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Alguns anos atrás, fiz amizade com um tal de William Legrand. Ele tinha NASCIDO EM BERÇO DE OURO, numa família protestante. Porém, uma série de INFORTÚNIOS e um certo DESCASO com os negócios o levaram à miséria. A falência financeira fez com que ele se mudasse de Nova Orleans, onde viviam seus avós e seus antigos amigos ABASTADOS, e fosse viver na ilha de Sullivan, perto da cidade de Charleston na Carolina do Sul.
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Essa ilha não tem mais do que cinco quilômetros de comprimento e somente cerca de 800 metros de largura. Seu solo é muito arenoso e, portanto, ruim para a agricultura. A vegetação constitui-se apenas de plantas rasteiras, adaptadas àquele solo seco. A faixa de água que separa a ilha do continente é estreita e em boa parte tomada por um canavial. A ponta mais civilizada da ilha tem algumas casas de madeira e o forte Moultrie do exército norteamericano. Essas casas passam boa parte do ano desabitadas, recebendo no verão visitantes de Charleston em busca de um clima mais tranqüilo e ruas mais vazias. Na outra ponta da ilha, bem afastado da presença humana, meu amigo Legrand construiu uma pequena cabana. Foi nesse local ERMO que eu o conheci e logo nosso primeiro contato evoluiu para uma amizade movimentada. Legrand despertou o meu interesse porque, embora morasse num “fim de mundo”, era uma pessoa com apurados conhecimentos científicos, artísticos e filosóficos. Seu lado espiritual era igualmente bem desenvolvido, mas, devido à ruína financeira de sua família, ele demonstrava uma AVERSÃO profunda à sociedade, alternando momentos de empolgação com horas de abatimento e tristeza. Gostava de caçar, de pescar e principalmente de caminhar pela ilha em meio às MURTAS, procurando pequenos seres vivos como moluscos. Colecionava amostras ENTOMOLÓGICAS e seu ACERVO era impressionante.
Nessas incursões, Legrand sempre tinha a companhia de Júpiter, um velho negro que desde criança lhe servia de tutor e SERVIÇAL. Júpiter era empregado da família nos tempos de riqueza e, após a BANCARROTA, recusara-se a abandonar Legrand, permanecendo fiel ao patrão. Em certa tarde de inverno, aproximadamente no ano de 1800, resolvi visitar meu amigo. Geralmente o frio é ameno na ilha de Sullivan, mas aquele dia estava muito gelado. Pensei que a boa caminhada poderia me esquentar e que um jantar na companhia de Legrand, de Júpiter, de vinho e do fogo da lareira poderia ser algo animador. Cheguei na cabana próximo ao pôr do sol. Bati à porta, mas não houve resposta. Mexi na maçaneta e, como de costume, estava aberta. Entrei na casa e verifiquei que estava realmente vazia; no entanto, para meu DELEITE, a lareira estava acesa! Aproximei-me do fogo e comecei a me aquecer. Minhas mãos e meus pés estavam duros de tanto frio. O mesmo acontecia com o nariz. O fogo começou aos poucos a amolecer minhas carnes e a me dar certo conforto. Antes que a noite se firmasse, a porta se abriu e pude ver Legrand e Júpiter. Ao me ver, o sorriso muito branco de Júpiter tomou conta de seu rosto. Carregava duas galinhas-d’água, parte da FAUNA nativa e, em breve, itens preciosos de nosso jantar. Quanto a Legrand, estava eufórico. Seu entusiasmo era quase uma crise! — Encontrei um espécime maravilhoso! — dizia emocionado. — Você não vai acreditar em como é belo! Que bom que você veio me visitar, pois você precisa vê-lo, meu amigo! É esplêndido! Sem sabe ao certo o que fazer diante de tamanha animação, cumprimentei Legrand e perguntei: — Fico contente pelo seu achado. Gostaria de saber que bicho é esse que você encontrou. Posso vê-lo? — Ah, meu amigo, ele é extraordinário! Sua beleza é raríssima! Pergunte a Júpiter! Olhei para Júpiter e ele tinha o rosto satisfeito. Sempre com um sorriso na boca, confirmou que o bicho era muito bonito. Como minha curiosidade estava à flor da pele, perguntei: — Mas que bicho é esse do qual vocês tanto falam? — É um escaravelho! Um escaravelho de ouro! — gritava Legrand. — De ouro? Você quer dizer de cor dourada, né? — perguntei.
