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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O ESCÃNDALO DA MENINA HOWARD / Nan Ryan
O ESCÃNDALO DA MENINA HOWARD / Nan Ryan

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

 

   

               Mobile, Alabama,

               Terça feira, vinte e três de Julho de 1844

Era um dia calmo e quente na cidade portuária de Mobile. As ruas estavam desertas às três da tarde, que era a hora mais abafada do dia. Os homens que trabalhavam nos escritórios da rua Water já tinham, há muito, tirado os casacos e desapertado as gravatas e muitos simplesmente descansavam, com os pés apoiados, consumidos pela fadiga que o calor provocava.

As senhoras, antecipando o calor intenso da tarde, tinham providenciado os seus afazeres pela manhã e agora permaneciam confortáveis no ambiente fresco do interior dos seus lares. Muitas ti nham, até, fechado as cortinas dos quartos, tirado os vestidos pesados e agora procuravam dormir uma sesta.

Num dos quartos da mansão de oito colunas da rua Dauphin, uma jovem alagada em suor e cheia de dores estava em trabalho de parto do seu primeiro filho. Ao acordar naquela manhã, sentindo as costas em frangalhos e um leve começo de contracções, Marion Howard soubera que o seu filho não esperaria muito mais para nascer.

Olhara para o marido adormecido e sorrira. Era ainda cedo, sete horas; deixá-lo-ia dormir um pouco mais. Contudo, não conseguiu esperar mais de cinco minutos. Uma dor intensa atingiu o seu útero, fazendo-a tocar, assustada, no ombro nu do homem adormecido ao seu lado. E ele percebeu logo a aflição na sua expressão e o medo nos seus belos olhos castanhos.

 

 

 

 

 

 

- Meu Deus! Está na hora! - exclamou ele, sentando-se depressa. - O bebé vai nascer! Vou mandar chamar o Dr. Ledette!

Mr. Howard levantou-se da cama e, ansioso, começou a vestir-se.

- É melhor ligares para a Delia, meu amor! disse, alarmado.

Marion sorriu, abriu os braços e chamou-o:

- T. H. vem cá.

Com o rosto contraído pela preocupação, ele aproximou-se e sentou-se junto dela.

- O que foi, meu amor? O bebé já está a nascer?

- Ainda não - Marion segurou numa das suas mãos e colocou-a sobre a sua barriga arredondada. Mas vai nascer em breve e quero que me prometas uma coisa.

- O que quiseres, querida.

- Promete-me que não vais agir hoje como um tolo - pediu Marion com muita gentileza, acariciando os cabelos claros do marido.

  1. Hershel franziu o sobrolho diante daquele pedido.

- Já me viste agir alguma vez como um tolo? indagou, um tanto ofendido.

Ela tornou a sorrir, sabendo o quanto aquele homem a adorava, e lembrou-lhe:

- Apenas naquelas muito raras ocasiões em que fiquei doente, te afligiste demasiado.

  1. H. recordou-se e concordou, gravemente, enquanto Marion continuava:

- Não tens que te preocupar com nada, está bem? Sou uma jovem saudável e estou muito feliz porque o nosso primeiro filho está prestes a nascer. Pretendo encarar este parto com naturalidade e sem problemas. Agora, meu querido, dá-me um beijo.

- Meu Deus, de novo não - gemeu Marion, quando no grande relógio de parede do corredor bateram as três da tarde. Mais uma contracção violenta parecia dilacerar as suas entranhas. - Não vou aguentar... - sussurrou, com o rosto lavado em lágrimas. Não vou aguentar!

Cada um dos seus poros vertia suor e, como estava nua, os lençóis estavam igualmente molhados. A jovem Marion sentia os longos cabelos loiros colados à cabeça e aos ombros e tentava seguir as instruções dadas pelo diligente Dr. Gerald Ledette, que a assistia, bem como os apelos de paciência e determinação feitos por Delia, a sua fiel camareira.

- Faça força agora! - dizia a rechonchuda e bondosa Delia. - Não vai demorar muito.

E segurava na mão de Marion, passando-lhe um pano húmido pela testa e pelo pescoço.

Por outro lado, o médico era auxiliado por outras duas criadas, que lhe traziam uma bacia com água limpa e panos macios.

Do lado de fora do quarto, T. H. andava de um lado para o outro, parando de vez em quando para bater à porta e indagar sobre o curso do trabalho. Tentara permanecer nos aposentos para dar apoio a Marion e ver o seu filho vir ao mundo, mas o médico fora categórico e mandara-o sair. No fundo, até acreditava que era melhor assim, pois não suportaria ver a sua amada a sofrer daquela maneira.

Enquanto caminhava nervoso, amaldiçoava-se a si próprio por ter engravidado Marion. Achava- se o responsável directo por todo aquele sofrimento e agonia. Fora egoísta por querer tanto um bebé. Não precisava de filhos, pensava no seu íntimo; precisava apenas da mulher que adorava e receava estar na iminência de a perder.

Algo devia estar errado, ponderava, ou o parto já teria terminado. Sete horas volvidas e a criança ainda não nascera!

Parou de caminhar quando outro gemido agudo de Marion feriu os seus ouvidos. Levou as mãos às orelhas e fechou os olhos, mas logo em seguida ouviu uma leve gargalhada. Ergueu as pálpebras e baixou as mãos, lembrando-se, de repente, que tinha convidados no piso inferior da sua casa. Esquecera-se por completo deles.

Mandara serviçais até às residências dos seus amigos, nessa manhã, para os avisar de que um lindo milagre estava para acontecer na mansão da rua Dauphin. O coronel George P. Ivy e a sua esposa, Martha, tinham sido os primeiros a chegar; o casal de meia-idade e sem filhos não quisera perder por nada aquele evento. Pouco depois, fora a vez dos Adair; o famoso advogado Paul Adair, a sua mulher, Melba, e a filha de doze anos, Lydia, também estavam agora na sala. Melba trouxera um enorme ramo de rosas cor-de-rosa que colhera no seu jardim, considerado o mais belo de Mobile.

Também estavam na sala o juiz Noble Parlange e a sua esposa, Lena. O casal tinha voltado há pouco tempo da Carolina do Sul, onde a mulher do seu único filho dera à luz meninas gémeas, no princípio de Junho. Tinham chegado com os Faraday, os Pirrilliat, os Caldwell e, é claro, os Dasheroon.

Fora providenciado um bufete, e agora tanto a mesa como o aparador de mogno estavam cobertos de doces e salgados para os convidados.

Na sala de leitura, os cavalheiros falavam do mercado do algodão, da produção de açúcar e da corrida de cavalos, que seria em breve. Na mesa de costura em frente, no lado oposto ao hall de mármore, encontravam-se as senhoras, sentadas nos elegantes sofás de veludo, relembrando o nascimento de outras crianças.

Para algumas delas, diziam, os partos tinham sido difíceis, mas para outras fora algo banal, quase corriqueiro, como era o caso de Carrie Dasheroon, que vivia com o marido na casa do outro lado da rua. O seu filho, um menino moreno de olhos muito azuis, acabara de descer do colo da mãe para ir à procura do pai. E, conforme ele caminhava de uma maneira ainda vacilante, as senhoras acariciavam-lhe o cabelo ou diziam- Lhe gracinhas, enchendo o coração de dela de orgulho.

Acreditava que o filho era o menino mais adorável e doce à face da terra e olhava-o sempre com adoração. Desde que Ladd entrara na sua vida que era motivo de constante alegria, visto que se tratava de uma bela criança, alegre, curiosa e carinhosa.

Quase se levantou ao ver que ele tropeçara ao caminhar no hall, caindo sobre o piso gelado. Mas Ladd levantou-se depressa, sem um gemido ou lágrima, e continuou o seu percurso. Sem interromper a sua conversa, Douglas olhou para baixo, acariciou os cabelos do filho e apertou-lhe a testa contra a perna a que Ladd se agarrara. Na sala de costura, onde se encontrava, Carrie podia ouvir as gargalhadas agradáveis do petiz e, de repente, sentiu-se, como muitas vezes antes, a mulher mais feliz do mundo.

No piso superior, porém, o drama prosseguia. Já eram quase cinco da tarde quando, por fim, a menina Laurette Taylor Howard anunciou a sua chegada com um choro agudo. Com o coração aos pulos, T. H. entrou apressado no quarto e viu Delia a limpar com carinho a menina que acabara de nascer. Correu para junto da cama e beijou a sua esposa, carinhoso.

- Estás bem, meu amor? - em seguida, virou-se para o médico, que anuiu com gravidade.

- Estou óptima, querido, mas falhei contigo, porque querias ter um menino e dei-te uma menina...

- Nada poderia ser melhor do que termos uma filha, tão linda e doce como tu, meu anjo. A nossa Laurette!

Delia aproximou-se com o bebé, agora envolvido num cobertor branco e colocou-o nos braços da mãe. O casal maravilhava- se com a vida que tinha concebido.

- T. H. por que não sai agora e deixa a sua esposa descansar? - sugeriu o médico.

- Claro. - o mais recente pai da cidade levantou-se, beijou a esposa e a filha e voltou-se, perguntando: - Depois da Marion descansar, posso trazer alguns amigos para verem o nosso rebento?

O médico limitou-se a olhar para Marion, que sorriu, concordando. Ela sabia como era importante para o marido mostrar a pequena Laurette.

- Mas espere pelo menos meia hora - avisou o Dr. Ledette. - Depois, venha apenas com um ou dois de cada vez, e não se demore muito aqui com eles. Depois de todos terem visto a menina, deixe a sua esposa dormir algumas horas.

- Está bem, doutor.

  1. H. desceu as escadas a correr e parou no meio do hall. Numa explosão de felicidade anunciou:

- A minha mulher acaba de dar à luz uma menina linda e perfeita, a quem daremos o nome de Laurette!

Exclamações de alegria surgiram entre todos os convidados, enquanto T. H. abria uma das suas mais caras caixas de charutos, que ofereceu aos cavalheiros. Havia champanhe, e muitos presentes foram oferecidos para a recém-nascida.

Meia hora depois, no meio das comemorações, T. H. ergueu os braços e comunicou:

- Todos vão poder contemplar em breve a minha menina, mas quero que subam comigo apenas dois de cada vez - e olhando para Carrie, que segurava no seu filho ao colo, avisou que ela e o marido seriam os primeiros a ver Laurette.

Os Dasheroon seguiram-no pela escadaria e, quando chegaram à porta do quarto principal, Carrie recomendou ao seu filho que não fizesse barulho. Pô-lo no chão e, enquanto os três adultos entravam devagar no quarto, o pequeno correu até ao berço, apoiando-se nas grades, tentando ver o que estava lá dentro. Mas era pequeno demais para o alcançar. Frustrado, soltou um gritinho e tentou escalar as grades. A repreensão da sua mãe não tardou, afastando-o do berço:

- Não, Ladd querido! Tens que ficar sossegado, para não acordar o bebé.

- Bebé! - repetiu Ladd, querendo mais do que tudo ver a criança.

- Sim, é uma menina - continuou Carrie a explicar-lhe, enquanto o levantava para ele a ver. Agora, fica sossegado, está bem?

- Bebé, bebé - repetia Ladd de forma insistente, mesmo quando já estava outra vez no chão, junto dos pais.

Marion sorria, satisfeita, apesar de tudo por que passara.

- Os outros estão ansiosos para subir - comentou Carrie, por fim, depois de alguns minutos. - Voltaremos amanhã. Precisas de alguma coisa, Marion?

- Não, não. Acho que tenho tudo o que sempre quis - respondeu, suspirando.

Douglas deu os parabéns ao casal mais uma vez e depois encaminhou-se para a porta com a sua família.

- Não, Ladd! - repreendeu-o Carrie mais uma vez, afastando-o do berço para onde ele queria voltar a subir.

E, num espectáculo pouco habitual para a sua natureza pacífica, Ladd foi afastado dali em pranto.

- Carrie, deixa-o ver a Laurette mais uma vez - pediu Marion, condescendente. - Não há qualquer problema. Afinal, ela vai acordar em breve para mamar.

E, enquanto Douglas esperava à porta, Carrie voltou até ao berço com o menino, que se acalmou progressivamente. Quando já estavam diante dele, Carrie baixou-se para que o filho pudesse ver melhor a criança.

Por um longo momento, Ladd limitou-se a olhar para o rosto rosado, numa tentativa de entender por completo o que os seus olhos contemplavam. Depois, muito devagar, e tendo os olhos atentos da mãe a supervisioná-lo o tempo todo, estendeu a sua mão delicada e tocou com muita suavidade na cabeça da menina.

- Bebé - murmurou.

E depois, ainda relutante, foi afastado dali por Carrie.

Laurette Taylor Howard sentiria um grande fascínio por Ladd Dasheroon. Para o resto da sua vida...

 

Foi inevitável que Ladd Dasheroon e Laurette Howard se tornassem amigos. Não apenas por serem vizinhos da frente, mas porque a sua ascendência era semelhante. Vinham de duas familias abastadas e bem colocadas na sociedade, tradicionais em Mobile.

O pai de Ladd, Douglas Dasheroon, era um próspero fazendeiro, que recebera por herança e por casamento plantações imensas de algodão e cana-de-açúcar, que se perdiam numa vasta extensão da Geórgia. Era um homem imponente, alto, de cabelos escuros e perspicazes olhos azuis, sorriso fácil e um grande amor pela vida. Formado na Academia de West Point, deixara de lado a carreira militar ao conhecer e casar-se com Carrie Lynn Crawford, uma bela morena que vinha de uma família muito rica do Sul.

A casa em estilo grego em que viviam tinha uma famosa e belíssima escadaria que ia, em caracol, do andar térreo ao superior. Tudo ali era luxuoso, dos lustres de cristal ao mármore do chão, dos tapetes orientais às madeiras escolhidas para a mobilia.

No andar superior, bem no centro da mansão, havia um enorme salão destinado a festas e bailes, cujas janelas de vidros multicoloridos davam para uma varanda, de onde se podia ver quase todo o imenso quintal.

Os inúmeros criados, todos com impecáveis uniformes, faziam o possível e o impossível para manter a residência a brilhar.

Do outro lado da rua, a mansão do corretor de algodão e açúcar, T. H. Howard, e da sua esposa Marion, não deixava nada a desejar diante da sua vizinha da frente. Era toda branca, tendo enormes colunas no alpendre da frente, uma verdadeira obra-prima de arquitectura. Também possuía dois andares e varandas no andar superior, com todas as janelas até ao chão. Nas paredes, apenas obras de arte e, no tecto de todos os aposentos, lustres e pinturas maravilhosos.

O hall era adornado com espelhos, e a escadaria que levava ao andar de cima, toda talhada em madeira nobre, era indescritível. Os móveis tinham sido importados da Europa e, na sala de música, um extraordinário piano de mogno reluzia, tendo sido feito em Baltimore especialmente para servir os dotes musicais da dona da casa.

Na biblioteca, T. H. orgulhava-se de possuir mais de quatrocentos volumes em edições originais, que preenchiam as elegantes estantes. No centro, uma mesa redonda de jogo feita por um artífice marceneiro, com um tabuleiro de xadrez. Era o seu orgulho.

As duas mansões possuíam jardins magníficos, cheios de ricas espécies vegetais e estátuas de mármore, além de bancos de ferro fundido, pintados de branco, nos quais os donos e os seus convidados podiam apreciar as doces tardes de Primavera e do início do Outono.

Em ambos os lados da rua Dauphin, os enormes carvalhos forneciam sombra e um suave aspecto bu cólico àquela que era a zona mais rica e valorizada da cidade. E a vida corria bem aos que eram suficientemente afortunados para poderem lá morar.

Carrie Dasheroon manteve a sua promessa. Assim que Douglas partiu para uma das suas plantações, na manhã seguinte ao nascimento de Laurette Howard, dirigiu-se para a mansão dos amigos para fazer uma nova visita a Marion e ao bebé. Levou Ladd consigo, recomendando-lhe, porém, que não repetisse a cena da véspera e ficasse bem quieto e obediente. Ladd limitara-se a sorrir e a assentir meigamente.

Carrie estava já prestes a sair de casa, levando o menino pela mão, quando se lembrou de que a cozinheira fizera um delicioso bolo de chocolate para ela presentear a amiga. Deixou o filho no hall e recomendou-lhe que esperasse ali por ela, enquanto foi até à cozinha.

Assim que a mãe desapareceu no corredor, o garotinho saiu da mansão a correr e continuou, muito contente, a atravessar o alpendre. Desceu os degraus a toda a velocidade que as suas curtas perninhas Lhe permitiam e continuou a correr pela alameda até ao portão. Estava quase junto dele quando ouviu a voz da mãe a chamá-lo. Parou de correr e olhou para ela, vendo-a a descer, muito zangada, os degraus, encaminhando-se para ele.

- Rapazinho, como pudeste pensar em sair daqui sozinho? - ralhou Carrie. - Eu já te disse muitas vezes para não fazeres isso!

O menino cruzou os braços e baixou a cabeça. A sua expressão também era de zanga.

- Foste muito desobediente e mereces um castigo, sabes?

Sem entender muito bem qual era o problema, Ladd ergueu os olhos para a mãe e tentou sorrir.

- Já que não me obedeceste, não vou levar-te comigo para veres o bebé.

- Bebé! - o rosto de Ladd iluminou-se, apontando para a casa do outro lado da rua. - Bebé!

- Não, tu não vais ver o bebé e... - começou Carrie, mas interrompeu- se ao ver as lágrimas imediatas que se formavam nos lindos olhinhos azuis do seu filho. E aquele pequeno queixo trémulo desarmou-a por completo.

Engolindo em seco, olhou à sua volta, pensando em como podia ser tão fraca diante de uma criaturinha tão pequena. Por outro lado, como podia permanecer aborrecida com ele quando Ladd era tão lindo, tão alegre, tão angelical, tão...

- Queres ir ver o bebé, não é? - indagou, voltando a encará-lo.

Ladd assentiu com força, exclamando e apontando para a outra mansão:

- Bebé! Bebé!

- Está bem, podes ir comigo, então. Mas, se me desobedeceres outra vez enquanto lá estivermos, voltas imediatamente para casa, ouviste bem?

O menino assentiu e secou as lágrimas, sorrindo.

- Muito bem. Vou buscar o bolo que deixei no alpendre. Não te movas nem um centímetro de onde estás agora!

Ladd não se moveu.

Abraham, o idoso e bem- humorado mordomo dos Howard, recebeu-os, aceitando o bolo e piscando o olho a Ladd.

- Mas o que estás tu a fazer fora da cama? Carrie assustou-se, ao ver Marion sentada numa poltrona ao lado do berço. - Não, não, não te levantes, ou terei de te ajudar a voltar para debaixo das cobertas.

- Céus, não! Prefiro ficar aqui a olhar para a minha doce filhinha para sempre... - Marion observava, com extrema ternura, o seu bebé. E, estranhando o comportamento muito tímido de Ladd, acrescentou: - Meu anjo, não gostarias também de ver a Laurette?

Ladd olhou para a mãe, que assentiu, permitindo:

- Está bem, vai.

Marion pegou-lhe ao colo e ajudou-o a inclinar-se para espreitar para dentro do bercinho. E ele ali ficou, encantado. E, quando Laurette bocejava ou mexia os bracinhos, durante o sono, Ladd ria, deliciado. Porém, quando a menina acordou e, de repente, começou a chorar, franziu a testa, pôs as mãos nos ouvidos e fez uma careta.

Marion achou graça, beijou-o no rosto e pousou-o no chão. Ladd moveu-se rapidamente em direcção à porta, na intenção de fugir daquela criatura barulhenta e chorona, mas um olhar duro da sua mãe deteve-o onde estava.

Carrie foi até ao berço e, pegando em Laurette, depositou-a com cuidado nos braços da mãe. E, num segundo, como se reconhecesse onde e com quem estava, a menina parou de chorar, satisfeita.

Já que aquele barulho todo tinha parado, Ladd tornou a aproximar-se, ficando ao lado da cadeira em que Marion se sentara, com as mãos atrás das costas, a olhar com atenção para o bebé.

O nascimento de Laurette provocou inúmeras visitas à mansão dos Howard. Martha Ivy ia lá quase todos os dias e Melba Adair, com a sua filha Lydia, também faziam visitas regulares, trazendo sempre flores do seu bonito jardim.

Lena Parlange também aparecia, ficando muito feliz quando lhe permitiam pegar em Laurette. Ela dizia que sentia a mesma satisfação de quando pegara nas suas netas gémeas, Juliette e Johanna.

Carrie e Ladd iam à mansão todos os dias. E o fascínio do menino pela pequenina era cada vez maior. Queria vê-la, tocar-lhe, passar os dedinhos pelas suas bochechas suaves.

Quando Laurette completou seis meses de idade, Marion permitiu que ele lhe pegasse ao colo. Sempre cuidadosa, Carrie observou atentamente a amiga a instruir o seu fillho a subir para o berço, dentro do qual se sentou.

- Muito bem, Ladd, agora tu vais segurar a coisa mais preciosa que tenho no mundo, ouviste? - advertiu-o Marion. - Portanto, tens que ser muito cuidadoso.

Não a apertes muito e não a soltes. Mas não tenhas medo de lhe pegar. Ela é mais forte do que parece.

O garoto, de braços abertos, esperou que o bebé fosse colocado entre eles. Inclinou-se um pouco para trás, para Laurette poder apoiar-se no seu pequeno peito. E segurou-a com um desvelo total.

A garotinha não estranhou aquele novo abraço, mantendo-se quieta, com os olhos presos ao rosto do menino, que também a olhava fascinado.

E as duas mães, mais orgulhosas do que nunca, observaram a cena emocionadas, como se pudessem concordar, mesmo sem palavras, que a visão daquele belo menino moreno, de olhos tão azuis, e daquela menina tão clarinha, quase careca, mas belíssima, era uma cena digna de uma pintura renascentista. Uma visão para nunca mais ser esquecida.

Todos concordavam, quando se falava de Ladd Dasheroon, que ele era um garoto adorável. E era, de facto, uma criança doce. Feliz, cheio de energia, inteligente, bem- educado. Tinha uma natureza aberta e era muitíssimo carinhoso, amando toda a gente sem reservas e não se deixando embaraçar por mostrar os seus sentimentos.

Mas era ainda mais carinhoso e cheio de atenções para a menina que vivia na mansão diante da sua. Desde que Laurette começara a andar, aos dez meses, seguia Ladd por toda a parte, batendo os pés e fazendo birra se ele se afastava demasiado dela.

Sendo sempre avisado de que devia tomar conta, de Laurette, Ladd ficava feliz por poder fazê-lo. Na sua mente, via-a como um brinquedo vivo. Ela pertencia-lhe, nascera para o fazer feliz. O seu maior prazer era tê-la junto a si, precisando dele, segurando na sua mão, olhando-o.

Tornaram-se inseparáveis. Se Ladd não estava em casa dela, Laurette estava na dele. Se ela escorregava e caía, erguia-a depressa, acalmando- a para que não chorasse. Se ficava aborrecida e teimava com alguma coisa, ele tentava arranjar argumentos para a convencer a chegarem a um meio-termo que a deixasse satisfeita. Se Laurette tinha sono, Ladd ninava-a, cantando-lhe cantigas suaves. E se ela chorava, ele fazia caretas e animava-a até ela se rir outra vez.

Laurette, embora contente e linda, fora uma preocupação desde o início. Muito activa, ainda bebé quase chegara a cair do berço, cujas grades escalava sempre que podia. Maior, era cheia de energia, in controlável, curiosa. Queria saber tudo e, se não entendia alguma coisa, perguntava a Ladd, imaginando que ele era a autoridade máxima em conhecimentos. Idolatrava-o e queria estar sempre presente nas suas brincadeiras. Mesmo que fossem de rapaz.

Quando já tinha seis anos de idade, Laurette era um pequeno furacão, graças, em parte, ao que vivera com Ladd. O garoto gostava do que era forte, bruto, e não se importava em sujar as roupas; queria subir às árvores e arriscar-se, sem temer nada.

E Laurette não se fazia de rogada. Aceitava todos os desafios que Ladd lhe propunha, pois adorava correr, escalar, gritar, sujar-se. Tudo o que ele Lhe ensinara.

Certo dia, quando a sua mãe saiu para o alpendre para a chamar, encontrou-a a fazer graciosamente o pino, com as mãos apoiadas na relva, os cabelos arrastando no chão, o vestido quase a cobrir-lhe a cabeça. Marion arregalou os olhos, horrorizada. E, depois de chamar a filha para dentro, ergueu o braço quando Ladd seguiu a menina, anunciando:

- Não, Ladd querido. Vocês os dois já brincaram muito por hoje. A Laurette agora vai dormir um pouco.

O pequeno encolheu os ombros, embora decepcionado, e afastou-se, enquanto Marion segurava no braço da filha, não com muita delicadeza, e a levava até ao seu quarto. Lá, repreendeu-a com severidade, e não era a primeira vez que o fazia. Avisou a filha de que aquelas brincadeiras não eram apropriadas para uma menina, em especial levantar as pernas daquela maneira, para toda a gente Lhe ver as cuecas! Não devia deixar ninguém ver a sua roupa interior, nem mesmo Ladd. Não era decente. Afinal, era uma rapariga, não podia fazer tudo o que Ladd fazia.

No entanto, as palavras da mãe pareceram não surtir muito efeito. Laurette e Ladd estavam sempre juntos e viam-se como iguais. Nunca lhes ocorreu que fossem de sexos diferentes. Eram amigos, colegas de traquinices, camaradas. Davam-se bem e, muitas vezes, também se zangavam.

Laurette era feroz, temperamental. Ladd era calmo, educado, o que representava uma certa desvantagem para ele. Ladd podia empurrá-la de vez em quando, gritar com ela, mas jamais lhe tocava com raiva. E, como que por instinto, Laurette sabia disso.

Por esse motivo certa vez, quando estava muito zangada com ele, esmurrou-o com toda a força que tinha e atingiu-o no nariz. O sangue jorrou de imediato, fazendo-a arrepender-se do que fizera. Pediu-lhe mil desculpas, mas Ladd ergueu a cabeça, para evitar que o sangue pingasse a sua camisa, e virou-lhe as costas, afastando-se quando Laurette lhe tocou no ombro. Achava que ela não tinha o direito de o atingir daquela forma. Ela era mimada e briguenta. E ele não iria perdoar-lhe com facilidade. O que, a bem da verdade, não aconteceu.

Laurette dançava à volta dele, com os grandes olhos castanhos arrependidos, as mãozinhas a puxar-lhe a roupa, implorando o seu perdão. Chegou até a dar-lhe o lenço bordado que a criada Lhe pusera no bolso.

Ladd usou-o, mas ignorou-a ainda durante um bocado. Todavia, não conseguia ficar zangado com ela por muito tempo. Laurette era a sua melhor amiga, e sê-lo-ia sempre. Além do mais era divertida e bonitinha, com aqueles caracóis loiros e o vestido quase sempre sujo.

Percebendo que o convencia, Laurette puxou-o, levando-o com ela para a parte de trás da casa, onde um carvalho enorme fornecia abrigo a um banco de ferro.

- Agora tu ficas aqui, enquanto eu vou buscar um pano molhado - e Laurette saiu a correr, voltando pouco depois com uma bandeja com dois copos de limonada e um pano húmido.

Ladd inclinou-se no banco enquanto ela lhe limpava o sangue do nariz.

- Pronto! - disse ela, quando terminou. - Ainda somos amigos, não é, Ladd Dasheroon?

- Acho que sim. Mas tu vais ter de fazer tudo o que eu quiser durante uma semana inteira!

- Está bem. O que devo fazer primeiro?

- Quero um copo dessa limonada - pediu, sorrindo, e foi prontamente obedecido.

- E mais?

- Bem... aqui fora está quente e abafado. Tu podias abanar-me, Lollie.

Mesmo sem gostar muito da ideia, Laurette olhou à volta, à procura de um instrumento que servisse de abano. Como não encontrou nada, ergueu as saias e começou a abaná-lo com vigor. Entretanto, Ladd bebia tranquilamente a sua limonada.

- Mas não quero aprender piano, mamã - queixou-se Laurette, aos sete anos. - Por favor, não me obrigue!

- Querida, eu gostava de aprender piano quando tinha a tua idade - tentou Marion convencê-la. Como podes ser minha filha, se não tens inclinação musical?

As duas estavam na sala de música, diante do belo piano. Na divisão ao lado, a menina Jillian Fos ter, exímia pianista, aguardava. Jillian ensinava piano e canto para um selecto número de pessoas importantes de Mobile. Era jovem e adorava música e crianças, por essa ordem, e nada lhe agradava mais do que encontrar um aluno que tivesse verdadeiro talento.

Com esses poucos, ficava para além da hora da lição, sem cobrar mais por isso. E esperava, como Marion, que Laurette estivesse entre os mais talentosos da cidade. Afinal, ela era filha de uma excelente melómana.

E ali, esperando para ser apresentada à sua futura aluna, Jillian jamais poderia imaginar que estava a ser travada uma discussão entre mãe e filha em relação às aulas que pretendia iniciar.

- Só aprenderei piano se o Ladd também aprender! - teimava Laurette.

- Pelo amor de Deus, ele é um rapaz! - argumentava Marion, como se isso fosse uma afirmação mais do que definitiva. - E, além do mais, não é meu filho, não tem de aprender piano. Tu, sim.

- Se eu vou aprender, o Ladd terá de fazer o mesmo! Não é justo que...

- Laurette Taylor Howard, já basta de disparates! Vais aprender a tocar piano, e ponto final! Vai pedir à menina Foster que entre, e vais fazer tudo o que te dissermos.

A menina baixou a cabeça, diante da autoridade materna, e murmurou:

- Sim, senhora - depois, mais animada, indagou:

- Se eu conseguir convencer o Ladd a aprender a tocar piano também, a mãe vai permitir?

Marion hesitava.

- Bem, acho que sim, mas creio que ele não vai...

- Vai sim, mamã! - Laurette sorria agora e, satisfeita, sentou-se na banqueta:

- Não, não, Lollie - repreendeu-a Ladd com suavidade, sentando-se ao lado dela diante do instrumento. - É assim.

E afastou as mãos dela com delicadeza, colocando os seus dedos magros e longos sobre as teclas, e começando a tocar uma suave polonaise de Chopin. Laurette admirava-o, calada.

Ladd tocou do princípio ao fim sem um único erro. Perfeito, divino, inspirador. Laurette, agora com dez anos, suspirou, encantada.

Durante três anos, ela e Ladd tinham aprendido a tocar, duas tardes por semana. A paciente menina Foster percebera, nas primeiras semanas de aulas, que Ladd tinha uma inclinação natural para a música, era quase um virtuoso. E, se dedicasse grande parte dos seus dias a ensaiar com afinco, seria o seu melhor aluno, um pianista nato.

No entanto, para aborrecimento da professora, perante essa ideia ele sorria e piscava-Lhe o olho. Não verbalizava nada, mas jamais praticaria piano todos os dias quando tinha as suas brincadeiras ao ar livre, que tanto adorava. Além do mais, não lhe interessava tocar. Concordara em ter aulas apenas porque Laurette insistira muito, prometendo ser sempre boazinha com ele se lhe fizesse aquele pequeno favor.

E agora quando Ladd, aos onze anos, se sentava na banqueta da Mansão Howard para tocar com extrema facilidade uma música de Chopin, a professora olhava-o, encantada e desesperada ao mesmo tempo, por ver um tão grande talento desperdiçado.

E Ladd limitava-se a sorrir, divertido com a situação. Podia tocar sem quase ter praticado, enquanto Laurette, apesar das muitas horas sentada diante do piano, forçada pela sua mãe a estudar, mal conseguia fazer uma sequência inteira de notas sem errar. Estavam a trabalhar naquela composição havia meses, e Laurette ainda não a executava como deveria.

- Bravo, bravo, Ladd! - a menina Foster bateu palmas, quando a melodia terminou.

- Agora, tenta de novo - Ladd incentivou Laurette. - Vais conseguir.

Tensa, a menina respirou fundo e obedeceu. Mas, a meio da música, a sua testa estava banhada em suor e os seus dedos, trémulos, começaram a cometer erros sucessivos. A professora fez uma careta e olhou para cima. Ladd suspirou e deixou o banco.

- Tenho de ir - e puxou ao de leve um dos caracóis de Laurette.

Ela parou imediatamente de tocar.

- Eu vou contigo!

- Não podes, Lollie. A tua lição ainda não terminou. Além do mais, vamos ter visitas esta tarde.

- Quem é?

- Um homem chamado Tigart. Darcy Tigart. É tudo o que sei. Ainda não o conhecemos.

- E porque é que um estranho vai visitar a tua casa?

- Parece que o meu pai está à procura de outro administrador para a plantação River, já que o Brady se demitiu de repente. Ontem, o coronel Ivy falou-Lhe sobre este tal Tigart.

- E o que é que isso tem a ver contigo? - Laurette ignorava de propósito o olhar severo e os gestos da professora, instigando-a a continuar a lição.

- É que o senhor Tigart tem um filho da minha idade. Ele também vem, e quero conhecê-lo.

- Então, preciso de ir contigo - Laurette abandonou o piano.

- Certo, mas não esta tarde. É melhor ficares a praticar. Não acha, menina Foster?

- Com certeza absoluta!

Laurette franziu o sobrolho, olhando significativamente para Ladd. Mas ele, sorridente, aconselhou-lhe:

- É melhor tomares cuidado, Lollie, ou o teu rosto pode transformar-se nessa careta.

 

O magro e pálido senhor Tigart e o seu filho Jimmy, alto e loiro, chegaram às quatro horas naquela tranquila tarde de Março. Jimmy, com os olhos castanhos arregalados diante do esplendor da mansão, foi quem bateu à porta.

Dentro da mansão, Ladd gritou por Delson, o mordomo fardado, avisando-o de que ele mesmo iria abrir. E, com educação e graça, estendeu a mão direita aos recém-chegados, apresentando-se:

- Senhor Tigart, Jimmy, sejam bem-vindos a Mobile. Sou o Ladd Dasheroon - observava o outro garoto, notando, com certa decepção, que era bem mais alto do que imaginara. - Queiram entrar, por favor. O meu pai está à espera na biblioteca.

Os dois visitantes seguiram-no pelo hall. O senhor Tigart rodando o chapéu puído entre as mãos, e Jimmy observando com admiração tudo ao seu redor.

Assim que entraram na biblioteca, Douglas Dasheroon levantou-se da sua cadeira por detrás da secretária e aproximou-se, cumprimentando Darcy. Apresentou-se, sorrindo, e notou que o seu visitante estava bastante ansioso.

Douglas voltou-se para Jimmy e também lhe estendeu a mão, dando-lhe as boas-vindas a sua casa. Em seguida, voltou-se para o filho, sugerindo:

- Ladd, porque não vais dar uma volta com o Jimmy pela propriedade, para se conhecerem melhor, enquanto eu e o senhor Tigart conversamos?

Ladd olhou para o outro garoto.

- Queres ir até ao jardim? - convidou-o. Jimmy assentiu, quase imperceptivelmente. E os dois meninos saíram, atravessando o corredor.

Jimmy respondia com um educado sim" ou não" a cada pergunta que Ladd Lhe fazia, mas não estava, de facto, a ouvi-lo. Estava fascinado com o que via. Jamais estivera num lugar assim e maravilhava-se com cada coisa nova com que se deparava.

Não teve muito tempo para admirar os detalhes, já que seguiram para fora da residência, mas percebeu o suficiente para saber que os Dasheroon tinham um estilo de vida completamente diferente do seu e do seu pai. E, à medida que caminhava ao lado daquele menino tão falador, invejava-o por ter nascido num lar assim tão confortável e luxuoso. Os seus olhos fecharam-se um pouco, e os seus dentes apertaram-se diante das injustiças da vida.

Quando alcançaram o jardim das traseiras, Jimmy reparou nos belos relvados, nas árvores altas, frondosas, e nas plantas bem tratadas. E sentiu que poderia imaginar-se ali a viver, usufruindo de toda aquela beleza, recebendo convidados, comendo bem, passeando pelo jardim de braço dado à bela fi lha de alguma familia abastada.

- Se o teu pai passar mesmo a ser o nosso novo administrador, tu virás morar para bem perto daqui

- dizia Ladd, chamando-lhe a atenção.

Jimmy sorriu levemente e sentou-se no banco que tinha à sua frente.

- Sim... Ia ser bom.

Jimmy não costumava conversar muito com gente mais jovem do que ele. Sentia-se mais velho do que os seus treze anos, e preferia a companhia de rapazes de quinze ou dezasseis. Mas agora, tudo era diferente. Ladd Dasheroon tinha o estilo, e com certeza os amigos, que ele gostaria de ter.

- E talvez eu possa vir de vez em quando até à tua casa? - sugeriu, com um sorriso aberto.

- É claro que sim! - Ladd ficou contente com a possibilidade de fazer mais um amigo. - Também poderemos ir à escola juntos, e eu apresentar- te-ei a outros colegas. Da próxima vez que vieres, quero que conheças a minha amiga Laurette Howard. A Lollie mora do outro lado da rua. Sabes, sou sempre eu que tenho de tomar conta dela, porque aquela rapariga é muito irrequieta!

Ladd deu uma gargalhada.

- Mas a Laurette é como uma irmã para mim, por isso não me importo de tomar conta dela.

- Bem, não tenho nada contra as raparigas. Ainda mais quando são bonitas.

Ladd encolheu os ombros.

- Ela é bonita, eu acho... Na verdade, nunca reparei.

- Tu és um homem muitíssimo generoso - elogiou Carrie Dasheroon o marido.

Douglas sorriu.

- E tu só percebeste isso agora, não foi? - brincou.

- Não, sempre o soube - aproximou-se e abraçou-o. - É por isso que te amo tanto.

Era quase meia-noite e o casal estava na sua suite, preparando-se para dormir. Poucas horas antes, Douglas dissera à esposa que, depois de verificar todas as referências que recebera, oferecera o cargo de administrador a Darcy Tigart. E o homem aceitara-o imediatamente.

Carrie vira Tigart de relance e percebera logo, como Douglas, que o homem não estava bem. Não era forte como deveria ser o administrador de uma plantação e a sua saúde, sem dúvida, não se encontrava em bom estado.

Mas o seu marido, mesmo assim, dera-lhe o emprego. Porque tinha um coração enorme. E agora, diante de Douglas, Carrie sentia, mais uma vez, a intensidade do amor que os unia, ouvindo-o explicar a sua decisão:

- Acho que podia encontrar alguém mais... preparado para a função, mas o pobre homem veio do Kentucky a pensar que ia ficar a trabalhar no moinho Battersly. No entanto, o coronel disse-me que não havia lá nada para Tigart e ele só descobriu isso quando chegou - Douglas sentou-se na cama e começou a desabotoar a camisa. - Como sabes, meu amor, preciso com uma certa urgência de alguém para a plantação e o rapaz, o filho de Tigart, até pode vir a ser de alguma utilidade.

- É claro... - Carrie sentou-se ao lado do marido.

- Tigart vai começar amanhã, o que é óptimo. O Brady já partiu há uma semana, mas ainda é necessário fazer a sementeira e preciso de alguém para.

Ele continuou a justificar a escolha que fizera, enquanto Carrie o ouvia atentamente. Ela sabia muito bem quem sairia mais beneficiado com aquele contrato, e não era Douglas. Mas não era a primeira vez que isso acontecia. Douglas, muitas vezes, deixava de ser o homem de negócios e dono de terras, para ceder à bondade dos seus instintos.

Darcy Tigart receberia um bom salário, além de uma participação nos lucros da colheita. E juntamente com a familia, a esposa e o filho, viveriam na casa de oito assoalhadas, mobilada, que ficava na plantação. Teriam uma carroça e vários cavalos à sua disposição, além de fartura de legumes e verduras, carne, leite e ovos da herdade.

A entrada para a propriedade não ficava muito distante de Mobile, e o filho dos Tigart poderia frequentar a escola sem qualquer problema.

- Se eu ficar algum tempo com ele, poderemos ter tudo a correr bem em poucos dias - Douglas voltou-se para Carrie e viu-a sorrir. - O que foi? Disse alguma coisa engraçada?

- Não, não. És tu - e afagou-lhe o peito.

- Eu?

- Tu és adorável quando te defendes, sabias?

- Não estou a defender-me...

- Estás sim, embora não seja necessário explicares-me por que o fizeste. Aliás, devo dizer-te que me sinto muito atraída quando vejo que tu, um homem tão forte e tão viril, mostras um lado gentil e afectuoso - aproximou-se mais, beijando-lhe o tórax. Eu adoro-te, sabias?

Douglas abraçou-a, sentindo a paixão renascer. Olhou-a, os profundos olhos azuis a brilharem de desejo, e apertou-a contra o seu corpo. O beijo que trocaram foi ardente e iniciou um processo de carinhos e entrega que já conheciam muito bem, mas do qual não se cansavam.

Assim que Ladd apresentou Laurette a Jimmy, ela teve a estranha sensação de que nada seria como dantes. Não que não tivesse gostado do novo colega; gostava, e muito. Jimmy era alegre e agradável, mas ela sentia a falta do tempo em que era a única amiga de Ladd. Porque sempre fora assim: ela e Ladd, e ninguém mais. Agora, os dois rapazes estavam sempre juntos e Ladd já não Lhe dava tanta atenção como antes.

Durante um ano, os três frequentaram a mesma escola, mas Laurette foi, aos poucos, sendo deixada de fora das brincadeiras dos rapazes depois das aulas. Tal facto agradava a Marion Howard, que considerava que estava mais do que na altura da sua filha ter amigas, e não apenas amigos. E, para garantir que a menina tivesse, de facto, amiguinhas, colocou-a na Academia Hunnicut para raparigas, no Outono de 1855, depois de Laurette ter feito os onze anos.

Laurette detestou aquele lugar. Em especial porque ia deixar a escola onde Ladd e Jimmy estudavam. Mas Ladd tranquilizou-a, quando lhe disse que eles também não permaneceriam ali. Iriam frequentar a academia militar, localizada na esquina das ruas Claiborne e Saint Michael. Jimmy iria para lá como bolseiro.

Ladd e Laurette continuaram próximos, mas ela sentia a sua falta todos os dias. E, com o passar do tempo, conforme Marion esperara, começou a fazer novas amizades entre as raparigas da Hunnicut. Eram muitas as suas preferidas. Como a menina Tyler e Belinda Vance, além de Paula Gentry.

Mas as suas melhores amigas logo se tornaram as gémeas Parlange, Juliette e Johanna. As duas tinham perdido os pais num acidente de barco há um ano, e tinham-se mudado para Mobile para casa dos avós, o juiz Noble e a senhora Lena Parlange.

As irmãs eram idênticas, com longos cabelos negros, pele muito clara, grandes olhos verdes que mais pareciam esmeraldas e boca carnuda, avermelhada. No entanto, eram tão diferentes no temperamento como o dia da noite. Juliette era sossegada e estudiosa; Johanna, como Laurette, era animada, agitada, faladora. E Laurette adorava-as. Visitava-as sempre que podia, e as gémeas também vinham com frequência a sua casa.

Pouco depois de as conhecer, Laurette apresentou-as a Ladd e a Jimmy. E, depois dos rapazes se terem retirado, Johanna comentou, inocentemente, que os dois eram muito bonitos, mas que Ladd era de tirar o fôlego. Laurette experimentou, pela primeira vez então, um sentimento que a deixou tensa e indignada com a amiga.

- Fica a saber que o Ladd Dasheroon me pertence! - protestou, sem vacilar.

Johanna, por sua vez, riu-se e rebateu:

- Não sejas tola!

- É meu, sim, e sempre será! E vou-me casar com ele quando tiver idade!

Johanna deu uma gargalhada, mas prometeu que jamais usaria o seu encanto, que não era pouco, para atrair Ladd. E as três raparigas passaram horas a conversar no quarto de Laurette. Juliette, ouvindo mais do que falava, apenas sorria de vez em quando, perante as brincadeiras e mexericos das outras duas.

A amizade entre Ladd e Jimmy mostrava-se cada vez mais sólida, mas afirmou-se numa quente tarde de Verão em que os dois, agora com treze e quinze anos, desceram até um local na costa chamado Refúgio do Pirata, para darem um mergulho. Afastada da margem havia uma bóia, até à qual os garotos tinham várias vezes combinado ir a nado, mas nunca o tinham feito. No entanto, nessa tarde em particular, Jimmy estava decidido a tentar. E desafiou Ladd:

- Aposto que consigo nadar até à bóia sem parar! Ladd sorriu.

- Isso é uma aposta?

- Claro que sim!

- Então, vamos!

Rindo e gritando, os dois começaram a correr pela areia da praia, enquanto tiravam as roupas e os sapatos, atirando-se à água com satisfação.

Nadaram, entusiasmados, até que Ladd começou a sentir-se cansado. Os seus braços, que não estavam acostumados a tal esforço, começaram a doer. No entanto, jamais admitiria para consigo mesmo, e muito menos para com o amigo, que estava a fraquejar. Continuou, ignorando a dor e o cansaço.

Minutos depois, começou a ficar apavorado, ao perceber que não conseguiria chegar à bóia. Estava tão exausto que já não conseguia enfrentar a força das águas. E viu-se prestes a afogar-se quando Jimmy, olhando para trás, por cima do ombro, percebeu que havia alguma coisa errada. Por isso, voltou imediatamente para trás, nadando até ao companheiro. A cabeça de Ladd já estava a submergir quando Jimmy o alcançou, puxando-o para cima.

- Estou a segurar-te, Ladd! - acalmou-o. - Vou levar-te de volta para a praia!

E assim fez. E, quando Ladd contou aos pais o que acontecera, Carrie e Douglas ficaram imensamente gratos ao garoto por ter salvo a vida do seu precioso filho. E garantiram-lhe que jamais esqueceriam o que ele fizera.

Douglas provou o que dizia quando conseguiu, através da sua influência como antigo aluno de West Point, uma autorização para Jimmy frequentar a selecta academia militar. E, quando Darcy Tigart faleceu, no Inverno de 1857, Douglas permitiu que o menino e a sua mãe permanecessem na casa que tinham ocupado enquanto Tigart era o administrador da herdade.

No início do Outono de 1858, Ladd, Laurette, os pais de ambos, as gémeas Parlange e mais algumas pessoas do seu círculo de amigos estavam no centro de Mobile para fazer as despedidas a Jimmy, que partia para West Point, em Nova Iorque. Estavam todos felizes e, quando chegou o momento do rapaz embarcar no navio que o levaria, houve muitos abraços e votos de felicidades e de sucesso.

Quando Jimmy se virou para se despedir de Laurette, ela percebeu que havia qualquer coisa diferente no seu olhar. E, quando ele a abraçou, sentiu o seu coração a bater descompassadamente.

Jimmy soltou-a, e Laurette começou a imaginar se tudo não fora fruto da sua imaginação. No entanto, lembrava-se muito bem do brilho nas íris castanhas de Jimmy. Recordava-se também de como ele brincava, de como chegava a namoriscar com ela, mas sempre imaginara que se tratasse de uma amizade sem outras intenções. Agora já não tinha a certeza.

Embaraçada, viu-o a agarrar a risonha Johanna Parlange, num abraço divertido, e depois baixar-se para dar um beijo suave no rosto corado de Juliette. Por fim, voltou-se para Ladd, e os dois rapazes abraçaram-se, emocionados. Pouco depois, Jimmy partia.

Laurette sentia-se culpada. Não conseguia evitar sentir alegria por ver Jimmy longe. Tinha Ladd de novo só para ela. Na ausência do amigo, Ladd passava mais tempo com ela mas, para sua decepção, continuava a tratá-la como sempre fizera: como um irmão mais velho. Era como se não percebesse que estavam a crescer, que já não eram crianças.

Ela até tentava mostrar-lhe que já não era uma menina, que estava a tornar-se mulher, mas Ladd não percebia nada. Quase em desespero, Laurette contou às suas amigas gémeas que acreditava que Ladd jamais olharia para ela de outra maneira. Seria sempre a irmãzinha que precisava dos cuidados dele.

Até que, de repente, sem aviso, tudo mudou. Não para Laurette, mas para Ladd. Foi no Inverno que se seguiu à partida de Jimmy. Ladd completara quinze anos no Verão anterior, e Laurette catorze. E, num dia cinzento de Dezembro, Laurette foi ajudar Carrie na decoração para o Natal, em especial da árvore enorme que tinha sido colocada no hall.

Quando Laurette chegou, foi Ladd quem a recebeu à porta. E nesse exacto momento, Ladd Dasheroon viu Laurette Howard de uma forma como nunca a vira antes.

- Olá! - saudou-o ela, sorridente.

- Hum... - conseguiu Ladd responder, depois de pigarrear, nervoso.

E ficou parado, a olhá-la, observando os seus olhos escuros, a sua pele suave, os lábios rosados e frescos. Laurette usava uma capa de veludo vermelho-sangue, que parecia combinar perfeitamente com o tom da sua pele.

Ladd notou, surpreendido, que a sua pequena Laurette estava a mudar depressa. Na realidade já mudara, diante dele, e ele não reparara!

Ela já não era uma criança, mas sim uma rapariga muito bonita. Não conseguia imaginar quando é que isso acontecera e muito menos porque não dera por isso. Era como se a estivesse a ver pela primeira vez, e o efeito era intenso.

E, a partir daquele instante, em que Laurette olhava para ele, à entrada da mansão, envolta naquela capa vermelha, com o rosto corado, o sorriso encantador, Ladd nunca mais a encarou como a antiga colega de brincadeiras e aventuras de criança. E muito menos como a irmãzinha de quem tinha de cuidar.

Agora, todas as vezes que pegava na mão dela para atravessarem uma rua, subirem os degraus da igreja no Ofício de Domingo ou em qualquer outro momento, uma carga eléctrica indescritível trespassava-o, deixando-o num estado que jamais experimentara antes.

Não importava que tivesse apenas quinze anos e ela catorze. Estava apaixonado por Laurette. Mas não ousava declarar-se. Conhecia-a bem demais para saber que ela iria rir-se dos seus sentimentos.

Desse modo, preferiu não lhe contar, fingindo que nada mudara, tentando tratá-la como sempre fi zera. Não era fácil, porém. Sempre que a via, o seu coração disparava, as suas mãos ficavam húmidas e os seus joelhos pareciam enfraquecer. Não podia revelar o que se passava no seu coração, mas tinha de o dizer a alguém!

Por isso, decidiu escrever uma carta a Jimmy, falando do seu amor por Laurette e pedindo segredo ao amigo. Jamais poderia imaginar que Jimmy desejava Laurette para si. E que pretendia, por todos os meios, consegui-la.

 

             Vinte e três de Julho de 1859

Era a festa de aniversário dos quinze anos de Laurette. E dos dezasseis anos de Ladd. Convites em papel camurça folheados a ouro tinham sido enviados duas semanas antes, e uma orquestra de vinte músicos fora contratada em Nova Orleães para a festa.

Três dos mais refinados chefes de cozinha de Mobile foram contratados para preparar o banquete que ia ser servido aos inúmeros convidados, e Melba Adair, como sempre, fizera questão de fornecer as flores que iriam decorar o salão, cultivadas no seu magnífico jardim.

O duplo aniversário da rua Dauphin era famoso. Na verdade, todos os anos as festas que ali se realizavam eram muito concorridas, desde o Verão de 1845, quando Ladd completara dois anos e Laurette um.

E nesse ano, naquela quente noite de Sábado, as festividades realizavam-se na mansão dos Dasheroon. Tudo parecia cintilar na casa. Desde os lustres aos vestidos das convidadas. No andar inferior, o bufete de iguarias fora colocado no imenso salão, e no superior o baile era animado pela excelente orquestra.

Havia flores por toda a parte, e as cadeiras estofadas, colocadas em volta do enorme salão de baile, foram dispostas de modo a que aqueles que preferiam apreciar e não dançar pudessem ter uma visão completa dos pares que estavam no centro. Por estarem abertas, as portas que davam para o terraço permitiam que uma brisa muito agradável penetrasse através delas.

Os convivas começaram a chegar ao anoitecer. Havia dezenas de jovens, da mesma idade de Ladd e Laurette, colegas da escola, da academia, todos alegres, cheios de energia e de vontade de namoriscar uns com os outros. Os mais velhos tinham vindo todos, como sempre: o coronel e a senhora Ivy, os Adair, o juiz e a sua esposa, Lena, a professora de música, a menina Foster, os Faraday, os Pimlliat...

As carruagens, uma após outra, paravam diante da belíssima mansão, e delas saíam os convidados, ansiosos por mais uma alegre e refinada noite de comemorações.

Mas, do outro lado da rua, dentro da sua residência, Laurette ainda não se vestira, muito embora a noite tivesse caído já há algum tempo. As gémeas, nos seus magníficos vestidos azuis, esperavam com ansiedade que ela se arranjasse.

- Vamos, decide-te! - protestava Johanna. - O baile já começou! Posso ouvir daqui a orquestra a tocar!

- Eu sei, eu sei!

Sobre a cama, meia dúzia de vestidos maravilhosos. Todos tinham sido experimentados e postos de lado. Ruby Lee, a camareira particular de Laurette, sempre paciente, pusera as mãos na cintura, à espera.

- Laurette Taylor Howard! - repreendeu-a. Vai-se atrasar para a sua própria festa! E acho isso muito desagradável da sua parte!

- Não te perguntei nada, Ruby Lee. O que hei-de fazer? Não tenho nada para vestir! Nada!

Ruby Lee ergueu os olhos para o tecto e deu meia volta, dirigindo-se mais uma vez para o guarda-roupa ao lado do quarto. Lá, esquadrinhou entre os muitos trajes de gala, alguns dos quais nunca tinham sido usados, até que, por fim, encontrou mais um, cor-de-rosa. Tornou a aproximar-se dela, anunciando:

- Experimentemos este, menina. Nunca o usou, e a cor combina com a sua pele.

