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CAPÍTULO UM
Foi no décimo oitavo dia de Outubro daquele ano de 1142 que Richard Ludel, vassalo hereditário da mansão de Eaton, morreu de uma fraqueza debilitante, fraqueza essa causada por feridas recebidas na batalha de Lincoln quando ao serviço do Rei Stephen.
As notícias foram levadas em seu devido tempo a Hugh Beringar no castelo de Shrewsbury, já que Eyton era uma das muitas mansões do condado que fora expropriada a William FitzAlan, depois daquele nobre poderoso ter tomado partido do lado errado na luta pelo trono, mantendo Shrewsbury para a Imperatriz Maud e fugindo quando Stephen sitiou e capturou a cidade. As suas vastas possessões, confiscadas pela coroa, tinham sido entregues aos cuidados do xerife como suserano, mas os seus vassalos de longa data mantiveram-se imperturbáveis já que estava decidido que estes tinham sabiamente aceite o julgamento de batalha e jurado vassalagem ao rei. De facto, Ludel fizera mais do que declarar a sua lealdade, ele demonstrara-a na batalha em Lincoln e agora parecia pagar um preço elevado pela sua fidelidade, pois não tinha mais do que trinta e cinco anos de idade ao morrer.
Hugh recebeu as notícias com um pesar moderado, o qual era natural para alguém que mal conhecera o homem e para o qual os seus deveres seriam, provavelmente, pouco complicados. Existia apenas um herdeiro e nenhum segundo filho para entravar a questão da herança e certamente nenhuma necessidade de interferir com a sucessão pacífica. Os Ludels eram homens leais de Stephen. mesmo que fosse difícil que o novo sucessor viesse a pegar em armas pelo seu rei durante os anos mais próximos tendo, recordou-se Hugh, cerca de dez anos de idade. O rapaz estava na escola na abadia, fora aí colocado pelo seu pai após a morte de sua mãe; muito possivelmente, segundo diziam os rumores, mais para o tirar das mãos de uma avó dominadora do que simplesmente para assegurar que ele aprendesse a escrever.
Parecia, então, que a abadia, senão mesmo o castelo, tinha uma responsabilidade pouco invejável no caso, pois alguém teria de dizer ao jovem Richard que o seu pai estava morto. Os ritos funerários não recairiam sobre a abadia, já que Eaton, sendo uma paróquia, tinha o seu próprio padre e a sua própria igreja, mas a custódia do herdeiro era um caso de alguma importância. «E quanto a mim», pensou Hugh. «é melhor certificar-me de quão competente é o tutor que Ludel encarregou de administrar o legado do rapaz, enquanto este ainda não atingir a idade para ser ele próprio a administrá-lo».
- Ainda não levaste esta notícia ao senhor abade? - perguntou ao lacaio que trouxera a mensagem.
- Não, meu senhor, vim primeiro ter consigo.
- E tens ordens da senhora para falares com o herdeiro?
- Não, meu senhor, e preferiria deixar isso para aqueles que diariamente tratam dele.
- Bem, podes lá ficar - concordou Hugh. - Eu próprio irei e falarei com o Abade Radulfus. Ele saberá o que fazer. Quanto à sucessão, a Dama Dionísia não precisa de se apoquentar, o título do rapaz está suficientemente seguro.
Em tempos conflituosos, com primos rivalizando amargamente pelo trono e senhores oportunistas mudando de partido consoante as fortunas oscilantes desta guerra inconstante. Hugh sentia-se satisfeitíssimo por ser o guardião de um condado que apenas mudara de mãos uma vez. e a partir daí preparou-se teimosamente para manter o título do Rei Stephen longe de desafios e a onda de conflitos à distância, quer a ameaça chegasse das forças da imperatriz, dos imprevisíveis cantrips dos selvagens Galeses de Powys a oeste, ou da ambição calculista do conde de Chester no Norte. Já havia alguns anos que Hugh equilibrara o seu relacionamento com todos estes vizinhos perigosos com relativo sucesso, e teria sido loucura considerar entregar Eaton a outro vassalo, quaisquer que fossem as possíveis desvantagens de permitir a sucessão intacta para uma criança. Porquê perturbar uma família que permanecera submissa e leal e perseguir alguém firmemente à espera de acontecimentos, enquanto o seu suserano fugia para França? Rumores recentes diziam que William FitzAlan regressara a Inglaterra e que se unira à imperatriz em Oxford, e que a sua
presença, mesmo àquela distância, podia agitar as antigas leal-dades entre os seus vassalos anteriores, mas isso era um risco a considerar quando surgisse. Entregar Eaton a outro vassalo podia despertar desnecessariamente da sua sonolência cautelosa a velha aliança. Não. o filho de Ludel havia de ter os seus direitos, mas seria bom averiguar o tutor e certificar-se que este era de confiança, tanto para se manter leal às políticas do seu antigo senhor como para tomar conta dos interesses e das terras do mesmo.
Depois da névoa matinal se ter erguido e ter nascido uma bela manhã, Hugh cavalgou calmamente através da cidade, vagarosamente pela colina acima até à Grande Cruz, abruptamente pela colina abaixo, novamente pelo sinuoso Wyle até ao portão virado para Sudeste, atravessando a ponte de pedra em direcção ao Foregate onde o campanário da igreja da abadia se elevava, sólido, contra um céu azul pálido. O Severn corria rápida mas tranquilamente sob os arcos da ponte, ainda moderado no seu nível de Verão, com as suas duas pequenas ilhas verdejantes bordejadas por uma estreita orla de castanho desbotado, a qual seria novamente coberta quando as primeiras chuvas pesadas trouxessem as tempestades de Gales. Para a esquerda, onde a estrada principal se abria perante ele, os aglomerados de arbustos e árvores erguendo-se das margens do rio mal tocavam a poeirenta berma da estrada, antes de se iniciar a sucessão de pequenas casas e pátios do Foregate. Para a direita, o açude estendia-se entre montes relvados, um ténue florescer de névoa esbatendo a sua superfície prateada, e para lá deste, erguia-se o muro do enclave da abadia, bem como o arco da casa do portão.
Hugh desmontou quando o moço de estrebaria saiu para segurar nas suas rédeas. Era aqui tão conhecido como qualquer outro que usasse o hábito Beneditino e pertencesse ao interior destas paredes.
- Se deseja ver o Irmão Cadfael. meu senhor - disse o moço de estrebaria prestavelmente -. ele partiu para Saint Giles para lhes reabastecer o armário de medicamentos. Mas já partiu há perto de uma hora, logo a seguir ao capítulo. Estará brevemente de volta, se pretender esperar por ele.
- O meu assunto é primeiro com o senhor abade - disse Hugh, reconhecendo sem protesto a suposição de que cada visita sua era, inevitavelmente, na busca de um amigo chegado. - Apesar de que Cadfael irá certamente ouvir as mesmas palavras, se é que já não as ouviu! Os ventos parecem sempre levar-lhe as notícias primeiro, antes destas nos começarem a preocupar a todos.
- Os seus deveres levam-no mais além, mais do que algum de nós alguma vez terá a oportunidade - disse o moço de fretes bem-humorado. - A propósito disso, como é que as pobres almas afligidas de Saint Giles chegam alguma vez a saber o que se passa no resto do mundo? Pois ele raramente regressa sem alguma coscuvilhice, que causa espanto em toda a gente desta parte do Foregate. O Padre Abade está lá em baixo no seu próprio jardim. Esteve enclausurado com o sacristão durante uma hora ou mais por causa de umas contas, mas eu vi o Irmão Benedict deixá-lo há uns minutos - estendeu uma mão acastanhada para acariciar respeitosamente o pescoço do cavalo, porque o cavalo grande e anguloso de Hugh, tão intratável quanto forte, sentia pouco mais do que desprezo por todas as coisas humanas à excepção do seu dono, e até este era visto como um semelhante, que deveria ser respeitado mas mantido no seu lugar. - Ainda não há notícias de Oxford?
Até mesmo dentro do claustro eles não podiam escolher, mas mantinham um ouvido atento às notícias do cerco. O sucesso do cerco podia bem deixar a imperatriz como uma prisioneira e forçar um fim finalmente a esta dissensão que despedaçara a terra.
- Não desde que o rei conseguiu atravessar o vau com os seus exércitos e entrou na cidade. Em breve, poderemos saber algo, se alguém que conseguiu sair da cidade a tempo passar por estes lados. Mas certamente que a guarnição se certificou de que as despensas do castelo estariam bem cheias. Duvido que isto ainda se arraste por muitas semanas.
O cerco é um estrangulamento lento e o Rei Stephen nunca fora conhecido pela sua paciência e tenacidade, e podia começar a achar entediante sentar-se à espera que os seus inimigos começassem a passar fome, partindo em busca de acção mais revigorante noutro lado. Já acontecera anteriormente e poderia acontecer de novo.
Hugh encolheu os ombros ao pensar nos defeitos do seu suserano e desceu o grande pátio na direcção do alojamento do abade para distrair o Padre Radulfus das suas queridas, embora esvaídas, rosas.
O Irmão Cadfael regressara do hospital de Saint Giles e estava ocupado na sua oficina, a separar os feijões que serviriam de semente para o ano seguinte, quando Hugh regressou do alojamento
do abade e entrou no herbário. Reconhecendo o passo ligeiro e leve no cascalho. Cadfael cumprimentou-o sem virar a cabeça.
- O Irmão Porteiro disse-me que estarias aqui. Negócios com o Pai Abade, diz ele. O que se passa? Nada de novo vindo de Oxford?
- Não - disse Hugh, sentando-se confortavelmente no banco que se encontrava encostado à parede de madeira, mais perto de casa. - Estas notícias não vêm de mais longe do que Eaton. Richard Ludel morreu. A viúva titulada enviou um criado com as notícias esta manhã. Têm o rapaz aqui na escola.
Então Cadfael virou-se, com um dos pires de barro, repleto de sementes secas da vinha, na sua mão.
- Pois temos. Então o antepassado dele partiu? Ouvimos dizer que ele estava a enfraquecer. O rapaz não tinha mais de cinco anos quando foi enviado para cá e, muito raramente, vinham buscá-lo para ir a casa. Eu acho que o pai pensava que ele estaria melhor aqui, com alguns companheiros da sua idade, em vez de estar perto da cama de um homem moribundo.
- E sob o domínio de uma avó de temperamento forte, segundo ouvi dizer. Eu não conheço a senhora - disse Hugh pensativamente -, só de reputação. Conhecia o homem, apesar de não ter voltado a saber nada dele desde que trouxemos os nossos feridos de Lincoln. Um bom combatente e uma alma decente, mas severo e não muito falador. Como é o rapaz?
- Perspicaz, aventureiro... Um verdadeiro diabinho, para dizer a verdade, e tão frequentemente metido em sarilhos como fora deles. Inteligente com a escrita, mas prefere estar no recreio. Paul terá a tarefa de lhe dizer que o pai está morto e que ele próprio é o senhor de um feudo. Pode perturbar mais o Paul do que o rapaz. Ele mal conhece o pai. Suponho que não há dúvida quanto à sua posse?
- Nenhuma! Sou todo a favor de deixar tudo como está e Ludel mereceu a sua imunidade. Também é uma boa propriedade, terra fértil e muito dela já preparada para o arado. Bons pastos, prados bem irrigados e bosques e, ao que parece, tem sido bem tratada pelo que tem agora um valor superior ao que tinha há dez anos. Mas eu tenho de conhecer o tutor e certificar-me de que ele trata bem o rapaz .
- John de Longwood - disse Cadfael prontamente. - É um bom homem e um bom marido. Conhecemo-lo bem, já tivemos
negócios com ele e sempre o achámos razoável e justo. Aquela terra encontra-se entre as propriedades da abadia de Eyton-by-Severn num dos lados, e Aston-under-Wrekin do outro lado; e John concedeu sempre livre passagem ao nosso guarda florestal entre os dois bosques, quando era necessário, para lhe poupar tempo e trabalho. É dessa forma que trazemos lenha da nossa parte da floresta Wrekin. Satisfaz-nos a ambos. E nessa zona da floresta Eyton que a de Ludel penetra na nossa e seria loucura abandoná-la. Há dois anos que Ludel deixou tudo nas mãos de John. não vais encontrar problemas aí.
- O abade disse-me - disse Hugh, anuindo satisfeito com esta boa vizinhança - que Ludel lhe entregou o rapaz como pupilo, há quatro anos, caso ele não vivesse o suficiente para ver o filho atingir a idade adulta. Parece que tomou todas as provisões necessárias para o futuro, como se visse a sua própria morte a avançar na sua direcção - e acrescentou, de certo modo severo - A maioria de nós não tem uma visão tão clara, senão existiriam neste momento centenas de pessoas em Oxford a apressarem-se para comprar Missas para as suas almas. Por esta altura, o rei deveria ocupar a cidade. Cairia nas suas mãos. assim que estivesse sobre o vau. Mas o castelo pode aguentar-se até ao final do ano, em caso de emergência, e temos de encarar a realidade, é só uma questão de os fazer morrer à fome. E. se até agora. Robert de Gloucester na Normandia ainda não teve notícias de tudo isto. então os seus espiões são menos capazes do que aquilo que eu os tinha em conta. Se ele sabe como a sua irmã é pressionada, regressará a casa num ápice. Sei de casos em que os sitiantes se transformaram em sitiados, poderá muito bem voltar a acontecer.
- Ele vai demorar algum tempo a regressar - salientou Cadfael. confortavelmente. - E para todos os efeitos, não regressa mais bem fornecido do que quando se foi embora.
O meio-irmão da imperatriz, o qual também era o seu melhor soldado, fora enviado para o ultramar, embora muito contra a sua vontade, para pedir ajuda para a senhora do seu menos do que amado marido, mas constava que o Conde Geoffrey de Anjou estava muito mais interessado nas suas ambições para a Normandia do que na esposa que permanecera em Inglaterra, e fora suficientemente astuto ao persuadir o Conde Robert a ajudá-lo a abater castelo após castelo no ducado, em vez de se apressar a colocar-se ao lado da esposa para a ajudar a obter a
coroa de Inglaterra. Tão cedo quanto -Junho. Robert navegara de Wareham, lutando contra o seu próprio bom senso, mas com a urgente solicitação da sua irmã e com a insistência de Geoffrey, se é que este queria realmente considerar algum embaixador vindo da parte dela. E eis que Setembro terminava, Wareham de novo nas mãos do Rei Stephen e Robert, ainda retido, no ingrato serviço de Geoffrey na Normandia. Não, para ele não seria nada fácil nem rápido regressar para salvar a irmã. A garra de ferro do cerco apertava-se perseverantemente à volta do castelo de Oxford e pela primeira vez. Stephen não mostrava sinais de abandonar o seu objectivo. Nunca anteriormente estivera tão próximo de tornar a sua prima e rival sua prisioneira, e forcá-la a aceitar a sua soberania.
- Ele percebe - considerou Cadfael, fechando a tampa de um pote de pedra sobre as sementes que acabara de seleccionar - o quão perto se encontra de a conseguir ter. por fim, sob o seu poder? Como te sentirias. Hugh, se estivesses no seu lugar e pudesses realmente deitar-lhe a mão?
- Deus me livre! - exclamou Hugh fervorosamente, e fez um esgar ao pensar nisso. - Pois eu não saberia o que lhe fazer! E o pior é que nem o Stephen sabe. se alguma vez chegar a esse ponto. Podia tê-la mantido bem fechada em Arundel no dia que ela desembarcou, se tivesse tido juízo. E o que é que ele fez? Forneceu-lhe uma escolta e enviou-a para Bristol. para se juntar ao irmão! Mas se a rainha alguma vez tiver a senhora em seu poder, isso será outra história. Se ele é um grande combatente, ela é o seu melhor general e sabe como manter a vantagem.
Hugh levantou-se, espreguiçando-se, e uma brisa vinda da porta aberta desalinhou o seu cabelo preto e macio, fazendo também sussurrar os molhos de ervas secas, que baloiçavam pendurados das vigas do tecto.
- Bem, não há forma de acabar com o cerco, teremos de esperar para ver. Soube que te deram finalmente um rapaz para te ajudar no jardim das ervas, é verdade? Reparei que a tua sebe levou um segundo corte, isso foi trabalho dele?
- Foi - Cadfael saiu com ele. e avançaram ao longo do caminho de cascalho por entre os canteiros de ervas, as quais já se encontravam um pouco secas nesta fase final da estação. Era nítido que a sebe que cercava a caixa de um dos lados fora aparada dos rebentos dispersos, que tinham crescido tardiamente no Verão. - O Irmão Winfrid... vê-lo-ás ocupado no pequeno pedaço de terra onde limpámos os feijoeiros, escavando nos terrenos cobertos pela enchente. Um rapaz grande e magro, todo ele cotovelos e joelhos. Terminou há pouco o seu noviciado. Solícito, mas lento. Mas serve. Acho que mo enviaram porque ele revelou ser trapalhão com as mãos, quer com a caneta quer com o pincel, mas uma pá é mais à medida dele. Terá de servir! No exterior do jardim de ervas murado, as pequenas extensões de terra cultivada estendiam-se, e à direita, para lá duma ligeira subida, os campos cultivados de ervilhas estendiam-se até ao Meole Brook, que constituía a fronteira posterior do enclave da abadia. E aí se encontrava o Irmão Winfrid em plena acção enérgica, um jovem alto, solto e articulado, cujo cabelo hirsuto cercava a sua tonsura, de hábito arregaçado até aos joelhos musculados e dois grandes pés metidos em tamancos de madeira, escavando com a pá tanto o emaranhado fibroso dos feijoeiros como as folhas de relva. Lançou-lhes um olhar alegre quando passaram e regressou ao seu trabalho sem quebrar o ritmo. Hugh teve um vislumbre rápido de uma face curtida pelo tempo, com uns olhos azuis, redondos e sinceros.
- Sim, acho que ele deverá servir muito bem - disse ele, impressionado e divertido -, quer com uma pá ou com um machado de batalha. Bem falta me faziam uma dúzia destes no castelo, se quisessem oferecer os seus serviços.
- Ele não te serviria para nada - disse Cadfael firmemente. - Tal como a maioria dos homens grandes, é a alma mais gentil que respira. Deitaria fora a sua espada para poder levantar o homem que tivesse morto. Os pequenos e estridentes terriers é que mostram os dentes.
Emergiram na faixa dos canteiros de flores, para lá do jardim da cozinha, onde as roseiras tinham crescido com pés altos e finos, e começavam a perder as suas folhas. Contornando o rebordo do canteiro, desembocaram no grande pátio, a esta hora da manhã quase deserto, exceptuando um ou dois viajantes a entrarem e a saírem da casa dos hóspedes, e alguma movimentação perto dos estábulos. Assim que contornaram a sebe alta para entrarem no pátio, uma pequena figura lançou-se através do portão da granja, onde os celeiros e os sótãos de armazenamento alinhavam os três lados de um pátio compacto, e começou a correr por entre os corredores do pátio em direcção ao claustro, surgindo um minuto depois na outra extremidade de uma alameda, com olhos baixos e compenetrados, e as suas mãos rechonchudas e infantis, devotamente colocadas no cinto, a imagem da inocência. Cadfael deteve-se, colocando uma mão no braço de Hugh, de modo a evitar confrontar-se com o rapaz demasiado frontalmente.
A criança alcançou a esquina da enfermaria, contornou-a e desapareceu. Houve uma sensação distinta de que ao desaparecer da vista de qualquer observador que estivesse eventualmente no grande pátio, desatara novamente a correr, porque subitamente surgiu um calcanhar nu, o qual desapareceu logo de seguida. Hugh sorriu de soslaio. Cadfael apercebeu-se do olhar do amigo e nada disse.
- Deixa-me arriscar! - disse Hugh, cintilando. - Apanhaste as tuas maçãs ontem e elas ainda não estão dispostas nos tabuleiros do sótão. Felizmente não foi o Prior Robert que o viu a atirar-se a elas, e com o peito do seu decote inchado como uma dama distinta!
- Oh, existem uns quantos de nós que têm um entendimento silencioso. Ele deve ter levado as maiores, mas só quatro. Rouba com moderação. Em parte por obrigação, e em parte porque o gozo da acção consiste em tentar a providência uma e outra vez.
A sobrancelha preta de Hugh ergueu-se assinalando uma interrogação divertida.
- Porquê quatro?
- Porque nós só temos quatro rapazes na escola, e se ele roubar rouba para todos. Existem vários noviços não muito mais velhos, mas quanto a esses ele não tem obrigações. Devem ser eles próprios a roubar ou a passarem sem elas. E sabes - perguntou Cadfael com complacência - quem é aquele jovem membro?
- Não sei. mas estás prestes a surpreender-me.
- Duvido que esteja. Aquele é Senhor Richard Ludel, o novo senhor de Eaton. Apesar de, obviamente - disse Cadfael, contemplando preocupadamente a inocência ensombrada -, ele ainda não o saber.
Richard estava sentado de pernas cruzadas na margem verdejante por cima do açude, mordiscando pensativamente os últimos fragmentos brancos que rodeavam o caroço da sua maçã, quando um dos noviços veio à sua procura.
- O Irmão Paul chama por ti - anunciou o mensageiro. com a austera e complacente cara de uma pessoa consciente da sua própria virtude, e que entrega uma convocação provavelmente ominosa a outro. - Ele está no gabinete. É melhor que te apresses.
- Eu? - perguntou Richard, de olhos redondos, desviando o olhar do gozo que estava a sentir com a maçã roubada. Ninguém tinha um motivo muito grande para recear o Irmão Paul, o senhor dos noviços e das crianças, o qual era o mais gentil e paciente dos homens mas, se possível, mesmo uma reprovação vinda da sua parte era para ser evitada.
- Para que é que ele me quer?
- Tu deves sabê-lo - disse o noviço, com uma suave intenção maliciosa. - Seria pouco provável que ele mo dissesse. Vai e descobre por ti próprio, se realmente não fazes ideia.
Richard lançou o caroço roído para o açude e ergueu-se lentamente da relva.
- No gabinete, dizes tu?
A utilização de um local tão privado e cerimonial representava algo de grave e, apesar de ele não ter consciência de nenhum delito, senão alguns inteiramente desculpáveis que lhe podiam ser atribuídos durante as últimas semanas, competia-lhe manter-se atento. Partiu lenta e pensativamente, arrastando os seus pés descalços na frescura da relva, fazendo deliberadamente pequenos buracos ao longo das pedras do pátio, e apresentou-se adequadamente no pequeno e escuro gabinete, onde os visitantes do mundo exterior poderiam ocasionalmente falar em privado com os seus filhos enclausurados.
O Irmão Paul estava de pé de costas para a única janela, tornando a pequena sala ainda mais escura do que o necessário. O anel de cabelo liso e cortado rente que lhe rodeava a tonsura era ainda preto e forte aos cinquenta; e normalmente, quando se sentava ou ficava de pé. tinha tendência a inclinar-se, devido ao facto de passar tantos anos a lidar com criaturas com metade do seu tamanho e desejando tranquilizá-las em vez de as atemorizar com a sua estatura e porte. Um homem gentil, erudito e indulgente, mas um bom professor apesar de tudo e alguém que conseguia manter os seus pupilos na ordem sem ter de os aterrorizar. O mais velho dos indivíduos destinados à vida conventual que ainda permanecia no convento, e que fora oferecido a Deus quando tinha cinco anos e que agora se aproximava dos quinze e do seu noviciado, contava histórias terríveis do antecessor do Irmão Paul, o qual governara com a chibata e possuía um olhar que podia gelar o sangue.
Richard fez a sua pequena vénia obrigatória e manteve-se direito perante o seu mestre, erguendo para a luz um semblante impenetrável, iluminado por dois olhos azuis esverdeados e de uma inocência radiante. Uma criança activa e magra, pequena para a sua idade, mas ágil e flexível como um gato, com uma espessa crista de caracóis de cabelo castanho claro e uma faixa de sardas douradas, que se estendiam pelas maçãs do rosto e pela cana do seu nariz limpo e direito. Permaneceu de pé com as pernas firmemente separadas, os dedos grandes dos pés enrolando-se no soalho e olhou fixamente para a cara do Irmão Paul. obediente e inocentemente. Paul estava familiarizado com aquele olhar, que não pestanejava.
- Richard - disse ele com suavidade -. vem sentar-te ao meu lado. Tenho algo para te dizer.
Aquilo só por si foi o suficiente para acabar com o seu constrangimento infantil, somente para o substituir com outro mais grave, pois o tom era tão atencioso e indulgente, que profetizava a necessidade de conforto. Porém, o que a súbita e flamejante expressão de franzir o nariz de Richard expressou foi simples confusão. Permitiu-se ser arrastado para o banco e sentar-se aí dentro do círculo do braço do Irmão Paul. os pés descalços mal tocando o chão, e aí se manteve quieto. Podia estar preparado para ser repreendido, mas passava-se aqui algo para o qual ele não estava preparado, e não fazia ideia de como o confrontar.
- Tu sabes que o teu pai combateu em Lincoln pelo rei e que foi ferido? E que desde então tem estado muito debilitado.
Confiante numa juventude robusta, bem alimentado e bem tratado. Richard dificilmente sabia o que pudesse significar estar debilitado, excepto que era algo que acontecia aos velhos.
- Sim, Irmão Paul! - disse, apesar de tudo. numa fina voz obsequiosa, visto que era isso que esperavam.
- Atua avó enviou um criado ao xerife suserano esta manhã. Ele trouxe uma triste mensagem, Richard. O teu pai fez a sua última confissão e recebeu o seu Salvador. Ele está morto, meu filho. Tu és o herdeiro dele, e deves mostrar-te merecedor do seu nome. Na vida e na morte - disse o Irmão Paul -. ele está na mão de Deus. Tal como estamos todos nós.
O olhar de espanto contemplativo não se alterara. Os dedos
dos pés de Richard embateram fortemente contra o chão e as suas mãos agarraram com força a extremidade do banco, sobre o qual estava empoleirado.
- O meu pai está morto? - repetiu, cuidadosamente.
- Sim, Richard. Mais cedo ou mais tarde, toca-nos a todos. Todos os filhos devem um dia ficar no lugar dos seus pais e assumir as responsabilidades deles.
- Então serei eu agora o suserano de Eaton?
O Irmão Paul não cometeu o erro de tomar isto por uma simples expressão de autocongratulação acerca de uma conquista pessoal, considerando-o em vez disso como uma aceitação inteligente daquilo que ele acabara de dizer. O herdeiro deve receber o fardo e o privilégio que o seu antepassado lhe concedeu.
- Sim, tu és o suserano de Eaton, ou serás assim que tiveres a idade devida. Tens de estudar para obteres sabedoria e administrares as tuas terras e os teus servos justamente. O teu pai haveria de esperar isso de ti.
Lutando ainda com os aspectos práticos da sua nova situação, Richard sondou no passado da sua memória uma visão clara dum pai, que agora o desafiava a ser merecedor. Nas suas raras e mais recentes visitas a casa, no Natal e na Páscoa, fora recebido à chegada e à partida num quarto de doentes, o qual cheirava a ervas e a velhice prematura, e era-lhe permitido beijar uma cara cinzenta, austera e a escutar uma voz profunda, indiferente devido à fraqueza, chamando-lhe filho e exortando-o a estudar e a ser virtuoso. Porém, pouco mais havia e até mesmo a cara se obscurecera na sua memória. Percorreu com espanto as recordações que possuía. Nunca tinham sido suficientemente próximos para algo mais íntimo.
- Tu amavas o teu pai e fizeste o teu melhor para lhe agradar, não é verdade, Richard? - incitou, gentilmente, o Irmão Paul. - Deves ainda fazer o que lhe agradava. E deves rezar pela sua alma, o que será também para ti um conforto.
- Terei agora de ir para casa? - perguntou Richard, cuja mente estava mais necessitada de informação do que de conforto.
- Para o funeral do teu pai, certamente. Mas não para lá ficar, não por enquanto. Era o desejo do teu pai que tu aprendesses a ler e a escrever, e a ser devidamente versado nos números. E tu ainda és jovem, o teu tutor tomará conta do teu feudo até tu atingires a maioridade.
- A minha avó - disse Richard, de modo explicativo - não vê qualquer sentido no facto de eu aprender as letras. Ficou zangada quando o meu pai me mandou para cá. Diz que um clérigo letrado é mais do que aquilo que qualquer feudo precisa, e os livros não são uma profissão adequada para um nobre.
- Certamente, ela concordará com os desejos do teu pai. Além disso, trata-se de um dever sagrado, agora que ele está morto.
Richard fez sobressair, desconfiadamente, o lábio.
- Mas a minha avó tem outros planos para mim. Ela quer casar-me com a filha do nosso vizinho, porque a Hiltrude não tem irmãos e será a herdeira tanto de Leighton como de Wroxeter. A avó agora há-de querer isso mais do que nunca - disse Richard simplesmente, olhando ingenuamente para cima, para a cara ligeiramente sobressaltada do Irmão Paul.
Levou alguns momentos a assimilar estas notícias e a relacioná-las com a entrada do rapaz na escola da abadia, quando este ainda mal tinha cinco anos de idade. Os feudos de Leighton e Wroxeter ficavam um de cada lado de Eaton, e podiam bem ser uma perspectiva tentadora, mas Richard Ludel simplesmente não concordara com os planos ambiciosos que a sua mãe tinha para o neto, já que tomara medidas para colocar o rapaz fora do alcance da senhora, e um ano mais tarde nomeara o abade Radulfus guardião de Richard, para o caso de ele próprio ter de renunciar ao cargo demasiado cedo. «O Pai Abade sabia muito bem o que estava para acontecer», pensou o Irmão Paul, «pois ele certamente não aprovaria tal abuso do seu pupilo, o qual ainda se encontrava praticamente na infância.»
Muito cautelosamente, e enfrentando o olhar imperturbável do rapaz, disse com uma expressão séria,
- O teu pai nada disse de quais seriam os planos que tinha para ti, quando fosses completamente crescido. Tais assuntos têm de esperar pela altura adequada e essa ainda não chegou. Não precisas de preocupar a tua cabeça com tais assuntos, ainda durante alguns anos. Estás a cargo do Pai Abade e ele saberá o que é melhor para ti - e acrescentou cuidadosamente, dando lugar à natural curiosidade humana - Conheces esta criança, a tal filha do teu vizinho?
- Ela não é uma criança - declarou Richard desdenhosamente. - É bastante velha. Foi prometida em casamento em tempos, mas o noivo dela morreu. A minha avó ficou satisfeita,
porque depois de esperar alguns anos por ele, a Hiltrude não teria muitos pretendentes, nem mesmo sendo bonita, portanto seria deixada para mim.
O sangue do irmão Paul gelou com as insinuações. Bastante velha provavelmente significaria não mais do que alguns anos depois dos vinte, mas até isso era uma diferença inaceitável. Claro que tais casamentos eram comuns, onde existissem hipóteses de serem obtidas terras e propriedades, mas não podiam certamente ser encorajados. Havia muito que o Abade Radulfus sentia remorsos ao aceitar crianças entregues pelos seus pais ao claustro, e resolvera não admitir mais rapazes até que estes tivessem idade suficiente para escolherem por eles próprios. Não seria certamente mais favorável à entrega de uma criança à disciplina quase sepulcral do matrimónio.
- Bem, podes tirar tais assuntos da tua cabeça - disse ele decididamente. - A tua única preocupação, agora e durante alguns anos, deve ser com as tuas lições e com os passatempos adequados à tua idade. Agora podes voltar para junto dos teus colegas, se desejares, ou ficar aqui sossegadamente durante um bocado, como preferires.
Richard deslizou prontamente para fora do amplexo do braço protector e colocou-se firmemente de pé, frente ao banco, disposto a enfrentar imediatamente o mundo e os seus curiosos companheiros e não via qualquer razão para evitar o encontro, mesmo que por um momento. Ainda tinha de compreender o que lhe acontecera. Conseguia compreender o facto, mas as implicações eram mais lentas a alcançarem a sua inteligência até lhe chegarem ao coração.
- Se houver mais alguma coisa que tu desejes perguntar - disse o Irmão Paul, observando-o ansiosamente -. ou se sentires a necessidade de conforto ou aconselhamento, vem novamente ter comigo e iremos falar com o Pai Abade. Ele é mais sábio do que eu e mais capaz de te ajudar a atravessar esta fase.
Até o poderia ser, mas um rapaz que se encontrava na escola dificilmente se submeteria voluntariamente a uma entrevista com uma personagem tão aterradora. A face solene de Richard transformara-se na expressão de alguém que tentava avançar através de caminhos pouco familiares e espinhosos. Fez a sua vénia de despedida e saiu rapidamente. O Irmão Paul manteve-se a observá-lo da janela até o perder de vista e não tendo
visto nenhuns sinais de angústia iminente, dirigiu-se ao gabinete do Abade para lhe relatar o que é que a Dama Dionísia Ludel planeava para o seu neto.
Radulfus ouviu-o com uma atenção alerta e um franzir de testa pensativo. Unir Eaton com ambos os seus feudos vizinhos era uma ambição compreensível. A propriedade resultante seria um grande poder no condado e, sem dúvida, a formidável senhora considerava-se mais do que capaz de o governar sobre as vontades da noiva, do pai da noiva e do noivo criança. A ganância da terra era uma poderosíssima forca condutora e as crianças eram possessões dispensáveis em troca de um lucro tão desejado.
- Mas nós preocupamo-nos desnecessariamente - disse Radulfus. tirando resolutamente a questão dos seus ombros. - O rapaz está ao meu cuidado e aqui vai ficar. Quaisquer que sejam as suas intenções, ela não será capaz de lhe tocar. Podemos esquecer o assunto. Ela não constitui uma ameaça para Richard nem para nós.
Por muito sábio que fosse, esta foi uma das ocasiões em que o Pai Abade Radulfus iria verificar que as suas previsões estavam totalmente erradas.
CAPÍTULO DOIS
Estavam todos na casa do capítulo, na vigésima manhã de Outubro, quando o tutor do feudo de Eaton se apresentou com uma mensagem da sua senhora e
'pedindo uma audiência. John de Longwood era um homem de cinquenta anos, corpulento e barbudo, com um crânio que começava a ficar calvo e movimentos metódicos e deliberados. Fez uma vénia respeitosa ao abade e entregou a sua incumbência abruptamente e de maneira prática, como alguém desempenhando um dever, mas sem se comprometer a aprovação ou desaprovação.
- Meu senhor, a Dama Dionísia Ludel envia-me com as suas devotas saudações e pede-lhe que lhe envieis de volta, e sob o meu cargo, o seu neto Richard, de modo a que este possa tomar o seu lugar por direito como suserano do feudo de Eaton na sala do seu pai.
O abade Radulfus recostou-se no seu cadeirão e considerou o mensageiro com uma cara impassível.
- Certamente que Richard irá assistir ao funeral do seu pai. Para quando será?
- Amanhã, meu senhor, antes da Missa Solene. Mas essa não é a intenção da minha senhora. Ela quer que o jovem suserano deixe os seus estudos e venha ocupar o seu lugar formal como suserano de Eaton. Devo dizer que a Dama Dionísia sente ser a pessoa adequada para se encarregar dele agora que ele vai receber a sua herança, tal como assegura que ele a há-de receber, sem demoras ou impedimento. Tenho ordens para o levar de volta comigo.
- Temo, senhor tutor - disse o abade com deliberação -, que possa não ser capaz de levar a cabo as suas ordens. Richard Ludel entregou-me os cuidados do seu filho, no caso de ele morrer antes do rapaz alcançar a maioridade. Era seu desejo que o seu filho fosse devidamente educado, para melhor administrar o seu património, quando o viesse a herdar. Eu pretendo cumprir o que empreendi. Richard permanece ao meu cuidado até atingir a idade para assumir o controlo dos seus próprios negócios. Até essa data, estou certo, tu o servirás tal como serviste o pai dele e manterás as terras dele em boas mãos.
- Muito certamente o farei, meu senhor - disse John de Longwood, com mais veemência do que aquela que demonstrara ao entregar a mensagem da sua senhora. - O meu suserano Richard deixou-me tudo desde Lincoln e nunca teve motivo para considerar isso um erro, nem o seu filho virá a ser um perdedor através de mim. Nisso pode confiar.
- E eu confio. Portanto podemos continuar aqui descansados e tomar tão bem conta da educação de Richard como do seu bem-estar, tal como tomarás conta das propriedades dele.
- E que resposta deverei eu levar à Dama Dionísia? - perguntou John, sem qualquer decepção aparente ou relutância.
- Diz à tua Senhora que eu a saúdo reverentemente em Cristo, e que Richard irá amanhã tal como é devido e devidamente escoltado - disse o abade com uma ênfase ligeiramente repreensiva -, mas que eu tenho o encargo sagrado do seu pai para manter a sua tutela até ele ser um homem, e serei fiel aos desejos do seu pai.
- E como tal o direi, meu senhor - disse John com um olhar directo, e fazendo uma profunda reverência, saiu com desenvoltura da casa do capítulo.
O Irmão Cadfael e o Irmão Edmund, o enfermeiro, entraram no grande pátio mesmo a tempo de verem o mensageiro de Eaton montar o seu entroncado garrano galês na casa do portão e sair cavalgando sem pressa em direcção ao Foregate.
- Ali vai um homem que, a não ser que eu esteja muito enganado - observou o Irmão Cadfael de modo solene -, nem por sombras está seriamente desagradado por levar de volta um não redondo. Nem sequer com medo de o entregar. Uma pessoa pode chegar a pensar que ele há-de saborear o momento.
- Ele não está dependente da boa vontade da senhora - disse o Irmão Edmund. - Somente o xerife como suserano pode ameaçar o seu título de posse, até o rapaz ser o seu próprio dono, e John sabe o seu valor. E ela também o sabe, para todos os efeitos, tendo uma cabeça astuta e uma devida apreciação do que é uma boa administração. Pelo bem da paz, ele fará o que ela lhe ordenar, e não tem de apreciar a tarefa, apenas manter a boca fechada.
E John de Longwood era um homem de poucas palavras nas melhores alturas e não seria, provavelmente, para ele sofrimento algum conter a sua dissensão e conservar uma expressão impassível.
- Mas isto não será o fim da história - avisou Cadfael. - Se ela tem um olho ganancioso em Wroxeter e Leighton, não irá desistir tão facilmente e o rapaz é o único meio que ela tem para as obter. Ainda iremos ouvir mais da Dama Dionísia Ludel.
O Abade Radulfus levara a sério o aviso. O jovem Richard foi acompanhado até Eaton pelo Irmão Paul, o Irmão Anselm e o Irmão Cadfael, uma escolta suficientemente robusta para afastar até uma tentativa de rapto, o que era improvável ao extremo. Era muito mais provável que a senhora tentasse usar sobre o rapaz as amáveis persuasões de afecto e os laços de sangue, com lágrimas e lisonjas, e colocá-lo num beco sem saída no campo inimigo, enchendo-o de saudades de casa. Se ela tivesse tais ideias, reflectiu Cadfael, estudando igualmente a expressão de Richard, estaria a subestimar a inocente astúcia da criança. O rapaz era bem capaz de avaliar os seus próprios interesses e tirar partido das vantagens que tinha. Ele era suficientemente feliz na escola, tinha colegas da sua própria idade e não abandonaria de ânimo leve uma vida conhecida e agradável por uma ainda estranha, destituída de irmãos e ameaçada com uma noiva já velha a seus olhos. Sem dúvida, ele valorizava e ansiava pela sua herança, mas era sua e estava segura, quer ele ficasse na escola ou voltasse para casa, embora ainda não lhe fosse permitido governá-la como ele desejasse. Não, seria preciso mais do que lágrimas demasiado maternais e abraços para assegurar a aliança de Richard, especialmente lágrimas e abraços de uma fonte nunca antes conhecida por ser demasiado amável.
Era uma viagem de onze quilómetros ou mais da abadia até ao feudo de Eaton, e pela honra e dignidade do mosteiro de Saint Peter e de Saint Paul, ao comparecer numa ocasião tão solene, foram enviados à frente a cavalo. A Dama Dionísia enviara um lacaio com um robusto pónei galês para o seu neto, talvez como um primeiro passo numa campanha para o alistar como seu aliado, e o presente fora recebido com um prazer ávido, mas por sua vez não haveria necessariamente de ser retribuído da mesma maneira. Um presente é um presente e as crianças
são suficientemente astutas e têm uma percepção suficiente apurada dos motivos dos mais velhos para receberem o que lhes é oferecido sem ser solicitado sem a mínima intenção de retribuírem do modo que é esperado. Richard montou o seu novo pónei orgulhosa e alegremente e, na delicada manhã de orvalho de Outono, ao sentir o prazer de estar liberto da escola durante o dia, quase se esqueceu da razão sombria do seu passeio. O lacaio, um rapaz de pernas compridas de dezasseis anos, galopava alegremente a seu lado e conduzia o pónei enquanto chapinhavam atravessando o vau em Wroxeter, onde séculos atrás os Romanos tinha atravessado o Severn. Nada restava agora da sua curta estada, apenas uma parede lúgubre e partida de cor castanha-avermelhada, erguendo-se contra os campos verdes, e um monte de pedras espalhadas havia muito saqueadas pelos aldeãos para as suas próprias construções. No local do que alguns diziam ter sido uma cidade e uma fortaleza, existia agora um feudo florescente, abençoado com terra fértil e produtiva, e uma igreja próspera que mantinha quatro cónegos.
Cadfael observou-os com algum interesse enquanto passavam, pois este era um dos dois feudos que a Dama Dionísia esperava poder consolidar à propriedade de Ludel casando Richard com a rapariga Hiltrude Astley. Uma propriedade tão encantadora era certamente tentadora. Toda esta extensão de terra no lado norte do rio estendia-se perante eles em ricos prados de água e campos ondulantes, erguendo-se aqui e ali numa graciosa colina com aglomerados de árvores formando estrelas, e derretendo-se simplesmente no primeiro dourado da sua folhagem de Outono. A terra erguia-se na linha do horizonte em direcção ao cume arborizado do Wrekin, uma grande cobertura palpitante de bosque que se estendia pela colina abaixo em direcção ao Severn e lançava uma grande trança da sua escura crina através da terra de Ludel, avançando para o interior dos bosques da abadia de Eyton por Severn. Havia apenas um quilómetro e meio entre a herdade de Eyton, perto do rio, e o feudo de Richard Ludel em Eaton. Os próprios nomes provinham da mesma raiz, apesar do tempo os ter separado um do outro e a paixão normanda pela ordem e formulação ter fixado e rectificado as diferenças.
Enquanto se aproximavam, a sua visão da ampla floresta espinhosa alterava-se e esfumava-se. Quando, por fim, alcançaram o feudo viram-no da sua extremidade e a colina crescera tornando-se uma montanha abrupta, com algumas faces de pedra a pique despontando da negra cabeleira de árvores, perto do cume. A aldeia repousava serenamente nos prados no limiar do sopé, o feudo dentro da sua longa paliçada erguendo-se sobre uma cripta, com a pequena igreja perto dela. Fora originariamente uma capela dependente da igreja da vizinha Leighton, a qual ficava alguns quilómetros a jusante.
Desmontaram já dentro da paliçada e o Irmão Paul pegou firmemente na mão de Richard, assim que os pés do rapaz tocaram no chão, e a Dama Dionísia aproximou-se deslizando pelos degraus, saindo do vestíbulo para os receber e avançando com autoridade sobre o neto, parando para o beijar. De certo modo cauteloso, Richard levantou a cara e submeteu-se ao cumprimento, mas manteve a mão firmemente apertada na de Paul. Com um poder a pedir a sua custódia ele sabia onde se encontrava, com o outro ele não tinha tanta certeza.
Cadfael observou com interesse a senhora e apesar de conhecer a sua reputação, nunca estivera na sua presença. Dionísia era alta e erecta, certamente com não mais do que cinquenta anos e uma saúde vigorosa. Além disso, era uma mulher elegante, embora de um tipo um pouco assustador, com feições severas e claras, e olhos cinzentos e frios. No entanto, esta frieza lançou um aviso incendiado, enquanto se aproximava da escolta de Richard e registava o poder do inimigo. A criadagem saíra atrás dela e o padre da paróquia estava ao seu lado. Não haveria compromissos nesse momento. Talvez mais tarde, quando Richard Ludel estivesse devidamente sepultado e ela pudesse abrir a casa numa hospitalidade fúnebre, ela desse o primeiro passo. O herdeiro dificilmente podia manter-se afastado da companhia da sua avó, neste dia em especial.
Os rituais solenes a Richard Ludel seguiram o seu curso devido. O irmão Cadfael fez uma boa utilização do seu tempo pesquisando a casa do falecido, desde John de Longwood até ao pastor mais jovem. Tudo indicava que o local prosperara sob a administração de John, e os seus homens estavam satisfeitos com a sua parte. Hugh teria bons motivos para deixar as coisas tal como estavam. Alguns vizinhos estavam presentes, entre eles Fulke Astley, o qual mantinha um olhar alerta no que poderia ganhar se o casamento pretendido alguma vez tivesse lugar. Cadfael vira-o uma ou duas vezes em Shrewsbury, um homem bruto e egocêntrico nos seus quarentas, a ficar gordo, com movimentos pesados; não era certamente um adversário à altura daquela mulher inquieta, activa e temperamental, a qual permanecia com uma expressão horrenda sobre o ataúde do seu filho. Ela mantinha Richard a seu lado. com uma mão mais possessiva do que protectora pousada no seu ombro. Os olhos do rapaz tinham-se dilatado de tal forma que pareciam engolir metade da sua cara, tão solenes como a campa que fora aberta para o seu pai, a qual estava agora prestes a ser fechada. A morte distante era uma coisa, a sua presença real outra coisa bem diferente. Até esse momento, Richard não compreendera totalmente como esta privação e separação eram finais.
A mão da avó não lhe largou o ombro, enquanto o cortejo fúnebre regressava ao feudo e os alimentos preparados especialmente para o funeral os esperavam no vestíbulo. Os dedos longos, magros e envelhecidos agarravam firmemente o tecido do melhor casaco do rapaz e ela conduziu-o por entre hóspedes e vizinhos, com correcção mas apresentando-o como homem da casa e como figura que preside nas exéquias do pai. Essa atitude não causou qualquer mal. Richard estava completamente ciente da sua posição, e era bem capaz de se ressentir de qualquer infracção dos seus privilégios. O Irmão Paul observava-o com alguma ansiedade e sussurrou a Cadfael que seria melhor tirar dali o rapaz antes que todos os hóspedes partissem, senão talvez nem o conseguissem tirar dali por falta de testemunhas. Enquanto o padre, bem como alguns dos outros, que não pertenciam à casa, ainda estivessem presentes, ele não poderia ser retido pela força.
Cadfael estivera a observar os hóspedes, que lhe eram pouco conhecidos. Encontravam-se lá dois monges de hábito cinzento da casa de Savigniac de Buildwas, a qual se encontrava a alguns quilómetros de distância a jusante, e para a qual Ludel fora, na altura, um patrono generoso e junto a eles, embora modestamente retirado para um canto, encontrava-se uma personagem de mais difícil identificação. Envergava um hábito monástico preto, o qual estava gasto e bastante puído na bainha, mas uma cabeça de cabelo escuro e não tonsurado via-se através do seu capuz e um cintilar de luz reflectiu-se sob dois ou três objectos metálicos que pendiam sob o seu ombro, os quais se assemelhavam a medalhas de mais do que uma peregrinação. Talvez uma religião itinerante, prestes a instalar um claustro. Havia já uns quarenta anos que Savigny ficava em Buildwas, fundada por Roger de Clinton,
bispo de Lichfield. Certamente que estes três observadores distantes seriam excelentes testemunhas. Perante hóspedes tão veneráveis, não se poderia tentar qualquer tipo de violência.
De modo cortês, o Irmão Paul aproximou-se de Dionísia preparando-se para se desculpar, pois teria de partir levando consigo o seu protegido, mas a senhora antecipou-se, os seus olhos com um brilho de aço e uma voz enganadoramente doce.
- Irmão, imploro-lhe que me deixe ficar com o Richard esta noite. Ele teve um dia cansativo e começa agora a ficar cansado. Não deve partir antes do dia de amanhã - mas ela não disse que o enviaria de manhã e a mão dela manteve-se firme sob o seu ombro. Falara suficientemente alto, de modo a ser ouvida por todos, uma matrona solícita preocupada com o seu jovem.
- Senhora - respondeu o Irmão Paul. tirando o melhor partido de uma situação de desvantagem -, infelizmente, estava prestes a informá-la que temos de partir. Não tenho qualquer autoridade para deixar o Richard ficar consigo e somos esperados para o serviço de Vésperas. Peço-lhe que nos perdoe.
O sorriso da senhora era mel, mas os seus olhos eram penetrantes e frios como facas. Fez mais uma tentativa, talvez mais para mostrar àqueles que escutavam o que se passava do que com alguma esperança de alcançar alguma coisa nesse instante, pois ela sabia que a ocasião a tornava impotente.
- Certamente, o Abade Radulfus compreenderia o meu desejo de ficar com a criança durante mais um dia. O meu próprio sangue, o único que me resta e eu tenho-o visto tão pouco durante estes últimos anos. Deixa-me inconsolável, se o afasta de mim tão cedo.
- Senhora - disse o Irmão Paul, firmemente mas pouco à vontade -, lamento resistir ao seu desejo, mas não tenho escolha. Fiz um voto de obediência ao meu abade, em como trazia Richard de volta comigo, antes do anoitecer. Vem, Richard, temos de ir andando.
Durante um instante, ela manteve a mão sobre o ombro de Richard apertando-o ligeiramente, tentada a agir mesmo publicamente, mas reconsiderou. Esta não era a altura para ficar mal vista, mas para conquistar simpatias. Abriu a mão e Richard avançou, com um ar de dúvida, para longe do seu alcance e para perto de Paul.
- Diga ao senhor abade - disse Dionísia, os seus olhos
punhais, mas a voz ainda jovial e doce - que eu procurarei ter um encontro com ele, muito em breve.
- Dir-lho-ei, senhora- replicou o Irmão Paul.
Ela cumpriu a sua palavra. No dia seguinte, cavalgou até ao enclave da abadia, bem escoltada, montando corajosamente e da forma mais impressionante, para pedir uma audiência ao abade. Esteve fechada com ele durante quase uma hora, mas quando saiu assemelhava-se a um fogo frio de ressentimento e raiva, e lançou-se através do grande pátio como um vento forte e súbito, espalhando noviços inofensivos como se estes fossem folhas levadas pelo vento, e afastou-se novamente de regresso a casa, num trote lento no qual o seu calmo e pequeno cavalo espanhol não sentia qualquer prazer, com os seus lacaios arrastando-se mudos e receosos, bem na retaguarda.
- Ali vai uma senhora que está habituada a levar a dela avante - observou o Irmão Anselm -, mas desta vez, creio eu, deu de caras com um rival à sua medida.
- Contudo, ainda não ficaremos por aqui - disse o Irmão Cadfael secamente, observando o pó a assentar depois da sua partida.
- Não duvido da sua vontade - concordou Anselm -, mas o que pode ela fazer?
- Isso - respondeu Cadfael, com um certo interesse -, sem dúvida, que o saberemos no seu devido tempo.
Só tiveram de esperar dois dias. O representante de leis da Dama Dionísia anunciou-se cerimoniosamente no capítulo, requerendo uma audiência. Um eclesiástico ancião, magro mas vivo de porte e irascível de traços, entrou apressadamente na sala do capítulo com um monte de pergaminhos debaixo do braço, e dirigiu-se à assembleia com uma dignidade fria e repreensiva, mais com pena do que com raiva. Estava espantado, por um clérigo e letrado de tão conhecida integridade e benevolência como o era o abade negar os laços de sangue e recusar entregar Richard Ludel à custódia e cuidados dedicados da sua única parente próxima, privada agora de todos os homens da sua família, e ansiosa por ajudar, guiar e aconselhar o seu neto quanto à sua nova propriedade. Um grande mal estava a ser cometido tanto para a avó como para a criança, ao se negar a necessidade natural destes e ao se frustrar o seu mútuo afecto. E, contudo, uma vez mais o eclesiástico apresentou o pedido solene de que o mal fosse rectificado e que Richard Ludel fosse novamente enviado e regressasse com ele para o seu feudo de Eaton.
O Abade Radulfus mantinha-se sentado com uma expressão paciente e impassível e escutava, cortesmente, o final deste discurso estudado.
- Agradeço-lhe o seu recado - disse, então, suavemente -, foi bem entregue. Não posso, no entanto, alterar a resposta que dei à sua senhora. Richard Ludel. o qual está morto, entregou o seu filho aos meus cuidados, através de carta devidamente escrita e testemunhada. Aceitei esse encargo e agora não posso renunciar a ele. Era o desejo do pai que o filho fosse aqui educado, até atingir a maioridade e assumir o controlo sobre a sua própria vida e assuntos. Isso eu prometi, e tal cumprirei. A morte do pai só torna a minha obrigação mais sagrada e obrigatória. Diga isso à sua senhora.
- Meu Senhor - disse o sacristão, que não esperava outra resposta e já preparado para o próximo passo na sua incumbência -, noutras circunstâncias, tal documento legal pode não servir como único argumento válido num tribunal. Os juizes do rei não prestariam menos atenção ao argumento de uma matrona de posição, viúva e agora despojada do seu filho e totalmente capaz de satisfazer a todas as necessidades do seu neto, para além da natural necessidade que tem do conforto da sua presença. A minha senhora deseja informá-lo de que, se não desistir do rapaz, pretende recorrer à lei para o recuperar.
- Então só posso aprovar as suas intenções - disse o abade, serenamente. - Uma decisão judicial na corte do rei deve ser satisfatória para ambos, visto que nos retira o fardo da escolha. Diga-lhe isso. e diga que eu espero a audiência com a devida submissão. Mas até que tal julgamento seja realizado, devo manter a minha própria jura. Fico satisfeito - concluiu com um sorriso seco e reservado, - que estejamos assim de acordo.
Não havia mais nada que o eclesiástico pudesse fazer para além de aceitar esta inesperada resposta tal como lhe era apresentada e fazer uma vénia enquanto se retirava, tão graciosamente quanto podia. Um ligeiro sussurrar e agitação de curiosidade e espanto perpassara através dos assentos da casa do capítulo, mas o Abade Radulfus suprimiu-o com um olhar e foi só quando os irmãos surgiram no grande pátio e se dispersaram para o seu trabalho, que os comentários e especulação rebentaram abertamente.
- Terá ele sido prudente ao encorajá-la? - espantou-se o Irmão Edmund, atravessando na direcção da enfermaria com Cadfael a seu lado. - E se ela realmente nos levar a tribunal? Um juiz pode muito bem tomar o partido de uma senhora solitária, que quer o seu neto em casa.
- Tem calma - disse Cadfael, placidamente. - Não passa de uma ameaça oca. Ela, tal como qualquer outro, sabe bem que a lei é lenta e dispendiosa nas melhores alturas e esta não é uma das melhores, com o rei afastado e ocupado com assuntos mais urgentes, e metade do seu reino privada de qualquer tipo de justiça. Não, ela esperava conseguir que o senhor abade repensasse e cedesse terreno com receio de uma longa humilhação. Enganou-se no homem. Ele sabe que ela não tem qualquer intenção de se dirigir à lei. É muito mais provável que faça justiça pelas suas próprias mãos e tente raptar o rapaz. Seria preciso uma lei lenta ou uma acção rápida para o recuperar assim que ele estivesse em seu poder, e a força está mais longe do alcance do abade do que do alcance dela.
- É de se esperar - disse o Irmão Edmund, espantado com a sugestão - que ela ainda não tenha usado todas as suas formas de persuasão, se é que o seu último recurso é a violência.
Ninguém poderia determinar com exactidão como é que o jovem Richard tomara conhecimento de cada revés da contenda sobre o seu futuro. Não poderia ter ouvido nada do que se passara na sala do capítulo, nem onde os noviços se apresentam nas reuniões diárias, e nenhum dos irmãos poderia coscuvilhar acerca do assunto com a criança, que se encontrava no centro do conflito. Contudo, era óbvio que Richard sabia de tudo o que se passava e tirava um prazer perverso disso. As discórdias tornavam a vida mais interessante e, aqui dentro do enclave, sentia-se bastante seguro de qualquer perigo real, ao mesmo tempo que apreciava o facto de ser disputado.
- Ele observa as chegadas e partidas de Eaton - disse o Irmão Paul confiando a sua calma ansiedade a Cadfael na paz do jardim das ervas - e é suficientemente astuto para perceber a que se referem. E compreendeu demasiado bem o que se passou no funeral do pai. Eu desejava que ele fosse menos perspicaz, para seu próprio bem.
- Tal como devia manter o seu espírito atento - respondeu
Cadfael amigavelmente.- São os inocentes conscientes que evitam as armadilhas. E a senhora há dez dias que não dá um passo. Talvez se tenha resignado e desistido da luta - mas ele não estava de forma alguma convencido disso. A Dama Dionísia não estava habituada a ser contrariada.