— Passe a noite aqui em casa e, assim que amanhecer, eu lhe mostro o escaravelho. — Não entendo, Legrand. Por que você não me deixa vê-lo hoje à noite? Por que não posso vê-lo agora? A euforia de Legrand tinha me deixado curioso, mas minha maior preocupação era esfregar as mãos e aproveitar o fogo da lareira. — Se eu soubesse que você viria eu não teria feito o que fiz. Mas não tinha como prever sua visita, justamente em uma noite tão fria. Após encontrar o escaravelho, já no caminho de casa, eu encontrei o tenente G, perto do forte, do outro lado da ilha, sabe? — Sim, conheço o tenente. — Pois bem, o tenente ficou maravilhado com o escaravelho e me pediu para estudá-lo. Eu deixei que permanecesse com ele esta noite, IMPRUDÊNCIA da qual me arrependo agora. Durma aqui em casa e amanhã, ao nascer do sol, mandarei Júpiter buscar o escaravelho. É o maior ESPLENDOR da natureza! — O nascer do sol? — Claro que não, que diabo! É o escaravelho, você precisa vê-lo! A DEVOÇÃO daquele homem culto por um inseto estava me deixando irritado. Para evitar de falar algo que magoasse meu amigo, resolvi respirar fundo. Ele começou a descrever o bicho, em tom emocionado: — Sua cor é brilhante. Tem o volume de uma noz de tamanho grande. Na extremidade traseira do casco tem duas manchas escuras como o jade. Na parte dianteira de suas costas ele tem outra mancha, mais alongada. Suas antenas... Ah!, suas antenas... — Sinhô, ele não tem antanha não, sinhô — disse Júpiter, com sua fala PECULIAR, interrompendo o delírio de Legrand. Mas ele é de ouro MACIÇO! Por dentro e por fora. Eu nunca vi um inseto tão pesado em toda a minha vida. — Tudo bem, Jup, tudo bem — disse Legrand. — Digamos que você esteja certo. Mesmo assim, será que isso é motivo para queimar as galinhas? Júpiter correu para a cozinha, de onde saía um cheiro agradável de galinha assada. Legrand continuou falando: — O inseto realmente tem um reflexo metálico muito brilhante, mas só amanhã você poderá avistá-lo. Vou fazer o seguinte: desenharei o escaravelho para que você possa ter uma idéia melhor.
Legrand sentou a sua escrivaninha e pegou a PENA e a tinta, porém não encontrou papel. Abriu a gaveta; e estava vazia. Colocando as mãos nos bolsos, retirou o que, a distância, parecia ser um pedaço de pano velho, mas era, na verdade, um PERGAMINHO sujo. Ali ele fez seu desenho, enquanto eu continuava sentado perto do fogo, tentando espantar o meu frio. Legrand terminou e, estendendo o braço, passou-o para mim. Assim que peguei o pergaminho, ouvimos um latido forte. Júpiter abriu a porta dos fundos e o COLOSSAL Terra-Nova de Legrand adentrou a sala, pulando em mim. Suas patas apertaram meus ombros, sua boca se abriu mostrando caninos enormes e agudos. Felizmente, em vez de me TRUCIDAR, o cão começou a me lamber! Eu era seu amigo e em minhas visitas anteriores havia dado muito carinho a ele. Fiquei contente por ter me reconhecido. Assim que Wolf se acalmou, fui olhar o desenho de Legrand. Era um esboço no mínimo intrigante. Fiquei uns dois minutos observando-o, até que Legrand perguntou o que eu havia achado do inseto. — É bem estranho esse escaravelho, William. Nunca vi nada parecido com esse desenho, a não ser um crânio ou uma CAVEIRA. É isso, esse escaravelho tem a forma exata de uma caveira! — Uma caveira? Que estranho, ao vivo ele não parece com uma caveira. Deve ser o formato oval e as duas manchas na traseira que podem lembrar os olhos, e a outra mancha, que, embora meio torta, pode fazer as vezes de uma boca... — É, pode ser isso. Pode ser que você não seja um bom desenhista também. Mas acho melhor eu esperar até amanhã, né? — Fico até ofendido com sua suspeita de que não sou bom desenhista, porque tive bons mestres. Sei desenhar! — William, eu não quis ofendê-lo. O crânio está muito bem desenhado. Dá pra dizer que é um crânio perfeito, até. Agora, para dizer que essa caveira que você desenhou é um escaravelho é preciso alguma imaginação. A não ser que o escaravelho que você encontrou tenha realmente o formato de uma caveira... — Então me dê sua opinião sobre as antenas do bicho. Eu as desenhei com muita EXATIDÃO.
