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O ENTERRO DAS RATAZANAS / Bram Stoker
O ENTERRO DAS RATAZANAS / Bram Stoker

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O ENTERRO DAS RATAZANAS

 

Se deixarmos Paris pela estrada de Orleães, depois de termos atravessado as fortificações e virado à direita, encontrar-nos-emos num sítio um pouco selvagem e de maneira nenhuma agradável. A direita, à esquerda, em frente, atrás de nós, elevam-se grandes montões de imundícies e de detritos que o tempo acabou por acumular.

Paris possui tanto uma vida nocturna como diurna, e um viajante de passagem que regressa ao hotel, na rua de Rivoli ou na rua Saint-Honoré, já noite avançada, ou que o deixa de manhã cedo, pode adivinhar, quando se aproxima de Montrouge - se não o fez já - para que servem aquelas grandes carroças que se assemelham a caldeiras sobre rodas que encontra paradas um pouco em todo o lado quando por ali passa.

Cada cidade possui as suas instituições peculiares, criadas a partir das suas próprias necessidades. Assim, uma das instituições mais notáveis de Paris é a sua população de trapeiros. Logo de manhãzinha — e a vida parisiense começa muito cedo — podem ver-se na maior parte das ruas, colocadas em cima do passeio diante de cada pátio e de cada avenida, e no intervalo de duas ou três casas, como ainda existe em certas cidades americanas, e mesmo em certos bairros de Nova Iorque, grandes caixas de madeira onde os criados, ou os habitantes, despejam os seus lixos acumulados durante o dia. Em redor destas caixas reúnem-se, depois afastam-se, quando o trabalho terminou, para outras tarefas e para outras pastagens novas, homens e mulheres miseráveis, imundos e com ar esfomeado, cujas ferramentas de trabalho consistem num saco ou num cabaz grosseiro transportado ao ombro, e num pequeno ancinho com o qual remexem, sondam, examinam até ao mais ínfimo por­menor, as caixas das imundícies. Com o auxílio do ancinho, apanham e metem no cabaz o que encontram com a mesma facilidade com que um chinês utiliza os seus pauzinhos.

Paris é uma cidade centralizada, e centralização e classificação encontram-se estreitamente ligadas. Num primeiro tempo, enquanto a centralização está em vias de tor­nar-se efectiva, o que a precede é a classificação. Tudo fica agrupado, ou por similaridade ou por analogia, e desta reunião de grupos surge uma unidade completa ou central. Vê-se irradiar uma multidão de braços compridos com inúmeros tentáculos, ao passo que no centro se ergue uma cabeça gigantesca possuidora de um cérebro que tem o poder de compreender, olhos penetrantes que podem olhar para todos os lados, e ouvidos sensíveis para escutar... e uma boca voraz para engolir.

Outras cidades parecem-se com todos os pássaros, animais e peixes cujo apetite e sistema digestivo são normais. Só Paris é a apoteose analógica do polvo. Produto da centralização levada ao absurdo, a cidade representa bem o polvo; e em nenhum aspecto esta semelhança é mais curiosa do que na similaridade com o aparelho digestivo.

Aqueles turistas inteligentes que, tendo abandonado toda a sua individualidade nas mãos dos senhores Cook ou Gaze, “fazem” Paris em três dias, ficam muitas vezes intrigados pelo facto de um jantar que, em Londres, teria cus­tado pouco mais ou menos seis xelins, poder não ultrapassar três francos num café do Palais-Royal. A sua surpresa deixaria de ter razão de ser se eles não se importassem de considerar a classificação como uma especialidade teórica da vida parisiense, e de se adaptarem a tudo quanto rodeia este dado a partir do qual o trapeiro encontra a sua génese.

O Paris de 1850 não se parece com o Paris de hoje, e quem vê o Paris de Napoleão e do barão Haussmann só dificilmente se pode dar conta da existência do estado das coisas há quarenta e cinco anos.

Não obstante, pode contar-se no número das coisas que não mudaram os bairros em que os detritos são acumulados. O lixo é em todo o lado o mesmo no mundo, em todas as épocas, e a semelhança familiar entre montões de lixo é perfeita. Assim, o viajante que visita os arrabaldes de Montrouge pode, sem dificuldade, recuar na sua imaginação até ao ano de 1850.

Neste ano, eu fazia uma estada prolongada em Paris. Achava-me muito apaixonado por uma jovem mulher que, embora partilhasse a minha paixão, tinha cedido tão totalmente à vontade dos pais que lhes prometera não me ver nem me escrever durante um ano. Eu também fora obrigado a aceitar estas condições, com a vaga esperança da aprovação parental. Durante este período de provação, tinha prometido permanecer fora do país e não escrever à minha bem-amada antes do ano acabar. Naturalmente, o tempo pesava-me muito. Não havia ninguém na minha própria família ou no círculo dos meus amigos que pudesse dar-me notícias de Alice, e ninguém da sua família possuía, lastimo dizê-lo, magnanimidade suficiente para enviar-me nem que fosse uma palavra ocasional de reconforto no tocante à sua saúde ou ao seu bem-estar. Passei seis meses a errar através da Europa; mas como não consegui encontrar distracções satisfatórias nestas viagens, decidi vir para Paris onde, pelo menos, não estaria longe de Londres, no caso de alguma boa nova me poder chamar lá antes do momento indicado. Que "a esperança adiada faz adoecer o coração" nunca foi tão verdade como no meu caso, porque, ao meu desejo perpétuo de ver o rosto que amava, se acrescentava em mim uma ansiedade que me torturava porque temia a ideia de que um qualquer acidente pudesse impedir-me de demonstrar a Alice, na altura devida, que durante todo este longo período de provação, fora digno da sua confiança e fiel ao meu amor por ela. Assim, cada nova viagem que empreendia dava-me uma espécie de prazer cruel, porque implicava consequências possíveis mais graves do que aquelas que teria comportado em tempo normal.

Como todos os viajantes, depressa esgotei os locais mais interessantes, e fui obrigado, no segundo mês da minha estada, a procurar distracções onde calhava. Após diversas deslocações aos arrabaldes mais conhecidos, comecei a adivinhar que existia uma terra incógnita, desconhecida dos guias turísticos, situada no deserto social entre aqueles lugares sedutores. Por conseguinte, comecei a fazer pesquisas sistemáticas, e todos os dias retomava o fio da minha exploração no sítio onde o deixara no dia precedente.

Com o decorrer do tempo, as minhas explorações conduziram-me até próximo de Montrouge, e dei-me conta de que nestas paragens se situava a Ultima Tule da exploração social — uma região tão pouco conhecida como a que rodeia a nascente do Nilo Branco. E, assim, decidi atacar filosoficamente o mundo dos trapeiros, o seu habitat, a sua vida, os seus meios de existência.

A tarefa era repugnante, difícil de realizar, e oferecia pouca esperança numa recompensa adequada. Mesmo assim, apesar do bom senso, a minha obstinação prevaleceu e empreendi a minha nova investigação com uma energia superior àquela que teria podido ter em pesquisas dirigidas com um qualquer objectivo de interesse ou de mérito superiores.

Um dia, no termo de um belo entardecer nos últimos dias do mês de Setembro, entrei no santo dos santos da cidade das imundícies. O local era evidentemente o lugar da residência de numerosos trapeiros, porque era manifesta uma espécie de arranjo na maneira como os montões de lixo se achavam formados próximo da estrada. Passei pelo meio destes montões que se erguiam de pé como sentinelas bem alinhadas, decidido a aventurar-me mais adiante, e a dar caça ao lixo até ao seu derradeiro local.

Enquanto avançava, vi atrás dos montões de imundícies algumas silhuetas que atravessavam de um lado para o outro, observando com manifesto interesse a chegada de um estranho a um tal sítio. O seu retiro era como uma pequena Suíça e, avançando aos ziguezagues, perdi de vista o caminho atrás de mim.

