Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O ESCUDO DE GIDEON
Preparativos de Viagem
Kate Gideon viu o carro do marido parar à porta de casa, o motorista descer e abrir a porta traseira e George curvar-se para sair. Evidentemente ele estava apressado. Kate permaneceu na janela de seu quarto, consciente dos reflexos superficiais que transitavam por sua mente, menos alerta em relação àqueles que sentia subconscientemente. Conscientemente, teve certeza da pressa do marido; subconscientemente, notou que ele não vinha sentado ao lado do motorista, indício de que tinha muito em que pensar. Conscientemente, notou que se ele havia parado em frente à casa e viera com um motorista, era porque ia sair de novo. Subconscientemente, sentiu que George vinha trabalhando mais, durante as últimas semanas, do que ela se podia lembrar há muito tempo. Entretanto, o número de crimes em Londres, naquele cálido verão, tinha sido relativamente baixo, com o registro de raros fatos sensacionais e pouco trabalho para manter o chefe do Departamento de Investigações Criminais de Londres em seu gabinete, noite após noite.
Eram cerca de oito horas, isto é, um pouco tarde para ele chegar a casa. Kate ficou ressentida com as exigências do trabalho de seu marido, porém esse ressentimento nada tinha de profundo ou de amargo, já que ambos haviam ultrapassado a idade em que longas horas de separação causam reações emocionais. Pelo contrário, ela estava preocupada com o fato de que o excesso de trabalho pudesse prejudicar a saúde de seu marido.
Sorriu a este pensamento e de si própria quando George, cabeça e ombros para a frente, numa atitude significativa de saiam do meu caminho", dirigiu-se para a porta. George pareceu-lhe tão bem disposto, tão cheio de energias, que a impressão de que ele vinha trabalhando demasiadamente dissipou-se completamente.
Como se pressentisse que Kate o estava observando, George parou pouco antes da varanda, olhou para cima e a viu, dando um passo para trás e acenando com a mão. Olhou para Kate com ar de entusiasmo, e os anos de responsabilidade, assim como de rígido autocontrole, denunciaram algo raro, senão alarmante.
Kate acenou de volta e Gideon subiu a varanda enquanto ela atravessava o quarto, contornava o leito e se dirigia às escadas. A porta da frente abriu-se e Gideon chegou ao vestíbulo enquanto ela ainda se encontrava a meio caminho. Não havia dúvida que ele estava nervoso porém, repentinamente, toda a ansiedade de Kate dissipou-se, pois, evidentemente, as notícias que George trazia eram boas.
— Alô, Kate.
— George, o que é que há?
— Como o que há?
— Não fique parado aí querendo dar a impressão de que não há nada. Afinal, o que há?
Gideon não respondeu de imediato, porém, repentina e inesperadamente, abriu os braços para sua esposa, de forma surpreendente para um homem tão pouco dado a demonstrações dessa natureza. Ao mesmo tempo, sorriu e seus olhos brilharam. Gideon não era um homem elegante, mas tinha porte vigoroso, testa larga, cabelos grisalhos penteados para trás, queixo forte, boca enérgica e nariz um pouco grosso. O trabalho em seu jardim, ao ar livre, nos fins-de-semana, lhe dera um tom bronzeado, saudável, assim como lhe fizera parecer ter menos do que os cinqüenta anos que já completara.
Tomou as mãos de Kate nas suas.
— Pronta para uma surpresa? — perguntou.
— Não, se for coisa ruim — respondeu Kate.
— Oh! Nada de ruim. — Gideon sorriu. — Nada de ruim. — Quando Kate emudeceu e se limitou a olhar para seu rosto, exigindo um fim à dúvida, prosseguiu, dizendo: — Vamos fazer uma viagem.
— Para onde?
— Quer adivinhar?
— Para mim seria preferível que você parasse de proceder como uma criança — disse Kate.
— É justamente como me sinto — respondeu Gideon, e o sorriso que acompanhava sua voz deixou claro a Kate que não somente ele se sentia muito feliz, mas estava certo de que ela se iria sentir da mesma forma. — Um rapaz vai para Nova York de férias.
De início Kate não compreendeu bem o significado das palavras do marido, talvez porque "para Nova York" lhe parecesse o mesmo que "para a Lua".
— O que foi que você disse?
— Eu disse que vou levá-la para Nova York. O coração de Kate estremeceu. — George!
— Na próxima semana.
— Quando? — perguntou Kate.
— Na próxima terça-feira. Viajaremos no Fijty States, que parte de Southampton ao meio-dia. Disseram-me que os grandes transatlânticos partem sempre na hora certa. Assim, é melhor que você trate de se arrumar. — Antes que Kate pudesse fazer qualquer comentário, enquanto procurava adaptar-se à realidade e começava a pensar que só lhe restavam seis dias, seis dias menos um domingo, Gideon deu-lhe um grande abraço, caminhou um passo atrás e perguntou: — Gosta da idéia?
— É simplesmente maravilhosa — respondeu Kate.
— Compreendo bem seu desejo de receber a notícia com mais antecedência para ter tempo de preparar-se. Entretanto, não me quis apressar, com receio de que o projeto falhasse. Daqui a duas semanas, realiza-se em Washington a Conferência Internacional e pensei que precisasse voar para lá apenas para assisti-la. Agora, vou também a Nova York para entrar em contato com Nielsen, a respeito de um problema que vem preocupando tanto a nós como a eles, lá do outro lado do Atlântico. Depois disto, irei a Washington.
— Quanto tempo ficaremos lá? — perguntou Kate, surpresa.
— Pelo menos um mês. Os negócios oficiais tomarão duas semanas e, depois disto, tirarei uma quinzena de férias, — respondeu Gideon. — Explicarei tudo mais tarde a você, pois tenho que voltar ao escritório e ficar por lá durante mais ou menos meia hora. Há um homem, no escritório, a quem desejo amedrontar profundamente. — Gideon dirigiu-se para a porta e perguntou: — Você gostaria de ir comigo? De lá, poderíamos ir a algum lugar.
A sugestão era tentadora e, vinte minutos antes, Kate a teria aceito sem a menor hesitação, assim como teria indagado: "Quem é este homem?" Entretanto, agora estava preocupada. Havia uma centena de coisas a fazer antes da viagem. Repentinamente, sentiu-se apressada, justamente num momento em que pressa se tornara coisa do passado.
— Você tem certeza de que vamos mesmo? — perguntou, com certo cuidado.
— Positivo. O secretário de Scott — Marle fez as reservas de passagens enquanto eu estava em seu escritório. Eu posso até lhe dar o número do camarote, A16. A viagem já vem sendo programada há várias semanas por causa da Conferência, com o FBI servindo de anfitrião. Os problemas a serem discutidos relacionam-se principalmente com entorpecentes e circulação monetária. O Comissário-Assistente seria, normalmente, a pessoa indicada para a viagem, mas, como esse cargo ainda está vago, eu é que tenho de ir. Nielsen telefonou de Nova York pedindo oficialmente que eu mandasse alguém para tratar de um ou dois casos específicos. Depois disso, restou apenas tratar da reserva de passagens. Para a volta, temos reserva no Queen Elizabeth. — Gideon, tomando a direção do vestíbulo, tinha um olhar jovial e alegre. — Queria dar-lhe a notícia eu mesmo e já vinha para casa quando soube que um homem, a quem andamos procurando com grande interesse, foi detido. De qualquer forma, eu vim, — acrescentou. E perguntou — Que tal jantarmos fora?
— Não — disse Kate, sem titubear. — Tenho que escrever aos nossos filhos e não posso perder um minuto. Jantaremos em casa, quando você voltar. Você contará tudo direitinho, enfio.
— Certo — disse Gideon. — Agora vou sair.
Segurou as mãos de Kate durante alguns momentos e, depois, dirigiu-se para a porta. Esta encontrava-se parcialmente aberta e Kate pôde ver parte do carro que o marido ia tomar. Quando George abriu toda a porta, ela sentiu que o silêncio que mantivera, resultante da surpresa, poderia provocar algum desânimo nele. Quando George chegou à varanda, ela gritou:
— George!
Ele voltou-se e disse:
— Que há?
— George — ela repetiu e correu em sua direção — é simplesmente maravilhoso. Estou tão surpresa que chego a duvidar de que tudo isto seja verdade, porém — Nova York. É... — Kate procurou uma palavra que pudesse expressar seu repentino entusiasmo, mas, já que tanto George como o carro estavam esperando, tudo o que ela conseguiu fazer foi repetir — maravilhoso.
Muito embora já fosse tarde, havia uma explosão de atividade na Scotland Yard, certa correria, até mesmo excitação, não muito comum. Esse estado era visível nos olhos e na face dos homens postados na entrada, nos sargentos em serviço no vestíbulo e em vários detetives com quem Gideon cruzou, a caminho de seu gabinete. Uma policial jovem e bonita saía da sala dos sargentos. Dava a impressão de estar bem disposta e de não se sentir mal-humorada com a sordidez e a sujeira, com a maldade e a perversão tão corriqueiros no seu trabalho. Sorrindo, tomou prontamente posição de sentido quando viu Gideon.
— Boa noite, senhor.
— Boa noite — murmurou Gideon. Pensou no que ela estaria fazendo ali, teve ímpeto de perguntar, resistiu à tentação e seguiu para seu gabinete. Estava escurecendo no edifício e ele notou uma réstia de luz por debaixo da porta. Quem estaria lá? Ao abrir a porta, viu Lemaitre, seu assistente, sentado numa das mesas, escrevendo com rapidez. Lemaitre levantou a cabeça, surpreso.
— Que houve? Disseram-me que você tinha ido para casa.
— Por acaso não lhe disseram que eu estava de volta?
— Pensei que esta noite você não se separaria de Kate. — Lemaitre estava vestido com apuro, parecia bem disposto e cheio de vivacidade, com seu cabelo negro e ralo bem penteado, esbelto, tez bronzeada, nariz aquilino, queixo agressivo. Usava gravata com pintas vermelhas e brancas, sobre uma camisa muito alva. — Aposto que a notícia a deixou abalada, George.
— Ela não ficará abalada por muito tempo — retrucou Gideon. Depois, tirou o paletó. Através da janela, podia ver o Tâmisa e os barcos coloridos levando turistas ou fregueses de todos os dias na direção oeste, para Teddington Weir, ou leste, até Greenwich Ferry. Um alto-falante, num desses barcos, anunciava: "À sua direita, está o edifício do Condado de Londres, sede do Conselho, que e compõe de representantes dos quarenta e oito distritos em que se divide a cidade. À sua esquerda, no edifício de tijolos vermelhos, está a famosa Scotland Yard, sede da polícia de Londres há muito anos, que se deve mudar dentro em breve para um prédio novo e bonito. Estamos chegando ao Edifício Festival, tudo o que resta do...".
A voz metálica desapareceu.
— Fadiman ainda está aqui, ou não? — Indagou Gideon incisivamente. Não sendo mais esperado na Scotland Yard, o preso que desejava ver poderia ter sido transferido para uma prisão comum.
— Está em Cannon Row — disse Lemaitre.
— Está bem. — A delegacia de polícia de Cannon Row ficava a menos de cem metros de distância e era, virtualmente, um apêndice da Scotland Yard. — Quem o revistou?
— O Dr. Hughes, comigo e Cooke, para termos a certeza de que não estava escondendo algo em algum lugar, — retrucou Lemaitre. — O doutor chegou a ponto de arrancar-lhe a dentadura e mandar verificá-la para constatar se não havia um dente falso, oco. — Lemaitre recostou-se na cadeira com ar de quem se sente orgulhoso. — Ele está pronto para ser entregue ao Tribunal de Old Bailey, indiciado em dois artigos, e depois seja lá o que Deus quiser. Se se espalhar qualquer rumor sobre pena de morte, caso Fadiman seja considerado culpado, vou dar um estrilo.
— A pena de morte pode ser uma coisa do passado quando ele for julgado — disse Gideon. — O que foi que ele declarou?
— Nada.
— Já tem advogado?
— Apareceu um por aqui durante dez minutos. Veio porque viu a notícia na televisão dizendo que havíamos detido Fadiman. Este não o chamou e não deu uma só palavra.
— Que tal esse advogado? — indagou Gideon.
— Tipo comum, igual aos outros — informou Lemaitre.
— Lem disse Gideon — quero este caso tão bem.tratado que não haja possibilidade de Fadiman escapar devido a qualquer minúcia técnica na aplicação da lei. Sendo culpado... — Gideon parou e murmurou. — Esqueça. Vou vê-lo.
— Devo avisar Cooke que você vai para lá?
— Você não faz isto sempre? — perguntou Gideon. Sempre que Gideon ia a qualquer parte da Scotland Yard ou à Seção Distrital em qualquer parte de Londres, aviso era dado àqueles que ia visitar. Sabia exatamente como isto era feito: um curto e brusco "Gê-Gê está chegando". Houve época em que ficava aborrecido com isto, porém, atualmente, dava menos importância ao fato; qualquer coisa que pusesse o pessoal atento era bem recebida, fosse ele tido ou não como um espantalho. No momento, sentiu que Lemaitre desejava saber até que ponto ia sua seriedade, se ele, Lemaitre, se tinha precipitado. Não havia homem mais leal em Londres. Gideon piscou um olho para Lemaitre e este respondeu com um sorriso de alívio.
— Não se preocupe — disse Lemaitre. — O caso estará deslindado e pronto para você na sua volta dos Estados Unidos.
Gideon saiu do gabinete, ligeiramente aborrecido consigo próprio. Quando falara na possibilidade de ter o caso Fadiman deslindado, acrescentando "quero..." traíra uma ansiedade que, antes de tudo, não devia ser mostrada. Lemaitre tinha, naturalmente, notado de imediato esta implicação. "Desejava poder ver este caso esclarecido antes de partir para Nova York", tivera a intenção de dizer. Indo um pouco além, estas palavras poderiam ser tomadas como significando: "Não tenho confiança em qualquer pessoa aqui para tomar conta deste caso", o que, na realidade, era um disparate. O caráter dispensável do indivíduo era a primeira coisa a ser aceita, especialmente quando esse indivíduo era o próprio. De qualquer forma, era difícil arranjar solução.
Quando Gideon chegou ao pé da escada da entrada principal já se sentia mais feliz. Estava convicto de que seus auxiliares iriam sair-se bem, como se ele estivesse de férias ou no Continente por alguns dias numa reunião da Interpol, ou mesmo em alguma conferência. Atravessou o pátio. Ao fazê-lo, dois detetives-sargentos, três guardas e um inspetor-chefe o observavam, enquanto dois oficiais num carro-patrulha sorriram antes de tomar a direção do cais.
— Gê-Gê está bem-humorado esta noite.
— Por que não haveria de estar? Levaram quase um ano para apanhar um envenenador.
O primeiro homem disse:
— Meu Deus! Que miserável.
Gideon chegou ao portão da rua e tomou para a esquerda ao longo de Cannon Row, quase sem notar o belo anoitecer, o ar suave e o azul-pálido do céu. Pensando de forma idêntica à do motorista, disse consigo mesmo: "Que miserável".
Gideon já tinha mais de trinta anos de serviço na polícia metropolitana. Vinte e cinco desses trinta anos ele os passara no Departamento de Investigações Criminais, onde entrara em contato com todas as formas imagináveis de vício ou crime. Como todo policial bem-sucedido, chegara ao ponto de aceitar a maioria desses males como inevitáveis, métodos anormais como naturais, a maldade como coisa normal. Entretanto, Fadiman...
Havia um caso similar na história — o de um homem que, em primeiro lugar, dava estricnina às prostitutas, e depois mantinha relação sexual com estas, para sentir um êxtase asqueroso e horrível nas suas convulsões finais. A diferença era que Fadiman tinha procurado e encontrara suas vítimas, não entre as prostitutas, mas em lares suburbanos de mulheres bem casadas; nove destas ao todo.
Em intervalos, durante mais de um ano, os crimes haviam chocado não apenas Londres, mas toda a nação. Entretanto, a policia falhara na caça ao criminoso. A procura penosa, de porta em porta, nos subúrbios residenciais de Londres, instigada por Gideon, resultará finalmente numa descrição através da qual fora possível compor um retrato Identikit de um homem visto na vizinhança do local de cada morte algum tempo antes do crime. Somente após a oitava morte foi que se chegou a acreditar que se tratava de um vendedor, desses que vendem mercadorias de porta em porta. O retrato fora enviado pelo correio a mais de duzentas e cinqüenta mil residências, porém ainda não havia sido publicado nos jornais nem mostrado na televisão.
Hoje, o criminoso havia encontrado e reivindicado, mais uma vítima — uma pequena mulher com vista cansada, que não lera nem ouvira falar muito deste. Permitira a entrada de um vendedor de mistura de bolos e comera sua "amostra".
Os vizinhos haviam notado a presença de Fadiman e, naquela forma estranhamente simples, na qual algumas vezes termina a procura de um homem, fora detido numa tabacaria em hora de grande movimento: sem estardalhaço, sem resistência e sem mesmo tentar fugir.
Um policial de serviço na parte externa da delegacia policial de Cannon Row saudou Gideon. Quando este chegou ao vestíbulo, o oficial de plantão, Superintendente A. C. Cooke, entrou. Era um homem cujos cabelos encanecidos e expressão cansada escondiam uma mente alerta.
Os dois apertaram-se as mãos.
— Eu estava certo de que você não perderia isto, George.
— Esperei durante muito tempo — disse Gideon. — Algo de novo?
— O advogado ainda está com ele, um tal Joseph Todhunter.
— Algum detalhe especial? — perguntou Gideon.
— Tenho a impressão de que já sei do que se trata — respondeu Cooke.
— Identidade errada?
— Sim.
Gideon pensou: sendo culpado, a única chance de Fadiman é naturalmente, alegar identidade errada. Não podemos correr o menor risco de prender o homem errado. À sua mente veio mais uma vez o desejo de ver o caso esclarecido. Entretanto, procurou esquecer isto. Policiais, sargentos, a policial que ele vira na Scotland Yard, um servente e um bêbado numa das celas, todos procuraram olhar para Gideon quando este passou através da delegacia. Dois homens se encontravam na cela de Fadiman, cuja porta já estava sendo aberta pelo sargento de plantão.
Um dos homens permanecia de costas para Gideon. De torso arredondado, usava um paletó escuro, no qual se viam alguns fios soltos de cabelo e partículas de caspa nos ombros. Tinha cabelos brancos, soltos e pequenas orelhas rosadas. O outro homem estava de pé ao lado do leito, olhando sucessivamente para as barras da porta, o sargento e Gideon.
A primeira coisa que Gideon notou, algo chocado, foi a semelhança do rosto com o retrato Identikit. A semelhança era quase de pasmar. A segunda coisa foi o olhar de medo, de horror e de temor, na face definhada. Havia, na realidade, lágrimas nos olhos de Fadiman.
— Quem é este? — perguntou Fadiman ofegante, enquanto o homem de cabelos brancos se virava. Fadiman prosseguiu numa voz ainda ofegante: — Não fiz nada, não sei de nada. É um engano, tudo isso é um engano.
Falou com tal convicção e emoção que Gideon sentiu uma dúvida repentina e torturante: poderia este homem ser aquele terrível criminoso? À proporção que a dúvida passava pela sua mente, Gideon observava os olhos calmos e despreocupados de Joseph Todhunter. "Tipo comum. Igual a todos os outros", dissera Lemaitre, e nenhuma descrição poderia ser mais verdadeira.
Dúvidas
O coração de Fadiman parecia estar na sua própria voz enquanto ele repetia: — É um engano. Juro que é um engano.
Gideon, observando tanto o acusado como Todhunter, admitiu, para si próprio que poucos homens lhe poderiam ter causado melhor impressão do que o advogado. Esperou que este lhe falasse, enquanto Fadiman se movimentava para um lado, juntando as mãos como se estivesse rezando. O acusado não usava gravata nem abotoaduras, as mangas da camisa caíam soltas e os sapatos estavam abertos, pois os cordões haviam sido removidos.
— Inspetor Gideon, creio — disse Todhunter.
— Correto.
— Sr. Gideon, quero deixar bem claro que o Sr. Fadiman não é culpado dessas terríveis acusações. Um grande erro está sendo cometido e tenho certeza de que o senhor será o primeiro a querer verificar isto.
— Sim, desejo a verdade — retrucou Gideon. — Depois, olhou para os olhos pálidos e lacrimosos de Fadiman. Assim como havia simpatizado com Todhunter, tomou-se imediatamente de antipatia pelo prisioneiro. Gideon não se sentiu confiante quanto a essas duas reações, porém não as podia ignorar. — Haverá uma audiência, amanhã de manhã, no Tribunal Central de Policia de Londres, na qual exporei as provas que levaram à prisão do acusado e pedirei a prisão preventiva por oito dias. — Sentiu certa frustração nessas palavras porque não estaria mais presente quando o caso Fadiman voltasse ao Tribunal para a segunda audiência.
— Inspetor, — disse Todhunter — o senhor sabe, tanto quanto eu, que tão logo o Sr. Fadiman tenha sido acusado perante o Tribunal todos os jornais do país publicarão a história, e ele será julgado por antecipação. Mais tarde, quando o júri tiver a oportunidade de dar um veredicto justo e o declarar inocente, ele estará destruído. Sua esposa, seus filhos, seus parentes, seus amigos, todos terão sua vida mais ou menos prejudicada pelas horríveis conseqüências dessa prisão intempestiva. Gostaria de lhe pedir... Gideon interrompeu:
— Se o senhor quiser falar comigo em meu gabinete, terei o prazer de recebê-lo, amanhã pela manhã. Há algo mais que o senhor deseje aqui?
— Poderá o senhor imaginar o efeito que uma noite numa cela de delegacia de polícia, sob o impacto dessa acusação, poderá ter sobre um inocente?
Gideon fixou firmemente os olhos azuis do advogado e depois olhou para Cooke.
— A que horas o Sr. Todhunter chegou aqui, Sr. Cooke?
— Logo depois das seis e meia — foi a resposta.
— Se o senhor quiser falar novamente com seu cliente antes da audiência, pode-se arranjar isto no Tribunal — disse Gideon com ênfase.
Esperava que Todhunter esboçasse um protesto ou tentativa de ganhar tempo, porém, o advogado obviamente decidira que essa atitude de nada adiantaria. Em lugar disto, virou-se para Fadiman.
— Cedric — disse — não há nada que eu deixe de fazer para ajudá-lo. E, naturalmente, cuidarei de Joanna e de seus filhos. — Todhunter apertou as mãos de Fadiman e, mais uma vez, Gideon teve a impressão de que estavam rezando. Finalmente, saiu apressado. Cooke fizera sinal para o sargento encarregado das celas e este já se preparava para abrir a porta. Todhunter não mais voltou o olhar. Gideon esperou até que o homem desaparecesse no corredor, depois voltou-se e encarou Fadiman de cima para baixo. Os lábios do homem moviam-se como se estivessem suplicando.
— O senhor está em boas mãos — disse Gideon, asperamente — e o Sr. Todhunter não poderia estar mais certo. Tudo ° que queremos é a verdade. Boa noite. — Gideon voltou-se e foi-se encontrar com Cooke no corredor. Ao fazer isto, notou um movimento por trás de suas costas e se virou. Fadiman, soluçando, lançara-se de joelhos ao lado do leito. Colocara o rosto entre as mãos e a última impressão que Gideon guardou foi a de seus ombros arqueados e corpo trêmulo. A porta fechou-se e uma chave girou na fechadura. O sargento, apesar de sua dureza, tossiu como se procurasse esconder alguma emoção. Gideon passou pelo Superintendente, que, ao chegarem numa curva do corredor, quando não mais podiam ser ouvidos por Fadiman, disse:
— O que é que Fadiman está querendo, George? Fazer uma cena?
— Pode ser.
— Tenho visto alguns "santinhos", porém este parece dizer a verdade.
— Gostaria de ver o que você tirou dos bolsos dele — interrompeu Gideon.
— Está tudo em meu gabinete.
Um minuto depois, quando entraram no pequeno e antiquado gabinete de Cooke, do qual se avistava Cannon Row, Gideon fez um gesto em direção ao telefone.
— Pode usá-lo — disse Cooke.
Gideon levantou o fone, ligado diretamente com a Scotland Yard, e disse: — Ligue-me com Lemaitre. — Ficou esperando enquanto Cooke se dirigia para uma mesa comprida sob â janela, em cima da qual estava todo o conteúdo dos bolsos de Fadiman, assim como sua gravata, as abotoaduras, o botão de colarinho, os cordões de sapatos e o suspensório. Todas estas peças estavam devidamente marcadas para evitar qualquer engano. Lemaitre atendeu quase imediatamente. — Lem — disse Gideon, de modo abrupto — estarei aí dentro de vinte minutos. Quero ver toda a documentação sobre o caso Fadiman, desde o momento em que foi detido até o instante em que os vizinhos da mulher assassinada disseram que o identificavam como sendo o criminoso. Todas as declarações, tudo, mesmo que precise passar a noite ai. Quero ler tudo.
— Ora essa, o que se passa com você? — indagou Lemaitre.
Gideon desligou o telefone. Cooke, de pé, com uma fotografia numa das mãos e uma fotocópia do retrato Identikit na outra, o observava com curiosidade.
Fadiman não estará fingindo inocência, hem, Gideon? — perguntou Cooke.
— Só estou convencido é de que não devemos dar o menor passo em falso — disse Gideon secamente. Seria fácil deixarmo-nos levar pelas aparências.
— Se você me perguntar, direi que ele é tão escorregadio como uma cobra — comentou Cooke. — Todhunter é uma coisa; Fadiman... Mas você não se interessa em saber o que eu penso. Eis aqui tudo o que encontramos com ele. Foi revistado com o maior cuidado, até para se ver se trazia cápsulas de veneno escondidas, pois não podíamos ter certeza de que ele não engoliria uma dose de estricnina ao sentir-se perdido. Nada foi encontrado, mesmo entre as amostras de mistura para bolos que levava em sua caixa. A pequena caixa, com a tampa aberta, estava junto aos artigos recolhidos nos bolsos de Fadiman, cheia de pacotes, de Mistura Assa-Rápido para Bolos do tamanho de uma carteira de dinheiro. Nenhuma pessoa que tivesse visto regularmente os programas de televisão poderia ter dúvidas sobre as qualidades proclamadas da Assa-Rápido. Sem ligar o fato ao caso Fadiman. Gideon sabia perfeitamente que a mistura era vendida não apenas nos supermercados e mercearias, como também através de vendedores que iam de porta em porta. Fadiman era um desses inúmeros vendedores. Havia, ainda, material de propaganda na caixa, folhetos pomposos oferecendo "grandes amostras grátis" e vantagens especiais, cupons de troca, assim como garantia de retorno de dinheiro.
— Se ele fez o que pensamos, o que se passou foi o seguinte: persuadiu a mulher a deixá-lo entrar, conseguiu que ela experimentasse a mistura fazendo um bolo, e colocou um pouco de estricnina na mistura — disse Gideon. — Já fez o mesmo com diversas misturas diferentes, com doces, chocolates e refrigerantes. Você seria capaz de me explicar por que motivo uma mulher sozinha deixaria um homem entrar em sua casa e, além disso, comeria o que ele lhe oferecesse?
— Não um homem como Fadiman — retrucou Cooke. Gideon olhou para Cooke, com os lábios fechados, e os olhos cinzentos deste último mudaram de expressão à proporção que Cooke prosseguia.
— É isto o que você está pensando?
— Exatamente isto, — disse Gideon. — A impressão que se tem é que ele não se interessaria por qualquer mulher. Em lugar disto, ela o convidou para entrar.
Gideon examinou o conteúdo dos bolsos de Fadiman. Não encontrou qualquer coisa de anormal. Apenas uma carteira, sete libras esterlinas e dez xelins em notas, alguns xelins em moeda de prata, algumas moedas de cobre, um canivete, pedaços de barbante, canetas esferográficas, dois lenços, um relógio de pulso, algumas chaves e uns poucos cartões-de-visita com seu endereço em Hackney. Tudo isto fora relacionado e havia algumas cópias da lista junto aos pertences.
— Lem recebeu uma cópia desta lista? — perguntou Gideon.
— Sim — respondeu Cooke.
— Pode-me arranjar outra? — disse Gideon. — Quando virão apanhar tudo isso?
— Um homem chegará para buscá-las a qualquer momento.
Gideon acenou com a cabeça e procurou por alguns momentos, como se pudesse esquecer o caso. Sentiu que Cooke queria dizer-lhe algo.
— Está bem, o que é que você quer dizer?
— É verdade que você vai para os Estados Unidos?
— Sim, na próxima semana.
— Homem feliz — disse Cooke e, depois de uma pausa, perguntou: — Quem irá tratar deste caso para você?
— Estarei de volta antes que ele chegue ao Tribunal de Old Bailey — retrucou Gideon.
Não era a resposta verdadeira, bem o sabia, e Cooke também estava a par disto. Lemaitre também o estava, quando Gideon voltou ao gabinete. Lemaitre preparara todos os arquivos, as declarações das donas de casa que julgavam ter visto um homem que preenchia a descrição de Fadiman, assim como todas as provas. O material estava espalhado na mesa de Gideon, na forma que Lemaitre sabia ser apreciada por este, porém Gideon não parecia estar muito satisfeito da vida.
— O que é que há com você? — procurou saber Lemaitre.
— Cuidado, Lem.
— Diabo, você não pode duvidar das provas que estão ai.
— Espero que não — disse Gideon. — Não gostaria de acusar um homem por uma série de crimes como esses, vê-lo detido, e depois verificar que existe uma dúvida razoável. — Quando Lemaitre deixou de responder e se mostrou simplesmente céptico, Gideon prosseguiu. — O que é que Miller está fazendo no momento? — Tirou o paletó pendurou-o, sentou-se numa cadeira e contemplou os documentos espalhados na mesa, inclusive a fotografia e o retrato Identikit.
— Miller está no caso do Banco Gordon — respondeu Lemaitre.
— Não se encontrará ele, por acaso, aqui no edifício?
Lemaitre sorriu.
— Não há ninguém no edifício, no momento, que não tenha que fazer por aqui e Miller, pelo que me consta, deve estar numa piscina ou jogando tênis em Imber Court. É exatamente o homem para este caso, isto é, se você pensa que há algo de estranho no mesmo. Pense bem, acho que você está desnorteado; trata-se de um caso mais do que certo. Entretanto, se quer fazer barulho...
— Chame Imber Court — interrompeu Gideon. — Se Miller estiver lá, deixe um recado para vir aqui logo que puder.
Gideon começou a ler os documentos. Um dos primeiros era a descrição física de Fadiman, que se enquadrava perfeitamente nas descrições fornecidas pelos vizinhos de várias vítimas envenenadas com estricnina. A semelhança era patente, assim como a coincidência da fotografia com o retrato Identikit. Na folha seguinte havia um dossiê de Fadiman, preparado apressadamente e ainda não transposto para um formulário oficial.
Casado: Nome da esposa, Joanna.
Filhos: Três, um filho de 23 anos, casado, chamado David; uma filha de 18 anos, solteira, chamada Elza, e um filho de 13 anos, estudante, de nome Leslie.
Como se estariam eles sentindo no momento?
Não era de Gideon pensar nisto, porém nada o poderia privar de especular. Os filhos de Fadiman eram mais ou menos da idade dos seus, e Gideon bem podia pensar com eles, ou mesmo pensar por eles.
Ocupação: Sem emprego efetivo. Recebeu uma herança que lhe proporciona uma renda anual de cerca de mil libras esterlinas. Representa várias firmas, entre elas a Assa-Rápido, para as quais trabalha como vendedor de porta em porta.
Houve um pequeno estalido quando Lem colocou o telefone no gancho.
— Miller estará aqui dentro de uma hora. Ele estava no bar.
— Ótimo, — disse Gideon. — Por que você não vai para casa, Lem?
Quando Miller chegou, Lemaitre já se tinha ido embora e os andares superiores da Scotland Yard estavam calmos, como era normal durante a noite, quando todas as atividades da polícia se resumiam aos andares inferiores, em que o Grupo de Choque estava sempre de plantão. No piso inferior, a Sala de Informações permanecia em plena atividade, recebendo mensagens de todas as partes de Londres assim como de muitas partes do mundo. Entretanto nas salas dos andares superiores havia calma, com luz acesa apenas em alguns departamentos.
Miller bateu na porta da sala de Gideon e entrou, após a permissão deste. Era um homem robusto, algo pesado para um atleta e, aos quarenta e nove anos, tinha muito orgulho de sua forma física e de sua eficiência tanto como nadador quanto como especialista na maioria dos esportes. Parecia cheio de saúde e havia qualquer coisa de magnético em seus passos e nos movimentos de seu corpo, características em parte naturais e em parte forçadas, muito embora a continuidade dessa atitude desse a impressão de que seu modo de agir era totalmente natural. Na sua face oval, feições quase delicadas davam uma impressão fora do comum. Como detetive, entretanto, ninguém podia ser mais realista e mais exigente. Trabalhava de forma idêntica à que mantinha quando se distraía, dando às suas funções tudo aquilo que podia, querendo sempre ser o mais eficiente possível.
— Sente-se, Dusty — disse Gideon, indicando, com sua atitude casual, que, àquela hora da noite, toda formalidade poderia ser esquecida. — Ouviu falar sobre a prisão de Fadiman?
— Fadiman, o suposto assassino de nove donas de casa envenenadas com estricnina — disse Miller. — Somente os cegos e os surdos poderiam ter deixado o fato passar despercebido. A notícia corre em todos os anúncios luminosos, em todas as televisões e pelo menos metade de Londres parece estar discutindo o assunto. — Miller sentou-se, franzindo as sobrancelhas ao notar a expressão de Gideon. — Será que não devia estar?
— O advogado de Fadiman é de opinião que seu cliente será julgado antecipadamente culpado amanhã pela manhã — disse Gideon. — Isto me deixa preocupado para que não cometamos qualquer erro. Normalmente disporíamos de três homens capazes de se encarregarem das investigações. Acontece que um está de férias, outro foi transferido e o terceiro foi destacado para trabalhar em outro caso. Em vista disso, quero que você tome conta do caso Fadiman. — Ao se expressar assim, Gideon colocou a mão, parcialmente fechada, sobre um monte de papéis espalhados na sua mesa. — Não acho que haja muita coisa errada. Já fiz um resumo de todas as provas que obtivemos sobre o que aconteceu hoje. A mulher assassinada morava na rua Gale, em Camberwell, no andar térreo de uma casa convertida em três apartamentos. Chamava-se Sra. Corbett, quarenta e um anos de idade, sem filhos, casada com um funcionário da companhia de transportes. Um homem, preenchendo a descrição de Fadiman, bateu em sua porta e foi visto por uma vizinha, uma senhora que mora do outro lado da rua, assim como por um bombeiro que trabalhava duas ou três casas além da sua. Todos concordam no que se refere à fisionomia do homem, assim como em relação à sua indumentária. Todos escolheram o retrato de Fadiman entre seis fotografias que lhes foram mostradas. Descobriu-se na casa um pacote vazio, amassado, de Mistura Assa-Rápido para Bolos, do tipo que Fadiman normalmente carregava consigo. Ainda não encontramos suas impressões digitais no apartamento, se bem que a Divisão ainda esteja tentando descobri-las. Infelizmente, existem muitas outras impressões no local. Fadiman, ou alguém muitíssimo parecido com ele, foi visto saindo do apartamento depois de ali permanecer por mais ou menos uma hora. O marido encontrou a Sra. Corbett morta quando chegou em casa para almoçar, isto é, cerca de uma hora depois de o homem ter saído. Não há dúvidas de que o veneno utilizado foi estricnina, assim como se sabe que ela foi estuprada durante seus espasmos de morte. Deram alarme imediatamente, iniciando-se logo a caça ao suspeito. Fadiman foi encontrado numa tabacaria na rua principal de Camberwell. Ainda trazia a caixa de amostras. Além disso, na sua roupa foram encontrados vários fios de cabelo da Sra. Corbett. Depois da prisão, foi examinado por um médico e ficou provado que tivera um orgasmo há menos de uma hora. Além disso, encontrou-se sêmen no corpo da Sra. Corbett. Fadiman jura que a deixou viva e sem ter sido molestada, afirmando que não a tocou. Estamos aguardando a autópsia e, quando recebermos os resultados, saberemos exatamente o que ela ingeriu pouco antes de morrer.
Gideon fez uma pausa e Miller poderia muito facilmente ter dito: "Para mim, o caso parece não deixar lugar a dúvidas". Em vez disso, entretanto, exclamou pensativamente: — Será o diabo se ele estiver dizendo a verdade e se, na realidade, alguém tiver penetrado na casa depois que ele saiu, não acha?
Gideon deu um suspiro profundo, quase um bocejo, e se recostou na cadeira.
— Quero que você verifique tudo o que puder, de agora até às dez horas de amanhã. Se houver o menor motivo para se duvidar de que Fadiman é o criminoso, quero que descubra antes das dez, a fim de que possamos adiar a audiência até à tarde, o que nos dará mais tempo para investigar. Pode importunar Whitaker, que está fazendo a autópsia, o mais que você quiser. Importune quem quer que considere capaz de o ajudar. Se quiser, pode requisitar também alguns dos nossos homens. O que precisamos para fechar o caso são algumas impressões digitais encontradas na cama ou no quarto do casal. Nas suas declarações iniciais, Fadiman disse que não esteve em outros lugares a não ser no vestíbulo e na cozinha. Se você encontrar uma impressão digital dele em qualquer outro cômodo provaremos que se trata de um mentiroso. E... — Gideon parou, olhando obliquamente para Miller. — Você sabe tão bem quanto eu o que fazer.
— Sei o que o senhor quer — disse Miller. — Acho que sei também o que o está preocupando.
— O que é que me está preocupando?
— Talvez tivesse sido mais prudente se a Divisão não houvesse tomado imediatamente o depoimento de Fadiman, apenas detendo-o durante a noite, se necessário, mas não o acusando tão depressa como fizeram. Alguém estava por demais ansioso e isto poderá causar-nos muitas dificuldades. Não se preocupe, me encarregarei de tudo.
— Se precisar falar comigo durante a noite pode-me chamar — disse Gideon. — Achando aconselhável que eu vá olhar o apartamento, chame-me. Se tivermos detido a pessoa certa, tudo estará perfeito. Se não o fizermos, poderemos estar causando enormes transtornos ao prisioneiro e, o que é mais grave, o verdadeiro criminoso continuará solto, rindo de nós. E, se ele ainda estiver solto, é quase certo que, mais cedo ou mais tarde, venha novamente a praticar das suas. Ficou tudo bem claro, então?
— Não se preocupe mais com o caso — disse Miller, sorrindo. — É melhor que o senhor vá para casa e comece a arrumar as malas para a grande viagem.
Todo mundo sabia sobre sua próxima viagem aos Estados Unidos, pensou Gideon, e não era de surpreender que todos os invejassem. No momento, Gideon experimentava apenas um desejo, isto é, que o caso Fadiman fosse resolvido sem deixar lugar a duvidar. Sabia perfeitamente como se iria sentir se recebesse um rádio a bordo do Fifty States informando que a acusação feita não tinha base para condenar o homem.
Poderia aquele homem frágil, alquebrado, que se havia ajoelhado tão logo Gideon voltara as costas, ser realmente um monstro de tal espécie?
Joanna, a esposa de Fadiman, estava sentada na sala-de-visitas da pequena casa onde moravam, em Hackney, olhando ansiosamente para os olhos de sua filha Elza. O rosto de Elza não demonstrava qualquer expressão. Ficara completamente chocada ao saber da notícia e, desde então, falara pouquíssimo. Tudo o que parecia capaz de dizer, e isto mesmo após longos períodos de silêncio, era: — É horrível, horrível. Seus gestos eram mecânicos, ao preparar o chá, ajudar no jantar, lavar os pratos, abrir a porta a quem batia, tudo sem dizer uma única palavra. Joseph Todhunter e Emily, sua esposa, haviam ficado com a família Fadiman a maior parte da tarde, porém não dispunham de mais tempo para permanecer ali. A polícia estava do lado de fora, Joanna sabia, para evitar a intromissão dos repórteres. Por isto, não precisava preocupar-se em ser importunada. O quarto de Cedric fora lacrado. O quarto de Joanna, assim como os de seus filhos e, na realidade, toda a casa, haviam sido submetidos a uma busca exaustiva pela polícia. Nada escapara ao exame. Em certo momento, Joanna pensara que a polícia lhe iria pedir para sair de casa, juntamente com Elza e Leslie, porém não tinham chegado a esse ponto e, assim, tanto ela como seus filhos poderiam dormir em suas próprias camas.
Dormir.
Os olhos de Elza estavam assombrados, eis a verdade. Sentada, imóvel, com as mãos no colo, olhando para nada. Parecia mais jovem do que era, fato comum, apesar de que, fisicamente, mostrava-se tão mulher quanto sua mãe, com belos seios e certa voluptuosidade inocente. Isto lhe dava um aspecto mais patético, no momento.
— Elza querida — a mãe lhe disse — vá-se deitar. Você se sentirá melhor depois de uma noite de sono. E amanhã seu pai estará em casa novamente, a polícia descobrirá que tudo não passou de um erro lamentável. Vá para a cama, querida. Eu lhe levarei um copo de leite quente.
Elza a contemplou com olhar vago.
— É horrível — disse, com voz confusa e dolorida. — Por que ele não está aqui?
Joanna Fadiman levantou-se e se dirigiu para a garota.
— A quem é que você se refere Elza? Quem é o ele que você quer saber por que não está aqui?
Elza levantou as mãos do colo e as colocou sobre os olhos, como se desejasse apagar uma visão tenebrosa. Depois, levantou-se, passou por sua mãe e subiu as escadas correndo, tropeçou, entrou em seu pequeno quarto na parte da frente da casa, ofegante, prendendo as lágrimas e dizendo palavras sem nexo. Quando a Sra. Fadiman chegou à porta do quarto, ouviu o choro da filha.
— É horrível, é horrível.
E, após alguns momentos, ouviu novamente a expressão — Por que ele não está aqui?
Estaria Elza, a se referir a seu irmão David? Ela devia saber que David estava de volta de Birmingham, onde trabalhava, e deveria chegar logo mais. Prometera tirar folga de forma a poder ficar com a família por uns dias, até que.Cedric fosse libertado. Cedric deveria ser solto dentro em breve. Por Deus, ele não poderia ter feito aquelas coisas horríveis, era impossível, tinha que ser outra pessoa, tinha que ser.
Ela estava batendo na porta do quarto, procurando fazer com que Elza a abrisse, quando sentiu que chamavam na entrada principal. Desceu as escadas, segurando fortemente no corrimão. e abriu a porta, rezando para que fosse David. Entretanto, em lugar deste, deparou com um homenzarrão de rosto grande e aval. Logo atrás deste vinha outro, mais moço, com ares de santo, usando um colarinho de sacerdote.
Sra. Fadiman — disse o homenzarrão — sinto muito ter que aborrecê-la a esta hora. Sou o Superintendente Miller, e desejaria dar mais uma olhada no quarto de seu marido. — Sua voz era dura e parecia querer acrescentar, "Vou dar uma busca, quer a senhora permita ou não". Entrementes, o homem mais moço, até então encoberto pelo policial, falou com voz surpreendentemente firme.
— Sra. Fadiman, a senhora tem o direito de dizer se concorda ou não com a busca.
Vagamente, ela retrucou: — Concordar — e soluçou dolorosamente. — Oh! É o Rev. Pell. Eu não o havia reconhecido. Está bem, pode prosseguir. — Ele se afastou para o lado, e um terceiro homem juntou-se à dupla na varanda, entrando na casa em companhia do superintendente, enquanto o reverendo Jonathan Pell permanecia na entrada, olhando para as faces descoradas, os cabelos grisalhos, assim como para toda a tristeza que dominava a Sra. Fadiman, a qual disse: — Foi bom o senhor ter vindo reverendo. Pensei que fosse meu filho David. O senhor não quer entrar? — Ela se virou e entrou na frente, pensando que as coisas não poderiam estar piores, que apenas há três meses, quando o Rev. Price ainda era o vigário local, antes de o mesmo se aposentar, teria corrido para ele imediatamente a fim de pedir auxílio e orientação. Que espécie de orientação poderia alguém esperar de um jovem? Ora, aquele padre não podia ser muito mais velho que David.
Guiou o padre em direção à sala-de-visitas.
— Lamento que tudo esteja tão desarrumado — disse — porém há horas que não sei se estou com os pés ou com a cabeça para cima. Leslie foi para a casa dos Todhunter passar a noite lá, eles têm sido muito bons para nós, e estou esperando David, isto é, o meu outro filho, o senhor sabe, que deve chegar a qualquer momento. — Sorriu vaga e pesarosamente e, de repente, sentou-se como se suas pernas não mais a sustentassem. — Fui muita bondade sua ter vindo — prosseguiu — porém não creio que o senhor possa fazer qualquer coisa. O certo é que meu marido não cometeu os crimes de que é acusado. Jamais poderia ter feito isto.
Falou com um soluço na voz. Sentado à sua frente, olhando-a com grande compaixão e com um sentimento terrível de sua inadequabilidade, estava um jovem pregador do evangelho (como ele gostava de se apelidar) que jamais enfrentara, nos poucos meses de atividade como pároco, uma tragédia de tais proporções.
Sabia, e aceitava o fato sem discutir, que se encontrava perante um desafio e que seu sucesso ou derrota seria julgado de acordo com a habilidade em ajudar esta mulher assim como sua família. Sentado ali, sentiu-se incapaz de dizer alguma coisa.
Noite Londrina
Enquanto o reverendo Jonathan Pell procurava encontrar algumas palavras de consolo em seu coração e tentava desesperadamente pensar em algo útil que pudesse fazer, assim como dizer, Gideon contava a Kate tudo o que ela considerava necessário saber sobre os casos que os levaram a Nova York antes da Conferência. Havia dois destes: um referente a alguns relógios que estavam sendo contrabandeados para a Inglaterra e Europa em enormes quantidades, isto é os relógios Rite-Time, fabricados numa pequena cidade no Estado de Nova York; e o outro relativo a uma espécie diferente de crime que vinha preocupando tanto os políticos como a polícia. Tratava-se de um caso de sabotagem, na Inglaterra e a caminho dos Estados Unidos, em algumas mercadorias fabricadas na Grã-Bretanha e Vendidas a firmas na América. Gideon tinha dúvidas de que o caso dos relógios, por si só, fosse o bastante para levá-lo a Nova York, porém este era dado como a razão ostensiva de sua partida tão próxima. A sabotagem era algo de que poucas pessoas tinham conhecimento e, certamente, ele não se iria expandir muito sobre o assunto com Kate.
Desde o momento em que Gideon avisou sua esposa sobre a viagem, Kate escrevera à família, passara em revista seu guarda-roupa e conversara com uma amiga que estivera em Nova York na mesma época do ano, para verificar que espécie de tempo iria provavelmente encontrar; muito quente, por certo. Agora, todos os seus vestidos de verão estavam espalhados sobre a cama, no quarto do jovem Malcolm. Este tinha-se tornado um entusiasta de clubes de jovens excursionistas e achava-se na Suíça, no momento, onde deveria permanecer durante as próximas duas semanas. Até então Kate não dispusera de tempo par pensar muito sobre isto assim como sobre o fato de que não estaria em casa quando ele voltasse. Dos seis filhos do casal, apenas Penélope estava em casa neste verão e ali deveria ficar enquanto ela e George estivessem ausentes. Era simplesmente um problema emocional, não um problema prático, em relação ao qual a excitação e alegria diante da possibilidade das férias em vista mais do que compensavam. Penélope, agora com dezoito anos, fora a um concerto e, provavelmente, voltaria tarde, a não ser que retornasse acompanhada de uma dúzia de amigos tão devotados à música clássica quanto ela. Penélope sonhava em se tornar pianista profissional, porém, até então, não dera prova concreta de que seria outra coisa além de uma boa pianista de festas.
Em sua casa, em Hackney, distante uns dez minutos a pé da casa dos Fadiman, Joseph Todhunter estava sozinho no pequeno quarto em que trabalhava quando não se encontrava em seu escritório. Metidos numa mesa antiga, do tipo de escaninhos, estavam os papéis relacionados com as suas muitas atividades voluntárias e caritativas, inclusive seu trabalho para a igreja metodista de Bond Street, da qual os Fadiman também eram membros. Todhunter era o secretário da igreja. No momento, tinha as declarações de Fadiman na sua frente, assim como as informações que a polícia lhe fornecera e que ele recolhera de um comerciante, de alguns vizinhos e de repórteres de jornais. Quanto mais pensava na situação, ma.is frio e mais pesado se tornava seu coração. Era, naturalmente, inacreditável que Cedric Fadiman pudesse ser culpado de crimes como aqueles, na verdade de quaisquer crimes. No entanto, Todhunter fechava os olhos, de vez em quando, e se recostava na sua velha cadeira giratória, procurando esquecer uma visão tétrica, assim como o fizera a esposa de Fadiman. A razão dessa atitude é que havia, na vida pregressa de Cedric Fadiman, uma história de aberração sexual. Houve uma época em que fora necessário observá-lo cuidadosamente no seu procedimento junto a meninas. Todhunter e o reverendo Mark Price haviam sido forçados certa vez, a discutir o assunto abertamente com Fadiman, o qual ficou quase prostrado de medo e culpa, assim como de desespero, chegando mesmo a confessar seu procedimento irregular, jurando que jamais cometeria tal falta outra vez e afirmando que nunca procedera mal realmente com qualquer criança, sempre se controlando, resistindo a qualquer tentação.
E o que poderia acontecer a Cedric se a polícia ou a imprensa viessem a ter conhecimento desse seu procedimento com meninas? especulava Todhunter.
Poderia aquilo significar que Cedric, tendo reprimido seus desejos num sentido, não fosse capaz de controlá-los noutro? Houve um momento que, ao pensar nesta possibilidade, Todhunter fechou as mãos e bateu com elas sobre a mesa, e a palavra "Não!" partiu de seus lábios num grito agonizante.
Por cima desse mesmo quarto, o filho mais moço de Fadiman dormia tranqüilamente, sem maus sonhos, o único da família que não ficara profundamente triste ou chocado.
Em Londres, naquela noite, quente e calma, uma lua em quarto-crescente brilhava sobre o lar dos inocentes e dos cumpridores da lei, sobre aqueles que dormiam juntos nos laços do matrimônio, e os que assim o faziam sem pensar no casamento; sobre os velhos e os moços, a maioria deles pessoas bem-intencionadas, culpadas apenas de crimes fúteis que poucos acreditavam ser realmente crimes, criando, com essa tolerância, a atmosfera na qual se nutriam os crimes mais sérios. A lua brilhava sobre o lar de poucas pessoas verdadeiramente boas, como o reverendo Jonathan Pell, que lutava somente para ser bom, e brilhava também sobre o lar, ainda em menor número, dos que eram realmente maus, que julgavam seus atos naturais e normais, sua lei, a lei das selvas. Brilhava sobre aqueles que estavam bebendo nas fontes de vício localizadas nos feios e imundos clubes noturnos tanto da zona Leste como da Oeste; brilhava sobre os maridos que costumavam bater em esposas, e sobre as esposas submissas que os odiavam.
A lua brilhava tanto sobre os criminosos como sobre a polícia.
O Superintendente Miller olhou para ela quando desceu de seu carro na porta da Scotland Yard, às primeiras horas da madrugada. Essa mesma lua brilhava sobre o casco enferrujado de um cargueiro, o Maruna, que havia chegado há pouco dos portos da costa leste africana. Na sua carga, estavam dez mil relógios embarcados em Nova York há mais de cinco meses; relógios roubados, apesar dos documentos de embarque parecerem estar em ordem. Essa carga fora consignada oficialmente para Dar-es-Salam, em Zanzibar, porém jamais havia sido retirada do porão do navio. Em lugar disto, por meio de papéis os relógios estavam consignados para Londres. Vinham embalados em caixas pesadas de madeira e seriam descarregadas pela manhã ou no dia seguinte. Logo depois de se livrar dessa carga, o Maruna começaria a carregar outra destinada aos portos da costa leste dos Estados Unidos, inclusive Nova York. O cargueiro partiria no mesmo dia em que o Fifty States deveria sair de Southampton.
Em parte devido ao calor, a noite em Londres tinha sido mais calma do que em geral acontecia. Havia menos maldade à solta. Menor quantidade de moços entregara-se aos excessos de experiências eróticas. Menos ladrões estiveram em atividade, pois quando suas mãos suavam tendiam a tirar as luvas deixando, em conseqüência, impressões digitais. De qualquer forma, fazia muito calor para eles trabalharem e se preocuparem com a possibilidade de uma fuga. E, assim, os policiais que se movimentavam calmamente em Londres, verificando as portas das lojas, observando janelas geralmente escuras porém agora iluminadas, observando figuras que se esgueiravam por lugares onde pouca gente andava à noite, tinham menos o que fazer. Estavam satisfeitos com a calmaria.
O Grupo de Choque também estava mais quieto, se bem que, de quando em quando, um carro saísse do pátio da Scotland Yard e tomasse a direção do Embankment, chamado por alguém necessitado de auxílio. Um banco, três joalherias, uma centena de outras lojas e algumas centenas de lares foram arrombados naquela noite. Por toda Londres, homens estavam sendo acusados, muitos deles jurando inocência, embora apanhados em flagrante. Tudo isto era parte do conflito rotineiro entre o bem e o mal, entre aqueles que cumpriam a lei e aqueles que a desafiavam.
Gideon, apesar do calor, dormiu bem e profundamente. O sono de Kate foi mais agitado: acordou excitada, pensando em Malcolm e em suas roupas.
