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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O ESCANDALO DA PRINCESA / Suzanne Enoch
O ESCANDALO DA PRINCESA / Suzanne Enoch

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Inglaterra, 1813.
Pecados de um duque...
Sebastian Griffin, o Duque de Melbourne, criou os irmãos mais novos, educou-os muito bem e cuidou para que os três fizessem um bom casamento. Considerado o homem mais poderoso da Inglaterra, Sebastian tem uma reputação impecável, de homem íntegro, que nunca se envolveu em escândalos. Até agora.
Josefina Katarina Embry é uma jovem belíssima, que afirma ser a princesa de um país longínquo. Enquanto ela deslumbra a alta sociedade com sua graça e encantos, Sebastian desconfia de que ela está tramando alguma coisa e decide desmascará-la... sem imaginar que iria se sentir irresistivelmente atraído pela sensualidade de Josefina e por seus beijos apaixonados. Ele sabe que um caso amoroso entre ambos provocará um escândalo, mas o homem mais poderoso da Inglaterra arriscará sua reputação por uma suposta princesa, ou permitirá que o mais pecaminoso desejo governe seu coração?

 

 

 


 

 

 


Capítulo I

Junho de 1813.

A julgar pelo semblante dos soldados da Guarda Montada, alguém planejava algum banho de sangue... Após praguejar baixinho, Sebastian Griffin, duque de Melbourne, incitou o cavalo e, deixando o pelotão para trás, foi chegar a seu destino meio quilômetro à frente dos militares. O tempo urgia, e tempo era algo que ele não tinha para desperdiçar.
Alheio aos irmãos e ao cunhado que vinham no seu encalço, Sebastian saltou para o chão assim que o cavalo estacou para ir bradar diante da alvoroçada multidão:
- Quem está no comando aqui?
- Eu. - O sujeito atarracado em vestes surradas, como a maioria dos lavradores e demais trabalhadores reunidos ali, abriu espaço por entre os companheiros para puxar Sebastian de lado. - O que deseja, rapaz?
Rapaz. Ninguém falava assim com ele havia dezessete anos, ocasião em que herdara o ducado.
- Quero saber por que acham que pôr abaixo os portões de Carlton House irá trazer comida ou simpatia à causa de vocês. - Sebastian virou-se para seu secretário. - Compre tudo o que houver de alimentos no mercado da Piccadilly e mande entregar na Abadia de Westminster.
- Pois não, Vossa Graça. - Com isso, Rivers fez o cavalo dar meia-volta.
- Vá com ele, Jennings. Também quero cobertores e roupas para quem estiver precisando.
- Sim, Vossa Graça.
- Então acha que bastam um pedaço de pão e uma camisa para nos mandar embora daqui? - o líder da revolta interpelou Sebastian. - Ora, isso não...
- Vocês são em quantos, uns trezentos? - Sem esperar pela resposta, passou os olhos pelos rostos sujos e famintos da aglomeração às costas do grandalhão. - Vá para Westminster; vou encontrá-lo lá, e então discutiremos formas de manter sua gente em condições decentes até o replantio das lavouras e a melhora do sistema de irrigação.
- Mas nós...
- Insistir na ameaça à residência do príncipe regente só irá fazer com que ele se veja obrigado a chamar soldados para defendê-lo. De mais a mais, há crianças por aqui; não é justo colocá-las em perigo.
- Ainda não sei qual é o seu nome, sr... Vossa Graça. Nem se devo confiar num aristocrata.
- Sou o duque de Melbourne; se já ouviu falar de mim, você sabe que não volto atrás no que digo.
O camarada se adiantou um passo no momento em que Charlemagne e Zachary se acercavam, porém Sebastian conteve os irmãos com um movimento do braço. Aquelas pessoas estavam desesperadas, era natural que buscassem alguém em quem descarregar suas decepções.
- Sou Nathan Brown, Vossa Graça. - O lavrador estendeu a mão, que ele se apressou a apertar. - E já ouvi falar do senhor, sim.
- Ótimo. Vá me procurar na abadia dentro de duas horas, sr. Brown.
- Estarei lá. - Sem mais, o parrudo homem foi passar novas instruções aos companheiros.
Assim que os agricultores começaram a se afastar dos portões da Carlton House, vários deles de braços dados, Sebastian deixou escapar um profundo suspiro.
- Muito bem, Seb - comentou o irmão caçula dele, Zachary Griffin. - Ainda mais se levarmos em conta que tenho uma só pistola comigo.
- Hã-hã. Shay, vá dizer ao prior da St. Margaret que a Abadia terá hóspedes por um dia ou dois. - Enquanto o irmão partia rumo à igreja, ele saltou à garupa de Merlin. - Até mais. Tenho um compromisso daqui a duas horas.
- O que faz pelas manhãs quando não está acudindo a monarquia ou alimentando os desvalidos? - gracejou o cunhado dele, Valentine Corbett, lorde Deverill.
- Por que não vão retomar o que estavam fazendo? Green, você vem comigo. - O cavalariço anuiu, o grupo se dispersou, e Sebastian acenou para o apavorado secretário do príncipe, que surgia no outro lado do portão, seguido de perto por meia dúzia de guardas tão nervosos quanto ele. Em seu modo de ver, não fazia nem mais nem menos do que suas obrigações para com a Coroa ou para com o povo da Inglaterra. Era assim que passava as manhãs. E as tardes. E as noites.
Assim que deixou Carlton House, passando pela Guarda Montada a menos de uma quadra de distância da residência do príncipe regente, imprimiu ao trotar do cavalo uma marcha mais condizente com as ruas de Mayfair. Três quarteirões adiante, ele e Green entraram na Praça Grosvenor, de onde tomaram o passeio de pedriscos logo atrás dos portões que guardavam a Mansão Griffin. Escorregando da sela, Sebastian lançou as rédeas a Green e galgou os degraus da fachada da imponente residência, enquanto o cavalariço levava Merlin à estrebaria nos fundos do casarão.
A porta se abriu antes que ele a alcançasse.
- Espero que tenha sido bem-sucedido, Vossa Graça. - O mordomo deu um passo para o lado para que Sebastian pudesse passar.
- Felizmente, Stanton. Minha filha já acordou?
- Presumo que sim, Vossa Graça. Devo mandar chamá-la?
- Sim; quero vê-la antes de ir para o Parlamento. - Entregou-lhe o chapéu, as luvas e o sobretudo. - Quando Rivers chegar, diga a ele que teremos de adiar o almoço de amanhã, sim? Vou ter de passar boa parte do dia na Abadia de Westminster. -Seguiu então para a sala do desjejum, onde, sobre o aparador, generosas porções de pão, frutas e carne fatiada aguardavam por ele e, devidamente alisado, o exemplar do dia do London Times já se achava à cabeceira da mesa.
Depois de se servir, largou-se sobre sua cadeira para ler a matéria acerca do último acordo tarifário entre a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, que visava evitar qualquer recrudescimento das hostilidades entre os dois países. Segundo os jornalistas, tudo fazia crer que Sua Graça, o duque de Melbourne, havia pressionado o governo até forçá-lo a recuperar o bom senso.
- Por enquanto - murmurou para si, estendendo a mão para o bule de café; de pronto, um dos dois criados de libre correu a servir a aromática bebida na xícara dele.
- Eu já estava acordada, papai - anunciou uma voz fininha à entrada da sala, e foi para lá que ele olhou, sorrindo.
- Bom dia, Peep. Você está muito bonita hoje.
Com quase oito anos de idade, Penélope Griffin já começara a despertar para os modismos e, naquela manhã, usava um alegre vestido de musselina amarelo com diminutas flores brancas, que combinava com um chapéu amarelo enfeitados de margaridas também brancas.
- Estou encantadora, não? - Após se curvar numa mesura, foi oferecer o rosto ao pai para um beijo e, tão logo o recebeu, tratou de ajeitar o chapéu.
- Estou vendo que você e a sra. Beacham vão à festa de aniversário de Mary Haley.
- Sim; vou dar um chapéu branco com flores amarelas de presente para Mary. - Penélope foi pegar um pêssego e duas torradas das bandejas sobre o aparador antes de se acomodar à mesa. - Posso convidá-la para vir tomar chá comigo amanhã?
- Pensei que você fosse almoçar com suas tias.
- Oh, é verdade. Como fui esquecer? Deve ser porque tenho andado muito ocupada com meus compromissos nesses últimos dias.
Fitando a graciosa menina de cabelos castanhos e olhos acinzentados, Sebastian sentiu uma pontada no peito ao imaginar que dali a dez anos os tais "compromissos" incluiriam passeios com os pretendentes e noites em saraus, onde ela se veria cercada de jovenzinhos afoitos.
- Um grupo de acrobatas vai se apresentar em Vauxhall amanhã; você não quer convidar Mary e também lorde e lady Bernard para irem conosco?
- Acrobatas? - Penélope se alvoroçou toda. - Ilusionistas também?
- É bem provável.
- Sim, sim! - Após uma mordida no pêssego, olhou de soslaio para o pai. - Mas a tia de Mary, que veio visitá-los, vai querer ir conosco e depois vai querer casar com você.
- Ah. Bem, nesse caso poderíamos... - A porta da sala se escancarou.
- Bom dia a todos - saudou Zachary, antes de partir numa linha reta rumo ao aparador. - Caroline vai começar o retrato do duque de York esta manhã e disse que, se me visse por lá, ele iria se lembrar de você e, conseqüentemente, de que não é benquisto na Câmara dos Lordes.
- É porque ele obteve favores daquela moça, que depois o obrigou a promover todos aqueles soldados?
- Onde você ouviu isso, Peep? - quis saber Sebastian, olhando feio para Zachary quando ele se sentou ao lado da garotinha.
- Tio Shay disse que, se o duque de York aprendesse a manter as calças abotoadas, não deveria nada a mulher nenhuma. A moça cerziu as calças dele?
- Isso mesmo - afirmou Zachary, rindo. - Seja como for, o importante é que vim à Mansão Griffin para fazer o desjejum na companhia da minha sobrinha predileta.
- Você não devia dizer uma coisa dessas, tio Zach. E se tia Nell e tio Valentine ouvissem? Iriam pensar que você não gosta de Rose como gosta de mim.
- Ora, é claro que adoro Rose. Mas ela só tem cinco meses, e bebês dessa idade não costumam ter uma conversa muito animada, não é mesmo?
- Vai ver é porque ela ainda não tem dentes. - Penélope pousou delicadamente a mão sobre o braço do tio. - Não se preocupe, não vou contar a tio Valentine sobre nosso assunto. Não quero que ele te dê um soco.
- Nem eu. Grato pela sua discrição.
Os dois continuaram a tagarelar por mais alguns instantes, até que Sebastian se erguesse e afastasse a cadeira da mesa.
- Tem um minuto, Zach?
- Claro. - Zachary também se levantou. - Peep, vou lhe dar um xelim se você espalhar geléia de laranja nessa fatia de pão para mim.
- Dois xelins - retrucou ela, já estendendo a mão para o pote com o doce.
- Combinado.
No corredor, Sebastian esperou o irmão deixar a sala do café da manhã e encostou a porta.
- Peep quer levar Mary Haley a Vauxhall amanhã à noite, e a tia da menina, Margaret Trent, provavelmente irá conosco.
- Pensei que fosse me pedir para ajudá-lo com o sr. Brown. - Zachary trocou o falso ar de indignação por um sorriso. - E claro que Carol e eu iremos com vocês a Vauxhall.
Suspirando de alívio, Sebastian bateu de leve no ombro dele.
- O sr. Brown é um problema simples de resolver. Agora, de Margaret eu quero distância.
- Até parece que algum de nós iria querer aquela entojada na família. - Zachary fechou a porta por completo. - Você está bem, Seb? Digo, agora que estão só você e Peep nesta casa, talvez...
- Não vou discutir esse assunto. E, como o combinado, passarei para apanhar você e Carol para o sarau dos Elkins esta noite. Às oito. - Zachary fez menção de falar, porém ele se antecipou: - Estou bem, sim. Habituando-me a uma família menor. De novo.
- Olhe, não pense que Nell ou Shay ou eu o abandonamos só porque nos mudamos daqui, afinal... Ainda me lembro perfeitamente bem de como você ficou, quatro anos atrás, quando Charlotte morreu. O fato de...
- Por Deus, Zachary, não sou nenhum inválido. Pelo contrário, tenho sido o cabeça desta família pelos últimos dezessete anos e creio poder dizer, sem nenhuma vaidade, que sempre me incumbi bastante bem das minhas responsabilidades. Por isso, não vejo por que você ou qualquer outra pessoa teria de se preocupar comigo. Agora, se me der licença, tenho de ir ao Parlamento antes de almoçar com três centenas de lavradores irados e suas famílias. - Tratando de colocar um sorriso no rosto, retornou à sala de desjejum para ir se colocar de cócoras diante da filha. - Peep, querida, prometa que irá me contar da festa quando eu voltar.
- Prometo. - Penélope se levantou, envolvendo-o num abraço. - Você vai àquele baile esta noite?
- Tenho de ir, querida. Não posso voltar atrás depois de assumir um compromisso, não é mesmo?
- É, sim - concordou ela com um suspiro. - Amo você, papai.
- Eu também te amo, minha pequena. Comporte-se.
- Vou tentar.

Maldito unha-de-fome sem visão de...
- Melbourne!
Cuidando de refrear o arroubo colérico, Sebastian diminuiu o passo acelerado com que havia cruzado o saguão à entrada da Câmara dos Lordes. Em todos os seus vários anos de sessões parlamentares, podia contar nos dedos às vezes em que conseguira deixar o edifício sem que um ou outro vigarista viesse no seu encalço. Mas, depois do almoço que tivera, estava até ansioso por aquele tête-à-tête.
- Você me chamou, Kesling?
Com uma corridinha, o visconde foi parar bem diante dele recendendo a uma colônia francesa que mal disfarçava o cheiro de suor que o envolvia.
- Melbourne, pensei que suas idéias fossem mais progressistas. Vive dizendo que se preocupa com o bem-estar do povaréu, mas sempre que o príncipe solicita recursos para alguma das extravagâncias que inventa, você vota a favor dele.
Outra vez aquela conversa.
- Não quer aproveitar para me explicar, Kesling, por que é que, todas as vezes em que se propõe um imposto sobre a propriedade, cuja arrecadação será utilizada em prol do povo, você vota contra? Isso sem falar da insensibilidade com que trata as pessoas que vivem nas suas terras.
- Por que esses fardos têm de ser colocados sobre nossos ombros? Só porque temos berço? Não me parece que...
- Ah, então é esse o problema. Pois bem, vou lhe explicar meu ponto de vista de uma vez por todas. Para que o Reino Unido continue a ser uma potência num mundo em desenvolvimento precisamos estar aptos a progredir. Para isso, precisamos de cidadãos bem instruídos e satisfeitos; e para que o restante do mundo nos veja como uma potência, nosso sistema político tem de se mostrar sólido e benevolente, portanto este governo deve estar do lado do seu monarca e do seu povo. E assim será, pelo menos enquanto houver um Griffin na Câmara dos Lordes. - Girou sobre os calcanhares. - Tenha um bom dia, Kesling.

A porta da frente da Mansão Griffin se abriu assim que a carruagem deteve-se no passeio de pedriscos.
- Lady Peep já voltou, Stanton? - quis saber Sebastian.
- Ainda não, Vossa Graça. Mas chegou mensagem de Carlton House.
A entrada da residência, ele apanhou a mensagem da salva de prata que o mordomo lhe estendia para passar os olhos pelo comunicado.
- Faz tempo que isto chegou?
- Cerca de vinte minutos, Vossa Graça.
- Vamos sair novamente, Tollins. - Guardou o bilhete no bolso para ajeitar o chapéu e as luvas. - Diga à minha filha aonde fui e também que voltarei assim que possível, Stanton.
- Certamente, Vossa Graça.
De volta às ruas de Mayfair, Sebastian suspirou, contrariado. Não era difícil deduzir o que o príncipe queria; apesar dos transtornos ocorridos naquela manhã e do fato de ter os cofres vazios, o regente continuava obcecado com a idéia de concluir seu pavilhão em Brighton.
Por Deus. Em algum instante da vida, havia deixado de ser um leal partidário da monarquia para se tornar confidente e conselheiro do príncipe George, também conhecido por Prinny. O que lhe conferia um poder suplementar sobre os rumos do país, além de tê-lo introduzido no que parecia ser uma espécie de segredo: quem fizesse vista grossa aos esporádicos acessos de ira e freqüentes assomos teatrais do regente iria descobrir que Prinny era um sujeito muito sagaz e de apurado bom gosto.
Assim que chegou a Carlton House e um dos criados o conduziu até o solene salão branco, pôs-se de sobreaviso; aquele aposento se destinava a convidados e havia muito, tais formalismos não se aplicavam mais a ele. Ainda assim, agradeceu ao rapaz e, em silêncio, foi se colocar junto à janela com vista para o jardim.
Cinco minutos depois, a porta tornou a se abrir.
- Melbourne! - Soou a conhecida voz de Prinny. - Eu não sabia que iria encontrá-lo por aqui. Pelo visto, há questões urgentes que você gostaria de tratar comigo.
Ao se virar para o regente e ver que ele vinha acompanhado por uma dúzia de pessoas, Sebastian tratou de dissimular a surpresa com um sorriso. Acaso tinha se tornado um adorno a ser oferecido a turistas?
- De fato, Vossa Alteza - aquiesceu, curvando-se de leve antes de se acercar dos recém-chegados.
- Já, já cuidaremos disso. Antes, quero lhe apresentar Sua Majestade Stephen Embry, Rey de Costa Habichuela, e a esposa dele, a rainha Maria. Vossas Majestades, Sua Graça, o duque de Melbourne, um dos meus mais íntimos conselheiros.
Adiantando-se, o homem à frente da comitiva estendeu a mão.
- É um prazer, Vossa Graça - declarou, num sotaque típico da região da Cornualha.
Hum. Até onde ele sabia, a Cornualha não havia se separado da Inglaterra. Tampouco mudara de nome.
- Vossa Majestade. - Sebastian apertou a mão do desconhecido.
Afora o sotaque, o Rey, apesar do título hispânico, era loiro e espigado, com um bem modelado bigode dourado e feições nitidamente inglesas. Seu vistoso uniforme negro, de corte assemelhado a um traje militar, era o mesmo dos quatro outros homens que rodeavam o grupo, dos quais se diferenciava por uma estreita faixa branca apoiada sobre o ombro esquerdo que se cruzava numa borla sobre o quadril direito. A faixa continha várias condecorações, evidentemente militares, dentre as quais sobressaía uma singela cruz verde no meio do peito. Ao contrário do rey, a dama com a mão no braço dele tinha traços inegavelmente espanhóis: cabelos negros, pele trigueira e olhos castanhos.
- Posso indagar onde se situa Costa Habichuela? - Sebastian tornara a fixar o olhar no rey.
- Ah, alegra-me que tenha perguntado - observou Embry com um sorriso. - Estamos na costa leste da América Central. Um lugar magnífico. Não tenho como expressar a satisfação que senti quando o rei Qental o outorgou a mim e meus herdeiros.
Nesse caso, aquele era o terceiro país a se formar nas Américas do Sul ou Central nos últimos dezoito meses.
- Então sua nação fica na Costa de Mosquitos.
- Muito bem, Vossa Graça. Vejo que conhece bastante sobre Geografia.
- O que é bem menos sabido - assinalou uma voz suave à esquerda do rey - é que aquela região recebeu esse nome devido a um grupo de ilhotas conhecidas como Mosquitos, e não por causa do inseto.
Ao virar o rosto, Sebastian viu-se fitando um lindo par de olhos de um castanho luminoso e denso como o solo recém-arado na primavera, plantados num rosto, cuja tez clara e viçosa, fazia lembrar creme fresco. Longos, espessos e soltos, os cabelos dela eram negros e luzidios tais quais as asas de um corvo.
- Vossa Graça - interpôs o rey -, minha filha, a princesa Josefina Katarina Embry.
Com a sensação de que estivera muito longe dali, Sebastian pestanejou antes de se curvar.
- Vossa Alteza.
- Vossa Graça. - Ela devolveu o cumprimento com uma mesura, os olhos reluzentes como pedras preciosas.
- O rey e família estão aqui para levantar alguns empréstimos. - Prinny uniu as palmas das mãos rechonchudas. - Parece-me que você, Melbourne, seria o contato perfeito nessa transação, portanto vou nomeá-lo intermediador britânico para os assuntos de Costa Habichuela. O que me diz?
E o que poderia dizer?
- É uma honra, Vossa Alteza. Não sei se sou a pessoa mais indicada para isso, mas de qualquer modo, terei muita satisfação em recomendá-los.
- Esplêndido. Você vai ao sarau dos Elkins esta noite, não?
- Pretendia ir.
- Então irá acompanhar nossos amigos até lá. Infelizmente, tenho um compromisso agendado previamente, caso contrário eu mesmo iria.
Sebastian quase chegou a se indagar se o príncipe não estaria exagerando ao conceder legitimidade ao novo país, encarregando um assistente como o duque de Melbourne de apresentar o rey à alta sociedade londrina, mas então se deu conta de que o regente estava era interessado em usar da ocasião para impressionar um punhado de estrangeiros com o poder de sua generosidade e de sua influência.
- É uma pena que a rainha Maria e eu também já tenhamos outro compromisso - declarou o rey com ar de quem se desculpava.
Graças a Deus.
- Mas a princesa Josefina certamente irá representar Costa Habichuela perfeitamente bem no nosso lugar.
Ignorando o arrepio que sentira ao longo da espinha, Sebastian afirmou:
- Então me diga onde estão hospedados, e eu estarei lá às oito horas.
- Cuide disso, sim, Josefina? - Sem mais, o rey se virou para Prinny a fim de inquiri-lo sobre uma das várias estátuas de mármore que adornavam o salão.
- Vamos nos hospedar na residência do coronel Winston Branbury até encontrarmos um local onde instalar o consulado. - Sem mais, a princesa pousou a mão no braço dele.
- Sei onde fica.
- Que bom. Como não conheço Londres, - prosseguiu ela comum sorriso - não saberia lhe explicar como chegar lá.
- Não se preocupe com isso. - Obrigou-se a tirar os olhos daquela boca carnuda que parecia a ponto de fazer biquinho. - Minha carruagem estará na residência dos Branbury às oito em ponto.
- Gosto muito de cavalheiros solícitos. - O sorriso insinuante se alargou. - Dizem que perpetrou atos de heroísmo esta manhã, Vossa Graça.
- Fiz minha obrigação, nada mais.
- Elegante e modesto.
- Minha elegância ainda tem de ser posta à prova.
Ah, aqueles olhos... Com muito jeito, recolheu o braço em que a princesa se apoiava e se voltou para a porta.
- Até a noite.
Tão logo chegou ao corredor, Sebastian, com a impressão de que acabara de correr a maratona, encostou-se à parede a fim de recuperar o fôlego. Que diabo estava se passando com ele? Primeiro: não havia desculpa para não recusar aquela dor de cabeça que Prinny lhe arranjara. Segundo: não era mais nenhum moleque. Por Deus, tinha trinta e quatro anos! De mais a mais, já havia pousado os olhos em inúmeras jovens lindas. Aliás, fora casado com uma delas. E, desde então, nunca mais se sentira tão... sem chão.
Meneando a cabeça, endireitou-se e rumou para a entrada principal da Carlton House. Apesar de o príncipe tê-lo colocado numa situação que ele preferiria evitar a qualquer custo, iria lidar com esse contratempo do mesmo modo como lidava com tudo o mais na vida: com presteza e eficiência. Quanto à princesa... Bem, colocar Josefina Katarina Embry de lado não seria nenhum problema. Ou melhor, não iria se permitir que fosse de outra maneira.

Sebastian se acomodou no coxim diante do irmão e da cunhada.
- Vamos?
Zachary deu duas pancadinhas no teto da carruagem e, nem bem o veículo se pôs em movimento, foi logo indagando:
- Por que estamos usando meu coche esta noite? Peep não fugiu no seu, não é?
- Mandei-o ir buscar uma pessoa a quem devo servir de cicerone no sarau.
- Quem?
- Estou fazendo um favor a Prinny. Ele me pediu que acompanhasse uma alta figura estrangeira ao sarau.
- Nesse caso, o que está fazendo na minha carruagem?
- Não seria de bom-tom eu estar na minha.
- Ah, a figura é uma dama. Essa moça não tem uma aia ou coisa que o valha? Assim não seria tão...
- Preferi vir com vocês. Embora esteja começando a pensar que tanto eu quanto sua esposa poderíamos passar muito bem sem a sua companhia.
- Só perguntei por perguntar, oras.
- Não, você estava metendo seu nariz em assuntos que não lhe dizem respeito. - observou Caroline, batendo de leve no joelho dele.
- Como não me dizem respeito, se envolvem minha família? - Ajeitou-se melhor no assento de couro. - Essa moça deve ser feia de matar.
- Zachary!
- É isso, não é? - insistiu ele. - Uma autoridade estrangeira mais feia do que um saco de batatas estragadas que Prinny empurrou para cima de você. Não vai ter de dançar com ela, vai? Será que a infeliz sofre de gota? É provável. O...
- Como está o retrato que está fazendo do duque de York, Caroline? - Sebastian fixou os olhos na cunhada.
- Está quase pronto, obrigada por perguntar.
- Não sei por que evitar o assunto, Seb, já que vamos vê-la na festa - teimou Zachary. - E eu não sairei dos seus calcanhares até você apresentá-la a mim.
- Faça como quiser, mas saiba que Willits e Fennerton também estarão atrás de mim, o que significa que você terá de aturá-los também.
- Fennerton? - Zachary torceu o nariz.
- O próprio.
Assim que desceram da carruagem, Sebastian tratou de tirar a imagem da princesa de olhos castanhos dos pensamentos. Esperava que servir como intermediário do chefe de governo de Costa Habichuela não fosse muito além de apresentar o rey a sir Henry Sparks, do Banco da Inglaterra. Quanto àquela noite, por uma questão de boas maneiras, iria providenciar um meio de transporte e um braço como apoio. Nada mais. E a desconhecida sensação que lhe esfriava as entranhas decerto se devia ao fricandó de vitela que a cozinheira tinha servido no jantar.
- Shay e Sarala já chegaram - avisou Zachary, indicando o irmão do meio e a esposa dele, que se aproximavam.
- Vocês estão sabendo - indagou Charlemagne sem preâmbulos - que Prinny foi designado Cavaleiro Honorário da Cruz Verde? Parece que ele está felicíssimo por causa de uma família real de um novo país da América do Sul... Costa qualquer coisa. Tanto que até indicou um dos subordinados para atuar como intérprete ou uma tolice que o valha para os visitantes.
Maldição!
- Intermediário - corrigiu Sebastian por entre os dentes. - Para os assuntos de Costa Habichuela.
- Você? - Zachary quase se engasgou.
- Sim, eu. Um pedido do príncipe, que por certo não acarretará grandes responsabilidades.
- Indicar o duque de Melbourne para contato de um país do qual ninguém ouviu falar? - Charlemagne baixou a voz para indagar: - Prinny se zangou com você por conta do incidente desta manhã?
Normalmente Sebastian jamais permitiria especulações sobre suas atribuições, no entanto era provável que seu irmão estivesse ecoando o que seus pares andavam ou iriam dizer quando se inteirassem da novidade.
- Não, Prinny não está bravo comigo - retrucou calmamente. - Um governo ao que tudo indica estável nas Américas ao sul do Equador é uma raridade, ainda mais se pró-britânico. Embora não esteja a par de certos detalhes a respeito desse novo país, o que sei com certeza é que, se a Inglaterra não lhes der o que eles vieram buscar, os representantes de Costa Habichuela podem ir procurá-lo noutro lugar qualquer... A França, por exemplo. Além do quê, há chances potenciais de lucro comercial caso o rey consiga por aqui os empréstimos em que está interessado.
- Lucro? - repetiu Charlemagne, perplexo. Ao lado dele, Sarala corrigiu com um sorriso:
- Chances potenciais de lucro. O que, suponho, significa esperar para ver, não é mesmo, Sebastian?
- Exatamente. Fico contente com que vocês dois tenham se casado com mulheres inteligentes, já que nem um nem outro têm muito senso. - Com a atenção atraída para a movimentação junto às portas do salão de baile, Sebastian viu de relance uma luzidia cabeleira negra. - Com licença.
Na companhia de uma aia e de um daqueles guardas de uniforme todo preto, Josefina Embry o encarou ao perceber que ele se aproximava. Deus, aquela mulher era mesmo um espetáculo. Naquela noite ela usava um vistoso traje amarelo, cujo decote evidenciava a curva de seios alvos que pareciam palpitar ao ritmo da respiração caden...
A princesa lhe deu um sonoro tabefe.
Cerrando os punhos à reação instintiva de devolver o tapa, Sebastian pestanejou um par de vezes. O ardor da bofetada não era nada se comparado às risadas e aos cochichos que se espalhavam pelo salão dos Elkins.
- Jamais volte a fazer isso - advertiu-a em voz baixa, antes de curvar os lábios num arremedo de sorriso.
- Meu pai e o príncipe regente lhe pediram um favor dos mais triviais - redargüiu Josefina, a voz e a expressão destituídas de quaisquer resquícios da amabilidade daquela tarde. - Se você não é capaz de se incumbir de uma tarefa tão banal, providenciarei para que seja afastado imediatamente dos seus compromissos para com Costa Habichuela, antes que possa nos prejudicar com a sua incompetência.
Sebastian precisou juntar todas as forças para manter o controle e permanecer ali, imóvel. Ninguém, ninguém, jamais se atrevera a falar com ele daquela maneira. E quanto à bofetada... Cerrou os dentes.
- Se fizer o favor de me acompanhar até o espaço reservado à dança, tentarei esclarecer seu equívoco.
- Meu equívoco? Eu sou uma princesa; você é só um duque. Oh, estou profundamente descontente!
O círculo de curiosos que se formara à volta deles só fazia crescer.
- Venha comigo, sim? Assim solucionaremos este impasse de um modo civilizado.
- Antes de qualquer coisa, peça desculpas. - Sebastian respirou fundo. Tudo o que precisava fazer era virar-se e ir embora dali; as pessoas iriam comentar, os mexericos se espalhariam como folhas ao vento, mas no final das contas sua reputação e seu poder venceriam o confronto a seu favor. No entanto, queria vencê-la naquele instante, ali mesmo. Queria que ela se desculpasse, que ela se rendesse. Queria a boca, o corpo daquela mulher.
- Desculpe-me pelo transtorno, Vossa Alteza. Por favor, venha comigo até a biblioteca para que possamos conversar. - Tentou segurar no pulso dela.
A princesa se esquivou.
- Não lhe dei permissão para tocar em mim.
- Então estamos num impasse, - replicou Sebastian, a voz ainda baixa e contida - porque não vou dar prosseguimento a esta conversa à entrada de um salão de baile.
Josefina fitou-o nos olhos, e ele sentiu um estremecimento. Eram poucas as pessoas que o enfrentavam com tanta altivez.
- Acho que prefiro dançar em vez de conversar.
Dançar. Ele queria estrangulá-la, e a atrevida queria dançar. Bem, era melhor do que ficarem parados ali, chamando a atenção de todos... Ao virar o rosto e deparar com lorde Elkins, Sebastian não perdeu tempo:
- Poderia providenciar uma valsa, Thomas? A princesa Josefina gostaria de dançar.
- Claro, Vossa Graça. - O visconde acenou para os membros da orquestra, que haviam se debruçado sobre o balaústre do balcão para melhor apreciar a cena lá embaixo. - Toquem uma valsa!
Tropeçando uns nos outros, os músicos retomaram seus assentos e, depois de uma escorregadela nos acordes iniciais, a valsa deslanchou. Ao menos a música alta daria fim ao falatório.
- Permite-me? - Sebastian estendeu a mão.
Após um instante de deliberada hesitação, Josefina colocou os dedos protegidos pela luva sobre os dele. Contendo o ímpeto de mostrar a ela quem estava no comando, Sebastian enlaçou-a pela cintura e, depois de lançar rápido olhar na direção de Charlemagne, conduziu-a ao espaço destinado à dança.
Tão logo seus passos se harmonizaram, a princesa indagou:
- Não vai me explicar por que mandou uma carruagem ir me buscar em vez de fazê-lo pessoalmente?
- Seu inglês é bastante bom para uma estrangeira. Mas, como natural deste país, permita-me avisá-la de que, independentemente de quem você é em outro lugar qualquer, - intensificou a força com que a segurava ao senti-la tentar se afastar - aqui na Inglaterra não se estapeia um nobre em público.
- Para sua informação - retrucou ela no mesmo tom -, meu inglês é perfeito porque, até dois anos atrás, eu era inglesa, criada a maior parte do tempo na Jamaica. E vou esbofetear quem quer que me ofenda.
- Você é maluca. Só isso explica o fato de falar comigo dessa maneira.
Ela ergueu elegantemente uma sobrancelha.
- O fato de eu ser a única pessoa que o confronta com a verdade não faz de mim uma maluca, e sim covardes de todos os que o rodeiam.
- Eu deveria...
- Deveria o quê, Melbourne? - Baixou os olhos aos lábios dele. - Discutir comigo excita você, não é? E você não consegue evitar isso, não é mesmo? - Voltando a fitá-lo nos olhos, largou-se com certa sensualidade entre os braços que a sustentavam.
Sebastian cerrou os dentes com tanta força que chegava a doer. A princesa sentia a atração que havia entre ambos tão intensamente quanto ele... Tal constatação talvez devesse tornar aquela valsa, aquela conversa, o simples fato de olharem-se nos olhos mais fácil, no entanto não era isso o que acontecia. Ao rodopiar com ela pelo salão, percebeu que só conseguia imaginar Josefina nua, largada sob seu corpo, implorando por ele, rogando por piedade, suplicando alívio para o desejo que os consumia.
E, naquele instante, teve certeza de que jamais havia chegado tão perto dos limites do seu notório autocontrole.
- E então duque, não tem nada a dizer?
- Prefiro atitudes a palavras.
- É mesmo? Que espécie de atitude? - Josefina quase chegou a umedecer os lábios com a ponta da língua, porém a suspeita de que Melbourne estava a ponto de se lançar sobre ela ali mesmo, no meio do salão, impediu-a de fazê-lo. O corpete de seu vestido parecia tão apertado que mal conseguia respirar. Esperara a tarde inteira por ele. Pelo calor da mão que a alçaria ao coche dele, pelas observações espirituosas que iriam trocar a caminho do baile. E então a carruagem chegara... sem ele dentro.
- Não quero ofender ainda mais Vossa Alteza com a descrição do tipo de atitude que tenho nos pensamentos - respondeu Sebastian num murmúrio carregado de volúpia.
Josefina se sentiu estremecer. Acaso aquele homem fazia idéia do quanto a simples presença dele mexia com uma mulher? Os cabelos castanho-escuros que ondulavam de encontro ao colarinho, o físico alto e esguio, as maçãs do rosto de aristocrata romano, o nariz e o maxilar cinzelados e, sobretudo, aqueles reluzentes olhos cinzentos como uma tormenta... Como era possível que ele não soubesse?
- Você já me ofendeu - afirmou, tentando manter a voz firme. - Responder à pergunta que lhe fiz não irá piorar ainda mais a situação.
Sebastian aproximou o rosto de modo a deixar os lábios a poucos centímetros dos dela, então indagou num sussurro:
- Está louca por me ouvir dizer, não está, princesa? - A música foi se avivando num crescendo e, de súbito, chegou ao fim. Os convidados se puseram a aplaudir.
- Pois vai ter de imaginar. - Depois de roçar os lábios na orelha dela enquanto falava, mostrou com um gesto o canto do salão onde Conchita e o tenente May a aguardavam.
Que mil raios o partissem, o miserável.
- Você é meu acompanhante esta noite, Melbourne - Josefina apressou-se em dizer antes que ele sumisse dali. - Faça o favor de não se esquecer disso.
Com uma mesura protocolar, que deixava bem claro que ele não fazia nem mais nem menos do que era de se esperar, Sebastian afirmou:
- Evidentemente. - Acenou com a cabeça para alguém às costas dela. - Permita-me apresentá-la aos nossos anfitriões, lorde e lady Elkins. Thomas, Mary, esta é a princesa Josefina de Costa Habichuela.
- Sua presença muito nos honra, Vossa Alteza - declarou efusivamente a viscondessa antes de se curvar numa mesura reverente.
- É um prazer - afirmou Josefina, colocando na voz toda a doçura que havia negado ao seu acompanhante.
- Oh, preciso apresentá-la ao restante dos convidados. - Assim que a segurou pelo braço, lady Elkins emendou:
- Se quiser me dar essa satisfação, Vossa Alteza.
- Sim, é claro. - Josefina se virou para Sebastian.
- Não vá muito longe, duque.
- Eu nem sonharia com isso, princesa - retrucou ele com um sorriso gélido.
Ótimo. Mais tarde ela cuidaria de mostrar ao duque de Melbourne quem iria pedir permissão para tocar em quem.
Enquanto lady Elkins guiava a princesa Josefina ao encontro da deslumbrada multidão, Sebastian partiu em direção à porta mais próxima que se abria para os jardins e, uma vez no terraço, foi agarrar o balaústre de pedra com ambas as mãos. Trêmulo de raiva, nem se deu conta de que tinha os nós dos dedos descorados de tanta força que fazia.
- Seb?
- Deixe-me sozinho. - Fechando os olhos por um instante, inspirou profundamente na tentativa de acalmar as batidas do coração.
Mas o ruído das botas sobre o piso de pedras indicava que Charlemagne, em vez de ir embora, tinha se aproximado.
- Os comentários ainda não cessaram, e eu não consigo pensar numa boa explicação quanto ao motivo que a princesa teria para esbofetear você. Alguma sugestão?
- Deixe estar.
- Tem certeza? Do modo como a olhava enquanto vocês dançavam...
Virando-se de supetão, Sebastian encarou o irmão.
- Que modo?
- Ah, Melbourne. Esqueça o que eu disse.
- De que modo, Shay?
- Com volúpia. Você a fitava como se quisesse deitá-la no chão e... Sei que isso não é do seu feitio, mas meia centena de pessoas poderia pensar que...
- Volúpia - cismou Sebastian em voz alta. Fazia sentido. Sua carne parecia arder em brasas. - As pessoas que pensem e digam o que bem entenderem.
- Você é humano, Seb. Sei que às vezes gostaria que esquecêssemos isso, mas a verdade é que você é humano como todos nós.
- Bem, seja lá o que isso significa, não quero pautar minhas atitudes pelo que as pessoas estejam comentando. Por isso, volte para o salão comigo... rindo.
- Rindo?
- Sim. As excentricidades da princesa Josefina nos deixaram às gargalhadas. - Voltando a se dar o ar sereno que todos conheciam, colocou um braço ao redor dos ombros de Charlemagne e o empurrou em direção ao salão de baile. - Ria, diabos. - Fosse qual fosse o demônio que Josefina quisesse instigar por meio de agressões ou provocações, iria mostrar àquela sirigaita que ela havia comprado briga com um mestre. Se tivesse um pingo de juízo, a temperamental princesinha se renderia sem demora.
Contudo, por mais forte que fosse a determinação de Sebastian em se manter indiferente ao contratempo à entrada do salão, o restante do clã Griffin não lhe daria trégua tão facilmente. Tanto que, assim que ele convenceu Charlemagne a deixá-lo sozinho, Zachary e Caroline não perderam tempo a se acercarem.
- Está quente como o inferno aqui - comentou Zachary, tentando afrouxar a elegante gravata branca no estilo plastrão.
- Está, sim - concordou Sebastian, com o cuidado de se manter de costas para o espaço destinado à dança e a quem porventura estivesse bailando com a princesa. - Lady Elkins tem horror a correntes de ar, por isso não contem com portas ou janelas escancaradas.
- Ao menos você podia nos fazer a gentileza de suar, Seb.
- Sou um duque; não suo. - Na verdade, era o calor que vinha do âmago do seu corpo o que realmente o incomodava. - Por que não vai dançar com sua esposa?
- Estou lhe fazendo companhia. - Antes que Sebastian pudesse reclamar, uma voz suave e melíflua arrulhou às costas dele:
- Vossa Graça, decerto irá se apiedar de uma pobre moça sem par para a quadrilha.
- Lady Frederica. - Ele se virou com um de seus sorrisos próprios para ocasiões como aquela. - Está encantadora esta noite.
Com um traje todo bordo e os cabelos loiros repletos de cachinhos, a jovem dama fez uma mesura antes de bater as longuíssimas pestanas.
- Obrigada, Vossa Graça. É muito gentil de sua parte.
- Terei muito prazer em acompanhá-la até a mesa de petiscos, minha dama, porém não me sinto disposto a voltar a dançar esta noite. - Como conhecesse as regras, e soubesse como usá-las a seu favor, tinha certeza de que, ao recusar aquele convite, estaria deixando bem claro que queria que o deixassem em paz. Não que não soubesse por que moças como Frederica viviam a persegui-lo, mas, pelo amor de Deus, após quatro anos já era hora de perceberem que ele não tinha intenções de voltar a se casar. A única forma de tornar sua decisão ainda mais explícita seria pendurar uma tabuleta no pescoço, só que isso iria estragar sua gravata.
- Certamente, Vossa Graça - aquiesceu Frederica, toda enrubescida. - Sua companhia já é mais do que bem-vinda.
Muito bem, agora só precisaria trocar umas palavrinhas com mais um punhado das insistentes mocinhas casadoiras que perambulavam pelo salão naquela noite. O que era bem melhor do que ter de dançar com elas.
Ao erguer o rosto, deparou com Josefina a observá-lo. Seus olhares se cruzaram, mas então ela se virou noutra direção. Ótimo. Se soubesse o que era bom para ela, a princesa não iria reclamar quando a mandasse de volta para casa sozinha. Pois se por fora parecia a calma em pessoa, por dentro se sentia um animal predador.

- Como foi sua noite, filha?
Depois de entregar o manto para Conchita, sua aia, Josefina entrou na sala que o pai havia transformado num gabinete para uso dele.
- Terrível. - Foi se largar na poltrona diante da escrivaninha. - Não sei de onde tirou a idéia de que o duque de Melbourne poderia ajudá-lo com o progresso de Costa Habichuela. Aquele homem é arredio, grosseiro e arrogante.
- O auxílio dele pode vir a ser a diferença entre êxito e fracasso - retrucou o rey. - Além disso, duvido de que iríamos encontrar um marido mais apropriado para você em qualquer outro lugar da Inglaterra.
- Talvez não devêssemos contar com isso. Ele me deixa... pouco à vontade.
- É bom, assim você se mantém alerta. - Erguendo os olhos do mapa que cobria a escrivaninha, sorriu para a filha. - Tenha em mente que, ainda que nossa ascensão à realeza seja recente, temos prerrogativas reais. E por mais arrogante que o duque seja ou do quanto você se sinta incomodada, seu sangue é mais azul do que o dele.
- Acho que Melbourne deve ter gelo nas veias, não sangue... Mas, sim, vou me lembrar disso.
- E só o que lhe peço. Agora vá se deitar, amanhã teremos um dia cheio.
Erguendo-se, Josefina deu a volta à mesa para ir beijar o rosto do pai. Após três semanas num navio vindo da Jamaica, dois dias num coche que chacoalhara de Brighton a Londres e um dia interminável na capital, bem que merecia longas e reparadoras horas de sono. Talvez os planos de seu pai para o dia seguinte incluíssem Melbourne... Podiam não simpatizar um com o outro, mas nem por isso lhe passava pela cabeça dar a ele o gostinho de vê-la admitir-se derrotada.

