto tomou o comissário pelo braço com um gesto familiar

e afastou-o do grupo de pessoas que se tinha formado em volta dos dois. Quando já estavam afastados a uma discreta distância, disse-lhe:

- Vê bem, Tarquinio - agora que estavam sós, tratava-o por tu -, no seguimento de umas investigações que estamos a fazer, e onde se cruza muita informação, tive apenas há uns dias a notícia de que uma aluna minha, o seu nome é Maria dei Sarto - o comissário contraiu o rosto, mas Michelotto não se apercebeu disso -, toma nota, estava interessada vivamente neste políptico. O seu interesse tem a ver com a relação que iniciou com um indivíduo, espanhol para ser mais específico, que diz ser músico, ainda que eu tenha as minhas dúvidas. Esse sujeito - Michelotto utilizava as palavras com estudada precisão - não me causou boa impressão quando o conheci. Não me perguntes porquê, mas é uma sensação que tenho, uma premonição. Creio que se chama Lúcio Torres. Não sei se isto poderá servir-te, mas parece-me que pode ser do teu interesse.

- Tem má impressão desse... desse Lúcio Torres?

- Sim - a resposta de Michelotto foi seca.

- Poderia fazer-me uma descrição física de Maria dei Sarto e desse espanhol?

- Ela tem uns vinte e cinco anos. É muito bonita, tem cerca de um metro e setenta, morena com o cabelo preto e liso. Tem, ou pelo menos há dias tinha, um corte curto. Os seus olhos são belíssimos - Michelotto titubeou um instante apenas perceptível -, verdes. Pode seduzir qualquer um.

- E o espanhol?

- É alto, magro, com bom aspecto. Também tem a pele morena e o cabelo preto, liso e comprido. Tem uns penetrantes olhos pretos.

- Há alguma coisa mais que possa ser do nosso interesse? Algum pormenor da cara? Algum sinal ou cicatriz?

Michelotto fez um gesto negativo.

- Não, não me lembro de nada por agora, nada de particular. Tarquinio assentiu com a cabeça.

- Dottore, quero agradecer-lhe sinceramente a sua colaboração. Vai ser de muita utilidade para nós. com a descrição que me deu não tenho dúvidas que as pessoas de que me falou são as mesmas que esta manhã estiveram aqui. A sua descrição coincide com a do padre Ranucci. Agora já temos os seus nomes.

- Como sempre, foi um prazer, comissário - aproximavam-se do pequeno círculo de pessoas que tinham deixado momentos antes. - Se precisar de mim para mais alguma coisa estou à sua inteira disposição, senhor comissário. - Michelotto apertou a mão do polícia e, com um gesto, despediu-se dos presentes. O próprio comissário o acompanhou até à saída do templo.

O comissário Tarquinio regressou para junto do grupo de pessoas

- polícias e testemunhas - que tinham saído da sacristia quando chegou o dottore Michelotto e concentrou-se, procurando uma pista, um pormenor de interesse, no políptico de São Vicente Ferrer.

O motorista ligou o motor do carro e pô-lo em marcha lentamente, com suavidade.

- Regressemos a casa.

Recostado no assento de trás, Michelotto perguntou se tinha ouvido alguma nova versão das que circulavam entre as pessoas que havia na praça.

- As versões são muito diferentes mas, como lhe disse antes de ter entrado na igreja, a maioria inclina-se para que o roubo seja a pintura de São Vicente Ferrer.

- Ouviste alguma coisa acerca de quem efectuou o roubo?

- Alguns dos curiosos diziam que tinha sido um casal de jovens com quem o próprio pároco tinha estado a conversar pouco antes de ter desaparecido a pintura. Parecia gente normal, o seu aspecto não chamava a atenção.

 

Giulietta dei Sarto estava horrorizada. A notícia que acabava dedar no boletim informativo da RAI informava que tinha sido rou bada uma obra de Gentile Bellini. Tratava-se de uma valiosa pintura do primeiro Renascimento italiano, da segunda metade doséculo XV, que se encontrava, fazendo parte de um retábulo, na igreja de San Giovanni e San Paolo. As suspeitas recaíam num jovem casal que, naquela mesma manhã tinha visitado o templo, como se fossem simples turistas. Tinham, inclusive, falado com o pároco.

A polícia efectuava indagações e estava a fazer os retratos robots dos suspeitos.

- Santa Madonna - foi a única coisa que pôde exclamar, enquanto, com evidente nervosismo, procurava o telemóvel entre os numerosos objectos que tinha na sua bolsa.

Tinha a respiração agitada e um aperto no peito. Mal podia conter-se enquanto soavam no seu ouvido os toques de aviso. Um, dois, três... seis... depois do sétimo, a voz de uma senhora em off dizia:

- O número que marcou não se encontra disponível, deixe, por favor, uma mensagem logo a seguir ao sinal... bip.

- Maria, sou a tua mãe. Telefona-me, por favor! É muito urgente!

Imediatamente depois, marcou outro número.

- Aldo?

- Diz-me, Giulietta.

- Sabes que roubaram um quadro na igreja de Zanipolo?

- Sou o comissário encarregado do caso.

- Estás no caso?

- Sim, estou, e, por isso sei que a Maria está implicada.

- Como sabes isso?

- Porque alguém me sussurrou o seu nome ao ouvido. Tu falaste com ela?

- Não, não consegui! Deve ter o telemóvel desligado!

- Não te enerves e tenta manter a calma. Promete-me que não farás nada e tenta falar com ela.

- Não, não farei nada! Continuarei a tentar!

- Logo que possa irei ter contigo.

- Por favor, não demores! Não demores!

A reunião de Giorgio Cataldo e Romano Licci, na sua condição de membros da Fraternitas Charitatis, fora angustiante. Nas últimas vinte e quatro horas não tinham conseguido avançar um passo importante no seu objectivo.

Cataldo tinha perdido a pista de Maria e de Lúcio e não tinha a mais remota ideia de onde é que poderiam encontrar-se. Provavelmente estariam a desfrutar do sol numa praia do Adriático, em vez de estarem a procurar informação acerca da partitura. Pelo seu lado, Licci desconhecia o resultado relativamente aos dois homens que estavam a esquadrinhar os livros da Pietà.

As censuras mútuas que atiravam um contra o outro, com pouco sentido de irmandade, ter-se-iam desvanecido caso lhes tivesse chegado aos ouvidos a notícia do que acontecera algumas horas antes no arquivo.

- Talvez eu possa ser-lhes de alguma utilidade. - A voz daquele indivíduo soava bajuladora.

Os dois homens acabaram a tarefa que estavam a fazer. A presença do porteiro tinha-os surpreendido. Tinha aparecido de uma maneira sigilosa, como uma sombra; sem o mais pequeno ruído.

- Sim? - respondeu um deles.

- Se me disserem o que estão à procura... talvez... eu possa.

- Estamos à procura de informações sobre a Pietà, dados que nos permitam conhecer melhor esta instituição. Estamos a avaliar o valor dos livros aqui guardados para esse estudo.

O porteiro passou o dedo por uma das estantes e manchou-o com uma camada de pó negro. Puxou por um lenço de papel e limpou-o.

- É curioso, trabalho aqui há dezoito anos e em todo este tempo ninguém se mostrou minimamente interessado pelos papéis que se encontram neste sótão.

Os dois arquivistas olhavam-no surpreendidos.

Isso não deve causar-lhe estranheza. O nosso tempo caracteriza-se por se interessar por assuntos que não estão relacionados com os velhos papéis que se guardam nos arquivos. Você sabe que o estudo de História é o que menos atrai os jovens das nossas universidades?

- Por isso, precisamente, é que disse que é curioso - disse o porteiro.

- Mas o que é tão curioso?

Aquele sujeito estava à espera da pergunta.

- Que de há uns dias para cá tantas pessoas se tenham mostrado interessadas em descobrir algo que está guardado entre estes maços de papéis.

Fez-se um silêncio, que o arquivista rompeu.

- Você tem alguma informação sobre o que possa ser que tanto interesse desperta?

O porteiro tinha-se apoiado com o ombro numa das estantes, a sua posição tinha algo de indolente e muito de desafiante.

- É possível.

Dessa vez, o silêncio que se fez foi mais longo, mais intenso. Depois de uns instantes, o arquivista tentou surpreender o descarado porteiro.

- Quanto vale essa possibilidade?

Um sorrisinho malicioso apareceu no rosto daquele desavergonhado, que tinha encontrado uma fórmula para engrossar as suas magras receitas, e sabia aproveitar-se das circunstâncias.

- Creio que vocês e eu vamos entender-nos. - A voz tinha retomado o tom untuoso do início.

- Quanto? - exclamou o arquivista.

- Então, meu caro senhor. Você sabe muito bem, informação é poder.

- É verdade. Desde que essa informação tenha valor.

- Creio que estou em condições de lhe facilitar muito a sua procura.

- Como sabe do que ando à procura!? - O tom de voz era azedo.

- Porque tenho a certeza que você anda à procura do mesmo que os outros.

- Quem são os outros? - perguntou-lhe, interessado, o arquivista.

- Meu caro senhor, isso também é informação.

- Compreendo. Cada palavra tem um preço.

- Exactamente, senhor.

- E então? - O arquivista estava francamente irritado.

- Eu sei onde está o que os outros procuravam e que encontraram, e creio que é o mesmo que você também procura. Não duvido de que com a sua capacidade o encontrará, mas terá de ter muita paciência. E é possível que precise de muito tempo e tenho a sensação de que andam todos com muita pressa.

- Qual é a informação que me oferece?

- Primeiro temos de falar do preço.

- Quanto quer?

O porteiro revirou os olhos; parecia estar a fazer cálculos, ainda que o arquivista soubesse que aquilo era uma pose. Aquele rufião tinha estabelecido a sua tarifa desde que entrara pela porta. Depois de uns instantes disse a quantia.

- Dois mil euros.

- Você está louco.

- Louco é você se não aceitar a minha oferta. Tempo é ouro. Você não tem tempo e os outros levam uma vantagem que pode tornar inúteis todos os seus esforços, mesmo no caso de conseguir encontrar o que procura. Você procura algo relacionado com a morte de Vivaldi.

O arquivista não pôde conter uma exclamação de surpresa que teve o efeito de provocar um grande sorriso no porteiro.

- O que me pode oferecer?

- Aceite a minha oferta de dois mil euros.

- Depende daquilo que me ofereça.

- Tenho a certeza que uma pessoa como você saberá apreciá-lo. Aguarde um momento, venho já. Não se arrependerá de chegar a um acordo comigo.

O porteiro saiu do arquivo tão sigilosamente como tinha entrado. Os dois arquivistas estavam tão perplexos que mal trocaram palavra, enquanto esperavam o regresso daquele tipo.

Três toques seguidos e um separado indicaram a Cataldo e a Licci que chegava um dos seus homens. O próprio Giorgio perguntou pelo intercomunicador.

- Quem é?

- Abre, por favor, somos Adriano e Nicola, os arquivistas. Giorgio olhou para o relógio, eram quase três e meia. Foi até à porta esperá-los, ainda que o elevador demorasse a chegar. Os dois homens estavam suados e excitados.

- Onde está o Romano? - perguntou Nicola, que era quem tinha a voz mais aflautada. O mesmo que tivera a conversa com o porteiro.

- Está na sala do fundo. Há notícias?

- Creio que são excelentes notícias!

Maria e Lúcio tinham chegado a Torcello. Estavam esgotados na sequência da pressão que tinham suportado e da emoção vivida. Lúcio levava um saco com fruta e algumas verduras que tinham comprado no mercado da praça de Santa Maria Formosa. Tinham andado às compras mais como terapia para os seus arrasados nervos do que por necessidade de comprar alimentos.

Percorreram apressadamente o caminho que ia da paragem do vaporetto até ao seu refúgio, com o coração na boca. Tinham em seu poder a chave de Vivaldi! Iam arrancar ao prete rosso o seu terrível segredo!

A tranquilidade mais absoluta reinava naquele remanso de paz que era a ilha. O telemóvel de Maria emitiu dois bips, tinha recuperado a cobertura de rede que, habitualmente, perdiam os telemóveis quando atravessavam a lagoa. Alguém lhe deixara uma mensagem. Pensou não fazer caso e deixá-la para mais tarde. Mas lembrou-se da sua mãe, da chamada daquela manhã e do lastimoso estado em que se encontrava.

Ouviu a mensagem:

"Maria, sou a tua mãe. Telefona-me, por favor! É muito urgente!"

Verificou a hora em que a sua mãe lhe deixara a mensagem e viu que tinha sido há pouco tempo. Estava marcada às duas menos um quarto. Olhou para o relógio, passara quase uma hora. O tempo que tinham estado dentro do vaporetto.

Ficou com um nó no estômago e com a mão tremente marcou o número da sua mãe. com os nervos teve de corrigir duas vezes Os cinco toques que contou até que ouviu a voz da sua mãe pareceram-lhe eternos.

- Mamã, sou eu! O que se passa? - A voz saía-lhe a tremer.

- Se ouvi as notícias da RAI? Não, não ouvi! O que tem isso a ver com a urgência da tua chamada? Roubaram um quadro na igreja de Zanipolo?

Tapou o microfone do telemóvel e disse a Lúcio:

- Estão a informar pela televisão que esta manhã roubaram um quadro na igreja de Zanipolo

- Sim, mamã, como é que podes pensar numa coisa dessas!? Estão a dizer que os presumíveis autores do roubo são um jovem casal? Pois terá havido outros jovens casais a visitar a igreja esta manhã. Embora, para dizer a verdade, à hora em que nós fomos lá não houvesse muita gente. Disseram alguma coisa sobre o quadro roubado? Estás a dizer que foi o de um santo? Pensas que foi o de São Vicente?

Maria estava impressionada com a notícia, mas tentava dissimular como podia. Tudo aquilo era muito preocupante. Tentou sossegar a sua mãe.

- Fica tranquila, porque nós não fomos... Está bem, é verdade que estivemos lá esta manhã, mas não roubámos quadro nenhum... A polícia continua a perguntar por nós? Então, diz-lhes que estamos de viagem. E não te preocupes! A tua filha pode ser louca, mas não é uma ladra!... E por que telefonaste para o Aldo?... Está bem, está bem. É sempre bom ter as costas protegidas... Não te preocupes... fica tranquila... não te preocupes. Um beijo muito grande. Outro da parte do Lúcio. Adeus, mamã.

Quando Maria desligou o telemóvel estava muito preocupada.

- O que se passa? - perguntou Lúcio, que sentia como os nervos lhe ficavam à flor da pele cada vez que tocava o telemóvel de Maria.

- A televisão diz que roubaram o quadro de São Vicente Ferrer da igreja de Zanipolo.

- Roubaram o quadro? - Lúcio quase gritou.

- Isso é o que diz a rádio e a televisão.

- Mas o que se passa!? Isto é de loucos! Suponho que deitam a culpa para cima de nós!

- Ainda não, mas não demorará muito. Neste momento a polícia estará a elaborar os nossos retratos-robô com os dados fornecidos pelo pároco. - com cara de angustiada, Maria ficou a meio caminho entre a pergunta e o queixume resignado. - Que grande confusão em que nos metemos, meu amor! - e acrescentou num tom compungido: - E tudo isto por minha culpa!

Lúcio aproximou-se dela, colocou-lhe o braço pelo ombro e sussurrou-lhe ao ouvido:

- Cada minuto que passa sinto-me mais apaixonado por ti. Amo-te. Veneziana! - e deu-lhe uma dentadinha na orelha. Maria abraçou-se a ele, procurando refúgio para o seu ânimo que se encontrava tão em baixo.

- Não podemos perder um instante, vamos ver o que dizem a rádio e a televisão - disse Maria.

- Ouvir a rádio e ver a televisão! O que creio que temos a fazer quando chegarmos a casa é abrir esta caixa e ver o que contém. Disseste-me tantas vezes que íamos arrancar ao padre vermelho o seu segredo! Estamos a um passo de o conseguir!

- Chiu - Maria levou o dedo indicador aos lábios. - Não fales disso, não sejas indiscreto.

- Pelo amor de Deus, Maria! Aqui não há ninguém!

- Não te esqueças que Torcello é Veneza. E em Veneza, foste tu que o disseste, nada é o que parece ser.

O comissário Tarquinio, que observava atentamente o retábulo, perguntou a Ranucci:

- Padre, o que há aqui por trás?

- Atrás do retábulo?

- Sim, atrás do retábulo.

Guido Ranucci encolheu os ombros:

- A verdade, senhor comissário, é que não faço a mínima ideia.

- Poder-se-ia mover o retábulo? - perguntou o polícia, percorrendo com o olhar o contorno do retábulo.

- Suponho que sim. Mas creio que para isso seria necessária a presença de um carpinteiro.

- Alguém tem uma lanterna? - perguntou Tarquinio.

- Tem aqui uma, senhor comissário, não é muito boa, mas talvez lhe sirva. - O carabinieri estendeu-lhe uma pequena lanterna

Tarquinio iluminou o buraco escuro que se abrira no lugar onde faltava agora a pintura de São Vicente. Pôde verificar como se prolongava a ara para o interior do retábulo sobre a qual se erguia o políptico. Tinha ficado com os dedos cheios de pó ali acumulado pela passagem dos séculos. Até onde lhe permitia o feixe de luz que saía da lanterna pôde vislumbrar os contornos do interior do retábulo. Verificou que a sujidade ali acumulada também lhe manchara a manga do casaco de linho, creme, que tinha vestido. Instintivamente, retirou o braço para não se sujar mais.

- Padre, vou subir ao altar.

Mais do que um pedido era o comunicar de uma decisão. Tirou o casaco, dobrou-o cuidadosamente pelo lado do forro e estendeu-o a um dos inspectores. Tomou impulso com as mãos e sentou-se no altar, introduziu com cuidado a cabeça e o braço com a lanterna pelo buraco e esquadrinhou na escuridão. O altar prolongava-se no interior pelo menos cinquenta centímetros. Na realidade, o retábulo apoiava-se sobre o centro do altar e não sobre a sua beira posterior. Tossiu por causa do pó que tinha levantado aquela violação de um espaço fechado durante tanto tempo. Tirou a cabeça e ordenou ao mais próximo dos seus homens:

- Segura-me pelas pernas, vou entrar por aqui. - Tirou a gravata, desapertou o botão do colarinho da camisa e arregaçou as mangas.

- Senhor comissário, se quiser eu posso fazê-lo - solicitou o inspector, que agarrava no casaco e que agora também tinha a gravata.

- Agarrem-me bem, não vá partir a cabeça! E que alguém vá buscar uma lanterna maior que esta!

Pouco a pouco, com movimentos que tinham um pouco de contorcionismo, se bem que o buraco permitisse introduzir-se sem grandes dificuldades, o corpo do comissário foi desaparecendo. A roupa estava a ficar - agora foi a vez da camisa e das calças um nojo.

Quando apalpou o chão com as mãos, avançou com as palmas deslizando por uma camada de pó. A lanterna mal lhe servia porque não podia manejá-la naquela posição. Mas atenuava uma parte da escuridão reinante, transformando-a em penumbra. Uma penumbra que também havia nos bordes do retábulo porque este não encaixava nas pilastras de mármore branco, muito trabalhadas, que o flanqueavam. Apertou as mãos contra o chão e gritou aos de fora:

- Soltem-me os pés!

Tacteando com cuidado, colocou-os sobre a borda inferior do buraco deixado pela pintura que faltava. Apoiou as mãos com força no chão e de um salto ficou de gatas no interior do retábulo. Tinha-se-lhe escapado da mão a lanterna, que projectava ao nível do chão uma linha luminosa, em que podiam ver-se em suspensão numerosas partículas que não eram senão uma pequena parte da poeirada que a entrada do comissário provocara naquele espaço.

Tarquinio levantou-se com cuidado, sentindo no corpo a desagradável sensação de pó que o cobria todo. A atmosfera naquele buraco era densa, quase irrespirável. Meteu uma mão no bolso e tirou um lenço, que desdobrou, agitando-o e levou ao nariz; à falta de outra coisa melhor, servia-lhe de máscara. Os olhos ardiam-lhe, fechou-os e sentiu um alívio momentâneo. Pensou para si que continuava a ser o parvalhão do costume. Havia ali meia dúzia de homens a quem podia pedir o trabalho que estava a fazer com apenas uma ordem. Mas era assim e seria assim até morrer.

Havia uma ténue penumbra na zona próxima do buraco por onde se tinha introduzido. Ainda que os seus olhos se estivessem a habituar à escuridão, ainda não tinha uma visão precisa de como era aquele espaço, nem do que havia ali exactamente.

- Senhor comissário, aqui tem a lanterna que consegui arranjar! Mexeu-se com cuidado na direcção do buraco e estendeu o braço.

- Dá-ma já acesa!

Era uma potente lanterna de asa, cujo feixe luminoso se abria amplamente. No espaço onde se encontrava Tarquinio fez-se luz. Agora percebia muito melhor a intensidade de pó em suspensão e, rapidamente, percebeu a composição daquele espaço. A distância que havia entre a parte posterior do retábulo e a parede era mais de um metro, quase metro e meio; por cima estava fechado pela abóbada que se via no exterior. A parede do fundo era lisa. Atrás, o retábulo repetia a mesma estrutura da face principal. As linhas das molduras que separavam as distintas pinturas podiam ver-se

- em forma de madeira simplesmente desbastada - formando as calhas.

Apontou a lanterna para o chão e mal se via o lajedo de ladrilhos vermelhos e brancos alternados por causa da camada de sujidade depositada; em diferentes sítios esta camada estava quebrada com formas caprichosas, em consequência da sua entrada naquele cubículo.

- Podemos ajudá-lo em alguma coisa, senhor comissário? Encontrou algo interessante? - ouviu-se uma voz que vinha de fora.

- Estou bem, obrigado - limitou-se a responder. Tarquinio começou a percorrer com o potente foco da lanterna

a estrutura do retábulo. Logo reparou numa anilha embutida na madeira da moldura, que tinha sustentado o painel desaparecido. Concentrou ali o feixe de luz. Apontou para o outro extremo do retábulo e verificou que não havia anilha.

- Encontrei uma anilha que não faço a mínima ideia para o que serve! - gritou para os de fora. - Creio que vou puxá-la.

- Tenha cuidado, comissário! Os antigos gostavam muito de montar armadilhas para aqueles que bisbilhotavam as suas coisas!

- Fiquem atentos!

Tarquinio agarrou na anilha e puxou suavemente por ela. Depois fá-lo-ia com mais força caso fosse necessário.

Mas não foi preciso.

Um som foi a resposta à sua acção e verificou, com não pouca surpresa, como o buraco que o punha em contacto com o exterior começava a fechar-se.

A pintura que tinha desaparecido começou a deslizar pela acção daquela anilha, sobre a sua própria moldura! O deslizamento era suave, ainda que fizesse algum ruído, talvez pelo pó acumulado nos carris por onde se movia o painel pintado por Bellini, ou talvez pela oxidação do mecanismo que permitia o movimento. Em poucos segundo tudo ficou concluído. Até aos ouvidos de Tarquinio chegaram as exclamações de surpresa dos que estavam do lado de fora. Embora ele não pudesse vê-lo, tinha consciência de que aquele mecanismo tinha feito aparecer a pintura supostamente roubada e que agora podia ser contemplada por todos eles.