Muitas outras mulheres também pensaram, naquela noite ou cedo na manhã seguinte, na viagem que iam empreender na próxima semana, no Fifty States, e no seu guarda-roupa. Muitas delas, como Kate, iam a Nova York pela primeira vez.
Uma delas era a bonita, fútil e pequena Marjorie Webb, agora dormindo como se fosse uma criança, esperançosamente nua na cama de casal ao lado de seu marido, John, que já não era seu amante.
Profundamente desprevenida de quanto ele a odiava, não podia saber o motivo pelo qual concordava em levá-la a Nova York.
Outra mulher que também queria ver Nova York pela primeira vez era a esposa de Dick Orlick, um dos dois sócios da Companhia de Relógios Orlova. Seus grandes olhos marrons, excepcionalmente belos, brilhavam de excitação com a possibilidade da viagem. Não sabia que seu marido ia aos Estados Unidos a negócios escusos, para preparar o embarque e pagar pela compra de alguns relógios Rite-Time, e outros relógios e caixas de jóias que preocupavam não somente Gideon e a Scotland Yard, mas a Polícia Central de Nova York, assim como a de Nova Jersey, do outro lado do Rio Hudson.
Seu nome, assim como o de Kate Gideon, era Kathleen, mas ninguém a conhecia por outro a não ser Kitty.
Dick Orlick era tão inescrupuloso e, quando julgava necessário, tão impiedoso como qualquer outro criminoso em Londres. Havia, entretanto, algo de bom a seu favor. Ainda amava a esposa, depois de três anos de casado, tão intensa e apaixonadamente quanto o fizera durante e imediatamente após um namoro cheio de entusiasmo.
Ainda tinha ciúmes de sua esposa.
Outra das mulheres que iam viajar no Fifty States era Lady Allingham, esposa do presidente da Organização das Indústrias Britânicas. Tinha poucas razões para entusiasmo, pois esta era a vigésima primeira vez que atravessava o Atlântico. Mesmo assim, via com prazer a oportunidade de viajar novamente. Sua principal preocupação, enquanto permanecia acordada, ouvindo o roncar do seu marido na cama ao lado, era a de que a viagem propriamente dita fosse agradável. Tudo fazia crer que o mar estaria bastante calmo, pois era verão, mas se deveria contar com pelo menos um dia de tempo ruim. Além disso, ainda não sabia quem seriam seus companheiros de viagem, e estes poderiam muito bem estragar tudo. Pelo menos de uma coisa tinha certeza, isto é, que faria parte da mesa do comandante.
Pensou sobre quem mais participaria dessa mesa assim como sobre se o Capitão Ruthven ainda seria o comandante do navio. O capitão Ruthven era um bostoniano alto, distinto e algo reservado. Sempre que haviam dançado juntos, ele lhe dera a impressão de que desejaria levá-la para a cama.
Sorriu para si própria.
Seu marido continuou a roncar.
Cedric Fadiman não roncava. Na realidade, não dormiu.
Gideon chegou ao gabinete pouco depois das oito e meia da manhã seguinte e ali já encontrou Lemaitre com todos os jornais do dia espalhados na mesa, de forma que tudo o que Gideon precisou fazer foi olhar os cabeçalhos.
PRISÃO NO CASO DOS CRIMES DE SEXO
VÍTIMA N.° 9 — HOMEM ACUSADO
ESTARÃO ESTES CRIMES TERMINADOS?
Gideon viu as manchetes e leu os primeiros parágrafos da maioria das notícias. Notou que, muito embora estivessem escritas de forma cuidadosa, para evitar qualquer desrespeito ao tribunal, as implicações eram na realidade muito claras. O fato de Fadiman ter sido acusado dera bastante assunto à imprensa. Mais do que nunca, Gideon pensou se não houvera precipitação por parte da Divisão ao acusar Fadiman.
— Miller já chegou? — perguntou.
— Há um memorando em sua mesa, referente às 4,45, hora em que ele saiu. Dê-lhe uma oportunidade.
— Alguma coisa mais?
Lemaitre, sem paletó, parecendo bem disposto e alerta, recostou-se na cadeira e sorriu para seu chefe.
— Dê uma oportunidade a você mesmo, George — disse.
— E agora, o que é que você tem em mente? — Gideon deu a volta em sua mesa e sentou-se. Havia, sobre ela, menos pastas do que era comum, o que podia ser um reflexo dos crimes da noite anterior ou resultar do fato de as atividades normais da Scotland Yard ainda não terem começado. Nesse momento, viu que havia mais pastas na mesa de Lemaitre do que em geral, e começou então a compreender o que se passava.
— Hoje é sexta-feira — disse Lemaitre — você dispõe apenas de três dias úteis antes de viajar. Sabe o que me dizia se as posições fossem inversas?
O que é que eu diria? — perguntou Gideon.
— Diria que, se eu tivesse algum juízo, me concentraria nos dois casos a tratar em Nova York. Que eu deveria passar tudo mais ao meu assistente. Além disso — continuou Lemaitre com certa humildade, como se, mesmo antes de pronunciar essas palavras, tivesse a impressão de que talvez houvesse ido muito longe — você teria dito que todos os lideres sabem como delegar autoridade. George, não quero dizer...
Gideon sorriu carrancudamente.
— Então você não pode esperar até que chegue a hora de assumir a responsabilidade?
— Você bem sabe que não quis dizer isto.
— Sei que você quis, porém não o vou culpar por isto — Gideon começou a abrir uma pasta. — É melhor que eu dê hoje uma olhada em todos os casos pendentes e os discuta com você amanhã. Pode-se encarregar de todos os casos novos à proporção que forem chegando. É nisto que você já está pensando?
— Mais ou menos — concordou Lemaitre. Pareceu humilde. — Não quero negar que gostarei de o substituir. Com um pouco de sorte... — parou. — Oh! Esqueça.
Gideon sabia exatamente o que Lemaitre queria dizer, e se perguntava a si mesmo por que ele próprio fora tão pouco perspicaz. Mesmo antes da prisão de Fadiman, andara tão preocupado com os problemas norte-americanos, assim como com sua ânsia em ir a Nova York com Kate, que não dispusera de tempo para considerar as coisas do ponto de vista de Lemaitre. Aquela seria a grande oportunidade de Lemaitre; ou, pelo ' menos, era assim que este pensava. No momento, era o superintendente detetive-chefe Lemaitre, assistente e braço-direito de Gideon. Um novo posto, de comandante substituto, fora instituído e, naturalmente, Lemaitre era o primeiro candidato ao mesmo. Se desse boa conta do recado durante a ausência de Gideon, seria escolhido quase que automaticamente. Queria esta promoção acima de tudo e viu pela frente sua grande oportunidade.
Gideon disse:
— Eu não me esquecerei, Lem.
Continuou a estudar os relatórios, inclusive o de Miller, sem. entretanto, dar muita atenção aos mesmos. Embora não notasse, sentia-se, como Kate, preocupado com Malcolm: como é que ele se arranjaria sem a mãe? Como é que Lemaitre se arranjaria? Ainda na noite anterior, Gideon pensara não haver homem mais leal na policia; todavia, seria ele a pessoa indicada para assistente? Como assistente sim, porém seria Lemaitre o homem adequado como seu substituto? Substituto queria dizer bem mais do que assistente, significava a aceitação de muita responsabilidade. Permanecia certa dúvida na mente de Gideon: como iria Lemaitre corresponder a toda essa responsabilidade? Havia também outro pensamento, mais profundo, mais sutil e acusador de preocupação: poderia orientar Lemaitre de tal forma que se lhe tornasse quase impossível errar nos casos pendentes, mas, será que devia proceder assim? Não seria melhor deixar Lemaitre assumir totalmente as responsabilidades a fim de que pudesse demonstrar ou não sua capacidade?
A questão pressupunha dois aspectos. Se deixasse Lemaitre agir de acordo com sua própria cabeça e este tomasse o caminho errado, seria o fim de suas pretensões para a nomeação. Se, por outro lado, o orientasse muito diretamente, como poderia ter certeza de que por si só, Lemaitre seria capaz de tomar conta do cargo corretamente?
Gideon procurou afastar o problema de sua mente, certo de que fazendo isto estava pensando de forma idêntica a Kate em relação ao jovem Malcolm, isto é, pensando que o problema não existia. O problema, na realidade, existia e ele dispunha apenas de vinte e quatro horas para decidir o melhor caminho a seguir no que se referia a Lemaitre.
Gideon começava a ler o relatório de Miller quando ouviu uma batida na porta. Olhou e viu Miller.
O que havia de mais notável em Miller, nesse momento, eram seus olhos. Por uma sutileza qualquer da luz existente no escritório, aqueles olhos pareciam enormes e muitos brilhantes, fazendo com que o restante de suas feições se mostrassem ridiculamente pequenas e insignificantes.
— Alô, Miller — disse Gideon. — Não esperava que você aparecesse. — Fez sinal indicando uma cadeira.
— Bom dia, senhor — disse Miller. — Bom dia, Lem. — Depois disto, sentou-se. — Não estou absolutamente satisfeito com o caso Fadiman. — Relaxou-se fisicamente e Gideon sentiu que, mentalmente, seu subordinado estava querendo abrir-se e que, além disto, estava por demais cansado. — A filha continua em estado de choque e sugeri que procurassem imediatamente um médico, porém por que diabo fiz isto, eu mesmo não sei. O filho casado deveria vir ontem de Birmingham, mas não chegou. Todhunter é um amigo intimo e ligado a eles através da religião, como conselheiro em assuntos legais. Muito bem, vou chegar aonde vocês querem — prosseguiu Miller, sentindo que Gideon o iria interromper. — Não encontrei qualquer impressão digital de Fadiman no quarto onde a mulher foi assassinada, nada mais do que se encontrou ontem, se bem que nada a menos tenha encontrado. Desejam a minha presença no tribunal esta manhã ou vocês mesmos irão para lá?
Lentamente, Gideon disse: — Penso que é melhor você ir. Teremos prova formal para a prisão e um pedido formal de encarceramento por oito dias. Nenhuma outra palavra, nenhuma outra declaração à imprensa, nada mesmo.
— Está bem — disse Miller.
Reencarceramento: Pena de Morte
De certa forma, era uma pena que a noite tivesse sido tão calma, que todos os crimes cometidos pudessem ser atendidos pelas diferentes divisões, e que todo o auxílio necessário a estas não exigisse a atenção de Gideon. Com nada para absorvê-lo, poderia rever os casos pendentes somente com um olhar, e assim manteve sua atenção presa à próxima audiência no tribunal. Pouco depois das nove horas seu telefone tocou, pela primeira vez naquela manhã, e ele levantou o fone quase que experimentando um sentimento de alívio. Estava só; Lemaitre havia descido para a cantina a fim de tomar café.
— Aqui fala Gideon — disse ele.
— Oh! Sr. Gideon. — Era uma novata na mesa telefônica da Scotland Yard, a qual sempre começava a falar como se tivesse algo de importante a anunciar. — Há um senhor Todhunter na linha procurando-o.
— Ponha-o na linha comigo.
— Sim, Sr. Gideon.
Gideon procurou a pasta do caso Fadiman, a qual estava por baixo da dos relógios Rite-Time. Quando removeu a mesma, dela caiu a fotografia de uma bonita moça: Sra. Kitty Orlick. Mesmo na fotografia a beleza de seus olhos podia ser vista. Gideon bem sabia que Orlick e seu sócio, um homem chamado Cordova, eram culpados. De passagem, pensou se ela sabia o que o marido estava fazendo.
— Sr. Gideon? — perguntou Todhunter.
— Sim.
— Estou em Cannon Row, Sr. Gideon, e gostaria de saber se o senhor me pode dedicar alguns minutos, conforme prometeu.
— Venha diretamente até aqui — disse Gideon.
— Muito obrigado, senhor.
Gideon recolocou o fone no gancho. Quase imediatamente a campainha tocou de novo e a mesma telefonista disse: — Oh! Sr. Gideon, eu não pude tomar o primeiro nome porém há uma pessoa chamada Fielding procurando-o.
Ela queria referir-se a Sir Arthur Fielding, secretário da Organização das Indústrias Britânicas.
— Procure anotar os nomes corretamente — disse Gideon, com certa aspereza. — Ponha Sir Arthur na linha. Olhou para a fotografia até que Sir Arthur atendeu, com voz altiva, pois era um homem muito capaz e ocupava posição de destaque na indústria britânica.
Por muitos anos inexistira coordenação real na indústria; até mesmo a Federação das Indústrias Britânicas fora uma associação livre, de grandes e pequenos grupos todos envolvidos em negócios individuais. A Organização tinha sido criada em parte pelo Governo e em parte por algumas das grandes firmas tais como, segundo Gideon julgava, Nuffield e Ford, entre outras. A finalidade da Organização era a pesquisa na fabricação de alguns artigos tanto para exportação como para consumo interno, assim como sobre os problemas de superposição de produção dessas mesmas indústrias. Na realidade, a Organização tentava uma abordagem científica em relação a problemas que até então tinham sido tratados somente na esfera industrial, comercial e "financeira. Parcialmente devido ao fato de Lord Allingham ter sido nomeado seu primeiro presidente, a idéia tivera um começo auspicioso. Ninguém fazia pouco caso e tanto o comércio como a indústria já tinham começada a usufruir de seus benefícios. A Organização estava perfeitamente entrosada com o governo então no poder e com a Federação das Indústrias Britânicas, muito embora fosse autônoma e totalmente independente.
— Inspetor.
— Sir Arthur.
— Uma pequena questão de procedimento acaba de surgir — disse Fielding. Alguma coisa em sua voz deu a entender a Gideon que o caso não era muito importante. — Achei melhor consultá-lo antes de fazer qualquer coisa.
Fielding estava gozando o seu pequeno mistério.
— Se eu puder, ajudá-lo-ei — disse Gideon, com cuidado.
— É com referência à sala de refeições a bordo do Fifty States — disse Fielding. — Lord Allingham geralmente senta-se na mesa do comandante. O senhor gostaria de sentar-se ali também? Ou preferiria ficar num lugar quieto, longe dos negócios, nas horas das refeições?
A pergunta foi completamente inesperada e Gideon sentiu-se momentaneamente incerto. Antes mesmo de Fielding terminar, Gideon estava indagando de si próprio sobre o que Kate gostaria. A mesa do comandante tinha certo prestígio, ela provavelmente gostaria disto, porém Lady Allingham tinha a reputação de ser uma das mulheres mais bem vestidas da Inglaterra e Kate podia sentir-se inferior a esse respeito. No momento em que tal pensamento entrou na sua mente, Gideon disse:
— Se o senhor puder arranjar isto, ficarei muito satisfeito.
— Aliás, um dos diretores da companhia de navegação pediu-me para saber se o senhor aceitaria o convite para uma das principais mesas — disse Fielding. — Não queria colocá-lo em posição tão proeminente sem o seu consentimento.
— Do ponto de vista do problema de sabotagem, acho que não devia, o senhor concorda?
— Absolutamente não — exclamou Fielding. — Pode deixar que arranjarei tudo.
— Obrigado. — Gideon desligou o telefone e rabiscou uma nota em um bloco de papel: Kate, mesa do comandante. Ao fazer isto, o telefone tocou novamente. Ele sabia do que se tratava, levantou o fone do gancho, escutou e disse: — Mande o Sr. Todhunter subir. — Levantou-se, colocou o fone no gancho e dirigiu-se para a janela. Agora que o advogado viera procurá-lo, Gideon especulava se fora aconselhável ter-lhe dito que viesse falar com ele, se o convite da noite anterior não surgira de um equívoco. A porta abriu-se e um mensageiro idoso disse:
— O Sr. Todhunter.
O advogado parecia ser o segundo homem de olhos grandes que Gideon via naquela manhã, quase certamente porque não dormia bem. Quando a porta se fechou, ele olhou para Gideon, que era bem mais alto e tinha cerca de duas vezes seu corpo. Os dois homens se olharam mutuamente à proporção que Todhunter caminhava para o centro da sala e Gideon deixava a janela. Não se apertaram as mãos.
— Sente-se, Sr. Todhunter.
— Obrigado, Inspetor.
Era evidente que o advogado dormira sem tirar a roupa; havia algo que não se podia deixar de notar sobre o amarrota-mento desta. Além disso, era a mesma que ele usava na noite anterior quando esteve em Cannon Row. Todhunter sentou-se e Gideon esperou, jogando deliberadamente toda a carga sobre ele: afinal de contas, fora ele quem pedira a entrevista. Mesmo assim, Gideon sentia-se esquivo e julgava estar sendo rude, senão grosseiro. — O senhor já viu os jornais da manhã? — perguntou Todhunter.
— Todos eles.
— Espero que o senhor tenha em mente as implicações do que eu lhe disse ontem à noite. — Gideon não respondeu e Todhunter prosseguiu com um ar de dignidade que não podia deixar de causar algum efeito. — Se Fadiman for reencarcerado em custódia, isto significará uma sentença de morte.
Gideon poderia ter dito "O senhor está exagerando" ou "Isto é um absurdo", ou ainda "E daí?". Em lugar disto, fitou os olhos cheios de brilho e cansados de Todhunter, dizendo:
— Sei o que o senhor quer dizer.
— O senhor simplesmente não tem qualquer prova para entregar ao promotor público, Inspetor.
— Ou o senhor não viu toda ela ou então não teve a capacidade de apreender seu significado — retrucou Gideon.
— O senhor poderia pedir ao promotor para retirar a queixa. Nada há que o force a não fazer isto, o que certamente seria um ato de humanidade. O senhor poderia observar cuidadosamente o meu cliente e, durante os próximos dias, verificar as provas que tem contra ele. Então, se ficasse satisfeito, poderia acusá-lo sem que houvesse necessidade de reencarceramento ou novas diligências. Num caso deste tipo, onde o acusado não tem crimes em sua vida pregressa e certamente não procuraria fugir, acho que seria o melhor caminho a seguir.
Gideon balançou a cabeça.
— No meu modo de pensar, acho que as provas são mais do que suficientes.
— E o senhor não recomendará que a acusação seja retirada?
— Não.
— Sr. Gideon — disse Todhunter — acredito que o oficial que fez a prisão agiu sem considerar bem o caso. Penso que agiu emotivamente, ou seja, à procura de um assassino caçado a tanto tempo, a ponto de ele mesmo ter agido sem consultar a si próprio, ao senhor, ou a qualquer outra pessoa sobre a diretiva que seguia e o mal que podia estar causando. O resultado foi que o senhor teve de manter um homem a maior parte da noite na casa dos Fadiman, assim como na casa da mulher assassinada. O trabalho sob tal regime de pressões não pode trazer bons resultados. Peço-lhe mais uma vez para que retire a acusação. Gideon disse friamente:
— Não, senhor. Acho que seria uma medida totalmente contra-indicada.
— É esta a sua palavra final? — perguntou Todhunter, como se sentisse ferido.
— É a minha decisão final — disse Gideon. — Não é a última palavra. O senhor sabe tão bem quanto, eu o que poderia acontecer se a acusação fosse retirada e Fadiman posto em liberdade.
Quando Todhunter deixou de fazer qualquer comentário, Gideon continuou: — Ele poderia muito bem matar-se.
— O senhor não tem o direito de dizer isto — protestou Todhunter: procurou dar um tom agudo de reprovação à sua voz, porém não conseguiu.
— Tenho todo o direito à minha opinião e não penso que algum mal possa advir se a discutir com o senhor — disse Gideon. Ficou curioso em saber se havia alguma possibilidade de o advogado concordar com sua opinião, se Todhunter não estava fazendo um jogo desesperado para dar a Fadiman a oportunidade de se matar, e permitindo assim que sua família escapasse às conseqüências desastrosas de um julgamento pelo tribunal. — Sr. Todhunter — prosseguiu Gideon — parcialmente em vista do seu apelo angustiado de ontem à noite, coloquei um homem que nada tinha com o caso para fazer novas investigações e ele passou a noite toda trabalhando. Nada foi descoberto para alterar o meu ponto de vista de que a prisão se justifica plenamente.
Os olhos de Todhunter pareciam muito, muito cansados mesmo, e as pálpebras desciam como se quisessem fechar-se.
— Posso imaginar como a família se sente e lamento que a filha tenha sido tão afetada, mas — Gideon conseguiu contrair os ombros como se realmente o caso não o comovesse — nunca encontrei um meio de fazer com que apenas o criminoso sofra. O senhor poderá indicar-me um?
Todhunter sentou-se e olhou para Gideon durante o que pareceu ser um longo tempo. Depois, colocou as mãos nos braços da cadeira e levantou-se, vagarosamente, como se isto necessitasse de um grande esforço. Ficou de pé bem junto à mesa de Gideon.
— Sr. Gideon, disseram-me que iria deparar com um homem compreensível. Sei agora que me disseram a verdade. Obrigado por me ter dispensado tanto tempo.
Todhunter estendeu a mão.
Gideon a tomou entre as suas e o aperto foi muito firme.
Fadiman ficou de pé junto ao banco dos acusados como se não soubesse onde estava, olhando diretamente para a frente, por cima do balcão do magistrado. O inspetor-detetive, de nome Carliss, que efetuara a prisão, apresentou as provas formais para sua atitude, por conta da polícia, e formalmente solicitou o reencarceramento em custódia. Todhunter, agindo em favor de Fadiman, declarou-o "não-culpado", em voz firme e clara. Miller observava o que se passava. O magistrado, homem jovem levou apenas cerca de dez segundos para tomar sua deliberação. Fadiman saiu da sala como se fosse um autômato, e Todhunter correu em volta das celas para o receber do outro lado. Havia somente uma coisa na sala do tribunal que demonstrava quão importante era este caso. Todos os lugares na galeria destinada ao público estavam tomados, com duas pessoas procurando ocupar o espaço destinado a uma. O pequeno canto reservado para a imprensa estava tão cheio que parecia não sobrar lugar para os repórteres respirarem. Na parte externa, numa manhã quente em -que havia ainda algum nevoeiro, augúrio de um dia de grande calor, uma multidão de pelo menos oitocentas pessoas, a maioria delas mulheres, bloqueava o caminho dos que saíam. Havia policiais alinhados de ambos os lados da rua para permitir a passagem do tráfego. Câmaras de televisão, de cinema e máquinas fotográficas estavam postadas nas entradas da frente e de trás do edifício. Quando, eventualmente, Fadiman apareceu, houve o grito concentrado de pelo menos trezentas mulheres, a maioria delas de meia-idade, isto é, da idade das vítimas.
Gideon e Kate deixaram a arrumação de sua bagagem durante cerca de meia hora, naquela noite, para ouvir as notícias da B. B. C. Viram as cenas na parte externa do tribunal depois da audiência de Fadiman. Um operador, inteligente, virará sua câmara na direção da multidão como se sentisse o que ia acontecer. Havia fotografado, em close-up, como se a cena representasse a recepção a um cantor popular, um ídolo, em lugar de um criminoso que era retirado do tribunal.
Os gritos encheram a sala de estar do lar em Hurlingham. As fotografias mostraram o ódio na face e nos olhos de centenas de mulheres. Mostraram também punhos fechados e brandidos, dentes cerrados, olhos estatelados, corpos tremendo. Foi a cena de ódio mais horrível que Gideon presenciara por muito tempo.
— George — disse Kate em voz sufocada. — Isto é de amedrontar.
Gideon continuou a ver as fotografias de um desastre fatal de automóvel, seu rosto como se fosse o da esfinge. Kate continuou :
— Espero que isto não vá estragar nossa viagem.
Era como se ela soubesse que, na realidade, o caso Fadiman iria projetar-se como se fosse uma sombra durante todo o tempo em que estariam ausentes.
Lemaitre
A noite de sexta-feira foi mais calma do que a de quinta, e o calor de fins de agosto parecia estrangular Londres. Gideon, homem alto e robusto, sentia o calor mais intensamente do que sentira no passado. O calor fazia com que tudo se tornasse mais difícil e isto o obrigava a controlar seu temperamento. Vez por outra a ironia do fato de ele estar tão mal-humorado às vésperas de sua visita a Nova York fazia com que sorrisse arrependido, mas não havia muito tempo para pensar em outra coisa senão no trabalho em mãos. Hoje à noite e amanhã iria manter três conferências com os comissários-assistentes e de divisões, assim como com os comandantes dos outros departamentos. Era difícil, para Gideon, convencer-se de que os outros problemas da força policial, assim como os da Delegacia de Investigações Criminais seriam tratados sem que soubesse o que se estava passando.
Na manhã seguinte, encontrava-se em seu escritório, com Lemaitre, pronto para examinar em conjunto os casos pendentes, quando a campainha do telefone tocou. Automaticamente, levantou o fone.
— Gideon.
— Bom dia — respondeu uma voz de homem, que não deixava dúvidas sobre quem estava do outro lado. Era Sir Reginald Scott-Marle, o comissário-geral da Polícia, o homem que na realidade tornara possível a viagem de Gideon a Nova York. — Você está muito ocupado esta manhã?
Tão ocupado, pensou Gideon, que não havia tempo sequer para respirar. Lemaitre, espigado e lépido, notou a mudança de expressão do seu chefe e escutou.
— Há bastante o que fazer — disse Gideon cautelosamente. — O que é que o senhor tem em mente?
Lemaitre perguntou, balbuciando:
— Scott-Marle? Gideon confirmou.
— Verifiquei que tenho de ir à Escócia amanhã e que não estarei de volta até meados da próxima semana — disse o Comissário. — Poderá você dispor de uma hora esta manhã para vir ver-me aqui em casa? Existem alguns pontos que desejo deixar bem claro.
Tudo isto foi dito em forma de convite, porém, na realidade, tratava-se de uma ordem. Ser convidado para ir a casa do Comissário era em si só uma raridade, uma marca de distinção, e Gideon estava bem a par disto.
— A que horas conviria ao senhor? — perguntou Gideon.
— Que tal se marcássemos para as onze horas?
Eram quase dez horas, o que significava que Gideon precisaria sair dentro de meia hora. Sem uma mudança de expressão, disse: — Está certo, eu o verei às onze, obrigado — e recolocou o fone no lugar, sabendo que Scott-Marle não perderia um só minuto na linha. Lemaitre sorria de uma maneira um pouco irritante.
— Deve ser alguma coisa importante quando "ele" trabalha num sábado — zombou. — Mas não se preocupe, George, não resta muito a ser dito sobre esses casos. — Havia um quê de animação em Lemaitre, porém, para Gideon, isto era também um sinal de autoconfiança. Lemaitre parecia satisfeito consigo próprio, quase convencido. Sua face brilhava, mas ele era um desses tipos magros, compridos, que se sentem bem no verão e odeiam o frio.
— Dei uma olhada nessas pastas ontem à noite, levei-as para casa. Você já tem bastante para fazer no pé em que as coisas estão.
Isto era verdade.
— Lem — disse Gideon — quero repassar todos esses casos com você antes de viajar. Que tal hoje à tarde?
Lemaitre abriu a boca.
— Eu ia levar Chloe ao Lido em Hyde Park. Não é com muita freqüência que se conta com bom tempo para ir a uma piscina nadar.
— Amanhã de manhã, então, qualquer que seja o tempo — disse Gideon. — Estarei aqui às dez horas.
Não tivera qualquer intenção de vir ao escritório no domingo pois, na realidade, o que deveria fazer era arranjar algum tempo para ajudar Kate a arrumar a casa. Entretanto, era inevitável. Além disso, estava com algum trabalho particular para fazer naquela tarde. Gideon prosseguiu: — Você tomou algumas notas sobre os casos que examinou?
— Notas mentais.
Havia momentos em que Gideon perdia as esperanças de ver Lemaitre aprender algo de novo; o que ele ainda não sabia jamais viria a aprender.
— Rabisque uma nota ou duas — recomendou. — Não posso ler sua mente.
— Está perdendo suas habilidades, George? — perguntou Lemaitre.
Antes que Gideon pudesse responder, e quando a resposta já estava pronta nos seus lábios, o telefone interno tocou. Gideon sentiu-se satisfeito ao apanhar o fone, pois assim se livrara de ter que encarar Lemaitre. Era Lemaitre realmente culpado? Ou seria ele, Gideon, que se estava tornando insuportável?
— Gideon.
— Aqui fala Peters, do Departamento de Impressões Digitais — disse uma voz de homem. Peters, que fora promovido recentemente a inspetor-chefe, era um pouco acanhado, principalmente quando lidava com pessoas de escalão superior. — Recebi um pedido do superintendente Miller para procurar o senhor diretamente caso ele estivesse ausente, e não consigo obter resposta do escritório dele.
— Qual é a dificuldade? — perguntou Gideon.
— Trata-se de alguns fragmentos de impressões digitais colhidos no quarto de dormir da casa de Camberwell — disse Peters. Quando começou a falar sobre seu trabalho, todo o acanhamento desapareceu. — Eu os verifiquei com todo o cuidado, senhor. São sem dúvida do tipo arqueado, e como o senhor sabe as de Fadiman são do tipo de laço ou circulares. Penso que as impressões encontradas no quarto são do marido. Não posso ter certeza porque ainda não dispomos de quaisquer impressões reais, porém elas conferem entre si tanto quanto posso julgar.
As esperanças de Gideon sofreram um choque.
— Muito bem — disse. — Dê a notícia ao Sr. Miller.
— Sim, Inspetor.
Gideon desligou o telefone. O que quer que acontecesse, ele parecia condenado a deixar a Inglaterra com dúvidas relativamente à culpabilidade de Fadiman. Lemaitre estava ocupado fazendo anotações nas capas das pastas que continham informações sobre os casos pendentes. Fazia-o com o ar de quem pensava: "Na realidade, não acho que isto seja necessário" e não levantou a cabeça para indagar sobre o que tinha sido o telefonema. Gideon colocou os papéis dos relógios Rite-Time e da Organização das Indústrias Britânicas em sua pasta. Não estava propenso a discutir qualquer coisa a mais com Lemaitre e decidiu, naquele momento, ir andando até a casa de Scott-Marle em Radlette Square, por trás de Oxford Street. Nisto ele consumiria menos de meia hora e havia algo nas ruas de Londres que sempre o acalmava assim como o revigorava. Era a sua Londres, quente ou fria, chuvosa ou com bom tempo, e ele não teria oportunidade de andar através de suas ruas durante mais de um mês. Fechou a pasta e levantou-se.
— Já vai sair? — perguntou Lemaitre.
— Sim. Eu o verei amanhã pela manhã. — Está bem.
Havia uma pequena dúvida de que Lemaitre tivesse ficado ressentido, porém Gideon não deu grande importância ao caso. Os corredores da Scotland Yard estavam muito quentes, e quando chegou ao sol que caía sobre o pátio, o calor do asfalto e das paredes do edifício de tijolos o atingiu de cheio. Atravessou Cannon Row e seguiu pela Parliament Street. O Whitehall estava praticamente vazio, como era comum nos sábados, porém a Parliament Square estava apinhada de visitantes e grande número de famílias se dirigia para o rio, os molhes ou os barcos de passeio. Parecia que decorrera apenas um ano ou dois desde que Kate, também trouxera a filharada e ele os encontrara na entrada do molhe de Westminster. A garotada vibrava de alegria ao viajar no barco e ao passar pela própria rua onde moravam. Hoje, em todo o terreno entre sua rua e o rio haviam surgido construções e altos edifícios de apartamentos ocultavam a vista do Tâmisa. Havia tanto que recordar e que dizer sobre esse passado...
Quando chegou a Trafalgar Square, Gideon já se sentia muito mais revigorado, havendo ou não calor. Para ele Londres tinha aspectos de magia. Pensou como se sentiria em Nova York assim como se haveria tempo para uma rápida passagem pela Leicester Square e pelo Soho, seu velho "feudo", o coração real de Londres. Se tomasse esse caminho, talvez chegasse um pouco atrasado a casa de Scott-Marle, mas nada impedia que tomasse um táxi em Oxford Street.
Soho o atraiu como um ímã.
Leicester Square estava lá com suas árvores, seus bancos de jardim, e na estátua de Shakespeare havia uma placa de agradecimento ao benfeitor que a havia oferecido ao povo de Londres. A praça estava repleta de gente. Todo o gramado estava coberto. Picadilly, em comparação, parecia deserta. As ruas estreitas do Soho estavam não somente quentes mas espalhafatosas. Os alegres clubes noturnos mantinham-se fechados, os anunciadores de espetáculos estavam ausentes, até as fotografias de mulheres nuas, ou seminuas escondendo-se por trás de grandes leques, tinham um aspecto melancólico e sem vida. As lojas estavam apinhadas de gente. Uma porta estreita ficara totalmente aberta e um homem de cabelos negros, face descorada, postado na mesma, sugeriu insinuantemente:
— Primeiro espetáculo dentro de uma hora. Que tal uma bebidazinha antes?
Gideon o ultrapassou sem dar atenção. Ao anoitecer, centenas de pessoas estariam ali, suando juntas, bebendo juntas, tendo suas emoções pecaminosas juntas, beliscando as pequenas que se deixavam apalpar. Os costumes ali não haviam mudado muito, apenas se tinham modernizado um pouco, isso era tudo. Não podia haver maior espelunca no mundo. Entretanto, Gideon amava este Soho.
Uma garota bem jovem saiu de algum lugar que ele não percebeu, atravessou-se na sua frente e fitou-o. Não podia ter mais de quatorze ou quinze anos. Tinha belo corpo e o mostrava ainda mais com o vestido apertado que usava. Gideon ficou em dúvida se ela usava algo por baixo do vestido, pois não conseguiu ver sinais de soutien, calça ou ligas. Tinha bela compleição, lembrando sua filha Penélope, e um belíssimo cabelo dourado sedoso. Não usava qualquer maquilagem e, tanto quanto Gideon podia ver, não necessitava desta. Era estranho, porém a garota provocou um puxão repentino e forte no coração de Gideon, de uma forma tão inesperada e tão pouco familiar que ele não reconheceu de início.
— Alô! — disse a garota.
Gideon sentiu-se surpreso ao responder: — Alô!
Ela sorriu. Era como se fosse o sorriso de um anjo, e seus dentes uniformes, alvos e cheios de beleza, faziam justiça aos seus outros encantos.
— Posso dar-lhe o maior prazer que você já teve em sua vida — disse ela. — Eu lhe prometo. — Sua voz era suave e rouca, o sorriso somente para ele. Ela pareceu não compreender o significado da expressão fria, o modo esquisito pelo qual Gideon fechou a boca. Deus sabia qual o tipo de recepção a que ela estava acostumada, quantas vezes ela tinha sido repelida mesmo com tal habilidade de aproximação. Gideon estava a par do movimento do outro lado da rua e sentiu que havia gente atrás de si. A garota estendeu sua pequena mão, colocando-a sobre o braço de Gideon e se dirigiu à porta de onde havia saído.
— Eu lhe prometo — repetiu. — Você jamais se esquecerá. Um homem, esgueirando-se entre os automóveis estacionados, disse:
— Bom dia, senhor.
A garota olhou-o e sua face empalideceu; algo que lembrava terror pulou nos seus olhos cinzentos e pálidos. O homem era um polícia, jovem magro, parecendo estar sentindo calor, embora sem túnica. Sua camisa azulada estava suada nos ombros.
— Ela o está importunando, senhor?
A jovem olhou para o fundo do corredor cavernoso de onde tinha saído e mordeu os lábios.
— Estava somente procurando saber as horas — murmurou. — Estava somente procurando saber as horas.
Gideon disse:
— Faltam vinte minutos para as onze. — Ele ultrapassou a garota e o polícia recuou, batendo de encontro a um dos carros, com uma expressão de ceticismo. Houve um barulho de passos e a pequena desapareceu. Gideon ultrapassou o policial e depois esperou por este. — Há quanto tempo ela anda por aqui? — perguntou.
— Na realidade, senhor, eu ainda não a tinha visto antes.
— Ela ainda é bastante jovem, pode ser retirada deste meio de vida antes que se perca completamente, — disse Gideon. — Procure saber o seu nome assim como de onde ela é, e depois de preparar um relatório diga ao seu superior que eu pedi para verificar se o juiz de execuções criminais pode procurar ajudá-la.
— Está bem, senhor.
Gideon acenou com a cabeça e prosseguiu. Até àquele momento não sentira muito o calor, porém agora este parecia sair dele, como se tivesse pisado num forno. Sabia agora que a garota — garota? — tinha apelado para algum fogo latente nele, um tipo curioso de apelo, infantil e apesar disso não tão infantil. Endurecido, cínico, incapaz de chocar-se, fazia muito tempo desde que se sentira tão abatido como ficou depois desse encontro. Um táxi reduziu a velocidade em uma esquina, com o sinal LIVRE iluminado.
Um mordomo abriu a porta para Gideon, postou-se de lado, sorriu e disse:
— Bom dia, Sr. Gideon, que prazer em revê-lo. — Tomou o chapéu de Gideon, continuando: — Sir Reginald está a sua espera. — À proporção que andavam ao longo do vestíbulo mobiliado com todo gosto, um relógio montado num suporte próximo à escadaria circular bateu onze horas. Entraram numa sala pequena e estreita, ao lado da escadaria. A casa em si era estreita, construída pelo arquiteto Nash no seu modo mais gracioso e expansivo, em forma de crescente. A sala era uma combinação de estúdio e biblioteca, com estantes para livros, mesas curvadas, cadeiras de braços, tudo isto em carvalho escuro e polido por uma centena de anos de uso. Uma janela alta e estreita dava para o jardim, que era coberto de rosas. A janela estava aberta e uma brisa agradável por ela penetrava.
Scott-Marle vestia um terno leve, de cor clara, que lhe caía muito bem. Era alto, grisalho, um ex-soldado do velho tipo, que algumas vezes podia parecer distante e outras ameaçador. O terno de cor clara, a camisa de seda creme com colarinho aberto, a cor berrante das rosas por trás de suas costas, desfaziam todo o ambiente de austeridade e de formalidade. Apertou a mão de Gideon.
— Bom dia, George.
— Bom dia, senhor.
— Pode sentar-se — disse Scott-Marle e esperou que Gideon se acomodasse numa cadeira que parecia desconfortável com seu encosto alto mas que, na realidade, era mais confortável do que muitas outras. — Estive com Lord Allingham e Sir Arthur Fielding ontem à noite, e verifiquei que ambos estão satisfeitos com a maneira pela qual o assunto de sabotagem será tratado nos Estados Unidos. Allingham discutirá o problema com os industriais, e você fará o que achar necessário. Obviamente que se trata de um caso a ser resolvido a longo prazo, e Allingham terá muito o que investigar antes que nós ou a polícia americana possamos fazer alguma coisa. Deixei bem claro que você terá carta branca assim como que nós faremos qualquer coisa e tudo o que for necessário para ajudar.
Gideon sentia-se muito mais feliz, e os seus pensamentos sobre a garota, sobre Lemaitre, assim como o seu mau humor, começaram a dissipar-se.
— Sei que o senhor fará.
— Não estou muito a par dos casos dos relógios Rite-Time — disse Scott-Marle.
Gideon abriu os braços.
— Um total de cinqüenta mil relógios para homens e mulheres, em partes iguais, assim como dezenas de milhares de libras esterlinas de jóias, isqueiros e outras coisas que poderiam ser vendidas no mesmo tipo de loja, têm sido roubados dos fabricantes próximo a Buffalo, nos Estados Unidos. Remessas completas têm sido desviadas, e sabemos que elas acabaram entrando na Inglaterra. Esse "acabaram" muitas vezes significa meses depois. Não temos certeza, mas pensamos que a mercadoria embarcada chega com faturas forjadas, a um preço de fabricação muito baixo, o que permite que paguem direitos e imposto de consumo muito reduzidos.
— Então entram legalmente? — perguntou Scott-Marle.
— Alguns, certamente. Outros são contrabandeados, porém os embarques legais servem para escondê-los. Alguns dos varejistas são forçados a comprá-los, outros compram a preços muito baixos. Tanto quanto podemos calcular, existem cerca de cinqüenta mil relógios nas lojas, porém só foram pagos direitos alfandegários sobre cerca de cinco mil. Dois ou três homens de cada lado do Atlântico e um oficial corrupto num navio, é o bastante. — Gideon sentia-se inteiramente familiarizado com o seu trabalho e tudo o que sabia sobre o caso estava na ponta da língua. — Temos consultas em andamento em todos os países envolvidos. Não há a menor dúvida de que a Companhia Orlova está envolvida no caso, mas concordei com Nielsen, de Nova York no sentido de não tomar qualquer atitude por enquanto. Se descobríssemos um embarque dessas mercadorias roubadas em Londres, digamos, em Bristol ou em Liverpool, e fizéssemos algumas prisões, muita gente importante em todo o mundo seria avisada, dando aos organizadores americanos tempo para se esconder.
Scott-Marle estava com o semblante carregado.
— Você acha que este é o caminho certo a seguir? — perguntou. — Nunca me senti muito contente com a idéia de deixar essa gente escapar durante muito tempo.
Gideon inclinou-se para a frente, novamente, abrindo seus braços uma vez mais. O contraste entre os dois homens era notável. Alguém poderia dizer que se tratava do contraste entre o cavalo de tiro e o de corridas. Gideon sentia-se muito fogoso, muito seguro do que estava dizendo.
— Faz menos de dois meses que descobrimos uma grande quantidade de relógios Rite-Time na Inglaterra. Sabemos aproximadamente quantos foram distribuídos entre varejistas através da Companhia Orlova. Conseguimos verificar um acordo comercial entre a Orlova, ou seja, entre um dos seus diretores, um homem chamado Orlick, com muitos vendedores a atacado ou fabricantes em Nova York. A polícia americana está verificando esses negócios cuidadosamente. Por outro lado, estamos pesquisando os negócios das agências de Orlova na Comunidade Britânica. Sabemos que existe um agente suíço distribuindo os relógios Rite-Time por toda a Europa. Esse agente mantém conexões com a Companhia Orlova. Se conseguirmos encontrar o cabeça de tudo isto... Gideon hesitou, recostou-se na cadeira, apertou suas mãos e disse: — Será que o senhor pode ter idéia do que está acontecendo?
— Corte a copa e os galhos fenecerão, corte um galho e este poderá sarar muito rapidamente. Muito bem, faça como você quiser... — Scott-Marle hesitou por sua vez.
— Bolas negras para mim se deixarmos eles escaparem por entre os nossos dedos — disse Gideon, secamente. — Eu sei, senhor. — Gideon quase acrescentou: — É isto tudo o que o senhor tem a dizer? — porém parou, pois sentiu que Scott-Marle tinha algo mais que pretendia dizer. Enquanto ele esperava, a porta abriu-se e o mordomo entrou trazendo café e bebidas, gelo, refresco e taça, com salada de frutas. O mordomo colocou a bandeja na mesa ao lado de Scott-Marle e, sem dizer uma palavra, retirou-se.
— Café ou algo gelado? — perguntou Scott-Marle. — Eu sempre tomo café, esteja frio ou não, pois minha esposa insiste que isto prova ser eu a pessoa de sangue mais frio que ela conhece.
Gideon sorriu e disse:
— Café, por favor.
Scott-Marle sorriu também, serviu o café e perguntou:
— Como vai Kate? Muito entusiasmada com a viagem?
— Muitíssimo — respondeu Gideon.
— Eu não invejo você em Nova York porque sei que vai estar muito quente — disse Scott-Marle. Mas minha senhora os invejaria, em qualquer época do ano, pois ela aprecia muito essa cidade. — Recostou-se na cadeira e continuou tomando o café.
—Há mais um outro ponto sobre o qual não me sinto muito seguro — continuou no mesmo tom, mas Gideon sentiu que algo importante estava para ser dito — Como é que você acha que Lemaitre vai-se sair? — Gideon não respondeu, deixando a pergunta vagar em sua mente, e o Comissário prosseguiu: — Deixe-me ser absolutamente franco, George. Não faço reservas à habilidade de Lemaitre quanto às suas funções no momento, porém falta muito para me convencer de que ele seja o homem indicado para seu substituto. Você necessita de alguém mais jovem. Por outro lado, penso que você precisa de alguém que o possa substituir de uma hora para outra caso você tenha que se ausentar por mais de um mês. Tem certeza de que, nestas circunstâncias, Lemaitre poderia dar conta do recado?
Dilema Para Gideon
Agora que a pergunta tinha sido feita, Gideon sentiu que era inevitável que deveria ter-se lembrado com antecedência de que Scott-Marle a faria. Scott-Marle a havia feito finalmente, com tato e compreensão. Tratava-se de uma conversa íntima, em sua casa, à qual faltavam quaisquer indícios de formalidade. Mas a pergunta tinha sido tão incisiva quanto poderia ser, e não havia meios de evitá-la sem deixar transparecer que a recusa era óbvia. Scott-Marle, enquanto tomava café, olhava para Gideon por cima de sua xícara através da fumaça que desta se desprendia. A xícara de Gideon, praticamente ainda intocada, permanecia na mesa, à sua frente.
Scott-Marle colocou a xícara sobre a mesa.
— Certamente você gostaria de pensar um pouco antes de responder a minha pergunta.
Gideon, no limiar de um dilema agudo, levantou sua xícara. Scott-Marle sabia perfeitamente que ele estava procurando ganhar tempo pois, em momentos como este, Gideon sentia como se o Comissário pudesse ler seus pensamentos. O período de hesitação pareceu demorar cada vez mais e tornou-se quase interminável. Gideon estava pensando desesperadamente numa resposta que fosse honesta e que, mesmo assim, não expressasse suas dúvidas em relação a Lemaitre.
Scott-Marle disse:
— George você não pode, na realidade, dividir sua lealdade num caso deste porte. Deixe-me fazer a pergunta de uma maneira mais incisiva. Se você soubesse que não voltaria, viajaria na certeza de que Lemaitre daria conta de suas atribuições tão bem como você?
Gideon deu um sorriso forçado.
— Se eu soubesse que não voltaria e que o senhor iria tomar o meu lugar, tinha minhas dúvidas sobre o senhor também.
Sentiu que se estava arriscando ao falar desse modo com Scott-Marle, assim como sabia que Lemaitre estava fazendo o mesmo quando falava de forma idêntica. Podia ter dito algo errado, incorrendo então na ira de Scott-Marle. Entretanto, pela forma que os lábios de seu chefe se curvaram, e pelo brilho de seus olhos, Gideon sentiu que nada tinha a temer.
— E eu não o culparia por isto — disse Scott-Marle. Gideon sentiu como se soubesse exatamente o que dizer,
como se soubesse exatamente como ser leal tanto a Lemaitre como à Scotland Yard. Era um sentimento agradável que eliminou muitas das tensões que pairavam em seu espírito.
— Na verdade, não me lembro de qualquer pessoa que possa tomar conta do cargo. Lemaitre, na realidade, ainda não teve chance de mostrar o que pode fazer, porque estou sempre por trás dele. — Repentinamente Gideon sorriu. — O fato é que eu estava exatamente fazendo isto quando o senhor telefonou! Lem começava a desejar que eu tivesse viajado para Nova York a semana passada. Acha-se capaz de assumir as responsabilidades. — Scott-Marle não respondeu e Gideon continuou: — Na realidade, não cabe a mim, não é, senhor? Na minha opinião, Lemaitre é o melhor homem disponível para o posto de substituto, porém não posso honestamente dizer que ele tem todas as qualificações que o cargo requer. — Gideon sentiu um golpe em sua consciência ao dizer estas palavras, mas percebeu que não havia vantagem em procurar convencer Scott-Marle de que estava sendo honesto.
— Lemaitre continua impetuoso como sempre? — perguntou Scott-Marle.
— Não tenho razões para acreditar que ele seria impetuoso caso me estivesse substituindo — disse Gideon. — Da maneira que o serviço está organizado hoje em dia, ele pode sempre procurar-me no caso de qualquer dúvida, e, se errar, poderei sentir imediatamente. O único meio de saber se Lemaitre é capaz de dar conta é deixar que tome conta do cargo. É o que nós vamos fazer nas próximas quatro ou cinco semanas.
— Nesse ínterim, espero poder formar uma opinião mais concreta sobre ele, e o mesmo deve acontecer com você — disse Scott-Marle, secamente.
— Sim.
— Há quanto tempo você conhece Lemaitre?
— Há cerca de trinta anos.
Scott-Marle acabou de tomar seu café, colocou a xícara na bandeja, espigou-se e perguntou:
— O que pensa você do Hobbs?
Gideon não respondeu, porém pensou imediatamente no superintendente-chefe Alec Hobbs, o mais jovem dos chefes de serviço da Scotland Yard, produto das famosas escolas públicas da Inglaterra, onde são educados os descendentes da nobreza, e da Universidade de Oxford, um detetive e administrador de primeira classe, homem que provavelmente conhecia melhor do que qualquer outro na Scotland Yard os métodos científicos de investigação. O silêncio de Gideon durou mais do que quando ele estava pensando sobre Lemaitre, porém, desta vez, Scott-Marle não o interrompeu. Uma vespa entrou pela janela, voou em volta do açucareiro e do pote de creme de leite, mas nenhum dos dois homens a espantou. Por trás do Comissário, a cor das rosas pareceu fenecer, pois o sol havia subido e estava brilhando diretamente sobre elas. Entretanto, preocupado, Gideon nenhuma atenção dava a tudo isto. Finalmente, disse:
— Hobbs tem um ponto indubitavelmente fraco, senhor, muito embora fraqueza não seja a palavra correta. — Mesmo assim Scott-Marle não o procurou ajudar. — Uma desvantagem, eu deveria dizer.
— Você quer se referir à sua posição social? — Agora parecia haver algo de discordância na voz de Scott-Marle, e seus lábios quase não se moveram.
— Parcialmente. E também quanto ao seu passado de estudante.
— Você realmente pensa que seja uma desvantagem ter dois diplomas de Oxford?
Era possível que isto tivesse ferido um ponto sensível em Scott-Marle. Podia ser também que o Comissário estivesse procurando impressionar com a sua rispidez, possivelmente traindo seus preconceitos. Gideon tinha uma opinião a respeito de Hobbs, homem íntegro e capaz, dono do mesmo distanciamento que caracterizava Scott-Marle no momento. Gideon procurava palavras que lhe proporcionassem uma alternativa, rejeitando uma e depois outras até que finalmente disse com grande precisão.
— Não importa que alguém possa amedrontar o pessoal. Sei que algumas vezes faço isto. O que importaria enormemente era se Hobbs, ou qualquer outro, desse a impressão de que sabia mais do que seus subordinados somente por causa de sua posição social ou de sua educação. É indiscutível que ninguém pode ser bom policial sem sentir o crime e suas fontes sem que seja um policial no verdadeiro sentido da palavra. Lemaitre pode, mas Hobbs não é capaz disto.
— Você tem certeza de que Hobbs não pode? — perguntou Scott-Marle.
Gideon hesitou e depois relaxou-se.
— Bem, não, eu não estou bem certo disso. Não acho que ele possa, entretanto é possível que eu esteja errado. Em tudo mais, ele tem melhores qualificações do que Lemaitre, porém Lemaitre poderia controlar os assuntos da Scotland Yard melhor do que Hobbs. Espero que o senhor me compreenda bem no meu modo de pensar. Na verdade, gosto muito de Hobbs. Acho que é o melhor homem que temos para a pesquisa e dedução de crimes com base em indícios existentes. Se eu tivesse que levar Lemaitre ou Hobbs comigo nesta viagem a Nova York, preferiria Hobbs. — Gideon hesitou. — No entanto, penso que, se o senhor colocasse Hobbs em meu lugar durante minha ausência, encontraria, em meu regresso, o Departamento totalmente desorganizado. — Como Scott-Marle continuou calado e nada mais fez do que encará-lo fixamente, Gideon prosseguiu: — O senhor se incomodaria se eu fizesse uma sugestão?
— Não, prossiga.
— Ponha Hobbs a cargo de uma divisão. Eu não o quero perder, mas, para ele se livrar dessa vantagem — e terá que fazê-lo quer queira ou não — tem que ser seguido esse caminho. Qualquer pessoa capaz de fazer carreira passando por uma divisão de difícil manejo virá para a Scotland Yard, com as melhores recomendações possíveis.
— Hum! — Scott-Marle praticamente não abriu os lábios ao proferir esta expressão. — Não era isto que eu esperava que você fosse sugerir.
— Não era, senhor?
— Esperava que fosse aconselhar-me a preparar Hobbs para um futuro comissário-assistente — disse Scott-Marle. — Desta forma, ele escaparia dos problemas sobre os quais você vem falando, e certos problemas permaneceriam sem decisão. — Os lábios finos, bem formados de Scott-Marle curvaram-se num sorriso forçado. — Eu devia ter pensado melhor. Outra coisa que desejo informar-lhe antes que você se vá embora é que nos impuseram um comissário-assistente. — Era difícil decifrar se ele aprovava ou não a escolha. — Vamos ter conosco o vice-marechal-do-ar, Sir Wymondham Kell, o qual dedicará a maior parte do seu tempo à parte administrativa do departamento, deixando a parte executiva para você e seu assistente. Tal fato, tornará o trabalho do assistente do comandante ainda mais importante e a seleção do homem indicado para esta função ainda mais importante. Isto elimina Hobbs durante um período indefinido e não penso que você queira que ele passe muito tempo numa das divisões, independentemente do bem que isto lhe faria assim como à moral do departamento.
Depois de outra pausa Scott-Marle prosseguiu:
— Você nos deixa com uma série de problemas, George. Espero que não venha a preocupar-se muito com eles. Poderá deixá-los adormecidos em seu subconsciente durante algum tempo e, quando voltar, Lemaitre pode ter mostrado que é, na realidade, o homem indicado para o cargo. — Scott-Marle puxou a cadeira para trás e acrescentou:
— Vamo-nos esquecer de tudo isso, não?