- Não, não vou pagar um pêni além dos quatro xelins por saca. - Sebastian apanhou o documento que deixara ao alcance da mão.
- Estão dizendo que a safra é de primeiríssima qualidade. - Charlemagne fez uma anotação no livro contábil. - Pagamos três ponto oito xelins no ano passado.
- São grãos de café, Shay, não ouro em pó. Quatro xelins. Quer apostar como eles não vão conseguir preço melhor?
- Bem, é só o que temos por ora. - Charlemagne fechou o livro-caixa. - E então, vamos ou não vamos falar do que houve ontem?
Sebastian limpou a garganta.
- Não, não vamos. Vi-me forçado, em virtude de minhas atribuições, a dançar com uma lunática, e foi isso o que aconteceu. Ponto final.
- Mas você se sentiu terrivelmente atraído por ela. Era evidente.
- Ela é bonita. - Levantando-se, contornou a escrivaninha para praticamente empurrar Charlemagne para fora da poltrona e, em seguida, rumo ao corredor. - E maluca. De relance, achei a mistura intrigante; olhando de perto, achei um horror.
- Mesmo assim, Seb, é uma...
- Não continue. Eu amava Charlotte. Ainda amo. - Fez uma pausa. - Com você, Zachary e Eleanor casados e com filhos, e com Peep prestes a fazer oito anos, a linhagem dos Griffin está assegurada. Preservá-la seria o único motivo que me levaria a pensar num segundo casamento, no entanto vocês três me pouparam dessa dor de cabeça.
- Ainda que não pense em se casar novamente, você não pode negar que sexo é muito bom. - Charlemagne repuxou um canto da boca. - Não com uma lunática, logicamente, mas há inúmeras...
- Alguma vez na vida dei a impressão de que apreciaria seus conselhos no que diz respeito às mulheres? - Por Deus, bastara um tapa daquela... doidivanas para todos deduzirem que ele havia perdido a capacidade de raciocinar. E se era assim com sua própria família, o que seus pares não estariam pensando?
- Claro que não. Mas o fato é que você não tem demonstrado o menor interesse no assunto desde a morte de Charlotte.
- Ao que me consta, isso é problema meu. Agora, não posso deixar de admitir que a princesa Josefina tenha me surpreendido ontem. De agora em diante, vou tratar de me colocar fora do alcance das bofetadas dela. - Obrigou-se a sorrir.
- É bom saber. - Charlemagne se encaminhou para o hall. - Seja como for, você não pode nos culpar por querermos a sua felicidade.
- Estou bem. - Sebastian seguia ao lado do irmão em direção à porta. - E levar uma mulher insana para a cama decerto não iria contribuir para a minha paz de espírito.
- Bem, vou enviar nossa oferta a Prask por escrito. É bem provável que ele aceite, caso você tiver razão quanto ao preço.
- Eu sempre tenho razão.
Ao sair para a varandinha diante da residência com o irmão do meio, Sebastian teve a sensação de ser acompanhado pelo relativo vazio da Mansão Griffin. Apesar da presença de Peep e do batalhão de criados, aquele casarão era grande como o diabo só para ele e sua filha.
- Melbourne?
- Sim?... Perdão, Shay; o que você ia dizendo?
- Perguntei se ainda tenciona ir ao Almack's esta noite.
- Vou, sim; Prinny me mandou um bilhete, pedindo que eu levasse os visitantes de Costa Habichuela lá, por isso precisei cancelar o passeio a Vauxhall com Peep. Lorde e lady Bernard irão levá-la.
- Aposto que a escolha não foi nada fácil: Margaret Trent ou a princesa Josefina. - Charlemagne deu uma risadinha. - Talvez fosse melhor você usar a armadura do bisavô Harold esta noite.
- Não é má idéia.
Ainda sorrindo, Charlemagne deu um tapinha no ombro dele antes de descer os degraus e saltar à garupa do seu cavalo. Sebastian esperou até vê-lo tomar a rua transversal e, ao retornar ao interior da mansão, indagou ao mordomo junto à porta:
- Correspondência, Stanton?
- Sim, Vossa Graça. - Após fechar a porta, o criado foi tomar na mão a salva que estava sobre a mesinha do vestíbulo.
Sebastian recolheu da bandeja de prata a pilha de cartas entregues em mãos, convites e cartões de visita. Como Rivers, seu secretário, já havia se encarregado das missivas comerciais, toda aquela correspondência só podia ser de cunho social.
- Obrigado, Stanton.
- Não há de quê. Oh, sim... Lady Penélope pediu-me que não me esquecesse de lhe dizer que fosse ao encontro dela assim que possível.
- E onde ela está?
- Na sala de música com a sra. Beacham... e uma amiga, cujo nome não posso declinar.
- Não pode?
- A pedido de lady Penélope, Vossa Graça.
Depois de deixar a correspondência em seu gabinete, Sebastian subiu a escadaria a caminho da sala de música, que ficava na ala dos fundos da mansão, onde alguém executava inspirada melodia ao piano. Ou Peep havia melhorado consideravelmente seus dotes musicais desde o dia anterior ou a tal amiga sem nome tocava excepcionalmente bem.
- Por Deus, que não seja Margaret Trent - murmurou antes de abrir a porta. - Você queria falar comigo, Pe... - E mais não pôde dizer, pois a voz lhe morreu na garganta.
Toda risonha, sua filha saltitava pela sala como se dançando uma alegre jiga, porém não era isso o que o deixava de queixo caído, e sim o fato de que ao piano, com um sorriso faceiro e os dedos a deslizar pelo teclado, estava ela. A doidivanas. Pior ainda: só de vê-la, já sentia um ardor na virilha.
- Olhe, papai! - Penélope fez um gesto largo para indicar o piano. - Ela é uma princesa!
- Sim, eu sei. Já nos conhecemos. - Recompondo-se do susto, esboçou uma mesura. - Vossa Alteza.
- Melbourne. - Sem deixar de tocar, ela inclinou a cabeça.
- Se me permite a curiosidade, - Sebastian enviou breve e contrariado olhar à sra. Beacham - o que faz na minha sala de música?
- Na verdade, vim conversar com você.
- Eu estava lá fora quando ela chegou, papai, então expliquei que você havia se trancado no gabinete com tio Shay para tratar de negócios. Aí ela falou que era a princesa Josefina, e eu a convidei para ouvir enquanto eu fazia minha aula de piano. Ela cresceu na Jamaica e sabe música de pirata.
- Isso não é música de pirata, é uma melodia popular que os marinheiros gostam de entoar. - Sebastian pousou o olhar em Josefina. - Aliás, posso perguntar onde uma princesa aprendeu a tocar jiga?
- Nem sempre fui princesa. - Deu fim à melodia com exagerado floreio. - Meu pai recebeu Costa Habichuela e foi proclamado rey há dois anos.
Ele se aproximou ao vê-la pôr-se em pé. Josefina Embry trajava um gracioso vestido de musselina branca ornada com multicoloridas florzinhas primaveris e uma cruz verde bordada na manga esquerda.
- E o que costumava ser antes de se tornar princesa?
- Filha de um muito benquisto e condecorado coronel do Exército e neta de um vice-rei venezuelano. - Empinou o queixo. - E você, o que costumava ser antes de tornar-se duque?
- Filho de um duque. - E marquês de Halpern, porém isso não vinha ao caso no momento, afinal já tinha retrucado à altura o que ela quisera implicar.
- Hum. Então meu pai conquistou a realeza por aclamação, e você herdou seu título.
- E você, diga-me o que fez para se tornar membro da realeza, Vossa Alteza. - Josefina se fez de ofendida.
- E pensar que vim aqui com a idéia de pedir que haja paz entre nós... Mas você continua a me insultar.
- Você a insultou, papai? - Penélope assistia à discussão ao lado da sra. Beacham, as duas de olhos arregalados.
- Não antes de ela ter me estapeado.
- Você bateu no meu pai? - Os olhos acinzentados da menina se estreitaram. - Ele é o duque de Melbourne, o homem mais poderoso da Inglaterra!
- A Inglaterra é um país muito pequeno, querida - retrucou Josefina sem deixar de encará-lo.
- Sra. Beacham, leve Penélope para dar uma volta, por favor.
- Pois não, Vossa Graça. - Após uma mesura feita às pressas, a governanta correu a deixar a sala, levando a garotinha. Enquanto a porta se fechava, Sebastian ouviu-a indagar: - Não falei que não se deve trazer estranhos para dentro de casa, mocinha?
- Mas ela disse que era prince... - A porta cerrou-se de vez com um estalo.
Ele respirou fundo.
- Permita-me acompanhá-la até a rua, Vossa Alteza. Vou pedir ao meu cocheiro que a leve até sua casa, depois mandarei um bilhete a Prinny, explicando que, por motivos pessoais, devo declinar do cargo de assessor do governo do seu país.
Tendo em vista que o cabeça da família Griffin provavelmente poderia comprar e vender seu diminuto país, era evidente que o duque esperava por um pedido de desculpas e uma apressada batida em retirada. Ah, mas ele estava redondamente enganado.
- Ótimo! - Mãos nos quadris, ela caminhou até ele. - Estou certa de que seu príncipe regente irá encontrar alguém mais qualificado do que você para o cargo no bordel mais próximo da residencial real.
- Basta! - Sebastian agarrou-a pelos ombros, deu-lhe um belo de um chacoalhão e, trazendo-a para junto do peito, beijou-a ardorosamente.
Após dissimular um arquejo, Josefina hesitou um instante antes de enlaçá-lo pelo pescoço e mergulhar as mãos por entre os ondulados cabelos castanhos dele. Por pouco Sebastian não suspirou ante a abrasadora onda de excitação que se espiralava por sua espinha e a perturbadora constatação de que, tenros e cálidos, os lábios dela pareciam feitos para os seus. Estreitando-a entre os braços, instigou a irresistível boca da doidivanas com a língua e, ao senti-la entreabrir-se, invadiu-a sem mais rodeios a fim de degustar o sabor e os mistérios ali encerrados.
Com outro arquejo, que fez o membro viril dele saltar à vida, a princesa Josefina deu fim ao beijo e o empurrou para longe. Com tanta força que Sebastian chegou a se desequilibrar.
- Maldito seja! - Apesar da explosão, ela não conseguia tirar os olhos da boca que a beijara tão sofregamente. - Que diabos pensa estar fazendo?
Santo Deus, o que dera nele?
- Pareceu... Pareceu-me que seria a única maneira de fazer você se calar.
- Seu... Em consideração a meu pai, não contarei a ele o que houve nesta sala. - Alisando a parte dianteira do vestido, ela se afastou mais um passo. - Mas você me deve uma reparação!
- Como assim?
- Você me atacou!
- Não, eu não...
- Ora! - Josefina ajeitou os cabelos. - Meu pai vai se reunir com sir Henry Sparks hoje e me pediu que fosse ao encontro deles no Banco da Inglaterra às três horas. Não quero ter de contar ao rey por que você resolveu renunciar ao posto de intermediário para os assuntos de Costa Habichuela, por isso espero que esteja lá nesse horário. - Foi apanhar a carteira que havia deixado sobre a banqueta do piano. - Fui clara, duque?
Sebastian fazia das tripas coração para calar o atordoante desejo que ameaçava cegá-lo. Se a tomasse nos braços de novo, não iria se contentar com um mero beijo.
- Perfeitamente clara. Só espero que, quando eu chegar lá, você esteja em algum outro lugar qualquer.
Ela estacou a meio caminho da porta.
- Vou aonde bem entender. E nenhum duque ou beijo... amadorístico irá me convencer do contrário.
- Amadorístico? - Sebastian aproximou-se. - Você sabia que isso acabaria acontecendo, tanto que veio pessoalmente à minha casa, em vez de enviar um recado. Afinal, está tentando me seduzir desde o instante em que nos conhecemos.
- Mentiroso! - Josefina olhou para a porta que ele acabava de abrir. - Mentiroso!
- Você queria que eu a beijasse - sussurrou no ouvido dela antes de bloquear o vão da porta com o corpo. - E quer que eu a beije de novo.
- Não posso ser responsabilizada pelos seus arroubos de imaginação, Melbourne. Agora me deixe passar, sim?
Sebastian deu um passo para o lado e, olhos fixos no meneio que ela fazia com os quadris ao descer a escada, instruiu o mordomo lá embaixo:
- Stanton, providencie um coche de aluguel para Sua Alteza. - Ao que tudo indicava, Josefina pretendia usar o intempestivo beijo como forma de pressioná-lo, portanto era preciso minimizar as conseqüências do seu gesto impensado.
- Agora mesmo, Vossa Graça.
No pé da escada, a princesa se virou para fitá-lo por um momento, então deixou a mansão pisando duro no rastro do mordomo.

Baixando a lente de aumento, Josefina olhou para o pai.
- Tem certeza de que o sr. Halloway não passou a vida toda fazendo isso? - Então sorriu para o funcionário. - Meu pai sempre disse que o senhor era um excelente oficial da burocracia do Exército, mas me parece que o seu forte são os documentos jurídicos.
- Obrigado, Vossa Alteza - agradeceu o escriturário, corando. - Há tempos venho estudando o direito de propriedade inglês.
- Está se vendo.
- Vamos ter quase uma centena de títulos para a reunião desta tarde - observou o rey.
O oficial fez um cálculo rápido num pedaço de papel.
- Cento e trinta e sete, Vossa Majestade.
- Ótimo.
Josefina enlaçou o braço ao do pai, e os dois deixaram a ala dos fundos da mansão do coronel Branbury.
- Quem diria que criar um país iria demandar tanta tinta?
- Eu certamente não - Stephen Embry riu-se - caso não tivesse assistido a tantos outros movimentos se erguerem e fracassarem. Não custa nada declarar a independência da Espanha e constituir um governo fundamentado em princípios sólidos, consistentes; só que a Espanha também tem princípios e, o que é mais importante, um exército constituído.
- Um exército que o senhor combateu várias vezes.
- Sob Rivera e Simón Bolívar... que malograram com nada além de princípios e convicções a respaldá-los. Agora este grande projeto é meu. E no momento tenho apenas uma guarda pessoal e um punhado de voluntários mal armados, portanto é lógico que tentemos levantar recursos, mas não se aflija; estou confiante de que o Banco da Inglaterra vá se encarregar disso. Tão logo sir Henry Sparks aceite nossa proposta, o pessoal dele irá se incumbir da impressão dos títulos, assim o nosso pessoal poderá se ocupar de despertar o interesse pela compra dos papéis.
- E se a Espanha intervier antes que o senhor consiga o capital? Ou se a Inglaterra se recusar a investir no negócio?
- Você se preocupa demais, menina. O rei Qental me outorgou as terras, a Espanha no momento está muito mais incomodada com Bonaparte do que com Costa Habichuela, e eu fiz uma boa pesquisa antes de solicitar que fôssemos apresentados ao duque de Melbourne; ele sabe perfeitamente bem que, se não formos bem-sucedidos por aqui, iremos recorrer à Prússia ou à França. A Inglaterra não quer só mais outra base na América Central, quer também que a França não tenha um posto avançado por lá. Somos um projeto de baixíssimo risco, Josefina, com grande chance de lucro e compensações.
- O senhor é brilhante, papai. - De fato, seu pai era astuto estrategista e, mesmo que ele não contasse com a sagacidade e o encanto que possuía, sir Henry, o Banco da Inglaterra, Melbourne e qualquer pessoa com umas boas libras para investir não seriam tolos de deixar passar uma oportunidade como aquela.
- Obrigado, querida. Mas é claro que muito serviria à causa de Costa Habichuela se a filha do rey estivesse para se casar com o chefe de uma das mais antigas, mais respeitadas e mais abastadas famílias da Inglaterra.
E esse mesmo homem a tinha beijado fazia pouco mais de uma hora... Josefina sentiu o pulso disparar ante a lembrança. Céus, Melbourne beijava como o diabo: tomado de paixão e sem um pingo de clemência. Ele praticamente a devorara.
- Perfeito para os nossos projetos ou não, Melbourne não é nenhum tolo, papai. Uma hora ele irá perceber que o romance entre nós dois tinha sido planejado. Se é que já não percebeu.
- E que mal há nisso? Ele é duque, você é princesa.
- Eu não era princesa até dois anos atrás. E um Griffin é duque praticamente desde os tempos de César.
- Ainda assim ele é homem e você, minha querida, é uma linda e atraente donzela de vinte e dois anos de idade.
- Vinte e cinco.
- Pelo bem de Costa Habichuela, você pode perder três. Segundo minhas pesquisas, duques preferem noivas jovens e inocentes. - Stephen sorriu para a filha. - Mesmo quando fui o capitão Embry do exército de George III, ou o coronel Embry sob o comando do general Bolívar, você já era uma princesa. Ou acha que sua mãe e eu, onde quer que estivéssemos, providenciávamos os melhores preceptores para educá-la a fim de casá-la com um lavrador ou um comerciante? Sempre que digo que tudo na vida acontece...
- Por alguma razão - completou Josefina, devolvendo o sorriso que ele lhe enviara. - O senhor estava fadado a ser o rey de Costa Habichuela.
- Foi a melhor coisa que me aconteceu depois de você. - Beijou a testa dela. - E você está fadada a se casar com um homem tão importante que eu, quando jovem, jamais me atreveria a encarar olhos nos olhos.
Josefina sentiu um calafrio, no entanto não sabia dizer se seria de expectativa ou temor. Caso Melbourne se percebesse guiado para um caminho que não desejava trilhar, as conseqüências seriam imprevisíveis.
- A esposa dele teve uma filha antes de falecer.
- Eu sei. E você irá lhe dar um filho. Além de um país para governar. - Stephen tirou o relógio do bolso ao ver o capitão Milton apontar junto ao pé da escada. - Ah, está na hora. Vamos à reunião com o banqueiro.
A impressão que iriam causar a sir Henry Sparks naquela tarde seria um dos momentos mais importantes da viagem à Inglaterra. Ciente de que o pai tinha ensaiado semanas a fio os argumentos que iria apresentar, Josefina tratara de assumir sua pose mais regia e confiante.
Assim que a carruagem deteve-se aos pés dos amplos degraus que levavam ao edifício do Banco da Inglaterra, ela se debruçou sobre o sr. Orrin, conselheiro comercial de seu pai, para espiar pela janela do veículo. Ao lado do rotundo senhor se elevava a figura esguia e altiva do duque de Melbourne.
- No horário combinado. - Após saltar para o chão, o rei Stephen ofereceu a mão à filha. - Isso é bom sinal.
Rezando para que o pai estivesse certo, Josefina teve a impressão de sentir na pele o olhar que Melbourne deitava sobre ela, como se aqueles ardentes olhos acinzentados pudessem penetrar o elegante vestido cor de esmeralda que usava. De súbito, percebeu que, num gesto reflexo, havia reprimido o impulso de levar a mão à tiara de prata presa aos seus cabelos, um enfeite que usara uma única vez anteriormente e talvez um tanto exagerado para a ocasião. Mas, como seu pai havia dito, aquela reunião iria ditar o rumo do futuro deles.
- Vossa Majestade, Vossa Alteza. - O duque inclinou a cabeça. - Permitam-me apresentar-lhes sir Henry Sparks, diretor do Banco da Inglaterra. Sir Henry, este é Stephen, rey de Costa Habichuela, e a filha dele, princesa Josefina.
O diretor da instituição bancária fez reverente mesura, bem mais respeitosa do que o aceno com que Melbourne os saudara.
- É um prazer conhecê-los, Vossa Majestade, Vossa Alteza. Sua Graça me disse que vocês gostariam de tratar de negócios conosco.
- É verdade - confirmou Stephen com um sorriso afável.
- Então vamos ao meu gabinete.
Enquanto acompanhavam Henry pelas dependências do edifício, empregados e clientes detinham-se para olhar para eles. Decerto porque reconhecessem Melbourne, mas seguramente ela, seu pai, o conselheiro do rey e os dois guarda-costas não deviam estar fazendo feio.
Sentaram-se diante de uma grande escrivaninha de mogno disposta no centro de uma sala de dimensões modesta, porém organizada. Henry ofereceu a poltrona atrás da mesa a Melbourne, mas o duque recusou, preferindo apoiar-se à beirada de um aparador. Orrin permaneceu em pé, atrás do pai dela.
- Bem, Vossa Majestade - começou o banqueiro -, em que eu e o Banco da Inglaterra podemos ajudá-los?
- Antes de responder à sua pergunta, - retrucou Stephen - gostaria de fornecer algumas informações acerca de mim e de Costa Habichuela.
- Certamente.
- Nasci na Cornualha e, graças ao prestígio da minha família, adquiri uma patente de tenente no Exército quando fiz dezessete anos. Após dez anos de trabalho, quando já era capitão, percebi que começava a me impacientar com meu ofício, por isso vendi a patente e resolvi viajar pelo mundo.
- Admirável - comentou Henry.
- Obrigado. No entanto, foi quando cheguei à costa nordeste da América do Sul que minha aventura de fato começou. - Sorriu, o que lhe curvou o cerrado bigode loiro. - Não fazia muito que eu estava por lá quando comecei a ouvir protestos a respeito do opressivo governo espanhol e comentários sobre um crescente movimento com vistas a fazer com que a Espanha renunciasse a seus territórios americanos. Nessa mesma época, vim a conhecer o general Simón Bolívar, notório defensor do povo natural da região. Aparentemente o general ficou tão bem impressionado comigo como eu fiquei com ele, visto ter me oferecido um posto de major sob seu comando.
Henry fez um aceno assertivo com a cabeça.
- Combatemos juntos por anos, expulsando a Espanha de cidade após cidade, vale após vale. Foi quando, além de ser promovido a coronel, conheci e desposei minha hoje rainha, Maria Costanza-y-Veneza, que me deu nossa filha, Josefina.
- É uma história deveras fascinante, Vossa Majestade, mas...
- Permita-me concluir, por favor. Garanto que tudo o que estou lhe contando é relevante, sir Henry.
- Prossiga - Melbourne o incentivou.
Aos olhos de Josefina, parecia que o duque avaliava as palavras do rey bem mais atentamente do que o banqueiro. O que não era de estranhar, afinal em parte dependia dele a aprovação para que a instituição financeira emitisse os títulos que teriam por fim incrementar o progresso de Costa Habichuela. Até mesmo na Jamaica se falava da família Griffin, da reputação impecável que possuíam, do poder e da influência de que dispunham. Sim, o investimento era de baixíssimo risco, porém era preciso convencer Melbourne, tanto quando sir Henry, disso.
- Eu e meus homens estávamos de passagem pela costa leste da América Central, a caminho do sul, para nos reunirmos ao corpo principal do Exército - Stephen ia dizendo. - Então nos deparamos com um grupo de soldados espanhóis atacando uma pequena e aprazível cidade situada entre uma cordilheira de montanhas de pequena altitude e uma baía meio oculta, protegida pelo relevo. Expulsamos os espanhóis de lá, e a população local nos agradeceu com festejos que duraram quase três dias. Finda a celebração, quando nos preparávamos para partir ao encontro das nossas forças, Qental, o rei da Costa dos Mosquitos, chegou ao vilarejo. Ao ver que eu era inglês, ele me disse que, sem ajuda externa, até mesmo as regiões isoladas como aquela da Costa dos Mosquitos cairiam em mãos dos espanhóis. E, com isso, entregou-a para mim.
Embora já tivesse ouvido aquela história uma centena de vezes, Josefina ainda se encantava com o desembaraço do pai. Atenta à narrativa, resvalou o olhar sobre Melbourne e viu que o duque olhava descaradamente para ela.
- Naquela mesma noite, a população de São Saturus, é esse o nome da cidade que libertamos, declarou-me seu governante, seu rey, como eles dizem. E o bem-estar e a segurança dessas pessoas tornaram-se a mais importante das minhas preocupações. - Enfim Stephen Embry fazia uma pausa para respirar. - Costa Habichuela guarda um imenso potencial de expansão e desenvolvimento, e é para fazer desse potencial uma realidade que preciso do auxílio de vocês.
- Uma base segura, além de Belize, nas Américas Central e do Sul me parece boa idéia - afirmou Henry, quase para si. - Os cidadãos de Costa Habichuela são espanhóis? Quando a fase de gratidão por terem sido salvos dos saqueadores passar, é possível que eles queiram retornar ao controle da Espanha.
- Essa é a beleza de Costa Habichuela. - O rey levou o corpo à beirada da poltrona. - Seus cidadãos nunca foram espanhóis; a população, constituída predominantemente por nativos, uniu-se por intermédio de casamentos aos ingleses e escoceses que emigraram para lá a partir de outros territórios dominados pela Espanha e está muito contente em ver-se cada vez mais distante do controle ibérico. E, para ser bem sincero, com as montanhas à nossa retaguarda e uma baía de fácil defesa à nossa frente, desfrutamos de uma localização ideal para instituir um regime estável e duradouro.
- Que extensão de terras o rei Mosquito lhe concedeu? - indagou Henry, a ponto de esfregar as mãos.
- Cerca de quatro mil quilômetros quadrados. Eu trouxe um mapa. - Stephen se virou para o conselheiro.
- Orrin?
Ao ver o outrora sargento tirar da pasta um grande mapa que mostrava a localização de Costa Habichuela na costa nordeste da América Central, Sebastian endireitou-se e se aproximou da escrivaninha enquanto indagava:
- Você disse que seguia com seus homens ao encontro do corpo principal do exército rebelde; o que houve com eles?
- Coloquei-os sob o comando do oficial de patente imediatamente inferior à minha, em seguida assinei meu desligamento... No que fui seguido pela maior parte dos homens leais a mim, que haviam servido comigo por anos a fio, como Orrin aqui. Muitos deles agora são parte da minha guarda pessoal ou ocupam cargos no gabinete dos ministros.
- Então dispõe de um governo sólido, de uma população fiel e de uma cidade pujante que serve de capital a um país que dispõe de uma localização privilegiada? - perguntou Sebastian, examinando o mapa que o conselheiro estendera sobre a escrivaninha.
- Exatamente.
- Nesse caso, para que precisa de um empréstimo? - No entanto, foi Josefina quem respondeu:
- Nem mesmo o Éden poderia se manter sem progresso e perspectiva de futuro. Costa Habichuela precisa se desenvolver. Necessitamos de meios para governar com eficiência e para a nossa defesa. Se a Inglaterra não tem condições de nos ajudar, procuraremos quem possa fazê-lo. Não nos resta outra opção.
- Que quantia vocês têm em mente? - perguntou Henry. - Um empréstimo a um país que acaba de ser constituído é um projeto arriscado, na melhor das hipóteses.
- Na verdade, o investimento não apresenta risco algum, tanto que eu gostaria de aproveitar a oportunidade para selar uma amizade duradoura entre nossos países. - retrucou o rey. - Tomei a liberdade de providenciar a confecção de títulos, de modo que qualquer empréstimo feito ao meu governo venha a se tornar uma oportunidade de investimento para todos os ingleses de mente progressista.
- Hum... - Henry pinçou o queixo com o polegar e o indicador. - Devo dizer que, dada a natureza exuberante de Costa Habichuela, comprar títulos de você ou de mim, melhor dizendo, certamente soa mais promissor do que qualquer outro investimento na Europa no momento. - Olhou para o duque. - Qual é a sua opinião, Vossa Graça?
Ao ver Sebastian tornar a esquadrinhar o mapa sobre a mesa, Josefina prendeu a respiração.
- Costa Habichuela pode, sim, vir a ser um investimento mais seguro do que qualquer outra aplicação de recursos em negócios estrangeiros que me vêm à mente neste instante, porém não se deve esquecer de que se trata de um país recém fundado e muito distante - declarou ele. - Acho que, se pretendem suscitar interesses que resultem num empréstimo de vulto, vocês terão de oferecer alguma espécie de incentivo.
- Um desconto no valor dos títulos da dívida, talvez. - sugeriu Henry. - Isso funcionou muito bem para estimular o auxílio monetário ao Chile alguns anos atrás.
Cofiando o bigode, o rey voltou a apoiar as costas no espaldar da poltrona.
- Essa idéia me parece bastante boa, cavalheiros. A venda de títulos de cem libras por noventa, suponhamos, seria uma espécie de garantia da nossa confiança no futuro e uma forma de afiançar uma razoável cota de lucro aos investidores.
- Com títulos de cem libras vendidos por noventa, a taxa de juros não pode ser maior do que três por cento num prazo de... vamos dizer, dez anos.
- Parece-me justo. - Stephen deu um sorriso pesaroso. - Bem, ainda resta uma questão a ser discutida.
- O valor do empréstimo - concluiu Sebastian.
- Presumo que tenha uma cifra em mente, Vossa Majestade.
- Com efeito. Para promover importações e exportações, e também a imigração, vou ter de alugar navios, adquirir mercadorias e, naturalmente, constituir um consulado permanente aqui em Londres. Creio que cem mil libras cobririam essas despesas.
Por pouco Henry não se engasgou.
- Cem... cem mil libras? Céus, pensei que fosse pedir cerca de vinte mil... ou menos.
- Vinte mil mal dariam para que conversássemos como futuros parceiros em pé de igualdade - replicou o rey com inabalável tranqüilidade. - Como Sua Graça observou, somos um país muito jovem; precisamos demonstrar nossa força ou então jamais ocuparemos um lugar de destaque no mundo. - Pestanejou, como se acabasse de se lembrar de alguma coisa. - Que descuidado... Orrin, o livreto, por favor.
Sebastian ergueu uma sobrancelha.
- Vocês têm material de divulgação?
- Pedi a um pesquisador que produzisse uma brochura no ano passado enquanto preparávamos a viagem para cá.
- Tomando o encorpado manuscrito que o assistente lhe estendia, colocou-o sobre a escrivaninha. - Está tudo em detalhes: agricultura, clima, relevo, rotas de transporte de mercadorias, dados relativos à população e ao crescimento... E com ilustrações. - Com isso, abriu a capa de couro para revelar o croqui de um navio com três mastros numa enseada sombreada pelas montanhas ao longe e uma pitoresca mistura de casas, cabanas e ruas pavimentadas nos arredores de um pequenino cais que se erguia entre águas mansas e platinadas.
- São Saturus, suponho - comentou Sebastian.
- Sim - confirmou Stephen. - E a imagem é bastante fiel, se me permite observar.
- Muito bonito - afirmou o banqueiro, trazendo o livreto para si a fim de folheá-lo. - Regime das chuvas, épocas de plantio... Até mesmo dados dos cortes de madeira.
- Como eu disse, sir Henry, estamos no firme propósito de colocar Costa Habichuela definitivamente no mapa. E eu gostaria de vê-la figurando entre os aliados da Inglaterra.
Pondo-se em pé, Henry Sparks estendeu a mão.
- Cem mil libras.
O rey se ergueu e apertou a mão dele.
- Meus mais humildes e sinceros agradecimentos, senhor.
Capítulo II

- Por que é mesmo que está me arrastando para o Almack's? - resmungou Valentine Corbett, enquanto tentava equilibrar meio cálice de uísque em meio aos sacolejos da carruagem.
- Porque você se casou com a minha irmã e agora faz parte da família. - Arrancando o cálice da mão dele, Sebastian sorveu um gole da bebida. - E porque é um cínico incurável.
- Um traço da minha personalidade do qual sempre me orgulhei. - Ao tomar o uísque de volta, por pouco Valentine não o derrubou; irritado, abriu a porta do coche e atirou o restante da bebida na rua.
Na calçada, alguém praguejou em voz alta.
- Não esqueça de que é o meu brasão que está na porta deste coche, Valentine.
- Este paletó é novo; eu não queria vê-lo todo manchado. - Tornou a se ajeitar, largando o cálice vazio sobre o coxim. - Bem, de volta ao nosso assunto: o que vou fazer no Almack's?
- Quero sua opinião.
- Muito bem. E com relação a quê?
- Não estou bem certo. Apenas mantenha os olhos e os ouvidos atentos.
- Esta conversa tem a ver com seus novos amigos da realeza, não tem? - E como seu interlocutor não respondesse, Valentine aquiesceu: - Pois não.
Sebastian exalou longo suspiro. Tudo seria bem mais fácil se soubesse o que estava a incomodá-lo... Para um ex-soldado, Stephen Embry entendia um bocado de finanças; Bem que, com um período de tempo de dois anos para elaborar um projeto de país, era de se esperar que qualquer pessoa entendesse do assunto.
- O que sabe a respeito da política nas Américas Central e do Sul, Valentine?
- Apenas o básico. A Espanha governa a maior parte da região, mas o movimento pela independência parece estar se espalhando das Colônias para o sul. Há resultados aqui e ali, e a Espanha não está nem um pouco contente com isso. Só que, com Bonaparte no território natal deles, os espanhóis não têm como manter o foco em nações pouco desenvolvidas do outro lado do oceano.
- Às vezes esqueço que você é um homem atento ao que vai à sua volta. - Sebastian deu um sorriso fugaz.
- Hoje em dia sou marido e pai; descobri que isso tanto estreita quanto alarga as perspectivas de uma pessoa. - Bateu com o bico do sapato na perna do cunhado. - Se quer mesmo que eu fique de olho em alguém para você, preciso de detalhes. O que está se passando?
- Presumo que tenha ouvido falar do que houve ontem à noite.
- Que uma sirigaita lhe deu um tabefe na cara e depois você dançou com ela? Não, não ouvi nenhum comentário a esse respeito.
- Que bom.
- Shay é muito mais hábil do que eu. Por que ele não veio no meu lugar?
- Quero um ponto de vista, não diplomacia.
- Você está sendo obtuso, e eu acho que é de propósito. Mas já que vai me arrastar até lá, darei o melhor de mim para me incumbir da missão, seja lá o que essa missão for.
- É tudo o que lhe peço.
Dez minutos depois o mordomo do coronel Branbury abria a porta da mansão para eles.
- Vossa Graça, Sua Majestade o aguarda na sala de estar. Por aqui, por favor.
- Obrigado.
Com Valentine em seus calcanhares, Sebastian seguiu o mordomo por um lance de escada. A residência era bem cuidada, apesar de pequena para os seus padrões, e ele se indagou se Branbury teria sido companheiro de Embry no período em que o rey servira o exército britânico.
- Seria indelicadeza perguntar onde o coronel se encontra?
- Foi chamado de volta à Península, mas acomodou a delegação de Costa Habichuela antes de seguir para lá. Ele espera retornar antes do fim da Temporada. - Detendo-se diante de um par de portas duplas, o mordomo bateu de leve antes de abrir uma delas. - O duque de Melbourne, e um acompanhante, Vossa Majestade.
Ao vislumbrar a princesa Josefina sentada numa das poltronas junto à lareira, Sebastian tentou dar-se ares de desinteresse, porém o esforço foi tolhido pelo cutucão que Valentine lhe deu nas costas antes de sussurrar:
- Acompanhante? Desde quando passei a ser um simples acompanhante?
Ignorando o comentário, o duque fez comedida mesura e tratou de manter o olhar fixo no rey, sentado ao lado da filha.
- Vossa Majestade, Vossa Alteza, permitam-me apresentar meu cunhado, o marquês de Deverill. Valentine, estes são Stephen Embry, rey de Costa Habichuela, e a filha dele, princesa Josefina.
Ambos permaneceram sentados. Recém-coroados ou não, nem o monarca nem a princesa pareciam necessitar de lições de hierarquia aristocrática.
- É uma satisfação conhecê-lo, lorde Deverill.
- Digo o mesmo, Vossa Majestade - respondeu Valentine com um sorriso cortês.
Impaciente, Sebastian perguntou do conhaque.
- Um instante, por favor. - O rey afinal se levantou, em seguida acenou para o criado de libre perfilado ao lado da cristaleira. - Três conhaques e uma taça de vinho tinto, por favor.
Enquanto Valentine ia buscar seu cálice, Sebastian enfim voltou o olhar à princesa. Naquela noite o traje dela era violeta, salpicado de prata para aludir ao brilho das estrelas.
- Sente-se, Melbourne. - Josefina indicou a poltrona que o pai acabara de desocupar.
- Obrigado. - Ao se acomodar na cadeira, sentiu-se envolvido por um perfume de lilases. E receou que aquela fragrância lhe produzisse o mesmo efeito mortal da beladona.
- Diga-me, Vossa Graça - prosseguiu a princesa num tom mais baixo, enquanto Valentine e o rey falavam sobre botas - finalmente se decidiu por acatar as boas maneiras?
- Na verdade estou buscando uma forma amável de lhe dar um conselho. - Quase sem querer, voltou o olhar às esmeraldas pendentes das orelhas dela, que reluziam à sombra do negrume dos cabelos suavemente ondulados.
- Como não espero amabilidades de você, diga o que tem a dizer.
Decidido a não deixar que ela desse início a mais um bate-boca, Sebastian anunciou:
- Eu só queria avisá-la de que aqui as jovens que vão pela primeira vez ao Almack's têm por costume usar branco para a apresentação às patronesses.
- Você não gosta do meu vestido?
- É muito bonito. - Engoliu em seco ao sentir o membro viril em comichões. - Mas a questão não é essa.
- O que essas patronesses iriam dizer a uma jovem dama que não se curva ao que elas prescrevem?
Ele escolheu ser sincero:
- Já as vi pedirem a moças que fossem embora. Sei que é absurdo, mas não sou eu quem fez tais regras.
- Elas não se atreveriam a expulsar uma princesa.
- Sinceramente, Josefina, acho que você deveria usar branco. Seu pai está tentando encontrar investidores, e alguns deles estarão no Almack's esta noite.
Ela se pôs em pé, e a fragrância de lilases ficou mais forte.
- Há algo mais que preciso saber a respeito dessa droga de clube?
- Se quiser dançar uma valsa, terá de ser apresentada às patronesses e obter a permissão delas.
- Muito bem. Usarei branco, e você irá me apresentar às megeras. - Com isso, partiu em direção à porta, pisando duro.
- Você tem de ser apresentada por uma dama - avisou Sebastian antes que ela deixasse a sala.
Um cálice de conhaque surgiu logo acima do ombro dele.
- Por todos os santos que perambulam pelo céu... - murmurou Valentine. - Essa moça não é nada delicada.
- Ela é maluca. E enervante. - Sebastian ergueu o olhar ao rey, que se aproximava. - Lembrou-se de separar uma cópia daquela brochura para mim?
- Lembrei, sim. - Apanhando o livreto que estava sobre a mesinha de canto, Embry passou-o às mãos do duque. - E deixe-me dizer novamente o quanto respeito seu tino para negócios e quão grato estou pelo príncipe tê-lo indicado para nos ajudar.
Sebastian agradeceu com um meneio de cabeça, então perguntou:
- A rainha Maria nos fará companhia esta noite?
- Oh, sim. A única verdade absoluta sobre as mulheres é que elas demoram uma eternidade para se vestir... Ah, aí está ela. Maria, você já conhece Melbourne; este é o cunhado dele, o marquês de Deverill.
Uma versão mais madura da filha, a rainha Maria deteve-se adiante da soleira da porta para fazer uma mesura. Enquanto o marido exalava simpatia, a bonita morena se encaixava num tipo mais tradicional de realeza: além de discreta e elegante, parecia um tanto arredia.
- Boa noite, cavalheiros. - Acercou-se. - E obrigada, Vossa Graça, por avisar Josefina do costume que impera no clube. Não estávamos a par dessa regra.
Mais uma vez, ele deu um aceno afirmativo.
Conversaram sobre o tempo è outras amenidades por cerca de dez minutos, quando Sebastian ouviu-a entrar novamente na sala enquanto os demais continuavam a prosear. Então respirou fundo antes de encará-la. Ela não estava de branco: usava um vestido marfim de decote pronunciado, solto, as camadas de tecido sobrepostas como uma cascata de águas cintilantes; com aquela pele alva, os cabelos negros e seus grandes olhos castanhos, parecia uma boneca de porcelana. Uma boneca de porcelana extremamente sensual, que lhe indagava com um sorriso:
- Melhor assim?
- Bem mais apropriado - ele conseguiu responder, a garganta arranhando de tão seca.
- Ah, eis você, querida... Vamos, Vossa Graça? - Grato pela intervenção, Sebastian virou-se de costas para ela.
- Como quiser, Vossa Majestade. - Pelo canto do olho, viu Valentine oferecer o braço à princesa. Agora até Deverill era mais delicado do que ele... Paciência. Pois, a verdade era que se encostasse em Josefina antes que pudesse conter a confusão em que ela o deixava, iria beijá-la de novo. Ou coisa pior.
- Fale-me a respeito de Costa Habichuela - sugeriu Deverill enquanto a assistia a subir na carruagem.
- Infelizmente, não conheço Costa Habichuela muito bem - respondeu Josefina com um sorriso.
- Não?
- Bem, minha mãe e eu passamos dois dias com meu pai em São Saturus. - Suspirou ao perceber que, do outro lado, Melbourne parecia feito de granito. - Quando nosso navio ancorou no porto para apanhar o rey antes de seguirmos para a Inglaterra.
- Onde vocês moravam, então?
- Mais recentemente em Morant Bay, na Jamaica. Como lutava contra a Espanha nas Américas, meu pai queria que minha mãe e eu vivêssemos num lugar mais calmo, a salvo dos confrontos. E quando recebeu o governo de Costa Habichuela ficou tão atarefado com a elaboração de um sistema de administração que preferiu que continuássemos na Jamaica, de onde o ajudávamos como podíamos.
- Contar com Josefina foi uma bênção - interpôs o pai dela. - A princesa é afiada como a ponta de uma adaga.
- Papai!
- Mas é verdade. E Maria também tem sido uma companheira formidável - prosseguiu o monarca. - Ela é filha de um vice-rei, sabiam?
Sebastian afinal se manifestou:
- Sua Alteza havia mencionado. - Então se dirigiu à rainha: - Quando se casou com um inglês apátrida, Vossa Majestade, imaginava que tudo isso estaria por acontecer?
- Em se tratando de Stephen, nada me surpreende. - Maria endereçou um olhar extremoso ao marido.
No intuito de dar tempo aos pais para se preparem para a maior aparição pública que já haviam feito como governantes de um país, Josefina indagou:
- Quantas valsas haverá esta noite, Melbourne?
- Provavelmente duas: uma no início do evento, outra no fim. Decerto vamos perder a primeira, mas você poderá dançar todas as demais músicas. É só a valsa que requer a permissão das patronesses.
- Que bobagem... Quem são essas mulheres?
- Desocupadas de meia-idade, em sua maioria. - Deverill fez um muxoxo. - Esquisitas e mal-humoradas. 0 passatempo delas é olhar as pessoas de cima, e a única maneira que encontraram para fazer isso foi se arranjarem como anfitriãs de um dos mais enfadonhos saraus de Londres.
Chegaram ao clube e, mais uma vez, foi Deverill quem ofereceu a mão para ajudá-la a descer do coche. Cansada de ser tratada com tanta indiferença, Josefina agradeceu a gentileza e, soltando a mão da dele, dirigiu-se ao ponto da calçada onde Sebastian trocava algumas palavras com seu pai.
- Permite-me? - E colocou a mão sobre o braço dele.
- Claro.
- É bom, caso contrário vou pensar que você está me desprezando. E isso seria uma afronta indesculpável.
- Afronta ou não, saiba que, se me esbofetear esta noite, vai levar o troco.
- Se quer me intimidar, por que não ameaça me beijar novamente?
- Porque você quer que eu a beije outra vez?
- Não quero - redargüiu ela.
- Então pare de contestar tudo que eu digo.
- Não contesto tudo o que você diz. - Ao vê-lo sorrir com ironia, emendou: - Acha que sabe como sou, é? Pois você nem imagina.
- Por que não aclara minhas idéias, princesa?
- Depois que você me apresentar àquelas senhoras ranzinzas.
- Diga isso um tom mais alto e será convidada a se retirar antes mesmo que cheguemos ao salão.
- Muito bem - murmurou ela. - Vamos logo com isso, então.
- Como quiser, só que não sou eu quem irá apresentá-la. - A entrada do salão, Sebastian acenou para alguém do outro lado do recinto. - Por dois motivos: primeiro, porque não quero contrariar as regras do jogo; segundo, porque se eu apresentá-la, choverão boatos insinuando que estou lhe fazendo a corte e, portanto, querendo forçar a alta sociedade a aceitá-la. E nem você nem eu queremos isso.
- Bem, faz sentido.
- Princesa Josefina, esta é minha tia, lady Gladys Tremaine. Titia, permita-me lhe apresentar a princesa Josefina Embry.
Ela virou-se para a roliça senhora que portava um matronal vestido de seda azul e um sorriso natural, contagiante.
- Boa noite, Vossa Alteza. - Após se curvar numa mesura, a simpática senhora segurou no braço livre do sobrinho a fim de se aprumar novamente.
- Lady Gladys. - Josefina inclinou a cabeça para ela.
- Então é você a mocinha de quem meia Londres está falando - comentou a idosa dama.
- De fato - afirmou Sebastian, soltando-se das duas. - Com licença.
Ao vê-lo se misturar à multidão que não parava de crescer, Josefina não se conteve:
- Que homem exasperante.
- Ah, ele é, mesmo. - concordou Gladys - Venha, acho que boa parte das pessoas que estão apinhando este lugar veio para ver você e seus pais.
Josefina deu uma olhadinha pelo salão. O recinto parecia tomado até as vigas do teto, e a parte da aglomeração que não circundava seus pais começava a se juntar à sua volta.
- Quando for a sua vez, - Gladys ia dizendo em voz baixa - vão lhe fazer umas perguntinhas tolas, depois todas lhe darão as boas-vindas ao clube. Como foi o duque quem a trouxe, ninguém irá cismar de implicar com você. E se por acaso alguém lhe perguntar se você valsou no sarau dos Elkins, querida, diga que não se recorda.
- Então não posso valsar com ninguém sem a permissão delas?
- É de praxe. Creia-me, se alguém as tirasse para dançar uma valsa, nenhuma delas iria se importar com o que as mocinhas andam fazendo.
Josefina suspirou. Era um costume estranho, sem dúvida, no entanto o que contava era que estivesse apta para valsar com Melbourne.
A multidão se apartou e Gladys, de súbito muito mais empertigada do que estava um segundo antes, dirigiu-se às patronesses:
- Damas, eu gostaria de lhes apresentar a princesa Josefina de Costa Habichuela. Os pais dela, como já devem saber, são o rei e a rainha daquele país.
Josefina apenas inclinou a cabeça para o grupo de damas que ocupava uma posição inferior à dela na hierarquia aristocrática.
- Que idade tem, Vossa Alteza? - uma das senhoras indagou num tom entre frio e condescendente.
-Vinte e dois - Josefina afirmou, lembrando-se do conselho do pai.
- E quanto tempo pretende ficar em Londres?
- Isso depende do meu pai, o rey.
Uma delas olhou rapidamente por cima do ombro de Josefina, então deu um sorriso teso.
- É com grande satisfação que lhe damos as boas-vindas ao Almack's, Vossa Alteza. Esperamos que se divirta no nosso clube esta noite.
- Balance a cabeça e agradeça, assim nos vamos daqui - soprou Gladys.
Josefina fez o que a simpática senhora dissera e, na companhia dela, tornou a se misturar à multidão. Pronto. Livrara-se daquele aborrecimento.
- Muito bem, princesa Josefina - observou uma voz grave.
Ela se virou.
- Obrigada, Melbourne. Há algum lugar por aqui onde eu possa tomar um pouco de ar fresco?
- Certamente. - Sebastian ofereceu-lhe o braço. - Não me diga que se deixou impressionar por aquilo.
- Não estou impressionada. - Pousando a mão sobre o braço dele, permitiu que ele a conduzisse em direção a uma porta. - Estou sufocando neste ar abafadiço.
- Está abafado aqui dentro, sim.
Um homenzarrão se colocou diante deles.
- Melbourne, o...
- Logo mais irei falar com você, Shipley. - Com isso, Sebastian desviou do camarada.
- Negócios? - indagou Josefina, deixando que a curiosidade falasse mais alto do que a antipatia que tinha por ele.
- Sempre negócios. Espero que seu pai saiba no que está sé metendo.
Passaram pelo vão da porta, onde várias pessoas se aglomeravam, percorreram um pequeno corredor e, após dobrar à direita, seguiram por mais um par de metros antes de cruzarem uma passagem em forma de arco que levava à área externa do edifício. Ali fora, num local que fazia lembrar uma entrada de serviço, havia apenas um muro que delimitava uma espécie de viela e a estreita nesga de um céu sombrio com um punhado de estrelas meio apagadas.
- Não se pode dizer que a vista é encantadora - observou Josefina com ironia.
- Não, mas ar fresco é o que não falta.
- Ao menos é silencioso. E isolado da confusão. - Fitou os olhos cinzentos que, à penumbra, pareciam negros. - Não entendo você. Primeiro me dá conselhos, em seguida praticamente me larga por aí, depois faz com que me aceitem no Almack's, e então procura um lugar sossegado para eu respirar um pouco de ar puro...
- Ao contrário de você que está sempre me atacando. Um golpe aqui, um sorriso mordaz ali, uma punhalada no meu amor-próprio, um dardo na minha sensibilidade...
- O que tudo isso quer dizer?
- Que você me irrita.
- Ora, não é bom saber que...
Erguendo o rosto dela com a ponta dos dedos, Sebastian a beijou.
De imediato, Josefina teve a impressão de ser tragada por uma esfera de fogo. O duque beijava com uma intensidade de roubar o fôlego, um ardor quase desesperado, uma paixão que ela jamais havia encontrado em alguém. Austero e reservado no falar, ele tinha um modo de abraçar que transbordava descomedimento, emoção e... Ao sentir o baque seco de suas costas contra a parede e os pensamentos emaranhados darem lugar às sensações mais primitivas, agarrou as lapelas do fraque de Melbourne para trazê-lo para junto do seu corpo. No entanto, o desejo que transpirava daquele beijo despertou uma reação desconhecida em sua pele, em seus nervos e em seus músculos, uma urgência tão enérgica quanto repentina, uma volúpia para a qual não estava preparada, e isso a deixou morta de medo.
- Pare. - murmurou de encontro aos lábios dele.
Sem pressa, Sebastian afastou o rosto e ergueu a cabeça, desvelando um semblante que era uma combinação de lascívia, carência e excitação. Essa mistura incendiou as entranhas de Josefina, porém a instigante expressão se foi num piscar de olhos, prontamente substituída pela máscara de sereno autodomínio de que ele tanto gostava.
- Perdão - murmurou ele. E, girando sobre os calcanhares, partiu a largas passadas pelo corredor banhado em trevas.
Ela sentiu-se desolada. Injuriada.
- Você me deve uma valsa - cobrou, apesar de não conseguir enxergá-lo.
- Você a terá - retrucou a voz dele sem nenhuma inflexão.
Envolta pelos ruídos da noite de Londres, Josefina permaneceu ali por mais alguns instantes antes de retornar sozinha ao salão de baile.