- Talvez - concordou Paul esperançoso -. pois eu ouvi dizer que ela recebeu um certo venerável peregrino e renovou o antigo eremitério no seu bosque para a sua utilização. Requer as suas preces diárias pela a alma do filho. Eilmund contou-nos isso quando nos trouxe a nossa ração de carne de veado. Nós vimos o homem, Cadfael, no funeral. Estava com os dois irmãos de Buildwas. Esteve uma semana alojado com eles, e eles fizeram um relatório muito devoto a seu respeito.
Cadfael endireitou-se com um grunhido do seu canteiro de hortelã, o qual, agora em finais de Outubro, se encontrava espigado e com poucas folhas.
- O tipo que usava a concha de romeiro rendilhada? E a medalha de Saint James? Sim, lembro-me de ter reparado nele. Então ele está a instalar-se entre nós, não é verdade? E escolhe uma cela e um pequeno quadrado de jardim nos bosques, em vez de um hábito cinzento em Buildwas! Eu próprio nunca me senti atraído pela vida solitária, mas já conheci aqueles que conseguem pensar e rezar melhor dessa forma. Já lá vai muito tempo desde que aquela cela foi ocupada.
Ele conhecia o lugar, apesar de raramente passar por lá, tendo o couteiro da abadia uma saúde excelente e pouca necessidade de medicamentos de ervas. O eremitério, abandonado havia muitos anos, encontrava-se num pequeno vale de encostas densamente arborizadas, uma cabana construída de pedra com um quadrado de terreno, agora cercado e cultivado, e que outrora fora demasiado crescido e selvagem. Aí, nesse local, o anel de floresta abraçava tanto o terreno de Eaton como o bosque de Eyton, e o eremitério ocupava um lugar onde a extremidade da propriedade Ludel sobressaía de entre o território vizinho, perto da pequena e apreciada mata de árvores de reduzidas dimensões.
- Vai ficar bastante sossegado por lá - disse Cadfael -, se pretender ficar. Por que nome poderemos conhecê-lo?
- Eles chamam-lhe Cuthred. Um vizinho santo é algo excelente para se ter e parece que já estão a começar a levar-lhe os seus problemas para que ele os possa resolver. Pode ser - aventurou-se optimista o Irmão Paul - que tenha sido ele a domesticar a senhora. Deve ter uma forte influência sobre ela. ou ela nunca lhe teria pedido para ficar, e nestes últimos dez dias, não houve qualquer tipo de movimentação por parte dela. Bem podemos estar todos em dívida para com ele.
- O Padre Andrew disse-me - informou ele depois do visitante ter partido - que desde que os irmãos Savigniac de Buildwas trouxeram este Cuthred para a sua casa, a senhora tem uma grande consideração pelos seus conselhos e governa-se por estes, bem como pelos seus exemplos. O homem já ganhou uma grande fama por santidade. Dizem que ele fez votos rígidos, à velha maneira e que agora nunca deixa a sua cela nem o seu jardim. Mas nunca recusa ajuda ou orações a qualquer um que peça. O Padre Andrew tem por ele muita consideração.
- A via anacoreta não é o nosso caminho - disse o Irmão Francis com grande seriedade -, mas não é nada de prejudicial ter um homem assim tão santo vivendo tão perto num feudo vizinho. Só pode constituir uma bênção.
Assim pensava toda a zona rural, pois a possessão de um tão devoto eremita trazia grande lustre ao feudo de Eaton e a única crítica que alguma vez chegou aos ouvidos de Cadfael a respeito de Cuthred era que ele era demasiado modesto, e que a princípio implorara e mais tarde proibira que soassem no exterior os demasiados pródigos elogios a seu respeito. Não importava que prodígio menor ele fazia: evitara através das suas preces uma doença infecciosa no gado depois de uma das manadas de Dionísia ter adoecido; enviara o seu rapaz para avisar acerca de uma tempestade que se aproximava a qual através do favor das suas intercessões se dissipou sem dano; qualquer que fosse o acto de graça, ele não permitiria que nenhum do mérito lhe fosse atribuído, e tornava-se duro e terrivelmente zangado se a tentativa fosse feita, ameaçando a ira de Deus sobre quem desobedecesse à sua proibição. No espaço de um mês após a sua chegada, a sua disciplina valia mais no feudo de Eaton do que valia a disciplina quer de Dionísia quer do Padre Andrew. e a sua fama proibida de ser divulgada abertamente espalhou-se através de sussurros de vizinhos, como um segredo premiado para ser exultado em privado, mas escondido do mundo.
CAPÍTULO TRÊS
Eilmund, o couteiro de Eyton, vinha por vezes à capela da abadia para informar acerca do trabalho executado ou sobre quaisquer dificuldades com 'que se deparara, e alguma ajuda extra de que pudesse necessitar. Não era frequente ter algo mais do que um pequeno progresso para apresentar, mas na segunda semana de Novembro, surgiu uma manhã com uma expressão de confusão estampada no rosto, o qual estava simultaneamente mal-humorado. Parecia que uma estranha praga se instalara no seu bosque.
Eilmund era um homem atarracado, moreno e peludo com mais de quarenta anos, com um corpo muito poderoso e suficientemente perspicaz de cabeça. Permaneceu firmemente no meio da sala do capítulo, apoiado solidamente sob as suas pernas robustas, como um lutador confrontando o seu adversário, e proferiu em poucas palavras aquilo que tinha para dizer.
- Meu senhor abade, passam-se coisas na propriedade a meu cargo que eu não consigo abarcar. Há uma semana atrás, naquela grande tempestade que tivemos, o riacho que corre entre a nossa pequena mata de árvores e a floresta aberta arrastou consigo alguns arbustos soltos e formou um dique que transbordou e modificou o seu curso, inundando a minha plantação mais recente. E mal eu acabara de o limpar, descobri que a água da inundação escavara parte do banco do meu fosso, um pequeno carreiro a montante, e que a queda da terra atravessara o fosso. Quando o descobri, os veados já tinham entrado na pequena mata. Comeram todos os rebentos da pequena porção de terreno que semeámos há dois anos. Duvido que algumas das árvores morram, e ficará tudo suspenso durante mais uns dois anos, pelo menos, até que elas atinjam o seu crescimento. Estraga o meu planeamento - queixou-se Eilmund, ultrajado pela ruína do seu ciclo de selecção -, para além das perdas actuais.
Cadfael conhecia o local, o orgulho de Eilmund, a parte cultivada da floresta de Eyton. uma pequena mata tão limpa e bem drenada como nenhuma outra no condado, onde o corte regular da madeira de seis ou sete anos deixava entrar a luz em cada plantação, de modo a que a riqueza da cobertura do solo e as flores selvagens era sempre rica e variada. Algumas árvores, como os freixos, rebentavam novamente na base do tronco principal, mesmo por baixo do corte. Outras, como o olmo ou a faia preta, nasciam debaixo do solo rodeando o toro. Alguns dos troncos dos quais Eilmund cuidava, os quais tinham sido diversas vezes semeados, tinham evoluído até criarem as suas próprias matas, formando clareiras com uns dois bons passos de diâmetro. Nenhum desastre natural grave perturbara anteriormente o seu orgulho nas suas habilidades. Não admirava que estivesse tão profundamente entristecido. E a perda para a abadia também era séria, pois a madeira de pequena mata servia para combustível, carvão, cabos de ferramentas, carpintaria e todas as formas de utilização rendiam bons proventos.
- Mas isso não é tudo - continuou Eilmund severamente -, porque ontem, quando fiz as minhas rondas do outro lado da vegetação rasteira, onde o fosso está seco mas suficientemente fundo e a rampa íngreme tal como deveria estar, vi que as ovelhas de Eaton tinham fugido do seu campo através da paliçada solta, mesmo onde o solo de Eaton toca o nosso, e as ovelhas, como sabe, meu senhor, não ligam nada a uma rampa que mantenha afastados os veados, e não há nada de que elas mais gostem para pastar do que as raízes mais novas de freixo. Devastaram a maior parte da nova plantação, antes que eu conseguisse tirá-las de lá. E nem eu nem o John de Longwood sabemos dizer como é que elas passaram através de um buraco tão estreito, mas sabe que se a ovelha mãe mete uma ideia na cabeça, não há como detê-la e as outras seguí-la-ão. Parece que a minha floresta está amaldiçoada.
- Parece-me mais - sugeriu o Prior Robert. olhando severamente sob o seu longo nariz - que tem havido aí pura negligência humana, ou da sua parte ou da parte dos seus vizinhos.
- Padre Prior - respondeu Eilmund com a aspereza de quem conhece o seu valor, e sabe que este é reconhecido pelo único superior que necessita de satisfazer -, em todos os meus anos ao serviço da abadia, nunca houve até hoje nenhuma queixa do meu trabalho. Faço as minhas rondas diariamente e tambem, frequentemente à noite, mas não posso controlar a chuva nem impedi-la de cair. nem posso estar em todo o lado ao mesmo tempo. Nunca antes conheci tal inundação de infortúnios num espaço de tempo tão curto. Nem posso culpar o John de Longwood, que tem sido sempre um vizinho tão bom, como o melhor que se possa desejar.
- Isso é verdade - disse o Abade Radulfus com autoridade. - Temos motivos para estarmos agradecidos pela sua boa vontade e não para agora começarmos a duvidar dela. Nem sequer questiono a tua habilidade e devoção. Anteriormente, nunca houve necessidade disso, e não vejo nenhuma agora. As contrariedades são-nos enviadas de modo que as possamos ultrapassar, e ninguém pode pensar em escapar de tais provações para sempre. Pode-se suportar a perda. Faça o que puder. Mestre Eilmund, e se sentir necessidade de outro ajudante, terá um.
Eilmund. que sempre cumprira sozinho as suas tarefas e que se orgulhava da sua auto-suficiência, agradeceu aquela oferta com um certo ressentimento, mas recusou momentaneamente a oferta e prometeu dar-lhes notícias se surgisse algo mais que mudasse o seu pensar. E assim partiu tão rapidamente como chegara, regressando à sua cabana na floresta, a qual considerava como sua filha, e à sua queixa contra o destino, visto que não conseguia realmente encontrar um agente humano para culpabilizar.
Por alguns meios misteriosos, o jovem Richard ficou a saber do invulgar propósito da visita de Eilmund, bem como tudo o que tinha a ver com a sua avó e com todas aquelas pessoas que tinham o seu trabalho e que viviam à volta do feudo de Eaton. as quais constituíam para ele um interesse absorvente. Por muito sábio e atento que o seu guardião abade pudesse ser, por muito competente que o seu tutor pudesse ser, o tomar conta da sua propriedade dizia-lhe respeito só a ele. Se existisse velhacaria à solta perto de Eaton, ele ansiava por saber a razão e era-lhe mais fácil do que ao Abade Radulfus atribuí-la a simples brincadeira, apesar de ser compreensivelmente considerado que esta se devia à perversidade ou malícia da humanidade, já que tantas vezes se encontrava como acusado de má administração um agente totalmente inocente.
Se as ovelhas tinham encontrado o caminho para a pequena
mata de freixos de Eyton, não através de algum acto obscuro de Deus, mas porque alguém lhes abrira o caminho e as incitara em direcção ao seu banquete desejado, então Richard queria saber quem e porquê. Elas eram, no fim de contas, as suas ovelhas.
De acordo com isso, manteve-se atento todas as manhãs a novas entradas e saídas à hora do capítulo, e ficou curioso quando observou, dois dias depois da visita de Eilmund, a chegada ao portão de um homem jovem, o qual só vira uma vez anteriormente e o qual pedira muito civilizadamente permissão para aparecer na sala do capítulo com uma mensagem do seu senhor. Cuthred. Chegou cedo e teve de esperar, o que ele fez serenamente. Aquilo foi bom para Richard, pois ele não se poderia manter ocioso na escola, mas quando o capítulo terminasse, estaria livre e poderia fazer uma emboscada ao visitante e satisfazer a sua curiosidade.
Cada eremita merecedor do seu sal, tendo feito votos de perseverança que lhe ordenavam que permanecesse daí em diante dentro da sua própria cela e do seu jardim fechado, e tendo dons de previsão e um dever sagrado de os usar para o bem dos seus vizinhos, deve ter um rapaz residente para tratar das suas incumbências e entregar as suas advertências e reprovações. Parecia que o rapaz de Cuthred, o qual quando chegara já se encontrava ao seu serviço, acompanhara-o nas suas recentes divagações de peregrinação, procurando um local de retiro designado para ele por Deus. Entrou na sala do capítulo da abadia com recatada confiança e permaneceu de pé para ser examinado por todos os irmãos curiosos, nada transtornado por tal assalto de olhos vivos e inquisidores.
Do assento retirado que era da sua preferência, Cadfael estudou o mensageiro com interesse. Não poderia ter imaginado um servente mais improvável para um santo anacoreta e popular (no velho sentido celta, que não tinha em conta a canonização), embora na altura não conseguisse dizer onde residia a incongruência. Um jovem rapaz com cerca de vinte anos vestindo uma túnica áspera e calções de tecido castanho, remendados e desvanecidos, não havendo nada aí de excepcional. Era constituído das mesmas linhas leves e secas que Hugh Beringar, mas tinha um palmo de altura a mais e era magro, moreno e gracioso como um corço de cor fulva, controlando os seus longos membros com a mesma beleza angular e animal. Até mesmo a sua quietude composta sustentava implicações de movimentos súbitos e ferozes, como uma criatura selvagem imóvel numa emboscada. O seu correr devia ser rápido e silencioso, o seu saltar longo e alto como o de uma lebre. E a sua cara tinha uma compostura semelhante e um ar de consciência ligeiramente ominosa, encimado por um cabelo ondulante e espesso da cor acobreada das faias. Uma cara longa e oval. testa alta. com um longo nariz direito dilatado nas narinas, de novo como uma coisa selvagem sensível a todas as essências que a brisa lhe trazia, uma boca flexível e ligeiramente torta, que quase sorria mesmo em repouso como que num divertimento secreto e ligeiramente perturbador, e grandes olhos âmbar que se inclinavam para cima nos cantos exteriores, debaixo de sobrancelhas oblíquas e acobreadas. Tapava o brilho flamejante daqueles olhos, mas não os escurecia ou escondia debaixo de pálpebras arqueadas e pestanas acobreadas longas e fartas, como as de uma mulher.
O que faria um velho santo com alguém tão enervantemente efeminado ao seu serviço?
Porém, o rapaz, tendo esperado um longo momento para ser completamente inspeccionado, levantou as suas pálpebras e mostrou ao Abade Radulfus uma cara de inocência cândida e infantil, fazendo-lhe uma vénia muito delicada e respeitosa. Não falaria até lhe ser dirigida a palavra, mas esperava ser interrogado.
- Vens do eremitério de Eyton? - perguntou o abade suavemente, estudando atentamente a cara jovem, calma e quase sorridente.
- Sim. meu senhor. O santo Cuthred envia-lhe uma mensagem através da minha pessoa - a sua voz era clara e calma, projectando-se sonoramente, de modo que parecia o tocar de um sino sob a abóbada.
- Qual é o teu nome? - interrogou Radulfus.
- Hyacinth, meu senhor.
- Conheci um bispo com esse nome - disse o abade e sorriu brevemente, pois a criatura insinuante e morena perante ele não tinha certamente nada de bispo. - Foste assim chamado por sua causa?
- Não, meu senhor. Nunca ouvi falar dele. Foi-me dito em tempos que existia um jovem com esse nome numa velha história e dois deuses caíram sobre ele, e o vencido matou-o. Contaram-me que nasceram flores do seu sangue. Foi um padre que me contou - disse o rapaz inocentemente, e subitamente fez um rápido sorriso de esguelha, olhando à sua volta para a sala do capítulo, consciente do ligeiro movimento de inquietação que despertara nestes peitos de claustro, embora o abade permanecesse imperturbável.
«Nessa velha história», pensou Cadfael estudando-o com prazer e interesse, «tu, meu rapaz, encaixas muito melhor do que no âmbito dos bispos e tu bem o sabes. Ou sabem-no os eremitas, no que a isso se refere. Agora, onde é que ele te foi desencantar e como é que ele te domesticou?»
- Posso dizer a minha mensagem? - perguntou o rapaz ingenuamente, de grandes olhos de um dourado claro, fixos sobre o abade.
- Sabe-la de cor? - inquiriu Radulfus, sorrindo.
- Devo, meu senhor. Não pode existir uma palavra fora do sítio.
- Um mensageiro muito fiel! Sim, podes falar.
- Devo ser a voz do meu senhor, e não a minha própria - disse o rapaz como introdução, e em seguida afundou a sua voz diversos tons abaixo da sua leveza de sino habitual numa surpreendente peça de mímica que fez com que Cadfael olhasse para ele mais perspicaz e cautelosamente do que nunca.
- Ouvi dizer com grande angústia - disse gravemente o eremita por procuração -, tanto do lacaio de Eaton como do couteiro de Eyton, dos infortúnios que de repente perturbaram os bosques. Rezei e meditei e receio grandemente que estes sejam avisos do pior que está por vir, a não ser que algum balanço falso ou desagradável discórdia entre o bem e o mal possa ser emendado. Não tenho conhecimento de qualquer ofensa que paire sobre nós, a não ser a negação do direito da Dama Dionísia Ludel à proximidade do seu neto. O desejo do pai deve ser respeitado, mas o desgosto da viúva pelo seu jovem parente não pode ser esquecido e ela está despojada e sozinha. Suplico-lhe, meu senhor abade, pelo amor de Deus, considere que faça o que fizer é bem feito, pois sinto a sombra do mal a pesar sobre todos nós.
Tudo isto o surpreendente jovem disse numa voz sombria e pesada, que não era a sua e sem dúvida que o truque era impressionante, e fez com que alguns dos irmãos mais supersticiosos se movessem, bocejassem e murmurassem com respeitosa preocupação. E tendo terminado o seu recital, o mensageiro ergueu novamente os seus olhos âmbar e sorriu, como se o propósito da sua missão não o preocupasse de todo. O Abade Radulfus sentou-se em silêncio durante um longo momento, observando de perto o rapaz, que também olhava para ele. serenamente e sem pestanejar, satisfeito por ter concluído o seu recado.
- As próprias palavras do teu senhor?
- Todas, meu senhor, tal como mas ensinaram.
- E ele não te instruiu para argumentares mais sobre o assunto, em seu nome? Não queres acrescentar nada?
Os olhos abriram-se mais de espanto.
- Eu, meu senhor? Como poderia eu? Eu só trato das suas incumbências.
- Não é nada de estranho um anacoreta dar abrigo e serviço a um simplório. É um acto de caridade. Este é obviamente um desses - disse, desdenhosamente, o Prior Robert ao ouvido do abade. A sua voz estava baixa, mas não suficientemente baixa para escapar a umas orelhas tão atentas e quase tão pontiagudas como as de uma raposa, pois o rapaz Hyacinth parecia brilhar e lançava um sorriso de lado. Cadfael. que captara, igualmente, a aragem deste comentário duvidou se o abade concordaria com isso. Parecia-lhe a ele que havia uma inteligência muito astuta por detrás da cara morena do fauno, mesmo que lhe valesse a pena fazer de parvo com isso.
- Bem - disse Radulfus -, podes voltar para o teu mestre. Hyacinth, e levar-lhe os meus agradecimentos pela sua preocupação e cuidado e pelas suas rezas, as quais eu espero que ele continue pelo bem de todos nós. Diz que eu considerei e considero todos os aspectos da queixa da Dama Dionísia contra mim. e que fiz e que continuarei a fazer aquilo que acho ser o adequado. E quanto aos infortúnios que lhe dão tanta ansiedade, nós meros mortais não os podemos controlar ou comandar, apesar da fé os poder ultrapassar. Aquilo que não podemos alterar, devemos suportar. E tudo.
Sem mais palavras, o rapaz fez-lhe uma profunda e graciosa vénia, virou-se e saiu sem pressas da sala do capítulo, magro, de andar leve e movendo-se com a elegância quase insolente de
No grande pátio, quase vazio a esta hora quando todos os
irmãos estavam na capela, o visitante não mostrou pressa de voltar para o seu senhor e demorou-se observando curiosamente o que o rodeava, do alojamento do abade no seu pequeno roseiral até aos pátios dos hóspedes e à enfermaria, e assim rodeou o círculo de edifícios, que iam desde a casa do portão até à longa expansão do lado sul do claustro. Richard, que estava havia alguns minutos deitado à sua espera, emergiu confiantemente da passagem arqueada de sul e avançou na direcção do estranho.
Visto que a intenção era, obviamente, a de o fazer parar. Hyacinth deteve-se obsequiosamente, olhando para baixo com interesse para a cara solene e sardenta que o estudava tão ardentemente.
- Bom dia, jovem senhor! - cumprimentou civilizadamente.
- E o que podes tu querer comigo?
- Sei quem és - disse Richard. - És o servo que o eremita trouxe com ele. Ouvi-te dizer que vieste com uma mensagem dele. Era acerca de mim?
- Ser-me-ia mais fácil responder - respondeu Hyacinth razoavelmente - se soubesse quem vossa senhoria é e por que haveria o meu senhor de se preocupar com peixe miúdo.
- Eu não sou peixe miúdo - disse Richard com dignidade.
- Sou Richard Ludel, o suserano de Eaton e o eremitério do teu senhor fica nas minhas terras. E tu sabes muito bem quem eu sou, pois tu estavas entre os lacaios no funeral do meu pai. E se trouxeste alguma mensagem que me diga respeito, acho que tenho o direito de saber do que se trata. É apenas justo - e Richard espetou o seu pequeno queixo quadrado e mantendo-se plantado sob os pés descalços e afastados, desafiou essa justiça sem pestanejar os seus olhos azuis esverdeados.
Durante um longo momento, Hyacinth retribuiu-lhe o olhar com um olhar fixo, vivo e especulativo.
- Isso é verdade, e eu estou de acordo contigo, Richard. Agora, onde é que podemos falar os dois à vontade? - perguntou depois, num tom enérgico e terra-a-terra, falando de homem para homem e sem qualquer sinal de zombaria.
O centro do grande pátio era, talvez, demasiado evidente para longas confidências e Richard estava suficientemente arrebatado com o inconfundível estranho secular, achando-o uma novidade agradável entre estes ambientes monásticos, e pretendia ficar a saber tudo sobre ele agora que tinha essa oportunidade. Além disso, muito em breve o capítulo estaria a terminar
e não valia a pena estar a chamar a atenção do Prior Robert em tais circunstâncias, ou cortejar a interferência intrometida do Irmão Jerome. Com uma confiança apressada, pegou em Hyacinth pela mão e rebocou-o pelo pátio até ao postigo retirado, que conduzia através do enclave até ao moinho. Aí no relvado situado perto do açude, teriam privacidade, ficando o muro nas suas costas, a relva espessa e flexível debaixo deles e sobre eles, o sol do meio-dia ainda aquecendo-os através do véu diáfano de névoa.
- Pronto! - disse Richard, dirigindo-se ao cerne da questão. - Preciso de ter um amigo que diga a verdade, e existem tantas pessoas a ordenar a minha vida por mim e eu não posso concordar com isso, e como é que eu posso tratar de mim e estar preparado para eles, se não houver ninguém para me avisar do que é que lhes vai na cabeça? Se estiveres do meu lado, eu saberei como lidar. Concordas?
Hyacinth encostou-se confortavelmente contra o muro da abadia, estendendo as suas pernas fortes e bem delineadas, e semicerrou os olhos, iluminados pelo sol.
- Digo-te uma coisa, Richard, de modo a que possas lidar melhor com o que se passa, e para que eu te possa ser mais prestável se souber o porquê da questão. Agora, eu sei o fim desta história até este ponto, e tu sabes o princípio. Que tal se juntarmos as pontas, para vermos o que sai?
Richard bateu palmas.
- De acordo! Então diz-me, primeiro, qual era a mensagem que trouxeste hoje de Cuthred!
Palavra por palavra tal como a entregara no capítulo, mas sem a mímica, Hyacinth contou-lhe.
- Eu sabia! - exclamou a criança, dando um murro com o pequeno pulso na relva espessa. - Eu sabia que tinha de ser algo a meu respeito. Então, a minha avó intrujou ou persuadiu até o seu homem sagrado para que este argumentasse a favor da sua causa, em vez de ser ela própria a fazê-lo. Ouvi falar acerca das coisas que têm acontecido na pequena mata, mas tais coisas acontecem de vez em quando, quem as pode prevenir? Precisas de avisar o teu senhor para não se deixar persuadir demasiado, mesmo que ela se tenha tornado a sua patrona. Conta-lhe a história toda, pois ela não o fará.
- Assim o farei - concordou Hyacinth cordialmente -, quando eu próprio a souber.
- Ninguém te contou porque é que ela me quer em casa? Nem uma palavra do teu senhor?
- Moço. eu só trato das incumbências dele, ele não me faz confidências.
E parecia que o imperturbável servente não tinha pressa nenhuma em regressar da sua missão, pois recostou-se mais confortavelmente contra o musgo do muro e cruzou os seus tornozelos magros. Richard aproximou-se e Hyacinth afastou-se de boa vontade para o deixar acomodar o seu jovem corpo a seu lado.
- Ela quer casar-me - explicou Richard - para deitar as mãos aos feudos que se encontram de ambos os lados das minhas terras. E, ainda por cima, nem é com uma noiva adequada. A Hiltrude é velha, pelo menos vinte e dois anos...
- Uma idade venerável - concordou Hyacinth, gravemente.
- Mas mesmo que ela fosse nova e bonita, eu não a queria. Não quero nenhuma mulher. Não gosto de mulheres. Não vejo qualquer necessidade para elas.
- Então estás no sítio certo para as evitares - sugeriu Hyacinth de modo prestável, e sob as suas longas pestanas acobreadas, os seus olhos âmbar relampejaram de riso.
- Torna-te um noviço, renuncia ao mundo e estarás aqui a salvo.
- Não, isso também não é fácil. Escuta, eu conto-te tudo acerca disso - e a história da ameaça do seu casamento e os planos da sua avó para aumentar o seu pequeno palatino saíram tropeçando loquazmente da sua língua. - Então manténs-te alerta por mim e contas-me tudo acerca do que eu devo saber? Preciso de alguém que seja honesto comigo e que não me esconda tudo, como se eu ainda fosse uma criança.
- Está bem! - prometeu Hyacinth, sorrindo com satisfação. - Serei o vassalo de vossa senhoria no campo de Eaton e servir-lhe-ei de olhos e ouvidos.
- E darás a conhecer a minha posição a Cuthred? Eu não gostaria que ele pensasse mal do Padre Abade, ele só está a fazer o que o meu pai queria para mim. E tu não me disseste o teu nome. Tenho de saber o teu nome.
- O meu nome é Hyacinth. Contaram-me que existiu um bispo com esse nome, mas eu não sou um desses. Os teus segredos estão mais seguros com um pecador do que com um santo, e eu estou mais perto do que o confessionário, nunca me receies.
Tinham-se tornado de certa forma tão familiarizados um com o outro que só o estômago de Richard, relembrando-lhe que era altura do jantar, fez finalmente com que eles se separassem. Richard trotou ao lado do seu novo amigo ao longo do caminho que limitava a parede do enclave até ao Foregate e aí separou-se dele. observando a sua figura ligeira enquanto esta se afastava balançando-se pela estrada principal, antes de se ter virado dirigindo-se a dançar jovialmente, de regresso ao postigo na parede do enclave.
Hyacinth fez os primeiros quilómetros da sua viagem de regresso numa passada larga, rápida e elástica, nem tanto pelo sentido de pressa ou de dever mas pelo puro prazer na facilidade do seu próprio andamento, e no poder e precisão do seu corpo. Atravessou o rio na ponte de Attingham, avançando com alguma dificuldade pelos prados de água do seu afluente, o Tern, e virou para sul de Wroxeter em direcção a Eyton. Quando chegou às orlas da terra arborizada abrandou para uma passada indolente, relutante em chegar quando o caminho era tão agradável. Teria de atravessar terras da abadia para alcançar o eremitério que ficava no estreito nicho de terra de Ludel, penetrando nos bosques vizinhos. Assobiando alegremente, prosseguiu ao longo do caminho que bordejava o riacho, bem perto da extremidade norte da pequena mata de Eilmund. A margem que se erguia mais além, protegendo os bosques cultivados, era alta e íngreme, mas bem tratada e bem coberta com relva e nem nunca ruíra nem o riacho era tão largo ou rápido que tivesse escavado o declive seco. Porém, dessa vez fizera-o, pois via-se o solo nu numa cicatriz íngreme e escura, muito antes de se chegar ao local. Observou-o enquanto se aproximava, mordendo o lábio de modo pensativo e depois, repentinamente, encolheu os ombros e riu-se.
- Quanto mais dano, melhor! - disse ele, meio em voz alta, e passou para onde a margem fora profundamente escavada.
Ainda estava afastado alguns metros quando ouviu um grito abafado que parecia vir de dentro da terra, e depois sons de luta e um uivo de dor e uma rajada de pragas abafadas. Espantado mas reagindo rapidamente, desatou a correr e trepou abruptamente a extremidade do fosso, o qual nesse momento pouco mais era do que uma plácida corrente enlameada, mas que subia visivelmente. Do outro lado da água, existira uma
queda fresca e um velho salgueiro solitário, as suas raízes parcialmente despojadas pela primeira deslocação, curvara-se e caíra através do riacho. Os seus ramos erguiam-se e sussurravam com o estrebuchar de alguém que. meio dentro meio fora de água, parecia estar preso por alfinetes. Um braço procurou agarrar-se às folhas, erguendo-se para tentar mover o tronco, e o esforço provocou um prolongado gemido. Através das folhas malhadas, Hyacinth viu a cara de Eilmund, suja e contorcida.
- Fique quieto! - gritou ele. - Vou descer!
E assim desceu, com a água chegando-lhe às coxas, serpenteando debaixo dos primeiros ramos de modo a conseguir colocar as suas costas sob eles e a tentar erguê-los o suficiente, de modo a que o couteiro aprisionado se conseguisse libertar. Eilmund, gemendo e respirando com dificuldade, cerrou firmemente os punhos contra o solo que se encontrava atrás de si e impeliu-se com força, soltando-se parcialmente do ramo que o prendia pelas pernas. O esforço custou-lhe um grito de dor meio sufocado.
- Está ferido! - Hyacinth pegou nele por debaixo dos braços, com ambas as mãos, arqueando as suas flexíveis costas fortemente debaixo do ramo mais grosso, e a árvore balançou pesadamente. - Agora! Erga-se!
Eilmund tentou novamente, Hyacinth arrastando-se com ele. com um novo resvalamento de terra rolando sob eles, mas o salgueiro moveu-se e caiu com um esguicho. O couteiro permaneceu na terra crua, arfando, os seus pés lavados pela beira do riacho. Hyacinth, lamacento e estriado de verde, ajoelhou-se a seu lado.
- Preciso de ir à procura de ajuda, não consigo levá-lo daqui sozinho. E o senhor vai ficar alguns dias sem conseguir andar pelo seu próprio pé. Pode descansar assim, até eu ir buscar os homens de John de Longwood aos campos? Vamos precisar de mais do que um caniço ou taipal para o transportar. Está pior do que aquilo que eu consigo ver? - mas aquilo que ele conseguia ver era suficiente e a sua cara morena estava abalada e aterrada sob as manchas de lama.
- A minha perna está partida - Eilmund deixou os seus grandes ombros afundarem-se cautelosamente na terra suave e respirou profundamente. - Muita sorte tive por tu teres tomado este caminho, eu estava bem preso e o riacho está a subir novamente. Eu estava a tentar subir a margem. Rapaz - disse ele e riu-se lugubremente, com um som semelhante a um gemido -, tens mais força nesses teus ombros, do que aquela que alguém poderia imaginar só de olhar para ti.
- Pode esperar um pouco assim? - Hyacinth olhou ansiosamente para o declive que se encontrava sob eles, mas apenas pequenos torrões se moviam e deslizavam inofensivamente, e a orla de relva, ervas e raízes não compactadas do topo pareciam suficientemente seguras. - Eu vou a correr. Não me demorarei.
E começou a correr, rapidamente e direito aos campos de Eaton e acenou aos primeiros homens de Eaton que avistou. Estes vieram apressadamente, com um tapume retirado do curral das ovelhas e entre eles, com algum cuidado e com algumas pragas suprimidas e compreensíveis por parte da vítima, levantaram e colocaram Eilmund em cima do tapume e transportaram-no durante quase oitocentos metros até à sua cabana na floresta. Atento ao facto do homem ter uma filha em casa, Hyacinth encarregou-se de entrar primeiro para a avisar, para a sossegar e dar-lhe tempo para preparar a cama do homem ferido.
A cabana ficava num terreno desbravado e aberto na floresta, com um bonito jardim, e quando Hyacinth a alcançou a porta estava completamente aberta e dentro da casa uma rapariga cantava suavemente para si própria, enquanto trabalhava. Estranhamente, e tendo corrido mais depressa para poder chegar até ela antes dos outros, Hyacinth parecia quase relutante em bater à porta ou entrar sem bater, e enquanto hesitava na soleira da porta, o cantar dela cessou e ela saiu para ver de quem eram os passos ligeiros que tinham agitado as pequenas pedras do caminho.
Era pequena mas robusta, e muito garbosa, com um olhar azul e directo, a coloração fresca de uma rosa selvagem e um cabelo de um tom castanho-claro como o grão de carvalho polido, suavemente entrançado. Ela olhou-o com uma curiosidade e uma simpatia cândidas, a qual silenciou pela primeira vez a sempre pronta língua de Hyacinth. Teria de ser ela a falar primeiro, apesar de toda a urgência da sua incumbência.
- Está à procura do meu pai? Ele está fora na pequena mata, encontrá-lo-á onde a margem desce - e os olhos azuis apressaram-se com interesse e aprovação, gostando do que viam. - Tu és o rapaz que veio com o velho eremita da senhora, não és? Vi-te a trabalhar no jardim dele.
Hyacinth assentiu e lembrou-se com um baque do coração o que tinha para lhe dizer.
- Sou, senhora, e o meu nome é Hyacinth. O seu pai vem agora a caminho de casa e tenho pena de o dizer, depois de um infortúnio que, receio, o fará ficar em casa durante algum tempo. Vim à frente para lho dizer antes que eles o tragam. Oh. não se enerve, ele está vivo e com saúde, e em breve ficará bom de novo, dê-lhe tempo. Mas a perna dele está partida. Houve outro deslize, caiu-lhe uma árvore em cima no fosso. No entanto, ficará bom, sem dúvida.
O alarme súbito e a palidez da cara dela não antecederam nenhum grito. Aceitou o que ele disse e sacudindo-se abruptamente, afastou-se imediatamente para começar a abrir as portas interiores e exteriores de modo a permitir a entrada ao tapume e ao seu fardo, e preparou a cama, sobre a qual o iriam deitar, e em seguida, colocou uma panela de água no fogo. E, enquanto andava de um lado para o outro, falava com Hyacinth por cima do seu ombro, muito prática e calmamente.
- Não é a primeira vez que ele aparece com ferimentos, mas nunca com uma perna partida. Caiu uma árvore, dizes tu? Aquele velho salgueiro! Eu sabia que ele estava tombado, mas nunca pensei que pudesse cair. Foste tu que o encontraste? E foste buscar ajuda? - os olhos azuis olharam para ele e sorriram.
- Alguns dos homens de Eaton estavam por perto, a limpar um fosso de drenagem. Vão trazê-lo - estes estavam então a aproximar-se da porta, avançando o mais depressa que conseguiam. Ela dirigiu-se para o exterior para os receber com Hyacinth a seu lado. Parecia que ele tinha algo mais a dizer, algo de diferente e que agora perdera a sua oportunidade, pois pairava silenciosamente mas mantinha-se perto da azáfama de actividade, enquanto Eilmund era transportado para dentro da casa e deitado sob a cama, e lhe descalçavam as botas molhadas bem como as calças e peúgas, muito cautelosamente, mas ainda assim com um coro de gemidos e de imprecações. A sua perna esquerda estava disforme por baixo do joelho, mas não tão grosseiramente que o osso tivesse rasgado a carne.
- Fiquei uma hora ali deitado no riacho - deixou ele escapar, enquanto cerrava os seus dentes de dor enquanto eles o tratavam -, e se não tivesse sido este jovem rapaz eu ainda lá estaria, pois não conseguia mudar o peso e não havia ninguém por perto por quem chamar. Juro por Deus que há mais músculo no moço do que vocês acreditariam. Vocês deviam tê-lo visto a tirar aquela árvore de cima de mim.
Muito estranhamente, as magras e suaves faces de Hyacinth ruborizaram-se sob o seu brilho dourado escuro. Certamente que não era uma cara habituada a corar, mas ainda não perdera essa capacidade.
- Há mais alguma coisa que eu possa fazer por si? Fá-lo-ia de bom grado! Você vai precisar de uma mão experiente para colocar esse osso no lugar. Aí não o posso ajudar, mas faça uso de mim se necessitar de algum recado. Esse é o meu ofício, isso eu posso fazer - disse, com um ar constrangido.
A rapariga, que se encontrava junto à porta, virou-se por um instante, os seus olhos azuis e grandes brilhando na sua cara.
- Ora essa, pois podes, se tiveres a gentileza de acrescentar algo à nossa dívida. Poderias ir à abadia e pedir ao Irmão Cadfael para vir até cá?
- Fá-lo-ei! - disse Hyacinth. tão cordialmente, como se ela lhe tivesse dado um presente. Mas assim que ela se virou para ele, ele hesitou e agarrou-a pela manga durante um instante e sussurrou-lhe urgentemente ao ouvido,
- Tenho de falar contigo sozinho, mais tarde, quando ele estiver tratado e a descansar.
E antes que ela pudesse dizer sim ou não, embora os seus olhos não o estivessem a recusar, já ele se afastara entre as árvores, no longo caminho de regresso a Shrewsbury.
CAPÍTULO QUATRO
A meio da tarde, Hugh foi à procura do Irmão Cadfael com as primeiras notícias, que tinham finalmente saído de Oxford desde que o cerco começara.
- Robert de Gloucester está de volta a Inglaterra - disse ele. - Soube-o através de um armeiro que pensou em sair da cidade a tempo. Uns quantos tiveram sorte e foram avisados. Ele diz que Robert desembarcou em Wareham apesar da guarnição do rei, que trouxe consigo todos os seus navios ilesos e tomou a cidade. O castelo não, por enquanto ainda não. mas já se instalou para o cerco. Conseguiu muito pouco de Geoffrey, talvez um punhado de cavaleiros, não mais.
- Se ele está seguro em terra e segura a cidade - disse Cadfael, objectivamente -. o que é que ele quer do castelo? Pensei que ele iria a toda a velocidade para Oxford para salvar a irmã da ratoeira.
- Ele preferiria atrair Stephen, de modo a que este fosse ter com ele e assim afastá-lo-ia do seu próprio cerco. O meu homem diz que o castelo de Wareham não está lá muito bem guarnecido e eles chegaram a um acordo de tréguas, e enviaram mensageiros ao rei para os substituir numa data fixada (um sabe-tudo, mas verdadeiramente bem informado, apesar de não saber qual o dia previsto para a substituição), ou se ele lhes falhar, eles entregar-se-ão. Isso convém a Robert. Ele sabe que só muito raramente pode surgir algo que atraia Stephen, mas creio que desta vez ele aguentar-se-á. Quando é que poderá voltar a ter uma oportunidade como esta? Até mesmo ele não poderá desperdiçar semelhante oportunidade.
- Não há fim para as loucuras que qualquer homem pode cometer - disse Cadfael tolerantemente. - Para lhe dar o que lhe é devido, a maioria das suas idiotices são generosas, o que é mais do que pode ser dito acerca da senhora. Mas eu
poderia desejar que este cerco em Oxford, fosse o fim disso. Se ele se apoderar do castelo, da imperatriz e de tudo o mais, ela ficará suficientemente segura com ele, e ele poderá ficar mais em perigo. Que mais há de novo a sul?
- Há uma história que fala de um cavalo encontrado a vaguear não muito longe da cidade, nos bosques perto da estrada para Wallingford. Isto já foi há algum tempo atrás pela altura em que todas as estradas para Oxford estavam fechadas e a cidade estava em fogo. Um cavalo arrastando uma sela manchada de sangue, e alforges completamente abertos e esvaziados. Um lacaio que fugira da cidade antes do cerco se fechar reconheceu o cavalo e a couraça como pertencendo a um Renaud Bourchier. um cavaleiro ao serviço da imperatriz e, também, um dos seus íntimos. O meu homem diz que é sabido que ela o enviava para fora da guarnição para tentar romper através das linhas do rei para transportar por ela uma mensagem até Wallingford.
Cadfael parou de mover a enxada que estava a arrastar devagar entre os seus canteiros de ervas, e prestou atenção ao que o amigo dizia.
- Para Brian FitzCount, queres tu dizer?
O suserano de Wallingford era o apoiante bem como companheiro mais fiel da imperatriz, igualando-se apenas ao conde seu irmão, e mantivera o seu castelo por ela, como o posto avançado mais oriental e exposto do seu território, de campanha após campanha e boa e má sorte, mantendo-se indiscutivelmente leal.
- Então porque é que ele não está com ela em Oxford? Ele raramente a deixa sozinha, ou pelo menos é o que dizem.
- O rei deslocou-se muito mais depressa do que qualquer um poderia pensar. E, agora, está afastado dela. Além disso, ela precisa dele em Wallingford, pois se esse se perder, ela fica apenas com uma herdade isolada a oeste e sem saída na direcção de Londres. Ela bem o poderia ter mandado chamar no último momento, considerando a situação tão desesperada em que se encontra agora. E os rumores dizem que ao que parece Bouchier levava com ele um tesouro, com mais jóias do que moedas. Pode muito bem ser isso, pois ele precisa de pagar aos seus homens. Por muito leais ao amor que eles possam ser. têm de viver e de comer e ele já se empobreceu ao serviço da imperatriz.
- Tem-se falado este Outono - disse Cadfael, enrugando a
testa pensativamente - que o Bispo Henry de Winchester tem estado ocupado, tentando atrair Brian para o lado do rei. O Bispo Henry tem dinheiro suficiente para comprar quem quer que seja que esteja à venda, mas duvido que ele consiga fazer uma oferta suficientemente alta para demover FitzCount. Todo este tempo o homem tem-se mostrado incorruptível. Ela não tinha necessidade de tentar superar as ofertas dos seus inimigos pelo Brian.
- Nenhuma. Mas ela bem podia ter pensado, quando a hoste do rei se fechou à sua volta, enviar-lhe uma prova da estima que tem por ele enquanto o caminho ainda estava desimpedido ou podia, pelo menos, ser atravessado por um único homem corajoso. Em tal altura, até lhe podia ter parecido a última hipótese para que tal prova passasse entre eles.
Cadfael pensou nisso e reconheceu a sua veracidade. O Rei Stephen nunca seria uma ameaça para a vida da sua prima por muito amarga que a rivalidade tivesse sido, mas assim que ela fosse feita prisioneira ele seria forçado a mantê-la sob uma forte protecção para salvaguardar a coroa. Nem seria provável que ela alguma vez renunciasse à sua reivindicação, nem mesmo na prisão, e talvez concordasse com termos que a soltassem com facilidade. Amigos e aliados talvez assim se apartassem, e diga-se a verdade, talvez nunca mais se voltassem a ver.
- E um único homem corajoso assim o tentou - reflectiu Cadfael sombriamente. - E o seu cavalo foi encontrado a vaguear, a sua couraça colocada de lado, os seus alforjes vazios e sangue na sela e xairel. Então onde está Renaud Bourchier? Assassinado pelo que transportava, e enterrado algures nos bosques ou atirado para o rio?
- Que mais pode um homem pensar? Eles ainda não encontraram o corpo dele. Em redor de Oxford, os homens têm outras coisas para fazer este Outono para além de esquadrinhar os bosques à procura de um homem morto. Existem já suficientes homens mortos para enterrar após a pilhagem e o incêndio da cidade de Oxford - disse Hugh com uma amargura seca, quase resignado com as mortes fortuitas desta guerra civil caprichosa.
- Quantos dentro do castelo saberiam da sua incumbência? Dificilmente ela alardearia a sua intenção, mas certamente alguém foi informado acerca disso.
- Assim parece e fez muito mau uso do que sabia - Hugh sacudiu-se, levantando dos seus ombros os males distantes que estavam fora do seu mandato judicial. - Graças a Deus que não sou o xerife de Oxfordshire! Os nossos problemas aqui são suficientemente moderados, uma pequena família que briga, o que conduz de vez em quando a uns quantos golpes, alguns roubos, os furtos habituais da estação. Oh, e é claro, o bruxedo que parece ter caído no nosso bosque de Eyton - Cadfael contara-lhe aquilo que o abade talvez pensasse não ser suficientemente importante para dizer; que Dionísia tinha de alguma maneira persuadido o seu eremita a envolver-se na sua disputa e aquele bom homem levara, certamente, muito a sério a sua personificação como uma avó lamentosa, cruelmente privada pela sociedade do seu único neto. - E ele receia que o pior esteja por vir, não receia? Quais serão as próximas notícias a chegarem de Eyton?
Acontecia que as novas notícias de Eyton estavam nesse momento a dirigirem-se na sua direcção, pois rodeando nesse momento o canteiro estava um noviço que fora despachado à pressa pelo Prior Robert, da casa do portão. Vinha a correr, as saias do seu hábito ondulando, e parou, apenas com o fôlego suficiente para conseguir dizer a sua mensagem sem esperar que lha perguntassem.
- Irmão Cadfael, requerem a tua presença imediatamente. O servo do eremita regressou para dizer que necessitam de ti no terreno desbravado de Eilmund, e o Padre Abade diz para levares um cavalo e ires depressa, e que tragas notícias acerca da saúde do couteiro. Houve outra derrocada de terra e uma árvore caiu sobre ele. Tem a perna partida.
Ofereceram a Hyacinth descanso e uma boa refeição pelo seu incómodo, mas ele não podia ficar. Enquanto conseguiu aguentar a passada, manteve-se agarrado ao estribo de cabedal do cavalo de Cadfael e correu com ele, e mesmo quando foi forçado a abrandar e a deixar Cadfael cavalgar o mais rapidamente possível, o jovem trotou persistente e continuamente atrás dele, mais inclinado a voltar para a cabana do bosque, ao que parecia, do que para a cela do seu senhor. Fora um bom amigo para Eilmund, reflectiu Cadfael, mas podia estar a arranjar lenha para se queimar, quando regressasse por fim ao seu dever. Apesar de que Cadfael não conseguia visualizar aquela criatura selvagem e imprevista, por muito que o tentasse, a submeter-se submissamente a reprovação e muito menos a castigo.
Era perto da hora do serviço de Vésperas quando Cadfael desmontou dentro da baixa paliçada do jardim de Eilmund e a rapariga escancarou a porta e saiu, ansiosa por o conhecer.
- Irmão, eu não esperava que viesse tão cedo. O rapaz de Cuthred deve ter corrido como o vento durante todo o caminho! E depois de se ter ensopado no riacho para libertar o meu pai! Hoje. temos bons motivos para estarmos satisfeitos com ele e com o seu senhor, pois podia não ter passado ninguém por lá durante horas.
- Como está ele? - perguntou Cadfael, soltando as tiras da sua bolsa de viajante e dirigindo-se para a casa.
- A perna está partida abaixo do joelho. Fiz com que ele ficasse quieto e apertei-lhe a perna o melhor que pude, mas precisa da sua mão para o fixar. E como ficou meio deitado no riacho durante bastante tempo, antes de o jovem rapaz o encontrar, receio que se tenha constipado.
Eilmund permanecia bem coberto e, agora, sombriamente resignado com a sua incapacidade. Submeteu-se estoicamente ao tratamento de Cadfael, rangendo os dentes e não proferindo outro som, enquanto lhe endireitavam a perna e as extremidades de osso fracturadas eram novamente colocadas no lugar.
- Tu podias ter ficado bem pior - disse Cadfael aliviado. - Uma fractura limpa e poucos danos na carne, apesar de ser uma pena eles terem-te deslocado.
- Podia ter-me afogado de outra maneira - grunhiu Eilmund -, o riacho estava a encher. E é melhor dizeres ao senhor abade que envie homens até lá para tirarem a árvore, antes que tenhamos de novo um lago.
- Dir-lhe-ei, dir-lhe-ei! Agora segura-te bem! Não quero deixar-te com uma perna mais curta do que a outra - pegando-lhe simultaneamente no calcanhar e no peito do pé, endireitou a perna partida firmemente de modo a que esta igualasse a outra. - Agora, Annet, põe as tuas mãos onde estão as minhas e segura desta maneira.
Ela não perdera o seu tempo enquanto esperava; recolhera restos direitos de madeira da oficina de Eilmund e já preparara lã de ovelha para acolchoar e enrolar linho para fazer ligaduras. Os dois concluíram o trabalho na perfeição e Eilmund permanecia deitado de costas sobre a sua manta de lã, e soltou um grande suspiro. A sua cara, sempre fustigada pelo tempo, tinha todavia um rubor sobre as suas bochechas. Cadfael não se sentia muito à vontade com isso.
- Agora se puderes descansar e dormir, tanto melhor. Deixa o senhor abade, e a árvore e tudo o mais que precisa de ser tratado comigo, eu certificar-me-ei de que será tudo tratado. Far-te-ei uma mistura de ervas que te aliviará a dor e te ajudará a dormir - misturou-a e administrou-a a Eilmund, embora este negasse a sua necessidade, contudo bebeu-a sem mais protestos.
- Ele agora irá dormir - disse Cadfael à rapariga, enquanto se retiravam para o quarto exterior. - Mas certifica-te de que ele se mantém quente e coberto durante a noite, pois pode ter uma febre ligeira se apanhar frio. Certificar-me-ei de que terei licença para ir e vir, durante um ou dois dias, até eu achar que está tudo bem. Se ele te der trabalho, aguenta, pois significa que ele não está muito mal.
Ela riu-se ligeiramente, imperturbável.
- Oh, para mim, ele é manso como uma pomba. Rosna, mas nunca morde. Eu sei como lidar com ele.
Começava já a surgir o crepúsculo quando ela abriu a porta da casa. O céu estava ligeiramente dourado devido ao crepúsculo húmido e misterioso, o qual gotejava luz entre os escuros ramos das árvores que rodeavam o jardim. E no relvado perto do portão, Hyacinth sentava-se imóvel, aguardando com a paciência intemporal da árvore contra a qual as suas costas direitas e flexíveis se apoiavam. Mesmo assim a sua quietude sugeria a de um animal selvagem numa emboscada. «Ou talvez», pensou Cadfael mudando de ideias, «um animal selvagem a ser caçado, confinado ao silêncio e à imobilidade de forma a tornar-se invisível aos olhos do caçador».
Assim que viu a porta aberta, colocou-se imediatamente de pé num único movimento flexível, apesar de não ter entrado na paliçada.
Apesar do crepúsculo, Cadfael viu o olhar trocado, que se manteve preso entre o jovem e a rapariga. A cara de Hyacinth estava sem vida e muda como bronze, mas uma cintilação de luz enfraquecida captou o brilho âmbar dos seus olhos, feroz e secreto como o dos gatos, e uma súbita aceleração e a escuridão das suas profundezas reflectiu-se no rubor e no brilho do semblante surpreendido de Annet. Não era grande surpresa. A rapariga era bonita e o rapaz sem dúvida atraente, e ainda mais porque fora de serviço inestimável para o seu pai. E era natural e humano que aquela circunstância tornasse tanto o pai como a filha queridos para ele, não menos do que ele para eles. Nada é mais agradável e gratificante do que a sensação de se ter conferido benefícios. Nem mesmo a gratificação de os receber.
- Vou-me agora embora - disse Cadfael para o ar indiferente e montou suavemente o seu cavalo para não quebrar o feitiço que ainda os prendia. Quando se viu sob o abrigo das árvores, olhou para trás e viu-os de pé tal como os deixara, e ouviu a voz do rapaz clara e solene no silêncio do crepúsculo, dizendo: «Eu preciso de te falar!».
Annet não disse nada. mas fechou suavemente a porta da casa atrás de si e aproximou-se para se encontrar com ele no portão. E Cadfael cavalgou de volta através dos bosques, ligeiramente consciente de que estava a sorrir, apesar de não ter a certeza, depois de reflectir mais sobriamente, de que houvesse alguma coisa por que sorrir num encontro tão invulgar. Pois que poderia existir ali de comum, para aqueles dois se encontrarem e se fixarem por mais do que um momento: a filha do couteiro da abadia, um bom partido para qualquer rapaz, vivo e prometedor deste lado do condado e um estranho, pobre e sem raízes, dependente do patronato de caridade, sem terra, sem arte ou engenho e sem parentes?
Dirigiu-se para tratar e selar o seu cavalo antes de ir em busca do Abade Radulfus, para lhe contar como se encontravam as coisas na floresta de Eyton. Sentia-se por ali um agitar tardio, pois novos hóspedes tinham chegado e tanto estes como as suas montadas estavam a ser acomodados e tratados. Nos últimos tempos, havia pouco movimento no condado; o movimento de Verão, quando tantos mercadores e negociantes se encontravam em constante movimento, diminuíra no sossego do Outono. Mais tarde, quando a festa de Natal se aproximasse, os átrios dos hóspedes estariam novamente repletos de viajantes a apressarem-se para casa e parentes a visitarem parentes, mas nesta fase do ano, não havia tempo para reparar em quem chegava e sentir a natural curiosidade humana, que é sentida por aqueles que juraram estabilidade em relação àqueles que fluem com as marés e as estações.
E surgindo dos estábulos e atravessando o pátio com passadas longas e amplas, com o andamento de um homem confiante e colérico, encontrava-se alguém inquestionavelmente importante no seu próprio domínio, ricamente vestido, elegantemente calçado e envergando uma espada e um punhal. Apressava-se, passando por Cadfael no portão, um homem grande, forte e impulsivo, a sua cara subitamente iluminada quando passou balançando pela tocha situada no portão, a qual de seguida se escureceu igualmente de modo súbito. Uma cara maciça, carnuda e contudo dura. musculosa como os braços dos lutadores, bonita de uma forma brutal, a cara de um homem não raivoso nesse momento, mas sempre pronto para se enfurecer. Fizera a barba, o que tornava o suave poder das suas feições ainda mais assustador, e os olhos que olhavam imperiosamente em frente pareciam desproporcionadamente pequenos, apesar de na realidade não o serem, já que se encontravam quase escondidos pela carne que os rodeava. Pelo seu olhar, um homem que não se devia irritar. Devia ter cinquenta anos de idade, uns anos a mais ou a menos, mas o tempo não suavizara certamente o que se devia ter assemelhado a granito desde o início.
O seu cavalo estava no pátio do estábulo no exterior de uma estrebaria aberta, despido e fumegando ligeiramente como se o xairel tivesse acabado de ser removido, e um lacaio estava a esfregá-lo assobiando-lhe suavemente, enquanto trabalhava. Era este um sujeito magro mas de ar resistente, cujos cabelos começavam a ficar cinzentos, que se vestia com um tecido desvanecido e de manufactura caseira de um castanho monótono e um casaco de cabedal roçado. Deixou o seu olhar deslizar por Cadfael e fez-lhe uma saudação silenciosa, tão acostumado a ser cauteloso com todos os homens estava, que até mesmo um irmão beneditino deveria ser evitado em vez de bem recebido.
Cadfael deu-lhe alegremente as boas noites e desmontou.
- Veio de longe? Aquele com quem me cruzei no portão era o seu senhor?
- Era - disse o homem sem olhar para cima e não disse mais palavras.
- Um estranho para mim. De onde vens? Os hóspedes são escassos nesta época do ano.
- De Bosiet, é um feudo do lado mais afastado de Northampton. alguns quilómetros a sudeste da cidade. Ele é Bosiet, Drogo Bosiet. E o proprietário daquilo e retém um grande pedaço do condado vizinho.
- Está muito longe de casa - disse Cadfael interessadamente.- Para onde se dirige? Vemos muito poucos viajantes de Northamptonshire por estas partes.
O lacaio endireitou-se, olhando mais atenta e inquisidoramente o seu interlocutor, e os seus modos relaxaram um pouco, ao achar Cadfael amável e inofensivo. Porém, apesar disso, não se tornou nem menos sombrio nem mais volúvel.
- Anda a caçar - disse ele com um sorriso de lado.
- Mas não veados - arriscou-se Cadfael a dizer, retomando a inspecção e apanhado pela perversidade do sorriso. - Nem. atrevo-me a dizê-lo, as bestas da coutada.
- Atreve-se e di-lo bem. E atrás de um homem que ele anda.