Finalmente, entrei no que parecia ser uma pequena cidade ou uma comunidade de trapeiros! Havia um certo número de cabanas ou de choupanas, como se podem encontrar nas partes mais recuadas das charnecas de Allan, espécies de abrigos rudimentares compostos de paredes de vime e de terra, e cobertos por colmo grosseiro feito com detritos de estábulo — abrigos tais que não se desejaria por nada no mundo lá penetrar e que, mesmo pintados, nada possuem de pitoresco salvo se forem judiciosamente tratados. No meio destas choupanas achava-se uma das mais estranhas barafundas — não posso dizer habitações — que alguma vez vi. Um imenso e antigo armário, vestígio colossal de uma qualquer alcova Carlos VII ou Henrique II, tinha sido convertido em habitação. As duas portas estavam abertas, de tal modo que todo o interior se oferecia à vista do público. Na metade vazia do armário, havia um salão com cerca de metro e meio por dois metros, onde se tinham reunido, a fumar cachimbo à volta de um braseiro de carvão, nada menos do que seis velhos soldados da Primeira República, envergando uniformes dilacerados e coçados até à fibra. Pertenciam, evidentemente, à categoria dos mauvais sujets; os seus olhos turvos e os maxilares pendentes testemunhavam claramente um amor comum pelo absinto; e os olhos possuíam aquele ar esgazeado e gasto, pleno da ferocidade sonolenta que faz logo nascer, na sua esteira, a bebida. O outro lado do armário mantinha-se como no passado, com as suas prateleiras intactas, exceptuando que todas elas haviam sido cortadas ao meio no sentido da profundidade, e em cima de cada uma destas seis tábuas estava uma cama feita de trapos e de palha. A meia dúzia de notáveis que habitavam esta construção encaravam-me cheios de curiosidade; e quando me voltei, após ter dado alguns passos, vi as suas cabeças juntas para uma conversa em voz baixa. Não me agradava mesmo nada o aspecto que tudo isto assumia porque o local era muito ermo, e os homens tinham um ar muito, muito mau. Apesar de tudo, não vi nenhuma razão para ter medo e continuei, penetrando ainda mais no Saara. O caminho era assaz tortuoso; e, percorrendo uma série de semicírculos como fazem os patinadores que executam a figura dita holandesa, fiquei bem consciente de que estava prestes a perder-me.

Quando me adiantei um pouco mais, avistei, ao contornar a esquina de um montão de imundícies, meio acabado, sentado num monte de palha, um velho soldado com um capote coçado.

"Eia!", disse para comigo. "A Primeira República está bem representada aqui com este militar."

Quando passei em frente do velhote, ele nem sequer olhou para mim, mas contemplou o solo com uma insistência firme. Disse de novo para comigo: "Estás a ver o resultado de uma vida de guerra difícil. A curiosidade deste velhote pertence ao passado."

Não obstante, quando dei mais alguns passos, voltei-me subitamente, e vi que a sua curiosidade não se extinguira porque o veterano tinha levantado a cabeça e fitava-me com uma expressão estranha. Tive a impressão de que era um dos seis notáveis do armário. Quando viu que o estava a fitar, deixou descair a cabeça; e, sem pensar mais nele, continuei o meu caminho, contente por existir uma estranha semelhança entre estes velhos soldados.

Um pouco mais tarde, de modo idêntico, encontrei outro velho soldado. Também ele não me prestou atenção quando passei.

Com o tempo a ajudar, começava a fazer-se tarde naquele anoitecer e pensei em voltar para trás. Assim, dei meia volta, mas pude ver que um certo número de caminhos passavam entre os diferentes montões e não soube com certeza qual tomar. Na minha perplexidade, quis diri­gir-me a alguém para lhe perguntar o caminho, mas não vi ninguém. Decidi avançar mais alguns passos e procurei ver se podiam informar-me — mas não um veterano!

Alcancei o meu objectivo porque, após cerca de duzentos metros, avistei à minha frente uma espécie de simples cabana semelhante àquelas que já tinha visto, mas com a diferença de que esta não era destinada a ser habitada, porque era feita simplesmente de um telhado e de três paredes, e estava aberta à frente. Tornava-se evidente que tudo me permitia crer que se tratava de um local onde se operava a triagem das imundícies. No interior da cabana encontrava-se uma velhota enrugada e encarquilhada pela idade; acerquei-me para perguntar-lhe o meu caminho.

Levantou-se quando cheguei perto dela e pedi-lhe a esta informação. Encetou imediatamente a conversa e ocorreu-me à ideia que aqui, mesmo no centro do Reino das Imundícies, conseguiria recolher pormenores sobre a história do ofício de trapeiro, sobretudo porque podia fazê-lo através da própria boca de uma pessoa que parecia ser a sua habitante mais antiga.

Principiei o meu inquérito e a velhota deu-me respostas muitíssimo interessantes — ela fora uma das céteuses que tinham ficado sentadas todos os dias em frente da guilhotina e que haviam desempenhado um papel activo entre as mulheres que se tinham singularizado pela sua violência durante a Revolução. No decurso da nossa conversa, disse subitamente:

- Mas M'sieur deve estar farto de ficar de pé?

E limpou o pó de um velho tamborete de balouço para eu poder sentar-me. Esta ideia não me agradava por diversas razões, mas a pobre velhota era tão prestável que não queria arriscar-me a ofendê-la recusando e, além disso, a conversa de uma pessoa que tinha assistido à tomada da Bastilha podia ser interessante. Assim, sentei-me e a nossa conversa prosseguiu.

Enquanto falávamos, um velho mais idoso, e até mais encarquilhado e mais enrugado do que a mulher, apareceu por detrás da cabana.

- Aqui está Pierre - disse ela. - M’sieur pode escutar histórias, agora, se quiser, porque Pierre esteve em todo o lado, da Bastilha até Waterloo.

O velhote sentou-se noutro tamborete a meu pedido, e mergulhámos num oceano de recordações acerca da Revolução. Este velhote embora vestido como um espantalho, assemelhava-se a qualquer um dos outros seis veteranos.

Neste momento, eu estava no centro da pequena cabana, com a velhota à minha esquerda e o homem à minha direita; ambos estavam sentados um passo à minha frente, o recinto achava-se repleto com todas as espécies de objectos curiosos de madeira e com muitas coisas das quais eu teria gostado de ficar afastado. Num canto acumulava-se um montão de trapos que a abundante bicharia que ali se encontrava parecia querer abandonar, e num outro uma porção de ossos cujo odor era algo repelente. De vez em quando, ao lançar um relance de olhos a estes montões, eu podia ver os olhos reluzentes de algumas das ratazanas que infestavam o local. Tudo isto já era desagradável, mas o que me parecia ainda pior era um velho machado de lenhador, com o cabo de ferro coberto por manchas de sangue, e que se achava encostado à parede, à direita. Porém, não me inquietava por aí além. A conversa das duas pessoas idosas era a tal ponto fascinante que fiquei na sua companhia enquanto a noite tombava e os montões de lixo lançavam sombras profundas nos espaços que os separavam.

Ao fim de um certo tempo comecei a sentir-me indisposto. Não podia saber nem como nem porquê mas, fosse como fosse, não me sentia em tranquilo. Um mal-estar é instintivo e possui o valor de aviso. As faculdades psíquicas são muitas vezes as sentinelas do intelecto, e quando dão o alarme, a razão começa a agir, embora, talvez, de um modo inconsciente.