Passados uns segundos, voltou a puxar pela anilha e o movimento de deslizamento fez-se em sentido inverso. Agora o painel desaparecia e sobrepunha-se à que constituía a parte central do banco do retábulo.

Dois dos seus homens ajudaram Tarquinio a sair. O seu aspecto, se não fosse pela indumentária, era mais condizente com o de um mineiro do que com um comissário de polícia. Tinha sujado completamente as calças e a camisa. As mãos estavam negras e a cara com manchas.

- Suponho - disse tranquilamente um dos inspectores presentes - que o que se passou com esse casal foi que, bisbilhotando na moldura do retábulo, terão puxado pela anilha e, ao verem o que se passava, foram-se embora o mais depressapossível com medo das consequências desse acto irresponsável.

Tarquinio, que ao tentar recompor a sua figura só conseguiu sujar-se ainda mais, meteu a mão pela parte lateral do retábulo e verificou que podia chegar até à anilha, mas tinha de fazer um grande esforço. Ao puxar uma vez mais, a pintura voltou ao seu lugar. Olhou para o inspector que tinha feito o comentário sobre o que se passara, apertou os lábios e fez vários movimentos afirmativos com a cabeça. Mas, no seu interior, fervilhavam as ideias.

"Que puxaram pela anilha não tenho a mais pequena dúvida, mas a pergunta é por que andaram a esquadrinhar o retábulo? A anilha nem sequer está à vista, nem é fácil aceder a ela daqui. É possível que haja muito mais do que aquilo que pensamos em relação a este assunto. Mas, enfim, o importante é que o quadro está no seu lugar e que o desaparecimento do Bellini está resolvido. Agora é preciso dar muitas explicações porque - olhou para a porta principal da igreja - lá fora há uma grande algazarra."

 

Nas cadeias de televisão e nas emissoras de rádio o roubo de Bellini transformara-se no centro de atenção preferencial. Tinham-se desempoeirado dos arquivos histórias de roubos de importantes obras de arte. Tinham-se aberto vários debates sobre a falta de segurança que se sentia no rico património histórico da Itália em geral e de Veneza em particular. Especialistas de arte apontavam, com grandes diferenças, o valor da obra roubada, a importância de Bellini na criação da escola Renascentista de pintura veneziana, ou calculavam a perda que pressupunha o roubo de uma obra de arte como essa. Faziam-se intrigas sobre os autores e sobre a actividade de grupos organizados que se dedicavam ao tráfico ilegal de obras de arte.

Enquanto se gritava, se especulava, se discutia, se acusava ou se disparatava sobre o roubo, na sacristia da igreja de Zanipolo o comissário Tarquinio e o pároco Ranucci improvisaram uma conferência para os meios de comunicação. Os carabinieri tiveram de se esforçar a fundo para conter a massa de curiosos que se concentrava na praça, quando por megafone se anunciou que tinham ocorrido importantes novidades em relação ao quadro de San Vincenzo Ferreri e que iria ser permitido o acesso ao interior do templo dos meios de comunicação que estivessem ali. Os rumores dispararam numa questão de segundos e entre as pessoas e os próprios jornalistas começaram a circular versões muito díspares acerca do conteúdo dessas novidades, desde aquelas que defendiam que o roubo era muito mais grave do que se tinha dito até àquele momento e que a polícia só pretendia atenuar o impacto do roubo, até às que apontavam que fora descoberto o ladrão. Alguns, inclusivamente, apontavam um nome, indicando que tinha sido o próprio pároco o autor do crime, confrontado com uma premente necessidade de dinheiro. Uns acrescentavam que tinha confessado por pressão da polícia, que desde o primeiro momento suspeitara dele, enquanto outros defendiam que a confissão tinha sido voluntária, arrependido do seu acto vergonhoso.

Em Torcello, Lúcio e Maria estavam muito excitados. Por um lado, a notícia do roubo de uma obra de Bellini, que ocupava agora lugar de destaque na programação de todos os meios de comunicação, deixara-os perplexos num primeiro momento, mas uma vez analisada a situação tinham compreendido o que se passara. O que o comissário Tarquinio acabava de descobrir tinha sido deduzido pelo casal. O painel tinha-se movido pela acção de um mecanismo oculto. Tinham consciência de que, mais cedo ou mais tarde, as investigações acabariam por descobrir o que verdadeiramente acontecera.

Lúcio, não obstante, tinha colocado a possibilidade de que alguém tivesse roubado o painel. Maria, dominada pelos nervos, não pôde conter-se e exclamou:

- É praticamente impossível que alguém tenha planificado o roubo dessa pintura precisamente para hoje!

- Estou de acordo que as probabilidades são escassas, mas não me venhas dizer que não existem.

- Em pura teoria, mas na prática é impossível!

- Se existe a possibilidade não é impossível! - contrapôs Lúcio, levantando a voz.

- Isso é verdade - disse Maria num tom que pretendia ser conciliador. - Embora pense que também possa ter acontecido.

- O quê?

- Que alguém tenha difundido, de forma interessada, a notícia do roubo para ganhar mais tempo.

Lúcio fez uma cara de espanto e encolheu os ombros num gesto que tinha muito de interrogação.

- A estas horas, Michelotto deve ter em seu poder o texto que Bellini deixou escrito no livro de contas. Isto significa que pode saber que a chave de Bellini estava guardada no políptico de São Vicente. E mais, tenho a certeza que já o sabe. Os riscos que fizeste sobre o texto constituíram uma pista demasiado fácil.

- Mas os riscos dificultarão muito a leitura.

- Torna-a ilegível a olho nu, mas não se lhe aplicarem raios X Lúcio fez uma cara compungida.

- Não te culpes por isso, meu amor - Maria ofereceu-lhe um sorriso e um quente apertão de mão. - É também provável que tenha ido a Zanipolo e se tenha deparado com o buraco. Poderia ter dito à polícia, e asseguro-te que a uma pessoa como ele dão todo o crédito do mundo, que não se precipitassem. Mas suponho que o que ele quer é pressionar-nos para ver se nos entregamos nas mãos dele. Se nos sentirmos acossados, ele poderia ser a nossa tábua de salvação. Estará à espera que passem as vinte e quatro horas que nos deu de prazo - Maria sentiu um calafrio percorrer-lhe a espinha ao recordar a voz do telefone - e que, a propósito, expiram dentro de quatro.

- Por que achas que o Michelotto está a comportar-se desta maneira? - perguntou Lúcio.

- Já pensei nisso. Num primeiro momento estava convencida que era por desejo de protagonismo. Não podes imaginar como se luta e quanta ambição há nos meios académicos para alcançar a glória de uma descoberta!

- Como se tu não soubesses muito bem!? - acrescentou Lúcio.

- Mas não creio que seja isso. Pensando melhor, a glória de ter descoberto o segredo de Vivaldi teria ficado para ele.

- Teria que a partilhar connosco, que fomos os verdadeiros descobridores!

Maria beijou-o com ternura.

- Não sejas ingénuo, meu querido. Connosco? Quem somos nós? Não, não te enganes, lembra-te do tribunal que havia preparado para nos impressionar. Nada mais e nada menos que a Strozzi, a Camila Strozzi! Não podes imaginar o que isso significa! E esses tipos? Peixe graúdo, muito graúdo! Aqui está em jogo muito mais que a glória académica de uma descoberta! O que Vivaldi descobriu e Bellini ocultou tem de ser algo tremendo!

- Tudo isto me parece incrível! Por vezes, parece-me que nada disto está a acontecer, que tudo isto é um sonho do qual vou acordar a qualquer momento.

- Eu também sou um sonho?

Lúcio apertou-a com força contra o peito e beijou-a repetidamente nos olhos, na boca e no pescoço. Maria percebeu que Lúcio desejava mais e, mordiscando-lhe a orelha, sussurrou-lhe:

- Agora não, meu amor. Vamos deixar isso para mais tarde e prometo que não te arrependerás. Se nos deixarem, vamos ficar a saber, finalmente, o que oprete rosso descobriu em Viena pouco antes de morrer.

O comissário Tarquinio deu autorização para que um dos inspectores o acompanhasse na leitura aos meios de comunicação social, que se concentravam à porta da igreja, de uma nota que tinha redigido naquele momento, segundo a qual, em dez minutos se realizaria uma conferência de imprensa na sacristia da igreja - o padre Ranucci não tinha visto qualquer inconveniente nisso - em que "se tornariam públicos os importantes avanços na investigação, e em consequência dos quais o caso Bellini tinha dado uma volta de cento e oitenta graus".

A expectativa levantada por aquelas linhas foi extraordinária. Tarquinio aproveitava para deitar isco à canalha, que era como chamava familiarmente aos jornalistas.

Enquanto na sacristia os técnicos preparavam as câmaras das mais famosas estações de televisão, os fotógrafos verificavam as máquinas e os repórteres faziam o mesmo com os gravadores, o comissário e o pároco conversavam animadamente, mas em voz baixa, a um dos cantos. Na sacristia, dois polícias tinham preparado uma mesa e duas cadeiras para a conferência de imprensa que aqueles iam dar. Quando Tarquinio e Ranucci se sentaram, fez-se um relativo silêncio, só quebrado pelo ruído das máquinas e dos flashes a dispararem.

O pároco limitou-se a dar as boas-vindas a todos e a agradecer aos meios de comunicação o trabalho que tinham realizado. A seguir falou o comissário que, sem preâmbulos, entrou directamente no assunto.

- Como os senhores sabem, difundiu-se a notícia de que tinha sido roubada uma valiosa obra de pintura das muitas que se guardam neste templo. Concretamente, um dos painéis pertencentes ao políptico de São Vicente Ferrer.

- Já descobriram o autor do roubo? - A pergunta viera do fundo da sacristia. Era uma voz de mulher.

Tarquinio ficou em silêncio durante uns segundos e fez uma cara de poucos amigos.

- Se os senhores tiverem a gentileza - e sublinhou esta palavra - de me permitirem que lhes conte o que tenho para vos dizer, terão toda a informação que desejam... Como estava a dizer, difundiu-se a notícia de que um painel do políptico de São Vicente Ferrer tinha sido roubado esta manhã. Como já a seguir o padre Ranucci terá oportunidade de lhes mostrar, tal roubo, no entanto, não existiu.

Um murmúrio primeiro e um coro de vozes depois aumentou na sala.

- Não houve roubo?

- Como é isso possível?

- Isso não é verdade! Eu vi o buraco no retábulo, antes de os carabinieri nos terem posto na rua!

- Foram vocês próprios que disseram que tinha havido um roubo e que se tratava de uma pintura de Bellini!

O padre Ranucci fazia com as mãos gestos de apaziguamento e pedia calma, enquanto Tarquinio olhava impassível para a reacção que tinham provocado as suas palavras. Já o previra.

Pouco a pouco, a dura expressão que tinha causado no seu semblante a interrupção anterior dava lugar a um sorriso que tinha muito de gozo. Parecia estar deliciado com toda aquela situação.

Quando se fez um relativo silêncio, o comissário continuou:

- Esta manhã um casal de visitantes concentrou a sua atenção no mencionado políptico. O padre Ranucci teve a ocasião, inclusive, de trocar algumas palavras com eles. Não sabemos quem é esse casal de jovens. Mas sabemos que não roubaram a pintura que supostamente faltava no retábulo.

- Por que diz supostamente, senhor comissário? Tarquinio fez um esforço para se conter e continuou como se não tivesse ouvido a pergunta.

- Tudo se deve a uma lamentável confusão. O retábulo de São Vicente tem escondido na parte detrás um mecanismo que, ao ser accionado, faz com que o painel direito da parte inferior do banco se mova lateralmente e fique escondido atrás do painel do meio.

Por alguma razão que desconhecemos, alguém, provavelmente esse casal que tanto interesse mostrava pela obra, ainda que isto não possa ser confirmado, pôs em movimento esse mecanismo e, alarmado perante as consequências da sua acção, foi-se embora sem voltar a carregar nele por forma a que o painel regressasse à sua posição inicial. Quando a encarregada da limpeza, que foi quem descobriu a suposta falta da pintura, avisou o senhor pároco, este pensou que se tinha verificado um roubo, dadas as circunstâncias ocorridas, e apresentou uma denúncia. E isto foi tudo.

O comissário fez um gesto para mostrar que concluíra a explicação que tinha para dar.

Um coro de perguntas foi formulado ao mesmo tempo. Nenhuma inteligível.

- Se lhes parecer bem podemos seguir uma ordem. Comece a senhora - Tarquinio apontou para uma loira de formas redondas, acentuadas pelo vestido que usava.

- É fácil aceder ao mecanismo que mencionou? E o senhor pároco conhecia a sua existência?

As respostas foram muito concisas.

- Como poderão verificar depois, não é fácil mas também não é difícil aceder a esse mecanismo - respondeu o polícia.

- Não, não sabia da sua existência. Foi uma grande surpresa

- foi a resposta do sacerdote.

- Se não é fácil aceder ao mecanismo como é que explica que, supostamente, esse casal o accionasse? Poderiam eles saber da sua existência?

- Não tenho nenhuma resposta para as duas perguntas. A única coisa que lhes posso dizer é que o mecanismo foi accionado esta manhã e que ocorreu um erro. Não houve roubo e descobrimos a causa da lamentável confusão que foi provocada.

- Esse mecanismo servia para esconder alguma coisa? Tarquinio sopesou a resposta:

- Em princípio não escondia nada. Pelo menos nós não encontrámos nada. Se escondeu noutro tempo é algo que desconheço. Creio que o retábulo é da segunda metade do século XV. Desde então passaram mais de quatro séculos e eu só tenho cinquenta e dois anos.

Houve uma gargalhada geral.

- Quem descobriu esse mecanismo?

- Fui eu, não vê como estou? - Tarquinio olhou para si próprio. Embora o tivessem ajudado a melhorar a imagem e o casaco vestido ajudasse muito a disfarçar, as manchas de pó eram perceptíveis na camisa.

- Como se deu conta da sua existência?

- Entrei pelo buraco, deixado pela deslocação da pintura, para a parte da capela escondida atrás do retábulo.

- Poderia esse casal procurar algo escondido atrás do retábulo? Tarquinio olhou para a jornalista da Tele 5 que tinha formulado a pergunta.

- Não tenho resposta para essa pergunta. Mas essa suposição carece de fundamento. Nada indica que houvesse alguma coisa escondida.

Aquela era a pergunta mais inteligente que lhe tinham feito. A única verdadeiramente inteligente. A única que explicava o interesse daquele casal e o facto de ter procurado a anilha que accionava o mecanismo, que nem estava à vista nem era fácil dar com ela.

O mais provável era aquele casal estar à procura de algo. Algo importante, segundo denotava o interesse de uma figura como Michelotto.

De qualquer maneira, Tarquinio não desejava que a história se aprofundasse naquela direcção, desviou a atenção da forma mais efectiva.

- Muito bem, obrigado a todos. Creio que chegou o momento de vos mostrar esse mecanismo que foi a causa de tanta confusão.

- Senhor comissário... Senhor comissário - era a mesma jornalista que fizera a última pergunta.

Tarquinio não lhe deu oportunidade. Já se tinha levantado.

- Queiram ter a bondade de nos acompanhar, a mim e ao padre Ranucci, para que lhes mostremos como funciona esse mecanismo.

Saíram todos em tropel para a zona onde se encontrava a obra de Bellini.

Quando Tarquinio apareceu no umbral da porta da igreja, acompanhado pelo pároco e pelos dois inspectores, na praça já quase não havia gente, a expectativa levantada pelo suposto roubo desvanecera-se.

Os curiosos que ali tinham acorrido na ânsia de uma notícia sensacionalista tinham-se ido embora. Restavam alguns jornalistas e técnicos que recolhiam os tripés e colocavam as câmaras na parte posterior dos seus veículos. Caía o pano, o espectáculo chegara ao fim.

Saiu de Zanipolo. Aparentemente, o caso do roubo do quadro de Bellini estava resolvido, mas estava farto de saber que havia muito mais. O que ali aparecera era apenas a ponta de um assunto de muito maior envergadura. O que fazia ali um tipo como o Michelotto, sussurrando-lhe nomes ao ouvido? E ainda por cima que nome! O da filha da Giulietta! Não sabia muito bem o que devia fazer, se puxar pela ponta, ou esquecer tudo e olhar para o outro lado. Pensou que os acontecimentos acabariam por indicar-lhe o caminho. Observou Coleoni, que se mostrava desafiante do alto do seu pedestal, montado sobre o esplêndido cavalo que Verrochio tinha fundido, e encolheu os ombros.

Os dois inspectores esperavam que dissesse alguma coisa.

- Creio que por hoje já chega. Se tiverem alguma coisa urgente, tratem dela; se não, amanhã será outro dia.

Os dois inspectores responderam negativamente e despediram-se.

Olhou para o relógio e viu que já eram quatro da tarde, dirigiu-se para um canto da praça, onde estava discretamente estacionado o seu carro. Tirou do bolso do casaco o telemóvel e marcou um número. Ao segundo toque obteve resposta.

- Sou eu, Aldo. vou mudar de roupa e comer alguma coisa. Estou aí em menos de uma hora... Sim, tranquiliza-te, Giulietta. Não houve nenhum roubo! Podem dizer o que quiserem na televisão! Foi tudo um mal-entendido! Uma lamentável confusão. Presta-me atenção, sou eu que to digo. Uma hora, minha querida, não mais. Vemo-nos no apartamento.

Aldo Tarquinio mantinha-se em forma nos seus cinquenta e dois anos. Conservava o cabelo, que penteava para trás. Desde há mais de um ano que mantinha uma relação bastante estável com Giulietta dei Sarto. Cada um vivia em sua casa, mas deitavam-se juntos com uma frequência regular num ninho de amor que tinham num belo apartamento que Giulietta possuía no campo de San Rocco, atrás da Scuola do mesmo nome, onde se guardava uma impressionante colecção de pintura de Tintoretto.

 

O almoço em casa de Michelotto começara com um certo atraso. Os convidados tinham chegado com a pontualidade a que o dottore os tinha habituado. Angelo recebeu-os, seguindo as instruções do patrão, oferecendo-lhes um aperitivo na biblioteca. Quando o anfitrião chegou desfez-se em desculpas e assegurou aos convidados que quando lhes explicasse a causa do seu atraso eles o compreenderiam. Deu a presidência da mesa a Camila. Ele sentou-se à direita da bela italiana e ao seu lado sentou-se Clermont-Lafargue. À esquerda de Camila instalou-se MacFarlaine e a seguir Drexler.

- Querida Camila, queridos amigos, tenho a comunicar-vos uma grande notícia. Antes de o fazer proponho um brinde para celebrar o momento de estarmos perante um facto que a verdadeira Fraternitas Charitatis esperou durante dois séculos e meio para ver transformado em realidade. A sua importância é tal que, uma vez ouvida a vossa opinião, se ela for favorável, telefonarei ao grão-mestre para que venha a Veneza e seja ele, em pessoa, que determine a actuação a seguir. Hoje é um grande dia para nós e para todos os nossos irmãos e irmãs espalhados por todo o mundo.

Alister MacFarlaine, conhecedor, como todos os presentes, dos excessos verbais que em certas ocasiões tomavam conta do anfitrião daquele almoço, levantou o copo de whisky que tinha na mão e interrompeu a alocução do dottore.

- Meu querido Stefano, proponho que efectuemos o brinde que anunciaste e que a seguir nos informes da situação em que se encontra o assunto que nos juntou na tua bonita cidade.

Camila levantou uma estilizada flâte onde borbulhava um champanhe transparente e de diminutas borbulhas. Clermont-Lafargue e Drexler fizeram o mesmo.

Ouviu-se o límpido tilintar do vidro dos copos a chocarem e o seu som espalhou-se pelo salão.

- Neste caso, tenho de comunicar-vos que a chave de Vivaldi, a que enviou para Bellini de Viena, apareceu.

- Já era tempo! - exclamou MacFarlaine e deu um generoso trago no conteúdo do seu copo.

- Sabemos quem a tem e onde está? - Os olhos de Camila brilhavam de uma forma especial.

O aristocrata francês e o cirurgião alemão ficaram tensos.

- Escutai-me com atenção: tal como tínhamos suposto, Tomasso Bellini, ofrater responsável da nossa irmandade veneziana no momento da morte de Vivaldi, escondera a chave que o irmão compositor lhe enviara de Viena. Quando ficou a saber do segredo que guardava a partitura pareceu-lhe tão terrível que decidiu não o confiar aos outros fratres, não cumprindo, assim, as regras da sua irmandade. Tomou, então, a decisão de guardar a partitura e também a chave, escondendo-as em lugares diferentes. Mas deixou uma pista para que quem encontrasse a partitura - tirou do seu bolso uma cópia da mesma e colocou-a ao lado do seu prato -- pudesse também aceder à chave. Deixou escrito, com tinta simpática no mesmo livro onde colocou a partitura, o lugar onde tinha escondido a chave.

- E onde foi que escondeu? - perguntou Clermont-Lafargue.

- Escondeu-a na igreja dedicada aos santos Giovanni e Paolo, que dá nome a um bairro de Veneza. Utilizou um retábulo dedicado a San Vincenzo Ferreri que fora pintado por Gentile Bellini entre 1464 e 1468, que era um antepassado da família do frater.

- Nesse caso estamos à espera de quê!? - exclamou com veemência MacFarlaine. - Vamos já para essa igreja!

- Alister, deixa-me concluir, tem um pouco de calma - disse Michelotto, fazendo um gesto de apaziguamento com as mãos.

- Já estive nessa igreja.

- Tens a chave de Bellini! - exclamou Drexler. Michelotto sorriu maliciosamente.

- Como vos disse já estive nessa igreja e, efectivamente, a chave estava lá. Mas o casal de pombinhos que ontem deixámos escapar adiantou-se-me.

Após aquelas palavras fez-se um silêncio absoluto. MacFarlaine deu um gole no seu whisky e pôde ouvir-se o ruído que fazia ao cair-lhe no estômago.

- Onde estão Maria e Lúcio? - perguntou Camila Strozzi.

- Não posso dizer-to porque não sei. A polícia anda atrás deles porque os acusa do roubo de uma das pinturas do retábulo. Precisamente o painel que ocultava a chave.

- Tiveram de partir a obra de arte para aceder ao esconderijo?

- perguntou o francês.

- Não sei, mas a pintura desapareceu. Quando cheguei à igreja havia uma confusão fenomenal uma vez que pelo bairro se espalhara já a notícia do roubo. A polícia também lá estava, avisada pelo pároco, bem como todos os meios de comunicação de Veneza.

- Essa é uma má notícia. Toda a polícia de Veneza andará a seguir a pista desse casal. Mau agoiro para manter as nossas acções num plano de discrição que considero imprescindível - disse Drexler preocupado.

- Isso é verdade, mas também o é o facto de esses jovens estarem neste momento assustados perante o turbilhão que as suas acções desencadearam. Estarão tão assustados que, creio, é o momento de entrar em contacto com eles e propor-lhes uma negociação. Devem estar angustiados e não poderão suportar a pressão. Se lhes prometermos ajuda, um bom punhado de euros e uma saída, virão parar às nossas mãos.