- Um fugitivo? - Cadfael achou difícil de acreditar. - Tão longe de casa? Um vilão fugitivo tem um tão grande valor tanto em tempo como em despesas?
- Este vale. É valioso e qualificado, mas isso não é o cerne da questão - confidenciou o lacaio, descartando a sua desconfiança e reticência. - Ele tem contas a ajustar com ele. Obtivemos um relatório a seu respeito, o qual indicava que se dirigia em direcção a oeste e a norte, e ele já passou a pente fino todas as aldeias e cidades ao longo deste caminho, arrastando-me por uma estrada, enquanto o seu filho com outro lacaio vai por outra e não pararemos antes de chegarmos à fronteira galesa. Eu? Se pusesse os olhos no tipo de quem ele anda atrás, ficaria cego. Não lhe entregaria de volta um cão que lhe tivesse fugido, quanto mais um homem - a sua voz seca reunira saliva e paixão enquanto falava e, pela primeira vez virou-se completa-mente, de modo que a luz do archote recaiu na sua cara. Uma das suas faces estava marcada com uma contusão negra, o canto da sua boca rasgado e inchado, com o aspecto de uma infecção prestes a surgir.
- A marca dele?- perguntou Cadfael, observando a ferida.
- O selo dele, certamente, é feito com o selo de um anel. Eu não fui suficientemente rápido a agarrar o estribo, quando ele montou, ontem de manhã.
- Posso tratar-te disso - disse Cadfael -, se esperares enquanto vou dar notícias ao meu abade acerca de outro assunto. É melhor deixares-me tratar-te, pois pode ficar complicado. E se pensares - continuou calmamente -, estás suficientemente longe do país dele e suficientemente perto da fronteira para correres por ti. se o quiseres fazer.
- Irmão - respondeu o lacaio com a gargalhada breve e sombria -, tenho uma mulher e filhos em Bosiet. estou algemado. Mas o Brand era jovem e solteiro, e os pés dele são mais leves que os meus. E é melhor que eu coloque esta besta no estábulo e vá esperar o meu suserano, ou ele tratará de me abrir o outro lado da cara.
- Então quando ele estiver deitado e a ressonar - disse-lhe Cadfael, recordando-se subitamente dos seus próprios deveres -, vai até à escadaria do vestíbulo, de modo a que eu possa limpar-te essa ferida.
O Abade Radulfus ouviu com preocupação, mas também com alívio o relatório de Cadfael. Prometeu enviar com a primeira luz do dia ajudantes suficientes para retirarem o salgueiro, limparem o riacho e escorarem a zona superior da margem, e anuiu com uma expressão séria ao saber que a longa espera de Eilmund na água pudesse eventualmente complicar a sua recuperação, apesar da fractura em si ser simples e limpa.
- Eu gostaria - disse Cadfael - de o visitar novamente amanhã e de me certificar que ele fica na cama, pois pode surgir um foco de febre e você conhece-o, Padre, será preciso mais do que os raspanetes da filha para o manter domesticado. Se receber ordens suas, poderá prestar atenção. Tirarei as suas medidas para lhe fazer as muletas, mas não as deixarei perto dele até ter a certeza de que ele está apto para se levantar.
- Tens a minha licença para ires e vires, como achares necessário - disse Radulfus -, e durante o tempo que ele precisar dos teus cuidados. E melhor manter aquele cavalo para tua utilização. As viagens serão demasiado lentas a pé e nós precisamos de ti durante parte do dia, sendo o Irmão Winfrid novo na disciplina.
Cadfael sorriu, lembrando-se.
- O jovem Hyacinth não fez nenhuma viagem lenta. Durante o dia de hoje, percorreu quatro vezes os mesmos quilómetros, para trás e para a frente com a incumbência do seu senhor, e outra vez de lá para cá pelo Eilmund. Só espero que o eremita não tenha levado a mal o facto do rapaz ter estado fora durante tanto tempo.
Cadfael deu por si a pensar que o lacaio de Bosiet podia estar demasiado assustado com o seu senhor para se aventurar a sair à noite, até mesmo quando este estivesse a dormir. Porém, ele acabou por aparecer, deslizando furtivamente para o exterior assim que os irmãos saíram das Completas. Cadfael conduziu-o pelos jardins até à oficina no herbário e aí acendeu uma lanterna para examinar a ferida lacerada, que estragava a cara do homem.
Durante a noite o pequeno braseiro estava tapado com relva, mas não se encontrava extinto, e evidentemente, o Irmão Winfrid fora suficientemente cauteloso para o manter aceso, em caso de necessidade. Ele aprendia com esforço e perseverança e, estranhamente, a delicadeza de toque que lhe faltara com a pena ou o pincel mostrava sinais de desenvolvimento agora que tinha de lidar com ervas e medicamentos. Cadfael destapou o braseiro e soprou-o até este se erguer, colocando de seguida água a aquecer.
- O teu senhor está profundamente adormecido, não está? Não é provável que acorde? Se bem que se acordasse, não precisaria de ti a esta hora. Mas eu serei tão rápido quanto conseguir.
O lacaio sentou-se docilmente, deixando-se levar pelas mãos que lhe prestavam assistência e virando, obedientemente, a cara para a luz da lanterna. A ferida da face começava a desvanecer-se nas extremidades, passando de preto a amarelo, mas o rasgão no canto da sua boca ainda vertia sangue e pus. Cadfael lavou com água as exsudações encrostadas e limpou o golpe com uma mistura de água de betónica e sanícula.
- O teu senhor utiliza livremente os punhos - comentou ele pesarosamente. - Vejo aqui dois cortes.
- Raramente pára ao primeiro - disse o lacaio severamente. - Só faz o mesmo que os da sua condição. Existem alguns piores do que ele, e Deus ajude todos aqueles que os servem. O filho é do mesmo estilo. Que mais poderíamos esperar, quando ele vive assim desde que nasceu? Dentro de um ou dois dias, virá juntar-se a nós, e se até lá ainda não tiver deitado as mãos a Brand, que Deus o impeça!, a caça continuará.
- Bem, pelo menos, se ficares um dia ou dois talvez consiga curar-te este golpe. Qual é o teu nome, amigo?
- Warin. O teu eu sei-o, Irmão, através do Irmão Hospitalário. Isso é fresco e suave.
- Pensaria - disse Cadfael - que o teu suserano teria ido primeiro ao xerife, se tivesse uma verdadeira queixa contra esse seu fugitivo. Apesar de que os membros da corporação da cidade manteriam de bom grado as suas bocas fechadas, mesmo que soubessem alguma coisa, pois uma cidade fica a ganhar ao aceitar um bom artífice. Mas os oficiais do rei são obrigados, de livre vontade ou não, a ajudar um homem a recuperar a sua própria propriedade.
- Nós chegámos aqui muito tarde, como tu viste, para podermos fazer muito até ao dia de amanhã. Ele sabe, demasiado bem, que Shrewsbury é uma cidade de foral régio e pode enganá-lo se a sua presa, o rapaz, chegou até aqui. Ele pretende ir ter com o xerife. Mas já que está aqui alojado, e que considera que a igreja tal e qual como a lei tem a obrigação de o ajudar, ele pediu para apresentar o seu caso amanhã no capítulo e depois disso, partirá para a cidade para procurar o xerife. Não há pedra que ele não levante para descobrir o esconderijo de Brand.
Cadfael estava a pensar, apesar de não o ter dito que talvez ainda houvesse tempo suficiente para enviar uma mensagem a Hugh, de modo que fosse muito difícil encontrá-lo.
- O que é que - perguntou ele - fez o homem para tornar o teu mestre tão vingativo?
- Ora, ele estava sempre a arranjar problemas, sendo um rapaz que se defenderia bem como defenderia os outros, e isso é por si só um crime suficiente para Drogo. Não sei exactamente o que se passou naquele dia, mas o que quer que tenha sido, vi o criado de Bosiet, o qual adoptou o estilo do seu mestre transportado para o feudo numa padiola e ficou de cama durante dias. Aparentemente, algo se passara entre eles e Brand deitara-o por terra, pois quando demos por isso Brand não estava em parte alguma e eles estavam a persegui-lo ao longo de todas as estradas de Northampton. Mas nunca o conseguiram alcançar e aqui estamos nós ainda no seu encalço. Se Drogo alguma vez lhe puser as mãos em cima, irá esfolá-lo, mas não o deixará deficiente, ele é demasiado valioso para se desperdiçar. Mas arrancará cada pedaço do seu rancor da pele do rapaz e depois, espremerá até ao final da sua vida cada tostão de lucro das suas habilidades, certificando-se que este nunca terá hipótese de fugir novamente.
- Então o melhor é ele fazer o melhor que puder agora - concordou Cadfael de modo estranho. - Se os desejos de boa sorte o podem ajudar, ele tem-nos. Agora mantém-te quieto por um momento... pronto! E podes levar este unguento contigo e usá-lo tão frequentemente quanto desejares. Ajuda a sarar a ferida e a baixar o inchaço.
Warin virou o pequeno jarro curiosamente na mão e tocou na face com um dedo.
- O que é que tem dentro, para realizar tal cura?
- Ervas de São João e malmequeres pequenos, ambos bons para feridas. E amanhã, se houver oportunidade, deixa-me ver-te de novo, para saber como estás. E mantém-te longe do alcance dele! - disse Cadfael calorosamente, virando-se para cobrir de novo o seu braseiro com turfa fresca, de modo a que este ardesse calmamente, sem chama e em segurança até de manhã.
Na manhã seguinte, Drogo Bousiet apareceu à hora devida no capítulo, grande, vistoso e autoritário, numa assembleia onde um homem mais sábio se teria apercebido de que a autoridade se encontrava nas mãos do abade e que o controlo deste era absoluto, por mais calma que fosse a sua voz e austera a sua expressão. «Ainda melhor», pensou Cadfael observando-o com atenção e com alguma ansiedade, do seu assento afastado, «Radulfus saberá avaliar o homem e não deixará passar nada cedo demais».
- Meu senhor abade - começou Drogo, batendo com os pés nas lajes do chão. como um touro antes de atacar -, encontro-me aqui em busca de um malfeitor, que atacou e feriu o meu criado e fugiu das minhas terras. É sabido que se dirigiu para Northampton, sendo que o meu feudo, ao qual ele está ligado, se situa a alguns quilómetros a sudeste da cidade, e eu tenho o pressentimento que ele irá tentar chegar à fronteira galesa. Tentámos apanhá-lo durante o caminho, e a partir de Warwick eu tomei pela estrada de Shrewsbury enquanto o meu filho foi por Stafford, e juntar-se-á comigo aqui vindo daquele local. Tudo o que venho perguntar é se algum estranho com a idade dele passou ultimamente por estas partes.
- Presumo - disse o abade após uma longa e pensativa pausa, e observando atentamente a cara poderosa e a atitude arrogante do seu visitante - que este homem seja o seu servo.
- Exacto.
- E você sabe - continuou Radulfus suavemente - que já que deixou de o reclamar há quatro dias, será necessário recorrer aos tribunais para recuperar a sua posse legalmente?
- Meu senhor - disse Drogo com um desprezo impaciente -. poderei bem fazê-lo se o conseguir encontrar. O homem é meu e pretendo apanhá-lo. Tem sido a causa de muitos problemas para mim, mas tem habilitações que me são valiosas e não pretendo ser privado do que é meu. Alei dar-me-á os meus direitos nas terras onde a ofensa surgiu - e assim, sem dúvida, a lei que imperava no seu próprio condado servi-lo-ia, certamente, com um simples acenar da sua cabeça.
- Se nos disser como é o seu fugitivo - disse o abade sensatamente -, o Irmão Denis poderá dizer-lhe de uma vez se tivemos alguém assim como nosso hóspede nos nossos átrios.
- Dá pelo nome de Brand. vinte anos de idade, cabelo escuro avermelhado, esguio mas forte, sem barba...
- Não - disse sem hesitação o Irmão Denis, o hospitalário -. não tive nenhum jovem com uma descrição semelhante aqui alojado, e nern há cinco ou seis semanas. Se ele tivesse encontrado serviço ao longo do caminho com algum comerciante ou mercador transportando bens, como aqueles que trazem três ou quatro criados, então poderia ter passado por estas bandas. Mas um homem jovem e sozinho, não, nenhum.
- Quanto a isso - disse o abade com autoridade, evitando resposta de qualquer outro, apesar de mais ninguém além do Prior Robert se aventurar a falar antes dele -, faria melhor em levar a sua pergunta ao xerife no castelo, pois é mais provável que os oficiais dele saibam de alguns recém-chegados que tenham entrado na cidade do que nós aqui dentro do enclave. A perseguição de criminosos e ofensores. tal como a que descreve, é a função deles e são minuciosos e cuidadosos com ela. Os membros da corporação da cidade são igualmente cautelosos e avaros dos seus direitos e têm boas razões para manterem os olhos abertos e prestarem atenção a estes. Recomendo-lhe que recorra a estes.
- Assim o pretendo, meu senhor. Mas terá em conta o que eu pedi e se alguém aqui se lembrar de alguma coisa acerca desse propósito, informem-me.
- Esta casa fará o que for da sua incumbência a respeito deste assunto e fá-lo-á conscientemente - disse o abade com uma ênfase fria e observou-o com uma cara inescrutável enquanto Drogo Bousiet, apresentando o mais breve dos acenos em tom de despedida, se virou sob os seus calcanhares e saiu apressadamente da casa do capítulo. Nem Radulfus achou necessário tecer qualquer comentário ou emitir alguma conclusão quando o peticionário desapareceu, tal como não viu necessidade de fornecer instruções adicionais para além daquelas que fornecera, através do tom das suas respostas. E, quando passado algum tempo, saíram da casa do capítulo, tanto Drogo como o seu lacaio tinham já montado e cavalgado, sem dúvida, sobre a ponte e em direcção à cidade para procurarem por Hugh Beringar no castelo.
O Irmão Cadfael tencionara fazer uma rápida visita ao herbário e à sua oficina, para ver se tudo estava em ordem e colocar o Irmão Winfrid a trabalhar no que era mais seguro e mais satisfatório para as suas atenções não supervisionadas, e depois partiria de imediato para a cabana de Eilnaund. mas os acontecimentos impediram-no. Pois. nesse dia, houvera uma morte entre os irmãos velhos que se encontravam na enfermaria, e o Irmão Edmund necessitando de um companheiro para fazer com ele uma vigília, depois do homem velho e cansado ter pronunciado as poucas e quase inaudíveis palavras da sua última confissão e recebera a extrema-unção, voltou-se primeiro e confidencialmente para o seu amigo e associado mais próximo, entre os doentes. Tinham realizado juntos e muitas vezes o mesmo serviço em quarenta anos de uma vocação imposta desde a nascença no caso de Edmund, apesar de mais tarde abraçada de livre vontade, mas escolhida após meia vida no mundo exterior por Cadfael. Estavam nos pólos opostos do oblatus e do conversas, e compreendiam-se tão bem, que comunicavam por poucas palavras.
A morte do velho homem foi indolor e ligeira, e toda a substância da sua outrora mente astuta e vigorosa já partira; mas apesar disso foi lenta. A desvanecida chama da vela não bruxuleava, apenas diminuía na quietude perfeita segundo após segundo, tão misteriosamente que acabaram por perder o momento em que a última faísca se retirou, e só se aperceberam que ele falecera quando as marcas da idade começaram a esmorecer-se suavemente da sua cara.
- Assim se vão todos os homens bons! - disse Edmund fervorosamente. - Nunca vi uma morte tão abençoada! Será que Deus me tratará tão gentilmente quando a minha hora chegar?
Trataram juntos do homem morto e juntos saíram para o grande pátio para arranjarem forma de o seu corpo ser transportado para a capela mortuária. E depois, surgiu uma pequena questão relacionada com o estudante mais novo do Irmão Paul, o qual meio apressado falhou um degrau das escadas e rolou meio patamar, ensanguentando os joelhos no cascalho do pátio e teve de ser levantado, lavado e ligado, e despachado para o seu jogo, com uma maçã como recompensa pela sua bravura ao negar corajosamente que estava magoado. Só depois pôde Cadfael regressar ao estábulo e selar o cavalo que lhe estava destinado, e por essa altura era quase hora do serviço das Vésperas.
Conduzia o seu cavalo através do pátio em direcção à casa do portão quando Drogo Bosiet surgiu a cavalo sob a arcada, o vestuário elegante um pouco gasto e poeirento de um dia de frustração e esforço, a sua cara enegrecida e o lacaio Warin uns quantos metros atrás dele, cautelosamente atento, alerta para obedecer ao seu mínimo gesto, mas ao mesmo tempo desejoso de se manter longe da sua vista e da sua mente. Claramente, a caça não produzira nenhuma presa e os caçadores voltavam ao anoitecer de mãos vazias. Nessa noite, Warin teria de se manter longe do alcance daquele braço poderoso.
Cadfael avançou através do portão, tranquilizado e satisfeito, e apressou-se na direcção do seu paciente em Eyton.
CAPÍTULO CINCO
ichard estivera toda a tarde fora com os outros rapazes nos jardins principais da abadia, ao lado do rio, onde as últimas pêras estavam a acabar ser colhidas. Era permitido às crianças ajudar e dentro do razoável prová-las, embora o fruto ainda tivesse de amadurecer depois de ser reunido. Todavia, estas, as últimas, tinham ficado durante tanto tempo na árvore que já eram comestíveis. Fora um dia bem passado, com sol, liberdade e uns quantos chapinhares no rio onde existia pouca profundidade e Richard sentia-se relutante em ter de ir ao Serviço de Vésperas quando este terminasse, e depois do jantar ter de se deitar. Vadiou no final do grupo, contornando o seu caminho ao longo da ribeira e subindo a rampa verde e arborizada arbustos do Foregate. Na calma do final da tarde, nuvens de mosquitos ainda pairavam dançando sobre a água e peixes saltavam, atirando-se sobre estas preguiçosamente. Debaixo da ponte, a corrente parecia quase imóvel, apesar de ele saber que era rápida e profunda. Em tempos, existira aí uma azenha, alimentada pelo fluxo de água.
Edwin. de nove anos de idade, o seu leal aliado, vadiava com ele mas um pouco ansiosamente, deitando um olhar de lado por cima do ombro para ver se a distância entre eles e a cauda da procissão aumentava. Fora elogiado pelo seu estoicismo após a sua queda e pretendia não perder a quente sensação de virtude que o acidente lhe deixara, atrasando-se para o serviço de Vésperas. Todavia, também não podia desertar o seu amigo do peito. Parou, esfregando um joelho ligado que ainda lhe doía um pouco.
- Richard, vem, não podemos vadiar. Olha, eles já estão perto da estrada principal.
- Podemos facilmente apanhá-los - disse Richard, chapinhando os pés na água pouco profunda. - Mas tu continua, se quiseres.
- Não. sem ti não. Mas eu não consigo correr tão depressa como tu. o meu joelho está rígido. Por favor vem, vamos chegar atrasados.
- Não chegarei atrasado, consigo chegar lá muito antes do sino tocar, mas esqueci-me que tu não podes correr tão depressa como de costume. Vai andando, ultrapasso-te antes de chegares à casa do portão. Só quero ver a quem pertence aquele barco, que vai a descer na direcção da ponte.
Edwin hesitou, pesando a sua própria e virtuosa paz de espírito contra a deserção, e pela primeira vez decidiu seguir os seus próprios desejos. O último hábito negro do final do grupo estava nesse exacto momento a subir para a estrada, para desaparecer de vista. Ninguém olhara para trás para chamar aqueles mais indolentes ou para ralhar, pois eles eram deixados com as suas próprias consciências. Edwin virou-se e correu atrás dos seus companheiros tão depressa quanto podia, com o seu joelho endurecido. Do topo da encosta, olhou para trás, mas Richard estava enfiado até aos tornozelos na pequena enseada, atirando habilmente pedras ao longo da superfície da água, provocando uma linha prateada de salpicos. Edwin decidiu-se pela virtude e abandonou-o.
Nunca passara pela mente de Richard manter-se ocioso, mas o seu jogo seduziu-o à medida que cada lançamento melhorava em relação ao anterior, e começou a procurar seixos mais lisos e achatados debaixo do declive, desejoso de conseguir alcançar a margem oposta. E depois um dos rapazes da cidade, que estivera a nadar sob a cobertura verde de relva que trepava pelo muro da cidade, aceitou o desafio e começou a retribuir o chuveiro de pedras dançantes, chapinhando nu no baixio. Tão absorvido estava Richard na competição que se esqueceu com-pletamente do serviço de Vésperas, e somente o leve e distante repicar do sino o despertou, chamando-o para o seu dever. Então deixou cair a sua pedra, abandonou o campo ao seu rival, e avançou apressadamente para a margem, agarrando nos sapatos e correndo como um veado na direcção de Foregate e da abadia. No entanto, partira demasiado tarde. No momento em que chegou sem fôlego à casa do portão, e deslizou cuidadosamente através do postigo para evitar que dessem por ele, ouviu o canto do primeiro salmo vindo do interior da igreja.
Bem, não era assim um pecado tão grande perder um serviço religioso, mas ele não queria acrescentar isso aos seus pecados nesta altura, quando estava tão preocupado com graves questões familiares, fora do claustro. Por sorte, os filhos dos criados e os criados residentes estavam igualmente habituados a participar no serviço de Vésperas, o que aumentava convenientemente o número de rapazes da escola, não se conseguindo dar pela falta de um pequeno ocioso, e se ele conseguisse escapulir-se para o meio do grupo quando este saísse no final da igreja, poder-se-ia pensar que ele estivera entre eles durante todo o tempo. Era o melhor estratagema que conseguia arranjar. Assim, deslizou para dentro do claustro e instalou-se na primeira sala da biblioteca do lado sul, enrolando-se a um canto, de onde podia ver a porta sul da igreja, através da qual sairiam irmãos, hóspedes e rapazes quando o serviço religioso terminasse. E assim que os padres e os monges do coro passassem, não seria difícil penetrar no seu interior e colocar-se entre os outros rapazes sem ser visto.
E aí vinham eles, por fim. o Abade Radulfus, o Prior Robert e todos os irmãos, passando com decoro e saindo para a noite a caminho do seu jantar; e depois a multidão menos disciplinada dos jovens da abadia. Richard deslizava ao longo da parede que o escondia, preparado para se escapar e misturar-se com eles enquanto passavam, quando uma voz familiar e censora se fez ouvir do outro lado da parede, na própria arcada através da qual as crianças deviam passar.
- Silêncio aí! Não quero ouvir tão cedo nenhuma conversa depois da adoração divina! Foi assim que foram ensinados a deixar o lugar sagrado? Coloquem-se em fila, dois a dois e comportem-se com a devida reverência.
Richard ficou petrificado, as suas costas pressionadas contra a pedra fria da parede e recuou subrepticiamente para o canto mais escuro da sala da biblioteca. O que teria acontecido ao Irmão Jerome para deixar a procissão dos monges do coro passar sem ele, ficando à espera nesse local para intimidar e ralhar com as inofensivas crianças? Pois ele permanecia imóvel, apressando-as em pequenas filas e Richard foi forçado a agachar-se para se esconder, deixando as suas esperanças goradas desvanecerem-se no ar nocturno do grande pátio e ficando assim encurralado. Pois de todos os irmãos. Jerome era aquele perante quem ele teria menos vontade de rastejar ignominiosamente para ser acusado e repreendido. E agora os rapazes tinham-se afastado, uns quantos hóspedes da abadia emergindo calmamente da igreja, e Jerome permanecia esperando no mesmo local, pois Richard conseguia ver a sua sombra nas lajes do chão.
E, repentinamente, parecia que ele estivera à espera de um dos hóspedes, pois a sombra foi interceptada e transformou-se numa sombra maior. Richard vira esta segunda sombra passar, um homem grande, musculoso, caminhando em largas passadas, com uma cara sólida e de um castanho avermelhado como uma parede de arenito, vestindo o traje rico da nobreza intermédia, ainda não pertencendo à nobreza ou mesmo aos principais vassalos, mas ainda assim alguém que merecia ser reconhecido.
- Tenho estado à espera, senhor - disse o Irmão Jerome presunçosamente, mas com certo respeito -, para lhe dar uma palavra. Tenho estado a pensar sobre o que nos disse no capítulo, esta manhã. Quer sentar-se comigo em privado durante uns momentos?
Pareceu a Richard que o seu jovem coração se virava ao contrário dentro do seu peito, pois ali estava ele agachado no banco de pedra ao pé de um dos escaparates do Irmão Anselm na sala de biblioteca, mesmo ao lado deles, e sentia-se apavorado pois eles poderiam entrar e apanhá-lo ali. Porém, devido aos seus próprios motivos parecia que o Irmão Jerome preferia manter-se mais retirado, como se não quisesse que alguém ainda dentro da igreja, talvez o sacristão, observasse este encontro enquanto saía, pois puxou o seu companheiro para o interior da terceira sala de biblioteca e sentou-se aí com ele. Richard podia ter contornado o canto e deslizado para fora do claustro agora que o caminho estava livre, mas não o fez. Pura curiosidade humana manteve-o mudo e quieto onde se encontrava, quase sustendo a respiração, um pequeno ser com orelhas muito grandes.
- Este malfeitor de quem falou - começou Jerome -, aquele que assaltou o seu criado e fugiu de si, como é que disse que ele se chamava?
- O nome dele é Brand. Porquê, tem alguma notícia sobre ele?
- Não, certamente nenhuma com esse nome. Creio piamente - disse Jerome virtuosamente - que é o dever de qualquer homem ajudá-lo a reclamar o seu servo, se o puder fazer. Ainda mais é dever da igreja, a qual deveria sempre apoiar a justiça e a lei, e condenar o criminoso e transgressor dessa mesma lei.
Disse-nos que este rapaz é novo, com cerca de vinte anos? Sem barba, com cabelo ruivo escuro?
- Sim, é tudo isso. Conhece tal pessoa? - exigiu Drogo agressivamente .
- Pode não ser o mesmo homem, mas existe um homem novo que corresponde a essa descrição, apenas um, do qual eu tenho conhecimento que veio para estas partes ultimamente. Vale a pena perguntar. Veio para cá com um peregrino, um homem santo que se instalou num eremitério apenas a alguns quilómetros daqui, no feudo de Eaton. Serve o eremita e se ele é realmente o seu servo, deve-se ter imposto àquela boa alma. que com a bondade do seu coração lhe deu trabalho e abrigo. Se assim é, então o correcto será abrir-lhe os olhos para o tipo de servidor que está a albergar. E se não for ele o homem, não há mal nenhum nisso. Mas tenho, certamente, algumas dúvidas acerca dele, da única vez que ele veio até cá com uma mensagem. Tem um tipo de insolência que não combina com o serviço de um santo.
Richard agachou-se imóvel, abraçando os joelhos, as suas orelhas espetadas para captar cada palavra proferida.
- Onde é que se pode encontrar esse eremitério? - exclamou Drogo, com a fome da caçada na sua voz. - E como é que o rapaz se chama?
- Usa o nome Hyacinth. O nome do eremita é Cuthred, qualquer um em Wroxeter ou em Eaton pode dizer-lhe onde ele mora - e Jerome lançou-se de livre vontade na descrição das instruções exactas quanto à estrada, o que o ocupou tão activamente que se tivessem existido pequenos sons vindos da sala vizinha, ele provavelmente não os teria ouvido, mas os pequenos pés descalços de Richard não emitiram qualquer som nas lajes, enquanto deslizava apressadamente pela arcada e fugia pelo pátio abaixo na direcção dos estábulos, ainda carregando os seus sapatos. As pequenas e duras solas dos seus pés penetravam entre os seixos e o cascalho do pátio do estábulo, indiferente ao facto de ser ou não ouvido, agora que se sentia seguro fora da sala de biblioteca estreita e escura, a qual ecoava com o som de uma voz hipócrita e de outra feroz, uma conspirando a captura e ruína de Hyacinth, que era jovem e vivo e seu amigo. Mas eles não o apanhariam, não se Richard o pudesse evitar. Independentemente de quão detalhadas as indicações do Irmão Jerome, aquele homem que queria o seu servo de volta e certamente não lhe faria bem se alguma vez o apanhasse, teria ainda de descobrir o caminho por entre o bosque quando o alcançasse; mas Richard conhecia cada atalho e podia cavalgar rapidamente através do caminho mais curto, se ao menos conseguisse selar o seu pónei e sair calmamente pela casa do portão sem ninguém o ver, antes do inimigo enviar um moço de estrebaria selar o seu próprio cavalo. Pois dificilmente seria ele próprio a fazê-lo, se tivesse um criado que o fizesse por ele. A ideia do bosque à luz crepuscular não amedrontava Richard e o seu coração batia excitadamente com a aventura.
A sorte ou as mercês do céu favoreceram-no, pois era a hora em que todos estavam a jantar e até mesmo o porteiro da casa do portão encontrava-se recolhido tomando a sua refeição, e deixara o portão sem vigia enquanto comia. Se ouvisse o som de cascos e viesse até ao exterior para ver quem poderia ser o cavaleiro, sairia demasiado tarde para ver Richard trepar para a sela e partir a um trote regular ao longo do Foregate, em direcção a Saint Giles. Até se esquecera de que estava com fome e nem se preocupava em ir sem jantar. Para além disso, era um dos favoritos do Irmão Petrus, o cozinheiro do abade, e talvez mais tarde conseguisse convencê-lo a dar-lhe qualquer coisa. Quanto ao que aconteceria quando a sua ausência fosse descoberta, o que certamente aconteceria à hora de deitar mesmo que passasse despercebido ao jantar, não havia qualquer necessidade de pensar nisso agora. O que interessava era encontrar Hyacinth e avisá-lo, se é que ele era de facto este Brand, de que era melhor fugir para se esconder tão depressa quanto pudesse, pois o caçador estava atrás dele e apanhara-lhe o seu rastro. Depois disso, deixar que o que estivesse para acontecer acontecesse!
Virou num caminho amplo para a floresta para além de Wroxeter, caminho esse que Eilmund desimpedira para dar passagem à madeira da pequena mata de árvores e aos postes aparados. Conduzia directamente à cabana da floresta, mas era também o caminho mais rápido para um atalho que continuava até ao eremitério, o primeiro lugar óbvio onde procurar pelo lacaio de Cuthred. Aqui, a floresta era basicamente constituída por carvalhos antigos, e a cobertura do chão constituída pelas camadas profundas das folhas de muitos Outonos faziam com que cavalgar fosse um acto silencioso. Richard refreara a velocidade entre as velhas árvores e o pónei pisava com um prazer delicado o húmus almofadado. No entanto, se não fosse o silêncio, o rapaz nunca teria ouvido as vozes, pois estas eram baixas e absorventes, e manifestamente uma era masculina e a outra feminina, apesar das suas palavras serem demasiado suaves para se conseguirem distinguir, pois falavam apenas uma para a outra. Então ele viu-os, num dos lados do caminho perto do amplo tronco de um carvalho, muito quietos. Não se estavam a tocar, apesar de só terem olhos um para o outro, e o que quer que tivessem para dizer era sério e de grande importância. O grito que Richard lançou ao avistá-los assustou-os e eles afastaram-se como pássaros a esvoaçar.
- Hyacinth! Hyacinth!
Em vez de desmontar, rolou e caiu do seu pónei, correndo para eles enquanto estes se aproximavam.
- Hyacinth, tens de te esconder, tu tens de fugir rapidamente! Eles estão atrás de ti, se tu és o Brand, és o Brand? Chegou um homem à tua procura, diz que anda à caça de um servo fugitivo chamado Brand.
Hyacinth, alerta e a tremer, agarrou-o pelos ombros e caiu de joelhos para o olhar olhos nos olhos.
- Que tipo de homem? Um criado? Ou o próprio homem? E quando foi isto?
- Depois do serviço de Vésperas. Eu ouvi-os a falar, o Irmão Jerome disse-lhe que chegara a esta terra um homem jovem que pode ser aquele de que ele anda à procura. E disse-lhe onde te encontrar e ele vai procurar-te ainda esta noite ao ermitério. Um homem horrível, grande e fanfarrão. Corri o mais depressa que pude para ir buscar o meu pónei, enquanto eles ainda estavam a falar e saí antes dele. Mas tu não deves voltar para Cuthred, deves fugir rapidamente e esconder-te.
Hyacinth abraçou o rapaz, num abraço rápido e tumultuoso.
- És o amigo mais verdadeiro e galante que qualquer homem poderia desejar ter, e nunca receies por mim, porque agora que estou avisado o que me pode prejudicar? Esse é o próprio homem, sem dúvida! Drogo Bosiet tem suficiente estima por mim para desperdiçar tempo, homens e dinheiro para me perseguir e. no fim, não receberá nada pelo seu incómodo.
- Então tu és o Brand? Foste o seu servo feudal?
- Ainda gosto mais de ti - disse Hyacinth - por veres a minha condição de servo feudal como passado. Sim, o nome que me deram há muito tempo foi Brand, eu escolhi Hyacinth para mim próprio. Tu e eu continuaremos a usar esse nome. E agora tu e eu, meu amigo, temos de partir pois o que tu deves fazer agora é regressar rapidamente para a abadia, antes que a luz se apague e antes que dêem pela tua falta. Vem, eu acompanho-te até ao limite do bosque.
- Não! - disse Richard, ultrajado. - Eu irei sozinho, não tenho medo. Tu deves desaparecer, agora, de uma vez por todas!
A rapariga pousara a mão sob o ombro de Hyacinth. Richard viu, no crepúsculo envolvente, os seus olhos brilhantes e alertas, mais com determinação do que com alarme.
- Ele desaparecerá, Richard! Sei de um lugar onde ficará salvo.
- Tu devias tentar ir para Gales - disse Richard ansiosamente, e de certa forma ciumento, pois este era o seu amigo e ele o seu salvador e quase se ressentia por Hyacinth dever uma parte da sua salvação a outra pessoa e, ainda por cima. a uma mulher.
Hyacinth e Annet olharam brevemente um para o outro, sorrindo e os seus sorrisos iluminaram os bosques.
- Não, isso não - disse Hyacinth gentilmente. - Se o que devo fazer é fugir, não o farei para longe. Mas tu não deves recear por mim, eu ficarei suficientemente seguro. Agora monta, meu senhor, e vai-te embora, regressa para onde ficarás seguro ou eu não darei um passo.
Isso fez com que ele se movesse relativamente depressa. Olhou uma vez para trás para lhes acenar, e viu-os de pé como os deixara olhando para ele. Olhou para trás uma segunda vez, para o local onde tinham estado o qual já se encontrava meio escondido entre as árvores, mas eles já tinham desaparecido e a floresta estava silenciosa e tranquila. Richard lembrou-se dos problemas que o aguardavam, e tomou a estrada em direcção a casa, cavalgando num trote ansioso.
Drogo Bosiet cavalgava através do crepúsculo matinal pelos caminhos que o Irmão Jerome lhe indicara ordenando autoritariamente aos aldeãos em Wroxeter que lhe confirmassem se ele estava a seguir o melhor caminho em direcção à cela do eremita Cuthred. Parecia que o homem santo estava ligado a um tipo de reverência comum aos velhos eremitas celtas, pois mais do que um dos interrogados falara dele chamando-lhe Santo Cuthred.
Drogo penetrou na floresta perto do local onde terras Eaton, tal como o pastor que encontrara no campo o informara, passavam junto aos limites de Eyton e uma cavalgada rápida levou-o, quase após um quilómetro e meio de floresta, até uma pequena clareira rodeada por um denso bosque. A casa de pedra no seu centro estava solidamente construída, mas era pequena e tinha um tecto baixo, mostrando sinais de reparação recente, após ter sido negligenciada durante anos. Um pequeno jardim quadrangular rodeava-a, vedado por uma paliçada baixa, e parte do solo do seu interior fora limpo e cultivado. Drogo desmontou na orla da clareira e avançou até à vedação, conduzindo o seu cavalo pela rédea. O silêncio da tarde era profundo, como se não existisse um ser vivo no raio de um quilómetro e meio do local.
Todavia, a porta da cabana estava aberta e lá de dentro surgia um clarão de luz. Drogo amarrou o cavalo e caminhou a passos largos através do jardim, avançando até à porta e ainda sem ouvir nenhum som. entrou. O quarto para onde entrou era pequeno e escuro, contendo pouco mais do que uma cama com colchão de palha, encostada à parede, uma pequena mesa e um banco. A luz bruxuleava no seu interior num segundo quarto, e pela entrada aberta, pois não existia qualquer outra porta, ele viu que este era uma capela. A lamparina encontrava-se sob um altar de pedra, perante uma pequena cruz de prata, colocada num relicário de madeira esculpido e, no altar, perante a cruz pendia um esbelto e elegante breviário numa fita dourada. Dois candelabros de prata, certamente presentes da patrona do eremita, flanqueavam a cruz, um de cada lado.
Perante este altar, encontrava-se ajoelhado e imóvel um homem, um homem alto num hábito negro e grosseiro, com o capuz subido cobrindo-lhe a cabeça. Contra a pequena luz, a figura negra era impressionante, as suas grandes costas erectas direitas como uma lança, a cabeça não curvada mas erguida, a verdadeira imagem de santidade. Até Drogo se manteve calado por um momento, mas não mais que isso. As suas próprias necessidades e desejos eram supremos, as rezas de um eremita podiam e iriam render-se a ele. O entardecer avançava rapidamente para a noite e ele não tinha tempo a perder.
- És tu o Cuthred? - perguntou firmemente. - Na abadia, contaram-me como te podia encontrar.
A figura digna não se moveu, a não ser que tivesse aberto as mãos, as quais permaneciam invisíveis.
- Sim, eu sou Cuthred. O que queres de mim? Entra e fala livremente - respondeu a figura, numa voz contida e não alarmada.
- Tu tens um rapaz que te faz recados. Onde está ele? Quero vê-lo. Podes muito bem ter sido enganado e estar a manter um velhaco, sem o saberes.
E, ao ouvir isto, a figura encapuçada virou-se. a sua cabeça erguendo-se para encarar o estranho, e a luz da lamparina do altar mostrou uns olhos profundos, uma barba farta, um nariz longo, direito e aristocrático, e uma cabeleira negra sob o capuz, e Drogo Bosiet e o eremita da floresta de Eyton olharam um para o outro, fixa e demoradamente.
O Irmão Cadfael estava sentado na cama de Eilmund a cear pão, queijo e maçãs, já que, tal como Richard, perdera o jantar, e muito satisfeito com o seu paciente pouco feliz, quando Annet entrou depois de ter alimentado as galinhas e as ter recolhido no galinheiro, e ter mugido a única vaca que mantinha para uso deles. Ela perdera demasiado tempo com isso, disse-lhe o seu enfadado pai. Qualquer vestígio de febre o deixara, a sua cor estava boa e ele não se sentia muito desconfortável, mas estava mal-humorado devido à sua própria incapacidade, e impaciente por sair e tratar novamente dos seus assuntos, desconfiando dos devidos cuidados a ter com a sua floresta por parte dos substitutos solícitos mas ignorantes que o abade lhe enviara. A brusquidão do seu temperamento era testemunho da sua saúde. E a perna partida estava direita e não sentia muitas dores. Cadfael estava satisfeito.
Annet entrou com ar reservado e riu-se dos resmungos do pai, sem sinais de medo.
- Deixei-te na melhor das companhias, e sabia que havias de ficar bem sem mim durante uma hora, tal como eu ficaria bem sem ti durante uma hora, tal é o velho urso em que te transformaste! Porque haveria de me apressar a regressar, num entardecer tão agradável? Tu sabes que o Irmão Cadfael tem tratado bem de ti, não me roubes um pouco de ar.
Contudo, pelo seu olhar, ela apreciara algo mais poderoso do que uma mera lufada de ar. Havia uma vivacidade brilhante e tremeluzente à volta dela, como se tivesse bebido um vinho forte. Cadfael reparou que o seu cabelo castanho, sempre tão macio, estava atado mas umas quantas madeixas tinham-se soltado sobre os seus ombros, como se ela tivesse feito o seu caminho por entre ramos baixos que lhe puxaram as tranças, e as suas faces estavam rosadas e alegres, combinando com o brilho dos seus olhos. Trouxera agarradas aos sapatos algumas das folhas caídas. Na verdade, a vacaria ficava mesmo no interior do círculo de árvores na extremidade da clareira, mas aí não existiam carvalhos adultos.
- Bem, agora que estás de volta, e como não o queria deixar sozinho sem um ouvinte a quem se queixar - disse Cadfael -, é melhor eu regressar antes que escureça completamente. Faz com que ele não se levante ainda durante alguns dias, rapariga, e eu deixá-lo-ei usar as muletas, assim que ele se portar como deve ser. Pelo menos, não sofreu por ter ficado tanto tempo dentro de água, isso é já por si uma bênção.
- Graças ao rapaz de Cuthred, o Hyacinth - relembrou Annet. Lançou um olhar rápido ao pai e ficou satisfeita, quando ele respondeu cordialmente,
- E isso é a maior das verdades! Naquele dia, foi tão bom para mim como se fosse meu filho, e não me esquecerei disso.
E seria impressão sua ou as faces de Annet ruborizaram-se num rosa mais profundo? Tão bom como um filho para um homem que não tinha um filho para ser o seu braço direito, mas apenas esta filha esperta, confiante, discreta e carinhosa?
- Mantêm a tua cabeça em descanso - avisou Cadfael, erguendo-se - e, em breve, estarás tão saudável como antes. Vale a pena esperar por isso. E não te assustes com a pequena mata, pois aqui a Annet dir-te-á que eles fizeram um bom trabalho ao limpar o riacho e desbastaram o excedente da margem. Aguentar-se-á - prendeu a sua bolsa ao cinto e virou-se para a porta.
- Acompanho-o até ao portão - disse Annet e saiu com ele, penetrando no crepúsculo profundo da clareira, onde o seu cavalo mordiscava placidamente a erva.
- Rapariga - disse Cadfael, colocando um pé no estribo - , desabrochaste como uma rosa esta noite.
Ela estava nesse momento a separar as madeixas soltas e entrelaçando-as. Virou-se e sorriu para ele.
- Mas parece que passei por um arbusto de espinhos - respondeu ela.
Cadfael inclinou-se sob a sela e tirou-lhe, delicadamente, uma folha seca de carvalho do cabelo. Ela olhou para cima para o ver a girar gentilmente o talo entre os dedos e sorriu maravilhada. Foi assim que ele a deixou, agitada, preparada e certamente decidida a partir destemidamente, através de todas as moitas espinhosas que pudessem encontrar-se no seu caminho, como obstáculos entre ela e aquilo que ela queria. Ainda nem sequer estava preparada para confiar no seu pai, mas não se preocupava nada que Cadfael pudesse adivinhar o que estava para acontecer, nem ela temia um final inesperado. O que não significava que os outros não se preocupassem com ela.
Cadfael cavalgou sem pressas, através do bosque escuro. A lua estava já bem alta e brilhava, nos locais onde penetrava através da espessura das árvores. As Completas já deviam ter terminado havia muito e os irmãos estariam a preparar-se para dormir. Os rapazes já deviam estar deitados havia muito tempo. Estava calmo e fresco na floresta, a qual tinha um odor mentolado, e estava agradável para se cavalgar sozinho e calmamente, e ter tempo para pensar em inúmeras coisas que não podiam ser pensadas no alvoroço do dia, por vezes nem durante o santo ofício ou na tranquilidade das orações onde estas pertenciam por direito. Aqui, sob este céu nocturno ainda tenuamente iluminado, existia mais espaço para elas. Cadfael cavalgava com um profundo contentamento de espirito através da zona mais densa do bosque, vislumbrando sob a claridade ténue de luz os campos abertos que surgiam perante ele.
Foi o movimento sussurrante à sua esquerda, por entre as árvores, que o despertou do seu devaneio. Entre as trevas, algo vagamente pálido movia-se a seu lado, e ele ouviu o ligeiro tinir do freio e rédea de um cavalo. Um cavalo, sem cavaleiro, vagueando perdido, mas selado e com rédeas, pois os pequenos sons metálicos soavam claramente. Não saíra sem cavaleiro quando partira do seu estábulo. Nos interstícios do luar que se projectavam entre os ramos, a forma pálida brilhava de modo indefinível, aproximando-se cada vez mais do caminho. Cadfael já vira aquele ruão ligeiro, naquela mesma tarde, no grande pátio da abadia.
Desmontou apressadamente e chamou-o, avançando para agarrar a rédea solta e passar-lhe a mão sobre a sua testa malhada. A sela ainda estava no lugar, mas as tiras que seguravam um pequeno rolo por trás da sela tinham sido cortadas. E onde estava o cavaleiro? E porque, de facto, partira de novo depois de ter regressado de mãos vazias de um dia de caça? Ter-lhe-ia alguém fornecido uma pista para o atiçar novamente atrás da sua presa, até mesmo de noite?
Cadfael deixou os arbustos e voltou ao caminho, onde tinha primeiro vislumbrado a forma pálida a mexer-se. Aqui nada parecia ter sido perturbado, o emaranhado de ramos não revelava nenhuma passagem de rompante. Esforçou-se um pouco para emergir novamente no caminho e aí, debaixo dos arbustos na relva alta, de tal modo escondido que quase passara por ele sem o ver, encontrou o que receava encontrar.
Drogo Bosiet estava estendido de cara para baixo, afundado na madura erva outonal e, apesar da cor escura do seu vestuário, Cadfael conseguia distinguir a mancha ainda mais escura que era o seu sangue, esvaindo-se debaixo da sua omoplata esquerda, onde o punhal que o matara fora cravado e retirado.
CAPÍTULO SEIS
Numa hora tão tardia havia poucas hipóteses de conseguir ajuda imediata, quer na abadia quer no castelo, e não podia fazer nada quanto a este cenário assustador, aqui na floresta. Tudo o que Cadfael podia fazer assim sozinho era ajoelhar-se ao lado do corpo caído, tentando sentir uma batida cardíaca ou uma pulsação e escutar algum ténue sinal de respiração. Apesar da carne de Drogo estar ainda quente e flexível ao toque, não respirava e o coração no seu grande peito, o qual fora certamente perfurado pela punhalada dada por detrás, estava parado como uma pedra. Não devia estar morto havia muito tempo, mas a erupção do sangue que jorrara com a lâmina parara de fluir e começava a secar nos rebordos, transformando-se numa crosta escura. «Há mais de uma hora», pensou Cadfael, considerando esse período de tempo através dos sinais que este apresentava, «no máximo talvez duas horas. E o seu rolo de sela cortado e roubado. Aqui nos nossos bosques! Ou teria algum assassino da cidade ouvido dizer que Eilmund se encontrava em casa acamado e aventurara-se a tentar aqui a sua sorte, com um viajante ocasional que passasse sozinho?»
A demora já não podia prejudicar Drogo e a luz do dia podia, pelo menos, mostrar algum indício que conduzisse ao seu assassino. Melhor deixá-lo assim e avisar o castelo, onde havia sempre um guarda acordado e deixar uma mensagem para Hugh, para que esta fosse entregue assim que houvesse luz. A meia-noite, os irmãos levantar-se-iam para as Matinas, e as mesmas notícias horrendas podiam e deviam ser entregues então ao Abade Radulfus. O homem morto era hóspede da abadia e o seu filho era esperado dentro de alguns dias, devendo ser conduzido à abadia para ser adequada e respeitosamente tratado.
Não, não havia mais nada que pudesse ser feito por Drogo Bosiet. mas pelo menos podia levar de volta o cavalo para o seu estábulo. Cadfael montou, juntou as rédeas soltas na sua mão esquerda e o cavalo seguiu-o docilmente. Não havia pressa. Tinha ainda algum tempo até à meia-noite. Não havia necessidade de poupar tempo, pois mesmo que chegasse à sua cama antes das Matinas, ser-lhe-ia impossível conciliar o sono. Melhor seria tratar dos cavalos e depois esperar pelo rebate do sino.
O Abade Radulfus chegou cedo à igreja para as Matinas para encontrar Cadfael esperando por ele na arcada sul, enquanto a atravessava vindo da sua cela. O sino no dormitório começava a tocar. São precisos apenas alguns momentos para dizer abruptamente que um homem está morto, e que se encontra assim através de um acto humano, não de acto divino.
Radulfus nunca foi conhecido por desperdiçar palavras e não o faria agora com as notícias de que um hóspede da sua casa chegara a um fim inesperado na própria floresta da abadia. Aceitou a afronta vulgar e o mal grosseiro num silêncio sombrio, e o direito e dever de retribuição, tão incumbente sobre a igreja como sobre a autoridade secular, aceitou-os com um profundo aceno de consentimento da sua cabeça, e um esgar que lhe apertava os lábios cheios e firmes. No meio do silêncio, enquanto ele pensava, começaram a ouvir os suaves passos dos irmãos descendo as escadas da noite.
- E deixaste recado para o Hugh Beringar? - perguntou o abade.
- Em sua casa e no castelo.
- Então, nenhum homem pode fazer mais até que nasça a primeira luz. Ele deve ser trazido até aqui, pois aqui virá o seu filho. Mas tu serás necessário, pois podes conduzir-nos directamente até onde ele se encontra. Agora vai, eu libero-te do serviço religioso, vai e descansa, e de madrugada cavalga para te juntares ao xerife. Diz-lhe que enviarei de seguida um grupo para trazer o corpo para casa.
Na primeira luz hesitante de uma manhã fria, encontravam-se sobre o corpo de Drogo Bosiet Hugh Beringar e Cadfael. um sargento da guarnição de Hugh e dois homens de armas, todos silenciosos, todos de olhos fixos na grande mancha de sangue seco que ensopava as costas do rico casaco de montar. A relva estava tão pesada e achatada com orvalho como se tivesse chovido e a humidade reunira-se em grandes pérolas sob a lã da roupa do homem morto, constelando os arbustos num tesouro de teias de aranha.
- Como arrancou o punhal da ferida - disse Hugh -, o mais provável é que o tenha levado com ele. Mas iremos procurá-lo para o caso de ele o ter deitado fora. E tu dizes que as faixas do rolo da sela foram cortadas? Após tê-lo morto, ele precisava de faca para isso. Mais rápido e mais fácil cortá-las para que esta se soltasse no escuro, do que desabotoá-la, e quem quer que ele fosse não se queria demorar. Estranho, contudo, que o homem a cavalo fosse vítima de tal ataque. Ao mínimo som, ele teria apenas de esporear o seu cavalo e afastar-se.
- Mas eu acho - disse Cadfael, estudando o modo como o corpo estava deitado - que ele ia a pé, conduzindo o seu cavalo. Era estranho nestas paragens, e o caminho aqui é muito estreito e as árvores encontram-se muito juntas, e estava escuro ou começava a escurecer. Vê as folhas que se pegaram às solas das suas botas. Ele nem teve tempo para se virar, um único golpe foi suficiente. Onde ele esteve eu não o sei, mas regressava ao seu alojamento no nosso salão de hóspedes, quando foi atingido. Sem luta e com pouco barulho. O cavalo não se assustou muito, vagueou apenas alguns metros.
- O que sugere um salteador e ladrão experiente - disse Hugh. - Mas acreditas nisso? Na minha jurisdição e tão perto da cidade?
- Não. Mas algum patife dissimulado, ou até um ladrão astuto de fora da cidade, talvez arriscasse uma emboscada sabendo que Eilmund se encontra em casa acamado. Mas isto é apenas um palpite - disse Cadfael, sacudindo a cabeça. - De vez em quando até um larápio pode sentir-se tentado ao assassínio, se encontrar um homem endinheirado, sozinho e à noite. Mas estar a adivinhar de pouco serve.
O grupo enviado pelo Abade Radulfus para transportar Drogo de regresso à abadia dirigia-se já ao longo do caminho com uma padiola. Cadfael ajoelhou-se na relva, ensopando o seu hábito de orvalho e virou, cuidadosamente, o corpo rígido de cara para cima. A pesada musculatura das faces tornara-se flácida, os olhos, tão desproporcionadamente pequenos para o semblante maciço, estavam semiabertos. Parecia mais velho e menos arrogantemente brutal na morte, um homem mortal como os outros homens, quase comovente. A mão que permanecera escondida debaixo do seu corpo usava um pesado anel de prata.
- Algo que o ladrão deixou escapar - disse Hugh, olhando para baixo com uma expressão de pesar estampada na cara, por tanto poder agora ser impotente.
- Outro sinal de pressa, se não ele teria saqueado cada artigo de vestuário. É prova suficiente de que o corpo não foi tocado. Ele repousa tal qual como caiu de frente para Shrewsbury. É como vos disse, ele dirigia-se a casa.
- Está para chegar um filho, disseste tu? Vem - disse-lhe Hugh. - podemos deixá-lo agora para os teus homens e os meus companheiros irão passar os bosques a pente fino, para o caso de haver algum sinal ou indício que possa ser encontrado, embora eu duvide. Tu e eu vamos regressar à abadia e ver o que o abade descobriu no capítulo, pois alguém deve ter-lhe certamente dado alguma ideia nova, para que ele voltasse a sair novamente.
O sol erguia-se sob o horizonte, mas oculto e pálido, enquanto eles montavam e regressavam ao longo do caminho estreito. Os arbustos drapejados de teias pelas aranhas captaram as primeiras cintilações que perfuraram a névoa e flamejaram com o fulgor de diamantes. Quando emergiram no espaço aberto dos campos, os cavalos vagueavam placidamente por entre um mar brumoso tingido de lilás.
- O que sabes acerca deste homem Bosiet - perguntou Hugh - para além do que ele me disse, ou ter-me-ei zangado com ele sem pensar?
- Acho que pouco mais. É suserano de vários feudos em Northamptonshire, e há algum tempo um dos seus servos feudais, por uma razão não muito boa, espancou o seu lacaio deixando-o de cama durante alguns dias e depois, muito sabiamente, deu corda aos sapatos antes que eles pudessem deitar-lhe a mão. Desde então, Bosiet e os seus homens têm andado à caça dele. Calculo que devem ter desperdiçado algum tempo a procurar no resto do condado, antes de saberem através de alguma fonte que ele se dirigira para Northampton e parecia estar a dirigir-se para norte e oeste. E entre eles, seguiram-no até aqui. fazendo cavalgadas em ambas as direcções, partindo de cada paragem. Deve ter-lhes custado mais do que o seu valor, apesar de dizerem que ele é valioso, mas é atrás da sua pele que eles andam em primeiro lugar e parece que estabeleceram para aquela um preço superior ao da sua arte, qualquer que essa seja. Havia ali um ódio muito forte - disse Cadfael com emoção. - Ele levou-o com ele para o capítulo. O Pai Abade não ficou muito convencido com a ideia de o ajudar com o tipo de vingança que ele estava prestes a fazer.
- E empurrou-o para mim - disse Hugh, sorrindo ligeiramente.- Bem, pequena culpa é a dele. Eu acreditei na tua palavra e mantive-me fora do seu caminho tanto quanto me foi possível. De qualquer das formas eu não lhe podia fornecer nenhuma ajuda. O que mais sabes acerca dele?
- Que tem com ele um lacaio chamado Warin, aquele que o acompanha, apesar de não o ter feito desta vez, ao que parece. Talvez ele tenha mandado o homem fazer outro recado e, assim que recebeu a notícia, não tenha querido esperar, partindo sozinho. Ele é (era) um homem que gostava de usar livremente os punhos nos seus criados, por qualquer coisa ou por coisa alguma. Pelo menos, abriu a cara de Warin e, de acordo com o lacaio, isso não era nada de raro. Quanto ao filho, de acordo com Warin, é muito parecido com o pai e deve, tal como o pai, ser evitado. E chegará a Stafford a qualquer momento.
- Para descobrir que terá de colocar num caixão o corpo do pai e que terá de o levar para casa para o enterrar - disse Hugh pesarosamente.
- Para descobrir que agora é o suserano de Bosiet - disse Cadfael. - Esse é o reverso da moeda. Quem sabe para que lado é que a moeda ficará virada?
- Tornaste-te muito cínico, velho amigo - observou Hugh, sorrindo de esguelha.
- Estou a pensar - concordou Cadfael - nos motivos pelos quais os homens cometem assassínio. A cobiça é um deles, e pode ser encontrada num filho, que espera impacientemente pela sua herança. Ódio é outro e um criado mal tratado pode utilizá-lo de livre vontade, se lhe for dada essa oportunidade. Mas existem, sem dúvida, outras razões e mais estranhas, como um simples gosto por roubos e uma disposição para se certificar de que a vítima nunca falará. Uma pena, Hugh, uma grande pena que haja tanta pressa na morte, quando esta se destina a alcançar todos os homens em seu devido tempo.
Quando eles emergiram na estrada em Wroxeter, o Sol já estava bem alto e a névoa desaparecia, apesar dos campos ainda nadarem num vapor dum tom de pérola. A partir dali, viajaram a uma boa velocidade ao longo da estrada para Shrewsbury e atravessaram da casa do portão, após o fim da Missa Solene, quando os irmãos estavam a dispersar-se para o seu trabalho até à hora da refeição do meio-dia.