Foi o que se passou comigo. Comecei a reflectir no sítio onde me encontrava e no que me rodeava, e a perguntar-me como poderia safar-me dali no caso de ser atacado; e depois ocorreu-me subitamente à ideia, embora sem causa evidente, que estava em perigo. A prudência sussurrou-me: "Mantém-te tranquilo e não faças nenhum gesto." Mantive-me, pois, tranquilo e não fiz nenhum gesto porque sabia que quatro olhos astutos me fitavam. "Quatro olhos, se não fossem mais." Meu Deus, que horrível pensamento! A cabana podia estar rodeada em três lados por rufiões. Podia achar-me no centro de uma horda de desesperados como aqueles que só um meio século de revoluções periódicas pode produzir.

Com a sensação do perigo, o meu intelecto e a minha faculdade de observação aguçaram-se, e tornei-me mais atento do que habitualmente. Notei que os olhos da velhota se viravam constantemente para as minhas mãos. Fitei-as por minha vez e vi a causa do seu olhar: os meus anéis. No mínimo da mão esquerda, trazia um largo e pesado anel, e no da direita um diamante de valor.

Pensei que, se existisse um perigo, a minha primeira preocupação devia ser afastar qualquer suspeita. Comecei por isso a dirigir a conversa para o tema da maneira de viver dos trapeiros - para os esgotos e as coisas que lá se encontravam; e assim, pouco a pouco, para as jóias. Depois, aproveitando uma ocasião favorável, perguntei à velhota se possuía conhecimentos acerca de tais coisas. Respondeu-me que possuía alguns. Estendi a mão direita e, mostrando-lhe o diamante, perguntei-lhe o que pensava dele. Respondeu que os seus olhos eram maus e debruçou-se para a minha mão. Eu disse o mais desprendidamente que pude:

- Desculpe-me! Vai ver melhor assim!

E, retirando o diamante, entreguei-lho. Um lampejo que nada tinha de uma auréola irradiou-lhe da cara emurchecida de velha quando tocou na pedra. Deitou-me um olhar tão rápido e perfurante como um relâmpago.

Inclinou-se para o anel por um instante, a cara completamente oculta, como se o examinasse. O velho olhou em frente, na direcção da entrada da cabana, e no mesmo momento, rebuscando nas algibeiras, tirou um cartucho de tabaco em papel e um cachimbo que se pôs a atacar. Aproveitei a ocasião desta pausa e deste descanso momentâneo, por não me sentir já observado, para avaliar cuidadosamente a sala à minha volta, a qual estava agora escura e cheia de sombra no crepúsculo. Continuava a haver os montões fedorentos e porcos; o machado terrível, manchado de sangue, estava encostado à parede no canto à direita e em todo o lado, apesar da obscuridade, a cintilação calamitosa dos olhos das ratazanas. Conseguia mesmo vê-los através de alguns dos interstícios das tábuas, em baixo, atrás, rente ao solo. Mas esperem! Estes olhos pareciam maiores e mais brilhantes e mais calamitosos do que os do interior!

Por um instante, o meu coração parou; e senti o espírito confuso, estado que nos faz experimentar uma espécie de embriaguez espiritual, como se o corpo apenas se mantivesse de pé porque não tem tempo de cair antes de se recompor. Então, num segundo, fiquei calmo, friamente calmo, toda a minha energia em suspenso; controlava-me perfeitamente, com todos os sentidos e o instinto em estado de alerta.

Agora conhecia perfeitamente a existência do perigo que me ameaçava; era espiado e cercado por gente desesperada! Nem sequer podia adivinhar quantos eles seriam, estendidos no chão, atrás da cabana, à espera do momento de atacar. Sabia que era alto e forte e eles também o sabiam. Sabiam igualmente, como eu, que era inglês e que, como tal, me defenderia; e assim aguardávamos. Tinha, sentia-o, ganho vantagem há alguns segundos, porque tomara conhecimento do perigo e compreendera a situação. Agora, dizia para comigo que a minha coragem e a minha resistência iam ser postas à prova. A prova da força podia vir mais tarde.

A velha levantou a cabeça e disse-me como se estivesse contente:

- É realmente um belo anel, um magnífico anel! Meu Deus, é que eu possuía outrora anéis parecidos, mesmo em grande número, e braceletes e brincos! Oh, durante esses belos dias, era eu quem conduzia a dança na cidade! Mas agora eles esqueceram-se de mim! "Eles?" Eles nunca ouviram falar de mim. Talvez os avós se recordem, ou pelo menos alguns!

E emitiu um riso discordante e crocitante. Sou obrigado a dizer que nessa altura me espantou, porque me entregou o anel com uma espécie de graça que lembrava os modos de outrora e a que nem faltava o patético.

O velho encarou-a com um ar de ferocidade súbita; depois, soerguendo-se no seu tamborete, disse-me de repente numa voz rouca:

- Deixe-me olhar!

Estava eu prestes a entregar-lhe o anel quando a velha me advertiu:

- Não! Não! Não o dê a Pierre! É um velho louco! Perde tudo! Um anel tão bonito!

- Víbora! - disse o velho selvaticamente.

Depois a velha exclamou, muito mais alto do que o necessário:

- Espere! Vou contar-lhe uma história acerca de um anel.

Havia qualquer coisa no tom da sua voz que me inquietou. Era talvez porque eu me sentia demasiadamente impressionável, enervado como estava até este ponto de excitação, mas julguei adivinhar que não fora a mim que ela se dirigira. Ao deitar uma olhadela circular à sala, avistei os olhos das ratazanas nos montes de ossos, mas deixei de ver os olhos dos homens por detrás dos interstícios da cabana. Mas exactamente no momento em que os buscava com o olhar, vi-os aparecer novamente. O "espere!" da velha dava-me tempo para atacar, e os homens tornaram a deitar-se na mesma postura.

- Uma vez perdi um anel, um magnífico anel de diamantes que pertencera a uma rainha e que me fora Oferecido por um fermier général que, mais tarde, cortou a garganta porque eu tinha recusado as suas propostas; pensei que tivesse sido roubado e acusei os meus criados, mas não encontrei nenhuma pista. A polícia veio e sugeriu que o anel tinha acabado no esgoto. Descemos, eu com os meus belos trajes porque não podia fiar-me neles quando se tratava do meu belo anel. Conheço melhor os esgotos desde essa época, e melhor as ratazanas também! Mas jamais me esquecerei do horror desse local, fervilhante de olhos bri­lhantes, uma parede de olhos em frente da luz dos nossos archotes! E, finalmente, chegámos até debaixo da minha casa. Procurámos na extremidade do esgoto, e aí, na porcaria, encontrámos o anel e saímos.

"Mas encontrámos outra coisa igualmente antes de sair! Quando alcançávamos a abertura, um grupo de ratazanas de esgoto... ratazanas humanas desta vez... acercaram-se de nós. Contaram à polícia que um dos seus descera ao esgoto mas não voltara a sair de lá. Entrara apenas pouco tempo antes de nós e tinha-se perdido, não podia estar muito longe. Pediram a nossa ajuda para encontrá-lo e, assim, tornámos a partir. Tentaram impedir-me de acompanhá-los, mas insisti. Era uma nova aventura e eu não tinha achado o meu anel? Não chegámos muito longe antes de darmos com alguma coisa. Havia pouca água, e o fundo do esgoto estava sobreelevado com tijolos, imundícies e outras coisas deste jaez. Tinha-se batido mesmo quando o seu archote se extinguira. Mas eram demasiado numeroso para ele! Não haviam necessitado de muito tempo! Os ossos ainda estavam tépidos,

mas limpos! Tinham até comido os seus próprios mortos e havia ossos de ratazanas assim como ossos do homem. Aceitaram a coisa muito calmamente, os outros... os ossos humanos... e zombaram do camarada depois de o terem encontrado morto, embora o tivessem ajudado se o houvessem encontrado vivo! Ba-, que importa a vida ou a morte!

- E não sentiu medo? - perguntei-lhe.