Gideon retrucou, lenta e pensativamente:
— Não é coisa que se possa esquecer com facilidade mas sei o que o senhor quer dizer. — Gideon deu um suspiro. — O que acontecerá com o caso Fadiman... — Calou-se e depois disse. — Agradeço a sua franqueza.
— É um hábito que aprendi com você — disse Scott-Marle.
— Não se estará você preocupando demasiadamente com o caso. Fadiman?
— Ficarei muito mais satisfeito quando encontrarmos um indício mais concreto, — disse Gideon. — Os indícios circunstanciais têm sempre suas fraquezas.
— No que se refere aos candidatos para o posto de assistente do comandante — disse Scott-Marle. — Bem, procure distrair-se em Nova York e descanse o mais possível.
— Uma mudança de ambiente é tão boa quanto umas férias
— disse Gideon. — Farei tudo o que tenho a cumprir o mais depressa possível.
— Sei que você fará isto. Venha olhar minhas rosas.
Um que de entusiasmo acentuou-se na voz de Scott-Marle à promoção que falava: — Tenho um novo enxerto, uma beleza azul-negra que, garanto, você nunca viu antes. — Trouxe-a da Holanda e trata-se de um dos primeiros exemplares a entrar no país.
Gideon observou as rosas e ouviu Scott-Marle falar das mesmas como se nada mais no mundo o interessasse. Esta era a forma de desligamento dos assuntos vitais que provavelmente contribuía para a formação de um grande líder. Gideon teve dúvidas se ele próprio era capaz de agir de forma idêntica, e na realidade não se sentiu com vontade de ser assim.
Quando Gideon voltou ao escritório, já Lemaitre se tinha ido embora. Nenhuma notícia havia de Miller, porém encontrou um relatório de MacPherson, o detetive que estava encarregado do caso dos relógios Rite-Time na Inglaterra. MacPherson era um homem dedicado, um dos mais minuciosos da Scotland Yard, não exatamente uma pessoa agradável para se lidar, mas simplesmente admirável como detetive.
Seu relatório dizia:
"Entre os passageiros de primeira classe
no transatlântico Fifty States estará o
Sr. Dick Orlick e sua esposa Kitty. Camarote
B21. Não terá Orlick uma surpresa quando souber
que o senhor viaja no mesmo navio?"
Gideon sorriu disfarçadamente. Tomou nota para escrever a Nielsen, da Central de Polícia de Nova York, informando-o sobre este relatório, a fim de se certificar do que Orlick seria seguido durante sua permanência em Nova York. Era possível que o sócio da Cia. de Relógios Orlova pudesse fornecer indicações que levassem a polícia aos cúmplices americanos do negócio. Gideon olhou de relance para outras notas que tinham sido colocadas sobre sua mesa, depois verificou os relatórios dispostos sobre a mesa de Lemaitre. Em letra firme, obviamente escrita com muito interesse, estavam as notas e as conclusões de Lemaitre sobre os casos pendentes. Havia algo errado nessas notas, o que era característico de Lemaitre. Os dados nelas contidos eram escorregadios e superficiais. Gideon estudou-as, tomou decisões e colocou-as de lado. Poderia pensar no problema a partir de agora até amanhã de manhã e assim decidir melhor sobre como falar com Lem quando começassem a examinar as pastas.
Passava de uma hora quando terminou e fez uma chamada telefônica para Fulham. Esperou durante alguns minutos, olhando através da janela. A superfície do Tâmisa estava mais agitada do que se mostrara durante vários dias, e uma brisa mordente penetrava pela janela, indicação esta de que o tempo estava para mudar. Entretanto, mesmo assim, viam-se multidões nas cobertas dos barcos de turistas. Gideon ouviu o som de música flutuando sobre as águas do Rio. A campainha do telefone tocou.
— Alô, Kate — disse, sem parecer ter qualquer dúvida sobre quem o chamava.
— Perdão, senhor, — disse uma telefonista. — De sua casa não respondem.
— Oh! — disse Gideon. — Está bem, não se preocupe. — Não era realmente de surpreender, pensou enquanto passava pelos corredores, que Kate e Penélope tivessem saído. Quando chegou ao pátio, dois carros do serviço de choque saíram às pressas, com pneus rangendo, como se houvesse urgência, que poderia ou não ser justificada.
Um policial estava de pé junto ao seu carro, com a porta da frente aberta, e perguntou.
— O senhor mesmo vai dirigir?
— Sim.
— Parece que o tempo vai mudar, — disse o policial. — É sempre assim nos fins-de-semana.
Dois minutos depois, passava pela multidão acumulada no pequeno adro da igreja de Santa Margarida, tendo chegado mesmo a observar de relance a grande massa de visitantes que estavam dentro do Abadia de Westminster. Não lhes deu muita atenção e continuou na direção da Vitória Street, onde velhos e novos edifícios erguiam-se de cada lado, e onde havia muitas demolições que davam a impressão de uma boca de gigante com falta de vários dentes. Muito embora Gideon não fosse homem dado a fantasias, este foi o pensamento que lhe ocorreu. O trânsito estava desimpedido e ele dirigiu a uma velocidade que variava entre cinqüenta e cinco e sessenta e cinco quilômetros por hora, muito embora se sentisse errado, pois sabia que o limite era cinqüenta. Procurou ultrapassar um ônibus, mas um ciclista o atrapalhou; tentou novamente e o ônibus guinou para o centro da rua a fim de livrar-se de uma carroça de frutas. Viu-se forçado a seguir o ônibus num percurso de cerca de quatrocentos metros, conseguindo finalmente ultrapassar quando o ônibus diminuiu a velocidade, um pouco além da Wandsworth Bridge Road. Olhando para a janela do ônibus, teve a impressão de que alguém fazia sinal para que ele parasse. Passou, com essa imagem em sua mente, aumentada pela impressão de que se tratava de uma garota que lhe acenava com alguns embrulhos. Repentinamente, sentiu que se tratava de Penélope, sua filha. Estacionou em frente à próxima parada do ônibus, justamente em lugar oposto a Parson's Green, baixou o vidro da janela, e viu Kate, também carregada de embrulhos, olhando-o com um sorriso, Depois de alguns minutos de confusão, desceu do carro e ajudou tanto a Kate como a Penélope a subir, tomando alguns de seus pacotes. Estavam tão carregadas que ele deu uma gargalhada.
— Vocês estiveram comprando tudo o que havia em Oxford Street?
— Bem, mamãe não pode viajar para Nova York de primeira classe sem ter algo para vestir, não acha? — Penélope, alegre, impetuosa e generosa, sentou-se no assento da frente enquanto Kate se sentou no traseiro, com embrulhos por todos os lados. Estava suada e parecia mais cansada do que Penélope. Além disso, estava mais calada, muito embora demonstrasse satisfação e contentamento quando Gideon pôs o carro em movimento. Penélope era toda palavras e Kate gradualmente começou a tomar parte na conversa. Estavam somente a cerca de cinco minutos de distância de casa, em Harrington Street. Gideon parou ao chegar ali, observado pelos vizinhos e por dois homens que não estavam muito longe. Pensou que os reconhecia, notou que um deles tinha uma máquina fotográfica, e experimentou alguma dúvida sobre quem eram e o que desejavam.
Eles se aproximaram quando Gideon saiu do carro com as pernas compridas e esguias de Penélope seguindo-o.
— Boa tarde, Sr. Gideon, — disse um dos homens. — Soubemos que o senhor e a Sra. Gideon vão para Nova York na próxima semana e gostaríamos de tirar algumas fotografias para enviar aos nossos representantes de lá.
— Não acham melhor deixar para um pouco mais tarde? — perguntou Gideon.
— Não lhe tomaremos mais do que dois minutos, senhor.
— Eu preferiria, — começou Gideon. Mas, não adiantava, pois já estavam batendo suas fotografias, sem necessidade de luz artificial. Um dos homens estava do outro lado do carro, batendo chapas de Kate à proporção que esta saía do mesmo, carregada de embrulhos, parecendo cansada, desarrumada e certamente sem condições para ser fotografada. Penélope, por outro lado, sem sentir, ou sem querer sentir, a desaprovação, tinha decidido tirar vantagem do momento. O homem que falava pelos dois continuou mantendo uma conversação que tinha por fim evitar que Gideon protestasse muito fortemente. — Assim está certo... Sua filha é muito bonita, Sra. Gideon. É tudo isto o resultado de uma expedição para compras? A senhora já teve antes a oportunidade de acompanhar seu marido em uma das suas viagens oficiais? Sr. Gideon, o senhor se importaria de posar ao lado de sua esposa? Se o senhor pudesse segurar um ou dois embrulhos... Não, eu compreendo... Srta. Gideon, Penelope — não é este o seu nome? — poderia dar-nos uma idéia do que sua mãe comprou?
Penelope fez uma pose e disse:
— Bem, ela comprou dois espanadores, líquido para polir móveis e alguns vidros de detergentes que estavam à venda por preços de ocasião.
Gideon sorriu de repente. Os olhos de Kate brilharam e eles entraram em casa, deixando Penelope atraindo e amolando os dois homens ao mesmo tempo.
Gideon conseguiu abrir a porta sem deixar cair os embrulhos.
— Onde é que você quer que eu coloque os espanadores? Kate disse:
— A maioria deles vai lá para cima. Vamos levá-los agora e acabar com tudo isso?
Entraram no quarto de Malcolm e então Gideon descobriu como a esposa tinha transformado este aposento num depósito de coisas para a viagem. Viu os vestidos, os sapatos, os chapéus, as bolsas abertas, tudo o mais que havia sido separado. Colocou os embrulhos, um por um, sobre a cama e recuou, com as mãos nos bolsos.
— Isto bem que daria para um ano de férias, — exclamou.
— Vou precisar de tudo isso e de mais alguma coisa, — disse Kate. Olhou para o espelho, franziu as sobrancelhas, penteou seu cabelo preto já grisalho, tirando-o dos olhos, e continuou. — Vou sair horrível naquelas fotografias.
— Agora você compreende como uma pessoa se sente quando quer tomar uma máquina fotográfica e quebrá-la, — disse Gideon. — Nada lhe faria parecer horrível, querida, porém você parece tão cansada.
— Estava fazendo tanto calor nas lojas, — disse Kate. —E quando acabamos foi na hora de maior movimento, tanto que não conseguimos encontrar um táxi. Esperamos vinte minutos por um ônibus e então Penelope reconheceu o seu carro, tendo chegado quase a quebrar a janela para atrair sua atenção.
— A verdade é que você devia comprar um carro pequeno para seu uso, — disse Gideon. — Quer tomar algo antes do almoço?
— Gostaria de tomar uma xícara de chá.
— Vou buscá-lo, — gritou Penélope do vestíbulo. — Acabei-me livrando dos jornalistas e agora estou ansiosa para ver o que vão dizer sobre sua expedição de compras, mamãe. Por que a senhora não vai para o quarto e se deita um pouco?
Logo depois Penélope subiu as escadas carregando uma bandeja com chá, pastelão de carne de porco, salada, pão e manteiga. Juntos, fizeram um piquenique no quarto. Eram quase três horas quando terminaram.
— A tarde está quase terminada — disse Kate. — George, acho que não terei tempo de me preparar na hora certa.
— A senhora terá tempo mesmo que eu tenha que ajudá-la, — disse Penélope. — Papai o senhor tem que tirar tudo o que vai levar, mesmo porque pelo menos a metade vai ter que ir para a lavanderia, e não há muito tempo para isto.
— Ela será certamente uma boa esposa — zombou Gideon. O telefone tocou. Gideon notou que a expressão do rosto de Kate mudara, e pensou logo que ela esperava que não houvesse telefonemas oficiais naquela tarde. Quando Gideon se dirigiu para o aparelho ao lado da cama, Penélope murmurou:
— Eu acabo cortando o fio. Gideon levantou o fone e disse:
— Aqui fala Gideon.
— Alô, papai! — Era Malcolm, da Suíça, a mil e seiscentos quilômetros de distância. — Estou em Zurich. Acabo de receber a carta de mamãe. Vamos sair para um passeio de fim-de-semana, quis apenas telefonar para dizer adeus. Como vai mamãe? Ela está muito contente?
Os únicos telefonemas recebidos naquele sábado foram de pessoas da família, todas satisfeitas porque Kate ia para Nova York com Gideon.
Domingo
O domingo amanheceu frio e barulhento. Era quase impossível acreditar que ainda se estivesse na mesma estação da semana passada. Gideon apareceu na Scotland Yard antes das dez horas, não viu o carro de Lemaitre e se perguntou a si mesmo por que seu assistente estaria atrasado. Devia ter pensado melhor, pois Lemaitre olhou quando Gideon entrou e fez um aceno com a mão, saudando-o.
Gideon dirigiu-se à sua mesa e encontrou vários memorandos, nenhum dos quais se referia ao caso dos relógios Rite-Time ou ao problema da sabotagem. Todos tratavam de crimes que tinham sido cometidos durante a noite. Havia um horroroso assassinato, à arma branca, no Norte de Gales, com todas as -indicações de ser um caso para o qual a Scotland Yard seria chamada a intervir brevemente, porém a decisão da polícia local em fazer esta solicitação não seria provavelmente tomada até meados da semana seguinte. "Logo que fosse muito tarde", diria Lemaitre sardonicamente. Lemaitre tomou algumas notas, levantou a vista e perguntou:
— Você já viu o Sun Pic? (*)
(*) Sunday Pictorial.
— Não. O que é que eles querem — nosso pescoço? Lemaitre levantou-se e trouxe um jornal dobrado para
Gideon, colocando-o sobre a mesa deste. Gideon olhou para uma fotografia de Penélope saindo do carro, com a saia quase no meio das coxas, embrulhos caindo das mãos, mas parecendo alegre e satisfeita. Por baixa havia uma fotografia menor de Kate. Nunca vira outra melhor, pois ela parecia realmente bonita e os cabelos despenteados serviam apenas para acentuar a informalidade do momento. Gideon foi relegado a uma pequena fotografia de busto, num canto, com embrulhos empilhados até o queixo.
CHEFE DA SCOTLAND YARD NUMA FARRA DE COMPRAS
Era este o cabeçalho, e logo abaixo o seguinte:
PRIMEIRAS FÉRIAS JUNTOS NO ESTRANGEIRO EM QUINZE ANOS
Gideon estava sorrindo.
— Penélope deve ter contado uma história muito comprida. Kate não deve ficar muito zangada com isto. Este jornal está sobrando?
— Pode ficar com ele. — disse Lemaitre elegantemente. Quando ele se afastou na direção de sua mesa, Gideon teve um pressentimento de que havia algo na mente de Lemaitre, algo sobre que ele não desejava falar. — George, temos um caso importante em mãos.
Gideon pensou consigo mesmo: "Oh!" Mas nada disse e esperou.
— Lá em Lambeth. Assalto a uma agência dos Correios.
— Qual a extensão do roubo?
— Estão calculando agora. As estimativas são — Lemaitre parou para dar maior ênfase — acima de meio milhão de libras esterlinas.
— Meu Deus.
— Você não me precisa dizer. Um vigia noturno foi morto, esfaqueado pelas costas.
Gideon pensou, quase angustiado: "por que, por que, por quê?" Queria dizer: por que isto foi acontecer, por que é que estas coisas acontecem, por que isto haveria de acontecer logo hoje?
— O homem morreu instantaneamente — disse Lemaitre, titubeante. — O assalto só foi descoberto às oito e meia. Tudo anda devagar nas manhãs de domingo. Cheguei logo depois das nove. A divisão estava procurando você, naturalmente, porém eu lhes disse que teriam de se haver comigo.
Agora a coisa estava clara. Lemaitre acreditava, na realidade ele provavelmente tinha certeza, de que Gideon iria tomar conta deste caso desde o principio, e Lemaitre por seu lado sentia que este era um que ele pessoalmente poderia dirigir desde o início até o fim.
Todas as coisas que Gideon tinha para dizer a Lemaitre escaparam de sua mente.
— Tenho todos os detalhes aqui — Lemaitre colocou a mão sobre uma pasta que estava na sua mesa. — Ainda não tive tempo de olhar para os outros casos. Acabo de recuperar minha respiração perdida no choque que tive com esse.
— Hum — murmurou Gideon. — É um pouco cedo para recuperar sua respiração. — Como é que ele poderia dizer: — "Lem, esta é sua chance, ela pode torná-lo um vencedor ou derrotado"? — Observando Lemaitre, Gideon começou a sentir que este estava a par de tudo e não precisava que lhe dissessem. Pela primeira vez, Gideon teve a curiosidade de saber se o homem que se tinha tornado seu amigo reconhecia suas próprias fraquezas mais do que ele, Gideon, suspeitava. E Gideon pensou sobre quão melhor seria se esta situação ficasse tàcitamente compreendida, sem ser dita abertamente. — Você não acha que deveria ir até Lambeth?
Os olhos de Lemaitre brilharam.
— Você acha que está bem assim?
— Não vejo razão para meter minhas mãos em um caso que sei de antemão não poderei terminar, — resmungou Gideon.
Jamais pensara em quanto lhe custaria dizer uma coisa dessas. — É melhor deixar os outros casos, farei algumas anotações sobre suas notas, e procuraremos arranjar uma hora amanhã. Lemaitre já estava apanhando seu chapéu de abas estreitas, de cor verde-claro com uma pena presa ao cordão vermelho. O chapéu combinava bem com o casaco esportivo verde-avermelhado e com as calças verde-claras que ele usava.
— Você pode fazer um favor, George?
— O que é que você deseja?
— Avise a Chloe que eu não sei quando voltarei. — Lemaitre já estava abrindo a porta e, quando ele falou, Gideon teve a certeza de que já se sentia em Lambeth, projetando-se num inquérito que incluía um assassinato e um roubo de enormes proporções. Gideon ouviu a porta fechar-se, cocou o queixo, levantou o fone e pediu o número da casa de Lemaitre, o qual se tinha mudado recentemente para um apartamento pequeno mas ultramoderno, em Camberwell. Enquanto esperava pela ligação, a telefonista disse:
— Há um chamado para o senhor, o senhor atenderá a este primeiro?
— Quem é que está na linha?
— Lord Allingham.
— Oh! — Gideon disse, e pensou: é melhor atender Allingham primeiro. Antes que ele pudesse responder, a voz da telefonista mudou.
— O seu chamado para Camberwell está na linha, senhor
— a telefonista anunciou.
— Não me diga nada — exclamou uma mulher falando com um leve sotaque Cockney. — Você vai-me dizer que não vem almoçar em casa porque Gê-Gê não pode tomar conta do trabalho por si só, e você tem que ficar aí para segurar a mão dele.
— Na verdade, eu acho que ele não vai chegar em casa antes de meia-noite, se é que eu conheço Lem, — disse Gideon suavemente. — Foi bem na hora a oportunidade que vocês tiveram de passar algumas horas no Lido ontem.
Houve uma longa pausa, e então:
— Por que diabo não consigo manter minha boca fechada?
— Havia um sorriso na voz de Chloe Lemaitre. — Eu sei de uma coisa, George, quando você viajar para os Estados Unidos, eu deixarei de ver meu amantíssimo e queridíssimo marido no café da manhã, no almoço, para o chá, no jantar ou para cear. Serei feliz se conseguir que ele se deite na cama vez por outra. Os olhos e ouvidos da Scotland Yard, eis o que ele pensa que é.
— É o que ele será, — disse Gideon. — E já está tendo um bom começo em um caso muito importante. Chloe, alguém me está chamando em outra linha. Se nós não nos virmos mais antes da partida...
— Deixe Kate fazer outra farra de compras em Nova York, — disse Chloe ainda com o sorriso na voz. Ela era boa para Lemaitre e Gideon pensou novamente se ela seria bastante boa a ponto de ajudar Lem a aproveitar-se da chance que lhe era dada. Desligou o telefone e esse pensamento desapareceu de sua mente à proporção que todos os detalhes do caso da sabotagem tomaram conta desta. A verdade nua e crua que as investigações ligadas a esse caso eram um desafio para Gideon tal como as concernentes ao caso dos Correios eram para Lemaitre. A campainha tocou e logo depois a voz da telefonista disse:
— Lord Allingham, senhor.
— Bom dia, senhor, — disse Gideon.
— Sinto muito ter que amolá-lo num domingo pela manhã. — Allingham começou bruscamente. — Na verdade, eu o procurei em casa e ali me informaram que o encontraria no escritório. Acabamos de terminar nosso relatório sobre as coisas do nosso lado. — Tratava-se do relatório sobre a sabotagem em máquinas usadas para a fabricação de artigos de exportação para os Estados Unidos. — Tem você qualquer objeção em discutir este assunto a bordo? Vou ter um dia muito cheio de conferências amanhã. Pensa que sua senhora se oporá a isto também?
— Esta é uma viagem oficial, senhor. Não gozarei minhas férias enquanto não haja terminado tudo o que tenho a fazer em Nova York.
— Então faremos isto terça-feira à tarde ou quarta pela manhã. Quer que eu lhe mande uma cópia do relatório?
— Mande duas, por favor. Uma para eu ler e outra para ficar aqui com Hobbs ou Ormeroyd.
— Farei isso. Oh! Outra coisa: gostaria de saber se seria ou não possível para você e sua senhora virem tornar algo conosco hoje à noite. Você sabe, nós nos conhecemos, porém nossas esposas nunca se encontraram antes. É sempre bom conhecer-se alguém antes de tomar um navio, eu acho, pois evita dificuldades dos primeiros momentos do encontro a bordo. Se você concordar, venham às sete horas, porém não se preocupe se não puder.
— É muita bondade de sua parte, — disse Gideon.
— É claro que eu quero ir, — disse Kate. — Isto fará com que pare de pensar na arrumação das malas. Por que cargas dágua você haveria de pensar que eu não gostaria de ir?
— Não sabia quantos vestidos você queria guardar para usar a bordo, — disse Gideon. — Eu me esqueci de lhe dizer que nos colocaram na mesa do comandante, e que isto significa que você terá que se vestir bem todas as noites.
Na realidade Gideon sentia-se um pouco culpado.
Kate recuou e olhou para seu marido, e este ficou satisfeito ao ver que todos os sinais de cansaço que ela tinha demonstrado na tarde anterior haviam desaparecido.
— Já esperava isto, — ela anunciou. — E, na realidade, não me importo de usar o mesmo vestido duas vezes. Não vou procurar competir com as esposas de milionários, porém estou certa de que não farei vergonha, embora seja a esposa de um policial.
Quando ela se vestiu à noite, com um vestido simples, próprio para a ocasião, em um tom claro de ouro, com os cabelos penteados livremente para trás, Gideon sentiu-se dez anos mais moço. Ela se sentia totalmente senhora de si, e Gideon não percebeu que tudo isso era devido ao grande orgulho que ela tinha em relação a ele e à sua posição.
Pensou como ela se daria com Lady Allingham.
Uma hora depois, ele sabia.
— Entretanto, minha querida, trata-se de uma bela fotografia e eu espero que a publiquem nos jornais de Nova York para que todos a possam conhecer. E eu estava dizendo a Ally que a fotografia de sua filha é quase idêntica a uma da nossa Fifi caindo de uma motoneta. É a minha favorita, somente pernas e olhos. Uma coisa na qual penso que devemos insistir é que, qualquer que sejam os assuntos oficiais que eles tenham para falar, façam isto durante o dia todo, porém nunca à mesa, nas horas das refeições, a não ser que seu marido nos queira deleitar contando algumas de suas histórias de crimes, muito embora talvez estas não sejam muito apropriadas. É possível sejam um pouco horripilantes. O que é que o senhor pensa sobre isto, Sr. Gideon? E isto me faz lembrar uma coisa: vamos viajar em um navio americano e na realidade não devemos permitir que os americanos pensem que somos ingleses antiquados, não acham? Por isso, devemos começar por nos habituarmos ao uso do primeiro nome entre nós, desde agora, não é Kate? Meu nome é Justine, o que Ally acha ter um que de ridículo, porém não é muito mais tolo do que Oliphant Allingham, não é, Ally? Uma coisa que me preocupa, entretanto, é a idéia de chamar um policial muito importante de George... ou é Gê-Gê, George?
Muito tempo antes que ela terminasse já todos estavam rindo.
Os Gideon não se retiraram sem antes fazer uma leve refeição, de sanduíches.
— Vamo-nos todos preparar para comer o mais possível a bordo, eu sempre faço Ally preparar-se pelo menos uma semana antes.
Quando os Gideon chegaram a casa, eram mais ou menos onze horas da noite.
Penélope estava sentada ao piano, tocando uma peça muito leve de Liszt. Entretanto, logo que a porta se fechou, levantou-se querendo saber tudo o que se havia passado com os pais naquela noite, fazendo questão de mostrar o que já tinha arrumado, assim como quão pouco faltava para arrumar. Quando Kate lhe falou sobre a fotografia de uma garota chamada Fifi, Penélope apanhou o Sun Pie e estudou sua fotografia com a cabeça um pouco inclinada para um lado.
— Bem, se Fifi saiu tão bem no seu retrato como eu no meu, foi uma boa coisa para ela também. Papai, o senhor acha que eu poderei conseguir algumas cópias dessa fotografia? Isto é, daquelas cópias bem brilhantes, pois eu gostaria de mandar uma a cada rapaz que falte a um encontro comigo porque pensa que os adeptos da música clássica devem ser necessariamente desalinhados.
Penélope não foi a única pessoa a examinar a última página do Sun Pie naquela noite.
Dirk Orlick também a olhou depois que sua esposa foi dormir. A idéia de que devia cancelar a viagem e seguir de avião para Nova York passou pela sua mente. Entretanto, sabia que isto iria desagradar a Kitty, a última coisa que ele pensava em fazer. Não podia haver qualquer conexão entre as consultas que Gideon ia ter com a polícia de Nova York ou com o Bureau Federal de Investigações e os negócios dos relógios Rite-Time, que por sinal estavam indo muito bem.
Em todo caso, a coincidência era muito grande.
A pequena Marjorie Webb, boneca bonita e cheia de enfeites, ficou com o jornal em sua frente enquanto esperava que seu marido lhe trouxesse um copo de leite morno. Pensou que logo mais teria a oportunidade de ver um policial da Scotland Yard em pessoa.
Quando Marjorie se aquietou, John Webb olhou para a fotografia e se perguntou a si mesmo se a companhia que iria ter a bordo poderia influir no modo de proceder que ele havia delineado, o qual era muito simples. Planejara jogar sua esposa ao mar empurrando-a à noite através da vigia de seu camarote. Escolhera um camarote na coberta "D" porque esta ficava muito próxima à linha dágua. Preparara seus planos com o maior cuidado e não via razões pelas quais eles devessem falhar. A única coisa que o preocupava era o perigo de que alguém pudesse interferir nesses planos, e lhe pareceu que a presença de Gideon a bordo podia muito bem contribuir para isso. Enquanto olhava para a fotografia, suas mãos se fecharam e abriram. Gradualmente, o retrato de Gideon e de sua esposa desapareceram-lhe da mente e foram substituídos pelo retrato de Marjorie.
John sonhou que seus dedos estavam em volta do pescoço de Marjorie, tirando-lhe a vida.
O Capitão Ruthven, do Fifty States, também viu as fotografias e pensou, de passagem, sobre a beleza da Sra. Gideon. Muito boa para a cama, pensou.
Muitas outras pessoas, pelo menos metade dos passageiros que iriam viajar no navio, viram as fotografias, e muitos fizeram pequenos comentários: "É melhor que tomemos cuidados com os prós e contras nesta viagem, Daisy" ou "Mantenha suas mãos nos bolsos, senão você estará metido em encrencas".
Muitos dos que iam viajam também viram as fotografias. Uma dessas pessoas foi a Sra. Fadiman. Olhou para o jornal mecanicamente e pensou sobre quanto tempo mais Elza iria andar em volta da casa como se fosse uma máquina, sem dizer uma palavra. A moça estava sofrendo tanto do choque que o médico parecia incapaz de ajudá-la. Até mesmo o velho amigo Joseph Todhunter parecia ter desistido de fazê-lo. Felizmente, Leslie ainda estava em casa desse amigo e advogado. David tinha vindo passar o fim-de-semana, falando sempre bastante, e procurando deixar bem claro que não se podia demorar muito, pois seu trabalho não lhe permitia. Prometera que viria assistir à próxima audiência, para fazer companhia a sua mãe, mas disse que não poderia ficar durante a semana, pois corria o risco de perder o emprego. Apesar de todas essas explicações, a Sra. Fadiman pensou tristemente que o modo de agir do filho era influenciado pela sua nora, a qual nunca teve muita simpatia por Cedric.
Se não fosse Joseph Todhunter, pensou, os Fadiman estariam completamente abandonados.
Todos os homens e mulheres que trabalhavam para a Polícia Metropolitana, assim como a maioria dos que trabalhavam para as outras forças policiais em todo o país, também viram as fotografias dos Gideon, e este teria ficado satisfeito, ou mesmo orgulhoso, se tivesse sabido que muito poucos comentários desfavoráveis ou cépticos foram feitos sobre sua viagem.
Quase todos os criminosos que conheciam a Divisão de Investigações Criminais também viram as fotografias. O Sun Pic passou de mão em mão, de casa em casa, durante a tarde de domingo, pois a edição tinha-se esgotado. Ex-ladrões, antigos condenados, homens que planejavam cometer qualquer forma de crimes, todos o viram. Alguns se regozijaram, outros se jactaram dizendo que enquanto Gê-Gê estivesse ausente os ratos poderiam divertir-se. Certo número de criminosos mais inteligentes e planejadores viram na visita de Gideon aos Estados Unidos uma grande oportunidade para suas ações e, quando a notícia do grande roubo dos Correios circulou na segunda-feira pela manhã, tiveram a impressão de que a Scotland Yard, sem Gideon, iria ver-se tão atarefada que a próxima semana poderia ser a mais propícia possível para suas atividades criminosas.
Mais crimes foram planejados na mente dos fora-da-lei em Londres entre domingo pela manhã e segunda-feira à tarde do que tinha sido feito durante o verão. O período de calma estava para ser encerrado tão rapidamente quanto a onda de calor tinha passado. Em qualquer outra ocasião Gideon teria sentido isto, porém ele estava tão preocupado com os casos dos relógios Rite-Time e da sabotagem, com sua incerteza sobre o caso Fadiman, sua desconfiança quanto a Lemaitre e o caso do roubo dos Correios, que tudo mais passava despercebido.
Por mais estranho que parecesse, Lemaitre sentia o que se aproximava.
— Pode ficar certa do que eu lhe digo, Chloe, — disse quando voltou para casa no domingo ao entardecer. — Vamos ter nossas mãos bem cheias durante as próximas semanas.
— Você vem-me dizendo há muitos anos tudo o que você faria se estivesse na chefia. — disse Chloe. — Não me diga agora que desejaria que Gê-Gê não fosse viajar.
Lemaitre olhou para ela, franziu as sobrancelhas e balançou a cabeça vagarosamente.
— Não sei, — disse. — Esta é a verdade nua e crua, não sei.
Terça-Feira à Tarde
— Quase não acredito, — disse Kate.
— É difícil de se acreditar, — concordou George.
Os dois estavam no passadiço mais alto, descoberto, do Fifty States, observando uma pequena multidão de curiosos aglomerada no Terminal Oceânico de Southampton, assim como cerca de uma dúzia de homens que, sozinhos, trabalhavam na desatracação do navio mais rápido do mundo. Ninguém ali parecia estar com pressa. De vez em quando, um dos homens gritava ou fazia um sinal e outra das amarras era solta, sua ponta caindo n'água. A última das escadas de acesso ao navio foi retirada com lentidão e colocada em lugar onde ficasse fora do caminho dos grandes guindastes.
Ao lado dos Gideon havia centenas de pessoas, todos os lugares ao longo da grade tinham sido ocupados, tanto no passadiço onde estavam como nos inferiores. A sirena do navio deu um silvo tremendo, que foi respondido por dois outros, com nota muda, provavelmente pelos rebocadores que ajudavam a manobra do outro lado.
A brecha entre o navio e o cais aumentou gradativamente, e o afastamento parecia ser mais rápido, assim como maior, na popa. Meio metro, um metro, dois, três, e assim por diante. — Pequenos pedaços de destroços, cascas de laranja, papel, madeira etc., flutuavam na água suja de óleo que redemoinhava entre o navio e o cais de madeira com seus protetores de cordas. Pouco depois, o navio começou a movimentar-se como se alguém se tivesse cansado da manobra tão lenta e resolvesse que já era tempo de se pôr a caminho.
— Você gostaria de dar uma volta? — perguntou Gideon.
— Muito, — respondeu Kate.
Uma senhora idosa, americana, próxima a Kate, sorriu para ela, aparentemente um pouco tímida:
— Bom dia — disse Kate.
— Bem, alô — isto foi tudo, porém, de certa forma, quebrou-se o gelo. Os Gideon começaram a andar em direção à proa, olhando através das janelas de aço para um navio pintado de cinza e branco, no qual os marinheiros ainda estavam ocupados amarrando cabos e espias. Junto à âncora, quatro homens trabalhavam arduamente, dois negros e dois brancos. Sorriam entre si. Gideon afastou-se e Kate o seguiu. De repente, sobressaltou-se pois uma mulher jovem atravessou o passadiço de mão com um homem e ele reconheceu, pela fotografia, a esposa de Dick Orlick. Ela não pareceu prestar atenção a Gideon ou a sua esposa, porém o marido o fez. Olhou para Gideon de relance e virou o olhar para a frente. Quando Gideon passou por eles, Kitty Orlick disse:
— Quero ver se a ilha de Wight ainda está no mesmo lugar. — Ela sorria, sua voz demonstrando alegria.
Alguns instantes depois, Kate disse:
— Você notou os olhos dela? — Os olhos de quem?
— Daquela moça. São os olhos mais bonitos que já vi, da cor de âmbar líquido.
Gideon sorriu. - — Tornando-se poética com o ar do mar, hem? — Não disse a Kate quem era a moça, mas pensou se iriam ver os Orlick muitas vezes durante a viagem. A ironia do fato de estarem viajando juntos o divertiu. Sentiu a tentação de falar com o homem, mas reconheceu que isto era somente um impulso passageiro. Os Gideon deram duas voltas no convés, depois desceram ao passadiço inferior, que era protegido por janelas de ambos os lados, metade das quais estavam abertas. Cadeiras de convés tinham sido distribuídas em duas filas do lado onde haveria mais sol, nessa travessia de leste para oeste, e o encarregado já estava tratando das reservas. Para os Gideon tudo isto tinha algo que os lembrava de sua lua-de-mel no Continente. Reservaram suas cadeiras, deram uma volta e desceram para o camarote. Este não era dos mais caros, porém espaçoso e bem decorado em cinza e marron-avermelhado.
— Flores! — exclamou Kate.
Lá estavam três vasos com flores. Um com cravos que se moviam ligeiramente com o balanço do navio, e dois outros com rosas. Os cravos tinham sido enviados pela família. As rosas pelos Scott-Marle e Lemaitre. Kate ficou feliz e alegre. Gideon viu que havia três telegramas na mesa e hesitou, pois qualquer um deles poderia ser sobre serviço, em cujo caso não gostaria que Kate o abrisse. Por outro lado, todos poderiam ser de amigos desejando boa viagem. Enquanto ele abria a pasta, Kate apanhou os telegramas, olhou para o marido como se compartilhasse de seus receios, e abriu o primeiro.
— Este é dos Pickard. — Eram seus vizinhos.
— Muita bondade deles — disse Gideon.
Kate estava abrindo um envelope da Cable & Wireless e seus olhos brilharam, meio cheios de lágrimas. Ela exclamou com voz suave.
— Deus o abençoe.
"Aproveitem a viagem o mais possível". — Malcolm tele-grafara de Lucerna.
Gideon notou que o outro envelope era da Western Union, observou Kate abri-lo, viu-a franzir as sobrancelhas e descansou quando percebeu que sua expressão carrancuda se alterava.
— É para você, — disse, entregando-lhe o telegrama.
"Façam uma boa viagem e aproveitem-na bem — Nielsen".
Era o telegrama que mais de perto tratava de assuntos oficiais e Gideon viu-se pensando sobre como se iria haver quando chegasse a Nova York e entrasse em contato com sua Central de Polícia.
Na hora do almoço, encontraram uma mensagem do Capitão Ruthven dizendo: "Espero vê-los na hora do jantar". Os Gideon foram os primeiros a chegar à mesa, vagamente conscientes da posição proeminente que esta possuía no grande salão de refeições, decorado em azul e ouro, as cadeiras confortáveis, a prataria e as toalhas brancas, os murais de cristal, cada um deles representando um Estado da Federação norte-americana.
Um americano bem vestido, de voz calma, sexagenário, chamado Comali, estava sentado do outro lado da mesa. Quando já estavam em meio a um almoço suntuoso, a ponto de lembrar Kate do pré-treinamento sugerido por Lady Allingham, ela e o marido chegaram. Lady Allingham, apressada e arfante, era toda desculpas. Era uma mulher de pequena estatura, esbelta e estava muito bem vestida, dando a impressão de que procurava algo que ela mesma não sabia o que era.
— Kate, minha querida, que bom vê-la novamente. George, eu nunca acreditei que você fosse capaz de afastar-se de seu gabinete. Como é cansativo o primeiro dia de viagem, com toda a arrumação que se tem a fazer.
No primeiro dia, Gideon viu os Orlick sentados a uma mesa lateral para quatro. Sem a mínima razão para suspeitar o que havia na mente do homem, notou a pequena e ondulante Sra. Webb segurando seu marido pela mão, conheceu o Capitão Ruthven, achando-o um pouco reservado e até mesmo antipático, foi ao cinema dançou até depois da meia-noite e em seguida sentou-se observando um pequeno grupo de pessoas que ainda permanecia na pista de danças. A Sra. Webb balançava-se nos braços de um homem gordo e Gideon notou que seu marido estava dançando, um pouco distanciado, com uma garota que parecia mais ser francesa do Sul do que inglesa.
— Você não acha que toda esta turma começa a emergir como se fosse gente mesmo, e não parte de uma simples multidão? — disse Kate. — Vamos dormir, querido.
Marjorie Webb riu novamente quando desceu as escadas com seu marido, riu enquanto esperava que ele abrisse a porta do camarote, riu enquanto se despia, riu ainda mais quando o vestido ficou preso nos seus cabelos e o marido teve de soltá-lo. Ao fazer isto, deu um puxão e ela gritou:
— Está-me magoando.
— Desculpe, — disse John Webb, mecanicamente.
Ela conseguiu tirar o vestido e virou-se para encarar o marido, com um olhar vago, porém cheio de raiva.
— Não acredito que você esteja sentido.
— Eu pedi desculpas, — exclamou John Webb.
— Eu não acredito na sua sinceridade — respondeu Marjorie.
— Vá para a cama, sua cadela sem consciência. — John encravou os dedos nos cabelos da esposa e os repuxou até que ela gritou de dor. Arrastando-a pelo camarote, chegou a levantá-la do chão e a jogá-la sobre o beliche, tendo então soltado seus cabelos. Ao fazer isto, repuxou-lhe os cabelos mais uma vez, com mais selvageria. Ela permaneceu ao seu lado, prendendo a respiração durante longo tempo, com o corpo tremendo. John a observou, olhou para a vigia do camarote, com o maior sangue-frio, comparando a largura dos quadris de sua esposa com a dimensão desta. Certificou-se de que passaria por ali.
— Ouviu Marjorie dizer em tom leve:
— Você nunca me tratou desse modo antes.
— Se você se embebedar e dançar com qualquer um desses homens outra vez, vai ser muito pior — disse de uma maneira feroz. — Se você quer ir ao banheiro, que o faça e pare de choramingar.
O que houve de estranho, horroroso, de certa forma, foi que quando estavam ambos deitados, com uma cadeira entre os dois beliches, ele a ouviu sacudir-se e virar na cama e depois levantar-se. Abriu os olhos e, na luz refletida do banheiro, que tinha sido deixada acesa porque Marjorie não gostava de escuridão, ele podia ver a nuvem delgada dos seus cabelos, assim como sua silhueta. De repente, ela começou a puxar os lençóis que a cobriam e ele sentiu que ela estava totalmente nua, assim como completamente sóbria.
— Jack, eu jamais me embebedarei, pronto. Eu o amo tanto. Segure-me. Aperte-me. Deitou-se na cama a seu lado, quente e sedutora, e ele reconheceu o que sempre havia notado, assim como o que ele sempre havia odiado, isto é, que tudo o que ela tinha a fazer era chegar-se a ele para lhe despertar paixão.
John pensou. Por que não agora?
Ainda estava pensando assim, quase inconscientemente, quando Marjorie adormeceu. Pouco depois, ele, por sua vez, também adormeceu.
Táticas
— Agora — disse Allingham — temos que decidir como é que vamos enfrentar o problema. — Estava sentado, com Gideon, na sala de estar junto ao seu camarote. Os relatórios que preparara para a Organização das Indústrias Britânicas, isto é, sua cópia e a de Gideon, estavam sobre a mesa. Sobre esta havia também uma garrafa de uísque, água e gelo. As vigias estavam fechadas por causa do ar condicionado, porém, do lado de fora, o sol refletia-se nas águas calmas fazendo com que o teto da sala cintilasse. — Como é que você se sente, George?
Gideon respondeu:
— Acho que deve haver a maior franqueza, senhor.
— Você quer dizer, com a polícia americana? É isto?
— Tanto com a polícia como com os que negociam com artigos estrangeiros, em Washington. — Gideon manuseou sua cópia do relatório, a qual já estava bastante usada e amarrotada.
— Aqui o senhor tem por exemplo, cento e sete companhias britânicas, cada uma delas relativamente pequena, cada uma delas ligada a um ramo útil de exportação. Nenhuma pode ser incluída no que se denomina "Grandes Negócios", mas juntando-as todas temos uma exportação para os Estados Unidos equivalente a dez milhões de libras esterlinas em perigo. Isto é verdade, não é?
Allingham fungou. Era de menor estatura do que Gideon porém, assim mesmo, tinha um porte bem significativo, com abdômen pronunciado e bem alto. Usava uma camisa creme, de mangas curtas e calças xadrez claras, as quais estavam um pouco apertadas. Tinha a pele rosada e olhos levemente azuis, que não causavam muita impressão aos que o conheciam pela primeira vez.
— Os dados não mentem? — perguntou ele.
— Pelo menos estes, não.
— Você acha que isto é porque fomos nós que os preparamos, George? — Allingham afastou-se da mesa e apanhou um maço de cigarros que havia deixado na mesinha ao lado. Tirou um deles e recolocou o pacote no lugar. — Naturalmente, não é assim que você pensa. Você é um homem inteligente. Estes são os dados exatos do problema, isto é, tanto quanto sabemos, porém existem milhares, e não centenas, de firmas fabricando mercadorias que são exportadas para os Estados Unidos, calculo em um montante de aproximadamente vinte e cinco milhões de libras esterlinas, que podem estar sofrendo os resultados desta situação, e não somente as que produzem cerca de dez milhões. Muito embora eu pense que saiba de todas as firmas que, por qualquer motivo, suspeito terem sido vítimas de sabotagem no passado, não posso garantir que outras não tenham sido afetadas. A regra é sempre a mesma, ou seja, danos causados por fogo ou ácido a máquinas que trabalham na fabricação de mercadorias destinadas aos Estados Unidos, ou a matérias-primas, ou produtos acabados, que tenham o mesmo destino. Em outras palavras, trata-se de um negócio de vulto, no qual muita gente está envolvida.
Gideon disse:
— Nunca tivemos a menor dúvida sobre isto.
— Eu não me sinto seguro de que nos poderemos apresentar a qualquer dos importadores dos Estados Unidos ou no Canadá, com os dados que possuímos até agora, e impressioná-los com o que tencionamos fazer.
Gideon franziu as sobrancelhas.
— Eu julguei que o senhor estivesse certo de ser este o melhor meio de enfrentar o problema.
— Chame-me Ally — Allingham acendeu um cigarro e deixou a fumaça escapar pelos cantos de sua boca, enquanto observava Gideon sem deixar transparecê-lo. Prefiro ser um pouco cético e ter sempre algo escondido. Acho que você também faz isto, não é?
— Pensei que tivéssemos muita coisa escondida para revelar tio momento apropriado, — disse Gideon. — Descobrimos estes cento e sete fabricantes que tiveram suas máquinas ou produtos sabotados e cujos fregueses nos Estados Unidos conseqüentemente sofreram. Sabemos que existem muitas reclamações de importadores nos Estados Unidos quanto ao fato de as mercadorias que eles adquirem não estarem dentro dos padrões normais por causa desses sabotadores, e sabemos também que existe roubo em larga escala na Inglaterra, assim como desvio de mercadorias depois que estas deixam os portos ingleses. Sabemos que muitas das mercadorias que chegam a Nova York são dali embarcadas por caminhões ou estradas de ferro porém jamais chegam ao destino. Baseados nisso, devemos pedir ao FBI que nos ajude a descobrir os ladrões.
— Tudo muito claro, você acha? — disse Allingham. Gideon tinha começado a sentir-me um pouco irritado.
— Eu não o compreendo. Certamente que os fatos, duros como o sejam, são bastante claros, não é assim?
— O que eu quero que você pense é o seguinte, — disse Allingham, sentado na mesa do lado oposto a Gideon. — Suponhamos que escolhêssemos alguns dos fabricantes, digamos um de bolos, ou melhor, uma das firmas menores, e talvez duas destilarias independentes de uísque. Todos eles sofrem os resultados de furtos, perdas vultosas devidas a roubos e danos causados pela deterioração do produto devido à embalagem defeituosa. A lataria no caso dos bolos e as caixas no caso do uísque. Com estes temos um problema específico porém em pequena escala. O que é que você acha que aconteceria se levássemos somente estes casos à apreciação dos americanos para auscultar a reação deles? Eu vou a Washington discutir assuntos de negócios em geral, desempenhando assim minha função, ou melhor, a função da Organização das Indústrias Britânicas, isto é, para mostrar que as mercadorias que exportamos estão dentro dos padrões especificados. Pedirei, de passagem, mencionar as dificuldades que temos tido em casos específicos. Posso também mencionar que, por coincidência, você está no país para tratar do mistério dos relógios Rite-Time com as autoridades policiais de Nova York e Nova Jersey. Uma ótima coincidência, não acha, George? — A pequena boca de Allingham abriu-se em um sorriso. — Eu poderia dizer que sei que você está a par do fato de que investigações vêm sendo levadas a efeito no caso da panificação e das destilarias. Poderia sugerir que, como você está nos Estados Unidos, seria aconselhável e proveitosa uma discussão sobre o assunto. Que acha você disto? Se começarmos assim, poderemos, dentro de pouco tempo, ter uma idéia da atitude dos americanos.
Gideon não respondeu imediatamente. Allingham apagou o cigarro, que tinha acabado de acender, e começou a brincar com o maço enquanto Gideon cocava o queixo.
— Você não está convencido, George? — murmurou Allingham.
— Eu gostaria de pensar sobre o caso.
— Pouco mais ou nada poderemos fazer nos próximos quatro ou cinco dias, queiramos ou não.
Quando Gideon deixou de fazer qualquer movimento e limitou-se a olhar os dados mostrando os danos causados por sabotagem, roubo na Grã-Bretanha, assim como perdas em trânsito e depois da chegada a Nova York, Allingham prosseguiu:
— O que é que o está preocupando? Gideon sorriu levemente.
— Penso que seja o senhor. Por que é que o senhor está procurando enfrentar este problema com tanta cautela?
— Na minha opinião, acho que deveria fazer aquilo que você fez quando veio falar comigo há um mês atrás, — disse Allingham. — Você me disse então que tinha provas de dificuldades em várias fábricas e imediatamente nós lhe dissemos que sabíamos de muitos outros casos. Gostaria de saber se isto só está acontecendo na Inglaterra, isto é, se mercadorias provenientes da França, Alemanha, Israel ou África, ou melhor, de outras partes do mundo, estão sofrendo mais perdas ou avarias do que as nossas. Em outras palavras, trata-se de um problema geral ou apenas anglo-americano? Se o problema é mais extenso, então penso que seria melhor perguntarmos aos americanos sobre o que eles têm a dizer-nos e depois informá-los sobre o que sabemos. O resultado influenciaria o nosso modo de proceder, você compreende. Não podemos decidir sobre a tática ou estratégia a adotar até que saibamos das proporções do caso. Se o mesmo se refere somente a nós, teremos que seguir um caminho. Se, por outro lado, as dificuldades se aplicarem a outros países...
Gideon fez Allingham silenciar e disse:
— O senhor está com a razão.
— Naturalmente você não vai querer deixar o caso rolar?
— Não, — Gideon hesitou e olhou para a garrafa de uísque. — Posso tomar um trago?
— Naturalmente, meu caro. — Allingham serviu a bebida. — Diga quando chega. — Colocou água e gelo, fez uma pausa e perguntou: — Você gosta de muita água, não é?
— Não gosto de beber muito a esta hora do dia, — disse Gideon. — Obrigado. — E tomou um gole. — Viva! Existem ocasiões em que parece que eu levo a maior parte do meu tempo dizendo a meus auxiliares que eles devem, antes de tomar qualquer diretiva, examinar todos os ângulos do problema e se certificarem de que o que fazem hoje não os venha prejudicar amanhã. A maioria das pessoas tem uma visão limitada. Não acreditam que exista um mundo além daquele a que estão acostumadas. Não acreditam que exista um mundo além do seu. Mesmo os meus melhores homens têm uma visão limitada. — Tomou outro gole. — Pensei que minha visão fosse global.
— Não há dúvida de que é, — disse Allingham.
— Deixe que isto aconteça quando eu estiver pensando assim, por favor, — disse Gideon.
Allingham sorriu disfarçadamente e disse:
— Está bem, George. Agora que conversamos sobre o caso, acho que não nos devemos preocupar em relação ao mesmo durante o resto da viagem. Tenho que trabalhar em alguns problemas pessoais e você precisa pensar no caso dos relógios Rite-Time. Seria uma boa idéia se continuássemos com estas reuniões todas as manhãs. Assim nossas esposas ficariam livres de nós até o meio-dia e poderíamos trabalhar sem ser perturbados.
Gideon ainda estava sorrindo quando saiu do camarote e entrou no seu, onde encontrou Kate quase pronta, examinando as meias. Ela o encarou quando ele fechou a porta e seus olhos se abriram de forma fora do comum.
— Deve ter havido coisa muito interessante para que você esteja rindo tanto, — disse ela.
— Coisas muito engraçadas, — respondeu Gideon. Chegou-se a Kate, apertou-lhe as mãos e a beijou. — Eu estou aprendendo a trabalhar — disse — e penso que vou aprender também como é que se aproveita uma viagem. Você está com fome?
— Não muita.
— O que quer dizer que você não se importará de chegar tarde para o almoço.
— Com quem é que vamos beber? — perguntou Kate. — Justine vai levar Allingham para tomar um coquetel no camarote do engenheiro de bordo, portanto não há de ser com eles.
— Nós não vamos beber com quem quer que seja, — disse Gideon e depois a beijou. Somente quando recuou é que Kate sentiu realmente o que ele tinha em mente.
Gideon não encontrou qualquer mensagem para si no pequeno jornal de bordo e notou que este nada mais era do que uma miniatura que tratava principalmente de esportes, de cotações da Bolsa de Valores de Wall Street, assim como de anúncios de mercadorias e lojas em Nova York. Gideon, que estivera preocupado até aquela manhã, sentiu-se aliviado. Orlick manteve-se longe dele, e os outros passageiros que se sentavam à mesa do comandante eram pessoas de boa paz. Nos bares, nos jogos de convés e na piscina formavam-se grupos. Kate sentia-se perfeitamente em casa, sem se vestir mal ou espetacularmente. Seus olhos pareciam crescer de alegria a cada hora que se passava. Os salões, a sala de estar pintada de azul-turquesa e com janelas abrindo diretamente para o mar, estavam quase sempre vazios.
Tanta coisa acontecia — sob as vistas de Gideon, que só veio a dar conta disso bem mais tarde.
Marjorie Webb sorvia um martíni um pouco amedrontada, pensando que seu marido talvez soubesse ser este o terceiro que ela tomava.
Orlick estava no bar, onde um filipino tocava um acordeão vermelho-grateado e os garçons abriam caminho por entre as mesas. Orlick observava Kitty. Através de uma combinação feita antes da viagem, haviam travado conhecimento com um casal americano, de nome Brown, do qual ele tinha gostado de início, mas estava começando a senti-lo enfadonho. Brown era um homem de estatura mediana, de rosto bonito e feições finas, com olhos castanhos-escuros. Aproximava-se muito freqüentemente de Kitty e, enquanto observava isto, Orlick sentia-se cada vez mais enraivecido. Quem é que Brown pensava que era? Uma ligação puramente comercial não lhe dava o direito de aborrecer Kitty. A esposa de Brown, Elaine, mulher de cabelos bronzeados, pressionava suas pernas de encontro às de Orlick e se debruçava sobre este. Tanto ela como Kitty usavam vestidos de decote baixo. Orlick achou que o decote de Kitty era demasiado e resolveu que chamaria sua atenção sobre isto.
Justine Allingham desceu para o almoço toda borbulhante, sentou-se numa cadeira que o copeiro-chefe afastou para ela, e inclinou-se na direção de Kate. Ao mesmo tempo, o comandante Ruthven sentou-se à mesa e seu marido sentou-se ao lado de Kate.
— Kate, minha querida, — disse Justine. — Quero que você use de sua influência junto a seu marido para que ele entre em competição com o comandante Ruthven, que diz que pode indicar pelo menos onze criminosos internacionais a bordo — onze — e eu disse que George podia pelo menos dobrar este número. Será que você pode mesmo, George?