- Como entrarás em contacto com eles? - MacFarlaine retorcia uma das pontas do seu bigode ruivo.

Em jeito de resposta, Michelotto tirou do bolso um pequeno telemóvel.

Perante o gesto do escocês, disse:

- Tenho o número de Maria dei Sarto.

Naquele momento o mordomo aproximou-se do dottore, disse-lhe algo ao ouvido e entregou-lhe um papel cuidadosamente dobrado.

- Obrigado, Angelo.

Desdobrou-o e deu-lhe uma olhadela. Estavam escritos dois nomes: Nicola Martini e Adriano Rossi.

- Este papel recorda-me que tenho de dizer-vos que, para além de nós, há outras pessoas atrás do segredo do prete rosso. Trata-se daquele a que chamam indevidamente o outro ramo da Fraternitas Charitatis. Os descendentes dos fratres que se afastaram da nossa irmandade aqui, em Itália, quando, por influência do Vaticano, recusaram que as tropas de Victor Manuel II se apoderassem dos Estados Pontifícios e entrassem em Roma.

- Ainda existe essa gente? - perguntou MacFarlaine. Michelotto fez uma careta compungida no seu rosto.

- É verdade, meu querido Alister, mas são arraia-miúda, comerciantes, empregados, funcionários e alguns profissionais que recebem apoio de certos círculos de poder onde a Cúria romana tem influência. Pode ser que haja também nas suas fileiras um ou outro napolitano ou siciliano com poder, se é que me faço entender...

- Como sabes que são eles? - perguntou Camila.

- Acabam de me entregar uma nota com o nome de dois arquivistas que andaram a meter o nariz no arquivo da Pietà. Um deles, Adriano Rossi, abandonou-nos, por causas que não vêm agora ao caso, e foi admitido pelos dissidentes.

- Não poderiam ter sido eles a descobrir a chave? - perguntou Camila.

- Não, não foram eles. Foram Maria dei Sarto e esse músico espanhol. Os dissidentes andam sempre na nossa retaguarda.

- Tens a certeza? - insistiu Strozzi.

- Completamente.

- O que não consigo compreender - Michelotto parecia reflectir em voz alta - é como souberam do aparecimento da partitura... Não entendo... a não ser...

- A não ser o quê? Santo Deus, Stefano! - Camila mostrava-se tensa.

- A não ser que esse casalinho esteja a jogar com dois baralhos. Angelo aproximou-se outra vez do patrão, a sua atitude denotava claramente que tinha de lhe comunicar alguma coisa, mas aguardou respeitosamente que o dottore lhe desse uma indicação.

- Sim, Angelo?

O mordomo aproximou-se solícito.

- Queria desculpar-me, senhor, mas Stankovic disse que é importante.

- O que é importante? - Michelotto tinha feito uma expressão de incomodado.

- Senhor, diz que ouviu na rádio uma coisa que julga que é urgente que fique a saber.

- E então?

- Senhor, ele não quis dizer-mo.

com uma expressão contrariada, Michelotto pegou no guardanapo e colocou-o na mesa, pediu desculpa e saiu do salão de jantar. Do outro lado da porta, esperava-o Bodan Stankovic, o corpulento sérvio que trabalhava para ele como motorista e guarda-costas.

- É assim tão importante o que tens para me dizer?

- Senhor, estão a desmentir o roubo da pintura.

- O que dizem!?

- Senhor, dizem que foi tudo um erro e que a pintura estava oculta no retábulo. Ao que parece, alguém accionara um mecanismo que a escondia e depois não voltou ao lugar. A polícia descobriu o mecanismo e, ao accioná-lo novamente, a pintura voltou ao sítio.

- Isso não será uma brincadeira? Ou uma confusão?

- Ouvi-o em duas emissoras diferentes, senhor. Estão a deitar as culpas ao pároco por ter actuado com demasiada ligeireza. Dizem que em vez de ter apresentado a denúncia à polícia, o que tinha a fazer era conhecer melhor a sua igreja.

- Maldito seja!

Michelotto regressou ao salão de jantar, onde o esperavam os convidados. Sem nenhum tipo de explicações prévias indicou que a situação mudara na última hora.

- A pintura supostamente roubada apareceu. Na realidade, ao que parece nunca saiu do retábulo. Simplesmente, ao accionar um mecanismo tinha ficado oculta atrás de outras de idênticas medidas.

Houve expressões de desânimo.

- Há males que vêm por bem - Michelotto voltou à carga.

- Temos, simplesmente, de mudar a táctica a empregar em relação ao que estava a explicar-vos quando fomos interrompidos. Escutai-me com atenção. Mas antes deveis desculpar a minha falta de hospitalidade.

- Angelo - o dottore levantou a voz -, o almoço, por favor!

230

- Sem podermos contar com a pressão da polícia como autores do roubo do quadro - continuou Michelotto -, temos menos elementos de pressão sobre esse casalinho. Portanto, a nossa acção deverá ser mais discreta.

- Que queres dizer com mais discreta? - perguntou o francês.

- Temos de nos apoderar, sem grandes contemplações, da chave. Pura e simplesmente, arrebatando-a.

Michelotto disse aquilo com uma segurança tal que pô-lo em prática parecia uma brincadeira de crianças.

- Creio que arrebatarmos a chave em si não levanta muitos problemas. Não creio que esse casalinho ofereça muita resistência

- disse imperturbável Camila Strozzi. - O problema é localizá-los, antes que esses pelintras, que usurpam e usam um nome que não lhes pertence, se adiantem a nós, ou aconteça alguma coisa que volte a alterar o estado das coisas.

Como resposta, Michelotto tirou outra vez o telemóvel do bolso e exibiu-o, como se de um trofeu se tratasse.

- A chave está novamente aqui.

- Stefano, não Vais dizer-me que com uma simples chamada esses dois vão dizer-nos onde se encontram - MacFarlaine continuava a beber whisky.

- Não, mas com uma chamada e a ajuda correspondente, poderemos localizá-los e ficar a saber onde estão. É tudo uma questão de tecnologia.

- De tecnologia?

- Sim, de tecnologia, de amizades e um pouco de tempo. Tempo de conversação telefónica que permita a um técnico obter todos os dados.

- É muito importante ter amigos na Companhia dos Telefones! - disse Drexler.

- Amigos do meu tempo de criptógrafo quando trabalhava para a NATO, É ali que está a tecnologia que pode permitir-nos a localização do receptor da chamada feita a partir do meu próprio telefone. E como o tempo escasseia vais permitir-me - naquele momento entrava o mordomo com duas empregadas para servir as entradas - que me ausente por uns instantes.

Michelotto dirigiu-se para a biblioteca e procurou numa agenda, que guardava numa gaveta fechada à chave, um número de telefone. Marcou e ao primeiro toque pôde ouvir.

- Base de Tarento, Unidade de Transmissões. Telefonista de serviço, quem é, por favor?

- O general Cavallieri, por favor?

- Quem quer falar com ele, por favor?

- Sou o dottore Stefano Michelotto.

- Aguarde um momento, por favor.

Michelotto ouviu um clique e a seguir umas grotescas notas da Cavalaria Rústica. Teve de aguardar quase dois minutos, com aquela tortura no ouvido, até que ouviu novamente a voz da telefonista.

- Dottore Michelotto, vou passá-lo ao general.

- É muito gentil. Muito obrigado.

- Stefano, meu velho! Como estás? A que estranha honra devo esta chamada?

- Fico muito contente em ouvir-te de novo, Domènico, eu estou estupendo, e tu como estás?

- Muito bem, muito bem! com vontade de te ver! A que se deve a tua chamada?

- Olha, Domènico, preciso que me faças um pequeno favor.

- Conta com isso!

- Deixa-me que to explique.

- Mas conta com isso! De que se trata?

- Necessito de localizar uma pessoa, através de uma chamada de telefone.

- Um particular?

- Sim, trata-se de uma antiga aluna minha. Posso dizer-te o seu nome, mas tens de ser muito discreto. Tu estás a entender-me.

- Velho pirata! Não faz falta. O que necessito é o número dessa tua bonita aluna, porque é bonita, não?

- Obviamente, obviamente.

- Ah, o velho pirata do Stefano! Também preciso do teu número e a hora exacta da chamada.

- Tens alguma coisa à mão com que escrever?

- Sim, diz-me.

- O meu número é 606230285 e o da Maria...

- Então, a pombinha chama-se Maria?

- É verdade, o seu número é... - olhou para o papel onde o tinha anotado - 636952791.

- Vou repeti-los - murmurou o general - 6-0-6-2-3-0-2-8-5 e o outro 6-3-6-9-5-2-7-9-1.

- Correcto, Domènico.

- Quando vais fazer a chamada?

- Quanto tempo necessitas para preparar tudo?

- Dois ou três minutos, a partir do momento que desliguemos.

- Quanto tempo tenho de aguentar a chamada para que a localizes?

- Estás antiquado, velho pirata! Basta atender o telefone e está agarrada.

- Tu nunca mudas, velho amigo, nunca mudas. Telefono dentro de três minutos?

- Parece-me bem. Cronometramos?

- Cronometramos.

- Telefono-te para o teu telemóvel logo que a tenhamos localizado - disse o militar.

- Quanto tempo podes demorar?

- Não mais de cinco minutos. Até já. Começamos a contar três minutos.

Michelotto sentiu no ouvido o corte da ligação. Os três minutos seguintes passou-os pendente do ponteiro dos segundos do seu relógio.

No momento em que se cumpriam os três minutos marcou o número de Maria. Esperava que tivesse cobertura e que respondesse.

Ouviu o primeiro toque, depois o segundo. Um terceiro e um quarto. Pensava que não ia obter resposta, mas ao soar o quinto toque ouviu a voz cantante da jovem veneziana, ainda que tivesse percebido nela uma ponta de cautela, como se temesse algo.

- Estou? Estou? Está lá? Quem é? Estou?

Michelotto esperou, contendo a respiração, até que Maria cortou a comunicação. Olhou para a hora que marcava o próprio telemóvel. Faltavam três minutos para as quatro da tarde.

Exactamente oito minutos depois soava o seu telemóvel. Tinha aguardado a chamada na biblioteca. Era o general Cavallieri.

- Toma nota, Stefano! 12° 15' e 23" longitude Este e 45° 21' e 18" de latitude Norte. Isso é a ilha de Torcello. Trata-se, segundo os nossos mapas, de uma casa situada nas costas de uma basílica que tem planta circular. É aí que se encontra a tua pombinha! Espero que não esteja a pôr-te os cornos! - O general soltou uma gargalhada.

Michelotto não pôde resistir a dizer-lhe, como uma forma de resposta àquelas grotescas insinuações que se tratava de localizar uma pessoa que tinha em seu poder uma valiosa partitura de Vivaldi, cujo interesse era extraordinário porque permitiria descobrir aspectos desconhecidos até então do famoso compositor.

- Sim, sim, Vivaldi! - foi o jocoso comentário do militar. Michelotto sentiu como uma onda de calor a sair-lhe do corpo,

provocado por um mal-estar crescente perante a atitude de Cavallieri. Não pôde conter-se.

- A tua ignorância, Domènico, leva-te a nunca ter ouvido falar do segredo do prete rosso?

- O prete rosso? E quem é esse?

- Deixa, Domènico.

Michelotto agradeceu-lhe a sua colaboração e despediu-se de forma cortês e breve. Não suportava aqueles militares que faziam das expressões soezes uma forma de vida.

Quando concluiu a conversa estava incomodado. Tinha o que desejava, que se tornara muito mais fácil do que pensara, mas estava com um humor dos diabos! Não sabia muito bem se pelas maneiras de Cavallieri ou porque, finalmente, tinha acabado por lhe dar uma explicação quando não tinha necessidade nenhuma de o fazer.

Pensou que os anos não passavam em vão e que tivera uma reacção imprópria dele.

No piso de Mestre, onde a Fraternitas Charitatis tinha instalado o seu quartel-general de operações, Giorgio Cataldo e Romano Licci escutavam as explicações de Nicola e de Adriano.

- O que ele pede são dois mil euros.

- Não achas que é muito dinheiro por uma coisa que, segundo tu mesmo afirmas, não sabemos exactamente qual é o valor que tem? - perguntou Giorgio.

- Se o seu objectivo não é roubar-nos, possivelmente tem o valor que diz. O pior é se se trata de um engano - disse um cauteloso Licci.

- A minha opinião pessoal - insistiu Nicola - é que não está a mentir quanto ao interesse da informação que nos pode dar, ainda que obviamente se trate de um indivíduo com poucos escrúpulos. Viu uma oportunidade de conseguir um dinheiro fácil e está a explorar o filão que se lhe apresentou pela frente.

- Em todo o caso - disse Adriano Rossi - não dispomos de muito tempo. A decisão que for tomada tem de ser muito rápida

- olhou para o relógio -, já são quatro da tarde e disse que estaria ali até às seis.

- O Adriano tem razão - Licci falava com voz profunda -, não só porque esse seboso acaba o trabalho às seis, como também porque o tempo é um elemento fundamental em todo este assunto. Não creio que dois mil euros seja um preço excessivo para uma informação pela qual andamos a suspirar há tanto tempo.

Licci levantou-se, pegou numa pasta em pele de crocodilo, que apresentava um notável desgaste nos cantos. Abriu o fecho com combinação numérica e tirou um pequeno molho de notas. Contou dois mil euros, meteu-os num envelope e entregou-o a Nicola.

- Não deveis perder mais tempo! - gritou aos arquivistas quando já saíam pela porta.

Giulietta dei Sarto e Aldo Tarquinio encontraram-se no apartamento à hora combinada. A tensão que a mãe de Maria tinha vivido nas últimas vinte e quatro horas era perceptível na sua cara. Os seus olhos denotavam cansaço e as pequenas rugas que se abriam na comissura dos lábios tinham-se vincado mais. O mais chamativo era a pequena lesão de herpes que, como um acesso por onde saía o sofrimento, se formava invariavelmente no seu lábio inferior quando vivia momentos de angústia.

No momento em que Giulietta, que tinha sido a primeira a chegar, ouviu o ruído da fechadura, correu ao encontro de Tarquinio, abraçou-se a ele e começou a chorar de uma maneira inconsolável. Repetia uma e outra vez a mesma frase:

- Foi horrível! Foi horrível!

Aldo tentava tranquilizá-la. Acariciava-lhe as costas, beijava-lhe o pescoço e sussurrava-lhe ao ouvido que tudo já tinha passado. Assim decorreram vários minutos até que os repelões do seu corpo indicaram-lhe que Giulietta começava a descontrair-se. com cuidado, como quem teme quebrar algo muito valioso, desfez o abraço, beijou-a novamente, agora na boca, e levou-a para o salão do apartamento. Deixaram-se cair no sofá e perguntou-lhe, sem lhe largar a mão, se lhe apetecia tomar alguma coisa. A resposta foi a mesma de tantas outras ocasiões.

- O mesmo que tu. Mas antes preciso de um café.

Aldo, que se movimentava num território conhecido, foi à cozinha - um espaço equipado até ao último pormenor - para fazer um pouco de café numa cafeteira de filtro. Muito rapidamente o alourado líquido, ela gostava do café muito fraco, começou a gotejar no fundo do vidro. Enquanto passava o café, preparou dois gins tónicos muito fracos, uma rodela de limão e pouco gelo e esperou na cozinha até que o café ficasse pronto. Fê-lo de propósito para que durante esses minutos Giulietta se acalmasse o mais possível. Quando regressou ao salão levando uma bandeja com a fumegante chávena de café, que encheu o espaço de um aroma intenso, parou na ombreira da porta e lançou-lhe um beijo:

- Gosto muito como estás vestida!

- Não digas patetices. - A voz de Giulietta soava melosa. Aldo colocou a bandeja em cima de uma mesa de vidro que havia diante do sofá, voltou à cozinha para ir buscar os dois gins tónicos, regressou ao salão e pegou nas mãos de Giulietta.

- Houve um terrível mal-entendido. Já sabes, não?

- Ouvi qualquer coisa na rádio - suspirou ela. - Agora estão a meter-se com o padre.

- com o padre Ranucci?

- Sim, julgo que é assim que se chama. Apelidam-no de irresponsável, de actuar com ligeireza, de ter causado alarme social, sei lá que mais.

- Pobre Ranucci! Pareceu-me uma excelente pessoa.

- O que se passou, então? - perguntou Giulietta.

- Tudo se deveu a um mal-entendido, ninguém roubou nada. Simplesmente alguém accionou um mecanismo no retábulo onde estava a pintura supostamente roubada e esta escondeu-se atrás de outra de iguais dimensões. - Aldo não queria dizer à Giulietta, pelo menos naquele momento, que Michelotto tinha deixado cair nos seus ouvidos os nomes de Maria e de Lúcio. Aquilo voltaria a alterá-la. Depois teria tempo para lho dizer.

- Foi horrível, Aldo! - gemeu Giulietta.

- É possível que a Maria e esse jovem estivessem em Zanipolo esta manhã.

- É possível, não! É verdade! - disse-o com génio, elevando a voz.

- Foram lá esta manhã, mas isso não é nenhum delito. Além disso, já te disse que foi tudo um mal-entendido.

- No entanto - nos olhos de Giulietta notava-se um brilho forte -, a Maria e o Lúcio não estavam lá por casualidade. Foram eles que accionaram o mecanismo.

Aldo fez uma expressão de surpresa.- À procura de alguma coisa? Giulietta disse que sim.

- À procura de algo que estava escondido atrás desse retábulo. Foram eles que accionaram o mecanismo e isso não foi fruto da casualidade.

Aldo não deixava de pensar em Michelotto e na sua misteriosa aparição na igreja, para deixar cair umas gotas de insídia no seu ouvido.

- Queres que ajude a Maria?

- Foi por isso que te telefonei.

- Só por isso? - havia ironia nas suas palavras.

- Tens a noite livre? - também havia ironia na pergunta.

- Completamente livre.

- Já não a tens! E vais ficar a saber porquê!

- Ai, que medo! - Aldo fez, de uma maneira cómica, uma posição defensiva, como se tivesse de parar um ataque que lhe vinha de cima. Chegou-lhe em forma de uma palmada dada por Giulietta. Depois houve uma breve agitação amorosa. A seguir, Aldo pediu-lhe que lhe contasse tudo o que sabia sobre aquele assunto que tanto a preocupava.

- Primeiro contar-te-ei a história, até onde eu a conheço, sem entrar em pormenores. Depois tu perguntas-me o que quiseres.

Aldo, que sabia o que era para Giulietta não entrar em pormenores, manifestou o seu acordo e reparou que o pior momento já tinha passado, a tensão contida tinha desaparecido e que Giulietta começava tranquilizar-se. Contar-lhe tudo aquilo ia ajudá-la a relaxar ainda mais.

Começou por explicar-lhe a relação que se iniciara entre Maria e Lúcio e como, ao que parece, este tinha descoberto uma partitura de Vivaldi, cuja música era muito estranha. Contou-lhe a visita que Maria tinha feito a um antigo professor seu, especialista em textos codificados.

- Lembras-te do nome desse professor? - interrompeu-a Aldo.

Giulietta franziu a boca e respondeu negativamente. Aldo insistiu e recebeu uma negativa.

- Diz-te alguma coisa o nome de Michelotto, Stefano Michelotto? - Não queria sugestioná-la, mas era necessário começar a ligar as pontas desde o primeiro momento.

- É esse o nome do professor! - exclamou. Depois veio a pergunta. - Como sabes?

- Pura dedução. Não há muitos descodificadores de textos e Michelotto, que é professor universitário, é o melhor.

Giulietta continuou:

- Ao que parece, esse tal Michelotto agarrou o assunto com muito empenho. Maria, desta vez acompanhada de Lúcio, voltou a reunir-se com ele. Depois começaram os problemas.

- Que problemas?

- A polícia veio ao Bucintoro à procura de Lúcio.

- O que queriam?

- Não sei, disseram-me que queriam apenas fazer algumas perguntas a Lúcio.

- Por que não me avisaste?

- Naquele momento não pensei que fosse necessário.

- Giulietta! A polícia não anda por aí a fazer perguntas porque está aborrecida ou porque não tem nada melhor para fazer!

A mãe de Maria deu um grande gole no seu café e, depois, com um ar contrariado, disse a Aldo:

- Deixas-me acabar?

- Claro, minha querida. Perdoa este polícia bisbilhoteiro bebeu um pouco do seu gin tónico.

- Quando subi ao quarto do Lúcio para lhe dizer que a polícia andava à procura dele tive uma desagradável surpresa.

- O que se passou?

- Alguém tinha entrado no seu quarto e pusera tudo de pernas para o ar. Alguém tinha andado à procura de alguma coisa sem muito cuidado. Que desordem, Aldo!

- Sabe-se alguma coisa desse alguém?

- Nada, tivemos uns dias muito agitados na estalagem. Entrou e saiu muita gente. Já sabes como é... Setembro.

- Mas quem entrou no quarto do Lúcio sabia qual era? Essa informação teve de obtê-la de alguma maneira.

- Naquela manhã, dois homens, que disseram ser músicos, como o Lúcio, perguntaram por ele. É possível que tivessem conseguido saber qual era o quarto ao repararem no número que a recepção marcou para avisá-lo daquela visita.

- Apresentaste alguma queixa? Giulietta negou com a cabeça.

- E pode saber-se porquê?

- Lúcio e Maria negaram-se a deixar-me fazê-lo.

- Mas tu és a responsável pelo Bucintoro!

- Pediram-me por favor que não o fizesse.

- E em relação à polícia?

- Pediram-me também que lhes dissesse que não estava.

- Giulietta!

- Trata-se da minha filha e não tenho outra! Aldo assentiu com a cabeça.

- O que se passou depois?

- Disse à polícia que não estava e eles pediram-me para dizer a Lúcio que viriam mais tarde. Depois, o Lúcio e a Maria foram-se embora.

- Para onde?

- Dir-te-ei depois. Agora, ouve-me com atenção. A polícia veio ao fim da tarde e tive de mentir-lhes outra vez. Disse-lhes que o Lúcio não tinha regressado e que estivera o dia todo fora. Tudo isso se passou ontem. Esta manhã recebi uma chamada telefónica em que uma voz muito desagradável me fez todo o tipo de ameaças, se a Maria e o Lúcio não lhe entregasse algo que esse indivíduo quer a qualquer custo. Nem podes fazer uma ideia do terror que transmite essa voz e as ameaças que proferiu. Senti muito medo. Foi, então, que te telefonei.

- Quando recebeste essa chamada?

- Esta manhã.

- Sim, mas a que horas?

- Foi um pouco antes das onze.

- Tu telefonaste-me depois das duas, o que fizeste durante esse período? - A cabeça de Aldo funcionava como o que era, um polícia.

- Telefonei primeiro para a Maria para saber se estava tudo bem. Estava horrorizada. Temia que lhe tivesse acontecido alguma coisa.

- Falaste com ela?

- Sim, nesse momento estava na igreja de Zanipolo.

- E depois?

- Não sei, tentei recompor-me. Pela minha cabeça passaram muitas coisas. A polícia foi outra vez à procura de Lúcio; creio que já não acreditaram quando lhes disse que não estava.