- Medo? - disse ela a rir. - Eu, sentir medo? Pergunte a Pierre. É verdade que era mais nova na altura, e quando avancei naquele horrível esgoto, com o seu muro de olhos esfomeados, sempre a deslocar-se no círculo de luz dos archotes, não me sentia à vontade. Mas continuei a avançar à frente dos homens, é assim que procedo. Nunca permito aos homens que me passem à frente. Tudo quanto peço é ter uma ocasião e os meios! E eles comeram-no... Apagaram todos os vestígios, excepto os ossos; e ninguém o sabia, e ninguém tivera qualquer notícia dele!

Neste momento, foi acometida por um acesso de cacarejos, a alegria mais macabra que alguma vez tive a ocasião de ouvir e de ver. Uma grande poetisa descreve a sua heroína que canta: "Oh, vê-la ou ouvi-la cantar! Mal sei qual das duas situações é a mais divina!"

Esta mesma ideia teria podido ser aplicada à anciã - tudo excepto o divino, porque eu teria dificuldade em dizer qual dos dois era o mais infernal: o seu riso, duro, malévolo, satisfeito e cruel, ou a risota e a abertura horrível e cariada da sua boca como uma máscara trágica, e o reflexo amarelo de alguns dentes descoloridos nas gengivas sem forma. Com este riso e com esta risota, e a satisfação cacarejante, eu sabia tão bem como se me tivessem falado com frases tonitruantes que o meu assassínio estava selado e que os criminosos se limitavam a aguardar o momento favorável para a sua concretização. Podia ler, entre as linhas da sua história lúgubre, as ordens para os seus cúmplices. "Esperem", parecia ela dizer, "tenham paciência, eu serei a primeira a atacar. Arranjem-me a arma e eu aproveitarei a ocasião. Ele não se escapará. Mantenham-no tranquilo e ninguém saberá seja o que for. Não haverá gritos, e as ratazanas farão o seu trabalho."

Estava a ficar cada vez mais escuro, a noite chegara. Deitei um olhar pelo interior da cabana; nada se alterara! O machado ensanguentado no canto, os montões de imundícies e os olhos por cima dos montes de ossos e nas fendas perto do sobrado.

Pierre continuava a atacar ostensivamente o cachimbo, depois riscou um fósforo e começou a puxar o fumo. A velha disse:

- Meu querido coração, como está a escurecer! Pierre, seja bom rapaz e acenda a lanterna.

Pierre levantou-se e, com o fósforo inflamado na mão, tocou na mecha do candeeiro pendurado num dos lados da entrada da cabana, e que com o seu reflector lançou a luz na sala. Era evidentemente utilizado à noite para a triagem das imundícies.

- Não é isso, idiota! A lanterna! - gritou ela.

Ele apagou imediatamente o candeeiro ao mesmo tempo que dizia "Muito bem, mamã, hei-de encontrá-la!", e dirigiu-se rapidamente para o canto esquerdo da sala. A velhota disse na obscuridade:

- A lanterna! A lanterna! O-, é a luz que é mais útil para nós, pobres gentes. A lanterna era a amiga da Revolução! É a amiga do trapeiro. Ajuda-nos quando tudo o resto nos abandona.

Mal pronunciara estas palavras ouviu-se uma espécie de estalido em toda a cabana e algo foi puxado sem intermitências no telhado.

Pude, de novo, compreender as meias-palavras. Conhecia a lição da lanterna:

- Que um de vocês suba para o telhado, com um laço, e que se afaste quando ele sair, se falharmos no interior.

Quando espreitei pela abertura, vi o laço da corda perfilar-se a negro contra o céu colorido. Agora, estava apanhado!

Pierre não demorou a encontrar a lanterna. Mantive o olhar fixo na velha, no meio da obscuridade, Pierre riscou um fósforo, e vi a velhota apanhar no chão, a seu lado, onde tinha misteriosamente aparecido - estava oculto nas pregas da saia - uma faca comprida aguçada. Assemelhava-se a um ferro de amolar de talhante cuja ponta tivesse sido afiada.

A lanterna estava acesa.

- Trá-la para aqui - disse ela. - Coloca-a em frente da porta onde a possam ver. Olha como é bela! Retém a escuridão. É realmente tudo quanto é preciso!

Tudo quanto era preciso para ela e para os seus desígnios. A lanterna lançava toda a luz no meu rosto, deixando na sombra as caras de Pierre e da mulher, qualquer deles # postados muito longe de cada lado.

Senti que se aproximava o momento de agir, mas sabia agora que o primeiro sinal e o primeiro movimento viriam da mulher. Por isso fitei-a.

Não possuía qualquer arma, mas tinha decidido o que deveria fazer. Ao primeiro movimento, pegaria no machado de talhante pousado no canto à minha direita e haveria de arranjar uma saída. Ao menos, morreria valorosamente. Lancei um breve olhar para determinar o lugar exacto da arma a fim de poder apropriar-me dela imediatamente nesse momento em que, como nunca, o tempo e a precisão eram preciosos.

Deus meu, ela tinha desaparecido! Todo o horror da situação se abateu sobre mim. Mas o pensamento mais amargo era que, se o resultado desta situação terrível se voltasse contra mim, Alice ia infalivelmente sofrer: ou julgar-me-ia infiel - e qualquer amante, ou qualquer pessoa que alguma vez esteve nesta situação, pode imaginar a amargura de tal pensamento —, ou então continuaria a amar-me muito tempo depois de eu ficar perdido para ela e a sociedade, de modo que a sua vida ficaria estragada e repleta de amargura, e reduzida a pedaços devido à decepção e ao desespero. A própria amplitude da minha dor fortificou-me e permitiu-me suportar de novo o olhar pavoroso daqueles conspiradores que me encaravam.

Penso que não me traí. A velha fitava-me como um gato fita um rato: tinha a mão direita oculta nas pregas da saia, apertando, bem o sabia, a sua longa faca tão sinistra de aspecto. Se tivesse vislumbrado aparecer-me no rosto um qualquer temor, teria, bem o sentia, compreendido que chegara o momento e ter-me-ia saltado em cima, como uma tigreza, certa de surpreender-me indefeso.

Olhei para a noite, no exterior, e vi uma nova causa de perigo. A minha frente e à volta da cabana perfilavam-se, a curta distância, sombras escuras; estavam, era certo, imóveis, mas eu sabia que se mantinham todas em estado de alerta e precavidas. Havia poucas hipóteses para mim, agora, de fugir nesta direcção.

Lancei, de novo, um olhar circular à cabana. Nos momentos de forte emoção, e de grande perigo que a emoção provoca, o espírito funciona muito rapidamente e a acuidade das faculdades dependentes do espírito aumenta proporcionalmente. Foi o que se passou nesse momento. Num instante compreendi toda a situação. Apercebi-me de que o pequeno machado fora retirado através de um buraco feito numa das tábuas apodrecidas, e a que ponto ela o estava para que uma tal coisa pudesse ser feita sem o mínimo ruído...

A cabana era uma armadilha para matar em regra, e estava guardada em todos os lados. Um homem, com um garrote na mão, encontrava-se estendido no telhado, pronto a apanhar-me no seu nó corredio se lograsse escapar à faca da velha bruxa. A minha frente, o caminho estava guardado por não sabia quantas sentinelas. E atrás da cabana aguar­dava uma fileira de homens desesperados. Vira-lhes de novo os olhos através do interstício das tábuas ao nível do solo quando lançara um derradeiro olhar, enquanto estavam dei­tados à espera do sinal para se porem de pé. Se alguma vez devesse fazer alguma coisa, era este o momento!