- O senhor abade tem estado a perguntar por ti - disse o porteiro, saindo da sua casa ao vê-los. - Está no seu gabinete juntamente o prior e pede que te juntes a eles.
Deixaram os seus cavalos com os moços de estrebaria e dirigiram-se, de imediato, ao gabinete do abade. No seu gabinete apainelado, Radulfus olhou por cima da sua secretária, e o Prior Robert. muito direito e austero sentado num banco ao lado da janela, olhou-os sob o seu nariz com uma vincada expressão de desaprovação e retractação. As complexidades da lei, do assassínio e da caça ao homem não tinham nada que se intrometer no domínio monástico, e ele deplorava a necessidade de reconhecer a sua existência, bem como quais os processos necessários para lidar com eles, quando estes forçavam uma brecha na parede. Perto do seu cotovelo e mantendo-se na sombra, encontrava-se o Irmão Jerome, os seus estreitos ombros arqueados, os lábios finos firmemente apertados, as sua mãos pálidas recolhidas nas mangas, a imagem da virtude assediada, que ostenta a cruz com humildade. Havia sempre um forte elemento de complacência na humildade de Jerome, mas desta vez existia também uma qualidade ligeiramente defensiva, como se a sua rectidão tivesse sido de certo modo, mesmo que apenas por implicação, questionada.
- Ah, já regressaste! - disse Radulfus. - Não trouxeste de volta o corpo do nosso hóspede tão rapidamente?
- Não, Pai, ainda não, eles virão atrás de nós, mas a pé levará mais tempo. E tal e qual como o Irmão Cadfael lhe comunicou de noite. O homem foi apunhalado pelas costas, provavelmente enquanto conduzia o seu cavalo, sendo o caminho ali estreito e demasiado desenvolvido. Saberá já que o rolo da sela dele foi cortado e roubado. Pelo o que o Irmão Cadfael viu do corpo quando o encontrou, o acto deve ter sido cometido perto da hora das Completas, talvez um pouco antes. Não há nada que nos revele por quem. Pelo adiantado da hora, deveria estar a regressar ao vosso salão de hóspedes. Pela forma como estava caído sobre a cara, calculamos que o corpo não foi tocado, caso contrário o seu anel teria sido retirado e ele ainda o usa. Mas quanto ao sítio para aquelas bandas onde ele poderia ter estado, não há como sabê-lo.
- Acho - disse o abade - que temos qualquer coisa para dizer a esse respeito. Aqui o Irmão Jerome dir-vos-á o que nos contou a mim e ao Prior Robert.
Normalmente. Jerome estava sempre pronto para ouvir a sua própria voz, quer em sermão, homilia ou reprovação, mas desta vez era notável como ele estava a reunir as suas palavras com mais cuidado do que o habitual.
- O homem era um hóspede e um cidadão correcto - começou - e contou-nos no capítulo que estava a perseguir um ofensor da lei, que cometera uma agressão contra a pessoa do seu criado e que lhe causara um lastimoso mal e, depois, fugira do seu suserano. Depois lembrei-me que havia realmente um recém-chegado a estas paragens, que podia muito bem ser o homem que ele buscava, e pensei no dever de todos nós de ajudarmos a causa da justiça e da lei. Portanto, falei ao suserano de Bosiet. Contei-lhe que o jovem que serve o eremita Cuthred, e que veio aqui com ele apenas há algumas semanas atrás, corresponde à descrição que ele deu do seu servo feudal fugitivo, Brand, apesar de ele se auto-intitular Hyacinth. Tem a idade certa e a sua cor, tal qual como o seu senhor o descreveu. E ninguém daqui sabe nada acerca dele. Achei apenas correcto dizer-lhe a verdade. Se o jovem provar não ser Brand, não lhe acontecerá nenhum mal.
- E tu contaste-lhe, creio eu - disse o abade com voz neutra -, como alcançar a casa do eremita, onde ele poderia encontrar este jovem rapaz?
- Contei-lhe, Pai, como era o meu dever.
- E ele partiu imediatamente a cavalo até àquele lugar.
- Sim, Pai. Ele enviara o seu lacaio num recado à cidade, e foi. assim, obrigado a selar o seu próprio cavalo, mas não quis esperar, visto que a maior parte do dia já tinha passado.
- Falei com o lacaio Warin assim que soubemos da morte do seu senhor - disse o abade, olhando para cima para Hugh. - Foi enviado a Shrewsbury para investigar se havia algum artesão que realizasse trabalhos delicados em cabedal, pois parecia que esta era também a arte do jovem rapaz e Bosiet pensou que ele poderia ter tentado arranjar trabalho dentro do município, entre aqueles que pudessem servir-se das suas habilidades. Não se pode atribuir culpas ao lacaio, pois quando regressou, já o seu senhor partira havia muito. O seu recado, ao que parece, não podia esperar até de manhã - a sua voz soava moderada e delicada, sem qualquer tom de aprovação ou de desaprovação. - Isso resolve, penso eu, a questão das suas andanças.
- E onde devo segui-lo - disse Hugh esclarecido. - Devo agradecer-lhe, Pai, por me ter indicado o próximo passo da estrada. Se ele de facto falou com Cuthred, pelo menos poderemos saber o que se passou, e se obteve a resposta que pretendia, apesar de ele ter regressado sozinho. Tivesse ele trazido um servo feudal cativo com ele, dificilmente o deixaria de mãos livres e com um punhal entre elas. Com a tua permissão, Pai. manterei o Irmão Cadfael comigo como testemunha, em vez de levar homens de armas para um eremitério.
- Faz isso - disse o abade de boa vontade. - Este infeliz homem era um hóspede da nossa casa e nós devemos-lhe cada esforço que possa conduzir à captura do seu assassino. E todos os direitos adequados e serviços que ainda possam ser prestados ao seu cadáver. Robert, asseguras-te que o corpo seja recebido reverentemente quando chegar? E tu, Irmão Jerome, podes assistir. O teu zelo de lhe prestares auxílio não deve ser frustrado. Ficarás uma noite de vigília com ele, rezando pela sua alma.
«Então estarão dois homens deitados lado a lado na capela mortuária hoje à noite», pensou Cadfael enquanto saíam juntos da pequena sala, «o velho homem que encerrou uma vida longa tão gentilmente quanto uma flor velha espalha as suas pétalas, e o senhor das terras tomado abruptamente na sua malícia e ódio, sem aviso, e sem tempo para fazer paz com o homem ou com Deus. A alma de Drogo Bosiet necessitará de todas as rezas que puder receber.»
- E já te apercebeste - perguntou Hugh subitamente, enquanto cavalgavam para fora do Foregate pela segunda vez, - que o Irmão Jerome, no seu zelo pela justiça, poderá ter ajudado Bosiet na sua morte?
Se já se apercebera, Cadfael não estava ainda preparado para receber a ideia.
- Estava de regresso - disse cautelosamente -, e vinha de mãos vazias. Parece que estava desapontado. O rapaz não é o seu servo perdido.
- Podia igualmente argumentar que ele o é e que viu a sua destruição a aproximar-se, a tempo de desaparecer. E depois?
Ele já está nos bosques há tempo suficiente para saber como sair deles. E se foi ele a mão que segurou o punhal?
Não havia como negar que isso era uma possibilidade. Quem poderia ter uma melhor razão para espetar uma faca nas costas de Drogo Bosiet, do que o moço que ele pretendia arrastar de volta para o seu próprio feudo, para esfolar em primeiro lugar e depois explorar durante uma vida inteira?
- É o que dirão - concordou Cadfael sombriamente. -A não ser que encontremos Cuthred e o seu rapaz sentados pacificamente em casa. a tratarem da sua própria vida e sem se intrometerem na vida de mais ninguém. De pouco adianta tentar adivinhar até sabermos o que aconteceu por lá.
Aproximaram-se da língua de terra de Eaton, seguindo o mesmo caminho que Drogo usara, e viram a pequena clareira abrindo-se perante eles entre o denso arvoredo, quase subitamente, tal como ele a vira, mas desta vez em plena luz do dia. enquanto ele viera no início da noite. A luz solar filtrava-se através dos ramos e transformava o cinzento sombrio da cabana de pedra num dourado entorpecedor. As baixas estacas da vedação que limitavam o jardim estavam separadas umas das outras, um simples limite esboçado, sem barreira para besta ou para homem, e a porta da cabana estava escancarada, de modo que eles espreitaram para dentro do quarto, onde a constante lamparina no altar de pedra parecia pequena e escura como uma única chama, quase se extinguindo na claridade que saía da janela sem persianas. A cela do Santo Cuthred, ao que parecia, estava completamente aberta para todos os que chegassem.
Uma parte do jardim era ainda selvagem, apesar da relva e das ervas terem sido aparadas, e aí se encontrava o próprio eremita trabalhando com pá e enxada, levantando os pedaços de terra cobertos de palha e revolvendo o solo enquanto o limpava. Observaram-no a fazê-lo enquanto se aproximavam, mostrando ser pouco experiente mas obstinado e paciente, e claramente nada habituado a lidar com tais ferramentas ou a inclinar-se para tais labutas, que deviam ter recaído sobre Hyacinth. Que, por sinal, não se encontrava em parte alguma.
Um homem alto, o eremita, de pernas compridas, corpo alongado, magro e direito, o seu hábito negro, grosseiro, chegando-lhe aos joelhos e o capuz arremessado sobre os seus ombros. Viu-os chegar e endireitou-se dos seus trabalhos com a enxada ainda nas mãos, e mostrou-lhes uma cara forte e magra, com uma pele de tom de azeitona e um olhar profundo, emoldurado num espesso arbusto de cabelo escuro e barba. Olhou de um para o outro e recebeu a reverência de Hugh com uma profunda inclinação da cabeça, sem baixar os olhos.
- Se a tua incumbência é para Cuthred, o eremita - disse ele numa voz profunda e ressonante, e com autoridade -, entra e sê bem vindo. Sou eu - e para Cadfael, após ter estudado a sua cara durante um momento -, acho que te vi em Eaton, quando o suserano Richard foi enterrado. Tu és um irmão de Shrewsbury.
- Sou - disse Cadfael.- Estava entre a escolta do rapaz. E este é Hugh Beringar, xerife deste condado.
- O senhor xerife honra-me - disse Cuthred. - Querem entrar na minha cela? - e dizendo isto, soltou a parte inferior do hábito do seu cinto de corda desfiado, caindo-lhe este até aos pés, e conduziu-os para o interior da casa. O espesso emaranhado do seu cabelo roçou a pedra da soleira da porta quando ele entrou. Era um palmo mais alto do que qualquer um dos seus visitantes.
Na escura sala de estar, existia uma janela estreita que deixava entrar a luz da tarde e uma brisa ligeira, a qual trouxe para o interior o odor da erva cortada e de folhas de Outono húmidas. Através da abertura para a capela no interior, viram tudo o que Drogo vira, a laje de pedra do altar com a sua arca esculpida, a cruz de prata e os candelabros e o breviário aberto repousando perante a pequena chama da lamparina. O eremita seguiu o olhar de Hugh para o livro aberto e, entrando, fechou-o reverentemente, colocando-o com carinho num alinhamento preciso com a extremidade da frente do relicário. O delicado ornamento dourado e a delicada estampagem da fita de cabedal brilhavam na pequena luz da lamparina.
- E como é que posso ser de alguma utilidade ao senhor xerife? - perguntou Cuthred, a sua cara ainda virada na direcção do altar.
- Preciso de lhe fazer algumas perguntas - disse Hugh com deliberação -, com respeito a um homem assassinado.
Aquilo fez com que a alta cabeça se virasse depressa, olhando o xerife com uma expressão de espanto e surpresa.
- Assassinado? Aqui e agora? Não sei de nada. Diga abertamente o que quer dizer, meu senhor.
- Ontem à noite, um certo Drogo Bosiet. hóspede da abadia, saiu para vir visitá-lo incitado por um dos irmãos. Veio aqui em busca de um servo feudal fugitivo, um homem jovem com perto de vinte anos, e a sua intenção era inspeccionar o seu rapaz. Hyacinth. já que este é um estranho e tem a idade e o tipo certo, e ver se ele é ou não o artesão que fugiu de Bosiet. Chegou a vir até cá? Pela altura, em que chegou até esta distância já devia ser noite.
- Sim. um homem assim veio até cá - disse Cuthred subitamente -. apesar de eu não lhe ter perguntado o nome. Mas o que é que isto tem a ver com assassínio? Disse que se tratava de um homem assassinado.
- Este mesmo Drogo Bosiet. no seu caminho de regresso em direcção à cidade e à abadia, foi esfaqueado pelas costas e deixado num dos lados do caminho, a um quilómetro e meio ou mais daqui. A noite passada, na mais completa escuridão, o Irmão Cadfael encontrou-o morto, com o seu cavalo vagueando à solta.
Os olhos profundos do eremita, flamejantes de vermelho nas suas órbitas cavas, lançavam-se de uma cara para a outra numa interrogação incrédula.
- Difícil de acreditar que pudessem existir aqui assassinos e homens sem amo, nesta terra bem cultivada e bem administrada; dentro da sua jurisdição, meu senhor, e tão perto da cidade. Poderá isto ser o que parece ou haverá algo de pior por trás? O homem foi roubado?
- Foi. do seu rolo de sela, o que quer que este possa ter contido. Mas não lhe roubaram o anel. nem a toga. O que foi feito, foi-o à pressa.
- Homens sem senhor ter-lhe-iam arrancado as roupas e deixá-lo-iam nu - disse Cuthred com firmeza. - Não creio que esta floresta seja um abrigo para bandidos. Isto é um assunto muito diferente.
- Quando ele veio ter contigo - disse Hugh - o que é que ele tinha para dizer? E o que é que se seguiu?
- Ele chegou quando eu estava a dizer o Serviço de Vésperas, aqui na capela. Entrou e disse que viera para ver o rapaz que faz os meus recados, e que eu podia vir a descobrir que fora enganado ao receber um vilão a meu cargo. Pois ele estava à procura de um servo fugitivo e tinham-lhe dito que havia um aqui da mesma idade, recém-chegado e um estranho para todos.
que podia bem ser o seu homem. Disse-me de onde tinha vindo e em que direcção ele tinha motivos para acreditar que o seu fugitivo tinha fugido. Estas coisas e a altura em que o servo fugira encaixavam demasiado bem para a minha paz de espírito, com a altura e o lugar onde eu primeiro encontrei e me compadeci de Hyacinth. Mas não foi experimentado - disse Cuthred simplesmente. - O rapaz não estava cá. Uma hora antes, eu enviara-o num recado a Eaton. Ele não regressou. Ainda nem sequer voltou hoje. Agora duvido que ele alguma vez volte.
- Acredita - disse Hugh - que ele é este Brand?
- Não posso julgar. Mas vi que bem podia ser. E quando, ontem à noite, ele não voltou, então senti que era. Não faz parte do meu dever entregar qualquer homem à retribuição, isso é assunto de Deus. Fiquei satisfeito por não poder dizer sim ou não, e contente que ele não estivesse aqui para ser visto.
- Mas se ele desconfiasse ou tivesse um pressentimento acerca de quem o procurava e se mantivesse fora do caminho - disse Cadfael - ele já teria regressado. O homem que o caçava fora-se embora de mãos a abanar e se mais alguém o ameaçasse ele podia voltar a fazer o mesmo, desde que tu não o traísses. Onde estaria ele tão seguro como aqui, com um eremita santo? Mas ainda assim, ele não regressou.
- Mas agora dizem-me - disse Cuthred gravemente - que o suserano dele está morto, se é que este homem era de facto o seu senhor. Morto e assassinado! Digamos que o meu criado Hyacinth teve um pressentimento acerca da vinda de Bosiet e fez mais do que se ausentar. Digamos que ele achou melhor fazer uma emboscada e terminar a busca de uma vez por todas! Não, acho agora que não vou voltar a ver mais alguma vez o Hyacinth. Gales não fica longe e até mesmo um recém-chegado sem amo pode arranjar serviço por lá, apesar de ser em condições difíceis. Não, ele não vai voltar. Ele nunca regressará.
Foi um momento estranho para a mente de Cadfael começar a vaguear, como se algum canto da sua consciência tivesse registado diversos momentos de que só agora se apercebia, pois deu por si a pensar subitamente em Annet, surgindo na casa do seu pai, radiante, excitada e misteriosa, com uma folha de carvalho entre o cabelo despenteado. Um pouco corada e respirando como se tivesse estado a correr. E já passando da hora das Completas, numa altura em que Drogo de Bosiet jazia morto a mais de um quilómetro e meio de distância, no caminho para Shrewsbury. É verdade que Annet saíra por dever para fechar as galinhas e a vaca durante a noite, mas demorara muito tempo para isso. e regressara com a cor viva e os olhos triunfantes de uma rapariga regressando do seu amante. E não tinha ela encontrado uma ocasião para dizer uma palavra amável por Hyacinth, e tirado prazer ao ouvir o seu pai a elogiá-lo?
- Como é que encontrou este jovem rapaz em primeiro lugar? - estava Hugh a perguntar. - E porque é que o aceitou para o seu serviço?
- Eu regressava de Santo Edmundsbury, pelo caminho dos cânones Agostinianos em Cambridge, e fiquei duas noites alojado num convento de Cluny, em Northampton. Ele estava entre os pedintes ao portão. Apesar de ser apto e jovem, era igualmente maltrapilho e desleixado como se fosse selvagem. Contou-me que o seu pai fora despojado e estava morto, não tinha mais nenhum parente, estava sem trabalho. Por compaixão, eu vesti-o e acolhi-o como meu criado. Caso contrário, ter-se-ia afundado a roubar e na bandidagem de maneira a poder viver. E ele tem sido rápido e obediente, e achei que ele me estava grato e, talvez, até estivesse. Mas agora pode ser tudo em vão.
- E quando foi isto, quando é que o encontraste?
- Nos últimos dias de Setembro. Não tenho a certeza quanto ao dia exacto.
A altura e o local encaixavam demasiado bem.
- Vejo que tenho uma caça ao homem entre as mãos - disse Hugh de modo estranho - e É melhor regressar para Shrewsbury e soltar de uma vez por todas os cães. Pois quer o moço seja o assassino ou não, não tenho agora qualquer escolha senão encontrá-lo e prendê-lo.
CAPÍTULO SETE
Sempre fora opinião do Irmão Jerome, a qual expressava frequente e em voz alta, que o Irmão Paul exercia uma autoridade muito inactiva sobre os jovens que estavam sob a sua responsabilidade, tanto os noviços como as crianças. Era a forma de Paul supervisionar os seus dias tão moderadamente quanto possível, exceptuando quando os ensinava, se bem que estivesse pronto a aparecer se algum deles precisasse dele ou o chamasse. Todavia, tais assuntos rotineiros como as suas purificações religiosas, os seus comportamentos disciplinados às refeições, o seu retiro à noite e o despertar de manhã eram deixados às suas próprias consciências e aos hábitos sadios de limpeza e pontualidade, que lhes tinham sido ensinados. O Irmão Jerome estava convencido de que não se podia confiar a nenhum rapaz com menos de dezasseis anos o cumprimento de uma única regra, e até mesmo aqueles que tivessem atingido essa idade madura tinham ainda em si mais de diabo do que de anjo. Ele teria observado, perseguido e corrigido cada um dos seus movimentos, fosse ele o mestre dos rapazes, e utilizaria muito mais os castigos do que Paul alguma vez poderia contemplar. Era um prazer para ele poder dizer, com verdade, que sempre profetizara que tal administração negligente só traria desastres.
Três rapazes da escola e nove noviços, numa média de idades entre os nove e os dezassete anos, são jovens bastante activos para satisfazer um olhar casual ao pequeno-almoço, a não ser que alguém tenha motivo para os contar e descubra que falta um do lado direito. Provavelmente, Jerome tê-los-ia contado em todas as ocasiões, certo de que mais cedo ou mais tarde algum haveria de faltar. O Irmão Paul não os contou. E a sua presença foi necessária no capítulo e depois disso nesse mesmo dia, para negócios específicos relativos às suas obrigações; ele confiara a educação matinal ao mais responsável dos noviços, outra política que Jerome lamentava ser ruinosa para a disciplina. Na igreja, a criança ocupava lugares tão insignificantes, que um a mais ou a menos nunca seria notado. Assim, foi só depois, durante a tarde, quando Paul reuniu o seu rebanho para regressar à sala de aula e separou a classe de noviços dos jovens rapazes, que a ausência de Richard foi finalmente notada.
Até mesmo nessa altura, Paul não se sentiu alarmado ou perturbado. A criança estava simplesmente a vadiar algures, esquecido do tempo e haveria de aparecer repentinamente a qualquer momento. No entanto, o tempo escoava-se e Richard não regressava. Interrogados, os três rapazes restantes arrastaram os seus pés pouco à vontade, movendo-se um pouco mais para junto uns dos outros para sentirem a confiança da proximidade, abanaram as cabeças sem pronunciar palavra e evitaram olhar para o Irmão Paul nos olhos. O mais novo, em particular, parecia menos do que feliz, mas nada disseram, o que ainda convenceu mais Paul de que Richard estava deliberadamente a faltar às aulas, que eles sabiam disso e desaprovavam, mas não soltariam uma palavra para o trair. Conteve-se de os ameaçar com penalidades medonhas, pois tal silêncio refractário, teria apenas confirmado a negra desaprovação de Jerome quanto a tal atitude.
Jerome encorajava os mexericos. Paul tinha uma simpatia dissimulada pela solidariedade pecadora, que convidaria penalidades a recaírem sobre a sua própria cabeça, em vez de atraiçoar um companheiro. Somente relatou firmemente que, mais tarde, Richard deveria ser chamado para prestar contas pelo seu comportamento, pagar a penalidade da sua tolice e continuar com a lição. Todavia, estava consciente da falta de atenção e da intranquilidade dos seus pupilos, e dos olhares culpados de soslaio que lançavam uns aos outros sobre as suas cartas. Quando foram dispensados, ele sentiu que, de alguma forma, o mais novo estava à beira de revelar o que quer que fosse que ele soubesse, e a angústia da criança indicou-lhe que havia algo mais por detrás desta falta do que o simples capricho de faltar a uma aula.
Paul chamou de novo a criança enquanto se iam embora, meio grato, meio receoso.
- Edwin, vem cá!
Compreensivelmente, os outros dois fugiram certos agora de que o céu estava prestes a desabar sobre eles e, com pressa de evitar o primeiro choque, o que quer que se seguisse mais tarde. Edwin estacou, virou-se e lentamente arrastou-se de novo através da sala, os seus olhos baixos olhando os pequenos pés que arrastava, relutantemente, ao longo das tábuas do chão. Ficou perante o Irmão Paul e estremeceu. Um joelho estava ainda ligado e a ligadura deslizara e estava torta. Sem pensar, Paul desenrolou-a e voltou a colocá-la no seu devido lugar.
- Edwin, o que é que tu sabes acerca do Richard? Onde é que ele está?
- Eu não sei'. - ofegou a criança com absoluta convicção. E desatou a chorar. Paul aproximou-o para perto dele e deixou-o enterrar o seu nariz num ombro, há muito habituado a este tipo de sofrimento.
- Conta-me! Quando é que o viste pela última vez? Quando é que ele partiu?
Edwin soluçou inarticuladamente nas dobras de lã áspera, até que Paul o afastou e olhou para a sua cara manchada e aflita.
- Vá! Conta-me tudo o que sabes.
E tudo saiu em torrente, entre fungadelas apressadas e soluços.
- Foi ontem, depois do serviço de Vésperas. Eu vi-o. ele levou o seu pónei e saiu ao longo do Foregate. Pensei que ele regressasse, mas ele não regressou e nós ficámos assustados. Nós não queríamos que ele fosse apanhado, ele ficaria metido num sarilho... Não quisemos contar, pensámos que ele voltasse e ninguém precisava de saber...
- Estás a dizer-me - exigiu Paul, consternado e pela primeira vez soando aterrado - que ele não dormiu aqui. na sua cama. a noite passada? Que ele já está ausente desde ontem e nem uma palavra foi dita?
Um novo dilúvio de lágrimas desesperadas distorceram a cara redonda e corada de Edwin, e a sua cabeça, que acenava violentamente, admitiu a acusação.
- E todos vocês sabiam disto? Vocês os três? Nunca pensaram que ele pode estar ferido algures, ou em perigo? Ficaria ele toda a noite fora de livre vontade? Oh, criança, porque é que não me contaste? Todo o tempo que perdemos!
Porém, o rapaz já estava suficientemente assustado, não havia nada a fazer com ele, senão silenciá-lo, tranquilizá-lo e confortá-lo, onde a tranquilidade e o conforto eram muito difíceis de encontrar.
- Agora diz-me, tu viste-o partir montado. Depois do serviço de Vésperas? Ele não disse o que pretendia fazer?
Tristemente, Edwin reuniu o pouco senso que ainda lhe restava e contou tudo.
- Chegou muito atrasado ao serviço de Vésperas. Nós estávamos no Gaye ao pé do rio. ele não queria entrar e quando foi a correr atrás de nós já era demasiado tarde. Acho que ele estava à espera de se esgueirar entre nós quando saíssemos da igreja, mas o Irmão Jerome estava a conversar com... com aquele homem, o que...
Recomeçou novamente a chorar, lembrando-se do que não devia ter visto mas que de facto tinha, os portadores da liteira a aproximarem-se da casa do portão, o corpo volumoso imóvel, o poderoso rosto coberto.
- Esperei à porta da escola - sussurrou a voz chorosa - e vi o Richard descer a correr em direcção aos estábulos, depois regressou com o seu pónei e conduziu-o pelo portão fora numa grande pressa e cavalgou para longe. E isso é tudo o que sei. Pensei que ele estivesse de volta cedo - lamentou-se ele desesperadamente. - Não queríamos que ele se metesse em problemas...
Se tivessem evitado ter feito aquilo, ter-lhe-iam certamente dado tempo e espaço mais que suficiente para ele se meter em confusões, mais profundas do que qualquer deslealdade dos seus poderia ter provocado. O Irmão Paul abanou a cabeça resignadamente e deu umas palmadinhas ligeiras no seu penitente, para o acalmar.
- Portaste-te muito mal e tolamente, e se estiveres em desgraça, não é mais do que aquilo que mereces. Mas responde a tudo com verdade e encontraremos o Richard são e salvo. Agora vai de uma vez. procura os outros dois e. os três, esperem aqui até serem chamados.
E Paul partiu numa corrida nervosa, para levar as más notícias primeiro ao Prior Robert e depois ao abade, para em seguida ir confirmar se o pónei que a Dama Dionísia enviara como isco para o seu neto desaparecera realmente da sua baia. E havia por ali grande clamor e correria, e viraram-se o pátio da granja, os celeiros e corredores dos hóspedes de pernas para o ar para o caso do culpado não ter no fim de contas abandonado o enclave, ou por outros motivos ter regressado furtivamente, de modo a tentar esconder o facto de o ter deixado. Os desditosos colegiais, verbalmente punidos pelo Prior Robert e ameaçados com castigos maiores quando alguém tivesse o tempo para os administrar, agachavam-se a tremer e, reduzidos a lágrimas pela enormidade do que lhes parecia terem sido boas intenções, e tendo sobrevivido à primeira tempestade de recriminações, acalmaram-se estoicamente para suportar o resto, banidos e sem jantar. Nem mesmo o Irmão Paul teve tempo para lhes oferecer mais palavras de tranquilidade, pois estava demasiado ocupado a procurá-lo entre os complexos recantos da azenha e nos becos mais próximos do Foregate.
A este frenesi de alarme e actividade, chegou Cadfael ao início da noite, depois de se ter despedido de Hugh no portão. Nesta mesma noite, haveria lá fora batedores a perscrutarem os bosques, partindo de Eyton em direcção a oeste, e procurando o fugitivo, que podia ser ou não Brand. mas que devia a todo o custo ser capturado. Hugh não era mais aficcionado de caças ao homem do que o era Cadfael, e muitos servos maltratados tinham sido obrigados a fugir e a transgredir a lei, mas assassínio era assassínio e a lei não conseguia digerir isso. Culpado ou inocente, o jovem Hyacinth teria de ser encontrado. Cadfael desmontou na casa do portão com a sua cabeça repleta de imagens de um jovem desaparecido, para ser recebido pelo espectáculo de irmãos agitados a correrem para trás e para a frente, entre todos os edifícios monásticos, na busca de um segundo jovem. Enquanto perscrutava admirado esta visão, o Irmão Paul veio ter com ele sem fôlego e esperançoso.
- Cadfael, tu estiveste na floresta. Tu não viste sinal do jovem Richard. pois não? Começo a pensar que ele deve ter corrido para casa...
- O último lugar onde seria de esperar que ele fosse - disse Cadfael sensatamente -, enquanto ainda está cauteloso em relação às intenções da avó. Porquê? Estás a dizer-me que perdeste o diabinho?
- Ele desapareceu, desapareceu ontem à noite e nós só o soubemos há uma hora atrás - Paul verteu a história numa cascata de culpa, remorso e ansiedade. - Eu sou o culpado! Eu falei no meu dever, fui demasiado complacente, confiei demasiado neles... Mas porque haveria ele de fugir? Ele era suficientemente feliz. Ele nunca mostrou sinais...
- Inquestionavelmente que teria as suas razões - disse Cadfael coçando pensativamente o seu nariz moreno e áspero. - Mas de volta para a senhora? Duvido! Não, se ele partiu
com tanta pressa foi algo de novo e urgente que o fez partir apressadamente, ontem à noite depois do serviço de Vésperas, dizes tu?
- Edwin contou-me que Richard vadiou demoradamente ao longo do rio e chegou muito tarde ao serviço de Vésperas e deve ter estado à espreita, para se esgueirar por entre o resto dos rapazes quando eles saíram. Mas não deve tê-lo conseguido, porque Jerome ficou ali na arcada esperando para falar com Bosiet. que assistira entre os hóspedes. Mas quando Edwin olhou para trás, viu Richard sair a correr em direcção aos estábulos e depois pelo portão fora, apressadamente.
- De facto! - disse Cadfael, esclarecido. - E então onde estava Jerome e Bosiet, que o rapaz conseguiu sair sem ser detectado? - mas não esperou por uma resposta. - Não. não tentes adivinhar. Nós já sabemos tudo acerca do que conversaram, entre eles. uma pequena questão privada. Jerome não queria audiência, mas parece que teve uma. Paul, tenho de te deixar entregue à tua caça durante um pouco mais e cavalgar atrás de Hugh Beringar. Ele já está encarregue de uma busca por um rapaz desaparecido, bem a pode fazer por dois e arrasar os esconderijos de uma vez por todas.
Hugh, que se recolhera sob o arco do portão da cidade, puxou subitamente as rédeas do seu cavalo ao ouvir a notícia e virou-se para olhar meditativamente para Cadfael.
- Então pensas que foi assim que as coisas aconteceram! - disse ele e assobiou. - Porque haveria ele de se preocupar com um rapaz que mal vira e com quem nunca tinha falado? Ou tens tu algum motivo para pensar que os dois tiveram as suas cabeças juntas?
- Não, nenhum de que eu tenha conhecimento. Nada senão o tempo em que tudo sucedeu, mas isso liga-os um ao outro. Não há muitas dúvidas acerca do que Richard ouviu e nenhuma que o tenha enviado apressadamente nalgum recado urgente. E antes que Bosiet consiga chegar ao ermitério, Hyacinth desaparece.
- E Richard também! - as sobrancelhas escuras de Hugh aproximaram-se, franzindo-se devido às implicações. - Estás a dizer-me que ao encontrar um, hei-de encontrar ambos?
- Não, quanto a isso tenho sérias dúvidas. O rapaz certamente tencionava estar de volta na cama antes da hora de dormir, e é tudo inocência. Ele não é nenhum estúpido, e não tem motivo nenhum para querer deixar-nos. Mas mais uma razão para agora estarmos ansiosos por ele. Ele estaria certamente connosco, se algo não o tivesse impedido. Se o seu pónei o atirou para algures e ele está magoado ou perdido, ou se... Estão a pensar se ele não terá fugido para casa para Eaton, mas isso é completamente impossível. Ele nunca o faria.
Hugh agarrou a sugestão não mencionada que o próprio Cadfael mal tivera tempo para contemplar.
- Não. mas ele podia ser levado para lá! E por Deus, pois podia! Se alguém do pessoal de Dionísia o encontrasse sozinho nos bosques, eles saberiam como agradar à sua senhora. Oh. eu sei que a criadagem é gente de Richard e não dela. mas deve haver um ou dois entre eles que haveriam de aproveitar a oportunidade de oferecer favores, se a situação se proporcionasse. Cadfael, velho amigo - disse Hugh cordialmente -. volta para a tua oficina e deixa Eaton comigo. Assim que os meus homens começarem a caça por ambos, eu próprio irei a Eaton e verei o que é que a senhora tem a dizer. Se ela me impedir de virar do avesso o seu feudo pelo rapaz, saberei que ela tem o outro escondido algures no local e eu posso dar-lhe a volta. Se o Richard estiver lá. hei-de tirá-lo de lá amanhã e deixá-lo-ei de novo nos braços do Irmão Paul - prometeu Hugh esperançosamente. - Mesmo que custe ao pobre diabinho um açoite - reflectiu ele com um sorriso simpático -, ele pode achar isso preferível a ser obrigado a casar, segundo as condições da sua avó. Pelo menos, o ferrão não dura assim tanto tempo.
O que era uma blasfémia bastante perversa contra o casamento, pensou Cadfael e disse-o, vindo de alguém que tinha um tão excelente motivo para se considerar abençoado com a sua mulher e orgulhoso do seu filho. Hugh conduzira o seu cavalo em direcção ao monte íngreme do Wyle, mas inclinou-se para trás e olhou sorridente sobre o ombro.
- Vem agora a minha casa e queixa-te à Aline. Faz-lhe companhia enquanto eu vou até ao castelo para iniciar a caçada.
E a possibilidade de ficar sentado durante uma hora ou perto disso na companhia de Aline e brincar com o seu afilhado Giles, o qual se aproximava dos três anos de vida, era tentadora, mas Cadfael abanou a cabeça relutante mas resignadamente.
- Não, é melhor eu regressar. Estaremos todos ocupados a procurar nos nossos próprios esconderijos e a interrogar ao longo do Foregate até que escureça. Não há certezas onde ele estará, não nos atrevemos a deixar escapar um único recanto. Mas que Deus acompanhe a tua busca, Hugh, pois provavelmente será mais frutuosa do que a nossa.
Regressou à abadia atravessando a ponte e conduzindo o seu cavalo com rédea solta, subitamente consciente de que já fora suficientemente longe por um dia, e pensou com alguma ansiedade na quietude e na paz de alma do santo ofício, e no vasto santuário da igreja. A busca completa da floresta deveria ser deixada para Hugh e os seus oficiais. Não valia a pena sequer perder tempo a pensar onde é que o rapaz poderia passar a próxima noite, embora uma oração suplementar por ele não fosse demais. «E amanhã», pensou Cadfael, «irei visitar o Eilmund e levar-lhe as suas muletas e manterei os meus olhos abertos pelo caminho. Dois moços desaparecidos que agora temos de procurar.» Encontrar um, encontrar ambos? Não. isso seria esperar demasiado, mas se ele encontrasse um. podia já estar a dar um grande passo em frente para encontrar o outro.
Havia um recém-chegado de pé no fim das escadas, que conduziam à porta do salão dos hóspedes, o qual observava com um interesse reservado o alvoroço da busca que continuava, a qual perdera o seu lado mais frenético e se reduzira sombriamente a uma inspecção completa de todos os cantos do enclave, para além dos grupos que estavam nesse momento a interrogar ao longo do Foregate. A actividade obsessiva que o rodeava só tornava a sua quietude composta ainda mais surpreendente, embora a sua aparência fosse suficientemente vulgar. A sua figura era compacta e garbosa, o seu porte modesto, e as suas botas, embora velhas, estavam bem estimadas, calças escuras simples e curtas abaixo do joelho eram o equipamento de equitação comum a todas as condições sociais que viajavam pelas estradas. Ele podia bem ser o vassalo de um barão tratando de assuntos do seu suserano, um mercador próspero ou um nobre menor tratando dos seus negócios. Cadfael reparou nele assim que desmontou. O porteiro saiu da casa de guarda para se deixar cair, súbita e pesadamente, no banco de pedra no exterior da casa com um suspiro cansado, enchendo as suas faces de ar com um desespero moderado.
- Então nenhum sinal do rapaz? - perguntou Cadfael, apesar de não estar à espera de nenhum.
- Não, nem é provável que haja, pelo menos aqui, visto que ele saiu com o pónei. Mas dizem para nos certificarmos primeiro aqui em casa. Até estão a pensar em drenar o açude. Loucura! O que estaria ele a fazer junto ao açude quando ele saiu a trote ao longo do Foregate. isso nós sabemo-lo. Além disso, nunca se afogaria, ele nada como um peixe. Não, ele está bem para lá do nosso alcance, qualquer que seja o sarilho em que se meteu. Mas eles precisam de revirar toda a palha dos sótãos e remexer o lixo do estábulo. É melhor apressares-te e manteres um olho atento na tua oficina, se não eles viram-na de pernas para o ar.
Cadfael estava a observar a calma figura escura, perto do salão de hóspedes.
- Quem é o recém-chegado?
- Um tal de Rafe de Coventry. Um falcoeiro do conde de Warwick. Tem alguns assuntos a tratar com Gwynedd para treinar jovens aves. foi o que contou o Irmão Denis. Não chegou há mais de um quarto de hora.
- Primeiro tomei-o pelo filho de Bosiet - disse Cadfael -. mas vejo que ele é muito velho, mais da geração do pai.
- Também eu o tomei como sendo o filho dele. Tenho estado muito atento à sua chegada, pois alguém tem de lhe dizer o que o espera, e eu preferia que fosse o Prior Robert a dizer-lho, e não eu.
- Gosto de ver um homem - disse Cadfael apreciativa-mente. os seus olhos ainda pousados sobre o estranho - que consegue ficar imóvel no meio do tumulto de outras pessoas sem fazer perguntas. Ah. bom. é melhor eu tirar a sela deste companheiro e colocá-lo na sua baia. Ele já teve um bom dia de exercício com todo este ir e vir. E eu também.
«E amanhã», pensou ele conduzindo o cavalo a um passo lento através do grande pátio na direcção do estábulo, «devo partir novamente. Posso estar um pouco desnorteado, mas pelo menos vamos tentá-lo».
Passou perto do local onde Rafe de Coventry se encontrava, passivamente interessado no bulício, pelo qual ele não pedia explicação, e pensando os seus próprios pensamentos. Ao ouvir o som de cascos a avançarem lentamente pelo pavimento de pedras, virou a cabeça e. encontrando por acaso os olhos de Cadfael, sorriu-lhe ligeiramente e acenou-lhe como forma de cumprimento. Uma cara forte mas introvertida, com uma testa ampla e maçãs do rosto altas, com uma barba castanha bem aparada, e olhos castanhos fixos e vivos, com rugas nos cantos como se ele vivesse principalmente ao ar livre, e estivesse acostumado a olhar através de grandes distâncias.
- Vais em direcção aos estábulos, Irmão? Sê então o meu guia. Nada tenho contra os teus moços de estrebaria, mas gosto de ver o meu animal ser bem tratado.
- Também eu - disse Cadfael calorosamente, verificando se o estranho se encontrava a seu lado. - É o hábito de toda uma vida. Se o aprenderes enquanto jovem, nunca te esquecerás.
Igualaram facilmente as passadas, sendo ambos da mesma estatura. No pátio do estábulo, um lacaio da abadia estava a esfregar um cavalo castanho e alto, com uma mancha branca na testa, e assobiava-lhe gentilmente enquanto trabalhava.
- Teu? - perguntou Cadfael, observando o animal apreciativamente.
- Meu - respondeu Rafe de Coventry rapidamente, e ele próprio retirou o pano das mãos do moço de estrebaria. - Os meus agradecimentos, meu amigo! Eu próprio tratarei dele agora. Onde é que o poderei colocar? - e inspeccionou a baia que o moço lhe indicou, com um longo olhar apreciador e um aceno de satisfação. - Vejo que tens aqui um bom estábulo, Irmão. Não te ofendas por querer ser eu a tratar do meu próprio cavalo. Os viajantes não são sempre tão experientes e tal como tu disseste, é hábito.
- Viajas sozinho? - perguntou Cadfael, ocupado a tirar a sela mas também olhando atentamente o seu companheiro. O cinto que rodeava a cintura de Rafe estava preparado para transportar espada e punhal. Sem dúvida que tinha largado ambos no salão dos hóspedes, bem como a sua capa e equipamento. Um falcoeiro não se encaixa muito bem numa categoria de viajante. Um mercador traria com ele, pelo menos, um servo apto para protecção, ou provavelmente mais. Um soldado seria auto-suficiente, tal como este homem escolhera ser. e transportaria os meios para se proteger a si próprio.
- Viajo rapidamente - disse Rafe simplesmente. - Muitos atrapalham. Se um homem depender só de si próprio, não há ninguém que o deixe ficar mal.
- Vieste de longe?
- De Warwick - um homem de poucas palavras e pouco curioso, este falcoeiro do conde. Ou aquele silêncio esconderia algo? Em relação às buscas pelo rapaz desaparecido, não mostrava disposição para responder a perguntas, mas tinha um certo interesse pelos estábulos e pelos cavalos que estes albergavam. Mesmo depois de estar satisfeito com o bem-estar do seu próprio animal, ainda olhou à sua volta com um penetrante olhar experiente. Passou pelas mulas e pelos cavalos de trabalho, mas estacou na baia do ruano que pertencera a Drogo Bosiet. Isso era compreensível num apreciador de cavalos, pois o ruano era um animal admirável e, obviamente, um espécime de excelente qualidade.
- A tua casa pode sustentar tal linhagem? - passou uma mão aprovadora sobre as costas brilhantes e acariciou-o entre as orelhas alertas. - Ou será que este companheiro pertence a um hóspede?
- Pertencia - disse Cadfael, poupando ele próprio palavras.
- Pertencia? Como é isso? - Rafe virara-se para o olhar e na sua cara não reveladora, os seus olhos estavam atentos e intencionais.
- O seu proprietário está morto. Está na nossa capela mortuária neste momento - o velho irmão seguira para o seu descanso eterno no cemitério nessa mesma manhã, e Drogo tinha agora toda a capela para si próprio.
- Que tipo de homem era ele? E como é que morreu? - muitas perguntas lhe surgiam na sua cabeça, espantado que estava e do modo abrupto como fora retirado do seu afastamento e indiferença.
- Nós encontrámo-lo morto na floresta, a alguns quilómetros daqui, com uma faca espetada nas costas. E foi, também, assaltado.
Cadfael nunca teve bem a certeza porque é que se tornara tão reticente e porque não dissera, por exemplo, o nome do homem morto. E se o seu companheiro tivesse insistido, como seria natural, ele teria respondido livremente, mas então o inquérito terminou. Rafe encolheu os ombros face aos perigos implícitos de se cavalgar sozinho através dos bosques dos condados fronteiriços e fechou a porta baixa da baia, onde se encontrava o seu cavalo satisfeito.
- Terei isso em conta. Vai bem armado, digo eu, ou mantém-te nas estradas principais.
Sacudiu o pó das mãos e virou-se em direcção ao portal do pátio.
- Bem. vou-me preparar-me para o jantar.
E partiu com um andar decidido, mas não imediatamente na direcção do salão dos hóspedes. Em vez disso, atravessou o pátio até à arcada do claustro e entrou por aí. Cadfael encontrou algo de tão significativo naquele avançar a direito em direcção à igreja, que o seguiu, francamente curioso e oficialmente prestável e encontrando Rafe de Coventry hesitantemente parado junto ao altar e olhando à sua volta para a multiplicidade de oratórios contidos nos transeptos, dirigiu-o com simplicidade para aquele que ele procurava.
- Por aqui. O arco é baixo, mas tu és da minha estatura. não há necessidade de baixares a cabeça.
Rafe não se esforçou por disfarçar ou negar o seu propósito, ou por rejeitar a companhia de Cadfael. Dirigiu-lhe um olhar calmo e considerativo. acenou os seus agradecimentos e seguiu-o. E. entre o frio de pedra e na luz da capela que começava a escurecer, atravessou a sala de imediato até ao ataúde onde o corpo de Drogo Bosiet repousava reverentemente coberto, com velas a arder à cabeceira e aos pés. e ergueu o pano que se encontrava sob a sua cara morta.
Estudou, muito rapidamente, os traços imóveis e pálidos, e cobriu-os novamente, e os movimentos das suas mãos enquanto voltavam a colocar o pano tinham perdido a sua urgência e tensão. Até teve tempo para um simples estremecimento humano causado pela presença da morte.
- Tu por acaso não o conheces? - perguntou Cadfael.
- Não, nunca vi antes. Que a sua alma descanse em paz! - e Rafe endireitou-se depois de se ter inclinado sobre o ataúde e soltou um suspiro aliviado. Qualquer que fosse o seu interesse no corpo, este desaparecera.
- Um homem de propriedades, pelo nome de Drogo Bosiet, de Northamptonshire. Estamos à espera do seu filho a qualquer momento.
- Verdade? Que chegada tão desanimadora será para ele - mas as palavras que agora utilizava eram apenas superficiais e as respostas pouco o preocupavam. - Têm muitos hóspedes nesta altura do ano? Da minha própria idade e condição, talvez? Eu apreciaria um jogo de xadrez à noite, se conseguisse encontrar um companheiro.
Se perdera o interesse em Drogo Bosiet, parecia ainda estar interessado em saber algo acerca de outros que pudessem ter chegado à abadia como viajantes. Alguém da sua idade e condição!
- O Irmão Denis poderia arranjar-te um parceiro - disse Cadfael. deliberadamente obtuso. - Não, esta é uma altura tranquila. Encontrarás o salão meio vazio - estavam a aproximar-se dos degraus do salão dos hóspedes, lado a lado e avançando calmamente, e a luz do final da tarde, obscurecedora e serena, começava a escurecer para uma tonalidade nocturna de um acinzentado de pomba.
- Este homem que foi atacado na floresta - disse Rafe de Coventry. - O vosso xerife lançará certamente os cães atrás do foragido, sobretudo tão perto da cidade. Suspeita-se de algum homem?
- Sim - disse Cadfael -. apesar de não haver certezas. Um recém-chegado a estas partes, que desapareceu do serviço do seu senhor desde o ataque - E acrescentou, sondando inocentemente sem mostrar que o estava a sondar - Um jovem, talvez vinte anos de idade...
Não da idade de Rafe nem da sua condição, não! E sem interesse para este. pois acenou simplesmente à informação, e através da indiferença da sua cara, prontamente a descartou.
- Bem, Deus abençoe a sua caçada! - disse, dispensando Hyacinth como culpado ou inocente, tão irrelevantemente como o que quer que ele tivesse metido naquela sua cabeça fechada e encouraçada.
Ao fundo das escadas do salão de hóspedes, virou-se para dentro, «certamente para examinar», pensou Cadfael, «todos os homens de meia-idade, que viriam jantar ao salão. Procurando por alguém em particular? Cujo nome, já que ele não perguntara por nomes, seria inútil, por ser falso? Um, pelo menos, que não era Drogo Bosiet de Northamptonshire!
CAPÍTULO OITO
Hugh chegou ao feudo de Eaton de manhã cedo, com seis homens a cavalo atrás de si e mais uma dúzia espalhando-se atrás dele, entre o rio e a estrada, para se estenderem sobre toda a extensão de campo e floresta, desde Wroxeter até Eyton e para além desta região. Na busca de um assassino fugitivo, talvez tivessem de dirigir a caça em direcção a oeste, mas Richard devia estar certamente algures aqui nesta região, se de facto partira para avisar Hyacinth da vingança que recaía sobre ele. O grupo de Hugh seguira a estrada directa desde a Abadia Foregate até Wroxeter, uma faixa aberta e rápida, e por isso o caminho mais directo para a floresta, para a cela de Cuthred, onde Richard teria esperado encontrar Hyacinth. Pelas contas do jovem Edwin, antecedia apenas em alguns minutos Bosiet e ter-se-ia apressado, tomando o caminho mais curto e rápido, mas nunca chegara ao eremitério.
- O rapaz Richard? - perguntou o eremita, espantado. - Ontem, não me perguntou nada a seu respeito, só acerca do homem. Não, Richard não apareceu. Lembro-me bem do jovem lorde. Deus permita que nenhum mal lhe tenha acontecido! Eu não sabia que ele estava perdido.
- E tu não voltaste a saber nada dele desde aí? Ele já desapareceu há duas noites.
- Não, não o vi. As minhas portas estão sempre abertas, até de noite - disse Cuthred - e estou sempre aqui, se algum homem precisar de mim. Tivesse a criança estado em algum perigo ou angústia e ao meu alcance, e certamente teria vindo aqui a correr. Mas eu não o vi.
Era a mais pura das verdades que ambas as portas ficavam bem abertas e a escassa mobília, tanto da sala de estar como da capela, surgiam claramente à vista.
- Se souber alguma coisa - disse Hugh - manda chamar-me ou a alguém da abadia, ou se vires os meus homens a revistarem estes bosques à tua volta, tal como verás, entrega-lhes a mensagem.
- Assim farei - disse Cuthred gravemente, e permaneceu no portal aberto do seu pequeno jardim, observando-os enquanto cavalgavam em direcção a Eaton.
John de Longwood avançou a passos largos vindo de um dos grandes celeiros que ladeavam a paliçada, assim que ouviu o entorpecedor ecoar de muitos cascos na terra batida do pátio. Os seus braços nus e a sua cabeça careca eram de um castanho brilhante da cor da madeira de carvalho, pois ele passava a maior parte do seu tempo ao ar livre mantendo-se activo em todas as estações, e não havia trabalho na herdade que ele não pudesse executar. Olhou fixamente para os homens de Hugh. os quais cavalgavam decididamente pelo portão, mais com admiração e curiosidade do que com preocupação, e avançou prontamente ao seu encontro.
- Bem, meu senhor, o que o faz estar a pé tão cedo? - Já se apercebera do significado desta pequena força militar. Sem cães. sem falcões, mas transportando aço à cintura e. sendo dois deles arqueiros, com arcos aos ombros. Este era outro tipo de caça. - Nós não tivemos problemas por aqui. Qual é a novidade de Shrewsbury?
- Estamos à procura de dois faltosos - disse Hugh bruscamente.
- Não me digas que não ouviste dizer que encontrámos um homem assassinado entre esta propriedade e a cidade, há duas noites atrás. E o rapaz do eremita fugiu, e suspeito ser ele o servo fugitivo do homem, com boa razão para se juntar a ele e fugir pela segunda vez. É essa a pedra no nosso sapato.
- Oh, sim. nós ouvimos falar dele - disse John prontamente -, mas creio que ele esteja a uns bons quilómetros daqui por uma altura destas. Não tivemos qualquer sinal dele desde o final daquela tarde, quando esteve aqui para levar alguns bolos de mel que a nossa Dama tinha para Cuthred. Ela também não estava muito satisfeita com ele, ouvi-a a ralhar-lhe. E, certamente, ele era um velhaco descarado. Mas com o avanço que ele levava acho que não o vão voltar a ver. Apesar de eu nunca o ter visto armado - disse John com uma expressão de reflexão e franziu a testa com a dúvida resultante. - Há, pelo menos, uma hipótese que outro qualquer tenha acabado com o seu senhor. A ameaça de o arrastar de volta para a condição de servo feudal seria suficiente para fazer com que o rapaz desse à sola. quanto mais depressa melhor. Seria difícil num país desconhecido ao seu suserano mandar persegui-lo. Não é preciso, certamente, matá-lo. Um estímulo demasiado pequeno para ficar e arriscar-se.
- O rapaz ainda não foi condenado nem acusado - respondeu Hugh -, nem o pode ser, até ser apanhado. Mas também só pode ser ilibado nessa altura. E, de qualquer das formas, eu quero-o. Mas estamos igualmente atrás de outro fugitivo, John. O neto da tua senhora, Richard, saiu dos limites da abadia nessa mesma noite e não regressou.
- O jovem lorde! - ecoou John de boca aberta, atingido com surpresa e consternação. - Desaparecido há duas noites e só agora é que temos notícia disso? Deus nos ajude, ela vai endoidecer! O que é que aconteceu? Quem é que levou o rapaz?
- Ninguém o levou. Ele selou e montou o seu pónei e lá foi ele. sozinho, de sua livre vontade. E o que aconteceu desde então, ninguém sabe. E visto que um daqueles que procuro pode ser um assassino, não deixarei para trás um celeiro sem ser revistado, bem como tenho ordens para todos os homens para se manterem atentos e procurarem também por Richard. É certo que tu és um bom criado, John. nem mesmo tu podes saber que rato se infiltrou em cada vacaria, curral de ovelhas e armazém no feudo de Eaton. E é isso que eu pretendo saber, aqui e em toda a parte, entre este local e Shrewsbury. Entra e diz à Dama Dionísia que peço para falar com ela.
John abanou a cabeça desamparadamente e afastou-se. Hugh desmontou do cavalo e avançou até às escadas que conduziam até à porta do vestíbulo sob a baixa galeria esperando ver como é que Dionísia se mostraria, quando emergisse da ampla entrada superior. Se ela realmente ainda não tinha ouvido nada acerca do desaparecimento do rapaz até este momento, quando o seu lacaio lho contasse, certamente que ele poderia esperar pela sua fúria, alimentada tanto por desânimo genuíno como por pesar. Se ela já o soubesse, então teria tempo para se preparar de modo a representar a sua ira, mas mesmo assim poderia deixar escapar algo que a traísse. Quanto a John, a sua honestidade estava patente. Se ela tinha escondido o rapaz algures, John não tinha conhecimento de tal. Ele não era um instrumento que ela tivesse usado para tal fim, pois ele estava obstinadamente determinado a ser o criado de Richard, não o dela.
Ela surgiu das sombras da entrada, as suas saias azuis ondulando, os seus olhos arrogantes flamejando.
- O que é isto que oiço, meu senhor? Certamente que não pode ser verdade! O Richard desaparecido?
- É verdade, senhora - disse Hugh. observando-a intencionalmente e imperturbável com o facto de ter de olhar para cima para o fazer, tal como o teria feito se ela se lançasse disparada pelas escadas abaixo até ao seu nível, pois ela era mais alta do que ele. - Desde a noite anterior à última que ele desapareceu da escola da abadia.
Ela ergueu as suas mãos fechadas com um grito de indignação.- E só agora é que me contam! Duas noites desaparecido! É esse o cuidado com que tratam as crianças a seu cargo? E são estas as pessoas que me negam o cargo do meu próprio sangue! Eu responsabilizo o abade por qualquer angústia ou mal que possa acontecer ao meu neto. A culpa pesa sobre a sua cabeça. E o que é que está a fazer, meu senhor, para recuperar a criança? Diz-me que está perdido há dois dias, e tarde e a más horas é que me vem dar conhecimento...
O silêncio momentâneo surgiu apenas porque ela parara para recuperar o fôlego, permanecendo com olhos faiscantes no topo das escadas, alta e com os cabelos a embranquecerem uniforme e formidavelmente, a sua longa cara patrícia inundada por sangue enraivecido. Hugh aproveitou-se implacavelmente da vantagem desta calmaria enquanto a mesma durava, pois não haveria de durar muito tempo.
- O Richard esteve aqui? - exigiu ele abruptamente, desafiando a sua exibição de perda e privação.
Ela recobrou fôlego, permanecendo de boca aberta.
- Aqui? Não, ele não veio cá. Estaria eu assim tão perturbada se ele tivesse vindo?
- Enviaria, sem dúvida, recado ao abade - disse Hugh sem malícia - se ele tivesse vindo a correr para casa? Eles não estão menos ansiosos por causa dele na abadia. E ele partiu sozinho, de sua própria livre vontade. Onde haveríamos de procurar por ele em primeiro lugar, senão aqui? Mas diz-me que ele não está aqui, que não esteve aqui. E o pónei dele não voltou a vaguear de volta para casa, para o seu próprio estábulo?
- Ele não voltou, ou eu teria sido avisada de imediato. Se ele tivesse voltado para casa sem cavaleiro - disse ela, as suas narinas chamejando -, eu teria tido todos os homens que me pertencem a vasculhar os bosques à procura do Richard.
- Os meus homens estão ocupados neste preciso momento a fazer exactamente o mesmo - disse Hugh. - Mas por favor, envie toda a gente de Richard para aumentar o número, e seja bem-vinda. Quantos mais, melhor. Pois parece que não ainda não encontrámos nada - disse ele, ainda estudando pensativamente a cara dela - e afinal de contas ele não está aqui.
- Não - ela exclamou -, ele não está aqui! Não, ele não esteve cá! Apesar de que se ele partiu de livre vontade, como diz. talvez pretendesse voltar para mim, para casa. E o que quer que seja que lhe tenha acontecido pelo caminho, eu atribuo a culpa a Radulfus. Ele não serve para ter a seu cargo uma criança nobre, se não souber tomar melhor conta dela.