- Isso! - concordou Laurette, animada. - Era mesmo uma coisa assim que eu queria! Um vestido mais adulto! Preciso de ficar maravilhosa, esta noite!

- Ora, a menina diz a mesma coisa todas as vezes em que se arranja para sair! - e Ruby Lee ajudou Laurette a vestir-se. - Por que havia hoje de ser diferente?

- Porque sim, ora!

- E porque sim? - interferiu Johanna, com um sorriso malicioso nos lábios.

Laurette virou-se para a amiga, franzindo a testa.

- Porque quero fazer com que o Ladd Dasheroon perceba, de uma vez por todas, que eu já não sou criança! - respondeu, quase feroz.

Ruby Lee deu uma gargalhada.

- Vocês os dois ainda são crianças, para mim - comentou e, como o seu trabalho ali estivesse termi nado, deixou as jovens sozinhas.

Laurette rodopiou diante do imenso espelho, para ter a certeza de que a saia iria rodar com graça enquanto dançasse. Então, beliscou as faces, para as deixar mais rubras, apertou os lábios com a mesma intenção e, sorrindo, matreira, puxou a cintura do vestido para baixo, deixando-o quase um palmo mais decotado do que deveria ser.

Verificou as curvas dos seios, que apareciam, e tornou a sorrir. Ladd perceberia, sim, imaginou, satisfeita. Jimmy, que viera da West Point em licença de Verão, iria também reparar, ela sabia-o, e ele faria questão de fazer com que Laurette visse o seu interesse. Mas, não era a atenção de Jimmy que queria sobre si, e sim os olhos de Ladd a segui-la, encantado. Respirou fundo, então, parecendo aborrecida.

- O que foi agora? - precipitou-se Johanna, segurando Laurette pelo braço e instigando-a em direcção à porta.

- Nada! - e Laurette deixou-se levar.

Mas havia qualquer coisa, sim.

Nos últimos meses, tentara de todas as formas mostrar a Ladd que já não o via como um irmão mais velho. E não conseguia atinar com o que teria de fazer para conseguir que ele a visse como a mulher em que se estava a transformar.

Ladd também ainda estava no seu quarto. Não se vestira. Podia ouvir a música no salão, as pessoas a

conversar, a rir... Sabia que estava atrasado, que devia estar a cumprimentar os convidados juntamente com os seus pais.

O seu camareiro, Lucas, deixara as roupas que deveria vestir colocadas sobre o leito. Era um fato preto, muito elegante, mas Ladd achava que, se o usasse, ficaria igual a todos os outros rapazes presentes, e a sua intenção era ser diferente, naquela ocasião. Porque queria que Laurette reparasse nele, que o visse de imediato assim que aparecesse no salão. Queria ver os olhos dela presos nele. Queria fazer com que o coração dela batesse mais forte.

Foi até ao armário e pegou num fato claro. Vestiu-o e verificou o seu reflexo. Gostou da sua aparência. Ultimamente, tinha passado algum tempo na herdade, ajudando no cultivo de algodão, e também nadara muito na praia. Dessa forma, a sua pele ficara bastante bronzeada e contrastava muito bem com aquele fato.

Tinha de estar muito bem, naquela noite, repetiu-se pela centésima vez. Decidira que não iria esperar mais para contar a Laurette o que sentia por ela. Esse seria o momento mais importante da sua vida, e queria que tudo estivesse perfeito.

Quando, por fim, se vestiu, tornou a olhar-se no espelho e fez uma careta. Havia uma onda de cabelos rebeldes a teimarem em cair sobre a sua testa. Passou a mão por ela, mas de nada adiantou. Repetiu o gesto e, sem olhar para ver o resultado, saiu do quarto. O seu ritmo cardíaco acelerou-se, e fez uma breve paragem antes de entrar no salão.

O seu coração pareceu parar de bater, então, para depois se apertar no seu peito quando viu o alvo do seu amor a dançar, muito animado, nos braços do seu melhor amigo.

Laurette sorria, e as suas pupilas cintilavam, demonstrando que estava a divertir-se muito. Jimmy segurava-a de uma forma muito íntima, muito próxima e sussurrava qualquer coisa ao seu ouvido.

Ela voltou-se e viu Ladd. Mas, antes de ter podido estabelecer contacto visual, ele afastou-se.

Mais infeliz do que nunca, Ladd passou por entre as pessoas que enchiam o salão e saiu pelas portas duplas do terraço, descendo pela escadaria de pedras das traseiras. E continuou a andar, à procura da solidão do jardim.

Laurette mal podia esperar que a dança terminasse. Uma simples valsa com Jimmy Tigart fizera o que ela esperara durante meses. Ladd reparara nela, de uma forma diferente. Vira-a nos braços de Jimmy e sentira ciúmes.

Ficou entusiasmada. Ladd não estaria magoado, se não se importasse com ela. Embora não houvesse necessidade alguma de sentir ciúmes por causa de Jimmy Tigart. Laurette amava apenas e tão-somente Ladd.

Jimmy podia estar muito bem apessoado naquele galante uniforme cinzento, mas era como se apenas Ladd ali estivesse. E ele estava maravilhoso, nessa noite! Uma rápida olhadela fora o suficiente para perceber isso e para se sentir quase a sufocar pela força da atracção que sentia. Os cabelos escuros, com aquela onda rebelde a cair-lhe para a testa, a pele morena do sol em contraste com o fato quase branco... E aqueles incríveis olhos azuis, que pareciam estar ainda mais belos, formando um conjunto e tanto com a boca firme, bem desenhada.

Ladd era alto e elegante e destacava-se entre os demais. E Laurette sabia que, para ela, seria sempre assim: ele estaria sempre em destaque.

A valsa, por fim, terminou, e Laurette soltou-se dos braços de Jimmy com alguma impaciência. Mas ele segurou-a.

- Uma dança apenas não é suficiente - queixou-se.

Lamento, Jimmy. Não posso. Agora não - tentou afastar-se, mas Jimmy seguiu-a.

- Porque não? Vamos, vem dançar de novo comigo, debutante.

- Eu já disse que não! - aborreceu-se Laurette e, virando-Lhe as costas, seguiu em direcção ao terraço, determinada.

Lá fora, ergueu as saias rodadas e desceu as escadas, à procura de Ladd. Verificou em todos os cantos em que imaginava ser possível ele ter-se escondido. Só conseguiu encontrá-lo bem no fim do quintal, junto a uns arbustos altos.

Ladd estava de costas para a sua direcção, com os braços cruzados sobre o peito. Laurette não o chamou. Foí até junto dele, parou e esperou até Ladd se aperceber da sua presença.

Quando ele se virou, abruptamente, Laurette percebeu a tristeza no seu semblante e emocionou-se. Não hesitou, então. Deu alguns passos e, colocando os braços em torno do pescoço dele, disse, com suavidade:

- Ladd, sabes que eu te amo?

Ele vacilou por segundos, depois murmurou:

- E eu também te amo, Lollie - havia uma certa reserva no seu tom de voz, pelo receio de ter entendido mal as palavras dela.

- Não digo dessa maneira. Não como quando éramos crianças. Estou apaixonada e, se não me amares também, acho que vou morrer...

Ladd sentiu uma alegria imensa invadi-lo. Sorriu, e os seus braços, um tanto trémulos, passaram pela cintura de Laurette ao dizer, hesitante:

- Lollie... eu... eu amo- te de facto. De verdade! Sempre te amei e... nunca amarei outra.

- Eu também não - num impulso, ela aproximou-se ainda mais e deu-Lhe um beijo no rosto. - Tu és o único homem que amarei! O único. Juro!

Ladd estava abismado. Não poderia esperar que declarar-se a ela pudesse ser tão bonito, que Laurette retribuísse os seus sentimentos, que estivesse a viver tamanha felicidade... Os seus braços fecharam-se à volta dela. E, com as pernas a tremer, pediu:

- Posso... posso beijar-te?

- É claro que sim. Mas... eu não sei beijar...

- Eu também não - confessou ele. - Mas podemos aprender juntos.

- Sim, podemos. Então beija-me, Ladd. Ainda hesitando, ele apertou-a mais contra si e baixou a cabeça, dando-lhe um beijo leve nos lábios. Foi uma carícia breve, inocente, mas muitíssimo agradável para ambos.

Depois olharam-se, calados, os corações a bater depressa, encantados com o seu amor. E, de repente, tomaram consciência de que os seus corpos estavam unidos, do peito aos joelhos. Foi uma sensação nova para os dois.

Laurette estremeceu e Ladd, percebendo, sentiu como que uma descarga eléctrica a percorrê-lo de cima abaixo. Inclinou mais uma vez a cabeça e tornou a beijá-la. Um beijo leve como o outro, mas que os levou a quererem mais. O que se seguiu foi mais quente.

A festa de aniversário estava esquecida para ambos. Achavam-se nos braços um do outro, partilhando beijos, carinhos, com a respiração cada vez mais densa e apressada. E faziam juras de amor:

- Promete que não vais deixar mais ninguém beijar-te, Lollie. Nunca.

- Prometo. A tua boca será a única a tocar-me.

- E vais lembrar-te dessa promessa, quando eu tiver ido para West Point?

- Sim. Além do mais, temos ainda um ano inteiro antes de tu ires.

- Eu sei - sorriu ele. - Podemos beijar-nos muito durante este ano.

Ela sorriu também, cúmplice.

- Podemos, sim. E vamos. Mas agora temos obrigações para com os nossos convidados. É melhor entrarmos, não achas?

- Sim... eu tinha-me esquecido completamente da festa - Ladd beijou-a ainda uma vez, antes de lhe pegar na mão e de a conduzir de regresso ao salão.

 

O doce romance entre Ladd e Laurette começou naquela suave noite de Verão nos jardins da propriedade Dasheroon. Felizes, apaixonados, estavam sempre ansiosos por ficar a sós.

Beijavam-se sem parar, até os seus lábios estarem inchados e os seus corações acelerados de prazer. Não contaram logo aos seus pais o que estava a acontecer; tinham receio de que, se eles soubessem, não lhes permitissem passarem tanto tempo a sós.

Mas, como Laurette concordou, Ladd contou tudo a Jimmy. No dia a seguir à festa, Ladd abriu o seu coração ao amigo:

- Ela ama-me! - exclamou, animado. - Tanto quanto eu a amo!

- Como é que sabes? Pensei que ias esperar, que não te declarasses a ela ainda...

- Mas foi a Lollie quem se declarou primeiro.

- O quê?

- Sim. Ontem, ela foi até ao jardim, onde eu estava, e disse que me amava e que queria saber se eu também a amava. E como a amo! Então, declarei-me e disse que pretendo pedi-la em casamento.

Jimmy sorriu, mas sem grande alegria. Murmurou apenas:

- Bem, então desejo-vos aos dois felicidades.

No feriado de Acção de Graças já não podiam mais continuar a esconder o que sentiam. E no almoço dado na Mansão Howard, Ladd anunciou que ele e Laurette estavam apaixonados e que pretendiam casar-se e passar o resto dos seus dias juntos.

Os pais de ambos ficaram surpreendidos, mas muito felizes com a novidade. Os Howard não poderiam querer um genro melhor; confiavam completamente em Ladd, sabiam que podiam contar com ele para fazer a sua filha feliz. E os Dasheroon perceberam, então, a extensão dos sentimentos do seu filho por Laurette, e ficaram satisfeitos com a possibilidade de a terem como nora.

Douglas Dasheroon, com muito tacto, lembrou a todos que, embora aceitando o namoro dos dois, insistia em que Ladd fizesse carreira militar na West Point, para onde seguiria em breve.

- A Laurette entende a minha partida, papá.

- Tenho a certeza que sim, filho.

- Mas vocês os dois devem entender que estão a acontecer muitas coisas... Que se está a formar um grande abismo entre o Norte e o Sul do país e que isso pode levar a... uma guerra civil - observou T. H. Howard.

- T. H. - interpelou-o Marion. - Por favor, estamos num feriado!

- O T. H. tem razão, Marion. A recente violência em Harper's Ferry foi apenas o princípio. O Sul é um barril de pólvora, pronto a explodir. E se tivermos uma guerra eu irei servir os Confederados - completou Ladd, despreocupado.

- E eu vou esperar que ele volte - disse Laurette, animada.

- Esperemos que nada disso seja necessárioCarrie lançou ao marido um olhar que lhe pedia si lêncio. Em seguida, sorriu para os dois jovens. Tudo o que pedimos é que vocês esperem que Ladd termine os seus estudos para se casarem.

Os namorados concordaram, felizes. Ainda mais porque tinham uma grande vantagem em relação aos outros casais de apaixonados: os seus temores tinham sido infundados, poderiam continuar a encontrar-se quando quisessem, sem censura dos seus pais.

E assim foi. Nem os Howard nem os Dasheroon se preocuparam com o tempo que Ladd e Laurette dedicavam um ao outro. Afinal, tinham crescido juntos e não fazia sentido tentarem agora mantê-los afastados. Além do mais, depositavam absoluta confiança nos dois.

Laurette e Ladd sabiam dessa confiança e não queriam fazer nada que pudesse abalá-la. Eram hon rados e respeitadores, tinham sido criados dentro dos padrões morais sulistas e sabiam muito bem como deviam portar-se.

Mas estavam tão desesperadamente apaixonados que, aos poucos, os seus beijos já não eram suficientes para aplacar a necessidade que tinham um do outro. Os seus corpos ardiam de paixão quando estavam juntos, as suas mãos ficavam cada vez mais ousadas, as suas carícias mais íntimas, mesmo sendo trocadas através do limite imperioso das roupas.

Numa sexta-feira enevoada de Janeiro, o casal estava sentado na escuridão de uma carruagem que parara diante da casa de Laurette. Moses, cocheiro dos Dasheroon, esperava na boleia, até que os dois se decidissem a descer e entrar em casa. Mas eles demoravam, relutantes em despedir-se nessa noite.

Trocavam beijos alucinados, sem conseguirem afastar-se. Todas as intenções que poderiam ter de continuarem castos e obedientes às leis morais da sociedade começavam a dissolver-se.

Laurette sentia as mãos febris de Ladd a acariciarem-lhe as pernas, entrando, ousadas, por entre as dobras da sua saia, passando pela suavidade da seda das suas roupas interiores. E isso fazia-a elevar-se ao céu.

- Ladd... Tens de parar com isso... - mas não havia muita determinação nesse pedido.

Ele tirou imediatamente as mãos, desculpando-se:

- Desculpa, Lollie. De verdade.

Ressentia-se consigo mesmo por deixar que a paixão por ela o dominasse daquela forma. Mas chegava a perder o sono a pensar em Laurette. Amava-a muito e, mesmo desejando-a, queria protegê-la de tudo, inclusive dele mesmo.

- Vamos entrar, sim? Está a fazer-se tarde.

- Não fiques zangado comigo.

Ladd sorriu.

- É lógico que não. Nunca poderia ficar zangado contigo. Mas é que... Oh, meu amor, não consigo conter-me! Quero-te tanto que. Chega a doer, sabes?

- Sim, eu sei - Laurette surpreendeu-o por completo quando levou a mão à sua cintura e depois a desceu devagar, para o acariciar. - Eu amo-te, Ladd. Faria qualquer coisa por ti. Não quero que sofras. Deixa-me acabar com a tua agonia.

Ele engoliu em seco.

- Prometi ao teu pai que te deixaria em casa às dez - conseguiu dizer, desviando o assunto.

- Eu sei.

- Já são quase dez...

- E amanhã?

Ladd animou-se.

- Isso! Amanhã é Sábado e poderemos ficar o dia inteiro juntos.

- E as nossas mães vão a um almoço de beneficência.

Ladd assentiu, lembrando-se.

- A mamã falou a esse respeito. Tem algo a ver com as comemorações do Mardi-Gras...

Era a época social mais animada de Mobile, e Carrie Dasheroon e Marion Howard faziam parte do selecto grupo de senhoras que organizava e participava nos eventos sociais em geral, mas em especial nas comemorações carnavalescas do Mardi-Gras. Planeavam bailes e outras reuniões importantes. O almoço a que iriam seria em casa da famosa Marie Lassat, uma senhora de sangue azul, que declarava com orgulho que a sua linhagem alcançava os pri meiros colonizadores vindos de França para se estabelecerem em Mobile. A nata sulista estaria presente naquele evento.

Ladd e Laurette planeavam agora, calados, o que poderiam fazer no dia seguinte, quando as suas mães se ausentássem dos seus lares como em nenhum momento.

- O que achas de irmos ao outro lado da baía, até ao forte espanhol, querida? Há por lá muitos lugares remotos, nos bosques. Podemos procurar um local onde nunca ninguém tenha estado.

- Óptimo! Podemos dizer aos nossos pais que vamos fazer um piquenique, o que levará o dia inteiro... - concordou Laurette, feliz.

- Moses poderá levar-nos até ao porto.

- Pedirei à cozinheira para preparar um lanche para nós.

- Vou-te buscar às dez, então?

- Combinado!

Ladd tinha consciência da importância do que estavam a preparar, do que na realidade tinham em mente. Olhou para Laurette durante um longo momento e perguntou:

- Tens a certeza de que é isso que queres?

- Absoluta! - aproximou-se e beijou-o; e, contra os seus lábios, sussurrou: - Amo-te do fundo do coração e quero ser tua de corpo e alma.

Mal podiam acreditar. Os seus pais não ofereceram resistência alguma ao pedido para irem fazer um piquenique sozinhos. Chegaram até a dizer que seria melhor assim, já que ficariam em casa sem nada para fazer enquanto as mães estivessem no almoço.

Assim, como planeado, os dois seguiram, na carruagem, de mãos dadas, silenciosos, antecipando o que iria acontecer e que poderia mudar as suas vidas para sempre. Não estavam tensos, apenas calados e pensativos.

O clima estava perfeito, embora fosse Janeiro e pudessem esperar um pouco de frio. Era um dia calmo no Alabama, ameno, que acontecia de vez em quando no Inverno.

Laurette suspirou, feliz. O clima subtropical de Mobile era uma das características daquela região que mais lhe agradavam. Era uma cidade romântica, bonita, o local onde queria passar o resto da sua vida. Ainda mais com o homem que tanto amava e que agora seguia com ela, sentado ao seu lado.

Olhou-o e sorriu. Ladd apertou-lhe a mão, em resposta, dizendo:

- Já estamos quase no cais.

Estavam já na rua mais próxima da baía, onde muitas vezes a população se reunia para ouvir con certos de música. Mais ao sul ficavam as praias da costa do golfo e, para além delas, o oceano.

Quando a carruagem parou, junto às movimentadas docas, Ladd disse ao cocheiro:

- Pode vir-nos buscar às quatro, está bem, Moses?

O criado assentiu, acrescentando:

- Estarei aqui à espera, senhor. Divirtam-se.

- Obrigado! - Ladd afastou-se, levando a cesta de vime numa das mãos e dando a outra mão a Laurette.

Apanharam o barco para a breve travessia da baía. Havia muitas pessoas com eles, seguindo para os diversos pontos do outro lado da costa, onde ficavam algumas casas de veraneio, inclusive as dos Dasheroon e dos Howard.

Já eram quase onze horas quando o barco atracou no Forte Espanhol, local assim chamado devido à antiga colonização daquele lugar. Ladd e Laurette foram os únicos passageiros a descerem ali, o que lhes agradou sobremaneira. A aldeia dos pescadores ficava logo adiante e, depois dela, nem sinais de ocupação humana.

Seguiram por um caminho que subia um leve morro e, ao cimo dele, olharam para trás, para ver a paisagem. Mobile ficava do outro lado da baía, agora apenas uma pequena marca na distância: Continuaram a caminhar, então, embrenhando-se pela mata.

- Sabes para onde vamos, Ladd? - indagou Laurette, um tanto preocupada com o isolamento daquele lugar.

Ele sorriu maliciosamente e disse apenas:

- Saberei, quando lá chegarmos.

Um pouco mais adiante, alcançaram um ponto em que a mata se abria numa clareira de erva verdejante, junto à qual passava um riacho de águas cristalinas. Aquele parecia ser o local perfeito.

Laurette, de repente tímida e tensa, começou a abrir o cobertor que trouxera na cesta e colocou-o sobre a erva. Quando terminou, tirou os sapatos e sentou-se sobre o tecido.

Ladd fez o mesmo, apressado. Depois fitou Laurette, de súbito apreensivo, detestando o facto de serem tão inexperientes, de nada saberem sobre o amor, além do que preenchia os seus corações. Queria fazê-la feliz, mas não tinha confiança em si mesmo.

Ela encarou-o, percebendo a sua preocupação mais por instinto do que por experiência. E, com todo o carinho do mundo, murmurou:

- Não tem de ser perfeito, Ladd. Temos o resto das nossas vidas para aprendermos a fazer amor.

Ele tomou-lhe o rosto entre as mãos, olhando-a, fascinado. Laurette era tudo o que queria.

- Se eu viver cem anos, minha adorada, não vou nunca conseguir amar-te mais do que te amo agora.

Laurette sorriu e, aproximando-se, beijou-lhe muito ao de leve o pescoço.

- Vais, sim. Hoje, ao fim do dia, amar-me-ás ainda mais.

 

Durante um longo e tenso momento os dois ficaram ali, um diante do outro, numa ansiedade absoluta. Ladd temia estragar o que deveria ser lindo. Temia que Laurette acabasse por se arrepender e Lhe pedisse para a levar para casa.

- Não vais beijar-me? - perguntou ela, por fim, percebendo a sua hesitação.

Ladd engoliu em seco. Passou um dos braços pela cintura dela e baixou a cabeça devagar. E o beijo que lhe deu foi completamente diferente dos muitos outros que já lhe dera. Todo o amor, a paixão e o desejo que sentia estavam nos seus lábios.

Laurette deixou-se levar, inundando-se de uma sensação nova, deliciosa, que a fazia entregar-se quase sem sentir.

Ladd fê-la deitar-se com cuidado e, com extrema suavidade, despiu-a. Depois, olhando-a, sempre com adoração, livrou-se das suas próprias roupas e voltou a beijá-la.

O calor dos seus corpos, assim unidos pela primeira vez sem a barreira dos trajes, era agradabilíssimo para ambos. Descobriam-se de uma forma diferente, que jamais tinham imaginado antes. E, no calor do desejo intenso e inexperiente que os dominava, abraçaram-se, perdidos em mais beijos ardentes, em carinhos íntimos, estimulantes, arrebatadores.

Na intensidade da volúpia, Laurette separou-se dos lábios de Ladd por alguns segundos e murmurou:

- Tenho medo que não dê certo connosco...

- Porquê, meu amor?

- É que... eu...

- Diz.

- Não posso.

- Porque não? É o teu Ladd que está aqui contigo. Podes dizer-me tudo o que quiseres, lembras- te? Não há segredos entre nós.

- É que eu...

Ladd sorriu, compreensivo e amoroso.

- Não temas nada, minha querida. Serei o mais gentil possível contigo. Mas, se não quiseres, é só dizeres. Para mim, estará bem assim. Não quero forçar-te a nada. Se quiseres ir-te embora agora mesmo, podemos vestir-nos e partir, sem problemas. Ou, se preferires, posso tão-só permanecer aqui, ao teu lado, e passar a tarde toda apenas a conversar.

Laurette tirou uma madeixa da testa.

- Podemos fazer isso?

- É claro. Se for isso o que tu quiseres... Ladd afastou-se, voltando-se para pegar nas suas roupas.

- Não - protestou Laurette.

Ele percebeu que estava a ser observado e corou. Sentia-se vulnerável diante do olhar inocente dela.

Era como se Laurette se tivesse esquecido da sua própria nudez.

Laurette nunca vira um homem nu. Ouvira comentários das suas colegas da escola sobre as formas masculinas; sobre como eles eram feios, pelu dos, repugnantes. As raparigas riam muito ao comentar tais coisas, e ela ria também. Lembrava-se agora de que uma das suas amigas dissera que, quando se casasse, apenas permitiria que o marido fizesse amor com ela no escuro.

Era estranho, mas Laurette achava que as colegas estavam muito enganadas. Nada havia de repugnante no corpo masculino que via agora. E o seu coração batia, descompassado, de amor por ele. Moreno, alto, com aqueles incríveis olhos azuis a brilharem para ela, Ladd era um verdadeiro deus grego.

Começando a ficar envergonhado, Ladd deu um passo em frente e abraçou-a.

- Vamos apenas deitar-nos aqui a conversar, está bem? - voltou a propor.

Mas Laurette sabia o quanto ele a desejava, e murmurou, junto ao seu peito:

- Não, Ladd. Eu amo-te. Pertenço-te. Quero que tentemos fazer amor.

Ele ficou tenso. Amava-a demais e jamais sentira tanto temor de ferir alguém como sentia naquele momento. Tornou a aproximar-se para a beijar. Também era inexperiente, não sabia ao certo o que fazer, mas queria muito tentar.

- Ainda estás com medo, minha adorada?

- Um pouco. Mas podemos aprender a amarmo-nos como aprendemos a beijarmo-nos, não é?

Ladd sorriu, assentindo. E assim, guiados pela paixão e pelo instinto, as suas carnes se uniriam, intensas, ardentes, até que, por fim, sem conseguir suportar mais a tensão de não a possuir, Ladd tomou-a de vez, ignorante quanto à dor que poderia estar a causar-Lhe, mas querendo muito que Laurette estivesse a experimentar o mesmo prazer que ele.

Laurette, por sua vez, retesou-se, com uma dor funda, aguda, que não esperara. Mas fazer amor devia ser assim também, consolou-se.

Percebeu que Ladd gemia, e imaginou que poderia estar a causar-lhe o mesmo sofrimento. Eram, enfim, tão jovens e puros... Por fim, quando ele caiu para a esquerda, arquejando, suado, perguntou de imediato:

- Ladd, estás bem?

- Lollie, querida... - ele mal podia falar. - Lamento se te magoei... Nunca mais voltarei a fazê-lo. Vou-me tornar um amante melhor, tu verás. E aprenderei a dar-te prazer, também.

A dor já se fora e ela sorriu, enlaçando-o.

- O meu prazer é estar assim, abraçada a ti e sabendo que me amas.

- Mas da próxima vez será melhor, eu prometo-te, meu amor.

Ficaram ali, deitados sobre o cobertor por longos e relaxantes momentos, sem pressas para nada. Pouco depois, Ladd convidou:

- Achas que a água deste riacho é demasiado fria para tomarmos um banho?

Laurette ergueu a cabeça e a alegre menina de antigamente regressou, alerta:

- Isso é um desafio, Ladd Dasheroon?

Ele riu-se.

- É, sim, menina Laurette Howard!

E ambos foram a correr até às águas frias, mergulhando como garotos travessos. Ao princípio, Laurette soltou alguns gritinhos, depois afundou-se, as mãos segurando os cabelos para cima. Ladd aproximou-se e abraçou-a pela cintura.

- Estás com frio, Ladd?

- Não.

- Mentiroso!

E riram muito, felizes. Pouco depois estavam de regresso ao cobertor, no qual se enrolaram, arrepiados. Secaram-se, entre beijos e gargalhadas, e depois vestiram-se depressa, para se aquecerem.

A fome apareceu de repente. E comeram as apetitosas iguarias preparadas pela boa Hannah, conversando sobre coisas simples, sem maior importância. Depois tornaram a deitar-se e adormeceram, colados um ao outro.

Uma hora depois, Laurette acordou em sobressalto. O sol fora-se, e agora o céu estava coberto de espessas nuvens, cinzentas. E o dia começava a esfriar muito. Estremeceu tão fortemente que Ladd acabou por despertar também. E sentou-se, apercebendo-se da expressão angustiada no rosto dela.

- O que houve, meu anjo?

Mas Laurette apenas abanou a cabeça, ainda tremendo e, calada, abraçou-se a ele. Sentia um medo estranho, inexplicável.

- Há algum problema, meu amor? - Ladd passava as mãos pelas costas de Laurette, numa tentativa para a aquecer. - Algo que queiras dizer-me?

Com o calor dele, ela começou a acalmar-se. E, depois de mais alguns segundos de silêncio, acabou por murmurar:

- Não é nada... Apenas... Oh, Ladd, eu amo-te tanto que, às vezes, chego a ficar apavorada!

Ele achou graça e afagou-Lhe os cabelos.

- Compreendo muito bem o que queres dizer, Lollie. E sabes uma coisa? Tinhas razão, quando disseste que ainda hoje eu te amaria muito mais.

Laurette cerrou as pálpebras, sentindo o peito a apertar-se. Mais uma vez um medo terrível a consumia, sem motivo aparente.

- Ladd, dá-me um abraço bem forte. E nunca te afastes de mim!

Os rumores da guerra já circulavam pelas ruas do Sul. No início da Primavera de 1860, todas as conversas entre os homens, em qualquer reunião social, se transformavam em acalorados debates e propostas para colocar o ousado Norte no seu devido lugar. Se fosse necessário derramar o precioso sangue sulista para garantir os direitos de todos, assim seria. Os valentes filhos do Sul lutariam até ao último homem para que o último ianque estivesse enterrado e fora do caminho!

E, como todos no Alabama, Ladd e Laurette ouviam essas discussões por toda a parte. No entanto, prestavam pouca atenção a elas. Não acreditavam que, de facto, houvesse a possibilidade de uma guerra entre os Estados. Algo tão terrível jamais poderia acontecer num país tão civilizado como era o seu.

Além do mais, tinham pouco tempo para pensar em qualquer outra coisa além do seu amor. E, enquanto aqueles falatórios sobre guerra iam ficando para trás, no fundo dos seus pensamentos, sem grande importância nas suas vidas, viviam a felicidade dos planos que faziam para o futuro.

Estavam tão apaixonados, tão loucos um pelo outro, que mal conseguiam disfarçar a intimidade que viviam. Sabiam que tinham de ser discretos, mas isso era demasiado difícil. Ficavam a sós sempre que possível, mesmo que fosse por alguns minutos apenas.

Agora que o Inverno se fora, era mais fácil. Nos dias e noites frios eram obrigados a permanecer dentro de casa, onde os olhos atentos dos seus pais os viam a todo o instante. Mas a Primavera no Alabama era bela e amena, e podiam sair sempre que possível para um passeio onde podiam viver a sua intimidade em paz.

Procuravam encontrar qualquer local onde pudessem amar-se, mesmo que não fosse muito romântico, e então, com mãos ansiosas, despiam-se e amavam-se com paixão. Podia ser no abrigo das carruagens dos Dasheroon, ou no meio dos arbustos mais fechados do fim do jardim da propriedade. Ou ainda sob o caramanchão florido da Mansão Howard. Sempre e onde fosse possível. Sempre apressados, com medo de serem descobertos, apanhados em flagrante... Mas os momentos de paixão valiam esse grande risco.

A Primavera terminou e chegou o Verão, com dias longos e quentes, tempestades fortes, temperatura alta, ar abafado.

Naquele ano, em particular, o clima estava tão quente e húmido que os Dasheroon e os Howard decidiram passar os meses de Julho e Agosto no Hotel Grand, em Point Clear, do outro lado da baía.

Isso foi óptimo para Ladd e Laurette. Nas praias afastadas da região, havia inúmeros e belíssimos pontos onde o casal podia entregar-se sem reservas ao prazer. E o hotel era espectacular, com magníficas suites e enormes jardins floridos. Além disso, o Grand era famoso pela cortesia e atenção que dispensava a cada hóspede.

Os funcionários eram treinados para atender da melhor forma possível a selecta clientela que os visitava. E todos os dias se preparavam actividades especiais para que a estadia dos hóspedes se tornasse memorável. Havia pesca, piqueniques, caças ao tesouro, caminhadas pelas matas, jogos, xadrez, passagens de modelos e concertos. E aqueles que não quisessem participar poderiam simplesmente ficar sentados nas imensas varandas, apreciando a vista do mar e das montanhas ao longe, usufruindo da fantástica tranquilidade do lugar.

O bufete era internacional; o serviço, de primeira; o ambiente da sala de jantar, refinado e elegante. E havia sempre uma orquestra a tocar ao fundo, apenas para acompanhar os jantares ou, então, para alegrar aqueles que se dispusessem a dançar. Um belo e luxuoso estilo de vida para os abastados do Sul.

Para Ladd e Laurette, a estadia no Grand foi um interlúdio romântico inesquecível. Os dias eram maravilhosos, as noites intensas. Participavam com en tusiasmo em todas as actividades e ainda encontravam tempo para passar momentos de amor sozinhos.

Tinham, é claro, de ponderar cada passo que davam, pois conheciam a maior parte dos hóspedes. Jantavam quase todas as noites na companhia do coronel Ivy e Martha, que estavam, como todos os anos, desfrutando de uma longa temporada no Grand.

Também Paul e Melba Adair se encontravam lá, em companhia da filha, Lydia, bem como as gémeas amigas de Laurette, com a avó, Lena. O avô, o juiz Parlange, falecera naquele Inverno.

Juliette, sempre tranquila, adorava ficar a ler na varanda, mas Johanna, sempre em busca de emoção

e aventura, acompanhava Laurette quase o tempo todo. Muitos outros jovens conhecidos, alguns dos quais tinham frequentado a academia militar com Ladd, vieram passar os dias agradáveis de Verão no Grand.

Ladd e Laurette, sempre atenciosos com todos e procurando disfarçar a intensidade com que buscavam os seus minutos a sós, conseguiam burlar a segurança dos pais e a vigilância de quem quer que fosse, para estarem um nos braços do outro em qualquer lugar possível.

Certa noite, no meio de Agosto, um enorme grupo de jovens reuniu-se nos jardins. Fora erguido um palco de dança no relvado, e muitos casais dançavam, alegres. A lua estava cheia; o céu, perfeito.

Laurette e Ladd, de mãos dadas, tinham dançado e bebido algumas taças de ponche. Johanna, que os perseguira sem trégua, naquele momento dançava com um rapaz muito alto, da Geórgia. Assim, os amantes poderiam, por fim, cuidar de si.

Já eram quase onze horas, e Laurette deveria estar no seu quarto à meia-noite, por determinação da mãe. Ladd baixou os olhos para ela e, como sempre acontecia, o seu coração disparou de amor.

- Vem - convidou-a, num sussurro, e ela aceitou de imediato.

Os dois afastaram-se das outras pessoas com o cuidado de não serem notados. Quando já estavam bem distantes do grupo, começaram a correr, rindo, felizes. E continuaram, deixando o hotel para trás, indo até à praia. Lá, pararam; ofegantes, e encararam- se, apaixonados.

- Sabes há quanto tempo já que não te beijo? Ladd enlaçou-a pela cintura.

- Cinco horas e meia - sorriu Laurette.

- É demais, não achas? - e puxou-a para um beijo intenso.

E o beijo levou-os, mais uma vez, à luxúria. Amaram-se ali mesmo, apressados, meio vestidos, para depois se arranjarem como podiam e voltarem à pressa para os jardins do hotel.

Ao passarem pela sala dos cavalheiros, de onde sempre vinha o intenso aroma a charuto e uísque, ouviram vozes acaloradas discutindo. Curiosos, pararam do lado de fora, para ouvir do que se tratava.

e o senhor está muito mal informado, se pensa que o Sul vai recuar! - dizia Douglas Dasheroon.

- Bem, tenho a certeza disso - rebateu uma outra voz masculina, com forte sotaque nortista. - Vocês todos são tão mimados e cheios de regalias por aqui que não descansarão enquanto não arranjarem a guerra que querem! Uma guerra que o Sul, sem dúvida, perderá!

Diante de tão arrogante afirmação, um coro de protestos levantou-se entre os homens. Muitos já tinham bebido o suficiente para estarem mais dispostos a uma discussão séria do que deveriam.

Tensa, Laurette agarrou nas mãos de Ladd, atenta ao que se passava lá dentro. Cada dia se tornava cada vez mais difícil ignorar a possibilidade de uma guerra. E tal ideia gelava-lhe o sangue. Ladd, o amor da sua vida, estava com dezassete anos e partiria para West Point no mês seguinte. Se houvesse uma guerra, ele seria chamado a lutar!

Aquele Verão maravilhoso chegou ao fim. E Ladd iria, no dia seguinte, para West Point. Era a sua última noite em Mobile. E com Laurette.

Os Dasheroon resolveram organizar uma festa de despedida para o filho. As mesas para os convidados tinham sido dispostas no jardim para mais ou menos duzentas pessoas. Mesmo não querendo estar ali, conversando e animando os convivas, preferindo partilhar o seu amor em algum local reservado, Ladd e Laurette faziam de tudo para parecerem felizes e fingiam que nada mais perfeito poderia estar a acontecer.

Depois do jantar, todos os cavalheiros quiseram conversar com Ladd, dar-lhe conselhos, instruí-lo sobre como deveria proceder em West Point. E Laurette teve de se contentar em ficar sentada, apenas observando, junto às suas amigas gémeas.

Mas mal ouvia o que Johanna dizia. Observava Ladd com orgulho, tentando entender o que ele dizia, desejando tanto estar nos seus braços...

E o seu coração, por fim, bateu mais depressa quando o ouviu:

- Pai, senhor Howard, cavalheiros, com a vossa permissão, eu gostaria de levar a minha namorada para um passeio pelo jardim.

Assim que se afastaram o suficiente para não serem vistos, os dois enlaçaram-se, perdidos num beijo apaixonado.

- Deus, eu amo-te tanto, Lollie! – exclamou Ladd, entre beijos. - Por favor, deixa-me amar-te uma última vez...

Ansiosa também, mas ouvindo a voz da razão, ela cerrou os olhos, sentindo os lábios dele e murmurando:

- Sabes que não podemos...

- Podemos, sim - ele levou-a para um canto mais escuro.

Acabaram por alcançar um local absolutamente escuro, onde nem a luz do luar podia penetrar.

- Ladd... não consigo ver-te...

- Mas vais poder sentir-me - respondeu, dominado pelo desejo. E beijou-a com ardor.

Despiram-se depressa, sempre temendo o risco de serem descobertos, e desejando mais do que tudo saciar aquela fome indescritível. Em poucos minutos estavam ligados, unidos em corpo e alma, gemendo promessas, respirando carinhos, fazendo amor como jamais tinham feito antes. Era o sabor da despedida, talvez, que temperava melhor as suas carícias.

Na escuridão que os rodeava, conheceram o calor da paixão mais intensa, a loucura do êxtase mais devastador. Não temiam mais nada, não ouviam, não queriam saber de ninguém. Não havia vergonha ou receio no que faziam, apenas as sensações deliciosas que experimentavam.

Instantes depois, exaustos, sentaram-se nas ervas, as respirações voltando aos poucos ao normal. Até que Laurette se aproximou, abraçando- o com toda a força que os seus braços tinham.

- Por favor, não vás, Ladd. Há uma guerra a aproximar-se, tu sabes! E, se estiveres na academia militar, eu nunca mais voltarei a ver-te!

- Claro que me verás! - confortou-a Ladd, acariciando-a. - Com ou sem guerra. Vamos casar-nos e passar o resto das nossas vidas juntos.

- Mas e se tu...

- Não vou morrer, meu anjo. Prometo - e beijou-lhe os cabelos carinhosamente.

- E se tu te esqueceres de mim, se conheceres outra rapariga e.

- Lollie, Lollie, jamais poderia amar outra rapariga! Mesmo quando estivermos separados, tu estarás sempre comigo. Porque vives bem dentro do meu coração!

- Oh, Ladd, eu amo-te tanto!

- Eu também, meu amor. Promete-me apenas que, aconteça o que acontecer, esperarás por mim.

- Juro. Esperarei por ti para sempre, se for preciso.

- Acredito na tua palavra. Mas agora é melhor voltarmos para a festa, ou vão começar a desconfiar, não achas?

- Está bem - e, mais uma vez, Laurette prometeu: - Vou esperar por ti para sempre!

 

Na sexta-feira, vinte e um de Setembro de 1860, o jovem Ladd Winston Dasheroon chegava a West Point, nas margens do rio Hudson. Cobriu os olhos contra o forte sol e ficou no convés da embarcação que se aproximava do cais, tendo a sua primeira impressão da academia militar norte-americana.

O orgulho patriótico aquecia-lhe o peito, já que conhecia muito bem a fama daquela academia. Sabia que muitos dos melhores homens da América se tinham formado ali nos cinquenta e oito anos de existência da instituição.

E era para ele motivo de alegria saber que, dali em diante, faria parte desse grupo de homens valorosos. O seu pai, formado no grupo de 1835, avisara-o sobre a rígida disciplina e a necessidade de estudar muito e esperar com tolerância qualquer tipo de tratamento mais duro dos seus superiores.

- Dever, honra e amor à Pátria - dissera Douglas ao filho. - Estas são as palavras-chave que deverás respeitar quando fores para West Point. Mas não te preocupes, Ladd. Tu vais conseguir. Afinal, és meu filho.

Quando, por fim, o vapor aportou, Ladd sorriu ao reconhecer, no cais, a figura muito alinhada de uniforme que o esperava: Jimmy Tigart.

Abraçaram-se, felizes, saudosos, e Ladd exclamou, batendo amigavelmente no ombro do amigo: - Caramba, como é bom voltar a ver-te! Sentimos a tua falta, neste Verão. Porque não voltaste para casa na tua licença?

Jimmy, sorridente, respondeu:

- Eu não tinha propriamente uma casa para onde voltar. Como sabes, a minha mãe regressou para o Kentucky no Inverno, para ficar com alguns paren tes, e eu não teria onde ficar.

- Ora, pelo amor de Deus, Jimmy! Como não terias onde ficar? Podias ficar connosco. Não deves ter dúvidas sobre o quanto és bem-vindo lá em casa!

- É muito gentil da tua parte, Ladd, mas, para ser franco, eu estava bem atarefado neste Verão. Muitas coisas andam a acontecer por aqui.

Ladd ergueu as sobrancelhas, e o seu rosto adquiriu uma expressão marota.

- Uma rapariga, talvez?

- Raparigas - corrigiu- o Jimmy. - Há raparigas lindas em Nova Iorque. Terei de te apresentar a algumas.

- Não, obrigado. Para mim, há apenas uma. Jimmy aguardou alguns segundos, até ter a certeza de que a sua voz não trairia nenhuma emoção. Depois perguntou, num tom casual:

- Como está a Laurette?

- Maravilhosamente! E mais linda do que nunca! Imaginando como poderia a bela Laurette estar ainda mais bela do que da última vez em que a vira, Jimmy comentou:

- Sim, ela sempre foi muito bonita. Bem, mas... vamos! Quero mostrar-te tudo isto.

- Obrigado, Jimmy.

- Olha, na academia sou tratado por cadete tenente Tigart, e não Jimmy. Não te esqueças disso.

Ladd achou graça.

- Então, mostre-me o caminho... senhor!

Caminharam um bom pedaço até atingirem a plataforma onde ficava a academia. Um lugar majestoso, que não poderia ter sido mais bem escolhido na opinião de Ladd.

A manhã estava quente, e o céu muito azul. Na plataforma, onde os jovens oficiais seriam passados em revista dentro em pouco, alguns membros da banda militar preparavam os seus instrumentos num coreto. Um trompete estava a ser afinado, lançando o seu som agudo por toda a parte, um tanto lamuriento na sua toada. Ladd sorriu, entusiasmado, mais uma vez orgulhoso por estar ali.

Enquanto continuavam o seu caminho, observou para o amigo que Jimmy também deveria sentir-se vaidoso por estar a sair-se tão bem na academia, ao ponto de ser um dos melhores alunos do seu grupo. E percebeu que o rapaz vacilava, antes de afirmar:

- Este local é um dos poucos no mundo em que o valor de um homem se mede tão-somente pelo que ele é de facto.

- Exactamente. E é assim que deve ser... Mas Jimmy interrompeu-o:

- Aqui, o filho de um pobre tem oportunidades iguais de competir com os filhos dos ricos. O berço a riqueza e as ligações de nada valem para se determinarem as promoções ou os castigos.

Um tanto alarmado pelo tom frio do jovem, Ladd manteve-se calado por alguns segundos. Nunca percebera em Jimmy nenhum tipo de inveja, e sempre o considerara como um igual. Teria Jimmy guardado algum ressentimento, durante aqueles anos todos?

- Olha, Jimmy, eu... - começou, e foi mais uma vez interrompido:

- Chegámos - parou diante de uma porta.

Ocadete tenente James Tigart levou Ladd para uma ala conhecida como o velho Sul". No terceiro e último andar, Ladd foi conduzido a um quarto pequeno e simples, onde mais dois rapazes desfaziam as malas. Eram, sem dúvida, de origem humilde e, assim que viram quem chegava ergueram-se, em posição, de sentido.

- À vontade - permitiu-lhes Jimmy. E, virando-se para Ladd de novo com a sua habitual expressão amável, acrescentou: - Vou deixá-los, para se conhecerem melhor. Se precisares de alguma coisa, é só dizeres.

Ladd assentiu.

- Sim, obrigado mais uma vez, Jimmy. Quero dizer... cadete tenente Tigart.

Ladd fez logo amizade com os colegas de quarto.

O mais baixo, Thomas Little, de cabelos encaracolados, viera de Nashville, no Tennessee, e o loiro e esguio Vance Granger era de Macon, na Geórgia. E, no final desse dia, Ladd já se sentia como se conhecesse os dois rapazes há anos.

As aulas regulares começaram, e rapidamente os três se acostumaram à dura rotina da academia. Ladd pouco via o seu amigo Jimmy. Isso não o surpreendia, já que Jimmy era seu superior. No entanto, a expressão que vira no rosto do amigo quando tinham conversado à sua chegada preocupava-o.

Determinado a ser um bom aluno, Ladd estudava muito. No primeiro ano, teve problemas para aprender álgebra, geometria e trigonometria, bem como história, francês, latim, literatura, filosofia e química. Eram estudos avançados, difíceis. Mas, com aplicação e esforço, em breve conseguiu superar as suas dificuldades, bem como adaptar-se bem à vida militar.

Como era de se esperar era encarado, bem como os seus colegas, com um certo desdém pelos rapazes mais velhos e mais graduados. Eram tratados por animais", répteis" e outros nomes menos agradáveis. Mas Ladd e os seus amigos sabiam como ignorar a troça e as ofensas. Tudo isso, afinal, fazia parte de West Point.

No entanto, desde que chegara, Ladd teve problemas com Gilben LaKid, um jovem oficial de aparência desagradável, forte e um tanto sádico. A antipatia do rapaz era gratuita, e Ladd não a entendia muito bem, embora soubesse que devia permanecer no seu lugar, como caloiro.

LaKid adorava provocar problemas a Ladd. Intrometia-se no seu caminho, de todas as maneiras possíveis. Sempre que se encontravam, o oficial mandava-o baixar-se e fazer uma série de exercícios físicos extenuantes. Ou então ordenava-lhe que montasse guarda em locais ao relento, em noites chuvosas ou dias de sol escaldante. Mandava-o também limpar o seu quarto, mesmo que estivesse im pecável e limpo. Ordenava- lhe que engomasse o uniforme e que engraxasse as suas botas. Tais tarefas, além de cansativas, ocupavam muito do tempo livre de Ladd.

Deste modo, como não poderia deixar de ser, Ladd passou a detestar LaKid. Mas, como pretendia ser um aluno exemplar, suportava tudo o que o outro lhe fazia. Fora ensinado a dar valor ao bem, a detesstar a crueldade e a lutar contra a injustiça. E procurava levar a cabo a sua missão de se formar em West Point com as melhores notas possíveis.

Os seus únicos momentos de verdadeira alegria eram quando recebia as cartas carinhosas e cheias de saudade de Laurette. E, à noite, quando todas as luzes eram apagadas e a academia ficava no mais absoluto silêncio, mantinha-se acordado, imaginando Laurette, o seu rosto doce, lindo, o seu corpo perfeito, o seu sorriso angelical. Tais recordações conferiam- lhe força e ânimo para continuar a estudar, suportando o que quer que fosse, para se formar com louvor, voltar para Mobile e casar-se com a sua amada.

Em Mobile, Laurette sentia-se perdida. As saudades de Ladd eram tantas, que chegava a doer-lhe o peito. Nunca imaginara que aquela separação pudesse ser tão terrível. Descobrira que Ladd era o seu amor, mas agora percebia que era a sua vida; que nada fazia sentido sem ele.

Esforçava-se por parecer bem aos seus pais, para não demonstrar a sua verdadeira tristeza, temendo que o casal percebesse que a sua intimidade com Ladd fora além do que era moralmente aceitável. Separava as cartas dele, que ia buscar à caixa do correio quando voltava da escola, e lia-as quando se encontrava sozinha no seu quarto. Manteve boas notas na escola, também para não levantar suspeitas sobre o quanto sofria, e aceitava convites para festas, mesmo não tendo vontade de ir.

Prosseguiu os estudos de piano, conseguindo, por fim, e para alegria da menina Foster, tocar por inteiro a polonaise de Chopin. Saía- se quase tão bem como Ladd. E conseguia quase convencer toda a gente de que continuava a ser a garota alegre e extrovertida de antes, muito embora o seu coração estivesse partido pela ausência do seu grande amor.

Porém, quando se via a sós no seu quarto, à noite, baixava as defesas por completo e entregava-se à dor reprimida durante o dia. Lia e relia as cartas de Ladd e chorava até adormecer.

Em muitas ocasiões, sem conseguir conciliar o sono, ia para a janela e ficava ali, sentada junto ao parapeito, olhando para o céu estrelado, pensando nele, taciturna, querendo-o tanto...

O seu pulso batia mais forte quando recordava os momentos em que estivera nos braços dele e todo o seu corpo se enchia de novo de desejo, quando as imagens dos momentos íntimos que tinham vivido voltavam à sua memória.

Cansada de sofrer, imaginava que em breve seria Verão outra vez e que Ladd estaria de volta, na sua primeira licença. Sorria, então, animada com a ideia, imaginando o que poderiam desfrutar quando o seu adorado ali estivesse. Ladd viria todo elegante no seu belíssimo uniforme, e ela estremeceria dos pés à cabeça ao vê-lo. Estaria à espera de Ladd no cais e atirar-se-ia nos seus braços assim que o visse descer do barco a vapor.

Mas tais imagens extinguiam-se depressa, como se tivesse um pressentimento de que aquilo jamais ia acontecer. E o seu sorriso desaparecia, deixando apenas uma expressão de profunda melancolia nos seus olhos.

Então, um arrepio fortíssimo percorria-lhe a espinha, como aquele que experimentara no dia em que pertencera a Ladd pela primeira vez. Um pressentimento estranho, agourento, terrível...

 

De repente, todo aquele falatório sobre uma possível guerra entre o Norte e o Sul se transformou na assustadora realidade do confronto, quando um grupo de cadetes abriu fogo sobre um navio do Norte que tentava entregar provisões em Forte Suster.

O primeiro disparo foi efectuado do Forte Johnson às quatro e trinta da madrugada do dia doze de Abril de 1861. E depois de trinta e três horas de fogo cerrado, a bandeira em Forte Suster foi arriada.

Charleston entrou em delírio com a vitória. Os cabeçalhos dos jornais no Norte já usavam a palavra guerra". E os jovens, tanto no Norte como no Sul, começaram a querer alistar-se.

Em West Point, os cadetes estavam divididos ao meio entre as Forças da União e os Confederados. Antes bons amigos, agora viam-se em lados opostos de uma guerra que ninguém compreendia muito bem. E o cadete tenente James Tigart, de Kentucky, preferiu permanecer do lado da União.

Ladd, verdadeiro filho do Sul, optou por deixar a academia de imediato e seguir para Virgínia, para se juntar às tropas do general Robert Lee.

Antes, porém, de seguirem os seus caminhos agora separados, Ladd procurou Jimmy para se despedir. E os amigos de infância encontraram-se no pátio onde costumavam ver o hastear da bandeira, para darem um aperto de mãos forte, sob um céu cinzento e carregado de espessas nuvens.

- Serei leal à União - declarou Jimmy, firmemente.

- Eu entendo. Também devo ser leal aos Confederados. Mas tu nunca serás um inimigo para mim, Jimmy.

- Sempre amigos, então, Ladd - Jimmy estendeu-lhe a mão.

Ladd sorriu, tentando desanuviar a tensão que pairava entre ambos.

- Se, por acaso, nos encontrarmos no campo de batalha, prometo não disparar - brincou.

Jimmy riu e acenou com a cabeça.

- Eu também. Estou certo de que nos tornaremos a encontrar. Tem cuidado contigo, está bem?

- Certo. Vejo-te quando tudo isto terminar. Jimmy não respondeu nada, e os dois rapazes abraçaram-se. Depois, deram meia volta e afastaram-se em direcções opostas. Nenhum dos dois olhou para trás.

Mobile estava armada. Em cada casa da cidade os homens, fossem jovens ou idosos, despediam-se das suas esposas, namoradas e familiares, antes de partirem para a batalha. A Confederação, declaravam, precisava de cada um deles, e seria com orgulho que a defenderiam.

Na mansão da rua Dauphin, T. H. Howard também se preparava para ir, enquanto Marion, com os olhos cheios de lágrimas, o ajudava a fazer a mala.

- Vou colocar dois dos teus pijamas...

- Querida Marion, não precisarei de pijamas de seda no lugar para onde vou.

- Claro que não... - concordou, num murmúrio. E retirou as peças da bagagem, apertando-as contra o peito e dando vazão ao pranto.

  1. H. envolveu-a com os seus braços, consolando-a:

- Não demorarei lá muito, meu amor. Vai acabar tudo depressa, vais ver. Acabaremos com aqueles ianques num abrir e fechar de olhos - dando um passo atrás, ele fechou a mala e avisou: - Devo partir agora.

Marion assentiu, secou as lágrimas e desceu, acompanhando-o pela escadaria até ao hall, onde Laurette esperava, assustada com toda aquela mudança na sua vida. Aí, T. H. abraçou-a e disse, compreensivo:

- Sei que estás preocupada por causa do Ladd, minha querida. Mas não fiques assim. Ele é um rapaz valente, esperto, e após um ano em West Point deve-se ter transformado num corajoso soldado.