— Bom, William, ou você está brincando comigo ou algo bem sério está acontecendo aqui, porque essa caveira que você desenhou não tem antenas! Passei o desenho para William, que estava muito aborrecido com a minha interpretação. Por um instante, achei que ele iria amassar o papel e jogá-lo ao fogo, mas com o canto dos olhos ele fitou o pergaminho e então olhou fixamente para a figura e seu rosto assumiu uma nova expressão. Seus olhos se arregalaram. Foi para o outro extremo da sala onde examinou o pergaminho de todos os ângulos e lados possíveis. Resolvi ficar em silêncio para não atrapalhálo. Dez minutos depois, ele guardou o pergaminho na carteira, e esta no cofre, e voltou para perto do fogo, como se nada tivesse acontecido, embora a expressão do seu rosto fosse mais séria. À medida que a noite avançava, meu amigo ia ficando cada vez mais sério. Tentei puxar conversa, abordei vários assuntos que agradavam ao meu ANFITRIÃO, mas nada o DEMOVIA daquele estado de concentração e quietude. Por isso, após o jantar resolvi ir embora mesmo na noite fria. Legrand não disse uma palavra sequer para me fazer mudar de idéia, embora tenha se despedido de mim de modo CORDIAL, com um entusiasmado aperto de mãos.
Um mês após aquela estranha noite, Júpiter bateu à porta da minha casa na cidade de Charleston. Disse que William queria me ver. Achei esquisito porque fazia um mês que eu não o via e não tinha notícias dele. Cheguei até a pensar que ele estava aborrecido comigo ou que nossa amizade havia acabado. Jup estava triste, com uma aparência cansada. Disse que Legrand estava agindo de modo realmente incomum. Muito pensativo, muito quieto, sempre rabiscando estranhos caracteres em folhas de papel. — Caracteres? — perguntei com uma curiosidade sincera. — Sim, ele passa boa parte do dia e da noite anotando sinais estranhos. Age como se estivesse fazendo cálculos intermináveis... Fico muito preocupado. Outro dia ele sumiu antes mesmo de o sol nascer e ficou fora durante o dia inteiro! Sabe o que eu fiz? Arrumei um belo pedaço de pau e decidi lhe aplicar um corretivo exemplar quando voltasse, para aprender a avisar aos mais velhos para onde vai e a que horas volta. — Você bateu nele, Jup?
— Eu sou tão estúpido que não tive coragem... Mas que ele merecia uma SUMANTA de pau, ah isso ele merecia. Tive vontade de rir, porque Júpiter naquela época já tinha certa idade, e Legrand, um jovem adulto, deveria ter uns 25 anos. Mas em respeito à preocupação de Júpiter, apenas falei: — Na minha opinião você acertou em não surrá-lo. Muitas vezes uma boa conversa tem mais efeito do que um ato violento e, afinal de contas, você disse que ele está diferente. Talvez esteja doente. Se for isso, talvez ele nem agüente apanhar. Jup me olhou com muita seriedade e pediu que eu o acompanhasse até a ilha. William queria muito me ver e Jup achava que esse encontro faria bem ao seu protegido. Em princípio não quis aceitar o convite, até que Júpiter me mostrou uma carta que William endereçara a mim. Caro amigo: Faz tempo que não nos vemos. Temo que sua ausência tenha a ver com meu comportamento pouco CORTÊS na última vez que nos encontramos. Mas, como o conheço, sei que aquele pequeno detalhe não será capaz de estragar nossa amizade. Tenho estado muito ocupado desde aquela noite, em um projeto muito interessante. Minha dedicação é tanta que Júpiter anda aborrecido comigo. Acredita que ele pensou até em me bater para ver se eu voltava ao “normal”? Preciso de sua ajuda para completar o projeto. Venha nesta noite, se possível. Temos uma tarefa da mais alta importância. Do seu DEVOTADO amigo, William Legrand Diante de tanta SOLENIDADE e também para animar o coração bondoso de Júpiter, aceitei o convite. Enquanto preparava minhas coisas, pensava no que Legrand estaria aprontando. Qual seria a tal tarefa da mais alta importância? Segui Jup até o cais da cidade, onde nos acomodamos no pequeno barco de Legrand. Havia uma foice e três pás novas no casco da embarcação. Perguntei o porquê daquilo e Júpiter disse que eram ordens do patrão comprar as ferramentas. Disse que tinha saído caro e que, sinceramente, não sabia o que Legrand faria com elas.