- Eu dir-lhe-ei isso - disse Hugh serviçalmente, e continuou com mansidão aborrecida - O meu presente dever é então continuar com a busca, tanto por Richard como pelo ladrão que matou um hóspede da abadia na floresta de Eyton. Não precisa de recear, senhora, pois a minha busca será minuciosa. Visto que não posso esperar que a senhora faça rondas diárias de cada canto do feudo do seu neto, sem dúvida que ficará satisfeita por me conceder livre acesso a todo o lado, para fazer esse serviço por si. Deve desejar dar o exemplo aos seus inquilinos e vizinhos.
Ela deitou-lhe um longo olhar hostil e do mesmo modo repentino girou para John de Longwood, que permanecia impassível e neutro a seu lado. Na tempestade dos seus movimentos, a sua longa saia chicoteava como a cauda de um gato zangado.
- Abre as portas a estes oficiais. Todas as minhas portas! Deixa que eles se satisfaçam com o facto de eu não albergar um assassino, nem esconder o meu próprio sangue neste local. Deixa que todos os nossos vassalos saibam que é por minha vontade que eles se submetam à busca tão livremente quanto eu. Meu senhor xerife - disse ela, olhando para baixo com imensa dignidade sobre Hugh -, entrai e procurai onde quer que desejais.
Ele agradeceu-lhe com um civismo imperturbável, como se ela tivesse visto o reflexo nos olhos dele. o qual era quase um sorriso aberto, mas ela desprezou-o sem o reconhecer, virando-lhe as costas direitas, e retirou-se com uma passada rápida e furiosa em direcção ao vestíbulo, deixando-o para uma busca que ele sabia já que seria infrutífera. Mas não havia certezas, e se ela tinha calculado que tal convite impetuoso e de rompante seria tomado como uma prova e eles partiriam satisfeitos, até mesmo envergonhados, estava muito enganada. Hugh começou a sondar cada canto do salão de Dionísia e do solar, cozinhas e armazéns, examinou cada tonel, carro de mão e barril na galeria subterrânea, cada vacaria, celeiro e estábulo que ladeavam a paliçada, a oficina do ferreiro, cada palheiro e despensa, e dirigiu-se para o exterior em direcção aos campos e ao curral das ovelhas e depois para as cabanas de cada rendeiro, couteiro e servo da terra de Richard. Mas não o encontraram.
O Irmão Cadfael viajou para o terreno desbravado de Eilmund a meio da tarde, com as novas muletas que o Irmão Simon fizera à medida do couteiro, suportes bons e sólidos para suportar um peso maciço. A fractura parecia estar a solidificar bem. a perna estava direita e não estava mais curta. Eilmund não estava habituado a manter-se deitado e inactivo, e tinha ciúmes de outras mãos que estivessem a cuidar dos seus bosques. Logo que ele conseguisse deitar a mão a estes apoios, Annet teria dificuldade em mantê-lo fechado. Cadfael tinha em mente que o desamparo do pai de Annet lhe proporcionara uma liberdade rara para seguir os seus próprios passatempos femininos, sem dúvida suficientemente inocentes, mas o que Eiimund pensaria deles quando os descobrisse era outra questão.
Aproximando-se da aldeia de Wroxeter, Cadfael encontrou-se com Hugh, que cavalgava de regresso à cidade após um longo dia na sela. Nos terrenos e nos bosques, os seus oficiais ainda passavam metodicamente a pente fino cada arvoredo e cada promontório, mas Hugh tinha de voltar para o castelo sozinho, para reunir quaisquer relatórios que tivessem sido entregues e considerar a melhor maneira de cobrir o terreno restante e quão longe deveria a busca ser estendida, se não tivesse já dado os seus frutos.
- Não - disse Hugh, respondendo à questão não colocada, assim que se encontraram ao alcance da voz um do outro -, ela não o tem. Pelos sinais que mostrou, ela nem sequer sabia que o tinhas perdido até eu lho dizer, embora eu saiba que não é um truque muito difícil para qualquer mulher fazer tal espectáculo de admiração. Mas nós separámos cada espiga dos seus celeiros e o que nos escapou deve ser demasiado pequeno para alguma vez ser descoberto. Não havia nenhum pónei preto no estábulo. Todas as almas contam a mesma história, desde John de Longwood até ao ajudante do ferreiro. Richard não está lá. Nem em nenhuma cabana ou vacaria nesta aldeia. O padre revirou a sua casa para nós e acompanhou-nos na ronda do feudo, e ele é um homem honesto.
Cadfael anuiu face à sombria confirmação das suas próprias dúvidas.
- Tive um pressentimento que talvez pudesse haver mais do que isso. Suponho que valha a pena tentar em Wroxeter. Não que eu esteja a ver o Fulke Astley como um provável vilão, ele é demasiado gordo e cauteloso.
- Acabo de chegar de lá - disse Hugh. - Três dos meus homens ainda estão a espiolhar os últimos recantos, mas fico satisfeito que ele também não esteja por lá. Não deixaremos nada escapar, feudo, cabana, terreno desbravado, tudo. Tudo o que lhes surja de semelhante, nenhum deles se poderá queixar. Apesar de Astley ter ficado eriçado por nos ter deixado entrar. Uma questão de dignidade senhorial, pois não havia lá nada para ser encontrado.
- O pónei - disse Cadfael pensativamente, mordendo um lábio - deve estar fechado algures.
- A não ser - respondeu Hugh sombriamente - que o outro fugitivo o tenha montado para sair do condado e tenha deixado o rapaz de tal forma que ele não possa ser testemunha, até mesmo quando o encontrarmos.
Olharam fixamente um para o outro, admitindo calados que era uma possibilidade negra e amarga, mas uma que não podia de todo ser banida.
- A criança fugiu para se encontrar com ele, se foi realmente o que fez - continuou Hugh tenazmente -, sem dizer uma palavra a ninguém. E se realmente se foi encontrar com um velhaco e assassino em toda a sua inocência? O cavalo de patas curtas é um pequeno animal robusto, grande para Richard, o rapaz eremita um peso-pluma e Richard a única testemunha. Eu não digo que assim o seja. Eu digo, sim, que tais coisas já aconteceram e podem voltar a acontecer.
- É verdade, não discordo disso - admitiu Cadfael. Havia algo no seu tom que fez com que Hugh dissesse com toda a certeza:
- Mas tu não acreditas nisso - era algo sobre o qual o próprio Cadfael tinha tido menos certezas até àquele momento. - Sentes os teus polegares a latejarem? Sei que não devo ignorar o presságio se tu o fizeres - disse Hugh com um sorriso meio relutante.
- Não, Hugh - Cadfael abanou a cabeça. - Não sei de nada que te seja desconhecido, nem sou o advogado de ninguém neste caso, à excepção de Richard. eu mal troquei uma palavra com este rapaz Hyacinth, nunca o vi senão duas vezes, quando levou a mensagem de Cuthred ao capítulo e quando ele me veio buscar para ir ter com o couteiro. Tudo o que posso fazer é manter os meus olhos abertos entre este local e a casa de Eilmund. e podes ter a certeza de que o farei e talvez até faça desvios ao longo do caminho. Se eu tiver alguma coisa para contar, podes ter a certeza de que a ouvirás antes de qualquer outro. Sejam más ou boas, mas que Deus e a Santa Winifred nos forneçam boas notícias!
Com aquela promessa separaram-se, Hugh a cavalo na direcção do castelo para receber quaisquer que fossem as notícias que o vigia a esta hora da tarde pudesse, eventualmente, ter para ele; Cadfael dirigindo-se através da aldeia na direcção da orla dos bosques. Não tinha pressa. Tinha muito em que pensar. Estranho como o próprio acto de admitir que o pior poderia acontecer tivesse fortalecido tão instantaneamente a sua convicção de que não tinha acontecido e não haveria de acontecer. Ainda mais estranho fora que quando declarara com sinceridade que não sabia nada de Hyacinth e que mal falara com ele. se achasse logo de seguida tão fortemente persuadido de que muito em breve essa falta iria ser colmatada e ele aprenderia, senão tudo, pelo menos tudo aquilo que precisava de saber.
Eilmund recuperara a sua cor saudável, recebeu ansiosamente a companhia e não se conseguiu impedi-lo de experimentar de imediato as suas muletas. Quatro ou cinco dias engaiolado dentro de casa era um teste doloroso ao seu temperamento, mas o alívio de ser capaz de saltar vigorosamente para o jardim e descobrir que aprendia rapidamente a arte da utilização das suas novas pernas trouxe-lhe imediatamente outro estado de espírito. Quando se satisfez com a sua competência, sentou-se de boa vontade, às ordens de Annet, para partilhar um jantar com Cadfael.
- Apesar de ser obrigado a regressar - disse Cadfael -, agora sei que estás a passar bem. O osso parece estar a solidificar como uma rocha e não precisarás de mim aqui a afligir-te todos os dias. E falando de visitantes inconvenientes, tiveste cá hoje o Hugh Beringar ou os seus homens, a revistar os bosques. Já deves ter ouvido que eles andam à caça do rapaz de Cuthred, Hyacinth, por suspeita de ter morto o seu suserano? E também desapareceu o jovem Richard.
- Ouvimos falar de ambos só ontem à noite - respondeu Eilmund. - Sim, eles estiveram aqui esta manhã, uma longa fila de homens da guarnição a percorrerem o caminho ao longo de cada terreno da floresta entre a estrada e o rio. Eles até espreitaram para dentro da minha vacaria e da casa do feno. Will Warden murmurou que era uma loucura desnecessária, mas que tinha as suas ordens. Para quê perder tempo, diz ele, incomodando um bom companheiro que todos nós sabemos ser honesto, mas a minha pele não vale nada se deixar de fora uma única cabana ou deixar os meus batedores passarem por um arbusto solitário, com o olhar da sua senhoria sobre todos nós. Sabes se já encontraram a criança?
- Não. ainda não. Ele não está em Eaton, isso é certo. Se serve de algum conforto, Eilmund, a Dama Dionísia teve de abrir as suas portas à busca também. Nobres e simples, são todos iguais.
Annet esperou por eles em silêncio, trazendo queijo e pão para a mesa. Os seus passos eram tão leves como sempre, a sua expressão calma, e somente a menção de Richard fez a sua cara nublar-se numa simpatia ansiosa. Não havia maneira de saber o que se passaria por detrás da sua cara composta, mas Cadfael arriscou os seus próprios palpites. Retirou-se em boa altura, apesar das insistências hospitaleiras de Eilmund.
- Tenho estado a perder muitos serviços nestes últimos dias, é melhor eu regressar ao meu dever e, pelo menos, parecer apresentável para as Completas hoje à noite. Virei cá visitar-te depois de amanhã. Toma cuidado contigo. E, Annet, não o deixes ficar de pé durante muito tempo. Se ele te der problemas, tira-lhe as muletas.
Ela riu-se e disse que o faria, mas a sua cabeça, pensou Cadfael, estava apenas meio atenta ao que ele dissera e ela não fizera qualquer movimento para apoiar o protesto do pai com a sua partida tão rápida. Nem sequer saiu com ele para o acompanhar até ao portão desta vez, mas apenas até à porta e aí ficou, observando-o a montar, e acenou quando ele olhou para trás antes de começar a cavalgar com dificuldade pelo estreito caminho entre as árvores. Só quando ele desaparecera, é que ela se virou e voltou para a cabana.
Cadfael não foi muito longe. A uns quantos metros no interior dos bosques, havia uma clareira verde rodeada por uma moita densa e aí ele desmontou e amarrou o seu cavalo, percorrendo de volta e muito silenciosamente o seu caminho, até encontrar um local de onde pudesse ver a porta da casa, sem ele próprio ser visto. A luz diminuía suavemente para um verde suave de crepúsculo e o silêncio era profundo, apenas o último cantar dos pássaros quebrava o silêncio da floresta.
Passados alguns minutos, Annet foi novamente até à porta e manteve-se durante um momento, encolhida e quieta, a sua cara com uma expressão de alerta, olhando em redor para a clareira e escutando atentamente. Então, satisfeita, saiu apressadamente do jardim vedado e contornou-o para as traseiras da cabana. Cadfael seguiu-a com o olhar sob a cobertura das árvores. As suas galinhas estavam já seguramente fechadas para a noite, a vaca estava na vacaria; destas tarefas nocturnas habituais. Annet regressara havia uma boa hora atrás, enquanto o seu pai experimentava as suas muletas na relva da clareira. Parecia que havia mais uma tarefa que ela tinha de fazer antes do cair da noite e antes da porta estar fechada e trancada. E ela dirigia-se a esta numa corrida ligeira e jovial, as suas mãos abertas para afastar os arbustos de ambos os lados enquanto se aproximava da orla da clareira, o seu cabelo castanho claro soltando-se livremente do seu rolo e dançando sobre os seus ombros, a sua cabeça inclinada para trás como se ela olhasse para cima para as árvores, as quais escureciam sobre a sua cabeça e, silenciosamente e de modo húmido, caía a ocasional folha murcha, as lágrimas do ano envelhecido.
Não ia para longe. Poucos passos dentro dos bosques, ela parou, equilibrando-se ainda com a mesma atitude jovial de fuga, debaixo dos ramos do primeiro dos carvalhos idosos, ainda cheio de folhagem mas já acastanhado. Cadfael, colocado não muito atrás dela sob o abrigo das árvores, viu-a lançar para trás a sua cabeça e enviar, na direcção do topo da árvore, um alto e melodioso assobio. Algures de cima, um suave vislumbre de folhas respondeu, caindo por entre os ramos como uma bolota poderia cair e, num momento, o tremer descendente de movimento alcançou o chão sob a forma de um homem jovem, súbito e silencioso como um gato, que balançou através das suas mãos do ramo mais baixo e caiu levemente de pé ao lado de Annet. Assim que ele tocou o chão, encontravam-se nos braços um do outro.
Então ele não se enganara. Os dois, mal tinham olhado um para o outro, tinham caído de amores, tão abençoados que foram com a boa oferta dos seus serviços ao pai dela. Com Eilmund deitado desamparado na casa, ela podia sair livremente para tratar do seu assunto secreto de esconder e alimentar um fugitivo, mas o que haveriam eles de fazer agora que o couteiro estava prestes a andar a pé e por ali, por muito limitado que o seu alcance fosse? Seria justo presentear o seu pai com um problema tal em lealdades, e a ele, um oficial envolvido com a lei, se bem que só lei florestal? Mas ali permaneciam eles unidos, tão candidamente como crianças, com uma sugestão de permanência acerca do seu abraço, que certamente levaria mais tempo do que pai ou lorde ou lei ou rei para os desembaraçar. Com a sua longa crina de cabelo solto, e os seus pés descalços, e a elegância clássica de Hyacinth de forma e movimento, e a sua beldade feroz e inquietante, eles podiam ter sido duas criaturas oriundas da antiga floresta, fauno e ninfa saídos de uma fábula profana mas adorável. Nem mesmo a reunião do crepúsculo poderia escurecer o seu brilho.
«Bem», pensou Cadfael rendendo-se à visão, «se é com isto que teremos de lidar, a partir daqui teremos de continuar, pois não há como regressar». E saiu detrás dos arbustos sussurrando, e caminhou na direcção deles sem se esconder.
Eles ouviram-no e saltaram instantaneamente com as suas cabeças inclinadas, face contra face, como veados pressentindo perigo. Viram-no e Annet esticou os braços e escondeu Hyacinth atrás dela contra o tronco da árvore, a sua cara branca e afiada como uma espada, e tão decididamente Hyacinth riu-se, puxou o seu corpo para o lado e colocou-se à sua frente.
- Como se eu precisasse de uma prova! - disse Cadfael, para lhes transmitir qualquer segurança que a sua voz pudesse carregar e parou sem se aproximar muito, apesar de eles saberem já que não valia a pena correr. - Eu não sou a lei. Se não fizeste mal nenhum não tens nada a recear da minha parte.
- É preciso um homem mais corajoso do que eu - disse a voz clara de Hyacinth suavemente - para afirmar que não fiz nada de mal - até mesmo na luz que diminuía, o seu sorriso súbito e imperturbável brilhou perceptivelmente por um momento. - Mas não cometi nenhum assassínio, se é isso que quer dizer, Irmão Cadfael, não é?
- Sim - ele olhou de uma cara excitada e cautelosa para a outra e viu que eles estavam a respirar um pouco mais facilmente, e a cada momento menos tensos para fugirem ou atacarem. - Sorte a tua por eles não terem trazido cães esta manhã. Hugh nunca gosta de caçar um homem com cães. Desculpa, rapaz, se a minha visita hoje à noite te impediu de ficares mais tempo do que precisavas no teu ninho lá em cima. Espero que passes as tuas noites com mais conforto.
Com isso, ambos sorriram, ainda de certo modo cautelosamente e com olhos alerta e selvagens, mas nada disseram.
- E onde é que te escondeste durante a busca do sargento, que eles nunca suspeitaram sequer de ti?
Annet decidiu-se, com a mesma resolução prática com a qual fazia tudo. Estremeceu e abanou-se, a cobertura brilhante do seu cabelo ondulando numa onda pálida à volta da sua cabeça. Respirou profundamente e riu.
- Se tem de saber, ele esteve debaixo das mantas da cama do pai, enquanto Will Warden se sentava no banco oposto bebendo cerveja connosco e os seus homens espreitavam por entre as minhas galinhas e espetavam forquilhas através do feno no celeiro lá fora. Pensou, creio eu - disse ela aproximando-se de Cadfael e arrastando Hyacinth atrás dela pela mão -. que o pai ignora o que eu estou a fazer. Pensou isso de mim, mesmo que só um bocadinho? Não precisa, ele sabe de tudo, sabe de tudo desde o início ou, pelo menos, desde que esta caça ao homem começou. E agora que nos descobriu, não seria melhor irmos todos para dentro de casa e vermos o que conseguem as nossas cabeças arranjar para o futuro para nos tirar a todos desta confusão?
- Eles não hão-de voltar aqui - disse Eilmund confortavelmente, presidindo a esta reunião na sua casa, a partir do trono da sua cama, a mesma cama debaixo da qual Hyacinth se agachara em segurança na presença dos caçadores. -, mas se voltarem, saberemos disso a tempo. Nunca se utiliza duas vezes o mesmo esconderijo.
- E nunca nem por uma única vez quaisquer escrúpulos por poderes estar a esconder um assassino? - perguntou Cadfael, com esperança de parecer convincente.
- Não há necessidade de nenhum! Desde o início disto, que não tinha necessidade disso. E também o saberás. Falo de prova reais, Cadfael, não de uma simples questão de fé, apesar da fé não ser uma mera questão, se falarmos sobre isso. Estiveste aqui ontem à noite, foi no teu caminho de regresso que descobriste o homem morto, e morto há não mais do que uma hora quando tu o encontraste. Dizes sim a isso?
- Mais do que de boa vontade, se te ajudar a provar.
- E tu deixaste-me quando a Annet regressava do trabalho que a mantém ocupada à noite. Lembras-te que eu disse que ela se demorara mais do que suficiente de volta dele e. de facto, fizera-o bem mais de uma hora. Por bons motivos, ela encontrara-se com este jovem e o que quer que seja que eles estiveram a fazer, não se apressaram com isso, o que não te surpreenderá por aí além, atrevo-me a dizê-lo. Em resumo, este dois estiveram juntos nos bosques a relativamente poucos metros daqui, desde a altura em que ela nos deixou até regressar perto de duas horas mais tarde. E aí o jovem Richard encontrou-os e ela trouxe consigo este rapaz, e dez minutos depois de tu teres partido, ela trouxe-o até mim. Nenhum assassino, pois durante todo esse tempo, ele esteve com ela ou comigo ou ambos, e nesta casa dormiu naquela noite. Nunca esteve perto do homem que foi morto, e podemos jurar isso.
- Então porque é que tu não... - começou Cadfael e tão repentinamente se arrependeu da pergunta desnecessária, e levantou uma mão para afastar a resposta óbvia. - Não, não digas nada! Vejo muito bem porquê. As minhas faculdades mentais estão entorpecidas esta noite. Se te apresentasses para contar a Hugh Beringar que ele anda atrás de um homem que pode provar ser inocente, é verdade que podias afastar esse perigo dele. Mas se um Bosiet está morto, há outro prestes a chegar a qualquer momento, já pode ter chegado neste preciso momento, tanto quanto eu sei. Tão mau quanto o seu antepassado, assim o diz o lacaio, e ele tem bons motivos para o saber, já que carrega as marcas disso. Não, eu percebo como é que tu te envolveste.
Hyacinth sentou-se nos juncos do chão aos pés de Annet, abraçando os seus joelhos levantados. Ele falou sem paixão ou ênfase, mas com uma finalidade tranquila e uma absoluta resolução.
- Não vou voltar para lá.
- Não. não mais o farás! - exclamou Eilmund calorosamente. - Tu compreenderás, Cadfael, que quando acolhi o rapaz não fazia sequer ideia de que tinha havido um assassínio. Era um servo feudal fugitivo que eu escolhi abrigar, um com bons motivos para fugir, e um que me tratou da melhor das maneiras que qualquer homem poderia ter tratado outro. Gostei muito dele e não o enviaria de volta por motivo nenhum, para ser maltratado. E depois, quando o alerta de assassínio surgiu, não tive razão para sentir de modo diferente, pois eu sabia que ele não tinha tomado parte nele. Foi contra os meus princípios não ser capaz de sair e de o dizer ao xerife, ao abade e a todos, mas vês que era impossível. E o fim disso é: aqui estamos com o rapaz nas nossas mãos e como é que nos vamos assegurar da segurança dele?
CAPÍTULO NOVE
Era tido como certo por todos eles, ao que parecia, que Cadfael se encontrava do lado deles e entregara-se de coração à conspiração. Como poderia ser de outra forma? Aqui estava a prova absoluta de que o rapaz não era nenhum assassino, prova que podia ser colocada nas mãos de Hugh Beringar com confiança na sua justiça, sem qualquer dúvida disso. Todavia, isso não poderia ser feito sem expor Hyacinth ao mesmo perigo do qual ele tinha fugido outrora, e mal podia ter esperança de conseguir escapar uma segunda vez. Hugh era obrigado pela lei tal como outro homem qualquer, e até mesmo a sua capacidade para olhar para outro lado e fazer ouvidos de mercador não ajudaria Hyacinth se alguma vez Bosiet tivesse notícias de onde ele estava e de quem o estava a abrigar.
- Entre nós - disse Cadfael, apesar de um pouco duvidoso - talvez consigamos tirar-te do condado e colocar-te em direcção a Gales, livre de perseguição...
- Não - disse Hyacinth firmemente. - Não fugirei. Esconder-me-ei durante tanto tempo quanto possível, mas não vou continuar a fugir. Era o que eu pretendia ter feito quando me meti por este caminho, mas mudei de ideias.
- Porquê? - exigiu Cadfael simplesmente.
- Por duas boas razões. Primeiro, porque Richard está perdido e ele salvou-me a pele, trazendo-me a notícia de que me procuravam e eu sou seu devedor até saber que ele está salvo, e de regresso aonde deve estar. E segundo, porque eu quero a minha liberdade aqui em Inglaterra, aqui em Shrewsbury, e pretendo arranjar trabalho na cidade quando puder, com segurança, ganhar a vida e arranjar mulher - olhou para cima para Eilmund com um brilho vivo e desafiador nos seus olhos âmbar e sorriu. - Se a Annet me aceitar!
- É melhor pedires a minha opinião a esse respeito - disse Eilmund. mas com tão bom humor que era óbvio que a ideia não lhe era totalmente nova, nem seria necessariamente mal recebida.
- Eu o farei quando chegar a altura, mas não te ofereceria nem a ti nem a ela o que sou e o que tenho agora. Por isso. deixa isso esperar, mas não te esqueças - avisou o fauno, brilhando. - Mas eu tenho de encontrar Richard, vou encontrá-lo! Isso está primeiro!
- O que podes fazer - perguntou Eilmund prático - mais do que Hugh Beringar e todos os seus homens estão a fazer? E tu próprio um homem caçado, com os cães no teu rastro! Mantém-te quieto como um rapaz razoável e esconde a tua cabeça até a caça de Bosiet lhe começar a custar mais do que o ódio que tem por ti, como acontecerá por fim. Tem agora feudos em casa em que pensar.
Porém, se Hyacinth era, através de padrões comuns, um rapaz inteligente, era uma questão de conjectura. Sentou-se muito quieto, naquele modo tenso e sugestivo que ele tinha, o qual prometia acção iminente, o suave brilho do fogo de Annet brilhando nas suas faces subtilmente lívidas e na sua testa, transformando o bronze em dourado. E Annet. a seu lado no banco almofadado, junto à parede, possuía algo de semelhante. A cara dela estava calma, mas os seus olhos eram de um tom de safira vivo. Deixava que eles falassem dela na sua presença e não sentia necessidade de acrescentar uma palavra em seu favor, nem tão-pouco tocou o esbelto ombro de Hyacinth para confirmar a sua posse. Quem quer que fosse que tivesse dúvidas em relação às reivindicações de Annet sobre o futuro, Annet não tinha nenhuma.
- Richard deixou-te assim que te entregou o aviso? - perguntou Cadfael.
- Deixou. Hyacinth quis ir com ele até à orla do bosque - disse Annet -. mas ele não aceitou isso. Não se moveria, a não ser que Hyacinth se escondesse imediatamente, por isso prometemos-lho. E ele voltou a partir pelo mesmo caminho. E nós voltámos para aqui para o pé do pai, tal como ele lhe contou, e não vimos mais ninguém ao longo do caminho. Richard não teria ido para nenhum sítio perto de Eaton, ou eu teria pensado que a avó dele teria ficado com ele. Mas ele estava inclinado a voltar para a sua cama.
- Foi o que todos nós pensámos - admitiu Cadfael -, menos Hugh Beringar. Mas ele foi lá hoje cedo e virou o local de pernas para o ar, e o rapaz não está lá. Acho que John de Longwood e metade da casa teriam dito se o tivessem visto por lá. A Dama Dionísia é uma senhora formidável, mas Richard é o suserano de Eaton, é a ele que eles têm de obedecer de futuro, não a ela. Se eles não se tivessem atrevido a falar perante ela, tê-lo-iam feito facilmente nas suas costas. Não, ele não está lá. Já passava havia muito da hora do serviço das Vésperas. Mesmo que regressasse agora, Cadfael chegaria demasiado tarde para as Completas, mas mesmo assim fixou-se teimosamente em rever toda esta nova situação na sua cabeça, procurando pela melhor solução a seguir, onde parecia não restar mais nada para fazer do que esperar, e continuar a evitar a caçada. Sentia-se satisfeito por Hyacinth não ser nenhum assassino, pelo menos isso era um benefício, mas como mantê-lo fora do alcance de Bosiet era outra questão.
- Por amor de Deus, rapaz - disse ele suspirando -, o que foi que tu fizeste ao teu suserano, lá em Northamptonshire, para seres tão amargamente odiado? Agrediste de facto o seu lacaio?
- Agredi -reconheceu Hyacinth com satisfação, e uma faísca vermelha reminescente ateou-se nos seus olhos. - Foi depois do final da colheita e havia uma rapariga a respigar nos pobres restos de um dos campos da propriedade. Não havia uma rapariga a salvo se ele a apanhasse sozinha. Foi só por acaso que eu estava perto. Ele tinha um bastão e desferiu-o sobre a minha cabeça girando-o, quando eu o ataquei. Fiquei com umas quantas contusões, mas deitei-o ao chão sobre as pedras debaixo duma pequena porção de terra por semear, retirando-lhe as suas faculdades mentais. Portanto, não havia nada que eu pudesse fazer senão fugir. Não tinha nada para deixar, nem terra... Drogo penhorara o meu pai dois anos antes, quando ele estava a morrer e eu tinha tudo para fazer, os nossos campos e o trabalho da colheita de Bosiet, e acabámos por ficar endividados. Estava atrás de nós havia já algum tempo, dizia que eu estava sempre a incitar os seus servos feudais contra ele... Bem, se o estava, era pelos seus direitos. Existem leis para defender e escapar a salvo até mesmo para os servos, mas eles significam pouco nos feudos de Bosiet. Ele ter-me-ia morto por ter atacado o lacaio, teria mandado que eu fosse enforcado, se eu não fosse tão lucrativo para ele. Era a oportunidade pela qual esperava.
- De que modo eras tu lucrativo para ele? - perguntou Cadfael.
- Eu tinha jeito para trabalho de curtumes, cintos, couraças, bolsas e esse género de trabalho. Quando ele me retirou as terras, ofereceu-se para me deixar a pequena quinta, se eu me comprometesse a entregar-lhe todo o meu trabalho para o meu sustento. Eu não tive escolha, era ainda seu servo. Mas comecei a fazer estampagem e a dourar. Uma vez, quis obter um favor do conde e mandou-me fazer uma capa para um livro para lhe dar como presente. E depois o Prior dos cânones Agostinhos em Huntingdon viu-o e encomendou uma oferta para o grande códice que lhes pertencia, e o sub-prior de Cluny em Northampton quis o seu melhor missal reencadernado e. assim, continuou. E eles pagavam bem, mas eu não ficava com nada. Drogo saiu-se bem às minhas custas. Essa é a outra razão pela qual ele me queria de volta vivo. E também o quererá o seu filho Aymer.
- Se tiveres um dom como esse nas pontas dos teus dedos - disse Eilmund aprovador -, podes seguir para onde quiseres, assim que estiveres livre destes Bosiets. O nosso abade pode muito bem arranjar-te trabalho e qualquer mercador da cidade ficará satisfeito por te ter a trabalhar para si.
- Onde e como é que tu conheceste o Cuthred? - perguntou Cadfael, curiosamente.
- Foi no priorado de Cluniac em Northampton. Eu dormi lá uma noite, mas não me atrevi a entrar no enclave, estavam lá um ou dois que me conheciam. Arranjei comida sentando-me com pedintes no portão e quando me preparava para partir antes da madrugada. Cuthred também se encontrava de partida, tendo passado a noite no salão dos hóspedes - um súbito sorriso sombrio repuxou os cantos dos lábios eloquentes de Hyacinth. Manteve os seus espantosos olhos ocultos sob as suas pestanas arqueadas e douradas. - Propôs que viajássemos juntos. Por caridade, certamente. Ou para que eu não tivesse de roubar para comer, e afundar-me ainda mais do que anteriormente numa situação pior.
Igualmente de modo súbito, olhou para cima, desvendando todo o brilho dos seus olhos, fixando-os total e solenemente na cara de Eilmund. O sorriso desaparecera.
- Está na altura de saberes o pior a meu respeito, não quero mentiras entre nós. Cheguei aqui sem dever nada ao mundo e pronto para qualquer dano, e poderia ser um rufião e um vagabundo, e tenho sido um ladrão por necessidade. Antes que me acolhas por mais uma hora, deves saber que motivos tens para pensar melhor acerca disso. A Annet - disse ele, a sua voz baixando e suavizando-se ao dizer o seu nome - já sabe aquilo que também tu tens de saber. Tens esse direito. Contei-lhe a verdade na noite em que o Irmão Cadfael esteve aqui para te colocar no lugar o osso deslocado.
Cadfael lembrava-se da figura estática sentada pacientemente no exterior da cabana, o sussurro urgente: «Tenho de falar contigo!». E Annet a sair para a escuridão e fechando a porta atrás de si.
- Fui eu - disse Hyacinth com uma deliberação de aço - que obstruí o riacho com arbustos, de modo que as tuas jovens árvores ficassem inundadas. Fui eu que escavei por baixo da ladeira e fiz a ponte sobre o fosso, de modo que o veado entrasse na pequena mata. Fui eu que mudei uma das paliçadas da cerca de Eaton, para deixar sair as ovelhas em direcção aos rebentos de freixo. Recebi as minhas ordens da Dama Dionísia para ser um tormento constante para a abadia, até eles lhe darem de volta o seu neto. Foi por isso que ela instalou o Cuthred no seu eremitério, para me colocar lá como seu criado. E, na altura, eu não sabia nada acerca de nenhum de vocês e nem queria saber, e não ia discutir com o que me proporcionava uma vida confortável e um refúgio seguro até eu poder fazer melhor. Foi o meu acto, o que ainda aumenta mais a pena, que poderia ter provocado o pior e a árvore caiu sobre ti e pregou-te no riacho, por eu ter feito isso tu ficaste a coxear e aprisionado aqui, apesar daquela escorregadela ter sido espontânea, eu não lhe voltei a tocar. Portanto, agora sabes - disse Hyacinth -, e se achares necessário arrancar-me a pele por causa disso, eu não levantarei uma mão para o impedir e se me expulsares depois disso, eu irei - ergueu uma mão na direcção da mão de Annet e acrescentou simplesmente -, mas não para longe!
Houve uma longa pausa enquanto os dois ficaram sentados olhando-o fixamente, intensa e silenciosamente e Annet observava-os não menos apreensivamente, todos eles retendo o seu próprio julgamento. Ninguém se insurgira contra ele, ninguém interrompera esta confissão meio desafiadora. A verdade de Hyacinth foi usada como um punhal e a sua humildade rasou muito de perto a arrogância. Se ele estava envergonhado, não o mostrava na sua cara. Contudo, podia não ter sido fácil despir-se assim com a consideração e generosidade que o pai e a filha lhe tinham mostrado. Se ele não tivesse falado, obviamente Annet não teria dito uma palavra. E ele não tinha suplicado, nem tentara nenhuma atenuante. Estava preparado para receber o que era devido sem queixas. Era de se duvidar se algum confessor, por muito eloquente ou terrível, conseguisse alguma vez fazer com que esta criatura orgulhosa se penitenciasse mais do que isto.
Eilmund estremeceu, colocando os seus largos ombros mais descontraidamente contra a parede e exalou um grande e tempestuoso fôlego.
- Bem, se fizeste com que a árvore caísse sobre mim, também a içaste de cima de mim. E se pensas que eu entregaria de volta um servo fugitivo à escravatura, por ele me ter pregado algumas partidas, não estás bem familiarizado com o meu tipo simples. Acho que o susto que te preguei naquele dia foi todo o castigo de que tu precisavas. E desde aí não me fizeste mais mal nenhum, pois de tudo o que eu ouvi dizer tem havido sossego nos bosques desde esse dia. Duvido que a senhora esteja satisfeita com o que obteve. Mostra a tua sensatez e fica onde estás.
- Eu disse-lhe - disse Annet, sorrindo com confiança - que tu não lhe retribuirias dano com dano. Eu nunca disse uma palavra, eu sabia que ele haveria de falar por si. E o Irmão Cadfael sabe agora que Hyacinth não é nenhum assassino, bem como o pior a seu respeito. Não há aqui ninguém que o vá trair.
Não, nem um! Mas Cadfael manteve-se sentado de certo modo ansiosamente, pensando no melhor que se poderia fazer agora. Certamente que a traição seria impossível, mas a caça continuaria e podia bem voltar a revirar todos estes bosques e entretanto, Hugh na sua natural concentração motivada por esta busca, podia
estar a perder toda a possibilidade de encontrar o verdadeiro assassino. Até mesmo Drogo Bosiet tinha direito à sua justiça, contudo ele infringia os direitos de outros. Ocultando de Hugh a garantia e a prova da inocência de Hyacinth, podia estar a atrasar a nova avaliação que colocaria em movimento a perseguição do culpado.
- Confias em mim e deixas-me contar ao Hugh Beringar o que me contaste? Permite-me ausentar-me - insistiu Cadfael apressadamente, vendo as caras deles endurecidas de consternação -. para lidar com ele privadamente...
- Não! - Annet colocou a sua mão possessivamente sob o ombro de Hyacinth, ardendo como um fogo agitado. - Não, não o pode entregar! Confiámos em si, não nos pode abandonar.
- Não. não. não é isso! Eu conheço bem o Hugh, ele não entregaria de boa vontade um servo feudal para ser mal tratado, ele é a favor da justiça até mesmo antes da lei. Deixa-me contar-lhe apenas que o Hyacinth está inocente, e mostrar-lhe a prova. Não preciso de dizer nada acerca de como é que o sei ou onde é que ele está, o Hugh acreditará em mim. Então ele poderá suspender a sua busca e deixar-te em paz, até ser seguro tu apareceres e falares abertamente.
- Não! - gritou Hyacinth. de pé num movimento selvagem e ligeiro, os seus olhos duas chamas amarelas de alarme e rejeição. - Nem uma palavra dirigida a ele, nem uma palavra! Se soubéssemos que iria ter com ele, nunca lhe teríamos contado. Ele é o xerife, ele deve tomar o lado de Bosiet. ele tem feudos, ele tem servos seus. acha que ele alguma vez se colocaria do meu lado contra o meu suserano legal? Eu seria arrastado de volta até aos pés de Aymer e enterrado vivo na sua prisão.
Cadfael virou-se para Eilmund em busca de ajuda.
- -Juro-te que consigo levantar esta suspeita do rapaz, falando com o Hugh. Ele acreditará na minha palavra e afastar-se-á da caça. retirará os seus homens ou enviá-los-á para outro lado qualquer. Ainda tem o Richard para encontrar; Eilmund, tu conheces o Hugh Beringar para não duvidar da sua justiça.
Mas não. Eilmund não o conhecia, não como Cadfael o conhecia. O couteiro abanava a cabeça duvidosamente. Um xerife é um xerife, comprometido com a lei e a lei é rígida e com contrapeso, ao todo contra o camponês e o servo e o homem sem terra.
- Ele é um homem decente, justo, suficientemente seguro - disse Eilmund -, mas eu não me atrevo a arriscar a vida deste rapaz com nenhum oficial do rei. Não, deixa-nos ficar como estamos, Cadfael. Não digas nada a nenhum homem, não até o Bosiet chegar e partir.
Estavam todos unidos contra ele. Fez o seu melhor, argumentando calmamente como seria bom saber que a caça não continuaria contra Hyacinth, que a sua inocência, uma vez comunicada em privado a Hugh, libertaria as forças da lei para procurar noutro lugar o assassino de Drogo, e também permitir-lhes aumentar a sua busca por Richard mais exaustivamente, e com mais recursos, através das florestas onde a criança tinha desaparecido. Porém, eles também tinham os seus argumentos e estes tinham fundamentos.
- Se dissesse ao xerife, mesmo que em segredo - disse Annet -. e se ele acreditasse em si, ainda teria de lidar com o Bosiet. O homem do seu pai dir-lhe-á que é certo e sabido que o fugitivo está algures por aqui escondido, seja assassino ou não. Utilizará cães, se o xerife retirar os seus homens. Não, não diga nada a ninguém, ainda não. Espere até eles desistirem e irem para casa. Então avançaremos. Prometa! Prometa-nos silêncio até lá!
Não havia nada a fazer acerca disso. Ele prometeu. Eles tinham confiado nele e contra a sua proibição absoluta, ele não poderia escapar. Suspirou e prometeu.
Era muito tarde quando por fim se levantou, dada a sua palavra, para iniciar a cavalgada nocturna de regresso à abadia. Também fizera uma promessa a Hugh, nunca imaginando quão difícil seria mantê-la. Dissera que se tivesse alguma coisa para contar, Hugh o saberia antes de qualquer outro. Um arranjo de palavras subtil, embora sincero, através do qual uma mente tortuosa poderia encontrar várias fugas; mas o que ele dissera fora tão óbvio para Hugh como para Cadfael. E agora ele nada podia fazer. Ainda não, não até Aymer Bosiet se tornar impaciente, até contar os custos da sua vingança e achasse melhor ir para casa gozar, em vez disso, a sua nova herança.
Na entrada, virou-se para perguntar a Hyacinth uma última questão, um pensamento repentino.
- E o Cuthred? Com vocês os dois a viverem tão perto... ele participou em todos os estragos que fizeste na floresta de Eilmund?
Hyacinth olhou fixa e gravemente para ele, com uma surpresa moderada, os seus olhos âmbar abertos e cândidos.
- Como poderia ele? - disse simplesmente. - Ele nunca sai do seu próprio recinto.
Aymer Bosiet entrou a cavalo no grande pátio da abadia, por volta do meio-dia do dia seguinte, com um jovem lacaio atrás de si. O Irmão Denis, o hospitalário, tinha ordens para o trazer à presença do Abade Radulfus assim que chegasse, pois o abade estava pouco disposto a delegar em qualquer outro a tarefa de lhe dar as notícias da morte do seu pai. Isto foi conseguido com uma delicadeza para a qual, ao que parecia, não havia necessidade. O filho despojado sentou-se silenciosamente revolvendo as notícias e todas as suas implicações a longo prazo, e, tendo aparentemente digerido e chegado a termo com elas. expressou o seu pesar filial muito convenientemente, mas com a sua mente ainda empenhada em questões laterais; uma mente astutamente calculadora, por detrás de uma cara menos poderosa e brutal que a do seu pai, mas mostrando pouca evidência de sofrimento. Franziu a testa acerca do acontecimento, pois envolvia deveres problemáticos, tais como comissionar um caixão, carroça e ajuda extra para a viagem de regresso a casa, e fazendo a melhor utilização possível do seu tempo aqui. Radulfus já mandara Martin Bellecote, o carpinteiro-mestre da cidade, fazer um caixão de interior simples para o corpo, o qual ainda não estava coberto, visto que sem dúvida, Aymer haveria de querer olhar para a cara do seu pai por uma última vez e despedir-se dele.
- Ele não encontrou o nosso servo fugitivo? - perguntou, categoricamente e com intenção astuta, o filho despojado depois de dar voltas ao assunto na sua mente.
- Não - disse Radulfus. e se estava chocado conteve-se para reprimir o choque. - Foi sugerido que o jovem rapaz estaria na vizinhança, mas sem qualquer certeza que o jovem em questão fosse realmente o que era perseguido. E eu agora acredito que ninguém sabe para onde ele foi.
- O assassino do meu pai está a ser perseguido?
- Muito arduamente, com todos os homens do xerife.
- O meu servo também, creio eu. Quer seja quer não - disse Aymer severamente -, os dois acabam por ser o mesmo. A lei tem o dever de fazer tudo o que puder para recuperar a minha propriedade e entregar-ma de volta. O velhaco só dá chatices, mas é valioso. Por nenhum preço, eu estaria disposto a libertá-lo - cuspiu as palavras com um estalar de dentes grandes e fortes. Era igualmente alto e com uma estrutura óssea semelhante à do seu pai, mas possuía menos carne e apesar da sua cara ser mais magra, tinha os mesmos olhos frívolos de uma cor indeterminada e opaca, que aparentavam uma superfície sem profundidade. Talvez uns trinta anos de idade e agradavelmente consciente do seu novo estatuto. A satisfação da propriedade já começara a vibrar debaixo da pesada tonalidade da sua voz. Já falava na «minha propriedade». Esse era um aspecto da sua dor que certamente não lhe escapara.
- Vou querer falar com o xerife acerca deste rapaz que se diz chamar Hyacinth. Se ele fugiu, isso não faz com que seja ainda mais provável que seja ele, de facto, o Brand? E que ele teve a ver com a morte do meu pai? Existe já uma grande dívida contra ele. Eu não tenciono deixar tal dívida passar sem ser paga.
- Isso é uma questão para a lei secular, não para mim - disse Radulfus com um civismo frio. - Não existem provas de quem matou o suserano Drogo, a questão encontra-se em aberto. Mas o homem está a ser procurado. Se quiser acompanhar-me. levá-lo-ei até à capela onde o seu pai repousa.
Aymer permaneceu ao lado do caixão aberto com o seu interior drapeado e a luz das velas altas, que ardiam à cabeça e aos pés de Drogo, não mostravam grandes alterações na cara do seu filho. Ele olhou para baixo com as sobrancelhas franzidas, mas era o franzir de pensamentos atarefados, em vez de pesar ou raiva perante tal morte.
- Sinto amargamente - disse o abade- que um hóspede na nossa casa chegue a um fim tão maléfico. Mandámos rezar missas pela sua alma. mas outras emendas estão fora do meu âmbito. Espero que ainda possamos ver juntos a justiça a ser feita.
- Certamente! - concordou Aymer, mas tão ausente, que era óbvio que a sua cabeça estava a pensar noutras coisas. - Não tenho outra opção senão levá-lo para casa para o funeral. Mas não posso ir ainda. Esta busca não pode ser abandonada tão depressa. Tenho de ir até à cidade esta tarde e ver esse vosso carpinteiro-mestre. mandá-lo fazer um caixão exterior, forrá-lo com chumbo e selá-lo. Uma pena. bem podia ser enterrado aqui, mas os homens da nossa casa estão todos enterrados em Bosiet. A minha mãe não ficaria satisfeita de outro modo.
Disse-o com uma nota de humilhação nas suas meditações, mas devido à necessidade de transportar para casa um cadáver, ele podia ficar por aqui durante mais alguns dias, para continuar a sua caça ao servo fugitivo. Mesmo como as coisas estavam, ele pretendia aproveitar o máximo do seu tempo e Radulfus não podia deixar de sentir que ele se queria vingar mais do servo, do que do assassino do seu pai.
Por acaso, Cadfael atravessava o pátio quando o recém-chegado voltou a montar o cavalo ao princípio da tarde. Era o seu primeiro vislumbre do filho de Drogo e Cadfael parou e colocou-se de lado para o estudar com interesse. A sua identidade nunca esteve em questão, pois a semelhança estava lá, apesar de existir algo de temperado neste rapaz mais novo. Os olhos curiosamente superficiais, tão vilmente diminuídos pela falta de sombra e de forma que as órbitas covas fornecem, tinham a mesma absoluta malevolência, e a forma como tratava o seu cavalo enquanto montava era de longe mais delicada do que os seus modos em relação ao seu lacaio. A mão que segurava o seu estribo foi afastada para o lado pelo cabo do seu chicote assim que se sentou na sela e Warin recuou do golpe tão subitamente, que o cavalo, assustando-se, recuou sob o pavimento de pedras, atirando a sua cabeça e resfolegando. O cavaleiro agitou o chicote sobre os ombros do lacaio tão prontamente e com tão pouca raiva ou desprezo aparente, que era óbvio que este era o pagamento comum dos seus procedimentos aos seus subalternos. Levou consigo apenas o jovem lacaio para a cidade, ele próprio montando o cavalo do seu pai, o qual estava descansado e ansioso por exercício. Sem dúvida, Warin estava demasiado satisfeito por ser deixado para trás, ficando em paz durante umas quantas horas.
Cadfael alcançou o lacaio e acompanhou a sua passada mantendo-se a seu lado, enquanto este regressava aos estábulos. Warin olhou à sua volta, mostrando-lhe uma nódoa negra que se desvanecia rapidamente, mas que se mantinha amarela como pergaminho velho, e uma boca que ainda se alongava pela marca da cicatriz num dos cantos.
- Não te vi durante estes dois dias - disse Cadfael, observando os vestígios da violência antiga e alerta face a novos vestígios. -Vem comigo até ao jardim das ervas e deixa-me revestir novamente esse corte. Por certo, manter-se-á longe durante uma hora ou duas, suponho, e tu poderás respirar facilmente. E far-te-ia bem outro tratamento, apesar de eu ver que este está agora limpo.
Warin hesitou apenas por um momento.
- Eles levaram os dois cavalos que estavam repousados e deixaram-me os outros para que eu tratasse deles. Mas podem esperar um pouco - e manteve-se de livre vontade ao lado de Cadfael. a sua magra estatura um pouco murcha antes do tempo, parecendo expandir-se na ausência do seu suserano. Na agradável frescura aromática da oficina, debaixo das ervas que ondulavam ligeiramente por cima da sua cabeça, sentou-se aliviado e satisfeito por deixar a sua ferida ser lavada e untada, não mostrando pressa nenhuma em voltar para os seus cavalos, até mesmo quando Cadfael já tratara dele.
- Ele ainda está mais ansioso do que o velho estava por perseguir o Brand - disse ele, abanando uma cabeça impotente mas solidária com a sorte do seu antigo vizinho. - Dividido de duas maneiras, entre querer enforcá-lo e querer matá-lo a trabalhar por ganância, e não é o facto de o Brand ter morto ou não o velho suserano que irá determinar onde param as modas, pois não houve ali também grande perda de amor. Não havia muito amor em todo aquele lar para ser ganho ou perdido, e sim indivíduos que se odeiam uns aos outros, todos eles.
- Existem mais? - perguntou Cadfael interessado. - Drogo deixou uma viúva?
- Uma pobre senhora pálida, toda a sua essência esgotada - respondeu Warin -. mas melhor nascida do que os Bosiet e com uma família poderosa, por isso, têm de a usar melhor do que usam todos os outros. E Aymer tem um irmão mais novo. Não tão vistoso, nem tão violento, mas mais perspicaz e mais capaz de desvios e rodeios. Estes são todos eles. mas já chega.
- Nenhum deles é casado?
- O Aymer já teve uma mulher, mas ela era uma coisinha doente e morreu jovem. Existe uma herdeira não muito longe de Bosiet, por quem ambos agora anseiam, apesar de na verdade ansiarem as suas terras. E se Aymer é o herdeiro, Roger é o que mais agradável se mostra. Não que dure muito, quando ele consegue levar a dele avante.
Parecia uma pobre perspectiva para a rapariga qualquer dos dois que levasse a melhor na competição, mas também mostrava uma razão possível para que Aymer não vadiasse por aqui durante demasiado tempo, ou poderia perder as suas vantagens em casa. Cadfael sentiu-se encorajado. A ausência de uma honra recém-herdada até podia ser perigosa se houvesse um irmão mais novo, mais esperto e traiçoeiro deixado para trás, para fazer um uso premeditado das suas oportunidades. Aymer teria isso em mente, até mesmo quando concedesse de má vontade em desistir da sua perseguição vingativa a Hyacinth. Cadfael ainda não conseguia pensar no rapaz como Brand, o nome que ele escolhera para si próprio encaixava muito melhor.
- As vezes penso - disse Warin, recordando-se inesperadamente da mesma pessoa - para onde Brand terá realmente ido? Sorte a dele que nós lhe demos alguma distância, não que o meu senhor o pretendesse!, pois a princípio eles pensaram que um homem com a perícia que ele possuía nas pontas dos dedos se dirigiria certamente para Londres, e nós desperdiçámos uma semana ou mais a revistar todas as estradas para sul. Já ultrapassáramos o Tamisa, quando um dos seus homens veio atrás de nós, dizendo que Brand fora visto em Northampton. Se ele tinha partido em direcção a norte, Drogo achava que ele iria continuar, e provavelmente virar para oeste à medida que prosseguia e dirigir-se para Gales. Será que ele chegou lá? Nem mesmo Aymer o perseguira para além da fronteira.
- E tu não voltaste a avistá-lo ao longo do percurso? - perguntou Cadfael.
- Não. nem um rastro, mas nós estamos longe de terras onde alguém o pudesse conhecer e nem toda a gente se quer meter em tal assunto. E certamente ele terá adoptado outro nome - Warin levantou-se, refrescado mas relutante por ter de voltar para os seus deveres. - Espero que possa arranjar um bom lugar. Independentemente daquilo que os Bosiet dizem, ele era um rapaz decente.
O Irmão Winfrid estava ocupado a varrer as folhas caídas sob as árvores do pomar, pois o Outono húmido fizera com que elas caíssem antes de terem adquirido a sua viva coloração sazonal, numa chuva verde suave que apodrecia lentamente na relva. Cadfael deu por si sozinho e sem ocupação depois de Warin o ter deixado. Mais uma razão para se sentar calmamente e pensar - e também uma oração ou duas não seriam demais, pelo rapaz que desaparecera à pressa no seu pónei preto na sua auto-designada, louca e generosa missão, pois o temerário e jovem rapaz pelo qual ele partira para salvar mesmo que à forca do maligno fidalgote separou-se sem tempo para penitência ou absolvição, e amargamente necessitado de uma graça divina.
O sino para o serviço de Vésperas despertou-o das suas meditações e Cadfael dirigiu-se de boa vontade para o atender, através dos jardins e ao longo do pátio para o claustro e a porta sul da igreja, para chegar cedo ao seu lugar. Nos últimos dias, perdera muitos serviços e estava necessitado da segurança da irmandade.
Havia sempre algumas das pessoas do Foregate nos serviços de Vésperas, as velhas e devotas mulheres que habitavam algumas das casas gratuitas da abadia, velhos casais reformados e contentes por preencher o seu tempo de lazer e encontrar os seus amigos na igreja, e frequentemente hóspedes da casa que regressavam das actividades do dia. Cadfael ouviu-os agitarem-se por detrás do altar da paróquia, nos vastos espaços da nave. Reparou que Rafe de Conventry viera até ao claustro e escolhera um lugar do qual podia olhar por dentro, para além do altar da paróquia e na direcção do coro. Ao ajoelhar-se para rezar, ainda mantinha aquela compostura calma que o rodeava, um homem seguro e em paz com o seu próprio corpo e envergando o seu inescrutável rosto mais como um escudo do que como uma máscara. Então ainda não se deslocara para contactar com aqueles seus fornecedores em Gales. Ele era o único adorador do salão dos hóspedes. Aymer Bosiet ainda devia estar na cidade ocupado com os assuntos do funeral, ou então a bater os esconderijos no campo e na floresta, algures atrás do seu fugitivo.
Os irmãos entraram e sentaram-se nos seus lugares, os noviços e os rapazes de escola seguindo-os. Existia ali uma recordação amarga, pois em número eram menos um. Não havia como esquecer Richard. Até ele ser recuperado não haveria tranquilidade de espírito, nem leveza de coração para nenhuma daquelas crianças.
No final do serviço de Vésperas, Cadfael deixou-se ficar no seu lugar, deixando a procissão de irmãos e noviços sair em fila do claustro, sem ele. O ofício tinha a sua beleza e consolação, mas a solidão que se seguia era igualmente saudável no seu silêncio. Depois dos ecos da música se terem desvanecido, estar neste local sozinho a essa hora da noite era um bálsamo especial, quer fosse por causa da suave luz cor de pomba ou pela sensação de amplificação que parecia aumentar a alma para habitar e preencher os últimos arcos da abóbada, quando uma única gota de água se torna um oceano, no qual ela cai. Não havia melhor altura para uma oração profunda e Cadfael sentiu a necessidade disso. Em especial, pelo rapaz, igualmente solitário algures, talvez assustado. Foi a Saint Winifred que Cadfael dirigiu a sua súplica, um galês invocando uma santa galesa e da qual ele se sentia muito próximo, e por quem tinha uma afeição quase familiar. Ela própria, pouco mais do que uma criança no seu martírio, não deixaria que nenhum mal ocorresse a outra criança ameaçada.
O Irmão Rhun. o qual ela curara, aparava cuidadosamente as velas perfumadas que fizera para o seu santuário quando Cadfael se aproximou, mas este virou a sua jovem cabeça loura na direcção do suplicante, lançou-lhe um rápido olhar com os seus olhos azul-marinho os quais pareciam irradiar a sua própria luz inata, sorriu e afastou-se. Não para se demorar e completar o seu trabalho quando as orações terminassem, não para se esconder nas sombras e observar, mas para longe da percepção dos outros, em pés ágeis e silenciosos que outrora coxeavam doridos, deixando assim toda a abóbada expectante preparada para receber o apelo nas suas mãos entrelaçadas e canalizá-la para o alto.
Cadfael ergueu-se, confortado, sem saber nem perguntar porquê. No exterior, a luz desvanecia-se rapidamente e no interior, a lanterna do altar e as velas perfumadas de Saint Winifred criavam pequenas ilhas de pura radiância na grande obscuridade envolvente, como uma capa quente contra o frio do mundo exterior. A graça divina que acabara de tocar Cadfael tinha um alcance suficientemente grande para encontrar Richard onde quer que ele estivesse, entregá-lo se ele fosse um prisioneiro, consolá-lo se ele estivesse assustado, curá-lo se ele estivesse ferido. Cadfael saiu do coro, contornou o altar e dirigiu-se à nave. sensibilizado por ter feito o que era mais necessário e satisfeito por esperar paciente e passivamente até a graça se manifestar.
Parecia que Rafe de Coventry também tivera orações solenes e pessoais para oferecer, pois nesse momento erguia-se na vazia e silenciosa nave, enquanto Cadfael a atravessava. Reconheceu o homem que encontrara no pátio do estábulo com um sorriso sombrio mas amigável, o qual surgiu brevemente e desapareceu dos seus lábios, mas que se demorou amavelmente no seu olhar.
- Boa tarde, Irmão! - semelhantes em altura e no cumprimento da passada, acompanharam-se facilmente um ao outro, enquanto se viravam para a arcada sul.
- Espero ser desculpado - disse Rafe - por vir à igreja de botas, esporas e empoeirado da cavalgada, mas cheguei tarde e não tive tempo para me tornar apresentável.