— Eu não garanto que possa, — disse Gideon. — Estou de folga. De qualquer forma, os criminosos interessantes não são aqueles que conhecemos, e sim aqueles que desconhecemos.
Justine tremeu ligeira e afetadamente.
— Quererá você com isto dizer que pessoas que parecem incapazes de cometer um crime poderiam estar sentadas nesta sala planejando algo horrível?
Gideon respondeu:
— A pergunta deveria ser sobre quantos deles estão fazendo isto e não se algum está.
— Oh! Você está exagerando.
Gideon sabia que não estava, e na sua mesa Marjorie Webb soluçou, olhando apreensivamente para o marido, o qual nada demonstrou.
Na sexta-feira pela manhã o céu se apresentava nublado, garoava e o mar estava encapelado a ponto de ser difícil andar no convés. No café da manhã poucas mesas foram ocupadas. Os passageiros em sua maioria subiram ao convés superior e se enrolaram em cobertores colocados sobre as cadeiras. Ali permaneceram, pálidos e quietos, fazendo que estavam lendo, porém na realidade sentindo todos os movimentos do navio. Somente uns poucos, bons marinheiros andavam ostensivamente pelo convés. Gideon, um pouco tonto mas não se sentindo mal, segurou no. corrimão enquanto ele e Kate se dirigiam para o lugar onde, juntamente com os Allingham, tinham sua cadeira. Justine já estava sentada, se bem que sua aparência fosse boa e seu olhar brilhante. Acenou para os companheiros. Gideon desaprumou-se um pouco e, quando Kate se sentou, Justine disse:
— Não sei o que nossos maridos fazem nos encontros que têm todas as manhãs, porém George parece outro homem desde que iniciamos a viagem.
— Então, você também notou?
— Notei, parece dez anos mais moço, — Justine declarou..— Eu diria que ele tem um andar muito mais vivaz, muito embora não hoje pela manhã. Ele trabalha demais, não é assim?
— Demasiadamente, — disse Kate.
— Ainda hoje pela manhã Ally estava dizendo que ele é um dos poucos homens realmente dedicados, George eu quero dizer, e devotados, Ele a olha algumas vezes com se... é melhor você não me escutar. — Justine sorriu e apanhou uma revista. — Você já leu isto?
O mar piorou com o decorrer do dia, com um vento norte, muito forte, batendo de encontro ao navio, fazendo com que este jogasse tanto longitudinal como lateralmente. Cabos de segurança foram colocados por todos os lados e os salões ficaram praticamente desertos. O vento zunia, vagas batiam de encontro aos flancos do navio e, vez por outra, a água penetrava por alguma vigia que não havia sido bem fechada. Ninguém ficou surpreendido com o cinema praticamente vazio naquela noite e somente um terço dos passageiros desceu para o jantar.
John Webb, no banheiro, ouvindo os suspiros e gemidos de Marjorie, sabia muito bem que se quisesse levar adiante seu plano era este o momento propício.
Entrou no camarote. Marjorie estava deitada de costas, pálida, com os olhos pesados e sem brilho. Encheu um copo com água tirada de uma garrafa térmica, apanhou um comprimido e dirigiu-se para sua esposa.
— O médico de bordo me deu este comprimido, — disse ele, mentindo, pois, na realidade, o havia furtado alguns meses antes no consultório de um médico. O comprimido era de morfina e a poria a dormir durante algumas horas. — O médico disse que lhe faria bem. Sente-se e tome-o.
— Não me posso sentar, Jack. Honestamente, não posso. Ele pôs o copo em lugar seguro, onde não se iria derramar, colocou um braço por trás de sua esposa e a levantou. Colocou o comprimido em sua boca e a fez engoli-lo, o que ela conseguiu com dificuldade. Apertou-lhe o nariz e colocou sua cabeça para trás esperando que ela fosse vomitar. Entretanto, ela se recuperou. Colocou-lhe o copo na boca e fê-la tomar alguns goles mais. Ela engoliu novamente e o encarou com um olhar patético.
— Eu me sinto tão mal, horrivelmente mal, — disse Marjorie.
— Dentro de poucos minutos você nada sentirá, — respondeu o marido, deixando-a recostar-se nos travesseiros. — Volto daqui a pouco para ver como você está passando.
Ela olhou para a porta quando ele saiu, sentindo-se demasiadamente enjoada para fazer qualquer outra coisa a não ser lamentar-se. Não sabia que o marido lhe tinha dado um comprimido que faria efeito dentro de cerca de dez minutos e a faria dormir por muitas horas. Pouco depois, suas pálpebras começaram a ficar pesadas e estirou-se na cama, com a cabeça balançando para os lados.
Vinte minutos depois, John Webb voltou ao camarote.
Seu coração batia fortemente à proporção que fechava a porta e se dirigia para a cama da esposa. Ela estava em meio a um sono profundo, num estado que fazia pena. Mesmo assim, ele não demonstrou qualquer compaixão. John sabia que tinha de fazer rapidamente aquilo que planejara, pois, do contrário, seus nervos falhariam. Puxou o lençol e o cobertor que a cobriam. Marjorie estava vestida somente com uma camisola fina. John a despiu e enrolou a camisola.
Debruçou-se sobre a esposa e procurou abrir a vigia, que estava presa por três parafusos de latão que tinham sido apertados naquela mesma noite pelo camaroteiro. John apanhou seu canivete, colocou-o no olhai do parafuso de cima e começou a girá-lo, com o maior cuidado para não tocar no parafuso com os dedos. Levou muito tempo para desenroscar o parafuso. O segundo foi mais fácil, porém o terceiro foi tão ruim como o primeiro. Finalmente, conseguiu afrouxar os três, enrolou a mão num lenço, e tentou abrir a vigia, que era muito mais pesada do que ele pensava. Por alguns minutos teve receio de que houvesse calculado mal, mas gradualmente conseguiu abri-la. Desse lado do navio havia menos vento e o mar estava relativamente calmo, muito embora pudesse ouvir o barulho da água e ver as luzes refletidos sobre esta. Encostou a vigia, afastou-se do beliche e olhou para a esposa.
Era agora ou nunca.
Ele a suspendeu, segurando-a estirada, com os pés na direção da vigia. Empurrou-a até que as pernas começaram a roçar nas bordas. Continuou a empurrá-la, receoso de que os quadris não passassem pela abertura. A pele de sua mulher brilhava, repentinamente bela. John achou o trabalho que estava fazendo muito pesado e parou para descansar. Estava suando. Metade do corpo de Marjorie já havia passado pela abertura, porém seus quadris pareciam não querer passar. Em pânico, ele pensou que alguém talvez estivesse olhando para o mar, encostado na grade, ou mesmo através de outra vigia. Tinha que fazê-la passar depressa, bem depressa, muito depressa. Forçou mas o corpo não se mexeu. Pensou sobre quão bobo tinha sido, pois devia tê-la feito passar com a cabeça para a frente e os braços espichados sobre esta. Agora era muito tarde para mudar de posição. Segurou-a com uma mão, apanhou a banqueta da penteadeira, ficou de pé sobre o beliche, colocou o corpo de Marjorie sobre a banqueta, e começou a espremer os quadris desta para forçá-los através da vigia, primeiro de um lado e depois do outro. Deus! Como isto estava tomando tempo! A boca de John estava seca, seus lábios retesados e o suor lhe corria pela face. Espremeu as carnes flácidas de sua esposa durante pelo menos cinco minutos, e, repentinamente, sentiu que os quadris tinham finalmente passado pelo buraco apertado. Um balanço do navio fez com que ela escorregasse mais alguns centímetros para fora. Em um instante de pavor, ele a segurou por debaixo dos ombros e a empurrou para fora até que, de repente, ela escorregou de vez. Era quase inacreditável. Enquanto ela escorregava, recuou e viu primeiro a cabeleira, depois os braços, os cotovelos, e finalmente as mãos desaparecerem.
A não ser o barulho do vento John nada mais ouviu. Sentiu-se mal e tonto, como se fosse desmaiar, mas depois de alguns minutos recuperou-se o bastante para lembrar-se de que ainda havia muito a fazer. Em primeiro lugar, precisava desfazer-se da camisola e do robe de Marjorie. Depois, teria que fechar a vigia, apertando bem os parafusos para que ninguém notasse que esta havia sido aberta. Sabia exatamente o que iria dizer, isto é, que sua esposa estava muito enjoada e havia saído do camarote para ir tomar ar no convés, que tinha feito isto várias vezes durante o dia, que ela tinha feito isto mais uma vez, durante a noite, enquanto estava dormindo.
Começou a tremer quase sem poder parar.
Último Dia de Viagem
Hopkins, o camaroteiro de Gideon, preto como ébano, tinha todas as características dos negros que se dedicam à carreira do palco. O cerimonial do chá matutino o distraía muito, porém chegava sempre na hora certa, isto é, às oito e meia. Na manhã do sábado, o último dia da viagem, colocou a bandeja ao lado de Kate, dirigiu seu gracejo usual dizendo que chá era muito melhor do que café, colocou os sapatos de Gideon ao lado da cama deste, espigou-se como se tivesse sido atingido por alguma coisa e exclamou:
— Que Deus me perdoe, eu esqueci.
— O que foi que você esqueceu? — perguntou Gideon, preguiçosamente.
— O recado, senhor. O recado que recebi do camaroteiro do comandante. O comandante manda dizer que teria muita honra em falar com o Sr. Gideon o mais depressa possível, em seu camarote.
Gideon sentiu que na realidade Hopkins não se tinha esquecido de nada e estava somente procurando fazer encenação. Não tinha qualquer intenção de estragar o espírito de sensacionalismo do tripulante.
— Antes do café da manhã? — perguntou Kate.
— Sim, senhora. Nós, americanos, costumamos fazer muita coisa antes do café da manhã e talvez seja por isto que não temos tempo para o chá matutino. — Hopkins continuou, com um sorriso de que se sentia satisfeito.
— Suponho que isso significa a chegada de alguma mensagem da Scotland Yard, — disse Kate.
— Seria a primeira, portanto não devemos reclamar, — Gideon respondeu filosòficamente. Enquanto tomava o chá, ele se vestiu. Kate continuou na cama e ele procurou relembrar dando ênfase à palavra "relembrar", os casos urgentes que havia deixado: Fadiman, naturalmente, e sobre sua família. Também quanto a Lemaitre e o caso dos Correios. Havia mais uma dúzia de problemas e na medida de seu raciocínio, podia ser mais -notícias sobre o caso dos relógios Rite-Time, Ao sair do camarote, de repente pensou que o recado do comandante podia ter algo que ver com alguma emergência em sua casa, e esperou que isto não tivesse ocorrido a Kate.
Notou que era esperado em todo o caminho. Primeiro uni camaroteiro, depois outro, o guiaram de convés a convés, até que emergiu do convés de passeio e subiu para a ponte de comando, dirigindo-se para os aposentos do comandante. O mar tinha a cor azul do Mediterrâneo. Quase não havia nuvens no céu. Um peixe saltou da água e desapareceu novamente. Lembrou que Kate gostaria de vê-lo.
O capitão Ruthven estava em seu camarote.
— Obrigado por ter vindo tão depressa. Inspetor. — Ele estava muito formal. Gideon já notara anteriormente que era muito mais formal do que os americanos geralmente o são. Era um homem a quem, aparentemente, se levava muito tempo para conhecer bem, mais parecido com Scott-Marle do que com a concepção popular de um comandante de grande transatlântico. Ruthven disse:
— Tenho dois problemas e Nova York sugeriu que eu conversasse com o senhor sobre os mesmos. Ficarei grato pela atenção que o senhor me puder dar.
— Se é alguma coisa que possa fazer, — disse Gideon com uma sensação de alívio, pois sentiu que não tinha que se preocupar com algo que tivesse acontecido à sua família.
— Parece que perdemos um passageiro, caído ao mar — disse Ruthven, chocando Gideon, o qual passou a prestar muita atenção. Trata-se da esposa de um dos nossos passageiros ingleses uma Sra. Webb, Marjorie Webb. — Ruthven olhou para Gideon como se esperasse que este se lembrasse dela.
— Gideon disse:
— O nome é vagamente familiar. Caída ao mar, o senhor disse?
— O marido diz que ela estava constantemente muito enjoada e a camaroteira o confirma. Ela ia freqüentemente ao convés tomar ar, pois muitos dos que sofrem deste mal têm a impressão de que isso é um dos melhores remédios. De acordo com o marido, ela saiu do camarote durante a noite e não mais voltou. Quando acordou, por volta das seis e meia, ela não estava mais lá. Em vista disso, saiu a procurá-la e, não a tendo encontrado, notificou-nos sobre o desaparecimento. Ela não foi encontrada. Não está na enfermaria ou em qualquer dos salões, lavatórios etc. Já me certifiquei de que uma busca foi dada em todo o navio.
Gideon interveio:
— Estou começando a me lembrar dela, não era uma mulher de pequena estatura, com cabelos crespos, acompanhada por um marido de olhar melancólico?
— Isto mesmo, — concordou Ruthven. — Inspetor vou ter uma entrevista aqui em meu camarote, às dez e meia, com o Sr. Webb. Ficaria muito grato se o senhor fizesse uma vistoria no camarote dele enquanto ele estiver comigo.
— De que é que o senhor suspeita?
— Gostaria de me certificar de que não há nada para suspeitar, — disse Ruthven com o vislumbre de um sorriso.
— Farei com todo o prazer o que o senhor pede — prometeu Gideon.
— Obrigado. Destacarei um camaroteiro para levá-lo até lá às dez e meia e não deixarei Webb sair daqui até que o senhor me avise ter terminado a vistoria.
— Não demorarei mais do que o necessário.
— Excelente. — Ruthven fez uma pausa momentânea antes de prosseguir. — O outro assunto também se refere a um passageiro inglês, e é algo que gostaria de evitar intrometer-me.
Gideon esperou.
— Um Sr. Dirk Orlick atacou ontem à noite o Sr. Inglemann Brown, e Brown, que é cidadão americano, saiu com o nariz quebrado assim como com a boca dilacerada. Avisei Nova York, normalmente, sobre o acontecimento, e recebi um pedido através da Chefia de Polícia para consultá-lo a respeito do caso. — Ruthven pronunciou estas palavras de uma forma acentuada e não fez qualquer pergunta. Entretanto, seus olhos mostraram um que de curiosidade.
— Orlick, — disse Gideon asperamente. — Será que Brown tem intenção de acusá-lo formalmente?
— Não demonstrou isto..
— Se o senhor relatar o caso em todos os seus detalhes, quando desembarcar, será que Brown poderia fazer esta acusação mais tarde?
— Não estou muito familiarizado com a lei, mas penso que sim.
— Talvez fosse boa coisa se ele resolvesse processar Orlick, pois assim poderíamos tê-lo à mão a qualquer momento que precisarmos. — Gideon pensou um pouco e perguntou: — O pedido da Chefia de Polícia estava assinado por Nielsen?
— Sim.
— Posso deixar o caso de Orlick no pé em que está?
— Certamente, se é assim que o senhor quer.
— Gostaria de mandar um telegrama a Nielsen recomendando que preste atenção a Inglemann Brown em Nova York, — disse Gideon.
— Terei todo o prazer em providenciar para que isso seja feito — Ruthven sorriu. — Inspetor, eu o convido a tomar um aperitivo por volta do meio-dia. Talvez estejam presentes o comissário e o imediato.
— Terei muito prazer em comparecer — disse Gideon. Gideon tomou o melhor café da manhã desde que havia entrado a bordo. Não teve qualquer dificuldade em apresentar desculpas a Allingham, e às dez e meia foi conduzido ao camarote de Webb. Entrementes, procurara lembrar-se de tudo o que sabia sobre a mulher desaparecida, recordando que ela era um pouco trêmula, provavelmente como resultado de excesso de bebida, e um pouco cautelosa com o marido. Cautelosa? Seria este o termo apropriado? Gideon pôs de lado estes pensamentos, enquanto dava busca no camarote. Isto o fez lembrar tempos passados quando ele era o primeiro policial a chegar à cena de um crime. Fazia muito tempo que não experimentava essa sensação. Dando a busca agora, nada encontrou de significativo, porém quando terminou e ia saindo, parou na porta do camarote, olhou para o interior deste, o qual, ainda não tinha sido tocado desde que Webb relatara o desaparecimento de sua esposa. Ela poderia ter caído ao mar ou poderia ter sido empurrada através da vigia e, neste caso, a vigia que ele olhava era a mais provável de ter sido usada. Será que os criminosos também pensavam assim? Notou que o camaroteiro-chefe e o detetive de bordo o olhavam, ciumentamente alertas, e suspeitou que estes sentiam ter ele descoberto algo sobre o qual não tinham pensado. Gideon dirigiu-se à vigia, que estava fechada com parafusos bem apertados, e o detetive, um homem alto, magro, de cabelos crespos já grisalhos, deu um passo à frente.
— O camaroteiro fechou a vigia ontem à noite. Sr. Gideon.
— E os parafusos estão muito apertados para serem afrouxados com a mão, — disse o camaroteiro-chefe. Era um homem moço, macilento, com olhos negros profundos.
— As únicas impressões digitais encontradas foram as do. camaroteiro e da Sra. Webb, adiantou o detetive.
— Alguém já abriu a vigia depois que a mulher foi dada como desaparecida? — perguntou Gideon.
— Penso que não, — respondeu o camaroteiro-chefe.
— Poderíamos abri-la agora? — indagou Gideon. Gideon não fez qualquer comentário enquanto observava o camaroteiro-chefe usar de uma ferramenta especial, parecida com um martelo de cabo curto, para girar os parafusos. Estes se afrouxaram com relativa facilidade. Os três homens dirigiram-se para a vigia e examinaram a superfície desta. Aparentemente, todos eles tiveram, ao mesmo tempo, impressão idêntica. A parte superior e a inferior estavam cobertas de ferrugem e sal, estando a pintura escamada e com uma crosta de ferrugem produzida pela água salgada. De cada lado da superfície, entretanto, o sal havia sido limpo. Parte da tinta havia saído também e algo diferente podia ser notado onde a tinta fora retirada. Gideon deu um passo atrás.
O médico de bordo, um americano de origem irlandesa, não teve a menor dúvida.
— Há sangue e pele humana no lugar da tinta, o bastante para indicar que um corpo foi forçado através da vigia. — Olhou para Gideon como se esperasse ser contraditado. — E não faz muito tempo que isso aconteceu.
— Lamento muito que seja um caso para os tribunais americanos julgarem, — disse Gideon pouco depois ao Capitão Ruthven. — Se isto tivesse acontecido em um navio inglês, Webb poderia ser recambiado para julgamento em sua pátria. O senhor se entenderá com a chefia de polícia, Capitão?
— Certamente que o farei, — disse Ruthven, e continuou, com expressão cruel: — Depois disto, eu falarei com o Sr. Webb
Rumores do desaparecimento de um passageiro espalharam-se pelo navio. Gideon e Kate ouviram várias pessoas comentar o fato. Gideon notou que o apontavam, mas ninguém teve o coragem de lhe perguntar sobre o que se havia passado. Desejava que nada tivesse acontecido, porém isso não queria dizer que estivesse com pena da Sra. Webb. Pelo pouco que vira na mesma, a impressão que lhe pairava na mente era a de uma alcoólatra contumaz, e ele era um homem acostumado a lidar com a morte. Entretanto, o fato tirou a alegria do último dia de viagem, da Noite de Gala, e até mesmo da descoberta do fato de que Dirk Orlick tinha tanto ciúme de sua esposa que havia chegado ao ponto de atacar Brown selvagemente.
Depois da alegria um pouco forçada do jantar de gala e do último baile, Gideon sentiu-se exausto quando chegou ao camarote. Kate também parecia cansada. Quando se deitaram, já passava das duas horas e, mesmo assim, ainda havia muito o que arrumar na manhã seguinte antes de o navio atracar. Gideon sentiu que o final da viagem era um lamentável anticlímax porém mesmo assim caiu na cama e dormiu profundamente.
Repentinamente, quando ainda parecia ser o meio da noite, bateram na porta do camarote. Gideon ouviu o barulho de longe e depois Kate dizendo:
— O que é que há?
Gideon despertou de todo. O dia amanhecia mas o camarote ainda estava escuro. O bater na porta continuou. Puxou os lençóis para um lado enquanto Kate se cobria com um agasalho. Abriu a porta, mal-humorado, com os olhos parcialmente fechados e com a boca seca. Um homem alto, elegante, robusto, apareceu no limiar, sorrindo para Gideon. Devia ter cerca de um metro e oitenta de altura, era muito forte, grisalho, e estava muito bem vestido. Seu terno tinha um corte tipicamente americano, assim como o chapéu que segurava na mão.
— Alô, George, — ele disse. — Lembra-se de mim?
— Kurt Nielsen, — exclamou Gideon.
— Você se lembra mesmo. Vim para bordo em companhia do prático — disse Nielsen — mas não queria acordá-lo tão cedo. George, lamento ter que lhe dizer, porém temos muito o que fazer antes de você desembarcar e minha senhora quer que você e sua esposa venham tomar o café da manhã conosco. — Sorriu ao lado de Gideon e disse: — Não se preocupe, Sra. Gideon, não me vou meter em sua vida agora, mas terei muito prazer em conhecê-la mais tarde. — Olhou novamente para
Gideon e indagou: — Quanto tempo você vai demorar, George?
— Meia hora, — disse Gideon.
— Vinte minutos, — disse Nielsen e seus olhos brilharam. — Em Nova York costumamos andar depressa.
Enquanto Nielsen falava, ouviram-se passos no corredor é, antes que pudesse ver o que se passava, dois homens se postaram atrás dele, cada um com uma máquina fotográfica. Gideon quase ficou cego com os flashes que espocavam um após o outro.
Nielsen sorriu:
— O que foi que eu lhe disse?
Pressa
Havia algo de curioso quanto à energia de Nielsen, o que Gideon se lembrava bem de ter notado quando se haviam encontrado anteriormente em Londres. Parecia que o detetive nova-iorquino queria sempre fazer tudo na metade do tempo que os outros levariam para executar, como se fosse incapaz de esconder seus pensamentos mesmo que pudesse conter-se fisicamente, meia hora depois de ter saído do camarote, levando os fotógrafos consigo, batia novamente à porta. Kate tinha-se aprontado apressadamente e usava um robe cor-de-rosa.
— Muito prazer em conhecê-la, Sra. Gideon, — disse Nielsen com olhar admirado, e apertou-lhe a mão. — Eu falei sério quando disse que esperávamos os dois para o café da manhã, isto é, se a senhora puder agüentar mais uma hora.
— Naturalmente que posso, — disse Kate.
— E, como estamos numa manhã de domingo, será boa oportunidade para lhe mostrar Nova York sem sofrer os tropeços do tráfego, pois nós também temos este problema, George. Você não precisa preocupar-se com a Alfândega, pois já providenciei para que lhe sejam dadas todas as facilidades. Até logo, Kate. — Dizendo isto, tomou Gideon pelo braço e o levou para o vestíbulo mais próximo, onde um grupo de fotógrafos os esperava. — Avisei a eles que você lhes concederá cinco minutos. — Nielsen falou com um sorriso no canto da boca. — Quando lhe perguntarem se você gosta de Nova York, basta dizer que é uma beleza. Não precisa dizer mais nada. Estarei a seu lado para ajudar.
Tinham sido instalados microfones num canto do vestíbulo, fazendo com que o ambiente desse a impressão de tratar-se de uma conferência em pequena escala, assim pensou Gideon. As perguntas vieram rapidamente, algumas delas com um sotaque que quase não conseguiu entender.
— "É esta sua primeira visita a Nova York, Inspetor?" "Sim". "A primeira aos Estados Unidos?" "Sim". Qual é o principal motivo de sua visita?" "Consultas sobre o melhor modo de capturar alguns homens maus que trabalham em ambos os lados do Atlântico". — Alguém sorriu e um flash espocou. — "O senhor veio até aqui para investigar especificamente algum crime, Inspetor?" "Todos os crimes são especiais para mim". Houve mais alguns sorrisos e Nielsen, sentado num canto oposto a Gideon, também sorriu como quem aprovava. — "O senhor sabe de alguma coisa sobre a passageira desaparecida?" "Cheguei a conhecê-la". "O senhor sabe se foi acidente ou algo diferente?" "Não". "Se foi assassinato, Inspetor, onde será julgado o caso, aqui ou na Grã-Bretanha?". "Se vocês não sabem da resposta a esta pergunta, indaguem ao Capitão Nielsen". "Sua senhora o acompanha, Inspetor?" "Sim". "Ela está de férias?" "Naturalmente que está". Em que hotel o senhor vai-se hospedar, Inspetor?"
Nielsen exclamou: — Em nenhum hotel. Ficarão em companhia de alguns amigos, nos primeiros dias.
Gideon fez todo o possível para esconder sua surpresa.
— "Em que ponto acha o senhor comparável a criminalidade em Londres e em Nova York, Inspetor? "Ambas as cidades parecem que têm muitos problemas". "O senhor acha que os policiais devem andar armados?" "Não os policiais ingleses". "Mas o senhor acha que os americanos devem?" "Não posso achar nada, mais sei que a polícia francesa, a alemã, a italiana, assim como a de muitos outros países anda armada. Nada há de anormal neste caso de policiais armados. Na realidade, é muito menos comum os policiais andarem desarmados". "O senhor prendeu Fadiman pessoalmente?" "Não". "O senhor acha que ele matou todas aquelas mulheres?" "Cabe ao júri decidir". "Quantos filhos tem o senhor, Inspetor?" "Seis". "Seis!"
Nielsen interrompeu dizendo:
— Eu lhes concedi cinco minutos e vocês já tomaram sete. Está bem rapazes, vamos acabar.
— Nós nem sequer começamos...
— Arranjarei uma conferência em Center Street hoje à tarde ou amanhã, — prometeu Nielsen. — Obrigado a todos. O.K., George. — E saíram.
Deram uma olhada no camarote dos Webb, onde homens da Delegacia de Homicídios trabalhavam na sua rotina costumeira.
— Um assassinato sem o corpo da vítima não é nada bom, — disse um deles.
— Havia quatro homens no camarote e todos, com exceção de um, pararam a fim de olhar para Gideon. O quarto continuou a tirar fotografias. Houve apresentações, sorrisos, apertos de mão, antes que Nielsen abrisse caminho para o gabinete do comissário de bordo, onde havia um pequeno grupo de pessoas. Depois os dois entraram num camarote que fora reservado para servir de gabinete a Nielsen.
— Não ficaremos aqui por muito tempo — declarou Nielsen.
— Quero vê-lo livre de perguntas durante o dia de hoje a fim de que você possa divertir-se. Tenho algumas notícias para você,
— prosseguiu. — Uma remessa de quinze mil relógios Rite-Time desapareceu do armazém de uma empresa transportadora em Trenton, Nova Jersey, há duas noites. Na semana passada tivemos informação sobre o desaparecimento de quantidades apreciáveis de isqueiros, canetas-tinteiro e jóias, tudo isto roubado em vários lugares diferentes.
Gideon franziu as sobrancelhas.
— Em que é que você está pensando? — perguntou Nielsen.
— Grandes remessas são roubadas de quando em quando. Depois, passam-se grandes períodos sem que haja roubos. Está certo?
— Está, sim. Gideon disse:
— Parece que existe apenas um lugar onde os ladrões escondem a mercadoria roubada até que a possam embarcar para o exterior, ou distribuí-la. Da forma que quando as remessas chegam à Inglaterra parece que a mercadoria é armazenada em grosso.
— É esta também a minha impressão, — concordou Nielsen.
— Você já conseguiu descobrir algum dos responsáveis?
— Não, ainda não conseguimos. — Nielsen tinha o costume de esfregar o polegar no dedo indicador como se estivesse convidando alguém a lhe dizer algo. Este movimento fazia um pequeno ruído. — O que é que você sabe sobre Orlick?
— Deve ter sabido que eu viajava no mesmo navio.
— Assim, se a finalidade dele é de entrar em contato com seus sócios aqui, é possível que se mantenha escondido por alguns dias — disse Nielsen. — Penso que lhe posso dizer algo mais sobre Orlick. Ele tem passagem reservada no Queen Elisabeth para voltar a Southampton. Não na mesma viagem em que você regressará, mas na seguinte. Assim sendo, ele não parece estar com muita pressa. O que foi que aconteceu com ele a bordo?
— Meteu-se em uma encrenca porque tem ciúmes da esposa, — disse Gideon, e informou tudo aquilo que sabia.
Nielsen ouviu o que ele tinha a dizer, com a máxima atenção, obviamente satisfeito. — O que você disse pode ser de grande valor.
— Esperava que você pensasse assim, — disse Gideon. Nielsen olhou para Gideon com um sorriso curioso, meio amigável, meio zombeteiro.
— Como é que você agiria num caso como este? — perguntou.
— Eu faria todo o possível para que Brown processasse Orlick. Este teria que pagar bom preço para o calar, ou para se defender. Qualquer que fosse a diretiva tomada, Orlick teria tanto em que pensar que, nesse ínterim, podia dar um passo em falso.
— Assim sendo, tomarei todas as providências para que Brown seja observado, — decidiu Nielsen. — E procurarei certificar-me se ele pode ser forçado a causar dificuldades a Orlick. — Nielsen bateu as mãos, fazendo um ruído forte e perguntou. — George, o que temos ainda a falar?
Havia pelo menos uma dúzia de assuntos, não somente sobre aqueles de interesse mútuo, como também sobre o caso da sabotagem. Gideon notou que, do ponto de vista dos seus interesses nacionais, Nielsen parecia estar a par de todos os detalhes, ou seja, nomes, quantidades, datas, ou melhor, tudo que poderia ser útil. Seu respeito e amizade pelo homem que tinha à sua frente aumentaram. No momento, pensou, a melhor tática era a de deixar Nielsen usar sua própria cabeça, deixando-se levar por qualquer caminho que seu colega quisesse. Esta seria provavelmente a melhor posição.
Pouco depois das oito e meia bateram à porta.
— Quem é? — perguntou Nielsen.
O comissário de bordo apareceu na porta, com uma expressão pálida e inquisitiva.
— Como é que as coisas estão indo com vocês? — E antes que qualquer um dos dois pudesse responder, prosseguiu. — O Capitão Ruthven convida-os a tomar café com ele, se isto lhes convier. — Obviamente, não lhe ocorreu que não seria de todo bem aceito. — A conversa que ele terá com vocês não demorará mais de dez minutos, e meia hora depois o senhor poderá desembarcar, Inspetor.
Os dois tomaram café nos aposentos do comandante, tiveram um encontro com o pessoal da imigração e se despediram. Gideon não viu os Allingham, porém sabia que iriam hospedar-se em um dos hotéis da mais alta classe na área do Central Park. Camaroteiros, oficiais e passageiros estavam agrupados no vestíbulo principal. A bagagem dos passageiros estava sendo descarregada.
— Por aqui, — disse Nielsen. Vamos com pressa, parecia estar dizendo. — Você já tem a sua ficha de desembarque? Está bem. — Segurou o braço de Kate e disse: — Não escorregue, minha amiga. Quero vê-la bem arrumada quando se encontrar com minha esposa. — Passaram a um galpão imenso, onde um grupo de guardas da Alfândega, uniformizados, estavam de pé por trás de grandes mesas, dúzias de carregadores esperavam com carretas vazias e outros já estavam transportando bagagem para pontos designados pelas letras de um enorme alfabeto, penduradas em vigas de aço. — Em menos de meia hora, isto aqui será um inferno. — Nielsen declarou. Abriu caminho para as sete maletas e três pequenas bolsas de mão dos Gideon. Um guarda alfandegário, que era obviamente de descendência chinesa, dirigiu-se a eles.
O guarda apresentou um formulário de declaração de bagagem, que os Gideon haviam preenchido a bordo. Sorrindo liberou toda a bagagem.
— Kate! — exclamou Justina Allingham, saindo repentinamente de trás de uma enorme pilha de bagagem. — Tinha esperança de que haveríamos de nos encontrar por aqui, você não acha isto horrível? Querem abrir toda a nossa bagagem. Tenho a impressão de que qualquer dia destes Ally vai dar um estouro. Fica tão zangado com o pessoal da Alfândega, se bem que os piores sejam os da Alemanha Oriental. Minha querida, você jamais...
Os Gideon conseguiram sair do galpão e tomar um grande carro preto em menos de quinze minutos. Por cima do galpão havia algo que parecia uma grande ponte montada sobre vigas. Longa fila de táxi esperava. Carros particulares brilhavam e alguns veículos se movimentavam sobre uma rua calçada com paralelepípedos, coisa que surpreendeu tanto a Gideon como a Kate. — Paralelepípedos, — sussurrou ela. O local era escuro, sujo e cheio de confusão.
— Esta é a auto-estrada do West Side, — disse Nielsen. — Vamos atravessar a cidade, portanto não a temos de tomar agora.
Um motorista preto fechou a porta e passou à direção. Gideon sentiu calor, muito mais do que geralmente sentia em Londres. O suor escorria-lhe pela face.
— Kurt, — ele disse. — Por que é que não vamos diretamente para o nosso hotel?
— O que é que você está dizendo? — perguntou Kate, com olhar brilhante e abafada pelo calor.
— Você vai para o seu hotel, — disse Nielsen, em tom enganador. — Não quis deixar que os outros soubessem imediatamente. Se eu dissesse abertamente, você teria repórteres de jornais atrás de si o dia todo e isto lhe daria uma má impressão de Nova York. Kate, minha esposa espera que você a visite freqüentemente enquanto estiver por aqui. Moramos em um apartamento na Greenwich Village, do lado oposto da rua onde está o hotel em que vocês vão ficar. Estarão bem mais perto da central de polícia do que se estivessem ficado em um hotel "do centro da cidade. No apartamento do hotel terão uma kitchenette onde poderão, caso desejem, preparar o café da manhã. Agora estamos na Rua 50, andando para leste, isto é, na direção da Inglaterra. Não dêem importância se eu falar como se nunca tivessem visto um mapa de Nova York, pois assim de nada esquecerei. Estas casas de pedra marrom têm cerca de cem anos de existência e vão ser agora demolidas para dar lugar a novas construções. As ruas têm sempre a direção leste-oeste, enquanto as avenidas correm de notre a sul e todas elas, na parte baixa, isto é, no que vocês conhecem como centro da cidade, têm mão única. É preciso algum tempo para se aprender. Agora mesmo estamos atravessando a Décima Avenida.
Os Gideon puderam vislumbrar ruas mais estreitas e mais sujas do que esperavam, além de pavimentação relativamente esburacadas. Vez por outra, um edifício moderno e reluzente, muito alto, fazia com que olhassem para cima. Repentinamente chegaram à Broadway. As ruas estavam quase desertas. Havia cartazes e anúncios enormes, limpadores de ruas com olhar cansado, alguns policiais e uns poucos táxis, grandes e velozes.
— Times Square — anunciou Nielsen. — Viremos dar uma olhada aqui uma noite dessas. Vocês não reconhecerão o lugar. Esta é a rua 42. — De repente, o carro parou em uma esquina e Nielsen prosseguiu. — Eis um lugar onde não poderíamos deixar de parar. — Abriu a porta e, debruçando-se, convidou-os a sair. — Este é o meu ponto favorito em Nova York, a esquina da Rua 42 com a Quinta Avenida.
Continuou falando sobre a Biblioteca Pública de Nova York, sobre o edifício Empire State, o Edifício Chrysler, porém Gideon ou Kate quase não o ouviram, pois estavam olhando para a Quinta Avenida, com seus enormes edifícios contrastando contra o azul do céu, tanto num sentido como no outro. Poucos táxis e carros particulares se locomoviam em sua extensa faixa de tráfego. Gideon bateu com a mão na cabeça:
— A umidade relativa do ar está bem alta hoje, — salientou Nielsen. — Acho melhor irmos até a casa para nos refrescarmos um pouco. — Ajudou os Gideon a entrar no carro, brincando tanto com um como com o outro. — Depois do almoço, eu os levarei para um passeio bem grande e então vocês terão a oportunidade de ver, tudo, tudo.
Pouco depois, faziam uma curva e entravam na parte baixa da Quinta Avenida, onde a arquitetura dos edifícios parecia ser mais ou menos comum. O carro parou em frente a um edifício de tijolos marrom-avermelhados. Neste momento um homem se apresentou.
— Eu tomarei conta do carro, Capitão.
— Obrigado, Sam. — Nielsen ajudou Kate a sair, guiou-os por um corredor mais ou menos escuro e os fez entrar em um elevador que mal dava para três pessoas robustas. Pressionou o botão do décimo quarto andar e o elevador pareceu arrastar-se para cima. Quando chegaram ao décimo quarto, uma porta se abriu e uma mulher jovem saiu do apartamento sorrindo e dando boas-vindas. Gideon: "Eu não esperava que Nielsen tivesse uma filha dessa idade". A mulher tinha cabelos claros, dourados, olhos azul-claros e feições atraentes em um rosto comprido cheio de expressão e caráter. — Claire — disse Nielsen — quero apresentar você a Kate e George Gideon. George, quero que você conheça minha esposa.
Houve uma série de apertos de mão.
— Podem ficar tão surpreendidos quanto quiserem, — declarou Claire Nielsen. — Todos acusam Max de gostar de gente moça. Entretanto, é bem possível que ele seja mais moço do que parece.
— Max? — indagou Gideon, olhando com surpresa para Nielsen. — Pensei que seu nome fosse Kurt.
— Familiarmente é conhecido como Max, — disse Claire. Ela segurou a mão de Kate, observando a face desta e dizendo.
— Kate, temos que nos dar muito bem porque Max me ameaça com um divórcio se isto não acontecer. — Ela levou os Gideon para uma grande sala, muito fresca, onde a mesa estava posta para o almoço. Não foi propriamente a sala ou a mesa que chamaram a atenção de Gideon e sim a vista fantástica que podia observar da parte sul da ilha de Manhattan. O sol ainda estava baixo no leste e brilhava com extraordinária claridade sobre milhares de janelas de inúmeros edifícios, assim como sobre a enorme ponte que atravessava o rio borbulhante.
— Está tudo bem, — disse Nielsen numa voz pouco suavizada. — A reação de nossos amigos é exatamente aquela que eu esperava.
— É realmente belo, — suspirou Kate.
— Maravilhoso, — disse Gideon.
— Maravilhoso, sim, — concordou Claire. — A maioria das pessoas se esquece de dizer que Nova York é uma das cidades mais belas do mundo, — disse ela, quase que a sonhar.
— Esperem até que vocês a vejam à noite. Terão uma vista muito melhor do que daqui, pois estarão dez andares mais alto.
— Que tal algo para se beber, querida? — perguntou Nielsen.
Claire serviu cerveja, chá gelado, e depois mostrou aos Gideon seu belo apartamento, fazendo-o com orgulho especial quando mostrou a sala particular de seu marido, toda ela revestida de estantes de livros. A amizade que havia entre os dois era patente e Kate começou a pensar há quantos anos estariam casados. Depois disto pensou quanto tempo demoraria até que ela e George pudessem chegar ao hotel onde iam hospedar-se.
Claire parecia ser, na realidade, a verdadeira dona de casa.
— Max, você vai ter que levá-los ao hotel agora mesmo. Fica bem do outro lado da Quinta Avenida — ela explicou. — A menos de um quarteirão daqui.
Os Gideon permaneceram por mais alguns momentos. olhando para a grande extensão da ilha de Manhattan, desde os molhes do rio Hudson, onde grandes navios estavam atracados, até o cais da extremidade sul, onde os cargueiros estavam acostados. O East River dava impressão de ser dourado e a ponta Sul da ilha de Manhattan espraiava-se antes os seus olhos. Enquanto observava o panorama, Gideon pensou: "Nunca esquecerei esta vista, jamais".
Kate o segurava pelo braço e ambos davam a impressão de não quererem afastar-se de onde estavam.
Nesses poucos minutos, o crime e os criminosos desapareceram de sua mente. Entretanto, nesses mesmos poucos minutos, pessoas diretamente ligadas ao caso dos relógios Rite-Time, com o problema da sabotagem e com muitos outros tipos de crimes, estavam dentro do ângulo de visão de Gideon, isto é, se este pudesse observá-los através de paredes de tijolos ou de pedra. Entre elas, estava Inglemann Brown.
Homens Perigosos
Inglemann Brown, homem de estatura mediana, normalmente atraente mas agora com o nariz coberto por ataduras e os lábios inchados e doloridos, contava trinta e nove anos de idade. Seu rosto tinha um olhar sinistro enquanto viajava, recostado no assento traseiro de um táxi, ao lado de sua esposa Elaine. Ela era alta, relativamente magra, com pernas e braços longos e finos, e um busto volumoso que era realçado pelo vestido justo, cor de laranja, que usava. Limpava continuamente o suor de seu rosto. Vez por outra olhava para o marido, porém sabia muito bem que a oportunidade não era propícia para lhe falar. Compreendia que muita coisa se passava pela mente dele, assuntos que ele não se daria ao trabalho de discutir com ela. Moravam na Greenwich Village, distante cerca de oitocentos metros da casa dos Nielsen, em um pequeno mas luxuoso apartamento, próximo à Washington Square.
Quando desceram do táxi, o porteiro, com olhar alegre, adiantou-se para abrir a porta do veículo. Nesse momento, dois homens, viajando em um carro Chevrolet, passaram pela portaria do edifício. Brown não deu a impressão de tê-los notado, mas sentiu que o carro diminuiu a marcha poucos metros adiante, parou e estacionou. Nenhum dos dois homens saiu do carro. Brown parou na entrada do vestíbulo, sem prestar atenção a Elaine, com o que aliás ela já estava acostumada. Desapareceu, para reaparecer mais vagarosamente e dar uma olhada na direção do carro. Nele, os dois homens ainda permaneciam sentados.
— Mandarei levar a bagagem do senhor lá em cima, — disse o porteiro. — É com prazer que o vejo de volta. A mesma coisa se passa com a senhora, madame Brown.
Brown fez um aceno com a cabeça. Elaine sorriu. Ele entrou no elevador, cujas portas começaram a se fechar antes que sua esposa tivesse entrado. Tempo havia em que ela teria protestado contra essa espécie de tratamento. Entretanto, vivera muito tempo com Brown para saber que tais protestos não lhe mereciam a mínima atenção. O elevador parou no décimo primeiro andar. O apartamento de cobertura dos Brown ficava um andar acima e era servido por uma escada com degraus de pedra. Brown subiu na frente e, quando Elaine chegou à porta de entrada, está já se encontrava aberta.
Seu marido estava na varanda, olhando para a rua. O carro Chevrolet ainda permanecia lá, porém agora havia apenas um homem sentado no mesmo e nenhum vulto era visto na rua.
A campainha do telefone tocou, assustando Elaine, mas sem surpreender Brown.
— Querida, — ele disse. — Mande colocar a bagagem no nosso quarto e não volte aqui até que eu a chame. — Não se preocupou em acrescentar: "E não vá escutar no telefone" — pois sabia que ela não faria isto. Somente uma vez, isto é, uma vez mesmo, ela havia feito isto. Brown levantou o fone para evitar que a campainha continuasse tocando, esperou que a porta se fechasse e sentou-se no braço de uma poltrona.
— Sr. Brown. — disse uma voz de homem.
— Falando, — respondeu Brown.
— Sr. Brown, sou um repórter do Daily Post.
— E então?
— Gostaria de lhe falar, Sr. Brown.
— Nada tenho a declarar à imprensa.
— Já estou subindo. — o homem disse e desligou o telefone,
Brown colocou vagarosamente o fone no gancho e levantou-se. Ouviu sua esposa andando no quarto, batendo com a bagagem. Dirigiu-se para a porta, pouco surpreendido por vê-la a seu lado, obviamente curiosa e até mesmo um pouco ansiosa.
— Quem foi que falou? — ela perguntou.
— Um repórter. Como se não tivéssemos deparado com centenas deles no navio.
— O que é que ele quer?
— Presumo que seja para indagar sobre nossas impressões da Europa.
— Ing, não brinque. O que é que ele quer?
— Saberemos dentro em pouco, — disse Brown. — Se você ficar por aqui há de saber tanto quanto eu. Entretanto, deixe que eu fale sozinho. Só eu é que vou falar, compreende, querida?
— Ing, será que ele vem saber algo sobre os Orlick?
— Não fiz qualquer outra coisa que possa interessar à imprensa.
— Você não vai levar este caso adiante, vai?
— Um fulano qualquer quebra meu nariz e me parte os dentes. Entretanto, nada devo fazer simplesmente porque minha esposa tem uma certa queda por quem fez isto.
— Você sabe que não é verdade — os olhos de Elaine brilharam enraivecidos. — Se você processar Orlick, toda a história virá à tona. Ele dirá que você insistiu em molestar sua esposa e — ela prendeu a respiração — é possível que haja uma dúzia de testemunhas.
— Um homem não molesta uma mulher pelo simples fato de lhes estar apertando a mão, — disse Brown. — Se o seu nariz estivesse quebrado...
A campainha da porta tocou, cortando-lhe as palavras. Ele segurou o braço de Elaine e disse rudemente:
— Nem uma só palavra. Compreende? Abra a porta. Brown estava na sala-de-estar quando Elaine introduziu um homem, muito robusto, forte, de olhar rude e queixo duro. O homem tinha uma expressão curiosamente sem vida nos seus olhos azuis. Parecia parcialmente morto.
— Sou Tony Preston, do jornal Post, — o homem disse abruptamente. — Que é que há sobre este inglês que andou dando umas pancadas no senhor? Que é que o senhor vai fazer a esse respeito?
— Isto é assunto que só a mim interessa. — retrucou Brown.
— Naturalmente que é e nem tenho que me imiscuir no assunto. Entretanto, nossos leitores se interessam em saber o que o senhor vai fazer.
— Eles saberão, — disse Brown, azedamente.
— Sr. Brown, o senhor já começou a me dizer algo, — disse Preston.
— Ing... — começou Elaine, porém Brown a fez calar.
— O que é que eu já comecei a lhe dizer? — exigiu Brown.
O homem, que se chamava Preston, disse, inexpressiva-mente:
— Se o senhor estivesse disposto a esquecer o que aconteceu teria dito isto claramente. Quanto é que o senhor vai exigir de Orlick?
— Eu não disse que iria exigir coisa alguma.
— Dez mil dólares? Vinte mil?
A atenção de Elaine foi distraída pela bagagem que estava sendo levada de um lado para outro, porém Brown permaneceu olhando para o repórter que tinha uma face de expressão tão dura e cujos olhos pareciam mortos.
— Digamos que sejam vinte mil, — insistiu Preston.
— Não me contento com migalhas, — Brown retrucou asperamente. — Posso receber uma centena de mil dólares se souber levar as coisas direito.
— Ing! — exclamou Elaine.
— Então, o senhor anda é atrás de muito dinheiro, — disse Preston. — Está certo, Sr. Brown, era isto mesmo o que eu pensava. Então o senhor liquidará o caso por cem mil dólares?
— Possivelmente, — retrucou Brown.
Os olhos de Elaine estavam acesos e brilhavam de desespero.
— Cuidado, — disse o homem. — Já sei de todo o resto da história. — Não apertou a mão de Brown nem a de sua esposa, mas inclinou-se para os dois e tomou o caminho da porta. Quando esta se fechou, Elaine juntou as mãos com força, olhou para seu marido e ficou calada.
— Eu sei o que estou fazendo — disse ele, asperamente. — Aquele inglês vai pagar caro pelo meu nariz.
O homem que se dizia chamar Preston, repórter do Daily Post, saiu andando na direção do Chevrolet verde, sem olhar para o edifício de apartamentos de onde tinha saído. O homem que dirigia o carro pôs o motor em funcionamento. Trocaram pouquíssimas palavras enquanto se dirigiam, através da cidade, para a Décima Avenida, tendo depois virado em direção norte e passado ao lado de molhes, de grandes navios, do Queen Elizabeth, armazéns, postos de gasolina e grandes caminhões. Na Rua 50, o motorista parou em um posto de gasolina e, enquanto o atendedor procurava saber o que queriam, Preston saiu do carro e dirigiu-se ao telefone público. Colocou uma moeda na •caixa e discou um número na estação Riverside. Do outro lado, um homem atendeu imediatamente.
— Aqui fala Danny Silvermann.
— Danny — o homem que se intitulava Preston disse, peremptoriamente. — Brown anda atrás de uma soma elevada.
Depois de uma pausa, Danny perguntou:
— Você tem certeza?
— Tenho plena certeza.
— Quanto é que ele quer?
— Provavelmente começará exigindo um quarto de um milhão de dólares, porém terminará fazendo um acordo na casa dos cem mil. Você sabe bem qual será o resultado disso.
— Sim, — concordou Silvermann de maneira suave. — Isto significa que Orlick estará nos cabeçalhos dos jornais de agora em diante. Isto significa que as revistas confidenciais estarão atrás dele, e significa que a polícia se interessará pelo caso. E é possível que a polícia já esteja bem interessada nele.
— Você ainda é de opinião que Orlick poderá falar?
— Ele veio aos Estados Unidos porque é muito ambicioso, e isto fez com que se tornasse um problema para nós. Agora existe a possibilidade de que, se a polícia o pressionar muito fortemente, ele se resolva a falar. Isto faz com que ele se torne num problema duplo, capaz de causar-nos muitas dificuldades. Temos que nos certificar de que ele não fará isto — Silvermann parou durante algum tempo e quando falou novamente sua voz tinha um tom mais baixo. Eu não o queria aqui, de qualquer maneira. A Scotland Yard, lá na Inglaterra, já anda muito interessada no caso. Temos que nos livrar de Orlick. Você está do meu lado, Mense?
— Estou com você, — disse Mense, isto é, o homem que se havia intitulado Preston.
— Há uma possibilidade que devemos levar em consideração.
— Qual?
— Poderíamos esperar até que o próximo embarque, a ser feito no Hempen, saia de Nova York.
Mense mudou o peso de seu corpo de uma perna para outra. — Não podemos esperar — disse, com ênfase. — Orlick nos conhece, pode-nos denunciar. Se a polícia começar a inquiri-lo, talvez ele fale logo. Se não queremos ver o nosso negócio fechado, temos que nos livrar de Orlick Isto não afeta o embarque do Hempen: temos o primeiro oficial desse navio sob nosso controle. Não podemos esperar, Danny.
— Também acho que não, — disse Danny com um suspiro, i— As coisas foram muito longe e muito rapidamente. Está bem. Mense.
— Fale com Orlick, — disse Mense. — Faça com que ele venha até o posto do Joey às três horas. Eu me encarregarei do resto.
Danny Silvermann hesitou um pouco antes de responder bruscamente.
— Falarei com ele. Não se preocupe.
Encontro Fatal
Kitty Orlick observava seu marido, que olhava da janela do aposento ocupado no Hotel Hilton de Nova York. Entre eles e a grande auto-estrada que marginava o rio Hudson, havia milhares de casas, todas elas, vistas desse ponto bem alto, parecendo escuras e baixas. O rio estava coberto de embarcações. Dali podiam ver o Fifty States, no qual haviam viajado, com uma fumaça branca saindo de sua enorme chaminé vermelha.
Kitty não compreendia o que ocorrera com Dirk. Ela ainda podia relembrar bem a maneira pela qual ele se lançara repentinamente através do salão do Ocean Night Club às primeiras horas da madrugada de ontem. Sabia que o marido, embora sempre tivesse desaprovado seus vestidos decotados, comprara três vestidos para coquetel, todos eles muito decotados, somente para vê-la usá-los. Ela tivera que usá-los no navio. Quando Dirk lhe disse que não queria que usasse um certo vestido de verão novamente, não pensara que ele também se referia aos vestidos de coquetel.
Lembrava-se bem de que estava dançando com Inglemann Brown. Desde o momento em que se haviam conhecido, notara que Brown não conseguia controlar suas mãos. Entretanto, nenhum mal houvera nisto. Provavelmente nada teria acontecido se a orquestra não tivesse tocado uma valsa antiga e se Inglemann não a tivesse feito rodar tanto, em parte devido às suas gargalhadas e em parte ao jogo do navio. Não notara quando, sem qualquer indicação, seu vestido sem alça deixou de cobrir-lhe o busto. Repentinamente, viu Dirk em sua frente, esmurrando Inglemann na face e no estômago. Várias senhoras gritaram e foram necessários três homens a fim de arrastar Dirk para longe de Inglemann. Elaine Brown, sempre controlada, apanhou um agasalho numa cadeira, colocou-o sobre os ombros de Kitty e a retirou do salão. As duas estavam no camarote dos Orlick quando Dirk ali chegou com os punhos sangrando, face descorada e olhos enraivecidos.
— Saia daqui, — disse a Elaine.
— Só sairei quando souber que há um camaroteiro na porta, para dar o alarma se você tiver a coragem de bater em Kitty, — disse Elaine.
Mesmo depois que Elaine saiu, Kitty esperou que Dirk lhe batesse, pois os seus olhos mostravam uma fúria que ela jamais tinha visto. Repentinamente, lançou-se sobre ela e Kitty levantou as mãos para se defender. Entretanto, tudo o que ele fez foi segurar o vestido com ambas as mãos e puxá-lo, rasgando-o em pedaços e jogando-os por todos os lados do camarote. Violentamente, dirigiu-se ao pequeno guarda-roupa onde ela guardava seus vestidos, retirou os outros dois trajes de coquetel e os rasgou também. Acercando-se de sua esposa, disse, em voz tão distorcida que ela quase não conseguiu distinguir as palavras:
— Saiba proteger-se no futuro. Compreende? Sabia proteger-se quando há homens em volta.