- Não disseste nada à polícia acerca das ameaças?

- Nem me passou pela cabeça. Tu pensas que com a polícia à procura do Lúcio e com a atitude que vinha mantendo era a ocasião para lhes dizer que tinha recebido ameaças de morte?

- Lembras-te do que te disse essa voz?

- Foi horrível, Aldo! Ameaçou fazer mal à Maria! Matar-me! Sei lá que mais! Estragar o meu negócio! Horrível, horrível!

- Disse-te o que queria?

- Lembro-me perfeitamente. Disse-me: "Queremos o que a tua filha tem e que nos pertence."

- O que a tua filha tem e que nos pertence - repetiu Aldo.

- Não te disse o que era?

- Disse-me exactamente o que te disse. Mas é fácil supor o que é. O que querem é essa maldita partitura que o Lúcio encontrou no arquivo da Pietà.

- Onde disseste que a encontrou?

- No arquivo do Ospedale della Pietà.

- Creio que ali trabalhava Vivaldi, não? Giulietta disse que sim.

- Depois, veio a notícia do roubo dessa pintura. Fui-me abaixo, pensei que a Maria andasse metida em qualquer coisa muito feia. Foi, então, que te telefonei. Estava numa grande angústia. Sabia que ela tinha estado na igreja onde se cometera o roubo!

A polícia à procura do Lúcio! Gente que entra na minha estalagem e assalta o seu quarto! Um telefonema com ameaças...!

Aldo aproximou-se de Giulietta e envolveu-a com os braços. Era um claro gesto de amor, mas sobretudo de protecção para que se sentisse segura, depois daquelas horas terríveis. Viu que tinha acabado o café, pegou nos dois gins tónicos e deu-lhe o seu. Depois de ter bebido um longo trago, puxou pelo telemóvel e ligou para a esquadra.

- Sou Tarquinio, liga-me ao inspector de serviço!

O comissário conhecia os inspectores às suas ordens pelo timbre de voz.

- Manfredi? Sim, sou eu, Tarquinio. Creio que há uma denúncia contra um tal Lúcio Torres, creio que é um músico espanhol. Dá-me toda a informação recolhida sobre o caso.

A espera, com o telefone colado à orelha, durou pouco mais de um minuto.

- Sim, diz-me, diz-me... Que foi apresentada na esquadra do Arsenal, às quatro da tarde de ontem por Stefano Michelotto... Sim, sim, continua... Que acusava um espanhol, chamado Lúcio Torres, de ter roubado do arquivo do Ospedale della Pietà uma partitura que tinha descoberto... Sim, sim... que o denunciante indicava que se tratava de uma partitura de grande valor, que era de Vivaldi e que se corria o risco, tratando-se de um estrangeiro, que saísse de Itália, levando-a consigo... E que provas apresentou? - perguntou o comissário, olhando para Giulietta, que não estava nada surpreendida com aquela conversa, salvo o dado de que a denúncia tinha sido apresentada por Michelotto. - Não apresentou nenhuma prova!? - Aldo estava entre o surpreendido e o furioso. - Isso não é uma explicação, Manfredi. Pede que me liguem à esquadra do Arsenal... Sim, sim, aqui para o telemóvel.

Desligou o telefone, permaneceu uns instantes pensativo e depois disse:

- Algumas coisas começam a ganhar forma e, obviamente, a chave de todo o assunto está nesse professor da tua filha, que se chama Stefano Michelotto. Sabes que esta manhã apareceu na igreja de Zanipolo?

- Quem? O Michelotto?

Aldo ia para responder, mas nesse preciso momento tocou o seu telemóvel e limitou-se a fazer a Giulietta um gesto afirmativo.

- Prego... Sim... sim... sou eu. O comissário Tarquinio. Está aí o comissário? Sim... sim... eu espero.

Sem tirar o telefone do ouvido, tapou com a mão o microfone e disse à Giulietta:

- É muito inteligente. Disse-me ao ouvido uma informação de acordo com os seus interesses, que me ofereceu como colaboração de um cidadão exemplar... Sim? Sim, sim... António, sou eu, Aldo... Sim, a informação de uma denúncia apresentada na tua esquadra. Sim, tenho muito interesse. Conheço todos os dados, mas gostaria de conhecer as circunstâncias. Sim, sim... Os dados... o denunciado é Lúcio Torres, espanhol. O denunciante, Stefano Michelotto e foi apresentada ontem às quatro da tarde... sim... sim eu espero. bom, bom, eu desligo, e tu telefonas-me... sim, sim, para o meu telemóvel.

Passaram-se vários minutos durante os quais Aldo contou a Giulietta a visita de Michelotto à igreja. Depois pediu-lhe que lhe relatasse todos os pormenores, por muito insignificantes que lhe parecessem, relacionados com aquele assunto, tais como a forma como se tinham conhecido a Maria e o Lúcio, a razão da presença deste em Veneza, a opinião que tinha dele, qual era exactamente a relação que havia entre ambos, se tinha alguma informação sobre a partitura que fora encontrada e também as datas, com a maior precisão possível, de tudo o que acontecera naqueles dias.

As respostas de Giulietta foram muito precisas e valiosas. Estava a tentar estabelecer, com a maior exactidão possível, a cronologia dos factos, quando o telemóvel de Aldo tocou.

- Sim, estou a ouvir-te, António.

Foram as únicas palavras que pronunciou. Durante mais de cinco minutos ouviu o que o seu colega do Arsenal lhe contou. Aldo assentia com breves movimentos e, num determinado momento, puxou por um pequeno bloco e anotou várias coisas. Quando acabaram de lhe dar toda a informação agradeceu ao seu colega e pediu-lhe que o mantivesse informado de qualquer novidade que houvesse sobre o caso porque estava muito interessado. Despediu-se, fazendo-lhe uma sugestão.

- António, anda com pés de chumbo!... Por que te digo isto? Porque, ainda que não negue que esteja em circulação uma partitura que, ao que parece, tem um grande valor, eu não sei se é ou não é de Vivaldi, aqui há mais interesses em jogo do que à primeira vista parece. Tem cuidado com esse Michelotto! - Aldo desligou o telemóvel. - Onde estão a Maria e o Lúcio, agora? - À perspicácia e à experiência do polícia não passou despercebido um leve gesto de resistência. - Não estás a falar com o polícia. Estás a falar com o homem com quem te deitas desde há um ano e a quem telefonaste para que te ajude - havia uma ponta de recriminação naquelas palavras.

Giulietta colocou-lhe os braços em volta do pescoço e beijou-o nos lábios.

- Perdoa-me, Aldo, mas estou tão cansada. Estão na casa de Torcello. Já lá fomos uma vez.

- Podemos comunicar com eles?

- Sim, podemos telefonar para o telemóvel da Maria.

No salão da casa de Torcello os dois jovens tinham preparado a mesa. Tiraram de cima todos os objectos de decoração que ajudavam a acumular o pó. Tinham recuperado boa parte do ânimo quando souberam pela rádio que o presumível roubo da pintura de Gentile Bellini não acontecera e que tudo ficara a dever-se a uma grande confusão. A polícia resolvera o caso em poucas horas e o painel encontrava-se no seu lugar.

Maria tirou da sua bolsa uma caixa de madeira cuja superfície mostrava a patina dos séculos. Era de pequenas dimensões, teria uns dez centímetros de comprimento e cerca de metade de altura. Colocou-a, reverencialmente, sobre a mesa, perante o atento olhar de Lúcio.

- Espera um momento, vou à cozinha buscar um pano. - Lúcio regressou num instante. Entregou a Maria o pano, dando-lhe a honra.

com primor, a jovem veneziana limpou-a, pondo a descoberto a sua qualidade. A superfície era lisa, laçada e tinha um belo desenho de marchetaria, que denotava a origem mourisca do trabalho. Era uma prova de que Veneza fora no passado um porto onde confluíam todas as margens do Mediterrâneo.

Abriu a fechadura, um pequeno fecho metálico, com a mão a tremer.

Quando era criança, adormecia todas as noites sonhando com aventuras onde era uma heroína corajosa e uma benfeitora. Vivia as mais extraordinárias situações. Nunca, porém, tinha imaginado algo parecido com esta experiência. Talvez porque quando teve conhecimento do segredo do prete rosso, na época em que devorava livros e mais livros sobre história e sobre as personagens mais destacadas da sua cidade, já não fosse tempo de ilusões infantis em que a sua imaginação a transformava numa heroína que salvava Veneza dos ataques dos turcos, ou uma mulher corsária que lutava contra os piratas berberes em águas do Mediterrâneo. Nunca sonhou que a vida a conduziria pelos caminhos onde a levara nos últimos dias.

Lúcio também nunca tinha sonhado - era menos imaginativo que Maria - que a vida iria surpreendê-lo. Sabia, desde há muitos anos, que o seu ídolo, António Vivaldi, o violinista mais genial de todos os tempos, tinha tido uma vida azarenta e que havia nela passagens estranhas para as quais nunca se tinham encontrado explicações satisfatórias. Não sabia nada acerca da descoberta que realizara, nem que pertencia a uma estranha irmandade chamada Fraternitas Charitatis. Ele sonhara visitar Veneza, mas nunca que a sua estada na cidade se iria transformar numa aventura como esta. Tinha descoberto uma partitura inédita de Vivaldi! O sonho de muitos investigadores! Além disso, aquela partitura, evidentemente desconhecida, escondia o seu grande segredo, o segredo do padre vermelho! E o mais extraordinário de tudo: apaixonara-se até à medula pela veneziana que tinha diante dele e que era a criatura mais deliciosa do mundo!

Maria abriu a tampa da caixa e ouviu-se o ranger das pequenas dobradiças oxidadas pelo passar dos anos. Diante daqueles dois pares de olhos apareceu um papel amarelento, várias vezes dobrado.

Naquele instante, um ruído estridente quebrou a magia do momento. Era o telemóvel de Maria que tocava.

 

- Prego... Olá, mamã. Sim... sim, estamos bem. Sim, sim, já ouvimos na rádio. Já te disse que a tua filha pode ser um pouco louca, mas não é uma ladra. E tu como estás?... Fico muito contente... Ah, o Aldo está contigo?... Claro que não tenho nenhum inconveniente em falar com ele.

Maria ouviu atentamente Aldo. Chamou-lhe a atenção a quantidade de informações e pormenores que possuía acerca do assunto da partitura. Num determinado momento tapou o microfone e disse a Lúcio:

- É o Aldo, um comissário da polícia que é... é um pouco mais do que um amigo da minha mãe. Diz que quer ajudar-nos porque, ainda que o caso do roubo do quadro esteja solucionado, preocupam-no as ameaças que recebemos, tanto nós como a minha mãe.

Maria afastou a mão do microfone e disse ao comissário:

- Podes repetir a última coisa que disseste? Não ouvi muito bem, creio que é por causa da rede... Se tu e a mamã podem vir aqui?... Espera um momento.

Lúcio não tinha deixado um só instante de olhar nos olhos de Maria, a sua expressão era tão intensa que parecia estar a ouvir a conversa integralmente. Maria voltou a tapar o telemóvel com a mão.

- O Aldo pergunta se há algum inconveniente em ele e a minha mãe virem aqui. Querem que falemos disto tranquilamente. O que te parece?

Lúcio encolheu os ombros.

- Tu tens muito mais motivos para decidir do que eu. Trata-se da tua mãe. Faremos o que achares bem.

- Mas quero a tua opinião - insistiu Maria. - Para mim é o mais importante.

- Na tua mãe podemos confiar. Nunca deixou de nos ajudar e creio que está a passar um mau bocado. O que pensas desse Aldo?

- Creio que nos ajudará. Cada vez que me lembro da chamada de ontem sinto um calafrio. Pode dar-nos a ajuda que precisamos. Além disso, nós não temos nada a esconder.

- Maria, eu tirei uma partitura de Vivaldi de um arquivo! Isso é um delito!

A jovem semicerrou os olhos.

- Ninguém pode provar que a tenhas roubado. Já esteve mais gente no arquivo. E, em última instância, nesses pentagramas não diz que seja de Vivaldi. Creio que com o Aldo ao nosso lado estaremos mais protegidos... Aldo? Lúcio e eu ficaremos muito felizes se vierem a Torcello. Só vos pedimos discrição. Não vás vir por aí com sirenes e luzes acesas... Se recebemos alguma ameaça mais?

Maria foi apanhada de surpresa com aquela pergunta de Aldo. Hesitou um momento antes de responder.

- A de ontem, quando nos deram um prazo de vinte e quatro horas para lhes entregarmos a partitura... Quando? - Maria olhou para o relógio, sobressaltada. - Acaba dentro de três horas... Informados de tudo, que nós saibamos, só estão o Michelotto e os seus amigos... Quando? Está bem, ficaremos aqui à vossa espera... Não te preocupes, não sairemos daqui.

- Disse que chegarão em menos de uma hora.

A chamada provocou-lhe uma forte sensação de incerteza, o que a levou a esconder a caixa que guardava a chave de Bellini num sítio que considerou seguro, pelo menos provisoriamente. Saiu para o pátio e colocou-a entre as ferramentas que se amontoavam no telheiro.

O telefone de Romano Licci soou com uma melodia que lhe permitia identificar a pessoa que lhe estava a ligar. Tratava-se de um modelo de última geração, dotado de todas as novidades das telecomunicações. Era Luigi Maretti, o responsável daquele a que Michelotto chamava o ramo dissidente da Fraternitas Charitatis em Veneza.

- É Maretti - disse ufano, mostrando com a sua atitude que era a ele a quem o chefe se dirigia.

Sorriu para Cataldo de forma malévola. Carregou na tecla do sistema mãos livres para que todos pudessem ouvir.

- Sim, Luigi?

- Como vão as coisas, Romano?

- Estamos a um passo de controlar todos os dados. - Licci mostrava-se bastante seguro.

- O que sabemos do paradeiro do músico espanhol e da sua acompanhante?

Apareceu uma expressão de hesitação nos olhos de Licci, mordeu o lábio inferior e com uma voz que era pouco mais do que um sussurro, murmurou:

- É como se a terra os tivesse engolido. - Esboçou um sorriso malicioso. - O sistema montado por Cataldo ainda não deu resultado nenhum. Não apareceram no Bucintoro e não sei se montaram outros pontos de vigilância, em todo o caso não deram qualquer resultado positivo até ao momento.

Giorgio Cataldo assistia indignado e indefeso à conversa. Aquele cabrão de olhinhos míopes estava a colocar em cima dele todas as culpas. Continuava a dar voltas à sua cabeça sobre o paradeiro de Maria dei Sarto e do violinista espanhol. "Onde se teriam metido?". Desejava, mais do que nunca, dar com o seu paradeiro, não só pelo que representava para a Fraternitas Charitatis, como também para dar uma lição àquele tipo indecente que estava a regozijar-se com o seu fracasso. Sem saber como, um pensamento repentino passou pela sua cabeça. Um pensamento fugaz, um flash, uma ideia luminosa, dessas que valem uma fortuna. "Como fora tão estúpido em não se ter lembrado disso?". Não tinha explicação para não se ter dado conta antes. A obsessão na busca tinha-lhe passado uma rasteira. Não pôde reprimir um esboço de sorriso. Se o que acabava de lhe vir à cabeça como uma iluminação estivesse certo, aquele cegueta ia ver como elas cantam!

- No entanto - continuava Licci - fizemos importantes progressos no que se refere à busca de documentação. É possível que dentro de algumas horas tenhamos dado um passo gigante.

- Ainda que não duvide que assim seja - Maretti não parecia tão convencido -, o tempo é, tal como estão as coisas, um factor de primeiríssima importância. O maior problema assenta no facto de os laicos se terem adiantado a nós e, por essa circunstância todos os nossos esforços se tornam vãos. Temos de saber onde está esse casal.

- Os laicos estão metidos nisto? - perguntou um surpreendido Licci.

- Sim, esses hereges materialistas souberam do aparecimento da partitura e andam atrás dela.

Licci fez uma expressão de contrariedade. Sabia que eram muitos os recursos que, num determinado momento, aquela gente podia mobilizar e, portanto, a única arma que tinham era anteciparem-se. Claro que o que mais interessava a Maretti era dar com o paradeiro de Maria dei Sarto e do violinista espanhol que a acompanhava.

- Luigi, afirmo que hoje mesmo vamos ter em nosso poder todos os dados do arquivo da Pietà. É provável que em poucas horas

- Licci já estava à defesa - disponhamos de uma informação extraordinária. Estamos a trabalhar nisso e quase a chegar a bom porto.

- Não tenho de recordar-te que a nossa missão não só consiste em aceder à misteriosa descoberta que Vivaldi efectuou, como também em controlar a sua difusão, conforme determina a nossa irmandade. Se o segredo cai noutras mãos que não sejam as nossas, todo o esforço realizado terá sido inútil porque perderemos o controlo sobre este assunto. Há que localizar esses dois tipos. Deves saber que o comendatore deu luz verde a todas as despesas que forem necessárias; sem regatear nada, mas em troca não permitirá o mais pequeno erro. Não quer falhanços. Já sabes o que isso significa! - um ruído surdo indicou a Licci que Maretti tinha desligado o telefone.

O sorriso de coelho habitualmente estampado na cara de Licci tinha desaparecido. O seu aspecto era sombrio. Aquela imagem provocou em Giorgio uma espécie de prazer mórbido.

- Passa-se alguma coisa, Licci? - perguntou-lhe com cinismo.

- Como ouviste, o comendatore disse para não regatearmos despesas. Teremos todos os meios à nossa disposição. Mas também já sabes o que isso significa... - Licci desapertou o nó da gravata e passou o dedo pelo interior do colarinho da camisa. Notou como tinha começado a suar. - Na opinião de Maretti o mais importante de tudo é localizar Maria dei Sarto e o seu acompanhante, e essa é a tarefa que te coube em sorte - passou, malevolamente, a bola para o campo de Cataldo.

- E tu saberás, por acaso, para onde deveremos encaminhar os nossos passos? - perguntou com ironia Giorgio.

Licci negou com a cabeça.

- Creio que o melhor que podemos fazer é esperar por notícias do arquivo da Pietà. Tenho a certeza de que aí está a chave de tudo. - Pronunciou a última frase como uma maneira de se convencer a si mesmo.

Cataldo dirigiu-se para a porta do gabinete e quando ia a sair disparou contra Licci:

- Eu sei onde podemos encontrar Maria dei Sarto! Licci esbugalhou os olhos.

- Onde?

Giorgio fez um gesto negativo com a cabeça e saiu, batendo com a porta.

- Vai à merda! - gritou-lhe desesperado. - Isso querias tu saber!,

Mal tinham passado alguns minutos quando tocou o telemóvel de Licci, a melodia indicando que a chamada era de Maretti. com um gesto de enfado pegou no telemóvel e antes de atender soltou uma maldição. Quando ouviu o que Maretti lhe estava a dizer o seu rosto ficou pior do que estava.

- O Cataldo disse-te onde estão esses dois? Isso deverá ser uma brincadeira! Como iria ele saber uma coisa dessas?... Ir a Torcello? O que vamos fazer a Torcello? - Licci tinha desabotoado o colarinho da camisa. - Mas qual o fundamento de uma coisa como essa? Até poderia ter dito que era no lago Como!... Dizes que te deu razões que apoiam a sua hipótese? - Licci bateu com o punho fechado na mesa... - Está bem, iremos a Torcello, mas eu não me responsabilizo por isso! Quem terá de responder será Cataldo!

Tal como na vez anterior, Maretti desligou-lhe o telefone; Licci não perdeu tempo e chamou aos gritos Cataldo, que apareceu tão depressa que tudo indicava que devia estar atrás da porta à espera.

- Chamaste-me?

- Já chega! - atirou-lhe Licci.

- O que é que já chega, pode saber-se? - A ironia não abandonava o tom das suas palavras.

- Essa atitude de displicência que tens em relação a mim! Esses ares de superioridade que não têm nenhum fundamento! Só tens é fachada! O valor de um homem está aqui, aqui! - e apontou repetidamente com o dedo indicador para a cabeça.

- Não sei a que propósito vem tudo isto, a não ser que queiras dar rédea solta ao teu complexo de inferioridade! Vamos para Torcello e pelo caminho explicas-me o que teremos de fazer quando lá chegarmos!

Licci levantou-se e foi à casa de banho. Fechou a porta com grande estrondo. Cataldo e os outros homens, que acorreram ao salão ao ouvir os seus gritos, aguardaram em silêncio até que passados alguns minutos o foniatra voltou a aparecer. Estava pálido e tinha o cabelo, que penteava cuidadosamente para tapar a sua calvície, num alvoroço.

- Todos preparados para irmos para Torcello! Aqueles que tiverem armas, levem-nas, ainda que o mais provável é alguém regressar com o rabo entre as pernas!

- O que há em Torcello, Romano? - perguntou um dos homens que tinham aparecido no salão devido aos seus gritos.

- O Maretti diz que em Torcello, numa casa atrás de uma basílica circular, encontram-se o músico e a Maria dei Sarto.

- Como soube disso o Maretti? - perguntou Giorgio com malícia.

- Se em Torcello não encontrarmos nada, vai-te preparando!

- O olhar que Licci dirigiu para Cataldo foi de animosidade. Estava excitado, demasiado excitado porque, sendo um homem metódico, planificara minuciosamente a sua acção e acreditava que conseguiriam o seu objectivo à base de esforço e força de vontade, dando um passo depois de ter assegurado o anterior. No entanto, por uma razão que desconhecia partiam para Torcello. Calculara tudo para alcançar um êxito sem precedentes e com ele a glória no seio da fraternidade. Aquele maldito antiquário e o telefonema de Maretti tinham feito ir pelos ares os seus planos. O seu maior desejo na vida era passar à história na fraternidade; descobrir o enigma Vivaldi teria superado largamente essa aspiração. Naquele momento, no entanto, desejava com toda a sua alma que em Torcello não houvesse mais que a fantasia de um petulante como Cataldo.

Abriu, com uma pequena chave, um arquivador metálico e tirou, de trás de umas pastas de arquivo, uma pequena pistola. Parecia de brincar, mas condizia com o seu aspecto.

- Vamos! Leone, tu ficas para atender o telefone!

Giorgio aproveitou para telefonar aos homens que estavam a vigiar o Bucintoro, ordenando-lhes que abandonassem os seus postos de vigilância.

- Não devem perder tempo, dirigi-vos para o cais! Nós saímos pela A-4 para apanhar a S-ll. Na paragem que há à direita da estrada, quando se chega à laguna, apanharemos um barco a motor. Como vocês irão chegar antes, fiquem à nossa espera!

Quando saíam para a rua encontraram os arquivistas que regressavam. Ao vê-los sair tão apressados, estes perguntaram:

- Passa-se alguma coisa?

Licci parecia desorientado. Apertou os óculos com o indicador e indicou-lhes que subissem para o escritório, tinha lá ficado um homem de guarda.

- Fiquem à nossa espera até que regressemos!

Depois, como se se lembrasse de alguma coisa que tinha esquecido, perguntou-lhes:

- Têm o que queremos?

- Temos o lugar onde está escondida a chave.