Fiquei mais intrigado ainda. Minhas suspeitas de que Legrand pudesse estar louco iam aumentando a cada nova informação que eu obtinha de Jup. A tarde já ia pela metade quando o vento inflou as velas do barco e começamos a contornar, em silêncio, a costa da ilha de Sullivan até a residência de meu amigo. Chegando lá, pude ver o estado DEPLORÁVEL de William. Sua pele estava muito PÁLIDA. OLHEIRAS pesadas denunciavam que meu amigo vinha dormindo mal ou dormindo menos do que o necessário. Conversamos sobre sua saúde, enquanto o sol lentamente descia no horizonte. Legrand me garantiu que estava tudo bem com ele e que sua aparência cansada se devia à extensa e dedicada pesquisa que realizara durante minha ausência. — Essa pesquisa tem a ver com o escaravelho? Você foi buscá-lo na manhã seguinte ao nosso jantar? Legrand sorriu e disse que havia buscado o inseto na manhã seguinte, “por nada nesse mundo me separaria dele!”, disse. — Por quê? — perguntei espantado. — Porque eu acho que Júpiter estava certo quando afirmou que o escaravelho era feito de ouro! Não havia brincadeira em sua voz, pelo contrário, havia uma seriedade que me deixou preocupado. Legrand tinha nascido em uma família rica e o destino o havia deixado pobre. Eu me perguntava se essa história do escaravelho não seria um DELÍRIO, uma espécie de mecanismo mental que ele usava para se iludir e escapar da pobreza. Percebendo meu ar de descrédito, Legrand pediu que Júpiter fosse buscar o inseto. — Sinhô, eu não me meto com esse bicho, não sinhô! Pensei que William ia RALHAR com ele, porém, em vez disso, foi ele mesmo buscá-lo, com a mesma expressão séria no rosto. Menos de um minuto depois, estava de volta, com o braço estendido em minha direção. Devo dizer que realmente o escaravelho era de uma beleza ÍMPAR. Seu casco tinha a cor e a textura do ouro polido. Seu peso chamava a atenção, pois era bem mais pesado do que os outros seres de sua espécie. Todas essas características AGUÇAVAM a minha curiosidade. Cheguei a pensar em fazer uma INCISÃO no inseto. Se fosse de ouro maciço, resistiria à faca, mas como poderia se locomover, caso seus órgãos fossem de metal? Desisti da idéia de cortá-lo porque Legrand jamais permitiria que seu “tesouro” fosse danificado. — E então? Não é FORMIDÁVEL?
Era muito lindo o escaravelho. Assim como um quadro pode ser lindo ou uma mulher pode ser extremamente bonita; mas isso não significa que, por gostar de algo, você deva perder completamente a noção da realidade. — Esse escaravelho é formidável, sim — falei para meu amigo —, mas isso não significa que você deva passar noites sem dormir, agir de forma estranha e transformar sua vida num caos por causa de um inseto! Desviando do assunto, William sorriu e com uma voz sincera disse: — Eu preciso de sua ajuda. Seus olhos estavam com um estranho brilho. Seu rosto estava tenso. — William, a única ajuda que posso te oferecer é levá-lo ao médico. Júpiter me contou que você tem dormido muito pouco, se alimentado de forma PRECÁRIA e que passa boa parte do tempo falando sozinho e rabiscando coisas sem NEXO! Novamente meu amigo desconversou e fugiu das minhas palavras, dizendo: — Preciso que você me acompanhe numa excursão! — Excursão? Que excursão? Saiba que se isso envolve o escaravelho a minha resposta é não! — Envolve o escaravelho sim e preciso muito da sua companhia e da ajuda de Júpiter também. — Você só pode estar lunático, William. Que excursão é essa? Para onde vamos? Quanto tempo leva a jornada? Por que você mandou Júpiter comprar aquelas ferramentas? — A excursão começa daqui a pouco e deve durar toda a noite. Se você for comigo, terá todas as outras respostas. — Se eu for com você quero que me prometa uma coisa. — O que você quer que eu prometa? — perguntou William. — Quero que após o final da expedição você aceite se submeter a exames médicos. Eu vou acompanhá-lo, pois, sinceramente, estou muito preocupado com a sua saúde mental. Novamente William não retrucou minhas observações. Apenas pôs-se a organizar o material para a excursão. Eram quatro da tarde quando Legrand, Júpiter, eu e o cão deixamos a