- Como assim, esquisito? - Protegendo os olhos com uma das mãos para olhar para o marido, Eleanor, lady Deverill, espantava com a mão a borboleta que a filhinha de cinco meses, Rose, ameaçava engolir.
- Não sei ao certo - admitiu Valentine, que caminhava de lá para cá junto ao canteiro de narcisos. - Ele me pareceu... confuso.
- Sente-se aqui antes que esse sol acabe me cegando. - Eleanor bateu de leve na manta estendida sobre a relva, onde Rose se esparramava. - E me diga por que acha que meu irmão parecia confuso ontem à noite no Almack's.
Tão logo se largou sobre o cobertor, Valentine colocou Rose no colo e pôs-se a brincar com os dedos diante do rostinho dela.
- Como já contei, ele me pediu que o acompanhasse a fim de "observar" não sei muito bem o quê. Mas o pessoal de Costa Habichuela foi amável, sobretudo o rey, ávido por causar uma boa impressão como qualquer outra pessoa que viesse a Londres em busca de recursos e apoio. Agora, aquela abusada...
- A princesa Josefina? A tal que esbofeteou meu irmão em público, não é?
- Guarde seus punhais, querida. Melbourne não tira os olhos da princesa quando ela não está vendo; já cara a cara, ou discute com a moça ou a trata com tanta formalidade que chega a ser rude.
- Seb gosta dela. - Eleanor suspirou. - Meu Deus.
- Foi o que pensei, ainda mais depois que seu irmão me disse que ela mexe com os nervos dele. - Ergueu a filhinha a fim de fitá-la nos olhos. - Fique longe dos homens, meu torrão de açúcar, esses seres maliciosos e sorrateiros. Sei disso porque sou um deles.
Rose riu enquanto tentava agarrar o nariz do pai.
- Ah, agora você acha graça, mas quero ver quando crescer.
- Valentine, você está mudando de assunto. - Pondo-se em pé, ele ajeitou a pequenina num dos braços e esticou o outro para ajudar a esposa a se levantar.
- Acho que você deveria conversar com Melbourne, Nell. Irmãos são irmãos; é natural que ele se abra com você e lhe conte coisas que prefere não revelar a mim.
- Veja só você: preocupado com as outras pessoas. - Apoiando-se nele, beijou-o no rosto. - E com um bebê nos braços.
- Sim, estou perdido. - Sorriu para ela. - Vá. Rose e eu vamos discutir os méritos do celibato.
Após endereçar um olhar de puro carinho ao marido e à filha, Eleanor entrou na Mansão Corbett a fim de trocar de roupa e chamar uma carruagem. Era pouco provável que seu irmão mais velho fosse lhe confiar algum segredo; mas se o comportamento de Sebastian preocupava um descrente das convenções sociais como Valentine, então era preciso ao menos tentar descobrir o que estava se passando.
- Aceita mais um biscoitinho, Vossa Graça? - Erguendo o olhar do livreto sobre Costa Habichuela, Sebastian descruzou e tornou a cruzar os tornozelos no intuito de aliviar a dor nas pernas. Sentar numa das cadeirinhas da sala de recreação de Peep devia ser muito gostoso para uma garotinha de sete anos; já ele tinha um metro e oitenta e cinco de altura.
- Com satisfação, lady Penélope.
- Sabe? acho que vou ser acrobata. - Colocou o petisco no prato de porcelana do pai. - Ou ilusionista.
- Ilusionismo combinaria com seu ofício de pirata.
- Foi o que pensei. - Serviu-se de outra xícara de limonada do bule sobre a mesinha. - Eu queria muito ter conversado um pouco mais com aquela princesa.
Sebastian sentiu um calafrio.
- Você gostou dela?
- Josefina toca piano muito bem e contou uma história engraçada sobre fazer compras na Jamaica, mas também ofendeu você. Se eu soubesse que você não gostava dela, não teria sido tão gentil.
- Ah, não é que eu não goste dela... - Diabos, por que se punha a defendê-la? - É que... Não se deve convidar alguém que não conhecemos a entrar em nossa casa.
- Eu sei. Mas você vê o príncipe regente e outros membros da realeza o tempo todo e eu, não.
- Queira me desculpar. Eu não...
A porta da sala de brinquedos se abriu.
- Boa tarde. - Zachary reforçou o cumprimento curvando-se exageradamente. - Ouvi dizer que lady Penélope está oferecendo um chá íntimo. Será que posso participar?
- Evidentemente, lorde Zachary. - Erguendo-se, Peep fez uma reverência tão exuberante quanto a do tio.
- Por gentileza, sente-se.
Ao ver o irmão se dirigir a uma das poltronas junto à janela, Sebastian afirmou antes de virar a página da brochura:
- À mesa.
- Eu ia só tirar meu paletó. - Depois de despir o casaco cinza, largá-lo sobre uma poltrona e ajeitar o colete negro, Zachary retornou ao centro da sala para ir se equilibrar numa das quatro cadeiras infantis ao redor da mesinha.
- Você faz qualquer coisa por um biscoito, não? - observou Sebastian.
Enquanto Penélope servia mais limonada e petiscos, ele se encarregou de fazer um breve apanhado do que havia lido na brochura. A riqueza de detalhes, entre os quais meticulosos dados das oscilações na temperatura em função da vegetação e da altitude, deixara-o bastante impressionado.
Zachary, que mal atentava às observações, interrompeu o irmão para comentar:
- Eu soube que você foi ao Almack's ontem. - Tirando os olhos do livreto, Sebastian tomou um gole de limonada.
- Prinny apareceu por lá? - emendou Zachary.
- Ficou uns vinte minutos. Por que pergunta?
- Estou só puxando assunto. - Enfiou um biscoito na boca. - Você escoltou o pessoal de Costa Habiba de novo, não?
- Costa Habichuela - corrigiu Penélope. - Fica na América Central.
- Sim, fui com eles - confirmou Sebastian. - Está fazendo uma sindicância na minha vida?
- Não. - Zachary riu. - Claro que não.
- Pena que você não trouxe Harold hoje - interpôs Penélope com um suspiro. - Ele adora biscoito.
Sebastian pôs a brochura de lado.
- Aquele cão não é bem-vindo nesta casa.
- Só porque dei a ele o nome do nosso bisavô? Ora, isso é...
- Você deu a ele o meu nome, Zach. Ou por acaso não me chamo Sebastian Harold Griffin?
- Mas Harold é um amor de cãozinho - tentou argumentar a menina.
- Não seria diferente se o nome dele fosse Manchinha ou Polenta ou coisa que o valha.
- Você realmente se irrita com que eu tenha dado seu nome a ele, não é? - Dessa vez, o sorriso de Zachary era natural. - Que bom. Era isso mesmo o que eu queria.
- Por favor, cavalheiros - Peep levou as mãos aos ombros dos dois - sejamos civilizados.
Zachary ia perguntar onde ela aprendia aquelas coisas quando a porta tornou a se abrir.
- Com relação a que não estamos sendo civilizados? - indagou Shay enquanto caminhava até a mesinha.
- Lorde Charlemagne, que satisfação! - Penélope voltou a se levantar. - Por que não faz um lanchinho conosco?
Não sem antes lançar um olhar cobiçoso para as poltronas junto à janela, Charlemagne se ajeitou como pôde numa das cadeirinhas infantis.
- Não me lembro das cadeiras serem tão pequenas quando fazíamos isto com Nell.
- Isso foi há mais de quinze anos, Shay - lembrou Zachary. - Nós éramos pequenos.
- O que o traz aqui? - Sebastian perguntou a Charlemagne, o irmão mais parecido com ele em termos de temperamento.
- Só uma visitinha. Eu não sabia que iria ter chá - tomou um gole da pequenina xícara que a sobrinha havia lhe entregado e fez uma careta - digo, limonada e biscoitos.
- Vai conosco ao recital na casa dos Beardsley esta noite, Shay?
- Não, os pais de Sarala nos convidaram para jantar. Acho que eles estão à espera de ouvir... - limpou a garganta - novidades.
- Tia Sarala vai ter um bebê? - Fazendo-se de contrariada, Penélope cruzou os braços. - Você pode falar dessas coisas na minha frente, viu? Não tenho mais seis anos.
Ruborizado, Charlemagne segurou na mãozinha dela.
- Ainda é cedo para afirmar, mas assim que tivermos certeza, dentro de uns dez dias, você será a primeira a saber.
Sebastian baixou os olhos à xícara de limonada. Tinha tomado todas as providências para que Penélope tivesse tudo o que quisesse ou de que necessitasse pelo resto da vida; quanto ao seu título de nobreza, porém, não havia o que fazer. Sem um filho varão a quem legá-lo, o título iria para seu parente mais próximo: Shay. Se Sarala estivesse mesmo grávida, e se o bebê fosse um menino, o nome Griffin continuaria com o título Melbourne por pelo menos mais uma geração. Graças a Deus.
- Seb?
Voltando à realidade, ele ergueu o olhar.
- Como foi no Almack's ontem? - Ao receber um chute de Zachary por sob a mesinha, Charlemagne tentou encolher as pernas. O móvel em miniatura sacudiu-se todo. - Muito sutil, seu pateta.
- O que vocês dois andaram ouvindo? - quis saber Sebastian.
- Nada - Shay correu a responder. - Mas como foi a primeira grande aparição pública do rey e comitiva, eu queria saber se tudo correu bem.
- Correu, sim. Um evento absolutamente rotinei...
A porta voltou a se abrir, dessa vez para que Eleanor entrasse no aposento.
- Olá a todos - cumprimentou-os com um sorriso que traía certa irritação. - Por acaso perdi algum convite para uma reunião de família?
- Não, é um chá - corrigiu Penélope. - Você vai ter outro bebê também?
- Outro? - Branca como cera, Eleanor olhou para o irmão. - Sebastian, a princesa Josefina está gravi...
- Como? - Ele se ergueu de um pulo, e a cadeirinha em que estava sentado tombou para trás.
Zachary e Charlemagne levantaram-se com o mesmo ímpeto.
- Está dizendo que Melbourne e a princesa andam...
- Não! - exclamou Sebastian antes que Zach pudesse terminar. - Então é esse o motivo desta invasão? Por Deus, se esse é o tipo de boato que está correndo por aí, como que é ninguém ainda teve o bom senso de me avisar de uma...
- Não, não é nada disso. - Eleanor apressou-se a ir colocar a mão sobre o braço dele. - De modo algum. Mas quando Peep perguntou...
- Ela estava se referindo a Sarala.
- Oh... Oh! - Virando-se, Eleanor abraçou Charlemagne. - Parabéns, Shay.
- Ainda não temos certeza. Mas por que você acha que Melbourne e a...
- Chega! - trovejou Sebastian. - Vocês dois, sentem-se e tomem chá com sua sobrinha. E você, Nell, faça o favor de vir comigo. - Com isso, agarrou-a pelo braço.
- Posso dar uma olhadinha na brochura? - indagou Charlemagne, ao vê-los partirem em direção à porta.
- Fique à vontade. Mas não saia daí.
Ignorando o falatório dos irmãos, Sebastian praticamente arrastou Eleanor para fora da sala de recreação e, a seguir, escadaria abaixo. No piso inferior, puxou-a pela mão até seu gabinete e, tão logo entraram, tratou de fechar a porta.
- Se acha que vai me dar algum sermão por fazer mexericos ou qualquer coisa do tipo, saiba que está redondamente enganado. - Dando a volta à escrivaninha, Eleanor foi se sentar na poltrona dele. - Além de casada, sou mãe. Há muito deixei de ser criança, e você não tem mais o direito de...
- Por que chegou à conclusão de que tenho, ou tinha, um caso com a princesa Josefina, uma pessoa que conheço há quatro dias?
- Você há de convir comigo que ouvir Peep me perguntar se eu também iria ter outro bebê foi um susto e tanto.
- Muito bem, vou tomar isso como verdadeiro. - Caminhou lentamente até a janela. - Zach e Shay queriam saber como foi ontem no Almack's. Por quê?
- Por que não pergunta a eles? Cada vez mais impaciente, Sebastian foi se sentar numa das duas poltronas diante da escrivaninha, de frente para a irmã.
- O que Valentine lhe contou para que você também viesse aqui hoje? E não me mande ir perguntar a ele.
- Pois bem, meu marido achou você um tanto estranho ontem à noite. E que talvez isso se devesse ao fato de estar interessado na princesa Josefina.
- Aquele traidor... Pedi a ele que ficasse de olho neles, não em mim.
- Então é verdade?
Apesar do desassossego que o assunto lhe provocava, ele confessou:
- Francamente, não sei. Faz quatro anos que estou sozinho e, sim, acho Josefina uma mulher interessante. Agora, se é por ela própria ou por conta dos quatro anos de solidão, não sei dizer.
- Mas foi ela quem despertou esse entusiasmo, não outra mulher qualquer. Sendo assim, você deveria tratar de conhecê-la melhor.
Sebastian ergueu uma sobrancelha.
- Obrigado. Nada como receber conselhos de uma desmiolada doze anos mais nova do que eu.
- Ah, agora você está falando como Melbourne de novo.
- Essa é a questão, Nell: eu sou Melbourne. Não posso sair por aí correndo atrás da filha de um rei de uma nação exótica. Se aquele país perdurar no tempo, um dia Josefina irá se tornar rainha e, no caso de o título se estender ao cônjuge dela, isso fará de mim o rei de Costa Habichuela. - Obrigou-se a sorrir. - Prefiro continuar inglês. E jamais abriria mão do meu título por algum outro.
- Mas se você gosta dela, então...
- Então o quê? Primeiro: eu disse que a achava interessante; ainda não me decidi se gosto dela ou se quero torcer o pescoço daquela atrevida. Segundo: até quatro dias atrás, eu nem sabia que Josefina Embry existia. Terceiro: não quero ter um caso. Não sou o tipo conquistador, e menos ainda quando se trata de um romance sem futuro.
Eleanor se levantou.
- Já que você analisou o assunto por todos os ângulos, ponderou todos os aspectos envolvidos e concluiu que não valia a pena, creio que não há mais nada a dizer.
- Concordo. - Sebastian também se pôs em pé para ir abrir a porta para ela. - Diga àqueles mentecaptos, por gentileza, que parem de me importunar. Mas faça isso longe dos ouvidos de Peep, sim? Ela não precisa saber de nada disso.
- Como quiser. - E, em meio a um ciciar de musselina, Eleanor deixou o aposento.
Sebastian esperou vê-la subindo a escadaria, então fechou a porta e foi se sentar na poltrona atrás da escrivaninha. Se tivesse sorte, aquela tolice ficaria entre os membros da sua família. Mas, para que isso acontecesse, precisava evitar a princesa Josefina a qualquer custo... por mais que ansiasse por discutir com ela, e beijá-la, novamente.
Suspirando, abriu a gaveta e apanhou uma folha de papel a fim de escrever um bilhete para Prinny.

- Preparada? - indagou o tenente May ao colocar a cabeça para dentro da carruagem de novo.
- Céus... - Josefina tornou a espiar pela fresta que abrira na cortina da janela. - Nunca pensei que a iniciativa fosse fazer tanto sucesso.
- Está pronta, Vossa Alteza? - Conchita afofou a manga do vestido dela.
- Mesmo que não estivesse, já que mamãe e papai foram para a Escócia a fim de conversar com o ministro das finanças de lá, acho que não tenho escapatória. - Respirou fundo. - Sim, estou pronta.
Saltando para o chão, o tenente May baixou os degraus à porta da carruagem, em seguida ajudou-a a descer do veículo. Assim que pôs os pés na calçada, Josefina levou um susto com as reais dimensões da multidão: mais de duzentas pessoas se alinhavam diante do Banco da Inglaterra, cujas portas ainda nem tinham sido abertas. Não fazia nem vinte e quatro horas que o anúncio da venda das apólices fora publicado no jornal, no entanto a fila de endinheirados dava volta ao edifício antes de se embrenhar numa ruela.
Assim que eles se aproximaram, Henry Sparks se destacou do grupo de funcionários à entrada do prédio.
- Bom dia, Vossa Alteza - cumprimentou-a, radiante. - Belo comparecimento, não?
- Surpreendente. Acha que eles iriam se importar se eu dissesse umas palavrinhas?
- Pelo contrário, iriam adorar.
O tenente May virou um caixote de lado e ajudou-a a subir no improvisado palanque.
- Bom dia. - Após o breve cumprimento, ela viu o ruído à sua volta esvaecer. - Sou a princesa Josefina e quero ser a primeira a dar as boas-vindas na parceria que vocês estão prestes a fazer com Costa Habichuela.
A multidão explodiu em saudações. Ao sinal de Henry, os funcionários bancários abriram as portas do edifício e entraram, levando a fila de investidores nos calcanhares deles. Costa Habichuela descerrava-se oficialmente aos negócios.
Descendo do engradado, Josefina se juntou às pessoas que tinham ido rodeá-la, e, por mais de uma hora, sorriu sem parar, apertou um sem-número de mãos e respondeu às perguntas que lhe faziam. O combinado era que Melbourne estivesse ali com ela, no entanto só o que seu pai dissera naquela manhã era que tinha havido um rearranjo nos planos. De certo modo, a mudança não viera para mal: o objetivo naquele dia era vender títulos, e não ficar pensando em beijar Melbourne.
Quando sentiu as pernas doloridas, Josefina agradeceu a Henry uma vez mais antes de fazer um aceno com a cabeça para May. Sem perda de tempo, o tenente pôs-se a abrir caminho por entre a multidão para lhe dar passagem. E os aplausos a acompanharam até que ela ir se acomodar no interior da carruagem.
Ao chegarem à residência emprestada pelo coronel, encontraram um cabriolé à entrada da mansão.
- Imagino que sua manhã tenha sido muito proveitosa, Vossa Alteza - entoou Grimm, o mordomo, ao abrir a porta.
- Foi, sim. Quem veio nos visitar?
- Charles Stenway, duque de Harek, Vossa Alteza. Ele a aguarda na sala de visitas.
- Harek? Nunca, ouvi falar dele. - Com um suspiro, tirou as luvas. - Conchita?
As duas se dirigiram à sala, onde depararam com um cavalheiro loiro de compleição robusta e altura mediana junto à lareira. Ao vê-la, ele se curvou numa mesura reverente, cumprimentando em voz baixa:
- Vossa Alteza.
- Vossa Graça. - Josefina inclinou a cabeça. - É um prazer conhecê-lo, porém devo confessar minha surpresa com a sua presença. Está ciente de que meu pai encontra-se a caminho da Escócia?
- Sim, o mordomo me disse. Posso me sentar? - Ele indicou o sofá.
- Certamente. - Foi se acomodar numa das poltronas que ladeavam a lareira, e Conchita se colocou atrás dela. - Em que posso lhe ser útil?
- O príncipe regente solicitou-me que atuasse como contato britânico para Costa Habichuela e, muito honrado, aceitei a incumbência. Assim, vim pessoalmente para...
- O que houve com Melbourne?
- Sua Alteza disse que os negócios exigiram a atenção dele em outro lugar. - Moveu os dedos num gesto de desdém. - A bem da verdade, Melbourne está sempre metido num ou noutro empreendimento. Ele daria um excelente negociante.
Josefina reavaliou o juízo que tinha feito de Harek. Ele parecia ambicioso e ávido por ser agradável e, ao que tudo indicava, ou era muito conservador ou tinha muita inveja de Melbourne.
- Acha que um nobre não devia se envolver em assuntos empresariais e financeiros?
- Não é conveniente. É para isso que existem procuradores, advogados, contadores e banqueiros. - Ele sorriu. - Mas não vamos falar desse tipo de coisa. Imagino que tenciona ir ao baile de Allendale esta noite, não? Seria um prazer acompanhá-la.
Josefina também sorriu.
- Se me permite indagar, você é casado, Vossa Graça?
- Sou infelizmente solteiro. Passei os últimos anos no Canadá e só recentemente retornei à Inglaterra.
- Posso perguntar o que fazia no Canadá, uma vez que não se envolve pessoalmente com negócios?
- Caçava. Um lugar extraordinário, o Canadá. Há uma variedade riquíssima de animais selvagens.
- E todos tão solícitos a ponto de se reunirem num único lugar só para você se divertir com eles. - Ao vê-lo dar uma risadinha, Josefina acrescentou: - E agora você está de volta à sua terra natal.
- De fato. - Os olhos verdes de Harek cintilavam ao fitar os dela. - Um fato que, espero, venha a ser muito auspicioso para nós dois.
Bem, ele colocara todas as cartas na mesa.
- Veremos. - Com um aceno para Conchita, pôs-se em pé. - Se me der licença, preciso cuidar da correspondência. Posso esperá-lo às oito horas?
Ele também se levantou.
- Estarei aqui. E se necessitar de algo até lá, mande me avisar, por favor. Já dei meu endereço ao seu mordomo e estou à sua disposição.
- Obrigada, Vossa Graça. Até a noite.

- Já não tivemos esta conversa, Wilits? - indagou Sebastian em meio à algazarra no salão de baile de Allendale.
- Ainda não estou convencido de que reduzir a força de trabalho é bom para a economia - retrucou o visconde.
- Então vote contra a medida. De minha parte, acredito que estimular as famílias a mandarem seus filhos para a escola em vez de forçá-los a fazer tijolos trará grandes benefícios à Inglaterra no futuro. Uma população de ignorantes necessita de maior auxílio financeiro do governo, não o contrário.
- Mas...
- Esse é meu ponto de vista, quer você concorde, quer não. Não vou prosseguir com esta discussão. Boa noite. - Inclinando a cabeça, afastou-se.
- Você foi um tanto rude - observou Zachary, que se aproximava, trazendo a esposa apoiada em seu braço.
- Descobri que há certo tipo de idiotia que não consigo tolerar - afirmou o duque, tentando se acalmar.
- Então se anime, pois tenho novidades que farão você sorrir... Conte você, Carol. Não quero ser responsabilizado pela notícia.
Caroline limpou a garganta com delicadeza antes de anunciar:
- Minha mãe escreveu, dizendo que ela e meu pai virão a Londres. Não sei ao certo quem mais virá com eles.
- Que bom - afirmou Sebastian em voz alta. - Sei que você sente muita saudade deles.
- Em vez de sorrir, acho que ele está com vontade de chorar - observou Zachary, rindo.
- Não acha cruel, meu irmão, ostentar a família da sua esposa como instrumento de tortura?
- Não foi isso o que eu quis dizer. Você sabe que gosto deles. - Zachary virou-se para a esposa. - Vou pegar um drinque - dito isso, ele se afastou.
- Ah, eu o amo. Demais. - Caroline suspirou. - Ele nunca toma alguém pelas aparências; sempre procura ver o que as pessoas realmente são.
- É por isso que tanta gente gosta dele. - Sebastian beijou a cunhada no rosto.
O sorriso dela se alargou.
- Dança comigo?
- Com prazer. - Ele estendeu a mão, que Caroline tomou na dela.
- Oh, eu devia saber - resmungou Zachary, com três taças nas mãos, ao vê-los se perfilarem junto aos casais que se preparavam para a dança campestre.
A música principiou, e as duas fileiras de bailarinos curvaram-se uma para a outra. Sebastian girou ao redor de Caroline, depois à volta da moça à direita dela, deu um passo para o lado e bateu de leve as mãos nas mãos da jovem seguinte. Foi como se uma descarga elétrica o atravessasse das pontas dos dedos às unhas dos pés. Santo Cristo!
- Boa noite, Melbourne - cumprimentou Josefina, antes de retomar seu lugar na fileira das damas.
Sebastian precisou de todo o controle para não esfregar os dedos, que pareciam chamuscados. Que diabo ela fazia ali? A comitiva de Costa Habichuela tinha ido para a Escócia em busca de novos empréstimos... Ou pelo menos era isso o que haviam lhe dito. Ao se virar, lançou um olhar pela fileira. Josefina se adiantara para dar a volta ao cavalheiro diante dela e agora voltava ao seu lugar. O duque de Harek.
Pelos dez minutos seguintes, Sebastian tratou de manter o semblante sereno. Por dentro, porém, sentia-se um vulcão prestes a entrar em erupção. Uma coisa era encontrar com ela quando não esperava, quando imaginava que teria alguns dias para resolver a confusão que tanto o incomodava antes de vê-la novamente; outra, bem diferente, era topar com a atrevida na companhia de outro homem.
Trocaram de lugar, então tornaram a rodear um ao outro.
- Pensei que estivesse ocupado demais para ir a uma festa.
- Eram os deveres de acompanhante que me mantinham ocupado. Não os saraus.
- Ah! Cheguei a imaginar que estivesse com medo de mim.
Antes que ele pudesse responder, os passos da dança obrigaram-na a se afastar de novo. Maldição! Como era possível que a mera presença dela ali fizesse seu mundo desandar? A música chegou ao fim e, trazendo-se de volta à realidade, ele se uniu aos demais nos aplausos antes de ir levar Caroline até Zachary.
- Seb? - Zach entregou-lhe um cálice de vinho do Porto.
- Estou bem - resmungou ele, sorvendo um gole da bebida.
- Não, eu queria lhe dizer que ela vem vin...
- Será que pode me dar alguns dos seus preciosos minutos? - Soou a voz melíflua às costas dele.
Empertigando-se, Sebastian se virou.
- Evidentemente, Vossa Alteza - afirmou num tom ácido. - Harek.
- Melbourne - devolveu Charles Stenway. - Fiz questão de vir lhe agradecer. Quando você se demitiu, Prinny me indicou para o cargo de intermediário para os assuntos de Costa Habichuela e, desde então, nunca senti tanta satisfação em servir ao meu país. - Sorriu para Josefina.
Ela tomou a palavra:
- Sua Graça é um cavalheiro adorável. Amanhã à noite ele irá me levar ao teatro; eu sempre quis assistir a um espetáculo em Londres.
- Quem sabe não conseguimos convencer os atores a se apresentarem em Costa Habichuela? - sugeriu Harek.
- "Conseguimos"? - Sebastian o interpelou. - Está pensando em emigrar, Harek?
- Nunca se sabe - respondeu o duque com um sorriso.
Sebastian teve ganas de estapeá-lo até arrancar aquele sorrisinho idiota do rosto dele, mas de súbito Zachary se colocou entre os dois para dizer:
- Posso trocar uma palavrinha com você, Seb? - Indicou o vão da porta, em seguida olhou de relance para Harek e a princesa. - Dêem-nos licença por um instante, sim? É assunto de família.
- Claro - respondeu Josefina sem tirar os olhos do irmão mais velho.
Ao sentir o caçula cutucar seu ombro, Sebastian pôs-se a caminhar e só foi parar quando chegou à biblioteca de Allendale. Nos calcanhares dele, Zachary esperou que Caroline entrasse no aposento para então fechar a porta.
- Perdão, mas eu queria evitar uma cena. Aquele símio. Como se Harek estivesse à altura de substituir você... Vamos embora? Vou pedir que tragam a carruagem.
- De modo algum. Não vou abandonar um sarau por causa de um paspalho e de uma desaforada.
- Pensei que estivesse tentando se manter longe dela. Foi por isso que se demitiu do cargo para o qual Prinny havia lhe indicado, não foi?
- Não preciso da sua proteção, Zachary. Tenho plena consciência de quem sou e do que está em jogo todas as vezes em que abro minha boca ou levo a pena ao papel. Essa responsabilidade é minha, não sua.
- Ótimo. A culpa é minha, evidentemente, por imaginar que esse seu coração de pedra tivesse se abrandado. Boa noite, Melbourne. - Com isso, deixou o aposento.
Um pouco mais solidária, Caroline lançou um terno olhar ao cunhado antes de ir atrás do marido.
Após exalar longo suspiro, Sebastian foi até a parede dos fundos da sala, onde Allendale mantinha os livros que certamente nem havia folheado. Alguns instantes depois, um dos volumes na estante atraiu sua atenção e ele, de pronto, empurrou o banquinho para junto do móvel a fim de apanhar o tomo na penúltima prateleira. História das Américas ao Sul. Ainda que a edição já tivesse mais de seis anos, não custava nada dar uma olhadinha.
Sentando-se diante da lareira, constatou que o capítulo dedicado à Costa dos Mosquitos era relativamente pequeno. Embora tivessem conquistado a maior parte da América Central e do Sul, apoderando-se de todas as riquezas que encontravam pela frente, os espanhóis haviam ostensivamente evitado a Costa dos Mosquitos. O motivo de tal cuidado, segundo o autor, um tal John Rice-Able, era o fato de a região já ter sido avaliada como uma área sem nenhum valor ou serventia, uma fedentina de aluviões pantanosos tomados pela malária e selvas impenetráveis, isso sem contar o calor e a umidade insuportáveis em todas as estações do ano.
O contraste com as descrições contidas no livreto de Embry não poderia ser mais gritante. No trabalho de Rice-Able não havia menção a refrescantes brisas vindas do mar, terras praticamente prontas para a lavoura ou uma cidade próspera repleta de promessas. Bem, era preciso admitir que se tratava de duas páginas de generalizações contra as quatrocentas e vinte de explanações detalhadas da brochura... O que, por outro lado, não deixava de suscitar uma série de interrogações.
Com efeito, havia algo sobre Costa Habichuela e sua realeza que parecia bom demais para ser verdade. Fosse como fosse, só havia um meio de obter maiores informações: procurar o sr. John Rice-Able, que, com um pouco de sorte, haveria de morar em algum lugar naquele continente.
Sebastian devolveu o livro ao lugar de onde o tirara e, nem bem havia descido do banquinho, a porta da biblioteca, antes entreaberta, escancarou-se.
- Logo imaginei que iria encontrá-lo enfurnado aqui. - Ele se virou para encarar Josefina.
- Cansou do novo contato para o seu país? Decerto Stenway ainda não teve tempo para lhe contar todas as histórias das caçadas dele. Ou será que o nosso adorável duque fugiu de medo de você?
- Ora, o duque de Harek é um homem sensato, cordato, amabilíssimo. E é provável que eu me case com ele.
Sebastian teve de fazer das tripas coração para não avançar sobre ela e agarrá-la.
- Eu não havia percebido quão pobres são seus critérios, Vossa Alteza. Seja como for, Harek deve compartilhar da sua queda por asneiras.
Josefina se adiantou, o vestido cor de mostarda ciciando a cada passo que ela dava.
- Posso saber de que raios está falando, Melbourne?
- Desse ridículo ar de superioridade que você se dá, pelo fato de não fazer a menor idéia de como a realeza se comporta.
- Eu devia mandar enforcá-lo por isso.
- Por que não tenta?
Para surpresa de Sebastian, ela tirou os sapatos com os próprios pés.
- Antes de me tornar princesa, eu era filha de um soldado. - Aproximando-se da lareira, apanhou um dos dois sabres no estojo sobre a moldura da fornalha. - Defenda-se.
- Você realmente é maluca.
- E você vai parar de me ofender de uma vez por todas.
Ele ficou a observá-la. Insana ou não, Josefina Embry era impressionantemente bela.
- Talvez tenha esquecido sua posição social, Vossa Alteza, mas eu não esqueci a minha. Não tenho a menor intenção de ser pego duelando na biblioteca de um amigo. Ainda mais com uma jovenzinha atrevida doze anos mais nova do que eu.
O sabre foi ao chão, e Josefina se largou sobre a poltrona em que ele havia se sentado.
- Eu me rendo.
- Como? - Seria ele o maluco e ainda não se dera conta de que estava em algum manicômio, falando sozinho?
Ela voltou o olhar às chamas que crepitavam na lareira.
- Pensei que brigar com você fosse a única maneira de arrancá-lo dessa sua altivez arrogante. Mas nada, nem mesmo ameaçá-lo com um sabre, é capaz de lhe provocar algo mais do que um instante de irritação. Assim sendo, eu me rendo.
- Está tentando me dizer que isso... que tudo isso era parte de alguma estratégia de sedução?
- Meu pai leu tudo o que pôde a respeito de você e da sua família. Ele o admira muito, tanto que, sonhando com a nossa união, pediu-me que fingisse ser três anos mais nova, já que se comenta por aí que os cavalheiros que se casam pela segunda vez preferem mulheres mais jovens. Mas desde que me beijou pela segunda vez, você só tem feito me evitar.
Pasmo, Sebastian pestanejou enquanto tentava assimilar o que acabara de ouvir.
- Então você tem vinte e cinco anos? - Nas circunstâncias, fazer cálculos parecia o mais fácil dos seus problemas.
- Sim, vinte e cinco. Desculpe-me por ter mentido para você. - Com um suspiro, Josefina levantou-se e colocou o sabre de volta ao estojo antes de ir calçar os sapatos. - E melhor eu ir, Harek deve estar à minha procura.
- Seu pai. Agora quer que você se case com ele? - Sebastian se aproximou dela.
- Evidentemente. Papai quer me ver casada e, como princesa ainda que não consiga ter em mente minha posição social, não posso me unir a alguém com um título inferior ao de duque.
Ele não conseguiu se conter:
- Você gosta de Harek?
Levando a mão à maçaneta da porta, Josefina olhou-o por cima do ombro.
- Eu gosto de você. Boa noite, Vossa Graça.

Com todos os demônios.
- Por que você e Harek não vão ao meu camarote no teatro amanhã à noite? - convidou.
Ela se virou.
- Por quê?
Porque gosto de você também.
- Porque uma manifestação de cooperação entre o antigo e o atual intermediário para os assuntos de Costa Habichuela seria mais producente do que uma demonstração de hostilidade.
- Está bem - concordou Josefina. - Vou dizer isso a Harek.
Ao vê-la deixar o recinto, Sebastian ficou com a estranha sensação de que ao beijá-la, ao discutir com ela, não se sentia, pela primeira vez em quatro anos... sozinho.

- Papai, eu queria ir ao teatro.
Sebastian deu a volta à mesa de bilhar para fazer uma tacada propositadamente ruim.
- Sei disso, mas a peça desta noite é Hamlet, e eu acho que você não iria gostar nem um pouco do final.
- É uma tragédia?
- É, sim. Uma grande tragédia. - Ele afastou-se para que ela pudesse jogar, e a tacada não foi das piores. Mais uns dois ou três anos, Peep estaria em condições de enfrentar de igual para igual os cálculos precisos de Shay. - Vamos fazer uma troca? A próxima peça a estrear no Drury Lane será Sonho de uma Noite de Verão; se você abrir mão de Hamlet, vou levá-la para assistir ao novo espetáculo. O que me diz?
- Só você e eu?
- Só nós dois.
- Então eu aceito a troca. - O sorriso de Penélope parecia resplandecer mais do que o sol. - Você tem andado ocupado, eu tenho tido vários compromissos, por isso será muito bom passarmos um tempinho na companhia um do outro.
- Perdoe-me se não tenho lhe dado a devida atenção, Peep.
- Uma grande festa de aniversário com acrobatas iria compensar o seu deslize.
- Vou me lembrar disso. - Fazendo força para não rir, Sebastian foi para junto da filha e se agachou diante dela para lhe dar um beijo. - O que acha de fazermos uma pausa para o almoço?
Penélope beijou-o na testa.
- Você é um pai muito bom, sabia?
- Eu tento. De coração.
Erguendo-se, Sebastian esperou que ela deixasse o taco sobre a mesa e os dois então desceram para a sala de refeições. Peep precisava de uma mãe. O que era natural; decerto tinha agora uma vaga lembrança de Charlotte e, apesar de ambos falarem dela com certa freqüência, era evidente que aquelas conversas ultimamente soavam quase como contos de fadas.
Mas e ele, queria se casar novamente? Um ano atrás, iria rejeitar a idéia de plano. Agora, porém, não sabia o que pensar.
Ou melhor, sabia, sim, que Margaret Trent seria uma companheira mais adequada do que Josefina Embry. Primeiro, porque Margaret não era herdeira de uma monarquia centro-americana; segundo, ela não virava seu mundo de ponta-cabeça, como Josefina parecia ter o dom de fazer. Não queria seu mundo de pernas para o ar. Ah, maldita sirigaita... Sem notar, bufou ruidosamente.
- Algum problema, papai?
- Não foi nada, querida. Vá tomar seu lugar à mesa, sim? Preciso fazer uma anotação antes que me esqueça.
Penélope seguiu sozinha para a sala, enquanto ele subia os degraus que acabara de descer.
No alto da escada, Sebastian rumou para a biblioteca, onde, acima da lareira, ficava o retrato da tão querida Charlotte. Mesmo na superfície plana da tela, os olhos azuis de sua finada esposa davam a impressão de cintilar, e os sedosos cabelos ruivos, presos no alto da cabeça com algumas mechas soltas sobre os ombros, pareciam tocados pela aragem enquanto ela, no jardim, detinha-se para lhe endereçar um sorriso.
Ainda se lembrava perfeitamente bem da voz, do riso, dos carinhos de Charlotte... Assim como também se recordava dos últimos dias dela, da pele esmaecida e ressequida, dos olhos sem vida, do sorriso que era apenas uma máscara com o propósito de alentá-lo. O que não conseguia trazer à memória era a última vez em que Charlotte estivera em seus sonhos. Por meses a fio, sonhara com ela noite após noite e, se não fosse por Peep ou pelos irmãos, teria preferido nunca mais despertar. Depois ela começara a visitá-lo com menos regularidade, porém ainda amiúde. E então... Quando fora que os sonhos haviam se interrompido? E por que, nas últimas cinco noites, sonhara com outra pessoa?
Recompondo-se, foi para seu gabinete e ali escreveu uma breve mensagem a lorde Beltram, um dos secretários para os arquivos públicos. Se havia alguém capaz de descobrir o atual paradeiro de John Rice-Able, esse alguém era Beltram. Antes que permitisse ao seu coração se enredar nos meandros da paixão, precisava entender por que o que era um paraíso para uma pessoa não passava de um charco infestado de insetos para outra.