Nos olhos de Licci assomou a dúvida. Se fosse por ele, voltaria para o escritório e analisaria o material que os dois arquivistas traziam, ele não era um homem de acção. Esteve tentado a pedir a Cataldo que se encarregasse de ir a Torcello, mas a disciplina falou mais alto e, sobretudo, o facto de que, se a informação de Maretti fosse correcta, o êxito da missão seria apenas para Giorgio, mas se ele lá estivesse logo se veria quem ficava com a glória. Não podia consentir uma coisa assim! De maneira nenhuma! Entrou para o carro, que prudentemente estacionara diante do edifício onde se encontrava o escritório e que Cataldo já tinha posto em marcha. Os dois homens que os acompanhavam ocuparam os assentos de trás. Quando se lhes juntassem os dois que tinham estado a vigiar o Bucintoro, formariam um pequeno exército.

Aldo e Giulietta tinham demorado pouco mais de meia hora para apanhar um barco e percorrer os nove quilómetros que separam Torcello da zona histórica de Veneza. Depois de desembarcarem dirigiram-se para a casa num passo acelerado. Caminhavam em silêncio, cada um metido nos seus próprios pensamentos. A mãe de Maria, inquieta pelas ameaças que ela e a sua filha tinham recebido. Aldo, elucubrando possibilidades e juntando pontas. Estavam a pouco mais de cem passos da casa, lembrava-se perfeitamente dela pela sua fachada em tijolo vermelho; levantou o olhar e o que viu fez com que o seu instinto de investigador o alertasse. Puxou com força pelo braço de Giulietta, arrastando-a consigo.

- O que se passa? - gemeu sobressaltada. Aldo levou o dedo indicador aos lábios.

- Creio que alguém se adiantou a nós.

- Oh! - Giulietta tapou a boca com a mão. - O que vamos fazer agora?

- Para já, manter a calma.

- O que viste? - Giulietta estava aterrorizada.

- Há dois tipos fardados à porta, estão a fazer guarda. Creio que todas as persianas estão fechadas. Lá dentro deve haver mais gente.

- Meu Deus, a minha filha!

- Giulietta, por favor, não vais adiantar nada assim. Diz-me, a casa tem alguma outra porta?

- Há uma porta nas traseiras, a do pátio.

- Aonde leva essa porta?

- À cozinha.

- A cerca do pátio é muito alta?

- Não sei, uns dois metros, quase três. Aldo estava a analisar toda aquela informação.

- Como é o pátio?

- Como queres que seja? Como todos os pátios! O olhar de Aldo era impaciente.

- Quero dizer, que tamanho tem? Se tem árvores! Se há alguma construção! E também como é a porta que dá acesso à cozinha.

Como resposta, Giulietta pediu-lhe:

- Por que não chamas a polícia?

- Achas que isso é o melhor?

Num tom resignado Giulietta começou a sussurrar:

- O pátio é mais ou menos quadrado, é bastante grande...

- O que significa bastante grande?

- Cento e cinquenta ou duzentos metros quadrados. Tem trepadeiras nas paredes e várias árvores. Perto da porta da cozinha há um telheiro, onde se empilham trastes velhos e que não servem para nada. Também há alguma lenha para a lareira. No primeiro andar há um terraço sobre o pátio. Pode aceder-se a ele através de uma escada que começa no pátio e também através dos dois quartos que há no andar de cima.

- Recorda-me a distribuição dos andares a partir da cozinha.

- A cozinha dá directamente para o salão. Este dá para o vestíbulo, no qual se abre uma porta que dá para uma salinha de estar, que utilizamos como salinha de jantar, e outra que dá para uma casa de banho. Em cima há uma antessala que dá acesso a quatro quartos e a uma casa de banho. Um dos quartos tem casa de banho.

- Muito bem - Aldo passou várias vezes a mão pelo queixo.

- Se passada uma hora eu não te chamar, avisa a polícia. - Tirou do bolso do casaco um bloco de notas e apontou um número.

- O inspector chama-se Giacomo, diz-lhe que telefonas da minha parte. Agora vai para a basílica e procura um sítio que tenha rede.

- Abraçou-a pela cintura e deu-lhe um beijo.

Aldo fez um desvio até chegar à parte traseira da casa. Pôde ver que não havia ninguém no terraço do primeiro andar. Pensou que se havia dois indivíduos à porta, lá dentro haveria mais. O factor surpresa era a única arma que tinha a seu favor, outra vantagem era que não havia gente na rua para a qual dava a porta das traseiras. com um salto que denotava a sua boa forma, encavalitou-se no alto da cerca que fechava o pátio, deixou-se deslizar pela parte interior do muro e procurou a protecção que lhe dava o tronco de um grosso castanheiro.

Avaliou a situação e verificou que a porta da cozinha estava entreaberta. Não se via ninguém, nem se ouviam vozes, empunhou a sua pistola regulamentar e avançou silenciosamente. Verificou que a porta que através da cozinha dava acesso ao salão estava fechada. Quem quer que fosse que tivesse ocupado a casa eram uns toscos ou, então, pecavam por excesso de confiança.

Aldo avançou silenciosamente pela cozinha. A desordem era a consequência de uma busca frenética e desesperada. Havia pratos e copos partidos no chão, as gavetas dos móveis estavam abertas e revolvidas. Olhando onde punha os pés, chegou até à porta que dava acesso ao salão e colou aí a orelha. Percebia o rumor de palavras, mas não conseguia entender nada, nem fazer uma ideia de quantas pessoas havia. Pressupôs que estariam Maria e Lúcio, mas não podia saber o número daqueles que tinham ocupado a casa. Saiu para o pátio e subiu ao terraço, de onde se desfrutava uma magnífica vista sobre a laguna. Lembrou-se que um dos quartos que davam para aquele terraço era o que tinham utilizado, Giulietta e ele, nas duas ocasiões em que estiveram naquela casa, o que tinha a casa de banho.

Entrou no quarto, olhou para a cama e pela sua cabeça passaram, rapidamente, os momentos vividos ali. Giulietta era uma magnífica e experiente amante. Pela roupa que havia sobre os cabides de pé e espalhada pelo chão, deduziu que era o quarto utilizado pelos jovens. Atravessou na ponta dos pés - estava por cima do salão e qualquer ruído poderia denunciá-lo - depois de verificar que a casa de banho, que também tinha sido inspeccionada, estava vazia. Percebia o rumor das palavras, aproximou-se da porta que dava para a antessala com extremo cuidado e até aos seus ouvidos chegou mais nítida a conversa das pessoas que estavam no salão. Assegurou-se de que não havia ninguém na antessala e, um a um, verificou o estado dos restantes quartos e da outra casa de banho. Todos tinham sofrido o efeito da busca. Olhou para o relógio, tinham passado vinte minutos desde que deixara Giulietta; talvez tivesse dado menos tempo do que o necessário. Apertou com força a pistola e aguçou o ouvido.

Era Michelotto quem estava a falar, recordava perfeitamente a sua voz metálica.

- Estão a esgotar a minha paciência! vou dar-vos a última oportunidade para que me digam onde esconderam a chave, antes de vos entregar às mãos experientes do Bodan. Asseguro-vos que pode ser refinado aos extremos mais incríveis. Utiliza umas tenazes às quais aplica uma descarga eléctrica com um mecanismo que lhes instalou nos punhos. E faz falar da mesma maneira um homem ou mulher, mas eu não posso suportar o sadismo que põe nisso. Tenho a certeza de que no fundo do seu coração, ainda que duvide que o tenha, está desejando que não me digam onde está a chave para não perder o prazer de vos arrancar uma confissão.

Chegou até a Aldo o gemido que saiu da boca de Maria e o insulto que Lúcio lhe atirou.

- Em numerosas crónicas - continuava Michelotto - conta-se que para pôr os réus a ponto de confessarem, o verdugo mostrava-lhes os instrumentos de tortura. Ao que parece, a medida era muito eficaz na maioria dos casos. Creio que para estimular a vossa língua e refrescar a vossa mente podemos fazer o mesmo. Bodan, mostra a estes jovens as tuas tenazes!

Bodan Stánkovic tirou da sua maleta umas tenazes muito polidas com um grosso punho em borracha de cujo extremo pendia um cabo que podia ser ligado à corrente eléctrica. Por iniciativa própria, também mostrou a Maria e a Lúcio, que estavam sentados, amarrados com os braços atrás de incómodas cadeiras, um afiado e longo punção com um fio cortante que lhes passou muito próximo das caras. Aquele malvado aproveitou o momento para apalpar os seios de Maria, que se mostravam proeminentes na posição em que se encontrava.

- Canalha! - gritou encolerizada a jovem.

- bom! Pela última vez! Onde está a chave que me permitirá decifrar a partitura? - Michelotto agitou na sua mão o original de Vivaldi.

Aguardou uns segundos, sem obter resposta à sua exigência.

- Camila, querida, tu tens alguma coisa para dizer? Camila Strozzi negou com a cabeça.

- Nesse caso, nós podemos dar uma volta e desfrutar a paisagem de Torcello. Enquanto Bodan fará o seu trabalho.

- Stefano, se não te importas ficarei por aqui, se - dirigiu-se a Stánkovic - começares por ela.

- Oh! Minha querida Camila, não podia suspeitar que tivesses estes gostos! Não serei eu que vou privar-te de tão mórbido prazer!

- Bodan, tapa-lhes bem a boca, não quero alertar a vizinhança com os gritos. - Michelotto saiu do salão, fechando a porta atrás dele.

Aldo, apesar de ter visto muitas coisas na sua longa carreira policial, tinha o estômago apertado. Ultrapassou a náusea e avaliou a situação. O mais provável era que ali só estivessem aquela tal Camila e o torturador. Não eram muitos e a seu favor tinha o factor surpresa, porque aquela gentalha julgava movimentar-se na mais absoluta segurança. O tempo de que dispunha, antes de aquele assassino começar a sua macabra tarefa, era o que demorava a amordaçar Lúcio e Maria.

Até ele chegaram as palavras lastimosas de Lúcio.

- Maria, pelo amor de Deus, diz-lhes onde está a chave! Este monstro vai-nos... vai-nos...!

- Ele irá matar-nos seja lá como for! Já não podem deixar-nos com vida! - A voz de Maria exprimia uma grande determinação.

- Mas talvez não nos torturem! Pelo que mais queres na tua vida, Maria! Se não queres fazê-lo por ti, fá-lo por mim! Não vou suportar ver como este canalha...!

Stánkovic aproximou-se de Maria, numa mão levava a fita isolante e uma tesoura. com a mão livre apalpou-lhe outra vez os seios. Desta vez, de um esticão, desabotoou a camisa da jovem e baixou-lhe o soutien.

- Porco! - gritou ela e lançou-lhe uma cuspidela em pleno rosto. A reacção daquele sádico foi dar-lhe uma bofetada que voltou a cadeira, atirando-a ao chão. Aldo pensou que tinha chegado o momento de actuar. Desceu pelas escadas como um torvelinho e parou no meio do salão, apontou a pistola ao sérvio, obrigando-o a colocar-se ao lado de Camila. Tentou disfarçar o espanto que sentiu ao ver que a tal Camila era Camila Strozzi.

- A vossa vida não vale um tostão. Se alguém se mexer está morto!

Sem tirar a vista de cima deles, pegou no punção cortante que Stánkovic tinha exibido e cortou as amarras de Lúcio.

- Desata a Maria!

Lúcio a tremer e sem fala, pegou no punção que o polícia lhe estendia, cortou as amarras da sua namorada e ajudou-a a levantar-se. Maria estava aturdida pela bofetada e tinha um fio de sangue na comissura esquerda da boca.

- Estás bem, meu amor? - Lúcio abraçara-se a ela e acariciava-lhe com uma mão a cabeça e as costas. Uma e outra vez repetia-lhe o mesmo: - Estás bem, meu amor?

Passados uns segundos, Maria perguntou:

- O que se passou? Aldo, o que estás aqui a fazer?

- Para já, evitar-te um mau bocado - respondeu o polícia.

.. Agora, aproveitem as vossas próprias ligaduras e amarrem bem

essa monstra esbugalhada - apontou com a pistola para Camila. Tu - empurrou Stánkovic pelas costas -, vai para aquele canto.

Maria e Lúcio afadigaram-se, com mais vontade do que com eficiência, e trataram de amarrar Camila Strozzi. No final, tinham feito um bom trabalho.

- Agora toca-te a ti! - Aldo fez um gesto ao rufia a soldo.

Naquele momento ouviu-se um telemóvel, que distraiu por instantes a atenção de Aldo. Numa fracção de segundo, o sérvio abalançou-se sobre ele. Travou-se uma luta entre os dois homens. O sicário tentava conseguir que Aldo soltasse a sua pistola. A sua corpulência dava-lhe uma importante vantagem sobre o polícia; este, consciente de que a sua superioridade estava na arma, lutava por mantê-la e tentava safar-se daquela espécie de urso que o abraçava com intenção de o esmagar.

Maria e Lúcio assistiam imóveis e atónitos à luta. Stánkovic deu uma forte joelhada a Aldo e os dois caíram, rolando pelo chão, numa grande embrulhada. Soou uma detonação e houve um momento de dúvida, depois o rufião deixou cair pesadamente o seu corpo para um lado. Aldo, com a cara contraída pela dor, gritou aos jovens que trancassem as portas.

Mesmo a tempo, porque Michelotto e os que estavam com ele, batiam furiosamente do lado de fora. Lúcio correu para fechar os dois ferrolhos que fixavam a pesada madeira da porta. Também rodou por duas vezes a fechadura.

- Rápido, há que fechar as portas do andar de cima, as dos quartos que dão para o terraço! E a da cozinha! - enquanto Aldo dava estas ordens, revistava o motorista de Michelotto até que encontrou o que procurava: uma pistola com a segurança activada, que usava atrás das costas segura pelo cinto das calças. Naquele momento apercebeu-se de que se estava a passar algo que rompia com os esquemas habituais de situações parecidas. Os golpes na porta tinham parado, tão-pouco dispararam para fazer saltar a fechadura e os ferrolhos.

Nem Lúcio nem Maria gritavam. Levantou os olhos e, instantaneamente, percebeu o que estava a passar-se.

 

Ao mesmo tempo que a mente de Aldo tentava perceber os contornos de toda a situação, chegou até aos seus ouvidos a exclamação de Maria, que se encontrava junto à porta da cozinha:

- Giorgio! Que fazes tu aqui? - Cataldo, acompanhado de outros dois indivíduos, tinha aparecido ao cimo das escadas. Lúcio, que subira para fechar as portas dos quartos, tinha a cara desfigurada e os braços levantados. Apontavam-lhe uma pistola. Outro indivíduo tinha aparecido nas costas de Maria, ameaçando-a também com um revólver.

O antiquário não respondeu à pergunta da sua amiga, mas intimou Aldo para que pusesse as pistolas no chão. O comissário ainda pensou em recusar-se e iniciar um tiroteio, mas aquilo transformar-se-ia numa carnificina e nem Maria nem Lúcio teriam muitas possibilidades.

- com cuidado! Sem nenhum movimento estranho! Aldo, que estava agachado, deixou as pistolas no chão.

- Agora levante-se e ponha as mãos ao alto. Se todos se portarem bem, não acontecerá nada de mal.

O antiquário empurrou Lúcio com o cano da beretta para que descesse.

- Anda!

O grupo de quatro homens desceu pelas escadas; quando chegaram ao salão um deles apanhou as pistolas do chão, enquanto outro atravessava rapidamente o salão e abria a porta da rua. Por ali, como se fosse um desfile, entraram Michelotto, os dois indivíduos que Aldo tinha visto a vigiar a porta da casa e mais outro sujeito que lhe apontava uma pistola. Por último apareceu, fechando a porta atrás de si, um tipo com um ar débil e de aspecto ridículo.

"Quem seria aquela gente que entrava agora em cena e se tinha assenhoreado da situação?", questionava-se Aldo. Um deles, que respondia pelo nome de Giorgio, era conhecido de Maria.

Michelotto tinha perdido a arrogância de que fizera gala até então, só lhe restando energia para lançar olhares furiosos aos seus homens. Quando viu no chão, estendido sobre um charco de sangue o seu motorista e guarda-costas, fez uma expressão de desagrado, mas nem uma exclamação saiu da sua boca.

Apesar de Romano Licci não conseguir deixar de estar surpreendido perante o panorama que se lhe oferecia diante dos olhos e não parar de se interrogar como o imbecil do Cataldo tinha conseguido obter aquela informação, teve força, como chefe de grupo, para dizer:

- Já cá estamos todos!

Maria não pôde conter uma exclamação:

- Conheço essa voz!

Licci olhou para Maria e com um gesto de despeito atirou-lhe:

- Não seja indecente! Abotoe a camisa e deixe de mostrar as mamas!

A jovem percebeu como o rubor lhe subia às faces. A toda a pressa com as mãos a tremer, compôs a sua camisa rota e baixou a cabeça.

- Agora não há tempo a perder! Nós viemos buscar o que um de vocês tem e que historicamente nos pertence! Queremos a partitura e a chave que Vivaldi enviou para Veneza em 1741.

- Quem é você para reclamar legal e historicamente a partitura e a chave de Vivaldi? - A voz de Camila Strozzi fez-se ouvir em tom de desafio.

Romano Licci voltou-se para ela, ajustou a ponte dos óculos e disse-lhe com desdém:

- Qual a autoridade de uma das maiores putas de Veneza para formular tal questão?

Camila Strozzi fulminou-o com o olhar. Não estava habituada a receber respostas como aquela e muito menos a que a classificassem como puta.

- Irás arrepender-te do que acabas de dizer!

- Tens a certeza disso?

A voz de Licci voltou a ferir os ouvidos de Maria.

- E agora basta de conversa de chacha! Quem tem o que viemos buscar?

O silêncio foi a resposta que obteve à sua pergunta. Licci passeou o olhar pelos presentes e apertou os lábios.

- Está bem, creio que teremos de proceder de outro modo. E a primeira coisa será saber quem é cada um de vocês. Por um lado, temos o professor Michelotto e os seus dois acompanhantes. Temos, por outro, Camila Strozzi... não consigo perceber muito bem que papel tem nesta farsa, a não ser que no processo de prostituir e alterar a essência da Fraternitas Charitatis tenham sido admitidas mulheres.

- Retrógrados, fanáticos! - gritou encolerizado Michelotto.

- Bastardos, materialistas! - foi a resposta de Licci que, modulando a voz com a habilidade própria de um profissional, prosseguiu: - Tu deves ser a Maria e tu esse intrometido músico espanhol. - Fez uma expressão de despeito na direcção de ambos.

- Também temos aqui um cadáver e um senhor - olhou para Aldo - de quem não sabemos nada.

- Este homem não está morto, precisa de assistência médica urgente - disse Aldo -, e para seu conhecimento dir-lhe-ei que sou comissário da polícia, comissário Aldo Tarquinio.

- Comissário da polícia? - Licci estava admirado. - E o que faz aqui um comissário da polícia?

- Para já, incomodá-los a todos vós e seus respectivos programas de actuação e, também, se este homem morrer, acusá-los de denegação de auxílio, de ameaça à autoridade, porte ilícito de armas e do que mais adiante se verá. - Aldo fazia gala da serenidade própria de quem viveu numerosas situações complicadas ao longo da sua vida.

Licci acusou o impacto daquelas palavras, mas tentou disfarçar.

- Primeiro há que controlar a situação. Amarra estes - disse, apontando com a pistola que tinha na mão para os homens de Michelotto - e coloca-os junto à puta da Strozzi!

Camila Strozzi enfureceu-se.

Os dois homens de Michelotto ficaram imobilizados com os pés amarrados e as mãos atadas atrás das costas.

- Agora é a sua vez, professor.

Michelotto olhou-o com desprezo e estendeu os punhos para serem atados.

- Agora, revista-lhes os bolsos!

O dottore encolheu-se instintivamente. Foi um aviso para Licci. De um dos bolsos do seu casaco tiraram um papel antigo dobrado. Giorgio identificou-o de imediato.

- É a partitura de Vivaldi!

Licci apanhou-o com avidez e desdobrou-o com dificuldade por causa da pistola.

Com um sorriso no rosto, desfrutou daquele momento.

- Já temos uma das coisas que procuramos! Não é, no entanto, a mais importante. Ainda que seja sempre melhor o original que uma cópia, cópias temos todas as que quisermos.

- Todas as que quiserem? - exclamou Lúcio.

- Sim, jovem, todas as que desejarmos. Você sabe que as fotocopiadoras funcionam com uma rapidez extraordinária.

- Então, foram vocês que roubaram os meus apontamentos e as três cópias da partitura que eu guardava no meu quarto do Bucintoro! - exclamou Lúcio. - Quem são vocês?

- Diz-lhe alguma coisa Fraternitas Charitatis

- A seita a que pertenciam Vivaldi e Bellini! - exclamou Maria.

- Correcto. Ainda que não sejamos uma seita, mas sim uma irmandade.

- Vocês...? Vocês... são...? - A Maria parecia-lhe incrível.

- Adivinharam; com a licença do dottore Michelotto, somos membros da Fraternitas Charitatis. - Licci voltou-se para Camila Strozzi. - Compreende agora porque somos os proprietários morais e históricos desta partitura - agitou o papel, levantando o braço como quem exibe um trofeu - e também da chave que o nosso irmão Bellini escondeu por alguma razão que só ele sabia?

- Já sei, foi você que me ameaçou ao telefone! - Maria tinha identificado a voz que tanto a tinha perturbado quando recebera as ameaças na tarde anterior.

- Muito demorou a descobri-lo.

Licci aproximou-se do sítio onde estava estendido o guarda-costas de Michelotto. Roçou-lhe as costas com a ponta do sapato, como se temesse ficar contagiado com alguma coisa.

- Este homem está morto! - exclamou o frater.

A surpresa daquela descoberta distraiu todos momentaneamente. Foi esse o instante que Aldo aproveitou para tirar a pistola a Licci e, agarrando-o pelo pescoço, apontá-la à cabeça.

O comissário sabia que estava a jogar tudo numa cartada e que estava a pôr em sério perigo a vida de Lúcio, porque Maria aproveitou a pequena confusão que a acção de Aldo provocara para procurar refúgio atrás do polícia. Aquilo era algo expressamente proibido nos manuais mais elementares de qualquer polícia do mundo. Mas acreditava que tendo o chefe ameaçado, os outros não se moveriam. Teve uma desagradável surpresa.

- As armas para o chão! - gritou Aldo.

Os dois homens que acompanhavam Cataldo e o que tinha entrado com Licci, todos eles armados, fizeram um gesto de depor as armas. No entanto, todos pararam ao ouvir a voz de Giorgio que lhes ordenava o contrário.

- Todos quietos! Ele está só e nós somos quatro! Temos toda a vantagem! Além disso, se faz o mais pequeno movimento suspeito, este músico terá interpretado a sua última partitura! - colocou o cano da beretta na cabeça de Lúcio.

Aldo sabia que se não fizesse nada tinha a partida perdida. Nunca poria em risco a vida de uma pessoa e também não dispararia contra Licci naquelas condições. Jogara à toa e estava a ponto de perder porque aquele sujeito tinha-lhe ganho vantagem.