A partir de então Dirk só se dirigira a Kitty em sentenças curtas e ásperas. "Passe-me isto, faça isto, apanhe aquilo ali, arrume minhas coisas". Pouca coisa além de instruções bruscas lhe tinham sido dadas. Kitty ficara tão atemorizada com a explosão de raiva de seu marido que se limitara a obedecer e nessa obediência tornara-se quase um autômato. Mas já começava a sentir-se mais controlada e rebelde. Sentia mais revoltada pelo fato de ter vindo diretamente do navio para o hotel sem ter tido, conforme desejara, a oportunidade de ver Nova York, a cidade maravilhosa que ela não podia esperar para conhecer.
Dirk era homem alto e muito elegante.
— Dirk, você está-se sentindo bem? — perguntou. Ele não respondeu.
— Dirk, você está...
— Sim — gritou ele. — Estou bem.
— Dirk...
— Será que você não pode deixar de falar? Kitty controlou-se fazendo grande esforço.
— Dirk, eu não sabia que ele iria fazer uma coisa daquelas. Não me interesso por outro homem a não ser você.
Ele virou-se para olhá-la, e Kitty notou que seu lábios estavam torcidos e trêmulos. Mesmo assim ela não recusou.
— Você está interessada em qualquer homem que possa pegar, e bem sabe disto.
— Não estou, Dirk.
— Quando penso no dinheiro que já gastei com você...
O momento chegou em que todo o ressentimento e exasperação de Kitty dominaram seus temores. Ela se dirigiu a Dirk, com voz alta, seus belos olhos brilhando.
— Não fale assim comigo! Eu valho todo o dinheiro, todos os centavos. E eu sou sua esposa, não sua empregada ou sua escrava. Se quiser dançar com outro homem, dançarei, e isto será tanto de seu agrado como meu.
Os olhos de Dirk pareceram em fogo. Levantou as mãos, com dedos eriçados, como se os fosse cravar no pescoço da esposa.
— Não me toque, — gritou Kitty. — Faça isso e eu o abandonarei em Nova York ou longe dela. Não me toque. — Na realidade, as mãos de Dirk estavam tão próximas que Kitty quase podia senti-las. As mãos estavam trêmulas. O medo voltou a dominá-la, mas agora de forma diferente, ou seja, um temor enraivecido. — Por que é que você há de querer estragar tudo? — perguntou com um soluço na voz. — Tudo estava tão bem, esta viagem iria ser a nossa segunda lua-de-mel, e você estragou tudo. Foi o que você fez, estragou tudo mesmo.
Ele ficou parado, com as mãos distendidas, quase tocando-a fitando-a com um olhar que começava a mudar. Ela notou que os lábios dele tremiam, sentiu que os seus começavam a fazer o mesmo e que lágrimas principiavam a marejar nos seus olhos.
— Devíamos estar aproveitando esta oportunidade não brigando. Não me importo se nunca mais vir Ingy Brown. Não tenho culpa de que meu corpo atraia os homens. Aliás, você devia ter orgulho de eu pertencer apenas a você e a nenhum outro, nenhum, Dirk! — Ela gritou: — Dirk!
Quando ele a segurou, sentiu que não era mais com tanta raiva e sim com um desejo inflamado. Teve então a impressão de que, independentemente do que viesse a acontecer no futuro, pelo menos no momento a briga estava acabada. Repentinamente, sentiu-se muito feliz. Mais uma vez, não se tratava de duas pessoas, e sim de uma só, compartilhando de um êxtase que se sobrepunha a tudo que tivesse acontecido entre eles no passado.
Estavam deitados na cama, ainda exaustos, quando a campainha do telefone tocou. Kitty estava cochilando. Dirk respirava tão pesadamente que parecia estar dormindo. A campainha continuou a tocar até que Kitty acordou, atravessou-se sobre Dirk e apanhou o fone.
— Alô.
— O Sr. Orlick está? — perguntou uma voz de homem,
— Bem, ele...
— Pergunte quem é, — Dirk disse em voz baixa. Seus', braços a puxaram para junto de si enquanto ela procurava atender o telefone.
— Quem é que está falando? — O homem perguntou.
— Aqui é a Sra. Orlick.
— Dirk Orlick está?
— Quem quer falar com ele, por favor?
Houve uma pausa antes que o homem voltasse a falar, desta vez com um sorriso na voz e perguntando:
— Qual é a hora certa?
— Quem?
— O que foi que ele disse? — indagou Dirk.
— Quer saber a hora. A hora certa.
— Dê-me o fone, — disse Orlick, virando-se e tomando o aparelho das mãos de sua esposa. — Aqui fala Dirk Orlick.
O homem do outro lado pareceu satisfeito. — Alô Dirk, como vai você? É um prazer tê-lo em Nova York.
— Quem está falando?
— Eu sou Danny, você me conhece. Escute, Dirk, — continuou Danny Silvermann antes que Dirk pudesse falar. — Precisamos conversar com urgência e isto não pode ser feito pelo telefone. Por que é que você não me vem ver agora mesmo?
Orlick pensou consigo mesmo: "Se é assim que eles querem, estou para entrar no jogo."
— Onde é que posso encontrá-lo? — perguntou Dirk.
— Você tem um lápis?
— Sim. — Havia um pequeno bloco de notas e um lápis na mesa de cabeceira entre as duas camas. — Pode dizer.
— Está bem, Dirk, então anote. Tome um táxi e vá até a esquina da Rua Quarenta e Nove com a Décima Avenida... Anotou isto?... Certo, Quarenta e Nove com Décima. Desça no posto de gasolina da Gulf do lado leste da Décima Avenida com a Rua Quarenta e Nove. Depois vá até a Rua Cinqüenta e ande meio quarteirão.
Orlick, enquanto escrevia, disse bruscamente:
— Para que todo esse mistério, Danny?
— Mistério? Não há qualquer mistério. Quero mostrar-lhe as docas do porto e também como nós operamos. Domingo é um dia bom para isso, não há muitos caminhões para atrapalhar.
— Como é que eu o reconhecerei? — perguntou Orlick. Danny disse:
— Estarei no lugar marcado.
Desligou o telefone e, como o braço de Dirk estava torcido, Kitty tomou o fone de suas mãos, colocando-o no aparelho. Ela virou-se de lado, de forma a ficar deitada sobre ele, e fitou seus olhos cinzentos. Kitty notou que ele estava muito preocupado e que tudo aquilo que havia acontecido entre eles há tão pouco tempo estava praticamente esquecido. Beijou-o amorosa e lentamente, encostando-se cada vez mais, recebendo em troca uma resposta relativamente seca. Ela levantou-se da cama.
— Quem foi que falou com você?
— Um colega de negócios.
— Não me pareceu que você goste dele.
— Estava procurando impingir-me sua inteligência.
— Por que você não lhe mostrou a sua?
— Dê-me tempo, — disse Orlick. Sorriu vagarosa e significativamente. — Dê-me um pouco de tempo. Vamos tomar um táxi às duas e quarenta e cinco. Assim sendo, ainda temos uma hora e um quarto. Você acha que terá tempo bastante para se aprontar?
Kitty hesitou. Seus lábios se curvaram e seu olhar se mostrou brincalhão.
— Não tenho o que vestir — disse ela. — Meus vestidos ficaram todos estragados numa tempestade.
— Você pode comprar cem vestidos, contanto que não sejam decotados, — resmungou Dirk. Beijou-a amorosamente, depois afastou-se e correu para o banheiro.
Kitty pensou, sentindo-se feliz. "Tudo vai terminar bem. Vai ser uma beleza". — E pensou no belo corpo de seu marido.
Kitty colocou um vestido leve, de algodão, amarelado, com gola alta e mangas curtas, que lhe dava uma aparência modesta. O vestido era frouxo no busto e, se Dirk o tivesse comprado ele mesmo não poderia ser tão a seu gosto. Faltava um quarto para as três quando saíram do quarto. Ao fazer isto notaram a presença de um homem que vinha pelo corredor enquanto esperavam pelo elevador. Não deram importância ao homem. O elevador chegou e eles entraram.
Antes de chegarem embaixo, o homem que haviam visto estava abrindo a porta do seu quarto com uma chave falsa.
Nada sabendo sobre o intruso ou sobre a revista que ele fez em seus haveres, os Orlick saíram do hotel de mãos dadas. Entretanto, como seus dedos estavam suados, pouco depois largaram as mãos. Saíram andando, olhando abismados para os enormes edifícios novos, envidraçados. O tráfego na Sexta Avenida, em direção ao norte, quando a luz verde abriu, parecia uma massa sólida ao longo da rua. Era difícil acreditar que a avenida estivesse quase deserta quando chegaram pela manhã.
— O tráfego movimenta-se muito rapidamente, — disse Kitty.
— É um pára e anda, nada mais.
— Vai alugar um carro para você mesmo dirigir, Dirk? — Acha que não posso dirigir nesse tráfego?
— Sei que você pode. — Logo depois atravessaram outra rua e Kitty disse: As lojas nesta parte da cidade não são muito bonitas, não acha?
— Vão ser demolidas, — disse Dirk como se Nova York não guardasse qualquer segredo para ele. — Vamos andar até o Central Park, veja as árvores na sua frente, e lá tomaremos um táxi.
Havia algo de mágico no ar e, quando se aproximaram do parque, descortinaram os edifícios que ficavam de ambos os lados, meio escondidos na folhagem. Sentiram vontade de continuar a passar o tempo olhando para a vista belíssima, e andaram por mais alguns minutos na direção sul do parque, fascinados pela beleza dos edifícios e mesmo da cidade.
Um táxi enorme, pintado de amarelo, parou na frente de um hotel.
— Aquele é para nós, — disse Orlick.
Pouco depois entravam no ambiente de ar refrigerado do táxi.
— Para onde? — perguntou o motorista.
Orlick disse:
— Décima Avenida esquina da Quarenta e Nove.
— Décima e Quarenta e Nove, — retrucou o motorista.
Logo após afastaram-se do parque, de sua beleza e da multidão, entrando por ruas estreitas, até saírem em outra avenida larga, onde o tráfego se dirigia todo em um único sentido. Do outro lado da rua, sob o que parecia ser uma ponte fantàsticamente longa, estavam os molhes de atracarão dos navios, e, além destes, podiam ver a água calma e cintilante do rio Hudson. Do lado em que estavam havia armazéns, lugares vazios para estacionamento, postos de gasolina, tudo isso de aspecto grosseiro, meio abandonado, quase sinistro. Um posto de venda de produtos Gulf estava localizado perto de uma esquina. O táxi parou, eles desceram e Orlick pagou ao motorista. Depois, andaram até encontrarem um sinal indicando: Rua Cinqüenta.
Dobraram nesta e andaram ao longo de paredes sólidas de armazéns, passando por grandes portas fechadas. O calçamento da rua se apresentava em péssimo estado, com paralelepípedos mal colocados, muitos deles soltos.
Orlick sentiu-se preocupado, mas escondia-o de Kitty. Achava que nunca a devia ter trazido a um lugar como aquele.
A rua estava deserta exceto por um homem que se encontrava do outro lado. Alguns carros velhos estavam estacionados ao longo dos meios-fios, na metade do quarteirão. Um carro passou a estacionar num espaço vazio. Nele estavam um homem e uma mulher. Outro carro, um Chevrolet azul-celeste com um homem de cor na direção, estava estacionado em fila dupla um pouco além.
Quando os Orlick se aproximaram, o motorista negro pôs o motor em funcionamento.
Quando chegaram próximo à esquina, o homem e a mulher saíram do carro que acabava de estacionar e os olharam. O sinal na esquina estava vermelho, permitindo a passagem de pedestres, porém uma coisa chamou a atenção de Orlick: o carro pelo qual ele e Kitty acabavam de passar estava acelerando o motor. O carro roncou como se o motorista se estivesse preparando para dar uma partida em corrida de automóveis.
Orlick olhou para trás quando desceu da calçada para a rua.
Viu o carro vindo como um bólide em sua direção. Viu as rodas avançando para ele, Empurrou Kitty para um lado e ouviu-a gritar. Orlick sentiu exatamente o que iria acontecer e deu um pulo desesperado para a frente, porém já era tarde. O monstro azul-celeste o apanhou e ele sentiu o impacto, assim como uma dor terrível. Foi jogado para o ar e caiu na calçada seis metros além. Quando Kitty, totalmente chocada, parou, podiam-se ver manchas avermelhadas no seu vestido amarelo.
Danny Silvermann estava de pé junto à janela de um hotel na Oitava Avenida, olhando para o tráfego que se movimentava ao longo desta. Uma dúzia de Chevrolets verdes pareciam passar a cada minuto, porém, ele teve que esperar algum tempo antes que um deles diminuísse a marcha e entrasse no estacionamento ao lado. Mense saiu do carro. Fechou a porta com cuidado e depois se dirigiu para a entrada do hotel. Cinco minutos depois, chegou à porta do quarto e Silvermann deixou-o entrar.
Silvermann era um homem muito magro e alto, com lábios grossos, olhos vermelhos e pálpebras caídas. Seu rosto tinha algo da cara de um cão esfomeado. Quando falava, era como um balbucio que sugeria ser muito preguiçoso para pronunciar as palavras ou frases com clareza.
Havia uísque e um pote de gelo numa mesinha. Silvermann serviu bebida para dois, porém não colocou água. Mense engoliu a sua de um trago. Segurando o copo, fez sinal para que Danny o servisse novamente. Os dois homens formavam um estranho contraste. Danny magro, de quadris estreitos, muito limpo e com movimentos bruscos. Mense corpulento, imperturbável e enfadonho.
Mense disse:
— Por que diabo teria ele levado a esposa?
— Por que você não deu fim a ela? — disse Silvermann lentamente, porém com olhar enraivecido.
— Orlick foi muito rápido. Ele a empurrou para longe, — disse Mense. — Agora ela está causando um bocado de dificuldades. A polícia prendeu o motorista. Eles não prenderam ainda qualquer das testemunhas. Entretanto, poderão chegar a fazer isto se a esposa de Orlick mantiver a pressão que está fazendo.
— Diga-me algo sobre suas testemunhas, meu caro.
— Eu arranjei três. Os Bartolls, por trás dos Orlick, e Matson do outro lado da rua. Elas estavam todas nos seus lugares. — Mense disse isto com uma voz completamente sem vida. — Foram instruídas para jurar que se tratou de um acidente, e cumpriram com sua obrigação. Entretanto, a esposa de Orlick é uma verdadeira bruxa e pode chegar a cansar a polícia, convencendo-a de que foi assassinato.
— Você acha que ela sabia alguma coisa sobre os negócios do marido? — perguntou Silvermann.
— Penso que não. Se ela soubesse, o seu escritório em Boston já teria recebido um chamado da polícia, — disse Mense. — Não acho que Orlick tivesse falado com ela sobre o assunto assim como escrito alguma coisa sobre nós. Mandei Matson revistar seu quarto no Hotel Hilton antes que alguma coisa acontecesse. Ele nada encontrou que pudesse dar uma pista à polícia.
— Você fez bem — Silvermann aprovou.
— Há outra pessoa em quem não podemos confiar. Cordova.
— Cordova, em Londres?
Mense concordou fazendo um aceno com a cabeça.
— Mense, — disse Silvermann. — Já dissemos a Darkie o que ele tem que fazer em Londres num caso de emergência. Podemos confiar em Darkie. Já falei com ele hoje pela manhã, meu caro. Informou-me que Orlick e Cordova não tinham qualquer prova contra nós e que ambos haviam seguido nossas instruções para agir com o maior cuidado. Quando Cordova for removido do caminho, nada mais teremos a temer.
— A conexão que tínhamos com os ingleses era muito lucrativa, — disse Mense, com pesar.
— No dia em que Orlick começou a tornar-se guloso, nossa conexão começou a se desfazer, — disse Silvermann. — Ele não devia ter vindo a Nova York.
— Talvez não imaginasse o que lhe podia acontecer, — retrucou Mense sem mudar de expressão.
— Fui contra a vinda dele, mas não houve meio de convencê-lo. A culpa foi dele mesmo, queixou-se Silvermann. — Quando ele se meteu naquela briga com Brown, a cortina baixou, e vai baixar para Cordova também.
— Você tem certeza de que Darkie agirá rapidamente?
— Ele será rápido.
— Se for assim teremos apenas que nos preocupar com a esposa de Orlick, — disse Mense. — Tudo ficará bem no caso de ela nada saber e se ela calar a boca. — Mense fez uma pausa. — Pode, entretanto, acontecer que as coisas não estejam bem. — Deu a impressão de que estava procurando pensar em muitas coisas ao mesmo tempo, achando isso trabalhoso. Sua mente agia vagarosamente quando tinha que enfrentar uma situação nova e pouco costumeira.
— Em que é que você está pensando? — perguntou Silvermann, irritado.
— Acabo de me lembrar de uma coisa. Ela me viu sentado no carro.
— Ela o viu? — A voz de Silvermann tornou-se mais aguda.
— É verdade. Recordo-me de ela ter olhado para mim.
— Você não devia ter ido lá! Meu Deus, poderá identificá-lo.
— Tinha que me certificar de que o viciado em entorpecentes atropelasse Orlick. — Mense interrompeu. Seus olhos pareciam esbugalhados, quase negros, pensativos. — Pode ter sido um erro mas o fato é que a esposa de Orlick me viu. Certo?
— Assim sendo, não podemos permitir que ela tenha a oportunidade de apontá-lo, — disse Silvermann suavemente. — Entretanto, temos que tomar cuidado, Mense. Se ela está insistindo em dizer à polícia que foi um assassinato e alguma coisa lhe acontece... — Silvermann parou.
— Talvez ela não me reconheça novamente. E talvez a polícia pense que ela está sonhando. Não nos devemos precipitar, isto é certo.
Silvermann pouco disse.
Os dois homens pareciam chocados com o novo fato e, quando Mense saiu, havia um certo temor em ambos. Só, Silvermann sentou-se numa cadeira baixa, serviu-se de uísque com gelo, tomou pequenos goles e pensou na situação. O trabalho parecera fácil e bem planejado. Assim como Mense, olhara com prazer a possibilidade de dar fim a Orlick, porém, desde o momento em que decidira andar depressa as coisas tinham começado a sair erradas.
Quem havia de pensar que o maluco iria levar a esposa consigo?
Não era de surpreender, pensou Silvermann. De certa forma, poderia ter sido uma vantagem. Se ambos os Orlick tivessem sido mortos, não haveria qualquer dificuldade, mas um deles não havia morrido, e a esposa viva constituía agora um problema perigoso. A possibilidade de que a polícia resolvesse investigar a morte de Orlick para determinar se tinha havido assassinato era uma realidade.
Silvermann não deixou de dar importância ao fato.
Ele mantivera a operação Rite-Time de uma maneira precária por vários anos. O grupo compunha-se dele mesmo,. de Mense e de quatro outros homens, ou seja, o bastante para os furtos e manuseio da mercadoria, porém insuficiente para uma emergência. Não adiantava querer convencer-se de que tudo estaria bem se Orlick tivesse ficado do outro lado do Atlântico. Nada poderia tê-lo mantido lá.
Recordou-se de tudo que sabia sobre Orlick e Cordova, de todos os detalhes de um relatório que Darkie, o qual trabalhava para a Cia. de Relógios Orlova, em Londres, tinha preparado. Houve tempo em que Darkie tivera uma agência de informações aqui em Nova York, mas, depois de algumas dificuldades com um caso de chantagem, sua licença tinha sido revogada. Era um homem de aparência rude, muito perspicaz e astuto, com um conhecimento surpreendente das fraquezas da natureza humana.
Darkie investigara os Orlick antes de a sociedade começar a operar.
Orlick fora por muitos anos comprador de relógios e jóias roubadas, trabalhando para uma firma exportadora e importadora com escritórios no East End de Londres. Cordova trabalhara com firmas embarcadoras. Ambos eram conhecidos como homens duros e haviam subido à custa de seus esforços, Orlick vindo de um lar de classe média e Cordova, de um cortiço.
Orlick tinha sido o chefe, bom organizador e homem de negócios.
Silvermann quase podia lembrar-se letra por letra de um parágrafo do relatório.
"Orlick vem saindo constantemente com uma dona muito bonita, de grande busto e olhos castanhos, chamada Kitty Walis. Ela não era ninguém quando ele a apanhou, porém colocou-a numa escola de boas maneiras para lhe dar pose e polimento. Universidade, eles chamam. Quer que sua esposa seja uma verdadeira senhora. É louco por ela e talvez esteja preso a ela. Mantém a mãe da garota e gasta largamente com tudo que diz respeito a ela. Quer sempre o melhor para si. Orlick é assim e está sempre procurando meios de progredir. Cordova é um alcoviteiro, mas um alcoviteiro inteligente".
A verdade, Silvermann admitiu, era que ele estava desesperadamente ansioso em saber se Brown pretendia causar dificuldades, e somente ele ou Mense poderiam ter conseguido sabê-lo. Mense o tinha feito. Ele ou Mense deveriam ter morto os Orlick e não usado um viciado em entorpecentes, assim como subordinados na qualidade de testemunhas. Haviam-se arriscado muito. Parecera fácil preparar o acidente, e tudo teria saído bem não fosse Kitty Orlick. Sentindo-se enjoado, compreendeu que ela também teria que ser morta, que qualquer pessoa que pudesse identificá-lo, ou a Mense, teria que morrer. A morte de Orlick tinha dado início a uma cadeia. Havia em tudo isto uma coisa.agradável, ele não teria que agir pessoalmente. Mense mataria qualquer ente humano como se fosse uma mosca. A dificuldade seria controlá-lo para que não agisse sem as devidas precauções.
Havia que lidar com Kitty Orlick, Cordova, e também com Marcus Davo, primeiro oficial do cargueiro Hampen, que conhecia Mense muito bem. Três pessoas precisavam morrer, se ele e Mense quisessem viver em segurança.
Em seu íntimo, Danny Silvermann sabia que já estava dançando numa corda bamba; forjar o acidente tinha sido um erro; portanto, se ele ou Mense fossem capturados por um assasinato ou quatro, não faziam grande diferença. Esperavam escapar com uma só morte; poderiam escapar com quatro.
Notícias de Casa
"O encantador apartamento- onde os Gideon se iriam hospedar tinha uma pequena janela da qual podiam ser vistas várias pontes, e outra, com vista inacreditavelmente mais bela, de onde podiam observar o apartamento dos Nielsen. O apartamento tinha um quarto, uma cozinha pequena mas completamente equipada, e um banheiro suntuoso, tudo tão bem arranjado a ponto de parecer novo. A sala-de-estar, com uma mesa e cadeiras nas extremidades, era mobiliada em estilo escandinavo moderno, angular, um pouco sóbria, porém extremamente confortável.
— Vocês não precisam ficar aqui durante todo o tempo em que estiverem em Nova York, disse Claire Nielsen. — Entretanto, acho que assim o preferirão em lugar de se mudarem para um hotel maior.
— Tenho certeza de que preferirei, — havia um que de contentamento no olhar de Kate.
Nielsen disse:
— São três horas. Por que você não descansa umas duas horas e deixa George passar uma vista nos documentos que eu trouxe para ele? — Havia um envelope amarelo de tamanho grande sobre a mesa de jantar. — Que tal se nos encontrarmos novamente às cinco e meia para tomarmos um coquetel? Depois poderemos ir jantar fora.
— Gostaria muito, — disse Kate. Ela levou os Nielsen até a porta e a fechou quando eles saíram. — Não vá trabalhar muito — disse, enquanto via Gideon apanhar o envelope e dirigir-se com ele para a janela. Kate o seguiu. Ela sabia que seria inútil sugerir ao marido que deixasse para ver os documentos na manhã seguinte. Entretanto, sentiu-se satisfeita ao notar que a vista da janela ainda o fascinava. Tudo quanto se referia a Nova York o atraía, ela estava certa disso. Os Nielsen os tinham levado a passeio de automóvel desde as dez horas da manhã e ela tinha a cabeça cheia de nomes novos, tais como Bronx, Brooklin, Queens, ponte Triboro, auto-estrada Franklin D. Roosevelt, nomes estes que tinha ouvido antes mas que nunca ficaram impressos em sua mente. À proporção que foi entardecendo, o tráfego foi ficando mais pesado, até que nas últimas horas da tarde tornou-se um verdadeiro tapete que se movimentava em velocidade alarmante pelas avenidas onde havia mão em um só sentido.
— O que é que você vai fazer? — perguntou Gideon.
— Acho que vou dar uma olhada no jornal, — disse Kate, e apanhou um monte de jornais que compunham a edição dominical do Times de Nova York. Como um sorriso algo desesperado, acrescentou: — Isto não faz sentido, o que é que eu vou fazer com toda esta papelada?
— Kate calou-se e Gideon sorriu para ela. — Eu sei, eu sei, nós já falamos sobre tudo isto antes. Por que é que você não se senta e põe os pés para cima enquanto eu me sento na cama e leio o jornal?
— Boa idéia, — concordou Gideon.
Na realidade, ele relutava em abrir o envelope, que estava bem pesado. Ia aos poucos saindo da atmosfera agradável e quase letárgica da vida de bordo, quando nada o tinha aborrecido ou preocupado, quando até mesmo os acidentes do dia anterior não lhe tinham deixado impressão muito forte. Entretanto precisava fazer algo e assim, finalmente, rasgou o envelope, esvaziando o conteúdo deste sobre uma mesa. Havia meia dúzia de cartas aéreas, algumas da Scotland Yard e outras da família. Além disso, havia dois exemplares em papel fino do Daily Telegraph de Londres, assim como vários relatórios preparados por Nielsen ou pelo departamento deste. Duas das cartas aéreas tinham endereço manuscrito com a letra de Lemaitre e estas o fizeram voltar, com um choque, aos problemas de Lemaitre assim como ao caso do assalto aos Correios. Era melhor acabar logo, Gideon abriu a primeira carta de Lemaitre quando, repentinamente, Kate pareceu na porta com o jornal na mão.
— George!
Parecia excitada mas não alarmada.
— O que é que há?
— Quase não posso acreditar, — Kate começou e atravessou a sala com os pés calçados apenas com meias, segurando uma parte do jornal. Gideon olhou e viu exatamente as mesmas fotografias que tinha sido publicadas no Sun Pie, em Londres, no domingo anterior, com apenas os títulos diferentes. Kate ainda estava meio sorridente. — Todos vão-nos ficar conhecendo.
— Quase todos — disse Gideon sem demonstrar que estava aborrecido. — Só Deus sabe como as fotografias que tiraram de mim hoje pela manhã vão ficar. É melhor você sentar aqui.
— Não, — disse Kate. — Não haveria lugar para espalhar o jornal. Os anúncios são maravilhosos, páginas inteiras. — Ela retirou-se, ainda olhando a página das fotografias.
A primeira carta de Lemaitre dizia:
"Escrevo às carreiras para informar que 15.000 relógios Rite-Time, 5.000 isqueiros, 10.000 conjuntos de jóias de fantasias e 3.500 canetas-tinteiro foram descobertos nos Armazéns Tejeens, das Docas Centrais de Londres. Tudo isso foi desembarcado do cargueiro Maruna, de 6.000 toneladas, de bandeira liberiana, pertencente à Cia. de Navegação Sete-Mares, do Canadá, e fretado à Linha Trans-Ana. Não temos certeza sobre quais os portos em que ele tocou na viagem, porém os documentos de embarque etc., emitidos em Dar-es-Salaam, Zanzibar, parecem estar em ordem. Estamos investigando. Como vão as coisas?"
O estado de espírito de Gideon melhorou bastante. Esta informação era exatamente aquilo de que necessitava para "discutir com Nielsen na manhã seguinte, e trazia indicações da possibilidade de resultados imediatos. Em poucas outras ocasiões Gideon tinha-se sentido tão satisfeito. Abriu a segunda carta de Lemaitre, datada de quinta-feira anterior:
"A audiência de Fadiman realizou-se sem qualquer dificuldade, tudo saiu bem, ele foi enviado ao tribunal de Old Bailey para julgamento, provavelmente em meados de novembro. A única novidade a mais é que a filha de Fadiman foi enviada para um hospital. Ela não deu uma única palavra depois da prisão do pai. Lem".
"P. S. — Quanto ao caso dos Correios, até agora nenhuma notícia importante."
Gideon deu um suspiro; pelo menos, Lem parecia estar satisfeito.
Por outro lado, o caso da filha de Fadiman era mesma de fazer pena.
Miller mandara-lhe um relatório completo sobre a segunda audiência do caso Fadiman. Havia, além disso, uma série de documentos, referentes a casos pendentes, que Gideon deixara de assinar antes de viajar. Ele os assinou. As outras cartas eram de Penelope e Prudence, ambas falastronas, felizes. Gideon levantou-se e as levou para Kate, esperando pegá-la de surpresa. Sua esposa estava deitada de lado, completamente adormecida, com o jornal espalhado tanto sobre o leito como no chão. Gideon voltou para a cadeira e olhou os exemplares que tinha recebido das edições de quarta e quinta-feira do Daily Telegraph. O grande roubo dos Correios ainda era cabeçalho na primeira página. Entretanto, lendo nas entrelinhas, sentiu que tanto os jornais como Lem tinham poucas esperanças de que o caso fosse resolvido imediatamente. Não se devia deixar meio milhão de libras esterlinas desaparecer assim. Gideon recostou-se no espaldar da cadeira, franzindo as sobrancelhas, pois sabia somente de detalhes superficiais e nada havia que pudesse fazer.
Às cinco e meia estavam prontos e esperando pelos Nielsen, Kate refrescada e ansiosa para ver algo mais de Nova York, qualquer que fosse o calor e a umidade do ar.
Às vinte para as seis, Nielsen bateu na porta, desta vez com aparência bem diferente daquela de relaxamento com que se tinha apresentado horas antes.
— Kate, lamento muito, — disse ele. — Tenho que levar George por umas duas horas. Estaremos de volta em tempo para o jantar. Claire pergunta se você quer ir ficar com ela ou se quer que ela venha até aqui.
Kate olhou para Gideon e pensou consigo: o trabalho já voltou, as férias estão acabadas, porém não havia sentimento em sua expressão, e sim resignação e aceitação dos fatos. Ela notou-lhe a mudança de expressão e o endurecimento do olhar. Tocando-lhe no braço, ela disse:
— Vou até o apartamento de Claire. Você precisa de alguma coisa, George?
— Não, — ele respondeu. Até já, querida. — Dirigiu-se ao elevador, cuja porta estava sendo mantida por um policial. Era como se se estivesse afastando da vida de sua esposa. Quando a porta do elevador se fechou, Gideon indagou: — O que há?
— Orlick foi morto.
Um suspiro escapou através dos dentes de Gideon.
— Vamos para o distrito, — continuou Nielsen. — Eu só sei dos detalhes por alto. A solicitação para que Orlick fosse seguido finalmente foi ordenada. — Nielsen não chegou a dizer "tarde demais", porém Gideon podia imaginar estas palavras saindo de seus lábios.
Um carro da polícia, com dois homens esperando em atitude longe de ser casual, estava parada à porta do hotel. Já havia cerca de vinte ou trinta pessoas paradas observando o que se passava. Logo depois que Nielsen e Gideon entraram, o carro partiu, com a sirena tocando. Muitas faces se viraram para observar sua passagem. Logo que chegaram à Sexta Avenida, o ruído da sirena fez com que a maioria do tráfego parasse para lhes dar passagem. O motorista não prestava atenção aos sinais do tráfego, prosseguindo, fossem as luzes verdes ou vermelhas. Nielsen também não parecia dar atenção a isso. Em palavras curtas e lacônicas, ele explicou a Gideon tudo o que sabia e, quando terminou, já o carro havia entrado na Rua Quarenta e Dois, passando à Décima Avenida. Na Rua Cinqüenta o carro diminuiu a velocidade, pois havia ali um bloqueio da polícia. Alguns carros estavam parados no local e uma multidão surpreendente já se tinha juntado na rua, em volta da área isolada.
— Não teremos que descer, — disse Nielsen. — O acidente verificou-se às três horas. O distrito já fez a perícia, tomando todas as medidas necessárias quando acontece um acidente de automóvel... Se eu tivesse sabido em tempo... — Nielsen interrompeu. — Gideon teve uma idéia de como ele se estava sentindo e sabia perfeitamente como se sentiria se caso idêntico tivesse ocorrido em Londres com Nielsen lá. — Você pode ver areia cobrindo o sangue, — Nielsen apontou para diversos pontos da rua. — Pouco restou de Orlick. Bem — ele fez um sinal ligeiro porém autoritário para o motorista e o carro partiu novamente. Voltando-se para Gideon, prosseguiu:
— O motorista do carro que provocou o acidente é um viciado em entorpecentes. Jura que Orlick atravessou na sua frente. Três testemunhas dizem a mesma coisa. A Sra. Orlick diz que não foi assim que a coisa aconteceu. — O carro em que Nielsen e Gideon viajavam passava então ao lado de paredes que pareciam, pelos cartazes ali pregados, ser um teatro. O edifício parecia vazio e quase em ruínas. O mesmo acontecia com a rua. Atravessaram outra avenida. A meio caminho do quarteirão seguinte havia um edifício de concreto, aparentemente novo, em frente do qual estavam estacionados vários carros da polícia. Dois ou três policiais uniformizados, e dois em trajes civis, estavam parados ao lado de fora. Por que haveria tantos homens em trajes civis, obviamente detetives, por ali? pensou Gideon. A entrada era estreita, com corredores vazios tomando várias direções. Nielsen levou Gideon por uma escada a um extenso patamar e dali a uma grande sala onde dois homens uniformizados, sentados a uma mesa, falavam com um negro alto, trêmulo e desajeitado. Num canto distante havia dois homens e uma mulher sentados em um banco. A mulher mascava algo e os dois homens fumavam.
— Eu lhes asseguro que não vi o homem, eu não o vi, — dizia o negro em voz despida de qualquer tonalidade.
Nielsen atravessou a sala de paredes mas, parcialmente revestidas de madeira amarelada e cheia de nós, e ar de coisa nova porém vazia. Uma porta abriu-se em um canto e um detetive à paisana — imperceptível e até mesmo insignificante quando comparado com o negro corpulento — entrou. Parecia cansado e mais velho do que na realidade era. O pouco cabelo que lhe restava era ralo e branco. Atravessou-se na frente de Nielsen e Gideon e disse:
— A viúva está ali. Os senhores querem falar comigo primeiro?
— Sim, — disse Nielsen.
Atravessaram novamente a sala e entraram num escritório pequeno e vazio.
— O viciado continua dizendo que não viu Orlick. Os dois homens e a mulher são testemunhas apanhadas na rua. Dizem que estavam esperando pela mudança de sinal, — reportou tensamente o policial envelhecido. — Um dos homens estava do outro lado da rua. O casal vinha atrás dos Orlick. Havia outro carro, com um motorista, na rua quando o acidente se verificou, porém este desapareceu antes de chegarmos ao local.
— Você tem algum motivo para duvidar dessas três testemunhas? — perguntou Nielsen. Antes que o outro pudesse responder, continuou. — Inspetor Gideon, quero apresentar-lhe ao Tenente Sabini, que é o encarregado deste distrito.
Sabini sorriu e apertou a mão de Gideon.
— A fotografia do senhor aparece com tanta freqüência nos jornais que não precisei indagar quem o senhor era. Recebi cinco avisos de carros de patrulha de que o senhor vinha para cá, Inspetor. — Sem mudar o tom da voz, Sabini passou para outro assunto completamente diferente. — Não, não teria motivos para duvidar das testemunhas, não fosse por causa da esposa de Orlick. Diz que estão mentindo.
— Como está ela? — perguntou Gideon.
— O médico diz que se encontra em estado de choque, entretanto isto seria difícil de assegurar. Para mim ela é feita de gelo. Capitão, por que o senhor não chama todos para o meu escritório e os deixa gritar entre si tanto quanto o queiram? Talvez assim descubramos a verdade.
Nielsen disse:
— Certamente — e olhou para Gideon. — George, nossos métodos em Nova York e seus métodos em Londres nem sempre coincidem.
Gideon sorriu e prometeu:
— Ficarei de lado observando como vocês trabalham.
O negro alto continuava a dizer exatamente aquilo que dizia quando Nielsen e Gideon chegaram à sala:
— Eu lhes asseguro que não vi o homem, não o vi. — Era como se fosse um gramofone cuja agulha tivesse enguiçado. O tremor também era o mesmo, e era como se o corpo do homem estivesse reagindo a uma música inaudível. Nielsen e Sabini não lhe deram a mínima importância. Por outro lado, também não deram atenção ao homem e à mulher. Sabini abriu a porta de seu escritório, deixou que Nielsen e Gideon passassem. Uma mulher gorda e já meio velhota estava sentada a uma mesa, Kitty Orlick por sua vez, sentara-se em um canto com um copo dágua em sua frente. Parecia rija como se seu corpo estivesse congelado. Seus olhos tão belos, a ponto de terem chamado a atenção de Kate, pareciam estar também congelados, com um brilho frio. Olhou para os homens que entraram no escritório, porém não deu uma palavra. Gideon teve a impressão de que ela parecia vinte anos mais velha do que quando a tinha visto no navio.
Naqueles dois primeiros dias ela parecera feliz.
— Sra. Orlick, estes são o Inspetor Gideon, da Scotland Yard, de Londres, Inglaterra, e o Capitão Nielsen, da Central de Polícia, da cidade de Nova York — declarou Sabini. — Isto prova que estamos levando muito a sério o acidente sofrido por seu marido.
Kitty olhou para Gideon. Quando falou, foi como se seus lábios tivessem dificuldade em se abrir, e as palavras lhe saíram em sílabas curtas e frias.
— Não se trata de um acidente. Meu marido foi assassinado. Este pessoal está mentindo.
Sabini pareceu olhá-la durante longo tempo, e Gideon pensou ver algo de compaixão na atitude daquele homem. Depois disto, Sabini virou-se, abriu a porta e disse:
— Entre, pessoal.
— A mulher envelhecida não deu a menor atenção ao que se estava passando e continuou sentada de costas para a sala, lendo alguns documentos. Os dois homens eram do tipo comum e nada de extraordinário havia neles. Um estava sem paletó, vestindo camisa verde de mangas curtas. O outro usava um terno cor de biscoito que não lhe assentava bem. A mulher tinha cabelos negros encrespados, lábios muito bem formados e um defeito num de seus olhos castanhos. Usava um vestido violeta-claro, de mangas curtas, a parte superior de seus braços, muito brancos, era enorme.
— Quando é que vamos sair daqui? — perguntou o homem de terno, com a face descorada, a demonstrar cansaço e ressentimento.
— Quando estivermos satisfeitos com suas respostas, — retrucou Sabini.
— Aconteceu que assistimos a um desastre de automóvel e tivemos a má idéia de abrir a boca. Por que vocês nos estão mantendo detidos?
Sabini disse:
— Eu sei como os senhores se sentem, porém o homem que morreu era hóspede em nosso país. Assim sendo, temos que lhe prestar as devidas homenagens. Onde é que o senhor estava quando o acidente ocorreu?
— Nós estávamos...
— Não se importe com seu amigo. Fale-nos sobre o senhor mesmo.
— Eu estava do lado norte do setor oeste da Rua Cinqüenta, esperando que aquele carro passasse. O sinal luminoso estava aberto para ele. O homem que foi atropelado desceu diretamente da calçada para a rua. O motorista não teve uma oportunidade sequer de se desviar.
— Foi assim mesmo, — a mulher confirmou.
— Foi assim que a coisa aconteceu, — o segundo homem declarou. — Eu vi tudo bem por trás do homem.
— Eles estão mentindo, — disse Kitty Orlick, friamente. — Não estavam próximos ao meio-fio e sim mais distante, por trás de mim. A luz do sinal estava vermelha e não verde. Não havia razão para o carro ter-se movimentado. Além disso, estava quase na calçada. Meu marido olhou em volta e logo depois me empurrou para cima da calçada. Se não o tivesse feito, eu teria sido atropelada também. Naturalmente, que nos teríamos certificado do sinal, pois estávamos bem nervosos com a intensidade do tráfego.
— O senhor vê, — disse o homem que falava pelas testemunhas. — Eles estavam nervosos.
— Não podiam ver em linha reta, — declarou a mulher, em tom de mofa.
Kitty Orlick olhou para Gideon e disse em voz franca, sem a menor emoção:
— Eles estão mentindo. O senhor, tem que prová-lo.
— Se pudermos, nós o faremos, — disse Nielsen. — Muito bem, falarei com vocês dentro em pouco. — Sabini abriu a porta e as testemunhas saíram, desafiantes e aparentemente ressentidas. A porta se fechou quando Nielsen notou a atenção de Gideon. O seu balançar da cabeça no sentido de Kitty traduzia um convite para que Gideon se dirigisse a ela.
— Sra. Orlick, — disse Gideon. — Sinto não poder expressar meu desapontamento sobre tudo o que se passou.
— Todo o seu desapontamento não trará o meu marido de volta.
— Mentindo sobre como ele foi morto também não o fará. Pela primeira vez os olhos de Kitty cintilaram.
— Eu lhe disse a verdade, toda a verdade. Se o senhor não acredita em mim, como é que vai esperar que estes policiais americanos o façam?
Gideon sentiu-se quase convencido de que Kitty estava falando a verdade da melhor forma que ela se podia recordar: ninguém, ouvindo suas palavras, podia acreditar que estivesse mentindo.
— Por que alguém haveria de querer matar seu marido? — indagou.
— Não sei. A única coisa que sei é que as provas são falsas.
— Por que estavam vocês nessa parte da cidade? — perguntou Nielsen. — Vocês estavam bem longe do hotel onde se hospedaram.
— Dirk recebeu um telegrama de um homem chamado Danny — explicou Kitty. Disse que se tratava de um companheiro de negócios.
— Que tipo de negócios?
— Não sei.
— Isto é difícil de se acreditar, — disse Gideon.
— Mesmo assim, é a verdade. Dirk sempre disse que um homem devia manter seus negócios e sua mulher separados. Se todos fizessem assim, haveria menos casamentos desfeitos.
— Apesar disso, ele a trouxe a Nova York nesta viagem de negócios — objetou Gideon. — E ele a levou consigo hoje para o encontro com o companheiro de negócios.
— Não quis ficar sozinha logo no primeiro dia e ele... bem, tivemos uma briga e depois fizemos as pazes.
— Por que foi que vocês brigaram? Kitty não respondeu.
— Por que atacou o homem chamado Brown, no navio? — perguntou Gideon.
— Isto nada tem a ver com o caso.
— Pelo contrário, pode ter muito a ver com o caso, — disse Gideon calmamente. — Seu marido atacou Brown como se quisesse matá-lo. As testemunhas na boate do navio não mentiram e todas declararam a mesma coisa, isto é, que se dois outros homens não tivessem arrancado seu marido de cima de Brown, ele o teria matado. A senhora conhecia Brown, Sra. Orlick? Se a senhora acredita sinceramente que se trata de um assassinato, e não de um acidente, pensa que isto teve alguma coisa que ver com o caso Brown?
Tudo que Gideon disse, e na forma pela qual se expressou, foi calculado para fazer com que Kitty Orlick cedesse. Podia ser uma maneira cruel de proceder, porém, em última análise, era a melhor. E foi bem sucedido, mesmo sem ficar certo de que aquilo que descobriu era exatamente o que desejava saber. A frieza existente nos olhos e no corpo de Kitty começou a desfazer-se. Lágrimas começaram a cair, suas pernas se curvaram e ela começou a chorar profundamente. A mulher que até então se tinha mantido sentada à mesa, levantou-se e se dirigiu para ela, confortando-a. Sabini passou as mãos em seus cabelos ralos.
— É um problema muito difícil, — declarou. — Tudo o que lhe resta é um luxuoso quarto de hotel cheio de roupas de seu marido. Meu Deus, o que é que ela vai fazer? — Olhou para Gideon como se esperasse que este tivesse uma resposta.
Encontraram alguns nomes ou endereços nos bolsos de Orlick? — perguntou Gideon.
— Venha ver o senhor mesmo, — convidou Sabini. Havia uma carteira em estilo inglês, de couro de crocodilo, na qual estavam guardadas vinte notas novas de vinte dólares, outras de menor valor, cartões de visita de Orlick, selos ingleses de correio, um cartão de crédito da American Express, um relógio, chaves, uma cigarreira dourada e um isqueiro, também dourado. Era tudo.
— Precisamos dar uma busca no quarto do hotel, — disse Gideon. — Podemos fazer isto antes que a Sra. Orlick volte para lá?
— Agora mesmo, — disse Nielsen. — Sabini, mantenha-a por aqui por mais meia hora.
— O.K., — respondeu Sabini.
O choro de Kitty tornava-se cada vez mais pungente e Sabini olhou para ela de maneira inquieta.
— O que é que vamos fazer com o motorista viciado em entorpecentes? — perguntou ele.
— Prenda-o, respondeu Nielsen. — Não há problema nisso.
— E as testemunhas?
— O que é que você sugere?
— Estou muito longe de casa — disse Gideon secamente. — Mas, se eu tivesse três testemunhas que contassem uma história idêntica e que se tivessem oferecido para contar o que viram, começaria a suspeitar das suas finalidades. Testemunhas oculares de acidentes de automóvel na Inglaterra procuram sempre esconder-se. Entretanto, aqui temos três que fazem justamente o contrário. E o motorista — será que podemos abrir a porta um momento?
— Certamente, — disse Sabini, abrindo-a enquanto Nielsen começou a sorrir para Gideon com humor um pouco perverso.
O motorista continuava dizendo na mesma voz e bem alto:
— Eu lhes asseguro que não vi o homem, não o vi. Antes que a porta se fechasse havia repetido isto três vezes.
— Exatamente como se fosse um disco de gramofone — observou Nielsen. — Soa como se tivesse sido instruído a dizer isto, continuando a fazê-lo. Os outros também parecem agir como autômatos. O senhor tomou o nome e endereço deles, tenente?
— Sim.
— Vai providenciar para que sejam seguidos?
— Certamente.
— Não será fácil provar que mentiram, — disse Nielsen. 1— Se é que mentiram. Vamos.
Vinte minutos depois, Gideon e Nielsen saíram do elevador no vigésimo primeiro andar do Hotel Hilton, na Sexta Avenida, com o detetive da casa atrás deles trazendo a chave-mestra que permitia abrir a porta de todos os quartos. O detetive passou à frente e abriu a porta, pondo-se de lado para que entrassem. Nielsen foi o primeiro a entrar e a parar tão abruptamente que Gideon quase o atropelou.
Um olhar foi o bastante para lhes mostrar que o quarto, grande e ensolarado, no qual se ouvia o ruído do aparelho de ar condicionado, tinha sido saqueado.
Dez minutos foi o bastante para mostrar-lhe e torná-los convictos de que não havia documentos relativos a negócios ali, nada que pudesse indicar a pessoa que Orlick tinha vindo ver nos Estados Unidos.
Kitty Orlick disse secamente:
— Ele tinha uma pasta na qual guardava todos os seus papéis. Mantinha-a sempre trancada. Não adianta perguntar-me sobre quem ele veio ver aqui. Não me disse. Já lhes contei tudo o que sei.
— Max, — disse Gideon. — Temos que verificar o escritório de Orlick em Londres, rapidamente e espero que vocês comecem a investigar este homem chamado Brown. Vou continuar a insistir com Kitty Orlick, que pode não ser tão inocente e ignorante quanto parece.
— Podemos cansá-la, — disse Nielsen.
— Se ela está mentindo, então é tão resistente que não será fácil cansá-la, — disse Gideon. — Gostaria de tentar outro método. — Depois de uma pausa, indagou: — Você acha que seria possível arranjar um quarto pequeno em nosso hotel, no mesmo andar em que estamos, ou então um logo acima ou logo abaixo?
Depois de uma pausa, Nielsen começou a sorrir.
— Não ficaria surpreso se isso fosse possível, — disse, secamente.
— Se é assim, vou chamar Kate ao telefone, — disse Gideon. — Entretanto, antes de fazê-lo, desejo enviar um telegrama à Scotland Yard.
— Claro, — disse Nielsen. — Imediatamente. — Hesitou e depois falou: — Você vai mandar vigiar Cordova?
Gideon respondeu, de modo suave: — Certamente.
Central de Polícia
— Kate, — disse Gideon na manhã seguinte. — Você não pode imaginar como sinto que tudo isto tenha acontecido.
— Não seja bobo, querido. Não podíamos deixar a moça ficar sozinha. Você está com a razão, eu tenho maiores possibilidades do que qualquer policial americana de verificar se ela está falando a verdade. Entretanto — voltou-se para encarar o marido face a face — não garanto que o conseguirei.
— Fazer é muito melhor do que tentar, — disse Gideon de maneira usual. — Se ela nada mostrar é porque necessita de todo o auxílio que você lhe puder dar; e se sabe de alguma coisa, sua vida pode estar em perigo idêntico à do marido. Qualquer coisa que você puder descobrir será bom para ela.
Kate quase deu uma gargalhada:
— Você deixou bem claro o que deseja.
— Bem, — Gideon tornou-se ligeiro. — Kitty Orlick está no andar abaixo de nós, duas portas depois da escada e cinco antes do elevador. Ela pensa que foi trazida para aqui porque a polícia precisou lacrar o quarto do hotel onde ela estava hospedada com o marido. Sabe que estamos morando aqui. — Depois de uma pausa, continuou. — Você não tem que ficar lá o tempo todo, Nielsen está enviando uma policial, que passará por enfermeira. Se você descobrir algo diga a ela.
Kate olhou para Gideon meio sorridente.
— George, sou a esposa de um policial. Também sei um pouco sobre o que devo fazer.
— Nada parecido com isto aconteceu até agora em Londres, — Gideon estava um pouco sombrio.
— Isto fará com que nossa estada em Nova York se torne mais memorável, — disse Kate alegremente. — Não faça o Capitão esperar. Você tem um encontro marcado com o Comissário e mais algumas pessoas importantes às dez horas. Já são nove e meia.
— Não estamos longe de Centre Street, — Gideon lembrou. — Kate...
— Pelo amor de Deus, George, deixe de se preocupar tanto comigo.
Kate Q fez sentir-se muito melhor, se bem que, mesmo assim, ele estivesse preocupado. Não se devia isto apenas a que, com Kitty Orlick hospedada por dois ou três dias no hotel, a liberdade de Kate ficaria restringida. Gideon preocupava-se muito com o fato de que Kate levasse a maior parte do início de suas férias lidando com uma jovem cujo pesar poderia ter um efeito depressivo sobre Kate.
Kitty estava sob o efeito de um sedativo e o médico dissera que não acordaria antes da tarde. Mesmo assim, Gideon desceu um lance de escadas e bateu na porta do quarto dela, levando Kate consigo. A enfermeira abriu a porta.
Kitty estava deitada de costas numa cama de casal, no pequeno quarto, com um lençol cobrindo-a até o pescoço e com um braço por fora dele. As linhas de seu corpo destacavam-se perfeitamente. Tudo que Gideon ouvira sobre os Orlick lhe dava a impressão de que, qualquer que fosse o índice de criminalidade do marido, não havia a menor dúvida de que era um apaixonado por sua esposa.
Kate sussurrou:
— Vamos, George.
Ao chegar ao elevador, ele a beijou e desceu. Logo depois, Gideon chegava à rua e o motorista policial que estava conversando com o porteiro tomou posição de sentido, com um leve sorriso, como se não estivesse bem certo de como deveria tratar esse inglês estranho. Nielsen tinha posto um carro, com motorista, à disposição de Gideon durante sua permanência em Nova York.
— Bom dia, Inspetor.
— Bom dia, — respondeu Gideon. — Será que podemos chegar a Centre Street antes das dez?
— Chegaremos lá, — assegurou o motorista. O homem tinha uma face rosada e era difícil dizer se estava na casa dos quarenta ou dos cinqüenta anos. Usava um uniforme azul-cinza, semelhante ao da Real Força Aérea, e muito embora o tempo estivesse, no modo de ver de Gideon, um pouco úmido, não parecia suado ou mesmo cansado. Ao entrar no carro, Gideon passou de uma atmosfera parecida com um banho turco, a um ambiente mais fresco, que lhe dava a impressão de estar em seu próprio quarto no hotel, onde o ar era refrigerado. Não era, assim, de estranhar que o motorista não demonstrasse estar sentindo calor.
O policial fechou a porta do carro, tomou lugar no seu assento e partiu suavemente. Não havia separação entre os assentos traseiro e dianteiro. O motorista começou a falar sem se virar para trás.
— Encontraremos algum tráfego próximo a Centre Street e Broadway, porém isto não quer dizer nada. É esta sua primeira visita a Nova York, Inspetor?
— É. Eu deveria ter vindo antes.
— Nunca é tarde demais, penso. Espero ter a oportunidade de visitar Londres antes de morrer. Meus pais eram de Londres, isto é, não meu pai, o senhor compreende, os pais de meu pai e os antepassados de minha mãe. Meu nome é Gentian, porém o senhor pode-me chamar Gent. Eles são originários de um lugar de cujo nome nunca me posso lembrar corretamente. Fenn, ou algo parecido. Há um bocado de água por lá, daí o nome do lugar. Será que o senhor conhece alguém com o nome de Gentian por lá?
Gideon sorriu intimamente.
— Tanto quanto me posso lembrar, sua família vem do condado de Fen, provavelmente das proximidades de Norfolk Broads.
— É isto mesmo. O lugar tem o mesmo nome da raça de perus. Norfolk Broads, é isto mesmo. É um prazer termos um chefão da Scotland Yard conosco, Inspetor. Há dois ou três anos, tivemos uma visita idêntica de um homem chamado Rogers, ou coisa parecida.
— Rogerson, — disse Gideon.