casa. Júpiter carregava a maior parte do material enquanto caminhávamos em silêncio por uma trilha que ia até a praia perto do forte. Um pouco antes de chegarmos no canal, Jup tropeçou em uma pedra e quase caiu. Seu mau humor veio à tona e escutei ele resmungar: — Maldito escaravelho! Aquelas foram as únicas palavras que ele pronunciou no decorrer de todo o longo trajeto. Atravessamos o canal de canoa. No continente, William nos conduziu por uma trilha muito fechada. Fomos caminhando pela vegetação seca e esquecida, do lado oposto ao caminho da cidade. Quando começamos a subir um terreno montanhoso, começava a anoitecer. Eu carregava lampiões e começava a me aborrecer com aquele “passeio”. — William, você quer fazer o favor de nos dizer para onde vamos? — Veremos, amigo, veremos... — Mas William, o que nós vamos fazer quando chegarmos a esse maldito lugar? — Maldito? — respondeu meu amigo com outra pergunta. Legrand me dava pena. Em sua loucura, caminhava com animação. Trazia seu escaravelho atado a um barbante e, para se distrair, girava o inseto em volta de sua mão. Às vezes Legrand parava, mexia nos arbustos, consultava suas anotações e seguia em frente. Como se estivesse se orientando por uma espécie de mapa. Nossa caminhada noturna já tinha mais de duas horas e a inclinação da montanha estava chegando no limite do suportável para pessoas como eu, sem treinamento em escala. Foi então que pegamos outra trilha e rumamos até outro monte, uma espécie de PLATÔ muito ESCARPADO. Havia árvores centenárias naquela região e enormes blocos de pedra espalhados pelo terreno. Os limites dessa área incomum eram de um lado montes assustadores, de outro altos precipícios cercados pelo mar. A vegetação era tão selvagem que estava à altura de nossos pescoços. William mandou Júpiter começar a roçar o mato. Obediente, ele pegou a foice e começou a abrir uma trilha entre nós e um grupo de carvalhos a cerca de duzentos metros dali. Entre os carvalhos se destacava uma árvore do tipo tulipeiro gigante. Era bem maior e mais alta do que o carvalho, tinha galhos possantes e uma copa muito FRONDOSA. Sua forma negra contra o céu azulmarinho das primeiras horas da noite era uma bela imagem. Quando Jup acabou de abrir a trilha, Legrand caminhou em volta do tronco DESCOMUNAL do tulipeiro e falou: — Jup, você acha que consegue subir nesta árvore? — Sinhô, Jup nunca viu uma árvore em que Jup não conseguisse trepar! — Ótimo! Então pode escalar essa aí que eu te dou as instruções. Mas primeiro pega o escaravelho. Quero que você suba com ele. — O escaravelho! O escaravelho, não, sinhô Will. Não posso subir com o escaravelho... — Olha aqui, Júpiter: eu não acredito que você, um negro forte e grande, vá ter medo de uma inseto morto. Pára com isso! Pegue o escaravelho pelo barbante e suba nesta árvore ou eu terei que rachar sua cabeça com essa enxada. Muito contrariado e amedrontado, Jup pegou o barbante e começou a escalar os quarenta metros (pela minha estimativa) da árvore. O tulipeiro, cujo nome científico é Liriodendron tulipiferum é um dos exemplares mais belos nas florestas dos Estados Unidos. Quando jovem ele cresce sem desenvolver muitos galhos, mas após certa idade, seu tronco fica rugoso e um grande número de ramificações surge em seu tronco. Júpiter se valeu das rugas no tronco para apoiar seus pés e firmar suas mãos. Às vezes apertava os joelhos contra a árvore e a abraçava forte, para em seguia tomar impulso e avançar mais um pouco. Quando chegava em um galho maior, Jup descansava um pouco. Após o primeiro grande galho, a árvore era para ele como uma enorme escada e sua tarefa foi facilitada. Em menos de um minuto, nosso amigo sumiu em meio às folhagens e ao escuro da noite. Apenas ouvíamos o barulho das folhas e dos galhos balançando, até que o silêncio tomou conta de tudo. — Júpiter! Júpiter! — gritou Legrand. — Sim, sinhô. — Onde você está Júpiter? — Em cima da árvore, sinhô. — Isso eu já sei! Mas a que altura? — Estou quase no topo. Falta só um galho para chegar no topo. — Você consegue subir nesse galho, Jup? — Acho que sim, mas ele está meio podre.