Mas Laurene engoliu em seco, não se deixando convencer com as palavras dele.

- Papá, tenho uma sensação horrívèl de que nunca mais verei o Ladd outra vez...

- Tolinha! Esta guerra vai acabar antes mesmo de tu perceberes. E o Ladd e eu estaremos de volta a Mobile antes do Verão. Podes acreditar no que digo!

- Espero que tenha razão...

- Tenho. Conta com isso.

Do outro lado da rua, uma cena semelhante acontecia na mansão dos Dasheroon. Douglas preparava-se para pegar em armas. Reassumiria o posto que tinha no exército e seguiria para a guerra. Carrie chorava, desesperada:

- Isto não é justo! - protestava. - Devo desistir do meu filho e do meu marido também? Essa Confederação está a exigir demais de mim! O Ladd não passa de um menino, não tem ainda dezoito anos completos! Douglas, por favor, encontra-o e manda-o de volta para cá!

Douglas deixou de arrumar as suas coisas e virou-se para a esposa, segurando-a pelos ombros.

- Meu amor, por favor acalma-te e sê forte. Todos temos de fazer sacrifícios agora. Mas este mundo, que agora está de cabeça para baixo, vai endireitar-se em breve. O Ladd e eu estaremos aqui antes de ele fazer dezoito anos. Não te preocupes mais, está bem?

Oito meses em West Point não tinham preparado Ladd para os horrores da guerra. A luta era feroz, e ele estava apavorado. Havia morte e destruição por toda a parte, em todos os momentos dos seus dias.

As visões, os sons e os cheiros eram terríveis. Mas Ladd mantinha os seus receios para si mesmo, para que jamais se pudesse dizer que fora um covarde.

As batalhas sangrentas eram constantes e Ladd percebeu, logo nos primeiros combates, que qualquer esperança que pudesse ter de regressar ao lar e rever Laurette no próximo Verão estava destruída pelo dever que tinha a cumprir.

Bom oficial, lutava e combatia os seus inimigos com orgulho e paixão, sendo um verdadeiro sulista. E, sempre que uma oportunidade surgia, num breve momento de quietude entre batalhas, sentava-se num canto e escrevia à sua amada Laurette, mesmo sem saber se ela receberia as suas cartas.

Verão de 1863

A guerra prosseguia. Mesmo os mais corajosos sulistas tinham de enfrentar a dura realidade: não era possível derrotar os nortistas, melhor armados, mais preparados, com a facilidade que tinham acreditado no princípio.

Depois de dois anos nas linhas da frente do conflito, Ladd era agora capitão. Conduzia as suas tropas com valentia, batalha após batalha, sofrendo baixas, mas continuando sem esmorecer. E então, num quente dia de Maio, a sua sorte mudou.

Na batalha de Chancellorsville, longa e exaustiva, na qual o general Lee brilhantemente venceu o seu inimigo, as incertezas da guerra pareceram ficar mais intensas e, mesmo vencendo, o Sul não conseguiu ganhar território, nem conquistar uma grande vantagem. E o capitão Dasheroon, sem o apoio que esperava das tropas chefiadas pelo general Lee, acabou por cair numa armadilha.

- Fiquem atrás de mim e farei o possível para que todos nós saiamos daqui vivos - disse ele, aos ho mens que lhe restavam.

Mas não foi assim. No fim da feroz batalha, Ladd foi o único sobrevivente do seu batalhão. Muito ferido, mas ainda vivo, sangrava demasiado do ferimento provocado pela bala que lhe perfurara o lado direito. E ficou ali, no solo húmido da Virgínia, entre os inúmeros mortos, angustiado por não ter podido evitar que os seus soldados viessem a sucum bir, mas resignado por saber que aquele seria o seu

último dia na Terra.

Respirava com muita dificuldade, sentindo que a vida se esvaía do seu corpo. Os seus pensamentos voltaram-se, mais uma vez, para Laurette, e um breve sorriso estampou-se no seu rosto sujo de terra e sangue. As suas mãos trémulas tactearam as costelas molhadas e, com um esforço sobre-humano, tentou sentar-se. Em vão. Era o fim. No entanto, a imagem de Laurette surgia diante dos seus olhos, clara como nunca.

- Lollie... - murmurou, mas não ouviu a sua pró pria voz. - Minha querida Lollie...

O sol alto e forte começou a dissipar-se. Os sons distantes da artilharia ficaram cada vez mais fracos,

e Ladd tentou respirar mais uma vez. A escuridão, então, apossou-se por completo dele.

Inverno de 1863

Os elegantes e uniformizados cadetes de West Point, cheios de respeito pela honra e pelo dever, com os seus sorrisos maravilhosos, num misto de coragem e bravura, eram agora nada mais do que endurecidos veteranos envolvidos numa batalha de vida e morte. Muitos morreram e foram ali mesmo enterrados, onde tinham caído, ou estavam encarcerados em prisões militares. Prisões com nomes românticos, como Ilha Belle, Castelo do Trovão, Ilha do Governador.

Ladd Dasheroon tinha ido parar a uma prisão assim. Com um nome romântico: Castelo do Demónio... Fora capturado pelos soldados da União que chegaram numa tropa avançada a Chancellorsville e, mesmo moribundo, enviaram-no para trás das grades.

Era uma fortaleza de pedra, com grossas paredes intransponíveis, localizada numa ilhota em Chesapeake Bay, junto à costa de Maryland.

O lugar fora construído para ser um forte havia mais de cem anos, depois fora utilizado como prisão até ser considerado desumano demais e abandonado durante décadas. E agora encontrava-se repleto de soldados sulistas doentes, esfomeados e à beira da morte. Mil e oitocentos homens acondicionados num lugar que mal suportaria quinhentos.

Assim que o cirurgião da prisão permitiu que Ladd deixasse o Hospital, ele foi lançado para uma cela comum, na qual se amontoavam centenas de outros prisioneiros. E acabou por cair em cima de dois outros oficiais: o capitão Andrew Scott, do quinto regimento de cavalaria da Carolina do Norte, que se encontrava muito magro e abatido, um homem de trinta e oito anos que perdera um dos braços em batalha; e o soldado Duncan Cain, do terceiro regimento do Alabama, de vinte anos de idade.

O capitão passou o seu único braço pelos ombros

de Ladd, que tremia de frio, embora estivesse

quente e abafado ali dentro, e, gentilmente, ajudou-o

a deitar-se.

- Não se preocupe - consolou-o. - Vamos

 

ajudá-lo - e olhou para Duncan. - Não é assim,

companheiro?

O rapaz assentiu e, pegando no fino cobertor sobre o qual se sentava, colocou-o sobre Ladd, murmurando:

- Desculpe-nos por não termos cá nenhuma almofada.

Ladd forçou um sorriso dolorido e fechou os olhos, adormecendo em seguida.

Andrew Scott e Duncan Cain trataram de Ladd com esmero nos dias que se seguiram, e os três acabaram por se tornar grandes amigos. Cuidavam uns dos outros, ficando sempre próximos naquela sala imensa em que a racionalidade humana começava a dar vazão, devido à dor e ao sofrimento, à insanidade. Conversavam sobre as suas famílias, sobre os dias felizes que tinham vivido antes da guerra, usando as palavras para manter a esperança e o ânimo inquebrantáveis. Mas a vida naquela velha prisão era um puro tormento.

A sala em que todos aqueles homens se encontravam tinha apenas quatro janelas pequenas que permitiam a entrada de pouquíssima luz. No centro do enorme compartimento era bastante escuro, mesmo durante o dia. Entretanto, isso não parecia importar muito. Não podiam fazer ali nada, nem mesmo ler cartas vindas das suas casas, pois isso era estritamente proibido.

Também não recebiam jornais. Os seus canais de comunicação com o mundo exterior tinham sido todos cortados, deixando-os a imaginar o que poderia estar a acontecer com o seu país, os seus amigos, os seus compatriotas, os seus familiares.

No Castelo do Demónio quase nunca havia comida suficiente, e o que lhes era servido, muitas vezes, já vinha estragado. A fome era constante, devoradora, cruel, e Ladd e os seus companheiros de infortúnio rapidamente começaram a ficar demasiado fracos.

No entanto, não importava o quanto um prisioneiro estava enfraquecido ou doente. Não havia uma cama para ele, nenhum lugar onde pudesse apoiar a cabeça, a não ser o chão duro e frio.

Com excepção de dois fogões velhos, ali não existia outra mobília. Os prisioneiros permaneciam sentados ou a dormir a maior parte do tempo, a maioria sem cobertores para se aquecer. Contudo, Ladd podia suportar tudo isso.

Mal sabia ele que teria de suportar ainda muito mais...

 

Gilbert LaKid, o oficial que causara tantos problemas a Ladd em West Point, era capitão dos guar das no Castelo do Demónio. LaKid perdera um dos olhos, mas ganhara mais peso durante a guerra e, forte e valentão, encorajava os seus soldados a infligirem todo o tipo de sofrimento aos prisioneiros, mostrando muito bem o seu desprezo por eles. Em especial por Ladd Dasheroon.

O rosto de LaKid, em especial quando sorria com maldade, era o de um monstro. E esse sorriso aparecia sempre que se deparava com Ladd.

Os prisioneiros só eram punidos quando insultavam algum oficial, se tentassem subornar os guar das, se lutassem entre si ou se se roubassem uns aos outros. Ou, ainda, se tentassem escapar.

Ladd nunca fora acusado de nada disso, mas era punido com frequência, como se fosse o mais pro blemático dos encarcerados no Castelo do Demónio.

Todas as vezes em que LaKid vinha até à porta da enorme cela onde Ladd e os seus companheiros se encontravam, o rapaz enchia-se de pavor. Ainda fraco e abatido, costumava sentar-se no chão, ladeado por Scott e Cain, abraçando os próprios joelhos, tentando manter-se invisível ao único olho do seu carrasco.

Mas isso nunca resultava. LaKid via-o sempre. E, quando o fazia, dirigia-se-lhe por entre a massa humana, pisando muitos homens, chutando-os às vezes, o sorriso tornando-se maior, mais apavorante.

E, quando o homenzarrão chegava diante de Ladd, ele endireitava-se de propósito. O seu ferimento curava-se aos poucos e procurava manter-se firme para poder suportar qualquer castigo que aquele brutamontes lhe impusesse. Não queria que o capitão da guarda o vencesse. Era alguém que recuperava dia após dia, que se tornava cada vez mais duro, sobretudo após dois anos no meio dos campos de batalha. Enfrentaria qualquer coisa que LaKid lhe fizesse agora.

Numa dessas ocasiões, numa terrível tarde gelada de Dezembro, próxima do Natal de 1863, o guarda dirigiu-se directamente a Ladd e, quando os seus enormes pés enfiados nas botas pararam perto dele, Ladd ergueu a cabeça e encarou aquele único olho maligno.

Cheio de desprezo, LaKid perguntou:

- Como é que o nosso pobre menino do Alabama se está a sentir hoje?

- É muito gentil da sua parte perguntar - respondeu Ladd, sarcástico, apagando o sorriso dos lábios do outro. - Enquanto muitos outros hóspedes deste magnífico hotel parecem estar a morrer, eu sinto- me muito bem, obrigado.

A audácia e a troça de Ladd fizeram com que os prisioneiros mais próximos se voltassem para ver a cena, felizes com a coragem que ele mostrava ao enfrentar o gigante.

- Levanta-te, ó sulista patético! - rosnou o capitão da guarda.

- Como queira... - Ladd colocou-se em pé com agilidade. - Mais alguma coisa?

O olho de LaKid cerrou- se um pouco.

- Chegou ao meu conhecimento que ridicularizaste um dos guardas ontem à noite. Não toleramos aqui esse tipo de comportamento. Serás punido.

Ladd nem se deu ao trabalho de protestar. Não insultara ninguém e todos ali, inclusivamente LaKid, sabiam disso. Seguiu o seu algoz para fora da sala, enquanto os seus dois amigos abanavam a cabeça, sabendo que algo terrível iria acontecer-lhe de novo.

Estavam pasmados diante da atitude dele, bem como de alguns outros presos, sistematicamente retirados dali para serem punidos sem motivo aparente.

Todos sabiam, porém, que os oficiais e homens do regimento que os guardavam eram verdadeiros demónios e que não havia nada de demasiado terrivel que não pudessem fazer. E os pobres prisioneiros estavam cercados por baionetas e armas, guardados por soldados que se concediam o direito de lhes tirar as vidas com as próprias mãos, sem temerem um castigo superior por isso. Dizia-se que existiam calabouços terriveis, com bolas e correntes de ferro, que aqueles filhos do Diabo utilizavam quando bem lhes aprazia.

Todos os olhos, nesse dia, estavam fixos no rosto magro de Ladd, enquanto ele caminhava atrás de LaKid. Ele seguia animado, como se fosse para um passeio de Domingo, de costas bem direitas, todo sorridente. Lá fora estava muito frio e ele só vestia uma camisa de algodão velha e calças de brim gastas. Não usava sapatos, não tinha roupa interior. Os dentes dele começaram a ranger quando o vento gelado o açoitou.

Nessa altura, mais dois outros guardas se colocaram ao seu lado, marchando com ele através do pátio barrento que conduzia a uma escada irregular e húmida do outro lado da fortaleza. Saíram por uma abertura num dos lados da parede e seguiram mais alguns metros, até que o mandaram parar diante de uma travessa de pedra.

- Levanta os braços, rebelde - ordenou LaKid.

Ladd assim fez e ouviu a ordem seguinte:

- Agora, põe-te nas pontas dos pés e estica esse corpo o mais que puderes.

Ele foi, então, pendurado pelos polegares e ficou ao vento frio por longas horas. Já estava escuro quando, por fim, o soltaram, arrastando-o de volta para a sala onde os seus companheiros se encontravam. Estavam todos ansiosos por notícias suas e, quando ele foi atirado lá para dentro, Andrew e Duncan correram em seu auxilio.

- Ó meu Deus! - Andrew abraçou-o, sentindo-o frio como uma pedra de gelo. - Aqueles infelizes estão a tentar matar-te, meu amigo!

Ladd sorriu muito levemente.

- Bem, não vão conseguir - tremia descontrolado. - Jamais Lhes darei tal satisfação.

Duncan colocou o seu cobertor sobre Ladd e indagou, aproximando-se para ajudar a aquecê-lo:

- O que te fizeram, desta vez?

- Quase nada.

Mas os seus polegares ensanguentados provavam o contrário e os seus amigos compreenderam. Já se ouvira falar de prisioneiros cujos polegares não tinham suportado o peso do corpo e tinham acabado por ser arrancados.

Os dedos de Ladd estavam quase curados, quando LaKid decidiu que já estava na altura de o punir mais uma vez. Resolveu torturá-lo afundando a sua cabeça num balde de água e sufocando-o quase até à morte. Depois, ordenaram-Lhe que se sentasse no pátio frio; aí, amordaçaram-no e amarraram-no como se amarravam os antigos escravos, com um pedaço de madeira atravessado por trás dos joelhos. Deixaram-no sentado ali por oito horas consecutivas, sob a chuva gelada de Janeiro.

Quando, por fim, LaKid e os seus soldados voltaram para o soltar, esperavam encontrar um homem quase destruído. O capitão da guarda retirou-lhe a mordaça e olhou para o rosto encharcado de Ladd, para os cabelos compridos e colados. Troçou:

- Ora, ora, serão gotas de chuva ou lágrimas que estás a chorar pela mamã?

- Por que não vais para o inferno, porco nortista?

- murmurou Ladd, cheio de raiva, cuspindo no rosto redondo do seu agressor.

Furioso, LaKid golpeou a cabeça de Ladd com o cabo da sua pistola, abrindo-lhe um ferimento na testa, que começou imediatamente a sangrar.

Uma dor profunda envolveu toda a cabeça de Ladd, mas ele mal se importou com ela. Não se arrependia da sua resposta. Valera a pena. Desejava cuspir naquele sujeito horroroso desde os dias de West Point e tivera um grande prazer em fazê-lo agora.

- Levem este sulista para o calabouço e cuidem para que não coma nada esta noite! - gritou LaKid afastando-se dali quase a correr.

Na vez seguinte em que Ladd foi escoltado para fora pelos guardas, foi apresentado a outra forma de castigo não tão dolorosa, mas não menos cruel, elaborada por aqueles soldados sem alma: foi forçado a ficar em pé e a equilibrar-se, por horas a fio, sobre a borda de um barril de farinha cuja tampa fora retirada. E não usava sapatos, claro. Enquanto estava a equilibrar-se, foi-lhe entregue um toro de madeira para segurar. Se o recusasse ou o deixasse cair seria fuzilado no mesmo instante.

Ladd pedia a Deus que lhe desse força suficiente para se manter firme enquanto a sola dos seus pés se esfolava e os seus braços começavam a tremer devido ao peso. Repetia para si mesmo, sem parar, que conseguiria, que não o venceriam, que ainda tinha muito para viver. Aquela guerra iria terminar e ele voltaria para casa. Laurette estava à espera dele e ele não pretendia morrer ali, rodeado de um bando de soldados violentos e imbecis que não tinham mais nada para fazer além de se divertirem com a desgraça alheia.

Humedeceu os lábios, então, e, juntando toda a energia que ainda lhe restava, começou a assobiar uma canção tradicional do Sul, como se não tivesse a menor preocupação neste mundo.

Frustrado e determinado a quebrar aquele orgulho sulista, o capitão da guarda intensificou as torturas em relação a Ladd. Todos os dias ele era chamado para um novo tipo de punição, para a qual já nem havia a preocupação de se encontrar um motivo. Mais do que uma vez foi amarrado a uma estaca e açoitado, chegando a levar cem chicotadas de uma só vez. Foi colocado em correntes pesadas atadas a bolas de ferro. E aferrolhado às paredes e ao chão do presídio. Nada, porém, parecia resultar.

Por fim, LaKid teve uma inspiração diferente: excitado como uma criança em vias de receber um presente de Natal, mandou que todos os prisioneiros fossem colocados lá fora, ao frio intenso e aos ventos cortantes de Fevereiro. Foram todos avisados de que seriam mortos se tentassem fugir e ficaram ali, em redor de uma pequena fogueira acesa mesmo no centro do pátio. Ladd estava junto deles, sem saber o que o esperava. Mas, de repente, o seu nome foi chamado. Após uma breve troca de olhares com Andrew e Duncan, deu um passo à frente, ouvindo Andrew sugerir:

- Bolas! Vamos fugir!

- Não - aconselhou Ladd. - Vão matar-nos a todos quando tentarmos escalar os muros.

E, voltando-se para onde LaKid e os seus guardas aguardavam, seguiu decidido para o seu destino. Parou a poucos metros deles; arrogante como sempre.

- O que vais fazer-me hoje? Pretendes queimar-me na fogueira?

LaKid riu, comentando:

- Não seria má ideia, devo admitir. Mas como deves ter notado, rebelde, aqui somos todos civilizados. Agora, volta-te de costas para os teus amigos e inclina-te para a frente.

- Não, acho que não vou obedecer, desta vez - Ladd encarou-o e cruzou os braços.

Com um breve sinal de cabeça, LaKid fez com que os seus homens agarrassem Ladd e lhe baixassem as calças, amarrando-o em seguida e segurando-o inclinado para a frente.

Os prisioneiros olhavam, os estômagos apertados diante do horror a que poderiam ir ali assistir.

Um dos guardas junto do fogo ergueu para o capitão da guarda uma barra de ferro com a ponta incandescente. Os olhos dos prisioneiros arregalaram-se ainda mais.

LaKid olhou para o ferro, apreciando o terror que infligia a todos, e depois recolocou-o sobre as chamas. Com um gesto rápido, retirou-o de novo e encostou-o à pele de Ladd, à nádega dele.

Ladd cerrou os dentes para não urrar. Mas não conseguiu manter-se calado. Um gemido profundo subiu da sua garganta sem que conseguisse controlá-lo. A dor parecia espalhar-se por cada fibra, insuportável. Era como se todo o seu corpo estivesse a arder.

Com um sorriso de vitória, LaKid sentiu-se mais do que satisfeito ao ver que Ladd sucumbia, caindo de joelhos, com a cabeça enterrada no peito. Com desprezo, o capitão da guarda ainda ergueu a bota direita e chutou o seu prisioneiro, fazendo-o cair para a frente e enterrar o rosto na neve do solo.

Ladd permaneceu assim, sem tentar mover-se, sofrendo em silêncio. Depois de alguns segundos, porém, começou a rir muito devagar ao sentir o conforto da inconsciência chegar até à sua mente, libertá-lo, transportá-lo para bem longe dali, para longe daquele inferno em vida, até um local quente, agradável, seguro.

 

A meio de uma gélida noite de Fevereiro de 1864 Laurette despertou sobressaltada, com o coração disparado, cheia de suores frios. Um grito ficara preso na sua garganta e sentia-se sufocar por ele.

Sentou-se na cama, tremendo, desperta do terrivel pesadelo. Fora tudo tão real que ainda podia sentir a angústia terrível que se apoderava de todo o seu ser.

Abraçou os joelhos, numa tentativa de parar com os tremores violentos que a sacudiam, dizendo a si mesma que não passara tudo apenas de um sonho. Um sonho horrível.

Começara de forma agradável num Verão, sem guerra, estando ela e Ladd num lindo campo junto das margens de um riacho. Andavam de mãos dadas, olhando para as nuvens claras que pairavam num céu muito azul. Havia gaivotas voando pela costa e elas gritavam com as suas vozes esganiçadas e encantadoras.

De repente, o sol desapareceu e toda a paisagem se transformou. Uma chuva muito forte começou a cair, pelo que ela e Ladd tiveram de correr para se abrigarem e, como é costume acontecer nos sonhos, já não estavam na costa, mas na casa de veraneio dos Dasheroon, na outra margem da baía.

Da varanda podiam ver a tempestade que caía e sentir o cheiro da terra molhada e ali mesmo se beijaram e se despiram, amando-se num frenesi intenso e quase real para Laurette.

Ladd perguntara-lhe se queria entrar para fazerem amor na cama, mas ela quisera ficar ali, debaixo da chuva. Tão estranho, tão envolvente e emocionante!

A borrasca abatia-se sobre a terra e eles amavam-se com um novo e ardente desespero. Aprendiam cada vez mais sobre a arte de fazer amor em cada novo encontro, em cada nova entrega.

Ladd era viril, forte, belo e amava-a tanto... Foi então que o sonho se começou a transformar, tornando-se num pesadelo pavoroso. O rosto de Ladd começou a modificar- se diante dos olhos de Laurette, a sua pele bronzeada perdeu a cor, as suas feições amareleceram, tornando-se macilentas, cadavéricas. Era como se ele estivesse a morrer, como se a vida que pulsava no seu corpo enquanto faziam amor estivesse a acabar aos poucos, abandonando-o.

- Já não sirvo para ti - lamentara-se Ladd, com uma entoação estranha que não parecia dele. - Estão a matar-me, Lollie. Estou a morrer!

Ela agarrou-se a ele, mesmo fraco e pálido, e perguntou ansiosa e amedrontada:

- Quem está a matar-te? Porquê? O que está a acontecer-te, meu amor?

Mas Ladd abandonava-a, afastando-se de forma definitiva, inexorável, e o seu rosto nada mais era do que uma grotesca máscara de dor e sofrimento.

Laurette gritara o seu nome muitas vezes mas em vão, tal como quando despertava. E agora murmurava com doçura, os soluços voltavam devagar a dominar o seu peito saudoso e contraído.

Ali, sentada na escuridão da noite fria de Fevereiro, um medo sem tamanho apoderou-se dela. Aquele pesadelo devia ter um significado, imaginava desesperada. Talvez algo estivesse a acontecer a Ladd. Podia ser que ele estivesse a sofrer, a morrer ou já morto.

Não recebia notícias dele havia mais de um ano, não sabia onde se encontrava e se estava vivo ou não. Experimentava uma agonia constante, esperava outras novas, talvez terríveis demais para conseguir sequer imaginá-las.

Tornou a deitar-se, o rosto banhado em lágrimas, tentando imaginar quanto mais poderia aguentar. A sua vida segura e feliz estava arruinada e nada jamais seria como dantes. O seu pai tinha sido morto em Gettysburg e a sua mãe tinha falecido no Inverno seguinte.

Sozinha, agora, naquela imensa casa que um dia estivera cheia de alegria, Laurette chorava por tudo o que perdera. E a solidão fria que a envolvia juntamente com o escuro fê-la sussurrar, angustiada:

- Ladd... Oh, Ladd, por favor, não me abandones! Estejas onde estiveres, por favor, continua a lutar para voltares para mim Por favor, meu querido Fica vivo e volta para mim!

Ladd tentava, de facto, permanecer vivo e fazia o possível para um dia poder regressar aos braços da sua Laurette. Mas a fome, os maus-tratos e as torturas intermináveis começavam, por fim, a vencê-lo.

Já não era capaz de reagir como antes e isso angustiava-o. Já não tinha forças para continuar a manter-se firme. Ninguém aguentaria.

Os seus amigos, Andrew e Duncan, estavam preocupados com o seu estado, pois Ladd já não era o mesmo, o seu espírito lutador esmorecia.

Num desses terríveis dias em que Ladd se sentia à beira da destruição, começaram a correr rumores, entre os prisioneiros, de que o comando da prisão ia ser trocado. O major Jimmy Tigart, muito ferido em batalha, estava a ser enviado para o Castelo do Demónio para ser o seu director.

Ao ouvir o nome de Jimmy, Ladd sentiu-se renovar, as suas dores pareceram acalmar-se como que por encanto e o seu ânimo voltou. Havia esperança de novo no seu olhar. Os seus dias de tortura chegavam ao fim! Jimmy ajudá-lo-ia, tornaria tudo melhor! Controlaria a crueldade de LaKid e faria com que o nome do seu amigo de infância fosse colocado em primeiro lugar na lista de transferidos para outra prisão. Com sorte, estaria a deixar aquele poço de sofrimento em pouco tempo.

Ladd acordou cedo no dia em que Jimmy assumiu o comando da prisão, olhou para os farrapos em que as suas roupas se tinham transformado e gemeu. Não queria que o seu amigo o visse assim, tão debilitado, mas não podia fazer nada a esse respeito.

Ansioso e alegre, Ladd esperou pela chegada do novo director do presídio. Colocou-se na primeira fila de prisioneiros para que, ao abrir a porta da enorme cela, Jimmy o visse logo.

Por fim, quando já passavam cinco minutos do meio-dia, as pesadas portas abriram-se e Ladd ergueu-se.

Quatro guardas armados entraram primeiro e, logo atrás deles, estava o alto e erecto major Tigart. Ladd percebeu de imediato que ele coxeava e que usava uma bengala para poder caminhar mas, apesar disso, parecia estar muito bem.

O major passou os olhos pelos prisioneiros, viu Ladd a sorrir na sua direcção e arqueou uma sobrancelha, surpreendido. Ladd notou, então, que Jimmy não fazia ideia de que ele ali estivesse prisioneiro.

Esperou impacientemente enquanto o major, apoiado na sua bengala, fez um pequeno discurso aos prisioneiros sobre as regras daquela fortificação. Quando terminou, voltou-se para Ladd e cumprimentou-o gentilmente.

- Vem comigo - pediu-lhe Jimmy, - para podermos conversar melhor.

Com um breve sinal a dispensar a guarda, o major levou Ladd até ao edifício central onde ficava o seu escritório. Ali, sob o enorme átrio, longe das vistas, os dois abraçaram-se. Havia demasiadas perguntas no íntimo de cada um deles, mas nenhum tinha muitas respostas para dar.

Jimmy contou a Ladd sobre o desenvolvimento da guerra e depois perguntou-lhe por Laurette.

- Não nos permitem receber aqui cartas, Jimmy. Não recebemos notícias de espécie alguma. Tu não soubeste nada dela?

Tigart acenou com a cabeça que não. E os dois continuaram a conversar, Ladd confidenciando a Jimmy toda a sorte de torturas que ali sofrera e este ouvindo e garantindo-Lhe que tudo seria diferente dali em diante.

- Colocarás o meu nome na lista de presos a serem transferidos? - quis Ladd saber, ansioso.

- Vai ser o primeiro nome! - assegurou-lhe Jimmy. - Agora, é melhor voltares para junto dos outros prisioneiros. Mas não te preocupes, que vou tirar-te daqui.

- Em breve?

- Podes contar com isso!

O major permaneceu sob o átrio de pedra do seu escritório, observando o seu cadavérico amigo a afastar-se. Era incrível, mas havia algo nos passos dele. um vigor, uma força interior, que parecia empurrá-lo corajosamente para a frente. Pobre coitado, avaliou.

Entrou no seu escritório, foi para trás da grande secretária e sentou-se, deixando a bengala apoiada na parede logo atrás de si. Apoiou os cotovelos sobre o tampo e descansou o rosto entre as mãos.

E assim ficou, olhando para o nada à sua frente, pensando, lidando com a sua consciência. O seu primeiro impulso fora mandar executar Ladd imediatamente. Seria simples e seguro. Poderia culpá-lo de algum crime punível com a morte ou, ainda melhor, espalhar a informação de que ele e Ladd tinham sido amigos de infância e depois convidá-lo para jantar nos seus aposentos particulares. Ao fim da noite, bastaria mandar avisar que o prisioneiro sofrera um ataque e morrera. Muito simples...

Tigart ergueu a cabeça e respirou fundo. Não, não podia fazê-lo. Queria ver Ladd morto, sim, mas não conseguiria matá-lo. Poderia apenas deixá-lo morrer.

- Capitão da guarda! - chamou, sendo logo atendido pelo nervoso e preocupado LaKid, que esperava ser repreendido com severidade pelos abusos que cometera.

Mas o major recostou-se na cadeira e perguntou, simplesmente:

- Esta fortaleza tem algum calabouço?

Aquela era a última pergunta que LaKid esperava ouvir. Estava apavorado. Sabia que o major era amigo de Ladd Dasheroon e começou a transpirar.

- Sim, senhor - informou, contrariado. - São as celas escuras. Há quatro delas debaixo do corpo principal do edifício.

- E estão ocupadas?

- Apenas uma. Um preso político e um ladrão que atende pelo nome de...

- Então, há três celas vagas?

- Sim, major Tigart. Três celas, sim senhor. Muito calmo, sem demonstrar emoção alguma, Tigart disse apenas:

- Sem demora, coloque o prisioneiro chamado Ladd Dasheroon na cela mais profunda e escura que houver.

Boquiaberto, LaKid encarou o seu superior por uns segundos, e depois assentiu, apressado:

- Sim, senhor - e, fazendo continência, deixou a sala.

Satisfeito por poder cumprir aquela ordem, LaKid fez-se acompanhar de mais dois guardas e, entrando na cela dos prisioneiros, chamou o nome de Ladd, fazendo com que o coração dele se animasse.

Agora não havia mais nada a temer. Jimmy estava no comando e talvez já tivesse usado a sua influência para conseguir a sua transferência.

Optimista e animado, como não se sentia havia muito tempo, levantou-se e seguiu, satisfeito, em direcção a LaKid, que lhe sorria.

- Para fora - ordenou o capitão da guarda. Ladd obedeceu-lhe, contente. Não tinha mais nada a temer, já que o seu amigo se encontrava ali. Esperava ser escoltado mais uma vez até ao seu escritório e ficou atónito quando os outros dois guardas o agarraram pelos braços, levando-o na direcção oposta.

Quando chegaram às traseiras da prisão, LaKid abriu uma pesada porta. Ladd foi conduzido por um corredor escuro e frio, que descia para as entranhas do prédio, onde foi atirado contra as paredes de onde pendiam duas tochas.

LaKid seguia à frente por um outro corredor ainda mais escuro e húmido, onde havia quatro portas, duas de cada lado. Passou a primeira e depois parou diante da outra, à direita, destrancando-a.

Confuso e horrorizado, Ladd foi empurrado para dentro da cela, que possuía apenas uma minúscula e muito alta janela na parede de pedra. Ali o encarceraram e de nada adiantaram os seus gritos, quando os três homens que o tinham trazido se afastaram. Bateu contra a porta até os seus dedos sangrarem e berrou até não ter mais voz, mas foi tudo em vão.

Devia ser um terrivel engano, tentou consolar-se. Não deveria ter sido atirado para aquele calabouço, mas sim deixado em paz, sem mais castigos, sem mais sofrimento... Jimmy tinha-lhe prometido a transferência! Ele nem devia saber que o tinham colocado ali. Quando soubesse, mandaria soltarem-no imediatamente.

Jimmy iria administrar aquele presídio com justiça. Precisava apenas de se acalmar, de manter a cabeça fria e de esperar. Dentro de algumas horas, talvez até dias, Jimmy saberia onde o tinham posto e mandaria soltá-lo.

Deixou-se cair a um canto, garantindo a si mesmo que em breve seria solto. Tinha de ser.

O sol já se pusera e ali estava tão escuro que não conseguia ver a própria mão diante do nariz. Pensou nos pobres coitados que tinham estado ali, como ele, suportando a atrocidade daquela solidão por muito tempo. Imaginava se tinham sido capazes de manter a sanidade, já que ele não poderia. Mas não tinha que se preocupar, bastava esperar que tudo se esclarecesse.

Honrado, Ladd jamais poderia supor que o seu antigo amigo o pudesse trair daquela forma. Tinham crescido os dois juntos. Jimmy até chegara a salvar-lhe a vida, arriscando a dele. Eram como irmãos. Não, Jimmy jamais seria capaz de uma traição daquelas.

 

Quando Laurette fez vinte anos, no Verão de 1864, já não era a rapariga trigueira e cheia de alegria que fora no passado. As circunstâncias tinham-na forçado a amadurecer cedo e a tornar-se séria e responsável, para poder cuidar de si mesma.

Estava completamente só na enorme mansão da rua Dauphin. Os seus pais tinham morrido, os criados tinham-se ido embora... Até mesmo a fiel Ruby Lee se fora embora, ao perceber que a sua jovem patroa não conseguiria sustentar ambas. Agora vivia em casa de uns parentes, no centro da cidade.

  1. H. Howard perdera toda a sua fortuna a lutar pela causa da Confederação. Pouco sobrara de tudo o que possuía, para além da mansão em que a família morava. No Verão de 1863 ele morrera, deixando a esposa desesperada. E fora a dor de o perder que acabara por levar Marion Howard também para o túmulo.

Douglas Dasheroon falecera em combate, durante o terrivel cerco de Vicksburg. Carrie, desgostosa, vendera a propriedade por um quarto do seu valor e fora-se embora para Nova Orleães, onde agora vivia com uns primos.

Durante todas aquelas tragédias, Laurette tentara manter-se firme, altiva, como era costume das bem-educadas senhoras do Sul. Continuava a dizer a si mesma que poderia suportar tudo, qualquer coisa, excepto perder Ladd. E, enquanto tivesse esperança no seu regresso, sobreviveria. Além do mais, não era a única para quem aquela guerra trouxera muita dor e mudanças radicais.

Johanna Parlange enviuvara semanas após ter-se casado com um jovem soldado de Montgomery. Juliette nunca se casara. Um ano antes, a avó delas morrera, e agora as gémeas lutavam para manterem a mansão onde moravam.

A menina Foster, a antiga professora de música de Laurette e Ladd, já não tinha alunos. E Melba Adair, também viúva, fora forçada a vender a sua belíssima propriedade, com os magníficos jardins que tantas vezes tinham fornecido flores para as mais belas ocasiões de Mobile. Lydia, a sua filha, ainda vivia com ela, numa casinha da avenida Herndon, que não tinha um pedaço de terra para plantarem o que quer que fosse.

Os tempos eram duros, mas Laurette sabia que podia ter sido tudo ainda pior. A cidade de Mobile, com as ligações férreas e por água em relação ao coração confederado, era um ponto valioso para o Sul. Na baía, a entrada para o porto estava bloqueada a leste e a oeste, vigiada por duas fortificações, Forte Gaines e Forte Morgan. E a água entre os dois estava cheia de minas e entulhada com barcos afundados. Por ali tinham passado rápidos vapores do Sul, carregados com algodão e munições, mas as embarcações foram atacadas pelas forças federais sem nenhuma trégua.

Quase desde o começo da guena, o bloqueio ali feito e a falta de homens para administrar as herdades e os negócios locais tinham levado os cidadãos de Mobile a sofrer pela falta de comida e géneros. Pior ainda: os impostos agora eram enormes.

Ainda assim, os cidadãos sentiam-se mais confortados pelo facto de os exércitos da União não terem ocupado Mobile. Todos ali tinham ouvido histórias terríveis sobre como os ianques varreram outros lugares do Sul, arrasando e queimando tudo o que estava no seu caminho.

Temendo que Mobile tivesse o mesmo destino, Laurette enterrara a prata da família sob um frondoso carvalho que crescia nas traseiras da propriedade. Também enterrara ali alguns tesouros sentimentais: um pente de madrepérola decorado com pedras semipreciosas que pertencera à sua mãe, o relógio de bolso do seu pai, folheado a ouro e, mais precioso do que tudo o resto, o retrato de um jovem de dezasseis anos numa moldura de prata. Laurette, como muitos outros cidadãos, esperava que a cidade fosse tomada pelos ianques num dia qualquer.

James Tigart, cuja origem fora modesta, sempre invejara Ladd Dasheroon pelo que ele possuía: fortuna, posição social e, acima de tudo, pela bela Laurette Howard. Tudo aquilo devia ter sido seu. Com Ladd fora do caminho, talvez agora fosse mais fácil conseguir o que sempre almejara.

Tigart reconheceu logo aquela grande oportunidade e agarrou-a com unhas e dentes. Mesmo com um grande peso na consciência, mandara atirar Ladd para o fundo de um calabouço, onde ele jamais poderia ver ou falar com alguém. E ninguém poderia vê-lo ou falar com ele, a não ser os guardas que lhe levavam comida.

Quem poderia saber que Ladd Dasheroon ainda estava vivo? Ninguém! Tigart tinha confiança de que poderia forjar uma acusação contra Ladd, por exemplo de carácter político, que o manteria naquela prisão para o resto dos seus dias. Certos crimes mereciam prisão perpétua, com ou sem guerra. Mas... isso seria suficiente?

Então, ocorreu-Lhe uma ideia. Esperaria mais alguns meses e depois acrescentaria o nome de Ladd à lista dos mortos que enviaria para os registos dos Confederados.

Ladd permaneceria na prisão até morrer e não haveria mais problemas. O seu falecimento aconteceria, com certeza, em poucos anos, devido à situação terrível em que seria mantido. Nenhum homem conseguiria sobreviver à escuridão e à solidão daquele buraco sombrio.

Tendo decidido o que faria, Jimmy Tigart começou a arquitectar os seus planos para o futuro, nos quais esperava incluir a mulher que sempre desejara: Laurette Howard.

Sozinho no calabouço, Ladd tentava controlar o passar do tempo. Já desistira de contar com a ajuda do seu amigo para sair dali. LaKid fora o primeiro a induzi-lo, com uma gentileza fimgida e um somso de escárnio nos lábios, a esquecer tal possibilidade.

E assim, a sua esperança desaparecera, dando lugar à descrença e, mais tarde, ao ódio.

Ódio pelo antigo amigo, Jimmy Tigart. Primeiro, não quisera crer na terrível verdade, mas sabia que o comandante de uma prisão era informado de tudo o que ocorria dentro dela. Tigart soubera do seu envio para o calabouço desde o princípio. Fora ele quem o ordenara.

Tigart traíra-o da forma mais vil possível, e Ladd passara a amaldiçoar o ex-amigo, que o atraiçoara com tanta frieza. E estremecia de pavor diante da ideia de que nunca mais poderia sair daquele buraco escuro e fétido.

Contava os dias, as semanas, os meses. Passou-se o ano de 1864. Começou 1865 mas, pouco depois da viragem do ano, acabou por perder a noção do tempo. O isolamento e a fome tornavam o seu raciocínio confuso. Já não sabia em que mês estava e, mais tarde, nem do ano se lembrava. Às vezes, nem tinha noção de onde se encontrava.

Às seis da manhã de um dia no início de Agosto de 1864, sob um céu cinzento e um vento que soprava forte de oeste, o almirante David Farragut ordenou que a sua frota passasse pelo Forte Morgan e entrasse na baía de Mobile.

A batalha de Mobile estava prestes a acontecer, e duraria quatro horas. Mais ou menos às dez horas, a carga contra a cidade foi suspensa. Farragut e os seus navios da marinha americana saíram, mais uma vez, vitoriosos, embora a cidade em si ainda continuasse nas mãos dos Confederados até ao fim da guerra. No entanto, o valor que tinha para os rebeldes estava destruído.

Enfim, em Abril de 1865, a longa e sangrenta guerra entre os estados norte-americanos terminou, com a maior parte do Sul reduzida a ruínas. Os cidadãos de Mobile consideravam-se afortunados em comparação com os de outras cidades sulistas. Mesmo tendo alguns perdido as suas fortunas, estavam gratos pelas suas mansões não terem sido ocupadas ou queimadas pelos destruidores soldados da União.

Fazendo o melhor que podia, Laurette comemorou com as gémeas Parlange, quando ouviram anunciar o fim da guerra. Houve até fogos de artifício na baía e danças nas ruas. E muitas pessoas, felizes e sorridentes, garantiam a si mesmas que, dali em diante, tudo voltaria ao normal. Entretanto, bem no fundo dos seus corações, todos sabiam que os dias lânguidos e graciosos do velho Sul tinham terminado.

- Jimmy! Jimmy Tigart! - exclamou Laurette ao vê-lo diante da sua porta, naquele ensolarado dia da primeira semana de Maio. - És mesmo tu? Não posso acreditar!

Sorrindo largamente, o alto e elegante soldado ianque estava ali em pé, na varanda, com a mão direita apoiada numa bengala. Disse, com suavidade:

- Sou eu, sim, Laurette. Posso entrar?

- Claro que sim! Ora, onde estão as minhas maneiras? - o coração dela batia descompassado, na esperança de que Jimmy pudesse trazer-Lhe notícias de Ladd. Olhou para a bengala e comentou, embaraçada: - Tu... foste ferido, não foste?

- Não foi nada - mentiu. - Estou bem.

- Que bom! - acabavam de entrar no hall quando ela se voltou, demasiado ansiosa para se poder conter por mais um segundo sequer: - E o Ladd? Tens notícias dele?

Mas a expressão que percebia no rosto de Jimmy começava a deixar as suas pernas fracas e o seu peito apertado.

- Não. Não me digas que. Não!

- Sinto muito, Laurette. É verdade - Jimmy estendeu a mão para lhe tocar. - O Ladd faleceu numa prisão chamada Castelo do Demónio, no Outono de 1864 - meneou a cabeça, fingindo tristeza, e acrescentou: - Aconteceu pouco antes de eu ser enviado para lá como director do presídio. Se tivesse chegado a tempo, eu tê-lo-ia transferido.

Jimmy parou, prestando atenção ao rosto sofrido de Laurette e quase se arrependeu do que estava a fazer. Jamais vira tamanho sofrimento num ser humano.

- Não... - sussurrou ela, pálida. - Não, não! O Ladd não está morto! Não pode estar! Não... não vou suportar isso, meu Deus! Não posso!

Laurette sentiu os olhos encherem-se de lágrimas e, de repente, a sua expressão mudou. Parecia selvagem, fora de controlo. E começou a tremer descontroladamente. Depois gritou, enlouquecida de desespero.

Jimmy estreitou-a entre os braços, tentando acalmá-la. A princípio, Laurette socou-Lhe o peito, tentando soltar-se, revoltando-se contra tudo, em especial contra o destino cruel que lhe tirara o seu grande amor. Depois, por fim, vencida pela tristeza, deixou-se ficar contra o peito de Jimmy, soluçando derrotada.

Ele acariciou-lhe as costas, murmurando palavras de consolo durante minutos que lhe pareceram uma eternidade, até que Laurette tivesse chorado tudo o que podia. Só então a fez caminhar até à sala e sentou-se com ela num sofá.

Continuou a falar, sempre suavemente, gentil, instigando-a a depender dele, a partilhar a sua dor e os seus problemas, a deixá-lo ajudá-la.

Laurette nunca estivera tão desesperada, tão vulnerável. A morte de Ladd, dizia, era a última e a pior das tragédias que aquela guerra Lhe trouxera. Contou a Tigart as mortes dos seus pais, e também a do pai de Ladd. Sabia que não era a única a sofrer, mas estava demasiado assustada para encarar a vida sem Ladd. Afirmou que não queria continuar mais a viver, que não havia mais nada no mundo para ela, nenhum motivo para seguir em frente.

Tudo se acabara: o dinheiro, a familia, os amigos. Soluçava ainda, deitando para fora toda a sua infelicidade, toda a sua revolta.

Jimmy ficou aliviado por constatar que não haveria ninguém no seu caminho para conseguir o que queria, mas procurava mostrar-se a melhor das criaturas.

- Lamento muito tudo o que perdeste, Laurette. Minha pobre criança, tu passaste por tantos sofrimentos E ainda tens de enfrentar tantas coisas sozinha!

Ele abraçou-a, tratando-a com um carinho extremo.

- Deus, tenho estado tão preocupada e só - queixou-se, no meio de mais alguns soluços.

- Eu sei, minha querida, eu sei.

- Acreditei sempre... queria... que o Ladd voltasse... Jesus, como isto... é terrível! Como dói!

- Calma, minha menina...

- Não conseguirei viver sem o Ladd. Não vou... conseguir... - tossia, entre os soluços e o pranto.

- Eu entendo... - Jimmy continuava a oferecer o seu conforto e a sua amizade apenas.

Por enquanto.

O major James Tigart tinha sido enviado pela União para cuidar da reconstrução da cidade. Devia permanecer naquele posto durante seis meses, talvez até um ano. Mas Tigart planeava ficar muito mais do que isso.

Acomodou-se numa suite do hotel mais luxuoso de Mobile que ainda existia, o Riverside. E passava a maior parte dos seus dias a cuidar dos problemas que envolviam a reconstrução. Todas as noites, porém, visitava a solitária e susceptível Laurette. E ouvia-a pacientemente enquanto ela, ainda entre lágrimas, falava do seu amor por Ladd, e lembrava-se dos tempos felizes que vivera com ele. Jimmy escutava apenas, calado, até chegar ao extremo de não mais suportar ouvir o nome do antigo amigo.

Todavia, sabia muito bem esconder os seus sentimentos. E, depois de um mês de paciência, com preensão, amizade e afecto, conseguiu persuadir Laurette, ainda muito fragilizada, a casar-se com ele, para que assim o seu futuro ficasse assegurado.

Propôs-lhe cuidar dela, estar sempre ao seu lado e ajudá-la a superar o seu sofrimento.

- Somos bons amigos, Laurette. E nós os dois amávamos o Ladd do fundo da alma - vendo que ela assentia, Jimmy prosseguiu: - Muitos casamentos bem sucedidos começaram com bases menos sólidas do que esta. Quero que saibas que jamais tentarei ocupar o lugar do Ladd. Sei que isso seria impossível. Mas, se permitires, Laurette, eu honrar-te-ei e cuidarei de ti pelo resto dos meus dias.

 

Na noite quente e abafada de 9 de Junho de 1865, Jimmy e Laurette casaram na grande sala de estar da mansão da Rua Dauphin, numa cerimónia íntima, à qual compareceram apenas os amigos mais próximos. Não houve festa e, logo depois dos convidados e do pastor se retirarem, Jimmy voltou-se para a esposa, indagando:

- Laurette querida, porque é que não sobes primeiro para. bem, para.

- Está bem - concordou ela, entendendo. Estava tensa e, nervosamente, retribuiu o sorriso ao marido.

Mas enquanto subia para a suite principal, o seu coração encheu-se de apreensão e temor. Queria que Jimmy lhe tivesse dado pelo menos algumas semanas para se habituar à ideia de ser sua mulher, mas ele fora muito apressado. No entanto, tinha sido também muito compreensivo e dedicado desde que se tinham reencontrado. Procurava descobrir as suas vontades para as satisfazer, e estava sempre disposto a ouvi-la. Talvez, imaginava Laurette, se lhe dissesse a verdade quando ele subisse para o quarto, se lhe explicasse que ainda não estava preparada para um relacionamento mais íntimo... Talvez Jimmy entendesse...

Era um homem gentil e um amigo, não um marido para ela. Pelo menos, ainda não. Afinal havia ainda, e sempre houvera, um único grande amor no seu coração.

Uma única lâmpada iluminava o aposento. A camisa de noite estava sobre a cama e Laurette inclinou-se para Lhe pegar. Tinha mangas compridas e era fechada e sóbria. Nada do que sempre sonhara usar na sua noite de núpcias, pensou amargurada.

Sempre quisera colocar uma coisa transparente, sedutora, que revelasse o seu corpo por baixo das dobras do tecido. E, planeando com antecipação a sua noite de amor com Ladd, chegara a comprar uma peça, pouco depois de ele partir para West Point. Permanecia na caixa, sobre um armário no seu guarda-fatos. Jamais seria usada.

Suspirando, despiu-se depressa, colocou a modesta camisa de noite e enfiou-se na cama. Tivera tempo apenas para ajeitar os travesseiros quando Jimmy entrou sem a bengala, coxeando até junto do leito, trazendo nas mãos uma garrafa de uísque e dois cálices de cristal. Sorriu, sugerindo:

- Vamos beber ao nosso casamento?

- É claro... - ela aceitou porque sabia que precisaria da bebida para enfrentar o que a aguardava.

Jimmy serviu ambos e sentou-se na cama, junto dela.

- A nós, querida - brindou, encostando levemente o seu cálice ao dela.

Laurette, mais tensa do que nunca, tomou a bebida do seu cálice de uma vez. Jimmy, de imediato, serviu-lhe outra dose, que ela bebeu da mesma forma. Ele, depois, pegou nos dois cálices e colocou-os junto da garrafa na mesa-de-cabeceira. En tão, inclinou-se e apagou o candeeiro.

À luz fraca da lua que penetrava pelas janelas de vidro, Laurette esperou angustiada, vendo o seu marido dar a volta. Cerrou as pálpebras quando ele começou a despir- se, com o pulso apressado, o estômago a revirar, a mente a trabalhar rapidamente, arrependendo-se por ter aceitado aquela união sem uma avaliação melhor das consequências para si mesma. Fora tola e injusta para com Jimmy, ao aceitar ser sua esposa. Não o amava! Nunca o amaria!

Nu, Jimmy foi-se deitar, escorregando para dentro dos lençóis até ficar junto de Laurette. Apoiando-se num cotovelo, olhou para ela, encantado, e comentou:

- É estranho, não é? Somos marido e mulher e nunca, sequer, nos beijámos...

Sem lhe dar tempo para que fizesse qualquer observação sobre as suas palavras, beijou-a com lábios ardentes e famintos. Há anos que desejava estar com Laurette. Assim, afastou as cobertas, subindo-lhe a camisa de noite até à altura dos quadris.

Laurette estava desesperada e de modo algum preparada. Mas Jimmy, sim. Podia senti-lo desejando-a, o seu corpo febril reagindo ao seu desejo intenso. Em segundos abraçou-a e, impacientemente, possuiu-a.

Laurette soltou um grito de dor, e lágrimas surgiram-lhe nos olhos. Ele magoava-a e parecia não perceber ou não se importar. Murmurava frases ardentes aos seus ouvidos, as quais não tinham efeito nenhum sobre Laurette, que apenas rezava para que tudo terminasse rapidamente, que pudesse livrar-se daquele inferno.

Chegou a negar que tudo estivesse a acontecer daquela maneira. Não podia estar ali. Não queria permanecer ao lado daquele homem. E, em silêncio, suportando a dor daquela posse sem amor ou ternura, jurou a Ladd que, no seu coração, jamais lhe seria infiel.

Ladd permanecia deitado nos trapos que um dia tinham sido um colchão qualquer, imaginando em que ano estariam. Talvez a guerra estivesse próxima do fim. Talvez nunca mais voltasse a ver Laurette. Talvez ela não o esperasse, como prometera.

Laurette jurara que esperaria por ele para sempre. E Ladd acreditara. Tinha de continuar a acreditar. Ela esperaria... Um dia, aquela guerra absurda iria terminar, e ele seria libertado para poder voltar para casa e viver em felicidade absoluta com a sua querida e fiel Laurette.

Era essa fé que o sustentava. Ficava ali deitado durante horas seguidas, sonhando acordado com o momento em que regressaria a Mobile, e Laurette viria a correr ao seu encontro, chorando de alegria.

Porém, nas profundezas daquele calabouço obscuro, muitas vezes a sua esperança se desvanecia e já não se dava ao trabalho de rezar para que Deus Todo-Poderoso o ajudasse, olhasse pela sua segurança e pela sua sanidade. Era como se Ele o tivesse esquecido.

Tinha a impressão de estar naquele buraco imundo há séculos. Sabia que se não saísse rapidamente acabaria por enlouquecer. Os dias e as noites eram sempre iguais, numa rotina terrível, alucinante. Havia apenas a solidão, a escuridão, a fome, o tédio.

O seu desespero aumentava com o passar do tempo, e os minutos pareciam durar horas. Sentia-se cansado, abatido e esgotado. Já não queria viver. Queria apenas que aquela agonia terminasse depressa, embora soubesse que isso aconteceria apenas com a sua morte.

Pensava e pensava, deitado nos farrapos aos quais se tinha acostumado. Já se habituara também à ausência de luz, e sentia que se tinha transformado num animal estranho e diferente. Os seus olhos brilhavam e, muitas vezes, conseguia ver bem na escuridão.

Afinal, não havia nada ali que pudesse ver. Precisava de se decidir. Necessitava de fazer alguma coisa para sair daquele sofrimento sem razão. Talvez se parasse de comer e se se deixasse morrer à fome... Não demoraria muito, visto que estava muito fraco. Uma semana, talvez. E a ideia de se ver livre daquela tortura chegou a alegrá-lo.