- Será sempre bem-vindo, venha de que maneira vier - disse Cadfael. - Nem toda a gente que se alberga connosco aparece na igreja. Tive poucas oportunidades de vos ver nestes dois dias. tenho estado fora e a tratar de assuntos pessoais. Fez negócios de sucesso por estas partes?
- Melhores, pelo menos, do que um dos vossos hóspedes - disse Rafe, lançando um olhar de lado para a estreita porta que conduzia à capela mortuária. - Mas não, eu não diria que encontrei aquilo de que precisava. Ainda não!
- O filho dele está aqui - comentou Cadfael, seguindo o olhar. - Chegou esta manhã.
- Eu vi-o - disse Rafe. - Ele regressou da cidade mesmo antes do serviço de Vésperas. Pelo olhar e pelo som da sua voz, também não se deu lá muito bem, com o que quer que seja que ande a tratar. Suponho que ande atrás de um homem?
- Anda. Do jovem rapaz acerca do qual eu lhe contei - respondeu Cadfael secamente, e estudou o seu companheiro de lado, enquanto atravessavam o altar iluminado.
- Sim. lembro-me. Então ele voltou de mãos vazias, sem nenhum pobre diabo amarrado ao seu estribo de cabedal - mas Rafe permanecia tolerantemente indiferente face a jovens rapazes e certamente face ao clã Bosiet. Os seus pensamentos estavam algures noutro lugar. Na caixa das esmolas junto a um dos lados do altar, parou por impulso e enfiou uma mão na bolsa presa à sua cintura, retirando uma mão cheia de moedas. Uma delas escorregou por entre os seus dedos, mas não parou imediatamente para a apanhar e deitou três das suas companheiras para dentro da caixa, antes de se virar para procurar pela moeda perdida. Por essa altura, já Cadfael a apanhara do chão lajeado e mantinha-a na sua palma aberta.
Se não estivessem num local onde as velas do altar lançavam uma luz clara, ele não teria encontrado nada de estranho. Uma moeda de prata tal como outras moedas de prata, a moeda universal. Contudo, não como qualquer outra que ele tivesse visto anteriormente nas caixas de esmolas. Era luminosa e imaculada, mas mediocremente cunhada e leve.
Desajeitadamente formada em redor da pequena cruz de um dos lados o nome do cunhador parecia ser Sigebert, um forjador de que Cadfael não se lembrava de ter ouvido falar nos condados centrais de Inglaterra. E, quando ele a virou, a cabeça que surgia em relevo não era o perfil familiar de Stephen, nem o do falecido Rei Henry, mas inconfundivelmente o de uma mulher de touca e com coroa. Dificilmente necessitaria do seu nome escrito numa das extremidades: «Matilda Dom. Ang.» O nome formal e título da imperatriz. Parecia que a sua cunhagem era de peso deficiente.
Olhou para cima deparando com Rafe a observá-lo fixamente com um pequeno sorriso, mais irónico do que divertido. Houve um momento de silêncio, enquanto se observavam um ao outro.
Depois:
- Sim - disse Rafe -, tem razão. Seria notado depois de eu partir. Mas tem valor, até mesmo aqui. Os seus pedintes não a rejeitarão porque foi cunhada em Oxford.
- E não há muito tempo - disse Cadfael.
- Não há muito tempo.
- O meu maior pecado - continuou Cadfael pesarosamente - é a curiosidade -
estendeu a moeda, e Rafe pegou nela com uma expressão grave, e deliberadamente deitou-a na caixa das esmolas junto das suas companheiras. - Mas eu não sou nenhum fala-barato. Nem sequer uso a aliança de qualquer homem honesto contra ele. É uma pena que tenham de existir facções, e homens decentes a lutarem uns com os outros e todos eles convencidos de que têm esse direito. Por mim, podes ir e vir livremente.
- E a tua curiosidade não se estende - murmurou Rafe suavemente, o sorriso sombrio perceptível na sua voz - quanto ao que um homem assim está a fazer aqui. tão longe da batalha? Vem, eu tenho a certeza que adivinhaste o que eu sou. Talvez penses que senti que seria mais inteligente sair de Oxford antes que fosse tarde demais?
- Não - disse Cadfael categoricamente -. isso nunca me passou, nem nunca passará pela minha cabeça. Não acerca de ti! E porque haveria um homem tão discreto quanto a isso aventurar-se para norte em direcção ao país do rei?
- Não. decerto isso demonstra rnuito pouca sabedoria - concordou Rafe. - O que calcularias então?
- Só consigo lembrar-me de uma possibilidade - disse Cadfael grave e calmamente. - Ouvimos falar por aqui de um homem que não fugiu de Oxford de livre vontade enquanto ainda havia tempo, mas que foi enviado. Para tratar de assuntos da sua senhora, e que transportava algo que valia bem a pena roubar. E que ele não conseguiu chegar longe, pois o seu cavalo foi encontrado a deambular, manchado de sangue, e tudo o que ele transportava desaparecera, e o próprio homem também desaparecera da face da terra - Rafe estava a observá-lo atentamente, a sua cara impenetrável como sempre, o mesmo sorriso sombrio, mas imperturbável. - Tal homem seria muito semelhante a ti - disse Cadfael, - podia muito bem ter vindo tão longe até ao norte de Oxford, em busca do assassino de Renaud Bourchier.
Os olhos de ambos mantiveram-se fixos um no outro, aceitando mutuamente, até mesmo aprovando, aquilo que viam.
- Não - respondeu, lentamente e com determinação. Rafe de Conventry.
Estremeceu e suspirou, quebrando o feitiço do breve mas profundo silêncio que se seguiu.
- Peço desculpa, Irmão, mas não, não me interpretaste bem. Não estou à procura do assassino de Bouchier. Era uma boa ideia, quase desejo que fosse verdade. Mas não é.
E, dizendo isto, dirigiu-se para a porta sul, na direcção do crepúsculo que começava a surgir sob o claustro, e o Irmão Cadfael seguiu em silêncio, não perguntando nem sugerindo nada mais. Sabia reconhecer a verdade quando a ouvia.
CAPÍTULO DEZ
Foi por volta da mesma hora em que Cadfael e Rafe de Coventry emergiam da igreja depois do serviço de Vésperas que Hyacinth saiu furtivamente da cabana de Eilmund, e fez o seu percurso através da mais profunda cobertura em direcção ao rio. Passara todo o dia enclausurado entre paredes, pois os homens da guarnição tinham estado novamente a vasculhar a floresta e, apesar da sua passagem ter sido rápida e superficial, pois o seu objectivo era levar a busca mais para o interior do campo e apesar de eles conhecerem Eilmund e não terem qualquer motivo para investigarem a sua herdade uma segunda vez, era ainda possível que enquanto passavam o visitassem, para lhe perguntar casualmente se alguma coisa lhe despertara a atenção. Hyacinth não aceitava de boa vontade ficar fechado dentro de portas, nem sequer para se esconder. À noite, começou a irritar-se com a sua prisão, mas por essa altura já os caçadores regressavam, abandonando a caça até à manhã seguinte, e ele estava livre para caçar um pouco por conta própria.
Pois apesar de toda a prudência e medo que sentia por si próprio e os quais admitia com a sua infalível e temível honestidade, não podia deixar de pensar em Richard, que viera a correr para o avisar, tão galante e irreflectidamente. Se não fosse por isso, o rapaz nunca se teria colocado a si próprio em perigo, mas porque existiria perigo para ele nos seus próprios bosques, entre a sua própria gente? Numa Inglaterra conturbada, existiam sem dúvida homens sem lei que viviam como selvagens, mas este condado passara quase incólume durante mais de quatro anos de guerra e parecia gozar de uma paz e ordem inigualáveis mais a sul, e a cidade encontrava-se apenas a pouco mais de onze quilómetros de distância, sendo o seu xerife jovem e activo, e ainda mais tanto quanto um xerife pode ser, popular com o seu povo. E quanto mais Hyacinth pensava nisso, mais claro lhe parecia que a única ameaça para Richard de que ele alguma vez ouvira falar era a ameaça da Dama Dionísia de o casar com os dois feudos que ela cobiçava. Por isso, ela persistira de todas as maneiras de que se podia lembrar. Hyacinth fora outrora um dos seus instrumentos e não poderia esquecer-se disso. Ela tem de ser a força por detrás do desaparecimento do rapaz.
Verdade, o xerife fora a Eaton, procurara em cada canto e não encontrara nenhum vestígio, nem ninguém num lar dedicado ao rapaz, capaz de lançar sequer a mais pequena das suspeitas acerca da inocência indignada de Dionísia. Ela não possuía outra propriedade onde pudesse esconder quer o rapaz quer o pónei. E apesar de Fulke Astley poder estar disposto a conspirar, achando que assim teria uma boa hipótese de afiançar Eaton, tal como ela teria de deitar as mãos à herança da sua filha, apesar disso Wroxeter fora revirado meticulosamente e sem qualquer sucesso.
Hoje a caça continuara e, de acordo com tudo o que Annet reunira dos batedores que regressavam, continuaria igualmente de modo implacável na manhã seguinte, mas ainda não alcançara Leighton, três quilómetros a jusante. E apesar de Astley e da sua família preferirem viver em Wroxeter, o feudo mais remoto de Leighton também fazia parte das suas propriedades.
Era o único ponto de partida que Hyacinth conseguia encontrar e valia a pena tentar. Se Richard tivesse sido apanhado nos bosques por algum dos homens de Astley. ou por aqueles de Eaton que estavam dispostos a servir do lado de Dionísia, talvez tivessem pensado que seria melhor removê-lo para tão longe quanto Leighton, em vez de tentarem escondê-lo mais perto de casa. Além disso, se ela ainda pretendia obrigar o rapaz a casar, existiam formas de se arrancarem as respostas certas até das crianças mais teimosas, mais através de malícia do que através de terror, mas ela precisava de um padre, e Hyacinth estivera na aldeia de Eaton o tempo suficiente para saber que o Padre Andrew era um homem honesto e não seria um bom instrumento para tal propósito. O padre em Leighton, não tão bem familiarizado com os pormenores do caso, poderia ser mais prestável.
Pelo menos, era algo que podia ser testado. Não valia a pena Eilmund aconselhá-lo amável e sensatamente a ficar onde estava e não se arriscar a ser capturado; pois até Eilmund compreendia e aprovava aquilo a que chamava loucura. Annet não tentara dissuadir Hyacinth, só lhe fornecera um casaco preto e muito usado de Eilmund, com um capuz negro que lhe encobria a cara e que lhe ficava demasiado largo, mas o qual era excelente para se deslocar invisivelmente na noite.
Entre a floresta e os meandros do rio, a jusante da azenha, dos locais de pesca e das escassas cabanas que os serviam, os vastos prados de água estendiam-se, a luz ainda aí permanecendo, e uma ténue névoa erguia-se do solo ocultando o verde, e serpenteava sinuosamente tal uma serpente prateada ao longo do rio. Todavia, ao longo da margem norte, a floresta continuava, a meio caminho para Leighton e para lá desse ponto, o terreno elevava-se na direcção dos últimos sopés baixos do Wrekin e ele teria de utilizar a pouca cobertura que sobrava. Porém, aqui onde as árvores e o prado se encontravam, ele podia deslocar-se rapidamente mantendo-se dentro da orla dos bosques, mas beneficiando da luz dos campos abertos, e a quietude, silêncio e o cuidado necessário dos seus próprios movimentos assegurariam que ele fosse alertado para a presença de qualquer outra criatura que se movimentasse na noite.
Já cobrira mais de um quilómetro quando os primeiros pequenos sons o alcançaram, e ele estacou, permanecendo de ouvidos alerta, escutando atentamente. Uma única nota metálica, algures atrás dele, e arreios que se agitavam ligeiramente. Depois um suave agitar de arbustos enquanto algo passava, e depois inconfundível, embora discretamente e ainda a alguma distância, uma voz abafada sussurrou rapidamente algo que se assemelhava a uma pergunta e, tal como surgira, rapidamente se calou. Não uma pessoa no crepúsculo, mas duas, ou então nem valeria a pena falar? E a cavalo e mantendo-se à beira do bosque tal como ele, quando teria sido de longe mais fácil avançar pelos prados. Cavaleiros da noite, com tão pouca vontade como ele de serem avistados e dirigindo-se na mesma direcção. Hyacinth esticou as suas orelhas para captar o som dos cascos, o qual soava surdo e abafado pelas folhas, tentando determinar a trajectória que eles seguiam através das árvores. Perto da orla, devido à pouca luz que restava, mas mais preocupados com o secretismo do que com a rapidez.
Cautelosamente, Hyacinth retirou-se mais para o interior da floresta e aí permaneceu encoberto e sem se mover, deixando-os passar. Havia ainda luz suficiente para os transformar em pouco mais do que contornos sombrios quando eles passaram numa fila única, primeiro um cavalo alto que surgia como uma palidez andante, provavelmente de um cinzento claro, transportando no seu dorso um homem careca e de barba, grande e grosseiro, cujas dobras do seu capuz caíam em pregas sob os seus ombros. Hyacinth conhecia a forma e o porte, já vira este mesmo homem montar e cavalgar tal como um saco, mas rigidamente sentado na sela, no funeral de Richard Ludel. O que fazia aqui Fulke Astley durante a noite, percorrendo o caminho entre os seus próprios feudos de modo tão furtivo, não através das estradas mas por entre a floresta? Pois para onde mais poderia ele estar a dirigir-se?
E a figura que o seguia, num atarracado e robusto cavalo de pernas curtas, era certamente uma mulher e não podia ser outra senão a sua própria filha, aquela Hiltrude desconhecida que parecia tão velha e desagradável ao jovem Richard.
Afinal de contas, a missão deles não era assim tão misteriosa. Era óbvio que eles queriam que o casamento fosse realizado o mais depressa possível, se tivessem o Richard nas suas mãos. Tinham esperado durante estes dias até que tanto Eaton como Wroxeter tivessem sido revistados, mas com a caça a espalhar-se mais amplamente, não esperariam mais. Qualquer que fosse o risco que pudessem correr, assim que o casamento fosse uma realidade, eles poderiam aguentar qualquer dificuldade que se seguisse. Podiam até dar-se ao luxo de libertar Richard para que este regressasse para a abadia, pois nada nem ninguém, a não ser a autoridade da igreja, o poderia libertar de uma esposa.
E assim sendo, o que poderia ser feito para o impedir? Não havia tempo nem para correr até à casa de Eilmund e fazer com que Annet levasse uma mensagem ao castelo ou à abadia, ou directamente à cidade, e Hyacinth ainda se sentia naturalmente relutante em atirar ao ar esta hipótese de se manter livre. Mas não chegava, não havia tempo para isso. Se ele regressasse, quando o salvamento chegasse, já Richard estaria casado. Talvez ainda houvesse tempo para descobrir onde é que eles o tinham escondido e conseguisse levá-lo rapidamente para longe, mesmo debaixo dos seus narizes. Estes dois não tinham qualquer pressa e a Dama Dionísia ainda tinha de fazer a curta viagem desde Eaton sem ser detectada. E o padre, onde teriam eles encontrado um padre disposto a isso? Nada podia ser feito até um padre lá estar.
Hyacinth abandonou a espessa cobertura das árvores e fez o seu caminho mais para o interior da floresta, já não tão interessado no secretismo, mas na velocidade. Com a lentidão que estes cavaleiros seguiam, ele podia ultrapassá-los no caminho e, neste local, até se poderia aventurar até à estrada principal se fosse necessário, arriscando-se a encontrar outros ainda nas suas buscas legais. No entanto, existia um caminho demasiado próximo da estrada para os Astleys o preferirem, caminho esse que se fundia na própria estrada, ao atravessar o cume do planalto. Hyacinth alcançou-o e correu, veloz e silencioso, sobre o espesso tapete de folhas, as quais, demasiado húmidas e moles, não faziam qualquer ruído sob os seus pés.
Assim que se encontrou em campo aberto e mergulhando pela colina abaixo em direcção à aldeia, a qual ainda se encontrava a um quilómetro e meio de distância, ele voltou a retirar-se para os campos que mergulhavam no rio e correu abrigando-se sob as árvores espalhadas, certo agora de que estava à frente de Astley. Chapinhou pelo pequeno ribeiro que descia do sopé do Wrekin e que alcançava aqui o Severn, e continuou ao longo da margem do rio. Uma zona isolada de bosque descia quase até à água e deste abrigo improvisado, conseguiu ver pela primeira vez a paliçada baixa do feudo, e os telhados no seu interior, pontiagudos e claros contra o brilho da água e a palidez do céu.
Constituía um bom sinal o facto de as árvores se aproximarem tanto da paliçada no lado mais próximo da margem do rio. Hyacinth lançou-se, correndo de árvore para árvore, e alcançando um carvalho que estendia os ramos ao longo da barreira, trepou agilmente para o cimo da paliçada para perscrutar cautelosamente o interior da cerca. Estava a olhar para a longa fachada traseira da casa, ao longo dos telhados do celeiro, da vacaria e do estábulo que limitavam a cerca interior. Seguramente que do lado oposto se encontrava a galeria inferior, com o seu vestíbulo, quartos e cozinha sob o piso habitacional e os degraus que conduziam à porta. Deste lado, não existia qualquer entrada à excepção daquela que dava para a galeria, bem como uma pequena janela, e essa estava fechada. Debaixo dela, fora construída uma pequena ala para o exterior, de forma a aumentar a galeria. O telhado coberto com telhas de madeira era íngreme e os beirais relativamente baixos. Hyacinth observou-o pensativamente e debateu-se sobre quão firmes seriam.
Alcançá-las seria fácil, encontrar uma forma de entrar através delas podia constituir um problema maior. Porém, a fachada traseira da casa era a única que se encontrava abrigada de qualquer tipo de observação. Toda a abominável actividade entre Astleys e Ludels estaria centrada perto da única entrada para o interior da habitação, do outro lado.
Balançou-se para baixo de modo a ficar pendurado pelas mãos dentro da paliçada e deixou-se cair num canto sombrio entre o celeiro e o estábulo. Pelo menos, o deparar com aquela jornada nocturna aliviou-o de um receio. Richard estava certamente aqui, estava vivo, bem e saudável tal como o queriam, bem alimentado, devidamente tratado, possivelmente até mimado mais do que o habitual na esperança de o bajularem até conseguirem o seu consentimento espontâneo. De facto, saciado com tudo o que poderia desejar e que eles lhe forneciam, à excepção da sua liberdade. E esse era o seu maior alívio. Agora teria de o libertar!
No pátio que começava a escurecer, não se encontrava ninguém. Hyacinth deslizou suavemente para fora do seu abrigo e contornou a paliçada emboscando-se entre as sombras, até ter contornado o canto do lado oriental da casa. Aqui existiam janelas que não estavam fechadas, com uma luz desmaiada brilhando através delas. Ele refugiou-se na entrada que conduzia à galeria e esticou as orelhas para escutar vozes vindas de cima. e pensou ter captado murmúrios mudos, como se o objectivo fosse manter tudo acerca das actividades desta noite secreto. Na esquina, onde a escadaria íngreme que dava para a porta do salão ascendia, havia uma tocha fixada, sabia-o através da luz bruxuleante que se derramava perante ele na terra batida através de vislumbres esporádicos. Criados movimentavam-se por ali, com passos leves e falando em voz baixa. E o som abafado de cascos dirigindo-se para o pátio. «Chegou a noiva e o pai dela», pensou Hyacinth, e considerou por um momento passageiro como é que a rapariga se sentiria acerca do acordo, e se ela não se sentiria tão prejudicada e usada como Richard, e até mais impotente.
Recuou com alguma pressa ao ouvir as bestas agitarem-se nas suas estrebarias, pois os lacaios estavam a conduzir os cavalos para os estábulos que se encontravam do outro lado do pátio, enquanto ele se mantinha à escuta atrás da árvore. A ala da galeria que sobressaía fornecia uma cobertura naquele canto.
Ele contornou-o e encostou-se no escuro ângulo que as paredes por trás da obstrução formavam, ao ouvir um único criado a conduzir ambas as montadas.
Não se podia mover até o homem se ir embora, e o tempo perseguia-o como um cão de um pastor persegue um lobo. Porém, o criado tinha pressa e não perdeu tempo com as suas tarefas, talvez desejando a sua cama, pois começava a ficar tarde. Hyacinth ouviu a porta do estábulo bater e os passos rápidos correndo para lá da esquina da casa. Só então, quando pôde recuar e voltar a dar uma vista de olhos a esta face quase cega do feudo, é que Hyacinth observou o que perdera anteriormente. Através da junção das persianas, via-se uma fina faixa de luz. Ainda mais perceptível, numa das tábuas perto desta junção existia um pequeno círculo de luz, onde um nó da madeira caíra e deixara um buraco. Porque haveria este quarto das traseiras de estar fechado e iluminado, a não ser que tivesse um hóspede que tivesse de ser mantido escondido e em segurança? Hyacinth duvidava que o espaço entre os pinázios de pedra fosse suficientemente largo para deixar passar um homem, mas talvez fosse suficientemente largo para um rapaz de dez anos de idade, que até era bem pequeno para a sua idade. Com aquele alpendre colocado por debaixo da janela, eles não queriam que ele fugisse, nem haveriam de querer qualquer pessoa curiosa lá dentro.
Podia, pelo menos, tentar. Hyacinth saltou para se agarrar aos beirais pendentes e içou-se para cima das telhas, permanecendo ali deitado contra a parede de pedra, escutando, apesar de não ter feito qualquer ruído e ninguém se ter movido para observar ou investigar. Ergueu-se cautelosamente para cima da rampa do telhado, na direcção da janela fechada. As madeiras eram pesadas e sólidas, e estavam de alguma forma presas no interior do quarto, pois quando pousou uma mão debaixo do centro onde elas se uniam e tentou arrancá-las, elas mantiveram-se fixas como ferro, e ele não tinha ferramentas para tentar forçá-las a separarem-se e duvidou se conseguiria fazê-lo mesmo que tivesse um arsenal de utensílios. As dobradiças eram fortes e mantiveram-se imóveis. Nem o cimo nem o fundo das janelas se rendia à força, nem se moveram um milímetro. Deviam existir parafusos de ferro, aparafusados por dentro e trancados com firmeza. E o tempo escasseava. Richard era voluntarioso, obstinado e engenhoso. Se tivesse sido possível para ele fugir da sua prisão, ele tê-lo-ia feito havia muito tempo.
Hyacinth encostou a orelha à fenda delgada, mas não conseguia ouvir nada a mover-se lá dentro. Devia certificar-se se estava a perder tempo, o qual lhe era tão precioso e que se escoava tão depressa. Com o risco de poder ser detectado, bateu com os nós dos dedos contra a janela e colocando os seus lábios no pequeno círculo iluminado, emitiu um estridente assobio através do buraco.
Desta vez, ouviu ofegar algures no quarto, depois um arrastar rápido, como se alguém se tivesse esticado depois de ter estado defensivamente enroscado num canto, colocado os pés no chão e dado um par de passos surpreendidos pelo quarto, somente para parar novamente em dúvida e alarme.
- Richard, és tu? - chamou suavemente Hyacinth através do buraco, e batendo na madeira.
Passos leves aproximaram-se apressadamente e um pequeno corpo pressionou-se no interior das janelas.
- Quem é? - sussurrou a voz de Richard urgentemente, perto da brecha de luz. - Quem é que está aí?
- Hyacinth! Richard, estás sozinho? Não consigo entrar aí. Está tudo bem contigo?
- Não! - suspirou uma voz numa queixa indignada, provando através do seu espírito e raiva que, de facto, estava de boa saúde e em excelente forma. - Eles não me deixam sair, mas continuam a chatear-me para me obrigarem a fazer o que querem e para que eu concorde em casar. Vão trazê-la hoje à noite, eles querem fazer com que eu...
- Eu sei - rosnou Hyacinth -, mas eu não consigo tirar-te daqui. E não há tempo de avisar o xerife. Amanhã podia, mas vi-os virem para cá esta noite.
- Eles só me deixam sair quando eu fizer o que eles querem - Richard assobiou agressivamente pela brecha. - Quase que disse que sim. Continuam a insistir e não sei o que fazer. Tenho medo que eles peguem em mim e me escondam algures se eu recusar, porque eles sabem que todas as casas estão a ser revistadas - a voz estava a perder o seu tom agressivo e arrojado e aproximava-se da angústia. É difícil para um rapaz de dez anos aguentar por muito tempo os adultos implacáveis que ostentam a mão superior. - A minha avó prometeu que eu haveria de ter o que quer que fosse que eu gostasse, que eu quisesse, se eu dissesse as palavras que ela quer que eu diga. Mas eu não quero uma esposa...
- Richard... Richard... - Hyacinth repetia persistentemente este lamento e. por um momento, deixou de o ouvir. - Escuta. Richard! Eles têm de trazer um padre para te casar, certamente não o padre Andrew, pois teria escrúpulos, mas alguém. Fala com ele. conta-lhe que é contra a tua vontade, diz-lhe... Richard. já ouviste dizer quem é que vai ser? - um novo e arrebatador pensamento penetrara a sua mente. - Quem é que te vai casar?
- Eu ouvi-os - sussurrou Richard, de novo calmo - a dizerem que não podiam confiar no padre Andrew. A minha avó vai trazer o eremita com ela para o fazer.
- O Cuthred? Tens a certeza? - Hyacinth quase se esquecera de manter a sua voz baixa no meio da sua estupefacção.
- Sim, o Cuthred. Sim, tenho a certeza. Eu ouvi-a dizer isso.
- Richard. então escuta! - Hyacinth aproximou-se, colocando os seus lábios junto à fenda. - Se tu recusares, eles levar-te-ão para longe para outro lado qualquer. É melhor fazeres o que eles querem. Não, confia em mim, faz o que te digo. é a única maneira de nós os podermos derrotar. Acredita em mim, não tens nada a recear, não serás sobrecarregado com uma mulher, estás a salvo como num santuário. Faz simplesmente como te digo, sê submisso e obediente, e deixa-os pensar que te domesticaram e eles talvez te deixem levar o teu pónei e cavalgar de novo para a abadia, pois eles já terão o que querem e pensarão que não pode ser desfeito, mas pode! Oh. nunca te atormentes, eles não hão-de querer nada mais de ti, durante anos! Confia em mim e faz isso! Fazes? Depressa, antes que eles venham! Fazes, Richard?
- Sin. - mas não conseguiu deixar de protestar no minuto seguinte -. mas como pode isso ser? Porque é que dizes que é seguro? - Richard hesitou, espantado e em tom dubitativo.
Hyacinth aproximou-se para mais perto e murmurou a resposta. Soube pelo súbito ataque de riso, exuberante e breve, que Richard ouvira e percebera. E mesmo a tempo, pois ouviu vindo do outro lado do quarto o som agudo de uma porta a ser destrancada e escancarada, e a voz da Dama Dionísia, mel e fel, meio bajuladora e meio ameaçadora, dizendo firmemente e muito alto.
- A tua noiva chegou, Richard. Aqui está a Hiltrude. E tu vais ser cortês com ela, não vais, e agradar-nos a todos?
Richard devia ter-se afastado para longe da janela assim que sentiu a mão na maçaneta, pois a sua pequena e cautelosa voz disse, pouco audivelmente e a alguma distância:
- Sim, avó! - de má vontade, obsequioso, relutantemente obediente, uma vontade apenas meio quebrada, mas essa metade serviria!
A voz dela soou, grata mas ainda cautelosa.
- Assim é que é, meu lindo menino! - e foi a última coisa que Hyacinth ouviu enquanto se esgueirava cuidadosamente pela rampa do telhado e caía no chão.
Continuou no seu caminho em direcção a casa. sem pressa, satisfeito com o seu trabalho nocturno. Não tinha agora nenhuma urgência, podia dar-se ao luxo de ir devagar, apenas atento para que ele próprio não fosse caçado. Pois o rapaz estava vivo, bem alimentado, bem tratado e de boa disposição. Nenhum mal lhe acontecera, nenhum haveria de acontecer, contudo ele preocupava-se em vir a ser prisioneiro. E no final, seria ele a rir-se dos seus captores. Hyacinth fez o seu caminho jovialmente através da noite suave e iria, aromatizada com a névoa que se levantava dos prados de água e o profundo e húmido bolor das folhas dos bosques. A lua erguia-se, mas tão velada que fornecia apenas uma luz cinzenta e sombria. Pela meia-noite, estaria de volta e em segurança ao seu santuário na floresta de Eyton. E de manhã, através de alguma forma que Annet inventaria para a ocasião, Hugh Beringar saberia exactamente onde procurar o menino perdido do Irmão Paul.
Quando tudo terminou e ele já tinha feito o que eles pretendiam, apesar da sua má vontade, Richard esperara um pouco de gratidão, talvez até que o deixassem sair deste pequeno quarto, o qual era a sua prisão, por muito confortável que pudesse ser. Ele não era assim tão tolo a ponto de pensar que eles o libertariam para ele fazer o que bem lhe apetecesse. Teria de continuar a manter esta fachada submissa durante mais algum tempo e suprimir a alegria interior que sentia por se ter rido deles em segredo, antes de eles se atreverem a apresentá-lo perante o mundo, embora não pudesse adivinhar que tipo de história teriam para contar acerca do seu desaparecimento e reaparição: ele não podia adivinhar, mas eles haveriam de a saber de cor e salteado. Certamente que diriam que ele consentira de sua própria vontade com a cerimónia que acabara momentos antes, e segundo a informação que possuíam seria então tarde demais para ele mudar de ideias, visto que o que estava feito não podia ser desfeito. Apenas Richard sabia, de facto, que nada fora feito que necessitasse de ser anulado. Ele tinha absoluta fé em Hyacinth. O que quer que Hyacinth lhe dissera era tranquilizador.
Todavia, ele achara que eles lhe haveriam de dever agradecimentos e indulgência pela sua complacência. Mantivera uma cara mal-humorada mas submissa, porque teria sido uma traição demasiado óbvia deixar sequer um relampejo de riso revelar-se, mas ele repetira todas as palavras que eles lhe ditaram, até se predispusera a pegar na mão de Hiltrude quando lhe disseram para o fazer, apesar de não a ter olhado nem uma vez até que o som da sua voz suave e entorpecedora, repetindo os votos tão resignada como ele, o levara a considerar por um momento se ela não estaria a ser forçada, tal como ele. Essa possibilidade nunca lhe ocorrera até então, e ele ergueu os olhos, olhando furtivamente para a cara dela. Afinal de contas, ela não era assim tão velha e não muito alta, e parecia mais uma vítima do que uma ameaça. Até nem seria completamente comum, se não parecesse ser tão submissa e mal-humorada. O seu repentino impulso de simpatia por ela foi transtornado por um resíduo de ressentimento igualmente repentino, por ela parecer tão deprimida por casar com ele, já que ele tinha boas razões para casar com ela.
Porém, depois de toda a sua complacência, nem uma palavra de agradecimento, e em vez disso a sua avó estudava-o ominosamente e ao longe, e ele sentia-se assustado pois no olhar da sua avó ainda permanecia uma certa suspeita.
- Fizeste bem em cumprir, finalmente, o teu dever e de te teres comportado adequadamente em relação àqueles que sabem o que é melhor para ti. Vê se guardas isso em mente, senhor! Agora dá as boas noites à tua esposa. Amanhã ficarás a conhecê-la melhor - admoestou-o ela sombriamente.
E ele fez tal como lhe foi dito para fazer e tinham-no deixado ali, ainda trancado e sozinho, apesar de terem enviado o criado com o jantar que eles estavam certamente a apreciar no salão. Sentou-se meditando sob a sua cama, pensando em tudo o que acontecera nessa noite e em tudo o que poderia acontecer no dia seguinte. Quanto a Hiltrude, esqueceu-a assim que ela desapareceu da sua vista. Ele sabia algo acerca destes assuntos. Por ter apenas dez anos de idade, por alguma razão, não o obrigariam a viver com a esposa, não até ele ser mais crescido. Enquanto ela permanecesse debaixo do mesmo telhado, esperava-se que se fosse educado, talvez até atencioso com ela, mas depois ela haveria de voltar com o pai para a sua própria casa, até se achar que ele teria a idade necessária para partilhar a cama e o lar com ela. Agora que começava a pensar seriamente no assunto, parecia a Richard que não existiam privilégios nenhuns inerentes ao facto de estar casado, a sua avó continuaria a tratá-lo tal como antes como uma criança sem importância, a dar-lhe ordens, ralhando com ele, esbofeteando-o se ele a aborrecesse, até bater-lhe se ele a desafiasse. Em resumo, convinha ao suserano de Eaton recuperar a sua liberdade através de quaisquer meios que surgissem e fugir do seu domínio. Agora ele já não devia ser muito importante para ela, pois servira o seu objectivo e o que contava era a. terra legada. Se ela pensava que assegurara isso, em breve poderia estar disposta a deixar partir o seu instrumento.
Richard enrolou-se nas suas mantas e adormeceu. Se eles estavam a falar sobre ele no salão e a debater o que haveriam de fazer com ele, isso não complicava os seus sonhos. Ele era demasiado jovem e demasiadamente cheio de uma esperança inocente para levar os seus problemas para a cama.
A sua porta ainda estava trancada na manhã seguinte, e o servo que lhe trouxe o pequeno almoço não lhe deu hipótese de se poder esgueirar, apesar de ele não ter certamente qualquer intenção de o tentar, já que sabia que não conseguiria chegar muito longe e o seu papel agora era continuar a ser dócil e evitar qualquer tipo de suspeitas. Quando a sua avó destrancou a porta e entrou, foi mais o velho hábito familiar, e não malícia, que fez com que ele se levantasse à sua entrada, tal como fora ensinado, e erguesse a cara para receber o seu beijo. E o beijo não foi mais frio do que sempre o fora e. por um momento, ele sentiu a inevitável generosidade do sangue quente que os aquecia aos dois, algo que ele nunca questionara apesar de ela muito raramente o ter expressado.
O contacto fez com que ele estremecesse e trouxe-lhe uma súbita e surpreendente ferroada de lágrimas aos olhos, tão inevitavelmente, como o surgimento de recuo obstinado para dentro da sua mente. A ela não lhe causou qualquer distúrbio. Olhou para ele, da sua erecta e formidável altura com um olhar de, certo modo, suave.
- Bem, senhor, como é que se sente esta manhã? Vai portar-se como um rapaz bom e obediente e fazer os possíveis para me agradar? Se assim é, vai ver que nos iremos dar muito bem juntos. Você principiou, agora continue como começou. E envergonhe-se por me ter desafiado e contrariado durante tanto tempo.
Richard baixou as suas longas pestanas e olhou para baixo para os seus pés.
- Sim, avó - e depois, num ensaio submisso - Posso sair hoje? Não gosto de estar aqui fechado, é como se fosse de noite a toda a hora.
- Veremos - respondeu ela, mas para Richard o tom significava claramente «Não!». Ela não argumentaria nem negociaria, apenas lhe despejaria a lei em cima. - Ainda não, ainda não o mereceste. Primeiro prova que aprendeste onde é que reside o teu dever, e então terás a tua liberdade de novo. Não estás doente devido a isso, tens tudo o que precisas aqui, fica satisfeito até teres ganho mais e melhor.
- Mas eu já o provei! - disparou ele. - Fiz o que queria, devia fazer aquilo que eu quero. É injusto fechar-me aqui, injusto e indelicado. Eu nem sequer sei o que fez com o meu pónei.
- O teu pónei está a salvo no estábulo - disse Dionísia agressivamente - e bem tratado, tal como tu estás. E é melhor tomares mais atenção aos modos que tens comigo, senhor, ou terás motivos para te arrependeres. Ensinaram-te naquela escola da abadia a ser insolente com os mais velhos, mas é uma lição que bem podes esquecer tão depressa quanto puderes, para teu próprio bem.
- Eu não estou a ser insolente - suplicou ele. recaindo na rabugice. - Eu só quero estar à luz do dia, quero sair. não sentar-me aqui sem poder ver as árvores e a relva. É miserável estar aqui dentro, sem nenhuma companhia...
- Tu irás ter companhia - prometeu ela, prendendo-se a uma queixa para a qual ela podia fornecer uma resposta complacente. - Enviarei a tua noiva para te fazer companhia. Quero que fiques agora a conhecê-la melhor, pois depois do dia de hoje. ela regressará a Wroxeter com o seu pai e tu, Richard - disse ela em tom de aviso, lançando-lhe um olhar ameaçador -, vais regressar comigo para o teu próprio feudo, para ocupares o teu devido lugar. E eu esperarei que tu te comportes devidamente por lá, e que não fiques a desejar aquela escola, agora que estás casado e és um homem de sustância. Eaton pertence-te e é lá que deves ficar, e espero que sustentes isso, se alguém, quem quer que seja. o colocar em dúvida. Compreendes-me, senhor?
Ele compreendia-a muito bem. Ele iria ser bajulado, intimidado, tiranizado para declarar, até mesmo ao Irmão Paul e ao Pai Abade, se fosse necessário, que fugira para casa da sua avó de sua livre vontade e que, de sua livre vontade, se submetera ao casamento que tinham planeado para ele. Abraçou o seu conhecimento secreto com alegria no coração, enquanto dizia submissamente:
- Sim , senhora!
- Óptimo! E agora vou ordenar que te enviem a Hiltrude e verificarei que tu te portas bem com ela. Vais ter de te habituar a ela, e ela a ti, por isso bem podem começar agora - e cedeu ao ponto de o deixar beijá-la novamente quando saiu, embora este se assemelhasse tanto a um estalo como a um beijo. Ela saiu entre o remoinho empoeirado das suas longas saias verdes e Richard ouviu a fechadura a trancar-se novamente, atrás dela.
E tudo o que ele ficara a saber daquilo tudo, à excepção do facto de o seu pónei se encontrar no estábulo? Se ele ao menos pudesse chegar até ele. poderia tentar a sua fuga. Nesse momento, entrou Hiltrude, tal como a sua avó o avisara, e todo o ressentimento e antipatia que sentia pela rapariga, apesar de injusto, ferveu dentro dele numa raiva infantil.
Ela ainda lhe parecia pertencer, pelo menos, à geração da mãe. a qual ele mal recordava, mas não era completamente vulgar, tinha uma cara grande, com uma pele pálida e clara, olhos castanhos e circunspectos, e embora o seu cabelo fosse liso e de uma tonalidade castanha de rato, ela possuía uma grande quantidade dele, entrançado numa espessa trança que lhe caía até à cintura. Ela não era desagradável, parecendo antes amargamente resignada e miserável. Manteve-se durante um momento com as costas viradas para a porta, olhando fixa e pensativamente para o rapaz carrancudamente enroscado na sua cama.
- Então eles enviaram-te para seres o meu cão de guarda - disse Richard, desagradavelmente.
Hiltrude atravessou o quarto e sentou-se no parapeito da janela fechada, e olhou para ele sem qualquer boa vontade.
- Eu sei que não gostas de mim - disse ela, não tristemente mas com um vigor bastante inesperado. - Tens pouco motivo para gostar, e por esse motivo, eu não gosto de ti. Mas ao que parece estamos os dois unidos e agora não há nada a fazer. Porquê, porque é que tu cedeste? Eu só disse que sim, por fim, porque estava certa que tu estarias suficientemente seguro lá na abadia, e eles nunca chegariam a isto. E, depois, tiveste de cair nas mãos deles como um estúpido e cederes. E aqui estamos ambos, e que Deus nos ajude! - Ela cedeu ao ouvir a nota de desespero da sua própria voz e terminou com uma simpatia cansada - A culpa não é tua, és apenas uma criança, o que podias fazer? E não é que eu não goste de ti, nem sequer te conheço, é só que não te queria, não te quero, tal como tu não me queres a mim.
Por essa altura, Richard olhava fixamente para ela, com a boca e os olhos escancarados, completamente mudo devido ao espanto de a ver tal como era e não um símbolo de embaraço, uma carga pesada colocada à volta do seu pescoço, mas uma pessoa real com muito para dizer por si própria e nada parva, sem sombra de dúvida. Lentamente, ele desenroscou as suas pernas magras e colocou os pés no chão, para sentir uma substância sólida debaixo dele.
- Tu nunca quiseste casar comigo? - repetiu lentamente numa fina voz chocada.
- Um bebé como tu? - replicou ela, indiferente por o ofender. - Não. nunca quis.
- Então porque é que concordaste sequer em fazê-lo? - Ele estava demasiado indignado com a capitulação dela, para se ofender com a reflexão sobre a sua pequena idade. - Se tu tivesses dito que não e continuasses a dizê-lo, estaríamos ambos salvos.
- Porque é muito difícil dizer não a um homem como o meu pai, o qual começara a dizer-me que eu estava a ficar demasiado velha para ter outro pretendente, e que se eu não te aceitasse seria obrigada a entrar numa irmandade e a permanecer uma donzela até morrer. E eu queria isso ainda menos. E pensei que o abade te mantivesse bem seguro e nunca nada haveria de acontecer. E agora aqui estamos nós, e o que é que vamos fazer acerca disto?
Sentindo-se surpreendido por sentir uma curiosidade quase simpática por esta mulher, a qual mudara de pele perante os seus olhos e emergira tão vívida e real como ele, Richard perguntou timidamente,
- O que é que tu queres? Se pudesses fazer as coisas à tua maneira, o que gostarias de fazer?
- Eu gostaria - disse Hiltrude, os seus olhos castanhos ardendo, repentinamente, de raiva e perda - de um jovem homem chamado Evrard, que mantém o feudo do meu pai a funcionar e é o seu criado em Wroxeter e que também gosta de mim, quer aches isso possível ou não. Mas ele é o filho mais novo e não tem terras, e onde não há terra para juntar à sua o meu pai não tem interesse nenhum. Há um tio que pode bem deixar o seu feudo a Evrard, visto gostar dele e não ter filhos, mas é agora que o meu pai quer a terra e não terra que ainda é uma incerteza - o fogo extinguiu-se e ela virou a cabeça para o lado. - Porque é que eu te conto isto? Tu não podes compreender, e não é culpa tua. Não há nada que tu possas fazer para o melhorar.
Richard começava a pensar que talvez pudesse haver alguma coisa muito pertinente que ele podia fazer por ela, se ela por seu turno fizesse alguma coisa por ele.
- O que estão eles agora a fazer, o teu pai e a minha avó? Ela disse que tu irias regressar para Wroxeter amanhã. O que estão eles a planear? E o Pai Abade andou à minha procura, desde que eu me fui embora? - perguntou cautelosamente.
- Tu não sabes? Não só o abade, mas o xerife e todos os seus homens estão à tua procura. Eles revistaram Eaton e Wroxeter e estão a revirar cada arbusto da floresta. O meu pai receava que eles chegassem até cá hoje, mas a tua avó achou que não. Estavam a considerar se haveriam de te levar de volta para Eaton durante a noite, visto que já foi revistado anteriormente, mas a Dama Dionísia estava certa de que os oficiais tinham ainda vários dias de buscas antes de alcançarem Leighton e de qualquer modo, disse ela, se for estabelecida uma vigilância adequada, haverá muito tempo para te fazer transpor o rio com uma escolta e enviar-te para baixo para te abrigares em Buildwas. Melhor ainda, disse ela, do que te deslocar de novo para Shrewsbury.
- Onde estão eles agora? - perguntou Richard intencionalmente. - A minha avó?
- Ela voltou para Eaton para que tudo por lá esteja como habitual. O eremita regressou à cela dele durante a noite. Não seria bom se alguém soubesse que ele esteve fora.
- E o teu pai?
- Ele está fora e entre os seus rendeiros, mas não está longe. Levou o escriturário com ele. Atrevo-me a dizer que deve haver algumas dívidas não pagas que ele quer recolher - os movimentos do pai eram-lhe indiferentes, mas ela sentia alguma curiosidade quanto ao que se estava a passar na cabeça desta criança, a qual afinara a sua voz com um propósito tão cheio de esperança e um iluminar do seu olhar desconsolado. - Porquê? O que há aí para ti? Ou para mim! - acrescentou ela, amargamente.
- Pode haver - disse Richard, principiando a resplandescer - alguma coisa que eu possa fazer por ti, algo positivo, se fizeres em troca uma coisa por mim. Se eles estão ambos fora de casa, ajuda-me a fugir enquanto estão fora. Ela disse-me que o meu pónei está no estábulo. Se eu pudesse chegar até ele e fugir, podias trancar novamente a porta, e ninguém saberia que eu tinha desaparecido até que caísse a noite.
Ela abanou a cabeça decididamente.
- E quem ficaria com as culpas? Eu não colocaria as culpas num dos criados e não tenho grande vontade de ser eu a culpada. Os problemas que já tive são suficientes para mim, agradeço-te!
- Mas acrescentou cautelosamente, vendo que a esperança que se ateara não estava de modo algum extinta - Mas eu estaria disposta a pensar em algumas formas, se eu achasse que resolveria alguma coisa para mim, mas como é que poderia? Por uma justa libertação, eu aventuraria alguma coisa que o Padre dissesse ou fizesse. Mas do que é que serve, quando estamos unidos como estamos e sem saída?
Richard saltou da cama e como uma seta atravessou o quarto para se instalar confiadamente ao lado dela no amplo parapeito.
- Se eu te contar um segredo, juras mantê-lo até eu estar longe e seguro, e ajudas-me a sair daqui? Prometo-te, prometo-te que vai valer a pena - segredou ansioso, perto do seu ouvido.
- Estás a sonhar - disse ela tolerantemente, virando-se para olhar para ele de mais perto e vendo o brilho do seu segredo não obscurecido pela sua própria descrença. - Não há como escapar ao casamento a não ser que tu sejas um príncipe e tenha as graças do papa e quem é que se preocupa com pessoas menores, como nós? Certo, não somos de um estrato muito baixo nem o seremos durante anos, mas se pensas que a tua velha senhora e o meu pai alguma vez o deixariam chegar à anulação, desperdiças as tuas esperanças. Eles conseguiram o que queriam, nunca se separarão dos seus ganhos.
- Não, não é nada disso - insistiu ele -, nós não precisamos nem do papa nem da lei. Tens de acreditar em mim. Pelo menos, promete não contar e quando ouvires o que é. estarás disposta a ajudar-me também.
- Muito bem - disse ela, para lhe fazer a vontade, começando agora a ficar meio convencida de que ele sabia alguma coisa que ela desconhecia, mas ainda duvidando se os poderia ou conseguiria salvar. - Muito bem, eu prometo. Que segredo precioso é esse?
Alegremente, ele avançou os seus lábios até os encostar à orelha dela, a sua face realçada com o toque de um caracol de cabelo que se enrolara aí livremente, e sussurou o seu segredo, como se as próprias tábuas que se encontravam nas suas costas tivessem ouvidos. E após um incrédulo instante de quietude e silêncio, ela começou por rir muito suavemente, até estremecer com as suas próprias gargalhadas e atirando os seus braços a Richard, abraçou-o brevemente apertando-o contra o coração.
- Por isso, irás em liberdade, custe-me o que custar! Tu mereces!
CAPÍTULO ONZE
Uma vez convencida, foi ela que fez os planos. Ela conhecia a casa e os criados, e enquanto não houvesse quaisquer dúvidas acerca da sua subserviência, ela tinha entrada em todo o lado e podia dar ordens aos lacaios e às criadas como lhe apetecesse.
- Será melhor esperar até depois de eles terem trazido o teu jantar e de terem levado, de novo, o prato. Levará então muito mais tempo antes que alguém regresse. Existe um portão nas traseiras atrás da paliçada, que sai do estábulo para o exterior na direcção do cercado para os cavalos. Eu podia dizer ao Jehan para colocar o teu pónei cá fora para pastar, ele tem estado fechado há demasiado tempo para poder estar a gostar disso. Existem ali alguns arbustos por trás do estábulo, perto do postigo. Apressar-me-ei a esconder aí a tua sela e arreios, antes do meio-dia. Consigo tirar-te daqui através da galeria, enquanto estão todos ocupados no salão e nas cozinhas.
- Mas então o teu pai estará em casa- protestou Richard duvidosamente.
- Depois de jantar, o meu pai estará a ressonar. Se ele vier até aqui para te espreitar, será antes de se sentar à mesa para se assegurar que estás seguro na tua gaiola. Melhor para mim também, eu tive de passar aqui a minha manhã contigo galantemente, e quem irá pensar que eu mudei de ideias depois disso? Até poderá ser engraçado - disse Hiltrude, tornando-se mais animada ao contemplar a sua própria velhacaria benevolente - quando eles te forem levar o jantar e encontrarem a janela ainda fechada e trancada, e o pássaro fugido.
- Mas então toda a gente será perseguida, amaldiçoada e culpabilizada - disse Richard - porque alguém deve ter tirado o ferrolho.
- Então todos o negaremos e quem quer que pareça ser mais suspeito, eu o protegerei dizendo que ele nunca saiu da minha vista e nunca tocou na porta desde que o teu jantar entrou. Se chegar ao pior - disse Hiltrude, com uma resolução pouco comum -, direi que me devo ter esquecido de fechar o ferrolho depois de te ter deixado pela última vez. O que é que ele pode fazer? Ele vai continuar a pensar que continuas aprisionado ao casamento, para onde quer que fujas. Melhor ainda - gritou ela, batendo as mãos - serei eu a trazer-te o jantar, esperarei contigo e trarei para fora o prato, portanto mais ninguém pode ser culpado por ter deixado a porta destrancada. Uma esposa deve começar imediatamente a servir o seu marido, dará bom aspecto.
- Não tens medo do teu pai? - aventurou-se Richard a dizer, de olhos abertos com respeito e até admiração, mas relutante em deixá-la suportar uma parte tão perigosa.
- Tenho, tinha! Agora aconteça o que acontecer, valerá a pena o sofrimento. Tenho de ir, Richard, enquanto não há ninguém no estábulo. Espera e confia em mim, e mantém o teu coração alegre. Alegraste o meu!
Ela já estava junto à porta quando Richard, seguindo pensativamente a sua passagem leve e flutuante, e tão diferente da criatura submissa e amarga cuja mão fria ele segurara durante a noite, lhe disse impulsivamente,
- Hiltrude, acho que afinal posso fazer coisas piores do que casar contigo - e acrescentou, com uma pressa pouco decente -, mas por enquanto ainda não!
Ela fez tudo o que lhe prometera. Trouxe-lhe o jantar, sentou-se com ele e manteve uma conversa inconstante e desajeitada enquanto ele o comia, o tipo de conversa que se podia esperar de um estranho ou de uma criança, e uma que lhe fora forçada e relutantemente aceite, por isso, por muito ressentido que ele pudesse estar, não havia qualquer objectivo em continuar a manter disparidades com ele. Não tanto por maldade, mas porque tinha fome e estava ocupado a comer, Richard respondeu com grunhidos, em vez de palavras. Tivesse estado alguém a ouvir, teria certamente achado que a troca de palavras era deprimentemente apropriada.
Hiltrude transportou o prato de volta para a cozinha e regressou, assim que se certificou de que toda a gente na casa estava ocupada. A estreita escada de madeira que descia para a galeria era convenientemente encoberta desde a passagem que conduzia à cozinha, e eles não tiveram qualquer problema em se escapulirem apressadamente por ela abaixo, emergindo debaixo do chão através da longa entrada onde Hyacinth se abrigara e, a partir daí, era apenas uma corrida perigosa ao longo do campo aberto até ao postigo na cerca, meio escondido pelo tamanho do estábulo. Ela deixara os arreios escondidos atrás dos arbustos, a sela, as rédeas e tudo o resto, e o pónei veio ter com ele alegremente. Perto da parede traseira do estábulo, ele selou o pónei tremendo com a pressa e conduziu-o para fora do cercado dos cavalos na direcção do rio, onde a cintura de árvores oferecia protecção, antes de se atrever a apertar a cilha e a montar. Agora, se tudo corresse bem, teria até o cair da noite, antes que pudessem dar pela sua falta.
Hiltrude voltou a subir as escadas da galeria e ocupou-se em passar a tarde irrepreensivelmente entre as mulheres da casa, à vista de todos e ocupada com os afazeres adequados à senhora do feudo. Ela colocara o ferrolho na porta de Richard. já que seria óbvio que se esta tivesse sido deixada inadvertidamente aberta e o prisioneiro tivesse tirado vantagem do facto, até mesmo um rapaz de dez anos teria o bom senso de fazer correr novamente o ferrolho e preservar as aparências. Quando a fuga fosse descoberta, ela poderia muito bem protestar que não se lembrava de se ter esquecido de o fechar apesar de. por fim. admitir que o deveria ter feito. Por essa altura, se tudo corresse bem, Richard estaria de volta ao enclave da abadia, e começaria a pensar com algum atraso em como se apresentaria como uma vítima inocente, enterrando as recordações do culpado ocioso que saíra sem permissão e causara todo este tumulto e ansiedade. Bem, isso eram assuntos de Richard. Ela cumprira a sua parte.
Foi uma pena que a meio da tarde o servo que recolhera o pónei de Richard no interior do cercado dos cavalos tivesse de ir buscar outro dos animais para pastar no exterior, já que reparara que o animal coxeava ligeiramente. Mal pôde deixar de notar que o pónei desaparecera. Pensando na primeira e óbvia, se não demasiado provável possibilidade, ele encontrava-se no meio do pátio a gritar que tinham estado ladrões no cercado dos cavalos, antes de lhe ter ocorrido regressar e procurar no estábulo por uma sela e arreios. Isso deu uma outra luz ao desaparecimento. E para além disso, porquê levar o animal menos valioso à vista? E porquê arriscar-se a roubá-lo em plena luz do dia? As noites escuras eram mais favoráveis.
Assim, chegou ao salão anunciando ruidosamente e sem fôlego que o pónei do jovem noivo desaparecera, selado e tudo, e que era melhor que o seu suserano fosse ver se o rapaz ainda estava seguro sob fechadura e chave. Apressadamente, o próprio Fulke dirigiu-se à sua procura, dificilmente acreditando nas novidades, e encontrou a porta firmemente trancada tal como anteriormente, mas o interior do quarto vazio. Soltou um berro de raiva que fez Hiltrude estremecer sobre o bastidor do seu bordado, mas manteve os olhos baixos sobre o seu trabalho e prosseguiu com recato afectado, cosendo até a tempestade ter estourado na entrada e aumentado até encher o salão.
- Qual de vocês é que foi? Quem foi o último a servi-lo? Qual dos parvos entre vós, pois todos vós sois parvos, é que deixou a porta aberta? Ou será que um de vocês o soltou deliberadamente, apesar das minhas ordens? Ajustarei contas com o traidor miserável, quem quer que ele seja. Falem! Quem é que levou o jantar ao diabrete escorregadio?
Os homens afastaram-se do seu alcance imediato, balbuciando todos a sua própria inocência. As criadas tremeram e olharam de lado umas para as outras, mas hesitaram em dizer uma palavra contra a sua senhora. Hiltrude, mantendo a sua coragem com ambas as mãos e aumentando em firmeza agora que era posta à prova, colocou o seu trabalho de lado e disse corajosamente, ainda não soando defensiva:
- Mas, Pai, tu sabes que eu própria o fiz. Tu viste-me no fim trazer o prato quando ele terminou. Seguramente que tranquei novamente a porta, tenho a certeza que a tranquei. Mais ninguém esteve lá dentro com ele, desde então, a não ser que o senhor o tenha visitado. Quem mais o faria, a não ser que tivesse sido enviado? E eu não enviei ninguém.
- Tem assim tanta certeza, senhora? - rugiu Fulke.- A seguir, vai dizer-me que o rapaz não fugiu de todo, mas que está lá sentado onde deveria estar. Se foi a última a lá entrar, então é a culpada por o ter deixado fugir e ter dado corda aos sapatos. Deve ter deixado a porta destrancada, senão como teria ele fugido? Como é que pudeste ter sido tão parva?
- Eu não a deixei destrancada - repetiu ela, mas agora com menos certeza. - Nem sequer sei me esqueci - concedeu ela defensivamente -, apesar de achar que não o fiz, mas se o fiz, isso tem agora alguma importância? Ele não pode alterar o que está feito, nem o pode mais ninguém. Não vejo porque há-de causar tanta agitação.
- Tu não vês. tu não vês, tu não vês nada para além da ponta do teu nariz, senhora! E ele a ir a correr de volta para o seu abade, com as histórias que ele pode contar?
- Mas ele teria de regressar para a luz do dia mais cedo ou mais tarde - disse ela humildemente. - Não o podia manter fechado para sempre.
- De facto teria, todos sabemos isso, mas ainda não, não até termos a sua marca, não, não a sua marca pois ele sabe assinar o seu nome, o que é ainda melhor!, nos acordos de casamento e fazê-lo ver que bem pode encaixar a sua história na nossa e aceitar o que está feito. Mais uns dias e tudo podia ter sido feito à nossa maneira, da maneira adequada. Mas eu não o vou deixar escapar sem o perseguir - jurou Fulke vingativamente e virou-se para rugir para os seus criados petrificados - Selem o meu cavalo e despachem-se com isso! Eu vou atrás dele. Ele irá dirigir-se directamente para a abadia e, certamente, manter-se-á bem afastado de Eaton. Ainda o vou trazer pelas orelhas!