— Júpiter, se você subir neste galho eu te dou uma moeda de ouro, certo? — Opa! Já estou subindo, sinhô. Nesse momento, se eu ainda tinha alguma dúvida quanto à demência de meu amigo, ela estava desfeita. Tentei falar com ele. Tentei pedir que ele mandasse Jup descer, que o galho estava podre e que uma queda daquela altura era morte certa para Jup, mas nada disso demoveu William de seu propósito misterioso. — Você chegou no último galho, Jup? — Cheguei, sim, meu sinhô. — Júpiter, me diga uma coisa: você está notando algo de diferente ou estranho na ponta deste galho? — Espera aí... AI, MEU DEUS! TEM UMA CAVEIRA AQUI, SINHÔ! Tem uma caveira pendurada na ponta do galho! Que coisa horrível. — Calma, Júpiter, calma! Está tudo bem. É só um pedaço de osso. Agora preste atenção no que eu vou dizer. William disse para Júpiter passar o escaravelho pelo olho esquerdo da caveira e, em seguida, deixar o inseto cair. Júpiter disse não saber direito qual era o olho esquerdo. Perguntou se a mão esquerda era a mesma mão que ele usava para rachar lenha. William, muito nervoso, respondeu que sim e mandou Jup jogar o escaravelho. O inseto caiu perto de nós. Imediatamente William marcou o local com uma estaca e, puxando um rolo de barbante do bolso, formou uma linha da estaca até o tronco. Ordenou que Júpiter descesse e limpasse o terreno com a foice, enquanto me entregava uma pá e pegava outra para si, dizendo: — Vamos, amigos. É hora de cavar!
Essa instrução despropositada era mais uma EVIDÊNCIA da loucura de meu amigo. Se eu pudesse contar com a ajuda de Júpiter, amarraria William e o levaria para casa, mas sabia que Jup era muito fiel a seu patrão e não me apoiaria nesse plano. Pensei em contrariar meu amigo e ir embora, mas temia que sem mim ali por perto sua loucura piorasse e ele acabasse se machucando. Mesmo já estando meio cansado com a caminhada, peguei a pá e comecei a cavar à direita da linha entre a estaca e o tronco da árvore, como Legrand mandara. Júpiter logo se juntou a nós. Enquanto ia abrindo o buraco, pensava que assim que a cova estivesse grande, William veria que não havia nada ali. Minha esperança era que essa desilusão o afastasse da loucura. Tive vontade de perguntar o que ele estava procurando, mas achei melhor não dar corda para aquela insanidade. O mais provável era que fosse um tesouro, já que no sul dos Estados Unidos essas histórias eram muito comuns. Após duas horas de intensa escavação nosso buraco já tinha três metros de profundidade, uns dois de largura e quatro de comprimento. Legrand disse para pararmos. O cão estava latindo muito e ele temia que isso chamasse a atenção de algum infeliz que estivesse passando por aquele local deserto. Eu descansava escorado na árvore, quando Legrand enxugou a testa e, saindo do buraco, correu para onde Júpiter estava descansando e o agarrou pela gola: — Negro desgraçado! Fala pra mim, seu patife. Fala pra mim qual é o teu olho esquerdo. E não me mente! — Sinhô! Não me bate, sinhô! O meu lho esquerdo é esse aqui, sinhô — disse Júpiter, colocando a mão sobre seu olho direito. Achei que William ia bater no seu criado, mas ele começou a pular e a festejar, gritando: — Eu sabia! Eu sabia que você estava errado. Eu sabia que o tesouro está aqui! Depois, um pouco mais calmo, falou: — Houve um erro de cálculos. Estamos cavando do lado errado. Temos que fazer um novo buraco do outro lado da linha. É lá que se encontra o que procuramos. Sem falar mais nada, William recomeçou a meter a pá na terra e, sem ousar interromper o entusiasmo dele, Júpiter e eu fizemos o mesmo. Eu estava cansado, mas a energia de Legrand, seu raciocínio em consultar o mapa, achar a árvore, a caveira e calcular o local da queda do escaravelho haviam me animado. Agora que eu sabia que era mesmo um tesouro que estávamos procurando, uma série de pensamentos sobre o que fazer com o dinheiro começaram a percorrer minha cabeça. A idéia de ficar rico me fez superar o cansaço. Já estávamos cavando fazia