— Isso mesmo. — Durante todo esse tempo o motorista estivera a dar voltas em torno de uma pequena praça arborizada e gramada, muitíssimo parecida com as praças de Londres. Logo depois, entrou pela Broadway e, na sua frente, descortinou-se uma ampla rua, na qual se movimentavam ônibus e caminhões, alguns táxis e poucos carros particulares. O carro em que Gideon viajava movimentava-se rapidamente porém mais adiante reduziu a marcha, pois o sinal se fechou. Ao lado direito da rua havia outro gramado verde.
— Está vendo este parque? É o City Pall Park, — disse o motorista. — Está vendo aquele edifício à esquerda? — Acenou lateralmente com a cabeça. — Aquele é o City Hall, sim senhor. Eu o fiz vir por aqui porque acho que todos os visitantes devem ver o City Hall. O senhor vê como a rua se estreita? Este é o caminho para a Wall Street, senhor. Ali é que começa a chuva de pedaços de papel com que são recepcionados nossos heróis, o último dos quais foi um astronauta que provavelmente será o primeiro homem a ir à Lua. Prefiro Centre Street, quem quiser que vá à Lua. — O sinal luminoso mudou. — Não vai demorar muito tempo até chegarmos lá, Sr. Gideon.
O carro contornou duas ou três esquinas e Gideon perdeu completamente o sentido de direção. Repentinamente, entrou por uma rua estreita, na qual estavam estacionados caminhões e carros de polícia, e parou defronte de um edifício de granito, ao lado direito.
— Aqui estamos, Inspetor. Estarei à sua disposição quando o senhor precisar de mim novamente. Pode subir as escadas. — Gideon parou, olhou para o velho edifício, que reconheceu como sendo o da Polícia Central, e pensou: "Parece uma prisão". Depois, viu os leões agachados, nos pilares de cada lado da escada de acesso, e balançou com a cabeça, surpreso. Enquanto fazia isto, um negro, jovem ainda, muito bem vestido, desceu apressadamente as escadas, a face demonstrando satisfação. Sorria e dava a impressão de ótimo preparo, tanto físico como mental. Gideon pensou: "Na certa não vão deixar que a imprensa comece a me amolar tão cedo".
— Bom dia, Inspetor. — Gideon notou que estava ouvindo esse título com muito mais freqüência do que na Inglaterra. — Surpreso com os leões? Todos os ingleses ficam. Parecem pensar que os britânicos têm preferência no que se refere a leões. — Havia algo de agradável na maneira de agir deste homem e sua voz tinha uma atração especial. — Sou o tenente Cassidy. O capitão Nielsen pediu-me que olhasse pelo senhor por enquanto, assim como o pusesse a par dos planos que temos para hoje.
Subiram juntos a escadaria e entraram num vestíbulo imenso, porém sombrio. A impressão de que se tratava de uma prisão foi reforçada. De cada lado havia portas com grades dominando os corredores, com dois homens de plantão em cada uma. Gideon lembrou-se do repórter de jornal que lhe perguntara: "O senhor acha que a polícia deve andar armada?" Bem à frente havia duas escadas que subiam ao lado de um enorme elevador com portas do tipo de sanfona. Logo em frente deste estava localizada a seção de informações, isto é, algo que, na -opinião de Gideon, deveria também existir na Scotland Yard. Tudo era velho, pesado e tenebroso. Passaram através de um dos portões engradados.
— Alô, Joe, — disse Cassidy a um enorme guarda, que olhou intensamente para Gideon. Este sorriu suavemente. — Tivemos que alterar o programa. O Comissário recebeu um chamado do City Hall para falar com o prefeito. Às dez e meia haverá uma conferência com a imprensa,— prosseguiu Cassidy.
— Às onze e meia, o senhor deverá estar na sede da Patrulha Fluvial, onde é possível que encontre mais notícias sobre o cargueiro Maruna. Às doze e meia o senhor almoçará com o Comissário, acompanhado de dois comissários-assistentes e do capitão Nielsen. — Cassidy abriu uma porta que dava para o lado direito, dizendo: — O Sr. Lingardo, comissário-assistente encarregado de Relações Públicas, está de férias. Assim sendo, o senhor pode usar o escritório dele enquanto estiver aqui. Há bastante espaço, mesmo que ele volte. Entretanto, isto não acontecerá antes do Dia do Trabalho.
— Dia do Trabalho?
— A primeira segunda-feira de setembro.
— Obrigado, — disse Gideon. Duas semanas se estendiam à sua frente e isto parecia ser um prazo muito longo.
— Temos algumas informações interessantes para o senhor
— Cassidy prosseguiu e levou Gideon através de uma sala onde quatro homens trabalhavam, atentos ao que estavam fazendo ou talvez procurando não revelar seu interesse pelo visitante. A sala era longa, estreita, provida de uma mesa e com uma janela com barras de ferro na outra extremidade. Os arquivos e os móveis eram sólidos e antiquados, porém, a cadeira, de tipo giratório, era moderna e confortável. Sobre a mesa havia vários relatórios dactilografados. Os pensamentos de Gideon voltaram-se para seu escritório na Scotland Yard, que era bem menor e agradável, em estilo vitoriano. — Posso informar-lhe o conteúdo destes, — prosseguiu Cassidy. — Primeiro, o motorista do carro que matou Orlick é um viciado em entorpecentes há onze anos e, como quase todos os viciados, é capaz de tudo quando está desesperado por uma dose. Já foi condenado três vezes, todas elas por roubo de automóveis quando não podia obter o entorpecente. É possível que tenha sido pago para atropelar Orlick. Se alguém foi pago, não há dúvida de que ele está entre esses. As testemunhas são pessoas de boa reputação e nem ao menos residem no mesmo distrito. A mulher e um dos homens com quem ela é casada, moram em Flushing. O outro homem, um amigo, mora próximo à Broadway. Ele é solteiro e vive sozinho. Uma coisa, entretanto, é certa sobre essas testemunhas. Trata-se de gente de poucos recursos que poderia ser subornada, se alguém quisesse, para prestar falso testemunho. — Cassidy observava Gideon como se estivesse procurando saber se este lhe prestava atenção. — Inglemann Brown e sua esposa passaram a noite no seu apartamento em Nova York e depois voaram para a Califórnia.
— Gideon exclamou:
— Então eles viajaram, ora muito bem!
— A Sra. Brown tem parentes em Pasadena, — disse Cassidy. — Talvez não haja nada de anormal no fato de eles terem saído da cidade tão depressa. Recebemos um relatório de Pasadena informando que chegaram lá. Em Nova York têm boa reputação.
Gideon disse de maneira um pouco mal-humorada:
— Pensei que iríamos preocupar Orlick se pressionássemos Brown, mas parece que preocupamos alguém mais que não queria ver o nome de Orlick nos jornais. Vocês conseguiram apurar algo mais?
— O porteiro do edifício contou que um homem que se dizia ser do Post procurara falar com os Brown logo que estes chegaram ao apartamento vindos de bordo. Descreveu este homem como alto e forte. Procuramos saber no Post e fomos informados que não mandaram ninguém.
— Então quem era ele? — perguntou Gideon.
— A não ser que o identifiquemos, ou os Brown abram a boca, jamais saberemos, — disse Cassidy. — Mais cedo ou mais tarde, os Brown falarão, porém, no momento, não temos motivos para trazê-los de volta de Los Angeles... Há outra coisa.
— De que se trata? — indagou Gideon.
— O homem forte foi levado por outro homem, num Chevrolet verde, modelo 1963.
Gideon franziu as sobrancelhas como se estivesse procurando recordar-se de algo.
— O carro que atropelou Orlick era um Chevrolet azul, não é verdade? — Sua face clareou. — Eu me lembro agora! Havia um Chevrolet verde estacionado na Rua Cinqüenta na ocasião do acidente, com um homem forte na direção. A Sra. Orlick viu quando o carro saiu e as testemunhas disseram que era um Chevrolet.
— Foi isso mesmo, — disse Cassidy. — E nós já estamos ordenando uma busca atrás desse Chevrolet, O porteiro do edifício dos Brown forneceu-nos boa descrição do homem. — Cassidy entregou a Gideon um retrato Identikit de um homem de rosto abrutalhado, assim como com olhos negros, pensativos.
— Aquele cargueiro sobre o qual Lemaitre lhe falou, o Maruna, — disse Cassidy quando Gideon colocou o retrato sobre a mesa.
— Sim?
— Fez escalas em Savannah, Port Everglades, Nova Orleans e em dois portos sul-americanos, com carga variada, depois atravessou o Atlântico em direção a Dacar, fez a volta do Cabo da Boa Esperança, escalou na Cidade do Cabo, Durban, Moçambique, Dar-es-Salaam, Port Said, Haifa e Londres. Levou consigo os relógios Rite-Time durante todo o percurso. A não ser que o comandante esteja recebendo algo, os relógios, devem ter pago um frete bem alto.
Gideon encostou-se na mesa.
— Podemos fazer um trabalho junto aos oficiais, porém isto levará algum tempo e uma coisa é certa: não encontraremos o assassino de Orlick no Maruna. Existem dois motivos óbvios para a morte de Orlick, mesmo que não saibamos qual dos dois é o verdadeiro. Ou ele estava-se tornando importuno para os seus associados em Nova York, ou então eles se tornaram receosos de que ele nos poria em seu caminho. Vocês têm alguma idéia de quem esses associados possam ser?
— Não, — respondeu Cassidy. — Não temos a menor idéia. O senhor gostaria de ler estes documentos enquanto espera que chegue a hora da conferência com a imprensa.
— Onde será realizada a conferência?
— Temos uma sala apropriada para este fim.
— Bem, — disse Gideon. — E muito obrigado por tudo quanto você fez por mim.
— Tudo quanto eu puder fazer pelo senhor será um prazer — disse Cassidy com sinceridade. — Ouvi o Capitão Nielsen falar tanto do senhor que cheguei a duvidar que fosse verdade. Acho que terei esta certeza quando o senhor se for embora. O Comissário lhe dará as boas-vindas oficiais e eu quero que o senhor saiba que tudo o que ele disser valerá pela opinião de todos aqui. Estamos satisfeitíssimos em tê-lo em Nova York.
Cassidy retirou-se, deixando Gideon pensativo, mas, ao mesmo tempo, satisfeito.
Durante aproximadamente meia-hora, com Nielsen de um lado e Cassidy do outro, Gideon ficou sentado em uma sala sombria, usada para aulas e reuniões, respondendo a perguntas que lhe eram feitas por cerca de vinte repórteres. A maior dificuldade que teve foi a de evitar comparações entre Nova York e Londres, assim como a de não fazer comentários apressados. Ninguém o pressionou demasiadamente. Guiado por Nielsen, prometeu comparecer a dois programas de televisão, recusou cinco convites para falar através de estações de rádio, e sentiu-se razoavelmente satisfeito quando tudo terminou.
— George, — disse Nielsen quando Gideon já ia saindo para visitar a Patrulha Fluvial. — Por que é que você não ingressa no serviço de relações públicas?
Esta parte de Nova York parecia ter pouco que a recomendasse. As ruas eram monótonas, sujas, velhas e muitas das casas davam a impressão de estarem prestes a ruir. Somente umas poucas vitrinas e alguns carros eram novos. O carro em que viajaram entrou por uma rua estreita, calçada, com paralelepípedos mal nivelados, mas com muito lugar para estacionamento, o que era pouco comum. No fim da rua parecia haver uma descida íngreme para o rio Hudson. Sobre a porta, que era arqueada em pedra, parecendo-se com a entrada de uma igreja, podia-se ler a inscrição DELEGACIA e, na parede, uma placa indicava PATRULHA FLUVIAL DE DETETIVES. Cassidy entrou na frente, passou por uma grade, por trás da qual estava sentado um sargento uniformizado. O banco era alto como se fosse uma cadeira de juiz.
— Alô, Sam, — disse Cassidy. — Alô, Jim. Apresento-lhes o Inspetor Gideon.
Cassidy continuou a indicar o caminho subindo uma escada de degraus estreitos e gastos, com corrimão de metal, na direção do segundo andar. Ali chegando, entrou numa sala em cuja porta havia uma placa com os seguintes dizeres: PATRULHA D — Tenente Krotzer. Quando Cassidy abriu a porta dois homens, sentados a uma mesa grande, levantaram a cabeça; um deles era enorme, o outro pequeno, porém muito vivo. Antes que Cassidy pudesse falar, e antes que Gideon pudesse ver ambos os homens claramente, já que a luz que penetrava pela janela ofuscava sua vista, o homem pequeno e vivo disse:
— Satisfeito em tê-lo conosco, Inspetor. Temos notícias para o senhor. — O outro homem sorria e Gideon sentiu que ambos estavam muito contentes consigo mesmos, procurando mostrar-se. — O Maruna, tem um irmão, que deve atracar no molhe 117 amanhã à tarde. Partiu daqui há sete meses e seguiu a mesma rota do Maruna, levando em sua carga relógios e jóias de fantasia. Trata-se do Hempen. Pertence à mesma companhia — isto é, à Cia. de Navegação Trans-Ana — transporta o mesmo tipo de carga, faz as mesmas escalas, atraca no mesmo molhe em Nova York e é servido pelo mesmo grupo de estivadores. Que lhe parece isso?
Motivos de Excitação
Gideon sentiu que os homens estavam excitados, notou que a excitação atingia Cassidy e reconheceu que isso traduzia algo de satisfação, pois haviam demonstrado que estavam dando boa conta de seu trabalho. Imediatamente, passou pela sua mente o fato de que, juntamente com as notícias recebidas de Lemaitre, isso poderia trazer o fim do caso Rite-Time. O negócio poderia entrar em colapso ou, por outro lado, poderia explodir em suas mãos.
— Como foi que vocês descobriram? — perguntou Gideon.
— A gente tem que ter um pouco de sorte, — disse o homem enorme. Recebemos notícia de que um pequeno cargueiro estava em dificuldades a cinqüenta milhas das rotas normais de navegação e o Serviço de Guarda-Costas enviou um avião à sua procura. O cargueiro fora atingido por uma tempestade, porém já estava navegando por seus próprios meios. Nada foi necessário fazer a não ser anotar o seu nome. O Hempen — ele repetiu, com grande satisfação.
— Os mesmos armadores, Trans-Ana, os mesmos embarca-dores, os mesmos fretadores, mesmas escalas, mesmo molhe de atracação e os mesmos estivadores, — disse Gideon com o reflexo de um sorriso. — Quando é que o cargueiro chegará?
— Amanhã, por volta das três horas da tarde.
— Assim sendo, teremos bastante tempo — disse Gideon. O homem pequeno e vivo indagou: — Para quê?
— Para fazer algumas investigações antes que o Hempen atraque, — disse Cassidy. — Inspetor, gostaria de lhe apresentar o tenente Krotzner e o sargento Peek. — Houve uma pequena cerimônia de apertos de mão. — Tenente, queremos estender todas as facilidades possíveis ao Inspetor Gideon, e achamos que seria boa idéia incluirmos no programa uma visita ao molhe onde o Maruna e o Hempen atracam, assim como aos armazéns e docas, e talvez à seção da alfândega que os libera. Uma visita de cortesia apenas, compreende?
Peek deu uma formidável gargalhada.
— Naturalmente, compreendemos muito bem!
O vivíssimo Krotzner, bem apessoado em seu porte de quase miniatura, coisa fácil de se deixar de notar dado o seu tamanho reduzido, falou em seguida.
— Quando gostaria de fazer esta visita, Sr. Gideon?
— Amanhã — respondeu Cassidy.
— Será que não teremos tempo hoje? — perguntou Gideon.
— Não, senhor.
— Qual será a hora adequada para começarmos? — perguntou Gideon a Krotzner.
— Às nove horas estará bem para o senhor?
— A que horas os estivadores começam a trabalhar?
— Às oito horas.
— Será que não poderemos começar também às oito? — perguntou Gideon. Viu um sorriso de apreciação nos lábios de Peek e um olhar satisfeito de Krotzner.
— Certamente, — retrucou Krotzner.
— Há outra coisa, — disse Gideon. — Seria de grande proveito se pudéssemos verificar se há algum interesse desusado pelo Hempen no cais, assim como se alguma carga que pudesse ter sido embarcada em outro navio, foi retida deliberadamente, esperando por sua chegada. Seria isto possível?
— Certamente, — disse Krotzner. — Podemos tentar.
— Temos olhos e ouvidos por todos os lados do cais, — disse Peek. — O senhor ficaria surpreendido se soubesse quantos olhos temos ali.
— Quanto tempo ainda temos antes de vocês saírem? — perguntou Krotzner.
— Meia hora, — respondeu Cassidy.
— Nesta meia hora poderemos mostrar muita coisa ao Inspetor — disse Krotzner. — Podemos indicar a posição das docas e armazéns e explicar-lhe como trabalhamos aqui. Assim, quando começarmos, amanhã pela manhã, ele saberá qual é a situação. — Como se estivesse convicto de que esta sugestão tinha sido bem aceita, prosseguiu: Que tal um cafezinho, Mac? Quer fazer o favor de vir a meu escritório, Inspetor?
O escritório de Krotzner, na porta ao lado, era pequeno mas nele havia quatro cadeiras em volta de uma mesa e sobre esta vários gráficos, alguns desenhos, enquanto que mapas estavam pendurados nas paredes. Peek apanhou o telefone e disse.
— Café para quatro na sala do tenente.
— Sentem-se, — disse Krotzner afavelmente. — Sr. Gideon, não sabemos a extensão deste negócio, porém, qualquer que seja seu volume, poderemos dar conta dele se soubermos o que estamos fazendo. Existem, ao todo, três grupos de policiais trabalhando no cais. Há a Polícia do Porto, que está equipada com lanchas rápidas. Corresponde à Divisão de Polícia do Tâmisa, de Londres, segundo penso. Depois vem o nosso serviço, isto é, a Patrulha Fluvial de Detetives, e a polícia comum que patrulha as ruas do distrito. Todos esses três grupos estão o tempo todo à procura de casos omissos.
— Com que tipos de casos eles lidam a maioria das vezes? — perguntou Gideon.
— Em primeiro lugar, roubo. Depois assaltos. Boa parte do pessoal do cais tem temperamento acalorado e o mesmo acontece com os tripulantes dos navios que chegam de longas viagens e são assaltados. Existe muito contrabando, que está sob o controle da alfândega, e esta trabalha em contato íntimo conosco. Além disso, existem as dificuldades trabalhistas, as quais não entram ainda nas estatísticas criminais. Entretanto, grande número de crimes de somenos importância pode levar o pessoal a greves e por isto mantemos nossos ouvidos atentos a qualquer rumor que indique uma situação capaz de dar lugar a tais movimentos. Há muito tempo perdido no cais, Inspetor, e muito mais seria desperdiçado se não avisássemos aos sindicatos quando as dificuldades ainda estão latentes. — Krotzner estava falando com precisão e muito rapidamente. Por certo, a coordenação eficiente dos departamentos tinha grande importância para ele. — Estava dizendo que existem três grupos, a Polícia do Porto, que se encarrega da vigilância sobre a água. Este grupo tem vários postos ao longo do cais, inclusive um aqui mesmo neste edifício. Se o crime tem origem sobre a água, é de sua alçada. Entretanto, se se origina depois que o navio atraca, o caso é conosco.
— Desta forma, vocês estão sempre um dentro dos bolsos do outro! — exclamou Gideon.
— Na realidade, trabalhamos em cooperação muito estreita, — corrigiu Krotzner. — Se não fizéssemos assim, estaríamos em dificuldades. Aqui, na Patrulha Fluvial, temos trinta e um detetives, um sargento, Peek, e eu. Há ocasiões em que deveríamos ter o dobro. Não há mudanças muito grandes de pessoal por aqui, por isso conhecemos todos, e isso é bom neste negócio.
— Negócio? Peek sorriu.
— Ele quer dizer, aqueles que são capazes. Onde é que está o café? — Peek levantou o fone novamente e gritou: — Eu disse café para quatro. — Enquanto baixava o aparelho, Krotzner prosseguiu no mesmo tom, preciso e sem fantasia.
— Precisamos conhecer os estivadores e trabalhadores dos armazéns. Precisamos conhecer o encarregado do armazém, assim como seus assistentes; os capatazes de turmas de estivadores, ou seja, todo o pessoal que tem algo a fazer nos embarques. As turmas de estivadores compõem-se de cerca de vinte homens, lembre-se. Precisamos conhecer os oficiais dos navios que supervisionam a arrumação da carga quando estão sendo carregados. Sim, senhor, precisamos conhecer toda esta gente porque são eles que sabem quando algo errado está sendo feito. São as pessoas que nos guiam quando há algo que nos interessa.
Cassidy sorriu de uma maneira quase feroz.
— Uma família de gente feliz, — disse ele.
— É verdade, — disse Krotzner calmamente. — Há outra coisa que o senhor aprenderia se trabalhasse aqui, Sr. Gideon. Foi necessário usarmos de uma perfuratriz pneumática e de dinamite para fazer a Polícia Central compreender que se as coisas se iniciam erradas no cais continuam erradas em Nova York. O cais são os olhos e os ouvidos de Nova York, assim como seu coração e pulmão.
Gideon disse:
— Sabemos que várias e substanciais remessas de relógios foram desviadas, porém não sabemos como.
— Substanciais? — indagou Krotzner. — O que quer o senhor dizer por substanciais? Um engradado de maquinaria pode ser o dobro, em tamanho, do que o senhor chama de grande remessa. O senhor deve ver... — Olhou quase desesperadamente para Cassidy. — O senhor acha que não temos tempo para dar Uma olhada nos armazéns agora mesmo?
— A não ser que você queira fazer o Inspetor deixar o Comissário esperando.
— Peço-lhe, Inspetor, — disse Krotzner com olhos brilhantes. — Diga ao Comissário que Nova York, assim como Londres, respira através do cais do porto. Diga-lhe que ainda não viu um cais que seja tão importante para uma cidade. Faça todo o possível para convencê-lo disso. — Krotzner estava sorrindo através de seus lábios mas não com os olhos. Gracejava e, ao mesmo tempo, falava sério. Peek cocava o queixo. Cassidy estava sorrindo como se já tivesse ouvido uma tirada destas antes. No silêncio que se seguiu, a porta se abriu e um homem alto entrou. Trazia uma caixa de chocolates Hershey com quatro copos de papel, tampados, com café. Revirou os olhos e colocou a caixa sobre a mesa, com um pequeno movimento na boca. Nenhum dos presentes lhe prestou atenção. Ele recuou e olhou para Peek, como se estivesse esperando sua aprovação. Peek disse:
— Está bem, rapaz.
— Sim, senhor — disse o homem. — Sim, senhor. — Com um sorriso nos lábios, retirou-se.
O café estava meio frio, porém ninguém deu importância ao fato.
— Inspetor, tenho comigo um relatório de suas conversas com o Capitão Nielsen — prosseguiu Krotzner. — Poderia o senhor esclarecer alguns pontos que mencionou nestas?
— Sim, naturalmente.
— O senhor acredita que haja perigo para o sócio de Orlick da Inglaterra. Quererá com isto dizer que pensa existir um inglês capaz de matá-lo na Inglaterra, ou o senhor pensa que esta pessoa seja um americano?
— Se a finalidade do assassinato é a de evitar que descubramos uma pista que nos leve ao lado americano do crime, como pode acontecer, seria de esperar que esta pessoa fosse americana — explicou Gideon. — Tão logo ela execute o seu trabalho, espero que fuja da Inglaterra.
— Isto é, se o trabalho for executado.
— Nada mais posso fazer do que supor — disse Gideon suavemente. — O senhor não concorda com isto?
— Sim, naturalmente. Estava procurando esclarecer uma dúvida que tenho. E quanto ao homem que Orlick agrediu no navio, o senhor acha que se tratava de pessoa que Orlick conheceu casualmente?
— Tudo o que sei sugere que a Sra. Orlick se embebedou, Brown tornou-se impertinente em público e Orlick perdeu ó controle.
Peek estava sorrindo.
— Pelo que sei, a Sra. Orlick perdeu muita coisa a mais — disse.
— Outra coisa, — disse Krotzner em tom sério. — Há um grande espaço de tempo entre o momento em que os relógios Rite-Time são embarcados na fábrica e a data de seu lançamento no mercado no Reino-Unido. Onde é que o senhor pensa que eles ficam nesse intervalo?
— Nas docas ou no porão de um navio, — respondeu Gideon.
— Naturalmente, a resposta é boa, — disse Krotzner, tomando uma ou duas notas antes de prosseguir. — O senhor tem alguma pergunta a me fazer, Inspetor?
Gideon fez dúzias de perguntas, porém nenhuma delas parecia tão importante como aquelas que tinha em mente e que deixou de fazer. Desejava saber o que estava acontecendo em Londres. Queria estar nos dois lugares ao mesmo tempo.
Lemaitre abriu a porta do escritório e dirigiu-se para sua mesa, olhando para a cadeira vazia de Gideon sem desejar conscientemente que ele estivesse ali ou mesmo prestes a chegar. Eram sete e meia da manhã, mais cedo do que Lemaitre usualmente chegava ao trabalho, porém as pressões eram grandes e cada um dos casos pendentes parecia demandar mais tempo do que ele esperava. O único meio de dar conta do trabalho era permanecer mais horas no escritório. Na noite anterior ficara ali até às onze e meia. Sabia que provavelmente teria que fazer o mesmo esta noite. Notou que havia algumas notas em sua mesa mas que o correio ainda não chegara. Não havia probabilidade de receber qualquer relatório dos detetives-chefes nesta hora matutina, pois a maioria deles não chegaria antes das oito e meia ou nove horas. Viu um envelope de telegrama, da Western Union, sobre a mesa e pensou "George". Sentou-se e apanhou o envelope. O escritório estava frio. Lá fora o céu estava cinzento e o Tâmisa bruxuleava com uma ondulação em miniatura. Entretanto, Lemaitre não estava interessado no tempo. Ao abrir o envelope, com uma faca de madeira, pensou na possibilidade de uma de suas cartas ter provocado o telegrama de Gideon. Todos os seus movimentos eram controlados, metódicos e bem dirigidos. Leu:
"Orlick morto por atropelamento ponto ouça e siga Cordova assim como a todo o pessoal da Cia. de Relógios Orlova ponto favor informar se Cordova tinha conhecimento antecipado alguma dificuldade ponto informe também o que sabe sobre associados americanos
Gideon".
— Meu Deus — suspirou Lemaitre. — Isso foi assassinato. Sua reação foi exatamente aquela que Gideon teria esperado, isto é, a chegada a uma conclusão que não podia ser justificada, porém que mais tarde podia ser provada correta. Para Gideon era esta a maior fraqueza de seu auxiliar imediato. Lemaitre leu o telegrama mais uma vez e apanhou o telefone. Quando a telefonista atendeu, ele perguntou: — O Sr. MacPherson já chegou? — Esperou durante o que lhe pareceu ser um tempo muito longo até que a moça respondeu: — Não.
— Continue a procurá-lo. Quero falar com ele assim que chegar, — ordenou Lemaitre, deixando a telefonista a dar instruções ao sargento de serviço no vestíbulo ou ao guarda no portão, pois tinha muito o que fazer.
A notícia tirou seu pensamento da principal preocupação, isto é, do roubo dos Correios, que se estava tornando um problema, pois a verdade era que a polícia não tinha uma só pista que valesse algo. Meio milhão de libras esterlinas tinham sido levadas e não havia meios de se dizer se ainda estavam no país. Já tinha decorrido bastante tempo e elas bem poderiam ter sido enviadas para o estrangeiro. Lemaitre, não se sentiria tão mal se pelo menos houvesse um indício qualquer, se tivessem encontrado parte de alguns milhares de libras em notas velhas que iam ser recolhidas para incineração. Entretanto, nada disso acontecia.
As outras mensagens encontradas na mesa não tinham importância. Lemaitre abriu uma gaveta e retirou uma folha grande de papel grosso dobrado, abrindo-a e colocando-a sobre a mesa com todo o cuidado. Tratava-se de um gráfico que preparara sobre o desenrolar dos acontecimentos referentes ao roubo dos Correios. Tudo aquilo que ele ou as diferentes divisões tinham feito no caso, todos os depoimentos tomados, ali estavam anotados escrupulosamente. Tratava-se de uma ilustração perfeita de métodos rotineiros executados com a maior minúcia.
Ouviu passos do lado de fora e sentiu que a porta, que jamais seria aberta sem se bater se Gideon estivesse presente, se abria. Lemaitre preparou-se para ralhar com o intruso, porém notou logo que se tratava exatamente do homem com quem queria falar, o corpulento MacPherson. O detetive-superintendente recuou surpreso.
— Você já chegou?
— Como se você não soubesse disto.
— Eu não sabia. — MacPherson olhou para o gráfico, que já vira antes, mas não fez qualquer comentário. Havia qualquer coisa em seu porte que indicava urgência.
— Lem — disse ele. — Acabo de receber uma informação do Globe. Dizem que Orlick foi morto em um acidente de automóvel, ontem, em Nova York. Você sabe de alguma coisa?
Lemaitre mostrou-lhe o telegrama, que ele leu rapidamente e depois disse em tom quase reverenciai:
— Gê-Gê não perde muito tempo, onde quer que esteja.
— Você vai ver Cordova esta manhã, não?
— Vou, — respondeu MacPherson. — Estarei esperando por ele no escritório quando chegar.
Cordova ouviu a campainha do telefone e desejou que esta parasse. Virou-se na cama de casal e desejou que a campainha se quebrasse. Usou de alguns termos obscenos e puxou novamente os lençóis para cima de seu corpo, pois sentia frio. Eram quase oito horas. Estava sozinho em seu apartamento em Aldgate, cerca de cinco minutos a pé do escritório da Cia. Orlova. Geralmente, não se levantava senão pouco antes das nove. A campainha continuou a tocar. — Diabo! — disse, mas repentinamente pensou que pudesse ser Dirk. Seus olhos se abriram e ele correu para a pequena sala onde o telefone estava localizado.
— Alô.
— Poderá o Sr. Cordova atender a um chamado de Nova York, por favor?
Sem dúvida era Dirk!
— Sim, meu bem, — disse Cordova. — Pode ligar.
— A chamada será completada dentro de quinze minutos, senhor.
— Está bem. Está bem. Quinze minutos, — disse Cordova. Colocou o telefone no gancho, espichou-se, bocejou e entrou no banheiro. Era um homem que gostava de aposentos pequenos, com tudo à mão, mas que, freqüentemente, se vangloriava de gostar de uma cama bem grande. Era viúvo e sentia-se satisfeito em continuar assim. Podia gozar melhor a vida sem ter as responsabilidades de um homem casado. Tudo o que queria de sexo podia ser obtido com dinheiro. Homem de baixa estatura, de cabelos negros, face bronzeada e pele muito limpa, parecia mais um europeu do Sul. Para muita gente que o conhecia pela primeira vez era uma surpresa ouvir seu acento cockney. Era, na realidade, um londrino de quinta geração. Fastidioso em seus hábitos pessoais, ainda estava no banheiro quando o telefone tocou novamente. Dirigiu-se ao aparelho, completamente nu, olhou para o espelho que havia na sala, observou seu corpo esbelto e sorriu como se o aprovasse.
— Alô, Dirk, — disse prazerosamente.
— Um momento, por favor.
— Oh, vá para o inferno, — disse Cordova, pensando que estava falando como se imitasse um americano, sorrindo para si mesmo; melhorou o acento e logo depois ouviu uma voz de mulher.
— Cordy, é você que está falando?
— Kit, querida. Que surpresa! Não esperava falar com você.
— Cordy, — disse Kitty Orlick. — Algo... algo terrível aconteceu. — O tom da voz dava a impressão de que ela estava chorando. — Dirk... Dirk está... Dirk está...
Grande temor abateu-se sobre Cordova enquanto ouvia Kitty contar sua história. Houve muita coisa que ele não entendeu, mas o principal, inclusive a tristeza dela, o fato de ter mudado de hotel, de estar só e de que Dirk Orlick morrera assassinado, ficou bem compreendido. Assassinado, Kitty repetira várias vezes, assassinado.
— Mas, por que haviam de querer matá-lo, por quê? — Havia um tom de piedade na voz de Kitty. Cordova não a interrompeu, pois não sabia o que dizer, mesmo quando ela perguntou: — Cordy, você pode vir até aqui? Eu me sinto tão mal sozinha.
— Mas, Kitty, e os negócios?
— Por favor — apelou Kitty. — Faça isso por Dirk se não quiser fazer por mim. Ele gostaria que você tomasse conta de mim, ele... — ao dizer isto, Kitty caiu no choro.
Cordova disse apressadamente:
— Vou ver o que posso fazer, Kitty. Não se preocupe. Vou •ver o que posso fazer.
Dizendo isso, desligou o telefone, sem poder pensar claramente, certo de que Kitty ainda não terminara de falar. Dirk assassinado. Cordova tremeu ao entrar no quarto e vestiu um roupão, repetindo várias vezes a palavra "assassinado". Na realidade, não estava pensando em Dirk ou em Kitty. Todo o seu sentimento estava dominado por uma única sensação, isto é, uma sensação terrível de medo.
O Escudo de Gideon
No momento em que Kitty desligou o telefone depois da chamada para Londres, o telefonista noturno do hotel chamou uma extensão.
— Você pegou a conversa? — perguntou ao policial, que respondeu:
— Certamente, peguei tudo. Ela chamou esse tal de Cordova às duas horas da manhã pelo nosso fuso horário, ou seja, cerca de oito horas pelo horário europeu. Vou mandar um relatório para a Central agora mesmo.
— Faça-o antes de pegar no sono, — disse o telefonista. — Garanto que este gajo não virá visitar a Sra. Orlick. Não perdeu tempo em desligar.
Cordova ainda não começara a vestir-se, ainda não preparara o chá ou o café, quando o telefone tocou novamente. Desta vez não teve vontade de atender. Mordeu os lábios e olhou para o aparelho, que continuou tocando. Finalmente, levantou o fone, sentindo frio e tremor.
— Alô?
— É o Sr. Cordova? — era Darkie, o vendedor da companhia em Londres, ou melhor, um homem que era mais do que vendedor. Freqüentemente usava de ameaças ou de força para fazer com que os varejistas comprassem uma mercadoria que tanto eles como o próprio Darkie sabiam tinha sido roubada. Era, na realidade, o "quebrador de galhos" da companhia e o homem de contato com a parte fora-da-lei do negócio. Passara a maior parte de sua vida nos Estados Unidos e conhecia bem ambos os lados do Atlântico. — Sr. Cordova...
— O que é que há? — sussurrou Cordova.
— Sr. Cordova, preciso falar-lhes antes que o senhor chegue ao escritório esta manhã.
Cordova ainda sentia dificuldade em falar.
— Por quê?
— Aconteceu algo, Sr. Cordova.
— O que é que você quer dizer com este aconteceu algo?
— Eu lhe direi quando nos encontrarmos, — disse Darkie. — Preciso esconder-me durante alguns dias, Sr. Cordova, será que o senhor tem algum dinheiro à mão? — Cordova pensou, então nada mais é do que uma facada. — Digamos, umas cem libras.
— Para que é que você quer esse dinheiro? Darkie disse:
— Sr. Cordova, o dinheiro está bem gasto, eu lhe garanto. Encontro-me com o senhor no ponto usual.
E desligou.
Cordova colocou o fone no gancho vagarosamente. Sentiu-se um pouco melhor, em parte porque pudera levantar a voz para Darkie; porém, mesmo assim, ainda tremia. Houvera emergências semelhantes anteriormente, em casos em que Darkie se excedera com algum cliente e fora forçado a se esconder. Por esse motivo, e também devido a outras crises, haviam combinado, desde muito tempo, um lugar onde se encontravam secretamente. Não era em casa nem no escritório, e sim na sala dos fundos de um café em Whitechapel, dez minutos a pé do apartamento e à mesma distância do escritório.
Cordova preparou café e tomou, vestiu-se apressadamente, colocou setenta e cinco libras, em notas usadas de uma libra, no "bolso, colocou outras trezentas libras novamente num cofre escondido na parede do banheiro por trás do chuveiro, e saiu de casa às oito e vinte.
O East End parecia cinzento e monótono. Soprava um vento frio e Cordova desejou que tivesse vestido um sobretudo. Andando, ele se aqueceria. Tomou um atalho que ele, Darkie e Dirk conheciam bem. Continuou a pensar na morte de Dirk, e o fato estava começando a deixá-lo abalado e amedrontado. Entrou por uma rua estreita com paredes altas e lisas em ambos os lados, paredes de armazéns. Nesse momento, viu Darkie sair do recesso de uma porta que dava entrada a um armazém vazio e em ruínas, o qual fora usado no passado para depósito de mercadorias não perecíveis. O fato de que Darkie devia estar mesmo em aperto, a ponto de vir encontrá-lo no caminho, passou pela mente de Cordova. Do contrário, teria esperado no café. Não lhe ocorreu qualquer temor naquele momento.
— O que foi que você andou fazendo? — perguntou Cordova. — Quem está atrás disto?
Darkie umedeceu os lábios e aproximou-se.
— Você saberá logo, — disse.
Somente então foi que Cordova notou que havia algo totalmente errado, mas já era tarde. Viu a mão direita de Darkie sair do bolso, ouviu o ruído da mola de um canivete que se abria e prendeu a respiração. — Hei! — gritou e pulou para trás. Entretanto, não pôde afastar-se o bastante. — Pelo amor de Deus... — começou a dizer, completamente dominado pela terror.
Quase não sentiu a penetração da lâmina.
Darkie carregou o corpo para dentro do armazém, fechou a porta e trancou-a. Poderiam passar-se vários dias antes que alguém encontrasse o cadáver. Não se apressou e procurou apenas certificar-se de que não havia ninguém na rua, saiu e se encaminhou para o cais. Passou pelo café onde geralmente se encontrava com Cordova, serviu-se de bacon com ovos, tomou chá e marcou um encontro com um conhecido para uma partida de bilhar à noite. Depois, pôs-se a vaguear pelo cais. Não era desconhecido ali, pois se encarregara algumas vezes de despachos de mercadorias para a Cia. de Relógios Orlova, e viera ocasionalmente apanhar algumas remessas especiais.
Hora e meia depois de ter morto o sócio de Orlick, Darkie subiu as escadas do Maruna, que depois de vários adiamentos deveria partir naquela tarde para os portos da costa leste dos Estados Unidos. Não era a primeira pessoa a viajar gratuitamente no Maruna, alguém pagaria mas não ele. Já há algum tempo estava querendo ver os Estados Unidos novamente. Sua pátria era o lugar adequado para ele no momento.
Às nove e quarenta e cinco, MacPherson teve a impressão de que Cordova podia não vir ao escritório. Resolveu ir ao apartamento. Ali chegando, tocou a campainha mas não foi atendido. Forçou a porta da frente e entrou, encontrando logo indicações de que alguém havia dormido na cama e que o proprietário saíra pela manhã. Às dez e meia, MacPherson decidiu que a situação era bastante grave para justificar um alarme geral à procura de Cordova. Entretanto, apenas no meio da tarde, quando um detetive de divisão, à procura de mercadorias roubadas, descobriu o corpo, é que chegaram notícias.
Não podia haver dúvidas de que o Departamento de Polícia de Nova York tomara todas as providências possíveis para causar boa impressão a Gideon assim como para lhe mostrar todos os instrumentos que estavam sendo usados ali na guerra contra o crime. Gideon foi levado a todos os departamentos e tudo lhe foi orgulhosamente mostrado. Ocasionalmente, comprava desfavoravelmente um desses departamentos com o seu correspondente na Scotland Yard, porém, na maioria dos casos, dava-se exatamente o contrário. Com surpresa, soube que a polícia nova-iorquina estava usando um sistema que lhe permitia fazer um levantamento do passado de uma pessoa suspeita em 1/4 do tempo normalmente exigido para tal. Foi informado de processos fotográficos e de raios infravermelhos que diminuíam consideravelmente as possibilidades de um falsário escapar, reduzindo essas possibilidades a quase metade do que se verificava na Inglaterra. O que o preocupou mais foi o fato de muita coisa ser nova e ainda desconhecida. Além disso, notou que os métodos, assim como os sistemas, diferiam enormemente entre os dois países e assim pôde compreender o motivo pelo qual havia sempre confusão em casos onde as atividades criminosas se estendiam a ambos os lados do Atlântico. Estava pensando sobre isto e havia chegado a um grande vestíbulo quadrado, quando um policial se aproximou.
— Com licença, senhor. O tenente Cassidy está à sua procura.
Gideon virou-se e viu Cassidy descendo apressadamente as escadas. Notou logo que havia algo de errado pois o rosto de Cassidy estava sério e na sua boca não havia um sorriso. Cassidy nada trazia consigo e seus braços balançavam muito com seu andar.
— Inspetor, — disse — o senhor não vai gostar da notícia que lhe trago, assim como nós também não gostamos de ouvi-la. Cordova foi assassinado em Londres esta manhã. — Parou de falar abruptamente, mas deixou a impressão de que tinha algo mais a dizer.
Gideon sentiu o impacto da notícia e compreendeu imediatamente seu significado. Ficou realmente alarmado.
— Isto deixa somente Kitty Orlick, — disse, porém não estava pensando em Kitty e sim em Kate, sua esposa.
— O capitão Nielsen já está mandando alguns carros de patrulha para o hotel, — disse Cassidy. — Haverá vigilância especial em toda a vizinhança enquanto a moça permanecer no hotel. Não há motivo para se preocupar ainda, Inspetor.
— Você ficaria surpreso se soubesse quanto já estou preocupado, — disse Gideon.
— Compreendo bem isso, porém o senhor certamente não tem que se preocupar quanto à sua esposa ou à Sra. Orlick. — Cassidy fez uma pausa, depois mudou de assunto. — Já chegaram algumas respostas ao seu telegrama, Inspetor, e o capitão pensa que talvez o senhor queira investigar alguns dos contatos de Orlick em Nova York ainda antes do almoço. — Cassidy sorriu. — Entretanto, pede que o senhor não chegue tarde ao almoço.
Quase irritadamente, Gideon pensou: "Para o inferno com o almoço". Tomou alguns papéis que Cassidy tinha para lhe entregar, mas não lhes deu muita atenção. "O que teria havido de errado em Londres? Por que tinham deixado que Cordova fosse assassinado? Será que o pessoal de lá tinha alguma idéia de quem fosse o assassino?" De repente, sentiu um grande desejo de estar de volta à Scotland Yard, tomando parte na caça ao criminoso, mesmo que fosse apenas dirigindo os trabalhos. Gideon sentiu-se como um peixe fora dágua, um hóspede bem tratado e saciado quando na realidade o que desejava era ação.
Leu as notas que Cassidy lhe entregara. Em cada folha de papel havia um nome, um endereço e alguns comentários feitos a lápis.
— Quem escreveu estas notas a lápis? — perguntou Gideon, enquanto ele e Cassidy se dirigiam à entrada principal.
— Foi o capitão Nielsen. Gideon murmurou:
— Orlick tinha quatro contatos principais de negócios, cada um deles cem por cento digno de confiança, de acordo com o Sr. Nielsen. Dois deles nada sabiam sobre a vinda de Orlick a Nova York. Os outros dois ainda não foram entrevistados. — Fez uma pausa e continuou: — Se eu fizer um chamado para meu gabinete em Londres, poderei atendê-lo em qualquer um desses endereços?
— Certamente. Já verifiquei a demora. É de meia hora, — disse Cassidy.
A primeira das duas firmas visitadas tinha escritório no setor leste da Rua Trinta e Sete. Era especializada na venda de jóias de fantasia barata. O ar condicionado no escritório não funcionava e todos ali pareciam vagarosos e suados. Gideon sentiu-se como se estivesse num forno. A firma mantinha negócios freqüentes com a Cia. de Relógios Orlova, mas:
— Não tivemos qualquer aviso de que o Sr. Orlick pretendia visitar Nova York, disse um homem muito magro, com fisionomia cansada, sentado a uma mesa muito grande. — Recebemos uma carta dele há dez dias e não fazia qualquer menção à viagem.
A carta limitava-se a acusar o recebimento de uma pequena remessa de anéis e relógios baratos.
O chamado para a Scotland Yard não se completou enquanto estavam ali.
No segundo escritório, menor, entulhado de gente e quase tão frio como gelo, com todos trabalhando furiosamente, um homenzarrão ainda jovem mas já com duas papadas sob o queixo, estava sentado próximo a uma janela que há muito não era limpa ou espanada. Campainhas de telefones tocavam, teclas de máquinas de escrever batiam, homens e mulheres falavam em voz alta.
— Muito prazer em conhecê-lo, Inspetor Gideon... Sim, senhor, negociamos com a Orlova. Sim, senhor, trata-se de uma firma digna de crédito... Não, senhor, vendemos a ela mas nada lhe compramos. Mercadoria variada, de baixo valor. São compradores, muito exigentes em matéria de preço... Naturalmente, o senhor pode examinar nossos fichários sobre negócios com a Orlova. Certamente...
Fez uma pausa quando a campainha de um dos três telefones na mesa tocou. Gideon, sentado sem o menor conforto numa cadeira pequena, estava espremido de encontro à parede. Cassidy procurava deixar-lhe o maior espaço possível, mas estava também espremido entre Gideon e a mesa.
As papadas balançaram, os olhos, tão enterrados na carne flácida e pálida do rosto a ponto de parecerem diminutos, tornaram-se muito brilhantes.
— Certamente, certamente, ele está aqui... Uma chamada telefônica da Scotland Yard para o Inspetor Gideon. — Passou o fone a Gideon e depois disse em voz alta, de falsete: — Fiquem todos calados! Silêncio!
Quando Gideon tomou o fone, fez-se um silêncio inquieto.
— Lem? — Ouviu um ruído de ligação. — Lem, é você mesmo?
— Alô, George. — A voz de Lemaitre tornou-se repentinamente alta e clara. — Como vão as coisas aí pelo Novo Mundo, George?
— Deixe o Novo Mundo de lado por enquanto. Você tem alguém para tomar conta do caso Cordova?
— Desejaria que tivéssemos.
— Alguma suspeita sobre alguém?
— Mac está fazendo tudo o que pode. — Lemaitre pareceu assumir a defensiva. — Você pode ter confiança em nós.
Sim, pensou Gideon amargamente, podia ter confiança em seus auxiliares, os quais haviam deixado que um homem-chave nos crimes que estava investigando fosse assassinado. Não havia, entretanto, proveito em expressar seu aborrecimento a Lemaitre. Mesmo assim, ficou muito zangado e fez mais algumas perguntas, recebendo respostas também pouco encorajadoras. Quando desligou, sentiu que Lemaitre ficara em estado de espírito idêntico ao seu.
Todo o pessoal do escritório observou-o quando ele saiu.
Foi observado por pelo menos cem outras pessoas, na maioria homens, em uma sala de banquetes de um hotel, onde entrou às doze e meia acompanhado de Nielsen e Cassidy. Quando se dirigiu para a mesa principal, houve uma explosão de aplausos. Seu estado de espírito, aborrecido desde que falara com Lemaitre, começou a melhorar. Repentinamente sentiu-se como se fosse uma pessoa fazendo relações públicas. Havia algo mais no trabalho de um policial do que a simples investigação de um simples crime.
Serviram-lhe enorme bife acompanhado de uma batata assada nadando em manteiga. O pedaço de torta de maçã também foi enorme. Gideon manteve-se conversando, enquanto comia, até que o Comissário-Assistente, homem de pequena estatura, tranqüilo, de voz suave e bem ciente dos quatro microfones que tinha à sua frente, se levantou.
—... temos o privilégio de receber a visita do maior detetive da Grã-Bretanha e possivelmente o maior do mundo.
— Muito bem. Muito bem, — sussurrou Nielsen.
—... e dentro de poucos minutos, depois de eu lhes ter falado sobre este homem inconfundível, ele vai nos dizer...
Todos aplaudiram como se não pudessem mais esperar para ouvir Gideon.
—... veio de baixo, simples policial londrino, até chegar a uma posição executiva de relevo no Departamento de Investigações Criminais.
O que estava o Comissário-Assistente dizendo? Nielsen bateu em Gideon com o cotovelo.
—... antes de o convidarmos a falar, desejamos fazer um presente ao Inspetor Gideon. Desejamos fazê-lo membro honorário da Força Policial de Nova York, e, assim sendo, vou colocar este escudo de prata na gola de seu paletó. Isto o tornará membro da Força, Inspetor, dando-lhe o direito de fazer tudo, exceto prisões.
O Comissário-Assistente estava delirante.
Nielsen batia com os punhos na mesa.
A sala parecia dominada por uma loucura coletiva.
— Meus senhores, — disse Gideon depois que todos se calaram. — Acho que dificilmente uma pessoa se poderá sentir tão orgulhosa como me sinto no momento. Por quê? Eu... — Ele parou, como se tivesse um nó na garganta. Engoliu em seco, pôs a cabeça para trás e disse quase gritando: — Por quê? Eu não me sinto mais nervoso com todos esses microfones à minha frente. Sinto-me feliz e orgulhoso por usar este escudo. Se não fosse membro da Força Policial londrina, esta era a Força à qual desejaria pertencer...
Gideon não falou muito, mas teve a certeza de que havia conquistado muitos amigos, tanto para si como para a polícia de Londres também.
Sentando-se no meio de uma salva de palmas muito maior do que na realidade merecia, Gideon de repente pensou:
"Entretanto, Kitty Orlick não parece ter um único amigo neste mundo."
Sentiu então que estivera sempre esperando que Kate não descobrisse ser Kitty Orlick uma mentirosa.
A Sobrecarga da Verdade
Dois carros da polícia estavam estacionados em frente ao hotel quando Gideon ali chegou às últimas horas da tarde. Dois homens estavam no vestíbulo e não havia dúvidas de que também eram policiais, assim como o porteiro, que parecia estar bastante moderado. O motorista designado para servir a Gideon exclamou:
— Até logo, Inspetor — e deu saída no carro. Gideon pensou, mecanicamente: "Chame-me Gent". Dirigiu-se ao elevador e esperou que este subisse. Enquanto isso, procurou convencer-se de que não havia o menor motivo para se preocupar com Kate. Mesmo assim, sentiu-se preocupado e seu coração bateu quando saiu do elevador e se dirigiu à porta do apartamento.
— Alô, querido — sorrindo de início, Kate franziu as sobrancelhas ao notar a expressão do marido, depois sorriu novamente e viu que o semblante dele se clareava. — O que é que há?
— Estava pensando que você talvez tivesse saído.
— Fizemos compras durante toda a manhã e parte da tarde. Depois voltamos, pois estava muito quente para continuarmos andando. As lojas são fabulosas. — Gideon não se lembrava de ter ouvido Kate empregar esta palavra a não ser em tom de gracejo quando falava sobre cantores de música moderna ou então em momentos de entusiasmo, quando os membros da família estavam empolgados com a música. — Fechou a porta e olhou para a cozinha. — Kitty esteve conosco durante parte do dia e está na copa preparando algo para o jantar. Diz que não pode ficar parada, sem fazer alguma coisa, e quer ser útil a nós. — Os dois entraram na sala, passando pela copa. Kate fechou" a porta que dava para esta e disse — Ela é realmente uma boa-moça, George.
— Hum.
— Não me posso esquecer de que você suspeita muito dela — prosseguiu Kate. — Conversei muito com ela. Continua a afirmar que nada sabia sobre os negócios de Orlick e insiste em que ele sempre procurou manter sua vida privada separada de sua vida de negócios. E ela gostava que fosse assim.
— Ela conhecia o sócio de Orlick o bastante para lhe telefonar daqui de Nova York.
Kate disse, com um tom de quase reprovação.
— Você na realidade suspeita dela, não é? Ela diz que Cordova era também amigo da família, não lhe falando também sobre negócios.
— Kate — disse Gideon — não estamos mais vivendo nos dias do marido todo-poderoso e da esposa humilde. Essa moça está escondendo alguma coisa. Está aqui há muito tempo?
— Somente há uma hora, — Kate evitou fazer um comentário e os dois entraram no quarto. Os chinelos de Gideon estavam ao lado da cama e sobre esta encontrava-se uma camisa cinzenta de mangas curtas assim como uma calça leve, exatamente como se estivessem em casa.
Gideon sentou-se e desabotoou os sapatos.
— George, você não deve julgá-la antecipadamente.
Gideon levantou a vista com um sorriso ausente, profundamente preocupado. O que quer que fizesse tinha que estar certo e uma hora ou duas de deliberação poderia significar a diferença entre uma decisão certa ou errada.
— Na realidade, pessoalmente não suspeito da moça — disse. Sinto muitíssimo o que aconteceu com ela. Entretanto, ela deve saber de algo que nos poderia levar aos assassinos.
— Se ela pensasse que poderia fazê-lo, não ficaria calada
— declarou Kate. — A enfermaria da polícia passou a maior parte do dia com ela. — Kate ficou pensativa durante alguns momentos antes de prosseguir. — Dois detetives e dois policiais estiveram aqui logo que ela acordou, para lhe fazer perguntas.
— Já vi os relatórios, — disse Gideon. — Ela declarou que jamais suspeitara que os negócios do marido fossem criminosos. Na realidade, insistiu em declarar que não acreditava que o fossem. Tanto quanto sabia, ele negociava legalmente com artigos de fantasia e relógios. De acordo com a enfermeira, — uma das mulheres-detetive em posição mais elevada na Seção de Homicídios, segundo fui informado, — Kitty convenceu-os de sua sinceridade ao dizer que nada sabia sobre as trapalhadas em que Orlick estava metido.
— Entretanto, é óbvio que ela não o convenceu.
— Kate, vamos parar de discutir sobre ela, — disse Gideon. — Ela está em segurança no momento e Nielsen pode descobrir os assassinos, assim como é possível que recebamos uma pista fornecida pela Scotland Yard. Nielsen falou-me algo sobre a ida a um teatro hoje à noite.