Parou de comer nessa mesma noite. Quando a horrivel comida lhe foi servida, não lhe tocou. Em breve estaria ainda mais debilitado, sem possibilidades de se mexer. E o fim chegaria em breve.

No dia seguinte, à hora da refeição, Ladd mantinha-se deitado, quando a porta de ferro foi aberta e LaKid apareceu, anunciando, com o mesmo prazer de sempre:

- Hora de encher a barriga, rebelde! - e atirou uma folha de jornal para o chão da sala, na direcção de Ladd.

- O que é isso? - ele não se mexeu para ir buscar o que lhe fora atirado. As suas retinas estranhavam a pouca claridade que penetrava através da fresta.

- Isso, é o teu prato, de hoje em diante - ria LaKid, com maldade. - Acabaram os pratos, agora comerás em folhas de jornal.

Enquanto o capitão da guarda falava, outro soldado apareceu e colocou um pedaço de carne fétida sobre o jornal. Quando os dois saíram para o corredor, a porta ainda permaneceu alguns segundos aberta. Ladd lançou um olhar desinteressado à comida, mas a sua atenção centrou-se no nome do jornal periódico, escrito naquela mesma página: Diário de Mobile.

Com toda a agilidade que lhe foi possível, Ladd rolou sobre os seus trapos e pegou no pedaço de papel, lendo a data: 10 de Junho de 1865. Atordoado, devido à fraqueza e ao movimento brusco, afastou o pedaço de carne e viu que se tratava de um anúncio de casamento: A menina Laurette Howard tornou-se ontem, Sábado, esposa do Major James Tigart... ".

A porta fechou-se e a luz apagou-se, impedindo que Ladd pudesse continuar a leitura. Ajoelhado, permaneceu ali por longos e duros instantes, tentando perceber o que teria acontecido. Todo ele tremia, numa mistura de fraqueza, raiva e descrença.

Tudo começou a fazer sentido. A verdade horrível do que se passava tomava forma, e Ladd sentiu uma violenta náusea. O seu estômago revirou, prostrando-o ainda mais no chão. Sabia agora porque motivo Jimmy ordenara a sua prisão naquele buraco; queria que ele morresse! Jimmy tinha-o traído para poder ficar com Laurette. E ela era tão culpada como o seu antigo amigo, pois tinha jurado que o esperaria até ao fim.

Laurette dera a sua palavra de que somente lhe pertenceria a ele... mas não tinha esperado, não se tinha importado com o seu destino. Casara-se com Jimmy sem querer saber se Ladd estava vivo ou morto. As duas pessoas em quem mais confiara tinham-no traído com tanta sordidez que sentia ânsias só de pensar nisso.

Passou os braços em torno de si mesmo, sentindo as costelas proeminentes e balançou-se para a frente e para trás, embalando-se, sentindo uma dor aguda a penetrá-lo por completo, que ia além do limite físico. Era insuportável. Começou a gemer levemente, baixinho, e depois o seu queixume foi crescendo, aumentando, até gritar a plenos pulmões.

Passou a amaldiçoar quem o tinha traído, até que a sua voz ficou rouca e a sua garganta irritada. Lágrimas grossas caíram-Lhe do rosto, marcado pelo sofrimento e pela fome. Por fim, deixou-se cair para a frente, gemendo novamente, impotente e infeliz. O piso frio da cela parecia-lhe ainda mais gélido. E, de repente, vomitou toda a amargura que emanava do seu corpo e da sua alma.

Ficou ali deitado, agora quieto, como uma criança perdida que já não sabia o que fazer. O seu pranto secou aos poucos e, com esforço, ergueu a cabeça dorida. Ergueu o olhar para a pequena janela no alto e não acreditou no que via: uma bela borboleta acabara de entrar na sua cela e voava sobre a sua cabeça. Desceu ainda mais e sem cerimónias pousou, muito delicada, sobre o braço de Ladd, que estava apoiado no seu joelho dobrado.

Ladd mal podia acreditar que, depois de tanta sordidez, de tanta infelicidade, de tantas coisas horrendas que presenciara, ainda pudesse haver algum tipo de beleza como aquela no mundo.

Ficou a olhá-la, sentindo que algo dentro dele se alterava. A sua expressão endurecia e, no silêncio absoluto do seu cárcere, jurou para si mesmo que nunca... nunca mais voltaria a chorar. Jamais voltaria a deixar-se abater daquela forma.

Jurou também que aqueles que o tinham traído seriam levados à justiça. Por ele próprio. Sempre agira dentro do código de honra que aprendera a respeitar, e esperava ser tratado do mesmo modo, embora não tivesse sido assim. Então, daquele momento em diante, a sua lei seria olho por olho, dente por dente,

Não, não morreria por falta de apetite. Começaria a comer de imediato e sobreviveria a toda aquela atrocidade, durasse o tempo que durasse. Seria libertado um dia. Sim, viveria, e quando saísse daquele buraco...

 

Certa noite, que parecia não ter fim, Ladd estava deitado, sem sono, quando ouviu um ruído. Parecia vir da parede que estava à sua frente.

Com mais atenção, ouviu nitidamente um arranhar que vinha de fora da sua cela, da terra das fun dações da prisão.

Sentou-se rapidamente, continuando a ouvir, e calculou que aquele lugar devia estar infestado de ratos. Voltou a deitar-se mas, desta vez, o ruído transformou-se numas leves pancadas. Ladd tornou a sentar-se e encostou o ouvido à parede. Podia ouvir agora com mais clareza e, entusiasmado, bateu também. Depois, houve um silêncio total.

Nada mais. Nenhum som. Nada.

Ladd bateu ainda algumas vezes, pensando que poderia ser outro prisioneiro que, temendo que algum guarda o tivesse ouvido, tivesse parado o que estava a fazer. Devia ser por isso que o ruído surgira à noite; porque quase todos os guardas estavam a dormir. O velho Jim, o guarda que fazia o último turno, costumava beber e dormir durante horas seguidas.

Ladd gostava de poder comunicar com alguém.

Precisava de garantir ao outro prisioneiro que não havia nenhum guarda que o ouvisse, e que ele era também uma alma em desespero ali debaixo.

Procurou na pequena cela o bocado de osso que sobrara da sua parca refeição e com ele cavou as reentrâncias da pedra que estava no local de onde vinha o som.

O seu coração batia depressa, excitado, e ele continuava a cavar como podia, às vezes até com a ponta das unhas. E continuou a cavar até que os primeiros raios de sol apareceram, fracos, através da alta janela.

Queria continuar, mas sabia que seria arriscado. Então, cobriu o buraco que cavara com um pedaço de pano velho e tornou a deitar-se. Quando acabou de o fazer, o carcereiro trouxe-lhe o pequeno-almoço.

Ladd comeu o bocado de pão duro com satisfação, agitado ainda pelo que tinha acontecido nessa noite. Mal podia esperar que o sol se pusesse novamente para recomeçar a cavar.

Aquele foi o dia mais longo da sua vida. As horas arrastavam-se, andava de um lado para o outro na minúscula cela, curvava-se, exercitava os músculos. Cantou, recitou poemas, estalou as articulações e olhava de vez em quando para a pequena janela até que, pela primeira vez, deu graças pelo cair da noite.

Voltou a cavar assim que percebeu que seria seguro. Foram horas de esforço, suor, ansiedade, até que afastou a primeira pedra e, por fim, o osso usado atingiu nada mais que... ar. Ladd sentiu o peito cheio de alegria. Acabava de abrir um túnel

pequeno entre a sua cela e a do lado.

Cansado, pôs de lado o bocado de osso e respirou fundo. De repente, teve um sobressalto quando uma voz perguntou do outro lado da parede:

- Quem está aí?

- Um prisioneiro, como tu - respondeu.

Depois riu, histérico, quando viu uma cabeça de cabelos grisalhos aparecer na abertura que tinha feito.

O homem magro e barbudo que apareceu diante dos seus olhos encarou-o por segundos, depois fez uma careta e praguejou:

- Maldição! Fiz um mapa tão detalhado na minha mente e acabei por errar! Pensei que esta parede fosse uma das que dão para fora!

Sorrindo, feliz por ver outro rosto, por pior aparência que tivesse, Ladd explicou:

- O lado norte da tua cela dá para fora. Tu cavaste para sul. Esta é apenas outra cela.

O homem, aborrecido, acenou negativamente com a cabeça.

- Houve uma época em que eu nunca teria caído num erro tão primário - mas sorriu, acrescentando:

- Seja como for, nem tudo está perdido. Afinal, acabo de encontrar um amigo confederado, não é?

- Isso mesmo - Ladd deu uma gargalhada, satisfeito, enquanto o outro vinha para a sua cela e o abraçava com a saudade de alguém que tinha reencontrado um filho depois de muitos anos de ausência.

- Como te chamas?

- Sou o capitão Ladd Dasheroon. E tu?

- Major Finis Schafer. Ao teu dispor, rapaz.

- Finis Schafer... - repetiu Ladd, pensativo.

Será o mesmo Finis Schafer que é quase uma lenda em West Point?

Os fracos olhos do idoso iluminaram-se.

- Queres dizer que ainda falam de mim por lá? Estiveste em West Point, filho?

- Fiquei por pouco tempo, antes da guerra começar. E ouvi histórias fascinantes a seu respeito, major.

- Ah... bem, não deves acreditar em tudo o que ouves, sabias?

Finis Schafer, que estava tão contente como Ladd por ter encontrado companhia, sentou-se no chão, começou a conversar e, sempre em voz baixa, contou-Lhe a sua versão da sua própria vida, falou-lhe das suas fugas de West Point, com relatos detalhados, sentindo-se alegre pela primeira vez em muitos

anos por ter um interlocutor.

Ladd soube, assim, que Finis, órfão desde pequeno e vindo de Austin, no Texas, se tinha formado em West Point vinte anos antes da guerra começar e que estava ali preso há uma década.

- Foi feito prisioneiro antes do início da guerra?

- Não. Fui capturado no Verão de 1963. Os ianques puseram-me neste poço e, desde então, estou aqui.

- Meu Deus Há dez anos?

- Exactamente.

De repente, algo em Ladd pareceu despertar, e ele mal conseguia acreditar no que o seu raciocínio lhe revelava.

- Então... está a dizer-me que estamos em... i Finis anuiu, acrescentando, paciente:

- Filho, estamos em Junho de 1873.

Chocado, incrédulo, Ladd sentou-se contra a parede, com um olhar vítreo, enquanto se apercebia de toda a dimensão daquele facto.

- A... guerra ainda não acabou? - perguntou, quase para si mesmo.

- Qual quê... A guerra acabou na Primavera de 1865. Os Confederados perderam, lamento informar- te.

- Diga-me... se a guerra acabou... porque é que ainda estamos aqui?

- Somos presos políticos, filho. Eu roubei um carregamento de ouro dos ianques, que seguia para Washington - Finis acenou com a cabeça e admitiu:

- Rapaz, creio que te prenderam sob a mesma acusação. Ouvi os guardas dizerem que o secretário de guerra, o Stanton, acusou dois prisioneiros pelo roubo do ouro.

Ladd, atordoado, disse:

- Mas eles sabem que eu não fiz nada. Além disso, mesmo que fosse verdade, por que razão estaríamos encarcerados para o resto da vida? Era uma guerra, pelo amor de Deus, e tratava-se apenas de um carregamento de ouro!

Finis sorriu.

- O oficial encarregado de cuidar do ouro, o major Timothy Todd, foi morto durante o assalto. Era sobrinho de Mary Todd Lincoln, a esposa do presidente Abraham Lincoln. Somos prisioneiros de guerra sim, filho, e o nosso crime foi grande aos olhos de todos.

- Oh, meu Deus! - Ladd sentia desaparecerem as suas últimas esperanças de ser libertado.

Muito fraca, uma lembrança vinha-lhe à memória, definitiva. LaKid tinha comentado e ele ouvira: Se o Stanton fizer o que quer, o Schafer e o Dasheroon nunca serão libertados".

Laurette tentava ser uma boa esposa. Cuidava da casa, tinha aprendido a cozinhar e a lavar a roupa. E permitia que Jimmy a amasse quando quisesse, o que acontecia com muito mais frequência do que ela gostaria.

Afinal, não podia queixar-se. Concordara com o casamento e tinha que admitir que Jimmy fazia tudo para lhe agradar. Amava-a verdadeiramente e esforçava-se ao máximo para o provar todos os dias.

Jimmy conseguira, por sorte do destino, uma boa posição no Banco Planters State, seis meses depois de se casarem. O Banco, dizia-se, tinha sido comprado por um grupo de investidores do Norte, o que Laurette supunha ter sido motivo mais do que suficiente para que o seu marido tivesse sido convidado para trabalhar lá.

Jimmy era muito generoso com o dinheiro que ganhava. Tinha começado a restaurar a mansão, num processo longo, mas bem feito, e não deixava passar uma semana sem dar um presente a Laurette: uma estátua de porcelana, um par de delicadas luvas de pele, um lenço de tecido fino, um pente elegante, quase uma relíquia e, por fim, uma belíssima e sen sual camisa de noite preta que não deixava nada à imaginação do homem que a visse numa mulher.

Laurette corou ao receber aquele presente, mas Jimmy manteve um tom descontraído, dizendo apenas:

- Vamos esperar por uma ocasião especial para a usares. Eu avisar-te-ei, quando quiser que a vistas.

Laurette limitara-se a assentir, esperando que tal ocasião nunca chegasse. Para seu alívio, passaram-se muitas semanas sem que o marido voltasse a tocar no assunto. Mas, numa tarde quente de Fevereiro Jimmy, que nunca vinha almoçar a casa, apareceu pouco depois do meio-dia ter soado na igreja matriz.

Surpreendida, Laurette abriu-lhe a porta, usando ainda o avental que tinha posto para fazer a limpeza na cozinha.

- Eu... não esperava que viesses almoçar. Sinto muito, se não estou apresentável.

Jimmy entrou no hall, colocou a bengala no bengaleiro e virou-se, sorrindo.

- Não faz mal, Laurette - o brilho diferente nas suas pupilas deixava-a tensa. - Dentro de minutos estarás mais do que apresentável. Vais estar desejável!

- Não estou a perceber.

- Mas vais perceber - ele agarrou-a pelo braço e levou-a consigo para o quarto principal.

Prevendo as suas intenções, Laurette protestou, com suavidade:

- Oh Jimmy, estamos a meio do dia! As pessoas decentes não fazem certas coisas antes de o sol se pôr. Não podemos!

Mas ele parecia não ouvir. Foi directo ao armário e começou a abrir as gavetas, à procura da camisa de noite.

- Onde está ela, Laurette? A camisa de noite preta que te dei?

Ela engoliu em seco.

- Jimmy, não queres que eu...

- Claro que sim, querida. Veste-a - Jimmy en controu a peça, atirou-a para cima de uma cadeira

próxima de Laurette e começou a despir-se. Ao ver que a sua mulher não se mexia, perguntou-lhe: - De que é que estás à espera?

Laurette, obediente, pegou na peça de roupa. Agia devagar, como se tivesse sido condenada à

forca.

- Muito bem, agora entra no quarto de vestir, veste-a e volta-te para que eu te veja - ordenou

Jimmy, ansioso.

- Por favor, não pode ficar para esta noite? Laurette ainda tentou. - O sol está tão forte e...

- O sol está forte lá fora, meu amor. E é por causa do calor que quero amar-te agora. Sempre fiz o que tu quiseste durante muito tempo, fazendo amor apenas a meio da noite, quando nenhum de nós consegue ver bem o outro. Agora não quero mais esses tolos pudores. Tu és a minha esposa e tens que te comportar como tal.

Laurette observava-o, imóvel no meio do quarto, com o coração nas mãos.

- Vá! - ordenou Jimmy. - E, quando eu voltar, permitir-me-ás que te olhe quanto tempo eu quiser.

Laurette obedeceu, percebendo que não havia alternativa. Vestiu-se diante do espelho da outra cómoda e sentiu-se muito envergonhada. A camisa de noite expunha-a por completo, o que ela detestava.

- Querida, por que demoras? - chamou-a Jimmy, impaciente.

Ela sempre detestou a forma como Jimmy a possuía. Nunca colaborou, nunca gostou. Mas culpava-se a si mesma e não a ele. Jimmy tinha tentado muitas vezes seduzi-la, despertá-la para a paixão, mas não resultou. Laurette não gostava dele, não o amava, não queria fazer amor com o marido.

Todas as noites do seu casamento tinham sido um tormento e agora era obrigada a ceder também a meio do dia!

Respirou fundo e voltou para o quarto, caminhando devagar. As janelas estavam todas abertas. Virou-se imediatamente para elas com a intenção de as fechar, mas Jimmy não lho permitiu.

- Não, Laurette. Deixa tudo como está e vira-te para mim.

Ela sabia que Jimmy estava à sua espera, despido, e queria evitar ao máximo ter que olhar para ele. Obedeceu e ouviu ainda:

- Levanta os cabelos, meu amor. Isso, assim! Agora, volta-te de costas para mim. Maravilhoso! Outra vez de frente.

Laurette cerrou os dentes, irritada com aquilo. A exposição a que estava a ser submetida fazia-a sentir-se uma espécie de objecto.

- Vem até aqui, meu amor - Jimmy estava cada vez mais excitado. - Meu Deus, tu és tão linda! Cada vez que te vejo fico a imaginar o meu corpo no teu.

Quando Laurette chegou ao alcance das mãos de Jimmy, ele puxou-a e escondeu o rosto entre os seus seios, gemendo baixinho.

Calada, Laurette suportava aquilo com paciência e resignação. E, na posição em que estava, dava graças por Jimmy não poder ver a expressão de desagrado no seu rosto, quando começou a beijá-la com crescente paixão.

Durante a hora seguinte, Laurette continuou desligada de si mesma, alheia, fria. Quando tudo acabou e Jimmy se deitou ao seu lado resfolegando, ouviu-o murmurar:

- Preciso de voltar para o Banco.

- Eu sei - concordou, aliviada.

Laurette estendeu os braços e tapou-se com o lençol. Havia algumas manchas avermelhadas na sua pele, resquícios do amor de Jimmy. Ele levantou-se, vestiu-se apressadamente e virou-se para a cama, pegando na camisa de noite e levando-a até ao nariz. Inalou profundamente e, sorrindo para Laurette, comentou:

- Mal posso esperar para voltar para casa esta noite e repetir a dose! Promete-me que usarás esta camisa de noite outra vez, querida.

 

Nas profundezas da prisão, os dois prisioneiros tornavam-se cada dia mais amigos. O longo confi namento e as privações que passavam tinham-nos modificado de maneiras diferentes.

Finis não perdera a noção do tempo; sabia em que ano estavam, em que mês, em que dia. Sabia até que horas eram.

Ladd ficava impressionado com isso. No entanto, o major não se conformava por ter perdido o sentido de direcção que o levara a fazer cálculos tão erróneos quanto ao local por onde deveria continuar a cavar. O idoso soldado não entendia como pudera ficar tão desorientado.

Quando, por fim, disse que já estava na hora de voltar para a sua cela para poder dormir um pouco, Ladd tocou-lhe no braço.

- Espere. Seja como for, conseguiu cavar um túnel. Mas... que tipo de ferramentas usou?

Finis explicou:

- Fui eu mesmo que fiz algumas. Existia uma cama na minha cela quando fui mandado para lá, e consegui produzir uma alavanca e uma espécie de faca. E fui capaz de cavar quase seis metros com elas.

- Oh, meu Deus! Seis metros!

- Demorou muito - o major meneou a cabeça, frustrado, completando: - Agora entendo que qualquer tipo de fuga é impossível. É o meu destino morrer aqui dentro, neste buraco.

- Não! Não deve desistir! - incentivou-o Ladd. Se conseguiu cavar um túnel numa direcção, porque não conseguirá noutra? Porque não tenta outra vez?

Finis encarou-o, mal o vendo na escuridão.

- Tentar de novo... - analisava aquela ideia. Deves estar louco, meu rapaz. Não entendes? Demorei três anos a fazer as ferramentas! Podes imaginar quanto trabalhei? Quanto tempo demorei a cavar até esta cela? Foram mais dois anos! Dois longos e cansativos anos! E trabalhei sem parar, todas as noites, cavando, com os dedos a sangrar.

E, tendo nos olhos uma expressão ainda mais selvagem do que a que adquirira durante todo aquele sofrimento, Finis continuou a explicar como os seus braços tinham ficado exaustos, como sonhara, como desejara sair dali, como fora extenuante todo o seu esforço, que agora não dava os frutos desejados. Contou que chegara a localizar um velho cano de esgoto, mas que tinha sido bloqueado para evitar fugas. No entanto, fora dentro dele que pudera esconder toda a terra que deslocara.

Ladd ouvia-o, paciente, assentindo, entendendo o seu desespero. E, quando o major por fim acabou de falar, argumentou:

- Não cavou em vão, Finis. Você encontrou-me e, mesmo que não o tivesse feito, o seu projecto, o seu trabalho, foi o que o manteve firme até agora. Tinha esperança de conquistar a liberdade, amigo, uma razão para continuar a sobreviver!

Finis encolheu os ombros, aborrecido, mas Ladd insistiu:

- Devemos escavar outro túnel! Juntos! O que me diz? Através da parede norte, que nos fará con quistar um dia a liberdade!

Houve alguns segundos de intenso silêncio, enquanto Finis parecia estar a digerir aquilo. Depois disse, calmo, suavemente:

- Iria demorar tanto... Já não tenho energia suficiente.

- Então, deixe que eu cavo. Tenho força por nós dois.

- Não sei... - suspirou o major. - Pode levar dois ou três anos, talvez ainda mais, até construirmos um túnel que passe pelo pátio da prisão e siga para além das muralhas.

Ladd sorriu, respondendo rapidamente:

- Dois anos? Três? Olhe, com a possibilidade de ficarmos livres, eu poderia fazê-lo durante um milénio, se fosse necessário! Quando começamos?

O entusiasmo dele animou o velho soldado, que sorriu, dizendo apenas:

- Estou demasiado cansado agora mas, se vieres à minha cela amanhã à noite, poderemos dar início ao nosso plano.

E assim foi. Na noite seguinte, os dois reiniciaram a difícil tarefa, sempre com muito cuidado e procurando não fazer ruído algum. Ladd seguia as orientações de Finis, já que o projecto era dele, sabendo que o major, nos longos anos de cárcere, planeara muito, sabendo a exacta distância que os separava do pátio da prisão.

Havia uma esperança nova no seu coração, e assim o seu labor tornava-se mais entusiasmado, mais eficiente, noite após noite. E os seus dias não eram desperdiçados.

Ladd estava feliz na companhia do educado e inteligente major, que adorava falar e ensinar tudo o que sabia. Com Finis, Ladd aprendeu muito mais do que na escola ou no curto período de academia militar.

O major era uma fonte de conhecimentos em muitos assuntos: história, filosofia, arte, música, teatro. E via Ladd como o filho que nunca tivera. E passava os seus dias a educá-lo, percebendo que Ladd estava mais do que disposto a aprender. E, ao anoitecer, os dois trabalhavam juntos, com um único objectivo: sair dali.

Os meses passaram-se, e Finis ficou muito satisfeito com o progresso que faziam. Percebeu que Ladd, muito mais jovem e forte, conseguia fazer numa noite o que ele próprio faria numa semana. O túnel crescia em direcção à preciosa liberdade que tanto almejavam mas, com o passar do tempo, o falador e bem-humorado major começou a enfraquecer e a emagrecer ainda mais.

E Ladd preocupava-se com o amigo. Encorajava-o a comer, mesmo quando não tinha fome, a descansar bastante, à espera do momento em que se pudessem ver livres. Entretanto, a saúde do pobre homem debilitava-se a olhos vistos.

Quando se passara pouco mais de um ano, o túnel estava quase pronto, mas Finis sofria de uma grave enfermidade. E ambos sabiam que ele jamais conseguiria deixar a prisão.

- Deves continuar sozinho, meu amigo - disse ele, muito fraco. - Não vou conseguir.

- É claro que vai! - Ladd recusava-se a aceitar os factos.

E, durante os meses que se seguiram, permaneceu ao lado de Finis, cuidando da sua saúde, tentando ajudá-lo como podia, para lhe dar um mínimo de conforto. Partilhava a sua ração de comida e água com ele, massajava-lhe os membros magros e doridos, falava-lhe com suavidade, tentando dissipar a tristeza das longas horas na escuridão e no abandono.

Como não tinha família, Finis estava grato a Ladd e, quando se recuperou o bastante para poder falar com clareza, informou Ladd que tinha algo de muito importante a revelar-lhe.

- Quando saíres daqui, meu jovem, quero que vás buscar o ouro. O resto dos teus dias será passado no meio da riqueza, filho, porque serás milionário!

Depois disso, numa fria noite de Fevereiro de 1875, Finis Schafer morreu na prisão chamada Cas telo do Demónio, tendo Ladd junto dele. E, ao ver o seu último suspiro, Ladd sentiu a garganta apertar-se. Cerrou as pálpebras do amigo e regressou para a própria cela, através da passagem secreta que tinha sido aberta entre os dois cárceres.

Quando os guardas faziam a ronda nocturna, Ladd ouviu um deles comentar:

- Ora, ora, ganhaste a aposta! O velhote rebelde está morto!

- E está mesmo! - concordou o outro. - Vai buscar um saco de lona. Iremos enterrá-lo de manhã.

Ladd esperou até que eles regressassem com o saco e colocassem o pobre Finis dentro dele. Quando teve a certeza de que eles tinham saído do cárcere, dirigiu-se até à cela do companheiro e abriu o saco, com muito cuidado, tirando o corpo frio de Finis de lá e levando-o para a sua cela. Deixou-o sobre os restos dos seus farrapos, no chão, de costas para a porta; e murmurou:

- Adeus, meu bom amigo.

Passou de novo para a cela de Finis, entrou no saco de lona e atou a borda com o cordel que a fechava. E ali esperou durante toda a noite.

Por fim, a porta da cela foi aberta e os dois guardas vieram recolher o que supunham ser o cadáver.

Ladd manteve o corpo o mais rígido que conseguia, sendo levado para fora da cela até ao cemitério, fora dos limites da prisão, num local onde qualquer prisioneiro poderia ser morto, caso tentasse escapar.

Aí, foi lançado para uma cova rasa e, tenso, sentiu as camadas de terra a serem lançadas sobre si. Começou a entrar em pânico, numa sensação angustiante de asfixia, mas manteve-se firme, pensando apenas na liberdade que estava prestes a conquistar, e esperou até sentir que estava em absoluta segurança.

Aos poucos, o barulho das vozes dos soldados e o latir do cão que os acompanhava desapareceu ao longe.

Só então Ladd ousou cortar a lona com a faca de Finis, que levara consigo, e depois esforçou-se por sair da sepultura, correndo, como louco, em direcção à praia. Lá, lançou-se desesperado às águas geladas da baía de Chesapeake, para evitar que o faro dos cães da prisão pudesse localizá-lo facilmente.

Nadou o mais rapidamente que pôde, mas o mar estava demasiado frio. E, fraco como estava, sentiu que os seus braços o traíam, trémulos, magros. Percebeu que morreria em breve se permanecesse na baía.

Exausto; voltou para a praia, olhando ao redor para tentar situar-se e saber a que distância se encontrava da prisão. Não estava assim tão longe. Chegou a algumas pedras, mas o cansaço era demasiado para continuar. Tentava agarrar-se às rochas, mas não conseguia, pois eram escorregadias, cobertas de limos. E as suas mãos afundavam-se na água, que lhe parecia cada vez mais gelada.

As ondas pareciam levá-lo de volta e soube, então, que ia morrer. Porém, exausto e gelado demais para se importar com isso, deixou-se ir.

Para seu espanto, uma mão poderosa tocou-Lhe no ombro, agarrando-o e puxando-o para fora da água, para um local mais seco na areia. Ladd tentou olhar para cima, mas o sal do mar entrara-lhe para os olhos, fazendo-os arder. A única coisa que conseguiu divisar foi dois ossos brancos cruzados. Depois, desfaleceu.

Quando Ladd recuperou os sentidos, voltou a olhar para cima. Havia alguém ao seu lado, encarando- o. Era um homem que Lhe pareceu ter estatura média, mas que era muito forte, sem ser gordo. Possuía músculos rígidos como aço.

E o indivíduo olhava-o, muito sério. Usava calças pretas, camisola de lã da mesma cor e um boné também negro. Era na camisola que estavam os dois ossos cruzados que Ladd vira antes. Com um leve sorriso, o estranho disse apenas:

- Devia dar os seus mergulhos apenas em dias quentes de Verão, companheiro.

- É o que vou fazer, de hoje em diante - conseguiu Ladd responder, sentando-se muito devagar e apresentando-se: - Sou Ladd Dasheroon, e estou a fugir do Castelo do Demónio. Se pretender levar-me outra vez para lá, faça-o agora.

O enorme desconhecido apertou com força a mão que Ladd lhe oferecia, rebatendo:

- Pelo contrário, amigo. Vou ajudá-lo a escapar. Surpreendido e feliz, Ladd respirou fundo e murmurou:

- Então. muito obrigado.

- Ossos - apresentou-se o seu salvador, com um sorriso confiante. - Pode chamar-me Ossos.

E deu abertamente uma gargalhada, acompanhado por Ladd.

 

                 Mobile, Alabama, Inverno de 1880

- Pelo que ouvi dizer, ele fez fortuna com o caminho-de-ferro - disse um dos homens.

- Não, não, foi com minas de ouro - opinou outro.

- Foi o telégrafo! - declarou um terceiro, como se tivesse toda a certeza do mundo.

- Não é nada disso! - exclamou, ainda, um quarto. - Ouvi dizer que foi com a retirada dos bloqueios, ainda durante a guerra.

- Bem, seja como for - rebateu o primeiro dos interlocutores, - o que sei com toda a certeza é que

se trata de alguém muito rico, com toneladas de dinheiro:

O assunto do grupo era o convidado de honra que ainda não estava presente na reunião dessa noite. O indivíduo era um completo enigma para todos os que ali estavam. Sutton Vane acabara de chegar a Mobile, deixando clara a sua intenção de se fixar na cidade.

Dizia-se que comprara uma ilha particular junto à costa, onde pretendia construir uma mansão de veraneio. E o que se sabia ao certo era que adquirira uma mansão na rua do Governo, mesmo no centro de Mobile.

Além disso, pouco ou nada se conhecia sobre o misterioso cavalheiro que tinha sido convidado para a festa, cujo anfitrião era o coronel George P. Ivy. O idoso soldado jogara cartas com Sutton Vane na véspera, no Clube Magnólia, e sentira- se muito bem na sua companhia, embora tivesse comentado que o novo cidadão era um tanto reservado. E, com a sua sempre presente hospitalidade sulista, o coronel convidara-o para a comemoração em sua casa, insistindo na sua comparência.

Na mansão da rua Dauphin, Laurette Howard Tigart preparava-se para fazer uma rara aparição num evento social. Escolhera levar uma vida tranquila, reclusa. Ferida pelo escândalo que rodeara a sua separação e pelos rumores sobre o afastamento do seu marido do cargo que ocupava no Banco Planters, devido a um possível desfalque, Laurette preferia agora a solidão e a tranquilidade do seu lar. Ou melhor, da casa que um dia lhe pertencera.

A escritura da mansão, bem como tudo o mais, perdera-se quando Jimmy tivera de saldar os seus inúmeros débitos. E agora, a propriedade que Laurette tanto amava fora parar às mãos da Corporação Bay Minette. Não fazia ideia de quem poderiam ser os donos dessa tal poderosa firma. Talvez ianques abastados. De qualquer modo, sentia-se grata por poder morar ali, já que a empresa permitira a sua estadia em troca de um suave aluguer mensal.

Laurette sentira-se obrigada a estar presente na festa dessa noite, já que o coronel, antigo e querido amigo da familia, insistira para que lhe desse essa satisfação e estivesse com ele. O coronel passara pelo Hospital dos Veteranos, onde Laurette trabalhava, para Lhe fazer o convite.

Ao princípio, ela começara a esboçar uma desculpa para não ir, mas acabou por mudar de ideias, e o rosto avermelhado e simpático do idoso oficial iluminara-se ao ver que a convencera. Parecia que Ivy, na realidade, organizava alguma coisa que só seria perfeita com a presença de Laurette. E por gostar, de facto, muito dele, Laurette acabara por sorrir, dizendo:

- Pode contar comigo, coronel.

Durante todo o longo e infeliz casamento que tivera com Jimmy Tigart, procurara esconder a sua angústia, sem partilhar o seu desespero com ninguém, nem mesmo com as suas melhores amigas, as gémeas Johanna e Juliette. Mesmo quando Jimmy, nos últimos dezoito meses antes de partir, começara a procurar a companhia de outras mulheres, ela mantivera-se calada e paciente.

Mobile, como qualquer outra cidadezinha típica, era um local onde não se podiam guardar segredos por muito tempo e, em breve, todos sabiam das indiscrições de Jimmy. Mas Laurette jamais as comentara, nem com o marido, nem com mais ninguém.

Quando ele chegava já bem de noite a casa, bêbado e a cheirar a perfume barato, Laurette não o repreendia. Imaginava, pelo contrário, que ela era a maior culpada de tudo aquilo. Nunca o amara, e Jimmy sabia-o. O fracasso do seu matrimónio era, portanto, culpa de ambos. Assim, quando há um ano o escândalo sobre o desfalque no banco veio à superfície, Jimmy pediu o divórcio, desaparecendo de Mobile logo em seguida. Laurette sofrera as consequências de tudo aquilo sem reclamar, sem querer que outras pessoas fossem testemunhas da sua hu milhação.

Além do mais, em hipótese alguma admitiria a quem quer que fosse que estava exultante com a partida de Jimmy, livre da sua presença para sempre.

Era muito melhor para ela viver sozinha do que com ele. A introspecção e o tédio eram, a seu ver, preferíveis a uma existência repleta de desprezo. E, com um certo peso na consciência, admitiu para si própria que todas as noites, quando se deitava, era com grande satisfação e alívio que agradecia a Deus por estar sozinha no seu leito.

Laurette Howard Tigart, antes uma alegre e mimada rapariga sulista, tornara-se uma mulher responsável e calma. Suportava os seus sofrimentos calada e mantinha-se reservada. Não reclamava de tudo o que Lhe acontecera, aceitando com resignação os factos.

Cansada agora, com as costas a doer por estar inclinada tanto tempo na árdua tarefa de cuidar e lavar os doentes do Hospital, preparava-se, mesmo assim, para o evento para o qual tinha sido convidada. O coronel prometera enviar uma carruagem para a ir buscar às sete horas em ponto, e não queria atrasar- se.

Abriu o armário das roupas, olhando para elas sem muito interesse. Escolheu logo um vestido simples, mas elegante, de veludo azul. Tratava-se de uma peça velha, que não usava havia anos, mas era uma roupa quente e confortável, e pareceu-lhe apropriada para a ocasião.

Pretendia permanecer na festa apenas o suficiente para que o coronel se sentisse satisfeito por ter ido e depois voltaria a correr para o agradável isolamento do seu lar.

Quando a noite caiu por completo sobre Mobile e a neblina começou a subir das águas do rio, Laurette entrou no hall da espaçosa casa dos Ivy, sendo recebida pelas alegres Melba Adair e a sua filha ainda solteira, Lydia.

Todos sabiam que mãe e filha, tendo sido deixadas bem pobres devido à guerra, agora lutavam, perseverantes, pois tinham perdido o dinheiro da venda da propriedade, iludidas por um espertalhão chamado Jackson Tate, que as convencera a investir em acções de uma empresa falida.

Laurette recebeu logo um copo de rum e foi levada para dentro do salão, acompanhada pelas conhecidas, e ali permaneceu com elas por alguns minutos. Perguntava a Melba sobre as suas recentes dores de cabeça, quando um murmúrio geral a fez interromper-se para se voltar na direcção da porta, para onde todos os olhares convergiam.

Viu que um homem alto, de cabelos negros, grisalhos nas têmporas, acabava de parar logo por baixo da abóbada da entrada. Ao lado dele estava o coronel Ivy, sorridente como de costume.

O estranho vestia-se com esmero e era muito atraente. A parte inferior do seu rosto estava enco berta por uma barba e um bigode bem cortados que, nele, ficavam muito bem.

Laurette pareceu parar de pensar. Já não se lembrava do que estava a conversar com Melba Adair. Os seus olhos estavam fixos no recém-chegado e uma estranha sensação invadiu-a. Sentiu-se fraca, vulnerável, e, de repente, prendeu a respiração ao ver que o coronel trazia o estranho até junto dela.

Ivy fez as apresentações, começando por Lydia e Melba Adair, e depois indicou Laurette.

- Esta jovem adorável é a senhora Laurette Howard Tigart.

Sutton Vane inclinou-se levemente, com toda a sua atenção centrada em Laurette. Achou-a pálida, mas linda. A pele sem falhas, os traços bem delineados, os olhos luminosos, intensos. Os seios, que o corpete do vestido deixava um pouco à mostra, arfavam, num movimento que traía a sua agitação.

Sentiu o coração parar por uns indecifráveis segundos. Mas a voz do coronel, forte e alegre, conti nuou, trazendo-o de volta à realidade:

- Minha cara, deixe-me apresentar-lhe o senhor Sutton Vane.

- Encantado, senhora Tigart - cumprimentou-a Sutton, tomando-Lhe a mão com suavidade. - Ainda não conheci o seu marido. Ele também está presente?

Laurette sentiu o calor dos lábios dele sob o fino tecido das suas luvas. E os seus cabelos eriçaram-se na nuca em resposta àquele toque. Não conseguia dizer nada e sentia-se uma tola.

- A senhora Tigart está divorciada - explicou o coronel, por ela.

- Senhor Vane - disse Laurette, educadamente, seja bem-vindo a Mobile.

- Obrigado. Espero que nos tornemos amigos.

Após trocarem mais algumas palavras banais, Sutton Vane afastou-se e não voltou a falar com Laurette. Mas ela não conseguia deixar de olhar para ele. A presença daquele homem mexera com toda ela de uma forma que não era normal.

Não apenas por causa da sua aparência tão atraente, embora não pudesse negar que o conjunto dos impressionantes olhos azuis, os cabelos muito negros, o rosto anguloso, firme, bonito, a tinha afectado bastante. No entanto, Sutton Vane era... diferente.

Fitava-o e sentia-se arrepiar. Havia alguma coisa no encanto e na elegância dele que a desconcertava. Era uma espécie de fascínio, provocado pela graça e pelo perigo que sentia nele. Existia, também, um vago traço de crueldade que, por incrível que parecesse, o tornava ainda mais irresistível.

Laurétte estava, no mínimo, intrigada. Via-o mover-se pelo salão, conversar com as pessoas, conhecê-las, e mantinha-se quieta e atenta.

Vane, por sua vez, notava muito bem o olhar intenso que o seguia. Percebia o interesse crescente de Laurette e sabia que ela estava fascinada, mesmo contra a sua vontade. Sabia também o quanto a encantava e o quanto Laurette podia estar assustada e amedrontada com tal atracção. E, acima de tudo, estava certo de que ela esperava que ele voltasse a aproximar-se para conversarem de novo, talvez dançarem... Mas preferiu ignorá-la.

Quando o baile começou, depois das nove, Sutton levou diversas senhoras para a pista, inclusive a alegre Johanna Parlange, que não escondia o deslumbramento nos seus braços. Mas Vane não se aproximou de Laurette.

Desapontada e surpreendida consigo mesma por isso, ela começou a sentir-se cada vez mais descon fortável, porque o encanto que aquele estranho exercia sobre os seus sentidos incomodava-a. E, logo que julgou possível, despediu-se, deixando a festa bastante cedo.

Ao chegar a casa respirou, aliviada. Tremia devido ao frio que a noite trouxera e apressou-se a su bir para o seu quarto e a recolher ao leito. Ajeitou as cobertas e pegou no livro que mantinha à cabeceira, abrindo-o com a intenção de ler um pouco.

Mas logo teve de desistir. Não conseguia concentrar-se no texto. Recostou-se, cerrando as pálpebras e vendo diante de si a figura forte e atraente de Sutton Vane.

Estremeceu mais uma vez. Aquele enigmático e belo cavalheiro intrigava-a. Era o primeiro homem que lhe chamava a atenção desde... desde Ladd, há vinte longos anos atrás...

Pouco depois da partida de Laurette, Sutton Vane também saiu. Tinha sido agradável e encantador durante todo o tempo em que permaneceu na residência do coronel, conversando com todos, dançando com as senhoras e meninas, agindo como se estivesse muito divertido.

Porém, além da imagem que mostrava em público, existia outra, com qualidades bem menos admiráveis: raiva, desconfiança, um comportamento frio e um humor terrível. Essa era a sua realidade.

O ódio estava melhor definido no seu coração do que qualquer outro sentimento. Havia, há longos anos, um vazio muito grande na sua vida, que se auto-impusera e que nunca preenchia.

Seguiu directamente para a sua mansão na rua do Governo e, ao chegar, com passos firmes pelo vasto hall de mármore, parou de súbito no escritório, onde encontrou o seu fiel amigo, o musculoso Ossos, dormitando numa poltrona de couro junto à lareira.

Ossos acordou e levantou-se prontamente, perguntando:

- Então, como foi?

- Exactamente como o planeado - foi a resposta gélida.

Um sorriso de satisfação aparecia nos seus lábios. Dirigiu-se para a cadeira que Ossos acabara de deixar e instalou-se nela.

- Chefe, no que diz respeito a ela, bem... eu gostaria que pusesse essa vingança de lado - aconselhou-o Ossos, meneando a cabeça.

Sutton ergueu o olhar para ele, muito sério e firme.

- Não procuro vingança, mas justiça - afirmou, num tom baixo mas terrível.

Ossos não disse mais nada. Assentiu apenas e deixou o escritório, trancando a casa toda e retirando-se para os seus aposentos particulares.

 

Sozinho, Sutton Vane serviu-se de uma boa dose de uísque, apagou a última lâmpada e sentou-se na penumbra do seu quarto, vendo as chamas da lareira a apagarem-se devagar.

Respirou fundo, pensando naquela noite. Enfim, acontecera. Ele vira-a, fora apresentado a ela, tocara na sua mão, falara com Laurette. A bela, voluntariosa e rebelde garota do seu passado, cuja imagem o acompanhara durante todos aqueles anos, atormentando-o na escuridão daquele terrível calabouço.

Mas Laurette já não era uma menina, mas sim uma mulher. E achou-a mais linda do que nunca. Os cabelos claros, os olhos grandes, brilhantes, a pele suave e rosada, o corpo de curvas sinuosas, perigosas.

Cerrou as pálpebras e apertou os dentes uns contra os outros. Mas recuperou-se depressa da sensação que o invadia. Abriu os olhos, tomou um gole da bebida e fez uma careta, sentindo-a arder na sua garganta.

O breve encontro de há pouco fora o que esperava desde que aquele vapor passara lentamente por Forte Morgan, entrando nas águas calmas da baía. Três meses antes, quando chegara, sentira uma sombra pesada a pairar sobre o seu coração. Estava, finalmente, de regresso a Mobile, depois de tanto tempo.

Olhara com atenção para a névoa que subia da superfície, e os vinte anos que o separavam do seu passado pareceram-Lhe uma eternidade, apertando-lhe o peito. E, naquele dia, imaginara como iria sentir-se quando voltasse a ver Laurette. Voltara a vê-la nessa noite, e ela não o reconhecera.

Na realidade, ninguém conseguira fazê-lo, o que não era de surpreender. Mudara muito durante os penosos anos que passara no presídio. Nem ele mesmo se reconhecia. O rapaz que partira para West Point há vinte anos atrás fora um tolo confiante que recebera exactamente o que merecera.

Sorriu com tristeza e meneou a cabeça de densos cabelos pretos, o olhar ainda fixo ao resto do fogo que ardia. Nada restara daquele alegre rapaz. Ele partira para sempre.

O sorriso desapareceu aos poucos, dando lugar a uma expressão onde o ódio era mais evidente do que tudo. Nas profundezas das suas íris azuis estava ainda a imagem do homem responsável pelo seu longo e brutal cativeiro. E também da mulher que prometera esperar por ele para sempre...

Terminou o uísque e tornou a sorrir, mas agora havia maldade nos seus lábios. Jurara a si mesmo, nas longas noites de sofrimento naquele cárcere imundo, que buscaria a justiça a qualquer preço. E fizera-o. E continuaria a fazê-lo.

Depois de ter escapado da prisão e de ter sido tratado pelo paciente e servil Ossos, seguira com o novo companheiro em busca do ouro que Finis Schafer roubara à União. Nada tinha além de um rascunho de mapa que o major lhe dera antes de morrer. Finis dissera ter escondido o tesouro numa caverna nas montanhas a leste dos Apalaches, na Virgínia.

A procura demorara quase um ano. Havia inúmeras cavernas naqueles montes enormes, e em dado momento os dois homens começaram a desesperar por não encontrarem nada. E começaram a imaginar se haveria, de facto, um baú com ouro para ser encontrado.

Quando já estavam quase a ponto de desistir sentaram-se, um certo dia, para descansar e beber um pouco de água dos seus cantis. Era uma manhã fria de Março de 1877 e, ao recomeçarem a cavar, pouco depois, Ossos encontrara alguma resistência por baixo da picareta que usava. De olhos arregalados de surpresa e esperança, gritara um palavrão pouco antes de cair, juntamente com muitas pedras e poeira, para dentro de um buraco enorme, que revelou tratar-se de uma caverna oculta.

Ladd acorrera para o ajudar, temendo que se tivesse ferido, mas Ossos ria às gargalhadas, dizendo que pensava ter encontrado o ouro.

Começaram ali a cavar, mais fundo, e durante longos e tensos minutos continuaram, até encontrarem um velho baú de carvalho. Abriram-no, usando um tiro de revólver e, para seu espanto, ao sentarem-se para descansar diante dele, felizes, olharam para cima, vendo que havia ainda mais barras de ouro empilhadas numa reentrância da parede rochosa.

Ladd engolira em seco. Fora, uma vez, um rapaz muito rico. E tornava a sê-lo. Assim, como apenas os abastados podem fazer, começara a pôr os seus planos em prática. Mantendo-se discreto para não chamar a atenção, continuara mais para o sul e contratara muitos homens para levarem a efeito o que pretendia.

Juntos, todos eles fizeram o que passou a ser conhecido como o jeitinho sulista, um sistema de intimidação e promessa de favores que fazia com que grandes homens de negócios acabassem por aceitar a gerência de uma figura distante e poderosa que, muito sabiamente, se afastava das negociações mais sórdidas.

Com o passar dos anos, Ladd progredira muito. Conseguira tornar-se dono do banco onde Jimmy Tigart fizera o desfalque. Ao comprá-lo, Ladd providenciara para que Jimmy fosse de imediato promovido a presidente. Sabia muito bem que bastava colocar a tentação suficiente diante dos olhos sempre ávidos do ex-amigo e deixar que o seu mau carácter fizesse o resto.

Jimmy, orgulhoso de si mesmo e da posição que alcançara, conseguira manter uma reputação impecável até que os rumores sobre as práticas pouco lícitas da sua gestão tiveram início. Fora um dos homens de Ladd, agora Sutton Vane, quem iniciara os boatos que tornaram público o esquema de desfalques de Tigart.

E, assim que o crime foi denunciado, o malfadado presidente do banco viu-se encurralado. Podia ir para a prisão por muitos anos ou, após divorciar-se, fugir para a Europa.

Essa foi a proposta que Jimmy Tigart recebeu e que aceitou sem pestanejar, sabendo ser a sua única saída. Uma passagem só de ida para longe, com a promessa de que jamais voltaria à América se quisesse permanecer vivo. Depois de aceitar, foi revelado a Tigart quem determinara os termos da sua si tuação.

Agora, ali, diante do que restara das achas de madeira, Sutton deliciava-se a recordá-lo, satisfeito. Fora tão fácil e rápido fazer com que o covarde e desonesto Tigart concordasse com tudo, até com o divórcio! O infeliz apenas se preocupava consigo mesmo.

E Jimmy Tigart não era o único alvo da justiça que Sutton Vane queria que fosse implacável. Havia ainda o sádico Gilbert LaKid. Até esse momento, o sujeito não pudera ser localizado pelos seus homens, mas eles continuariam à procura dele até o encontrarem. E, quando o fizessem, Sutton Vane iria, em pessoa, certificar-se de que o seu cruel carcereiro iria receber o que merecia.

No entanto, na sua opinião, a pessoa que merecia o melhor do seu sentimento de justiça era Laurette Howard Tigart. Como detestava lembrar-se de que ela assinava agora aquele apelido! Que o tivera por tantos anos! Que, mesmo divorciada, era assim que lhe chamavam!

Sutton franziu um pouco os olhos, ao pensar nos planos que arquitectara para ela. Passara longas horas matutando em como poderia Laurette pagar pelo que lhe fizera, por ter acabado com o seu coração apaixonado, inexperiente, inocente. O que poderia fazer para a ferir, pelo menos metade do que ela o ferira?

Então, encontrara uma resposta. Iria, agora que a encontrara, começar a fazer-lhe a corte. De propósito, esperaria até Laurette se ter esquecido da noite em que Lhe fora apresentada em casa do coronel. Sabia que ela se deixara impressionar com a sua figura. Laurette, mesmo sem querer, respondera à sua presença, ficara tensa. Pensaria nele durante dias, imaginaria coisas, desejaria encontrá-lo de novo; e quando acreditasse que não iria vê-lo outra vez, quando se tivesse quase esquecido da forte impressão que tivera, Sutton procurá-la-ia.

Quando menos esperasse, Laurette receberia a visita do homem que a impressionara tanto, e ele portar-se-ia como o melhor dos cavalheiros. Pedir-lhe-ia autorização para a visitar, o que receberia com certeza. Estava confiante nisso. E passaria a acompanhá-la a eventos sociais, mostrando sempre muito respeito, incitando-a com calma, desarmando-a, encantando-a. Dar-lhe-ia presentes. Iria agradar-lhe, seduzi-la.

E depois, quando Laurette estivesse subjugada, iria amá-la de uma forma como ela jamais poderia imaginar. Colocaria o seu ex-amor à sua mercê, entregue sem reservas. E sabia que, assim como não o reconhecera no seu primeiro encontro, Laurette também não o reconheceria na cama.

Já não era o rapaz inexperiente de antigamente, que a amáva sempre com pressa, com medo de serem descobertos. Nos cinco anos que se tinham passado desde que escapara da prisão, já tivera muitas amantes. Mulheres lindas, ricas, experientes nas artes da cama. Que não tinham tido o menor pudor em ensinar-lhe os segredos dos seus corpos e do dele também. Sutton Vane fora um excelente aluno. Sabia agora muito bem como agradar a uma mulher, como levá-la à loucura. QualQuer mulher.

E, quando a oportunidade chegasse, levaria Laurette para o leito e mantê-la-ia lá até que ela estivesse perdidamente apaixonada. Mesmo que demorasse. Semanas, meses, anos, não importava. Tinha tempo. Aliás, isso era tudo o que possuía.

E, quando Laurette fosse sua de corpo e alma, só então revelaria a sua verdadeira identidade e depois abandoná-la-ia, para que Laurette sofresse o que ele sofrera, enquanto Sutton escolheria uma outra para ser sua esposa.

O Natal chegou a Mobile. A cidade estava toda decorada, e grupos de crianças vestidas de vermelho e verde saíam pelas ruas, à noite, para entoar cantigas nas praças e jardins, encantando toda a gente.

Laurette foi como voluntária trabalhar no Hospital de Veteranos na noite de Natal e no dia seguinte, para que um casal de outros enfermeiros pudesse passar aquela data em casa, com a familia.

Ela gostava de trabalhar no Hospital. Já fizera trabalho voluntário quando era casada com Jimmy. Agora recebia um pagamento pelos seus serviços, graças ao bondoso administrador, Gordon Hill, que conhecia bem a situação financeira em que Laurette se encontrava depois do divórcio.

Laurette, na verdade, ficara satisfeita por trabalhar nesse dia, tanto pelo dinheiro extra que receberia, como pelo facto das suas amigas, as gémeas Parlange, estarem fora da cidade, a passar os feriados com familiares em Nova Orleães. Se ficasse em sua casa, Laurette estaria sozinha, e o Hospital parecia-lhe uma alternativa bem mais agradável.

O sol fraco que aparecera naquela manhã dera lugar a nuvens espessas, que encobriam a cidade. Pouco depois do meio-dia, uma chuvinha fina começou a cair e intensificou-se pouco depois.

Passando pelo corredor lateral do andar térreo, Laurette olhou para a chuva, lá fora, e sentiu um arrepio. Puxou o xale por sobre os ombros. Quando chegou à sala para onde seguia, endireitou a coluna e, pondo um sorriso nos lábios, entrou.

- Feliz Natal, senhor Cooper! - cumprimentou, alegremente, o veterano que estava deitado, abatido e pálido, na cama de lençóis brancos.

E o sorriso que forçara ao princípio foi genuíno quando os olhos cansados do soldado idoso a fitaram e se iluminaram, e a sua mão trémula se ergueu devagar para ela.

Laurette aproximou-se, tomando-a entre as suas.

- Quer que eu Lhe traga alguma coisa?

- Fique aqui comigo por algum tempo, querida - pediu o homem, com voz fraca.

- Está bem - Laurette voltou a colocar a mão dele sobre a cama e sentou-se ao seu lado.

O senhor Cooper era um dos poucos pacientes que não tinha parentes que viessem visitá-lo. E Laurette imaginava que o pobrezinho deveria sentir-se como ela própria, nos longos dias chuvosos em que permanecia sozinha na sua enorme mansão.

Também naquela ocasião ela se sentia assim, e partilhava a sua melancolia com o veterano. Muitos Natais felizes tinham ficado para trás, nas vidas de ambos.

- Quer que eu leia para si?

- Isso seria bom, Laurette... Você tem uma voz tão suave!