- Não estou entendendo. - Conchita travou o fecho do colar de pérolas ao redor do pescoço de Josefina. - Então agora há dois duques a cortejá-la?
- Não. - Após uma última olhadela no espelho, ela se levantou. - Oficialmente, ninguém está me cortejando.
- E não oficialmente?
- Extra-oficialmente, acho que um deles quer se casar comigo e o outro quer me levar para a cama. - Ao ver a criada fazer um ar horrorizado, indagou: - Você é ou não é minha confidente?
Conchita se curvou numa mesura antes de afirmar:
- Claro que sou.
- Então, conto tudo isso para que você saiba o que está acontecendo. E também porque tenho certeza de que não irá dizer nada disso a ninguém.
- Eu jamais faria isso, Vossa Alteza.
Após acenar com a cabeça num gesto aquiescente, Josefina desceu para o hall de entrada do casarão, onde o duque de Harek esperava por ela.
- Você está mais linda do que qualquer outra criatura existente na face da Terra. - Dito isso, Harek curvou reverentemente.
- Obrigada, Vossa Graça. Vamos indo? Não vejo a hora de conhecer o teatro.
Harek ajudou-a a entrar na carruagem, em seguida fez o mesmo com Conchita e, por fim, acomodou-se no veículo ao lado delas. O coche partiu tão logo a porta se fechou.
- Você costumava ir ao teatro na Jamaica?
- Sempre que possível - respondeu Josefina. - Se bem que, nos dois últimos anos, estivemos todos muito atarefados.
- Eu também tenho andado sedento por cultura.
- Nesse caso, imagino que nós dois iremos nos divertir muito.
- Diga-me: quando seu pai volta da Escócia, Vossa Alteza? Confesso que estou ansioso por conhecer o rey e dar início aos meus trabalhos como intercessor para os assuntos de Costa Habichuela.
- Você já está trabalhando a nosso favor só em fazer com que eu seja vista. Quanto ao rey, deve estar de volta a Londres no final da semana que vem. Temos de providenciar a compra de provisões para a viagem de regresso à América Central.
- Espero que haja espaço no navio para passageiros extras - afirmou Harek com um sorriso. - Tenho certeza de que vários bretões estão interessados em começar vida nova do outro lado do oceano, na companhia de... bem, da pessoa adequada.
- Isso é meu pai quem irá resolver. - Josefina tornou a suspirar. Se ele quisesse deixar suas intenções ainda mais claras, iria ter de tirar um padre do bolso do paletó.
- Certamente. - E, mudando de assunto, ele pôs-se a falar da caça a raposa na Inglaterra.
Enfim a carruagem parou, e Harek foi o primeiro a saltar para o chão.
Uma infinidade de veículos tomava a rua no quarteirão em que ficava o teatro. Assim que entraram, havia tantas pessoas no saguão e galgando a escadaria central, que parecia impossível encontrar um lugar onde pôr os pés. Princesa, duques, cavaleiros, comerciantes abastados, ninguém ali parecia ter espaço nem para respirar normalmente. Porém de súbito se abriu um caminho diante dela.
- Por aqui, Vossa Alteza - anunciou o duque de Melbourne, oferecendo-lhe o braço.
Ao aceitá-lo, Josefina percebeu de rabo de olho que o irmão do duque, Charlemagne, se achava junto dele. Naquela noite Sebastian estava todo de preto, a não ser pela gravata em estilo plastrão imaculadamente branca, e o resultado era... hipnótico. Que o dissessem as damas que pareciam devorá-lo com os olhos.
- É sempre assim tão cheio, Melbourne? - Enquanto subia os degraus ao lado dele, Josefina reparou que multidão se afastava para lhes dar passagem e, pela primeira vez desde que aquilo tudo começara, sentiu-se uma princesa de verdade.
- Você é o assunto do momento na alta sociedade. Todos querem conhecer os Embry que estão trazendo tanta prosperidade a Londres. E pode me chamar de Sebastian, se preferir.
- Vamos ver - retrucou, toda arrepiada.
Lá em cima a aglomeração não era tão compacta, tanto que dava até para reconhecer pessoas que ela já conhecia de outros eventos. Enquanto avançavam por um corredor bem menos apinhado de gente, Josefina deu uma espiadela por cima do ombro e constatou que Harek e Charlemagne vinham logo atrás, com Conchita a poucos metros de distância dos dois.
- Sempre tive alguém por companhia - comentou, olhando Sebastian de soslaio. - É por isso que seu irmão está aqui hoje? Para proteger você?
Os lábios dele se curvaram num sorriso de parar o coração.
- Meu irmão está aqui para manter Harek ocupado caso você queira que eu lhe mostre um espaço reservado.
- E se eu não quiser?
- É você quem sabe.
- Você é sempre tão seguro de si, não?
- Isso você terá de descobrir. - Aprumou-se. - Chegamos. Você primeiro, por favor. - Afastando a majestosa cortina vermelha, esperou que ela entrasse no seu camarote privativo.
Josefina teve a sensação de penetrar num outro mundo. Aquele teatro era no mínimo três vezes maior do que o que havia freqüentado em Morant Bay, e as fileiras que compunham a platéia lá embaixo mais pareciam um reluzente e multicolorido oceano.
- Vossa Alteza e Harek ficam com as poltronas dianteiras - Sebastian ia dizendo. - Shay e eu nos curvamos à sua popularidade.
Havia três poltronas na parte da frente do camarote voltada para o palco e outras quatro atrás, sendo que Conchita já havia se instalado na que proporcionava a pior visão do palco, num dos cantos da primeira fileira.
- Venha. - Sebastian ajeitou a poltrona para ela, em seguida lhe soprou no ouvido: - Vai ter de me imaginar sentado às suas costas, admirando-a, contemplando o delicado contorno da sua orelha.
Josefina, que queria sentar-se junto dele, girou o pescoço para encará-lo.
- Decerto mal me lembrarei de que você está aqui.
- Mentirosa.
Ela sentiu os pelos da nuca se eriçarem. Fossem quais fossem as diferenças que tinha com Melbourne, Harek obviamente estava satisfeito como um gato com uma bola de lã por ser visto ao lado dela na primeira fileira do melhor camarote do teatro. Atrás dos dois, Sebastian e Charlemagne falavam em voz baixa de uma festa de aniversário com acrobatas.
- Deixe-me avisá-la: além dessa peça ser um inferno de longa, o intervalo deve ocorrer duas horas após o início da apresentação - sussurrou Harek. - Por isso, pegar no sono não é nenhum pecado... desde que não caia da cadeira.
- Isso não me preocupa, mas de qualquer modo, obrigada pelo aviso.
Enquanto ele se debruçava sobre a mureta do camarote para cumprimentar alguém na platéia, Josefina se inquietou ao ouvir o irmão do duque de Melbourne resmungar a palavra "palhaço". Não que também não achasse Harek um palerma, opinião provavelmente compartilhada por toda a alta sociedade londrina; só não queria que aquele tipo de comentário chegasse aos ouvidos da sua família.
Em poucos instantes, as cortinas se ergueram, a peça teve início e ela se recostou ao espaldar da poltrona.
Vinte minutos depois, ao escutar um ronco, Josefina virou-se para deparar com Harek afundado na poltrona, os braços cruzados sobre o peito e a cabeça tombada para trás. Bem, agora era rezar para que ele não cometesse o pecado de escorregar para o chão... A ironia, porém, não parecia boa companhia no momento, especialmente quando Melbourne por certo se achava com todos os sentidos mais do que alertas. Droga, não tinha a menor vontade de ficar sentada ao lado de um palhaço roncador por quatro horas a fio... sobretudo se pudesse passar alguns instantes desse espaço de tempo sendo beijada por um homem que fazia seu sangue arder de desejo. Levantou-se.
- Dêem-me licença por uns minutinhos, sim? - sussurrou, seguindo para os fundos do camarote enquanto Conchita se punha em pé.
- Vou lhe mostrar o caminho. - Sebastian também se ergueu. - Quer um cálice de vinho do Porto, Shay?
- Sim, obrigado. - Após se erguer à passagem da princesa, Charlemagne tornou a se sentar. - Vou ficar de olho no nosso convidado, assim se evita que ele venha a perder o equilíbrio e acabe escarrapachado no carpete.
Josefina pestanejou um par de vezes ao deixar o camarote, pois o corredor iluminado pela luz de velas parecia muito mais claro em comparação com a penumbra que imperava no interior da sala de espetáculos.
- Por aqui. - Sebastian guiou-a até um dos cubículos reservados, porém se deteve diante do cortinado para indagar à criada: - Como você se chama?
- Conchita, Vossa Graça.
- Conchita, você vai ficar esperando ali. - Mostrou um ponto junto à parede a um metro e meio de distância. - Está bem assim?
Ela olhou para Josefina.
- Faça como ele pediu, Conchita.
Depois de fazer uma mesura, a moça foi se colocar no lugar indicado. Sebastian então deu uma olhadinha pelo corredor, em seguida abriu uma fresta na cortina rubra como sangue.
- Você primeiro, por favor.
Mesmo se quisesse opor-se à vontade dele, Josefina não resistiu àquele tom de voz. Sem nada dizer, entrou na pequena câmara e, logo em seguida, ouviu o cortinado carmim voltar a se fechar. Ali dentro, a voz dos atores no palco vinha filtrada pelas paredes e tapeçarias do teatro: Ultimamente, milorde, ele tem me dado muitas demonstrações de ternura.
- Tenho de dizer, - sussurrou Josefina, fitando-o à claridade da única vela que iluminava a minúscula alcova - que isto é muito atrevimento da sua parte.
Após sustentar por alguns instantes o olhar que o sondava, Sebastian se aproximou um passo, e a desconcertante sensação que havia se apoderado dela por pouco não se transformou numa vertigem. Por Deus, crescera rodeada de soldados e das estúpidas tentativas que eles faziam para seduzi-la; então por que o modo como o duque de Melbourne a encarava fazia seus joelhos amolecerem?
Poderia dizer a si que era porque precisava contar com a colaboração e a influência dele, só que em nenhuma outra das aventuras em que se engajara havia se sentido daquela maneira.
- Você sabe quem é John Rice-Able? - Sebastian a interpelou.
- Como? Ora, não estou aqui para ser questionada. - Correu um dedo pela lapela do paletó aveludado. - Beije-me... Ou então vá embora, para que eu possa retornar ao camarote.
- Isso é um "sim"?
Ele estava tão perto, que Josefina tinha de levantar o rosto para poder olhá-lo nos olhos. As mechas castanhas sobre o colarinho, a boca bem feita... Se ao menos aqueles olhos tão intensos não atormentassem seu íntimo do mesmo modo como provocavam seu corpo.
- Não, não conheço nenhum John Rice-Able. Por quê? Ele faz investimentos?
- Escreve livros. Pensei que vocês se conhecessem.
- Não. - Incapaz de se conter, ela passou os dedos pela manga do paletó dele. Era tão difícil não tocá-lo...
- Está com ciúme desse indivíduo?
- Não, já que vocês não se conhecem. - Segurando no queixo altivo, Sebastian baixou o rosto em direção ao rosto dela e, quando suas bocas estavam prestes a se tocarem, deteve-se. - Diga o meu nome.
- Melbourne.
- Não. O meu nome de batismo.
- Sebastian - ela murmurou num sopro de voz.
Ele a beijou. Enlaçando-o pelo pescoço, Josefina sentiu-o empurrá-la de encontro à parede para então agarrá-la pelos quadris e apertá-la contra o corpo como se disso dependesse para continuar vivo.
- Quero mais - ela sussurrou, pela primeira vez não se importando em fingir sinceridade ou premência na voz. - Quero você, Sebastian.
Sem nada dizer, ele levou uma das mãos até o ombro dela para, num movimento ansioso, empurrar a alça do vestido bordo para o braço todo trêmulo. E, ainda em silêncio, refez com os lábios o percurso afogueado que antes executara com a ponta dos dedos.
Baixando a alça do vestido até o cotovelo, ele expôs um seio alvo e roliço e, por alguns instantes, ficou a admirar o colo que palpitava de desejo. Por fim, comentou com a voz embargada:
- Faz muito tempo que eu não... - Mas não soube como terminar.
A solidão e a urgência contidas naquela confissão calaram fundo no coração de Josefina. Era isso o que tanto temia: que o duque fosse querer mais do que ela tinha para dar. No entanto, já havia pulado no fogo, e sua pele estava em brasa.
- Para mim, faz uma vida inteira - murmurou.
Ele tornou a beijá-la, e Josefina suspirou. Aqueles dedos ágeis, que faziam lembrar o toque de plumas, começaram a desenhar círculos cada vez menores ao redor do seu mamilo, até irem pousar sobre o bico rijo para afagá-lo em carícias lancinantes. Carícias que pareciam se refletir na região entre suas pernas. Ela estremeceu ante a excitação que a assaltava.
- Diga-me onde irá morar em São Saturus - ordenou Sebastian, antes de deslizar a boca pelo ombro dela e ir mordiscar o mamilo túmido.
- Oh... Deus... - Enfiou os dedos por entre os cabelos dele. - Por quê?
- Porque quero ouvi-la falar disso.
- Estive lá só... oh, uma vez. - Suas pernas ameaçavam dobrar-se enquanto ele, após afastar a alça do seu ombro esquerdo, punha-se a acariciar seu outro seio também.
- De que cor é a casa?
- Branca... Pedras brancas, com janelas... humm, janelas altas que... que deixam entrar a brisa do mar.
- Quantos cômodos?
Por acaso ele estava pensando em se mudar para lá? Oh, tomara que sim, especialmente se quisesse afagá-la daquela maneira noite após noite.
- Quantos? Mais de uma centena... Para alojar a guarda real... e o gabinete de ministros.
Sebastian se aprumou e, sem deixar de afagar um seio sequioso de carícias, murmurou de encontro aos lábios que ansiavam por outro beijo:
- Quer saber de uma coisa?
- Diga - pediu Josefina no mesmo tom, pressionando o colo contra a mão dele.
- Acho que você está mentindo. - E, depois de um beijo quase bruto, levou as tiras do vestido de volta ao lugar delas antes de se afastar.
Tomada de um misto de surpresa, desejo e frustração, Josefina indagou:
- Como? Do que está falando?
- Ainda não sei muito bem o quê, mas algo de muito estranho está acontecendo.
- O que está acontecendo, seu canalha - ela ajeitou o vestido -, é que você acaba de provar que não vale nada. - Passando por ele, estendeu o braço para a cortina.
Dura e pesada como se feita de chumbo, a mão de Sebastian desabou sobre o ombro dela.
- Ainda não terminamos. - Obrigou-a a se virar.
- Como faz isso?
- Faço o quê? - Josefina soltou-se com um repelão. - Não sei do que...
- Como faz com que eu deseje você como louco? É seu perfume? Alguma poção que passa na pele? O que...
- Então acha que precisa ser dopado para se sentir atraído por mim? Nossa conversa termina por aqui, senhor. - Tornando a se virar, abriu o cortinado com um puxão e saiu para o corredor.
- Vossa Alteza? - Conchita correu ao encontro dela.
- Está...
Josefina passou pela criada como um raio. Queria fugir dali, de Londres, do próprio corpo, ainda sensível e ardente por causa dos carinhos dele. Oh, naquele instante odiava Melbourne com todas as forças e ainda assim o desejava como nunca. Maldição! Maldição dos infernos!
Sebastian tornou a fechar a cortina. Em nome da decência, precisava ficar mais alguns minutinhos ali. Deus, ela o deixava loucamente excitado, e ainda que seu lado lógico e prático estivesse pronto para dar um fim àquele tête-à-tête antes que algum estrago de maiores proporções se consumasse, tudo o que seu corpo queria era levar aquele contato íntimo às últimas conseqüências.
A princípio, bem que pretendia seguir adiante, ir até onde fosse preciso para descobrir o que havia na princesa e a respeito de Costa Habichuela que tanto o intrigava. Mas então, antes mesmo do que supunha, ela fizera uma afirmação que soava absolutamente falsa. Por que São Saturus, uma cidadezinha pitoresca com uma população basicamente de nativos e apátridas ingleses, segundo observações da própria Josefina e do pai dela, haveria de ostentar um monumental palácio de pedras brancas com mais de uma centena de cômodos? O rei Mosquito não residia lá, caso contrário não teria dado tamanho tesouro de mão beijada. E se tivessem conhecimento de uma propriedade de tais dimensões debruçada sobre uma resguardada enseada oceânica, os espanhóis por certo teriam enviado suas tropas para conquistá-la.
Ou talvez ela tivesse exagerado só para impressioná-lo. Possivelmente o suntuoso palácio não passava de uma pequena villa com um décimo dos aposentos que Josefina mencionara. Provavelmente a brisa marinha era aprazível e relaxante como ela e o livreto afirmavam. E decerto ele era um idiota procurando motivos para desconfiar da mulher por quem sentia profunda atração.
Após murmurar uma praga, abriu a cortina e, de pronto, um brilho cor de creme no carpete chamou sua atenção: o colar de pérolas que Josefina evidentemente deixara cair. Abaixando-se, enfiou a jóia no bolso antes de ir procurar um lacaio e alguns cálices de Porto.
Quando ele retornou ao camarote, Josefina tinha se acomodado novamente ao lado do ainda adormecido Harek. Com um suspiro, entregou um dos cálices ao irmão e se sentou.
- Por que demorou tanto? - Charlemagne se apressou em perguntar.
- Pedi que providenciassem uma garrafa de outra safra, pois me recuso a tomar aquela beberagem aguada que é servida aqui. - Antes que o irmão insistisse no assunto, tirou o colar do bolso para examiná-lo por um instante.
- O que...
- Shh. - Inclinando-se, Sebastian roçou os lábios na orelha esquerda da princesa. - Acho que isto é seu. - Então passou o braço por entre as poltronas para lhe entregar a jóia. - Guarde-o na carteira. Não ficaria bem se alguém a visse arrumando-se em público.
- Obrigada, Vossa Graça. - Mas à firmeza da voz se contrapunha o tremor da mão dela.
Ao perceber que Charlemagne continuava olhando para ele, Sebastian, recostando-se ao espaldar da poltrona, explicou:
- Ela o deixou cair.
- Sei.
Durante o intervalo, Josefina sorriu a torto e a direito e trocou palavras com enlevados conhecidos como se o duque de Melbourne não tivesse lhe arrancado gemidos e parte da roupa no decorrer da primeira parte da apresentação. E sempre com o cuidado de manter Harek ou Charlemagne, quando não os dois, entre ambos. Estaria mais irritada por não ter sido plenamente seduzida ou por que fora pega numa mentira? Bem, isso era algo que, mais cedo ou mais tarde, ele iria descobrir.
Capítulo III

Ao tomar seu assento na Câmara dos Lordes na manhã seguinte, Sebastian teve de dissimular um bocejo. E, com as energias minadas pelas quatro horas de tragédia dinamarquesa seguidas por outras seis de insônia, nem esperou o término das discussões acerca da nova rodada de gastos do príncipe regente para bater de leve no ombro do cavalheiro sentado logo abaixo dele. O nobre se virou.
- Melbourne.
- Lorde Beltram. Por acaso recebeu minha requisição?
- Recebi, sim. E já localizei a pessoa que está procurando. - Tirou um pedaço de papel dobrado em quatro do bolso interno do paletó. - Aqui está. Ele mora em Eton. Na verdade, leciona lá.
- Muito obrigado. - Tomando o papel, Sebastian o desdobrou para conferir o endereço. - Você me poupou de uma série de diligências.
- Então talvez não vá se incomodar em me apresentar àquela comitiva real centro-americana quando eles regressarem a Londres. A noventa libras por apólice, vou resgatar empréstimos que fiz na Itália para adquirir títulos públicos de Costa Habichuela. Que quantidade você já comprou? Meio país, aposto, visto que praticamente tem o rey na palma da mão.
- Irei apresentá-los a eles, William - respondeu Sebastian com cautela. Se suas suspeitas fossem infundadas, não podia correr o risco de afugentar os investidores de que o recém-fundado país tanto necessitava. - Mas você está sabendo que Harek assumiu o posto de intermediário para os assuntos daquela nação, não? Mal tenho tido tempo para cuidar dos meus próprios assuntos.
- Ah, certamente. - O olhar de Beltram deslocou-se para alguém às costas dele. - Lorde Deverill.
- Beltram, Melbourne - cumprimentou o marquês com um tapa no ombro do cunhado.
- Valentine. - Virando-se, Sebastian olhou-o de cima a baixo. - Não é um pouco cedo demais para você?
- Ah, você nem imagina... - Largou-se sobre sua cadeira. - Os dentinhos de Rose estão nascendo, e Eleanor cismou que banhos em água de lavanda irão acalmar a pequenina, o que me levou a decidir que no momento a Mansão Corbett é o lugar mais barulhento de toda a Grã-Bretanha.
Rindo, Sebastian lembrou:
- Você foi avisado de que a vida em família tem seus perigos.
- Sim, eu sei. E a verdade é que adoro tudo isso na maior parte do tempo. Mas, por falar em idiotas, parece que Harek vai levar a princesa ao Tattersall hoje.
- Estávamos falando de idiotas?
- No fundo, idiota devo ser eu, que ainda não entendi por que um monarca à procura de contatos e investidores deixou o intermediário para seus negócios, cuidando da filha dele e foi para a Escócia.
- Porque a melhor maneira de legitimar um governo recém-instituído é casá-lo com um fundado há muito tempo já consagrado e muito respeitado.
- Você já sabia, não é? Desde o início já tinha percebido que tentavam manobrá-lo em direção ao altar.
- A estratégia não foi o que se poderia chamar de sutil.
- Mas então por que continua a valsar com a atrevida? Por que teve de levá-la ao teatro?
- Independentemente de certas reservas, não tenho por que dissuadir investidores dispostos a comprar títulos de Costa Habichuela. Se eu cortar todos os vínculos com a comitiva real, é o que vai acontecer.
- É bom ouvir isso. Assim que sair daqui, vou enviar meu contador ao banco para comprar cem apólices. Agora que tenho família, quero um investimento seguro, de longo prazo.
Com mil demônios.
- Valentine, espere mais um pouco, sim?
- Ah! Eu sabia. Que raios está acontecendo?
- Talvez nada, mas o fato é que já conduzi negócios o suficiente para saber que quase nada no mundo não têm suas desvantagens ou inconveniências. Ainda estou tentando descobrir quais são os pontos fracos de Costa Habichuela.

Sentada no banco que Harek havia escolhido a vários metros de distância do cercado onde se realizava o principal leilão de cavalos de raça em Tattersalls, Josefina, que dava atenção a todos os que vinham cumprimentá-la, obrigou-se a sorrir para o rapaz muito bem vestido que só faltava se ajoelhar a seus pés.
- Comprei duas apólices ontem - dizia ele, completamente alheio ao duque em pé junto ao banco e ao tenente May, um ostensivo guarda-costas todo trajado de preto. - Vocês tencionam vender lotes de terras? Li o livreto e devo confessar que prefiro me arriscar a ser um proprietário rural em Costa Habichuela a contar com a caridade do meu pai e do meu irmão mais velho.
- Esse é o filho caçula do marquês de Bronshire - cochichou Harek, curvando-se sobre ela. - Tem cinco irmãos mais velhos.
- O rey não planejou esse tipo de empreendimento para esta visita à Inglaterra - retrucou Josefina, ainda sorrindo -, mas vou dizer a ele que temos um interessado em nossas terras.
- Fale de mim também, Vossa Alteza! - gritou alguém no meio da aglomeração que a cercava.
- E de mim!
- Também estou interessado! Um dia destes ainda troco esse maldito emprego de ficar limpando sujeira de cavalo por um bom lote de terras e brisas vindas do mar!
Todos caíram na risada. Deus do céu! Como era possível que alguém estivesse disposto, ávido até, a trocar uma vida em família por um cantinho qualquer num lugar indômito e desconhecido? Mas antes que encontrasse uma boa resposta para suas indagações, Josefina se levantou ao ver o trio de damas que se aproximava.
- Lady Caroline, lady Sarala - cumprimentou-as, inclinando a cabeça. - E essa deve ser a cunhada de vocês, lady Deverill.
A marquesa de cabelos castanhos fez uma mesura, um gesto discreto, porém respeitoso, que de pronto fez Josefina lembrar-se do irmão mais velho dela.
- Estou muito contente por enfim conhecê-la, Vossa Alteza. Acho que sou a última pessoa em Londres a fazê-lo. - Lady Deverill colocou-se ao lado das cunhadas. - Não gostaria de descansar um pouco e almoçar conosco?
- Não é má idéia - respondeu Josefina, tentando não parecer ansiosa por escapar dali. - Vossa Graça, vou deixá-lo à vontade para examinar aqueles dois bois que está pensando em adquirir.
Harek fez uma reverência.
- Minha carruagem está à disposição, damas.
- Obrigada - agradeceu a marquesa com um sorriso que não se expressava em seus olhos -, mas temos nosso próprio meio de transporte. Vossa Alteza, por aqui, por favor.
Enquanto abriam caminho por entre a multidão, Conchita e o tenente May colocaram-se nos calcanhares delas. A escolta de uma criada e de um guarda-costas no momento parecia excessiva, assim Josefina fez um sinal para que Conchita se aproximasse.
- Você e o tenente May podem retornar à residência dos Branbury. - Ergueu a voz. - Certamente uma dessas damas tão amáveis cuidará para que eu chegue bem em casa.
- É claro, Vossa Alteza.
Ao ver a criada ir ao encontro do tenente May, Josefina voltou sua atenção às jovens damas que agora a acompanhavam.
- Melbourne pediu para vocês virem até aqui? - Odiava aquele homem e odiava ainda mais ter sonhado a noite inteira com as mãos e os lábios dele a acariciarem.
- Por Deus, não. - A marquesa se deteve junto a uma luxuosa carruagem com o brasão amarelo dos Deverill pintado no painel da porta. - Carol e Sarala não paravam de falar de você, e eu queria conhecê-la.
Josefina deixou que o cavalariço a ajudasse a subir no veículo enquanto afirmava:
- Embora meu país se beneficie do alvoroço que minha presença possa causar, preciso admitir que ter tantas pessoas à minha volta às vezes é... desconcertante.
- Todos adoram você, não é mesmo? - comentou Sarala com um sorriso.
Detectando um sotaque estrangeiro no falar da dama, ela indagou:
- Se me permite a curiosidade, você não é daqui, é? Digo, de Londres?
- Cresci na índia e, devo confessar, não enfrentei a alta sociedade de Londres com tanta bravura como você - explicou a esposa de Charlemagne. - Shay me contou que você tinha um mar de admiradores no teatro ontem.
Um deles com a boca em seus seios... Josefina se obrigou a retornar à realidade. Aquelas damas eram Griffin ou de nascença ou por intermédio do casamento, e Melbourne a chamara de mentirosa; seria muita infantilidade presumir que tivesse sido convidada para almoçar na companhia delas por mera questão de delicadeza.
- Todos têm sido muito gentis comigo - assinalou.
- Pretende morar em Costa Habichuela? - quis saber Caroline, sentando-se ao lado dela enquanto as cunhadas se acomodavam no coxim voltado para o assento das duas.
- É meu lar; é natural que eu queira morar lá. - A carruagem se punha em movimento.
- Tenho de lhe contar que Shay ficou fascinado com a brochura que vocês deram a Melbourne - comentou Sarala.
- Fico contente que ele tenha gostado do livreto. Costa Habichuela é um lugar extraordinário.
- A julgar pelo que ouvi minutos atrás, inúmeros bretões estão muito interessados em ir para lá. - Lady Deverill a mirava com olhos da mesma cor do que os do irmão, porém muito mais calorosos do que os dele. - Vocês já pensaram em abrir Costa Habichuela à imigração?
- Creio que o rey quer avaliar o impacto de um incremento de cidadãos e terras cultivadas antes de tomar uma decisão.
- Uma abordagem muito sensata - condescendeu Sarala. - Economia é um dos meus passatempos.
Que maravilha.
Só lhe faltava ter de responder a perguntas para as quais não se sentia preparada. - Não posso deixar de indagar - interveio a marquesa, como se só esperando pela oportunidade. - por que foi que você esbofeteou meu irmão. Ou muito me engano ou ninguém nunca teve coragem para fazer uma coisa dessas.
- Melbourne mandou uma carruagem ir me apanhar quando havia se comprometido a ir me buscar pessoalmente, o que poderia denegrir a primeira impressão que as pessoas teriam de mim e do meu país. - A verdade não faria mal a ninguém. - De mais a mais, acho que qualquer mulher se magoaria ao saber que o belo homem que havia se oferecido para acompanhá-la, simplesmente não se deu ao trabalho de aparecer. E, perdoem-me a sinceridade, ele continua sendo um tanto arrogante e muito rude comigo. Não sei por quê, ainda mais tendo em vista que o duque faz questão de se mostrar extremamente gentil com todas as pessoas que cruzam o caminho dele.
Já pronta para contar que elas três também já tinham sofrido com as oscilações de humor de Sebastian, Eleanor mudou de idéia e afirmou:
- Melbourne é tido como um homem inescrutável.
- Inescrutável? - A princesa sorriu. - Tendo em vista que ele é seu irmão, não vou acrescentar outros adjetivos à descrição.
- Você é mesmo uma autêntica diplomata - observou Caroline, e as quatro deram risada.
Um veículo emparelhou à carruagem e, ao examiná-lo de rabo do olho, Eleanor reconheceu a imponente carruagem negra com o brasão escarlate dos Griffin na porta. Era só o que faltava. Erguendo o olhar à janela que tinha o cortinado aberto, deparou com Sebastian a encará-la, o semblante quase sempre inescrutável com um ar de profunda irritação.
- Oh, céus - murmurou Caroline. - Ele não parece nem um pouco satisfeito.
Ainda que com a respiração presa, Eleanor tratou de sorrir.
- Problema dele. O duque de Melbourne não vai nos enxotar das ruas. - E acenou para o irmão mais velho.
- Nell, não o deixe ainda mais irritado - advertiu Sarala num sussurro.
Após seguir alguns metros ao lado delas, Sebastian bateu de leve no teto da carruagem e, de imediato, o veículo entrou na rua transversal à em que estavam. Eleanor exalou o ar dos pulmões. Graças a Deus.
- Peço desculpas se minha presença aqui com vocês lhes causou algum transtorno - afirmou Josefina. - Sei que Melbourne não simpatiza comigo.
- Tolice, ele antipatiza com quase todo mundo. Não leve isso a sério.
- Obrigada, lady Deverill. -A princesa sorriu.
- Trate-me por Eleanor, sim?
Embora desse a entender que fosse fazer algum outro comentário sobre o ocorrido, a princesa pôs-se a falar do tempo.
Aproveitando para perscrutar a fisionomia dela, Eleanor concluiu que, se Sebastian já era difícil de decifrar, aquela jovem não parecia muito mais fácil. Mas, a menos que estivesse redondamente enganada, Josefina Embry achava seu irmão no mínimo atraente.

Desistindo pela quarta vez de tentar terminar de ler aquele parágrafo, Sebastian tirou os olhos do jornal para indagar:
- O que está fazendo?
- Veja. - Sentada ao lado dele, Penélope tentou lançar um cubo de açúcar na xícara de chá usando uma colher como catapulta.
O torrão foi se chocar contra o jornal dele.
Diabos.
- Não ponha tanta pressão no cabo da colher - sugeriu ele antes de retomar a leitura.
Segundo o London Times, a princesa Josefina Embry, de Costa Habichuela, havia agraciado Carlton House com sua presença na véspera, onde almoçara com Prinny e o duque de Harek. Um dia antes ela fora a Greenwich para um passeio num dos navios da Esquadra Real. Londrinos de todas as camadas sociais estavam encantados com ela; as moças atiravam pétalas de rosas a seus pés, os homens lhe entregavam cartas com propostas de casamento.
Todo cidadão com um xelim de reserva parecia ávido por investir no "Condado da Inglaterra", como o povo começara a se referir a Costa Habichuela.
- Quanta besteira.
- Como, papai?
- Nada, querida. Eu estava lendo uma notícia a respeito da princesa Josefina.
- As titias a levaram para almoçar há alguns dias. - Outro projétil atingiu o jornal. - Mas não me convidaram.
- Quem sabe suas tias não levam você junto da próxima vez, não é? - Sebastian baixou o periódico. - Além do quê, a família de sua tia Caroline chega a Londres amanhã, e você por certo irá querer visitá-los.
- Sim, só que eles não são príncipes.
- Lamento, Penélope, mas quanto a isso não posso fazer nada.
- Mary Haley disse que você pediu a princesa em casamento e que ela disse "não" porque você é só um duque e que foi por isso que você se demitiu do posto de intermediário.
Dobrando o jornal, ele o deixou de lado.
- Estou começando a suspeitar de que Mary Haley seja uma fofoqueira e que você passa tempo demais na companhia de...
A porta da sala do desjejum se escancarou.
- Eu estava rezando para encontrá-lo em casa. - Charlemagne entrou com um punhado de livros nos braços.
Penélope se levantou.
- Mary Haley não é fofoqueira; é minha amiga, e é por isso que me conta tudo o que tenho de saber. Agora, com a sua licença, vou dar de comer aos marrecos do parque. - Sem mais, deixou a sala estalando os sapatinhos no chão.
Ora essa. Não lhe faltava mais nada.
- Interrompi alguma coisa? - Charlemagne largou os livros sobre a mesa.
- Só uma divergência de opiniões. - Fez sinal para um dos criados ao lado do aparador. - Tom, vá se certificar de que a sra. Beacham irá acompanhar lady Penélope ao parque.
- Pois não, Vossa Graça. - O moço se foi como se tivesse rodinhas nos pés.
- Muito bem, Shay, o que houve?
Sem perguntar se ele já tinha terminado o café da manhã, Charlemagne empurrou todos os pratos para a outra ponta da mesa e foi se sentar na cadeira em frente à que Penélope havia se sentado. Em seguida, puxou cerca de meia dúzia de livros para perto, a fim de deixá-los ao alcance da mão.
- Dê uma olhada nisto, Seb.
- É o livreto sobre Costa Habichuela.
- Sim e não.
- Como assim?
Abrindo um dos livros, Charlemagne folheou algumas páginas até encontrar o que queria.
- Leia esse trecho da brochura em voz alta, Seb. - Então ajeitou o outro livro à sua frente.
- "Embora se imagine que a proximidade com a linha do Equador possa deixar o clima insuportavelmente quente abafadiço o ano inteiro, Costa Habichuela é abençoada com uma larga extensão de..."
- "... de terras litorâneas que, tarde após tarde, acolhem a aragem aprazível e refrescante vinda do Oceano Atlântico. Essa brisa tem o efeito de tanto reanimar como rejuvenescer a população, além de propiciar a entrada e distribuição dos ventos alísios procedentes de praias remotas, um assunto que será tratado em profundidade no final deste capítulo ". - Charlemagne fechou o livro, empurrando-o para o irmão.
Perplexo, Sebastian ficou olhando para o título impresso na capa de couro do exemplar por alguns instantes antes de afirmar:
- Isso... - Limpou a garganta, que sentia subitamente ressequida. - Isso é um estudo sobre a Jamaica.
- Encomendado pelo rei George II, com data de setenta e cinco anos atrás. - Charlemagne tornou a apanhar o livreto sobre Costa Habichuela para folheá-lo com um ar irônico. - Eu tinha certeza de que já havia lido isto em algum outro lugar.
- Talvez o rey não tenha o dom de colocar idéias no papel. - Sebastian ouviu-se dizer. - Tomar emprestado alguns...
- São capítulos inteirinhos, Seb. Tudo o que era oeste virou leste, o nome do rio e das cidadezinhas foram trocados, porém o mais é idêntico. Os alísios até sopram na direção errada só para se adaptarem à localização do país. - Pegou outro livro. - Quer ler a respeito da população? Está tudo neste aqui, Um Exame Cultural das índias Ocidentais. E o...
- Já basta, Shay. Entendi o que está querendo me dizer. Não há uma só palavra original na brochura.
- O que me leva a indagar como Costa Habichuela é na realidade.
- Acho que vou ter de perguntar. - Sebastian se pôs em pé. - Com licença.
- O rey ainda não voltou da Escócia. - Também se levantando, Charlemagne juntou os livros numa pilha.
- Mas a princesa está aqui. - Ao ver que o irmão fazia menção de acompanhá-lo, Sebastian declarou:
- Vou sozinho.
- Você vai é perder a sessão no Parlamento se não for para lá agora mesmo.
Antes de deixar a sala, Sebastian disparou por sobre o ombro:
- Ao diabo com o Parlamento.
Josefina fez sinal para o mordomo do coronel Branbury, afirmando assim que ele se acercou:
- Grimm, dispense quem mais chegar, por favor. Diga-lhes que volte amanhã.
- Pois não, Vossa Alteza. Devo pedir à cozinha que providencie mais chá e bolo?
- Sim, obrigada. - Ao menos enquanto comia, a horda de visitantes não falava, e o ar na sala de visitas talvez se tornasse um pouco mais respirável.
- Vossa Alteza - lorde Ausbey se curvou com tamanha reverência que o alto de sua cabeça coberta por caracóis loiros quase chegou a tocar o carpete. - Não tenho palavras para lhe expressar minha gratidão por me receber nesta manhã. Sou um dos seus mais ardentes admiradores. A bem da verdade, até escrevi um poema para declarar a profundidade dos meus sentimentos. - Tirou um pedaço de papel do bolso interno do paletó verde-musgo.
- Adoraria ouvi-lo, lorde Ausbey. - Josefina correu a colocar a mão sobre o braço dele a fim de impedi-lo de desdobrar o papel. - Mas tenho de...
- Por favor, Vossa Alteza, trate-me por Adam. Há muito espero ouvir meu nome em seus lábios.
Com um sorriso chocho, ela soltou o braço do aristocrata.
- Assim você me envaidece, lorde Ausbey. Agora peço que me dê licença, por favor. Preciso dar atenção aos demais. - Sem mais, deu-lhe as costas para abrir caminho em meio ao mar de admiradores e desocupados.
Interceptando-a, Conchita pôs-se a afofar disfarçadamente as mangas do vestido cor de creme que ela usava enquanto lhe cochichava:
- Seu pai iria adorar ver todo esse interesse.
- Bem que eu queria que papai estivesse aqui para lidar com isso. Recebê-los com amabilidade não é problema, mas como se faz para eles irem embora?
- Por que não pergunta ao duque? - Ao ver lady Holliwell se aproximando com uma brochura na mão, Conchita tornou a se misturar à aglomeração de gente espalhada pelo recinto.
A impressão dos livretos vinha se dando a toque de caixa, o que ensejava uma despesa considerável, porém Josefina era da opinião de que gastar um punhado de xelins como forma de incentivar um investimento de milhares de libras seria uma troca mais do que justa.
- Ah, eis Vossa Alteza. - Saltando à frente da condessa de Holliwell, o duque de Harek foi oferecer o braço à anfitriã.
- Minha cabeça está rodando. - Pousando a mão no braço dele, Josefina obrigou-se a mais um sorriso. - Na verdade, estou me sentindo exausta.
- Acho que posso cuidar dos nossos convidados caso você queira ir se refrescar.
- Nossos convidados?
- Modo de falar - retrucou Harek com um dos seus sorrisos encantadores.
Após dar mais uma olhadela pela sala apinhada de gente, Josefina aquiesceu:
- Nesse caso, faça às vezes de anfitrião. Só vou lá em cima arrumar o cabelo.
- Não se preocupe. - O sorriso dele se alargou. - É de se esperar que uma princesa queira manter a aparência impecável.
O mais rápido que pôde, Josefina seguiu para o corredor, agora tomado por um sem-número de pessoas, e dali subiu para seus aposentos no segundo piso da mansão.
- Vossa Alteza - bufou Conchita atrás dela -, está tudo bem?
- Preciso de alguns minutos para me recuperar dessa balbúrdia. Fique de olho em Harek, sim? Não quero que ele se declare rey enquanto ajeito meu cabelo.
A criada deu meia-volta, e Josefina, tão logo entrou em seu quarto, fechou a porta e deitou a testa de encontro ao carvalho fresco. Não lhe passara pela cabeça que ser simpática e acolhedora pudesse ser tão cansativo.
- Não me diga que seu estoque de lindas histórias se acabou.
Grave e penetrante, a voz que conhecia tão bem a fez gelar. Correndo a se virar, deparou com ele apoiado à escrivaninha e os papéis que ali deixara espalhados por sobre o tampo do móvel.
- Que diabos está fazendo aqui?
- Vim lhe fazer uma pergunta.
- Saia já do meu quarto! - Quase sem pensar, aproximou-se da cama e da pistola que guardava na mesinha-de-cabeceira. - Se veio me visitar, então vá para junto dos demais lá embaixo.
Sebastian se aprumou, o que deu a Josefina a impressão de que ele preenchia todo o aposento.
- Acha que sou mais um de seu circulo de bajuladores?
- É o que parece, já que não consegue ficar longe de mim.
- Não consigo, não é mesmo? - Caminhando até a porta, ele trancou a fechadura.
Ao ouvir o giro da chave no mecanismo, Josefina sentiu um arrepio ao longo da espinha. Ainda assim, tentou manter a calma.
- Que pergunta é essa que veio me fazer?
- Quem escreveu o livreto sobre Costa Habichuela?
- Então é isso o que queria me perguntar? Pensei que quisesse seu posto de intercessor de volta.
- Quem o escreveu?
- Está procurando alguém para ajudá-lo a redigir sua biografia? Posso sugerir o título: Memórias de um Homem Extremamente Desagradável ou A História da Vida de Alguém que Você Não Quer Conhecer.
- Você não tem medo de nada?
- Por certo não tenho medo de você, Sebastian... Você me deu permissão para tratá-lo por Sebastian, não foi?
- Dei, sim. E você me deu a liberdade de arrancar esse vestido e deixá-la nua.
A temperatura da pele dela se elevou.
- Não, aquele era um outro vestido. Este fica onde está, pois você me chamou de mentirosa.
- Você é mentirosa! - Aproximou-se dela. - Quem escreveu aquela maldita brochura?
Deus, ele sabia. De algum modo, havia descoberto.
- Quero a verdade, Josefina.
- A verdade... - Ela respirou fundo. - Muito bem. Quem escreveu o livreto fui eu.
- Ah. - Os olhos dele faiscaram. - Você tem conhecimentos profundos acerca de um lugar em que esteve por dois dias.
- Elaborei aquele livreto antes de ir até lá. Meu pai me escrevia carta atrás de carta, descrevendo Costa Habichuela, e não havia tempo para encomendarmos um levantamento completo, feito com todas as formalidades, ainda mais com a Espanha tentando forçar os rebeldes a recuarem. Assim, estudei outras obras a que tive acesso e adaptei-as de forma a fazer com que se ajustassem às descrições de meu pai.
- Então os nativos de Costa Habichuela se parecem com os das índias Ocidentais?
- Vejo que andou pesquisando. - Josefina deu de ombros. - Ninguém se importa com a história dos nativos. Eles estão lá, e a maioria fala um pouco de inglês.
- E São Saturus?
- Um pouco menor do que descrita na brochura, mesmo assim é muito bonita. E realmente se debruça sobre uma baía de fácil defesa.
-Você fez os ventos alísios soprarem da direção errada.
Josefina sentiu-se corar. Mentir era uma coisa, porém odiava cometer equívocos tolos.
- Só fui me dar conta disso depois que as cópias já estavam impressas.
- O que você fez, além de furtar o produto das pesquisas de outra pessoa, foi... - ao perceber que fitava os lábios dela, Sebastian correu a olhá-la nos olhos - de um atrevimento ímpar. Por acaso achou que ninguém iria perceber?
- Que mal há no que fiz? - Ela se aproximou para deslizar os dedos pelo contorno do maxilar dele, suavemente sombreado pela barba que começava a crescer.
Sebastian sentiu-se estremecer.
- Provocar-me decerto irá me distrair, Josefina, mas não vai fazer com que eu esqueça o que sei.
Com efeito, porém lhe daria tempo para avisar a seu pai que Melbourne sabia sobre a brochura e também para tentar descobrir se ele pretendia revelar a verdade a sir Henry Sparks ou qualquer outra pessoa, colocando em perigo o empréstimo que se achava em vias de ir parar nas contas de Costa Habichuela.
- Pesando suas opções, princesa?
Diabos, ele não podia ler pensamentos. Ninguém era capaz de tal façanha.
- Estou me lembrando de quando, algumas noites atrás, você colocou suas mãos em mim e depois me ignorou.
- E?... - Ele se acercou ainda mais; achavam-se a meio caminho entre a porta e a cama, a centímetros um do outro.
- E eu acho que você deveria ir embora daqui. - Josefina se afastou. - Sejam quais forem as ofensas que pretende dirigir a mim, nada será pior do que você aquela noite no teatro.
- Volte aqui.
- Não. - Aproximando-se da mesinha-de-cabeceira, Josefina se virou para levar a mão à superfície encerada do móvel.
- Não gosto que me dêem as costas.
- Nem eu. - Mas nem bem ela abrira a gaveta do criado-mudo, as mãos dele já estavam em seus ombros.
- Vou calar essa sua boca desaforada. - E, trazendo-a de encontro ao peito, Sebastian a beijou.
Oh, Deus. Josefina sentiu uma intensa onda da mais pura excitação percorrê-la de cima a baixo, intensa e nem um pouco sutil. No entanto, assim que abriu a boca para receber a língua que instigava seus lábios, ele se afastou. Com a respiração entrecortada e faíscas nos olhos acinzentados, Sebastian olhou dela para a gaveta um par de vezes antes de tomar o revólver na mão.
- É isso o que está pretendendo? Você quer me matar, Josefina?
- Não. - Tirando a arma da frente, segurou-o pelos cabelos para trazer os lábios que antes ameaçavam devorá-la para junto dos seus; a pistola foi ao chão, o duque gemeu baixinho enquanto a agarrava pelos quadris, e ela pôs-se a brigar com o nó da gravata.
Após um instante de hesitação, Sebastian a levou para a cama e se deitou sobre ela, beijando-a em todos os lugares que ia desnudando. Com a sensação de que descargas elétricas percorriam suas veias, Josefina enfim o livrou da gravata.
- Quero tocar você - murmurou, passando a desabotoar o colete de seda dele.
Sem nada dizer, Sebastian empurrou para baixo a parte dianteira do vestido que ela usava para, com o mesmo ímpeto, tomar um mamilo na boca e afagá-lo com a ponta da língua. Josefina arquejou de prazer. Era evidente que Melbourne não iria se deter, como fizera das outras vezes. Oh, que assim fosse... Apesar do tremor nas mãos, fez o paletó e o colete escorregarem para fora dos ombros largos, e ele se encarregou de despi-los sem nem ao menos deixar de beijar seus seios e seu colo.
Ainda assim, Sebastian teve de interromper as carícias por um instante para arrancar a camisa de linho branco pela cabeça. Igualmente afoita, Josefina não perdeu tempo a correr os dedos pela pele tépida do torso recém desnudo, deslizando-os por entre os pelos acastanhados até encontrar o cós das calças que ele vestia. Suave ao tato, a pele sob sua mão recobria músculos firmes... Músculos que se contraíam ao seu carinho.
Após tomar as saias do vestido nas mãos, Sebastian pôs-se de joelhos para alçar as camadas de tecido até ir juntá-las ao redor da cintura dela, e por alguns instantes, respirando com dificuldade, ficou a contemplá-la em silêncio.
- Sente-se. - Assim que ela o fez, voltou a beijá-la enquanto abria os fechos do traje azul-celeste.
Josefina sentiu o vestido afrouxar ao redor do seu peito, e então a delicada musselina foi cair mansamente sobre seu colo.
- Levante os braços.
- Pare de me dar ordens. - Apesar do protesto, fez o que ele determinara. - Não sou criança.
- Eu sei. - Despiu-a do traje, passando-o pela cabeça dela. - Você é Josefina Embry, princesa de Costa Habichuela, que tanto pode ter como não o clima igual ao da Jamaica.
- Já lhe disse que...
- Desabotoe as minhas calças.
Ao baixar os olhos à saliência que inchava a parte dianteira da indumentária masculina, ela sentiu novo assomo de concupiscente volúpia tomar seu baixo ventre e se espalhar por todo o seu corpo.
- Você me deseja...
- Desejo você desde o instante em que a vi. - Tomando as mãos dela, levou-as à sua braguilha. - Desabotoe. - Então soltou as mãos hesitantes para afagar os mamilos já prontos para receber suas carícias.
Após arfar ante as sensações que aquele carinho lhe provocava, ela afirmou:
- Um dia irei lhe dar uma ordem, e você há de acatá-la. - Mas sua voz trêmula irresoluta e seus arquejos de prazer não soavam muito convincentes.
- Duvido. - Com um gemido, ele curvou-se para trocar os dedos pela boca, sugando e mordiscando os bicos rijos que pareciam se oferecer aos seus carinhos.
Incapaz de resistir aos apelos do sedento querer que crescia em seu ventre, Josefina torceu e retorceu o primeiro botão até conseguir tirá-lo da casa e, quando levou os dedos ao botão seguinte, ouviu Sebastian gemer.
Ah, então o duque gostava de sentir suas mãos ali, não? Com gestos intencionais, e atenta ao fato de que estava completamente nua e ele, não, pôs-se a mover a mão para cima e para baixo ao longo do tecido que recobria a virilidade túrgida de paixão. E agora, quem estava no comando?
Em questão de segundos, porém, uma das mãos dele deslizou por todo o seu abdômen e, após acarinhar o manto encaracolado no alto de suas coxas, foi afagar o ponto mais sensível do seu corpo. Tomada por uma excitação lancinante, Josefina deixou escapar um gemido antes de agarrá-lo pelos ombros.
- Sei que é uma delícia - murmurou Sebastian, penetrando-a com um dedo enquanto deslizava a língua pelo contorno da orelha dela.
- Oh, céus... - Na ânsia do que ainda estava por vir, terminou de desabotoar as calças de casimira e empurrou-as para baixo, suspirando ao deparar com o membro viril pleno de energia e apetite. - Meu Deus...
- Deus não tem nada a ver com isso, princesa. - Num só movimento, fez com que ela se deitasse novamente.
Josefina nem ao menos imaginava do que uma boca era capaz até ele descrever, com lábios afoitos e língua cálida, um percurso sinuoso que, após deixar um rastro de fogo em seu pescoço, desenhou estimulante trilha no vale entre seus seios antes de avançar em tortuosa vereda rumo ao seu púbis. Ali, os lábios e a língua excruciantes se detiveram para produzir a mais aflitiva e mais prazerosa de todas as sensações que ela já havia experimentado na vida.
Com a impressão de que iria explodir, Josefina se contorceu ante a intensidade da tensão sensual que fluía do seu âmago de mulher e lhe alcançava a extremidade dos braços e das pernas em contínuas e abrasadas ondas. E quando o sentiu instigá-la ainda mais intimamente com a língua e o dedo, ouviu-se implorar:
- Pare... Pare, não agüento mais. - Sebastian ergueu a cabeça para fitá-la.
- Se quiser que eu pare, pararei - murmurou com a voz rouca, inflamada de paixão, depois deu um daqueles seus sorrisos que a deixava meio zonza. - Mas aí irá perder o que vem depois.
- Oh... - Ela fechou os olhos por um segundo, tentando manter um mínimo de controle sobre as emoções que a assaltavam. - Não... Não pare...
Ele voltou a baixar a cabeça, e pouco depois Josefina sentia uma deliciosa rigidez se formando na base de sua espinha. Quando percebeu, ouviu-se gemer baixinho, gemer e arfar e suspirar, e tudo o que conseguiu fazer foi enfiar as unhas na coberta da cama. A tensão foi se avolumando, concentrando-se, entorpecendo... e de súbito a envolveu numa sensação avassaladora, um extático arroubo de espasmos efervescentes e esplendorosos que pareciam não ter nem começo nem fim.
- Deus... Oh, meu bom Deus... - Deitando-se, Sebastian afagou-lhe o rosto suado.
- Só ele sabe por que estou lhe dando esta última chance de escapar de mim, princesa.
Buscando forças nem sabia onde, Josefina o encarou.
- Não quero nem vou escapar. Continue.
- Com todo prazer. - Acomodou-se sobre ela e, encaixando os quadris entre as pernas ainda meio bambas, penetrou-a num movimento firme e incisivo. - Se a dor for muito intensa, diga.
Josefina aquiesceu com um aceno. Não era dor o que lhe roubava a fala, e sim a estonteante e indescritível emoção de sabê-lo dentro dela.
Incentivado pela anuência, Sebastian começou a mover-se calma e cautelosamente; pouco a pouco, porém, os movimentos ganharam novo ímpeto, adquirindo cadência e vigor. Ao vê-lo fechar os olhos, Josefina conteve os arquejos para sussurrar:
- Não quero que pense em outra pessoa quanto estiver comigo.
- É em você que estou pensando. - E mordiscou a orelha dela antes de preenchê-la completamente numa só investida.
Ahh... A deliciosa rigidez começava a se formar novamente em suas entranhas.
- Então diga o meu nome, Sebastian.
O ritmo dele se intensificou, os movimentos mais rápidos e mais profundos, a ponto de fazerem a cama ranger.
- Josefina... Jo-se-fi-na...
Abraçando o físico bem feito e todo teso que a preenchia em todos os sentidos, ela se sentiu estilhaçar novamente em mil pedaços. Um instante depois, ao estremecer dos pés à cabeça, Sebastian puxou o quadril de lado e, mergulhando o rosto na cascata de cabelos negros, deixou escapar um gemido rouco enquanto atingia o clímax com ela. Quando enfim sé deu conta do que havia acontecido, Josefina percebeu que estava... decepcionada. Sim, ele tomara o cuidado de evitar que ficasse grávida; só que, se tivessem um filho, Sebastian teria de se casar com ela. E a verdade era que queria Sebastian Griffin, queria que seu duque só tivesse olhos para ela, que passasse todas as noites e todos os dias a seu lado, cego e indiferente a qualquer outra mulher no mundo.
Por alguns instantes, ele permaneceu com Josefina entre os braços enquanto tentava recobrar o fôlego e a sanidade. Por Deus, como fora perder a cabeça daquela maneira?
No momento em que entregaram aquele livreto a Prinny afirmando tratar-se de um autêntico retrato de Costa Habichuela, ela e o pai haviam cometido uma tramóia dolosa contra a Inglaterra. E mesmo que a tal brochura correspondesse ou não à verdade, algo de que agora tinha sérias dúvidas, de sua parte não tinha nada que se envolver, literal e metaforicamente, com essa mulher. Fora loucura.
Que diabos Josefina tinha feito com ele? E por que, mesmo depois de tê-la levado para a cama e desafogado o desejo insano de sentir-se dentro dela, já tinha ganas de possuí-la novamente?
Trate de pôr a cabeça no lugar, Melbourne.
Soltou-a, embora de má vontade, para se sentar.
- É melhor você voltar para junto dos seus convidados. - Com isso, escorregou para fora da cama e começou a se vestir.
- É tudo o que tem para me dizer? - Josefina o interpelou enquanto se punha sentada. - "Volte para junto dos seus convidados"? O que há? Você não gosta de mim, é isso?
- Gosto muito de você, Josefina. E não sou nenhum bicho, que acasala quando chega a temporada do cio.
- Então o que foi? Porque eu também gosto muito de você.
Decidindo-se pela verdade, pois ela a merecia, Sebastian admitiu: - Não confio em você.
- Hum. - Erguendo-se, ela também cuidou de recolocar suas roupas. - Isso é algo bastante arriscado de se dizer, tendo em vista que só preciso abrir essa porta e desatar a gritar para que, até domingo, estejamos casados. E ainda que toda a sua onipotência o livrasse de ver-se obrigado a me desposar, você não teria como se safar de um belo de um escândalo. - Deu-lhe as costas. - Feche o meu vestido. Não alcanço os colchetes.
- Vou tomar isso como um indício de que você não pretende desatar a gritar. - Aproximando-se, fechou as presilhas ao longo da parte posterior do traje azul e, ao terminar, depositou um beijo na nuca tão convidativa. Era evidente que fazer amor com Josefina não surtira efeito; o desejo que tinha por ela estava mais vivo do que nunca em seu corpo.
Ouviu-a suspirar e, de pronto, sentiu sua masculinidade se contrair. Sem pensar em mais nada, rodeou-a para ir erguer o rosto dela e beijá-la. Josefina enroscou os dedos em seus cabelos, pressionando o corpo esguio contra o seu. Fisicamente, apesar do tapa e outras bravatas, ela não estava à sua altura; já mental e emocionalmente, a diferença não era tão gritante. A princesa o questionava e o desafiava como ninguém jamais o fizera.
- Sem gritos - Josefina murmurou de encontro aos lábios dele - se você se juntar ao nosso grupo em Vauxhall depois de amanhã.
- Não. - Afastou-a de si. - Eu a desejo, sim. Só que, como já disse, você não me inspira confiança. Até que se digne a esclarecer todas as dúvidas que tenho sobre Costa Habichuela, não vou endossar seus esforços para arrecadar recursos entre os cidadãos deste país.
- Você é um cavalheiro muito íntegro, não? Exceto quando se trata de deitar-se com uma mulher só porque sente desejo por ela. Se me permite, acho tudo isso uma hipocrisia, Melbourne. - Virando-se, foi até a penteadeira para se olhar no espelho.
Sebastian bufou. Por que raios esperava que a atrevida fosse se derreter, fosse abaixar a crista e se comportar com meiguice e recato só porque fizera amor com ela?
- É possível que eu vá a um outro lugar qualquer menos freqüentado, Josefina. Talvez. Não me rebaixarei a ser seu mico amestrado.
- Diga o bem entender, Sebastian, pois sempre consigo o que quero.
- É o que veremos, mas numa outra oportunidade. - Se houvesse outra oportunidade, já que algo lhe dizia que, quando tivesse todas as respostas que queria e decidisse quais medidas precisava tomar, a princesa Josefina não iria ter nenhum motivo para querer sua companhia novamente.
- Imagino que vá sair daqui pela janela, não? - Após se certificar de que tinha as roupas e os cabelos em ordem, ela se encaminhou para a porta. - Cuidado para não cair sobre as rosas. Meu pai não se cansa de dizer que o coronel Branbury cuida pessoalmente daquele canteiro.
- Grato pela consideração.
- Mande um bilhete nos convidando para seu camarote em Vauxhall. Por certo você tem um lugar melhor do que o de Harek.
- Não, e não vou tornar a repetir.
Josefina mostrou a língua para ele e, sem esperar pela resposta, deixou o aposento e fechou a porta.
Ao chegar em casa, Sebastian entregou as rédeas de Merlin para Green e subiu os degraus à entrada da mansão. No vestíbulo, respondeu ao cumprimento de Stanton com um grunhido e, apanhando a correspondência, seguiu pisando duro para seu gabinete. Aquela petulante conseguira dar um nó em sua estratégia com espantosa facilidade. Também, quem lhe mandara perder o controle quando estava junto dela?
- Stanton!
A porta do gabinete não demorou a se abrir.
- Pois não, Vossa Graça?
- Vou fazer uma pequena reunião em Vauxhall depois de amanhã, à noite - afirmou com azedume. - Providencie os preparativos e tudo o mais, sim?
- Certamente, Vossa Graça.
Assim que a porta tornou a se fechar, ele recostou-se ao espaldar da poltrona para examinar a pilha de cartas, bilhetes e cartões de visitas. O de sempre, mais o relatório semanal de Whitlock, o encarregado da administração da Estância Melbourne, e notícias de outras três de suas propriedades... Já prestes a pôr a correspondência de lado, levou um susto ao pousar os olhos sobre o nome do remetente da carta que vinha de Eton e, com o coração acelerado, tratou então de romper o lacre de cera da mensagem.
Nem bem terminou de ler a missiva, Sebastian pôs-se em pé de um pulo.
- Stanton!
O mordomo reapareceu no vão da porta.
- Sim, Vos...
- Quando esta carta chegou?
- Com o serviço postal, Vossa Graça, há cerca de... quarenta minutos. Algum problema?
- Não. Mande avisar a Charlemagne que ele e eu iremos a Eton dentro de uma hora. - Até que enfim iria obter algumas respostas esclarecedoras a respeito do reinado de Costa Habichuela.