O mais desprendidamente que pude girei ligeiramente no meu tamborete a fim de colocar a perna direita bem debaixo de mim. Então com um salto súbito, rodando a cabeça ao mesmo tempo que a protegia com as mãos, e movido pela energia dos cavaleiros da Idade Média, pronunciei o nome da minha dama e atirei-me contra a parede do fundo da cabana. Por muito vigilantes que eles estivessem, a instantaneidade do meu gesto surpreendeu tanto Pierre como a velha. Na altura em que rebentava as tábuas apodrecidas, vi a velha, confusa, levantar-se e saltar como uma tigreza, e ouvi o seu fraco arquejo de raiva. Os meus pés assentaram em qualquer coisa que se mexia e, saltando mais para diante, soube que pusera os pés nas costas de um dos homens deitados de barriga para baixo no exterior da cabana. Tinha-me esfolado contra as lascas de madeira, mas não me ferira. Sem fôlego, trepei para cima do montículo que estava à minha frente, ao mesmo tempo que escutava, enquanto subia, a queda amortecida da cabana que se desmoronava como uma massa.

A ascensão foi um pesadelo. O montão, embora pouco elevado, era terrivelmente duro e a cada passo dado por mim a massa de imundícies e de cinzas descia comigo e cedia debaixo dos meus pés. A poeira elevava-se e sufocava-me, era repugnante, fétida, horrível; mas a minha ascensão tornara-se, bem o pressentia, numa questão de vida ou de morte, e avançava penosamente. Os segundos pareceram-me durar horas; mas os raros segundos de antecipação ganhos à partida, combinados com a minha força e a minha juventude, davam-me uma grande vantagem; e enquanto diversas silhuetas progrediam atrás de mim, num silêncio profundo, mais ameaçador do que qualquer ruído, cheguei sem difi­culdade ao cimo do montículo. Mais tarde, fiz a ascensão do Vesúvio e, enquanto avançava penosamente por este declive sombrio no meio dos fumos sulfurosos, a lembrança desta noite terrível em Montrouge ocorreu-me tão vivamente que estive prestes a desmaiar.

O montículo era um dos mais elevados daquela região de imundícies e enquanto trepava para o topo, procurando recuperar o fôlego, com o coração a bater como um grande martelo, avistei ao longe, à minha esquerda, o clarão vermelho do céu e, mais próximo, a cintilação de luzes. Graças a Deus, sabia agora onde me encontrava e onde passava a estrada de Paris!

Durante dois ou três segundos, fiz uma pausa e olhei para trás. Os meus perseguidores ainda estavam muito longe, mas trepavam resolutamente e num silêncio de morte. Mais ao longe, a cabana era uma ruína, uma massa de tábuas e de formas moventes. Podia vê-la facilmente porque dela já brotavam chamas. Os trapos e a palha haviam-se evidentemente incendiado em contacto com a chama da lanterna. Também ali o silêncio! Nem um ruído! Aqueles pobres velhos podiam, ao menos, morrer como deve ser!

Apenas tive tempo de lançar uma breve espreitadela, porque, quando passeei um olhar circular à minha volta a fim de preparar-me para descer, avistei várias formas sombrias que se reuniam em cada lado com o intuito de barrar-me o caminho. Agora era uma corrida entre a vida e a morte. Eles tentavam impedir-me de tomar a estrada de Paris e então, instintivamente, desci rapidamente pelo lado direito. Cheguei mesmo a tempo porque, embora me tivesse parecido descer o declive com alguns passos, os velhos astutos que me fitavam deram meia volta e um deles, no momento em que eu deslizava pelo espaço aberto entre dois montões à minha frente, quase logrou atingir-me com um golpe do terrível machado de talhante. Certamente que não existiam duas armas deste género nos arredores!

Então, principiou uma caçada realmente horrível. Levei facilmente a dianteira aos velhos e mesmo quando alguns homens, mais novos, e várias mulheres se juntaram à caçada, deixei-os sem dificuldade para trás. Mas não conhecia o caminho, e nem sequer podia guiar-me pela luz do céu por­que corria no outro sentido. Tinha ouvido dizer que, a não ser que tivessem uma razão para fazerem o contrário, os homens que são perseguidos viram sempre à esquerda e foi o que fiz; e penso que os meus perseguidores também o sabiam, eles que eram mais animais do que homens, e que, fosse astúcia, fosse instinto, haviam descoberto tais segredos através do uso. De modo que, tendo terminado a minha corrida rápida, após a qual tencionava recuperar o fôlego, avistei de súbito à minha frente duas ou três silhuetas que contornavam a parte posterior de um montão à minha direita.

Achava-me realmente agora na teia da aranha! Mas a ideia deste novo perigo fez nascer em mim o recurso do animal acossado, de tal modo que desci tomando pelo caminho mais próximo à direita. Continuei nesta direcção durante uma centena de metros e depois, voltando de novo à esquerda, compreendi que tinha sem dúvida evitado o perigo de ser cercado.

Mas não o da perseguição, porque a canalha vinha para cima de mim, alinhada, determinada, implacável e sempre no meio de um silêncio ameaçador.

Na escuridão mais profunda, os montões pareciam ser mais pequenos do que antes, embora - porque a noite chegara - parecessem maiores em proporção. Encontrava-me agora bem longe dos meus perseguidores e trepei rapidamente o montão à minha frente.

Ó ventura das venturas! Estava quase no limite daquele inferno das imundícies. Muito atrás de mim, a luz vermelha de Paris iluminava o céu e subia por detrás das alturas de Montmartre uma luz fraca, tendo aqui e além pontos brilhantes como estrelas.

Recuperado o meu vigor após um momento, saltei a correr por cima dos montões restantes, de tamanho cada vez mais pequeno, e encontrei-me mais longe num terreno plano. A perspectiva não era, contudo, tranquilizadora. Tudo quanto havia diante de mim era escuro e lúgubre, e eu tinha evidentemente caído em cima de um desses terrenos baldios pantanosos no côncavo de uma depressão, e que se encontram aqui e além na proximidade das grandes cidades. Lugares desolados, cobertos de lixeiras, cujo espaço permite despejar ali em derradeiro recurso tudo o que é prejudicial - a terra é tão miserável que nenhum squatter, mesmo o mais pobre, sente vontade de ocupá-la. Com os olhos acostumados à obscuridade da noite, e agora longe da sombra daqueles horríveis montões de imundícies, conseguia ver muito melhor do que antes. A razão era talvez que os reflexos no céu das luzes de Paris, embora a cidade ficasse a alguns quilómetros de distância, se reflectiam igualmente aqui. De qualquer modo, via o bastante para me orientar, pelo menos a alguma distância em meu redor.

À minha frente achava-se um terreno desolado que parecia absolutamente plano, com os reflexos de sombra disseminados dos lagos estagnados. Aparentemente, bem longe à direita, no meio de um pequeno grupo de luzes dispersas, erguia-se a massa sombria do forte de Montrouge, e à esquerda, mais ao longe, ponteadas pelos raios dispersos das janelas dos pavilhões, as luzes no céu indicavam a localidade de Bicêtre. Após ter reflectido um instante, decidi-me a tomar pela direita a fim de tentar alcançar Montrouge. Aqui, ao menos, beneficiaria de uma segurança relativa, e era possível que pudesse descobrir muito antes algumas das encruzilhadas que conhecia. Algures, não muito longe, devia situar-se a estrada estratégica, construída para ligar a enfiada exterior dos fortes que cercam a cidade.

Depois, olhei para trás. Atravessando os montões de imundícies, desenhando-se a negro na luz do horizonte, várias silhuetas deslocavam-se, e avistei, um pouco mais para a direita, várias outras que se interpunham entre mim e o meu destino. Era evidente que queriam barrar-me a estrada neste sentido, e assim a minha opção ficava limitada: devia ou não continuar a direito ou continuar para a esquerda. Inclinando-me para a terra a fim de me fixar o horizonte como linha de mira, olhei cuidadosamente nesta direcção, mas não consegui detectar nenhuma presença dos meus inimigos. Disse para comigo que, se eles não proibiam ou não tentavam proibir esta posição, era evidentemente perigoso para mim ir por ali. Decidi, por isso, continuar em frente.