- Se disparar contra Licci, matarei o espanhol. Será uma vida por outra, nenhuma das duas me importa muito. Depois seremos quatro contra si. Perdeu, meu amigo.

Aldo olhou para os olhos de Lúcio, que estava a suar copiosamente. Aquele jovem estava a olhar para ele de uma forma especial. Havia medo nos seus olhos, mas também havia uma decisão. O polícia estava a tentar interpretar a mensagem. Mas hesitava, já se tinha enganado uma vez e não queria fazê-lo de novo. Apertou o maxilar e com o olhar cravado nos olhos de Lúcio fez-lhe um gesto quase imperceptível. Se aquele jovem estava a pensar no que ele julgava, reagiria ao seu sinal.

E assim foi.

Lúcio Torres, jovem violinista espanhol, que tinha dedicado a sua vida à música, decidiu arriscar a vida. com um violento esticão atirou-se para o chão. Soou um disparo e, depois, quase instantaneamente outro. A camisa branca de Lúcio tingiu-se de sangue. Giorgio Cataldo, com o cano da pistola fumegante, caiu no chão. Maria gritou aterrorizada e correu para o namorado, esquecendo tudo o resto. Aldo Tarquinio apertou com o braço o pescoço de Licci e teve uma das piores sensações da sua vida.

Naquele momento dois carabimeri apareceram no alto da escadaria, apontando as suas metralhadoras.

- Que ninguém se mexa!

Segundos depois ouvia-se girar a chave na fechadura da porta da casa e ouviam-se gritos anunciando a entrada da polícia.

- Polícia. Que ninguém se mexa!

Vários homens irromperam em catadupa e espalharam-se pelo salão.

 

A tranquilidade habitual em que viviam as duas centenas de pessoas da ilha de Torcello, que só era alterada pela presença dos contingentes de turistas e pela dos poderosos que iam comer ao restaurante de Locanda Cipriani, tinha ficado destroçada naquela tarde. Primeiro tinha sido a chegada daquelas gentes que vagueavam por ali, depois as lanchas da polícia que desembarcaram numa operação própria de outras paragens de Itália. Por último, a chegada de várias ambulâncias.

Pouco a pouco, conforme a noite ia caindo sobre as ilhas do Adriático, a calma regressou à ilha. Entre a escassa vizinhança que residia em Torcello espalhou-se o rumor de a casa ser um esconderijo de cocaína, mas também um centro de reprodução ilegal de CDs de música clássica. Os que defendiam esta última hipótese tinham ouvido algo relacionado com Vivaldi, com a sua música, a sua partitura e, rapidamente, tiraram as suas próprias conclusões. No que todos acertavam era no resultado das vítimas: um morto e dois feridos, um deles com gravidade e outro com ferimentos ligeiros.

Na casa permaneciam o comissário Aldo Tarquinio e a proprietária do imóvel, Giulietta dei Sarto. com eles estava um inspector da polícia que se encarregava de concretizar as indicações que o comissário lhe dava.

- Ainda bem que a Giulietta se adiantou à hora combinada para vos chamar! Se tivessem chegado uns minutos depois isto podia ter-se tornado um inferno!

- Não sei se fiz bem ou mal! - dizia Giulietta. - Ali, na solidão da basílica, nem podes imaginar o que era a angústia de ver passar os minutos sem saber o que estava a acontecer! Não podes imaginar as coisas que passaram pela minha cabeça! Não consegui aguentar mais tempo e decidi que, no pior dos casos, a presença da polícia não podia ser negativa!

O inspector esboçou um sorriso benévolo. Mas Aldo recriminou-a pelo facto de ela não ter cumprido exactamente o que ele tinha determinado. Giulietta fez uma careta e retorquiu-lhe:

- Tu mesmo disseste que uns minutos mais tarde e poderia ter sido um inferno!

Desta vez o sorriso benévolo também apareceu no semblante do comissário.

- Segundo a documentação - indicou o inspector -, o morto é um tal Bodan Stánkovic, um sérvio que saiu do seu país depois da entrada das tropas internacionais. Talvez se trate, logo verificaremos, de algum dos actores da tragédia da limpeza étnica. Os feridos são Giorgio Cataldo, um comerciante de antiguidades, e um músico espanhol chamado Lúcio Torres.

- Exactamente - confirmou Aldo.

- Como se desenrolaram os factos, comissário?

- A morte desse sérvio aconteceu de forma acidental. Numa luta que tive com ele, a minha pistola disparou. O disparo foi mortal. A ferida de Lúcio Torres foi provocada por Giorgio Cataldo que disparou quando o espanhol, que tinha a pistola apontada à cabeça, tentou libertar-se. A ferida de Cataldo fui eu quem a fez quando disparei contra ele com esta pistola - Aldo apontou a arma que tinha arrebatado a Licci - quando Lúcio tentou escapar-se.

- Sabe o motivo por que estava aqui toda esta gente?

- Creio que todos andavam à procura do mesmo. Uma partitura de Vivaldi.

- Uma partitura de Vivaldi?

- Sim, uma partitura que, ao que parece, Vivaldi compôs pouco antes de morrer. Segundo alguns, nessa partitura há qualquer coisa que é muito diferente de música.

O inspector fez uma cara de quem não estava a compreender.

- Os que são dessa opinião defendem que Vivaldi escondeu algum tipo de segredo nesses pentagramas.

- E o que os leva a pensar isso?

- Porque a música é péssima. Algo que não corresponde a um músico da qualidade de Vivaldi.

- Não poderá acontecer que não pertença a Vivaldi?

- Isso é o que pensa muito boa gente. Entre outras razões porque a partitura em questão não tem assinatura.

- Parece-me que isso é o mais razoável - sentenciou o inspector.

- Eu sou da mesma opinião - sublinhou o comissário.

O inspector pegou na partitura que estava na mesa e perguntou:

- Quando, onde e como apareceu?

- Foi descoberta há dias por Lúcio Torres, o músico espanhol que ficou ferido, enquanto investigava no arquivo do Ospedale della Pietà.

- Qual é a sua opinião sobre tudo isto, comissário?

- Que se gerou uma tempestade num copo de água. Todos os que ficaram detidos e o outro ferido, o antiquário, pertencem a uma espécie de seita que se chama Fraternitas Charitatis. Dizem que o Vivaldi também pertenceu a ela e consideram-se os verdadeiros donos da partitura. O problema está, pelo que pude averiguar, no facto de haver dois ramos dessa seita. De um fazem parte o professor Michelotto e Camila Strozzi e do outro o antiquário e esse tipo com ar extravagante; creio que é foniatra e que se chama Romano Licci. Todos se consideram os verdadeiros herdeiros da seita, cuja antiguidade é anterior a Cristo.

- Minha Nossa Senhora! - exclamou o inspector.

- Creio, segundo me disse Maria dei Sarto, que surgiu em Alexandria e que através dos tempos pertenceram a ela personalidades de relevo, como foi o caso de Vivaldi. Não posso precisar quando aconteceu a cisão, nem a causa que a provocou. Sei que uns acusam os outros de retrógrados e fanáticos e estes, por sua vez, apodam o outro ramo de bastardos materialistas. Uns ficaram a saber através do antiquário, porque era amigo de Maria, que tinha aparecido a partitura e tentaram por todos os meios ficar com ela. Michelotto também ficou a saber através de Maria. A jovem foi ter com ele, de forma inocente, com o objectivo de lhe pedir ajuda para decifrar a suposta mensagem que se oculta nas notas da partitura.

- Penso que tenho todos os elementos para fazer um relatório completo, sem pontas soltas. - O inspector não podia disfarçar a sua satisfação. - Uma última questão, comissário: como é que a partitura se encontrava fora do arquivo?

- Creio que Lúcio a tinha tirado para poder interpretá-la com o seu violino. As coisas, no entanto, complicaram-se e ainda não conseguiu devolvê-la. Mas não te preocupes com isso. Amanhã de manhã eu próprio a devolverei ao arquivo.

Giulietta entendeu que o inspector tinha concluído o seu trabalho e perguntou aos dois polícias se desejavam tomar alguma coisa.

O inspector olhou para o relógio e agradeceu o convite, mas alegou que estava de partida naquele minuto, a tempo de poder jantar com a família. Giulietta não insistiu e o comissário acompanhou-o à porta. Ali, dando-lhe uma carinhosa palmada nas costas, sussurrou-lhe:

- Hoje ganhámos o dia, vê lá se descansas.

- O mesmo lhe digo eu, comissário. Giulietta recebeu Aldo com um sorriso triunfal:

- És um génio. Foi-se embora com o caso encerrado.

- Tudo o que lhe disse é verdade - defendeu-se ele.

- É verdade, mas não lhe disseste o mais importante.

- Ele também não me perguntou.

Giulietta rodeou-lhe o pescoço com os braços e deu-lhe um longo beijo.

- Penso que isto terminou muito melhor do que poderíamos sequer ter sonhado. Hoje à tarde, houve um momento em que pensei que tudo estava perdido. Temi até pela vida.

- A tua vida esteve em perigo? - perguntou-lhe a dona da casa.

- E sobretudo a de Maria e a de Lúcio.

Giulietta apoiou as mãos nas ancas e ficou numa posição de desafio.

- Com que então, eu fiz mal em avisar a polícia!

- Foi a melhor coisa que podias ter feito, minha querida.

- Então por que me disseste que me precipitei?

- Porque não tinha outro remédio senão tentar salvar as aparências. Ainda que, como tu sabes, na nossa cidade nada seja o que parece ser.

Num quarto do Hospital Fatebenefratelli, Lúcio Torres descansava tranquilamente depois dos curativos que lhe tinham feito. A bala de Cataldo provocara-lhe uma ferida nas costas. Tinha tido muita sorte. A entrada e a saída do projéctil eram dois orifícios limpos, que não tinham afectado nenhum órgão importante. A maior consequência tinha sido a perda de sangue. Ainda que após os curativos tivesse podido ir para casa, os médicos preferiram mantê-lo em observação durante vinte e quatro horas. Maria estava ao seu lado. Apesar do dia esgotante não houve maneira de convencê-la a ir descansar. O seu melhor repouso - insistia - era estar ao lado de Lúcio. Passaria a noite junto da sua cama, sentada num incómodo cadeirão do hospital.

Muito pior tinha sido a ferida de Cataldo. O disparo atravessara-lhe o peito, afectando um pulmão e provocado várias lesões internas. Teve de ser operado de urgência. O seu estado, ainda que não fosse crítico, preocupava os médicos.

Stefano Michelotto, Camila Strozzi, Romano Licci e os outros indivíduos, que os acompanharam nas respectivas actividades, foram conduzidos à esquadra. Todos eles ficaram detidos sob acusações várias, que iam desde ameaças e coacção até invasão da propriedade privada, passando pela posse ilícita de armas. No dia seguinte seriam interrogados e depois ficariam à disposição judicial.

O novo dia amanheceu limpo e claro em Veneza. O sol brilhava intensamente - naquele ano já não haveria muitos dias assim, de um ponto de vista climatérico, na capital do Véneto.

Aldo e Giulietta tinham passado a noite em Torcello e regressaram muito cedo à cidade. Pouco antes de sair, Giulietta recebera uma chamada de Maria, perguntando-lhe pela partitura.

- Está aqui. Quando regressarmos a Veneza o Aldo irá devolvê-la ao arquivo, depois das formalidades correspondentes... Se lhe posso pedir um favor? Diz-me o que é.

Giulietta tapou com a mão o telefone e perguntou ao comissário:

- A Maria pergunta se podes esperar uns dias até devolveres a partitura, querem ver não sei que pormenores no original.

Aldo assentiu com a cabeça.

- Sim, querida, ele diz que sim, que não há problema... Sim, sim... levamo-la ao hospital quando formos visitar o Lúcio. Que tal passou a noite?... Fico feliz por ele... e também por ti.

Na esquadra de Aldo Tarquinio, onde estavam a prestar declarações os detidos da tarde anterior, vivia-se a agitação dos grandes momentos. À porta acotovelavam-se os jornalistas que tinham sido alertados para a detenção de Camila Strozzi e de Stefano Michelotto. Aquilo era peixe graúdo. Também fora prestar declarações o padre Ranucci, contra quem alguns meios de comunicação social continuavam a disparar.

As emissoras de rádio e um ou outro canal de televisão tinham-se juntado, naquela manhã, a vários jornais de Veneza. O pobre pároco estava angustiado por causa de algumas das manchetes que lhe dedicaram, acusando-o de pessoa pouco séria e desejoso de protagonismo.

Num dos corredores da esquadra cruzou-se com Michelotto. Lembrava-se dele do dia anterior, quando tinha ido à paróquia oferecer a sua colaboração à polícia. Pensou que estava ali por essa razão. Aproximou-se dele, solícito, para o cumprimentar, mas deparou com a expressão de desprezo do professor.

- O que se passa? - perguntou ao polícia que acompanhava Michelotto para que este saísse por uma porta das traseiras e evitasse um enxame de jornalistas.

- Está detido por um assunto pouco claro e no qual houve um morto e dois feridos. Passou a noite atrás das grades.

O padre Ranucci fez uma expressão de comiseração e não disse nada. O agente, para quebrar o silêncio, disse ao pároco que, ao que parecia, pela informação que possuíam, um dos feridos era o jovem que tinha sido acusado do roubo da pintura da sua igreja.

- Valha-me o santo céu! E é muito grave?

- Não posso dizer-lhe, padre. Só sei que está no hospital Fatebenefratelli.

Guido Ranucci, mal saiu da esquadra, onde tinha prestado uma declaração rotineira que, segundo o polícia que a recebeu, era para fechar o expediente a que chamavam, em termos policiais, o caso Bellini, decidiu que faria uma visita ao jovem. Visitar os doentes era uma maneira de cumprir o seu ministério e se alguém o visse acharia razoável a sua presença no hospital. Pensara que o ocupariam durante toda a manhã na esquadra para despachar toda a papelada e, para sua surpresa, fora tudo muito mais rápido.

O pároco de Zanipolo não teve problemas para aceder ao quarto onde estavam Lúcio e Maria. Quando o sacerdote entrou no quarto, o aspecto da jovem era pior que o do ferido. A noite num cadeirão tinha causado estragos em Maria. Os dois jovens ficaram surpreendidos perante a inesperada presença de Ranucci. À surpresa seguiu-se o espanto.

- Então, como se encontra o ferido?

O sorriso do pároco diminuiu algumas das inquietações de Lúcio e Maria, que pensaram que a sua presença ali era determinada pelas explicações que podia exigir-lhes pelo que tinha acontecido na sua igreja no dia anterior. Ranucci, que se apercebera do embaraço que provocava a sua presença, tirou-lhes rapidamente todas as dúvidas.

- Não vim para vos recriminar de nada, vim só para saber como estava a tua saúde. Na esquadra fiquei a saber que tinhas ficado ferido. Como aconteceu?

Maria e Lúcio trocaram um olhar cúmplice.

- Padre - Maria tinha tomado a iniciativa -, é uma história longa e complicada. O Lúcio, o meu namorado, encontrou uma partitura, ao que parece de Vivaldi, no arquivo da Pietá, e essa descoberta despertou a cobiça de alguns ambiciosos.

- Uma partitura de Vivaldi?

- Ao que parece, sim, padre.

Nos olhos do sacerdote brilhou uma estranha luz.

- Enfim, espero que essa ferida não seja grave e que fiques rapidamente completamente restabelecido.

Ao ir-se embora, Ranucci voltou-se, ainda à porta do quarto.

- Essa partitura não terá nada a ver com a minha paróquia? Tinha-os surpreendido. Os dois responderam com negativas explícitas e contundentes. Demasiado explícitas e contundentes.

- Gostaria de saber como evolui a tua ferida, poderás dar-me um número de telefone para onde poderei ligar?

Sem pensar, Maria deu-lhe o número do seu telemóvel.

No primeiro quiosque de jornais que encontrou, o pároco de Zanipolo comprou todos os jornais do dia. Apanhou um vaporetto de regresso à paróquia e fechou-se na sacristia da igreja. Procurou todas as notícias que faziam referência ao inexistente roubo de Bellini e pôs-se a recortá-las. Por outro lado, só num dos jornais aparecia uma coluna, com o título "Contenda em Torcello", onde se dava a notícia de um tiroteio que se verificara naquela ilha e do qual resultaram um morto e dois feridos. A ocorrência não devia ter chegado ao conhecimento dos jornalistas porque não havia mais nenhuma informação. As edições tinham fechado na noite anterior sem notícia do que acontecera. A causa da contenda era uma luta desenfreada em torno de uma valiosa partitura de Vivaldi, aparecida recentemente. Junto à notícia, numa caixa, com o título de "Retalhos de Veneza", aludia-se à relação do músico com uma seita chamada Fraternitas Charitatis.

O sacerdote ficou pensativo. Rodou o cadeirão onde estava sentado e ficou de frente para o seu computador, abriu a ligação à Internet e começou a procurar informação na rede, a partir de Vivaldi e de Fraternitas Charitatis. Os dados chegaram como se tirasse cerejas de um cesto. Não eram grande coisa, mas o suficiente para ficar com uma ideia sobre a seita, da relação que Vivaldi tinha com ela, assim como as lendas que corriam em torno de um misterioso segredo relacionado com o músico. Também chegou ao nome de Tomasso Bellini.

Duas horas depois, e depois de vencer numerosas dúvidas, marcou um número de telefone.

- Secretaria de Estado?

- Sim, quem fala?

Naquela tarde, o médico responsável do piso onde se encontrava Lúcio disse-lhe que tudo estava a correr muito bem, aliás, melhor que as previsões mais optimistas.

- De certeza que em sua casa o senhor estaria mais cómodo.

- Isso quer dizer que vai dar-me alta, doutor?

- Quero dizer que se me prometer ficar em casa, em completo repouso, poderei considerar essa opção.

- Farei o que o senhor me disser, doutor.

O médico dirigiu-se a uma das enfermeiras que o acompanhavam na visita.

- Prepara a documentação para a alta do senhor Torres. Uma ambulância levá-lo-á ao seu domicílio.

- Para quando, doutor?

- Para já.

Maria telefonou à sua mãe para lhe comunicar a notícia. Também lhe disse que iriam para Torcello. Era um sítio tranquilo.

Giulietta era da opinião que estariam melhor no Bucintoro e prometeu à filha, para tentar convencê-la, que Lúcio não seria considerado como hóspede, mas sim tratado como pessoa de família. Apesar disso, Maria insistiu na sua decisão de ir para a casa de Torcello. Como último argumento, Giulietta disse-lhe que aquilo estava numa grande confusão, depois do que se passara. Esse argumento também não teve força suficiente para fazer desistir Maria da sua decisão. Aceitou, no entanto, a ajuda que a mãe lhe ofereceu. Um criado e uma empregada da estalagem iriam, durante a tarde, ajudá-la a pôr um pouco de ordem. Aldo dissera-lhe que a polícia não necessitava de fazer nenhuma inspecção, para além das que fizera já, porque o assunto estava claro como água. Também levariam comida e alguns utensílios para substituir os estragos. Maria pediu-lhe que lhe fizesse chegar a partitura com o rapaz ou com a empregada, metida num envelope, ninguém saberia do seu conteúdo.

A sua mãe perguntou-lhe se necessitaria de algum outro tipo de ajuda, inclusive se queria que fosse para Torcello a fim de passar a noite com eles. Maria agradeceu-lhe a oferta, mas recusou-a. Queria estar a sós com Lúcio, não tinha medo depois da detenção de Michelotto e de Licci, e Giorgio não estava para muitas andanças. Seria naquela noite que decifrariam a partitura e descobririam o segredo de Vivaldi.

Quando Maria e Lúcio chegaram a Torcello, acompanhados de dois enfermeiros, à porta de casa encontraram a empregada e o rapaz da estalagem prometidos pela sua mãe para os ajudarem, juntamente com duas caixas das que se utilizam para transportar loiça. O rapaz entregou-lhe um envelope fechado.

Era o final da tarde e os últimos raios de sol enriqueciam as cores da paisagem, conferindo-lhe uns quentes tons alaranjados. Lúcio ficou instalado na salinha do rés-do-chão que pouco sofrera os devastadores efeitos da busca. Maria ordenou ao rapaz e à empregada que começassem pelo andar dos quartos. Ali só era necessário guardar a roupa e colocar colchões e gavetas de móveis no seu respectivo lugar. Deixariam a cozinha para o fim.

Quando teve a certeza de que estava protegida de qualquer olhar indiscreto, saiu para o pátio e tirou do telheiro, onde se empilhava a lenha, a caixa onde estava a chave. Não pôde reprimir um suspiro.

Sentiu vibrar o telemóvel no bolso. Tinha-o em vibração porque no hospital não era permitido o toque de telemóvel e não se lembrara de alterar a configuração do som. Quase instintivamente escondeu de novo a caixa.

- Sim?... Olá, mamã! Já estamos em casa!... Tu e o Aldo vêm para cá?... Mas mamã, já te disse que não era...!... O que é isso tão importante?... Mamã! Mamã!

Não obteve resposta. A sua mãe tinha cortado a comunicação.

 

O rapaz e a empregada da limpeza tinham metido em grandes sacos do lixo os restos da loiça partida e estavam a colocar no seu lugar as peças que traziam para substituir aquela que se tinha quebrado. Maria e Lúcio aguardavam impacientes a chegada de Giulietta e de Aldo para que estes lhes contassem o que era assim tão importante que os fazia vir a Torcello. A Maria preocupava a presença de Aldo. Haveria alguma complicação? Não fosse o diabo tecê-las, voltou a guardar no esconderijo a caixa onde estava guardava a chave. Era como se aquele segredo, oculto durante mais de dois séculos e meio, resistisse a ser revelado.

A mãe de Maria e o comissário chegaram com as primeiras sombras da noite, entrando precisamente no momento em que a empregada da limpeza e o rapaz se despediam, depois de ter deixado a casa um pouco mais apresentável.

- Estás com muito bom aspecto - Aldo cumprimentou Lúcio, enquanto Giulietta beijava a filha. Depois, a mãe de Maria deu um beijo a Lúcio e alegrou-se pelas suas melhoras.

- Qual é essa coisa tão importante que os fez vir até aqui? perguntou Maria sem muita delicadeza.

- Há alguém mais cá em casa?

- Não, Aldo, não há ninguém para além de nós os quatro.

- Estão todas as portas e janelas fechadas e as persianas corridas?

- Pelo amor de Deus, Aldo! A que propósito vem tudo isto?

- Stefano Michelotto, Camila Strozzi e Romano Licci estão em liberdade.

Fez-se um silêncio de cortar à faca.

- Estão em liberdade sob fiança, mas em liberdade, ao fim e ao cabo - disse Aldo -, e embora agora tenham de pensar duas vezes antes de fazerem seja o que for, não sei se não terão tentações de voltar à carga. O fanatismo é moeda corrente entre os que fazem parte de seitas. Essa é a razão pela qual estamos aqui.

- Isso pressupõe - disse Maria - que já prestaram declarações perante o juiz.

- É verdade. E que o juiz vê indícios para uma actuação processual, mas não os considera suficientemente graves para os manter na prisão.

- Achas que corremos algum risco?