Laurette pegou no livro apenas iniciado que se encontrava sobre a mesa-de-cabeceira, aproximou uma cadeira do leito e sentou-se, começando a ler.

O senhor Cooper fechou os olhos para ouvir e imaginar melhor. Mas Laurette leu apenas durante alguns minutos, pois ele adormeceu, tranquilamente. Pondo o livro no mesmo lugar de antes, suspirou e ajeitou as cobertas sobre o peito fraco do idoso. Depois voltou a sentar-se, e foi então que ouviu vozes no corredor.

Duas enfermeiras sussurravam, e Laurette pôde ouvir uma delas a pronunciar um nome: Sutton Vane. Elas falavam sobre o homem que Laurette conhecera em casa do coronel, há duas semanas atrás. Ninguém parecia saber porque é que ele desaparecera de repente da cidade, mas não fora visto naqueles últimos dias.

Desde que chegara, o belo e rico Sutton Vane tornara-se o assunto principal de todas as conversas em Mobile. Havia inúmeras histórias a seu respeito, e ninguém sabia quais delas eram verdadeiras e quais eram apenas boatos.

O certo era que ele comprara o hotel mais antigo de Mobile, o Riverside, e planeava ampliá- lo. Também era proprietário de um belíssimo barco, e um grupo enorme de trabalhadores tinham iniciado a construção da sua casa de veraneio na ilha que era sua propriedade. Muitas mulheres jovens foram vistas a entrar e a sair da mansão que ele habitava na rua do Governo...

Laurette não podia evitar o fascínio que o rodeava e que atingia todos os habitantes locais. Vane era, na opinião geral, uma figura quase da realeza. Era tratado como tal, vivia como tal e tinha a postura de um aristocrata.

Laurette, como tantos outros, levava uma existência modesta, e agora ouvia as enfermeiras falarem sobre mais factos referentes ao luxo que envolvia Sutton Vane.

Em certos momentos, com remorso, ela desejava ser mais jovem e mais bonita do que as garotas que visitavam a casa de Sutton Vane e recebiam os seus favores. Devia ser excitante viver como ele vivia, mesmo que fosse por breves, mas memoráveis, momentos...

 

Manhã de Sábado. A primeira semana de Janeiro já se passara. Laurette estava de serviço no Hospital, e a enfermeira-chefe chamou-a, pedindo-Lhe que fosse até à farmácia da rua Conti.

O Hospital contava com uma reserva muito pequena de alguns medicamentos, e não era possível esperar que o próximo carregamento chegasse pelo rio, vindo de Montgomery.

- Está bem, dê-me a lista, que irei agora mesmo - concordara Laurette, tirando o longo avental que usava sobre o vestido simples, de lã cinzenta.

Minutos depois já estava na rua, a caminho da farmácia, que era a mais bem abastecida da cidade. Não vestira o casaco, visto que o dia não se encontrava assim tão frio. Naquele ano em particular, as primeiras azáleas tinham florido cedo, ainda no Inverno.

Quando entrou no estabelecimento, o proprietário olhou-a e sorriu.

- Bom dia, senhora Tigart! - cumprimentou-a. Estamos com uma temperatura maravilhosa hoje, não acha?

- É verdade! - e entregou-lhe a lista.

O homem deu uma vista de olhos ao pedido e arqueou as sobrancelhas.

- Vou levar alguns minutos para reunir tudo o que está aqui. Importa- se de esperar?

- Não, de modo algum.

O farmacêutico entrou por uma porta para a parte de trás da loja, deixando-a sozinha.

Laurette cruzou os braços observando, curiosa, as inúmeras caixas de remédios expostas nas prateleiras por trás do balcão.

- Com licença, senhora Tigart - ouviu, mesmo atrás de si, uma voz profunda que a arrepiou toda.

Laurette voltou-se, rapidamente, e deparou com Sutton Vane em pé, muito próximo dela, sorrindo-lhe.

- Preciso do seu auxilio - disse ele, parecendo agora sério.

- Sim?

- Sim, senhora - com delicadeza, tomou-a pelo braço. - Venha - e conduziu-a para a saída da farmácia.

- Espere! - protestou Laurette, parando de andar e encarando-o. - Vim até aqui para comprar medicamentos urgentes para o Hospital e ainda não fui...

- Por favor, não vai demorar - insistiu. - E preciso, de facto, da sua ajuda.

Com o coração acelerado Laurette respirou fundo, indagando ainda:

- Do que é que o senhor necessita, exactamente? Não houve resposta, e ela franziu o sobrolho, confusa, sentindo a pressão dos dedos dele na sua pele, incitando-a a acompanhá-lo para fora dali.

167

Laurette ameaçou reclamar de novo, mas Vane negou com um gesto, segurando-a ainda, mantendo-a calada. E continuou a arrastá-la consigo, até à elegante carruagem que esperava junto à calçada. Ajudou-a a entrar e entrou em seguida.

Muito circunspecta, Laurette fez menção de sair do veículo, mas a mão firme de Sutton, embora delicadamente, deteve-a. E, olhando directamente nos seus olhos desconfiados, disse:

- Vai estar livre esta noite, senhora Tigart?

- Livre? - repetiu, sem entender. - Sim, mas...

- Óptimo - Vane tornava a sorrir. - Então, venha jantar comigo.

- Jantar com... Quer dizer que era para isso que precisava de mim?

- Na realidade, sim. Preciso que jante comigo hoje.

Laurette encarava-o, sem saber o que dizer. Por fim, declarou:

- Senhor Vane, não tenho tempo para brincadeiras.

- Mas deveria...

- Como?

- Quando foi a última vez que fez alguma coisa apenas pelo prazer de a fazer?

- Bem, eu... eu...

- Há muito tempo, pelo que vejo - o sorriso dele era agora maior.

Laurette franziu um pouco os olhos, atenta à expressão no semblante dele.

- Senhor Vane, nada sei a seu respeito. Dessa forma, porque acha que eu poderia...

- O que quer saber sobre mim? Basta perguntar.

Ela calou-se, respirou fundo, e depois indagou:

- O que está a fazer em Mobile, por exemplo? Por que se mudou para cá? Onde vivia antes? De onde é a sua família? Por que quer jantar comigo? ela encarava-o, altiva.

Com toda a calma, Sutton explicou:

- Estou aqui porque visitei Mobile numas férias e apaixonei-me por este lugar. Tenho viajado demasiado nos últimos anos - fez uma breve pausa, durante a qual a fitou, menos sorridente, prosseguindo:

- O meu último endereço permanente foi em Maryland. Vivi numa construção enorme, nas margens da baía de Chesapeake.

- Oh... devia ser um local bastante agradável para se viver... - Laurette tentava imaginar o local.

Sem demonstrar emoção, Sutton comentou:

- Inesquecível.

Pela primeira vez, Laurette sorriu-lhe.

- Ainda não respondeu à minha última questão. Por que quer jantar comigo?

- Minha cara, não costuma ver-se ao espelho? Você é uma mulher linda e, pelo que ouvi dizer, também muito inteligente. Gostaria de a conhecer melhor. Creio que poderíamos dar-nos muito bem. É assim tão difícil de entender?

Laurette meneou levemente a cabeça, lisonjeada. E Vane prosseguiu, sempre com o olhar mergulhado no dela:

- Jante comigo. Prometo proporcionar-lhe uma noite muito agradável.

Laurette entreabriu os lábios para responder, mas Sutton tocou-os com as pontas dos dedos, impedindo-a de falar.

- Não há nada com que se preocupar, garanto-lhe. Tudo será muito apropriado, acredite em mim. O coronel e a senhora Ivy também estarão presentes. Diga que aceita o meu convite.

Feliz por saber que ele a achava bonita, Laurette sentia-se tentada a aceitar, mas ainda hesitava.

- Não sei, eu... Sabe...

Vane voltou a interrompê- la, com uma fria autoridade:

- Mandarei a minha carruagem ir buscá-la às oito em ponto.

- Mas não sabe onde eu moro.

- Sim, sei. Fiz questão de descobrir. Diga que sim", senhora Tigart.

Laurette engoliu em seco, diante do brilho azul daquelas íris. E apenas conseguiu assentir, de maneira sedutora. Então, Vane tomou-lhe a mão, beijou-a na palma, num lugar sensível, e depois afirmou:

- Só mais uma coisa. Poderia, por mim, considerar a possibilidade de pôr aquele vestido azul de veludo que usava quando nos conhecemos, na festa em casa do coronel? Fica linda com ele.

Laurette assentiu, pasmada diante de tais palavras. Ele reparara no seu traje, lembrava-se dele!

- Está bem, vou usá-lo.

Na verdade, teria de fazer isso mesmo. Afinal, era o único em estado decente para uma recepção mais formal como aquela.

- Obrigado, Laurette. Posso tratá-la assim?

- Por favor...

- Óptimo! Trate-me por Sutton, também.

- Sutton...

Sorrindo mais uma vez, ele abriu a porta da carruagem, saltou agilmente para fora, virou-se e ofereceu-Lhe a mão para a ajudar a descer.

- Jantará, então, comigo, na minha residência - disse ele, sem Lhe soltar imediatamente a mão.

- Sim... Uma vez que os Ivy também lá estarão.

- Muito bem.

Conforme o prometido, Sutton Vane enviou a sua belíssima carruagem para a ir buscar às oito horas. Dentro dela, com todo o conforto e luxo que via ao seu redor, Laurette começou a sentir-se ansiosa, à medida que o veículo cruzava as ruas escuras de Mobile.

Quando chegaram e o veículo entrou no longo caminho através dos jardins da mansão, na rua do Governo, Laurette passou a observar a elegância e a riqueza de detalhes da propriedade. E ficou encantada, quando Sutton Vane em pessoa veio recebê-la à porta principal.

Muito bem vestido e com uma aparência mais do que atraente, estendeu-Lhe a mão, sorridente, exclamando:

- Seja bem-vinda a minha casa, Laurette, e muito, muito obrigado por ter aceite o meu convite.

Ela correspondeu ao sorriso dele.

- Eu também agradeço por me ter convidado. E soltou um gritinho quando Sutton, sem a deixar descer da carruagem, a elevou nos braços, explicando:

- As pedras do caminho poderiam estragar os seus sapatos. Eu pousá- la-ei no chão quando chegarmos ao átrio.

- Está bem - concordou, surpreendida com aquela proximidade poderosa e repentina.

Os músculos do tórax dele estavam pressionados com firmeza contra o seu seio esquerdo, e Laurette mal podia respirar de emoção. Não sabia o que fazer com as mãos. Rindo, Sutton percebeu a sua indecisão.

- Pode passar um dos braços pelo meu pescoço e apoiar a outra mão no meu peito, Laurette. Eu não mordo.

- Não, claro que não... - enrubesceu e fez como ele sugerira. - Senhor Vane... Quero dizer, Sutton, já passámos o átrio...

- Passámos? Será que não podemos fingir que não, por mais alguns segundos?

Ela achou graça, tentada a dizer que sim, que poderiam continuar a fingir por muito mais tempo, para que pudesse permanecer nos seus braços daquela forma, mas preferiu refrear os seus impulsos:

- O senhor prometeu colocar-me no chão quando...

- Está bem - alegremente, muito devagar e com sensualidade, baixou-a até ao solo, deixando que o seu corpo escorregasse levemente ao longo do seu, sempre a olhá-la bem dentro dos olhos.

Tomada de surpresa mais uma vez, Laurette afastou-se dois passos e baixou o olhar. Ele, então, to mou-a pelo braço, muito gentilmente, e conduziu-a para dentro da mansão.

Na bela sala de estar, o coronel e a sua esposa aguardavam-nos. E Laurette chegou a surpreender- se por vê-los ali, pois não se furtara a imaginar que Sutton Vane não os tivesse convidado, mas apenas usado o seu nome para que ela aceitasse ir até lá. E, desconcertada consigo mesma, deu-se conta de que, no fundo, desejara que isso tivesse acontecido e que pudesse ficar a sós com aquele homem encantador.

Cumprimentou os queridos amigos da sua família, deixando de lado tais pensamentos, e estudou Sutton, que estava ao seu lado, percebendo que os olhos dele brilhavam, maliciosos. Ele sabia, compreendeu. Sabia o que pensara, o que desejara!

Mais uma vez, Laurette sentiu-se corar, e os seus joelhos tremeram. O casal não percebeu o seu desconforto, mas Sutton sim, porque colocou a mão de imediato nas suas costas, como que para a amparar.

Uma conversa simples e trivial teve início, e Sutton não deixou de lhe tocar. Conduziu-a, depois, até à deslumbrante sala de jantar, onde lhe puxou uma cadeira de veludo, sempre muito educado, muito cavalheiro.

O jantar foi magnífico. Comida requintada e bebidas deliciosas. Em especial o vinho de safra nobre, rico, de aroma soberbo.

Laurette jamais provara iguarias tão incríveis e comeu com um prazer redobrado, em especial a sobremesa. E foi entre um prato e outro que se deu conta de que o seu anfitrião comia bastante pouco; quase nada, na realidade. Com mão preguiçosa mexia na comida, tocando-a, revirando-a com o garfo, mas quase nunca levando-a à boca. Questionava-se porque estaria ele sem apetite, diante de pratos tão bem elaborados.

Depois da sobremesa, quando foi servido o café e em seguida um licor, a conversa centralizou- se nas mudanças que Mobile tinha sofrido nos últimos anos. E assim foi, até que o grande relógio de parede bateu as onze horas da noite.

- Meu Deus, como é tarde! - espantou-se a senhora Ivy. E, voltando-se para o marido, instigou-o:

- Coronel, já passa da sua hora de se deitar!

- De facto, minha querida - assentiu ele, com o bom-humor de sempre. Bateu na barriga proeminente e ajudou a mulher a levantar-se, sorrindo.

O casal seguiu até ao hall, acompanhado por Laurette e Sutton, e despediu-se agradecendo a maravilhosa recepção.

- Bela noite, meu rapaz - disse o velho soldado.

- Ainda bem que gostou, coronel! Prometa-me que em breve terei outra vez a sua companhia.

- Ah, com certeza! Pode apostar nisso!

Os Ivy foram-se embora, e a porta fechou-se atrás deles. Sutton voltou-se, então, para Laurette, comentando:

- Deve estar cansada, também. Vou buscar a sua capa.

- Obrigada - ela esperou e manteve-se imóvel, enquanto Sutton colocava o agasalho sobre os seus ombros.

- O meu cocheiro vai já levá-la a casa - estava mesmo atrás de Laurette, com as mãos nos ombros dela, quentes, insinuantes. Esperou alguns segundos para falar, mostrando-se ansioso: - Será que também posso ir?

Laurette sentiu-se bem por estar de costas para Vane pois, dessa forma, tornava-se impossível que ele visse o sorriso de satisfação que passou pelos seus lábios.

- Se quiser... - consentiu, tentando parecer muito tranquila.

Sutton foi buscar também a sua capa, e os dois seguiram até à carruagem, que aguardava mesmo em frente do átrio.

No caminho até à mansão da rua Dauphin, Sutton tomou uma das mãos de Laurette nas suas e não a largou até chegarem.

- Quero vê-la de novo - declarou, à queima-roupa. - Por favor, não recuse.

- Quando? - Laurette arrependeu-se de imediato da sua ansiedade.

Sutton riu-se.

- Amanhã à noite. Que tal?

Quando o veículo parou, diante da mansão, Laurette encarou-o, imaginando se Sutton iria pedir-lhe para entrar. Mas ele não o fez. E muito menos tentou beijá-la. Voltou a tomar as duas mãos de Laurette nas suas e, olhando-a nos olhos, afirmou:

- Gostei muito de estar consigo - baixou o olhar para os lábios dela e cerrou os dentes. - É melhor entrar, antes que isto aqui comece a ficar perigoso para si.

- Sim... Boa noite, então, Sutton.

- Boa noite, Laurette.

O encontro foi encantador e mostrou ser apenas o primeiro de muitos. Sutton Vane, para surpresa e tranquilidade de Laurette, comportava-se sempre como um perfeito cavalheiro. Era irresistível, e ela começava a relaxar na sua companhia.

Com uma faísca da sua antiga vaidade recomeçando a despontar, sentia-se lisonjeada por um ho mem tão elegante e galanteador, que poderia ter qualquer mulher que quisesse, estar interessado na sua companhia.

Os dois acabaram por se tornar alvo de muitos boatos.

- Então, Laurette! - comentou Johanna, certa tarde. - Como já deves ter percebido, a cidade toda fala de ti e da tua questionável relação com um homem que ninguém aqui conhece bem. Todos estão interessados em saber até que ponto vocês os dois já chegaram.

A amiga ergueu as sobrancelhas, deixando no ar a resposta que também queria ouvir.

- Ah, que falem! - Laurette encolheu os ombros.

- Não me importo nada.

E não se importava, mesmo. Talvez estivesse a ser tola e egoísta, mas achava que merecia um pouco de alegria e distracção, mesmo que fosse com algo que pudesse vir a revelar-se mais tarde um tanto complicado. A sua vida não fora das mais felizes até então e, quando se via na companhia do atraente e adorável Sutton Vane, sentia-se mais viva do que nunca, como quando ainda era uma adolescente cheia de sonhos e alegria.

Sutton era sensacional, na sua opinião: dedicado, compreensivo, romântico atencioso. Ouvia-a com atenção, como se tudo o que dissesse fosse de grande interesse para ele. E fazia-a acreditar que não havia mais ninguém que lhe interessasse à face da terra além dela.

Para além de tudo isso, irradiava uma masculinidade que a fascinava. Junto dele, Laurette podia sentir-se renovada, feliz, com uma vontade incrível de lhe tocar, de nunca mais se afastar dele.

Muitas vezes se vira tentada a passar as mãos pelo seu peito largo, imaginando como seria ele sem a camisa, como reagiria a sua pele à carícia dos seus dedos...

Sentada na carruagem, ao seu lado, apreciando o roçar da coxa de Vane no seu vestido, ou o toque suave da sua mão nas suas costas, Laurette sentia o coração disparar e a respiração a ficar entrecortada: E, sempre que o olhava, quando ele não estava a vê-la, imaginava que poderia ficar assim, fitando-o, pelo resto dos seus dias.

Sutton era, também, um homem muito generoso. Dava-lhe belos presentes, como caros vestidos de noite, jóias, recusando-se a ouvir os seus protestos sobre não ser apropriado que um cavalheiro desse prendas tão pessoais a uma dama. Ele levava-a a passear, ao teatro, a restaurantes, a festas. E Laurette adorava tudo aquilo.

Além do mais, os beijos que lhe dava eram divinos, alucinantes, ateando fogo no seu corpo todo. Quando a deixava em casa, à noite, ao entrarem no hall, Sutton tomava-a nos braços e beijava-a com loucura. Muitas vezes.

O primeiro desses beijos acontecera depois de duas semanas de encontros sucessivos, todas as noites. Laurette, fascinada, ansiava pelo momento em que Sutton, por fim, a abraçaria e beijaria, e chegara a duvidar se ele algum dia viria a fazê-lo. E então, acontecera.

Os lábios quentes cobriram os seus num beijo suave, delicado, que durou apenas alguns segundos. Depois, olhando-a nos olhos, Sutton dissera apenas:

- Tenho sonhado com este beijo desde que a vi pela primeira vez, em casa do coronel.

Incrédula, ela murmurara:

- Verdade?

E a resposta fora um novo beijo, este sim longo e exigente, mais íntimo. Os braços de Sutton apertaram-na contra o tórax, e o carinho sensual prolongou-se, deixando- a trémula e rendida. Desde então, passaram a beijar-se todas as noites. E cada beijo se mostrava mais ardente, mais ousado. Os seus corpos ardiam, próximos, numa onda de luxúria crescente. Mas Sutton despedia-se sempre depois, gentilmente, sem ousar ir mais adiante.

Laurette concordava, mas não queria que ele se fosse embora. Nunca mais...

 

Sutton sabia muito bem o que Laurette pensava e sentia. Compreendia o que ela mais queria, todas as noites em que a deixava sozinha. Construíra, com esmerado cuidado, uma teia de sedução em torno dela, sabendo com exactidão como e quando iria fazê-la render-se ao seu desejo. Conhecia os caminhos que a fariam render-se.

E esse momento chegara. Laurette estava pronta. Assim, numa fria noite de Fevereiro, quando tinham passado momentos de diversão juntos no teatro, na companhia dos Ivy mais uma vez, bem como das gémeas Parlange, Sutton não levou Laurette directamente para sua casa, como era costume. Preferiu levá-la para a sua mansão e, quando a carruagem se desviou do rumo, ela protestou:

- Sutton, não...

- Calma, minha querida. Vamos apenas brindar com um licor especial - tranquilizou-a ele. O seu tom de voz era baixo, íntimo, e os seus olhos brilhavam, numa promessa silenciosa de prazer.

Temendo o que poderia acontecer se entrasse com Vane naquela casa, Laurette insistiu ainda:

- Já é tarde e eu... eu...

Mas não foi adiante, estudada de perto pelo intenso olhar azul de Sutton e querendo, ela própria, estar nos seus braços.

- Está bem. Mas será apenas um brinde, e depois leva-me embora, está bem?

Ele sorriu.

- Assim que estiver pronta para partir, eu deixá-la-ei ir - comentou, enigmático.

- Promete?

- Prometo.

Entraram, a porta fechou- se atrás de ambos e Sutton voltou-se, encarando-a por um longo momento. Então aproximou-se, enlaçou-a com força e beijou-a com uma intensidade nova, que a deixou fraca e vulnerável. E, em poucos segundos, ela estava moldando as suas formas às dele, gemendo baixinho, muito apaixonada.

Parecia-lhe tão natural, tão certo estar nos braços dele! E ao beijá-lo saboreava, mais uma vez, a estranha sensação de que aquele homem tão adorável, que conhecia havia tão pouco tempo, lhe era muito familiar. Sentia-se muito confortável no seu abraço, como se sempre tivesse sido ali o seu lugar.

Na mesma medida, entretanto, sentia medo, como se estar junto de Vane pudesse ser uma ameaça que não compreendia. Afinal, ele não passava de um estranho sobre o qual sabia muito pouco, um homem em quem não sabia se podia confiar sem reservas.

Mesmo assim, desde que se tinham visto pela primeira vez, sempre houvera aquele poder magnético de Sutton sobre todos os seus sentidos, dominando-a, fascinando-a. Não conseguia lutar contra a força que dele emanava.

Sutton forçava o beijo, e qualquer dúvida que pudesse ter passado pela cabeça de Laurette desapareceu com o sabor dos seus lábios.

E ali, no hall, sob o enorme lustre de cristal, Sutton Vane iniciou os passos finais da sua sedução bem planeada e nada sentimental.

Laurette sentia que estava aos poucos a perder o controlo. Entendia o que ia acontecer se não tivesse cuidado. E de repente sentiu-se, mais uma vez, incomodada. Era como se estivesse diante de um perigo iminente.

A imagem de Sutton, na sua mente, possuía dois lados: um muitíssimo erótico, agradável; outro, mau e perigoso. No entanto, provocante. Desejava muito as carícias dele e sabia que Sutton seria capaz de a fazer perder-se no seu abraço, de a levar a agir sem raciocinar, pondo de lado todo o sentido de responsabilidade.

Mas como podia evitar sucumbir ao poder incrível da sua sensualidade? Se fosse levada pela paixão, as consequências poderiam ser desastrosas...

Laurette não era tola. Compreendia que não era a única mulher na vida de Sutton. Jamais seria. Ele amava e era amado por muitas e belas mulheres.

Tal pensamento fê-la afastar-se de repente, pondo as mãos nos ombros dele e afastando-se. Sutton sabia que a indecisão a atormentava. E, experiente, pôs os seus receios em palavras:

- Minha querida, sente medo de mim. - e parecia ofendido perante tal ideia.

- Não... Não é isso.

Sutton tomou-lhe o rosto entre as mãos e acariciou-lhe o lábio inferior com a ponta dos polegares, com extrema doçura.

- Sim, receia-me. Mas não devia. Está segura comigo - ele inclinou-se e murmurou, junto aos seus lábios: - Beije-me e diga-me que está tudo bem.

Mais uma vez, a boca dele tentava a de Laurette, forte, exigente, ardente. E as suas mãos deslizavam pelas costas dela, trazendo-a cada vez para mais perto.

Laurette podia sentir o coração dele a bater, apressado, junto aos seus seios. Estremeceu, numa mistura de ansiedade e encantamento. Não, não estava segura, e sabia isso muito bem. Mas não queria estar. Pretendia apenas o amor ardente de Sutton Vane. Assim, enlaçou o pescoço dele, sussurrando, enlevada:

- Não estou com medo...

- Nesse caso, deixe-me amá-la, querida. Os beijos dele eram sempre incríveis mas, naquela ocasião, não havia comparação para eles. Existia uma magia nos seus lábios que a punha em brasa. E, de repente, relaxou junto dele, aceitando mais um beijo, devastador, que a levou para um mundo de delícias que jamais experimentara. E, enquanto a beijava, Sutton começou a despi-la, ali mesmo, no hall, fazendo-a retesar-se e afastar-se por segundos para protestar:

- Sutton, os seus criados...

estão nos seus aposentos e não virão, a não ser que sejam chamados. Não tema. Estamos a sós.

Laurette só conseguiu assentir, desejando que não estivessem. Queria que houvesse alguém capaz de a resgatar da sua paixão por Sutton, alguém que a fizesse acordar daquela fraqueza que a arrastava. Adoraria ser suficientemente forte para deixar que a razão falasse mais alto aos seus sentidos. Mas não era assim.

Ninguém jamais a beijara daquela maneira. Ninguém a despira com tamanha habilidade. E tudo parecia tão normal, tão apropriado! As suas roupas nada mais eram do que empecilhos para o seu amor, e deviam ser tiradas.

Por isso, não protestou quando Sutton lhe despiu o vestido. E estremeceu deliciada quando, segundos depois, ele a livrou também da parte superior da roupa interior. Em instantes, estava total e magnifi camente nua diante dele.

Sutton prendeu a respiração ao olhá-la e murmurou, quase sem voz:

- Oh meu Deus, como você é linda! Faz uma ideia da sua beleza, Laurette?

Feliz e orgulhosa, deixando de lado qualquer timidez, Laurette ergueu os braços, tirando os pentes que seguravam os seus cabelos num carrapito, fazendo com que eles caíssem em ondas rebeldes sobre os seus ombros e as suas costas. E ali ficou, diante de Sutton, permitindo que os olhos dele se inebriassem com a sua formosura.

Ele olhava-a, fascinado. E Laurette sorriu, sentindo-se enfim bonita depois de muitos anos. Sutton Vane fazia-a sentir-se bela e desejada.

Suspirou quando ele tornou a enlaçá-la, erguendo-a do chão, encaminhando-se para a enorme escadaria de mármore.

Ele subiu dois degraus de cada vez, apressado, urgente, levando Laurette para a suite principal, onde apenas um candeeiro permanecia aceso.

Atravessou o espaço que o separava da cama, colocando-a com delicadeza sobre ela. E olhou-a ainda uma vez, permanecendo vestido. Laurette via-se diante da sua inspecção, aguardando, como uma bela vítima de um sacrifício à espera da morte.

Vane atirou para longe os sapatos e deitou-se junto dela, beijando-a mais uma vez, perdido em lascívia. Em seguida começou a beijar-lhe o corpo todo, calmo e seguro, proporcionando a Laurette um deleite que jamais sentira.

Nunca pensara ser possível sentir-se assim com um homem que ainda não se despira. E vibrava com cada beijo dele, fosse nos seus lábios, no seu pescoço, no seu ventre. Havia pontos na sua anatomia em que Sutton tocava com a língua que Laurette jamais pensara serem tão sensíveis à volúpia. Pontos que imaginara banais, sem interesse algum num leito. Mas Sutton sabia como despertá-la, como seduzi-la.

Beijava-a com a mesma paixão com que beijara os seus lábios. Com o mesmo apego, a mesma dedi cação a cada centímetro das suas carnes, que adquiriam vida nova, numa vibração duradoura e deliciosa. E a barba dele, macia como Laurette jamais imaginara que pudesse ser, fazia parte de cada carícia, acendendo ainda mais o desejo que pulsava em cada um dos seus poros.

Mais uma vez ele veio beijar-Lhe os lábios, tocando-lhe na cintura e incitando-a a deitar-se de bruços. E somente quando ela assim o fez ele lhe deixou a boca. Os mesmos beijos que Lhe dera quando estava deitada de costas, ele repetia agora, bem devagar, em cada curva, agitando-a, dominando-a, levando-a à entrega.

- Quero beijar-te toda - ouviu-o murmurar, e sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha.

- O candeeiro - sussurrou ela, não acostumada a ser amada com claridade no quarto. - Por favor.

- Se te sentes mais à vontade assim... - Sutton inclinou-se para apagar a luz.

Não, ele não se importava em fazer o que ela pedia. Os seus olhos estavam mais do que acostumados a ver na escuridão. Anos a viver naquele buraco tinham treinado a sua visão para o escuro.

Podia vê-la mesmo assim. Os contornos das suas costas, dos seus quadris, o ondular dos seus ombros a cada nova carícia. Podia vê-la por inteiro, e isso agradava-lhe sobremaneira, ainda mais porque percebia o quanto Laurette respondia aos seus carinhos, como estava radiante, abandonada na sua cama. E era assim que a queria. Abandonada e à sua mercê.

Ela não reclamava de nada. A boca entreaberta de Sutton ensinava-Lhe como as partes mais remotas do seu corpo podiam ser eróticas, o quanto eram capazes de responder ao estímulo dos seus afagos.

E Laurette adorava cada minuto que passava com ele.

Aqueles beijos por todo o seu corpo podiam ser deliciosos, mas eram também uma tortura para os seus sentidos. Laurette queria ser amada, queria que ele a possuísse ali, naquele instante; não pretendia esperar mais.

Mas Sutton era paciente e habilidoso na arte de fazer amor. E foi com essa habilidade toda que a levou ainda mais longe nos seus carinhos, fazendo-a arder de desejo e querer ser possuída o quanto antes.

Havia um grande controlo nele, que Vane aprendera a ter sobre si mesmo nos duros anos em que so frera as piores privações, no presídio. Podia beijá-la com paixão, deslizando os seus lábios entreabertos por todas as curvas e reentrâncias, fazendo-a experimentar sensações deliciosas, que ele também partiLhava, mas mantinha-se atento à sua própria vontade, controlando-se, sabendo como e quando agir.

Sutton sabia que Laurette estava a ponto de lhe pedir que a possuísse. Era isso o que queria. Mas não ainda naquela noite. Dessa vez dedicar-se-ia tão-só à adorável tarefa de a satisfazer, de levar Laurette ao paraíso. Nada comparado com o que já experimentara até então.

E seria apenas o começo, porque Sutton pretendia deixá-la dominada pelo desejo. O seu plano era que Laurette pusesse o pudor e a decência de lado, que lhe pedisse, que dissesse como queria que a beijasse. Iria atingi-la no mais íntimo do seu ser, tocar-lhe como nenhum outro homem ainda a tocara; beijá-la como e onde nenhum outro homem a beijara.

E assim fez, levando Laurette a um paroxismo de prazer e desejo que a tirou da realidade para lhe proporcionar um deleite jamais imaginado ou atingido.

Nos braços dele, Laurette deu vazão a todos os pensamentos que até então julgava indecentes, imorais. Com Sutton aprendeu que não havia nada de imoral ou indecente. Existia apenas entrega, total e incondicional. Nos seus lábios, o nome dele foi murmurado muitas vezes, em êxtase, em delírio.

E os momentos que passou com ele foram memoráveis, fantásticos, repletos de luxúria. Sutton proporcionou-lhe um êxtase indizível, mas Laurette jamais poderia imaginar o quanto ele também estava satisfeito. Conseguira pô-la como queria, sem sequer se ter despido.

Controlado ao extremo, Vane apenas tirara a gravata e afrouxara o colarinho. Mantivera a sua paixão sob controlo, mestre na arte de amar uma mulher, o que se tornara à custa de muito treino e paciência. E revelava a Laurette que Lhe bastava proporcionar-lhe prazer, pelo menos por enquanto.

Depois de a satisfazer e de a ver ofegante entre os seus braços, sorriu, sugerindo:

- Por que não passas alguns momentos relaxantes na minha banheira?

Laurette aceitou aquela ideia, sorrindo, e esperou até ele ter saído do quarto para se encaminhar para a casa de banho contígua, onde aproveitou deliciosos minutos dentro da banheira de mármore, saboreando o prazer da água quente no seu corpo. Ao sair enrolou-se numa toalha, voltando ao quarto e imaginando se Sutton estaria na cama, nu, à sua espera.

Todavia encontrou-o sentado numa cadeira, ainda vestido, bebendo um cálice de licor.

- Vem cá - chamou-a.

E, quando Laurette se colocou à sua frente, ofereceu-Lhe um gole da bebida. Ela aceitou, bebendo o licor perfumado. Depois, deixou o cálice numa mesinha próxima e voltou a olhar para Sutton, sorridente. Num movimento lento, mas decidido, ele estendeu o braço e puxou a toalha que cobria o corpo dela expondo-a, mais uma vez, aos seus olhos.

Laurette sentiu-se enrubescer, mas não protestou. Sutton apertou-a contra si e fê-la sentar-se no seu colo.

- Eu despi-te - murmurou ao seu ouvido, arrepiando-a. - Agora vou vestir-te novamente. E vou fazê-lo contigo aqui, sentada no meu colo.

E assim fez. Foi um processo quase tão excitante como fora o de a despir.

 

Durante a manhã, Willard Gordon Keyes sentava-se diante do seu patrão, no lado oposto da secretária de mogno do escritório.

As cortinas ainda não tinham sido abertas e a única luz, num compartimento em que as paredes estavam cobertas de madeira, vinha de uma lamparina colocada em cima da mesa. A iluminação era, por conseguinte, difusa, concentrando-se apenas sobre o tampo da secretária.

Na sombra do outro lado distinguia-se o rosto sério de Sutton Vane, com o armário alto, cheio de gavetas, por trás das suas costas. Dentro dessas gavetas havia anotações, telegramas, cartas, recortes de jornal, estando cada item arquivado e etiquetado com um dos nomes da sua lista negra.

Há muito tempo que Willard Keyes, também conhecido como Ossos, tentava decifrar os pensamentos do patrão, tendo em conta a expressão do seu rosto e o conhecimento que já adquirira sobre o homem para quem trabalhara nos últimos cinco anos. Mas era impossível decifrar o que quer que fosse. Havia demasiada sombra diante daquele semblante.

Enquanto Ossos esperava, num silêncio respeitoso e compreensivo, Sutton lia as páginas com in formações que o empregado lhe trouxera num envelope, levantado na véspera na agência dos correios.

Sutton estudava de forma interessada e inquieta o material que tinha à sua frente, mas foi incapaz de evitar um bocejo de cansaço. Ossos sabia muito bem por que motivo Sutton estava com sono nessa manhã. O seu patrão estivera acordado até bem tarde, na noite anterior, na companhia de Laurette Howard Tigart.

Sutton informara Ossos que, depois da Ópera, iria trazê-la para casa e que desejava total privaci dade. Ossos deveria assegurar-se de que todos os criados estivessem recolhidos nos seus aposentos e que não se aventurassem a sair sob qualquer pretexto.

Ainda ouviu o patrão chegar com a senhora Tigart, por volta das onze horas da noite, quando a carruagem passou ao lado da casa, por baixo da janela do seu quarto. E chegou a acordar, mais tarde, quando a senhora Tigart partia. Consultou o relógio e constatou que já passava das duas horas da manhã.

Agora, diante do seu patrão, Ossos franzia a testa, pensativamente, imaginando se a corte que Sutton fizera à senhora Tigart se consumara, de facto, nessa ocasião. Não gostava que o patrão se aproveitasse daquela senhora. Desde que a conhecera que simpatizava com ela. Não queria que ela sofresse mas, quando tentara interferir a seu favor, recebera apenas o silêncio gelado de Sutton, cujo significado ele bem conhecia.

Ossos acreditava que o seu patrão era, sob vários aspectos, um homem justo e bondoso. Mais bondoso do que qualquer outro homem que Ossos conhecia. Mas podia também ser frio e calculista, por vezes até cruel, com aqueles que lhe tinham feito mal.

Ossos não o recriminava pelo castigo infligido a Jimmy Tigart. O tipo tivera o que merecia, por ter enviado Sutton para a cadeia com o único propósito de se apoderar da sua amada. Chegara mesmo a oferecer-se para completar o serviço, caso Sutton quisesse acabar com Tigart. Dar- lhe-ia um grande prazer tratar da saúde a um cobarde como aquele, dissera.

No entanto, Sutton não aceitara a sua oferta, e Ossos sabia por que motivo o tinha recusado. Sutton não conseguia esquecer que Jimmy Tigart lhe salvara a vida quando ainda eram miúdos, e jamais conseguiria matar o velho amigo, mesmo depois de tudo o que ele lhe fizera.

- Quero que Tigart viva muito, que envelheça sozinho, no estrangeiro, que sinta saudades do seu país, da sua casa e da sua bela esposa - dissera Sutton. - Os seus dias serão vazios e solitários como foram os meus, naquela prisão.

Outro que se encontrava na lista negra de Sutton, e que teria de pagar pelo que fizera, era Gilbert LaKid: o capitão da guarda da prisão, que tornara a existência de Sutton num verdadeiro inferno.

Na opinião de Ossos, LaKid merecia uma punição bem pior do que a de Tigart. E acabaria por recebê-la, assim que fosse localizado, disso tinha a certeza. Os homens que Sutton contratara informavam-se sempre junto das autoridades e faziam investigações por conta própria, mas até àquele momento não tinham conseguido localizar o miserável. Quando o fizessem, deviam avisar Sutton de imediato. Este queria punir LaKid pessoalmente, para se vingar de todo o mal que ele lhe fizera.

No seu íntimo, tinha elaborado um plano especial para conduzir o patife à justiça. Um plano que não incluía a morte do antigo capitão da guarda, mas algo pior, muito pior.

Agora, olhando para o rosto escurecido do patrão, Ossos imaginava-o como um grande paradoxo. Implacável para com os seus inimigos, possuía um coração de ouro quando lidava com os amigos ou com os injustiçados.

Quando soube do triste fim dos seus pais, da morte de Douglas, em batalha, e de Carrie, que não conseguiu resistir à febre-amarela no Verão de 1874, não se apressou a regressar a Mobile.

Pelo contrário: a primeira coisa que Sutton e Ossos fizeram foi procurar os dois homens que tão amigos tinham sido do patrão quando este fora mandado para o Castelo do Demónio, antes de ser preso. Ele jamais poderia esquecer a ajuda do capitão Andrew Scott e do soldado Duncan Cain.

Para desespero de Sutton, porém, descobriram ao chegar a Charleston, na Carolina do Sul, Estado natal de Andrew Scott, que o capitão morrera de fraqueza na prisão, no terrível Inverno de 1864. A viúva de Scott tornara a casar-se com um homem que tinha idade para ser seu pai, mas Sutton percebeu, no olhar da pobre mulher, que ela não tivera alternativa. Precisava de alimentar os seus três filhos pequenos e não conseguiria fazê-lo sozinha.

Em Birmingham, Alabama, Sutton reencontrou o então saudável soldado Duncan Cain, que ficou atordoado ao voltar a vê-lo.

- Disseram-nos que tinhas morrido! - exclamou ele.

- Eles bem tentaram, mas não conseguiram - respondeu Sutton, bem- humorado. - Recusei-me a morrer.

- Eu também! Continuei a ver a minha namorada, Mary, no meu pensamento, e jurei que voltaria para casa, para ficar com ela. E tu, Sutton? Chegaste a casar com a Laurette?

- Ainda não - e depois, mudaram de assunto. Com abordagens subtis, Sutton conseguiu descobrir que Duncan estava a passar por dificuldades financeiras. Morava com a esposa, grávida do terceiro filho, mais as suas duas crianças, numa velha propriedade abandonada que chegara a pertencer aos pais de Duncan, antes de ter sido expropriada durante a guerra.

Duncan fazia o que podia para sustentar a família, embora os trabalhos temporários não Lhe dessem muito dinheiro. Mas não se queixava, como fazia questão de dizer, porque sabia que a vida se tornara difícil para todos. Conseguira sobreviver à guerra, e isso já era muito.

Além do mais, porque é que havia de se queixar, se a bela rapariga que deixara antes da guerra tinha esperado por ele, até ao seu regresso?

Ossos lembrava-se muito bem de como Sutton ajudara Duncan, sem que este soubesse. E sem perder tempo. Através da Corporação Bay Minette, comprara de novo a propriedade que pertencera aos pais do rapaz, pagando um preço bem alto aos oportunistas ianques que a tinham usurpado. Em seguida, contratara Duncan com um bom ordenado, fazendo-o gerente da enorme fábrica de papel que estava a ser construída ali perto. Assim, toda a família de Duncan se pôde mudar para a antiga moradia, visto que era a melhor casa nas redondezas.

Sim, Sutton era um homem bom e, acima de tudo justo, ponderava Ossos. E reconhecera o seu coração generoso desde o princípio. Desde que o retirara das águas geladas da baía de Chesapeake, que conhecia a nobreza do patrão e amigo. A confiança entre ambos estabeleceu-se naquele preciso instante e, uma semana depois de ter sido resgatado, o ainda convalescente Sutton contou a Ossos sobre o ouro ianque que devia ir procurar, revelando-lhe onde se encontrava. Alguém mais desconfiado jamais o faria. Fraco como estava, Sutton não poderia impedir que Ossos o abandonasse e fosse recuperar o ouro sozinho. Mas não o fizera, permanecendo pacientemente dedicado à tarefa de ajudar o novo amigo a restabelecer-se. Foi esse apoio que permitiu a Sutton voltar rapidamente a ser um homem saudável. E isso ele jamais poderia esquecer.

- Ajuda-me a procurar aquele tesouro, Ossos. Se conseguirmos, poderás ter uma vida confortável e tranquila até ao fim dos teus dias.

- Mesmo que nunca encontremos esse ouro, saiba que continuarei sempre ao seu lado.

Ossos tinha trinta e três anos quando retirou Sutton das águas da baía, e não poderia ser um homem mais solitário. Não havia motivação na sua vida. Não tinha lar, nem familia. Nada. E a culpa, reconhecia, era toda sua, porque jamais se preocupara em fazer amizades ou algo de bom, desde que perdera a única mulher que amara.

Nunca compreendera como é que uma rapariga tão bonita e doce pudera apaixonar-se por ele, um homem rude e desajeitado, um marinheiro sem educação nem cultura. Mas a sua Amanda amara-o, sim, sem sombra de dúvida. E ele, por ela, sentira veneração.

Quando os pais dela descobriram o namoro, ficaram horrorizados. Deserdaram-na, quando Amanda decidiu casar com Ossos. Queriam que ela se unisse a um homem de posses, não a um marinheiro feio e pobre que jamais lhe poderia dar um lar decente.

Poderia não ser um lar muito rico ou luxuoso, mas o quartinho alugado em que viviam, junto à costa de Maryland, proporcionara-lhes uma vida muito feliz. E essa felicidade aumentara ainda mais quando a frágil Amanda descobriu estar grávida. E ficara maravilhosa durante toda a gravidez.

Ossos ainda se lembrava da alegria que sentia quando ela se sentava ao seu colo declarando, com grande animação, que lhe daria um filho perfeito e saudável. Foram meses preciosos e encantadores. Os melhores que ele já vivera.

Mas o idílio acabou quando Amanda, sozinha enquanto Ossos trabalhava num navio, entrou em doloroso trabalho de parto. Uma vizinha acorreu em seu auxilio e mandou o filho ir procurar o médico, mas já não havia nada a fazer. Depois de uma terrível noite de dor e sofrimento, Amanda ainda deu à luz um menino perfeito, mas ele acabaria por viver apenas algumas horas. E Amanda faleceu pouco depois.

O esforço do parto fora o responsável pela sua morte.

Ao regressar a casa, Ossos encontrou uma casa tão vazia quanto a sua existência. Atormentado pelo desespero, deixou-se dominar por um acesso de fúria, destruindo tudo o que via à frente e deixando a sua pequena casa reduzida a escombros. Foi levado para a cadeia e, quando saiu, foi directamente para a costa. A sua intenção era atirar-se para as águas frias e morrer afogado.

Porém, antes de conseguir levar a cabo os seus intentos, encontrou o quase afogado Sutton Vane e salvou-o de morte certa. Na verdade, salvaram-se um ao outro.

De regresso ao presente, Ossos viu Sutton dobrar a carta que estivera a ler com muita atenção, recolocando-a no envelope. Inclinando-se mais para a frente, até o seu rosto ficar iluminado pela luz da lamparina, sorriu.

A mensagem que recebera fora enviada por um dos seus homens do outro lado do oceano, um tipo contratado apenas para seguir todos os passos de Jimmy Tigart. A sua tarefa era relatar cada movimento de Tigart e impedir que este pudesse tentar regressar à América num barco a vapor.

- Boas notícias? - quis Ossos saber.

- Não poderiam ser melhores. O Tigart perdeu o emprego e não tem um só centavo para sobreviver. Está a viver de esmolas nas ruas de Londres e dorme em becos - Sutton parou por instantes, juntou os dedos diante dos lábios e acrescentou: - Espero que o Inverno, este ano, seja bem duro em Inglaterra.

Ossos assentiu e levantou-se.

- Deseja mais alguma coisa, chefe?

- Sim, sim.

- Então, diga.

- Tira essa expressão de censura dos olhos, está bem?

- Não sei de que é que está a falar.

- Sabes sim, Ossos. Estás a par do que aconteceu aqui ontem à noite, e sei que não te agrada o que eu fiz.

- Não, chefe, não me agrada mesmo nada. A senhora Tigart já passou por muito sofrimento na vida e...

- A senhora Tigart teve o que procurou - interrompeu-o Sutton, afastando a cadeira e levantando-se.

Foi até à janela e abriu as cortinas. E durante algum tempo permaneceu ali, olhando para as nuvens cinzentas que encobriam o céu e provocavam a queda intermitente de chuva. Quando se virou, as suas intensas íris azuis pareciam mais escuras, e a expressão do seu rosto mais dura.

- E Laurette não passou ainda por nada, comparado com o que terá de enfrentar quando aquilo que eu planeei for levado a cabo.

 

Laurette oscilara o dia inteiro. Em determinados momentos estava feliz e a ver estrelas, animada dos pés à cabeça. Em outros sentia-se mal, cheia de arrependimento pelo que fizera. Continuava com as suas tarefas rotineiras no Hospital, sabendo que ora corava, com as lembranças da noite anterior, ora empalidecia diante da vergonha que ainda sentia por tudo o que permitira que acontecesse.

Mas não podia recriminar- se. Perdera por completo o controlo. Sutton dominara-a e fizera com que a sua força de vontade deixasse de existir, como se ela fosse feita apenas de sensações.

E ainda por cima ele povoava todos os seus pensamentos, desde que despertara nessa manhã. Lembrava-se de cada detalhe daqueles momentos de sensualidade tão maravilhosos, e essas delícias ecoavam pelo seu corpo, tornando-a fraca, apaixonada.

Podia até repreender-se pelo que acontecera, mas sabia que de nada adiantaria. Porque ficara satisfeita, porque gostara. Mesmo que fosse tudo muito estranho e imoral, no entendimento de qualquer outra pessoa. Porém, tinha sido bom demais, para poder culpar-se assim tanto.

Sentia-se diferente, renovada; uma outra mulher. As suas emoções naquela ocasião, e nesse dia, desde que acordara, eram da mais pura felicidade; porque se sentia desejada, porque experimentara um deleite intenso, inimaginável.

E porque, ao recapitular, tudo revivia nas suas entranhas, pondo-a de novo a arder. Jamais se sentira assim. Nunca fora amada daquela maneira. Podia ser vergonhoso, escandaloso, mas era adorável, sedutor, delicioso.

Agora, o seu turno no Hospital estava quase a terminar. Encontrava- se prestes a voltar para casa e, mesmo assim, não parava de pensar em Sutton Vane. Como acontecera durante o dia inteiro. Queria tornar a vê- lo, estar com ele, beijá-lo, ser beijada, devorada.

Talvez não devesse voltar a encontrar-se com ele, dizia-lhe uma reservada voz interior, mas a volúpia era maior do que a sua vontade. Seria melhor se não se vissem mais, mas... seria terrivel também.

Não adiantava tentar enganar-se. Queria ver Sutton mais do que qualquer outra coisa no mundo, e mal podia esperar que isso acontecesse.

Deixou o Hospital às duas horas da tarde. O dia estava nublado, chuvoso, cinzento. Ergueu a gola do casaco, arrepiando-se de frio, e abriu o guarda-chuva, seguindo pela rua molhada.

Quando chegou a sua casa, estava a bocejar e a considerar a ideia de dormir um pouco. Quase não dormira na véspera e agora, depois de longas horas de serviço no Hospital, sentia-se exausta.

Tirou o casaco, deixando-o no cabide da entrada, e acabara de acender a lareira quando ouviu bater à porta. Respirou fundo, aborrecida por ter de receber alguma visita, quando tencionava dormir e repousar um pouco, mas dirigiu-se para o hall. Podia quase adivinhar que se tratava de Johanna, que queria saber novidades sobre o seu encontro com Vane.

No entanto, surpreendeu-se ao rodar a maçaneta e deparar com Sutton sorrindo.

- Posso entrar? - perguntou ele, trazendo um ramo de rosas brancas nas mãos.

- Por favor - Laurette deu- lhe passagem. O seu rosto ficou mais corado, e sentiu um calor absurdo a subir-lhe pela espinha.

Porém, antes de entrar, Sutton voltou-se e, inclinando a cabeça indagou, num tom indiferente:

- Quem mora do outro lado da rua, naquela bela mansão em estilo georgiano?

- Os McBain. O senhor Ralph McBain e a esposa. Os filhos são crescidos e já não vivem com eles.

- E residem ali há muito tempo?

- Há dezasseis anos, creio. Fugiram de Atlanta durante a guerra e mudaram-se para cá. Mas entra! Está tanto frio aí fora!

Sutton assentiu. No entanto permaneceu onde estava, continuando a observar a moradia do outro lado da rua, que mal se podia ver devido à intensidade da chuva.

- Quem vivia lá antes dos McBain? - e, com atenção, estudou o rosto de Laurette, enquanto ela respondia.

Uma expressão triste estampou-se nos olhos dela, mas quase sem emoção disse:

- Os Dasheroon. O Douglas e a Carrie Dasheroon. E o seu filho Ladd, que era um ano mais velho do que eu. Fomos muito amigos e brincámos muito juntos. E nós... nós... - não conseguiu terminar a frase.

- O que lhes aconteceu? - insistiu Sutton, com toda a naturalidade. - Mudaram-se?

Laurette engoliu em seco e disse que não, explicando:

- Estão todos mortos. O pai e o filho morreram na guerra. A mãe contraiu febre-amarela e acabou por falecer no Verão de 1874.

- Pobre gente - Vane entrou e entregou-Lhe as rosas. - Vejo que estás triste... Não foi minha intenção aborrecer-te, Laurette.

- Não, não estou aborrecida - tentava sorrir. Aconteceu tudo há já muitos anos.

Vane estudou-a bem de perto, para inquirir:

- E tu superaste tudo há muito tempo, também...

- Sim, claro.

Sutton cerrou os dentes diante daquela resposta, mas controlou-se muito bem, virando-se e encaminhando-se para a sala.

Laurette seguiu-o, colocando as rosas num vaso e arranjando-as com delicadeza.

Ele estacou mesmo no meio da sala, com as costas voltadas para a lareira. Questionou, de repente:

- Onde estão os criados todos, a esta hora do dia? Laurette riu-se.

- Estão aqui todos, em pé à tua frente.

Sutton encarou-a, incrédulo.

- Estás a dizer que não tens criados? Nenhum? Estás sozinha nesta casa enorme?

E, antes que Laurette pudesse responder, começou a sorrir com malícia. Foi até junto dela, tomou-a pelas mãos e levou-a consigo em direcção à escadaria.

- Para onde vamos, Sutton?

- Tu vais ver.

Ao atingirem o topo das escadas, ele dirigiu-se para a parte de trás da mansão. Não queria levá- la para a suite principal. Não pretendia deitar-se com ela na mesma cama que Laurette partilhara com Tigart.

Ela parou, detendo-o, e indicou:

- Sutton, o meu quarto não fica nessa direcção.

- Não quero ir para os teus aposentos.

E continuou a levá-la pelo corredor, até alcançar um outro quarto, de hóspedes. Abriu a porta e instigou-a a entrar.

- Porque estás a trazer- me para aqui?

- Para fazermos amor - Sutton tomou-a nos braços e beijou-a, levando-a para junto do leito.

Lá, sem parar de a beijar, inclinou-se e tirou as cobertas, deixando no leito apenas o lençol que cobria o colchão. Tudo o mais ficou sobre os tapetes, no chão.

Quando o beijo intenso terminou, Laurette apoiou a cabeça no peito de Sutton, com a respiração acelerada pela antecipação do prazer. Sentia as pernas fracas e o corpo todo a desejá-lo com intensidade. Podia sentir que ele lhe beijava os cabelos e murmurava:

- Lembras-te de como fizemos ontem amor? Ela cerrou as pálpebras, para responder:

- E como podia esquecer?

- Óptimo. Porque não quero que esqueças. Quero que te lembres para sempre. Pretendo amar-te de novo daquela maneira, sem parar... Mas, desta vez, quero estar como tu. Sem roupa. Vais ajudar-me a despir?

O convite não poderia ser mais sedutor e, sorrindo, Laurette sussurrou:

- Será um prazer.

Sutton sentou-se na beira da cama, e Laurette colocou-se entre as suas pernas. Depois, fez com que o seu casaco deslizasse pelos ombros, tirando-o e largando-o sobre a cadeira ao lado. Em seguida dedicou-se, com carinho, aos botões da camisa clara, abrindo-os bem devagar, olhando para Sutton, sorridente, encantadora.