Não era uma perspectiva regozijante e à medida que avançava a realidade piorava. O terreno tinha-se tornado mole e esponjoso e de vez em quando cedia debaixo dos meus pés causando-me mal-estar. Tinha mais ou menos a sensação de descer, porque via à minha volta partes de ter­reno mais elevadas do que aquela onde me encontrava, e isto num espaço que, a alguma distância, parecia absolutamente plano. Olhei em redor, mas não consegui avistar nenhum dos meus perseguidores. Era estranho porque a todo o instante estas aves nocturnas tinham-me seguido na escuridão tão facilmente como se estivesse dia claro. Quanto me lastimei por ter saído vestido com o meu fato completo de turista em tweed, de cor clara! O silêncio e a minha incapacidade de vislumbrar os meus inimigos, apesar de sentir que eles me observavam, tornavam-se aterradores, e na esperança de que alguém que não fizesse parte daquela horrível equipa pudesse ouvir-me, pus-me a gritar elevando a voz várias vezes. Nem a mínima resposta; nem sequer o eco da minha voz recompensou os meus esforços. Durante um momento, mantive-me completamente inerte, e fixei o olhar à minha frente. Numa das partes em relevo do terreno que me rodeava, vi uma forma escura deslocar-se, depois outra e mais outra. Isto à minha esquerda e aparentemente para me cortar a estrada.

Pensei que, de novo, podia, graças à minha facilidade em correr, livrar-me do plano dos meus inimigos e, por isso, a toda a velocidade, lancei-me para diante.

Pafe!

Os meus pés tinham cedido em cima de uma massa de imundícies viscosas e estatelei-me ao comprido num lago fedorento e estagnado. A água e a lama nas quais os meus braços se tinham enterrado até aos cotovelos eram sujas e nauseabundas para lá de qualquer descrição, e na minha queda súbita cheguei mesmo a engolir um pouco desta substância repugnante que quase me sufocou e me fez ofegar para retomar o fôlego. Jamais esquecerei estes minutos durante os quais ali permaneci, tentando recuperar, quase esquecendo o odor fétido daquele lago sujo do qual subia um nevoeiro branco fantasmagórico. O pior de tudo, para além do meu desespero acrescido de animal acossado que vê a matilha dos caçadores fechar-se sobre ele, foi ver à minha frente, enquanto permanecia sem socorro, as formas sombrias dos meus perseguidores a deslocarem-se rapidamente para me cercarem.

É uma coisa estranha o modo como o espírito trabalha sobre assuntos diversos, mesmo quando o pensamento emprega toda a sua energia a concentrar-se numa necessidade terrível e urgente. Achava-me, nesse preciso momento, numa situação que punha a minha vida em perigo, a minha salvação dependia do que ia fazer, a necessidade de escolher tornava-se cada vez mais premente e, no entanto, não podia impedir-me de pensar na persistência estranha e encarniçada com que aqueles velhos me perseguiam. A sua resolução silenciosa, a sua obstinação constante e impiedosa, mesmo por uma tal causa, provocavam ao mesmo tempo medo e uma pontinha de respeito. Como eles deviam ter sido vigorosos na sua juventude! Agora podia compreender a carga rodopiante da ponte de Arcole, a exclamação desprezível da velha guarda em Waterloo! A celebração inconsciente tem os seus prazeres próprios, mesmo em tais momentos; mas felizmente não é de modo algum incompatível com o pensamento de onde surge a acção.

Compreendi com um relance de olhos que, até agora, tinha falhado o meu intuito; os meus inimigos, por enquanto, estavam a ganhar. Tinham conseguido cercar-me em três lados e estavam decididos a fazer-me desviar para a esquerda, onde reinava o perigo, pois não haviam deixado sentinelas. Aceitei a alternativa - era o caso da escolha de Hobson - e lancei-me para diante. Devia permanecer na parte baixa do local pois os meus perseguidores ocupavam a parte alta. Não obstante, embora o solo esponjoso e o terreno acidentado me retardassem, a minha juventude e o meu treino permitiram-me conservar a distância e, seguindo uma linha diagonal, não só os impedi de se aproximarem, mas também comecei a afastar-me. Isto deu-me coragem e forças novas e num tal momento o efeito do meu treino regular começou a fazer-se sentir e encontrei o meu segundo fôlego. A minha frente, o solo elevava-se ligeiramente. Trepei rapidamente o declive e dei com uma extensão de água limosa e, mais adiante, um dique ou um talude que parecia negro e sinistro. Senti que se lograsse alcançar o dique, poderia aí, com toda a segurança, com um terreno sólido debaixo dos pés e uma espécie de vereda para me guiar, encontrar um meio relativamente fácil para escapar aos meus inimigos. Depois de ter lançado olhadelas à direita e à esquerda e não vendo ninguém na minha vizinhança imediata, concentrei a atenção durante alguns minutos a ver onde poria os pés enquanto atravessasse a charneca. Foi uma travessia difícil e penosa, mas que não apresentou perigo e exigiu apenas alguns esforços. Pouco tempo depois, atingi o dique. Subi o declive, exultante; mas também ali recebi um novo choque. De cada um dos lados ergueram-se várias silhuetas acocoradas. Vindas da direita e da esquerda, atiraram-se a mim. Cada uma segurava uma corda na mão.

Achava-me quase completamente cercado. Não podia passar nem de um lado nem do outro, e o fim estava próximo.

Havia somente uma hipótese, tentei-a. Lancei-me através do dique e, escapando-me às garras dos meus inimigos, saltei para o ribeiro.

Num outro momento qualquer, teria achado que esta água estava infestada e suja, mas agora era tão bemvinda como o ribeiro puro para o viajante sedento! Era a rota por onde podia salvar-me! Os meus perseguidores lançaram-se atrás de mim. Se só um deles tivesse ficado com a corda, isso seria o meu fim, porque teria podido fazer-me tropeçar nela antes de eu dispor de tempo para dar uma braçada. Mas como todos a seguravam, ficaram embaraçados e assim atrasaram-se e, quando a corda bateu na água, ouvi o “pafe” muito atrás de mim. Em alguns minutos de braçadas enérgicas cruzei o ribeiro, refrescado pela imersão e encorajado pela minha esquiva. Trepei o dique, com um humor relativamente alegre.

Do alto, olhei para trás de mim. Através da obscuri­dade, vi os meus assaltantes espalharem-se por todo o lado, ao longo do dique. Era evidente que a perseguição não ter­minara e tive de novo que escolher uma direcção. Para lá do dique onde me encontrava estendia-se um espaço selvagem e pantanoso, muito semelhante àquele por mim atravessado. Decidi evitar um tal sítio e reflecti durante um momento se subiria ou desceria o dique. Julguei ouvir um ruído, o ruído abafado de um remo e, por isso, escutei, depois gritei.

Nenhuma resposta, mas o ruído cessou. Os meus inimigos tinham, aparentemente, arranjado um bote ou outra embarcação qualquer. Uma vez que se achavam na parte superior do dique, tomei a vereda para descer e comecei a correr. Quando passei à esquerda do sítio onde tinha entrado na água, ouvi vários “pafes” ligeiros e furtivos, como o ruído feito por uma ratazana quando mergulha, mas muito mais audíveis; e, observando, vi os reflexos sombrios da água quebrados pelas rugas em torno de várias cabeças que avançavam. Alguns dos meus inimigos estavam também a nadar no ribeiro.