- Sei que já me disse que ficasse calado e o deixasse pensar - observou Charlemagne quando o coche se deteve e ambos saltaram para o chão -, mas é que você parece um tanto... preocupado com tudo isso.
Partindo em direção ao edifício onde ficavam os alojamentos dos professores, Sebastian olhou de relance para o ponto onde, ao sul, os contornos do Castelo de Windsor assomavam sobre eles.
- E por que não haveria de estar? - Após conferir o nome do edifício, avançou pelo pátio diante da edificação. - Ou esqueceu que entrou feito um vendaval na minha casa esta manhã com aquela história de plágio?
- Mas não falei que deveríamos deixar Londres às pressas para vir atrás de um professor que certamente riria à toa se fosse convidado a ir visitar você na Mansão Griffin.
- Não quero que esse mestre seja visto em Londres por ora.
- Por que não? - devolveu Charlemagne. - O que acha que esse Rice-Able pode estar sabendo?
Após lançar um olhar de esguelha ao irmão, Sebastian conferiu o número do apartamento.
- É o que vamos descobrir. - E bateu de leve à porta de carvalho.
- Quem é?
- Melbourne. Escrevi-lhe um bilhete, e você... - A porta se abriu com um rangido.
- Vossa Graça. - O sujeito bem apanhado, dois ou três anos mais jovem do que ele, mirou-o por cima dos óculos de leitura. - É uma honra. Eu não esperava que...
- Eu sei. Podemos entrar?
- Sim, é claro. - O mestre se afastou e Sebastian, depois de arquear um pouco o pescoço para passar sob o batente bastante baixo, fez um aceno com a cabeça para dizer a Charlemagne que os acompanhasse.
Minúscula, a habitação se acharia mergulhada na penumbra não fosse pelo clarão do fogo na pequena lareira e pelo par de velas de sebo sobre uma mesa em completa desordem.
Recolhendo os livros empilhados sobre uma cadeira, John Rice-Able foi largá-los sobre a cama estreita.
- Vocês receberam meu bilhete? - Cuidou de desocupar mais uma cadeira. - Fiquei surpreso ao saber que mais alguém, além dos meus alunos, tinha lido a minha história.
- Recebi sua mensagem, sim, professor. Esta tarde. E peço desculpas por não ter mandado avisar que viríamos para cá. - Ao perceber que Shay continuava junto à porta, Sebastian tratou de apresentá-lo: - Esse é meu irmão, Charlemagne.
- Charlemagne? - O mestre tirou os óculos. - Como o grande rei que...
- Sim - confirmou ele com um sorriso, habituado ao estranhamento que seu nome provocava. - Mas por que um explorador veio lecionar em Eton?
- Os salários no magistério são mais compensadores. Agora me dedico às explorações nos intervalos entre os semestres letivos. - Deu um suspiro. - Vossa Graça, milorde, sentem-se, por favor. Não faz nem cinco minutos que preparei um bule de chá.
- Obrigado. Uma xícara de chá não cairia nada mal. - Sebastian se acomodou numa das cadeiras recém desocupadas. Ciente de que a arte de fazer alianças e seu traquejo com os assuntos políticos e sociais o tinham ensinado a avaliar o caráter de uma pessoa num piscar de olhos, concluiu que gostava de John Rice-Able, um homem cuja naturalidade falava por mais de mil palavras.
- Se me permitem a curiosidade - o professor retirava xícaras e pires do fundo de um armário -, por que a urgência em virem me procurar?
- Gostaríamos de esclarecer algumas dúvidas geográficas - explicou Sebastian. - Se não estou enganado, você conhece bastante bem a Costa dos Mosquitos, não?
- Tão bem quanto uma pessoa que não nasceu lá possa conhecer, imagino, porém faz cerca de três anos que não coloco os pés naquela região.
Três anos. Antes que o rei Mosquito outorgasse Costa Habichuela à Stephen Embry, porém recentemente o bastante para uma opinião abalizada acerca da topografia e do clima.
- Imagino que tenha visitado algumas das cidadezinhas e vilarejos ao longo da costa.
- De fato. - Depois de dispor numa bandeja pires e xícaras que não combinavam, Rice-Able cuidou de servir o chá do bule sobre as brasas na lareira. - Se me disser exatamente o que gostaria de saber, acho que posso lhe dar informações mais precisas.
Tomando uma das xícaras da bandeja, Sebastian esperou que ele se sentasse à mesa para deixar bem claro:
- O problema é que não quero conduzir suas respostas nem quero que me diga o que supõe que eu gostaria de ouvir.
- Sei. - O professor tomou um gole da infusão. - Muito bem, faça as suas perguntas; garanto que as minhas respostas serão francas e diretas e, no caso de eu vir a fazer uma suposição, vou avisá-lo de que se trata de uma conjectura.
- Obrigado. Mas antes poderia me dizer se tem o hábito de ler os jornais de Londres?
- Só quando não há opção e, ainda assim, sob protestos. E já faz algumas semanas que não os leio, se era essa a próxima pergunta que pretendia me fazer.
- Acho que estamos nos entendendo. - Sebastian sorriu antes de levar a xícara aos lábios. - Há quem exerça algum tipo de governo sobre a Costa do Mosquito, no geral?
- Uns poucos líderes tribais. A Espanha se refere a um sujeito chamado Qental, em particular, mas imagino que seja para simplificar. Trata-se de uma região relativamente grande, aberta, sinuosa. As fronteiras se modificam a cada nova estação chuvosa, época em que os pântanos transbordam e o curso dos rios sofre alterações.
- Há muitas áreas habitáveis?
- Certamente. Os nativos conseguem levar uma vida com muitos percalços, alimentando-se de frutas, peixes e um ou outro porco selvagem.
- Há comércio por lá?
- Praticamente nenhum. Além de desconfiarem dos estrangeiros, os grupos nativos preferem evitar uns aos outros. Se eu não tivesse conseguido um guia que falava vários dos dialetos locais, duvido de que estivesse vivo a uma hora desta, conversando aqui com vocês.
- Algumas dessas... tribos falam espanhol? Ou inglês?
- Embora a Espanha não tenha empregado grandes esforços para controlar a região, algumas têm conhecimento superficial do espanhol.
- E inglês?
- Belize tem maioria inglesa, mas fica a várias centenas de quilômetros da região da Costa dos Mosquitos. Não digo que não se possam encontrar uns poucos e minúsculos assentamentos de caçadores e mineiros, porém tais lugares são tudo menos hospitaleiros.
- Por que diz isso? - Ao se dar conta de que cerrava os punhos com tanta força que começava a ficar com as mãos adormecidas, Sebastian pôs-se a flexionar os dedos por sob o tampo da mesa.
- Bem, agora vou expressar uma opinião, não um dado factual. - Rice-Able emborcou quase meia xícara de chá. - Os ingleses são mestres em fundar lugares a todo custo parecidos com a Inglaterra. Enormes quantidades de água limpa e corrente, áreas descampadas, clima ameno... Enquanto a maioria das pessoas é capaz de se adaptar a quase todas as circunstâncias, parece que boa parte dos ingleses espera que as circunstâncias se adaptem a eles. Recusar-se a reconhecer que determinado lugar é úmido e infestado de insetos, no meu modo de ver, é a maneira mais rápida de adoecer e, no limite, vir a morrer.
- Você se adaptou - observou Charlemagne.
- Prefiro continuar vivo para contar minhas histórias a morrer por orgulho. Quando os nativos recomendam cobrir a pele com seiva de plantas de odor fétido para evitar picadas de insetos, eu cubro.
- Já ouviu falar de uma cidade chamada São Saturus naquela região?
- São Saturus... Não. Na verdade, não me lembro de nenhum vilarejo grande o bastante para ser chamado de cidade. Mas fiz alguns mapas que... - Levantou-se. - Vou pegá-los.
Enquanto o mestre ia remexer numa estante abarrotada de papéis, Sebastian tomou outro gole do chá. No momento, tudo o que queria era um sinal, um mero indício de que Josefina não havia mentido.
- Ah, como sou desatento! - exclamou Rice-Able, o olhar pregado num dos pergaminhos que acabara de desenrolar. - Aqui está... São Saturus.
Graças a Deus!
- Por acaso fica no litoral, entre os rios Wawa e Grande de Matagalpa?
- Essa área é muito extensa - o professor retomou seu assento -, mas, sim, fica por ali.
Sebastian e Charlemagne afastaram a bagunça para acomodar o mapa sobre o tampo da mesa, depois usaram xícaras e pires como pesos para mantê-lo aberto. Muito mais rica em detalhes do que qualquer outro documento relativo àquela região que ambos já tinham visto, a carta geográfica era excelente, digna de nota.
- Você devia ser cartógrafo - comentou Sebastian, correndo os olhos pela linha litorânea à procura dos contornos descritos no livreto sobre Costa Habichuela.
- Denotar a fauna e a flora de cada área, assim como as variações do relevo, foi a melhor parte da expedição. - Rice-Able pousou um dedo sujo de tinta num ponto do mapa. - Aqui está São Saturus. Não sei como fui me esquecer de lá, afinal fiquei impressionado com aquele lugar.
- Por quê? - interpelou-o Sebastian, já contando em ouvir elogiosos relatos sobre edifícios de pedras brancas e enseadas secretas.
- Por causa dos corpos. Três. Jaziam na mata como se fossem vivos; camisas, calças, botas, chapéus, tudo no seu devido lugar e, no entanto, dentro dos trajes não havia nada além de ossos brancos como neve. Suponho que os três infelizes tenham perdido os sentidos devido à insolação ou por causa do gás dos pântanos, o que é mais provável, antes de serem devorados pelas formigas. Foi lá que cheguei a ver as danadinhas reduzirem um javali adulto ao esqueleto em vinte e quatro horas. É claro que se tratava de uma colônia bastante grande.
- O que faz pensar que os três homens mortos tinham alguma relação com uma cidade chamada São Saturus?
- Os corpos se achavam perto de barracas e apetrechos de mineração, dentre os quais havia uma tábua com a inscrição "São Saturus" gravada a fogo na madeira. Este provavelmente é o único mapa onde consta essa localidade. - Tomou mais um gole de chá. - Lembro-me de ter pensado na ironia de tal denominação, uma vez que São Saturus é o santo que deveria nos proteger da pobreza.
Com o coração e a cabeça latejando, Sebastian pôs-se em pé. Ela tinha dito que vira o palácio, que passara dois dias lá.
- Há algum outro vilarejo de dimensões medianas naquela região?
- Não ao longo da costa. Aquela parte do território sofre inundações todos os anos e, como pode ver aqui, São Saturus fica a mais ou menos dois quilômetros do litoral.
- Você tinha razão, Seb - assinalou Charlemagne em voz baixa.
Mas ele não queria que fosse assim. Não agora. Não depois daquela manhã, quando tivera Josefina nua em seus braços.
- Professor, estaria disposto a ir Londres e narrar tudo o que nos contou se preciso for?
- Sim, é claro. Mas do que exatamente estamos falando?
- De uma mentira. Uma grande mentira.

Josefina disparou escada abaixo enquanto o par de carruagens enlameadas se detinha diante da mansão. Seus pais não poderiam ter chegado em melhor hora.
A mãe dela foi a primeira a entrar em casa e, ao vê-la, abriu um sorriso largo.
- Josefina, mi vida! - E estendeu os braços para a filha.
- Seja bem-vinda, mamãe. - Era tão bom sentir-se tomada num abraço que nada lhe cobrava em troca. Ainda lhe custava crer em tudo o que havia acontecido naqueles últimos dez dias. - Senti muito a sua falta.
- Também sentimos saudade, Josefina - anunciou Stephen, indo abraçar as duas ao mesmo tempo. - Você nem imagina os progressos que fizemos. Mais cinqüenta mil libras para Costa Habichuela!
- Que maravilha! Recebeu a minha carta? - indagou Josefina enquanto a rainha ia conferir as arcas que eram descarregadas da segunda carruagem.
- Recebi, sim, e a congratulo pelo excelente trabalho. Quando deixamos Edimburgo, os títulos estavam ainda mais disputados do que por aqui. Os escoceses sabem farejar um bom investimento. - Após pedir a uma criada que providenciasse café recém-passado, seguiu para o gabinete.
Atrás dele, Josefina se odiava por ter de estragar a alegria que ele irradiava. Mas seu pai precisava saber que Melbourne havia descoberto as origens do livreto.
- Já cuidei para que meia dúzia de navios fique à nossa disposição em Edimburgo - prosseguiu o rey, acomodando-se à escrivaninha. - As embarcações estarão abastecidas de provisões e prontas para zarpar daqui a um mês.
- Meia dúzia de navios? Mas para que...
- Os colonos vão precisar de mantimentos quando chegarem. - Tirando um charuto do bolso do casaco, acendeu-o na chama da lamparina sobre a mesa. - Quero conhecer o duque de Harek. Já mandou chamá-lo?
- Ele deve chegar dentro de uma hora. - Com uma sensação desagradável, foi se sentar na poltrona em frente à do pai. - Que colonos?
- Na sua carta você dizia que as pessoas estavam praticamente implorando para emigrar para Costa Habichuela, e o mesmo se passa na Escócia. Tanto é assim que até já mandei Halloway imprimir alguns contratos de venda de terras. Afinal, com mais de quatro mil quilômetros quadrados de solo fértil, por que não darmos aos ingleses a oportunidade de possuírem um bom lote, a um xelim por metro quadrado? Em caráter perpétuo, exatamente como os nobres daqui.
- Como? Mas...
- E como os navios já estão fretados, poderemos oferecer passagens a um preço razoável, com um pequeno adicional por quilo da bagagem. - Franziu o cenho, pensativo. - Vou mandar Orrin preparar uma lista de despesas individuais para anexar aos contratos de aquisição de terreno. Ah, e estamos vendendo lotes de quatrocentos metros quadrados, caso alguém perguntar. Agora, se houver muita procura, nosso cartório de registro de imóveis poderá dividir o valor do terreno em dez prestações.
Com a impressão de que estava a ponto de ter uma vertigem, Josefina indagou:
- Que cartório de registro de imóveis?
- Abri um em Edimburgo; o que vai funcionar aqui abrirá amanhã. Orrin alugou o escritório de um advogado para cuidar disso enquanto estivemos lá no norte. - Enfim encarou a filha. - Por que essa expressão preocupada?
- Papai... há assuntos de que não devemos falar, nem mesmo em particular, mas...
- Então não fale. Também estou elaborando uma lista de profissionais de que precisamos urgentemente para tocar o governo e um distrito municipal em rápida expansão: banqueiros, ferreiros, médicos, procuradores, cartógrafos, professores... - Empurrou uma folha de papel para ela. - Você entende disso melhor do que eu. Veja se consegue terminá-la o quanto antes, assim mandaremos publicá-la no London Times e no cartório de registros.
Josefina olhou do longo rol de ofícios para o pai.
- Se isso tudo é uma brincadeira, não estou achando a menor graça.
- É óbvio que não se trata de uma brincadeira. - Após dar uma baforada no charuto, ele inclinou-se sobre a escrivaninha. - Ou acha que seria justo virmos pedir dinheiro e depois nos recusar a permitir que os interessados juntem-se a nós em nosso renovado paraíso?
Ela engoliu em seco antes de lembrá-lo:
- Colonos não estavam nos planos.
- Agora estão. Vá colocar sua tiara antes que Harek chegue; somos membros da realeza e temos de nos portar como tais em todas as ocasiões. - Levantando-se, Stephen Embry apoiou as mãos no tampo da mesa. - Em todas as ocasiões.
- Sem dúvida, Vossa Majestade. - Josefina ergueu-se e deixou a sala com uma mesura.
O mal-estar se fora, porém havia deixado um nó na garganta. Por que jamais pensara naquela possibilidade? Era evidente que, ao se inteirarem da existência de um lugar paradisíaco, inúmeras pessoas iriam querer conhecê-lo ou mesmo morar lá. Assim como era óbvio que ninguém poderia impedi-los de tomar tal atitude.
Em seu quarto, apanhou a tiara do estojo em que Conchita costumava guardá-la e foi se sentar à penteadeira. Mas nem bem a levou acima da cabeça, a porta do aposento se abriu.
- Deixe-me ajudá-la. - Tornando a fechar a porta, a mãe dela se aproximou para tomar o ornato das mãos de Josefina.
- Papai lhe contou que abriu um cartório de registro de imóveis na Escócia e que vai abrir outro aqui amanhã?
- Contou, sim. - Com muito cuidado, Maria Constanza-y-Veneza Embry ajeitou a tiara sobre os cabelos da filha e, com o pente de marfim, alisou as longas melenas negras.
- E você não fez nada para demovê-lo dessa insensatez?
- E ele me daria ouvidos? Você sabe como seu pai é.
- Mas ele quer enviar uma multidão para Costa Habichuela.
- Com vários tipos de suprimentos. Mesmo que São Saturus não seja o que eles imaginavam, esses ingleses terão como transformá-la numa linda cidade.
- Dinheiro é uma coisa, mas por que brincar com a sorte? - Josefina, que falava a meia-voz, concluiu num sussurro: - Nunca estivemos em Costa Habichuela, mamãe.
- Você e seu pai têm trabalhado sem parar nesse projeto nos últimos dois anos. Confie nele, assim como ele confia em você. Se seu pai diz que tudo dará certo, é porque dará. - Beijou o rosto da filha. - Agora me fale do duque de Harek. Ele é bonito como lorde Melbourne?
- É bastante bem-apanhado.
Nenhum outro homem que conhecia era bonito como Melbourne. Mas no momento o que a preocupava era o fato de ainda não ter conseguido dizer a ninguém que Sebastian Griffin estava ciente de que o livreto era uma fraude e suspeitava de que outros engodos estivessem a caminho.
Sentindo-se meio grogue, Sebastian se sentou e, ao mirar o relógio sobre a moldura da lareira em seu quarto, demorou alguns instantes a assimilar o horário registrado pelo dispositivo. Cinco e vinte e um? Não era possível. Se tinha ido deitar-se depois das três e ainda levara um bom tempinho para pegar no sono... A menos que passasse das cinco da tarde.
- Bailey!
A porta se abriu, e o camareiro entrou aos tropeços no aposento.
- Pois não, Vossa Graça.
- Por que raios não me acordou? - Empurrando as cobertas para longe, saltou da cama.
- Lorde Charlemagne, disse-me que o deixasse dormir. - Bailey correu até o guarda-roupa, de onde retornou com uma camisa e um par de calças.
- Esta casa é minha, não de Shay. - Bateram de leve à porta.
- Está vestido, papai?
Sebastian terminou de abotoar as calças antes de vestir a camisa pela cabeça.
- Pode entrar, Peep.
Num alegre vestido amarelo de seda, a garotinha entrou saltitando no aposento.
- Dormiu bem?
- Até demais - respondeu ele antes de tornar a olhar feio para o camareiro. - E você, o que andou fazendo, meu anjo?
- Estudei francês, mas não fiz aula de piano porque você estava dormindo, e a sra. Beacham me levou até o parque, e Stanton me perguntou se eu sabia o cardápio do jantar já que você estava dormindo, mas eu não sabia, então disse a ele que gostaria de sopa fria de ervilha e fricassê de coelho, porque gosto muito desses pratos e tio Zachary também.
- Tio Zachary gosta até de guisado de pedra - comentou Sebastian, deixando que Bailey o ajudasse com o colete e a gravata. - Ele vai jantar conosco?
- Todo mundo vai. Esqueceu? Você disse que era porque a família de tia Caroline está aqui e, se os recebesse para um jantar, talvez eles o deixassem em paz.
- Não é para você repetir isso diante de ninguém, Peep.
- Eu sei. Pode confiar em mim - afirmou Penélope com convicção. - Vou ver se a cozinheira fez algum doce com chocolate para a sobremesa.
- Ótima idéia. - Sentou-se ao toucador para fazer a barba. - Você me faria o favor de pedir a Stanton que venha até aqui?
- Claro.
Enquanto Bailey preparava a tigela com a espuma, Sebastian pegou-se pensando que dormir demais o tinha privado de uma boa oportunidade para confrontar Josefina e verificar o que ela andava tramando.
Após bater de leve na porta, Stanton entrou no aposento.
- Vossa Graça?
- Mande selar Merlin. Vou sair assim que tiver feito a barba.
- Seus convidados decerto não irão se atrasar.
- Não me demorarei.
O mordomo fez uma mesura, voltando a fechar a porta ao sair do quarto.
Tão logo terminou de se barbear, Sebastian, ignorando a fome, desceu para o hall e avisou ao mordomo:
- Vou até a casa do coronel Branbury. Peça a Shay para entreter os convidados caso eles cheguem antes de mim.
- Pois não, Vossa Graça.
Vinte minutos depois ele entregava as rédeas de Merlin ao cavalariço postado à entrada da mansão do coronel.
- Deixe-o aqui. Não vou me demorar.
Assim que ele terminou de subir os degraus diante do casarão, a porta se abriu.
- Boa tarde, Vossa Graça - cumprimentou o mordomo.
- Eu gostaria de trocar algumas palavras com a princesa Josefina - anunciou Sebastian sem mais formalidades enquanto tirava as luvas.
- Sua Alteza saiu. Se quiser deixar seu cartão, irei avisá-la da sua visita quando ela voltar.
- O rey e a rainha Maria regressaram da Escócia?
- Chegaram esta manhã, Vossa Graça, porém foram todos fazer um lanche na companhia de Sua Graça, o duque de Harek.
- Onde posso encontrá-los?
- Não sei informar.
- E aonde eles irão após esse lanche?
- Não estou autorizado a falar dos compromissos da família real, Vossa Graça.
Sebastian olhou bem para o mordomo. Poderia agarrar aquele insolente pelo colarinho e conseguir todas as informações que bem entendesse num piscar de olhos, no entanto as conseqüências desse arroubo por certo seriam mais danosas do que o bom uso que talvez fosse fazer com as informações.
- Muito bem - condescendeu -, diga a Sua Alteza que estive aqui e que conversarei com ela amanhã à noite, em Vauxhall. - Sem mais, deu meia-volta e para ir se acomodar à garupa de Merlin, afinal precisava de provas antes de cometer algum gesto extremado.
Provas. Provas de quê? De que um país supostamente rico e fértil não passava de um charco? De que Costa Habichuela inteirinha provavelmente não valia as cem mil libras do maldito empréstimo? Perto dos delitos que havia pelo mundo, o logro poderia parecer uma ousadia até modesta, entretanto era preciso levar em conta o sem número de ingleses que compravam títulos dessa dívida pública. Um investimento que tinham por seguro, e que ele ajudara a promover, mas que certamente iria fazê-los perderem todo o dinheiro que haviam colocado no negócio.
Perdido em suas divagações, Sebastian quase levou um susto ao chegar em casa e deparar com a claridade que se despejava de todas as janelas, com a profusão de coches e cavalos espalhados pelo acesso para veículos e pelo espaço diante da cocheira, e com o modo como seus cavalariços gritavam uns com os outros na tentativa de colocar um pouco de ordem no caos. Suspirando, desmontou e arremessou as rédeas para Green. E pensar que o que mais queria naquela noite era um pouco de paz e uma garrafa de conhaque...
- Vossa Graça - um dos criados abria a porta para ele -, seus convidados o aguardam na sala de visitas.
- Obrigado, Tom. Retome o que estava fazendo, sim? - Valentine foi ao encontro dele no hall.
- Até que enfim você chegou... Diabos.
- Que foi? Não está contente por me ver?
- Sinceramente, não. Se você está aqui, não tenho como escapulir para ir procurá-lo.
Antes que pudesse responder, Sebastian, sentindo uma mão pousar em seu ombro, virou-se e encontrou uma sorridente Eleanor.
Por todos os santos... Não bastasse sua numerosa família, Caroline tinha seis irmãs mais novas do que ela; três eram casadas e uma, salvo engano, estava noiva. O que significava que havia pelo menos uma dúzia de membros do clã Witfeld na sua sala de visitas. Isso sem contar os frutos dos mais recentes matrimônios. Mas já que não tinha como evitá-los, iria aproveitar o alvoroço que faziam para se distrair e tentar não pensar onde Josefina teria se metido naquela noite.
-... para almoçar amanhã - Eleanor ia dizendo. - Acho que ela irá gostar, já que está sempre falando em tornar-se pirata e viajar pelo mundo.
Sua irmã só podia estar falando de Penélope.
- Claro - concordou ele. - Vou passar boa parte do dia no Parlamento.
Eleanor o fitou por um instante antes de afirmar:
- Eu sabia que você tinha bom coração.
Sim, tinha. E no que dizia respeito à princesa Josefina, precisava deixar de ter. O mais depressa possível.

No alto dos degraus à entrada da Residência Branbury, Josefina acenou para Harek até a carruagem desaparecer na noite, então exalou profundo suspiro. Por mais agradável que tivesse sido o passeio, não via a hora de trancar-se em seu quarto para poder refletir com a calma de que necessitava.
Ao se virar, viu que seu pai continuava no hall do casarão.
- Acho que Melbourne nos fez um favor ao demitir-se do cargo para o qual o príncipe regente o indicara - comentou o rey, entregando a Grimm as luvas que acabara de tirar. - Charles é muito agradável.
- É, sim.
- E quer se casar com você.
Ela estacou a meio caminho da escadaria.
- Ainda não dei uma resposta em definitivo - prosseguiu Stephen -, afinal de contas o conheci esta manhã e preciso escolher o momento oportuno para expressar formalmente o meu consentimento.
- Pensei que fosse me perguntar se gosto dele.
- Eu e sua mãe já tivemos essa conversa, e ela me disse que você gosta. O mais importante, agora, é que ele compreenda perfeitamente bem nossos objetivos.
- Acho que você é capaz de convencer qualquer pessoa de qualquer coisa. - Ou melhor, quase qualquer pessoa. - Boa noite, papai; estou muito cansada.
- Sim, vá se deitar. - O rey sorriu. - Nossos amigos vão querer vê-la radiante amanhã.
Depois que Conchita a ajudou com o traje de dormir e se foi, Josefina permaneceu um longo espaço de tempo sentada na beirada da cama, até ter certeza de que toda a casa mergulhara no mais absoluto silêncio, então tornou a acender a vela sobre a mesinha de cabeceira. A brochura que havia escrito se achava em cima da escrivaninha; o outro livro, o que emprestara naquela manhã da biblioteca de lorde Allendale, estava nos fundos do seu guarda-roupa, atrás de uma pilha de chapeleiras.
Entre as poucas pessoas que tinham visto Costa Habichuela, como seu pai e os militares que o acompanhavam, estava John Rice-Able, autor do livro que ela vira Melbourne folhear na biblioteca do visconde; portanto, era bem provável que Rice-Able tivesse respostas para certas dúvidas que só recentemente tinham começado a incomodá-la. Com o cuidado de não fazer nenhum barulho, resgatou a obra do pesquisador do esconderijo e, sentando-se à escrivaninha, abriu-a no capítulo dedicado à América Central.
Uma hora depois, da vela restava apenas um toco e ela havia lido o extenso capítulo duas vezes de cabo a rabo. Cansada, recostou-se ao espaldar da poltrona para esfregar os olhos. Nunca acreditara que seu pai tivesse recebido um verdadeiro paraíso de mão beijada, no entanto a descrição que Rice-Able fazia de Costa Habichuela era um retrato do inferno na Terra.
Murmurando para si que aquela obra talvez fosse uma grande mentira, devolveu-a ao esconderijo no fundo do armário. O fato de nunca ter colocado os pés em Costa Habichuela não significava que tudo o que havia escrito não correspondesse à verdade. As cartas de seu pai enfatizavam o que ele queria que constasse da brochura, logicamente, e fora isso o que bastara para que conseguissem o empréstimo. Por outro lado... Talvez tivesse feito seu trabalho bem demais, e o resultado era que aquela história toda deixara de ser uma simples tramóia junto a um banco, uma vez que ou seu pai estava vendendo lotes de terras que poderiam vir a serem muito lucrativos ou ludibriava as pessoas sem dó nem piedade, levando-as a comprarem a própria sepultura.
O que deveria fazer? Contar tudo às autoridades? A Sebastian? Atirar-se no Tâmisa? Ou manter a boca fechada e não fazer nada, que era a atitude mais simples e mais segura entre todas as opções? Mas, e se o pior acontecesse? Sua família, ela inclusive, poderia ser presa ou mesmo deportada. Poderiam ser todos executados.
Precisava falar com alguém. Precisava contar a seu pai a respeito de Sebastian. Quem sabe ele pudesse lhe garantir que Costa Habichuela era mesmo um paraíso e por isso não tinham o que temer. Ou talvez ele tivesse um plano para poupá-los... Pena era não existir nenhum plano capaz de poupar seu coração.
Capítulo IV

- Bom dia. - Forçando-se a sorrir, Josefina foi até o aparador onde ficavam as travessas com o desjejum, embora só de olhar para todos aqueles pratos já sentisse o estômago se retorcer.
Tanto o rey quanto a rainha retribuíram o cumprimento com um bom humor que a filha estava longe de partilhar.
Após esperar que Grimm afastasse a cadeira, ela sentou-se e agradeceu ao mordomo com um aceno da cabeça antes de pedir:
- Por favor, deixe-nos a sós, sim?
- Certamente, Vossa Alteza. - Grimm estalou os dedos, esperou que outros dois criados deixassem a sala e partiu atrás deles, fechando a porta ao sair.
- Por que isso? - Embry a interpelou. - Charles estará aqui dentro de uma hora; temos um compromisso muito importante esta manhã.
- Eu sei. - Josefina respirou fundo. - Estou incomodada com este novo passo que estamos dando. Acho que precisamos discuti-lo.
O rey ergueu uma sobrancelha, e ela resolveu ir direto ao ponto:
- Para onde irá mandar aqueles colonos?
- Está fazendo troça?
- De modo algum. Eu gostaria de saber quais são seus planos.
- Não permitirei que me interrogue. - Stephen largou os talheres sobre o prato. - Este projeto tem sido nossa única preocupação nos últimos dois anos; por que resolveu questioná-lo justamente agora?
- Porque acho que deixou de fora alguns detalhes muito importantes. Pensei que seus objetivos fossem levantar um vultoso empréstimo bancário e talvez me casar com um nobre. Se esse era o plano original, por que alterá-lo?
- Você imaginava que iríamos conseguir cento e cinqüenta mil libras uma quinzena após chegar a Londres? E ainda temos a chance de duplicar essa soma. Triplicá-la, talvez. Jamais teremos de nos preocupar com dinheiro novamente. Teremos meios para viver como membros da realeza pelo resto da vida. - Riu. - O que estou dizendo? Somos membros da realeza.
- Até agora - retrucou ela -, estamos só lesando bancos, que terão de devolver aqueles recursos dos títulos para os investidores senão quiserem enfrentar revoltas ou qualquer outro tipo de distúrbios; as pessoas não perderão nada ou, no melhor dos casos, perderão a ingenuidade. Mas tudo mudará a partir do momento que começarmos a vender terras. As pessoas estarão comprando um sonho, uma esperança no futuro. O que elas irão encontrar quando chegarem a Costa Habichuela?
- Um paraíso.
- O que há de verdade nisso?
- Sua obrigação não é me interpelar, Josefina. Você vai fazer sua parte com um sorriso no rosto porque, se não fizer, nossa sorte pode virar. Compreendeu?
- Sim. Só me diga se haverá transtornos quando os navios e os colonos chegarem à Costa Habichuela.
- Suponho que sim. Mas estaremos muito longe da Inglaterra quando isso acontecer. - Inclinando-se sobre a mesa, segurou na mão dela. - Josefina, esta é a última vez que tocaremos neste assunto. - E a soltou.
Oh, Deus. Ela estava certa. Melbourne tinha razão e, quando se inteirasse da venda dos terrenos... Era melhor nem pensar.
- Só mais uma coisa, pai.
- Seja breve. Não podemos levantar suspeitas entre a criadagem.
- Eu sei, mas é que Melbourne tem feito perguntas contundentes sobre as condições da natureza em Costa Habichuela. Tenho a impressão de que ele não acreditou nos dados da brochura. Ou melhor, tenho certeza. Ele descobriu que tiramos aquelas informações de outros livros.
Stephen Embry se levantou.
- Você contou isso a ele?
- Não! É claro que não. Mas nem imagino o que Melbourne fará quando souber que estamos... incentivando as pessoas a se mudarem para lá.
- Maldição. - Mordendo o bigode, o rey pôs a andar de um lado para outro. - Eu nunca devia ter sugerido o nome dele como nosso intermediário. Levei em conta as vantagens de ter o nome Griffin vinculado ao nosso, no entanto não me passou pela cabeça que aquele arrogante metido a santo fosse investigar nossos negócios. A culpa foi minha.
- Talvez fosse melhor cancelarmos o compromisso em Vauxhall.
- Provavelmente seria pior - retrucou o pai dela. - Não, cumpriremos combinado, e eu cuidarei desse assunto.
- Como?
- Não se preocupe com isso. Apenas trate de evitá-lo até esta noite.
- Vou almoçar com a irmã, as cunhadas e a filha dele.
- Melbourne confia nelas?
- Imagino que sim
- Então vá a esse almoço. Encontrarei você e sua mãe no hall dentro de quarenta minutos. Preciso falar com o capitão Milton; um homem como Melboume deve ter inimigos. Inúmeros.

- Obrigado por me receber, almirante. - Sebastian estendeu a mão para o oficial uniformizado que se levantara atrás da ampla escrivaninha de mogno.
- É um prazer, Vossa Graça. - O almirante Mattingly tinha um aperto de mão forte e seguro, assim como sua reputação. - Em que posso ajudá-lo?
- Sei que pode soar estranho, mas estou procurando alguém que porventura tenha navegado ao longo da costa leste da América Central. Ofereceram-me um carregamento de madeira, e eu gostaria de ouvir uma opinião abalizada antes de fechar negócio.
- A maior parte da nossa frota está no Mediterrâneo ou no litoral da Espanha no momento, mas... - Mattingly esfregou o queixo, depois tirou um pedaço de papel de uma gaveta e ali rabiscou alguma coisa. - Tenente Calder!
O rapaz que acompanhara Sebastian até o gabinete do almirante abriu a porta, entrou na sala e bateu os calcanhares na saudação militar.
- Pois não, senhor.
- Leve isto ao Endeavor e entregue ao capitão Jerrod.
- Pois não, senhor. - O tenente apanhou o recado, fez uma continência e se foi.
- É um bom rapaz, muito eficiente, só que não consegue pôr os pés num navio sem colocar tudo o que tem no estômago para fora - comentou o almirante. - Tome uma xícara de chá, Vossa Graça. Teremos uma resposta dentro de uns vinte minutos.
- Obrigado, almirante.
- Jerrod zarpa amanhã; talvez ele não tenha como ajudá-lo, mas não custa nada arriscar. A Inglaterra precisa de madeira.
Sebastian sorriu. Se conseguisse encontrar alguém que conhecia a região da Costa dos Mosquitos e se essa pessoa corroborasse ou não as histórias de Rice-Able, o resultado poderia ter impacto por toda a nação.
Menos de vinte minutos depois o tenente Calder retornava ao gabinete para anunciar:
- Almirante, o capitão Jerrod manda dizer que infelizmente não tem como ajudá-lo, mas colocou um dos tenentes dele à sua disposição.
- Então peça a ele que entre, Calder.
- Pois não, senhor. - O rapaz tornou a sair.
Pouco depois surgia no vão da porta um jovem alto, com cabelos pretos e alegres olhos verdes.
- Tenente Bradshaw Carroway ao seu dispor, almirante. - Com isso, fez uma continência e se aproximou.
- Carroway, este é Sua Graça, o duque de Melbourne. Ajude-o da melhor maneira que puder.
Levantando-se, Sebastian perguntou:
- Poderíamos dar uma volta?
O tenente anuiu com um aceno de cabeça, e os dois deixaram o aposento e em seguida o edifício, rumando para perto dos canhões alinhados no porto. Após se desculpar pelo incômodo, Sebastian afirmou:
- O almirante Mattingly comentou que seu navio zarpa amanhã.
- Não foi incômodo algum; eu estava contando sacas de laranja, Vossa Graça, portanto só tenho a agradecer. - O jovem que parecia recém saído da adolescência sorriu. - Mas em que posso ajudá-lo, Vossa Graça? O capitão Jerrod mencionou uma questão atinente à América do Sul.
- América Central, na verdade. Costa dos Mosquitos. Você conhece?
- Estive no Triumph no ano passado; perseguimos uma fragata americana por toda a costa da região durante dois meses antes que a embarcação declarasse o fim das hostilidades.
Ano passado. Sebastian tentou dissimular a súbita onda de euforia.
- Por acaso ouviu falar do rei Qental quando esteve por lá?
- Um espertalhão. Ele nos vendeu os serviços de dois guias que iriam nos orientar ao longo da costa, e os camaradas quase nos fizeram encalhar num banco de areia três dias depois.
- Aquela região é habitável?
- Em determinados lugares. Quanto mais alto o terreno, maior é a probabilidade de que permaneça intacto na próxima estação chuvosa. Só que há pouquíssimas áreas com terrenos elevados ao longo do litoral.
- Você conhece um lugar chamado São Saturus?
- Não. Há uns poucos acampamentos de garimpeiros e caçadores; talvez um deles tenha recebido esse nome, mas, sinceramente, não me recordo.
- O nome Stephen Embry lhe soa familiar?
- Embry... Um sujeito alto, com farto bigode loiro?
- Isso mesmo.
Deus seja louvado.
- Como o conheceu?
- Rebocamos um grupo de ingleses de lá para a Jamaica a pedido do governador de Belize. Soldados a soldo dos rebeldes espanhóis, na maioria; outros estavam desistindo do posto para ir morar na Jamaica. Lembro-me bem de Embry porque ele se dizia coronel do Exército Nacional, amigo íntimo de Bolívar; a julgar pelas histórias que contava, estava liderando a rebelião sozinho, e todos que o acompanhavam usavam um uniforme preto de doer na vista com cruzes verdes no peito. Lembro-me de ter pensado que eles deviam ter assado de calor dentro daqueles trajes de lã em plena selva... Se bem que na Costa dos Mosquitos quase não houve ação contra os soldados de linha espanhóis.
- Tenente, você repetiria tudo isso perante um tribunal de justiça?
- São apenas pontos de vista, mas repetiria, sim; não vejo que mal há em dizer o que penso. Só que...
- Sim, você vai zarpar no Endeavor amanhã. Droga.
- Posso fazer uma declaração por escrito, se isso ajudar.
- Ajudaria muito. Obrigado. - Era exatamente o que ele queria. E precisava. Mesmo assim, não pôde deixar de pensar que seria o mais feliz dos homens se o rapaz tivesse se hospedado em suntuosos aposentos no magnífico palácio do rey de Costa Habichuela. - Uma última pergunta: você conhece algum país naquela área chamado Costa Habichuela?
- Costa Habichuela? Não. Se tivéssemos ouvido falar desse lugar, aportaríamos por lá para reabastecer nossos estoques de provisões em vez de ter de navegar até Belize.
- Obrigado pelas informações, tenente Carroway.