Sutton apoiou os braços no colchão, permitindo que ela fizesse tudo sozinha. E percebeu que gostava do modo como Laurette agia, tomando a iniciativa, sem pudor, sem mais nenhum receio.

Laurette acariciava-lhe os pêlos do peito, inclinava-se para os beijar, depois dedicava-se aos seus lábios, em movimentos lentos, sem pressa, mostrando-se muito mais sensual e decidida do que Sutton poderia supor que fosse.

Ansioso, ele ergueu as mãos e segurou-a pela cintura, a boca seguindo a dela, na intenção de continuar os beijos cada vez mais íntimos que trocavam.

Mas Laurette afastou o rosto e murmurou:

- Não, não... Quero despir-te por completo, primeiro. Depois poderás tocar-me, se quiseres.

- Vou querer - garantiu, e permaneceu quieto, esperando enquanto ela removia o cinto das suas calças.

As mãos miúdas eram ágeis e quando se moveram nos botões da braguilha puseram-no tenso, como Sutton não imaginara que fosse acontecer.

Quando lhe tirou a camisa de dentro do cós das calças e a lançou também sobre a cadeira, Laurette tornou a olhá-lo e uma expressão preocupada surgiu nos seus olhos. Reparara nas cicatrizes no flanco direito de Sutton.

- Tu feriste-te com gravidade... - comentou.

- São as marcas de um cavalo endiabrado que não queria deixar-se montar - explicou ele, tentando manter a história bem-humorada. - Mas foi há muitos anos. Já nem me lembro de quanto doeu.

- Lamento muito - Laurette ajoelhou-se, começando a dar-lhe beijinhos ao longo da pele marcada e sensível.

Sutton baixou os olhos para a cabeça loira recostada no seu baixo-ventre e arrepiou-se. Sentia os lábios dela, provocantes, na sua pele, e aquele toque suave eriçava- o.

Quando, por fim, ela o encarou, sorridente, Sutton sentiu-se aliviado. Laurette desviou a atenção para os sapatos e para as meias dele, retirando-os também devagar. Puxou as pernas das calças, e Sutton ergueu-se para a ajudar a tirá-las.

- Estás com frio, Sutton? Se estiveres, podemos acender a lareira...

- Não, não estou, não.

Os seus olhares cruzaram- se, então, e o efeito foi imediato e forte em ambos. Os seus corpos vibraram numa antecipação deliciosa que os levou a sorrir.

Sutton estava agora apenas com a roupa interior e imaginava se Laurette iria parar por ali, devido ao pudor. Imaginava que sim. Ela ainda não tinha experiência suficiente para fazer os jogos eróticos que ele aprendera. Não iria continuar a tarefa que começara com tanta animação.

Laurette ficara mais vermelha do que o normal. Não devia estar acostumada a fazer amor à luz do dia, imaginou Vane. Hesitaria em despi-lo de vez. Não ousaria.

De repente, a ideia de ela ser tímida em relação a assuntos sexuais pareceu-Lhe absurda. Afinal, Laurette fora casada com Tigart durante anos e devia ter feito com ele todas as coisas que os amantes faziam. Tal pensamento afastou, por instantes, todo o ardor do seu desejo, já que podia, na sua mente, visualizar os dois a amarem-se na enorme cama de casal da outra suite. Sentiu-se enojado.

Mas a imagem desvaneceu-se e o seu coração tornou a acelerar quando Laurette o olhou, com malícia, e os seus dedos se posicionaram na cintura das ceroulas, com a intenção de as baixar.

- Levanta-te um pouco - pediu ela, para Vane repetir o movimento que fizera quando Lhe tirara as calças.

Sutton obedeceu e, de repente, sentiu o rosto a arder, cheio de embaraço, quando se viu nu diante de Laurette. Não pretendera nada semelhante. Não imaginara que ela fosse suficientemente ousada ao ponto das coisas tomarem aquele rumo.

Onde estava o seu controlo agora? indagava-se, aborrecido consigo mesmo por não ter antecipado aquilo e estar a ser apanhado de surpresa naquele momento. Afinal, não se preparara tanto para quando a tivesse assim, à sua mercê?

Todavia, o seu olhar estava preso ao dela, e viu-a passar a língua pelos lábios, excitando-o ainda mais, para perguntar em seguida, com a voz mais sensual do mundo:

- Gostavas que eu te beijasse por inteiro, como fizeste ontem comigo?

 

- Não, minha querida, não acho que... - começou Sutton, mas interrompeu-se, com a respiração presa na garganta.

Laurette começara a distribuir suaves beijos por todo o seu tórax, concentrada em excitá-lo. Sutton não esperava tal atitude. Não sabia se conseguiria suportar aquela doce tortura. Não queria que acontecesse daquela forma, com Laurette a comportar-se assim. Era ele quem devia ter o controlo total da situação, não Laurette. Estava atordoado perante aquela ousadia. Não podia acreditar que estivesse ali sentado, nu, com ela ajoelhada à sua frente, beijando-o, torturando-o.

Então, com muito esforço, ergueu os braços e tomou-a pelos ombros, afastando-a levemente.

- Quero despir-te também e...

- Não. Ainda não. Primeiro, quero amar-te como tu me amaste.

Sutton engoliu em seco.

- Olha, não acho que...

- Não digas nada. Sente apenas - ela levantou-se, ordenando com doçura: - Deita-te de bruços.

Pasmado, ele demorou a reagir. Tinha de manter o controlo de tudo. Não podia deixar-se submeter de novo ao encanto de Laurette, como fizera quando ainda era um rapaz tolo e ingénuo. No entanto, a tentação de sentir os lábios dela por todo o corpo era maior.

Obedeceu-lhe, então, deitando-se como Laurette pedira, ouvindo-a livrar-se dos seus pequenos sapatos para poder ajoelhar-se ao lado dele no leito.

- Também podias despir-te - tentou ele, ainda uma vez.

- Vou fazê-lo, mas só depois... - e Laurette baixou-se, para lhe beijar a nuca.

Durante quase quinze minutos, Sutton ficou suspenso naquela agonia deliciosa. Os beijos de Laurette e as pontas dos seus cabelos a acariciarem a sua pele, eram tudo o que poderia imaginar em termos de prazer. E não teve tempo para se virar e enlaçá-la, porque os beijos não paravam, em carícias agradáveis, tentadoras.

De repente, porém, ela afastou-se. O seu rosto ergueu-se um pouco. Vários e tensos segundos se passaram e Sutton aguardou, com os dentes cerrados, imaginando o que faria ela em seguida. Aqueles segundos de espera deviam fazer parte do seu jogo de sedução, ponderou.

Mas Laurette já não estava a jogar; os seus olhos concentravam-se na feia cicatriz que Sutton tinha na nádega esquerda. Tocou-a com suavidade, sentindo os músculos dele a retesarem-se.

- O que te aconteceu, Sutton? Como conseguiste esta marca?

- É de nascença - mentiu, tenso.

Laurette olhou para a cabeça dele, que se mantinha voltada de lado, no travesseiro. A sua expressão era de incredulidade.

- De nascença? Parece-me uma cicatriz antiga de um ferimento profundo, e eu diria que tem a forma de duas letras... e D.

- Estás a imaginar coisas, minha querida - Sutton virou-se no colchão, encarando-a. Sentou-se e tomou-a nos braços, trazendo-a para junto de si.

- Não, não estou - teimou, com um sorriso. - Tu, Sutton Vane, tens as letras marcadas no traseiro!

Vamos, torna a virar-te. Quero ver mais uma vez e...

- Tenho uma sugestão melhor - beijou-a. – Não pensei noutra coisa durante o dia inteiro a não ser em ti e no quanto te quero. Anda, tira essa roupa e deixa-me amar-te.

Laurette aceitou logo aquela ideia, levantou-se e começou a despir-se com graça diante dele. Mas fazia-o de costas.

- Por que não te voltas para mim, Laurette?

- Bem, é que... eu...

- Olha para mim.

Laurette fê-lo, com lentidão. E Sutton prosseguiu, muito sério:

- Nunca tenhas vergonha de mim, minha querida. Nunca tentes esconder-te de mim. Tu és linda, tens um corpo maravilhoso. Por favor, permite que eu o admire.

- Está bem - e Laurette começou a despir-se com mais desenvoltura.

E, quando ficou toda nua, Sutton trouxe-a para mais perto. Juntos, ansiosos e cheios de desejo um pelo outro, amaram-se com loucura, partilhando gemidos deliciados, numa agonia tão agradável que acabou por trazer, para ambos, uma satisfação total.

Mas tinham a tarde inteira para continuar a amar-se, intercalando momentos de suavidade com formas mais selvagens, mais famintas. Os seus corpos encontravam-se, entendiam- se, entregavam-se.

Sutton deixou de pensar em qualquer outra coisa. Estar com Laurette, daquela maneira, era surpreen dente e delicioso. Jamais poderia ter imaginado que fosse assim, que ela respondesse com tamanho entusiasmo à sua vontade, que se juntasse a ele com tanta cumplicidade na paixão que os envolvia.

Para Laurette, fazer amor com Sutton era algo fascinante, envolvente, fantástico. Jamais experi mentara algo semelhante.

Para ele, as delícias da carne ficavam exactamente aí: na carne. Não no coração. Amar aquela mulher em particular devia ser como fazer amor com qualquer outra: simples, gratificante, nada mais. E com o sabor especial da vingança. O seu corpo podia estar envolvidíssimo, mas o seu espírito e o seu coração permaneciam desligados, afastados, firmes. O muito que sofrera ensinara- o a ser frio, a não se deixar envolver demais. Nada deveria ser especial com Laurette, além do facto de estar a realizar o seu plano com sucesso.

Laurette, porém, nunca poderia imaginar algo assim tão incrível. Sutton era divino para ela. Era tudo o que sempre quisera.

Horas depois, Laurette estava adormecida nos braços dele, segura, entregue, satisfeita. Por algum tempo, Sutton permaneceu quieto, olhando-a apenas, pensando.

Laurette parecia-lhe tão jovem, tão inocente, assim adormecida... Chegou a sentir um aperto no peito. Ela não podia imaginar quais eram as suas verdadeiras intenções. Achava que ele a desejava, que gostava dela e que estava a entregar-se com a mesma alegria com que ela se Lhe entregava.

Cerrou os olhos com força. Os músculos faciais movimentaram-se por baixo da pele, tensos. O que estava a fazer a Laurette talvez fosse cruel, desumano. Mas tinha de se manter firme nos seus objectivos.

Reabriu as pálpebras e, lançando mais um olhar sobre Laurette, soltou-se devagar do abraço dela, saindo do leito. Apanhou as cobertas que estavam no chão e cobriu-a. Depois vestiu-se e saiu.

Quando Laurette despertou, pouco depois, olhou em redor, vendo logo o bilhete deixado sobre a mesa-de-cabeceira, juntamente com uma rosa. Dizia: Vejo-te amanhã".

Ela sorriu e suspirou, feliz. Pegou no bilhete e na rosa e foi, nua, pelo corredor, até à sua suite. Aí; pousou o papel sobre o toucador e colocou a flor num solitário de cristal. Vestiu um roupão de veludo e desceu para a cozinha, sentindo-se de repente faminta.

Fez um pequeno lanche e voltou para o andar superior da mansão. Já se dirigia de novo para o seu quarto, quando parou no meio do corredor.

Voltou para o quarto onde ela e Sutton tinham passado aquela tarde maravilhosa e, sorrindo, exultante, tornou a deitar-se na cama. Preferia ficar ali, onde havia o cheiro dele no ar, onde o lençol guardava as marcas do seu amor.

A chuva passara, por fim, e a noite viera iluminada pela lua que brilhava num céu sereno e limpo. Através dos vidros da janela Laurette podia vê-la, mesmo deitada. Fechou os olhos, então, entregando-se ao prazer de se lembrar de Sutton.

Tudo nele a fascinava. E pensar nele era reviver os momentos intensos em que estivera nos seus braços fortes, carinhosos. Arrepiava-se só de recordar. Ficara cativa daquela atracção, daquela paixão, desde que o vira pela primeira vez, em casa dos Ivy.

E a sensação que já a dominara antes voltou, forte, inquietante, mas agradável; uma sensação de que,

embora Vane ainda fosse um estranho, parecia-lhe adoravelmente familiar.

Era isso o que a arrastava para junto dele, que a fazia sentir-se segura e protegida na sua presença, mesmo sabendo que alguma coisa na personalidade daquele estranho cavalheiro a amedrontava.

Sutton era diferente de todos os homens que conhecera. Podia ser encantador e agradabilíssimo, mas também havia uma quietude, um mistério a rodeá-lo, que o tornava ausente, estranho. Ele podia, como Laurette já notara, permanecer calado, quieto, impassível, durante muito tempo, e ainda assim emanar uma força poderosa na sua mansidão. Isso fazia-o parecer perigoso.

Intuía que devia haver alguma espécie de segredo na vida dele. Algo que Sutton não queria que se soubesse, que se descobrisse. Fazia-lhe muitas perguntas, não apenas sobre a sua vida, mas sobre todos os seus amigos. E Laurette respondia tranquilamente, sem guardar nenhum segredo.

No entanto, quando Lhe perguntava alguma coisa, Sutton quase sempre respondia com evasivas, respostas pouco ou nada esclarecedoras. Porque fazia isso? Questionava-se Laurette, curiosa. E porque é que quase não tocava na comida, sempre que almoçavam ou jantavam juntos?

Sutton possuía um belo corpo, bem proporcionado, mas era esguio, quase magro. Não era de admirar, já que nenhum prato, por mais apetitoso que fosse, parecia interessar-lhe...

Cobriu-se melhor, continuando a pensar, analisando aquele por quem, sabia, estava a apaixonar-se. Uma vaga onda de medo envolveu-a. Era es tranho, mas temia Sutton Vane, embora estivesse fascinada por ele.

Não devia ser assim tão tola, repreendeu-se. Afinal, não o temera o suficiente para ficar fora do alcance dos seus braços, da sua paixão.

E estava preocupada por tê-lo feito. Mal podia acreditar na maneira aberta e desavergonhada com que reagira aos encantos de Vane. Mas sabia que continuaria a comportar-se assim enquanto ele a desejasse. Não fazia sentido, mas seria assim.

Na realidade, já mais nada fazia sentido para Laurette. Com excepção do doce e urgente amor que partilhara com Ladd, na adolescência, nunca gostara de ter intimidades com os homens. Fora terrível para ela ter de fazer sexo com o seu ex-marido; passara anos a detestar que Jimmy lhe tocasse, desejando que a deixasse em paz, que não a procurasse...

E agora surgia aquele estranho, encantador, fascinante, que a arrastava para um delírio íntimo sem igual. Um homem com quem queria estar o tempo todo e que, quando a abraçava, lhe dava a deliciosa sensação de lhe pertencer desde sempre.

 

- Ossos, passei por um terreno na rua do Canal, na semana passada. Descobre se está à venda. Se estiver, compra-o. Se não, arranja outro lote grande, muito bem localizado, no centro da cidade.

O ex-marinheiro assentiu e anotou, no pequeno bloco que tinha nas mãos: Lote na rua do Canal, Depois comentou:

- Pode ficar tranquilo, patrão. Tratarei disso agora mesmo.

- Encontra-te com o arquitecto que fez a planta para a mansão da ilha - prosseguiu Sutton com as ordens. - Diz-lhe que quero também uma enorme estufa nas traseiras da casa.

Ossos assentiu, sem questionar, e voltou a tomar nota. Depois ergueu os olhos para o patrão, indagando:

- Mais alguma coisa?

Sutton estendeu o braço para a caixa de prata em cima da secretária, onde guardava os seus charutos cubanos, pegou num deles e cortou a ponta com o aparador que mantinha na gaveta de cima do móvel. Acendeu- o e deu algumas baforadas.

Ossos, sentado diante dele, do outro lado da mesa, observava-o esperando, pacientemente, por qualquer outra ordem.

Sutton soltou uma nuvem de fumo acinzentado e disse, calmamente:

- Faz com que um dos nossos homens visite o asilo de órfãos de Saint Francis. Diz-lhe para falar com a directora, a senhora Abigail Young, e perguntar-lhe se alguma das crianças estaria interessada em ter aulas de piano. Explica que as aulas serão gratuitas e que a pessoa que as está a oferecer prefere permanecer no anonimato - depois soltou mais umas baforadas e calou-se.

Ossos olhava-o, atentamente.

- Mais nada?

- Por enquanto, não. Quanto tempo vais levar para fazer o que te pedi, Ossos?

- Bem, acredito que, dentro de quarenta e oito horas; já terá as respostas que deseja.

- Óptimo. Obrigado.

- De nada, chefe - Ossos fechou o bloco de notas, levantou-se e sem mais uma palavra deixou o escritório, para providenciar o que devia ser feito.

Dizendo que não conseguia ficar longe dela, Sutton encontrava sempre maneira de estar com Laurette quando ela não se encontrava a trabalhar no Hospital. E, quando estavam juntos, faziam amor.

Laurette estava dominada, obcecada por ele. Disposta a cair nos seus braços sempre que Sutton a procurava, desejando vê-lo, tocá-lo, entregar-se mais uma vez. Cada carícia, cada beijo, trazia-lhe novo encanto. E não fazia qualquer tentativa de esconder o facto de que estava louca por Sutton.

Queria desesperadamente acreditar que ele sentia o mesmo por ela e afastava qualquer dúvida que pudesse pairar no seu íntimo quanto aos sentimentos dele. O seu mundo pertencia a Sutton agora, e queria que permanecesse assim.

Ele provocara tamanha diferença na sua vida que sempre lhe ficaria grata pela felicidade que lhe proporcionava. Não queria pensar no amanhã, temê-lo, imaginar se aquele ardente caso de amor ia ou não terminar. Não pretendia descobrir para onde iria, o que aconteceria no seu futuro. O presente era tudo o que lhe importava. E era felicíssima.

Entretanto, uma voz interior teimava em avisá-la de que aquilo podia não durar, porque tudo tem um fim, em especialo que é muito bom.

Rezava todas as noites, pedindo a Deus que mantivesse Sutton junto dela, porque a simples ideia de o perder já Lhe era insuportável. Ele era tudo para Laurette. Até o conhecer, imaginava a sua vida como algo sem importância, sem interesse. Pensava que nunca mais poderia ser feliz outra vez, como fora um dia nos braços de Ladd.

Mas estava enganada. Jamais encontrara tamanha felicidade e jamais amara tanto como agora...

Sutton apareceu mais cedo do que o combinado, naquela bela tarde de Fevereiro. Laurette agarrou num roupão e desceu as escadas a correr, sem estar ainda pronta.

- Sei que estou adiantado - desculpou-se ele logo, quando a porta se abriu e ela apareceu, aflita. E, sorrindo, agarrou nas pontas do cinto do roupão e puxou-a para um abraço, murmurando: - Vais-me perdoar, não vais?

- Vou pensar nisso - brincou, aceitando o beijo possessivo e ardente que ele lhe deu.

- Sabes porque vim mais cedo?

- Não faço a menor ideia.

- Porque esperava encontrar-te como estás, sem te teres vestido... - os olhos azuis dele cintilaram. Tens alguma coisa por baixo desse roupão? Acho que não.

Mas ela afastou-se, repreendendo-o:

- Não, Sutton. Não temos tempo agora para isso. Se pretendemos encontrar-nos com os Ivy às oito, tenho que me despachar e arranjar-me o mais depressa possível.

- Queres que eu te ajude? - questionou, ainda malicioso.

- Não, a sério! Espera por mim na sala. Estarei de volta em poucos minutos.

Laurette virou-se na direcção da escadaria, mas Sutton segurou-a por um braço e, trazendo-a para si, tornou a beijá-la, sussurrando junto aos seus lábios:

- Mal posso esperar para voltarmos do teatro.

- Eu também - segredou- lhe Laurette, sincera.

Afastou-se então, apressada escada acima, enquanto Sutton ia para a sala de estar. Parou na soleira e voltou-se de novo para o hall, dando alguns passos e seguindo pelo corredor que levava às traseiras da residência.

Parou quando passou pela entrada da sala de música. A luz das varandas do corredor penetrava, suavemente, na sala, e ele sorriu, lembrando-se. Havia melancolia no seu semblante.

Mesmo no centro da sala estava o piano de cauda, belíssimo, feito de mogno escurecido. Ali ele e Laurette tinham aprendido a tocar, com a gentil professora, a menina Foster. Ainda conseguia lembrar-se da expressão atenta e compenetrada da professora, cujos talentos musicais eram impressionantes. Tantos anos se tinham passado! Uma vida inteira.

Deu alguns passos para dentro da divisão e passou os dedos sobre o piano. A madeira brilhava: Aquele instrumento não devia ter sido tocado nos últimos tempos, supôs. Sentou-se na banqueta, e os seus longos e magros dedos abriram a tampa do teclado e depois acariciaram as teclas de marfim. Sem pensar, num gesto automático, pressionou-as para baixo, iniciando a polonaise de Chopin, que aprendera em criança.

Parou, entretanto, depois de dedilhar algumas notas. Cerrou os dentes, e as suas mãos ficaram hirtas sobre o teclado. O seu coração disparou.

Laurette, já vestida e descendo, no meio da escadaria, estacou ao ouvir aquela música. O seu coração também disparara, e teve de se apoiar no corrimão, experimentando uma leve tontura.

Um arrepio passou-lhe pelo corpo, eriçando-lhe os cabelos finos da nuca. Por que reagia assim? Indagou-se. O que podia haver de mal em ouvir Sutton a tocar, mesmo que fosse aquela melodia em particular? Por que estava tão alvoroçada?

A polonaise fazia parte do reportório de qualquer pessoa que tivesse tido uma boa orientação musical, e ele, com certeza, tivera-a. Vane tinha talento, aliás, em tudo o que fazia.

Mas, ainda confusa e trémula, ela acabou de descer, forçando-se a respirar fundo e a pôr de lado aquela estranha impressão que tomara conta dela. Estava a ser tola, avaliou, deixando-se impressionar por fantasmas do passado, nada mais. E esses fantasmas, sabia bem, iriam sempre assombrá-la, aonde quer que fosse.

Tentou sorrir, seguindo pelo hall e pelo corredor. Fora uma coincidência, tentou convencer-se. Apenas uma coincidência.

- O teu piano está desafinado - observou Sutton, saindo da sala de música ao encontro dela. - Mandarei cá alguém para o afinar.

Laurette parou, encarando-o e observando:

- Não sabia que tu tocavas piano.

- Bem, na verdade não toco - aproximou-se e segurou-a pela cintura. - Arranho algumas notas, apenas. Tu tocas?

- Não, não. Pouca coisa... Porque escolheste aquela mús...

Mas Sutton silenciou-a com um beijo. E, quando os seus lábios quentes deixaram os dela, Laurette já não se lembrava do que ia a dizer.

- Estamos atrasados, meu amor - instigou ele. Vamos?

Depois de uma noite maravilhosa no teatro, onde a famosa actriz Ada Rehan desempenhou com mestria o papel da indomável Katherine em A Fera Amansada, de Shakespeare, Laurette e Sutton despediram-se dos Ivy e seguiram directamente para a mansão dele, na rua do Governo. Aí jantaram, beberam champanhe e depois subiram para a suite principal, onde fizeram amor na cama imensa, enquanto as chamas da lareira lançavam espectros avermelhados sobre os seus corpos nus.

Quando Sutton a levou para casa, cansada e sonolenta, já de madrugada, tinha a certeza absoluta de que Laurette, como pretendera desde o princípio, começava a apaixonar-se perdidamente por ele.

Ela estava surpreendida, mas não alarmada, por ver que Sutton não a esperava diante das escadas do Hospital, na sua carruagem, como se tornara habitual. Estranhando esse facto seguiu pela rua, olhando para ambos os lados, ainda na esperança de o ver chegar.

Decidiu parar e esperar alguns minutos, imaginando que poderia ter-se atrasado. Mas, depois de quinze minutos à espera, achou melhor ir andando para casa.

Ficara tensa, mas achou que estava a ser tola por se torturar assim. Sutton não viera porque alguma coisa o detivera, nada mais. Talvez, até, estivesse a caminho de sua casa naquele exacto instante.

Assim, apressou o passo. Quando chegou acendeu a lareira, tomou um banho e esperou, certa de que Sutton apareceria a qualquer momento.

No entanto, ele não veio. O relógio começou a irritá-la com o seu tiquetaque monótono e incansável. Sete horas, oito, nove... e nada de Vane aparecer.

Laurette tentava argumentar consigo mesma, imaginava explicações plausíveis... Tentava lembrar-se se ele lhe falara em algum compromisso

para essa noite. Não, não lhe dissera nada, lembrava-se muito bem. Na véspera, ao despedir-se, prometera ir buscá-la ao Hospital.

Sem entender nada, Laurette deu alguns passos pelo hall, tentando raciocinar, fazer uma ideia do que poderia estar a acontecer. Onde estaria Sutton

Indagava-se, ansiosa. Se ele não chegasse em breve, não sabia o que poderia fazer. Sentia que precisava dele como do ar que respirava. Mas sabia que, com certeza, devia haver uma boa explicação para aquele atraso.

O relógio bateu dez horas, ressoando por toda a mansão. Laurette teve um sobressalto e depois sentiu-se ainda mais aborrecida. Por fim, compreendeu que devia ir para a cama sem ver Sutton nessa noite.

Ele não viria. Apenas isso.

Voltou-se para as escadas mas abanou a cabeça, teimosa, negando-se a aceitar os factos. Sutton tinha de vir! E viria. Em breve. Bastava aguardar.

Às onze, confusa e desapontada, Laurette subiu a escadaria com passos pesados. Deitou-se, mas permaneceu acordada por muito tempo, abatida, frustrada. Tinha a estranha e horrível sensação de que alguma coisa não estava bem, que Sutton não viera de propósito... Pior: que ele não quisera vê-la.

Mas precisava tanto de acreditar que estava tudo bem que acabou por se convencer de que a ausência de uma noite nada significava de anormal. Afinal, Sutton estivera com ela todas as noites desde que o seu romance começara. E não era dona dele... Ele devia ter outros amigos, outros compromissos. Era um homem de negócios. Talvez algum desses amigos, ou alguém com quem tivesse algum tipo de negócio, tivesse aparecido de repente na sua residência. Sutton não podia ser grosseiro e mandá-lo embora. Era gentil e bem-educado demais para isso.

E quando, por fim, o sono começou a chegar, Laurette já imaginava que, no dia seguinte, Sutton apareceria, sorridente e radiante como sempre, diante da sua porta, com uma boa explicação para tudo.

No entanto, isso nunca aconteceu. Os dias começaram a passar, e Laurette não o viu mais, nem ouviu falar dele. Ao fim de uma semana de total ausência, ela estava transtornada. Ferida e sem entender o que se passava, imaginava o que teria feito de errado. Não podia, porém, ir ter com ele e perguntar qual era o problema; tinha apenas de esperar e tentar entender.

Numa elegante suite do luxuoso Hotel Saint Louis, em Nova Orleães, Sutton Vane deliciava-se numa banheira de água quente, enquanto o sol se punha naquele frio entardecer de Fevereiro. Numa das mãos tinha um charuto cubano; na outra, uma taça de conhaque.

Os seus olhos estavam quase fechados, mas o seu queixo barbudo continuava firme, tenso. Aborrecia-se por estar sozinho. Mais ainda, porque ela continuava a entrar nos seus pensamentos sem ter sido convidada, e isso irritava-o. Não contara com a falta que Laurette lhe faria. Não queria sentir-se assim; não precisava de pensar nela.

Não, não sentia a falta dela, repetiu para si mesmo, mais irritado ainda. O que se passava era que começava a experimentar um enorme remorso pela sua atitude. Sabia que Laurette devia estar confusa e triste nesse momento, por causa do seu desaparecimento repentino. Ora, pois que se preocupasse, que sofresse, que sentisse saudades! Era esse o principal objectivo da sua estadia em Nova Orleães.

Apagou o charuto num cinzeiro de porcelana ao lado da banheira e terminou a bebida, pousando a taça e levantando-se. Começou a sorrir, ao secar-se.

Nessa noite, tinha um encontro tardio com uma das mais belas mulheres da cidade.

Dizia-se que a linda e morena Caroline Summers, de vinte e três anos, rainha das festividades do Mardi-Gras desse ano, era uma mulher que sabia muito bem como agradar a um homem, fosse ele solteiro ou casado. E Sutton imaginava que tais boatos fossem verdadeiros porque, após ter-lhe sido apresentado, na véspera, no jantar em casa de conhecidos comuns, a bela Caroline inclinara-se para ele, perguntando-Lhe em voz baixa e linguagem directa:

- Deseja fazer amor comigo, senhor Vane?

Surpreendido por alguns segundos, Sutton encarara-a, depois olhara rapidamente para o pai da jovem, sentado mesmo à sua frente, e respondera no mesmo tom:

- Estou encantado com o convite, menina, mas, como pode ver, vim acompanhado - e fizera um subtil movimento de cabeça em direcção à viúva rica que viera com ele ao jantar.

- Ela? - troçara Caroline. - Essa matrona tem idade suficiente para ser sua mãe!

Sutton sorrira, respondendo:

- A senhora Sullivan tem apenas quarenta e um anos, Caroline.

- A sério? Pois parece ter muitos mais, a meu ver. Mas, mesmo que goste do que ela faz na cama, posso garantir que lhe mostrarei uma ou duas coisas das quais ela nem sequer ouviu falar.

Sutton assentira, pasmado diante de tanta ousadia, mas aceitara:

- Amanhã à noite, então.

- Está bem. À meia-noite, porque tenho outro encontro antes.

Ele arqueara as sobrancelhas, mas concordara:

- À meia-noite. Estarei na minha suite, no Hotel Saint Louis.

- Irei até lá, sem falta.

Caroline Summers era, sem dúvida, o tipo de rapariga de que Sutton estava a necessitar agora. Uma beleza tentadora, sem inibições ou moral; e sem expectativas.

Consultou o relógio. Já eram quase nove horas. Caroline viria dentro de três, portanto ainda dispunha de tempo para fazer o que bem entendesse.

Vestiu um fato elegante e serviu-se de outra dose de conhaque, que bebeu de uma só vez, num gole longo que lhe queimou a garganta por segundos. Em seguida, desceu para o átrio e, em poucos minutos, entrava numa carruagem alugada.

- Toussaint - indicou ao cocheiro, que pôs logo o veículo em movimento.

E acomodou-se no banco, imaginando que teria agradáveis momentos no famoso salão de jogos de Nova Orleães.

Ao chegar, arranjou lugar numa mesa ao canto, onde jogou várias partidas de póquer com cavalheiros ricos e poderosos. Estava com sorte. Ganhou muito dinheiro mas, lembrando- se do seu compromisso, afastou-se da tentação de continuar a jogar, agradecendo aos companheiros e avisando que aquela seria a sua última partida.

Tirou o relógio de ouro do bolso do colete. Teve de conter uma imprecação, ao constatar que era meia-noite e meia. Não podia levantar-se e sair dali à pressa. Iriam considerá-lo um tolo, ou um mau jo gador. Precisava de jogar mais uma rodada.

No entanto, a animação das mãos alegrou-os a todos, e o prazer do jogo deteve-os até às duas da ma drugada. Sutton também acabou por ficar e, àquela hora, tinha a certeza de que já não precisava de se apressar, pois a menina Summers já devia ter deixado o hotel, furiosa por ter esperado tanto. Ao regressar à sua suite, porém, qual não foi a sua surpresa ao encontrá-la, sorridente e nua, deitada na sua cama, numa posição muitíssimo provocante. - Por favor, perdoe-me - desculpou-se Sutton, aproximando-se, com o chapéu ainda nas mãos. O seu olhar apreciava as curvas do corpo da jovem, e os seus lábios abriam-se num sorriso satisfeito.

- Mais cinco minutos e eu ter-me-ia ido embora - murmurou ela, sem deixar a altivez de lado. E, batendo levemente no colchão, chamou: - Agora, venha cá e compense-me pela espera.

Sutton estava acordado, na escuridão do quarto. Eram altas horas da madrugada, e Caroline partira há muito. Ela provara merecer a reputação que tinha: fora uma amante generosa e agressiva, que parecia nunca se saciar. Sedutora e muito experiente, soubera como lhe agradar, mas Sutton fartara-se dela muito antes de ter deixado o seu leito.

E agora imaginava o motivo. Mas não fazia sentido. Caroline era tudo o que qualquer homem poderia desejar numa mulher. Linda, voluptuosa, com um corpo belissimo e um apetite para o sexo como ele nunca vira antes. Antes de lhe tocar, pensara que teria uma noite inesquecível, no entanto...

Sutton fingira, e isso não Lhe fora difícil. Caroline delirava nos seus braços e ele apenas se mantinha atento, carinhoso, mas frio, distante, sem verdadeiramente se interessar por ela. Mantivera-se exci tado, comprazendo-a, mas aprendera a separar muito bem a parte física da emocional, e não tivera o menor envolvimento naqueles intensos momentos de prazer. Era um controlo que adquirira e que conseguia manter com todas as mulheres.

Franziu o cenho, aborrecido, ao constatar que não era assim. Não com todas as mulheres. Não havia controlo suficiente da sua mente sobre o seu corpo quando estava na cama com ela.

Laurette punha-o fora de si, dominado pelo desejo, subjugado pela intensidade da paixão. Porquê? Por que tinha de ser tudo diferente com ela? Indagava-se, furioso. Por que era Laurette capaz de o deixar tão ardente que toda a fleuma lhe fugia?

Não importava. Talvez fosse por Laurette ter sido o seu primeiro amor, a sua primeira amante, quando ainda eram tão jovens. E, quando estava agora com ela, uma parte de si mesmo recuava no tempo, e tornava-se mais uma vez aquele adolescente apressado, inexperiente, mas cheio de vivacidade e de amor para dar.

Fosse como fosse, já não era aquele garoto tolo. E jamais o seria outra vez. Tinha a certeza de que essa parte do seu plano, a sua ausência inexplicada para com Laurette, estava a funcionar muito bem. Apostaria tudo o que ganhara na mesa de jogo em como poderia, até, procurá-la naquele instante e que ela iria, feliz, dominada, apaixonada, cair nos seus braços e aceitar qualquer explicação sem nexo que lhe desse.

Entrelaçou os dedos na nuca, seguindo com os seus pensamentos. Cerrou as pálpebras e sorriu. Ainda manteria Laurette na frieza da sua ausência por mais uma semana. Sem uma palavra, sem um aviso, sem nada. Deixaria que ela sentisse tanto a sua falta que mal pudesse dormir ou comer. Permitiria que perdesse a esperança de o ver voltar, que soubesse da sua escapadela até Nova Orleães.

E, quando voltasse para ela, sabia que seria recebido com alegria, ansiedade e carinho. E Laurette estaria de joelhos, uma verdadeira escrava da sua vontade.

 

Sentia-se como se o estivessem a encurralar. Sobressaltava-se, assustado, ao menor barulho. Estremecia com frequência e, ao que parecia, sem motivo aparente. Sempre que saía à rua, tinha a estranha e incómoda sensação de que alguém o observava e seguia; de que alguém estava à espera para o agarrar num momento em que se encontrasse sozinho.

O carrancudo e tenso Gilbert LaKid levantou-se, sobressaltado, da mesa em que comia. Os seus cabelos arrepiaram-se. Deu alguns passos nervosos pelo apartamento alugado, simples e pobre, onde vivia sozinho. O velho prédio onde ficava localizava-se numa rua quase deserta no bairro mais distante e pior frequentado de Washington. Aquela era mais uma das inúmeras moradas que tivera nos últimos anos.

Tinha-se mantido assim, a mudar a toda a hora de casa, a vaguear de cidade em cidade, a arranjar empregos precários que serviam apenas para garantir a sua sobrevivência. Fazia pouquíssimos amigos e passava a vida a esconder-se de demónios que jurava que o perseguiam.

Ficou parado por longos momentos atrás da porta a ouvir, atento, à espera... Por fim decidiu abri-la, e com muito cuidado olhou para fora, para ambos os lados do corredor imundo, empoeirado. Era como se esperasse ver alguma figura a espreitar nas sombras.

Um gato preto, de olhos brilhantes, assustado com a aparição repentina de LaKid, assanhou-se e saiu a correr, aos pulos sobre os caixotes do lixo que ainda não tinham sido recolhidos. O conteúdo dos caixotes espalhou-se pelo chão e chegou até à porta do antigo carcereiro, fazendo-o praguejar. Fechou a porta e trancou-a; voltou a sentar-se à mesa para terminar a sua pobre refeição.

Inquieto, fitou o envelope que deixara junto ao prato e, de boca cheia, pegou-lhe e abriu- o devagar. O selo era inglês. A data no carimbo, Março de 1881.

LaKid retirou a carta de dentro do envelope e começou a lê-la pela quarta vez consecutiva, desde que a missiva chegara nessa manhã:

 

           "Caro Gilbert,

Obrigado por me ter enviado algum dinheiro. Agradeço muito a ajuda que me tem dado, visto que ainda continuo desempregado e numa situaÇão horrível. Quero avisá-lo de que deve continuar a ser cuidadoso. O Dasheroon foi o responsável pela minha ruina e também irá atrás de si, ouça o que lhe digo! O homem é esperto e não desiste! Além disso, tem um grupo de funcionários a trabalhar para ele, que fazem tudo o que ele manda sem contestarem. E agora, o Dasheroon apresenta-se com outro nome; porém, nãofaço a menor ideia de qual seja.

Lembre-se de que uma das qualidades que quase toda a gente tem, por causa da consciência, é a piedade.

Pois saiba que o Dasheroonjá não sabe o significado desta palavra. Tornou-se um homem frio e calculista, disposto a tudo para se vingar. Portanto, tenha cuidado, meu velho. Muito cuidado!

           Com apreço, James Tigart"

 

LaKid tornou a dobrar o papel e, pensativo, voltou a colocá-lo no envelope. Mantivera contacto com Tigart durante todos aqueles anos. O ex-major do exército era o único amigo verdadeiro que possuía e, como tal, costumava mandar-lhe algum dinheiro que lhe sobrasse.

Pôs uma caneca de café frio sobre o envelope, levantou-se e deu alguns passos pelo compartimento mal iluminado, sentindo uma inquietação crescente. Uma premonição terrível afligia-o. Algo de muito ruim estava para Lhe acontecer. E a missiva de Tigart viera reforçar essa sensação.

Abanou a cabeça e respirou fundo. Sabia que tinha de continuar em frente, acontecesse o que acontecesse. Foi até à zona que lhe servia de cozinha e abriu um dos armários, de onde tirou uma garrafa vazia que já contivera conhaque. Agora, só restavam alguns pingos preciosos. LaKid disse um palavrão e bebeu o que restava.

Aborrecido por não ter mais nenhuma bebida em casa, atirou a garrafa contra a parede, partindo-a em mil pedaços. Descalço, usando apenas a surrada roupa interior, soltou outro palavrão quando, ao dar um passo, o seu dedo esquerdo pisou um dos vidros e uma mancha enorme de sangue apareceu imediatamente sobre a sua pele.

A coxear foi até à cama, onde se sentou e limpou o sangue com a ponta do cobertor. Deitou-se, dobrou os braços sob a cabeça e tentou adormecer. Mas não conseguiu. Decidiu tirar um charuto da caixa que tinha sobre a mesa-de-cabeceira, mas lembrou-se de que os charutos já tinham acabado. Tinha fumado o último

antes do detestável jantar que acabara de comer. Não

tinha nada para beber e nada para fumar.

Levantou-se, mais inquieto ainda, e olhou para o relógio. Era quase meia-noite. Tarde demais para sair e tentar comprar alguma coisa. Não seria seguro, sobretudo depois do que lera naquela mensagem.

Tornou a deitar-se e os pensamentos chocavam-se na sua mente, voltados, como muitas outras vezes, para Ladd Dasheroon.

Rangeu os dentes, frustrado. Pensou que devia ter morto aquele rebelde magricela quando tivera oportunidade. Por que razão não morrera o infeliz no calabouço, como se estava à espera? Como conseguira sobreviver naquele poço durante tantos anos?

Fosse como fosse, tinha sobrevivido. Dasheroon estava vivo, usava um nome falso e era uma ameaça constante para ele, LaKid. Não havia nenhuma dúvida na sua cabeça quanto ao facto de Dasheroon andar a persegui-lo. Teria de passar o resto dos seus dias a fugir, a ter cuidado e a olhar para trás, para ver se estava a ser seguido.

Levantou-se, mais uma vez, foi até à mesa e procurou o coto do charuto que ali largara. Nada. O coto tornara-se um montículo de cinzas. Respirou fundo, passou o seu único olho em volta, pensando como seria agradável poder beber um gole...

Passou a língua pelos lábios e, juntando toda a coragem que ainda lhe restava, disse para consigo mesmo que estava a ser ridículo. Não podia acontecer-Lhe nada. Não estava com medo. Não temia homem algum. Não era um covarde. Sairia quando bem entendesse para beber uns copos e mandava para o inferno qualquer receio que pudesse detê-lo.

Procurou as roupas, que deixara espalhadas pelo quarto. Apanhou a camisa e as calças e começou a vestir-se, trauteando uma antiga canção do Norte, mais para afastar o medo do que para se distrair.

Continuava a argumentar consigo mesmo: não tinha nada a temer. Não precisava de se preocupar com o que quer que fosse. Se Dasheroon não tinha conseguido encontrá-lo naqueles anos todos, não o faria agora. Nem nunca! Talvez até já tivesse desistido da busca. Devia ter-se esquecido de que ele existia.

Assim, LaKid saiu do seu quarto alugado para a noite, que estava quente demais naquele mês de Março. Seguiu para o Darcy's com passos firmes, sem se virar para trás ou para os lados.

Sentia-se conf iante, agora. Havia muitos homens na taberna, e eram todos seus conhecidos. Mais uma vez, garantiu a si mesmo que nada tinha a temer.

Assim que entrou no bar, uma mulher muito pintada pendurou-se nos seus ombros, expondo os seios quase na totalidade, no baixíssimo decote do vestido. Encontrava-se sempre no Darcy's. Por uma moeda de cinco dólares, subia com qualquer um para o seu quarto no andar superior e ficaria com ele até de manhã. Não era bonita, os cabelos eram demasiado vermelhos, sem dúvida pintados, e estava bem acima do peso normal. No entanto, era sempre muito boa para LaKid.

Ele estalou os dedos para acordar o empregado do balcão, que dormitava, e gritou:

- Uísque! E deixe a garrafa! - voltou o seu único olho para a mulher, sorriu e perguntou- lhe: - Quanto levas por trinta minutos?

Ela riu, abraçou-se ainda mais a ele e respondeu:

- Um dólar.

Uma hora depois de ter chegado ao Darcy's e completamente bêbado, LaKid deixou o estabeleci mento e saiu para as trevas da rua. Caminhava, assobiando animado de volta a casa.

Tudo aconteceu tão rapidamente que ele mal teve tempo de perceber o que se estava a passar. A poucos passos da sua porta assustou-se, ao ser agarrado por trás, numa chave de pescoço que o imobilizou. Ainda tentou soltar-se, mas a lâmina fria de uma navalha aproximou-se da sua garganta, cortando-o de orelha a orelha.

Banhado no sangue que esguichava e tentando desesperadamente respirar, conseguiu murmurar apenas algumas palavras:

- Ladd Dasheroon, seu desgraçado!

- Ora! Quem é o Ladd Dasheroon? - perguntou o assassino ao seu cúmplice, que esperava ali ao lado, enquanto via LaKid abandonar a vida aos seus pés.

Laurette sentia-se mais infeliz do que nunca. Dormia mal e acordava muitas vezes durante a noite.

Quase sempre, só conseguia adormecer de vez quando já eram altas horas da madrugada.

Perdeu o apetite por completo e as suas forças pareciam desaparecer aos poucos. Sozinha na sua casa enorme, sentindo-se mais triste do que na época em que perdera todos os que amava, chorava, quase sem perceber, sem parar. Sem a presença de Sutton, tudo ia de mal a pior.

Depois de muita insistência por parte das gémeas Parlange, Laurette acabou por Lhes confessar a sua preocupação e melancolia, e as duas, sempre amigas e solidárias, prometeram nada comentar com quem quer que fosse. Estavam preocupadas com ela e vinham visitá-la quase todas as tardes, ficando ao seu lado até ao anoitecer. Traziam deliciosas iguarias para tentarem abrir-Lhe o apetite e procuravam em vão distraí- la.

- Minha querida amiga - dissera Johanna, a certa altura, passando um braço pelos ombros de Laurette, - o senhor Vane pode ser encantador e atraente, mas não merece todo esse sofrimento. Tens de esquecê-lo.

Juliette, sempre mais calada e circunspecta, olhou de forma crítica para a irmã e acrescentou:

- Não é assim tão simples, Johanna.

- Não, não é - suspirou Laurette. - Eu sou muito parva. Acho que... que me apaixonei pelo Sutton.

Johanna encarou-a horrorizada, enquanto Juliette anuía, compreensivamente. E as gémeas disseram, quase ao mesmo tempo, usando os mesmos termos:

- Acabarás por esquecê-lo, Laurette.

E Johanna disse, logo de seguida:

- Da mesma forma que acabaste por esquecer o Ladd.

- Claro... - concordou Laurette, mesmo sabendo que mentia. - Eu vou esquecê-lo.

No Hospital, Laurette continuava a trabalhar com afimco. Esforçava-se por parecer alegre e tranquila, como se nada de mau estivesse a acontecer na sua vida pessoal. Mas ficou ainda mais apreensiva quando ouviu uma enfermeira, de nome Nora Huffington, comentar, no refeitório, que Sutton Vane fora visto em Nova Orleães, a sair com uma mulher diferente todas as noites.

A maldosa enfermeira voltou-se para Laurette e comentou, cheia de malícia:

- Ah, senhora Tigart! Desculpe, não sabia que estava a ouvir... Sei que costumava sair com ele...

- Fui algumas vezes ao teatro com o senhor Vane e com o casal Ivy, sim - admitiu Laurette, tentando manter um tom natural, - mas fi-lo apenas a pedido do coronel. Na realidade, não conheço bem o senhor Vane.

Sorriu e virou-lhes as costas. As enfermeiras continuaram a conversar, seguindo para a sala dos medicamentos.

O coração de Laurette estava partido em pedaços e todo o seu corpo parecia enfraquecido e trémulo. Ansiava que chegasse a hora de poder voltar para a mansão e chorar toda a sua dor. Nunca a casa da rua Dauphin lhe parecera tão aconchegante, tão tranquila, um refúgio maravilhoso contra as agruras do mundo.

Estava a comportar-se como uma adolescente, sabia-o bem. Porém, não tinha dezasseis anos, mas sim trinta e seis. Precisava de ter mais bom senso. Não era de surpreender que um homem como Sutton Vane perdesse logo o interesse por uma mulher. Não podia, sequer, culpá-lo. Não tinha sido esperta, acabara por se apaixonar e isso tinha sido unicamente culpa sua.

Estremeceu ao recordar que, na primeira vez em que Vane quisera fazer amor, aceitara sem resistência. Fora uma conquista mais do que fácil, não tinha representado desafio algum e por isso ele aborrecera-se e depressa se cansara.

Já era Março, mas o frio do Inverno teimava em persistir. E, numa tarde cinzenta de Sábado, Laurette deixou o Hospital cansada e abatida. A tremer de frio, caminhou apressada para casa, sentindo a humidade da atmosfera a infiltrar-se na sua pele e isso deixou-a ainda pior.

Quando entrou e fechou a porta atrás de si, estranhou o calor que estava ali dentro e parou, olhando em redor, sem entender.

 

A porta fechou-se atrás dela, e o único som que podia ouvir era o da lenha a crepitar na lareira. Laurette franziu a testa e dirigiu-se à sala de estar onde, diante das chamas, deparou com Sutton Vane sentado, nu, a olhar para o fogo. Bebia um copo de conhaque e voltou-se para ela sorrindo e, fazendo um brinde, disse:

- Sê bem-vinda de volta.

A visão inesperada dele ali fez com que a pulsação dela disparasse. Queria lançar-se nos seus braços, como a tola em que se transformara, mas permaneceu parada, encarando-o apenas.

- Como entraste aqui? Mantenho sempre as portas fechadas e...

- Tenho a chave.

Os olhos dela abriram- se mais.

- Tens o quê? Com que direito possuis a chave da minha casa?

- Ora, meu bem, sou o dono desta propriedade. Laurette estudou-o por segundos, desconcertada, e depois negou com a cabeça.

- Para tua informação, esta mansão pertence a uma grande empresa. A Corporação Bay Minette.

Sutton assentiu, reconhecendo a verdade daquela afirmação. Laurette prosseguiu, irritada:

- E o que pensas que estás a fazer sem roupa?

- Ela estava molhada. Assim como a tua. Laurette estremeceu, lembrando-se, de repente, que estava encharcada devido à chuva. Tirou a capa e lançou-a sobre o colo de Sutton, que a apanhou com uma das mãos, e depois ordenou:

- Veste-te e sai daqui.

Mas ele limitou-se a responder-lhe, com extrema calma:

- Despe-te e vem sentar-te aqui.

- Tu és muito arrogante, Sutton Vane! E se não deixares a minha casa agora mesmo, avisarei as autoridades.

Ele lançou a capa para longe e levantou-se, ágil, mas manteve-se parado, deixando Laurette perceber que lhe dava a oportunidade de se afastar dali, se quisesse. E ela pensou a sério em fazê-lo. Sabia que era isso que devia fazer. Mas como, quando Sutton estava nu diante dos seus olhos, tão glorioso, iluminado pelas chamas da lareira, um perfeito exemplar de masculinidade e vigor?

Como Laurette não se mexesse, Vane estendeu as mãos e tomou-a nos braços, levando-a para junto do calor das chamas.

Ao princípio ela tentou soltar-se, mas a força dele era maior do que a sua vontade. Sutton beijou-a, então, e continuou a beijá-la sem parar até quase lhe tirar o fôlego. O seu coração ameaçava sair-Lhe pela boca.

Poucos minutos depois, estavam os dois de joelhos diante do fogo, beijando-se e acariciando-se com avidez, num frenesi de saudade e emoção que os arrastava.

- Não posso esperar nem mais um minuto para te amar - disse ele, junto à boca de Laurette, dominado pelo desejo.

- Não! - começou ela a protestar, ainda presa da consciência da realidade dos factos. - Não podes simplesmente entrar e sair da minha casa, da minha vida, dessa maneira! Não esperes que eu...

- Houve um bom motivo para a minha ausência, querida.

- A sério? Pois eu gostava de saber qual foi.

- Vou contar-te, assim que fizermos amor - inclinou-se, beijando-lhe o pescoço com paixão, fa zendo-a gemer levemente.

- Não, Sutton, pára!

Mas os beijos dele silenciaram-na uma vez mais, aquecendo-a, deixando-a louca.

Em segundos, os dois, nus, deitaram-se sobre o tapete, amando-se como loucos, entregando-se a um deleite intenso, colados um ao outro.

Por fim, quando, satisfeitos e exaustos, se mantiveram quietos por alguns instantes, Laurette ergueu a cabeça e murmurou:

- Ainda estou muito zangada contigo. É melhor ires agora embora.

Mas Sutton mantinha a cabeça deitada sobre os seios fartos, e disse apenas, rouco:

- Não é isso que queres.

- É, sim - Laurette fez um movimento, com a intenção de se levantar, mas ele não lhe permitiu.

- Estás a comportar-te como uma criança.

- E o que você sabe sobre ser criança?

- Bem, até eu mesmo já fui criança, um dia... E lembro-me muito bem daqueles tempos.

- Mas nunca me falaste dessa época.

- Talvez numa outra ocasião... - apoiou-se nos cotovelos, para poder vê-la melhor. - Pensava que querias saber o motivo da minha ausência.

- E quero. E é bom que o teu motivo seja muito bom.

Sutton deitou-se ao lado dela e enlaçou a sua cintura, trazendo-a para junto de si.

- Minha querida, não vou mentir-te. Fiquei longe de ti porque estava com medo.

- Medo? De quê?

- De me apaixonar por ti.

O pulso de Laurette disparou mais uma vez, excitado. Estava abismada e exultante diante de tal confissão. Entendia muito bem como Sutton se sentia, porque era assim que também se sentia. Abraçou-o, muito contente, mas não viu um brilho de alegria nos olhos dele quando o fez.

- Não precisas de ter medo, Sutton. Quero que me ames. Porque eu também te amo. E muito!

- Espero que isso seja verdade, meu anjo. Mas ainda não tenho a certeza... Porque não tentas convencer-me?

Num estado de felicidade absoluta, Laurette deu uma gargalhada, beijando-o e repetindo, junto aos seus lábios:

- Eu amo-te, amo-te, amo-te! Deixa-te apaixonar por mim, meu amor! Jamais conseguirás amar-me tanto quanto eu te amo, sabes? Tu és tudo o que quero, tudo com que sempre sonhei! Por favor, acredita, farei tudo o que puder para te fazer feliz. Nunca amei ninguém como te amo a ti, Sutton!

- Não, a sério?

- Não!

- Ninguém?

- Ninguém.

- Nem mesmo o teu marido?

- Oh, não! Ninguém! Por favor, diz que sentes o mesmo por mim!

- Sinto, Laurette. Eu amo-te. E amar-te-ei sempre, sempre...

O inclemente frio Inverno de 1881 terminou por fim, cedendo a vez a uma Primavera amena e bela na cidade de Mobile. O perfume das flores pairava no ar e entrava pelas janelas abertas da mansão da rua Dauphin, conferindo uma alegria rara a Laurette.

Ela era uma mulher verdadeiramente feliz, agora. Desde que Sutton admitira estar apaixonado, ele passara a insistir para que ela passasse todo o seu tempo livre ao seu lado. E Laurette indagava-se muitas vezes como passaria Sutton o tempo enquanto ela trabalhava no Hospital, ou visitava alguma amiga. Pelo que sabia, ele gostava de frequentar o Clube Magnólia com o coronel Ivy.