uma hora e meia quando Wolf começou a latir e a uivar. Júpiter saiu do buraco para prender o cão, mas este desviou de nosso amigo e pulou para dentro do buraco, onde pôs-se a cavoucar freneticamente o solo. Não demorou muito para aparecer um conjunto de ossos humanos completos misturados a pedaços de roupas antigas e botões de metal. Apareceram ainda três moedas de prata. Os olhos de Júpiter brilharam com elas, mas o entusiasmo de Legrand murchou ao vê-las. Era o fim do delírio, pensei, enquanto me aproximava de Jup para ver as moedas, coisa que não consegui fazer pois o bico de minha bota havia enganchado em algo, me levando ao chão. Levantei e reparei que era uma argola de ferro. Chamei Legrand. Seu olhos se arregalaram e ele disse: — É o baú! É o baú! Vamos, cavem! Cavem! Cavamos como loucos por mais meia hora, até desenterrar aquele pesado baú de metal. Tinha cerca de um metro de comprimento, uns 80 centímetros de largura e meio metro de profundidade. Era feito de um ferro muito bem trabalhado e preparado. Por baixo da sujeira, a corrosão era mínima em suas paredes. Havia seis argolas de ferro em volta dele para facilitar o transporte, ou seja, eram necessários seis homens para carregá-lo. Em sua tampa havia outra argola, onde eu havia tropeçado. Com cuidado, William abriu os ferrolhos do baú e ergueu sua tampa. As luzes de nossos lampiões logo focavam um RESPLANDECENTE tesouro de valor incalculável! Centenas de moedas de ouro, prata, cobre, anéis, colares, coroas, taças de ouro, pedras preciosas que faiscavam em nossos olhos. Era tarde da noite, estávamos muito cansados, sujos e suados, mas uma alegria dourada fazia a gente pular e se abraçar como crianças! Júpiter, com o rosto pálido e os braços mergulhados no ouro, gritava: — Isso é coisa do escaravelho de ouro. Do lindo escaravelho de ouro! Legrand pediu que ele falasse mais baixo e disse que, em parte, era obra do escaravelho, sim, mas que explicaria tudo mais tarde. Após aqueles momentos de inesquecível EUFORIA, fomos voltando à realidade. Tínhamos um problema a ser resolvido: era preciso transportar o tesouro até a casa de Legrand antes do nascer do dia. Para tanto, esvaziamos três quartos do baú e só assim conseguimos, com dificuldade, removê-lo da cova. Decidimos esconder no mato a parte do tesouro retirada do baú, deixando Wolf de guarda, e carregamos o baú com um quarto da riqueza até a casa de Legrand. Eram quase duas da manhã quando chegamos lá. Demoramos duas horas entre jantar e descansar um pouco. Depois voltamos ao local das escavações praticamente correndo, cada um de nós carregando um grande e resistente saco de alinhagem. Wolf e o tesouro, para a nossa felicidade, continuavam lá. Com muitas dores musculares, fizemos o trajeto de volta à cabana. Quando chegamos à casa de Legrand, o sol começava a aparecer. Colocamos os sacos de ouro no baú. O sol entrava pela janela da sala e dourava as peças. O reflexo delas tatuava nossos rostos. Não sabíamos o que fazer com tanto dinheiro! De repente, era como se nosso cansaço tivesse desaparecido com o nascer do dia. Com o fim da noite e da pobreza. Em vez de dormir, começamos a selecionar o tesouro. Examiná-lo, ver que maravilhas ele continha. Havia cerca de 450 mil dólares em moedas de ouro da França, Espanha, Alemanha e Inglaterra. Algumas moedas tinham um tamanho enorme e estavam tão gastas que era impossível saber de onde vinham. Havia cento e dez diamantes de porte médio e grande. Dezoito rubis de alto brilho, 310 esmeraldas pequenas e médias, 21 safiras azuis e uma opala. Havia cerca de duzentos anéis e brincos de ouro maciço, trinta cordões de ouro, 83 crucifixos grandes e pesados de ouro e prata, tigelas, candelabros e incensórios de ouro, prata e bronze, dois punhos de espada de prata e vários outros objetos menores de prata e cobre que não lembro mais ao certo a quantidade. Ao todo o tesouro pesava cerca de 160 quilos e valia, pelos valores da época, cerca de um milhão e meio de dólares.