Em plena luz do dia, Richard não se atreveu a tomar a estrada, mesmo dando uma grande volta à aldeia. Por aí. poderia ter aumentado a velocidade, mas podia atrair facilmente a atenção dos vassalos ou de rendeiros, que serviriam os propósitos de Astley pelos seus próprios motivos, e o arrastariam de volta para o seu cativeiro.
Além disso, a estrada conduziria-o demasiado perto de Eaton. Manteve-se perto da cintura do bosque que se estendia em direcção a oeste aproximadamente meio quilómetro acima do rio, estreitando-se ao longo do curso do rio até não ser mais do que um cinto de carvalhos solitários e espaçados que ladeavam a água. Para lá destes, prados de água esmeralda enchiam uma grande curva do Severn, aberta e sem árvores. Aí manteve-se suficientemente longe no interior, de forma a ter a protecção dos poucos arbustos que cresciam ao longo dos promontórios de terra por cultivar dos campos de Leighton. Rio acima, para onde ele se dirigia, o vale alargava-se num grande planalto verde de prados inundados, apenas com algumas árvores isoladas nos pontos mais altos, mas a margem norte por onde ele viajava erguia-se mais um quilómetro para o interior do baixo cume da floresta de Eyton, onde ele se podia esconder sob a sua densa cobertura, durante mais de metade do percurso até Wroxeter. Significaria ter de ir mais devagar, mas não era a perseguição que ele temia então, era o ser reconhecido e interceptado pelo caminho. Teria de evitar Wroxeter a todo o custo, e o único caminho que ele conhecia era atravessar a vau e naquele lugar o Severn, perto da aldeia e longe das vistas do feudo, para alcançar a estrada do lado sul e depois cavalgar a toda a pressa em direcção à cidade.
Apressou-se mais rapidamente na floresta, onde a sua familiaridade com a terra o fizera apanhar um atalho por entre caminhos e pagou por isso com uma queda, quando o seu pónei pisou na abertura de uma toca de texugo, mas caiu com leveza suficiente na espessa almofada de folhas e escapou apenas com algumas contusões e o pónei, assustado e enervado mas dócil, regressou prontamente assim que o susto inicial passou. Depois disso, lembrou-se que a pressa não era necessariamente outra palavra para velocidade e tomou mais cuidado até chegar aos caminhos mais abertos. Richard não tinha pensado muito na fuga, mas partira decidido em regressar à abadia e ficar por lá em paz, quaisquer que fossem as repreensões e os castigos que o aguardassem, assim que toda a ansiedade da sua ausência fosse esquecida. Sabia o suficiente acerca das pessoas crescidas, por muito diferentes que pudessem parecer sob todos os outros aspectos, para compreender que todas elas partilhavam o mesmo instinto quando uma criança a seu cargo era recuperada do perigo; abraçavam-na primeiro e, de seguida, davam-lhe uma pancada na cabeça com os nós dos dedos. Se, de facto, a pancada não surgisse primeiro! Ele não se importaria com isso. Agora que fora violentamente arrastado da sala de aula, e afastado do Irmão Paul, dos seus companheiros e até mesmo da cara temerosa do Pai Abade, tudo o que queria era regressar para eles, de sentir a segurança das paredes da abadia e até mesmo o horário seguro do dia monástico, enrolado à sua volta como uma capa quente. Ele podia, se tivesse pensado nisso, ter cavalgado até à azenha perto do rio em Eyton ou até à cabana do couteiro ou a qualquer outra habitação destes terrenos pertencentes à abadia, e seria recebido num abrigo seguro, mas essa possibilidade nunca lhe passou pela cabeça. Dirigiu-se para a abadia como um pássaro para o seu ninho. Nesse momento, não possuía outro lar apesar de ser suserano de Eaton.
Uma vez fora da floresta, havia um caminho bom e aberto quase até ao vau, que ficava do lado sul da aldeia de Wroxeter. Durante esses dois quilómetros, continuou rapidamente, mas não tão depressa que a atenção sobre si, pois aqui existiam pessoas que poderia encontrar ocasionalmente, as quais regressavam dos seus afazeres diários nos campos ou percorriam o caminho entre aldeias. Não viu nenhuma que conhecesse e respondeu a essas saudações casuais rapidamente, sem se demorar.
A cintura de árvores do lado mais próximo do vau avistou-se, os poucos salgueiros mergulhando na água, e surgiu o topo da torre da igreja entrevista por entre os ramos, vendo-se apenas um dos cantos do telhado. O resto da aldeia e do domínio ficavam mais afastados. Richard aproximou-se cautelosamente do abrigo das árvores e desmontou, sob essa cobertura, para espreitar para a baixa extensão da água que rodeava uma pequena ilhota e o caminho que descia da aldeia até ao vau. Ouviu as vozes antes de ter uma visão clara e deteve-se para escutar atentamente, esperando que os passantes se dirigissem à aldeia e deixassem o seu caminho desempedido. Duas mulheres, conversando e rindo, acompanhadas por uma luz que se reflectia na margem da água e depois a voz de um homem, igualmente ocioso e à vontade, provocando e arreliando as raparigas. Richard atreveu-se a aproximar-se, até os conseguir ver claramente e deteve-se com um suspiro de exasperação e desânimo.
As mulheres tinham estado a lavar roupa e tinham-na estendido nos ramos baixos para secar, e como o dia não estava frio e se juntara a elas um companheiro jovem e atraente, elas não mostravam pressa de deixar a margem. Richard não conhecia as mulheres, mas quanto ao homem conhecia-o bem demais, apesar de não saber o seu nome. Este pavão jovem, grande, ruivo e robusto era o capataz de Astley na quinta da propriedade, e um dos dois que encontrara e reconhecera Richard nos bosques quando este trotava apressadamente para a abadia, e tinham-se aproveitado da hora e da solidão para fazer um favor ao seu suserano. Aqueles mesmos braços musculados, que agora faziam cócegas a uma das lavadeiras que soltava risadinhas, tinham ignominiosamente puxado Richard para fora da sela, e tinham-no segurado enquanto ele pontapeava furioso um ombro forte que podia ser feito de carvalho se se considerasse todo o efeito que os seus punhos tinham produzido sobre ele, até o outro herético lhe ter enchido a boca com o seu próprio capuz e lhe ter atado os braços com as suas próprias rédeas. Nessa mesma noite, quando passava da meia-noite, estava completamente escuro, e todas as pessoas honestas metidas nas suas camas, este mesmo par de confiança enviara-o para longe, para o feudo mais distante por motivos de custódia. Richard lembrava-se amargamente destas indignidades. E agora aqui estava este mesmo sujeito a meter-se de novo à sua frente, pois ele não podia sair a cavalo da cobertura e dirigir-se para o vau sem passar perto deles, ser reconhecido e quase certamente recapturado.
Não havia nada a fazer senão recuar para uma cobertura mais profunda e esperar que todos se afastassem, regressando à aldeia e ao feudo. Sem esperança de contornar Wroxeter através de um caminho mais amplo e continuar na margem do rio, ele estava já demasiado perto da extremidade da aldeia e todos os caminhos se encontravam à vista. E estava a perder tempo e, sem pensar porquê, sentiu que o tempo era vital. Perdeu ali uma hora, roendo os nós dos dedos numa frustração desesperada e esperando pelo primeiro movimento. Mesmo quando decidiram recolher a roupa e dirigirem-se para casa, as mulheres não mostraram muita pressa nisso, mas deslocaram-se vagueando pelo caminho acima, gracejando e rindo, com o homem jovem que caminhava com passadas largas entre elas. Só quando as suas vozes se transformaram em silêncio e mais nenhuma alma se agitava pelo vau, é que Richard se aventurou a sair da cobertura e a esporear o seu pónei, chapinhando nos bancos de areia.
A princípio, o vau era suave, arenoso e pouco fundo, depois o caminho atravessava a ponta da linha sem molhar os pés, mergulhando novamente para dentro da longa passagem que conduzia ao lado oposto, um arquipélago amplo de pequenos baixios arenosos, que ondulavam e reluziam com o movimento suave e circular da água. A meio da passagem, Richard puxou as rédeas durante um momento para olhar para trás, pois a larga e inocente extensão de prados verdes oprimia-o com uma sensação de nudez e de apreensão. Aqui podia ser visto a um quilómetro de distância ou mais, uma pequena figura escura montada a cavalo, indefesa e vulnerável, contra uma paisagem toda humidade, luz perlífera e cores pálidas.
E ali, galopando a toda a brida em direcção ao vau no mesmo caminho pelo qual ele viera, ainda distante e pequeno, mas cavalgando intencionalmente atrás dele, aproximava-se um único cavaleiro num grande cavalo de um tom cinzento claro, Fulke Astley, numa perseguição determinada ao genro fugitivo.
Richard disparou através dos bancos de areia numa agitação de espuma e galopou numa pressa desesperada através dos prados molhados, enveredando para oeste para o troço que o haveria de levar durante mais de quatro quilómetros até Saint Giles, e à última corrida directa até ao portão da abadia. Faltava mais de um quilómetro antes que pudesse encontrar protecção no terreno acidentado e nos pequenos bosques, mas até mesmo aí, não podia esperar afastar de si a perseguição agora que fora avistado, como certamente o deveria ter sido. E o seu pónei não era par para aquela besta às manchas, que o perseguia, mas a velocidade era a sua única esperança. Ainda tinha um avanço considerável, embora tivesse perdido grande parte dele ao esperar para atravessar o vau. Cravou os calcanhares nos flancos do pónei, cerrou os dentes com força e dirigiu-se para Shrewsbury, como se lobos estivessem no seu encalce.
O terreno elevou-se, dobrado em colinas baixas, salpicadas com árvores e pequenos renques de arbustos, escondendo a presa e o caçador um do outro, mas a distância entre eles devia estar a diminuir e no bocado em que o percurso era nivelado e nu. Richard deitou um olhar inquieto sobre o ombro, vislumbrando novamente o seu inimigo, agora mais perto do que anteriormente, e pagou pela sua momentânea desconcentração com outra queda, só que desta vez agarrou as rédeas e evitou o pior do embate, bem como o esforço de apanhar novamente o seu pónei. Enlameado, ligeiramente ferido e furioso consigo mesmo, ergueu-se novamente sobre a sela e galopou selvaticamente, sentindo o olhar fixo de Astley como um punhal nas suas costas. Felizmente, o pónei era robusto e de criação galesa, e estivera durante alguns dias a necessitar de fazer exercício, e o peso que carregava era leve. mas mesmo assim o seu galopar era duro e Richard sabia-o e receava-o, mas não podia abrandar. Quando avistou a vedação de Saint Giles e o troço que se alargava numa estrada, conseguiu ouvir os cascos embatendo algures por atrás dele. Se não fosse por isso, ele podia ter-se ali refugiado, já que a leprosaria era dirigida e servida pela abadia, e o Irmão Oswin não o teria entregue a ninguém a não ser com ordens do abade. Todavia, naquela altura, já não tinha tempo para parar ou para se desviar.
Richard baixou-se e galopou ao longo do Foregate, esperando a cada momento ver a sombra maciça de Fulke Astley surgir a seu lado e uma mão grande a esticar-se para lhe agarrar as rédeas. Virou a esquina do muro da abadia e galopando ao longo do caminho que se dirigia directamente à casa do portão, dispersou os artífices e couteiros que terminavam o seu dia de trabalho e se dirigiam a casa, e as crianças e cães que brincavam na estrada principal.
A distância era pouco menor do que seis metros, quando Richard se lançou despreocupadamente para dentro da casa do portão.
Nessa noite, no serviço de Vésperas, Cadfael. sentado no seu lugar no coro, reparou que alguns dos adoradores provinham do salão de hóspedes. Rafe de Coventry estava presente, taciturno e moderado como sempre, e até Aymer Bosiet, depois das actividades do seu dia em perseguição da sua propriedade fugitiva, tinha uma aparência sombria e taciturna, possivelmente para rezar por uma pista fidedigna do céu. Pelo seu olhar, tinha assuntos de peso na mente, visto que franzia a testa sobre todos eles durante o serviço de Vésperas, como um homem tentando decidir-se. Talvez a necessidade de permanecer em boas relações com a poderosa família da sua mãe o estivesse a instigar a apressar-se de imediato para casa com o corpo de Drogo e a mostrar alguns sinais de devoção familiar. Talvez a ideia de um irmão mais novo e mais subtil, que se encontrava no local e absolutamente capaz de fazer o mal pelas suas próprias mãos, também pudesse estar a argumentar a favor do abandono de uma busca infrutífera com a contrapartida de uma certa herança.
Quaisquer que fossem as suas preocupações, tornou-se mais uma testemunha da cena que confrontou irmãos e hóspedes quando o ofício terminou e eles emergiram pela porta sul e passaram ao longo da ala oeste do claustro na direcção do pátio, para se dispersarem para as diversas preparações para jantar. O Abade Radulfus estava justamente a descer para o pátio com o Prior Robert, seguidos por todo o cortejo dos irmãos, quando a quietude da noite foi quebrada pelo bater apressado de cascos ao longo da terra batida da estrada no exterior da casa do portão, transformando-se subitamente num ruído metálico nas pedras do interior, enquanto um robusto pónei preto se deslocava com ruído passando pela casa do portão sem parar, escorregando e batendo com as patas nas pedras, e seguido de perto por um cavalo cinzento e alto. O cavaleiro que montava o cavalo cinzento era um homem grande, carnudo, de barba, de cara carmesin devido à raiva e à pressa ou a ambas, o qual se inclinava para a frente para agarrar as rédeas do rapaz que montava o pónei. Os dois tinham penetrado cerca de vinte metros dentro do pátio, quando a sua mão esticada agarrou a rédea, arrastando ambas as montadas, e fazendo-as deslizar e bufar até se deterem, cobertas de espuma e tremendo. Ele conseguira segurar o pónei, mas não o rapaz, o qual soltando um grito de alarme largou as rédeas e, caindo em vez de desmontar, voou como um pássaro até aos pés do abade, onde tropeçou e caiu estatelado de cara para baixo, e agitando os seus braços desesperadamente em redor dos tornozelos do abade, lançou um apelo imperceptível para as saias do hábito negro e segurou-se firmemente, esperando ser arrancado à força e certo de que ninguém o poderia impedir, se a tentativa fosse feita, à excepção desta rocha erecta e estável à qual ele se agarrava.
O sossego que fora tão rudemente destroçado reinstalara-se acompanhado por alguma surpresa no grande pátio. Radulfus ergueu o seu olhar fixo e austero da pequena figura que lhe abraçava os tornozelos para o robusto e confiante homem que deixara os cavalos, que tremiam e suavam lado a lado, e avançava alguns passos para o cumprimentar, nada envergonhado perante a autoridade monástica.
- Meu senhor, isto é de certo modo descortês. Não estamos acostumados a tais visitas súbitas - disse Radulfus.
- Meu senhor abade, pesa-me ser forçado a perturbá-lo. Se a nossa entrada foi sem modos, peço o seu perdão. Por Richard mais do que por mim - disse Fulke com desafio consciente e confiante. - A sua tolice é a causa. Espero poupá-lo a este tolo motim ao levá-lo e acompanhá-lo em segurança de regresso a casa. Para onde vou levá-lo agora e certificar-me que ele não o incomodará de novo.
Parecia estar muito seguro de si próprio, apesar de não ter avançado outro passo ou esticado uma mão para agarrar o rapaz pelo colarinho. Olhou o abade, olhos nos olhos, sem pestanejar. Por trás das costas do Prior Robert, os irmãos abriram fileiras para se aproximarem do centro do pátio e se reunirem num semicírculo discreto, espreitando com admiração o rapaz agachado, o qual começara a pronunciar com dificuldade protestos abafados e súplicas ainda incoerentes, já que não erguia a cabeça ou relaxava a força frenética dos seus braços. Seguindo os Irmãos, aproximaram-se os hóspedes, não menos interessados num espetáculo tão invulgar. Cadfael, deslocando-se metodicamente para uma posição da qual tinha uma visão mais clara, captou o distante mas atento olhar de Rafe de Conventry e viu a passagem fugidia de um sorriso varrer os lábios barbados do falcoeiro.
Em vez de responder a Astley, o abade olhou novamente para baixo, com a cara franzida, para o rapaz a seus pés e disse rispidamente:
- Pára de fazer barulho, criança, e larga-me. Não corres perigo nenhum. Levanta-te!
Richard afrouxou a força dos seus braços relutantemente, e ergueu uma cara manchada com lama e o verde das folhas das suas quedas, com o suor da sua pressa e medo e umas quantas lágrimas frenéticas de alívio, de um terror que via agora não ser nada razoável.
- Pai, não o deixes levar-me! Eu não quero regressar, eu quero ficar aqui, eu quero ficar com o Irmão Paul, eu quero aprender. Não me mandes embora! Eu nunca quis ficar longe, nunca! Eu regressava a casa quando eles me apanharam. Eu regressava a casa, de verdade, regressava!
- Parece - disse o abade secamente - que há aqui alguma disputa quanto ao facto de onde é a tua casa, visto que o senhor Fulke está a oferecer-te um salvo conduto até lá, enquanto que tu és da opinião de que já chegaste. Qualquer justificação que tenhas para dar acerca do que se passou pode esperar por outra ocasião. Onde tu pertences, parece que não pode. Levanta-te, Richard, imediatamente, e coloca-te de pé, como deverias estar - e estendeu uma mão magra e musculada, segurando em Richard pelo antebraço e puxando-o vivamente para cima.
Pela primeira vez, Richard olhou à sua volta, desconfortavelmente consciente dos muitos olhos sobre si e um pouco humilhado por ter apresentado tal figura tão desgrenhada e suja perante todos os irmãos reunidos, e ainda mais a vergonha humilhante que sentia quanto aos endurecidos rastros de lágrimas nas suas bochechas. Endireitou as costas e esfregou apressadamente com uma manga a sua cara suja. Procurou rapidamente o Irmão Paul entre o círculo de hábitos e, encontrando-o, ficou um pouco reconfortado. O Irmão Paul, que fora avisado para não correr para o seu carneiro tresmalhado, colocou a confiança no Abade Radulfus e manteve a sua boca fechada.
- Ouvimos, senhor - disse o abade -, qual é a preferência de Richard. Sem dúvida que sabe que o pai dele o colocou aqui ao meu cuidado e desejava que ele aqui permanecesse e estudasse até atingir a maioridade. Eu tenho uma reivindicação para a custódia deste rapaz através de escritura, devidamente testemunhada, e foi do meu cargo que ele fugiu há alguns dias atrás. Eu não ouvi até à data quais os motivos que podem existir na sua reivindicação sobre ele.
- Richard muda de ideias todos os dias - respondeu Fulke. confiantemente alto -, pois, ainda ontem à noite, foi de livre vontade numa direcção bem diferente. Nem acho que tal criança possa escolher a seu bel-prazer, quando os seus anciões são melhores juizes sobre o que é melhor para ele. E quanto à minha reivindicação sobre o cargo dele, você sabê-lo-á. Richard é meu genro, com o conhecimento e consentimento total da sua avó. Ontem à noite, casou com a minha filha.
O calafrio de consternação que passou pelo círculo de observadores atingidos pelo espanto desvaneceu-se numa calma absoluta. O Abade Radulfus não revelou exteriormente o abalo, mas Cadfael viu as linhas da sua cara magra endurecerem e sabia que a seta o atingira. Tal consumação fora havia muito conspirada por Dionísia e este vizinho egocêntrico pouco mais era do que o seu instrumento em toda a questão. O que ele anunciara podia muito bem ser verdade, se eles tivessem tido o rapaz nas mãos deles durante todo este tempo em que ele estivera desaparecido. E Richard, que endurecera e esticara a sua cabeça para cima, de boca aberta para gritar que era falso, encontrou o olhar severo e fixo do abade sobre ele e ficou com-pletamente confundido. Tinha medo de mentir face àquele semblante judicial, de facto admirava-o tanto quanto o receava, e não desejava mentir e, confrontado com esta declaração óbvia, deu por si perdido por saber o que era a verdade. Pois tinham-no casado com Hiltrude e uma simples negação não era suficiente. Uma descarga final de medo atravessou-o roubando-lhe o fôlego; e se o próprio Hyacinth estivesse enganado e os votos que ele repetira mansamente o tivessem unido para toda a vida?
- Isto é verdade. Richard? - perguntou Radulfus.
A sua voz era equilibrada e baixa, mas dentro das circunstâncias parecia terrível a Richard. Ele engoliu palavras que não iriam servir e Fulke, impaciente, respondeu por ele:
- É verdade e ele não a pode negar, duvida da minha palavra, meu senhor?
- Silêncio! - disse o abade peremptória, mas ainda calmamente.
- Exijo a resposta de Richard. Fala, rapaz! Este casamento teve lugar de facto?
- Sim, Pai - faltou-lhe a voz -, mas não é...
- Onde? Com que outras testemunhas?
- Em Leighton, Pai, ontem à noite, isso é verdade, mas mesmo assim eu não estou...
Interrompeu-se novamente e submeteu-se com um soluço, frustrado e aumentando a sua indignação.
- E tu disseste as palavras do sacramento livremente, de tua própria vontade? Não foste forçado? Espancado? Ameaçado?
- Não, Pai, não fui espancado, mas tive medo. Eles insistiram tanto comigo...
- Ele foi chamado à razão e ficou convencido - acrescentou Fulke resumidamente. - Agora volta atrás com o que prometeu ontem. Disse a sua parte sem que uma mão tivesse sido colocada sobre ele. De sua própria vontade!
- E o teu padre empreendeu este casamento de bom grado? Certo que o consentimento de ambos fora dado livremente? Um bom homem, de reputação honesta?
- Um homem de santidade reconhecida, meu senhor abade - disse Fulke triunfantemente. - O povo do campo chama-lhe um santo. O santo eremita Cuthred!
- Mas. Pai - gritou Richard com a coragem do desespero, determinado a conseguir por fim, a simples e única verdade -, eu fiz o que fiz para que eles me libertassem, e pudesse regressar para si. Disse os votos, mas só porque sabia que eles não me podiam ligar. Eu não estou casado! Não foi um casamento, porque...
Tanto o abade como Fulke rebentaram num discurso atropelando, determinadamente, a sua explosão e ordenando-lhe silêncio, mas o sangue de Richard estava quente. Se tivesse de rebentar aqui perante toda a gente, então assim seria. Cerrou os punhos e gritou suficientemente alto para captar um eco de pedra das paredes do claustro:
- ... porque Cuthred não é padre!
CAPÍTULO DOZE
Sob o murmúrio e movimento geral de surpresa, dúvida e ultraje que passara como uma súbita rajada de vento através de toda a assembleia, desde o resmungo indignado do Prior Robert aos inquisitivos e meio joviais sussurros e movimentações entre os noviços, o que era mais óbvio para Cadfael era que Fulke Astley permanecia completamente atordoado. Se fizesse a mínima ideia do que o esperava, teria sustido o fôlego. Manteve-se a baloiçar os braços numa impotência curiosa, como se algo do seu próprio ser tivesse fugido do seu controlo e o tivesse deixado coxo e mudo. Quando recuperou o ar suficiente para falar, tudo o que disse foi o que se esperava dele, mas sem a confiança da convicção, e bastante violentamente empurrando a própria sugestão para longe de si, em pânico.
- Meu senhor abade, isto é loucura! O rapaz está a mentir. Ele dirá qualquer coisa para levar a dele avante. É claro que o Pai Cuthred é um padre! Os irmãos de Savigny de Buildwas trouxeram-no até nós, pergunte-lhes, eles não têm dúvidas. Nunca houve nenhuma pergunta. Isto é maldade, caluniar de tal modo um homem santo.
- Tal calúnia seria de facto maldade - concordou Radulfus, fixando os seus olhos profundos e sobrancelhas descidas sobre Richard. - Pensa bem, senhor, antes de o repetires. Se isto é uma artimanha para levares a melhor e permaneceres aqui connosco, pensa agora melhor acerca disso e confessa-o. Não serás castigado por isso. Quanto ao resto, parece que foste maltratado, raptado e intimidado e isso ser-te-á perdoado. Eu lembrarei o Senhor Fulke dessas circunstâncias. Mas se não me disseres a verdade agora, Richard, então incorres em punição.
- Eu disse a verdade - disse Richard resoluto, fazendo sobressair o seu respeitável queixo e encontrando os olhos aterradores sem pestanejar. - Estou a contar a verdade, juro! Fiz o que eles me exigiram, porque sabia então que o eremita não era padre e um casamento feito por ele não seria um casamento.
- Como é que sabias? - gritou Fulke furiosamente, agitando-se na sua confusão. - Quem é que te disse? Meu senhor, tudo isto é um ardil infantil e um ardil rancoroso. Ele está a mentir!
- Então? Tu podes responder àquelas perguntas - disse Radulfus, nunca tirando os seus olhos dos olhos de Richard. - Como é que soubeste? Quem é que te disse?
No entanto, estas eram as mesmas questões que Richard não podia responder, sem trair Hyacinth e trazer a caçada ao seu rasto com renovado vigor.
- Pai, dir-lhe-ei, mas não aqui, só a si. Por favor, acredite em mim, eu não estou a mentir - respondeu com uma cortesia vacilante.
- Acredito em ti - disse o abade, libertando-o abruptamente do escrutínio que o tinha feito tremer. - Acredito que estejas a dizer o que te disseram e que tu acreditas ser a verdade, mas isto é uma questão mais séria do que tu possas compreender e deve ser esclarecida. Um homem contra quem tal acusação foi feita tem o direito de falar por si próprio e provar a sua boa fé. Eu próprio irei amanhã cedo perguntar ao eremita se ele é ou não um padre e quem o ordenou, e onde e quando. Estas coisas podem ser provadas e devem sê-lo. Certamente, também terás um interesse igual, meu senhor, em descobrir de uma vez por todas se isto foi de facto um casamento. Apesar de eu ter de te avisar - acrescentou ele firmemente - que mesmo que seja pode ser anulado, visto que não pode ser consumado.
- Faça a tentativa - replicou Astley, de certo modo recuperando a sua compostura - e será contestado até ao fim. Mas reconheço que a verdade deve saber-se. Não podemos ter tais dúvidas a arrastar-se.
- Então encontrar-se-á comigo no eremitério, tão cedo como depois da hora de Prima? É justo que ambos oiçamos o que Cuthred tem a dizer. Eu tenho bem a certeza - disse ele sinceramente, tendo visto o efeito na reacção explosiva de Richard - que você acreditou implicitamente que o homem era um padre, com todos os direitos de casar e de enterrar. Isso não está em disputa. Richard tem motivos para acreditar no contrário. Vamos testar isso.
Não havia nada naquilo a que Astley pudesse objectar nem, pensou Cadfael, tinha ele qualquer desejo de evitar a questão. Ele ficara, certamente, profundamente chocado com a sugestão de fraude e queria a dúvida removida, mas fez mais uma tentativa para tentar recuperar o controlo sobre o rapaz. Avançou uma mão e colocou-a sobre o ombro de Richard.
- Eu irei a essa reunião - disse ele- e verei esta criança iludida ter provas do contrário. Mas, durante esta noite, mantenho que ele continua a ser meu filho e deverá ir comigo.
A mão fechou-se sobre o braço de Richard e o rapaz moveu-se e desviou-se. O Irmão Paul não conseguiu conter-se mais e apressando-se para fora das filas expectatantes, afastou a criança para o seu lado.
- O Richard fica aqui - disse Radulfus convictamente. - O seu pai confiou-o a mim e eu não estabeleço um limite na sua estada connosco. Mas de quem esta criança é genro e marido, devemos e vamos examinar essa questão.
Fulke estava, novamente, a ficar roxo com a raiva reprimida. Estivera tão perto de capturar o diabrete e agora era contrariado e toda a estrutura dos seus planos territoriais e de Dionísia tinha sido colocada em risco. Não desistiria assim tão facilmente.
- Assume muitas responsabilidades, meu senhor abade - começou ele -, ao negar os direitos ao seu familiar, você que não tem laços de sangue com ele. E eu penso que não está a fazê-lo sem desejos sobre as terras e os bens dele, ao mantê-lo aqui. Não quer casar o rapaz, mas em vez disso quer ensiná-lo aqui, até ele não ter conhecimento de outro mundo e entrar mansamente no seu noviciado e a vossa casa na sua herança...
Fora tão intencional nas suas acusações e todos os que o rodeavam foram tão apanhados de surpresa com o seu atrevimento, que ainda ninguém se apercebera de quem acabara de chegar à casa do portão. Todos os olhos estavam postos em Astley e todas as bocas abertas em assombro, e Hugh amarrara o seu cavalo no portão e entrara a pé, sem fazer barulho. Dera dez passos para dentro do pátio, quando o seu olhar caiu primeiro sobre o cavalo cinzento e o pónei preto, cobertos pela espuma seca da sua corrida apressada e agora seguros por um moço de estrebaria, que permanecia de boca aberta a olhar para o grupo emoldurado na passagem do claustro. Hugh seguiu o olhar fixo e fascinado do homem e olhou de relance o mesmo espectáculo arrebatador, o abade e Fulke Astley cara a cara em óbvia confrontação, e o Irmão Paul com um braço protectoramente colocado sobre os ombros de um rapaz pequeno, nervoso, sujo e desgrenhado que erguia para a luz da noite a cara de olhos abertos, meio assustado, meio desafiador, de Richard Ludel.
Radulfus, de pé, desdenhosamente silencioso sob o abuso, foi o primeiro a reparar na nova aparição em cena. Olhando facilmente por cima da cabeça do seu adversário, com a sua altura bem o podia fazer, disse distintamente:
- Sem dúvida, o senhor xerife prestará a atenção devida às tuas acusações. Tal como também deverá estar interessado em saber como é que Richard apareceu em Leighton, sob os teus cuidados, ontem à noite. Deves remeter as tuas queixas para ele - Fulke rodou sobre um calcanhar tão precipitadamente que perdeu o equilíbrio; e já Hugh se precipitava, rapidamente, pelo pátio fora para se juntar a eles, uma sobrancelha ardilosa inclinada na direcção do seu cabelo escuro e o olhar, vivo e arguto, fixado sobre Fulke.
- Bem, bem, meu senhor! - disse Hugh, amigavelmente. - Vejo que se apressou a descobrir e a devolver o malandreco que eu não consegui encontrar no seu feudo de Leighton. Eis-me aqui, acabado de chegar desse domínio, para informar o senhor abade como guardião de Richard do meu fracasso e, aqui, venho a descobrir que tem andado a fazer o meu trabalho, enquanto eu ando à caça do ganso selvagem. Acho isso muito simpático da sua parte. Terei isso em consideração quando tiver de considerar a pequena questão de rapto e de aprisionamento forçado. Parece que o pássaro dos bosques que sussurrou ao meu ouvido que Richard estava em Leighton contou-me simplesmente a verdade, pois eu não encontrei qualquer rasto dele quando o tentei aí encontrar e ninguém que admitisse que ele alguma vez lá tivesse estado. Você apenas deve ter saído da casa durante meia hora e por outro caminho quando eu a alcancei vindo da estrada - o seu olhar observador deambulou sobre a figura tensa e cara preocupada de Richard, e repousou por fim no abade. - Acha que ele se encontra em boa forma e sem qualquer dano, meu senhor? Não lhe aconteceu nenhum mal?
- Nenhum ao seu corpo, certamente - disse Radulfus. - Mas há outra questão por resolver. Parece que um qualquer tipo de casamento teve lugar ontem à noite em Leighton, entre Richard e a filha do senhor Fulke. Com isso Richard concorda, mas diz que não foi um casamento verdadeiro, visto que o eremita Cuthred que o celebrou não é um padre.
- Diz-me uma coisa dessas? - Hugh fechou os lábios num assobio sem som e girou sobre Fulke, que permanecia mudo, mas alerta, demasiado consciente da necessidade de se manter cuidadoso e de pensar antes de falar. - E o que tem a dizer acerca disso, meu senhor?
- Eu digo que é uma acusação absurda que nunca fará sentido. Ele veio ter connosco com a boa vontade dos irmãos de Buildwas. Nunca ouvi nenhum mal a seu respeito e nem agora acredito nisso. Lidámos com ele de boa fé.
- Disso tenho eu a certeza que é a verdade - disse o abade razoavelmente. - Se existe alguma coisa nesta acusação, aqueles que desejaram este casamento nada sabiam acerca disso.
- Mas Richard, creio eu, não o desejou - disse Hugh com um sorriso, de certo modo, temível. - Isto não pode ficar assim, temos de apurar a verdade.
- Portanto estamos todos de acordo - disse Radulfus, - e o senhor Fulke concordou em encontrar-se comigo, amanhã depois da hora prima, no eremitério e ouvir o que o homem tem para dizer. Estava prestes a mandar chamá-lo, meu senhor xerife, e contar-lhe toda esta situação e pedir-lhe para me acompanhar amanhã. Esta cena - disse ele, lançando um olhar autoritário em redor, para o seu rebanho que se mantinha demasiado atento - não precisa de ser prolongada, creio eu. Se jantar comigo, Hugh, irá saber tudo o que aconteceu. Robert, faz com que os irmãos prossigam. Lamento que a nossa noite tenha sido tão rudemente interrompida. E, Paul... - olhou para baixo para Richard, que tinha um punho firmemente fechado numa dobra do hábito de Paul, pronto para se agarrar com força, tivesse a sua posse sido ameaçada. - Leva-o daqui, Paul. limpa-o, alimenta-o e traz-mo depois do jantar. Ele tem muito para nos contar que ainda não nos foi dito. Vá, podem dispersar, todos, não há aqui mais nada para ver.
Os irmãos afastaram-se obedientemente para o lado e deslocaram-se um tanto descoordenadamente para prosseguirem com a ordem da noite que fora interrompida, embora ainda fosse haver sussurros furtivos até mesmo no refeitório do mosteiro, e uma grande quantidade de conversas entusiasmadas depois disso na hora de lazer antes das Colações. O Irmão Paul conduziu dali para fora o seu cordeiro recuperado, para ser lavado e tornado apresentável perante o abade e o xerife, depois do jantar. Aymer Bosiet. que vira com uma certa satisfação malévola a crise e confusão de outra pessoa como um alívio da sua própria, distanciou-se taciturnamente e atravessou o pátio até ao salão dos hóspedes. Cadfael moveu-se, subitamente, para olhar para trás e não encontrou a pessoa que procurava. Rafe de Coventry não se encontrava em lado nenhum e agora que Cadfael reflectia sobre isso, ele devia ter saído silenciosamente algum tempo antes de toda a cena ter terminado. Porque ele não tinha interesse nenhum nela e era bem capaz de se distanciar de um espetáculo que mantinha a maioria dos homens encantados? Ou porque ele encontrara algo nela que lhe interessara profunda e urgentemente?
Fulke Astley manteve-se hesitante, olhos nos olhos com Hugh e incerto se lhe seria melhor tentar dar explicações e justificações, ou retirar-se se lhe fosse permitido retirar-se num silêncio digno ou, pelo menos, com o menor número possível de palavras e sem concessões.
- Amanhã então, meu senhor - disse ele rapidamente -. estarei no ermitério de Cuthred, tal como prometi.
- Óptimo! E será melhor - disse Hugh - informar a patrona do eremita, de modo a que esta saiba o que irá ser debatido contra ele. Ela própria pode desejar estar presente. E por agora, meu senhor, não preciso mais de si. E para o caso de vir a precisar de si no futuro, sei onde encontrá-lo. Pode ter bons motivos para se sentir satisfeito pela fuga de Richard. Dano desfeito é melhor esquecido. É claro que desde que de futuro não haja mais mal em premeditação.
Com aquilo, Fulke fez o melhor que pôde. Com uma curta reverência ao abade, virou-se para reclamar o seu cavalo, montou e cavalgou pela casa do portão a um passo deliberado e imponente.
O Irmão Cadfael, chamado para se juntar ao colóquio nos alojamentos do abade, depois do jantar, desviou-se do seu caminho com um impulso súbito e dirigiu-se para o pátio do estábulo. O pónei preto de Richard estava satisfeito e confortável na sua baia após a corrida vigorosa, já tratado e, tendo bebido, alimentava-se agora placidamente. Porém, o grande cavalo castanho com a mancha branca na testa desaparecera do local, com sela, arreios e tudo. Qualquer que tenha sido o motivo para a sua silenciosa partida, Rafe de Coventry seguira para alguma incumbência local.
Richard estava sentado num banco baixo aos joelhos do abade, lavado, escovado e devidamente grato por estar em casa, e contou a sua história ou a parte que achou necessário contar. Tinha uma audiência interessada. Estavam presentes, para além do abade, Hugh Beringar, o Irmão Cadfael que aceitara o pedido de Hugh e o Irmão Paul, ainda relutante em deixar o prodígio recuperado longe da sua vista. Richard tolerara, chegando mesmo a apreciar, o ser abanado, o levar estalos, o ser esfregado e ter percorrido todo o processo caótico que produzira este rapaz de escola, impecável e brilhante, para a inspecção do abade. Existiam hiatos na sua história e ele sabia que haveriam de ser questionados, mas Radulfus era de familia nobre e compreenderia que um nobre não pode trair aqueles que o ajudaram, ou mesmo certos subalternos que através da instigação dos seus mestres lhe tinham feito mal.
- Reconhecê-los-ias de novo, aos dois que te capturaram e te levaram para Wroxeter? - perguntou Hugh.
Richard considerou a tentadora perspectiva de vingança sobre o jovem tipo que o amarrara, que se rira da sua luta e que obstruíra a sua passagem pelo vau, mas rejeitou-a relutantemente como desmerecedora da sua nobreza.
- Não posso ter a certeza acerca deles. Estava a escurecer. Não o pressionaram. Em vez disso, o abade perguntou,
- Tiveste ajuda para escapares de Leighton? Não conseguirias ter fugido por ti próprio, ou então tê-lo-ias feito mais cedo.
Responder a isso constituía um problema. Certamente que se ele dissesse a verdade, aqui entre amigos, não causaria qualquer mal a Hiltrude, mas se alguma vez chegasse aos ouvidos do seu pai, este podia fazer-lhe muito mal. Era melhor manter a história como ela a devia ter contado, que a porta fora deixada inadevertidamente destrancada e ele conseguira encontrar a saída. Cadfael observou o súbito rubor que cobriu as faces bem esfregadas do rapaz, enquanto ele contava esta parte das suas aventuras, com notável brevidade e modéstia. Se tivesse sido verdade, ele mostrar-se-ia exultante com esse facto.
- Ele devia ter sabido que peixe escorregadio apanhara - disse Hugh, sorrindo. - Mas tu ainda não nos contaste porque é que saíste da abadia em primeiro lugar, nem quem é que te contou que aquele eremita não é o padre que diz ser.
Isto era a sua cruz e Richard estivera a pensar nisso com uma dor e esforço pouco habituais, enquanto se submetia à homilia afectuosa do Irmão Paul sobre obediência e ordem, e as consequências maléficas que seriam esperadas por se transgredirem as suas regras. Olhou, cautelosamente, para cima para a cara do abade, lançou um olhar de soslaio e pouco à vontade para Hugh, cujas reacções como a autoridade secular eram menos previsíveis, e disse seriamente:
- Pai, disse que lhe contaria, mas não disse que haveria de contar a mais alguém. Existe alguém que pode ser prejudicado se eu contar o que sei a seu respeito e sei que ele não o merece. Não posso colocá-lo em perigo.
- Eu não desejaria que tu quebrasses uma promessa feita a qualquer homem - disse Radulfus gravemente. - Amanhã, eu próprio ouvirei a tua confissão e dir-mo-ás então, e descansa que fizeste bem, e a tua confissão é sagrada. Agora o melhor é ires para a cama, pois calculo que precises. Leva-o, Paul!
Richard fez as suas reverências cerimoniais, satisfeito por ter conseguido escapar-se tão facilmente, mas enquanto passava por onde Hugh estava sentado, hesitou e parou, ainda com algo em mente.
- Meu senhor, disse que toda a gente de Leighton disse que eu nunca lá tinha estado, é claro que tinham medo de dizer outra coisa. Mas a Hiltrude disse isso?
Hugh era capaz de fazer ligações, talvez mais rapidamente do que a maioria dos homens, mas se fez esta instantaneamente, não deu sinais disso.
- Essa é a filha de Astley? Eu nunca falei com ela, ela não estava em casa - respondeu, com uma gravidade respeitosa e um semblante vazio.
Não estava lá! Por isso ela não teria de mentir. Ela devia ter-se esgueirado discretamente assim que o seu pai saíra. Richard despediu-se, aliviado e agradecido, e partiu para a sua cama com um coração iluminado.
- É claro que ela o deixou sair - disse Hugh, assim que a porta se fechou atrás do rapaz. - Ela não era menos vítima do que ele. Agora começo a ver um padrão. Richard é agarrado quando regressa de cavalo através da floresta de Eyton, e o que é que se encontra na floresta de Eyton e ao longo daquele caminho, senão a cabana de Eilmund e o eremitério? E para o eremitério, sabemos que ele não foi. E quem haveria de chegar hoje, por volta do meio-dia, a Shrewsbury e enviar-me apressadamente para Leighton, que de outra maneira eu não teria alcançado antes de amanhã, senão a rapariga de Eilmund? E onde ela soube estas notícias, nunca o disse abertamente, mas um aldeão de passagem disse que tinha visto por lá um rapaz que bem podia ser o Richard. E Richard, mais honesto, não dirá porque se dirigiu até lá sozinho, nem quem lhe disse que o eremita não é um padre verdadeiro. Pai, parece-me que alguém, não vamos tão longe quanto dar-lhe um nome!, tem muitos bons amigos entre os nossos conhecidos. Espero que também sejam bons juizes! Bem, amanhã, de qualquer modo, não haverá caçada. Richard está seguro em casa consigo. E para dizer a verdade, duvido que a outra caça alguma vez saia da sua cobertura. Amanhã, o nosso assunto matinal está delineado para nós. Primeiro vamos ver isso resolvido.
Assim que a hora prima terminara, eles montaram e partiram, o Abade Radulfus, Hugh Beringar e o Irmão Cadfael que em qualquer caso ia a caminho da cabana de Eilmund, nesse dia, para ver como é que o couteiro estava a progredir. Não era de modo nenhum a primeira vez que ele ajustava as suas visitas legítimas para se acomodarem à sua curiosidade justificada. Que pudesse contar com Hugh para auxiliar os seus planos era uma vantagem acrescida, e uma testemunha adicional com um olhar atento às Ínfimas mudanças, através das quais o semblante humano se trai, podia ser inestimável nesse encontro.
A manhã estava liberta da névoa dos últimos dias e um vento constante e seco levantara-se, o qual estava a encrespar as folhas caídas nas áleas da floresta, colorindo com uma tonalidade dourada aquelas que ainda pendiam nas árvores. A primeira geada tornaria as coroas da floresta brilhantes com as suas cores ruivas, castanhas e chamejantes. Mais uma semana ou duas, pensou Cadfael, e não deixará de existir abrigo para Hyacinth nas árvores, quando visitantes inconvenientes vierem à cabana, pois até os carvalhos estarão meio despidos. Mas dentro de mais uns dias, se Deus quisesse, Aymer teria abandonado a sua vingança, cortaria as suas despesas e apressar--se-ia para assegurar os seus ganhos em casa. O corpo do seu pai estava seguro no caixão e, apesar de só ter dois lacaios com ele, ainda existia o cavalo de Drogo, que serviria como segunda montada para um novo dono apressado, e ele não teria dificuldade em contratar carregadores de liteiras em cada fase da sua viagem. Tinha já passado a pente fino toda a região sem sucesso e mostrava sinais distintos de se encontrar dividido entre dois locais desejados, dos quais certamente o mais proveitoso venceria por fim. A liberdade de Hyacinth podia estar mais próxima do que ele julgava. E ele já se servira dela e merecia-a bem, pois quem mais poderia ter dito a Richard que o eremita não era aquilo que dizia ser? Hyacinth viajara com ele, conhecera-o bem antes de ele ter posto pé em Buildwas. Hyacinth podia muito bem saber coisas acerca do seu mestre reverendo que não eram conhecidas de mais ninguém.
O denso bosque escondia-lhes o eremitério, só o vendo quando já estavam muito próximos. A súbita separação das árvores perante eles surgia sempre como uma surpresa, como se num instante se retirasse o véu à pequena clareira verde, com as paliçadas baixas que constituíam uma mera vedação simbólica em volta do jardim e a atarracada cela de pedra cinzenta, remendada com um cinzento pálido e mais recente das suas reparações. A porta da casa estava aberta, tal como Cuthred dissera que sempre estaria, para todos que chegassem. Não havia ninguém a trabalhar no jardim meio limpo, nem nenhum som lhes chegava do interior da cela, enquanto desmontavam na passagem sem portão e amarravam os seus cavalos. Cuthred devia estar no interior e, pelo silêncio, talvez nas suas orações.
- Vai primeiro, Pai - disse Hugh. - Isto está mais dentro do teu mandado judicial do que do meu.
O abade inclinou a cabeça para passar pela entrada de pedra e permaneceu imóvel durante um momento no interior, até os seus olhos se acostumarem à obscuridade. Aúnica janela estreita deixava entrar a esta hora uma luz pálida, devido às árvores pendentes, e as formas dentro do quarto nu começaram gradualmente a ganhar substância, o estreito colchão de palha contra a parede, a pequena mesa e banco, as poucas vasilhas, prato, chávena e tigela de cerâmica. A abertura sem porta para o interior da capela revelava a pedra do altar através do pequeno brilho da lanterna colocada sobre ela, mas deixava toda a parte inferior na obscuridade. A lanterna ardera quase até ao fim e pouco mais era mais do que uma faísca.
- Cuthred! - chamou Radulfus na direcção do silêncio. - Estás aí dentro? O abade de Shrewsbury saúda-te em nome e na graça de Deus!
Não houve resposta, apenas o pequeno eco que rebateu na pedra. Hugh passou e avançou através da passagem da capela e aí parou abruptamente, inspirando ar com um silvo.
Cuthred estava de facto no interior, mas não nas suas preces. Estava deitado ao comprido de costas debaixo do altar, a sua cabeça e ombros apoiados contra a pedra, como se tivesse caído ou tivesse sido empurrado para trás, embora tivesse estado virado para a entrada. O hábito caía-lhe em dobras negras à sua volta, revelando pés e tornozelos sinuosos, e o peito do hábito estava manchado e enegrecido com uma longa mancha, onde ele sangrara da facada que o matara. A sua cara, entre o corte negro de cabelo e barba emaranhados, estava contorcida num trejeito que podia ter sido de agonia ou de raiva, os lábios arrepanhados e afastados dos dentes fortes, os olhos luzindo semiabertos. Os seus braços estavam completamente abertos e ao lado da sua mão direita, como que liberto no momento da queda, um longo punhal repousava caído no chão de pedra.
Padre ou não, Cuthred nunca iria testemunhar em sua própria defesa. Não havia necessidade de se questionarem ou de o tocarem para verem que ele estava morto havia algumas horas, e que fora violentamente morto.
- Cristo nos ajude! - disse o abade num sussurro severo e permaneceu petrificado olhando o corpo. - Deus tenha misericórdia de um homem assassinado! Quem pode ter feito uma coisa destas?
Hugh estava de joelhos ao lado do homem morto, tocando-lhe a carne já fria e que se assemelhava a cera ao tacto. Não havia agora nada que pudesse ser exigido ao eremita Cuthred e nada para ser feito por ele neste mundo, faltando-lhe apenas o equilíbrio final da justiça.
- Foi, pelo menos, morto há algumas horas. Um segundo homem abatido dentro do meu condado e ainda sem encontrar vingança para o primeiro! Por amor de Deus, o que é que anda à solta nestes bosques, que provoca tal efeito diabólico?
- Pode isto ter, possivelmente, alguma coisa - considerou o abade pesadamente - a ver com o que o rapaz nos disse? Terá alguém agido primeiro para o impossibilitar de responder em sua própria defesa? Para enterrar a prova com o homem? Tem havido um conluio tão resoluto acerca deste casamento, tudo por ganância de terra, mas certamente não seria levado tão longe quanto a assassínio?
- Se isto é assassínio - disse o Irmão Cadfael, mais para si próprio do que para qualquer outro, mas em voz alta. Ele permanecera quieto e silencioso na entrada durante todo esse tempo, olhando à sua volta atentamente para o quarto que ele recordava bem de uma única visita, um quarto tão escassamente mobilado, que cada detalhe era memorável. A capela era mais ampla do que a sala de estar da cela, havia aqui o espaço para movimento livre, até mesmo para uma luta. Apenas a parede oriental estava construída debaixo da sua pequena janela quadrangular, com a grande pedra elaborada do altar e por cima dessa, o pequeno relicário esculpido, sobre o qual estava a cruz de prata, e de ambos os lados um candelabro de prata suportando uma vela alta e apagada. Na pedra perante o relicário, a lanterna e impecavelmente disposta em frente dela... mas não havia nada disposto em frente dela. Estranho o homem ter sido atirado para o chão desordenadamente e sem consideração, mas o altar permancer tão ornamentado e imperturbado. E apenas uma coisa faltava da imagem que Cadfael transportava na sua mente. O breviário com o laço de cabedal adequado para um príncipe, manufacturado com arabescos intrincados e folhas e ornamento dourado, desaparecera.
Hugh ergueu-se e afastou-se para observar o quarto como Cadfael o estava a fazer. Tinham-no visto juntos e, como tal, as suas memórias deveriam assemelhar-se. Lançou um olhar penetrante a Cadfael.
- Vês motivo para duvidar?
- Vejo que ele estava armado - Hugh olhava para baixo para o longo punhal que permanecia tão perto da mão entreaberta de Cuthred. Ele não lhe tocara. Recuou e não tocou em nada, agora que sabia que a carne que se encontrava perante ele estava fria. - Perdeu-o quando caiu. Aquele punhal é dele. Foi usado. Tem sangue, não o seu sangue. O que quer que tenha aqui acontecido, não foi uma facada furtiva pelas costas.
Isso era certo. A ferida estava localizada sobre o coração, a endurecida mancha de sangue chegara meio do peito. O punhal que matara este homem fora retirado e deixara sair o seu fluxo vivo. A outra arma caída no chão estava manchada apenas na ponta com o equivalente a uma gota de sangue, e mal derramara essa gota sobre a pedra onde jazia.
- Estás a dizer - perguntou o abade, libertando-se da sua quietude horrorizada - que isto foi uma luta? Mas como poderia um santo eremita ter uma espada ou um punhal consigo? Mesmo para sua própria defesa contra ladrões e vagabundos, tal homem não recorreria a armas, colocaria a sua fé em Deus.
- E se foi um ladrão - disse Cadfael -, era um ladrão muito estranho. Estão aqui cruz e candelabros de prata e não foram levados, nem mesmo retirados do seu lugar, durante a luta. A não ser que tenham sido colocados no mesmo sítio logo a seguir.
- Isso é verdade - confirmou o abade, e abanou a cabeça sobre tão inexplicável mistério. - O objectivo não era roubar. Mas para quê, então? Porque haveria qualquer homem de atacar um religioso solitário, sem posses por opção e cujos únicos valores são as mobílias deste altar? Vivia em paz entre nós e era-nos útil, para todos os efeitos receptivo e acessível a todos os que viessem com as suas necessidades e problemas. Porque desejaria alguém fazer-lhe mal? Pode esta ser a mesma mão que matou o suserano de Bosiet, Hugh? Ou devemos nós recear termos dois assassinos entre nós?
- Há ainda o seu rapaz - disse Hugh. enrugando a testa com a ideia, mas incapaz de a pôr de lado. - Ainda não o encontrámos e comecei a pensar que ele partira em direcção a oeste e conseguira livrar-se, indo para Gales. Mas ainda é possível que ele tenha permanecido por aqui perto. Alguém que acredite nele pode estar a abrigá-lo. Temos motivos para assim pensar. Se ele é de facto o servo que fugiu de Bosiet, teve algum motivo para se ver livre do seu mestre. E imaginem que Cuthred, que o rejeitou ao saber que fora enganado, encontrou o seu esconderijo, sim. então ele também pode ter motivos para matar Cuthred. Sendo que todos são uma mera questão para conjectura. A qual não pode ainda ser rejeitada.
«Não», pensou Cadfael, «não até Aymer Bosiet ter feito o seu caminho de regresso a Northamptonshire, e Hyacinth poder sair do seu esconderijo e falar por si, bem como Eilmund, Annet e Richard possam falar por ele. Pois entre eles os três, eu tenho a certeza que pode ser provado exactamente onde Hyacinth esteve em todas as alturas, e ele não esteve aqui. Não, nós não precisamos de nos preocupar com Hyacinth. Mas eu desejava», pensou pesarosamente, «eu desejava que eles me tivessem deixado confidenciar a Hugh há muito tempo».
O Sol erguia-se agora mais alto no céu e o ângulo, que atravessava as árvores, derramava mais luz sobre o corpo retorcido e lastimável. As saias do seu hábito negro puído estavam recolhidas para um dos lados, como se um grande punho as tivesse arrastado, e aí o tecido de lã estava coagulado com uma mancha escura pegajosa. Cadfael ajoelhou-se e afastou as dobras e elas separaram-se com uma ténue e sussurrante relutância.
- Ele limpou aqui o punhal - disse Cadfael - antes de o cravar novamente.
- Duas vezes - acrescentou Hugh, pois havia uma segunda mancha, mas pouco perceptível. Um homem metódico limpando fria e eficientemente as suas ferramentas depois de ter terminado o seu trabalho! - E vê aqui, esta caixa no altar! - Ele rodeara cuidadosamente o corpo para observar de perto a caixa de madeira esculpida e passar um dedo ao longo da extremidade da tampa, por cima da fechadura. A falha não era maior do que a unha de um dedo, mas mostrava onde a ponta de um punhal fora espetada para abrir a caixa. Tocou na fechadura e levantou a tampa, a qual cedeu prontamente. A fechadura estava solta e partida e a caixa vazia. Apenas o ténue odor aromático da madeira se agitava no ar. Não havia sequer um pouco de pó no seu interior, a caixa fora bem construída.
- Afinal de contas, parece que algo foi levado - disse Cadfael. Não mencionou o breviário, apesar de não duvidar que Hugh reparara na sua falta tão rapidamente quanto ele.
- Mas não a prata. O que poderia um eremita ter de grande valor para além a prataria da Dama Dionísia? Ele veio a pé para Buildwas, transportando apenas uma bolsa de viajante, como outro qualquer peregrino, apesar de se certificar que o seu rapaz também lhe carregava um embrulho. Agora penso - disse Hugh - se este cofre foi igualmente presente da senhora ou se ele o trouxe com ele?
Estavam tão atentos ao que estavam a observar, que não prestaram atenção ao que se passava lá fora, e não ouviram nenhum som que os avisasse. E com o choque do que tinham descoberto, quase tinham esquecido que pelo menos mais uma testemunha era esperada neste encontro. Mas foi a voz de uma mulher, não a de Fulke, que repentinamente falou da entrada por trás deles, alta e confiantemente, e com um tom de desaprovação arrogante.
- Não é preciso admirar-se, meu senhor. Seria simples e cívico perguntar-me.
Os três deram meia volta, espantados e alarmados, para se depararem com a Dama Dionísia, alta, erecta e desafiante, entre eles, e a clara luz do dia, da qual ela saíra, deixara-a quase cega, ao entrar nesta relativa obscuridade. Eles encontravam-se entre ela e o corpo e não havia nada que a pudesse surpreender ou alarmar, a não ser o simples facto de Hugh permanecer com a sua mão colocada sobre a caixa aberta e a cruz ter sido descida. Isto ela viu-o claramente, embora a luz moribunda da lamparina não iluminasse mais nada assim tão bem. E ela estava enfurecida.
- Meu senhor, o que é isto? O que está a fazer com estas coisas sagradas? E onde está Cuthred? Atreveu-se a bisbilhotar na ausência dele?
O abade mexeu-se para se colocar mais solidamente entre ela e o homem morto, e avançou para a persuadir a sair da capela.
- Madame. saberá tudo, mas suplico-lhe que venha até ao outro quarto, sente-se e espere um momento até nós colocarmos tudo em ordem por aqui. Não há aqui nenhuma irreverência, prometo-lhe.
A luz exterior escureceu devido ao tamanho de Astley, que espreitava sob o ombro dela, bloqueando a retirada que o abade tentava apressar. Ela permaneceu no mesmo local, imperiosa e indignada.
- Onde está Cuthred? Ele sabe que está aqui? Como é que ele deixou a sua cela? Ele nunca o faz... - a mentira terminou nos seus lábios com uma aguda inspiração. Para além do hábito do abade, ela vira algo pálido sobressaindo do amontoado de saias escuras, um pé que perdera a sua sandália. A visão dela era mais clara agora. Evitou a mão do abade e lançou-se para a frente, passando por ele. Todas as perguntas dela foram respondidas através de um olhar devastador. Cuthred estava de facto ali e, pelo menos, nesta ocasião não deixara a sua cela.