— Oh, sim. Claire também me falou. Trata-se da última peça de Tennessee Williams, — Kate pareceu estar também disposta a mudar de assunto. — Verifiquei que os Nielsen geralmente jantam em casa antes do teatro e, se depois têm fome, comem algo. Persuadi Claire de que isto é o que gostamos de fazer. Não temos que ficar prontos antes das sete e meia ou um quarto para as oito, pois a peça começa às oito e meia. Julguei que assim lhe daria tempo para descansar um pouco.
— Exatamente, — disse Gideon.
— Que espécie de dia você teve hoje?
— As horas quase não bastaram, — Gideon respondeu. Tirou o lenço do bolso e entregou a Kate, que quase deixou cair o escudo do Departamento de Policia de Nova York. Olhou para o escudo por todos os lados e depois colocou-o sobre a televisão.
— Não poderiam ter feito coisa melhor — disse ela, com orgulho. — Eu o guardarei como um tesouro.
— Você fará mesmo isto, — Gideon sorriu e depois contou a Kate tudo o que se tinha passado durante o dia, enquanto permaneciam sentados na sala da qual se descortinava a ponte, o rio e os arranha-céus. Muito embora não tivesse ainda anoitecido, muitas das janelas já estavam iluminadas. Juntos, assistiram ao desabrochar de um conto de fadas. Gideon tomou um uísque com soda, Kate um Dubonnet. Enquanto falava, Gideon pensou e especulou se na realidade havia algum perigo para Kitty Orlick. Ainda estava pensando quando a porta se abriu e Kitty entrou. Usava uma blusa frouxa, cor de mel, e calças chocolate. Movimentava-se leve e facilmente, porém notavam-se-lhe olheiras.
— Boa noite, — disse.
— Sente-se e tome algo, — convidou Gideon.
— Acho melhor não tomar.
— Você será muito bem-vinda.
Chegou-se mais para perto, vagarosamente, como se algo lhe passasse na mente. Uma réstia de luz atingiu seus belíssimos olhos castanhos, que brilharam. Estava obviamente pouco à vontade, mas, ao mesmo tempo, falou de maneira positiva, como se soubesse exatamente o que queria dizer.
— Não, eu nada tomarei. — Permaneceu de pé, olhando para Gideon, fazendo com que ele se lembrasse de uma das suas próprias filhas pronta a desafiá-lo sobre algo que tivesse dito sem antes pensar bem. — Meu marido era um criminoso? — perguntou Kitty secamente.
Gideon hesitou, mas não por muito tempo. Kate fechou os olhos como se desejasse esconder-se de Kitty. Gideon falou então, vagarosamente:
— Ele era suspeito de crimes muito sérios, sim. Nunca chegou a ser acusado deles e, portanto, não era fichado. É possível que, quando sua vida for completamente investigada, verifiquemos que ele não era culpado dos crimes. Por outro lado, sabemos que tinha ligações com elementos fora-da-lei em Londres, e tenho muitas razões para crer que dava emprego a outros criminosos.
A expressão de Kitty não se alterou.
— Mas o senhor nunca provou que ele fosse um criminoso.
— Não. Porém tenho todas as razões para acreditar que era.
Kitty colocou-se bem em frente de Gideon. — Bem, nunca tive razão alguma para isto.
— Você nunca suspeitou?
— Não, na realidade não.
— Quer dizer que você sentia haver algo, — disse Gideon, asperamente.
Kitty respondeu, hesitante:
— Pensava que fosse um tipo de negócio que ele não queria que eu soubesse, do qual se sentisse envergonhado.
— De que tipo de negócio legal poderia um homem envergonhar-se?
Os olhos de Kitty inflamaram-se. Apertou as mãos e respondeu pesadamente.
— Anticoncepcionais, se o senhor quer saber. Pensava que esse fosse seu negócio e que não quisesse dizer. Para mim não importava, mas ele me tratava como se eu fosse uma criança, ele... — Parou, sufocada, e virou-se para esconder as lágrimas.
Gideon notou o olhar de Kate e viu a expressão nele estampada. Kate inclinou-se para a frente e sussurrou:
— Satisfeito?
— Possivelmente — Gideon manteve baixa a voz.
— Evidentemente ela não sabia o que o marido fazia!
— Mesmo assim, pode saber de algo que talvez nos seja útil.
— Se ela souber, dirá.
— Se ela souber que sabe — Gideon objetou, suavemente.
— Deve saber de algo.
— Psiu. — Kate afastou-se e Kitty voltou-se para Gideon. Seus olhos estavam cintilando, mas ela mostrava-se perfeitamente controlada e sua voz estava muito firme, bem como mais clara.
— O que o senhor está pensando é óbvio. É óbvio que, se meu marido foi morto daquele modo depois de ter sido atraído para tal lugar, então o senhor provavelmente tem razão. Lembro-me de muitas coisas estranhas. Telefonemas tarde da noite, por exemplo, e a recusa constante de Dirk em me dizer qual era sua atividade. Ficava até zangado quando procurava fazer com que me dissesse algo. Oh, agora posso compreender que provavelmente o senhor está certo, mais isto não quer dizer que eu não o amasse e que alguém tivesse o direito de matá-lo. O senhor tem que descobrir o assassino.
— Você pode ficar absolutamente certa de que ninguém mais do que a polícia de Nova York e eu mesmo queremos fazer isso, — disse Gideon, secamente.
— Então por que o senhor não acredita em mim? — gritou Kitty. — Sei que aquelas testemunhas mentiram. Dirk foi atropelado deliberadamente. — Depois de uma pausa algo tensa, ela prosseguiu com entonação diferente. — O senhor veio a Nova York para investigar crimes cometidos por meu marido?
Gideon respondeu gravemente:
— Foi uma das razões de minha vinda.
— Então, de certa forma o senhor é responsável pela morte dele. Se outras pessoas sabiam que o senhor estava atrás dele, poderiam recear que terminasse por levá-lo até elas, não é assim?
— Gideon não respondendo, ela prosseguiu, com voz mais áspera, acusadora. — De certa forma, pode ser por sua culpa que ele está morto.
Depois de outra pausa bem longa, Gideon disse:
— Se é assim que você quer encarar o problema, sim. Entretanto, creio que este caminho esteja errado. — Mas a angústia que se notava nos olhos da moça contribuiu para que a consciência lhe pesasse. Gideon estava cônscio do fato de que Kate o observara e decidiu que devia pôr as duas a par do que acontecera com Cordova. Geralmente as palavras não lhe faltavam, mas, no momento, é o que acontecia, pois sentia que somente palavras corretas poderiam ajudar Kitty Orlick.
Os lábios de Kate abriram-se como se ela quisesse dizer algo ou estivesse rezando.
— Sim, posso ter acendido o estopim — disse Gideon com esforço — porém não penso que o tenha feito. — Seria cruel dizer que pensava que a agressão a Brown, a ameaça deste em processar Orlick, poderia igualmente ter sido a causa. Com um pouco de sorte, Kitty — jamais precisaria saber disso. — Acho que os sócios de seu marido em Nova York estavam, de certa forma, preocupados. O que aconteceu era provavelmente inevitável.
Kitty começou a franzir as sobrancelhas. Estava pateticamente bela.
— Como o que aconteceu? Este "acidente"? — disse ela, com tom de escárnio.
— Não penso que tenha havido um acidente. Nesse ponto, concordo com você — disse Gideon, e decidiu que era chegado o momento de dar o outro grande golpe em Kitty, o qual não devia ficar a cargo de outra pessoa. — Kitty, lamento muito, porém tenho outras notícias más para você. Quero que acredite que lamento mesmo. Cordova foi assassinado em Londres hoje pela manhã.
Kitty recuou, levantando as mãos até a altura de seu busto. Durante bastante tempo permaneceu assim, completamente imóvel. Depois, sussurrou "Oh, meu Deus" — e repetiu — "Oh, meu Deus. Cordy. Oh, meu Deus". — Começou a tremer, como tremera quando Gideon falou com ela na delegacia. Kate correu apanhou uma cadeira e fez Kitty sentar-se. Do contrário, ela teria caído. Kitty cobriu o rosto com as mãos e começou a chorar. Gideon observou-a durante alguns momentos antes de se dirigir à porta.
— Ela tinha que saber — disse, e intimamente murmurou "Que profissão horrível é esta". Depois, prosseguiu melancolicamente: — Vou tomar um banho.
Entrou no banheiro, desalentado não apenas por causa da moça mas porque era obviamente possível que criminosos americanos tivessem morto dois ingleses a fim de se certificarem de que estes não falariam. Se isto fosse verdade, havia outra possibilidade óbvia, isto é, que o lado americano do negócio seria fechado a fim de evitar outros riscos. Isso lhe imporia uma sobrecarga de responsabilidades ainda maior, pois o acontecido lhe seria parcialmente atribuído. Poderia ter inquirido e acusado tanto Orlick como Cordova em Londres, mas preferia esperar até descobrir uma pista dos associados americanos. Podia ver Scott-Marle julgando a sabedoria do plano que havia seguido. Estava no chuveiro quando o telefone tocou, e continuou a tocar repentinamente. Em desespero, gritou: — Kate! — mas a campainha continuou. Enrolou uma toalha pela cintura e saiu do banheiro. O telefone era no quarto, junto à porta. Podia ver a sala-de-estar onde Kate estava ajoelhada em frente de Kitty, segurando as mãos da moça. Gideon teve dúvidas de que qualquer das duas tivesse ouvido a campainha do telefone. Levantou o fone.
— Gideon.
— Aqui fala Ally.
— Quem... Oh, Ally, alô.
— Eu o apanhei no banheiro ou em outro lugar? — perguntou Lord Allingham alegremente.
Gideon, surpreso, sorriu. Um sorriso era exatamente o que precisava.
— Foi exatamente o que você fez.
— Foi mesmo? — Allingham sorriu disfarçadamente. — Bem, lamento e não vou prendê-lo por muito tempo. George, estive em contato com o nosso adido comercial em Washington assim como com várias pessoas interessadas no caso. Estamos na realidade em palpos-de-aranha. Somente as mercadorias inglesas estão sendo afetadas pela sabotagem. E muitos embarques recentes, desde acordeões até bicicletas, automóveis e uísque, têm sido danificados aqui. Você pode imaginar o que isto significa?
— Ainda não. Porém acabo de notar algo que poderá ser de utilidade para nós.
— De que se trata?
— Poderá alguém auferir algum lucro com isto? — perguntou Gideon. — Não se trata do produto de uma só destilaria, e sim da maioria delas. Não se trata de só um fabricante inglês de automóveis, e sim, praticamente, de todas as marcas. A não ser que haja lucro nisso, somente um louco agiria em tão larga escala.
— Prossiga, — disse Allingham suavemente.
— E para organizar as coisas nesta escala teria que se tratar de um louco muito rico, — Gideon declarou.— Eu vinha pensando que talvez se trate de sabotagem comercial e industrial, com o fito de arruinar o mercado para um produtor, a fim de que outro possa tomar seu lugar. Entretanto, os danos são muito extensos. Devemos procurar algum louco lá na Inglaterra, alguém que seja antiamericano ao extremo. Por que venho perdendo tanto tempo?
— Você nunca perde tempo, — disse Allingham.
— De qualquer forma, não perderei mais tempo com este caso — declarou Gideon mal-humorado. — Vou falar com Londres sobre essa nova possibilidade.
— Muito bem. Que tal a cooperação que você está encontrando por parte da polícia de Nova York?
— Não poderia ser melhor.
— É bom ouvir isto, — disse Allingham. — George, esperava poder almoçar ou jantar com você em Nova York, mas devo voar amanhã cedo para Washington e Justina vai comigo. Lá ficaremos durante umas duas semanas, hospedados no Hotel Shoreham. Talvez volte a Nova York por alguns dias e assim manterei contato com você. Você me avisará se receber mais alguma notícia sobre o caso da sabotagem, sim?
— Naturalmente.
— Dê lembranças a Kate, — disse Allingham.
Gideon desligou e voltou para o banheiro. Tomou banho e enxugou-se sem esfregar a toalha no corpo fortemente, pois sabia que isso provocaria suor. Vestiu seu terno leve, mas não deu nó na gravata, e entrou na sala. Quando se aproximou da porta, ouviu Katty falando apressadamente, em voz alta. Sentiu que ela falava livremente, sem suspeita e sem acanhamento. Graças a Kate! Parou na porta.
—... e isso foi tudo o que aconteceu, tudo. Bebi demais. Não estava embriagada e sim um pouco alta, e usava aquele vestido. Oh, eu sei o que vocês vão pensar de mim. Sei que vocês diriam o mesmo que minha mãe se ela não tivesse morrido. "Você é uma leviana descarada", ela teria dito e isto nos teria levado a uma discussão infernal, mas... bem, eu queria vestidos sem alça e foi onde pude chegar. Existe tanta hipocrisia, por que diabo deve uma moça curvar-se? Tudo o que eu queria era ter os vestidos. Não tinha intenção de usá-los a não ser quando estivesse com Dirk. Esta é a verdade. Mas tomei uns quatro martínis secos antes do jantar e o gim me faz sempre ficar um pouco atrevida. Dirk ainda estava no bar, assim coloquei um dos vestidos. Na realidade, Dirk não sabia bem como fiquei, pois tive o cuidado de camuflar um pouco. Entretanto, acho que ele viu bem durante o jantar. Não vi mal nisso, pois muitas outras, mulheres usam vestidos sem alça. Não me preocupei muito e: acho que Dirk não ficou zangado. Foi ao dançar que surgiram todas as dificuldades. Penso que Ingy sabia o que ia acontecer,, pois não há nada de inocente em Ingy Brown. Notei que ele me olhava muito durante o jantar e, quando chegamos ao salão,, começou a girar, girar, comigo. Nessa ocasião o vestido caiu. Antes que eu pudesse pensar no que estava acontecendo Dirk voava para Ingy. Pensei que fosse matá-lo. Quando chegou ao camarote rasgou todos os vestidos sem alça. Rasgou-os como-se fossem trapos, muito embora tivessem custado mais de cem libras esterlinas. Transformou-os em tiras e eu pensei que fosse fazer a mesma coisa comigo.
Kitty parou e até mesmo Gideon sentiu-se penalizado, pois a história tinha uma certa pungência. E Kitty prosseguiu, desta vez mais vagarosamente:
— Foi horrível depois disso. Quase não me dirigiu mais. uma palavra. Quando chegamos ao hotel, as coisas continuaram no mesmo pé até — até que algo aconteceu. Suponho que ele me amava tanto quanto eu a ele. Não podíamos ficar zangados por muito tempo, graças a Deus, graças a Deus. Sei que vocês não falam sobre estas coisas. Nunca o fiz antes, mas tudo, tudo se tornou maravilhoso. Eu me deitei na cama com ele, pela última vez, pela última vez. Oh, meu Deus. Foi tão maravilhoso. Absolutamente maravilhoso. Jamais esquecerei. Aquela última vez foi a melhor de todas. Não tenho culpa de que ele fosse ladrão. Não tenho culpa. Era um homem maravilhoso. Além disso era o homem mais carinhoso que eu conheci. Até àquela noite horrível no navio fora sempre bondoso e gentil comigo. Por isso é que tomei tamanho choque. Não imaginava que ele fosse tão ciumento. Se eu tivesse sonhado que iria ficar tão furioso não teria comprado os vestidos, mas de certa forma, estou satisfeita agora. Estou satisfeita porque, se não fosse assim, jamais teríamos experimentado aqueles momentos tão maravilhosos, tão maravilhosos.
Houve uma longa pausa. Kitty parecia sufocada e como se tivesse dificuldade em respirar.
— E então veio o telefonema. Coloquei aquele vestido amarelo. Cor de primavera. Dirk sempre gostou de amarelo, era sua cor favorita. Agora o vestido está todo marcado de sangue, sangue de Dirk... — sua voz desapareceu.
Gideon pensou: Deveria entrar na sala? Deveria começar a fazer perguntas?
Kate falou:
— Oh, minha querida. Bem sei como se sente, na realidade eu sei. — Depois, continuou com voz suave: — Você disse que sua mãe está morta.
— Sim, ela morreu há dois anos, câncer, foi outro choque terrível. Dirk foi tão bom para ela. Não a deixou ficar numa enfermaria de hospital e a colocou em um quarto particular. Foi tão carinhoso com ela, era o último parente que me restava. Parece engraçado, não acha? Meu pai morreu há vários anos. Trabalhava em consertos de torres de igreja. Gostava de se gabar de que viveria até completar cem anos, porém um dia escorregou. Escorregou, e pronto. Não pensei que minha mãe resistisse, pois tínhamos perdido meu irmão, meu único irmão, há pouco. Ele sofria de leucemia. Era como se houvesse uma maldição em minha família, uma maldição completa.
Depois de uma pausa, quando o barulho de soluços reprimidos voltou à boca de Kitty, Kate disse:
— Kitty, quero fazer tudo, tudo que puder para ajudá-la. Você deve ficar aqui o tempo que quiser, e faça como se estivesse •em casa enquanto aqui permanecer. — Kitty não respondeu e Kate prosseguiu.1 — O homem que telefonou, Kitty. Você falou •com ele?
— Atendi ó telefone. Oh, Deus, Deus, Deus, se ao menos não tivesse atendido. Se ao menos tivesse fingido que estava dormindo.
— Será que você não se lembra da voz dele? Kate perguntou e Gideon pensou, "ela me lembrou de que era a esposa •de um policial".
— Na realidade, não me lembro. Não estou acostumada com a entonação de voz dos americanos, — disse Kitty quase desesperada. — Ele falou com uma pronúncia arrastada. Tenho ouvido gente falar assim na televisão, mas não poderia imitar.
— Você reconheceria a voz se a ouvisse novamente?
— Oh, sim, penso que não teria dúvida em reconhecer.
— Ah! — exclamou Gideon, em voz baixa.
— Meu. ido sempre diz que muitos criminosos foram apanhados porque alguém se lembrou do modo de falar deles — salientou Kate.
Kitty não respondeu, mas a violência de sua dor pareceu diminuir. Logo depois que Gideon entrou na sala, ela mostrou-se ansiosa para se retirar como se reconhecesse que havia permanecido durante tempo demasiado. Provavelmente sentia-se acanhada de ter falado com tanta franqueza.
Um detetive, postado do lado de fora da porta do apartamento de Gideon, levou-a para o quarto no andar de baixo.
Antes que a porta do apartamento se tivesse fechado, Gideon estava ao telefone. Kate olhou para ele enquanto verificava o que Kitty preparara para um jantar simples de presunto frio, salada, pão fresco e morangos. Ela mal podia ouvir a voz do marido: — Max, há uma pista que ainda não seguimos corretamente... A voz no telefone... Sim, o homem que disse a Orlick para ir até a Décima Avenida... Acho que não seguimos. Kitty Orlick ouviu o homem falar, porém não nos pode dar uma idéia de como era a voz porque não pode usar ou imitar entonações americanas... Meu Deus, sei que elas são regionais... O que necessitamos é de alguém que possa imitar a maioria dos acentos, alguém para falar com a Sra. Orlick... Ah, pensei que seria... Sim, isto fará com que ela tenha algo com que se ocupar... Hoje à noite, eu diria... Bem... Outra coisa,, quero passar um telegrama para a Scotland Yard sobre o casa da sabotagem... Não, pensando melhor, falarei por telefone amanhã de manhã. Quando Gideon colocou o fone no gancho, estava sorrindo. Comeu apressadamente e, quando esvaziou o prato, olhou esfomeado para a mesa, mas não pediu para repetir.
— George — disse Kate.
— Sim, querida.
— Você se lembra de que eu nunca o vi trabalhando antes?
— Tolice. Quase sempre faço isso quando estou em casa.
— Nada disso, você bem sabe... Está-se sentindo melhor agora?
— Parece que sim. De qualquer forma, acho que estamos procurando fazer algo.
Até mesmo quando Kate sugeriu, na saída, que fossem ver como Kitty estava, Gideon concordou alegremente. Ficou satisfeito com que tivessem feito isso, pois verificaram que o tenente Cassidy e uma "enfermeira" lá estavam conversando animadamente. Kitty parecia mais alegre do que estivera a maior parte do dia.
— Agora talvez você pare de preocupar-se com ela — disse Gideon a Kate.
Cinco minutos antes de a cortina subir, estavam no teatro de paredes douradas e piso atapetado, pequeno e cheio de gente, mas confortável e quase frio por causa do ar condicionado. Claire Nielsen sentou-se ao lado de Gideon. Kate sentou-se ao lado dela e Nielsen junto a Kate. Enquanto a cortina subia, Gideon teve a impressão de que agora sabia que Kitty estava falando a verdade. Se ela sabia de algo mais que pudesse ajudar as investigações, não estava a par disso.
Entretanto, sentiu também que ainda havia muitas dificuldades a serem enfrentadas, tanto neste caso como no da sabotagem.
Isca?
Kitty estava sentada numa cadeira alta, no seu apartamento. A enfermeira-detetive Jessica Matthews sentara-se noutra cadeira. Cassidy estava encostado na pia da copa. O café fervia na cafeteira de aço inoxidável. Cassidy contava histórias engraçadas enquanto esperavam pelo café. Ao lado havia uma bandeja já preparada com xícaras, creme de leite e açúcar.
Kitty contou a eles o que já havia dito aos Gideon. Agora a coisa era menos difícil, não de todo fácil, porém muito menos difícil. Cada vez que ela contava a história, esta se tornava mais distante, como se Dirk se estivesse afastando cada vez mais.
Cassidy disse, quase casualmente:
— O homem no telefone, Sra. Orlick. Como foi que a senhora disse que ele falava?
— Falava vagarosamente — respondeu Kitty. Procurou imitar a voz que ouvira mas parou, sorrindo. — Não era exatamente assim, mas algo parecido.
Cassidy interrompeu:
— O homem falou assim, meu bem? — Seu tom de voz mudara completamente. Parecia estar cantando e as vogais tinham um acento inglês mais pronunciado.
— Diga-nos, querida, se foi assim que o homem falou com você. — Jessica perguntou com a mesma entonação.
Kitty disse de forma quase inacreditável:
— Ele falou exatamente assim.
— Portanto, já sabemos disto sobre o homem, — disse Cassidy. Nada havia em sua voz que indicasse a satisfação em que se encontrava, pois se tratava de apenas um pequeno indício sem a menor importância. — O homem no telefone era um sulista ou se fazia passar por tal.
— Por que tentaria passar por sulista — perguntou Jessica
— quando pensava que nenhuma das pessoas com quem estava falando viveria para poder descrever sua voz?
— Na certa ele tentaria — disse Cassidy. — E, além disso, teria que falar em primeiro lugar com a telefonista do hotel. A telefonista seria a primeira a reconhecer sua voz. Não há dúvida de que imitou o modo de falar de um sulista.
— Há algo mais no que você disse, — declarou Kitty pensativamente.
— O que foi que eu disse?
— Você disse que ele não pensava que Dirk ou eu vivêssemos para reconhecer sua voz.
Cassidy respondeu calmamente:
— É verdade, meu bem. Foi isso o que eu disse.
— Você quer dizer que, na sua opinião, eles queriam matar a nós dois?
— Não gostaria de apostar contra esta possibilidade. Depois de uma pausa bastante longa, Kitty disse:
— Você pensa, na realidade, que eles me queriam matar?
— Quando Cassidy não respondeu, ela prosseguiu: — É possível que ainda me queiram matar. Verdade?
Jessica respondeu:
— Tomaremos conta de você, querida.
— Bem, podem querer, — admitiu Cassidy.
— Somente porque ouvi a voz do homem?
— Não apenas porque você ouviu a voz do homem — respondeu Cassidy. — Mas pelo que você poderia ter ouvido de seu marido a respeito deles.
— Mas Dirk nada me disse sobre eles. Continuo a insistir que não sabia que os negócios de meu marido eram criminosos.
— Acredito em você, mas como é que esse homem podia ter certeza disto? — perguntou Cassidy. — Seu marido poderia ter mencionado um nome, ou mesmo uma pista que você poderia passar à polícia. Ninguém pode estar certo de que você não sabe de nada, isto é, por exemplo, se você não conhecia algum membro do grupo em J Ires; se Cordova não lhe falou algum dia sobre o tipo de negócio em que estava metido. Você poderia saber de muita coisa.
— Você pensa realmente que eu esteja em perigo? — perguntou Kitty, muito calmamente.
— Se você perguntasse isto ao Sr. Gideon, estou certo de que ele lhe diria que sim, — replicou Cassidy. Durante alguns minutos o único som que se podia ouvir na cozinha era o da fervura do café, pois os dois detetives estavam olhando atentamente para Kitty Orlick. Ela parecia imbuída de um novo e estranho tipo de dignidade, e um brilho de orgulho, como eles jamais tinham visto antes, podia ser notado em seus olhos.
— Se é assim, posso ajudá-los a descobrir os criminosos, — disse. — Se tentarem matar-me, isso dará a vocês oportunidade de apanhá-los.
— Você não acha que isso é uma maluquice? — exclamou Cassidy.
— E você acha que ela falava sério — perguntou Gideon, às sete e meia da manhã seguinte.
— Estou certo de que sim, — respondeu Cassidy.
— Então tem todo interesse em vingar Orlick, — exclamou Nielsen. — Você tem intenção de lhe dar uma chance, George?
Gideon meditou enquanto observava o policial nova-iorquino.
Estavam no gabinete de Nielsen. Cassidy apresentara seu relatório antes que os Gideon e os Nielsen tivessem voltado para o hotel na noite anterior. Como resultado, fora acertada a reunião que se realizava. Depois desta, Gideon deveria ir até a _ sede da Patrulha Fluvial a fim de obter mais informações sobre o Hempen.
— Decida logo, — Nielsen o apressou.
— Temos que usar Kitty Orlick de uma forma ou de outra
— Gideon disse finalmente. Estava com o coração pesado mas convencera-se de que agira corretamente. — Ela nos deu a indicação da voz e é possível que tenha algo mais escondido em sua mente. — Bateu com a mão numa pasta grossa que continha as declarações de Kitty sobre o acidente propriamente dito e falou: — Se pudermos fazer com que a mente dela trabalhe, em vez de meditar, talvez cheguemos a algo interessante.
— Você deve ler isto, — disse Nielsen. — É o relatório mais recente.
— Este relatório não chegará às mãos do Sr. Gideon senão mais tarde, — disse Cassidy, apressadamente.
— Vocês encontraram o carro? — indagou Gideon.
— Ele foi deixado em um estacionamento no East Side. Fizemos um exame e encontramos algumas impressões digitais, mas elas não pertencem a qualquer pessoa com quem tenhamos tido contato antes. Encontramos algumas marcas de sangue no pára-lama e no pára-brisa. O porteiro do edifício onde moram os Brown identificou um grande arranhão em uma das portas.
— Kitty já viu o carro?
— Ainda não houve tempo para isto, pois o carro foi encontrado ontem muito tarde.
— Vamos acordá-la, — urgiu Gideon, olhando para Cassidy. — Será que você pode prorrogar o encontro com a Patrulha Fluvial por mais uma hora?
— Certamente. Isso não fará diferença.
— Então vamos chamar Kitty agora mesmo.
— Em primeiro lugar, precisamos arranjar tudo corretamente, — disse Nielsen. — É preciso que nos concedam algum tempo, tenente.
Não havia qualquer mudança no modo de agir de Kitty. Ela parecia querer ajudar em tudo e a expressão de desesperança havia desaparecido. Como parecia jovem e viva, pensou Gideon. Ela escutou atentamente enquanto viajavam no enorme carro e enquanto Gideon falava quase sozinho.
— Havia um homem no carro que você viu estacionado no local onde seu marido foi morto, — disse Gideon. — Queremos que você o descreva. Isso é da maior importância.
— Já lhes disse que quase não notei a presença dele!
— Concentre-se no momento em que você o viu, — salientou Gideon. — Procure recompor a cena um pouco antes da consumação do crime.
Gideon bem sabia do enorme esforço que estava exigindo dela, porém com a nova atitude que Kitty assumira, isso não parecia perturbá-la.
O carro parou em um estacionamento quase vazio na Primeira Avenida. O tráfego movimentava-se celeremente, pois o sinal verde estava aberto. Já estava bastante quente e o sol ia bem alto. Notava-se a evaporação no rio, que corria ao longo de um lado da avenida.
O Chevrolet verde fora retirado do estacionamento e colocado na rua, em fila dupla. Um homem, a mandado de Nielsen, estava sentado na direção. Na calçada oposta havia outro homem. Quando passavam ao lado do Chevrolet verde, a porta de outro carro se abriu, um pouco à frente, e deste saíram um homem e uma mulher.
Kitty prendeu a respiração.
Compreendeu exatamente o que estava sendo feito. Aquelas pessoas reconstituíam os acontecimentos que se tinham verificado pouco antes do crime. Em lugar de Dirk a seu lado, havia agora a figura a compacta e paternal de Gideon. Os dois detetives nova-iorquinos vinham pouco atrás.
Kitty parou e ficou completamente imóvel, seus olhos brilhando febrilmente. Sentia perfeitamente o aperto amigo da mão de Gideon em seu braço. Tudo, tudo, lhe voltou à mente. Toda a cena se desenrolava perante seus_ olhos como se fosse um pesadelo macabro.
Um motor roncou fortemente, bem atrás dela.
— Não. — Kitty gritou. — Não.
Ela fechou os olhos como se procurasse evitar a visão horrorosa do carro que se aproximava, de seu marido empurrando-a para a calçada, do modo pelo qual vacilara, da pancada e do sangue. Ficou completamente parada quando tudo se passou, satisfeita pelo fato de Gideon estar próximo e pelo calor de sua mão. Outros carros entraram na rua. O encarregado do estacionamento, sentado em sua guarita, observava o que se passava.
Gideon disse calmamente:
— Kitty, que tal era o homem que você viu no carro verde?
— Era um homem forte, como o que está sentado lá agora. Tinha olhos negros muito profundos e um rosto, assim como queixo, muito firme. Eu o vi. Estava virado, olhando para mim. Eu o vi bem.
Nielsen aproximou-se.
— Olhe para isto — pediu e mostrou a Kitty um dos retratos Identikit. Kitty olhou bem e depois encarou Nielsen.
— Esta era a aparência dele.
— Era o homem que se intitulou Preston quando falou com Brown, — disse Nielsen muito satisfeito. — Portanto, se aquelas testemunhas estavam mentindo, bem podem conhecer este sujeito. Vou-me encarregar de fazê-las falar.
— Outra coisa — disse Gideon prontamente.
— Faremos tudo o que você disser, George.
— Poderiam verificar se esse homem é conhecido no cais do porto, onde as nossas dificuldades começam.
— Você mesmo pode tomar essa providência — disse Nielsen. — Está indo agora mesmo para o lugar apropriado.
— Quer dizer que vocês pensam poder encontrá-lo? — perguntou Kitty tensamente.
— Mais cedo ou mais tarde, sim.
— E mais cedo ou mais tarde você vai ter que nos ajudar novamente — Gideon disse a Kitty. — Não me importo que você se ofereça para servir de isca, mas faça isso de acordo conosco. Esta bem claro?
— Sim — disse Kitty. — Desde que seja para ajudá-los.
O carro da polícia, dirigido por Gentian, locomovia-se para Lafayette Street às 8,45 daquela mesma manhã. Cassidy sentara-se ao lado de Gideon no banco traseiro. O sucesso da tentativa para estimular a memória de Kitty, e a novidade do ambiente por onde passavam, escapavam ao pensamento de Gideon. Havia muito o que ver, mas a urgência dos assuntos a serem atendidos o preocupavam tanto aqui em Nova York como o faziam em Londres.
Entraram por uma rua que já se havia tornado familiar. Gideon estava ansioso e não podia esperar para chegar ao cais do porto, assim como aos armazéns, para obter informações de primeira mão sobre a situação.
Conhecia o cais do porto de Londres como poucos homens que não tivessem passado toda a sua vida ali. Sabia que os homens que ali trabalham são bem diferentes dos outros que vivem de outras profissões, assim como sabia que o fato de eles lidarem com navios que viajavam pelos sete mares afetava suas atitudes. Viviam, trabalhavam, bebiam e gozavam a vida próximo ao porto, com o sabor da água salgada, o cheiro dos condimentos e mau cheiro das cargas apodrecidas, e do óleo, sempre em sua boca ou em seu nariz. Cruzavam com o resto do mundo, com gente de todas as nacionalidades, brancos, amarelos, negros, gente livre e cativa. Absorviam conhecimentos e costumes de lugares longínquos e aprendiam as boas coisas assim como os vícios que imperavam nessas paragens.
Eram homens geralmente cabeçudos, práticos, muito fortes fisicamente, sofrendo de uma certa marginalização social e submetidos a um complexo quanto a esta desvantagem, mesmo nos dias atuais. Em alguns países, queixavam-se de perseguição pelos sindicatos ou por bandidos, em outros de perseguição por parte dos empregadores. Qualquer que fosse o lugar ou as razões invocadas, havia sempre alguma frustração. Gideon chegava a pensar algumas vezes que isto se dava porque os tripulantes dos navios que estes homens carregavam e descarregavam eram geralmente muito inquietos, assim como por causa das terras de que ouviam falar mas nunca chegavam a ver, devido ao exótico e ao erótico calculados como desejos que jamais poderiam satisfazer.
Independentemente dos motivos, o ódio podia espalhar-se mais rapidamente entre os que trabalhavam ao longo dos cais do que em quaisquer outros grupos, e este ódio podia causar mais danos em poucos dias do que uma greve prolongada em qualquer indústria. Isso podia muito bem indicar que esses homens tivessem adquirido um sentido de sua própria força.
Dadas essas circunstâncias e condições, assim como os tipos de homens e a história de abusos ou violências, era óbvio que as sementes da corrupção estivessem sempre presentes. E a corrupção era o maior inimigo da polícia.
O Engradado Velho
Krotzner estava dizendo com sua intensidade característica: Na realidade, temos dificuldades, e muitas. É verdade que temos corrupção. É verdade que há roubo habitual e organizado, furto como vocês chamam, em toda a linha. Sabemos disto. Vocês também o sabem. Porém isto não ocorre tanto como no passado. As coisas estão melhorando. Temos nossos problemas e uma grande quantidade de violadores da lei, mais do que podemos dar conta. Alguém já se deu ao trabalho de contar o número de trabalhadores que executam honestamente seu trabalho? Estivadores e policiais — se vocês derem ouvidos aos faladores, nunca fazem coisa alguma que preste.
— Por que você não nos mostra o que estão fazendo com honestidade? — perguntou Cassidy.
— Por exemplo, vamos experimentar se podem identificar este homem — disse Gideon, entregando a Krotzner uma cópia do retrato Identikit do homem visto no Chevrolet verde.
Cassidy acrescentou:
— Estamos enviando quantidade bem maior destas cópias. Você naturalmente quererá distribuí-las entre todos os policiais de serviço de patrulha no rio e com todos os guardas da alfândega, a fim de que possam tentar identificar o homem.
— Farei isso — disse Krotzner. Estava olhando para o retrato. — Com licença. — Saiu durante uns cinco minutos e, quando voltou, informou que as cópias do retrato já tinham chegado, assim como sua distribuição já fora providenciada. Quando Gideon desceu novamente, meia hora depois, notou uma delas presa a um quadro-de-avisos, sob o título: "Poderá você identificar este homem?" Um carro da polícia parou à porta e Krotzner, Peek, Gideon e Cassidy entraram nele.
— Primeiro vamos ver os molhes, depois inspecionaremos os armazéns e os galpões, está bem assim? — disse Krotzner. — O Hempen ainda está a setenta milhas daqui. Deve atracar por volta das três e meia. Seremos informados caso haja algum atraso. Não descobrimos qualquer interesse desusado nele ou no Maruna por parte dos estivadores. Entretanto, é possível que tenham notícias mais animadoras lá do outro lado. O pessoal de New Jersey gostaria muito de vê-lo, Inspetor. Tenho comigo alguns retratos para distribuir entre eles. — O tenente continuou a falar até que o carro saiu das ruas comuns e entrou por um corte, com paredes altas de cada lado. — Estamos na entrada do Túnel Holland — disse Krotzner. — Houve época em que pensei que tínhamos nos Estados Unidos o maior túnel sob água do mundo, mas depois me informaram que existe um mais longo, o Túnel do Mersey, em Birkenhead, na Inglaterra. — O carro descia uma rampa e parecia movimentar-se em alta velocidade. Logo após passavam sob uma série de vigas até que, abruptamente, penetraram no túnel propriamente dito, com suas filas de luzes de cada lado dando a impressão de escuridão fantasmagórica. O cheiro acre de gases queimados, o ruído característico dos pneus, o ronco dos motores dos caminhões — tudo concorria para a espécie de assombro que dominava a todos. Ninguém falou enquanto o carro não saiu na outra extremidade e se colocou em fila para pagamento do pedágio.
— Que é isso? — perguntou Gideon.
— São as guaritas para pagamento de pedágio, — disse Krotzner. — Vocês não têm disto na Inglaterra?
— Muito pouco, — disse Gideon. — Falou-se em ampliar o sistema em algumas auto-estradas. — Sentiu os raios do sol em sua face, muito embora estivesse frio no interior do carro. Havia uma quantidade imensa de caminhões, mais do que tivera oportunidade de ver antes em sua vida, mesmo em Londres nas pistas A1 e A4. Os caminhões faziam barulho ensurdecedor. A maioria deles era de porte bem maior do que os usados na Inglaterra e seus cromados brilhavam como prata, ao sol. Depois de algumas manobras habilidosas, o carro passou pelo meio deles e penetrou em um enorme pátio onde parecia haver centenas desses colossos, carretas sem seus cavalos mecânicos, caminhões motorizados, todos, parados, esperando.
Ao sair do carro, Gideon quase pisou nos calcanhares de Cassidy, tal era seu espanto com o. que tinha à sua frente. Estavam em um ponto pouco elevado de onde se podia ver, do outro lado do Hudson, a cidade de Nova York. Nenhum panorama afetara até então tanto a Gideon. A água azul e borbulhante estava coberta de navios, com o Fifty States a se movimentar no sentido da ponta da ilha de Manhattan, suave e gracioso como se fosse um brinquedo em uma banheira enorme e decorada. Uma bruma leve escurecia a outra margem do rio, abrandando os contornos dos molhes e dos galpões da alfândega. Por trás destes podiam-se ver os arranha-céus. A agulha da torre do edifício Empire State, tão graciosamente esbelta, como que dominava o cenário, ofuscando os outros edifícios com sua magnificência. Havia uma aglomeração de altos edifícios na parte central da ilha e outra na altura da Wall Street.
Cassidy, postado ao lado de Gideon, olhou para seu rosto determinado e disse:
— Muita gente vê este panorama milhares de vezes e nunca o aprecia. O senhor jamais o esquecerá, Inspetor. E o senhor há de querer voltar muitas e muitas vezes para vê-lo.
Krotzner disse:
— Não há dúvida de que se trata de algo digno de ver-se.
— Aproximou-se de Gideon. — Que tal é Londres, Inspetor? Em que se compara com Nova York? Sempre tive muita vontade de ver Londres.
— Vá lá e veja-a — disse Gideon asperamente. — Mas não procure fazer comparações. Seria como tentar comparar um deserto com uma montanha, as duas cidades são tão diferentes. — Relutantemente, mudou de perspectiva, passando a olhar para o vasto pátio.
— Este é o ponto de concentração dos caminhões que vêm dos Estados do Nordeste — Krotzner explicou. O carro diminuiu a marcha e dois homens juntos a um carro já estacionado aproximaram-se. — Estes são os homens da polícia de New Jersey.
— Houve uma certa agitação, apresentações, sorrisos e olhares inquisidores para Gideon. Quando todos estavam juntos, de pé, Gideon verificou que Peek era sem dúvida o mais alto de todos, vindo depois ele próprio em um bom segundo lugar. O sol queimava, mas ele não sentia tanto calor como quando estava em Nova York.
Um dos homens da polícia de New Jersey tomou a palavra de Krotzner. A história que contou era simples e fácil de compreender. Centenas de caminhões chegavam diariamente, dos centros industriais dos Estados do Nordeste trazendo suas cargas para serem embarcadas. Ali no pátio, em fila, aguardavam que chegasse sua vez de descarregar. Alguns esperavam dois ou três dias antes de descarregar diretamente para os navios ou alvarengas. Freqüentemente, os cavalos mecânicos eram desligados e as carretas deixadas na fila.
— Geralmente, usam-se três carretas para um cavalo — disse o homem de New Jersey. Era muito magro, queimado pelo sol e preciso no modo de falar. — Todos os caminhões trazem mercadorias para exportação. Assim, o motorista tem consigo uma cópia dos documentos de embarque, inclusive do conhecimento. Esses motoristas entram em contato com o encarregado do cais, o qual, por sua vez, é responsável pelos contadores de carga.
— Conferentes para você — disse Krotzner a Gideon.
— Obrigado.
— Agora mesmo temos um caminhão vindo da fábrica de Boston da Rite-Time — o homem de New Jersey continuou. — Vai descarregar daqui há algumas horas, acho. Podemos dar uma volta por aí.
— Antes disso observem estas fotografias, — disse Krotzner. Tomou cerca de uma dúzia de retratos Identikit do bolso e as entregou ao policial de New Jersey, o qual depois de olhá-los disse laconicamente:
— Esse sujeito pode muito bem ser um entre três ou quatro que costumamos ver aqui.
— Vamos querer dar uma olhada em cada um deles — disse Krotzner.
— Certamente, mas é possível que nem todos estejam por aqui hoje. — O policial de New Jersey chamou um de seus auxiliares mais moços, explicou o caso e prosseguiu:
— Dois dos possíveis suspeitos são conferentes de carga. Assim, não deixe quem quer que seja ver estes retratos, com exceção da polícia e dos guardas da alfândega.
— Está certo.
— Distribua as fotografias rapidamente — ordenou o policial de New Jersey.
Gideon continuou a pensar sobre se na realidade o policial achava que havia três ou quatro homens que se parecessem com o rosto do retrato. Dentro de meia hora ele próprio viu dois homens que com aquele se pareciam. Se quatro ou cinco suspeitos fossem encontrados, Kitty poderia ser trazida para reconhecê-lo. A mente dela parecia agora estar bem clara para poder identificar o homem à primeira vista.
Dificilmente poderia esperar pelos resultados, entretanto havia tanta coisa fascinante no local. Os enormes armazéns, os navios atracados, os guinchos de descarga, o movimento constante de homens, de caminhões, a dureza do trabalho, a natural obscenidade do ambiente, os gritos, os apitos e os assovios, e até mesmo, de vez em quando, o canto de uma balada indecorosa. Todos pareciam estar trabalhando com o maior afinco.
— Aqui está a carga da Rite-Time — disse o policial de New Jersey.
Um cavalo mecânico foi ligado a uma das carretas que estava estacionada de um lado e a manobrou até ela ficar ao lado de um navio que parecia estar muito cheio para receber mais carga. Gideon viu os guinchos de descarga, notou que havia ali muito mais automatização do que em Londres e sentiu os olhares curiosos de pessoas que o observavam. Viu um homem alto, forte, usando uma camisa azul, carregando uma pasta de documentos. O homem tinha um torso em forma de barril, maxilares grandes, queixo pesado e seu pescoço parecia duro. Quando ele olhava em volta de si, girava seus olhos quase negros, como se tivesse dificuldade em voltar a cabeça.
Gideon segurou o braço de Krotzner.
— Você notou o homem de camisa azul?
— Ele bem poderia ser o nosso homem — Krotzner concordou suavemente. — Não h;.ávida de que poderia ser.
— Ele é um funcionário recebedor, chamado Mense, — declarou o policial de New Jersey. Está entregando a cada estivador sua súmula.
O homem de camisa azul entregou os documentos a um seu colega de menor estatura e se afastou, olhando dissimulada-mente para Gideon, o qual fez como se não o tivesse notado. O segundo dos policiais de New Jersey afastou-se de maneira casual.
— Assim, é possível que nos estejamos aproximando de nossa meta — Cassidy.
— Existem outros que se parecem muito com o retrato — declarou Krotzner. — Inspetor, eu estava dizendo...
A porta traseira do caminhão da Rite-Time foi aberta e caixas e mais caixas dele saíram, umas para serem postas de lado, outras para serem apanhadas pelos guinchos de descarga que as transferiam aos guindastes, os quais, por sua vez, as colocavam nos porões dos navios. Homens no convés, homens no cais, homens nos porões cavernosos dos navios estavam fazendo sinais para outros, de forma idêntica aos encarregados de apostas nas pistas de corridas de cavalos na Inglaterra, para se certificarem de que os engradados fossem colocados em seus lugares certos em todas as fases do carregamento.
Um deles estava marcado "SS. Hempen-Dacar." Números enormes estavam pintados pelo lado de fora. O policial de New Jersey parecia interessado em tudo menos naquele engradado em particular. Movimentou-se, levando o grupo consigo, e sussurrou:
— Aquele engradado vai ser colocado em uma alvarenga para transporte até o molhe 135, não é assim, Krotz?
— É verdade — disse Krotzner. — A alvarenga está atracada no molhe agora mesmo, parcialmente carregada.----Poderíamos abrir o engradado aqui ou esperarmos até que chegue ao outro lado do rio. — Olhou para Gideon, indagando tentativamente o que este pensava, mas Gideon não fez qualquer comentário, pois achava que o problema era deles, isto é, da polícia local. Sem grandes conhecimentos do mundo de agir no país, poderia muito bem sugerir algo errado.
Peek estava olhando para o engradado.
— Este engradado deve andar por aqui há muito tempo,
— disse. — Lembram-se das dificuldades que tivemos com o tufão Vera em setembro passado?
- — Quem poderia esquecer? — respondeu Cassidy.
— Esse tufão sacudiu o rio Hudson e causou a maior ressaca já vista nos últimos vinte anos — disse Peek. — A maior parte dos armazéns ficou inundada até uma profundidade de um metro e vinte a um metro e cinqüenta. Lembram-se do óleo espalhado?
Gideon pôde sentir a tensão que estas palavras causavam nos outros. Entretanto, nada significavam para ele. Podia ver que a madeira amarela esbranquiçada do engradado tinha duas colorações, isto é, a parte de cima, em uma altura de cerca de trinta centímetros, era clara, enquanto que o restante era mais escuro. Cassidy aproximou-se e inspecionou a linha que dividia as duas colorações.
— Bem que nos lembramos do óleo — disse Krotzner.
— Em um dos armazéns havia cerca de quarenta mil litros de óleo cru. Alguns dos tambores foram esmagados e muito óleo vazou. Ele flutuou na água e deixou uma marca, enodando muitos engradados que estavam aguardando embarque. Alguns desses engradados foram danificados e suas mercadorias estragadas. — Agora todos os homens estavam olhando para Gideon e este pôde compreender por que estavam tão excitados.
— Vocês querem dizer que este engradado está aqui desde o tufão e que somente agora está sendo carregado? — Gideon arriscou. — É isto que vocês querem dizer?
— É isto o que lhe estamos dizendo — declarou o tenente da polícia de New Jersey. — O fato mais significativo é que ele esteve escondido, talvez encoberto, durante muito tempo e que tenha sido agora juntado às mercadorias trazidas por este caminhão. Quanto mais depressa verificamos o que há dentro do engradado melhor.
— O senhor não concorda, Inspetor, não é assim? — perguntou Krotzner.
Gideon cocou o queixo.
— Deixe-me ler seus pensamentos — prosseguiu Cassidy com aquele seu sorriso rápido e contagiante. — Pensa que se o engradado for levado até o molhe e carregado no Hampen o senhor descobrirá exatamente para onde a mercadoria vai, assim como se a firma encarregada da estiva e a Cia. de Transportes Trans-Ana também estão metidas no negócio.
— É verdade? — perguntou Krotzner.
— Estou pensando no que poderia acontecer se a alvarenga tivesse qualquer dificuldade e sua carga se perdesse — disse Gideon pensativamente — Se isso acontecesse, ficaríamos sem prova alguma.
— Se abrirmos o engradado aqui nada teremos a perder, — disse o policial de New Jersey.
— Se esperarmos até que ele seja colocado no navio, poderemos descobrir tudo, como Cassidy diz, — retrucou Krotzner.
— A decisão é sua, — disse Cassidy a Peek.
— Vamos esperar até que ele seja carregado no Hempen, — respondeu Peek prontamente.
— Sou favorável a que o abramos aqui — insistiu Cassidy.
— Nós mesmos não precisamos ter esse trabalho. Podemos interessar a Alfândega, fazer com que fique curiosa e resolva dar uma olhada. Então sempre olhando para tudo que está em volta.
— Cassidy olhou para Gideon. — Seu voto será decisivo, Inspetor.
— Telefonem para o capitão Nielsen e peçam instruções
— sugeriu Gideon.
— Temos aqui um Salomão, — gritou Peek.
— Vigiem o engradado, vigiem a alvarenga, não a percam de vista, tomem cuidado para que o engradado não seja jogado na água e esperem até que ele seja carregado no Hempen, — disse Nielsen a Cassidy. — O Inspetor Gideon está aí?
— Está bem a meu lado. — Cassidy passou o telefone para Gideon e recuou no pequeno escritório da alfândega, o qual tinha janelas em todos os lados. O local parecia circundado por um mar de caminhões, guindastes, homens, engradados, sacaria, barricas e caixas.
— Aqui fala Gideon — disse Gideon, sentindo-se preocupado porém sem saber por quê.
— George — disse Nielsen — quero que você saiba que Kitty Orlick recebeu um telefonema de um homem que se diz amigo de seu marido. Esse suposto amigo diz que leu a notícia do acidente e ficou muito sentido. Agora quer conhecer a viúva para poder expressar seus sentimentos. Quer encontrá-la no Balcão de Informações, na estação Grand Central. Kate...
Gideon prendeu a respiração; o que é que Kate tem a ver com isso?
— Kate a aconselhou a marcar um encontro com o homem para hoje a noite, às oito e meia, — disse Nielsen. — Penso que Kate está planejando ir com ela.
Gideon disse muito vagarosamente:
— Vou voltar já. Alguma coisa mais de novo?
— Aquelas três testemunhas do acidente — disse Nielsen.
— Estão amedrontadas, George, demasiadamente amedrontadas para poder falar. Com tempo conseguiremos fazer com que elas falem, porém isso em nada auxiliará a Kitty Orlick. A primeira coisa com que temos de nos preocupar é com sua esposa. Ela tem um coração muito grande.
Danny Silvermann estava em seu escritório junto à grande fábrica de produtos químicos nos limites da cidade de Boston, olhando para os caminhões parados no parque de estacionamento. Alguns homens movimentavam-se em volta dos mesmos despreocupadamente, enquanto dois mecânicos trabalhavam atentamente em um motor Diesel enguiçado.
A campainha do telefone tocou.
— Danny, — disse Mense. — Eles andam atrás daquele engradado em New Jersey.
Silvermann prendeu a respiração.
— Dois policiais de Nova York e o inglês estiveram lá, — Mense prosseguiu. — Não há dúvida de que andam atrás de algo.
Silvermann disse, vagarosamente:
— O que devemos fazer, então? — E antes que Mense pudesse responder, ele continuou: — A pequena tem que desaparecer depressa, correto?
— Ela vai desaparecer depressa. — Já tomei providências para isto.
— Que... — Silvermann quase se engasgou. — Que notícias tem você do Hempen? Traz uma grande remessa para nós.
— Não nos podemos envolver nisso — disse Mense, secamente.
— Temos que fazer alguma coisa.
— Não podemos, — insistiu Mense. — Não enquanto o molhe estiver sendo vigiado. Escute, Darkie foi quem tomou conta do Maruna e do Hempen, somente Davo, o primeiro oficial, nos conhece. Assim, podemos esperar.
— Esperar por quê?
— Por tempo para dar fim a Davo. Dar tempo para sairmos dos negócios em New Jersey e nos concentrarmos aqui. Aliás, já estávamos planejando cair fora. A única coisa é que faremos isto mais depressa do que planejávamos.
— Não poderemos escapar enquanto a garota andar por aí.
— Já tomei as providências necessárias. Portanto, por que nos preocuparmos? — indagou Mense.
Marcus Davo, o primeiro oficial do Hempen, homem de aproximadamente trinta anos, era pessoa de pouca imaginação mas que dava sempre conta de seu trabalho. Dedicara-se à vida do mar desde que saíra da escola secundária. Tinha muitos problemas, todos relacionados com dinheiro. Não tinha uma esposa em cada porto, mas sim três "esposas" em portos de além-mar e outra legal que vivia no Norte do Estado de Nova York. De coração, era um homem generoso e sua bondade natural, assim como seu belo mas já desgastado porte e seu sorriso, faziam parte de seus problemas. Não podia resistir à atração das mulheres e, algumas vezes, chegava a rir tristemente de sua grande fecundidade. Tinha muitos filhos e aceitava a responsabilidade financeira de sete deles além de outros três que tinha de seu casamento legal.
Foi por este motivo que fizera o acordo com Mense.
Essa a razão pela qual esperava entrar, em futuro próximo, em outro negócio, pois necessitava muito de dinheiro. Tomara dinheiro emprestado, por conta de seu salário, para pagar em vários portos africanos e europeus, e estava desesperado para obter dois mil dólares a fim de levar para casa no dia seguinte, quando a carga fosse descarregada e ele tivesse seus dias de folga entre viagens.
Dois mil dólares...
Recebendo essa importância, poderia fazer sua esposa feliz e assim todos ficariam satisfeitos.
Enquanto Marcus Davo estava ruminando sobre as possibilidades de obter mais dinheiro de Mense, este último tramava o melhor meio de matá-lo, e Gideon pensava sobre como controlar Kate, cujo modo de agir ele jamais se lembrava de ter visto antes.