- Isso nunca se sabe, depende da intensidade do desejo de conseguir o que vocês têm.

- Podes dar-nos protecção? - Maria parecia preocupada.

- Primeiro têm de me contar tudo.

- Por favor, Maria, conta ao Aldo toda esta confusão. Ele irá ajudar-vos - Giulietta juntou as mãos como se implorasse o que acabava de pedir à sua filha.

- Não se importam de nos deixar um momento a sós?

- Claro que não! Giulietta, podemos aproveitar para verificar todas as portas e janelas!

Uma vez a sós, Maria apresentou a situação a Lúcio. Concordaram que nada tinham a esconder. Eles não eram a Fraternitas Charitatis e no que se referia a Michelotto foram ter com ele para lhes pedir ajuda com toda a inocência do mundo. Tinham-se visto envolvidos numa rede de ambições. A única coisa que tinham a defender era o orgulho de terem dado com aquela partitura, o facto de Maria conhecer os dados que a história deixara acerca do segredo de Vivaldi e ter intuído que a partitura encerrava o dito segredo. Depois, veio o seu empenho em procurar a chave e tudo o que se desencadeou depois. Também estavam conscientes de que com aquela gente, que tinha demonstrado até onde estava disposta a chegar, em liberdade, corriam algum perigo. E o Aldo seria naquelas circunstâncias uma ajuda inestimável.

Demoraram muito poucos minutos a chegar àquelas conclusões e, sem perder tempo, Maria procurou a mãe e o Aldo. Encontrou-os a observar as cercas do pátio da casa, as mesmas por onde ele tinha saltado na tarde anterior. Sem lhes dizer nada foi ao telheiro e pegou na caixa.

- Lúcio e eu decidimos contar-vos tudo.

Um sorriso radiante apareceu no rosto de Giulietta, que beijou a filha na testa.

Os três sentaram-se em volta do sofá que constituía a improvisada cama de Lúcio. Maria narrou, de maneira sucinta, os factos: como Lúcio encontrara acidentalmente uma partitura cuja música lhe pareceu muito estranha. Era muito má e, além disso, continha o que desde a Idade Média se denominava a música do diabo - Lúcio teve de lhes explicar em que consistia essa música do diabo. - Maria, que conhecia a história que falava da existência de um texto de Vivaldi que escondia um segredo, pensou que podia tratar-se desta partitura. Verificaram que o papel em que estava escrita era do século XVIII e que tinha sido fabricado em Viena por um fabricante que exerceu a sua actividade durante um período que abarcava o ano de 1741, data da morte do músico e do envio para Veneza do texto que encerrava o segredo. Maria explicou que a informação sobre o papel lhe fora dada por Giorgio Cataldo, seu conhecido, mas que não sabia que ele era membro da Fraternitas Charitatis. Também explicou o que era essa seita e a história de Tomasso Bellini, assim como o desaparecimento da partitura e da chave para a sua interpretação enviada pelo próprio Vivaldi.

Contou, depois, porque tinha ido a casa de Stefano Michelotto e a atribulada reunião que Lúcio e ela tiveram em casa do dottore e as pessoas que ali se encontravam.

- A partir daquele momento tudo se complicou - prosseguiu Maria. - Michelotto não era a pessoa que eu pensava e Giorgio Cataldo avisou os seus confrades do aparecimento da partitura.

- O que fizeram então? - perguntou Aldo vivamente interessado.

- Obriguei o Lúcio - Maria pegou-lhe na mão - a procurar no arquivo da Pietà a chave, porque tinha o palpite que se encontrava ali. E não me enganei! O Lúcio encontrou um texto, oculto com tinta simpática, em que Tomasso Bellini indicava o lugar onde tinha escondido a chave. Isso levou-nos até à igreja de Zanipolo com o Michelotto a pisar-nos os calcanhares e os da Fraternitas Charitatis, que tinham conseguido entrar no quarto do Lúcio no Bucintoro e apoderarem-se de várias cópias da partitura, ameaçando-nos a mim e à minha mãe por telefone com o objectivo de obter a chave.

- Encontraram a chave na igreja de Zanipolo? - perguntou Aldo.

- Estava escondida no políptico de São Vicente Ferrer, segundo as indicações deixadas por Tomasso Bellini. Encontrámos uma anilha que puxámos e a pintura moveu-se, deixando a caixa à vista. Pegámos nela, mas assustámo-nos tanto que nos fomos embora o mais rapidamente possível, sem accionar novamente o mecanismo que escondia a pintura para que voltasse à sua posição inicial. Esse foi o nosso erro, para além de confiar em pessoas como Michelotto e Cataldo. Depois de termos ficado com a chave viemos para Torcello, onde tínhamos instalado o nosso refúgio, perante o cerco da polícia açulada por Michelotto.

- Como souberam os da Fraternitas Charitatis, o ramo primitivo, o teu número de telefone para te ligarem?

- Foi o Giorgio Cataldo que o deu. O que não consigo perceber é como Michelotto e os da Fraternitas charitatis souberam onde estávamos. Só a minha mãe é que sabia e ontem à noite jurou-me que não tinha dito a mais ninguém senão a ti.

- Michelotto declarou perante o juiz que conseguiu averiguar o vosso paradeiro graças à localização telefónica. Ele fez-te uma chamada para que alguém te localizasse. Na declaração, negou-se a dizer quem lhe fez a localização, mas nós já averiguámos.

- Não recebi nenhuma chamada do Michelotto!

- Tens a certeza?

- Completamente. Não me teria esquecido de uma coisa assim.

- Teve de ser forçosamente uma chamada. Foi Lúcio que se lembrou:

- Lembras-te de uma chamada que recebeste ontem e em que ninguém falou?

- Claro! Aquela chamada sem voz! - reforçou Maria.

- Carregares na tecla para responder foi o suficiente para estabelecerem as coordenadas do lugar onde te encontravas naquele momento.

- E os da Fraternitas Charitatis Como souberam eles onde eu estava? Também me localizaram quando me telefonaram anteontem?

- Não. Esses fizeram uma aposta arriscada, cuja explicação reside nas diferenças que existiam no seu próprio seio; as relações de Cataldo e Licci eram péssimas e cada qual desejava fervorosamente colocar-se num lugar mais destacado em detrimento do outro.

- Mas isso não explica que também tenham vindo parar aqui.

- Como te disse - explicou-lhe Aldo - foi uma aposta arriscada de Cataldo. Ele sabia, porque era teu amigo e porque é possível que tu lhe tivesses dito alguma vez, que a tua mãe tinha esta casa.

- Inclusivamente veio comigo e com outros amigos algumas vezes! - respondeu Maria, levando a mão à boca.

- Não tinha dados que lhe indicassem que estavam aqui, mas como vocês andavam fugidos e, forçosamente, teriam de procurar refúgio, teve um palpite e acertou. Queria a glória de ser ele a entregar, desvelado, à sua Fraternitas Charitatis o enigma do padre vermelho.

- Veja-se o que, na realidade, são algumas pessoas a quem chamamos amigos - disse Maria com uma ponta de tristeza na voz.

Aldo olhou para Maria.

- É possível que Giorgio Cataldo fosse teu amigo, mas pertencer a uma seita é algo que marca os seus membros como tu nem imaginas; neste caso as circunstâncias ultrapassaram-no.

- As circunstâncias e a ambição - sublinhou Giulietta.

O comissário, que não desejava seguir por essa via, levou a conversa para outro terreno.

- bom, agora são vocês que têm de responder à minha pergunta - Aldo olhou para Maria e Lúcio, e nos seus lábios desenhou-se um sorriso.

- Nós? Que pergunta? - Maria devolveu-lhe o sorriso.

- Já desvendaram o segredo da partitura? Os dois jovens negaram com a cabeça.

- Embora não acredites, não tivemos tempo. Nem as circunstâncias se revelaram propícias.

- Pois, na minha opinião, creio que chegou o momento e que estas são as circunstâncias propícias.

- Temo que se passe alguma coisa neste preciso instante - disse Maria, meio a brincar meio a sério. Não se passou nada. Maria abriu a caixa, tirou o papel e desdobrou-o cuidadosamente. Quando viu o seu conteúdo não pôde conter-se:

- Estamos feitos!

- O que se passa agora? - perguntou Lúcio.

Maria mostrou-lhe a chave. Era uma tábua quebra-cabeças em que Vivaldi tinha estabelecido a equivalência das notas da sua partitura com as letras do abecedário. Haveria que pegar na partitura e, com paciência de monge, ir cotejando toda e cada uma das notas até reconstituir o texto correspondente.

(Nota da digitalizadora: aqui surge a chave correspondente às notas musicais e letras do alfabeto, que por absolutamente desconexas e incompreensíveis, entendi suprimir)

Tiraram a partitura do sobrescrito e, pouco a pouco, foram verificando como se formavam as palavras e as frases. Maria estava sob uma forte excitação. Nunca sonhara que pudesse acontecer-lhe aquilo. Estava a decifrar o segredo do prete rosso. Ia descobrir o mistério que durante mais de dois séculos e meio tinha sido o cobiçado objectivo da Fraternitas Charitatis. Por aquele texto, escondido atrás das notas de uma estranha partitura, tinham-se feito grandes esforços, tinha-se lutado muito, tinha-se matado e havia alguém que ainda estava disposto a fazê-lo! Nas últimas horas tinha sido o móbil principal da ambição de umas pessoas que não estavam dispostas a deter-se perante nada, desde que obtivessem o conhecimento que aqueles pentagramas encerravam.

Que segredo teria escondido Vivaldi ali que durante tantos anos mantivera vivo o desejo de o possuir e continuava a mover ambições como se passou na Veneza de meados do século XVIII?

As frases foram caindo uma após a outra. Lúcio passou tudo a limpo porque os papéis em que tinha trabalhado estavam cheios de borrões e emendas.

O músico pegou no papel e, sem olhar, entregou-o a Maria.

- Disseste-me várias vezes que sonhaste com grandes fantasias nas noites da tua adolescência. Lê-nos isso, por favor.

Maria beijou-o na boca, depois com a emoção embargando-lhe a garganta, leu. A sua voz fazia-se ouvir, solene.

Descobri o grande segredo dos Templários. Na escavação que realizaram em Jerusalém, no solar do antigo templo de Salomão, encontraram, entre outras coisas, o Livro de José de Arimateia, onde está a verdadeira história de Jesus, que, moribundo, foi recolhido pelos seus discípulos. Após a sua cura, viajou para Marselha, acompanhado entre outros por Maria Madalena, onde viveu trinta e cinco anos, até à sua morte. A sua campa está em Rennes-le-Château.

O Livro de José da Arimateia está escondido na Biblioteca Imperial de Viena, entre as obras que pertenceram a Rodolfo II, com o nome de Livro das Idades. Conhecimento tão perigoso não deve ser divulgado, como também não se deve perder. Coloco-o sob a custódia da minha Irmandade para o seu bom uso. Miserável de mim. Viena, aos 29 dias do mês de Maio do ano de 1741. António Vivaldi.

- Meu Deus! - exclamou Giulietta, levando uma mão à boca.

- Isto é uma bomba! - exclamou Aldo.

Maria e Lúcio não diziam nada. À jovem tremiam-lhe as mãos.

- Se isto se divulga, as consequências serão incalculáveis. Os alicerces da Igreja Católica tremeriam, isto põe em questão o mais importante dos seus fundamentos: a ressurreição de Cristo - dizia Aldo, arrastando as palavras, como se cada frase desse lugar à seguinte. - Se Cristo não morreu na cruz, não pôde ressuscitar. Teria sido tudo uma farsa!

- Agora percebo por que razão Tomasso Bellini não quis partilhar o segredo que Vivaldi tinha descoberto com mais ninguém

- Maria parecia estar a pensar em voz alta - e por que aquele homem, que devia estar atormentado, pedia piedade pela sua alma. Tudo aquilo deveria ter sido uma coisa terrível para ele. - O seu semblante expressava o misto de sensações que a envolviam, da emoção até à preocupação. Tinha acontecido tudo tão depressa!

Foi Lúcio quem fez a pergunta que estava na cabeça de todos:

- E agora o que fazemos? Nenhum deles deu resposta.

O silêncio momentâneo que se tinha feito foi quebrado pelo soar do telemóvel de Maria.

- Quem será agora? Abriu o telefone.

- Antes de responder vê se aparece o número de quem te chama! - gritou-lhe Aldo.

- Não aparece nada. Só a palavra chamada. Respondo? Ninguém disse nada. Maria carregou na tecla verde de resposta.

- Sim?... sim, sim, sou eu, diga... Que me telefonam do Estado do Vaticano? Da parte do cardeal quê...? Deixe-se de patetices que não estou para brincadeiras!... O segredo do prete rosso?

Giulietta, Aldo e Lúcio estavam paralisados. Nem sequer respiravam.

- Que entrarão em contacto comigo? Quem, quando, como?... Que não me preocupe!... Mas, oiça... está?... Está?

Quando percebeu que não havia resposta, terminou a comunicação. Maria estava pálida. Tinha o rosto contraído.

Todos perguntaram ao mesmo tempo.

- O que se passa? Quem era? O que se passa?

- Não me apressem! - Pegou num copo e bebeu um pouco de água. - Este indivíduo dizia que telefonava da parte de não sei que cardeal, do Vaticano. Dizem que querem a partitura e a chave, que estão dispostos a negociar, que irão pôr-se em contacto comigo.

- Como é possível que no Vaticano saibam disto? - exclamou Giulietta.

- E como sabem o teu número, Maria? - perguntou Lúcio. As respostas foram dadas por Aldo.

- A mão da Igreja é muito comprida. Vocês não fazem a mais pequena ideia até onde podem chegar os tentáculos do Vaticano.

Aquele surpreendente telefonema quase tinha deixado em segundo plano a decifração do segredo de Vivaldi. Parecia mentira, mas eram assim as coisas. Falavam da estranha situação em que se encontravam quando o telemóvel de Maria voltou a tocar. Os quatro emudeceram e fez-se um silêncio expectante. A jovem olhou para o pequeno ecrã do telemóvel e gritou:

- Anota! Anota! 0-41-52-49-93.

- É um número de Veneza - indicou Aldo.

- Sim?... Boa noite, padre Ranucci. Que surpresa!... Sim... sim... recebi uma chamada há instantes...

Maria ouviu em silêncio durante alguns minutos o que o pároco de Zanipolo lhe dizia. De vez em quando dizia que sim com a cabeça.

- Nunca lá estive, mas sei qual é. Não obstante, espere um momento para que tome nota, Rua Largo XXII Março, 2397. Sim... sim... sei onde fica, nas costas da piazza de São Marcos. Às nove. Perfeito, lá estaremos.

- Conta-nos! O que se passa? - Giulietta estava excitadíssima.

- Era o padre Ranucci, o pároco de Zanipolo.

- Isso já sabemos! - gritou a mãe de Maria.

- Giulietta, por favor - Aldo, carinhoso, pegou-lhe na mão.

- Perguntou-me se tinha recebido uma chamada da Secretaria de Estado do Vaticano. Disse-me o mesmo que a pessoa que me ligou antes, que estão muito interessados em falar connosco acerca do segredo de Vivaldi e de tudo o resto. Perguntaram-me se eu e o Lúcio teríamos inconveniente em jantar com ele e com uma outra pessoa amanhã, no La Caravella. E é tudo.

- O Ranucci sabia o teu número de telefone? - perguntou Aldo, cuja mente policial nunca deixava de funcionar.

- Claro, era ele! Dei-lhe o meu número esta manhã. Foi ao hospital ver o Lúcio e com a desculpa de saber como ele evoluía, pediu-me o número de telefone. Espertalhão!

- Disse-te quem era essa outra pessoa? - O polícia continuava a fazer perguntas.

- Só me disse que vem de Roma e que é um peixe graúdo.

- Suponho que não irás? - Giulietta, mais do que uma pergunta, formulava um desejo.

- Claro que iremos! - A resposta de Maria foi contundente, e a seguir acrescentou: - Desde que o Lúcio esteja de acordo.

O músico espanhol concordou com um movimento de cabeça.

- Creio que não perdemos nada em ir.

- Loucos, vocês os dois o que estão é completamente loucos! Já assaltaram a casa! Já estiveram presos! Feriram o Lúcio e até podiam ter sido mortos! Será que não se apercebem de como tudo isto é perigoso? - Giulietta estava ainda mais excitada. - Vá lá, Aldo, diz-lhes tu. A ver se a ti te ouvem!

- Se eu fosse a eles, iria ao La Caravella. Creio que é a única saída que há para toda esta confusão. - O polícia estava muito sereno.

- Tu estás como eles, completamente louco! - gritou Giulietta ao ver-se desacompanhada e acrescentou: - E já não tens idade para tantas loucuras.

- Por que disseste que é a única saída para toda esta confusão?

- perguntou Lúcio.

O polícia pareceu sopesar as suas palavras:

- O que fazemos com esta descoberta? Eu nem sequer avalio o interesse histórico que possa ter o segredo doprete rosso, mas estou consciente das consequências que podem derivar de uma coisa como esta, embora também saiba da capacidade da Igreja para absorver este tipo de coisas - Aldo fez uma pausa - ainda que esta seja... esta é... terrível. Isto é um assunto muito complicado!

- Muito complicado! - exclamou a Giulietta.

- Depois, há ainda essa gente da Fraternitas Charitatis - continuou o Aldo -, não creio que fiquem quietos, depois de séculos à espera e, além disso, creio que alguns deles, como esse Licci, estão completamente perturbados.

 

O La Caravella era um dos melhores e mais elegantes restaurantes de Veneza. A decoração recriava o ambiente dos antigos barcos à vela. Aqueles que deram o poder naval a Veneza na época em que dominou uma boa parte do Mediterrâneo. A noite estava fresca, mas não fria. Lúcio e Maria chegaram à hora prevista, iam vestidos elegantemente, mas informais. Perguntaram por uma reserva em nome de Guido Ranucci; o maitre acompanhou-os à mesa onde os aguardava o pároco que estava acompanhado de uma outra pessoa. Era um reservado, afastado dos olhares e ouvidos indiscretos. Ao vê-los chegar puseram-se de pé. O pároco fez as apresentações.

- Eminência, esta jovem tão bonita é Maria dei Sarto, o cavalheiro é Lúcio Torres, um músico espanhol que está de visita à cidade.

Maria sentiu a força de uma mão quente quando o cardeal pegou suavemente na sua para a beijar; a voz daquele homem era envolvente, sedutora.

- Tenho muito prazer em conhecer-te, Maria. - Monsenhor apertou depois a mão de Lúcio e cumprimentou-o amavelmente Bem-vindo a Itália, senhor Torres.

Depois Ranucci, fazendo um gesto cortês, apresentou-os ao seu acompanhante.

- Tenho o prazer de vos apresentar o Cardeal Giambattista Gambini, responsável máximo dos Arquivos e Bibliotecas do Vaticano.

- Tratem-me por Battista, meus caros amigos.

Afastou a cadeira onde Maria se iria sentar e empurrou-a suavemente; enquanto a jovem se sentava fez um movimento perfeito.

O aspecto do prelado era imponente. Teria pouco mais de sessenta anos, em todo o caso muito bem conservados. Mediria cerca de um metro e noventa, conservava o cabelo intacto, branco grisalho, que penteava para trás com ligeiras ondulações. Tinha o queixo quadrado, uns penetrantes olhos pretos e estava perfeitamente barbeado. A pele bronzeada mal deixava ver algumas rugas na testa. Vestia um impecável fato cinzento às riscas e nos punhos da camisa, de um azul muito pálido, havia uns botões em ouro e em cujo centro reluzia um brilhante; eram discretos, mas mostravam o poder do seu proprietário. A gravata, de seda italiana, tinha uns diminutos desenhos de um azul mais intenso que o suave tom de fundo. Tudo nele era elegante: os gestos, a forma de se sentar, até a maneira de desdobrar o guardanapo para o colocar sobre as pernas. O seu aspecto emanava poder, a sua presença impunha-se e esmagava.

- Quero agradecer-vos a vossa gentileza ao aceitar o convite de Guido - referiu-se ao pároco pelo seu nome - e partilhar a mesa connosco.

- O prazer é nosso - respondeu-lhe Maria com um fio de voz. Naquele momento o maitre aproximou-se, solícito, e pediu licença para oferecer-lhes o melhor da carta. Aconselhou uma massa com molho de caranguejo, uma especialidade tipicamente veneziana, e umas gambás em vinho do Porto. As sugestões encontraram eco em Maria, Lúcio e Ranucci. Mas o cardeal pediu um carpaccio de salmão e peito de galinha com queijo gratinado e espinafres. O vinho escolhido, por sugestão do purpurado, foi um frutado da região de Pádua.

Acabadas as questões formais, Ranucci apresentou a justificação para aquele jantar. Fê-lo na forma de um breve resumo, já que todos estavam mais do que informados acerca do assunto que os convocara para ali. Terminou com umas palavras de desculpa em relação a Maria e Lúcio.

- Lamento ter feito uso de uma argúcia para obter o teu número de telefone mas, de alguma forma, tinha de conseguir uma maneira fácil de pôr-me em contacto contigo.

Maria aceitou as desculpas.

- Também eu tenho de dar uma explicação da minha presença aqui, na vossa grata companhia - a voz de Gambini soava envolvente, diplomática. - Sua Santidade, pessoalmente, encarregou-me desta missão que, tenho a certeza, concluiremos de forma satisfatória para todos.

"O próprio Papa está informado sobre tudo". Só de pensar nisto Maria teve um calafrio.

- Desde há mais de dois séculos que a Igreja tem conhecimento da existência de um misterioso segredo - o cardeal falava num italiano perfeito, não tinha sotaque de nenhum lado, soava harmonioso, como música - relacionado com António Vivaldi. O nosso desejo foi sempre que esse segredo tivesse permanecido ao longo dos séculos como tal. Mas a divina providência e as circunstâncias da vida - olhou para Lúcio - não quiseram assim. Em todo o caso, o nosso desejo sobre a manutenção do segredo não se alterou em nada pelo simples facto de terem nestes dias tido lugar certos acontecimentos.

- com a expressão "certos acontecimentos", Vossa Eminência refere-se à descoberta da partitura e da chave que permite decifrá-la? - perguntou Lúcio, em tom de desafio.

- Battista, Lúcio, trate-me por Battista.

- Desculpai-me, Eminência, mas tenho alguma dificuldade... O cardeal esboçou um sorriso condescendente.

- É uma maneira de denominar a extraordinária descoberta que fizeste. Como estava a dizer - continuou Gambini -, o mais fervoroso desejo de Sua Santidade, assim me pediu Sua Santidade que vos transmita, é que o segredo se mantenha inalterável. Para determinar a maneira mais adequada de o desejo do Santo Padre ser cumprido, é que estamos aqui reunidos. Agora, meus queridos amigos, gostaria de ouvir o vosso ponto de vista sobre este assunto.

Após aquelas palavras fez-se um breve silêncio, que Maria quebrou:

- Vossa eminência poderia responder-me a uma pergunta?

- É possível - Gambini acompanhou a sua resposta com um elogioso sorriso.

- Ainda que cometa, Vossa Eminência, uma indiscrição?