E agora, atrás de mim, a montante, o silêncio era quebrado pelo tinido rápido e pelo ranger dos remos; os meus inimigos encarniçavam-se em minha perseguição. Equilibrei-me sobre a minha melhor perna e retomei a corrida. Dois ou três minutos depois, deitei um olhar para trás e, a favor de um raio de luz que furara as nuvens informes, divisei várias silhuetas escuras que trepavam a margem atrás de mim. Agora o vento tinha-se levantado e a água ao meu lado agitava-se e começara a quebrar-se em pequenas vagas contra a margem. Devia manter os olhos bastante fixos na terra à minha frente, com medo de tropeçar, porque sabia que tropeçar era morrer. Voltei-me alguns minutos mais tarde. No dique, havia algumas silhuetas sombrias, mas a cruzarem o terreno baldio pantanoso havia muitas mais. Depois, quando retomei a corrida, pareceu-me que o meu caminho continuava a descer para a direita. Olhei para montante, vi que o ribeiro estava mais largo do que há pouco, e que o dique em cima do qual me encontrava desaparecia; para além, corria outro ribeiro, onde vi, na margem mais próxima, algumas das formas sombrias que agora tinham atravessado o pântano. Encontrava-me numa espécie de ilha.

A minha situação era agora verdadeiramente desesperada porque os meus inimigos me bloqueavam por todo o lado. Atrás de mim o barulho dos remos tornara-se mais rápido, como se os meus perseguidores sentissem que o desenlace estava próximo. A minha volta, em todos os lados, era a desolação; tão longe quanto o meu olhar alcançava não havia nem telhados nem luzes. Ao longe, para a direita, erguiam-se algumas massas sombrias, mas eu ignorava o que fossem. Fiz uma pausa durante um momento para reflectir no que devia fazer, não para ir mais longe, mas porque os meus perseguidores se aproximavam. Tomei rapidamente uma decisão. Deslizei para a parte baixa da margem e entrei na água. Dirigi-me a direito a fim de ganhar a corrente, afastando-me assim da água imóvel à volta da ilha, seguro, agora que me achava no ribeiro, de que era realmente uma ilha. Esperei que uma nuvem passasse através da Lua e deixasse tudo mergulhado na escuridão. Depois tirei o chapéu e pousei-o devagarinho na água para que flutuasse; um segundo mais tarde, mergulhei para a direita, e comecei a nadar debaixo de água com todas as minhas forças. Passei, penso, meio minuto debaixo de água e quando voltei à superfície, o mais suavemente possível, virei-me a fim de olhar para trás. Um pouco mais longe flutuava alegremente o meu chapéu de feltro claro. Imediatamente após vinha um velho bote oscilante, propulsionado furiosamente por um par de remos. A Lua ainda se encontrava em parte obscurecida por nuvens que flutuavam em redor; mas a esta luz imperfeita pude avistar um homem, de pé na proa do barco, erguendo no ar, pronto a bater, aquilo que me pareceu ser o machado terrível do qual eu me escapara antes. Enquanto olhava, o bote acercava-se cada vez mais, e o homem bateu selvaticamente. O chapéu desapareceu. O homem caiu de costas, quase saindo pela borda fora. Os camaradas seguraram-no, mas não o machado e, ao mesmo tempo que eu me voltava e nadava com todas as minhas forças para ganhar a margem mais à frente, ouvi a imprecação proferida numa voz abafada pelos meus perseguidores frustrados.

Era a primeira palavra humana que ouvia desde o início desta caçada horrível e, embora fosse rica de ameaças e de perigos para mim, senti prazer porque rompia o silêncio ter­rível que me cercava e que me terrificava. Era o sinal tangível de que os meus inimigos eram homens e não fantasmas, e de que, pelo menos, podia bater-me com eles, embora estivesse sozinho contra vários.

Mas agora que o encantamento do silêncio estava quebrado, os ruídos chegavam, abafados e rápidos. Do barco para a margem e da margem para o barco foram trocadas perguntas e respostas, rapidamente, com sussurros ferozes. Olhei para trás, gesto mais do que fatal, porque nesse instante alguém avistou o meu rosto cuja alvura ressaltava na água sombria e gritou. Estenderam-se mãos na minha direcção, e quase de seguida o barco voltou a partir e avançou com rapidez. Faltava percorrer apenas uma curta distância, mas o barco acercava-se cada vez mais rapidamente atrás de mim. Algumas braçadas suplementares e eis-me na margem. Mas sentia o barco a chegar, e aguardava a cada segundo sentir a pancada de um remo ou de uma outra arma qualquer na minha cabeça. Se não tivesse visto aquele machado horrível desaparecer na água, não creio que tivesse ganho a margem. Ouvi as imprecações lançadas pelos homens que não remavam e o arquejo dos remadores. Após um supremo esforço para salvar a minha vida ou a minha liberdade, alcancei a margem e escalei-a. Não havia um segundo que fosse a perder porque, imediatamente atrás de mim, o barco atracara e várias formas sombrias saltaram em minha perseguição. Alcancei o topo do dique e, dirigindo-me para a esquerda, continuei a correr. O barco tornou a partir e seguiu pelo ribeiro. Vi o que se passava e, temendo um perigo nesta direcção, dei rapidamente meia volta; desci o dique pelo outro lado; depois de ter ultrapassado uma pequena extensão de terra pantanosa, alcancei um local selvagem, aberto e plano, e prossegui a minha corrida.

Sempre na minha peugada, os meus perseguidores acossavam-me sem descanso. Ao longe, em frente, abaixo de mim, avistei aquela mesma massa sombria que já tinha avistado, mas tornara-se agora mais próxima e mais imponente. O meu coração batia descompassadamente porque eu adivinhava que devia ser o forte de Bicêtre e, voltando a ganhar coragem, continuei a corrida. Tinha ouvido dizer que entre cada um dos fortes que protegem Paris existiam vias estratégicas, trincheiras escavadas profundamente, onde os soldados que se deslocavam podiam abrigar-se do inimigo. Sabia que se conseguisse alcançar esta via, estaria salvo, mas na escuridão não distinguia nenhum sinal dela, embora, na esperança cega de alcançá-la, continuasse a correr.

Pouco tempo depois, cheguei à beira de uma trincheira profunda e achei por baixo de mim uma via protegida de cada lado por um fosso cheio de água e cercada por um muro alto e direito.

Sentindo-me a enfraquecer e com a cabeça a andar cada vez mais à roda, continuei a correr; o solo tornara-se ainda mais acidentado, até ao momento em que tropecei e caí; levantei-me de novo e continuei a correr com a angústia cega de um animal acossado.

De novo, o pensamento de Alice deu-me energias. Não queria desaparecer e estragar assim a sua vida; defender-me-ia e bater-me-ia até à prova final. Fazendo um grande esforço, agarrei-me ao topo do muro. No momento em que, esticando-me como um trapezista, me içava para cima, senti nitidamente uma mão tocar-me na sola do sapato. Agora achava-me numa espécie de calçada, e vi brilhar à minha frente uma luz fraca. Ofuscado e tomado de vertigens, continuei a correr, tropecei e caí, levantei-me coberto de poeira.

- Halte-lá!

As palavras ecoaram como uma voz celeste. Uma luz resplandecente, pareceu-me, rodeou-me e gritei de alegria.

- Qui va là?

O estalido metálico das armas, o brilho do aço diante dos meus olhos: instintivamente detive-me, na altura em que muito próximos das minhas costas, os meus persegui­dores chegavam ao assalto.