O mundaréu de gente ao redor do acanhado edifício, denominado às pressas Cartório de Registro de Terras de Costa Habichuela, ergueu-se em vivas quando Josefina e seus pais desceram da carruagem.
- Magnífico, não? - comentou o rey, acenando. - Olá, amigos; sejam bem-vindos!
- Como essas pessoas ficaram sabendo do cartório? - indagou Josefina num sussurro, tocando o braço do pai.
- Assim que cheguei, pedi aos jornais que publicassem anúncios - respondeu ele enquanto partia atrás do capitão Milton, que abria caminho rumo às portas ainda fechadas do prédio. - Ah, sr. Halloway, sr. Orrin. Vamos abrir ao público, sim? - Virou-se para a multidão. - Obrigado a todos pelo apoio e entusiasmo. Quero ser o primeiro a lhes dar as boas-vindas como novos cidadãos de Costa Habichuela!
O povaréu aclamou estrepitosamente. Uma quantidade imensa de pessoas, a maioria vinda dos estratos menos favorecidos da sociedade: funcionários públicos e lavradores, adeleiros, criados, varredores de rua, mineiros, padeiros; queriam uma nova vida no paraíso e despenderiam cada pêni que haviam poupado para obtê-la. Josefina baixou a cabeça. Em um mês, se tanto, todos estariam odiando Costa Habichuela e qualquer pessoa que tivesse alguma relação com aquele lugar. Iriam odiá-la. E ela bem que mereceria.
O duque de Harek se aproximou.
- Vá para junto do rey, Vossa Majestade - sugeriu à rainha Maria com um sorriso. - Cuidarei para que a nossa princesa não seja carregada daqui nos ombros agradecidos da multidão.
Ao ver que sua mãe já ia se afastando, Josefina observou em voz baixa:
- Para que ser tão melodramático?
- Ora, eles a adoram. Eu a adoro.
- É mesmo? - Encarou-o, desejando que ele fosse Melbourne.
- Sim. Tanto que já conversei com Sua Majestade e, apesar de não haver nada formalizado, quero que saiba que pretendo pedi-la em casamento. - Os olhos verde-claros avaliaram a expressão dela. - Meu único medo é que você recuse a minha oferta na esperança de receber uma proposta equivalente do duque de Melbourne.
- Melbourne? Não suporto aquele homem.
- Não precisa fingir, Vossa Alteza. Não há termo de comparação para a fortuna e o poder de Sebastian Griffin, porém todos sabemos que ele não se casará se com isso tiver de deixar a Inglaterra... Claro, se porventura Melbourne resolver se casar novamente.
- Você é perito em assuntos que dizem respeito a ele, não?
- De certo modo, sim. - Harek baixara ainda mais o tom de voz. - Por exemplo: estou sabendo que vocês dois foram para a cama.
- Como? - A cor se foi do rosto dela. - O que...
- Não me importo. Sinceramente. Criar uma criança com sangue Griffin, ainda mais se ela se parecesse bastante com o pai, iria nos trazer muitas vantagens. Em termos de benefícios financeiros, para ser mais claro. Portanto, não se sinta inibida.
Por um instante, Josefina se recusou a acreditar no que acabara de ouvir.
- Eu... Não sei do que está falando. E mesmo que soubesse, não...
- Não sou nenhum monstro, Vossa Alteza. Não disse o que disse no intuito de ofendê-la ou ameaçá-la. Aprecio a sua companhia e acho que faríamos um belo casal. Fazem-se muitos casamentos unicamente por motivos políticos ou financeiros... O que não seria nosso caso, já que gostamos um do outro. De qualquer modo, enquanto estivermos em Londres, sinta-se à vontade para incentivar Melbourne, por favor. Não vejo no que isso poderia nos prejudicar.
Tentando organizar os pensamentos, Josefina limpou a garganta.
- Bem, devo admitir que agora você realmente me surpreendeu.
- Você é princesa e eu sou duque. - Inclinou a cabeça. - Estamos acima da maioria das bobagens com que as pessoas se preocupam.
Antes que ela pudesse retrucar, o tenente May foi abordá-los, curvando-se com a mão sobre o peito:
- Vossa Alteza, Sua Majestade pede que vá para junto dele e da rainha.
- Obrigada, tenente.
Então era essa a vida que esperava por ela... Com efeito, o duque de Harek era um par bem mais conveniente do que Melbourne, uma vez que não fazia perguntas e parecia disposto a guardar para si o que sabia. Só que havia um lado seu que era simplesmente Josefina Embry, sem intrigas nem complicações, que não desejava um marido que fosse indiferente ao fato de ela ter casos com outros homens ou porque não se importava com isso ou porque poderia se beneficiar da situação.

- Você realmente conhece piratas?
- Bem - Josefina sorriu para a filha de Melbourne, que passava manteiga numa grossa fatia de pão -, havia um sujeito que usava tapa-olho e vivia com um papagaio no ombro. Tenho quase certeza de que se tratava de um pirata.
- Como ele se chamava? - indagou a garotinha, os olhos arregalados. - Fiz uma lista com o nome de vários piratas famosos.
- Ele dizia chamar-se Ned Terrível.
- Oh, desse eu nunca ouvi falar... Ele tinha os dois braços e as duas pernas?
- Peep - Eleanor escondia o sorriso atrás do guardanapo -, deixe a princesa Josefina comer, sim? Ou vai querer que ela morra de fome?
- Deixe-a à vontade, por favor - interveio Josefina. - A bem da verdade, é muito bom falar de outro assunto que não Costa Habichuela.
Penélope se ajeitou melhor na cadeira do restaurante ao ar livre onde elas se achavam, depois se debruçou sobre o braço direito de Josefina, a quem confidenciou antes de dar uma mordida no pão:
- Que bom que pudemos almoçar juntas hoje. Gosto muito de você, princesa.
Céus.
Um gesto tão singelo, mas que tanto significava: crédito, confiança... Era de enternecer o coração.
- Eu também gosto muito de você, lady Penélope.
E me chame de Josefina, por favor.
- Então me trate por Peep. Será que se importaria de descrever Ned Terrível em detalhes para que eu possa fazer um desenho dele?
- De modo algum, Peep. Farei tudo o que estiver ao meu alcance para ajudá-la com a sua pesquisa.
Por um instante Josefina permitiu-se pensar que ela e a encantadora garotinha poderiam ser grandes amigas, mas então se lembrou do compromisso em Vauxhall naquela noite. A culpa seria sua se algo acontecesse a Sebastian. Peep iria odiá-la... e ela iria odiar a si própria. Cinco horas. Tinha cinco horas para pensar em algo que pudesse proteger o duque de Melbourne, ela e Peep de um mal maior.

- Onde diabos você se meteu?
Tirando o olhar do espelho, Sebastian foi pousá-lo sobre Charlemagne e Valentine, que entravam como dois furacões nos seus aposentos.
- Estive cuidando de negócios. - Levantou-se, e o camareiro ajudou-o a colocar o colete cinza-chumbo. - Obrigado, Bailey. Terminarei de me vestir sozinho.
Após fazer uma mesura, o criado deixou o quarto e fechou a porta.
- Na verdade, fui até Dover - prosseguiu Sebastian. - Achei que...
- Dover? Sem avisar a ninguém?
- Faz tempo que não preciso dos cuidados de uma ama-seca, Shay. Agora, se me deixar terminar, fui procurar o almirante Mattingly, pois achei que ele poderia me indicar alguém que tivesse navegado pela Costa dos Mosquitos.
- O que Rice-Able nos contou já não era o bastante?
- Eu queria ouvir a opinião de outra pessoa.
- E conseguiu encontrar alguém? - indagou Valentine, que, assim como Eleanor, já havia se inteirado do plágio do livreto sobre Costa Habichuela por intermédio de Charlemagne.
- Sim. - Sebastian foi pegar a declaração de Carroway, que havia deixado sobre a cômoda e o entregou a Charlemagne. - Ao que tudo indica, você quebrou sua promessa e contou a Valentine o problema concernente a Costa Habichuela, não? - Ajeitando o relógio no bolso, ele dirigiu-se para a porta. - Alguém mais sabe?
- A estas horas, toda a família. Exceto Peep e os Witfeld, é claro. - Ao vê-lo levar a mão à maçaneta, Charlemagne pediu: - Espere, Melbourne.
- Tenho um compromisso. E me devolva essa declaração; é provável que eu vá precisar dela.
- Se esteve fora o dia todo, então você não está sabendo da novidade.
Aprumando-se, Sebastian o encarou.
- Do que se trata?
- Esta manhã, em Piccadilly, os Embry participaram da inauguração de um cartório de registro de imóveis de Costa Habichuela. Eles estão vendendo lotes dos mais variados tamanhos por um xelim o metro quadrado. A fila que se formou diante do prédio dava volta ao quarteirão.
- Estão à procura de colonos para aquele lugar esquecido por Deus? - A surpresa fez Sebastian perder a firmeza que até então vinha imprimindo a voz.
- E, salvo engano, o rey abriu outro cartório desses na Escócia. - Charlemagne pigarreou. - Lamento muito, Seb.
Ele fuzilou o irmão com os olhos.
- Que raios você lamenta, Shay? É lógico que prefiro saber o que está se passando a permanecer na ignorância.
- Aonde você vai? - perguntou Valentine.
- Vou receber convidados no meu camarote em Vauxhall. O rey e família. - E antes que os atônitos parentes fizessem algum comentário, ele despediu-se: - Até amanhã.
Na sala de estar do piso térreo da mansão do coronel Branbury, Sebastian fazia das tripas coração para não se pôr a andar de um lado para outro. Só Deus sabia a vontade que tinha de ir procurar Josefina e chacoalhá-la até fazê-la confessar toda a verdade. Agora se dava conta de que tudo o que acontecera entre ambos era parte de algum tipo de plano, um artifício para mantê-lo calado enquanto ela e o rey surrupiavam recursos da Inglaterra. Era mesmo uma pena que fosse o duque de Melbourne, já que isso o impedia de esmurrar Embry sem jogar seu nome e o de sua família na...
A porta se abriu.
- Vossa Graça. - O rey se acercou para oferecer um aperto de mãos. - Obrigado pelo convite para esta noite e pelo ininterrupto apoio.
Tratando de colocar um sorriso nos lábios, Sebastian aceitou o cumprimento.
- Fiquei contente em saber que conseguiu um novo assistente prontamente.
- Ah, Charles tem sido uma bênção. Ele está para chegar. - Stephen foi até a cristaleira, de onde tirou dois cálices. - Toma um Porto enquanto esperamos?
- Certamente. - Lembrando a si que a paciência lhe seria mais útil do que a violência, tomou na mão a bebida que Embry lhe estendia.
- Sabia que resolvemos vender lotes de terra?
- Papai, não poderíamos, só por uma noite, não limitar a conversa a eventos sociais? - Corada e meio ofegante, Josefina entrou na sala.
Ao perceber que a encarava, Sebastian, com os pelos do braço arrepiados, esboçou uma mesura antes de tomar na sua a mão que ela lhe estendia.
- Vossa Alteza. - Beijando os dedos dela, concluiu que, se tivesse algum instinto de autopreservação, aquela sirigaita deveria mais era que correr para longe do pai e se atirar nos braços do duque mais próximo, ele, implorando por perdão e proteção. - Você está muito bonita.
Realmente, Josefina estava linda num vestido de seda azul com decote pronunciado e mangas rendadas, fitas azuis entremeadas nos cabelos, a tiara de prata cultuando à luz das velas. Se pudesse confiar na vigarista, certamente não resistiria ao assomo de desejo que o instigava a esquecer, só por alguns instantes, o perigo que ela representava ao seu equilíbrio, ao seu coração, ao seu...
- Desculpem-me pela demora. - O duque de Harek se achava no vão da porta.
Pestanejando, Sebastian obrigou-se a tirar os olhos de Josefina para encarar o recém-chegado.
- Boa noite, Harek.
- Melbourne. Vossa Majestade, Vossa Alteza. - Charles Stenway se curvou. - Tenho uma boa explicação para o meu atraso: acabo de adquirir dois lotes de oitocentos metros quadrados das primorosas terras pastoris de Costa Habichuela.
- É mesmo? - O rey bateu palmas. - Esplêndido!
- Eu queria mostrar que o meu apoio à sua causa não é apenas da boca para fora.
Enquanto Sebastian se surpreendia com a expressão contrariada de Josefina, Harek foi até ela para lhe tomar a mão estendida. - Você é a flor mais encantadora do seu país, Vossa Alteza.
- Obrigada, Charles - respondeu ela com um sorriso.
Sebastian tentou ocultar o ciúme atrás do cálice de vinho. A flor mais encantadora, essa é boa. O mais provável era que ela fosse a única flor de Costa Habichuela.
- E você, Melbourne. - Harek enfim soltava a mão de Josefina. - Quanto já possui em terras de Habichuela?
- Nada, ainda. Passei o dia em Dover e só menos de uma hora atrás fiquei sabendo que o rey tinha aberto um cartório de registro de imóveis.
- Dover? - ecoou Josefina. - O que o levou até lá? - Antes que ele respondesse, a rainha Maria surgiu à entrada da sala.
- Boa noite, lorde Melbourne, lorde Harek.
Sebastian indagou se ela, apesar da distinção que faltava ao marido e que Josefina herdara, estaria a par do que quer que fosse que Embry andava tramando. Pelo sim, pelo não, assumiria que todos eram culpados até prova em contrário.
- Vamos? - perguntou, deixando o cálice de lado. - Minha carruagem é espaçosa, porém ainda não sei quantos membros da sua comitiva irão nos acompanhar.
- Só o capitão Milton e o tenente May, que farão nossa escolta e nos seguirão a cavalo.
- Muito bem; vamos andando, então.
Quando a carruagem parou nos Jardins Vauxhall, Green pulou do lugar que ocupava na boleia ao lado de Tollins para ir baixar os degraus e abrir a porta. O duque foi o primeiro a saltar e ofereceu a mão à princesa. Apertando os dedos dele com uma força desnecessária, ela indagou enquanto descia do veículo:
- É verdade que qualquer um entra em Vauxhall, pois não há cobrança de ingressos?
- Vem daí a profusão de gatunos, meretrizes e delinqüentes que circulam por aqui.
- Essa classificação de certo modo não engloba toda e qualquer pessoa em algum momento da vida? - Ela sorriu. - Às vezes você fala como um ingênuo, Melbourne.
- Devo ser, afinal ainda desejo você. - Sem mais, virou-se para assistir Maria Embry a descer do coche e, oferecendo-lhe o braço, seguiu com a rainha à frente dos demais para abrir caminho em meio à aglomeração de gente.
Inconfundíveis em seus uniformes negros, os dois oficiais do rey se posicionaram um de cada lado do pequeno grupo, o que acabou fazendo com que a multidão se apartasse para lhes dar passagem. De pronto Sebastian se indagou o que a massa que tanto admirava a família real de Costa Habichuela iria dizer se soubesse que os Embry não passavam de larápios trapaceiros.
- Olhe, mamãe - veio a voz de Josefina às costas dele -, aquele homem está cuspindo fogo!
- E lá, se não se me engano, está o camarote de Melbourne - assinalou Harek -, de onde teremos uma vista privilegiada caso esse sujeito engula as chamas por acidente.
- Oh, não diga isso - ela o repreendeu. Sebastian a olhou por cima do ombro.
- Goste-se ou não, quando se embarca numa aventura perigosa é preciso contar com resultados catastróficos. - Com isso, guiou-os até o espaçoso retângulo de madeira erguido a uns três ou quatro palmos do chão, onde um punhado de criados de Vauxhall vigiava travessas de alimentos sobre um aparador, diante do qual uma dúzia de cadeiras perfilava-se na parte fronteiriça do tablado. Um número considerável de curiosos já se aglomerava ao redor do camarote.
- Excelente localização, Melbourne - elogiou o rey enquanto acomodava a esposa numa das cadeiras. - Daqui se avista o pavilhão de Prinny. Acha que ele virá esta noite?
- Creio que não.
- Eu queria dar uma volta pelos jardins - anunciou Josefina. E ainda que Harek corresse a se acercar, foi para Sebastian que ela indagou: - Não me levaria para um passeio?
- Certamente, Vossa Alteza. Mas vamos precisar de alguém que a acompanhe.
- Melbourne tem razão, querida - anuiu Embry. - Tenente, acompanhe a minha filha, por favor.
O rapaz fez uma continência.
- Pois não, Vossa Majestade.
Sebastian ofereceu o braço a ela, Josefina o aceitou, e os dois desceram do camarote com May em seus calcanhares.
- Gostaria de ver o lago?
- É uma boa idéia.
Passaram por outros dois camarotes antes que os ocupantes do terceiro chamassem a atenção de Sebastian. Empertigando-se, ele estacou para indagar no tom mais moderado de que era capaz:
- O que estão fazendo aqui?
- Você sabe que Eleanor adora acrobacias - respondeu Valentine, saudando-o com uma taça de vinho.
Era bem feito para ele. Quem lhe mandara dizer aonde iria?
- Sarala, Nell, Shay - cumprimentou os demais com frieza. - Onde estão Zach e Caroline?
- Com os Witfeld; achamos melhor não expor a saúde da sra. Witfeld ao sereno - respondeu Charlemagne, o olhar preso em Josefina e no guarda-costas todo de negro.
- Boa noite, Vossa Alteza.
- Lorde Charlemagne, lorde Deverill. - Ela sorriu com um olhar luminoso. - Olá, Eleanor, Sarala, e obrigada mais vez pelo convite para o almoço. Sinto falta de amigas com que conversar.
Sebastian achou melhor intervir antes que a irmã ou a cunhada tivessem tempo para retrucar.
- Com licença, sim? Estamos dando uma volta.
- Quer que...
- Não, obrigado - ele interrompeu Charlemagne.
- Bom jantar.
Enquanto se afastavam, Josefina comentou:
- Sua família parece muito unida.
- Somos amigos além de sermos parentes.
- E você gosta muito disso. Está nos seus olhos.
- É verdade. Embora confie em pouquíssimas pessoas, sei que posso contar com eles. Sob quaisquer circunstâncias, mesmo quando não consigo admitir que preciso de ajuda.
- Deve ser - Josefina limpou a garganta - reconfortante saber que há sempre alguém a quem você pode recorrer quando precisa de um ombro amigo ou apenas conversar.
Sebastian respirou fundo. Seria algum outro truque? Ou ela sugeria que tinha algo a lhe dizer?
- Tenho um par de ouvidos - afirmou, - Prontos para ouvi-la.
- Mas não na companhia de outras pessoas. Quando estivermos a sós, quem sabe...
- Se estiver tramando alguma coisa, Josefina, juro que vou torcer o seu pescoço. Estou farto de joguinhos.
- Eu também - murmurou ela, acenando para alguém. - Preciso falar com você. Só nós dois.
- Então temos de fazer com que pareça involuntário... Está vendo aquele arco ali adiante, à sua direita?
- Sim. Mas antes posso assinalar que tudo seria muito mais simples se você não tivesse insistido num acompanhante?
- Não, não pode. - Tendo em vista a desconfiança que tinha dela, Josefina devia era se dar por muito da satisfeita com que ele tivesse escolhido um acompanhante no lugar de uma pistola. - Encontre-me do outro lado daquele arco. - Enquanto falava, soltara o relógio da corrente para trocá-lo de bolso. - Ora, seu...! - bradou para ninguém em especial. - Pare, ladrão!
Ao vê-lo ir ao encontro do tenente May para repreendê-lo pela desatenção, Josefina se misturou à multidão que já começava a se formar, de onde reparou que Sebastian, após mostrar a corrente do relógio para o oficial, mandava-o numa direção para em seguida tomar o rumo oposto. Cuidando de demonstrar que também era competente, ela colocou-se entre um bando de turistas antes de partir em direção ao arco que Sebastian havia apontado, e foi se destacar do grupo tão logo passaram pela pérgula recoberta de roseiras.
Ali, tratou de se proteger sob os ramos pendentes de uma imensa glicínia, tentando ignorar que o lado mais sensato e egoísta de sua mente berrava para que voltasse para o camarote e mantivesse a boca bem fechada. Com só mais uma quinzena para permanecer em Londres, ela e sua família tinham boas chances de escapar ilesos e impunes. Mas não, não podia deixar que...
Um homenzarrão em trajes de cavalheiro surgiu à entrada de uma das veredas atrás do arco, trazendo pela mão uma ruiva esquálida que correu a passar os braços e as pernas ao redor dele. Os dois então se beijaram ruidosamente, e o camarada abaixou o corpete do vestido da dama até lhe desnudar os seios descarnados.
- Lorde Castleton e sua mais recente aquisição. - Soprou uma voz no ouvido de Josefina.
Antes que ela esboçasse uma reação, Sebastian virou-a de supetão para fazê-la encará-lo.
- Então, Sebas...
Ele a calou com um beijo ávido, ardente, recendendo a vinho do Porto. Tomada por uma onda de desejo tão intensa que chegava a lhe bambear as pernas, Josefina enlaçou-o pelo pescoço com o cuidado de reprimir o gemido que assomara à sua garganta.
Quando enfim afastou os lábios dos dela, Sebastian a interpelou num sussurro:
- Você é feiticeira, não é? Isto só pode ser algum encantamento que se apodera do meu corpo. - Voltou a beijá-la, instigando-a com a língua até quase perder o fôlego enquanto lhe tomava um dos seios na mão.
- P-pare. - Ela o empurrou, tão de leve que mais parecia uma carícia.
- Tem razão. Não há tempo a perder. - Após fitá-la por um instante, indicou com a cabeça um espaço entre a glicínia e um carvalho. - Venha.
Mal conseguindo enxergar o vulto dele em meio às sombras e a densa folhagem, Josefina o seguiu até chegarem a uma minúscula clareira que a lua crescente banhava em tons de prata. Ali, o apaixonado e provocante Sebastian deu lugar ao frio e implacável duque de Melbourne.
- Você disse que queria conversar comigo, não? - Embora ressentida com a súbita transformação,
Josefina afirmou:
- Há duas coisas que eu quero que você saiba. - Mantinha o queixo erguido para poder fitá-lo olhos nos olhos. - E ambas são a mais pura verdade.
- Por que não diz o que tem a dizer e deixa que eu decida se acredito ou não?
- Muito bem. Eu... Eu nem imaginava que meu pai tivesse intenções de vender lotes de terra a alguém.
- Por que esse tipo de tramóia seria pior do que tomar dinheiro de um banco e promover a venda de títulos para financiar o furto?
Deus, ele estava a par de tudo.
- Porque só o banco é prejudicado, uma vez que terá de comprar os títulos de volta. Já a venda de terras é outra questão, é mais do que uma... fraude. - Surpreendeu-se ao ver que conseguia pronunciar aquela palavra que seu pai havia proibido. - As pessoas que forem para lá podem vir a morrer, Sebastian. Famílias inteiras que...
- O que você realmente sabe a respeito de Costa Habichuela?
- Eu sabia que não era nenhum paraíso, porém nunca me interessei em tirar a limpo as informações a respeito do clima ou da topografia. Mas agora é diferente.
- Está dizendo que não tem a menor responsabilidade pelos prejuízos causados a tantas pessoas e que só fez o que fez porque foi iludida pelo seu querido paizinho?
O sarcasmo contido na acusação velada doeu mais do que uma bofetada.
- Está claro que você pouco se importa com o que eu saiba ou não, e eu não pretendo usar minhas próprias palavras contra mim. Tudo o que vou lhe dizer é que ninguém pode ir para Costa Habichuela imaginando que aquilo é um pedaço do Éden.
Sebastian perscrutou o semblante dela por alguns instantes antes de indagar:
- Qual era a segunda verdade que tinha para me dizer, Vossa Alteza?
- Contei ao meu pai que você havia descoberto que o livreto não passava de ficção, e ele...
- Ah! E que senso de honradez levou-a a fazer isso?
- Fiquei morta de medo! - replicou ela. - Quando começamos tudo isso, Costa Habichuela não tinha a menor importância, mas com a venda dos terrenos... Peguei emprestado aquele livro que você estava folheando na biblioteca de Allendale, na esperança de que meu pai pudesse ter dito a verdade sobre São Saturus e da Enseada do Diamante Negro.
- Sei. - Ele balançou a cabeça. - Bem, agora que já me contou tudo e que sua pretensa consciência está limpa, é melhor voltarmos para junto dos demais antes que alguém venha nos procurar.
Ao pousar a mão no ombro dele para impedi-lo de se afastar, Josefina sentiu um feixe de músculos se enrijecer sob seus dedos. O que provava que ela ainda mexia com ele. Do mesmo modo como ele lhe causava as emoções mais conflituosas que já sentira.
- Quando falei a meu pai sobre você, ele disse que iria se encarregar de resolver esse problema. E que os Jardins de Vauxhall eram freqüentado por verdadeiras multidões.
- Muito bem, agora que já me avisou e já ameaçou, sugiro que...
- Não estou ameaçando você, Sebastian. Estou preocupada.
- Então não devia ter se envolvido em toda essa história. - Ele respirou fundo. - Vou colocar um ponto final em tudo isso, Josefina. As penas serão severas e, se quiser evitar o cadafalso, aconselho-a a me contar tudo o que sabe e rezar para que eu tenha como protegê-la.
- É você quem precisa de proteção, seu tolo! O fato de ser duque não o torna imune a ferimentos. E não estou dizendo isso porque resolvi trair meu pai, e sim por uma questão de consciência... Ainda que você ache que não tenho um pingo de senso de moral.
Ela fez menção de se afastar, porém Sebastian a agarrou pelo braço.
- Mais cedo ou mais tarde, minha cara, você irá se dar conta de que não tem como se manter neutra. E vai ter de escolher um lado.
- Não espere que eu vá escolher o seu. - Soltando o braço com um safanão, ela concluiu que Melbourne ou não acreditava que corria perigo ou pensava que ser um Griffin era o bastante para salvaguardá-lo de todo mal. Fosse como fosse, viu-o deixar a clareira e, sem outra opção, partiu atrás dele.
Assim que se viu sob a arcada da pérgula, Sebastian se deteve.
- Você e eu... acabou - afirmou sem se voltar para ela, e Josefina teve a sensação de que um punhal lhe transpassara o coração. - Agradeço por ter me dito que reprova as atitudes do seu pai, porém suas informações nada acrescentaram ao que eu já sabia.
- Ora, que homem perspicaz.
- Não tão perspicaz assim, é evidente. Independentemente disso, após esta noite não espere voltar a me ver a não ser num tribunal de justiça. Basta dos seus joguinhos, seja lá quem você for. - Fez um gesto para lhe dizer que seguisse à sua frente.
Passando por ele como uma lufada de vento, Josefina correu a ir a se misturar às pessoas que passeavam pelo parque. Oh, era mesmo uma estúpida. Sebastian não precisava do seu auxílio, tampouco o queria. Pelo visto, já tinha conseguido tudo o que queria dela e agora queria vê-la na prisão, ou enforcada, porque havia cometido uma falcatrua e seu pai a transformara num delito ainda mais grave. Oh, pelo menos ele iria impedir um êxodo a Costa Habichuela...
- Vossa Alteza - chamou o tenente May, que vinha ofegante ao encontro dela. - Não consegui encontrar o gatuno. E peço desculpas por tê-la deixado desacompanhada, mas Sua Graça me mandou...
- Está tudo bem. Meu pai não precisa saber de nada disso e, se o duque tiver sorte e recuperar o relógio, nem mencionaremos o ocorrido.
- Recuperei, sim. - Como se surgido do nada, Sebastian foi se colocar ao lado dela com o relógio na palma da mão. - O malandro certamente o jogou num canteiro perto daqui quando percebeu que estávamos no encalço dele.
- Só espero que esse vagabundo não guarde rancor, Vossa Graça - comentou May com um esboço de sorriso.
Josefina sentiu um arrepio ao constatar que ele acabava de inventar uma boa justificativa para que alguém apunhalasse Melbourne pelas costas. Soldados experientes que haviam servido junto de seu pai em dezenas de campanhas, May e Milton decerto tinham tirado a vida de inúmeras pessoas e não hesitariam em matar novamente para cumprir ordens. E mais: a sorte dos dois dependia do êxito do rey.
Apreensiva como estava, foi só ao chegarem ao camarote que ela ergueu a cabeça ao ouvir o pai indagar:
- Como foi a volta pelo parque, filha? - Com um sorriso plácido, Embry fez sinal para que ela se aproximasse.
- Muito interessante. - Quando olhou para trás a fim de agradecer a Melbourne pelo passeio, ela viu Milton se acercando com algo que parecia um objeto metálico na mão. Oh, Senhor.
Sem pensar duas vezes, Josefina se atirou sobre Sebastian e, agarrando-o pelas lapelas do sobretudo, deu meia-volta levando-o com ela a fim de colocá-lo de costas para o camarote, antes de lhe dar um arrebatado beijo. E, quando enfim o largou, anunciou a plenos pulmões para que o pai e Milton ouvissem:
- Melbourne me pediu em casamento, e eu aceitei!
Embora meio atordoado com o beijo, Sebastian segurou-a pelos ombros para afastá-la de si... e foi então que viu, por sobre o ombro dela, um dos guarda-costas de Embry, Milton, esconder um punhal nas dobras do uniforme antes de se afastar dali a passos rápidos, todo encolhido, buscando se infiltrar por entre a multidão. Naquele instante, seu mundo virou de pernas para o ar: Embry tentara matá-lo, e Josefina acabava de salvar sua vida... Engolindo em seco, tornou a trazê-la para perto dele.
- Eu pretendia pedir sua permissão antes de mais nada - afirmou em voz alta -, mas fui vencido pelos meus sentimentos.
- Seus sentimentos venceram a nós dois - juntou Josefina, a voz trêmula, o rosto sem cor.
Por mais estranho que fosse, ele se acalmou. Precisava assumir o comando da situação, uma vez que Milton estava por ali com um punhal. Mais tarde cuidaria das conseqüências das afirmações que ele e Josefina haviam feito.
- Espero que perdoe nossa afoiteza e nos dê sua bênção - prosseguiu, conduzindo-a para o camarote.
Embry, que se pusera em pé de um pulo ante o anúncio da filha, estava mais pálido do que ela, o que indicava que também fora pego de surpresa. E, àquela altura dos acontecimentos, todas as pessoas que tinham ido ao parque naquela noite já deviam estar sabendo da novidade: o duque de Melbourne havia anunciado seu casamento com a princesa Josefina de Costa Habichuela.
- Seja bem-vindo à família, Melbourne! - bradou o rey. - Ou melhor, a partir de agora creio que devo tratá-lo por Sebastian.
Antes que ele pudesse responder, o duque de Harek empurrou uma cadeira de lado com tanta força que o balaústre do camarote rangeu.
- Esperem um momento - rosnou Charles Stenway. - Nós dois temos um acordo, Vossa Majestade. Não vou...
- Apenas trocamos idéias, Charles; não fizemos acordo algum. Mas depois conversaremos sobre esse assunto, sim?
- Sem sombra de dúvida. - Com um olhar furioso na direção de Sebastian, Harek passou por todos eles e, descendo os três degraus que davam acesso ao tablado, desapareceu em meio aos curiosos.
- Acho melhor irmos andando também - sugeriu a rainha Maria. - Criamos um tumulto, e com apenas dois guardar para nos...
- Como sempre, você tem razão, minha querida. Tenente, leve-nos de volta à carruagem.
Sebastian preferiu não lembrar à rainha que no momento havia um só guarda a zelar pela segurança deles. Afinal de contas, de que lhe valia...
- Melbourne!
Sobressaltado pelo tom estarrecido da voz de Charlemagne, ele se virou para o irmão.
- Falaremos sobre isso mais tarde, Shay. Agora preciso acompanhar minha noiva e a família dela até minha carruagem.

- Como foi que conseguiu, Josefina? Você não disse que ele estava desconfiado de nós? - Levando a mão ao peito, Stephen caiu na risada. - Oh, meu Deus... E por pouco não acabo com ele!
Encolhida num canto da carruagem, Josefina parou de esfregar o local em seu braço onde os dedos de Sebastian haviam deixado uma marca avermelhada para faltar à verdade com muita naturalidade:
- Acho que, quando se deu conta de que Harek estava prestes a me propor casamento, Melbourne percebeu que estava deixando passar uma excelente oportunidade.
- Ótimo, ótimo, ótimo. Sempre digo que a ambição é algo que absolutamente todos os homens trazem no coração. Aliás, é nesse princípio que se encontra o êxito dos nossos esforços.
- Está feliz com esse casamento, mi nina? - quis saber Maria Embry.
O noivo não estava. Pelo contrário, Sebastian parecia a ponto de...
- É claro que ela está, meu amor - intrometeu-se o pai dela. - Vencemos. Ainda faltam algumas arestas a aparar, mas com Melbourne sob controle, tudo será muito mais simples. Aliás, foi muito bom termos até amanhã para pensar em tudo isso com calma. Precisamos preparar alguns papéis, algo que nos garanta que ele irá guardar para si o que sabe se não quiser se incriminar. Ah, e eu tenho de homenageá-lo com um título.
- Ele já é duque, papai.
- Não pode ser uma distinção tão eminente quanto a que demos ao príncipe regente - prosseguiu Stephen, como se ela não tivesse dito nada. - Deixe-me ver... e que acha de Cavaleiro da Cruz Verde? E não podemos esquecer que, com o duque de Melbourne na família, vamos precisar de um nome mais imponente da próxima
Costa dei Oro, talvez. É claro que para isso vamos ter de alterar a brochura, os títulos, os contratos de venda de terras, mas isso não será problema, já que teremos recursos de sobra para as despesas.
Josefina fez o que pôde para não se mostrar pasma enquanto seu pai, feliz da vida, punha-se a arquitetar a instituição de um novo país na Costa dos Mosquitos. Ele realmente não se importava com o que pudesse vir a ser dos colonos que, ao desembarcarem dos navios, não iriam ver nem sinal de uma cidade resplandecente, nenhum porto efervescente, nada de Costa Habichuela... Deus, quando Sebastian descobrisse que a filha de um soldado não lhe deixara outra opção a não ser desposá-la, era bem provável que ela fosse dar graças aos céus por não poder ser enforcada mais do que uma vez.
Filha de um soldado... Que o esbofeteara em público. Que dera a ele a impressão de não estar à altura de lhe dirigir a palavra. Que o levara para a cama. Não, Sebastian jamais a perdoaria.