Quando não estava com Laurette, Sutton mantinha-se ocupado, sem dúvida. Porém, jamais men cionara nada sobre os seus negócios a Laurette. Cuidava do seu trabalho por trás das cortinas, como gostava de dizer, perpetrando a justiça àqueles que o tinham traído.

A sua filosofia agora era a de que, se um homem, ou mulher, o tivesse feito sofrer muito, então a vingança também teria de ser lenta e muito bem saboreada. Gostava de saber que os seus inimigos tinham um sofrimento prolongado.

Por isso ficava muito frustrado por não ter conseguido ainda localizar Gilbert LaKid. Não pretendia, no entanto, desistir de o procurar. Mesmo que demorasse o resto da sua vida, encontraria o cruel capitão da guarda do Castelo do Demónio. E, quando o fizesse, tinha um castigo muito especial reservado para ele. Afinal, nada poderia ser suficiente para o monstro que o espancara, torturara e marcara a fogo.

Em simultâneo com a programação das punições para os seus inimigos, Sutton mostrava-se mais do que disposto a ajudar os velhos camaradas que tivessem também sido injustiçados ou que agora precisassem de auxilio. E no topo dessa lista estavam Melba Adair e a sua filha Lydia, que tinham sido enganadas e perdido o dinheiro todo da venda da sua casa.

Sutton sorria com satisfação ao pensar no que estava a fazer. O seu grupo de homens fora bem sucedido a localizar Jackson Tate, o canalha que enganara a viúva e que lhe tirara todas as economias que conseguira juntar. O sujeito fora trazido para Mobile, passara por um julgamento, e agora cumpria pena na Penitenciária Estadual de Montgomery. O senhor Tate seria hóspede exclusivo do Estado pelo menos durante dez anos.

Só era uma pena que a captura e a prisão de Tate não tivesse melhorado em nada a actual situação financeira das senhoras Adair, uma vez que o sujeito tinha gasto em poucos meses todo o dinheiro que tirara delas. Sutton apiedava-se das duas mulheres. Queria ajudá - las, mas queria também que mantivessem o seu orgulho e a sua dignidade.

Ponderara muito sobre o caso e, por fim, chegara a uma solução adequada. Abriria uma enorme floricultura com estufa nas traseiras e contrataria as Adair para a administrarem. Belos jardins sempre tinham sido a paixão de ambas, e Laurette contara-lhe que mãe e filha viviam agora numa casinha que nem quintal tinha.

A construção da loja e da residência já começara e, quando estivessem prontas, Sutton mandaria um agente seu contactá-las. O homem oferecer-lhes-ia a administração do estabelecimento com excelentes salários, impossíveis de recusar. E Sutton sabia, por antecipação, que a alegria da proposta receberia uma resposta afirmativa da parte delas.

Acariciou a barba e os seus olhos brilharam, imaginando a felicidade que iria proporcionar às antigas amigas da sua familia.

Recordou-se também da sua antiga professora de música, a menina Foster, e do esquema que montara para a ajudar. Aliás, tudo corria melhor do que planeara. Quase todas as crianças do orfanato quiseram ter aulas de piano, e ele ficara a saber que a menina Foster, ao ser convidada para as ensinar, chegara a chorar de alegria. E chorara também quando fora levada ao orfanato e vira o belíssimo piano que Sutton mandara lá colocar e no qual ela deveria ensinar.

Sutton sempre tivera muitos empreendimentos desse tipo em acção, mas a sua campanha mais importante e que tomava a maior parte do seu tempo e dos seus pensamentos, era a justiça que queria levar a termo com Laurette Howard Tigart.

Tinha de estar certíssimo de que ela o amava, antes de fazer o seu próximo movimento. E, quando o momento certo chegasse, aquele pelo qual ansiava, ele abandoná-la-ia com toda a frieza do mundo e em semanas casar-se-ia com outra. Com outra qualquer, desde que fosse jovem e bonita.

Queria que Laurette sofresse a dor da sua perda e a humilhação de ser substituída. Como ele sofrera.

Mas a altura certa ainda não chegara, por isso tinha de continuar à espera com paciência e calma. Laurette estava apaixonada, sim, mas Sutton sabia que precisava de a deixar ainda mais vulnerável. Pretendia ter a certeza de que, quando a largasse, partiria o seu coração para sempre, de maneira irreparável.

Era Primavera, e Sutton fazia o possível para que os dias adoráveis e as noites memoráveis que passavam juntos fossem todos inesquecíveis. O amor que viviam tinha de ser fantástico, em especial para ela. Amavam- se em qualquer lugar, a qualquer momento. Nas casas de ambos, no barco que ele possuía e que deixava ancorado no porto de Mobile...

Laurette era, como Sutton pôde perceber aos poucos, uma mulher que gostava de amar e de ser amada. Uma pessoa feita para a paixão. Ela nunca o recusava, não importava a frequência com que a procurasse. Ou a maneira como quisesse possui-la.

Sentou-se na cadeira de couro por trás da sua secretária e pôs as mãos na nuca, descansando e pensando em Laurette. E sorriu ao de leve. No fim do Verão, a sua vingança chegaria ao fim, ponderou com satisfação.

- Parece que o senhor foi enganado, chefe - comentou Ossos, entrando no escritório com o seu bloco de notas nas mãos.

Aquela afirmação tirou Sutton dos seus devaneios e fez com que a sua atenção se desviasse por completo para o empregado e amigo. Estivera tão imerso nas suas divagações sobre a vingança que se realizaria em breve que mal o ouvira entrar.

- Como assim, Ossos? O que aconteceu?

- Alguém chegou à sua frente. O Gilbert LaKid foi encontrado morto numa das ruas de Washington, com a garganta cortada de orelha a orelha - sentou-se diante do patrão, esperando a sua reacção.

Mas Sutton nada disse de imediato. Parecia ponderar.

Ossos prosseguiu:

- Segundo parece, o senhor não era o único inimigo que aquele cretino possuía. Mais alguém tinha contas a acertar com o sujeito. Mas faz sentido. O LaKid era um sádico, portanto imagino que tenha torturado outros prisioneiros como o torturou a si.

Sutton continuava calado, imóvel, como se ainda não tivesse entendido o que Ossos lhe dissera sobre o antigo inimigo. E o empregado começou a ficar preocupado com isso. Sutton teria ouvido? Indagava-se. Não teria entendido o que lhe contara?

Por fim, Sutton encarou- o e murmurou, com suavidade:

- O LaKid está morto?

- E enterrado - acrescentou Ossos, informando que a notícia chegara de fonte segura e que o facto fora verificado para que se tivesse a certeza da veracidade da história. - Acabou, Sutton.

Por mais alguns minutos, Sutton continuou ali, sentado, calado, sem se mover. Ossos também permaneceu quieto, aguardando apenas, mas estava a ficar a cada instante mais tenso.

A mão de Sutton estava pousada sobre a secretária e, sem qualquer mudança na sua expressão, ele cerrou-a num punho. E, quando as juntas começaram a ficar brancas, esmurrou a mão contra o tampo com tanta intensidade que fez Ossos dar um salto na cadeira que ocupava.

Enquanto o empregado o encarava, surpreendido e assustado, Sutton ergueu-se do seu assento, fazendo-o cair para trás. Os seus intensos olhos azuis brilhavam como os de um animal acossado, e o seu corpo magro parecia tão tenso que poderia fazer com que as roupas se rasgassem. O sempre tranquilo e educado Sutton Vane teve então um violento acesso de fúria, empurrando a cadeira caída contra o móvel de gavetas que ficava logo atrás.

Com brutalidade, abriu uma das gavetas e procurou algo dentro dela, arrancando alguns arquivos das pastas, que arremessou ao chão. Repetiu o processo, murmurando palavrões, como um alucinado:

- Maldito desgraçado! Aquele sádico cruel não merecia morrer assim tão rápido!

- Eu sei... - Ossos ergueu-se também. A sua voz era baixa e tentava acalmar o patrão: - Mas talvez tenha sido melhor assim. Pelo menos, ele...

Sutton virou-se para o amigo e gritou, podendo ser ouvido na mansão inteira:

- Não! Não! Não! Que inferno! Ele tinha de sofrer! Será que não entendes? Eu queria que aquele zarolho infeliz sofresse sem parar! - voltou-se para o móvel e socou-o com tanta raiva que quebrou uma das gavetas, ferindo os dedos.

- Pare com isso! - disse Ossos, por fim, aproximando-se e segurando o braço de Sutton, que se preparava para esmurrar o arquivo outra vez. Como era bem mais forte do que Sutton, não lhe foi difícil detê-lo. - Vamos, sente-se.

- Não quero sentar-me! Vai-te embora daqui! deixa-me em paz!

- Não, não vou. Vou arranjar-lhe uma bebida, isso sim.

- Não quero beber! - Sutton olhava-o, irado. - E solta o meu braço!

Ossos não lhe obedeceu.

- Porque é que não me esmurra a mim, se é que tem de esmurrar alguma coisa? Vamos, meu amigo. Bata em mim. Acerte-me.

Os dois homens esperaram durante tensos e rápidos minutos, encarando-se. Mais alto e magro, Sutton mantinha os olhos mais baixos, presos aos do amigo. Por fim, a fúria pareceu deixar o seu olhar, e relaxou os nervos. Só então Ossos o soltou.

- Jesus, Ossos, desculpa... - murmurou Sutton, como se voltasse a si de um transe.

- Sabe que não precisa de se desculpar, chefe. Acredite, eu entendo a sua frustração.

Ossos dirigiu-se até ao móvel que ficava num dos cantos do escritório, onde sabia haver bebida e copos.

Pegou numa garrafa de uísque e em dois copos e trouxe-os até ao patrão. Encheu-os e entregou um a Sutton, ficando com o outro.

- Vamos, beba.

E viu Sutton beber de um só trago.

- Mais um? - indagou em seguida.

- Não, Ossos, obrigado. Agora já estou bem. Acho que vou subir e tratar da minha mão.

- Eu ajudo-o.

- Não, obrigado. Prefiro ficar a sós por algum tempo.

Ossos meneou a cabeça, indeciso.

- Não vai fazer mais nenhum disparate, pois não? Sutton sorriu. Pôs a mão direita sobre o ombro do amigo, garantindo:

- Não, não vou ferir-me. Podes parar de te preocupares - e dirigiu- se para a saída, de onde ainda olhou para Ossos. - Eu comportei-me como uma criança, mas não voltará a acontecer.

Ossos assentiu.

- Veja o caso da seguinte forma, Sutton: está tudo acabado. O LaKid era o último que...

- Não, ele não é o último, e tu sabes - o sorriso já não estava mais nos lábios de Sutton. - Há mais alguém.

Ossos encheu o peito de ar e bufou, muito contrariado.

 

A noite era perfeita para um concerto ao ar livre. A temperatura, às oito horas, era de uns agradáveis vinte e dois graus, e o pôr-do-sol proporcionava um espectáculo magníf ico no golfo.

O dia seguinte seria, com certeza, óptimo para velejar. Com a vinda da Primavera, as matas em torno de Mobile estavam cheias de flores de todas as cores e formatos, numa explosão de vida que encantava qualquer olhar. Ao longo da costa, as praias, as dunas verdejantes e as matas costeiras, reviviam com a renovação de mais uma estação.

Era a melhor época do ano na cidade costeira. Já não havia o céu cinzento e as nuvens carregadas do Inverno, e o calor sufocante do Verão ainda não chegara. Depois de vários meses de reclusão devido ao mau tempo, os cidadãos estavam ansiosos por sair e aproveitar as delícias de uma temperatura amena e fresca.

Laurette e Sutton encontravam-se entre a multidão que se reunia na praça Bienville, naquela noite de Maio, para apreciar o concerto oferecido pela orquestra oficial de Mobile, e também para se encontrarem com amigos e conhecidos.

As pessoas mais idosas tinham simpatizado com Sutton desde o princípio, o que era raro acontecer com forasteiros. Gostavam dele e queriam que se sentisse como um nativo da região.

Dos que conheciam melhor Laurette, amigos que a tinham em grande conta, todos concordavam que não a viam tão feliz há muitos anos. A beleza e a frescura de quando ainda era uma rapariga tinham voltado ao seu sorriso, à sua pele, ao seu olhar. Ela mostrava-se radiante e não procurava disfarçar a verdadeira adoração que sentia por Sutton. Afinal, ele aparecera no seu caminho quando achava que viver já não tinha graça, quando imaginava que jamais voltaria a ser feliz.

E mudara tudo para ela. Era como se o Sol tivesse voltado a brilhar com a mesma intensidade de quando ainda era adolescente, como se os pássaros cantassem com mais alegria, como se o mundo estivesse mais belo.

Sutton e Laurette aproximavam-se mais da orquestra quando Melba e Lydia Adair os alcançaram, ansiosíssimas.

- Laurette, Laurette, querida! - chamou Melba, segurando-a por um braço.

- Olá, Melba e Lydia! Já conhecem o Sutton Vane?

- Boa noite, minhas senhoras - cumprimentou-as ele, tocando no chapéu.

As duas mulheres sorriram-Lhe e depois voltaram de novo a atenção para Laurette. Foi a mãe quem continuou a falar:

- Não sabes que coisa maravilhosa nos aconteceu, Laurette!

- Não, não sei. Mas contem-nos. Eu e o Sutton queremos saber todos os detalhes, não é verdade, querido?

- De facto.

- Pois vocês nem vão acreditar no que nos aconteceu! - sorriu Lydia. Era muito tímida, mas estava tão exultante que as palavras lhe saíam com facilidade nessa ocasião. - Eu e a mamã fomos convidadas para administrar aquela grande floricultura que abriu na rua do Canal! A que tem uma estufa na parte de trás. Não é sensacional? A loja será inaugurada na semana que vem e mal podemos esperar para começar a trabalhar lá!

- Isso é o que eu chamo uma excelente notícia! Estou tão contente por vocês! Essa é a melhor novidade que ouço há muito tempo!

- É mesmo! É um verdadeiro milagre! - Melba bateu palmas, não se contendo. - Um sonho! Sabes que nada no mundo nos dá mais prazer do que tratar de plantas e de flores, não é? Oh, e com aquela estufa! Podemos desenvolver as nossas próprias mudas e criar espécies novas. Vai ser uma delícia. Pretendo cultivar lindas rosas de todas as cores possíveis. E também vamos receber um salário fantástico. Não é a coisa mais incrível do mundo, Laurette?

- Mas claro que é!

- Então... Nem sei como é que isto pôde acontecer. Mas acho que o nosso talento para cuidar de flores é bastante conhecido, por isso alguém deve ter pensado em nós para aquele cargo.

- Sem dúvida, Melba! - e, olhando para Sutton; Laurette explicou: - As Adair já foram muito famosas em Mobile pelos seus esplêndidos jardins.

- Nesse caso, o dono da floricultura não poderia ter escolhido melhores gerentes - comentou, com um sorriso.

- Quem é o dono? - indagou Laurette. - Conhece-lo?

Sutton ia responder, mas Melba fê-lo primeiro:

- Parece que não é apenas um, Laurette. A loja e a estufa pertence a uma grande empresa, cujo nome é Corporação Bay Minette.

Laurette olhou de imediato para Sutton. Ele não alterou a sua expressão, mas os seus olhos brilharam mais. E ela compreendeu, com o coração cheio de reconhecimento e amor, que estava ali o responsável por aquilo que deixara as duas mulheres tão satisfeitas. A loja e a estufa era da Bay Minette e... ele era a Bay Minette.

Sutton mal conhecia as Adair. No entanto, agira de forma a beneficiá-las e, mais do que tudo, a dar-lhes uma imensa satisfação. Laurette ficou encantada.

Quando as duas mulheres se afastaram, saltitantes, por entre a multidão, apertou mais a mão de Sutton, murmurando:

- És uma fraude, sabias, Sutton Vane?

- Sou?

- És, sim. Porque não és o que pareces ser.

- E o que pareço eu ser?

- Um cavalheiro encantador, bonito, elegante e egoísta, que vive apenas para o seu próprio prazer.

- Não posso negar que sou culpado de tudo isso - declarou ele, com um sorriso maroto e cativante.

- Não, não és culpado de nada - atestou Laurette, carinhosa. - És um homem gentil, generoso, de bom coração, e o que fizeste pelas Adair foi lindo, admirável.

- Não faço a menor ideia sobre o que é que o meu amor está a falar - mentiu.

- Fazes, sim. Mas não te preocupes. Não direi uma só palavra sobre o que sei. Se preferes manter as tuas boas acções em segredo, assim será. Respeitarei a tua vontade - Chegou-se mais, para lhe sussurrar ao ouvido: - Não fazes ideia de quanto te amo. Mais do que nunca, pois estou a descobrir aos poucos quem, de facto, és.

Sutton sorriu, mas nada disse. Não, ela não descobrira nada. Nem sequer sonhava quem ele era de facto, nem o que pretendia ainda fazer.

Continuaram a andar até chegarem perto dos músicos, que se preparavam para iniciar o concerto. Uma senhora, que apreciava acima de tudo na vida a boa música, instalara-se ali, diante dos instrumentos, com as mãos colocadas sobre o peito, muitíssimo emocionada com o que estava prestes a ouvir.

- Menina Foster! - saudou-a Laurette, tirando a antiga professora de música do seu devaneio musical.

E, enquanto começava a primeira melodia, ela voltou-se para o casal, sorrindo.

- Laurette, como está? Já ouviu a novidade sobre mim?

- Bem, não, eu...

Com satisfação, a menina Foster contou-lhe, em poucas palavras, a sua alegria por estar a trabalhar com as crianças do orfanato, num projecto musical que a envolvia por completo, transformando a sua vida.

- Quase todas as crianças mostraram interesse em aprender piano. Não é incrível, Laurette? Não andava tão ocupada há anos Mas está a ser tudo incrível! Tanto quanto há anos atrás, quando eu lhe dava aulas a si e ao Ladd, lembra-se? - a professora olhou para Sutton e explicou: - O Ladd Dasheroon era um menino que vivia do outro lado da rua, na mansão diante da de Laurette.

- Sim, ela já me falou sobre isso.

- Um rapaz com tanto talento, senhor Vane! - lamentou a menina Foster. - Lembra-se, Laurette, como não conseguia tocar a Polonaise de Chopin, e ele sim, e de forma admirável?

- Sim, recordo-me - observou Laurette, não sem uma certa tristeza, e sentindo um arrepio repentino ao lembrar-se daquela noite em que Sutton tocara algumas notas da canção em sua casa.

- Ah, o nosso querido e lindo Ladd Dasheroon! suspirou Jillian. - Foi uma grande pena ele ter morrido na guerra ainda tão jovem! Uma perda irreparável - e meneou a cabeça, melancólica.

- É uma bênção que as crianças do orfanato tenham a oportunidade de aprender com a senhora - afirmou Laurette depressa, mudando de assunto.

- Abençoadas sejam todas elas, aqueles anjinhos lindos! São tão bem comportados e querem tanto aprender! E o orfanato recebeu um piano perfeito, novinho em folha, muito bem afinado e de excelente qualidade. Não faço a menor ideia de quem seja o responsável. A senhora Young, a directora do orfanato, disse que o benfeitor prefere permanecer no anonimato.

Laurette arqueou as sobrancelhas.

- Verdade?

- Foi o que me disseram, menina.

Segundos depois, a professora voltava-se de novo para a orquestra, atenta e inebriada com os acordes da melodia.

Laurette fitou Sutton, que lhe sorriu.

- Nada sei sobre aulas de piano - afirmou. Mas ela não acreditou.

Com o coração cheio de orgulho, Laurette chegou-se ainda mais para ele, e o seu pulso disparou quando o ouviu dizer, bem de perto:

- Quero ficar a sós contigo.

- Então, vamos.

Ainda era bastante cedo, na manhã seguinte, quando Ossos entrou no escritório, chamado por Sutton. O compartimento estava bastante escuro; apenas a lâmpada sobre a mesa fora acesa.

Sutton, sentado à secretária, tinha, como de costume, o rosto na sombra. Ossos acomodou-se diante dele e aguardou.

Mas Sutton permanecia em silêncio e Ossos teve de pigarrear e pegar no seu bloco de notas, abrindo-o e folheando-o até chegar ao local onde fizera algumas observações. Aguardou ainda alguns instantes e, como Sutton permanecesse calado, indagou:

- Posso começar?

- É para isso que aqui está - foi a resposta calma, dada em voz baixa.

- Muito bem, então... Naquela tarde, na semana passada, quando ela disse que não podia encontrar-se

consigo porque ia estar ocupada, fiz como recomendou e segui- a.

- Óptimo. Então, vamos ao que interessa.

Ossos assentiu e passou a ler os seus apontamentos, perfeitamente em ordem:

- A senhora Tigart chegou a casa, vinda do Hospital, pouco depois das duas horas e, após passar apenas alguns minutos dentro da mansão, tornou a sair, dessa vez transportando uma espécie de... de...

- De quê? O que é que ela transportava? - Sutton inclinou-se para a frente, fazendo com que a luz que estava sobre a mesa iluminasse os seus traços.

de saco, com um fecho de correr. E dirigiu-se apressada para o centro da cidade.

Sutton franziu a testa, pensativo, comentando baixinho:

-Apressada... Prossegue, Ossos.

- Foi directamente para a loja de penhores de um sujeito chamado Bill, na rua Monroe. Ficou lá dentro durante alguns minutos, e notei que o homem que estava atrás do balcão a recebeu com um sorriso, como se já a conhecesse de longa data, como se ela já lá tivesse estado antes. A senhora Tigart abriu o saco e tirou de lá um objecto. Não pude ver do que se tratava. O homem esteve alguns segundos a avaliar o objecto, depois colocou-o por baixo do balcão e, abrindo a caixa registadora, tirou algumas notas, que entregou à senhora Tigart. Também não consegui ver de quanto se tratava. Ela recebeu o dinheiro, pô-lo na carteira e saiu.

Ossos parou, erguendo os olhos do bloco.

- O que é que aconteceu em seguida? - quis saber Sutton.

- Eu escondi-me por trás da parede da esquina; para não ser visto, e esperei até ela se afastar um pouco. Em seguida, entrei na loja de penhores. Perguntei ao pro prietário o que é que a senhora que acabara de sair tinha empenhado, mas ele encolheu os ombros e não me respondeu. Por isso, coloquei duas notas de dez sobre o balcão e ele soltou a língua. Disse-me que ela deixara quatro peças valiosas de prata e eu indaguei se aquela era a primeira vez que o fazia.

- E?

- O sujeito tornou a encolher os ombros, acredita? Então, pus mais duas notas sobre o balcão para o ajudar a lembrar-se... e acabou por me revelar que a senhora Tigart tem vindo a empenhar objectos de prata ao longo dos anos. Um conjunto inteiro de objectos de família, segundo parece. Sempre alguns de cada vez. O homem disse que ela também empenhou um relógio de ouro, um objecto feito de madrepérola, pentes incrustados com jóias semipreciosas e uma pesada moldura de prata.

Sutton cerrou os dentes. Lembrava-se muito bem; de ter dado a Laurette a moldura com uma fotografia sua, pouco antes de partir para West Point.

- A fotografia ainda estava na moldura? - perguntou, quase sem dar por isso.

- Como disse? - Sutton meneou a cabeça.

- Esquece. Não tem importância. Prossegue:

que é que aconteceu a seguir?

- Deixei a loja, alcancei a senhora Tigart e continuei a segui-la.

- E ela não te viu?

- Não, não. Quando saí para a calçada ela já estava dois quarteirões à frente. Fui atrás dela, mantendo uma distância segura.

- E a Laurette não voltou directamente para casa, pois não?

- Não.

- Pois, não fico nada surpreendido por ouvir isso - comentou Sutton, com ironia.

Ossos sorriu, antes de continuar:

- Talvez se surpreenda quando eu disser para onde é que ela seguiu.

Sutton sentia o coração apertado, angustiado. Queria, sim, saber para onde Laurette fora, mas ainda assim, temia o que podia descobrir.

- Diz com franqueza, Ossos. Não me escondas nada. Afinal, há anos que sei como ela é falsa e dissimulada.

- Dissimulada? O que é que há de dissimulação no facto da sua Laurette ir até à rua Water, na parte mais pobre de Mobile? A rapariga bateu à porta de uma casa a cair aos bocados e veio abrir a porta uma mulher negra. As duas abraçaram-se, sorriram e conversaram como se fossem velhas conhecidas.

- A Ruby Lee... - murmurou Sutton, pensativo.

- Ruby... quê?

- Ruby Lee. Era a camareira da Laurette quando ela ainda era uma criança. A Ruby Lee cresceu na mansão dos pais da Laurette.

- Bem, então... faz sentido. A Laurette deu à Ruby Lee o dinheiro da penhora.

Sutton assentiu devagar, avaliando a situação.

Depois perguntou:

- Foi só isso? A Laurette não foi a mais lado nenhum, depois dessa visita?

- Não, não foi. Ficou em casa da Ruby Lee por algum tempo, depois saiu e regressou directamente para a mansão. Chegou lá pouco depois das quatro. Penso que deve ter chegado a casa dela poucos minutos depois das cinco, o que deu à Laurette apenas algum tempo para descansar, talvez tomar um banho...

- Está bem, está bem! - Sutton ergueu as mãos. Parecia irritado. - Tens a certeza de que ela não foi a mais lado nenhum?

Ossos fechou o seu bloco de notas com alguma impaciência.

- Olhe, Sutton, mandou-me seguir a senhora Tigart pelo menos uma dúzia de vezes - disse, aborrecido. - E eu nunca descobri nada que pudesse indicar que ela tivesse um comportamento impróprio. Não sei o que espera descobrir, mas acho que está a desperdiçar o seu tempo e o meu também!

Sutton ficou calado. Respirou fundo, pensou por instantes e disse:

- Podes ir.

- Quer que eu continue esta perseguição idiota? Sutton achou graça.

- Penso que não há necessidade. Não, não é preciso continuares a segui-la.

- Graças a Deus! - Ossos levantou-se, guardando o bloco dentro do bolso. - Detesto espiar alguém tão honesto como é a senhora Tigart - e voltou-se para sair.

- Espera! - chamou-o Sutton. - Consegues lembrar-te da casa onde viste a Laurette e a Ruby Lee a conversar?

- Mas claro que sim!

- Nesse caso, faz uma visita às pessoas que lá vivem. Vê se a Ruby Lee e os seus familiares gostariam de vir trabalhar para aqui. Estamos sempre a precisar de mais gente para o trabalho doméstico, não é? A Blakely, sobretudo, precisa de ajuda na cozinha, e as criadas que fazem a limpeza podiam não se esforçar tanto se tivessem algum auxilio...

- Pode considerá-lo feito, chefe - animou-se Ossos. E saiu do escritório com um largo sorriso.

Sutton permaneceu sentado atrás da secretária por alguns minutos, ponderando. Os seus profundos olhos azuis demonstravam preocupação.

Ergueu-se de repente e foi até à janela, afastando as pesadas cortinas de veludo. Olhava para o entardecer daquele dia de Verão, no momento em que o Sol se punha por trás da cidade.

Sentia-se dividido entre a decepção por nada ter encontrado de anormal na vida de Laurette e aliviado por saber que ela era, sim, uma mulher íntegra. Dissera a Ossos que queria ter um relatório de todas as suas actividades, dia após dia, para ficar a par de tudo o que ela fazia. Ossos concordara, embora relutante. Mas nada tivera a descrever que pudesse ser considerado errado. Nunca.

Sutton respirou fundo, frustrado. Seria tão mais fácil continuar a odiar Laurette se ela se comportasse como uma mulher licenciosa, sem coração, dissimulada... Se, pelo menos, a pudesse apanhar de surpresa no meio de alguma actividade que demonstrasse que era falsa!

Talvez Laurette soubesse que Ossos a seguia.

Talvez tivesse percebido, avaliava Sutton. Por isso, fazia questão de demonstrar que era uma pessoa gentil, generosa, correcta.

Adoraria ouvir relatos escabrosos de Ossos sobre Laurette. Queria poder descobrir que ela se encontrava às escondidas com algum amante, que passava as tardes em libidinosos encontros com alguém. Seria bem melhor assim...

De repente, porém, sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha perante tais ideias. Não a amava, mas não suportava pensar que outro homem pudesse estar na cama com Laurette. Não, não queria que isso acontecesse. De forma alguma!

Muito bem, então, ponderou, ela não fora apanhada em nenhuma atitude errada, mas sim a ajudar alguém com necessidades. Mesmo assim, Sutton não queria deixar-se enganar. Sabia muito bem quem era Laurette. O que ela era: nada mais do que a mulher que se casara com o homem que imaginara ser o seu melhor amigo. E isso não podia ser alterado. Os dois não se tinham importado em saber se ele estava vivo ou morto, ela nem quisera certificar-se primeiro, antes de desposar Tigart.

E Sutton lembrava-se sempre de que não podia, não devia esquecer esse facto. Embora Laurette agora fosse doce e delirante nos seus braços, continuava a ser a mulher egoísta que prometera esperar por ele para sempre e que se casara com Tigart sem vacilar.

Não. Jamais se esqueceria disso. Jamais! Enquanto apodrecia naquela cela imunda e fétida, escura como breu, Laurette entregava-se a Tigart, esquecendo-se por completo do amor que tinha vivido ao seu lado nos doces anos da adolescência. Sendo assim, para o inferno com os dois! Que ardessem para sempre nas profundezas, pagando pelo que o tinham feito sofrer!

 

A casa construída na ilha era uma bela mansão térrea com vários quartos e salas, com imensas janelas, todas voltadas para o mar. O seu átrio dianteiro era enorme, com uma varanda grandiosa, onde o sol de todo o dia se infiltrava para dentro, enchendo a residência de claridade e frescura.

Havia cadeiras de vime e uma grande rede azul na varanda, convidando ao descanso e à boa vida.

Toda pintada de branco, a moradia podia ser vista de longe, mesmo para quem chegava à ilha de barco, sobretudo por estar localizada numa parte privilegiada do terreno, alguns metros acima do nível do mar.

No entanto, naquela imensa e belíssima casa de veraneio havia sempre apenas um hóspede. Sutton.

não tinha a menor intenção de partilhar o seu pedacinho do paraíso com outra pessoa além de Laurette.

E era claro para ele que a presença dela na ilha seria apenas temporária. No fim do Verão não haveria mais nada entre ambos. E Laurette não poderia voltar a pôr os pés naquela propriedade.

Os criados eram trazidos para a limpeza e a preparação da comida, mas não Lhes era permitido pernoitar lá.

Laurette ficou entusiasmada como uma criança quando Sutton a convidou pela primeira vez para ir à ilha. Ele não permitira que lá fosse antes, quando o imóvel ainda estava a ser construído. Só a levaria quando tudo estivesse pronto, inclusive a mobília, que mandara buscar especialmente para a decoração, feita por um profissional famoso no ramo.

E, naquele belo e quente dia, Sutton não só estava preparado para levar Laurette à sua ilha como também a convencera a passar lá a noite, na sua companhia.

Ao princípio ela opusera-se, alegando que seria escandaloso passarem uma noite inteira juntos, em total privacidade. O que iriam os criados dizer? O que iriam os seus amigos pensar? argumentou. Mas Sutton soube convencê-la, explicando que não haveria nenhum criado por perto, nem mesmo no iate, pois este, depois de os levar, regressaria a Mobile.

Estariam a sós, portanto. Além do mais, alegou ele, todos os amigos mais próximos de Laurette sabiam que os dois tinham uma relação. Ou seja, que diferença faria ficarem uma noite inteira juntos, afastados de todos?

Por fim, ela concordou. E, assim que chegaram à ilha, o iate deu meia volta e regressou à cidade. Laurette, solta como uma menina num parque de diversões, correu em direcção à casa, sorrindo, encantada com as maravilhas que os seus olhos observavam por toda a parte.

Nas traseiras ficava a enorme suite principal. Sutton explicou-lhe que era o único quarto mobilado da casa, pois apenas os dois iriam para desfrutar os prazeres daquele lugar paradisíaco.

Laurette sorriu e continuou a descobrir mais segredos daquela mansão espectacular Ao lado do quarto, entrou no pequeno vestiário destinado às roupas e sapatos e, depois, mais à frente, encontrou a casa de banho, onde existia uma enorme banheira de mármore que rapidamente adivinhou ter sido desenhada sob medida para acomodar duas pessoas com conforto. Para tornar tudo ainda mais diferente, mais adorável, as enormes janelas da varanda, que faziam com que se tivesse a impressão de que a natureza invadia aquela divisão, tão luminosa ela ficava.

Laurette virou-se, sorrindo exultante, e abriu os braços para Sutton. Sem vacilar, ele foi ao seu encontro e puxou-a para si, dando-lhe um beijo apaixonado. Depois, com aquele seu sorriso encantador e meio cínico, indagou:

- Que tal um banho demorado nesta banheira, depois longas horas de amor ardente e, em seguida, um jantar maravilhoso?

Como poderia Laurette dizer não" a tal convite?

Estava escuro como breu. Conseguia ouvir os ratos a arranhar e a roer, guinchando na terrivel escuridão.

Estremeceu. Detestava ratos. Tentou adormecer, mas não conseguiu. E permaneceu ali, acordado com os olhos arregalados sem ver quase nada, sobre os restos daquilo que, um dia, fora um cobertor de campanha, lutando contra o pânico, sentindo que estava, aos poucos, a perder a sua sanidade mental.

Estivera preso na solitária húmida e fétida por longos e torturantes anos. Anos demais... Não conseguiria passar nem mais uma noite naquele antro de loucuras

E a solidão! Ah, a solidão que o levava a um delírio constante e tenebroso!

De repente, a porta da cela abriu-se com um empurrão e uma vaga esperança encheu-lhe o coração enquanto, ainda ágil, se levantava. Mas era o capitão da guarda, com o seu corpanzil balofo, que bloqueava a passagem. LaKid mantinha um dos braços atrás das costas, como que a esconder algo, e sorria cheio de maldade.

- Por favor - pediu Ladd, - deixa-me sair daqui. Só por alguns minutos! Depois, podes trancar-me aqui de novo. Por favor, deixa-me sair e ver as estrelas e sentir o vento fresco no meu rosto. Depois eu...

- Depois tu o quê? - esbracejou LaKid, troçando. - Nunca mais sairás deste calabouço, Dasheroon! O Tigart e eu garantimos que isso não vai acontecer nunca. Foste acusado de crimes contra a União e vais apodrecer aqui dentro, seu pedaço de lixo sulista!

O capitão da guarda tirou o braço de trás das costas, sorrindo ainda mais, e Ladd arregalou os olhos, apavorado. Na mão, LaKid trazia uma longa barra de ferro com a ponta em brasa.

- Não, por favor, não! - implorou Ladd. - Oh, meu Deus, outra vez não! Por piedade!

De repente demasiado fraco para continuar em pé, Ladd deixou-se cair de joelhos diante do seu torturador. E LaKid não demonstrou nenhuma compaìixão. Ficou ali, pontapeando Ladd durante muito tempo; depois rasgou-lhe as calças e riu-se de forma demoníaca, enquanto pressionava a ponta do ferro ardente contra a pele das nádegas do seu prisioneiro.

- Pára, LaKid! Maldito sejas! Chega! Chega! gritava Ladd, sentindo a dor aguda da queimadura na sua pele. - Vou matar-te, LaKid! Um dia, ainda te vou matar! Quando isto tudo acabar! Quando eu sair daqui! Vou viver e perseguir-te só para ter o prazer de te matar!

- Sutton! Sutton! - gritava Laurette, tentando despertá-lo. Acabara de acordar com os gritos dele, e ainda estava assustada.

Sutton sentou-se na cama, com a respiração acelerada, o peito ofegante, o corpo encharcado em suor. As pernas e os braços tremiam-lhe e os olhos estavam arregalados, apavorados, numa expressão selvagem.

Alarmada, mas entendendo que ele acabara de ter um pesadelo, Laurette abraçou-o, tentando acalmá-lo.

- Ó meu querido, está tudo bem... Foi só um pesadelo. Já acabou, meu amor! Já acabou! Estamos bem, seguros na tua ilha. Ninguém pode ferir-te aqui.

Respirando fundo, Sutton olhou em volta, como que para se certificar de que ela estava a dizer a verdade e, aos poucos, foi-se acalmando. Em seguida, aborrecido, soltou-se dos braços de Laurette e tornou a deitar-se, murmurando:

- Perdoa-me se te acordei.

Cerrava os dentes e, em silêncio, repreendia-se.

Sabia que não devia tê-la levado para ali com a intenção de passarem toda a noite juntos. Fora um deslize da sua parte. Esperava que os pesadelos tivessem acabado, por fim, que não voltassem a repetir-se, como dantes acontecia sempre, pois já não os tinha havia meses. Mas devia ter-se prevenido. Os pesadelos nunca iriam terminar, devia saber isso.

Laurette deitou-se junto dele, ainda preocupada.

- Estás melhor agora? Mais calmo? Foi apenas um pesadelo...

- Sim, eu sei...

- O que se passou, Sutton? O que estava a acontecer no teu sonho?

- Não me lembro.

- Quem é o LaKid? Ele encarou-a, tenso.

- O LaKid?

- Sim, mencionaste esse nome, enquanto dormias. Estavas a gritar com ele, dizendo-lhe que o matarias.

- Não conheço ninguém chamado LaKid. E não faço ideia porque é que estava a gritar.

Laurette, sorrindo, beijou-o ao de leve.

- Sim, os pesadelos são mesmo assim - consolou-o. - Acabam no momento em que acordamos, e muitas vezes não nos conseguimos lembrar de quase nada... Ainda bem, não é? Já te esqueceste do teu, não foi?

- Sim. Não me consigo lembrar de nenhum detalhe.

- Ainda bem! Então, podes voltar a dormir sossegado.

Sutton ergueu a mão e acariciou-Lhe uma madeixa de cabelos que caía sobre o seu ombro.

- Não quero dormir. Quero fazer amor contigo.

Laurette, muito contente, aceitou a sugestão. E, como tinham feito antes de adormecerem, amaram-se sob a luz da lua, que se infiltrava pelas imensas janelas do quarto.

Sutton parecia mais agressivo, mais selvagem agora. Os seus movimentos eram mais firmes e duros até. E amou Laurette com um desespero que não deixou de lhe agradar, mas que a intrigou.

Mais tarde, quando ele conseguiu adormecer de novo, nos seus braços, ela acariciou-lhe o cabelo com suavidade, pensando no que acabara de acontecer.

Imaginava que tipo de horror houvera no seu sonho para o deixar naquele estado. Sentira que Sutton estava muito amedrontado durante o seu pesadelo. E depois, o amor que tinham feito, quase violento, fora como se Sutton estivesse a reagir, querendo talvez puni-la por alguma coisa que ela não conseguia entender.

Ele nada dissera enquanto a possuía. Olhara-a nos olhos, fora brusco, mas sempre calado. Laurette sentiu um calafrio ao recordar-se disso. Sabia tão pouco sobre Sutton e, ainda assim, amava-o tanto!

O passado que carrgava consigo era para ela um total mistério. Ele todo era uma grande incógnita.

E o súbito aparecimento de Sutton na sua vida pareceu-lhe, de repente, algo planeado, não acidental, fora do normal. Era como se Sutton tivesse vindo a Mobile com o único propósito de a encontrar e de a fazer apaixonar-se.

Naquele momento, vendo-o a dormir, tão calmo, quase com o rosto de um menino, Laurette sentia-se uma tola por estar a ter pensamentos tão absurdos.

Devia ser o sono, isso sim, repreendeu-se. Como saberia um completo estranho que, chegando a Mobile a encontraria, e que ambos se apaixonariam?

Tolice... Fora a mão do destino que o trouxera até ela.

Suspirou, afastando os maus pensamentos, e tocou ao de leve na onda rebelde de cabelos negros que avançava sobre a testa de Sutton, admirando-o no seu sono, agora tranquilo.

Aquela era a primeira noite que partilhavam, e o belo semblante dele seria a primeira coisa que veria na manhã seguinte. Uma maneira maravilhosa de começar o seu dia, pensou, sorrindo. Poderia dormir com ele o resto da vida.

Aproximou o seu corpo do de Sutton e aconchegou-se a ele, muito feliz. Estava onde queria estar, com o homem que adorava. Assim, plenamente sa tisfeita, bocejou e deixou que o sono, por fim, a invadisse.

 

A casa na ilha tornara-se o local preferido de Laurette. A beleza e privacidade que ela oferecia, faziam-na sentir-se mais jovem e livre do que fora até então.

Lá não havia dores, mágoas ou inibições. E tanto ela como Sutton viviam num estado quase permanente de seminudez. Com a chegada de Junho, o calor húmido e abafado era quase insuportável em Mobile, mas na ilha, com a brisa e amplidão do lugar, estava-se bem melhor.

Sutton só usava calças leves, brancas, sempre arregaçadas até à altura dos joelhos e, quando estava de camisa, mantinha-a aberta no peito. E gostava de andar pela praia, sempre acompanhado de Laurette.

Muitas vezes, enquanto caminhavam, o leve exercício transformava-se numa corrida, numa brincadeira quase infantil, despreocupada. Voltavam para casa a correr, apressados, rolavam pelos tapetes de palha do chão, abraçados, exultantes, esquecendo-se do mundo, e acabavam por fazer amor. A paixão deles era sempre urgente, imperiosa.

Na ilha, comportavam-se como perfeitos hedonistas, viviam para a satisfação do momento, não pensavam em qualquer outra coisa a não ser neles mesmos. E os seus momentos, ali, eram como o desfrutar constante de um paraíso na terra.

Laurette chegava a preocupar-se, quando voltavam para a cidade, receando que o sonho que viviam pudesse acabar a qualquer momento. Afinal, nada dura para sempre...

Mas preferia deixar tais conjecturas de lado e apenas sentir. O presente era mais importante do que tudo, e queria aproveitá-lo bem. Sabia o que era o sofrimento e também que podia deixar os dias piores para o futuro. Agora, não", repetia-se sempre. Agora, não.

O calor era intenso naquele fim de tarde de Julho. O sol, transformado numa imensa bola de fogo, mergulhava muito devagar, por detrás das águas do golfo, e Laurette, tendo acabado de tomar um longo banho, entrou no quarto.

Usava apenas uma leve camisa de noite de seda mas mesmo assim tinha calor, devido à canícula. Foi até às portas de vidro e ficou a admirar o pôr-do-sol, respirando fundo, sentindo o cheiro da natureza que penetrava nas suas narinas.

Sentiu Sutton aparecer, vindo de dentro da mansão. Ele trazia um balde de gelo com uma garrafa de champanhe numa das mãos e duas taças na outra. Ao vê-la, parou e sorriu. Nada poderia ser mais belo do que a sua Laurette assim, parada, esplêndida como uma estátua grega. Sua. Só sua...

Engoliu em seco, enquanto muito fugazmente lhe passava pela mente a ideia de que toda aquela felicidade iria acabar, que em breve teria de dispensar a companhia dela, mandá-la embora, tirá-la do seu caminho para sempre. Outra vez.

Afastou tais ideias, porém, deixando-as para a altura certa para as ter. Ainda não.

Deixou as taças e o balde sobre uma mesa próxima e, por trás, abraçou Laurette com força.

- Feliz, minha querida? - perguntou com uma voz rouca, dando-lhe longos beijos no pescoço e nos ombros.

Arrepiada, ela cerrou os olhos para responder:

- Não podia estar mais... Oh, Sutton, como é possível vivermos assim, neste... neste paraíso absoluto? Às vezes tenho medo, sabes?

Ele fê-la voltar-se. Nos seus olhos, cheios de desejo, havia de novo um brilho que Laurette já vira antes, que reconhecia, mas que não compreendia. Era como se Sutton tivesse uma satisfação íntima, total, por saber que ela o amava muito, sem freios, sem restrições. Uma satisfação que ia além do normal.

Deixou-se beijar, perdendo-se em mais um dos carinhos intensos que os beijos de Sutton eram na verdade. Ele sabia, sim, como agradar a uma mulher. Quando queria era doce, suave, e no entanto poderoso, forte, dominador.

Devagar, levou-a consigo para a cama. Ambos sabiam que iam passar mais algumas horas de um adorável idilio amoroso, mas estavam trémulos de antecipação. Como sempre. Como se fosse sempre a primeira vez, intensa e ardente.

- Sutton... - murmurou Laurette, depois de mais um beijo -... diz-me que será sempre assim. Que me amas e que sempre me amarás. Que poderemos ser, até ao fim das nossas vidas, este casal que partilha tudo, que se entende, que...

- Sempre que quiseres, meu amor - interrompeu-a, e a sua entoação era firme. O seu rosto, sério.

Laurette percebia que, mais uma vez, ele ficara alterado. Havia algo em Sutton, sim, que a amedrontava. Não o conhecia inteiramente...

Sutton abraçava-a, tomava conta do seu corpo, pulsava dentro dela, levado pelo desejo feroz, en louquecedor, mas, bem no fundo da sua mente, as palavras de Laurette vibravam ainda, fracas devido à acção mais intensa da paixão. E um sorriso interior satisfazia-o quando imaginava, perdido em ondas de luxúria, que eram, sim, um casal intenso, que se entendia... mas não havia nada que pudessem partilhar com maior força do que um passado terrível, de sofrimento, que o marcara para a eternidade.

Tudo começou como mais um maravilhoso interlúdio para os amantes. Nos últimos dias de Julho, Laurette e Sutton passaram um fim-de-semana glorioso na ilha. E logo que chegaram, já bastante tarde naquela noite de sexta-feira, abriram um cobertor sobre a areia fina da praia, com a intenção de desfrutarem momentos agradáveis ali mesmo, ao luar.

Sutton apanhou alguns gravetos e acendeu uma fogueira. Trouxera uma cesta com comida, que foi colocada próxima e, depois de comerem alguns petiscos, deitaram-se, lado a lado, com os olhos no céu cheio de estrelas.

Ficaram ali, a conversar, a sentir o calor nocturno, simplesmente a gozarem o prazer da companhia um do outro.

No Sábado de manhã dormiram até tarde, e Sutton serviu o pequeno-almoço a Laurette ainda no leito. E passaram o dia sem fazer nada, apenas usufruindo de pequenos prazeres, como conversas, beijos, sestas e passeios pela praia.

À tarde, enquanto caminhavam junto às ondas, de mãos dadas, quase num silêncio total, o sol começou a pôr-se no horizonte, proporcionando mais uma vez um espectáculo intenso, maravilhoso.

Chegaram à varanda e sentaram-se nos degraus, onde iniciaram uma conversa banal. De repente, uma borboleta vinda da mata que rodeava a mansão aproximou-se, a voar com agilidade e graça, e pousou nos cabelos de Laurette.

Sutton olhou-a, com o olhar intenso, as íris muito azuis, e ergueu a mão direita, aproximando-a do insecto. Como se o entendesse, a borboleta subiu para os seus dedos, e ele aproximou-os do rosto de Laurette, para que ela pudesse observar a beleza do animalzinho bem de perto.

- Tão linda...

- Esta é de uma espécie muito rara.

- A sério? Como sabes, Sutton?

- Pude estudar estes insectos durante anos.

Sutton observava a borboleta, atento, lembrando-se vivamente do primeiro dia em que uma delas entrara pela janela da sua cela no Castelo do Demónio e pousara na sua mão. Fora naquele mesmo dia que Sutton jurara vingar-se de todos aqueles que Lhe tinham feito mal.

Depois, muitas outras borboletas se tinham aventurado

para dentro da cela, e ele tornara-se um conhecedor dos seus diversos formatos e cores.

De repente, o insecto levantou voo, seguindo em direcção ao céu avermelhado.

- Ah, que pena! - lamentou Laurette. - Talvez ela volte...

- Não, não voltará - Sutton estava agora muito sério.

Passaram-se alguns segundos de quietude até que Laurette indagou, na sequência da sua linha de raciocínio:

- Onde é que aprendeste a conhecer as borboletas?

Ele engoliu em seco.

- Foi há muito tempo, minha querida. Bem, mas vamos entrar? Estou com fome!

- Eu também!

Abraçados, seguiram para a cozinha e, uma hora mais tarde, enquanto comiam, à luz de velas, bebendo um vinho saboroso e apreciando a paisagem vista da janela, decidiram que ficariam na rede, até altas horas, a apreciar os sons nocturnos.

Na tarde de Domingo Sutton deitou-se, mais uma vez, na rede, espreguiçando-se, as mãos colocadas sob a nuca, os olhos no mar, que podia ver bem dali.

Laurette insistira para que ele esperasse lá fora, enquanto ela preparava um jantar leve.

Sutton estava quase a adormecer quando ela, por fim, saiu de casa e, a rir muito, passou por ele, seguindo em direcção à praia. Aquilo era um convite; reconhecia, e, sem vacilar, deixou a rede e seguiu-a.

Junto à água, numa atitude despreocupada, ela livrou-se do vestido que usava e atirou-se nua para as ondas. Sutton sorriu, mas parou de correr. Preferia ficar ali, limitando-se a apreciar a vista maravilhosa que era a sua Laurette a nadar, a brincar no mar, como uma ninfa.

A sua Laurette, repetiu a sua mente, despertando-o do idilio. Já não era a primeira vez que pensava nela assim. E começava a ficar aflito. Não era isso o que deveria estar a acontecer. Não era esse o seu plano. Estava a deixar-se envolver; não, não... Já estava envolvido, em cada fibra do seu coração.

Laurette saía do mar e vinha, devagar, na sua direcção, mais bela do que nunca, o corpo molhado instigando-o, enchendo-o de desejo.

Como podia ser? apavorou-se. Como pudera deixar-se conquistar assim? Devia ser o dono absoluto de Laurette, dominá-la por completo, mas via-se, para seu desespero, dominado...

Estava ainda muito apaixonado por ela. Talvez o estivesse desde que a vira nascer. Via-a aproximar-se, sorrindo, feliz, despreocupada, e o seu peito apertou-se.

Não poderia abandoná-la. Nunca mais. E, de repente, uma sensação absurda de perda tomou-o. O coração, que tinha sido imune à dor durante tantos anos, voltava, agora, a sentir, a doer. Se perdesse Laurette outra vez, não suportaria.

As lembranças do amor do passado, quando ainda eram adolescentes, dominavam-no e mostravam-Lhe que já não havia mais desejos de vingança no seu íntimo. Todo o dinheiro, o poder, a influência que possuía, nada significavam perante o amor que sentia. Adorava Laurette ainda mais do que outrora. E, sem pensar duas vezes, foi a correr para ela.

Laurette gritou de surpresa e alegria quando Sutton a arrebatou, erguendo-a nos braços e correndo para o oceano, onde a lançou sobre a rebentação. Brincaram durante alguns minutos, beijaram-se com paixão, e Sutton revelou, com sinceridade:

-Amo-te, Laurette. Muito. Muito.

- E eu amo-te. Que tal voltarmos lá para dentro? Havia malícia no seu convite, e Sutton entendeu de imediato a implicação dele.

Regressaram abraçados, radiantes, entre beijos e carícias. E amaram-se na varanda, esquecendo- se, mais uma vez, do resto do mundo.

Sutton estava, agora, certo do seu amor por ela. Mas via-se diante de um dilema. Tinha de lhe dizer quem era de facto. Não podia permitir que Laurette passasse o resto dos seus dias a acreditar que vivia ao lado de Sutton Vane...

Ou podia? indagava-se, cheio de dúvidas. Seria algo assim tão terrível? Tão injusto?

Pensou a sério no assunto, enquanto comiam na mesa colocada na varanda, perturbado com a ideia de revelar a verdade a Laurette. Talvez ela não lhe perdoasse. Podia ser que viesse a detestá-lo, quando viesse a saber quais tinham sido as suas verdadeiras intenções.

E não poderia culpá-la, se reagisse assim.

- Sutton, há algum problema? - indagou Laurette, naquela noite, quando estavam ainda à mesa.

- Como? - ele pareceu despertar dos seus pensamentos.

- Perguntei-te se há algum problema. Desde que voltámos do mergulho que estás estranho. Mal falaste... Sei que alguma coisa te está a perturbar. Não me queres dizer de que é que se trata?

Sutton assentiu, mas continuou estranho, distante. Ergueu o copo de vinho, bebeu um gole grande e disse:

- Laurette, fica onde estás. Eu... volto já.

Curiosa e um tanto tensa, ela aguardou. Sutton apressou-se para dentro da mansão, e num instante estava de volta.

Pela primeira vez desde que aparecera em Mobile, estava barbeado. O seu rosto de contornos firmes, bonitos, ficou todo à mostra.

Laurette encarou-o, os lábios abrindo-se devagar, num espanto magoado. Um frio terrível percorria-Lhe a espinha.

Sutton deu a volta à mesa e aproximou-se, baixando-se junto da cadeira que ela ocupava. Tomou-lhe uma das mãos e murmurou:

- Não há nada que eu tenha a esconder-te, minha querida. Mas... promete que... não vais ficar zangada comigo.

Olhando-o como se estivesse diante de um fantasma, com as pupilas dilatadas e uma expressão angustiada, Laurette não sabia ainda o que pensar. Mas aqueles traços faziam-na recordar-se de...

- Não... sei... por que haveria de ficar zangada contigo... conseguiu sussurrar.

Sutton estudou-a por longos momentos, ainda incapaz de revelar a terrível verdade. Mas não podia adiar. Pedia a Deus que Laurette entendesse, que lhe perdoasse.

- O meu nome não é Sutton Vane. Eu... sou o Ladd.

Laurette franziu a testa. Os seus olhos estavam agora mais abertos. Negou levemente com a cabeça. Não queria aceitar tal revelação. Examinava as feições que tinha diante de si, naquele rosto tão querido. E, de repente, a constatação trouxe- lhe lágrimas amargas.