- Minha filha, não há perguntas indiscretas, mas sim perguntas impertinentes.

Maria compreendeu que com aquele homem era difícil manter uma conversa.

- A Igreja conhecia o segredo do prete rosso?

O cardeal cravou os seus brilhantes olhos na jovem veneziana. Aquele olhar, que seduziria a mulher mais reservada, era, no entanto, um olhar cujo fundo tinha algo de inquietante. Maria sentiu medo. Estava arrependida de ter feito a pergunta e, por um instante, desejou desaparecer, pensou que estaria melhor debaixo da mesa.

A voz do prelado soou mais quente do que nunca.

- Minha querida Maria, vou contar-te uma história que deverás esquecer, e também o nosso amigo Lúcio nunca mais deverá lembrar-se dela, e que se passou há muitos anos. Exactamente há duzentos e sessenta e dois anos - as cabeças dos dois jovens transformaram-se por momentos em máquinas de calcular: 2003 menos 262 eram 1741. 1741, o tal ano...! - Um correio chegou ao palácio papal procedente de Veneza. O ginete e a cavalgadura estavam exaustos. O mensageiro levava uma carta de um prócer veneziano para Sua Santidade Bento XIV, que tinha subido ao pontificado há pouco tempo, e umas instruções muito precisas: só a depositaria nas mãos do próprio Papa. Houve hesitações, disputas e opiniões opostas sobre se se devia aceder a um pedido como aquele. Assim passaram os dias. Por fim, embora fosse algo inaudito, por ser tão insólito aceitar, decidiu-se aceder. Tomaram-se todas as medidas de segurança que a época permitia: foi decidido que dois guardas escoltassem o mensageiro que concordou que a entrega se efectuasse perante o Papa, mas seria um membro da cúria que recebia o documento e o entregaria ao Santo Padre, os guardas teriam as espadas desembainhadas. Nem o curial, nem o Papa tiraram as luvas para evitar um envenenamento por contacto com o papel. Alguns dos que se tinham mostrado contrários argumentavam que tudo aquilo podia ser um artifício para atentar contra a vida do Sumo Pontífice. Foi assim que o mensageiro pôde ser recebido por Bento XIV que, dessa forma, leu a mensagem que o prócer veneziano lhe enviava. A propósito, não vos disse o nome desse homem probo veneziano, chamava-se Tomasso Bellini. Diz-vos alguma coisa? - Um sorriso malicioso apareceu na boca do cardeal. - O conhecimento do conteúdo da carta provocou em Bento XIV tal comoção que sofreu um desmaio. Muitos acreditaram que tinha sido envenenado por algum processo desconhecido até então e que o veneno estava naquele papel; dos venezianos daquela época poderia esperar-se qualquer coisa. Na realidade, o veneno do papel era de outro tipo. A causa daquele desmaio, que ninguém conhecia realmente, foi muito comentada nos círculos vaticanos. A explicação dada apontava para uma consequência dos excessos penitenciais de Sua Santidade, que uma vez recomposto, ordenou que se reunisse o grupo de curiais que constituíam o núcleo de governo da Igreja naquele momento, seis cardeais, e fecharam-se no seu gabinete privado. Fê-los jurar, um a um, diante dos evangelhos, pondo em jogo a salvação das suas almas, que nenhum deles, jamais, divulgaria à luz do dia aquilo que ia revelar-lhes, no mais alto dos segredos. Todos juraram dando como prova o destino das suas almas na vida eterna. Só então Bento XIV lhes confiou o conteúdo daquela mensagem. O segredo manteve-se como tal até hoje, no sentido de que não foi divulgado. Aqueles homens de Deus mantiveram o seu juramento.

- Como se sabe, então, que o Papa os fez jurar e a razão por que juraram? - Lúcio pensou ter apanhado uma incongruência a Gambini.

- Isso, meu filho, contaram-no porque não fazia parte do segredo. - A voz do purpurado era modelada. - Acordaram, além disso, que a carta fosse guardada nas profundezas secretas do Arquivo do Vaticano, com a denominação de intocabile. Ao longo destes duzentos e sessenta e dois anos só os máximos responsáveis pela custódia dos segredos que se guardam no Arquivo do Vaticano, quando acedem ao cargo, sob um juramento especial, e o Papa, ao vigésimo dia de ter acedido ao pontificado, segundo uma norma não escrita, mas que se converteu numa tradição de cumprimento obrigatório que se manteve, desde então, de forma inexorável, é que tiveram conhecimento da carta enviada por Tomasso Bellini ao Papa Bento XIV.

- Vossa Eminência conhece o conteúdo dessa carta? - A pergunta tinha vindo à boca de Maria.

- Conheço. E para que não me pergunteis o porquê e o como dir-te-ei já porque, como o Guido disse, sou o responsável pelos Arquivos do Vaticano. Acrescentarei que, pouco depois de em Roma se receber aquela carta, uma missão diplomática do Vaticano, com catorze especialistas bibliotecários, se deslocou a Viena e, com especial autorização da imperatriz Maria Teresa, a quem se prometeu apoio na sua luta contra Federico II da Prússia, investigou na Biblioteca Imperial. Desde então, o chamado Livro das Idades está também sob a custódia especial do Arquivo Secreto do Vaticano. Lúcio e Maria não conseguiram deixar de se mostrar espantados. Estavam como que paralisados. Apesar disso, à jovem ainda lhe restou fôlego para fazer uma pergunta particularmente dura:

- A Igreja conhece, desde então, a verdade sobre o que realmente aconteceu em torno da morte de Cristo?

Gambini olhou-a com muita atenção.

- A Igreja não, minha filha, um punhado de homens.

- Um punhado de homens entre os quais se encontram todos os que a dirigiram e governaram desde essa altura, com prerrogativas excepcionais para exercer as suas funções - respondeu Lúcio suavemente.

- Um punhado de homens que carregaram sobre as suas costas um peso terrível, mas que escolheram o menor dos males

- respondeu Gambini. - Para vários deles tornou-se tão insuportável que não resistiram, e na vossa cabeça, talvez, estará presente um dos que não conseguiram. - O cardeal molhou os lábios no vinho. - Para outros, só se trata de um texto, de uma versão, de um livro cujo conteúdo é discutível, de algo sem mais base de sustentação do que um escrito relacionado com a heresia pela qual acusaram os templários. Face a isso, todo o poder de Roma.

Naquele momento, duas empregadas de mesa chegaram com os primeiros pratos.

- Estas meninas não podiam ter chegado em melhor momento

- Gambini cumprimentou-as ao mesmo tempo que lhes dirigia um enorme sorriso, fazendo gala da sua experiência de homem do mundo. Quando se retiraram, disse: - Enquanto comemos, esquecei esta história que, como tereis verificado, é uma das muitas fantasias que correm acerca do conteúdo dos fundos secretos do Arquivo do Vaticano.

Nem Maria nem Lúcio conseguiam comer.

- Eminência, o que quer exactamente de nós? - perguntou Lúcio.

Gambini pousou os talheres, limpou os lábios com o guardanapo e bebeu um pouco do seu copo de vinho.

- Tomasso Bellini foi um bom homem e um bom cristão. A história conta que ao tomar conhecimento do conteúdo da mensagem que Vivaldi lhe tinha feito chegar, sofreu uma terrível crise de consciência. O segredo que a partitura escondia era terrível. Tão terrível que decidiu não o partilhar com os seus irmãos da Fraternitas charitatis. Mas acreditava na missão encomendada aos membros dessa irmandade. Não partilhou o segredo, mas não o destruiu. Tomou a decisão de ocultá-lo de maneira que não fosse fácil a sua localização e menos ainda a possibilidade de decifrá-lo. Deixou tudo nas mãos da Providência.

Gambini bebeu mais um pouco de vinho e continuou:

- Como bom cristão decidiu, também, dar conhecimento ao Papa do terrível segredo que conseguira saber, mas como um bom membro da sua irmandade não revelou onde estava o documento que continha o segredo que Vivaldi tinha descoberto. Só revelou na sua carta ao Papa a existência do Livro das Idades e o lugar onde Vivaldi o localizara. Nós queremos que tudo isto continue como tem estado desde há duzentos e sessenta e dois anos e, para que assim seja, necessitamos de ter nas nossas mãos a partitura e a chave que está em vosso poder.

- Pede-nos, simplesmente, que entreguemos a partitura e a chave, suponho que para guardá-la juntamente com a outra documentação no Arquivo Secreto do Vaticano, a sete chaves - disse Maria.

- Poderás dizê-lo dessa forma. Mas eu acrescentaria algo mais.

- Algo mais?

- A Igreja sempre foi generosa com quem colaborou com ela. Além disso, posso dar-vos apoio para enfrentarem a situação em que vos encontrais neste momento.

- Não consigo entender-vos, Eminência.

- É muito simples, Maria. Neste momento, os dois ramos da Fraternitas Charitatis sabem que essa... essa..., chamemos-lhe documentação, está em vosso poder. Pensais que vão afrouxar no seu empenho para se apoderarem dela? Posso assegurar-vos, sem medo de me enganar, meus amigos - olhou alternativamente para Lúcio e Maria -, que não vos deixarão tranquilos um só instante até que consigam o seu objectivo, e é bom que saibam que eles estão dispostos a qualquer coisa para o conseguir. Nós podemos fazer com que uma das facções se esqueça por completo do assunto.

- Os beatos! - exclamou Lúcio. Gambini não pôde evitar um sorriso.

- Exacto. No que toca a Michelotto e companhia, que são gente poderosa, podemos dar-vos protecção. Quando souberem que não têm em vosso poder o que eles desejam, perderão todo o interesse por vós. Se continuarem dispostos a perseguir a partitura e a chave terão de se haver connosco. As fotocópias que têm não lhes servem para nada. Por outro lado...? - O cardeal deixou a pergunta no ar e bebeu mais um pouco do seu vinho.

- Por outro lado, Eminência? - Gambini aguardara até Maria formular a pergunta.

- Como já vos disse antes, a Igreja é generosa com quem colabora com ela, para além de vos tirar um problema de cima. No essencial é isso. Essa documentação é... é... como diria eu?, uma questão intocável. Exactamente, intocável é a palavra, poderíamos fazer um acordo que fosse benéfico para as duas partes.

Maria tinha cada vez menos dúvidas que a proposta do cardeal era uma maneira excelente para lhes tirar o problema de cima das costas. Por outro lado, o que poderiam fazer com aquela partitura e com a chave que a descodificava? Vendê-la a algum meio de comunicação social de carácter sensacionalista? Talvez estivessem dispostos a pagar uma boa quantia porque uma revelação como aquela desencadearia um escândalo e é possível que tivesse consequências imprevisíveis, embora Maria estivesse farta de saber que a Igreja tinha ultrapassado já tempestades muito fortes. Ao próprio Gambini não lhe tremera a voz quando lhe dissera que, ao fim e ao cabo, o que tinham não era mais do que papel. O seu interesse, no entanto, era muito grande, como provava o facto de uma pessoa como o Gambini estar a jantar com eles.

No pequeno reservado só se ouvia agora o ruído dos talheres sobre os pratos. Quando o cardeal terminou o seu carpaccio, colocou os talheres no prato, a faca e o garfo juntos e perpendiculares a ele. Estava à espera da pergunta de um dos jovens. Para ganhar uns instantes, limpou os lábios com o guardanapo e bebeu água.

- Qual é a sua oferta? - perguntou Maria.

Gambini olhou-a nos olhos e esboçou um sorriso, quase imperceptível. Era o sorriso do triunfador.

- Mais do que uma oferta eu pedir-vos-ia que nos fizessem uma proposta.

Maria encolheu os ombros e olhou para Lúcio. Estava, uma vez mais, desconcertada. Aquele homem ganhar-lhe-ia todas as batalhas que mantivesse com ele. Se o Vaticano tinha de dar uma imagem de poder, Giambattista Gambini era o modelo.

Em franca retirada, Maria pediu uma trégua:

- Tem de ser agora? - perguntou.

- Podemos terminar o jantar, Guido e eu subimos ao terraço do restaurante e desfrutaremos da vista nocturna de Veneza e da brisa do Adriático, enquanto vós decidis... Pensando melhor, vós subis até ao terraço e contemplais o panorama. Asseguro-vos que é esplêndido e nós esperamos aqui. Não há pressa, podeis demorar o tempo todo que for preciso, La Caravella está aberta até de madrugada.

Gambini tinha razão. O panorama que o terraço oferecia era espectacular. Podia ver-se, tenuemente iluminada, a fachada de São Marcos e parte da piazza. À direita, muito próximo, as duas brancas cúpulas de Santa Maria da Saúde, obra do veneziano Baltasar Longhena. Um pouco mais longe, iluminada no meio da escuridão das águas, ressaltavam as luzes de San Giorgio Maggiore. À esquerda ficava o Grande Canal, que surgia como uma serpente iluminada.

Era uma pena que o estado em que se encontravam não lhes permitisse desfrutar daquela visão como ela merecia.

- O que tu pensas de tudo o que o Gambini nos contou? perguntou Maria, encostando o seu corpo ao de Lúcio.

- Se ontem me tivessem dito que alguém podia tirar-nos de cima os tipos da Fraternitas Charitatis, teria feito qualquer coisa que estivesse ao meu alcance, livrando-me até da partitura e da chave, só para o conseguir.

- Por que é que dizes ontem?

- Porque creio que somos ambiciosos por natureza. Hoje, quando nos oferecem uma possibilidade real de o conseguir, já não concebo a ideia de me afastar do problema. - Rodou a cabeça e olhou Maria nos olhos. - De todas as maneiras, o que a mim me interessa verdadeiramente tenho-o aqui... - e deu-lhe um longo beijo. Maria apertou-se contra ele para sentir o calor do seu corpo.

- É possível que estejamos a deixar passar uma oportunidade única de pedir o que nem sequer nos atrevemos a sonhar - os olhos de Maria brilhavam de uma forma especial -, mas desde há instantes não deixo de pensar que o melhor é que entreguemos a Gambini a partitura e a chave e que eles se arranjem com os tipos da Fraternitas Charitatis. A tranquilidade na vida é uma coisa que não tem preço. Se estiveres de acordo, descemos e dizemos-lhe que amanhã mesmo lhe entregaremos tudo e que não queremos nada em troca. O que me dizes a isto?

Lúcio não precisou nem um segundo para responder:

- Estou de acordo. Não sei se algum dia nos arrependeremos do que vamos fazer, mas agora creio que é o melhor.

- A sério que não querem nada pela partitura e pela chave?

- O rosto de Gambini reflectia perplexidade, mas nos seus olhos podia perceber-se um fundo de gratidão.

- Essa é a nossa decisão, Eminência. Não queremos nada. Só que nos prometa que a Fraternitas Charitatis será apenas uma recordação nas nossas vidas.

- Disso poderão ter a certeza absoluta. - O aprumo e a força das palavras do cardeal eram uma espécie de certificado de garantia da sua promessa.

- Só há um pequeno problema - anotou Maria.

- Qual é esse problema?

- A partitura não é nossa, assim como a chave. O caso da chave, estando aqui o padre Ranucci, está resolvido. Ele é o pároco de Zanipolo.

Guido Ranucci assentiu com a cabeça.

- Mas a partitura pertence ao arquivo do Ospedale della Pietà. Temo-la por deferência especial do comissário Aldo Tarquinio a quem temos de devolvê-la dentro de poucos dias, segundo lhe prometemos, para que seja depositada de novo no arquivo.

Uma vez mais, o sorriso apareceu nos lábios do cardeal.

- Não vos preocupeis. Esse arquivo pertence à Igreja, embora parte do edifício esteja a ser utilizado por um organismo do Estado.

O Ospedale della Pietà era uma fundação eclesiástica. Nós encarregar-nos-emos de solucionar tudo isso. Como é que disseste que se chama o comissário?

- Aldo Tarquinio, eminência.

Gambini anotou o nome num pequeno bloco.

- O próprio comissário vos dirá que estará tudo tratado, amanhã mesmo.

- Nesse caso - indicou Lúcio -, podemos ver-nos amanhã, às dez da manhã, em Torcello. Se a Vossa Eminência lhe parecer bem, esperá-lo-emos a essa hora no salão do Locanda Cipriani. E vossa eminência pagará o pequeno-almoço.

Gambini pensou um momento.

- Sinto muito, mas não poderá ser às dez da manhã, assuntos de grande interesse impedem-mo. Mas se vos parecer bem, no mesmo sítio, mas às nove da noite. Em vez de um pequeno-almoço será um jantar e, obviamente, que é por minha conta. Algum inconveniente?

- Nenhum - respondeu Maria. - Às nove no Locanda Cipriani. Tomaram um último copo e falaram sobre os dias passados.

Faziam-no, agora, tranquilamente, mas os momentos de angústia tinham sido horríveis.

Maria e Lúcio passaram o dia fechados na casa de Torcello. Aldo e Giulietta tinham-se ido embora de manhã, depois de os jovens lhes contarem, com todos os pormenores, o jantar com Gambini e a decisão que tinham tomado. O comissário afirmou que era uma decisão sábia e Giulietta não cabia em si de felicidade.

Aldo Tarquinio, sem que Maria e Lúcio soubessem, ordenou que montassem um discreto serviço de vigilância. Não queria surpresas desagradáveis. Tinha-o surpreendido o facto de o cardeal alegar assuntos urgentes para atrasar a entrega da partitura e da chave.

"O que poderia haver de mais urgente que receber aqueles papéis?", dissera quando o jovem casal lhe contou.

Ainda que não o dissesse, era algo que não lhe cheirava bem.

Maria e Lúcio estiveram tensos durante todo o dia, esperando que chegassem as nove horas. Fizeram amor duas vezes e comeram pouco. Nenhum dos dois, por causa da excitação, tinha apetite.

Também lhes parecera estranho quando Gambini disse que não podia durante a manhã, mas não fizeram caso. Quando Aldo mostrou a sua surpresa, uma espécie de temor apoderou-se deles. Às seis da tarde tocou o telemóvel de Maria. Temeram o pior.

- Sim?... Ah, olá, Aldo! Que susto me pregaste!... Estupendo, estupendo - Maria tapou o microfone do telefone e disse a Lúcio:

- O Aldo diz que está tudo resolvido em relação ao arquivo da Pietà.

- Muito bem, muito bem. Parece-me magnífico.

- Adeus, adeus. Muito obrigada por me teres telefonado.

- Gambini cumpriu a sua palavra. Chegou um fax à esquadra, resolvendo o assunto.

Às nove menos dez saíram de casa, estariam em Cipriani em poucos minutos porque o hotel era muito próximo. Quando chegaram, Gambini e Ranucci já os esperavam. Vê-los fez desaparecer parte da tensão.

O cardeal tinha marcado uma mesa num dos pequenos reservados do restaurante. O dono, que os recebeu pessoalmente, disse-lhes que aquele reservado era o preferido de Ernest Hemingway, quando se hospedava ali durante longas temporadas. Era um lugar confortável e íntimo, que se prestava a confidências.

- Que tal o dia? - perguntou Gambini, depois de ter ajudado Maria a sentar-se.

- Para dizer a verdade, Eminência, foi um pouco tenso. Sempre à espera que chegasse a hora.

O prelado sorriu.

- Tudo nesta vida tem o seu tempo, Maria. Tudo, o que desejamos e o que não desejamos.

Depois de pedir a comida - tinha despertado o apetite aos dois jovens, conforme se iam descontraindo -, Lúcio puxou pela partitura e entregou-a a Gambini. O cardeal desdobrou-a cuidadosamente e fixou a vista nos pentagramas; ao fim de alguns segundos, disse ironicamente:

- Vivaldi podia ter-se esforçado um pouco mais. É francamente má!

Todos se riram da graça. Depois, Maria tirou a caixa de embutidos da sua bolsa e entregou-lhe.

- Aqui está a chave, Eminência.

com o cuidado de quem descobre uma coisa muito valiosa, o cardeal abriu a caixa e tirou o papel que estava no seu interior, desdobrou, observou-o e exclamou:

- Que grande confusão! - O cardeal Giambattista Gambini, destacado membro da cúria e zeloso guardião dos segredos do Vaticano, estava de excelente humor. Não era para menos. - Desculpai-me um momento.

Levantou-se e saiu do reservado, regressando alguns minutos depois. Trazia dois embrulhos de tamanho muito desigual. Um pequeno, pouco maior que a caixa que tinha guardado durante dois séculos e meio a chave de Bellini, e entregou-o a Maria.

- Isto é para ti.

- O que é? - perguntou surpreendida a jovem.

- Abre e verás.

Maria rasgou o papel e viu que era um estojo de pele granate. Abriu-a e não pôde conter uma exclamação:

- Oh! Isto é para mim!

- Da parte de Sua Santidade. Maria exclamou:

- Não posso acreditar!

- Pois acredita, que é verdade.

Mostrou a Lúcio o conteúdo do estojo: uma jóia de reluzentes brilhantes encastoados em ouro branco. Era a jóia de uma rainha!

- Mas, mas... isto vale uma fortuna!

- Ficará fantástico no dia do teu casamento - afirmou, olhando para Lúcio. - Espero que isso não demore muito. Toma, Lúcio, isto é para ti.

Gambini entregou-lhe o outro pacote, muito maior, mas estreito para o tamanho que tinha. Lúcio levantou-se e colocou-o sobre a sua cadeira. Rasgou o papel e apareceu uma caixa de cartão vulgar. Abriu-a e deparou-se com um estojo de um violino; quando o viu, ficou mudo com a surpresa. Aquilo... aquilo era um Stradivarius

- Santo Céu!

- Não vás tão alto, rapaz, é também um presente de Sua Santidade, mas não vem do céu.

- Eminência... eu... eu não posso.

- Tenho a certeza que retirarás dele os melhores sons. E, agora, vamos comer! Tantas emoções despertaram-me o apetite!

Acompanharam o cardeal e o pároco de San Giovanni e San Paolo até ao cais, onde os aguardava uma lancha que tinha nos flancos o escudo do patriarca de Veneza. Gambini beijou Maria e abraçou Lúcio; ao despedir-se, sussurrou-lhes:

- Se alguma vez vos puder ser útil, já sabem onde poderão encontrar-me. Estou sempre no meu lugar.

Estavam já embarcados quando Maria perguntou ao purpurado.

- Eminência, perdoe-me a indiscrição, mas os assuntos pendentes desta manhã eram assim tão urgentes que o levassem a retardar a entrega para a noite?

- Avaliai por vós mesmos. Estão nas vossas mãos.

O ruído dos potentes motores da lancha abafou as últimas palavras de Gambini que, obviamente, não pôde ouvir os agradecimentos que Maria e Lúcio repetiram uma vez mais.

Os dois jovens regressavam abraçados e com os seus presentes pelo caminho ladrilhado que ia do cais até à praça onde estavam a catedral e a basílica de Santa Fosca. Uma lua pletórica fazia clarear a noite com reflexos de prata.

- Se algum dia contarmos isto aos nossos netos não irão acreditar - disse Maria muito baixinho a Lúcio, antes de o beijar.

- Primeiro contaremos aos nossos filhos.

- Também não acreditarão.

- Sempre poderemos mostrar-lhes a jóia e o Stradivarius.

 

                                                                                Peter Harris  

 

                      

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