- O senhor voltou cedo, Vossa Graça - comentou Stanton ao abrir a porta. - Espero que...
- Onde está minha filha? - Sem esperar pela resposta, Sebastian partiu rumo a escadaria sem se dar ao trabalho de tirar as luvas ou o sobretudo.
- Imagino que ela esteja na sala de bilhar com a sra. Beacham, Vossa Graça. Algum problema?
Subindo os degraus de dois em dois, ele avisou por sobre o ombro:
- Minha família não deve demorar a chegar; acomode-os na sala de estar, e peça para a cozinheira preparar sanduíches ou coisa que o valha para eles.
- Pois não, Vossa Graça.
Na sala de bilhar, Sebastian, com uma calma que estava longe de sentir, pediu à sra. Beacham que deixasse Penélope e ele a sós.
Assim que a porta se fechou, Sebastian olhou para a filha que, com um taco de bilhar grande demais para ela entre as mãozinhas, fitava-o com curiosidade.
- Você deu um tiro em alguém? - Imitando o gesto que vira os tios fazerem, Penélope se apoiou no taco.
- Não. - Por mais esperta que fosse, Peep era ainda uma criança. Sua meninota, que por ora não precisava saber de certas artimanhas que havia no mundo. - Venha cá. - Sentou-se numa das poltronas junto à janela. - Precisamos conversar.
Largando o taco sobre a mesa, ela foi se acomodar no braço da poltrona antes de indagar:
- Estão todos bem, não estão?
- Estão, sim. Estão todos ótimos. Mas acontece que... Bem, esta noite aconteceu algo totalmente fora do previsto e que ainda não é nada definitivo... Mesmo assim, eu queria que você soubesse de tudo por mim.
- Está bem.
Ele limpou a garganta. Por onde começar?
- Beijei a princesa Josefina.
Olhos arregalados, Penélope quis saber:
- Mas você não abusou dela como tio Shay fez com tia Sarala, abusou?
- Como raios você sabe disso?
- Francamente, papai. Eu sempre sei de tudo o que acontece. - Suspirou. - Você fez mal a ela?
- Não, mas agora ela e eu... - Fechou os olhos por um átimo. - Nós dissemos às pessoas que vamos nos casar.
- Casar?! - Penélope parecia tão aturdida quanto ele. - E você contou do casamento a outras pessoas antes de contar para mim?
- Foi sem querer, meu coração. Um imprevisto, digamos assim. Mas, assim que aconteceu, vim correndo para cá para contar tudo a você.
- Onde está Josefina? Quero falar com ela.
- Foi para casa. Vou vê-la amanhã.
- Isso vai me tornar uma princesa?
- Infelizmente, não. - Pela primeira vez naquela noite, sentiu o coração um pouco mais leve. - Mas você sempre foi e sempre será a minha princesa, se isso for um consolo.
Ajeitando-se sobre o braço do móvel, Penélope o abraçou, colando o rosto ao dele.
- Gosto de Josefina; ela conhece piratas e soldados. Mas você devia ter me contado que estava se apaixonando por ela. Dei bons conselhos a tio Shay quando ele namorava tia Sarala.
Apaixonar. Apaixonado por Josefina? No momento nem ao menos sabia se queria beijá-la ou esganá-la. O que sabia com certeza, isso sim, era o que gostaria de fazer com o pai dela.
- Como eu disse, Peep, ainda não está nada decidido em definitivo. Tomamos essa decisão por causa de... assuntos de negócios, e é possível que esse casamento nunca venha a se concretizar.
Penélope aprumou-se para fitá-lo com os olhos bastante sérios.
- Você é um duque muito rico, papai. Não precisa se casar com ninguém.
- Obrigado por me lembrar disso. - Lá embaixo, uma carruagem entrou no passeio de pedriscos diante da mansão. - Mas se eu a amasse, você se incomodaria caso eu viesse a me casar com ela?
- Por causa da mamãe?
- Sim. Por causa da mamãe.
Pensativa, Penélope franziu os lábios.
- Você continuaria a amar a mamãe?
- Para sempre.
- Bem, eu amo Buttercup e amo você, amo tia Nell e tio Valentine, amo tio Shay e tia Sar...
- O que significa que... - Ele enrolou o dedo num dos cachinhos negros dela.
- Significa que, se nós dois amamos várias pessoas, não acho que há mal algum em colocarmos mais alguém nas nossas listas.
- Você é uma garotinha muito sensata, sabia? - Tomando a mão dela, levantou-se ao ouvir um alvoroço à entrada da mansão.
- Sabia, sim. Quem veio nos ver? Tem certeza de que não é Josefina?
- Não, são seus tios e suas tias. Mas como é possível que haja sérias discussões a respeito do assunto sobre o qual acabamos de conversar, eu gostaria que você fosse para a cama.
- Certo. Nossa conversa me deixou bastante cansada, mesmo. - Puxou-o pela manga para lhe dar um beijo no rosto. - Não grite muito com eles.
- Vou tentar. - Na verdade, o mais provável era que todos gritassem a plenos pulmões com ele... e com toda a razão.
Embora devorando o terceiro sanduíche de pepino, Zachary arrumou um jeito de indagar:
- Um punhal? Tem certeza?
- Pela terceira vez: sim, tenho certeza. - Sebastian continuava andando de lá para cá. - Por quê, acha que podia ser uma colher?
- Não, só estou tentando entender como...
- Ela realmente salvou a sua vida - interrompeu Eleanor. - Eu já tinha me preparado para odiá-la, mas, Sebastian, se fosse por...
- Se não fosse por ela tomar parte nessas trapaças, ninguém teria tentado matar nosso irmão. - Já fazia quarenta minutos que Charlemagne mantinha os punhos cerrados e o semblante mais sombrio que seu irmão mais velho tinha visto desde a última tragédia na família.
- Não se pode afirmar isso taxativamente - ponderou Valentine, enroscando e desenroscando os dedos nos dedos de Eleanor. - Com ou sem Melbourne envolvido nessa história, o rey ainda estaria por aqui tramando fraude atrás de fraude.
- Não foi isso o que eu quis dizer - contra-atacou Charlemagne.
- Seja como for, o fato foi que ela tentou me avisar de que eu corria perigo. E eu não quis escutar. - Sebastian só se convenceu de acabara de dizer aquilo ao ver todos os demais a encará-lo.
- Parece-me oportuno lembrar - afirmou Sarala - que, com o pouco tempo que resta para que Sebastian vá se encontrar com os Embry, talvez fosse melhor examinarmos em que pé as coisas estão agora, em vez de tentar entender como foi que a situação chegou ao ponto em que se encontra.
- Concordo. - Sebastian respirou fundo. - Bem, já que Josefina contou ao pai que eu estava desconfiado, Embry deve estar pensando que não só conseguiu me calar como também arrumou um aliado. E provavelmente também já está contando com os recursos que poderá conseguir junto a mim.
- Dar dinheiro a ele seria um incentivo - observou Zachary, trazendo para mais perto dele a bandeja de sanduíches de que Valentine havia se servido.
- De que lado a princesa Josefina está? - Aquela era a primeira vez que Caroline se manifestava desde que entrara naquela sala.
- Do pai, é evidente.
- Acho que não, Zach - retrucou Eleanor. - Ela forneceu informações altamente confidenciais a Sebastian.
- Por mais que vocês se regozijem com os erros que cometi, o que importa no momento não é o que houve entre mim e Josefina, mas sim o que tenho de fazer para retificar o meu vínculo... o vínculo da nossa família com Stephen Embry.
- Você está sendo injusto - replicou Charlemagne, muito sério. - Independentemente do que possamos ter dito sobre sua interferência em nossas vidas, ninguém aqui quer vê-lo sofrer.
- Muito bem - anuiu Sebastian, reconfortado pelos olhares solidários que recebia. - A fim de ganharmos um pouco mais de tempo, amanhã farei o papel de futuro genro; Embry pode pensar que me incluir nos planos dele o favorece, mas também favorece a mim. Ainda tenho várias perguntas sem resposta.
- Por que não...
- Shay, vá buscar Rice-Able em Eton, depois o esconda em algum lugar qualquer; quero que ele esteja por perto quando precisarmos de alguém para refutar o que Embry vem dizendo. Quanto ao resto... Bem, creio que teremos de esperar para ver qual será o próximo passo daquele vigarista. - Pensou por um instante. - Por que vocês não vão para casa descansar? Vamos nos reunir aqui amanhã, para o jantar, está bem?
Assim que seus parentes se foram, Sebastian percebeu que tinha a cabeça latejando. Inferno. Que raios iria fazer até a manhã seguinte? Dormir estava fora de cogitação. Como iria pegar no sono se tinha um torvelinho no peito que mal o deixava respirar?
- Stanton! - O mordomo não demorou mais do que instantes a aparecer no vão da porta.
- Sim, Vossa Graça?
- Peça a Green que sele Merlin. E vá se deitar depois que eu sair.
Rodeada de cartas na espaçosa cama em que dormia na mansão do coronel Branbury, Josefina meneou a cabeça num gesto desalentado. Agora que tinha relido toda a correspondência que seu pai lhe enviara, ficara ainda mais claro que o que havia feito era errado. Muito errado. Por que se deixara levar tão facilmente pelo entusiasmo e pela autoconfiança de seu pai? Sua mãe, que sempre o chamara de sonhador, era quem tinha razão. Enfrentando campanha após campanha e uma guerra atrás da outra, Stephen Embry vivia de buscar a fama ou a glória, mal dissimulando a inveja que sentia, primeiro de Wesley, depois de Bolívar e Rivera. Ou até mesmo do pai da esposa, que desfrutara de um alto cargo no governo colonial espanhol.
O que o levava a ser como era? Seria realmente inveja? Ou arrogância? Na verdade, isso pouco importava. O que quisera, ao reler todas aquelas cartas, era encontrar algum indício de consciência, de escrúpulo, de senso de moral, de preocupação e consideração por mais alguém além dele próprio. Mas não o encontrara. E considerando as várias maquinações que o ajudara a formular por anos a fio, tampouco ela tinha consciência. Ou não tivera, até então.
Porém algo havia mudado. Por dois motivos: porque se antes seu pai só visava ao escopo financeiro, ele agora queria colocar a vida de outras pessoas em perigo; e porque Sebastian Harold Griffin surgira na sua vida.
Devia odiá-lo, pensou. Além de arrogante e seguro de si até a medula, ele dava uma importância absurda às convenções sociais e à forma como seus pares o viam. Mas também era um homem admirável e encantador, que perdia as estribeiras ao se deparar com mentiras.
Josefina suspirou. Agora se dava conta de que não salvara a vida de Sebastian naquela noite para proteger os planos de seu pai, mas por ela mesma. Ainda não entendia muito bem por quê, embora suspeitasse que...
A janela meio aberta se escancarou e ela, com um arquejo provocado pelo sobressalto, pulou para o outro lado da cama no afã de apanhar a pistola na gaveta do criado-mudo.
- Vou lhe dar duas alternativas - a voz grave de Sebastian se espalhou pelo quarto. - Ou você atira em mim ou deixa essa arma na gaveta.
Atônita, Josefina o viu passar sobre peitoril da janela e saltar para dentro do dormitório com uma elegância de dar raiva. E só depois de limpar o sobretudo e fechar a vidraça foi que ele a encarou.
- Nunca o imaginei como alguém que trepa em treliças.
- É a segunda vez... e a última, espero, que faço isso na vida. E como você se deu ao trabalho de salvar minha vida, conto com que não vá fazer uso disso. - Indicou a arma na gaveta aberta.
- Depende do motivo que o trouxe aqui.
- Vim conversar com você. - Resvalou o olhar pelas cartas espalhadas sobre a cama, detendo-o por um instante nas pernas e nos braços dela, que a camisola desnudava. - Preciso esclarecer algumas dúvidas antes do encontro com seu pai amanhã.
- A situação ficou um tanto complicada, não é? - Engolindo em seco, Josefina fechou a gaveta.
- Ficou, sim. - Inalou uma golfada de ar. - Venha cá.
Josefina não respondeu. O olhar fixo de Sebastian fazia um ardor profundo se espalhar por todo o seu corpo, roubando-lhe o fôlego e fazendo seu coração bater mais forte. Num breve momento de insanidade, imaginou como seria ser casada com aquele homem pelo restante da vida, como seria receber todos os dias aquele olhar com que ele a devorava... e estremeceu.
- Eu gostaria de saber - afirmou enfim Sebastian - de que lado você está.
- Entre você e meu pai? Sinceramente, Melbourne, não sei se há como escolher: ou trair a confiança dele ou ser usada e abandonada por você.
- Tenho como protegê-la, Josefina.
- Não, não tem. Quando as pessoas que dançaram comigo ou me receberam na casa delas souberem o que houve e quem realmente sou, essas pessoas jamais voltarão a me dirigir a palavra ou a olhar na minha cara. Ao seu lado ou do lado do meu pai, estarei em pedaços. E não, não estou culpando você. Fui eu quem ajudou a criar tudo isso.
Após dar volta ao leito todo desarrumado, Sebastian foi se deter bem diante dela para lhe erguer o rosto e fazê-la fitá-lo nos olhos.
- Vai me ajudar a dar um fim a todas essas mentiras?
- Não irei ajudá-lo mandar meu pai para a forca. - Limpou com a mão a lágrima que lhe escapara. - Não posso fazer isso.
Curvando-se, ele a beijou. Dissera a si que iria lá para obter respostas; a verdade era que a desejava ainda mais do que antes. Ela o enfeitiçava, deixava-o zonzo, roubava-lhe todo o senso de...
- Isto não irá mudar nada - sussurrou Josefina enquanto empurrava o sobretudo para longe dos ombros dele.
- Já mudou tudo. - Enfiando os dedos sob as tiras da camisola de cetim, trouxe-as para os braços que lhe pareciam meio trêmulos. Até mesmo a pele dela o entorpecia: viçosa, suave, cálida, tão relembrada e misteriosa ao mesmo tempo.
Voltou a beijá-la, deslizando as mãos pelas costas nuas até os quadris dela antes de puxá-la para junto de si. Fora só nas últimas horas que tinha se dado conta de que, mesmo sendo uma trapaceira, Josefina tinha consciência, tinha coração, caso contrário não colocaria tanta coisa em risco ao lhe revelar o que havia revelado. Não podia perdê-la. Jamais conseguiria manter sua promessa de manter-se longe dela.
- Sebastian... - Com um gemido, ela afastou-o de si o suficiente para levar as mãos entre seus corpos e desabotoar o colete cinza-chumbo; a peça não demorou a tombar no chão, seguida de perto pela gravata.
Quando deslizou os dedos pelos seios túmidos de paixão e sentiu os mamilos se eriçarem, Sebastian se curvou para substituir os dedos pela língua; embora ardendo à carícia, Josefina encontrou forças para puxar a camisa de linho branco para fora do cós da calça, e ele interrompeu os afagos por um momento para tirar a peça de roupa pela cabeça.
Após aproveitar a breve interrupção para terminar de se despir, Sebastian voltou a abocanhar um mamilo intumescido pelo desejo para mordiscá-lo de leve antes de tornar a afagá-lo com os lábios. Ao ouvi-la gemer baixinho, sentiu um impiedoso assomo de paixão percorrê-lo de cima a baixo, no entanto resistiu ao ímpeto de derrubá-la na cama e possuí-la até esquecer quem era. Se tudo o quisesse fosse apenas sexo, havia uma miríade de mulheres que não hesitariam em se atirar nos seus braços.
Assim, usou de movimentos lentos e lânguidos para ajudá-la a deitar-se e, com a mesma calma, estirou-se ao lado dela para deslizar a palma da mão pelo ombro bem feito, pelas costas esguias, pela curva da anca firme e ao mesmo tempo tenra, pela perna longa e torneada, pela sola do pé tão mimoso. Fosse o que fosse o que tanto o atraía nela, gostava daquela atração que não tinha forças para rechaçar. Gostava de se sentir um homem como outro qualquer, não um duque com uma infinidade de deveres e responsabilidades.
Enquanto refazia com a boca o trajeto antes percorrido pela sua mão, ouviu-a suspirar e gemer de mansinho.
- Sebastian... Pare...
- Não está gostando?
- Estou... Muito.
- Então por que parar?
- Mas eu queria...
- Levante os quadris.
- C-como?
Tomando um dos travesseiros dispostos à cabeceira da cama, Sebastian repetiu:
- Erga os quadris. - Quando Josefina o fez, colocou o travesseiro entre a cama e o corpo que o deixava teso como pedra, depois se deitou sobre ela, apoiando as mãos no colchão enquanto usava do joelho para lhe afastar as pernas. - Diga que me quer - murmurou.
- Quero você - afirmou Josefina num arquejo. - Quero você dentro de mim. - E pressionou o corpo de encontro ao membro túrgido que palpitava junto às suas nádegas.
Com um gemido rouco e o coração acelerado, Sebastian a penetrou de um só movimento. Ah... Quente, úmida, deliciosa, ela era só sua. Nenhum outro homem a possuíra nem jamais haveria de possuir.
- Gosta assim?
- Oh, sim... - arfou Josefina enquanto ele começava a mover o quadril. - Sim, sim...
Só então ele pôde se indagar que diabos fazia na casa e na cama daquela mulher, já que naquele instante isso era a última coisa com que preocupava na vida. No momento, tudo o que importava era o ardor dos gemidos ritmados que ela não mal conseguia abafar e a indescritível emoção provocada pela sensação de que seus corpos eram um só. Se o restante de suas vidas fora daquele aposento se traduzisse em um milésimo do prazer produzido por essa sensação, nunca mais iria ao menos pensar em se afastar dela.
Enquanto beijava o gracioso e elegante ombro de Josefina, sentiu-a estremecer, contrair-se e atingir o clímax. Então foi diminuindo o ímpeto dos movimentos que fazia e, juntando toda a força de vontade que tinha, retirou-se das entranhas afogueadas que o agasalhavam.
- Quer tentar algo diferente? - soprou no ouvido dela.
Josefina fez que sim, os dedos ainda enterrados na roupa de cama.
Deitando-se de costas, Sebastian puxou-a para cima de seu corpo. Após um instante de hesitação, Josefina, entendendo o que ele propunha, apoiou-se nos joelhos para se encaixar sobre o membro viril ainda túmido e latejante... e se largou, arfando de satisfação e desejo ao ouvi-lo gemer como se a ponto a perder o controle.
Com as mãos nas ancas dela, Sebastian mostrou-lhe como se mover e, instantes depois, ao vê-la repetir com razoável desenvoltura os movimentos de vai-vem que havia sugerido, largou o quadril que agora o seduzia inapelavelmente para afagar os seios que pareciam pedir para serem acarinhados.
- Quero vê-lo se entregar como eu me entreguei. - Ofegante, Josefina o beijou enquanto imprimia mais vigor à sua cavalgada.
- Não posso... - gemeu ele. - Isso provavelmente... iria lhe causar... novos transtornos.
- Sebastian, nem sempre você precisa controlar tudo. Deixe acontecer.
Ele tornou a gemer. Ainda chegou a pensar em perguntar se realmente havia entendido o que ela queria dizer, no entanto não teve tempo: em questão de segundos, sentia-a tomado da cabeça aos pés pelas contrações e pelos espasmos do prazer.
- Por Deus, Josefina... - murmurou, quando conseguiu recuperar a fala. - Será que não percebe o que pode ter acontecido?
Largando-se de vez, Josefina se aninhou sobre o tórax largo, seus cabelos se misturando aos pelos que recobriam o peito dele.
- Por que ficar grávida de você seria alguma desgraça? Depois, custa-me crer que a minha situação possa ficar ainda pior do que já está. Sebastian respirou fundo.
- Se confiar em mim, prometo que farei todo o possível para que nada de mal lhe aconteça.
Ela ergueu a cabeça para fitá-lo.
- Você sequer sabe das coisas eu que fiz. E não só na Inglaterra.
- Quando subi pela treliça até a janela deste quarto, eu não esperava encontrá-la com uma auréola sobre a cabeça e asinhas de anjo nas costas, Josefina. O que eu queria era saber se você estaria disposta a remediar o que está feito.
- Não tenho escapatória.
- Por que não me conta tudo o que sabe?

Quando Conchita abriu as cortinas, Josefina afirmou num lamurio:
- Feche isso agora mesmo. - E puxou as cobertas até o pescoço.
- Sua Majestade mandou dizer que era para você ir lá para baixo. O duque de Melbourne já chegou.
Mas ele acabara de ir embora.
- Melbourne está aqui? - Josefina se sentou.
- Vai ver, ele está ansioso por se casar com você, Vossa Alteza - retrucou a criada com um sorriso.
Deus do céu. Estavam noivos. Nos delírios das vertigens da noite anterior e daquele amanhecer, havia se esquecido disso.
- Afinal, que horas são? - Fingindo nem perceber que estava nua, apanhou o vestido azul que Conchita estendia para ela.
- Dez e meia. Devia estar muito cansada; nunca a vi dormir até tão tarde.
- Tive um sono agitado. - Terminou de ajeitar o vestido no corpo e foi se sentar à penteadeira.
- Seu pai também mal deve ter pregado os olhos.
Já pronta para começar a escovar os cabelos, Josefina descansou a escova sobre o colo.
- Por que acha que Sua Majestade também dormiu pouco?
- Ele mandou acordar o camareiro antes do amanhecer, depois ficou quase três horas trancado no gabinete com Halloway e Orrin.
Então seu pai havia traçado novos planos e estratégias com os asseclas enquanto ela dormia. Dadas as circunstâncias, devia dar graças aos céus por ele não ter mandado chamá-la para participar da reunião... Na verdade, não havia contado absolutamente tudo a Sebastian, mas pelo menos dissera o suficiente para que ele tivesse como deter seu pai ou trancafiá-los a todos numa prisão.
Tão logo terminou de se arrumar, Josefina desceu ao piso térreo do casarão e estacou à entrada da sala de visitas ao se deparar com Sebastian junto à lareira, uma xícara de chá entre as mãos, os olhos fixos no pai dela, sentado sob a janela. Naquela manhã o duque usava marrom e cinza e, ainda que não o conhecesse, ela não teria dúvida de que aquele cavalheiro alto e esguio, com penetrantes olhos acinzentados e uma boca voluptuosa, era alguém de quem uma mulher jamais se esqueceria.
Como se pressentindo a presença dela, Sebastian virou-se e a encarou. Josefina sentiu o coração disparar de novo. Ele era magnífico. E o desejo e a possessividade contidos nos olhos cinzentos eram só para ela.
- Bom dia, Vossa Alteza. - Sebastian deixou a xícara e o pires sobre a moldura da lareira para fazer uma mesura. - Espero que tenha dormido bem.
- Bom dia, Melbourne. - Estendeu a mão para que ele a beijasse, rezando para que seu pai não percebesse que tremia. - Dormi bastante bem, sim. Obrigada.
- Agora que os cumprimentos foram feitos - interveio o rey -, vamos falar dos nossos assuntos, sim?
Com a voz um tanto mais fria, Sebastian observou:
- Antes de levar a pena a algum documento, há uma série de questões que eu gostaria de aclarar.
- Enquanto você não assinar um acordo de casamento com a princesa Josefina, meu rapaz, não me sentirei à vontade para discutir o que quer que seja. - Stephen se levantou. - Uma prerrogativa de monarca e de pai.
- Não assumirei nenhum compromisso às cegas; é a prerrogativa que me cabe. O benefício que posso conferir à sua... missão, são a minha respeitabilidade e a minha posição social. Colocar-me numa situação em que uma coisa ou outra seja comprometida iria anular seja lá o que você espera obter trazendo-me para o seio da sua família.
- O que espero obter são recursos para assegurar o progresso do meu país e dos colonos que lá pretendem se instalar. Foi assim que viemos para a Inglaterra e é assim que iremos partir. - Stephen estreitou os olhos azuis. - O que porventura contrariar as minhas declarações não passa de especulação e boatos invejosos.
- Se espera fazer de mim um aliado, é melhor fazer bem mais do que meros pronunciamentos.
- Ou muito me engano, Vossa Graça, ou você está supondo que eu esteja perpetrando alguma espécie de trapaça. - O rey se empertigou. - Embora reconheça que o nosso livreto tem informações parcialmente... emprestadas de outras fontes, afirmo que isso só foi feito no intuito de poupar um tempo que evidentemente seria mais bem empregado na instituição e organização do governo.
- Sei - replicou Sebastian com brandura. - Talvez eu tenha tirado conclusões precipitadas, porém isso não impede que você me fale do documento que devo assinar.
- Tudo o que quero é que declare por escrito que irá se casar com a minha filha, tornando-a sua esposa e duquesa, e que irá contribuir para o progresso de Costa Habichuela, não só com palavras, mas também nos concedendo recursos da ordem de, digamos, vinte e cinco mil libras por ano.
- Vinte e cinco mil? - repetiu Josefina, atônita. - Papai, isso é absurdo! É dinheiro demais!
- Não vou discutir o quanto sua filha vale, apenas garanto que lançarei mão de quantias tão ou ainda mais altas para assegurar o bem-estar dela - Sebastian afirmou sem pestanejar. - Cinco mil anuais.
- Vinte.
- Dez, ou então acabarei achando que vale mais a pena comprar meu próprio país.
O maxilar do rey tremelicou.
- Muito bem, dez.
- E a sua filha não será duquesa. - Sebastian roçou os dedos nos dela enquanto falava. - Ela possui um título mais elevado, portanto deve mantê-lo.
- O... - Pela primeira vez desde que aquela conversa se iniciara, Stephen Embry viu-se sem palavras.
Era claro que ele iria querer um título de nobreza autêntico para Josefina em vez de outro mais elevado, porém inventado. Sebastian era brilhante, no entanto não titubeara a respeito do casamento... Decerto porque sabia que não podia se casar com a filha de um militar que vivia de ludibriar as pessoas com vistas a se apoderar do dinheiro delas.
- Somente eu fui declarado governante. - Estalando os dedos, algo que sempre fazia quando se dava às suas maquinações, Stephen se pôs a caminhar diante da janela. - Os títulos de Maria e Josefina são honoríficos. Assim sendo, não há por que minha filha não assumir o título de duquesa de Melbourne quando se casar com você.
- Nesse caso, os filhos de Josefina seriam nobres, e não membros da realeza.
- Correto.
- E quem iria herdar o seu reino?
Ao contrário do que Josefina esperava, o pai dela sorriu.
- Você, que passará a ser Sebastian Griffin, rey de Costa Habichuela. Além de duque de Melbourne, naturalmente.
- Naturalmente. - Sebastian olhou bem para ele. - Creio que o abismo entre as nossas diferenças está se reduzindo.
- Ficou feliz em ouvir isso, já que esta é uma situação que pode trazer benefícios a todos, desde que tomemos atitudes sensatas.
- Sensatez é a minha palavra de ordem, tanto que não me vinculo a empreitadas que não me tragam vantagens financeiras, sobretudo porque me preocupo com o destino dos cidadãos britânicos. Se quiser me contentar, você terá de dar tanto uma declaração por escrito de que serei feito rey após a sua morte como a garantia de que isso será mais lucrativo do que o empréstimo, que irei assumir no seu nome.
- Não tenho como garantir isso.
- Eu tenho, se me permitir cuidar dos seus investimentos.
- Por que eu iria lhe conferir a condução dos meus negócios?
Sebastian sorriu, ao mesmo tempo frio e encantador.
- Porque serei um membro da sua família, Vossa Majestade. O que diz respeito a você diz respeito a mim, e vive-versa.
Stephen o olhou como se só naquele momento entendesse por que muitas pessoas temiam cruzar o caminho dele.
- Você é conhecido por ser um honrado homem de princípios, Vossa Graça. - Voltou a se sentar. - Muito bem, aceito. Sem reservas.
Sebastian foi apertar a mão do rey.
- Acho que vou tirar um peso dos seus ombros.
- O que vai tirar um peso dos meus ombros é vê-lo no altar, ao lado da minha filha.
- Solicito um mês para providenciar os preparativos; um duque e uma princesa não podem se casar sem uma grande cerimônia. Não vejo problemas em evitar a leitura dos proclamas, mas vamos ter de oferecer um baile de noivado. E como a celebração se dará na catedral de St. Paul, há um número limitado de datas a escolher.
- St. Paul? Por que não Westminster?
- Porque meu primeiro casamento foi celebrado em Westminster. - Aquela era a primeira vez em toda a manhã que Josefina sentia uma emoção verdadeira na voz dele. - Este será em St. Paul, ou não haverá enlace algum. Esse ponto é inegociável.
- St. Paul é um templo magnífico - assinalou ela -, e um mês entre o noivado e o casamento me parece um tempo adequado. Não quero dar a impressão de que estamos correndo contra o relógio.
- Sim, você tem razão - concordou o rey, meio relutante. - Acho que posso retardar a partida do nosso pessoal por duas ou três semanas.
- Pois bem, temos um acordo. Vou pedir a meus procuradores que redijam os documentos, assim poderemos assiná-los esta tarde.
- Como preferir.
Após fitar Josefina por um instante, Sebastian anunciou que retornaria às quatro horas e, dizendo-se muito atarefado, deixou pai e filha a sós.
Assim que ouviu a porta da rua se abrir e tornar a se fechar, Stephen resmungou:
- Um mês é tempo demais para ele.
- Diz isso porque acha que ele pode mudar de idéia? - Josefina tentou não demonstrar que o comentário a deixava apreensiva. - Melbourne jamais descumpriria um contrato assinado.
- Não é isso o que me preocupa, mas sim a sensação de que ele está tramando alguma coisa. Mas se imagina que vou lhe entregar os recursos do empréstimo para que ele os administre, Melbourne terá uma grande-surpresa. Daquele dinheiro ele não vai ver um pêni.
Oh, santo Deus.
- Com licença, querida. Tenho que refletir a respeito de algumas questões. - E deixou a sala cofiando o bigode.
Josefina se largou sobre uma poltrona. Um desastre. Era tudo um enorme desastre e ela se achava bem no meio dessa catástrofe. Sebastian suspeitava de seu pai, seu pai desconfiava de Sebastian, e tanto um quanto o outro presumiam que a tinham do lado dele.
- Maldição - murmurou para si.
Após muito refletir, ergueu-se de um pulo e correu para seus aposentos, onde se sentou à escrivaninha para separar pena, papel e tinta. Prezada Caroline, escreveu, murmurando as palavras enquanto as redigia.
Obrigada uma vez mais pelo convite para almoçar. Tendo em vista a correria desta manhã, uma horinha ou duas de calma e sossego serão realmente bem-vindas. Só peço que você venha me apanhar ao meio-dia e não à uma hora, já que terei compromissos inadiáveis esta tarde. Não vejo a hora de conversar novamente com você.
Grata pela atenção,
Josefina.
Dobrando o papel, colocou-o num envelope e o subscreveu a lady Caroline, em seguida chamou Grimm e lhe pediu que providenciasse para que o recado fosse entregue à esposa do irmão caçula do duque de Melbourne, assinalando:
- E diga a quem quer que vá levá-lo que espere pela resposta.
- Pois não, Vossa Alteza.
Tornando a fechar a porta, ela se encostou à sólida barreira de carvalho. Agora só lhe restava esperar para ver se receberia alguma outra resposta que não uma recusa ou mais confusão. E rezar para que não estivesse cometendo o último e maior erro de sua vida ao confiar em Sebastian.
Capítulo V

- Dez mil libras, Vossa Graça? - admirou-se o administrador de finanças. - É claro que o senhor tem essa quantia ao seu dispor, mas é meu dever lembrá-lo de que é muito perigoso transportar essa soma em dinheiro pelas ruas de Londres.
Sebastian terminou as instruções a Henry Sparks, dobrando e selando o documento antes de entregá-lo ao assistente.
- Preciso desse dinheiro em mãos, Rivers. Leve Tom e Green com você; armados, se preferir.
Pondo-se em pé, Rivers guardou o papel no bolso alto do paletó.
- Vou cuidar disso imediatamente, Vossa Graça.
- Obrigado.
Assim que o encarregado de seus assuntos financeiros se foi, Sebastian apanhou outra folha de papel da gaveta da escrivaninha e, ciente de que seus advogados estavam para chegar, pôs-se a redigir o que julgava a parte mais difícil de tudo aquilo: algo que incriminasse Embry sem deixar transparecer que o fazia, mantivesse Josefina fora de quaisquer complicações legais e permitisse a ele levar seu plano adiante sem se implicar em algum delito.
Ao escrever o nome dela, deteve-se um instante para simplesmente admirá-lo. Aquela cabeça dura de sangue quente, aquela contadora de lorotas que o deixava tonto de desejo a ponto de não distinguir o direito do avesso...
Decerto era por isso que a amava.
Prendeu a respiração.
Santo Deus.
Levantou-se. "Amor" era uma palavra que não usava com muita facilidade, mas o fato era que ela era seu par perfeito. Josefina o enfrentava. Desafiava-o. E mesmo com o caos que trazia com ela, ou talvez por causa disso, fazia com que ele se sentisse... vivo. Meio demente, mas vivo.
Bateram de leve à porta.
- Entre.
Mas não foi um dos seus procuradores, e sim uma das suas cunhadas, Caroline, quem adentrou o gabinete.
- Preciso falar com você, Sebastian. - E lhe estendeu um pedaço de papel.
Após passar os olhos pelo bilhete, ele não dissimulou a surpresa:
- Você a convidou para o almoço hoje?
- Não. Na verdade, eu tinha combinado de fazer compras com minhas irmãs Anne e Joanna; estávamos de saída quando esse bilhete chegou, trazido por um criado com instruções de levar uma resposta.
- Sei. - Então Josefina queria se encontrar com um membro da sua família antes da reunião daquela tarde... E, junto de uma dama casada, não iria precisar da companhia da criada. - O que foi que você respondeu?
- Disse que passaria lá ao meio-dia, junto com as minhas irmãs, como ela pediu.
- Suas irmãs...
- Nós três já estávamos na porta da rua quando o criado chegou, e eu não quis dar a Joanna um motivo para armar um escarcéu. Minha irmã anda brava comigo porque conheço uma princesa e ainda não a apresentei a ela. - A esposa de Zachary ergueu uma sobrancelha. - Quer que eu a traga aqui?
- Seria... Não, é melhor levá-la para a sua casa. - Olhou no relógio de bolso. Era quase meio-dia. - Zach está por lá?
- Sim; ele quer examinar alguns relatórios da criação de gado com meu pai.
- Ótimo, assim tenho a desculpa de ter ido procurá-lo. Você pode fazer com que eu converse alguns minutinhos a sós com Josefina sem que ninguém perceba?
- Acho que sim. - Caroline se encaminhou para a porta. - Você confia nela, Sebastian?
- Boa pergunta. - Sorriu. - Obrigado por vir me avisar, Carol.
Ela retribuiu o sorriso.
- Nunca se sabe aonde o coração irá nos guiar, não é? - Acercando-se, ele a beijou na testa.
Caroline se foi, e Sebastian, que ainda se indagava o que teria acontecido para Josefina arquitetar aquele estratagema, não teve tempo para formular uma resposta ao enigma, pois Stanton não demorou a ir se colocar à soleira da porta para anunciar a chegada dos srs. Harkley, Swenk e Challington.
Maldição.
- Cavalheiros - disse ele aos advogados -, tenho duas tarefas para vocês, e ambas têm de estar prontas antes das quatro horas da tarde. A segunda iremos discutir quando eu retornar; até lá, peço que redijam um acordo entre mim e Stephen Embry, rey de Costa Habichuela, no qual me comprometo a fazer pagamentos anuais a ele no valor de dez mil libras.
Harkley, o mais velho dos três, assentiu com a cabeça.
- Começaremos agora mesmo, Vossa Graça. Mas posso perguntar em troca de que serão feitos tais pagamentos?
- Da filha de Embry. Minha futura esposa, Josefina Katarina Embry.
Enquanto os três senhores trocavam olhares atônitos e sorrisos frouxos, Sebastian foi para o hall, onde tomou seu chapéu e suas luvas de um plácido Stanton. Se seu casamento era um choque para aqueles três, era bom nem pensar no que estaria se passando pelas cabeças dos residentes de Mayfair. Ou no que a alta sociedade iria dizer quando soubessem que o pai de Josefina era um larápio e que o duque de Melbourne iria desposar uma mulher que, começava a se convencer, não tinha uma gota de sangue nobre nas veias...
A carruagem chegara à sua porta ao meio-dia em ponto e, mais estranho ainda, Caroline não dera nenhum sinal de que o convite não tinha partido dela. Mas, após dez minutos na casa da cunhada de Sebastian, Josefina começava a se perguntar se realmente teria escolhido o membro correto da família Griffin a quem pedir ajuda.
- Vossa Alteza - ia dizendo Joanna, se era esse mesmo o nome dela, uma das cinqüenta ou sessenta irmãs da dona da casa -, você precisa nos contar como Sua Graça a pediu em casamento. Foi muito romântico?
- Foi tudo tão depressa... Acho que mais inesperado do que romântico.
- E qual é o seu segredo? - quis saber Anne. - Sim, porque todos pensavam que ele jamais fosse se casar de novo após a morte da esposa.
- Joanna, Anne, já basta! - Caroline ralhou com elas ao retornar à sala. - Vossa Alteza, não gostaria de dar uma olhadinha naqueles livros de que falamos?
De tão depressa que se levantou, Josefina por pouco não deixou cair limonada no vestido. Depois de endereçar um olhar reprovador às irmãs, Caroline a guiou ao longo de um corredor até um amplo aposento que se abria para o jardim, atulhado de livros e com uma mobília que parecia muito confortável.
- Obrigada por ter ido me buscar na residência dos Branbury, Caroline - agradeceu Josefina em voz baixa assim que ficaram sozinhas. - Tenho notícias urgentes para dar a Sebastian. Se eu lhe disser do que se trata, você contaria tudo a ele?
- Creio que não será preciso. - E, depois de levar o olhar a um ponto às costas da sua convidada, deixou a biblioteca e fechou a porta.
Toda arrepiada, Josefina deu meia-volta.
- Sebastian?
- Caroline foi me contar do seu bilhete - afirmou ele de onde se apoiava à parede entre duas janelas altas -, pois logo deduziu que você queria conversar comigo.
- Oh, graças a Deus. - Indo até ele, Josefina enfiou os dedos por entre os cabelos ondulados antes de beijá-lo apaixonadamente.
Com o mesmo arrebatamento, Sebastian enlaçou-a pela cintura, correspondendo ao beijo com um ardor que a fez arfar de desejo.
- Você está correndo algum perigo?
- Não. Meu pai jamais faria algo contra mim. Mas ele está desconfiado de que você não vai devolver o dinheiro que se ofereceu para administrar, tanto que comentou comigo que não pretende entregá-lo aos seus cuidados.
- Diabos... Eu sabia que estava sendo um tanto óbvio, no entanto há pouquíssimas formas de detê-lo sem incriminar você.
- Eu sei. Por isso, se for preciso me...
- Não.
- Sebastian, não adianta tentar moldar a realidade de forma a ajustá-la ao seu modo de pensar. De mais a mais, reli todas as cartas que meu pai me enviou e cheguei à conclusão de que... - Respirou fundo. - Ele sempre quis ser uma pessoa importante. Primeiro como algum membro valoroso da assessoria de Wellington e depois, como isso não desse certo, como um valoroso combatente nas campanhas de Bolívar contra os espanhóis. Só que, além de ser um estrangeiro na América do Sul, meu pai nunca foi realmente acolhido por Bolívar e os generais dele. As pequenas trapaças que fazíamos o entorpeceram, mas não lhe conferiram poder algum. E então ele apareceu com aquela história de Costa Habichuela, um lugar onde poderia ser rei...
- Entendo o raciocínio dele. E compreendo também por que você o ajudou nesses delírios, afinal, ele é seu pai.
- Não, não entende. Você nasceu para ser o duque de Melbourne; jamais teve de se encolher num canto da sala, com inveja do poder e das regalias de alguém. Mesmo quando se despe dos seus sonhos, você continua a ser Melbourne. Sem os sonhos dele, meu pai é um militar fracassado que não quis servir no exército do país natal porque não conseguiu fazer as coisas à sua maneira. E eu sou filha dele. - Pronto. Colocara da forma mais clara possível: Stephen Embry era plebeu, e ela era plebéia.
Sebastian, contudo, não parecia nem um pouco impressionado com aquilo.
- Josefina, sei o que quero, e é isso o que vou fazer. Se for injusto ou errado, paciência; descobri que não vou morrer se passar por cima da reputação imaculada dos meus antepassados uma vez na vida.
- Você não pode deixar que meu pai autorize aqueles navios a zarpar!
- Não era a isso que eu estava me referindo, mas você tem razão.
- Então do que você estava falando? Não fique dando voltas se...
- Quero me casar com você.
Ela ficou a mirá-lo com olhos pasmos.
- Você ouviu o que eu disse, não? - Sebastian quis se certificar.
- Ouvi, sim. É que não sei o que dizer.
- Ah! - Largando as mãos dela, foi até a janela. Sem pensar duas vezes, Josefina partiu atrás dele e deu-lhe um belo chute na canela.
- Não vim aqui para ser pedida em casamento.
- Por que raios ficou brava comigo? - Esfregou a perna. - Ainda que não goste de mim, a proposta que fiz salvaria a sua vida.
- Demorei muito a decidir enfrentar meu pai, é verdade, mas me recuso a ser recompensada por isso.
Recompensada. No lugar dela, talvez fosse pensar o mesmo.
- Você é realmente uma mulher fora do comum, Josefina, e eu devia ter me limitado ao cerne da questão. Retiro o pedido pela sua mão.
Ela fez um aceno aquiescente com a cabeça.
- Com efeito, no momento temos de impedir que seu pai autorize a partida daqueles navios. Mas como dificilmente irei colocar as mãos no dinheiro que ele furtou para fazê-lo mudar de idéia, não será nada fácil persuadi-lo.
- A menos que você altere o rumo dos ventos para fazer com que os navios retornem à Inglaterra depois de zarparem, não vejo outra saída senão nos mandar para a prisão.
Alterar o rumo dos ventos. Ela fizera isso na brochura. Seria possível que...
- Preciso retornar à sala - afirmou Josefina. - O que vamos fazer?
- Esta tarde vou assinar os contratos, e então expressarei profunda decepção quando seu pai se recusar a me entregar os recursos dos empréstimos.
- Mas os contratos o obrigam a se casar comigo. E a dar dez mil libras a ele por ano.
- Sei que você recusou minha proposta, querida, mas...
- Não recusei sua proposta; apenas não quero falar disso enquanto tivermos assuntos mais prementes a resolver.
- Vou me lembrar disso. - Ela queria ser sua esposa. Aproximando-se, enlaçou-a pela cintura para beijá-la com suavidade, depois a levou até a porta. - Vou pedi-la em casamento de novo, Josefina. E, da próxima vez, é melhor você não me rejeitar.
- Deixei de fazer promessas. Pelo menos as que não posso cumprir.

- Você fez o quê? - Charlemagne o interpelou.
- Assinei os contratos. - Terminando de servir-se de mais uma dose de vinho do Porto, Sebastian foi se sentar novamente junto à lareira da sala de estar da Mansão Griffin. - Se fizer com que eu repita cada palavra que disse, esta noite não terá fim. E o sr. Rice-Able me parece um tanto cansado.
O professor e explorador na verdade parecia mais atordoado do que fatigado.
- Perdão pela insistência - interpôs Eleanor -, mas pensei que a questão fosse dissociá-lo dos Embry, não fazer com que você se enredasse ainda mais com eles.
- Tenho de concordar, Melbourne - observou Valentine, colocando um braço ao redor dos ombros da esposa com receio de que ela pudesse saltar sobre o irmão mais velho para lhe torcer o pescoço.
- Que carta você está guardando na manga, Seb? - quis saber Zachary.
- Minha própria trapaça. E agradeceria imensamente se vocês me ajudassem. Todos vocês.
- Conte comigo - afirmou Valentine prontamente. Os demais, porém, não pareciam nem um pouco receptivos.
- Você? - resmungou Charlemagne. - Não pode fazer uma coisa dessas. Você é Melbourne.
- Tenho de fazer isso porque sou Melbourne. Por outros motivos também, que não vêm ao caso no momento. - Limpou a garganta. - Agora, por favor, eu gostaria de saber se posso ou não contar com vocês.
- Talvez seja melhor eu aguardar no corredor - murmurou John Rice-Able, erguendo-se.
- Não, por favor. - Sebastian fez um gesto para lhe pedir que voltasse a se sentar. - Já que estou pedindo o seu auxílio também, quero mantê-lo a par de tudo.
- Por que não nos conta que trapaça é essa? - Valentine servia mais vinho em sua taça e na do professor.
- Foi uma idéia que me ocorreu ainda hoje e... Bem, Josefina está disposta a fazer o que for preciso para impedir que os colonos deixem a Inglaterra, mesmo que isso signifique acabar na prisão junto do pai, só que essa é uma opção que já descartei. Isso posto, o fato é que temos de nos concentrar em três objetivos: suspender a colonização de Costa Habichuela, recuperar os recursos dos investidores, e evitar que Josefina se veja em maus lençóis.
- Sem recorrer a Prinny ou aos policiais da rua Bow. - emendou Charlemagne. - E com uma ajudazinha do nosso prezado John aqui.
- Anunciar que Costa Habichuela não existe está fora de cogitação - lembrou Sarala -, pois isso acarretaria prisões... e uma mácula indelével à reputação de Josefina.
- Você vai inundar Costa Habichuela de soldados espanhóis, é isso? - supôs Valentine. - É um plano bastante ambicioso, mas nada tem de fraudulento.
- Você chegou bem perto, Deverill. Vou inundar Costa Habichuela, sim, mas não de soldados; com água mesmo. Um desses dilúvios que ocorrem de séculos em séculos, que varra São Saturus do mapa e faça com que os sobreviventes fujam para Belize em busca de abrigo. Não restará nem um metro quadrado das férteis terras para agricultura ou pastagem; o porto intacto e paradisíaco será engolido pelo Oceano Atlântico.
- Você é realmente brilhante, Melbourne. - Valentine deu uma gostosa risada.
- Mas não há um só palmo de solo fértil naquele lugar - comentou Rice-Able entre goles de clarete.
- Mesmo acreditando plenamente na sua descrição da Costa dos Mosquitos, professor, vou ter de lhe pedir que diga que os pastos e as futuras lavouras se foram. O que não é de todo mentira, correto? E impedirá uma catástrofe.
- De fato. Para alguém como eu, que esteve na região, é fácil compreender porque é tão importante obstar a afluência de pessoas que chegariam lá com a esperança de encontrar um paraíso. Deus, seria uma tragédia. Mas inventar uma história que...
- Se Prinny, digo, o príncipe George souber que Stephen Embry aproveitou-se da amizade dele e fez fazer papel de bobo... Vou ser mais claro: com a guerra que estamos travando na Península, a Inglaterra não pode correr o risco de que seu soberano seja visto como um tolo. Além do mais, quando estiver na cadeia Embry não terá por que revelar onde escondeu o dinheiro que adquiriu desonestamente.
- Você estaria nos ajudando a colocar uma série de coisas nos seus devidos lugares - intercedeu Caroline.
Após pensar por um momento, Rice-Able argumentou:
- Como vão acreditar no que digo, se sou autor de um livro muito mal recebido e esse Embry se faz passar por soberano de uma nação?
- Você irá receber uma carta de um amigo que testemunhou a calamidade - declarou Sebastian -, um amigo que também escreverá ao London Times. Cuidarei para que essa carta seja publicada.
- Depois de tantas aventuras, não pensei que teria mais uma para viver em Londres, na companhia da celebrada família Griffin. - O professor deu uma risadinha, mas logo se recompôs. - Sua causa é muito justa, Vossa Graça. Estou ao seu dispor.
- Excelente. - Visivelmente aliviado, Sebastian uniu as palmas das mãos. - Shay, Sarala, será que poderia redigir essa carta?
- Os anjos irão temer pisar o solo de Costa Habichuela quando a tivermos terminado - retrucou Charlemagne sem muito entusiasmo, antes de erguer-se e dar a mão para a esposa.
Rice-Able também se levantou.
- Acho que posso ajudá-los a escrevê-la.
- Shay, venha tomar o desjejum comigo quando estiver mais animado.
Assim que os três se foram, Sebastian se dirigiu à irmã: - Nell, eu gostaria que você e Carol providenciassem convites para o baile de noivado que darei aqui dentro de três dias.
- Três dias? Mas isso...
- Preciso desta casa cheia para quando descobrirmos o que se passou em Costa Habichuela.
Eleanor não respondeu.
- Acha que pode impedir de me casar? - insistiu ele.
- Não, só quero que o faça pelos motivos justos.
Irritado com a observação, Sebastian mudou de assunto:
- Zachary, Carol, será que vocês convenceriam Anne a fingir que está sendo cortejada por John Rice-Able?
- Sim - respondeu Caroline sem titubear.
- Ótimo; assim ele terá um bom motivo para ir ao sarau dos Tuffley depois de amanhã. - Virou-se para a irmã. - Assim está bom para você?
- Então não haverá baile de noivado? - quis saber ela.
- Haverá, assim que eu persuadir Josefina a se casar comigo.
- Ela disse "não" para você? - admirou-se Zachary. Antes que ele pudesse responder, Eleanor comentou com um ar satisfeito:
- Gosto muito de Josefina; ela sabe como me deixar feliz.
- A mim também - admitiu Sebastian. Eleanor se curvou para beijá-lo no rosto.
- Então é melhor fazermos com que a sua trapaça dê certo.

- Não sei como detê-lo sem destruí-lo - comentou Maria Embry num sussurro, olhando de relance para a porta entreaberta. - Não é que eu não tenha pena desses pobres desgraciados que se deixam enganar; só que tenho mais pena ainda do meu marido.
- Oh, mamãe... - Josefina pôs o bordado de lado. - Começo a pensar que ele de fato acredita em todas essas histórias que inventa.
- Seu pai é um nobre aprisionado no corpo de um plebeu.
Cada vez mais desalentada com aquela conversa tão deprimente, Josefina desejou boa-noite à mãe e rumou para o seu quarto. Lá chegando, tocou a sineta para chamar Conchita e, antes que a criada aparecesse, foi espiar pela janela. Não queria que Sebastian trepasse em treliças para invadir seus aposentos no meio da noite e ir-se embora antes que o dia raiasse; queria que ele fizesse parte da sua vida, que estivesse ao seu lado para sempre. Não por quem alegava ser, mas por quem era de fato e porque, junto dele, aprendera a gostar do que realmente era.
Só mais alguns dias... Só mais alguns dias e iria saber se alcançaria a vida a que almejava com Sebastian ou se precisaria fugir na calada da noite. Sozinha.
- Veja! - Com um sorriso largo, Stephen Embry empurrou o prato com o desjejum da filha para substituí-lo pelo exemplar do jornal. - Página três.
Resvalando os olhos pelas matérias que falavam de taxas, do número de mortos no último confronto na Península, de tumultos por causa de sementes em York, ela chegou à página mencionada pelo pai... e sentiu o coração dar um pulo.
- Oh!...
- "Oh"? Isso é tudo o que tem a dizer? Por favor, leia em voz alta.
Josefina limpou a garganta.
- "A família Griffin de Devonshire tem o imenso prazer de anunciar o noivado de seu patriarca, Sebastian, duque de Melbourne, com Josefina Embry, princesa real de Costa Habichuela. A encantadora Josefina é filha única e herdeira de Stephen e Maria Embry, rei e rainha de Costa Habichuela. O baile de noivado do casal será anunciado em breve".
- Ah, esplêndido! - Tomando o jornal de volta, o rey releu a nota. - Eu teceria alguns comentários acerca de Costa Habichuela, agora que estamos vendendo lotes de terras, mas não posso negar que esteja bom. A moldura e o brasão do Griffin ficaram bonitos. Imponentes, eu diria.
- Não foi você quem mandou publicar esse anúncio? - Deus, estava no jornal. Para todo o mundo ver.
- Eu o faria, caso não tivesse saído hoje. - Stephen alisou o bigode. - Realmente, estou impressionado. Melbourne vai dar um bom aliado. E um ótimo genro.
Sebastian havia encomendado o anúncio. O que podia ser um sinal de que queria que toda a Londres soubesse de que o compromisso não era apenas uma aliança baseada em motivos meramente políticos ou econômicos.
Oh, o que estou imaginando?
Após dispensar o mordomo, Embry enfiou uma uva na boca, os olhos ainda fixos no periódico.
- Pa... papai, eu queria lhe fazer uma pergunta.
- A respeito do quê, querida?
- Se, como você disse, Melbourne pode ser um bom aliado nosso - ela escolhia as palavras com muito cuidado -, por que deixá-lo profundamente irritado enviando para a América Central navios carregados de pessoas por quem ele se sente responsável? Não precisamos mais desses recursos. Nem de correr riscos desnecessários.
- Creio caber a mim decidir do que precisamos ou não precisamos. E aqueles navios carregados de gente já deixaram sessenta mil librinhas no meu bolso até o momento. São seis anos da caridade de Melbourne.
- Mas ele certamente lhe daria muito mais se confiasse em você.
- Passei a vida inteira me matando por isso. - Dobrou o jornal vagarosamente. - Não atire Melbourne na minha cara como um modelo de virtudes. Acha que ele, que nasceu riquíssimo e aristocrata, alguma vez na vida teve algum contratempo que o fez perder o sono? Ora, é fácil ter princípios quando nada os põe à prova.
Ela suspirou. Sebastian por certo não teria dormido nada bem após a morte da esposa. Tampouco devia ressonar como um anjo sabendo que tantas pessoas dependiam dele, pelos mais diversos motivos. Como aqueles lavradores, a quem ele dera roupas e alimentos.
- Sei o quanto você teve de se esforçar para que eu tivesse uma criação privilegiada, mas quando penso naquelas pessoas que compraram terras e passagens para Costa Habichuela... Elas só querem a chance de ter uma vida nova... assim como você.
- Como eu, não. Nunca confiei em nada nem ninguém a não ser na minha perspicácia e na ambição das pessoas. Se aqueles palermas escolheram empenhar até o último xelim em algo que parece bom demais para ser verdade, que paguem pelas conseqüências. Se alguém tem que se aproveitar disso, melhor que seja eu.
- Mas... - Por mais fácil que parecesse argumentar contra tamanha desumanidade, era preciso ter cautela. - Mais cedo ou mais, vão chegar notícias de que Costa Habichuela não é nenhum paraíso, ou melhor, que nem sequer é um lugar habitável. E se estivermos na Inglaterra quando isso acontecer? Melbourne vive aqui, e eu não consigo imaginá-lo fugindo para um país qualquer das Américas. Ele irá nos manter em Londres.
- Não se estiver morto.
- O quê? - Ela se pôs em pé de um pulo.
- Ora, eu estava brincando com você, querida. E claro que Melbourne irá conosco; quando os Embry e os Griffin se unirem, nossos destinos estarão entrelaçados ao dele.
Josefina mal conseguia respirar. Por pouco ele não tirara a vida de Sebastian com medo de que o logro viesse à tona...
Oh, Santo Deus.
- Josefina?
Ela respirou fundo.
- Você não é um assassino.
- Se tiver de escolher entre Melbourne e minha família, meu dever é proteger minha família.
- Não. - Ela começou a se afastar da mesa. - Sou muito grata por tudo o que fez por mim, mas, assim que eu me casar com Sebastian, vamos parar com toda essa loucura. Não quero mais me envolver em fraude alguma.
Com o semblante carregado e os punhos cerrados, Embry se ergueu lentamente.
- Você é uma Embry, minha cara. Quando as pessoas descobrirem o que é Costa Habichuela, acha que o fato de ser a duquesa de Melbourne irá protegê-la? Que pode se sentar numa das suntuosas salas daquela mansão e safar-se do diz-que-diz e das acusações? Você será parte disto até eu afirmar o contrário. E Melbourne também, pelo tempo que eu quiser. - De súbito, a expressão dele se suavizou, e o sorriso simpático que o tornava tão agradável lhe aflorou aos lábios. - Vá vestir algo apropriado a um passeio; vamos dar uma volta pelo Hyde Park na carruagem de Branbury. Quero que todos vejam a noiva.
Josefina correu a deixar a sala e, disparando escada acima, foi se trancar em seu quarto.
- O que fui fazer? - Desatando a chorar, largou-se sentada no chão.
Se não tivesse se encantado com Sebastian, decerto estaria noiva de Charles Stenway, e o duque de Harek com certeza não se oporia aos planos de seu pai.
Mas não era mais aquela mulher disposta a unir-se a um homem imbecil só por interesse. Na verdade, nunca nutrira grandes simpatias por aquela mulher. Gostava era da pessoa que havia se transformado desde que beijara Sebastian, desde que conhecera alguém que a valorizava pelo que era, e não pelas vantagens que porventura pudesse lhe conceder.
Oh, Senhor... Abraçando os joelhos, pôs-se a soluçar. Fizesse o que fizesse, iria prejudicar Sebastian, talvez até contribuir para a morte dele. Se desistisse do casamento iria provocar um escândalo, e seu pai não teria mais por que pensar que Sebastian fosse manter silêncio acerca de tudo o que sabia. Se casasse com ele, iria obrigá-lo a uma vida de blefes e trapaças, que acabaria por destruí-lo. Isso se seu pai não o matasse porque ele se recusava a cooperar.
Oh, como queria sumir, desaparecer num estalar de dedos, como se nunca... Sumir. Desaparecer. Sim, talvez desse certo. Tinha de dar certo. Iria passear com seu pai, como ele queria, e na manhã seguinte sumiria sem deixar rastos. Iria se tornar a mais infeliz das criaturas, sim, porém era isso o que fizera por merecer. E Sebastian iria se ver livre para fazer o que bem entendesse no propósito de dar um fim ao descalabro que seu pai, com sua ajuda, havia engendrado.