- Não... - negou, mesmo assim. - Tu não és o Ladd. O Ladd Dasheroon morreu numa prisão ianque... - a voz falhou-lhe, e ela teve de se interromper, para depois completar: - Há muitos anos.

- Estive preso, sim, meu amor. Mas não morri. Consegui escapar.

- Não. Tu não podes ser o Ladd! Sei que não és! Ele assentiu, tentando fazê-la ver a realidade. As suas íris, mais do que tudo, eram a característica que a obrigava a compreender, a olhar. Aquela cor, aquele brilho...

- Sou o mesmo Ladd que te amou naquela noite, antes de partir para West Point, enquanto os nossos convidados se reuniam para se despedir de mim - prosseguia ele, sereno. - Nós os dois tivemos aulas de piano com a menina Foster. Tu não conseguias tocar a Polonaise, mas eu sim. Nascemos no mesmo dia, mas com um ano de diferença. Sempre celebrámos juntos as nossas festas, alternando todos os anos as nossas casas como local das comemorações. E foi numa dessas festas que nos beijámos pela primeira vez.

Ladd deteve-se, à espera da reacção de Laurette.

O pranto, agora, corria pelo rosto pálido dela, mas não havia palavras na sua boca.

Por longos e tensos segundos, Laurette limitou-se a encará-lo, entendendo, pouco a pouco, tudo o que Lhe acontecera na vida. Ficou ali sentada, quieta, rígida, o coração partindo-se aos poucos, dilacerado por uma dor que nunca experimentara antes.

Não sabia se devia atirar-se nos braços dele, emocionada, beijando-o e dando-lhe por fim as boas-vindas que nunca dera, ou se seria melhor levantar-se e afastar-se dali o quanto antes; agredi-lo, talvez, golpeá- lo com raiva e frustração por toda a infelicidade que tivera de enfrentar.

Ladd, ajoelhado bem perto, esperava, com a respiração presa. Sabia muito bem que Laurette estava dividida, que a sua reacção poderia ser paradoxalmente forte.

Com os dentes cerrados Laurette recordou, num instante, todos os anos de amargura e dor pelos quais passara; toda a solidão, a quase loucura por saber que o seu Ladd morrera, que jamais voltaria a vê-lo. Chorara tanto pelo homem que agora estava ali, de joelhos diante dela.

E ele estivera vivo todo o tempo e jamais a deixara saber. Para o inferno com ele e as suas mentiras! Para o inferno com tudo aquilo por que a obrigara a passar!

 

Laurette soltou a sua mão da dele.

- Seu patife cruel, sem coração! - sussurrou irada, erguendo-se. - Que tipo de jogo sujo é este que tens feito comigo, Ladd Dasheroon? Para quê esta farsa? Porque acho que estou demasiado confusa para perceber.

Ele também se levantou.

- Lollie, posso explicar...

- Não me chames assim! Nunca mais me chames esse nome! Quero uma explicação e quero-a agora! Que motivo tinhas para fazeres o que fizeste? O que pretendias, fazendo- te passar por outra pessoa?

Ladd respirou fundo. Calculava que a reacção de Laurette ia ser terrível, mas não podia esconder-lhe a verdade, por pior que fosse.

- Olha, por que não nos sentamos e...

- Não! Não me quero sentar! Exijo que me digas o que se está a passar e porque me mentiste durante tanto tempo.

- Vou-te contar tudo. Tudo, mesmo. Mas antes, quero-te dizer que não houve um dia sequer, em todos estes anos, nem uma hora, nem um minuto, em que não te tenha amado.

- Mentiroso! - murmurou. - Se me amasses... - Eu amo-te, Laurette, pelo amor de deus!

Amo-te Olha, fui ferido na guerra e capturado pelas forças da União. Eles colocaram-me num lugar terrível, chamado Castelo do Demónio. Fiquei anos ali preso, a maior parte deles num calabouço, nas masmorras do presídio. Talvez não tenha sido suficientemente forte, não sei. Tudo o que sei é que os horrores pelos quais passei me fizeram endurecer e quase perder a sanidade.

Ladd interrompeu-se, os olhos nos dela, tentando captar-lhe as emoções, mas Laurette encarava-o sem demonstrar nada.

- Depois de ficar na prisão por um ano, o Jimmy foi enviado para lá, como comandante e director do presídio. Com a sua chegada, acreditei que os meus dias de agonia tinham terminado, mas enganei-me.

E muito - fez uma breve pausa; as recordações eram-lhe, ainda, difíceis. - Foi o Jimmy que mandou colocarem-me no calabouço.

- Não pode ser... - comentou Laurette, horrorizada. - Ele era o teu melhor amigo. O Jimmy nunca faria uma coisa dessas!

- Mas fez. Mandou trancarem-me nas masmorras do Castelo do Demónio. E fê-lo para poder ficar contigo e com tudo o que eu tinha. Eu não sabia, mas, pelos vistos, o Jimmy sempre te desejou.

Laurette entreabriu os lábios pasmada, descrente, e Ladd continuou, antes que ela dissesse qualquer coisa:

- Quando a guerra acabou, o Jimmy voltou para Mobile, e tu casaste com ele sem demora. Casaste com aquele desgraçado, sem saber se eu estava vivo ou morto, Laurette!

- Isso é mentira! O Jimmy garantiu-me que tu tinhas morrido na prisão! Eu não tinha motivos para desconfiar do que ele dizia. Não recebia notícias tuas há anos e...

- Não era permitido aos prisioneiros enviar ou receber correspondência no presídio - explicou, muito sério.

- Pensava que tu estavas morto... - repetiu Laurette, num sussurro.

- Mesmo assim, casaste- te com o Jimmy poucas semanas depois de saberes que eu morrera - afir mou, amargo.

- E o que esperavas que eu fizesse? Que enterrasse o meu coração contigo? Pois foi o que fiz, maldição! Mas o meu corpo, para meu desespero, tinha de continuar a viver. Eu já não tinha os meus pais, estava sem dinheiro nenhum. Não me restara nada. Não sabia nada a teu respeito, não recebia cartas tuas. Estava tão só! E o Jimmy apareceu quando eu mais precisava dele, oferecendo-me ajuda, compreensão. A ocupação federal e os impostos terríveis que lançaram sobre o Sul deixaram-me na miséria! Talvez tenha sido fraca e egoísta, mas não queria passar necessidades, como muita gente que conhecia.

Laurette parou de falar por alguns minutos, recordando aqueles tempos terríveis.

- Sim, eu casei-me com o Jimmy. Como poderia saber que ele me estava a mentir? Não tinha motivos para desconfiar da sua palavra... Não podia imaginar que tu estivesses vivo! - gritava ela agora, com o rosto contraído, emocionado. - Meu Deus, pensava que nunca mais te veria outra vez! Se soubesse a verdade nunca me teria casado com o Jimmy, ou com qualquer outro!

- Pois eu não estava morto e jurei a mim mesmo que viveria, que sairia daquela prisão e que voltaria para. para.

Laurette encarou-o, vendo que vacilava, e observou com dureza:

- Mesmo assim, a guerra terminara dezasseis anos antes. Por que esperaste todo este tempo para voltares a Mobile?

- Fiquei preso por muito tempo depois do fim da guerra. Só consegui escapar em 1875.

Laurette sentiu-se mortificada. Ainda assim, rebateu:

- E por que não voltaste nessa altura? Por que usaste um nome falso? Por que me fizeste pensar que eras outro homem? Porquê?

Ladd começou a justificar-se, mas as suas explicações soavam a falso até mesmo para ele. Apenas alguns dias atrás, as suas ideias tinham-Lhe parecido seguras, correctas. E agora começava a questionar-se, imaginando se não teria, até àquele momento, vivido como um louco, cego, furioso, doente... Queria não ter nunca arquitectado o seu terrível plano de vingança, e agora precisava de se desculpar.

- Laurette, perdoa-me, eu não tinha intenção. Não sabia o que estava a fazer, eu...

Ladd estendeu os braços, com a intenção de a fazer aproximar-se, mas Laurette repeliu-o:

- Não ouses tocar-me! Nunca mais! Estavas na prisão, não era? Muito bem, eu também estive. Podes ficar satisfeito por saber que a minha vida com o Jimmy foi pavorosa! Nunca o amei, nem sequer gostava realmente dele!

Ladd sentiu o coração bater dolorosamente, cheio de arrependimento.

- Jesus, minha querida, lamento tanto tudo isso! Por favor, tenta entender o que foi, para mim, saber que tu tinhas casado com o Jimmy. Não podia crer que a garota maravilhosa que eu adorava, que dissera que iria esperar por mim, me esquecera com tanta facilidade.

- Não te esqueci! - os seus olhos brilhavam, de lágrimas e de raiva. - Nunca te esqueci, Ladd! Não tive outra saída, não vês?

- Eu acreditei em ti e...

- Não me importa nada se acreditaste ou não, seu miserável! Esta charada está a acabar e a ficar cada vez mais clara para mim, agora! Destruíste o Jimmy porque ele te traiu. Tu és o dono do banco de que ele era presidente. Foste tu que fizeste com que o Jimmy fosse acusado de desfalque. E obrigaste-o a divorciar-se de mim e a deixar o país! Foste tu! Vá, admite!

- Sim, fui eu! E faria outra vez o mesmo! Segundo sei, o Jimmy até teve bem pouco por tudo o que me fez. Podia ter passado o resto dos seus dias, na prisão, como ele pretendia que me acontecesse!

Laurette começou a sentir a cabeça a latejar devido ao choque e à decepção que aquelas revelações lhe causavam. E murmurou, abatida:

- Vingaste-te do Jimmy e depois voltaste as tuas baterias contra mim, não foi? O belo, misterioso e rico desconhecido que surgiu no meu caminho e que me foi apresentado na festa em casa do coronel. Foi tudo muito bem planeado, não foi? Tu voltaste apenas para me castigar!

- Laurette, eu estava...

- E que melhor maneira de me punir do que fazer com que eu me apaixonasse por ti e depois, sem a menor consideração, abandonares-me? Era essa a tua intenção, não era?

Como ele não respondesse, ela gritou:

- Não era?

Ladd assentiu, muito levemente, admitindo tudo. Depois, implorou:

- Laurette, por favor, perdoa-me! Eu amo-te e quero que te cases comigo! - desesperado, deu um passo à frente e segurou-a pelos pulsos, mas ela começou a debater-se.

- Solta-me!

- Laurette, escuta-me... Passarei cada segundo da minha existência a tentar compensar-te pelo que...

- Eu disse para me soltares!

Ladd obedeceu. E Laurette encarou-o com tamanho ódio que o manteve afastado, tenso, ferido.

- Tu fizeste-me acreditar que estavas morto, Ladd Dasheroon. Pois bem, agora estás de facto morto para mim. Não quero ver-te nunca mais. Eu odeio-te muito mais do que um dia te amei, e vou odiar-te até ao meu último suspiro!

Virando-lhe as costas, Laurette correu pela praia até ao pequeno cais. Já eram quase nove horas, e o iate viria buscá-los em breve.

Ladd permaneceu na varanda, sabendo que ela estava agitada e magoada demais para poderem conversar. Mas Laurette acalmar-se-ia e ouvi-lo-ia mais tarde.

Assim que o iate ancorou, Ladd foi até ao cais, e já estendia o braço com a intenção de ajudar Laurette a embarcar, quando ela se esquivou.

- Não! - e olhando para Ossos, que esperava no convés, preferiu a mão dele à de Ladd. Virou-se, então, dizendo: - Não venhas agora comigo! Nunca mais te quero ter perto de mim!

Pasmado, Ossos fitou o patrão, à espera da sua reacção.

- Está bem, leva-a. Ficarei mais uma noite na ilha. Vem-me buscar amanhã.

Ossos assentiu, vendo Laurette descer para a embarcação. Pouco depois, o iate afastava-se rumo às águas mais profundas.

Ladd enfiou as mãos nos bolsos e permaneceu ali, estático, com os ombros largos um tanto curvados, melancólico, até já não conseguir ver o barco. Só então voltou para a mansão, deixando-se envolver pela escuridão ao seu redor.

Na embarcação, Ossos segurava firmemente o leme, com o rosto sombrio. Havia um profundo sen timento de tristeza no seu peito, por causa de Laurette. E uma sensação dura de raiva contra o homem que a ferira daquela forma.

Calculava que Ladd tivesse escolhido aquela agradável noite de Verão para romper de vez com Laurette, como planeara desde o princípio. E Ossos sabia muito bem qual seria o próximo passo do seu patrão para acabar de vez com o seu antigo amor. Ladd casar-se-ia, dentro de poucos dias, com alguma bela jovem, e passaria a desfilar com ela por Mobile, para que Laurette sofresse ainda mais do que sofria naquele instante.

O marinheiro sentiu os olhos encherem-se-lhe de lágrimas de ultraje. Gostava de Ladd como de um irmão, mas o que ele fizera àquela mulher era desumano. Laurette era uma boa criatura, que não merecia ter o coração despedaçado daquela forma.

Respirando fundo, Ossos passou as mãos pelos olhos, sentindo-se um tolo sentimental. Mas os seus princípios falavam-lhe mais alto. E, quando o barco atingiu o porto de Mobile, chamou Laurette, sempre muito educado e discreto:

- Chegámos, senhora Tigart.

Ela subiu para o convés, e Ossos notou de imediato que tinha chorado muito, talvez durante o trajecto inteiro. Gostaria de poder dizer ou fazer alguma coisa para a consolar, mas de nada adiantaria. Ao auxiliá- la a descer para o cais, seguiu-a de perto, dizendo:

- Senhora Tigart, este cais está cheio de lascas de conchas. Receio que os seus pés...

Laurette baixou os olhos sobre si mesma, surpreendendo-se por se ver descalça. Saíra com tanta pressa da ilha que nem se preocupara em ir buscar as suas coisas ou calçar-se.

- Se me permitir que a leve, senhora... - ofereceu-se Ossos, respeitosamente.

Ela assentiu simplesmente e o musculoso marinheiro ergueu-a com facilidade nos braços, conduzindo-a até à carruagem, que aguardava mais além. Ele mesmo a conduziu pelas ruas tranquilas de Mobile e, quando chegaram diante da casa de Laurette, apeou-se e abriu a porta do veículo, oferecendo-se mais uma vez para a levar até à porta.

Cansada e infeliz como nunca estivera na vida, Laurette concordou e, quando Ossos a colocou no chão, já no hall da sua mansão, ouviu-o:

- Fique aqui, sim? Vou acender uma vela.

- Obrigada.

Ela encostou-se à parede, esperando.

Ossos acendeu uma das lâmpadas do hall e depois voltou-se, para se despedir. Mas, antes de partir, não pôde evitar a pergunta:

- Há mais alguma coisa que queira que eu faça, senhora?

- Não, obrigada, Ossos. Você é um homem muito bondoso e gentil - sorriu Laurette tristemente, acrescentando: - Há poucos como você, no mundo de hoje.

290

Vinte e nove

 

Laurette não conseguiu dormir naquela noite. Andou pelo seu quarto, de um lado para o outro, como se ela própria fosse um fantasma acorrentado às agonias do passado.

No seu íntimo, tudo regressava com detalhes. Cada movimento, cada palavra de Ladd. E, com crescente ironia e dor, percebia que ele tivera, desde o começo, a única intenção de a enganar e de a punir, deixando-a depois com o coração partido.

Era-lhe impossível acreditar que o doce e generoso garoto de outrora se tivesse transformado daquela forma, tornando-se o frio sedutor de agora. Ficava cada vez mais tensa ao lembrar-se de como cedera a Ladd, de como se Lhe entregara.

E não conseguia entender nem aceitar que todo o belo idilio que os dois tinham vivido juntos nada tivesse a ver com o amor de Ladd, mas apenas com a sua mente sedenta de vingança.

Olhou para a janela e foi até lá, sentando-se no peitoril, como fazia quando era adolescente. Olhava para a cidade adormecida e para mais longe, para a escuridão que era uma grande mancha onde sabia estar a ilha. Naquele lugar, passara os momentos mais felizes da sua vida.

Uma sensação terrível de vazio apoderou-se de Laurette. E um desespero agudo inundou-a por completo. Como o amava Ainda.

E como o odiava, também!

Na ilha, em total silêncio e escuridão, Ladd dava passos incertos e lentos pela varanda. Os seus olhos brilhavam e podiam ver, como quando estava no calabouço escuro do Castelo do Demónio.

Recordava os detalhes daquilo que devia ter sido a sua desforra, mas que se transformara nuns dias gloriosos de paixão com Laurette.

A cada nova palavra ou novo gesto de que se lembrava, o seu peito apertava-se cada vez mais, com uma crescente certeza de que Laurette jamais lhe perdoaria. Não havia desculpa ou justificação possível para o que fizera. Magoara-a demais. Queria não ter voltado para Mobile, permitindo, assim, que Laurette tivesse continuado a viver a sua vida em paz.

Estremeceu ao recordar os momentos mais íntimos que tivera com ela. O que tinham compartilhado era de um encanto sem igual.

Dirigiu-se para a rede e deitou-se, embrulhando-se como que para escapar das dores do mundo. Dali podia-se ver as luzes de Mobile. Talvez alguma delas fosse da mansão de Laurette. Pensou que ia sufocar diante da possibilidade de a perder para sempre. Estava infeliz e só.

Deus, como a amava! Ainda... E como ela devia estar a odiá-lo!

No dia seguinte, às dez da manhã, Ossos regressou à ilha para ir buscar o seu patrão e amigo. Ancorou o barco e foi até à casa à procura dele.

Ladd permanecia na rede da varanda, acordado, mas com aspecto de não ter dormido a noite toda.

Ossos não sentia pena do seu estado. Para ser franco, continha-se a custo para não o arrancar daquela rede e esmurrá-lo mesmo ali.

Ladd levantou-se e seguiu o ex-marinheiro até ao cais. Nenhum dos dois disse uma única palavra. Mas estavam quase a chegar ao iate quando Ossos não conseguiu conter-se mais:

- Então, disse-lhe ontem à noite que estava tudo terminado...

- Não - respondeu Ladd, sem olhar para ele. Foi ela quem o fez.

Ossos parou de andar e encarou-o.

- Como assim?

Ladd também parou e virou-se. Encolheu os ombros, esboçou um sorriso forçado, frustrado, e explicou:

- Parece que fui derrotado, e acabei por ser eu a receber a última dose de justiça nesta história toda - baixou a cabeça e enfiou os pés na areia, enquanto prosseguia: - Apaixonei-me por ela outra vez, por isso decidi esclarecer tudo e contar-lhe o que fiz.

Ossos arregalou os olhos.

- Está a dizer que confessou ser o Ladd Dasheroon?

Ele fez que sim com a cabeça e tornou a encarar o amigo.

- E por isso perdi-a de vez, Ossos.

- Não diga isso! - consolou-o o ex-marinheiro. Ainda não sabe se será assim. Tem de ir até casa dela para conversarem, para que a Laurette entenda.

- Entender o quê? Que sou um maldito patife que voltou a Mobile para se vingar dela da forma mais abjecta possível? Isso a Laurette já sabe. É uma moça inteligente, entendeu imediatamente qual era o meu plano.

- Mas... mas se realmente confessou tudo, isso deve valer alguma coisa.

- Caríssimo, pretendo fazer o possível e o impossível para que a Laurette volte para mim, mas conheço-a muito bem. Ela é teimosa e cheia de orgulho, e posso jurar que vai querer que fiquemos quites. Quem poderá culpá-la, afinal?

- Ninguém.

- Isso mesmo. A Laurette vai odiar-me para sempre pelo que fiz, e eu mereço! Mas... Deus, queria poder mudar tudo!

- Já que não pode, Ladd, porque não tenta, pelo menos, consertar as coisas? Ela é uma boa mulher, e ama-o.

- Amava, queres tu dizer.

- Amou-o por duas vezes. No passado e agora. Amou o jovem Ladd Dasheroon e o maduro Sutton Vane. Não pode convencer-me de que ontem o amava e que hoje esse sentimento já não existe. Ladd, a senhora Tigart está confusa e magoada. E também muito zangada; mas de certeza que ainda o adora.

Ladd olhou para longe, respirando fundo e comentando apenas:

- Sim. Espero que tenhas razão.

Ladd decidiu engolir qualquer sinal de altivez da sua parte. Amava Laurette e queria-a para si. Portanto, dispunha-se a fazer qualquer coisa para a persuadir a perdoar-lhe.

Depois de um dia inteiro de longa espera e preocupação, ansioso e cansado, tomou um bom banho e vestiu-se da melhor forma possível, seguindo na sua carruagem até ao Hospital. Tão tenso como costumava ficar na sua adolescência, e ainda mais inseguro, esperou por Laurette diante das portas duplas da instituição, olhando atentamente durante muito tempo.

Ela, porém, não apareceu. Devia estar adiantado, pensou; ainda faltava muito para as duas horas, que era quando ela costumava sair.

Manteve-se ali, sentado na carruagem, sentindo-se a cada instante mais inquieto, consultando o relógio de cinco em cinco minutos.

Quando, por fim, eram duas e quinze, começou a preocupar-se. Onde estaria ela? Perguntou-se. Laurette saía sempre assim que terminava o seu turno. O que estaria a demorá-la lá dentro?

Impaciente, abriu a porta do veículo e desceu. Encostou-se ao muro baixo, junto aos arbustos do jardim da frente do Hospital, com os braços cruzados, os olhos voltados para as portas, agitadíssimo.

Alguns médicos e enfermeiras tinham deixado o edifício pouco depois das duas, mas não havia sinal de Laurette.

Às duas e meia, Ladd não aguentou mais. Diris giu-se para os degraus da entrada e subiu-os, apressado. Dentro do Hospital, foi ter com a primeira pessoa que viu, uma enfermeira alta e magra, que não lhe sorriu quando a interceptou.

- Com licença, por favor. Conhece a enfermeira Laurette Tigart? - ele forçou um sorriso gentil.

- É evidente que conheço a Laurette. Ela não veio trabalhar hoje. Mandou avisar que está doente e... Antes mesmo da mulher poder terminar a frase,

Ladd já se tinha lançado de novo na direcção das portas de saída, quase a correr.

Tirou o fato, que parecia sufocá-lo naquele quente dia de Verão, e orientou o seu cocheiro para ir até à mansão da rua Dauphin, que ele tão bem conhecia.

Lá, subiu a correr os degraus da entrada e parou por instantes, tentando acalmar os batimentos frené ticos do seu coração. Bateu com firmeza à porta e esperou, impaciente. Após o que Lhe pareceu uma

eternidade, Laurette atendeu. Estava pálida e parecia frágil.

- Laurette, eu...

- Pensei ter deixado claro que não queria ver- te mais - e fechou a porta na cara dele, sem mais nada dizer.

Insistente, Ladd tornou a bater, agora com mais força, gritando:

- Por favor, só quero que me dês cinco minutos! Pelo amor de Deus, não deixes que tudo acabe assim, Lollie! Dá-me uma oportunidade! Lembra-te de tudo o que significámos um para o outro!

Desesperado, Ladd continuava a esmurrar a madeira, mas a porta permaneceu fechada. Como o coração de Laurette. Ela já subira as escadas e não voltou a descer.

Nas semanas que se seguiram, Ladd não desistiu. Ia para a frente do Hospital à espera dela, para lhe pedir que Lhe perdoasse. No entanto, Laurette não Lhe dava a tão almejada oportunidade de se redimir. Ignorava-o, tão-somente.

Todos os dias enviava três dúzias de rosas brancas à mansão da rua Dauphin, com um bilhete, sempre o mesmo: Nunca deixarei de te amar. Perdoa-me".

Porém Laurette, ferida até mais não poder, endurecera o seu coração. Já não lhe importava se Ladd a amava ou não. Nem sequer lia os cartões que vinham com as rosas. E atirava as flores para o caixote do lixo, assim que chegavam.

Dissera a Ladd que ele agora estava morto para ela, e pretendia que assim fosse, de facto. Não se importava com ele, nem com mais nada. Sabia muito bem que a cidade toda ouvira falar da rotura entre ambos, mas não lhe interessavam os falatórios e os olhares quando passava, nos raros momentos em que era obrigada a estar num local público.

Era motivo de comentários, mas não era a primeira vez que isso acontecia. Porque havia de ligar? Já não confiava em ninguém, não falava sobre a sua tristeza, os seus sentimentos a quem quer que fosse, nem mesmo às suas grandes amigas, as gémeas Parlange. Elas, como o resto dos seus conhecidos, apenas podiam especular e imaginar o que se passava.

Laurette convencera-se de que já não era capaz de sentir coisa alguma. Trabalhava no Hospital com a mesma dedicação de sempre, mas já não se preocupava tanto quando se via diante de um paciente que precisava da sua ajuda. Tratava dele, mas não se envolvia como antes. A sua alma parecia tê-la abandonado.

Sozinho durante tantos anos, Ladd, como Laurette, aprendera a não confiar em ninguém. Mas, ao contrário dela, o seu coração estava muito vivo e capaz de sentir.

Na verdade, sofria terrivelmente. As suas esperanças de reconciliação com Laurette desapareciam aos poucos, e tornava-se cada vez mais taciturno a cada novo dia sozinho, a cada nova noite de desespero.

Muitas vezes, nem ia para o seu quarto quando escurecia. Sabia que não iria conseguir adormecer, por isso, para quê o trabalho de subir as escadarias? Sentava-se no seu escritório, a beber uísque ou conhaque, arrependido do que tinha feito.

Também se apercebia de que Mobile inteira comentava, embora ninguém soubesse a sua verdadeira identidade; sabiam apenas que o romance terminara.

Não dava a mínima importância ao que pudessem dizer. Todavia preocupava-se por Laurette, receando que ela pudesse estar magoada com os comentários generalizados. Afinal, ele provocara um escândalo na sua vida pessoal.

Ossos também andava preocupado, em especial com o seu patrão. Mesmo desaprovando o que Ladd tencionara fazer com Laurette, agora a situação do chefe inquietava-o, e bastante.

Ladd nunca fora de comer muito, devido aos longos anos de fome que passara na prisão, mas agora recusava-se a ingerir qualquer alimento. Passava dias inteiros sem levar uma única garfada à boca. Só engolia bebidas alcoólicas.

Numa certa noite quente de Setembro, enquanto Ladd bebia, sozinho no seu escritório, Ossos entrou, dirigindo-se imediatamente a ele. Pretendia falar com ele, mas a sua aproximação foi bloqueada por um olhar severo e frio que o manteve do outro lado da secretária.

- Sai daqui e vai para a cama! - quase gritou Ladd.

- Eu ia sugerir-lhe que fizesse o mesmo - rebateu Ossos, mas num tom suave.

- Já sugeriste. Agora, vai-te embora.

- Escute, Ladd, sei que não é da minha conta, mas...

- Tens razão, não é mesmo - Ladd bebeu mais um gole e passou as costas da mão pelos lábios, sem encarar o amigo.

Ossos, porém, insistiu:

- Beber não vai trazê-la de volta.

- Eu sei. Nada vai conseguir trazê-la. Eu perdi-a para sempre, Ossos.

 

O quente Verão de 1881 chegou, por fim, a termo, e o Outono veio bastante frio. Com a mudança de estação, as folhas começaram a morrer e a cair sobre as calmas ruas de Mobile.

O sol parecia encontrar-se agora numa posição diferente e já não era tão forte. As noites estavam bem mais frescas. Muitas vezes, geladas.

Quase tanto como o coração de Laurette, que permanecia inflexivel na sua decisão de afastar Ladd da sua vida. Recusava-se a vê-lo, a falar-lhe, a ouvi-lo. Após semanas de tentativas frustradas para conseguir que ela lhe perdoasse, ele acabou por desistir. Já não tentaria mais recuperá-la. Não adiantaria. Conhecia Laurette muito bem e sabia que continuaria firme, decidida. E, se não podia tê-la, Ladd não queria viver mais no Alabama. Preferia ir para Nova Iorque, ou até para Londres ou Paris. Não fazia grande diferença.

Quando comentou com Ossos que pretendia partir, numa gélida tarde de Novembro, o ex-marinheiro respondeu:

- Não me parece má ideia. Mas dê-me uma semana para concluir alguns assuntos que estou a resolver por cá.

- Está bem. Não tenho pressa.

Após saber da decisão do patrão, Ossos achou que devia tomar uma atitude. Não poderia permitir que as coisas continuassem daquele jeito. E, depois dessa tarde, começou a sair de casa com mais frequência.

Isso não era habitual e Ladd, percebendo a atitude do amigo, ficou um tanto curioso, mas não ao ponto de lhe perguntar por onde andava e o que fazia. Afinal, Ossos tinha o direito de ter também a sua vida particular. Talvez andasse a visitar alguma mulher, o que não era muito provável, já que morrera a única mulher que realmente amara. Mas, mesmo assim, Ladd achou melhor não se intrometer.

Ossos era muito cuidadoso, visto que não queria despertar as suspeitas de Laurette, mas arranjava sempre uma maneira de se encontrar com ela cada vez mais amiúde. A primeira dessas ocasiões foi no mercado e, como Ossos se ofereceu para a ajudar a levar os sacos até sua casa, não opôs resistência alguma.

Nesse dia, ele falou com ela sobre muitos assuntos banais, como as mudanças do tempo, o trabalho dela no Hospital; o aumento dos preços dos legumes. Não se referiu uma só vez a Ladd.

Dois dias se passaram, e Ossos viu-se diante do Hospital mesmo à hora em que Laurette saía do serviço. Mais uma vez, muito cavalheiro, ofereceu-se para a acompanhar até à sua residência e, mais uma vez, nem sequer falou em Ladd.

Laurette gostava de Ossos. Gostara dele desde que o conhecera. Considerava-o um homem gentil e bondoso. Como a temperatura estivesse a mudar depressa, os dias a ficarem cada vez mais curtos e a noite a chegar cada vez mais cedo, passou a ver com bons olhos a companhia que ele lhe oferecia até à mansão, sempre que se encontravam.

Numa tarde fria e cinzenta, mesmo no início de Dezembro, Ossos aguardava-a junto da escadaria externa do Hospital, e Laurette sorriu-lhe assim que o viu. E Ossos, educado e protector, acompanhou-a com sobriedade até à entrada da sua residência, mas, dessa vez, não se despediu ali. Quando chegaram aos degraus da varanda, pediu-lhe simplesmente:

- Senhora Tigart, poderia permitir que eu entrasse e lhe falasse por alguns minutos?

Laurette encarou-o, surpreendida. Sabia sobre o que é que ele queria falar-Lhe, e não estava disposta a ouvir. Começou a negar com a cabeça, dizendo:

- Sinto muito, Ossos, mas... não. Sei quais são as suas intenções, e considero-as as melhores do mundo. No entanto, nada que diga ou faça irá abalar a minha decisão em relação ao Ladd.

- A senhora é que sabe. Mas há tanta coisa que desconhece! Tanta coisa que deveria saber e que o Ladd nunca lhe diria... Nem a mais ninguém.

Laurette ficou intrigada. Mas Ossos já estava a descer o primeiro degrau, com a intenção de se ir embora. Ela hesitava, o que o fez parar e encará-la mais uma vez. Uma sombra de sorriso passou pelos seus lábios, então, e ele murmurou:

- Só alguns minutos?

Sem uma palavra Laurette entrou, seguida de Ossos.

Viu-o pendurar o chapéu num dos ganchos do bengaleiro e suspirou, dirigindo-se para a sala de estar, onde, com toda a paciência, acendeu uma lâmpada e a lareira. Minutos depois, com as mãos voltadas para o calor das chamas, comentou:

- Você é um amigo leal a ele. E a mim também. Mas devo dizer que está a perder o seu tempo.

- Não faz mal. Quero tentar, mesmo assim. Por que não se senta para ouvir o que tenho a dizer, senhora Tigart?

Laurette hesitou por um instante. Respirando fundo, acomodou-se numa poltrona voltada para a lareira. Cruzou os braços, um pouco aborrecida por ter de escutar o que não queria. Nada que Ossos pudesse revelar-lhe iria mudar a sua opinião sobre Ladd Dasheroon.

Ossos não se sentou. Permaneceu em pé, diante das chamas, encarando-a. E começou a falar, a contar-Lhe sobre os anos todos que Ladd tinha passado na prisão.

- Foi um período muito difícil para ele, no Castelo do Demónio. O capitão da guarda era um cretino sádico que conhecera Ladd em West Point e, ainda lá, já procurava implicar com ele em tudo o que podia. Nem pode imaginar como ele tratava Ladd no presídio... Escolheu-o para seu divertimento monstruoso. Deixava-o a passar fome, torturava-o, espancava-o, e chegou mesmo a marcá-lo com um ferro em brasa.

Aturdida, Laurette entreabriu os lábios e arregalou os olhos. Lembrava-se muito bem da cicatriz que notara no quadril de Ladd e que ele dissera ser uma marca de nascença.

- O Ladd teve sorte em conseguir sobreviver às torturas do LaKid - Ossos meneou a cabeça.

- LaKid... - repetiu ela. - Era esse o nome do capitão da guarda?

- Sim. Gilbert LaKid. Porquê?

- Por nada. É que. é um nome invulgar. - Laurette lembrava-se da primeira noite em que dormira na ilha, quando Ladd tivera aquele terrível pesadelo.

Ele gritara o nome de LaKid nessa ocasião, e ela não esquecera o medo e o horror na voz dele.

Ossos prosseguia:

- Depois de um ano de inferno nas mãos desse homem, Ladd sentiu-se felicíssimo quando o major Tigart foi enviado para o presídio para o administrar. Pensou que o seu velho amigo iria afastar aquele carcereiro e que ele poderia ser transferido do Castelo do Demónio para uma prisão regular, onde seria tratado com decência.

Ossos interrompeu-se e fitou Laurette, para garantir que ela prestava atenção ao que dizia. Certificou-se disso, embora não notasse nenhuma expressão no semblante dela. Afinal, Laurette sabia o que vinha a seguir:

- Mas ficou tudo ainda muito pior depois da chegada do major. A primeira ordem do Tigart na prisão foi para colocarem o Ladd no calabouço, um local terrível nas masmorras do edifício. Foi lá que Ladd permaneceu durante onze longos anos.

Laurette espantou-se.

- Como pode isso ser? A guerra terminou em 1865 e...

- O Tigart conseguiu uma acusação por alta traição contra o Ladd. E ele foi considerado um perigoso preso político. Portanto, não o soltaram no fim da guerra. Na realidade, não devia ser solto nunca mais. Foi condenado à prisão perpétua por um crime que nunca cometeu. O Tigart queria que morresse na prisão, por isso forjou as provas contra o Ladd.

- O Jimmy contou-me que o Ladd tinha morrido num presídio, que isso aconteceu pouco antes de ele ter sido enviado para administrar o Castelo do Demónio. Chegou a afirmar que, se tivesse chegado lá antes podia ter posto o nome do Ladd numa lista de transferência de presos.

- Ele mentiu para que a senhora se casasse com ele.

- Mas eu não sabia que o Ladd estava vivo! Como poderia saber?

Como se Laurette não tivesse dito nada, Ossos continuou, com uma pergunta:

- O Ladd contou-lhe como soube do seu casamento?

- Não...

- Só soube que a senhora se casara alguns anos depois. Numa certa ocasião, os guardas lançaram-Lhe a comida sobre um pedaço de jornal. Evidentemente que estava estragada, como toda a que lhe davam, e que era muito pouca. Era a página social de um diário. Uma cópia antiga do jornal de Mobile, datada de nove de Junho de 1865. E ali estava o anúncio do seu casamento.

Ossos esperou, para que a revelação tivesse sobre ela o efeito desejado. Mas Laurette manteve-se calada. O seu rosto estava transtornado, os seus olhos, carregados de compaixão. Compaixão pelo desgraçado Ladd Dasheroon, sozinho e abandonado num buraco escuro, a carregar culpas que não tinha, afastado dos seus entes queridos, esquecido do mundo. E a descobrir, amargurado, que o seu grande amor se casara com o seu amigo de infância, que o traíra.

- Pode imaginar como se sentiu ele, senhora Tigart? Como o seu coração ficou abalado com aquela notícia... Pode perceber porque jurou ele vingar-se do Jimmy Tigart e da senhora também?

Laurette não teceu nenhum comentário, determinada a permanecer impassível e a agir como se não se importasse com mais nada referente a Ladd.

Ossos, por sua vez, continuava a tentar atingi-la:

- O Ladd conseguiu, por fim, fugir, entrando numa mortalha de um companheiro que falecera na noite anterior. Ele encontrara aquele pobre coitado através de um túnel que o outro estava a cavar e que, por engano, fora dar à sua cela. Estavam os dois tão solitários e desesperados que quase chegaram à lou cura, mas a companhia um do outro e a esperança de poderem sair dali animou-os o suficiente para continuarem a cavar. Ficaram amigos. O outro soldado chamava-se Finis Schafer. Era um homem com instrução, versado em muitos assuntos, que ensinou tudo o que sabia a Ladd, nos tempos em que continuaram a cavar. E ele também lhe falou sobre um carregamento de ouro que roubara e que tinha sido o motivo da sua prisão no Castelo do Demónio. Também ele era um prisioneiro político. O carregamento fora enterrado num lugar nas montanhas, e os dois cavaram sem descanso, na intenção de saírem dali e conquistarem a liberdade que lhes era tão preciosa. Trabalharam com afinco, mas demoraram demasiado tempo. Schafer adoeceu e acabou por morrer; mas, antes de morrer, revelou ao Ladd onde se encontrava enterrado o ouro. E foi tomando o lugar do cadáver do amigo que o Ladd conseguiu sair dali, transportado até ao local onde o enterraram.

Ossos parou mais uma vez, atento ao semblante de Laurette. Sem dúvida, ela teria de reagir agora. Mas não o fez. Continuava sentada, com os braços cruzados, e assim permaneceu.

- Os guardas enterraram-no e voltaram para o presídio. O Ladd cavou sem cessar, para sair da cova rasa em que tinha sido atirado, e depois correu e atirou-se para as águas da baía de Chesapeake, com medo de que os cães dos guardas sentissem o seu cheiro e o seguissem. Mas o infeliz estava tão magro e fraco, tão exausto pelo esforço e pela falta de alimento, que mal podia nadar. Foi até umas pedras e tentou segurar-se a elas, mas as mãos, feridas e sem forças, fizeram-no escorregar, até que se afundou. Sabia que ia morrer afogado.

- Segundo parece, não se afogou - comentou Laurette, com um certo cinismo.

- Não. E foi aí que eu entrei em cena, minha senhora. Eu também estava com problemas pessoais e decidira matar-me. Ia saltar para as águas geladas e morrer. Mas vi a luta, o desespero daquele homem para continuar a viver. Então, estendi os meus braços e salvei-o - Ossos sorriu e completou: - Nós os dois salvámo-nos nesse dia. É por isso que gosto tanto dele.

Laurette apenas assentiu: E Ossos continuou, narrando a sua história durante mais vinte minutos, dizendo como cuidara de Ladd, como os dois partiram em busca do ouro e como o encontraram, por fim. Quando terminou, Laurette levantou-se e, muito séria, avisou:

- Está a ficar tarde.

- Está sim. Acho que acabei por abusar da sua hospitalidade, minha senhora. Sinto muito - inclinou-se, numa mesura, e dirigiu-se para o hall, desapontado.

Esperara com sinceridade comover Laurette, mas enganara-se. Pelo ar dela, continuava firme. Ladd tinha razão; sempre tivera. Laurette jamais iria perdoar-lhe.

Agora, com pressa de sair dali, Ossos já estava a pôr o chapéu quando foi surpreendido pela pergunta suave de Laurette:

- Ossos, porque queria morrer no dia em que salvou o Ladd?

- Ora, isso não tem importância. Foi há tanto tempo... Já estou bem, agora.

- Por favor, conte-me.

Ossos vacilou por alguns segundos. Depois encarou-a e, muito calmo e sereno, explicou:

- Tinha perdido a minha esposa e o meu filho.

Sempre fui marinheiro, e estava em viagem quando a minha doce Amanda, grávida do nosso primeiro bebé, deu à luz um garoto perfeito, mas fraco de saúde. O pobrezinho viveu apenas algumas horas e... a Amanda faleceu pouco depois. O parto foi muito difícil, sabe? Ah, como eu quis morrer com eles!

- Oh, Ossos... - não se conteve Laurette. Os seus olhos encheram-se de lágrimas. - Lamento muito...

- Não lamente, minha senhora. A Amanda deu-me muita felicidade, abençoada seja onde estiver.

E eu sou um homem de sorte, porque conheci um amor que poucos têm o privilégio de conhecer. Quando se encontra um amor assim, deve-se...

- Estou muito cansada, Ossos.

- Compreendo, minha senhora. Já estou de saída. Mas, depois de eu me ter ido embora, quando estiver sozinha, pense no que lhe contei hoje. Não espero que nada do que eu lhe disse a faça mudar de ideias, mas talvez, pelo menos, a ajude a entender por que agiu o Ladd como agiu.

- Não. Não vai adiantar nada. Tenho muita pena por tudo o que ele passou, sim, não nego. Mas jamais lhe perdoarei pelo que me fez. Como deve saber muito bem, Ossos, o Ladd Dasheroon não é a única pessoa na face da terra que já sofreu na vida.

Ossos, assentindo, voltou-se para a porta. Abriu-a, deu um passo para fora, mas parou e virou-se ainda uma vez para Laurette.

- Deixe-me dizer-lhe apenas mais uma coisa antes de me ir embora.

- Muito bem, diga.

- O Ladd ama-a muito!

- Pois sim. E essa é a desgraça dele.

 

Laurette sempre tivera um orgulho inquebrantável e uma força rebelde que a dominavam. Foram justamente essas qualidades que a impulsionaram durante os momentos mais terriveis da sua existência, fazendo-a sobreviver com decência às inúmeras tragédias que o destino colocara no seu caminho. Passara pelas perdas e pelas tristezas e sobrevivera, apesar de ter o coração partido.

Estava convencida que, quando dissera a Ladd que ele estava morto para ela, isso era verdade. No entanto, não ficara imune ao que Ossos Lhe contara sobre os anos de agonia que Ladd suportara na prisão. E entendera o quanto ele se desesperara ao descobrir, da pior forma possível, que ela se casara com Jimmy.

O destino fora muito malvado para com Ladd Dasheroon. Mas fora-o para com ela também, e agora não conseguia esquecer nem perdoar o facto de Ladd ter resolvido voltar a Mobile com o único propósito de a ferir e de a humilhar.

Laurette não contara a ninguém que o homem que se fazia passar por Sutton Vane era, na verdade, Ladd Dasheroon. Tudo o que dissera, quando muito pressionada, era que Sutton Vane e ela tinham decidido, de comum acordo, não se verem mais.

As gémeas, parecendo pouco convencidas com essa explicação, imploraram por maiores detalhes da história, mas Laurette mantivera-se calada, discreta. Preferira deixar-lhes claro que não queria sequer ouvir o nome de Sutton Vane mencionado à sua frente, dali em diante.

Pelos vistos, Ladd também não revelara a sua verdadeira identidade a ninguém, porque Laurette ouvia rumores sobre a actual reclusão de Sutton Vane. Dizia-se que ele só deixava a sua mansão para se isolar ainda mais na ilha, que era o seu refúgio constante.

Todos se mostravam pasmados diante do seu comportamento tão estranho. Algumas pessoas, mais ousadas, perguntavam a Laurette o motivo da reclusão do seu antigo namorado, mas ela assegurava-lhes não saber nada a esse respeito.

A aproximação do Natal animou-a um pouco, e Laurette comprou alguns presentes para os amigos mais chegados, dedicando boa parte do seu tempo livre a fazer belos embrulhos decorados com fitas vermelhas. Queria esquecer os problemas, envolver-se nas tradições, usufruir da atmosfera natalícia que inundava Mobile.

Todavia, não comprou uma árvore de Natal para enfeitar a sua mansão. Era o primeiro ano da sua vida em que não o fazia, lembrou-se, com uma certa tristeza. Houvera sempre um belo pinheiro junto à lareira, para enfeitar e dar um perfume todo especial àquela época do ano. Deixaria os enfeites guardados numa caixa, no sótão. Não tinha vontade de ornamentar uma árvore, já que ia passar o Natal sozinha.

- Mas porque não téns um pinheiro? - perguntou-lhe Johanna Parlange, indignada.

- E o que são aquelas caixas no hall? - acrescentou Juliette. - Johanna ia caindo sobre elas.

- São coisas minhas.

Sem maiores explicações, as gémeas entreolharam-se e decidiram mudar de assunto. Faltavam seis dias para o Natal e elas iriam para Nova Orleães como em todos os anos, para passarem os feriados com os familiares que lá moravam.

Tinham implorado a Laurette que fosse com elas, mas ela recusara, agradecendo e dizendo que estaria de serviço no Hospital. As três sabiam, porém, que se quisesse mesmo ir para Nova Orleães, podia ter arranjado um esquema de compensação de serviço com alguma colega.

Mas, como iriam estar longe na noite de Natal, as duas vieram pernoitar com a amiga querida, comemorando o dia santo antecipadamente.

E tentaram fazer tudo para a animarem e serem alegres, joviais. Juliette recomendara inúmeras vezes à irmã que não mencionasse o nome de Sutton Vane, e as duas foram para casa de Laurette com a intenção de passarem momentos agradáveis, trocarem presentes e conversarem perto do fogo.

As gémeas presentearam Laurette com um belo cachecol que elas mesmas tinham tricotado. Adorando o presente, ela colocou-o imediatamente sobre os ombros, olhando-se contente.

Depois, presenteou Johanna com uma caixa de sabonetes perfumados importados, já que sabia o quanto a amiga gostava de passar longas horas na banheira; e, para Juliette, comprara um livro, a obra-prima de Henry James, Retrato de uma Dama, que a silenciosa amiga adorou.

Ficaram a conversar durante muito tempo, tomando chocolate quente e comendo rosquinhas e, mais tarde, Laurette apareceu com uma garrafa de conhaque fino, que as gémeas aplaudiram, satisfeitas. Beberam à vontade e a conversa começou a ficar mais divertida, com mais risos e mais calor.

Acabaram as três deitadas de bruços diante da lareira, cantando e rindo como crianças travessas.

Sonolentas, ouviram o relógio do hallbater a meia-noite.

- Meu Deus! - Juliette sentou-se, com os caracóis a caírem-lhe sobre os olhos. - Não fazia ideia de que já era tão tarde!

- Nem eu! - Johanna ajeitou as saias. - Precisamos de ir! O vapor parte amanhã bem cedo para Nova Orleães!

Minutos depois as duas saíam, levando os seus presentes e correndo pelo jardim da frente da mansão, em direcção a casa.

- Até daqui a dez dias! - gritou Johanna, quase na esquina, espontânea como sempre.

Depois, parecendo ter-se lembrado de algo, deu meia volta, correu de novo até ao portão de Laurette e acrescentou:

- Ah! Adivinha quem vai deixar a cidade! Ele! O coração de Laurette disparou de imediato. Forçou um sorriso e indagou, tentando disfarçar o que sentia:

- Quem é ele?

- Johanna! - gritou Juliette, voltando para agarrar no braço da irmã, arrastando-a consigo pela calçada. - O que foi que eu te disse antes de virmos?

Mas Johanna parecia surda às recomendações de Juliette.

- O Sutton Vane, quem mais podia ser? Vai deixar Mobile para sempre! Parece que vai para Paris ou Nova Iorque, não sei bem. Segundo ouvi dizer, esta é sua última noite na cidade.

Juliette sorriu para Laurette e puxou a irmã com um safanão, dizendo:

- Boa noite, Laurette! Vem, bruxinha!

- Boa noite. Divirtam-se em Nova Orleães - e Laurette entrou e fechou a porta atrás de si, en quanto as amigas seguiam, apressadas, pela calçada.

Encostou-se à porta, incapaz de dar mais um passo. Com que então, Ladd Dasheroon ia-se embora. Óptimo. Não poderia ouvir melhor notícia. Assim, deixaria de sentir o coração a parar cada vez que avistava um homem alto e de cabelos negros pelas ruas de Mobile. A sua vida poderia voltar ao normal e em breve se esqueceria de que ele, um dia, regressara.

Sim, estava feliz com a sua partida.

Voltou para a sala de estar, pegou nos pedaços de papel espalhados pelo chão, nas chávenas e nos copos, pôs tudo numa bandeja e foi para a cozinha. Regressou em seguida, pegou na garrafa e bebeu as últimas gotas de conhaque que restavam.

Olhou para o cachecol que recebera e sentou-se numa poltrona diante da lareira, cujo fogo quase se apagara. E ali ficou, quieta, apenas olhando para as brasas, durante horas.

Levantou-se, já de madrugada, com a intenção de subir para o seu quarto, mas não o fez. Os seus pés teimavam em ficar a andar para lá e para cá, enquanto lembranças e arrependimentos borbulhavam no seu íntimo.

De repente, parou de andar e sentiu que todo o seu corpo estremecia. Era como se, numa fracção de segundos, estivesse de volta no tempo, numa terrível noite de separação, quando o seu namorado de dezassete anos se encontrava prestes a partir para West Point.

Gemeu ao recordar o amor urgente que tinham feito, escondidos ao fundo do jardim da mansão dele, e do medo absurdo que sentira de nunca mais voltar a vê-lo.

- Oh, Deus! Não posso perdê-lo de novo - murmurou para si mesma, desesperada.

E saiu a correr da sala e da casa, sem sequer se lembrar de vestir um agasalho. Correu pelas ruas, naquela fria noite de Dezembro, directamente para a mansão da rua do Governo. Quando chegou à porta da frente estava gelada, tiritando, respirando com dificuldade.

Bateu. Os minutos passaram, e ninguém veio abrir. Bateu de novo, ansiosa, e, dessa vez, Ossos apareceu, ainda a fechar o cinto do roupão sobre o pijama.

- Senhora Tigart! Vamos, entre! Está muito frio aí fora! O que faz na rua a uma hora destas?

Ela apressou-se a entrar, esfregando os braços gelados.

- Onde está ele? - indagou, aflita. - Já se foi embora? Estou atrasada?

Ossos sorriu.

- O Ladd está a passar a sua última noite na ilha, sozinho.

Laurette estendeu as mãos, agarrou nos braços musculosos do ex-marinheiro e pediu:

- Tenho de vê-lo, Ossos! Por caridade, leve-me até ao Ladd!

Com um sorriso muito largo agora, feliz por ver que ela, enfim, compreendera, Ossos avisou-a:

- Terá de esperar até amanhã, minha senhora. O Ladd levou o iate - mas, vendo a decepção nos olhos dela, acrescentou depressa: - Tem medo de ir num barco pequeno até à ilha?

- Só tenho medo de perder o Ladd.

Ossos assentiu e apressou-se:

- Vou buscar um dos casacos do patrão para a senhora se proteger - E dirigiu-se a um quarto contíguo, voltando em breve com uma capa de lã, que colocou sobre os ombros de Laurette, dizendo ainda: Vou acordar o cocheiro e pedir-lhe que nos leve ao cais.

- Está bem, mas seja breve.

Dez minutos depois, Ossos ajudava-a a entrar na carruagem. Quando alcançaram as docas, ele tentou alugar um barco qualquer, mas não conseguiu. Laurette esperava, impaciente.

- Lamento, minha senhora - desculpou-se Ossos, frustrado. - Parece que não poderemos ir até à ilha esta noite. Talvez quando amanhecer...

- Não, é preciso que eu vá esta noite! - olhando para a parte mais baixa do cais, sugeriu: - Que tal um daqueles barcos a remos?

Ossos ponderou por segundos, analisando:

- Bem, a baía parece-me bastante calma hoje, mas...

- Por favor, Ossos! Estou a implorar-lhe!

Ossos tomou-a por um braço, conduzindo-a até um dos barquinhos. Com a energia dos seus braços de marinheiro remou até à ilha, onde amarrou o barco no pilar, estendendo a mão para ajudar Laurette a descer.

Animado Ossos sorria, amparando-a com as mãos, dando-lhe equilíbrio. E, deixando-a em segurança em terra firme, voltou para a pequena embarcação.

- Não vai ficar? - perguntou Laurette, voltando-se para olhar para ele.

- Não. Isto é entre vocês os dois. Remarei de volta a Mobile, para terminar a minha noite de sono.

Tensa, ela vacilou.

- Pretende deixar-me sozinha? E se o Ladd não me...

Mas Ossos já se afastava, remando.

Laurette permaneceu ali no cais. Fez uma breve prece e em seguida tomou a direcção da enorme casa.

Ladd estava lá dentro. Talvez não a recebesse... Talvez a mandasse embora dali...

Respirou fundo, decidida a não esperar mais para não se torturar tanto assim. Começou a caminhar, mas depois os seus passos foram-se acelerando, numa ansiedade crescente, e em breve atingia a varanda.

Ladd, olhando pela imensa janela da sala de estar, teve de pestanejar várias vezes para acreditar no que via. Foi a correr até à porta, abriu- a, saiu, descendo as escadas da varanda para a areia e indo ao encontro de Laurette.

Quando chegaram perto um do outro, ambos riam e choravam de felicidade. Ladd tomou-a nos braços, ouvindo-a murmurar junto ao seu ouvido:

- Ladd, meu querido, meu lindo! adorado! Perdi-te uma vez e não quero nem vou perder-te de novo!

Ele cerrou as pálpebras, esquecendo-se de tudo o mais, para desfrutar intensamente daquele mo mento.

- Lollie, minha vida, nunca mais me perderás. Nunca mais! Nada, nem ninguém neste mundo poderá separar-nos.

E, naquela ilha encantada, onde a tristeza e o sofrimento de outrora podiam ser esquecidos por intensos momentos de paixão e alegria, eles permaneceram abraçados por longos momentos.

Depois entraram, amaram- se como sempre com uma intensidade renovada, deliciosa, e depois conti nuaram a viver as suas vidas da forma que tinham aprendido desde muito pequenos: juntos, querendo-se muito bem, amando-se acima de tudo.

 

 

                                                                                Nan Ryan 

 

 

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