Uma palavra ou duas mais e do postigo espalhou-se aquilo que me pareceu ser uma maré vermelha e azul no momento em que a guarda saiu. Tudo à volta pareceu encher-se de luz, de brilho do aço, do estalido e do alarido das armas, e de vozes fortes e bruscas que davam ordens. Quando caí para a frente, completamente esgotado, um soldado agarrou-me. Olhei para trás de mim, terrificado pela espera, e vi o grupo de silhuetas a desaparecer na noite. Depois devo ter desmaiado. Quando recuperei os sentidos, encontrava-me numa sala de guarda. Deram-me um copo de conhaque e decorrido pouco tempo fiquei em condições de contar-lhes uma parte do que se passara. Depois, um comissário de polícia apareceu, vindo aparentemente de parte nenhuma, como faz habitualmente um oficial da polícia parisiense. Escutou atentamente, depois deliberou um momento com um oficial de serviço. Puseram-se, sem dúvida, de acordo, porque me perguntaram se estava agora preparado para acompanhá-los.

- Para irmos onde? - perguntei enquanto me punha de pé.

- De regresso às lixeiras. Talvez ainda os apanhemos!

- Vou tentar - respondi.

Ele encarou-me um instante fixamente e disse-me bruscamente:

- Preferiria aguardar um pouco, ou mesmo até amanhã, meu jovem inglês?

Isto tocou-me no fundo do coração, como talvez ele quisesse, e pus-me de pé com um salto.

- Partamos agora - disse. - Agora! Agora! Um inglês está sempre preparado para cumprir o seu dever!

O comissário era tão bonacheirão como sagaz; bateu-me no ombro de um modo amistoso:

- Rapaz corajoso! - comentou. - Desculpe, mas eu sabia o que lhe faria bem. A guarda está pronta. Vamos! Assim, depois de ter atravessado a sala da guarda e seguido ao longo de uma extensa passagem abobadada, saímos para a noite. Alguns dos homens da frente possuíam fortes lanternas. Transpusemos o pátio e descemos um caminho em declive para desembocarmos sob uma poterna num carreiro cavado, igual àquele que eu vira na minha fuga. Os soldados receberam a ordem de caminhar em passo de ginástica, e com passos vivos e saltos, metade a correr, metade a marchar, avançaram rapidamente. Senti que as forças me voltavam - tamanha é a diferença entre um caçador e um caçado. Uma muito curta distância separava-nos de um pontão, baixo de perfil, que cruzava o ribeiro, e aparentemente muito pouco a montante do local onde eu o havia transposto. Tinham, sem dúvida, tentado destruí-lo um pouco, porque todas as cordas haviam sido cortadas e uma das correntes achava-se partida. Ouvi o oficial dizer ao comissário:

- Chegamos mesmo a tempo! Alguns minutos mais e eles destruíam a ponte. Em frente! Ainda mais depressa!

E fomos em frente.

Aproximámo-nos de novo de um pontão na curva do ribeiro; quando chegámos ouvimos os “bum” ocos dos tambores metálicos no momento em que eles procuravam destruir também esta ponte. Foi lançada uma palavra de ordem - e vários homens apontaram as espingardas.

- Fogo!

Uma salva ecoou. Um grito abafado elevou-se e as silhuetas sombrias dispersaram-se. Mas o mal estava feito e vimos a parte afastada do pontão tombar no ribeiro. Isto foi a causa de um sério atraso, porque precisámos de quase uma hora para substituir as cordas e recuperar a ponte de um modo suficientemente sólido para atravessá-la.

Retomámos a caçada. Avançámos cada vez mais rapidamente para os montões de imundícies.

Após algum tempo, chegámos a um sítio que eu conhecia. Encontravam-se aí os restos de uma fogueira - algumas cinzas de lenha ainda não consumida lançaram um clarão vermelho, mas a maior parte da fogueira estava fria. Reconheci o local da cabana, e atrás o monte pelo qual eu trepara; no meio do avermelhado das cinzas, os olhos das ratazanas continuavam a brilhar com uma espécie de fosforescência. O comissário dirigiu uma ordem ao oficial que gritou:

- Alto!

Os soldados receberam a ordem de dispersar pelas cercanias e de se manterem atentos, depois começámos a examinar as ruínas. O próprio comissário pôs-se a levantar as tábuas ardidas e os destroços calcinados. Alguns soldados reuniram-nos, empilhando-os. Pouco depois, o comissário recuou, inclinou-se e fez-me sinal quando se endireitou:

- Repare! - disse.

Era um espectáculo horrível. Havia um esqueleto ali deitado, a cara voltada para o solo: uma mulher aparente­mente. No meio das costelas erguia-se uma estaca, comprida como uma espada, semelhante a uma faca de afiar de talhante, cuja ponta acerada se achava cravada na espinha dorsal.

- Hão-de reparar - disse o comissário ao oficial e a mim mesmo enquanto puxava pelo seu bloco de apontamentos -, que esta mulher deve ter caído em cima da faca. As ratazanas pululam aqui... reparem nos seus olhos a bri­lhar naquele montão de ossos..., e notarão também (estremeci quando ele passou a mão pelo esqueleto) que elas não perderam tempo. Os ossos ainda não estão completamente frios!

Nenhuma outra presença se manifestava naquelas paragens, morta ou viva; tornando a formar em linha, os soldados retomaram portanto o seu caminho. Chegámos pouco depois à cabana construída com o armário antigo. Acercámo-nos dela. Velhos, em cinco dos seis compartimentos, estavam a dormir - tão profundamente adormecidos que mesmo a luz das lanternas não os acordou. Pareciam sem vida, sinistros e cinzentos com a sua cara macilenta, enrugada e burilada e os bigodes brancos. O oficial dirigiu-lhes duramente uma ordem numa voz forte, e num ápice cada um dos velhos ficou de pé à nossa frente, na posição de sentido.

- Que fazem aqui?

- Dormimos - responderam.

- Onde estão os outros trapeiros? - perguntou o comissário.

- E vocês?

- Estamos de guarda.

- Peste! - disse o oficial enquanto ria sardonicamente, olhando os velhos um após o outro bem na cara.

Depois acrescentou com uma crueldade fria e deliberada:

- Adormecidos no vosso posto! É esta a maneira de agir da antiga guarda? Waterloo não tem então nada de espantoso!

Iluminados pela luz da lanterna vi as caras velhas e sinistras tornarem-se pálidas como a morte, e quase estremeci ao ver a expressão do seu olhar quando os soldados deram eco ao gracejo impiedoso do oficial.

Senti nesse instante que, em certa medida, obtivera a minha vingança.

Durante um momento, pareceram estar prestes a atirarem-se ao homem que os insultara, mas anos de vida de soldado haviam-nos treinado e permaneceram silenciosos.

- Vocês são apenas cinco - disse o comissário. - Onde está o sexto?

A resposta surgiu com um cacarejo sinistro:

- Aqui está! - E o que falara apontou com o dedo o fundo do armário. - Morreu esta noite. Não vão encontrar grande coisa. É rápido o enterro das ratazanas!

O comissário inclinou-se para observar o interior do armário. Depois voltou-se para o oficial e disse calmamente:

- O melhor é irmo-nos embora. Agora já não há vestígios; nada prova que este homem era aquele que foi ferido pelas balas dos seus soldados! Provavelmente eles mataram-no para apagar todos os vestígios! Olhem! - Inclinou-se de novo e pousou as mãos no esqueleto. - As ratazanas trabalham depressa e são em grande número. Os ossos ainda estão mornos!

Estremeci, e muitos outros à minha volta fizeram o mesmo.

- Formem! - ordenou o oficial.

E assim alinhados em ordem de marcha, com as lanternas a balouçarem à frente e os veteranos, de algemas nos pulsos, no centro do grupo, abandonámos com passo rápido os montões de imundícies para tomarmos o caminho de regresso ao forte de Bicêtre.

O meu ano de provação terminou há imenso tempo, e Alice é a minha mulher. Mas quando deito um olhar a este período difícil de doze meses, de todos os incidentes que me voltam à memória, o mais vivaz é o que está associado à minha visita à Cidade das Imundícies...

 

                                                                                Bram Stoker  

 

                      

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