O mordomo da Mansão Corbett abriu a porta da rua enquanto Valentine, ainda reclamando de ter sido obrigado a pular da cama tão cedo, colocava o sobretudo e as luvas.
- Acaso você faz idéia de que horas são? - indagou o marquês.
- Sete. - De braços cruzados, Sebastian tentava dissimular a euforia que o acometia. Quando fora a última vez em que sentira tanta expectativa, tanta... esperança? Não por sua filha ou por sua família, mas por ele próprio?
Green esperava por eles no passeio diante da casa, segurando as rédeas de sua montaria e também as de Merlin e lago.
- O dia está propício para um passeio a cavalo, meu lorde - comentou o moço com um aceno de cabeça para Valentine.
- Miserável - resmungou o marquês. - Ao menos posso saber aonde vamos?
- Dar uma volta - respondeu Sebastian.- O ar da manhã me ajuda a clarear as idéias.
- E a acabar comigo. - Ainda fazendo cara feia, Valentine saltou à garupa do seu alazão. - Não temos de ir acudir nenhum lavrador disposto a colocar Carlton House abaixo, temos?
- Não está na minha agenda, mas não posso prometer nada.
Deixando o caminho de pedriscos diante da mansão, rumaram na direção do Hyde Park. Sebastian encheu os pulmões com uma boa golfada de ar. Àquela hora da manhã, em que as ruas já começavam a ser disputadas por carroças de leite e carrinhos de mão, uma certa jovem provavelmente ainda dormia, os longos cabelos espalhados sobre os travesseiros.
- O que há com você? - quis saber Valentine. - Está sorrindo como um lunático.
- Já disse, gosto de passear de manhã.
- Não, não é isso. - O marquês olhou bem para ele. - Você está feliz, não está?
Ao perceber que devia estar sendo óbvio demais, Sebastian tentou desconversar:
- Oh, sim. Com um território para inundar, uma falcatrua para solucionar e um casamento que nunca imaginei fazer, por que eu não haveria de estar morrendo de felicidade?
- Você está nas nuvens, Seb. Depois de ser flechado pelo Cupido, sei reconhecer os sintomas perfeitamente bem. E estou feliz por você. De verdade.
Meio encabulado, ele admitiu:
- Eu... Eu não contava com isso.
- Eu sei. E acho que temos de louvar a mocinha levada que despertou o duque de Melbourne para o amor outra vez. - Valentine, que sempre mantinha um olho no gato e outro no peixe, atentou às redondezas. - Falando nela... É impressão minha ou estamos seguindo para a residência do coronel Branbury?
Com todos os diabos. Por que não convidara Zachary para aquele passeio matinal? Bastaria falar de gado ou de biscoitos, e poderiam ir até Brighton sem que Zach se desse conta do que estava se passando.
- Pensei em dar uma passadinha por lá para ver se está tudo em ordem.
- Ah!
Assim que dobraram a esquina, Sebastian, surpreso, deteve Merlin ao ver a jovem num modesto vestido verde atravessar a rua correndo para entrar num coche de aluguel. E o que o deixou ainda mais aturdido foi a valise aparentemente abarrotada que ela carregava.
- Àquela não era...
- Era - confirmou ele antes de levar o olhar à mansão do coronel.
O único movimento que se via na janela do segundo piso do casarão era o adejar das cortinas instigadas pela brisa. Josefina havia deixado a janela aberta... Teria sido na expectativa de que ele subisse pela treliça na noite passada? Ou para ela própria escapulir naquela manhã? Bem diante dos seus olhos, o coche de aluguel virou à direita na próxima rua... Na direção oposta à Mansão Griffin, o que significava que ela não pretendia ir vê-lo.
- Green - chamou seu cavalariço, virando-se na sela para encará-lo -, fique aqui e vigie a casa do coronel.
Se vir algo fora do comum, avise a lorde Deverill; ele vai voltar para a Mansão Corbett.
- E aonde você vai? - indagou Valentine.
- Atrás daquele coche.
- Seb, não seria melhor Green fazer isso?
- Não. E você, trate de cuidar para que esteja tudo pronto para o sarau dos Tuffley esta noite.
- Você está armado?
- Sim. Não se preocupe.
Com os calcanhares, Sebastian incitou Merlin a disparar rua abaixo. Talvez não fosse nada; talvez ela tivesse ido comprar alguma peça para o enxoval. Ou talvez não, já vez que Josefina era mestra em fazer o que menos se esperava.
O pior veículo com sistema de molas em que Josefina já viajara desde que se tornara princesa finalmente parou, e o condutor saltou da boleia para ir abrir a porta.
- Pronto, senhorita: a estalagem Buli and Mouth, ponto de parada da carruagem dos correios. São três xelins.
Ela apeou arrastando a pesada valise, depois apanhou o dinheiro na carteira e o entregou ao rapaz que, sem nem ao menos um aceno de agradecimento, tornou a subir no coche. A carruagem do serviço postal já se achava no apinhado pátio diante da Buli and Mouth. Depois de puxar a aba do chapéu para o rosto, Josefina endireitou os ombros e rumou para a porta da estalagem, tentando ignorar os olhares cobiçosos que recebia de dois sujeitos mal encarados.
- Em que posso ajudá-la, senhorita? - indagou a mocinha à entrada do estabelecimento
- Onde posso comprar um lugar na diligência do correio?
- Com aquele homem de lenço vermelho no pescoço ali, junto ao balcão da taberna.
Após respirar fundo, Josefina foi falar com o homem que usava um paletó azul e o tal lenço vermelho que parecia já ter visto melhores dias. Ele a examinou da cabeça aos pés antes de declarar:
- Não há mais lugar. - E tornou a olhá-la de cima a baixo antes de retomar o que ia dizendo a outro camarada.
- Tem certeza? - insistiu Josefina. - Minha tia está muito doente, e eu tenho de chegar a York o mais depressa possível.
- Lamento, senhorita, mas o único lugar que restou é na cobertura do veículo, e só homens viajam lá. Você está sem sorte.
- Vou ficar com esse assento. - Largou a valise no chão para abrir a carteira. - Quanto devo pagar para ir até York?
- Três libras. Mas são dois dias de viagem sem ter como se abrigar.
- Não faz mal. - Começando a se indagar se não deveria ter pegado mais dinheiro das reservas do pai, Josefina pagou a passagem.
Depois de fazer uma anotação num livro, o varapau tirou um pedaço de papel do bolso, rabiscou alguma coisa no bilhete e entregou-o a ela.
- A carruagem vai partir do pátio, dentro de dez minutos.
- Obrigada.
Dez minutos. Parecia tão pouco e, ao mesmo, uma eternidade. Conchita recebera ordens para não acordá-la antes das dez, de modo que ainda teria cerca de duas horas para deixar Londres antes que alguém desse pela sua falta. Quando descobrisse que ela se fora, seu pai inventaria uma desculpa qualquer a fim de evitar um escândalo enquanto punha os homens do capitão Martin no seu encalço. Já Sebastian certamente ficaria aliviado, afinal não precisaria mais ter de desposá-la para...
Pare. Depois você se lamenta o quanto quiser. Tornando a proteger o rosto com a aba do chapéu, reprimiu a vontade de chorar, apanhou a valise do chão e deixou a estalagem.
- Passagens! - gritava o homem de lenço vermelho no pescoço em cima de um caixote de madeira em frente à porta aberta da diligência postal. - Passagens, por favor!
Josefina se juntou à fila que se formara diante do veículo. Quando chegou sua vez, o homem a quem ela ouvira alguém chamar por Red Jim disse a um outro sujeito:
- Ajude-a a subir, Samuel; ela vai na capota. - Enquanto um outro cavalariço lhe tomava a valise da mão para colocá-la junto das demais malas que seriam acomodadas na parte traseira da imensa carruagem, Samuel tomou-a pela cintura a fim de erguê-la até as mãos do cocheiro que, no alto do veículo, agarrou-a pelos braços para então ir acomodá-la num dos dois coxins duplos de estofamento ralo, voltados um para o outro. Num piscar de olhos, um homem esquelético sem um dos dentes incisivos foi se largar ao lado dela.
- Bom dia, belezinha.
Nem bem Josefina se ajeitara sobre o banco, os dois mal encarados que a tinham encarado à entrada da estalagem foram se sentar no coxim em frente ao dela.
Que alegria.
- Não vamos ter motivos para nos queixar da vista, hein, Johnny? - comentou o mais encorpado.
- Nem me fale, Tim - retrucou o outro.
E a viagem ainda nem começara... Mas, pensando bem, já que iam dividir aquele acanhado espaço por todo o percurso até York, talvez fosse melhor tê-los por aliados. Não lhe custava nada contar algumas lorotas; em troca, era provável que eles lhes fornecessem informações importantes sobre como levar uma vida sem regalias ou privilégios.

- Por acaso conhece aquele camarada com jeito de ministro de Estado, srta. Grimm? - perguntou Tim. - Parece que ele está nos seguindo.
Josefina sentiu-se gelar. Sim, não era nenhum absurdo que tivesse sido reconhecida por algum dos ministros de Prinny. Mas como iria explicar a ele o que fazia no topo de uma diligência do correio rumando para o norte? Respirando fundo, olhou de relance por cima do ombro... e por pouco seu coração não parou. O cavalheiro moreno e esguio que vinha a uns cinqüenta metros de distância do pesado veículo que seguia para York não era um ministro de Estado, mas sim o duque de Melbourne.
- Oh, meu Deus. - O que fizera de errado? Como fora deixar que descobrissem seu plano tão depressa?
- Quando vamos parar? - indagou a seus três "amigos" num fio de voz.
- Em Biggleswade - respondeu o pastor de ovelhas.
- Daqui a uma hora, mais ou menos.
- Acha que ele irá nos seguir até lá? - Johnny tornou a olhar para trás.
Conhecendo Sebastian como conhecia, ela admitiu:
- É possível.
Ao vê-la tão agoniada, Tim quis saber:
- Esse camarada está pensando em prejudicá-la de alguma maneira, srta. Grimm?
- Não, creio que não... Oh, é uma história muito complicada. Ele diz que quer se casar comigo.
- Ele lhe faz mal, é isso? - perguntou Johnny. Josefina hesitou por um instante e, antes que pudesse responder, Tim se levantou para ir cutucar o cocheiro.
- Willie, detenha esta diligência.
- Não posso ficar parando aqui e ali para você se aliviar.
- Não se trata disso; tenho de ter uma conversinha muito séria com aquele camarada que está vindo atrás de nós.
- Ah, bom. Essa eu não quero perder. - Willie riu baixinho, depois olhou rapidamente para o cavaleiro no rastro da diligência. - Parando, meninos... Parando...
Oh, não.
- Conheço bem esse tipo de pilantra - afirmou Tini. - Esses almofadinhas que não conseguem controlar as mãos... Deixe comigo; depois do murro que vou lhe dar, ele vai embora daqui com o rabo entre as pernas.
A diligência estacou, e Sebastian não demorou a se acercar.
- Olá - cumprimentou, olhando para Josefina.
- Olá coisa nenhuma - retrucou Tim. - Eu e Mabel vamos nos casar, por isso é melhor você voltar para Londres, velhaco.
Cruzando os pulsos sobre a maçaneta da sela, ele afirmou com muita calma:
- Mabel não pode se casar com você porque vai se casar comigo.
- Sebastian, vá - Josefina afinal se manifestou. - Sei o que estou fazendo.
- Casar com... Qual é o seu nome, meu bom homem?
- Tim. Timothy Boots.
- Casar com o sr. Boots é a solução que você encontrou para o nosso problema?
- É isso mesmo, seu sacripanta. Eu e Mabel Grimm. E não me faça descer daqui para lhe dar uma sova.
- Bem, sr. Boots, acho que vai ter de descer daí para me dar uma sova, sim; caso contrário, a srta... Mabel Grimm irá embora comigo.
- Sebastian, por favor. Isso é absurdo!
Todos os ocupantes da diligência tinham a cabeça para fora das janelas. Surpreso, Sebastian percebeu que não se importava nem um pouco com isso.
- Por que não me explica o que faz sentada na cobertura de uma diligência a caminho de York?
- Estou me retirando da questão, assim ninguém precisará me proteger de nada.
Enquanto Tim se erguia a fim de saltar para o chão, Sebastian apeou e foi colocar as rédeas de Merlin sobre o raio de uma das rodas da diligência.
- Eu disse que cuidaria de tudo, não disse? - Tirando o paletó, jogou-o em cima da sela. - Tenho um plano; venha aqui, para que eu possa lhe contar do que se trata.
- Fique aí, Mabel. Já, já vou dar um jeito nesse dândi.
- Será que não entende que assim será melhor para todos? - replicou Josefina, dirigindo-se a Sebastian. - Vou procurar um lugar para mim no mundo, um lugar onde eu possa...
- Seu lugar é comigo.
- Você merece uma mulher que não seja sinônimo de confusão e infortúnios.
Boots avançou para ele, e Sebastian saiu de lado para escapar ao soco.
- Percebi que gosto de confusão. E quanto aos infortúnios, é questão de opinião. - Boots tentou acertá-lo de novo; protegendo-se com o antebraço, ele girou sobre os calcanhares e fez o "rival" se estatelar no chão. - Antes de conhecê-la, eu era sozinho e feliz por ser assim. Você me despertou para a vida, Jos... Mabel. Estou vivo outra vez. Mas, sem você, não sei o que fazer dessa nova essência que sinto em mim.
Erguendo-se, Tim se atirou sobre ele, e os dois, cambaleando, foram se chocar contra a lateral da diligência. Sebastian o empurrou para longe. Se já era difícil expressar seus sentimentos entre quatro paredes, diante de todos aqueles estranhos era um suplício... Ainda mais tendo de evitar que um grandalhão lhe partisse a cabeça ao meio.
- Por que não consegue entender que amo você? Eu amo você, Mabel. O que há de tão complicado nisso?
Um murro acertou-o no queixo, e ele quase chegou a cair antes de, investindo contra Boots como um touro selvagem, derrubá-lo no chão com um violento soco no nariz. Ainda meio atordoado, ajustou o foco da visão a tempo de ver Josefina pular da diligência e ir aterrissar sobre a terra batida da estrada com um baque surdo. Então correu a ir segurá-la pelo braço para ajudá-la a se levantar.
- Você me ama? - Ela o abraçou com força. - Oh, diga que me ama.
Sebastian fitou os eloqüentes olhos castanhos por um instante.
- Amo você. Nada nem ninguém no mundo iriam me convencer a fazê-la minha esposa se eu não a amasse. - E a beijou apaixonadamente.
O pessoal na diligência ofegou. O sr. Boots surgiu de trás do veículo, e Sebastian cuidou de se colocar à frente de Josefina. Mas ela o empurrou com delicadeza para o lado.
- Tim... sr. Boots, agradeço do fundo do coração por ter tomado a minha defesa, mas a verdade é que cometi um erro. Amo este homem e, se ele ainda me quiser, pretendo desposá-lo.
Com vim sorriso, Sebastian lhe soprou:
- Você me ama, e eu sou o homem mais feliz do mundo. - Enlaçando-a pela cintura, trouxe-a para junto dele. Jamais havia esperado, ou ao menos desejado, voltar a ouvir aquilo de uma mulher. A sensação era simplesmente... sublime.
- Você deixou que ele arrebentasse o meu nariz - lamuriou-se Tim.
- Deixe-me recompensá-lo. - Sem mais, Sebastian tirou uma cédula do bolso. - Vou lhe dar dez libras, e você promete que nunca mais irá tentar tirar Mabel Grimm de mim.
O grandalhão estendeu a mão.
- Prometo.
- Muito bem. - Sebastian apanhou outra cédula. - E mais cinco libras pela valise da srta. Grimm.
Correndo a embolsar o dinheiro, Tim Boots foi tirar a valise do bagageiro da diligência em meio aos comentários de aprovação e de censura que vinham do veículo.
Assim que a carruagem do correio se foi, Josefina, suspirando, indagou a Sebastian:
- Como descobriu que eu estava naquela diligência?
- Bem, Mabel Grimm, quatro anos atrás eu amaldiçoei Deus e lhe pedi que me deixasse em paz; esta manhã, Ele me deu uma última chance para mudar de idéia. - Beijou os lábios dela e foi vestir novamente o paletó. - Fui dar uma volta e, ao passar pela residência dos Branbury, vi você entrando naquele coche de aluguel.
- Você amava muito sua esposa - Josefina comentou, ressabiada.
- E, de certo modo, ainda amo. - Apanhou as rédeas de Merlin, que Tim largara no chão. - Vamos até aquele riacho? Quero lhe dizer uma coisa.
De mãos dadas, caminharam até um agrupamento de olmos à beira da estrada, atrás do qual se abria uma campina recoberta de flores silvestres cortada por um córrego. Após deixar o cavalo junto ao curso d'água, o duque voltou a segurar na mão dela.
- Você me ajudou a descobrir algo sobre mim mesmo, Josefina. Eu pensava que nunca mais fosse querer saber de amor, de casamento... Você sabe o quero dizer. Charlotte me preenchia e, quando ela se foi, meu coração... se fechou. Tudo em mim se fechou. Então conheci você e me senti enternecer novamente. Foi como se meu coração voltasse a bater, de verdade, cheio de vida. Mas não acho que Charlotte tenha de deixar o lugar que ocupa nele para que você o ocupe plenamente. Isso faz sentido para você?
- Faz, sim. - Beijou-o com imensa ternura. Mal podia acreditar que ele viera buscá-la. E que a quisesse.
- Sebastian, diga que tudo ficará bem. Não faz mal que seja mentira.
- Jamais mentirei para você. E sim, vai dar tudo certo.
- Conchita ficou de me acordar depois das dez; há estas horas, eles deram pela minha falta.
- Você deixou algum bilhete? Uma carta?
- Não.
- Então vamos ter de inventar uma desculpa para esse seu sumiço temporário. Pois, lamento informar, vou precisar de que você volte para casa.
- Tenho medo de que meu pai mate você depois do casamento, Sebastian. Ele está disposto a liquidá-lo se você não cooperar com...
- Stephen Embry não fará nada contra mim nem contra ninguém. Tenho uma surpresa para ele esta noite, no sarau dos Tuffley. Deixei Valentine no comando das minhas tropas, e ele está se encarregando de coordenar os trabalhos para a consecução e o êxito do plano que arquitetei. Agora, se você não aparecer, duvido que seu pai vá ao sarau.
Josefina ficou pensativa, então anunciou:
- Vou dizer a ele que fui procurar Harek. Tenho certeza de que meu pai acredita que eu me sentiria mais à vontade casando com alguém menos... preocupado com a verdade.
- Não. Não quero Harek em nossas vidas de novo. Já basta o que tive de engolir ao saber que ele a cortejava.
- Nesse caso, talvez seja melhor não nos afastarmos demais da verdade. - Ao vê-lo fazer que não tinha entendido, ela explicou: - Vou dizer a meu pai que tudo o que aconteceu foi demais para mim e que, por conta disso, quase fugi para a Jamaica. E que depois, ao perceber que não teria coragem de desapontá-lo, acabei voltando para casa.
- Perfeito. - Sebastian a beijou, demorada e ardorosamente. - Vamos andando; no caminho explicarei meu plano para você. Mas me prometa, Josefina... ou Mabel ou seja lá quem cisme de ser, que, aconteça o que acontecer, você nunca mais irá nem ao menos pensar em fugir.
- Você acredita em mim?
- Plenamente.
- Então eu prometo.

- Talvez fosse melhor ficarmos em casa hoje - Maria Embry comentou enquanto ajeitava o laço na manga do vestido da filha.
- A não ser a criadagem desta casa, ninguém mais está sabendo do que houve esta manhã - Josefina a tranqüilizou. - De mais a mais, como iríamos faltar se o meu noivado será oficializado lá?
- De fato - concordou o pai dela com severidade, endireitando a faixa sobre o ombro esquerdo. - Não sei se sou mais grato por você ter retornado ou por Melbourne não ter se inteirado do que aconteceu. Ora, Josefina, como pôde ser tão egoísta?
- Não vamos mais falar disso. - Maria fez um gesto para indicar a porta. - Vamos? Você está linda, chica.
- Gracias, mama. - Realmente, sentia-se bela, mas não por causa do magnífico vestido lilás e da tiara de prata que usava, e sim porque sabia que Sebastian a amava.
- Se Melbourne tivesse vindo nos buscar, vocês dois chegariam juntos ao sarau - observou Embry diante da carruagem que os aguardava.
- Talvez ele ainda esteja aborrecido porque não recebeu os recursos dos empréstimos para administrar - sugeriu Josefina.
- É bom, assim ele aprende que jamais irá me levar na conversa.
O coche se deteve, e dois criados uniformizados foram ajudá-los a descer. Apesar da ansiedade por ver a carruagem de Sebastian, Josefina se conteve; de mais a mais, seria impossível localizar um veículo com a insígnia Griffin em meio à infinidade de veículos enfileirados defronte à residência e pelas ruas das cercanias.
Assim que o mordomo anunciou a comitiva de Costa Habichuela à entrada do salão de baile no segundo andar da mansão, lorde e lady Tuffley os receberam com uma mesura.
- Boa noite, Vossas Majestades, Vossa Alteza. Somos muito gratos por terem nos honrado com a sua presença.
- O prazer é nosso - respondeu Stephen, dando a impressão de crescer ante a reverência de pessoas que desfrutavam de uma posição social superior à sua. - Sua casa é muito bonita, Tuffley.
- Obrigado, mesmo assim reservarei o elogio à minha esposa. - O visconde se aproximou. - Prinny estará conosco esta noite, sabia? Mais uma grande honra para nós.
- Com efeito. Faço questão de erguer um brinde a ele. Sem o generoso auxílio do príncipe regente, meus sonhos para Costa Habichuela jamais se realizariam.
Sem fazer a menor idéia quanto ao sucesso dos planos de Sebastian para aquela noite, enquanto a filha da anfitriã se encarregava de levá-los até a mesa com os refrescos, Josefina percebeu que mal conseguia respirar com naturalidade. E, para deixá-la ainda mais apreensiva, um murmurinho tomou conta do recinto...
Os Griffin tinham chegado todos juntos, e Sebastian tomava a iniciativa de cumprimentar lorde e lady Tuffley e as demais pessoas ao redor dos anfitriões. Logo atrás deles vinha a família de Caroline, com boa parte dos Witfeld e agregados fazendo o possível para não se mostrarem intimidados pela suntuosidade que pairava pelo recinto.
Naquela noite o duque estava todo de preto novamente, e o corte perfeito das calças e da casaca enfatizava sua compleição perfeita. No instante em que o olhar dele e o de Josefina se cruzaram, todos os presentes simplesmente se afastaram. Nem mesmo o sempre tão altivo e seguro de si, Stephen Embry, atreveu-se a se colocar no caminho dos dois.
Tão logo a alcançou, Sebastian tomou as mãos dela para levá-las aos lábios.
- Boa noite, Vossa Alteza.
- Vossa Graça. - Reprimindo a vontade de se atirar nos braços dele e beijá-lo diante de toda aquela multidão, Josefina perguntou num sussurro: - Você sabia que Prinny virá ao sarau?
- Não, mas imagino que ele vá querer dançar com você para celebrar o nosso noivado.
Ela entendeu o recado. Sebastian lhe dizia para continuar com a farsa junto ao príncipe.
- Desde que Sua Alteza esteja ciente de que a primeira valsa da noite já está prometida.
- A mim, suponho.
Os convidados à volta de ambos sorriram, e os demais Griffin não demoraram a se acercar, cumprimentando Josefina e os Embry com elogios e votos de felicidades. Ela se sentiu mais forte e mais corajosa. Aquelas pessoas iriam ser a sua família e faziam questão de demonstrar que a apoiavam. Por isso e tudo o mais, iria mostrar a eles que era digna da confiança que lhe empenhavam.
Finda a valsa, Sebastian olhou rapidamente no relógio antes de ir levar Josefina para junto dos pais. Com a mão dela em seu braço e os Embry ao lado de ambos, fez discreto aceno com a cabeça para Caroline, então viu sua cunhada ir ao encontro da mãe e das duas irmãs solteiras para indagar:
- Anne, quando é que vai contar à mamãe a respeito de John?
- John? - repetiu Joanna, enrubescendo. - Mas quem é esse John?
- Um professor de Eton. - Anne começou a se abanar. - Eu o conheci no Museu Britânico.
- Mamãe, isso não é justo. - Joanna bateu o pé. - Agora até Anne tem um pretendente?
Enquanto Sally Witfeld unia as palmas das mãos como a agradecer aos céus pela bênção, Anne explicou:
- John foi explorador antes de aceitar o cargo de professor. Pedi a ele que viesse ao sarau, assim a senhora e o papai poderão conhecê-lo.
- Eu sabia que devia ter ido ao museu... - Joanna resmungou.
- Ah, nada como ser jovem - comentou o rey com uma risadinha.
Ótimo. Ele prestava atenção à conversa.
- Conheço esse moço - comentou Sebastian. - Parece ser boa pessoa. Um pouco sério em demasia, mas isso será um bom contraponto ao temperamento dispersivo de Anne. - O que não era nenhuma mentira.
- Senhoras e cavalheiros - anunciou o mordomo dos Tuffley -, Sua Alteza, o príncipe regente.
A multidão se curvou numa mesura que se estendeu até a entrada do salão, e o príncipe George adentrou o recinto, felizmente sem nenhuma das onipresentes amantes, mas trajado de azul-safira e rotundo como sempre, acompanhado por uma dúzia de criados e camareiros. Embry certamente se roia de inveja.
- Melbourne - cumprimentou o regente, com um sinal para que ele se aproximasse.
Sebastian o fez, levando Josefina junto.
- Vossa Alteza, se pretende chamar minha atenção por não ter ido lhe contar a novidade, faça-o sem delongas, assim poderemos tomar uma taça de champanhe em homenagem à minha futura esposa.
- Que graça haveria em repreender os contritos, meu rapaz? - Prinny deu-lhe um tapinha no ombro.
- Tuffley, mande servir o champanhe!
- Imediatamente, Vossa Alteza.
Num curtíssimo espaço de tempo, todos os convidados tinham uma taça na mão. Assim que recebeu a dele, Prinny a ergueu na direção de Josefina.
- Senhoras e cavalheiros, à Josefina, princesa de Costa Habichuela e muito em breve, espero, duquesa de Melbourne!
- A Josefina!
Nem bem ela levara a taça que tremia em sua mão aos lábios, John Rice-Able irrompeu no salão de baile, empurrando o mordomo de lado a fim de sondar o recinto. E como Anne Witfeld fora se colocar perto das portas, o professor correu ao encontro dela.
- Ah, lá está ele - declarou Sebastian, agora novamente próximo aos Embry. - Aquele é o namorado de Anne.
- Ele parece mesmo um tanto sério - observou o rey, antes de segurar no braço do futuro genro para obrigá-lo a encará-lo. - Quero conversar com você.
- Não vou renegociar o dinheiro que fiquei de lhe dar, Embry. Dez mil libras por ano e mais o meu silêncio são mais do que o suficiente, não?
- Não se trata disso, e sim do lugar onde acho que você deve morar.
- O lugar onde devo...
- Melbourne - Anne o interrompeu -, John precisa da sua atenção.
Após olhar feio para Embry, Sebastian virou-se para a irmã de Caroline.
- Isso não pode esperar, Anne? - John Rice-Able foi se pôr à frente dela.
- Perdão pela intromissão, Vossa Graça - afirmou o professor num tom premente, que chamou a atenção de todos os que se achavam perto deles -, mas meu amigo Mayhew Crane, imediato no Barnaby, uma fragata que percorre o Atlântico sul...
- Estou num sarau, John - cortou-o Sebastian.
- Sim, eu sei, mas... - John fingiu que só naquele instante se apercebia da presença de Embry. - Oh, Vossa Majestade, desculpe-me. Lamento muito ser o portador de notícia tão trágica.
- Do que está falando? - Dissimulando a admiração pelo talento dramático do mestre, Sebastian segurou no braço dele. - E faça o favor de baixar o tom de voz.
Assim que ele acabou de falar, os convidados que os rodeavam se calaram, e Embry se aproximou um passo.
- Estou tentando lhe dizer, Vossa Graça, que Mayhew me mandou uma carta de Belize e... não sobrou nada.
- Em Belize? Mas o que...
- Não! Estou falando de Costa Habichuela. Um verdadeiro dilúvio, uma inundação devastadora... Costa Habichuela foi varrida do mapa! - Tirou uma carta do bolso, que Sebastian tomou da mão dele antes que Embry a pegasse.
- Isso não é nem um pouco engraçado, John. Caso tenha esquecido, vou me casar com a princesa Josefina de Costa Habichuela.
- Não, é claro que não esqueci, Vossa Graça. Tanto que estou aqui para lhes informar o que se passou. Quando... quando fiz pesquisas em Costa Habichuela alguns anos atrás, vi que o solo era muito produtivo, mas também constatei essa fertilidade se devia ao fato de que boa parte do país se assentava numa antiqüíssima embocadura de rio. Uma planície de aluvião. E com as chuvas torrenciais e as tempestades que assolaram a costa, a...
- Espere um pouco - interpôs Embry. - Que diabos acha que está...
- Ouça isto, Vossa Majestade - apartou Sebastian.
- John, sabendo do seu vínculo com as famílias Witfeld e Griffin, não posso deixar de lhe transmitir notícias desalentadoras. A caminho do Ocidente, o Barnaby teve de atravessar o mais terrível temporal de que tenho lembrança. Nosso mastro partiu-se em dois, e por um triz não perdemos tudo, inclusive nossas vidas. No entanto, saiba que só lhe digo isso como forma de prepará-lo para o pior.
A música cessou abruptamente, e Prinny, trazendo Josefina com a mão em seu braço, acercou-se deles.
- O que houve, Melbourne?
- Estamos tentando descobrir, Vossa Alteza. - Mostrou a carta. - Permite-me?
- Sim, por favor.
Após um olhar furtivo para Josefina, Sebastian retomou a leitura:
- Os poucos sobreviventes que encontramos só haviam permanecido ali para procurar por parentes e pertences. Nós lhes demos o pouco de água e comida que tínhamos para dispor, e eles nos contaram os momentos de terror por que toda aquela área havia passado em decorrência de uma quinzena de tempestades inclementes e vendavais devastadores. Uma calamidade, meu amigo. E como se isso fosse pouco, as tormentas deixaram o mar tão encapelado que, por horas a fio, ondas gigantescas açoitaram o desafortunado país, do litoral até o sopé das montanhas a oeste. Não restou nada; segundo o relato dos sobreviventes, as águas levaram até mesmo a cidade onde esses pobres coitados viviam.
- Oh, não! - E, com o grito estrangulado, Josefina cobriu a boca com a mão.
- Construções, vegetação, até mesmo o solo foi varrido para o oceano, deixando em seu lugar nada além de um lodaçal sombrio e mal-cheiroso e inúmeros animais mortos. Dadas as dimensões da catástrofe, não seria demais supor que aquela área em breve se transforme em foco das mais variadas enfermidades.
- Stephen - disse Prinny com o semblante anuviado pelo pesar -, conte com a mais sincera solidariedade da Inglaterra.
- Nem tudo são notícias tristes - Sebastian observou, examinando o verso da carta. - Parece que Belize abriu os braços para os sobreviventes.
- Deus é misericordioso - afirmou Charlemagne num tom solene, juntando-se ao grupo que não parava de crescer.
- Precisamos fazer alguma coisa. - Sebastian entregou a carta a Embry.
- Temos de aceitar a realidade - retrucou Josefina, a voz embargada. - Costa Habichuela se foi.
Branco de raiva, o pai dela a encarou.
- Como pôde...
- Sim, temos de aceitar que nosso lar agora é Belize - interveio a rainha Maria, tomando a mão do marido.
- E agradecer a Deus pelas pessoas que compraram terras em Costa Habichuela e ainda não foram para lá.
- Sim, as pessoas em primeiro lugar - enfatizou Josefina. - Elas precisam ter seus recursos de volta, já que, sem território, não há onde investir.
- Podemos reconstruir os...
- Sobre o quê, papai? Você ouviu o que o amigo do professor escreveu. Não há como erguer coisa alguma num pantanal.
John Rice-Able limpou a garganta.
- Mayhew comentou que enviou uma cópia da carta a um amigo que temos em comum, Robert Lumley, redator do London Times, como forma de garantir que ninguém embarcasse para Costa Habichuela sem saber o que houve por lá.
- Esse moço merece uma medalha - Prinny declarou, um comentário endossado pelo aceno afirmativo de boa parte dos presentes.
Enquanto anotava mentalmente de tomar as providências necessárias, uma vez que tal "moço" não existia, Sebastian cuidou de consolar Josefina com um abraço.
- Lamento muito, querida.
- Bem, creio que não há mais nada a fazer por aqui - rosnou Embry, os músculos ainda rígidos da fúria que o acometia. - Partiremos para Costa Habichuela amanhã mesmo. Venham, Maria, Josefina. Temos de preparar a bagagem.
Por pouco o coração de Sebastian não parou. Recompondo-se, ele afirmou:
- Sei que é lá que se encontram as suas responsabilidades, Vossa Majestade, e entendo a urgência de sua partida, mas também sei onde se encontra meu coração. Se Josefina ficar, não haveria por que postergar o casamento. Como já foi dito, não existe mais um país a ser reerguido; já sua filha tem uma nova vida para começar.
Embry se surpreendeu ao perceber que, embora o plano inicial fosse fisgar o duque num matrimônio que lhes traria inúmeras vantagens, parecia haver sentimentos verdadeiros entre sua filha e o noivo.
- O que diz, Josefina?
Porém ela não se dirigiu ao pai, e sim a Sebastian, para lembrá-lo num sopro de voz:
- Você disse que faria o pedido novamente.
Ele não titubeou: apoiando-se num joelho, tomou-lhe a mão.
- Josefina, pouco me importa que você seja a princesa de um paraíso ou a filha de um soldado, cujo lar foi engolido pelo mar. Além de me provocar e me surpreender, você me mostrou que um sentimento que eu julgava perdido para sempre estava apenas adormecido. Você me ajudou a redescobri-lo. - A voz lhe faltou, e ele limpou a garganta. - Amo você, Josefina, com todo o ímpeto do sentimento recém-desperto no meu coração. Quer se casar comigo? - Apesar das lágrimas, ela sorria.
- Também amo você, Sebastian. Muito. E quero ser sua esposa.
Retirando o anel de sinete com o timbre Melbourne do dedo, Sebastian o colocou no dedo dela. Ficou grande demais, porém todos compreenderam o significado do gesto, e o salão irrompeu em aplausos.
- Então nada mais importa. - Aprumou-se e a tomou nos braços. - Nada mais.

Quando chegou à residência dos Branbury na manhã seguinte, Sebastian encontrou os criados zanzando de lá para cá como formigas, carregando obscena quantidade de bagagem para várias carruagens de aluguel. Quanto dos fundos da Inglaterra Embry já não teria gastado?
Guardando o pensamento para si, beijou a mão de Josefina, que vinha recebê-lo.
- Pensei em tentar persuadi-los a ficar - disse ela -, pelo menos até o casamento, mas então me dei conta de que seria impossível. Houve uma catástrofe; eles têm de retornar o mais depressa a Costa Habichuela ou enfrentar um questionamento interminável.
- Sinto muito. - Sebastian cumprimentou com um aceno o mordomo que empurrava uma pilha de caixas para que eles pudessem entrar. - Se fosse possível, eu gostaria que eles ficassem. Por você.
- Quanta generosidade.
Sebastian ergueu a cabeça. Embry os olhava do alto da escadaria.
- Vossa Majestade. - Contendo o sarcasmo, inclinou a cabeça por causa dos criados. - Espero que meus procuradores tenham sido úteis.
- Oh, sim. Tudo o que precisei fazer foi entregar o dinheiro e assinar uns cem documentos. - Afastou-se do balaústre. - Venham até meu gabinete.
Assim que entraram no escritório, Sebastian fechou a porta. E Embry não perdeu tempo a disparar:
- Você me deu um belo de um tombo, seu maldito arrogante. Parabéns! No entanto, não foi só a mim que arruinou; duas dezenas de pessoas dependem dos meus recursos para sobreviver. - Encarou a filha. - Por acaso pensou nelas, Josefina?
Mas foi Sebastian quem respondeu:
- Com dez mil libras por ano você terá condições não só de viver com conforto onde quiser, mas também de garantir o bem-estar de todos os que o auxiliam no dia a dia.
Um músculo tremeu sob um dos olhos de Embry. - Não gostaria de me dar um momento a sós com a minha filha, Vossa Graça?
- Não.
- Por favor. Eu queria me despedir.
- Muito bem, estarei no corredor. Mas depois disso ela irá comigo para a casa da minha irmã, onde ficará até o casamento.
Ao ouvir a porta se fechar com um suave clique às suas costas, Josefina foi logo dizendo:
- Não quero brigar, papai; quero o seu bem. - Como passara a noite e a manhã inteira trancada no quarto, arriscou indagar: - Não vai me contar para onde pretende ir com mamãe?
- Prússia, talvez; decerto eles irão gostar de ter uma colônia amiga na América Central. - Ao vê-la arregalar os olhos, emendou com um meio sorriso: - Quase deu certo, não foi? Mas, desta vez, vou parar no empréstimo e nos títulos.
- Você podia ter sido preso, papai. E enforcado. Por que se arriscar nessa aventura de novo? Além do mais, Sebastian não cancelou as dez mil libras anuais que havia lhe prometido; com esse dinheiro você poderia comprar terras ou fundar uma empresa de comércio.
- Não quero ficar sentando numa poltrona contando moedas. Dez mil libras é um bom começo, mas posso fazer melhor do que isso. - Fez um muxoxo. - Já que não vai comigo para me ajudar, venha me dar um abraço. Temos de seguir para Brighton antes do anoitecer.
Josefina foi colocar os braços sobre os ombros dele.
- Prometa que irá escrever, como fazia quando eu era menina. - Não que fosse acreditar naquelas cartas, mas não queria ficar sem notícias.
- Escreverei. - Esquivou-se dela. - Agora eu gostaria de ficar sozinho.
Despedir-se de sua mãe foi ainda mais penoso, e não demorou muito para que as duas estivessem em lágrimas.
- Acho que seu pai ainda não se deu conta da sorte que tem - comentou Maria ao olhar pela janela e ver Sebastian caminhando pelo jardim. - Outra pessoa que não o duque de Melbourne não pensaria duas vezes antes de mandá-lo para a prisão.
- Já tentei dizer isso a papai de todas as maneiras possíveis, só que ele nunca me deu ouvidos.
- Deu, sim; o que ele não consegue é admitir que você está certa.
Josefina tornou a abraçá-la.
- Escreva para me dizer onde vocês estão, assim terei como escrever de volta.
- Certamente. Também viremos visitá-la sempre que possível. Quero que meus netos conheçam a abuela.
- Eu também. - Endireitando-se, Josefina limpou a garganta. - Já vou indo, assim você termina de fazer as malas.
- Antes disso, diga a Melbourne que venha falar comigo, sim?
Josefina fez que sim.
Sebastian ergueu a cabeça ao perceber que ela se aproximava.
- Você está bem?
- Sim; um pouco triste, mas também esperançosa. - Josefina meneou a cabeça. - É uma sensação estranha.
- Que vai passar. - Sebastian tomou a mão dela para beijá-la. - Vamos?
- Minha mãe quer vê-lo. Ela o aguarda na sala de estar.
Dissimulando uma contração involuntária dos músculos, ele fez um aceno afirmativo e foi levá-la até a carruagem antes de tornar a entrar no casarão.
Maria Embry o esperava junto à pequena escrivaninha.
- A senhora deseja falar comigo?
- Sim. Tenho algo para lhe dar. - E estendeu um papel para ele.
Sebastian foi apanhá-lo com o cenho franzido.
- Do que se trata?
- Leia.
Com parte da atenção voltada à mãe de Josefina, ele passou os olhos pelo documento. Em seguida o leu com calma. Por fim, tornou a relê-lo compenetradamente e, com o coração aos saltos, voltou o olhar a Maria.
- Isto aqui é válido?
- Sim. - Ela sorriu, um sorriso cativante que fazia lembrar sua filha. - Há somente duas vias desse documento. Uma delas é sua.
- Josefina sabe disso?
- Sempre soube, porém nunca acreditou. - Maria beijou-o no rosto. - Não é nenhum segredo, mas ela certamente irá gostar de ouvi-lo dos seus lábios.
- Obrigado.
- Sou eu quem agradece, pois você está dando à minha filha a vida que eu sempre quis que ela tivesse.
Meio atordoado, Sebastian despediu-se e voltou para a carruagem.
- Vamos para a Mansão Corbett - disse a Tollins, então fechou a porta do veículo e se acomodou sobre o coxim, ignorando Conchita, encolhida num canto, para fitar sua amada. - O que acha de fazermos o baile de noivado daqui a uma quinzena e o casamento uma semana após o baile?
- Não é tão cedo quanto eu gostaria, mas posso esperar até lá. - Josefina afagou o rosto dele. - Você está bem? Minha não o estapeou, não é?
- Não fisicamente. - Bateu de leve no bolso do peito, onde guardara o documento que iria para o cofre na primeira oportunidade. - Tudo indica que seu pai realmente conheceu Qental, o rei da Costa dos Mosquitos, que de fato deu a ele quatro mil quilômetros quadrados de terras naquela região, concedendo-lhe o título de rey da área outorgada.
Ela ficou branca.
- Portanto, meu amor, você é princesa. - Segurando o rosto dela, beijou-a apaixonadamente. Deus, mal podia crer que iria passar o resto de seus dias cobrindo-a de beijos.
- O que foi que você disse?
- O documento que sua mãe me deu foi conferido e validado pelo governador de Belize. Conheço o timbre dele, que está impresso na outorga em meu bolso.
- Santo Deus... E eu que pensei que fosse ser mera e simples duquesa. - Foi a vez de Josefina beijá-lo, acariciando-lhe os cabelos como se quisesse se perder dentro dele. - Sua família não precisa saber disso, precisa?
Sebastian riu.
- Não. Você será duquesa. A minha duquesa. E quanto ao "mera e simples"... Não creio que você fosse conseguir.
- Então nem vou tentar.

 

 

                                                                  Suzanne Enoch

 

 

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