O Velho Amigo
— Kate — disse Gideon — não há razão para você fazer isso. Ela nada significa para você. Ela não pode. Não há qualquer motivo para você se envolver no caso.
— Há uma razão muito boa — insistiu Kate.
— Ainda estou para saber qual seja.
— Eu teria que viver com minha consciência depois, caso não a ajudasse e algo acontecesse a ela.
Os dois permaneceram juntos no quarto do apartamento, sabendo que Kitty estava na sala de estar. Gideon procurou falar baixo, mas o eco se propagava livremente no ambiente. Kate estava tão exaltada a ponto de falar mais alto do que fazia comumente. Desejava que isso não acontecesse, pois não queria que a conversa se transformasse numa discussão. Gideon tinha a mesma intenção. Entretanto, havia certa tensão entre os dois.
— Kate...
— Eu vou com ela.
— Kate — Gideon protestou — há uma razão muito imperiosa pela qual você não deve ir, uma razão sobre a qual você ainda não pensou.
— Qual é ela?
— Se eu concordar que você vá e algo lhe aconteça, também terei que viver com minha consciência.
Notou, pelo abrandamento da expressão de Kate, que ela compreendera seu modo de pensar e sentiu-se esperançado de que a tivesse feito compreender a extensão de seus temores. Enquanto a observava, algo importante veio à sua mente. Sentiu que sua ansiedade era resultado do fato de tanto ele como Nielsen acreditarem seriamente que haveria um atentado para assassinar Kitty.
— Você já se arriscou muito por pessoas que você quase não conhece — disse Kate. — Você já chegou a ponto de se colocar em perigo, no passado, para certificar-se de que um criminoso não fosse maltratado. Somente porque você está em Nova York, isso não deve alterar suas responsabilidades, querido, e você bem o sabe. Se a polícia de Nova York é tão eficiente quanto você diz, tomará as providências necessárias para que nada nos aconteça.
Muito deliberadamente e muito vagarosamente, Gideon respondeu:
— Ninguém pode evitar um ataque. Toda a polícia de Nova York junta não poderia evitar um tiroteio se um assaltante não-identificado o quisesse provocar. Poderiam evitar que o assaltante escapasse, porém isso seria tudo. Na momento em que você sair deste edifício em companhia da esposa de Orlick, estará em perigo. Agora mesmo, um homem poderia estar sentado em uma janela, com uma arma, pronto para atirar nela.
Kate pensou bem e depois perguntou calmamente.
— George. Você pensa que ela nos poderá levar ao assassino?
— É possível.
— E você está preparado para usá-la como isca?
— Sim, para prender o homem que, de outra forma, pode matá-la.
— George, acho que você deve fazer com que Kitty não vá. Acho que você não deve deixar que ela se arrisque tanto. Entretanto, se ela for, eu vou com ela.
Agora Gideon reconheceu o que Kate queria, isto é, obrigá-lo a evitar que Kitty se fosse encontrar com o desconhecido. Kate sabia perfeitamente que não poderia ajudar a moça aqui em Nova York, e sabia que a oferta de acompanhá-la nada mais representava do que um gesto altruísta. Entretanto, ela sabia bem que sua insistência impunha grande pressão sobre seu marido.
Seguiu-se um momento de estranha tensão. E um milagre ocorreu. A mente de Gideon voltou-se para uma noite, há muitos anos, quando Kate, em casa, estava com seu sétimo filho às portas da morte. Na vastidão de Londres, havia um criminoso à solta, um criminoso que cabia a Gideon prender. Ele poderia deixar Kate só e ir executar seu trabalho, ou, por outro lado, poderia adiar o assunto por algumas horas. Desejara tão desesperadamente ficar em casa; entretanto, apesar de tudo isso, saíra.
Durante algum tempo, esse modo de agir quase estragou para sempre sua vida conjugai, pois a criança faleceu antes de Gideon voltar, com o seu dever cumprido. Passou-se muito, muito tempo antes que a perda fosse superada e esquecido o mal-estar criado entre os dois. Com o aspecto que as coisas tomavam agora, Gideon pensou que aquele episódio de então voltava à mente de sua esposa, trazendo as mesmas lembranças tão angustiantes.
A rigidez pouco comum dos lábios de Kate, a dureza curiosa de seu olhar, fê-lo lembrar aquela noite há muitos anos. Kate não falou.
Gideon disse, com esforço:
— Você deve fazer aquilo que ache direito, Kate. Tenho horror só em pensar nisso, mas concordo em que você faça o que achar direito. Também farei o mesmo.
Gideon estava com medo do que pudesse acontecer a sua esposa e, além disso, perturbado por outros motivos. Entretanto, não se lembrava de se ter sentido tão em paz como durante a meia hora que se seguiu a estes fatos. Essa meia hora foi totalmente sua e de Kate. Pouco falaram e praticamente nada fizeram. Permaneceram sentados, observando as mudanças fascinantes da luz solar, o tráfego que se movimentava constantemente, o escurecimento do céu e as estrelas, que se tornavam cada vez mais brilhantes, à proporção que a luz do dia esmaecia.
— Não me devo atrasar.
Kate saiu do quarto e Gideon continuou sentado, taciturno, ainda sem saber bem o que deveria fazer, nem mesmo se deveria tentar novamente dissuadi-la de acompanhar Kitty.
Logo após, Kate voltou apressadamente, falando em voz alta, e com a fisionomia alarmada.
— Kitty não está aqui! — gritou. — Deve ter ouvido nossa conversa.
Kitty Orlick permanecera junto à porta do quarto e ouvira os Gideon discutindo, quase brigando. Ficara surpresa com o modo de falar de Gideon quando este chegou e depois, concluindo que falavam sobre ela, resolvera escutar. Enquanto discutiam e a tensão aumentava, teve ímpetos de gritar: "Parem, parem, parem". Entretanto algo a manteve calada. Um torpor dominou todo o seu corpo. Ela não podia vê-los. Entretanto, podia imaginar muito bem a expressão de seus rostos.
Depois, vagarosamente, como se falasse para ferir a si próprio, Gideon dissera: "Kate, você deve fazer aquilo que ache direito. Tenho horror só em pensar nisto, mas concordo em que você faça o que achar direito. Também farei o mesmo".
Tivessem eles saído do quarto naquele momento, veriam Kitty, pois ela estava parada junto à porta, incapaz de fazer qualquer movimento. Virou-se e correu aos trancos para seu quarto; depois de recuperar os movimentos, jogou-se na cama e cobriu o rosto com as mãos. Lutou contra as lágrimas quentes, rangendo os dentes, virando os olhos, batendo com as pernas no colchão, violentamente, selvagemente, até que o paroxismo se exauriu. Finalmente, acalmou-se e, com uma daquelas intuições que lhe ocorriam sempre, compreendeu exatamente o que deveria fazer. Kitty lavou o rosto, pintou-se e saiu. Imbuída da idéia de que iria fazer esforço físico, a aflição e a emoção desapareceram. Quando chegou à rua estava, para quem a observasse casualmente, em seu estado normal. Poucos teriam notado que ela andava apressada e duramente.
— Sabia exatamente para onde tinha que ir.
— Sabia também que a polícia a estava seguindo. Quando entrou na Quinta Avenida, segurando sua bolsa, tentou atravessar a rua em uma esquina, estando a luz verde favorável ao tráfego. Um carro buzinou. Ela pulou para trás e o som a atravessou como se uma faca tivesse sido cravada em seu peito. Isso reviveu intensamente a imagem do que tinha acontecido a Dirk. Kitty prendeu a respiração.
Durante alguns momentos tristes pensou: "Que atrativos tem a vida para mim?". Depois, lutando contra a autocompaixão, voltou corajosamente à resolução que havia tomado de levar a polícia ao matador de Dirk.
Esperou que o sinal mudasse, mas não se apressou em atravessar a rua. Quando chegou do outro lado, um táxi vazio aproximou-se. Fez sinal parou, e ela entrou.
— Para a estação Grand Central, por favor — disse Kitty. O motorista grunhiu e meteu seu carro no meio do tráfego.
A cena horrível que ela vivera, o momento horroroso da morte de seu marido, estavam agora tão claros em sua mente que as lágrimas lhe vieram aos olhos. Procurou lembrar-se daquilo que o "velho amigo" de Dirk dissera, isto é, que ela o encontraria no Balcão de Informações da estação Grand Central, e que não poderia haver qualquer engano.
Pareceu decorrer muito tempo antes que o táxi parasse, a ponto de ela pensar que poderia até chegar tarde. Finalmente, o motorista parou em frente a uma porta de esquina, sobre a qual havia um grande relógio.
— Quanto devo, perguntou Kitty.
— Um dólar e trinta e cinco centavos.
— Kitty procurou um dólar e mais algumas moedas na bolsa, contou-as e entregou-as ao motorista, o qual pareceu ficar satisfeito.
Várias pessoas estavam nas proximidades quando ela deixou o táxi, algumas delas sem dúvida eram policiais, outras simplesmente homens que gostavam de olhar para urna pequena bonita. Um destes bem podia ser o "velho amigo" de Dirk. Ela não reconheceu qualquer um dos que ali estavam. A rua tinha muito movimento, mas os pedestres que por ali passavam pareciam sem pressa. Havia prédios novos e altos de cada lado da rua. Afinal de contas, chegara na hora marcada. Eram sete e quarenta e cinco e o encontro fora marcado para as oito horas. As portas eram pesadas, Kitty sentiu isto quando teve que seguir várias pessoas que se dirigiam rio mesmo sentido para onde ela ia. O local não era muito iluminado, parecendo-se com o ambiente comum a qualquer estação de estrada de ferro. Mais além havia um pouco mais de luz, assim como lojas, engraxates e uma multidão de gente comum. Continuou a seguir essa multidão até que parou no maior vestíbulo que já vira, tão grande, com um teto tão fantàsticamente alto que não pôde esconder a surpresa com o que via. Em uma das extremidades havia um automóvel, pintado de vermelho brilhante, rodando vagarosamente em uma base giratória. Algumas dezenas de pessoas o observavam. Havia um quiosque no centro do vestíbulo, lugares de venda de passagens e muita gente, porém não havia trens ou plataformas. Olhou para algumas fotografias enormes, depois olhou em volta de si novamente e viu então um balcão grande, circular, de informações. Dois ou três homens, assim como várias mulheres, encontravam-se junto ao mesmo. Estaria o "amigo" entre eles?
O coração de Kitty começou a bater apressadamente.
Captura
Alguns minutos depois, quando já se sentia um pouco mais segura de si, um homem dirigiu-se apressadamente para ela. Trazia uma pequena pasta preta e usava um chapéu de abas estreitas. Parecia muito bem vestido. Havia algo vagamente familiar naquele homem, mas sua aproximação tão rápida não a fez suspeitar de que se tratava da pessoa com quem se ia encontrar. Somente quando parou abruptamente a seu lado foi que ela se surpreendeu e que seu coração começou a bater fortemente.
— Kitty Orlick? — perguntou com voz suave. Ela se voltou e respondeu:
— Sim, por quê?
— Estou muito satisfeito por você ter vindo, — disse o homem. — Não posso negar minha satisfação em conhecê-la. — Segurou-a pelo braço e puxou-a em direção à entrada através da qual ela ingressara há pouco. Notou a presença de dois homens fortes, um dos quais ela vira várias vezes do lado de fora do hotel onde os Gideon estavam hospedados.
Repentinamente, ela notou que o homem a seu lado prendia a respiração. Nesse momento, empurrou-a para um lado, voltou-se e correu em direção ao local de onde viera. Nesse mesmo instante, vários homens correram atrás dele, a multidão afastou-se para um lado, uma mulher gritou enquanto era empurrada. O homem forte que Kitty reconhecera minutos antes atravessou-se no caminho e sacou de uma arma.
— Não atire! — gritou alguém.
Sinais de pânico podiam ser notados na face de dezenas de pessoas que se afastavam em todos os sentidos. A calma existente no grande vestíbulo desapareceu, gente gritava e corria. Para Kitty, a confusão era pior porque ela tinha a impressão de que havia túneis, portões e passagens em todas as direções. Foi então que um homem forte chegou a seu lado e ela reconheceu Cassidy.
— Você está bem? — ele perguntou.
— Sim.
— Da próxima vez que quiser bancar a heroína, avise-nos com antecedência, — disse Cassidy severamente.
Outro homem chegou apressadamente.
— Parece que ele fugiu — disse o homem tristemente. — Se ao menos você me tivesse deixado atirar.
— Uma bala perdida no meio de uma multidão dessas, você está louco? — Cassidy disse e voltou-se para Kitty. — Vou mandá-la para o hotel num carro da polícia. Não vá sair de novo sem dizer ao guarda para onde você vai. Compreende?
— Está bem — Kitty disse, em voz amortecida. — Prometo.
Uma hora mais tarde bateram na porta do apartamento dos Gideon e Kate foi abrir. Gideon estava ao telefone, ouvindo Nielsen, que obviamente procurava esconder sua irritação.
—... ele escapuliu, mas um dos nossos homens o reconheceu... Era uma das testemunhas do acidente, vestido como se fosse homem de negócio para se disfarçar. Entretanto, não há a menor dúvida quanto à sua identidade. Mais cedo ou mais tarde o apanharemos. Entrementes, vamos inquirir as outras duas testemunhas, pode ser que isto as faça falar.
— Onde está Kitty? — perguntou Gideon.
— A caminho de volta ao hotel. Por que foi que ela saiu sozinha?
Gideon ouviu a voz de Kate, seguida da de Kitty.
— Queria ter a certeza de que Kate não a acompanhasse e se fosse meter em encrencas.
— Kitty Orlick é na realidade uma ótima moça — disse Nielsen, com voz aliviada. — Você ainda pretende utilizá-la como isca?
— Talvez isso ainda venha a ser aconselhável — disse Gideon teimosamente.
— Você não cede facilmente. George, quero falar-lhe sobre o Hempen e alguns dos homens que trabalham no cais. Você poderá vir até o meu escritório às dez horas?
— Naturalmente.
— Chegou alguma correspondência para você. Pretendia entregar-lhe na sua volta do cais, porém você não passou por aqui. Entregarei amanhã. George, por que você e Kate não fazem uma visitinha a Claire?
— Não se preocupe conosco — disse Gideon. — Estamos muito bem. Verei você amanhã às dez horas. — Voltou-se no momento exato em que Kate entrava na sala com Kitty e notou então como a moça parecia fraca e frágil. Teve a impressão de que este último choque lhe roubara tanto sua juventude como sua vitalidade. Kate tinha um braço em volta dos ombros de Kitty e o olhar desta, ao encarar Gideon, estava vazio de expressão. Gideon preparou um uísque com soda e lhe deu. Ela bebericou, umedeceu os lábios, bebericou novamente e devolveu o copo. Com voz murmurante, disse: — Obrigada. — Lágrimas, há muito recalcadas, encheram repentinamente seus olhos. — Eu lhes agradeço por tudo — disse. — Jamais poderei agradecer-lhes, jamais. — Olhou para Gideon com os lábios trêmulos. — Obrigada. Obrigada, por ter permitido que sua esposa me acompanhasse. — Notava-se que Kitty estava lutando para não se deixar dominar pela emoção. De repente, ela pulou: — Haverá algo que eu possa fazer? Qualquer coisa que seja?
— Ia preparar ovos com bacon, — disse Kate.
— Contanto que eu possa fazer alguma coisa, — gritou Kitty.
Eram quase duas horas da madrugada em Londres e a maior parte da grande cidade parecia dormir. Entretanto, a Sra. Fadiman estava acordada. Naqueles dias vinha-lhe custando muito pegar no sono, porque se sentia perseguida por um temor que não queria compartilhar com qualquer outra pessoa, ou seja, o medo de que Cedric tivesse na realidade cometido aqueles crimes horrorosos. Estava só, pois não tinha querido ir para Birmingham a fim de ficar com seu filho David e não dispunha de outros amigos, além dos Todhunter, com os quais podia procurar companhia. Os Todhunter já estavam hospedando seu filho Leslie e ela não queria abusar da bondade deles. De qualquer forma, não.queria companhia. Só ela poderia falar consigo mesmo, sem receio de que a ouvissem. A única coisa que desejava era que sua filha melhorasse, porém Elza continuava no hospital, sem pronunciar uma só palavra. A Sra. Fadiman passara meia hora com ela na tarde anterior, limitando-se a olhar para sua filha, até que uma enfermeira a persuadiu a voltar para casa.
A Sra. Fadiman puxou os lençóis e desceu da cama. Parecia uma figura sem forma definida, vestida numa camisola de flanela cor-de-rosa. Colocou um roupão, calçou os chinelos, que lhe tinham sido presenteados por Leslie por ocasião de seu último aniversário, e desceu para a cozinha.
— Estou bem, contanto que faça alguma coisa — disse para si mesma e colocou a chaleira no fogo a fim de esquentar água para fazer chá.
O chá era guardado numa latinha, decorada com cenas indígenas, que Cedric adquirira há muitos anos numa loja de artigos de segunda mão. Sabia que na tampa havia um compartimento escondido e que foi por isto que seu marido a havia comprado. Se uma pessoa levantasse a tampa de certo modo, uma mola se soltava e recortes metálicos de uma cena indígena apareciam. Leslie havia quebrado os recortes há vários anos e ela quase se esquecera de como o mecanismo funcionava. Mesmo assim, num canto escondido de sua memória algo se movimentou. Girou a tampa numa direção, depois na outra. A parte inferior da tampa começou a se abrir e dois ou três comprimidos brancos caíram. Outros ficaram dentro.
A Sra. Fadiman olhou com espanto para os comprimidos.
— Oh, não — disse, com voz sufocada. — Oh, meu Deus, não!
A chaleira ferveu furiosamente.
Ela começou a chorar.
Repentinamente apanhou dois dos comprimidos e jogou-os na boca. Depois apanhou o jarro de leite e o levou aos lábios, sorvendo um grande gole com o qual engoliu os comprimidos. Apagou o fogo da chaleira e saiu da cozinha perfeitamente consciente do que fizera.
Sabia agora que Cedric era culpado e sentia que não tinha mais motivos para viver.
Cerca de trinta minutos depois começou a sentir dores.
Ela pensou, mesmo enquanto agonizava, nas outras mulheres e no que seu marido havia feito com elas. Mesmo quando teve um pequeno momento de alívio, não pensou em outra coisa senão em morrer.
Darkie estava dormindo num pequeno camarote próximo aos aposentos do comandante do Maruna. Dormia o sono que se supõe seja reservado aos justos.
Chloe Lemaitre estava acordada escutando a respiração pesada de seu marido deitado na cama ao lado. Quando ele subiu, uns vinte minutos antes, fizera que estava dormindo a fim de que ele também procurasse dormir logo. Lemaitre vinha dormindo muito pouco ultimamente. O caso dos Correios era demasiadamente complicado para ele. Lem havia chegado a casa às dez horas mas estava ainda a estudar seus gráficos e anotações quando ela fora para a cama, isto já depois da meia-noite. Sabia que quando o marido acordasse a primeira coisa que faria era falar sobre o já tão famoso caso.
Repentinamente, ele a surpreendeu.
— Você está acordada, Chloe? — Estou — respondeu.
— Sou muito feliz em ter você — disse ele. Chloe esperou que ele passasse para sua cama mas isto não aconteceu. A luz da rua brilhou nos olhos dele enquanto fitava sua esposa. — Você quer saber de uma coisa, meu bem? — Ele hesitou, porém não com a intenção de esperar uma resposta. — Bem, vou-lhe dizer. Eles conseguiram escapar. Eles me venceram, aqueles miseráveis. Agora não mais os deteremos e. se chegarmos a fazê-lo, não será devido a algo que tenha partido de mim. O pior de tudo é que não sei o que fiz de errado. Não posso deixar de pensar que, se o velho George estivesse aqui, ele teria descoberto algo.
— Oh, você e o seu incomparável George! Eu desejaria que ele ficasse em Nova York e nunca mais voltasse.
— Bem, não penso assim, — disse Lemaitre. — Vou-lhe dizer outra coisa, da qual tenho plena certeza. Se George estivesse aqui, teria mandado que Mac fosse diretamente ao apartamento de Cordova, e não que esperasse até que este chegasse ao escritório. Tive vontade de chorar, digo a você, eu quase chorei. No momento em que soube do que aconteceu, logo vi o que deveria ter feito.
— Pensei que MacPherson estivesse encarregado disso, — disse Chloe.
— E então, não sou eu por acaso o responsável pelo Mac? — Houve uma pausa tão longa que ela chegou a pensar que Lemaitre tivesse dormido novamente. Entretanto, devia saber muito bem que isso não era verdade. Finalmente, puxou os lençóis e passou-se para a cama dela. Era magro e ossudo enquanto ela era cheia de corpo, mas pequena e carinhosa. Entretanto, no momento, carinho estava fora das cogitações de seu marido. — Deixe-me dizer uma coisa — prosseguiu. — Não vou aceitar o lugar de assistente do Inspetor. Mesmo que me peçam, o que sei não vão fazer. — Não vou aceitar o lugar. Sei que isso significaria mil libras esterlinas a mais no meu ordenado, mas você vai ter que dar um jeito com o que eu ganho, querida. O cargo não é para mim. Não tenho as qualificações que ele exige. Esta é a verdade. O velho George, ele sim, é um entre milhões. Sou duas vezes mais eficiente quando ele está por perto porque sei que me dirá o que tenho a fazer e onde foi que eu errei. O bom velho Gê-Gê. Gostaria de saber como ele está no momento. Provavelmente já resolveu o caso dos relógios Rite-Time. Como eu gostaria de vê-lo junto com os policiais de Nova York. Você quer saber de uma coisa, ele ficará sentido. Esta é a verdade. Ficará muito sentido ao saber que não conseguirei o lugar, muito embora saiba que eu não sou a pessoa indicada para o mesmo. Nunca o disse, na realidade fez tudo para me pôr no caminho certo e eu não lhe dei atenção. Como a gente pode fazer tanta asneira?
Houve outro período de silêncio.
Em voz que parecia longínqua, ele disse:
— Você terá que arranjar um emprego, eis o que você terá que fazer.
— Lem, não seja idiota — disse Chloe. — Você ganha o bastante para vivermos. Não seja tolo.
— Você não ficará triste se eu não for promovido?
Ser promovido, Chloe pensou em silêncio. Pela manhã ele provavelmente se teria persuadido de que o cargo seria seu, que o iriam convidar e de que a melhor solução seria recusar. Pensando assim, sentir-se-ia satisfeito.
— Ficar triste — ela disse. — Não quero que você aceite esse cargo infeliz. Estes últimos dias me ensinaram tudo quanto eu queria saber sobre ele. Levantar às seis da manhã, chegar ao escritório antes das sete, voltar para casa às dez da noite, ficar acordado até às tantas, acabando aquilo que não teve tempo de fazer durante o dia. O que é que você pensa que eu SOU? Uma empregada? Quero um marido, e não se esqueça, quero passar algumas horas do dia e da noite com ele. Pode ficar certo, não trocaria o meu lugar com o de Kate Gideon para viver ao lado de inspetores e seus assistentes, esta é a verdade.
Lemaitre, com o coração mais leve do que havia estado durante muito tempo, passou repentinamente o braço em volta de sua esposa e apertou-a de tal forma que ela chegou a suspirar.
Sir Reginald Scott-Marle estava dormindo.
Os Allingham estavam dormindo.
Até mesmo John Webb dormia, preso numa cela num distrito policial em Nova York.
Os Gideon dormiam.
Kitty Orlick, sob o efeito de um sedativo, dormia um sono profundo.
A única pessoa que Gideon conhecera da polícia nova-iorquina que estava acordada era o tenente Krotzner. Soubera do atentado contra a Sra. Orlick e passara a maior parte da noite pensando sobre o caso dos relógios Rite-Time.
Culpava-se pelo fato de não ter descoberto o engradado velho antes. Devia tê-lo descoberto. Sabia que alguém o tinha escondido, deliberada e cuidadosamente. Entretanto, como era ele que estivera encarregado das investigações no caso Rite-Time, sentia que a culpa era sua. Isso era tão claro a ponto de fazer com que muitas outras coisas se tornassem também claras, e uma coisa era ainda mais evidente do que as outras. Se quisesse restabelecer seu conceito perante si próprio, a condição primordial seria esclarecer esse caso. Ele, o tenente Abel Krotzner, que conhecia as docas e o cais do porto melhor do que qualquer outro policial. Era uma questão de orgulho. Era um homem essencialmente orgulhoso; orgulhoso de sua eficiência, orgulhoso de seu passado, orgulhoso da Patrulha Fluvial, orgulhoso do cais do porto, orgulhoso de Nova York, orgulhoso da América. O fato de ser um homem muito sisudo, que raramente via o lado alegre de qualquer situação, contribuía muito para que fosse ele a pessoa encarregada de esclarecer o caso. Se Nielsen, Cassidy ou mesmo Gideon o fizessem, jamais se recuperaria do choque. Não lhe ocorria o fato de que, se assim fosse, ninguém o culparia. Sentia que, se falhasse, a culpa recairia também sobre a Patrulha Fluvial e até mesmo sobre os Estados Unidos.
Dispunha, agora, de mais indícios e podia analisar o desenvolvimento do caso durante mais de um ano. Tudo o que sabia sobre o mesmo encontrava-se cristalinamente claro em sua mente.
Krotzner estava deitado em sua cama de solteiro, na sua casa bem próxima à delegacia. Podia ver, em sua mente, todos aqueles que julgava envolvidos. Se ao menos pudesse resolver o problema a ponto de ter respostas certas para dar a Nielsen e Gideon na manhã seguinte, sentir-se-ia um grande homem. O maior.
Mense estava calculando os riscos que teria de enfrentar para lidar com Marcus Davo e pensava se deveria fazer isso ele próprio ou encarregar outra pessoa. Seria fácil arranjar com um guindasteiro ou operador de guincho um acidente fatal, mas isso teria que ser feito de uma maneira rápida. Tudo dependia de a polícia entrar em ação antes ou depois da atracação do Hempen. Mense pensava que as autoridades iriam deixar o navio atracar, descarregar e esperar para ver o que iria acontecer com o engradado que tinham descoberto. Se assim fosse, teria tempo bastante para agir.
Se a polícia entrasse em ação logo que o navio atracasse, teria então que agir, ele mesmo, rapidamente.
Para ele, Kitty Orlick e Davo precisavam desaparecer. A moça escapara da primeira vez, porém estava convicto de que daria fim a ela. Não teve a capacidade de julgar quanto à necessidade e moralidade desse ato. Seu sentimento para com seus semelhantes era completamente nulo. Para ele, as palavras arrependimento ou remorso não tinham o menor significado. Aquilo que tivesse de ser feito para sua segurança pessoal era coisa inevitável.
Estranho era que, muito embora já devesse ser óbvio para ele que suas chances de escapar do crime cometido eram diminutas, isso não lhe ocorresse. A única pergunta em sua mente não era se devia ou não matar novamente, mas sim qual o melhor método de fazê-lo.
Triunfo
— Ali está o Hempen — disse Nielsen.
Estava de pé, ao lado de Gideon, numa torre de observação no topo de um edifício na área da Wall Street, observando os moldes do Hudson. O rio estava muito movimentado com o tráfego de barcaças, alvarengas, barcas, cargueiros, entre os quais o Queen Mary e o France sobressaíam majestosamente, atracados em molhes adjacentes e prontos para partirem no dia seguinte. Gideon pôde ver o telhado da delegacia da Patrulha Fluvial enquanto observava o Hempen através de um binóculo.
— Parece um navio bem- velho e maltratado, — disse.
— É maltratado e velho, — Nielsen concordou. — E também rijo. Esses velhos navios do tipo Liberty podem certamente resistir a mares bem encapelados.
Gideon notou que o casco necessitava muito de uma boa limpeza e pintura, mas fora disso o navio parecia em boas condições. Ambas as escotilhas estavam abertas, os guindastes e paus de carga estavam trabalhando e ele notou uma alvarenga no costado. Bem poderia ser aquela que tinha os Rite-Time a bordo. Sabia que a Polícia do Porto estava observando cuidadosamente e que, logo que fosse dado qualquer sinal, haveria uma corrida de policiais para o navio, de forma idêntica à que houvera contra o assaltante na estação Grand Central. Homens, mais parecidos com formigas, corriam pelo convés onde havia uma movimentação contínua.
— Você já viu tudo o que queria? — Nielsen perguntou, de maneira brusca.
— Sim, muito obrigado.
— Estava querendo lhe informar — disse Nielsen enquanto, os dois saíam do observatório — que ouvimos novamente as outras duas testemunhas, assim como investigamos mais sobre a que foi reconhecida na Grand Central. Baseados no que fizemos, podemos dizer que as coisas estão muito mais claras do que antes. A testemunha vista na estação mora no mesmo edifício de apartamentos onde reside aquele que preenche os requisitos do retrato Identikit, ou seja, o homem chamado Mense. É um conferente de cargas que, algumas vezes, substitui o encarregado de recebimento das mercadorias a serem embarcadas. As outras duas testemunhas admitem que mentiram sobre as causas da morte de Orlick e dizem agora que foram subornadas por Mense para fazerem as declarações dadas nos primeiros depoimentos.
— Quer dizer que estamos muito mais próximos da verdade,
— disse Gideon. Ambos entraram num elevador e Gideon notou que Nielsen sorria sorrateiramente. Por isso perguntou: — Vocês já prenderam Mense?
— Ainda não. Krotzner está fazendo algumas pesquisas sobre ele. Vamos saber de toda a história quando nos encontrarmos com Krotz. — Nielsen fez uma pausa. — O outro homem e a mulher declararam que Mense pagou cem dólares a cada para estarem no lugar do acidente e mentirem. Dizem que não sabem se o motorista, isto é, o viciado em narcóticos, também mentiu. Entretanto, estou convicto de que ele também o fez. Trabalha como entregador de uma mercearia. — As portas do elevador se abriram e Peek apareceu repentinamente, com o polegar preso ao cinto e um olhar um pouco cretino. Gideon não havia notado essa atitude nele anteriormente.
— Algo errado? — perguntou Nielsen.
— Não que eu saiba — respondeu Peek. — Entretanto, o tenente diz que tem algo em seu escritório que gostaria de que vocês vissem.
— O que eu gostaria de ver era aquele conferente, Mense
— disse Nielsen. — Fui informado de que ele esteve conversando com o primeiro oficial do Hempen, um homem chamado Davo. O primeiro oficial seria a pessoa indicada para esconder alguma carga no navio, não acham?
— O que eu quero são dois mil dólares — disse Marcus Davo, com um leve sorriso, sem demonstrar qualquer apreço por Mense, e um pouco preocupado com a expressão fixa do olhar deste.
— Para quê? — perguntou Mense pesadamente.
— Como adiantamento por conta do próximo negócio. Depois de uma pausa relativamente longa, Mense disse:
— Está bem. Há um engradado marcado XZ4153 DAR, esperando para ser carregado. Esconda-o e coloque-o em sua lista de mantimentos do navio. Se fizer isso, eu lhe pagarei os dois mil dólares.
Os olhos de Davo brilharam.
— Onde está o engradado? — perguntou.
— A que horas você pode descer para terra?
— Dentro de mais ou menos uma hora.
— Espere-me junto ao guindaste que está trabalhando no porão número três — disse Mense.
Mense desceu do Hempen cinco minutos depois, confiante de que encontrara a melhor maneira de se ver livre do primeiro oficial. Conhecia o operador do guindaste e sabia exatamente como poderia preparar um "acidente" em poucos minutos.
Feito isto, restaria apenas a esposa de Orlick.
Nielsen levou Gideon ao seu carro. Gentian estava de folga naquela manhã e o carro de Peek estava estacionado em fila dupla. Em cinco minutos chegaram à delegacia e Gideon teve a impressão de que ao chegar ali vira o rosto de Krotzner na janela. Quando subiram as escadas, Krotzner levantou-se de sua mesa, sem casaco, camisa limpíssima, gravata com nó perfeito, isto é, vestido com o maior apuro. Com exceção de papéis, nada mais havia na mesa que Gideon pudesse ver. O olhar de Nielsen percorreu todos os cantos e deu a impressão de que poderia facilmente perder o controle de si mesmo. No momento exato em que se sentaram, a porta se abriu e um mensageiro entrou trazendo copos de café, exatamente como fizera em outras ocasiões. O rapaz pôs a bandeja sobre a mesa e olhou para Peek.
— Está bem, meu rapaz, — disse Peek. — Você chegou no momento exato.
Cassidy entrou logo depois e sentou-se na única cadeira ainda vazia. Gideon olhou para os dois e pensou: qual deles será um nova-iorquino típico? Depois olhou para Krotzner, que parecia muito seguro de si mesmo.
— O que há de bom para vermos? — perguntou Nielsen.
— Isto — disse Krotzner. Gideon teve a impressão muito vivida de que Krotzner lhe lembrava Lemaitre quando este último procurava justificar-se de algum ato. Krotzner, de maneira idêntica ao que Lemaitre faria, abriu um mapa que nada mais era senão uma árvore genealógica. Krotzner tinha consigo seis cópias do mapa, as quais foram distribuídas entre os presentes.
— Capitão Nielsen — disse ele — tenho concentrado muito meu pensamento sobre este caso. Tive o cuidado de fazer investigações sobre todas as pessoas que nele estão envolvidas e cheguei à conclusão de que se trata de um crime em que poucas pessoas estão envolvidas. Quando verifiquei que Mense era um deles, isto confirmou o que eu já pensava ser a verdade. Mense, o conferente que trabalhava no pátio de estacionamento dos caminhões, era o homem do Chevrolet verde. Tinha um desses carros, mas disse que o trocou pelo Plymouth preto que vem usando agora. Suas impressões digitais foram encontradas no Chevrolet. Assim sendo, temos o homem onde o queremos. Entretanto, tenho razões para que ele não seja o chefe da quadrilha. Deve haver alguém mais, se bem que possa desde já declarar que se trata de uma organização pequena. Tiveram que usar as mesmas pessoas para executar vários serviços mesmo à custa de riscos muito grandes. O homem que tentou o assalto na Grand Central era uma das testemunhas falsas do acidente, lembram-se? Isto mostra que são poucos os envolvidos no caso. Não acham que faz sentido?
— Algum, — disse Nielsen.
— Muito bom sentido, — Gideon sentiu-se obrigado a dizer. — Esperava não soar muito enfático, porém notou que Krotzner parecia ser-lhe grato.
— Sabemos, em primeiro lugar, que caixas inteiras dessa mercadoria desaparecem. Segundo, que elas desaparecem no pátio de estacionamento de caminhões. Terceiro, que existe um lugar onde elas podem ser escondidas até que passe o perigo. Quarto, que isto só pode ser feito se houver um acordo entre o motorista do caminhão, o encarregado do recebimento e Mense, que algumas vezes substitui o recebedor. Quinto, investiguei e verifiquei que a mesma empresa de transporte trabalha sempre para a Rite-Time e que esta vem empregando os mesmos motoristas há cerca de dez anos.
— Qual é a empresa de transporte?
— Trata-se de uma pequena empresa com sede em Buffalo, onde os relógios Rite-Time são fabricados, e com um depósito em Jersey City.
Krotzner hesitou e Gideon sentiu que havia algo que relutava em dizer.
— Será que essa empresa não tem nome? — perguntou Nielsen.
— Certamente que tem nome. Trata-se da Empresa de Transportes Silvermann. Seu proprietário é um homem chamado Daniel Silvermann. Falei com Silvermann e notei que ele é de origem sulista.
— Danny! O homem que falou com Orlick! — exclamou Gideon.
— Penso que sim — disse Krotzner, quase pedantemente. — Sexto, o roubo tinha que ser guardado até que aparecesse um navio apropriado, com um comandante que cooperasse. Seria bastante fácil embarcar um engradado grande, dois, ou talvez três, no Maruna ou no Hempen acompanhados de conhecimentos genuínos, assim como de outros documentos, mostrando que eram destinados a Dacar, digamos, ou mesmo Dar-es-Salam, ou ainda a qualquer porto africano. Sétimo, não seria difícil persuadir o guarda nesse porto africano para não se preocupar com o fato de estar faltando um volume; seria muito diferente se se tratasse de um volume em excesso, mas no caso seria apenas uma falta e, sejamos francos, qual é o guarda que se preocupa com uma falta? E o consignatário no porto africano não reclamaria a mercadoria, pelo simples fato de que não haveria um consignatário.
Krotzner fez uma pausa, olhou à sua volta, dando a impressão de que desejava perguntar: "Será que isto faz sentido?" Em lugar disso, apanhou seu copo de café, tirou a tampa e bebeu todo o conteúdo. Depois esmagou o copo de papel.
— Oitavo, tal mercadoria poderia facilmente ser mantida no porão. Nono, conhecimentos e outros documentos forjados poderiam então ser enviados à Cia. de Relógios Orlova, em Aldgate, Londres, S. E. Ela está sempre recebendo diversas outras mercadorias. Os documentos confeririam com os do navio. Assim, tudo estaria legalizado por ocasião da chegada do navio à Inglaterra. Décimo, essas mercadorias, depois de despachadas, seriam levadas para os armazéns da Orlova, chegando lá seis, ou talvez nove meses depois de terem sido roubadas. O que poderia ser mais seguro? Haveria um lucro muito alto, eles escapariam com o embarque completo. Vendo como o negócio poderia tornar-se importante, Orlick veio aos Estados Unidos a fim de tomar medidas para incrementá-lo. Décimo primeiro, ele teve a má sorte de viajar no mesmo navio que o Inspetor Gideon. Teve a pouca sorte de ver Inglemann Brown mexer com sua esposa, o que o tornou furioso, e teve o azar de ver Brown querer processá-lo pelos danos causados. Silvermann e Mense não podiam correr o risco de ver a publicidade a que seu agente britânico seria submetido. Tinham duas razões muito fortes para temer. Orlick podia tornar-se perigoso, era bastante ver o que podia acontecer se alguém procurasse conquistar sua esposa. Por outro lado, o mesmo poderia acontecer sob a pressão de uma ação movida por Brown. O único meio de evitar que isso acontecesse era fazê-lo desaparecer. Concordaram comigo? Ninguém respondeu.
— Passei a noite toda trabalhando neste caso, — Krotzner continuou, e seus olhos mostravam que, na realidade, não havia dormido. A Empresa de Transportes Silvermann tem um contrato com a Rite-Time. Assim, não têm dificuldade em verificar quando um engradado pode ser escondido até que chegue a oportunidade de embarcá-lo. — Krotzner fora levado por seu entusiasmo, a ponto de esquecer de numerar os diferentes estágios de sua história. — Aquele engradado de relógios Rite-Time marcado com a mancha de óleo, foi o que me preocupou. Sim, senhor, ele me preocupou bastante. Fez com que eu sentisse que havia deixado escapar algo que estava bem na minha frente mas que não queria acreditar fosse a realidade. Por isto, comecei a pensar com mais afinco. Se aquele engradado não tinha sido deixado no pátio, onde então fora escondido? Onde o tinham colocado? E a resposta me ocorreu.
Krotzner prosseguiu com satisfação intensa:
— A resposta era simples, Inspetor. O engradado poderia ter sido colocado novamente no caminhão. Tinha sido entregue, o recibo fora assinado pelo recebedor no cais do porto. Assim sendo, ninguém notaria sua falta durante muitas semanas, talvez meses. Poderia ser colocado no caminhão e levado para um lugar seguro até que chegasse o momento de embarcá-lo num cargueiro. Esta manhã, pus-me em campo, — prosseguiu Krotzner. — Sim senhor, capitão Nielsen, pus-me em campo para provar o seguinte: no dia do tufão Vera, Mense estava trabalhando como recebedor. Um dia antes do tufão, um dos caminhões da Empresa de Transportes Silvermann estava na fila com uma carga de relógios Rite-Time, porém nenhum caminhão entrou ou saiu do pátio durante dois dias devido à enchente. Aí está a história toda. — Krotzner bateu na mesa. — A história toda para o senhor ver e verificar, capitão, inclusive a razão pela qual levamos tanto tempo para descobrir a verdade. Estávamos procurando as provas do roubo no pátio depois que a carga ali tivesse chegado. Não previmos a possibilidade de a mercadoria ser entregue e retirada pelo mesmo caminhão. Logo que começamos a pensar nessa possibilidade, tudo mais se adaptou à realidade.
Krotzner recostou-se na cadeira, com os braços distendidos e as mãos sobre a mesa. Olhou esperançoso para Nielsen e Gideon. Gideon, por sua vez, pensou como Nielsen reagiria e ficou satisfeito ao notar que este expressava um leve sorriso.
— Como o senhor teria agido num caso como este, em Londres, na Inglaterra, Inspetor?
— Eu teria mandado chamar o tenente Krotzner, — respondeu Gideon. J
As pálpebras de Krotzner fecharam-se como se quisessem esconder sua satisfação. Peek bateu nas costas de Gideon e depois olhou duvidoso, pensando que talvez não tivesse agido direito. Cassidy apertou as mãos e recostou-se na cadeira. Esperou que Nielsen falasse, mas, quando seu chefe permaneceu silencioso, ele disse:
— A pergunta permanece. Vamos a bordo do Hempen, apreendemos aquele velho engradado e fazemos algumas perguntas ao comandante do navio, ou o que é que faremos?...
— Acho que não podemos perder mais tempo, — gritou Krotzner.
Nielsen falou com voz incisiva:
— Vá e fale aos oficiais do Hempen, tenente Krotzner, e detenha qualquer um deles cuja prisão você ache justificável. Em particular, procure espremer o primeiro oficial, um homem chamado Marcus Davo. Cass, dê um telefonema para Buffalo e peça que Silvermann seja inquirido. Precisaremos de uma ordem de extradição, mas o pessoal de lá poderá mantê-lo preso até que esta chegue.
Enquanto dava essas instruções, seus homens começavam a se movimentar rapidamente.
Gideon, observou e ficou maravilhado com a eficiência dos movimentos. Entretanto, sentiu-se convicto de que se estivesse na Scotland Yard, em situação idêntica, teria agido da mesma forma. Sentiu afinidade com Nielsen, comparável à que havia sentido por muitos poucos homens em sua vida profissional. Chegou mesmo a acreditar que Nielsen se sentia com relação a Krotzner de maneira idêntica àquela que ele se sentia com relação a Lemaitre, ou seja, com uma responsabilidade paternal e com satisfação e prazer — por qualquer êxito que o homem chegasse a obter.
Nielsen queria que Krotzner sentisse toda a alegria de seu sucesso.
Não ocorreu a Krotzner, quando este se aproximou do Hempen, a possibilidade de estar em algum perigo físico. Trazia apenas outro detetive consigo, a fim de não causar alarme, e estava certo de que poderia fazer o primeiro oficial falar caso tivesse algo em sua consciência. O cargueiro estava sendo descarregado. Um guindaste suspendia uma enorme rede cheia de barris de mel, numa altura de cerca de seis metros acima de sua cabeça. Um homem descia as escadas do navio, usando o boné de oficial. Parecia jovem e alerta e dava a impressão de que procurava alguém no cais. Isso fez com que Krotzner olhasse em volta e visse Mense de pé junto a uma pilha de barris negros e brilhantes. O oficial chegou a seu lado. e, com um olhar de soslaio, Krotzner viu Mense fazer um sinal com a mão para o operador do guindaste, dando o sinal convencional para deixar a carga cair.
Krotzner olhou repentinamente para cima e viu os barris dançando sobre sua cabeça. Um temor tomou conta de si e ele se jogou de encontro ao oficial, empurrando-o com tamanha força que ambos foram de encontro à escada. Quando ali bateram, os barris caíram ao solo, tão próximos que um chegou a roçar na perna de Krotzner. Com o ruído metálico ainda em seus ouvidos, Krotzner levantou-se e correu para Mense, que, recuando sempre e procurando esconder-se na sombra, se virou e começou a correr.
Krotzner puxou o revólver e deu um tiro. Mense cambaleou, prosseguiu, cambaleou de novo e caiu.
Nielsen esfregou o polegar no indicador, da maneira à qual Gideon já se havia habituado.
— Parece que chegamos ao fim deste caso — disse. — Mense está no hospital mas seu ferimento não é grave. O primeiro oficial do Hempen fez declarações muito completas e confessou que alterava os documentos do navio para que este transportasse mercadoria que sabia ser roubada. Além disso, acusou alguns dos membros da tripulação do Maruna que acaba de partir de Londres. Não temos mais que nos preocupar com a sorte de Kitty Orlick.
— Para uma mulher ainda jovem, ela tem tido pouca sorte,
— disse Gideon.
— Até que ela conheceu os Gideon — Nielsen disse secamente. — Bem. George, você tem agora uma semana pela frente, sem muito o que fazer exceto passear e gozar a vida, antes de seguir para Washington. Você não vai querer que Kitty Orlick fique com vocês.
— Se sei algo sobre essa moça, posso desde já dizer que ela tem suas próprias opiniões — respondeu Gideon. — De quanto tempo livre dispõem você e Claire? J
— De quase todas as noites e do fim-de-semana — disse Nielsen. — Entretanto, tenho que voltar ao gabinete agora. Os relatórios sobre o caso estarão todos lá quando eu chegar e não quero perder qualquer detalhe. Você quer vir comigo?
Gideon pensou: Eu lhe faria a mesma pergunta se ele estivesse em Londres e esperaria que dissesse não. Assim, Gideon apertou os lábios, como se estivesse pensando em aceitar o convite, balançou a cabeça como se relutasse e disse:
— Obrigado, acho que não. Vou-me encontrar com Kate. A não ser que você ache que eu possa ser útil.
— Você será sempre útil — disse Nielsen e seus olhos se enrugaram. — No momento acho que seria muito mais útil lendo suas cartas. — Entregou um envelope grande a Gideon.
— Se você se avistar com Claire, diga-lhe que estarei em casa lá pelas cinco e meia.
— Farei isso com prazer, — prometeu Gideon.
Um motorista da polícia, empertigado e bem vestido no uniforme oficial, levou-o de volta ao apartamento. Gideon abriu as cartas recebidas de Londres. Era óbvio que Lemaitre estava tendo pouca sorte e que Gideon teria um problema a enfrentar logo que regressasse. Sentiu que agora se certificava de que seria um erro dar o lugar de Inspetor-Assistente a Lemaitre. Uma vez afastado de seu subordinado, sem sofrer influências sentimentais ou emocionais, pudera reconhecer que Lemaitre não era o homem indicado para o cargo. Como é que Lem reagiria a isso? Gideon podia deixar para se preocupar mais tarde. Havia um relatório sobre Fadiman, de um só parágrafo, escrito por Miller, que chamou sua atenção.
"A Sra. Fadiman foi encontrada por seu filho, envenenada com estricnina, esta manhã. O veneno foi encontrado num alçapão de um velho pote de guardar chá. As impressões digitais da Sra. Fadiman foram encontradas na parte interna do alçapão. A Sra. Fadiman parece que descobriu o veneno."
Gideon experimentou rápida depressão pensando no que aquela mulher teria sofrido. Por outro lado, sentiu-se levemente satisfeito por ver que o caso Fadiman estava praticamente terminado.
Não abriu cartas de Penélope e Malcolm, deixando que Kate tivesse a alegria de fazê-lo. Gideon saiu do carro e o motorista partiu novamente antes que ele começasse a andar em direção ao apartamento. O porteiro aproximou-se apressadamente. Gideon refletiu sobre como as coisas haviam mudado tão rapidamente a ponto de ele ter observado o táxi amarelo estacionado em frente do edifício e o contorno dos arranha-céus tão distantes. Abriu a porta do apartamento e notou que o silêncio era total. Fechou a porta e chamou:
— Alguém em casa?
Kitty Orlick apareceu e, durante alguns momentos, ele chegou a pensar que fosse sua filha mais velha. Este pensamento desapareceu de sua mente tão depressa como ali surgia.
— Alô, Kitty.
— As Sras. Gideon e Nielsen saíram para fazer compras, — disse Kitty. — Perguntei se havia algo que eu pudesse fazer. Havia alguma roupa para passar a ferro. Voltarão para o almoço e disseram para o senhor esperá-las. — Kitty perscrutava a face de Gideon com o intuito de saber se ele tinha alguma novidade.
— Sim — ele disse. — Terminei meu trabalho e vou descansar durante alguns dias.
Os olhos de Kitty brilharam.
— Terminou?
— Já sabemos quem eram os homens, — Gideon lhe disse.
— Tudo acabou, com exceção da publicidade e você nada mais tem a temer. — Gideon notou que um relaxamento total tomava conta de Kitty e que toda a tensão se lhe esvaía de segundo para segundo. Fez sinal para uma cadeira e disse: — Sente-se Kitty. Descanse.
Ela sentou-se. No momento usava uma blusa cor de mel e calças marrom-escuras. Seu cabelo estava penteado para trás e preso por uma fita de veludo. Parecia refrescada e muito atraente. Gideon desejava que ela voltasse a ser feliz num futuro bem próximo.
Se tudo acabou, só tenho que agradecer ao senhor — disse ela.
— Na realidade, foi um tenente chamado...
— Não — Kitty interrompeu. — Foi o senhor, Sr. Gideon... Hesitou durante alguns momentos, porém ele não falou. — Sr. Gideon, o senhor acha que haverá alguma dificuldade se eu quiser permanecer nos Estados Unidos durante algum tempo?
— Nenhuma, — respondeu. — Estou bem certo disto.
— Acho que isso é o que eu gostaria de fazer — disse Kitty. — Não gostaria de voltar para casa, pelo menos no momento. Não tenho qualquer parente lá, o senhor bem sabe, ninguém mesmo. Não seria capaz de ajudar nos negócios, mesmo que estes continuem. Além disso, não tenho o menor interesse neles. Tenho algum dinheiro e, se agir com cuidado, poderei manter-me até encontrar trabalho. O senhor acha que o capitão Nielsen me ajudaria a obter uma permissão para trabalhar?
— Tenho certeza de que ele fará isto, — disse Gideon. — "Mas, Kitty...
— Quero voltar para o outro hotel a fim de arrumar minhas coisas e pagar a conta. Depois vou deixar parte de minha bagagem num depósito. Espero que o senhor não tome isso como uma ingratidão, mas no momento não quero ver a Sra. Gideon. Sei que ela procuraria fazer-me mudar de idéia, e tentaria convencer-me a permanecer aqui por mais alguns dias. Não quero sentir que lhes estou sendo pesada.
— Kitty, você não vai...
— Sim, vou — ela interrompeu firmemente. — E quanto mais eu tiver o senhor e a senhora Gideon para me apoiar, mais difícil será para mim enfrentar a vida sozinha. De qualquer maneira, terei que fazer isso um dia. Gostaria, se o senhor concordasse, de lhe enviar um cartão postal vez por outra e talvez de vê-lo novamente quando voltar à Inglaterra.
Gideon disse lentamente:
— Há uma coisa que eu bem sei: Minha esposa não lhe perdoará.
Kitty olhou com ansiedade: — De que se trata?
Ela ficará muito triste se você não puser seu endereço em cada cartão postal.
O rosto de Kitty desanuviou-se.
— Oh, eu o farei! E também desejaria poder dizer-lhe obrigado. Na realidade, gostaria de poder fazer isto.
Repentinamente, ela se aproximou de Gideon, chorando novamente, seu corpo convulsionado. Ele a acariciou ternamente e permaneceu muito quieto, sem dizer uma palavra. Logo depois, ela parou de chorar, recuou e limpou os olhos com os dedos.
— Por favor, deixe-me ir — ela disse. — Com licença, — Kitty voltou-se e saiu.
Gideon dirigiu-se para a janela e olhou para a rua. Kate ficaria muito aborrecida, naturalmente, e lhe diria que ele não devia ter deixado a moça ir-se embora.
Sozinho, agora, não pôde resistir à tentação. Abriu as cartas da família, leu-as e sentiu-se feliz. Finalmente levantou-se e dirigiu-se para a televisão onde o escudo do Departamento de Polícia de Nova York permanecia brilhante, embrulhado num cachecol preto. Gideon apanhou o escudo e olhou-o com grande satisfação assim como com orgulho profundo.
A campainha do telefone tocou. Colocou o escudo no lugar onde estava e atendeu ao chamado, ainda um pouco preocupado. Depois de alguns momentos a telefonista disse:
— Um chamado de Washington para o Sr. Gideon. Poderá o Sr. Gideon atendê-lo?
Naturalmente que se tratava de Allingham.
— Sim, aqui fala Gideon.
— Um momento, senhor.
Na realidade passou-se meio minuto antes que Allingham atendesse.
— George?
— O que é que você quer agora? — perguntou Gideon.
— Você — disse Allingham. — Quero que você venha e dê uma olhada no caso, à luz de tudo que conseguimos saber aqui. Não tenho a menor dúvida de que se trata de sabotagem com a finalidade de prejudicar os negócios anglo-americanos. Os resultados podem ser muito maléficos, não somente devido ao estrago das mercadorias como também porque pode criar um sentimento de desconfiança. É importante, George.
— É uma das razões pelas quais estou nos Estados Unidos.
— É por isso também que quero que você venha para Washington.
— Não me apresse — disse Gideon. — Tenho andado pensando. Você já procurou verificar se há algum dano sendo causado na Inglaterra a mercadorias americanas?
Depois de uma longa pausa, Allingham disse:
— Não.
— Por que você não pede ao seu pessoal em Londres para verificar? — perguntou Gideon. — Então, quando eu for para Washington, teremos todos os fatos em mãos. — Enquanto falava, aquela animação familiar e profunda que tanto conhecia apoderou-se dele novamente.
— Um fanático rico ou um grupo de fanáticos podem estar fazendo tudo isso.
Gideon dificilmente poderia esperar para enfrentar seu próximo caso importante.
J. J. Marric
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