Capítulo 5 Enquanto classificávamos as peças, Legrand contou o mistério do escaravelho. Disse que o ENIGMA começara a ser resolvido naquela noite fria em que eu fora visitá-lo. Quando fez o desenho do escaravelho no pano sujo, Legrand havia caprichado, pois era bom desenhista e queria que eu tivesse uma boa noção da beleza do inseto. Porém, no momento em que ele me passava o desenho, eis que Wolf pulou com as patas no meu colo. Legrand disse que, com o susto, eu abri os braços e aproximei minha mão e o desenho a uma distância perigosamente próxima da lareira onde me aquecia. William disse que quase se levantou para salvar o desenho, mas foi tudo muito rápido e, antes que ele pudesse reagir, eu já o havia afastado de perto do fogo e Wolf já tinha deixado meu colo. Então olhei o pano sujo, que era na verdade um pedaço de pergaminho, e vi o desenho da caveira. Como William havia desenhado um escaravelho houve o impasse. Achei que ele estava aborrecido e devolvi o desenho a ele, que SE ESPANTOU muito e se manteve quieto e pensativo. Como vocês já sabem, fui embora, achando que Legrand estava ofendido comigo. Na verdade ele estava intrigado com a mutação do desenho de escaravelho que fizera para a forma perfeita da ilustração de uma caveira. Tão intrigado que ficou analisando o porquê de seu desenho ter dado lugar a um desenho de caveira. Vou tentar reproduzir aqui as palavras de Legrand, ditas enquanto classificávamos o tesouro: Como não havia encontrado papel para fazer o desenho, coloquei a mão no bolso do casaco e senti a textura do pedaço de pergaminho que eu havia achado na praia, naquele mesmo dia em que achara o escaravelho. Fiz o desenho sobre o pergaminho e passei para você. Ao pegar o desenho, Wolf pulou em seu colo e você aproximou a mão da lareira. Veja que seqüência fantástica de eventos daquele dia: Você veio me visitar sem ter avisado, algo raro. Era o dia mais frio do ano, o que nos obrigou a acender a lareira ainda de tarde, antes que você chegasse.
Eu e Júpiter achamos o escaravelho e o pergaminho no mesmo dia. De forma imprudente, emprestei o inseto ao tenente, o que me obrigou a usar o pergaminho para fazer o desenho. Justamente no exato momento em que lhe passei o desenho, Wolf pulou sobre você, fato que o fez aproximar o desenho do fogo. — Sim, mas que importância teve essa aproximação? — lembro-me de ter perguntado. Legrand dissera: — Ah, meu amigo, esse pergaminho pertenceu a um pirata famoso, creio que tenha pertencido ao Capitão Kidd. Esse pergaminho era na verdade um pequeno mapa, escrito com uma espécie de “tinta invisível” à base de substâncias químicas como o óxido azul de cobalto, água-régia, ácido nítrico etc. ... Essa tinta desaparece após algum tempo, mas quando submetida ao calor EXTREMO ela volta a se revelar. Por isso, a seqüência de coincidências anteriores fez com que a caveira no canto do mapa fosse revelada. Essa caveira é uma espécie de assinatura do pirata. Depois que você foi embora, resolvi ler sobre o assunto e descobri que essa região, devido à proximidade com o mar do Caribe, era muito freqüentada pelos piratas. Existem muitas lendas locais sobre isso também, como você deve saber. Por isso, com todo o cuidado, submeti o mapa novamente ao calor do fogo, desta vez com método, para que o pergaminho recebesse o calor de forma HOMOGÊNEA e por mais tempo, e o mapa se revelou! — Era um texto enigmático. Parte dele estava em código, por isso fiquei dias e dias falando sozinho e rabiscando coisas. — E por isso você passou um dia todo longe de casa sem me avisar, né, sinhô? — Exatamente, Jup. Mas era preciso. Precisava reconhecer o terreno descrito no mapa. Foi difícil, mas consegui achar o monte, o platô e o tulipeiro entre os carvalhos — Certo, mas e quanto ao escaravelho? Por que Jup teve que jogá-lo do olho esquerdo da caveira? — perguntei. — O mapa pedia que uma pedra fosse jogada por dentro do olho esquerdo para revelar a localização do tesouro. Como o escaravelho foi um dos fatores que nos levou ao tesouro e como ele lembra ouro e riqueza, resolvi usá-lo no lugar da pedra. — Genial, William, genial! E pensávamos que você estava louco! — É. A gente pensou mesmo — disse Jup rindo muito e balançando a cabeça.
— William, e quanto àqueles ossos lá no buraco? Será que são do tal pirata? — Creio que não. Eles devem ser dos SUBORDINADOS ou dos escravos que cavaram o buraco. Para evitar que eles contassem onde estava o tesouro, Kidd – se é que foi ele – os matou. Dois bons golpes com a pá, enquanto os homens ainda estavam cavando, devem ter bastado. Mas talvez tenham sido necessárias umas doze pancadas... Quem vai saber?
Edgar Allan Poe
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