A compostura demorada e patrícia da sua cara tornou-se um cinzento de cera e pareceu desintegrar-se, as suas linhas vincadas descaindo. Articulou um grande lamento, mais de terror do que de desgosto, e quase saltou, quase caiu para trás, nos braços de Fulke Astley.
CAPÍTULO TREZE
Ela nem desmaiou nem chorou. Não era mulher para fazer qualquer das coisas levianamente. Mas sentou-se durante um grande bocado e muito direita sob a cama de Cuthred na outra sala, rígida, pálida e olhando em frente, directamente através da parede de pedra que se encontrava à sua frente e para aquilo que existia para lá dela. Era duvidoso se ela ouvira algumas das palavras cuidadosamente medidas do abade, ou as nervosas fanfanrronadas de Astley. oferecendo alternadamente galanterias de conforto, as quais ela não valorizava nem precisava, e simultaneamente recordando-lhe fervorosamente que este crime deixava todas as questões por responder e, de um modo nada lógico, provava que o eremita fora de facto um padre e que o casamento que ele celebrara era ainda um casamento. Pelo menos, ela não prestou atenção a nenhum deles. Ela tinha passado para lá de qualquer tipo de considerações. Todos os seus antigos planos se tinham tornado irrelevantes. Tinha olhado de perto para a morte súbita, inconfessada, sem absolvição e não queria fazer parte dela. Cadfael viu isso nos seus olhos quando saía da capela, tendo feito o que podia para deitar o corpo de Cuthred, direito e decentemente, agora que lera tudo o que este tinha para lhe dizer. Através daquela morte ela estava a confrontar a sua própria e não tinha intenção de se encontrar com todos os seus pecados. Ou ainda durante muitos anos, mas fora avisada de que se ela estava disposta a esperar, a morte podia não estar.
Finalmente perguntou, numa voz perfeitamente normal, talvez mais moderada do que aquela que normalmente usava com a sua casa ou os seus inquilinos, mas sem se mexer ou retirar os seus olhos do seu grande inimigo:
- Onde está o senhor xerife?
- Partiu para arranjar um grupo para levar daqui o eremita - disse o abade. - Para Eaton, se assim o desejar, para ser lá
tratado, visto que era a patrona dele. Ou, para lhe poupar recordações dolorosas, para a abadia. Será lá devidamente recebido.
- Seria uma bondade - respondeu ela lentamente - se o levasse. Já não sei o que pensar. Fulke contou-me o que o meu neto diz. O eremita já não pode responder por ele próprio, nem eu ele por ele. Acredito, sem qualquer dúvida, que ele era um padre.
- Disso, madame - disse Radulfus -, eu nunca duvidei. O foco do olhar fixo de Dionísia diminuira e um pouco de cor
voltara à sua cara cor de cera. Já estava no seu caminho de regresso, e em breve agitar-se-ia, recompor-se-ia e virar-se-ia para olhar para o verdadeiro mundo em seu redor, em vez das distâncias desertas do dia do julgamento. E encararia o que tivesse de encarar com a mesma coragem feroz e obstinação com a qual conduzira no passado as suas batalhas.
- Pai - disse ela, virando-se na direcção dele com abrupta resolução -, se eu for esta noite à abadia, você ouvirá a minha confissão? Dormirei melhor quando tiver expiado os meus pecados.
- Sim, ouvirei - disse o abade.
Ela estava então pronta para ser levada para casa e Fulke estava demasiado ansioso por escoltá-la. Sem dúvida ele, que tinha muito pouco para dizer aqui entre esta companhia, seria suficientemente volúvel em privado com ela. Não possuía a inteligência dela, nem de longe uma imaginação tão fértil. Se a morte de Cuthred espalhara alguma sombra sobre ele, era somente a humilhação de não ser capaz de apresentar prova do casamento da sua filha, e nem por sombras pensou numa mão ossuda pousada no seu ombro. «Assim de qualquer modo», pensou o Irmão Cadfael observando-o a segurar o braço de Dionísia conduzindo-a até onde o seu pequeno cavalo espanhol estava amarrado, apressando-se para a distanciar e livrar da presença assustadora do abade.
No último momento, com as rédeas reunidas na mão, ela virou-se repentinamente para trás. A sua cara recuperara todo o seu orgulho e força, e era ela mesma novamente.
- Só agora me lembrei - disse ela - que o senhor xerife estava a falar acerca da caixa que estava no altar. Era de Cuthred. Ele trouxe-a consigo.
Quando o abade, os carregadores da liteira e Hugh já se encontravam a percorrer o seu lento e sombrio caminho de regresso à abadia, Cadfael olhou uma última vez em redor da capela deserta mais atentamente, porque estava sozinho e sem distracções. Não havia uma única mancha de sangue nas lajes do chão onde o corpo estivera caído, apenas uma gota ou duas deixadas pela ponta do próprio punhal de Cuthred. Ele ferira certamente o seu adversário, apesar da ferida poder não ser muito profunda, Cadfael avistou uma Unha do altar até à entrada e seguiu-a com uma vela acesa na mão. Não encontrou mais nada na capela e, no quarto exterior, o chão era de terra batida e tais rastros desvanescidos eram difíceis de encontrar depois de passarem algumas horas. Porém, na ombreira da porta, encontrou três gotas caídas, agora secas mas visíveis, e na nova e imaculada madeira, com a qual a ombreira esquerda da entrada fora reparada, existia uma mancha obscurecida de sangue ao nível do seu próprio ombro, por onde uma manga rasgada e ensanguentada certamente passara.
Não era, então, um homem muito mais alto do que ele próprio e o punhal de Cuthred ferira-o no ombro ou na parte superior do braço do lado esquerdo, tal como uma tentativa de golpe direita ao coração.
Cadfael pretendia ir a cavalo até à cabana de Eilmund, mas seguindo um impulso mudou de ideias, pois parecia-lhe que, afinal de contas, não se podia dar ao luxo de perder o que quer que se seguisse quando o corpo de Cuthred fosse trazido para o pátio na abadia, para consternação de muitos, alívio talvez de alguns e possível perigo de um em particular. Em vez de seguir pelos atalhos no interior da floresta, montou e regressou cavalgando apressadamente em direcção a Shrewsbury, para se unir ao cortejo fúnebre.
Assim que entraram no Foregate, arranjaram uma estranha audiência, um grupo de rapazes e cães curiosos que seguiram ao lado deles ao longo de toda a estrada, e até mesmo os respeitáveis cidadãos os seguiram a uma distância mais discreta, cautelosos com o abade e o xerife, mas ávidos de informações e criando rumores, tão depressa como as moscas se criam nas pilhas de estrume de Verão. Até mesmo quando o cortejo virou em direcção ao portão, o bom povo do mercado, da ferraria e da taberna reuniu-se no exterior para espreitar curiosamente para dentro e continuaram as suas especulações com prazer.
E ali no grande pátio, enquanto transportavam um ataúde vindo do mundo exterior, outro funeral reunia-se preparando-se para partir. O caixão selado de Drogo Bosiet encontrava-se em cima de uma carroça baixa e leve, contratada na cidade com o seu condutor para este primeiro dia de viagem, o qual seria feito numa boa estrada. Warin ficou a segurar dois dos cavalos selados, enquanto o lacaio mais novo estava ocupado a ajustar um saco de sela completo de modo a equilibrar devidamente o peso antes de o carregar. Ao ver toda esta actividade, Cadfael respirou profundamente em sinal de gratidão, sensível ao facto de que, pelo menos, um dos perigos estava a ser removido mais depressa do que ele se atrevera a esperar. Aymer decidira-se finalmente. Iria regressar a casa para se assegurar da sua herança.
Os participantes de um funeral não podiam parar o que estavam a fazer para olhar fixamente para os participantes de outro. E Aymer. saindo do salão de hóspedes com o Irmão Denis a seu lado, para desejar ao comboio de partida boa viagem, parou no cimo das escadas apreciando a cena com uma expressão surpresa e astuta, os seus olhos demorando-se mais sobre a forma e face coberta. Desceu a escadaria a passos largos atravessando o pátio com determinação até onde Hugh acabava de desmontar.
- O que se passa, meu senhor? Outra morte? A vossa caçada apanhou por fim a minha presa? Alas morta? - Mal sabia se havia de se sentir satisfeito ou lamentar ser este o cadáver do seu servo fugido. O dinheiro e os favores que a habilidade de Hyacinth rendiam eram valiosos, mas a vingança seria igualmente um ganho satisfatório, e assim esta surgia, agora que se desesperara por não ganhar nenhuma delas e se decidira a voltar a casa.
O abade Radulfus também tinha desmontado e olhava para os dois grupos, com uma cara pouco comunicativa, pois estes mostravam a curiosa e perturbadora sugestão da imagem de um espelho, reunida aquando da chegada e partida dos mortos. Os criados da abadia, que tinham vindo para segurar nas rédeas do abade e do xerife, ficavam-se pelas extremidades da assembleia, relutantes em se deslocarem.
- Não - disse Hugh -, este não é o vosso homem. Se é que o rapaz que nós temos vindo a caçar é vosso. Dele não vimos sinal, quer seja ele quer não. Então está de regresso a casa?
- Já desperdicei tempo e esforço suficientes e não desperdiçarei mais, apesar de guardar rancor por o deixar partir em liberdade. Sim, estamos de partida. Precisam de mim em casa, há trabalho à minha espera. Quem é este que trouxeram de volta?
- O eremita que se instalou não há muito tempo na floresta de Eyton. O seu pai foi visitá-lo - disse Hugh -. pensando que o criado que ele mantinha pudesse ser o fulano de que andavam à procura, mas o jovem já dera à sola, por isso nunca foi posto à prova.
- Lembro-me disso, pois o senhor abade contou-me. Então é este o homem! Eu não voltei lá. para quê se o rapaz que ele guardava tinha desaparecido? - Olhou curiosamente para baixo, para a figura amortalhada. Os carregadores tinham pousado o seu fardo, aguardando ordens para onde levar o morto. Aymer inclinou-se e destapou a cara de Cuthred. Eles tinham-lhe puxado para trás a madeixa selvagem de cabelo das suas têmporas e escovado a sua barba cerrada, e toda a luz do meio-dia incidiu sobre o semblante magro, os olhos profundos, as suaves pestanas um pouco feridas e agora azuladas, o longo nariz direito e patrício e os lábios cheios, por entre a escura barba. O brilho dos olhos semiabertos estava agora velado, o rugido nos lábios arrepanhados cuidadosamente suavizado, de modo a restabelecer a sua severa graciosidade. Aymer inclinou-se mais de perto, surpreendido e descrente.
- Mas eu conheço este homem! Não, isso será dizer muito, ele nunca me disse o seu nome. Mas eu já o vi e falei com ele. Um eremita, ele? Nunca vi sinais disso anteriormente! Ele usava o cabelo aparado à maneira normanda e tinha uma barba curta e aparada, não este arbusto mal cuidado, e estava bem vestido com bom equipamento de montar, botas e tudo. não este hábito pesado e sandálias. E usava espada e punhal à cintura - disse Aymer positivamente - e. também, como se estivesse acostumado ao uso deles.
Até ter olhado novamente para cima, ele não estava totalmente consciente do significado daquilo que dissera, mas a expressão atenta de Hugh e a questão imediata tornou óbvio que ele tocara em algo mais vital do que aquilo que ele sabia.
- Tem a certeza? - disse Hugh.
- Certeza, meu senhor! Foi apenas uma noite de alojamento, mas joguei aos dados com ele ao jantar e vi o meu pai jogar um jogo de xadrez contra ele. Tenho a certeza!
- Onde foi isso? E quando?
- Em Thame, quando andávamos à procura de Brand, perto de Londres. Ficámos alojados durante a noite com os monges brancos na nova abadia que eles têm lá. Este homem já lá estava quando nós chegámos pela noitinha e dirigiu-se para sul no dia seguinte. Não posso dizer exactamente o dia, mas foi em finais de Setembro.
- Então se o reconhece - perguntou Hugh -, modificada como está a sua aparência, tê-lo-ia o seu pai reconhecido assim, só de o olhar?
- Certamente que sim, meu senhor. Os seus olhos eram mais observadores dos que os meus. Ele sentou-se à frente um tabuleiro de xadrez com o homem, olhos nos olhos. Haveria de o reconhecer.
«E assim aconteceu», pensou Cadfael, «quando foi à caça do servo na cela na floresta e deparou com o eremita Cuthred, que há coisa de um mês ou mais, não era eremita. E não vivera o tempo suficiente para regressar à abadia e revelar a qualquer homem o que sabia. E se ele conhecesse algum grande mal que este ser transformado fizera? Podia ainda dar a conhecer a outros ouvidos a palavra casual que haveria de significar mais para eles do que alguma vez significara para ele, e trazer até à casa na floresta de Eyton alguém à procura de mais do que um servo feudal fugitivo, e pior certamente, do que um padre espúrio. Porém, ele não tinha vivido para ir mais além na sua viagem de retorno do que uma moita escondida na floresta e suficientemente longe do eremitério para remover as suspeitas de um santo local, com a reputação de nunca deixar a sua cela».
A evidência das circunstâncias não era uma prova positiva, contudo a Cadfael não restavam dúvidas. Ali perante eles, o corpo enfiado no caixão e o novo cadáver, descansando por momentos lado a lado, antes do Prior Robert ter dirigido os carregadores para a capela mortuária e Aymer Bosiet ter, novamente, coberto a cara de Cuthred e se ter virado mais uma vez para as suas preparações para a partida. A sua mente estava noutras coisas, para quê distraí-lo e detê-lo agora? Mas Cadfael lembrou-se subitamente de fazer uma pergunta curiosa.
- Que tipo de cavalo montava ele, quando passou a noite em Thame?
Aymer, que estava a apertar as tiras dos seus alforges, virou-se com uma surpresa indiferente, abriu a boca para responder e deu por si perdido, enrugando a testa pensativamente sobre as suas memórias daquela noite.
- Ele chegou lá antes de nós. Estavam dois cavalos nos estábulos do priorado quando nós chegámos. E ele partiu antes de nós na manhã seguinte. Mas agora que perguntais, quando montámos, lembro-me que os dois animais que víramos na noite anterior estavam ainda nos seus estábulos. Isso é estranho! O que estaria a fazer um homem tão bem provido, cavaleiro pelo seu aspecto e pelo das suas armas, o que estaria ele a fazer sem um cavalo?
- Ah, bom, ele pode tê-lo colocado num estábulo noutro lado qualquer - disse Cadfael, abandonando o quebra-cabeças como se fosse trivial.
No entanto, não era trivial, era a chave para abrir uma porta muito estranha na sua mente. Ali perante tantos olhos, jazia o assassino e o assassinado, lado a lado, justiça já feita.
Mas quem, então assassinara o assassino?
Tinham-se ido todos embora, Aymer no elegante e leve cavalo ruão do seu pai, Warin com o cavalo que Aymer usara à chegada conduzido por uma rédea e o jovem criado com o carreteiro e a carreta. Após as etapas dos primeiros dias, Aymer podia provavelmente partir a toda a velocidade deixando os criados trazerem o caixão atrás com o seu passo mais lento e, muito provavelmente, enviando outros criados para trás ao longo do caminho para os substituir, assim que chegasse a casa. Na capela mortuária, Cadfael vira o corpo de Cuthred deitado de modo decente, cabelo e barba aparados, talvez não tão rente como quando o cavaleiro em Thame os usara, mas o suficiente para exibição, na fixa e austera tranquilidade da morte; uma face suficientemente apropriada para um religioso dignificado. Injusto que um assassino parecesse tão nobre na morte, como qualquer um dos paladinos da imperatriz.
Hugh estava enclausurado com o abade e até à data não fora dita uma palavra a Cadfael do que ele concluía do testemunho de Aymer, mas através das mesmas questões que ele colocara, era óbvio que fizera as mesmas ligações que Cadfael e não podia ter deixado de chegar à mesma conclusão. Falaria primeiro disso com Radulfus. «O meu papel agora», pensou
Cadfael, -<é tirar Hyacinth do seu esconderijo e deixar que o libertem de todas as suspeitas de mal. Lembrando, no entanto, o furto ocasional para encher a barriga enquanto vivia selvagem e uma mentira ou duas,. de modo a conservar-se vivo. E Hugh não lhe guardará rancor quanto a esses. E isso deveria resolver o assunto da ordenação de Cuthred de uma vez por todas, se é que ainda existia alguma questão pendente em relação a isso. Uma súbita conversão pode tornar um soldado um eremita, sim. mas é preciso muito mais do que isso para fazer um padre.
Ele esperou por Hugh na sua oficina no jardim das ervas, onde Hugh certamente viria à sua procura assim que deixasse o abade. O seu interior estava calmo, aromático e era caseiro, e Cadfael estivera demasiado ausente ultimamente. Teria de começar a pensar, dentro em breve, em encher os seus armazéns com as necessidades vulgares de Inverno, antes que as tosses e as constipações começassem e as velhas articulações começassem a ranger e a gemer. Podia-se confiar no Irmão Winfrid para tomar conta de modo excelente de todo o trabalho no jardim, no escavar e retirar das ervas e na plantação, mas aqui dentro ainda tinha muito para aprender. «Mais uma viagem-. pensou Cadfael, para ver como é que está Eilmund e deixar Hyacinth saber que pode e deve aparecer e falar por si próprio, e então ficarei satisfeito por me fixar a trabalhar aqui em casa».
Hugh entrou por entre os jardins e sentou-se ao lado do amigo com um breve sorriso preocupado e manteve-se silencioso durante alguns momentos.
- O que eu não compreendo - disse então - é porquê. O que quer que ele fosse, o que quer que ele tivesse feito anteriormente, aqui ele parece ter vivido inocentemente. O que pode ter acontecido de tão perigoso para o fazer querer calar a boca de Bosiet? Pode ser suspeito modificar a sua própria roupa, a sua aparência e o seu modo de vida. mas não é um crime. O que havia ali. mais do que isso, para justificar assassinato? O que há de tão criminoso, à excepção do assassinato em si?
- Ah! - disse Cadfael com um suspiro de alívio. - Sim. calculei que visses tudo como eu o vi. Mas não. eu não acho que tenha sido assassínio o que ele tinha de esconder no anonimato de um hábito eremita e numa cela de floresta. Esse foi o meu primeiro pensamento. Mas não é assim tão simples.
- Como tantas vezes - comentou Hugh com um súbito sorriso de lado -. acho que sabes alguma coisa que eu não sei. E o que foi aquilo acerca do seu cavalo, lá em Thame? O que é que o cavale dele tem a ver com isto?
- Não é o cavalo dele, mas o facto de ele não ter nenhum. O que esta a fazer um soldado ou um cavaleiro viajando a pé? Um peregrino pode fazê-lo, sem nunca ser visto. Mas quanto a saber alguma coisa, eu ter-te-ia dito há muito tempo atrás se me tivessem deixado, sim. Hugh. eu sei. Eu sei onde está Hyacinth. Contra a minha vontade, prometi não dizer nada até Aymer Bosiet ter desistido da perseguição e ter regressado a casa. Como ele agora o fez, e agora o rapaz pode apresentar-se e defender-se e, como confia em mim, é bem capaz de o fazer.
- Então é isso - disse Hugh. olhando o seu amigo sem grande surpresa. - Bem, quem o pode acusar de ser cauteloso, o que sabe ele a meu respeito? E tanto quanto eu sabia, ele bem poderia ter sido o assassino de Bosiet. nem tínhamos conhecimento de outro com tão bom motivo. Agora ele não precisa de dizer uma palavra sobre isso. a dívida foi reconhecida e paga. E quanto à sua liberdade, ele não precisa de recear nada da minha parte quanto a esse assunto. Tenho mais que fazer de que servir de moço de recados a Northamptonshire. Fá-lo aparecer quando quiseres, ele pode ainda deitar alguma luz sobre algumas coisas que ainda não sabemos.
Então Cadfael reflectiu melhor pensando quão pouco Hyacinth dissera acerca das suas relações com o seu mestre de alguns meses. Suficientemente cândido entre amigos, acerca da sua própria vagabundagem e do mal que fizera na pequena mata de Eilmund. contivera-se escrupulosamente de lançar quaisquer suspeitas contra Cuthred, mas agora que Cuthred estava morto e se sabia ser um assassino. Hyacinth podia estar disposto a estender a sua franqueza, apesar de certamente não ter conhecido nenhum mal do seu companheiro viajante, e certamente nada acerca de assassinato.
- Onde está ele'? - perguntou Hugh. - Calculo que não muito longe, se foi ele que disse ao jovem Richard que este podia seguramente passar pela cerimónia de casamento. Quem poderia conhecer melhor Cuthred como um impostor?
- Não mais longe - disse Cadfael - do que a cabana de Eilmund e aí recebido da mesma forma por pai e filha. E eu vou agora até lá para ver como está o Eilmund a passar. Trago o rapaz de volta comigo?
- Melhor do que isso - disse Hugh com sinceridade. - Irei contigo. É melhor não o arrastar à força do esconderijo até eu cancelar a caçada através de ordem oficial e tornar conhecido que ele não tem nada por que responder e é livre de andar na cidade e de procurar trabalho como outro homem qualquer.
No estábulo do pátio, quando foi selar o cavalo, Cadfael encontrou o cavalo castanho com a testa branca de pé como uma estátua brilhante, sob as mãos afectuosas do seu mestre, contente e confiante, após o seu leve exercício e a ser esfregado até ficar com um brilho ondulante de cobre. Rafe de Coventry virou-se para ver quem chegava e revelou o seu sorriso calmo e reservado com o qual Cadfael já se familiarizara.
- Prestes a partir outra vez, Irmão? Este deve ser o dia mais cansativo que já teve.
- Para todos nós - disse Cadfael, pousando a sua sela -, mas podemos esperar que o pior já tenha passado. E o senhor? Prosperou na sua tarefa?
- Bom, agradeço-lhe! Muito bem! Amanhã de manhã, depois da hora prima - disse ele, virando-se para encarar de frente Cadfael e a sua voz como sempre medida e composta -, estarei de partida. Já o disse ao Irmão Denis.
Cadfael continuou em silêncio com as suas preparações durante um minuto ou dois. Os silêncios eram aceitáveis nas conversações com Rafe de Coventry.
- Se viajar para longe no primeiro dia - disse então simplesmente -, acho que pode precisar dos meus serviços antes de partir. Ele feriu-o - disse ele brevemente, como se isso fosse uma explicação adequada. E quando Rafe de Coventry demorou a responder - Uma parte da minha função é tratar de feridas e doenças. Não há marca de concessão na minha arte, mas existe uma decente reticência.
- Eu já sangrei anteriormente - disse Rafe, mas sorriu, um pouco mais abertamente do que o normal.
- Como preferir. Mas eu estou aqui. Se precisar de mim, venha ter comigo. Não é sábio negligenciar uma ferida, nem tentar ir demasiado longe na sela - testou a cilha e reuniu as rédeas para montar. O cavalo deslizou e moveu-se de forma brincalhona, ansioso por acção.
- Terei isso em consideração - disse Rafe -, e agradeço-lhe.
Não me irá impedir de partir - acrescentou num tom de aviso amável, mas solene.
- Será que eu tentei? - perguntou Cadfael e saltando para a sela, dirigiu-se em direcção ao pátio.
- Eu nunca disse toda a verdade - disse Hyacinth, sentado ao lado da lareira na cabana de Eilmund, com a luz da fogueira como um lustro de cobre sob a sua face, boca e sobrancelhas -, nem mesmo à Annet. Quanto a mim mesmo, sim, ela sabe o pior que eu poderia contar. Mas não sobre Cuthred. Eu sabia que ele era um velhaco e um vagabundo, mas também eu o era e não sabia nada mais acerca dele do que isso, por isso mantive a minha boca fechada. Um velhaco escondido não trai o outro. Mas agora dizem-me que ele era um assassino. E que está morto!
- E longe de mais qualquer mal - disse Hugh razoavelmente -, pelo menos neste mundo. Preciso de saber tudo o que me possas dizer. Onde é que o conheceste?
- Em Northampton, no priorado de Cluniac, tal como disse a Annet e a Eilmund, embora não exactamente como eu o contei. Ele não era então um peregrino de hábito, envergava roupas escuras e boas, com capa e capuz, e andava armado, apesar de manter a sua espada fora das vistas. Foi quase por acaso que acabámos por falar ou, pelo menos, foi o que eu pensei. Mas presumo que ele tenha adivinhado que eu estava a fugir de alguma coisa, e não fez segredo que também estava e sugeriu que talvez estivéssemos mais seguros e passássemos despercebidos se estivéssemos juntos, íamos ambos em direcção a norte e oeste. A ideia de se fazer passar por peregrino foi dele, ele tinha a cara e o porte para isso. Bem, vocês viram-no e sabem. Roubei o hábito dele da loja do priorado. A concha de pentéola foi fácil. A medalha de Saint James era dele, até podia ser sua por direito, quem sabe? Na altura em que chegámos a Buildwas, ele já memorizara o seu papel e o seu cabelo e barba estavam bastante compridos. E surgiu muito habilmente à senhora em Eaton, para os seus próprios propósitos. Oh, ela não sabia nada de mal acerca dele, acerca daquilo que ele estava disposto a ganhar para se manter perto dela. Ele disse que era padre e ela acreditou nisso. Eu sabia que ele não era nada disso, ele disse-mo quando estávamos sozinhos. Até se riu acerca disso. Mas tinha o dom da palavra e podia passar por padre. Ela ofereceu-lhe o eremitério, tão perto e oportuno nos bosques da abadia, para fazer toda a velhacaria que ele pudesse, apesar do abade. Disse-vos que essa era a minha parte e que ele não sabia de nada. mas menti por ele. Ele nunca me denunciaria, nem tão pouco eu o faria.
- Ele abandonou-te - disse Hugh- assim que soube que a caça era por tua causa. Tu não precisas de ter escrúpulos para falar por ele.
- Bem, eu vivo e ele está morto - replicou Hyacinth. - Não há necessidade de eulhe guardar algum rancor agora. Sabe o que passou com o Richard? Só falei com ele uma vez. mas ele pensou que eu era um homem tão sincero, que nem quereria ouvir falar mal de mim. nem que eu fosse deitado por terra e arrastado de volta para a condição de servo feudal. Aquilo fez com que eu recuperasse o respeito por mim próprio. Só mais tarde é que fiquei a saber que ele fora apanhado daquela forma no seu caminho de regresso, mas fui forçado a fugir ou a esconder-me, e preferi esconder-me até poder escapar para o encontrar. Se não tivesse sido pela bondade de Eimund para comigo, e depois de eu ter sido um espinho para ele também, os seus homens ter-me-iam apanhado uma dúzia de vezes. Mas agora sabe que eu nunca toquei com uma mão em Bosiet. E Eilmund e Annet podem dizer-lhe que nem um passo sequer dei daqui desde que regressei de Leightor.. O que pode ter acontecido a Cuthred. não o sei mais do que o senhor.
- Menos, atrevo-me a dizer - disse Hugh suavemente e olhou, sorrindo, através do fogo para Cadfael. - Bem. no fim de contas podes considerar-te um tipo com sorte. A partir de amanhã, não estarás em perigo nas mãos de ninguém do meu povo, podes partir em direcção à cidade e procurar um mestre. E qual dos teus nomes escolhes para manteres para a tua nova vida? É melhor teres só um para que possamos saber com quem temos de lidar.
- Aquele que agradar à Annet - disse Hyacinth -. ela é que me vai chamar por ele. a partir deste momento e para toda a vida.
- Eu posso ter algo a dizer a esse respeito disso - grunhiu Eilmund do seu canto do outro lado da lareira. - Tem cuidado com a tua impudência ou far-te-ei suar a meu bel-prazer - mas soava notavelmente complacente acerca disso, como se eles já tivessem chegado a uma compreensão para a qual o seu grunhido repreensivo era, meramente, um áspero contraponto.
- Foi Hyacinth que me agradou primeiro - disse Annet. Ela mantivera-se até esse momento fora do círculo, como uma filha obediente, atenta a todos os pormenores, mas sem desejar nem precisar de se pronunciar nos assuntos dos homens. Não por modéstia ou submissão, pensou Cadfael, mas porque já tinha o que queria e tinha a certeza de que ninguém, nem xerife nem pai nem suserano, tinha sequer o poder ou a vontade de o arrancar dela.- Tu ficas Hyacinth - disse ela serenamente -, e deixa partir o Brand.
Ela era esperta, não fazia sentido voltar atrás, nem sequer olhar para trás. Brand fora um servo feudal e sem terra em Northamptonshire, Hyacinth seria um artífice livre em Shrewsbury.
- Dentro de um ano e um dia - disse Hyacinth -, e desde o momento em que encontrar um mestre para ficar comigo, voltarei para perguntar pela tua boa vontade, Meste Eilmund. Não antes!
- E eu acho que tu a mereceste - disse Eilmund -. e tê-la-ás.
Viajaram para casa juntos no crepúsculo que se adensava, tal como tinham feito tantas vezes desde que se conheciam com uma contenção prudente, espírito contra espírito, e chegaram a um impasse gratificante no final do encontro, quase amigos. A noite estava calma e temperada, a manhã seria de novo nublada. os campos luxuriantes do vale de um mar azul-translúcido. A floresta cheirava a Outono, a terra madura e húmida, a fungos que irrompiam, e à rica e doce putrefacção das folhas.
- Agi contra a minha vocação - disse Cadfael, ao mesmo tempo alegre e entristecido pela estação do ano e pela hora. - Eu sei. Empreendi pela vida monástica, mas agora não tenho a certeza de a conseguir suportar sem ti, sem estas excursões furtivas fora das muralhas. Pois é o que elas são. Verdade, eu sou enviado em trabalhos legítimos por aqui, mas também roubo, tiro mais do que me é devido por direito. Pior, Hugh, não me arrependo! Achas que há espaço, dentro das fronteiras da graça, para um homem que colocou a sua mão no aro e que de vez em quando abandona o seu sulco para voltar atrás por entre as ovelhas e os cordeiros?
- Eu acho que as ovelhas e os cordeiros assim o podem achar - respondeu Hugh, sorrindo gravemente. - Ele tem as suas orações. Até as ovelhas negras e as cinzentas, como algumas que tu argumentaste contra Deus, e eu no teu tempo.
- Existem umas quantas todas negras - disse Cadfael. - Talvez sarapintadas, como este animal grande e esguio que tu escolheste montar. A maior parte de nós tem uns quantos cavalos sarapintados. E talvez faça um julgamento mais tolerante do resto das criaturas de Deus. Mas eu já pequei, e principalmente ao apreciar o meu pecado. Penitenciar-me-ei esperando com submissão dentro das muralhas durante o Inverno, a não ser que seja enviado para algo, e então apressar-me-ei com a minha missão e regressarei rapidamente.
- Até o próximo vagabundo se atravessar no teu caminho. E quando é suposto começar esta penitência?
- Assim que esta questão estiver devidamente terminada.
- Essas são expressões vocais oraculares! - disse Hugh. rindo-se. - E quando será isso?
- Amanhã - disse Cadfael. - Se Deus quiser, amanhã.
CAPÍTULO CATORZE
Fez o seu caminho através do pátio até aos estábulos, conduzindo o seu cavalo e com a maior parte de uma hora passada antes das Completas, Cadfael viu a Dama Dionísia surgindo dos alojamentos do abade e caminhando com um passo sóbrio e cabeça coberta com decoro, na direcção do salão dos hóspedes. As suas costas estavam erectas como sempre, o seu andar era igualmente firme e orgulhoso, mas de certo modo mais lento do que o habitual nela e a sua cabeça coberta estava baixa com os olhos postos no chão, em vez de desafiadoramente fixos na distância. Nem uma única palavra acerca da sua confissão seria dita, mas Cadfael duvidava que ela tivesse deixado algo por contar. Não era o tipo de pessoa que fazia as coisas pela metade. Não haveria mais tentativas para retirar Richard do encargo do abade. Dionísia sofrera uma contrariadade demasiado profunda para voltar a arriscar-se novamente, até que o tempo a fizesse esquecer uma morte súbita sem confissão a vir ao seu encontro.
Parecia que ela iria passar a noite na abadia, talvez para que no dia seguinte pudesse fazer as pazes do seu modo arbitrário com um neto, que por esta altura estava profundamente adormecido na sua cama e abençoadamente ainda descomprometido, e de regresso ao lugar onde preferia estar. Os rapazes dormiriam bem esta noite, absolvidos dos seus pecados, e com o membro perdido entre eles. Motivo para um agradecimento devoto. E quanto ao homem que se encontrava na capela mortuária, ostentando um nome que dificilmente seria o seu. não lançava qualquer sombra no mundo das crianças.
Cadfael conduziu o seu cavalo na direcção do estábulo, cujo portão estava iluminado por duas tochas, tirou-lhe a sela e esfregou-o. Não se ouvia ali qualquer som, a não ser um pequeno suspiro da brisa que aumentara com a noite, e o ocasional e leve bater dos cascos, quando os cavalos se mexiam nas suas baias. Acalmou o seu animal, pendurou o arreio e voltou-se para sair.
Alguém, maciço e parado, permanecia de pé junto ao portão.
- Boa noite, Irmão! - disse Rafe de Coventry.
- És tu? - disse Cadfael. - E estavas à minha procura? Desculpa por te ter mantido acordado até tarde, e tu com uma viagem para fazer de manhã.
- Vi-te a descer o pátio. Fizeste uma oferta - disse a voz calma. - Se ainda está em aberto, gostaria de a aproveitar. Descobri que não é fácil ligar um ferimento apenas com uma mão.
- Vem! - disse Cadfael. - Vamos para a minha cabana no jardim, lá temos mais privacidade.
O crepúsculo era profundo, mas ainda não estava escuro. As rosas tardias no jardim elevavam-se indistintamente com os seus espinhos em pedúnculos demasiado crescidos, com metade das suas folhas caídas, fantasmas flutuando fantasmagori-camente na obscuridade. Sob a protecção dos muros do jardim de ervas, altos e abrigados, o calor prolongava-se.
- Espera - disse Cadfael - até eu arranjar luz.
Levou poucos minutos a conseguir uma faísca, que conseguiu soprar gentilmente até se transformar numa chama, e ateou-a no pavio da sua lamparina. Rafe esperou, sem emitir qualquer murmúrio ou fazer qualquer movimento, até a luz começar a arder fixamente, e depois entrou na cabana, olhando à sua volta com interesse para o conjunto de jarros e frascos, escalas e almofarizes, e os molhos de ervas que sussurravam sob a sua cabeça, agitadas pela corrente de ar da entrada. Despiu o casaco silenciosamente e baixou a camisa desde o ombro, até conseguir retirar o braço da manga. Cadfael aproximou a lamparina e colocou-a onde a luz iluminaria melhor a ligadura manchada e amassada, que cobria a ferida. Rafe sentou-se paciente e atento no banco que se encontrava encostado à parede, olhando fixamente a face desgastada pelo tempo que se inclinava sobre ele.
- Irmão - disse ele deliberadamente -, acho que te devo um nome.
- Eu tenho um nome para ti - disse Cadfael. - Rafe é suficiente.
- Para ti, talvez. Não para mim. Onde recebo ajuda, dada generosamente, aí pago com a verdade. O meu nome é Rafe de Genville...
- Agora, mantém-te quieto - disse Cadfael. - Isto é tiro e queda, e vai doer.
A ligadura suja saiu com um puxão, mas se o magoou. Genville mostrou-se tão indiferente à dor tal como se sentira com a dor que tivera anteriormente. O corte era longo, descendo do ombro em direcção ao braço, mas não era profundo. Todavia, a carne estava tão separada que os os bordos abriam-se numa fenda e apenas uma mão não fora capaz de os juntar.
- Fica quieto! Podemos melhorar isto, senão ficarás com uma cicatriz feia. Mas vais precisar de ajuda, quando estiver novamente ligada.
- Assim que estiver longe daqui arranjarei ajuda, e quem é que vai saber como é que eu arranjei o golpe"? Não há muito mais que tu não saibas, mas ainda existe algo que te possa contar. O meu nome é Rafe de Genville. sou um vassalo, e Deus o sabe!, um amigo de Brian FitzCount e um súbdito da senhora do meu suserano. a imperatriz. Não sofrerei grandes males por prestar serviço a ambos, enquanto tiver a minha vida. Bem. ele não derramará mais sangue nem do lado dos elementos da comitiva do rei. nem no estrangeiro ao serviço de Geoffrey de Anjou. o que acho era a sua intenção, quando a altura lhe parecesse adequada.
Cadfael dobrou uma nova ligadura perto do longo corte.
- Põe a tua mão direita aqui. e segura com firmeza, isto fechará a ferida rapidamente. Não vais sangrar mais. ou pouco mais que isto, e deverá sarar ligado. Mas evita usar este braço quando estiveres na estrada.
- Assim o farei - a ligadura enrolava-se firmemente sobre o ombro e à volta do braço. lisa e limpa. - Tens uma mão experiente. Irmão. Se eu pudesse, levar-te-ia comigo como um prémio de guerra.
- Receio que tenham necessidade de todos os cirugiões e médicos que conseguirem arranjar em Oxford - reconheceu Cadfael. pesarosamente.
- Ah, lá não, não desta vez. Não vai haver invasão em Oxford até o conde trazer o seu exército. Mas duvido que isso venha a acontecer. Não, primeiro vou voltar para Brian em Wallmgford. para lhe dar o que lhe pertence.
Cadfael manteve a ligadura por cima do cotovelo e segurou a manga da camisa cuidadosamente, enquanto Rafe voltava a enfiar o braço dentro dela. Estava feito. Cadfael sentou-se a seu lado, encarando-o, olhos nos olhos. O silêncio que caiu sobre eles era como a noite, moderado, tranquilo, ligeiramente melancólico.
- Foi uma luta justa - disse Rafe, depois de uma longa pausa, olhando para e através dos olhos de Cadfael, e vendo novamente a capela de pedra vazia na floresta. - Pousei a minha espada, vendo que ele não tinha nenhuma. No entanto, ele ainda tinha o seu punhal.
- E tinha-o utilizado - disse Cadfael - no homem que em Thame o vira como ele realmente era e poderia ter colocado a sua vocação em questão. Tal como o filho fez, depois de Cuthred estar morto, e sem saber que estava a olhar para o assassino do pai.
- Ah, então foi isso! Já tinha pensado em algo do género.
- E encontraste aquilo que procuravas?
- Vim por ele - disse Rafe gravemente. - Mas, sim, compreendo-te. Sim, encontrei o que procurava no relicário do altar. Nem todas as moedas. As gemas estavam dentro de um pequeno compasso e transportam-se facilmente. As jóias que ela tanto estimava. E estimava ainda mais o homem para o qual ela as enviara.
- Eles disseram que havia também uma carta.
- Existe uma carta. Eu tenho-a. Tu viste o breviário?
- Vi. O livro de um príncipe.
- De uma imperatriz. Tem uma dobra secreta na capa, onde uma folha pequena e fina pode ser escondida. Quando estiveram separados, o breviário andou para trás e para a frente entre eles através de um mensageiro de confiança. Sabe Deus o que ela lhe pode ter escrito agora, na maré baixa da sua vida, separada dele por uns quantos quilómetros que podem igualmente ter a largura do mundo, e com o exército do rei a deitar-lhe a mão, bem como aos poucos que lhe restam, para os estrangular. E no extremo do desespero, quem respeita a sabedoria, quem é que não dá com a língua nos dentes? Não tentei sabê-lo. Ele tê-la-á e há-de lê-la para consolação do coração a quem era destinado. Um outro leu-a e pode ter feito uso dela - disse Rafe severamente -, mas esse agora não conta.
A sua voz reunia uma grande onda de paixão que ainda assim não rompia o seu controlo férreo, apesar de ter feito o seu disciplinado corpo tremer como uma seta em voo, vibrando com a força do seu amor devoto e ódio implacável. Ele nunca abriria a carta que transportava, com o seu selo violado como testemunho de uma traição fria e repugnante, e o que esta continha era um assunto tão sagrado como a confissão entre a mulher que a escrevera e o homem para quem fora escrita. Até este terreno sagrado Cuthred trespassara, mas Cuthred estava morto. Não parecia a Cadfael que a penalidade fosse demasiado grande para o mal cometido.
- Diz-me, Irmão - perguntou Rafe de Genville, a onda de paixão baixando para a sua calma habitual -, isto foi pecado?
- O que precisas de mim? - respondeu Cadfael.- Pede ao teu confessor quando chegares em segurança a Wallingford. Tudo o que eu sei é que houve tempos em que eu teria feito o mesmo que tu fizeste.
Se o segredo de Genville se manteria inviolado era uma questão que nunca seria colocada, sendo a resposta já claramente compreendida entre eles.
- Foi melhor agora do que pela manhã - disse Rafe, levantando-se. - A organização das tuas horas amanhã não precisa de ser quebrada, e eu posso partir cedo e deixar o meu local limpo, polido e preparado para outro hóspede e viajar mais ligeiro, porque não vou sem uma testemunha justa. Despedir-me-ei aqui. Deus esteja contigo, Irmão!
- E que te acompanhe - respondeu Cadfael.
Saiu, avançando em direcção à escuridão que se adensava, o seu passo firme sob o caminho de cascalho, e silencioso quando avançou pela relva. Agudamente e à distância, ouvindo-se sobre o som leve da sua partida, o sino tocou para as Completas.
Cadfael desceu até aos estábulos antes da hora prima numa manhã seca e solarenga, mas fria, um bom dia para andar a cavalo. O cavalo brilhante e castanho com a testa branca desaparecera do seu estábulo. O local parecia vazio e calmo, exceptuando os alegres chilreios de conversa e riso vindos da última baia, para onde Richard, acompanhado por Edwin, descera de manhã cedo para tratar e cuidar do seu pónei, por o ter transportado tão corajosamente; alegremente devolvido à graça e à companhia do seu companheiro, faziam um ruído alegre como uma ninhada de jovens andorinhas, até terem ouvido Cadfael aproximar-se, caindo então num silêncio afectado e decente, até terem a certeza que não era nem o irmão Jerome nem o Prior Robert. Como modo de desculpa, favoreceram-no com amplos e abundantes sorrisos, e regressaram ao estábulo do pónei para o acariciar e admirar.
Cadfael não podia deixar de pensar se a Dama Dionísia teria já visitado o neto. e se teria ido tão longe quanto se esperava que uma matriarca fosse de forma a restabelecer as suas relações. Certamente que não se iria humilhar. Algo do tipo de sermão auto-justificativo, tipo «Richard, estive a falar do teu futuro com o abade e consenti em deixar-te ao seu cuidado, por agora. Fui defraudada por Cuthred, ele não era um padre como dizia ser. Esse episódio está acabado, é melhor todos nós o esquecermos». E terminaria, certamente, com algo do estilo: - Se eu te deixar ficar aqui, senhor, certifica-te que eu receba bons relatórios a teu respeito. Sê obediente para com os teus mestres e presta atenção aos livros...» E ao deixá-lo, um beijo talvez um pouco mais amável do que o habitual, ou pelo menos um pouco mais cautelosamente respeitoso, pensando em tudo o que ele poderia contar acerca dela. se o quisesse fazer. Porém, o Richard triunfante e liberto de todas as ansiedades que sentia por ele e por todos aqueles que eram importantes para ele não guardava rancor contra ninguém no mundo.
Por essa altura, Rafe de Genville, vassalo e amigo de Brian FitzCount e servidor leal da Imperatriz Maud, já devia estar bem longe de Shrewsbury, no seu longo caminho para sul. A sua estada foi rapidamente esquecida, já que fora um homem tão tranquilo, moderado e despercebido, cuja presença fora pouco notada mesmo quando permanecera na abadia.
- Ele partiu - disse Cadfael. - Não te atirei com o fardo da escolha, apesar de achar que sei o que tu terias feito. Mas fi-lo por ti. Ele foi-se embora e eu deixei-o ir.
Estavam sentados juntos, como tantas vezes o tinham feito no fim de uma crise, circunspectos mas descontraídos, no banco que se encostava contra a muralha norte do herbário, onde o calor do meio-dia se prolongava e o vento ligeiro era afastado. Dentro de uma semana ou duas, estaria demasiado frio e batido pelo vento para se poder estar por ali. Aquele Outono prolongado e temperado não poderia durar muito mais. e aqueles que conheciam o tempo começavam a cheirar o ar e a predizer a primeira geada intensa e a abundante neve que iria surgir em Dezembro.
- Não me esqueci - disse Hugh - que este é o amanhã em que tu me prometeste um final adequado. Portanto, ele desapareceu! E tu deixaste-o ir! Não me estou a referir a Bosiet. Estavas desejoso que ele desistisse da vingança e que partisse, possivelmente desejando mais que ele partisse do que permanecesse. Continua, eu estou a ouvir.
Ele sempre fora um bom ouvinte, nada dado a exclamações ou a perguntas desnecessárias, e podia sentar-se contemplando meditativamente o jardim desordenado num silêncio receptivo sem nunca importunar o seu companheiro com um olhar, e nunca perder uma palavra, nem precisar de muitas delas para compreender.
- Estou a precisar de me confessar, se tu fores o meu padre - disse Cadfael.
- E manter as tuas confidências igualmente sagradas, eu sei! A minha resposta é sim. No entanto, até agora, nunca achei que necessitasses de uma absolvição da minha parte. Quem é este que se foi embora?
- O seu nome - respondeu Cadfael - é Rafe de Genville. apesar de aqui se chamar Rafe de Coventry. um falcoeiro do conde de Warwick.
- Aquele homem mais velho e tranquilo do cavalo castanho? Acho que só o vi uma vez - disse Hugh. - Foi um hóspede da abadia que não me fez nenhuma pergunta e fiquei-lhe agradecido por isso, tendo as minhas mãos cheias dos assuntos dos Bosiets. E o que fez Rafe de Coventry. para que tu ou eu hesitássemos em deixá-lo partir?
- Ele matou o Cuthred. Numa luta justa. Depôs a sua espada porque Cuthred não tinha nenhuma. Punhal contra punhal, lutaram e ele matou-o - Hugh não dissera uma palavra, apenas virara por um momento a cabeça na direcção do seu amigo, estudado com penetrante atenção a expressão de Cadfael, e esperou. - Por uma boa razão - disse Cadfael. - Tu não deves ter esquecido a história que nós ouvimos do mensageiro da imperatriz, enviado de Oxford, assim que o Rei Stephen fechou o seu cerco de ferro à volta do castelo. Enviado à frente com dinheiro, jóias e uma carta para Brian FitzCourt, e que desapareceu em Wallingford. E depois encontraram o seu cavalo perdido, deambulando nos bosques ao longo da estrada, com os arreios manchados de sangue e os alforges vazios. O corpo nunca foi encontrado. O Tamisa corre lá perto. Há espaço nos bosques para uma sepultura. Portanto, foi roubado ao lorde de Wallingford o tesouro da imperatriz. Já há muito tempo que empobreceu, voluntariamente, por ela, e a sua guarnição tem de comer. E a carta que lhe era destinada foi roubada juntamente com tudo o resto. E Rafe de Genville é vassalo, um amigo devoto de Brian FitzCount e um súbdito leal da imperatriz e não teve intenção de deixar passar esse crime por vingar.
Que vestígios é que encontrou ao longo do caminho para o trazer até estas partes, eu não o perguntei e ele não mo disse, mas que o trouxeram até cá, trouxeram. No dia em que chegou, encontrei-me com ele nos estábulos e, por acaso, veio a propósito termos Drogo Bosiet jazendo morto na capela mortuária. Lembro-me de não ter pronunciado o seu nome. mas talvez se o tivesse feito ele tivesse agido da mesma, já que os nomes podem ser alterados. Foi imediatamente olhar para este homem morto, mas bastou-lhe um olhar para perder todo o interesse por ele. Andava à procura de alguém, de um hóspede daqui, um estranho, um viajante, mas não era Bosiet. Por um rapaz na casa dos vinte, como Hyacinth, não mostrou qualquer interesse. Procurava um homem com aproximadamente a sua idade e condição. Ele deve ter certamente ouvido falar do homem santo da Dama Dionísia, mas rejeitou-o por ser padre e peregrino, com votos acima de qualquer suspeita. Até ter ouvido, tal como todos nós ouvimos, o jovem Richard gritar que o eremita não era um padre, mas um charlatão. Procurei Rafe depois disso, e ele e o seu cavalo tinham desaparecido. Era de um impostor e de um charlatão que ele andava à procura. E encontrou-o, Hugh, naquela noite no eremitério. Encontrou-o, lutou, matou-o. E levou com ele tudo o que Cuthred tinha roubado, as jóias e moedas da caixa no altar e o breviário que pertencia à imperatriz e que era usado para transportar cartas entre ela e FitzCount, quando estavam separados. Hás-de lembrar-te que o punhal de Cuthred estava ensanguentado. Eu tratei da ferida de Rafe de Genville, recebi as suas confidências, tal como agora te entreguei as minhas, e desejei-lhe boa viagem de regresso a Wallingford.
Cadfael recostou-se com um profundo e agradecido suspiro, encostando a sua cabeça contra as pedras ásperas da parede e houve um longo, mas tranquilo silêncio entre eles. Hugh mexeu-se por fim e perguntou:
- Como é que ficaste a saber o que ele andava a tramar? Deve ter havido algo mais do que esse primeiro encontro, para te atrair para os seus segredos. Ele pouco disse e caçava sozinho. O que mais aconteceu para te fazer suspeitar dele?
- Estávamos juntos quando ele deitou algumas moedas na nossa caixa de esmolas. Uma delas caiu nas lajes e eu apanhei-a do chão. Um tostão de prata da imperatriz, cunhado recentemente em Oxford. Não fez segredo disso. Perguntou se não me espantava por um vassalo da imperatriz se encontrar tão longe da batalha. E eu fiz uma tentativa e disse-lhe que decerto estaria em busca do homem que roubara e assassinara Renaud Bourchier, na estrada para Wallingford.
- E ele concordou? - perguntou Hugh.
- Não. Disse que não, que não era isso. Era uma boa ideia, disse, quase desejava que fosse verdade, mas não o era. E falou a verdade. Cada palavra que ele me disse era verdade e eu sabia-o. Não, Cuthred não era um assassino, não então, nunca o fora até Drogo Bosiet se ter dirigido à sua cela para saber informações de um servo fugitivo e se ter deparado com o homem que vira, com quem conversara, com quem jogara xadrez em Thame algumas semanas antes, num disfarce muito diferente. Um homem que usava armas e se mostrava cavaleiro, mas percorria as estradas a pé, pois não tinha cavalo que lhe pertencesse no estábulo em Thame, nenhum que viesse consigo, nenhum que partisse consigo. E isto fora no início de Outubro. Aymer disse-nos isto tudo, depois do seu pai ter sido silenciado.
- Começo - disse Hugh lentamente - a desvendar a tua adivinha - estreitou os olhos olhando para a distância, através dos ramos quase nus das árvores, que se mostravam acima da muralha sul do jardim.- Desde quando é que fazes perguntas sem um objectivo? Devia ter advinhado quando perguntaste pelo cavalo. Um cavaleiro sem cavalo em Thamen e um cavalo sem um cavaleiro vagueando pelos bosques através da estrada de Wallingford fazem sentido, quando somamos dois mais dois. Não! - disse ele, chocado e ultrajado em tom de protesto, olhando espantado para a imagem que acabara de criar. - Onde é que me fizeste chegar? Isto é verdade ou eu atirei para o ar? O próprio Bourchier?
O primeiro tremor do frio da noite agitou com um vento ainda mais frio as ervas recolhidas e Hugh estremeceu com elas, numa convulsão de desgosto incrédulo.
- O que poderia valer uma traição tão monstruosa? Isso foi mais sujo do que assassinato.
- Assim pensou Rafe de Genville. E assim vingou-se, de acordo com essa teoria. E assim desapareceu e eu desejei-lhe boa viagem quando ele partia.
- Também eu o teria feito. Também eu! - exclamou Hugh e olhou através do jardim com os lábios enrugados num desdém cansado, contemplando a enormidade da desonra escolhida e deliberada. - Não há nada. não pode haver nada que valha a pena ser comprado por tal preço.
- Renaud Bourchier pensou de outra maneira, tendo outros valores. Primeiro, ganhou a sua vida e liberdade - disse Cadfael. contando pelos dedos e abanando a cabeça sobre cada ponto. - Ao enviá-lo para Oxford antes do anel de ferro se ter fechado, ela libertou-o para partir para pastos mais seguros. Não que eu acredite que ele tivesse sequer a simples desculpa de ser um covarde. Muito friamente, calculo, ele preferiu retirar-se do risco de morte ou de captura, que se aproximavam cada vez mais dos exércitos da imperatriz em Oxford. Friamente e de modo prático, ele cortou todos os seus laços de fidelidade e retirou-se para a obscuridade para esperar por outra oportunidade. Segundo, com o roubo do tesouro que ela lhe confiara, possuía agora meios amplos para viver, para onde quer que fosse. E terceiro, e pior de tudo, ele tinha uma arma poderosa, que poderia ser utilizada para lhe assegurar novo serviço de soldados, terras e favores, uma nova e proveitosa carreira para substituir a que ele tinha descartado. A carta que a imperatriz escrevera a Brian FitzCount.
- No breviário que desapareceu - disse Hugh. - Eu não sabia como avaliar isso, apesar do livro ter valor por si só.
- Tinha um valor ainda maior, devido ao que se encontrava dentro dele. Rafe contou-me. Uma fina folha de velino pode ser dobrada dentro da capa. Pensa simplesmente, Hugh, na situação dela quando a escreveu. A cidade perdida, apenas restando o castelo e os exércitos do rei cercando-a. E Brian, que fora a sua mão direita, o seu escudo e espada, secundado apenas pelo seu irmão dela, separado dela por aqueles poucos quilómetros que bem poderiam ser um oceano. Sabe Deus se as coscuvilhices são verdadeiras - disse Cadfael -, que declaram que aqueles dois são amantes, mas certamente é verdade que eles se amam! E agora numa situação destas, em risco de morrer à fome. fracasso, aprisionamento, perda, mesmo morte, talvez até sem se poderem encontrar de novo, não lhe pode ela ter gritado a última verdade, sem lhe esconder, coisas que não podiam ser ditas, coisas que mais ninguém sobre a terra poderia alguma vez saber? Tal carta pode ser de um valor imenso para um homem sem escrúpulos, que tivesse uma nova carreira para principiar e necessitasse do favor de príncipes. Ela tem um marido anos mais novo do que ela, que não lhe tem grande amor nem ela por ele, que não lhe dispensou um homem para a auxiliar este Verão. Supondo que algum dia seria conveniente a Geoffrev repudiar a sua mulher mais velha e fazer um segundo casamento mais rentável? As mãos de alguém como Bourchier, a sua carta escrita pela sua mão podia fornecer-lhe o pretexto e para príncipes, os meios podem sempre ser encontrados. O informador pode ficar, de modo a ganhar posição ou até comando, em terras da Normandia. Geoffrev tem castelos recentemente conquistados por lá, para dar àqueles que provaram ser-lhe úteis. Eu não digo que o conde de Anjou seja tal homem, mas digo que um. traidor tão calculador como Bourchier reconheceria isso como uma possibilidade e guardaria a carta para ser usada, assim que uma ocasião se oferecesse. Que conhecimento, que suspeita trouxe Rafe de Genville para duvidar daquela morte na estrada -de Wallingford. não sei. nem lho perguntei. Certo é que uma vez que a chama foi acesa nada o teria impedido de perseguir e de extorquir a devida penalidade, não de um suposto assassino, aí ele contou-me a verdade, mas do ladrão e do traidor, o próprio Renaud Bourchier.
O vento começava a levantar-se, o céu limpava-se dos fragmentos espalhados das nuvens que ainda restavam e que deslizavam, rapidamente, antecedendo o vento. Pela primeira vez. o Outono prolongado prenunciava a chegada do Inverno.
- Eu teria feito o que Rafe fez - disse Hugh finalmente, e levantou-se abruptamente para afastar os restos de repugnância.
- Quando peguei em armas, também eu o faria. Está a ficar frio - disse Cadfael, erguendo-se também. - Vamos entrar?
O final de Novembro deveria, em breve, arrancar com o frio e os ventos fortes o resto das folhas que tremiam. O eremitério deserto nos bosques de Eyton forneceria uma cobertura de Inverno para os pequenos animais da floresta, e o jardim, tornando-se de novo selvagem, protegeria os ouriços-caixeiros que dormiam nas suas tocas o sono de Inverno. Seria duvidoso que a Dama Dionísia instalasse outro eremita naquela cela. Os animais selvagens ocupá-la-iam na sua inocência.
Ellis Peters
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